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Repensando a cultura jurídica: um diálogo entre a antropologia e

o direito
Ivan Furmann

A conceituação de Cultura Jurídica parte da noção de mundo simbólico e de algumas


etnografias clássicas, para construir a abertura ao outro, à diversidade e aos direitos
humanos.

1 CULTURA JURÍDICA COMO CHAVE


INTERPRETATIVA?
O conceito de cultura nas ciências humanas ressurgiu, entre as décadas de 1970
e 1980, como medida para interpretação e análise da diversidade humana.
Anteriormente havia caído em relativo ostracismo devido ás tendências evolucionistas
que efervesceram durante o final do século XIX e primeira metade do século XX. Após
a Segunda Guerra tais teorias foram, em parte, soterradas, ao menos como centrais, no
debate sobre o homem.

Em seu retorno, o conceito cultura atingiu em especial a Antropologia e a


História, que vivenciaram em seus meios intelectuais um verdadeiro boom de
problemas e hipóteses. Geertz (1989) apontava que certas idéias serviam para solucionar
um enorme rol de problemas centrais de uma ciência que pareciam servir para
solucionar quase todos. Susane Langer teria apontado que quase todas as mentes
criativas do momento teriam pensado a idéia de ―cultura‖ como uma chave explicativa
para compreender o homem. A antropologia, portanto, teria sido posta como missão
central:

(...) limitar, especificar, enfocar e conter [o conceito de cultura]. É justamente a


essa redução do conceito de cultura a uma dimensão justa, que realmente assegure a sua
importância continuada em vez de debilitá-lo. (GEERTZ, 1989, p.14).
Ao mesmo tempo que se tornava um recurso significativo para pensar o ser
humano, o conceito de cultura sofreu com a impossibilidade de delimitação. Por mais
que na prática os antropólogos soubessem seu sentido, não conseguiam chegar a um
acordo sobre sua delimitação, ―(...) como [afirmava] Murdock (1932): ‗Os antropólogos
sabem de fato o que é cultura, mas divergem na maneira de exteriorizar este
conhecimento‘.‖(LARAIA, 2000, p.63).

Parecia existir tantos conceitos de cultura quanto existem antropólogos no


mundo.[i] E quando uma palavra pode significar ―quase‖ tudo, em certo aspecto explica
―quase‖ nada. ―Quase‖ um contra-senso lógico e intelectual (talvez uma contradição
performativa, como diria Habermas).

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2 CULTURA: UMA CHAVE E MUITAS PORTAS
Para compreender o sentido de cultura vale inicialmente distinguir-lhe, ainda
que superficialmente, de sociedade. Esses dois conceitos apesar de serem
complementares não são coincidentes. Segundo Giddens (2005, p.38) cultura e
sociedade podem ser conceitualmente separadas, mesmo existindo muitas conexões.
Enquanto a sociedade está relacionada a um sistema de ―inter-relações‖ que conecta
indivíduos, a cultura seria a forma como essas inter-relações se realizam, de uma forma
tipicamente humana. A tal ponto que cultura seria a liga entre os indivíduos. ―Sem
cultura, não seríamos sequer ‗humanos‘ ‖ (...) ou seja, ―Não teríamos línguas em que
nos expressar, nenhuma noção de auto-consciência e nossa habilidade de pensar ou
raciocinar seria severamente limitada‖. (GIDDENS, 2005, p.38)

Nesse sentido, é preciso levar em conta alguns pontos significativos que


diferem a cultura de sociedade, isso porque cultura deve ser compreendida: 1) dentro de
um contexto histórico; 2) não a partir de uma congruência ou coerência com a sociedade
em seu sentido amplo, o que algumas vezes pode não acontecer ao primeiro olhar; 3)
dentro de um contexto de diversidade de ações, na qual atores num sistema singular
podem empregar formas culturais variáveis, mas aceitáveis numa manobra social ampla.
(MINTZ, 2010, p.234). Para entender como essa variação cultural ocorre dentro das
sociedades, é preciso detalhar o desenvolvimento do conceito de cultura.

E conceito de cultura variou muito junto com o desenvolvimento das ciências


sociais. Evolucionismo, Difusionismo, Funcionalismo, Configuracionismo,
Estruturalismo, dentre outras correntes, demarcaram a história do conceito de
cultura.[ii] Nessa ampla diversidade, os conceitos de cultura estiveram por vezes
predeterminados por interesses distorcidos. Não é difícil constatar que o conceito de
cultura já foi considerado dogma do evolucionismo,[iii] já serviu para justificar o
autoritarismo durante o regime militar brasileiro,[iv] também foi argamassa em teorias
rácicas.[v] Todas essas formas, mesmo com marcantes diferenças, tiveram algo em
comum. Todas vislumbravam a cultura como destino e o homem como seu elemento
passivo e sujeitado.

Tais concepções não traziam novos problemas às ciências sociais, antes as


prendiam num mar de determinismos. Suas concepções epistemológicas
fundamentavam-se num objetivismo raso, justificado a imagem das ciências naturais no
século XIX. Porém, a ―Vida é uma entidade suprema que não pode ser descrita pela
física ou química‖ (CASSIRER, 1984, p.21, trad. livre). Muito menos por conceitos
como raça ou evolução. Depois de muito embate de cunho político e as vezes bélico,
tais olhares naufragaram.

Freud, mesmo não sendo um especialista em antropologia, e talvez até mesmo


por esse motivo, conseguiu visualizar o cerne do conceito de cultura.

A civilização humana, expressão pela qual quero significar tudo aquilo em que a
vida humana se elevou acima de sua condição animal e difere da vida dos animais - e
desprezo ter que distinguir entre cultura e civilização -, apresenta, como sabemos, dois
aspectos ao observador. Por um lado, inclui todo o conhecimento e capacidade que o
homem adquiriu com o fim de controlar as forças da natureza e extrair a riqueza desta
para a satisfação das necessidades humanas; por outro, inclui todos os regulamentos

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necessários para ajustar as relações dos homens uns com os outros e, especialmente, a
distribuição da riqueza disponível. (FREUD, 1927, p.15-6)[vi]
O conceito de Cultura, portanto, tem dois importantes aspectos a serem levados
em consideração. Por um lado articula as inter-relações humanas para o conhecimento
do controle da natureza e por outro lado para ajustar as relações entre os homens.[vii]
Esses dois campos não são distintos ou podem ser pensados isoladamente, em especial
porque o que lhes é comum é a idéia de conhecimento. E exatamente sobre essa idéia de
conhecimento foi construído o conceito de cultura. Passando-se de um conceito de
visualizava o conteúdo do conhecimento para outro que visualizava o processo de
conhecer. Antes, porém, de aprofundar tal idéia vale ressaltar outros aspectos.

Hoje, ainda se discute se ―cultura‖ é um elemento essencialmente e


exclusivamente humano[viii]. Trata-se de um olhar ―vislumbrante‖ do homem em
relação e do mundo natural (que nem mesmo Freud parece se desligar) colocando o
homem numa posição evolutiva superior as demais espécies. Ressalte-se que, em seu
desenvolvimento biológico, o homem desenvolveu um mundo próprio, compartilhável
com outros homens. Entretanto isso não significa que seja a única espécie a ter
experiências vividas únicas.

A realidade não é uma coisa singular e homogênea; é imensamente diversificada, e


tem tantos esquemas e padrões diferentes quanto há organismos diferentes. Cada
organismo é por assim dizer um ser monádico. Tem um mundo só seu porque tem uma
experiência só sua. Os fenômenos que encontramos na vida de uma determinada espécie
biológica não são transferíveis para nenhuma outra espécie. (CASSIRER, 1984, p.25,
trad. livre)
Deixando de lado pesquisas que tente desenvolver novas formas de
comunicação entre seres de espécie diferentes, vale ressaltar que os homens, mesmo
quando de culturas completamente distintas, podem criar estratégias de contato
comunicacional.[ix] Isso ocorre porque o mecanismo elementar da cultura funciona de
forma similar em todos os homens. Esse mecanismo elementar, a chave que está no
cerne de toda a cultura, é o elemento simbólico.

(...) no mundo humano encontramos uma característica nova que parece ser a
marca distintiva da vida humana. O circulo funcional do homem não é só
quantitativamente maior; passou também por uma mudança qualitativa. O homem
descobriu, por assim dizer, um novo método para adaptar-se ao seu ambiente. Entre o
sistema receptor e o efetuador que são encontrados em todas as espécies animais,
observamos no homem um terceiro elo que podemos descrever como o sistema
simbólico. (CASSIRER, 1984, p.26, trad. livre)
O sistema simbólico se caracteriza como recurso evolutivo do homem para
mediar suas relações com o ambiente, com outras espécies animais e com outros seres
humanos. Assim, o homem amplia sua experiência com a realidade, vivendo numa
dimensão diferente de outras espécies. Enquanto outras espécies têm como principal
forma de reação a estímulos externos a ação fundamentada no instinto (reação
orgânica), o homem desenvolveu uma resposta diferida, baseada na ação do pensamento
(CASSIRER, 1984, p.26, trad. livre).[x]

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Isso não significa que o homem não possa agir pelo instinto, o que faz
normalmente como qualquer espécie, porém que tende a agir de forma diferida num
maior número de situações, inclusive de forma mais intensa e generalizada. A questão
da resposta diferida se funda na idéia de reflexão antes da ação. Nem todas as ações
realizadas pelos homens são ações diferidas, afinal o homem também compartilha de
certo instinto natural, porém as ações consideradas estritamente humanas, que contém
sentido subjetivo[xi], são diferidas. Essas ações com caráter diferido, ou talvez melhor
referidas como refletidas, são o substrato de toda análise cultural. Assim o homem
conseguiu criar um novo processo de interação entre seu mundo biológico e seu mundo
próprio, simbólico.[xii]

