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o direito
Ivan Furmann
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2 CULTURA: UMA CHAVE E MUITAS PORTAS
Para compreender o sentido de cultura vale inicialmente distinguir-lhe, ainda
que superficialmente, de sociedade. Esses dois conceitos apesar de serem
complementares não são coincidentes. Segundo Giddens (2005, p.38) cultura e
sociedade podem ser conceitualmente separadas, mesmo existindo muitas conexões.
Enquanto a sociedade está relacionada a um sistema de ―inter-relações‖ que conecta
indivíduos, a cultura seria a forma como essas inter-relações se realizam, de uma forma
tipicamente humana. A tal ponto que cultura seria a liga entre os indivíduos. ―Sem
cultura, não seríamos sequer ‗humanos‘ ‖ (...) ou seja, ―Não teríamos línguas em que
nos expressar, nenhuma noção de auto-consciência e nossa habilidade de pensar ou
raciocinar seria severamente limitada‖. (GIDDENS, 2005, p.38)
A civilização humana, expressão pela qual quero significar tudo aquilo em que a
vida humana se elevou acima de sua condição animal e difere da vida dos animais - e
desprezo ter que distinguir entre cultura e civilização -, apresenta, como sabemos, dois
aspectos ao observador. Por um lado, inclui todo o conhecimento e capacidade que o
homem adquiriu com o fim de controlar as forças da natureza e extrair a riqueza desta
para a satisfação das necessidades humanas; por outro, inclui todos os regulamentos
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necessários para ajustar as relações dos homens uns com os outros e, especialmente, a
distribuição da riqueza disponível. (FREUD, 1927, p.15-6)[vi]
O conceito de Cultura, portanto, tem dois importantes aspectos a serem levados
em consideração. Por um lado articula as inter-relações humanas para o conhecimento
do controle da natureza e por outro lado para ajustar as relações entre os homens.[vii]
Esses dois campos não são distintos ou podem ser pensados isoladamente, em especial
porque o que lhes é comum é a idéia de conhecimento. E exatamente sobre essa idéia de
conhecimento foi construído o conceito de cultura. Passando-se de um conceito de
visualizava o conteúdo do conhecimento para outro que visualizava o processo de
conhecer. Antes, porém, de aprofundar tal idéia vale ressaltar outros aspectos.
(...) no mundo humano encontramos uma característica nova que parece ser a
marca distintiva da vida humana. O circulo funcional do homem não é só
quantitativamente maior; passou também por uma mudança qualitativa. O homem
descobriu, por assim dizer, um novo método para adaptar-se ao seu ambiente. Entre o
sistema receptor e o efetuador que são encontrados em todas as espécies animais,
observamos no homem um terceiro elo que podemos descrever como o sistema
simbólico. (CASSIRER, 1984, p.26, trad. livre)
O sistema simbólico se caracteriza como recurso evolutivo do homem para
mediar suas relações com o ambiente, com outras espécies animais e com outros seres
humanos. Assim, o homem amplia sua experiência com a realidade, vivendo numa
dimensão diferente de outras espécies. Enquanto outras espécies têm como principal
forma de reação a estímulos externos a ação fundamentada no instinto (reação
orgânica), o homem desenvolveu uma resposta diferida, baseada na ação do pensamento
(CASSIRER, 1984, p.26, trad. livre).[x]
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Isso não significa que o homem não possa agir pelo instinto, o que faz
normalmente como qualquer espécie, porém que tende a agir de forma diferida num
maior número de situações, inclusive de forma mais intensa e generalizada. A questão
da resposta diferida se funda na idéia de reflexão antes da ação. Nem todas as ações
realizadas pelos homens são ações diferidas, afinal o homem também compartilha de
certo instinto natural, porém as ações consideradas estritamente humanas, que contém
sentido subjetivo[xi], são diferidas. Essas ações com caráter diferido, ou talvez melhor
referidas como refletidas, são o substrato de toda análise cultural. Assim o homem
conseguiu criar um novo processo de interação entre seu mundo biológico e seu mundo
próprio, simbólico.[xii]
Essa realidade parece ser insuperável para qualquer estudioso das ciências
humanas, pensar o homem fora de sua vida cultural seria perder importante elemento
constitutivo do ―humano‖.[xiii] Sobre a teia de significados que rodeia o homem,
forma-se sua própria consistência como ser. Portanto, a idéia de cultura está inserida
diretamente na construção pelos homens de representações simbólicas compartilhadas
para compreensão diferida da realidade. Assim, não é propriamente a existência de
linguagem que formula certa singularidade à espécie humana.[xiv] A característica da
linguagem humana que a demarca é a representação simbólica. Para perceber a
diferença entre a linguagem humana e a de animais, segundo Ernest Cassirer, pode-se
avaliar a diferenças entre linguagem emotiva e proposicional. Ou seja, os animais não
conseguem passar da linguagem emotiva para a proposicional:
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espécie de ser físico ou substancial, símbolos têm apenas um valor funcional.
