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A DIMENSAO OBJETIVA DA VONTADE GERAL EM HEGEL* CARLOS NELSON COUTINHO Uma das muitas chaves de leitura da filosofia politica de Hegel € sua relago com a problemética da vontade geral, tal como essa foi for- mulada por Jean-Jacques Rousseau!. Ao longo da evolugdo de seu pensa- mento, Hegel alterou substancialmente sua rela¢ao com a obra de Jean- Jacques. Se, em sua juventude, foi um leitor entusiasta do pensador gene- brino, em sua maturidade, ao contrério, iré polemizar explicitamente com a versio rousseauniana do conceito de vontade geral, considerada agora como abstrata e subjetivista, ainda que, ao mesmo tempo, reafirme a im- portncia central do conceito, na nova versio que Ihe atribui, para a apreensao das caracteristicas centrais do Estado moderno. E em especial na Filosofia do direito que Hegel apresenta uma tentativa de superar as aporias do subjetivismo rousseauniano. Ao fazé-lo, ele certamente abandona alguns importantes aspectos do conceito moder- no de democracia, em particular 0 de soberania popular, que recebera na obra de Rousseau sua primeira e talvez mais brilhante expressio sis- temética. Contudo, isso ndo impede que as reflexdes de Hegel contenham, a0 mesmo tempo, importantes avancos em relagiio a Jean-Jacques, na me- dida em que apresentam indicagées no sentido de determinar de modo mais concreto 0 préprio conceito de vontade geral. Desse modo, como ten- * Texto da conferéncia “Hegel ¢ a democracia’ apresentada no Instituto de Estudos Avangados da Universidade de Sao Paulo, em 13 de junho de 1997. 1 Sobre a problemitica da vontade geral e suas aporias no pensamento rousseauniano, cf. CNN. Coutinho, "Critica e utopia em Rousseau", Lua Nova, n° 38, 1996, particularmente pp. 20¢s8. 60 LUA NOVA N°43—98 taremos demonstrar neste ensaio, o fato de que Hegel se afaste claramente, em muitos pontos, de concepgdes democriticas expressas em sua época ndo o impede de trazer contribuigdes decisivas, independentemente de suas intenges explicitas, para uma teoria moderna da democracia. jovem Hegel, entusiasta da Revolugdo Francesa (ainda que ndo do seu perfodo jacobino’), iniciou sua atividade tedrica como um ad- mirador de Rousseau, de cuja obra havia tomado conhecimento jé em 1788, no Seminario deTibingen? . Nos seus famosos “escritos teolégicos” juvenis (que Lukécs demonstrou convincentemente se tratarem de escritos politicos € nao propriamente teolégicos), Hegel critica a sociedade™ crista- burguesa” do seu tempo, na qual aponta ~ com nostélgica amargura ~ um predomfnio do privado sobre o piblico, o que implicaria para ele a deca- déncia da “bela eticidade” que florescera na. Antiguidade classica. Como conseqtiéncia, o jovem Hegel iré propor explicitamente — sobretudo no seu perfodo republicano de Berna (1793-1796) — uma retomada do modelo politico grego, ou seja, do modelo de uma comunidade humana solidéria fundada no predom{nio do piiblico sobre 0 privado, segundo uma orien- tagdo, de resto, bastante préxima daquela proposta por Rousseau no Con- trato social . E é também certamente por inspiragdo de Rousseau que — nesses escritos juvenis — 0 conceito de autonomia do sujeito, de origem kantiana, deixa de se referir apenas ao sujeito individual, como no préprio Kant ou em Fichte, para assumir uma dimensio claramente coletiva ou co- munitéria. A evolugdo de Hegel para amaturidade — um movimento que ele mesmo chamou de “ reconciliagdo como real” ~ consistiu, em grande parte, no empenho tedrico no sentido de superar essa sua problemdtica juvenil “ rousseauniana” . J4 no perfodo de Frankfurt (1797-1800), mas 2 Para a relagdo de Hegel com a Revolugéo Francesa, cf., entre outros, G. Lukécs, I giovane Hegel e i problemi della societa capitalistica, Turim, Einaudi, 1960, passim; e J. Ritter, Hegel et la Révolurion Francaise, Paris, Beauchesne, 1970, pp. 5-64. 3K. Rosenkranz,Vita di Hegel, Mildo, Mondadori, 1974, p. 50. 4 E evidente a influéncia rousseauniana, por exemplo, quando Hegel - referindo-se a Grécia e Roma republicana -diz que os seus cidadzos, “enquanto homens livres, obedeciam a leis que eles mesmos se haviam dado, obedeciam a homens que eles mesmos haviam designado para 0 comando” (G.W.F. Hegel, La positividad de la religi6n ristiana, in 1d., Escritos de Juventud, México, Fondo de Cultura Econémica, 1978, p. 150) ‘A DIMENSAO OBJETIVA DA VONTADE GERAL 61 sobretudo no de lena (1801-1807), Hegel se d4 conta de que, no mundo modem, haviam se consolidado figuras sociais que tornavam invidvel a proposta de retorno ao modo de organizagdo social da pélis greco-romana. Essa inviabilidade resultaria, talvez ndo em dltimo lugar, do fato de que a esfera da particularidade (da individualidade) havia assumido na moderni- dade uma dimensio inédita em comparaco com o mundo antigo. Enquan- to nesse ditimo a expansdo do particular conduzia ao colapso da ordem so- cial, entrando assim em choque com o universal, 0 mundo moderno desenvolveria a universalidade precisamente a partir do livre jogo da agdo dos particulares, ou seja, a partir da liberdade dos individuos. Para compreender a real dialética do mundo social que Ihe era contemporaneo, Hegel € assim levado a elaborar uma nova figura de Sirt- lischkeit (ou “eticidade” , ou “vida ética”): nao mais se trataria de conde- nar sumariamente a" sociedade civil”, o mundo da particularidade — como 0 fazia Rousseau, sobretudo no Discurso sobre a desigualdade, ¢ como 0 proprio Hegel propunha em seu perfodo republicano -, mas, ao contrério, tratava-se de compreender essa “sociedade civil” como um momento es- sencial da totalidade social moderna, ainda que essa totalidade continuasse a ter para ele, 20 contrério do que sucedia nos pensadores liberais, sua méxima expresso na universalidade em si e para si (objetiva e autoconsciente) do Estado. Em outras palavras, ao contrario de Rousseau, o Hegel maduro no pretendia contrapor como coisas reciprocamente excludentes 0 priva- do 0 piblico, o singular e o universal, mas buscava mostrar que, entre esses dois momentos, dava-se agora uma mediagdo dialética através da particularidade, mediagao que teria espaco de explicitagao precisamente na “sociedade civil’ . Com a descoberta dessa mediagdo, Hegel se capaci- tava a cumprir a tarefa central que propusera para sua filosofia politica: a conciliago entre, por um lado, a liberdade individual (ou a autonomia do sujeito), surgindo na modernidade e transformada no principal valor do li- beralismo, e, por outro, a reconstrugdo de uma ordem social fundada na prioridade do publico (do universal) sobre 0 privado, prioridade que existi- ra nas repiiblicas antigas e que voltava agora a se apresentar, como tarefa para a modernidade, na proposta democrética de Rousseau. 5 Boa parte da bibliografia hegeliana indica 0 papel decisivo que o estudo da economia politica, principalmente através de James Stewart e de Adam Smith, desempenhou. na cons- trugdo do conceito hegeliano de “sociedade civil”. Sobre isso, a obra cldssica continua sendo ade Georg Lukécs, If giovane Hegel e i problemi della societé capitalistica, cit. 62 LUA NOVA N* 43 — 98 A “ reconciliago com o real” tornou Hegel um pensador pro- fundamente avesso a qualquer utopismo moralizante, que se baseasse na proposta de um dever ser abstrato e objetivo; para confirmar isso, basta re- cordar, além do preficio & Filosofia do direito, onde se refere especifica- mente & teoria do Estado, a formulagdo e desenvolvimento — em seus tra- balhos propriamente filos6ficos — de uma dura critica & ética formalista de Kant e A metafisica idealista-subjetiva de Fichte. Foi essa postura anti- ut6pica, entre outras coisas, que Ihe permitiu tornar-se um dos primeiros pensadores de estatura universal a criticar, no plano da filosofia politica, as aporias de Rousseau, mas sem apresentar nessa critica nenhum trago restauracionista (de defesa do Ancien Régime) ou liberal-individualista. Hegel retém de Jean-Jacques 0 conceito de “vontade geral” (0 que o afas- ta da tradico liberal, que opera apenas com a nogo de “vontade de to- dos”®), mas busca fundar de modo mais concreto ¢ realista esse conceito, despojando-o de qualquer vinculo com o arbitrio subjetivo individual, por um lado, e, por outro, com o formalismo de um mero dever-ser morali- zante. A critica a Rousseau (bem como ao terrorismo jacobino, apontado como conseqiiéncia das posigdes do autor do Contrato social) recebe uma formulagdo sistemdtica ja na Fenomenologia do Esptrito, de 1807, no fa- moso capitulo sobre “A liberdade absoluta e 0 Terror”, que se segue & andlise da dialética do iluminismo’. Mas essa critica reaparece nos Princtpios da filosofia do direito, de 1821, onde Hegel tenta conceituar de modo sistematico a sociedade e 0 Estado de seu tempo. Nessa obra, ele diz o seguinte: “Rousseau teve 0 mérito de afir- mar que 0 princfpio do Estado (...) € a vontade. Mas, tendo entendido a vontade universal no como a racionalidade em si e para si da vontade, mas apenas como o elemento comum que deriva da vontade singular, (Rousseau) faz com que a associago dos individuos no Estado se torne um contrato, algo que, portanto, tem como base 0 arbitrio desses in- dividuos, a opinido € o consenso explicito deles”®. E, depois de mostrar © Recordemos a distingdo rousseauniana: “Hi habitualmente muita diferenga entre a vontade de todos € a vontade geral. Essa se refere apenas ao interesse comum; a outra, ao interesse privado, sendo apenas uma soma das vontades particulates” (J.J. Rousseau, Du contract so- cial,. OEwvres completes, Paris, Gallimard-Pléiade,vol. I, 1964, p. 371). 7 Hegel, Fenomenologia do espirito, Petropolis, Vozes, 1992, parte II, pp.67 ¢ ss. Na ver- dade, jf antes da Fenomenologia, num texto de 1801 sobre “as maneiras de tratarcientifica- mente 0 direito natural” (Hegel, Du droit naturel, Paris, Vrin, 1990), 0 filésofo havia critica do duramente 0 contratualismo. 8 Hegel, Grundlinien der Philosophie des Rechts, Subrkamp, Frankfurt am Main, 1995, parigrafo 258, p. 400. A DIMENSAO OBIETIVA DA VONTADE GERAL “8 que as teorias do contrato social resultam de uma injustificada extrapo- lac&o de um instituto do direito privado para o campo do direito piiblico, Hegel insiste ainda com maior clareza na objetividade transindividual da vontade geral ou universal: “ Deve-se recordar 0 conceito fundamental: o de que a vontade objetiva € 0 racional em si no seu conceito, seja ele re- conhecido ou nao pela vontade singular ¢ seja ou ndo desejado pelo querer dessa (...). Nao basta saber 0 que se quer, mas o que quer a vontade que € em sie para si, ou seja, a razio”?, Embora se valendo, como quase sempre, de uma terminologia abstrusa, Hegel coloca aqui um problema real: a vontade geral tem uma base objetiva, ou seja, sofre um proceso de determinagées histérico- genéticas que transcende a acdo dos individuos e seus projetos volitivos singulares. Enquanto componente essencial do mundo ético, a vontade geral no resulte de um postulado moral, no € mero resultado da agdo “virtuosa” dos individuos ouvindo a “voz da propria consciéncia”, como pensava Jean-Jacques, mas se apdia numa comunidade objetiva de inter- esses, que 0 movimento da realidade (que Hegel preferia chamar de “razdo” ou de “Espfrito”) produz e impde aos individuos, independente- mente da consciéncia e do desejo deles, ainda que o faca “astuciosa- mente”, ou seja, valendo-se das “paixdes” singulares dos préprios in- dividuos!