Documenti di Didattica
Documenti di Professioni
Documenti di Cultura
DE DEUS
A Bíblia e seus críticos
GORDON H. CLARK
Este livro estabelece o princípio do sola Scriptura — pela Escritura
somente — de forma abrangente e, todavia, num estilo fácil de ler.
Um entendimento apropriado deste ensino explicado tão
brilhantemente por Clark estabelece o fundamento para uma
cosmovisão cristã.
1ª edição, 2020
1
Prefácio
— Harold Lindsell
1
Agradecimentos
As reivindicações bíblicas
A primeira razão para acreditar que a Bíblia é inspirada é que a
Bíblia afirma ser inspirada. Quando essa razão é dada a um
incrédulo, sua reação imediata quase sempre é o escárnio. Para ele
isso é muito parecido com colocar um mentiroso no banco das
testemunhas e fazê-lo jurar dizer a verdade. Mas por que um
mentiroso? Testemunhas honestas não juram também dizer a
verdade? Mas até um cristão com um conhecimento limitado de
lógica pode objetar a esse procedimento, porque parece incorrer
numa petição de princípio. É circular. Cremos que a Bíblia é
inspirada porque ela faz essa reivindicação, e cremos na
reivindicação porque ela é inspirada e, portanto, verdadeira. Essa
não parece ser a maneira correta de argumentar.
É verdade que nem toda reivindicação é ipso facto verdadeira.
Há falsos testemunhos nos tribunais, há falsos messias e há
revelações fraudulentas. Mas ignorar a reivindicação da Bíblia ou das
testemunhas em geral é uma simplificação e um erro. Suponha, por
exemplo, que a Bíblia realmente diga não ser inspirada. Ou suponha
simplesmente que a Bíblia é completamente silente sobre o assunto
— que ela não faz mais reivindicações de inspiração divina do que
Churchill. Em tal caso, se o cristão afirmasse que o livro é inspirado,
o incrédulo estaria certo em responder que o cristão está indo muito
além das evidências.
Essa resposta é certamente justa. Não há razão para se fazer
afirmações que vão além das que podem ser validamente inferidas
das declarações da Bíblia. Mas porque essa resposta é tão justa, se
conclui que o escárnio do incrédulo ao nosso primeiro comentário é
infundado. O que a Bíblia reivindica é uma parte essencial do
argumento. O cristão está bem dentro dos limites da lógica ao insistir
que a primeira razão para acreditar na inspiração da Bíblia é que ela
faz essa reivindicação.
A verdade de uma conclusão depende da verdade de suas
premissas. Isso quer dizer que o passo seguinte é mostrar que a
Bíblia realmente faz essa reivindicação. Muitas pessoas com um
conhecimento razoável da Bíblia estariam inclinadas a omitir esse
passo como sendo desnecessário. É claro que a Bíblia faz essa
reivindicação. Nem todo mundo, porém, está tão familiarizado com o
que a Bíblia diz. Mesmo aqueles que possuem um conhecimento
razoável podem não perceber quão insistentemente a Bíblia faz essa
reivindicação. E há outros que, incomodados com problemas críticos
e supostas imprecisões e, porém, desejosos de defender a Bíblia
como muito importante ou até mesmo como um documento religioso
necessário, acham que podem descartar a inspiração e ainda assim
defender a Bíblia como uma fonte relativamente confiável de
conhecimento religioso. Essas pessoas podem achar que só existem
alguns erros menores na Bíblia, ou muitos erros, ou — como é
particularmente o caso nos dias de hoje, meados do século XX —
que a Bíblia é uma completa fábula. Todavia se apegam a ela como
se fosse em certo sentido um guia religioso. Essa visão muito
difundida perde toda a aparência de lógica quando é confrontada
com as reivindicações reais de inspiração que encontramos em toda
a Bíblia.
O significado da inspiração
Há ainda outra razão para se fazer um escrutínio das reivindicações
bíblicas de inspiração. Ao fazê-lo, veremos o que a Bíblia quer dizer
com inspiração. Na teologia recente, a Bíblia tem sido chamada de
inspirada no mesmo sentido em que as peças de Shakespeare
podem ser chamadas de inspiradas; isto é, elas são inspiradoras,
entusiasmam, elevam nossas ideias, ampliam nossas visões e dão
uma compreensão da natureza humana. Com base nesse significado
de inspiração, é geralmente dito que nem todas as partes da Bíblia
são igualmente inspiradas. As genealogias são coisas monótonas e
pouco inspiradoras.
Mas será que é isso que a Bíblia quer dizer com inspiração?
Certamente, devemos ter muito cuidado em saber o que queremos
dizer quando discutimos um assunto. Se duas pessoas possuem
dois significados distintos em mente, sua conversa estará em
contradição e uma não conseguirá entender a outra. Da mesma
forma, se uma pessoa estuda sozinha a inspiração (ou outro assunto
qualquer) mas não tem uma concepção clara do que está estudando,
ela pode não confundir mais ninguém enquanto mantiver o
pensamento para si, mas os pensamentos na própria mente serão
confusos e ela não terá compreensão. Infelizmente é o que acontece
com bastante frequência.
Talvez a reivindicação de inspiração mais bem conhecida da
Bíblia seja 2 Timóteo 3.16 (ACF): “Toda a Escritura é inspirada por
Deus e útil para o ensino”, e assim por diante. A palavra inspirada,
com seu prefixo in, dá a impressão de que depois que a Bíblia (ou
um seu livro) foi escrita, Deus inspirou para dentro. Mas a palavra
grega não tem o sentido de inspirar para dentro e sim de soprar para
fora. Deus soprou as Escrituras. Metaforicamente, poderíamos dizer
que as Escrituras são o sopro de Deus. Assim, a reivindicação é na
verdade mais forte do que parece em nossa língua.
Inspiração plenária
O que também se deve observar é a referência a toda a Escritura.
Podemos chamar essa ideia de inspiração plenária da Escritura.
Deus soprou toda ela. As diferenças nas traduções não afetam esse
ponto. A American Standard Version, Weymouth, e a Bíblia alemã
trazem “toda a escritura”; a tradução francesa, a Revised Standard
Version e a Moffatt concordam com a King James. Essa é uma
reivindicação clara de inspiração plenária. A esse versículo se pode
acrescentar João 10.35 (ARC): “a Escritura não pode ser anulada”. O
ponto preciso da observação de Cristo é que toda a Escritura é
autoritativa.
Outra passagem que merece exame é 2 Pedro 1.20, 21 (ACF):
“nenhuma profecia da Escritura é de particular interpretação. Porque
a profecia nunca foi produzida por vontade de homem algum, mas os
homens santos de Deus falaram inspirados pelo Espírito Santo”.
Alguém poderia a princípio se perguntar se há alguma “Escritura”
que não é “profecia”, em cujo caso esse versículo não se aplicaria a
toda a Bíblia — ele se aplicaria somente às profecias da Bíblia e não
ao resto da Escritura. Uma resposta parcial é que Moisés era um
profeta e que, portanto, até mesmo o livro de Levítico pode ser
chamado de profecia. Profecia não é necessariamente previsão; é
qualquer mensagem de Deus. A frase “profecia da Escritura” significa
simplesmente a mensagem divina tal como escrita. Note em seguida
a negativa universal: o versículo diz “nenhuma profecia”. Isso cobre
tudo. Outra dificuldade é a palavra particular. O contraste pretendido,
porém, não é com uma suposta interpretação pública mas com uma
interpretação divina. É por isso que o versículo 21 explica o versículo
20; caso contrário, o segundo versículo não seria uma razão
inteligível para o primeiro. Nenhuma profecia é de particular
interpretação porque a profecia jamais foi trazida pela vontade do
homem, mas homens falaram da parte de Deus, levados pelo
Espírito Santo. Assim, a passagem é uma forte afirmação da origem
divina da mensagem.
Uma vez que a última referência levantou a questão de se toda
a Escritura é profecia, mais alguns versículos relativos a Moisés
podem ser aqui acrescentados. O ponto principal, entretanto, não é
mostrar que Moisés era um profeta mas mostrar a reivindicação
bíblica de inspiração. É claro que Moisés era um profeta. “Este é
aquele Moisés que disse aos filhos de Israel: O Senhor, vosso Deus,
vos levantará dentre vossos irmãos um profeta como eu; a ele
ouvireis” (At 7.37, ARC). “Nunca mais se levantou em Israel profeta
algum como Moisés, com quem o Senhor houvesse tratado face a
face” (Dt 34.10). Este último versículo mostra que Josué era inferior a
Moisés, de sorte que Moisés só poderia ser comparado com Cristo.
O próprio Cristo disse: “Porque, se, de fato, crêsseis em Moisés,
também creríeis em mim; porquanto ele escreveu a meu respeito.
Se, porém, não credes nos seus escritos, como crereis nas minhas
palavras? (Jo 5.46-47).
Que a autoridade profética mencionada em 2 Pedro 1.21 se
aplica a todo o Antigo Testamento é algo mostrado não apenas em
João 10.35, citado anteriormente, mas também em muitas outras
passagens. Romanos 3.2 designa todo o Antigo Testamento como os
oráculos de Deus. Em Lucas 24.44 Jesus coloca a Lei de Moisés, os
Profetas e os Salmos no mesmo patamar. Designações abrangentes
e parecidas são encontradas em Lucas 24.25, 27; Mateus 5.17; 7.12;
11.13; Atos 3.21-22; 26.22, 27; 28.23; Romanos 3.21. Visto que
esses e outros versículos reúnem todo o Antigo Testamento numa
unidade, é possível estender ao todo qualquer autoridade que se
afirme de alguma parte.
Algumas reivindicações muito interessantes são feitas de várias
partes. Em Atos 2.30, Pedro chama Davi de profeta, e o próprio Davi
diz: “O Espírito do S fala por meu intermédio, e a sua palavra
está na minha língua” (2Sm 23.2). Também Cristo (Mc 12.36) diz que
Davi falou pelo Espírito Santo. Citando o salmo 2, o texto de Atos
4.25 afirma que o Senhor falou pela boca de Davi. Isso não é
verdade somente acerca de Davi, como recém explicado, mas Deus
“falou pela boca dos seus santos profetas, desde o princípio do
mundo” (Lc 1.70, ARC).
Sem dúvida, algumas referências específicas aos profetas
posteriores devem ser acrescentadas. Frases simples como “a
Palavra do Senhor veio a mim” e “o Senhor, pois, disse-me” e “Assim
diz o Senhor” são numerosas demais para listar. Elas implicam que
foi o Senhor quem falou pela boca do profeta (considere Mt 1.22;
2.15; At 3.18). Há, no entanto, vários casos em que essa ideia é
explicitamente declarada: “Depois, estendeu o S a mão,
tocou-me na boca e o S me disse: Eis que ponho na tua boca
as minhas palavras” (Jr 1.9; considere 9.12; 13.15; 30.4; 50.1). A
mesma ideia é expressa em Ezequiel 3.1, 4, 11, tanto pictórica
quanto literalmente. Depois de ordenar a Ezequiel que comesse um
rolo de pergaminho que fora escrito por dentro e por fora, o Senhor
determina: “dize-lhe as minhas palavras”.
Tais são as reivindicações feitas pelo e sobre o Antigo
Testamento. Mas o Antigo Testamento anseia por uma revelação
posterior e mais plena, uma revelação na qual as profecias do Antigo
Testamento encontram seu clímax e que, portanto, se não é superior
em autoria, certamente não é inferior. Se a inspiração do Antigo
Testamento pode ser defendida, o caso para o Novo Testamento
deve ser admitido sem mais argumentos. Todavia, para uma maior
completude, algo será dito das reivindicações que o Novo
Testamento faz de si mesmo.
Como o material é extenso, só algumas passagens serão
selecionadas para comentário. Jesus (Mt 11.9-15) afirmou que João
Batista era muito mais que um profeta; era superior a todos os
profetas do Antigo Testamento. Porém, o profeta que fosse menor na
época do Novo Testamento seria um profeta maior que João. Resulta
então que os profetas do Novo Testamento não eram menos
inspirados que seus antecessores.
Romanos 16.25-27 e Efésios 3.4-5 são parecidos. A primeira
passagem fala de um mistério que não foi revelado no Antigo
Testamento mas está agora publicado nos escritos dos profetas do
Novo Testamento. Na segunda passagem, Paulo reivindica para si e
aos demais apóstolos e profetas um conhecimento mais pleno do
que aquele revelado em épocas anteriores.
Em seguida, 1 Coríntios 12.28, ao listar os postos de ofício na
igreja, coloca os apóstolos acima dos profetas. Efésios 4.11 faz a
mesma coisa. Portanto, esses versículos, de forma tão clara quanto
as passagens anteriores, implicam que o Novo Testamento não é
menos autoritativo que o Antigo.
Em 1 Coríntios 14.37, Paulo diz: “Se alguém se considera
profeta ou espiritual, reconheça ser mandamento do Senhor o que
vos escrevo”. Isso carrega essencialmente o mesmo significado que
a reivindicação de Jeremias de que Deus colocou suas próprias
palavras na boca dele, Jeremias.
Uma ideia adicional é encontrada em Colossenses 4.16. Aqui,
Paulo ordena a leitura de suas cartas nas igrejas. Assim como Isaías
ou Jeremias deveria ser lido nas sinagogas, as epístolas foram
constituídas por ordem apostólica como parte da adoração da igreja.
Se alguém objeta dizendo que isso só se aplica às cartas e igrejas
de Colossos e Laodiceia, 1 Tessalonicenses 5.27 amplia a ideia. Aqui
também temos um exemplo da imposição apostólica das Escrituras
do Novo Testamento.
Há muitas passagens pertinentes, mas 2 Pedro 3.15-16 será
usado como último exemplo. Neste lugar, Pedro está falando das
epístolas paulinas: “… como igualmente o nosso amado irmão Paulo
vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada, ao falar acerca
destes assuntos, como, de fato, costuma fazer em todas as suas
epístolas… que os ignorantes e instáveis deturpam, como também
deturpam as demais Escrituras, para a própria destruição deles”.
Aparentemente, considerando a forma como Pedro fala de todas as
epístolas de Paulo, elas são consideradas uma seção do cânon do
Novo Testamento da mesma forma que alguém falaria dos principais
profetas. Ele claramente as tem como uma unidade. Além disso, ele
as classifica com “as demais Escrituras”; isto é, Pedro as coloca pelo
menos em pé de igualdade com o Antigo Testamento. E uma vez que
no versículo 2 do mesmo capítulo Pedro nivela a si mesmo e os
demais apóstolos aos profetas sagrados, pode-se validamente inferir
que a Bíblia como um todo, Antigo e Novo Testamentos, afirma ter
sido soprada por Deus e não pode portanto ser anulada.
Antes de avançarmos das reivindicações bíblicas para a etapa
seguinte do argumento, é preciso ainda fazer um esclarecimento
adicional do significado das passagens citadas. Já foi mostrado que
a Bíblia ensina a inspiração plenária. Inspiração plenária significa
que a Bíblia é inspirada em todas as suas partes. Não há nenhuma
seção que não tenha sido soprada por Deus. Neemias 7, com todos
os seus nomes e números, é tão inspirado quanto João 14.
Inspiração verbal
A seguir, a Bíblia ensina a inspiração verbal. Deus coloca palavras
na boca de Jeremias. Jeremias ou algum outro profeta pode não ter
conseguido apreender a ideia, como sugere 1 Pedro 1.1, mas as
palavras foram as palavras de Deus. É isso que se quer dizer com
inspiração verbal.
Infelizmente os inimigos da inspiração verbal fazem uma
caricatura dela, e o ensino do protestantismo histórico é deturpado.
Visto, portanto, que buscamos ter clareza nas ideias e também expor
os lapsos dos incrédulos, uma digressão se faz aqui necessária.
Os oponentes alegam falsamente que a inspiração verbal é
uma teoria de ditado mecânico. Supõem que quando Deus em
Deuteronômio 18.18 (NVI) diz “… porei minhas palavras na sua
boca” o profeta deve ser considerado uma espécie de ditafone ou, na
melhor das hipóteses, um estenógrafo cuja personalidade só está
minimamente envolvida na transação. Isso obviamente não é
verdade, porque o estilo de Jeremias não é o de Isaías, e Paulo não
escreve como João. Nem Martinho Lutero nem João Calvino nem
teólogos ortodoxos mais recentes como Benjamin Warfield
defenderam alguma vez uma teoria de ditado mecânico. Isso é uma
caricatura inventada pelos incrédulos.
Ao mesmo tempo, cabe ao crente explicar como Deus poderia
colocar suas próprias palavras na boca de um profeta sem reduzi-lo
ao nível de um estenógrafo desinteressado. Isso não é nada difícil. O
mínimo entendimento da relação entre Deus e um profeta nos leva
rapidamente para longe da ideia de um procedimento de escritório
moderno.
Quando Deus quis fazer uma revelação (na época do êxodo ou
cativeiro), não olhou subitamente ao redor, como se pego de
surpresa, perguntando-se que homem poderia usar. Não podemos
supor que ele tenha feito campanha para conseguir um estenógrafo
e que, quando Moisés e Jeremias se candidataram para a posição,
Deus ditou sua mensagem. A relação entre Deus e um profeta não
era nada disso. Um chefe deve aceitar as coisas como elas são; ele
depende de que a escola ou faculdade de negócios tenha ensinado
taquigrafia e digitação ao candidato. Mas se considerarmos a
onipotência e sabedoria de Deus uma imagem muito diferente
emerge. Deus é o Criador. Ele fez Moisés. E quando Deus quis que
Moisés falasse por ele, disse: “Quem fez a boca do homem?… Não
sou eu, o S ?” (Êx 4.11).
Coloque desta maneira: Deus, que opera todas as coisas
segundo o conselho da sua vontade e faz tudo o que lhe apraz, pois
não há quem lhe possa deter a mão ou dizer “Que fazes?”, decretou
desde toda a eternidade libertar os judeus da escravidão pelas mãos
de Moisés. Para este fim, controlou a tal ponto os eventos que
Moisés nasceu numa determinada data, foi colocado na água para
ser salvo de uma morte prematura, foi encontrado pela filha do
Faraó, recebeu a melhor educação egípcia possível, foi conduzido ao
deserto para aprender a paciência e, em cada detalhe, tão preparado
pela hereditariedade e ambiente que, chegado o tempo, a
mentalidade e o estilo literário de Moisés eram instrumentos
precisamente ajustados para falar as palavras de Deus. Entre Moisés
e Deus havia uma união interior, uma identidade de propósitos, uma
cooperação de vontades, de modo que as palavras que Moisés
escreveu eram as palavras do próprio Deus e ao mesmo tempo as
palavras do próprio Moisés.
Essa foi uma pequena digressão com o propósito de expor uma
deturpação liberal da inspiração verbal e, desse modo, tornar ainda
mais clara a posição cristã. É hora agora de voltar à linha principal do
argumento. A inspiração plenária foi definida; a inspiração verbal foi
agora explicada; um esclarecimento precisa ainda ser feito quanto à
reivindicação que a Bíblia faz de si mesma.
A prova da inspiração
Já argumentamos que para convencer uma pessoa da inspiração da
Bíblia é adequado e virtualmente indispensável mostrar que a Bíblia
reivindica a inspiração. Se a Bíblia não fizesse essa reivindicação,
seria muito difícil defender a doutrina da inspiração. Ora, embora
nem toda reivindicação seja verdadeira (pois algumas pessoas e
alguns livros fazem reivindicações falsas), a forma em que a Bíblia
reivindica ser inspirada nos limita a uma faixa muito estreita de
escolhas. Só uma pequena fração das reivindicações foi
explicitamente citada neste capítulo. Se todas as referências da
Bíblia à sua própria inspiração fossem citadas, ficaria claro que essa
reivindicação é absolutamente generalizada. Ela não pode ser
considerada um deslize acidental em um ou dois livros nem um
excesso de entusiasmo temporário em um ou dois escritores. A
reivindicação de inspiração permeia toda a Bíblia.
Se Moisés e os profetas estavam equivocados em fazer essa
reivindicação, se os apóstolos também estavam enganados e se
nosso Senhor mantinha ele próprio noções erradas de inspiração
verbal, que garantia pode alguém ter no tocante a outros assuntos
sobre os quais eles escreveram? Existe alguma razão para supor
que homens que estavam tão uniformemente errados quanto à fonte
de sua mensagem poderiam ter tido qualquer percepção superior e
conhecimento preciso da relação do homem com Deus? Por que
deveríamos acreditar hoje que Deus amou tanto o mundo ou que um
pecador é justificado pela fé, se não foi Deus quem deu a João e
Paulo essa informação? E, finalmente, quem pode professar um
apego pessoal a Jesus Cristo e todavia contradizer consistentemente
sua afirmação de que as Escrituras não podem ser anuladas?
Somos limitados, portanto, a uma escolha muito estreita. Ou a Bíblia
é uma fraude sem valor e Jesus era um mártir iludido, ou a Bíblia é
na verdade a Palavra escrita de Deus.
Quando as pessoas veem que estão encerradas nessas duas
escolhas, algumas — porque não podem negar a confiabilidade geral
da Bíblia, como evidenciado pela arqueologia, e porque se sentem
compelidas a reconhecer sua excelência espiritual — são induzidas a
aceitar a inspiração plenária e verbal. Outras, porém, escolhem o
oposto. Reconhecendo com mais clareza que os ensinos da Bíblia
formam uma vestimenta sem costuras, elas coerentemente rejeitam
a Bíblia in toto, repudiam seus ideais e olham com piedade ou
desdém para seu Mestre iludido.
Se um crente quer defender as reivindicações do cristianismo
em face dessa rejeição consistente e, claro, o crente tem a obrigação
de fazê-lo, deve em primeiro lugar considerar a natureza da prova e
do argumento. Seria um erro crasso confiar em um argumento
inválido. É má estratégia subestimar a força do inimigo. Devemos
saber com precisão o que prova o quê. Devemos saber as condições
necessárias de um argumento válido. Sobre quais premissas pode a
conclusão ser baseada? E, se encontramos uma premissa
satisfatória, como podemos levar o incrédulo a aceitá-la? Tudo isso
faz parte da defesa geral do cristianismo conhecida como
apologética. Como, porém, a apologética geral é muito extensa, a
presente discussão se limitará, até onde possível, à inspiração.
Quase um século atrás, Francis L. Patton, conhecido por
batalhar 50 anos na causa do cristianismo conservador, defendeu a
inspiração usando um argumento de quatro etapas. Primeiro, a
crítica histórica mostra que a história da Bíblia está em geral correta.
Segundo, descobrimos então a partir do estilo, da informação e da
harmonia das partes que elas foram escritas por uma agência
sobrenatural. Terceiro, notamos que os escritores reivindicam
inspiração. Portanto, quarto, inferimos que a Bíblia é infalivelmente
inspirada. Patton defendeu o ponto dois da seguinte maneira:
“Sabemos que as doutrinas da Bíblia têm a sanção de Deus. Pois o
que é a história hebraica senão uma longa lição sobre monoteísmo?
[…] O que foi o sistema sacrificial senão uma exposição divina da
doutrina da culpa? […] A excelência inerente dessas doutrinas
testemunha sua origem celestial”.
Hoje esse argumento pareceria ingênuo. O ponto essencial de
Patton é fraco e o suporte que ele dá é mais fraco ainda. Sua visão
da história hebraica, do seu monoteísmo, do propósito do sistema
sacrificial, bem como o estilo e a excelência inerente não são
premissas que um incrédulo aceitará. As pessoas hoje simplesmente
não acreditam que o sistema sacrificial é uma exposição divina de
culpa — e podem achar que a culpa é um sinal de doença mental —
nem concordam que a doutrina bíblica é inerentemente excelente.
A harmonia das partes é um ponto mais valioso. Pois embora o
incrédulo afirme que há inúmeras inconsistências em toda a Bíblia,
uma exposição paciente poderia convencê-lo de que o ensino bíblico
é mais consistente do que ele pensa. Mas o público moderno tem
uma crença arraigada de que a Bíblia é autocontraditória, e é
extremamente difícil convencê-lo do contrário. Todavia, por razões
que se tornarão mais claras à medida que prosseguirmos, a tentativa
de mostrar a consistência lógica da Bíblia é, creio eu, o melhor
método de defesa da inspiração. Mas porque isso é tão intrincado e
difícil, a pergunta naturalmente acaba sendo por um método mais
fácil.
Aqui, mais uma vez, devemos considerar a natureza e os
limites de “prova”. A prova demonstrativa, como a que ocorre na
geometria, depende de axiomas não provados. Por mais válida que a
demonstração seja, se duas pessoas não aceitam os mesmos
axiomas, não serão convencidas pela mesma prova. Haveria então
alguma proposição que tanto o crente quanto o incrédulo aceitariam
sem prova?
Em épocas passadas existiam áreas de concordância. Não
cristãos admitiriam que Deus existe. Durante a Reforma, a
veracidade da Escritura era tão amplamente tomada como certa que
as evidências pareciam fornecer provas conclusivas para qualquer
mente normal. Mas essa situação não existe mais. Não só a maioria
das pessoas rejeita a veracidade da Bíblia, como também muitas
rejeitam a crença em Deus. Lutero e Calvino não tiveram de
enfrentar o instrumentalismo e o positivismo lógico. Hoje essas duas
filosofias têm ampla influência. Em épocas passadas, geralmente se
concordava que os padrões morais de Jesus eram admiráveis. Mas
hoje suas ideias sobre o casamento e os problemas trabalhistas são
rejeitadas até mesmo por algumas ditas igrejas cristãs, e o resto da
moralidade de Jesus é, na melhor das hipóteses, considerado
inadequado.
Quanto mais consistente é a incredulidade, menos se pode
chegar a um acordo. Na medida em que o incrédulo for
inconsistente, podemos forçá-lo a fazer uma escolha. Se de forma
inconsistente ele admira Jesus Cristo ou os valores da Bíblia mas ao
mesmo tempo nega a inspiração plenária e verbal, podemos pela
lógica insistir que ele aceite ambos — ou nenhum dos dois. Mas não
podemos pela lógica impedi-lo de não escolher nenhum dos dois e
de negar uma premissa em comum. Segue-se, na teoria lógica, que
não existe nenhuma proposição sobre a qual um crente consistente e
um incrédulo consistente possam concordar. Portanto, a doutrina da
inspiração, como todas as demais doutrinas cristãs, não pode ser
demonstrada para a satisfação de um incrédulo de pensamento
lúcido.
Se, todavia, pudesse ser mostrado que a Bíblia — a despeito
de ter sido escrita por mais de 35 autores num período de 1500 anos
— é logicamente consistente, o incrédulo teria de considerá-la um
acidente dos mais notáveis. Parece mais provável uma única mente
ter produzido, por supervisão, esse resultado do que ele
simplesmente ter acontecido por acidente. A consistência lógica,
portanto, é evidência de inspiração, mas não é uma demonstração.
Acidentes estranhos de fato acontecem, e nenhuma prova está
disponível de que a Bíblia não seja um tal acidente. Um acidente
improvável, talvez; mas ainda assim possível.
Como, então, um incrédulo pode ser levado a admitir a
inspiração da Escritura? Ou, porque se trata da mesma pergunta,
como o “eu” passa a aceitar a inspiração?
O fator do pecado
Porém, o pecado é agora um fator; e embora não altere a situação
lógica básica, suas complicações não podem passar despercebidas.
Além do mais, é em relação ao pecado e à redenção que a Bíblia dá
algumas informações importantes aplicáveis à questão da crença na
inspiração.
Quando Adão caiu, a raça humana não se tornou estúpida, de
modo que a verdade seria difícil de entender, mas hostil à aceitação
da verdade. Os homens não gostavam de reter Deus em seu
conhecimento, e assim mudaram a verdade de Deus em mentira,
pois a mente carnal é inimizade contra Deus. Logo, a pregação da
cruz é loucura para os que se perdem, pois o homem natural não
aceita as coisas do Espírito de Deus porque elas se discernem
espiritualmente. Para aceitar o Evangelho, portanto, é necessário
nascer de novo. O intelecto anormal e depravado deve ser refeito
pelo Espírito Santo; o inimigo deve ser feito amigo. Essa é a obra da
regeneração; o coração de pedra pode ser tirado e um coração de
carne pode ser dado somente pelo próprio Deus. Ressuscitar um
homem que está morto no pecado e dar-lhe nova vida, longe de ser
uma façanha humana, requer nada menos que um poder onipotente.
É impossível, portanto, mediante apenas argumentação ou
pregação fazer com que alguém creia na Bíblia. Só Deus pode levar
a essa crença. Ao mesmo tempo, isso não significa que a
argumentação não tem utilidade. Pedro diz para estarmos “sempre
prontos para fazer uma defesa perante todo aquele que lhes exigir
uma razão para a esperança que vocês têm” (1Pe 3.15). Essa era a
prática constante dos apóstolos. Estêvão discutiu com os libertinos; o
Concílio de Jerusalém debateu; em Éfeso, Paulo debateu por três
meses na sinagoga e depois continuou discorrendo na escola de
Tirano (At 6.9; 15.7; 19.8, 9; compare com At 17.2; 18.4, 19; 24.25).
Quem não está disposto a argumentar, debater e arrazoar é desleal
ao seu dever cristão.
Neste ponto vem naturalmente a pergunta: qual é a utilidade de
toda essa exposição e explicação, se não produz uma crença? A
resposta deve ser entendida com clareza. O testemunho do Espírito
Santo é um testemunho de algo. O Espírito testemunha da
autoridade da Escritura. Se nenhum apóstolo ou pregador expusesse
a mensagem, não haveria nada na mente do pecador de que o
Espírito pudesse testemunhar. O Espírito não pode produzir uma
crença em Cristo a menos que o pecador tenha ouvido falar de
Cristo. “Como, pois, invocarão aquele em quem não creram? E como
crerão naquele de quem não ouviram? … De sorte que a fé é pelo
ouvir, e o ouvir pela palavra de Deus” (Rm 10.14, 17, ARC).