Essa realidade parece ser insuperável para qualquer estudioso das ciências
humanas, pensar o homem fora de sua vida cultural seria perder importante elemento
constitutivo do ―humano‖.[xiii] Sobre a teia de significados que rodeia o homem,
forma-se sua própria consistência como ser. Portanto, a idéia de cultura está inserida
diretamente na construção pelos homens de representações simbólicas compartilhadas
para compreensão diferida da realidade. Assim, não é propriamente a existência de
linguagem que formula certa singularidade à espécie humana.[xiv] A característica da
linguagem humana que a demarca é a representação simbólica. Para perceber a
diferença entre a linguagem humana e a de animais, segundo Ernest Cassirer, pode-se
avaliar a diferenças entre linguagem emotiva e proposicional. Ou seja, os animais não
conseguem passar da linguagem emotiva para a proposicional:

A diferença entre a linguagem proposicional e a linguagem emotiva representa o


verdadeiro limite entre o homem e o animal. Todas as teorias e observações sobre a
linguagem animal em que não se reconheça essa diferença fundamental são sem sentido.
Ao longo da extensa literatura sobre o assunto parece existir provas conclusivas de que
nenhum animal jamais deu o passo decisivo na linguagem do subjetivo ao objetivo, da
linguagem emocional à linguagem proposicional. (CASSIRER, 1984, p. 30, trad. livre)
A proposição de Cassirer supõe que todos os animais conseguem exprimir
emoção e inteligência prática (animais), o que o homem acrescentou a essa habilidade é
a razão e inteligência simbólica. Para compreender melhor tal perspectiva pode-se
referir a diferença entre ―Sinal‖ e ―Símbolo‖. Enquanto o sinal é relacionado a
representações objetivas, simplificando a realidade e oferecendo uma linguagem
designativa (denotativa), o simbólico supera o sensorial e apresenta uma capacidade de
interpretação lingüística, uma linguagem figurativa (conotativa). Em outras palavras,
enquanto diversos animais conseguem desenvolver emoções e inteligência prática a
partir da linguagem (incluindo-se aí também o homem), os homens, além dessa
habilidade, têm a capacidade de desenvolver linguagem abstrata, fundamentada na
razão, e inteligência simbólica. Diferença entre o Sinal e o Símbolo é exposta por
Cassirer:

Todos os fenômenos comumente descritos como reflexos condicionados não estão


apenas distantes, mas em total oposição à natureza essencial do pensamento simbólico
humano, os símbolos, no sentido próprio da palavra, não pode ser reduzido a meros
sinais. Sinais e símbolos correspondem a dois universos diferentes do discurso: um sinal
é uma parte do mundo físico do ser, um símbolo é uma parte do mundo humano do
significado. Os sinais são "operadores", os símbolos são "designadores". Os sinais,
mesmo quando compreendidos ou utilizados como tais, possuem, não obstante, uma

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espécie de ser físico ou substancial, símbolos têm apenas um valor funcional.
(CASSIRER, 1984, p. 32, trad. livre)
Para melhor elucidar esse exemplo vale explicitar a capacidade humana de
compartilhar o mundo a partir da linguagem figurativa. Cassirer relembra o famoso caso
de Ellen Keller e dos esforços de sua professora Sullivan. Ellen Keller era uma aluna
surda, muda e cega, que conseguiu aprender a se comunicar com o mundo exterior
devido ao aprendizado mediado pelo mundo simbólico. Cassirer anota parte do diário da
professora Sullivan, que apesar de extenso é significativo para demonstrar a importância
do elemento simbólico na linguagem humana:

Eu tenho que escrever algumas linhas esta manhã porque algo de muito importante
aconteceu. Helen deu o segundo grande passo em sua educação. Aprendeu que tudo tem
um nome e que o alfabeto manual é a chave para tudo o que quer saber ... Esta manhã,
enquanto eu estava lavando, queria saber o nome da "água". Quando ela quer saber o
nome de algo aponta em sua direção e acaricia minha mão. Eu escrevi "á-g-u-a" [com
linguagem dos sinais] e não pensei mais no assunto até depois do almoço ... Depois
fomos para a fonte e fiz Helen apanhar un jarro com água da torneira, enquanto eu
estava na bomba. Ao sair derramei água fria da jarra na mão aberta de Helen e indiquei
a palavra "á-g-u-a" [com a linguagem de sinais]. A palavra, que foi acoplada à sensação
de água fria que caia em sua mão, pareceu colocá-la em movimento. Ela tomou a jarra e
entrou em estado de êxtase. Seu rosto parecia brilhar. Ela soletrou "água" várias vezes.
Ela se inclinou e pediu para que eu indicasse [na linguagem dos sinais] o seu nome e
apontou para a fonte e rapidamente, pediu para o meu nome. Soletrei "professora". Ao
voltar para a casa estava muito animada e aprendeu o nome de cada objeto que ela
tocou, de modo que em poucas horas adicionou 30 novas palavras ao seu vocabulário.
Na manhã seguinte, ela caminhou como uma fada radiante. Voando de um objeto a
outro, perguntando o nome de tudo e me beijando de alegria... Tudo tem que ter um
nome agora. Onde quer que você vá pergunta ansiosamente pelo nome das coisas que
ela não aprendeu em casa. Ela está ansiosa para soletrar com seus amigos e mais ansiosa
ainda ensina palavras para qualquer pessoa que encontra. (CASSIRER, 1984, p.33-4,
trad. livre).
Esse exemplo demonstra que, mesmo sem compartilhar as mesmas
informações sensoriais, o homem compartilha a realidade além da mera constatação
feita imediatamente pelos sentidos, Ou seja, é pelo compartilhamento simbólico que
Ellen Keller pode participar do mundo humano, através da cultura. Em sentido oposto,
Cassirer cita exemplos da existência de diversos casos de crianças perdidas, os
chamados meninos lobos, os quais não aprenderam a compartilhar linguagem simbólica,
ficando alheios a outros seres humanos quando reencontrados. Nesse sentido, parece
impossível averiguar elementos considerados culturais de forma inata ao homem.[xv]

Ellen Keller aprendeu a utilizar as palavras, não meramente como signos ou


sinais mecânicos, senão como um instrumento inteiramente novo de pensamento. A
linguagem é a simbologia utilizada pelo homem para referir-se ao mundo. Enquanto os
outros animais, por vezes remetem-se ao mundo de forma descritiva por uma linguagem
limitada, o homem abstrai da simbologia a reflexão sobre a própria simbologia. Assim,
através de Cassirer, chega-se a uma conclusão interessante: Os homens não pensam pela
representação física, mas pelos signos (linguagem) (CASSIRER, 1984). O pensamento
humano, portanto, é instrumentalizado pela cultura.

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Do que foi proposto pode-se concluir que não existe um conteúdo cultural fixo,
pré-existente ou pré-determinado. Ou ainda, rememorando a crítica de Norbert Elias,
que ―[h]oje em dia, o termo "cultura" é empregado freqüentemente como se designasse
um fenômeno livre e independente, pairando acima dos homens e não em conexão com
o desenvolvimento social de associações humanas, dentro das quais é possível
esclarecer e estudar de fato os fenômenos culturais — ou, para usar outras palavras, as
tradições sociais.‖ (2001, p.194). A própria cultura é aprendida. Por isso não é possível
pensar numa perspectiva humana essencial, inata. Aliás, a busca da essência humana,
durante a história ocidental, teve como objetivo a justificativa de certo tipo de
dominação. Seja a dominação do homem sobre o animal, seja a dominação de um
homem sobre outro homem. Observar outras culturas ocasiona exatamente a quebra do
sentido absoluto da própria forma de enxergar a realidade.[xvi]

O atual contexto das ciências sociais rejeita a idéia de essência humana, ou de


natureza humana ínsita.[xvii] Diversos estudos têm demonstrado que a própria biologia
humana tem evoluído com o desenvolvimento da cultura. O neo-cortex humano precisa,
necessariamente, de instruções culturais para tornar-se funcional.[xviii] Um homem que
crescesse de forma isolada provavelmente não teria nenhum intelecto ou sentimento
reconhecíveis.

(...) O fato aparente de que os estágios finais da evolução biológica do homem


ocorreram após os estágios iniciais do crescimento da cultura implica que a natureza
humana ―básica‖, ―pura‖ ou ―não-condicionada‖, no sentido da constituição inata do
homem, é tão funcionalmente incompleta a ponto de não poder ser trabalhada. As
ferramentas, a caça, a organização familiar e, mais tarde, a arte, a religião e a ―ciência‖
moldaram o homem somaticamente. Elas são, portanto, necessárias não apenas à sua
sobrevivência, mas à sua própria realização existencial. (GEERTZ, 1989, p.60)
Isso significa que o ser humano se desenvolveu dentro de um ambiente
socializado, necessitando de compartilhamento social para se tornar um sujeito
existencial pleno.[xix] (LARAIA, 2000. p. 45). Assim, o desenvolvimento do arsenal
simbólico humano foi substanciado nas relações sociais desenvolvidas durante a sua
vida, na ação.[xx] Pela análise dos acontecimentos humanos e da História, podemos
visualizar a cultura, como afirmou Sahlins: ―(...) a cultura é historicamente reproduzida
na ação (...) um evento é uma atualização única de um fenômeno geral, uma realização
contingente do padrão cultural (...)‖. (1990, p.7).

Esse embate real (pela ação) na sociedade pode ser visualizado, seguindo Keith
Thomas, a partir dos efeitos reais de distinção entre seres humanos ocasionados pela
noção de essência humana e de ideal de comportamento humano, gerando explicações
sobre ―os mais‖ e ―os menos‖ humanos.