®, A primeira forma objetiva de comunidade universalizadora de interesses é a familia, que seria para o fildsofo alemo a figura inicial e ainda natural da “eticidade”, isto é, daquela esfera do ser social que — com base em formas interativas de praxis — define normas comunitérias para a agio dos individuos. A terceira e mais universal figura da etici- dade seria precisamente 0 Estado. Mas, como mediagdo entre a familia ¢ o Estado, aparece na formulagao hegeliana madura da eticidade uma se- gunda figura, que ele chama de “sistema dos carecimentos” e do “traba- lho dividido”, ou seja, precisamente a esfera da “sociedade civil” . E Hegel nos adverte para o fato de que a “sociedade civil” enquanto esfera relativamente auténoma é um fendémeno especifico da modernidade, jé gue no mundo antigo o Ambito das relagdes econémicas (que forma o es- ‘sencial da “sociedade civil”) estaria compreendido no interior da familia, ou seja, dovikos. 9 Ibid, partigrafos 258 e 259, pp. 402 € 405. 10 Sobre a “asticia da razdo”, cf. Hegel, La raison dans lhistoire, Paris, Plon, 1965, pp.106 ess. 64 LUA NOVA N° 43—98 A primeira vista nao parece existir diferenga entre a “sociedade civil” conceituada por Hegel e 0 mundo da economia mercantil ca- pitalista, tal como esse foi descrito sobretudo por Adam Smith em A ri- queza das nagdes. Vejamos como Hegel define a sua “sociedade civil”: “Nessa dependéncia e reciprocidade do trabalho e da satisfagéio dos care- cimentos, 0 egofsmo subjetivo se transforma na contribuigdo para a satis- fagio dos interesses dos outros. H4 uma mediagao do individuo pelo uni- versal, um movimento dialético pelo qual cada um, ao ganhar, produzir fruir para si, precisamente por isso produz e ganha para a fruigdo de to- dos. Essa necessidade (...) se encontra no encadeamento universal da de- pendéncia de todos”!!, Contudo, além das dbvias semelhangas, existem também im- portantes diferencas entre a visio hegeliana da sociedade civil e aquela presente nos “classicos” do liberalismo. Hegel, por exemplo, numa for- mulagao nao partilhada pelos autores liberais, observa que, na sociedade civil, “a acumulagao da riqueza aumenta por um lado (...), enquanto, pelo outro, aumentam também a especializagdo e a limitagdo do trabalho par- ticular e, com isso, a dependéncia e o empobrecimento da classe (Klasse) ligada a esse trabalho, o que implica a incapacidade de sentir as outras possibilidades e, em particular, as vantagens espirituais da sociedade civil e de desfrutar das mesmas”!?, Com essa pertinente observagdo, que reto- ma uma visao critica j4 expressa (de modo ainda mais radical) nos seus manuscritos de lena, Hegel ndo sé ecoa o agudo mal-estar rousseauniano diante da societé civile, expresso sobretudo no Discurso sobre a desigual- dade, mas antecipa os conceitos de empobrecimento e de alienacio da classe: trabalhadora no capitalismo, que viriam a ser posteriormente de- senvolvidos por Marx. Mas existe ainda, no que se refere ao conceito de “sociedade civil”, outra novidade essencial de Hegel com relagéo ao pensamento li- beral cldssico. Ela se manifesta no fato de que 0 autor da Filosofia do di. reito analisa a possibilidade de que o “encadeamento universal” presente na sociedade civil deixe de expressar apenas uma universalidade em si e se converte também em algo para si, ou seja, eleve-se a consciéncia sub- jetiva e, mais que isso, adquira uma figura autoconsciente concreta. Como se sabe, para Adam Smith, a harmonizacao dos interesses egofstas, com a conseqiiente realizagao de um “bem de todos”, resultaria da ago 11 Hegel, Philosophie des Rechts, pardgrafo 199, p. 353. 12 fbid, pardgrafo 243, p. 389. ‘ADIMENSAO OBJETIVA DA VONTADE GERAL 65 automética do mercado, da sua famosa “mao invisfvel”; em Locke, a ga- rantia desse “bem de todos” implicaria a criaco, através do contrato, de uma instancia (0 governo) que regulamentaria os eventuais conflitos, mas sem que isso comportasse nele uma modificacio estrutural dos individuos contratantes, que continuariam assim a atuar na civil society gerada pelo contrato com base em méveis puramente privados e egofstas. Poderfamos dizer que, enquanto a “mio invisfvel” smithiana, no quadro do pensa- mento liberal, & 0 aspecto objetivo da formagao da “vontade de todos” , 0 contrato lockeano a sua expressdo subjetiva. Em ambos os casos, contu- do, estamos diante no da “vontade geral” no sentido de Rousseau, mas sim daquilo que 0 pensador genebrino chamou de “ vontade de todos” . Ora, é precisamente por causa do seu empenho em descobrir as formas objetivas deste outro tipo de vontade geral ou universal — que Hegel, re- velando-se assim ligado a problemdtica de Rousseau, afasta-se do pensa- mento liberal classico. es Para Hegel, como se sabe, a figura plena dessa universalidade autoconsciente — isto é, da vontade geral em si e para si — € 0 proprio Estado, considerado por ele como “realidade da idéia ética”, “realidade da vontade substancial”, “realidade da liberdade concreta”, etc!3, Enquanto terceira e ltima figura da eticidade, 0 Estado Ihe aparece como a su- peraco dialética das duas primeiras figuras: a ordem estatal eleva a nivel superior os momentos de universalizacao contidos na famflia e, sobretudo, na sociedade civil, mas ao mesmo tempo os conserva's. E € precisamente neste ponto onde Hegel se situa claramente para além de Rousseau: en- quanto esse contrapde como domfnios reciprocamente excludentes a esfera do singutar-privado (do bourgeois) e a do universal-piblico (do citoyen), cabendo ao segundo a tarefa de reprimir o primeiro, Hegel tenta encontrar mediagdes que — j4 na esfera da “sociedade civil” entendia como dominio 13 bid, passim. 