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O MARTELO

DE DEUS
A Bíblia e seus críticos

“Não é a minha palavra como fogo”, diz o S ,


“e como martelo que esmaga a rocha?”
J 23.29

GORDON H. CLARK
Este livro estabelece o princípio do sola Scriptura — pela Escritura
somente — de forma abrangente e, todavia, num estilo fácil de ler.
Um entendimento apropriado deste ensino explicado tão
brilhantemente por Clark estabelece o fundamento para uma
cosmovisão cristã.

— Dr. W. Gary Crampton

Sou grato a Felipe Sabino por solicitar que eu comentasse sobre


esta obra, pois me fez olhar para o livro novamente e lembrar como
foi quando o li pela primeira vez. Esse é um dos tratamentos mais
acurados e satisfatórios sobre o tópico. Recebe a minha mais alta
recomendação.
— Vincent Cheung

Esta é uma das melhores obras de Clark — sem exceção. Direta,


simples e muito ortodoxa.
— Jerry Johnson

Uma defesa esplêndida da inerrância da Escritura por uma das


mentes mais afiadas entre os teólogos calvinistas conservadores.
Você se beneficiará ao sentar-se aos pés deste gigante da fé à
medida que ele elogia as Sagradas Escrituras.
— GCB
Copyright @ 2011, de Laura K. Juodaitis
Publicado originalmente em inglês sob o título

God’s Hammer: The Bible and Its Critics


pela The Trinity Foundation,
Post Office 68, Unicoi, Tennessee, 37692, EUA.

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por


E M
SCRN 712/713, Bloco B, Loja 28 — Ed. Francisco Morato Brasília, DF, Brasil — CEP
70.760-620
www.editoramonergismo.com.br

1ª edição, 2020

Tradução: Marcelo Herberts


Revisão: Felipe Sabino de Araújo
Sumário
Prefácio
Agradecimentos
Introdução
1. Como posso saber que a Bíblia é inspirada?
2. A Bíblia como verdade
3. A inspiração verbal ontem e hoje
4. A Sociedade Teológica Evangélica amanhã
5. A revelação divina especial como racional
6. Religião revelada
7. A Escritura Sagrada
8. O conceito de autoridade bíblica
9. A teoria de Hamilton da linguagem e inspiração
10. Que é a verdade?
11. A fé reformada e a Confissão de Westminster

1
Prefácio

Duas áreas da doutrina cristã estão hoje no primeiro plano de


discussão dos acadêmicos nas faculdades e universidades e das
pessoas nos bancos das igrejas: cristologia e bibliologia. Uma tem a
ver com a Palavra escrita de Deus — que é a Bíblia — e a outra com
a Palavra encarnada de Deus — que é Jesus Cristo.
No âmago da discussão cristológica está a pergunta: De onde
obtemos nosso conhecimento sobre a pessoa e obra de Jesus
Cristo? A resposta é bem simples. O único Jesus que a Igreja
conheceu ou pode conhecer é o Jesus da Escritura. Então, se a
Escritura nos diz o que precisamos saber sobre a segunda pessoa
da Trindade, ainda somos deixados com outra pergunta: a fonte (isto
é, a Bíblia e seus 66 livros) da qual obtemos nosso conhecimento
sobre Jesus é um livro confiável? Isso abre a porta para três
possibilidades:

1. A Bíblia está livre de qualquer erro no todo e nas suas


partes.
2. A Bíblia está livre de erro em algumas partes, mas é falsa
em outras.
3. A Bíblia é totalmente não confiável, e não podemos
depender dela para verdade nenhuma.

Quem escolhe qualquer dessas proposições depende de alguma


pressuposição básica que serve de ponto de partida para o
investigador. Em nosso mundo moderno existem basicamente duas
formas pelas quais os homens escrevem teologia, e cada uma
envolve uma pressuposição que acaba por seguir caminhos muito
diferentes.
Com toda a probabilidade, a maioria dos estudiosos no
Ocidente hoje escolheria a opção 2. Marxistas e muitas pessoas que
seguem a denominação unitariana universalista escolheriam mais
provavelmente a opção 3.
Mas quem escreve teologia corretamente parte da
pressuposição de que a Bíblia é um livro divino. Essas pessoas não
negam que houve autores humanos envolvidos na escrituração da
Palavra de Deus. Os escritores das Escrituras Sagradas foram
divinamente inspirados pelo Espírito Santo para serem impedidos de
escrever qualquer coisa que fosse falsa. A autoria divina do Espírito
Santo garantiu que o produto final seria a Palavra de Deus sem
erros, assim como o Jesus histórico era o Filho de Deus sem pecado
que foi concebido pelo próprio Espírito Santo no ventre da Virgem
Maria. Visto que Deus não pode mentir, nenhuma parte da Escritura
é falsa. O Deus onipotente da Escritura não gaguejou no seu
discurso.
Isso nos leva a Gordon H. Clark e suas muitas contribuições
para a defesa da ortodoxia histórica. Neste volume, a pena instruída
desse gigante do século XX é usada para explicar e defender a
doutrina de uma Escritura inerrante. As percepções do Dr. Clark são
informadas pela Escritura. Ele é por excelência o homem deste Livro
Sagrado, a Bíblia.
Poucos sistemas filosóficos (se é que algum) não estiveram
sob o escrutínio desse homem de Deus, e em todos os casos ele os
examinou pelos óculos da revelação divina. Ele tem o raro dom de
ser um lógico brilhante. Usa a lei da contradição com efeitos
notáveis. Conhece e emprega todas as leis da lógica e pode detectar
um erro em qualquer silogismo que desafie essas leis. É implacável
na sua busca da verdade e demonstra de forma brilhante as falácias
lógicas daqueles que denigrem a Escritura ou que, usando de
casuísmo hermenêutico, minam a Palavra de Deus e fazem ela
parecer dizer o que não diz.
É manifestamente lamentável que aqueles que se opõem à
visão de que a Bíblia não tem erros não estão familiarizados ou não
se defrontaram com os escritos desse expositor destemido. Dr. Clark
foi para sua recompensa eterna aos seus 83 anos; mas, embora
esteja morto, continua a falar por meio do legado que nos deixou —
um legado que resistirá ao teste do tempo até aquele que é a
Verdade vir novamente em glória.

— Harold Lindsell

1
Agradecimentos

Nossa gratidão é estendida aos seguintes proprietários de


direitos autorais por sua permissão para reimprimir os ensaios
inclusos neste volume:
Moody Press, Moody Bible Institute of Chicago, Chicago,
Illinois, pela permissão para reimprimir “How May I Know the Bible is
Inspired?” de Can I Trust the Bible?, editado por Howard Vos,
copyright 1963.
Bibliotheca Sacra, Dallas Theological Seminary, Dallas, Texas,
pela permissão para reimprimir “The Bible as Truth”, copyright 1957.
The Presbyterian Journal, Asheville, Carolina do Norte, pela
permissão para reimprimir “Verbal Inspiration: Yesterday and Today”,
copyright 1956.
The Evangelical Theological Society, Jackson, Mississippi, pela
permissão para reimprimir “The Evangelical Theological Society
Tomorrow”, copyright 1966; “Holy Scripture”, copyright 1963, e
“Hamilton’s Theory of Language and Inspiration”, copyright 1972.
Zondervan Publishing House, Grand Rapids, Michigan, pela
permissão para reimprimir “Revealed Religion” de Fundamentals of
the Faith, editado por Carl F. H. Henry, copyright 1969.
Baker Book House, Grand Rapids, Michigan, pela permissão
para reimprimir “Special Divine Revelation as Rational” de Revelation
and the Bible, editado por Carl F. H. Henry, copyright 1958.
Presbyterian and Reformed Publishing Company, Phillipsburg,
New Jersey, pela permissão para reimprimir The Concept of Biblical
Authority, copyright 1979.
Covenant Theological Seminary, St. Louis, Missouri, pela
permissão para reimprimir “What is Truth?” da edição do outono de
1980 de Presbuterion.
O ensaio final “The Reformed Faith and the Westminster
Confession” é um discurso proferido em Weaverville, Carolina do
Norte, em 17 de agosto de 1955.
Introdução

O século XX pode ser um período crucial na história humana, pois as


doutrinas da justificação somente pela fé e da verdade somente
através da Bíblia têm estado sob severo e constante ataque. Esse
ataque, rebatido somente por alguns dentre as dezenas de milhões
de cristãos professos nos Estados Unidos, veio principalmente de
dentro da própria igreja. Ele mostra que os lobos estão no redil; e em
muitos casos se fazendo passar na verdade por pastores.
Ao longo das décadas, o maior defensor da fé cristã no século
XX escreveu vários ensaios em defesa da autoridade, necessidade,
clareza e suficiência da Palavra de Deus — ensaios que coligimos
neste volume. O foco deste livro não está na arqueologia ou história,
mas nos ataques filosóficos que foram levantados contra a ideia de
revelação divina, contra a adequação da linguagem humana, contra
a noção de verdade literal e contra a confiabilidade da lógica
humana. Os críticos da Bíblia no século XX não se contentaram
apenas em impugnar a veracidade de Deus; negaram a capacidade
de Deus de se revelar aos homens em proposições inteligíveis e
afirmaram que a mente do homem é constitutivamente incapaz de
entender as coisas divinas.
Esses críticos são aqui respondidos, e com efeitos
devastadores. A Bíblia é infalível, a lógica é indispensável, a
linguagem é adequada e Deus, sendo onipotente, é capaz de revelar
verdades aos homens. Familiarizado igualmente com a teologia e
filosofia secular quanto com a teologia e filosofia cristã, Dr. Clark
martela os críticos de Deus com as ferramentas da Escritura e da
lógica. Quando termina, os críticos estão achatados e suas vozes
silenciadas. Dr. Clark, emulando os métodos de Cristo de lidar com
seus críticos e defender a verdade, alcança o mesmo efeito, o efeito
que todos os defensores da fé cristã devem visar alcançar: “E
ninguém lhe podia responder palavra”.
— John W. Robbins
Março de 1995
1. Como posso saber que a Bíblia é inspirada?

A questão deste capítulo tem a ver com a inspiração da Bíblia. Ela


deve ser claramente distinguida de outra, com a qual pode ser
confundida: Como posso saber que a Bíblia é verdadeira? Essas
duas questões estão de fato relacionadas, mas não são iguais. Já
foram até mesmo respondidas de maneiras opostas. O movimento
contemporâneo na teologia chamado de neo-ortodoxia alega que a
Bíblia é inspirada, mas também afirma que ela não é totalmente
verdadeira. E, por óbvio, algum outro livro, como The Gathering
Storm [A tempestade iminente] de Churchill, poderia ser totalmente
verdadeiro sem ser inspirado; poderia até mesmo ser chamado de
infalível. Verdade e inspiração, portanto, devem ser distinguidas.
As duas ideias, porém, estão intimamente relacionadas,
especialmente no caso da Bíblia. Os escritores neo-ortodoxos só
podem defender uma Bíblia inspirada mas equivocada porque
mudaram o significado de inspiração. Quando a definição bíblica de
inspiração é usada, não pode haver inspiração sem verdade, ainda
que haja, muitas vezes, verdade sem inspiração. Para o cristão,
portanto, a questão da verdade é uma questão prévia; e, a menos
que a Bíblia seja verdadeira, não há muita utilidade em discutir
inspiração.
Algumas evidências de que a Bíblia é verdadeira são
apresentadas em outros capítulos neste livro. As pesquisas
arqueológica e histórica têm corroborado a história bíblica em
inúmeros casos. Esse material será aqui assumido.
Além de uma evidência histórica da veracidade da Bíblia,
também deve haver algum suporte lógico para a conclusão. Se a
Bíblia faz declarações contraditórias, então, independentemente da
arqueologia e da história, parte da Bíblia deve ser falsa. Podemos
não saber qual metade da contradição é falsa e qual é verdadeira,
mas teríamos logicamente certeza de que ambas não podem ser
verdadeiras.
Não é a finalidade deste capítulo discutir em detalhes qualquer
das supostas contradições. A maioria está baseada em equívocos de
interpretação bastante óbvios. Algumas poucas permanecem como
quebra-cabeças porque não sabemos o bastante sobre as condições
antigas. Embora possamos conjecturar como elas podem ser
explicadas, não temos nenhuma evidência objetiva de que as nossas
conjecturas estão corretas. No entanto, para condenar a Bíblia de
inconsistência, deve haver (1) vários, (2) claros e (3) importantes
exemplos. Mas os exemplos não resolvidos não são muitos, e são
pouco claros ou sem importância. Estamos na liberdade, portanto, de
supor que eles não se provarão em última análise insolúveis.
Então, é a Bíblia inspirada? Sua veracidade ou pelo menos sua
confiabilidade geral é assumida; mas queremos saber se a Bíblia —
a exemplo de The Gathering Storm de Churchill — é apenas um livro
de história casualmente verdadeiro ou se é a Palavra de Deus.

As reivindicações bíblicas
A primeira razão para acreditar que a Bíblia é inspirada é que a
Bíblia afirma ser inspirada. Quando essa razão é dada a um
incrédulo, sua reação imediata quase sempre é o escárnio. Para ele
isso é muito parecido com colocar um mentiroso no banco das
testemunhas e fazê-lo jurar dizer a verdade. Mas por que um
mentiroso? Testemunhas honestas não juram também dizer a
verdade? Mas até um cristão com um conhecimento limitado de
lógica pode objetar a esse procedimento, porque parece incorrer
numa petição de princípio. É circular. Cremos que a Bíblia é
inspirada porque ela faz essa reivindicação, e cremos na
reivindicação porque ela é inspirada e, portanto, verdadeira. Essa
não parece ser a maneira correta de argumentar.
É verdade que nem toda reivindicação é ipso facto verdadeira.
Há falsos testemunhos nos tribunais, há falsos messias e há
revelações fraudulentas. Mas ignorar a reivindicação da Bíblia ou das
testemunhas em geral é uma simplificação e um erro. Suponha, por
exemplo, que a Bíblia realmente diga não ser inspirada. Ou suponha
simplesmente que a Bíblia é completamente silente sobre o assunto
— que ela não faz mais reivindicações de inspiração divina do que
Churchill. Em tal caso, se o cristão afirmasse que o livro é inspirado,
o incrédulo estaria certo em responder que o cristão está indo muito
além das evidências.
Essa resposta é certamente justa. Não há razão para se fazer
afirmações que vão além das que podem ser validamente inferidas
das declarações da Bíblia. Mas porque essa resposta é tão justa, se
conclui que o escárnio do incrédulo ao nosso primeiro comentário é
infundado. O que a Bíblia reivindica é uma parte essencial do
argumento. O cristão está bem dentro dos limites da lógica ao insistir
que a primeira razão para acreditar na inspiração da Bíblia é que ela
faz essa reivindicação.
A verdade de uma conclusão depende da verdade de suas
premissas. Isso quer dizer que o passo seguinte é mostrar que a
Bíblia realmente faz essa reivindicação. Muitas pessoas com um
conhecimento razoável da Bíblia estariam inclinadas a omitir esse
passo como sendo desnecessário. É claro que a Bíblia faz essa
reivindicação. Nem todo mundo, porém, está tão familiarizado com o
que a Bíblia diz. Mesmo aqueles que possuem um conhecimento
razoável podem não perceber quão insistentemente a Bíblia faz essa
reivindicação. E há outros que, incomodados com problemas críticos
e supostas imprecisões e, porém, desejosos de defender a Bíblia
como muito importante ou até mesmo como um documento religioso
necessário, acham que podem descartar a inspiração e ainda assim
defender a Bíblia como uma fonte relativamente confiável de
conhecimento religioso. Essas pessoas podem achar que só existem
alguns erros menores na Bíblia, ou muitos erros, ou — como é
particularmente o caso nos dias de hoje, meados do século XX —
que a Bíblia é uma completa fábula. Todavia se apegam a ela como
se fosse em certo sentido um guia religioso. Essa visão muito
difundida perde toda a aparência de lógica quando é confrontada
com as reivindicações reais de inspiração que encontramos em toda
a Bíblia.

O significado da inspiração
Há ainda outra razão para se fazer um escrutínio das reivindicações
bíblicas de inspiração. Ao fazê-lo, veremos o que a Bíblia quer dizer
com inspiração. Na teologia recente, a Bíblia tem sido chamada de
inspirada no mesmo sentido em que as peças de Shakespeare
podem ser chamadas de inspiradas; isto é, elas são inspiradoras,
entusiasmam, elevam nossas ideias, ampliam nossas visões e dão
uma compreensão da natureza humana. Com base nesse significado
de inspiração, é geralmente dito que nem todas as partes da Bíblia
são igualmente inspiradas. As genealogias são coisas monótonas e
pouco inspiradoras.
Mas será que é isso que a Bíblia quer dizer com inspiração?
Certamente, devemos ter muito cuidado em saber o que queremos
dizer quando discutimos um assunto. Se duas pessoas possuem
dois significados distintos em mente, sua conversa estará em
contradição e uma não conseguirá entender a outra. Da mesma
forma, se uma pessoa estuda sozinha a inspiração (ou outro assunto
qualquer) mas não tem uma concepção clara do que está estudando,
ela pode não confundir mais ninguém enquanto mantiver o
pensamento para si, mas os pensamentos na própria mente serão
confusos e ela não terá compreensão. Infelizmente é o que acontece
com bastante frequência.
Talvez a reivindicação de inspiração mais bem conhecida da
Bíblia seja 2 Timóteo 3.16 (ACF): “Toda a Escritura é inspirada por
Deus e útil para o ensino”, e assim por diante. A palavra inspirada,
com seu prefixo in, dá a impressão de que depois que a Bíblia (ou
um seu livro) foi escrita, Deus inspirou para dentro. Mas a palavra
grega não tem o sentido de inspirar para dentro e sim de soprar para
fora. Deus soprou as Escrituras. Metaforicamente, poderíamos dizer
que as Escrituras são o sopro de Deus. Assim, a reivindicação é na
verdade mais forte do que parece em nossa língua.

Inspiração plenária
O que também se deve observar é a referência a toda a Escritura.
Podemos chamar essa ideia de inspiração plenária da Escritura.
Deus soprou toda ela. As diferenças nas traduções não afetam esse
ponto. A American Standard Version, Weymouth, e a Bíblia alemã
trazem “toda a escritura”; a tradução francesa, a Revised Standard
Version e a Moffatt concordam com a King James. Essa é uma
reivindicação clara de inspiração plenária. A esse versículo se pode
acrescentar João 10.35 (ARC): “a Escritura não pode ser anulada”. O
ponto preciso da observação de Cristo é que toda a Escritura é
autoritativa.
Outra passagem que merece exame é 2 Pedro 1.20, 21 (ACF):
“nenhuma profecia da Escritura é de particular interpretação. Porque
a profecia nunca foi produzida por vontade de homem algum, mas os
homens santos de Deus falaram inspirados pelo Espírito Santo”.
Alguém poderia a princípio se perguntar se há alguma “Escritura”
que não é “profecia”, em cujo caso esse versículo não se aplicaria a
toda a Bíblia — ele se aplicaria somente às profecias da Bíblia e não
ao resto da Escritura. Uma resposta parcial é que Moisés era um
profeta e que, portanto, até mesmo o livro de Levítico pode ser
chamado de profecia. Profecia não é necessariamente previsão; é
qualquer mensagem de Deus. A frase “profecia da Escritura” significa
simplesmente a mensagem divina tal como escrita. Note em seguida
a negativa universal: o versículo diz “nenhuma profecia”. Isso cobre
tudo. Outra dificuldade é a palavra particular. O contraste pretendido,
porém, não é com uma suposta interpretação pública mas com uma
interpretação divina. É por isso que o versículo 21 explica o versículo
20; caso contrário, o segundo versículo não seria uma razão
inteligível para o primeiro. Nenhuma profecia é de particular
interpretação porque a profecia jamais foi trazida pela vontade do
homem, mas homens falaram da parte de Deus, levados pelo
Espírito Santo. Assim, a passagem é uma forte afirmação da origem
divina da mensagem.
Uma vez que a última referência levantou a questão de se toda
a Escritura é profecia, mais alguns versículos relativos a Moisés
podem ser aqui acrescentados. O ponto principal, entretanto, não é
mostrar que Moisés era um profeta mas mostrar a reivindicação
bíblica de inspiração. É claro que Moisés era um profeta. “Este é
aquele Moisés que disse aos filhos de Israel: O Senhor, vosso Deus,
vos levantará dentre vossos irmãos um profeta como eu; a ele
ouvireis” (At 7.37, ARC). “Nunca mais se levantou em Israel profeta
algum como Moisés, com quem o Senhor houvesse tratado face a
face” (Dt 34.10). Este último versículo mostra que Josué era inferior a
Moisés, de sorte que Moisés só poderia ser comparado com Cristo.
O próprio Cristo disse: “Porque, se, de fato, crêsseis em Moisés,
também creríeis em mim; porquanto ele escreveu a meu respeito.
Se, porém, não credes nos seus escritos, como crereis nas minhas
palavras? (Jo 5.46-47).
Que a autoridade profética mencionada em 2 Pedro 1.21 se
aplica a todo o Antigo Testamento é algo mostrado não apenas em
João 10.35, citado anteriormente, mas também em muitas outras
passagens. Romanos 3.2 designa todo o Antigo Testamento como os
oráculos de Deus. Em Lucas 24.44 Jesus coloca a Lei de Moisés, os
Profetas e os Salmos no mesmo patamar. Designações abrangentes
e parecidas são encontradas em Lucas 24.25, 27; Mateus 5.17; 7.12;
11.13; Atos 3.21-22; 26.22, 27; 28.23; Romanos 3.21. Visto que
esses e outros versículos reúnem todo o Antigo Testamento numa
unidade, é possível estender ao todo qualquer autoridade que se
afirme de alguma parte.
Algumas reivindicações muito interessantes são feitas de várias
partes. Em Atos 2.30, Pedro chama Davi de profeta, e o próprio Davi
diz: “O Espírito do S fala por meu intermédio, e a sua palavra
está na minha língua” (2Sm 23.2). Também Cristo (Mc 12.36) diz que
Davi falou pelo Espírito Santo. Citando o salmo 2, o texto de Atos
4.25 afirma que o Senhor falou pela boca de Davi. Isso não é
verdade somente acerca de Davi, como recém explicado, mas Deus
“falou pela boca dos seus santos profetas, desde o princípio do
mundo” (Lc 1.70, ARC).
Sem dúvida, algumas referências específicas aos profetas
posteriores devem ser acrescentadas. Frases simples como “a
Palavra do Senhor veio a mim” e “o Senhor, pois, disse-me” e “Assim
diz o Senhor” são numerosas demais para listar. Elas implicam que
foi o Senhor quem falou pela boca do profeta (considere Mt 1.22;
2.15; At 3.18). Há, no entanto, vários casos em que essa ideia é
explicitamente declarada: “Depois, estendeu o S a mão,
tocou-me na boca e o S me disse: Eis que ponho na tua boca
as minhas palavras” (Jr 1.9; considere 9.12; 13.15; 30.4; 50.1). A
mesma ideia é expressa em Ezequiel 3.1, 4, 11, tanto pictórica
quanto literalmente. Depois de ordenar a Ezequiel que comesse um
rolo de pergaminho que fora escrito por dentro e por fora, o Senhor
determina: “dize-lhe as minhas palavras”.
Tais são as reivindicações feitas pelo e sobre o Antigo
Testamento. Mas o Antigo Testamento anseia por uma revelação
posterior e mais plena, uma revelação na qual as profecias do Antigo
Testamento encontram seu clímax e que, portanto, se não é superior
em autoria, certamente não é inferior. Se a inspiração do Antigo
Testamento pode ser defendida, o caso para o Novo Testamento
deve ser admitido sem mais argumentos. Todavia, para uma maior
completude, algo será dito das reivindicações que o Novo
Testamento faz de si mesmo.
Como o material é extenso, só algumas passagens serão
selecionadas para comentário. Jesus (Mt 11.9-15) afirmou que João
Batista era muito mais que um profeta; era superior a todos os
profetas do Antigo Testamento. Porém, o profeta que fosse menor na
época do Novo Testamento seria um profeta maior que João. Resulta
então que os profetas do Novo Testamento não eram menos
inspirados que seus antecessores.
Romanos 16.25-27 e Efésios 3.4-5 são parecidos. A primeira
passagem fala de um mistério que não foi revelado no Antigo
Testamento mas está agora publicado nos escritos dos profetas do
Novo Testamento. Na segunda passagem, Paulo reivindica para si e
aos demais apóstolos e profetas um conhecimento mais pleno do
que aquele revelado em épocas anteriores.
Em seguida, 1 Coríntios 12.28, ao listar os postos de ofício na
igreja, coloca os apóstolos acima dos profetas. Efésios 4.11 faz a
mesma coisa. Portanto, esses versículos, de forma tão clara quanto
as passagens anteriores, implicam que o Novo Testamento não é
menos autoritativo que o Antigo.
Em 1 Coríntios 14.37, Paulo diz: “Se alguém se considera
profeta ou espiritual, reconheça ser mandamento do Senhor o que
vos escrevo”. Isso carrega essencialmente o mesmo significado que
a reivindicação de Jeremias de que Deus colocou suas próprias
palavras na boca dele, Jeremias.
Uma ideia adicional é encontrada em Colossenses 4.16. Aqui,
Paulo ordena a leitura de suas cartas nas igrejas. Assim como Isaías
ou Jeremias deveria ser lido nas sinagogas, as epístolas foram
constituídas por ordem apostólica como parte da adoração da igreja.
Se alguém objeta dizendo que isso só se aplica às cartas e igrejas
de Colossos e Laodiceia, 1 Tessalonicenses 5.27 amplia a ideia. Aqui
também temos um exemplo da imposição apostólica das Escrituras
do Novo Testamento.
Há muitas passagens pertinentes, mas 2 Pedro 3.15-16 será
usado como último exemplo. Neste lugar, Pedro está falando das
epístolas paulinas: “… como igualmente o nosso amado irmão Paulo
vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada, ao falar acerca
destes assuntos, como, de fato, costuma fazer em todas as suas
epístolas… que os ignorantes e instáveis deturpam, como também
deturpam as demais Escrituras, para a própria destruição deles”.
Aparentemente, considerando a forma como Pedro fala de todas as
epístolas de Paulo, elas são consideradas uma seção do cânon do
Novo Testamento da mesma forma que alguém falaria dos principais
profetas. Ele claramente as tem como uma unidade. Além disso, ele
as classifica com “as demais Escrituras”; isto é, Pedro as coloca pelo
menos em pé de igualdade com o Antigo Testamento. E uma vez que
no versículo 2 do mesmo capítulo Pedro nivela a si mesmo e os
demais apóstolos aos profetas sagrados, pode-se validamente inferir
que a Bíblia como um todo, Antigo e Novo Testamentos, afirma ter
sido soprada por Deus e não pode portanto ser anulada.
Antes de avançarmos das reivindicações bíblicas para a etapa
seguinte do argumento, é preciso ainda fazer um esclarecimento
adicional do significado das passagens citadas. Já foi mostrado que
a Bíblia ensina a inspiração plenária. Inspiração plenária significa
que a Bíblia é inspirada em todas as suas partes. Não há nenhuma
seção que não tenha sido soprada por Deus. Neemias 7, com todos
os seus nomes e números, é tão inspirado quanto João 14.

Inspiração verbal
A seguir, a Bíblia ensina a inspiração verbal. Deus coloca palavras
na boca de Jeremias. Jeremias ou algum outro profeta pode não ter
conseguido apreender a ideia, como sugere 1 Pedro 1.1, mas as
palavras foram as palavras de Deus. É isso que se quer dizer com
inspiração verbal.
Infelizmente os inimigos da inspiração verbal fazem uma
caricatura dela, e o ensino do protestantismo histórico é deturpado.
Visto, portanto, que buscamos ter clareza nas ideias e também expor
os lapsos dos incrédulos, uma digressão se faz aqui necessária.
Os oponentes alegam falsamente que a inspiração verbal é
uma teoria de ditado mecânico. Supõem que quando Deus em
Deuteronômio 18.18 (NVI) diz “… porei minhas palavras na sua
boca” o profeta deve ser considerado uma espécie de ditafone ou, na
melhor das hipóteses, um estenógrafo cuja personalidade só está
minimamente envolvida na transação. Isso obviamente não é
verdade, porque o estilo de Jeremias não é o de Isaías, e Paulo não
escreve como João. Nem Martinho Lutero nem João Calvino nem
teólogos ortodoxos mais recentes como Benjamin Warfield
defenderam alguma vez uma teoria de ditado mecânico. Isso é uma
caricatura inventada pelos incrédulos.
Ao mesmo tempo, cabe ao crente explicar como Deus poderia
colocar suas próprias palavras na boca de um profeta sem reduzi-lo
ao nível de um estenógrafo desinteressado. Isso não é nada difícil. O
mínimo entendimento da relação entre Deus e um profeta nos leva
rapidamente para longe da ideia de um procedimento de escritório
moderno.
Quando Deus quis fazer uma revelação (na época do êxodo ou
cativeiro), não olhou subitamente ao redor, como se pego de
surpresa, perguntando-se que homem poderia usar. Não podemos
supor que ele tenha feito campanha para conseguir um estenógrafo
e que, quando Moisés e Jeremias se candidataram para a posição,
Deus ditou sua mensagem. A relação entre Deus e um profeta não
era nada disso. Um chefe deve aceitar as coisas como elas são; ele
depende de que a escola ou faculdade de negócios tenha ensinado
taquigrafia e digitação ao candidato. Mas se considerarmos a
onipotência e sabedoria de Deus uma imagem muito diferente
emerge. Deus é o Criador. Ele fez Moisés. E quando Deus quis que
Moisés falasse por ele, disse: “Quem fez a boca do homem?… Não
sou eu, o S ?” (Êx 4.11).
Coloque desta maneira: Deus, que opera todas as coisas
segundo o conselho da sua vontade e faz tudo o que lhe apraz, pois
não há quem lhe possa deter a mão ou dizer “Que fazes?”, decretou
desde toda a eternidade libertar os judeus da escravidão pelas mãos
de Moisés. Para este fim, controlou a tal ponto os eventos que
Moisés nasceu numa determinada data, foi colocado na água para
ser salvo de uma morte prematura, foi encontrado pela filha do
Faraó, recebeu a melhor educação egípcia possível, foi conduzido ao
deserto para aprender a paciência e, em cada detalhe, tão preparado
pela hereditariedade e ambiente que, chegado o tempo, a
mentalidade e o estilo literário de Moisés eram instrumentos
precisamente ajustados para falar as palavras de Deus. Entre Moisés
e Deus havia uma união interior, uma identidade de propósitos, uma
cooperação de vontades, de modo que as palavras que Moisés
escreveu eram as palavras do próprio Deus e ao mesmo tempo as
palavras do próprio Moisés.
Essa foi uma pequena digressão com o propósito de expor uma
deturpação liberal da inspiração verbal e, desse modo, tornar ainda
mais clara a posição cristã. É hora agora de voltar à linha principal do
argumento. A inspiração plenária foi definida; a inspiração verbal foi
agora explicada; um esclarecimento precisa ainda ser feito quanto à
reivindicação que a Bíblia faz de si mesma.

Uma revelação escrita


A revelação bíblica, a mensagem que foi soprada por Deus, é uma
revelação escrita. A ideia não é, ou pelo menos não é simplesmente,
que os profetas eram inspirados. É verdade, claro, que eles foram
conduzidos pelo Espírito Santo; mas a alegação bíblica é que Deus
inspirou o que foi escrito. Em 2 Timóteo 3.16, os escritores nem
sequer são mencionados. E não é também uma verdade completa
que o discurso público dos profetas e apóstolos era inspirado. As
Escrituras é que não podem ser anuladas, ou seja, os escritos. A
doutrina da inspiração plenária e verbal se prende em primeiro lugar
à palavra escrita.
No fim do século XIX entrou em uso uma frase que tinha o
propósito de minimizar e de fato negar a inspiração plenária. Os
modernistas frequentemente diziam que a Bíblia “contém” a Palavra
de Deus. Claro, em certo sentido isso é verdade. A Bíblia contém o
Evangelho de João, por exemplo, e este evangelho, ou pelo menos o
capítulo 14, é a Palavra de Deus. A Bíblia contém, assim, a Palavra
de Deus. Mas não é isso o que os modernistas queriam dizer. Eles
queriam dizer que parte da Bíblia não é a Palavra de Deus. E porque
a frase era verdadeira num sentido, serviu como um disfarce
diplomático para intenções modernistas. Poucos crentes na Bíblia
são ainda enganados por essa linguagem; eles sabem que “a Bíblia
contém a Palavra de Deus” significa uma negação de “a Bíblia é a
Palavra de Deus”.
Mas agora, em meados do século XX, o modernismo se tornou
um tanto quanto antiquado, e a neo-ortodoxia tomou seu lugar. Este
movimento inventou uma nova frase enganosa. As pessoas neo-
ortodoxas dizem que a Bíblia é um registro da revelação de Deus.
Essa frase também é verdadeira em certo sentido. Deus se revelou a
Moisés e a Jeremias, e a Bíblia é o registro desses eventos. Esse
sentido verdadeiro, contudo, é um disfarce enganoso para encobrir
um repúdio à posição bíblica. Os escritores neo-ortodoxos, a
exemplo dos modernistas, pretendiam negar que a Bíblia é a Palavra
de Deus. Moisés e Jeremias podem ter recebido revelações, dizem
esses escritores, mas essas revelações podem ter consistido apenas
de eventos históricos, ou possivelmente de emoções subjetivas, mas
não de palavras. A Bíblia se torna assim um registro da experiência
de Moisés em vez de uma mensagem verbalmente inspirada.
Atualmente, muitas pessoas ainda são ludibriadas por essa
frase neo-ortodoxa. Sem dúvida, no futuro se tornará comum o
reconhecimento do seu significado antibíblico. Enquanto isso, é
preciso chamar pacientemente a atenção para todas as passagens
citadas acima. Elas mostram que a Bíblia não se considera um mero
registro de uma revelação passada. Ela é a revelação em si. É em si
mesma a Palavra de Deus. As palavras escritas que Deus inspirou.
Os Escritos que não podem ser anulados.
Até aqui, o argumento mostrou que a Bíblia afirma ser inspirada
e, ao fazê-lo, explicou o que é inspiração. Se o leitor já aceita a Bíblia
como a Palavra de Deus, a pergunta que forma o título deste capítulo
— Como posso (eu) saber que a Bíblia é inspirada? — foi
respondida. Mas talvez o “eu” no título, um leitor deste capítulo, não
aceite a Bíblia como a Palavra de Deus. Tal pessoa dirá: “Sem
dúvida a Bíblia afirma ser inspirada, mas será que a afirmação é
verdadeira?”. A pergunta passa então a ser: “Como se pode provar a
inspiração bíblica para um inquiridor?”.

A prova da inspiração
Já argumentamos que para convencer uma pessoa da inspiração da
Bíblia é adequado e virtualmente indispensável mostrar que a Bíblia
reivindica a inspiração. Se a Bíblia não fizesse essa reivindicação,
seria muito difícil defender a doutrina da inspiração. Ora, embora
nem toda reivindicação seja verdadeira (pois algumas pessoas e
alguns livros fazem reivindicações falsas), a forma em que a Bíblia
reivindica ser inspirada nos limita a uma faixa muito estreita de
escolhas. Só uma pequena fração das reivindicações foi
explicitamente citada neste capítulo. Se todas as referências da
Bíblia à sua própria inspiração fossem citadas, ficaria claro que essa
reivindicação é absolutamente generalizada. Ela não pode ser
considerada um deslize acidental em um ou dois livros nem um
excesso de entusiasmo temporário em um ou dois escritores. A
reivindicação de inspiração permeia toda a Bíblia.
Se Moisés e os profetas estavam equivocados em fazer essa
reivindicação, se os apóstolos também estavam enganados e se
nosso Senhor mantinha ele próprio noções erradas de inspiração
verbal, que garantia pode alguém ter no tocante a outros assuntos
sobre os quais eles escreveram? Existe alguma razão para supor
que homens que estavam tão uniformemente errados quanto à fonte
de sua mensagem poderiam ter tido qualquer percepção superior e
conhecimento preciso da relação do homem com Deus? Por que
deveríamos acreditar hoje que Deus amou tanto o mundo ou que um
pecador é justificado pela fé, se não foi Deus quem deu a João e
Paulo essa informação? E, finalmente, quem pode professar um
apego pessoal a Jesus Cristo e todavia contradizer consistentemente
sua afirmação de que as Escrituras não podem ser anuladas?
Somos limitados, portanto, a uma escolha muito estreita. Ou a Bíblia
é uma fraude sem valor e Jesus era um mártir iludido, ou a Bíblia é
na verdade a Palavra escrita de Deus.
Quando as pessoas veem que estão encerradas nessas duas
escolhas, algumas — porque não podem negar a confiabilidade geral
da Bíblia, como evidenciado pela arqueologia, e porque se sentem
compelidas a reconhecer sua excelência espiritual — são induzidas a
aceitar a inspiração plenária e verbal. Outras, porém, escolhem o
oposto. Reconhecendo com mais clareza que os ensinos da Bíblia
formam uma vestimenta sem costuras, elas coerentemente rejeitam
a Bíblia in toto, repudiam seus ideais e olham com piedade ou
desdém para seu Mestre iludido.
Se um crente quer defender as reivindicações do cristianismo
em face dessa rejeição consistente e, claro, o crente tem a obrigação
de fazê-lo, deve em primeiro lugar considerar a natureza da prova e
do argumento. Seria um erro crasso confiar em um argumento
inválido. É má estratégia subestimar a força do inimigo. Devemos
saber com precisão o que prova o quê. Devemos saber as condições
necessárias de um argumento válido. Sobre quais premissas pode a
conclusão ser baseada? E, se encontramos uma premissa
satisfatória, como podemos levar o incrédulo a aceitá-la? Tudo isso
faz parte da defesa geral do cristianismo conhecida como
apologética. Como, porém, a apologética geral é muito extensa, a
presente discussão se limitará, até onde possível, à inspiração.
Quase um século atrás, Francis L. Patton, conhecido por
batalhar 50 anos na causa do cristianismo conservador, defendeu a
inspiração usando um argumento de quatro etapas. Primeiro, a
crítica histórica mostra que a história da Bíblia está em geral correta.
Segundo, descobrimos então a partir do estilo, da informação e da
harmonia das partes que elas foram escritas por uma agência
sobrenatural. Terceiro, notamos que os escritores reivindicam
inspiração. Portanto, quarto, inferimos que a Bíblia é infalivelmente
inspirada. Patton defendeu o ponto dois da seguinte maneira:
“Sabemos que as doutrinas da Bíblia têm a sanção de Deus. Pois o
que é a história hebraica senão uma longa lição sobre monoteísmo?
[…] O que foi o sistema sacrificial senão uma exposição divina da
doutrina da culpa? […] A excelência inerente dessas doutrinas
testemunha sua origem celestial”.
Hoje esse argumento pareceria ingênuo. O ponto essencial de
Patton é fraco e o suporte que ele dá é mais fraco ainda. Sua visão
da história hebraica, do seu monoteísmo, do propósito do sistema
sacrificial, bem como o estilo e a excelência inerente não são
premissas que um incrédulo aceitará. As pessoas hoje simplesmente
não acreditam que o sistema sacrificial é uma exposição divina de
culpa — e podem achar que a culpa é um sinal de doença mental —
nem concordam que a doutrina bíblica é inerentemente excelente.
A harmonia das partes é um ponto mais valioso. Pois embora o
incrédulo afirme que há inúmeras inconsistências em toda a Bíblia,
uma exposição paciente poderia convencê-lo de que o ensino bíblico
é mais consistente do que ele pensa. Mas o público moderno tem
uma crença arraigada de que a Bíblia é autocontraditória, e é
extremamente difícil convencê-lo do contrário. Todavia, por razões
que se tornarão mais claras à medida que prosseguirmos, a tentativa
de mostrar a consistência lógica da Bíblia é, creio eu, o melhor
método de defesa da inspiração. Mas porque isso é tão intrincado e
difícil, a pergunta naturalmente acaba sendo por um método mais
fácil.
Aqui, mais uma vez, devemos considerar a natureza e os
limites de “prova”. A prova demonstrativa, como a que ocorre na
geometria, depende de axiomas não provados. Por mais válida que a
demonstração seja, se duas pessoas não aceitam os mesmos
axiomas, não serão convencidas pela mesma prova. Haveria então
alguma proposição que tanto o crente quanto o incrédulo aceitariam
sem prova?
Em épocas passadas existiam áreas de concordância. Não
cristãos admitiriam que Deus existe. Durante a Reforma, a
veracidade da Escritura era tão amplamente tomada como certa que
as evidências pareciam fornecer provas conclusivas para qualquer
mente normal. Mas essa situação não existe mais. Não só a maioria
das pessoas rejeita a veracidade da Bíblia, como também muitas
rejeitam a crença em Deus. Lutero e Calvino não tiveram de
enfrentar o instrumentalismo e o positivismo lógico. Hoje essas duas
filosofias têm ampla influência. Em épocas passadas, geralmente se
concordava que os padrões morais de Jesus eram admiráveis. Mas
hoje suas ideias sobre o casamento e os problemas trabalhistas são
rejeitadas até mesmo por algumas ditas igrejas cristãs, e o resto da
moralidade de Jesus é, na melhor das hipóteses, considerado
inadequado.
Quanto mais consistente é a incredulidade, menos se pode
chegar a um acordo. Na medida em que o incrédulo for
inconsistente, podemos forçá-lo a fazer uma escolha. Se de forma
inconsistente ele admira Jesus Cristo ou os valores da Bíblia mas ao
mesmo tempo nega a inspiração plenária e verbal, podemos pela
lógica insistir que ele aceite ambos — ou nenhum dos dois. Mas não
podemos pela lógica impedi-lo de não escolher nenhum dos dois e
de negar uma premissa em comum. Segue-se, na teoria lógica, que
não existe nenhuma proposição sobre a qual um crente consistente e
um incrédulo consistente possam concordar. Portanto, a doutrina da
inspiração, como todas as demais doutrinas cristãs, não pode ser
demonstrada para a satisfação de um incrédulo de pensamento
lúcido.
Se, todavia, pudesse ser mostrado que a Bíblia — a despeito
de ter sido escrita por mais de 35 autores num período de 1500 anos
— é logicamente consistente, o incrédulo teria de considerá-la um
acidente dos mais notáveis. Parece mais provável uma única mente
ter produzido, por supervisão, esse resultado do que ele
simplesmente ter acontecido por acidente. A consistência lógica,
portanto, é evidência de inspiração, mas não é uma demonstração.
Acidentes estranhos de fato acontecem, e nenhuma prova está
disponível de que a Bíblia não seja um tal acidente. Um acidente
improvável, talvez; mas ainda assim possível.
Como, então, um incrédulo pode ser levado a admitir a
inspiração da Escritura? Ou, porque se trata da mesma pergunta,
como o “eu” passa a aceitar a inspiração?

O testemunho do Espírito Santo


Na época da Reforma, quando Lutero e Calvino apelaram às
Escrituras, a Igreja Romana argumentava que ela e somente ela
conferia autoridade às Escrituras e que os protestantes não
poderiam, portanto, usar de forma legítima as Escrituras sem
primeiro se submeter a Roma. Considerava-se que as pessoas só
poderiam aceitar a Palavra de Deus com base na autoridade da
igreja.
Contra essa alegação, os reformadores desenvolveram a
doutrina do testemunho do Espírito Santo. A crença de que a Bíblia é
a Palavra de Deus, assim ensinaram, não é nem o resultado de um
pronunciamento papal nem uma conclusão inferida de premissas
anteriores; é uma crença que o próprio Espírito Santo produz em
nossa mente. Escreveu Calvino: “Tal é, por conseguinte, a persuasão
que não exige razões: um conhecimento cuja poderosa razão é que
as mentes repousam com mais segurança e constância do que em
quaisquer razões, enfim, um sentimento que só pode nascer da
revelação celeste”.[1]
Essa doutrina é facilmente mal interpretada hoje em dia. O
protestantismo do século XX está em grande parte infectado pela
incredulidade — muito dele mal pode ser considerado cristão. Muitos
grupos pequenos que professam lealdade à Palavra de Deus
perderam, esqueceram ou descartaram seções inteiras da rica
teologia do século XVI e início do século XVII. Eles ensinam um
cristianismo diluído e empobrecido. E subjazendo os dois fatores
está a essência do secularismo e paganismo da nossa civilização.
Assim, a ideia do testemunho do Espírito Santo, se de fato
conhecida, está sujeita a mal-entendidos. Tentemos, portanto,
esclarecê-la em termos simples.
A primeira frase na citação de Calvino inclui o que já foi
enfatizado, e vai além. Não se pode usar razões ou premissas para
provar a autoridade da Escritura, porque o incrédulo consistente não
aceitará nenhuma premissa cristã. Ademais, mesmo o cristão, em
seu próprio pensamento, não pode construir uma demonstração
formal da autoridade da Escritura, porque todos os silogismos
cristãos estão baseados nessa autoridade. Só podemos acreditar na
doutrina da expiação com base na autoridade da Escritura, mas não
podemos acreditar na Bíblia com base na autoridade da expiação.
A segunda frase na citação de Calvino diz que a mente pode
repousar nesse conhecimento com maior segurança do que em
quaisquer razões. Isso é óbvio, pois a segurança de uma conclusão
não pode ser maior do que a da premissa em que ela está baseada.
Que a soma dos quadrados dos dois lados é igual ao quadrado da
hipotenusa não é algo que pode ser mais certo do que os axiomas
dos quais isso é deduzido.
Mas a terceira frase da citação chega ao ponto mais importante.
O problema, desde o início, tem sido como aceitar uma premissa. As
conclusões seguem automaticamente, mas o que faz um homem
aceitar uma proposição inicial? A resposta de Calvino é clara: a
crença na Escritura “só pode nascer da revelação celeste”. E sobre
este ponto de muitíssima importância a possibilidade de mal-
entendidos é maior.
Que é uma revelação celeste? Poderia ser uma mensagem
entregue por anjos, como a recebida por Abraão. Poderia ser o dedo
de Deus escrevendo em tábuas de pedra ou na parede de um
palácio. Poderia ser uma visão, como a que João teve em Patmos. E
coisas como essas, infelizmente, são o que a maioria das pessoas
pensam quando ouvem do testemunho do Espírito. Obreiros cristãos
insensatos, descuidados em sua linguagem, descrevem por vezes
sua experiência em termos radiantes e a enfeitam para além da
realidade. Quando cristãos mais jovens não veem tais visões ou
sonham tais sonhos, sofrem uma desilusão.
Mas há outras formas de revelação. Jesus certa vez perguntou:
“‘E vocês?’, perguntou ele. ‘Quem vocês dizem que eu sou?’ Simão
Pedro respondeu: ‘Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo’. Respondeu
Jesus: ‘Feliz é você, Simão, filho de Jonas! Porque isto não foi
revelado a você por carne ou sangue, mas por meu Pai que está nos
céus’” (Mt 16.15-17, NVI). Pedro não esteve em transe nem teve
uma visão nem ouviu uma voz audível. Na gíria americana moderna,
diríamos que simplesmente ele “acordou”. O que aconteceu foi que o
Espírito produziu essa convicção na mente de Pedro. Eu julgaria que
Pedro não estava de fato consciente da obra do Espírito. Claro,
Pedro estava consciente de que ouviu os sermões de Cristo e viu
seus milagres. Mas o significado de tudo isso só lhe veio naquele
momento. Assim também, quando alguém aceita a Bíblia como a
Palavra de Deus, não tem consciência de qualquer ruptura no
processo psicológico. A pessoa já estava provavelmente lendo a
Bíblia há algum tempo ou quando criança tinha ouvido as lições da
escola dominical, e um dia percebe que acredita que a Bíblia foi dada
por Deus.
A frase “caiu a ficha nele” é a melhor que se pode encontrar no
uso comum. Muitos teólogos comparam a experiência com a
sensação e percepção. Um aluno colegial raciocina sobre seu
problema de geometria, mas simplesmente vê o lápis e o papel. A
visão, portanto, faz um ligeiro contraste com o raciocínio. Todavia,
quando alguém estuda teorias de sensação e aprende as várias
formas em que ela é explicada e quando a sensação é distinguida da
percepção, esse uso metafórico da sensação para ilustrar a obra do
Espírito mais confunde do que ilumina. É melhor (assim me parece)
simplesmente dizer que Deus produziu a crença na mente.
Até aqui, a exposição se limitou à lógica da situação. Ela teve a
ver com a relação que existe entre premissas (ou razões) e
conclusões. Nada ainda foi dito sobre o pecado e seus efeitos na
mente do homem. Houve duas razões para esse atraso. Primeiro, a
lógica da situação requer uma discussão simplesmente porque é
uma parte do assunto; é além do mais aquela parte do assunto que
tem sido menos discutida pelos teólogos. Eles passaram a maior
parte do tempo discutindo o pecado, e evidentemente isso era
necessário, mas acabaram negligenciando a lógica. Essa negligência
é lamentável, pois nestes dias é particularmente a lógica que é
usada contra a posição cristã.
O cristianismo é com frequência repudiado sob a alegação de
que é circular: A Bíblia é autoritativa porque a Bíblia
autoritativamente assim o diz. Mas essa objeção não se aplica ao
cristianismo mais do que a qualquer sistema filosófico ou mesmo à
geometria. Todo sistema de proposições organizadas depende
necessariamente de algumas premissas indemonstráveis, e todo
sistema deve fazer uma tentativa de explicar como essas premissas
elementares vêm a ser aceitas.
A segunda razão para postergar a menção ao pecado se
encaixa na primeira. A situação na lógica permanece a mesma, com
ou sem pecado. Adão a enfrentou antes da Queda. Naturalmente,
Adão não tinha uma Bíblia escrita, mas foi destinatário de uma
revelação. Deus falou com ele. Como então poderia atribuir
autoridade aos mandamentos de Deus? Era possível fazer no jardim
o que é agora impossível — demonstrar a autoridade de Deus?
Evidentemente não. Supor isso seria o mesmo que supor que Adão
poderia deduzir os axiomas da geometria. Tampouco poderia Adão
ter perguntado a Eva e acreditado em suas palavras. E ele
certamente não poderia ter apelado a Satanás para provar a
autoridade de Deus. Em vez disso, como Deus é soberano, a
autoridade de Deus só pode ser aceita com base na autoridade de
Deus. Como diz a Escritura, “visto que não tinha ninguém superior
por quem jurar, jurou por si mesmo” (Hb 6.13).

