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A acupuntura vai além da agulha: trajetórias

de formação e atuação de acupunturistas


Acupuncture goes beyond the needle: trajectories of
formation and action of acupuncturists
Marcelo Felipe Nunes Resumo
Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo, RS, Brasil.
E-mail: nunes.mf@hotmail.com
O objetivo deste estudo foi analisar as trajetórias
José Roque Junges de formação e a atuação profissional de acupuntu-
Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo, RS, Brasil.
ristas. Trata-se de estudo de natureza qualitativa,
E-mail: roquejunges@hotmail.com
baseado no referencial metodológico das narrativas
Tonantzin Ribeiro Gonçalves de histórias de vida. Participaram oito profissionais
Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo, RS, Brasil. de saúde — cinco homens e três mulheres —, gradua-
E-mail: tonanrib@yahoo.com.br
dos em enfermagem, fisioterapia e medicina, que
Monique Adriane Motta utilizavam a acupuntura a partir da perspectiva
Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo, RS, Brasil. da medicina chinesa (MC) e que responderam a
E-mail: monique.adri@hotmail.com
entrevistas semiestruturadas. A análise das narra-
tivas resultou em três categorias centrais: busca
por novas racionalidades em saúde; adentrando no
universo da acupuntura; a acupuntura vai além da
agulha. Observou-se que a busca pela acupuntura foi
motivada pela insatisfação com a formação inicial
no paradigma biomédico. A trajetória de formação
na acupuntura foi gradativa e envolveu profunda
inserção na racionalidade da MC, devido à complexi­
dade de sua proposta terapêutica, o que os levou
a entender que a inserção da agulha representa a
confluência de diversos aspectos da racionalidade,
não podendo ser reduzida a mera aplicação técnica.
Nesse sentido, aponta-se a necessidade de discutir
a formação desses profissionais e sua atuação no
Sistema Único de Saúde, bem como a aplicabilidade
da perspectiva biomédica de pesquisa nos estudos
sobre acupuntura.
Palavras-chave: Acupuntura; Medicina Tradicional
Chinesa; Trajetória Profissional; Narrativas.

Correspondência
José Roque Junges
Av. Unisinos, 950, Cristo Rei.
São Leopoldo, RS, Brasil. CEP 93022 750.

DOI 10.1590/S0104-12902017157679
300 Saúde Soc. São Paulo, v.26, n.1, p.-311, 2017 DOI 10.1590/S0104-12902017155705
Abstract Introdução
The objective of the article was to analyze the A presença das medicinas alternativas e comple­
trajectories of formation and professional action mentares (MAC) e das medicinas tradicionais (MT)
of acupuncturists. This is a qualitative study, based nas discussões sobre os cuidados em saúde foi
on the methodological framework of the narratives fortalecida após a Conferência Internacional sobre
of life stories. There were eight participants among Atenção Primária em Saúde em Alma-Ata, na antiga
healthcare professionals, five men and three União Soviética. A declaração correspondente reco-
women, graduated in nursing, physiotherapy, nheceu em 1978, pela primeira vez, a importância
and medicine, who used acupuncture from the das MAC e MT para a saúde das populações, princi-
perspective of Chinese Medicine and answered palmente no âmbito da atenção primária. Na con-
structured interviews. The analysis of the ferência, recomendou-se aos Estados-membros a
narratives implied three main categories: Search promoção de políticas e regulamentações referen-
for new rationalities in health; Entering in the tes à utilização de MT de eficácia comprovada e a
acupuncture universe; Acupuncture goes beyond possibilidade de inclusão de indivíduos detentores
the needle. It was observed that the search for de conhecimentos tradicionais nas atividades do
acupuncture was motivated by dissatisfaction primeiro nível de atenção, fornecendo-lhes tre
with the initial training into biomedical paradigm. ina­mento adequado (Brasil, 2009). Isso se deve ao
The trajectory of the education in acupuncture entendi­mento de que as MAC/MT envolvem recursos
was gradual and involved a deep insertion into terapêuticos que buscam estimular os mecanismos
TCM, due to the complexity of its treatment plan, naturais de prevenção de doenças e de recuperação
which led the participants to realize that the needle da saúde por meio de tecnologias eficazes, seguras
insertion represents the confluence of several e de baixo custo, que enfatizam a escuta acolhedo-
aspects of the rationality, which cannot be reduced ra, o desenvolvimento de vínculos terapêuticos e a
to application of a technique. In this regard, it integração dos indivíduos com o meio ambiente e
appoints the need of discuss the education of a sociedade (Brasil, 2006).
those healthcare professionals and your work in No Brasil, em 1986, o relatório final da 8º Con-
the Brazilian Unified Health System, as well as the ferência Nacional de Saúde favoreceu a introdução
applicability of biomedical research approaches in de MAC/MT nos serviços de saúde, permitindo ao
studies on acupuncture. usuário o acesso ao tratamento escolhido e possi-
Keywords: Acupuncture; Traditional Chinese bilitando novas abordagens em relação ao processo
Medicine; Professional Trajectory; Narration. de adoecimento. Em fevereiro de 2006, apesar de
diversas resistências de setores conservadores, o
Conselho Nacional de Saúde aprovou por unanimi-
dade o documento que fundamenta a Política Na-
cional de Práticas Integrativas e Complementares
no SUS (PNPIC), publicado na Portaria Ministerial
nº  971. A abrangência da PNPIC contempla sistemas
terapêuticos complexos ou racionalidades médicas
distintas da medicina alopática, como homeopatia,
medicina antroposófica e MC (Brasil, 2006).
No entanto, ainda existem muita imprecisão
e muitos debates em torno dessas práticas, o que
dificulta o desenvolvimento de consensos que fa­vo­
reçam o desenvolvimento desses sistemas terapêu­
ticos. Talvez o maior obstáculo para expansão e
manutenção das MAC/MT nos serviços de saúde