14 & importante observar, ainda que de passagem, que o Estado, na dialética hegeliana, tem ‘uma dupla dimensao: por um lado, ele designa uma parte do todo, a esfera que cuida do pro- priamente universal (e, nesse sentido, identifica-se objetivamente com o govemno e subjetiva- ‘mente com 0 patriotismo); mas, por outro, ele designa também a prépria totalidade concreta, que contém em si, através do processo de Aufhebung, todas as demais esferas do ser social, ou seja, 0 direito abstrato, a moralidade, a familia e a sociedade civil. 66 LUA NOVA NP 43 —98 do particular — iniciem o processo de formagdo de um universal para si (autoconsciente). Com lucidez realista, Hegel observa: “Nem o universal temvalor e é realizado sem o interesse, a consciéncia e a vontade particu- lares, nem os individuos vivem como pessoas privadas, orientadas unica- mente pelo seu interesse e sem relagdo com a vontade universal”!5. Essa dialética do particular e do universal encontra uma de suas principais manifestagdes concretas — ao lado das comunas, dos testamen- tos, etc. — naquilo que Hegel chama de “corporagdes”. Indo além do li- beralismo cléssico, para 0 qual os atores econdmicos e politicos sao os in- dividuos singulares, Hegel registra o fato de que “o trabalho, na sociedade civil, se fraciona (...) em varios ramos”; e, por isso, “essa igualdade em-si da particularidade, enquanto algo comum, assume existéncia para-si na corporacéio”!®, Hegel usa aqui, certamente, ao falar em “corporagdes”, uma terminologia tomada de empréstimo ao mundo feudal; mas, na ver- dade, est apontando — j4 que se refere a um fendmeno que tem lugar na “sociedade civil” moderna, claramente mercantil-capitalista — para um fenémeno de associativismo que iria se generalizar, sobretudo na segunda metade do século XIX, principalmente sob a forma da organizagao dos tra- balhadores em sindicatos!7. Ao falar em “corporagées”, Hegel introduz assim — j4 na esfera da “sociedade civil” — um ator coletivo, cuja vontade nao é mais singular e ainda nfo é plenamente universal, mas que 6, sim, particular. Vejamos como Hegel define as relagées entre as corporagdes ¢ a sociedade civil, por um lado, e o Estado, por outro: “A sociedade civil — diz ele — é0 15 Hegel, pardgrafo Philosophie des Rechis, cit., pardgrafo 260, p. 407. 16 ibid, &251, p. 394. 17 Gramsci foi um dos primeiros a perceber esse cardter antecipador do pensamento de Heg- el, ainda que registre também, com lucidez, 0s limites histéricos dessa antecipacdo. Numa nota intitulada” Hegel e 0 associacionismo”, onde fornece uma importante pista para com- preender a filosofia politica hegeliana, Gramsci observa: “ A doutrina de Hegel sobre ¢ asas- sociagdes como trama ‘privada’ do Estado. Ela derivou historicamente das experiéncias politicas da Revolugdo Francesa ¢ devia servir para dar uma maior concreticidade ao constitu cionalismo, Governo com o consenso dos governados, mas consenso organizado, ndo genéri coe vago como que s¢ afirma no instante das eleigdes: 0 Estado tem a demanda 0 consenso, ‘mas também ‘educa’ esse consenso com as associagoes politicas ¢ sindicais, que sao porém organismos privados, deixados & iniciativa privada da classe dirigente, Hegel, num certo sen- tido, j4 supera assim 0 constitucionalismo puro e teoriza o Estado parlamentar com seu re- sgime de partidos. Sua concepgdo da associagdo nao pode deixar de ser ainda vaga e primitiva, entre 0 politico e o econdmico, segundo a experiéncia histérica da época, que cra muito restri- tae dava um s6 exemplo acabado de organizagao, aquela *corporativa’ (politica inserida na economia)” (A.Gramsci, Quademi del carcere, Turim, Einaudi, 1975, pp. 56-57). ‘A DIMENSAO OBIETIVA DA VONTADE GERAL 6 campo de luta do interesse privado singular de todos contra todos; mas, do mesmo modo, tem aqui lugar 0 conflito desse interesse privado com o in- teresse de grupos particulares, e, por outro lado, desses dois tipos de inter- esse com os pontos de vista ¢ ordenamentos mais elevados [universais ou estatais]. O espfrito corporativo, que se gera na legitimagao dos interesses particulares, converte-se em si mesmo no espfrito do Estado, dado que € no Estado que encontra o meio de alcangar seus fins particulares”!®, Essa citagdo requer dois comentérios. Por um lado, ela nos per- mite ver que Hegel nao opera simplesmente, como o faz Rousseau, com a contraposicao entre singular (privado) e universal (piblico), mas introduz explicitamente a categoria mediadora do particular: o interesse corporati- vo aparece como um campo de mediagées entre a singularidade do inter- esse puramente privado e a universalidade encarnada no Estado. A relago entre privado e ptiblico deixa assim de ser uma relagdo de exclu- déncia, um ou/ou, para se converter numa relagéio de Aufhebung, ou seja, em um tipo de superagéio que, a0 mesmo tempo, elimina, conserva e ele- va a nivel superior. Por outro lado, a descoberta e plena legitimagao desse campo de explicitagao do particular faz com que Hegel, na apresen- taco do ordenamento politico-constitucional de seu Estado “racional”, apesar de muitos tracos “reaciondrios” (como a monarquia hereditéria, a organizagao por estamentos, as cdmaras corporativas, etc.), d@ mostras de ter entendido — ao contrdrio de Rousseau, que condenava as associagdes particulares — a realidade e a necessidade do pluralismo politico- institucional na sociedade moderna!