Robert Gray declarava que, em 1609 que ―a maior parte‖ do globo era ―possuída e
injustamente usurpada por animais selvagens ou por selvagens brutais, que, em razão de
sua ímpia ignorância e blasfema idolatria, são ainda piores que os animais‖ (...) relata sir
Thomas Hebert, a respeito dos habitantes do Cabo da Boa Esperança; ―duvido que a
maioria deles tenha antepassados melhores que macacos‖ (...) No início dos tempos
modernos essa atitude persistia. ―Os membros da vasta ralé que parece portar os sinais
do homem no rosto‖, explicava sir Thomas Pope Blount, em 1693, ―não passavam de
seres rudes em seu entendimento (...) é por metáfora que os chamamos de homens pois

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na melhor da hipóteses nada mais são que os autômatos de Descartes, molduras e
sombras de homens, que têm tão-somente a aparência para justificar seus direitos à
racionalidade‖. Para outros observadores, os pobres eram ―a parcela mais vil e grosseira
da humanidade‖ (...) (THOMAS, 1988, p. 50; 52).
Tais afirmações retratam algo que, antes de ser um ajustamento natural entre
homens, é uma construção social significativa e que deve ser levada em conta ao se
trazer o debate sobre cultura de um plano abstrato para um plano concreto. O
preconceito com o diferente demarcou o que se considerava como culturalmente
relevante. Fazer a filtragem do que é cultural dentro do conceito de cultura perpassa por
uma análise histórica e crítica da realidade e suas diversas relações de poder.

Para uma primeira reorganização de um conceito de cultura, é possível retirar


algumas considerações iniciais. Primeiramente o Direito, assim como outras áreas da
vida humana é um fenômeno plenamente cultural. O padrão de comportamento
estabelecido nas práticas conhecidas como ―Direito‖ está intimamente ligado ao mundo
simbólico humano.

(...) Os padrões de comportamento que constituem a cultura de um grupo social são


- para usar a expressão de Cassirer - formas simbólicas, "sistemas de símbolos", ou seja
cada um dos quais está organizado como um mundo em si mesmo, relativamente de
forma independente, a totalidade desses sistemas representa um ambiente distinto, pelo
menos em linha em princípio, a partir do ambiente natural em que o grupo tem para
viver. Essas formas simbólicas envolvem uma técnica de organização - e sua
diferenciação mútua é de fato ligado à diversidade de técnicas elaboradas (técnicas da
vida moral e religiosa, a produção literária e artística, a teoria científica, a investigação
filosófica), exceto que tais técnicas não são mais técnicas de adaptação ambiente, mas
são em vez disso técnicas para a criação de um ambiente diferente do natural. (ROSSI,
1983, p. 25-6) [xxi]
Portanto, o Direito é um fenômeno que em sua estrutura elementar é formado
por representação simbólica.

Outra consideração inicial é que a cultura é pública, ou em outras palavras,


compartilhada em sociedade (socialmente, portanto). Geertz explica que na cultura os
significados são compartilhados publicamente[xxii], ou seja, mesmo quando existem
distinções de acesso a integralidade da informação, muitas vezes inclusive como forma
de distribuição de poder na sociedade, tal informação simbólica precisa ser
compartilhada entre os membros de uma sociedade. Esses sentidos circulam e formam
uma cadeia de significação que forma a ―cultura‖.

As pessoas adquirem experiência enquanto estão sendo acionadas e enquanto


agem. Na maior parte do tempo e na maioria das formas, elas agem de acordo com um
código socialmente herdado de comportamento padronizado, um código histórico de
longa permanência. Mas esse código não é jamais uma camisa-de-força; existem
escolhas e alternativas. Estas – incluindo a opção pela não ação – são utilizadas em
várias permutações, embora finalmente sujeitas às condições externas. (MINTZ, 2010,
p.235-6).
Por isso, para Geertz cultura irá ser compreendida como uma ―teia de
significados que o próprio homem teceu‖ (1989, p.4). Ou seja, ―Cultura é, em última

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análise e finalmente, comportamento mediado através de símbolos‖. (MINTZ, 2010,
p.237). Além disso, deve-se ressaltar que ao aceitar-se a necessidade de compreensão
individual dos sentidos culturais, é possível dentro desse conceito criar um importante
elo entre o social e o individual. ―Clifford Geertz, levando adiante o trabalho
importantíssimo de Max Weber, é central nesse ponto por causa do que chamei
anteriormente de sua teoria da cultura orientada para a subjetividade.‖. (ORTNER,
2007, p.400). Ora, nesse sentido cultura é a construção humana necessária para viver
coletivamente.[xxiii] O seu significado vai variar conforme os valores, conhecimentos e
costumes compartilhados que fazem parte do modo de viver de cada um. Enfim, ―(...)
creio que temos de renunciar à antiga visão de cultura, lembrar que é a nossa identidade
comum de criaturas que utilizam símbolos que faz o mundo único (...)‖. (MINTZ, 2010,
p.237)

Atualmente, segundo Roque Laraia (2000), atualmente existem três


perspectivas conceituais aceitas de cultura, as quais mais se complementam do que se
contradizem, são elas:

1) Cultura como sistema cognitivo (Sistema de conhecimento): Cultura é


tudo aquilo que é necessário se conhecer para ser aceito em certa sociedade. Em última
análise, não se diferencia da linguagem.

2) Cultura como sistemas estruturais: Cultura é definida como os princípios


da mente que organizam os símbolos. Aproxima-se a visão de Cassirer e de Levi-
Strauss.

3) Cultura como sistemas simbólicos: Cultura como conjunto de símbolos


que estruturam o processo de representação humana, modelo de Clifford Geertz.

Ressalte-se que tais perspectivas podem ser conciliadas, pois são


complementares. Parecem demonstrar três faces de um mesmo fenômeno.

Por fim, o grande desafio de trabalhar com o conceito de cultura é superar uma
visão simplista. Inclusive em termos de pesquisa. Antigamente ―A cultura era pensada
como um conjunto de comportamentos, cerimônias e gestos característicos passíveis de
registro e explicação por um observador treinado‖ (CLIFFORD, 1998, p.29). O trabalho
de um etnógrafo, era considerado antes de mais nada um trabalho físico de observação e
descrição, hoje porém é visto como um trabalho de interpretação.[xxiv] Enfim, ―O
processo de pesquisa é separado dos textos que ele gera e do mundo fictício que lhes
cabe evocar. A realidade das situações discursivas e dos interlocutores individuais é
filtrada‖. (CLIFFORD, 1998, p.42).

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3. CULTURA E DIREITO: OS DEBATES CLÁSSICOS
SOBRE CULTURA JURÍDICA
Para iniciar uma caracterização do conceito de ―cultura jurídica‖ relembre-se
uma interessante passagem de Plínio Barreto em seu livro ―A Cultura jurídica no Brasil
(1822/1922)‖ referida por Alfredo Venâncio Filho:

Há 100 anos, quando se emancipou definitivamente da soberania portuguesa, era o


Brasil uma terra sem cultura jurídica. Não a tinha de espécie alguma, a não ser, em grau
secundário, a do solo. Jaziam os espíritos impotentes na sua robustez meio rude da
alforria das crendices e das utopias, à espera de charrua e sementes. O Direito, como as
demais ciências e, até, como as artes elevadas não interessava ao analfabetismo integral
da massa. Sem escolas que o ensinassem, sem imprensa que o divulgasse, sem
agremiações que o estudassem, estava o conhecimento dos seus princípios concentrado
apenas no punhado de homens abastados que puderam ir a Portugal apanhá-la no curso
acanhado e rude que se processava na Universidade de Coimbra. (BARRETO apud
VENÂNCIO FILHO, 2004, P.13)
Percebe-se que o conceito de ―cultura jurídica‖ presente na passagem citada
está diretamente relacionado nessa passagem a noção de conhecimento erudito.
Rememora a versão francesa de cultura, na qual se identificava cultura a idéia de
erudição, cultivo do homem.[xxv] Além disso, percebe-se que a escolarização seria o
processo central para a caracterização da ―cultura jurídica brasileira‖. O mesmo Plínio
Barreto completava:

O direito era, no Brasil, quando se operou a Independência, uma ciência estudada


por um grupo insignificante de homens e não era estudada, mesmo neste grupo, com
profundeza e pertinácia. Nem podia sê-lo. Não há ciência que se desenvolva sem
ambiente apropriado, e o de uma colônia onde mal se sabia ler não é, com certeza, o
mais adequado para o crescimento de uma disciplina, como a de direito, que supõe um
estado de civilização bem definido nos seus contornos e bem assentado nos seus
alicerces. (BARRETO apud VENÂNCIO FILHO, 2004, P.14)
Tal autor reflete uma época em que no Brasil a valorização dos ideais europeus
ressaltava os valores iluministas de desenvolvimento e progresso.[xxvi] Para ir além
desse conceito de ―cultura jurídica‖, e resgatar inclusive a possibilidade de debater o
que Plínio Barreto chamou de ―cultura do solo‖ é preciso abrir um diálogo mais amplo
entre a Antropologia e o Direito.

Para Geertz (1997) a Antropologia e Direito seriam a princípio duas disciplinas


ideais para dialogarem. Isso porque existem diversas semelhanças em seus métodos (ao
menos na cultura anglo-saxã), tanto a presença de linguagem erudita, quanto uma aura
de fantasia, mas especialmente no tocante a sua artesania local. Tal característica pode
ser visualizada na busca de princípios gerais em fatos paroquiais. As duas disciplinas
partem do específico para o geral (ao menos na tradição do common law), mas sempre
buscando uma perspectiva compreensiva. De qualquer forma, e apesar da limitação de
tal comparação no sistema da civil law, Geertz aponta duas idéias base para identificar o
Direito e a Antropologia (etnografia).