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esteja no campo da formação dos agentes que irão apesar das diretrizes e dos avanços promovidos
exercer essas práticas, sobretudo na efetiva inte- pela PNPIC, ainda observa-se escassez de estudos
gração entre o ensino e o exercício profissional e pesquisas que elucidem a prática da acupuntura
(Luz, 2011). Documentos do Ministério da Saúde e na sociedade brasileira (Nogueira, 2006; Spadacio et
da Organização Mundial de Saúde (OMS) constatam al., 2010). Diante disso, este estudo teve o objetivo de
a insuficiência de estudos sobre as MAC/MT, o que analisar as trajetórias de formação e a atuação pro-
inclui informações sobre o processo de formação e fissional de acupunturistas na perspectiva da MC.
de atuação dos profissionais de saúde nesses siste-
mas terapêuticos (Brasil, 2009; WHO, 2002; WHO, Método
2013). A falta de informações sobre os fundamentos,
a eficácia e as formas de emprego dessas práticas Trata-se de estudo de natureza qualitativa, base-
são uma das dificuldades para a sua integração nos ado no referencial metodológico das narrativas de
sistemas de saúde (Barros; Siegel; Otani, 2011). histórias de vida (Gibbs, 2009). Buscou-se analisar
Nesse cenário, a ampla utilização da acupuntura as trajetórias de formação e a atuação de profissio-
é caso a ser destacado, pois constitui, em muitos nais que utilizam a acupuntura na sua atividade
países além de na China, uma das MAC/MT mais profissional a partir de suas narrativas. Conforme
populares. Essa especialidade da MC é uma das es- Cavalari (2011), o termo “trajetória” pode ser enten-
tratégias propostas pela OMS para garantir a saúde dido como o caminho seguido por alguém — assim
para todos e o tratamento de inúmeras enfermida- como as transformações no percurso de vida, que
des (WHO, 2002). Para aprofundar o conhecimento persistem com o tempo —, sendo, portanto, consi-
sobre esse saber tradicional é preciso compreender derado adequado para este estudo.
os fundamentos da MC, a qual possui organização Visando identificar praticantes de acupuntura
própria e orientou as concepções biológicas e sociais experientes, os pesquisadores entraram em contato
da China durante milhares de anos (Palmeira, 1990). com três cursos tradicionais de pós-graduação e es-
A MC é uma síntese dos saberes, técnicas, filoso- pecialização em acupuntura, localizados na região
fia, visões de mundo e experiências do povo chinês metropolitana de Porto Alegre. Foram feitos convi-
na sua luta contra as doenças. As antigas histórias tes aos professores mais experientes desses cursos.
mitológicas descrevem tradição de mais de cinco mil Tais profissionais foram inicialmente escolhidos em
anos, enquanto achados arqueológicos sugerem tra- razão de suas competências como professores e de
dição de aproximadamente dois mil anos. Ao longo seus vínculos com as instituições de ensino de acu-
do tempo, com a ascensão e o declínio de tendências puntura, que proporcionavam contatos com outros
políticas, sociais e religiosas, novos aspectos fo- praticantes e maior engajamento no campo da MC.
ram sendo incorporados a esse sistema médico em Posteriormente, com a utilização do método bola
constante transformação. Dos mais antigos cultos de neve (Flick, 2009), buscou-se identificar outros
aos ancestrais até a sistematização do pensa­mento acupunturistas experientes a partir das indicações
confucionista e das doutrinas taoístas, da reinter- dos primeiros entrevistados.
pretação dos tratados clássicos à introdução do Os participantes foram profissionais de saúde —
pensamento médico ocidental, tudo influenciou a cinco homens e três mulheres —, que tinham entre
construção do que é chamado atualmente de MC 36 a 76 anos, eram graduados em enfermagem, fi-
(Ergil; Ergil, 2010). sioterapia ou medicina e utilizavam a acupuntura a
Mesmo com o aumento do consumo da acupuntu- partir da perspectiva da MC. Todos os profissionais
ra em nível mundial, a produção científica abordan- entrevistados praticavam a acupuntura há mais de
do essa área de conhecimento ainda é insuficiente, oito anos. O Quadro I descreve algumas caracte-
sobretudo de estudos qualitativos que abordem o rísticas dos profissionais entrevistados. Visando
processo de formação e atuação profissional e a ma- preservar sua confidencialidade, serão utilizadas
neira como a racionalidade da MC vem sendo utiliza- as seguintes siglas para identificá-los: Enfer (En-
da no emprego dessa terapêutica. Especificamente, fermeira), Fisio (Fisioterapeuta) e Med (Médico).