®. “Ora, ao propor uma ordem consti- tucional que combina indissoluvelmente a realidade do pluralismo com a prioridade da vontade geral, Hegel supera as formulagGes unilaterais sim- etricamente inversas do liberalismo (que nega a vontade geral e o pre- dominio do piblico) ¢ do democratismo rousseauniano (que nega o plura- lismo); e, com isso, malgrado suas eventuais intengdes subjetivas, deu um importante contributo para a construgo de uma teoria moderna da demo- cracia. 8 Hegel, Philosophie des Rechts, parigrafo 289, p p. 458-459. 19 O caréter essencialmente moderno do Estado proposto por Hegel foi sublinhado, entre muitos outros, por Eric Weil, Hegel e "Etat, Paris, Vrin, 1950; Schlomo Avineri, Hegel's Theory of the Modern State, Cambridge, Cambridge University Press,1972; e Domenico Los- surdo, Hegel e la liberti dei moderni, Roma, Riuniti, 1992. 68 LUA NOVA N?43—98 Isso nao significa, evidentemente, que a contribuigao indireta de Hegel para essa teoria democrdtica deixe de apresentar muitos pontos probleméticos: se o realismo do filésofo alemao o leva a descrever com bastante exatidéo 0 modo pelo qual se processam as “determinagdes da vontade” na sociedade moderna, 0 prego que pagou por tal realismo foi o abandono de muitos elementos democrdticos (como, por exemplo, a fun- dag&o contratual ou consensual da ordem politica) contidos na construgio ut6pico-eticista de Rousseau. Hegel, por exemplo, se insurge contra 0 con- ceito, tio marcadamente rousseauniano, de “‘soberania popular”: “A sobe- rania popular — diz ele — pertence & confusa concepgao que tem como base uma representagaio no organica do povo. O povo, considerado sem o seu monarca e sem a organizagao necesséria e imediatamente conectiva da totalidade, € uma massa informe, que ndo possui nenhuma das determi- nagGes que existem em um todo organizado””9. Decerto, nao podemos negar que Hegel est4 muito perto da ver- dade quando percebe que, sem a mediago de associagSes ¢ instituigdes particulares e concretas, os individuos singulares nao passam de uma mas- sa informe. No mundo moderno, o assemblefsmo permanente proposto por Rousseau, onde cada um opinaria individualmente segundo a voz de sua consciéncia, nfo é mais do que uma utopia anacrénica, ainda que talvez generosa; esse assemblefsmo, segundo Hegel, € prdprio de povos que “se encontram no estado de primitivismo (...) [que no alcangaram] uma ver- dadeira totalidade organica em si mesma desenvolvida”?!. Um dos mo- mentos dessa “totalidade organica desenvolvida” seria precisamente a pre- senga de uma “sociedade civil” enquanto esfera (relativamente) autonoma do ser social, algo que, como vimos, Hegel considera ser um trago distinti- vo da era moderna. Além disso, no préprio interior da “sociedade civil”, as corporagées apareceriam como uma das mais significativas figuras da or- ganizacio do “povo”, ou seja, da superago do seu estégio “primitivo” de amorfismo. Contudo, da justa constatagao do cardter anacrdnico da democra- cia direta Hegel parte para a sugestdo de soluges alternativas a soberania popular, solugdes que representam um claro retrocesso ndo 6 em relacdo a 20 Hegel, Philosophik 21 id. des Rechts, p. 446. A DIMENSAO OBJETIVA DA VONTADE GERAL 69 Rousseau, mas até mesmo ao conceito liberal de representagao. Por um lado, nos pardgrafos certamente menos convincentes da Filosofia do direi- to, ele “deduz” — através de argumentos falsamente légicos e, portanto, objetivamente sofisticos — a necessidade de que a soberania “exista en- quanto pessoa natural do monarca”2, E, por outro, numa postura mais rea- lista mas nem por isso menos antidemocratica, esforga-se por situar a mani- festagdo concreta da soberania (ou da vontade geral) — a sua transformagao em efetivo poder de governo — na burocracia, designada por ele como “classe (ou estamento) geral”. Desse modo, a burocracia se torna 0 efetivo portador material da vontade geral: “A classe geral, que se dedica mais de perto ao servigo do governo, deve ter imediatamente, em sua determinacdo, © universal como finalidade de sua atividade essencial"?>. Enquanto as corporagdes por ramo do trabalho dividido se for- mam e legitimam na defesa de interesses particulares (apontados como um primeiro grau de universalizacao em face dos interesses singulares dos individuos), a burocracia aparece como uma corporagio de tipo especial, que se caracterizaria por identificar imediatamente — em sua atuagio e motivagdes — o singular-privado e o universal. Hegel observa: “O servigo publico exige o sacrificio das satisfagdes individuais ¢ arbitrérias que séo proprias das finalidades subjetivas; mas reconhece 0 direito de obter tais satisfagdes no cumprimento do dever e somente nele. Nisto reside a unido de interesse particular e interesse geral que constitui 0 conceito de Estado e Ihe empresta estabilidade”*4. Caberia ainda recordar que, se a burocracia hegeliana ndo é uma casta fechada (pois o ingresso na mesma depende do mérito e da competéncia), tampouco ela é eletiva; portanto, a idéia juvenil republicana — recordada acima — de que os “homens livres (...) obede- ciam a homens que eles mesmos haviam designado para 0 comando” é explicitamente abandonada na construgéo madura do Estado “racional”. Ao atribuir & burocracia a condigdo de “classe geral”, Hegel ter- mina por recusar explicitamente a concepgo (rousseauniana!) de que “to- dos devem tomar parte na discussio ¢ resolucdo das questées gerais do Es- tado"?5, ou seja, termina por negar a necessidade e possibilidade de constituigio de uma esfera publica que socialize e democratize o poder. Essas atribuigdes “gerais” seriam monopdlio da burocracia; caberia a essa 22 Ibid, p. 379. 