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GISELI PAIM COSTA

C O N SC I Ê N C I A P O L Í T I C A E C I D A D A N I A M E D I A D A S
P E L A P A R T I C I P A Ç Ã O P O L Í T I C A : U M E ST U D O D E C A SO
E M P O R T O A L E G R E

DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO


São Paulo
2006

1
GISELI PAIM COSTA

C O N SC I Ê N C I A P O L Í T I C A E C I D A D A N I A M E D I A D A S
P E L A P A R T I C I P A Ç Ã O P O L Í T I C A : U M E ST U D O D E C A SO
E M P O R T O A L E G R E

Tese apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título
de Doutora em Psicologia Social sob orientação
do Prof. Dr. Salvador Antonio Mireles
Sandoval.

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO


São Paulo
2006

2
BANCA EXAMINADORA

____________________________________________

____________________________________________

____________________________________________

____________________________________________

____________________________________________

3
Aos meus pais, Celmiro e Nelcy, pela tranqüilidade e tempo
necessários para o momento de pesquisa, leituras e escrita.
Pelo amor e paciência.

Aos meus irmãos, Gilson e Gislaine, que sempre me deram


confiança, incentivo e carinho.

Ao meu marido, Cláudio, por seu amor incondicional e sua


presença permanente em todos os momentos do doutorado.

Aos moradores e trabalhadores das Unidades de Reciclagem


de Lixo, razão desse trabalho.

4
É chegada a hora de agradecer...

Agradecer, no momento de finalização de uma tese de Doutorado, é expressar o

carinho, o afeto, a importância que cada pessoa teve na nossa vida durante esse percurso.

As palavras, certamente, tem um alcance infinitamente menor do que o reconhecimento

que temos pelo apoio que familiares, amigos e colegas deram e que, direta ou

indiretamente, foram importantes para a realização e conclusão da tese. Nesse sentido,

manifesto meus agradecimentos a todas as pessoas que, de alguma forma, contribuíram

nessa trajetória:

A Salvador Sandoval, meu orientador, pelas suas contribuições preciosas que deram

qualidade teórica e metodológica para a minha vida acadêmica e profissional.

Aos professores do Programa de Psicologia Social da PUC-SP, pelas interlocuções

e reflexões realizadas, principalmente, através das disciplinas acadêmicas.

Aos colegas do Núcleo de Psicologia Política da PUC-SP, pelas discussões

acadêmicas que permitiram o aprimoramento de muitas reflexões acerca do meu trabalho.

A Betânia, Alessandro e Marquinhos, companheiros de curso, interlocutores nessa

trajetória de Doutorado e parceiros nas viagens acadêmicas – e de lazer - a Congressos.

A Soraia que, mais que uma companheira de curso, é uma amiga, sempre presente,

com seu carinho, afeto e apoio, a quem agradeço especialmente suas interlocuções teóricas

que ajudaram imensamente na minha tese.

Ao professor Enrique Laraña, que me acolheu na Universidad Complutense de

Madrid (UCM), acompanhou meu trabalho e contribuiu muito para meu amadurecimento

acadêmico durante meu estágio no exterior.

Aos meus colegas da UCM, María Fernanda, Julian, Diego, Fernanda, Everlan,

Estevão, Rodrigo e Suzana, com quem compartilhei momentos de reflexão acadêmica

5
importantes, mas também momentos de lazer, de descontração, de intercâmbio cultural,

que me permitiram uma estada em Madrid muito agradável.

A Cristina, Raúl e Flor, meus amigos espanhóis, que me acolheram com muito

afeto e amizade, que foram – e são - a minha família na Espanha.

A Corina Michelon Dotti, na pessoa de quem agradeço também à Instituição com a

qual tenho vínculo profissional, pela sua compreensão e apoio irrestrito em relação à

realização do Doutorado.

Aos meus amigos e também colegas de trabalho, Chris, Lu, Sônia, Rita, Nilda,

Marinilson, Sandro, Márcia, com quem sempre pude compartilhar as angústias e

conquistas referentes ao Doutorado.

Aos meus amigos Miriam, Gilson, Fernando, Márcia, Anins, Agomar, Carmem,

Zuleika, Jaqueline, Ângela, Janaína,... amigos que, perto ou longe, acompanharam minha

trajetória acadêmica, se alegraram com as conquistas, souberam entender as ausências e me

apoiaram sempre.

Aos meus tios e meus primos, pelas suas palavras de apoio, pelo seu carinho e

incentivo, pela compreensão das ausências necessárias em função da tese, agradeço por

fazerem parte da minha vida e estarem presentes nesse momento.

A Tereza, Isolde e Jair, minha sogra e meus cunhados, que também fazem parte da

minha família, pelas palavras de apoio, pelo incentivo a continuar superando as

dificuldades, pelo carinho e compreensão do stress inevitável que o percurso do Doutorado

nos apresenta.

Pai, mãe, irmãos e marido dispensariam, a priori, qualquer agradecimento, pois de

uma certa forma eles também “escreveram” essa tese comigo, pois me permitiram - seja

em palavras, atitudes, oportunidades, olhares, conforto, carinho e paciência! - a

tranqüilidade e tempo necessário para o momento da pesquisa, para as leituras e para a

6
escrita da tese. Sempre foram o meu porto seguro capazes de agüentar meus momentos de

mais puro stress, angústia e impaciência. Agradeço em especial a minha irmã, Gislaine, e

ao meu marido Cláudio, pelo irrestrito apoio, dedicação e cuidado comigo e com o texto

acadêmico, principalmente nos momentos finais das eternas revisões e ajustes para que a

tese ficasse “impecável”.

Aos entrevistados – moradores e trabalhadores das Unidades de Reciclagem de

Lixo e aos técnicos, que me forneceram a “matéria-prima” para essa pesquisa.

Aos professores Antonio da Costa Ciampa, Maria Palmira da Silva e Maria Lúcia

Carvalho da Silva pelas importantes contribuições dadas no exame de Qualificação que,

indubitavelmente, qualificaram meu trabalho acadêmico.

Às professoras Neuza Maria de Fátima Guareschi, Maria Palmira da Silva, Maria

Lúcia Carvalho da Silva e ao professor Antonio da Costa Ciampa, que aceitaram o convite

para participar da banca de defesa.

À Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) pelo

apoio financeiro durante a vigência de meu estágio no Exterior.

A todos, muito obrigada!

Giseli Paim Costa

7
RESUMO

O presente trabalho apresenta um estudo sobre a formação da consciência política,


viabilizada pela participação política. Esse estudo foi desenvolvido com moradores e
trabalhadores de Unidades de Reciclagem de Lixo, em algumas comunidades, na cidade de
Porto Alegre.

Realizamos questionários e entrevistas semi-estruturadas com moradores e trabalhadores


das Unidades de Reciclagem de Lixo, dentre os quais contemplamos lideranças
comunitárias, assim como técnicos de diferentes Secretarias ou Departamentos Municipais,
que trabalham junto às comunidades nas quais se encontram as Unidades de Reciclagem.
Além disso, fizemos uma pesquisa documental para a coleta de informação sobre a
realidade pesquisada.

Com base nos discursos de nossos entrevistados e nos referenciais teóricos de Sandoval
(1989, 1994, 2001) e Melucci (1989, 1994, 2001, 2004), analisamos as relações entre
consciência política e participação política, inferindo que o exercício da cidadania,
viabilizado pela participação política, compõe um cenário importante para a formação da
consciência política.

Constatamos que fóruns de participação, dentre os quais destacamos o Orçamento


Participativo, constituem-se em importantes canais de interlocução, além de serem
decisivos para a configuração de valores societais que permitem aos indivíduos se
fortalecerem enquanto atores sociais e políticos, bem como se engajarem, coletivamente,
em ações que possibilitem o exercício da cidadania, a emancipação e a qualidade de vida.

Percebemos que as políticas públicas incidem na vida dos indivíduos, no entanto, faz-se
necessário considerarmos os impactos psicopolíticos que interferem no comportamento
político dos mesmos, de forma a entendermos a complexidade da participação política.

Palavras-chaves: Participação Política, Consciência Política, Cidadania, Políticas Públicas,


Orçamento Participativo.

8
ABSTRACT

This paper presents a study on the formation of political awareness, made possible through
political participation. The study was developed with the inhabitants and workers at
Garbage Recycling Units in some communities in the city of Porto Alegre.

We conducted questionnaires and semi-structured interviews with inhabitants and workers


at Garbage Recycling Units, among which were community leaders. Also involved were
technicians from different City Departments and Offices who work alongside the
communities where the Garbage Recycling Units are located. In addition, we carried out
document research in order to collect data on the environment studied.

Based on what interviewees said and on the theoretical references by Sandoval (1989,
1994, 2001) and Melucci (1989, 1994, 2001, 2004), we analyzed the correlation between
political awareness and political participation, inferring that the exercise of citizenship,
made possible through political participation, generates an important backdrop for the
formation of political awareness.

We have established that participative forums, among which the Participative Budget
stands out, become important dialogue channels, not to mention that they are decisive for
the configuration of society values allowing individuals to become stronger as social and
political subjects as well as to collectively engage in initiatives that further the exercise of
citizenship, emancipation and quality of life.

We understand that public policies have an impact on individuals' lives; however, it is


necessary to consider the psycho-political influences interfering on their political behavior
in order to understand the complexity of political participation.

Key-words: Political Participation, Political Awareness, Citizenship, Public Policies,


Participative Budget.

9
SUMÁRIO

Introdução ........................................................................................................ 13

Capítulo I. Cenários da pesquisa e Contexto metodológico ........................ 20


1. Um pouco de história .................................................................................... 20
1.1. Um tempo mais recente ......................................................................... 24
2. A Porto Alegre pesquisada ............................................................................ 26
3. Caminhos metodológicos: os instrumentos da investigação ......................... 49
3.1. Os atores sociais da pesquisa ................................................................ 61
3.2. Perfil dos entrevistados ........................................................................ 62
3.2.1 Moradores e trabalhadores .......................................................... 62
3.2.2 Técnicos ....................................................................................... 65

Capítulo II. Orçamento Participativo: um capítulo à parte ........................ 67


1. Histórico do Orçamento Participativo ........................................................... 67
2. Funcionamento Geral .................................................................................... 73
2.1 Base de Discussão do Orçamento Participativo .................................... 75
2.2 Ciclo do Orçamento Participativo ......................................................... 76
2.3 Prioridades Temáticas das Regiões ....................................................... 76
2.4 Prioridades das Plenárias Temáticas ..................................................... 79
2.5 Critérios Gerais para Distribuição de Recursos entre Regiões e
Temáticas ............................................................................................... 80
2.5.1 A escolha das Prioridades Temáticas das 16 Regiões.................. 80
2.6 Regras para apresentação das demandas ............................................... 81
2.6.1 Gerais ........................................................................................... 81
2.6.2 Regionais ..................................................................................... 81
2.6.3 Temáticas ..................................................................................... 82
2.6.4 Os três critérios gerais ................................................................. 82
2.7 Alguns dados do Orçamento Participativo ............................................ 82
2.7.1 Prioridades Temáticas – Período: 1992 a 2004 ........................... 82
2.7.2 Qualidade de vida via Orçamento Participativo........................... 84
2.7.2.1 Pavimentação ..................................................................... 84
2.7.2.2 Rede de Água e Esgoto ..................................................... 84
2.7.2.3 Transporte Público ............................................................ 85
2.7.2.4 Saúde ................................................................................. 86
2.7.2.5 Educação ........................................................................... 87
2.7.2.6 Meio Ambiente .................................................................. 88
2.7.2.7 Assistência Social .............................................................. 89
2.7.2.8 Política Habitacional: habitação como prioridade.............. 91
2.7.2.9 Cultura ............................................................................... 93
2.7.2.10 Trabalho e Renda ............................................................. 94
2.7.2.11 Tecnologia ....................................................................... 95

Capítulo III. Administração Municipal Participativa no Brasil:


Revisitando a Literatura ................................................................................. 96
1. A construção da cidadania ativa em administrações democráticas ............... 96
2. Orçamento Participativo viabilizando o exercício da cidadania a partir da

10
participação política....................................................................................... 104
3. Definindo a participação política a partir do referencial da Psicologia
Política ........................................................................................................... 112
4. Identidade social ou coletiva? O que é definidor na participação política .... 119

Capítulo IV. Situando Teoricamente os Referenciais da Pesquisa ............. 125


1. Participação política: as muitas maneiras de abordar o conceito .................. 125
2. Algumas Considerações sobre o “estigma”.................................................... 132
3. Identidade social e identidade coletiva: diferenciações necessárias para o
entendimento da participação política............................................................ 141
4. Atores sociais construindo cidadania ............................................................ 147
5. Alguns elementos para definir consciência política ...................................... 156

Capítulo V. Participação política e cidadania: alguns entrelaçamentos..... 175


1. O “ser cidadão” através da participação política – dando voz aos
moradores e trabalhadores ............................................................................ 182
2. O “exercício da cidadania” através da participação política – dando voz
aos moradores e trabalhadores ..................................................................... 189
3. A relação com Porto Alegre e com a comunidade... falando das vivências
dos entrevistados ........................................................................................... 204
3.1. Porto Alegre pelos olhos dos moradores e trabalhadores .................... 205
3.2. A comunidade pelos olhos dos moradores e trabalhadores ................. 214
3.3. A relação entre as comunidades e as Secretarias Municipais .............. 217
3.4. Viver na comunidade ........................................................................... 220
4. O cotidiano e as perspectivas de vida em termos de realizações pessoais .... 228
5. O cotidiano e as perspectivas de vida em termos de trabalho ....................... 232
5.1. Para os trabalhadores das Unidades ..................................................... 232
5.2. Para os Moradores ................................................................................ 234
6. A participação política fortalecendo as relações comunitárias ..................... 234
7. Participação política e consciência política: algumas análises iniciais ......... 239
7.1. A participação política tem a ver com o exercício da cidadania .......... 241
7.2. A participação política tem a ver com a relação com a cidade ............ 248
7.3. A participação política fortalece as relações comunitárias .................. 253

Capítulo VI. Políticas públicas incidindo na participação política dos


moradores e trabalhadores das Unidades de Reciclagem de Lixo .............. 263
1. Políticas públicas sendo viabilizadas no OP: a repercussão dessa vivência 270
para a vida dos cidadãos ....................................................................................
1.1. A vivência do Orçamento Participativo em Porto Alegre – o que
dizem os moradores e trabalhadores ................................................... 271
2. Escola e comunidade: uma parceria ideal ou real? ........................................ 285
3. A relação com o Conselho Tutelar: quase sempre uma relação conflituosa . 295
4. A comunidade e a resolução de problemas ................................................... 301
5. Construção e importância das Unidades de Reciclagem .............................. 309
5.1. A construção das Unidades de Reciclagem de Lixo ............................ 310
5.2. A importância das Unidades de Reciclagem de Lixo .......................... 314
6. Repercussão dos movimentos dos moradores para as políticas públicas ...... 323
6.1. A percepção dos técnicos ..................................................................... 323
6.2. O papel do OP ...................................................................................... 327

11
Capítulo VII. Participação política e consciência política: uma
abordagem psicopolítica ................................................................................. 342
1. A relação entre a participação política e a questão partidária ....................... 348
1.1. A preferência político-partidária e a participação política – a inter-
relação a partir da percepção dos moradores e trabalhadores das
Unidades de Reciclagem 349
2. A comunidade em busca de melhorias .......................................................... 362
3. As diferentes percepções sobre a comunidade .............................................. 367
3.1. Percepção do entorno – pelos moradores e trabalhadores ................... 368
3.2. Percepção de si mesmos – pelos moradores e trabalhadores ............... 372
3.3. Percepção da comunidade – pelos técnicos ......................................... 377
4. Participação política e consciência política: análises finais .......................... 381
4.1. Mudança no comportamento político: alguns indicativos da
consciência política .............................................................................. 383
4.2. Participação política e estigma: algumas interrelações ........................ 387

Capítulo VIII. O impacto das políticas públicas no comportamento


político dos indivíduos: algumas considerações finais ................................. 398
408
Bibliografia .......................................................................................................

Anexos ............................................................................................................... 416


Anexo I .............................................................................................................. 417
Anexo II ............................................................................................................. 418
Anexo III ........................................................................................................... 419
Anexo IV ........................................................................................................... 420
Anexo V ............................................................................................................ 421
Anexo VI ........................................................................................................... 422
Anexo VII .......................................................................................................... 423

12
INTRODUÇÃO

Essa tese visa compreender a complexidade da participação política de moradores e

trabalhadores de Unidades de Reciclagem de Lixo, em algumas comunidades, na cidade de

Porto Alegre. As questões que abordamos estão relacionadas a aspectos estudados durante

a realização do Mestrado, em uma das comunidades examinadas nessa pesquisa.

Na nossa pesquisa de Mestrado1 estudamos a repercussão da violência social no

contexto escolar. Acompanhamos o cotidiano dos nossos entrevistados, à época, e

percebemos que haviam discursos antagônicos para explicar a falta de participação no

Orçamento Participativo, que inviabilizava as melhorias na comunidade e, por sua vez, era

percebida pelos moradores como uma violência social.

Esse era um contexto onde prevalecia, de um lado, um discurso assistencialista e,

de outro, um discurso emancipatório. À época, essa comunidade fazia parte de um projeto

de reassentamento da Prefeitura Municipal de Porto Alegre. A proposta da Administração

Municipal, com a implantação do Orçamento Participativo, em 1989, buscou, junto às

populações marginalizadas, o desenvolvimento do sentimento de pertença em relação à

cidade, através da participação da população e do suprimento de condições mínimas de

moradia para que fosse possível o exercício da cidadania.

O Orçamento Participativo foi um dos canais de interlocução responsáveis pelas

conquistas e melhorias nas comunidades, bem como pela implantação de políticas

públicas. E foi justamente esse aspecto que nos alertou para a pesquisa de Doutorado, ou

seja, ampliar a compreensão acerca da participação da população no Orçamento

Participativo, bem como em outros fóruns de participação popular2.

1
Costa, Giseli Paim. A repercussão da violência social no cotidiano escolar. Dissertação (Mestrado). Porto
Alegre : UFRGS, 2000.
2
Diferenciamos a nomenclatura que usamos – participação política – e a nomenclatura que a Administração
Municipal utiliza – participação popular. A diferenciação que propomos é da ordem dos significados

13
Na proposta da Administração Municipal, buscava-se a superação das dificuldades

inerentes de comunicação e de manifestação da vontade da população de baixa renda no

processo decisório das políticas públicas de âmbito municipal. Intencionava-se romper

com uma lógica excludente e segregadora e estabelecer laços de solidariedade e

urbanidade, e uma cultura de participação que pudesse criar raízes suficientemente

profundas para garantir sua continuidade, mesmo em um contexto politicamente adverso.

No entanto percebemos, que não havia uma relação direta entre a participação e uma

cultura de participação, que pudesse criar raízes suficientemente profundas para garantir

sua continuidade, mesmo em um contexto politicamente adverso.

Constatamos que, indubitavelmente, a ação direta exercida através do Orçamento

Participativo se revelou muito positiva no desenvolvimento da consciência e da prática

política dos cidadãos que se apropriam de informações e do controle sobre o Estado.

Villasante e Garrido (2002) reconhecem que a experiência de Porto Alegre permite uma

consciência social maior, uma vez que os cidadãos têm condições de detectar as

necessidades locais mais emergentes, e decidir sobre projetos sustentáveis.

Para os autores, a Administração Pública assume um papel orientador e impulsor de

desenvolvimento local, porém a característica mais significativa desta função é a

possibilidade de parceria com os atores sociais, ya no se trata de que la Administración

explicite um modelo global de ciudad, determine y trate de imponer los objetivos y medios

de conseguirlo, y regule y gestione la planificación (...) se impone la implantación del

psicopolíticos que estas nomenclaturas têm na vida política da cidade. Para a Prefeitura Municipal de Porto
Alegre, participação popular é a participação dos cidadãos em diversos fóruns de participação, dentre os
quais, o Orçamento Participativo, de modo que a população ajude a decidir sobre as políticas públicas da
cidade, a definindo como sinônimo de participação política. Para nós, a participação popular é a participação
dos indivíduos em diversos fóruns de participação, porém, é uma participação instrumental, que constatamos
através da pesquisa, ser a participação do “garantir direitos” ou do “ganhar coisas”. Já a participação política,
assim como a entendemos, requer engajamento, compromisso, organização e reivindicação. Descrevemos
melhor esta diferenciação no capítulo 7.

14
consenso y la participación como elementos básicos de la planificación estratégica

(Villasante y Garrido, 2002: 133).

Deste modo, é inerente à Administração, a implementação de procedimentos que

suponham a participação - e não a representação - dos cidadãos no processo de tomada de

decisões de uma comunidade: es ahí donde podemos observar lo explícito de los

Presupuestos Participativos como procedimiento inclinado a contemplar uma democracia

participativa (Villasante y Garrido, 2002: 178).

No entanto, entendemos que o tema participação polítca é complexo, pois as redes

de significados que os indivíduos atribuem à realidade social delineiam suas ações

individuais e coletivas, nos engajamentos em movimentos sociais e no comportamento

político dos indivíduos.

Considerando os fatores determinantes da participação em mobilizações coletivas,

Sandoval (1989), faz uma distinção entre os fatores da esfera interna e externa, referentes à

dinâmica dos agrupamentos envolvidos no movimento social, que exercem um papel de

controle social.

Destacam-se, primeiramente, as noções culturais, que são a expressão histórica de

valores e crenças que permeiam as visões de mundo das pessoas como pressupostos sobre

natureza da sociedade e a naturalidade das relações sociais. Outro mecanismo seria as

restrições da vida cotidiana impostas aos indivíduos que reduzem a oportunidade de

desenvolver sua capacidade de análise abstrata. O acomodar-se passa a ser uma alternativa

atraente para muitos que não possuem elementos para uma reflexão mais abstrata e crítica

da realidade. No entanto, apesar dos valores, crenças sociais e a rotina cotidiana, os

indivíduos têm a oportunidade de romper parcial e temporariamente com os mecanismos

de submissão e viver experiências coletivas e interagir com outras pessoas no âmbito de

um esforço organizado coletivo.

15
No transcorrer de nosso trabalho, contemplamos outros elementos que dizem

respeito à percepção que nossos entrevistados têm, enquanto comunidade; como

constituem sua identidade social e identidade coletiva; como percebem o estigma que lhes

é atribuído e, conseqüentemente, como desenvolvem sua participação política.

Além das conseqüências destes estigmas para as relações das pessoas entre si e com

a vizinhança do entorno, é possível entender que os entraves para a efetivação de uma

organização comunitária são marcados, dentre outros fatores, por uma visão coletiva

fragmentada e permeada pelo preconceito e discriminação.

De acordo com Norbert Elias e John Scotson (2000), há uma tendência em discutir

o problema da estigmatização social, como se fosse uma simples questão de pessoas que

mostram, individualmente, um desprezo acentuado por outras pessoas como indivíduos. E

isso não é suficiente porque equivale discernir, somente no plano individual, algo que não

pode ser entendido sem que se perceba, ao mesmo tempo, no nível de grupo.

Assim, inserimos na nossa discussão, as repercussões dessa estigmatização na vida

dos indivíduos, enquanto atores sociais e políticos. Percebemos relações baseadas em um

não posso, não me autorizo, não sou reconhecido enquanto sujeito da mesma sociedade,

com direito à fala, e as conseqüências deste processo vemos cotidianamente nas opções

que as pessoas fazem para lidar com isso: umas optam pela sujeição, pela opressão; outras,

lutam pela palavra; outras ainda, optam pela violência, manifestada em suas mais diversas

formas.

O cotidiano dos nossos entrevistados revelou-se como uma possibilidade de

acreditar que o processo de participação política desencadeia também um processo de

autonomia pessoal, valorização de seus saberes, crença na capacidade individual e coletiva,

de tentar restituir seus espaços de manifestação, de fala, de dissenso (nos termos de

Rancière), para que o discurso da cidadania seja realmente vivenciado.

16
Esse contexto foi determinante na escolha de nossos entrevistados, ou seja, as

comunidades que pesquisamos têm em comum uma Unidade de Reciclagem de Lixo. Este

critério foi utilizado para a definição da amostra, pois se trata de comunidades

estigmatizadas como vileiros, lixeiros, marginais e maloqueiros, desqualificadas enquanto

atores sociais, tanto pela comunidade do entorno quanto por alguns moradores da própria

comunidade. No entanto, demostravam ser grupos com um potencial de organização e com

uma disponibilidade de participação popular extraordinária.

Esse foi o cenário escolhido para desenvolver teoricamente questões apresentadas

nesta tese, e descritas em cada capítulo.

No primeiro capítulo, Cenários da pesquisa e Contexto metodológico,

contextualizamos o cenário no qual fizemos a pesquisa. O capítulo está dividido em três

momentos. Primeiro, resgatamos, brevemente, a história de Porto Alegre, desde os

primeiros grupos silvícolas que habitaram a região até os imigrantes que colonizaram o

município, após, remetemos à informação de um tempo mais recente, destacando o

crescimento geográfico, econômico, social e político de Porto Alegre; em um segundo

momento, descrevemos a cidade pesquisada, ou seja, as comunidades por onde circulamos

e que constituem o cenário desta pesquisa, bem como as pessoas que conhecemos e

entrevistamos, que são os protagonistas desse cenário. Por fim, apresentamos os caminhos

metodológicos que percorremos para a concretização de nossas intenções de pesquisa;

explicitamos os procedimentos, os instrumentos usados na investigação, o perfil dos

entrevistados e a escolha metodológica, a qual fundamenta nossa análise.

No segundo capítulo, Orçamento Participativo: um capítulo à parte,

descrevemos o Orçamento Participativo em Porto Alegre, ou seja, apresentamos seu

histórico, o funcionamento do OP, o ciclo de reuniões e encaminhamentos, a escolha e

17
apresentação das demandas, os critérios para a distribuição de recursos, e dados sobre a

qualidade de vida conquistada via OP.

No terceiro capítulo, Administração Municipal Participativa no Brasil:

Revisitando a Literatura, detalhamos os referenciais teóricos relacionados ao tema da

pesquisa. Mencionamos autores, principalmente, da sociologia, psicologia social e

psicologia política, que auxiliam na compreensão da construção da cidadania em

administrações democráticas, outrossim, apresentamos o contexto específico do Orçamento

Participativo como um instrumento de mediação de conflitos entre a gestão pública e a

sociedade civil organizada.

No quarto capítulo, Situando teoricamente os referenciais da pesquisa,

explicitamos, de uma maneira mais prolongada, os referenciais teóricos sobre as categorias

utilizadas na análise dos dados. Tratamos das diferentes maneiras de entender a

participação política e a cidadania; algumas considerações sobre o estigma; as

diferenciações necessárias sobre identidade social e coletiva, e o modelo de consciência

política de Sandoval (2001), a partir do qual compreendemos a complexidade da

participação política.

No quinto capítulo, Participação política e cidadania: alguns entrelaçamentos,

iniciamos as análises das entrevistas realizadas, procurando evidenciar como a participação

política vem sendo construída pelos moradores e trabalhadores de Unidades de Reciclagem

de Lixo em Porto Alegre, bem como as repercussões que esta participação tem, tanto para

a vida das pessoas, como para as políticas públicas da cidade. Discorreremos sobre o

quanto a participação política interfere no exercício da cidadania.

No sexto capítulo, Políticas públicas incidindo na participação política dos

moradores e trabalhadores das Unidades de Reciclagem de Lixo, procuramos

evidenciar de que forma as políticas públicas incidem na vida dos moradores e

18
trabalhadores de Unidades de Reciclagem de Lixo em Porto Alegre, e de que forma nossos

entrevistados interagem com essas políticas, efetivamente, seja na relação com as

entidades/instituições que trabalham nestas comunidades, seja pelos fóruns de participação

popular.

No sétimo capítulo, Participação política e consciência política: uma

abordagem psicopolítica, investigamos a relação entre participação política e consciência

política. Analisamos a relação entre a participação política e a preferência político-

partidária de nossos entrevistados com o intuito de entender a relação entre a preferência

partidária e os níveis de participação os cidadãos. Buscamos relacionar também a definição

de participação política que os entrevistados têm e o movimento por busca de melhorias

para a sua comunidade; se, nessa relação, predomina um movimento mais emancipatório

ou assistencialista.

No oitavo capítulo, O impacto das políticas públicas no comportamento político

dos indivíduos: algumas considerações finais, retomamos, de uma forma mais

conclusiva, a análise proposta nessa tese, sobre a relação entre participação política e

consciência política. Destacamos essa relação no contexto da Administração Popular de

Porto Alegre. Acreditamos, outrossim, que o OP, bem como outros fóruns de participação

popular, viabilizam o fortalecimento do indivíduo na sua identidade autônoma, sua

emancipação, a possibilidade do exercício da cidadania ativa, de modo que possa participar

politicamente de forma autônoma e desenvolver a consciência política. Desse modo,

apresentamos nossas reflexões sobre o impacto das políticas públicas no comportamento

político dos indivíduos.

19
CAPÍTULO I

Cenários da pesquisa e contexto metodológico

A pesquisa foi realizada em Porto Alegre, em algumas comunidades da capital.

Neste capítulo, descrevemos o cenário da pesquisa, iniciando por uma breve história da

cidade e, posteriormente, apresentando o contexto específico onde foi feito o levantamento

dos dados.

Porto Alegre é a capital do Estado do Rio Grande do Sul, Estado que faz fronteira

com Argentina e Uruguai. E é, de acordo com pesquisas3, uma das melhores cidades do

Brasil para se viver, com uma população de 1.360.590 habitantes, de acordo com o Censo

do ano 2000, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE.

Porto Alegre é, para quem tem a oportunidade de viver seu cotidiano, uma cidade

dinâmica, pelas oportunidades que oferece tanto no âmbito educacional, cultural como

profissional; poética, a exemplo da formação cultural de grandes e renomados escritores,

músicos, profissionais das mais diversas artes; acolhedora, a exemplo da diversidade

cultural, étnica e, sobretudo política, dos seus cidadãos.

1- Um pouco de história4

Os grupos silvícolas que habitaram a região onde surgiria Porto Alegre pertenciam

ao grande grupo indígena Guarani. Ao sul, pelas margens do rio Guaybe havia grupos da

tribo Guarani. Ao norte, pelas margens do rio Gravataí, localizavam-se os Tapi-mirim

(moradores da pequena aldeia), adversários dos Tapi-guaçú (moradores da grande aldeia),

residentes na outra margem do Rio Gravataí.

3
Fontes: Pesquisa Exame/Revisan, 1996; Pesquisa Sinduscon-RS, 2003.
4
Fonte: Historiadores Walter Spalding, Clóvis Silveira de Oliveira e Ligia Gomes Carneiro.

20
A primeira tentativa dos jesuítas espanhóis de estabelecerem missões na margem

oriental do rio Uruguai ocorreu em 1627, ano em que foram expulsos da região pelos

portugueses. Como forma de contrabalançar a presença espanhola no Rio Prata, os

portugueses fundaram, em 1680, a Colônia de Sacramento, estrategicamente situada na

margem oposta à cidade de Buenos Aires. Como resposta imediata à fundação de

Sacramento, os jesuítas espanhóis estabeleceram novos povoados na região, os chamados

Sete Povos das Missões Orientais.

No século XVII, o Rio Grande do Sul era grande produtor de gado. Por isso,

tropeiros vinham de São Paulo, em busca dessa riqueza. Em suas andanças pelo Rio

Grande usavam certas localidades para seus pousos que, paulatinamente, transformavam-se

em povoados. Porto Alegre nasceu dessa forma.

Um tropeiro chamado Jerônimo de Ornelas Menezes e Vasconcelos, originário da

Ilha da Madeira, casado com Lucrécia Leme Barbosa, instalou-se, por volta de 1732, nos

Campos de Viamão, às margens da Lagoa de Viamão (Guaybe, na linguagem indígena).

Assim o fazendo, Jerônimo de Ornelas conquistou direitos sobre essas terras, recebeu a

carta de sesmaria em 5 de novembro de 1740 e trouxe, assim, seus parentes e agregados,

firmando uma comunidade de aproximadamente 100 pessoas.

Em 1737, os portugueses deram início à colonização das terras próximas às

Missões Jesuíticas, o que estimulou, em 1740, a fundação de um vilarejo com funções

defensivas e portuárias batizado com o nome de Porto de Viamão (também conhecido

como Porto dos Dornelles). Com a chegada dos casais açorianos, na primeira leva de

imigrantes, o vilarejo passou a chamar-se Porto dos Casais.

Em 1745, devido à insistência do Brigadeiro José da Silva Paes, governador da

Capitania de Santa Catarina, o Rei de Portugal autorizou a emigração dos primeiros casais

oriundos das Ilhas dos Açores, naquela época, com excesso de população. O Rio Grande

21
do Sul, todavia, não foi beneficiado, pois aqui ainda ocorriam lutas entre luso-brasileiros e

espanhóis. Somente mais tarde, após a celebração do Tratado de Madrid, o Governo

Metropolitano de Lisboa ordenou ao novo governador de Santa Catarina, Manoel

Escudeiro de Souza, que enviasse ao povoado da Lagoa de Viamão alguns casais que

estavam por chegar ao Brasil. No entanto, Manoel Escudeiro mandou casais já radicados

em Santa Catarina, no que foi censurado pelo rei.

Foi então que um grupo de açorianos deixou a Vila do Desterro (hoje Florianópolis,

capital de Santa Catarina) em meados de abril de 1751, chegando no porto do Rio Grande,

espalhando-se pelo interior.

No final de 1751, chegou ao Desterro novo grupo de açorianos. O Governador

Manoel Escudeiro selecionou, então, sessenta casais que, com seus filhos, formava um

grupo de aproximadamente 300 pessoas, os quais, no início do ano seguinte, seguiram para

o Rio Grande do Sul.

Em 1752, começaram a chegar ao Rio Grande do Sul, os primeiros casais vindos

das Ilhas dos Açores. O governo português pretendia, ao incentivar a imigração desses

casais, resolver dois problemas: o primeiro era o das Ilhas dos Açores - que estavam

superpovoadas, e o segundo era o da ocupação do solo na extremidade sul do território

brasileiro, uma zona considerada vital por se tratar do ponto de encontro entre os domínios

portugueses e espanhóis na América do Sul.

Quando José Marcelino de Figueiredo tomou posse da Comandância da Capitania

de São Pedro do Sul, em 23 de abril de 1769, não se agradou do local onde estava a capital.

Foi, dessa forma, visitar o Porto dos Casais. Desde então passou a trabalhar para que ali se

instalasse a capital. Em 1771, recebeu a autorização do Vice-Rei para preparar o Porto dos

Casais para sediar a capital.

22
José Marcelino determinou que o Tenente Coronel Antônio da Veiga de Andrada

passasse a tratar da urbanização do Porto dos Casais. O Capitão Engenheiro Alexandre

José Montanha ficou encarregado dessa tarefa.

Segundo o historiador Walter Spalding, Porto dos Casais passou a se denominar

Porto Alegre por inspiração patriótica portuguesa e religiosa, nome escolhido por Dom

Frei Antônio do Desterro, que assinou o ato de criação da Freguesia.

Na época, a cidade de Portoalegre, localizada no Alto Alantejo, em Portugal,

notabilizava-se pela luta entre portugueses e espanhóis pelas fronteiras desses países. Por

isso, seu nome teria sido lembrado para a nova freguesia.

Há historiadores que afirmam, entretanto, que a origem do nome está na bela

localização à margem do rio Guaíba, e na beleza e no encantamento dos morros que

cercam a cidade.

Em 1772, com o crescimento da vila, o local tornou-se município e ganhou o nome

de Nossa Senhora da Madre de Deus de Porto Alegre, tornando-se sede do governo

provincial. A cidade de Porto Alegre tem o dia 26 de março de 1772 como data oficial de

sua fundação. Foco de constantes disputas entre portugueses e espanhóis, a região foi

incorporada ao Brasil em 1801 e, em 1807, foi elevada à condição de capitania.

A partir de 1824, chegaram os imigrantes alemães e italianos que instalaram

pequenas propriedades rurais na região de Porto Alegre. A economia gaúcha, até então

inteiramente assentada no latifúndio (estâncias) e na criação de gado de corte para

produção de charque, ganhou maior diversificação com a vinda dos imigrantes europeus. A

produção passou a abastecer todo o Estado e foi exportada para as regiões vizinhas.

No século XIX, o Rio Grande do Sul viveu diversos períodos revolucionários,

como a Guerra dos Farrapos, as lutas na fronteira do Brasil e a Guerra do Paraguai. Depois

da Guerra dos Farrapos, a cidade retomou seu ritmo normal de desenvolvimento,

23
permanecendo sempre no centro dos acontecimentos políticos e sociais do Estado e do

país. Exemplos disto foram a ascensão de Getúlio Vargas, político gaúcho que se tornou

um marco da história nacional, e o Movimento da Legalidade, mantido pelo governo

Brizola no início dos acontecimentos que conduziram ao Golpe Militar de 1964.

A cidade de Porto Alegre apresenta-se como cidade cosmopolita, sem perder o

charme de província. A cidade oferece uma ampla gama de opções culturais,

gastronômicas, de serviços, de compras, caracterizadas sempre pela beleza de sua

arquitetura e pelo alto índice de qualidade de vida de seus habitantes. Nessa fase de

integração regional, Porto Alegre assume aspectos estratégicos importantes, por situar-se

no ponto eqüidistante entre o eixo Rio de Janeiro/São Paulo e as capitais platinas de

Buenos Aires e Montevidéu.