Sem dúvida, Deus em sua onipotência poderia revelar as
informações necessárias a cada homem individualmente sem uma
Bíblia escrita ou pregação ministerial. Mas não é isso o que Deus
fez. Deus atribuiu aos apóstolos e pregadores o dever de expor a
mensagem; mas a produção da crença é obra do Espírito, pois a fé é
um dom de Deus.
Esta é parte da razão de ser dito acima que o melhor
procedimento para nós, se queremos que alguém aceite a doutrina
da inspiração plenária e verbal, é expor a Escritura em detalhes.
Também podemos usar a arqueologia e crítica histórica, mas a
principal tarefa é comunicar a mensagem da Bíblia na linguagem
mais compreensível que pudermos.
É de se notar também que o pecador, sem qualquer obra
especial do Espírito, pode entender a mensagem. A crença na sua
verdade e o entendimento do seu significado são duas coisas
distintas. A Bíblia pode ser entendida pelos mesmos métodos de
estudo usados em Euclides ou Aristóteles. A despeito de algumas
ressalvas piedosas, é verdade que incrédulos antagonistas muitas
vezes entendem melhor a Bíblia do que cristãos devotos. Os fariseus
viram o significado das reivindicações de divindade de Cristo mais
rapidamente e com mais clareza que os discípulos.
Quando perseguia os cristãos em Jerusalém e partiu para
Damasco, Paulo entendia as palavras “Jesus é Senhor” tão bem
quanto qualquer um dos doze. Precisamente porque as entendia tão
bem é que perseguia tão zelosamente. Se ele estivesse incerto do
significado, não teria sido tão ativo. O problema é que Paulo não
acreditava no significado; ao contrário, acreditava que era falso.
Então, na estrada para Damasco, Cristo lhe apareceu e fez com que
acreditasse que a declaração era verdadeira. Paulo no momento
após sua conversão não passou a entender a frase nem um pouco
melhor do que já entendia um momento antes. Sem dúvida, nos anos
seguintes, Deus lhe revelaria mais informações para serem usadas
nas epístolas. Mas naquele momento Cristo não ampliou o
entendimento de Paulo nem um pouquinho que fosse; ele o fez
receber, aceitar ou acreditar o que já entendia muito bem. É assim
que o Espírito testemunha da mensagem anteriormente comunicada.
Uma forte ênfase deve ser colocada na obra do Espírito Santo.
O homem está morto no pecado, é um inimigo de Deus, opõe-se à
toda retidão e verdade. Ele precisa ser mudado. Nem o pregador,
nem tampouco o próprio pecador pode causar a mudança. Mas
“Bem-aventurado aquele a quem escolhes e aproximas de ti” (Sl
65.4). “… tirarei da sua carne o coração de pedra e lhes darei
coração de carne” (Ez 11.19; 36.26, 27). “… e creram todos os que
haviam sido destinados para a vida eterna” (At 13.48). “Mas Deus…
estando nós mortos em nossos delitos, nos deu vida juntamente com
Cristo” (Ef 2.4-5). “Porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer
como o realizar, segundo a sua boa vontade” (Fp 2.13). “Porque
Deus vos escolheu desde o princípio para a salvação, pela
santificação do Espírito e fé na verdade” (2Ts 2.13). “Pois, segundo o
seu querer, ele nos gerou pela palavra da verdade” (Tg 1.18).
Esses versículos, que se referem principalmente à
regeneração, são aplicáveis à nossa aceitação da Bíblia como a
própria Palavra de Deus. De fato, a nova vida que é iniciada com o
segundo nascimento — a vida para a qual somos ressuscitados da
morte do pecado — é precisamente a vida da fé; e uma fé completa
inclui a inspiração plenária e verbal da mensagem da salvação. Ela é
dom de Deus.
É por isso que o maior de todos os credos resultantes da
Reforma, a Confissão de Westminster (I:IV-V), diz:
A autoridade das Escrituras Sagradas, razão pela qual devem ser
cridas e obedecidas, não depende do testemunho de qualquer
homem ou igreja, mas depende somente de Deus (a mesma
verdade) que é o Autor; tem, portanto, de ser recebida, porque é a
Palavra de Deus.
… a nossa plena persuasão e certeza da sua infalível verdade e
divina autoridade provêm da operação interna do Espírito Santo
que pela Palavra e com a Palavra testifica em nossos corações.
A verdade é proposicional
A revelação verbal — com a ideia de que revelação significa uma
comunicação de verdades, informações e proposições — traz à lume
outro fator na discussão. A Bíblia é composta de palavras e
sentenças. Suas afirmações declarativas são proposições no sentido
lógico do termo. Ademais, o conhecimento que os gentios têm de
uma revelação original pode ser expresso nas palavras “são
passíveis de morte os que tais coisas praticam”. A obra da lei escrita
no coração dos gentios resulta em pensamentos, acusações e
desculpas que podem ser e são expressos em palavras. A Bíblia em
lugar algum sugere que existem verdades inexprimíveis. De fato,
existem verdades que Deus não expressou ao homem, pois “as
coisas encobertas pertencem ao Senhor, nosso Deus”; mas isso não
quer dizer que Deus ignora os sujeitos, os predicados, os verbos de
ligação e as concatenações lógicas dessas coisas encobertas.
Novamente enfrentamos o problema do equívoco. Se pudesse existir
uma verdade não exprimível em forma lógica e gramatical, a palavra
verdade, como aplicada a ela, não teria mais em comum com o
significado usual de verdade do que Dogstar tem em comum com
Fido. Seria outro caso de uma palavra sem um único ponto de
coincidência entre seus dois significados. Os cinco professores, ao
contrário, afirmam: “não podemos concluir com segurança que o
conhecimento de Deus é de caráter proposicional”. E uma tese de
doutorado de um dos seus alunos diz: “Parece ser uma tremenda
suposição sem garantia da Escritura, e portanto repleta de
especulações perigosas que se sobrepõem à doutrina de Deus,
alguém afirmar que toda verdade na mente de Deus é possível de
ser expressa em proposições”. Para mim, a tremenda suposição sem
garantia da Escritura é Deus ser incapaz de expressar a verdade que
ele conhece. E que o conhecimento de Deus é um sistema lógico é
algo que parece ser exigido por três evidências indisputáveis:
primeiro, a informação que ele revelou é gramatical, proposicional e
lógica; segundo, o Antigo Testamento fala sobre a sabedoria de Deus
e no Novo Testamento Cristo é designado como o Logos em quem
todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento estão ocultos; e,
terceiro, somos feitos à imagem de Deus, sendo Cristo a luz que
ilumina todos os homens.
Certamente, o ônus da prova recai sobre aqueles que negam a
construção proposicional da verdade. Seu ônus é duplo. Eles não
apenas devem dar evidências da existência de uma tal verdade,
como devem, em primeiro lugar, esclarecer o que querem dizer com
suas palavras. Pode ser que a frase verdade não proposicional seja
uma frase sem significado.
O que entendo ser a confusão no tocante à natureza da
verdade se espalhou para além do grupo criticado acima.
Presumivelmente, o pensamento de Edward J. Carnell não cairia nas
graças deles, e, contudo, ele parece neste ponto ter adotado uma
posição muito parecida. Considere seu argumento em A Philosophy
of the Christian Religion [Uma filosofia da religião cristã].[11] Ele
começa distinguindo duas espécies de verdade: primeiro, “a soma
total da própria realidade”, e segundo, “a consistência sistemática ou
correspondência proposicional com a realidade”. Não é irrelevante
para o argumento considerar a teoria da correspondência da
verdade, mas isso poderia levar a uma discussão demasiado
extensa para a finalidade imediata. É suficiente dizer que, se a mente
tem algo que apenas corresponde à realidade, ela não tem a
realidade; e se ela conhece a realidade, não há necessidade de algo
extra que corresponda a ela. A teoria da correspondência, em suma,
tem todas as desvantagens da analogia. Carnell ilustra a primeira
espécie de verdade, dizendo: “As árvores no quintal são verdadeiras
árvores”. Sem dúvida são, mas isso não convence alguém de que a
árvore é uma verdade. Dizer que as árvores são verdadeiras árvores
é apenas colocar uma ênfase literária na proposição “as árvores são
árvores”. Se alguém dissesse que as árvores não são verdadeiras
árvores, ou que as árvores são falsas árvores, o significado seria
simplesmente que as árvores não são árvores. Nesses exemplos
não é encontrada nenhuma verdade que não seja proposicional e
não é fornecida nenhuma evidência para duas espécies de verdade.
Carnell, em seguida, descreve um aluno que faz um exame em ética.
O aluno pode saber as respostas mesmo não sendo ele próprio uma
pessoa moral. A mãe do aluno, porém, não quer que ele apenas
conheça a verdade, mas que seja a verdade. Carnell insiste que o
aluno pode ser a verdade. Ora, a mãe obviamente quer que seu filho
seja moral, mas que significado pode ser vinculado à frase de que a
mãe quer que o filho seja a verdade? Suponhamos que o
pensamento seja apenas preparatório para ser moral, como diz
Carnell, mas o que se pode querer dizer com ser a verdade; isto é, o
que mais se pode querer dizer além de ser moral? O aluno não
poderia ser uma árvore. Parece, portanto, que Carnell está usando
uma linguagem figurada e não falando literalmente. Ele então se
refere às palavras de Cristo: “Eu sou… a verdade”. Ora, seria pouco
generoso concluir que, quando Cristo diz “Eu sou… a verdade” e
então se diz que o aluno é a verdade, Cristo e o aluno são
identificados. Mas para evitar essa identificação é preciso ver o que
Cristo quer dizer com sua declaração. Como foi dito antes, a Bíblia é
literalmente verdadeira, mas nem toda sentença nela é verdadeira
literalmente. Cristo disse “Eu sou a porta”, mas com isso não queria
dizer que era feito de madeira. Cristo também disse “Isto é o meu
corpo”. Os romanistas acham que ele falou literalmente; os
presbiterianos tomam a frase em sentido figurado. Da mesma forma,
a declaração “Eu sou… a verdade” deve ser entendida como “Eu sou
a fonte da verdade; Eu sou a sabedoria e o Logos de Deus; as
verdades são estabelecidas por minha autoridade”. Mas isso não
poderia ser dito acerca do aluno; assim, chamar um aluno de a
verdade é extremamente figurado ou totalmente desprovido de
significado.
Carnell também diz: “Visto, porém, que seus sistemas [os
sistemas de pensamento da mente finita] nunca são completos, a
verdade proposicional nunca pode ir além da probabilidade”. Mas se
isso é verdade, então não é em si verdade, mas somente algo
provável. E se isso é verdade, as proposições na Bíblia, como Davi
matou Golias e Cristo morreu pelos nossos pecados, são apenas
prováveis — elas podem ser falsas. E sustentar que a Bíblia pode
ser falsa é obviamente inconsistente com a revelação verbal. Em
contrapartida, portanto, é preciso manter que, a despeito da grande
ignorância que pode caracterizar os sistemas de pensamento
humanos, essa ignorância de muitas verdades não altera as poucas
verdades que a mente possui. Há muitas verdades da matemática,
astronomia, gramática grega e teologia bíblica que eu desconheço;
mas se conheço alguma coisa, e especialmente se Deus me deu
apenas um item de informação, minha extensa ignorância não terá
efeito sobre aquela única verdade. Do contrário, todos nós
estaremos envolvidos num ceticismo que torna a argumentação uma
perda de tempo.
No século XX, não é Tomás de Aquino mas Karl Barth, Emil
Brunner, os neo-ortodoxos e os existencialistas que são a fonte
desse ceticismo em detrimento da revelação. Escreve Brunner:
Fica inequivocamente claro aqui que o que Deus quer nos dar não
pode ser dado verdadeiramente [eigentlich] em palavras, mas
somente através de uma sugestão [hinweisend]… Portanto, como
[Jesus] é a Palavra de Deus, todas as palavras têm um significado
meramente instrumental. Não apenas o recipiente linguístico das
palavras mas também o conteúdo conceitual não é a coisa em si,
mas apenas sua forma, seu recipiente e seus meios.
O ceticismo total dessa posição — em que não somente os símbolos
verbais, mas também o conteúdo conceitual não é o que Deus
realmente quer nos dar — é disfarçado em frases piedosas sobre
uma verdade pessoal, ou Du-Wahrheit, distinta da relação sujeito-
predicado chamada de Es-Wahrheit. Deus não pode ser objeto do
pensamento, não pode ser um Gegenstand para a mente humana.
Em vez de ser uma questão de proposições, a verdade é um
encontro pessoal. Brunner não apenas reduz a sugestões ou
indicadores quaisquer palavras que Deus possa falar, como também
sustenta que as palavras de Deus podem ser falsas. “Deus pode,
caso queira, falar sua Palavra ao homem até mesmo através de
doutrinas falsas.” Esse é o ponto culminante, e comentá-lo seria algo
supérfluo.
Em conclusão, quero afirmar que uma teoria satisfatória de
revelação deve envolver uma epistemologia realista. Por realismo,
neste contexto, quero dizer uma teoria de que a mente humana
possui alguma verdade — não uma analogia da verdade, não uma
representação ou correspondência da verdade, não uma mera
sugestão da verdade, não um verbalismo sem sentido sobre uma
nova espécie de verdade, mas a própria verdade. Deus falou sua
Palavra em palavras, e essas palavras são símbolos adequados do
conteúdo conceitual. O conteúdo conceitual é literalmente
verdadeiro; e é o ponto de coincidência unívoco e idêntico no
conhecimento de Deus e do homem.
1
3. A inspiração verbal ontem e hoje
As reivindicações bíblicas
A inspiração das Escrituras, com a relevância que tem para a
verdade e autoridade da Palavra de Deus, é de importância tão óbvia
para o cristianismo que nenhuma justificativa detalhada é necessária
para se debater o assunto. De fato, é até perdoável começar com
algumas coisas bastante elementares. Não só perdoável, como de
fato indispensável. Nenhuma discussão sobre a inspiração pode
fazer uma contribuição de grande valor sem levar em conta os dados
bíblicos elementares. Esses dados devem ser mantidos em mente.
Porém, infelizmente, alguns desses detalhes se podem ter dissipado
de nossa memória envelhecida. De forma ainda mais infeliz, a
geração mais nova — devido aos baixos padrões de muitos
seminários — pode nunca ter aprendido os dados bíblicos. Desejo,
portanto, antes de tudo fazer algumas declarações simples sobre a
doutrina da inspiração tal como era comumente explicada cem anos
atrás.
Foi em 1840 que Louis Gaussen publicou sem famoso livreto
Theopneustia. Gaussen era um teólogo suíço que, como J. Gresham
Machen neste século [XX], foi destituído do ministério e expulso da
igreja por causa de sua adesão à verdade das Escrituras. E seu livro
Theopneustia é uma defesa da inspiração. Nele Gaussen reúne a
quantidade impressionante de conteúdo que as Escrituras têm a
dizer sobre si mesmas. E, embora isso tenha se passado um século
atrás, ninguém deveria abordar a questão da inspiração sem um bom
conhecimento do trabalho de Gaussen ou pelo menos sem um bom
conhecimento do que a Bíblia tem a dizer sobre si mesma.
O efeito é cumulativo; e é profundamente lamentável que, ao
invés de examinar e determinar o significado de umas cem
referências, tenhamos esta manhã de escolher apenas algumas.
Por exemplo, Gaussen nota as três vezes em que Isaías diz “a
boca do S o disse”, assim como outras expressões
semelhantes em Isaías. Gaussen chama a atenção para 2 Samuel
23.1-2: “O Espírito do S fala por meu intermédio, e a sua
palavra está na minha língua”. Novamente: “No segundo ano do rei
Dario… Veio, pois, a palavra do S , por intermédio do profeta
Ageu”. A Moisés Deus disse “eu serei com a tua boca”. E Atos 4.25
afirma o Senhor disse “por boca de Davi, nosso pai, teu servo”.
O efeito cumulativo de várias dezenas desses versículos é a
conclusão de que os profetas não reivindicam falar em sua própria
autoridade mas testificam que o Espírito lhes dá sua mensagem e os
faz falar.
É preciso notar bem que a mensagem dada pelo Espírito não é
meramente a ideia geral da passagem, mas as próprias palavras.
Deuteronômio 18.18-19: “Suscitar-lhes-ei um profeta… em cuja
boca porei as minhas palavras… De todo aquele que não ouvir as
minhas palavras, que ele falar em meu nome, disso lhe pedirei
contas”.
Jeremias 1.9: “Depois, estendeu o S a mão, tocou-me na
boca e o S me disse: Eis que ponho na tua boca as minhas
palavras”.
Só há tempo para mais uma referência para mostrar que os
profetas reivindicam falar as palavras de Deus. Ouça, portanto, a
declaração de nosso Senhor: “Porque, se, de fato, crêsseis em
Moisés, também creríeis em mim; porquanto ele escreveu a meu
respeito. Se, porém, não credes nos seus escritos, como crereis nas
minhas palavras?” (Jo 5.46-47).
Uma vez mais devo dizer, o efeito é cumulativo. É preciso ler
todas as referências de Gaussen e observar cuidadosamente o
significado de cada uma. Só assim se terá uma base adequada para
a doutrina da inspiração.
A última referência nos leva um passo adiante neste conteúdo
elementar. Na ignorância alguém poderia objetar que, embora Deus
tenha dado suas palavras aos profetas e os feito falar, o falar cessou
há milhares de anos, e temos apenas relatos dos discursos. Essa
questão, que diz respeito à relação entre a palavra falada e a palavra
escrita, foi respondida por Cristo na última referência. Observe
atentamente que o nosso Senhor diz: “[Moisés] escreveu a meu
respeito [e se] não credes nos seus escritos, como crereis nas
minhas palavras?”.
Quando as palavras que Deus deu a seus profetas foram
escritas, elas se tornaram os Escritos, isto é, as Escrituras. E são
nas Escrituras, nos Escritos, que Jesus diz para procurarmos a vida
eterna. Em sua tentação, Jesus repele Satanás dizendo: “Está
escrito”. Também em João 6.45, 8.17, 12.14, 15.25 a frase “Está
escrito” resolve os pontos em questão.
Permita-me finalmente aludir a mais uma passagem
excepcionalmente importante. Em João 10.34-35 (ARC) Jesus está
defendendo sua reivindicação de divindade. Ele cita Salmos 82. Será
que cita esse salmo porque Salmos 82 é mais inspirado e mais
autoritativo que qualquer outra passagem no Antigo Testamento? De
modo nenhum. Diz ele: “Não está escrito na vossa lei… e a Escritura
não pode ser anulada”. Cristo apelou aqui a Salmos 82 porque o
salmo faz parte da Escritura e, visto que toda a Escritura é dada por
inspiração de Deus, essa passagem também é inspirada, pois a
Escritura não pode ser anulada.
Deixe-me repetir pela terceira vez que o efeito é cumulativo. É
preciso ter em mente as centenas de casos em que a Bíblia
reivindica inspiração verbal. Ora, para concluir esta primeira seção,
este exame de detalhes elementares, eu gostaria de fazer uma
pergunta pontual. Se os profetas que falaram, se os autores que
escreveram e se nosso próprio Senhor estão equivocados nessas
centenas de vezes, que convicção pode alguém ter acerca das
demais coisas que eles disseram e escreveram? Existe alguma
razão para se supor que homens que estavam tão uniformemente
enganados quanto à fonte da sua mensagem poderiam ter tido
qualquer percepção superior e qualquer conhecimento preciso da
relação do homem com Deus? Ainda mais especificamente: pode
alguém professar uma ligação pessoal a Jesus Cristo e
consistentemente contradizer sua afirmação de que as Escrituras
não podem ser anuladas?
A objeção do ditado
Uma vez que este relato elementar e abreviado da inspiração verbal
está baseado num volume de um século atrás, o próximo passo,
antes de atualizar os assuntos, será o exame de uma objeção
centenária.
A ideia de que Deus deu suas palavras aos profetas parece, a
muitos liberais, uma teoria mecânica e artificial de revelação. Deus,
dizem-nos eles, não deve ser retratado como um chefe que dita
palavras à sua estenógrafa. E mais, os escritos dos profetas
mostram claramente a liberdade e espontaneidade da individualidade
pessoal. O estilo de Jeremias não é o de Isaías, nem João escreve
como Paulo. As palavras são obviamente as palavras de João e
Jeremias, não de um chefe que dita a várias estenógrafas. As
estenógrafas de um chefe produzirão letras no mesmo estilo literário;
não irão ou deverão corrigir o vernáculo. Ora, portanto, se Deus ditou
as palavras da Bíblia, as diferenças pessoais não podem ser
explicadas — do que se segue que a doutrina da inspiração verbal é
falsa.
Em resposta a essa objeção, e a muitas outras objeções contra
várias fases do cristianismo, é útil notar que os antagonistas
deturpam uniformemente as doutrinas que atacam. Por conseguinte,
o primeiro passo indispensável para elaborar uma resposta é mostrar
claramente o que faz e o que não faz parte da doutrina da inspiração
verbal.
Ora, tenhamos certos fatos claramente em mente. Em primeiro
lugar, as diferenças de estilo — e elas são tão óbvias que até mesmo
uma tradução não pode obscurecê-las — mostram decisivamente
que a Bíblia não foi ditada como um chefe dita a um estenógrafa.
Houve de fato alguns teólogos que usaram a ideia do ditado. Se
todos queriam dizer ditado no sentido em que ocorre num escritório
moderno de negócios, ou se alguns tinham em mente o sentido mais
geral de uma ordem e imposição autoritativa, não precisamos
discutir. O ponto essencialmente é que a grande maioria dos
teólogos que defendem e têm defendido a inspiração verbal jamais
aceitaram a teoria do ditado. Alguém poderia facilmente supor que os
incrédulos acharam mais fácil ridicularizar o ditado do que entender e
discutir a inspiração verbal como na verdade ensinada por teólogos
evangélicos.
Como, então, devem as diferenças de estilo ser explicadas e o
que significa inspiração verbal? A resposta a essas questões,
envolvendo a relação entre Deus e os profetas, leva-nos
rapidamente para longe da imagem de um chefe e um estenógrafa.
Quando Deus quis fazer uma revelação (na época do êxodo ou
do cativeiro), não olhou subitamente ao redor, como se pego
despreparado, perguntando-se que homem poderia usar para a
finalidade. Não podemos supor que ele tenha publicado um anúncio
atrás de ajuda e que, quando Moisés e Jeremias se candidataram,
Deus os constrangeu a falar as palavras dele. Todavia, essa visão
pejorativa subjaz a objeção à inspiração verbal. A relação entre Deus
e o profeta é totalmente diferente daquela entre um chefe e uma
estenógrafa.
Se considerarmos a onipotência e sabedoria de Deus, uma
representação muito diferente emerge. O chefe deve usar o que tiver
à mão; ele depende de que a escola secundária ou faculdade de
negócios tenha ensinado taquigrafia e digitação à estenógrafa. Mas
Deus não depende de nenhuma agência externa. Deus é o Criador.
Ele fez Moisés. E, quando queria que Moisés falasse por ele, Deus
disse: “Quem fez a boca do homem? … Não sou eu, o S ?”.
A inspiração verbal, portanto, deve ser entendida em conexão
com o sistema completo de doutrina cristã. Ela não pode ser daí
desvinculada e não pode a fortiori ser enquadrada em uma visão
alheia de Deus. A inspiração verbal é parte integrante das doutrinas
da providência e da predestinação. Quando os liberais negam de
forma sub-reptícia a predestinação retratando Deus como alguém
que dita para estenógrafos, deturpam a inspiração verbal a ponto de
suas objeções não se aplicarem ao Deus da Bíblia. O problema não
é, como pensam os liberais, que o chefe controla cem por cento a
estenógrafa; pelo contrário, a analogia perde o ponto porque o chefe
mal consegue controlar a estenógrafa.
Coloque nestes termos: desde toda a eternidade, Deus
decretou tirar os judeus da escravidão pelas mãos de Moisés. Para
esse fim, controlou a tal ponto os eventos que Moisés nasceu numa
determinada data, foi colocado na água para ser salvo de uma morte
prematura, foi encontrado e adotado pela filha do Faraó, recebeu a
melhor educação possível, foi conduzido ao deserto para aprender a
paciência e, em todos os sentidos, a tal ponto preparado pela
hereditariedade e ambiente que quando chegou a hora a
mentalidade e o estilo literário de Moisés eram os instrumentos
precisamente adequados para falar as palavras de Deus.
Com o ditado ocorre de forma totalmente diferente. Um chefe
tem pouco controle sobre a estenógrafa, com exceção das palavras
que ela digita para ele. Ele não controlou a educação recebida por
ela. Ela pode estar totalmente desinteressada nos negócios dele.
Eles podem ter muito pouco em comum. Mas entre Moisés e Deus
havia uma união interior, uma identidade de propósito, uma
cooperação de vontades, de modo que as palavras escritas por
Moisés eram ao mesmo tempo as palavras de Deus e as palavras de
Moisés.
Assim, quando vemos a presença e providência penetrantes de
Deus na história e na vida dos seus servos, reconhecemos que o
ditado do escritório de negócios não faz justiça às Escrituras. O
Espírito Santo habitou esses homens e ensinou-lhes o que escrever.
Deus determinou qual deveria ser a personalidade e estilo de cada
autor, e Deus o determinou para o propósito de expressar sua
mensagem, suas palavras. As palavras da Escritura, portanto, são as
próprias palavras de Deus.
Teorias contemporâneas
Mas, por inadequada que essa exposição e defesa elementar da
inspiração verbal tenha sido, um pouco de tempo deve ser reservado
para uma terceira e última seção sobre a situação contemporânea.
Com o declínio do liberalismo ritschliano e a ascensão do
existencialismo, da neo-ortodoxia e do positivismo lógico, o ponto de
ataque mudou. Não é mais uma questão de se as palavras da Bíblia
são as palavras de Deus ou meramente as palavras falíveis de um
homem; hoje uma objeção mais generalizada é feita com base numa
teoria de linguagem. Os filósofos se tornaram interessados em
semântica, e algumas de suas visões mudariam a tal ponto o
significado das palavras que, mesmo com toda a inspiração verbal
imaginável, a Bíblia seria esvaziada do seu significado cristão. De
acordo com vários escritores, ou toda linguagem é metafórica e
simbólica, ou pelo menos toda linguagem religiosa o é. Nenhuma
declaração religiosa deve ser tomada literalmente. Por exemplo,
John Mackintosh Shaw, professor de Teologia Sistemática no
Queen’s College em Ontário, refere-se aos termos resgate,
justificação, propiciação, expiação e reconciliação como metáforas
ou figuras de linguagem.[12] A partir desse tipo de visão pode ser e
tem sido concluído que a revelação divina não pode ser uma
comunicação de verdades.
Falando dos primeiros capítulos de Gênesis, William M. Logan,
pastor da University Presbyterian Church em Austin, Texas, diz em
seu livro In the Beginning, God [No princípio, Deus]:
São parábolas, não histórias ou explicações… não há nenhuma
tentativa de se formular proposições intelectuais para declarar
verdades básicas. Em vez disso, o método é o das imagens e
simbolismos poéticos… Não é de Adão que estou lendo; é de mim
mesmo… Por esse motivo, nenhuma mudança em nosso
conhecimento da verdade física pode afetar o ensino desses
capítulos mais do que poderia afetar as fábulas de Esopo.[13]
Mais tarde ele diz:
A questão realmente importante sobre a história do Jardim do
Éden não é se ela é literalmente, factualmente verdadeira na
mesma ordem de verdade com a qual a história, geografia,
astronomia ou geologia lidam… Essa história lida com a verdade
última que… só pode ser expressa por imagem e simbolismo…
Alguém já perguntou se a história do Bom Samaritano aconteceu
literalmente?[14]
A Queda é um simbolismo… Éden não está em nenhum mapa, e a
queda de Adão não se encaixa em nenhum calendário histórico.
Moisés não está mais perto da Queda do que nós porque viveu
3000 anos antes do nosso tempo. A Queda não se refere a alguma
calamidade original datável no passado histórico da humanidade,
mas a uma dimensão da experiência humana que está sempre
presente… Todo homem é seu próprio Adão.[15]
A tarefa atual
A doutrina da inspiração verbal é não apenas a plataforma na qual a
Sociedade Teológica Evangélica se apoia, como também a questão
crucial no debate teológico hoje. Dr. John Warwick Montgomery, no
Bulletin da nossa Sociedade (Volume 8, Número 2), começa seu
extenso artigo sobre “Inspiração e inerrância” lembrando que James
Orr tomou nota do fato de que, em cada época de sua história, a
igreja teve de lidar com uma doutrina específica de significado
crucial. No início do século IV a questão crucial era a doutrina da
Trindade. Agora, próximo do fim do século XX, a controvérsia se
centra na natureza da Palavra de Deus.
Uma evidência importante de que a veracidade da Escritura é o
atual centro de controvérsia é a situação atual na United
Presbyterian Church. Trinta anos atrás, por ação judicial, essa
denominação se recusou a impor seu credo e fez da Confissão de
Westminster “letra morta”. Neste ano foi iniciado o procedimento
formal e legal para substituir a CFW por uma nova declaração em
que praticamente nada do antigo credo permanece. O motivo
alegado na literatura é o desejo de estar livre da infalibilidade bíblica.