(CASSIRER, 1984, p. 32, trad. livre)
Para melhor elucidar esse exemplo vale explicitar a capacidade humana de
compartilhar o mundo a partir da linguagem figurativa. Cassirer relembra o famoso caso
de Ellen Keller e dos esforços de sua professora Sullivan. Ellen Keller era uma aluna
surda, muda e cega, que conseguiu aprender a se comunicar com o mundo exterior
devido ao aprendizado mediado pelo mundo simbólico. Cassirer anota parte do diário da
professora Sullivan, que apesar de extenso é significativo para demonstrar a importância
do elemento simbólico na linguagem humana:
Eu tenho que escrever algumas linhas esta manhã porque algo de muito importante
aconteceu. Helen deu o segundo grande passo em sua educação. Aprendeu que tudo tem
um nome e que o alfabeto manual é a chave para tudo o que quer saber ... Esta manhã,
enquanto eu estava lavando, queria saber o nome da "água". Quando ela quer saber o
nome de algo aponta em sua direção e acaricia minha mão. Eu escrevi "á-g-u-a" [com
linguagem dos sinais] e não pensei mais no assunto até depois do almoço ... Depois
fomos para a fonte e fiz Helen apanhar un jarro com água da torneira, enquanto eu
estava na bomba. Ao sair derramei água fria da jarra na mão aberta de Helen e indiquei
a palavra "á-g-u-a" [com a linguagem de sinais]. A palavra, que foi acoplada à sensação
de água fria que caia em sua mão, pareceu colocá-la em movimento. Ela tomou a jarra e
entrou em estado de êxtase. Seu rosto parecia brilhar. Ela soletrou "água" várias vezes.
Ela se inclinou e pediu para que eu indicasse [na linguagem dos sinais] o seu nome e
apontou para a fonte e rapidamente, pediu para o meu nome. Soletrei "professora". Ao
voltar para a casa estava muito animada e aprendeu o nome de cada objeto que ela
tocou, de modo que em poucas horas adicionou 30 novas palavras ao seu vocabulário.
Na manhã seguinte, ela caminhou como uma fada radiante. Voando de um objeto a
outro, perguntando o nome de tudo e me beijando de alegria... Tudo tem que ter um
nome agora. Onde quer que você vá pergunta ansiosamente pelo nome das coisas que
ela não aprendeu em casa. Ela está ansiosa para soletrar com seus amigos e mais ansiosa
ainda ensina palavras para qualquer pessoa que encontra. (CASSIRER, 1984, p.33-4,
trad. livre).
Esse exemplo demonstra que, mesmo sem compartilhar as mesmas
informações sensoriais, o homem compartilha a realidade além da mera constatação
feita imediatamente pelos sentidos, Ou seja, é pelo compartilhamento simbólico que
Ellen Keller pode participar do mundo humano, através da cultura. Em sentido oposto,
Cassirer cita exemplos da existência de diversos casos de crianças perdidas, os
chamados meninos lobos, os quais não aprenderam a compartilhar linguagem simbólica,
ficando alheios a outros seres humanos quando reencontrados. Nesse sentido, parece
impossível averiguar elementos considerados culturais de forma inata ao homem.[xv]
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Do que foi proposto pode-se concluir que não existe um conteúdo cultural fixo,
pré-existente ou pré-determinado. Ou ainda, rememorando a crítica de Norbert Elias,
que ―[h]oje em dia, o termo "cultura" é empregado freqüentemente como se designasse
um fenômeno livre e independente, pairando acima dos homens e não em conexão com
o desenvolvimento social de associações humanas, dentro das quais é possível
esclarecer e estudar de fato os fenômenos culturais — ou, para usar outras palavras, as
tradições sociais.‖ (2001, p.194). A própria cultura é aprendida. Por isso não é possível
pensar numa perspectiva humana essencial, inata. Aliás, a busca da essência humana,
durante a história ocidental, teve como objetivo a justificativa de certo tipo de
dominação. Seja a dominação do homem sobre o animal, seja a dominação de um
homem sobre outro homem. Observar outras culturas ocasiona exatamente a quebra do
sentido absoluto da própria forma de enxergar a realidade.[xvi]
Esse embate real (pela ação) na sociedade pode ser visualizado, seguindo Keith
Thomas, a partir dos efeitos reais de distinção entre seres humanos ocasionados pela
noção de essência humana e de ideal de comportamento humano, gerando explicações
sobre ―os mais‖ e ―os menos‖ humanos.