O fator do pecado
Porém, o pecado é agora um fator; e embora não altere a situação
lógica básica, suas complicações não podem passar despercebidas.
Além do mais, é em relação ao pecado e à redenção que a Bíblia dá
algumas informações importantes aplicáveis à questão da crença na
inspiração.
Quando Adão caiu, a raça humana não se tornou estúpida, de
modo que a verdade seria difícil de entender, mas hostil à aceitação
da verdade. Os homens não gostavam de reter Deus em seu
conhecimento, e assim mudaram a verdade de Deus em mentira,
pois a mente carnal é inimizade contra Deus. Logo, a pregação da
cruz é loucura para os que se perdem, pois o homem natural não
aceita as coisas do Espírito de Deus porque elas se discernem
espiritualmente. Para aceitar o Evangelho, portanto, é necessário
nascer de novo. O intelecto anormal e depravado deve ser refeito
pelo Espírito Santo; o inimigo deve ser feito amigo. Essa é a obra da
regeneração; o coração de pedra pode ser tirado e um coração de
carne pode ser dado somente pelo próprio Deus. Ressuscitar um
homem que está morto no pecado e dar-lhe nova vida, longe de ser
uma façanha humana, requer nada menos que um poder onipotente.
É impossível, portanto, mediante apenas argumentação ou
pregação fazer com que alguém creia na Bíblia. Só Deus pode levar
a essa crença. Ao mesmo tempo, isso não significa que a
argumentação não tem utilidade. Pedro diz para estarmos “sempre
prontos para fazer uma defesa perante todo aquele que lhes exigir
uma razão para a esperança que vocês têm” (1Pe 3.15). Essa era a
prática constante dos apóstolos. Estêvão discutiu com os libertinos; o
Concílio de Jerusalém debateu; em Éfeso, Paulo debateu por três
meses na sinagoga e depois continuou discorrendo na escola de
Tirano (At 6.9; 15.7; 19.8, 9; compare com At 17.2; 18.4, 19; 24.25).
Quem não está disposto a argumentar, debater e arrazoar é desleal
ao seu dever cristão.
Neste ponto vem naturalmente a pergunta: qual é a utilidade de
toda essa exposição e explicação, se não produz uma crença? A
resposta deve ser entendida com clareza. O testemunho do Espírito
Santo é um testemunho de algo. O Espírito testemunha da
autoridade da Escritura. Se nenhum apóstolo ou pregador expusesse
a mensagem, não haveria nada na mente do pecador de que o
Espírito pudesse testemunhar. O Espírito não pode produzir uma
crença em Cristo a menos que o pecador tenha ouvido falar de
Cristo. “Como, pois, invocarão aquele em quem não creram? E como
crerão naquele de quem não ouviram? … De sorte que a fé é pelo
ouvir, e o ouvir pela palavra de Deus” (Rm 10.14, 17, ARC).
Sem dúvida, Deus em sua onipotência poderia revelar as
informações necessárias a cada homem individualmente sem uma
Bíblia escrita ou pregação ministerial. Mas não é isso o que Deus
fez. Deus atribuiu aos apóstolos e pregadores o dever de expor a
mensagem; mas a produção da crença é obra do Espírito, pois a fé é
um dom de Deus.
Esta é parte da razão de ser dito acima que o melhor
procedimento para nós, se queremos que alguém aceite a doutrina
da inspiração plenária e verbal, é expor a Escritura em detalhes.
Também podemos usar a arqueologia e crítica histórica, mas a
principal tarefa é comunicar a mensagem da Bíblia na linguagem
mais compreensível que pudermos.
É de se notar também que o pecador, sem qualquer obra
especial do Espírito, pode entender a mensagem. A crença na sua
verdade e o entendimento do seu significado são duas coisas
distintas. A Bíblia pode ser entendida pelos mesmos métodos de
estudo usados em Euclides ou Aristóteles. A despeito de algumas
ressalvas piedosas, é verdade que incrédulos antagonistas muitas
vezes entendem melhor a Bíblia do que cristãos devotos. Os fariseus
viram o significado das reivindicações de divindade de Cristo mais
rapidamente e com mais clareza que os discípulos.
Quando perseguia os cristãos em Jerusalém e partiu para
Damasco, Paulo entendia as palavras “Jesus é Senhor” tão bem
quanto qualquer um dos doze. Precisamente porque as entendia tão
bem é que perseguia tão zelosamente. Se ele estivesse incerto do
significado, não teria sido tão ativo. O problema é que Paulo não
acreditava no significado; ao contrário, acreditava que era falso.
Então, na estrada para Damasco, Cristo lhe apareceu e fez com que
acreditasse que a declaração era verdadeira. Paulo no momento
após sua conversão não passou a entender a frase nem um pouco
melhor do que já entendia um momento antes. Sem dúvida, nos anos
seguintes, Deus lhe revelaria mais informações para serem usadas
nas epístolas. Mas naquele momento Cristo não ampliou o
entendimento de Paulo nem um pouquinho que fosse; ele o fez
receber, aceitar ou acreditar o que já entendia muito bem. É assim
que o Espírito testemunha da mensagem anteriormente comunicada.
Uma forte ênfase deve ser colocada na obra do Espírito Santo.
O homem está morto no pecado, é um inimigo de Deus, opõe-se à
toda retidão e verdade. Ele precisa ser mudado. Nem o pregador,
nem tampouco o próprio pecador pode causar a mudança. Mas
“Bem-aventurado aquele a quem escolhes e aproximas de ti” (Sl
65.4). “… tirarei da sua carne o coração de pedra e lhes darei
coração de carne” (Ez 11.19; 36.26, 27). “… e creram todos os que
haviam sido destinados para a vida eterna” (At 13.48). “Mas Deus…
estando nós mortos em nossos delitos, nos deu vida juntamente com
Cristo” (Ef 2.4-5). “Porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer
como o realizar, segundo a sua boa vontade” (Fp 2.13). “Porque
Deus vos escolheu desde o princípio para a salvação, pela
santificação do Espírito e fé na verdade” (2Ts 2.13). “Pois, segundo o
seu querer, ele nos gerou pela palavra da verdade” (Tg 1.18).
Esses versículos, que se referem principalmente à
regeneração, são aplicáveis à nossa aceitação da Bíblia como a
própria Palavra de Deus. De fato, a nova vida que é iniciada com o
segundo nascimento — a vida para a qual somos ressuscitados da
morte do pecado — é precisamente a vida da fé; e uma fé completa
inclui a inspiração plenária e verbal da mensagem da salvação. Ela é
dom de Deus.
É por isso que o maior de todos os credos resultantes da
Reforma, a Confissão de Westminster (I:IV-V), diz:
A autoridade das Escrituras Sagradas, razão pela qual devem ser
cridas e obedecidas, não depende do testemunho de qualquer
homem ou igreja, mas depende somente de Deus (a mesma
verdade) que é o Autor; tem, portanto, de ser recebida, porque é a
Palavra de Deus.
… a nossa plena persuasão e certeza da sua infalível verdade e
divina autoridade provêm da operação interna do Espírito Santo
que pela Palavra e com a Palavra testifica em nossos corações.

Em última análise, portanto — embora a confirmação histórica e


arqueológica da precisão da Bíblia seja de grande interesse para nós
e um grande embaraço para os incrédulos —, a convicção de que a
Bíblia é realmente a Palavra de Deus não pode ser a conclusão de
um argumento válido baseado em premissas mais claramente
evidentes. Essa convicção é produzida pelo próprio Espírito Santo.
É preciso ter sempre em mente que a proclamação do
Evangelho faz parte de uma luta espiritual contra os poderes
sobrenaturais do maligno, e a vitória só vem através da graça
onipotente de Deus. Consequentemente, assim como Jesus explicou
sua missão a Pedro e aos fariseus, devemos hoje expor e explicar a
Escritura em toda a sua plenitude a todos os tipos de homens; e
poderemos então estar seguros de que nosso Pai Celestial revelará
sua verdade a alguns deles.
2. A Bíblia como verdade

Num jogo de xadrez, um jogador pode ficar tão concentrado numa


situação complicada que, tendo examinado várias possibilidades e
projetado cada uma o mais longe possível, finalmente percebe uma
combinação brilhante pela qual pode ganhar um peão em cinco
movimentos, apenas para descobrir que perderá com isso sua
rainha. Da mesma forma, quando investigações teológicas são
aprofundadas por um tempo considerável e em grande detalhe, é
possível perder de vista o óbvio. Na atual conjuntura das discussões
sobre revelação, é minha opinião que o que mais precisa ser dito é
algo óbvio e elementar. Este artigo, portanto, é uma defesa da
simples tese de que a Bíblia é verdadeira.
Essa tese, porém, não deriva sua motivação central de
qualquer ataque à historicidade das narrativas bíblicas. A crítica
destrutiva do século XIX ainda tem grande influência, mas foi ferida
mortalmente pelas mãos da arqueologia do século XX. Ainda que
possa ser forçada a aceitar a Bíblia como um relato
excepcionalmente preciso de eventos antigos, uma nova forma de
incredulidade agora nega, sobre bases filosóficas, que a Bíblia é ou
poderia ser uma revelação verbal de Deus. Tão persuasivos são os
novos argumentos — não apenas apoiados por um raciocínio
impressionante, mas apelando inclusive a princípios bíblicos que
todo crente ortodoxo aceitaria —, que teólogos conservadores
professos têm-nos aceitado em maior ou menor grau e desse modo
traído ou invalidado a tese de que a Bíblia é verdadeira.
Como a discussão é filosófica e não arqueológica, e poderia
portanto ser aprofundada numa duração sem fim, alguns limites e
algumas omissões devem ser aceitos. Teorias da verdade são
notoriamente complexas; ainda assim, é impossível evitarmos
considerar a natureza da verdade se quisermos saber o significado
quando dizemos que a Bíblia é verdadeira. Para começar, é preciso
dizer que a verdade das declarações da Bíblia é o mesmo tipo de
verdade alegada para declarações ordinárias como “Colombo
descobriu a América”, “2 + 2 = 4” e “um corpo em queda livre acelera
a 9,8 m/s2”. No que diz respeito ao significado da verdade, a
declaração “Cristo morreu pelos nossos pecados” está no mesmo
patamar de qualquer afirmação ordinária e cotidiana que seja
verdadeira. Estes são, é claro, exemplos, e não constituem uma
definição da verdade. Mas nos exemplos está embutida a suposição
de que a verdade é uma característica unicamente das proposições.
Nada pode ser chamado de verdadeiro, no sentido literal do termo,
que não seja a atribuição de um predicado a um sujeito. Há, sem
dúvida, usos figurados, e é legítimo falar de um homem como sendo
um verdadeiro cavalheiro ou verdadeiro erudito. Também se discute
qual é a verdadeira igreja. Mas esses usos, embora legítimos, são
derivados e figurados. Ora, a simples tese deste artigo é que a Bíblia
é verdadeira no sentido literal de verdadeira. Depois que se obteve
uma compreensão completa do significado literal, os vários
significados figurados podem ser investigados; mas seria uma tolice
começar com figuras de linguagem antes de o significado literal ser
conhecido.
Essa tese de que a Bíblia é literalmente verdadeira não implica
que a Bíblia é verdadeira literalmente. Ocorrem figuras de linguagem
na Bíblia, e elas não são verdadeiras literalmente; são verdadeiras
figurativamente. Mas são literalmente verdadeiras. As declarações
podem estar em linguagem figurada, mas quando se diz que são
verdadeiras o termo verdadeiras deve ser entendido literalmente.
Essa tese elementar simples, porém, não teria sentido na prática
sem uma tese companheira. Se as declarações verdadeiras da Bíblia
não pudessem ser conhecidas pela mente humana, a ideia de uma
revelação verbal seria inútil. Se Deus falasse uma verdade mas
falasse de um modo que ninguém pudesse ouvi-la, essa verdade não
seria uma revelação. Por isso, a tese dupla deste artigo, dupla mas
ainda assim elementar, é que a Bíblia — à parte das perguntas e
mandamentos — consiste de declarações verdadeiras que os
homens podem conhecer. De fato, isso é algo tão elementar que
pode parecer incrível que algum teólogo conservador o negue. Mas
há alguns conservadores professos que negam isso explicitamente e
outros que, sem negar explicitamente, minam e invalidam isso
mediante outras afirmações. A primeira coisa que deve ser
considerada, portanto, são as razões, supostamente derivadas da
Bíblia, para negar ou invalidar o conhecimento humano de suas
verdades.

O efeito do pecado no conhecimento do homem


A doutrina da depravação total ensina que nenhuma parte da
natureza humana escapa da devastação do pecado, e entre as
passagens nas quais essa doutrina está baseada estão algumas que
descrevem os efeitos do pecado no conhecimento humano. Por
exemplo, quando Paulo diz em 1 Timóteo 4.2 que certos apóstatas
têm sua consciência cauterizada, deve não apenas estar querendo
dizer que eles cometem atos iníquos, mas também que pensam
pensamentos iníquos. Sua capacidade de distinguir o certo e o
errado está debilitada, e assim dão atenção a espíritos sedutores e
doutrinas de demônios. Portanto, sem negar nem um pouco que o
pecado afetou sua volição, é preciso afirmar que o pecado também
afetou seu intelecto. E, embora Paulo tenha em mente uma classe
particular de pessoas que eram sem dúvida mais perversas do que
as outras, a semelhança da natureza humana e a natureza do
pecado forçam à conclusão de que, embora talvez não no mesmo
grau, a mente de todos os homens está debilitada. Mais uma vez,
Romanos 1.21, 28 fala de gentios que se tornaram vãos em suas
imaginações e cujo coração insensato se obscureceu; quando não
mais quiseram reter Deus em seu conhecimento, Deus os entregou a
uma disposição mental reprovável. Em Efésios 4.17, Paulo mais uma
vez alude à vaidade da mente e ao entendimento obscurecido dos
gentios, que estão alienados da vida de Deus pela ignorância e
cegueira. Essa ignorância e cegueira não são apenas traços gentios,
mas também caracterizam os judeus, e portanto a raça humana
como um todo pode ser vista na condenação sumária de todos os
homens em Romanos 3.10-18, onde Paulo diz que não há quem
entenda. E, é claro, há declarações gerais no Antigo Testamento:
“Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e
desesperadamente corrupto” (Jr 17.9).
Esses efeitos noéticos do pecado têm sido usados para apoiar
a conclusão de que um homem não regenerado não pode entender o
significado de nenhuma sentença da Bíblia. A partir da afirmação
“não há quem entenda” se poderia pensar que, quando a Bíblia diz
“Davi… tomou dali uma pedra… e feriu o filisteu na testa”, o
incrédulo não pode saber o que as palavras significam.
Os primeiros representantes desse tipo de visão, que serão
aqui discutidos, estão concentrados na faculdade do Seminário
Teológico Westminster na Filadélfia, Pensilvânia. Cornelius Van Til e
alguns de seus colegas prepararam e assinaram um documento no
qual repudiam uma declaração específica acerca da capacidade
epistemológica do homem não regenerado. Certo professor, eles se
queixam, “não faz nenhuma distinção qualitativa absoluta entre o
conhecimento do homem não regenerado e o conhecimento do
homem regenerado”.[2] Essa declaração não implica apenas que o
incrédulo acha menos fácil entender que Davi golpeou o filisteu; mas,
ao afirmar uma distinção qualitativa absoluta entre qualquer
conhecimento que o incrédulo derive dessa declaração e o
conhecimento que o homem regenerado deriva, a citação também
sugere que o homem não regenerado simplesmente não consegue
entender as proposições reveladas ao homem.
Em outro artigo, dois colegas de Van Til dizem que é “errado”
defender que a “regeneração… não é uma mudança na
compreensão dessas palavras”.[3] Segundo eles, também é errado
dizer que “quando o homem é regenerado, sua compreensão da
proposição pode não sofrer nenhuma mudança de fato, [mas] o
homem não regenerado pode atribuir exatamente o mesmo
significado às palavras… que o homem regenerado”.[4] Como essas
são posições que eles repudiam, sua opinião deve ser precisamente
o contraditório disso — ou seja, que o homem não regenerado
jamais pode atribuir exatamente o mesmo significado às palavras
que o homem regenerado, que a regeneração sempre e
necessariamente muda o significado das palavras que um homem
conhece e que não é possível o não regenerado e o regenerado
entenderem uma sentença no mesmo sentido. Esses senhores
apelam a 2 Coríntios 4.3-6, onde é dito que o Evangelho está
encoberto para os que se perdem, e a Mateus 13.3-23, onde as
multidões escutam a parábola mas não a entendem. Essas duas
passagens da Escritura supostamente provam que “o entendimento
[do cristão] nunca é igual ao do homem não regenerado”.
Como uma breve resposta, podemos fazer a observação de
que, embora o Evangelho esteja encoberto para os que se perdem, a
passagem não afirma que os que se perdem são completamente
ignorantes e não sabem absolutamente nada. Assim também, as
multidões entenderam o significado literal da parábola, embora nem
elas nem os discípulos entendessem o que Cristo estava ilustrando.
Admitamos que pela regeneração o Espírito Santo ilumina a mente e
nos leva gradualmente a mais verdades, mas a Escritura certamente
não ensina que os filisteus não conseguiram entender que Davi
matara Golias. Esse ponto de vista não tem sido comum entre os
escritores reformados; apenas um, porém, será citado como
exemplo. Abraham Kuyper, em sua Encyclopedia of Sacred Theology
[Enciclopédia da Teologia Sagrada],[5] após especificar oito pontos
nos quais estamos sujeitos a erros por causa do pecado, acrescenta:

O obscurecimento do entendimento… não significa que perdemos


a capacidade de pensar logicamente, pois, até onde o impulso de
sua lei da vida está em questão, a lógica não [itálico seu] foi
debilitada pelo pecado. Quando isso acontece, resulta uma
condição de insanidade… o pecado enfraqueceu a energia do
pensamento… [mas] a consciência humana universal é sempre
capaz de superar a lentidão e corrigir esses equívocos no
raciocínio.

Ao defender assim a capacidade epistemológica do homem pecador,


Kuyper pode até ter subestimado os efeitos noéticos do pecado.
Talvez nem sempre a consciência humana seja capaz de superar a
lentidão e corrigir equívocos no raciocínio. O ponto que eu gostaria
de enfatizar é que às vezes isso é possível. Um homem não
regenerado pode conhecer algumas proposições verdadeiras e pode
às vezes raciocinar corretamente.
Para evitar cometer uma injustiça contra Van Til e seus colegas,
é preciso afirmar que às vezes eles parecem fazer afirmações
contraditórias. No decorrer dos seus artigos é possível encontrar um
parágrafo no qual eles parecem aceitar a posição que estão
atacando e então prosseguem com o ataque. Qual pode ser a
explicação, senão que estão confusos e que tentam combinar duas
posições incompatíveis? A posição objetável está em harmonia
substancial com o existencialismo ou neo-ortodoxia. Mas a discussão
sobre os efeitos noéticos do pecado na mente não regenerada não
precisa mais ser levada adiante, porque um assunto mais sério rouba
a atenção. A influência neo-ortodoxa parece produzir o resultado de
que até mesmo o homem regenerado não pode conhecer a verdade.

As limitações epistemológicas do homem


Que o homem regenerado assim como o não regenerado está sujeito
a certas limitações epistemológicas, que essas limitações não são
totalmente resultado do pecado, mas inerentes ao fato de o homem
ser uma criatura, e que mesmo na glória essas limitações não serão
removidas, é declarado ou está implícito em várias passagens
bíblicas. A natureza dessas limitações é algo diretamente relevante
para qualquer teoria de revelação, pois essas limitações podem ser
tão insignificantes que o homem é quase divino ou tão extensas que
o homem não pode entender nada sobre Deus. Inicialmente serão
listadas algumas passagens bíblicas, mas não todas, que são
usadas nesse debate: “Você consegue perscrutar os mistérios de
Deus? Pode sondar os limites do Todo-poderoso?” (Jó 11.7, NVI);
“Eis que Deus é grande, e não o podemos compreender; o número
dos seus anos não se pode calcular” (Jó 36.26); “Tal conhecimento é
maravilhoso demais para mim: é sobremodo elevado, não o posso
atingir” (Sl 139.6); “Porque os meus pensamentos não são os vossos
pensamentos, nem os vossos caminhos, os meus caminhos” (Is
55.8); “Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do
conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e
quão inescrutáveis, os seus caminhos! Quem, pois, conheceu a
mente do Senhor? Ou quem foi o seu conselheiro? (Rm 11.33-34);
“Assim, também as coisas de Deus, ninguém as conhece, senão o
Espírito de Deus” (1Co 2.11).
Esses versículos são apenas amostras, e muitos versículos
semelhantes poderiam ser facilmente lembrados. Vários deles
parecem dizer que é impossível ao homem conhecer Deus. Não
conseguimos perscrutá-lo; não o compreendemos; não posso atingir
esse conhecimento; os pensamentos de Deus não são os nossos;
ninguém conhece a mente do Senhor e ninguém conhece as coisas
de Deus. Facilmente se poderia concluir que o homem é totalmente
ignorante e que, não importa quão diligentemente examine a
Escritura, nunca obterá o menor vislumbre do pensamento de Deus.
É claro, na mesma passagem que diz que nenhum homem conhece
as coisas de Deus há a mais forte afirmação de que aquilo que olhos
não viram nem jamais penetrou em coração humano nos foi revelado
pelo Espírito de Deus “para que conheçamos o que por Deus nos foi
dado gratuitamente”. Não surpreende, portanto, que algumas
tentativas de expor a posição bíblica sejam tão confusas realmente
quanto parece ser o material bíblico. Devemos todos concordar com
muitas declarações desses teólogos; mas outras declarações,
interpretando mal a Escritura no interesse de alguma visão esotérica
da verdade, devem ser rejeitadas.

O conhecimento do homem em relação ao conhecimento de Deus


Afirmam os professores acima mencionados: “há uma diferença
qualitativa entre o conteúdo do conhecimento de Deus e o conteúdo
do conhecimento possível ao homem”.[6] Que há uma
importantíssima diferença qualitativa entre a situação do
conhecimento no caso de Deus e a situação do conhecimento para o
homem é algo que não se pode negar sem com isso repudiar todo o
teísmo cristão. Deus é onisciente; seu conhecimento não é adquirido
e seu conhecimento, de acordo com a terminologia comum, é
intuitivo, ao passo que o do homem é discursivo. Essas são algumas
das diferenças, e a lista sem dúvida poderia ser ampliada. Mas se
tanto Deus quanto o homem conhecem, deve haver com as
diferenças pelo menos um ponto de similaridade; porque se não
houvesse nenhum ponto de similaridade, seria inadequado usar o
termo único conhecimento em ambos os casos. Se este ponto de
similaridade deve ser encontrado no conteúdo do conhecimento ou
se os conteúdos diferem, isso depende do que se entende pelo
termo conteúdo. Portanto, são necessárias declarações redigidas de
forma mais específica.
A teoria em discussão segue dizendo: “Não ousamos manter
que seu conhecimento e o nosso conhecimento coincidem em
qualquer único ponto”.[7] Os autores repudiam outra visão pelo
motivo de que “uma proposição teria de ter o mesmo significado para
Deus e para o homem”.[8] Essas declarações não são de forma
alguma vagas. A última identifica conteúdo e significado, de modo
que o conteúdo do conhecimento de Deus não é o caráter intuitivo
desse conhecimento, por exemplo, mas o significado das
proposições — como Davi matou Golias. Duas vezes se nega que
uma proposição possa significar a mesma coisa para Deus e para o
homem, e para tornar isso inequívoco eles dizem que o
conhecimento de Deus e o conhecimento do homem não coincidem
em qualquer único ponto. Aqui repetiremos que, se não há um único
ponto de coincidência, é inútil usar o termo único conhecimento para
Deus e para o homem. Ao atacar o cristianismo, Spinoza
argumentou que o termo intelecto era completamente ambíguo se
aplicado a Deus e ao homem, da mesma forma que o termo cão se
aplicado a um animal quadrúpede que late e a uma estrela no céu.
Em tal caso, portanto — para conhecimento ser definido —, ou Deus
pode conhecer e o homem não, ou o homem pode conhecer e Deus
não. Se não há um único ponto de coincidência, Deus e o homem
não podem ter a mesma coisa, isto é, conhecimento.
Após os cinco professores terem assinado esse
pronunciamento cooperativo, alguns deles publicaram uma
explicação na qual diziam: “O homem pode conhecer e conhece a
mesma verdade que está na mente divina… [porém] quando o
homem diz que Deus é eterno, não pode ter em mente uma
concepção de eternidade que seja idêntica ou que coincida com o
pensamento que o próprio Deus tem da eternidade”.[9] Nessa
declaração explicativa se afirma que a mesma verdade pode ocorrer
e ocorre na mente do homem e na mente de Deus. Isso significa,
evidentemente, que há pelo menos um ponto de coincidência entre o
conhecimento de Deus e o nosso. Mas, embora pareçam se retratar
de sua posição anterior numa linha, eles a reafirmam em seguida. Ao
que parece, quando o homem diz que Deus é eterno, ele não pode
ter em mente o que Deus quer dizer quando afirma a sua própria
eternidade. Presumivelmente, o conceito eternidade é um exemplo
que vale para todos os conceitos, de modo que a posição geral seria
que nenhum conceito pode ser predicado pelo homem a um sujeito
no mesmo sentido em que é predicado por Deus. Mas se um
predicado não significa para o homem a mesma coisa que significa
para Deus, se o significado de Deus é o correto, segue-se que o
significado do homem é incorreto e ele, portanto, é ignorante da
verdade que está na mente de Deus.
Essa negação da predicação unívoca não é peculiar dos
professores citados nem precisa ser considerada especificamente
neo-ortodoxa. Embora a abordagem seja diferente, o mesmo
resultado é encontrado em Tomás de Aquino. Este estudioso
medieval, cuja filosofia recebeu sanção papal, ensinava que nenhum
predicado pode ser univocamente aplicado a Deus e aos seres
criados. Até mesmo o verbo de ligação é não pode ser usado
univocamente nessas duas referências. Assim, quando um homem
acha que Deus é bom, eterno ou todo-poderoso, não apenas quer
dizer algo diferente do que bom, eterno ou todo-poderoso querem
dizer para Deus, mas, o que é pior (se é que algo pode ser pior),
também se refere a algo diferente quando diz que Deus é. Visto que
como criaturas temporais não podemos conhecer a essência eterna
de Deus, não podemos saber o que Deus quer dizer quando afirma
sua própria existência. Entre o significado de existência dado por
Deus e o dado pelo homem não há um único ponto de coincidência.
Os escolásticos e neoescolásticos tentaram disfarçar o
ceticismo dessa posição argumentando que, embora os predicados
não sejam unívocos, eles tampouco são equívocos; são analógicos.
Os cinco professores também afirmam que o “conhecimento [do
homem] deve ser analógico ao conhecimento que Deus possui”.[10]
No entanto, um apelo à analogia — embora possa disfarçar — não
remove o ceticismo. Analogias comuns são legítimas e úteis, mas
somente porque há um ponto unívoco de significado coincidente nas
duas partes. Um remo de canoa pode ser considerado analógico aos
remos de um vapor com roda de pás; o remo da canoa pode até
mesmo ser considerado análogo à hélice propulsora de um
transatlântico; mas somente por causa de um elemento unívoco.
Estas três coisas — remo de canoa, roda de pás e hélice propulsora
— são univocamente dispositivos para aplicar força para mover
barcos na água. Sem um elemento unívoco, uma suposta analogia
não passa de puro equívoco e o conhecimento analógico é uma
completa ignorância. Mas se há um elemento unívoco, até mesmo
um selvagem primitivo, quando se lhe diz que a hélice propulsora é
análoga ao seu remo de canoa, terá aprendido alguma coisa. Ele
pode não ter aprendido muito sobre hélices propulsoras e, na
comparação com um engenheiro, ele é quase completamente um
ignorante — quase, mas não completamente. Ele tem alguma ideia
sobre propulsores e sua ideia pode ser literalmente verdadeira. O
engenheiro e o selvagem têm um pequeno item de conhecimento em
comum. Mas sem sequer um item em comum não se pode dizer que
ambos conhecem. Para as duas pessoas conhecerem, a proposição
deve ter o mesmo significado para ambas. E isso também vale entre
Deus e o homem.
Se Deus tem a verdade e se o homem tem somente uma
analogia, segue-se que ele não tem a verdade. Uma analogia da
verdade não é a verdade; ainda que o conhecimento do homem não
seja chamado de uma analogia da verdade mas de verdade
analógica, a situação não é melhor. Uma verdade analógica, a
menos que contenha um ponto unívoco de significado coincidente,
simplesmente não é a verdade. Em particular (e a resposta mais
esmagadora de todas), se a mente humana estivesse limitada a
verdades analógicas, ela jamais poderia saber a verdade unívoca de
que está limitada a analogias. Ainda que fosse verdade que o
conteúdo do conhecimento humano são analogias, um homem
jamais poderia saber desse fato; ele só poderia ter a analogia de que
seu conhecimento é analógico. Essa teoria, portanto, encontrada em
Tomás de Aquino, Emil Brunner ou em professos conservadores é
um ceticismo não atenuado e é incompatível com a aceitação de
uma revelação divina da verdade. Esse ceticismo não atenuado se
torna claramente manifesto numa declaração feita num encontro
público e relatada numa carta datada de 1 de março de 1948 aos
diretores da Covenant House. Foi feita, questionada e reafirmada por
um dos escritores acima mencionados a declaração de que a mente
humana é incapaz de receber alguma verdade; a mente do homem
jamais recebe de fato alguma verdade. Esse ceticismo deve ser
completamente repudiado se quisermos salvaguardar uma doutrina
de revelação verbal.

A verdade é proposicional
A revelação verbal — com a ideia de que revelação significa uma
comunicação de verdades, informações e proposições — traz à lume
outro fator na discussão. A Bíblia é composta de palavras e
sentenças. Suas afirmações declarativas são proposições no sentido
lógico do termo. Ademais, o conhecimento que os gentios têm de
uma revelação original pode ser expresso nas palavras “são
passíveis de morte os que tais coisas praticam”. A obra da lei escrita
no coração dos gentios resulta em pensamentos, acusações e
desculpas que podem ser e são expressos em palavras. A Bíblia em
lugar algum sugere que existem verdades inexprimíveis. De fato,
existem verdades que Deus não expressou ao homem, pois “as
coisas encobertas pertencem ao Senhor, nosso Deus”; mas isso não
quer dizer que Deus ignora os sujeitos, os predicados, os verbos de
ligação e as concatenações lógicas dessas coisas encobertas.
Novamente enfrentamos o problema do equívoco. Se pudesse existir
uma verdade não exprimível em forma lógica e gramatical, a palavra
verdade, como aplicada a ela, não teria mais em comum com o
significado usual de verdade do que Dogstar tem em comum com
Fido. Seria outro caso de uma palavra sem um único ponto de
coincidência entre seus dois significados. Os cinco professores, ao
contrário, afirmam: “não podemos concluir com segurança que o
conhecimento de Deus é de caráter proposicional”. E uma tese de
doutorado de um dos seus alunos diz: “Parece ser uma tremenda
suposição sem garantia da Escritura, e portanto repleta de
especulações perigosas que se sobrepõem à doutrina de Deus,
alguém afirmar que toda verdade na mente de Deus é possível de
ser expressa em proposições”. Para mim, a tremenda suposição sem
garantia da Escritura é Deus ser incapaz de expressar a verdade que
ele conhece. E que o conhecimento de Deus é um sistema lógico é
algo que parece ser exigido por três evidências indisputáveis:
primeiro, a informação que ele revelou é gramatical, proposicional e
lógica; segundo, o Antigo Testamento fala sobre a sabedoria de Deus
e no Novo Testamento Cristo é designado como o Logos em quem
todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento estão ocultos; e,
terceiro, somos feitos à imagem de Deus, sendo Cristo a luz que
ilumina todos os homens.
Certamente, o ônus da prova recai sobre aqueles que negam a
construção proposicional da verdade. Seu ônus é duplo. Eles não
apenas devem dar evidências da existência de uma tal verdade,
como devem, em primeiro lugar, esclarecer o que querem dizer com
suas palavras. Pode ser que a frase verdade não proposicional seja
uma frase sem significado.
O que entendo ser a confusão no tocante à natureza da
verdade se espalhou para além do grupo criticado acima.
Presumivelmente, o pensamento de Edward J. Carnell não cairia nas
graças deles, e, contudo, ele parece neste ponto ter adotado uma
posição muito parecida. Considere seu argumento em A Philosophy
of the Christian Religion [Uma filosofia da religião cristã].[11] Ele
começa distinguindo duas espécies de verdade: primeiro, “a soma
total da própria realidade”, e segundo, “a consistência sistemática ou
correspondência proposicional com a realidade”. Não é irrelevante
para o argumento considerar a teoria da correspondência da
verdade, mas isso poderia levar a uma discussão demasiado
extensa para a finalidade imediata. É suficiente dizer que, se a mente
tem algo que apenas corresponde à realidade, ela não tem a
realidade; e se ela conhece a realidade, não há necessidade de algo
extra que corresponda a ela. A teoria da correspondência, em suma,
tem todas as desvantagens da analogia. Carnell ilustra a primeira
espécie de verdade, dizendo: “As árvores no quintal são verdadeiras
árvores”. Sem dúvida são, mas isso não convence alguém de que a
árvore é uma verdade. Dizer que as árvores são verdadeiras árvores
é apenas colocar uma ênfase literária na proposição “as árvores são
árvores”. Se alguém dissesse que as árvores não são verdadeiras
árvores, ou que as árvores são falsas árvores, o significado seria
simplesmente que as árvores não são árvores. Nesses exemplos
não é encontrada nenhuma verdade que não seja proposicional e
não é fornecida nenhuma evidência para duas espécies de verdade.
Carnell, em seguida, descreve um aluno que faz um exame em ética.
O aluno pode saber as respostas mesmo não sendo ele próprio uma
pessoa moral. A mãe do aluno, porém, não quer que ele apenas
conheça a verdade, mas que seja a verdade. Carnell insiste que o
aluno pode ser a verdade. Ora, a mãe obviamente quer que seu filho
seja moral, mas que significado pode ser vinculado à frase de que a
mãe quer que o filho seja a verdade? Suponhamos que o
pensamento seja apenas preparatório para ser moral, como diz
Carnell, mas o que se pode querer dizer com ser a verdade; isto é, o
que mais se pode querer dizer além de ser moral? O aluno não
poderia ser uma árvore. Parece, portanto, que Carnell está usando
uma linguagem figurada e não falando literalmente. Ele então se
refere às palavras de Cristo: “Eu sou… a verdade”. Ora, seria pouco
generoso concluir que, quando Cristo diz “Eu sou… a verdade” e
então se diz que o aluno é a verdade, Cristo e o aluno são
identificados. Mas para evitar essa identificação é preciso ver o que
Cristo quer dizer com sua declaração. Como foi dito antes, a Bíblia é
literalmente verdadeira, mas nem toda sentença nela é verdadeira
literalmente. Cristo disse “Eu sou a porta”, mas com isso não queria
dizer que era feito de madeira. Cristo também disse “Isto é o meu
corpo”. Os romanistas acham que ele falou literalmente; os
presbiterianos tomam a frase em sentido figurado. Da mesma forma,
a declaração “Eu sou… a verdade” deve ser entendida como “Eu sou
a fonte da verdade; Eu sou a sabedoria e o Logos de Deus; as
verdades são estabelecidas por minha autoridade”. Mas isso não
poderia ser dito acerca do aluno; assim, chamar um aluno de a
verdade é extremamente figurado ou totalmente desprovido de
significado.
Carnell também diz: “Visto, porém, que seus sistemas [os
sistemas de pensamento da mente finita] nunca são completos, a
verdade proposicional nunca pode ir além da probabilidade”. Mas se
isso é verdade, então não é em si verdade, mas somente algo
provável. E se isso é verdade, as proposições na Bíblia, como Davi
matou Golias e Cristo morreu pelos nossos pecados, são apenas
prováveis — elas podem ser falsas. E sustentar que a Bíblia pode
ser falsa é obviamente inconsistente com a revelação verbal. Em
contrapartida, portanto, é preciso manter que, a despeito da grande
ignorância que pode caracterizar os sistemas de pensamento
humanos, essa ignorância de muitas verdades não altera as poucas
verdades que a mente possui. Há muitas verdades da matemática,
astronomia, gramática grega e teologia bíblica que eu desconheço;
mas se conheço alguma coisa, e especialmente se Deus me deu
apenas um item de informação, minha extensa ignorância não terá
efeito sobre aquela única verdade. Do contrário, todos nós
estaremos envolvidos num ceticismo que torna a argumentação uma
perda de tempo.
No século XX, não é Tomás de Aquino mas Karl Barth, Emil
Brunner, os neo-ortodoxos e os existencialistas que são a fonte
desse ceticismo em detrimento da revelação. Escreve Brunner:
Fica inequivocamente claro aqui que o que Deus quer nos dar não
pode ser dado verdadeiramente [eigentlich] em palavras, mas
somente através de uma sugestão [hinweisend]… Portanto, como
[Jesus] é a Palavra de Deus, todas as palavras têm um significado
meramente instrumental. Não apenas o recipiente linguístico das
palavras mas também o conteúdo conceitual não é a coisa em si,
mas apenas sua forma, seu recipiente e seus meios.
O ceticismo total dessa posição — em que não somente os símbolos
verbais, mas também o conteúdo conceitual não é o que Deus
realmente quer nos dar — é disfarçado em frases piedosas sobre
uma verdade pessoal, ou Du-Wahrheit, distinta da relação sujeito-
predicado chamada de Es-Wahrheit. Deus não pode ser objeto do
pensamento, não pode ser um Gegenstand para a mente humana.
Em vez de ser uma questão de proposições, a verdade é um
encontro pessoal. Brunner não apenas reduz a sugestões ou
indicadores quaisquer palavras que Deus possa falar, como também
sustenta que as palavras de Deus podem ser falsas. “Deus pode,
caso queira, falar sua Palavra ao homem até mesmo através de
doutrinas falsas.” Esse é o ponto culminante, e comentá-lo seria algo
supérfluo.
Em conclusão, quero afirmar que uma teoria satisfatória de
revelação deve envolver uma epistemologia realista. Por realismo,
neste contexto, quero dizer uma teoria de que a mente humana
possui alguma verdade — não uma analogia da verdade, não uma
representação ou correspondência da verdade, não uma mera
sugestão da verdade, não um verbalismo sem sentido sobre uma
nova espécie de verdade, mas a própria verdade. Deus falou sua
Palavra em palavras, e essas palavras são símbolos adequados do
conteúdo conceitual. O conteúdo conceitual é literalmente
verdadeiro; e é o ponto de coincidência unívoco e idêntico no
conhecimento de Deus e do homem.
1
3. A inspiração verbal ontem e hoje

As reivindicações bíblicas
A inspiração das Escrituras, com a relevância que tem para a
verdade e autoridade da Palavra de Deus, é de importância tão óbvia
para o cristianismo que nenhuma justificativa detalhada é necessária
para se debater o assunto. De fato, é até perdoável começar com
algumas coisas bastante elementares. Não só perdoável, como de
fato indispensável. Nenhuma discussão sobre a inspiração pode
fazer uma contribuição de grande valor sem levar em conta os dados
bíblicos elementares. Esses dados devem ser mantidos em mente.
Porém, infelizmente, alguns desses detalhes se podem ter dissipado
de nossa memória envelhecida. De forma ainda mais infeliz, a
geração mais nova — devido aos baixos padrões de muitos
seminários — pode nunca ter aprendido os dados bíblicos. Desejo,
portanto, antes de tudo fazer algumas declarações simples sobre a
doutrina da inspiração tal como era comumente explicada cem anos
atrás.
Foi em 1840 que Louis Gaussen publicou sem famoso livreto
Theopneustia. Gaussen era um teólogo suíço que, como J. Gresham
Machen neste século [XX], foi destituído do ministério e expulso da
igreja por causa de sua adesão à verdade das Escrituras. E seu livro
Theopneustia é uma defesa da inspiração. Nele Gaussen reúne a
quantidade impressionante de conteúdo que as Escrituras têm a
dizer sobre si mesmas. E, embora isso tenha se passado um século
atrás, ninguém deveria abordar a questão da inspiração sem um bom
conhecimento do trabalho de Gaussen ou pelo menos sem um bom
conhecimento do que a Bíblia tem a dizer sobre si mesma.
O efeito é cumulativo; e é profundamente lamentável que, ao
invés de examinar e determinar o significado de umas cem
referências, tenhamos esta manhã de escolher apenas algumas.
Por exemplo, Gaussen nota as três vezes em que Isaías diz “a
boca do S o disse”, assim como outras expressões
semelhantes em Isaías. Gaussen chama a atenção para 2 Samuel
23.1-2: “O Espírito do S fala por meu intermédio, e a sua
palavra está na minha língua”. Novamente: “No segundo ano do rei
Dario… Veio, pois, a palavra do S , por intermédio do profeta
Ageu”. A Moisés Deus disse “eu serei com a tua boca”. E Atos 4.25
afirma o Senhor disse “por boca de Davi, nosso pai, teu servo”.
O efeito cumulativo de várias dezenas desses versículos é a
conclusão de que os profetas não reivindicam falar em sua própria
autoridade mas testificam que o Espírito lhes dá sua mensagem e os
faz falar.
É preciso notar bem que a mensagem dada pelo Espírito não é
meramente a ideia geral da passagem, mas as próprias palavras.
Deuteronômio 18.18-19: “Suscitar-lhes-ei um profeta… em cuja
boca porei as minhas palavras… De todo aquele que não ouvir as
minhas palavras, que ele falar em meu nome, disso lhe pedirei
contas”.
Jeremias 1.9: “Depois, estendeu o S a mão, tocou-me na
boca e o S me disse: Eis que ponho na tua boca as minhas
palavras”.
Só há tempo para mais uma referência para mostrar que os
profetas reivindicam falar as palavras de Deus. Ouça, portanto, a
declaração de nosso Senhor: “Porque, se, de fato, crêsseis em
Moisés, também creríeis em mim; porquanto ele escreveu a meu
respeito. Se, porém, não credes nos seus escritos, como crereis nas
minhas palavras?” (Jo 5.46-47).
Uma vez mais devo dizer, o efeito é cumulativo. É preciso ler
todas as referências de Gaussen e observar cuidadosamente o
significado de cada uma. Só assim se terá uma base adequada para
a doutrina da inspiração.
A última referência nos leva um passo adiante neste conteúdo
elementar. Na ignorância alguém poderia objetar que, embora Deus
tenha dado suas palavras aos profetas e os feito falar, o falar cessou
há milhares de anos, e temos apenas relatos dos discursos. Essa
questão, que diz respeito à relação entre a palavra falada e a palavra
escrita, foi respondida por Cristo na última referência. Observe
atentamente que o nosso Senhor diz: “[Moisés] escreveu a meu
respeito [e se] não credes nos seus escritos, como crereis nas
minhas palavras?”.
Quando as palavras que Deus deu a seus profetas foram
escritas, elas se tornaram os Escritos, isto é, as Escrituras. E são
nas Escrituras, nos Escritos, que Jesus diz para procurarmos a vida
eterna. Em sua tentação, Jesus repele Satanás dizendo: “Está
escrito”. Também em João 6.45, 8.17, 12.14, 15.25 a frase “Está
escrito” resolve os pontos em questão.
Permita-me finalmente aludir a mais uma passagem
excepcionalmente importante. Em João 10.34-35 (ARC) Jesus está
defendendo sua reivindicação de divindade. Ele cita Salmos 82. Será
que cita esse salmo porque Salmos 82 é mais inspirado e mais
autoritativo que qualquer outra passagem no Antigo Testamento? De
modo nenhum. Diz ele: “Não está escrito na vossa lei… e a Escritura
não pode ser anulada”. Cristo apelou aqui a Salmos 82 porque o
salmo faz parte da Escritura e, visto que toda a Escritura é dada por
inspiração de Deus, essa passagem também é inspirada, pois a
Escritura não pode ser anulada.
Deixe-me repetir pela terceira vez que o efeito é cumulativo. É
preciso ter em mente as centenas de casos em que a Bíblia
reivindica inspiração verbal. Ora, para concluir esta primeira seção,
este exame de detalhes elementares, eu gostaria de fazer uma
pergunta pontual. Se os profetas que falaram, se os autores que
escreveram e se nosso próprio Senhor estão equivocados nessas
centenas de vezes, que convicção pode alguém ter acerca das
demais coisas que eles disseram e escreveram? Existe alguma
razão para se supor que homens que estavam tão uniformemente
enganados quanto à fonte da sua mensagem poderiam ter tido
qualquer percepção superior e qualquer conhecimento preciso da
relação do homem com Deus? Ainda mais especificamente: pode
alguém professar uma ligação pessoal a Jesus Cristo e
consistentemente contradizer sua afirmação de que as Escrituras
não podem ser anuladas?
A objeção do ditado
Uma vez que este relato elementar e abreviado da inspiração verbal
está baseado num volume de um século atrás, o próximo passo,
antes de atualizar os assuntos, será o exame de uma objeção
centenária.
A ideia de que Deus deu suas palavras aos profetas parece, a
muitos liberais, uma teoria mecânica e artificial de revelação. Deus,
dizem-nos eles, não deve ser retratado como um chefe que dita
palavras à sua estenógrafa. E mais, os escritos dos profetas
mostram claramente a liberdade e espontaneidade da individualidade
pessoal. O estilo de Jeremias não é o de Isaías, nem João escreve
como Paulo. As palavras são obviamente as palavras de João e
Jeremias, não de um chefe que dita a várias estenógrafas. As
estenógrafas de um chefe produzirão letras no mesmo estilo literário;
não irão ou deverão corrigir o vernáculo. Ora, portanto, se Deus ditou
as palavras da Bíblia, as diferenças pessoais não podem ser
explicadas — do que se segue que a doutrina da inspiração verbal é
falsa.
Em resposta a essa objeção, e a muitas outras objeções contra
várias fases do cristianismo, é útil notar que os antagonistas
deturpam uniformemente as doutrinas que atacam. Por conseguinte,
o primeiro passo indispensável para elaborar uma resposta é mostrar
claramente o que faz e o que não faz parte da doutrina da inspiração
verbal.
Ora, tenhamos certos fatos claramente em mente. Em primeiro
lugar, as diferenças de estilo — e elas são tão óbvias que até mesmo
uma tradução não pode obscurecê-las — mostram decisivamente
que a Bíblia não foi ditada como um chefe dita a um estenógrafa.
Houve de fato alguns teólogos que usaram a ideia do ditado. Se
todos queriam dizer ditado no sentido em que ocorre num escritório
moderno de negócios, ou se alguns tinham em mente o sentido mais
geral de uma ordem e imposição autoritativa, não precisamos
discutir. O ponto essencialmente é que a grande maioria dos
teólogos que defendem e têm defendido a inspiração verbal jamais
aceitaram a teoria do ditado. Alguém poderia facilmente supor que os
incrédulos acharam mais fácil ridicularizar o ditado do que entender e
discutir a inspiração verbal como na verdade ensinada por teólogos
evangélicos.
Como, então, devem as diferenças de estilo ser explicadas e o
que significa inspiração verbal? A resposta a essas questões,
envolvendo a relação entre Deus e os profetas, leva-nos
rapidamente para longe da imagem de um chefe e um estenógrafa.
Quando Deus quis fazer uma revelação (na época do êxodo ou
do cativeiro), não olhou subitamente ao redor, como se pego
despreparado, perguntando-se que homem poderia usar para a
finalidade. Não podemos supor que ele tenha publicado um anúncio
atrás de ajuda e que, quando Moisés e Jeremias se candidataram,
Deus os constrangeu a falar as palavras dele. Todavia, essa visão
pejorativa subjaz a objeção à inspiração verbal. A relação entre Deus
e o profeta é totalmente diferente daquela entre um chefe e uma
estenógrafa.
Se considerarmos a onipotência e sabedoria de Deus, uma
representação muito diferente emerge. O chefe deve usar o que tiver
à mão; ele depende de que a escola secundária ou faculdade de
negócios tenha ensinado taquigrafia e digitação à estenógrafa. Mas
Deus não depende de nenhuma agência externa. Deus é o Criador.
Ele fez Moisés. E, quando queria que Moisés falasse por ele, Deus
disse: “Quem fez a boca do homem? … Não sou eu, o S ?”.
A inspiração verbal, portanto, deve ser entendida em conexão
com o sistema completo de doutrina cristã. Ela não pode ser daí
desvinculada e não pode a fortiori ser enquadrada em uma visão
alheia de Deus. A inspiração verbal é parte integrante das doutrinas
da providência e da predestinação. Quando os liberais negam de
forma sub-reptícia a predestinação retratando Deus como alguém
que dita para estenógrafos, deturpam a inspiração verbal a ponto de
suas objeções não se aplicarem ao Deus da Bíblia. O problema não
é, como pensam os liberais, que o chefe controla cem por cento a
estenógrafa; pelo contrário, a analogia perde o ponto porque o chefe
mal consegue controlar a estenógrafa.
Coloque nestes termos: desde toda a eternidade, Deus
decretou tirar os judeus da escravidão pelas mãos de Moisés. Para
esse fim, controlou a tal ponto os eventos que Moisés nasceu numa
determinada data, foi colocado na água para ser salvo de uma morte
prematura, foi encontrado e adotado pela filha do Faraó, recebeu a
melhor educação possível, foi conduzido ao deserto para aprender a
paciência e, em todos os sentidos, a tal ponto preparado pela
hereditariedade e ambiente que quando chegou a hora a
mentalidade e o estilo literário de Moisés eram os instrumentos
precisamente adequados para falar as palavras de Deus.
Com o ditado ocorre de forma totalmente diferente. Um chefe
tem pouco controle sobre a estenógrafa, com exceção das palavras
que ela digita para ele. Ele não controlou a educação recebida por
ela. Ela pode estar totalmente desinteressada nos negócios dele.
Eles podem ter muito pouco em comum. Mas entre Moisés e Deus
havia uma união interior, uma identidade de propósito, uma
cooperação de vontades, de modo que as palavras escritas por
Moisés eram ao mesmo tempo as palavras de Deus e as palavras de
Moisés.
Assim, quando vemos a presença e providência penetrantes de
Deus na história e na vida dos seus servos, reconhecemos que o
ditado do escritório de negócios não faz justiça às Escrituras. O
Espírito Santo habitou esses homens e ensinou-lhes o que escrever.
Deus determinou qual deveria ser a personalidade e estilo de cada
autor, e Deus o determinou para o propósito de expressar sua
mensagem, suas palavras. As palavras da Escritura, portanto, são as
próprias palavras de Deus.