1.1- Um tempo mais recente

A industrialização do Estado teve sua origem na metrópole gaúcha. No entanto,

entre os anos 60 e 90, mudou sua vocação econômica fabril, transformando-se em um

grande centro de serviços e comércio. Até começos dos anos 80, o município experimentou

um acelerado crescimento populacional, processo este que, combinado com uma forte

concentração de renda existente, gerou graves desequilíbrios e deixou um terço de sua

população à margem de uma infra-estrutura urbana. Estas populações foram historicamente

esquecidas por administrações municipais.

Em 1989, ano em que o Orçamento Participativo foi implantado na cidade, havia

um contingente enorme de cidadãos vivendo em bairros ou vilas não regularizadas,

vivendo em casebres, sem água potável, sem saneamento tratado ou ruas calçadas, ou seja,

uma enorme dívida social do poder público com uma parte significativa da população. A

24
instituição governamental, totalmente centralizada e antidemocrática, era um obstáculo

muito difícil para uma relação transparente com a sociedade.

Porto Alegre foi administrada pelo Partido dos Trabalhadores por 16 anos, de 1989

a 2004. A proposta da Administração Municipal, durante as suas gestões, buscou, junto às

populações marginalizadas, o desenvolvimento do sentimento de pertença à cidade, através

da participação dos cidadãos, para que fosse possível o exercício da cidadania.

Porto Alegre é uma cidade que oferece muitas oportunidades de lazer, muitas

atividades culturais e esportivas, e isso é possível perceber através dos depoimentos dos

entrevistados. Com isso, percebemos uma relação dinâmica com a cidade, ou seja, as

pessoas aproveitam seu tempo livre para participarem de atividades gratuitas que a cidade

oferece e, mesmo aqueles que não aproveitam, reconhecem que a cidade tem uma

preocupação com aspectos de lazer por considerar, de uma certa forma, que isso é

importante para a socialização das pessoas.

Além disso, Porto Alegre é uma cidade com muitos parques e praças, onde

costumeiramente há shows, festas e outras programações culturais e/ou esportivas,

organizados pela Prefeitura Municipal ou pelas próprias comunidades, através de Centros

Comunitários, Associações de Bairro ou outras Instituições que atuam na comunidade.

Desta forma, a população tem opções de aproveitar, gratuitamente, o que a cidade oferece

e, mesmo quando as pessoas não aproveitam estes espaços urbanos, não deixam de

reconhecer que há o que fazer na cidade para incrementar a socialização, o sentimento de

pertencimento ou, simplesmente, aproveitar o tempo livre.

Porto Alegre é uma das melhores cidades brasileiras para se viver5. Tem

indicadores favoráveis na área da saúde, saneamento básico, educação, meio-ambiente,

economia, enfim, nos principais índices de desenvolvimento humano. A inversão de

5
Fontes: Pesquisa Exame/Revisan, 1996; Pesquisa Sinduscon-RS, 2003.

25
prioridades, no entanto, só foi possível, porque a população decidiu engajar-se na idéia

participativa.

2- A Porto Alegre pesquisada

É por esta cidade que circulamos, por suas diferentes regiões, em seus diferentes

bairros6, passando por peculiares experiências, experimentando distintos sentimentos em

nossa trajetória de pesquisadora.

A primeira comunidade com a qual fizemos contato foi a Vila Dique. A Vila Dique

é formada por moradores oriundos do interior do Estado, estabelecidos, há muitos anos,

nesta região da cidade. É uma comunidade precária no que diz respeito às condições

mínimas de sobrevivência, como moradia e trabalho. É um local onde prevalece um

discurso assistencialista, sustentado pelas inúmeras doações de roupas, brinquedos e

alimentos que pessoas de diferentes partes da cidade fazem. A maioria dos moradores da

Vila Dique vive da reciclagem do papel.

A Vila Dique, na cidade de Porto Alegre, principalmente entre os moradores da

zona norte - onde está situada - é conhecida por ser uma vila de marginais e muito

perigosa por causa dos assaltos a quem não é morador ou trabalhador da vila.

Geograficamente, a Vila Dique está situada ao final da pista de pouso e decolagem

do Aeroporto Internacional Salgado Filho. Esta área foi invadida pelos seus primeiros

moradores quando esses vieram do interior do Estado para a capital. Há um processo de

retirada da Vila Dique, que está em tramitação há muitos anos, que envolve ações da

Prefeitura Municipal, Governo do Estado e Infraero. A Infraero necessita da área para

aumentar a pista do aeroporto. A Prefeitura é responsável pela construção de novas casas

para os moradores, mas o dinheiro para a indenização é por conta do Governo do Estado,
6
O mapa da cidade de Porto Alegre, com a indicação da localização das comunidades pesquisadas, encontra-
se no anexo VII.

26
que alega não ter verbas. Isso reflete diretamente na participação no Orçamento

Participativo, uma vez que os moradores da Vila Dique não podem demandar moradia,

saneamento, pavimentação, apenas serviços, pois afinal, a vila pode sair dali a qualquer

momento.

Entre as casas, há uma rua, a única que há na Vila. Esta rua é considerada um

atalho, pois dá acesso a uma avenida de grande movimento da zona norte, a avenida

Sertório, e uma avenida que passa pelo aeroporto, a avenida das Indústrias, a qual dá

acesso a BR 116, que conecta Porto Alegre com a região metropolitana. Uma das

contradições é que, mesmo considerando a vila muito perigosa, o movimento de carros por

ali é intenso. Ao longo desta rua, além das casas, estão as entidades/instituições que

existem na comunidade: Clube de Mães, Unidade de Reciclagem de Lixo, Posto de Saúde,

Creche, Igreja, além do comércio local.

Nos fundos das casas, dos dois lados da rua, há valos de esgoto a céu aberto, ou

seja, as casas estão construídas entre o valo e a rua. Como a maioria dos moradores

trabalha com reciclagem de papel em suas casas, o valo serve também como depósito do

lixo que não é comercializado. Torna-se desnecessário lembrar que, com as chuvas, os

valos transbordam - porque também encontramos neles, restos de móveis, animais mortos,

além do lixo oriundo da reciclagem – e as casas, muitas vezes, são inundadas por esta água

contaminada, acentuando o nível de doenças entre os moradores da comunidade.

Na maioria dos terrenos, há o pátio na frente e a construção da casa ao fundo. Com

isso, as pessoas que reciclam, os carrinheiros ou carroceiros7, depositam o lixo a ser

separado na frente da casa. Para ter acesso à casa, é preciso, muitas vezes, passar entre o

lixo. Mesmo tendo a Unidade de Reciclagem de Lixo a poucos metros de suas casas, as

pessoas não têm a iniciativa de levar o lixo até a Unidade. Há uma concorrência pelo lixo
7
Carrinheiros são as pessoas que juntam o papel a ser separado com o carrinho. Carroceiros são as pessoas
que juntam o papel a ser separado com a carroça.

27
entre carroceiros, carrinheiros e Prefeitura Municipal. Devido a essa concorrência, a

Prefeitura se obrigou a tomar providências no que tange à coleta de lixo seletivo na área

urbana da cidade. Por estas características na sua história, a Vila Dique não tem uma

Associação de Moradores e um Clube de Mães cujos dirigentes trabalhem em prol da

comunidade. Os grupos que coordenam estas entidades são sobremaneira assistencialistas e

corporativistas, o que dificulta a relação com a comunidade e a participação das pessoas na

vida da cidade. Os moradores não querem discutir, querem receber. Exemplo evidente é

que a participação dos moradores da Vila Dique, nas reuniões do Orçamento Participativo,

se dá, na sua grande maioria, pelas famílias que recebem bolsa-auxílio da Prefeitura

Municipal. Estas pessoas participam porque, se faltarem às reuniões do Orçamento

Participativo, não recebem a bolsa-auxílio.

Na Vila Dique conhecemos algumas pessoas que traduzem movimentos diferentes

de participação em relação à vida da comunidade e da cidade. Eva é a atual coordenadora

da Unidade de Reciclagem de Lixo. É casada com Fernando. Os dois trabalham na

Unidade. Eva morava em Santa Rosa, e seus pais em Porto Alegre, na Vila Dique. Em uma

de tantas visitas que fez a seus pais, um dia conheceu Fernando, que já morava na

comunidade. Casaram-se e passaram a viver na Vila Dique. Os dois freqüentam as

reuniões do OP quando precisam demandar algo para a Unidade de Reciclagem, caso

contrário, não participam. Eva não fez referência de trabalhos de parceria entre a Unidade

de Reciclagem e a comunidade ou com Instituições que trabalham com a comunidade.

Quando não estão trabalhando, costumam ficar em casa ou freqüentam a Igreja.

Conversando com Sandra, a assistente social que trabalha no Posto de Saúde da

comunidade, tivemos a oportunidade de conhecer Vitória e Patrícia. A circunstância em

que as conhecemos foi uma reunião, apoiada por Sandra, para a constituição de uma chapa

para concorrer ao processo eleitoral para a Presidência da Associação de Bairros. Tratava-

28
se de um movimento de algumas mulheres, dentre as quais, nossas entrevistadas, que

estavam insatisfeitas com a Administração da Associação de Bairros, a qual, de acordo

com elas, não administrava de uma maneira coletiva, e sim, de modo a atender aos

interesses de alguns “amigos” e deles próprios.

Vitória estuda no MOVA, é recicladora e trabalha no pátio de sua própria casa. Não

quis se envolver na chapa da oposição, mas estava apoiando o grupo de mulheres. Acredita

também que as pessoas têm que participar, e não venderia seu voto. Diz que as pessoas

precisam diferenciar entre os políticos e as lideranças comunitárias que fazem alguma

coisa em prol da comunidade e os que só querem tirar “vantagens do pobre”.

Patrícia tem uma história que nos chamou a atenção. É uma mulher de 36 anos que

se separou do marido porque esse bebia, se drogava e não queria trabalhar. Ela veio, com

seus filhos, morar na Vila Dique. Às vezes, trabalha como faxineira, mas seu trabalho

habitual é ser papeleira. Recicla seu lixo no pátio da sua casa, à beira do valo. Patrícia

recebe bolsa-auxílio da FASC – Fundação de Assistência Social e Comunitária – e

participa de reuniões coletivas periódicas com Psicóloga e Assistente Social no Centro

Comunitário da Vila Floresta, que atende a essa comunidade. Conta que, em uma

determinada reunião, o trabalho proposto para o grupo de mulheres era que cada uma

desenhasse em uma folha qual seria o seu sonho, para depois ser socializado entre todas.

Patrícia relatou que todas as mulheres desenharam casas, carros e outras coisas materiais.

Ela desenhou uma escola e disse que seu sonho era voltar a estudar, pois adorava estudar e

teve que parar porque sua mãe a obrigou a trabalhar. Ela disse que “não adiantava ganhar

coisas dos outros, por que isso não mudava as pessoas por dentro e nem a vontade de

continuar melhorando de vida. Mas a educação sim, podia mudar o pensamento das

pessoas e a vontade de mudar e melhorar de vida pelas próprias pernas e não só

dependendo dos outros”. Resulta que, depois dessa reunião, a assistente social conseguiu

29
uma vaga para Patrícia terminar seus estudos em uma escola particular perto da Vila

Dique.

Na semana em que entrevistamos Patrícia, ela estava se formando no Ensino

Médio. Nos contou que seu sonho é trabalhar na comunidade, se filiar a um partido político

e ser vereadora. É admiradora da vereadora, já falecida, Nega Diaba, moradora de uma

comunidade estigmatizada de Porto Alegre.

Patrícia conta também que ela, junto com outras mulheres, pressionaram as técnicas

das reuniões de grupo no Centro Comunitário, para que o recebimento da bolsa-auxílio

estivesse condicionado à participação nas reuniões do OP, por que as mulheres estavam

sempre dispostas a irem, “com sol ou chuva”, buscar o dinheiro da bolsa, mas nunca

podiam ir às reuniões do OP. Esse fato incomodava muito as mulheres que acreditavam

que é pela participação que se consegue melhorias para a comunidade. Com isso, a

participação dos moradores no OP aumentou, mas não garantiu o processo de consciência

política destas pessoas.

Os processos excludentes na Vila Dique são muito significativos e são reforçados

pela comunidade do entorno que estigmatizam estes indivíduos como sendo inferiores,

marginais e perigosos, e pela atitude preconceituosa de muitas pessoas que fazem doações,

porque os moradores da Vila Dique são pobres, carentes e precisam de ajuda. O estigma

impede a manifestação das potencialidades destes moradores, as possibilidades de

organização comunitária, de lideranças que não descobriram por onde se manifestar e

como garantir elementos que viabilizem o exercício da cidadania.

Relativamente perto da Vila Dique, está o Aterro da Zona Norte, que é uma

Unidade de Reciclagem de Lixo. O Aterro se diferencia por não estar inserido em uma

comunidade e os seus trabalhadores viverem na proximidade.

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O acesso ao Aterro é feito a pé ou de carro, pois o transporte público mais próximo

passa na Avenida Sertório, que está aproximadamente a 40 minutos, a pé, do Aterro.

Caminhando, desde a avenida Sertório em direção ao Aterro, passamos pelo Hipermercado

BIG, uma grande rede do grupo SONAE no Estado, além de algumas Indústrias e

Transportadoras instaladas nesta região. Depois do término da pavimentação, onde termina

também esta área industrial, temos um trecho grande de estrada de chão.

Neste local, há alguns anos atrás, havia o Lixão da Zona Norte, ou seja, antes de

Porto Alegre iniciar o processo de coleta seletiva, a maioria do lixo recolhido pelos

caminhões de coleta era levado para este Lixão. Nesta época, muitas pessoas viviam do

lixo, não só buscando alimentos para sua sobrevivência como também buscando coisas que

pudessem vender ou usar. A incidência de doenças era alta, assim como a de mortes, não

apenas causadas por doenças, infecções provenientes do contato desorganizado com o lixo,

mas também, como relata algumas pessoas que trabalharam nesta época e nestas

condições, por brigas que se originavam pela disputa de algo de valor que era encontrado.

A partir do momento em que a Prefeitura Municipal introduz a coleta seletiva, o

Lixão é extinto/ é organizado, junto a estas pessoas, o trabalho na Unidade de Reciclagem.

No Aterro da Zona Norte conversamos com Valdomiro, Bárbara e Hélio.

Valdomiro é filho de Bárbara. Tem 33 anos e há vinte trabalha com reciclagem de papel.

Gosta do que faz, acha sua atividade importante muito mais pelos benefícios à natureza do

que por questões financeiras. Sua mãe, Bárbara, também gosta do que faz, mas revela, pela

sua fala, os preconceitos que sofreu e sofre por ser recicladora. Ela valoriza o seu trabalho,

tem uma consciência ecológica sobre os benefícios da reciclagem para a natureza e para o

homem, reconhece tudo que já adquiriu graças à Reciclagem, mas refere também que é

chamada por alguns vizinhos como “lixeira” ou “a que trabalha no Lixão”.

31
Bárbara relata que seu filho mais novo era muito discriminado na escola. Conta

que, quando seu filho vestia roupas ou tênis novos, seus colegas ficavam comentando que

era coisa que a mãe tinha achado no lixo ou que havia roubado; pois não era possível

comprar coisas boas e novas trabalhando com o lixo. Assim, ela decidiu, junto ao grupo da

Unidade de Reciclagem, fazer uma parceria com a escola, para mudar a concepção que as

pessoas tinham do trabalho com Reciclagem, para diminuir o preconceito e aumentar a

consciência ecológica dos alunos.

Hoje, depois de muitas visitas dos trabalhadores da Unidade de Reciclagem na

escola, bem como dos alunos e professores na Unidade, a reciclagem é tratada com mais

responsabilidade por parte da comunidade escolar, e o filho de Bárbara é um dos

coordenadores de atividades de divulgação do trabalho da reciclagem na escola. Uma das

atividades de lazer que Bárbara gosta de praticar é a pescaria, atividade também preferida

por Hélio.

Hélio tem 71 anos e mora na Vila Dique. Apesar de ter uma Unidade de

Reciclagem de Lixo na sua comunidade, prefere trabalhar no Aterro, pois ele fazia parte do

grupo que trabalhava no Lixão e foi um dos responsáveis por negociar com a Prefeitura

Municipal melhores condições de trabalho, o que resultou na construção da Unidade de

Reciclagem Aterro da Zona Norte.

Hélio é uma liderança importante e trabalha com a idéia de que os trabalhadores da

reciclagem são agentes da natureza e que todos deviam colaborar com quem está tentando

garantir uma vida mais saudável a todos. Hélio comenta, tranqüilamente, enquanto toma

seu chimarrão, que o dinheiro é importante, mas o futuro das nossas vidas é essencial, e

para isso eles estão colaborando.

32
Ainda circulando pela zona norte da cidade, visitamos outro bairro, chamado

Rubem Berta, que está localizado no extremo norte da cidade, quase divisa com Alvorada,

uma cidade da região metropolitana de Porto Alegre.

O Rubem Berta é considerado, pela maioria da população da cidade, um bairro

onde vivem pessoas pobres, de classe baixa que, normalmente, têm sua renda proveniente

de atividades desempenhadas no comércio e na informalidade.

Em parte, esta idéia se consolidou a partir da história de invasões de um Conjunto

Habitacional que há no bairro. No final da década de 80 havia, em Porto Alegre, várias

construções populares que estavam com suas obras paradas. Diante do problema

habitacional que a cidade enfrentava, inúmeras famílias ocuparam, no Ruben Berta, ao

longo de 1987, estas construções que, àquela época, era o limite do bairro.

Desde a ocupação, os moradores se organizaram e buscaram melhorias, e desde

1997, a situação das ocupações está regularizada. A comunidade conta com Associação de

Moradores, Clube de Mães, Creches, transporte público, Posto de Saúde, Escolas, enfim, o

bairro possui boa infra-estrutura.

Na época das ocupações, o limite do Rubem Berta era estes edifícios, atrás dos

edifícios só havia mato. Hoje, para circular por toda a extensão do bairro, é preciso descer

no final da linha do ônibus - que trafega desde o centro de Porto Alegre até o bairro - e

pegar outro ônibus que se chama alimentadora; ou seja, é um ônibus da mesma empresa,

mas que faz o trajeto na continuidade do bairro que ainda está em processo de melhorias no

sentido de pavimentação e moradia. Não é cobrada a passagem, pois, na verdade, este

ônibus é uma extensão da Linha.

É nesta parte do bairro que está situada a Unidade de Reciclagem de Lixo, além de

uma escola, creche e o CESMAR - Centro Social Marista - vinculado a PUC-RS e

destinado a atender a comunidade nos mais diferentes aspectos; é também a parte do

33
Ruben Berta onde vivem os entrevistados desta comunidade, pessoas como Silvio, Cléia e

Robson.

Silvio vive na comunidade há sete anos. A atividade que mais gosta de praticar nas

suas horas de lazer é tocar violão com amigos. Silvio também destaca a importância do

trabalho de reciclagem para a preservação da vida na Terra, e considera o trabalho do

reciclador de extrema importância para o desenvolvimento de uma necessária consciência

ecológica. Porém, Silvio destaca que, na própria Unidade de Reciclagem, nem todos os

trabalhadores percebem o trabalho desta forma. Muitos ainda atribuem a importância da

Reciclagem ao fato de terem uma fonte de renda.

Cléia, colega de Silvio na reciclagem, compartilha de sua opinião. Pensa que

muitos ainda não têm uma consciência ecológica, porém, ela acredita que o trabalho é

muito importante. Reconhece também o quanto melhorou de vida, adquiriu coisas,

aprendeu com o trabalho na reciclagem.

Robson é um trabalhador que traduz, de certa forma, o que Cléia e Silvio comentam

sobre a falta de uma consciência ecológica em relação ao trabalho com a reciclagem. Para

Robson, um senhor de 60 anos, a reciclagem é importante pela possibilidade de trabalho e

renda pois, na idade que em está, de acordo com ele mesmo, dificilmente conseguiria outro

trabalho.

Do bairro Rubem Berta, nos deslocamos para a Vila dos Papeleiros. A Vila dos

Papeleiros está na região central da cidade. É denominada assim, porque praticamente a

totalidade de seus moradores trabalha com reciclagem de papel, e são chamados, por isso,

de papeleiros. A Vila foi formada por pessoas oriundas do interior do Estado, muitas das

quais agricultores que chegaram na capital em busca de emprego e, não tendo a mão de

obra qualificada que a vida urbana exigia, acabaram trabalhando com reciclagem de papel

nos seus próprios casebres. Hoje em dia, o trabalho é organizado, uma vez que a Vila

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ganhou, via Orçamento Participativo, uma Unidade de Reciclagem de Lixo, além de

Moradia, Escola, Creche e Centro Comunitário. A Unidade de Reciclagem de Lixo, no

entanto, já está funcionando provisoriamente em outro local – próximo da Vila – em

função do incêndio, em março de 2004, que destruiu mais de 70% dos casebres. A Unidade

de Reciclagem, nesta situação específica, teve como objetivo principal, dar condições de

trabalho para as famílias que perderam todos os seus bens.

A Vila dos Papeleiros está situada ao longo de uma parte da Avenida Voluntários

da Pátria, que é uma das avenidas de acesso ao centro da cidade. Foi decidido, através do

Orçamento Participativo, que a Vila permanecerá no mesmo local em que está, porém, para

que seja possível a construção das novas casas, as famílias foram transferidas para casas de

passagem até que tivessem a infra-estrutura de retornar ao seu local de moradia.

A Vila dos Papeleiros também é estigmatizada pela comunidade do entorno. As

pessoas se referem a eles como os marginais, os maloqueiros, os responsáveis pelo

aumento do tráfico de drogas, da prostituição, e da proliferação de ratos e baratas na

região.

A Vila dos Papeleiros conta com algumas lideranças importantes, dentre as quais

destacamos Augusto, presidente da Associação de Moradores e dos Recicladores da Vila

dos Papeleiros, e que, através da sua luta, conseguiu a mobilização da comunidade e as

melhorias conquistadas no Orçamento Participativo. Augusto, assim como Paulo, José e

Guilhermina fazem parte deste cenário.

José e Guilhermina são casados e os dois trabalham na Unidade de Reciclagem.

Guilhermina valoriza o trabalho, principalmente, por que é o que sabe fazer. Durante a

maior parte da entrevista com Guilhermina, José estava presente e, em algumas perguntas,

ele intercedeu de modo a induzir Guilhermina a responder o que ele estava julgando ser

“certo”. José é, no entanto, uma liderança, e valoriza muito a atividade que exercem.

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Reconhece que, depois do incêndio na Vila dos Papeleiros, a reciclagem passou a

significar muito mais do que consciência ecológica e renda. Passou a significar o elo com a

realidade, a possibilidade de recuperar a dignidade e a condição de sujeitos de direitos e

deveres.

Paulo também é casado, mas sua esposa não trabalha na Unidade. Tem 51 anos e

vive há 22 em Porto Alegre. Como a maioria dos seus vizinhos na Vila dos Papeleiros,

Paulo veio para a capital em busca de melhores condições de trabalho. Encontrou na

reciclagem de lixo, a possibilidade de trabalho, uma vez que o contexto urbano não lhe

permitia fazer o que sabia, ou seja, trabalhar na agricultura. Paulo participa das reuniões do

OP e, assim como José, acredita que a participação dos moradores é muito importante

como canal de interlocução entre poder público e os cidadãos.

Augusto é uma personagem emblemática neste cenário. É uma liderança na

comunidade e uma referência como líder comunitário junto ao Orçamento Participativo.

Augusto se descobriu líder comunitário “por acaso”, muito por iniciativa de uma religiosa

que trabalhava voluntariamente com a comunidade. Augusto foi escolhido por uma ONG a

fazer um depoimento em um Seminário na França sobre experiências exitosas de

participação da população em Administrações Públicas, que resultou na elaboração de um

livro, no qual é personagem.

Augusto é presidente da Associação de Recicladores e da Associação de Bairro,

que são a mesma Associação. Considera que a comunidade é “uma grande família e ele é o

pai de todos”. Augusto se intitula “dono” da comunidade mas, na verdade, é articulador e

mediador de muitas conquistas que a comunidade teve através do Orçamento Participativo.

Saindo da Vila dos Papeleiros em direção a Ilha Grande dos Marinheiros, passamos

rapidamente pela história dos Profetas da Ecologia.

36
O prédio dos Profetas da Ecologia está situado embaixo da Ponte do Guaíba, um

dos principais pontos turísticos de Porto Alegre. É uma Unidade de Reciclagem de Lixo

que tinha convênio com o DMLU – Departamento Municipal de Limpeza Urbana – e

alguns problemas com o Irmão Roberto, que se considerava proprietário do prédio onde

funcionava a Unidade de Reciclagem. Tivemos a oportunidade de presenciar as situações

de conflito entre o Irmão Roberto e a coordenadora da Unidade de Reciclagem. Estes

conflitos eram, em parte, pelo fato da coordenadora incentivar as mulheres trabalhadoras

da Unidade, no sentido dessas serem autônomas, de participarem do processo de

negociação e venda e não apenas reciclarem o lixo, de se posicionarem mais diante das

questões referentes ao seu trabalho. O Irmão Roberto, no entanto, não aceitava esta

postura, alegando que isso prejudicava o trabalho.

A situação se tornou a tal ponto insustentável, que o Irmão Roberto, com a

justificativa de que era dono do prédio, conduziu o trabalho da sua maneira, o que resultou

na rescisão do convênio com o DMLU e a transferência da coordenadora para outra

Unidade de Reciclagem de Lixo. A realização da pesquisa com estas pessoas, depois de

meses de tentativa, não foi permitida.

Dos Profetas da Ecologia, atravessamos a Ponte do Guaíba e chegamos na Ilha

Grande dos Marinheiros. A Ilha dos Marinheiros, como é comumente chamada, é uma das

muitas Ilhas habitadas de Porto Alegre, consideradas bairros da cidade, apesar de alguns

moradores não se considerarem moradores de Porto Alegre.

As Ilhas, em Porto Alegre, mostram um triste contraste. Por um lado, encontramos

casas de luxo da classe alta porto-alegrense, que mantêm estas casas para curtir o fim de

semana, e cujo acesso é feito, normalmente, através de lanchas e barcos de luxo. Por outro

lado, encontramos moradores em habitações precárias, algumas partes das Ilhas sem as

mínimas condições de sobrevivência, sem água encanada, saneamento e pavimentação.

37
Nas partes mais centrais e mais habitadas das Ilhas, as condições são melhores, e há uma

infra-estrutura mais adequada, com Escolas, Creches, Clube de Mães, Associação de

Moradores, Unidade de Reciclagem, Posto de Saúde e transporte público.

Se visitarmos as Ilhas por via terrestre, ou seja, utilizando carro ou transporte

público, o cenário que vemos é os muros altos, normalmente, com segurança protegendo as

casas de luxo, e casebres mais precários, carroças cheias de lixo para reciclar disputando

espaço com ônibus ou carros. Vemos a pobreza, o esquecimento, a exclusão.

Se visitarmos as Ilhas por via aquática, fazendo o conhecido e tradicional passeio

turístico de barco pelo Rio Guaíba, vemos as lanchas, as casas de luxo, cujo acesso por via

terrestre quase não é utilizado por seus moradores, constatamos o distanciamento que vai

além do que os muros de concreto podem separar. Vemos, outrossim, escondidos entre as

árvores, na outra margem do rio, os casebres mais precários das Ilhas, que se assemelham a

palafitas dentro do rio. Essa população não chegou a fazer parte da pesquisa.

Os entrevistados vivem na parte inicial da Ilha dos Marinheiros. Esta parte da Ilha é

mais organizada, principalmente pela influência de lideranças representativas na

comunidade. A participação no Orçamento Participativo é significativa, apesar de que há

lideranças na comunidade que mantém um discurso assistencialista evidente. Uma dessas

lideranças é Nilda. Além dela, Doralina e Mirela também compuseram o cenário da

pesquisa na Ilha dos Marinheiros.

Nilda acredita no OP, incentiva os moradores a participarem, pensa que o OP é do

povo e não de um determinado partido político, mas, como presidente do Clube de Mães,

distribui cestas básicas e “outras coisas que a comunidade precisa”. Além disso, Nilda vota

de acordo com o que o partido oferece para a comunidade. Fez campanha para Alceu

Collares, do PDT, quando este concorreu a Prefeito de Porto Alegre em 1985. Collares

havia prometido um cargo público para Nilda, na escola em que ela trabalhava e morava,

38
lhe dando uma condição de funcionária pública. Nesta mesma campanha eleitoral, Vieira

da Cunha, também do PDT, aposentou seu marido. Estes favoritismos fizeram com que

Nilda fizesse campanha na Ilha para Collares e, como ela mesma diz, ele ganhou aqui na

Ilha graças a mim. Depois que Collares ganhou as eleições municipais, deixou de cumprir

uma série de promessas que havia feito e com isso, provocou o descontentamento de Nilda.

Hoje, de acordo com ela, a depender de mim, Collares não ganha nunca mais aqui na Ilha.

Nilda conta um pouco da sua trajetória na comunidade, dizendo que, quando chegou para

morar lá, odiava aquele lugar, pois não sabia lavar roupa no rio, não sabia viver com uma

série de privações que a vida na Ilha impunha. Mas, com o tempo, aprendeu a viver lá e

hoje ela ama o lugar onde vive, e trabalha para a comunidade.

Isso realmente é confirmado por Doralina e Mirela, que trabalham com a

comunidade. Mirela é professora na escola estadual que atende a maioria dos alunos.

Porém, tem a idéia de que a comunidade é carente, é pobre, nunca vão deixar de ser o que

são, que não se interessam, que não querem fazer nada do que os professores na escola

propõem. Doralina, ao contrário, trabalha com uma perspectiva emancipatória, acredita que

a comunidade tem um movimento reivindicatório, muitos têm consciência de que são

usados por políticos que querem se promover a partir da pobreza das comunidades, refere

que é uma comunidade que está aprendendo, nesta vivência comunitária, a discernir os

políticos que trabalham de uma forma mais coletiva, com projetos voltados para a

comunidade e aqueles que trabalham de uma forma mais assistencialista.

É nesta contradição das lideranças comunitárias que a comunidade se organiza. Os

conflitos não são um impedimento para a mobilização, ao contrário, são a força propulsora

da organização comunitária que, mesmo atingindo uma parcela pequena da população das

Ilhas, é significativa.

39
Das Ilhas, nos deslocamos ao Campo da Tuca. O Campo da Tuca está situado na

zona leste de Porto Alegre. O Campo da Tuca também é considerado muito perigoso. Essa

idéia é acentuada pela localização geográfica da comunidade. O Campo da Tuca está

situado ao pé do Morro da Polícia, que é conhecido na cidade pelos constantes tiroteios

entre bandidos e polícia, pelo fato de muitos traficantes e fugitivos do Presídio Central ali

se refugiarem.

Os próprios moradores reconhecem que é preciso ter cuidado, principalmente à

noite, porque o risco de ser atingido por balas perdidas é alto, no entanto, referem que isso

não é uma característica só do Campo da Tuca, todos os lugares estão perigosos hoje em

dia, além disso, em todos os lugares, de acordo com os moradores, há gente boa, honesta e

trabalhadora, e há bandido e vagabundo.

No Campo da Tuca, as atividades comunitárias estão centralizadas na Associação

Comunitária, que tem uma importante líder comunitária, que administra atividades que

atendem a crianças e adolescentes e que desenvolve atividades culturais e de lazer para a

comunidade em geral. Há também os times de Futebol, que são responsáveis pela

mobilização esportiva e cultural da comunidade.

A localização geográfica do Campo da Tuca, bem como sua infra-estrutura, atende

às necessidades de seus moradores em relação ao transporte, ao acesso a serviços públicos

e opões de lazer. Os moradores possuem um bom nível de organização, de acordo com

Elira, líder comunitária: quando é de interesse as pessoas participam mesmo, quando não

tem muito interesse, tem que insistir muito para que participem, mas mesmo assim, a

participação é boa e a pessoas reconhecem tudo o que melhorou o Campo da Tuca, depois

que a comunidade começou a se mobilizar. Elira, assim como Serlene, Lisiane, Tamires e

Taís, foram as entrevistadas desta comunidade.

40
Taís é uma jovem de 20 anos, vive há onze na comunidade e gosta muito de viver

no Campo da Tuca. Reconhece que é um lugar que tem muitas opções de lazer, estudou até

o primeiro ano do Ensino Médio e interrompeu por causa da gravidez. Trabalha na

Reciclagem e gostaria de fazer outra coisa na sua vida profissional.

Tamires é uma senhora de 50 anos, fez a primeira série do Ensino Fundamental e

acredita não ter qualificação para desempenhar outra atividade além de serviços gerais e

reciclagem. Voltou a estudar por causa dos filhos, mas diz que interrompeu por causa da

violência na escola e da falta de professores. Como ela mesma define, vive em função dos

filhos.

Lisiane interrompeu seus estudos quando estava na quinta série do Ensino

Fundamental. Tem 27 anos e adora ficar em casa cuidando dos serviços da casa, dos filhos

e do marido. Está em Porto Alegre há 24 anos e, como a maioria dos entrevistados, sua

família veio para a capital em busca de melhores empregos e escolheram Porto Alegre por

já terem um familiar morando nesta cidade.

Serlene é atendente de creche e recentemente ganhou as eleições para Conselheira

Tutelar na sua região, função que já exerceu em outra ocasião. É uma pessoa bem

articulada com a comunidade, participa do OP porque acredita nas melhorias que a

comunidade já conquistou a partir da participação política. Iniciou o curso de Assistente

Social na ULBRA – Universidade Luterana do Brasil, mas interrompeu por questões

financeiras, pois não se trata de uma Universidade pública. No entanto, Serlene pretende

voltar a estudar e exercer a profissão na sua comunidade.

Elira é, assim como Augusto da Vila dos Papeleiros, uma personagem emblemática

deste cenário. É uma mulher de 48 anos que trabalha há muitos anos na comunidade. É

determinada a fazer com que a comunidade cresça, melhore a sua qualidade de vida,

participa do OP e procura incentivar a comunidade a participar. É articuladora e está há

41
muitos anos como presidente da Associação de Bairros, pelo reconhecimento que a

comunidade tem, das ações que Elira promove com a sua equipe de trabalho.

No Campo da Tuca conversei também com Carmem, a assistente social que

trabalha com a comunidade. Carmem conta que Elira é muito respeitada em função da

maneira como trabalha com a comunidade, a qual reconhece as melhorias que são feitas.

Vila Pinto: outra comunidade visitada. Outra comunidade considerada perigosa.

Outra comunidade pesquisada parcialmente8. A Vila Pinto também está situada na zona

leste da cidade. É uma comunidade que está cansada de ser usada para pesquisas, ou seja,

por sua característica de pobre e carente, tornou-se foco das mais diversas atividades

acadêmicas, bem como aos interesses de algumas instituições religiosas que utiliza esta

comunidade para fins doutrinários.

A falta de retorno ou qualquer outro tipo de devolução destas pesquisas e trabalhos

para a comunidade fez com que as lideranças comunitárias passassem a exigir uma

parceria, ou seja, para se fazer uma pesquisa ou trabalho universitário na comunidade, é

preciso colaborar, de alguma forma, para algo que a comunidade necessita.

Na Vila Pinto, como no Campo da Tuca, o Centro Comunitário é referência para a

comunidade, e a coordenação é muito presente na comunidade, no sentido de incentivar

a organização e a participação dos moradores na busca de melhorias, e estas melhorias

acontecem, fortalecendo, assim, a liderança comunitária. Na Vila Pinto, conhecemos

Helena e Dirce. São mãe e filha e trabalham juntas na comunidade. Helena trabalhava em

outra Unidade de Reciclagem, nos Profetas da Ecologia, e foi a coordenadora que teve

atrito com o irmão Roberto. Ela conta que o Irmão Roberto apoiava suas ações com as

mulheres trabalhadoras, mas quando percebeu que as mulheres queriam se envolver em

outras decisões da Unidade, como horário de trabalho, negociação do material a ser


8
O que significa dizer que não foi possível entrevistar os trabalhadores e moradores, apenas a presidente da
Associação de Trabalhadores, uma liderança na comunidade.

42
vendido e preço, Irmão Roberto começou a interferir no trabalho de Helena, de forma a

impedir que as mulheres fossem autônomas na sua forma de agir. Destarte, Helena saiu da

Unidade Profetas da Ecologia e foi trabalhar com Dirce, sua mãe, na Vila Pinto.

Dirce é uma mulher conhecida na cidade pelo seu trabalho na Vila Pinto, foi

idealizadora da Unidade de Reciclagem de Lixo, incentivou os moradores a participar do

OP, e sempre trabalhou para que se desmistificasse a idéia de que a Vila Pinto era uma vila

de marginais e maloqueiros.

Da zona leste, passamos agora a zona sul da cidade, visitando outras três

comunidades que fizeram parte da pesquisa.