Robert Gray declarava que, em 1609 que ―a maior parte‖ do globo era ―possuída e
injustamente usurpada por animais selvagens ou por selvagens brutais, que, em razão de
sua ímpia ignorância e blasfema idolatria, são ainda piores que os animais‖ (...) relata sir
Thomas Hebert, a respeito dos habitantes do Cabo da Boa Esperança; ―duvido que a
maioria deles tenha antepassados melhores que macacos‖ (...) No início dos tempos
modernos essa atitude persistia. ―Os membros da vasta ralé que parece portar os sinais
do homem no rosto‖, explicava sir Thomas Pope Blount, em 1693, ―não passavam de
seres rudes em seu entendimento (...) é por metáfora que os chamamos de homens pois
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na melhor da hipóteses nada mais são que os autômatos de Descartes, molduras e
sombras de homens, que têm tão-somente a aparência para justificar seus direitos à
racionalidade‖. Para outros observadores, os pobres eram ―a parcela mais vil e grosseira
da humanidade‖ (...) (THOMAS, 1988, p. 50; 52).
Tais afirmações retratam algo que, antes de ser um ajustamento natural entre
homens, é uma construção social significativa e que deve ser levada em conta ao se
trazer o debate sobre cultura de um plano abstrato para um plano concreto. O
preconceito com o diferente demarcou o que se considerava como culturalmente
relevante. Fazer a filtragem do que é cultural dentro do conceito de cultura perpassa por
uma análise histórica e crítica da realidade e suas diversas relações de poder.
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análise e finalmente, comportamento mediado através de símbolos‖. (MINTZ, 2010,
p.237). Além disso, deve-se ressaltar que ao aceitar-se a necessidade de compreensão
individual dos sentidos culturais, é possível dentro desse conceito criar um importante
elo entre o social e o individual. ―Clifford Geertz, levando adiante o trabalho
importantíssimo de Max Weber, é central nesse ponto por causa do que chamei
anteriormente de sua teoria da cultura orientada para a subjetividade.‖. (ORTNER,
2007, p.400). Ora, nesse sentido cultura é a construção humana necessária para viver
coletivamente.[xxiii] O seu significado vai variar conforme os valores, conhecimentos e
costumes compartilhados que fazem parte do modo de viver de cada um. Enfim, ―(...)
creio que temos de renunciar à antiga visão de cultura, lembrar que é a nossa identidade
comum de criaturas que utilizam símbolos que faz o mundo único (...)‖. (MINTZ, 2010,
p.237)
Por fim, o grande desafio de trabalhar com o conceito de cultura é superar uma
visão simplista. Inclusive em termos de pesquisa. Antigamente ―A cultura era pensada
como um conjunto de comportamentos, cerimônias e gestos característicos passíveis de
registro e explicação por um observador treinado‖ (CLIFFORD, 1998, p.29). O trabalho
de um etnógrafo, era considerado antes de mais nada um trabalho físico de observação e
descrição, hoje porém é visto como um trabalho de interpretação.[xxiv] Enfim, ―O
processo de pesquisa é separado dos textos que ele gera e do mundo fictício que lhes
cabe evocar. A realidade das situações discursivas e dos interlocutores individuais é
filtrada‖. (CLIFFORD, 1998, p.42).