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Entre uma simplificação dos fatos que torna as questões morais tão limitadas que
podem ser solucionadas através do simples uso de regras específicas (a meu ver, a
característica que define o processo jurídico) e a esquematização da ação social de
modo que seu significado possa ser expresso em termos culturais (a característica,
também a meu ver, que define a análise etnográfica), existe algo mais que uma simples
semelhança entre membros de uma mesma família. (GEERTZ, 1997, p. 253-4)
O Direito segundo Geertz se caracterizaria num processo de ―simplificação dos
fatos que torna as questões morais tão limitadas que podem ser solucionadas através do
simples uso de regras específicas‖ (p.253). Bruno Latour explica o jogo das regras
específicas, apresentando um esquema de ação de julgamento. Assim, Pode-se afirmar
assim que a redução da vida para a linguagem jurídica visa rapidamente ―estabilizar o
mundo dos fatos‖, tornando-os indiscutíveis (o que significa dizer, em outras palavras,
que a defesa não os contesta mais) recolocando o fato numa regra abstrata de direito (na
prática, um texto) para produzir um julgamento (na realidade um freio (definição
interpretativa) ao texto). ―A redução erudita obtida cria a mesma economia
cambaleante, uma vez que substitui o mundo, e sua complexidade, riqueza e
inumeráveis dimensões, por um papel e seus textos‖. (LATOUR, 2004, p.242,
trad.livre) [xxvii]

Esse processo que faz transitar uma linguagem designativa (denotativa) pra
uma linguagem figurativa (conotativa), e vice-versa, ou seja, que faz a descrição dos
fatos se ajustarem ao julgamento dos mesmos, caracterizaria o que os ocidentais
chamam de Direito. Esse processo cognitivo foi certamente pensado através da
comparação cultural na obra de Montesquieu. Este considerava a essência (espírito) das
leis vinculada à razão, apontando que cada povo detinha características próprias que
inclusive impediam uma lei de fazer sentido em locais diferentes de sua origem.

A lei, em geral, é a razão humana, enquanto governa todos os povos da terra; e as


leis políticas e civis de cada nação devem ser apenas casos particulares onde se aplica
esta razão humana. Devem ser tão próprias ao povo para o qual foram feitas que seria
um acaso muito grande se as leis de uma nação pudessem servir para outra.
(MONTESQUIEU, 1996, p.16)
Essa ―razão‖ que Montesquieu enxergava como essencial ao Direito era em
parte era universalista, compartilhando dos nascentes ideais iluministas, e em
parte voltada à diversidade. Montesquieu já percebia que o direito no mundo oriental era
ligado a outras dimensões da vida, imbricadas numa dimensão maior da razão. E pensar
o Direito desconectado da religião, hábitos, costumes, entre outros, seria impossível.

Daí resulta que a China não perde suas leis com a conquista. Sendo as maneiras, os
costumes, as leis e a religião a mesma coisa, não se pode mudar tudo isto ao mesmo
tempo. E como é necessário que o vencedor ou o vencido mudem, na China foi sempre
preciso que fosse o vencedor a mudar, pois como seus costumes não eram suas
maneiras, suas maneiras suas leis, suas leis sua religião, foi mais fácil que ele se
dobrasse pouco a pouco diante do povo vencido do que o povo vencido diante dele.
Segue-se ainda daí uma coisa muito triste: é quase impossível que o cristianismo algum
dia se estabeleça na China. Os votos de virgindade, as reuniões das mulheres nas
igrejas, sua necessária comunicação com os ministros da religião, sua participação nos
sacramentos, a confissão auricular, a extrema-unção, o casamento com uma só mulher,

10
tudo isto subverte os costumes e as maneiras do país, e fere ainda com o mesmo golpe a
religião e as leis. (MONTESQUIEU, 1996, p.326)
Entretanto a geração seguinte a Montesquieu, em especial os filósofos
iluministas, apostaram nos valores universais como resposta a idéia de ser humano. Tal
ideal político consagrado nas declarações de Direitos atinentes ao movimento de
Independência Estadunidense e da Revolução Francesa apontavam um sujeito de
direitos universal.[xxviii]

Esse apriorismo tem fortes ligações com o jusnaturalismo moderno e com a


doutrina liberal. ―A idéia da ‗unidade psíquica da humanidade‘ não morreu, apenas se
refugiou no credo do liberalismo.‖ (BOHANNAN, 1973, p.111). O contratualismo foi
talvez o maior guardião desses preceitos.

Porém, mesmo prevalecendo os ideais iluministas dentro da visão de Direito,


um olhar tipicamente fundamentado na diversidade continuou a existir quando os
interesses políticos não eram convergentes com os valores revolucionários.
Influenciados em parte por Montesquieu, existiram opositores aos valores universais do
Direito, como exemplo vale referir a Escola histórica alemã.

O sentido da variedade da história devido à variedade do próprio homem: não


existe o Homem (com H maiúsculo) com certos caracteres fundamentais sempre iguais
e imutáveis, como pensavam os jusnaturalistas, existem homens, diversos entre si
conforme a raça, o clima, o período histórico... De Maistre (considerado o predecessor
do historicismo), defensor do Ancien Régime e opositor da Revolução Francesa, num
panfleto anti-revolucionário, Considerations Sur Lê France, falando da Constituição
francesa de 1795, que foi difundida pelos franceses em toda a Europa invadida pelas
tropas da Revolução, apresenta uma afirmação que exprime causticamente essa atitude
dos historicistas polemizando com os racionalistas: ―A constituição de 1795 é feita pelo
homem. Ora, não existem homens no mundo. Tenho visto, na minha vida, franceses,
italianos, ingleses; e Montesquieu me ensinou que também existem os persas; mas o
homem, essa criatura que chamam de homem, essa eu não vi em lugar nenhum‖.
(BOBBIO, 1995, p.48).
O debate sobre a universalidade ou particularidade do Direito está inserido
numa tradição cultural que enxerga sua forma de pensar, a ocidental, como universal.
As conseqüências desse debate foram se desenvolvendo durante a construção do campo
da chamada Antropologia do Direito, que já durante o século XIX buscava decifrar as
diversas manifestações de Direito orientais e antigas.[xxix] E os primeiros debates no
campo estiveram voltados ao que buscar responder a pergunta: o Direito é universal?

Certamente a mais curiosa dessas curiosidades é o eterno debate sobre o conteúdo


do direito; ou seja, se ele consiste de instituições ou regulamentos, de procedimentos ou
de conceitos, de decisões ou de códigos, de processos ou de formas, e, portanto, se ele é
uma categoria tal como o trabalho, que existe praticamente em qualquer parte do mundo
onde nos deparemos com uma sociedade humana, ou algo assim como o contraponto,
que certamente não é universal. (GEERTZ, 1997, p.250)
Seria o Direito é universal, como uma estrutura social? Talvez como o trabalho
(se ele puder ser considerado universal)? Ou o Direito é um instituto cultural não
universal? Essas perguntas guardam uma perigosa armadilha acadêmica.

11
(...) de uma forma muito pouco útil, colocou-se em campos opostos o enfoque
forense e o enfoque etnográfico das análises jurídicas, o que nos leva a crer que a série
de livros e artigos com títulos como "o direito sem advogados", "o direito sem sanções",
"o direito sem os tribunais" ou "o direito sem precedentes" poderia ter, como conclusão
apropriada, um cujo título fosse "o direito sem o direito". (GEERTZ, 1997, 251).
Talvez a melhor pergunta seria: como observar formas de Direito diversas da
forma que culturalmente estamos ligados?

4. UM DIREITO “SEM DIREITO”: ETNOGRAFIAS


CORROSIVAS
As etnografias em grupos culturais diversos da tradição ocidental deixaram
grande parte da base do conhecimento jurídico em xeque. A primeira aproximação
nesse sentido foi de Bronislaw Malinowski. Em seu estudo ―Crime e Costume na
sociedade selvagem‖ fazendo etnografia com algumas tribos das Ilhas Trobiands na
Nova Guiné, Indonésia, chega à hesitante conclusão de que não é possível encontrar um
conjunto rígido de normas ou regras que formem algo como um corpus iuris dos
nativos. (MALINOWSKI, 2003, p. 94). O próprio título é uma provocação, pois na
Ilhas Trobriand a noção de crime punido com uma sanção pública não existe.

As mesmas conclusões chegaram alguns juristas ao ler a famosa etnografia de


Evans-Pritchard denominada ―Os Nuers‖. Um grupo social da região do rio Nilo que
não tem juízes, tribunais, regras gerais, nem processo, resolvendo os problemas sociais
através das denominadas ―vendetas‖ (lutas entre indivíduos, clãs e aldeias) que também
não eram obrigatórias ou sempre necessárias. A conclusão diante do diverso foi
frustrante, diziam os juristas: Os Nuers não têm Direito! Observe-se a descrição do
referido antropólogo:

Em sentido estrito, os Nuer não têm lei. Há ressarcimentos convencionais por


danos, adultério, perda de membros, etc, mas não há qualquer autoridade com poder
para pronunciar sentenças sobre tais questões ou para fazer cumprir vereditos. Na terra
dos Nuer, os poderes legislativo, judiciário e executivo não estão investidos em
quaisquer pessoas ou conselhos. Entre membros de tribos diferentes não há de se falar
em ressarcimento; e, mesmo dentro de uma tribo, pelo que vi, os danos não são
apresentados sob o que chamaríamos de forma legal, embora o ressarcimento por danos
(ruok) seja pago algumas vezes. Um homem que acha ter sido prejudicado por outro,
não pode processá-lo porque não existe tribunal para citá-lo, mesmo que este estivesse
disposto a comparecer. Vivi em intimidade com os Nuer durante um ano e jamais ouvi
uma questão ser apresentada perante um indivíduo ou tribunal de qualquer tipo e, além
disso, cheguei à conclusão de que é muito raro que um homem obtenha ressarcimento a
não ser pela força ou pela ameaça de empregar a força. A recente introdução de cortes
governamentais, perante as quais, hoje, algumas vezes as questões são resolvidas, de
modo algum invalida essa impressão, porque sabe-se muito bem que, entre outros povos
africanos, são apresentadas questões perante cortes sob a supervisão do governo que
anteriormente não foram resolvidas num tribunal, ou mesmo conciliadas, e como
durante muito tempo depois da instituição de tais tribunais governamentais eles vêm

12
operando lado a lado com os antigos métodos de fazer justiça. (EVANS-PRITCHARD,
2005, p.173).