Restinga: está situada no extremo sul de Porto Alegre. É um bairro muito populoso

e, hoje em dia, é menos discriminado do que já foi em outras épocas. Por ser um bairro

muito distante da zona central da cidade, e por já ter tido precárias condições de moradia,

saneamento e pavimentação, a Restinga foi, por muito tempo, sinônimo de tudo que não

era bom... as pessoas que assaltavam ou faziam baderna no centro da cidade, só podiam

ser da Restinga. A Restinga, aos poucos, ganhou respeitabilidade diante da cidade, muito

em função das melhorias de condição de vida e do transporte público que aproximou esse

bairro ao centro e a outros bairros. A Restinga, hoje, é um bairro muito organizado, com

uma boa infra-estrutura, que faz com que seus moradores permaneçam no bairro, sem ter

necessidade de ir a outras partes da cidade em busca de serviços ou comércio. Os atores da

pesquisa da Restinga são Magda, Estela e Bruna.

Magda tem 24 anos, estudou até a sétima série do Ensino Fundamental, morou em

outros bairros de Porto Alegre, mas diz que não pretende mais sair da Restinga. Adora o

lugar em que vive. Diz que é um bairro de gente alegre, que está sempre de bem com a

vida e, de acordo com ela, esse comportamento é o que identifica os moradores do bairro

em outros lugares da cidade. Freqüentava o OP na época em que trabalhava na Unidade de

43
Reciclagem, agora não freqüenta, mas reconhece que a Restinga melhorou muito com a

participação da população nas reuniões do OP.

Estela tem 34 anos e estava trabalhando na Unidade de Reciclagem até o dia em

que, coincidentemente, fizemos a entrevista com ela. No dia em que chegamos na Unidade,

as mulheres estavam decidindo a melhor forma de escolher quem sairia da Unidade de

Reciclagem para trabalhar na creche. Decidiram que iam fazer um sorteio e pediram que

tirássemos o papel com o nome. Estela foi sorteada. Ela disse que “não foi sorteada, foi

premiada, pois isso iria mudar a sua vida, pois ela já havia trabalhado na creche e gostaria

muito de exercer essa função novamente”. Estela é uma mulher que incentiva seus filhos a

estudar e relata que sua filha de 12 anos canta em um grupo de rock infanto-juvenil que se

formou a partir de um projeto no Centro Comunitário do bairro.

Bruna é a atual presidente da Unidade de Reciclagem. Em uma das vezes que

visitamos a Unidade, os trabalhadores estavam reunidos para decidir quem iria assumir a

presidência, uma vez que haviam constatado fraudes e favoritismos da ex-presidenta.

Bruna foi escolhida. É uma mulher tranqüila que diz não se envolver em confusões e

fofocas. Para ela, o que importa é trabalhar. Diz não participar das reuniões do OP, mas

acha que o OP é importante, principalmente porque, através dele, a comunidade consegue

manter a Unidade de Reciclagem e, conseqüentemente, uma renda para trabalhadores que,

dificilmente, estariam empregados se não fosse a Unidade.

Entre a Restinga e o Centro, também na zona sul, está o Loteamento Cavalhada,

outra comunidade estudada. O Loteamento tem uma história recente, não só em termos de

construção, como também em termos de participação política e organização comunitária.

Os moradores de ex-vilas que estavam em áreas de risco da capital começaram a ser

transferidos para o Loteamento Cavalhada no final de 1995 e início de 1996. O

44
Loteamento está situado entre a reserva ecológica do Morro do Osso e uma avenida de

grande movimento da zona sul da cidade, a avenida Cavalhada.

Pelo fato de ter sido formado por diferentes vilas, a organização comunitária

aconteceu tardiamente. No início, os moradores estavam se adaptando ao novo local de

moradia e aos novos vizinhos. A briga pelo controle do tráfico de drogas entre as diferentes

vilas que para lá foram transferidas influenciava muito nas relações interpessoais. A

Associação de Moradores tinha um funcionamento muito restrito e a participação no

Orçamento Participativo se dava por influência da Escola que há no Loteamento, muito

mais que pela Associação de Moradores.

O Loteamento, por muitos anos, se manteve sem pavimentação, dando uma

impressão de abandono por parte dos órgãos públicos, além disso, provocava problemas

sérios de alagamentos em dias de chuva.

O problema da pavimentação é um dos tantos exemplos da conseqüência da pouca

participação dos moradores, isso porque para demandar serviços para a comunidade é

preciso participar e ter representatividade nas reuniões do Orçamento Participativo,

estabelecer e votar as demandas. Para isso, também é necessária a articulação com outras

comunidades.

Atualmente, o Loteamento está pavimentado e esteticamente muito bonito. Ainda

há um longo processo de aprendizado em termos de organização comunitária, mas os

moradores, de uma certa forma, se propuseram a inserir este aprendizado no seu cotidiano

e a se dar conta que as melhorias de sua condição de vida se dão muito mais pela

participação e organização deles mesmos do que por políticas assistencialistas. No

Loteamento Cavalhada conversamos com Pedro e Claudiomar. Pedro trabalha na Unidade

de Reciclagem. Morou no Loteamento por muitos anos, mas agora vive em outra

comunidade. Destaca o trabalho da Unidade, a importância que o trabalho tem na vida dos

45
trabalhadores e a possibilidade de desenvolver a consciência ecológica a partir do trabalho

na Reciclagem. Participa do OP, pois considera o principal canal de interlocução com o

poder público e o fórum a partir do qual a população pode exercer a sua cidadania.

Claudiomar é o atual presidente da Associação de Moradores. Vive na comunidade

desde que o Loteamento foi construído. Na época da mudança para o Loteamento, ele era o

presidente da Associação, porém, como relata, não podia fazer muita coisa porque a

comunidade era muito desarticulada. Hoje, reconhecem as melhorias conquistadas no OP,

mas o discurso assistencialista ainda é muito aparente.

Do Loteamento Cavalhada em direção ao centro da cidade, descrevemos agora a

última comunidade que fez parte da pesquisa. Chama-se Padre Cacique, pois está situada

na avenida Padre Cacique, uma avenida de grande movimento que dá acesso a zona sul da

cidade.

Está situada muito próxima do centro da cidade e de conhecidos pontos turísticos,

como por exemplo, a Usina do Gasômetro, a orla do Guaíba, o Parque Marinha do Brasil, o

Anfiteatro Pôr do Sol e o Morro Santa Tereza.

Esta comunidade é formada por ex-moradores de rua, andarilhos que dormiam na

orla, nas praças do centro da cidade ou, por vezes, em albergues municipais.

Os moradores de rua são uma população sofrida, marcada pelo preconceito e pelo

estigma de vagabundos, prostitutas ou marginais.

No caso dos moradores da Padre Cacique, percebemos este estigma ainda inscrito

no seu cotidiano, mas também evidenciamos a disponibilidade que eles têm de construir,

dia a dia, a partir do trabalho, principalmente, uma história de superação, de recuperação

da auto-estima, da dignidade de morar, de trabalhar e ter dinheiro para adquirir bens e

serviços. Esta história se deve muito pelo trabalho constante da Assistente Social que

trabalha com a comunidade, e se constrói pelo trabalho na Unidade de Reciclagem de Lixo.

46
Quando chegamos na comunidade, pela Avenida Padre Cacique, que é o acesso

principal, passamos primeiro pela Unidade de Reciclagem. À frente, à esquerda, está o

acesso às casas e, à direita, está a administração da Unidade e o depósito, por onde chegam

os caminhões de lixo. Foi neste cenário que entrevistei Roseli, Lauro, Norton e Tatiana.

Roseli se diz uma mulher sofrida, que fugiu de casa, quando adolescente, porque

seus parentes não lhe tratavam bem, não lhe deixavam estudar e ela era obrigada a

trabalhar de faxineira para ajudar nas despesas da casa. Quando Roseli saiu da casa de seus

tios, tinha 12 anos. Veio para Porto Alegre e acabou nas ruas. Na rua, como ela mesma

relata, passou muitas dificuldades e vivenciou diferentes tipos de violência. Hoje, trabalha

na Unidade de Reciclagem, recuperou sua dignidade, pois pode entrar num supermercado e

comprar o que ela quiser, não é mais tratada como marginal, tem a sua casa e vive perto de

dois de seus filhos. Seu maior sonho é conhecer e reconquistar o amor e respeito de seu

primeiro filho, hoje com 17 anos, que deu para a dona da creche em que ela trabalhava na

época, pois não tinha condições de criá-lo. Hoje, Roseli reconhece como foi inconseqüente

e irresponsável, e se diz arrependida do que fez, mas como não pode fazer o tempo voltar

atrás, tenta minimizar as conseqüências de seus atos no passado.

Lauro tem 38 anos, estudou até o primeiro ano do Ensino Médio e morava no

interior do RS, em uma cidade de colonização alemã. Lauro trabalhava em uma conhecida

fábrica de calçados da região. Foi casado e, desse casamento, tem dois filhos. Relata que,

em uma determinada situação, traiu a esposa com uma colega de trabalho em sua casa. Foi

a pior situação que passou em sua vida, porque amava sua esposa, mas sentiu-se

fortemente atraído por sua colega. Arrependeu-se do que fez, principalmente porque seus

filhos presenciaram a cena. Disse que depois dessa situação, resolveu sair de casa e tentar a

vida no Rio de Janeiro.

47
Lauro não chegou no Rio, voltou para o RS, mas como não se sentia homem o

suficiente para encarar a esposa, filhos e familiares, resolveu ficar em Porto Alegre. Na

capital, sem dinheiro e trabalho, acabou nos albergues e, em seguida, nas ruas. Virou

andarilho, até que conheceu Tatiana, a assistente social que trabalha há muitos anos com

moradores de rua, e que organizou o trabalho com a reciclagem como uma forma de tirar

alguns moradores das ruas.

Lauro passou por problemas com a bebida, ficou internado algumas vezes para

desintoxicação, até que um dia decidiu que não ia mais beber. Voltou para a Unidade de

Reciclagem, disse à Tatiana que queria ter uma vida decente, e desde então, não bebe mais.

Hoje, é coordenador da Unidade de Reciclagem. Disse que deixou as duas casas que tinha

comprado na época em que trabalhava na fábrica de calçados, para seus filhos e ex-esposa.

Eventualmente vê seus filhos, e diz que gosta da vida que leva hoje e não pretende voltar

para o interior.

Norton é um rapaz de 18 anos que mora na Restinga, mas trabalha na Unidade

Padre Cacique pois está cumprindo medidas sócio-educativas. É um rapaz muito quieto

que fala pouco de seu cotidiano. Diz gostar de trabalhar na Unidade, mas porque sabe que

não tem outra coisa pra fazer. Se pudesse, faria outra coisa. Precisa trabalhar porque

andou aprontando umas coisas aí e sabe que tem que estar ali, assim como também precisa

sustentar sua esposa e filho. Norton não soube dizer para que serve o OP, acha que é pra

dar casas pras pessoas. Nunca foi a uma reunião.

O que é possível perceber, nesta comunidade, é que os moradores são muito

organizados, os assuntos da comunidade são resolvidos sempre em Assembléia, e os

assuntos de trabalho, são encaminhados pela coordenação da Unidade de Reciclagem, com

a assessoria da Assistente Social, que trabalha com a comunidade, mas os trabalhadores

tomam conhecimento de tudo o que ocorre.

48
Além dos moradores e técnicos que conheci e entrevistei nestas comunidades,

fizeram parte da pesquisa, alguns técnicos de Secretarias e/ou Departamentos que

trabalharam com as comunidades de uma forma direta ou indireta. Estes entrevistados são

Cristiano, Ligia, Mariana, Adriana, Gerci, Filomena e Mercedes.

Cristiano trabalha no Gabinete de Relações Comunitárias – GRC, que é responsável

pela viabilidade do OP. Ligia trabalha no Departamento Municipal de Limpeza Urbana –

DMLU. Mariana trabalha no Departamento Municipal de Habitação – DEMHAB. Adriana

e Gerci trabalham em escolas municipais, vinculadas à Secretaria Municipal de Educação –

SMED. Filomena e Mercedes trabalham em escolas estaduais, vinculadas à Secretaria

Estadual de Educação.

3. Caminhos metodológicos: os instrumentos da investigação

Aprofundamos nossa reflexão a partir de fontes documentais sobre as comunidades

estudadas. Realizamos questionários e entrevistas semi-estruturadas9 feitas com pessoas

representativas deste cenário de pesquisa. Nosso critério de definição da amostra foi

escolher comunidades que tinham Unidades de Reciclagem de Lixo. Essa escolha se deve

ao fato de que o preconceito é evidente; os moradores dessas comunidades são,

normalmente, desqualificados enquanto atores sociais e políticos. São percebidos, não

apenas pela comunidade do entorno, mas por alguns moradores das próprias comunidades,

como lixerios, maloqueiors e marginais e, portanto, sua vida já esta pré-destinada a viver

sempre nessa condição. Contudo, esses grupos, apresentam um potencial de organização

comunitária e engajamento em ações coletivas muito aparente.

9
Os instrumentos da investigação estão nos anexos I a IV.

49
Para facilitar a análise dos dados, as entrevistas, com prévia autorização dos

entrevistados10, foram gravadas. Estas foram transcritas e foram identificadas as seções do

texto relevantes para a pesquisa. Foi feita também uma categorização dos tópicos

relevantes para as questões pesquisadas, considerando o discurso, a observação do

comportamento e as várias formas de comunicação não verbal. Embora a metodologia

tenha sido trabalhosa, acreditamos que foi necessária para dar conta de um fenômeno tão

complexo como este.

Apresentamos as opções metodológicas que orientaram a nossa prática para a

realização dessa pesquisa. Acreditamos ser importante o rigor metodológico para garantir a

adequada análise dos dados e aprofundamento do tema ao qual nos propomos estudar nessa

tese.

Quando optamos em discorrer sobre o tema da participação política na cidade de

Porto Alegre, necessitamos revisitar algumas opções metodológicas que melhor

contemplassem aquilo que gostaríamos de pesquisar.

De acordo com Alvarez-Gayou (2003), qualquer das fases do processo

investigativo, pode ser considerada, em sentido amplo, como analítica; isso porque a

formulação do problema que o investigador estuda, direciona o fenômeno em questão,

assim como a tarefa de abordar e resolver este fenômeno continuam até a apresentação dos

resultados de investigação.

No entanto, correntemente, se entende por análise, a utilização de uma série de

procedimentos e técnicas, uma vez obtidos os dados.

De acordo com Bugess, Pole e outros citados por Alvarez-Gayou (2003:41):

El análisis de los datos no es un elemento discreto del proceso de investigación que


pueda ser separado nitidamente de las otras fases del proyecto. En lugar de ello,
10
Os entrevistados receberam o Termo de Confidencialidade e Consentimento, mediante o qual autorizavam
– ou não – a gravação da entrevista. Este Termo de Confidencialidade e Consentimento está nos anexos V e
VI.

50
argumentamos que el análisis de los datos es integral a la forma en que las preguntas
son formuladas, se seleccionan los lugares y se recogen los datos (...) En el corazón
de tal proceso hay un conjunto de cuestiones y procedimientos de investigación que
combinados con creatividad e imaginación resulta en el análisis de los datos; un
elemento clave del proceso de investigación que no puede reducirse a pasos y fases.

No interacionismo simbólico, Blumer apresenta três premissas: 1- a de que os seres

humanos atuam em relação às coisas baseando-se nos significados que essas tem para eles.

Pode tratar-se de qualquer ente que a pessoa de seu mundo, categorias, instituições, ideais

normativos, atos dos outros, ou qualquer outra situação que um ser humano encontre na

sua vida diária. 2- os significados de tais coisas derivam da interação que a pessoa tem com

outros seres humanos. 3- os significados são manejados ou modificados por meio de um

processo interpretativo que a pessoa põe em jogo quando estabelece contato com as coisas.

Estes elementos metodológicos nos ajudam a fundamentar a compreensão sobre as

questões teóricas propostas na tese.

Tomamos por critério de escolha da amostra, moradores de comunidades que

possuíam Unidades de Reciclagem de Lixo, bem como trabalhadores dessas Unidades.

Alem dessas personagens, protagonistas de nossa tese, entrevistamos também o que

podemos denominar de coadjuvantes, que são os técnicos de Secretarias e Departamentos

Municipais que trabalham com as comunidades. Detalharemos os dados sobre nossos

entrevistados no item sobre o perfil dos entrevistados.

Realizamos questionários e entrevistas semi-estruturadas a fim de compreender a

percepção que nossos entrevistados têm em relação ao processo de participação em fóruns

de participação popular que há na cidade de Porto Alegre; como esses indivíduos se

relacionam com a cidade em que vivem, como desenvolvem a percepção sobre o que é ser

cidadão e exercer a cidadania em uma cidade que se intitula inclusiva e cidadã, bem como

investigar a maneira pela qual interagem com as políticas públicas.

51
Para isso, também utilizamos análise documental para complementar nossas

entrevistas e nossas observações sobre as comunidades.

Nossa intenção, portanto, foi contemplar os aspectos psicopolíticos e psicossociais

da participação política para compreendermos o quanto essa interfere na formação da

consciência política.

A coleta de dados está circunscrita nos anos de 2003 e 2004. Contudo, não

consideramos esse, um tempo determinado para a análise, pois partimos do pressuposto

que há uma construção de significados sobre a participação política construída ao longo de

16 anos de Administração Municipal, portanto, referimos, em nosso texto, a relação da

sociedade civil e governo municipal ao longo desses anos, destacando, principalmente, a

relação com o OP. Por isso, o discurso de nossos entrevistados se faz tão importante, não

apenas do sentido de historicizar sua relação com processos de participação, mas também

para expressar a rede de significados que nos permite entender a complexidade dessa

participação.

Enquanto pesquisadores, precisamos ter a cautela suficiente na condução das

entrevistas, pois passamos por dois momentos concomitantes na coleta de dados: um

período de insatisfação partidária com a Administração Municipal, e também um período

de expectativas na transição da Administração Municipal em decorrência do resultado das

eleições municipais, que afastou da Prefeitura de Porto Alegre, a Administração Popular.

A investigação qualitativa tem sido utilizada profundamente por investigadores

sociais provenientes da sociologia, antropologia ou psicologia. Referir métodos

qualitativos é referir um estilo de investigar os fenômenos sociais nos quais se perseguem

determinados objetivos para dar resposta adequada a problemas concretos.

Há autores – como Weber, Cicourel, Goffman e Schwartz – que consideram que o

investigador tem uma capacidade de interpretação mais completa e genuína, de examinar

52
os indivíduos e os grupos desde fora, enfocando as minúcias da vida cotidiana, as

trivialidades que definem muito da qualidade e o ambiente do mundo social, isto é, o

sentido comum da vida cotidiana.

No estudo sobre a realidade social, a importância que tem a forma como se

expressam os atores sociais, constitui um pressuposto metodológico básico dos estudos

microsociológicos, e o qual acreditamos ser importante para a análise proposta.

Um dos problemas metodológicos que os pesquisadores em ciências sociais

enfrentam, de acordo com Cicourel (1982), refere-se às condições de suas pesquisas, as

quais constituem uma variável complexa e importante para o que se considera como os

resultados de suas investigações.

Para o autor, a diferença entre trabalhar na própria sociedade do observador e numa

sociedade diferente da sua fornece o ponto de partida básico para se entender as condições

nas quais as percepções e interpretações do observador ganham significado:

El sociólogo que limita su trabajo a su propia sociedad está explotando


constantemente su fondo personal de experiencias como base de conocimiento. Al
componer las entrevistas estructuradas, se basa en su conocimiento de los sentidos,
adquirido por su participación en el orden social que estudia. Puede estar seguro de
lograr un mínimo de comunicación sólo porque emplea el mismo lenguaje y sistema
simbólico que sus informadores. Los que han trabajado con técnicas estructuradas en
sociedades y lenguajes no occidentales atestiguarán la dificultad con que tropiezan
para adaptar sus sentidos a los corrientes de la sociedad estudiada, hecho que ilustra
el grado en que el sociólogo es un observador particular en casi todo su trabajo
(Cicourel, 1982:72).

A diferença entre trabalhar na própria sociedade de que se faz parte e numa outra

pode levar a diferenças no modo de estabelecer o contato inicial. Benjamin Paul (citado

por Cicourel, 1982:73) comenta que não existe um padrão de inserção em uma nova

comunidade, mas é importante convencer as pessoas observadas de que o pesquisador não

os prejudicará. É comum que pesquisadores de campo levantem o problema da necessidade

de se encontrar um papel no grupo a ser estudado. De acordo com o autor, a veces, el

53
trabajador sobre el terreno define su propio papel; a veces, se lo definen la situación y la

actitud de los nativos. Su estrategia es la de un jugador: no puede predecir exactamente

qué jugadas hará la otra parte, pero las prevé el mejor posible, haciendo sus movimientos

en consecuencia. (Cicourel, 1982:73).

Além da questão da definição de papéis, outra observação que o autor faz sobre o

problema do trabalho de campo diz respeito à participação do pesquisador na vida da

comunidade que está sendo estudada. Muitos pesquisadores podem ficar tão envolvidos na

sua participação que se hacen nativos. Schwartz e Schwartz afirmam que la variable del

continuo de la actividad de papel es el grado en que el observador participa en la

situación de investigación, extendiéndose la escala desde la participación “pasiva” hasta

la participación “activa” (In: Cicourel, 1982: 75).

O observador, como parte do campo de ação, traz com ele um conjunto de

estruturas de significado ou de relevâncias que orientam sua interpretação do meio

formado de objetos que estão dentro do seu campo de visão, qualquer que seja este meio.

Cicourel (1982) destaca que é necessário avaliar a posição do observador e os

meios de acesso em relação ao grupo a ser estudado, bem como a maneira que esse acesso

afetará sua relação com os sujeitos a serem estudados. Cicourel refere a importância que

Goffman dá a este contato inicial como sendo crucial para qualquer interação social.

Cuando un individuo llega a presencia de otros, corrientemente, tratan de obtener


información sobre él o de poner en juego la que ya tienen. Se interesarán por su
posición socio-económica general, su concepto de sí mismo, su actitud ante ellos, su
competencia, su fidelidad... Dejemos ahora a estos para tomar el punto de vista del
individuo que se presenta ante ellos. Puede querer que piensen muy bien de él o que
crean que él piensa muy bien de ellos o percibir qué es lo que siente en realidad hacia
ellos, o no obtener una impresión definida; puede querer conseguir armonía
suficiente, de modo que se mantenga la interacción, o defraudar, desembarazarse de
ellos, equivocar, confundir, hostilizar o insultarlos (In: Cicourel, 1982:93)

Os métodos qualitativos partem do suposto básico de que o mundo social é um

mundo construído com significados e símbolos, o que implica a busca desta construção e

54
de seus significados. Por isso, as técnicas qualitativas buscam: entrar dentro do processo de

construção social, reconstruindo os conceitos e ações da situação estudada, para descrever

e compreender os meios detalhados através dos quais os sujeitos se envolvem em ações

significativas e criam um mundo próprio, e conhecer como se cria a estrutura básica da

experiência, seus significados, sua manutenção e participação através da linguagem e de

outras construções simbólicas.

Conforme o interacionismo simbólico, o que os homens dizem e fazem é o

resultado de sua interpretação do mundo social, e depende mais da aprendizagem do que

do instinto biológico. Os seres humanos comunicam o que aprendem por meio de

símbolos, sendo a linguagem a mais comum deles. O elemento central de investigação

interacionista é a captura da essência desse processo de interpretação dos símbolos.

De posse dos discursos dos nossos entrevistados, tivemos condições de estabelecer

as categorias de análise, as quais foram extraídas dos próprios discursos.

O cientista social que privilegia o paradigma hermenêutico estrutura as perguntas e

as respostas no sentido de organizar os dados e interpreta todos os sucessos imediatos à luz

de experiências anteriores, de sucessos anteriores e de qualquer elemento que possa ajudar

a entender melhor a situação estudada. De acordo com esta interpretação, a metodologia

qualitativa não pode ser entendida sem o entendimento dos supostos filosóficos que a

sustentam.

Gummensson citado por Alvarez-Gayou (2003:13) ao referir sobre o paradigma

hermenêutico, apresenta as seguintes características:

Investigación centrada en el entendimiento e interpretación. Estudios tanto estrechos


como totales (perspectiva holística). La atención de los investigadores está menos
localizada y se permite fluctuar más ampliamente. Los investigadores se concentran
en generalizaciones específicas y concretas (“teoría local”) pero también en ensayos
y pruebas. La distinción entre hechos y juicios de valor es menos clara; se busca el
reconocimiento de la subjetividad. El entendimiento previo que, a menudo, no puede
ser articulado en palabras o no es enteramente consciente – el conocimiento tácito

55
juega un importante papel. Los datos son principalmente no cuantitativos. Tanto
distancia como compromiso: los investigadores son actores que también quieren
experimentar en su interior lo que están estudiando. Los investigadores aceptan la
influencia tanto de la ciencia como de la experiencia personal: utilizan su
personalidad como un instrumento. Los investigadores permiten tanto los
sentimientos como la razón para gobernar sus acciones. Los investigadores crean
parcialmente lo que estudian, por ejemplo, el significado de un proceso o documento.

De forma semelhante, Bergh (1969, citado por Alvarez-Gayou 2003:15) relaciona a

análise qualitativa com a metodologia derivada da teoria do interacionismo simbólico11

cujo foco central é a compreensão subjetiva, as percepções das pessoas, dos símbolos e dos

objetos. O autor resume as características do interacionismo simbólico da seguinte

maneira:

Los seres humanos son animales únicos. Lo que los humanos dicen y hacen es
derivado de cómo interpretan su mundo social. (...) la conducta humana depende del
aprendizaje más que del instinto biológico. (...) (los humanos) comunican lo que
aprenden a través de símbolos, el más común de los cuales es el lenguaje (...). La
tarea del investigador, en este contexto, estriba en captar la esencia de este proceso
para interpretar y captar el sentido atribuido a los diferentes símbolos.

Bergh afirma, de acordo com Blumer12, que os significados são produtos sociais

elaborados através da interação que as pessoas realizam em suas atividades. Por

conseguinte, la interacción humana constituye la fuente central de datos. A capacidade do

investigador para captar as condutas das pessoas é um elemento central para entender

como funciona a interação. El sentido de una situación y el significado de los actos

dependen de cómo los mismos sujetos definen esta situación, ou seja, por mais que estas

definições dependam das estruturas institucionais existentes, dos papéis que os indivíduos

desempenham e dos objetivos que estes se propõem, a autêntica definição da situação

provém das interações sociais. Para o autor, el análisis cualitativo surge de aplicar una

metodología específica orientada a captar el origen, el proceso y la naturaleza de estos

11
Bergh situa que o interacionismo simbólico foi iniciado por Cooley, Mead e seguido e elaborado por
Blumer, Denzin e outros. (In: Alvarez-Gayou, 2003).
12
Blumer, H. Simbolic Interationism, Perspective and Method. Prentice Hall, Englewood, 1969.

56
significados que brotan de la interacción simbólica entre los individuos (in: Alvarez-

Gayou, 2003:15).

Por isso, previlegiamos a aplicação dos questionários e das entrevistas no local de

moradia e/ou trabalho de nossos entrevistados, cenários que já foram descritos

anteriormente.

Aplicação do questionário: (Anexos I e II) antes de realizar a entrevista, aplicamos

um questionário com todos os entrevistados. Foram feitas perguntas sobre dados de

identificação de cada entrevistado. O objetivo foi identificar nossos entrevistados para

traçarmos um perfil dos mesmos, além de deixá-los mais descontraídos para responder a

entrevista.

Aplicação das entrevistas semi-estruturadas: (Anexo III e IV) após a aplicação do

questionário, foi realizada a entrevista semi-estruturada, com o objetivo de entender como

esse indivíduo se relaciona com a cidade na qual vive, com os espaços de participação

popular que a cidade oferece, e com as políticas públicas voltadas, principalmente, para as

populações pesquisadas.

Esses procedimentos contribuíram de forma significativa para a compreensão do

fenômeno que nos propusemos estudar, pois acreditamos, como refere Sandoval (1994),

que a análise dos significados de expressão verbal das pessoas é uma tarefa de juntar não

apenas elementos 'atitudinais', mas de combiná-los com os dados do contexto do qual

emergiu e a que devem estar associados (Sandoval, 1994: 59).

Assim, valorizamos a relação entrevistador-entrevistado, no sentido de que, a partir

de um roteiro previamente estabelecido, que está a serviço de guiar o pesquisador e não

prendê-lo a um esquema rígido de perguntas, é possível a interação entrevistador-

entrevistado, da mesma forma que permite ao entrevistador provocar continuamente a fala

do entrevistado.

57
Toda entrevista é um processo dinâmico multifuncional atravessado pelo contexto

social de uma vida complexa e aberta continuamente às transformações. Por isso, em toda

a comunicação, e mais ainda na comunicação interpessoal, a retro-alimentação é condição

e resultado da existência da comunicação real. Em toda entrevista, a interação

comunicativa está determinada socialmente por aspectos psicológicos subjacentes a partir

da norma contratual preestabelecida e negociada na conversação.

De acordo com Sierra (In: Cáceres, 1998: 286), além da comunicação verbal, é

imprescindível conhecer os elementos da comunicação não verbal, transmitidos através de

códigos presenciais, como por exemplo, gestos, entonação da voz ou movimentos dos

olhos.

Os códigos presenciais são mais eficientes nas funções conotativa e emotiva que

revelam a profundidade de toda relação a nível subjetivo. No caso concreto da entrevista, a

linguagem silenciosa, o corpo e, em geral, os códigos presenciais são os elementos mais

decisivos para que o entrevistador controle a comunicação.

Na entrevista, emissor e receptor, de acordo com a terminologia de Sierra (In:

Cáceres, 1998: 293), mantém uma série de relações afetivas que põem em jogo toda uma

série de diversos excedentes simbólicos. A análise da relação linguagem/sociedade mostra

que os problemas presentes na conversação, como intercâmbio cotidiano de desempenho e

uso das competências comunicativas, resultam o lugar privilegiado para estudar a

complexa rede de relações nas quais se distribui o poder e se criam as identidades coletivas

dos atores sociais.

A entrevista é, pela definição de Sierra (In: Cáceres, 1998:317), um ato de interação

pessoal entre dois sujeitos – entrevistador e entrevistado – no qual se efetua um

intercâmbio de comunicação cruzada, através do qual, o entrevistador busca transmitir a

seu interlocutor interesse, confiança, familiaridade, motivação e garantia de identificação

58
para que o entrevistado devolva, em troca, informação pessoal em forma de descrição,

interpretação e/ou afirmação evolutiva.

Da relação que mantivermos com o entrevistado dependerá a quantidade e,

sobretudo, a qualidade da informação acessível à análise. A entrevista mostra, antes de

tudo, a simulação da naturalidade do diálogo. Esta situação criada pelo entrevistador é uma

situação nova para o entrevistado. Neste sentido, ainda que o cenário seja familiar ao

entrevistado, a conversação íntima, no entanto, introduz uma certa peculiaridade ao

encontro, na medida em que o sujeito entrevistado tem que se enfrentar a sós com uma

pessoa estranha.

Sendo assim, o controle da situação da entrevista exige uma visão holística do

entrevistador sobre o contexto global no qual se desenvolve a interação conversacional.

Em conseqüência, o manejo da entrevista implica conhecer: a situação comunicativa que

rege o intercâmbio dialógico; os usos da linguagem apropriados para a interação verbal

com o sujeito em questão; o contexto e a relação com o interlocutor na situação da

entrevista; o jogo de ocultamento e desvelamento intersubjetivo com o entrevistado e, os

fatores gerais de aspecto cognitivo ou emocional que estão implícitos durante o

desenvolvimento da conversação.

Destacamos algumas informações importantes que viabilizaram a elaboração das

categorias analíticas. Essas informações foram categorizadas através de um a priori, já

estabelecido nas perguntas das entrevistas que realizamos e que foram confirmadas pelas

respostas dos entrevistados. Apresentamos essa categorização nos capítulos V, VI e VII.

Cabe ressaltar que quando nos referimos às categorias de análise, entendemos, como

sugere Alvarez-Gayou (2003) que:

las categorías y sus propiedades deben presentar dos elementos esenciales:


tienen que ser analíticas, es decir designar entidades y no solo características,

59
y deben ser sensibilizadoras, es decir, proporcionar al lector la posibilidad de
ver y escuchar vividamente a las personas estudiadas (Alvarez-Gayou, 2003:
93).

No capítulo V, organizamos os relatos em um bloco que nos dá elementos para

entender a relação com a cidade, a concepção de ser cidadão e exercer a cidadania, a

relação com a comunidade na qual vivem.

No capítulo VI, estudamos a relação com as entidades representativas na

comunidade, dentre as quais a Unidade de Reciclagem de Lixo, a Escola e o Conselho

Tutelar.

No capítulo VII, estudamos a relação dos entrevistados com a questão político-

partidária, no sentido de investigar alguns elementos presentes nas escolhas que os

indivíduos fazem em participar – ou não – dos fóruns de participação popular, bem como

com as políticas públicas estabelecidas na cidade.

O texto da tese está ilustrado pelas falas dos entrevistados13. Nossa intenção foi dar

voz às questões teóricas apresentadas ao longo do trabalho. Naturalmente, é importante

considerar que as entrevistas foram dadas em um momento social e histórico específico. As

idéias e opiniões das pessoas vão sendo construídas nas relações, no dia-a-dia, de acordo

com as vivências de cada um. Buscamos, desta maneira, não utilizar as falas de forma

determinista, mas tentando contextualizá-las em um momento histórico, social, cultural e

político, e por isso as consideramos reveladoras e ricas para o entendimento da

problemática que abordamos nessa tese.

13
A transcrição das falas foi realizada com fidelidade, não tendo sido realizado nenhum tipo de correção
ortográfica ou gramatical. Os nomes das pessoas utilizados ao longo deste trabalho são fictícios de forma a
preservar a identidade de cada um.

60
3.1- Os atores sociais da pesquisa

Os atores da pesquisa foram os moradores14 das comunidades, bem como os

técnicos que trabalhavam – direta ou indiretamente – com as comunidades. Foram

entrevistados 12 moradores e 18 moradoras, e 1 técnico e 11 técnicas, perfazendo um total

de 42 entrevistados.

20

15
Homens
Mulheres
10

0
Moradores Técnicos

A profissão destes moradores está especificada no gráfico abaixo:

12

10

0
Homens Mulheres
Recicladores Catadores Faxineira Pres.Clube Atend.Creche Pres.As.Com.

Dos que são recicladores, 4 são coordenadores ou presidentes da Unidade de

Reciclagem e 3 são coordenadoras ou presidentas.

14
Nessa seção, incluímos na categroria “moradores”, os moradores e trabalhadores das Unidades de
Reciclagem de Lixo, pois estamos considerando esses dois grupos como os moradores das comunidades
pesquisadas. Fazemos uma diferenciação entre trabalhadores e moradores, para fins de análise dos dados.

61
Dos técnicos, a representatividade dos entrevistados em relação à Secretaria ou

Departamento que trabalham está apresentada no gráfico abaixo:

3,0

2,5

2,0

1,5

1,0

0,5

0,0
Homens Mulheres

DEMHAB DMLU SMED SEC GRC - OP s/vínculo Assoc.Com. Posto Saúde

Quanto à profissão destes profissionais, a representatividade está disposta abaixo:

5
4
3
2
1
0
Homens Mulheres

Professores Arquiteta Assist.Social Psicóloga

3.2- Perfil dos entrevistados:

3.2.1- Moradores e trabalhadores

62
Estado civil

10

6
Casados
4 Solteiros

0
Homens Mulheres

Idade

0
18-25 26-30 31-40 41-50 51-60 Acima de 61

Homens Mulheres

Escolaridade

0
1 a 4 série 5 a 8 série E.Médio E.Médio E.Superior MOVA
completo incompleto

Homens Mulheres

63
Naturalidade e Motivos da vinda para Porto Alegre

Motivos de Saúde

Questões familiares

Natural de P.Alegre

Melhor condição de trabalho

0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Porto Alegre Uruguaiana Caçapava do Sul Carazinho


Viamão Rodeio Bonito Iraí Santa Rosa
Soledade Canoas Nova Hartz Capão da Canoa
São Borja Osório São Luiz Gonzaga Sobradinho
Santo Ângelo Cruz Alta Tucunduva General Câmara
São Francisco de Assis

Renda familiar

12
10
8
6
4
2
0
1 salário mínimo 2 salários mínimos 3 salários mínimos

Homens Mulheres

64
3.2.2- Técnicos

Idade

2 1
0 0

0
25-30 31-40 41-50

Homens Mulheres

Escolaridade

0
E.Médio E.Superior Pós-Graduação

Homens Mulheres

Naturalidade

0
Porto Guaraciara Santa
Alegre Maria

Homens Mulheres

65
Tempo em que trabalha no setor

21-25 anos

16-20 anos

11-15 anos

7-10 anos

4-6anos

3 anos

0 0,5 1 1,5 2

GRC - OP DMLU DEMHAB


Unidade Padre Cacique Campo da Tuca Posto de Saúde
SMED SEC Ilhas

66
CAPÍTULO II

Orçamento Participativo: um capítulo à parte

1. Histórico do Orçamento Participativo15

O Orçamento Participativo - OP - é um processo dinâmico, o qual é adequado,

periodicamente, às necessidades locais, buscando um formato facilitador, ampliador e

aprimorador do debate entre o Governo Municipal e a população. Tem sua base legal

prevista na Lei Orgânica Municipal, artigo 116. Incide na esfera de atribuição do Poder

Executivo, a quem compete elaborar a proposta orçamentária.