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3. CULTURA E DIREITO: OS DEBATES CLÁSSICOS
SOBRE CULTURA JURÍDICA
Para iniciar uma caracterização do conceito de ―cultura jurídica‖ relembre-se
uma interessante passagem de Plínio Barreto em seu livro ―A Cultura jurídica no Brasil
(1822/1922)‖ referida por Alfredo Venâncio Filho:
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Entre uma simplificação dos fatos que torna as questões morais tão limitadas que
podem ser solucionadas através do simples uso de regras específicas (a meu ver, a
característica que define o processo jurídico) e a esquematização da ação social de
modo que seu significado possa ser expresso em termos culturais (a característica,
também a meu ver, que define a análise etnográfica), existe algo mais que uma simples
semelhança entre membros de uma mesma família. (GEERTZ, 1997, p. 253-4)
O Direito segundo Geertz se caracterizaria num processo de ―simplificação dos
fatos que torna as questões morais tão limitadas que podem ser solucionadas através do
simples uso de regras específicas‖ (p.253). Bruno Latour explica o jogo das regras
específicas, apresentando um esquema de ação de julgamento. Assim, Pode-se afirmar
assim que a redução da vida para a linguagem jurídica visa rapidamente ―estabilizar o
mundo dos fatos‖, tornando-os indiscutíveis (o que significa dizer, em outras palavras,
que a defesa não os contesta mais) recolocando o fato numa regra abstrata de direito (na
prática, um texto) para produzir um julgamento (na realidade um freio (definição
interpretativa) ao texto). ―A redução erudita obtida cria a mesma economia
cambaleante, uma vez que substitui o mundo, e sua complexidade, riqueza e
inumeráveis dimensões, por um papel e seus textos‖. (LATOUR, 2004, p.242,
trad.livre) [xxvii]
Esse processo que faz transitar uma linguagem designativa (denotativa) pra
uma linguagem figurativa (conotativa), e vice-versa, ou seja, que faz a descrição dos
fatos se ajustarem ao julgamento dos mesmos, caracterizaria o que os ocidentais
chamam de Direito. Esse processo cognitivo foi certamente pensado através da
comparação cultural na obra de Montesquieu. Este considerava a essência (espírito) das
leis vinculada à razão, apontando que cada povo detinha características próprias que
inclusive impediam uma lei de fazer sentido em locais diferentes de sua origem.
Daí resulta que a China não perde suas leis com a conquista. Sendo as maneiras, os
costumes, as leis e a religião a mesma coisa, não se pode mudar tudo isto ao mesmo
tempo. E como é necessário que o vencedor ou o vencido mudem, na China foi sempre
preciso que fosse o vencedor a mudar, pois como seus costumes não eram suas
maneiras, suas maneiras suas leis, suas leis sua religião, foi mais fácil que ele se
dobrasse pouco a pouco diante do povo vencido do que o povo vencido diante dele.
Segue-se ainda daí uma coisa muito triste: é quase impossível que o cristianismo algum
dia se estabeleça na China. Os votos de virgindade, as reuniões das mulheres nas
igrejas, sua necessária comunicação com os ministros da religião, sua participação nos
sacramentos, a confissão auricular, a extrema-unção, o casamento com uma só mulher,
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tudo isto subverte os costumes e as maneiras do país, e fere ainda com o mesmo golpe a
religião e as leis. (MONTESQUIEU, 1996, p.326)
Entretanto a geração seguinte a Montesquieu, em especial os filósofos
iluministas, apostaram nos valores universais como resposta a idéia de ser humano. Tal
ideal político consagrado nas declarações de Direitos atinentes ao movimento de
Independência Estadunidense e da Revolução Francesa apontavam um sujeito de
direitos universal.[xxviii]
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(...) de uma forma muito pouco útil, colocou-se em campos opostos o enfoque
forense e o enfoque etnográfico das análises jurídicas, o que nos leva a crer que a série
de livros e artigos com títulos como "o direito sem advogados", "o direito sem sanções",
"o direito sem os tribunais" ou "o direito sem precedentes" poderia ter, como conclusão
apropriada, um cujo título fosse "o direito sem o direito". (GEERTZ, 1997, 251).
Talvez a melhor pergunta seria: como observar formas de Direito diversas da
forma que culturalmente estamos ligados?
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operando lado a lado com os antigos métodos de fazer justiça. (EVANS-PRITCHARD,
2005, p.173).
Falamos de "lei", aqui, no sentido que parece mais adequado quando se está
escrevendo sobre os Nuer, ou seja, uma obrigação moral de resolver questões por
métodos convencionais, e não no sentido de procedimento legal ou instituições legais. E
falamos apenas sobre a lei civil, pois não parece haver ações consideradas ofensivas a
toda comunidade e punidas por ela. Os informantes que disseram que algumas vezes as
bruxas e os mágicos eram mortos, afirmaram que eram sempre indivíduos ou grupos de
parentes que os emboscavam e os matavam como desforra. (EVANS-PRITCHARD,
2005, p.178-9).