Teorias contemporâneas
Mas, por inadequada que essa exposição e defesa elementar da
inspiração verbal tenha sido, um pouco de tempo deve ser reservado
para uma terceira e última seção sobre a situação contemporânea.
Com o declínio do liberalismo ritschliano e a ascensão do
existencialismo, da neo-ortodoxia e do positivismo lógico, o ponto de
ataque mudou. Não é mais uma questão de se as palavras da Bíblia
são as palavras de Deus ou meramente as palavras falíveis de um
homem; hoje uma objeção mais generalizada é feita com base numa
teoria de linguagem. Os filósofos se tornaram interessados em
semântica, e algumas de suas visões mudariam a tal ponto o
significado das palavras que, mesmo com toda a inspiração verbal
imaginável, a Bíblia seria esvaziada do seu significado cristão. De
acordo com vários escritores, ou toda linguagem é metafórica e
simbólica, ou pelo menos toda linguagem religiosa o é. Nenhuma
declaração religiosa deve ser tomada literalmente. Por exemplo,
John Mackintosh Shaw, professor de Teologia Sistemática no
Queen’s College em Ontário, refere-se aos termos resgate,
justificação, propiciação, expiação e reconciliação como metáforas
ou figuras de linguagem.[12] A partir desse tipo de visão pode ser e
tem sido concluído que a revelação divina não pode ser uma
comunicação de verdades.
Falando dos primeiros capítulos de Gênesis, William M. Logan,
pastor da University Presbyterian Church em Austin, Texas, diz em
seu livro In the Beginning, God [No princípio, Deus]:
São parábolas, não histórias ou explicações… não há nenhuma
tentativa de se formular proposições intelectuais para declarar
verdades básicas. Em vez disso, o método é o das imagens e
simbolismos poéticos… Não é de Adão que estou lendo; é de mim
mesmo… Por esse motivo, nenhuma mudança em nosso
conhecimento da verdade física pode afetar o ensino desses
capítulos mais do que poderia afetar as fábulas de Esopo.[13]
Mais tarde ele diz:
A questão realmente importante sobre a história do Jardim do
Éden não é se ela é literalmente, factualmente verdadeira na
mesma ordem de verdade com a qual a história, geografia,
astronomia ou geologia lidam… Essa história lida com a verdade
última que… só pode ser expressa por imagem e simbolismo…
Alguém já perguntou se a história do Bom Samaritano aconteceu
literalmente?[14]
A Queda é um simbolismo… Éden não está em nenhum mapa, e a
queda de Adão não se encaixa em nenhum calendário histórico.
Moisés não está mais perto da Queda do que nós porque viveu
3000 anos antes do nosso tempo. A Queda não se refere a alguma
calamidade original datável no passado histórico da humanidade,
mas a uma dimensão da experiência humana que está sempre
presente… Todo homem é seu próprio Adão.[15]

Que a linguagem religiosa não pode ser literalmente verdadeira é


algo que tem sido apoiado pelos seguintes argumentos. Um autor dá
a ilustração de um pregador muito comum que prega um sermão
muito comum. Mas, apesar de banal e maçante, esse sermão ou
uma frase nesse sermão se torna uma mensagem vital para alguém
na congregação. A vida da pessoa é transformada. Contudo, a vida
transformada não poderia ser resultado do significado literal de uma
frase medíocre. As palavras devem ter transmitido um conteúdo
religioso que está muito além de qualquer significado literal. Esse
conteúdo religioso, assim conclui o argumento, é o significado — o
significado metafórico, simbólico ou religioso — das palavras; e se
por acaso as palavras tivessem algum significado literal, isso não
viria ao caso.
Embora esse argumento seja encontrado em um periódico
acadêmico publicado pelo Conselho Nacional de Igrejas, sua análise
defeituosa e seu fracasso em provar que a linguagem religiosa não
pode ser literal são tão óbvios que nenhum tempo será desperdiçado
explicando isso.
Outro autor, que defende que todos os termos religiosos são
metafóricos ou simbólicos, esboça uma epistemologia religiosa que é
baseada em imagens. Deus, diz ele, sempre — e note o sempre —
fala ao homem através de imagens, e a “experiência religiosa é o
processo de ser atingido por essas imagens”. Esse processo, que
pode ser chamado de uma espécie de idolatria mental, é então
assimilado à arte e mitologia. A especificação do mito como sendo a
forma da escrita religiosa é, naturalmente, um tema contemporâneo
proeminente.
Mas, se o conteúdo religioso não pode ser falado literalmente e
deve ser expresso na linguagem pictórica do mito, alguma explicação
é necessária quanto à escolha dos mitos. Um grupo de pessoas
escolhe a mitologia grega e outro grupo escolhe a mitologia cristã.
Sem dúvida, tais escolhas são frequentemente feitas de forma
irrefletida sob a influência da sociedade. Mas chega a hora da
ponderação; chega a hora do conflito entre duas religiões, e uma
pessoa é convidada a escolher deliberadamente. Será que não faz
então nenhuma diferença? Se nenhum dos mitos é verdadeiro
literalmente, se ambos são igualmente simbólicos, não é um tão
satisfatório quanto o outro?
Ora, a mitologia grega é uma escolha tão improvável hoje que o
último autor referido, convencido que provavelmente esteja de que
os tempos modernos são superiores aos antigos, afirma a
possibilidade de se fazer uma escolha racional entre os mitos com
base na sua adequação para explicar os fatos da existência quando
os confrontamos na vida e ação diárias.
Parece-me, no entanto, que nem esta nem qualquer outra
tentativa de justificar uma escolha entre mitos pode ser bem-
sucedida. Se os mitos fossem verdades literais, um poderia ser mais
adequado do que o outro. O mito grego do método de Zeus de
produzir chuva poderia ser considerado mais adequado ou menos
adequado do que o mito sobre as janelas do céu, atribuído aos
hebreus. Mas se essas histórias são mitológicas e simbólicas,
simplesmente simbólicas do fato literal de que chove, é difícil julgar o
que a adequação pode exigir. Uma declaração literal de As nuvens
de Aristófanes poderia explicar, mas um mito não explica nada.
Ademais, se a linguagem é simbólica, parece claro que um símbolo
(antes que os eventos históricos tenham fixado seu significado) é tão
bom quanto outro. Hoje a suástica simboliza o nacional-socialismo; a
foice e o martelo, o comunismo; mas no início não havia razão de por
que os comunistas não poderiam ter escolhido a suástica e Hitler a
foice e o martelo. Para empurrar essa crítica preliminar um passo
adiante, poderíamos perguntar: do que um símbolo religioso é
símbolo? A cruz, sem dúvida, é o símbolo da crucificação de Cristo,
mas pode a crucificação em si ser um símbolo ou metáfora de
alguma coisa? O significado prima facie das declarações sobre a
crucificação é literal. E se alguém diz que a linguagem religiosa não
pode ser literal, parece não haver nenhum método racional para se
determinar do que a crucificação é simbólica. É ela
pessimisticamente simbólica de um universo inerentemente injusto,
ou é simbólica do amor de Deus? Se nada no relato pode ser tomado
literalmente, em que base pode alguém decidir?
Mas suponha agora que alguém decida sem bases racionais.
Suponha que a crucificação, embora jamais ocorrida literalmente,
fosse dita simbólica do amor de Deus. Então devemos perguntar:
Deus amar os homens é uma verdade literal, ou isso também é
simbólico? Obviamente, se toda linguagem é simbólica, isso também
deve ser simbólico. E do que o amor de Deus é simbólico? Sem
dúvida é simbólico de outro símbolo — que é simbólico de outro —
ad infinitum.
Embora, sem dúvida, estejamos interessados principalmente no
efeito da semântica moderna sobre o significado literal da Bíblia,
seria um erro supor que o ministério cristão não deveria se preocupar
com as várias teorias seculares a partir das quais as implicações
religiosas derivam. Embora não seja possível realizar aqui uma
análise detalhada dessas filosofias, um aspecto fundamental delas
não deve passar despercebido. Refiro-me ao status da lógica nessas
filosofias e, em particular, à lei da contradição. Embora a lógica
acadêmica possa parecer algo um pouco distante da mitologia e
metáfora religiosa, o tema principal da inspiração verbal e seu efeito
imediato sobre o trabalho cristão é só tenuamente velado pela
terminologia profissional.
Nesta primavera mesmo recebi uma carta do campo
missionário em que meu correspondente lamentava o fato de que
muitos de seus colaboradores que estavam envolvidos na tradução
da Bíblia haviam aceitado ou foram profundamente influenciados
pelo relativismo linguístico contemporâneo. Ora, parece-me que a
melhor forma de lidar com essa filosofia é mostrar o que ela faz com
a lei da contradição.
Essa filosofia da análise, como é por vezes chamada, repudia
não só a revelação divina, como também toda a metafísica.
Especificamente, nega quaisquer formas inatas ou a priori da mente,
tradicionalmente consideradas como necessariamente verdadeiras.
A lógica e a matemática são explicadas como convenções
linguísticas que são arbitrariamente selecionadas. A história passada
exemplifica diferentes seleções. A lógica de Alfred North Whitehead
e de Bertrand Russell é uma, e a lógica de Aristóteles é outra. E,
citando A. J. Ayer, “é perfeitamente concebível que empregássemos
convenções linguísticas diferentes das que na realidade
empregamos”.[16]
Apesar de ser positivista, humanista ou ateísta, essa filosofia
aparentemente atrai tradutores bíblicos e até mesmo professores de
escolas bíblicas norte-americanas. Em setembro passado, um
instrutor de uma das faculdades bíblicas bem respeitadas publicou
um artigo no qual (juntamente com o que parecia ser uma teoria
mecanicista de sensação) rejeitava a lógica aristotélica como uma
verbalização injustificada e artificial e aceitava pelo menos parte do
instrumentalismo de Dewey. Esse tipo de coisa também é visto,
embora talvez de forma menos consciente e em graus variados, na
desaprovação pietista a uma dita lógica humana em oposição a
alguma lógica divina incognoscível.
Em defesa da dita lógica humana, em defesa do significado
literal das palavras e, portanto, em defesa da inspiração verbal,
desejo desafiar o ponto de vista oponente a que enfrente o
argumento e responda de forma inequívoca. Quero desafiá-los a
afirmar sua própria teoria sem fazer uso da lei da contradição.
Se os princípios lógicos são arbitrários e se é concebível
empregar diferentes convenções linguísticas, esses escritores devem
ser capazes de inventar e obedecer a alguma convenção diferente.
Ora, a lógica aristotélica, e em particular a lei da contradição, requer
que uma dada palavra não apenas signifique algo, mas também não
signifique algo. O termo cachorro deve significar cachorro, mas não
deve significar montanha; e montanha não deve significar metáfora.
Cada termo deve se referir a algo definido, e ao mesmo tempo deve
haver alguns objetos aos quais ele não se refira. O termo metafórico
não pode significar literal nem pode significar “canino” ou
“montanhoso”.
Suponha que a palavra montanha significasse metáfora,
cachorro, Bíblia e Estados Unidos. Claramente, se uma palavra
significasse tudo, não significaria nada. Ora, se a lei da contradição é
uma convenção arbitrária e se nossos teóricos linguistas escolhem
alguma outra convenção, eu os desafio a escrever um livro em
conformidade com seus princípios. Na verdade, não será difícil
fazerem isso. Nada mais é necessário do que escrever a palavra
metáfora sessenta mil vezes: Metáfora, metáfora, metáfora,
metáfora…
Isso significa que o cachorro subiu a montanha, pois a palavra
metáfora significa cachorro, correu e montanha. Infelizmente, a frase
“metáfora metáfora metáfora” também significa “O próximo Natal é
Dia de Ação de Graças”, pois a palavra metáfora também tem esses
significados.
O ponto deve estar claro: não se pode escrever um livro ou falar
uma frase sem usar a lei da contradição. A lógica, portanto, não é
uma convenção arbitrária que pode ser descartada à vontade. E
todas as falas piedosas sobre nossa lógica humana falível, bem
como todas as teorias metafóricas modernas de linguagem religiosa,
tornam a revelação verbal impossível. Mas, felizmente, essas teorias
também se tornam a si mesmas impossíveis.
Portanto, o cristão ortodoxo pode bem concluir, na minha
opinião, que a inspiração verbal não tem objeções a temer. As
objeções mais antigas foram respondidas com sucesso um século
atrás. As objeções mais recentes são ainda mais fáceis de descartar.
Mas, embora de um ponto de vista intelectual ou acadêmico não
tenhamos objeções a temer, tão unilateral é a propaganda imposta
aos estudantes nas universidades e seminários, que há uma grande
necessidade de tornar a posição calvinista universalmente conhecida
e amplamente compreendida.
1
4. A Sociedade Teológica Evangélica amanhã

The Evangelical Theological Society Tomorrow [A Sociedade


Teológica Evangélica] é uma organização notável. O termo
evangélica, uma herança da Reforma, faz-nos lembrar dos ditos
princípio formal e princípio material da origem do protestantismo. A
justificação pela fé somente era o princípio material, e as condições
religiosas do século XVI exigiram uma grande ênfase nesse
elemento essencial do Evangelho.
A Sociedade Teológica Evangélica, contudo, não fez muito pela
doutrina da justificação. Não porque a justificação pela fé somente
seja menos essencial agora, mas porque a batalha hoje (de uma
maneira diferente daquela no século XVI) grassa em torno do dito
princípio formal da Reforma, a saber, a própria Escritura. Os dois
princípios são, é claro, essenciais em qualquer época. Ninguém pode
corretamente se apropriar do termo evangélico se rejeitar um desses
princípios. Mas, embora ainda haja muitos hoje que rejeitam a
justificação e que a condenam como um conceito forense, legal e
contrário à religião, a principal batalha se concentra na veracidade da
Escritura.
É por essa razão que a Sociedade Teológica Evangélica é uma
organização notável. Numa época em que o principal ataque contra o
cristianismo está centrado na veracidade da Palavra de Deus e os
liberais afirmam ruidosamente que nenhuma defesa erudita da Bíblia
pode ser feita, essa Sociedade de professores de faculdade e de
seminário foi organizada com a finalidade de propagar a doutrina da
infalibilidade bíblica.
Assim, ocorre que nossa Sociedade inclui os melhores
estudiosos conservadores do país e, para esse fim, nossas
discussões examinam cada fase conhecida da literatura,
arqueologia, teologia e apologética bíblicas. Na nossa primeira
reunião, que pode ser chamada de nossa convenção constitucional,
vimos claramente que se a Bíblia é a Palavra de Deus — uma frase
que até mesmo os neo-ortodoxos às vezes usam — ela não pode
conter erros, pelo simples motivo de que Deus não pode mentir. Por
outro lado, se a Bíblia contém erros, ela não pode, certamente não
em sua totalidade, ser a Palavra de Deus. Por isso, a base sobre a
qual a Sociedade foi fundada, o princípio sobre o qual opera até hoje
e a declaração à qual todos nós subscrevemos é: “Somente a Bíblia
e a Bíblia em sua totalidade é a Palavra de Deus escrita e, portanto,
inerrante nos autógrafos”.
Note que a declaração foi deliberadamente moldada na forma
lógica de uma implicação. A premissa da implicação é a proposição
de que a Bíblia é a Palavra de Deus escrita. Portanto, segue a
conclusão de que a Bíblia é inerrante. Deus não pode mentir.

A visão que a Bíblia tem de si mesma


Essa plataforma da nossa Sociedade não é resultado de uma
decisão arbitrária. Escolhemos esse princípio básico porque é a
visão que a própria Bíblia tem de si mesma. Em O encontro divino-
humano, Emil Brunner diz: “A Bíblia… não contém nenhuma doutrina
da Palavra de Deus”.[17] Mas Brunner está totalmente equivocado. A
Bíblia tem muito a dizer sobre si mesma. Há, é claro, o bem
conhecido versículo: “Toda a Escritura é inspirada por Deus” [2Tm
3.16]. Esse versículo afirma de forma bastante óbvia a inspiração
plenária; e quando o citamos, amiúde enfatizamos a palavra toda.
Toda a Escritura é inspirada. A inspiração plenária é importante:
devemos insistir que a Bíblia em sua totalidade é a Palavra de Deus.
Mas o que às vezes passa despercebido é que a ênfase poderia
igualmente bem cair na palavra Escritura. Toda a Escritura é
inspirada. Vale dizer: o versículo afirma a inspiração não dos
pensamentos dos profetas — embora seus pensamentos também
possam ter sido inspirados — nem das palavras faladas dos profetas
— embora seu discurso oficial também possa ter sido inspirado —
mas afirma a inspiração das palavras escritas no manuscrito. Deus
“soprou” as palavras escritas.
Esse versículo não é um hapax legomenon. Não existe de
maneira solitária e excepcional. Há muitas passagens em que a
Bíblia descreve sua própria natureza. Uma dúzia ou mais de vezes a
Bíblia prefacia ou conclui sua mensagem com a frase “a boca do
S o disse”. Num lugar lemos: “O Espírito do S fala por
meu intermédio, e a sua palavra está na minha língua” [2Sm 23.2].
Ou, novamente, “Ó Soberano… Tu falaste pelo Espírito Santo por
boca do teu servo, nosso pai Davi” [At 4.24-25, NVI] e, novamente,
“convinha que se cumprisse a Escritura que o Espírito Santo proferiu
anteriormente por boca de Davi, acerca de Judas” [At 1.16].
O significado desses versículos é inconfundível. Nenhuma
exegese poderia torná-los mais claros. Eles dizem explicitamente
que as palavras que procederam da boca de Davi e foram escritas
no manuscrito eram as palavras do Espírito Santo. Visto que essas
palavras são as próprias palavras de Deus, estamos plenamente
justificados em concluir que elas são portanto verdadeiras —
infalivelmente verdadeiras. Deus não pode mentir.
Não se deve pensar que os cinco versículos citados são os
únicos em que a Bíblia afirma sua própria inspiração. Na verdade, os
versículos citados são somente um pequeno número selecionado
dentre declarações surpreendentemente amplas que a Bíblia faz
acerca da sua própria natureza.

Podemos apelar à Bíblia?


Dr. Dewey M. Beegle, em The Inspiration of Scripture [A inspiração
da Escritura], objeta a esse apelo à Bíblia. Ele reclama que a
doutrina da inspiração verbal depende de alguns poucos textos-
prova ao invés de seguir o verdadeiro método científico de indução a
partir dos fenômenos bíblicos.
Ora, em primeiro lugar, a doutrina da inspiração verbal não
depende de alguns poucos textos-prova. Depende de uma oferta
surpreendentemente ampla. As alusões como a de Beegle a alguns
poucos textos-prova dão a impressão de que nossos oponentes
nunca leram Theopneustia de Louis Gaussen. Se a memória de
alguém é fraca a respeito da explicação muito extensa que a Bíblia
dá de sua própria natureza, Theopneustia de Gaussen é o corretivo,
Em segundo lugar, a indução a partir dos fenômenos bíblicos
não é algo capaz de produzir tão obviamente a conclusão que o Dr.
Beegle deseja. Ele imagina que a indução resultaria numa lista de
versículos que seriam indiscutivelmente errados. Wellhausen, quase
um século atrás, forneceu essa lista. Mas desde então um versículo
após outro tem sido excluído da lista. As investigações dos membros
dessa Sociedade trouxeram à luz muitos casos em que os supostos
erros acabaram esclarecidos como não sendo de fato erros. Do
mesmo modo, fora da nossa Sociedade, Dr. Albright e Dr. Glueck,
embora não defendessem a inspiração verbal e estivessem longe de
ser fundamentalistas, conclusivamente descartaram a suposição fácil
e apressada de que a Bíblia não é confiável. Portanto nós que
defendemos a doutrina temos boas razões para esperar que,
quaisquer que sejam as dificuldades remanescentes, elas poderão
ser igualmente removidas à medida que a investigação prossegue.
Então, em terceiro lugar, rejeitamos o contraste preconceituoso
que o Dr. Beegle traça entre alguns poucos textos-prova e o
verdadeiro método científico de indução. Que qualquer um dê à
arqueologia o título honorífico de científico, se assim o quiser. Não
objetaremos a isso. Ao contrário, estamos satisfeitos com a
tendência da investigação arqueológica. Mas não é científico ou
acadêmico — é na verdade totalmente ilegítimo — ignorar o que a
Bíblia diz sobre si mesma, como o Dr. Beegle quer que façamos.
Nesse ponto particular, “The Inspiration of Scripture” de Dr. Roger
Nicole (The Gordon Review, Volume VIII, Números 2, 3) merece o
mais alto louvor.

A tarefa atual
A doutrina da inspiração verbal é não apenas a plataforma na qual a
Sociedade Teológica Evangélica se apoia, como também a questão
crucial no debate teológico hoje. Dr. John Warwick Montgomery, no
Bulletin da nossa Sociedade (Volume 8, Número 2), começa seu
extenso artigo sobre “Inspiração e inerrância” lembrando que James
Orr tomou nota do fato de que, em cada época de sua história, a
igreja teve de lidar com uma doutrina específica de significado
crucial. No início do século IV a questão crucial era a doutrina da
Trindade. Agora, próximo do fim do século XX, a controvérsia se
centra na natureza da Palavra de Deus.
Uma evidência importante de que a veracidade da Escritura é o
atual centro de controvérsia é a situação atual na United
Presbyterian Church. Trinta anos atrás, por ação judicial, essa
denominação se recusou a impor seu credo e fez da Confissão de
Westminster “letra morta”. Neste ano foi iniciado o procedimento
formal e legal para substituir a CFW por uma nova declaração em
que praticamente nada do antigo credo permanece. O motivo
alegado na literatura é o desejo de estar livre da infalibilidade bíblica.
Desaparecida a infalibilidade, caem as demais doutrinas da Escritura
automaticamente no esquecimento. Desse modo, a satisfação vicária
de Cristo e as demais doutrinas não mais são consideradas
verdades, mas meramente “imagens de uma verdade que
permanece fora do alcance de qualquer teoria” ou conhecimento.
A Sociedade Teológica Evangélica deveria assumir o
protagonismo na controvérsia deste século sobre a inspiração. Há
sem dúvida homens bons e capazes que não são membros dessa
Sociedade, mas não existe outra associação profissional organizada
nesta base. Esta, portanto, é a nossa tarefa atual.

Os golpes da batalha
Numa peleja vigorosamente disputada não é comum um dos lados
sair completamente ileso. A Sociedade Teológica Evangélica sofreu
algumas perdas e pode sofrer mais. Só neste ano, um de nossos
membros se retirou porque, citando sua carta, “Descobri… ser
intelectualmente impossível aceitar a última cláusula da base
doutrinária da Sociedade”.
Por trás dessa declaração está muito provavelmente a ideia de
que a investigação histórica descobriu erros indubitáveis na
Escritura. Como foi dito há pouco, essa grande confiança parece
estranha em vista do fato de que tantas alegações específicas de
erro foram explodidas.
A carta de renúncia também sugere outra razão por que seria
intelectualmente impossível aceitar a inspiração verbal. Nosso
membro desligado acredita que a ideia de infalibilidade, ainda que
fosse verdadeira, seria todavia inútil porque, citando novamente, “a
história secular pode ser infalível no sentido de um registro
impecável de fatos históricos, mas não será uma verdade salvadora”.
O que esse argumento significa? Aparentemente, a ocorrência
de declarações verdadeiras em livros de história seculares deve
implicar que a Bíblia não precisa de declarações verdadeiras. Ora, se
algo pode ser considerado intelectualmente impossível, não é a
infalibilidade bíblica, mas esse argumento esquisito contra a
infalibilidade bíblica. Só porque certas declarações verdadeiras sobre
a história americana ou chinesa não são verdades salvadoras, como
pode suceder que o conhecimento salvador não precisa ser
verdadeiro? É uma forma muito estranha de intelecto essa que
argumenta contra a infalibilidade ou contra a utilidade da verdade ou
da necessidade da verdade sob a alegação de que as histórias
seculares são às vezes verdadeiras.

A infalibilidade é inútil?
Por sua afirmação de que as verdades da história secular não são
verdades salvadoras, a carta de renúncia parece depender mais da
ideia de que a infalibilidade é espiritualmente inútil do que de ser
intelectualmente impossível. Para completar uma citação já dada
parcialmente, o escritor diz: “Considerei espiritualmente
desnecessário e intelectualmente impossível aceitar a base
doutrinária da Sociedade”.
Um divórcio nítido entre o que é intelectual e o que é espiritual,
um divórcio proclamado pelos neo-ortodoxos e também pelos
fundamentalistas pietistas, não é compatível com nossa herança
reformada. O Dr. Beegle, mencionado anteriormente, acusa o dogma
da inerrância de levar a uma relação fria e impessoal com a Escritura
como um corpo de verdade objetiva e proposicional, desvalorizando
a resposta experiencial. O uso das palavras fria e impessoal é
simplesmente um artifício de propaganda. Num inverno gelado a
palavra frio nos faz tremer; mas nos verões de calor tropical algo frio
é muito atraente. Se deixamos agora de lado as metáforas
enganosas da propaganda, o que resta é o desgosto do Dr. Beegle
pela verdade objetiva e proposicional. Pelo visto ele acha a verdade
espiritualmente desnecessária. Aqueles que foram influenciados por
Kierkegaard e pelo existencialismo moderno adotam uma visão da
natureza da religião que é bastante diferente da religião de Lutero e
Calvino. Esses reformadores, assim como o apóstolo Paulo, não
tinham antipatia pela verdade objetiva e proposicional.
Talvez o cavalheiro que se desligou não vá tão longe no
existencialismo quanto Bultmann ou Beegle. O que ele de fato diz é:
“a história secular pode ser infalível… mas não será uma verdade
salvadora”. Assim, ele parece sustentar que a infalibilidade é
espiritualmente desnecessária porque um pecador pode ser
verdadeiramente salvo sem crer. Outras coisas que ele diz indicam
que ele considera a infalibilidade espiritualmente desnecessária
porque várias outras doutrinas evangélicas ainda podem ser
defendidas após se ter abdicado da infalibilidade.
O argumento de que a inspiração verbal é inútil porque um
pecador pode ser salvo sem acreditar nela é um argumento de
imensa confusão. É verdade que o ladrão na cruz não sabia sobre (e
portanto não podia acreditar) o nascimento virginal, a doutrina da
santificação e o segundo advento. É, portanto, a doutrina da
santificação inútil? Devem os cristãos comuns, para não dizer os
pastores e os teólogos, restringir seu conhecimento às limitações do
ladrão na cruz? Ousaria algum estudioso falar tão estupidamente?
Deveria alguém ensinar novamente os rudimentos dos princípios
primeiros a aqueles que deveriam ser professores mas regrediram
do alimento sólido para o leite da infância? Certamente a teologia
não deve se limitar ao conhecimento mínimo essencial para o
estágio inicial da salvação de qualquer indivíduo aleatório.
Isso me faz lembrar de um professor numa faculdade cristã de
quem ouvi que se opunha à inclusão de um curso em teísmo no
currículo sob a alegação de que um curso em teísmo nunca salvou
ninguém.
Doutrinas evangélicas
Se, porém, estamos dispostos a avançar além do estágio mais
elementar da vida cristã e a aprender, discutir e pregar várias
doutrinas adicionais, a próxima pergunta é: podemos manter essas
várias doutrinas sem considerar a doutrina da inspiração plenária e
verbal? Historicamente não podem ser encontradas muitas
evidências em favor de uma resposta afirmativa. Há suficiente
evidência de indivíduos e organizações eclesiásticas que
abandonam a infalibilidade e outras doutrinas em sucessão ou
simultaneamente. Acima foi observado que a United Presbyterian
Church, motivada pelo desejo de evitar o chamado efeito colateral da
inspiração bíblica, está descartando virtualmente cada uma das
doutrinas de Westminster.
Isso não é nenhuma anomalia. É um desenvolvimento
perfeitamente coerente. Se a Bíblia em cem passagens diferentes
está errada na explicação que dá de si mesma, por que o resto da
sua mensagem deveria ser aceito como verdadeiro? Se os profetas
falaram falsamente quando disseram que suas palavras eram as
palavras de Deus, colocadas em suas bocas pelo Espírito Santo, de
forma que o Deus que não pode mentir estava falando por meio
deles — se estavam assim errados, que confiança podemos ter em
qualquer outra coisa que disseram? Se as palavras de Davi e
Jeremias são palavras de Deus, estamos obrigados a aceitá-las. Mas
se são palavras apenas de Davi ou Jeremias, não seria mais
proveitoso estudar Aristóteles ou Plotino? E se, como diz o novo
credo da United Presbyterian Church, “as palavras das Escrituras
são as palavras de homens condicionados pela linguagem, formas
de pensamento e estilos literários dos lugares e épocas em que
foram escritas”, e se “elas refletem as visões da vida, da história e do
cosmo que eram então correntes”, pode a Bíblia ser algo mais que
um livro de referência da sociologia do antiga Israel? Creio que não.
Um livro que dê uma explicação falsa de sua própria origem e
natureza (ou um profeta que confunda as visões atuais da história e
do cosmos com a Palavra de Deus) não é um guia confiável na
religião. Sua doutrina da expiação, seu relato da ressurreição e sua
promessa do Céu não seriam neste caso confiáveis.

Autoridade bíblica
Se agora alguém insiste que uma declaração fortuita de Jeremias ou
a doutrina da santificação em Paulo podem ser acidentalmente
verdadeiras e podem ser aceitas mesmo após se rejeitar a
infalibilidade, gostaríamos de saber em que base e por qual método
essas outras doutrinas são retidas. Não basta alegar que esse
versículo e essa doutrina podem ser salvos de uma Bíblia errônea. A
alegação deve ser fundamentada. Por que direito pode Brunner
aceitar “E o Verbo se fez carne” quando rejeita “Eis que a virgem
conceberá e dará à luz um filho”? Como pode Bultmann
demitologizar os Evangelhos e reter um Deus transcendente? Pode o
argumento cosmológico, baseado na mera observação da natureza,
provar a existência de um Deus que ouve as nossas orações? Pode
a história, incluindo as guerras mundiais deste século, demonstrar
que a morte de Cristo satisfaz a justiça divina? Implicam as
frustrações humanas no Segundo Advento? Ou, talvez, o neo-
ortodoxo chamará essas sugestões de uma paródia ou caricatura.
Sinto muito, peço desculpa. Mas como eles nunca descreveram seu
método, só podemos conjecturar. Todavia, devo continuar insistindo
que não basta a alegação de salvar algumas doutrinas. Eles devem
apresentar um procedimento claramente articulado para exame.
Em vez de tornarem seus princípios e procedimentos claros,
eles parecem se satisfazer em chamar a Bíblia de autoritativa. A
carta de renúncia acima citada faz isso. De fato, a carta diz que a
Escritura é “totalmente inspirada”, do que se pode concluir que os
erros na Escritura também são totalmente inspirados. A carta
prossegue e redefine inerrância de modo que uma Bíblia cheia de
erros possa ser chamada de inerrante. Se isso é ou não honestidade
intelectual e uma necessidade espiritual, é quando menos uma
lexicografia pobre. Não podemos nós, de forma legítima, perguntar
como um livro errôneo pode ser inerrante e espiritualmente
autoritativo?
Suponha que eu chamasse sua atenção para este livro que
tenho em mãos. É um livro antigo sobre Sócrates, escrito por Símias,
um dos amigos de Platão. Símias tinha a opinião incomum de que
Anaxágoras era o pai de Sócrates, e não Sofrónisco, como diz
Platão. O autor, ademais, nos conta que Sócrates foi morto em
batalha e recebeu um funeral de herói em Atenas — entre inúmeros
outros erros factuais no livro. Infelizmente, também, o autor estava
tão favoravelmente impressionado com a personalidade de Sócrates
que atribuiu a Sócrates a teoria do behaviorismo que Sócrates
estimulara em sua mente. E, atualmente, visto que o Sócrates
histórico não escreveu nada, a pesquisa histórica não pode ter
certeza de uma única coisa que Sócrates disse.
Contudo, permita-me dizer enfaticamente que este livro é a
fonte autoritativa da filosofia socrática. Devemos aceitá-lo, ou pelo
menos tanto dele quanto possa estimular nossas próprias respostas
autênticas. Este livro é a palavra infalível de Sócrates.
Ora, se tivesse dito tudo isso a você com toda a seriedade, não
suspeitaria que eu estava um pouco demente? Claro, eu poderia ser
suficientemente são em assuntos como basebol e mercado de
ações; mas se você estivesse interessado em filosofia, creio que
acharia intelectualmente necessário e filosoficamente útil voltar a
atenção para outro lugar.

A necessidade humana
A necessidade espiritual é o único critério que a carta de renúncia
usa para escolher algo da confusão de erros. Se existe algum outro
método para reter alguns fragmentos da Bíblia, ele também deve ser
examinado depois de ter sido claramente articulado. A carta só
menciona a necessidade espiritual.
Esse método prova ser um fracasso devido a duas objeções
relacionadas. O escritor da carta acha a inspiração plenária e verbal
espiritualmente desnecessária. Outra pessoa que eu poderia citar
acha que precisa, espiritual e intelectualmente, de uma mensagem
infalível de Deus. Nesta situação devemos nós dizer que um
versículo ou doutrina é falso para um homem, mas verdadeiro para
outro? O Sr. A precisa da doutrina da santificação, mas o Sr. B —
seja porque é um antinomiano, seja porque já alcançou a perfeição
imaculada — não precisa da doutrina. Aqueles que adotam esse
procedimento reconheceriam e defenderiam o relativismo da verdade
que está por trás dele?
A carta de renúncia dá a impressão otimista de que um bom
número de doutrinas evangélicas pode ser mantido e que as igrejas
evangélicas podem continuar nessa base. Todavia, é claro que
algumas pessoas acham que precisam de mais e algumas pessoas
acham que precisam de menos. Permitirá a renúncia que as últimas
pessoas descartem mais e que finalmente descartem toda a Bíblia?
Que argumentos poderia o membro pressionar sobre eles, que não
sentem a mesma necessidade dele, para reter o que ele deseja
reter? Se ele tem liberdade para rejeitar algumas doutrinas, não deve
conceder-lhes a mesma liberdade para que possam rejeitar o que
acham que não precisam?
Ora, há uma segunda objeção relacionada a esse critério de
necessidade espiritual. A objeção tem a ver com a determinação da
necessidade. Se os escritores da Bíblia não fossem infalíveis,
poderia qualquer um de nós ser um percipiente infalível das nossas
necessidades? Ousaríamos reivindicar que não cometemos nenhum
erro em nossas autoanálises? A Bíblia fornece uma análise da
natureza e necessidade humanas. Ela nos diz que a culpa da
primeira transgressão de Adão foi imediatamente imputada a nós
com o resultado de que nascemos em iniquidade e nosso coração é
enganoso mais do que todas as coisas. Se essa declaração bíblica é
verdadeira, qualquer análise meramente humana da natureza
humana está fadada a não ser confiável. E se a Bíblia não é
verdadeira, que razão há para pensar que temos uma compreensão
mais precisa do que os profetas, que mesmo em princípios neo-
ortodoxos permaneceram tão perto das fontes da fé? Posso sugerir,
portanto, que quem diz que não necessita da doutrina da
infalibilidade entendeu mal suas próprias necessidades?

O critério
Se em face dessa objeção tais teólogos ainda defendem que muitas
ou mesmo algumas doutrinas bíblicas podem ser retidas de uma
Bíblia errônea, temos pelo menos o direito de saber como eles
decidem quais doutrinas necessitam. Nós os pressionamos por
causa de seu método de reter algumas e rejeitar outras.
Recentemente um escritor liberal se referiu desdenhosamente a
esse desafio. Ele disse que os conservadores obtiveram uma vitória
barata quando pediram aos liberais que declarassem seu critério não
bíblico de aceitação e rejeição. Por que esse desafio é barato, não
sei. Por que não é uma vitória, ele não disse. Se um teólogo aceita
uma doutrina simplesmente porque a Bíblia a ensina, aceita a
infalibilidade bíblica; mas se rejeita a infalibilidade bíblica, não pode
aceitar a doutrina simplesmente porque a Bíblia a ensina. Portanto,
ele deve usar algum outro critério. Eu não vejo nada barato em
perguntar qual é esse critério. De fato, os ideais de erudição são
abandonados — e o fundamento da fé está disfarçado — a menos
que esse critério seja claramente declarado.
Os neo-ortodoxos, porém, parecem muito relutantes em
responder essa pergunta. Eles escondem seu critério sob um
alqueire. Mas é “intelectualmente impossível” ir longe sem de fato
algum substituto para o critério da Escritura. Na teologia, assim como
na engenharia automotiva, se você tira as velas de ignição, tem de
usar algum substituto ou senão o carro não vai.

A Sociedade Teológica Evangélica


Ora, claro, se uma pessoa rejeita a inerrância, ela não tem um lugar
legítimo na Sociedade Teológica Evangélica. A pessoa que renuncia,
tendo mudado sua teologia após inicialmente se juntado a nós, é
moralmente louvável por sua saída. Demasiadas vezes os votos de
ordenação são exercícios de perjúrio, e professores em busca de
cargos em faculdades cristãs recorrem às vezes a mentiras quando
questionados sobre sua fé religiosa. Como contraste a essa
desonestidade liberal, expressamos admiração por um homem que
renuncia com honestidade.
Sua renúncia nos perturba, entretanto, quando ele sugere que
há vários entre nossos afiliados que não são tão honestos como ele.
Talvez nos últimos dois ou três anos o número de nossos afiliados
tenha se expandido muito rapidamente, mas eu reluto em acusar
alguém em nossa associação de tentar subvertê-la.
Mas, em qualquer caso, eu não vejo com bons olhos o conselho
de nosso ex-membro de se modificar o propósito da Sociedade pelo
medo de perder outros membros por renúncia. Essa pode ser a
política do liberalismo, mas não é a voz da Reforma. A voz da
Reforma diz:
Se temos de perder,
Família, bens, poder.
E alguns membros também.

Essa Sociedade não delineou sua plataforma a partir de


considerações de tamanho e dinheiro. Em vez disso, sentimos
necessidade espiritual de uma mensagem de Deus e sabíamos
intelectualmente que uma mensagem de Deus deve ser verdadeira.
Por essa razão, dissemos: “Somente a Bíblia e a Bíblia em sua
totalidade é a Palavra de Deus escrita e, portanto, inerrante nos
autógrafos”.
1
5. A revelação divina especial como racional
A obra e glória de Deus exibidas pelos céus e pelo firmamento têm
sido chamadas de revelação divina geral. Nessa categoria também
se pode incluir a constituição da personalidade humana, pois o
homem em si é uma criação de Deus e em certo sentido traz as
marcas do seu Criador. Essa “luz da natureza e as obras da criação
e da providência manifestam de tal modo a bondade, a sabedoria e o
poder de Deus, que os homens sejam inescusáveis, todavia não são
suficientes para dar aquele conhecimento de Deus e de sua vontade,
necessário à salvação”. É assim que brevemente a Confissão de
Westminster nos adverte de que a revelação geral é inadequada.
Essa inadequação é em parte um resultado dos efeitos noéticos do
pecado, mas existe também uma inadequação prévia e inerente.

A inadequação da revelação geral


Os efeitos obscurecedores do pecado sobre a mente enquanto ela
tenta descobrir Deus e a salvação na natureza podem ser melhor
vistos nos resultados divergentes obtidos entre as religiões pagãs.
Os antigos babilônios, egípcios e romanos olharam para a mesma
natureza que é vista pelos muçulmanos, hindus e budistas
modernos. Mas as mensagens que eles professam receber são
consideravelmente distintas. Isso, que é tão evidente quando essas
religiões distantes são mencionadas, também é verdade na
civilização ocidental. O que o humanista e o positivista lógico veem
na natureza é totalmente diferente do que o cristão ortodoxo acredita
sobre a natureza. Ainda que o humanista professe descobrir na
experiência certas ideias morais e valores espirituais que são pelo
menos superficialmente similares àqueles da Bíblia, pode-se bem
supor que ele na verdade os aprendeu de sua herança cristã e não
de um estudo independente da natureza e do homem. A atmosfera
gentil do humanitarismo está notavelmente ausente nas sociedades
para as quais a mensagem cristã não foi levada.
A existência de conceitos divergentes de Deus, de ideais
morais divergentes e acima de tudo de esquemas de salvação
divergentes mostra o poder do pecado na mente do homem; mas
também mostra a inadequação inerente da revelação geral. Não é só
por causa do pecado que o homem deixa de receber a mensagem
de Deus. A verdade é que a natureza tem uma mensagem menor do
que algumas pessoas, particularmente algumas pessoas cristãs,
acham.
Os planetas acima e as plantas abaixo mostram um pouco da
sabedoria e poder de Deus; quer dizer, mostram àqueles que já
acreditam que Deus os criou. Mesmo para um cristão devoto,
entretanto, o Universo não mostra o pleno poder e a plena sabedoria
de Deus, pois Deus não se esgota em sua criação. Sem dúvida, os
sistemas estelares exibem um poder vasto e inimaginável, porém um
número maior de estrelas com movimentos mais complexos é
concebível. Portanto, a onipotência não é uma conclusão necessária
a partir das estrelas.
Nem a justiça. Os atributos morais que a Bíblia atribui a Deus
são ainda menos dedutíveis de uma observação da natureza. De
fato, o problema do mal — calamidades físicas como terremotos e
tragédias causadas por homens maus — têm levado alguns filósofos
a negar Deus completamente ou a sugerir um deus finito. John Stuart
Mill pensava que o Universo tendia de maneira imperfeita à produção
do bem; os humanistas modernos são mais propensos a dizer que o
Universo é neutro no tocante às esperanças e aspirações do homem;
enquanto Bertrand Russell e Joseph Wood Krutch aconselhavam
bravura em face da derrota inevitável. Essas várias opiniões, embora
parcialmente devido à pecaminosidade humana, também dependem,
creio eu, da inadequação da revelação geral em si. A mensagem de
Deus nos céus simplesmente não é vasta o suficiente para cobrir
essas questões.
Novamente, a visão hebraico-cristã de que “os céus proclamam
a glória de Deus” não significa, na minha opinião, que a existência de
Deus pode ser formalmente deduzida de um exame empírico do
Universo. Se sobre outras bases cremos no Deus de Abraão, Isaque
e Jacó, podemos ver que os céus declaram sua glória; mas isso não
quer dizer que uma pessoa que não cresse em Deus poderia
demonstrar sua existência a partir da natureza. Outras referências a
esse ponto serão feitas um pouco mais tarde.
Agora, por fim, a inadequação da revelação geral é mais óbvia
no caso de ideais ou normas éticas. E essa inadequação não é
apenas resultado do pecado; é uma inadequação inerente. A
exposição de crianças na Grécia, a prostituição cultual na Babilônia e
o sacrifício humano em Canaã e em outros lugares não eram
práticas que essas sociedades condenavam; elas tinham plena
sanção social. Essas eram as suas normas; esses eram os seus
ideais morais. Assim também, o humanismo contemporâneo, embora
alguns de seus valores sejam superficialmente parecidos com os
preceitos cristãos, diverge cada vez mais da identificação bíblica de
certo e errado. Jesus não é mais considerado alguém sem pecado,
mas acusado de minimizar os valores da inteligência científica, de
manter visões sociológicas inferiores de trabalho e propriedade e até
mesmo de insistir num padrão sexual demasiadamente rígido.
Se agora alguém deseja argumentar que essa divergência ética
não indica a inadequação da revelação geral mas simplesmente a
escuridão da mente pecadora, a resposta conclusiva no entender do
cristão é que Deus falou a Adão antes da Queda e lhe deu ordens
que ele não poderia ter de outra forma conhecido.
Quando Adão foi criado e colocado no Jardim do Éden, não
sabia o que fazer. E um estudo do Jardim também não teria levado a
nenhuma conclusão necessária. Seu dever lhe foi imposto por uma
revelação divina especial. Deus disse para ele ser fecundo e se
multiplicar, sujeitar a natureza, fazer uso dos animais e comer do
fruto das árvores (com uma fatídica exceção). Portanto normas,
ordens e proibições morais foram estabelecidas por uma revelação
especial e não geral. Só assim o homem poderia conhecer as
exigências de Deus e só assim poderia mais tarde conhecer o plano
de salvação.
Esse é o ponto de vista cristão. Os filósofos cristãos de hoje
afirmam que a história de Adão é um mito e que a ideia de uma
revelação especial é irracional. A dependência é colocada na razão,
não na revelação. Toda verdade deve ser obtida por um método, o
método da ciência. A Bíblia é considerada autocontraditória e
historicamente imprecisa; seus padrões de conduta são de um
passado antigo; e a evolução recebe crédito com a refutação da
criação. Esses são bem divulgados e amplamente aceitos. Pode o
cristão, portanto, enfrentar a acusação de desonestidade intelectual,
frequentemente trazida contra ele, e lidar com a objeção de que a
revelação é irracional?

A defesa da revelação como racional


Na história do pensamento cristão, a antítese entre a fé e a razão
tem sido abordada por vários métodos diferentes. O debate, seja
entre cristãos, seja entre cristãos e secularistas, gera às vezes
confusão porque os termos nem sempre são definidos com clareza.
Não apenas diferem Agostinho e Kant quanto à natureza da fé, como
o próprio termo razão tem carregado diferentes significados. Depois
de fornecer um mínimo de pano de fundo histórico, o escritor espera
evitar essa confusão ao sugerir uma definição de razão que possa
ajudar na defesa da revelação como racional.

A tentativa escolástica medieval


Nesta breve pesquisa histórica, o primeiro método de relacionar fé e
razão que será discutido é a filosofia tomista da Igreja Católica
Romana. À parte do assentimento pessoal do crente, fé neste
sistema significa a informação revelada contida na Bíblia, a tradição
e presumivelmente a voz viva da igreja romana. Fé, então, é verdade
revelada. Razão significa a informação que pode ser obtida por uma
observação sensorial da natureza tal como interpretada pela
intelecção. Ao passo que os racionalistas do século XVII
contrastavam razão com sensação, Tomás de Aquino contrasta
razão com revelação. As verdades da razão são aquelas verdades
que podem ser obtidas pelo equipamento sensorial e intelectual
natural do homem sem a ajuda da graça sobrenatural.
Essas definições de fé e razão só tornam a revelação “não
razoável” em uma maneira verbal; a revelação não pode em nenhum
sentido pejorativo ser chamada de não razoável ou irracional. Às
vezes, suspeita-se que os secularistas se aproveitam do verbalismo
para sugerir algo mais sinistro.
O tomismo de fato insiste numa incompatibilidade entre a fé e a
razão, mas é uma incompatibilidade psicológica. Se a Bíblia revela
que Deus existe e se cremos na Bíblia, temos essa verdade de fé. É
possível, no entanto, de acordo com o tomismo, demonstrar a
existência de Deus a partir da observação ordinária da natureza.
Aristóteles fez isso. Mas quando uma pessoa demonstrou
racionalmente essa proposição, não “acredita” mais nela, não aceita
mais ela com base na autoridade, mas a “conhece”. É
psicologicamente impossível “acreditar” e “conhecer” a mesma
proposição. Um professor pode dizer a um aluno que um triângulo
contém 180 graus, e o aluno pode acreditar no professor. Mas se o
aluno aprende a prova, não aceita mais o teorema com base na
palavra do professor; ele o conhece por si mesmo. Nem todas as
proposições da revelação podem ser demonstradas na filosofia
racional; mas por outro lado algumas verdades capazes de
demonstração também foram reveladas ao homem, pois Deus bem
sabia que nem todos os homens têm a capacidade intelectual de
Aristóteles; portanto Deus revelou algumas verdades, embora
demonstráveis, pelo bem da maior parte da humanidade.
Os conteúdos não demonstráveis da revelação (como as
doutrinas da Trindade e dos sacramentos), embora fora do alcance
da razão, da forma como foi definida, não são irracionais ou
absurdos. Os maometanos medievais e os humanistas modernos
podem alegar que a Trindade é irracional, mas a razão é bastante
competente para mostrar que essa doutrina não contém nenhuma
autocontradição e que as objeções a ela são falaciosas. As maiores
verdades da fé não violam nenhuma das conclusões da razão; ao
contrário, as doutrinas da revelação completam o que a razão não
podia terminar. Os dois conjuntos de verdades, ou melhor, as
verdades obtidas por esses dois métodos diferentes, são
complementares. Longe de ser um obstáculo à razão, a fé pode
alertar um pensador de que ele está falando bobagem. Não se deve
retratar o crente como um prisioneiro de sua fé que deveria ser
libertado; a fé só restringe do erro. Deste modo, a fé e a razão estão
em harmonia.
Somente uma crítica será feita a essa construção, mas é uma
crítica que os tomistas e os objetores irão igualmente admitir ser
crucial. Se o argumento cosmológico para a existência de Deus é
uma falácia lógica, o tomismo e sua visão da relação entre a fé e a
razão não pode ficar em pé.[18]
As dificuldades com o argumento cosmológico trazem de volta
os comentários anteriores sobre a inadequação da revelação geral.
Se se presume que todo conhecimento começa na experiência
sensorial e que, portanto, uma pessoa observa a natureza na
ignorância de Deus, as calamidades manifestas dos homens e a
finitude e mudança da natureza — por mais vastas que as galáxias
possam ser — impedem qualquer conclusão necessária da
existência de um Deus onipotente que também é bom.
A essas objeções, que David Hume afirmou com tanta força,
podem ser acrescentadas críticas específicas à formulação
aristotélica de Tomás de Aquino. Três serão mencionadas. Primeiro,
o tomismo não pode sobreviver sem os conceitos de potencialidade
e atualidade, mas Aristóteles nunca conseguiu defini-los. Em vez
disso os ilustrou pela mudança dos fenômenos e então definiu
mudança ou movimento em termos de atualidade e potencialidade.
Justificar essa objeção exigiria muito aparato técnico para o presente
propósito; e se o leitor assim desejar, não precisa enfatizar esse
primeiro ponto. Em segundo lugar, Tomás de Aquino argumenta que,
se rastrearmos as causas dos movimentos, ainda assim essa
regressão não pode ir ao infinito. A razão explicitamente dada na
Suma Theologica para negar um regresso infinito é que em tal caso
não poderia haver um primeiro motor. Mas essa razão, que é usada
como uma premissa para concluir na negação, é precisamente a
conclusão que Tomás de Aquino coloca no final do argumento
completo. O argumento visa provar a existência de um primeiro
motor, mas esse primeiro motor é assumido a fim de negar um
regresso infinito. Obviamente, portanto, o argumento é uma falácia.
Há uma terceira crítica que é ainda mais complicada. Na
medida em que envolve material que recentemente se tornou
assunto de amplo debate, ela merece uma atenção mais detalhada.
Para Tomás de Aquino, há duas maneiras de conhecer Deus:
primeiro, o caminho da teologia negativa, que não discutiremos; e
segundo, o método da analogia. Como Deus é um ser puro, sem
partes, cuja essência é idêntica à sua existência, os termos aplicados
a ele não podem ser usados precisamente no sentido em que se
aplicam às coisas criadas. Se é dito que um homem é sábio e que
Deus é sábio, deve ser lembrado que a sabedoria do homem é uma
sabedoria adquirida, ao passo que Deus nunca aprendeu. A mente
humana está sujeita à verdade: a verdade é sua superior. Mas a
mente de Deus é a causa da verdade ao pensá-la, ou, talvez, Deus é
a verdade. Donde o termo mente não significa precisamente a
mesma coisa no caso de Deus e do homem. Não só esses termos; a
ideia de existência também não é a mesma. Visto que a existência
de Deus é a sua essência — uma identidade não duplicada em
qualquer outra instância — até mesmo a palavra existência não se
aplica univocamente a Deus e ao mundo da criação.
Ao mesmo tempo, Tomás de Aquino não deseja admitir que os
termos são equívocos. Quando se diz que mulherengos levam vidas
promíscuas (fast lives), enquanto ascetas jejuam (fast), a palavra
inglesa fast não tem nenhum significado em comum. Embora as
letras e a pronúncia sejam iguais, o conteúdo intelectual nos dois
casos é totalmente diverso. Entre esse equívoco e a univocidade
estrita, Tomás de Aquino afirma que as palavras podem ter um uso
analógico; e que no caso de Deus e do homem os predicados são
aplicados analogicamente.
Se, agora, os significados analógicos de sábio ou existência
tivessem uma área comum de significado, essa área comum poderia
ser designada por um termo unívoco. Esse termo então poderia ser
aplicado univocamente a Deus e ao homem. Mas Tomás de Aquino
insiste que nenhum termo pode ser aplicado assim. Isso, na verdade,
remove todos os traços de significado idêntico nos dois casos. Mas
se for assim, como um argumento — o argumento cosmológico —
pode ser formalmente válido quando suas premissas usam termos
num sentido e a conclusão usa esses termos num sentido
completamente diferente? As premissas do argumento cosmológico
falam da existência de motores dentro do alcance da experiência
humana; a conclusão diz respeito à existência de um primeiro motor.
Mas se esses termos não são tomados univocamente, o argumento
é uma falácia.
Portanto, a tentativa tomista de relacionar a fé e a razão —
mais por causa de sua visão da razão do que de sua visão da fé —
deve ser julgada um fracasso, e outra tentativa deve ser feita para se
defender a racionalidade da revelação.
O ataque renascentista
O domínio do ponto de vista escolástico medieval, de que Tomás de
Aquino foi o exemplo mais brilhante, cessou com a reforma e a
renascença. Como este capítulo visa a defender a posição da
reforma, a renascença será discutida primeiro. A discussão deve ser
extremamente breve, porque, visto que a renascença deu origem à
filosofia secular moderna, o assunto é muito vasto; a filosofia
moderna, além disso, não é um método de harmonizar a fé e a
razão, mas de negar a fé em favor da razão. Todavia, algo deve ser
dito para demonstrar que esse ataque moderno à revelação não foi
totalmente bem-sucedido.
Certos detalhes do ataque — como as alegações de que
Moisés não poderia ter escrito o Pentateuco porque na sua época a
escrita ainda não tinha sido inventada e de que os hititas nunca
existiram — são tratados de maneira mais adequada no tópico da
alta crítica. Aqui somente os princípios orientadores de sua filosofia
podem ser mantidos em vista.
Esses princípios orientadores eram aqueles empregados no
problema crucial do conhecimento. Epistemologia é a tentativa de
mostrar que o conhecimento é possível, e a filosofia moderna é
fortemente epistemológica. Será que essas escolas conseguiram
demonstrar o conhecimento racional à parte da fé ou revelação?
A primeira escola principal foi a escola do século XVII do
racionalismo. Sua crença básica era que todo conhecimento é
derivado da lógica somente. Deve-se notar que por razão esses
homens queriam dizer a lógica em oposição à sensação. A
experiência, na opinião deles, era a fonte de erros. Somente aquilo
que pudesse ser demonstrado da forma como os teoremas de
geometria são demonstrados (isto é, sem apelos à experimentação)
era confiável.
Em geral, esses pensadores (dos quais Descartes, Spinoza e
Leibniz eram de longe os maiores) contavam com o argumento
ontológico para provar a existência de Deus. O argumento ontológico
sustenta que Deus tem o atributo da existência assim como um
triângulo tem o atributo de conter 180 graus. Negar que Deus existe
é tão autocontraditório quanto negar o teorema geométrico. Assim, a
existência de Deus é provada somente pela razão, isto é, pela pura
lógica, sem um apelo à experiência sensorial. Então a partir da
existência de Deus os racionalistas tentam deduzir as leis da ciência.
Não muitos filósofos contemporâneos acham que o argumento
ontológico é válido; nenhum pensador contemporâneo admite que
Descartes ou Spinoza tiveram êxito em deduzir os conteúdos da
ciência da maneira indicada. Por mais estimulantes que os
racionalistas possam ser, por mais informativos que sejam no tocante
a alguns pontos, universalmente se julga que falharam na questão
principal de mostrar que o conhecimento é possível. Portanto, um
cristão pode alegar de maneira legítima que o ataque deles à
revelação entra em colapso com seu sistema como um todo. Este é,
de fato, um tratamento breve e sumário do racionalismo, mas
ninguém esperará uma história completa da filosofia moderna nessas
páginas.
O empirismo permanece hoje como uma filosofia viva. Não se
pode dizer portanto que Locke, Berkeley e Hume são universalmente
considerados fracassos completos. Mas o empirismo de hoje é
notavelmente diferente da variedade do século XVIII; e em alguns
casos onde mostra maior similaridade, pergunta-se que respostas o
empirista daria às objeções-padrão feitas contra Hume.
Existem três objeções principais ao empirismo. Primeiro, a
impossibilidade de se descobrir qualquer “conexão necessária” entre
os eventos ou ideias (isto é, a negação da causalidade) torna a
investigação histórica e científica fútil. Na melhor das hipóteses, o
conhecimento não poderia se estender além das próprias
impressões atuais de uma pessoa e seus traços na memória.
Segundo, a desintegração do “eu” resulta num mundo de percepções
que nenhum percipiente percebe. Isso, para todos os efeitos, aniquila
a memória. Terceiro e mais fundamental, o empirismo faz sub-
repticiamente uso do espaço e do tempo no início do processo de
aprendizagem, embora explicitamente esses conceitos só sejam
aprendidos no final. Assim, as objeções empíricas à revelação, e em
particular o argumento de Hume contra os milagres, são privados de
todo fundamento.
Immanuel Kant tentou bravamente remediar os defeitos do
empirismo ao atribuir à mente certas formas a priori. O espaço e o
tempo deveriam preservar o significado para a experiência sensorial,
e as categorias a priori tornariam o pensamento possível. As obras
de Kant são um monumento ao seu gênio, mas seus últimos volumes
nem bem haviam sido publicados quando Jacobi colocou o dedo
num ponto dolorido. Para entrar no sistema de Kant é necessário
assumir “as coisas-em-si-mesmas”, mas a teoria completa de
categorias torna a suposição impossível. Esse conflito entre as
formas a priori da mente e a matéria dada na sensação iniciou
avanço para Hegel.
Durante sua vida, G. W. F. Hegel alcançou o apogeu do
reconhecimento profissional, e por 75 anos mais seu pensamento foi
extremamente influente. Hoje, porém, vemos que dois de seus
alunos que rejeitaram completamente seu idealismo absoluto, Karl
Marx e Søren Kierkegaard, venceram a batalha decisiva contra ele.
Ainda há idealistas, é claro, e Hegel ainda pode contar com alguns
seguidores. Mas a afirmação da falência hegeliana não pode ser
descartada como se fosse um artifício cristão preconceituoso para
manter uma teoria de revelação.
Porém, enquanto Hegel tiver alguns discípulos e enquanto
permanecerem resquícios do empirismo, poder-se-á insistir que
essas filosofias não foram conclusivamente refutadas. Assim sendo,
embora esses pontos de vista não sejam, na minha opinião, a
posição característica do século XX, uma defesa cristã da revelação
tem provavelmente alguma obrigação de mostrar como eles devem
ser tratados. Infelizmente, não mais de um exemplo pode ser
incluído.
O falecido Edgar Sheffield Brightman elaborou uma filosofia da
religião ao longo de linhas essencialmente empíricas, mas mantendo
algumas ideias de Kant. Os valores e ideais religiosos devem ser
descobertos na experiência; a revelação não desempenha nenhum
papel, ou, se teoricamente possível, ainda assim deve ser julgada
com base na razão. A revelação, diz ele, deve ser testada pela razão
e não a razão pela revelação. Pelo termo razão, Brightman não se
refere aos processos da lógica, como o faziam os racionalistas; para
ele, razão é um conjunto de princípios derivados empiricamente
pelos quais organizamos o universo da nossa experiência. Ele fala
da razão empírica e concreta em oposição à lógica simples e formal.
A revelação, afirma ele, não pode ser usada como o princípio básico
pelo qual a experiência é organizada.
Historicamente, claro, a revelação tem sido assim usada; e
Brightman nunca mostra por que não seria possível, existindo um
Deus vivo, a revelação nos fornecer informações que nos permitiriam
entender o mundo e organizar nossa vida. Em outro lugar[19] discuto
sérias falhas que existem na concepção que Brightman faz de Deus.
Qual é talvez a dificuldade básica de Brightman é uma que ele
compartilha com os humanistas, embora ele e eles estejam em geral
em radical desacordo. A concomitância deles neste ponto, portanto,
lhe dá uma importância considerável, pois fornece um teste que se
estende além das opiniões de um homem.
O ponto vulnerável do método empírico de Brightman e de todo
o empirismo contemporâneo é a professa derivação de valores
genuínos da experiência. Que há na experiência fatores que as
pessoas realmente gostam não se deve negar. Mas o problema é ir
dos prazeres reais e diversos para valores que têm uma
reivindicação legítima sobre todas as pessoas. Um homem gosta de
oração; outro de uísque. Um homem gosta da vida de estudioso
aposentado; outro, de ser um ditador brutal. Pode a experiência
mostrar que essas coisas são algo mais que preferências pessoais?
Pode a experiência fornecer uma base para uma obrigação moral
universal? Minha conclusão, apoiada por um argumento detalhado
presente no volume recém citado, é que isso é impossível. Por essas
razões, então, essas filosofias remanescentes não conseguem minar
a revelação bíblica.
A filosofia pós-hegeliana é um importante fator para se chegar a
esse juízo negativo sobre a “razão” de Spinoza, Hume e Hegel. As
críticas de Marx, Nietzsche e dos instrumentalistas contemporâneos
danificaram essa razão de forma irreparável. Até onde esses homens
sinalizam o fracasso da filosofia moderna em resolver os problemas
epistemológicos, suas conclusões parecem incontroversas. Mas
como eles são violentamente contrários à revelação, foram forçados
a adotar um ceticismo tão profundo que nem mesmo a razão, no
sentido das leis da lógica, está isenta.
Nietzsche, em antecipação a Freud, nos diz que todo
pensamento é controlado por funções biológicas. A distinção
propriamente dita entre verdade e falsidade não é importante: uma
opinião falsa que sustente a vida é melhor que uma verdade que não
o faça. Na realidade, a verdade pode ser definida como o tipo de erro
sem o qual uma espécie não pode viver. A lógica, com sua lei da
contradição, é resultado de uma evolução cega que poderia ter sido
diferente. Seja como for, a lógica falsifica a natureza; ela coloca
coisas diferentes na mesma categoria, ignorando suas diferenças; e
quanto mais grosseiro o órgão, mais semelhanças ele vê. O fato de
usarmos a lógica significa meramente nossa incapacidade de
examinar as coisas mais de perto, e o resultado é que a lógica só
vale para existências assumidas que nós criamos e não para o
mundo real.
F. C. S. Schiller, A. J. Ayer, Jean-Paul Sartre — cada um ataca
a seu próprio modo a necessidade da lógica. Assim, não tanto deve
a posição filosófica típica do século XX ser designada como
ceticismo quanto como total irracionalismo.