Desaparecida a infalibilidade, caem as demais doutrinas da Escritura
automaticamente no esquecimento. Desse modo, a satisfação vicária
de Cristo e as demais doutrinas não mais são consideradas
verdades, mas meramente “imagens de uma verdade que
permanece fora do alcance de qualquer teoria” ou conhecimento.
A Sociedade Teológica Evangélica deveria assumir o
protagonismo na controvérsia deste século sobre a inspiração. Há
sem dúvida homens bons e capazes que não são membros dessa
Sociedade, mas não existe outra associação profissional organizada
nesta base. Esta, portanto, é a nossa tarefa atual.
Os golpes da batalha
Numa peleja vigorosamente disputada não é comum um dos lados
sair completamente ileso. A Sociedade Teológica Evangélica sofreu
algumas perdas e pode sofrer mais. Só neste ano, um de nossos
membros se retirou porque, citando sua carta, “Descobri… ser
intelectualmente impossível aceitar a última cláusula da base
doutrinária da Sociedade”.
Por trás dessa declaração está muito provavelmente a ideia de
que a investigação histórica descobriu erros indubitáveis na
Escritura. Como foi dito há pouco, essa grande confiança parece
estranha em vista do fato de que tantas alegações específicas de
erro foram explodidas.
A carta de renúncia também sugere outra razão por que seria
intelectualmente impossível aceitar a inspiração verbal. Nosso
membro desligado acredita que a ideia de infalibilidade, ainda que
fosse verdadeira, seria todavia inútil porque, citando novamente, “a
história secular pode ser infalível no sentido de um registro
impecável de fatos históricos, mas não será uma verdade salvadora”.
O que esse argumento significa? Aparentemente, a ocorrência
de declarações verdadeiras em livros de história seculares deve
implicar que a Bíblia não precisa de declarações verdadeiras. Ora, se
algo pode ser considerado intelectualmente impossível, não é a
infalibilidade bíblica, mas esse argumento esquisito contra a
infalibilidade bíblica. Só porque certas declarações verdadeiras sobre
a história americana ou chinesa não são verdades salvadoras, como
pode suceder que o conhecimento salvador não precisa ser
verdadeiro? É uma forma muito estranha de intelecto essa que
argumenta contra a infalibilidade ou contra a utilidade da verdade ou
da necessidade da verdade sob a alegação de que as histórias
seculares são às vezes verdadeiras.
A infalibilidade é inútil?
Por sua afirmação de que as verdades da história secular não são
verdades salvadoras, a carta de renúncia parece depender mais da
ideia de que a infalibilidade é espiritualmente inútil do que de ser
intelectualmente impossível. Para completar uma citação já dada
parcialmente, o escritor diz: “Considerei espiritualmente
desnecessário e intelectualmente impossível aceitar a base
doutrinária da Sociedade”.
Um divórcio nítido entre o que é intelectual e o que é espiritual,
um divórcio proclamado pelos neo-ortodoxos e também pelos
fundamentalistas pietistas, não é compatível com nossa herança
reformada. O Dr. Beegle, mencionado anteriormente, acusa o dogma
da inerrância de levar a uma relação fria e impessoal com a Escritura
como um corpo de verdade objetiva e proposicional, desvalorizando
a resposta experiencial. O uso das palavras fria e impessoal é
simplesmente um artifício de propaganda. Num inverno gelado a
palavra frio nos faz tremer; mas nos verões de calor tropical algo frio
é muito atraente. Se deixamos agora de lado as metáforas
enganosas da propaganda, o que resta é o desgosto do Dr. Beegle
pela verdade objetiva e proposicional. Pelo visto ele acha a verdade
espiritualmente desnecessária. Aqueles que foram influenciados por
Kierkegaard e pelo existencialismo moderno adotam uma visão da
natureza da religião que é bastante diferente da religião de Lutero e
Calvino. Esses reformadores, assim como o apóstolo Paulo, não
tinham antipatia pela verdade objetiva e proposicional.
Talvez o cavalheiro que se desligou não vá tão longe no
existencialismo quanto Bultmann ou Beegle. O que ele de fato diz é:
“a história secular pode ser infalível… mas não será uma verdade
salvadora”. Assim, ele parece sustentar que a infalibilidade é
espiritualmente desnecessária porque um pecador pode ser
verdadeiramente salvo sem crer. Outras coisas que ele diz indicam
que ele considera a infalibilidade espiritualmente desnecessária
porque várias outras doutrinas evangélicas ainda podem ser
defendidas após se ter abdicado da infalibilidade.
O argumento de que a inspiração verbal é inútil porque um
pecador pode ser salvo sem acreditar nela é um argumento de
imensa confusão. É verdade que o ladrão na cruz não sabia sobre (e
portanto não podia acreditar) o nascimento virginal, a doutrina da
santificação e o segundo advento. É, portanto, a doutrina da
santificação inútil? Devem os cristãos comuns, para não dizer os
pastores e os teólogos, restringir seu conhecimento às limitações do
ladrão na cruz? Ousaria algum estudioso falar tão estupidamente?
Deveria alguém ensinar novamente os rudimentos dos princípios
primeiros a aqueles que deveriam ser professores mas regrediram
do alimento sólido para o leite da infância? Certamente a teologia
não deve se limitar ao conhecimento mínimo essencial para o
estágio inicial da salvação de qualquer indivíduo aleatório.
Isso me faz lembrar de um professor numa faculdade cristã de
quem ouvi que se opunha à inclusão de um curso em teísmo no
currículo sob a alegação de que um curso em teísmo nunca salvou
ninguém.
Doutrinas evangélicas
Se, porém, estamos dispostos a avançar além do estágio mais
elementar da vida cristã e a aprender, discutir e pregar várias
doutrinas adicionais, a próxima pergunta é: podemos manter essas
várias doutrinas sem considerar a doutrina da inspiração plenária e
verbal? Historicamente não podem ser encontradas muitas
evidências em favor de uma resposta afirmativa. Há suficiente
evidência de indivíduos e organizações eclesiásticas que
abandonam a infalibilidade e outras doutrinas em sucessão ou
simultaneamente. Acima foi observado que a United Presbyterian
Church, motivada pelo desejo de evitar o chamado efeito colateral da
inspiração bíblica, está descartando virtualmente cada uma das
doutrinas de Westminster.
Isso não é nenhuma anomalia. É um desenvolvimento
perfeitamente coerente. Se a Bíblia em cem passagens diferentes
está errada na explicação que dá de si mesma, por que o resto da
sua mensagem deveria ser aceito como verdadeiro? Se os profetas
falaram falsamente quando disseram que suas palavras eram as
palavras de Deus, colocadas em suas bocas pelo Espírito Santo, de
forma que o Deus que não pode mentir estava falando por meio
deles — se estavam assim errados, que confiança podemos ter em
qualquer outra coisa que disseram? Se as palavras de Davi e
Jeremias são palavras de Deus, estamos obrigados a aceitá-las. Mas
se são palavras apenas de Davi ou Jeremias, não seria mais
proveitoso estudar Aristóteles ou Plotino? E se, como diz o novo
credo da United Presbyterian Church, “as palavras das Escrituras
são as palavras de homens condicionados pela linguagem, formas
de pensamento e estilos literários dos lugares e épocas em que
foram escritas”, e se “elas refletem as visões da vida, da história e do
cosmo que eram então correntes”, pode a Bíblia ser algo mais que
um livro de referência da sociologia do antiga Israel? Creio que não.
Um livro que dê uma explicação falsa de sua própria origem e
natureza (ou um profeta que confunda as visões atuais da história e
do cosmos com a Palavra de Deus) não é um guia confiável na
religião. Sua doutrina da expiação, seu relato da ressurreição e sua
promessa do Céu não seriam neste caso confiáveis.
Autoridade bíblica
Se agora alguém insiste que uma declaração fortuita de Jeremias ou
a doutrina da santificação em Paulo podem ser acidentalmente
verdadeiras e podem ser aceitas mesmo após se rejeitar a
infalibilidade, gostaríamos de saber em que base e por qual método
essas outras doutrinas são retidas. Não basta alegar que esse
versículo e essa doutrina podem ser salvos de uma Bíblia errônea. A
alegação deve ser fundamentada. Por que direito pode Brunner
aceitar “E o Verbo se fez carne” quando rejeita “Eis que a virgem
conceberá e dará à luz um filho”? Como pode Bultmann
demitologizar os Evangelhos e reter um Deus transcendente? Pode o
argumento cosmológico, baseado na mera observação da natureza,
provar a existência de um Deus que ouve as nossas orações? Pode
a história, incluindo as guerras mundiais deste século, demonstrar
que a morte de Cristo satisfaz a justiça divina? Implicam as
frustrações humanas no Segundo Advento? Ou, talvez, o neo-
ortodoxo chamará essas sugestões de uma paródia ou caricatura.
Sinto muito, peço desculpa. Mas como eles nunca descreveram seu
método, só podemos conjecturar. Todavia, devo continuar insistindo
que não basta a alegação de salvar algumas doutrinas. Eles devem
apresentar um procedimento claramente articulado para exame.
Em vez de tornarem seus princípios e procedimentos claros,
eles parecem se satisfazer em chamar a Bíblia de autoritativa. A
carta de renúncia acima citada faz isso. De fato, a carta diz que a
Escritura é “totalmente inspirada”, do que se pode concluir que os
erros na Escritura também são totalmente inspirados. A carta
prossegue e redefine inerrância de modo que uma Bíblia cheia de
erros possa ser chamada de inerrante. Se isso é ou não honestidade
intelectual e uma necessidade espiritual, é quando menos uma
lexicografia pobre. Não podemos nós, de forma legítima, perguntar
como um livro errôneo pode ser inerrante e espiritualmente
autoritativo?
Suponha que eu chamasse sua atenção para este livro que
tenho em mãos. É um livro antigo sobre Sócrates, escrito por Símias,
um dos amigos de Platão. Símias tinha a opinião incomum de que
Anaxágoras era o pai de Sócrates, e não Sofrónisco, como diz
Platão. O autor, ademais, nos conta que Sócrates foi morto em
batalha e recebeu um funeral de herói em Atenas — entre inúmeros
outros erros factuais no livro. Infelizmente, também, o autor estava
tão favoravelmente impressionado com a personalidade de Sócrates
que atribuiu a Sócrates a teoria do behaviorismo que Sócrates
estimulara em sua mente. E, atualmente, visto que o Sócrates
histórico não escreveu nada, a pesquisa histórica não pode ter
certeza de uma única coisa que Sócrates disse.
Contudo, permita-me dizer enfaticamente que este livro é a
fonte autoritativa da filosofia socrática. Devemos aceitá-lo, ou pelo
menos tanto dele quanto possa estimular nossas próprias respostas
autênticas. Este livro é a palavra infalível de Sócrates.
Ora, se tivesse dito tudo isso a você com toda a seriedade, não
suspeitaria que eu estava um pouco demente? Claro, eu poderia ser
suficientemente são em assuntos como basebol e mercado de
ações; mas se você estivesse interessado em filosofia, creio que
acharia intelectualmente necessário e filosoficamente útil voltar a
atenção para outro lugar.
A necessidade humana
A necessidade espiritual é o único critério que a carta de renúncia
usa para escolher algo da confusão de erros. Se existe algum outro
método para reter alguns fragmentos da Bíblia, ele também deve ser
examinado depois de ter sido claramente articulado. A carta só
menciona a necessidade espiritual.
Esse método prova ser um fracasso devido a duas objeções
relacionadas. O escritor da carta acha a inspiração plenária e verbal
espiritualmente desnecessária. Outra pessoa que eu poderia citar
acha que precisa, espiritual e intelectualmente, de uma mensagem
infalível de Deus. Nesta situação devemos nós dizer que um
versículo ou doutrina é falso para um homem, mas verdadeiro para
outro? O Sr. A precisa da doutrina da santificação, mas o Sr. B —
seja porque é um antinomiano, seja porque já alcançou a perfeição
imaculada — não precisa da doutrina. Aqueles que adotam esse
procedimento reconheceriam e defenderiam o relativismo da verdade
que está por trás dele?
A carta de renúncia dá a impressão otimista de que um bom
número de doutrinas evangélicas pode ser mantido e que as igrejas
evangélicas podem continuar nessa base. Todavia, é claro que
algumas pessoas acham que precisam de mais e algumas pessoas
acham que precisam de menos. Permitirá a renúncia que as últimas
pessoas descartem mais e que finalmente descartem toda a Bíblia?
Que argumentos poderia o membro pressionar sobre eles, que não
sentem a mesma necessidade dele, para reter o que ele deseja
reter? Se ele tem liberdade para rejeitar algumas doutrinas, não deve
conceder-lhes a mesma liberdade para que possam rejeitar o que
acham que não precisam?
Ora, há uma segunda objeção relacionada a esse critério de
necessidade espiritual. A objeção tem a ver com a determinação da
necessidade. Se os escritores da Bíblia não fossem infalíveis,
poderia qualquer um de nós ser um percipiente infalível das nossas
necessidades? Ousaríamos reivindicar que não cometemos nenhum
erro em nossas autoanálises? A Bíblia fornece uma análise da
natureza e necessidade humanas. Ela nos diz que a culpa da
primeira transgressão de Adão foi imediatamente imputada a nós
com o resultado de que nascemos em iniquidade e nosso coração é
enganoso mais do que todas as coisas. Se essa declaração bíblica é
verdadeira, qualquer análise meramente humana da natureza
humana está fadada a não ser confiável. E se a Bíblia não é
verdadeira, que razão há para pensar que temos uma compreensão
mais precisa do que os profetas, que mesmo em princípios neo-
ortodoxos permaneceram tão perto das fontes da fé? Posso sugerir,
portanto, que quem diz que não necessita da doutrina da
infalibilidade entendeu mal suas próprias necessidades?
O critério
Se em face dessa objeção tais teólogos ainda defendem que muitas
ou mesmo algumas doutrinas bíblicas podem ser retidas de uma
Bíblia errônea, temos pelo menos o direito de saber como eles
decidem quais doutrinas necessitam. Nós os pressionamos por
causa de seu método de reter algumas e rejeitar outras.
Recentemente um escritor liberal se referiu desdenhosamente a
esse desafio. Ele disse que os conservadores obtiveram uma vitória
barata quando pediram aos liberais que declarassem seu critério não
bíblico de aceitação e rejeição. Por que esse desafio é barato, não
sei. Por que não é uma vitória, ele não disse. Se um teólogo aceita
uma doutrina simplesmente porque a Bíblia a ensina, aceita a
infalibilidade bíblica; mas se rejeita a infalibilidade bíblica, não pode
aceitar a doutrina simplesmente porque a Bíblia a ensina. Portanto,
ele deve usar algum outro critério. Eu não vejo nada barato em
perguntar qual é esse critério. De fato, os ideais de erudição são
abandonados — e o fundamento da fé está disfarçado — a menos
que esse critério seja claramente declarado.
Os neo-ortodoxos, porém, parecem muito relutantes em
responder essa pergunta. Eles escondem seu critério sob um
alqueire. Mas é “intelectualmente impossível” ir longe sem de fato
algum substituto para o critério da Escritura. Na teologia, assim como
na engenharia automotiva, se você tira as velas de ignição, tem de
usar algum substituto ou senão o carro não vai.
A contemporização neo-ortodoxa
Embora esses homens sejam abertamente anticristãos, há também
uma forma de irracionalismo do século XX derivada diretamente do
aluno de Hegel, Kierkegaard, que se veste com uma terminologia
cristã e tenta, por um apelo à revelação, evitar os excessos de
Nietzsche. Ela afirma às vezes ser um retorno ao ponto de vista
reformado. É preciso perguntar não apenas se essa alegação pode
ser historicamente justificada mas, mais especificamente, se essa
filosofia fornece uma validação adequada do conceito cristão de
revelação.
Esse movimento chamado neo-ortodoxo ou existencial admite
de bom grado que a razão fracassou. Até mesmo a natureza
inanimada está além da compreensão intelectual, pois não existe
nenhum movimento na lógica e nenhuma lógica no movimento.
O tornar-se está aberto e a realidade é o acaso. Se a lógica
sucumbe no movimento físico, é ainda mais impotente nas questões
da vida. O que é necessário não são conclusões, mas decisões.
Devemos portanto dar um salto de fé e aceitar uma revelação de
Deus.
Para muitas pessoas devotas perturbadas com a popularidade
do cientismo secular, oprimidas pela influência mortífera do
modernismo e (injustificadamente) amedrontadas pelas negações da
alta crítica, a neo-ortodoxia parecia um maná de cima. A revelação
tinha sido agora salva; a razão tinha sido derrotada!
Contudo, antes que os herdeiros de Lutero e Calvino possam
corretamente se regozijar, devem saber precisamente no que
consiste essa revelação, que tipo de fé se tem em vista e se resta
algo de valor após a derrota da razão. O fracasso do racionalismo do
século XVII não é motivo de preocupação; pode-se lidar bem com o
destino de Hume e Hegel; a razão empírica e concreta de Brightman
pode ser dispensada sem problemas — mas o que resta se a razão,
no sentido das leis da lógica, deve ser abandonada? Que valor teria
uma revelação ilógica ou irracional?
A principal lei da lógica é a lei da contradição, e é essa lei que
mantém a distinção entre a verdade e a falsidade. Se essa distinção
não pode ser mantida, então (como mostraram os antigos sofistas)
todas as opiniões são verdadeiras e todas as opiniões são falsas.
Qualquer proposição é tão crível quanto qualquer outra. Se, portanto,
Nietzsche ou Freud usaram o raciocínio para chegar às suas
posições, se o raciocínio distorce a realidade e se uma teoria não é
mais verdadeira do que outra, segue-se que esses homens não têm
nenhuma boa base para afirmar suas teorias. Negar a razão, no
sentido das leis da lógica, é esvaziar o diálogo ou argumento de todo
significado.
Ora, é isso o que a neo-ortodoxia (bem como Nietzsche) faz.
Em seu Pós-escrito conclusivo não científico às migalhas filosóficas,
Kierkegaard diz que não faz diferença se um homem ora a Deus ou a
um ídolo, desde que ore apaixonadamente. A verdade, diz ele, está
no como interior e não no o quê exterior. Se somente o como da
relação do indivíduo é “verdadeiro”, então o indivíduo está na
verdade — embora esteja assim relacionado à inverdade.
Brunner também abole a distinção entre verdade e falsidade.
Primeiro, ele se refere a um tipo de “verdade” que não pode ser
expresso em palavras ou apreendido em conceitos intelectuais. O
que essa verdade é, ninguém pode dizer. Em segundo, as palavras e
sentenças e o conteúdo intelectual que “apontam para” essa verdade
oculta podem ou não ser verdadeiros. Deus tanto pode se revelar
através de proposições falsas como através de proposições
verdadeiras.[20] Jamais podemos estar certos, portanto, de que aquilo
que Deus nos diz é verdade. A falsidade e a verdade têm igual valor.
Certamente esse valor deve ser muito pequeno. Por um lado,
ele nos alivia da responsabilidade de ser consistentes. Nosso credo
pode conter artigos contraditórios. Brunner argumenta que a
“inferência em linha reta” deve ser refreada. Não ousemos seguir
nossos princípios até suas conclusões lógicas. Não sempre, pelo
menos. Brunner na verdade aponta a contradição de Schleiermacher
em insistir tanto no absolutismo do cristianismo quando na
descoberta de um elemento comum em todas as religiões. É também
consistente quando argumenta que o homem deve ter sido criado
reto, pois do contrário não poderia ter havido nenhuma Queda. Mas
quando Brunner chega a Romanos 9 e acha desagradável seu
significado óbvio, declara que a eleição é ilógica e que, se
extraíssemos inferências dele, concluiríamos que Deus não é amor.
Não se pode ter amor e lógica ao mesmo tempo. Donde a Bíblia é
consistentemente ilógica.[21]
Mas se a Bíblia é ilógica e se Brunner é ilógico, não temos o
direito lógico de ignorá-los, já que não há nenhuma necessidade
ilógica de nossa fé pular na sua direção?
O propósito de todo o argumento até aqui foi estabelecer três
pontos: a defesa irracional da revelação pela neo-ortodoxia é
autodestrutiva; o ataque racional à revelação pela filosofia moderna
priva a si próprio de um fundamento epistemológico; e o tipo de
razão usado pelo tomismo para defender a revelação é acossado por
falácias. Mas agora, continuando com o argumento, o procedimento
geral do pensamento da Reforma fornece outra possibilidade para
uma revelação racional.
O modo reformado
Neste caso, revelação racional é uma revelação que preserva a
distinção entre a verdade e a falsidade. Ela é autoconsistente na sua
totalidade. Em outras palavras, a razão é identificada como as leis da
lógica. O cristianismo não tem obrigação de se justificar como
racional em qualquer outro sentido, pois a história da filosofia tem
mostrado que todos os outros sentidos resultam em ceticismo.
Alegar portanto que a eleição, a expiação ou qualquer outra doutrina
é “irracional” não é nada mais que afirmar que essas doutrinas são
desagradáveis para o objetor. A acusação não é fundamentada em
conclusão intelectual, mas em antipatia emocional. Se as doutrinas
bíblicas são autoconsistentes, elas satisfizeram o único teste legítimo
da razão. Esse teste de lógica é precisamente o requisito de que um
conjunto de proposições seja significativo, quer seja ele falado por
Deus, quer seja pelo homem. E se proposições não têm significado,
então obviamente não revelam nada.
É agora justo perguntar se essa construção é historicamente o
ponto de vista da Reforma. Será que Martinho Lutero e João Calvino
aceitavam a Bíblia como autoconsistente e reconheciam eles o teste
único da lógica?
A primeira das duas perguntas é a mais fácil de responder. Que
a Bíblia apresenta um sistema intelectual autoconsistente e que
Calvino estava convencido disso é algo que foi tornado
suficientemente claro na sua Instituição e em seus Comentários. A
Confissão de Westminster é um testemunho adicional. O amor
calvinista pela lógica é bem conhecido; e, como se viu, o que levou
Brunner a rejeitar a lógica foi um desgosto pelo calvinismo. Esse
ponto, portanto, é característico da fé reformada.
A segunda das duas perguntas é mais complicada porque os
reformadores não discutiram explicitamente a lógica como o teste
único de uma revelação racional. Seu silêncio é compreensível,
entretanto, porque o irracionalismo é sobretudo um fenômeno do
século XX que eles não previram. Contudo, pode ser plausivelmente
inferido de seus métodos que a construção anterior está implícita em
seus pontos de vista. Eles abandonaram a filosofia escolástica; não
perderam tempo tentando provar a existência de Deus e tampouco a
origem sensorial do conhecimento; o contraste entre a Instituição e a
Summae de Tomás de Aquino é inconfundível. Assim, não poderiam
ter usado nenhuma “razão concreta e empírica”. Então, também, o
princípio de que as Escrituras são seu próprio intérprete infalível e de
que aquilo que não é claro numa passagem pode ser entendido
mediante uma comparação com outras passagens não é outra coisa
senão a aplicação da lei da contradição. A lógica, portanto, deve ter
sido o único teste que os reformadores poderiam ter usado.
Admito francamente que algumas passagens em Calvino
parecem permitir uma reação menos cética ao curso da filosofia do
que é apresentado neste capítulo. Elas devem, no entanto, ser
entendidas à luz de outras declarações muito definidas que são
encontradas nos mesmos contextos.
Um dos reconhecimentos mais generosos de Calvino da
aprendizagem pagã é feito na Instituição, II.ii.14 ss.[22] O resumo e a
interpretação a seguir podem ser facilmente comparados com o
original. Tendo rejeitado a pré-existência platônica da alma, Calvino
afirma que a engenhosidade humana nos constrange a reconhecer
um princípio intelectual inato na mente humana. Desde que isso não
poderia ser a razão empírica concreta de Brightman, não é mais
provável que Calvino tivesse as leis da lógica em mente? Com esse
equipamento inato, juristas romanos apresentaram somente
princípios da ordem civil; filósofos descreveram a natureza com uma
ciência primorosa; aqueles que pela arte da lógica nos ensinaram a
falar racionalmente não podem ter sido desprovidos de
entendimento; a matemática pagã não poderia ter sido o delírio de
loucos. Não, os escritos dos antigos são excelentes porque
procederam de Deus.
Este é de fato um grande elogio. Na verdade, um elogio tão
grande que seu objeto dificilmente pode ser a verdade teorética
absoluta das filosofias pagãs. É bem verdade que Calvino não sabia
quão equivocada era a aprendizagem antiga; nem se pode supor que
tenha elaborado uma teoria instrumental da ciência. Contudo, sua
admiração pela física, lógica, matemática e outras artes e ciências da
antiguidade pode confortável e mais plausivelmente ser dividida
entre o brilho intelectual exibido e as aplicações práticas tornadas
possíveis. O que ele admira é a energia, a engenhosidade, o
requinte dos antigos e não a verdade dos seus sistemas.
Na sequência imediata, Calvino corrige alguns equívocos sobre
a sua intenção. No tocante ao reino de Deus e à sabedoria espiritual,
os mais sagazes da humanidade são mais cegos que toupeiras. As
mais pertinentes de suas observações revelam confusão. Essas
pessoas viam os objetos apresentados à visão de uma tal maneira
que pela vista não estavam sequer caminho da verdade e muito
menos haviam chegado a ela. Fortuitamente, por acidente, algumas
sentenças isoladas podem ser verdadeiras; mas a razão humana
nem se aproxima da verdade de Deus, nem tende, nem orienta suas
visões na direção dessa verdade.
Que Calvino não baseava a verdade e racionalidade da
Escritura em suportes externos é melhor visto num capítulo anterior
da obra.[23] O título é: “São suficientemente abundantes as provas,
possíveis para a razão humana, que sustentam a fidelidade da
Escritura”. Num cenário do século XX esse título é enganoso. Hoje
um título como esse sugeriria um apelo à autoridade superior, talvez,
da experiência religiosa. Não era essa a intenção de Calvino.
Ele diz que sem a certeza prévia de uma revelação — uma
certeza mais forte do que qualquer julgamento da experiência — a
autoridade da Escritura é defendida em vão por argumentos, pelo
consentimento da igreja ou por qualquer outro suporte. A fé não é
fundada na sabedoria dos homens, mas pelo poder de Deus. A
verdade é vindicada de qualquer dúvida quando sem auxílio de ajuda
externa é suficiente para o seu próprio suporte. O pensamento dessa
frase significativa é repetido ao final do mesmo capítulo. Embora haja
muitas razões subsidiárias pelas quais a dignidade nativa da
Escritura possa ser vindicada, diz ele, elas sozinhas não são
suficientes para produzir uma fé firme nela até que o Pai celestial —
revelando nisso (isto é, na própria Escritura) seu próprio poder —
coloque sua autoridade além de toda controvérsia.
A essas palavras de Calvino, gostaria apenas de acrescentar
que a lei da contradição, ou razão, não é um teste externo da
Escritura. A consistência lógica é exemplificada na Escritura, e assim
a Escritura pode ser uma revelação significativa para a mente
racional do homem. Proposições autocontraditórias não teriam
sentido, seriam irracionais e não poderiam constituir uma revelação.
Menos e mais
Friedrich Schleiermacher representa um tipo de teologia que é
menos logicamente estrita do que a teologia de Aquino alegava ser
mas que ao mesmo tempo esperava se estender a mais doutrinas.
Tomás de Aquino, claro, acrescentou a revelação bíblica à sua
teologia natural, e só naquilo poderia encontrar a verdade da
Trindade, criação, expiação, e assim por diante. Schleiermacher se
volta do aparato aristotélico do movimento e do primeiro motor e
espera desvelar todo o cristianismo por meio de uma análise da
natureza humana ou, mais precisamente, da consciência cristã.
Influenciado pelo pietismo, Schleiermacher fez da emoção a
essência da religião. Enquanto os reformadores baseavam a
experiência cristã nas ideias e na doutrina, para Schleiermacher a
teologia é precisamente a descrição da experiência religiosa. O
centro dessa experiência é um sentimento de dependência absoluta,
e Deus existe porque sentimo-nos dependentes dele. Não é que o
sentimento dependa de um conhecimento prévio de Deus, mas sim
que o conhecimento depende do sentimento. As doutrinas, para dizê-
lo novamente, são descrições desse sentimento.
Schleiermacher era de fato um panteísta, e sua influência
combinou com a de Hegel para se negar a personalidade de Deus,
como foi explicado acima. Karl Barth mostra como o modernismo se
desenvolveu a partir de Schleiermacher e por que esse tipo de
religião substituiu Deus pelo homem como o objeto de adoração. A
natureza empírica de sua teologia abandonou a consciência “cristã”
original, indo na direção de uma psicologia indefinida de religião, e se
tornou o fundamento do humanismo contemporâneo. A história é
interessante e complexa.[32]
No que diz respeito ao status lógico, entretanto, o procedimento
de Schleiermacher, visto não poder ser classificado como as
supostas demonstrações incontestáveis de Aquino, deve ser julgado
mais flagrantemente falacioso ou deve ser classificado como a forma
solta de teologia natural do próximo parágrafo.
Encontro
Tal é a flexibilidade da língua inglesa [e também da portuguesa]
que não há nada de impróprio na asserção de um tomista ou
modernista de que a natureza (física ou humana) é uma “revelação”
de Deus. Esse significado de revelação, contudo, dá origem a um
escolasticismo árido e um deísmo estéril que, mesmo que a validade
de seus argumentos não seja questionada, parece na melhor das
hipóteses enfraquecer a religião verdadeira e vital. Portanto, sem
desaprovar os usos no vernáculo, alguns escritores devotos
preferem indicar pelo termo revelação algo mais direto e pessoal.
Tendo repudiado a teologia natural, equiparam a revelação a um
“encontro”.