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Quadro 1 – Características gerais dos entrevistados
Entrevistado Sexo Idade Titulação acadêmica Tempo de atuação com a acupuntura
Enfer Feminino 51 anos Especialização 12 anos
Fisio1 Masculino 44 anos Mestrado 13 anos
Fisio2 Masculino 36 anos Especialização 8 anos
Fisio3 Masculino 57 anos Mestrado 13 anos
Fisio4 Masculino 56 anos Mestrado 13 anos
Med1 Masculino 76 anos Res. ortopedia 11 anos
Med2 Feminino 58 anos Res. pediatria 14 anos
Med3 Feminino 59 anos Res. med. inter. 20 anos

Foram realizadas entrevistas semiestruturadas duração média de uma hora, e todas foram grava-
a partir de roteiro amplo baseado no modelo de das e posteriormente transcritas para o processo
trajetórias proposto por Cavalari (2011), que pro- de análise. O projeto foi aprovado pelo Comitê de
põe três conceitos (biografia, fases da trajetória e Ética da Universidade do Vale do Rio dos Sinos com
atividades diárias). Para analisar as trajetórias de a Resolução nº 121/2012.
formação e a atuação dos acupunturistas, adap- Para a análise dos dados utilizou-se o modelo
touse o modelo visando adequá-lo aos objetivos proposto por Gibbs (2009) para codificação e análise
do estudo, a saber: biografia (abordou aspectos de narrativas de histórias de vida, organizando os
gerais da história de vida dos acupunturistas, temas presentes nas transcrições a partir de códigos
relacionandoos com as trajetórias de formação descritivos e de categorias. Inicialmente, os dados
e a atuação na acupuntura); fases da trajetória foram codificados como códigos descritivos, a partir
(compreenderam as principais fases vivenciadas, de marcações de passagens do texto que abordavam
relacionadas com o percurso dos acupunturistas no determinado tema. A etapa seguinte organizou e
campo: graduação na biomedicina, busca por nova reuniu diversos códigos descritivos em categorias
área de atuação, contato, formação e atuação na abrangentes, facilitando a comparação entre os
acupuntura); atividades diárias (compreenderam dados coletados e o acesso às passagens do texto.
a atuação do profissional e a dinâmica dos atendi- A seguir, buscou-se identificar entre todos os temas
mentos de acupuntura). presentes nas narrativas as categorias centrais
Foi utilizado diário de campo para registrar im- para a análise do objeto de pesquisa. Durante esse
pressões, ideias, vivências e informações relevantes processo, foi elaborada estrutura das categorias
obtidas durante o percurso dos pesquisadores. Com identificadas em cada uma das entrevistas. Por fim,
isso, buscou-se situar a pesquisa em contexto amplo foram feitas interpretações a respeito dos relatos
e orientar o processo de análise dos dados. de todos os entrevistados para identificar as cate-
Durante as entrevistas, solicitou-se que os acu- gorias que expressavam as trajetórias de formação
punturistas falassem livremente sobre cada um dos e a atuação dos acupunturistas.
temas descritos. O entrevistador procurou respeitar
as associações dos participantes, fazendo interven- Resultados e discussão
ções para facilitar a fala, aprofundar determinado
assunto e introduzir novos temas. Quando necessá- Foram distintas e ao mesmo tempo convergentes
rio, foram feitas perguntas pontuais para esclarecer as trajetórias que conduziram os entrevistados para
os temas investigados. O local de realização das a busca de formação em acupuntura. Todos eles eram
entrevistas foi combinado com os entrevistados, profissionais de saúde graduados em áreas contem-
tendo ocorrido, em sua maior parte, nos locais de pladas pelo paradigma biomédico, que conta com
trabalho dos participantes. As entrevistas tiveram amplo reconhecimento científico e social. A partir da

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análise das trajetórias, procurou-se traçar o percurso O relato demonstra o conflito entre duas con-
desses profissionais e o contexto de suas escolhas por cepções diferentes de cura: uma delas compreende
uma racionalidade que diverge consideravelmente simplesmente a eliminação dos sintomas; a outra
de suas formações iniciais nas áreas biomédicas. está baseada no tratamento da raiz do problema e
De modo geral, percebeu-se que o contato com a MC não apenas nas suas manifestações clínicas, situan-
motivou uma série de mudanças nas suas concepções do o processo de adoecimento em perspectiva mais
de vida, expressando percurso que levava em conta ampla. Luz (2005b) discute que as limitações da bio-
suas experiências, interesses e concepções de mundo. medicina frente ao adoecimento estão localizadas
O processo de análise dos dados resultou em três cate- no seu paradigma, que se afastou do ser humano
gorias centrais: 1) busca por novas racionalidades em sofredor como totalidade viva, fragmentando-o no
saúde; 2) adentrando no universo da acupuntura; 3) diagnóstico e na intervenção. Nesse sentido, a cura
a acupuntura vai além da agulha. A seguir, cada cate- não se identifica com a ação do antibiótico contra o
goria será apresentada a discutida à luz do referencial “bicho”, mas com algo que necessita levar em conta
teórico, ilustrando-se com vinhetas das entrevistas. outras dimensões do adoecer. O reducionismo bioló-
gico e a fragmentação do conhecimento em especia-
Busca por novas racionalidades em saúde lidades terminaram por configurar uma biomedicina
fragmentada e altamente dependente da tecnologia,
Muitas questões foram levantadas durante a incapaz de abordar com sucesso a complexidade do
fase inicial das entrevistas, que abordava o percurso adoecimento humano (Nogueira, 2009).
dos profissionais na biomedicina e a busca por no- Diante dessas insuficiências, os profissionais en-
vas áreas de atuação. Inicialmente, observou-se que trevistados relataram ter iniciado busca pessoal de
nas narrativas dos entrevistados sobre sua antiga sentido para suas práticas. Os relatos se tornaram
atuação havia um padrão que pontuava vivências mais intimistas, mostrando que houve momento de
de insucessos e insatisfações com o arsenal técnico reflexão sobre o rumo de suas carreiras:
de que dispunham. Os profissionais apontaram,
sobretudo, algumas limitações da racionalidade Após quase dezoito anos trabalhando, eu comecei a
biomédica frente à complexidade do adoecimento ficar insatisfeita. Queria continuar dentro da área
humano. Como ilustra a narrativa a seguir, de modo da saúde. […] Mas com uma visão mais ampla, algo
geral, os entrevistados mencionaram situações que pudesse abrir meus horizontes (Enfer).
ou passagens de sua trajetória profissional que
demarcam a insuficiência da sua formação inicial, Em determinado momento eu parei de fazer cirur-
centrada nos sintomas e nas doenças: gias e passei a atender só no consultório, mas não
ficava satisfeito com os resultados. […] Então, pen-
No inverno do primeiro ano em que eu estava aten- sei: “eu tenho que achar outra coisa para fazer que
dendo, atendi em maio uma pessoa com sinusite, e me gratifique mais” (Med1).
em junho ela veio de novo e disse: “doutora, eu me
curei, mas estou ruim de novo”. Aí, eu prescrevi no- As insatisfações relatadas pelos entrevistados
vamente um antibiótico para sinusite e em agosto em relação à sua antiga área de atuação não eram
ela teve outra. Aí, eu disse: “não, eu estou mentindo, simplesmente questões profissionais ou pontuais
você não se curou”. Ela disse: “não, eu me curei, – elas apontavam para um contexto amplo, que
fiquei bem, muito bem, com o seu remédio, só que a perpassava crise existencial e desconformidade
sinusite voltou”. Aí, eu disse para ela: “você não se social e cultural. Podemos associar essa crise e
curou. Você tem a mesma doença, uma sinusite que essa desconformidade com os movimentos de
não está curando. Eu não posso mentir para você e contracultura da década de 1960, que procuravam
para mim que eu estou te tratando. Estou te dando resgatar uma concepção holística da realidade
antibiótico e matando o “bicho” que está ali, mas e que influenciaram também as concepções de
nós não estamos curando a sua sinusite” (Med3). saúde das pessoas, originando a busca de formas