23 Ibid, pp. 468-469, 24 Ibid, p. 462. 25 Ibid. 70 LUA NOVA N°43 —98 ‘classe universal” a tarefa de acolher as demandas e sugestées particulares que provém das corporagdes, das comunas, etc., promovendo a satisfagao das que seriam compatfveis com o interesse comum, cuja “interpretagao” (j4 que tal “interesse comum” seria algo objetivamente dado e nao inter- subjetivamente construido) constituirfa uma de suas principais tarefas. Por- tanto, a figura concreta da vontade geral nao é mais buscada, como em Rousseau, na assembléia dos individuos virtuosos — e, portanto, malgrado ‘© utopismo, num espaco intersubjetivo criado por meio do contrato e do consenso—, mas na suposta “‘sabedoria” de uma cinzenta camada de bu- rocratas que atuaria weberianamente sine ira et studio. Importa pouco que Hegel tente contornar tal conclusao ao afirmar repetidas vezes que a figura concreta da vontade geral é 0 proprio Estado: na realidade, j4 que ele con- dena explicitamente a participacdo de todos na discussio das questées ge- rais do Estado, a vontade geral s6 existiria efetivamente através da “classe universal” dos burocratas que exercem 0 poder de governo. Portanto, Hegel termina por cair num unilateralismo simetrica- mente oposto ao de Rousseau: se esse via apenas 0 aspecto subjetivo da vontade geral, seu momento teleolégico e “projetual”, Hegel vé sobretudo © seu momento objetivo, o seu aspecto causalmente determinado. Contra Rousseau, Hegel est4 certo quando mostra que a vontade geral, antes de ser um para si (uma figura autoconsciente), constitui-se hist6rico- geneticamente através de um movimento em-si (0 movimento das determi- nagdes sécio-objetivas que tornam possfvel sua emergéncia). Mas, ao ne- gar o papel da intersubjetividade na formagdo dessa vontade geral, Hegel introduz um momento fortemente conservador em sua reflex4o. Por con- siderar o Estado e a filosofia de seu tempo como a expresso final do que ele chama, respectivamente, de Espirito Objetivo e de Espirito Absoluto, Hegel “fecha” 0 movimento dialético da realidade. A liberdade, para ele, resume-se ento ao ato de conhecer a necessidade — e de atuar segundo ela; ora, como a vontade geral j4 se constituiu e se expressa agora no Esta- do “racional” (e, porque racional, também real), a verdadeira liberdade do cidadiio resume-se a conhecer essa vontade definida post festum e a obe- decer aos seus ditames. Em nome do combate a abstratividade subjetivista que, com razio, critica nos contratualistas, Hegel nega assim a possibili- dade de que se forme uma nova eticidade a partir de uma vontade coletiva consensualmente elaborada. £ precisamente por negar essa possibilidade que Hegel recusa categoricamente 0 contratualismo, em todas as suas vers6es. Ora, também nesse caso, a formulagdo hegeliana apresenta ambigilidades no que se re- A DIMENSAO OBIETIVA DA VONTADE GERAL n fere 4 construgao de uma teoria moderna da democracia. Por um lado, ele certamente contribui para tornar realista essa teoria quando vé que, em fungao dos condicionamentos econdémico-sociais da agéo humana, a ordem societdria nao pode ser concebida globalmente como resultado de um con- trato intersubjetivo; mas, por outro, o déficit tiltimo de seu contributo a de- mocracia consiste em nao ver que, no interior dos limites postos por esses condicionamentos, continua aberto um espaco de alternativas que assegura a possibilidade de relagdes contratuais até mesmo na esfera politica. Cabe aqui recordar a célebre frase de Marx 76: “ Os homens fazem sua histéria, mas nao a fazem como querem; nao a fazem sob circunstancias de sua es- colha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo pasado”. Ou seja: ainda que limitados pelos condiciona- mentos objetivos, diz Marx, o fato € que “ os homens fazem sua histéria”. Se isso € verdade, abre-se entdo a possibilidade de que muitas esferas da interagao social possam resultar de livres contratos, ou, mais precisamente, da agio consciente e consensual de homens atuando intersubjetivamente. Como jé observei e busquei demonstrar em outro lugar, € precisamente essa possibilidade que est na base do conceito gramsciano de hegemonia, no qual se pode entrever, ademais, uma proposta de sintese entre as formu- lages de Rousseau ¢ de Hegel??. 4. Tal como j4 sugerimos ao analisar as aporias de Rousseau, tam- bém aqui as razes dos limites de Hegel - mas também de sua grandeza — podem ser apontadas no ponto de vista de classe que adota em sua obra. Se Rousseau, ao formular sua utopia democratica anticapitalista, expressava a perspectiva de classe dos artesios e dos pequenos proprietérios — e essa perspectiva € responsdvel tanto por seus méritos quanto por suas limi- tagGes*® —, Hegel, ao contrério, adota em sua filosofia politica 0 ponto de vista da classe burguesa tal como essa se havia constitufdo na época pés napolednica, Decerto, como sempre, é preciso concretizar: em fungao das peculiares condigdes da Alemanha da época, Hegel busca freqiientemente 26 K. Marx, O 18 Brumdrio de Luis Bonaparte, in Marx-Engels, Obras escothidas, Rio de Ja- neiro, Vitéria, 1956, p. 224. 