A contemporização neo-ortodoxa
Embora esses homens sejam abertamente anticristãos, há também
uma forma de irracionalismo do século XX derivada diretamente do
aluno de Hegel, Kierkegaard, que se veste com uma terminologia
cristã e tenta, por um apelo à revelação, evitar os excessos de
Nietzsche. Ela afirma às vezes ser um retorno ao ponto de vista
reformado. É preciso perguntar não apenas se essa alegação pode
ser historicamente justificada mas, mais especificamente, se essa
filosofia fornece uma validação adequada do conceito cristão de
revelação.
Esse movimento chamado neo-ortodoxo ou existencial admite
de bom grado que a razão fracassou. Até mesmo a natureza
inanimada está além da compreensão intelectual, pois não existe
nenhum movimento na lógica e nenhuma lógica no movimento.
O tornar-se está aberto e a realidade é o acaso. Se a lógica
sucumbe no movimento físico, é ainda mais impotente nas questões
da vida. O que é necessário não são conclusões, mas decisões.
Devemos portanto dar um salto de fé e aceitar uma revelação de
Deus.
Para muitas pessoas devotas perturbadas com a popularidade
do cientismo secular, oprimidas pela influência mortífera do
modernismo e (injustificadamente) amedrontadas pelas negações da
alta crítica, a neo-ortodoxia parecia um maná de cima. A revelação
tinha sido agora salva; a razão tinha sido derrotada!
Contudo, antes que os herdeiros de Lutero e Calvino possam
corretamente se regozijar, devem saber precisamente no que
consiste essa revelação, que tipo de fé se tem em vista e se resta
algo de valor após a derrota da razão. O fracasso do racionalismo do
século XVII não é motivo de preocupação; pode-se lidar bem com o
destino de Hume e Hegel; a razão empírica e concreta de Brightman
pode ser dispensada sem problemas — mas o que resta se a razão,
no sentido das leis da lógica, deve ser abandonada? Que valor teria
uma revelação ilógica ou irracional?
A principal lei da lógica é a lei da contradição, e é essa lei que
mantém a distinção entre a verdade e a falsidade. Se essa distinção
não pode ser mantida, então (como mostraram os antigos sofistas)
todas as opiniões são verdadeiras e todas as opiniões são falsas.
Qualquer proposição é tão crível quanto qualquer outra. Se, portanto,
Nietzsche ou Freud usaram o raciocínio para chegar às suas
posições, se o raciocínio distorce a realidade e se uma teoria não é
mais verdadeira do que outra, segue-se que esses homens não têm
nenhuma boa base para afirmar suas teorias. Negar a razão, no
sentido das leis da lógica, é esvaziar o diálogo ou argumento de todo
significado.
Ora, é isso o que a neo-ortodoxia (bem como Nietzsche) faz.
Em seu Pós-escrito conclusivo não científico às migalhas filosóficas,
Kierkegaard diz que não faz diferença se um homem ora a Deus ou a
um ídolo, desde que ore apaixonadamente. A verdade, diz ele, está
no como interior e não no o quê exterior. Se somente o como da
relação do indivíduo é “verdadeiro”, então o indivíduo está na
verdade — embora esteja assim relacionado à inverdade.
Brunner também abole a distinção entre verdade e falsidade.
Primeiro, ele se refere a um tipo de “verdade” que não pode ser
expresso em palavras ou apreendido em conceitos intelectuais. O
que essa verdade é, ninguém pode dizer. Em segundo, as palavras e
sentenças e o conteúdo intelectual que “apontam para” essa verdade
oculta podem ou não ser verdadeiros. Deus tanto pode se revelar
através de proposições falsas como através de proposições
verdadeiras.[20] Jamais podemos estar certos, portanto, de que aquilo
que Deus nos diz é verdade. A falsidade e a verdade têm igual valor.
Certamente esse valor deve ser muito pequeno. Por um lado,
ele nos alivia da responsabilidade de ser consistentes. Nosso credo
pode conter artigos contraditórios. Brunner argumenta que a
“inferência em linha reta” deve ser refreada. Não ousemos seguir
nossos princípios até suas conclusões lógicas. Não sempre, pelo
menos. Brunner na verdade aponta a contradição de Schleiermacher
em insistir tanto no absolutismo do cristianismo quando na
descoberta de um elemento comum em todas as religiões. É também
consistente quando argumenta que o homem deve ter sido criado
reto, pois do contrário não poderia ter havido nenhuma Queda. Mas
quando Brunner chega a Romanos 9 e acha desagradável seu
significado óbvio, declara que a eleição é ilógica e que, se
extraíssemos inferências dele, concluiríamos que Deus não é amor.
Não se pode ter amor e lógica ao mesmo tempo. Donde a Bíblia é
consistentemente ilógica.[21]
Mas se a Bíblia é ilógica e se Brunner é ilógico, não temos o
direito lógico de ignorá-los, já que não há nenhuma necessidade
ilógica de nossa fé pular na sua direção?
O propósito de todo o argumento até aqui foi estabelecer três
pontos: a defesa irracional da revelação pela neo-ortodoxia é
autodestrutiva; o ataque racional à revelação pela filosofia moderna
priva a si próprio de um fundamento epistemológico; e o tipo de
razão usado pelo tomismo para defender a revelação é acossado por
falácias. Mas agora, continuando com o argumento, o procedimento
geral do pensamento da Reforma fornece outra possibilidade para
uma revelação racional.

O modo reformado
Neste caso, revelação racional é uma revelação que preserva a
distinção entre a verdade e a falsidade. Ela é autoconsistente na sua
totalidade. Em outras palavras, a razão é identificada como as leis da
lógica. O cristianismo não tem obrigação de se justificar como
racional em qualquer outro sentido, pois a história da filosofia tem
mostrado que todos os outros sentidos resultam em ceticismo.
Alegar portanto que a eleição, a expiação ou qualquer outra doutrina
é “irracional” não é nada mais que afirmar que essas doutrinas são
desagradáveis para o objetor. A acusação não é fundamentada em
conclusão intelectual, mas em antipatia emocional. Se as doutrinas
bíblicas são autoconsistentes, elas satisfizeram o único teste legítimo
da razão. Esse teste de lógica é precisamente o requisito de que um
conjunto de proposições seja significativo, quer seja ele falado por
Deus, quer seja pelo homem. E se proposições não têm significado,
então obviamente não revelam nada.
É agora justo perguntar se essa construção é historicamente o
ponto de vista da Reforma. Será que Martinho Lutero e João Calvino
aceitavam a Bíblia como autoconsistente e reconheciam eles o teste
único da lógica?
A primeira das duas perguntas é a mais fácil de responder. Que
a Bíblia apresenta um sistema intelectual autoconsistente e que
Calvino estava convencido disso é algo que foi tornado
suficientemente claro na sua Instituição e em seus Comentários. A
Confissão de Westminster é um testemunho adicional. O amor
calvinista pela lógica é bem conhecido; e, como se viu, o que levou
Brunner a rejeitar a lógica foi um desgosto pelo calvinismo. Esse
ponto, portanto, é característico da fé reformada.
A segunda das duas perguntas é mais complicada porque os
reformadores não discutiram explicitamente a lógica como o teste
único de uma revelação racional. Seu silêncio é compreensível,
entretanto, porque o irracionalismo é sobretudo um fenômeno do
século XX que eles não previram. Contudo, pode ser plausivelmente
inferido de seus métodos que a construção anterior está implícita em
seus pontos de vista. Eles abandonaram a filosofia escolástica; não
perderam tempo tentando provar a existência de Deus e tampouco a
origem sensorial do conhecimento; o contraste entre a Instituição e a
Summae de Tomás de Aquino é inconfundível. Assim, não poderiam
ter usado nenhuma “razão concreta e empírica”. Então, também, o
princípio de que as Escrituras são seu próprio intérprete infalível e de
que aquilo que não é claro numa passagem pode ser entendido
mediante uma comparação com outras passagens não é outra coisa
senão a aplicação da lei da contradição. A lógica, portanto, deve ter
sido o único teste que os reformadores poderiam ter usado.
Admito francamente que algumas passagens em Calvino
parecem permitir uma reação menos cética ao curso da filosofia do
que é apresentado neste capítulo. Elas devem, no entanto, ser
entendidas à luz de outras declarações muito definidas que são
encontradas nos mesmos contextos.
Um dos reconhecimentos mais generosos de Calvino da
aprendizagem pagã é feito na Instituição, II.ii.14 ss.[22] O resumo e a
interpretação a seguir podem ser facilmente comparados com o
original. Tendo rejeitado a pré-existência platônica da alma, Calvino
afirma que a engenhosidade humana nos constrange a reconhecer
um princípio intelectual inato na mente humana. Desde que isso não
poderia ser a razão empírica concreta de Brightman, não é mais
provável que Calvino tivesse as leis da lógica em mente? Com esse
equipamento inato, juristas romanos apresentaram somente
princípios da ordem civil; filósofos descreveram a natureza com uma
ciência primorosa; aqueles que pela arte da lógica nos ensinaram a
falar racionalmente não podem ter sido desprovidos de
entendimento; a matemática pagã não poderia ter sido o delírio de
loucos. Não, os escritos dos antigos são excelentes porque
procederam de Deus.
Este é de fato um grande elogio. Na verdade, um elogio tão
grande que seu objeto dificilmente pode ser a verdade teorética
absoluta das filosofias pagãs. É bem verdade que Calvino não sabia
quão equivocada era a aprendizagem antiga; nem se pode supor que
tenha elaborado uma teoria instrumental da ciência. Contudo, sua
admiração pela física, lógica, matemática e outras artes e ciências da
antiguidade pode confortável e mais plausivelmente ser dividida
entre o brilho intelectual exibido e as aplicações práticas tornadas
possíveis. O que ele admira é a energia, a engenhosidade, o
requinte dos antigos e não a verdade dos seus sistemas.
Na sequência imediata, Calvino corrige alguns equívocos sobre
a sua intenção. No tocante ao reino de Deus e à sabedoria espiritual,
os mais sagazes da humanidade são mais cegos que toupeiras. As
mais pertinentes de suas observações revelam confusão. Essas
pessoas viam os objetos apresentados à visão de uma tal maneira
que pela vista não estavam sequer caminho da verdade e muito
menos haviam chegado a ela. Fortuitamente, por acidente, algumas
sentenças isoladas podem ser verdadeiras; mas a razão humana
nem se aproxima da verdade de Deus, nem tende, nem orienta suas
visões na direção dessa verdade.
Que Calvino não baseava a verdade e racionalidade da
Escritura em suportes externos é melhor visto num capítulo anterior
da obra.[23] O título é: “São suficientemente abundantes as provas,
possíveis para a razão humana, que sustentam a fidelidade da
Escritura”. Num cenário do século XX esse título é enganoso. Hoje
um título como esse sugeriria um apelo à autoridade superior, talvez,
da experiência religiosa. Não era essa a intenção de Calvino.
Ele diz que sem a certeza prévia de uma revelação — uma
certeza mais forte do que qualquer julgamento da experiência — a
autoridade da Escritura é defendida em vão por argumentos, pelo
consentimento da igreja ou por qualquer outro suporte. A fé não é
fundada na sabedoria dos homens, mas pelo poder de Deus. A
verdade é vindicada de qualquer dúvida quando sem auxílio de ajuda
externa é suficiente para o seu próprio suporte. O pensamento dessa
frase significativa é repetido ao final do mesmo capítulo. Embora haja
muitas razões subsidiárias pelas quais a dignidade nativa da
Escritura possa ser vindicada, diz ele, elas sozinhas não são
suficientes para produzir uma fé firme nela até que o Pai celestial —
revelando nisso (isto é, na própria Escritura) seu próprio poder —
coloque sua autoridade além de toda controvérsia.
A essas palavras de Calvino, gostaria apenas de acrescentar
que a lei da contradição, ou razão, não é um teste externo da
Escritura. A consistência lógica é exemplificada na Escritura, e assim
a Escritura pode ser uma revelação significativa para a mente
racional do homem. Proposições autocontraditórias não teriam
sentido, seriam irracionais e não poderiam constituir uma revelação.

Alguns problemas contemporâneos


Se, agora, Calvino não poderia ter se voltado explicitamente aos
problemas do século XX, a obrigação recai mais pesadamente sobre
nós. Claro que há muitos, mas um ataque imediato à possibilidade
de uma revelação racional não deve ser ignorado.
Recentemente foram desenvolvidas teorias da origem, natureza
e propósito da linguagem que impediriam Deus de falar a verdade ao
homem com base em que a linguagem não pode transmitir verdades
literais. Alguns escritores dizem que toda linguagem é simbólica ou
metafórica. Por exemplo, Wilbur Marshall Urban[24] afirma: “Não
existem estritamente sentenças literais… não existe verdade literal…
e qualquer expressão em linguagem contém algum elemento
simbólico”. Outros escritores fazem alegações mais restritas e dizem
apenas que toda linguagem religiosa é metafórica; do que se segue
que, se Deus usa linguagem, não pode dizer verdades literais mas
deve falar em simbolismos ou mitologias.
Aqueles que defendem a Bíblia como uma revelação verdadeira
devem insistir que ela transmite verdades literais. Isso não significa
que Deus não possa às vezes usar simbolismos e metáforas. Há
evidentemente simbolismo em Ezequiel, há parábolas nos
Evangelhos e há metáforas espalhadas por toda parte. Deus poderia
ter usado até mitologias e fábulas. Mas a menos que haja
declarações literais junto com essas figuras de linguagem — ou, no
mínimo, a menos que as figuras de linguagem possam ser traduzidas
em verdades literais —, um livro não transmite nenhum significado
definido.
Suponha que a cruz seja escolhida como um símbolo cristão e
suponha que algum preletor rebuscado diga “Vivamos na sombra da
cruz”. O que ele quer dizer? O que a cruz simboliza? Simboliza ela o
amor de Deus? Ou simboliza a ira de Deus? Simboliza ela o
sofrimento humano? Ou simboliza a influência da igreja? Se não há
nenhuma declaração literal para dar informações sobre o que a cruz
simboliza, essas perguntas são irrespondíveis.
Suponha que uma pessoa diga que a cruz simboliza o amor de
Deus. No entanto, se toda linguagem ou toda linguagem religiosa é
simbólica, a declaração de que a cruz simboliza o amor de Deus é
ela mesma um símbolo. Um símbolo de quê? Quando esta última
pergunta é respondida, vamos descobrir que esta resposta é
novamente um símbolo. Então outro símbolo será necessário, e
outro. E todo o processo será sem sentido.
Essa teoria contemporânea da linguagem está aberta às
mesmas objeções que foram levantadas contra a ideia tomista de
conhecimento analógico. Para ter significado, uma analogia, uma
metáfora ou um símbolo deve ser apoiado por alguma verdade literal.
Se Sansão era forte como um boi, então um boi deve ser literalmente
forte. Se Cristo é o leão da tribo de Judá, então algo deve ser
literalmente verdade sobre leões e também sobre Cristo. Não
importa com que embelezamento literário a comparação seja feita,
deve haver uma declaração estritamente verdadeira que a tenha
originado. E uma teoria que diga que toda linguagem é simbólica é
uma teoria que não pode ser tomada como literalmente verdadeira.
Suas próprias declarações são metafóricas e sem sentido.
Ademais, a teoria da linguagem deve ser tomada como parte de
um sistema filosófico mais geral. Embora alguns linguistas possam
estudar certos detalhes menores, uma teoria que se preocupe com a
origem, natureza e propósito da linguagem pressupõe alguma visão
geral da natureza humana e do mundo no qual a humanidade existe.
As teorias contemporâneas são amiúde baseadas numa filosofia
evolucionista segundo a qual a linguagem humana supostamente se
originou dos guinchos e grunhidos dos animais. Essas teorias
evolutivas da linguagem, e algumas teorias que não são
explicitamente evolutivas, revelam sua conexão com a epistemologia
ao tornarem as impressões sensoriais a fonte imediata da linguagem.
As primeiras palavras já ditas foram supostamente substantivos ou
nomes produzidos pela imitação do som feito por um animal ou uma
cachoeira; ou, se o objeto não fazia barulho, algum método mais
arbitrário foi usado para vincular um substantivo a ele.
Quando esse ponto de vista é aceito pelos tomistas, eles
herdam o problema de se passar de uma linguagem baseada no
sensorial para um modo adequado de se expressar proposições
teológicas. Os positivistas lógicos, por outro lado, concluem com
mais exposição de razões que isso não pode ser feito e que a
linguagem teológica é um disparate. Mas, em qualquer caso, uma
teoria da linguagem deve ser colocada em um sistema completo de
filosofia. Ela não pode ficar em isolamento.
Tanto o evolucionista naturalista quanto o cristão evangélico
têm seus princípios orientadores. O primeiro não tem escolha a não
ser desenvolver a linguagem a parte dos gritos de animais — não
importa quais sejam as dificuldades (e elas são insuperáveis). O
último, em razão da doutrina da criação, deve manter que a
linguagem é adequada para todas as expressões religiosas e
teológicas — não importa quais sejam as dificuldades (mas não são
muito grandes). A possibilidade de comunicação racional entre Deus
e o homem é facilmente explicada sobre pressuposições teístas.
Se Deus criou o homem à sua própria imagem racional e o
dotou do poder da fala, então um propósito da linguagem — na
verdade, o principal propósito da linguagem — seria naturalmente a
revelação da verdade ao homem e as orações do homem a Deus.
Numa filosofia teísta não se deve dizer, como disse um recente
tomista, que toda linguagem foi inventada para descrever e discutir
os objetos finitos da nossa experiência sensorial.[25] Ao contrário, a
linguagem foi inventada por Deus; isto é, Deus criou o homem como
um ser racional para o propósito da expressão teológica. A
linguagem, claro, é adaptável à descrição sensorial e à rotina diária
da vida, mas é desnecessário inventar o problema de como
expressões sensoriais podem ser transmutadas em um método
adequado de falar sobre Deus.
Isso imediatamente derruba a objeção à inspiração verbal que
se baseia na alegada finitude e alegadas imperfeições da linguagem.
Se a razão, isto é, a lógica, que torna a fala possível é uma
faculdade dada por Deus, ela deve ser adequada para a sua tarefa
divinamente designada. E sua tarefa é a recepção de informações
divinamente reveladas e a sistematização dessas proposições na
teologia dogmática.
Resumindo: a linguagem é capaz de transmitir verdades literais
porque as leis da lógica são necessárias. Não há substituto para
elas. Os filósofos que as negam reduzem suas próprias negações a
sílabas sem sentido. Mesmo onde a necessidade da lógica não é
negada, se a razão é usada em algum outro sentido como fonte de
verdade, o resultado tem sido o ceticismo. Portanto, a revelação não
apenas é racional, como é também a única esperança de se manter
a racionalidade. E isso é corroborado pela real consistência que
descobrimos quando examinamos a revelação verbalmente inspirada
chamada de Bíblia.
1
6. Religião revelada

Poucas questões, se mesmo alguma, são tão importantes


quanto o status da religião revelada. De um ponto de vista
imediatamente prático, a revelação é o divisor de águas que separa
o desespero ateu implacável de Bertrand Russell da esperança cristã
da vida eterna.
Até mesmo um positivista como Herbert Feigl, nas frases de
abertura de seu importante Logical Empiricism [Empirismo lógico],
escreve:
Provavelmente, a divisão mais decisiva entre as atitudes filosóficas
é aquela entre os tipos de pensamento mundano e de outro
mundo… Há aqui, muito provavelmente, uma divergência
irreconciliável. Ela vai mais fundo que a divergência em doutrinas;
é no fundo uma diferença em interesses e objetivos básicos… A
própria questão do poder de julgamento do apelo à lógica e
experiência (e com ela a questão do que, exatamente, a evidência
empírica pode estabelecer) está em jogo.
Ora, a esperança de vida eterna em outro mundo depende de
Deus; e negar a existência de Deus é reduzir o Universo a uma
máquina desumana impiedosa ou, como o mecanismo científico não
pode na realidade ser sustentado, a um caos sem propósito em que
a vida humana é uma futilidade trágica.
De um ponto de vista mais acadêmico, mas imediatamente tão
prático quanto, o status da revelação determina a natureza
específica da religião. Ao fazê-lo, não só define os padrões éticos da
vida diária, como também modifica ou controla a teoria da psicologia,
da política e da filosofia da história. Por exemplo, é possível
estruturar um bom argumento para mostrar que na teoria política o
ateísmo e até algumas formas de religião implicam tirania, ao passo
que a justificação dos direitos das minorias e da autoridade de um
governo limitado depende de um tipo específico de revelação.[26]
Esses poucos parágrafos são suficientes para indicar a
importância da religião revelada. Nenhum esforço aqui será feito
para provar a existência de Deus ou a possibilidade de uma
revelação divina, embora, na medida em que as objeções forem
removidas, o argumento a seguir terá uma relevância indireta sobre
essas questões. O que a situação contemporânea requer é que o
termo revelação seja explicado. Em bom português a palavra é
usada em vários sentidos. Cada um tem mais ou menos conteúdo.
Um significado pode se mostrar virtualmente sem valor; outro pode
servir como base para uma infinidade de conclusões detalhadas; e
um terceiro pode ser colocado a meio caminho entre os dois, em
termos de proveito.
O que segue começa com esse terceiro tipo de significado —
um significado, porém, que é cronologicamente anterior; então vêm
algumas visões contemporâneas da revelação que acabam sendo
logicamente estéreis, e por fim haverá a análise de uma visão que é
cronologicamente anterior e satisfatoriamente produtiva tanto na
lógica quanto na prática.
Deus se revelar ao homem na natureza é uma visão bastante
inicial do modo de revelação. Ela é encontrada em Aristóteles e em
outros filósofos pagãos, com quem não teremos muito o que fazer, e
expressa evidentemente em muitas partes da Bíblia. Mas o
reconhecimento de que os céus declaram a glória de Deus é algo
que tem sido desenvolvido em duas formulações bastante diferentes.

Teologia natural estrita


A primeira delas pode ser chamada de teologia natural no sentido
mais estrito. Tomás de Aquino e a Igreja Católica Romana
consideram não apenas que Deus pode ser conhecido na natureza,
mas que a existência de Deus pode ser irrefragavelmente
demonstrada, sem qualquer equipamento a priori, a partir dos dados
da percepção sensorial. Para fazer valer essa afirmação, Tomás de
Aquino, seguindo o exemplo de Aristóteles, elaborou um sistema
incrivelmente complexo de filosofia.
Essa tremenda realização merece uma análise meticulosa e
profissional. Os limites do presente argumento, todavia, impedem
qualquer análise elaborada desse tipo. Em outro volume[27] tentei
mostrar que a análise técnica pode indicar vários pontos (por
exemplo, os conceitos de potencialidade e movimento, o argumento
circular do regresso infinito, a teoria da analogia) em que a cadeia de
silogismos de Tomás de Aquino se decompõe. Sem dúvida é radical
alegar, como faz Aquino, que em Romanos 1.20 o apóstolo Paulo
garante a validade do argumento completo. Ora, se as provas
tomistas são falaciosas, como muitos não romanistas estão
dispostos a admitir, isso eliminaria a teologia natural de qualquer
consideração adicional.
Mas, para aqueles que são desconfiados ou não estão
familiarizados com filosofia, há uma objeção mais obviamente
teológica ao tomismo. Karl Barth se tornou bastante conhecido em
nossos dias por causa de sua oposição rigorosa a toda teologia
natural; e uma parte do seu argumento, na forma de um silogismo
hipotético destrutivo, sustenta que se as provas teístas fossem de
fato válidas, demoliriam completamente todo o cristianismo.
Não se pode ter um conhecimento significativo de Deus,
argumenta Barth, se “postergamos a pergunta para a qual a doutrina
da Trindade é a resposta (isto é, Quem é Deus) e lidamos primeiro
com a existência e natureza de Deus, como se este Isso e Aquilo
pudessem ser determinados de outra forma que não na
pressuposição do Quem”.[28] Na página seguinte continua: “Se não
conhecemos Deus da maneira como ele se revela como uno, isto é,
distincte in tribus personis, o resultado inevitável é que nudum et
inane duntaxat Dei nomen sine vero Deo in cerebro nostro volitat”.[29]
Ou, em português, se não conhecemos Deus como uma substância
em três Pessoas, o resultado inevitável é um nome branco e vazio
flutuando em nosso cérebro sem qualquer ideia do verdadeiro Deus.
Uma terceira referência a Barth, na qual ele cita C. J. Nitzsch
com aprovação, nos leva um passo adiante. “Até onde o teísmo
‘apenas distinga Deus e o mundo e nunca Deus de Deus, será
sempre pego na reversão ou transição para o panteístico ou em
outra negação do ser absoluto. Só com a doutrina da Trindade pode
haver uma perfeita proteção contra o ateísmo, politeísmo, panteísmo
ou dualismo’”.[30]
Se parece estranho acusar Tomás de Aquino de ajudar e
encorajar o ateísmo ou panteísmo, o rumo da teologia natural pode
ser melhor visto na forma como se desenvolveu em Hegel e nos
teólogos que o sucederam. A conexão com Aquino reside no fato de
que seus termos que denotam Deus são todos neutros: ens
perfectissimum, primum movens, e assim por diante. Essa
construção aristotélica, essencialmente pagã, obscurece a
personalidade de Deus, com o resultado de que uma elevação desse
neutro ao status da trindade cristã se torna uma dificuldade
insuperável. Com o advento do absolutismo hegeliano, uma pessoa
se torna um modo individual do Espírito Absoluto; enquanto o
Espírito, sendo Absoluto, não pode ser uma pessoa.
Teólogos como Rudolph Siebeck, Hermann Lotze, Richard
Rothe e Albrecht Ritschl, que tentaram preservar a personalidade de
Deus, consideravam os princípios deles incapazes para a tarefa.
Deus se tornava meramente o conteúdo dos valores humanos mais
superiores, de modo que no modernismo o objeto de adoração se
tornava o próprio homem.[31]
A esta altura, três conclusões podem ser tiradas: (a) as provas
teístas são destrutivas do cristianismo; (b) mas felizmente são
inválidas, de sorte que o cristianismo escapa desse perigo; e (c) na
medida em que a teologia natural é uma impossibilidade, a
necessidade de uma religião revelada se torna mais clara.

Menos e mais
Friedrich Schleiermacher representa um tipo de teologia que é
menos logicamente estrita do que a teologia de Aquino alegava ser
mas que ao mesmo tempo esperava se estender a mais doutrinas.
Tomás de Aquino, claro, acrescentou a revelação bíblica à sua
teologia natural, e só naquilo poderia encontrar a verdade da
Trindade, criação, expiação, e assim por diante. Schleiermacher se
volta do aparato aristotélico do movimento e do primeiro motor e
espera desvelar todo o cristianismo por meio de uma análise da
natureza humana ou, mais precisamente, da consciência cristã.
Influenciado pelo pietismo, Schleiermacher fez da emoção a
essência da religião. Enquanto os reformadores baseavam a
experiência cristã nas ideias e na doutrina, para Schleiermacher a
teologia é precisamente a descrição da experiência religiosa. O
centro dessa experiência é um sentimento de dependência absoluta,
e Deus existe porque sentimo-nos dependentes dele. Não é que o
sentimento dependa de um conhecimento prévio de Deus, mas sim
que o conhecimento depende do sentimento. As doutrinas, para dizê-
lo novamente, são descrições desse sentimento.
Schleiermacher era de fato um panteísta, e sua influência
combinou com a de Hegel para se negar a personalidade de Deus,
como foi explicado acima. Karl Barth mostra como o modernismo se
desenvolveu a partir de Schleiermacher e por que esse tipo de
religião substituiu Deus pelo homem como o objeto de adoração. A
natureza empírica de sua teologia abandonou a consciência “cristã”
original, indo na direção de uma psicologia indefinida de religião, e se
tornou o fundamento do humanismo contemporâneo. A história é
interessante e complexa.[32]
No que diz respeito ao status lógico, entretanto, o procedimento
de Schleiermacher, visto não poder ser classificado como as
supostas demonstrações incontestáveis de Aquino, deve ser julgado
mais flagrantemente falacioso ou deve ser classificado como a forma
solta de teologia natural do próximo parágrafo.

Teologia natural solta


Há outro sentido mais solto de teologia natural para o qual os
argumentos precedentes não parecem se aplicar. Ao invés de tentar
uma demonstração incontestável da existência de um ens
perfectissimum, se poderia meramente afirmar que os céus declaram
a glória de Deus. Certamente isso é natural, embora talvez não deva
ser rotulado como teologia; a teologia é comumente suposta ser algo
um tanto quanto sistemático, e este é um conhecimento bastante
assistemático de Deus.
Ele não apenas é assistemático; é também bastante
inadequado e, na melhor das hipóteses, mínimo. Sem examinar
muito de perto a lógica envolvida, perguntemos o que se pode
conhecer de Deus a partir de uma inspeção da natureza. Em
primeiro lugar será dito que os planetas, uma vez que se movem de
acordo com as três leis de Kepler, mostram que Deus é um grande
matemático — um matemático pelo menos tão bom quanto Kepler, e
talvez até melhor.
Como essa quantidade de conhecimento não equivale a
onisciência, alguém pode alegar que a criação dos planetas e das
estrelas é uma evidência de onipotência. Essa alegação, todavia,
deve ser recusada — não porque a criação seja uma evidência
insuficiente de onipotência, mas porque não temos nenhuma
evidência empírica da criação. Vemos de fato estrelas, mas não
vimos Deus criá-las. Ora, se em vez de confiar na observação o
reclamante tentasse argumentar que a existência visível das estrelas
prova que elas foram criadas, teríamos de voltar para uma inspeção
da teologia natural em seu sentido estrito. E teríamos de fazer isso
com ainda menos esperança de sucesso, pois um argumento que
prove a criação é consideravelmente mais difícil de construir do que
um que prove apenas a existência de algum Deus. Na verdade, o
próprio Tomás de Aquino, que trabalhou nesse nível de detalhe e
colocou tanta ênfase em suas provas teístas e estava tão convicto
delas, diz explicitamente: “Que o mundo nem sempre existiu é algo
que mantemos pela fé somente: não pode ser demonstrativamente
provado”.[33]
Se, claro, tivermos alguma outra fonte de conhecimento — uma
revelação fidedigna — que nos assegure da criação divina,
poderemos então atribuir ao Criador a quantidade de poder exibida
nos céus. Mas mesmo assim — e além do fato de que agora
dependemos de uma revelação especial — essa quantidade de
poder, por maior que seja, não pode ser onipotência. Além da
quantidade que observamos, sempre pode haver mais.
A observação da natureza é um método muito insatisfatório de
obter conhecimento de Deus. Os cristãos amiúde se indispõem a
enfrentar as dificuldades envolvidas e por vezes tentam ignorar o que
seus oponentes enxergam com bastante clareza. A teoria da
evolução descreve a natureza como rubra em dentes e garras —
brutal e implacável. Como podemos ver Deus na dor animal? Os
seres humanos também fazem parte da natureza; e as brutalidades
de Hitler e Stalin, o massacre vermelho chinês dos tibetanos e quase
todo o resto da história humana fazem um retrato deplorável da
situação. Sobre observações como essas, Voltaire escreveu seu
peculiar Cândido, ou o otimismo, Hume seu comedido Diálogos
sobre a religião natural (capítulos 10 e 11) e Julian Huxley, com ar de
superioridade, seu Religião sem revelação.
Mais uma vez vamos insistir: se temos alguma fonte de
informação além da observação da natureza, se Deus revelou
algumas partes de uma filosofia da história, nós podemos lidar com
esses fatos desagradáveis. Opositores francos do cristianismo
admitem essa possibilidade. Mas a teologia natural não pode lidar
com os mesmos, e cristãos francos deveriam admitir isso.
Em favor dessa forma solta de teologia natural, até podemos
dizer que os céus exibem algo do poder e da glória de Deus, que a
brutalidade dos tiranos provoca uma insatisfação que atesta a
existência de uma consciência débil e vaga que pode servir como
base para a responsabilidade moral, mas que nada em termos de um
plano prático de aperfeiçoamento está por vir.
Embora vago e limitado, esse conhecimento natural de Deus
não deve ser negado. Romanos 1.20 pode não garantir a validade
das provas teístas, mas claramente afirma algum conhecimento de
Deus derivado “das coisas que foram criadas”. Romanos 2.15 mostra
um conhecimento a priori mínimo de princípios morais. A
responsabilidade humana depende desse conhecimento natural.
Quando Karl Barth argumenta que os pagãos que Paulo tem em
vista não são os pagãos em geral mas somente aqueles a quem
havia pregado o Evangelho, de modo que todos os outros não têm
de fato nenhum conhecimento de Deus, lamentamos terem faltado
poderes exegéticos a ele.[34] Todavia, esse conhecimento natural tem
uma extensão mínima e é praticamente inútil na comunicação do
caminho da salvação. Quem pode negar que as tribos selvagens das
selvas sabem muito pouco sobre Deus?
Em vista dessas considerações, a posição do protestantismo
ortodoxo parece ser profundamente fundamentada, como expressa
na Confissão de Westminster, que — combinando a observação da
natureza com o que considero ser uma referência a ideias morais
inatas — pronuncia este julgamento definitivo sobre a teologia
natural na frase de abertura: “Ainda que a luz da natureza e as obras
da criação e da providência manifestam de tal modo a bondade, a
sabedoria e o poder de Deus, que os homens sejam inescusáveis,
todavia não são suficientes para dar aquele conhecimento de Deus e
de sua vontade, necessário à salvação”. Parece, portanto, que algum
tipo de religião revelada se impõe como uma necessidade.

Encontro
Tal é a flexibilidade da língua inglesa [e também da portuguesa]
que não há nada de impróprio na asserção de um tomista ou
modernista de que a natureza (física ou humana) é uma “revelação”
de Deus. Esse significado de revelação, contudo, dá origem a um
escolasticismo árido e um deísmo estéril que, mesmo que a validade
de seus argumentos não seja questionada, parece na melhor das
hipóteses enfraquecer a religião verdadeira e vital. Portanto, sem
desaprovar os usos no vernáculo, alguns escritores devotos
preferem indicar pelo termo revelação algo mais direto e pessoal.
Tendo repudiado a teologia natural, equiparam a revelação a um
“encontro”.
Essa ideia contemporânea de revelação — revelação como um
encontro vivo — já foi prenunciada em movimentos anteriores. Os
pietistas buscavam uma religião mais pessoal do que era
aparentemente oferecido pela teologia intelectual. Os quakers
falavam de uma luz interior e esperavam que o Espírito os levasse a
falar num encontro. Até a terminologia bíblica admite um testemunho
do Espírito Santo que poderia ser interpretado como uma revelação
viva. Sempre houve indivíduos que buscavam uma orientação
imediata de Deus tanto para os detalhes práticos da conduta diária
quanto para as formas adequadas de adoração divina. Algumas
pessoas tinham visões e sonhavam sonhos, enquanto Joana d’Arc
ouvia vozes.
E havia então os verdadeiros místicos que caíam em transes.
As gotículas de sua personalidade eram derramadas no oceano do
ser de Deus. Assim como o ar que quando está tão impregnado de
luz é mais luz do que ar e o ferro que no fogo se parece mais com
fogo do que com ferro, a alma do místico se torna inefavelmente
divina. Nenhuma informação conceitual é assim recebida, mas é uma
experiência profundamente gratificante.
Esse tipo de mente mística ou pietista, exemplificado em todas
as eras, fornece um terreno fértil para os desenvolvimentos mais
recentes. Contudo, o movimento contemporâneo que faz sua religião
vital pairar no evento ou encontro não é um descendente linear e
direto do misticismo ou pietismo. Certas complicações modernas
devem ser levadas em conta. Estas serão consideradas mais tarde.
Mas primeiro é preciso enfatizar um ponto de semelhança dos mais
importantes entre o movimento inicial e o atual. A semelhança é o
seu anti-intelectualismo. Assim como Bernardo ficou aflito com o
“racionalismo” de Abelardo, Søren Kierkegaard reagiu contra a
onisciência de Hegel.
O hegelianismo se propõe nos fornecer uma explicação
completamente racional de todo o Universo. O filósofo havia
começado seu sistema com o mais vazio e mais geral de todos os
conceitos. Uma análise desse conceito deu origem ao seu oposto ou
contraditório. Então o gênio de Hegel descobriu como harmonizar a
contradição numa síntese superior. A síntese por sua vez dá origem
ao seu contraditório, e estes são então harmonizados, e assim por
diante até o Universal Concreto e Absoluto sintetizar todas as coisas.
Na filosofia hegeliana, não há problema que escape dessa solução
dialética.
Kierkegaard rejeita o esquema tese-antítese-síntese em favor
de uma dialética de dois termos. Cada conceito tem seu
contraditório, mas nenhuma síntese é possível. A palavra final não é
o Absoluto, mas o Paradoxo.
O que forneceu motivação para o ataque contra Hegel foi a
hipocrisia, complacência e estupidez da igreja estatal. Kierkegaard
estava farto da ração de serragem com que os pastores hegelianos
alimentavam seus paroquianos. Literal e simbolicamente os pastores
haviam reduzido o milagre de Cristo dos pães e peixes a um
piquenique ordinário; o pecado original se tornara um distúrbio
estomacal hereditário causado por Adão ao ingerir alguma comida
venenosa. Numa teologia como essa Deus e o sobrenaturalismo não
desempenham nenhum papel. O espírito da época havia substituído
o Espírito Santo e o tempo havia engolido a eternidade. Uma pessoa
obtinha seu cristianismo da forma como obtinha sua cidadania —
nascendo na Dinamarca. Piedade era conformidade a costumes, e a
sociedade havia submergido o individual. Foi em oposição à
hipocrisia, ao cristianismo-de-cidadão-de-bem e ao socialismo que
Kierkegaard clamou por uma decisão individual e apaixonada. A
filosofia hegeliana havia magnificado o conhecimento abstrato e
conceitual; mas a verdadeira religião, diz Kierkegaard, não consiste
em compreender nada: Religião é uma questão de sentimento, de
fervor anti-intelectual. “O que” alguém acredita, não tem importância;
“como” acredita é o que faz toda a diferença do mundo.
Numa passagem Kierkegaard descreve dois homens em
oração. Um está numa igreja luterana e mantém uma concepção
verdadeira de Deus; mas porque ora em espírito falso, está na
verdade orando a um ídolo. O outro homem está num templo pagão
orando a ídolos; mas desde que ora com uma paixão infinita, está na
verdade orando a Deus — pois a verdade está no “como” interior e
não no “o que” exterior.
Duas citações da obra de Kierkegaard Pós-escrito conclusivo
não científico às migalhas filosóficas estabelecem a posição geral:
A incerteza objetiva, sustentada na apropriação da mais apaixonada
interioridade é a verdade, a mais alta verdade que há para um ser
existente.[35]
Quando se pergunta pela verdade subjetivamente, reflete-se aí
subjetivamente sobre a relação do indivíduo. Desde que o como dessa
relação esteja na verdade, o indivíduo está então na verdade, mesmo
que, assim, se relacione com a não verdade.[36]
Kierkegaard falou em vão para sua geração. Ninguém prestou
atenção. Todo mundo permaneceu complacente e hipócrita. Foram
necessários eventos de outro caráter — eventos que não tinham
paralelo nos dias em que Bernardo se opunha ao racionalismo de
Abelardo — para forçar o significado de Kierkegaard sobre o século
XX. Hoje o otimismo modernista do século XIX, um modernismo que
via o pecado original como uma desordem estomacal a ser curada
pelos avanços da ciência médica, foi destruído pela incrível
devastação de duas guerras mundiais. A complacência deu lugar à
ansiedade. Tragédia, tortura e morte têm sido nossa sina, e uma
Terceira Guerra Mundial ainda pior nos espreita. Ao perderem a
esperança de soluções intelectuais num mundo de caos insano, os
teólogos do século XX lembravam o dinamarquês iconoclasta.
O primeiro deles foi Karl Barth, que se apropriou da noção de
paradoxo e enfatizou a oposição entre tempo e eternidade, embora
seus escritos posteriores tenham suavizado os temas. Emil Brunner
foi seu primeiro parceiro, apesar de ocorrer mais tarde um racha
entre eles. Brunner foi mais longe nos paradoxos e se manteve mais
franco contra a lógica. Rudolf Bultmann, profundamente influenciado
pelo filósofo Heidegger, é uma cor ainda diferente no mesmo
espectro. Bultmann pode, de forma bastante apropriada, ser
chamado de existencialista, embora Barth explicitamente rejeite o
existencialismo. E por fim é preciso mencionar Jean-Paul Sartre, que
exemplifica a ala ateísta do movimento.
As diferenças entre esses homens tornam impossível esboçar
qualquer resumo que se aplique a todos eles com precisão. Mas há
uma tese básica que os une. Todos eles são anti-hegelianos; todos
concordam que o intelectualismo é algo superficial; eles ou seus
seguidores são propensos a usar os slogans do romantismo —
como: a vida é mais profunda que a lógica e a experiência, mais real
que o pensamento; e, finalmente, todos eles, de forma mais ou
menos explícita, colocam o paradoxo e a contradição no âmago da
realidade e afirmam que alguns problemas são inerentemente
insolúveis.
Essa neo-ortodoxia, esse neo-sobrenaturalismo, ou — em
linguagem filosófica — esse existencialismo, não deve ser definido
simplesmente como um interesse em questões de interesse último.
Alguns existencialistas tentam fazer isso e em seguida afirmam que
Agostinho e Lutero eram existencialistas. É uma lógica ruim e um
estudo precário. O importante é que o existencialismo repudia o
pensamento racional, coisa que Agostinho e Lutero nunca fizeram.
Pascal é às vezes chamado de precursor do existencialismo; mas
Pascal escreveu, como Brunner e Sartre nunca poderiam escrever,
que “Toda a nossa dignidade consiste, pois, no pensamento”.[37] O
ponto essencial sobre esses teólogos do século XX é que eles
repudiam o pensamento e louvam a experiência não intelectual.
Jean-Paul Sartre tenta dar um resumo mais positivo e mais
técnico do existencialismo. Afirma sua tese comum de que “a
existência precede a essência”. Essa frase antiplatônica e anti-
hegeliana significa que o aristotélico “isso” precede o aristotélico “o
que”. Por exemplo, se um carpinteiro deseja fazer um armário, deve
primeiro saber o que é um armário e qual é a forma e tamanho
específicos do armário que pretende fazer. Aqui o “o que” precede o
“isso”: a essência precede a existência. Assim também, a ideia cristã
de Deus inclui a noção de que Deus sabia o que iria criar antes de
ter criado. A doutrina da providência atribui a Deus um conhecimento
ou plano de história que antecede os eventos. É o que Sartre nega.
Não existe um plano pré-existente de história nem mesmo uma
natureza humana determinada que todos os homens devem ter.
Cada homem faz a si mesmo o que acaba se tornando. O “o que”
vem depois do “isso”.
Há boas razões para selecionar esse como o princípio definitivo
do existencialismo, mesmo em suas formas teológicas. Esses
autores enfatizam a liberdade humana, um universo aberto e uma
natureza indeterminada de tal maneira que — por implicação, pelo
menos — Deus não pode ter nenhum plano. Por exemplo, Langdon
Gilkey, embora não seja um completo existencialista, absorveu
bastante dele para escrever:
A existência, embora revele uma coerência e significado últimos,
não será totalmente reduzida a qualquer sequência clara e precisa
de relacionamentos. Há profundezas de liberdade de criatividade,
e mesmo de incoerência, dentro do mistério do ser que desafiam a
tentativa de se organizar a vida em padrões racionais simples.
Sendo assim, a própria meta da filosofia é fatal para o pleno
entendimento… As intuições persistentes de que nossos
propósitos são eficazes e nossa individualidade tem valor
desmentem sistemas nos quais tudo é determinado a partir de fora
de nós…[38]