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alternativas de terapias, baseadas em valores ho- Comecei a buscar algumas coisas um pouco diferen-
lísticos e integrativos (Queiroz, 2006; Luz, 2005a; tes, coisas que um médico normalmente não faz. Um
Souza; Luz, 2009). dia resolvi fazer um curso de Reiki. […] Mas o Reiki
A identificação com essa visão holística influen- eu só fazia como voluntário, não profissionalmente.
ciou profundamente a busca dos entrevistados […] Acho que [o Reiki] me motivou a fazer [o curso
por caminhos alternativos ao modelo biomédico. de acupuntura] (Med1).
Durante as entrevistas, os profissionais relataram
o interesse por novas experiências e por ter contato A identificação prévia de alguns dos entrevis-
com outros sistemas de compreensão do processo tados com a cultura oriental e com seus aspectos
saúde-doença, como as concepções tradicionais de filosóficos e a realização de formações mais sucin-
saúde da Índia: tas em outras áreas de atuação da medicina oriental
também exerceram influência na busca por cursos
Eu fui para o Oriente [Índia] e vi coisas muito dife- de formação em acupuntura:
rentes. Vi como se trabalha saúde de uma maneira
mais ampla. […] Eu precisava mudar minha forma Eu já tinha feito Tai Chi Chuan […] Sempre li… Lembro
de trabalhar, não podia mais ficar restrita, vendo que tinha catorze anos quando li os primeiros livros
o ser humano da mesma forma (Enfer). sobre taoísmo e budismo (Med3).

Esse relato reflete a perspectiva que inspirou Com catorze ou quinze anos eu já fazia trabalhos
o movimento de contracultura. Tendente ao na- de meditação e relaxamento. Naquela época eu fiz
turismo, o movimento foi influenciado pelas con- um curso de Shiatsu, onde já se aprende os canais
cepções típicas do Oriente, provocando oposição à de acupuntura. Isso me motivou a buscar a acu-
sociedade de consumo, à burocracia e à moderni- puntura (Fisio1).
dade (Queiroz, 2000) e importando racionalidades
terapêuticas distintas da racionalidade biomédica, No período em que buscaram os cursos de for-
ou mesmo opostas a ela, em atitude de rejeição mação em acupuntura, todos os entrevistados já
cultural ao modelo estabelecido (Luz, 2005a). eram profissionais formados nas áreas biomédicas
Desse modo, os relatos de insatisfação e de busca e, para a maior parte deles, a racionalidade ligada
por novos horizontes pessoais e profissionais à MC era algo totalmente novo. O contato com
dos entrevistados demonstraram trajetória que essa racionalidade foi um choque para esses en-
culminava com a aproximação de outros sistemas trevistados, pois eles já estavam “socializados” no
terapêuticos alternativos à biomedicina, como se campo de conhecimentos regido pela racionalidade
verá na próxima categoria. biomédica. Como no estudo de Nogueira (2009), os
entrevistados referiram dificuldades durante o con-
Adentrando no universo da acupuntura tato inicial com a racionalidade da MC. Os relatos
expressaram a existência de profunda distância
Nos relatos dos entrevistados, estiveram presen- entre essa concepção e aquelas a que eles estavam
tes a busca por formações e o contato com outras familiarizados:
técnicas ou sistemas terapêuticos, como medicina
Ayurveda, homeopatia, Reiki, florais, reeducação Quando entrei na aula, eu não sabia nada, absoluta­
postural global, terapia reichiana, terapia bioener- mente nada. Aí, começaram a falar e eu pensei: “meu
gética, cadeias musculares GDS e algumas linhas Deus, o que é isso?!” (Enfer).
de terapias manuais e terapias manipulativas, na
tentativa de ampliar (ou superar) a formação biomé- [o primeiro contato com a acupuntura] foi, eu diria,
dica. Alguns relatos mostraram que a perspectiva assustador (risos). Tanto que hoje, quando chega
adquirida dessas terapias influenciou a aproxima- algum colega que quer fazer o curso […], eu digo:
ção e o interesse pela acupuntura: “não te assusta nas primeiras horas, porque é uma