Falamos de "lei", aqui, no sentido que parece mais adequado quando se está
escrevendo sobre os Nuer, ou seja, uma obrigação moral de resolver questões por
métodos convencionais, e não no sentido de procedimento legal ou instituições legais. E
falamos apenas sobre a lei civil, pois não parece haver ações consideradas ofensivas a
toda comunidade e punidas por ela. Os informantes que disseram que algumas vezes as
bruxas e os mágicos eram mortos, afirmaram que eram sempre indivíduos ou grupos de
parentes que os emboscavam e os matavam como desforra. (EVANS-PRITCHARD,
2005, p.178-9).
Dois detalhes podem ser levantados. Primeiramente a tradução da palavra Law
na etnografia do inglês Evans-Pritchard pode ser tão confusa para o português quanto à
própria diferenciação entre Lei e Direito. (Afinal deve-se traduzir Law como Direito ou
como Lei?). Além disso, outra afirmação demonstra a dificuldade para referir culturas
jurídicas diversas da ocidental: ―Os Nuer possuem um agudo senso de direito e
dignidade pessoal. A idéia de direito, cuong, é forte.‖ (2005, p.180). Como descrever
esse ―Direito‖ sem reduzi-lo ao Direito ocidental ou a afirmação de sua
inexistência?[xxx]

Outras pesquisas clássicas acabaram trazendo novos enfoques para esse


problema. ―The judicial process among the barotse of northern rhodesia‖ de Max
Gluckman; e ―Justice and Judgment Among the Tiv‖ de Paul Bohannan, partindo de
pressupostos diferentes expuseram culturas jurídicas diversas, ora tentando aproximar o
direito de povos não-ocidentais aos ocidentais como forma de valorização, como fez
Gluckman, ora tentando descrever a cultura jurídica não-ocidental sem tentar aproximá-
la dos conceitos ocidentais, com fez Bohannan, sempre geraram surpresa e desconfiança
nos círculos jurídicos.

Veja-se inicialmente a proposição de Gluckman. Em sua descrição pretende


demonstrar que apesar de diferenças existentes, é possível visualizar semelhanças
significativas entre o direito dos africanos e o Direito europeu ocidental:

Aqueles que ocupam diversos status podem ter direitos ao mesmo tempo sobre um
pedaço de terra ou sobre bens móveis. Todos esses direitos são descritos por um só
termo, "posse". No caso, a ciência do direito Barotse não refinou ou elaborou sua
terminologia. A complexidade do vocabulário dessa ciência do direito está na definição
de posições sociais — status — e de diferentes tipos de propriedade. Como os Barotse
estão interessados na propriedade à medida que ela vincula pessoas em diferentes
relações de status, eles tendem a enfatizar as obrigações decorrentes de posse de
propriedade, mais do que os direitos sobre ela. (GLUCKMAN, 1973, p.56)
Tal perspectiva pretende gerar o que Gluckman reconhece como
empoderamento dos povos africanos num momento em que o colonialismo ainda
prevalece. Bohannan porém discorda de tal hipótese pretendendo demonstrar que as
categorias jurídicas dos povos africanos são inconciliáveis com as categorias européias.
Bohannan afirma que ―É na justaposição de idéias previamente desconexas que se
encontra o ato de interpretação.‖ (1973, p.102). Esse ato de interpretação, para
Gluckman deveria ocorrer já na própria descrição. Bohannan ao contrário rechaça tal

13
idéia, apresentando a necessidade de ater-se aos conceitos nativos para que a etnografia
seja um referencial aos leitores.

Na minha opinião, cada etnógrafo tem o compromisso com ele mesmo, com o
povo que estuda e com seus colegas de ser rigoroso com seu material. é claro que deve
traduzir tanto quanto possível. Ele deve avaliar o momento em que a dificuldade de ler
se transforma na impossibilidade de ler. Mas há um momento análogo em que o método
da nota explicativa causa dificuldades ainda maiores, porque simula compreensão
através do uso das palavras familiares. Esta simulação leva quase inevitavelmente —
creio eu — a uma suposição de que tudo o que é denominado pela mesma palavra é
comparável, sendo esta uma dificuldade quase impossível de ser corrigida.
(BOHANNAN, 1973, p.103)
E completa de forma significativa sobre o problema da construção teórica do
povo Tiv:

A ciência do direito inglesa desenvolveu um vocabulário para exprimir o direito


inglês (e em menor escala para os ramos comparativo e internacional privado do
direito). Os Tiv não desenvolveram uma ciência do direito. Logo. mesmo para tomar as
duas matérias comparáveis, o etnógrafo tem que fazer pelos Tiv o que e eles não
fizeram por eles mesmos: encontrar uma "teoria" Tiv sobre a ação legal (...)
(BOHANNAN, 1973, p.104-5)
Essa dificuldade faz com que a antropologia do Direito busque compreender as
culturas dentro de seus próprios referenciais lingüísticos. Tal perspectiva já havia sido
percebida anteriormente, por outro enfoque, por Marcel Mauss, quando afirma que o
Direito é um fenômeno essencial para definir um povo, e que ―o fenômeno do direito é
o fenómeno específico de uma sociedade [...] o que nos define não é extensível para
além das nossas fronteiras‖(1993, p.140). Completava ainda ―O direito é o meio de
organizar o sistema das expectativas colectivas, de fazer respeitar os indivíduos, o seu
valor, os seus agrupamentos. A sua hierarquia. Os fenómenos jurídicos são os
fenómenos morais organizados.‖ (1993, p.141). Nesse sentido, cada sociedade
desenvolve valores morais próprios, compartilhados por códigos simbólicos específicos.

Marcel Mauss aprofundou sua perspectiva de Direito no estudo ―Ensaio sobre a


Dádiva‖ (1974). Nesse estudo Maus explica a questão da dádiva em diversas culturas
mediante o debate através de etnografias que circulavam em sua época. Chega à
conclusão que o próprio Direito tende a delimitar o que o ―Direito é‖, ou seja, o Direito
se autolimita conceitualmente. Esse modelo de reflexão acaba por se limitar a
possibilidade do próprio discurso se autoexplicar. Esse mesmo problema encontra-se na
definição de Bohannan que usa a própria linguagem nativa para se autoexplicar. E para
que serve um conhecimento sobre um formato de Direito incomunicável com outras
formas de Direito? Portanto, a grande dificuldade da relação entre Antropologia e o
Direito encontra-se no diálogo intercultural.

Por isso, a relação entre a Antropologia e o Direito desenvolveu-se


recentemente para considerar o Direito como parte de um fenômeno maior, condizente
com a noção de mundo simbólico. A base do Direito para Geertz não é o que os
próprios nativos falam sobre o seu Direito, mas o processo maior de representação que
perpassa na linguagem local. Assim está o Direito ligado a:

14
(....) um fenômeno um pouco mais crucial, um fenômeno aliás que é a base de toda
a cultura: isto é, o processo de representação. A descrição de um fato de tal forma que
possibilite aos advogados defendê-lo, aos juízes ouvi-lo, e aos jurados solucioná-lo,
nada mais é que uma representação: como em qualquer comércio, ciência, culto,
ou arte, o direito, que tem um pouco de todos eles, apresenta um mundo no qual suas
próprias descrições fazem sentido. Discutiremos, mais adiante, os paradoxos que este
tipo de descrição pode gerar; o argumento aqui, no entanto, é que a parte "jurídica" do
mundo não é simplesmente um conjunto de normas, regulamentos, princípios, e valores
limitados, que geram tudo que tenha a ver com o direito, desde decisões do júri, até
eventos destilados, e sim parte de uma maneira específica de imaginar a realidade.
Trata-se, basicamente, não do que aconteceu, e sim do que acontece aos olhos do
direito; e se o direito difere, de um lugar ao outro, de uma época a outra, então o que
seus olhos vêem também se modifica. (GEERTZ, 1997, p.250)
Enfim, é possível delimitar o Direito como um produto puramente cultural,
variável no tempo e no espaço e que depende de uma complexa teia de significados
culturais para fazer sentido. Nem mesmo sociedades ocidentais têm o mesmo sentido
para a própria palavra ―Direito‖ em todas as suas camadas sociais e diversidade
histórica.[xxxi]

Por isso, para compreender o Direito dentro de uma sociedade é necessário não
esquecer que não se pode estudá-lo descontextualizado da sociedade aonde faz sentido.
A inter-relação entre os conhecimentos responsáveis pelo desenvolvimento da vida do
homem em seu ambiente e as relações entre os homens deve ter especial relevância para
o estudo da cultura jurídica. Mesmo sendo a ciência, em sua essência cartesiana, um
conhecimento repartido, o homem é um animal completo. ―Como escreve Mauss, ‗o
homem é indivisível‘ e ‗o estudo do concreto‘ é ‗o estudo do completo‘.‖
(LAPLANTINE, 2003, p.129). Os fenômenos culturais interagem com o consciente e o
inconsciente humano perfazendo sua vida na sua existência. ―Todos estudam ou
deveriam observar o comportamento de seres totais e não divididos em faculdades‖
(MAUSS, 1974, p.181).

Todos esses fenômenos são ao mesmo tempo jurídicos, econômicos, religiosos e


mesmo estéticos, morfológicos, etc. São jurídicos, de direito privado ou público, de
moralidade organizada ou difusa, estritamente obrigatórios ou simplesmente louvados e
atacados, políticos e domésticos ao mesmo tempo, interessando tanto às classes sociais
como aos clãs e às famílias. (MAUSS, 1973, p.179)

As ciências políticas se dão por objeto de investigação um certo aspecto do real: as


instituições que regem as relações do poder; as ciências econômicas, um outro: os
sistemas de produção e troca de bens; as ciências jurídicas, o direito; as ciências
psicológicas, os processos cognitivos e afetivos; as ciências religiosas, os sistemas de
crença. Mas todos estes são para o antropólogo fenômenos parciais, isto é, abstrações
em relação ao enfoque não parcelar que orienta sua abordagem. (LAPLANTINE, 2003,
p.130)
Para ilustrar como as culturas jurídicas (também referidas como sensibilidades
jurídicas) vale destacar os exemplos dados por Geertz. Durante as etnografias realizadas
em sua carreira acadêmica tal autor percebeu três sensibilidades jurídicas orientais
diversas. A islâmica com a idéia de haqq, a hindu com a noção de dharma, e a malaia
com a perspectiva do adat.