Apesar da frase “coerência [última]” e da palavra “simples” na


frase “padrões racionais simples”, o pensamento nega a ordem
última e total e se recusa a reconhecer um Deus além de nós que
preordenou tudo o que vem a acontecer. Negações semelhantes e
talvez até mais fortes da providência e da predestinação podem ser
encontradas em outros escritores.
Enquanto Sartre vê claramente as implicações ateístas de sua
definição de existencialismo e sua defesa da liberdade, os teólogos
tentam escapar delas. Para repetir, Karl Barth em particular afirma
que não terá parte na “gritaria existencial e em coisas do tipo”.
Todavia, Barth dificilmente pode escapar da acusação de anti-
intelectualismo, e Brunner ainda menos. Esses homens e aqueles
que eles influenciaram argumentam que o intelecto lida com
abstrações e conceitos de classe; não consegue lidar com o que é
único. Mas cada indivíduo, especialmente cada indivíduo humano, é
único. Não conhecemos as pessoas da forma como conhecemos as
coisas. Há uma Verdade-Isto e uma Verdade-Tu; há um
conhecimento sobre e há um conhecimento por relacionamento. Ora,
Deus é uma pessoa. Logo, não podemos saber sobre ele; devemos
encontrá-lo num confronto face a face. Como disse Kierkegaard, a
verdade — a verdade não intelectual, a verdade real — é subjetiva.
Não é conhecimento, mas uma experiência apaixonada.
Essas caracterizações — embora forneçam informação
escassa sobre os detalhes dos 20 volumes da Dogmática
eclesiástica de Barth ou sobre o longo O Ser e o Nada de Sartre —
são, creio eu, tão fiéis quanto possível. Com elas em mente é hora
agora de examinar mais de perto a ideia da revelação como um
encontro. Primeiro, voltemos um momento a Kierkegaard.
O tipo de religião de Kierkegaard enfrenta uma questão óbvia e
inevitável. Se não faz diferença “o que” alguém acredita, se somente
o “como” é importante e se orar a ídolos é satisfatório, não seria uma
apropriação apaixonada do diabo algo tão louvável quanto uma
decisão por Cristo?
Kierkegaard percebe essa questão e faz uma tentativa fraca de
respondê-la. Ele tenta distinguir entre a interioridade do infinito e a
interioridade do finito. A primeira é uma interioridade cristã e é
baseada em Deus; a última se relaciona a algum outro objeto.
Essa resposta, no entanto, está de ponta-cabeça. Se houvesse
um conhecimento objetivo prévio de Deus, uma pessoa poderia usar
esse conhecimento objetivo como base para julgar que sua
apropriação apaixonada era infinita. Mas se não há nenhum
conhecimento objetivo prévio de Deus e se, portanto, a pessoa está
limitada à introspecção dos seus próprios sentimentos, nenhuma
diferença qualitativa entre os dois atos apaixonados de apropriação
pode ser discernida. Se, ademais, um ídolo é tão satisfatório quanto
Deus, por que não seria o socialismo de Hegel e Marx tão aceitável
quanto Kierkegaard e o individualismo? Os comunistas são bastante
apaixonados, não são?
É essa incapacidade de justificar uma decisão em
contraposição à decisão oposta, é o igual valor do encontro com
Deus e do encontro com um ídolo, é a ênfase no “como” e a rejeição
do “o que”, que tem de uma forma ou outra atormentado o
movimento existencialista até o presente. Por exemplo, os defeitos
que existem no subjetivismo de Kierkegaard não foram removidos no
desenvolvimento de Emil Brunner do mesmo tema. Brunner sem
dúvida aperfeiçoa a posição de Kierkegaard, em que interpreta a
apropriação apaixonada e o movimento de decisão para serem — o
que Kierkegaard não disse claramente — um encontro pessoal.
Contudo, essa experiência religiosa não dá nenhum conhecimento
teológico. Ela difere da cognição ordinária por causa da distinção
entre a Verdade-Isto e a Verdade-Tu. No campo religioso essa
bifurcação do conhecimento foi prevista por Ferdinand Ebner e
Martin Buber; na filosofia secular Brunner estranhamente se acha na
companhia de Moritz Schlick, que separava Erleben de Erkennen, e
de Bertrand Russell, que distinguia entre conhecimento por
familiaridade e conhecimento por descrição.
Na verdade, a forma religiosa dessa bifurcação é mais
devastadora para o conhecimento do que a forma secular. Ela nos
impede até mesmo de pensar sobre Deus. Brunner escreve:
Deus e o meio da conceitualidade são mutuamente exclusivos.
Deus é pessoal e só se revela no meio da personalidade, portanto
de um modo pessoal e não através do pensar… Não se pode estar
relacionado com Deus pelo pensar… Conhecer Deus não significa
meramente saber sobre Deus, mas ter com ele pessoalmente um
encontro.[39]
Quão pouco de pensamento e conhecimento Brunner acaba
deixando para a religião pode ser visto ao se rastrear seu argumento
em O encontro divino-humano. Ele abre com o lamento de que a
Igreja Primitiva sucumbiu à má influência grega que fazia da
revelação uma comunicação de verdades e tornava a fé uma
aceitação dessas verdades; então, quase cem páginas depois, ele
conclui: “Todas as palavras têm apenas um valor instrumental. Nem
as palavras faladas nem seu conteúdo conceitual são a Palavra em
si; são apenas sua estrutura”.[40]
Nesse anti-intelectualismo, a fé — se existe tal coisa — se torna
um paradoxo. Os paradoxos da fé, diz Brunner, não são meramente
problemas difíceis de resolver, mas “contradições necessárias em si
mesmas e portanto também contradições contra a lei fundamental de
todo conhecimento, a lei da contradição, ergo nenhum
conhecimento”.[41] Especificamente, ele identifica a Trindade e as
duas naturezas de Cristo como “monstruosidades lógicas” — bens
preciosos da igreja, sem dúvida, mas ainda assim monstruosidades
lógicas. A teologia — isto é, a teologia de Brunner — não está
preocupada com a verdade unívoca da razão; a revelação não deve
ser equiparada a um sistema de doutrina revelada; antes, a teologia
tem a ver com a unidade pessoal incompreensível que une suas
contradições.
Em outras palavras (minhas palavras), a fé é uma insanidade.
Uma crítica à teoria de revelação que fala de encontro não
precisa gastar muito tempo com as complexidades filosóficas de
Martin Heidegger ou Jean-Paul Sartre, pois todos os detalhes estão
sujeitos à teoria universal de conhecimento e verdade. A bifurcação
da verdade como Verdade-Isto e Verdade-Tu faz com que o termo
verdade seja equívoco; e além disso, se ela preserva de fato alguma
coisa no lado do encontro ou Erlebnis, preserva-o como um Ding an
sich incognoscível. Confusão ou engano surgem então quando se
fala sobre a verdade e se faz crer que a fala, ou os livros publicados,
são em algum sentido inteligíveis. Eles não são inteligíveis, pois a
verdade como encontro simplesmente não é verdade de fato.
Além do dualismo insustentável e sem solução, a evidência
apresentada na verdade depõe contra a conclusão. Uma fraseologia
como “Analisamos racionalmente as coisas, mas encontramos
pessoas” pode ser uma boa retórica; mas negar que uma pessoa
possa ser um objeto de pensamento contraria frontalmente nossas
rotinas diárias. Admitindo que embora o nosso melhor conhecimento
das pessoas não venha da nossa observação delas como objetos
físicos mas de sua autorrevelação voluntária, essa autorrevelação é
melhor feita pela fala e pela fala inteligível. Se uma pessoa se
recusasse a falar, que bem nos faria conhecê-la? Isso é igualmente
verdade no caso de Deus. Mais uma vez, se é admitido (ou, antes,
exigido e insistido) que qualquer conhecimento que um homem
possa ter de Deus depende da autorrevelação voluntária de Deus,
que bem faria — para a religião, para a conduta diária, para a
teologia ou filosofia — encontrar Deus se ele não revelou nada?
Claro, devemos nos encontrar com as pessoas, mas devemos nos
encontrar para conversar com elas.
Por esse motivo, a noção aparentemente piedosa de que Jesus
Cristo é a revelação de Deus e que toda a nossa religião e teologia
derivam de um encontro com Cristo exclui a teologia sistemática e
também toda religião definida.
É claro que Jesus é a Palavra viva de Deus. Nem por um
momento negamos isso. É claro que Deus nestes últimos dias se
revelou a nós em seu Filho. Mas se a pessoa de Cristo é divorciada
do que Jesus de Nazaré disse e se a pessoa de Cristo é divorciada
do que Deus disse sobre ele através dos apóstolos, como podemos
saber o que Cristo fez por nós? Um mero encontro deixaria os
termos regeneração, imputação e justificação sem sentido. De fato,
se não houvesse discurso ou pensamento inteligível, jamais
poderíamos saber se um encontro foi um encontro com Cristo o Filho
de Deus ou se foi o encontro de Kierkegaard com um ídolo. A própria
identificação de Jesus como o Filho de Deus não pode ser feita sem
um pensamento inteligível.
O conhecimento por familiaridade, no sentido anti-intelectual de
encontro, Begegnung ou Erlebnis, não resultará em nenhuma religião
exceto um entretenimento emocional. Não pode haver aí nenhuma
teologia.
Esse ponto precisa de uma ênfase e repetição. Um encontro
em que nenhum conhecimento conceitual ou conteúdo intelectual foi
transmitido não daria ao sujeito nenhuma razão para pensar que
encontrou Deus. Nem poderia uma experiência tão inarticulada
apontar para qualquer coisa definida além de si mesma. Embora a
experiência ainda pudesse ser teimosamente chamada de religião
por aqueles que pensam ou, melhor, sentem que a emoção é a
essência da religião, ela jamais poderia ser identificada como
cristianismo, judaísmo ou islamismo. Esses três exigem ideias — um
“o que” e não simplesmente um “como”.
Que o existencialismo é uma nova religião completamente
diferente do cristianismo é algo que fica involuntariamente claro na
Pittsburgh Perspective, uma publicação do Seminário Teológico de
Pittsburgh. Num artigo, “Bíblia, ortodoxia e Karl Barth” (de março de
1963), o autor, após dar várias razões detalhadas em oposição à
doutrina ortodoxa da inspiração, leva seu argumento ao clímax ao
contrastar dois tipos de religião. Um tipo é “racionalista”: sua
concepção de “conhecimento pessoal é dolorosamente estéril”; “o
caráter da palavra reveladora como discurso existencial é quase
inteiramente negligenciado em favor da ideia de que a palavra
fornece informação verdadeira”; um escritor ortodoxo menciona a
necessidade da adoração e da conduta ética, e “estas ajudam a
mitigar o intelectualismo no conceito que ele tem de teologia. Mas
não movem, todavia, seu pensamento para a gama de problemas
que surgem no modo existencialista-personalista de pensar”. O autor
está obviamente contrastando dois tipos de religião, e o tipo que ele
prefere não é o cristianismo histórico.
A fraseologia existencialista sobre encontro e personalidade
parece atraente para muitos que não pensam além da linguagem da
propaganda. São abundantes os exemplos de frases que causam
impressão mas são completamente vazias. Outro autor insiste que a
religião é um assunto “intensamente pessoal”. Sem dúvida é. Assim
como o estudo do cálculo — ninguém pode fazê-lo por você. Assim
como escovar os dentes. Mas nenhuma conclusão sobre a natureza,
características, valores ou importância da atividade — ou sobre o
que seria correto fazermos no tocante a ela — pode ser extraída da
frase “intensamente pessoal”. Essa linguagem é meramente uma
explosão emocional. É uma frase vazia de uma mente vazia.
É preciso insistir junto a todos que o existencialismo e o modo
personalista de pensar, ou melhor, o modo personalista de não
pensar, são a antítese do cristianismo. O fato de que Nietzsche foi
um dos precursores do existencialismo, o fato de que Heidegger era
um nazista que terminava seus discursos com “Heil Hitler” e o fato de
que Sartre é ateu podem ficar aquém de uma prova completa de que
o existencialismo é anticristão. Mas considerações estritamente
teológicas não ficam aquém de uma prova completa.
O antagonismo fundamental entre o existencialismo e o
cristianismo é evidenciado pelo exame da relação entre o encontro e
a crença em uma vida futura. O existencialismo, na sua reação
contra as verdades abstratas e eternas, enfatiza a morte — a minha
morte — a morte do indivíduo. Heidegger fala da morte como o fim
pelo qual a existência de um homem se torna completa. A
capacidade do homem de prever a morte, não como um fenômeno
comum mas como sua própria morte, é a base da sua capacidade de
compreender sua existência como um todo. No que diz respeito à
sociedade, um homem pode ser substituído por outro. Quando um
banqueiro se aposenta, outro continua as mesmas funções. Mas o
homem não é uma função, e eu devo tratar da minha própria morte.
Sem prever a morte, um homem não pode viver “autenticamente”.
Mas o que a revelação como encontro pode nos dizer sobre a
morte e uma vida futura? Particularmente, o que o encontro pode nos
dizer sobre uma ressurreição corporal dos mortos? Um encontro não
conceitual e ininteligível jamais poderia nos dar a informação de que
Cristo voltará para ressuscitar os mortos. Nem mesmo pode dar a
garantia mínima de algum tipo de vida futura. Suponha com paixão
infinita que eu me comprometa com a liberdade ou decida viver
autenticamente ao invés de cometer suicídio ou mergulhar nas
massas: como poderia essa experiência emocional me informar que
estarei consciente daqui a cem anos e qual será a qualidade dessa
consciência? Em face da morte, o que precisamos não é paixão
infinita, mas informação definitiva.
Outros detalhes de teologia e eclesiologia cristã desaparecem.
Como Erlebnis me convence do batismo infantil ou da imersão de
adultos? Por qual padrão determino o número de sacramentos e as
formas da sua administração? À parte de uma informação revelada,
pode o papado, o episcopado, o presbiterianismo ou o
congregacionalismo ser defendido ou atacado? Não está bastante
claro que a religião anti-intelectual só pode estabelecer a natureza da
igreja por uma decisão arbitrária da parte de seus oficiais humanos?
E como último ponto, a mesma dificuldade também é
encontrada em questões de moralidade. Que isso deve ser verdade
acerca do existencialismo ateísta de Sartre não precisa ser visto
como algo surpreendente. O que é surpreendente são as
recomendações explícitas de Sartre de um tipo de vida como sendo
superior a outro. Se tudo é permitido, se o homem é a única fonte
dos seus valores, se ele é responsável até mesmo por sua
constituição físico-psicológica e pela situação na qual se encontra
(coisas essas que Sartre aparentemente afirma), então como pode
Sartre implicitamente exigir que todos os homens escolham a
liberdade e vivam autenticamente?
O teísmo atenuado dos outros escritores neo-ortodoxos não dá
fundamento melhor para a distinção entre o certo e o errado. É
verdade que Brunner diz: “Deus… se revela… através de discursos,
convocações e ordens reais”. Na verdade, ele diz isso na mesma
passagem em que afirma “Deus e o meio da conceitualidade são
mutuamente exclusivos” e onde também diz que “Não se pode estar
relacionado com Deus através do pensar”. Mas se Deus deve se
dirigir a nós através da ordem, o pensar é necessário. Um Deus que
fale inteligivelmente pode emitir os Dez Mandamentos, mas um
encontro ordena tão pouco quanto informa. De novo, todas as formas
de adoração são deixadas para a política eclesiástica (e também
todas as formas de moralidade).
Como deve agora estar claro, a grande dificuldade é a recusa
em se aceitar a lei da contradição. Erlebnis, fé ou encontro é algo
que refreia a lógica. O resultado é uma inconsistência indesculpável.
Só as pessoas que Alice encontrou no País das Maravilhas podem
acreditar em contradições e monstruosidades lógicas.

Revelação verbal
É hora de nos voltarmos para algo lógico, consistente e
inteligível. A visão cristã da revelação — embora admita uma
demonstração empírica do poder de Deus na astronomia, e exija o a
priori da imagem divina no homem e embora acima de tudo torne
possível um “encontro” com a mente de Deus — identifica
essencialmente a revelação de Deus com as palavras da Escritura.
Deus nos disse algumas coisas; ele falou; ele nos deu informações.
Em vários escritores neo-ortodoxos há afirmações de que a
ideia de uma revelação verbal, segundo a qual Deus dá ao homem
informações verdadeiras, foi invenção de um escolasticismo
protestante tardio que havia perdido o fervor religioso original dos
reformadores.
Ora, é preciso reconhecer — na verdade, é preciso insistir —
que os credos posteriores, que (escolásticos ou não) representam as
conclusões mais autoritativas e mais maduras do pensamento da
Reforma, ensinam a doutrina da infalibilidade bíblica. De todos os
credos, a Confissão de Westminster é a mais longa e a que foi
composta com mais cuidado. Sendo a posição doutrinária oficial de
todas as denominações presbiterianas, ela afirma que a Escritura
Sagrada ou Palavra de Deus (que a Confissão define citando os 66
livros) deve ser crida e obedecida por causa da autoridade de Deus,
seu autor. A Bíblia deve ser recebida, continua a Confissão, porque
ela é a Palavra de Deus, que é a própria verdade. Visto que todo o
conselho de Deus é encontrado na Bíblia, nada absolutamente deve
ser acrescentado a ela. Em todas as controvérsias a igreja deve
fazer seu apelo final à Bíblia, e o Supremo Juiz pelo qual todos os
conselhos e opiniões devem ser examinados não é outro senão o
Espírito Santo falando nas Escrituras. Para evitar a objeção hipócrita
de que o Espírito pode falar em algumas partes da Bíblia mas não
em outras, a Confissão não só define a Palavra de Deus como os 66
livros, como também explica depois a fé salvadora da seguinte
forma: “Por esta fé o cristão, segundo a autoridade do mesmo Deus
que fala em sua Palavra, crê ser verdade tudo quanto nela é
revelado”.[42]
Uma confissão anterior, a Confissão Belga de 1561, declara a
mesma doutrina da Escritura: “Cremos que as Sagradas Escrituras
estão contidas em dois livros, a saber, o Antigo e o Novo
Testamentos, que são canônicos, contra os quais nada pode ser
alegado”. Essa é uma declaração de inerrância; e para deixar claro
que a inerrância caracteriza toda a Bíblia e não apenas algumas
porções, a Confissão Belga, tendo citado os 66 livros, acrescenta as
palavras “Recebemos todos esses livros… crendo, sem qualquer
dúvida, em todas as coisas neles contidas…”.
A Segunda confissão helvética diz: “Credimus et confitemur
Scripturas Canonicas sanctorum Prophetarum et Apostolorum
utriusque Testamenti ipsum verum ease verbum Dei… Nam Deus
ipse loquutus est Patribus, Prophetis, et Apostolis, et loquitur adhuc
nobis per Scripturas Sanctas… ne ei aliquid vel addatur vel
detrahatur” [Cremos e confessamos que as Escrituras canônicas dos
santos profetas e apóstolos de ambos os Testamentos são a própria
Palavra de Deus… Pois o próprio Deus falou pelos patriarcas,
profetas e apóstolos, e ainda fala a nós pelas Sagradas Escrituras…
às quais nada se pode acrescentar ou subtrair].
Essas posições de credos são clara e explicitamente
incompatíveis com a visão neo-ortodoxa da Bíblia. Mas é verdade
que essa posição de credo pode ser adequadamente referida pelo
termo depreciativo “escolasticismo”? Será que os credos
acrescentam doutrinas artificiais que diferem da pregação de Calvino
e Lutero? Teriam os reformadores negado que a Bíblia é a própria
Palavra de Deus? Negavam eles a inerrância da inspiração verbal?
Primeiro, consideremos Calvino. Uma vez que a veracidade da
Escritura não era formalmente negada pelos romanistas, o assunto é
tratado com menos minúcia nos escritos dos reformadores do que a
doutrina da livre graça. Mas as observações incidentais de Calvino
são suficientemente claras.[43] Num lugar ele diz:
Deus é seu Autor. A principal prova da Escritura é que nela Deus
fala pessoalmente. [Os profetas] proferem o sagrado nome de
Deus, por honra do qual todos são coagidos à obediência. [O]
nome de Deus, sem temeridade ou falácia, é invocado com líquida
verdade, não dependendo de uma opinião aparente. [Há] sinais
manifestos de que Deus fala na Escritura, patenteando que sua
doutrina é celestial.[44]
De fato, ao invés de se atribuir a Calvino uma visão mais solta da
Escritura do que aquela da Confissão de Westminster, é mais fácil
entendê-lo ou fazer uma má-interpretação dele como se mantivesse
uma visão mais estrita. Ao descrever o método de inspiração,
Calvino usa a palavra muito difamada “ditado”. Ele diz: “O Espírito
Santo ditou aos profetas e apóstolos” exatamente o que queria que a
escrita acabada contivesse. E essa não é uma referência solitária. A
obra de Calvino está repleta de referências ao ditado divino da
Escritura.
Algumas amostras da fraseologia de Calvino, que podem ser
verificadas na obra de Kantzer, são estas: “Aprouve a Deus confiar
sua palavra à escrita… Detalhes históricos foram adicionados, que
são também da pena de profetas, mas ditados pelo Espírito Santo”;
“Porque a Palavra de Deus não se distingue das palavras do profeta,
como se o profeta tivesse acrescentado algo de sua autoria”. Calvino
se refere à Escritura como o “registro certo e infalível” e como o
“padrão inerrante”, “livre de toda mancha ou defeito”. Com relação
aos salmos imprecatórios, diz Calvino: “Davi não proferiu maldições
de maneira precipitada ou imprudente contra seus inimigos, mas
aderiu estritamente ao que o Espírito ditou”.
A visão que Calvino tinha da natureza do ditado e a doutrina
ortodoxa da inspiração verbal têm sido tão frequentemente mal-
entendidas e o mal-entendido tão frequentemente apontado, que
somos forçados a suspeitar que a deturpação é intencional. Aqueles
que atacam a doutrina protestante ortodoxa tentam reduzir o ditado
divino ao que se chamaria de ditado mecânico de um escritório de
negócios. Os liberais querem nos fazer pensar que os teólogos
ortodoxos nunca sequer sonharam que Deus poderia usar a
personalidade de um profeta. Eles, os liberais, constante e
erroneamente argumentam que a inspiração verbal torna as
diferenças estilísticas inexplicáveis. Mas essa alegação é
historicamente falsa, como qualquer um poderia ver ao ler os
teólogos ortodoxos, de Warfield neste século voltando até ao próprio
Calvino.
Todavia, o mal-entendido apenas acabaria mostrando que as
confissões posteriores não foram “adições escolásticas” às doutrinas
da Reforma. Como então os liberais preferem interpretar? Que
Calvino ensinou o ditado mecânico ou que os credos eram
escolásticos? Eles não podem ter ambos.
Por outro lado, o reconhecimento de Calvino da crítica textual e
suas observações sobre a canonicidade foram usados para lhe
atribuir uma visão mais solta da inspiração. Isso pode favorecer a
ideia dos credos como escolásticos, mas contradiz frontalmente toda
a ênfase de Calvino no ditado. Entretanto, essa atribuição a Calvino
de uma visão mais solta também está baseada num mal-entendido.
Os tipos de passagens dos quais a suposta evidência é tomada
mostram claramente que Calvino ensinou a inspiração verbal e
plenária da Palavra de Deus.
O mesmo se aplica a Lutero. J. Theodore Mueller escreve:
Quando historiadores da igreja atribuem a Lutero o mérito de haver
demonstrado o Schriftprinzip, isto é, a verdade axiomática de que
a Escritura Sagrada é o único princípio pelo qual a verdade divina
é realmente e inconfundivelmente conhecida, fazem isso com total
justiça ao reformador de Wittenberg, cuja suposta “atitude liberal”
para com a Escritura teólogos liberais, contrariando os fatos
históricos, tentam em vão demonstrar.[45]
Quenstedt, que os liberais citam como um teólogo que corrompeu a
doutrina da inspiração mais livre da Reforma, escreveu:
As Escrituras Sagradas canônicas no texto original são a verdade
infalível e são livres de todo erro; em outras palavras, nas
Escrituras Sagradas canônicas não se encontra, por mínima que
seja, nenhuma mentira, falsidade, erro, quer em temas, quer em
expressões, mas, em todas as coisas e em todos os detalhes que
são nelas transmitidos como herança, são certamente verdadeiras,
quer pertençam à doutrina ou moral, à história ou cronologia, à
topografia ou nomenclatura. Nenhuma ignorância, nenhuma
negligência, nenhum esquecimento, nenhum lapso de memória
pode e ousa ser atribuído aos amanuenses do Espírito Santo na
sua redação dos Escritos Sagrados.
A despeito do que dizem os liberais, essas afirmações de
Quenstedt não são corrupções posteriores. Tudo na citação acima
pode ser encontrado no próprio Lutero. Por exemplo, “As Escrituras
jamais erraram” e “É impossível que a Escritura se contradiga; só
aos hipócritas insensatos e obstinados é que parece se contradizer”.
Outros exemplos: “As Escrituras são divinas; Deus fala nelas, e elas
são sua Palavra”, e:
A menos que seja convencido pelo testemunho da Escritura ou por
razões evidentes — pois não acredito, se tomados isoladamente,
nem no Papa nem nos Concílios, pois já foi demonstrado que
frequentemente cometem erros e se contradizem —, sou
subjugado pelos escritos por mim citados e minha consciência está
cativa à Palavra de Deus. Não vou e não posso, portanto, abjurar
qualquer coisa, visto não ser nem seguro nem honesto fazer
qualquer coisa contra a consciência.
Separada de seu contexto, essa última citação pode parecer mostrar
que Lutero podia apelar a “razões evidentes” em adição e sem
relação com a Bíblia. Uma análise do contexto e a situação histórica
exige que reconheçamos que “razões evidentes” significa deduções
corretas da Escritura e que “consciência” significa a consciência dele
adstrita à Bíblia. A famosa declaração é, portanto, uma afirmação de
Sola Scriptura.
Se isso basta para convencer alguém de qual era realmente a
posição do reformador, o passo seguinte é ver se a doutrina foi uma
invenção nova ou se já podia ser encontrada antes. Ou, de modo
mais pertinente, o passo seguinte é ver se a doutrina da inspiração
verbal é um ensino da própria Bíblia. Se os neo-ortodoxos afirmam
ser teólogos bíblicos, se sua teologia é chamada de teologia da
Palavra, é de suma importância ver o que a Palavra diz sobre si
mesma. Felizmente, essa é uma das doutrinas bíblicas mais fáceis
de se determinar. Asserções ou implicações da inspiração plenária e
verbal abundam de Gênesis a Apocalipse.
A mais conhecida, claro, é: “Toda a Escritura é inspirada por
Deus”. Uma tradução melhor e mais literal seria “Toda a Escritura foi
soprada por Deus”. Deve-se notar, como teólogos ortodoxos
repetidas vezes apontaram, que o que Deus soprou foram as
palavras escritas no manuscrito. O versículo não diz que Deus
inspirou os pensamentos dos autores nem tampouco seu discurso. O
que Deus soprou foi a Escritura, as palavras escritas.
Naturalmente, o versículo não nega que Deus inspirou os
pensamentos dos autores. O ponto é simplesmente que, o que quer
que mais Deus tenha feito, ele também soprou as palavras escritas.
Neste ponto, por causa da deturpação persistente que os liberais
fazem da inspiração verbal como se fosse um ditado mecânico, pode
ser bom repetir que os processos mentais dos profetas
permaneceram o tempo todo normais. A ideia de que a inspiração
verbal entraria em conflito com o estilo literário de um profeta
depende de uma concepção deísta de Deus que os liberais
defendem por si próprios ou atribuem erroneamente aos teólogos
ortodoxos. Essa concepção deísta de Deus o retrata no papel de um
executivo de negócios, cujo controle sobre a estenógrafa é externo e
limitado. Ele não orientou a educação recebida por ela nem controla
cada um de seus pensamentos. Nada da personalidade dela é
transferido para o texto digitado. Mas a visão cristã de Deus é de
alguém em quem vivemos, nos movemos e existimos. Ele cria nossa
personalidade e forma o nosso estilo literário. Ele preordena nossa
educação e guia todos os nossos pensamentos. Por isso Deus,
desde toda a eternidade, decretou tirar os judeus da escravidão pela
mão de Moisés. Para esse fim, determinou a data do nascimento de
Moisés, providenciou que ele recebesse uma educação principesca e
assim por diante até que, tendo chegada a hora, a mentalidade e o
estilo literário de Moisés fossem os instrumentos precisamente
ajustados para falar e escrever as palavras de Deus. Entre Moisés e
o Deus onipotente havia uma tal união interior, uma tal identidade de
propósitos e uma tal cooperação de vontades que as palavras que
Moisés escreveu eram ao mesmo tempo as próprias palavras de
Deus e as próprias palavras de Moisés.
Às vezes, objeta-se que o versículo em 2 Timóteo se aplica
somente ao Antigo Testamento. Talvez sim, mas é divertido ver os
liberais tão determinados a exaltar a autoridade do Antigo
Testamento a fim de desvalorizar o Novo. De qualquer modo, o Novo
Testamento repetidas vezes afirma a veracidade do Antigo. Pode-se
examinar o tratamento que nosso Senhor confere à Escritura, isto é,
ao Antigo Testamento. Citando a Escritura ele derrota o diabo,
confunde os saduceus e reduz os fariseus a um silêncio irado.
O Antigo Testamento também ensina sua própria infalibilidade,
e isso empurra a doutrina bem para o passado. Em adição a muitos
exemplos de frases como “O S o disse” e “A boca do S
o disse”, um composto de Jeremias 1.9 e Deuteronômio 18.19 dirá:
“Eis que ponho na tua boca as minhas palavras” e “De todo aquele
que não ouvir as minhas palavras, que ele falar em meu nome, disso
lhe pedirei contas”.
Isso já basta do Antigo Testamento. A questão agora é se o
Novo Testamento faz as mesmas reivindicações de si. Em primeiro
lugar, o Novo Testamento pressupõe de maneira difusa sua
superioridade sobre o Antigo. Explicitamente se diz que João Batista
era um profeta maior que aqueles do Antigo Testamento e que os
profetas do Novo Testamento são maiores do que João.
A superioridade, é claro, não estava numa maior veracidade,
pois isso eles não poderiam ter. Mas se tivessem sido menos
verazes, não poderiam ter sido superiores. Note que Pedro diz:
“nosso amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que
lhe foi dada, ao falar acerca destes assuntos, como, de fato, costuma
fazer em todas as suas epístolas, nas quais há certas coisas difíceis
de entender, que os ignorantes e instáveis deturpam, como também
deturpam as demais Escrituras, para a própria destruição deles” (2Pe
3.15, 16). Aqui Pedro coloca todas as epístolas de Paulo na
categoria de Escritura Sagrada. O próprio Paulo afirma ser profeta:
“pelo que, quando ledes [o que havia escrito algumas poucas
palavras antes], podeis compreender o meu discernimento do
mistério de Cristo… como, agora, foi revelado aos seus santos
apóstolos e profetas, no Espírito” (Ef 3.4, 5). O termo “profeta” coloca
Paulo no patamar dos profetas do Antigo Testamento; o termo
“apóstolo” o coloca acima deles, pois “a uns estabeleceu Deus na
igreja, primeiramente, apóstolos; em segundo lugar, profetas; em
terceiro lugar, mestres…” (1Co 12.28).
Se alguém desejar uma lista quase exaustiva de alegações
semelhantes para a Escritura, pode ler Theopneustia de Louis
Gaussen. O pequeno número de citações aqui feitas só evidencia a
confiança no número extremamente grande que podem ser
facilmente localizadas.
Mas se alguém prefere uma última citação, que seja 2 Pedro
1.21: “porque nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade
humana; entretanto, homens [santos] falaram da parte de Deus,
movidos pelo Espírito Santo”. Inspiração verbal e plenária — isto é,
infalibilidade, inerrância — é a alegação que a Bíblia faz de si
mesma; e se a Bíblia não representa a si mesma corretamente, não
parece haver bons motivos para levá-la muito a sério em qualquer
outro assunto.
Porém, essa doutrina, da qual todas as demais doutrinas
dependem, é a mais violentamente atacada. Por um impulso
satânico, a batalha contra o cristianismo é voltada contra a sua
fortaleza. Barth escreve: “Os profetas e os apóstolos em si, mesmo
em seus ofícios… eram… realmente culpados de erro em suas
palavras faladas e escritas”.[46] Brunner afirma que a Bíblia “está
cheia de erros, contradições, opiniões errôneas sobre todos os tipos
de situações humanas, naturais e históricas. Ela contém muitas
contradições nos relatos sobre a vida de Jesus, está cheia de lendas,
inclusive no Novo Testamento”.[47] Bultmann apresenta mais
contestações que Brunner. Com uma opinião tão depreciativa da
Bíblia, o uso que fazem dela para qualquer propósito religioso é outro
de seus paradoxos insolúveis.
Mas são suas acusações verdadeiras? Está a Bíblia realmente
“cheia de erros, contradições, opiniões errôneas”? É a Bíblia tão
absolutamente indigna de confiança, como dizem Brunner e
Bultmann?
No que diz respeito às acusações de erro doutrinário, não se
pode dar nenhuma resposta geral. Teríamos de saber em que base
filosófica a acusação foi fundamentada. Por exemplo, as doutrinas do
pecado original e da depravação total foram amplamente negadas
pelo modernismo com base num otimismo evolutivo. Os teólogos do
século XIX pensavam que o mal havia sido quase erradicado da face
da Terra e que o socialismo, talvez o nacional-socialismo, marcaria o
início do Reino de Deus. As ideias do pecado original e da
depravação total, portanto, eram erros na doutrina. Da mesma forma,
tentativas são às vezes feitas para minar a doutrina da
predestinação, seja por uma interpretação particular do amor divino,
seja por um apelo ao princípio da indeterminação que Heisenberg
tentou introduzir na física.
Um argumento completo para mostrar que essas doutrinas
bíblicas são verdadeiras e que os liberais estão errados não pode ser
aqui incluída. No caso da predestinação, certamente ninguém quer
neste ponto uma discussão de física teórica. Na medida em que os
liberais dependem de sua interpretação de amor divino, seria
necessário examinar que fonte de informação eles usam para obter
seu conceito de Deus. Não é o conceito bíblico. Têm eles então outra
revelação? Deve ser uma melhor, já que consideram as Escrituras
tão pouco confiáveis. Sendo o caso da depravação total versus a
bondade inerente da natureza humana, um argumento poderia tentar
refutar a evolução biológica; ou poderia negar que os princípios da
evolução biológica podem ser estendidos à sociedade e à religião; ou
poderia mostrar que a evolução, longe de ser otimista, retrata a
natureza como rubra em dentes e garras. Como os antecedentes da
acusação são tão variados, argumentos completos seriam
demasiado longos para o presente propósito, e a questão do erro
doutrinário deve se acomodar com essas dicas.
Se, no entanto, a Bíblia é acusada de erro pelo fato de conter
relatos de milagres, uma resposta diferente é necessária. Embora a
negação dos milagres impugne a onipotência e nos devolva para a
fonte do nosso conhecimento de Deus, o argumento mais comum
contra os milagres é que a ciência refutou sua possibilidade. Aqui é
necessária uma filosofia da ciência para questionar a finalidade da
mecânica newtoniana. Publiquei esse argumento em outro lugar.[48]
A seguir, quando Brunner alega que o Novo Testamento é falso
porque está cheio de lendas, pode-se apontar que as datas iniciais
dos Evangelhos não dão tempo para que lendas se desenvolvam. Se
o Antigo Testamento é criticado por esse motivo, pode-se perguntar:
o que é uma lenda? Se uma lenda é distinguida da história
simplesmente por causa do seu caráter fragmentário, Brunner terá
de provar que tudo o que é fragmentário deve ser falso. Pressione
isso de forma consistente e o resultado será que todos os livros de
história são falsos porque todos são fragmentários. Nenhum livro
contém tudo.
Em segundo lugar, críticas destrutivas do tipo de Wellhausen
têm sido uma base ainda mais popular para se acusar a Bíblia de
erro. Os alegados erros são de natureza histórica e cultural, embora
às vezes sejam vagamente chamados de contradições.
Em geral não é difícil elaborar respostas para essas acusações.
Claramente, algumas das “contradições” só existem na mente do
crítico. Por exemplo, Edwin A. Burtt, professor de filosofia na Cornell
University, em seu livro Types of Religious Philosophy [Tipos de
filosofia religiosa] — um livro aclamado por sua apresentação
imparcial —, alega a seguinte contradição:
Em Ezequiel 26, o profeta proclama como revelação divina a
mensagem de que a cidade de Tiro deverá enfrentar a destruição
nas mãos de Nabucodonosor, rei da Babilônia… Após um duro
ataque, entretanto, Nabucodonosor não conseguiu capturar Tiro…
Assim, em Ezequiel 29 o profeta anuncia outra revelação em que
Deus promete a Nabucodonosor a conquista do Egito como uma
recompensa por sua derrota pelos de Tiro. Não há nenhuma pista
no final dessas passagens de que ele agora duvida da
autenticidade da revelação anterior porque a profecia nela contida
deixou de se confirmar como e quando ele esperava.
Aparentemente, no seu entender, o que é essencial para uma
revelação divina não é a sua infalibilidade factual, mas a verdade
da lição moral que ela incorpora.[49]
Se essa é uma erudição imparcial, a erudição e a
imparcialidade estão em maus lençóis. A acusação de Burtt está
baseada numa completa ignorância do que a Bíblia diz. Em nenhum
lugar Ezequiel 26 profetiza que Nabucodonosor conquistará Tiro.
Na verdade, o texto definitivamente sugere que ele não o fará,
pois Ezequiel 26.3 diz: “Eis que eu estou contra ti, ó Tiro, e farei subir
contra ti muitas nações”. Então segue uma descrição do dano
(bastante considerável) que Nabucodonosor irá infligir (versículos 7-
11), após o que elas — as muitas nações — completarão a
destruição a ponto de Tiro se tornar uma penha descalvada.
Portanto, a contradição entre Ezequiel 26 e Ezequiel 29 só existe na
mente imparcial e acadêmica de Burtt.
Ou, novamente, a afirmação dos críticos de que a nação hitita
jamais existiu, que os camelos eram desconhecidos no Egito na
época de Abraão, que os candelabros de sete hastes foram feitos
pela primeira vez no antigo Império Persa e inúmeras outras
negações de declarações bíblicas foram tão completamente
refutadas pela arqueologia que os liberais deveriam baixar a cabeça
envergonhados.
De uma natureza distinta desses itens históricos e culturais são
os casos em que o termo “contradição” é usado em seu sentido
estritamente lógico. Por exemplo, se um evangelho dissesse que
havia um anjo e não mais no sepulcro na manhã de Páscoa e outro
dissesse que havia dois, isso seria uma contradição lógica. Ou,
novamente, se duas passagens diferissem quanto ao número exato
dos familiares de Jacó que desceram até o Egito, as duas passagens
produziriam uma contradição lógica formal.
É, todavia, possível lidar facilmente com essas supostas
contradições, embora em alguns casos possamos não saber qual de
duas ou três possibilidades é a correta. Pode-se lidar facilmente com
elas porque na maioria dos casos os textos reais não estão numa
contradição formal. Nenhum evangelho diz que havia apenas um
anjo no sepulcro durante toda a manhã de Páscoa.
Pode-se mostrar que até mesmo as duas genealogias de Cristo
não são contraditórias, por mais difícil que seja reconstruir a história
real.[50]
Essas considerações e os vários volumes mencionados já
bastam como boas razões para se aceitar a Bíblia como verdadeira;
eles são conclusivos contra a plausibilidade da teoria liberal sobre
esses pontos.
Devemos agora considerar um tipo diferente de objeção à
inspiração verbal da Escritura. Resumidamente, a objeção é que
Deus não pode falar.
Mais uma vez, essa objeção à inspiração verbal depende de um
conceito não bíblico de Deus. Com sua herança em Friedrich
Schleiermacher e G. W. F. Hegel, o modernismo mais antigo negava
que Deus pudesse falar porque tinha uma visão essencialmente
panteísta de Deus. Deus era totalmente imanente aos processos da
natureza ou realmente identificado com eles. Ele estava proibido de
interromper esses processos por qualquer milagre, de fazer qualquer
intrusão na história, de realizar qualquer evento de uma vez para
sempre, dos quais o falar era um exemplo.
Os novos liberais não sentem tanta afeição assim por Hegel;
eles falam da transcendência de Deus; tentam encontrar uma ação
divina em algum lugar na história, ainda que somente num ponto
específico. Mas se mantêm distantes da ideia de que Deus pode
usar palavras, como “eis que a virgem conceberá” e “a quem Deus
propôs, no seu sangue, como propiciação, mediante a fé”.
O que eles afirmam é que Deus produziu algum estado mental
emocional ou vagamente definido no profeta e este então confiou em
sua própria sabedoria para falar sobre sua experiência.
Uma vez que essa negação de que Deus pode usar palavras é
outra negação de sua onipotência, a questão do conhecimento
religioso deve novamente ser levantada com uma crescente ênfase.
De onde esses teólogos obtêm sua informação sobre o que Deus
pode ou não pode fazer? Suas ideias não vêm da Bíblia. Tiveram
eles então outra “revelação” ou, com Schleiermacher, reduziram
“Deus” a uma descrição do próprio estado de consciência deles? Os
teólogos ortodoxos fazem bem em pressionar essa questão e
impedir que os liberais escapem de uma resposta. Essa estratégia
ortodoxa é sólida porque as respostas liberais, quando expostas, se
revelam obviamente inadequadas.
Além de implicar um conceito não bíblico de Deus, a tese de
que Deus não pode falar depende de uma teoria da linguagem. A
linguagem humana, nessa teoria, supostamente evoluiu do chilrear
dos pássaros e grunhidos dos porcos ou pelo menos teve uma
origem totalmente sensorial. Como, portanto, todos os termos
derivam das coisas visíveis e tangíveis do universo material, a
linguagem é inadequada para expressar verdades divinas. Quando a
linguagem é altamente desenvolvida por figuras de linguagem,
metáforas e analogias, palavras como expiação ou justificação
podem ser usadas simbolicamente para sugerir ou apontar para algo
divino. Mas seus significados literais são espiritualmente falsos, pois
nunca podem ser totalmente separados da sua origem na sensação.
Wilbur Marshall Urban tem, nessa linha, um volume de 700 páginas
muito interessante e E. L. Mascall é um notável pensador inglês que
apoia vigorosamente essas opiniões.
Para defender a Bíblia como a Palavra de Deus, é suficiente
confiar na onipotência de Deus. É preciso coragem para negar que
Deus pode falar. Mas é mais persuasivo se um teólogo conservador
também pode oferecer uma teoria alternativa de linguística. As
Escrituras fixam os princípios dessa teoria. Ao invés de a linguagem
ser uma extensão evolutiva da tagarelice de macacos, a Escritura
ensina que o homem foi criado à imagem de Deus. Basicamente,
essa imagem é a razão humana. E a linguagem é a sua expressão.
Sem dúvida, Deus tencionava que a linguagem fosse aplicada às
partes visíveis e tangíveis da natureza; mas também não há dúvida
de que Deus tencionava que a linguagem fosse usada na adoração a
ele, na conversa com ele e na sua conversa com Adão e com os
profetas subsequentes. Naturalmente, uma teoria linguística não
teísta tem dificuldade com uma revelação verbal. Naturalmente
também, não há dificuldade numa base teísta.[51]
Ora, finalmente, a tese de que Deus não pode falar implica não
apenas um conceito não cristão de Deus e da linguagem, como
também uma forma não cristã de religião. É uma religião sem
verdade. O profeta teve sua experiência emocional e ele a descreve
para nós. Sua descrição pode estar muito equivocada. Mas não
importa; Brunner nos garante que Deus pode “falar” sua palavra ao
homem mesmo através de uma doutrina falsa. O único problema é
que a doutrina é falsa e Deus não fala. Em sintonia com a teoria da
linguagem que acabamos de discutir, Brunner escreve: “Todas as
palavras têm somente um valor instrumental. Nem as palavras
faladas nem seu conteúdo conceitual são a Palavra em si; são
apenas sua estrutura”.[52]
Esse tipo de religião é anti-intelectual e completamente
irracional. Pode consistir de um surto emocional, uma experiência
estética ou um transe místico; mas é totalmente desprovido de
conhecimento. O que Brunner chama de Palavra de Deus não tem
nenhum conteúdo conceitual, mas despreza a lógica, se regozija nas
contradições e diviniza o paradoxo.
Porém, o cristianismo alega que Deus é o Deus da verdade;
que ele é a sabedoria; que seu Filho é seu Logos, a Lógica, a
Palavra de Deus. O homem foi criado como um ser racional para que
pudesse entender a mensagem de Deus para ele. E Deus lhe deu
uma mensagem ao soprar toda a Escritura, tendo preordenado o
processo completo — incluindo os três estágios dos pensamentos na
mente do profeta, as palavras em sua boca e o manuscrito acabado.
O cristianismo é uma religião racional. Tem um conteúdo
intelectualmente apreensível. Sua revelação pode ser entendida. E
porque Deus fala em palavras inteligíveis, pode dar e deu
mandamentos. Nós sabemos o que esses mandamentos significam
e, portanto, devemos obedecer-lhes.
Ora, se alguém prefere um simbolismo que aponte para algo
incognoscível, se alguém tem prazer no paradoxo irracional, se
alguém gosta de encontros sem palavras, então outras palavras e
ideias não irão mudar as suas emoções.
1
7. A Escritura Sagrada

Para o problema filosófico do conhecimento de Deus, para a


construção de uma teologia e também para a estabilidade religiosa, a
visão da Bíblia como uma revelação é algo da maior importância.
Atualmente, muitos autores na Europa e na América do Norte tentam
atender essa necessidade.
Na edição de 24 de dezembro de 1962 do periódico The
Presbyterian Outlook, quatro professores do sul juntaram forças para
divulgar uma certa visão. São os quatro: Dr. Kenneth J. Foreman,
professor emérito de teologia doutrinária, Louisville Presbyterian
Seminary; Dr. James H. Gailey, professor de Antigo Testamento,
Columbia Seminary; Dr. James L. Mays, professor de interpretação
bíblica, Union Seminary (Virgínia); e Dr. John F. Iansen, professor de
interpretação do Novo Testamento, Austin Presbyterian Seminary.
Eles escrevem sob o título geral “Precisamos de uma Bíblia
infalível?”.
Os quatro artigos fazem parte do amplo ataque contemporâneo
à veracidade da Bíblia. É instrutivo ver como os argumentos deles
são construídos.
O Dr. Foreman, no primeiro artigo, aborda essencialmente a
questão da (suposta) necessidade de uma Bíblia infalível. Pergunta
ele: “Preciso de uma Bíblia infalível para ser por ela condenado pelo
pecado?”. Com toda a plausibilidade, a resposta é não. É claro, um
homem pode ser condenado pelo pecado sem jamais ter visto uma
Bíblia; pode simplesmente ouvir um evangelista, e o Espírito Santo
condená-lo. Uma análise como essa mostra que a pergunta inicial
não é bem a pergunta correta a ser feita se estamos interessados na
veracidade da Bíblia.
Depois de mais algumas perguntas um pouco irrelevantes, o Dr.
Foreman inquere: “É necessário que a geografia da Bíblia seja
considerada acima de qualquer suspeita antes que eu possa confiar
no Deus da Bíblia?”. A série de perguntas irrelevantes com suas
respostas plausíveis na negativa supostamente condicionaram o
leitor a seguir também aqui com uma negativa. Mas se a pergunta for
examinada um pouco, a negativa não será tão plausível. Se a Bíblia
está enganada na geografia, que deveria ter sido fácil aos escritores
registrar corretamente, pode muito bem estar enganada na teologia,
que é muito mais difícil que a geografia. Para essa pergunta, uma
resposta na afirmativa é pelo menos tão plausível quanto foi para a
primeira pergunta a resposta na negativa.
Há ainda outra parte desse artigo que depende mais de
insinuação do que de lógica. O autor escreve sobre as (supostas)
discrepâncias nas Escrituras: “Muitos crentes nessa teoria (da
inerrância) sobre a Bíblia, quando apontadas discrepâncias que eles
não podem explicar sem usar argumentos que soam duvidosamente
torcidos, recorrem à proposição de que quaisquer que possam ser os
erros encontrados em nossas Bíblias, não havia nenhum nos
manuscritos originais. Essa afirmação não pode ser provada; não
pode ser refutada. Vale a pena discuti-la assim que tivermos os
originais”. A implicação parece ser que não vale a pena discuti-la
agora e que nos resta então ficar com nossas Bíblias falíveis.
Esse argumento é um excelente exemplo de petição de
princípio. A insinuação começa com a sugestão de que as tentativas
de explicar discrepâncias são (geralmente sempre) duvidosamente
torcidas. Assim, a mente do leitor é predisposta contra a veracidade
da Escritura. O autor esconde o fato de que recai no crítico o ônus da
prova de mostrar que nenhuma explicação é possível. Tantas
supostas discrepâncias já foram removidas por descobertas
arqueológicas que a pessoa que aceita a Palavra de Deus não
precisa mais se aterrorizar com as dúvidas infundadas do crítico
incrédulo.
Há também outra falha no argumento. O autor sugere que, até
que tenhamos o original, não adianta discutir se o suposto erro
estava ausente no original. Isso parece trair um esquecimento de
crítica textual. As diferenças entre o Novo Testamento grego que
temos e os autógrafos são poucas e de reduzida importância. A
maioria delas são diferenças de ortografia, na ordem das palavras ou
em alguns pequenos detalhes que não afetam o sentido. Supor,
como requer esse argumento, que somos tão ignorantes acerca do
texto original significa deixar de lado toda a ciência da crítica textual.
Pode acontecer de não conseguirmos provar a veracidade de
alguma declaração específica da Bíblia, mas a razão não é que o
autógrafo está faltando. O que falta são evidências corroborativas de
fontes históricas ou arqueológicas, sem as quais o incrédulo se
recusa a aceitar a declaração da Bíblia. Portanto, não concordamos
com o desejo do Dr. Foreman de não discutir essas matérias até que
o original seja encontrado — uma exigência que ele faz de uma
posição confortável. Ao contrário, lembraremos ao mundo que os
críticos já chegaram uma vez a afirmar que a nação hitita nunca
existiu.
Admitamos que a arqueologia nunca pode provar a veracidade
de cada declaração da Bíblia nem mesmo de cada declaração
histórica. Mas nossa certeza da veracidade da Bíblia não depende
do tipo de prova que esses professores desejam. Depende de uma
consideração encontrada no capítulo um, seção cinco, da Confissão
de Westminster que esses professores presbiterianos não acharam
adequado consultar. Esse excelente resumo do ensino bíblico diz: “a
nossa plena persuasão e certeza da sua infalível verdade e divina
autoridade provêm da operação interna do Espírito Santo que pela
Palavra e com a Palavra testifica em nossos corações”.
O Dr. James L. Mays, ostensivamente afirmando a “autoridade”
da Bíblia, ataca sua infalibilidade. E, o que é estranho para um
professor de seminário presbiteriano, faz isso recorrendo a um
argumento católico-romano: “Se tivéssemos um livro cujo valor
consistisse na sua infalibilidade, não poderíamos usar esse valor a
menos que houvesse homens infalíveis concordando com ele”. Isso
é, essencialmente, a afirmação do Papa — que um texto infalível
exige um intérprete infalível. Mas que protestante honesto alguma
vez aceitou esse dito papal? Onde está a persuasão da afirmação?
Como o Papa ou o professor justificam sua exigência de um
intérprete infalível? Esqueceram os protestantes sua herança a ponto
de serem enganados por velhas superstições romanistas?
Suponha que fosse verdade que um texto infalível exige um
intérprete infalível. Então, evidentemente, a Bíblia exigiria uma
encíclica papal para sua interpretação. Mas como a encíclica nessa
teoria é ela mesma um texto infalível, também exige um intérprete
infalível. Quem quer que ele pudesse ser, sua interpretação, também
infalível, exigiria outro intérprete infalível; e assim por diante ad
infinitum. Obviamente, a alegação papal desse professor
presbiteriano é absurda. Quando, então, o professor conclui dizendo
que “a autoridade da Bíblia é melhor recomendada ao mundo não
por uma defesa temerosa da sua infalibilidade, mas por vidas que
mostrem a realidade dessa autoridade”, respondemos, sem
minimizar a vida de qualquer santo que obedeça à Bíblia, que não
estamos temerosos da nossa defesa da infalibilidade contra essa
falácia de falsa disjunção. O professor deveria estar temeroso de sua
falta de lógica.
Na verdade, gostaríamos de perguntar a esses homens que
autoridade a Bíblia pode ter se não for verdadeira. Os neo-ortodoxos,
ou qualquer que seja o nome mais condizente, falam bastante da
Bíblia e da sua autoridade. Mas não são muito claros sobre por que
deveríamos crer, nos submeter a ou honrar um livro desfigurado por
discrepâncias e erros. Karl Barth, será lembrado, atribui à Bíblia não
apenas erros geográficos e um misticismo entorpecente; também
erros de teologia. Mas se uma doutrina é falsa, por que deveria ser
autoritativamente pregada? A lógica dessa posição é mais do que
intrigante.
Ora, o Dr. Mays afirma que a Bíblia é autoritativa. E nisso, faz
algumas declarações que são tão louváveis que ele próprio deveria
prestar atenção nelas. Diz:
Os presbiterianos devem edificar a fé na Bíblia, obter das
Escrituras o que é dito na teologia. E isso inclui a crença sobre a
Bíblia. Temos de olhar para ela e examiná-la para aprender o que
é certo dizer na fé. É presunçoso se recusar a olhar e dizer para
Deus o que precisamos sem considerar o que ele em sua graça e
sabedoria nos tem dado.
É um excelente conselho. Mas nenhum dos quatro professores
o segue. Como também no caso de Barth, a teoria deles da Bíblia
não é o que a Bíblia diz sobre si mesma. É algo que impuseram à
Bíblia desde fora. A citação recém feita diz que devemos moldar
nossa visão da Bíblia — sua inspiração, sua autoridade — a partir do
que a própria Bíblia diz. O que então ela diz?
A Bíblia diz que toda a Escritura, isto é, todas as palavras que
foram registradas no Antigo Testamento (pelo menos), é soprada por
Deus. Homens santos falaram — falaram palavras — ao serem
movidos pelo Espírito Santo. O Antigo Testamento traz muitos
exemplos da frase “a boca do S o disse”. Muitas outras vezes
lemos “veio a palavra de Deus a”. Deuteronômio 18.18 diz: “… em
cuja boca porei as minhas palavras”, e uma frase semelhante ocorre
em Jeremias 1.9. Em todos os lugares em que a Bíblia fala de si
própria, ensina a inspiração verbal. As palavras são as palavras de
Deus. Em nenhum lugar é dito que as palavras contêm discrepâncias
geográficas e erros teológicos. Nenhum exame do texto em si pode
produzir evidência de que as palavras não são inspiradas. Se
acreditarmos na Bíblia a partir do que a Bíblia diz sobre si mesma,
devemos concluir que as palavras são as palavras de Deus, que não
pode mentir.
A inspiração verbal é uma doutrina impopular em muitos
seminários hoje. Das muitas coisas desagradáveis que a Bíblia diz,
seu ensino da inspiração verbal é talvez a mais desagradável.
Tentativas engenhosas são feitas para evitar, negar ou substituir o
ensino por outra coisa. Ele é castigado como sendo algo mecânico
— embora como o falar de Deus possa ser corretamente chamado
de mecânico é algo difícil de ver. É chamado de estático, e
presumivelmente estático é um barulho que obscurece a mensagem.
Ao invés de uma inspiração verbal e estática, é proposta uma teoria
de inspiração dinâmica. O único problema é que ela não é uma
teoria. É simplesmente uma palavra que carrega uma conotação
atraente, de modo que o leitor incauto pode ser enganado para
pensar mal da inspiração verbal sem ter nenhuma visão definida
para substitui-la. Em suma, as visões neo-ortodoxas sobre a
inspiração não são bíblicas. Não se chega a elas ouvindo o que a
Bíblia diz, mas impondo à Bíblia noções preconcebidas do que a
revelação deve ser.
Em particular, as visões neo-ortodoxas da Bíblia são uma
negação e contradição do ensino do próprio Jesus Cristo. Teria
Cristo admitido erros — geográficos ou outros — no Antigo
Testamento? Teria feito tentativas complicadas de harmonizar a
infalibilidade divina da Bíblia com sua falibilidade humana? Ensinou
alguma vez que Deus pode se revelar em declarações falsas assim
como em declarações verdadeiras, como faz Brunner? Qual era a
visão que Cristo tinha da Bíblia?
A visão que Cristo tinha da Bíblia pode ser rapidamente
mostrada. Cristo disse: Está escrito! Se, porém, não credes nos
escritos de Moisés, como crereis nas minhas palavras? Pois a
Escritura não pode ser anulada.
Precisamos de uma Bíblia infalível? Nós precisamos de uma
Bíblia infalível, a menos que estejamos dispostos a contradizer os
ensinamentos de Cristo. Precisamos da inspiração verbal para poder
acreditar no chamado ao arrependimento e na doutrina da
justificação. Precisamos da inerrância para poder ter algum
conhecimento seguro de Deus. Pois, se a Bíblia está equivocada na
sua doutrina da inspiração, por que deveríamos achar que está
correta na sua doutrina de Deus, do arrependimento ou de qualquer
outra coisa? Nossas únicas alternativas seriam não acreditar em
nada do que a Bíblia diz ou, como a maioria dos pensadores liberais
e neo-ortodoxos fazem, adotar algum princípio pelo qual
determinamos o que na Bíblia escolhemos acreditar e o que
preferimos rejeitar. Em ambos os casos devemos admitir que a
própria Bíblia não é uma autoridade para nós. Não acreditamos
numa doutrina porque a Bíblia a ensina, mas porque, sobre algum
outro fundamento — racional, místico ou outro —, reconhecemos a
verdade da doutrina.
Nosso Senhor tinha uma visão muito diferente da Bíblia. Ele
ordenou seus discípulos a acreditar em toda ela (Lc 24.25). E se
Cristo não nos fala a verdade quando diz que a Escritura não pode
ser anulada, e que as palavras de Moisés são tão verdadeiras
quanto as dele, por que deveríamos acreditar nele quando diz “Vinde
a mim, todos os que estais cansados”?
Certamente, devemos interpretar a Escritura a partir de nosso
Senhor Cristo e a partir da autoridade da própria Escritura. E é isso o
que os críticos liberais se recusam a fazer, embora digam que é o
que deve ser feito.
1
8. O conceito de autoridade bíblica

Uma pequena história


Em 1924, um grupo de ministros presbiterianos publicou um
documento chamado Auburn Affirmation [Afirmação de Auburn], o
qual afirmava que a Bíblia contém erros. Esses 1300 presbiterianos
diferiam entre si nas doutrinas não essenciais e periféricas do
nascimento virginal, dos milagres, da expiação e da ressurreição.
Eles estavam totalmente de acordo que a Bíblia não é infalível. Em
1977, Paul Rees, Jack Rogers (editor), Clark Pinnock (uma peculiar
exceção), Berkeley Mickelsen, Bernard Ramm e David Hubbard
publicaram o livro Autoridade bíblica,[53] com o propósito de defender
uma Bíblia errônea. Obviamente, seu conceito de “autoridade” difere
daquele do evangelicalismo histórico, pois é difícil ver como a
falsidade pode ser autoritativa.
A batalha pela Bíblia neste século XX (além da década anterior)
pode ser esquematizada em três períodos. O primeiro (1893), por
defender que a Bíblia afirma falsidades, foi a condenação e
suspensão de Charles Augustus Briggs pela Igreja Presbiteriana dos
EUA. O segundo foi a Afirmação de Auburn. O terceiro é a
renovação dessas posições no livro agora em consideração. Esse
livro foi motivado pela publicação de A batalha pela Bíblia de Harold
Lindsell.[54] Mas o ataque atual à Bíblia começou com a
reorganização do Seminário Fuller e a demissão de todos os
membros ortodoxos (ou da maioria) de sua faculdade.