Dois detalhes podem ser levantados. Primeiramente a tradução da palavra Law
na etnografia do inglês Evans-Pritchard pode ser tão confusa para o português quanto à
própria diferenciação entre Lei e Direito. (Afinal deve-se traduzir Law como Direito ou
como Lei?). Além disso, outra afirmação demonstra a dificuldade para referir culturas
jurídicas diversas da ocidental: ―Os Nuer possuem um agudo senso de direito e
dignidade pessoal. A idéia de direito, cuong, é forte.‖ (2005, p.180). Como descrever
esse ―Direito‖ sem reduzi-lo ao Direito ocidental ou a afirmação de sua
inexistência?[xxx]
Aqueles que ocupam diversos status podem ter direitos ao mesmo tempo sobre um
pedaço de terra ou sobre bens móveis. Todos esses direitos são descritos por um só
termo, "posse". No caso, a ciência do direito Barotse não refinou ou elaborou sua
terminologia. A complexidade do vocabulário dessa ciência do direito está na definição
de posições sociais — status — e de diferentes tipos de propriedade. Como os Barotse
estão interessados na propriedade à medida que ela vincula pessoas em diferentes
relações de status, eles tendem a enfatizar as obrigações decorrentes de posse de
propriedade, mais do que os direitos sobre ela. (GLUCKMAN, 1973, p.56)
Tal perspectiva pretende gerar o que Gluckman reconhece como
empoderamento dos povos africanos num momento em que o colonialismo ainda
prevalece. Bohannan porém discorda de tal hipótese pretendendo demonstrar que as
categorias jurídicas dos povos africanos são inconciliáveis com as categorias européias.
Bohannan afirma que ―É na justaposição de idéias previamente desconexas que se
encontra o ato de interpretação.‖ (1973, p.102). Esse ato de interpretação, para
Gluckman deveria ocorrer já na própria descrição. Bohannan ao contrário rechaça tal
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idéia, apresentando a necessidade de ater-se aos conceitos nativos para que a etnografia
seja um referencial aos leitores.
Na minha opinião, cada etnógrafo tem o compromisso com ele mesmo, com o
povo que estuda e com seus colegas de ser rigoroso com seu material. é claro que deve
traduzir tanto quanto possível. Ele deve avaliar o momento em que a dificuldade de ler
se transforma na impossibilidade de ler. Mas há um momento análogo em que o método
da nota explicativa causa dificuldades ainda maiores, porque simula compreensão
através do uso das palavras familiares. Esta simulação leva quase inevitavelmente —
creio eu — a uma suposição de que tudo o que é denominado pela mesma palavra é
comparável, sendo esta uma dificuldade quase impossível de ser corrigida.
(BOHANNAN, 1973, p.103)
E completa de forma significativa sobre o problema da construção teórica do
povo Tiv:
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(....) um fenômeno um pouco mais crucial, um fenômeno aliás que é a base de toda
a cultura: isto é, o processo de representação. A descrição de um fato de tal forma que
possibilite aos advogados defendê-lo, aos juízes ouvi-lo, e aos jurados solucioná-lo,
nada mais é que uma representação: como em qualquer comércio, ciência, culto,
ou arte, o direito, que tem um pouco de todos eles, apresenta um mundo no qual suas
próprias descrições fazem sentido. Discutiremos, mais adiante, os paradoxos que este
tipo de descrição pode gerar; o argumento aqui, no entanto, é que a parte "jurídica" do
mundo não é simplesmente um conjunto de normas, regulamentos, princípios, e valores
limitados, que geram tudo que tenha a ver com o direito, desde decisões do júri, até
eventos destilados, e sim parte de uma maneira específica de imaginar a realidade.
Trata-se, basicamente, não do que aconteceu, e sim do que acontece aos olhos do
direito; e se o direito difere, de um lugar ao outro, de uma época a outra, então o que
seus olhos vêem também se modifica. (GEERTZ, 1997, p.250)
Enfim, é possível delimitar o Direito como um produto puramente cultural,
variável no tempo e no espaço e que depende de uma complexa teia de significados
culturais para fazer sentido. Nem mesmo sociedades ocidentais têm o mesmo sentido
para a própria palavra ―Direito‖ em todas as suas camadas sociais e diversidade
histórica.[xxxi]
Por isso, para compreender o Direito dentro de uma sociedade é necessário não
esquecer que não se pode estudá-lo descontextualizado da sociedade aonde faz sentido.
A inter-relação entre os conhecimentos responsáveis pelo desenvolvimento da vida do
homem em seu ambiente e as relações entre os homens deve ter especial relevância para
o estudo da cultura jurídica. Mesmo sendo a ciência, em sua essência cartesiana, um
conhecimento repartido, o homem é um animal completo. ―Como escreve Mauss, ‗o
homem é indivisível‘ e ‗o estudo do concreto‘ é ‗o estudo do completo‘.‖
(LAPLANTINE, 2003, p.129). Os fenômenos culturais interagem com o consciente e o
inconsciente humano perfazendo sua vida na sua existência. ―Todos estudam ou
deveriam observar o comportamento de seres totais e não divididos em faculdades‖
(MAUSS, 1974, p.181).