15
Tentarei, em um espaço demasiado curto para ser de alguma maneira persuasivo e
demasiado longo para poder falar total e verdadeiramente sobre uma única coisa,
esboçar três variedades bastante distintas de sensibilidade jurídica a islâmica, a índica e
a do chamado direito costumeiro que existe na parte malaia da Malásia-Polinésia - e
estabelecer a conexão entre essas sensibilidades e as visões, nelas incorporadas, sobre o
que é, realmente, a realidade. E o farei, desdobrando três termos, isto é, três conceitos,
que, a meu ver, são centrais para essas visões do mundo: haqq, que significa "verdade" e
muitas outras coisas mais, para os islâmicos; dharma, que significa "dever" e muitas
outras coisas mais, para os índicos; e adat, que significa "prática" e muitas outras coisas
mais, para os malaios. (GEERTZ, 1997, p. 275-4)
O objetivo de expor tais sensibilidades é demonstrar que o Direito pode
manifestar-se de forma totalmente diversa em sociedades com elementos culturais
diversos. Obviamente tal apreciação será resumida e recomenda-se a leitura do texto de
Geertz (1997) para o aprofundamento de tal descrição. Inicialmente cabe ressaltar que
nas sociedades orientais o Direito não está necessariamente ligado a noção de lei.

Para expressar o que foi dito acima de uma maneira ligeiramente diferente, nossas
três palavras têm mais semelhança com a noção ocidental de "direito" (right, recht,
droit) que com a noção de "lei" (law; Gesetz, loi). Ou seja, o ponto central, comum às
três, é menos relacionado com algum tipo de noção de "regulamento", "regras",
"injunção" ou "decreto" e mais próximo a um outro conceito, ainda pouco nítido, que
representaria uma conexão interna, original e inseparável, entre aquilo que é "próprio",
"adequado", "apropriado", ou "condizente" e o que é "real", "verdadeiro","genuíno", ou
"autêntico"; entre o "correto" de "um comportamento correto" e o "correto" de "um
entendimento correto". (GEERTZ, 1997, p.280)
Geertz compara as sociedades orientais com a cultura ocidental no tocante, em
especial a separação da esfera dos fatos da esfera do julgamento. Em suas palavras:

―(...) de que maneira as representações construcionais do "se/então" são traduzidas


em representações diretivas do "como/portanto" e vice-versa. Ou seja, dadas nossas
crenças, como devemos agir; ou, dados nossos atos, em que devemos acreditar.‖
(GEERTZ, 1997, p.270)
O contexto da prova, do ―se/então‖ relaciona-se a forma com que as
comunidades descrevem a existência, ou seja, dizendo o que é real e o que é irreal. Já o
contexto do Julgamento, do ―como/portanto‖, relaciona-se a forma com que as
comunidades expõe sua experiência, ou seja, dizendo o que é certo e o que é errado.
Para Geertz a descrição da realidade e do julgamento acontece em momentos separados
nas sociedades ocidentais. O que poderia, por exemplo, ser visualizado na própria
concepção de normas jurídicas como imperativos hipotéticos (base da teoria da norma
de Kelsen).[xxxii] Tal forma de representar o mundo não é igual a que existe nas
sociedade orientais.

No mundo árabe os fatos se sobrepõem ao julgamento. A palavra ―haqq‖,


traduzida como ―verdade-realidade‖, apresenta elementos que demonstram como na
sensibilidade jurídica árabe os fatos se sobrepõem a esfera do julgamento. Tal
característica pode ser percebida no ultravalorização da testemunha e de seu relato,
contra outras esferas de comprovação da realidade. O que é verdadeiro para um bom
islâmico não pode ser contestado. A possibilidade de falso testemunho é relativizada,

16
pois a mentira deve apenas explicações a Deus. Uma prova factual poderia ser mitigada
diante de um testemunho de um fiel. Para tanto existe uma rígida hierarquia de funções
testemunhais, Enfim, a esfera dos fatos se sobrepõe a esfera do julgamento no momento
que a descrição do fato inclui o que é certo e errado. O fato será descrito de uma forma
―correta‖.

No mundo Hindu a palavra ―dharma‖, traduzida como ―obrigação-feição‖,


apresenta elementos que demonstram como na sensibilidade jurídica hindu o
julgamento se sobrepõe a esfera dos fatos. Numa sociedade de castas a posição social e
a própria idéia de destino servem de parâmetro de julgamento. Para apresentar tal
característica Geertz explica que no mundo hindu a própria feição (boa ou má)
transparece na vida das pessoas, como se todos os elementos da realidade fossem apenas
uma conseqüência da própria essência do ser. Para tanto faz uso de duas parábolas
tradicionais em que mesmo tentando mentir, o caráter e qualidade dos personagens
acaba se sobressaindo e os fatos são mera conseqüência da moralidade interna.

Já no mundo Malaio (Bali) a palavra ―adat‖, traduzida como ―decoro-etiqueta‖,


apresenta a concepção de justiça malaia a partir da idéia de que as duas esferas, dos
fatos e do julgamento, acontecem simultaneamente e estão interligadas pelos costumes
sociais. Para explicá-la Geertz conta a história de um morador de Bali denominado
Regreg que ao infringir uma regra costumeira (deixando de assumir um cargo no
conselho da tribo) acaba sendo banido da sociedade, tornando-se uma espécie de
fantasma numa espécie de ostracismo tribal. E mesmo o rei de Bali comparecendo
pessoalmente para requerer a reconsideração do conselho de tribo que o havia expulsado
não gerou resultados. Os acontecimentos e o seu julgamento eram irretratáveis. Para
ilustrar tais exemplos elaborou-se o seguinte gráfico:

TABELA 1 - ESQUEMA SOBRE AS SENSIBILIDADES JURÍDICAS


APRESENTADAS POR GEERTZ (1997)

MUNDO Direito Certo - Correto


OCIDENTAL

ARABE Haqq Verdade –


Realidade
MARROCOS

HINDU Dharma Feição -


Obrigação
INDIA

MALAIO Adat Decoro –


Etiqueta
BALI

Fonte: Autor com base em GEERTZ (2007)

17
Vale ressaltar ainda que Geertz prefere a expressão ―sensibilidade jurídica‖
para descrever tais culturas, explicando tal conceito da seguinte forma:

Aquele sentido de justiça que mencionei acima - a que chamarei, ao deixar


paisagens mais conhecidas na direção de lugares mais exóticos, de sensibilidade jurídica
- é, portanto, o primeiro fator que merece a atenção daqueles cujo objetivo é falar de
uma forma comparativa sobre as bases culturais do direito. Pois essas sensibilidades
variam, e não só em graus de definição; também no poder que exercem sobre os
processos da vida social, frente a outras formas de pensar e sentir (...) (GEERTZ, 1997,
p. 261)
Portanto, sensibilidade não tem o objetivo de ser um conceito totalizador ou
voltado as práticas em si, mas de um grande referencial de justiça realizada. Essas
sensibilidades têm por objetivo expor uma forma de mentalidade geral, modelo cultural
trazendo certas noções gerais sobre como o processo de representação se dá em
diferentes culturas. Tal perspectiva foi em alguns momentos criticada, mesmo que
injustamente.[xxxiii] Porém Geertz em momento algum pretende criar uma
caracterização total, nem mesmo completa, explica apenas um processo mental comum.
Dentro desse processo comum existem espaços para diferenças.

Temos também que nos contentar com uma simplificação radical tanto da
dimensão histórica como da dimensão regional desses temas. "Islã", "Mundo Índico" e,
sensu lato, "Malásia" não são - como dediquei uma grande parte do meu trabalho
buscando demonstrar - entidades unitárias e homogêneas, constantes no tempo, no
espaço e em população. Reificá-los como tais, aliás, sempre foi o artifício principal
através do qual o "Ocidente", acrescentando uma outra nulidade à coleção, conseguiu
evitar compreendê-los ou até mesmo vê-los com alguma clareza. (GEERTZ, 1997,
p.278)
Por isso faz referência a não pretensão de homogenizar as culturas, ou seja,
nem todo árabe, hindu ou malaio pensa da mesma forma. Mas pensá-los como grupo
cria uma difícil tarefa de criar uma generalização aceitável. Além disso, vale ressaltar
que essa tentativa de delimitação não pretende observar a realidade dos povos orientais
como peças isoladas, as culturas cresceram interrelacionando-se. Uma visão limitada de
sociedade pautada na separação e isolamento cultural não está presente na concepção
atual de cultura jurídica.

(…) a etnografia sempre soube que as culturas nunca foram assim definidas, auto-
suficientes e auto-sustentáveis, como os pós-modernistas afirmam sobre o que os
modernistas afirmam. Nenhuma cultura é sui generis, nenhum só povo é único ou
mesmo o autor de sua própria existência. A suposição de que a autenticidade significa
automodelacão e que perde a dependência dos outros, parece apenas um legado da auto-
consciência burguesa. Na verdade, esta determinação auto-centrada de autenticidade é o
contrário da condição social humana. A maior parte dos povos encontra os meios
críticos de sua própria reprodução em seres humanos e poderes presentes além de seus
limites normais e controles habituais. (SAHLINS, 2001, p.312-3, trad. livre)
Por isso, ao avaliar o Direito dentro de uma sociedade diversa, é necessário
ressaltar que uma concepção de Direito do passado pode ser diferente da atual, e a busca
dessas diferenças é o grande desafio dos pesquisadores que não querem naturalizar o
passado.