Que é autoridade?
Esse é em suma o esquema histórico. O primeiro ponto substancial
na análise do livro de Roger é o significado de autoridade. Qual,
precisamente, é o conceito deles de autoridade, uma autoridade que
concorda com a falsidade, é difícil de determinar. De um livro com
esse título, um livro tão em desacordo com as visões da Reforma
Protestante, seria esperado que ele buscasse deixar absolutamente
claro o significado do termo fundamental. Mas só um dos autores
tenta defini-lo.
O capítulo de Berkeley Mickelsen traz o título “A abordagem de
autoridade da própria Bíblia”. O mais próximo que o livro como um
todo chega de explicar o termo autoridade é encontrado na página
89 deste capítulo. “Autoridade, poder, o direito de governar… A
autoridade ou poder de Deus inclui” uma série de coisas que
Mickelsen menciona como exemplos, como controlar o destino
eterno de todas as pessoas, mostrando amor, santidade e ira. Até
aqui, sem dúvida, tudo isso é verdade e bom. Mas a passagem
dificilmente pode ser uma definição formal. Mais precisamente, não é
realmente uma definição de autoridade bíblica. É uma enumeração
de alguns aspectos da autoridade de Deus, e isso não é suficiente
para a finalidade do livro. O que o livro precisa é uma definição de
autoridade bíblica, pois essa omissão deixa o leitor a se perguntar
como um livro que contenha erros pode ser autoritativo. Entre os
exemplos que Mickelsen dá, ele não listou o direito de dizer
falsidades. Mas se — como esses autores afirmam — a Bíblia não é
inerrante, ou ela não é a Palavra de Deus, ou Deus tem autoridade
para dizer-nos o que não é verdade.
Esse é o defeito fundamental do volume como um todo. Ainda
que fiquemos na suposição de que os demais autores aceitam a
definição de Mickelsen — e eles não o fazem explicitamente —, eles
nunca mostram como falsidades podem ser autoritativas. Nunca
realmente esclarecem sua noção de autoridade. Seu uso da palavra
é uma espécie de artifício de propaganda que depende do capricho e
da ambiguidade. Não apenas esse termo fundamental permanece
sem sentido, como também os argumentos são amplamente vagos.
Uma análise dos vários capítulos tornará isso evidente.
O primeiro ponto nesta análise é a definição de outro termo:
evangélico. Historicamente, esse termo era usado nos títulos de
vários grupos luteranos. Foi aplicado à teologia reformada e
reivindicado pelos metodistas, embora possa talvez haver alguma
dúvida quanto à sua aplicabilidade aos remonstrantes. O primeiro
uso do termo objetivava distinguir essas igrejas do romanismo. A
distinção não se baseava na infalibilidade bíblica, pois o romanismo
concordava sobre esse ponto. Note bem que os romanistas
concordavam que a Escritura é infalível e que a justificação vem por
meio da fé. A discordância está na negação pelos romanistas e na
afirmação pelos evangélicos da Sola Scriptura e Sola Fide. Esses
dois pontos definem o evangelicalismo. Só aqueles que acreditam na
infalibilidade da Escritura — sem nenhum apelo ao papa, à tradição
ou a outra fonte não bíblica —, e que também acreditam na
justificação pela fé somente, podem ser adequadamente chamados
de evangélicos. Negar qualquer uma delas é renunciar à Reforma
Protestante.
Como a verdade da Escritura não era matéria de controvérsia
entre o romanismo e a religião evangélica, os primeiros credos
protestantes não a enfatizaram tanto quanto teólogos posteriores
viriam a fazê-lo em seus documentos mais completos. Contudo,
mesmo os primeiros credos não toleram nenhuma afirmação de que
a Bíblia ensine falsidades. Por exemplo, a Confissão de Augsburgo
(1530) não tem nenhum artigo sobre a Escritura como tal, mas no
contexto do conflito se contenta em negar que haja outra autoridade
na religião, particularmente a tradição (artigo 5). Os autores da
confissão não viram necessidade de insistir que a Escritura é a
Palavra de Deus, pois isso não estava em disputa. O Livro de
Concórdia (1576), porém, é mais explícito: “Cremos… que somente
os escritos proféticos e apostólicos do Antigo e do Novo Testamento
são a única regra e norma segundo a qual devem ser ajuizadas e
julgadas igualmente todas as doutrinas e todos os mestres”.[55] Isso
não é tão completo como os credos posteriores, mas não há
nenhuma sugestão de que os dois Testamentos podem ensinar algo
errado. Como poderiam ser a única norma de doutrina se
ensinassem algumas falsidades?
Desde o primeiro, os credos reformados eram mais
sistemáticos, e mesmo o mais antigo se beneficiou de um estudo do
embate luterano com o papado. Diz, assim, a Primeira Confissão
Helvética (1536): “Die heilige, göttliche, biblische Schrift, die da ist
das Wort Gottes, von dem heiligen Geiste eingegeben… ist die
allerälteste, vollkommenste und höcheste Lehre (omnium
perfectissima… sola perfecte)”.[56]
A Segunda Confissão Helvética (1566) é um pouco mais
explícita. Mas dizer que os credos posteriores são mais explícitos
não significa dizer que os credos anteriores veem a Bíblia como
falível. O capítulo 1 do credo de 1566 é: “Credimus et confitemur
Scripturas Canonicas… ipsum verbum Dei… Nam Deus ipse
loquutus est Patribus, Prophetis, et Apostolis, et loquitur adhuc nobis
per Scripturas Sanctas”.[57] Note que esse credo ou confissão
apresenta as Escrituras como a própria Palavra de Deus, porque o
próprio Deus falou com os apóstolos e ainda nos fala pelas
Escrituras.
A Confissão Francesa de 1559, alguns anos antes do que vem
acima, disse no parágrafo cinco: “Cremos que a Palavra contida
nesses livros [o parágrafo três havia enumerado os 66 livros]… é a
regra de toda verdade…”. Se é a regra de toda verdade, deve ser a
regra de verdade para os detalhes geográficos, cronológicos e
históricos contidos na Palavra.
Dois anos mais tarde, disse a Confissão Belga: “Recebemos
todos estes livros… crendo sem nenhuma dúvida em todas as coisas
neles contidas…”. Não é usada a palavra inerrância nem a palavra
infalível (que, embora até recentemente alguns tenham fingido ser o
contrário, é seu sinônimo), mas a ideia é clara: “crendo sem
nenhuma dúvida em todas as coisas neles contidas”. O reino de
Peca é uma das coisas ali contidas.
Esses credos do século XVI são suficientes para mostrar que a
veracidade da Escritura em tudo o que afirma não foi uma invenção
do “escolasticismo” do século XVII, malevolamente impingida sobre
uma igreja inocente pelo servo de Satanás, Francis Turretin. Francis
Turretin, ao contrário, foi um santo que meramente expandiu o
significado preciso dado pelos primeiros reformadores.
O grande credo do século XVII, que até hoje é inigualável, tem
um parágrafo bem conhecido no capítulo um: “A autoridade das
Escrituras Sagradas, razão pela qual devem ser cridas [com várias
exceções?] e obedecidas… depende somente de Deus (a mesma
verdade) que é o Autor; tem, portanto, de ser recebida, porque é a
Palavra de Deus”.[58] O parágrafo seguinte fala da “infalível verdade”
dela. Há, todavia, um capítulo posterior que não é tão bem
conhecido. As duas primeiras seções do capítulo XIV são as
seguintes: “A graça da fé, por meio da qual os eleitos são habilitados
a crer para a salvação das suas almas, é a obra [do] Espírito de
Cristo… Por esta fé o cristão, segundo a autoridade do mesmo Deus
que fala em sua Palavra, crê ser verdade tudo quanto nela é
revelado”.[59]
Em vista desta última citação da posição oficial do
presbiterianismo, não se pode evitar a questão solene e perturbadora
de se aqueles que deliberadamente negam a completa veracidade
da Bíblia realmente possuem uma fé salvadora. Esses homens,
esperamos, nunca cometeram perjúrio por subscreverem à
Confissão de Westminster. Eles são livres para escolher um credo ou
religião a seu gosto. O livro sob escrutínio não declara em lugar
algum quanto da Bíblia eles acreditam ou em que base ou por qual
autoridade rejeitam uma doutrina ou outra. Uma coisa, todavia, é
certa: à parte da questão de a fé salvadora incluir ou não a crença de
ser verdade “tudo quanto [na Palavra] é revelado”, a posição
unânime dos grupos luterano e reformado nos séculos XVI e XVII era
a infalibilidade, a inerrância e a verdade da Escritura. Esses homens,
portanto, não têm o direito de se chamar evangélicos.
Os documentos oficiais das igrejas evangélicas que acabaram
de ser citados são, portanto, a base dogmática e histórica para se
condenar o volume de Rees, Rogers, Ramm e Hubbard. A análise
será agora dupla: (1) o contraste dogmático entre as duas teologias e
(2) a explicação do raciocínio falacioso dos oponentes.

Inerrância e infalibilidade
O “Prefácio” do volume tenta distinguir entre inerrância [inerrancy] e
infalibilidade [infallibility]. No mínimo, isso é um mau uso da língua
inglesa. O Merriam Webster’s Unabridged Dictionary diz: “Infalível…
incapaz de errar, isento da inconveniência de se confundir…
Sinônimo: …inerrante, sempre acurado”.[60] Portanto, o Dr. Rees faz
uma declaração falsa quando diz que “o falecido B. B. Warfield e o
ainda vivo G. C. Berkouwer… estão ambos comprometidos com a
infalibilidade com a qual a Escritura Sagrada reflete e revela o
propósito salvador de Deus”. O Dr. Rees sustenta que a diferença
entre Warfield e Berkouwer é “uma diferença de entendimento
quanto à maneira e forma em que Deus trabalhou para nos dar… a
autoridade da Palavra”. Mas estes termos — forma e maneira que “a
Escritura reflete” — são muito vagos. O Dr. Rees pode possivelmente
acreditar que a forma de infalibilidade refletida na Escritura não seja
a infalibilidade histórica dos credos evangélicos e do dicionário
Merriam Webster. Mas seria precipitado argumentar assim. Se assim
fosse sustentado, a implicação seria que os credos reformados
deturparam seriamente a Bíblia. O livro então poderia realmente
afirmar ser bíblico, mas não poderia afirmar ser evangélico. Se o Dr.
Rees não é tão precipitado, então com base nos credos e no
dicionário é preciso declarar falsa sua afirmação de que os autores
desse livro “são classicamente evangélicos”,[61] pois fica claro que a
diferença entre Warfield e Berkouwer é que o primeiro acredita e o
último não acredita que a Bíblia é verdadeira.
Um raciocínio defeituoso acompanha esse inglês defeituoso. O
Dr. Rees deprecia a “mentalidade” e o “estilo de raciocínio” que
argumenta “se você pode encontrar uma imprecisão na Bíblia que
está usando, então num só golpe tornou impossível dizer com
convicção que qualquer coisa na Bíblia é confiável”.[62] Essa é a
linguagem da propaganda. Note bem a frase “na Bíblia que está
usando”. Essa frase inclui uma tradução da King James com um erro
de impressão, uma RSV com seus radicais hebraicos alterados e até
mesmo as paráfrases de tipo hippie. Mas nenhum credo evangélico
afirma que traduções ou erros de impressão são infalíveis. Portanto,
duas coisas: a frase é uma deturpação da teologia reformada e é
também um meio de confundir o leitor. Um evangélico diria que, se
os manuscritos originais publicados pelos próprios profetas contêm
uma falsidade, então podem conter outras. Essa é uma inferência
perfeitamente boa. Se uma testemunha num julgamento criminal é
flagrada dizendo uma falsidade, seu testemunho inteiro se torna
suspeito. Possivelmente muito do que ela diz é verdade, mas só
pode ser crido se alguma outra testemunha ou evidência claramente
o sustentarem. Portanto, se os apóstolos em seus escritos canônicos
não disseram a verdade aqui ou ali, tudo o que escreveram
precisaria de uma corroboração externa. Aqueles que adotam a
posição do livro em questão devem explicar o critério pelo qual
decidem quais afirmações bíblicas são verdadeiras e quais são
falsas. Eles não podem permitir que seus principiantes na escola
dominical cantem “Jesus me ama, isso eu sei, pois a Bíblia assim me
diz”. Na posição deles, uma parte maior ou menor da Bíblia é falsa, e
não podemos aceitar qualquer coisa só porque a Bíblia assim nos
diz. Mas os autores não expressam seu critério de verdade. Essa é
uma séria omissão. Eles não somente deixam de apontar se
acreditam ou não no nascimento virginal, nos milagres, na Trindade
ou no arrebatamento pré, meso ou pós-tribulacionista; mas, o que é
pior, deixam de dizer aos leitores sobre que base acreditam numa
coisa e não em outra.
As opiniões do Dr. Rees o levam a dizer na página seguinte,
acerca de uma conferência realizada em Wenham, Massachusetts,
em 1966: “É, todavia, uma surpresa ler em The Battle for the Bible
(32), de Harold Lindsell, ‘Alguns dos maiores partidários que
defendem a inerrância bíblica desistiram da conferência. Eles
sentiram que sua presença não serviria a nenhum propósito útil e
que pouco se ganharia discutindo a inerrância com aqueles cuja
mente já estava decidida contra ela’”.
Por que o Dr. Rees deveria estar surpreso? Lindsell apenas
disse a verdade. Embora eu não seja um dos “maiores partidários”,
foi justamente pelas razões declaradas por Lindsell que eu recusei o
convite para participar.
Mais uma vez, a afirmação do Dr. Rees sobre Warfield e
Berkouwer, em seu parágrafo final, de que a “atitude [deles] em
relação à Bíblia é idêntica” é simplesmente falsa — a menos que eu
não saiba o significado da palavra atitude. Mas se o uso da palavra
atitude pelo Dr. Rees está em algum lugar próximo do significado
comum da palavra, parece-me que as atitudes em relação a uma
revelação inerrante e em relação a um livro cheio de erros não são
de forma alguma idênticas. Ou será que é a palavra idêntica que eu
não entendo?

Jack Rogers

Após o prefácio, o primeiro capítulo principal do livro tem Jack


Rogers como seu autor. Sua primeira frase é “os evangélicos
acreditam que a Bíblia é a Palavra autoritativa de Deus”, e ele
imediatamente reconhece que dentre eles “há uma significativa
discordância [quanto à] natureza da autoridade da Bíblia”. O leitor
então espera que o Dr. Rogers forneça as duas definições ou teorias
do termo autoridade. Ele não faz isso, pelo menos não claramente.
Ele observa que “a Bíblia era autoritativa para Orígenes” e o cita
como dizendo que a Bíblia era “sobrenaturalmente perfeita em cada
caso específico”. Essas palavras dificilmente significam algo
diferente de inerrante; mas, como o Dr. Rogers rejeita a inerrância, a
frase de Orígenes não pode ser usada para a definição de
autoridade do Dr. Rogers. Além do mais, para diluir a força das
palavras de Orígenes, o Dr. Rogers também cita sua afirmação de
que Deus “condescende e se rebaixa… falando ‘pouca linguagem’
com seus filhos”.[63] É preciso notar, contudo, que a “pouca
linguagem” usada por um pai com seus filhos não significa falsa
linguagem. Muitos de nós “falamos de forma condescendente” com
as crianças pequenas, mas não quer dizer que lhes dizemos
falsidades. Crisóstomo disse praticamente a mesma coisa; e nós
fazemos a mesma observação, notando além disso que esses dois
exemplos mostram que os pais da Igreja Primitiva acreditavam na
inerrância, e não o contrário. A sugestão subjacente, lida nas
entrelinhas, de que uma revelação restrita deve conter erros é uma
inferência inválida.
O Dr. Rogers também tenta minimizar o compromisso de
Agostinho com a Escritura. Seu exemplo, bastante peculiar, é a
famosa declaração de Agostinho: “Creio para poder entender”. É
onde, segundo o autor, “pode ser vista uma integração dos dados
bíblicos e da filosofia platônica”.[64] Ora, ninguém nega que
Agostinho foi resgatado do ceticismo pela filosofia de Plotino antes
de sua conversão. Ninguém deve negar que Agostinho, à medida
que estudava as Escrituras, se afastava cada vez mais do
neoplatonismo. Mas o que é pertinente é a completa ausência do
lema de Agostinho nas Enéadas plotínicas. Essa tentativa de tornar
os pais da Igreja Primitiva — por mais que tenham estado aquém de
uma teologia reformada plena —defensores de uma Bíblia errônea é
um fracasso. O autor cita Agostinho: “Nem o próprio João apresentou
essas coisas exatamente como elas são, mas o fez da melhor
maneira que podia… como, porém, aquele que foi inspirado
continuava sendo um homem, ele não podia apresentar a realidade
completa, mas somente aquilo que um homem poderia dizer acerca
dela”.[65] Isso comete uma petição de princípio. Nós concordamos
que Deus não revelou toda a verdade aos apóstolos. A questão é: a
revelação que foi dada é totalmente verdadeira ou parcialmente
verdadeira? Concordamos que “as coisas encobertas pertencem ao
Senhor nosso Deus” e que, portanto, o apóstolo não poderia
apresentar toda a realidade. Mas insistimos que “as coisas
reveladas” podem ser ditas, foram ditas e são verdadeiras. Lembre-
se também que mesmo parte da revelação inteligível de Deus “não
podia ser dita”, pois Deus ordenara a Paulo que não a escrevesse
nem divulgasse a outros. Deus não permitiu que Paulo repetisse as
palavras que dissera a ele. O ponto não é que a verdade de Deus se
torna falsa na linguagem humana nem mesmo que ela transcende
tanto a mente humana que é inteligível para o homem, mas
simplesmente que Deus escolheu revelá-la a ninguém, exceto Paulo.
Portanto, qualquer condescendência ou restrição que a revelação
exiba não impugna de forma alguma a verdade do que Deus torna
público.
Se os primeiros pais da igreja acreditavam que a Bíblia é
inerrante ou se os primeiros reformadores acreditavam nisso ou não,
isso é todavia uma questão secundária. Portanto, se Lutero for citado
como um expoente da visão do livro, podemos discordar de Lutero.
Certamente não consideramos Lutero inerrante. Mas Agostinho,
Lutero e Calvino eram importantes teólogos, e devemos mais a eles
do que à maioria dos outros representantes. Mesmo que não
devêssemos muito a eles, eles merecem uma justiça histórica; mas
não recebem isso no capítulo do Dr. Rogers. Ele tenta vincular Lutero
à “forma imperfeita na qual a Bíblia vem até nós”.[66] Por nós refere-
se ele aos cristãos ao longo das eras para alguns dos quais a
revelação veio diretamente em forma oral? Ou aos cristãos do século
XX com suas várias traduções em vernáculo? Esse tipo de
ambiguidade, onde a resposta num caso difere da resposta no outro,
permeia o volume. É intolerável usar Lutero como uma defesa para
afirmação de que há erros na Bíblia. Diz o Dr. Rogers: “Quando
Lutero disse acerca da Escritura que ‘Não há falsidades nela’, não
estava falando de precisão técnica”; e cita o contexto. Mas não há
nada no contexto que justifique a inferência de que Lutero rejeitava a
“precisão técnica” da Bíblia. Estaria a palavra técnica sendo usada
para evitar a acusação de deturpar Lutero, tornando possível a
resposta de que Lutero realmente admitia a precisão da Escritura,
mas não a precisão “técnica”? Em todo caso, o Dr. Rogers não dá
nenhuma evidência de que Lutero rejeitaria mesmo a precisão
técnica. O contexto diz apenas que aceitar a Palavra com fé elimina
a injustiça. Diz inclusive que “nesta doutrina não há falsidade”. Que
propósito, então, pode o Dr. Rogers ter para chamar Lutero como
uma de suas testemunhas?
Naturalmente, o fato de o Dr. Rogers falhar em provar seu
argumento — a saber, que Lutero negava a inerrância — não prova
por si só que Lutero aceitava a inerrância. Um pouco mais é
necessário. J. Theodore Mueller, num capítulo chamado “Lutero e a
Bíblia”, critica o apelo dos liberais a Lutero:
Quando historiadores da igreja atribuem a Lutero o mérito de haver
estabelecido o Schriftprinzip, isto é, a verdade axiomática de que a
Escritura Sagrada é o único princípio pelo qual a verdade divina é
verdadeira e inconfundivelmente conhecida, fazem-no com total
justiça ao reformador de Wittenberg, cuja suposta “atitude liberal”
em relação à Escritura os liberais teológicos, contrariamente aos
fatos históricos, tentam em vão demonstrar.[67]
Após citar vários historiadores que concordam com essa condenação
do liberalismo, o próprio Dr. Mueller diz que um deles “não faz justiça
a Lutero, para quem toda a Bíblia era a Palavra inspirada e inerrante
de Deus”.[68] Em seguida, cita várias passagens do próprio Lutero,
uma das quais é: “Faço uso de escritores seculares de uma maneira
que não seja obrigado a contradizer a Escritura. Pois acredito que
nas Escrituras o Deus da verdade fala”.[69] E, na mesma página, “as
Escrituras nunca erraram”. Com citações como essas, o Dr. Mueller
tem coragem para criticar os liberais
que vergonhosamente pervertem os fatos históricos, citam mal
Lutero, deturpam suas declarações, recusam-se a ler e examinar
os escritos de Lutero honesta e conscienciosamente, mas citam
jubilante e acriticamente o que maledicentes liberais escreveram
falsamente antes deles no intuito de tornar Lutero um defensor do
próprio ensino deles, liberais.[70]
Obviamente, o Dr. Mueller não tinha o Dr. Rogers em mente. Ele se
referia a um grande número de liberais anteriores. Nem todas as
suas acusações se aplicam ao Dr. Rogers, mas uma certamente sim:
Ele “[deturpa] suas declarações… no intuito de tornar Lutero um
defensor” ou pelo menos um proponente de seu próprio ensino.
Se se trata de contar votos, contamos Lutero como estando ao
lado da inerrância bíblica: “O conteúdo da Escritura é verdadeiro e
certo per se”.[71] A Escritura Sagrada é “Deus falando ao homem”.[72]
Mas que o leitor interessado leia o capítulo inteiro do Dr. Mueller.
A seguir, o Dr. Rogers dedica quatro páginas a Calvino. Por
quê? Não deveria ser para pôr em dúvida a inerrância? Outro
capítulo no livro de Walvoord cita Calvino em favor da inerrância,
mas certamente não é esta a intenção do Dr. Rogers. Ele deve
querer mostrar que Calvino pelo menos hesita e tem dúvidas quanto
à veracidade da Bíblia. Chega até mesmo a citar As Institutas: “Pois
a Escritura manifesta plenamente evidência não menos diáfana de
sua veracidade, que de sua cor as coisas brancas e pretas” (I.VII.2).
Talvez coisas brancas e pretas não sejam evidências muito boas da
sua cor, mas Calvino não tinha em mente as teorias da luz do século
XX. Se o Dr. Rogers tivesse citado um dos parágrafos anteriores
sobre a autoridade da Escritura, teria minado ainda mais a sua
posição. Diz o parágrafo:
Como, porém, não se outorguem oráculos dos céus
quotidianamente, e só subsistem as Escrituras, na qual aprouve ao
Senhor consagrar sua verdade e perpétua lembrança, elas
granjeiam entre os fiéis plena autoridade, não por outro direito
senão aquele que emana do céu onde foram promulgadas, e,
como sendo vivas, nelas se ouvem as próprias palavras de Deus.
…a eterna e inviolável verdade de Deus. (I.VII.1)
Em I.VII.5, diz Calvino: “os profetas… sustentavam com plena
certeza que, sem engano ou ambiguidade, Deus havia falado”. Será
que isso soa como se Calvino pensasse que a Bíblia ensina
falsidades? Não; Calvino baseia a autoridade da Escritura na sua
verdade.
É inútil o Dr. Rogers apelar a Calvino para suas opiniões em
razão de que os profetas usavam antropomorfismos. Ele diz: “O
método de Deus, para Calvino, era ‘representar-se a nós não como é
em si mesmo, mas como se nos parece’”. A nota de rodapé na parte
de trás do livro modifica radicalmente, na verdade remove, a
generalidade do texto. A citação vem de uma seção sobre
antropomorfismos. Mas a página 28 por si só faz parecer como se
nada na Bíblia representasse Deus como ele realmente é. Citar
Calvino como testemunha, precursor ou expoente de uma teoria de
falibilidade bíblica é algo injustificado.
Agora vem uma seção intitulada “Escolasticismo pós-Reforma”.
Como o termo escolasticismo tem tido há muito um odor
desagradável entre os protestantes, os liberais de hoje
frequentemente usam o termo para menosprezar os protestantes do
século XVII. É verdade que o estilo de Turretin pode ser chamado de
escolástico. É muito sistemático, e os argumentos de Turretin são
claramente (alguns diriam dolorosamente) delineados. O importante,
porém, não é o estilo; o que importa é o conteúdo. Sobre este ponto,
ninguém ousa afirmar que a teologia de Turretin reproduz Pedro
Lombardo, Tomás de Aquino, Duns Scotus nem tampouco os
teólogos romanistas que escreveram após o Concílio de Trento. Até
o Dr. Rogers, talvez sem querer, cita Turretin de forma certamente
inconsistente no sentido de que a Escritura é “o único princípio da
teologia”.[73] Isso não é escolasticismo, pois os romanistas sempre
mantiveram que a tradição também é autoritativa. Se Turretin,
portanto, não é um escolástico, como quer que seu estilo intricado
possa parecer, muito menos é um liberal. O próprio Dr. Rogers
reconhece duas vezes na mesma página que Turretin considerava a
Bíblia inerrante: seus autores humanos “foram tão compelidos e tão
inspirados pelo Espírito Santo, tanto nas coisas mesmas quanto nas
palavras, que se mantiveram livres de todo erro… Os profetas não
cometeram erros nem no mínimo detalhe”.
Por que então o Dr. Rogers cita Turretin? Certamente não
porque seja um precursor de seus próprios pontos de vista. Para o
presente autor, a única maneira de entender a inclusão de Turretin
nesse livro é o argumento velado: Turretin acreditava na inerrância;
Turretin era um escolástico; o escolasticismo é ruim; portanto a Bíblia
não é inerrante.
O Dr. Rogers pode de fato marcar um ponto contra Turretin,
como muitos liberais fizeram; isto é, que Turretin acreditava que os
pontos das vogais hebraicas eram inspirados. Mas Turretin
acreditava nisso porque pensava que os pontos das vogais eram
encontrados nos manuscritos originais. Essa era uma ignorância
comum nos séculos XVI e XVII. Mas o fato de Turretin, Voetius e
Owen (p. 36) não saberem o que só foi descoberto na geração
seguinte não é nenhum argumento contra a inerrância.
Não há necessidade de comentar a seção em que o Dr. Rogers
discute a Confissão de Westminster. A maioria das coisas que ele diz
é verdadeira e irrelevante. Suas últimas quatro linhas são uma sutil
má-interpretação. Pode-se ler a própria CFW, citada anteriormente.
A seção sobre “A teologia de Princeton” é mais interessante. É
claro, a exemplo de Turretin, Princeton com seu Alexander, os
Hodges e Warfield defendia a total veracidade da Escritura até 1929.
O Dr. Rogers observa que Princeton foi então reorganizada.[74] Ele
se vangloria: “Assim, a falsa equação da teoria da inerrância com a
posição da Confissão de Westminster jamais foi repudiada. Ao
contrário, a igreja simplesmente concordou em não tornar nenhuma
interpretação da Confissão de Westminster vinculativa”.[75]
Isso é muito interessante em vários aspectos. Primeiro, o
julgamento de heresia de Charles Augustus Briggs mostra que a
igreja naquela época, como era praxe, entendia que a Confissão
exigia uma aceitação da veracidade da Bíblia. Em segundo, embora
as palavras explícitas “repudiamos a inerrância” não ocorram nos
documentos oficiais de 1929, a inerrância foi de fato repudiada. Note
que o Presbitério da Filadélfia se recusou a permitir até mesmo o
arquivamento das acusações feitas contra os afirmacionistas de
Auburn. Em terceiro, a reorganização do Seminário de Princeton
incluiu não só a demissão do seu Conselho de Administração
Ortodoxo, mas a instalação de um novo conselho com um
representante da lista da Afirmação de Auburn. Assim, a igreja e o
seminário procederam com base em que a Escritura não é infalível e
que o nascimento virginal, os milagres, a expiação e a ressurreição
não são essenciais. O Dr. Rogers aparentemente acha isso um
progresso. Por que mais usaria isso em suporte de sua posição?
Essa posição não é evangélica, e sua Bíblia não é autoritativa.

Bernard Ramm
O capítulo de Bernard Ramm, um cavalheiro de considerável
capacidade escolástica (para mim escolástico não é um termo de
opróbrio) começa com uma pergunta sobre a essência do
cristianismo. Ele se refere a Wesen des Christentums tanto de
Feuerbach quanto de Harnack. O primeiro subtítulo de Ramm é: “O
Sola Scriptura é o Wesen do cristianismo?”.
Essa é uma pergunta bastante enganosa. Ramm pretende
mostrar que a infalibilidade bíblica não é o Wesen ou essência do
cristianismo. Mas, tomado estritamente, isso é enganoso e
irrelevante. Suponha que alguém perguntasse: o nascimento virginal
é a essência do cristianismo? Presumivelmente, muitos dos mais
ortodoxos diriam “Não”. A expiação é a essência do cristianismo?
Muitos sem dúvida diriam “Sim”; mas outros diriam “Não”. A
ressurreição é a essência do cristianismo? Como responderiam eles
àqueles que disseram que a expiação é a essência? A questão
importante não é a essência do cristianismo; mas é a inerrância, o
nascimento virginal, a ressurreição essencial para o cristianismo? E
todas essas questões devem ser respondidas com um “Sim”. A
Afirmação de Auburn respondeu com um “Não”.
Deveria estar claro que a essência ou definição de uma religião,
filosofia ou partido político pode ser complexa. Uma única parte de
uma definição não constitui a definição. Certamente, o cristianismo é
uma teologia complexa. Muitos fatores são essenciais, embora
nenhum deles seja por si só a definição. A pergunta de Ramm,
portanto, é enganosa.
Depois de citar uma dúzia de expressões de Warfield — como
“absolutamente infalível”, “absolutamente sem erros”, “liberdade
absoluta de erros”, etc. —, Ramm comenta: “Seria impossível dizer
que ele fez uma identificação entre o Wesen do cristianismo e sua
própria visão da Escritura Sagrada. Ele era historiador de teologia
suficiente para evitar dizer isso”.[76] Essa última frase mostra uma
falha no método de Ramm. Não é um historiador, é um lógico que
determina a essência ou definição de seu assunto de estudo. É o
lógico também que determina o que é básico num sistema complexo
de pensamento. Os diálogos de Platão e a Bíblia contêm muitas
afirmações. Ambos contêm afirmações históricas. E no caso da
última, também, nem todas estão no mesmo nível lógico. Qual então
é a definição de platonismo? Qual era a crença fundamental de
Platão? Um cristão pode pensar que a doutrina da Trindade é a única
doutrina cristã básica. Mas ainda que um cristão torne a inerrância
básica — pois, a menos que a Escritura seja verdadeira, ninguém
pode chegar à doutrina da Trindade — há outros assuntos que,
embora não sejam das Wesen, são de fato wesentlich — essenciais.
Portanto, duas questões, embora intimamente relacionadas, devem
ser distinguidas: A inerrância é básica? A inerrância é essencial?
“Qual é a essência do cristianismo?” não é a questão. A essência é
de fato essencial, mas nem tudo que é essencial faz parte da
essência.
A propensão de Ramm ao historicismo, em vez de à análise
lógica, resulta em certa irrelevância e má-compreensão. Ele observa
que a história da doutrina eclesiástica da inspiração inclui teorias
divergentes: “Afirmar que existe uma teoria altamente especializada
de inspiração que perpassa ininterruptamente a história da igreja é
um argumento que não pode ser defendido”.[77]
Ora, é verdade que a história da igreja visível nos apresenta
vários teólogos que diferem em muitos pontos. Isso é verdade não
apenas da doutrina da inspiração, mas também da expiação. Por
exemplo, Bernardo defendia que a morte de Cristo foi um resgate
pago a Satanás que de forma legítima exigia a lealdade dos
pecadores; mas Abelardo defendia que a morte de Cristo foi um
resgate pago ao Pai. Mas diferenças individuais ou não oficiais como
essa são irrelevantes. Os afirmacionistas de Auburn fizeram
alegações similares. Eles tentaram se defender dizendo que
aceitavam o fato da expiação, mas não a doutrina. Esse historicismo,
entretanto, enfrenta duas objeções. Primeiro, a expiação não é um
fato, um evento histórico. A expiação é em si uma doutrina. A morte
de Cristo é o fato ou evento. Em segundo lugar, os afirmacionistas de
Auburn tinham todos subscrito à doutrina da Confissão de
Westminster. A doutrina da expiação estava incluída em seus votos
de ordenação. Rejeitar os oito parágrafos do capítulo VIII, “De Cristo,
o Mediador” — ou simplesmente descartá-los como não essenciais
— foi uma violação de seu compromisso solene.
Isso é história da igreja. Tem havido de fato teorias discordantes
da expiação e da inspiração. Mas a posição oficial da igreja, ou das
igrejas, não é encontrada nos pontos de vista de teólogos individuais,
mas nos credos oficiais das denominações. Qual credo, pelo menos
qual credo anterior a 1967, nega a inerrância? Se não há nenhum, e
se todos eles concordam com os credos citados anteriormente neste
artigo, pode ser sustentado, ao contrário da afirmação do Dr. Ramm,
que existe uma teoria perpassando ininterruptamente a história da
igreja.
Talvez, no entanto, alguma organização que se autodenomine
igreja negue a inerrância da Escritura. Neste caso é preciso lembrar
que as próprias igrejas, assim como os indivíduos, devem ser
julgadas pela Escritura. Não se deve julgar com base na história,
mas com base em uma revelação verbal. É por isso que a Confissão
de Westminster identificou o papado como o anticristo, a igreja
romana como uma sinagoga de Satanás e seus membros como
idólatras (24.3; 25.5 e 6). A história como tal, a mera ocorrência de
eventos, não dá nenhum princípio normativo de avaliação. Se isso
“reduz a um grupo muito pequeno o número de pessoas realmente
fiéis ao cristianismo”, que assim seja. Diremos, para inflar o número,
que os mórmons e os moonitas são realmente fiéis ao cristianismo?
Ambos são encontrados na história.
Os defeitos do historicismo são evidentes também na página
seguinte. Ramm diz: “Todas as doutrinas baseadas em eventos na
história repousam então, em favor da sua realidade, no leito da
história, quer sejam alguma vez registradas, quer não”.[78] Ao
contrário, todas as doutrinas repousam, em favor de sua realidade ou
verdade, na mente eterna de Deus. Não existem doutrinas baseadas
na história; especialmente, não existem doutrinas baseadas em
eventos não registrados da história. A morte física de Cristo é um
evento da história; ela é essencial para a verdade do cristianismo;
mas a doutrina do sacrifício propiciatório não está baseada no
evento; o evento está baseado na doutrina que existe eternamente
no plano de Deus. Dizer que “Cristo foi crucificado pelos nossos
pecados, quer se tenha registrado isso alguma vez em livro, quer
não” dificilmente vai ao ponto da questão. A ordo essendi, que
Ramm tanto deseja distinguir da ordo cognoscendi, começa com o
decreto eterno, não com eventos no tempo. Mas até onde diz
respeito ao cristianismo na história, até onde diz respeito à aplicação
da salvação a pessoas individuais, a ordo cognoscendi é decisiva.
Se a fé é necessária para a salvação — admitindo que a fé seja um
dom de Deus —, a pessoa deve conhecer o Evangelho para poder
acreditar nele. Uma expiação não escrita não permitiria a
possibilidade da fé. Esses liberais regularmente contrastam uma “fé”
sincera, um encontro ou algo assim, com uma Bíblia inerrante. Mas
de que serviria uma Bíblia com páginas em branco? Ramm quer
dizer que os pagãos podem ser salvos sem nunca aprender sobre
Cristo? Estaria Ramm afirmando alguma doutrina? Se sim, pode-se
perguntar: como ele sabe? O ordo cognoscendi é essencial para um
hindu, um muçulmano e também para um cristão.
A confusão nesta parte do argumento de Ramm é generalizada.
Observe atentamente o parágrafo do meio da página:
Fazer de uma certa visão da Escritura o Wesen do cristianismo
significa que todas essas doutrinas são doutrinas de segunda
ordem. Pois se o Wesen do cristianismo é uma certa teoria de
inspiração, todas as doutrinas são apenas tão boas quanto a
nossa teoria de inspiração.[79]

Esse parágrafo repete o mal-entendido fundamental exemplificado


no termo Wesen. Mas além disso a frase “doutrinas de segunda
ordem” é pejorativa. Dá a impressão de que a expiação e a
ressurreição são de alguma forma não importantes — não são o
Wesen, mas simplesmente não-essenciais. Isso, evidentemente, é
uma deturpação completa das visões daqueles que, como Hodge e
Warfield, defendem a inerrância. Porém, embora a redação possa
ser melhorada, é de fato verdade que a doutrina da expiação é
apenas tão boa quanto a doutrina da inspiração. Uma afirmação de
que a Escritura contém erros admite a possibilidade de que a
expiação seja um deles. A doutrina da inerrância implica a verdade
da expiação. As doutrinas da morte e ressurreição de Cristo não
podem ser afirmadas com maior grau de convicção do que é
permitido pela visão de inspiração do afirmador. Se alguém acredita
que a Bíblia é verdadeira, afirma a ressurreição como uma verdade.
Se alguém acredita que a Bíblia ensina falsidades aqui e acolá, não
pode basear a verdade da ressurreição somente na Bíblia. De fato,
muitas pessoas acreditaram, e muitas pessoas agora acreditam, que
os relatos da ressurreição são errôneos.
O parágrafo seguinte de Ramm é uma falácia lógica. Ele diz:
“Se uma certa visão da Escritura é o Wesen do cristianismo, e
cultistas e sectários acreditam nessa visão da Escritura, somos pela
lógica forçados a admitir que eles são evangélicos”. Não é incrível
que um reconhecido estudioso possa cometer um erro tão elementar
na lógica? O todo é uma falácia. Há dois requisitos, não apenas um,
para que o termo evangélico seja corretamente aplicado: Sola
Scriptura e Sola Fide. Uma pessoa que aceite um, mas não o outro,
não é evangélica. Os “cultistas”, portanto, sejam eles quem forem,
que aceitem a inerrância, mas também neguem a justificação
somente pela fé, não são evangélicos.
Ramm realmente diz algumas coisas que são verdadeiras e
importantes, mas afirma a verdade para ridicularizá-la. Ao pé da
página, lemos:
Por outro lado, se um teólogo aceita todas as grandes afirmações
que associamos geralmente ao título “evangélico”, mas tem uma
visão de inspiração que diverge da de seu crítico, toda a sua
teologia é suspeita e, por definição, ele não é evangélico.
Ramm acha isso ridículo. Não; com uma exceção, isso é verdade. A
pessoa mencionada não é de fato evangélica. A exceção é que a
própria teologia de Ramm pode não ser suspeita, pois o evangélico
pode aceitá-la com base na Bíblia infalível. Mas esse indivíduo é
suspeito e seu apego a essa teologia é infundado, pois ele não
reconhece nenhuma base infalível para ela. Se um mórmon acredita
na ressurreição de Cristo, isso não torna a ressurreição suspeita.
Mas suspeitamos do mórmon por causa de sua rejeição da Sola
Scriptura.
Ramm prossegue:
Mais uma vez, isso leva à esquisitice de que na teologia algumas
pessoas de mente e educação medíocre são dignas de confiança,
mas um homem com uma mente brilhante e fé evangélica como
Thomas Torrance é suspeito porque sua visão da Escritura é
essencialmente barthiana.[80]

Thomas Torrance não é evangélico e não é digno de confiança. O


brilhantismo não substitui a verdade doutrinária. Obviamente,
tampouco damos total confiança a uma mente medíocre; pois,
embora a mente medíocre aqui considerada opere sobre uma base
sólida, a pessoa pode ser ignorante em algumas coisas e também
cometer erros de raciocínio. Assim, Ramm faz comparações
confusas; esta é uma segunda razão para não confiar no Dr. Ramm.
A confusão se aprofunda. Na página 116, Ramm escreve: “O
Sola Scriptura não afirmou que, com referência a escrever teologia,
todo conhecimento que não seja bíblico é desnecessário”.
Presumivelmente, ele quer dizer que um conhecimento de gramática
grega é útil para escrever teologia. Que seja; mas, desde que o Novo
Testamento está escrito em grego, pode-se incluir a gramática grega
na esfera do conhecimento bíblico. Se ele quer dizer um
conhecimento de arqueologia ou da sociologia da cultura hitita,
respondemos que os protestantes aceitam a Escritura como
perspícua e suficiente. “Toda a Escritura é inspirada por Deus… a fim
de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado
para toda boa obra.” Escrever teologia, teologia ortodoxa, é uma boa
obra. Um conhecimento extrabíblico é, portanto, desnecessário,
ainda que tenha algum valor intrínseco.
Provavelmente, Ramm acredita ter resguardado sua visão de
forma adequada quando acrescenta que “Sola Scriptura… significava
que, quando se tratava de tomadas de decisão em controvérsias, o
apelo à Escritura era o mais alto apelo possível, e que onde a
Escritura falasse sobre um ponto seu veredito era final”. Isso é
excelente, mas tenho dúvidas de que Ramm acreditasse nisso. Esse
livro em geral não especifica quanto da Bíblia os autores acreditam e
quanto não acreditam. Mas podemos usar um exemplo de Dewey
Beegle. Um de seus pontos para mostrar erros na Bíblia é o reino de
Peca. A Bíblia fala sobre esse ponto. Há uma controvérsia. Cada
pessoa interessada na controvérsia deve eventualmente tomar uma
decisão. Mas Beegle não considera a Escritura o mais alto tribunal
de apelação. Ele decide contra a Escritura. Assim faz Ramm, se não
neste ponto, pelo menos em algum outro. A negação da inerrância é
ipso facto uma negação de que o veredito da Escritura é final.
Ramm continua a depreciar a “mentalidade da Bíblia somente”.
Ela “faz com que o registro da revelação seja mais primordial do que
a revelação original”. Ora, nós concordamos que Deus falou com
Abraão. Isso servirá como exemplo de uma “revelação primordial”.
Cerca de cinco séculos mais tarde, Moisés registrou essa revelação.
Nenhum evangélico nega isso, embora o ordo cognoscendi nos
forneça as informações através de Moisés. Todavia, Moisés faz mais
do que relatar revelações primordiais de séculos anteriores. E a
Bíblia também não é um mero relato. A Bíblia é ela mesma uma
revelação. Deus escreveu os Dez Mandamentos em pedra. Moisés
os escreveu em algum pergaminho. Esses dois escritos são, a
menos que Moisés fosse um mentiroso, idênticos. Ambos são
revelações, mas o último é a única revelação que temos. Nem toda
revelação primordial (?) foi tão direta quanto essa para Abraão e
Moisés. Os livros históricos são uma revelação, mesmo uma
revelação primordial, porque Deus não escreveu primeiro os eventos
em pedra; eles são uma revelação, portanto, e não relatos de uma
revelação anterior. Mas Ramm faz da Bíblia apenas um relato, um
relato errôneo, de uma revelação de outra forma incognoscível, de
modo que a Bíblia é apenas uma pista ou testemunho de uma
realidade não revelada. Insistimos, portanto, na pergunta: se a Bíblia
não é uma revelação, mas apenas um testemunho falível, como
alguém descobre o que na Bíblia é verdade e o que é falso?

David Hubbard
Este artigo não discute todos os capítulos do livro; e conclui agora
com o texto “As tensões atuais: Há uma saída?” do Dr. Hubbard.
Visto que o Seminário Fuller (Dr. Hubbard é seu presidente e o Dr.
Rogers um de seus acadêmicos) parece ser o iniciador e fator mais
poderoso nesse recente ataque à Escritura dentro de grupos que têm
sido comumente considerados evangélicos, este capítulo é de
grande importância.
O capítulo do Dr. Hubbard é talvez mais insidioso do que
mesmo o do Dr. Rogers, pois o Dr. Hubbard fala da Bíblia e até de
Hodge e Warfield em termos bastante elogiosos. Mas um leitor
cuidadoso, antes de terminar essas páginas, verá que o Dr. Hubbard
não acredita que a Bíblia é a Palavra de Deus: “De que modo lemos
a Bíblia para realmente ouvir a Palavra de Deus através dela?”.[81]
Assim, a Palavra de Deus é identificada com algo diferente da Bíblia.
A Bíblia é algum tipo de canal pelo qual a Palavra vem até nós. Mas
canais não são aquilo que flui através deles. O cano que traz a água
não é a água. Um evangélico diria: A Bíblia é a Palavra de Deus.
Como evidência, podemos citar a plataforma doutrinária da
Sociedade Teológica Evangélica: “Somente a Bíblia e a Bíblia em
sua totalidade é a Palavra de Deus escrita e, portanto, inerrante nos
autógrafos”.
O presidente Hubbard, ao contrário, acha que a Sociedade
Teológica Evangélica, Charles Hodge, Benjamin Warfield, Harold
Lindsell, Carl Henry e outros abafam a mensagem da Bíblia e
obscurecem sua finalidade. Ou, mais especificamente e mais
absurdamente, ele sustenta que uma crença na verdade da Bíblia
tende a abafar sua mensagem ou obscurecer sua finalidade. Não
significa isso que, quanto mais firmemente alguém se apega à
veracidade do que a Bíblia diz, menos interessada está nessa
verdade? Quem em sã consciência pode acusar Hodge de tender a
abafar o significado da Bíblia ou restringir seu escopo? Pense não
apenas em seus três grandes volumes de Teologia Sistemática, mas
também em seus comentários e inúmeros artigos. O que realmente
abafa a mensagem da Bíblia é a crença de que partes dela não são
verdadeiras. É fácil acusar Orígenes e até Agostinho de terem
cometido erros de interpretação ou exegese, mas a causa desses
erros não foi a crença deles na inerrância. Alegorizar é de fato um
erro; não foi a resposta certa para Marcião de Sinope, mas a verdade
não implica alegoria.
Assim também, o presidente do Fuller repete as observações
equivocadas de Rogers sobre os pontos das vogais hebraicas. A
inerrância não requer acreditar que eles eram inspirados. O que
exigia a ideia de que eles eram inspirados era a crença de que os
pontos das vogais eram partes dos autógrafos. Isso era um erro, mas
se devia a uma ignorância geral; não é uma consequência da
inerrância.
Não é difícil listar os inúmeros erros que crentes na Bíblia têm
cometido. Todos cometemos erros. Qualquer pessoa com um pouco
de conhecimento da história da doutrina poderia listar mais do que o
Dr. Hubbard. Mas o argumento é falacioso. Poderíamos igualmente
argumentar: os romanistas e ortodoxos gregos cometem erros fatais
em sua teologia; eles acreditam na doutrina da Trindade; portanto,
uma crença na Trindade tende à apostasia.
O Dr. Hubbard também afirma que a crença na inerrância e,
portanto, na consistência interna da Bíblia têm levado a tentativas
tolas de “harmonizar todas as declarações bíblicas umas com as
outras e com os resultados da descoberta científica e arqueológica”.
[82] É claro, ninguém precisa negar que os resultados dessas

tentativas foram algumas vezes equivocados e até tolos. Até mesmo


tentativas de pregar o Evangelho e explicar a expiação são algumas
vezes tolas. Mas implica isso que ninguém deve pregar sobre a
expiação?
No que diz respeito às tentativas de harmonização, tolas ou
sábias, os dois pontos a serem considerados são a consistência
lógica e os achados arqueológicos e sociológicos da academia.
Harmonização é a tentativa de descobrir ou preservar a
consistência lógica da Escritura. O objetivo é mostrar que a Bíblia
não se contradiz; pois, se se contradissesse, um lado da contradição
seria necessariamente falso. Por que então o Dr. Hubbard
menospreza a harmonização? Ele mesmo diz:
As passagens difíceis devem ser estudadas em comparação com
outras passagens — semelhantes e diferentes; as passagens
claras deveriam ser usadas para lançar luz sobre as porções
menos claras… Qualquer interpretação que não estivesse de
acordo com os temas centrais da fé deveria ser questionada…
Doutrinas mesquinhas e ensinos morais duvidosos deveriam,
portanto, ser evitados.[83]