27 CN. Coutinho, “Vontade geral e democracia em Rousseau, Hegel ¢ Gramsci”, Marxismo gpltica. A dualidade de poderes e ouiros ensaios, Sto Paulo, Cortez, 1994, pp. 121-142, 28 Cf. C.N. Coutinho,"Critica e utopia em Rousseau”, cit, pp. 28 ss. R LWA NOVA N*43.—98 conciliar esse ponta de vista burgués com os interesses das classes domi- nantes da velha ordem feudal. Vejamos um exemplo dessa conciliagdo: embora contine atribuindo grande importancia aos estamentos (Stdinde) herdados da época feudal na estruturagdo do seu Estado “racional”, Hegel afirma claramente que a pertinéncia a um estamento jé ndo é simplesmente algo “natural”, dado a priori, como no feudalismo, mas resulta sobretudo da “liberdade dos particulares”, da mobilidade social trazida pelo capitalis- mo. Por isso, quando fala em “estamentos” na Filosofia do direito, ele esté freqiientemente designando (salvo no caso da aristocracia fundiaria) um fendmeno social que se aproxima bem mais da moderna situagdo de classe, propria da sociedade capitalista emergente, do que da velha ordem hierdrquica do Ancien Régime (a burocracia, ou 0 Mittelstand, por exem- plo, € uma condigao social aberta a todos os que revelem qualificaciio para tanto, independentemente do nascimento.) Além disso, o fato de ser ele mesmo um “servidor ptiblico”, um membro da Mittelstand, talvez ex- plique a grande importancia que atribui & burocracia no quadro da nova or- dem burguesa, uma importincia que, de resto, s6 iria se acentuar no perfodo sucessivo da evolugao do capitalismo. Por tudo isso, no me parece equivocado dizer que, enquanto Rousseau expressa uma utopia anacrOnica (ainda que plena de implicagdes polfticas positivas para o presente e para o futuro), Hegel descreve na Filo- sofia do direito, a0 contrario, um Estado andlogo — em suas linhas funda- mentais — ao Estado burgués moderno realmente existente?®. Embora as principais determinagdes desse Estado apenas se anunciassem na época ‘pés-napolednica em que Hegel escreve a Filosofia do direito, ele foi capaz de indica-las com grande lucidez. O Estado “racional” hegeliano apresenta como Estado capitalista (sobretudo em suas épocas mais recentes) pelo menos as seguintes determinagSes em comum: 1) ambos sao liberais na ordem econémica, ainda que abertos para intervengées estatais regulado- ras, inclusive no terreno dos servigos sociais (a “policia” hegeliana, por exemplo, tem claras fungées de assisténcia social); 2) so corporativistas na articulag&o © representagdo dos interesses particulares que surgem na sociedade civil, no mundo do mercado, pressupondo ainda para a reso- lugdo dos conflitos corporativos a mediag’o do Estado; e 3) tém na tecno- 29 Ao comentar 0 modo pelo qual 0 autor da Filosofia do direito relaciona Estado ¢ socie~ dade civil, 0 jovem Marx j4 observava que “é certo que Hegel traga aqui um esbogo da tuagao empfrica presente” (K. Marx, Critica da filosofia do direito de Hegel, Lisboa, Pre~ senga, sd. p. 78. [A DIMENSAO OBIETIVA DA VONTADE GERAL B burocracia executiva (e nao tanto no Parlamento) o locus da tomada das decisdes politicas fundamentais, expressando assim o tipo legal-formal de dominaco legftima idealizado por Weber. Ora, € por adotar um ponto de vista burgués que Hegel supera as aporias ut6picas e moralizantes de Rousseau, tornando-se capaz de ver de modo mais concreto e realista a ordem politico-social de seu tempo; mas, ao mesmo tempo, € também por isso que ele se vé obrigado a aban- donar o ponto de vista democratico-radical de Jean-Jacques e a incidir, por sua vez, em aporias de novo tipo, ao substituir o subjetivismo rousseaunia- no por um objetivismo em ditima instincia resignado e conformista. Ainda que certamente simplificando, poderfamos resumir do seguinte modo o contexto em que Hegel — para usar a expresso com que lucidamente de- finiu a tarefa da filosofia - “elevou a conceito o seu tempo”: enquanto a burguesia ainda nao dominava, houve historia, o Espirito atravessou dife- Tentes etapas, valendo-se da aco de “individuos hist6rico-universais” para operar transformagées revoluciondrias, que destrogaram velhas formas de eticidade e construfram aquelas adequadas & nova figura assumida, em cada etapa concreta, pelo Zeitgeist; mas agora, no momento pés- napolednico em que a burguesia européia ja praticamente consolidou sua dominacao, a histéria chegou ao fim, produzindo um “estado de mundo” em que se d4 ndo s6 a plena realizagao da liberdade, mas também a identi- ficagao entre real e racional*®. Com isto, debilita-se fortemente, na filoso- fia de Hegel, o papel da aco consciente dos homens na construgdo de sua propria ordem social. Enquanto defensor das conseqiiéncias politico- sociais da revolucdo burguesa (que ele certamente prefere quando so in- troduzidas mediante reformas “pelo alto”, de tipo prussiano*!, e nao atra- 30 Lukacs define com preciso 0 que chamou de “limite politico-filoséfico do pensamento da ‘maturidade” de Hegel quando observa que, “dado que nao pode ter una perspectiva social para o futuro, dado que a miserabilidade do seu presente & para ele 0 coroamento final da histéria (..), ndo pode se manifestar a idéia de um desenvolvimento qualitativo supetior. Por isso, a historicidade da dialética histérica hegeliana refere-se tdo-somente a0 caminho que leva do passado 20 presente, endo Aquele em diregao ao futuro” (G; Lukas, Introdugdo a wma estética marxista, Rio de Janeiro, Civilizagio Brasileira, 1970, p. 49). 