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Tentarei, em um espaço demasiado curto para ser de alguma maneira persuasivo e
demasiado longo para poder falar total e verdadeiramente sobre uma única coisa,
esboçar três variedades bastante distintas de sensibilidade jurídica a islâmica, a índica e
a do chamado direito costumeiro que existe na parte malaia da Malásia-Polinésia - e
estabelecer a conexão entre essas sensibilidades e as visões, nelas incorporadas, sobre o
que é, realmente, a realidade. E o farei, desdobrando três termos, isto é, três conceitos,
que, a meu ver, são centrais para essas visões do mundo: haqq, que significa "verdade" e
muitas outras coisas mais, para os islâmicos; dharma, que significa "dever" e muitas
outras coisas mais, para os índicos; e adat, que significa "prática" e muitas outras coisas
mais, para os malaios. (GEERTZ, 1997, p. 275-4)
O objetivo de expor tais sensibilidades é demonstrar que o Direito pode
manifestar-se de forma totalmente diversa em sociedades com elementos culturais
diversos. Obviamente tal apreciação será resumida e recomenda-se a leitura do texto de
Geertz (1997) para o aprofundamento de tal descrição. Inicialmente cabe ressaltar que
nas sociedades orientais o Direito não está necessariamente ligado a noção de lei.
Para expressar o que foi dito acima de uma maneira ligeiramente diferente, nossas
três palavras têm mais semelhança com a noção ocidental de "direito" (right, recht,
droit) que com a noção de "lei" (law; Gesetz, loi). Ou seja, o ponto central, comum às
três, é menos relacionado com algum tipo de noção de "regulamento", "regras",
"injunção" ou "decreto" e mais próximo a um outro conceito, ainda pouco nítido, que
representaria uma conexão interna, original e inseparável, entre aquilo que é "próprio",
"adequado", "apropriado", ou "condizente" e o que é "real", "verdadeiro","genuíno", ou
"autêntico"; entre o "correto" de "um comportamento correto" e o "correto" de "um
entendimento correto". (GEERTZ, 1997, p.280)
Geertz compara as sociedades orientais com a cultura ocidental no tocante, em
especial a separação da esfera dos fatos da esfera do julgamento. Em suas palavras:
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pois a mentira deve apenas explicações a Deus. Uma prova factual poderia ser mitigada
diante de um testemunho de um fiel. Para tanto existe uma rígida hierarquia de funções
testemunhais, Enfim, a esfera dos fatos se sobrepõe a esfera do julgamento no momento
que a descrição do fato inclui o que é certo e errado. O fato será descrito de uma forma
―correta‖.
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Vale ressaltar ainda que Geertz prefere a expressão ―sensibilidade jurídica‖
para descrever tais culturas, explicando tal conceito da seguinte forma:
Temos também que nos contentar com uma simplificação radical tanto da
dimensão histórica como da dimensão regional desses temas. "Islã", "Mundo Índico" e,
sensu lato, "Malásia" não são - como dediquei uma grande parte do meu trabalho
buscando demonstrar - entidades unitárias e homogêneas, constantes no tempo, no
espaço e em população. Reificá-los como tais, aliás, sempre foi o artifício principal
através do qual o "Ocidente", acrescentando uma outra nulidade à coleção, conseguiu
evitar compreendê-los ou até mesmo vê-los com alguma clareza. (GEERTZ, 1997,
p.278)
Por isso faz referência a não pretensão de homogenizar as culturas, ou seja,
nem todo árabe, hindu ou malaio pensa da mesma forma. Mas pensá-los como grupo
cria uma difícil tarefa de criar uma generalização aceitável. Além disso, vale ressaltar
que essa tentativa de delimitação não pretende observar a realidade dos povos orientais
como peças isoladas, as culturas cresceram interrelacionando-se. Uma visão limitada de
sociedade pautada na separação e isolamento cultural não está presente na concepção
atual de cultura jurídica.
(…) a etnografia sempre soube que as culturas nunca foram assim definidas, auto-
suficientes e auto-sustentáveis, como os pós-modernistas afirmam sobre o que os
modernistas afirmam. Nenhuma cultura é sui generis, nenhum só povo é único ou
mesmo o autor de sua própria existência. A suposição de que a autenticidade significa
automodelacão e que perde a dependência dos outros, parece apenas um legado da auto-
consciência burguesa. Na verdade, esta determinação auto-centrada de autenticidade é o
contrário da condição social humana. A maior parte dos povos encontra os meios
críticos de sua própria reprodução em seres humanos e poderes presentes além de seus
limites normais e controles habituais. (SAHLINS, 2001, p.312-3, trad. livre)
Por isso, ao avaliar o Direito dentro de uma sociedade diversa, é necessário
ressaltar que uma concepção de Direito do passado pode ser diferente da atual, e a busca
dessas diferenças é o grande desafio dos pesquisadores que não querem naturalizar o
passado.