Os tempos passados desses verbos se referem à Segunda


Confissão Helvética, com a qual o Dr. Hubbard parece concordar
nesses pontos particulares. Mas com essas admissões por que o Dr.
Hubbard se opõe a tornar clara a autoconsistência do texto bíblico?
Existe algum outro motivo além da suposição de que inconsistências
impedem essa harmonização? No que diz respeito à consistência
bíblica, parece que o Dr. Hubbard quer alguma harmonia na Bíblia,
mas não uma harmonia completa. Por causa disso ele não deveria
ter citado a Segunda Confissão Helvética, pois, como foi indicado
anteriormente neste artigo, essa confissão diz: “Confessamos que as
Escrituras Canônicas são a própria e verdadeira Palavra de Deus…
pois o próprio Deus falou aos patriarcas e ainda nos fala a nós pelas
Santas Escrituras”. Não há espaço para falsidade no discurso de
Deus. Portanto, um evangélico deve necessariamente tentar
harmonizar todas as declarações bíblicas entre si. Ele pode às vezes
falhar, ou porque não vê solução, ou porque sua solução é um erro.
Mas ele deve tentar, a menos que queira acusar as próprias palavras
de Deus de falsidade.
Ora, em segundo lugar, embora nesta página o Dr. Hubbard
também repreenda os evangélicos por tentarem “harmonizar todas
as declarações bíblicas… com os resultados da descoberta científica
e arqueológica”, numa página adiante ele os repreende por não
estarem interessados em arqueologia. Segundo diz, eles não têm
interesses acadêmicos e se recusam a interpretar a Bíblia em seus
“contextos históricos, sociais, culturais e linguísticos”.[84] Ele insiste
que “onde um sistema rígido de apologética [a crença de que a Bíblia
é verdadeira] se torna a definição básica de ortodoxia, a verdadeira
erudição bíblica se torna difícil, se não impossível”.[85] Em outras
palavras, para ser um estudioso é preciso acreditar que a Bíblia
ensina algumas falsidades.
É divertido ver como os liberais acusam os evangélicos de falta
de erudição e ao mesmo tempo ficam irritados quando os
evangélicos usam a arqueologia para expor os erros dos liberais.
Ora, os autores desse livro foram cuidadosos em não dizer
quanto da Bíblia está errado. Mas o Seminário Fuller, na pessoa de
um de seus professores, mostra como considerações sociológicas,
se não linguísticas e arqueológicas, impugnam as orientações
práticas e normativas da Escritura para um viver cristão,
particularmente como elas conflitam com o viver cristão na própria
igreja. O Dr. Jewett entende qual é o papel que Paulo atribui às
mulheres na igreja. Sua exegese é tudo o que um crente da Bíblia
poderia exigir. Nisso ele é mais honesto, certamente mais preciso
que aquela seção da liberação feminina que mostra bem pouco
interesse pelo Novo Testamento. Mas o Dr. Jewett simplesmente
insiste que Paulo estava errado. Paulo impôs à igreja os costumes
culturais e sociológicos de sua era. Ele não tinha autoridade para
criar regras para a igreja no século XX. Nossos costumes diferem
dos do antigo Israel, da antiga Grécia e antiga Roma. Portanto, nesta
era a igreja deve repudiar as normas do Novo Testamento. Os
autores desse livro têm o cuidado de não listar as contradições da
Escritura nem de indicar quanto dela é “condicionado culturalmente”,
mas seus colaboradores são mais francos. Por que o presidente
Hubbard não aplica ao professor Jewett suas próprias palavras? “A
teologia que casa com a filosofia de sua era acaba sendo uma viúva
na era seguinte.”[86] Diz ele: “Nos séculos XVII e XIX, a verdade era a
preocupação”. A verdade não é uma preocupação no século XX? Se
não é, ninguém precisa considerar se as visões desse livro são
verdadeiras ou não. Mas se a verdade é de uma preocupação
eterna, devemos condenar essas visões como falsas. Falando da
verdade, é um equívoco dizer que “o Espírito Santo não se preocupa
com tais limitações”.[87]
Assim também, na página seguinte, está longe da verdade dizer
que “o ramo Hodge-Warfield da teologia reformada… chega perto de
comprometer o princípio sólido de que a Escritura é suficiente”. Bem
pelo contrário: o que compromete — de fato nega — a suficiência da
Escritura é sua rejeição com base no “condicionamento cultural”.
A acusação mais incrível de condicionamento cultural, todavia,
não é voltada contra a Bíblia, mas contra Hodge e Warfield e os
evangélicos do século XX.
Uma forma na qual esse perigo [de comprometer a suficiência da
Escritura] se mostra nas questões atuais sobre a Escritura é a
definição de erro. Tal como usado nas discussões delicadas [note
a terminologia de propaganda] em que os evangélicos agora se
envolvem, o erro certamente deve ser definido em termos
teológicos derivados da Bíblia e limitados a ela. Mas repetidas
vezes, nos argumentos apresentados por quantos dizem seguir a
posição de Hodge-Warfield, palavras como erro ou inerrância ou
infalibilidade são definidas por padrões seculares do século XX,
com um apelo ao dicionário Webster como suporte.
Teologicamente, erro deve significar aquilo que nos desvia da
vontade de Deus ou do conhecimento da sua verdade.[88]
De acordo com isso, a população em geral, assim como Hodge e
Warfield, não sabe o significado do termo erro. Nós, pessoas
comuns, usamos o dicionário Webster. Minha cópia diz: “Erro: crença
no que é falso… uma ofensa moral, pecado… Ato envolvendo um
afastamento da verdade ou da precisão”. Assim, as pessoas que
usam o inglês comum, em achando que a Bíblia se afasta da
verdade, dizem que ela contém erros. Como a Bíblia é um livro, não
dizemos que a Bíblia peca. Se, ao contrário do dicionário e do Novo
Testamento, o termo erro se limita a ações pecaminosas manifestas,
então obviamente a Bíblia não pode ser acusada de erro, pois livros
não pecam. Mas, se erro inclui qualquer desvio da verdade, um livro
pode afirmar proposições errôneas. O Dr. Hubbard não quer falar no
inglês comum do dicionário. Ele supõe que a Bíblia tem uma
definição diferente de erro; de modo que se ela desvia da verdade,
não contém erros.
O Dr. Hubbard substitui por outra definição e dá alguns
exemplos: “Teologicamente, erro deve significar aquilo que nos leva
a desviar-nos da vontade de Deus ou do conhecimento da sua
verdade”. Ele cita a Bíblia: “‘Quem há que possa discernir as próprias
faltas? … aquele que converte o pecador do seu caminho errado…
acautelai-vos… [com o] erro desses insubordinados… Errais, não
conhecendo as Escrituras nem o poder de Deus’ — estes são
versículos que nos dão pistas sobre o significado de erro”.[89]
Que a Bíblia usa o termo erro para denotar pecado é algo que
nem mesmo Webster nega. Mas essa é apenas uma definição
parcial. Neste sentido, nenhum livro erra, pois objetos inanimados
não podem pecar. Mas até o Dr. Hubbard dá testemunho, talvez
involuntariamente, de outra forma de erro; a saber, um afastamento
do conhecimento da verdade de Deus. Ora, uma de duas coisas: ou
ele quer dizer que um livro não pode pecar, assim também não pode
saber e, portanto, não pode se “deixar desviar”; ou, do contrário, o
que a Bíblia diz sobre Peca e a história de Israel não é a verdade de
Deus. O Dr. Hubbard não menciona Peca. Ele não achou necessário
apontar as “imprecisões técnicas” da Bíblia. Simplesmente descarta,
em termos gerais, os “detalhes triviais de cronologia, geografia,
história ou cosmologia”. Então acrescenta:
As falsas alternativas amiúde colocadas entre a inerrância bíblica e
a errância bíblica não são elas mesmas escolhas bíblicas. Elas
são impostas desde fora de uma maneira que tente forçar a Bíblia
a dar respostas que Deus, que inspirou o Livro, aparentemente
não teve a intenção de dar.[90]
Isso está longe de ser aparente. Se não era intenção de Deus que
devêssemos conhecer a história de Israel, incluindo uma infinidade
de “detalhes triviais” em Reis e Crônicas, por que ele inspirou todos
esses capítulos? Ou esses quatro livros não fazem parte da
revelação de Deus? Se cremos em um desses detalhes, mas o
detalhe é falso, não estamos nós e a Bíblia ambos errados? Não
está a Bíblia, sob tal suposição, nos desviando da verdade de Deus?
Erro não é simplesmente atos explícitos de pecado. O erro e o
pecado podem ser interiores e mentais. Não se trata apenas do
Merriam-Webster; isso também envolve a Bíblia. Até mesmo os
versículos citados pelo Dr. Hubbard envolvem uma alusão a uma
inferência incorreta baseada num mal-entendido das Escrituras. O
erro era um pensamento que era falso. Parece estranho que neste
século XX, após dois milênios de estudo da Bíblia, alguém precise
trabalhar para mostrar que a Bíblia aprova a verdade e desaprova a
falsidade. Mas a situação requer uma alusão aos versículos que o
Dr. Hubbard não cita. Duas vezes Abraão disse uma meia-verdade e
uma meia-mentira sobre sua esposa. A desaprovação de Deus é
evidente. Os Dez Mandamentos proíbem o falso testemunho. Em 1
Reis 13.18, um falso profeta mentiu, e resultou disso a morte. Dois
versículos em Jó fazem uma comparação interessante. Jó 6.24 diz:
“dai-me a entender em que tenho errado”. Como isso provavelmente
se refere a uma suposta conduta imprópria, o Dr. Hubbard poderia
usar o texto como um exemplo de seu [Hubbard] senso de erro. Mas
quatro versículos abaixo, Jó insiste estar dizendo a verdade: “pois eu
jamais mentiria na frente de vocês”.[91] De fato, no versículo 25 ele
diz: “Oh! Como são persuasivas as palavras retas!”. Está claro que
mentiras e falsidades são coisas repreensíveis. E podemos nós
supor que o Espírito Santo inspirou seus profetas a contar mentiras?
Jeremias condena os profetas que falaram mentiras (5.31; 14.14;
20.6; 23.25). Por outro lado, Deus é um Deus da verdade. Cristo
disse: “eu digo a verdade”. Paulo disse a mesma coisa em alusão a
um detalhe cronológico (Gl 1.18-21). Ananias e Safira mentiram
sobre uma transação financeira. E João diz: “Nela [Nova Jerusalém],
nunca jamais penetrará coisa alguma… que pratica… mentira”.
Dr. Hubbard acrescenta uma nota de rodapé incrível à última
citação feita. Ele havia falado de “falsas alternativas que não são
elas mesmas escolhas bíblicas”. A nota de rodapé diz na íntegra: “A
recente interação entre Harold Lindsell e Robert Mounce ilustra meu
ponto de que a questão principal entre os evangélicos não é a
errância ou inerrância, mas o que queremos dizer com erro? Lindsell
lança uma isca a Mounce em carta a Eternity (novembro de 1976,
página 96): ‘Que o Dr. Mounce diga claramente que acredita que “a
Bíblia está livre de qualquer erro no todo e nas suas partes” ou que
acredita existir alguns erros, ainda que poucos, na Bíblia’. Mounce,
teólogo perceptivo que é, se recusa a morder: ‘A Bíblia não tem erro
no todo e nas suas partes. A controvérsia é sobre o que constitui um
erro’”.
Essa nota de rodapé é incrível por causa de sua falsidade e
engano. A questão principal — não entre evangélicos, mas entre
crentes na Bíblia e liberais — é precisamente se tudo o que a Bíblia
ensina é verdade ou não, incluindo os detalhes históricos. Nós
sabemos o que queremos dizer com erro. Declarações falsas são
erros. Esse é um bom uso em vernáculo e um bom uso em grego e
hebraico. Quando Wellhausen negou a historicidade dos hititas,
estava acusando a Bíblia de erro. A questão principal, certamente, é
a questão da verdade versus falsidade. Então o Dr. Mounce tem a
audácia de dizer: “A Bíblia não tem erro no todo e nas suas partes”.
Se isso não é uma enganação, não existe enganação.
Considere a audácia dessa linguagem. Embora os autores
desse livro evitem dar exemplos de falsidades na Bíblia, estamos
justificados em supor um caso particular. Se Ezequias fosse um dos
seus exemplos não expressos, eles diriam algo como: 2 Crônicas
32.30 diz “também o mesmo Ezequias tapou o manancial superior
das águas de Giom”. É claro que Ezequias não fez isso. O suposto
evento não ocorreu. Mas isso não é um erro na Bíblia, pois a
declaração é verdadeira na medida em que cumpre e expressa a
mensagem principal da Bíblia.
Harold Lindsell fez ao Dr. Mounce uma pergunta clara e direta.
O Dr. Hubbard diz: “Mounce, teólogo perceptivo que é, se recusa a
morder”. Antes pelo contrário; poderia bem se dizer que morde muito
mais do que tinha o direito de fazê-lo. Pergunte a qualquer branquelo
da Georgia, qualquer nativo de Indiana, qualquer madeireiro do
noroeste, qualquer formado em Vassar ou Bryn Mawr —
responderiam eles que “A Bíblia não tem erro no todo e nas suas
partes” significa que ela contém falsidades históricas, cronológicas e
geográficas? Provavelmente a InterVarsity Fellowship permite que
seus funcionários neguem a inerrância; “‘The National Association of
Evangelicals’ optou pela palavra ‘infalibilidade’ em vez de inerrância”,
embora, como vimos, as duas palavras sejam sinônimas: mas o que
poderia exemplificar melhor a propaganda enganosa do que a
sugestão de que o Moody Bible Institute de alguma forma descartou
a inerrância quando disse que “Os autógrafos originais — eram
verbalmente inspirados pelo Espírito”?[92] Essa sugestão só pode ser
feita mediante um mau uso consistente do vernáculo.
Em vista da falta de franqueza desse livro, dos seus artifícios
difusos de propaganda, da sua petição de princípio e atitude de
esquivar-se das questões, da sua distorção do significado das
palavras, a questão da moralidade do livro não pode ser evitada. J.
Barton Payne trouxe essa questão claramente à tona em seu “Ethical
Issues in the Responses to The Battle for the Bible” [As questões
éticas nas respostas a A batalha pela Bíblia].[93] Seu argumento
deveria ser considerado de forma bastante séria e solene. São essas
respostas compatíveis com os padrões cristãos de verdade?
Na contracapa do livro se anuncia o seguinte: “Nos dias de
hoje, a ‘batalha pela Bíblia’ ameaça o evangelicalismo com um
cisma”. Em certo sentido, sim. É mais ou menos o que os
afirmacionistas de Auburn também disseram. Isso faz alguém
lembrar de 1 Reis 18.17 (ARC): “E sucedeu que, vendo Acabe a
Elias, disse-lhe Acabe: És tu o perturbador de Israel?”.
1
9. A teoria de Hamilton da linguagem e inspiração

Kenneth Hamilton, autor de Words and the WORD [Palavras e


a PALAVRA], começa seu estudo da linguagem e inspiração
contrastando o empirismo e o idealismo. A teoria empírica restringe
as palavras à função de descrição das coisas físicas e, assim como o
positivismo lógico, ridiculariza a teologia. A teoria idealista estende a
linguagem à realidade transfenomenal, mas como resultado disso
perde o mundo dos sentidos, onde a história admite tempo e espaço.
No capítulo dois, o autor discorre sobre como essas duas
teorias avaliam o mito. De maneira óbvia, o empirismo sustenta que
mito é um erro a ser superado, servindo apenas a algumas
demandas subjetivas infantis de um eu inseguro. Para o idealista,
com sua visão distinta da natureza da realidade, mito não é
meramente uma linguagem primitiva a ser superada, mas o método
pelo qual um povo alienado se recorda de uma totalidade original
que foi perdida. É uma espécie de pista para um Ser transfenomenal.
Em oposição às teorias empírica e idealista, Hamilton propõe
uma teoria histórica. Mas é preciso ter cuidado para não falar de
empirismo e idealismo e depois concluir que Hamilton aceita o
historicismo. A linguagem não parece ajudar o autor neste ponto.
Há também outra falha. Hamilton o tempo todo tratou o
empirismo e o idealismo como mutuamente exclusivos. É como se
fosse um zoólogo classificando os animais ou como paquidermes, ou
como mamíferos. A classificação é ruim, pois alguns animais são
ambos. Assim também, alguns filósofos são ambos. O mais
conhecido (provavelmente) de todos os idealistas modernos era um
vigoroso empirista — o Bispo Berkeley. No século atual, Edgar A.
Singer publicou Empirical Idealism [Idealismo empírico].[94]
A classificação não apenas falha porque alguns filósofos são
tanto empiristas quanto idealistas, mas também porque as duas
classes não são exaustivas. Isso continua sendo uma falha mesmo
quando “histórico” é adicionado como uma terceira classe.
Presumivelmente, Leibniz é um idealista não empírico, mas também
é “histórico”, como mostra sua definição de Alexandre o Grande.
Descartes e Spinoza não são nem empíricos nem idealistas nem
“históricos”. Essa falha de classificação desequilibra todo o estudo,
resultando numa ambiguidade generalizada que o leitor superficial
não é propenso a detectar.

Mito
Embora o autor rejeite o idealismo, ele mantém uma visão um pouco
parecida da linguagem mítica. Na página 87, onde deixa de dar sua
descrição das outras visões e se engaja totalmente em explicar a sua
própria, ele diz: “Porém, como vimos, toda linguagem se origina do
pensamento mítico e ainda traz as marcas de sua origem”. Essa é
uma afirmação surpreendente por duas razões. A primeira está nas
palavras “como vimos”. É surpreendente porque o leitor não viu em
lugar algum. No capítulo dois, Hamilton expõe a visão de Ernst
Cassirer “sem segui-lo até o fim” e depois vira três páginas até
Mircea Eliade. Se esse material é simplesmente uma exposição, não
pode servir como prova para sua declaração posterior de que “toda
linguagem se origina do pensamento mítico”. Mas se essas
exposições são incluídas porque Hamilton as adota como suas, o
que fazer com sua qualificação “sem segui-lo até o fim”? O autor não
nos dá nenhuma declaração definida do quanto aceita. Devemos,
portanto, assumir que ele aceita tudo o que relata. Ainda assim, não
parece evidente que Cassirer, com a ajuda de Eliade, produziu um
argumento plausível para a origem mítica da linguagem. Há muitas
afirmações, mas poucas razões.
Por exemplo, Hamilton, fazendo uma exposição de Cassirer,
diz:
A inteligência… não é a característica decisiva do homem. O que
realmente o distingue dos outros animais é sua capacidade de
construir símbolos… Ele não entende primeiro o mundo para só
então aprender a verbalizar seu conhecimento. Antes, sua
invenção de símbolos verbais fornece a possibilidade de ele ter
conhecimento… Cassirer argumenta, portanto, que o mito (como a
forma primária de pensamento) e a linguagem andam de mãos
dadas na educação do homem para que ele possa dar sentido à
sua existência.[95]
Como o autor até o final do livro parece depender totalmente de
Cassirer, é preciso dar uma atenção imediata a esta citação. Em
primeiro lugar, este resenhista não enxerga que “Cassirer
argumenta”. Cassirer simplesmente afirma coisas, e suas afirmações
são implausíveis. Uma, pelo menos, também é antibíblica. Cassirer
tenta construir um homem inteligente a partir de um homem não
inteligente, mas mediante a simbolização do homem. Ora, além do
fato de que isso contradiz a doutrina bíblica da imagem divina no
homem e torna a visão anticristã, supõe que um ser não inteligente
ou não racional pode construir palavras ou símbolos para se referir a
objetos. Isso é claramente retroativo. É preciso inteligência para
construir símbolos e, em particular antes de construir o símbolo, o
homem deve ter algo em mente para simbolizar. Um homem primitivo
jamais inventaria o som ou o símbolo vocal gato, a menos que
primeiro tivesse visto um rabinho e ouvido sua outra extremidade
dizer “miau”. Alguém acredita que ele disse para si mesmo “gato é
um som legal; vou usá-lo para simbolizar o que verei amanhã ao
meio-dia”?
Logo, a afirmação de que “toda linguagem se origina do
pensamento mítico” é infundada. E também infundada a afirmação
de que a linguagem “ainda traz as marcas de sua origem”. Portanto,
a afirmação de Cassirer da qual Hamilton depende, qual seja, a
“invenção de símbolos verbais fornece a possibilidade de ter
conhecimento” é bastante implausível. Certamente a verdade é algo
que Cassirer nega: o homem primeiro entende o mundo e depois
inventa símbolos para expressar seus pensamentos.
Em segundo lugar (e aqui não precisamos simplesmente
adivinhar quanto Hamilton aceita de Cassirer, pois se tratam de suas
próprias palavras), é igualmente implausível afirmar, sem evidência,
que toda linguagem ainda traz as marcas de sua origem mitológica.
É verdade que Hamilton admite que o pensamento científico “tenta
tanto quanto possível escapar das subjetividades da linguagem
usando a linguagem de signos da matemática”.[96] Mas não basta
afastar a matemática com essa breve admissão. O que é necessário
é uma evidência de que as palavras dois e três trazem as marcas de
sua origem mítica. O que são essas marcas? Elas devem ser
especificadas.
Pode parecer um exagero da questão mencionar também a raiz
quadrada de -1. Mas esta não só é desprovida de marcas de origem
mitológica, como também reforça um ponto anterior, pois o símbolo
-1 não foi primeiro inventado e posteriormente encontrado um objeto
que se aplica a ele. Os matemáticos primeiro entenderam que todas
as equações quadráticas devem ter duas raízes, e esse
entendimento os levou a inventar (uma tarefa extremamente simples)
um símbolo para denotar as raízes de x2 + 1 = 0.
Mas para não irritar ainda mais as mentes não matemáticas,
observe-se que Hamilton não faz nenhum esforço para mostrar que
mesmo a palavra gato tem uma origem mitológica e ainda carrega
traços discerníveis do mesmo.
O capítulo dois, onde Hamilton aparentemente tenta justificar
sua visão mítica, está repleto de afirmações sem fundamento.
Exemplos são: (1) “Mito, então, não é em primeiro lugar uma ficção
imposta sobre um mundo já considerado por alguém” — devo pensar
que é. (2) “Cada vida restabelece em parte a história da raça
humana” — num sentido ou noutro, isso é suficientemente vago para
ser verdadeiro; mas quer Hamilton dizer que “a ontogenia recapitula
a filogenia” ou que todo menino sofre às vezes do complexo de
Napoleão? (3) “A estreita relação entre a consciência mítica e a
religiosa é muito visível aqui” [itálico meu], isto é, no fato de que as
“excursões pessoais [das crianças] na criação de mitos resultam em
serem acusadas de mentir deliberadamente!” — onde há aqui
alguma relação entre a consciência religiosa e o mito? É a citação
conjunta da poesia de Wordsworth suficiente, como razão ou
argumento? (4) Similarmente a um pensamento anterior, “Antes de
algo [como um gato] receber um nome, ele permanece
desconhecido… Dar-lhe um nome faz ele ‘ser’, no sentido de que
agora entra na consciência humana como uma entidade que existe
por si só” — era isso verdade acerca do planeta Netuno, após ser
descoberto e antes de receber um nome, ou acerca do continente
agora chamado América?
Aqui, portanto, estão quatro casos em que Hamilton não deu
nenhuma razão para afirmar que “toda linguagem se origina do
pensamento mítico e ainda traz as marcas de sua origem”.
Embora a mitologia seja a base da teoria de Hamilton da
linguagem e inspiração, não se deve supor que ele seja um simples
“mitologista”. Ele está longe de endossar o programa de Bultmann de
desmitologização. Para chegar à linguagem bíblica, dois passos para
longe da mitologia devem ser dados. O primeiro é diluir ou refinar o
mito como sendo poesia. Essa investida, diz ele, nos dá um Deus
que realmente existe, em oposição a deuses mitológicos que não
existem.
Aqui está mais uma vez uma classificação com o mesmo
defeito que viciou sua divisão empírico-idealista-histórica dos
filósofos. Ele fala como se a poesia e a mitologia fossem
mutuamente exclusivas — a poesia sendo uma forma superior de
linguagem em relação à mitologia. Obviamente, isso não procede:
Homero e Hesíodo escreveram poesia e sua poesia é mitologia. Por
causa da falsa disjunção, é difícil desemaranhar o pensamento de
Hamilton. Ele parece achar que a mitologia era inicialmente expressa
em prosa (o que pode bem ser verdade) e que então a poesia foi um
refinamento, afastando-se do mito. Mas deve então haver algo além
da prosa e poesia que dê uma expressão adequada e madura da
religião?
Em todo caso, a poesia não pode dar nenhuma verdade literal
sobre Deus. Ela ainda retém muito mito. Claro, a retenção não é de
todo ruim. O mito, diz o autor, não é mera superstição.[97] “A
verdadeira religião nasce no meio das muitas falsas religiões”. A
partir do que, conclui o resenhista, a mitologia precisou trabalhar em
direção a um conceito de Jeová antes que Adão pudesse ter tido
essa ideia. Nenhuma evidência para a declaração citada é dada. Ela
aparentemente depende do princípio evolutivo de que monoteísmo é
um desenvolvimento social tardio.
Mesmo assim, a influência da antiga linguagem mitológica
continua, seja na poesia, seja no segundo passo de Hamilton. “As
Escrituras não caíram do céu”.[98] Bem, é claro que não. Os
manuscritos (à exceção das tábuas de pedra nas quais Deus
escreveu os Dez Mandamentos) não caíram do Céu. Moisés usou
uma pena para escrevê-los. Portanto, o que o autor expressamente
diz é literalmente verdade. Mas não está querendo sugerir que a
mensagem verbal das Escrituras não veio do Céu? “A Palavra de
Deus chega até nós como as palavras de homens, homens
arraigados em sua época e falando a linguagem do seu país”. Mais
uma vez, isso é literalmente verdade, à parte do seu contexto. As
Escrituras vêm até nós no século XX traduzidas para o inglês
[português]. Não caíram do Céu para nós durante a nossa vida. Mas
e quanto às revelações a Adão, Abraão e mesmo a Moisés, antes de
anotá-las? Não poderia Deus ter usado o hebraico? Deveria ele ter
usado uma linguagem formada pela mitologia? É Deus incapaz de
revelar a verdade literal? Hamilton claramente defende que a
linguagem humana é incapaz de expressar verdades literais sobre
Deus. Sua última frase no capítulo dois teria sido desnecessária e
impossível se pensasse que a linguagem bíblica é literal. A última
frase é: “Como a linguagem humana, formada sobre padrões que
derivaram do mito, pode transmitir-nos a verdade da própria
revelação de Deus: é o assunto das minhas próximas duas
palestras”.[99]

Linguagem humana
Antes de resumir os capítulos três e quatro, pode-se fazer uma
pausa para considerar a frase linguagem humana. Quando Paulo diz
em grego humano que Deus justifica os crentes, falou a verdade
literal ou algum outro tipo de verdade incognoscível que não é de
fato uma verdade? Uma frase parecida com “linguagem humana”
ocorre frequentemente em outros autores. Eles contrastam a “lógica
humana” com a “lógica divina”. Mas ousam eles explicitar o que essa
frase significa? A lógica humana diz “Se todos os homens são
mortais e se Sócrates é um homem, Sócrates é mortal”. Mas se a
lógica divina é diferente, todos os homens podem ser mortais e
Sócrates pode ser um homem, mas Sócrates não será mortal. Ou,
novamente, se a matemática humana diz que 2 + 2 = 4 e se a
verdade divina difere da nossa, então para Deus 2 + 2 = 5 ou 10 ou
qualquer coisa, menos 4. O ponto aqui é que a lógica humana e a
lógica divina são idênticas. A lógica humana faz parte da imagem
divina no homem. É a marca registrada de Deus estampada em nós.
Somente rejeitando a doutrina bíblica da imagem de Deus pode
alguém contrastar a linguagem humana com a linguagem divina e a
lógica divina com a humana.
Por fim, se a linguagem humana não pode ser literalmente
verdadeira, qualquer afirmação do tipo “a linguagem não é literal”
não pode ser literalmente verdadeira. A posição é autorrefutável, e
pode-se ter pouca esperança de explicar como “a linguagem formada
sobre padrões míticos” pode transmitir a verdade de Deus.
O capítulo três começa com um resumo: o empirismo nos dá a
realidade sem Deus. O idealismo tem Deus sem a realidade (capítulo
um); o empirismo faz do mito um beco sem saída na jornada da
ignorância para o conhecimento, enquanto o idealismo faz do mito a
forma básica de discurso humano que não pode descrever o mundo
fenomenal mas, em vez disso, simboliza o mundo transcendental de
significado (capítulo dois).
Neste ponto, Hamilton começa a dar seu segundo passo longe
do mito. Ele vai do mito para a poesia e para a parábola. “A fé
cristã… admite com prazer que um conhecimento melhor do mundo
objetivo tornou insustentáveis as religiões baseadas na aceitação
literal do mito”.[100] Contudo, em razão da linguagem simbólica, ele
ainda terá o homem como uma “criatura fabricante de mitos”. Então,
prossegue Hamilton, a fé cristã não dá “nenhuma instrução
privilegiada sobre ‘o que é o caso’ no mundo criado” — por exemplo,
que Davi foi rei de Israel —, “mas dá ao homem um conhecimento
essencial sobre o mundo como divinamente criado. Também lhe dá
convicção do significado humano da existência do homem. A fé
medeia esse significado além dos limites da própria consciência do
homem”.
Mas se a fé ou revelação não pode nos falar sobre Davi, como
pode nos falar sobre a criação divina do mundo? Certamente a
última é mais difícil de descobrir. Assim também, como a fé “medeia”
qualquer significado além da consciência? Não é a fé um elemento
da consciência?
Mas prossigamos com o segundo passo para longe da
linguagem mítica e na direção da linguagem parabólica, que
supostamente revela a verdade divina melhor do que pode fazê-lo a
simples declaração literal. Por que e como Hamilton chega à
parábola? O “como” não está nada claro. Nenhuma teoria é
elaborada para mostrar que a linguagem, assumida como se
originando no mito, deve pelas leis da evolução se tornar poesia e
então, por essas mesmas leis, se tornar parabólica. O por que de
Hamilton é mais claro que seu como. A razão é que ele não quer se
afastar tanto da mitologia a ponto de chegar na verdade literal. Ele
quer preparar o terreno rejeitando a inspiração plenária e verbal. “As
teorias de revelação de ‘ditado’ parecem às vezes supor que
Deus comunica sua Palavra através de vocábulos”,[101] de modo que
entender o sentido exato de um agregado de proposições significa
receber a Palavra de Deus. Isso é certamente restringir a Palavra
divina à medida das palavras humanas”.
Aqui, mais uma vez, é assumida a teoria evolutiva. As palavras
humanas e a lógica humana são produtos naturalistas da sociedade.
Elas não são reconhecidas como a imagem de Deus no homem.
Sem dúvida, Hamilton as chama de dádivas de Deus, mas apenas
assim como as unhas e a Constituição dos Estados Unidos são
dádivas de Deus. Falta o elemento da imposição normativa divina.
Esse tipo de argumento é essencialmente similar à acusação
pentecostal de que aqueles que repudiam o falar em línguas
“restringem o espírito divino à medida de sua teologia humana”. A
resposta da Reforma é que as Escrituras descrevem a função do
Espírito em línguas e milagres como restrita a certas épocas. Dizer o
que o Espírito faz não significa limitar o poder de Deus. Logo, a
ênfase nas proposições da Escritura não impede Deus de dizer
qualquer coisa que escolha dizer; apenas indica o que ele escolheu
dizer.

Revelação
Hamilton, por outro lado, aparentemente quer revelações em adição
à Escritura. O restante de sua frase, citada acima pela metade, é:
“pois isso é dizer que já temos as palavras que podem declarar tudo
o que Deus pode possivelmente querer que saibamos”. “Pode
possivelmente” é a linguagem da propaganda. A questão não diz
respeito ao que Deus pode possivelmente fazer: é uma questão de o
que Deus realmente fez. A visão da Reforma é que as Escrituras nos
dão toda as informações sobre a salvação que Deus quer que
saibamos. Como diz 2 Pedro 1.3 (ARC), “Visto como o seu divino
poder [já] nos deu tudo o que diz respeito à vida e piedade”. E a bem
conhecida passagem de 2 Timóteo 3.16-17 diz que a Escritura supre
perfeitamente ao homem para “toda boa obra”. Nada mais é
necessário. Em razão disso, a palavra “declarar” de Hamilton
também é um artifício de propaganda. Nunca foi a visão da Reforma
que a Bíblia declara, explicitamente, tudo o que Deus quer que
saibamos. Mas, como diz a Confissão de Westminster, “Todo o
conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para a
sua glória e para a salvação, fé e vida do homem, ou é
expressamente declarado nas Escrituras ou pode ser lógica e
claramente delas deduzido”,[102] isto é, pela lógica humana — que é
lógica porque, em primeiro lugar, é a lógica divina.
Portanto, o que Hamilton objeta parece ser a verdade bíblica
divina, a saber, “a fé em Deus consiste essencialmente na recepção
crente” não talvez de “toda e qualquer declaração bíblica”, pois isso
exigiria uma memória prodigiosa, mas pelo menos da teologia básica
“como objetivamente verdadeira”.[103]
É bastante claro que Hamilton não aceita a Bíblia como a
Palavra de Deus: “O fato de haver palavras na Bíblia… não significa
que nossa leitura delas deve necessariamente produzir declarações
autoritativas que podemos, ato contínuo, identificar com a Palavra de
Deus”. Bem, é claro, não necessariamente, porque algumas pessoas
às vezes não entendem as palavras que leem; e “nossa leitura” das
palavras, portanto, se estamos entre essas pessoas, não
necessariamente produz proposições corretas. A fraseologia aqui é
mais uma vez propaganda, pois a questão importante não é se
algumas pessoas interpretam mal a Bíblia, mas se as palavras e
sentenças da Bíblia são declarações autoritativas porque são
verdadeiras porque são as palavras de Deus. Atacar uma teoria de
inspiração e verdade das Escrituras com base no fato de que
algumas pessoas não entendem as palavras é, obviamente, um
pensamento temerário. Um livro didático sobre cálculo precisa ser
considerado mitológico, poético ou parabólico por alguém, e não
literalmente verdadeiro, só porque alguns alunos do ensino médio
não conseguem entendê-lo? É por esse tipo de raciocínio inválido
que Hamilton rejeita a Escritura como revelação. Ele diz: “Se fosse
esse o caso [fazendo uma identificação das palavras da Bíblia com a
Palavra de Deus], a Bíblia, ao invés de ser esse registro inspirado…,
seria a lei escrita de Deus”.
Ora, há um sentido em que a Bíblia é um registro inspirado. Ela
registra de forma inerrante a revelação de Deus a Abraão e as
guerras de Davi, rei de Israel. Mas além de ser um registro de
revelações divinas, ela própria é a revelação completa. Como diz a
seção de abertura da Confissão de Westminster (determinante da
posição evangélica), “agradou ao Senhor… [ser] servido fazê-la [as
revelações anteriores] escrever toda… tendo cessado aqueles
antigos modos de Deus revelar a sua vontade ao seu povo”. Assim,
em contraste com a negação de Hamilton, a Bíblia é de fato a lei
escrita de Deus.
O uso de Hamilton do termo lei em vez do termo palavra pode
ser pejorativo. A lei de Deus carrega conotações restritivas em
oposição à graça. Um leitor descuidado poderia ficar impressionado,
pois não gostaria de limitar a Bíblia por uma exclusão da mensagem
da graça. Mas se lei é usado em sentido mais amplo — se significa a
mensagem escrita de Deus se, como diz Hamilton no parágrafo
seguinte, lei é “algo definido, colocado, fixo, estabelecido” —, um
evangélico aceitaria a declaração de Hamilton como verdadeira e
não como falsa, como pretendia este. A Bíblia seguramente é algo
fixo e estabelecido. Assim, o motivo de Hamilton para se rejeitar a
visão da Reforma acaba sendo um motivo para aceitá-la.
No entanto, antes de concluir o parágrafo seguinte, Hamilton
retrocede para o sentido mais estreito e mais usual da lei como um
decreto que prescreve determinada conduta e especifica uma
punição pela desobediência. A graça é deixada de fora. Assim, o
autor interpreta mal 2 Coríntios 3.6 como se significasse que Paulo
“estava falando de si mesmo como ministro de… uma aliança não da
palavra escrita, mas do Espírito”.[104] Isso é uma disjunção falsa,
porque a aliança da graça é tanto uma aliança da palavra escrita —
em Gênesis, Ezequiel e Gálatas — quanto uma aliança do Espírito.
Obviamente, argumentos que dependem de disjunções falsas são
inválidos. Um exemplo semelhante de raciocínio falacioso é o uso de
uma afirmação universal que seja somente às vezes verdadeira.
Hamilton afirma: “A adoração em espírito e em verdade inclui o
reconhecimento de que as palavras humanas são inadequadas, de
modo que nossas orações devem receber do Espírito um significado
que não podemos verbalizar”. Mas pode alguém seriamente acreditar
que toda adoração deve incluir tal reconhecimento? Ou que todas as
orações devem receber um significado diferente que não podemos
verbalizar? De minha parte, suponho que a mulher no poço adorou a
Cristo em espírito e em verdade sem um tal reconhecimento.
Também me parece que, quando oro a Deus para aliviar os
sofrimentos de um amigo idoso, o Espírito não muda o significado
para algo que não posso verbalizar. Mas então pode ser que, quando
oro para que um amigo seja aliviado do sofrimento ou Deus conceda
arrependimento a milhões, não esteja adorando em espírito e em
verdade. Mas oro para que isso aconteça, e para esse fim acho a
linguagem literal totalmente adequada.

João Calvino
É preciso enfatizar que Hamilton rejeitou a posição histórica do
protestantismo, e ao fazê-lo entendeu mal essa posição. Ele fala de
“um lapso no legalismo entre os seguidores de Calvino que foram
além da compreensão prática robusta que Calvino tinha da fé cristã a
fim de erguer, coisa que ele não fez [itálico meu], teorias de
inspiração verbalmente inerrantes”.
Ora, além do uso pejorativo das palavras lapso e legalismo em
contraste com robusta, deve-se notar a referência histórica nas
palavras “coisa que ele não fez”.
A posição de Calvino, que é um pouco diferente do que
Hamilton quer nos fazer acreditar, é apresentada em detalhes por
Kenneth Kantzer na publicação Inspiração e interpretação[105] da
Sociedade Teológica Evangélica. No capítulo 4, “Calvino e as
Sagradas Escrituras”, Kantzer cita A Instituição de Calvino:
[Deus] quis que sua Palavra fosse consignada por escrito… Ele
ordenou que as profecias fossem postas por escrito e agregadas à
sua Palavra. Ao mesmo tempo, foram acrescentados alguns fatos
históricos, que nada mais são que meditações redigidas sob
inspiração do Espírito Santo.[106]
De fato, como aponta Kantzer, Calvino frequentemente afirmava que
Deus “ditou” o texto. É verdade, Calvino não usava o verbo da forma
como é usado num escritório de negócios moderno. Mas a
frequência do termo deve alertar as pessoas a não atribuir a Calvino
a ideia de que Deus dita erros. Kantzer alude a Calvino como tendo
chamado os profetas de “escriturários” e “copistas”, “seguros e
autênticos amanuenses do Espírito Santo; e portanto seus escritos
devem ser considerados os oráculos de Deus”. Ele também os
chama de “órgãos e instrumentos”. Refere-se à Escritura como o
“seguro e infalível registro”, “o padrão infalível” — aqui existe
inerrância — “a pura Palavra de Deus” e “a regra infalível de sua
santa verdade”. Citando nada menos que treze outras passagens,
Kantzer observa: “A simples olhada nos comentários de Calvino irá
demonstrar quão seriamente o reformador aplicava sua doutrina
rigorosa da inerrância verbal à sua exegese da Escritura”.[107]
Se também posso acrescentar uma citação da Instituição
(I.VII.1): “não tendo outro direito de que os fiéis reconheçam sua
plena autoridade senão porque fluiu dos céus, ouvindo-se nela a voz
viva do próprio Deus”.[108]
Por tudo isso, o leitor pode supor que o revisor não ficará muito
entusiasmado com os capítulos quarto e final de Hamilton.
Aqui Hamilton observa que a denúncia que o Antigo Testamento
faz da idolatria [e Hamilton poderia ter acrescentado 2 Pedro 1.16
(KJV), “Não seguimos mitos sofisticados] requer uma rejeição do
mito. A “revelação [cristã] deve ter um aspecto proposicional”.[109]
Porém, “toda linguagem… traz as marcas de sua origem
mitológica… A Bíblia não nos tira do alcance da linguagem mítica,
mas nos permite evitar a inverdade do mito”.[110]
Como a Bíblia, ou aliás Xenofonte, nos permite evitar a
inverdade do mito pode não ser muito importante. Pois, se Paulo e
Heródoto simplesmente substituem a inverdade do mito por algum
outro tipo de inverdade e se nunca chegamos à verdade literal, por
que não devemos descartar a coisa toda como histórias fantasiosas?

Verdade literal
A despeito do fato de, através da poesia até a parábola, Hamilton
querer escapar do mito, ele segue dizendo: “A linguagem da
Escritura… seria de outro modo incompreensível”, isto é, a menos
que padrões míticos tivessem sido usados. Ananias não teria
entendido as orientações para chegar à rua que se chama Direita se
elas não tivessem tido uma forma mitológica. “Os mitos sumérios,
babilônicos, fenícios e egípcios [foram] incorporados aos relatos
bíblicos da criação” e “os mitos gnósticos [estão] presentes nas
descrições neotestamentárias de Cristo.[111] A linguagem bíblica
emprega as imagens do mito, enquanto transforma seu conteúdo.[112]
Os mitos da criação nos quais os deuses extirpavam a terra e o céu
do corpo do monstro Caos explicam algumas das frases do relato
bíblico da criação”.[113]
Claramente, por mais que Hamilton queira ir além do mito, não
parece ir muito longe, pois na página seguinte diz: “Na falta do
padrão mítico [do gnosticismo] que originalmente produziu a
terminologia necessária, não seremos capazes de falar da morte e
ressurreição de Cristo”.[114]
Não é isso um absurdo completo? Será que estou dependendo
do gnóstico ou de outros mitos quando falo de soldados romanos
colocando Jesus numa cruz e batendo pregos em suas mãos e pés?
Certamente eu entendia isso na infância, muito antes de ouvir falar
em gnosticismo. E também não estou certo de que Mateus sabia
alguma coisa sobre gnosticismo. Se alguém agora responde que
Mateus e eu não precisávamos ter conhecido o gnosticismo porque
usamos uma linguagem já formada, que nos explique então como a
mitologia formou as palavras pregos, soldados, cruz, lança e morte.
Assim também, que mitologia é necessária para Pedro ver que o
túmulo estava vazio e depois ver Jesus na Galileia e conversar com
ele? Não é, portanto, um absurdo completo dizer que não
poderíamos falar sobre a morte de Cristo se a mitologia não nos
tivesse dado essas palavras?
Nesse ponto, alguém provavelmente contestará que, desde que
Hamilton não admite a linguagem literal, não quer realmente dizer o
que disse. Ele disse que não podíamos falar sobre a morte de Cristo.
O que queria dizer (embora não literalmente) é que Paulo não podia
explicar a expiação sem depender do gnosticismo. A explicação de
Paulo começa declarando que os homens trocaram a glória de Deus
pelos ídolos. Bem, é claro, Paulo não poderia ter dito isso
(sinceramente) se não existisse idolatria. Nesse sentido, algumas
afirmações da Escritura dependem das falsas religiões. Mas isso
está longe de provar que o monoteísmo é um produto social tardio e
igualmente longe de provar que é uma linguagem mítica, não literal.
Quando, além disso, Paulo diz que Deus apresentou Cristo como
propiciação para que Deus pudesse ser justo e justificador de alguns
pecadores, o fato de que existiam sacrifícios pagãos não prova que
eles precederam o sacrifício de animais no Éden e o sacrifício
posterior de Abel nem prova que qualquer porção dessa linguagem
não seja literal. Que Deus estaria satisfeito com a morte de Cristo é
algo tão literal quanto os soldados atravessarem pregos nas mãos e
pés de Jesus.
Quase não se escapa à impressão de que o autor não trata
seus oponentes de maneira justa. Diz ele:
Entretanto, como a revelação é dada em palavras humanas, ela
não pode ser mais precisa do que permite a linguagem. [Quão
verdadeiro! Uma perfeita tautologia. Mas é Deus, que produziu a
linguagem, incapaz de usá-la com perfeita precisão?] A crença de
que a Bíblia consiste de declarações de verdade literal [itálicos
seus] é, portanto, malconcebida. [O portanto é uma falácia lógica.]
A noção de verdade literal é bastante correta se opomos o literal
ao mítico… Neste sentido, devemos dizer que Deus literalmente
criou o mundo… Mas é algo totalmente diferente insistir que todas
as declarações da Escritura são literalmente verdadeiras.[115]
Esse tipo de argumento dificilmente pode ser considerado justo com
a visão da Reforma, pois ninguém dos tempos de Moisés até os dias
atuais alguma vez disse que todas as declarações são estritamente
literais. Lutero, Quenstedt, Gaussen ou Warfield disseram alguma
vez isso? É claro que há figuras de linguagem, metáforas,
antropomorfismos e coisas do tipo. Mas essas coisas não fariam
sentido se não houvesse declarações literais para lhes dar
significado. Por exemplo, 2 Crônicas 16.9 — “quanto ao Senhor,
seus olhos passam por toda a terra” — é absurdamente ridículo se
tomado literalmente: pequenos globos oculares rodando sobre o
chão empoeirado. Mas a menos que a declaração “Deus é
onisciente” seja literal, a figura não tem a que se referir. Certamente
Hamilton não publicou seu livro para lembrar-nos de que a Bíblia
contém algumas figuras de linguagem. E, contudo, seu argumento
aqui depende do suposto fato de que alguém disse “todas as
declarações da Escritura são literalmente verdadeiras”.
Considere a nota de rodapé nessa página:
“Literal” não é sinônimo de “histórico”. Inspiração não implica que o
que é inspirado deve ser entendido literalmente nem tampouco
que tudo deve ser visto como tendo realmente acontecido… Sendo
franco, para se aceitar todas as coisas relatadas na Bíblia como
tendo realmente acontecido é preciso adulterar o texto.
Essas palavras, que Hamilton cita com aprovação de H. M. Kuitert,
não são claras. A linguagem é típica de liberais que querem parecer
conservadores a pessoas ortodoxas enquanto minam a verdade da
Escritura. Quando Kuitert diz “todas as coisas relatadas”, refere-se
ele a metáforas? A declarações feitas por Satanás? Estará “todas as
coisas relatadas” se referindo a todas as coisas relatadas como
tendo realmente ocorrido? As duas primeiras possibilidades são
pueris. A terceira é um repúdio da religião evangélica. É difícil evitar
a conclusão de que a última é o significado pretendido. Por exemplo,
2 Pedro afirma ter sido escrito por Pedro. Sobre essa afirmação,
escreve Hamilton: “Desde há muito tempo, tem-se considerado que
todo autor tem um direito de propriedade sobre suas obras. Mas os
livros bíblicos surgiram num ambiente em que esse conceito era
desconhecido e onde nenhuma questão de verdade ou falsidade
estava envolvida no fato de se usar um nome reverenciado em
conexão com os escritos de outras mãos”. Essa declaração não é
verdadeira nem mesmo da erudição pagã, porque os filósofos
alexandrinos faziam uma distinção cuidadosa entre 36 diálogos
platônicos genuínos e 10 espúrios. Veja também Second Peter
Reconsidered (Tyndale Press, 1960), onde E. M. B. Green escreve
no sentido de que as falsificações não eram recebidas cordialmente
como defendem os críticos, mas que os subapostólicos se
distinguiam entre si e mesmo Apolo [um judeu cristão alexandrino]
dos apóstolos e destituíram o autor de Atos de Paulo e Tecla por sua
impostura. Outro exemplo foi Serapião de Antioquia, que baniu o
Evangelho de Pedro de sua igreja porque descobriu a partir de uma
investigação cuidadosa que o livro era uma falsificação.

Parábola
Após suas observações sobre a autoria de escritos espúrios,
Hamilton chega rapidamente à sua solução para o problema de
como a linguagem com sua herança mítica pode expressar a
verdade divina. Isso é feito por parábolas. O livro de Jonas, diz ele,
não relata ocorrências reais. Sua forma literária mostra que é uma
parábola. (Nunca houve um Jonas. Suponho que tampouco houve
uma Nínive.) Todo mundo reconhece que Cristo ensinava em
parábolas.[116] Nem tudo na Bíblia, reconhece Hamilton, é parábola;
as visões apocalípticas não o são. Mas “se devemos buscar por um
modo ‘chave’ de uso da linguagem na Escritura, a parábola se
encaixa nessa posição de forma muito mais adequada que o mito”.
[117]

Concordemos de imediato. Há também outras frases no livro


que, se separadas de seu contexto, podem ser entendidas em um
sentido ortodoxo. Então, é verdade que a parábola é mais adequada
do que a mitologia. Mas é a parábola mais adequada que, e um
substituto para, a linguagem literal? Hamilton fez a comparação
errada. Ele evitou aqui mencionar o elo fraco em seu argumento;
pois se não existe uma verdade literal de que a parábola é uma
ilustração, ela não tem um referente e se torna inútil. Parece, de fato,
que Hamilton tornou as parábolas inúteis e sem sentido. Ele diz:
Uma parábola… assume que a realidade divina que suas palavras
humanas nos abrem, embora estando literalmente além da nossa
compreensão, pode realmente nos ser revelada através de
palavras humanas. Assim, muitas das parábolas de Jesus
começam dizendo “O reino de Deus é semelhante a…”
Certamente, a comparação não é mais que uma comparação. O
reino dos céus não pode ser trazido à terra para nossa inspeção;
ele permanece sempre um mistério. Contudo, Jesus podia dizer…
“a vós outros é dado conhecer os mistérios…”.[118]
Essa citação é peculiar. Ela começa dizendo que o sentido da
parábola, isto é, a realidade divina que ela revela, está literalmente
além da nossa compreensão, mas termina com a afirmação de Cristo
de que os discípulos devem entendê-la. No meio está a palavra
mistério: o reino permanece sempre um mistério. Mas mistérios não
são necessariamente impossíveis ou mesmo difíceis de entender.
Pode-se até dizer que são geralmente fáceis de entender. No Novo
Testamento, mistério não se refere a algo que chamamos de
misterioso em nossa língua. Por exemplo, 1 Coríntios 15.51 afirma
um mistério: para algumas pessoas pode ser difícil acreditar no
mistério, mas não há dificuldade em entendê-lo.
Assim também, é falso dizer que “o reino dos céus não pode
ser trazido à terra para nossa inspeção”. Cristo fez exatamente isso.
Além disso, o reino permanece conosco e o inspecionamos
diariamente.
Porém, uma vez mais, se “a comparação não é mais que uma
comparação” ou, melhor, se é tanto quanto uma comparação, a
verdade específica que é ilustrada pela comparação deve ser
compreensível, pois do contrário a linguagem da parábola não
revelaria a verdade para nós.
Em conclusão, primeiro, a teoria de Hamilton da linguagem
destrói a verdade cristã. Certamente a linguagem, como uma dádiva
de Deus a Adão, tem como seu propósito não apenas a
comunicação entre os homens, mas a comunicação entre o homem
e Deus. Deus falou palavras a Adão e Adão falou palavras a Deus.
Como essa é a intenção divina, as palavras ou a linguagem são algo
adequado. A bem da verdade, ocasionalmente — em ocasiões
frequentes, inclusive — o homem pecador não consegue achar as
palavras certas para expressar seu pensamento; mas isso é um
defeito do homem, não uma inadequação da linguagem. A Bíblia não
consente com uma teoria que veja a origem da linguagem na
mitologia pagã com o resultado de que a verdade divina é
ininteligível.
Da mesma forma, em segundo lugar, com base na teoria de
Hamilton Deus permanece incognoscível. A principal dificuldade dos
mitos não é que eles são literalmente falsos, mas que sua alegada
“verdade” não literal não tem sentido. Hamilton fugiu do mito para a
poesia e para a parábola na intenção de chegar a algum tipo de
revelação, mas nunca foi bem-sucedido em mostrar como as
parábolas transmitem uma verdade ou que verdades as parábolas
transmitem. A “mensagem” delas permanece ininteligível.
Em terceiro, Hamilton rejeita a doutrina da inspiração verbal e
plenária e se coloca fora dos limites do evangelicalismo histórico.
Em quarto e último lugar, é bastante apropriado que a
Sociedade Teológica Evangélica tome nota disso e reafirme por sua
prática constante que “Somente a Bíblia e a Bíblia em sua totalidade
é a Palavra de Deus escrita e, portanto, inerrante nos autógrafos”.
1
10. Que é a verdade?

O Reformed Journal de maio de 1980 (p. 27 ss.) traz a resenha


de James Daane sobre Deus, revelação e autoridade de Carl F. H.
Henry. A rejeição que o periódico faz das opiniões de Henry gira em
torno de certas teses supostamente defendidas por Gordon H. Clark
e adotadas ou adaptadas por Henry. Aparecendo uma ou duas vezes
na resenha mas subjazendo o todo, está o conflito entre a defesa
Henry-Clark da inerrância bíblica e as afirmações Daane-Fuller de
que aquilo que a Bíblia ensina é por vezes falso. A menos que se
entenda claramente esse conflito, a resenha de Daane será
facilmente mal interpretada.
O título da resenha é bem escolhido: Que é a verdade? Não há
outras quatro palavras que poderiam expressar melhor a questão em
pauta. Henry e Clark dizem de forma bastante definida o que
entendem por verdade, ou pelo menos definem a forma da verdade.
Daane claramente rejeita a visão deles. A conclusão desta réplica
será que Daane — embora pretenda defender uma forma
radicalmente diferente de verdade — em nenhum lugar descreve a
forma da verdade que defende nem tampouco descreve uma
epistemologia de suporte.

Epistemologia
O ataque de Daane a Henry começa de forma bastante
plausível: “Na teologia, como em qualquer ciência, o que deve ser
conhecido dita os termos pelos quais pode ser conhecido”. Embora
plausível, Kant negava isso. Mas suponhamos que seja apenas algo
ambíguo, ou pelo menos incompleto. Os físicos (pois Daane
menciona a ciência) frequentemente pensaram conhecer um dado
objeto, quando na verdade seu método de conhecer — cujas
limitações eles não reconheceram — acabou lhes dando um objeto
totalmente diferente. Por causa dessas complexidades, e até de
algumas mais simples, a aplicação que Daane faz de seu princípio
ao método de Henry não tem qualquer peso. Daane infere que
Henry, portanto, em vez de começar da epistemologia, deveria ter
escrito primeiro sua teologia e por último sua epistemologia. Ao
contrário, em qualquer assunto — física ou teologia —, o método não
apenas pode ser explicado primeiro, como isso é inclusive o melhor a
ser feito. Suponha que um físico diga que o espaço é curvo ou um
botânico diga que um ocotillo [espécie de planta do deserto] não é
um cacto. O aluno inquiridor perguntará: Como você sabe? O aluno
ou um colega questionador desejará saber se o método usado
poderia levar a essa conclusão. Os físicos costumavam dizer que a
luz consiste em ondas de éter. Hoje geralmente se concorda que os
métodos então utilizados eram defeituosos e que a luz é outra coisa
(eles não sabem bem o quê). Assim, ainda que a botânica ou a
teologia seja escrita primeiro, ela não pode ser aceita por um
estudioso até que a pergunta crucial seja respondida: Como você
sabe? Num tratamento sistemático, a metodologia deve vir primeiro.
Em vez de perguntar “Que é um cacto?” ou “Que é a luz?”, alguém
pergunta: “Que é Deus?”. Como se pode responder essa pergunta?
Consultamos o Corão ou os Vedas? Estudamos as estrelas?
Enviamos um questionário a mil professores universitários? Um
método deve ser escolhido (ou involuntariamente usado) antes que
qualquer resposta seja apresentada. O método de Henry é consultar
a Bíblia e dela deduzir que Deus é um espírito infinito, eterno,
imutável. Não podemos começar com Deus; devemos começar com
a Bíblia. Por que não dizer isso primeiro e então prosseguir para a
teologia que a Bíblia ensina?
A confusão de Daane neste ponto é considerável. A premissa
de sua inferência é “Se para entender Deus devemos estar sob e nos
submeter aos termos pelos quais ele pode ser conhecido”. O leitor
tropeça nessa premissa antes mesmo de chegar à conclusão. Como
alguém pode estar sob ou voluntariamente se submeter a termos
antes de saber quais são os termos? Daane ignora completamente o
problema de descobrir os termos. Para usar seu literalismo bruto,
uma decisão de estar sob certos termos em vez de outros levanta o
problema de como selecionar os termos. Como Daane tão bem
insiste, “Isso não é mera picuinha metodológica”; houvesse Daane
em vez de Henry “cumprido esse requisito, não poderia nos ter dado
o que é a meu juízo uma teologia e apologética [não] evangélica
[bastante confusa]”. Para afirmar o ponto com mais clareza: a
premissa confusa de Daane não pode nos convencer da verdade da
conclusão de Daane.

Ideias e proposições
No entanto, a discordância básica e determinante entre Daane
e a visão Henry-Clark é a natureza ou forma da verdade. Citando (p.
27, coluna 3, parte inferior): “Para Henry assim como para Gordon
Clark, a natureza da verdade é a de uma ideia”.
Aqui cabe um esclarecimento parentético. O termo ideia é
muito vago e, no sentido platônico, incorreto. Em De Tales a Dewey,
Clark argumenta contra a visão de Hegel, e por implicação contra a
de Platão, de que a realidade consiste de conceitos ou ideias. Daane
está de fato certo em que isso não é mera picuinha metodológica.
Não é nenhuma picuinha: é, todavia, algo metodológico e distingue
Platão e Hegel de Agostinho e quaisquer outros que dependem de
proposições ou verdades. Suficiente como parêntese, voltemos
agora ao parágrafo anterior.
Para Henry assim como para Gordon Clark, a natureza da verdade
é a de uma ideia. Verdade bíblica é aquilo que Deus pensa… Esse
conteúdo ideativo da mente divina… se encarnou em Jesus de
Nazaré. Para Henry isso significa que Jesus desvelou ou revelou a
verdade, e não que ele próprio é a verdade.