Essa ideia contemporânea de revelação — revelação como um
encontro vivo — já foi prenunciada em movimentos anteriores. Os
pietistas buscavam uma religião mais pessoal do que era
aparentemente oferecido pela teologia intelectual. Os quakers
falavam de uma luz interior e esperavam que o Espírito os levasse a
falar num encontro. Até a terminologia bíblica admite um testemunho
do Espírito Santo que poderia ser interpretado como uma revelação
viva. Sempre houve indivíduos que buscavam uma orientação
imediata de Deus tanto para os detalhes práticos da conduta diária
quanto para as formas adequadas de adoração divina. Algumas
pessoas tinham visões e sonhavam sonhos, enquanto Joana d’Arc
ouvia vozes.
E havia então os verdadeiros místicos que caíam em transes.
As gotículas de sua personalidade eram derramadas no oceano do
ser de Deus. Assim como o ar que quando está tão impregnado de
luz é mais luz do que ar e o ferro que no fogo se parece mais com
fogo do que com ferro, a alma do místico se torna inefavelmente
divina. Nenhuma informação conceitual é assim recebida, mas é uma
experiência profundamente gratificante.
Esse tipo de mente mística ou pietista, exemplificado em todas
as eras, fornece um terreno fértil para os desenvolvimentos mais
recentes. Contudo, o movimento contemporâneo que faz sua religião
vital pairar no evento ou encontro não é um descendente linear e
direto do misticismo ou pietismo. Certas complicações modernas
devem ser levadas em conta. Estas serão consideradas mais tarde.
Mas primeiro é preciso enfatizar um ponto de semelhança dos mais
importantes entre o movimento inicial e o atual. A semelhança é o
seu anti-intelectualismo. Assim como Bernardo ficou aflito com o
“racionalismo” de Abelardo, Søren Kierkegaard reagiu contra a
onisciência de Hegel.
O hegelianismo se propõe nos fornecer uma explicação
completamente racional de todo o Universo. O filósofo havia
começado seu sistema com o mais vazio e mais geral de todos os
conceitos. Uma análise desse conceito deu origem ao seu oposto ou
contraditório. Então o gênio de Hegel descobriu como harmonizar a
contradição numa síntese superior. A síntese por sua vez dá origem
ao seu contraditório, e estes são então harmonizados, e assim por
diante até o Universal Concreto e Absoluto sintetizar todas as coisas.
Na filosofia hegeliana, não há problema que escape dessa solução
dialética.
Kierkegaard rejeita o esquema tese-antítese-síntese em favor
de uma dialética de dois termos. Cada conceito tem seu
contraditório, mas nenhuma síntese é possível. A palavra final não é
o Absoluto, mas o Paradoxo.
O que forneceu motivação para o ataque contra Hegel foi a
hipocrisia, complacência e estupidez da igreja estatal. Kierkegaard
estava farto da ração de serragem com que os pastores hegelianos
alimentavam seus paroquianos. Literal e simbolicamente os pastores
haviam reduzido o milagre de Cristo dos pães e peixes a um
piquenique ordinário; o pecado original se tornara um distúrbio
estomacal hereditário causado por Adão ao ingerir alguma comida
venenosa. Numa teologia como essa Deus e o sobrenaturalismo não
desempenham nenhum papel. O espírito da época havia substituído
o Espírito Santo e o tempo havia engolido a eternidade. Uma pessoa
obtinha seu cristianismo da forma como obtinha sua cidadania —
nascendo na Dinamarca. Piedade era conformidade a costumes, e a
sociedade havia submergido o individual. Foi em oposição à
hipocrisia, ao cristianismo-de-cidadão-de-bem e ao socialismo que
Kierkegaard clamou por uma decisão individual e apaixonada. A
filosofia hegeliana havia magnificado o conhecimento abstrato e
conceitual; mas a verdadeira religião, diz Kierkegaard, não consiste
em compreender nada: Religião é uma questão de sentimento, de
fervor anti-intelectual. “O que” alguém acredita, não tem importância;
“como” acredita é o que faz toda a diferença do mundo.
Numa passagem Kierkegaard descreve dois homens em
oração. Um está numa igreja luterana e mantém uma concepção
verdadeira de Deus; mas porque ora em espírito falso, está na
verdade orando a um ídolo. O outro homem está num templo pagão
orando a ídolos; mas desde que ora com uma paixão infinita, está na
verdade orando a Deus — pois a verdade está no “como” interior e
não no “o que” exterior.
Duas citações da obra de Kierkegaard Pós-escrito conclusivo
não científico às migalhas filosóficas estabelecem a posição geral:
A incerteza objetiva, sustentada na apropriação da mais apaixonada
interioridade é a verdade, a mais alta verdade que há para um ser
existente.[35]
Quando se pergunta pela verdade subjetivamente, reflete-se aí
subjetivamente sobre a relação do indivíduo. Desde que o como dessa
relação esteja na verdade, o indivíduo está então na verdade, mesmo
que, assim, se relacione com a não verdade.[36]
Kierkegaard falou em vão para sua geração. Ninguém prestou
atenção. Todo mundo permaneceu complacente e hipócrita. Foram
necessários eventos de outro caráter — eventos que não tinham
paralelo nos dias em que Bernardo se opunha ao racionalismo de
Abelardo — para forçar o significado de Kierkegaard sobre o século
XX. Hoje o otimismo modernista do século XIX, um modernismo que
via o pecado original como uma desordem estomacal a ser curada
pelos avanços da ciência médica, foi destruído pela incrível
devastação de duas guerras mundiais. A complacência deu lugar à
ansiedade. Tragédia, tortura e morte têm sido nossa sina, e uma
Terceira Guerra Mundial ainda pior nos espreita. Ao perderem a
esperança de soluções intelectuais num mundo de caos insano, os
teólogos do século XX lembravam o dinamarquês iconoclasta.
O primeiro deles foi Karl Barth, que se apropriou da noção de
paradoxo e enfatizou a oposição entre tempo e eternidade, embora
seus escritos posteriores tenham suavizado os temas. Emil Brunner
foi seu primeiro parceiro, apesar de ocorrer mais tarde um racha
entre eles. Brunner foi mais longe nos paradoxos e se manteve mais
franco contra a lógica. Rudolf Bultmann, profundamente influenciado
pelo filósofo Heidegger, é uma cor ainda diferente no mesmo
espectro. Bultmann pode, de forma bastante apropriada, ser
chamado de existencialista, embora Barth explicitamente rejeite o
existencialismo. E por fim é preciso mencionar Jean-Paul Sartre, que
exemplifica a ala ateísta do movimento.
As diferenças entre esses homens tornam impossível esboçar
qualquer resumo que se aplique a todos eles com precisão. Mas há
uma tese básica que os une. Todos eles são anti-hegelianos; todos
concordam que o intelectualismo é algo superficial; eles ou seus
seguidores são propensos a usar os slogans do romantismo —
como: a vida é mais profunda que a lógica e a experiência, mais real
que o pensamento; e, finalmente, todos eles, de forma mais ou
menos explícita, colocam o paradoxo e a contradição no âmago da
realidade e afirmam que alguns problemas são inerentemente
insolúveis.
Essa neo-ortodoxia, esse neo-sobrenaturalismo, ou — em
linguagem filosófica — esse existencialismo, não deve ser definido
simplesmente como um interesse em questões de interesse último.
Alguns existencialistas tentam fazer isso e em seguida afirmam que
Agostinho e Lutero eram existencialistas. É uma lógica ruim e um
estudo precário. O importante é que o existencialismo repudia o
pensamento racional, coisa que Agostinho e Lutero nunca fizeram.
Pascal é às vezes chamado de precursor do existencialismo; mas
Pascal escreveu, como Brunner e Sartre nunca poderiam escrever,
que “Toda a nossa dignidade consiste, pois, no pensamento”.[37] O
ponto essencial sobre esses teólogos do século XX é que eles
repudiam o pensamento e louvam a experiência não intelectual.
Jean-Paul Sartre tenta dar um resumo mais positivo e mais
técnico do existencialismo. Afirma sua tese comum de que “a
existência precede a essência”. Essa frase antiplatônica e anti-
hegeliana significa que o aristotélico “isso” precede o aristotélico “o
que”. Por exemplo, se um carpinteiro deseja fazer um armário, deve
primeiro saber o que é um armário e qual é a forma e tamanho
específicos do armário que pretende fazer. Aqui o “o que” precede o
“isso”: a essência precede a existência. Assim também, a ideia cristã
de Deus inclui a noção de que Deus sabia o que iria criar antes de
ter criado. A doutrina da providência atribui a Deus um conhecimento
ou plano de história que antecede os eventos. É o que Sartre nega.
Não existe um plano pré-existente de história nem mesmo uma
natureza humana determinada que todos os homens devem ter.
Cada homem faz a si mesmo o que acaba se tornando. O “o que”
vem depois do “isso”.
Há boas razões para selecionar esse como o princípio definitivo
do existencialismo, mesmo em suas formas teológicas. Esses
autores enfatizam a liberdade humana, um universo aberto e uma
natureza indeterminada de tal maneira que — por implicação, pelo
menos — Deus não pode ter nenhum plano. Por exemplo, Langdon
Gilkey, embora não seja um completo existencialista, absorveu
bastante dele para escrever:
A existência, embora revele uma coerência e significado últimos,
não será totalmente reduzida a qualquer sequência clara e precisa
de relacionamentos. Há profundezas de liberdade de criatividade,
e mesmo de incoerência, dentro do mistério do ser que desafiam a
tentativa de se organizar a vida em padrões racionais simples.
Sendo assim, a própria meta da filosofia é fatal para o pleno
entendimento… As intuições persistentes de que nossos
propósitos são eficazes e nossa individualidade tem valor
desmentem sistemas nos quais tudo é determinado a partir de fora
de nós…[38]
Revelação verbal
É hora de nos voltarmos para algo lógico, consistente e
inteligível. A visão cristã da revelação — embora admita uma
demonstração empírica do poder de Deus na astronomia, e exija o a
priori da imagem divina no homem e embora acima de tudo torne
possível um “encontro” com a mente de Deus — identifica
essencialmente a revelação de Deus com as palavras da Escritura.
Deus nos disse algumas coisas; ele falou; ele nos deu informações.
Em vários escritores neo-ortodoxos há afirmações de que a
ideia de uma revelação verbal, segundo a qual Deus dá ao homem
informações verdadeiras, foi invenção de um escolasticismo
protestante tardio que havia perdido o fervor religioso original dos
reformadores.
Ora, é preciso reconhecer — na verdade, é preciso insistir —
que os credos posteriores, que (escolásticos ou não) representam as
conclusões mais autoritativas e mais maduras do pensamento da
Reforma, ensinam a doutrina da infalibilidade bíblica. De todos os
credos, a Confissão de Westminster é a mais longa e a que foi
composta com mais cuidado. Sendo a posição doutrinária oficial de
todas as denominações presbiterianas, ela afirma que a Escritura
Sagrada ou Palavra de Deus (que a Confissão define citando os 66
livros) deve ser crida e obedecida por causa da autoridade de Deus,
seu autor. A Bíblia deve ser recebida, continua a Confissão, porque
ela é a Palavra de Deus, que é a própria verdade. Visto que todo o
conselho de Deus é encontrado na Bíblia, nada absolutamente deve
ser acrescentado a ela. Em todas as controvérsias a igreja deve
fazer seu apelo final à Bíblia, e o Supremo Juiz pelo qual todos os
conselhos e opiniões devem ser examinados não é outro senão o
Espírito Santo falando nas Escrituras. Para evitar a objeção hipócrita
de que o Espírito pode falar em algumas partes da Bíblia mas não
em outras, a Confissão não só define a Palavra de Deus como os 66
livros, como também explica depois a fé salvadora da seguinte
forma: “Por esta fé o cristão, segundo a autoridade do mesmo Deus
que fala em sua Palavra, crê ser verdade tudo quanto nela é
revelado”.[42]
Uma confissão anterior, a Confissão Belga de 1561, declara a
mesma doutrina da Escritura: “Cremos que as Sagradas Escrituras
estão contidas em dois livros, a saber, o Antigo e o Novo
Testamentos, que são canônicos, contra os quais nada pode ser
alegado”. Essa é uma declaração de inerrância; e para deixar claro
que a inerrância caracteriza toda a Bíblia e não apenas algumas
porções, a Confissão Belga, tendo citado os 66 livros, acrescenta as
palavras “Recebemos todos esses livros… crendo, sem qualquer
dúvida, em todas as coisas neles contidas…”.
A Segunda confissão helvética diz: “Credimus et confitemur
Scripturas Canonicas sanctorum Prophetarum et Apostolorum
utriusque Testamenti ipsum verum ease verbum Dei… Nam Deus
ipse loquutus est Patribus, Prophetis, et Apostolis, et loquitur adhuc
nobis per Scripturas Sanctas… ne ei aliquid vel addatur vel
detrahatur” [Cremos e confessamos que as Escrituras canônicas dos
santos profetas e apóstolos de ambos os Testamentos são a própria
Palavra de Deus… Pois o próprio Deus falou pelos patriarcas,
profetas e apóstolos, e ainda fala a nós pelas Sagradas Escrituras…
às quais nada se pode acrescentar ou subtrair].
Essas posições de credos são clara e explicitamente
incompatíveis com a visão neo-ortodoxa da Bíblia. Mas é verdade
que essa posição de credo pode ser adequadamente referida pelo
termo depreciativo “escolasticismo”? Será que os credos
acrescentam doutrinas artificiais que diferem da pregação de Calvino
e Lutero? Teriam os reformadores negado que a Bíblia é a própria
Palavra de Deus? Negavam eles a inerrância da inspiração verbal?
Primeiro, consideremos Calvino. Uma vez que a veracidade da
Escritura não era formalmente negada pelos romanistas, o assunto é
tratado com menos minúcia nos escritos dos reformadores do que a
doutrina da livre graça. Mas as observações incidentais de Calvino
são suficientemente claras.[43] Num lugar ele diz:
Deus é seu Autor. A principal prova da Escritura é que nela Deus
fala pessoalmente. [Os profetas] proferem o sagrado nome de
Deus, por honra do qual todos são coagidos à obediência. [O]
nome de Deus, sem temeridade ou falácia, é invocado com líquida
verdade, não dependendo de uma opinião aparente. [Há] sinais
manifestos de que Deus fala na Escritura, patenteando que sua
doutrina é celestial.[44]
De fato, ao invés de se atribuir a Calvino uma visão mais solta da
Escritura do que aquela da Confissão de Westminster, é mais fácil
entendê-lo ou fazer uma má-interpretação dele como se mantivesse
uma visão mais estrita. Ao descrever o método de inspiração,
Calvino usa a palavra muito difamada “ditado”. Ele diz: “O Espírito
Santo ditou aos profetas e apóstolos” exatamente o que queria que a
escrita acabada contivesse. E essa não é uma referência solitária. A
obra de Calvino está repleta de referências ao ditado divino da
Escritura.
Algumas amostras da fraseologia de Calvino, que podem ser
verificadas na obra de Kantzer, são estas: “Aprouve a Deus confiar
sua palavra à escrita… Detalhes históricos foram adicionados, que
são também da pena de profetas, mas ditados pelo Espírito Santo”;
“Porque a Palavra de Deus não se distingue das palavras do profeta,
como se o profeta tivesse acrescentado algo de sua autoria”. Calvino
se refere à Escritura como o “registro certo e infalível” e como o
“padrão inerrante”, “livre de toda mancha ou defeito”. Com relação
aos salmos imprecatórios, diz Calvino: “Davi não proferiu maldições
de maneira precipitada ou imprudente contra seus inimigos, mas
aderiu estritamente ao que o Espírito ditou”.
A visão que Calvino tinha da natureza do ditado e a doutrina
ortodoxa da inspiração verbal têm sido tão frequentemente mal-
entendidas e o mal-entendido tão frequentemente apontado, que
somos forçados a suspeitar que a deturpação é intencional. Aqueles
que atacam a doutrina protestante ortodoxa tentam reduzir o ditado
divino ao que se chamaria de ditado mecânico de um escritório de
negócios. Os liberais querem nos fazer pensar que os teólogos
ortodoxos nunca sequer sonharam que Deus poderia usar a
personalidade de um profeta. Eles, os liberais, constante e
erroneamente argumentam que a inspiração verbal torna as
diferenças estilísticas inexplicáveis. Mas essa alegação é
historicamente falsa, como qualquer um poderia ver ao ler os
teólogos ortodoxos, de Warfield neste século voltando até ao próprio
Calvino.
Todavia, o mal-entendido apenas acabaria mostrando que as
confissões posteriores não foram “adições escolásticas” às doutrinas
da Reforma. Como então os liberais preferem interpretar? Que
Calvino ensinou o ditado mecânico ou que os credos eram
escolásticos? Eles não podem ter ambos.
Por outro lado, o reconhecimento de Calvino da crítica textual e
suas observações sobre a canonicidade foram usados para lhe
atribuir uma visão mais solta da inspiração. Isso pode favorecer a
ideia dos credos como escolásticos, mas contradiz frontalmente toda
a ênfase de Calvino no ditado. Entretanto, essa atribuição a Calvino
de uma visão mais solta também está baseada num mal-entendido.
Os tipos de passagens dos quais a suposta evidência é tomada
mostram claramente que Calvino ensinou a inspiração verbal e
plenária da Palavra de Deus.
O mesmo se aplica a Lutero. J. Theodore Mueller escreve:
Quando historiadores da igreja atribuem a Lutero o mérito de haver
demonstrado o Schriftprinzip, isto é, a verdade axiomática de que
a Escritura Sagrada é o único princípio pelo qual a verdade divina
é realmente e inconfundivelmente conhecida, fazem isso com total
justiça ao reformador de Wittenberg, cuja suposta “atitude liberal”
para com a Escritura teólogos liberais, contrariando os fatos
históricos, tentam em vão demonstrar.[45]
Quenstedt, que os liberais citam como um teólogo que corrompeu a
doutrina da inspiração mais livre da Reforma, escreveu:
As Escrituras Sagradas canônicas no texto original são a verdade
infalível e são livres de todo erro; em outras palavras, nas
Escrituras Sagradas canônicas não se encontra, por mínima que
seja, nenhuma mentira, falsidade, erro, quer em temas, quer em
expressões, mas, em todas as coisas e em todos os detalhes que
são nelas transmitidos como herança, são certamente verdadeiras,
quer pertençam à doutrina ou moral, à história ou cronologia, à
topografia ou nomenclatura. Nenhuma ignorância, nenhuma
negligência, nenhum esquecimento, nenhum lapso de memória
pode e ousa ser atribuído aos amanuenses do Espírito Santo na
sua redação dos Escritos Sagrados.
A despeito do que dizem os liberais, essas afirmações de
Quenstedt não são corrupções posteriores. Tudo na citação acima
pode ser encontrado no próprio Lutero. Por exemplo, “As Escrituras
jamais erraram” e “É impossível que a Escritura se contradiga; só
aos hipócritas insensatos e obstinados é que parece se contradizer”.
Outros exemplos: “As Escrituras são divinas; Deus fala nelas, e elas
são sua Palavra”, e:
A menos que seja convencido pelo testemunho da Escritura ou por
razões evidentes — pois não acredito, se tomados isoladamente,
nem no Papa nem nos Concílios, pois já foi demonstrado que
frequentemente cometem erros e se contradizem —, sou
subjugado pelos escritos por mim citados e minha consciência está
cativa à Palavra de Deus. Não vou e não posso, portanto, abjurar
qualquer coisa, visto não ser nem seguro nem honesto fazer
qualquer coisa contra a consciência.
Separada de seu contexto, essa última citação pode parecer mostrar
que Lutero podia apelar a “razões evidentes” em adição e sem
relação com a Bíblia. Uma análise do contexto e a situação histórica
exige que reconheçamos que “razões evidentes” significa deduções
corretas da Escritura e que “consciência” significa a consciência dele
adstrita à Bíblia. A famosa declaração é, portanto, uma afirmação de
Sola Scriptura.
Se isso basta para convencer alguém de qual era realmente a
posição do reformador, o passo seguinte é ver se a doutrina foi uma
invenção nova ou se já podia ser encontrada antes. Ou, de modo
mais pertinente, o passo seguinte é ver se a doutrina da inspiração
verbal é um ensino da própria Bíblia. Se os neo-ortodoxos afirmam
ser teólogos bíblicos, se sua teologia é chamada de teologia da
Palavra, é de suma importância ver o que a Palavra diz sobre si
mesma. Felizmente, essa é uma das doutrinas bíblicas mais fáceis
de se determinar. Asserções ou implicações da inspiração plenária e
verbal abundam de Gênesis a Apocalipse.
A mais conhecida, claro, é: “Toda a Escritura é inspirada por
Deus”. Uma tradução melhor e mais literal seria “Toda a Escritura foi
soprada por Deus”. Deve-se notar, como teólogos ortodoxos
repetidas vezes apontaram, que o que Deus soprou foram as
palavras escritas no manuscrito. O versículo não diz que Deus
inspirou os pensamentos dos autores nem tampouco seu discurso. O
que Deus soprou foi a Escritura, as palavras escritas.
Naturalmente, o versículo não nega que Deus inspirou os
pensamentos dos autores. O ponto é simplesmente que, o que quer
que mais Deus tenha feito, ele também soprou as palavras escritas.
Neste ponto, por causa da deturpação persistente que os liberais
fazem da inspiração verbal como se fosse um ditado mecânico, pode
ser bom repetir que os processos mentais dos profetas
permaneceram o tempo todo normais. A ideia de que a inspiração
verbal entraria em conflito com o estilo literário de um profeta
depende de uma concepção deísta de Deus que os liberais
defendem por si próprios ou atribuem erroneamente aos teólogos
ortodoxos. Essa concepção deísta de Deus o retrata no papel de um
executivo de negócios, cujo controle sobre a estenógrafa é externo e
limitado. Ele não orientou a educação recebida por ela nem controla
cada um de seus pensamentos. Nada da personalidade dela é
transferido para o texto digitado. Mas a visão cristã de Deus é de
alguém em quem vivemos, nos movemos e existimos. Ele cria nossa
personalidade e forma o nosso estilo literário. Ele preordena nossa
educação e guia todos os nossos pensamentos. Por isso Deus,
desde toda a eternidade, decretou tirar os judeus da escravidão pela
mão de Moisés. Para esse fim, determinou a data do nascimento de
Moisés, providenciou que ele recebesse uma educação principesca e
assim por diante até que, tendo chegada a hora, a mentalidade e o
estilo literário de Moisés fossem os instrumentos precisamente
ajustados para falar e escrever as palavras de Deus. Entre Moisés e
o Deus onipotente havia uma tal união interior, uma tal identidade de
propósitos e uma tal cooperação de vontades que as palavras que
Moisés escreveu eram ao mesmo tempo as próprias palavras de
Deus e as próprias palavras de Moisés.
Às vezes, objeta-se que o versículo em 2 Timóteo se aplica
somente ao Antigo Testamento. Talvez sim, mas é divertido ver os
liberais tão determinados a exaltar a autoridade do Antigo
Testamento a fim de desvalorizar o Novo. De qualquer modo, o Novo
Testamento repetidas vezes afirma a veracidade do Antigo. Pode-se
examinar o tratamento que nosso Senhor confere à Escritura, isto é,
ao Antigo Testamento. Citando a Escritura ele derrota o diabo,
confunde os saduceus e reduz os fariseus a um silêncio irado.
O Antigo Testamento também ensina sua própria infalibilidade,
e isso empurra a doutrina bem para o passado. Em adição a muitos
exemplos de frases como “O S o disse” e “A boca do S
o disse”, um composto de Jeremias 1.9 e Deuteronômio 18.19 dirá:
“Eis que ponho na tua boca as minhas palavras” e “De todo aquele
que não ouvir as minhas palavras, que ele falar em meu nome, disso
lhe pedirei contas”.
Isso já basta do Antigo Testamento. A questão agora é se o
Novo Testamento faz as mesmas reivindicações de si. Em primeiro
lugar, o Novo Testamento pressupõe de maneira difusa sua
superioridade sobre o Antigo. Explicitamente se diz que João Batista
era um profeta maior que aqueles do Antigo Testamento e que os
profetas do Novo Testamento são maiores do que João.
A superioridade, é claro, não estava numa maior veracidade,
pois isso eles não poderiam ter. Mas se tivessem sido menos
verazes, não poderiam ter sido superiores. Note que Pedro diz:
“nosso amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que
lhe foi dada, ao falar acerca destes assuntos, como, de fato, costuma
fazer em todas as suas epístolas, nas quais há certas coisas difíceis
de entender, que os ignorantes e instáveis deturpam, como também
deturpam as demais Escrituras, para a própria destruição deles” (2Pe
3.15, 16). Aqui Pedro coloca todas as epístolas de Paulo na
categoria de Escritura Sagrada. O próprio Paulo afirma ser profeta:
“pelo que, quando ledes [o que havia escrito algumas poucas
palavras antes], podeis compreender o meu discernimento do
mistério de Cristo… como, agora, foi revelado aos seus santos
apóstolos e profetas, no Espírito” (Ef 3.4, 5). O termo “profeta” coloca
Paulo no patamar dos profetas do Antigo Testamento; o termo
“apóstolo” o coloca acima deles, pois “a uns estabeleceu Deus na
igreja, primeiramente, apóstolos; em segundo lugar, profetas; em
terceiro lugar, mestres…” (1Co 12.28).
Se alguém desejar uma lista quase exaustiva de alegações
semelhantes para a Escritura, pode ler Theopneustia de Louis
Gaussen. O pequeno número de citações aqui feitas só evidencia a
confiança no número extremamente grande que podem ser
facilmente localizadas.
Mas se alguém prefere uma última citação, que seja 2 Pedro
1.21: “porque nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade
humana; entretanto, homens [santos] falaram da parte de Deus,
movidos pelo Espírito Santo”. Inspiração verbal e plenária — isto é,
infalibilidade, inerrância — é a alegação que a Bíblia faz de si
mesma; e se a Bíblia não representa a si mesma corretamente, não
parece haver bons motivos para levá-la muito a sério em qualquer
outro assunto.
Porém, essa doutrina, da qual todas as demais doutrinas
dependem, é a mais violentamente atacada. Por um impulso
satânico, a batalha contra o cristianismo é voltada contra a sua
fortaleza. Barth escreve: “Os profetas e os apóstolos em si, mesmo
em seus ofícios… eram… realmente culpados de erro em suas
palavras faladas e escritas”.[46] Brunner afirma que a Bíblia “está
cheia de erros, contradições, opiniões errôneas sobre todos os tipos
de situações humanas, naturais e históricas. Ela contém muitas
contradições nos relatos sobre a vida de Jesus, está cheia de lendas,
inclusive no Novo Testamento”.[47] Bultmann apresenta mais
contestações que Brunner. Com uma opinião tão depreciativa da
Bíblia, o uso que fazem dela para qualquer propósito religioso é outro
de seus paradoxos insolúveis.
Mas são suas acusações verdadeiras? Está a Bíblia realmente
“cheia de erros, contradições, opiniões errôneas”? É a Bíblia tão
absolutamente indigna de confiança, como dizem Brunner e
Bultmann?
No que diz respeito às acusações de erro doutrinário, não se
pode dar nenhuma resposta geral. Teríamos de saber em que base
filosófica a acusação foi fundamentada. Por exemplo, as doutrinas do
pecado original e da depravação total foram amplamente negadas
pelo modernismo com base num otimismo evolutivo. Os teólogos do
século XIX pensavam que o mal havia sido quase erradicado da face
da Terra e que o socialismo, talvez o nacional-socialismo, marcaria o
início do Reino de Deus. As ideias do pecado original e da
depravação total, portanto, eram erros na doutrina. Da mesma forma,
tentativas são às vezes feitas para minar a doutrina da
predestinação, seja por uma interpretação particular do amor divino,
seja por um apelo ao princípio da indeterminação que Heisenberg
tentou introduzir na física.
Um argumento completo para mostrar que essas doutrinas
bíblicas são verdadeiras e que os liberais estão errados não pode ser
aqui incluída. No caso da predestinação, certamente ninguém quer
neste ponto uma discussão de física teórica. Na medida em que os
liberais dependem de sua interpretação de amor divino, seria
necessário examinar que fonte de informação eles usam para obter
seu conceito de Deus. Não é o conceito bíblico. Têm eles então outra
revelação? Deve ser uma melhor, já que consideram as Escrituras
tão pouco confiáveis. Sendo o caso da depravação total versus a
bondade inerente da natureza humana, um argumento poderia tentar
refutar a evolução biológica; ou poderia negar que os princípios da
evolução biológica podem ser estendidos à sociedade e à religião; ou
poderia mostrar que a evolução, longe de ser otimista, retrata a
natureza como rubra em dentes e garras. Como os antecedentes da
acusação são tão variados, argumentos completos seriam
demasiado longos para o presente propósito, e a questão do erro
doutrinário deve se acomodar com essas dicas.
Se, no entanto, a Bíblia é acusada de erro pelo fato de conter
relatos de milagres, uma resposta diferente é necessária. Embora a
negação dos milagres impugne a onipotência e nos devolva para a
fonte do nosso conhecimento de Deus, o argumento mais comum
contra os milagres é que a ciência refutou sua possibilidade. Aqui é
necessária uma filosofia da ciência para questionar a finalidade da
mecânica newtoniana. Publiquei esse argumento em outro lugar.[48]
A seguir, quando Brunner alega que o Novo Testamento é falso
porque está cheio de lendas, pode-se apontar que as datas iniciais
dos Evangelhos não dão tempo para que lendas se desenvolvam. Se
o Antigo Testamento é criticado por esse motivo, pode-se perguntar:
o que é uma lenda? Se uma lenda é distinguida da história
simplesmente por causa do seu caráter fragmentário, Brunner terá
de provar que tudo o que é fragmentário deve ser falso. Pressione
isso de forma consistente e o resultado será que todos os livros de
história são falsos porque todos são fragmentários. Nenhum livro
contém tudo.