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coisa totalmente diferente” […] e, além de diferente, formação, os entrevistados começaram a se “socia-
parece que tu não vai aprender isso nunca (Med1). lizar” no estilo de pensamento, identificando-se com
a nova racionalidade e passando a perceber as duas
Essas dificuldades dos entrevistados na transi- perspectivas como incompatíveis:
ção e identificação com uma nova racionalidade em
saúde podem ser explicitadas a partir da perspecti- Tentamos correlacionar as coisas, porque é difícil
va epistemológica de Fleck (2010). O autor destaca deixar de lado o que a gente já conhece […]. Depois
que as concepções são construídas a partir de um de um tempo a gente vê que é impossível contemplar
estilo de pensamento, que constitui a unidade as duas visões de forma harmônica. Elas vão tomar
social da comunidade de determinado campo de rumos completamente opostos (Fisio2).
conhecimentos, predispondo percepção orientada
por esse campo. Desse modo, o processo de conhe- É uma forma diferente de pensar […]. É preciso
cer está ligado aos condicionamentos sociais e apagar um conceito e abraçar outro completamente
culturais dos indivíduos que o produzem. O saber diferente (Med2).
só é possível a partir da existência de determina-
das suposições sobre um objeto, baseadas em um Apesar das dificuldades iniciais para assimilar
construto teórico, que, no caso dos entrevistados, a nova racionalidade, os relatos também evidencia-
era inicialmente a racionalidade biomédica. Essas ram a curiosidade e a afinidade dos entrevistados
suposições são entendidas como consequência com o complexo sistema da MC:
histórica e sociológica da atuação de um coletivo
de pensamento. O coletivo de pensamento compar- me foi apresentado um universo muito vasto, pro-
tilha um determinado estilo que orienta pressupo- fundo, interessantíssimo, que é todo um sistema de
sições e, consequentemente, a construção de um medicina, do qual a acupuntura faz parte (Fisio3).
edifício teórico (Fleck, 2010).
Os pressupostos compartilhados por um coleti- Para os entrevistados, era evidente que a acupun-
vo profissional não necessariamente são conscien- tura fazia parte de outra racionalidade independen-
tes ou são objeto de reflexão dos seus membros. te da biomedicina, a MC, que possui suas próprias
No confronto com uma racionalidade diferente formas para lidar com o processo de adoecimento.
da sua – embate frequentemente envolto em certa Nesse cenário, a categoria de análise de sistemas te-
perplexidade –, esses pressupostos ficam explíci- rapêuticos complexos, denominada “racionalidade
tos, podem ser relativizados e perdem seu status médica”, é uma importante ferramenta desenvolvi-
de certeza. Segundo Fleck (2010), a socialização da no Brasil na década de 1990. Um sistema terapêu-
em uma especialidade do conhecimento produz um tico complexo, para ser considerado racionalidade
olhar orientado por seus pressupostos, que guiam médica, precisa contemplar seis dimensões: uma
a percepção e a elaboração teórica, enfatizando cosmologia (a própria organização cultural com
determinados aspectos de um objeto em detrimen- suas imagens e representações, de onde emanam e
to de outros. Assim, as habilidades perceptivas e onde se ancoram as demais dimensões); uma mor-
técnicas exercidas a partir de um estilo de pensa- fologia (ou descrição do corpo humano); uma dinâ-
mento tendem a encobrir facetas que contradigam mica vital (o conjunto de explicações racionalmente
o novo paradigma incorporado. elaboradas sobre o fenômeno da vida humana); uma
Inicialmente, o “olhar treinado” na racionalidade doutrina médica (em que causas, efeitos e definições
biomédica produziu, nos entrevistados, tentativas do adoecer são explicados e discutidos); uma diagno-
de correlacioná-la com a MC até como forma de apro- se desses padrões ou doenças e uma terapêutica. As
ximação desse paradigma tão distinto. Essa correla- racionalidades médicas são sistemas terapêuticos
ção vai se demostrando impossível por um processo complexos, com raízes em sociedades igualmente
de total estranhamento com a nova racionalidade. complexas e altamente diferenciadas do ponto de
Contudo, com a gradativa inserção nos grupos de vista cultural (Luz, 2000).