Conforme a ONU, a experiência do Orçamento Participativo é uma das quarenta

melhores práticas de gestão pública urbana no mundo. O Banco Mundial reconhece o

processo de participação popular de Porto Alegre como um exemplo bem-sucedido de ação

comum entre Governo e sociedade civil.

O Orçamento Participativo é respaldado por diversos instrumentos de participação

popular: o Fórum de Delegados, integrado por líderes comunitários, sindicatos,

movimentos populares; o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente;

os Conselhos Regionais de Assistência Social; o Conselho Municipal de Educação; o

fórum de Pessoas Portadoras de Deficiências; o Conselho do Orçamento Participativo –

COP, além de outras entidades.

A história do Orçamento Participativo data, efetivamente, do ano de 1989. A sua

história mostra também a criação dos Conselhos e de outros fóruns de participação que a

população de Porto Alegre aprendeu a utilizar como definidor do exercício da cidadania.

15
Fonte: Histórico do Orçamento Participativo de Porto Alegre. Cidade – Centro de Assessoria e Estudos
Urbanos.

67
Ano de 1989
1º gestão da Administração Popular
Gestão: 1989-1992
Prefeito: Olívio Dutra. Vice-prefeito: Tarso Genro
Plataforma principal: democratização das relações entre Estado e Sociedade Civil.
Ausência de recursos para investimentos – Reforma Tributária – potencialização dos
recursos próprios – “quem tem mais, paga mais”. Reformulações do IPTU e ISSQN.
Primeira proposta de Orçamento Participativo: discussão pública do orçamento e
recursos para investimento – coordenado pela Secretaria de Planejamento Municipal.
Proposta da Prefeitura de regionalização do OP em cinco regiões. Debate com as
lideranças comunitárias e sindicais – definição das dezesseis regiões: Ilhas, Humaitá –
Navegantes, Leste, Lomba do Pinheiro, Norte, Nordeste, Partenon, Restinga, Glória,
Cruzeiro, Cristal, Centro-Sul, Extremo-Sul, Eixo-Baltazar, Sul e Centro. 1ª Reunião do
OP, realizada no Sindicato dos Metalúrgicos, zona norte da capital, com duzentos
participantes. Criado o Serviço de Educação de Jovens e Adultos – SEJA16.

Ano de 1990
Aprovação da Lei Orgânica Municipal em 03.10.90. O OP passa a ser coordenado pela
CRC – Coordenação de Relações com a Comunidade. Criação do GAPLAN – Gabinete
de Planejamento responsável pelo planejamento orçamentário, mudando o padrão
tradicional de fazer o orçamento. GAPLAN e CRC estão vinculados diretamente ao
Gabinete do Prefeito. Criação do Conselho Municipal do Plano de Governo e
Orçamento. Critérios para eleição de delegados na 1ª rodada: cinco pessoas = um
delegado. Critérios para distribuição de recursos nas regiões: população carente,
população total, contribuição para a organização da cidade, mobilização popular e
carência de infra-estrutura.

Ano de 1991
Distribuição dos recursos por setor de atividade ao invés da política de concentração dos
investimentos nas áreas de carência máxima. A hierarquização é feita por órgãos da
administração. Dois critérios foram abandonados: o da mobilização popular e o da
importância da região para a organização da cidade. Novo critério: a prioridade da
região. Critérios para a distribuição de recursos: carência de serviços ou infra-estrutura
urbana da região, população em área de carência máxima de serviços ou infra-estrutura
da região, população total e prioridade da região. Criação do Fórum Regional do
Orçamento Participativo – FROP. Aprovada a lei que disciplina a concessão do direito
real de uso aos ocupantes de áreas de propriedade do poder público municipal (Lei nº
242 de 09.01.91). Criação do Conselho Municipal de Educação e do Conselho Municipal
dos Direitos da Criança e do Adolescente. Criação do Programa Municipal de Educação
Infantil – atendimento às crianças de 0 a 6 anos.

16
Atualmente denominado EJA – Educação de Jovens e Adultos

68
Ano de 1992
Reforço das relações com a comunidade: criação do Coordenador Regional do
Orçamento Participativo (CROP). Introdução de sete temas para a hierarquização:
saneamento básico, regularização fundiária, transportes, saúde, organização da cidade,
pavimentação e educação. Multiplicação dos espaços de participação, como os
Conselhos Populares e os Conselhos Tutelares. Criação do Conselho Municipal de Saúde
(CMS). Aprovada a lei que institui o Banco de Terras (Lei nº 269 de 22.01.92).

Ano de 1993
2ª gestão da Administração Popular
Gestão: 1993-1996
Prefeito: Tarso Genro. Vice-prefeito: Raul Pont
Novo nome para a pavimentação: Pavimentação Comunitária. Plano Plurianual
elaborado internamente pelo Governo e apresentado para aprovação do COP. Realização
do Cidade Constituinte17 – Qual a cidade que queremos no futuro? I Congresso da
Cidade – aprovação das diretrizes, projetos e ações da cidade que se deseja. Alterações
no IPTU: aprovado na Câmara de Vereadores a progressividade no tempo (alíquota
progressiva). Aprovada a Lei 312 que regulamenta a função social da propriedade.
Criação da Unidade Financeira Municipal (UFM) como unidade de correção dos tributos
(impostos, taxas e contribuição de melhoria). Criação dos Conselhos Escolares em
19.01.93. Início do projeto “Escola Cidadã”: participação da comunidade nas escolas.
Criação do convênio com creches comunitárias: recursos públicos e gerenciamento da
comunidade. Papel prioritário da Prefeitura na política de Assistência Social do
município articulando ações que se encontravam dispersas.

17
O Projeto Porto Alegre Mais – Cidade Constituinte foi concebido em 1993 na transição da primeira para a
segunda gestão da Administração Popular, como um processo de mobilização e de elevação da consciência
política e social da cidadania. A população deveria ser desafiada a debater e propor projetos, ações e
diretrizes gerais para o desenvolvimento da cidade. Fonte: http://www.portoalegre.rs.gov.br

69
Ano de 1994
Criação das Temáticas: Circulação e Transporte, Saúde e Assistência Social, Educação,
Cultura e Lazer, Desenvolvimento Econômico e Tributação e Organização da Cidade e
Desenvolvimento Urbano. Primeira discussão e aprovação do Regimento Interno18 no
Conselho Municipal do Plano de Governo e Orçamento. Constituição da Comissão
Paritária que coordena e planeja as atividades do Conselho, com quatro representantes do
governo e quatro conselheiros eleitos. Criação da Comissão Tripartite composta por
Governo, Conselho, e Sindicato dos Municipários (SIMPA) que trata sobre o ingresso de
pessoal na administração do município. Início da discussão dos critérios técnicos e gerais
no Conselho de forma sistemática. Redefinição do critério de eleição para delegados:
vinte participantes = um delegado. Parcela dos delegados é tirada também nas reuniões
intermediárias: dez participantes = 1 delegado, na reunião de maior quorum. 1ª
prioridade de toda a cidade: Regularização Fundiária. Plano de Desenvolvimento
Econômico: programas e projetos para dinamização da economia da cidade. Entra em
vigor a lei do IPTU progressivo no tempo e que define as Áreas Urbanas de Ocupação
Prioritária (AUOPS). Inicia-se o processo de municipalização da Saúde – o município se
responsabiliza cada vez mais pelas áreas sociais. Criação do Conselho Municipal de
Transportes Urbanos (COMTU) e do Conselho Municipal do Fundo de Compras
Coletivas (FUNCOMPRAS). Aprovada Lei 315, de 06.01.94, que dispõe sobre o Solo
Criado.

Ano de 1995
Alteração nos critérios gerais do OP: é excluído o critério “população carente da região”. O
Regimento Interno passa a ter formato próprio e é publicado. Comissão Paritária e a
Tripartite constam no Regimento Interno. Criação da Instituição Comunitária de Crédito
(ICC) Portosol. Realização do II Congresso da Cidade: início das discussões sobre a
reformulação do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano. Início da Constituinte Escolar
e reestruturação curricular: ensino por Ciclos de Formação. Criação do Conselho
Municipal de Acesso à Terra e Habitação – COMATHAB (Lei 337 de 10.01.95).
Município credencia-se no Programa Pró-moradia do Governo Federal, aumentando sua
responsabilidade na área habitacional – descentralização da política habitacional. Criação
do Conselho Municipal dos Direitos da Cidadania contra as discriminações e violência
(CMDC), do Conselho Técnico da Vila Tecnológica de Porto Alegre, do Conselho
Municipal de Assistência Social (CMAS) e do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher
(COMDIM). Regulamentação do Fundo Municipal de Desenvolvimento (FMD) (Lei 7592
de 10.01.95). Aprovada a Lei 7593, de 05.12.95, que dispõe sobre a instalação de
escritórios comunitários nas vilas irregulares de Porto Alegre.

18
É o conjunto de regras que determina o funcionamento do OP. A auto-regulação é uma marca fundamental
do Orçamento Participativo. A cada ano, os participantes analisam o Regimento Interno e o modificam,
garantindo um processo dinâmico e em constante aperfeiçoamento.

70
Ano de 1996
Mudança nos nomes dos temas de hierarquização: transporte passa a ser Transporte e
Circulação, e retira-se o termo “comunitária” da Pavimentação. Mudança nos critérios de
eleição para delegados: introdução do sistema de faixas. Introdução de uma tabela de
proporcionalidade no Regimento Interno para a eleição de conselheiros quando tiver
mais de uma chapa. Mudança no nome do Conselho: Conselho Municipal do Orçamento
Participativo. Repercussão internacional do OP: apresentado no Habitat II, em Istambul,
com a participação de conselheiros do OP. Município assume a Secretaria Executiva da
Rede de Cidades do Mercosul. Lei Kandir e FUNDEF – Fundo de Desenvolvimento do
Ensino Fundamental – retiram os recursos do município. Criação do Conselho Municipal
de Ciência e Tecnologia (COMCET), do Conselho Municipal de Agricultura e
Abastecimento (CMAA), do Conselho Municipal do Meio Ambiente (CMS), do
Conselho Municipal do Desporto e do Conselho Municipal de Alimentação Escolar
(COMAE).

Ano de 1997
3ª gestão da Administração Popular
Gestão: 1997-2000
Prefeito: Raul Pont. Vice-prefeito: José Fortunatti
Elaboração do Plano Plurianual com participação popular: discutido nos Fóruns do OP.
Alteração no critério de eleição dos delegados: oito faixas de proporcionalidade. A
rodada passa a ser chamada de Assembléia Geral Popular. Os participantes da 1ª rodada
são identificados para a escolha dos delegados. Introduz-se oficialmente o nome de
“Rodadas Intermediárias”. Criação da Comissão Tripartite II composta pelo Conselho,
Secretaria Municipal de Educação e Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do
Adolescente que trata sobre o convênio das creches comunitárias. Criação da Comissão
de Comunicação do Conselho. Mudança nos critérios gerais (pesos, notas e faixas)
carência do serviço ou infra-estrutura (peso 4 e 5 notas), população total da região (peso
2 e 4 notas) e prioridade temática da região (peso 4 e 5 notas). Novo tema de
hierarquização (total de 8 temas): Assistência Social; Ampliação do tema Regularização
Fundiária que passa a chamar-se Política Habitacional abrangendo: regularização
fundiária, reassentamento, urbanização e unidades habitacionais. 1ª Prioridade de toda a
cidade: Política Habitacional.

Ano de 1998
Alteração no critério de eleição dos delegados: quatro faixas de proporcionalidade.
Conselheiros organizam pauta de reuniões para discutir o seu papel. Novos temas de
hierarquização (total de 12 temas): Áreas de Lazer e Esporte. Desenvolvimento
Econômico e Cultura. O tema Desenvolvimento Econômico tem critérios técnicos
definidos no Regimento Interno. 1ª Conferência de Direitos Humanos. Implantação de
grandes empreendimentos na cidade deve ser submetida às diretrizes do desenvolvimento
econômico. Governo Federal suspende repasses para Estados e Municípios referentes à
moradia e saneamento. Criado o Sistema Municipal de Ensino de Porto Alegre que
implantou o Planejamento e o Orçamento Participativo na Escola Cidadã. 1ª prioridade
de toda a cidade: Pavimentação. Incluído no Regimento Interno a garantia de intérprete
da Língua Brasileira de Sinais – Libras.

71
Ano de 1999
Novo nome do Conselho: Conselho do Orçamento Participativo (COP). Aprovação do
Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental que conta com uma representação
mais efetiva das regiões. Incluído no Regimento Interno, artigo tratando sobre as reuniões
dos conselheiros. Porto Alegre ganha o prêmio Prefeito Criança. Identifica-se a
necessidade de divulgar as deliberações e encaminhamentos das reuniões da Comissão
Paritária e da Comissão Tripartite. Inclui-se no Regimento Interno a possibilidade de
constituir Comissão Especial para acompanhar real carência de casa região. 1ª prioridade
de toda a cidade: Saneamento Básico.

Ano de 2000
Alteração no critério de eleição dos delegados: dez participantes = um delegado. Na ficha
de credenciamento do participante das rodadas acrescenta-se a expressão “segmento” ao
qual a pessoa pertence. Para eleição de delegados nas rodadas intermediárias determina-se
reunião específica para este fim. Coordenação do COP substitui a Comissão Paritária,
composta de quatro representantes do governo e oito conselheiros. Introdução dos
critérios técnicos da Assistência Social. Alteração nos critérios gerais: carência de
serviços ou infra-estrutura (peso 4 e 4 notas); prioridade da região (peso 5 e 4 notas).
Criação de nova Temática: Cultura. Inclui-se no Regimento Interno: Obras institucionais
que exigirem recursos orçamentários próprios, ou financiamentos de organismos nacionais
ou internacionais, deverão ser debatidas previamente com a comunidade. 1ª prioridade de
toda a cidade: Política Habitacional. Porto Alegre ganha o prêmio Prefeito Criança. III
Congresso da Cidade – dois eixos de enfoque: gestão participativa e qualidade de vida.
Criação do Centro de Aplicação e Formação de Educadores Populares. Posse do novo
Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental e dos Fóruns Regionais de
Planejamento com a participação das comunidades. Inauguração do Auditório Popular no
Mercado Público – local para as reuniões do Orçamento Participativo. Criação do
Conselho de Segurança Comunitária.

Ano de 2001
4ª gestão da Administração Popular
Gestão: 2001-2004
Prefeito: Tarso Genro. Vice-prefeito: João Verle
Tarso Genro administrou a cidade até o ano de 2002, quando se afastou da administração
na Prefeitura para se candidatar ao Governo do Estado, nas eleições de 2002.

72
Novo tema de hierarquização (total de 13 temas): Saneamento Ambiental; Mudança nos
nomes do tema Política Habitacional para Habitação, e Organização da Cidade para
Iluminação Pública. Inclui-se no Regimento Interno que o conselheiro não pode ser agente
do MOVA. Inclui-se no Regimento Interno que o acompanhamento das obras pode ser
feito pela Comissão de Obras independente de sua fase, o governo deve providenciar o
transporte. Incluído no Regimento Interno a linguagem Braile nas plenárias. Criação da
Tripartite III: discussão das políticas de Assistência Social. Criada no COP a Comissão de
Obras, Habitação e Área Social. Inclui-se nos critérios técnicos da Habitação: necessidade
de um cadastramento junto à comunidade nos casos dos projetos habitacionais, evitando a
grilagem e a venda de terrenos. Inclui-se no Regimento Interno que o governo deverá
responder aos conselheiros(as) das regiões/temáticas as questões levantadas pelos mesmos
nos informes das reuniões. OP – Internet: possibilidade de enviar sugestões via Internet
com análise prévia do governo e sendo obrigatória a avaliação e deliberarão nos Fóruns de
Delegados do OP (www.portoalegre.rs.gov.br/op/default.htm). Discussão da Proposta do
Plano Plurianual pela população em geral, nas instâncias de base do OP, no Plano Diretor
de Desenvolvimento Urbano e Ambiental e Conselhos Setoriais. Criação do Grupo de
Trabalho Modernização do OP – internamente ao governo – para propor melhorias.
Aprovação da proposta de realização de cursos de capacitação sobre o Orçamento
Participativo. Porto Alegre é sede do Fórum Social Mundial.

Ano de 2002
Nos primeiros 14 anos do OP, a população decidiu a distribuição de mais de R$ 1 bilhão e
630 milhões em projetos, obras e serviços. O número de demandas aumenta com a
possibilidade de enviar pela Internet, mas isso não significa um aumento de participação.
Porto Alegre sedia o II Fórum Social Mundial.

Ano de 2003
A cidade contabiliza um aumento na qualidade de vida de seus cidadãos. Divulga os
números das conquistas e títulos que a cidade teve ao longo da Administração Municipal,
via Orçamento Participativo. Porto Alegre sedia o III Fórum Social Mundial.

Ano de 2004
Até 2004, uma média de 50 mil pessoas ao ano, se reuniu nas Assembléias Regionais,
Temáticas e Municipal do Orçamento Participativo. Diminui as demandas enviadas pela
Internet. A cidade continua contabilizando conquistas via OP, apesar do atraso em muitas
obras.

2. Funcionamento Geral19

O Orçamento Participativo é um processo pelo qual a população decide, de forma

direta, a aplicação dos recursos em obras e serviços que serão executados pela

19
Fontes: Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Porto Alegre – a capital do Orçamento Participativo.
Material de divulgação. 2002/2003, e www.portoalegre.rs.gov.br. Pesquisa feita em 25.09.05.

73
Administração Municipal. Inicia-se com as reuniões preparatórias, quando a

Administração presta contas do exercício do ano anterior e apresenta o Plano de

Investimentos e Serviços (PIS) para o ano seguinte. As Secretarias Municipais e

Autarquias acompanham estas reuniões, prestando esclarecimentos sobre os critérios que

norteiam o processo e a viabilidade das demandas.

A organização e o funcionamento do Orçamento Participativo foram aperfeiçoados

ao longo dos anos, por decisão dos próprios participantes, visando equacionar os

problemas mais variados que surgiram. As mudanças possibilitaram mais participação e

garantiram a democracia do processo, tornando as discussões mais transparentes,

educativas e produtivas.

A cidade foi dividida em 16 regiões com base em critérios geográficos, sociais e de

organização comunitária para possibilitar ampla participação da população. Além disso,

teve como objetivo, incentivar a participação dos cidadãos e entidades vinculadas a outros

movimentos como o de mulheres, da saúde, da educação e da cultura. Para agregar as

discussões de interesses e necessidades gerais da cidade, foram criadas as Plenárias

Temáticas.

Nas Assembléias Regionais e Temáticas, que se realizam de Abril a Maio, nas 16

Regiões e seis Temáticas do OP, a população elege as prioridades para o município,

os seus conselheiros, e define o número de delegados da cidade para os seus respectivos

fóruns regionais e grupos de discussões temáticas.

Os Fóruns de Delegados são responsáveis pela definição, por ordem de

importância, das obras e serviços que são discutidas no período de Maio a Julho e pela

análise e aprovação do Plano de Investimentos e Serviços da sua Região ou Temática.

74
2.1- Base de Discussão do Orçamento Participativo

Todo cidadão pode participar da discussão do OP na sua Região e nas Temáticas,

sendo que na Região discute e define os investimentos e serviços específicos da Região, e

nas Temáticas discute e define diretrizes, investimentos e serviços para toda a cidade, isto

é, obras estruturais e grandes projetos.

TEMÁTICAS
Circulação e Transporte
Saúde e Assistência Social
Educação, Esporte e Lazer
Cultura
Desenvolvimento Econômico, Tributação e Turismo
Organização da Cidade, Desenvolvimento Urbano e Ambiental

REGIÕES BAIRROS
01 – Humaitá – Navegantes - Ilhas Anchieta - Arquipélago (Ilha das Flores, da
Pintada, do Pavão e Ilha Grande dos
Marinheiros*) - Farrapos - Humaitá - Navegantes
- São Geraldo
02 – Noroeste Boa Vista - Cristo Redentor - Higienópolis -
Jardim Itú - Jardim Lindóia - Jardim São Pedro -
Passo D’areia - Santa Maria Goretti - São João -
São Sebastião - Vila Floresta* - Vila Ipiranga
03 – Leste Bom Jesus - Chácara das Pedras - Jardim
Carvalho - Jardim do Salso - Jardim Sabará -
Morro Santana - Três Figueiras - Vila Jardim
04 – Lomba do Pinheiro Agronomia - Lomba do Pinheiro
05 – Norte Sarandi
06 – Nordeste Mário Quintana
07 – Partenon Coronel Aparício Borges – Partenon*
- Santo Antônio - São José - Vila João Pessoa
08 – Restinga Restinga*
09 – Glória Belém Velho - Cascata – Glória
10 – Cruzeiro Medianeira - Santa Tereza
11 – Cristal Cristal
12 – Centro-Sul Camaquã - Campo Novo - Cavalhada* - Nonoai -
Teresópolis - Vila Nova
13 – Extremo-Sul Belém Novo - Chapéu do Sol - Lajeado - Lami -
Ponta Grossa

75
14 – Eixo-Baltazar Passo das Pedras - Rubem Berta*
15 – Sul Espírito Santo - Guarujá - Hípica - Ipanema -
Pedra Redonda - Serraria - Tristeza - Vila
Assunção - Vila Conceição
16 – Centro Auxiliadora - Azenha - Bela Vista - Bom Fim –
Centro* - Cidade Baixa - Farroupilha - Floresta -
Independência - Jardim Botânico - Menino Deus -
Moinhos de Vento - Mont Serrat - Petrópolis -
Praia de Belas* - Rio Branco - Santa Cecília –
Santana
* As comunidades pesquisadas localizam-se nesses bairros.

2.2- Ciclo do Orçamento Participativo20

2.3- Prioridades Temáticas das Regiões

Todas as pessoas, no momento do credenciamento, recebem sua cédula para votar

em quatro (04) prioridades escolhidas entre as 14 Prioridades Temáticas. Após os debates,

escrevem na cédula os números das quatro (04) prioridades que consideram mais

20
Fonte: Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Orçamento Participativo 2005. Regimento Interno – Critérios
gerais técnicos e regionais. Elaborado por GRC/GAPLAN. 2004.

76
importantes, em ordem de prioridade (1º, 2º, 3º e 4º lugares), conforme os códigos listados

abaixo.

As obras, ações e serviços da Prefeitura Municipal abrangem 13 grandes temas.

Estas são as prioridades temáticas do Orçamento Participativo. A população estabelece

uma ordem de prioridade para os investimentos anuais de acordo com estes temas e

também classifica suas demandas nestas prioridades.

Código Prioridade Temática Órgão


responsável
01 Saneamento Básico: Drenagem e Dragagem DEP
Estão incluídos neste tema: Rede Pluvial Micro e
Macrodrenagem (escoamento das águas da chuva); Arroios e
Cursos D’água drenagem e dragagem, e o Programa de
Educação Ambiental “Arroio não é valão”.
02 Saneamento Básico: Água e Esgoto Cloacal DMAE
Estão incluídos neste tema: Rede de Água e Rede de Esgoto
Cloacal (são aqueles formados pela água escoada pelos tanques
de roupa, pias de cozinha, banheiros e descargas sanitárias).
03 Habitação DEMHAB
Neste tema estão incluídos os programas: Regularização
Fundiária e Urbanística, PRF-Programa de Regularização
Fundiária (levantamento topográfico e cadastral, urbanização de
vilas e construção de unidades habitacionais nas vilas do PRF),
cooperativas habitacionais de baixa renda, oriundas de ocupação
e loteamentos irregulares e clandestinos. Produção
Habitacional - programa de reassentamento (compra de área,
produção de lotes urbanizados com módulos sanitários e
construção de unidades habitacionais), Programa de Ajuda
Mútua - mutirão e cooperativas auto-gestionárias de baixa
renda.
04 Pavimentação SMOV
Faz parte deste tema: a pavimentação de vias urbanas, incluindo
a abertura de ruas e a construção de calçadões, escadarias,
passarelas, pontilhões originados de demandas da pavimentação.
05 Educação SMED
Este tema é composto pelos programas: Educação Infantil -
atende crianças de 0 a 6 anos, através de convênio com creches
comunitárias, reforma, ampliação e construção de creches
comunitárias, cesta de material, recuperação, reforma e
reconstrução de escolas infantis da Rede Municipal de Ensino;
Ensino Fundamental - trata da ampliação e reforma de Escolas
de Ensino Fundamental, construção de Escola de Ensino

77
Fundamental, Educação de Jovens e Adultos (Programa SEJA e
Projeto MOVA) e Educação Especial - adaptação de espaços
físicos para atendimento dos portadores de necessidades
educativas especiais.
06 Assistência Social FASC
Este tema tem como objetivo: atender a população na área da
assistência social, através do Atendimento a Crianças e
Adolescentes - SASE, Trabalho Educativo, Abrigagem,
Educação Social e Centros de Juventude; Atendimento à
Família: Programa Família, Apoio e Proteção; Atendimento à
população adulta, Plantão Social, Construção e Reforma de
Abrigos, Casas de Convivência e Albergues; Atendimento ao
Idoso; Atendimento aos Portadores de Deficiência;
reforma/ampliação e/ou implantação de unidades de Assistência
Social (centros, módulos, abrigos, albergues);
construção/reforma/ampliação dos espaços da comunidade
utilizados para os programas do SASE, NASF, Família Cidadã,
Trabalho Educativo.
07 Saúde SMS
Estão incluídos neste tema: reforma, ampliação e construção de
Postos de Saúde; ampliação de serviços na rede básica e
equipamentos e material permanente para os Postos de Saúde.
08 Circulação e Transporte SMT/EPTC
Faz parte deste tema: a construção de rótulas, recuo de transporte
coletivo e/ou área de escape para embarque e desembarque de
passageiros, abrigos e equipamentos de sinalização.
09 Áreas de Lazer SMAM
Tema que tem como objetivos: realizar serviços de manutenção
e conservação de praças e parques e também implantar
equipamentos (recreação infantil, bancos, aparelhos esportivos e
outros) em áreas administradas pela SMAM. Também trata do
Programa Área de Risco que tem como objetivo geral proteger a
população e o meio ambiente dos danos causados pela ocupação
humana em áreas impróprias para moradia.
10 Esporte e Lazer SME
Estão incluídos neste tema: as atividades de esporte e lazer
como: construção de equipamentos esportivos (campos de
futebol, quadras, canchas de bocha e outros) e equipamentos de
lazer (playground e recantos infantis) bem como sua
conservação nas áreas administradas pela SME além da reforma
e ampliação dos Centros Comunitários.
11 Iluminação Pública DIP/SMOV
Este tema trata da iluminação de logradouros públicos do
município no que diz respeito a projetos, implantação e
manutenção. Implantação de novos pontos em ruas, avenidas,
praças, parques, passagens de pedestres e escadarias.
12 Desenvolvimento Econômico, Tributação e Turismo SMIC
Este tema tem como objetivo: o desenvolvimento econômico do
município através dos programas de abastecimento e área rural,

78
programa de ocupação e renda (apoio às iniciativas econômicas
populares), apoio a empreendimentos, urbanização, reforma,
ampliação ou construção de equipamentos turísticos e apoio à
produção e serviços turísticos.
13 Cultura SMC
Este tema está vinculado às atividades de cunho cultural da
cidade: administrando equipamentos culturais (teatros, museus e
outros), desenvolvendo atividades de descentralização da cultura
(Programa Cultural “Pura Aqui”, Oficinas, Festival de Música,
Memória dos Bairros e Festas da Cidade) além de ações, eventos
da cultura (Carnaval, Semana de Porto Alegre, Porto Alegre em
Cena e outros).
14 Saneamento Ambiental DMLU
Estão incluídos, neste tema: o projeto "Bota Fora" (atendimento
em vilas) e o Serviço de Coleta Seletiva, Programa de
Compostagem de Lixo Orgânico e Reforma de Unidades de
Triagem.

2.4- Prioridades das Plenárias Temáticas

Plenárias Temáticas Prioridades


CIRCULAÇÃO E Pavimentação de Estradas - Duplicação e Alargamento
TRANSPORTE de Vias - Programa de Mobilidade e Organização do
Espaço Urbano - Abertura de Vias e Rótulas -
Qualificação de Terminais e Parada Segura - Segurança
Viária - Juventude - Portadores de Deficiência
CULTURA Atividades de Descentralização da Cultura -
Equipamentos Culturais - Ações e Eventos da Cultura
- Comunicação Comunitária - Juventude - Portadores de
Deficiência
DESENVOLVIMENTO Geração de Trabalho e Renda (apoio às iniciativas
ECONÔMICO, populares) - Abastecimento e Área Rural - Apoio a
TRIBUTAÇÃO E Empreendimentos - Turismo - Juventude - Portadores de
TURISMO Deficiência
EDUCAÇÃO, ESPORTE E Educação: Educação de Jovens e Adultos - Educação
LAZER Infantil - Ensino Fundamental - Educação Especial -
Juventude - Portadores de Deficiência
Esporte e Lazer: Equipamentos Esportivos - Reforma e
Ampliação dos Centros Comunitários - Equipamentos de
Lazer e Recreação - Juventude - Portadores de
Deficiência
ORGANIZAÇÃO DA Habitação - Saneamento Básico - Meio Ambiente
CIDADE, - Urbanismo - Saneamento Ambiental - Juventude -
DESENVOLVIMENTO Portadores de Deficiência
URBANO E AMBIENTAL
SAÚDE E ASSISTÊNCIA Saúde: Construção e Ampliação da Rede Especializada -
SOCIAL Reforma, Ampliação e Construção de Postos de Saúde -

79
Ampliação de Serviços na Rede Básica - Juventude -
Portadores de Deficiência
Assistência Social: Atendimento à Criança e ao
Adolescente - Atendimento à Família - Reforma,
ampliação e/ou implantação de Unidades de Assistência
Social - Atendimento à População Adulta - Atendimento
aos Portadores de Deficiência
- Grupos de Convivência da Terceira Idade
- Juventude - Portadores de Deficiência


2.5- Critérios Gerais para Distribuição de Recursos entre Regiões e


Temáticas

2.5.1- A escolha das Prioridades Temáticas das 16 Regiões

As deliberações sobre a distribuição de recursos são tomadas com base em três

critérios gerais: carência do serviço ou infra-estrutura, população total da região, prioridade

temática da região. Esses critérios são aplicados para a distribuição de recursos nas três

primeiras prioridades temáticas escolhidas globalmente pelas 16 regiões, com exceção do

DMAE, que tem critérios próprios. O cálculo para definir as três primeiras prioridades

globais é feito da seguinte forma:

1) Cada região escolhe 4 prioridades dentro das 13 prioridades temáticas.

2) São atribuídas notas às prioridades de cada região:


Primeira prioridade nota 4
Segunda prioridade nota 3
Terceira prioridade nota 2
Quarta prioridade nota 1

3) Somando-se as notas de todas as prioridades escolhidas pelas 16 regiões têm-se

as três prioridades, que serão aquelas que somarem maior pontuação.

Da Quarta à Décima terceira Prioridade Temática, as prioridades globais das 16

regiões são resultado do mesmo cálculo efetuado para encontrar as três primeiras. É

priorizado o atendimento das demandas de regiões que as tenham escolhido entre as suas

80
quatro prioridades temáticas. No caso de haver saldo disponível de recursos depois de

atendidas as regiões que priorizaram, são atendidas as outras regiões, considerando-se a

viabilidade técnica das demandas e a carência de infra-estrutura ou serviço de cada região.

No caso de recursos provenientes de financiamento, a sua utilização para atender as

demandas das regiões e temáticas estará condicionada às exigências do órgão financiador,

à natureza das obras, à existência de projetos e de situação fundiária regular.

2.6- Regras para apresentação das demandas

2.6.1- Gerais

As demandas e propostas de prioridades para a região ou temática são

encaminhadas, pessoalmente (por qualquer meio), ou através da Internet (via

GAPLAN/CRC - sob análise prévia), sendo obrigatória sua avaliação e deliberação nos

fóruns de delegados do Orçamento Participativo. Após a deliberação nos fóruns de

delegados, as demandas são entregues no dia da Assembléia Municipal, registradas em

formulário fornecido pelo GAPLAN, hierarquizadas em ordem de prioridade e assinadas

pelos conselheiros.

2.6.2- Regionais

As regiões podem apresentar até quinze demandas de obras e serviços nas suas

quatro prioridades temáticas e até cinco demandas nos demais temas. As mesmas são

entregues no formulário fornecido pelo GAPLAN, no dia da Assembléia Municipal,

contendo: descrição clara da solicitação; localização, sendo que, para obras de

pavimentação e saneamento básico é imprescindível o preenchimento do mapa no verso do

formulário; metragem estimada; indicação da vila e bairro no qual se localiza a demanda.

81
2.6.3- Temáticas

As Temáticas poderão apresentar até quinze demandas para o eixo eleito em

primeiro lugar, e até cinco demandas para os demais eixos.

2.6.4- Os três critérios gerais

População Total da Região Peso 2


Até 25.000 habitantes nota 1
De 25.001 a 45.000 habitantes nota 2
De 45.001 a 90.000 habitantes nota 3
Acima de 90.001 habitantes nota 4

Carência do Serviço ou Infra-estrutura Peso 4


De 0,01% a 14,99% nota 1
De 15% a 50,99% nota 2
De 51% a 75,99% nota 3
De 76% em diante nota 4

Prioridade Temática da Região Peso 5


Quarta prioridade nota 1
Terceira prioridade nota 2
Segunda prioridade nota 3
Primeira prioridade nota 4

2.7- Alguns dados do Orçamento Participativo

2.7.1- Prioridades Temáticas - Período: 1992 a 2004

Apresentamos, no quadro abaixo, as prioridades definidas pelo OP desde 1992, para

todas as regiões. O ano de 1992 foi o primeiro ano em que estas prioridades foram

incluídas nos critérios gerais para distribuição de recursos.

82
OP 1º Prioridade 2º Prioridade 3º Prioridade

2004 Habitação Assistência Social Educação

2003 Habitação Educação Pavimentação

2002 Habitação Educação Pavimentação

2001 Pavimentação Habitação Saneamento Básico

2000 Política Habitacional Pavimentação Saúde

1999 Saneamento Básico Pavimentação Política Habitacional

1998 Pavimentação Política Habitacional Saneamento Básico

1997 Política Habitacional Pavimentação Saneamento Básico


Regularização
1996 Pavimentação Saneamento Básico
Fundiária
Regularização
1995 Pavimentação Saneamento Básico
Fundiária
Regularização
1994 Pavimentação Saneamento Básico
Fundiária
Regularização
1993 Saneamento Básico Pavimentação
Fundiária
1992 Saneamento Básico Educação Pavimentação

No ano de 2004, estimou-se em 13.283 o número de pessoas, incluindo os

conselheiros, que se credenciaram para eleger as prioridades regionais e temáticas. Nas

assembléias regionais houve 9.088 credenciados, e nas assembléias temáticas, houve a

participação de 13.284 pessoas.

83
2.7.2- Qualidade de vida via Orçamento Participativo

Abaixo, apresentamos alguns gráficos que são indicativos de melhorias na

qualidade de vida da população porto-alegrense ao longo dos 16 anos da Administração

Municipal – também conhecida como Administração Popular.

2.7.2.1- Pavimentação

A pavimentação foi a prioridade durante vários anos em toda a cidade. Em 1988, a

carência de pavimentação era de 690 quilômetros e, em 2003 foi de 390 quilômetros.

Carência de
Pavimentação em 2003
390 km
690 km

Carência de
Pavimentação em 1988

A recuperação das ruas da cidade foi outra obra conquistada via Orçamento

Participativo. Em 1991, o Orçamento Participativo estabeleceu como critério para

aplicação de recursos, a carência de serviços ou de infra-estrutura urbana da região, e

população em área de carência máxima de serviços. No ano seguinte, foram introduzidos

temas para hierarquização, e a pavimentação foi um deles. A pavimentação já esteve

quatro vezes em primeiro lugar nas demandas da cidade, cinco vezes em segundo lugar e

três vezes em terceiro lugar. Isso representa que as ruas das regiões mais carentes

financeiramente foram sendo sistematicamente pavimentadas, o que significou, também,

incluir saneamento e linhas de ônibus, consideradas, pela Administração Popular,

fundamentais para a qualidade de vida das famílias.

2.7.2.2- Rede de água e esgoto

O aprendizado conquistado no Orçamento Participativo tem a ver com o

conhecimento de que, para pavimentar, era necessário, anteriormente, realizar obras de

84
saneamento básico. Desta forma, muitas pavimentações foram precedidas da instalação de

redes de água e de esgoto. Em 1992, o Orçamento Participativo incluiu saneamento básico

como um dos sete temas a serem hierarquizados pelos cidadãos. Em 1992, 1993 e 1999, foi

escolhido como prioridade para toda a cidade. Em 2001, um novo tema foi acrescido aos

13 a serem hierarquizados pelo OP: saneamento ambiental, resultado de discussões

nascidas nas reuniões do OP. Em 2004, se contabilizou, em Porto Alegre, 84% do esgoto

coletado, sendo 27% tratados (em 1989 eram apenas 2% e, com o Projeto Sócio

Ambiental, chegou-se próximo de 77%), e 99,5% das casas com água tratada e de

qualidade. Os 5% das casas não atendidas pelo sistema estão fora da área urbana, ou em

ocupações de áreas de risco mas, mesmo assim, recebem água por caminhões pipa ou de

poços artesianos.