31 Sugiro aqui, sem poder desenvolver 0 argumento, que Hegel defendia na pritica 0 que Le- nin mais tarde chamaria de “via prussiana” para o capitalismo (para a definigdo dessa via, cf, em particular, V.. Lenin, O programa agrdrio, Sao Paulo, Ciencias Humanas,1980, passim). Indicagdes em sentido andlogo podem ser encontradas no belo livro de Domenico Losurdo, Hegel. Questione nazionale. Restaurazione, Urbino, Universita degli Studi, 1983, sobretudo pp. 375e ss 14, LUA NOVA N43 — 98. vés de movimentos populares que operem de baixo para cima), Hegel tor- nou-se incapaz de aceitar a possibilidade de uma nova reconstrugdo da eticidade; e sobretudo por isso que 0 tema rousseauniano do contrato — da formagio intersubjetiva de um novo espago piblico — Ihe aparece como algo subjetivista e ut6pico. Contudo, malgrado essa limitagdo ideolégica da proposta hege- liana, penso que ela coloca duas sugestdes que no podem mais ser ignora- das por nenhuma teoria democrética que pretenda conservar-se fiel & pro- blematica do contratualismo rousseauniano, mas que se empenhe ao mes- mo tempo no sentido da superagao de suas inegdveis aporias. Podemos a sim resumir essas duas sugestées: 1) O “interesse comum” nao deve ser concebido maniqueisti- camente como 0 oposto do “interesse privado”, mas é preciso supor um campo de mediagées que articule dialeticamente 0 singular e o universal através do movimento do particular. Portanto, 0 processo de universalizagdo que leva a vontade geral ndo pode ser apresentado como fruto do apelo ético & “virtude” dos indivfduos, mas deve ser concebido como tomada de consciéncia de interesses que se tornam comuns — ou que tendem a se universalizar — jé a partir da propria realidade objetiva. (E também se trata de imaginar, em nome do método de Hegel, ainda que eventualmente contra a letra do seu sistema, que a vontade geral nao é definida de uma vez por todas, mas — precisamente em fungdo desse movimento de mediagio — é resultado de um processo permanente de construgdo, dissolugdo e reconstrugao). Ora, serd precisamente a partir dessa sugestéo que Marx ira formular 0 seu conceito de que a “classe universal” nao é a burocracia, mas sim o proletariado, “uma classe com cadeias radicais, uma classe da sociedade civil que nao é uma classe da sociedade civil, um estamento que é a dissolugao de todos os estamentos, uma esfera que por suas dores universais possuium caréter universal” 33, 32 Essa distingdo entre o “método” (revolucionsrio) € o “sistema” (conservador) de Hegel deve-se inicialmente a F. Engels, Ludwig Feuerbach ¢ o fir da filosofia cldssica alema, in K Marx e F. Engels, Obras escothidas, cit., vol. 3, 1963, pp. 171 es. 33 K. Marx, “Per la critica della filosofia del diritto di Hegel” . in Id., La questione ebraica ¢ altri scritti giovaniti, Roma, Riuniti, 1974, p. 108. ‘A DIMENSAO OBJETIVA DA VONTADE GERAL. 15 2 Em consequéncia, 0 portador material da vontade geral deve ser um organismo (ator coletivo e/ou instituigdo) no qual os interesses privados nao sejam “recalcados” pelo interesse comum ou universal, como em Rousseau, mas onde tenha lugar uma identificago — ainda que tendencial — entre os dois interesses, ou, mais precisamente, uma potenciagdo e expansdo do interesse singular-privado até sua conversio em interesse universal ou comum. Ao elaborar sua nogdo de hegemonia (ou “catarse”) como “passagem do momento meramente econdmico (ou egoistico-passional) [ou corporativo] para o momento ético-politico [ou universal]”, 0 que significa também a “passagem do ‘objetivo’ ao ‘subjetivo’ ou da ‘necessidade a liberdade’”"#, Gramsci revela ter recolhido ¢ desenvolvido o essencial dessa sugestao hegeliana. Ora, recordar, ainda que de passagem, 0 débito que Marx e Gramsci tém para com Hegel nos permite sugerir, como conclusdo, que as reflexdes filos6fico-politicas do fildsofo alemao tiveram um importante papel na construcdo de uma teoria democrética que — por ser fiel tam- bém a ligo de Rousseau — compreende e afirma que a plena realizagao dos valores democraticos s6 € possivel no horizonte da superagiio da or- dem social capitalista. CARLOS NELSON COUTINHO € professor titular de Teoria Politica da UFRJ e autor, entre outros, de Democracia e socialismo, Sao Paulo, Cortez, 1992; e Marxismo e politica, Sao Paulo, Cortez, 1994. 34 A.Gramsci. Quaderni, cit., p. 1244. 218 LUA NOVA N°43—98 A DIMENSAO OBJETIVA DA VONTADE GERAL EM HEGEL. CARLOS NELSON COUTINHO: Em prosseguimento a uma linha de reflexdo sobre 0 problema da democracia nos classicos do pensamento politico moderno, 0 autor examina a posigao de Hegel nesse debate. No que tange & sua relagao com © pensamento de Rousseau, argumenta que Hegel responde a uma visdo unilateralmente sujetiva da Vontade Geral com uma visio unitateralmente objetiva. As consequéncias disso sto analisadas. THE OBJECTIVE DIMENSION OF THE GENERAL WILL IN HEGEL In the sequence of a line of reflection about the problem of democracy in the classics of modern political thought the author examines Hegel's position in this debate. Regarding his connections to Rousseau’s thought it is argued that Hegel answers to Rousseau’s unilaterally subjetive view of the General Will with an “symmetrically unilateral” view focused on its objetive side. The consequences of this are analysed.

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