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(...) dedicar-se a construir uma teoria geral do direito é uma aventura tão
inverossímil como a de dedicar-se à construção de uma máquina de movimento
perpétuo. (GEERTZ, 1997, p.327).
Por mais que tal máquina possa ser teorizada, ela se afasta tanto da realidade
que perde sua utilidade. Hoje ―(...) o estudo comparativo do direito não pode ser uma
questão de transformar diferenças concretas em semelhanças abstratas‖. (GEERTZ,
1997, p.325).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: CULTURA JURÍDICA


UMA SÍNTESE
Para finalizar, sistematizando o conceito de ―cultura jurídica‖, a fim de facilitar
sua utilização em pesquisas empíricas, podem-se apresentar algumas pontuações
importantes:

1) Cultura provém da capacidade humana de se expressar mediante símbolos e


pertence ao que se denomina ―mundo simbólico‖.

2) Cultura pode ser entendida como processo de representação global que


compartilha sentidos e valores. Porém esse não é um processo homogêneo, existindo
dentro de si disputas de poder e conflitos.

3) Cultura pertence a todos os membros da sociedade, ou seja, é pública. Além


disso, circula entre os mais diversos estratos sociais, porém a circulação e sua
intensidade pode ser variável.

4) O Direito é um fenômeno que pertence à cultura, está ligado portanto


intrinsecamente a um processo de representação maior.

5) Cultura jurídica representa parte da cultura que não está separada de sua
totalidade existencial, porém pode ser analisada academicamente a partir da busca de
fenômenos morais organizados.

Além disso, tem-se sempre em mente a diversidade do discurso e da cultura.


―Uma forma garantida de chegar a um fim trágico seria imaginar que a diversidade não
existe, ou esperar, simplesmente, que ela desaparecesse‖. (GEERTZ, 1997, p.331). Por
isso, é importante valorizar as diferença da cultura tendo sempre como referência o
pluralismo cultural proveniente da antropologia. Isto porque os ―(...) antropólogos
conhecem (...) o perigo de projetar as nossas categorias sobre culturas remotas‖
(GINZBURG, 1989, p.99) e talvez por isso deveriam ser ouvidos com mais freqüência
pelos juristas que insistem na idéia de ―Teoria Geral do Direito‖ ou desprezam a
importância de um debate dos direitos humanos baseado na pluralidade..

19
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livros do Brasil, 2000.

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Notas de Fim

NOTAS
[i] Nesse sentido, a dificuldade de apresentar um conceito de cultura foi
demonstrado por Geertz relembrando o esforço de antropólogo contemporâneo. ―Em
cerca de vinte e sete páginas do seu capítulo sobre o conceito, Kluckhohn conseguiu
definir a cultura como: (1) ‗o modo de vida global de um povo‘; (2) ‗o legado social que
o indivíduo adquire do seu grupo‘; (3) ‗uma forma de pensar, sentir e acreditar‘; (4)
‗uma abstração do comportamento‘; (5) ‗uma teoria. elaborada pelo antropólogo, sobre
a forma pela qual um grupo de pessoas se comporta realmente‘; (6) ‗um celeiro de
aprendizagem em comum‘; (7) ‗um conjunto de orientações padronizadas para os
problemas recorrentes‘; (8) ‗comportamento aprendido‘; (9) ‗um mecanismo para a
regulamentação normativa do comportamento‘; (10) ‗um conjunto de técnicas para se
ajustar tanto ao ambiente externo como em relação aos outros homens‘; (11) ‗um
precipitado da história‘, e voltando-se, talvez em desespero, para as comparações, como
um mapa, como uma peneira e como uma matriz.‖ (GEERTZ, 1989, p.14)

[ii] Marconi e Presotto afirmam que existem mais de 160 conceitos de cultura
diferentes referendados por diversas correntes antropológicas academicamente
relevantes (MARCONI; PRESOTTO, 2007, p.21-2).

[iii] Em relação ao evolucionismo na antropologia recomenda-se o livro


CASTRO, Celso. Evolucionismo Cultural. Textos de Morgan, Tylor e Frazer. Textos
Selecionados. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

[iv] Um exemplo clássico é de Miguel Reale, Vide: FERNANDES, Pádua. A


cultura jurídica brasileira e a chibata: Miguel Reale e a história como fonte do direito.
In: Prisma Jurídico. Publicação Científica de Ciências Jurídicas. V5. São Paulo:
UNINOVE, 2006. p. 237-255. Disponível em:
http://redalyc.uaemex.mx/pdf/934/93400515.pdf Acesso em 04.nov.2012.

[v] Como interessante exemplo de tais justificativas no Brasil Vide:


SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças – cientistas, instituições e
questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

22
[vi] Em outro momento vai um pouco além. Afirmando que (...) reconhecemos
como culturais todas as atividades e todos os valores que servem ao homem na medida
em que colocam a Terra a seu serviço, protegem-no contra a violência das forças da
natureza etc. Acerca desse aspecto da cultura há pouquíssimas dúvidas. Para retroceder
o suficiente, acrescentemos que os primeiros feitos culturais foram o uso de
ferramentas, a domesticação do fogo e a construção de moradias. (...) (FREUD, 2010,
p.87-8).

[vii] ―Em 1917, Kroeber acabou de romper todos os laços entre o cultural e o
biológico, postulando a supremacia do primeiro em detrimento do segundo em seu
artigo, hoje clássico, "O Superorgânico" (in American Anthropologist, vol.XIX, n° 2,
1917). Completava-se, então, um processo iniciado por Lineu, que consistiu
inicialmente em derrubar o homem de seu pedestal sobrenatural e colocá-lo dentro da
ordem da natureza.‖ (LARAIA, 2000, p.28)

[viii] ―A busca desse esquivo atributo foi um dos mais sérios desafios
enfrentados pelos filósofos ocidentais, a maior parte dos quais tendeu a se fixar em um
traço e a enfatizá-lo de maneira desproporcional, por vezes até o absurdo. Assim, o
homem foi descrito como animal político (Aristóteles), animal de ri (Thomas Willis);
animal que fabrica seus utensílios (Benjamin Franklin); animal religioso (Edmund
Burke); e um animal que cozinha (James Boswell, antecipando Lévi-Strauss). Como
observa o Sr. Cranium do romancista Peacock, o homem já foi definindo como bípede
implume, como animal que forma opiniões e, ainda, animal que carrega um bastão. O
que todas essas definições têm em comum é que assumem uma polaridade entre as
categorias ―homem‖ e ―animal‖ e que invariavelmente encaram o animal como
inferior‖. Na prática, obviamente, o objetivo de tais definições nunca esteve tanto em
distinguir os homens dos animais quanto em propor algum ideal de comportamento
humano, como quando Martinho Lutero e o papa Leão XII afirmaram, um e 1530 e
outro em 1891, que a propriedade privada constituía a diferença essencial entre os
homens e os animais‖ (KEITH, 1988,. p.37-8)

[ix] ―(...) a cultura é como uma lente através da qual o homem vê o mundo.
Homens de culturas diferentes usam lentes diversas e, portanto, têm visões
desencontradas das coisas‖. (LARAIA, 2000, p.67). Mas não deixam de usar lentes para
ver o mundo. Exatamente na possibilidade de diálogo entre culturas reside a
possibilidade de reconstituir, ainda que de forma míope, o passado como cultura
diversa.

[x] ―Muitos filósofos preveniram o homem contra esse pretenso progresso. ‗L‘
homme qui médite‘, diz Rousseau, ‗est um animal dépravé‘; exceder os limites da vida
orgânica não é um melhoramento, mas uma deterioração da natureza humana.‖.
(CASSIRER, 1984, p.26, trad. livre)

[xi] Relembrando a teoria da ação de Weber

[xii] ―As sociedades humanas são os únicos grupos de todo o reino animal que
delinearam formas de cultura que, por sua vez, exercem poderosas influências
modificadoras nos mecanismos hereditários dos seus membros individuais. Algumas
vezes os elementos culturais e biológicos coincidem ou reforçam-se uns aos outros ao

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procurarem os mesmos objectivos; outras vezes não têm nenhum efeito uns sobre os
outros; e por vezes chegam a chocar-se ou a opor-se entre si‖. (TITIEV, 2000, p.14)

[xiii] ―Não estando mais num universo meramente físico, o homem vive em um
universo simbólico. A linguagem, o mito, a arte e a religião são partes desse universo.
São os variados fios que tecem a rede simbólica, o emaranhado da experiência humana.
Todo progresso humano em pensamento e experiência é refinado por essa rede, e a
fortalece‖ (CASSIRER, 1984, p.26, trad. livre).

[xiv] Diversas espécies de animais detêm linguagem complexa, como os


primatas superiores, as baleias, canídeos, felinos e até mesmo insetos como as abelhas.
A complexidade dessas linguagens ainda não é plenamente compreendida pelo ser
humano.