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Durante suas trajetórias de formação na acupun- aos alunos base adequada na racionalidade da MC.
tura, os entrevistados referiram, de forma breve e De acordo com a opinião desses entrevistados, os
às vezes até implícita, ter entrado em contato com cursos de formação
cada uma das seis dimensões que formam a raciona-
lidade da MC, conforme define Luz (2000). De modo deveriam ser de MC (Med2 e Enfer).
geral, ao explicar as concepções da racionalidade
que passaram a adotar, os entrevistados utilizaram e não apenas de acupuntura, que é uma de suas
maciçamente expressões e a terminologia própria especialidades, ou deveriam contemplar
da MC, como Qi, Yin e Yang, Zang Fu, canais de
acupuntura etc., demonstrando sua apreensão dos uma carga horária muito maior (Enfer).
diversos aspectos.
Além das dificuldades no contato inicial com os Apesar dos cursos de pós-graduação em acupun-
fundamentos da racionalidade da MC, os entrevis- tura, de formações complementares realizadas e, em
tados também relataram dificuldades no processo alguns casos, até de viagens de estudos à China e a
de apreensão dos métodos de diagnóstico da MC. outros países, os entrevistados reconheceram que o
Conforme um dos entrevistados, a perspectiva aprendizado da acupuntura nunca se esgotaria, sen-
mecanicista cartesiana/newtoniana, desenvolvida do isso considerado um aspecto positivo e prazeroso.
durante o processo de formação na biomedicina, Nas palavras de uma participante, a acupuntura se
dificultava o aprendizado desses métodos, pois baseia em uma racionalidade que
era preciso
mais parece um saco sem fundo (Enfer).
desenvolver a capacidade de observar o outro de
uma maneira diferente (Fisio1). o que transmite aos profissionais a sensação de
formação em constante movimento e renovação:
Foi um consenso entre os entrevistados que a
avaliação do pulso era o método de diagnóstico da Se uma pessoa conseguir assimilar durante a vida
MC mais difícil de aprender, uma vez que “a identi- inteira […] apenas 30% do que existe na acupuntura,
ficação de cada pulso é muito subjetiva e complexa ela já é uma pessoa com muita capacidade. Só para
e leva em conta vários parâmetros, como frequên- compreender o essencial levamos uma vida (Fisio2).
cia, força, amplitude, largura, ritmo, consistência
e profundidade” (Nogueira, 2006, p. 200). Segundo Por mais que a gente estude, sempre temos muito
um dos entrevistados, a aprender na acupuntura (Med1).

é preciso desenvolver uma sensibilidade sutil na A acupuntura vai além da agulha


arte de avaliar o pulso, que vai sendo aprimorada
com o tempo (Fisio2). Ao referir que os cursos de formação deveriam
ser de MC e não apenas de acupuntura, os entrevis-
Tal experiência de amplitude e complexidade tados estavam se referindo aos diferentes recursos
em relação a formação e prática da acupuntura fez terapêuticos utilizados por essa racionalidade.
que os entrevistados criticassem cursos de curta Além da acupuntura, a dimensão terapêutica da MC
duração, pejorativamente denominados de “cursos envolve outros recursos terapêuticos, como moxa-
de final de semana”, que ensinam apenas técnicas bustão, fitoterapia chinesa, dietética chinesa, Tui
descontextualizadas e ignoram os fundamentos da Na, Tai Chi Chuan, Qigong etc. Porém, embora os
MC. Insuficiência semelhante também foi identifi- entrevistados considerassem a importância desses
cada em cursos de pós-graduação em acupuntura, recursos e, quando habilitados, até os utilizassem
sobretudo em relação a sua curta duração, pois, ocasionalmente em sua prática, a ênfase de seus
na visão dos profissionais, não eles proporcionam atendimentos permanecia sendo a acupuntura.

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Além disso, mesmo que a prática clínica mais os profissionais mencionaram que explicavam aos
utilizada fosse a acupuntura, observou-se que a pacientes de forma didática e simplificada o padrão
trajetória e as experiências da maior parte dos de desarmonia encontrado e como os hábitos e o es-
entrevistados na biomedicina e nas formações em tilo de vida estavam influenciando essa desarmonia.
outros sistemas não eram totalmente ignoradas A partir disso, costumavam propor algumas mudan-
e, algumas vezes, também eram levadas em conta ças no estilo de vida, incentivando o paciente a se
durante os atendimentos: tornar protagonista na recuperação de sua saúde.
Consequentemente, a escolha de pontos e canais
Quando me perguntam a minha especialidade, eu de acupuntura que seriam utilizados levava em
digo: “atendo pessoas”. Porque eu uso todas as conta o diagnóstico obtido a partir da avaliação
técnicas que eu aprendi [diferentes recursos e siste- pela MC. Durante o curso dos tratamentos, a cada
mas terapêuticos] para ajudar quem precisa (Med3). encontro eram realizadas reavaliações sucintas,
normalmente utilizando a avaliação do pulso, a
Nada do que tu sabes pode ser jogado fora. Temos inspeção da língua e os relatos dos pacientes para
que permitir que as novidades venham até nós para verificar a efetividade do tratamento.
que possamos selecionar e encaixar naquilo que já Verificou-se que a prática da acupuntura pelos
sabemos (Fisio4). entrevistados era coerente com a racionalidade da
MC (Ergil; Ergil, 2010; Luz, 2006). Alguns deles rela-
Assim, podemos entender que as trajetórias dos taram preocupação com a tendência contemporânea
profissionais entrevistados refletem três tipos de de reduzir a acupuntura a apêndice da biomedicina,
profissionais de saúde descritos por Barros (2000), apropriando-se dela apenas no nível técnico. Confor-
a saber: o tipo “profissional puro”, que se formou me um dos relatos, para um profissional formado
em escola alopática e trabalha com a racionalidade originalmente na biomedicina, é mais fácil e até
biomédica; o tipo “profissional convertido”, que se cômodo entender os efeitos da acupuntura sob o
formou em escola alopática, mas abandonou a ra- ponto de vista da neurofisiologia ou da liberação de
cionalidade biomédica por outra racionalidade; e o hormônios, incorporando seu uso aos arcabouços
tipo “profissional híbrido”, que se formou em escola da racionalidade biomédica. Isso ocorre com moda-
alopática, mas procura associar diferentes raciona- lidades como o “agulhamento seco” (dry needling)
lidades ou práticas complementares na tentativa de e a “acupuntura neurofuncional”, que utilizam a
adotar a abordagem mais adequada para tratamento inserção das agulhas a partir das concepções da
de cada paciente. A partir dessa perspectiva, a prática racionalidade biomédica:
atual relatada pelos entrevistados pode ser interpre-
tada como sendo dos tipos convertido e híbrido, visto Ocorre uma confusão [entre a biomedicina e a MC]
que alguns deles passaram a atuar exclusivamente a com o que está acontecendo hoje com o apareci-
partir da racionalidade MC, enquanto outros também mento de algumas linhas, como esse “agulhamento
utilizavam outros recursos além da acupuntura ou a seco” ou a “neuromodulação” [acupuntura neuro-
associavam com outras práticas ou racionalidades. funcional]. O “agulhamento seco” trata só pontos
A prática clínica dos profissionais entrevistados locais, pontos de dor, pontos de gatilho, enfim. Aí
com a acupuntura seguia padrão semelhante e ba- é outra visão, é só uma visão de pontos-gatilho,
seava-se, essencialmente, na racionalidade da MC. músculos […] não é acupuntura (Fisio1).
Inicialmente, relataram realizar avaliação extensa
da pessoa, que consistia em anamnese e exame Para o entrevistado, a inserção de agulhas na
físico (observação do corpo, avaliação do pulso, ins- perspectiva da racionalidade biomédica não deve
peção da língua, palpação abdominal, palpação dos ser confundida com a acupuntura baseada na MC,
canais de acupuntura etc.). A partir dessa avaliação que as compreende como racionalidades distintas.
eram reunidas as informações essenciais para rea- Segundo Luz (2000), atualmente existe tendência
lizar o diagnóstico a partir da MC. Após a avaliação, para a inclusão de técnicas terapêuticas das MAC/MT