100
80
60
40
20
0
1989 2002 2003 Projeto Sócio
Ambiental

Abastecimento de água tratada Coleta de esgoto Tratamento de esgoto

2.7.2.3- Transporte Público

O trabalho de pavimentação foi muito mais do que pavimentar as ruas das

comunidades distantes. Foram realizadas grandes obras de duplicação e construídos novos

corredores de ônibus. O investimento na organização do sistema viário e circulação

obedeceu a um planejamento contínuo. Em 1992, transporte foi incluído entre as sete áreas

a serem hierarquizadas no Orçamento Participativo. Em 1994, a criação das plenárias

temáticas no OP incluiu circulação e transporte como um dos temas. Naquele ano foi

criado o Conselho Municipal de Transportes Urbanos. Em 1998, foi criada a Empresa

85
Pública de Transporte e Circulação (EPTC). Estes fatos tiveram decisiva participação nas

melhorias das avenidas, dos corredores de ônibus, do fluxo do trânsito na cidade. Porto

Alegre tem um dos melhores transportes coletivos do país. Operam 1.594 ônibus em 328

linhas, sendo 258 ônibus com ar condicionado e 208 com acessibilidade universal e

equipamentos para portadores de deficiência. A frota é constantemente renovada e a idade

média de circulação é inferior a cinco anos.

2.7.2.4- Saúde

Em 1989, os gastos com saúde representavam 10,9% do Orçamento, em 2002,

chegaram a 18%.

Gastos com a saúde

1989
10,9%

2002
18%

Na saúde, houve uma progressiva construção da mudança. Em 1992, ela foi

incluída como uma das sete áreas para hierarquização do Orçamento Participativo. No

mesmo ano, ampliando a participação da comunidade na formulação de políticas públicas,

foi criado o Conselho Municipal de Saúde (CMS). Em 1994, a saúde passou a ser uma das

temáticas do OP. O ano marca o início do processo de municipalização da saúde. Até 1998,

quando se dá a municipalização plena da saúde, a Prefeitura tinha apenas onze unidades de

saúde. A partir de então, incorporou ao SUS quarenta e seis unidades dos Governos

Federal e Estadual. Equipou, reformou ou ampliou quarenta delas. A rede é formada por

quarenta e seis unidades de saúde e seis ambulatórios básicos (que constituem a rede de

86
atenção básica), onze centros especializados em saúde, seis ambulatórios especializados e

cinco serviços de pronto-atendimento. Além destes setenta e quatro estabelecimentos de

saúde pública, Porto Alegre tem sessenta e três equipes do Programa de Saúde da Família

operando em quarenta e oito prédios, os quais são chamados Postos de Saúde da Família

(PSF). O Hospital de Pronto Socorro (HPS) foi modernizado e é referência pela excelência

do atendimento, e o Hospital Presidente Vargas, municipalizado em 2000, foi reequipado.

Desde 1995, Porto Alegre conta com a SAMU, o Serviço de Atendimento Móvel de

Urgência, hoje com quatorze unidades.

2.7.2.5- Educação

No início da Administração Popular, em 1989, foi criado o Serviço de Educação de

Jovens e Adultos (SEJA), que alfabetizou 4.223 pessoas. Em 1991, foram criados o

Conselho Municipal de Educação e o Programa Municipal de Educação, para entender

crianças de até seis anos. Em 1992, Educação foi um dos sete temas hierarquizados pelo

OP. Em 1993, teve início o Projeto Escola Cidadã, que abriu a participação da comunidade

nas escolas. No mesmo ano, foram criados os Conselhos Escolares, e começou a ser

implantado o sistema de convênios para operar as chamadas creches comunitárias, nas

quais a maior parte dos recursos são públicos e o gerenciamento é da comunidade. As

primeiras 40 creches atendiam a 2000 crianças. Em 2003, 129 creches atendiam a 8.530

crianças e o convênio foi ampliado e renovado até 2007. Em 1994, Educação passou a ser

uma das temáticas da cidade. Em 1995, a Constituinte Escolar começou a reestruturação do

ensino, introduzindo os Ciclos de Formação. Em 1997, foi criado o Movimento de

Alfabetização (MOVA), que já incluiu na leitura 12.765 pessoas. A Educação, em Porto

Alegre, recebeu grandes investimentos. Em 1988, havia 29 escolas municipais, em 2003

havia 92.

87
140
120

100
80

60
40

20
0
1988 2003

Escolas da Rede Municipal de Ensino Convênios com Creches Comunitárias

Alunos matriculados, em 1988, eram 17.862; em 2003, chegou a 58.675 matrículas.

O resultado dos investimentos é que, apesar do crescimento da população, o analfabetismo

decresceu. Em 1988 o percentual de alfabetização da população era de 94,4%, em 2003 era

de 96,7%.

60.000

50.000

40.000

30.000

20.000

10.000

0
1989 2003

Crianças atendidas pelas Creches Comunitárias Alunos atendidos na Rede Municipal de Ensino

2.7.2.6- Meio Ambiente

Em 1988, o percentual da população atendida pela coleta de lixo era de 85%. Em

2003 é de 100%. Nenhum bairro tinha coleta seletiva. Porto Alegre é uma cidade na qual

todos os bairros são atendidos, e o recolhimento diário passa de 70 toneladas.

88
2003
100%

1988
85%

0 0,2 0,4 0,6 0,8 1

População atendida pela Coleta de Lixo Bairros atendidos pela Coleta Seletiva de Lixo

Em 1996, Porto Alegre criou o Conselho Municipal do Meio Ambiente e é

considerada a capital brasileira que mais recicla e que tem o serviço de coleta seletiva

melhor estruturado. A população participa da limpeza em constantes mutirões para

recolher lixo dos arroios e riachos, e colabora com o Programa Guaíba Vive, que tem

recuperado a balneabilidade do Guaíba e sua orla. Porto Alegre tem um milhão de árvores

plantadas em vias públicas e um índice de 16,42 m2 de área verde por habitante, uma das

capitais mais arborizadas do País (em 1989 o índice era 14,39 m2 por habitante). Porto

Alegre tem nove parques públicos, três reservas ambientais e 748 praças – de 1989 para cá

142 praças foram urbanizadas, perfazendo um total de 1,3 milhão de m2.

2.7.2.7- Assistência Social

Nos últimos anos, a Prefeitura Municipal, em parceria com a população e

segmentos sociais organizados, criou e fortaleceu políticas de inclusão social e programas

de defesa de crianças e adolescentes, idosos, negros, mulheres, portadores de deficiência

física, de sofrimento psíquico, de HIV, e programas de direitos humanos, de combate à

miséria e de proteção a famílias em vulnerabilidade social. Em outubro de 1991, foi criado

o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA). Em 1992,

foram criados os primeiros Conselhos Tutelares do País. Em 1993, a Prefeitura assumiu

papel prioritário na política de assistência social, articulando ações antes dispersas. Tem

uma rede de serviços que envolve mais de 400 entidades, atuando em todas as etapas da

89
vida, em cada necessidade específica de atendimento. Em 1994, as temáticas do

Orçamento Participativo incluíram Assistência Social. Em 1995, foram criados os

Conselhos Municipais dos Direitos da Cidadania21, dos Direitos da Mulher e de

Assistência Social. Em 1997, Assistência Social passa a ser a oitava área de hierarquização

do Orçamento Participativo. Em 1988, nenhuma criança era atendida pelo Serviço de

Apoio Sócio-Educativo – SASE, em 2003, era de 4.435 crianças atendidas. O número de

famílias atendidas no Núcleo de Apoio Sócio-Familiar – NASF e no Programa de

Erradicação do Trabalho Infantil – PETI, em 2003, era de 1.705 famílias, conforme ilustra

o gráfico abaixo:

2003 4.435 1.705

1988 0

0 1000 2000 3000 4000 5000 6000 7000

Crianças e Adolescentes atendidos - SASE


Famílias atendidas - NASF e PETI

Em média, foram investidos, anualmente, R$ 23 milhões em projetos de inclusão

social. Em todos os programas da Prefeitura, mensalmente, foram servidas 5,5 milhões de

refeições gratuitas. São programas para as faixas etárias de até seis anos22, de sete a dezoito

anos23 e para adultos, famílias e idosos24. A Assistência Social, em 2004, passou a ser a

segunda prioridade do Orçamento Participativo.

21
O Conselho Municipal dos Direitos da Cidadania foi transformado, em 1999, no Conselho Municipal dos
Direitos Humanos.
22
Programas: Prá-vida, Prá-crescer, Projeto Esperança, Renascer, Pra-nenê, Creches Comunitárias
Conveniadas, Rede Municipal de Ensino e Bolsa Escola.
23
SASE, Programa de Abrigagem e Projeto Travessia nas Escolas, Agente Jovem, Trabalho Educativo.
24
Bandejão, Programa Família Apoio e Proteção, Serviço de Atenção ao Idoso.

90
2.7.2.8- Política Habitacional: Habitação como prioridade25

A Administração Popular, nos dezesseis anos de sua gestão manteve, como

prioridade, o investimento na política habitacional da cidade. Nessa política, a habitação

foi concebida como direito humano, e a moradia digna, como base para a concepção de

que todas as pessoas possuem o direito à cidade e aos seus serviços, como transporte,

saúde, educação, cultura, esporte, lazer, assistência social, trabalho e renda.

Programas como Urbanização de Áreas Ocupadas e Regularização Fundiária26,

Produção Habitacional27, Fomento ao Cooperativismo28 e Programas Integrados29,

viabilizados com recursos próprios do Município, financiamentos dos governos Estadual e

Federal, além de financiamentos internacionais, fizeram de Porto Alegre uma das cidades

que mais investe em habitação. Nos últimos dezesseis anos, foram aplicados R$ 300

milhões, o equivalente a R$ 18 milhões anuais, para a execução da política habitacional em

todas as regiões da cidade. Esse valor pode ser traduzido em número de moradias. Nesse

período, foram construídas aproximadamente quinze mil moradias, beneficiando cerca de

cinqüenta mil famílias, como revela o quadro abaixo.

25
Fonte: Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Habitação é prioridade em Porto Alegre. DEMHAB/GCS,
Junho de 2004.
26
Tem por objetivo integrar na cidade formal, as famílias que vivem de forma irregular. Atua por meio da
legislação, urbanização e da integração dos serviços públicos e comunitários, garantindo a permanência das
famílias na região de origem. Realiza estudo socioeconômico que identifica as principais características da
comunidade, desenvolvendo projetos para atender as suas necessidades fundamentais. Executado em etapas,
o programa divide-se em Levantamento Topográfico Cadastral e Pesquisa Cartorial, apuração das
características gerais da área ocupada, como número de famílias e a titularidade da área; Urbanização,
realização de projeto técnico, necessariamente, aprovado pela comunidade, que verifica a viabilidade de
execução de obras de qualificação, como abertura de ruas e implantação de infra-estrutura; e Titulação,
última etapa do processo, e que garante a posse da área, através de usucapião – em área particular, ou
contrato de concessão do direito real de uso – em área pública.
27
Este Programa qualifica as condições de moradia das famílias que residem em locais impróprios, como
áreas de risco, insalubres ou destinadas ao desenvolvimento da cidade. Destina-se a reassentar famílias em
locais seguros, dignos e projetados de acordo com as necessidades de cada comunidade.
28
Tem por objetivo fomentar a união de famílias para a construção de suas próprias moradias em cooperação.
O DEMHAB realiza ações de educação, formação e capacitação dos associados; presta assessoria técnica,
jurídica, urbana e habitacional; e canaliza o repasse de recursos para projetos de infra-estrutura em forma de
financiamento.
29
São programas que mobilizam as diversas Secretarias e Departamentos da Prefeitura. Viabilizam
financiamentos externos e investimentos próprios municipais para resolver os problemas mais graves de
habitação, saneamento, equipamento cultural e sistema viário.

91
RESUMO DE FAMÍLIAS BENEFICIADAS POR REGIÃO – JUNHO DE 2004
Total de Investimento em 16 anos – R$ 312 milhões
REGIÃO REGULARIZAÇÃO PRODUÇÃO TOTAL DE
FUNDIÁRIA HABITACIONAL FAMÍLIAS
Humaitá/Navegantes/Ilhas* 876 2.083 2.959
Noroeste* 64 164 228
Leste* 7.737 61 7.798
Lomba do Pinheiro 4.741 403 5.144
Norte 1.733 663 2.396
Nordeste* 3.298 4.322 7.620
Partenon* 2.794 350 3.144
Restinga* 542 2.508 3.050
Glória 2.299 238 2.537
Cruzeiro 6.764 917 7.681
Cristal 1.363 21 1.384
Centro-Sul* 1.137 1.660 2.797
Extremo-Sul 284 589 873
Eixo-Baltazar* 751 1.478 2.229
Sul 1.908 195 2.103
Centro* 359 495 854
TOTAL 36.650 16.147 52.797
* Regiões em que se encontram as comunidades pesquisadas

Em 15 anos – de 1973 a 1988 – os governos municipais construíram 7.400 unidades

habitacionais em Porto Alegre. Em igual período – de 1989 a 2003 – a Administração

Popular construiu 12 mil unidades. Após a conclusão das três mil casas do Programa

Integrado Entrada da Cidade – PIEC30 – em 2007, o número de unidades entregues chegará

a 15 mil.

30
Programa Integrado Entrada da Cidade é um programa de recuperação urbana que está em execução em
Porto Alegre. Até 2007, a região dos bairros Navegantes, Humaitá e Farrapos será totalmente transformada,
com a implantação de projetos de habitação de interesse social, de infra-estrutura viária, recuperação urbana
e paisagística e criação de novas opções de trabalho e renda. Um investimento total de U$ 55 milhões, com
financiamento internacional do Fonplata – Fundo Financeiro para Desenvolvimento da bacia do Prata – com
sede na Bolívia. O PIEC é uma intervenção simultânea, em 22 vilas populares, de onze secretarias e oito
órgãos municipais. As primeiras 191 casas já foram entregues. Ao todo serão 3.061 unidades, beneficiando
14 mil pessoas. Haverá também obras em dez ruas e avenidas, incluindo a duplicação da avenida Voluntários
da Pátria. O Parque Mascarenhas de Moraes será reequipado e 25 praças recuperadas, mais a construção de
novas praças, loteamentos e um jardim linear, ao longo da Free Way. Novos postos de saúde, escolas, creches
comunitárias e equipamentos de geração de renda fazem parte do programa.

92
Período
1973-1988

7.400
15.000

Período
1989-2003 +
PIEC

Mais do que moradias, foi criada uma política para o setor. Em 1991, foi aprovada a

lei que disciplinou a concessão do direito real de uso (CDRU) aos ocupantes de áreas de

propriedade do poder público municipal. Em 1992, foi aprovada a lei que instituiu o Banco

de Terras. Em 1994, Regularização Fundiária é escolhida como primeira prioridade do

Orçamento Participativo para toda a cidade. Em 1995, é criado o Conselho Municipal de

Acesso à Terra e Habitação, e o município se credencia no Programa Pró-Moradia do

Governo Federal, aumentando sua responsabilidade na área habitacional e na

descentralização da política habitacional. Em 2004, Habitação foi prioridade de toda a

cidade pelo terceiro ano consecutivo. Porto Alegre tem uma política definida para o setor,

construída com os movimentos populares, o que se reflete positivamente na redução do

déficit habitacional.

2.7.2.9- Cultura

Assim como todas as políticas da cidade, feitas com a participação dos setores

envolvidos, população e comunidade artística construíram, ao longo dos anos, uma política

para a cultura. Em 1993, o Projeto Descentralização da Cultura espraiou eventos por todas

as regiões da cidade. Em 1994, com a criação das temáticas do Orçamento Participativo,

cultura e lazer passaram a ser uma delas. Em 2000, cultura passa a ser uma temática

exclusiva. Muitas iniciativas incentivaram cada vez mais a cultura: o Fumproarte apoiando

novos talentos, prêmios Açorianos de Música, de Literatura, as mostras em Buenos Aires,

93
Montevidéu, Saint Denis, o Salão Internacional de Desenho para a Imprensa, a utilização

para atividades culturais de prédios tombados e museus municipais recuperados.

2.7.2.10- Trabalho e Renda

A reestruturação administrativa e o acesso de mais empresas às obras e serviços

públicos aumentaram a capacidade empresarial em diversas atividades. No primeiro

mandato da Administração Popular, em dezembro de 1991, foi criada a Incubadora

Empresarial Tecnológica para incentivar novas áreas de atuação na economia. No segundo

mandato, em 1993, o Congresso Cidade Constituinte aprovou as diretrizes, projetos e ações

da cidade desejada, que foram fundamentais para estabelecer os rumos do crescimento. Em

1994, teve o Plano de Desenvolvimento Econômico: programas e projetos para

dinamização da economia da cidade, e a lei do IPTU progressivo no tempo, que definiu

também as áreas urbanas de ocupação prioritária. Em 1995, foi regulamentado o Fundo

Municipal de Desenvolvimento e criada a Instituição Comunitária de Crédito (ICC)

Portosol, para favorecer o micro-crédito para segmentos que não tinham acesso ao crédito

bancário tradicional. A partir de 1997, o Projeto Ações Coletivas incentivou uma série de

negócios solidários nas áreas de produção, serviços e comercialização. Em 1998, na nova

hierarquização do Orçamento Participativo em 12 áreas, entra o Desenvolvimento

Econômico, que tem seus critérios definidos no Regimento Interno. Ao injetar nos últimos

anos, aproximadamente, R$ 2 bilhões de investimentos em obras na cidade, a Prefeitura se

constituiu em um grande impulsionador de negócios, além de reorganizar as bases da

educação, saúde, saneamento, viabilizando uma qualidade de vida para a população porto-

alegrense e tornando a cidade atraente para investimentos.

94
2.7.2.11- Tecnologia

Porto Alegre tem quinze telecentros em comunidades carentes financeiramente. São

ambientes informatizados, instalados em espaços comunitários, que oferecem acesso

gratuito à Internet e a programas de capacitação. Cada local tem doze computadores, um

scanner e duas impressoras. Três monitores da comunidade orientam os usuários e

realizam oficinas de informática básica. Em média, os telecentros recebem quase quinze

mil pessoas por mês, com faixa de um a quatro salários mínimos de renda. Cada usuário

pode ter seu próprio e-mail. A Prefeitura também utiliza a tecnologia da inclusão das

comunidades na informática. Cinqüenta e duas escolas municipais de Ensino Fundamental

ganharam laboratórios, com 900 computadores que rodam em plataforma livre. São

espaços que atendem 91,3% dos mais de 49 mil alunos da rede municipal. Os centros

populares de acesso à rede municipal e a informatização da rede escolar e dos serviços

públicos só foram possíveis porque existe um trabalho que iniciou com o fortalecimento e

modernização da Empresa de Processamento de Dados – Procempa – de Porto Alegre.

Porto Alegre foi a primeira cidade brasileira a dispor de uma infovia31 desenvolvida por

uma empresa pública. Por este trabalho, a Procempa recebeu autorização da Anatel para

prestar Serviço de Comunicação de Multimídia (SCM). Desde que foi criado o Projeto

Software Livre RS, em 1999, a Prefeitura ajudou a realizar quatro fóruns internacionais do

software livre. Com a migração dos seis mil computadores instalados em órgãos públicos

da Prefeitura ao Software Livre, houve uma redução de custos com licenças para instalação

sistemática de novas versões de programas. A informatização é uma necessidade da vida

moderna que está sendo atendida em sintonia com o princípio geral de inclusão social.

31
Anel de cabos recheados de fibras óticas para transmitir dados, sons e imagens.

95
CAPÍTULO III

Administração Municipal participativa no Brasil: revisitando a

literatura

A opção de iniciar este capítulo pelo tema da cidadania está relacionada com a

própria perspectiva que a cidade de Porto Alegre oferece para desenvolvermos uma

reflexão sobre a relação da cidade com seus moradores no que diz respeito à construção da

cidadania e a participação política32 em administrações democráticas.

1- A construção da cidadania ativa em administrações democráticas

De acordo com Oliveira (1998), a construção da cidadania e da democracia é

interminável, no sentido de que no momento em que as aquisições cidadãs e democráticas

são confirmadas, recomeça o trabalho de ampliação dos limites já alcançados. Entende-se,

desta forma, que são processos, e como tais, apresentam retrocessos e avanços. Citando

Weber, Oliveira faz referência a um processo de democratização para dar idéia de fluxo e

ruptura de limites, e não a democracia como algo consolidado e insuperável. O autor

destaca que esse trabalho é permanente uma vez que estas aquisições são o ponto de

partida para as ampliações, para a ruptura dos limites, em vez de eterno retorno ao

começo, incansável e sem esperanças (Oliveira, 1998: 9).

32
No texto da tese, como já referimos, utilizamos o termo participação popular para referir à nomenclatura
usada pela Administração Popular de Porto Alegre no período de 1989 a 2004 em relação à participação dos
porto-alegrenses na vida pública da cidade. E utilizamos o termo participação política para referir a nossa
definição de participação pública dos porto-alegrenses.

96
Da análise em termos nacionais que Oliveira faz33, propomos uma análise da cidade

de Porto Alegre34.

Porto Alegre é uma cidade que mantém seu equilíbrio financeiro35 e apresenta uma

significativa taxa de investimentos. A atual sistemática orçamentária do Brasil foi

consolidada pela Lei Federal 4.320, de 17 de março de 1964. Na lei orgânica municipal,

artigo 116, inciso 1o 36, está garantida a participação da população, a partir das regiões do

município, nas etapas de elaboração, definição e continuidade da execução do Plano

Plurianual, diretrizes orçamentárias e do orçamento público.

O Orçamento Participativo comprovou que a criação de mecanismos práticos de

participação e o compromisso do governo de fazer o que a população decide são

fundamentais para romper as barreiras burocráticas que separam a sociedade civil37 do

Estado, e para a construção de uma cidadania ativa e mobilizada.

A ação direta exercida através do Orçamento Participativo se revelou muito

positiva no desenvolvimento da consciência e da prática política dos cidadãos que se

apropriam de informações, ocupam espaços de participação e debate, definem recursos e

criam políticas para cada uma das áreas de interesse coletivo.

33
O autor refere que, no Brasil, a construção da cidadania e da democracia (...) são permanentemente
destruídos pelo amplo leque dos dominantes, que utilizam para além dos códigos de sociabilidade
anticidadão e antidemocrático, o poder estatal de forma implacável.
34
A pesquisa está circunscrita, como já referimos, ao período de 1989 a 2004, sendo que a coleta de dados
foi realizada nos anos de 2003 e 2004.
35
Fonte: Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Títulos e conquistas. 16 anos de Administração Popular.
2004.
36
Art. 116 – Leis de iniciativa do Prefeito Municipal estabelecerão: I – o plano plurianual; II – as diretrizes
orçamentárias; III – os orçamentos anuais. § 1º – Fica garantida a participação da comunidade, a partir das
regiões do Município, nas etapas de elaboração, definição e acompanhamento da execução do plano
plurianual, de diretrizes orçamentárias e do orçamento anual. (Lei Orgânica do Município de Porto Alegre,
Título II: Dos Tributos, das Finanças e dos Orçamentos. Capítulo III. Dos Orçamentos).
37
Sociedade civil entendida, de acordo com Bobbio, como a esfera das relações entre os indivíduos, entre os
grupos, entre as classes sociais, que se desenvolvem à margem das relações de poder que caracterizam as
instituições estatais. É o terreno dos conflitos econômicos, ideológicos, sociais e religiosos que o Estado tem
a seu cargo resolver, intervindo como mediador ou suprimindo-os; como a base da qual partem as
solicitações as quais o sistema político está chamado a responder; como o campo das várias formas de
mobilização, de associação e de organização das forças sociais que impelem a conquista do poder político.

97
De acordo com a análise de Oliveira (1998) sobre a construção da cidadania,

partindo de uma trajetória histórica da sociedade brasileira desde os anos 30 até o governo

de Fernando Henrique Cardoso (FHC), houve um deslocamento da política operado pelas

classes dominadas, sobretudo no campo simbólico, mudando a configuração da política no

Brasil. Dessa forma, o governo FHC apresentou uma tentativa de desqualificar

simbolicamente os opositores do neoliberalismo, ou seja, promover uma exclusão do

campo de significados que, em mãos dos dominados, dá eficácia simbólica à luta dos

direitos humanos.

Paoli e Oliveira (2000: 58) trabalham com a idéia da privatização do público, ou

seja, a privatização do espaço público (empresas estatais), sua dissolução, a apropriação

privada dos conteúdos do público e sua redução do novo aos interesses privados:

Não é por outra razão que as medidas de privatização, de dissolução da esfera


pública, de destituição de direitos, de desregulamentação, por parte das burguesias e
dos governos, encontram resistência social que não se transforma em alternativa
política. É que essa subjetivação é comum aos dois lados da contenda, embora com
sentidos de classe bem diversos, o que a resistência social, sobretudo contra as
medidas típicas do Estado do Bem-Estar (seguro-desemprego, seguridade em geral,
aposentadoria, etc.) tem mostrado na Europa (Paoli e Oliveira, 2000:58).

Trata-se aqui que a privatização do público, sem a correspondente publicização do

privado, é uma falsa consciência da “desnecessidade” do público e foi, de acordo com os

autores, a contrapartida, ou a contradição, que construiu o sistema do Estado de Bem-Estar.

A “administrabilização” do Estado de Bem-Estar é a produção do consenso que,

para Rancière, produz exatamente a anulação da política, posto que essa ...rompe a

configuração sensível na qual se definem as parcelas e as partes ou sua ausência a partir

de um pressuposto que por definição não tem cabimento ali: a de uma parcela dos sem

parcela (Rancière, 1996: 72).

98
De acordo com Rancière (1996), podemos entender por política, a reivindicação da

parcela dos que não têm parcela, a da reivindicação da fala, que é, portanto, dissenso em

relação aos que têm direito às parcelas, que é, portanto desentendimento em relação a

como se reparte o todo, entre os que têm parcelas ou partes do todo e os que não têm nada.

A formação da sociedade brasileira, de acordo com Paoli e Oliveira (2000), é um

processo complexo de violência, proibição da fala, mais modernamente privatização do

público, de anulação da política, do dissenso, do desentendimento, na interpretação de

Rancière.

A história brasileira, desde a Revolução de 30, mostra que, no espaço de 60 anos, é

possível contar duas ditaduras, a de Vargas entre 1930 e 1945, e a que se seguiu ao Golpe

Militar de 1964 a 1984, perfazendo 35 anos de ditadura em 60 anos de história da mudança

da dominação de classe, e se contar também as tentativas de golpes falhados, teremos a

média de um golpe ou tentativa para cada três anos, desde 1930 até 1990. Ainda de acordo

com Paoli e Oliveira (2000), os esforços de democratização, de uma tentativa de criar uma

esfera pública, de fazer política no Brasil, decorreu quase em sua totalidade, da ação das

classes dominadas.

A época de Vargas (1930-1945) é um exemplo, na história do Brasil, de uma época

em que a busca por “harmonia social” justificava a operação de silêncio, o roubo da fala, a

anulação da política por parte do governo com relação às classes dominadas

(operárias/sindicais) que conseguiram ampliar o espaço de sua fala depois da queda de

Vargas, com representatividade no Senado, Câmara de Deputados, de Vereadores e

Assembléias Estaduais em várias cidades importantes do Brasil.

O golpe de 64 teve as características de uma total anulação do dissenso, do

desentendimento, da política. As reformas de base, a grande bandeira unificada dos anos

50 e 60, que se amplifica, sobremaneira, na década do golpe, significavam o

99
questionamento da repartição da riqueza, unificando também categorias diversas de

trabalhadores urbanos, classes médias antigas e novas, profissionais de novas ocupações,

agora autonomizados e, em geral, tendo invertido sua velha relação com o populismo.

Talvez a ampliação mais notável da política tenha sido do campesinato e dos

trabalhadores rurais. As ligas camponesas deram a fala, o discurso capaz de reivindicar a

reforma agrária e de desubordinar o campesinato, depois de longos séculos, da posição de

mero apêndice da velha classe dominante latifundiária. O movimento pelo sindicalismo

rural, que conflitava em objetivos imediatos com as Ligas Camponesas, entretanto,

confluía com as mesmas no sentido de criar a política no Brasil.

O golpe de Estado de 1964 e toda a sua duração não foram senão o esforço

desesperado de anular a construção política que as classes dominadas haviam realizado no

Brasil, pelo menos desde os anos 30. Tortura, morte, exílio, cassação de direitos, tudo era

como uma sinistra repetição da apropriação dos corpos e de seu silenciamento.

Na busca das próprias contradições da expansão capitalista, poderosamente ajudada

por esse quase fascismo, as classes sociais dominadas voltaram a reconstruir a política:

recuperaram suas entidades antes sob intervenção; criaram comitês de luta contra a

carestia, na década de 70, deslocando a luta do terreno da reivindicação salarial para o

terreno das políticas públicas, através dos movimentos populares, criando milhares de

comitês pela anistia e pela Constituinte, as classes dominadas reinventaram a política e

novamente pressionaram as forças dominantes, que, na falta de capacidade para se auto-

dirigirem, haviam deixado, desde o Golpe de 64, a tarefa dirigente nas mãos das Forças

Armadas. Reapareceu, então, em lugar do “consenso imposto”, o consenso “policial”, ou

“democrático”.

Nessa passagem, o movimento popular prosseguiu na ofensiva, até a Constituinte

Cidadã de 1988, assim denominada por Ulysses Guimarães. Toda a reivindicação anterior

100
ganhou fóruns de direito, na letra da Carta Maior: direito ao trabalho, à auto-organização, à

saúde, à educação, direitos das crianças e dos adolescentes, direito à terra, a uma velhice

digna e respeitada.

Esse período de lutas pela conquista e manutenção do espaço da fala, descrito por

Francisco de Oliveira, reflete, a nível municipal, um contexto que possibilitou a chegada da

Frente Popular (coligação de partidos de esquerda) à Prefeitura Municipal de Porto Alegre.

A partir dos anos 70, em Porto Alegre, os movimentos sociais, principalmente os

populares, organizaram-se em Associações de Moradores, Conselhos Populares, união de

vilas e demais organizações de bairros, possibilitando a fundação de entidades

representativas. Nos anos 80, outros movimentos se agregaram, tais como os das mulheres,

negros, ambientalistas, lideranças de novas centrais sindicais, parlamentares oposicionistas,

entidades comprometidas com a democracia, além das ONGs emergentes no cenário

nacional. O novo campo democrático desenvolveu uma cultura política de mobilização e

pressão direta como prática principal das demandas que compunham sua agenda.

A inexistência do sistema de acompanhamento e controle público das

reivindicações populares e as velhas práticas paternalistas e clientelistas usadas pelo poder

constituído não respondiam aos anseios da sociedade, que vinha de uma larga luta pela

democratização do Estado. Essa sociedade organizada desejava a participação da cidadania

de forma direta na gestão do Estado retratada na Constituição de 1988, em seu artigo 1º

inciso V, parágrafo único: “todo o poder emana do povo que o exerce por meio de

representantes eleitos ou diretamente”.

Em 1989, a Frente Popular (coligação de partidos de esquerda) ganha as eleições

municipais em Porto Alegre, tendo como plataforma principal a “democratização das

relações entre Estado e Sociedade Civil”. E, com a implantação do Orçamento

Participativo, firma-se uma aliança entre o Executivo Municipal e a sociedade civil

101
organizada. O que está implícito nessa proposta é a contrapartida do que Paoli e Oliveira

(2000) atribuem aos governos ditatoriais ou com características ditatoriais que o Brasil

teve, que é a anulação da fala, a destruição da política, a fabricação de um consenso

imposto, a desmoralização do discurso.

Em 1989, quando iniciou, o Orçamento Participativo enfrentou este contexto

adverso que, somado a inexperiência que se dava por tratar-se de algo inédito, resultou em

uma adesão modesta da população: em torno de 1000 pessoas. Em 1990, a participação se

manteve em níveis restritos, especialmente em função das dificuldades financeiras do

Governo Federal. É a partir do momento em que o município readquire capacidade de

investimentos em obras e serviços através de uma profunda reforma tributária, que o

Orçamento Participativo tem um grande impulso. O governo passa a ter recursos para

atender as demandas e a população começa a perceber, através de ações concretas, que as

suas decisões estão sendo respeitadas e resultam em melhorias de suas condições de vida.

De 1991 em diante, o Orçamento Participativo tornou-se um processo que passou a

mobilizar as comunidades de todas as regiões da cidade. O Orçamento Participativo tem

sido instrumento importante para mudar, concretamente a cidade, a tornando mais justa e

em um lugar melhor para se viver, como mostram os dados sobre a qualidade de vida via

OP, explicitados no capítulo II dessa tese.

Tem sido também um instrumento de mudança profunda da cultura política da

cidade suprimindo as tradicionais práticas do favoritismo e interesse individual,

revalorizando a participação de homens e de mulheres comuns, transformando-os em

protagonistas de seu próprio destino.

Apesar das suas contradições, o Orçamento Participativo é um espaço que contribui

para que a população possa entender que a participação política é algo que transcende o

exercício do voto. A intervenção de José Saramago no Fórum Social Mundial em Porto

102
Alegre no ano de 2002, ilustra, de uma certa forma, o que denominamos de contradições

do OP, ou seja, trata-se de um processo democrático, mas que não garante o efetivo

exercício da cidadania. Trataremos, detalhadamente, sobre esse aspecto nos capítulos de

análise dessa tese.

Saramago (2002) refere-se à urgência de promover um debate mundial sobre a

democracia e as causas de sua decadência, assim como discutir quanto à intervenção dos

cidadãos na vida política e social, nas relações entre os Estados e os poderes econômico e

financeiro mundiais, sobre o que afirma e o que nega a democracia, o direito à felicidade e

a uma existência digna.

Saramago critica que o sistema do governo e de gestão da sociedade que chamamos

democracia não é, efetivamente, democrático.

É verdade que podemos votar, escolher os nossos representantes de governo, mas é


igualmente verdade que a possibilidade de ação democrática começa e acaba aí; pois
o voto do eleitor não teve, não tem nem nunca terá qualquer efeito visível sobre a
única e real força que governa o mundo e, portanto, o seu país e a sua pessoa: refiro-
me obviamente, ao poder econômico, (...) gerido pelas empresas multinacionais de
acordo com estratégias de domínio que nada tem que ver com aquele bem comum a
que, por definição, a democracia aspira. Todos sabemos que é assim, e contudo, por
uma espécie de automatismo verbal e mental que não nos deixa ver a nudez crua dos
fatos, continuamos a falar de democracia como se tratasse de algo vivo e atuante,
quando dela pouco mais nos resta que um conjunto de formas ritualizadas os inócuos
passes e gestos de uma espécie de missa laica. E não nos apercebemos, como se para
isso não bastasse ter olhos, de que os nossos governos, esses que para o bem ou para
o mal elegemos e de que somos, portanto, os primeiros responsáveis, se vão tornando
cada vez mais em meros comissários políticos do poder econômico com objetiva
missão de produzirem as leis que a esse poder convierem, para depois, envolvida nos
açúcares da publicidade oficial e particular interessada, serem introduzidas no
mercado social sem suscitar demasiados protestos, salvo as certas conhecidas
minorias eternamente descontentes (Saramago, FSM, 2002).

103
2- Orçamento Participativo viabilizando o exercício da cidadania a partir da

participação política

Não acreditamos que seja possível desconsiderar as contribuições de Saramago,

mas convidamos o leitor a perceber as possibilidades concretas do exercício da cidadania a

partir do Orçamento Participativo e de outros fóruns de participação política em Porto

Alegre.

Para isso, introduzimos a contribuição de Gohn (1995) sobre a questão da

cidadania. A autora refere que o conceito de cidadania é amplo e abrange várias

dimensões; uma das mais importantes é a que diz respeito à regulação dos direitos e dos

deveres dos indivíduos e dos grupos na sociedade. A cidadania individual remete aos

direitos civis e políticos. Sua construção histórica data dos séculos XVII e XVIII, com o

advento da modernidade, quando a sociedade ocidental muda alguns parâmetros de

referência, elegendo os indivíduos como valor supremo em contraposição aos grupos

estratificados da sociedade de castas; a primazia da razão sobre as crenças e dogmas; o

domínio da natureza pelo homem por meio da tecnologia; e o reino da opinião pública, por

meio do voto e do sistema representativo democrático, em contraposição ao direito devido

dos reis. A cidadania individual pressupõe a liberdade e a autonomia dos indivíduos em um

sistema de mercado, em que todos sejam respeitados e tenham garantias mínimas para a

livre manifestação de suas opiniões – basicamente pelo voto – e da auto-realização de suas

potencialidades. O que se destaca na cidadania individual é a dimensão civil da luta pelos

direitos civis e políticos.

A cidadania coletiva remete, por um lado, às origens clássicas do cidadão da polis

grega, pois diz respeito a uma dimensão cívica em que os cidadãos exercitam virtudes

cívicas e têm, na comunidade em que vivem, sua referência imediata. Por outro lado,

remete à contemporaneidade ou aos tempos pós-modernos. Diz respeito à busca de leis e

104
direitos para categorias sociais até então excluídas da sociedade, principalmente do ponto

de vista econômico, e do ponto de vista cultural. Assim, a cidadania coletiva privilegia a

dimensão sócio-cultural, reivindica direitos sob a forma de concessão de bens e serviços, e

não apenas a inscrição desses direitos em lei; reivindica espaços sócio-políticos sem que,

para isso, tenha que se homogeneizar e perder sua identidade cultural. As categorias de

liberdade e de igualdade sempre foram centrais nas duas dimensões da cidadania.