Em segundo lugar, críticas destrutivas do tipo de Wellhausen
têm sido uma base ainda mais popular para se acusar a Bíblia de
erro. Os alegados erros são de natureza histórica e cultural, embora
às vezes sejam vagamente chamados de contradições.
Em geral não é difícil elaborar respostas para essas acusações.
Claramente, algumas das “contradições” só existem na mente do
crítico. Por exemplo, Edwin A. Burtt, professor de filosofia na Cornell
University, em seu livro Types of Religious Philosophy [Tipos de
filosofia religiosa] — um livro aclamado por sua apresentação
imparcial —, alega a seguinte contradição:
Em Ezequiel 26, o profeta proclama como revelação divina a
mensagem de que a cidade de Tiro deverá enfrentar a destruição
nas mãos de Nabucodonosor, rei da Babilônia… Após um duro
ataque, entretanto, Nabucodonosor não conseguiu capturar Tiro…
Assim, em Ezequiel 29 o profeta anuncia outra revelação em que
Deus promete a Nabucodonosor a conquista do Egito como uma
recompensa por sua derrota pelos de Tiro. Não há nenhuma pista
no final dessas passagens de que ele agora duvida da
autenticidade da revelação anterior porque a profecia nela contida
deixou de se confirmar como e quando ele esperava.
Aparentemente, no seu entender, o que é essencial para uma
revelação divina não é a sua infalibilidade factual, mas a verdade
da lição moral que ela incorpora.[49]
Se essa é uma erudição imparcial, a erudição e a
imparcialidade estão em maus lençóis. A acusação de Burtt está
baseada numa completa ignorância do que a Bíblia diz. Em nenhum
lugar Ezequiel 26 profetiza que Nabucodonosor conquistará Tiro.
Na verdade, o texto definitivamente sugere que ele não o fará,
pois Ezequiel 26.3 diz: “Eis que eu estou contra ti, ó Tiro, e farei subir
contra ti muitas nações”. Então segue uma descrição do dano
(bastante considerável) que Nabucodonosor irá infligir (versículos 7-
11), após o que elas — as muitas nações — completarão a
destruição a ponto de Tiro se tornar uma penha descalvada.
Portanto, a contradição entre Ezequiel 26 e Ezequiel 29 só existe na
mente imparcial e acadêmica de Burtt.
Ou, novamente, a afirmação dos críticos de que a nação hitita
jamais existiu, que os camelos eram desconhecidos no Egito na
época de Abraão, que os candelabros de sete hastes foram feitos
pela primeira vez no antigo Império Persa e inúmeras outras
negações de declarações bíblicas foram tão completamente
refutadas pela arqueologia que os liberais deveriam baixar a cabeça
envergonhados.
De uma natureza distinta desses itens históricos e culturais são
os casos em que o termo “contradição” é usado em seu sentido
estritamente lógico. Por exemplo, se um evangelho dissesse que
havia um anjo e não mais no sepulcro na manhã de Páscoa e outro
dissesse que havia dois, isso seria uma contradição lógica. Ou,
novamente, se duas passagens diferissem quanto ao número exato
dos familiares de Jacó que desceram até o Egito, as duas passagens
produziriam uma contradição lógica formal.
É, todavia, possível lidar facilmente com essas supostas
contradições, embora em alguns casos possamos não saber qual de
duas ou três possibilidades é a correta. Pode-se lidar facilmente com
elas porque na maioria dos casos os textos reais não estão numa
contradição formal. Nenhum evangelho diz que havia apenas um
anjo no sepulcro durante toda a manhã de Páscoa.
Pode-se mostrar que até mesmo as duas genealogias de Cristo
não são contraditórias, por mais difícil que seja reconstruir a história
real.[50]
Essas considerações e os vários volumes mencionados já
bastam como boas razões para se aceitar a Bíblia como verdadeira;
eles são conclusivos contra a plausibilidade da teoria liberal sobre
esses pontos.
Devemos agora considerar um tipo diferente de objeção à
inspiração verbal da Escritura. Resumidamente, a objeção é que
Deus não pode falar.
Mais uma vez, essa objeção à inspiração verbal depende de um
conceito não bíblico de Deus. Com sua herança em Friedrich
Schleiermacher e G. W. F. Hegel, o modernismo mais antigo negava
que Deus pudesse falar porque tinha uma visão essencialmente
panteísta de Deus. Deus era totalmente imanente aos processos da
natureza ou realmente identificado com eles. Ele estava proibido de
interromper esses processos por qualquer milagre, de fazer qualquer
intrusão na história, de realizar qualquer evento de uma vez para
sempre, dos quais o falar era um exemplo.
Os novos liberais não sentem tanta afeição assim por Hegel;
eles falam da transcendência de Deus; tentam encontrar uma ação
divina em algum lugar na história, ainda que somente num ponto
específico. Mas se mantêm distantes da ideia de que Deus pode
usar palavras, como “eis que a virgem conceberá” e “a quem Deus
propôs, no seu sangue, como propiciação, mediante a fé”.
O que eles afirmam é que Deus produziu algum estado mental
emocional ou vagamente definido no profeta e este então confiou em
sua própria sabedoria para falar sobre sua experiência.
Uma vez que essa negação de que Deus pode usar palavras é
outra negação de sua onipotência, a questão do conhecimento
religioso deve novamente ser levantada com uma crescente ênfase.
De onde esses teólogos obtêm sua informação sobre o que Deus
pode ou não pode fazer? Suas ideias não vêm da Bíblia. Tiveram
eles então outra “revelação” ou, com Schleiermacher, reduziram
“Deus” a uma descrição do próprio estado de consciência deles? Os
teólogos ortodoxos fazem bem em pressionar essa questão e
impedir que os liberais escapem de uma resposta. Essa estratégia
ortodoxa é sólida porque as respostas liberais, quando expostas, se
revelam obviamente inadequadas.
Além de implicar um conceito não bíblico de Deus, a tese de
que Deus não pode falar depende de uma teoria da linguagem. A
linguagem humana, nessa teoria, supostamente evoluiu do chilrear
dos pássaros e grunhidos dos porcos ou pelo menos teve uma
origem totalmente sensorial. Como, portanto, todos os termos
derivam das coisas visíveis e tangíveis do universo material, a
linguagem é inadequada para expressar verdades divinas. Quando a
linguagem é altamente desenvolvida por figuras de linguagem,
metáforas e analogias, palavras como expiação ou justificação
podem ser usadas simbolicamente para sugerir ou apontar para algo
divino. Mas seus significados literais são espiritualmente falsos, pois
nunca podem ser totalmente separados da sua origem na sensação.
Wilbur Marshall Urban tem, nessa linha, um volume de 700 páginas
muito interessante e E. L. Mascall é um notável pensador inglês que
apoia vigorosamente essas opiniões.
Para defender a Bíblia como a Palavra de Deus, é suficiente
confiar na onipotência de Deus. É preciso coragem para negar que
Deus pode falar. Mas é mais persuasivo se um teólogo conservador
também pode oferecer uma teoria alternativa de linguística. As
Escrituras fixam os princípios dessa teoria. Ao invés de a linguagem
ser uma extensão evolutiva da tagarelice de macacos, a Escritura
ensina que o homem foi criado à imagem de Deus. Basicamente,
essa imagem é a razão humana. E a linguagem é a sua expressão.
Sem dúvida, Deus tencionava que a linguagem fosse aplicada às
partes visíveis e tangíveis da natureza; mas também não há dúvida
de que Deus tencionava que a linguagem fosse usada na adoração a
ele, na conversa com ele e na sua conversa com Adão e com os
profetas subsequentes. Naturalmente, uma teoria linguística não
teísta tem dificuldade com uma revelação verbal. Naturalmente
também, não há dificuldade numa base teísta.[51]
Ora, finalmente, a tese de que Deus não pode falar implica não
apenas um conceito não cristão de Deus e da linguagem, como
também uma forma não cristã de religião. É uma religião sem
verdade. O profeta teve sua experiência emocional e ele a descreve
para nós. Sua descrição pode estar muito equivocada. Mas não
importa; Brunner nos garante que Deus pode “falar” sua palavra ao
homem mesmo através de uma doutrina falsa. O único problema é
que a doutrina é falsa e Deus não fala. Em sintonia com a teoria da
linguagem que acabamos de discutir, Brunner escreve: “Todas as
palavras têm somente um valor instrumental. Nem as palavras
faladas nem seu conteúdo conceitual são a Palavra em si; são
apenas sua estrutura”.[52]
Esse tipo de religião é anti-intelectual e completamente
irracional. Pode consistir de um surto emocional, uma experiência
estética ou um transe místico; mas é totalmente desprovido de
conhecimento. O que Brunner chama de Palavra de Deus não tem
nenhum conteúdo conceitual, mas despreza a lógica, se regozija nas
contradições e diviniza o paradoxo.
Porém, o cristianismo alega que Deus é o Deus da verdade;
que ele é a sabedoria; que seu Filho é seu Logos, a Lógica, a
Palavra de Deus. O homem foi criado como um ser racional para que
pudesse entender a mensagem de Deus para ele. E Deus lhe deu
uma mensagem ao soprar toda a Escritura, tendo preordenado o
processo completo — incluindo os três estágios dos pensamentos na
mente do profeta, as palavras em sua boca e o manuscrito acabado.
O cristianismo é uma religião racional. Tem um conteúdo
intelectualmente apreensível. Sua revelação pode ser entendida. E
porque Deus fala em palavras inteligíveis, pode dar e deu
mandamentos. Nós sabemos o que esses mandamentos significam
e, portanto, devemos obedecer-lhes.
Ora, se alguém prefere um simbolismo que aponte para algo
incognoscível, se alguém tem prazer no paradoxo irracional, se
alguém gosta de encontros sem palavras, então outras palavras e
ideias não irão mudar as suas emoções.
1
7. A Escritura Sagrada
Que é autoridade?
Esse é em suma o esquema histórico. O primeiro ponto substancial
na análise do livro de Roger é o significado de autoridade. Qual,
precisamente, é o conceito deles de autoridade, uma autoridade que
concorda com a falsidade, é difícil de determinar. De um livro com
esse título, um livro tão em desacordo com as visões da Reforma
Protestante, seria esperado que ele buscasse deixar absolutamente
claro o significado do termo fundamental. Mas só um dos autores
tenta defini-lo.
O capítulo de Berkeley Mickelsen traz o título “A abordagem de
autoridade da própria Bíblia”. O mais próximo que o livro como um
todo chega de explicar o termo autoridade é encontrado na página
89 deste capítulo. “Autoridade, poder, o direito de governar… A
autoridade ou poder de Deus inclui” uma série de coisas que
Mickelsen menciona como exemplos, como controlar o destino
eterno de todas as pessoas, mostrando amor, santidade e ira. Até
aqui, sem dúvida, tudo isso é verdade e bom. Mas a passagem
dificilmente pode ser uma definição formal. Mais precisamente, não é
realmente uma definição de autoridade bíblica. É uma enumeração
de alguns aspectos da autoridade de Deus, e isso não é suficiente
para a finalidade do livro. O que o livro precisa é uma definição de
autoridade bíblica, pois essa omissão deixa o leitor a se perguntar
como um livro que contenha erros pode ser autoritativo. Entre os
exemplos que Mickelsen dá, ele não listou o direito de dizer
falsidades. Mas se — como esses autores afirmam — a Bíblia não é
inerrante, ou ela não é a Palavra de Deus, ou Deus tem autoridade
para dizer-nos o que não é verdade.
Esse é o defeito fundamental do volume como um todo. Ainda
que fiquemos na suposição de que os demais autores aceitam a
definição de Mickelsen — e eles não o fazem explicitamente —, eles
nunca mostram como falsidades podem ser autoritativas. Nunca
realmente esclarecem sua noção de autoridade. Seu uso da palavra
é uma espécie de artifício de propaganda que depende do capricho e
da ambiguidade. Não apenas esse termo fundamental permanece
sem sentido, como também os argumentos são amplamente vagos.
Uma análise dos vários capítulos tornará isso evidente.
O primeiro ponto nesta análise é a definição de outro termo:
evangélico. Historicamente, esse termo era usado nos títulos de
vários grupos luteranos. Foi aplicado à teologia reformada e
reivindicado pelos metodistas, embora possa talvez haver alguma
dúvida quanto à sua aplicabilidade aos remonstrantes. O primeiro
uso do termo objetivava distinguir essas igrejas do romanismo. A
distinção não se baseava na infalibilidade bíblica, pois o romanismo
concordava sobre esse ponto. Note bem que os romanistas
concordavam que a Escritura é infalível e que a justificação vem por
meio da fé. A discordância está na negação pelos romanistas e na
afirmação pelos evangélicos da Sola Scriptura e Sola Fide. Esses
dois pontos definem o evangelicalismo. Só aqueles que acreditam na
infalibilidade da Escritura — sem nenhum apelo ao papa, à tradição
ou a outra fonte não bíblica —, e que também acreditam na
justificação pela fé somente, podem ser adequadamente chamados
de evangélicos. Negar qualquer uma delas é renunciar à Reforma
Protestante.
Como a verdade da Escritura não era matéria de controvérsia
entre o romanismo e a religião evangélica, os primeiros credos
protestantes não a enfatizaram tanto quanto teólogos posteriores
viriam a fazê-lo em seus documentos mais completos. Contudo,
mesmo os primeiros credos não toleram nenhuma afirmação de que
a Bíblia ensine falsidades. Por exemplo, a Confissão de Augsburgo
(1530) não tem nenhum artigo sobre a Escritura como tal, mas no
contexto do conflito se contenta em negar que haja outra autoridade
na religião, particularmente a tradição (artigo 5). Os autores da
confissão não viram necessidade de insistir que a Escritura é a
Palavra de Deus, pois isso não estava em disputa. O Livro de
Concórdia (1576), porém, é mais explícito: “Cremos… que somente
os escritos proféticos e apostólicos do Antigo e do Novo Testamento
são a única regra e norma segundo a qual devem ser ajuizadas e
julgadas igualmente todas as doutrinas e todos os mestres”.[55] Isso
não é tão completo como os credos posteriores, mas não há
nenhuma sugestão de que os dois Testamentos podem ensinar algo
errado. Como poderiam ser a única norma de doutrina se
ensinassem algumas falsidades?
Desde o primeiro, os credos reformados eram mais
sistemáticos, e mesmo o mais antigo se beneficiou de um estudo do
embate luterano com o papado. Diz, assim, a Primeira Confissão
Helvética (1536): “Die heilige, göttliche, biblische Schrift, die da ist
das Wort Gottes, von dem heiligen Geiste eingegeben… ist die
allerälteste, vollkommenste und höcheste Lehre (omnium
perfectissima… sola perfecte)”.[56]
A Segunda Confissão Helvética (1566) é um pouco mais
explícita. Mas dizer que os credos posteriores são mais explícitos
não significa dizer que os credos anteriores veem a Bíblia como
falível. O capítulo 1 do credo de 1566 é: “Credimus et confitemur
Scripturas Canonicas… ipsum verbum Dei… Nam Deus ipse
loquutus est Patribus, Prophetis, et Apostolis, et loquitur adhuc nobis
per Scripturas Sanctas”.[57] Note que esse credo ou confissão
apresenta as Escrituras como a própria Palavra de Deus, porque o
próprio Deus falou com os apóstolos e ainda nos fala pelas
Escrituras.
A Confissão Francesa de 1559, alguns anos antes do que vem
acima, disse no parágrafo cinco: “Cremos que a Palavra contida
nesses livros [o parágrafo três havia enumerado os 66 livros]… é a
regra de toda verdade…”. Se é a regra de toda verdade, deve ser a
regra de verdade para os detalhes geográficos, cronológicos e
históricos contidos na Palavra.
Dois anos mais tarde, disse a Confissão Belga: “Recebemos
todos estes livros… crendo sem nenhuma dúvida em todas as coisas
neles contidas…”. Não é usada a palavra inerrância nem a palavra
infalível (que, embora até recentemente alguns tenham fingido ser o
contrário, é seu sinônimo), mas a ideia é clara: “crendo sem
nenhuma dúvida em todas as coisas neles contidas”. O reino de
Peca é uma das coisas ali contidas.
Esses credos do século XVI são suficientes para mostrar que a
veracidade da Escritura em tudo o que afirma não foi uma invenção
do “escolasticismo” do século XVII, malevolamente impingida sobre
uma igreja inocente pelo servo de Satanás, Francis Turretin. Francis
Turretin, ao contrário, foi um santo que meramente expandiu o
significado preciso dado pelos primeiros reformadores.
O grande credo do século XVII, que até hoje é inigualável, tem
um parágrafo bem conhecido no capítulo um: “A autoridade das
Escrituras Sagradas, razão pela qual devem ser cridas [com várias
exceções?] e obedecidas… depende somente de Deus (a mesma
verdade) que é o Autor; tem, portanto, de ser recebida, porque é a
Palavra de Deus”.[58] O parágrafo seguinte fala da “infalível verdade”
dela. Há, todavia, um capítulo posterior que não é tão bem
conhecido. As duas primeiras seções do capítulo XIV são as
seguintes: “A graça da fé, por meio da qual os eleitos são habilitados
a crer para a salvação das suas almas, é a obra [do] Espírito de
Cristo… Por esta fé o cristão, segundo a autoridade do mesmo Deus
que fala em sua Palavra, crê ser verdade tudo quanto nela é
revelado”.[59]
Em vista desta última citação da posição oficial do
presbiterianismo, não se pode evitar a questão solene e perturbadora
de se aqueles que deliberadamente negam a completa veracidade
da Bíblia realmente possuem uma fé salvadora. Esses homens,
esperamos, nunca cometeram perjúrio por subscreverem à
Confissão de Westminster. Eles são livres para escolher um credo ou
religião a seu gosto. O livro sob escrutínio não declara em lugar
algum quanto da Bíblia eles acreditam ou em que base ou por qual
autoridade rejeitam uma doutrina ou outra. Uma coisa, todavia, é
certa: à parte da questão de a fé salvadora incluir ou não a crença de
ser verdade “tudo quanto [na Palavra] é revelado”, a posição
unânime dos grupos luterano e reformado nos séculos XVI e XVII era
a infalibilidade, a inerrância e a verdade da Escritura. Esses homens,
portanto, não têm o direito de se chamar evangélicos.
Os documentos oficiais das igrejas evangélicas que acabaram
de ser citados são, portanto, a base dogmática e histórica para se
condenar o volume de Rees, Rogers, Ramm e Hubbard. A análise
será agora dupla: (1) o contraste dogmático entre as duas teologias e
(2) a explicação do raciocínio falacioso dos oponentes.
Inerrância e infalibilidade
O “Prefácio” do volume tenta distinguir entre inerrância [inerrancy] e
infalibilidade [infallibility]. No mínimo, isso é um mau uso da língua
inglesa. O Merriam Webster’s Unabridged Dictionary diz: “Infalível…
incapaz de errar, isento da inconveniência de se confundir…
Sinônimo: …inerrante, sempre acurado”.[60] Portanto, o Dr. Rees faz
uma declaração falsa quando diz que “o falecido B. B. Warfield e o
ainda vivo G. C. Berkouwer… estão ambos comprometidos com a
infalibilidade com a qual a Escritura Sagrada reflete e revela o
propósito salvador de Deus”. O Dr. Rees sustenta que a diferença
entre Warfield e Berkouwer é “uma diferença de entendimento
quanto à maneira e forma em que Deus trabalhou para nos dar… a
autoridade da Palavra”. Mas estes termos — forma e maneira que “a
Escritura reflete” — são muito vagos. O Dr. Rees pode possivelmente
acreditar que a forma de infalibilidade refletida na Escritura não seja
a infalibilidade histórica dos credos evangélicos e do dicionário
Merriam Webster. Mas seria precipitado argumentar assim. Se assim
fosse sustentado, a implicação seria que os credos reformados
deturparam seriamente a Bíblia. O livro então poderia realmente
afirmar ser bíblico, mas não poderia afirmar ser evangélico. Se o Dr.
Rees não é tão precipitado, então com base nos credos e no
dicionário é preciso declarar falsa sua afirmação de que os autores
desse livro “são classicamente evangélicos”,[61] pois fica claro que a
diferença entre Warfield e Berkouwer é que o primeiro acredita e o
último não acredita que a Bíblia é verdadeira.
Um raciocínio defeituoso acompanha esse inglês defeituoso. O
Dr. Rees deprecia a “mentalidade” e o “estilo de raciocínio” que
argumenta “se você pode encontrar uma imprecisão na Bíblia que
está usando, então num só golpe tornou impossível dizer com
convicção que qualquer coisa na Bíblia é confiável”.[62] Essa é a
linguagem da propaganda. Note bem a frase “na Bíblia que está
usando”. Essa frase inclui uma tradução da King James com um erro
de impressão, uma RSV com seus radicais hebraicos alterados e até
mesmo as paráfrases de tipo hippie. Mas nenhum credo evangélico
afirma que traduções ou erros de impressão são infalíveis. Portanto,
duas coisas: a frase é uma deturpação da teologia reformada e é
também um meio de confundir o leitor. Um evangélico diria que, se
os manuscritos originais publicados pelos próprios profetas contêm
uma falsidade, então podem conter outras. Essa é uma inferência
perfeitamente boa. Se uma testemunha num julgamento criminal é
flagrada dizendo uma falsidade, seu testemunho inteiro se torna
suspeito. Possivelmente muito do que ela diz é verdade, mas só
pode ser crido se alguma outra testemunha ou evidência claramente
o sustentarem. Portanto, se os apóstolos em seus escritos canônicos
não disseram a verdade aqui ou ali, tudo o que escreveram
precisaria de uma corroboração externa. Aqueles que adotam a
posição do livro em questão devem explicar o critério pelo qual
decidem quais afirmações bíblicas são verdadeiras e quais são
falsas. Eles não podem permitir que seus principiantes na escola
dominical cantem “Jesus me ama, isso eu sei, pois a Bíblia assim me
diz”. Na posição deles, uma parte maior ou menor da Bíblia é falsa, e
não podemos aceitar qualquer coisa só porque a Bíblia assim nos
diz. Mas os autores não expressam seu critério de verdade. Essa é
uma séria omissão. Eles não somente deixam de apontar se
acreditam ou não no nascimento virginal, nos milagres, na Trindade
ou no arrebatamento pré, meso ou pós-tribulacionista; mas, o que é
pior, deixam de dizer aos leitores sobre que base acreditam numa
coisa e não em outra.
As opiniões do Dr. Rees o levam a dizer na página seguinte,
acerca de uma conferência realizada em Wenham, Massachusetts,
em 1966: “É, todavia, uma surpresa ler em The Battle for the Bible
(32), de Harold Lindsell, ‘Alguns dos maiores partidários que
defendem a inerrância bíblica desistiram da conferência. Eles
sentiram que sua presença não serviria a nenhum propósito útil e
que pouco se ganharia discutindo a inerrância com aqueles cuja
mente já estava decidida contra ela’”.
Por que o Dr. Rees deveria estar surpreso? Lindsell apenas
disse a verdade. Embora eu não seja um dos “maiores partidários”,
foi justamente pelas razões declaradas por Lindsell que eu recusei o
convite para participar.
Mais uma vez, a afirmação do Dr. Rees sobre Warfield e
Berkouwer, em seu parágrafo final, de que a “atitude [deles] em
relação à Bíblia é idêntica” é simplesmente falsa — a menos que eu
não saiba o significado da palavra atitude. Mas se o uso da palavra
atitude pelo Dr. Rees está em algum lugar próximo do significado
comum da palavra, parece-me que as atitudes em relação a uma
revelação inerrante e em relação a um livro cheio de erros não são
de forma alguma idênticas. Ou será que é a palavra idêntica que eu
não entendo?
Jack Rogers
Bernard Ramm
O capítulo de Bernard Ramm, um cavalheiro de considerável
capacidade escolástica (para mim escolástico não é um termo de
opróbrio) começa com uma pergunta sobre a essência do
cristianismo. Ele se refere a Wesen des Christentums tanto de
Feuerbach quanto de Harnack. O primeiro subtítulo de Ramm é: “O
Sola Scriptura é o Wesen do cristianismo?”.
Essa é uma pergunta bastante enganosa. Ramm pretende
mostrar que a infalibilidade bíblica não é o Wesen ou essência do
cristianismo. Mas, tomado estritamente, isso é enganoso e
irrelevante. Suponha que alguém perguntasse: o nascimento virginal
é a essência do cristianismo? Presumivelmente, muitos dos mais
ortodoxos diriam “Não”. A expiação é a essência do cristianismo?
Muitos sem dúvida diriam “Sim”; mas outros diriam “Não”. A
ressurreição é a essência do cristianismo? Como responderiam eles
àqueles que disseram que a expiação é a essência? A questão
importante não é a essência do cristianismo; mas é a inerrância, o
nascimento virginal, a ressurreição essencial para o cristianismo? E
todas essas questões devem ser respondidas com um “Sim”. A
Afirmação de Auburn respondeu com um “Não”.
Deveria estar claro que a essência ou definição de uma religião,
filosofia ou partido político pode ser complexa. Uma única parte de
uma definição não constitui a definição. Certamente, o cristianismo é
uma teologia complexa. Muitos fatores são essenciais, embora
nenhum deles seja por si só a definição. A pergunta de Ramm,
portanto, é enganosa.
Depois de citar uma dúzia de expressões de Warfield — como
“absolutamente infalível”, “absolutamente sem erros”, “liberdade
absoluta de erros”, etc. —, Ramm comenta: “Seria impossível dizer
que ele fez uma identificação entre o Wesen do cristianismo e sua
própria visão da Escritura Sagrada. Ele era historiador de teologia
suficiente para evitar dizer isso”.[76] Essa última frase mostra uma
falha no método de Ramm. Não é um historiador, é um lógico que
determina a essência ou definição de seu assunto de estudo. É o
lógico também que determina o que é básico num sistema complexo
de pensamento. Os diálogos de Platão e a Bíblia contêm muitas
afirmações. Ambos contêm afirmações históricas. E no caso da
última, também, nem todas estão no mesmo nível lógico. Qual então
é a definição de platonismo? Qual era a crença fundamental de
Platão? Um cristão pode pensar que a doutrina da Trindade é a única
doutrina cristã básica. Mas ainda que um cristão torne a inerrância
básica — pois, a menos que a Escritura seja verdadeira, ninguém
pode chegar à doutrina da Trindade — há outros assuntos que,
embora não sejam das Wesen, são de fato wesentlich — essenciais.
Portanto, duas questões, embora intimamente relacionadas, devem
ser distinguidas: A inerrância é básica? A inerrância é essencial?
“Qual é a essência do cristianismo?” não é a questão. A essência é
de fato essencial, mas nem tudo que é essencial faz parte da
essência.
A propensão de Ramm ao historicismo, em vez de à análise
lógica, resulta em certa irrelevância e má-compreensão. Ele observa
que a história da doutrina eclesiástica da inspiração inclui teorias
divergentes: “Afirmar que existe uma teoria altamente especializada
de inspiração que perpassa ininterruptamente a história da igreja é
um argumento que não pode ser defendido”.[77]
Ora, é verdade que a história da igreja visível nos apresenta
vários teólogos que diferem em muitos pontos. Isso é verdade não
apenas da doutrina da inspiração, mas também da expiação. Por
exemplo, Bernardo defendia que a morte de Cristo foi um resgate
pago a Satanás que de forma legítima exigia a lealdade dos
pecadores; mas Abelardo defendia que a morte de Cristo foi um
resgate pago ao Pai. Mas diferenças individuais ou não oficiais como
essa são irrelevantes. Os afirmacionistas de Auburn fizeram
alegações similares. Eles tentaram se defender dizendo que
aceitavam o fato da expiação, mas não a doutrina. Esse historicismo,
entretanto, enfrenta duas objeções. Primeiro, a expiação não é um
fato, um evento histórico. A expiação é em si uma doutrina. A morte
de Cristo é o fato ou evento. Em segundo lugar, os afirmacionistas de
Auburn tinham todos subscrito à doutrina da Confissão de
Westminster. A doutrina da expiação estava incluída em seus votos
de ordenação. Rejeitar os oito parágrafos do capítulo VIII, “De Cristo,
o Mediador” — ou simplesmente descartá-los como não essenciais
— foi uma violação de seu compromisso solene.
Isso é história da igreja. Tem havido de fato teorias discordantes
da expiação e da inspiração. Mas a posição oficial da igreja, ou das
igrejas, não é encontrada nos pontos de vista de teólogos individuais,
mas nos credos oficiais das denominações. Qual credo, pelo menos
qual credo anterior a 1967, nega a inerrância? Se não há nenhum, e
se todos eles concordam com os credos citados anteriormente neste
artigo, pode ser sustentado, ao contrário da afirmação do Dr. Ramm,
que existe uma teoria perpassando ininterruptamente a história da
igreja.
Talvez, no entanto, alguma organização que se autodenomine
igreja negue a inerrância da Escritura. Neste caso é preciso lembrar
que as próprias igrejas, assim como os indivíduos, devem ser
julgadas pela Escritura. Não se deve julgar com base na história,
mas com base em uma revelação verbal. É por isso que a Confissão
de Westminster identificou o papado como o anticristo, a igreja
romana como uma sinagoga de Satanás e seus membros como
idólatras (24.3; 25.5 e 6). A história como tal, a mera ocorrência de
eventos, não dá nenhum princípio normativo de avaliação. Se isso
“reduz a um grupo muito pequeno o número de pessoas realmente
fiéis ao cristianismo”, que assim seja. Diremos, para inflar o número,
que os mórmons e os moonitas são realmente fiéis ao cristianismo?