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orientais, como a acupuntura, no “arsenal terapêuti- se tu não lidares com muitas variáveis tu estás sen-
co” da biomedicina. Entende-se que essas inclusões do simplório demais, e ser simplório demais é atirar
precisam ser cuidadosamente avaliadas, pois podem pedra no vazio, no escuro. […] A medicina chinesa
se reduzir a utilizações mecânicas de alguns aspectos transcende a questão técnica e cientifica (Fisio2).
terapêuticos (Nagai; Queiroz, 2011) sem considerar o
complexo sistema de entendimento do indivíduo, da A partir desse relato, identificou-se que os pro-
saúde-doença e do processo de cura do qual decorrem. fissionais profundamente alinhados a MC viam
A redução da acupuntura ao “agulhamento” foi que a ciência e a técnica do modelo biomédico re-
considerada preocupante pelos entrevistados, pois duzem o adoecimento a algumas poucas variáveis
subentende a perda da racionalidade que a sustenta. para que elas possam ser analisadas e controla-
Por essa razão, as narrativas explicitaram que a das, simplificando em demasia o fenômeno. Esse
acupuntura é muito mais que a inserção da agulha: abismo entre as racionalidades parece indicar a
impossibilidade, na perspectiva desses profissio-
A acupuntura está além da puntura, além da inser- nais, de aproximá-las. Para eles, a redução da MC
ção das agulhas (Fisio1). a essa simplificação das variáveis a descaracteriza
e, portanto, a torna passível das mesmas críticas
eu vejo as pessoas aprendendo a colocar agulhas, que são feitas à biomedicina.
mas não vejo as pessoas aprendendo acupuntura, o Por outro lado, nos últimos anos a acupuntura
que é muito diferente, imensamente diferente (Fisio3). vem buscando legitimação a partir da ciência. No
entanto, ao adequar-se à metodologia científica
A simples inserção de agulhas sobre determi- ocidental, cujos critérios são validados pela biome-
nados pontos de acupuntura, como procedimento dicina, ignorase a possibilidade de elucidar aspectos
padronizado para obtenção de determinados resul- de sua própria racionalidade (Souza; Luz, 2011).
tados terapêuticos, ignoraria os princípios funda- Uma das entrevistadas criticou a postura de querer
mentais da MC, que levam em conta a dinâmica vital provar a eficácia da acupuntura a partir do arsenal
do ser humano. Para Queiroz (2006), essa tentativa metodológico de pesquisa da biomedicina:
de transformar a acupuntura em mera técnica de
estímulo e sedação funcional de certos órgãos ig- A MC é baseada na observação. A confirmação da
nora a concepção “vitalista” da racionalidade da medicina chinesa está além dos estudos científicos
MC, que prioriza a energia sobre a matéria, o doente porque ela tem milhares de anos de sucesso. […]
sobre a doença e o individual sobre a generalização, Não sei por que existe tanta preocupação de querer
impedindo que a terapêutica seja reduzida apenas ocidentalizar o que funcionou muito bem no Oriente
às estruturas orgânicas. Segundo Nogueira (2006), durante milhares de anos (Med2).
com o convívio da acupuntura com a racionalidade
biomédica existe risco de descaracterização da ra- Construir metodologia de pesquisa adequada
cionalidade da MC. Para a autora, essa descaracteri- para estudar outras racionalidades diferentes da
zação induz a cientificização dos procedimentos da racionalidade biomédica parece ser um dos maiores
MC a partir da metodologia de pesquisa das ciências desafios para avaliar a eficácia e as contribuições
biomédicas, buscando, por exemplo, enquadrá-la aos desses sistemas, que tradicionalmente vêm sendo
mesmos parâmetros de comprovação de eficácia. utilizados por diferentes culturas. Por essa razão,
Sobre esse aspecto, um dos entrevistados relatou ao pesquisar os efeitos da acupuntura, deve-se estar
algumas dificuldades em utilizar a metodologia de ciente de que a simples inserção de uma agulha leva
pesquisa positivista para investigar a MC: em conta as múltiplas dimensões da racionalidade
da MC. O esquecimento ou a ignorância sobre essa
[a biomedicina] não lida com tantas variáveis. Para perspectiva poderia levar a uma prática inadequada,
eles é impossível lidar com tantas variáveis e tirar ou mesmo simplória, de uma terapêutica que tem
uma conclusão definitiva. Para a medicina chinesa, demonstrado bons resultados há séculos.