Gohn (1995) refere que o processo de construção da cidadania no Brasil teve quatro

momentos:

1º - Período Colonial. Período em que a cidadania circunscrevia-se em torno das

temáticas do “ser nacional” e do “nativismo”. A luta pela cidadania no período colonial

teve sua expressão maior na luta pela independência política da nação. Trata-se da

construção da cidadania coletiva de um povo que, ao reivindicar e lutar por sua libertação

política construiu as bases para o surgimento de uma identidade nacional. As lutas

nativistas e as lutas sociais do “ser brasileiro”, pelo direito ao trabalho demarcaram um

universo contraditório na questão da cidadania no período colonial. Essas lutas colocaram

em xeque a ordem política existente e, com o tempo, corroeram as bases da legitimidade e

da sustentação do poder público constituído.

2º - Período Imperial. Nesse período, o campo da cidadania se ampliou;

acrescentaram-se outras lutas à luta do “ser nacional”, como a luta pelo trabalho livre.

Houve uma ampliação também do número de ações desenvolvidas, além da ampliação do

espectro das reivindicações. As reivindicações “igualitárias” existentes no Brasil até a

primeira metade do século XIX restringiam-se à esfera socioeconômica e não política. Não

se contestava, exceto em raros casos, o regime jurídico existente, que contemplava a

instituição da escravidão. Apenas na segunda metade do século XIX temos, com o

movimento abolicionista, a proposição do fim do trabalho escravo no país. O movimento

105
republicano absorveu também essa reivindicação como bandeira de luta. Os abolicionistas

propunham aos escravos que se transformassem em cidadãos, sujeitos de direito, e isso

implicava a constituição de trabalhadores livres e assalariados. Apesar disso, depois da

abolição, muitos escravos tornaram-se trabalhadores servis ou permaneceram

desempregados nas cidades. As condições de sobrevivência no Brasil na fase Imperial

eram ruins para a maioria da população, e as desigualdades sociais eram gritantes. A

distância do poder com relação à população era enorme. “Ser cidadão” era “ter posses”,

medida pelo número de escravos e, depois da promulgação da Lei de Terras de 1850, ter

também propriedades, adquiridas pela compra e não apenas por posse ou concessão. Os

pobres e os escravos, ou seja, os não-cidadãos, lutaram para a construção de fragmentos

mínimos de cidadania. Das conquistas realizadas, podemos dizer que passamos a ter uma

cidadania tutelada pelos membros das elites, esclarecidas para a época, ou tutelada por

intelectuais progressistas com relação à ordem conservadora existente.

3º - República. A cidadania construída com o advento da República trouxe fatos

novos. Apesar de se ter instaurado uma nova ordem, as raízes oligárquicas e elitistas

predominantes, que vieram a dar origem à política dos governadores, restringiram o perfil

dos sujeitos a ter os direitos à cidadania política. Assim que, em 1891, o campo da

cidadania ativa foi limitado, pela decisão da Comissão Constitucional, de excluir mulheres,

mendigos, soldados e os religiosos, além de vetar o voto também aos analfabetos, que

constituíam a maioria da população brasileira, ou seja, vemos aí um contexto de destituição

da fala e desmoralização do discurso. Na cidadania construída com o advento da República

observa-se, além da ausência da participação popular, a introdução de um padrão de

relações entre Estado e sociedade, onde a marginalização do povo do debate público levou

à construção de uma cultura política em que a sociedade era vista como amorfa e difusa, e

o Estado como o provedor e o organizador da ordem necessária. No século XX, o campo

106
de luta pela cidadania se amplia. Novas demandas são introduzidas, incorporando algumas

noções de direitos políticos modernos ao lado das demandas para alterar a ordem

conservadora existente. Surge a luta pelo voto das mulheres e outras categorias, a luta

pelos direitos sociais dos trabalhadores, introduzidas no país nos anos 30, por meio da

legislação trabalhista. Os novos direitos regulamentados passam a compor um novo

cenário na cidadania brasileira, ou seja, brasileiro enquanto trabalhador, com direitos e

deveres legitimados. Depois da Revolução de 30, o espaço do “ser brasileiro” enquanto

trabalhador livre para vender sua força de trabalho em um mercado que começava a se

expandir foi construído, graças, muito mais a lutas de várias décadas, originárias dos

movimentos de inúmeras organizações, dos trabalhadores, pertencentes às camadas

populares ou médias da população, do que das elites. Esse contexto de luta levou às

transformações do Estado brasileiro e à construção de um novo arcabouço jurídico

institucional, que objetivava dar conta das transformações que estavam operando no

âmbito das estruturas de produção.

4º - Período Populista. A cidadania se expressava pelo voto. Esse exercício, dos

direitos civis, levava ao exercício dos direitos sociais, por meio da pressão organizada, da

troca do voto pela melhoria coletiva. No entanto, o processo da cidadania nunca foi linear.

Ao contrário, sempre teve avanços e recuos, fluxos e refluxos. Houve períodos em que

ocorreram perdas, retrocessos e até mesmo a supressão de direitos básicos, como nos

golpes de Estado, nos estados de sítio e nos períodos de ditadura militar. Esses casos

ocorreram no século XX, entre 1930-1945 (Getúlio Vargas) e entre 1964-1984 (Regime

Militar).

Nos anos 80, vários militantes de lutas sociais no Brasil, nos anos 60 e 70, aliados a

novos parceiros, sem tradição associativista anterior, começaram várias frentes de

articulações, fundaram organizações, lideraram movimentos, se apoiaram em estruturas

107
tradicionais que estavam se renovando, em parte, como a Igreja Católica, e foram em busca

de mudanças sociais no país.

O momento político nacional favoreceu a eclosão das lutas sociais, pois a

insatisfação era generalizada. Fortalecida pela conjuntura internacional, que também

destacava a questão dos direitos humanos como básicos, a cidadania se tornou o articulador

das lutas sociais ocorridas.

As ações coletivas nos anos 70 e 80, no Brasil, foram impulsionadas pelos desejos

de redemocratização do país, pela crença no poder quase mágico de participação da

população, pelo desejo de democratização dos órgãos públicos, pela vontade de se

construir algo a partir das ações que envolviam os interesses imediatos dos indivíduos e

grupos. Os movimentos sociais, populares ou não, expressavam a construção de um novo

paradigma de ação social, fundado no desejo de se ter uma sociedade diferente, sem

discriminações, exclusões ou segmentações38, assim como na redefinição da idéia de

comunidade, não apenas como um locus geográfico espacial, mas também como uma

categoria da realidade social, da intervenção social nesta realidade. Os movimentos sociais

dos anos 70 e 80 articularam os valores morais com as carências econômicas, com o desejo

da mudança política. Essas articulações foram indicativas de um novo paradigma das ações

sociais, que se fortaleceu nos anos 90, com o crescimento do plano da moral e o

enfraquecimento do plano político-ideológico. Reivindicou-se não apenas as necessidades

básicas, que eram direitos sociais dos cidadãos, mas se reivindicou ainda que o

atendimento a essas necessidades tivesse uma qualidade mínima, compatível com uma vida

digna.

Esse movimento pode ser observado em relação ao Orçamento Participativo, pois

nesse fórum, a população não reivindica apenas o atendimento das suas necessidades
38
Gohn (1995) destaca que essas são as mesmas considerações feitas por Offe em seu estudo sobre os
movimentos sociais na Europa.

108
básicas com qualidade – como moradia, saneamento, saúde, educação e trabalho – mas as

demandas da população também estão relacionadas com a construção de Centros

Comunitários, Praças, Serviço de Assistência Social que, apesar de serem necessidades

secundárias, são importantes para a manutenção da cidadania.

Os anos 90 se caracterizaram pelas lutas cívicas pela cidadania: lutas contra a

violência, degradação do meio ambiente, menores abandonados nas ruas, fome, corrupção.

As lutas sociais dos anos 90 ganham espaço e destaque junto à mídia eletrônica e impressa,

e relevância no conjunto da sociedade.

Nos anos 90, o modelo referencial passa a enfatizar os valores da ética e da moral.

Uma nova moral, sem corrupção e com dignidade. A sociedade civil, segundo Gohn

(1995), passou a desacreditar nas políticas, nos políticos e nas ações do Estado em geral.

As ideologias implícitas nas políticas neoliberais dos anos 80 tiveram seus efeitos.

Movimentos Sociais e ações sindicais com recortes político-partidários explícitos passaram

a perder credibilidade.

Em contraposição à descrença na política nacional, grupos crescentes da sociedade

civil passaram a acreditar cada vez mais na sua capacidade de atuação independente, a

fazer suas próprias políticas, a partir da busca da qualidade de vida, não-violência,

ecologia, paz, não-miséria e outras questões sociais que também passaram a ser objeto de

ações coletivas. Há um desejo maior por alterações pontuais, de liberdade e de

autodeterminação para a expressão das individualidades, do que por um projeto de

transformação social futuro. Portanto, o plano da moral e da cultura ganha lugar central nas

ações coletivas.

Villasante e Garrido (2002) reconhecem que a experiência de Porto Alegre permite

uma consciência social maior, uma vez que os cidadãos têm condições de detectar as

necessidades locais mais emergentes, aprender a fazer e decidir sobre projetos sustentáveis.

109
Para os autores, a Administração Pública assume um papel orientador e impulsor de

desenvolvimento local, porém a característica mais significativa desta função é a

possibilidade de parceria com os atores sociais, ya no se trata de que la Administración

explicite un modelo global de ciudad, determine y trate de imponer los objetivos y medios

de conseguirlo, y regule y gestione la planificación (...) se impone la implantación del

consenso y la participación como elementos básicos de la planificación estratégica

(Villasante y Garrido, 2002: 133).

Os autores mencionam que a expressão política da participação, diferente da

expressão política da representação, refere-se ao fato de que o cidadão é membro e co-

proprietário das instituições políticas da comunidade. Destarte, é inerente a ela, a

implementação de procedimentos que suponham a participação - e não a representação -

dos cidadãos no processo de tomada de decisões de uma comunidade: es ahí donde

podemos observar lo explícito de los Presupuestos Participativos como procedimiento

inclinado a contemplar uma democracia participativa (Villasante y Garrido, 2002:178).

Ao relatar a experiência de implantação do Orçamento Participativo em Las

Cabezas de San Juan, em Andalucía – Espanha, Villasante reporta-se ao depoimento de

Raul Pont, prefeito de Porto Alegre entre 1997 e 2000, que relatou em um encontro,

naquela cidade, que o mais difícil neste processo, no entanto, “é romper com a idéia que as

pessoas têm das instituições, pois há uma tendência a pedir coisas, e temos que construir

espaços aonde as pessoas não vão para pedir e sim para decidir”.

A consciência social, de acordo com Villasante (2002), não se produz,

automaticamente, por um tipo de atividade determinada, senão pelas relações que se

estabelecem entre tais atividades e a vida cotidiana das pessoas e, neste contexto, as redes

sociais e os valores que mantêm são determinantes.

110
Percebemos nas falas de nossos entrevistados que, mesmo que tenhamos um

processo de democratização dos acessos disponíveis, temos também uma realidade de

assistencialismo muito intenso. Há um discurso ambivalente presente no cotidiano das

pessoas, porém, também há o trabalho de técnicos e lideranças preocupados em mudar este

quadro, em desenvolver uma consciência política que possibilite também a autonomia de

pensamento e ação.

Segundo Gohn (1995), podemos referir, no Brasil, a existência uma cidadania ativa,

uma vez que os conflitos sociais contemporâneos têm encontrado novas formas de se

expressar, distintas das tradicionais, baseadas na conciliação e na negociação pessoal.

Trata-se do surgimento da forma do Conselho como órgão de mediação povo-poder. Esses

processos desencadeiam um sentimento de cidadania nas pessoas.

Na cidade de Porto Alegre, o Orçamento Participativo gerou novas formas de

participação e intervenção do cidadão nas políticas públicas. Desde a sua implantação, a

cidade passou a dispor de uma série de outros canais de interlocução na sociedade. Foram

constituídos no governo da Administração Popular, mais de vinte Conselhos Municipais,

além de diversos fóruns, comissões, grupos de trabalho e instâncias de decisões, nas mais

variadas áreas39.

39
Alguns desses espaços de interlocução entre Governo Municipal e população, além do Orçamento
Participativo, são: Conselho Político do Governo; Conselho Municipal dos Direitos das Crianças e dos
Adolescentes; Conselho Municipal dos Direitos Humanos; Fórum Permanente das Pessoas Portadoras de
Deficiência; Conselho Municipal de Assistência Social; Conselho Municipal de Saúde; Conselho Municipal
de Acesso a Terra e a Habitação; Conselho Municipal do Meio ambiente; Conselho Municipal de Educação;
Conselho Municipal da Cultura; Conselho Municipal da Agricultura e Abastecimento; Conselho Municipal
de Desenvolvimento Urbano e Ambiental; Conselho Tutelar; Conselho Municipal da Velhice; Conselho
Municipal dos Direitos das Mulheres; Grupo de Trabalho Ante-Racismo; Conselhos Regionais de
Assistência Social; Conselho Municipal de Entorpecentes; Conselhos de Praças e Parques; Conselho
Deliberativo do Departamento Municipal de Água e Esgoto; Conselho Deliberativo do Departamento
Municipal de Limpeza Urbana; Conselho Municipal de Ciência e Tecnologia; Conselho Municipal do
Patrimônio Histórico e Cultural; Conselho Municipal de Contribuintes; Conselho Municipal de
Administração de Pessoal; Conselho Municipal de Esporte; Fórum de Turismo; Fórum Municipal de
Recreação; Fórum Municipal de Futebol.

111
3. Definindo a participação política a partir do referencial da Psicologia

Política

Desde o ponto de vista da ciência moderna, as áreas de conhecimento devem estar

convenientemente hierarquizadas e ramificadas entre si, de forma que constituam um corpo

organizado de conhecimento científico e se possa transitar ordenadamente de uma

disciplina a outra. As abordagens atuais do conhecimento científico são menos exigentes e

valorizam menos os critérios de hierarquia e ramificação. A partir dos anos 70 aparece de

modo manifesto uma maior preocupação pelos problemas de urgência social do que pela

construção teórica da ciência. Assim, a aparição de novas disciplinas se justifica mais pela

preocupação de resolver problemas da sociedade do que por velhos critérios teóricos.

A Psicologia Política surge fundamentalmente dentro da Psicologia Social. De

acordo com Seoane (1988), faz aproximadamente vinte anos que a literatura científica

refere trabalhos do campo da Psicologia Política. No entanto, apesar do nome na

Psicologia ser novo, o conteúdo é mais antigo. O autor faz referência à amplitude e

complexidade das abordagens da Psicologia Política, que vão desde o estudo da conduta

individual de profissionais da política até o sentido e repercussão social das identidades

culturais e étnicas; abrange também o estudo da personalidade na medida em que se

relaciona com a conduta política; ocupa-se da aquisição da cultura política através dos

processos de socialização, da conduta do voto - hoje muito relacionada a qualquer tipo de

participação política - incluindo os canais menos institucionalizados como os movimentos

sociais, que às vezes adotam formas violentas de participação, levando ao estudo de

estratégias de negociação política como forma de resolver conflitos. Além disso, também

se situa no campo de estudo da Psicologia Política, o estudo das dimensões psicológicas da

ideologia política, a evolução histórica das mentalidades coletivas ou os processos

psicológicos incorporados em algumas instituições atuais, como o sistema judicial ou os

112
próprios sistemas políticos que, às vezes, se pretendem interpretar desde o ponto de vista

do poder como motivação psicológica básica.

Seoane (1988) recorda alguns trabalhos, a partir dos quais podemos encontrar

antecedentes deste campo de estudo, apesar de não haver a intenção, por parte dos autores,

naquela época, de definir uma nova disciplina. Alguns destes trabalhos se referem a uma

conferência que Floyd Allport fez em 1924, na Universidade de Syracuse, denominada

Psicologia Social e Política; Tolman, que escreveu um livro intitulado Drives Toward

War, de 1942, sobre a interpretação psicológica da guerra; um livro escrito por Hans J.

Eysenck em 1954, que se intitulava The Psychology of Politics; Skinner com várias

publicações sobre delineamento social e político, além de colaborador em diferentes

projetos técnicos do exército. Osgood publicou sobre as estratégias políticas concretas para

deter a escalada de armamentos em An Alternative to War or Surrender, em 1962; a tese de

Greenstein de que a Psicologia não se ocupava de forma adequada dos problemas políticos,

explicitada em 1973, em Psicologia Política: um universo pluralista; e Billing, em 1982

escreve sobre as origens liberais da ideologia.

Seoane (1988) refere que a Psicologia Política dos anos 70 apóia-se em três grandes

temas de estudo, que não constituem, no entanto, o conteúdo fundamental nem exclusivo

da Psicologia Política:

1- o estudo das atitudes sociais que tinha uma tradição de várias décadas e que

representa a análise de problemas políticos sob a perspectiva psicológica;

2- os estudos desencadeados a partir da Segunda Guerra Mundial para tentar

entender e analisar o fenômeno nazista e o genocídio desenvolvido no interior dos países

cultos;

113
3- a investigação sobre as dimensões psicológicas da conduta do voto, posto que

esse comportamento de participação política é um dos fundamentos dos sistemas

democráticos ocidentais.

Efetivamente, é nos anos 70 que a Psicologia Política começa a ter características

de uma disciplina. Nesta década se produzem os fenômenos característicos de

institucionalização da Psicologia Política, que Seoane (1988) os descreve, seguindo a

análise de Stone (1981).

Em 1973, se edita o que se pode considerar o primeiro manual de Psicologia

Política, organizado por Jeanne N. Knutson, onde tenta definir, em seus cinco capítulos e

542 páginas, as principais áreas da Psicologia Política. Em 1974, William F. Stone escreve

o que se considera como o primeiro texto acadêmico sobre o assunto. Em 1978, surge

também a primeira sociedade, a International Society of Political Psychology e em 1979,

essa Sociedade edita a primeira revista sobre o campo de estudo, a Political Psychology, o

que define, junto com os outros indicadores, o surgimento da disciplina Psicologia Política.

Em 1981, Samuel L. Long organiza um livro no qual oferece um panorama

completo dos temas tratados sobre Psicologia Política e, em 1986, Margaret G. Hermann

organiza um livro que pode ser considerado como uma releitura do livro de Knutson.

Seoane (1988) refere também alguns conceitos da Psicologia Política, a partir

destes autores precursores de trabalhos sobre a disciplina. Para Knutson (1973, citado por

Seoane, 1988), por exemplo, a Psicologia Política es un esfuerzo interdisciplinario que

consiste en que el conocimiento obtenido por las ciencias de la conducta se concentre en

las necesidades humanas críticas, de forma que pueda realizarse mejor la antigua

promesa de la política de alcanzar una vida satisfactoria. Para Greenstein (1973, citado

por Seoane, 1988), a Psicologia Política tem dois referentes: os componentes psicológicos

da conduta política humana e a aplicação acadêmica do conhecimento psicológico à

114
explicação do político. La actividad política tiene aspectos psicológicos, cuyo estudio

pertenece a la Psicología; en otras palabras, la Psicología Política sería la aplicación de

un cuerpo de conocimientos ya establecido (Psicología) a un fenómeno de estudio

(Política).

Stone, em 1974, se manifesta de maneira mais individualista em sua concepção e

emprega a expressão Psicologia dos Políticos (ou do Político), em vez de Psicologia

Política. (...) la psicología de lo político hace referencia a los intereses del individuo, a sus

concepciones, a sus reacciones y a sus respuestas ante la experiencia y conducta política.

Em 1981, o autor utiliza com mais facilidade a expressão Psicologia Política; reconhece

que, além de estudar o ator político, também se pode estudar os efeitos psicológicos dos

acontecimentos e sistemas políticos, estabelece uma relação bidirecional entre psicologia e

política. Para Stone, uma definição compreensiva de Psicologia Política deve incluir tanto

la contribución de los procesos psicológicos a la conducta política, como los efectos

psicológicos de los sistemas y acontecimientos políticos.

E outro conceito a que se refere Seoane (1988), trata da referência de Hermann

(1986), para quem Psicologia Política es el estudio de lo que sucede cuando interactúan

los fenómenos psicológicos con los políticos. Esta interacción significa que algunas veces

el foco de interés está en los fenómenos psicológicos (...) en otras ocasiones (...) en los

fenómenos políticos (...) y aun en otros casos, (...) en ambas partes (...).

A partir desta exposição conceitual, Seoane (1988) apresenta a sua concepção de

Psicologia Política. Do seu ponto de vista, se pode estabelecer três grandes tipos de

definições de Psicologia Política.

En primer lugar (...) entendida como la aplicación de los conocimientos psicológicos


alcanzados a los problemas políticos actuales. Por tanto, sería más una disciplina de
urgencia social que un campo de estudio con características teóricas propias. (...) En
segundo lugar (...) sería el estudio de la interacción de los fenómenos psicológicos
con los fenómenos políticos; (...) Por último (...) consistiría en el estudio de aquellos

115
fenómenos históricos y colectivos, ya estén representados en individuos o en
comunidades, que constituyen la motivación de un pueblo para organizarse
socialmente y adquirir una identidad propia.

Este corpo teórico ajuda a delimitar os fenômenos a serem estudados neste contexto

da Psicologia Política. E um destes fenômenos diz respeito à participação política.

Montero (In: D´Adamo; Beaudoux; Montero, 1995), introduz a idéia de ação

política e não de participação política, pois crê que esse segundo termo implica uma

redução das possibilidades de ação, reação e transformação dos fenômenos políticos por

parte dos indivíduos, limitando sua atividade a algumas formas de atuação. A idéia é de

que a participação política pressupõe, muitas vezes, um caráter meramente reativo, ou seja,

respondente à influência de forças sociais supra-individuais, iniciadas a cada vez e,

contraditoriamente, em cúpulas ou centros políticos, e que se irradia até uma vasta e

passiva periferia, a qual parece esquecer a intersubjetividade presente em todos os fatos

sociais, quando apresenta um só aspecto.

El concepto de acción política indica, en cambio, una toma de posición que


considera, en primer lugar, que las personas son seres activos, constructoras de la
realidad en la que viven, generadoras de los cambios, las tendencias dominantes y las
resistencias. Tal posición se ubica dentro del paradigma relativista, construccionista,
que a partir de mediados de la década pasada aparece como el contrapeso de la
concepción predominantemente reactiva a la que nos acostumbró el positivismo. Así,
la acción política es vista como parte de la construcción social cotidiana de la
realidad, como parte del devenir histórico, y como conjunto de fenómenos,
esencialmente dialéctico y dinámico. En consecuencia, la acción política abarca no
sólo los hechos tradicionalmente considerados como “políticos”, sino muchos otros,
no menos políticos, pero también tradicionalmente dejados de lado, o bien relegados
al campo de la patología social o de las “disfunciones” sociales. En este sentido (...)
su perspectiva de los hechos y de sus actores reviste un carácter no sólo más amplio
sino también más democrático (Montero in D´Adamo; Beaudoux; Montero, 1995:10).

Seoane (1988) também refere que o conceito de participação política deve ser

entendido em um contexto mais amplo e fazer referência a todas as atividades sociais e

116
institucionais dirigidas a metas e objetivos políticos, e cujo foco central é conseguir

mudanças nas estruturas sociais e políticas que fundamentam o status quo de um sistema

social, nacional e internacional.

Montero (In: D´Adamo; Beaudoux; Montero, 1995) recorda que o tema da

participação política é um dos temas mais estudados em Psicologia Política e,

paradoxalmente, pouco explorado em sua totalidade como fenômeno social. Na América

Latina, por exemplo, a autora recorda que o tema teve um tratamento quase nulo ao que ela

atribui a uma visão dominante – que predominou até o final da década dos anos 70 – de

que a participação política versava sobre o ato último da forma mais transcendente da

decisão política, ou seja, o voto, assim como também à afiliação a partidos políticos.

Encontramos na literatura, contribuições que relacionam a ação de votar como

obrigação cívica ou como participação política. O sentido de obrigação cívica, de acordo

com Sabucedo (In: Seoane, 1988:179) parte de uma identificação prévia do sujeito com o

sistema político em que ele vive, ou seja, o indivíduo se torna capaz de interiorizar normas

e regras presentes neste sistema e desenvolver o tipo de atuações demandadas por ele

mesmo. Em verdade, para o autor, el voto parece ser uma de las conductas políticas más

favorecidas por el sentimiento de obligación cívica.

A contribuição de Camino, Torres e Da Costa (In: D´Adamo; Beaudoux;

Montero,1995) se refere ao entendimento do voto como participação política. Os autores

afirmam que na década de 1980, o Brasil sofreu transformações profundas em sua estrutura

política, tendo o processo eleitoral, em todos seus níveis, um papel muito importante. No

entanto, as eleições não trouxeram melhorias, nem material nem política para a população.

De fato, por um lado, as eleições expressam uma certa participação democrática, porém,

por outro, os resultados concretos estão levando a população a uma certa apatia política. Os

autores questionam, desta maneira, em que medida o exercício do voto conduz ao

117
desenvolvimento da cidadania, e tentam responder essa questão através de suas

investigações.

Os autores mostram que as mediações cognitivas e afetivas dos sujeitos se originam

em matrizes de idéias e representações sociais preexistentes na sociedade. Desde a

perspectiva psicossocial, os autores consideram que a dialética entre os aspectos objetivos

e subjetivos se efetua no nível das relações intergrupais onde os dois aspectos (o

psicossocial e o socioeconômico) são reflexos do processo estabelecido nas relações

sociais de produção. Este constitui simultaneamente uma estrutura socioeconômica com a

formação de grupos sociais com interesses conflitivos e uma estrutura psicossocial onde se

desenvolvem tanto as representações de pertença social como as ações coletivas derivadas

destas representações. A pertença aos diversos grupos e instituições sociais que constrói a

identidade social dos indivíduos, e as alternativas políticas que nascem dos interesses dos

diversos setores sociais, são ambos oriundos das divisões sociais próprias das relações de

produção e dos conflitos ali gerados.

A identidade social nasce no interior das relações intergrupais (Tajfel, 1981;

Turner, 1977), da comparação do próprio grupo com o grupo externo. Os partidos se

constroem igualmente como alternativas políticas, na medida em que os grupos sociais

procuram o poder para realizar seus interesses sociais. Dessa forma, os autores consideram

bastante relacionados o desenvolvimento das identidades sociais dos cidadãos e o

desenvolvimento da representatividade social dos partidos, porém não consideram que seja

uma relação simples ou linear, mas uma relação complexa. Não nos interessa aqui abordar

as questões específicas da investigação dos autores, porém é importante ter em conta o fato

de que votar é apenas um momento do processo de participação política, que a participação

política implica em outras ações.

118
4. Identidade social ou coletiva? O que é definidor na participação política

De acordo com Berger e Luckmann (2003), a identidade constitui um elemento

chave da realidade subjetiva e, enquanto tal, se encontra em uma relação dialética com a

sociedade. Para os autores, a identidade se forma por processos sociais, que são

determinados pela estrutura social. Uma vez que se cristaliza, a identidade é mantida,

modificada ou reformada pelas relações sociais.

Berger e Luckmann (2003) são contrários em usarmos o conceito de identidades

coletivas, pois, na sociedade, temos histórias em cujo curso emergem identidades

específicas e as estruturas sociais históricas específicas engendram tipos de identidade,

reconhecíveis em casos individuais, ou seja, a identidade é um fenômeno social que surge

da dialética entre o indivíduo e a sociedade. Por outro lado, os tipos de identidade são

elementos relativamente estáveis da realidade social objetiva e, enquanto tais, constituem o

tópico de teorização em qualquer sociedade. Se as teorias da identidade sempre se inserem

nas teorias mais amplas sobre a realidade, isto deve ser entendido em termos da lógica que

subjaz a esta última. Para os autores, as teorias psicológicas servem para legitimar os

procedimentos estabelecidos na sociedade para a manutenção e reparação da identidade.

Em um indivíduo totalmente socializado, de acordo com os autores, existe uma

dialética interna contínua entre identidade e seu substrato biológico. El hombre está

biológicamente predestinado a construir y a habitar un mundo con otros. Ese mundo se

convierte para él en la realidad dominante y definitiva. Sus límites los traza la naturaleza,

pero una vez construido, ese mundo vuelve a actuar sobre la naturaleza (Berger e

Lulckmann, 2003: 225).

De acordo com Berger e Luckmann, na dialética entre a natureza e o mundo

socialmente construído, o próprio organismo humano se transforma. Nessa mesma

dialética, o homem produz a realidade e, portanto, se produz a si mesmo.

119
Em uma perspectiva psicanalítica também encontramos uma definição de

identidade. De acordo com Rosa (1998: 123), o conceito de identidade não é indiferente à

psicanálise. Para a autora

embora não referida como tal, pode-se entender como identidade o fenômeno em que
o homem insiste na ilusão de ser único, ilusão necessária para sustentar o narcisismo.
A identidade aparece também como construção imaginária de uma representação
social que mascara a presença do Outro no si mesmo e avaliza sua pertinência no
mundo humano. Desta forma, a identidade surge como sintoma, defesa contra
angústia de não poder saber sobre si, a não ser a partir da imagem, tomada em si
mesma, como metáfora congelada em um único sentido, sem, no entanto, perder sua
propriedade de ser mensagem.

A identidade para Iñiguez (In: Crespo e Soldevilla, 2001), é um dilema entre a

singularidade de uma pessoa e a semelhança com nossos congêneres, entre a especificidade

da própria pessoa e a semelhança com outros, entre as peculiaridades da nossa forma de ser

ou sentir e a homogeneidade do comportamento. A identidade também é, para o autor, um

constructo relativo ao contexto sócio-histórico no qual se produz, e problemático na sua

conceituação e de difícil apreensão desde nossas diferentes formas de teorizar a realidade

social.

Nas relações interpessoais, nos identificamos com o outro, mas também nos

diferenciamos dele; a identificação nos garante a segurança de saber quem somos e a

diferenciação evita confundirmos com os demais. A singularidade, a unicidade, a

exclusividade parecem ser características imprescindíveis da identidade. Porém existe

outro aspecto da identidade que não se refere unicamente à singularidade da pessoa, e sim

à pluralidade do grupo ou da comunidade. Por oposição e complementaridade à identidade

pessoal há referência à identidade social. Para Iñiguez (In: Crespo e Soldevilla, 2001: 210)

la idea de identidad social remite a la experiencia de lo grupal, del “nosotros”, remite

también a los vínculos o, como decimos en un lenguaje social más contemporáneo, a las

redes.

120
Iñiguez refere-se também à contribuição de Tajfel (1981) como uma das mais

característica sobre o estudo da identidade social, destacando que Tajfel foi capaz de

inserir no contexto da Psicologia Social, de marcada tendência individualista e de escassa

relevância social, uma teorização da identidade social que mostrou uma concatenação de

processos que iam desde os estritamente cognitivos, como a categorização e a

diferenciação, aos cognitivo-sociais como a categorização social e a de um alcance social,

ainda que baseados em processos sociocognitivos, como a identidade social.

Para Tajfel, a identidade social é a consciência que temos de pertencer a um grupo

ou categoria social, unido à valorização que temos do sentimento de pertencimento, ou

seja, a valorização negativa ou positiva sustenta uma identidade social negativa ou

positiva. Tajfel ofereceu ferramentas conceituais aplicáveis unicamente a um contexto

social bi-categorial, ainda sabendo que tais contextos são escassos, podem ser abstraídos

com facilidade a contextos mais realistas donde existam simultaneamente grande número

de categorias e grupos sociais (Iñiguez, In: Crespo e Soldevilla, 2001:216).

A identidade social será entendida (...) como aquela parcela do autoconceito dum
indivíduo que deriva do seu conhecimento da sua pertença a um grupo (ou grupos)
social, juntamente com o significado emocional e de valor associado àquela pertença
(Tajfel, 1981: 290).

No campo da identidade coletiva, temos a importante contribuição de Alberto

Melucci. Melucci refere-se a um processo de construção social por parte dos indivíduos ou

grupos que formam parte de um movimento social. Como resultado de um contínuo

processo de fazer-se e refazer-se ou, definir-se e redefinir-se, a identidade coletiva está em

constante transformação, o que rompe a idéia da identidade coletiva como algo que

permanece inalterado ao largo do tempo. A identidade coletiva como processo se distancia

da concepção de identidade como algo unitário e coerente.

121
De acordo com o autor, é possível encontrar em uma identidade coletiva, três

elementos:

1- implica na presença de aspectos cognitivos que se referem a uma definição sobre

os fins, os meios e o âmbito da ação coletiva. Este nível cognitivo está presente em uma

série de rituais, práticas e produções culturais que em algumas circunstâncias mostram uma

grande coerência e, em outras, apresenta uma ampla variedade de visões divergentes ou

conflitivas;

2- faz referência a uma rede de relações entre atores que comunicam, influenciam,

interatuam, negociam entre si e tomam decisões. Esta trama de relações pode apresentar

uma grande versatilidade no que diz respeito à organização, modelos de liderança, canais e

tecnologias de comunicação;

3- requer um certo grau de implicação emocional, possibilitando aos ativistas

sentirem-se parte de um “nós”. Visto que as emoções também formam parte de uma

identidade coletiva, sua significação não pode ser reduzida a um cálculo de custos e

benefícios e este aspecto é especialmente relevante naquelas manifestações menos

institucionalizadas da vida social.

Melucci destacou que o processo de construção e manutenção da identidade

coletiva implica em algumas características:

1- a dimensão dinâmica da identidade, ou seja, o constante processo de criação e

reconstrução;

2- o pertencimento dos indivíduos a uma sociedade ou grupo social, assim como

sua exclusão dela, está regulada pela identidade coletiva;

3- o problema da identidade que os grupos devem abordar desde a consciência ou

representação que seus membros tem de si mesmos ou a representação que um

determinado observador pode ter de um grupo concreto;

122
4- os elementos de caráter simbólico, capazes de dar significação social às ações

dos indivíduos e converter a significação em algo compartilhado constituem o mais central

de todo grupo social, aquilo sobre o qual descansa a especificidade de toda a sociedade;

5- Os atributos comuns nos quais se fundamenta a identidade de um grupo social

são convertidos pelos atores sociais em categorias de adstrição e identificação. Através dos

atributos comuns seus membros se auto-identificam e são identificados por outros. São

categorias que tem a particularidade de gerar diferencial frente a outros grupos sociais,

estabelecendo limites entre os grupos sociais.

Para Melucci (In: Robles, 2002:172), identidade coletiva se refere a

... un sentimiento de pertenencia compartido por los miembros de un grupo o por


varios grupos, mediante el que es interpretada y definida la realidad, orientando las
acciones de los que participan de dicho sentimiento. La identidad colectiva puede
cristalizar y objetivarse, pero está sometida en todo momento a la posibilidad de
cambio y reelaboración. La identidad colectiva no es algo puramente simbólico – que
pertenece al mundo de los símbolos y de las interpretaciones – también pertenece al
mundo de las prácticas sociales.

As pessoas interatuam em redes submersas, de acordo com Melucci, de onde

chegam a uma nova definição de sua situação. Esta definição é diferente das que costumam

produzir-se em relações sociais cotidianas porque se orienta até a ação e inclui objetivos,

táticas e estratégias de uma ação coletiva impulsionada por reivindicações compartilhadas.

Uma rede submersa não é apenas uma estrutura de pequenos grupos isolados, dedicados a

experimentação cultural, mas também um sistema de intercâmbio no qual as pessoas e a

informação circulam livremente. Estas redes atuam como laboratórios culturais submersos

na sociedade civil. Nestes laboratórios culturais se constroem novas identidades coletivas a

partir das interações expressivas de indivíduos que experimentam novos códigos culturais,

novas formas de relacionar-se e concepções do mundo alternativas. A identidade coletiva

se cria entre as tensões geradas pela ineficácia dos meios disponíveis para conseguir

123
objetivos pessoais e coletivos. Como conseqüência dessas tensões e do contínuo contato

com outros atores sociais, se desenvolve uma forte implicação emocional que anima o

indivíduo a compartilhar a identidade coletiva. O autor afirma que estas redes ocultas se

fazem visíveis somente quando os atores coletivos se enfrentam ou entram em conflito

com uma política pública, ou seja, quando se enfrentam com o Estado, o qual provoca a

tensão e o investimento emocional já existentes nestas redes.

E esta idéia confirma a proposta de análise desta tese, ou seja, a possibilidade de

cooperação gera a possibilidade de participação. Os processos de vinculação criam redes

de cooperação social e possibilitam a ação coletiva. Esta participação também é instigada

pela relação com o Estado. E neste caso em específico, podemos entender o Orçamento

Participativo como um elemento importante para o desencadeamento do enfrentamento do

conflito, ou seja, certos conteúdos permanecem, durante um período, ausentes no

desencadeamento de mobilizações, e são utilizados como recurso referencial quando o

movimento aparece ou reaparece. E a participação ocorre porque há sentimentos, valores,

motivações que fazem com que uma pessoa se identifique com a causa e,

conseqüentemente, participe.