Ambos são encontrados na história.
Os defeitos do historicismo são evidentes também na página
seguinte. Ramm diz: “Todas as doutrinas baseadas em eventos na
história repousam então, em favor da sua realidade, no leito da
história, quer sejam alguma vez registradas, quer não”.[78] Ao
contrário, todas as doutrinas repousam, em favor de sua realidade ou
verdade, na mente eterna de Deus. Não existem doutrinas baseadas
na história; especialmente, não existem doutrinas baseadas em
eventos não registrados da história. A morte física de Cristo é um
evento da história; ela é essencial para a verdade do cristianismo;
mas a doutrina do sacrifício propiciatório não está baseada no
evento; o evento está baseado na doutrina que existe eternamente
no plano de Deus. Dizer que “Cristo foi crucificado pelos nossos
pecados, quer se tenha registrado isso alguma vez em livro, quer
não” dificilmente vai ao ponto da questão. A ordo essendi, que
Ramm tanto deseja distinguir da ordo cognoscendi, começa com o
decreto eterno, não com eventos no tempo. Mas até onde diz
respeito ao cristianismo na história, até onde diz respeito à aplicação
da salvação a pessoas individuais, a ordo cognoscendi é decisiva.
Se a fé é necessária para a salvação — admitindo que a fé seja um
dom de Deus —, a pessoa deve conhecer o Evangelho para poder
acreditar nele. Uma expiação não escrita não permitiria a
possibilidade da fé. Esses liberais regularmente contrastam uma “fé”
sincera, um encontro ou algo assim, com uma Bíblia inerrante. Mas
de que serviria uma Bíblia com páginas em branco? Ramm quer
dizer que os pagãos podem ser salvos sem nunca aprender sobre
Cristo? Estaria Ramm afirmando alguma doutrina? Se sim, pode-se
perguntar: como ele sabe? O ordo cognoscendi é essencial para um
hindu, um muçulmano e também para um cristão.
A confusão nesta parte do argumento de Ramm é generalizada.
Observe atentamente o parágrafo do meio da página:
Fazer de uma certa visão da Escritura o Wesen do cristianismo
significa que todas essas doutrinas são doutrinas de segunda
ordem. Pois se o Wesen do cristianismo é uma certa teoria de
inspiração, todas as doutrinas são apenas tão boas quanto a
nossa teoria de inspiração.[79]
David Hubbard
Este artigo não discute todos os capítulos do livro; e conclui agora
com o texto “As tensões atuais: Há uma saída?” do Dr. Hubbard.
Visto que o Seminário Fuller (Dr. Hubbard é seu presidente e o Dr.
Rogers um de seus acadêmicos) parece ser o iniciador e fator mais
poderoso nesse recente ataque à Escritura dentro de grupos que têm
sido comumente considerados evangélicos, este capítulo é de
grande importância.
O capítulo do Dr. Hubbard é talvez mais insidioso do que
mesmo o do Dr. Rogers, pois o Dr. Hubbard fala da Bíblia e até de
Hodge e Warfield em termos bastante elogiosos. Mas um leitor
cuidadoso, antes de terminar essas páginas, verá que o Dr. Hubbard
não acredita que a Bíblia é a Palavra de Deus: “De que modo lemos
a Bíblia para realmente ouvir a Palavra de Deus através dela?”.[81]
Assim, a Palavra de Deus é identificada com algo diferente da Bíblia.
A Bíblia é algum tipo de canal pelo qual a Palavra vem até nós. Mas
canais não são aquilo que flui através deles. O cano que traz a água
não é a água. Um evangélico diria: A Bíblia é a Palavra de Deus.
Como evidência, podemos citar a plataforma doutrinária da
Sociedade Teológica Evangélica: “Somente a Bíblia e a Bíblia em
sua totalidade é a Palavra de Deus escrita e, portanto, inerrante nos
autógrafos”.
O presidente Hubbard, ao contrário, acha que a Sociedade
Teológica Evangélica, Charles Hodge, Benjamin Warfield, Harold
Lindsell, Carl Henry e outros abafam a mensagem da Bíblia e
obscurecem sua finalidade. Ou, mais especificamente e mais
absurdamente, ele sustenta que uma crença na verdade da Bíblia
tende a abafar sua mensagem ou obscurecer sua finalidade. Não
significa isso que, quanto mais firmemente alguém se apega à
veracidade do que a Bíblia diz, menos interessada está nessa
verdade? Quem em sã consciência pode acusar Hodge de tender a
abafar o significado da Bíblia ou restringir seu escopo? Pense não
apenas em seus três grandes volumes de Teologia Sistemática, mas
também em seus comentários e inúmeros artigos. O que realmente
abafa a mensagem da Bíblia é a crença de que partes dela não são
verdadeiras. É fácil acusar Orígenes e até Agostinho de terem
cometido erros de interpretação ou exegese, mas a causa desses
erros não foi a crença deles na inerrância. Alegorizar é de fato um
erro; não foi a resposta certa para Marcião de Sinope, mas a verdade
não implica alegoria.
Assim também, o presidente do Fuller repete as observações
equivocadas de Rogers sobre os pontos das vogais hebraicas. A
inerrância não requer acreditar que eles eram inspirados. O que
exigia a ideia de que eles eram inspirados era a crença de que os
pontos das vogais eram partes dos autógrafos. Isso era um erro, mas
se devia a uma ignorância geral; não é uma consequência da
inerrância.
Não é difícil listar os inúmeros erros que crentes na Bíblia têm
cometido. Todos cometemos erros. Qualquer pessoa com um pouco
de conhecimento da história da doutrina poderia listar mais do que o
Dr. Hubbard. Mas o argumento é falacioso. Poderíamos igualmente
argumentar: os romanistas e ortodoxos gregos cometem erros fatais
em sua teologia; eles acreditam na doutrina da Trindade; portanto,
uma crença na Trindade tende à apostasia.
O Dr. Hubbard também afirma que a crença na inerrância e,
portanto, na consistência interna da Bíblia têm levado a tentativas
tolas de “harmonizar todas as declarações bíblicas umas com as
outras e com os resultados da descoberta científica e arqueológica”.
[82] É claro, ninguém precisa negar que os resultados dessas
Mito
Embora o autor rejeite o idealismo, ele mantém uma visão um pouco
parecida da linguagem mítica. Na página 87, onde deixa de dar sua
descrição das outras visões e se engaja totalmente em explicar a sua
própria, ele diz: “Porém, como vimos, toda linguagem se origina do
pensamento mítico e ainda traz as marcas de sua origem”. Essa é
uma afirmação surpreendente por duas razões. A primeira está nas
palavras “como vimos”. É surpreendente porque o leitor não viu em
lugar algum. No capítulo dois, Hamilton expõe a visão de Ernst
Cassirer “sem segui-lo até o fim” e depois vira três páginas até
Mircea Eliade. Se esse material é simplesmente uma exposição, não
pode servir como prova para sua declaração posterior de que “toda
linguagem se origina do pensamento mítico”. Mas se essas
exposições são incluídas porque Hamilton as adota como suas, o
que fazer com sua qualificação “sem segui-lo até o fim”? O autor não
nos dá nenhuma declaração definida do quanto aceita. Devemos,
portanto, assumir que ele aceita tudo o que relata. Ainda assim, não
parece evidente que Cassirer, com a ajuda de Eliade, produziu um
argumento plausível para a origem mítica da linguagem. Há muitas
afirmações, mas poucas razões.
Por exemplo, Hamilton, fazendo uma exposição de Cassirer,
diz:
A inteligência… não é a característica decisiva do homem. O que
realmente o distingue dos outros animais é sua capacidade de
construir símbolos… Ele não entende primeiro o mundo para só
então aprender a verbalizar seu conhecimento. Antes, sua
invenção de símbolos verbais fornece a possibilidade de ele ter
conhecimento… Cassirer argumenta, portanto, que o mito (como a
forma primária de pensamento) e a linguagem andam de mãos
dadas na educação do homem para que ele possa dar sentido à
sua existência.[95]
Como o autor até o final do livro parece depender totalmente de
Cassirer, é preciso dar uma atenção imediata a esta citação. Em
primeiro lugar, este resenhista não enxerga que “Cassirer
argumenta”. Cassirer simplesmente afirma coisas, e suas afirmações
são implausíveis. Uma, pelo menos, também é antibíblica. Cassirer
tenta construir um homem inteligente a partir de um homem não
inteligente, mas mediante a simbolização do homem. Ora, além do
fato de que isso contradiz a doutrina bíblica da imagem divina no
homem e torna a visão anticristã, supõe que um ser não inteligente
ou não racional pode construir palavras ou símbolos para se referir a
objetos. Isso é claramente retroativo. É preciso inteligência para
construir símbolos e, em particular antes de construir o símbolo, o
homem deve ter algo em mente para simbolizar. Um homem primitivo
jamais inventaria o som ou o símbolo vocal gato, a menos que
primeiro tivesse visto um rabinho e ouvido sua outra extremidade
dizer “miau”. Alguém acredita que ele disse para si mesmo “gato é
um som legal; vou usá-lo para simbolizar o que verei amanhã ao
meio-dia”?
Logo, a afirmação de que “toda linguagem se origina do
pensamento mítico” é infundada. E também infundada a afirmação
de que a linguagem “ainda traz as marcas de sua origem”. Portanto,
a afirmação de Cassirer da qual Hamilton depende, qual seja, a
“invenção de símbolos verbais fornece a possibilidade de ter
conhecimento” é bastante implausível. Certamente a verdade é algo
que Cassirer nega: o homem primeiro entende o mundo e depois
inventa símbolos para expressar seus pensamentos.
Em segundo lugar (e aqui não precisamos simplesmente
adivinhar quanto Hamilton aceita de Cassirer, pois se tratam de suas
próprias palavras), é igualmente implausível afirmar, sem evidência,
que toda linguagem ainda traz as marcas de sua origem mitológica.
É verdade que Hamilton admite que o pensamento científico “tenta
tanto quanto possível escapar das subjetividades da linguagem
usando a linguagem de signos da matemática”.[96] Mas não basta
afastar a matemática com essa breve admissão. O que é necessário
é uma evidência de que as palavras dois e três trazem as marcas de
sua origem mítica. O que são essas marcas? Elas devem ser
especificadas.
Pode parecer um exagero da questão mencionar também a raiz
quadrada de -1. Mas esta não só é desprovida de marcas de origem
mitológica, como também reforça um ponto anterior, pois o símbolo
-1 não foi primeiro inventado e posteriormente encontrado um objeto
que se aplica a ele. Os matemáticos primeiro entenderam que todas
as equações quadráticas devem ter duas raízes, e esse
entendimento os levou a inventar (uma tarefa extremamente simples)
um símbolo para denotar as raízes de x2 + 1 = 0.
Mas para não irritar ainda mais as mentes não matemáticas,
observe-se que Hamilton não faz nenhum esforço para mostrar que
mesmo a palavra gato tem uma origem mitológica e ainda carrega
traços discerníveis do mesmo.
O capítulo dois, onde Hamilton aparentemente tenta justificar
sua visão mítica, está repleto de afirmações sem fundamento.
Exemplos são: (1) “Mito, então, não é em primeiro lugar uma ficção
imposta sobre um mundo já considerado por alguém” — devo pensar
que é. (2) “Cada vida restabelece em parte a história da raça
humana” — num sentido ou noutro, isso é suficientemente vago para
ser verdadeiro; mas quer Hamilton dizer que “a ontogenia recapitula
a filogenia” ou que todo menino sofre às vezes do complexo de
Napoleão? (3) “A estreita relação entre a consciência mítica e a
religiosa é muito visível aqui” [itálico meu], isto é, no fato de que as
“excursões pessoais [das crianças] na criação de mitos resultam em
serem acusadas de mentir deliberadamente!” — onde há aqui
alguma relação entre a consciência religiosa e o mito? É a citação
conjunta da poesia de Wordsworth suficiente, como razão ou
argumento? (4) Similarmente a um pensamento anterior, “Antes de
algo [como um gato] receber um nome, ele permanece
desconhecido… Dar-lhe um nome faz ele ‘ser’, no sentido de que
agora entra na consciência humana como uma entidade que existe
por si só” — era isso verdade acerca do planeta Netuno, após ser
descoberto e antes de receber um nome, ou acerca do continente
agora chamado América?
Aqui, portanto, estão quatro casos em que Hamilton não deu
nenhuma razão para afirmar que “toda linguagem se origina do
pensamento mítico e ainda traz as marcas de sua origem”.
Embora a mitologia seja a base da teoria de Hamilton da
linguagem e inspiração, não se deve supor que ele seja um simples
“mitologista”. Ele está longe de endossar o programa de Bultmann de
desmitologização. Para chegar à linguagem bíblica, dois passos para
longe da mitologia devem ser dados. O primeiro é diluir ou refinar o
mito como sendo poesia. Essa investida, diz ele, nos dá um Deus
que realmente existe, em oposição a deuses mitológicos que não
existem.
Aqui está mais uma vez uma classificação com o mesmo
defeito que viciou sua divisão empírico-idealista-histórica dos
filósofos. Ele fala como se a poesia e a mitologia fossem
mutuamente exclusivas — a poesia sendo uma forma superior de
linguagem em relação à mitologia. Obviamente, isso não procede:
Homero e Hesíodo escreveram poesia e sua poesia é mitologia. Por
causa da falsa disjunção, é difícil desemaranhar o pensamento de
Hamilton. Ele parece achar que a mitologia era inicialmente expressa
em prosa (o que pode bem ser verdade) e que então a poesia foi um
refinamento, afastando-se do mito. Mas deve então haver algo além
da prosa e poesia que dê uma expressão adequada e madura da
religião?
Em todo caso, a poesia não pode dar nenhuma verdade literal
sobre Deus. Ela ainda retém muito mito. Claro, a retenção não é de
todo ruim. O mito, diz o autor, não é mera superstição.[97] “A
verdadeira religião nasce no meio das muitas falsas religiões”. A
partir do que, conclui o resenhista, a mitologia precisou trabalhar em
direção a um conceito de Jeová antes que Adão pudesse ter tido
essa ideia. Nenhuma evidência para a declaração citada é dada. Ela
aparentemente depende do princípio evolutivo de que monoteísmo é
um desenvolvimento social tardio.
Mesmo assim, a influência da antiga linguagem mitológica
continua, seja na poesia, seja no segundo passo de Hamilton. “As
Escrituras não caíram do céu”.[98] Bem, é claro que não. Os
manuscritos (à exceção das tábuas de pedra nas quais Deus
escreveu os Dez Mandamentos) não caíram do Céu. Moisés usou
uma pena para escrevê-los. Portanto, o que o autor expressamente
diz é literalmente verdade. Mas não está querendo sugerir que a
mensagem verbal das Escrituras não veio do Céu? “A Palavra de
Deus chega até nós como as palavras de homens, homens
arraigados em sua época e falando a linguagem do seu país”. Mais
uma vez, isso é literalmente verdade, à parte do seu contexto. As
Escrituras vêm até nós no século XX traduzidas para o inglês
[português]. Não caíram do Céu para nós durante a nossa vida. Mas
e quanto às revelações a Adão, Abraão e mesmo a Moisés, antes de
anotá-las? Não poderia Deus ter usado o hebraico? Deveria ele ter
usado uma linguagem formada pela mitologia? É Deus incapaz de
revelar a verdade literal? Hamilton claramente defende que a
linguagem humana é incapaz de expressar verdades literais sobre
Deus. Sua última frase no capítulo dois teria sido desnecessária e
impossível se pensasse que a linguagem bíblica é literal. A última
frase é: “Como a linguagem humana, formada sobre padrões que
derivaram do mito, pode transmitir-nos a verdade da própria
revelação de Deus: é o assunto das minhas próximas duas
palestras”.[99]
Linguagem humana
Antes de resumir os capítulos três e quatro, pode-se fazer uma
pausa para considerar a frase linguagem humana. Quando Paulo diz
em grego humano que Deus justifica os crentes, falou a verdade
literal ou algum outro tipo de verdade incognoscível que não é de
fato uma verdade? Uma frase parecida com “linguagem humana”
ocorre frequentemente em outros autores. Eles contrastam a “lógica
humana” com a “lógica divina”. Mas ousam eles explicitar o que essa
frase significa? A lógica humana diz “Se todos os homens são
mortais e se Sócrates é um homem, Sócrates é mortal”. Mas se a
lógica divina é diferente, todos os homens podem ser mortais e
Sócrates pode ser um homem, mas Sócrates não será mortal. Ou,
novamente, se a matemática humana diz que 2 + 2 = 4 e se a
verdade divina difere da nossa, então para Deus 2 + 2 = 5 ou 10 ou
qualquer coisa, menos 4. O ponto aqui é que a lógica humana e a
lógica divina são idênticas. A lógica humana faz parte da imagem
divina no homem. É a marca registrada de Deus estampada em nós.
Somente rejeitando a doutrina bíblica da imagem de Deus pode
alguém contrastar a linguagem humana com a linguagem divina e a
lógica divina com a humana.
Por fim, se a linguagem humana não pode ser literalmente
verdadeira, qualquer afirmação do tipo “a linguagem não é literal”
não pode ser literalmente verdadeira. A posição é autorrefutável, e
pode-se ter pouca esperança de explicar como “a linguagem formada
sobre padrões míticos” pode transmitir a verdade de Deus.
O capítulo três começa com um resumo: o empirismo nos dá a
realidade sem Deus. O idealismo tem Deus sem a realidade (capítulo
um); o empirismo faz do mito um beco sem saída na jornada da
ignorância para o conhecimento, enquanto o idealismo faz do mito a
forma básica de discurso humano que não pode descrever o mundo
fenomenal mas, em vez disso, simboliza o mundo transcendental de
significado (capítulo dois).
Neste ponto, Hamilton começa a dar seu segundo passo longe
do mito. Ele vai do mito para a poesia e para a parábola. “A fé
cristã… admite com prazer que um conhecimento melhor do mundo
objetivo tornou insustentáveis as religiões baseadas na aceitação
literal do mito”.[100] Contudo, em razão da linguagem simbólica, ele
ainda terá o homem como uma “criatura fabricante de mitos”. Então,
prossegue Hamilton, a fé cristã não dá “nenhuma instrução
privilegiada sobre ‘o que é o caso’ no mundo criado” — por exemplo,
que Davi foi rei de Israel —, “mas dá ao homem um conhecimento
essencial sobre o mundo como divinamente criado. Também lhe dá
convicção do significado humano da existência do homem. A fé
medeia esse significado além dos limites da própria consciência do
homem”.
Mas se a fé ou revelação não pode nos falar sobre Davi, como
pode nos falar sobre a criação divina do mundo? Certamente a
última é mais difícil de descobrir. Assim também, como a fé “medeia”
qualquer significado além da consciência? Não é a fé um elemento
da consciência?
Mas prossigamos com o segundo passo para longe da
linguagem mítica e na direção da linguagem parabólica, que
supostamente revela a verdade divina melhor do que pode fazê-lo a
simples declaração literal. Por que e como Hamilton chega à
parábola? O “como” não está nada claro. Nenhuma teoria é
elaborada para mostrar que a linguagem, assumida como se
originando no mito, deve pelas leis da evolução se tornar poesia e
então, por essas mesmas leis, se tornar parabólica. O por que de
Hamilton é mais claro que seu como. A razão é que ele não quer se
afastar tanto da mitologia a ponto de chegar na verdade literal. Ele
quer preparar o terreno rejeitando a inspiração plenária e verbal. “As
teorias de revelação de ‘ditado’ parecem às vezes supor que
Deus comunica sua Palavra através de vocábulos”,[101] de modo que
entender o sentido exato de um agregado de proposições significa
receber a Palavra de Deus. Isso é certamente restringir a Palavra
divina à medida das palavras humanas”.
Aqui, mais uma vez, é assumida a teoria evolutiva. As palavras
humanas e a lógica humana são produtos naturalistas da sociedade.
Elas não são reconhecidas como a imagem de Deus no homem.
Sem dúvida, Hamilton as chama de dádivas de Deus, mas apenas
assim como as unhas e a Constituição dos Estados Unidos são
dádivas de Deus. Falta o elemento da imposição normativa divina.
Esse tipo de argumento é essencialmente similar à acusação
pentecostal de que aqueles que repudiam o falar em línguas
“restringem o espírito divino à medida de sua teologia humana”. A
resposta da Reforma é que as Escrituras descrevem a função do
Espírito em línguas e milagres como restrita a certas épocas. Dizer o
que o Espírito faz não significa limitar o poder de Deus. Logo, a
ênfase nas proposições da Escritura não impede Deus de dizer
qualquer coisa que escolha dizer; apenas indica o que ele escolheu
dizer.
Revelação
Hamilton, por outro lado, aparentemente quer revelações em adição
à Escritura. O restante de sua frase, citada acima pela metade, é:
“pois isso é dizer que já temos as palavras que podem declarar tudo
o que Deus pode possivelmente querer que saibamos”. “Pode
possivelmente” é a linguagem da propaganda. A questão não diz
respeito ao que Deus pode possivelmente fazer: é uma questão de o
que Deus realmente fez. A visão da Reforma é que as Escrituras nos
dão toda as informações sobre a salvação que Deus quer que
saibamos. Como diz 2 Pedro 1.3 (ARC), “Visto como o seu divino
poder [já] nos deu tudo o que diz respeito à vida e piedade”. E a bem
conhecida passagem de 2 Timóteo 3.16-17 diz que a Escritura supre
perfeitamente ao homem para “toda boa obra”. Nada mais é
necessário. Em razão disso, a palavra “declarar” de Hamilton
também é um artifício de propaganda. Nunca foi a visão da Reforma
que a Bíblia declara, explicitamente, tudo o que Deus quer que
saibamos. Mas, como diz a Confissão de Westminster, “Todo o
conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para a
sua glória e para a salvação, fé e vida do homem, ou é
expressamente declarado nas Escrituras ou pode ser lógica e
claramente delas deduzido”,[102] isto é, pela lógica humana — que é
lógica porque, em primeiro lugar, é a lógica divina.
Portanto, o que Hamilton objeta parece ser a verdade bíblica
divina, a saber, “a fé em Deus consiste essencialmente na recepção
crente” não talvez de “toda e qualquer declaração bíblica”, pois isso
exigiria uma memória prodigiosa, mas pelo menos da teologia básica
“como objetivamente verdadeira”.[103]
É bastante claro que Hamilton não aceita a Bíblia como a
Palavra de Deus: “O fato de haver palavras na Bíblia… não significa
que nossa leitura delas deve necessariamente produzir declarações
autoritativas que podemos, ato contínuo, identificar com a Palavra de
Deus”. Bem, é claro, não necessariamente, porque algumas pessoas
às vezes não entendem as palavras que leem; e “nossa leitura” das
palavras, portanto, se estamos entre essas pessoas, não
necessariamente produz proposições corretas. A fraseologia aqui é
mais uma vez propaganda, pois a questão importante não é se
algumas pessoas interpretam mal a Bíblia, mas se as palavras e
sentenças da Bíblia são declarações autoritativas porque são
verdadeiras porque são as palavras de Deus. Atacar uma teoria de
inspiração e verdade das Escrituras com base no fato de que
algumas pessoas não entendem as palavras é, obviamente, um
pensamento temerário. Um livro didático sobre cálculo precisa ser
considerado mitológico, poético ou parabólico por alguém, e não
literalmente verdadeiro, só porque alguns alunos do ensino médio
não conseguem entendê-lo? É por esse tipo de raciocínio inválido
que Hamilton rejeita a Escritura como revelação. Ele diz: “Se fosse
esse o caso [fazendo uma identificação das palavras da Bíblia com a
Palavra de Deus], a Bíblia, ao invés de ser esse registro inspirado…,
seria a lei escrita de Deus”.
Ora, há um sentido em que a Bíblia é um registro inspirado. Ela
registra de forma inerrante a revelação de Deus a Abraão e as
guerras de Davi, rei de Israel. Mas além de ser um registro de
revelações divinas, ela própria é a revelação completa. Como diz a
seção de abertura da Confissão de Westminster (determinante da
posição evangélica), “agradou ao Senhor… [ser] servido fazê-la [as
revelações anteriores] escrever toda… tendo cessado aqueles
antigos modos de Deus revelar a sua vontade ao seu povo”. Assim,
em contraste com a negação de Hamilton, a Bíblia é de fato a lei
escrita de Deus.
O uso de Hamilton do termo lei em vez do termo palavra pode
ser pejorativo. A lei de Deus carrega conotações restritivas em
oposição à graça. Um leitor descuidado poderia ficar impressionado,
pois não gostaria de limitar a Bíblia por uma exclusão da mensagem
da graça. Mas se lei é usado em sentido mais amplo — se significa a
mensagem escrita de Deus se, como diz Hamilton no parágrafo
seguinte, lei é “algo definido, colocado, fixo, estabelecido” —, um
evangélico aceitaria a declaração de Hamilton como verdadeira e
não como falsa, como pretendia este. A Bíblia seguramente é algo
fixo e estabelecido. Assim, o motivo de Hamilton para se rejeitar a
visão da Reforma acaba sendo um motivo para aceitá-la.
No entanto, antes de concluir o parágrafo seguinte, Hamilton
retrocede para o sentido mais estreito e mais usual da lei como um
decreto que prescreve determinada conduta e especifica uma
punição pela desobediência. A graça é deixada de fora. Assim, o
autor interpreta mal 2 Coríntios 3.6 como se significasse que Paulo
“estava falando de si mesmo como ministro de… uma aliança não da
palavra escrita, mas do Espírito”.[104] Isso é uma disjunção falsa,
porque a aliança da graça é tanto uma aliança da palavra escrita —
em Gênesis, Ezequiel e Gálatas — quanto uma aliança do Espírito.
Obviamente, argumentos que dependem de disjunções falsas são
inválidos. Um exemplo semelhante de raciocínio falacioso é o uso de
uma afirmação universal que seja somente às vezes verdadeira.
Hamilton afirma: “A adoração em espírito e em verdade inclui o
reconhecimento de que as palavras humanas são inadequadas, de
modo que nossas orações devem receber do Espírito um significado
que não podemos verbalizar”. Mas pode alguém seriamente acreditar
que toda adoração deve incluir tal reconhecimento? Ou que todas as
orações devem receber um significado diferente que não podemos
verbalizar? De minha parte, suponho que a mulher no poço adorou a
Cristo em espírito e em verdade sem um tal reconhecimento.
Também me parece que, quando oro a Deus para aliviar os
sofrimentos de um amigo idoso, o Espírito não muda o significado
para algo que não posso verbalizar. Mas então pode ser que, quando
oro para que um amigo seja aliviado do sofrimento ou Deus conceda
arrependimento a milhões, não esteja adorando em espírito e em
verdade. Mas oro para que isso aconteça, e para esse fim acho a
linguagem literal totalmente adequada.
João Calvino
É preciso enfatizar que Hamilton rejeitou a posição histórica do
protestantismo, e ao fazê-lo entendeu mal essa posição. Ele fala de
“um lapso no legalismo entre os seguidores de Calvino que foram
além da compreensão prática robusta que Calvino tinha da fé cristã a
fim de erguer, coisa que ele não fez [itálico meu], teorias de
inspiração verbalmente inerrantes”.
Ora, além do uso pejorativo das palavras lapso e legalismo em
contraste com robusta, deve-se notar a referência histórica nas
palavras “coisa que ele não fez”.
A posição de Calvino, que é um pouco diferente do que
Hamilton quer nos fazer acreditar, é apresentada em detalhes por
Kenneth Kantzer na publicação Inspiração e interpretação[105] da
Sociedade Teológica Evangélica. No capítulo 4, “Calvino e as
Sagradas Escrituras”, Kantzer cita A Instituição de Calvino:
[Deus] quis que sua Palavra fosse consignada por escrito… Ele
ordenou que as profecias fossem postas por escrito e agregadas à
sua Palavra. Ao mesmo tempo, foram acrescentados alguns fatos
históricos, que nada mais são que meditações redigidas sob
inspiração do Espírito Santo.[106]
De fato, como aponta Kantzer, Calvino frequentemente afirmava que
Deus “ditou” o texto. É verdade, Calvino não usava o verbo da forma
como é usado num escritório de negócios moderno. Mas a
frequência do termo deve alertar as pessoas a não atribuir a Calvino
a ideia de que Deus dita erros. Kantzer alude a Calvino como tendo
chamado os profetas de “escriturários” e “copistas”, “seguros e
autênticos amanuenses do Espírito Santo; e portanto seus escritos
devem ser considerados os oráculos de Deus”. Ele também os
chama de “órgãos e instrumentos”. Refere-se à Escritura como o
“seguro e infalível registro”, “o padrão infalível” — aqui existe
inerrância — “a pura Palavra de Deus” e “a regra infalível de sua
santa verdade”. Citando nada menos que treze outras passagens,
Kantzer observa: “A simples olhada nos comentários de Calvino irá
demonstrar quão seriamente o reformador aplicava sua doutrina
rigorosa da inerrância verbal à sua exegese da Escritura”.[107]
Se também posso acrescentar uma citação da Instituição
(I.VII.1): “não tendo outro direito de que os fiéis reconheçam sua
plena autoridade senão porque fluiu dos céus, ouvindo-se nela a voz
viva do próprio Deus”.[108]
Por tudo isso, o leitor pode supor que o revisor não ficará muito
entusiasmado com os capítulos quarto e final de Hamilton.