Tudo indica que essa não é uma declaração verdadeira da posição


de Henry, e é certamente falsa no caso de Clark. Os últimos
parágrafos do presente artigo explicarão em maiores detalhes por
que ela é falsa. E se, além disso, a declaração de Daane pretendia
ser a conclusão de uma inferência, a inferência é inválida.
A próxima frase de Daane também é falsa, a menos que seja
ininteligivelmente ambígua. A frase é: “O fato de esse Logos se
tornar carne não significa que esse tornar-se seja ele próprio um
ingrediente essencial da verdade”. Visto que Henry e Clark aceitam a
Bíblia como verdade infalível e visto que a Bíblia diz que “O Verbo se
tornou carne”, ambos aceitamos a declaração como um “ingrediente”
essencial da verdade — isto é, como uma verdade particular e
essencial no sistema completo da verdade.
O ponto subjacente da contenda é a natureza da verdade.
Embora Daane faça a citação de maneira correta, ele não parece
entender as implicações das palavras de Henry e Clark. Na página
28, no topo da coluna um, Daane escreve: “Henry concorda com
Gordon Clark em que somente as proposições são objetos de
conhecimento. ‘Somente as proposições têm a qualidade da
verdade’, diz ele, explicando ainda que ‘a única visão significativa da
revelação é a revelação racional-verbal’ (430). Ele cita com
aprovação o que Clark diz: ‘A palavra verdade, quando aplicada a
qualquer coisa que não seja uma proposição, só pode ser usada
metafórica ou incorretamente’”.
Em De Tales a Dewey (455), Clark, após algumas páginas de
detalhes técnicos, chega ao subtítulo “Proposições e conceitos”. Mas
a razão mais simples por que a verdade deve ser proposicional é que
um substantivo por si só não pode ser nem verdadeiro, nem falso.
Suponha que alguém dissesse, sem nenhum contexto implícito,
“Dois”, ou “Gato”, ou “Estrela”. Ninguém conseguiria entender; não
se teria falado nenhuma verdade, nenhuma falsidade. Somente
quando um predicado é ligado a um sujeito através de um verbo é
que a expressão pode ser verdadeira, ou falsa. “Dois é um número
par” é verdadeiro; “Dois é um número ímpar” é falso; mas “Dois”,
simplesmente, é ininteligível. Portanto, Clark insiste que quando um
botânico diz que “Um cacto não tem folhas verdadeiras”, ele usa a
palavra verdadeiras num sentido metafórico, contrastando os
espinhos de um cacto com as folhas comuns de um ocotillo ou uma
roseira. O que a metáfora significa, um bom botânico pode explicar
em proposições deliberadamente literais.
Que alguém pudesse se sentir ofendido com um uso metafórico
da palavra verdade é um tanto estranho, já que tanto a Bíblia como a
nossa linguagem cotidiana contêm frequentes metáforas. Ademais,
quando a sentença seguinte de Daane diz “O que dizer então da
reivindicação de Jesus, ‘Eu sou a Verdade’”, ele parece querer dizer
que não seria possível isso ser metafórico. Mas a sentença de Jesus
não contém também a frase “Eu sou o Caminho”? Certamente
Caminho é metafórico, pois Jesus não era uma estrada poeirenta
cheia de pedras. Se, então, Caminho deve ser metafórico, por que
Verdade também não poderia sê-lo? Contudo, a título de
antecipação, Verdade neste caso poderia ser literal num sentido
ignorado por Daane.
Para seguir adiante e desenvolver esse sentido e para
comparar as sentenças de Daane com a Escritura, note primeiro que
ele diz: “A verdade das proposições [bíblicas] não é que a proposição
é, digamos, a ressurreição e a vida… Não reconhecer isso é por um
lado negar que Jesus é a Verdade e, por outro, reduzir a verdade à
linguagem, a proposições verbais, ao pensamento que pode ser
escrito”. Aqui, Daane tanto contradiz a Escritura como cai em
confusão sistemática. A Escritura diz: “As palavras que eu lhes disse
são espírito e vida” (João 6.63). Este versículo é ainda mais
conclusivo, porque a palavra de João ou Jesus para palavras é
rhemata, não logous. A última poderia ter sido interpretada em algum
sentido metafísico, tal como encontrado em Filo ou Heráclito,
enquanto rhemata traz a conotação mais literal de palavras,
exemplificadas por dois, gato ou estrela — isto é, como sons no ar
ou manchas de tinta no papel. Não que Jesus realmente quisesse se
referir a marcas de tinta no papel, mas que a insistência de Daane no
literalismo é mais embaraçosa com rhemata do que teria sido com
logous. Por óbvio, Henry e Clark não “reduzem” a verdade à
linguagem, especialmente a sons no ar e marcas de tinta no papel.
(Veja a citação de Abraham Kuyper por Clark em “Linguagem e
Teologia”.) Antes que verdades ou pensamentos possam ser
“escritos”, isto é, simbolizados no papel, pensamentos devem ser
pensados. Diferentes palavras literais podem expressar o mesmo
pensamento. Por exemplo, “Das Mädchen ist schön”, “La jeune fille
est belle” e “A garota é bonita” são três sentenças diferentes com
todas as palavras diferentes, mas são a mesma, única e idêntica
proposição. O argumento de Daane parece estar baseado numa
desatenção à distinção existente entre os pensamentos e seus
substitutos simbólicos.

A Bíblia
Com esse mal-entendido da posição Henry-Clark, Daane pode dizer:
A visão de Henry… reduz a forma suprema, final e pessoal da
Palavra de Deus, isto é, Jesus Cristo, ao mesmo nível da Bíblia.
Essa Bíblia acaba não sendo um testemunho do fato de Jesus
Cristo ser a forma última e final da Palavra de Deus para o
homem, mas acaba sendo ela mesma a forma última e a
verdadeira natureza da Palavra de Deus. Tal visão da Bíblia é a
fonte da insistência de que a Bíblia deve ser absolutamente
inerrante. Se a Bíblia como proposicional é uma forma de verdade
superior a Jesus, a impecabilidade de Jesus é menos importante
do que a inerrância da Bíblia. (28)
Esse importante parágrafo suscita quatro observações. Primeiro, o
argumento de Daane depende e parece ser iniciado por uma
negação da inerrância bíblica. Segundo, ele contém uma ou duas
confusões lamentáveis. Terceiro, uma das inferências do texto é uma
falácia lógica. Quarto, em nenhum lugar Daane explica a por assim
dizer forma pessoal da verdade, que ele opõe à visão Henry-Clark.
Primeiro, a exemplo dos afirmacionistas de Auburn de 1924, os
professores do Seminário Fuller, Jack Rogers e David Hubbard —
com a cooperação de Paul Rees da Visão Mundial e Berkeley
Mickelsen do Seminário Betel no livro deles Biblical Authority, e
Dewey Beegle do Seminário Wesley em Scripture, Tradition and
Infallibility, além de Jack Rogers mais uma vez numa crítica a Carl
Henry — e agora James Daane, outrora do Seminário Fuller, tem
vigorosamente atacado a veracidade da Bíblia. Esse esforço
cooperativo atual — porque os vários contribuidores de Biblical
Authority estavam certamente cooperando, ainda que Beegle e
Daane agissem independentemente — é digno de nota, porque nada
igual a isso ocorreu desde a Afirmação de Auburn. Naqueles dias, J.
Gresham Machen teve poucos a apoiá-lo em sua defesa da
Escritura, do nascimento virginal, dos milagres, da expiação e da
ressurreição. Hoje, em defesa da veracidade da Bíblia, estão cerca
de mil membros da Sociedade Teológica Evangélica, uma recém-
formada comissão em que James Boice da Filadélfia é um membro
proeminente, e alguns autores individuais, como Carl Henry e Harold
Lindsell. Ao avaliar o artigo de Daane sobre Que é a verdade?, é
preciso ter em consideração este cenário mais amplo.
Em segundo lugar, há uma falta de clareza quando Daane fala
de diferentes formas e níveis de verdade. Pelo menos cinco vezes na
página 28 ele usa o termo “forma”. Essas cinco ocorrências poderiam
ser ligeiramente diferentes nas suas conotações, mas em duas delas
a frase é “uma forma superior de verdade” e numa, “uma forma
inferior de verdade”. Visto que a verdade proposicional tem a forma
sujeito-verbo-predicado, a qual Daane considera como sendo a
forma inferior, sua forma superior deve ser desprovida de sujeitos,
verbos e predicados. A dificuldade com uma verdade que não tem
sujeito se torna uma consideração importante no ponto 5 abaixo. Se
Daane tivesse se referido a uma verdade superior e a uma inferior
em vez de a uma forma superior e a uma inferior, e se por essas
frases ele tivesse querido dizer que uma verdade pode estar
logicamente subordinada a outra e que o décimo teorema de
Euclides está subordinado ao quinto e aos seus axiomas, não teria
havido confusão. Não importaria quão subordinado um teorema
estivesse a outro; eles não apenas teriam a mesma forma, como
seriam também igualmente verdadeiros. Assim, quando Daane
acusa Henry de implicar que “a Bíblia como proposicional é uma
forma de verdade superior a Jesus”, o leitor tropeça em confusão,
porque Daane jamais explica o que essa forma é.
Em terceiro lugar, essa confusão — algo não inesperado —
leva Daane a uma inferência falaciosa. Se a Bíblia é uma forma
superior de verdade, diz ele, com efeito, então a impecabilidade de
Jesus é menos importante do que a inerrância. Como Daane,
partindo da sua premissa, chega a essa conclusão, não está claro.
Nem tampouco o significado da palavra “importante”. Se uma
declaração é mais importante do que outra, isso dependerá da sua
aplicação específica. Um princípio da engenharia é mais importante
para um problema de engenharia do que um princípio de química
orgânica, mas este pode ser mais importante para uma pesquisa
sobre câncer. Em qualquer caso, o único método pelo qual
poderíamos aprender que Jesus era sem pecado é o método da
revelação bíblica. Nem Josefo, nem Tácito, nem alguma “verdade
pessoal” nos diz que Jesus era sem pecado. E se a Bíblia contém
erros aqui e ali, como aqueles que negam a inerrância defendem,
não podemos confiar nas afirmações bíblicas da impecabilidade de
Jesus, pois elas poderiam ser alguns dos seus erros. Se aqueles que
rejeitam a inerrância alegam que esses versículos não têm erros, nós
perguntamos: Como você sabe? Por qual critério epistemológico
você distingue as verdades dos erros da Bíblia? Pois, se a Bíblia faz
afirmações falsas, deve haver um critério independente e superior à
Bíblia pelo qual suas afirmações devem ser julgadas. Nós
desafiamos nossos oponentes a expor seu critério epistemológico. A
menos que primeiro saibamos o método deles, não podemos aceitar
sua teologia.
Os quatro pontos indicados acima estão todos intimamente
relacionados. Os pontos dois e três, confusões e falácias, são juntos
exemplificados no topo da coluna 2, página 28: “Esse reducionismo é
consequência de um método teológico que primeiro decide a
natureza do nosso conhecimento de Deus e então decide que Deus
deve ser de tal natureza para que seja cognoscível por nós”. A ideia
aqui, uma confusão e uma inferência inválida condensadas no termo
“reducionismo”, parece ser que o método Clark-Henry requer que
primeiro se determine, à parte de qualquer revelação, a natureza do
conhecimento e então, novamente à parte da revelação, se conclua
que a natureza de Deus deve se conformar a isso. De modo algum; a
realidade é totalmente diferente disso. Uma das críticas frequentes a
Clark, mesmo por aqueles que aceitam a inerrância, é que ele
restringe o escopo do conhecimento ao limitá-lo ao que “ou é
expressamente declarado na Escritura ou por boa e necessária
consequência pode ser deduzido dela” (Confissão de Westminster,
1.6). Será que Daane não percebeu essa tese bastante
proeminente? De qualquer forma, quando um homem começa a ler a
Bíblia, descobre que ela contém muitas proposições — proposições
sobre as estrelas, sobre Abraão, sobre a Lei Levítica, sobre a
conquista de Canaã. Ele não pode ir longe, entretanto, sem aprender
algo sobre Deus e o homem. Ele aprende que Deus é um espírito
racional, um Deus da verdade, em quem estão todos os tesouros da
sabedoria e do conhecimento. Ele aprende que o homem — em
contraste com os animais — é uma criatura racional, que o homem
pecou e que Deus proveu um método de expiação.
Mas voltando ao assunto inicial: o que alguém aprende primeiro
da Bíblia, e o que aprende em segundo e em terceiro lugar, varia de
homem para homem. Uma pessoa começa com Gênesis; outra
começa com Mateus. Assim também, um homem pode aprender
várias proposições sobre Deus sem refletir sobre o método pelo qual
as aprendeu. Músicos e pintores costumam produzir boas obras de
arte antes de entender a teoria. Portanto, na psicologia temporal um
conhecimento de Deus precede um conhecimento de método. Mas
para explicar esse processo um apologista teria de começar com a
metodologia. Pois embora o leitor irrefletido pudesse não estar ciente
da metodologia — pudesse não entender como ele faz o que faz —,
estaria não obstante usando o método. E para Clark e Henry, o
método é escriturístico.
Suponha que uma pessoa reflexiva e inteligente comece com
Mateus. Ela se depara com as palavras genealogia, Abraão, gerou,
catorze e assim por diante. Ela perceberá então que cada sentença,
na verdade cada palavra, na Bíblia depende da lei lógica da
contradição para a sua inteligibilidade. Sem essa lei, cada palavra
teria um número infinito de significados: Davi não só significaria
Moisés e Judas, mas também estilingue, pedra, átomo e máquina de
escrever. E Deus significaria diabo. À parte da lógica, um substantivo
significaria o que ele não significa; e se uma palavra significa tudo,
ela não significa nada. Para significar alguma coisa, uma palavra
também não deve significar alguma coisa. Não existe nenhum
significado sem a lei da contradição. Assim, para adquirir o
conhecimento de que Deus é cognoscível, a criatura racional de
Deus — até onde ela possa escapar dos equívocos e falácias dos
efeitos noéticos do pecado — deve usar as leis da lógica. Dr. Daane
deveria tentar responder à questão: “Como podemos saber que Deus
é cognoscível, ou que é onisciente, sem usar as leis racionais da
lógica?”. Sem usar (primeiro) as leis da lógica, como podemos saber
qualquer coisa sobre Deus? E primeiro não é a palavra mais correta,
pois saber algo sobre Deus e usar a lógica são o mesmo e idêntico
ato.
Chegamos agora ao ponto quatro, onde a ininteligibilidade da
crítica de Daane se mostra mais evidente. Daane usa uma espécie
de teoria de dupla verdade. Não é exatamente a teoria medieval de
mesmo nome, mas derivada de Kierkegaard, Buber, Brunner, dos
neo-ortodoxos e dos existencialistas. Daane, porém, não nos dá
muita teoria: ele se satisfaz em afirmar que existe uma grande
diferença entre a verdade proposicional e a verdade pessoal. Dois
pontos deveriam ser feitos: Primeiro, a verdade pessoal é
ininteligível; e, segundo, Daane parece não ter nenhuma ideia clara
do que uma pessoa é.
Em primeiro lugar, pode-se facilmente afirmar e explicar a forma
da verdade proposicional. Como dito acima, ela consiste de um
sujeito conectado por um verbo a um predicado. Por um método
claramente definido nós podemos arranjar proposições na forma de
silogismos válidos e facilmente distingui-los de silogismos inválidos.
Mas qual é a forma da verdade pessoal? Existem universais e
particulares? Existem inferências válidas e inválidas?
Presumivelmente não, porque ninguém jamais conseguiu alguma vez
derivar vinte e quatro silogismos pessoais válidos nem 232 inválidos.
A verdade pessoal não pode ter sujeitos, predicados nem verbos. O
que ela é então? Como se pode distinguir uma verdade pessoal de
uma falsidade pessoal? Quando juntamente com Brunner uma
pessoa diz que Deus e o meio de conceptualidade são mutuamente
exclusivos, ela torna Deus completamente incognoscível. Se
falarmos sobre Deus, não estaremos falando sobre Deus. Não é isso
o que a Bíblia inerrante ensina.
Então, em segundo lugar, subjacente ao exposto acima está um
conceito deficiente ou completamente ausente de pessoa. Para
Platão, a pessoa humana era uma alma que conhecia as Ideias. O
Mundo das Ideias era em si uma mente viva, como ele explicou em
O Sofista. Para Aristóteles, a alma era a forma do corpo orgânico, e
sua individualidade dependia da sua matéria incognoscível. Locke
fez da alma uma ideia abstrata, uma substância espiritual, também
incognoscível; ele a chamou de “algo que não sei o quê”. Hume
“reduziu” a pessoa a uma coleção de sensações e imagens de
memória — uma coleção que, de acordo com Kant, nunca fora
coletada. Kant substituiu isso por sua unidade transcendental de
apercepção — também incognoscível. Quais desses Daane prefere?
Ou tem ele uma teoria diferente? Temo que isso também seja
incognoscível.
Em 1 Coríntios 2.16 Paulo diz que “nós, porém, temos a mente
de Cristo”. A palavra mente é nous. Como é possível termos nous de
Cristo, a menos que sua mente seja a verdade? Nós temos a mente
de Cristo na medida em que pensamos os seus pensamentos. Claro,
nós não somos oniscientes; não pensamos todos os pensamentos
dele; e, pior, nós pensamos algumas proposições falsas também.
Nós somos o que pensamos, assim como Cristo é o que ele pensa.
Sua doutrina ou ensino nos salva da morte eterna (João 8.51). Ele é
a verdade! Não é isso o que a Escritura ensina? Cristo é o Logos,
suas rhemata são a verdade; ele é a Sabedoria de Deus; e 1 Samuel
2.3 diz: “o Senhor é o Deus de conhecimento”. A teoria de Daane
parece implicar que essas proposições são alguns dos erros
presentes em nossa Bíblia não confiável. Henry e eu acreditamos
que a Bíblia é confiável.[119]
1
11. A fé reformada e a Confissão de Westminster

Pelo convite do The Southern Presbyterian Journal, tenho o


privilégio de discursar a este destacado e consagrado público sobre
o assunto “A fé reformada e a Confissão de Westminster”. Este título
não deve ser interpretado como se introduzisse uma exposição dos
33 capítulos da Confissão e seus vários artigos. E tampouco anuncia
um relato histórico da Assembleia de Westminster e o papel posterior
do seu grande credo. Ao contrário, proponho-me a falar da
importância da Confissão de Westminster como um documento
existente, um documento ao qual ministros e igrejas subscrevem
como aquilo que define suas políticas e que afirma sua razão de
existir, um documento que distingue o cristianismo bíblico de todas
as demais formas de pensamento e crença. Além disso, espero
mostrar de forma mui breve a importância desse documento à luz
das circunstâncias contemporâneas. Para esse fim, parece ser
melhor dividi-lo em duas partes, o capítulo 1 e todo o resto.
O capítulo 1 da Confissão de Westminster afirma que as
Escrituras do Antigo e Novo Testamentos são a Palavra de Deus
escrita. Seus 66 livros são todos dados pela inspiração de Deus. A
autoridade pela qual a Sagrada Escritura deve ser crida e obedecida
depende inteiramente de Deus, o autor da mesma. Nesses livros
todo o conselho de Deus para a salvação do homem ou é
expressamente declarado, ou por boa e necessária consequência
pode ser deduzido a partir das suas declarações. Portanto, conclui o
capítulo 1, o Juiz Supremo, pelo qual todos os decretos de conselhos
e doutrinas dos homens devem ser examinados, e em cuja sentença
devemos nos firmar, não pode ser outro senão o Espírito Santo
falando na Escritura.
Certo dia, parei diante de um pequeno lago nas Montanhas
Rochosas do Wyoming. A água fluía para fora do lago por ambas as
extremidades. A água que fluía por uma extremidade descia até os
cânions sufocantes e desertos escaldantes de Utah e Arizona; a
água que fluía pela outra extremidade do lago passava pelos campos
férteis do Meio Oeste. Eu estava perante a grande divisória
continental.
Metaforicamente, o primeiro capítulo da Confissão de
Westminster é uma divisória continental. Embora a Palavra escrita de
Deus tenha sido a pedra de toque da doutrina pura em todas as eras,
o século XX mostra ainda mais claramente que esse capítulo forma a
grande divisória entre dois tipos de religião, ou, para tornar isso de
aplicação mais ampla, entre dois tipos de filosofia. Talvez seria mais
simples dizer que a aceitação da Bíblia como a revelação escrita de
Deus separa o verdadeiro cristianismo de todos os demais tipos de
pensamento. Para sermos mais específicos e enfrentarmos nossas
responsabilidades imediatas, selecionemos então duas escolas de
filosofia contemporâneas, cada qual à sua maneira em forte
contraste com o primeiro capítulo da nossa Confissão.

Ateísmo
A primeira delas — e o movimento mais obviamente anticristão — é
variadamente chamada de naturalismo, secularismo ou humanismo.
Esses nomes são apenas títulos mais corteses para o que
antigamente sem rodeios se chamava de ateísmo. O propósito deste
encontro pode parecer não exigir uma discussão sobre ateísmo; com
sua negação de Deus e, portanto, da revelação, o naturalismo pode
parecer um desenvolvimento filosófico que a igreja poderia se dar ao
luxo de ignorar. Mas uma igreja que ignora o humanismo secular
está simplesmente fechando seus olhos para a situação ao redor e
deixando de defender o primeiro capítulo da Confissão contra todos
os oponentes. Infelizmente a brevidade é necessária, e, portanto,
sem fazer qualquer referência ao comunismo, a forma mais flagrante
de ateísmo, será feita apenas uma menção de certos eventos
políticos e educacionais do cenário norte-americano.
Na recente vida pública e civil tem se desenvolvido uma
oposição à prática do cristianismo. De acordo com relatórios da
Associação Nacional dos Evangélicos, uma agência de adoção
carimbou como “psicologicamente inadequado” as fichas de inscrição
de um ministro e sua esposa dispostos à adoção. Um capelão da
Marinha fala das tentativas, tentativas bem-sucedidas, de descartar
jovens cristãos ativos como psicóticos. Em outra esfera pública, a
cidade de Indianapolis recusa o uso de seus parques por grupos
cristãos se estes forem longe a ponto de pedir uma bênção na hora
da refeição ou cantar um hino. Outros grupos podem manter seus
programas, mas os grupos cristãos são discriminados. Então, mais
uma vez, o tempo separado para instrução religiosa é objeto de
ataque. A estratégia do humanista é ocupar o tempo e a atenção das
crianças a ponto de elas não terem oportunidade de ouvir o
Evangelho. As escolas públicas com sua presença obrigatória devem
ser usadas para a inculcação do secularismo. E aqueles que se
opõem ao secularismo e que querem dar aos filhos uma educação
cristã são rotulados de antissociais, antidemocráticos e promotores
da discórdia. Esses eventos são indícios que mostram como os
humanistas estão usando agências do Governo para restringir a
liberdade religiosa.
Por trás desses eventos particulares se mantém a filosofia
naturalista, que é ensinada — quero dizer, inculcada — num sem
número de faculdades e universidades norte-americanas. Que não
se pense que os professores são uniformemente objetivos e que
indiferentemente ensinam todas as visões por igual. O secularismo é
ativamente forçado sobre os alunos. Por exemplo, considere a
declaração de Millard S. Everett, um professor na Roosevelt College,
em Chicago, citado em Philosophy in the Classroom [Filosofia na
sala de aula], pág. 27, por J. H. Melzer:
Nosso curso é elaborado e conduzido em linhas liberais. Além disso,
não confundimos liberalismo com indiferentismo ou neutralidade em
questões básicas, mas definitivamente organizamos o curso para o
propósito de aumentar a aceitação pelo aluno da atitude científica, da
moralidade liberal e secular e do objetivo democrático da liberdade e
igualdade. Nós… não deixamos qualquer dúvida na mente do aluno
de que, no fim das contas, estamos com as forças da democracia, da
ciência e da cultura moderna.
Com essa adoção preto no branco do secularismo, podemos mais
facilmente dar credibilidade ao rumor de que há duas universidades
que intencionalmente não irão graduar um estudante que é
fundamentalista.
Por nosso ponto de vista cristão ignorante, esses humanistas
não parecem ter muito entendimento das leis da lógica. Eles
assumem o princípio da separação entre Igreja e Estado e
consideram repreensível que se usem as instalações das escolas
públicas para a educação religiosa.[120] A União Americana pelas
Liberdades Civis irá para o tribunal contra esse tipo de educação,
mas nunca ouvi falar de sua oposição ao uso de dinheiro dos
impostos para a educação anticristã. Eles nunca processaram uma
universidade por ensinar o secularismo. Eles defenderão os
comunistas; defenderão as editoras de revistas em quadrinhos
obscenas; mas quando eles alguma vez defenderam a liberdade
religiosa ou protestaram contra a inculcação de humanismo em
instituições sustentadas com os impostos? Consistência não parece
ser uma das suas virtudes.
A oposição cristã ao humanismo tem sido ordinariamente
ineficaz politicamente e muitas vezes inútil filosoficamente. Ao atacar
uma cosmovisão materialista ou mecanicista, cristãos têm às vezes
pontificado que ninguém pode acreditar que o universo é resultado
do acaso. Infelizmente isso não é verdade. Há muitas pessoas que
acreditam nisso; e até que os pensadores cristãos enfrentem as
realidades dessa situação, um progresso não pode ser
razoavelmente esperado.
Nem todo ministro e nem toda igreja tem uma ocasião
proveitosa para combater as fontes do humanismo. Apenas em
casos excepcionais pode um ministro ficar face a face com
professores ou autores naturalistas. Apenas raramente pode um
ministro responder a esses homens em publicações. Há algumas
igrejas, situadas em cidades universitárias, que têm oportunidade de
trabalhar com estudantes. É de se esperar que elas tenham também
o equipamento para serem eficazes. Cada um de nós deveria
examinar sua própria situação para ver quais são as suas
possibilidades. Infelizmente, por vezes a miopia ou o egoísmo
produzem uma tragédia. Havia uma igreja em uma cidade
universitária cujo ministro queria trabalhar com os estudantes. Havia
também um grupo de estudantes dispostos a ajudá-lo. A situação era
ideal — exceto por um detalhe: a congregação não podia ver a
universidade como um campo missionário; assim, se queixou de que
seu ministro estava negligenciando a congregação e forçou a sua
demissão.
Tanto mais honra para aquelas congregações e pastores que
assumem seriamente sua parte na responsabilidade. E toda honra
para as poucas faculdades que são cristãs, não só de nome, mas na
educação real. E toda honra para aqueles que estão fundando
escolas primárias cristãs onde Deus não é ignorado ou tratado como
desimportante ou inexistente. A oportunidade e responsabilidade de
estabelecer escolas primárias cristãs é uma que eu gostaria de
insistir com vocês, mas o tempo e o assunto em pauta me impedem
de fazê-lo agora.

Neo-ortodoxia
No início deste artigo, afirmei que o primeiro capítulo da Confissão,
sobre a revelação divina, é a grande divisória entre dois tipos de
pensamento. Num lado dessa divisória está o naturalismo,
secularismo ou humanismo. Mas ele não está sozinho. Também do
mesmo lado da grande divisória está outro sistema de pensamento.
Este afirma, e o faz até vigorosamente, a existência de Deus — ao
menos algum tipo de deus — e chega ao ponto de falar de
revelação; mas o que ele diz sobre Deus e a revelação é tão
contrário ao primeiro capítulo da Confissão que o cristianismo, longe
de acolher o seu apoio, deve considerá-lo um inimigo dos mais sutis
e enganadores. Refiro-me ao que frequentemente é chamado de
neo-ortodoxia.
O criador da neo-ortodoxia foi o pensador dinamarquês Søren
Kierkegaard. Com sua mente penetrante, ele viu que o absoluto
hegeliano não era o Deus de Abraão, Isaque e Jacó. Com sua
natureza apaixonada, ele se revoltou contra o formalismo
eclesiástico impassível da sua época. A igreja estatal luterana estava
morta. Alguns poderiam descrever a situação como uma ortodoxia
morta. Mas Ludwig Feuerbach, contemporâneo de Kierkegaard,
diagnosticou a situação não como sendo de ortodoxia morta, mas de
viva hipocrisia. As pessoas iam para a igreja no domingo e
prestavam serviço da boca para fora a algo em que não acreditavam.
Elas não eram ortodoxas, mas pagãs de coração. Contudo, a forma
vazia permanecia. Contra essa doença mortal, Kierkegaard enfatizou
a apropriação apaixonada e a decisão pessoal. Com sarcasmo
cortante, ele fustigou a hipocrisia, contrastou os cristãos
desprezados do primeiro século à respeitabilidade farsesca da
Europa do século XIX, pediu mais emoção e menos intelecto, mais
sofrimento e menos complacência, mais subjetividade e menos
objetividade.
Sem dúvida Kierkegaard estava substancialmente certo em ver
a igreja como muito formal, muito hegeliana, muito pagã. E nenhuma
pessoa devota poderia questionar a necessidade da decisão pessoal
e apropriação. Mas — e este é o ponto importante — se uma pessoa
deveria se apropriar, deveria haver algo de que se apropriar.
Kierkegaard e seus seguidores contemporâneos, em toda a sua
conversa sobre Deus e a revelação, nos ofereceram pouco ou nada
para apropriar. O próprio Kierkegaard disse: “Cristo não propôs
qualquer doutrina; ele agiu. Não ensinou que há redenção para os
homens; ele os redimiu”. Ora, é verdade que Cristo redimiu seus
eleitos; é verdade que ele agiu; é ainda verdade que sua missão
principal não era ensinar; mas não é verdade que Cristo não propôs
quaisquer doutrinas. Kierkegaard escreveu um livro chamado Ou-Ou,
e com bastante frequência praticou tal princípio. Um princípio melhor
seria Tanto-Como. Cristo tanto agiu como ensinou. Além disso
especialmente comissionou seus discípulos a ensinar, a ensinar um
grande número de doutrinas encontradas em Romanos, Coríntios e
no resto do Novo Testamento.
Como Kierkegaard não nos oferece nada para apropriar e põe
toda a sua ênfase no sentimento subjetivo de apropriação, não faz
nenhuma diferença se adoramos a Deus ou os ídolos. No seu estilo
literário envolvente, Kierkegaard descreve dois homens: um está na
igreja luterana e mantém uma concepção verdadeira de Deus; mas
como ora com um espírito falso, está na verdade orando a um ídolo.
O outro está num templo pagão orando a ídolos, mas como ora com
uma paixão infinita, está na verdade orando a Deus. Mais uma vez,
Kierkegaard age sob o princípio do Ou-Ou em vez de Tanto-Como.
Tanto o luterano que ora num espírito falso como o pagão que ora a
ídolos desagradam a Deus. Só porque um pagão tem uma
experiência passional intensa, não significa que ele está adorando o
Deus verdadeiro. Mas para Kierkegaard a verdade é encontrada no
“Como” interno, não no “O que” externo. O que um homem adora
não faz nenhuma diferença. Sua paixão é o que conta. “Uma
incerteza objetiva”, diz Kierkegaard,
mantida firmemente em um processo de apropriação da mais
apaixonada interioridade é a verdade, a verdade mais elevada
atingível para um indivíduo existente… Se apenas o Como dessa
relação estiver na verdade, o indivíduo estará na verdade, muito
embora esteja assim relacionado à inverdade.
Quão peculiar esse tipo de filosofia possa ser, o protestantismo
contemporâneo está amplamente dominado por ela. Os ministros
neo-ortodoxos podem falar de deus e de revelação, mas não têm em
mente o Deus objetivo e a revelação objetiva da Confissão de
Westminster. Eles não creem que a Bíblia diz a verdade. Por
exemplo, Emil Brunner, que através dos seus livros e sua posição
prévia no Seminário Teológico de Princeton se tornou popular nos
Estados Unidos, está tão distante da Confissão que não mantém
nem as palavras da Escritura, nem os pensamentos da Escritura
como a verdade. Citando: “Todas as palavras têm uma importância
meramente instrumental. Não só as expressões linguísticas, mas até
o conteúdo conceitual não é a coisa em si, mas apenas sua
estrutura, seu receptáculo, seu meio”. Algumas páginas depois ele
continua: “Deus pode… falar sua palavra a um homem até mesmo
por uma doutrina falsa”. Deus, então, se revela na falsidade e na
inverdade. Que revelação!
Esse tipo de teologia deve ser explicado em parte como uma
reação ao imanentismo de Hegel, para quem Deus ou o Absoluto
não é nada mais que a unidade do universo total. Para Hegel, sem o
mundo não poderia haver Deus. Kierkegaard, Brunner e seus
discípulos queriam um deus transcendente. Ou imanência, ou
transcendência; não tanto-como. Ao insistir na transcendência de
deus, eles são capazes de se disfarçar com a pseudo-piedade da
sua paixão infinita e de enganar muitos cristãos que sabem pouco de
teologia alemã. Eles podem citar a Escritura: É claro que ela pode
ser falsa, mas ainda é uma revelação. Por exemplo, ao exaltarem
deus acima de todas as limitações humanas, eles nos lembram de
que os pensamentos de Deus não são os nossos pensamentos.
Portanto, dizem eles, a mente divina está tão acima da nossa mente
finita que não há um único ponto de coincidência entre o seu
conhecimento e o nosso. Quando um calvinista tenta arrazoar com
eles logicamente, eles depreciativamente contrastam a lógica
humana com o paradoxo divino. Deus é totalmente Outro. Ele nunca
é um objeto do nosso pensamento. Num encontro eclesiástico, ouvi
um ministro dizer que a mente humana não possui absolutamente
nenhuma verdade. E no ano passado na Europa, visitei certo
professor que afirmou que nós não podemos ter nenhuma verdade
absoluta. Quando ele disse isso, tomei um pedaço de papel e
escrevi: “Nós não podemos ter nenhuma verdade absoluta”. Eu lhe
mostrei o escrito, a frase — Nós não podemos ter nenhuma verdade
absoluta — e então lhe perguntei: “Essa frase é uma verdade
absoluta? Você não percebe que se a mente humana não pode ter
nenhuma verdade, ela não pode ter a verdade de que não tem
nenhuma verdade? Se não sabemos nada, não podemos saber que
não sabemos nada. E se não há nenhum ponto de coincidência entre
o conhecimento de Deus e o nosso, segue rigorosamente que, visto
que Deus sabe tudo, nós não sabemos absolutamente nada”.
Com tal ceticismo, não é de surpreender que a religião deles
consista de uma interioridade apaixonada que não se apropria de
nada objetivo. Infelizmente o ceticismo, particularmente quando
discutido num tom tão acadêmico quanto neste discurso, não
provoca, como deveria, uma reação tão apaixonada entre os de
mentalidade evangélica. Mas devemos perceber que mesmo o
ceticismo mais suave e inócuo é suficiente para derrotar o
Evangelho. Para acelerar a dissolução do cristianismo não é
necessário dizer que sabemos que uma filosofia contrária é
verdadeira; é igualmente eficaz dizer que não sabemos se algo é
verdadeiro. O Evangelho é uma mensagem de conteúdo positivo, e
se ele é dogmaticamente negado, ou meramente silenciado, isso faz
pouca diferença.
O que é mais lamentável é que o ceticismo da neo-ortodoxia é
especialmente insidioso. Homens que adotam a posição de
Kierkegaard e de Brunner não fazem apenas uso de termos como
Deus e revelação, mas também falam de pecado e justificação.
Alguns poderiam até pregar um sermão razoavelmente tolerável
sobre justiça imputada. Isso engana os crentes simplórios. Quando
as pessoas ouvem as palavras familiares, naturalmente assumem
que se referem a ideias familiares. Elas não veem que o neo-
ortodoxo não considera nem as palavras, nem tampouco o conteúdo
intelectual como verdadeiro. Embora o sermão possa ser sobre Adão
e a Queda, o ministro neo-ortodoxo entende as palavras num sentido
mitológico. Adão é o mito pelo qual somos estimulados a uma paixão
infinita.
Embora seja algo esperado, ainda assim é desencorajador ver
pessoas sensatas serem enganadas por esse tipo de conversa. No
encontro do Conselho Mundial em Evanston, teólogos europeus
defenderam a ideia de um retorno apocalíptico de Cristo. Em
contraste com os teólogos norte-americanos que colocam sua
esperança num futuro governo socialista, a fala de um apocalipse
soou revigorante; e os mal informados, aqueles que não tinham
estudado a história do pensamento alemão do último século,
congratulavam-se pelos indícios de um retorno ao pensamento
bíblico. Os evangélicos são completamente enganados por essa vã
imaginação. Eles precisam ser alertados para as astutas ciladas do
Diabo.
Mas se é lamentável ser enganado, o que dizer dos
enganadores? Desde Ário ter torcido a linguagem bíblica para evitar
os argumentos esmagadores de Atanásio, os incrédulos na igreja
têm usado a fraseologia bíblica para disfarçar o propósito subjacente
deles. Que contraste com a política dos teólogos de Westminster.
Estes não pouparam esforços para tornar suas declarações claras,
inequívocas e totalmente honestas. Seu propósito não era enganar
ou esconder, mas explicar e esclarecer. E tão cuidadosamente
definiram seus termos que é quase impossível uma inteligência
normal confundir o significado. Não só foi o conteúdo intelectual
claramente apresentado, mas tornado simples e inteligível por uma
cuidadosa atenção às palavras por eles escolhidas.
Os reformadores e seus sucessores no século seguinte eram
honestos; muitos dos líderes eclesiásticos do presente século não o
são. Estes tomam solenes votos de ordenação, subscrevendo à
Confissão de Westminster; mas não creem que ela é a verdade.
Perjuros no púlpito! Que tragédia paras as pessoas nos bancos das
igrejas! E que tragédia também para esses ministros!
O falecido J. Gresham Machen era um homem honesto e
brilhante acadêmico. Em 1925 publicou um volume salutar intitulado
Que é a fé?. Embora naquele momento ele não estivesse
particularmente preocupado com a neo-ortodoxia, seu primeiro
capítulo é um ataque incisivo ao ceticismo e ao anti-intelectualismo.
Ele enfatizou a verdade, a verdade objetiva da Bíblia e a primazia do
intelecto. Hoje, 30 anos depois, o livro deveria ser relido, pois a neo-
ortodoxia é ainda mais anti-intelectual que o antigo modernismo. E
se o ceticismo prevalece, se não existe uma verdade — nenhum
Evangelho que a mente humana pode apreender —, nós podemos
igualmente adorar ídolos num templo pagão.

Arminianismo e calvinismo
No outro lado da divisória continental, as águas fluem na
direção oposta. Em vez dos desertos sufocantes do Arizona, vêm à
vista o Vale do Mississipi com o seu trigo e milho. Aqui nós temos
vida e os frutos do solo. Contudo, nem todo o solo, nem todos os rios
do leste da divisória são igualmente frutíferos. Houvesse tempo hoje,
seria possível dar uma descrição ampla dos dois rios; mas como não
é este o caso, apenas uma indicação pode ser tentada. Há uma
corrente que, aceitando a Escritura como a única e infalível regra de
fé e prática, não aceita todos os demais 32 capítulos da Confissão.
Embora possa aceitar vários deles e ser amplamente chamada de
evangélica, ela rejeita o capítulo 3 e outros capítulos que são
definitivamente calvinistas. As águas dessa corrente fluem na
mesma direção geral, e nos alegramos por alcançarem
eventualmente o mesmo oceano celestial; mas elas fluem por terra
pedregosa com vegetação esparsa, ou por vezes esvaem a
pântanos em que a vegetação é suficientemente densa, mas é inútil
e não saudável. Em seu curso rochoso, essa corrente balbucia sobre
a fé e o arrependimento como sendo as causas e não os resultados
da regeneração; e alega que seu “livre-arbítrio” pantanoso pode ou
bloquear, ou tornar efetivo o poder onipotente de Deus. Tudo o que
temos tempo para dizer acerca dessa corrente de pensamento é que
suas inconsistências a fazem uma presa fácil aos ataques do
humanismo. Ela não pode defender o princípio da revelação porque
entendeu mal o conteúdo da revelação.
Por outro lado, aquele bendito rio da salvação, fluindo pela
terra de milho alto e do gado robusto, deve ser identificado com as
doutrinas dos grandes reformadores. Esses homens e seus
discípulos no século seguinte estudaram e redigiram o sistema de
doutrina que as igrejas presbiterianas e reformadas ainda hoje
professam. A Confissão de Westminster não é um credo abreviado
escrito por homens de fé abreviada. Ao contrário, é a abordagem
feita por homens que mais se aproxima de uma exposição completa
de todo o conselho de Deus que Paulo não deixou de declarar. Os
teólogos de Westminster eram os melhores acadêmicos bíblicos de
sua época, e como grupo não foram superados até hoje. Por um total
de 5 ou mais anos, eles laboraram incessantemente para formular
seu resumo do que a Bíblia ensina. E tão bem-sucedidos foram que
seu documento é com justiça a base de muitas denominações. A
existência factual da Confissão de Westminster testifica várias
dessas convicções dos nossos antepassados espirituais, e três
dessas convicções podem servir de conclusão para esta palestra.
Em primeiro lugar, nossos antepassados estavam convencidos,
afirma a Confissão de Westminster, e a Bíblia ensina que Deus nos
deu uma revelação escrita. Essa revelação é a verdade. Como o
próprio Cristo disse: “A tua Palavra é a verdade”. Ela não é um mito,
não é uma alegoria, não é um mero apontador da verdade, não é
uma analogia da verdade; mas é literal e absolutamente verdadeira.
Em segundo, nossos antepassados estavam convencidos e a
fé reformada afirma que essa verdade pode ser conhecida. Deus nos
criou à sua imagem com os poderes intelectuais e lógicos de
entendimento. Ele se dirigiu aos homens em uma revelação
inteligível; e espera que a leiamos para compreender o seu
significado e crer nela. Deus não é o Totalmente Outro, nem a lógica
é uma invenção humana que distorce as declarações de Deus. Se
assim o fosse, como dizem os neo-ortodoxos, resultaria, como
admitem os neo-ortodoxos, que a falsidade seria tão útil quanto a
verdade na produção de uma emoção apaixonada. Mas a Bíblia
espera que nos apropriemos de uma mensagem definida.
Em terceiro lugar, os reformadores acreditavam que a
revelação de Deus pode ser formulada com precisão. Eles não
tinham apreço pela ambiguidade; não identificavam a piedade com
uma mente confusa. Eles queriam proclamar a verdade com a maior
clareza possível. E assim devemos nós.
Ousamos nós permitir que a nossa herança bíblica seja
perdida numa ecumenicidade nebulosa onde a crença é reduzida à
mais breve declaração doutrinária possível, em que a paz seja
preservada por uma ambiguidade abrangente? Ou devemos refletir
sobre o fato de que quando os reformadores pregaram a mensagem
bíblica completa em todos os seus detalhes e com a maior clareza
possível, Deus concedia ao mundo seu maior avivamento espiritual
desde os dias dos apóstolos? Não podemos esperar da mesma
forma bênçãos surpreendentes se retornarmos com entusiasmo a
todas as doutrinas da Confissão de Westminster?

[1] João Calvino, A instituição da religião cristã, Tomo I (São Paulo: UNESP, 2008), p. 75.
[2] The Text of a Complaint, p. 10, coluna 2.
[3] A. R. Kuschke, Jr. e Bradford, A Reply to Mr. Hamilton, p. 4.
[4] Ibid., p. 6.
[5] Abraham Kuyper, Encyclopedia of Sacred Theology (New York: Charles Scribner’s Sons,
1898), p. 110-111.
[6] The Text, 5:1.
[7] Ibid., 5:3.
[8] Ibid., 7:3.
[9] A Committee for the Complainants, The Incomprehensibility of God, p. 3.
[10] The Text, 5:3.
[11] P. 450-53.
[12] Christian Doctrine, p. 207.
[13] In the Beginning, God, p. 15-17.
[14] Ibid., p. 35-36.
[15] Ibid., p. 47-48.
[16] Linguagem, verdade e lógica (Lisboa, Portugal: Editorial Presença, 1991), p. 67.
[17] The Divine-Human Encounter, p. 45.
[18] Alguns romanistas não tomam o argumento cosmológico como logicamente
demonstrativo, mas como um método de dirigir a atenção para certas características dos
seres finitos a partir das quais a existência de Deus pode ser vista sem um processo
discursivo. Compare com E. L. Mascall, Words and Images, p. 84. Mas este, julgo eu, não é
o tomismo padrão.
[19] Compare com Uma visão cristã dos homens e do mundo (Brasília, DF: Monergismo,
2013).
[20] E. Brunner, Wahrheit als Begegnung – Truth As Encounter, p. 88.
[21] Para uma análise completa do pensamento de Brunner, veja o excelente volume
Brunner’s Concept of Revelation de Paul King Jewett, James Clarke & Co., 1954.
[22] João Calvino, A instituição da religião cristã, Tomo I (São Paulo: UNESP, 2008), p. 255
ss.
[23] Ibid., p. 77 (I, viii).
[24] Language and Reality, p. 383, 433.
[25] E. L. Mascall, Words and Images, p. 101.
[26] Veja o meu livro Uma visão cristã dos homens e do mundo (Brasília, DF: Monergismo,
2013), capítulos 3 e 4.
[27] G. H. Clark, Thales to Dewey, p. 217-21.
[28] K. Barth, Church Dogmatics, I, p. 345.
[29] Cf. João Calvino, A instituição da religião cristã, Tomo I (São Paulo: UNESP, 2008), p.
115 (I.XIII.2).
[30] K. Barth, Church Dogmatics, I, p. 347.
[31] Veja Church Dogmatics, I, 2, p. 286-97.
[32] Veja Richard B. Brandt, The Philosophy of Schleiermacher, Harper and Brothers, 1941;
Edwin A. Burtt, Types of Religious Philosophy, edição revisada, capítulo 2; e para um
resumo das críticas a Barth, veja Gordon H. Clark, Karl Barth’s Theological Method, [1963]
1997.
[33] Tomás de Aquino, Summa Theologica, I, P. 46, Art. 2.
[34] Veja Church Dogmatics, II, 1, p. 119 ss.
[35] S. Kierkegaard, Pós-escrito conclusivo não científico às migalhas filosóficas (Petrópolis,
RJ: Vozes, 2013), p. 215.
[36] Ibid., p. 210.
[37] B. Pascal, Pensamentos (São Paulo: Abril Cultural, 1984), p. 124.
[38] L. Gilkey, Maker of Heaven and Earth, p. 145.
[39] Emil Brunner, Philosophie und Offenbarung, p. 50.
[40] Ibid., p. 19, 110, itálico meu.
[41] Ibid., p. 34.
[42] Grifo do autor.
[43] Para uma descrição mais completa do assunto, veja “Calvin and the Holy Scriptures” de
Kenneth S. Kantzer, em Inspiration and Interpretation, editado por John W. Walvoord,
Eerdmans, 1957.
[44] João Calvino, A instituição da religião cristã, Tomo 1 (São Paulo: UNESP, 2008), p. 73-
74 (I.vii.4).
[45] J. Theodore Mueller, Inspiration and Interpretation, p. 88; veja todo o capítulo 3 para
uma justificativa dos detalhes que se seguem.
[46] Karl Barth, Church Dogmatics, I:2, p. 528-29.
[47] Emil Brunner, Philosophy of Religion, p. 155.
[48] Gordon H. Clark, A filosofia da ciência e a crença em Deus (Brasília, DF: Monergismo,
2020).
[49] Edwin A. Burtt, Types of Religious Philosophy, 2ª edição, p. 311.
[50] Veja J. Gresham Machen, The Virgin Birth (Harper and Brothers, 1932).
[51] Veja o meu livro Religião, razão e revelação (Brasília, DF: Monergismo 2020), capítulo
3, “Inspiração e Linguagem”.
[52] Emil Brunner, The Divine-Human Encounter, p. 110.
[53] Biblical Authority, editado por Jack Rogers (Word Books, Waco, Texas, 1977).
[54] The Battle for the Bible (Zondervan, 1976).
[55] Livro de Concórdia (São Leopoldo, Porto Alegre: Sinodal, Concórdia: 1980), p. 499.
[56] “A sagrada e divina Escritura bíblica, que é a Palavra de Deus inspirada pelo Espírito
Santo… é o ensino mais perfeito e mais elevado e sozinha lida com tudo quanto serve ao
verdadeiro conhecimento, amor e honra de Deus, bem como à verdadeira piedade e
constituição de uma vida piedosa, honesta e abençoada” [da tradução inglesa da edição
alemã aumentada de Arthur C. Cochrane, Reformed Confessions of the Sixteenth Century,
Westminster John Knox Press, (1966) 2003, p. 100]. “A Escritura canônica é a Palavra de
Deus, dada pelo Espírito Santo… a filosofia mais antiga e perfeita; só ela contém
perfeitamente toda a piedade [e] todo modo de vida razoável” (da tradução inglesa do texto
em latim em Niemeyer por James T. Dennison, Jr., Reformed Confessions of the 16th and
17th Centuries in English Translation, Volume 1, pp. 1523–1552, Reformation Heritage
Books, 2008, p. 343). – Editor.
[57] “Cremos e confessamos que as Escrituras Canônicas… são a verdadeira Palavra de
Deus… O próprio Deus falou aos patriarcas, aos profetas e aos apóstolos, e ainda nos fala
a nós pelas Santas Escrituras” (Veja, na nota acima, p. 137). – Editor.
[58] CFW 1:4.
[59] CFW 14:1, 2.
[60] Segundo o dicionário Houaiss, “que não comete erros, que nunca se engana ou se
confunde; indefectível”. [N. do T.]
[61] Biblical Authority, p. 10
[62] Ibid., p. 12.
[63] Ibid., p. 19.
[64] Ibid., p. 20.
[65] Ibid., p. 22. Quanto à Agostinho, compare com Ep. 82, 4, 3; 137: De Doctrine Christiana
1:39; 2:8; 2:42; De Civitate Dei 11:3, Enchiridion 1:4; De Utilitate Credendi 6.
[66] Ibid., p. 24.
[67] J. Theodore Mueller, Inspiration and Revelation, editado por John W. Walvoord
(Eerdmans, 1957), p. 88.
[68] Ibid., p. 95.
[69] Ibid., p. 99.
[70] Ibid., p. 102.
[71] Ibid., p. 108.
[72] Ibid., p. 110.
[73] Biblical Authority, p. 30.
[74] Ibid., p. 37, 41.
[75] Ibid., p. 41.
[76] Ibid., p. 112.
[77] Ibid., p. 113.
[78] Ibid., p. 114.
[79] Ibid.
[80] Ibid.
[81] Ibid., p. 153.
[82] Ibid., p. 156.
[83] Ibid., p. 169.
[84] Ibid., p. 161.
[85] Ibid., p. 176.
[86] Ibid., p. 166.
[87] Ibid., p. 166.
[88] Ibid., p. 167-68.
[89] Biblical Authority, p. 168.
[90] Ibid.
[91] “Vede que não minto na vossa cara” (ARA).
[92] Biblical Authority, p. 179.
[93] Presbuterion, III, p. 2, 95 ss.
[94] Parte II de Mind as Behavior, 1924.
[95] Kenneth Hamilton, Words and the Word (Grand Rapids, Michigan: Eerdmans Publishing
Co., 1971), p. 45.
[96] Ibid., p. 87.
[97] Ibid., p. 63.
[98] Ibid.
[99] Ibid.
[100] Ibid., p. 67. Por mundo objetivo, Hamilton parece querer aqui dizer mundo sensorial,
como se o mundo do significado ou da inteligibilidade fosse subjetivo. Todavia, na página 68
ele fala da própria Palavra — certamente não um objeto sensorial — como sendo objetiva. É
difícil dizer com precisão qual é seu argumento nessas duas páginas.
[101] Por exemplo, Deus instruiu Abraão a sacrificar Isaque (Gn 22.2), ou Deus instruiu
Ananias a ir na casa de Judas à rua que se chama Direita e perguntar por um homem
chamado Saulo de Tarso (At 9.11). Ou essas passagens, com suas instruções específicas,
não são a Palavra de Deus?
[102] CFW 1:6.
[103] Kenneth Hamilton, Words and the Word (Grand Rapids, Michigan: Eerdmans
Publishing Co., 1971), p. 75.
[104] Kenneth Hamilton, op. cit., p. 77.
[105] Kenneth Kantzer, Inspiration and Interpretation (editado por John F. Walvoord,
Eerdmans, 1957).
[106] Ibid., p. 137.
[107] Ibid., p. 142.
[108] João Calvino, A instituição da religião cristã, Tomo 2 (São Paulo: UNESP, 2009), p. 71.
[109] Esse tipo de afirmação é insignificante. Declarações míticas também são
proposicionais. A distinção importante deve ser entre verdadeira versus falsa ou entre literal
e exata versus fantástica e imprecisa. Mas toda declaração possui um “aspecto”
proposicional, o que quer que esse aspecto signifique.
[110] Kenneth Hamilton, Inspiration and Interpretation, p. 86.
[111] Para uma refutação definitiva, veja The Origin of Paul’s Religion, de J. Gresham
Machen.
[112] Ela faz isso? Como? Com que resultado?
[113] Kenneth Hamilton, Inspiration and Interpretation, p. 89.
[114] Ibid., p. 90.
[115] Ibid., p. 91.
[116] Um critério comum para se distinguir uma parábola de Cristo de algo que ele relata
como tendo acontecido é a ausência de nomes no primeiro caso e a sua presença no
segundo: um dono de casa saiu de madrugada para assalariar trabalhadores ou certo rei
celebrou as bodas de seu filho versus o sangue de Abel… de Zacharias, filho de Baraquias,
a quem matastes, ou outras referências a acontecimentos do Antigo Testamento.
[117] Ibid., p. 100.
[118] Ibid., p. 96.
[119] Embora Henry e eu estejamos em amplo acordo, não quero vinculá-lo a qualquer dos
materiais acima além daquilo que ele tenha explicitamente afirmado em suas publicações.
[120] No original, “released time education”. No sistema de educação pública norte-
americano, é o período no horário escolar em que os estudantes são liberados da escola
para estudar a Bíblia. Foi sancionado pela Suprema Corte dos EUA em 1952. [N. do T.]

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