124
CAPÍTULO IV

Situando teoricamente os referenciais da pesquisa

Neste capítulo, pretendemos desenvolver teoricamente alguns conceitos básicos

para a análise dos dados, como por exemplo, participação política, cidadania, estigma,

identidade social e coletiva e consciência política.

1- Participação política: as muitas maneiras de abordar o conceito

Montero (In: D´Adamo; Beaudoux; Montero, 1995) adota a idéia de ação política

em vez de participação política, uma vez que aquela supõe uma concepção do sujeito como

ator, como ser ativo, como construtor da realidade e não como mero reprodutor ante

situações que, de alguma maneira, exige uma resposta de sua parte. Assim, retomando

Kaase y Marsh (1979), Montero entende participação política como todas aquelas

atividades voluntárias e individuais dos cidadãos, que se pretenda que influa direta ou

indiretamente sobre as eleições políticas em diversos níveis do sistema político, ao qual se

deve acrescentar uma condição que Sabucedo (In: Seoane,1988) explicita: a união deste

conceito com o conceito de democracia, ou sua inserção nele como uma conseqüência

lógica, já que a essência de um regime democrático, e o que em última estância o legitima,

é a possibilidade que os cidadãos têm de influenciar o curso dos acontecimentos políticos.

Portanto, no nível formal, uma democracia deve possuir os canais participativos precisos

para que seja o conjunto de cidadãos o autêntico responsável por seus destinos.

A definição da ação política, segundo Montero (In: D´Adamo; Beaudoux; Montero,

1995), não está, no entanto, muito distante enquanto a conduta resultante e sua inserção em

um sistema. Assim, o peso do conceito está no caráter dinâmico da definição, que supõe

125
tanto a intervenção de um sistema e suas organizações quanto a das pessoas individuais,

cujo caráter gerador da atividade é reconhecido e levado em conta.

Montero (1995) refere o trabalho de Barnes y Kaase que, a partir de um estudo em

cinco países, apresentam uma classificação das formas de participação política segundo

uma variável fundamental: a convencionalidade de seu caráter, o qual conduz a referir de

formas convencionais e não convencionais. As formas convencionais têm a ver com ações

que conduzem, de uma ou outra maneira, ao voto, e supõe a afiliação formal ou informal a

um partido ou tendência política. As formas não convencionais implicam na idéia da

vontade de mudar ou transformar uma situação diretamente, ainda que através de modos

diferentes e inclusive questionáveis, mais que de influir através da delegação em

representantes oficias pelos meios estabelecidos.

De acordo com Sabucedo (1996), a participação dos cidadãos na tomada de

decisões políticas, é circunstancial ao conceito de democracia. As diversas versões sobre a

democracia e o alcance que deve ter a participação dos cidadãos permitem a existência de

diferentes interpretações da participação política.

Desde o ponto de vista normativo, se apresentam sérias discussões em torno do

significado da participação dos cidadãos na esfera política e sua implicação com o ideal do

sistema democrático.

Sabucedo (1996) apresenta a idéia de que o estudo da participação política se

caracteriza por sua enorme diversidade de enfoques. Como exemplo, cita diversos estudos

sobre o tema. No estudo de Verba y Nie (1972), todas as ações políticas compartem a

característica de ser consideradas convencionais; Booth y Seligson (1978) consideram

também como formas de participação política as atividades realizadas no seio da própria

comunidade. Barnes, Kaase et al (1979) dedicam em seu trabalho transcultural, uma

atenção especial às formas não institucionais e violentas de participação.

126
Conge (1988) assinala que as discrepâncias entre as numerosas aproximações à

questão do conceito de participação política, se colocam em torno dos seguintes pontos:

formas ativas versus formas passivas; condutas agressivas versus não agressivas; objetos

estruturais versus não estruturais; objetivos governamentais versus não governamentais;

ações dirigidas versus voluntárias; intencionais versus conseqüências não esperadas.

Com relação ao primeiro aspecto, alguns autores incluem, dentro da participação

política, questões tais como sentimentos de patriotismo ou consciência política, enquanto

outros mencionam exclusivamente a manifestações de condutas.

Para Conge (1988), participação política tem a ver com as condutas realizadas pelos

sujeitos e não com as atitudes ou a consciência política. O autor destaca o papel da

conscientização política para a mobilização política, porém, alerta que não deve ser

confundido com a própria participação. Quanto à participação violenta, Conge (1988) usa a

denominação de conduta agressiva e descarta a denominação de participação ilegal, não

institucional, dentre outras.

Sabucedo (1989) afirma que a classificação das ações políticas em categorias como

convencional – não convencional ou legal – ilegal, por exemplo, carecem de sentido pelas

seguintes razões:

En primer lugar, ese criterio se plantea desde una perspectiva del status-quo. Y esto
introduce valoraciones que nada tiene que ver con un enfoque científico del
problema. Si no somos lo suficientemente ingenuos como para considerar que las
etiquetas que adscribimos a determinados fenómenos no influyen en la valoración de
los mismos, estaremos de acuerdo en que la utilización de los términos ilegal, no
institucional, etc., suponen una descalificación o cuando menos una opinión no
demasiado positiva de este tipo de actividades (Sabucedo, 1989, p. 199). En segundo
lugar, la división entre actividades convencionales versus no convencionales, está
sujeta a condicionantes sociales que hacen que un modo de participación que resulta
no convencional en un momento determinado, resulte totalmente habitual y aceptado
poco tiempo después (Sabucedo, 1984, p. 64). En tercer lugar, esa clasificación
resulta demasiado elemental, lo que obliga a que acciones que resultan muy
diferentes entre si, como puede ser el caso de las manifestaciones ilegales y la
violencia armada, deban compartir una misma categoría (Sabucedo, 1989:199).

127
Verba e Nie (1972) indicam a atividade na comunidade como uma das categorias

de participação política e rejeitam o modelo unidimensional de participação. Também

nessa linha, Booth y Seligson (1978) apontam as atividades comunitárias como uma das

formas de atividades políticas. O problema que se coloca com esse tipo de ações na

comunidade é que se não possuem uma clara projeção política, isto é, se carecem de

caráter reivindicativo frente às autoridades, dificilmente podem ser qualificadas de

participação política (Booth y Seligson, 1978, citados por Sabucedo, 1996: 88).

No entanto, Conge (1988) rejeita a idéia de atividades na comunidade como formas

de participação política, pelos seguintes argumentos:

La política supone relaciones de poder y autoridad; los actores principales en esas


relaciones de poder y autoridad son los gobiernos de los estados; la política se refiere
al gobierno de los estados, por tanto, la participación política implica aquellas
conductas que se realicen dentro de ese ámbito (In: Sabucedo, 1996:88).

Segundo Conge, portanto, há uma ausência de uma clara dimensão política nesse

tipo de comportamentos; se não há uma intervenção das autoridades políticas encarregadas

da distribuição dos recursos públicos, não podemos falar de participação política, mas sim

de participação social ou cívica.

O autor aborda a questão da inclusão de variáveis como intenção e conseqüências

da ação na definição de participação política. Segundo ele, o importante é os atos que se

realizam, não a intenção que tenham os sujeitos, nem as conseqüências dos mesmos. As

intenções, afirma Conge: podem explicar por que a gente participa (sem considerar o que

é a participação política) enquanto os resultados (sejam ou não intencionais) explicam as

conseqüências da participação política (de novo sem ter em conta sua natureza) (Conge,

1988:247).

Para Sabucedo (1996) parece óbvio que o tema das conseqüências da ação deve ser

excluído de qualquer definição que se queira dar de participação política. Os resultados

128
dessas atividades não podem estar determinando sua adsorção à categoria de participação

política porque os efeitos de um determinado ato de participação ou mobilização política

dependem de diversos fatores, se levássemos as suas últimas conseqüências esse princípio,

poderíamos nos deparar com o absurdo de que uma campanha de protesto político, em

que se apresentasse qualquer tipo de reivindicação, não fosse considerada como

participação política por não conseguir os resultados desejados (Sabucedo, 1996:89).

No caso da intenção, a postura de Sabucedo é similar a de Conge, ou seja, uma ação

deve ser qualificada como participação política se está dirigida a influenciar, de uma

maneira ou outra, a forma de decisões políticas ou determinadas estruturas de governo.

Sabucedo define participação política como aquelas ações intencionais, legais ou

não, desenvolvidas por indivíduos e grupos com o objetivo de apoiar ou questionar a

qualquer dos distintos elementos que configuram o âmbito do político: tomada de

decisões, autoridades e estruturas (Sabucedo, 1996:89).

Sabucedo refere que os primeiros trabalhos sobre participação política tenderam a

considerar um número bastante limitado de formas de ação. Em concreto, as modalidades,

objeto de análise, foram as vinculadas com o processo eleitoral e refere, como exemplos,

aos trabalhos de Campbell et al., (1954)40 e Stone (1974)41.

No entanto, a partir dos anos 60, se assiste ao incremento de forma de ação política

que pouco tem a ver com as modalidades mais ortodoxas de participação.

40
Campbell et al., analizaron la escala de participación política, donde recogen cinco ítems todos ellos
relacionados con las actividades desarrolladas durante las campañas electorales: votar, acudir a mítines,
apoyar económicamente a algún partido o candidato, trabajar para algún partido y convencer a otros para
votar por algún candidato y/o partido determinado (In: Sabucedo, 1996:90).
41
Stone elabora una escala para la medición del compromiso político en el que se alude a actividades muy
semejantes a las propuestas por Campbell et al., y que se sitúan también dentro de esa órbita de
comportamientos estrechamente ligados a la dinámica electoral. Los cinco niveles de participación que
distingue Stone, abarcan desde el votar hasta el desempeño de algún cargo público. Otras actividades a medio
camino de las anteriores serían la participación indirecta, la participación en campañas electorales y el
presentarse como candidato (In: Sabucedo, 1996:90).

129
Esse fato obrigou os pesquisadores a prestarem atenção a essas novas formas de

incidência política. A partir dessa perspectiva, são citados os trabalhos que estabelecem

distinções entre modos convencionais versus não convencionais de participação. E nesse

caso, Sabucedo refere aos trabalhos de Barnes, Kaase et al (1979)42, Milbrath (1981 e

1968)43, Kaase e Marsh (1979)44 e Verba e Nie (1972)45, onde o voto aparece como uma

atividade diferenciada de outros aspectos da participação política.

Sabucedo faz algumas considerações sobre esses trabalhos que tratam da

multiplicidade de atividades que aparecem relacionadas à categoria de participação política

convencional.

En primer lugar, hay un hecho que parece quedar claramente demostrado en cuanto
aparece de modo consistente en los diversos estudios realizados: el voto es una
conducta política claramente diferenciada del resto de formas de incidencia política;
en segundo lugar, ese acuerdo generalizado sobre ese punto no se hace extensivo al
resto de esta problemática (Sabucedo, 1996: 91).

No que diz respeito à participação política não convencional, o que mais chama a

atenção é a heterogeneidade de atividades que se enquadram sob esse rótulo. Nessa

perspectiva, Sabucedo refere os trabalhos de Muller (1982)46, Schmidtchen e Uhlinger

42
En su trabajo transcultural, los autores aluden los modos convencionales y no convencionales de
comportamiento político. La mayoría de las afirmaciones destinadas a evaluar la participación política
convencional están referidos a circunstancias relacionadas con el proceso electoral. En cuanto a la
participación no convencional se recogen actuaciones como las siguientes: hacer peticiones, manifestaciones
legales, boicots, huelgas ilegales, daños a la propiedad y violencia personal, entre otras.
43
Milbrath también habla de participación política convencional y no convencional, y la lista de situaciones
que reflejan ambos tipos de participación resulta muy similar a la de Barnes y Kaase, si bien es más detallada
en el caso de la participación política convencional y más general en la participación política no
convencional. En otro estudio, el autor asocia la conducta de voto a afirmaciones de claro contenido
patriótico tales como “amo a mi país”, “aunque no esté de acuerdo apoyo mi país en las guerras”, etc.
44
Los autores afirmaban, en su estudio, la posibilidad de transformar su listado de actividades en una escala
tipo Guttman, si bien la ordenación de algunas afirmaciones variaba en algunos países. Sin embargo existía
una excepción a esa unidimensionalidad: el voto. Este tipo de conducta política no se ajustaba a los requisitos
del escalamiento de Guttman, constituyendo una actividad claramente diferenciada de las anteriores.
45
Los autores señalan que la participación política no debe considerarse como um modelo unidimensional,
sino como um modelo compuesto por cuatro factores: actividades en campañas políticas, actividad
comunitaria, contactos con la administración y conducta de voto.
46
Muller clasificó a varias conductas políticas no convencionales junto a las convencionales, en la categoría
de participación democrática y legal; mientras que otras conductas también consideradas no convencionales
en la literatura eran adscritas a la categoría de participación ilegal y agresiva. Queda claro, pues, la naturaleza

130
(1983)47 e Sabucedo e Arce (1991)48. Esse último estudo foi feito pela necessidade de ter

una nova topologia das formas de participação política. Os resultados alcançados na

investigação mostram que a variedade de modos de incidência política, não pode ser

reduzida em categorias tão simples como as de convencional versus não convencional,

legal versus ilegal ou outras, ou seja, há múltiplas maneiras de incidir no processo político,

à medida que os indivíduos se revelam mais inclinados a intervir na esfera do político.

A partir dessa idéia de Sabucedo e Arce, podemos pensar em outros elementos que

delineiam as intervenções dos indivíduos no processo político. Um desses elementos que

proponho refletir e, para tanto, apresento subsídios teóricos, trata da questão do “estigma”

e da maneira como as pessoas se inter-relacionam e constituem sua identidade social e

coletiva. Para isso, apresentamos, inicialmente, as contribuições teóricas de Elias e

Scotson.

diferenciada de los distintos tipos de actividades no convencionales. Un grupo de ellas se mueve dentro de la
legalidad, en tanto que otras se enfrentan abiertamente a la misma.
47
Los autores utilizaron el escalamiento multidimensional y el análisis de clusters como estrategia
metodológica para descubrir las dimensiones de la participación política. Los resultados obtenidos muestran
la existencia de dos grupos de conductas claramente diferenciadas: las legales y las ilegales. Pero quizá más
importante que esto, era el hecho de que determinadas actividades no convencionales aparecían situadas en el
grupo de conductas políticas legales. En el otro agrupamiento, el ilegal, se diferenciaba claramente entre las
actividades violentas y las que no lo eran.
48
En esa investigación se les pidió a los sujetos que señalasen la proximidad percibida entre diferentes
modos de participación política. La lista que se le presentó a los sujetos recogía los siguientes estímulos:
votar, acudir a mítines, convencer a otros para votar como uno, enviar cartas a la prensa, manifestaciones
autorizadas y no autorizadas, boicots, huelgas autorizadas y no autorizadas, violencia armada, daños a la
propiedad privada, ocupación de edificios y cortes de tráfico. La lista de acciones políticas era bastante
amplia e incluía las actividades más frecuentes, tanto legales como ilegales. Los resultados alcanzados con
este procedimiento, apuestan por la existencia de cuatro tipos de participación política claramente
diferenciados entre sí: la persuasión electoral (tratan de conductas que están vinculadas a las campañas
electorales, en donde el sujeto es o bien el agente de influencia (convencer a otros para votar como uno) o el
objeto de la misma (acudir a mítines); la participación convencional (conjunto de actividades que tienen
como denominador común el hecho de que se trata de acciones que se mantienen dentro de la legalidad
vigente y que tratan de incidir en el curso de los acontecimientos político-sociales. Ejemplos: votar, enviar
escritos a la prensa y manifestaciones y huelgas autorizadas); la participación violenta (como daños a la
propiedad y violencia armada); y la participación directa pacífica (tratan de actividades que si bien pueden
desbordar el marco de la legalidad establecida no son necesariamente violentas. Ejemplos: ocupación de
edificios, boicots, cortes de tráfico y manifestaciones y huelgas no autorizadas).

131
2. Algumas considerações sobre o “estigma”

Apresento agora o estudo que Elias e Scotson (2000) fizeram sobre os habitantes de

um povoado industrial, denominado Winston Parva, que trata da diferença e da

desigualdade social nas relações entre os estabelecidos e os outsiders. Os primeiros

fundamentavam sua distinção e seu poder em um princípio de antigüidade: moravam em

Winston Parva muito antes do que os outros, representando os valores da tradição e da boa

sociedade. Os outros viviam estigmatizados por todos os atributos associados com a

anomia, com a delinqüência, com a violência e com a desintegração.

As palavras establishment y established são utilizadas, em inglês, para designar

grupos e indivíduos que ocupam posições de prestígio e poder. Um establishment é um

grupo que se auto-percebe e que é reconhecido como uma boa sociedade, mais poderosa e

melhor, uma identidade social construída a partir de uma combinação singular de tradição,

autoridade e influência: os establishment fundam seu poder no fato de ser um modelo

moral para os outros; o termo que completa essa relação é outsiders, ou seja, os não

membros da “boa sociedade”, os que estão fora dela.

O grupo dos establishment se vê como pessoas “melhores”, dotadas de uma espécie

de carisma grupal, de uma virtude específica que é compartilhada por todos seus membros

e que falta aos outros. Nesses casos, os indivíduos “superiores” podem fazer com que os

próprios indivíduos “inferiores” se sintam, eles mesmos, carentes de virtudes – julgando-se

humanamente inferiores.

O estudo de Elias e Scotson (2000) mostrou que, por se considerarem antigos na

comunidade, os establishment tratavam os recém chegados na comunidade, como pessoas

que não se inseriam no grupo e como “os de fora”. Esses recém chegados, por sua vez,

depois de algum tempo, pareciam aceitar, com uma espécie de resignação e perplexidade, a

idéia de pertencer a um grupo de menor virtude e respeitabilidade.

132
Os autores constataram que, o que permite a esse grupo se afirmar como superior e

lançar um estigma sobre os outros, como pessoas de estirpe inferior, em geral, tem a ver

com as diferenças grupais étnicas, nacionais e a antiguidade na comunidade, ou seja, tem a

ver com o grau de coesão das famílias. O sentimento do status de cada um e da inclusão na

coletividade tinha a ver com a vida e com as tradições comunitárias.

Era graças ao seu maior potencial de coesão, assim como a ativação deste pelo
controle social, que os antigos residentes conseguiam reservar para as pessoas de seu
tipo os cargos importantes das organizações locais, como o conselho, a escola ou o
clube, e deles excluir firmemente os moradores da outra área, aos quais, como grupo,
faltava coesão. Assim, a exclusão e estigmatização dos outsiders pelo grupo
estabelecido eram armas poderosas para que esse último preservasse sua identidade
e afirmasse sua superioridade, mantendo os outros firmemente em seu lugar (Elias y
Scotson, 2000: 22).

Atualmente, segundo os autores, há uma tendência em discutir o problema da

estigmatização social, como se fosse uma simples questão de pessoas que mostram,

individualmente, um desprezo acentuado por outras pessoas como indivíduos. E isso não é

suficiente por que equivale discernir somente no plano individual algo que não pode ser

entendido sem que se perceba, ao mesmo tempo, em nível de grupo. Há que distinguir a

estigmatização grupal e o preconceito individual e relacioná-lo entre si. A estigmatização

pode surtir um efeito paralisante nos grupos estigmatizados: dê-se a um grupo uma

reputação ruim e é provável que ele corresponda a essa expectativa (Elias e Scotson,

2000: 30).

Este vínculo, que é criado com a comunidade e que desperta o sentimento de

pertencimento à mesma, é problematizado por Elias e Scotson em seu estudo sobre

Winston Parva. Os autores relatam que o sentimento comum de “fazer parte”, da

responsabilidade e dedicação à comunidade natal criava sólidos vínculos entre as pessoas

que ali haviam crescido e, provavelmente, prosperado juntas. É possível que nem todas

133
gostassem pessoalmente umas das outras, porém, compartilhavam de um intenso

sentimento de identidade grupal. Identificavam-se objetivamente como “famílias antigas” e

subjetivamente como “nós”.

De acordo com o estudo de Elias e Scotson (2000), desde os primeiros tempos, os

moradores do loteamento foram estigmatizados, e a opinião pública da “aldeia”, com uma

classe inferior de pessoas. Por mais que a situação tivesse se modificado, seu rechaço e a

sua exclusão continuaram a ser parte integrante da imagem que os aldeões tinham de

Winston Parva e deles mesmos. Elas sancionavam a superioridade desses como membros

da parte antiga e distinta de Winston Parva. Para os membros de uma comunidade de

imigrantes vindos de diferentes partes do país, essa atitude dos aldeões tornava muito mais

difícil do que já era, romper as barreiras que existiam entre eles mesmos, como estranhos, e

desenvolver uma vida comunitária em seu bairro. Relacionada a sua desunião, estava a

incapacidade dos recém-chegados se afirmarem com relação aos residentes mais antigos;

pelo contrário, a maioria parecia aceitar, mesmo que a contra gosto, o status inferior que

era a eles atribuído pelos grupos já estabelecidos.

A falta de coesão, o relativo isolamento das famílias do loteamento, tornou as

pessoas impotentes diante de situações desagradáveis. Eles estavam desamparados e

resignados com o seu destino, ao mesmo tempo em que sofriam com a má reputação do

seu bairro e com a conduta agressiva de seus vizinhos.

Segundo os autores, o descrédito que é atribuído a esses grupos por outros mais

poderosos, e que se toma forma em insultos típicos e fofocas depreciativas estereotipadas,

tem em geral, bases profundas na estrutura da personalidade de seus membros, que por ser

parte da sua identidade individual, não é fácil de descartar. Essas raízes profundas na

estrutura da personalidade dos indivíduos têm também a contrapartida, que é a crença na

134
graça ou virtude coletiva que muitos atribuem a si mesmos e que lhes pode ser atribuída

por outros que eles consideram inferiores.

A identidade coletiva e, como parte dela, o orgulho coletivo e as pretensões


carismáticas grupais ajudam a moldar a identidade individual, na experiência que o
sujeito tem de si e das outras pessoas. Nenhum indivíduo cresce sem esse alicerce de
sua identidade pessoal na identificação com um ou vários grupos, ainda que ele possa
manter-se tênue e ser esquecido em épocas posteriores, e sem algum conhecimento
dos termos elogiosos e ofensivos, dos mexericos enaltecedores e depreciativos, da
superioridade grupal e da inferioridade coletiva que a acompanha (Elias e Scotson,
2000:133).

O fato das famílias antigas se conhecerem e terem sólidos vínculos entre si, no

entanto, não significa necessariamente, que elas se estimem. É apenas em relação aos

intrusos que elas têm a tendência de se unir.

Outra contribuição importante sobre estigma é a de Goffman, a qual é apresentada a

seguir. Goffman (1988) faz uma referência histórica do conceito de estigma, situando na

época dos gregos a criação do termo, o qual foi criado para referir a sinais corporais com

os quais se buscava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou ruim sobre o status moral

de quem os apresentava. Os sinais eram feitos com incisões ou fogo no seu corpo e

avisavam que o portador era um escravo, um criminoso ou traidor - uma pessoa marcada

que devia ser evitada, especialmente em lugares públicos. Depois, na Era Cristã, dois

níveis de metáfora foram acrescidos ao termo: o primeiro deles referia-se a sinais corporais

da graça divina que tomavam a forma de flores na erupção sob a pele; o segundo, uma

alusão médica a essa alusão religiosa, se referia a sinais corporais de distúrbio físico.

Atualmente, o termo é amplamente usado de maneira semelhante ao sentido original, no

entanto, é mais aplicado à própria desgraça do que a sua evidência corporal.

A sociedade categoriza as pessoas e o total de atributos considerados comuns e

naturais para os membros de cada uma dessas categorias. Os ambientes sociais

estabelecem as categorias de pessoas que tem a probabilidade de serem neles encontradas.

135
As relações sociais nos permitem uma relação com “outras pessoas” previstas sem atenção

ou reflexão particular. Segundo Goffman (1988) quando um estranho é apresentado, os

primeiros aspectos nos permitem prever sua categoria e seus atributos, sua “identidade

social”. Com base nestas pré-concepções, nós a transformamos em expectativas

normativas, em exigências apresentadas de maneira rigorosa. E, quando nos damos conta

se essa exigência foi atendida ou não, percebemos que fazemos afirmativas em relação ao

que o indivíduo deveria ser.

Assim, as exigências que fazemos poderiam ser mais adequadamente denominadas de


demandas feitas “efetivamente”, e o caráter que imputamos ao indivíduo poderia ser
encarado mais como uma imputação feita por um retrospecto em potencial – uma
caracterização “efetiva”, uma identidade social virtual. A categoria e os atributos
que ele, na realidade, prova possuir, serão chamados de sua identidade social real
(Goffman, 1988:12).

Assim podemos pensar, de acordo com Goffman (1988), que nem todos os

atributos indesejáveis estão em questão, mas somente os que estão incongruentes com o

estereótipo que criamos para um determinado tipo de indivíduo.

O termo estigma, portanto, será usado em referência a um atributo profundamente


depreciativo, mas o que é preciso, na realidade, é uma linguagem de relações e não
de atributos. Um atributo que estigmatiza alguém pode confirmar a normalidade de
outrem, portanto ele não é, em si mesmo, nem honroso nem desonroso (Goffman,
1988:13).

Goffman (1988) apresenta a idéia de que um estigma é um tipo especial de relação

entre atributo e estereótipo, no entanto, propõe a modificação desse conceito, uma vez que

há importantes atributos que em quase toda a nossa sociedade leva ao descrédito. O autor

classifica três tipos de estigmas diferentes:

1- refere-se às abominações do corpo e às variadas deformidades físicas;

2- refere-se às culpas de caráter individual, percebidas como vontade fraca, paixões

tirânicas ou não naturais, crenças falsas e rígidas, desonestidade, sendo essas feridas a

136
partir de relatos conhecidos de, por exemplo, vício, alcoolismo, homossexualismo,

desemprego, tentativa de suicídio e comportamento político radical;

3- refere-se aos estigmas tribais de raça, nação e religião, que podem ser

transmitidos através da linhagem e contaminar por igual a todos os membros de uma

família.

Nesses exemplos de estigma se encontram as mesmas características sociológicas,

ou seja, um indivíduo que poderia ser facilmente recebido na relação social cotidiana

possui uma característica que se pode impor à atenção e afastar aqueles que o encontra,

destruindo a possibilidade de atenção para outros atributos seus. Ele possui um estigma,

uma característica diferente da qual havíamos previsto. Goffman (1988) denomina de

normais a nós e os que não se afastam negativamente das expectativas particulares em

questão.

As atitudes que nós, normais, temos com uma pessoa com um estigma, e os atos que
empreendemos em relação a ela, são bem conhecidos na medida em que são as
respostas que a ação social benevolente tenta suavizar e melhorar. Por definição, é
claro, acreditamos que alguém com um estigma não seja completamente humano. (...)
... fazemos vários tipos de discriminações, através das quais efetivamente, e muitas
vezes sem pensar, reduzimos suas chances de vida. Construímos uma teoria do
estigma, uma ideologia para explicar a sua inferioridade e dar conta do perigo que
ela representa, racionando algumas vezes uma animosidade baseada em outras
diferenças, tais como as de classe social (Goffman, 1988:14-5).

A característica central da situação de vida do indivíduo estigmatizado pode ser

explicada, segundo Goffman, através do entendimento sobre a “aceitação”, ou seja, aqueles

que têm relação com o indivíduo não conseguem dar-lhe o respeito e a consideração que os

aspectos não contaminados da sua identidade social os haviam levado a prever e o que ele

havia previsto receber: ele faz eco a essa negativa descobrindo que alguns de seus

atributos lhe garantem (Goffman, 1988:18).

137
E, com relação ao indivíduo estigmatizado, o autor analisa os movimentos desse

indivíduo para tentar corrigir o estigma, de maneira direta ou indireta: no primeiro caso,

quando o “conserto” é possível, ocorre transformação do ego, ou seja, “alguém que tinha

um defeito particular se transforma em alguém que tem possibilidade de corrigi-lo” e não a

aquisição de um status normal.

No segundo caso, o indivíduo estigmatizado pode tentar corrigir sua condição de

maneira indireta, dedicando um grande esforço individual ao domínio de áreas de

atividades consideradas geralmente como proibidas por motivos físicos e circunstânciais a

pessoas com seu defeito.

A criatura estigmatizada usará, provavelmente, seu estigma para “ganhos

secundários” como desculpa pelo fracasso a que chegou por outras razões. O estigmatizado

pode também ver as privações que sofre como uma graça secreta, especialmente devido à

crença de que o sofrimento pode mostrar muito a uma pessoa sobre a vida e sobre as outras

pessoas.

Apesar desse aspecto - da busca do estigmatizado para consertar seu problema -

Goffman aborda a questão dos “contatos mistos”, ou seja, os momentos em que os

estigmatizados e os normais estão na mesma “situação social”, ou seja, na presença física

imediata um do outro, seja durante uma conversa, seja na mera presença simultânea em

uma reunião formal. E, para Goffman (1988:23) esses momentos serão aqueles em que

ambos os lados enfrentarão diretamente as causas e efeitos do estigma.

Apesar disto, segundo Goffman (1988), durante os contatos mistos, é provável que

o indivíduo estigmatizado perceba que está “em exibição” e leve sua autoconsciência e

controle sobre a impressão que está causando a extremos e áreas de conduta que supõe que

os demais não alcançam.

138
Considerando o que pode enfrentar em uma situação social mista, o indivíduo

estigmatizado pode responder antecipadamente através de uma capa defensiva.

Apesar disto, Goffman (1988) recorda que o indivíduo estigmatizado pode tentar

aproximar-se de contatos mistos com agressividade, e isto pode provocar no outro, uma

série de respostas desagradáveis. A pessoa estigmatizada pode também vacilar entre o

retraimento e a agressividade, indo de um lado para outro, tornando evidente assim, uma

modalidade fundamental na qual a interação face-a-face pode tornar-se muito violenta.

Nos estudos sociológicos sobre pessoas estigmatizadas, o interesse dos

pesquisadores está geralmente voltado para o tipo de vida coletiva que levam aquelas

pessoas que pertencem a uma categoria particular ou então aquelas pessoas que atuam

como representantes de uma categoria estigmatizada.

São pessoas com estigma, que têm, de início, um pouco mais de oportunidades de
expressar-se, são um pouco mais conhecidas ou mais relacionadas de que seus
companheiros de sofrimento e que, depois de um certo tempo, podem descobrir o
“movimento” absorve todo seu dia e que se converteram em profissionais (Goffman,
1988:35).

Podemos acrescentar que desde que uma pessoa com um estigma particular alcança

uma certa posição financeira, política ou ocupacional, é possível que a ela seja confiada

uma nova ocupação - a de representar sua categoria.

É o que ocorre com alguns dos entrevistados, que se tornaram lideranças ou

referência na comunidade, que incentivam as pessoas a participarem das reuniões do OP,

ou que tentam trabalhar com a questão da autonomia e emancipação e, além disso, são as

pessoas que representam a comunidade junto aos órgãos públicos.

Sobre esta questão, Goffman (1988:36) formula duas observações:

Em primeiro lugar, ao fazer de seu estigma uma profissão, as lideranças “nativas”


são obrigadas a tratar com representantes de outras categorias, descobrindo assim

139
que estão rompendo o círculo fechado de seus iguais (...) Em segundo lugar, os que
apresentam profissionalmente a opinião de sua categoria pode introduzir certas
parcialidades sistemáticas em sua exposição apenas porque estão demasiadamente
envolvidos no problema para que possam escrever sobre ele.

Goffman reconhece que há outros recursos, além dos “profissionais”, que os

estigmatizados têm para denunciar sua situação de vida.

Cada vez que uma pessoa que tem um estigma particular alcança êxito, seja por

infringir a lei, ganhar um prêmio ou que seja o primeiro em sua categoria, pode tornar-se o

principal motivo de comentários de uma comunidade local (...) todos os que compartem o

estigma da pessoa em questão se tornam acessíveis para os normais que estão mais

imediatamente próximos e se tornam sujeitos de crédito e descrédito. Dessa maneira, sua

situação leva-os facilmente a viver num mundo de heróis e vilãos de sua própria espécie,

sendo a sua relação com esse mundo sublinhada por pessoas próximas, normais ou não,

que lhes trazem notícias do desempenho de indivíduos de sua categoria (Goffman, 1988:

37).

Quando há uma discrepância entre a identidade social real de um indivíduo e sua

identidade virtual, é possível que nós, os normais, tenhamos conhecimento desse fato antes

que entremos em contato com ele, ou então, que essa discrepância se torne evidente no

momento em que ele nos é apresentado. As identidades social e pessoal são partes, antes de

tudo, dos interesses e definições de outras pessoas em relação ao indivíduo cuja identidade

está em questão.

O indivíduo constrói a imagem que tem de si próprio a partir do mesmo material do

qual as outras pessoas já construíram sua identificação social e pessoal, porém ele tem uma

considerável liberdade com relação ao que elabora. O conceito de identidade social

permitiu considerar a estigmatização. O de identidade pessoal possibilitou considerar o

papel do controle de informações na manipulação do estigma. A idéia de identidade do eu

140
permite considerar o que o indivíduo pode experimentar a respeito deste estigma e sua

manipulação, e nos leva a dar atenção especial às informações que eles recebem quanto a

essas questões.

Uma vez que, segundo Goffman, em nossa sociedade, o indivíduo estigmatizado

adquire modelos de identidade que aplica a si mesmo a respeito da impossibilidade de se

conformar a eles, é inevitável que sinta alguma ambivalência com relação a seu próprio eu.

O indivíduo estigmatizado tem uma tendência a estratificar seus pares conforme o grau de

visibilidade e imposição de seus estigmas.

3. Identidade social e identidade coletiva: diferenciações necessárias para o

entendimento da participação política

Introduzo, para essa reflexão, as observações de Laraña (1999) sobre os trabalhos

de Alberto Melucci. Os trabalhos de Melucci (1989, 1994) mostram que nossa sociedade

ampliou os mecanismos de controle social no âmbito da natureza, das relações sociais e

indivíduo (sua personalidade, seu inconsciente e sua identidade biológica e sexual).

Para Melucci, o surgimento de uma sociedade da informação faz com que os

princípios pelos quais se organiza a produção, se estendam às relações sociais que antes

pertenciam ao âmbito privado, e incidam com força na identidade individual. As fronteiras

entre os âmbitos público e privado se diluem porque as informações se convertem no

recurso estratégico tanto para a subsistência da sociedade como para o desenvolvimento da

identidade individual. O surgimento de uma sociedade da informação gera mudanças nos

conflitos sociais: o movimento pela reapropriação dos recursos desloca sua luta para um

novo território. A identidade pessoal e social dos indivíduos progressivamente se percebe

como um produto da ação social. Uma série de questões que antes se situavam no âmbito

privado – a defesa da identidade individual, a continuidade e a previsibilidade da existência

141
pessoal – começa a constituir a substância dos novos conflitos. O que as pessoas

reivindicam de forma coletiva é o direito de realizar sua própria identidade: a

possibilidade de dispor da sua criatividade pessoal, sua vida afetiva e interpessoal e sua

existência biológica (Melucci, 1989:218).

Melucci (1994) faz referência à contradição que há na sociedade de informação, ou

seja, por um lado, as pessoas têm que ter um alto grau de autonomia para poder trabalhar

de forma eficaz; as capacidades de aprendizagem, inovação, autonomia e adaptação às

situações mutáveis passam a ser exigências para realizar eficazmente nosso trabalho. Por

outro lado, os sistemas mais diferenciados têm sérias necessidades de integração e tentam

exercer um controle cada vez mais amplo sobre os indivíduos.

Para o autor, a extensão do sistema de controle social se manifesta na crescente

regulação e manipulação de uma série de aspectos da vida que eram tradicionalmente

considerados privados (o corpo, a sexualidade, as relações afetivas), subjetivos (processos

cognitivos e emocionais, motivos, desejos) e inclusive biológicos (a estrutura do cérebro, o

código genético, a capacidade reprodutora). Esses campos são progressivamente invadidos

e regulados pelo aparato tecnocientifico, pelas agências de informação e comunicação e

dos centros de decisão política. Isso motiva as demandas de autonomia que impulsionam

os movimentos sociais: como reação da resistência a esses processos de expansão dos

sistemas de controle social, os movimentos reivindicam novos espaços sociais nos quais

seus seguidores se auto-realizam e constroem o significado do que são e o que fazem.

Esses espaços constróem grupos informais e redes interpessoais quando o movimento se

acha em um período de latência e, todavia não entrou em conflito com as instituições

sociais. São grupos submersos na vida cotidiana que atuam como plataformas para a busca

da identidade individual e coletiva dos que neles participam. Como já referido, essas áreas

do movimento funcionam como laboratórios nos quais os atores experimentam e

142
desenvolvem novos códigos de comportamento e significação, nos quais se elaboram

novas formas de relação interpessoal e estruturas de sentido de caráter alternativo

(Melucci, 1989).

Esses espaços possibilitam a construção da identidade coletiva de um movimento,

da qual depende seu potencial de reflexividade para difundir novas idéias na sociedade,

incidir na vida pública e produzir conflitos sociais difíceis de resolver para as instituições

políticas. A atividade reflexiva desses grupos só lhes permite desenvolver uma consciência

de grupo através de processos de interação nos quais se constroem novas definições dos

problemas que conferem sentido à participação, novos códigos de significados que

contrastam com os que as instituições políticas e científicas seguem. Tudo isto ilustra o

caráter interativo, reflexivo e socialmente construído desse fenômeno que o autor

denomina identidade coletiva e que tem adquirido uma importância central para o estudo

das sociedades completas. O conceito de identidade coletiva se refere à definição de

pertencimento a um grupo, os limites e atividades que este desenvolve. Essa definição é

fruto de um acordo entre seus membros que, com freqüência, permanece implícito

(Melucci,1994).