Aqui Hamilton observa que a denúncia que o Antigo Testamento
faz da idolatria [e Hamilton poderia ter acrescentado 2 Pedro 1.16
(KJV), “Não seguimos mitos sofisticados] requer uma rejeição do
mito. A “revelação [cristã] deve ter um aspecto proposicional”.[109]
Porém, “toda linguagem… traz as marcas de sua origem
mitológica… A Bíblia não nos tira do alcance da linguagem mítica,
mas nos permite evitar a inverdade do mito”.[110]
Como a Bíblia, ou aliás Xenofonte, nos permite evitar a
inverdade do mito pode não ser muito importante. Pois, se Paulo e
Heródoto simplesmente substituem a inverdade do mito por algum
outro tipo de inverdade e se nunca chegamos à verdade literal, por
que não devemos descartar a coisa toda como histórias fantasiosas?
Verdade literal
A despeito do fato de, através da poesia até a parábola, Hamilton
querer escapar do mito, ele segue dizendo: “A linguagem da
Escritura… seria de outro modo incompreensível”, isto é, a menos
que padrões míticos tivessem sido usados. Ananias não teria
entendido as orientações para chegar à rua que se chama Direita se
elas não tivessem tido uma forma mitológica. “Os mitos sumérios,
babilônicos, fenícios e egípcios [foram] incorporados aos relatos
bíblicos da criação” e “os mitos gnósticos [estão] presentes nas
descrições neotestamentárias de Cristo.[111] A linguagem bíblica
emprega as imagens do mito, enquanto transforma seu conteúdo.[112]
Os mitos da criação nos quais os deuses extirpavam a terra e o céu
do corpo do monstro Caos explicam algumas das frases do relato
bíblico da criação”.[113]
Claramente, por mais que Hamilton queira ir além do mito, não
parece ir muito longe, pois na página seguinte diz: “Na falta do
padrão mítico [do gnosticismo] que originalmente produziu a
terminologia necessária, não seremos capazes de falar da morte e
ressurreição de Cristo”.[114]
Não é isso um absurdo completo? Será que estou dependendo
do gnóstico ou de outros mitos quando falo de soldados romanos
colocando Jesus numa cruz e batendo pregos em suas mãos e pés?
Certamente eu entendia isso na infância, muito antes de ouvir falar
em gnosticismo. E também não estou certo de que Mateus sabia
alguma coisa sobre gnosticismo. Se alguém agora responde que
Mateus e eu não precisávamos ter conhecido o gnosticismo porque
usamos uma linguagem já formada, que nos explique então como a
mitologia formou as palavras pregos, soldados, cruz, lança e morte.
Assim também, que mitologia é necessária para Pedro ver que o
túmulo estava vazio e depois ver Jesus na Galileia e conversar com
ele? Não é, portanto, um absurdo completo dizer que não
poderíamos falar sobre a morte de Cristo se a mitologia não nos
tivesse dado essas palavras?
Nesse ponto, alguém provavelmente contestará que, desde que
Hamilton não admite a linguagem literal, não quer realmente dizer o
que disse. Ele disse que não podíamos falar sobre a morte de Cristo.
O que queria dizer (embora não literalmente) é que Paulo não podia
explicar a expiação sem depender do gnosticismo. A explicação de
Paulo começa declarando que os homens trocaram a glória de Deus
pelos ídolos. Bem, é claro, Paulo não poderia ter dito isso
(sinceramente) se não existisse idolatria. Nesse sentido, algumas
afirmações da Escritura dependem das falsas religiões. Mas isso
está longe de provar que o monoteísmo é um produto social tardio e
igualmente longe de provar que é uma linguagem mítica, não literal.
Quando, além disso, Paulo diz que Deus apresentou Cristo como
propiciação para que Deus pudesse ser justo e justificador de alguns
pecadores, o fato de que existiam sacrifícios pagãos não prova que
eles precederam o sacrifício de animais no Éden e o sacrifício
posterior de Abel nem prova que qualquer porção dessa linguagem
não seja literal. Que Deus estaria satisfeito com a morte de Cristo é
algo tão literal quanto os soldados atravessarem pregos nas mãos e
pés de Jesus.
Quase não se escapa à impressão de que o autor não trata
seus oponentes de maneira justa. Diz ele:
Entretanto, como a revelação é dada em palavras humanas, ela
não pode ser mais precisa do que permite a linguagem. [Quão
verdadeiro! Uma perfeita tautologia. Mas é Deus, que produziu a
linguagem, incapaz de usá-la com perfeita precisão?] A crença de
que a Bíblia consiste de declarações de verdade literal [itálicos
seus] é, portanto, malconcebida. [O portanto é uma falácia lógica.]
A noção de verdade literal é bastante correta se opomos o literal
ao mítico… Neste sentido, devemos dizer que Deus literalmente
criou o mundo… Mas é algo totalmente diferente insistir que todas
as declarações da Escritura são literalmente verdadeiras.[115]
Esse tipo de argumento dificilmente pode ser considerado justo com
a visão da Reforma, pois ninguém dos tempos de Moisés até os dias
atuais alguma vez disse que todas as declarações são estritamente
literais. Lutero, Quenstedt, Gaussen ou Warfield disseram alguma
vez isso? É claro que há figuras de linguagem, metáforas,
antropomorfismos e coisas do tipo. Mas essas coisas não fariam
sentido se não houvesse declarações literais para lhes dar
significado. Por exemplo, 2 Crônicas 16.9 — “quanto ao Senhor,
seus olhos passam por toda a terra” — é absurdamente ridículo se
tomado literalmente: pequenos globos oculares rodando sobre o
chão empoeirado. Mas a menos que a declaração “Deus é
onisciente” seja literal, a figura não tem a que se referir. Certamente
Hamilton não publicou seu livro para lembrar-nos de que a Bíblia
contém algumas figuras de linguagem. E, contudo, seu argumento
aqui depende do suposto fato de que alguém disse “todas as
declarações da Escritura são literalmente verdadeiras”.
Considere a nota de rodapé nessa página:
“Literal” não é sinônimo de “histórico”. Inspiração não implica que o
que é inspirado deve ser entendido literalmente nem tampouco
que tudo deve ser visto como tendo realmente acontecido… Sendo
franco, para se aceitar todas as coisas relatadas na Bíblia como
tendo realmente acontecido é preciso adulterar o texto.
Essas palavras, que Hamilton cita com aprovação de H. M. Kuitert,
não são claras. A linguagem é típica de liberais que querem parecer
conservadores a pessoas ortodoxas enquanto minam a verdade da
Escritura. Quando Kuitert diz “todas as coisas relatadas”, refere-se
ele a metáforas? A declarações feitas por Satanás? Estará “todas as
coisas relatadas” se referindo a todas as coisas relatadas como
tendo realmente ocorrido? As duas primeiras possibilidades são
pueris. A terceira é um repúdio da religião evangélica. É difícil evitar
a conclusão de que a última é o significado pretendido. Por exemplo,
2 Pedro afirma ter sido escrito por Pedro. Sobre essa afirmação,
escreve Hamilton: “Desde há muito tempo, tem-se considerado que
todo autor tem um direito de propriedade sobre suas obras. Mas os
livros bíblicos surgiram num ambiente em que esse conceito era
desconhecido e onde nenhuma questão de verdade ou falsidade
estava envolvida no fato de se usar um nome reverenciado em
conexão com os escritos de outras mãos”. Essa declaração não é
verdadeira nem mesmo da erudição pagã, porque os filósofos
alexandrinos faziam uma distinção cuidadosa entre 36 diálogos
platônicos genuínos e 10 espúrios. Veja também Second Peter
Reconsidered (Tyndale Press, 1960), onde E. M. B. Green escreve
no sentido de que as falsificações não eram recebidas cordialmente
como defendem os críticos, mas que os subapostólicos se
distinguiam entre si e mesmo Apolo [um judeu cristão alexandrino]
dos apóstolos e destituíram o autor de Atos de Paulo e Tecla por sua
impostura. Outro exemplo foi Serapião de Antioquia, que baniu o
Evangelho de Pedro de sua igreja porque descobriu a partir de uma
investigação cuidadosa que o livro era uma falsificação.
Parábola
Após suas observações sobre a autoria de escritos espúrios,
Hamilton chega rapidamente à sua solução para o problema de
como a linguagem com sua herança mítica pode expressar a
verdade divina. Isso é feito por parábolas. O livro de Jonas, diz ele,
não relata ocorrências reais. Sua forma literária mostra que é uma
parábola. (Nunca houve um Jonas. Suponho que tampouco houve
uma Nínive.) Todo mundo reconhece que Cristo ensinava em
parábolas.[116] Nem tudo na Bíblia, reconhece Hamilton, é parábola;
as visões apocalípticas não o são. Mas “se devemos buscar por um
modo ‘chave’ de uso da linguagem na Escritura, a parábola se
encaixa nessa posição de forma muito mais adequada que o mito”.
[117]
Epistemologia
O ataque de Daane a Henry começa de forma bastante
plausível: “Na teologia, como em qualquer ciência, o que deve ser
conhecido dita os termos pelos quais pode ser conhecido”. Embora
plausível, Kant negava isso. Mas suponhamos que seja apenas algo
ambíguo, ou pelo menos incompleto. Os físicos (pois Daane
menciona a ciência) frequentemente pensaram conhecer um dado
objeto, quando na verdade seu método de conhecer — cujas
limitações eles não reconheceram — acabou lhes dando um objeto
totalmente diferente. Por causa dessas complexidades, e até de
algumas mais simples, a aplicação que Daane faz de seu princípio
ao método de Henry não tem qualquer peso. Daane infere que
Henry, portanto, em vez de começar da epistemologia, deveria ter
escrito primeiro sua teologia e por último sua epistemologia. Ao
contrário, em qualquer assunto — física ou teologia —, o método não
apenas pode ser explicado primeiro, como isso é inclusive o melhor a
ser feito. Suponha que um físico diga que o espaço é curvo ou um
botânico diga que um ocotillo [espécie de planta do deserto] não é
um cacto. O aluno inquiridor perguntará: Como você sabe? O aluno
ou um colega questionador desejará saber se o método usado
poderia levar a essa conclusão. Os físicos costumavam dizer que a
luz consiste em ondas de éter. Hoje geralmente se concorda que os
métodos então utilizados eram defeituosos e que a luz é outra coisa
(eles não sabem bem o quê). Assim, ainda que a botânica ou a
teologia seja escrita primeiro, ela não pode ser aceita por um
estudioso até que a pergunta crucial seja respondida: Como você
sabe? Num tratamento sistemático, a metodologia deve vir primeiro.
Em vez de perguntar “Que é um cacto?” ou “Que é a luz?”, alguém
pergunta: “Que é Deus?”. Como se pode responder essa pergunta?
Consultamos o Corão ou os Vedas? Estudamos as estrelas?
Enviamos um questionário a mil professores universitários? Um
método deve ser escolhido (ou involuntariamente usado) antes que
qualquer resposta seja apresentada. O método de Henry é consultar
a Bíblia e dela deduzir que Deus é um espírito infinito, eterno,
imutável. Não podemos começar com Deus; devemos começar com
a Bíblia. Por que não dizer isso primeiro e então prosseguir para a
teologia que a Bíblia ensina?
A confusão de Daane neste ponto é considerável. A premissa
de sua inferência é “Se para entender Deus devemos estar sob e nos
submeter aos termos pelos quais ele pode ser conhecido”. O leitor
tropeça nessa premissa antes mesmo de chegar à conclusão. Como
alguém pode estar sob ou voluntariamente se submeter a termos
antes de saber quais são os termos? Daane ignora completamente o
problema de descobrir os termos. Para usar seu literalismo bruto,
uma decisão de estar sob certos termos em vez de outros levanta o
problema de como selecionar os termos. Como Daane tão bem
insiste, “Isso não é mera picuinha metodológica”; houvesse Daane
em vez de Henry “cumprido esse requisito, não poderia nos ter dado
o que é a meu juízo uma teologia e apologética [não] evangélica
[bastante confusa]”. Para afirmar o ponto com mais clareza: a
premissa confusa de Daane não pode nos convencer da verdade da
conclusão de Daane.
Ideias e proposições
No entanto, a discordância básica e determinante entre Daane
e a visão Henry-Clark é a natureza ou forma da verdade. Citando (p.
27, coluna 3, parte inferior): “Para Henry assim como para Gordon
Clark, a natureza da verdade é a de uma ideia”.
Aqui cabe um esclarecimento parentético. O termo ideia é
muito vago e, no sentido platônico, incorreto. Em De Tales a Dewey,
Clark argumenta contra a visão de Hegel, e por implicação contra a
de Platão, de que a realidade consiste de conceitos ou ideias. Daane
está de fato certo em que isso não é mera picuinha metodológica.
Não é nenhuma picuinha: é, todavia, algo metodológico e distingue
Platão e Hegel de Agostinho e quaisquer outros que dependem de
proposições ou verdades. Suficiente como parêntese, voltemos
agora ao parágrafo anterior.
Para Henry assim como para Gordon Clark, a natureza da verdade
é a de uma ideia. Verdade bíblica é aquilo que Deus pensa… Esse
conteúdo ideativo da mente divina… se encarnou em Jesus de
Nazaré. Para Henry isso significa que Jesus desvelou ou revelou a
verdade, e não que ele próprio é a verdade.
A Bíblia
Com esse mal-entendido da posição Henry-Clark, Daane pode dizer:
A visão de Henry… reduz a forma suprema, final e pessoal da
Palavra de Deus, isto é, Jesus Cristo, ao mesmo nível da Bíblia.
Essa Bíblia acaba não sendo um testemunho do fato de Jesus
Cristo ser a forma última e final da Palavra de Deus para o
homem, mas acaba sendo ela mesma a forma última e a
verdadeira natureza da Palavra de Deus. Tal visão da Bíblia é a
fonte da insistência de que a Bíblia deve ser absolutamente
inerrante. Se a Bíblia como proposicional é uma forma de verdade
superior a Jesus, a impecabilidade de Jesus é menos importante
do que a inerrância da Bíblia. (28)
Esse importante parágrafo suscita quatro observações. Primeiro, o
argumento de Daane depende e parece ser iniciado por uma
negação da inerrância bíblica. Segundo, ele contém uma ou duas
confusões lamentáveis. Terceiro, uma das inferências do texto é uma
falácia lógica. Quarto, em nenhum lugar Daane explica a por assim
dizer forma pessoal da verdade, que ele opõe à visão Henry-Clark.
Primeiro, a exemplo dos afirmacionistas de Auburn de 1924, os
professores do Seminário Fuller, Jack Rogers e David Hubbard —
com a cooperação de Paul Rees da Visão Mundial e Berkeley
Mickelsen do Seminário Betel no livro deles Biblical Authority, e
Dewey Beegle do Seminário Wesley em Scripture, Tradition and
Infallibility, além de Jack Rogers mais uma vez numa crítica a Carl
Henry — e agora James Daane, outrora do Seminário Fuller, tem
vigorosamente atacado a veracidade da Bíblia. Esse esforço
cooperativo atual — porque os vários contribuidores de Biblical
Authority estavam certamente cooperando, ainda que Beegle e
Daane agissem independentemente — é digno de nota, porque nada
igual a isso ocorreu desde a Afirmação de Auburn. Naqueles dias, J.
Gresham Machen teve poucos a apoiá-lo em sua defesa da
Escritura, do nascimento virginal, dos milagres, da expiação e da
ressurreição. Hoje, em defesa da veracidade da Bíblia, estão cerca
de mil membros da Sociedade Teológica Evangélica, uma recém-
formada comissão em que James Boice da Filadélfia é um membro
proeminente, e alguns autores individuais, como Carl Henry e Harold
Lindsell. Ao avaliar o artigo de Daane sobre Que é a verdade?, é
preciso ter em consideração este cenário mais amplo.
Em segundo lugar, há uma falta de clareza quando Daane fala
de diferentes formas e níveis de verdade. Pelo menos cinco vezes na
página 28 ele usa o termo “forma”. Essas cinco ocorrências poderiam
ser ligeiramente diferentes nas suas conotações, mas em duas delas
a frase é “uma forma superior de verdade” e numa, “uma forma
inferior de verdade”. Visto que a verdade proposicional tem a forma
sujeito-verbo-predicado, a qual Daane considera como sendo a
forma inferior, sua forma superior deve ser desprovida de sujeitos,
verbos e predicados. A dificuldade com uma verdade que não tem
sujeito se torna uma consideração importante no ponto 5 abaixo. Se
Daane tivesse se referido a uma verdade superior e a uma inferior
em vez de a uma forma superior e a uma inferior, e se por essas
frases ele tivesse querido dizer que uma verdade pode estar
logicamente subordinada a outra e que o décimo teorema de
Euclides está subordinado ao quinto e aos seus axiomas, não teria
havido confusão. Não importaria quão subordinado um teorema
estivesse a outro; eles não apenas teriam a mesma forma, como
seriam também igualmente verdadeiros. Assim, quando Daane
acusa Henry de implicar que “a Bíblia como proposicional é uma
forma de verdade superior a Jesus”, o leitor tropeça em confusão,
porque Daane jamais explica o que essa forma é.
Em terceiro lugar, essa confusão — algo não inesperado —
leva Daane a uma inferência falaciosa. Se a Bíblia é uma forma
superior de verdade, diz ele, com efeito, então a impecabilidade de
Jesus é menos importante do que a inerrância. Como Daane,
partindo da sua premissa, chega a essa conclusão, não está claro.
Nem tampouco o significado da palavra “importante”. Se uma
declaração é mais importante do que outra, isso dependerá da sua
aplicação específica. Um princípio da engenharia é mais importante
para um problema de engenharia do que um princípio de química
orgânica, mas este pode ser mais importante para uma pesquisa
sobre câncer. Em qualquer caso, o único método pelo qual
poderíamos aprender que Jesus era sem pecado é o método da
revelação bíblica. Nem Josefo, nem Tácito, nem alguma “verdade
pessoal” nos diz que Jesus era sem pecado. E se a Bíblia contém
erros aqui e ali, como aqueles que negam a inerrância defendem,
não podemos confiar nas afirmações bíblicas da impecabilidade de
Jesus, pois elas poderiam ser alguns dos seus erros. Se aqueles que
rejeitam a inerrância alegam que esses versículos não têm erros, nós
perguntamos: Como você sabe? Por qual critério epistemológico
você distingue as verdades dos erros da Bíblia? Pois, se a Bíblia faz
afirmações falsas, deve haver um critério independente e superior à
Bíblia pelo qual suas afirmações devem ser julgadas. Nós
desafiamos nossos oponentes a expor seu critério epistemológico. A
menos que primeiro saibamos o método deles, não podemos aceitar
sua teologia.
Os quatro pontos indicados acima estão todos intimamente
relacionados. Os pontos dois e três, confusões e falácias, são juntos
exemplificados no topo da coluna 2, página 28: “Esse reducionismo é
consequência de um método teológico que primeiro decide a
natureza do nosso conhecimento de Deus e então decide que Deus
deve ser de tal natureza para que seja cognoscível por nós”. A ideia
aqui, uma confusão e uma inferência inválida condensadas no termo
“reducionismo”, parece ser que o método Clark-Henry requer que
primeiro se determine, à parte de qualquer revelação, a natureza do
conhecimento e então, novamente à parte da revelação, se conclua
que a natureza de Deus deve se conformar a isso. De modo algum; a
realidade é totalmente diferente disso. Uma das críticas frequentes a
Clark, mesmo por aqueles que aceitam a inerrância, é que ele
restringe o escopo do conhecimento ao limitá-lo ao que “ou é
expressamente declarado na Escritura ou por boa e necessária
consequência pode ser deduzido dela” (Confissão de Westminster,
1.6). Será que Daane não percebeu essa tese bastante
proeminente? De qualquer forma, quando um homem começa a ler a
Bíblia, descobre que ela contém muitas proposições — proposições
sobre as estrelas, sobre Abraão, sobre a Lei Levítica, sobre a
conquista de Canaã. Ele não pode ir longe, entretanto, sem aprender
algo sobre Deus e o homem. Ele aprende que Deus é um espírito
racional, um Deus da verdade, em quem estão todos os tesouros da
sabedoria e do conhecimento. Ele aprende que o homem — em
contraste com os animais — é uma criatura racional, que o homem
pecou e que Deus proveu um método de expiação.
Mas voltando ao assunto inicial: o que alguém aprende primeiro
da Bíblia, e o que aprende em segundo e em terceiro lugar, varia de
homem para homem. Uma pessoa começa com Gênesis; outra
começa com Mateus. Assim também, um homem pode aprender
várias proposições sobre Deus sem refletir sobre o método pelo qual
as aprendeu. Músicos e pintores costumam produzir boas obras de
arte antes de entender a teoria. Portanto, na psicologia temporal um
conhecimento de Deus precede um conhecimento de método. Mas
para explicar esse processo um apologista teria de começar com a
metodologia. Pois embora o leitor irrefletido pudesse não estar ciente
da metodologia — pudesse não entender como ele faz o que faz —,
estaria não obstante usando o método. E para Clark e Henry, o
método é escriturístico.
Suponha que uma pessoa reflexiva e inteligente comece com
Mateus. Ela se depara com as palavras genealogia, Abraão, gerou,
catorze e assim por diante. Ela perceberá então que cada sentença,
na verdade cada palavra, na Bíblia depende da lei lógica da
contradição para a sua inteligibilidade. Sem essa lei, cada palavra
teria um número infinito de significados: Davi não só significaria
Moisés e Judas, mas também estilingue, pedra, átomo e máquina de
escrever. E Deus significaria diabo. À parte da lógica, um substantivo
significaria o que ele não significa; e se uma palavra significa tudo,
ela não significa nada. Para significar alguma coisa, uma palavra
também não deve significar alguma coisa. Não existe nenhum
significado sem a lei da contradição. Assim, para adquirir o
conhecimento de que Deus é cognoscível, a criatura racional de
Deus — até onde ela possa escapar dos equívocos e falácias dos
efeitos noéticos do pecado — deve usar as leis da lógica. Dr. Daane
deveria tentar responder à questão: “Como podemos saber que Deus
é cognoscível, ou que é onisciente, sem usar as leis racionais da
lógica?”. Sem usar (primeiro) as leis da lógica, como podemos saber
qualquer coisa sobre Deus? E primeiro não é a palavra mais correta,
pois saber algo sobre Deus e usar a lógica são o mesmo e idêntico
ato.
Chegamos agora ao ponto quatro, onde a ininteligibilidade da
crítica de Daane se mostra mais evidente. Daane usa uma espécie
de teoria de dupla verdade. Não é exatamente a teoria medieval de
mesmo nome, mas derivada de Kierkegaard, Buber, Brunner, dos
neo-ortodoxos e dos existencialistas. Daane, porém, não nos dá
muita teoria: ele se satisfaz em afirmar que existe uma grande
diferença entre a verdade proposicional e a verdade pessoal. Dois
pontos deveriam ser feitos: Primeiro, a verdade pessoal é
ininteligível; e, segundo, Daane parece não ter nenhuma ideia clara
do que uma pessoa é.
Em primeiro lugar, pode-se facilmente afirmar e explicar a forma
da verdade proposicional. Como dito acima, ela consiste de um
sujeito conectado por um verbo a um predicado. Por um método
claramente definido nós podemos arranjar proposições na forma de
silogismos válidos e facilmente distingui-los de silogismos inválidos.
Mas qual é a forma da verdade pessoal? Existem universais e
particulares? Existem inferências válidas e inválidas?
Presumivelmente não, porque ninguém jamais conseguiu alguma vez
derivar vinte e quatro silogismos pessoais válidos nem 232 inválidos.
A verdade pessoal não pode ter sujeitos, predicados nem verbos. O
que ela é então? Como se pode distinguir uma verdade pessoal de
uma falsidade pessoal? Quando juntamente com Brunner uma
pessoa diz que Deus e o meio de conceptualidade são mutuamente
exclusivos, ela torna Deus completamente incognoscível. Se
falarmos sobre Deus, não estaremos falando sobre Deus. Não é isso
o que a Bíblia inerrante ensina.
Então, em segundo lugar, subjacente ao exposto acima está um
conceito deficiente ou completamente ausente de pessoa. Para
Platão, a pessoa humana era uma alma que conhecia as Ideias. O
Mundo das Ideias era em si uma mente viva, como ele explicou em
O Sofista. Para Aristóteles, a alma era a forma do corpo orgânico, e
sua individualidade dependia da sua matéria incognoscível. Locke
fez da alma uma ideia abstrata, uma substância espiritual, também
incognoscível; ele a chamou de “algo que não sei o quê”. Hume
“reduziu” a pessoa a uma coleção de sensações e imagens de
memória — uma coleção que, de acordo com Kant, nunca fora
coletada. Kant substituiu isso por sua unidade transcendental de
apercepção — também incognoscível. Quais desses Daane prefere?
Ou tem ele uma teoria diferente? Temo que isso também seja
incognoscível.
Em 1 Coríntios 2.16 Paulo diz que “nós, porém, temos a mente
de Cristo”. A palavra mente é nous. Como é possível termos nous de
Cristo, a menos que sua mente seja a verdade? Nós temos a mente
de Cristo na medida em que pensamos os seus pensamentos. Claro,
nós não somos oniscientes; não pensamos todos os pensamentos
dele; e, pior, nós pensamos algumas proposições falsas também.
Nós somos o que pensamos, assim como Cristo é o que ele pensa.
Sua doutrina ou ensino nos salva da morte eterna (João 8.51). Ele é
a verdade! Não é isso o que a Escritura ensina? Cristo é o Logos,
suas rhemata são a verdade; ele é a Sabedoria de Deus; e 1 Samuel
2.3 diz: “o Senhor é o Deus de conhecimento”. A teoria de Daane
parece implicar que essas proposições são alguns dos erros
presentes em nossa Bíblia não confiável. Henry e eu acreditamos
que a Bíblia é confiável.[119]
1
11. A fé reformada e a Confissão de Westminster
Ateísmo
A primeira delas — e o movimento mais obviamente anticristão — é
variadamente chamada de naturalismo, secularismo ou humanismo.
Esses nomes são apenas títulos mais corteses para o que
antigamente sem rodeios se chamava de ateísmo. O propósito deste
encontro pode parecer não exigir uma discussão sobre ateísmo; com
sua negação de Deus e, portanto, da revelação, o naturalismo pode
parecer um desenvolvimento filosófico que a igreja poderia se dar ao
luxo de ignorar. Mas uma igreja que ignora o humanismo secular
está simplesmente fechando seus olhos para a situação ao redor e
deixando de defender o primeiro capítulo da Confissão contra todos
os oponentes. Infelizmente a brevidade é necessária, e, portanto,
sem fazer qualquer referência ao comunismo, a forma mais flagrante
de ateísmo, será feita apenas uma menção de certos eventos
políticos e educacionais do cenário norte-americano.
Na recente vida pública e civil tem se desenvolvido uma
oposição à prática do cristianismo. De acordo com relatórios da
Associação Nacional dos Evangélicos, uma agência de adoção
carimbou como “psicologicamente inadequado” as fichas de inscrição
de um ministro e sua esposa dispostos à adoção. Um capelão da
Marinha fala das tentativas, tentativas bem-sucedidas, de descartar
jovens cristãos ativos como psicóticos. Em outra esfera pública, a
cidade de Indianapolis recusa o uso de seus parques por grupos
cristãos se estes forem longe a ponto de pedir uma bênção na hora
da refeição ou cantar um hino. Outros grupos podem manter seus
programas, mas os grupos cristãos são discriminados. Então, mais
uma vez, o tempo separado para instrução religiosa é objeto de
ataque. A estratégia do humanista é ocupar o tempo e a atenção das
crianças a ponto de elas não terem oportunidade de ouvir o
Evangelho. As escolas públicas com sua presença obrigatória devem
ser usadas para a inculcação do secularismo. E aqueles que se
opõem ao secularismo e que querem dar aos filhos uma educação
cristã são rotulados de antissociais, antidemocráticos e promotores
da discórdia. Esses eventos são indícios que mostram como os
humanistas estão usando agências do Governo para restringir a
liberdade religiosa.
Por trás desses eventos particulares se mantém a filosofia
naturalista, que é ensinada — quero dizer, inculcada — num sem
número de faculdades e universidades norte-americanas. Que não
se pense que os professores são uniformemente objetivos e que
indiferentemente ensinam todas as visões por igual. O secularismo é
ativamente forçado sobre os alunos. Por exemplo, considere a
declaração de Millard S. Everett, um professor na Roosevelt College,
em Chicago, citado em Philosophy in the Classroom [Filosofia na
sala de aula], pág. 27, por J. H. Melzer:
Nosso curso é elaborado e conduzido em linhas liberais. Além disso,
não confundimos liberalismo com indiferentismo ou neutralidade em
questões básicas, mas definitivamente organizamos o curso para o
propósito de aumentar a aceitação pelo aluno da atitude científica, da
moralidade liberal e secular e do objetivo democrático da liberdade e
igualdade. Nós… não deixamos qualquer dúvida na mente do aluno
de que, no fim das contas, estamos com as forças da democracia, da
ciência e da cultura moderna.
Com essa adoção preto no branco do secularismo, podemos mais
facilmente dar credibilidade ao rumor de que há duas universidades
que intencionalmente não irão graduar um estudante que é
fundamentalista.
Por nosso ponto de vista cristão ignorante, esses humanistas
não parecem ter muito entendimento das leis da lógica. Eles
assumem o princípio da separação entre Igreja e Estado e
consideram repreensível que se usem as instalações das escolas
públicas para a educação religiosa.[120] A União Americana pelas
Liberdades Civis irá para o tribunal contra esse tipo de educação,
mas nunca ouvi falar de sua oposição ao uso de dinheiro dos
impostos para a educação anticristã. Eles nunca processaram uma
universidade por ensinar o secularismo. Eles defenderão os
comunistas; defenderão as editoras de revistas em quadrinhos
obscenas; mas quando eles alguma vez defenderam a liberdade
religiosa ou protestaram contra a inculcação de humanismo em
instituições sustentadas com os impostos? Consistência não parece
ser uma das suas virtudes.