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(...) dedicar-se a construir uma teoria geral do direito é uma aventura tão
inverossímil como a de dedicar-se à construção de uma máquina de movimento
perpétuo. (GEERTZ, 1997, p.327).
Por mais que tal máquina possa ser teorizada, ela se afasta tanto da realidade
que perde sua utilidade. Hoje ―(...) o estudo comparativo do direito não pode ser uma
questão de transformar diferenças concretas em semelhanças abstratas‖. (GEERTZ,
1997, p.325).
5) Cultura jurídica representa parte da cultura que não está separada de sua
totalidade existencial, porém pode ser analisada academicamente a partir da busca de
fenômenos morais organizados.
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REFERÊNCIAS
BENEDICT, Ruth. Padrões de Cultura. Tradução: Alberto Candeias. Lisboa:
livros do Brasil, 2000.
20
GLUCKMAN, Max. Obrigação e dívida. In: DAVIS, Shelton H. Antropologia
do Direito: estudo comparativo de categorias de dívida e contrato. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1973.
SAHLINS, Marshall. Dos o tres cosas que sé acerca del concepto de cultura.
In: Revista Colombiana de Antropologia. Vol 37, pp. 290-327, enero-diciembre, 2001.
21
THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em
relação às plantas e aos animais (1500-1800). Trad. João R. Martins Filho. São Paulo
(SP): Cia das Letras, 1988.
Notas de Fim
NOTAS
[i] Nesse sentido, a dificuldade de apresentar um conceito de cultura foi
demonstrado por Geertz relembrando o esforço de antropólogo contemporâneo. ―Em
cerca de vinte e sete páginas do seu capítulo sobre o conceito, Kluckhohn conseguiu
definir a cultura como: (1) ‗o modo de vida global de um povo‘; (2) ‗o legado social que
o indivíduo adquire do seu grupo‘; (3) ‗uma forma de pensar, sentir e acreditar‘; (4)
‗uma abstração do comportamento‘; (5) ‗uma teoria. elaborada pelo antropólogo, sobre
a forma pela qual um grupo de pessoas se comporta realmente‘; (6) ‗um celeiro de
aprendizagem em comum‘; (7) ‗um conjunto de orientações padronizadas para os
problemas recorrentes‘; (8) ‗comportamento aprendido‘; (9) ‗um mecanismo para a
regulamentação normativa do comportamento‘; (10) ‗um conjunto de técnicas para se
ajustar tanto ao ambiente externo como em relação aos outros homens‘; (11) ‗um
precipitado da história‘, e voltando-se, talvez em desespero, para as comparações, como
um mapa, como uma peneira e como uma matriz.‖ (GEERTZ, 1989, p.14)
[ii] Marconi e Presotto afirmam que existem mais de 160 conceitos de cultura
diferentes referendados por diversas correntes antropológicas academicamente
relevantes (MARCONI; PRESOTTO, 2007, p.21-2).
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[vi] Em outro momento vai um pouco além. Afirmando que (...) reconhecemos
como culturais todas as atividades e todos os valores que servem ao homem na medida
em que colocam a Terra a seu serviço, protegem-no contra a violência das forças da
natureza etc. Acerca desse aspecto da cultura há pouquíssimas dúvidas. Para retroceder
o suficiente, acrescentemos que os primeiros feitos culturais foram o uso de
ferramentas, a domesticação do fogo e a construção de moradias. (...) (FREUD, 2010,
p.87-8).
[vii] ―Em 1917, Kroeber acabou de romper todos os laços entre o cultural e o
biológico, postulando a supremacia do primeiro em detrimento do segundo em seu
artigo, hoje clássico, "O Superorgânico" (in American Anthropologist, vol.XIX, n° 2,
1917). Completava-se, então, um processo iniciado por Lineu, que consistiu
inicialmente em derrubar o homem de seu pedestal sobrenatural e colocá-lo dentro da
ordem da natureza.‖ (LARAIA, 2000, p.28)
[viii] ―A busca desse esquivo atributo foi um dos mais sérios desafios
enfrentados pelos filósofos ocidentais, a maior parte dos quais tendeu a se fixar em um
traço e a enfatizá-lo de maneira desproporcional, por vezes até o absurdo. Assim, o
homem foi descrito como animal político (Aristóteles), animal de ri (Thomas Willis);
animal que fabrica seus utensílios (Benjamin Franklin); animal religioso (Edmund
Burke); e um animal que cozinha (James Boswell, antecipando Lévi-Strauss). Como
observa o Sr. Cranium do romancista Peacock, o homem já foi definindo como bípede
implume, como animal que forma opiniões e, ainda, animal que carrega um bastão. O
que todas essas definições têm em comum é que assumem uma polaridade entre as
categorias ―homem‖ e ―animal‖ e que invariavelmente encaram o animal como
inferior‖. Na prática, obviamente, o objetivo de tais definições nunca esteve tanto em
distinguir os homens dos animais quanto em propor algum ideal de comportamento
humano, como quando Martinho Lutero e o papa Leão XII afirmaram, um e 1530 e
outro em 1891, que a propriedade privada constituía a diferença essencial entre os
homens e os animais‖ (KEITH, 1988,. p.37-8)
[ix] ―(...) a cultura é como uma lente através da qual o homem vê o mundo.