[xv] Roque Laraia relembra um interessante relato sobre o assunto: ―Kroeber,


em seu artigo ‗O superorgânico‘, refere-se a duas experiências que teriam sido
praticadas no passado. Embora o autor duvide da veracidade das mesmas, ele as utiliza
como exemplo de reflexão sobre a natureza humana: Heródoto conta-nos que um rei
egípcio, desejando verificar qual a língua-mater da humanidade, ordenou que algumas
crianças fossem isoladas da sua espécie, tendo somente cabras como companheiros e
para o seu sustento. Quando as crianças já crescidas foram de novo visitadas, gritaram a
palavra bekos, ou, mais provavelmente bek, suprimindo o final, que o grego
padronizador e sensível não podia tolerar que se omitisse. O rei mandou então
emissários a todos os países a fim de saber em que terra tinha esse vocábulo alguma
significação. Ele verificou que no idioma frígio isso significava pão, e, supondo que as
crianças estivessem reclamando alimentos, concluiu que usavam o frígio para falar a sua
linguagem humana "natural", e que essa língua devia ser, portanto, a língua original da
humanidade. A crença do rei numa língua humana inerente e congênita, que só os cegos
acidentes temporais tinham decomposto numa multidão de idiomas, pode parecer
simples; mas, ingênua como é, a inquirição revelaria que multidões de gente civilizada
ainda a ela aderem. Contudo, não é essa a nossa moral da história. Ela está no fato de
que a única palavra, bek, atribuída às crianças, constituía apenas, se a história tem
qualquer autenticidade, um reflexo ou imitação - como conjeturam há muito os
comentadores de Heródoto - do grito das cabras, que foram as únicas companheiras e
instrutoras das crianças. Em suma, se for permitido deduzir qualquer inferência de tão
apócrifa anedota, o que ela prova é que não há nenhuma língua humana natural e,
portanto, nenhuma língua humana orgânica. Milhares de anos depois, outro soberano, o
imperador mongol Akbar, repetiu a experiência com o propósito de averiguar qual a
religião natural da humanidade. O seu bando de crianças foi encerrado numa casa.
Quando decorrido o tempo necessário, ao se abrirem as portas na presença do imperador
expectante e esclarecido, foi grande o seu desapontamento: as crianças saíram tão
silenciosas como se fossem surdas-mudas. Contudo, a fé custa a morrer; e podemos
suspeitar que será preciso uma terceira experiência, em condições modernas escolhidas
e controladas, para satisfazer alguns cientistas naturais e convencê-los de que a
linguagem, para o indivíduo humano como para a raça humana, é uma coisa
inteiramente adquirida e não hereditária, completamente externa e não interna - um
produto social e não um crescimento orgânico.‖ (LARAIA, 1990, p.102-4)

[xvi] ―O estudo de culturas diferentes tem ainda outro alcance muito


importante sobre o pensamento e o comportamento de hoje em dia. A vida moderna pôs

24
muitas civilizações em contacto íntimo, e no momento presente a reacção dominante a
esta situação é o nacionalismo e o snobismo racial. Nunca, mais do que hoje, a
civilização teve necessidade de indivíduos bem conscientes do sentido de cultura,
capazes de verem objectivamente o comportamento socialmente condicionado de outros
povos sem temor e sem recriminação‖. (BENEDICT, 2000, p.23)

[xvii] ―O purista racial é a vítima de um mito‖. (BENEDICT, 2000, p.27)

[xviii] ―As pesquisas recentes da antropologia indicam como incorreta a


perspectiva em vigor de que as disposições mentais do homem são geneticamente
anteriores à cultura e que suas capacidades reais representam a amplificação ou
extensão dessas disposições preexistentes através de meios culturais.‖ (GEERTZ, 1989,
p.60)

[xix] ―O homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado. Ele é


um herdeiro de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a
experiência adquiridas pelas numerosas gerações que o antecederam. A manipulação
adequada e criativa desse patrimônio cultural permite as inovações e as invenções. Estas
não são, pois, o produto da ação isolada de um gênio, mas o resultado do esforço de
toda uma comunidade‖. (LARAIA, 2000. p. 45)

[xx] ―As produções simbólicas são simultaneamente produções sociais que


sempre decorrem de práticas sociais. Não devem ser estudadas em si, mas enquanto
representações do social. (...) Quando se diz nessa perspectiva que a religião (da mesma
forma que a arte ou a magia) é uma "representação", sublinha-se que não se deve
atribuir-lhe nenhuma existência autônoma pois está vinculada a uma outra coisa, capaz
de explicá-la: as relações de produção, de parentesco, as relações entre faixas de idade,
entre grupos sexuais, todos estes níveis de realidade, mas que são sempre relações de
poder (...)‖. (LAPLANTINE, 2003, p.91-2)

[xxi] No original: ―(...) i modelli di comportamento che costituiscono la cultura


di un gruppo sociale sono - per usare l‘espressione di Cassirer - forme simboliche, vale
a diré «sistemi di simboli» ognuno dei quali si organizza come un mondo a sé,
relativamente autonomo; il complesso di questi sistemi rappresenta un ambiente
distinto, almeno inlinea di principio, dall'ambiente naturale in cui il gruppo si trova a
dover vivere. Anche queste forme simboliche comportano tutte una organizzazione
técnica - e il loro reciproco differenziarsi é legato infatti alla diversitá delle tecniche
elabórate (le tecniche della vita morale e religiosa, della produzione letteraria e artistica,
della teoria scientifica, della ricerca filosófica); solo che tali tecniche non sono piú
tecniche di adattamento dell‘ambiente, ma sono invece tecniche per i la creazione di un
ambiente diverso da quello naturale‖

[xxii] ―(...) o que queremos dizer, precisamente, quando afirmamos que as


tensões sócio-psicológicas são "expressas" em formas simbólicas? — leva-nos,
diretamente, a águas muito profundas, na verdade a uma teoria um tanto não tradicional
e aparentemente paradoxal da natureza do pensamento humano como atividade pública
e não particular, pelo menos não fundamentalmente. (GEERTZ, 1989, p.121)

[xxiii] ―O conceito de cultura que eu defendo, e cuja utilidade os ensaios


abaixo tentam demonstrar, é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max Weber,

25
que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu,
assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma
ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura
do significado‖. (GEERTZ, 1989, p.4)

[xxiv] ―A interpretação não é uma interlocução. Ela não depende de estar na


presença de alguém que fala. (...) Em última análise, o etnógrafo sempre vai embora,
levando com ele textos para posterior interpretação (e entre estes "textos" que são
levados podemos incluir as memórias - eventos padronizados, simplificados, retirados
do contexto imediato para serem interpretados numa reconstrução e num retrato
posteriores)‖. (CLIFFORD, 1998, p.40)

[xxv] Esclarecendo, ―Este uso é consagrado, no fim do século, pelo Dicionário


da Academia (edição de 1798) que estigmatiza "um espírito natural e sem cultura",
sublinhando com esta expressão a oposição conceitual entre "natureza" e "cultura". Esta
oposição é fundamental para os pensadores do Iluminismo que concebem a cultura
como um caráter distintivo da espécie humana. A cultura, para eles, é a soma dos
saberes acumulados e transmitidos pela humanidade, considerada como totalidade, ao
longo de sua história.‖ (CUCHE, 2002, p.20-1)

[xxvi] ―‗Cultura‘ se inscreve então plenamente na ideologia do Iluminismo: a


palavra é associada às idéias de progresso, de evolução, de educação, de razão que estão
no centro do pensamento da época. (...) A idéia de cultura participa do otimismo do
momento, baseado na confiança no futuro perfeito do ser humano. O progresso nasce da
instrução, isto é, da cultura, cada vez mais abrangente.‖ (CUCHE, 2002, p.21).

[xxvii] No original: ―La réduction juridique vise à rapidement stabiliser le


monde des faits indiscutables (ce qui signifie simplement qu'aucun mémoire en défense
ne les contestera plus) pour rattacher le fait à une règle de droit (en pratique un texte)
de façon à produire un jugement (en réalité un arrêt, un texte). La réduction savante
obtient la même stupéfiante économie puisqu'elle remplace le monde, sa complexité, sa
richesse, ses innombrables dimensions, par du papier et des textes.‖

[xxviii] A filosofia do Iluminismo vinculou-se primeiro, sem reservas, a esse


"apriorismo" do direito, à idéia de que devem existir normas jurídicas absoluta e
universalmente obrigatórias e imutáveis. A investigação empírica e a doutrina empirista
não ruem nenhuma exceção nesse ponto. (CASSIRER,1994 , 327)

[xxix] Vide: MAINE, Henry. Ancient Law. Londres: Murray, 1961.


MORGAN, Lewis H. La Societé Archaique. Paris, ed. Anthropus, 1971.

[xxx] Ressalte-se outra pesquisa clássica que trouxe problemas parecidos para
o Direito: ―The Cheyenne Way: Conflict and Case Law in Primitive Jurisprudence‖ de
Karl N. Llewellyn.

[xxxi] ―Se procurarmos a palavra que mais freqüentemente é associada a


Direito, veremos aparecer a lei, começando pelo inglês, em que law designa as duas
coisas. Mas já deviam servir-nos de advertência, contra esta confusão, as outras línguas,
em que Direito e lei são indicados por termos distintos: ius e lex (latim), Derecho e ley
(espanhol), Diritto e legge (italiano), Droit e loí (francês), Recht e gesetz (alemão),

26
Pravo e zakon (russo), Jog e tõrveny (húngaro) e assim por diante‖. (LYRA FILHO,
1982, p.7)

[xxxii] Vide: BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia


do direito. São Paulo: Ícone, 1995. p. 181 e Ss.

[xxxiii] ―Se o conceito de Geertz de cultura tem duas linhas, é bem claro que a
linha problemática é a primeira, americana, de sentido, ou seja, a idéia de que grupos
particulares ―possuem‖ culturas particulares, cada um com a sua, e que esta cultura é
―compartilhada‖ por todos os membros do grupo. As críticas a esse sentido de cultura
tomam várias formas. Por um lado, o conceito de cultura é muito indiferenciado, muito
homogêneo: dadas várias formas de diferença social e desigualdade social, como podem
todos em determinada sociedade compartilhar a mesma visão de mundo, e a mesma
orientação em relação a tal visão? Por outro lado, e esta era a crítica mais fatal, a
homogeneidade e a falta de diferenciação no conceito de cultura, coloca-o muito
próximo do ―essencialismo‖, a idéia de que ―os Nuer‖ ou ―os balineses‖ possuíam
alguma essência única que os tornava do jeito que eram, a qual, além disso, explicava
muito do que faziam e como faziam‖. (ORTNER, 2007, p.382)

FONTE: https://jus.com.br/artigos/44250/repensando-a-cultura-juridica/3 Acesso em 25/04/18

FURMANN, Ivan. Repensando a cultura jurídica: um diálogo entre a antropologia e o direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862,
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