A oposição cristã ao humanismo tem sido ordinariamente
ineficaz politicamente e muitas vezes inútil filosoficamente. Ao atacar
uma cosmovisão materialista ou mecanicista, cristãos têm às vezes
pontificado que ninguém pode acreditar que o universo é resultado
do acaso. Infelizmente isso não é verdade. Há muitas pessoas que
acreditam nisso; e até que os pensadores cristãos enfrentem as
realidades dessa situação, um progresso não pode ser
razoavelmente esperado.
Nem todo ministro e nem toda igreja tem uma ocasião
proveitosa para combater as fontes do humanismo. Apenas em
casos excepcionais pode um ministro ficar face a face com
professores ou autores naturalistas. Apenas raramente pode um
ministro responder a esses homens em publicações. Há algumas
igrejas, situadas em cidades universitárias, que têm oportunidade de
trabalhar com estudantes. É de se esperar que elas tenham também
o equipamento para serem eficazes. Cada um de nós deveria
examinar sua própria situação para ver quais são as suas
possibilidades. Infelizmente, por vezes a miopia ou o egoísmo
produzem uma tragédia. Havia uma igreja em uma cidade
universitária cujo ministro queria trabalhar com os estudantes. Havia
também um grupo de estudantes dispostos a ajudá-lo. A situação era
ideal — exceto por um detalhe: a congregação não podia ver a
universidade como um campo missionário; assim, se queixou de que
seu ministro estava negligenciando a congregação e forçou a sua
demissão.
Tanto mais honra para aquelas congregações e pastores que
assumem seriamente sua parte na responsabilidade. E toda honra
para as poucas faculdades que são cristãs, não só de nome, mas na
educação real. E toda honra para aqueles que estão fundando
escolas primárias cristãs onde Deus não é ignorado ou tratado como
desimportante ou inexistente. A oportunidade e responsabilidade de
estabelecer escolas primárias cristãs é uma que eu gostaria de
insistir com vocês, mas o tempo e o assunto em pauta me impedem
de fazê-lo agora.
Neo-ortodoxia
No início deste artigo, afirmei que o primeiro capítulo da Confissão,
sobre a revelação divina, é a grande divisória entre dois tipos de
pensamento. Num lado dessa divisória está o naturalismo,
secularismo ou humanismo. Mas ele não está sozinho. Também do
mesmo lado da grande divisória está outro sistema de pensamento.
Este afirma, e o faz até vigorosamente, a existência de Deus — ao
menos algum tipo de deus — e chega ao ponto de falar de
revelação; mas o que ele diz sobre Deus e a revelação é tão
contrário ao primeiro capítulo da Confissão que o cristianismo, longe
de acolher o seu apoio, deve considerá-lo um inimigo dos mais sutis
e enganadores. Refiro-me ao que frequentemente é chamado de
neo-ortodoxia.
O criador da neo-ortodoxia foi o pensador dinamarquês Søren
Kierkegaard. Com sua mente penetrante, ele viu que o absoluto
hegeliano não era o Deus de Abraão, Isaque e Jacó. Com sua
natureza apaixonada, ele se revoltou contra o formalismo
eclesiástico impassível da sua época. A igreja estatal luterana estava
morta. Alguns poderiam descrever a situação como uma ortodoxia
morta. Mas Ludwig Feuerbach, contemporâneo de Kierkegaard,
diagnosticou a situação não como sendo de ortodoxia morta, mas de
viva hipocrisia. As pessoas iam para a igreja no domingo e
prestavam serviço da boca para fora a algo em que não acreditavam.
Elas não eram ortodoxas, mas pagãs de coração. Contudo, a forma
vazia permanecia. Contra essa doença mortal, Kierkegaard enfatizou
a apropriação apaixonada e a decisão pessoal. Com sarcasmo
cortante, ele fustigou a hipocrisia, contrastou os cristãos
desprezados do primeiro século à respeitabilidade farsesca da
Europa do século XIX, pediu mais emoção e menos intelecto, mais
sofrimento e menos complacência, mais subjetividade e menos
objetividade.
Sem dúvida Kierkegaard estava substancialmente certo em ver
a igreja como muito formal, muito hegeliana, muito pagã. E nenhuma
pessoa devota poderia questionar a necessidade da decisão pessoal
e apropriação. Mas — e este é o ponto importante — se uma pessoa
deveria se apropriar, deveria haver algo de que se apropriar.
Kierkegaard e seus seguidores contemporâneos, em toda a sua
conversa sobre Deus e a revelação, nos ofereceram pouco ou nada
para apropriar. O próprio Kierkegaard disse: “Cristo não propôs
qualquer doutrina; ele agiu. Não ensinou que há redenção para os
homens; ele os redimiu”. Ora, é verdade que Cristo redimiu seus
eleitos; é verdade que ele agiu; é ainda verdade que sua missão
principal não era ensinar; mas não é verdade que Cristo não propôs
quaisquer doutrinas. Kierkegaard escreveu um livro chamado Ou-Ou,
e com bastante frequência praticou tal princípio. Um princípio melhor
seria Tanto-Como. Cristo tanto agiu como ensinou. Além disso
especialmente comissionou seus discípulos a ensinar, a ensinar um
grande número de doutrinas encontradas em Romanos, Coríntios e
no resto do Novo Testamento.
Como Kierkegaard não nos oferece nada para apropriar e põe
toda a sua ênfase no sentimento subjetivo de apropriação, não faz
nenhuma diferença se adoramos a Deus ou os ídolos. No seu estilo
literário envolvente, Kierkegaard descreve dois homens: um está na
igreja luterana e mantém uma concepção verdadeira de Deus; mas
como ora com um espírito falso, está na verdade orando a um ídolo.
O outro está num templo pagão orando a ídolos, mas como ora com
uma paixão infinita, está na verdade orando a Deus. Mais uma vez,
Kierkegaard age sob o princípio do Ou-Ou em vez de Tanto-Como.
Tanto o luterano que ora num espírito falso como o pagão que ora a
ídolos desagradam a Deus. Só porque um pagão tem uma
experiência passional intensa, não significa que ele está adorando o
Deus verdadeiro. Mas para Kierkegaard a verdade é encontrada no
“Como” interno, não no “O que” externo. O que um homem adora
não faz nenhuma diferença. Sua paixão é o que conta. “Uma
incerteza objetiva”, diz Kierkegaard,
mantida firmemente em um processo de apropriação da mais
apaixonada interioridade é a verdade, a verdade mais elevada
atingível para um indivíduo existente… Se apenas o Como dessa
relação estiver na verdade, o indivíduo estará na verdade, muito
embora esteja assim relacionado à inverdade.
Quão peculiar esse tipo de filosofia possa ser, o protestantismo
contemporâneo está amplamente dominado por ela. Os ministros
neo-ortodoxos podem falar de deus e de revelação, mas não têm em
mente o Deus objetivo e a revelação objetiva da Confissão de
Westminster. Eles não creem que a Bíblia diz a verdade. Por
exemplo, Emil Brunner, que através dos seus livros e sua posição
prévia no Seminário Teológico de Princeton se tornou popular nos
Estados Unidos, está tão distante da Confissão que não mantém
nem as palavras da Escritura, nem os pensamentos da Escritura
como a verdade. Citando: “Todas as palavras têm uma importância
meramente instrumental. Não só as expressões linguísticas, mas até
o conteúdo conceitual não é a coisa em si, mas apenas sua
estrutura, seu receptáculo, seu meio”. Algumas páginas depois ele
continua: “Deus pode… falar sua palavra a um homem até mesmo
por uma doutrina falsa”. Deus, então, se revela na falsidade e na
inverdade. Que revelação!
Esse tipo de teologia deve ser explicado em parte como uma
reação ao imanentismo de Hegel, para quem Deus ou o Absoluto
não é nada mais que a unidade do universo total. Para Hegel, sem o
mundo não poderia haver Deus. Kierkegaard, Brunner e seus
discípulos queriam um deus transcendente. Ou imanência, ou
transcendência; não tanto-como. Ao insistir na transcendência de
deus, eles são capazes de se disfarçar com a pseudo-piedade da
sua paixão infinita e de enganar muitos cristãos que sabem pouco de
teologia alemã. Eles podem citar a Escritura: É claro que ela pode
ser falsa, mas ainda é uma revelação. Por exemplo, ao exaltarem
deus acima de todas as limitações humanas, eles nos lembram de
que os pensamentos de Deus não são os nossos pensamentos.
Portanto, dizem eles, a mente divina está tão acima da nossa mente
finita que não há um único ponto de coincidência entre o seu
conhecimento e o nosso. Quando um calvinista tenta arrazoar com
eles logicamente, eles depreciativamente contrastam a lógica
humana com o paradoxo divino. Deus é totalmente Outro. Ele nunca
é um objeto do nosso pensamento. Num encontro eclesiástico, ouvi
um ministro dizer que a mente humana não possui absolutamente
nenhuma verdade. E no ano passado na Europa, visitei certo
professor que afirmou que nós não podemos ter nenhuma verdade
absoluta. Quando ele disse isso, tomei um pedaço de papel e
escrevi: “Nós não podemos ter nenhuma verdade absoluta”. Eu lhe
mostrei o escrito, a frase — Nós não podemos ter nenhuma verdade
absoluta — e então lhe perguntei: “Essa frase é uma verdade
absoluta? Você não percebe que se a mente humana não pode ter
nenhuma verdade, ela não pode ter a verdade de que não tem
nenhuma verdade? Se não sabemos nada, não podemos saber que
não sabemos nada. E se não há nenhum ponto de coincidência entre
o conhecimento de Deus e o nosso, segue rigorosamente que, visto
que Deus sabe tudo, nós não sabemos absolutamente nada”.
Com tal ceticismo, não é de surpreender que a religião deles
consista de uma interioridade apaixonada que não se apropria de
nada objetivo. Infelizmente o ceticismo, particularmente quando
discutido num tom tão acadêmico quanto neste discurso, não
provoca, como deveria, uma reação tão apaixonada entre os de
mentalidade evangélica. Mas devemos perceber que mesmo o
ceticismo mais suave e inócuo é suficiente para derrotar o
Evangelho. Para acelerar a dissolução do cristianismo não é
necessário dizer que sabemos que uma filosofia contrária é
verdadeira; é igualmente eficaz dizer que não sabemos se algo é
verdadeiro. O Evangelho é uma mensagem de conteúdo positivo, e
se ele é dogmaticamente negado, ou meramente silenciado, isso faz
pouca diferença.
O que é mais lamentável é que o ceticismo da neo-ortodoxia é
especialmente insidioso. Homens que adotam a posição de
Kierkegaard e de Brunner não fazem apenas uso de termos como
Deus e revelação, mas também falam de pecado e justificação.
Alguns poderiam até pregar um sermão razoavelmente tolerável
sobre justiça imputada. Isso engana os crentes simplórios. Quando
as pessoas ouvem as palavras familiares, naturalmente assumem
que se referem a ideias familiares. Elas não veem que o neo-
ortodoxo não considera nem as palavras, nem tampouco o conteúdo
intelectual como verdadeiro. Embora o sermão possa ser sobre Adão
e a Queda, o ministro neo-ortodoxo entende as palavras num sentido
mitológico. Adão é o mito pelo qual somos estimulados a uma paixão
infinita.
Embora seja algo esperado, ainda assim é desencorajador ver
pessoas sensatas serem enganadas por esse tipo de conversa. No
encontro do Conselho Mundial em Evanston, teólogos europeus
defenderam a ideia de um retorno apocalíptico de Cristo. Em
contraste com os teólogos norte-americanos que colocam sua
esperança num futuro governo socialista, a fala de um apocalipse
soou revigorante; e os mal informados, aqueles que não tinham
estudado a história do pensamento alemão do último século,
congratulavam-se pelos indícios de um retorno ao pensamento
bíblico. Os evangélicos são completamente enganados por essa vã
imaginação. Eles precisam ser alertados para as astutas ciladas do
Diabo.
Mas se é lamentável ser enganado, o que dizer dos
enganadores? Desde Ário ter torcido a linguagem bíblica para evitar
os argumentos esmagadores de Atanásio, os incrédulos na igreja
têm usado a fraseologia bíblica para disfarçar o propósito subjacente
deles. Que contraste com a política dos teólogos de Westminster.
Estes não pouparam esforços para tornar suas declarações claras,
inequívocas e totalmente honestas. Seu propósito não era enganar
ou esconder, mas explicar e esclarecer. E tão cuidadosamente
definiram seus termos que é quase impossível uma inteligência
normal confundir o significado. Não só foi o conteúdo intelectual
claramente apresentado, mas tornado simples e inteligível por uma
cuidadosa atenção às palavras por eles escolhidas.
Os reformadores e seus sucessores no século seguinte eram
honestos; muitos dos líderes eclesiásticos do presente século não o
são. Estes tomam solenes votos de ordenação, subscrevendo à
Confissão de Westminster; mas não creem que ela é a verdade.
Perjuros no púlpito! Que tragédia paras as pessoas nos bancos das
igrejas! E que tragédia também para esses ministros!
O falecido J. Gresham Machen era um homem honesto e
brilhante acadêmico. Em 1925 publicou um volume salutar intitulado
Que é a fé?. Embora naquele momento ele não estivesse
particularmente preocupado com a neo-ortodoxia, seu primeiro
capítulo é um ataque incisivo ao ceticismo e ao anti-intelectualismo.
Ele enfatizou a verdade, a verdade objetiva da Bíblia e a primazia do
intelecto. Hoje, 30 anos depois, o livro deveria ser relido, pois a neo-
ortodoxia é ainda mais anti-intelectual que o antigo modernismo. E
se o ceticismo prevalece, se não existe uma verdade — nenhum
Evangelho que a mente humana pode apreender —, nós podemos
igualmente adorar ídolos num templo pagão.
Arminianismo e calvinismo
No outro lado da divisória continental, as águas fluem na
direção oposta. Em vez dos desertos sufocantes do Arizona, vêm à
vista o Vale do Mississipi com o seu trigo e milho. Aqui nós temos
vida e os frutos do solo. Contudo, nem todo o solo, nem todos os rios
do leste da divisória são igualmente frutíferos. Houvesse tempo hoje,
seria possível dar uma descrição ampla dos dois rios; mas como não
é este o caso, apenas uma indicação pode ser tentada. Há uma
corrente que, aceitando a Escritura como a única e infalível regra de
fé e prática, não aceita todos os demais 32 capítulos da Confissão.
Embora possa aceitar vários deles e ser amplamente chamada de
evangélica, ela rejeita o capítulo 3 e outros capítulos que são
definitivamente calvinistas. As águas dessa corrente fluem na
mesma direção geral, e nos alegramos por alcançarem
eventualmente o mesmo oceano celestial; mas elas fluem por terra
pedregosa com vegetação esparsa, ou por vezes esvaem a
pântanos em que a vegetação é suficientemente densa, mas é inútil
e não saudável. Em seu curso rochoso, essa corrente balbucia sobre
a fé e o arrependimento como sendo as causas e não os resultados
da regeneração; e alega que seu “livre-arbítrio” pantanoso pode ou
bloquear, ou tornar efetivo o poder onipotente de Deus. Tudo o que
temos tempo para dizer acerca dessa corrente de pensamento é que
suas inconsistências a fazem uma presa fácil aos ataques do
humanismo. Ela não pode defender o princípio da revelação porque
entendeu mal o conteúdo da revelação.
Por outro lado, aquele bendito rio da salvação, fluindo pela
terra de milho alto e do gado robusto, deve ser identificado com as
doutrinas dos grandes reformadores. Esses homens e seus
discípulos no século seguinte estudaram e redigiram o sistema de
doutrina que as igrejas presbiterianas e reformadas ainda hoje
professam. A Confissão de Westminster não é um credo abreviado
escrito por homens de fé abreviada. Ao contrário, é a abordagem
feita por homens que mais se aproxima de uma exposição completa
de todo o conselho de Deus que Paulo não deixou de declarar. Os
teólogos de Westminster eram os melhores acadêmicos bíblicos de
sua época, e como grupo não foram superados até hoje. Por um total
de 5 ou mais anos, eles laboraram incessantemente para formular
seu resumo do que a Bíblia ensina. E tão bem-sucedidos foram que
seu documento é com justiça a base de muitas denominações. A
existência factual da Confissão de Westminster testifica várias
dessas convicções dos nossos antepassados espirituais, e três
dessas convicções podem servir de conclusão para esta palestra.
Em primeiro lugar, nossos antepassados estavam convencidos,
afirma a Confissão de Westminster, e a Bíblia ensina que Deus nos
deu uma revelação escrita. Essa revelação é a verdade. Como o
próprio Cristo disse: “A tua Palavra é a verdade”. Ela não é um mito,
não é uma alegoria, não é um mero apontador da verdade, não é
uma analogia da verdade; mas é literal e absolutamente verdadeira.
Em segundo, nossos antepassados estavam convencidos e a
fé reformada afirma que essa verdade pode ser conhecida. Deus nos
criou à sua imagem com os poderes intelectuais e lógicos de
entendimento. Ele se dirigiu aos homens em uma revelação
inteligível; e espera que a leiamos para compreender o seu
significado e crer nela. Deus não é o Totalmente Outro, nem a lógica
é uma invenção humana que distorce as declarações de Deus. Se
assim o fosse, como dizem os neo-ortodoxos, resultaria, como
admitem os neo-ortodoxos, que a falsidade seria tão útil quanto a
verdade na produção de uma emoção apaixonada. Mas a Bíblia
espera que nos apropriemos de uma mensagem definida.
Em terceiro lugar, os reformadores acreditavam que a
revelação de Deus pode ser formulada com precisão. Eles não
tinham apreço pela ambiguidade; não identificavam a piedade com
uma mente confusa. Eles queriam proclamar a verdade com a maior
clareza possível. E assim devemos nós.
Ousamos nós permitir que a nossa herança bíblica seja
perdida numa ecumenicidade nebulosa onde a crença é reduzida à
mais breve declaração doutrinária possível, em que a paz seja
preservada por uma ambiguidade abrangente? Ou devemos refletir
sobre o fato de que quando os reformadores pregaram a mensagem
bíblica completa em todos os seus detalhes e com a maior clareza
possível, Deus concedia ao mundo seu maior avivamento espiritual
desde os dias dos apóstolos? Não podemos esperar da mesma
forma bênçãos surpreendentes se retornarmos com entusiasmo a
todas as doutrinas da Confissão de Westminster?
[1] João Calvino, A instituição da religião cristã, Tomo I (São Paulo: UNESP, 2008), p. 75.
[2] The Text of a Complaint, p. 10, coluna 2.
[3] A. R. Kuschke, Jr. e Bradford, A Reply to Mr. Hamilton, p. 4.
[4] Ibid., p. 6.
[5] Abraham Kuyper, Encyclopedia of Sacred Theology (New York: Charles Scribner’s Sons,
1898), p. 110-111.
[6] The Text, 5:1.
[7] Ibid., 5:3.
[8] Ibid., 7:3.
[9] A Committee for the Complainants, The Incomprehensibility of God, p. 3.
[10] The Text, 5:3.
[11] P. 450-53.
[12] Christian Doctrine, p. 207.
[13] In the Beginning, God, p. 15-17.
[14] Ibid., p. 35-36.
[15] Ibid., p. 47-48.
[16] Linguagem, verdade e lógica (Lisboa, Portugal: Editorial Presença, 1991), p. 67.
[17] The Divine-Human Encounter, p. 45.
[18] Alguns romanistas não tomam o argumento cosmológico como logicamente
demonstrativo, mas como um método de dirigir a atenção para certas características dos
seres finitos a partir das quais a existência de Deus pode ser vista sem um processo
discursivo. Compare com E. L. Mascall, Words and Images, p. 84. Mas este, julgo eu, não é
o tomismo padrão.
[19] Compare com Uma visão cristã dos homens e do mundo (Brasília, DF: Monergismo,
2013).
[20] E. Brunner, Wahrheit als Begegnung – Truth As Encounter, p. 88.
[21] Para uma análise completa do pensamento de Brunner, veja o excelente volume
Brunner’s Concept of Revelation de Paul King Jewett, James Clarke & Co., 1954.
[22] João Calvino, A instituição da religião cristã, Tomo I (São Paulo: UNESP, 2008), p. 255
ss.
[23] Ibid., p. 77 (I, viii).
[24] Language and Reality, p. 383, 433.
[25] E. L. Mascall, Words and Images, p. 101.
[26] Veja o meu livro Uma visão cristã dos homens e do mundo (Brasília, DF: Monergismo,
2013), capítulos 3 e 4.
[27] G. H. Clark, Thales to Dewey, p. 217-21.
[28] K. Barth, Church Dogmatics, I, p. 345.
[29] Cf. João Calvino, A instituição da religião cristã, Tomo I (São Paulo: UNESP, 2008), p.
115 (I.XIII.2).
[30] K. Barth, Church Dogmatics, I, p. 347.
[31] Veja Church Dogmatics, I, 2, p. 286-97.
[32] Veja Richard B. Brandt, The Philosophy of Schleiermacher, Harper and Brothers, 1941;
Edwin A. Burtt, Types of Religious Philosophy, edição revisada, capítulo 2; e para um
resumo das críticas a Barth, veja Gordon H. Clark, Karl Barth’s Theological Method, [1963]
1997.
[33] Tomás de Aquino, Summa Theologica, I, P. 46, Art. 2.
[34] Veja Church Dogmatics, II, 1, p. 119 ss.
[35] S. Kierkegaard, Pós-escrito conclusivo não científico às migalhas filosóficas (Petrópolis,
RJ: Vozes, 2013), p. 215.
[36] Ibid., p. 210.
[37] B. Pascal, Pensamentos (São Paulo: Abril Cultural, 1984), p. 124.
[38] L. Gilkey, Maker of Heaven and Earth, p. 145.
[39] Emil Brunner, Philosophie und Offenbarung, p. 50.
[40] Ibid., p. 19, 110, itálico meu.
[41] Ibid., p. 34.
[42] Grifo do autor.
[43] Para uma descrição mais completa do assunto, veja “Calvin and the Holy Scriptures” de
Kenneth S. Kantzer, em Inspiration and Interpretation, editado por John W. Walvoord,
Eerdmans, 1957.
[44] João Calvino, A instituição da religião cristã, Tomo 1 (São Paulo: UNESP, 2008), p. 73-
74 (I.vii.4).
[45] J. Theodore Mueller, Inspiration and Interpretation, p. 88; veja todo o capítulo 3 para
uma justificativa dos detalhes que se seguem.
[46] Karl Barth, Church Dogmatics, I:2, p. 528-29.
[47] Emil Brunner, Philosophy of Religion, p. 155.
[48] Gordon H. Clark, A filosofia da ciência e a crença em Deus (Brasília, DF: Monergismo,
2020).
[49] Edwin A. Burtt, Types of Religious Philosophy, 2ª edição, p. 311.
[50] Veja J. Gresham Machen, The Virgin Birth (Harper and Brothers, 1932).
[51] Veja o meu livro Religião, razão e revelação (Brasília, DF: Monergismo 2020), capítulo
3, “Inspiração e Linguagem”.
[52] Emil Brunner, The Divine-Human Encounter, p. 110.
[53] Biblical Authority, editado por Jack Rogers (Word Books, Waco, Texas, 1977).
[54] The Battle for the Bible (Zondervan, 1976).
[55] Livro de Concórdia (São Leopoldo, Porto Alegre: Sinodal, Concórdia: 1980), p. 499.
[56] “A sagrada e divina Escritura bíblica, que é a Palavra de Deus inspirada pelo Espírito
Santo… é o ensino mais perfeito e mais elevado e sozinha lida com tudo quanto serve ao
verdadeiro conhecimento, amor e honra de Deus, bem como à verdadeira piedade e
constituição de uma vida piedosa, honesta e abençoada” [da tradução inglesa da edição
alemã aumentada de Arthur C. Cochrane, Reformed Confessions of the Sixteenth Century,
Westminster John Knox Press, (1966) 2003, p. 100]. “A Escritura canônica é a Palavra de
Deus, dada pelo Espírito Santo… a filosofia mais antiga e perfeita; só ela contém
perfeitamente toda a piedade [e] todo modo de vida razoável” (da tradução inglesa do texto
em latim em Niemeyer por James T. Dennison, Jr., Reformed Confessions of the 16th and
17th Centuries in English Translation, Volume 1, pp. 1523–1552, Reformation Heritage
Books, 2008, p. 343). – Editor.
[57] “Cremos e confessamos que as Escrituras Canônicas… são a verdadeira Palavra de
Deus… O próprio Deus falou aos patriarcas, aos profetas e aos apóstolos, e ainda nos fala
a nós pelas Santas Escrituras” (Veja, na nota acima, p. 137). – Editor.
[58] CFW 1:4.
[59] CFW 14:1, 2.
[60] Segundo o dicionário Houaiss, “que não comete erros, que nunca se engana ou se
confunde; indefectível”. [N. do T.]
[61] Biblical Authority, p. 10
[62] Ibid., p. 12.
[63] Ibid., p. 19.
[64] Ibid., p. 20.
[65] Ibid., p. 22. Quanto à Agostinho, compare com Ep. 82, 4, 3; 137: De Doctrine Christiana
1:39; 2:8; 2:42; De Civitate Dei 11:3, Enchiridion 1:4; De Utilitate Credendi 6.
[66] Ibid., p. 24.
[67] J. Theodore Mueller, Inspiration and Revelation, editado por John W. Walvoord
(Eerdmans, 1957), p. 88.
[68] Ibid., p. 95.
[69] Ibid., p. 99.
[70] Ibid., p. 102.
[71] Ibid., p. 108.
[72] Ibid., p. 110.
[73] Biblical Authority, p. 30.
[74] Ibid., p. 37, 41.
[75] Ibid., p. 41.
[76] Ibid., p. 112.
[77] Ibid., p. 113.
[78] Ibid., p. 114.
[79] Ibid.
[80] Ibid.
[81] Ibid., p. 153.
[82] Ibid., p. 156.
[83] Ibid., p. 169.
[84] Ibid., p. 161.
[85] Ibid., p. 176.
[86] Ibid., p. 166.
[87] Ibid., p. 166.
[88] Ibid., p. 167-68.
[89] Biblical Authority, p. 168.
[90] Ibid.
[91] “Vede que não minto na vossa cara” (ARA).
[92] Biblical Authority, p. 179.
[93] Presbuterion, III, p. 2, 95 ss.
[94] Parte II de Mind as Behavior, 1924.
[95] Kenneth Hamilton, Words and the Word (Grand Rapids, Michigan: Eerdmans Publishing
Co., 1971), p. 45.
[96] Ibid., p. 87.
[97] Ibid., p. 63.
[98] Ibid.
[99] Ibid.
[100] Ibid., p. 67. Por mundo objetivo, Hamilton parece querer aqui dizer mundo sensorial,
como se o mundo do significado ou da inteligibilidade fosse subjetivo. Todavia, na página 68
ele fala da própria Palavra — certamente não um objeto sensorial — como sendo objetiva. É
difícil dizer com precisão qual é seu argumento nessas duas páginas.
[101] Por exemplo, Deus instruiu Abraão a sacrificar Isaque (Gn 22.2), ou Deus instruiu
Ananias a ir na casa de Judas à rua que se chama Direita e perguntar por um homem
chamado Saulo de Tarso (At 9.11). Ou essas passagens, com suas instruções específicas,
não são a Palavra de Deus?
[102] CFW 1:6.
[103] Kenneth Hamilton, Words and the Word (Grand Rapids, Michigan: Eerdmans
Publishing Co., 1971), p. 75.
[104] Kenneth Hamilton, op. cit., p. 77.
[105] Kenneth Kantzer, Inspiration and Interpretation (editado por John F. Walvoord,
Eerdmans, 1957).
[106] Ibid., p. 137.
[107] Ibid., p. 142.
[108] João Calvino, A instituição da religião cristã, Tomo 2 (São Paulo: UNESP, 2009), p. 71.
[109] Esse tipo de afirmação é insignificante. Declarações míticas também são
proposicionais. A distinção importante deve ser entre verdadeira versus falsa ou entre literal
e exata versus fantástica e imprecisa. Mas toda declaração possui um “aspecto”
proposicional, o que quer que esse aspecto signifique.
[110] Kenneth Hamilton, Inspiration and Interpretation, p. 86.
[111] Para uma refutação definitiva, veja The Origin of Paul’s Religion, de J. Gresham
Machen.
[112] Ela faz isso? Como? Com que resultado?
[113] Kenneth Hamilton, Inspiration and Interpretation, p. 89.
[114] Ibid., p. 90.
[115] Ibid., p. 91.
[116] Um critério comum para se distinguir uma parábola de Cristo de algo que ele relata
como tendo acontecido é a ausência de nomes no primeiro caso e a sua presença no
segundo: um dono de casa saiu de madrugada para assalariar trabalhadores ou certo rei
celebrou as bodas de seu filho versus o sangue de Abel… de Zacharias, filho de Baraquias,
a quem matastes, ou outras referências a acontecimentos do Antigo Testamento.
[117] Ibid., p. 100.
[118] Ibid., p. 96.
[119] Embora Henry e eu estejamos em amplo acordo, não quero vinculá-lo a qualquer dos
materiais acima além daquilo que ele tenha explicitamente afirmado em suas publicações.
[120] No original, “released time education”. No sistema de educação pública norte-
americano, é o período no horário escolar em que os estudantes são liberados da escola
para estudar a Bíblia. Foi sancionado pela Suprema Corte dos EUA em 1952. [N. do T.]