Homens de culturas diferentes usam lentes diversas e, portanto, têm visões
desencontradas das coisas‖. (LARAIA, 2000, p.67). Mas não deixam de usar lentes para
ver o mundo. Exatamente na possibilidade de diálogo entre culturas reside a
possibilidade de reconstituir, ainda que de forma míope, o passado como cultura
diversa.
[x] ―Muitos filósofos preveniram o homem contra esse pretenso progresso. ‗L‘
homme qui médite‘, diz Rousseau, ‗est um animal dépravé‘; exceder os limites da vida
orgânica não é um melhoramento, mas uma deterioração da natureza humana.‖.
(CASSIRER, 1984, p.26, trad. livre)
[xii] ―As sociedades humanas são os únicos grupos de todo o reino animal que
delinearam formas de cultura que, por sua vez, exercem poderosas influências
modificadoras nos mecanismos hereditários dos seus membros individuais. Algumas
vezes os elementos culturais e biológicos coincidem ou reforçam-se uns aos outros ao
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procurarem os mesmos objectivos; outras vezes não têm nenhum efeito uns sobre os
outros; e por vezes chegam a chocar-se ou a opor-se entre si‖. (TITIEV, 2000, p.14)
[xiii] ―Não estando mais num universo meramente físico, o homem vive em um
universo simbólico. A linguagem, o mito, a arte e a religião são partes desse universo.
São os variados fios que tecem a rede simbólica, o emaranhado da experiência humana.
Todo progresso humano em pensamento e experiência é refinado por essa rede, e a
fortalece‖ (CASSIRER, 1984, p.26, trad. livre).
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muitas civilizações em contacto íntimo, e no momento presente a reacção dominante a
esta situação é o nacionalismo e o snobismo racial. Nunca, mais do que hoje, a
civilização teve necessidade de indivíduos bem conscientes do sentido de cultura,
capazes de verem objectivamente o comportamento socialmente condicionado de outros
povos sem temor e sem recriminação‖. (BENEDICT, 2000, p.23)
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que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu,
assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma
ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura
do significado‖. (GEERTZ, 1989, p.4)
[xxx] Ressalte-se outra pesquisa clássica que trouxe problemas parecidos para
o Direito: ―The Cheyenne Way: Conflict and Case Law in Primitive Jurisprudence‖ de
Karl N. Llewellyn.
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Pravo e zakon (russo), Jog e tõrveny (húngaro) e assim por diante‖. (LYRA FILHO,
1982, p.7)
[xxxiii] ―Se o conceito de Geertz de cultura tem duas linhas, é bem claro que a
linha problemática é a primeira, americana, de sentido, ou seja, a idéia de que grupos
particulares ―possuem‖ culturas particulares, cada um com a sua, e que esta cultura é
―compartilhada‖ por todos os membros do grupo. As críticas a esse sentido de cultura
tomam várias formas. Por um lado, o conceito de cultura é muito indiferenciado, muito
homogêneo: dadas várias formas de diferença social e desigualdade social, como podem
todos em determinada sociedade compartilhar a mesma visão de mundo, e a mesma
orientação em relação a tal visão? Por outro lado, e esta era a crítica mais fatal, a
homogeneidade e a falta de diferenciação no conceito de cultura, coloca-o muito
próximo do ―essencialismo‖, a idéia de que ―os Nuer‖ ou ―os balineses‖ possuíam
alguma essência única que os tornava do jeito que eram, a qual, além disso, explicava
muito do que faziam e como faziam‖. (ORTNER, 2007, p.382)
FURMANN, Ivan. Repensando a cultura jurídica: um diálogo entre a antropologia e o direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862,
Teresina, ano 20, n. 4514, 10 nov. 2015. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/44250>. Acesso em: 15 maio 2019.
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