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Considerações finais é o comprometimento da capacidade de generalização
externa dos dados para os demais praticantes de acu-
Dessa maneira, entende-se que a insatisfação puntura, dado o restrito número de acupunturistas
e as limitações da racionalidade biomédica fren- entrevistados. Ao mesmo tempo, o estudo evidenciou
te ao adoecimento motivaram os profissionais a importantes tendências e preocupações na formação
buscar novo sentido para suas práticas. A partir e na prática de acupunturistas, que merecem ser in-
dessa busca, eles entraram em contato com novas vestigadas no que tange ao modo como a PNPIC tem
áreas de atuação que ofereceram perspectiva mais sido implementada, em especial na rede de atenção
abrangente para o tratamento de seus pacientes. primária e secundária de saúde pública, alertando
O contato inicial com a acupuntura foi permeado para a excessiva medicalização com que algumas
por dificuldades e, ao mesmo tempo, entusiasmo técnicas terapêuticas podem ser utilizadas.
diante da nova racionalidade. No processo de so-
cialização com a MC, os profissionais descobriram Referências
sistema altamente complexo, coerente e distinto da
BARROS, N. F. Medicina complementar: uma
abordagem anteriormente adotada. Assim, mesmo
reflexão sobre o outro lado da prática médica. São
com o amplo reconhecimento científico e social da Paulo: Annablume: Fapesp, 2000.
biomedicina, os entrevistados passaram a priorizar
ou utilizar apenas a acupuntura em seus atendi- BARROS, N. F.; SIEGEL, P.; OTANI, M. A. P.
mentos. Ficou evidente que para os entrevistados O ensino das práticas integrativas e
a acupuntura representava terapêutica complexa, complementares: experiências e percepções.
e que a simples inserção de uma agulha deve repre- São Paulo: Hucitec, 2011.
sentar a confluência de diversos aspectos da MC, BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de
na busca pela saúde integral do indivíduo. Além Atenção à Saúde. Departamento de Atenção
disso, as limitações do paradigma tradicional de Básica. Política Nacional de Práticas Integrativas
pesquisa (ocidental) para os estudos da eficácia da e Complementares no SUS – PNPIC-SUS.
acupuntura também apareceram nos relatos dos Brasília, DF, 2006.
entrevistados e constituem aspecto fundamental,
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de
que deve ser elucidado em futuros estudos.
Atenção à Saúde. Departamento de Atenção
Apesar da relevância do conteúdo das narrativas
Básica. Relatório do 1º Seminário Internacional de
deste estudo, destacam-se algumas limitações. Em
Práticas Integrativas e Complementares em Saúde
primeiro lugar, tendo em vista os desafios eviden-
– PNPIC. Brasília, DF, 2009.
ciados durante o aprendizado da acupuntura e a
complexidade da própria racionalidade da MC e CAVALARI, T. A. Yoga: caminho sagrado. 2011.
que a maioria dos entrevistados consideraram as Tese (Doutorado em Educação) – Universidade
formações do Brasil insuficientes para boa prática Estadual de Campinas, Campinas, 2011.
da acupuntura, sugere-se que esse aspecto seja ERGIL, M.; ERGIL, K. (Org.). Medicina chinesa:
explicitado com maior profundidade em futuros guia ilustrado. Porto Alegre: Artmed, 2010.
estudos. Outra limitação importante relaciona-se
ao fato de o universo empírico ter ficado restrito FLECK, L. Gênese e desenvolvimento de um fato
aos acupunturistas com cursos de graduação nas científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010.
áreas biomédicas e voltados principalmente para a FLICK, U. Introdução à pesquisa qualitativa. 3. ed.
prática privada. No Brasil, com o avanço da prática Porto Alegre: Artmed, 2009.
multiprofissional da acupuntura a partir da PNPIC,
percebe-se a necessidade de analisar as trajetórias GIBBS, G. Análise de dados qualitativos. Porto
Alegre: Artmed, 2009.
de formação e, sobretudo, a atuação de profissionais
acupunturistas que integram as equipes do Sistema LUZ, D. Medicina tradicional chinesa, racionalidade
Único de Saúde. Outro aspecto que deve ser observado médica. In: NASCIMENTO, M. C. (Org.). As duas

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Contribuição dos autores


Nunes foi responsável pela pesquisa de campo, análise dos dados,
revisão de literatura, escrita e elaboração do artigo. Junges e
Gonçalves foram os orientadores do estudo e responsáveis pela
revisão do artigo. Motta auxiliou na análise dos dados e na
elaboração do artigo.

Recebido: 12/12/2015
Reapresentado: 17/10/2016
Aprovado: 31/10/2016

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