Para Melucci, a identidade coletiva é:

uma definição compartilhada e interativa, produzida por vários indivíduos (ou por
grupos a um nível mais complexo), que está relacionada com as orientações da sua
ação coletiva e com o campo de oportunidades e constrições na qual esta tem lugar.
Essa identidade está integrada por definições da situação compartilhadas pelos
membros do grupo, e é o resultado de um processo de negociação e laboriosos ajustes
entre distintos elementos relacionados com os fins e meios da ação coletiva com o
entorno. Através desse processo de interação, negociação e conflito sobre as distintas
definições da situação, os membros de um grupo constroem o sentido de nós que
impulsiona os movimentos sociais (In: Johnston, Laraña e Gusfield,1994:17).

143
De acordo com Laraña e Gusfield (1994), há cerca de 25 anos alguns sociólogos

norteamericanos estudaram a crescente popularidade dos movimentos sociais relacionados

com a identidade de seus membros. Depois, a perspectiva dos novos movimentos sociais

sustentou que a busca coletiva da identidade é um aspecto central em sua formação. Laraña

cita autores como Turner (1969: Turner, Ralph H. The theme of contemporary social

movements. British Journal of Sociology, 20:390-405) e Klapp (1969: Klapp, Orrin.

Collective Search for Identity, New York, Holt, Rinehart, and Winston), os quais

estudaram a relação da identidade pessoal e os movimentos sociais. Turner estudou a

identidade pessoal e a autotransformação do indivíduo entre grupos integrantes de

movimentos que se caracterizavam pela informalidade em suas estruturas organizativas.

Klapp estudou a busca coletiva da identidade como uma resposta do empobrecimento da

interação nas sociedades modernas. Seu argumento era de que as modernas relações sociais

haviam deixado de proporcionar pontos de referência consistentes para construir a

identidade do indivíduo.

De acordo com Laraña (In: Laraña e Gusfield, 1994), na perspectiva dos novos

movimentos sociais, os fatores da mobilização tendem a centrar-se em questões simbólicas

e culturais que estão associadas a sentimentos de pertencimento a um grupo social

diferenciado onde seus membros podem sentir-se fortes, e com orientações subculturais

que desafiam o sistema de valores prevalecente na sociedade. Laraña cita Melucci para

sustentar seus argumentos: o que as pessoas demandam de forma coletiva é o direito de

realizar sua própria identidade: a possibilidade de dispor da sua criatividade pessoal, sua

vida afetiva e sua existência biológica e interpessoal (Melucci, 1989: 218 In: Laraña e

Gusfield, 1994:11).

Esos enfoques parecen asumir que la búsqueda colectiva de identidad proviene de


una necesidad intrínseca a la condición de persona de mantener una imagen de sí

144
misma integrada y duradera, que es objeto de constantes ataques y amenazas en las
sociedades modernas (In: Laraña e Gusfield, 1994:12)

A relação existente entre as trocas sociais e morfológicas descritas por Melucci e os

comportamentos na busca da identidade procede, de acordo com o autor, de quatro fatores

característicos da sociedade moderna:

1- Abundância de recursos materiais,

2- Sobrecarga de informações,

3- Confusão sobre a variada gama de opções culturais disponíveis, e

4- As dificuldades do sistema para oferecer aos cidadãos opções culturais que

permitam o desenvolvimento da sua identidade.

De acordo com Laraña (In: Laraña e Gusfield, 1994), os quatro fatores costumam

ficar implícitos, assim como a forma em que se interrelacionam para dar lugar a novos

grupos sociais. Porém, Laraña sugere um maior desenvolvimento de um de seus supostos -

a relação entre as amplas trocas estruturais que se atribuem à sociedade pós-industrial e os

problemas da identidade das pessoas - a partir de um entendimento do conceito de

identidade. O autor apresenta três dimensões diferentes da identidade por sua importância

para interpretar a questão da participação dos movimentos sociais, que é a identidade

individual, coletiva e pública.

A identidade individual é, para a maioria dos sociólogos, contraditória e é

importante para entender como se produz a participação nos movimentos sociais. Este

conceito faz referência, de acordo com Laraña (In: Laraña e Gusfield, 1994), a uma série

de traços pessoais que, apesar de ser resultado de uma combinação entre a herança

biológica e a vida social, são internalizados por aqueles que participam nos movimentos

sociais como parte das suas biografias pessoais.

145
Os psicólogos sociais que tem estudado a formação dos grupos estabelecem uma

clara distinção entre a identidade individual e seus aspectos sociais, derivados do

pertencimento a um grupo (Tajfel, 1987 e 1981; Turner et al, 1987 In: Laraña e Gusfield,

1994).

O campo dos movimentos sociais se apropriou dos enfoques sobre as regras sociais

procedentes do interacionismo simbólico, como base conceitual para a análise da

identidade individual. A identidade social de quem participa em um movimento está

integrada por várias identidades que, em parte, se configuram ao atuar, e em parte

correspondem às regras organizativas e institucionais que regulam normativamente os

comportamentos (Merton, 1957 In: Laraña e Gusfield, 1994).

Um dos problemas do conceito de identidade é, ao mesmo tempo, a fonte da sua

força: seu caráter interdisciplinar que é resultado de suas dimensões sociais e

piscoanalíticas. Este conceito constitui uma ferramenta para a análise de uma série de fatos

e problemas nos quais se inter-relacionam as esferas individual e social, e onde se

manifesta a necessidade de integrar pressupostos procedentes dos modelos biológicos e

sociológicos da conduta.

O ponto de vista de Laraña é que a ênfase na busca da identidade nos novos

movimentos sociais é resultado da intersecção de vários fatores, um dos quais consiste na

chegada de uma certa idade com uma ruptura em um contexto econômico e social que

libera a seus membros de preocupações materiais imediatas e lhes permite proceder a uma

intensa introspecção em torno da sua identidade.

O conceito de identidade coletiva se refere à definição de pertencer a um grupo, os

limites e atividades que este desenvolve. Para Melucci (1994), a identidade coletiva é uma

definição compartilhada e interativa produzida por vários indivíduos (ou por grupos a um

146
nível mais complexo) que está relacionada com as orientações da ação e com o campo de

oportunidades e constrições em que esta tem lugar.

4. Atores sociais construindo cidadania

O estigma também está inserido no imaginário social das pessoas no que se refere a

questões geográficas; por exemplo, de acordo com o bairro que uma pessoa vive, já se

estabelece um estigma de que nível econômico e social tem, e as pessoas carregam este

estigma independente do que fazem em sua vida profissional ou acadêmica.

Temos, por exemplo, a situação de muitos entrevistados que vivem nas vilas e

estudam em escolas e/ou universidades particulares ou públicas de Porto Alegre, porém,

pela percepção de muitos, isso é impossível ou inaceitável, pois “o pobre não tem - ou não

tem que ter - acesso a nada que o rico também tenha”. Nestes casos, sempre se vê o

“pobre” como alguém que é merecedor desse fato, ou por que a instituição está fazendo um

bem para a “população carente”, ou seja, esse indivíduo não é um sujeito de direitos -

como defende a Constituição Brasileira - é um pobre que necessita da ação assistencialista

dos ricos.

Fazemos, neste momento, uma retomada do significado da palavra Vila. De acordo

com Ferreira (1975) a palavra origina-se do latim villa e tem como alguns de seus

significados,

uma povoação de categoria superior à de aldeia ou arraial e inferior à de cidade;


conjunto de pequenas habitações independentes, em geral idênticas, e dispostas de
modo que forme rua ou praça interior, por via de regra sem caráter de logradouro
público; avenida (Ferreira, 1975:1460).

Pela sua própria etimologia, já inclui uma significação de algo que é inferior,

excludente, não pertencente a uma lógica formal de urbanidade de uma cidade. Pela sua

147
constituição, passa a se caracterizar por ocupações ilegais, na sua grande maioria causadas

por movimentos migratórios, marginalizadas social e geograficamente, pois normalmente

estão situados às margens da cidade, em áreas de risco, e são vistas como esteticamente

inadequadas e incômodas.

A história dos nossos entrevistados é muito similar, ou seja, são pessoas que vieram

do interior do Estado, que trabalhavam na agricultura, que vieram para a capital em busca

de melhores trabalhos e acabaram na informalidade, por falta de qualificação profissional

ou de formação, e passaram a viver nas vilas, por questões econômicas dentre outras.

Encontraram nas vilas um lugar para residir próximo ao centro da cidade, onde se

ofereciam possibilidades de trabalho informal, trabalho com papel, como catador, biscates,

recebimentos de doações, de modo a permitir a sobrevivência e permanência dessas

famílias na capital, uma vez que depositavam nessa, expectativas e desejos de uma vida

melhor.

A crescente urbanização da cidade tornou mais visível e menos desejável a

presença das vilas nos seus locais de origem, as campanhas de higienização e saúde

pública detectaram problemas de doenças causadas, em parte, pela precariedade das

moradias. A construção de condomínios ou casas de classe média e alta ou de grandes

empresas, demarcou o distanciamento entre pessoas que vivem na mesma região da cidade,

enfim, seja por razões sanitárias, econômicas, políticas, sociais ou estéticas, o fato é que

surgiu a necessidade da transferência das vilas de seus locais de origem (Costa, 2000).

A transferência das vilas fazia parte, no entanto, de um projeto da Administração

Popular que permitiu um amplo processo de discussão com a sociedade sobre os principais

aspectos a serem reavaliados, através de quatro grupos temáticos de trabalho: Planos

Regionais, Gestão e Sistema de Planejamento, Estrutura Urbana e Subsídios para a Política

Habitacional (Green, 2000).

148
Em termos de reorientação do planejamento urbano como instrumento de

democratização da cidade, o Sistema de Planejamento seria o principal suporte, a

organização e a dinâmica que a Administração Municipal necessitaria para atingir o

completo aproveitamento dos recursos disponíveis, associando suas ações aos interesses da

população.

A incorporação da visão de planejamento como ação política, configurada através

dos instrumentos técnicos pertinentes, implicaria em comprometimento na sustentação do

processo de forma cada vez mais ampliada e incisiva.

Historicamente, foi no início do século que surgiu a primeira tentativa de organizar

o crescimento da cidade com o arquiteto João Moreira Maciel propondo o Plano Geral de

Melhoramentos, que data de 26 de agosto de 1914. Apesar de ser um plano tipicamente

viário, estava calcado em princípios orientadores bem definidos.

Muitas de suas idéias foram executadas e influenciaram os planos elaborados

posteriormente. A segunda tentativa de planificar a cidade ocorreu, no período entre

1935/1937, com estudos realizados por Edvaldo Pereira Paiva e Luiz Arthur Ubatuba de

Farias. Em 1938 o urbanista Arnaldo Gladosch foi contratado para elaborar um Plano

Diretor para Porto Alegre. Um ano depois foi criado o Conselho do Plano Diretor - que

atua até os dias de hoje - para o qual o arquiteto apresentava suas idéias. O chamado Plano

Gladosch, embora já destacasse a necessidade do zoneamento da cidade, resultou numa

proposta essencialmente viária. Mesmo tendo sido transformado em lei no dia 30 de

dezembro de 1959, o Plano Diretor só entrou em vigor no dia 29 de dezembro de 1961,

através da Lei 2330.

A necessidade de reformular a legislação urbanística de Porto Alegre desencadeou

um processo de discussão entre a população, e resultou no I Congresso da Cidade, em

149
1993, tendo em vista que o Plano em vigor, encontrava-se defasado e não vinha

conseguindo acompanhar a dinâmica da cidade (Green, 2000).

Estas mudanças acabaram redefinindo o papel do Estado e, de maneira especial, o

poder local, capacitando-se para estabelecer espaço de interlocução com a sociedade no

processo de elaboração de políticas (Green, 2000). A democratização do Estado assumiu

papel importante quando se buscou imprimir um novo comportamento na gestão da cidade.

Nesse sentido, a criação de canais adequados de acesso e participação da população,

capazes de incorporar os movimentos sociais e até mesmo aqueles ainda não organizados,

foi indispensável para a concretização e alteração do processo de ordenamento urbano.

A experiência de participação da população no processo de discussão do

orçamento, implantada pela Administração Popular, consolidou-se como um canal efetivo

de participação do movimento comunitário, passando a atender, assim, as demandas sociais

definidas no âmbito das regiões. Por isto, a descentralização, ao lado da participação da

população, pode ser entendida como um passo importante para a gestão de um novo

modelo de cidade e de decisão das políticas públicas, bem como o desenvolvimento e

manutenção da consciência política da população.

De acordo com Laraña (In: Laraña e Gusfield, 1994), os movimentos sociais

consistem em indivíduos interagindo, tratando de promover, controlar ou evitar a troca

cultural e social, e implicando em uma variedade muito ampla de interações, as quais estão

comprometidas com essas trocas. Na década de 70, nos Estados Unidos, o estudo sobre

movimentos sociais está centrado nas atitudes individuais, nos grupos que organizam o

protesto e nas formas de ação que utilizam. Na Europa, são consideradas as causas

estruturais dos movimentos sociais e as identidades coletivas, que expressam e se

relacionam com o capitalismo avançado.

150
Os movimentos sociais constituem o elemento dinâmico nos processos que

viabilizam as potencialidades das sociedades modernas. Com relação aos novos

paradigmas teóricos e movimentos sociais contemporâneos, Laraña (In: Laraña e Gusfield,

1994) refere que não está claro se há algo significativamente novo nos movimentos sociais

e qual a importância teórica e política das inovações. Os movimentos contemporâneos são

“novos” de alguma maneira significativa. O autor considera que a auto-compreensão que

abandona os sonhos revolucionários a favor de uma reforma radical é a que não se orienta

contra o Estado.

O tema “a sociedade contra o Estado”, não implica em si, algo novo no sentido da

ruptura radical com o passado. Pelo contrário, supõe a continuidade com o que vale a pena

conservar nas instituições, com as normas e com as culturas políticas das sociedades civis

contemporâneas. O contexto e as transformações da sociedade civil estão relacionados com

a aparição e lógica da ação coletiva, o que pressupõe um diferente nível analítico.

Segundo Tilly, no paradigma da mobilização de recursos, a idéia de que os

indivíduos desvinculados ou motivados por pressão social são os principais atores nos

movimentos sociais, é refutada; na análise da ação coletiva e dos cálculos custo-benefício,

são necessárias formas organizativas e modos de comunicação complexos para mobilizar a

ação coletiva.

Segundo Tilly, a mudança estrutural em grande escala (a modernização) afeta a

ação coletiva. Sua análise de mudança estrutural, no entanto, não põe em dúvida o fato da

diferenciação na transição da comunidade à sociedade. Tilly mostra que as teorias comuns

do colapso estão equivocadas por que o momento e a rapidez da urbanização e

industrialização não regem o ritmo da ação coletiva e porque não é possível vincular

diretamente as dificuldades, a anomia, as crises e o conflito.

151
O autor mostra, no entanto, a forma em que a transformação econômica, a

urbanização e a conformação do Estado produzem um deslocamento a longo prazo no

caráter e nas pessoas da ação coletiva. Esses processos facilitam a emergência de novos

tipos de mobilizações e organizações que debilitam outros.

O que há de novo na versão de Tilly é a relação que estabelece entre um repertório

de ação específico e mudanças estruturais que tem um efeito sobre a vida diária dos atores

relevantes. Os repertórios das ações coletivas têm a ver com suas formas de associação e o

motivo pelo qual emergem novas formas.

Do ponto de vista de Laraña e Gusfield (1994), a obra de Tilly mostra que a ação

coletiva moderna pressupõe o desenvolvimento de espaços sociais e políticos autônomos

dentro da sociedade civil, e uma política democrática que subjaz as instituições políticas

representativas e formais. No entanto, põe ênfase nas oportunidades políticas e nas

implicações estratégicas que aquelas têm para a emergência do repertório de ações do

século XIX.

O trabalho de Tilly pressupõe que a transformação dos espaços do poder e as

correspondentes trocas na forma de ação coletiva implicam na criação de novos

significados, novas organizações, novas identidades e um espaço social (sociedade civil)

na qual esses podem aparecer. Assim, a construção da identidade de grupo, o

reconhecimento dos interesses compartilhados e a criação de solidariedade dentro e entre

os grupos já não podem, com a emergência da sociedade civil moderna, ser tratados como

se estivessem realizados.

Segundo Laraña (2002), a tendência a explicar a ação coletiva pela configuração da

estrutura social está sendo questionada por duas perspectivas construtivistas. A

investigação de Laraña sobre as controvérsias e mobilizações em torno dos riscos

tecnológicos permite aplicar e desenvolver uma noção diferente de reflexibilidade. A

152
análise da reflexibilidade dos movimentos sociais se fundamenta em uma concepção dos

mesmos segundo o qual estas constituem mensagens simbólicas e agências de significação

coletiva, já que difundem novas idéias na sociedade e suscitam controvérsias públicas

sobre assuntos cujo caráter formativo se dava por fatos anteriores ao surgimento do

movimento. Para ele, os movimentos constituem importantes mecanismos para definir

essas questões na opinião pública quando se dão uma série de condições na sociedade e

seus promotores realizam com êxito certas tarefas de alineamento de marcos.

Esta concepção dos movimentos contrasta com a que os concebe como personagens

históricos, posto que não dá por feito seu caráter modernizador nem sua contribuição à

justiça social ou à emancipação coletiva. Por ele é mais útil na interpretação dos

movimentos sociais contemporâneos, muitos dos quais não podem abordar-se com essas

pré-noções. Ele implica duas coisas:

1- o sentido dos movimentos se constrói socialmente nas organizações e redes dos

mesmos, e motiva a participar neles com independência de que se inscreve em uma

orientação emancipatória ou modernizadora da sociedade donde surge;

2- e esse sentido constitui o objeto a investigar para explicar a formação do

movimento, já que não necessariamente responde à filosofia da história na qual se há

fundado o conceito moderno do movimento social. Daí a importância que adquire a análise

dos discursos e os processos de alineamento de marcos que promovem os movimentos

sociais.

O conceito que Laraña (1999), propõe tem caráter intermediário já que situa a raiz

destes processos de reflexividade em outros de criação e alineamento de marcos de

significados sobre o risco que promovem organizações sociais e grupos em ação Laraña

(2001). Apesar de que esta última definição tenha sido empregada para designar os

movimentos sociais, o autor amplia a definição em outro estudo, com o sentido de designar

153
a uma variedade de organizações sociais, econômicas e vinculadas às administrações

públicas que se mobilizaram de forma simbólica para promover distintas definições dos

efeitos da incineração de resíduos.

Laraña (1999) refere que a percepção do risco é resultado de um processo de

persuasão no qual intervêm distintas organizações e redes sociais, no lugar de ser produto

da “força das coisas” ou a gravidade das ameaças que recaem sobre os cidadãos reflexivos.

Para o autor, os problemas de pequena escala de desenvolvimento de uma comunidade e os

problemas de grande escala de desenvolvimento de um país são inseparáveis, e não há

possibilidade de estudar fenômenos comunitários como se eles ocorressem em um vazio

sociológico.

O processo de construção da sociedade não se encontra inscrito no tempo, ou seja,

sujeito e tempo são unidades materiais indivisíveis que sustentam a realização potencial ou

real de um projeto de vida. Não há, segundo Laraña e Gusfield (1994), destiempo

disponible para la acción social: de tal forma que si no hay tiempo vivido con retraso (...)

tampoco tiene sentido decir que el acto se adelanta al tiempo (...). Por supuesto, las

diversas subjetividades abren, desde sus realidades múltiples y variadas, afirmaciones

distantes sobre la acción social.

Os autores destacam que civilização, democracia e transição aparecem como os

momentos fundamentais da encruzilhada do nosso tempo, a partir dos quais é possível

organizar e sistematizar questões teóricas. Dessa forma, os autores convidam a uma

indagação inicial cujo objeto é questionar a tradição metodológica na ciência social, que

toma a análise post factum como único modelo possível de investigação. Para eles, a

civilização, a democracia e a transição compartem um ator multidimensional: o cidadão.

Em efeito, o foco hoje está colocado para que este personagem realize sua obra, essa há de

apresentar-se na cidade, na cultura política, na opinião pública, na defesa da soberania

154
popular, nos processos eleitorais e no sistema de partidos, entre outros. A atuação do

cidadão responde, sem dúvida, a inveterados processos de construção cultural: é a

condensação do processo produtivo da sociedade civil.

A cidadania faz da sociedade civil o cenário máximo da transição até uma

civilização democrática. As múltiplas temporalidades que convivem em dito processo

fazem um labirinto de possibilidades e abrem canal ao complexo mundo do litígio político.

Laraña e Gusfield (1994) sugerem que podemos entender que qualquer ação do

cidadão é resultado de formas de socialização política que implicam todas as estratégias,

institucionais ou não, existentes na ordem do civil. Também sugerem que as políticas

governamentais de controle e direção sobre a sociedade definem aspectos básicos de tal

ordem e, portanto, geram espaços para a socialização. O ato cidadão é, segundo os autores,

um fato político – coletivo – e também um fato técnico – individual. As linguagens e os

códigos da modernidade orientam por tal via até a atomização do político e a

individualização da experiência coletiva: las llamadas “nuevas culturas políticas”

encuentran en las ciudadanías altamente participativas, desde la privacía e intimidad, el

dique necesario para prevenir amplios embates de demandas excesivas de

democratización. De hecho, ellas son prefabricadas desde el horizonte de un pensamiento

neoliberal, que, pretendiendo ser vitalizador de la autogestión social, en realidad funciona

como autoritario vigilante discursivo sobre otras alternativas colectivas.

Com isso, os autores afirmam que depois da crise social do Estado, novos vínculos

entre o público e o privado se concretizaram Benjamin (1991), a tal grau que a

configuração de uma temporalidade dominante exigiu, às esferas do poder

institucionalizado, fundar uma nova ordem sobre as bases da cidadania individualizada.

Desde o ponto de vista dos autores, esta troca da natureza na política há de ser entendido

por uma psicologia que pretenda ser pensamento social útil em uma sociedade mutável.

155
5. Alguns elementos para definir consciência política

Introduzimos a contribuição de Sandoval (1994), que apresenta a definição de

Touraine para um entendimento teórico mais convincente sobre o estudo empírico da

consciência política do indivíduo. De forma sucinta, o esquema de Touraine propõe três

dimensões básicas que formam a consciência: Identidade, que é a dimensão que

compreende as percepções de identificação de classe do indivíduo, em termos de

percepção das características que separam a classe com a qual se auto-identifica de outras

classes sociais. Oposição, que é aquela dimensão que focaliza a percepção que o indivíduo

tem da relação entre a sua classe e outras classes, especialmente com respeito à classe

dominante. Totalidade se refere à percepção que o indivíduo tem da sociedade em termos

de sua dinâmica social, distribuição de bens sociais e do sistema de dominação.

Para Sandoval (1994b), Touraine ignora, no entanto, a questão da percepção que o

indivíduo tem da sua capacidade de intervenção para alcançar seus interesses. Sandoval

denomina esta quarta dimensão, acrescida às dimensões de Touraine, de predisposição

para a intervenção. Para o autor, o conceito de consciência está intimamente relacionado

ao engajamento do comportamento social em busca de auto-interesse e de interesse de

classe.

... a compreensão de como certas ações individuais ou coletivas ocorrem ou deixam


de ocorrer não é apenas uma questão de circunstância histórica ou da percepção do
indivíduo de sua realidade social, mas também do repertório disponível de ações
possíveis e da legitimidade atribuída às mesmas por seus atores. (...) O estudo da
consciência política sem um exame cuidadoso da percepção de ações coletivas seria
incompleto na medida em que falha em ligar visões societais a alternativas
comportamentais possíveis e implícitas em situações específicas de relações de poder
(Sandoval, 1994:68).

De acordo com Sandoval (1994b), a tarefa de analisar a consciência política não

deveria ser apenas descritiva, ao relacionar a consciência ao contexto das relações de

156
classe, mas também interpretativa enquanto se preste ao exame do declínio de certas

formas de pensamento e ao afloramento de outras, assim como verificar o que significa

este processo dentro de um dado contexto de arranjos sociais.

Para Sandoval (1989) devemos avançar nas análises que dão conta apenas de

explicações sociológicas para explicar a participação das pessoas em movimentos sociais.

Sabe-se que os movimentos sociais, enquanto objeto de estudo, foram, durante muito

tempo, de pouco interesse para psicólogos brasileiros, apesar da existência de uma

tradição teórica e empírica criada pelas contribuições de psicólogos europeus e norte-

americanos (Sandoval, 1989:122), talvez por isso, coube à sociologia, a tarefa de

compreender sistematicamente estes movimentos, como tantos outros fenômenos

psicossociais. As explicações destes modelos sociológicos explicam por que um conjunto

de pessoas, compartilhando interesses, age coletivamente, mas deixam um hiato em relação

ao engajamento individual em formas de ação coletiva. Há de se considerar, de acordo com

Sandoval (1989:123), os processos mediadores e a natureza dos vínculos entre o indivíduo

e a decisão coletiva do grupo.

A análise dos processos de participação política dos entrevistados remete a uma

investigação mais apurada no que se refere à consciência política. De acordo com Sandoval

(1994b:59), consciência é um conceito psicossociológico referente aos significados que os

indivíduos atribuem às interações diárias e acontecimentos em suas vidas, ou seja, o

contexto social é significado pelos indivíduos de acordo com a realidade vivida. Desta

forma, a consciência não é um mero espelhamento do mundo material (Giddens, 1982,

citado por Sandoval, 1994b:59).

O que é pensado, o que é dito, o que é expresso têm a ver com o contexto no qual as

pessoas vivem, uma vez que este é um campo fértil de significados acerca do que os

grupos vivem. A experiência local, ou seja, aquela mediada por relações próximas, que

157
fazem parte do contexto imediato de relações do indivíduo, e a experiência geral, ou seja,

aquela que faz parte da conjuntura política, econômica, social, cultural do indivíduo, e que

ajudam a constituir seu universo simbólico, são fontes que condicionam e moldam as

relações de classe e vêm afetar a consciência política. Por isso, a estruturação de classe

sempre implica em condições para o afloramento da consciência política (Sandoval,

1994b:60).

No exame da consciência uma distinção inicial deveria ser feita entre ‘organização
do conhecimento’ e ‘estilo cognitivo’ de uma modalidade particular de consciência. O
primeiro termo se associa ao que é conhecido, o segundo ao significado que é
atribuído ao conhecido e vivenciado. (...) ... os indivíduos recorrem a definições
‘gerais’ da realidade (tais como estereótipos, preconceitos, definições de papéis etc.)
para entender as experiências diárias e por sua vez as utilizam como parâmetros para
compreender novas experiências. Essas definições ‘gerais’ são substrato para a
coesão da sociedade. Neste sentido, as definições gerais utilizadas pelo indivíduo
para se orientar no dia-a-dia são parte inerente à hegemonia da sociedade (Sandoval,
1994b:61).

O que fica claro na análise de alguns dados é que, para alguns moradores, a

Administração Municipal tem um papel bem definido, que é o de prover as carências e

faltas das comunidades. O entendimento em relação a políticas públicas não é suficiente

para reorganizar o significado a partir do que é conhecido.

De qualquer forma, concordamos quando Sandoval (1994b) chama a atenção para o

fato de que ainda se desconhece aspectos fundamentais explicativos das mobilizações

populares e os determinantes implícitos na participação das pessoas nessas mobilizações.

Considerando os fatores determinantes da participação em mobilizações coletivas,

Sandoval (1989) faz uma distinção entre os fatores da esfera interna e externa, referentes à

dinâmica dos agrupamentos envolvidos no movimento social, que exercem um papel de

controle social. Destacam-se, primeiramente, as noções culturais que são a expressão

histórica de valores e crenças que permeiam as visões de mundo das pessoas como

pressupostos sobre natureza da sociedade e a naturalidade das relações sociais. Outro

158
mecanismo seria as restrições da vida cotidiana impostas aos indivíduos que reduzem a

oportunidade de desenvolver sua capacidade de análise abstrata. O acomodar-se passa a ser

uma alternativa atraente para muitos que não possuem elementos para uma reflexão mais

abstrata e crítica da realidade.

Além das conseqüências destes estigmas para as relações das pessoas entre si e com

a vizinhança do entorno, é possível entender que os entraves para a efetivação de uma

organização comunitária são marcados, dentre outros fatores, por uma visão coletiva

fragmentada e permeada pelo preconceito e discriminação.

No entanto, apesar dos valores, crenças sociais e a rotina cotidiana, os indivíduos

têm a oportunidade de romper parcial e temporariamente com os mecanismos de

submissão e viver experiências coletivas e interagir com outras pessoas no âmbito de um

esforço organizado coletivo.

Sandoval (1989) destaca os fatores que impulsionam os indivíduos a participarem

em movimentos sociais ou ações coletivas. Um destes fatores seria os demarcadores das

fronteiras dos agrupamentos e da comunidade que caracterizam a coletividade em termos

de localização, ou seja, a população no local cujos membros em grande medida pertencem

em termos de moradia e/ou trabalho ao local, o que, curiosamente, ainda não é um fator

facilitador das mobilizações nas comunidades, ao contrário, a fragmentação ainda é o

determinante.

O segundo grupo de fatores seria os fatores contribuidores à solidariedade entre os

membros da coletividade, que podem ser classificados em dois tipos: categorias e redes

sociais. As categorias sociais consistem em agrupamentos de pessoas que as distinguem de

outros por compartilhar os mesmos critérios ou atributos; as redes sociais consistem em

dois elementos: uma variedade de relações sociais e os conjuntos de indivíduos

interligados direta ou indiretamente por estas relações sociais.

159
O terceiro grupo de fatores estaria relacionado à vida organizativa, ou seja, a

combinação de categorias sociais com redes sociais expressa a noção de grupo no sentido

de sua coesão social que outros conceitos carecem, o que talvez para os moradores, seja

uma possibilidade de começar um processo de aprendizagem em relação às mobilizações

coletivas, necessárias, inclusive, para a obtenção de recursos para melhorias nas

comunidades.

E, por último, estaria o acervo de experiências em mobilizar recursos e agir

coletivamente, bem como o valor atribuído a essas experiências, o que o autor chama de

repertório de ações coletivas.

Neste sentido, a participação em movimentos sociais é um processo de

aprendizagem política em que indivíduos e grupos aprendem a se organizar, mobilizar

recursos e traçar formas de ações coletivas para obter benefícios.

Sandoval (1989a) destaca a relevância dos movimentos sociais para o cenário

político do país, assim como explica que a consideração da complexidade psicossocial do

engajamento político é algo recente nas pesquisas. Ao mesmo tempo, de acordo com o

autor, o interesse pelos movimentos sociais não levou a pesquisar os fatores que obstruem

os processos de politização e a participação.

Sandoval apresenta o Dilema do prisioneiro como modelo para exemplificar os

níveis de participação política de um indivíduo. De acordo com este modelo, há ganhos e

perdas que fazem com que as pessoas participem e, de acordo com Sandoval, pensando

racionalmente em termos de custos e benefícios, há uma predisposição a não participar do

que o contrário.

O Dilema do Prisioneiro da área da teoria dos jogos exemplifica um dos aspectos

que desaconselha a colaboração em esforços coletivos. Trata-se de um jogo de dois

160
prisioneiros em uma cela em que cada prisioneiro tem a opção de cooperar ou trair seu

companheiro. O quadro abaixo mostra esquematicamente o que será explicado a seguir:

DILEMA DO PRISIONEIRO
Formas de agir Prisioneiro 1
Prisioneiro 2 Cooperar Trair
Cooperar (A) (B)
+1, +1 -1, +2
Trair (C) (D)
+2, -1 -1, -1

Se cada prisioneiro tem um benefício, e pode optar por colaborar ou trair seu

colega, os resultados das diversas opções seriam as seguintes:

Analisando os resultados dos ganhos e perdas neste jogo de duas pessoas,

observamos que, no caso da célula A, se os dois prisioneiros cooperam, cada prisioneiro

conserva seu benefício (+1, +1).

Por outro lado, no caso da célula B, se o prisioneiro 2 coopera, enquanto o

prisioneiro 1 o trai então, o prisioneiro 2 perderá seu benefício (-1) e prisioneiro 1 conserva

seu benefício e ganha o benefício do outro (+1 + 1 = 2).

Se o prisioneiro 2 trai, enquanto o prisioneiro 1 coopera, então o prisioneiro 2

ganhará +1 a mais do seu benefício e o prisioneiro 1 perde o seu (célula C).

No caso da célula D, se os dois prisioneiros traem, ambos se desgastam perdendo

seus pontos (-1, -1).

Desta forma, de acordo com os indicativos de Sandoval (1989a), no caso de cada

prisioneiro, para obter maiores ganhos, o comportamento racionalmente mais vantajoso

seria trair quando o outro coopera, já que esta estratégia daria maiores ganhos do que

ambos cooperarem. Por outro lado, há o risco de ambos traírem-se e conseqüentemente

ambos perderem seus benefícios. No meio termo, entre estes dois extremos, fica a

161
estratégia de ambos cooperarem para conservar cada um seu benefício. A partir do Dilema

do Prisioneiro, fica claro que a cooperação não é necessariamente a melhor opção para

melhorar os benefícios do ponto de vista do indivíduo.

Sandoval aproveita a ilustração para compreender a problemática da participação

dos indivíduos nos movimentos sociais da ótica dos custos e benefícios que uma pessoa de

camada popular possa ter como resultado de participar ou não-participar em um

movimento social. Para exemplificar, reproduzimos o quadro abaixo:

DILEMA DA PARTICIPAÇÃO COLETIVA


Ações coletivas
Comportamento individual Beneficia Não beneficia
Colabora (A) (B)
+1, +2 +1.1, -2.1

Não colabora (C) (D)


+3.1, +1.9 0, 0

No modelo de Sandoval (1989a), há dez pessoas que desejam obter um bem

coletivo de valor de 20 e para isso precisam juntar no mínimo 10 valores para pleitear este

bem, então a mobilização de recursos implicaria em que cada membro do grupo deveria

contribuir com uma quota de 1 valor para juntos reunir o mínimo necessário para

reivindicar o bem necessário.

Este modelo apresenta os custos e benefícios que um indivíduo tem, mesmo quando

opta em não contribuir, mas pode beneficiar-se do bem coletivo, uma vez que o bem é

coletivo e não há a possibilidade de excluir pessoas de seu usufruto ou distribuir o bem

diferentemente entre as pessoas conforme o grau de participação individual na ação

coletiva.

O processo do Orçamento Participativo em Porto Alegre é ilustrativo deste modelo,

no sentido de que as reivindicações das reuniões são sempre coletivas e a

representatividade não é de todos os moradores, mas todos se beneficiam.

162
A partir da explicação de Sandoval sobre o Dilema da Participação Coletiva,

entendemos que no caso em que todos os indivíduos colaboram, contribuindo 1 valor por

pessoa, cada indivíduo receberá 2 valores com o bem coletivo em troca de sua colaboração

de 1 (célula A).

No caso de um indivíduo não colaborar, conseqüentemente, os outros nove

membros do grupo terão que contribuir 1.1 valores (em lugar do 1 esperado) para

compensar a falta de um membro, onde os 10 valores mínimos tem que ser reunidos entre

nove pessoas e não entre as dez. Se ocorrer de não se ganhar o bem coletivo, cada

indivíduo colaborativo perderá –1.1 da sua contribuição inicial mais –1 do possível ganho

que ele teria se tivesse obtido o bem coletivo. Assim, sua perda seria hipoteticamente de –

2.1 enquanto aquele que não colaborou teria uma perda de 0, uma vez que este último não

arriscou colaborar (célula B).

É o caso, por exemplo, retomando o contexto do Orçamento Participativo, daqueles

moradores que não participam das reuniões por que sabem que, se a comunidade ganhar

alguma melhoria, ele também será beneficiado, sem ter tido o esforço de participar.

Outra situação é caso o indivíduo não colabore com a mobilização coletiva de

recurso para ganhar o bem comum (célula C), e o bem coletivo é conquistado; logo, este

indivíduo ganha um total de +2.0, decorrente da mobilização em prol do bem coletivo,

apesar de não ter colaborado individualmente com um investimento próprio, mas que foi

coberto pelos outros novos membros da coletividade. Por outro lado, cada membro, que

contribuiu 1.1 pontos para atingir os 10 mínimos, receberá apenas 0.9 pontos de retorno do

bem coletivo de 2 pontos considerando que dos 2 pontos, eles terão que repor seu 1.1

pontos de colaboração inicial.

Neste caso, o indivíduo não colaborativo é quem mais se beneficia do bem obtido e

tem maior vantagem do que os outros membros da coletividade que se engajaram

163
arriscando recursos pessoais no movimento social. Esses indivíduos esperam obter uma

“carona”, Shubik (1970), com a mobilização dos outros se beneficiando dos ganhos dos

outros e conservando seus próprios recursos enquanto os engajados obtêm benefícios, mas

também gastam seus recursos para obter esses benefícios.

Por último, temos o caso da célula D, onde ninguém colabora e por isso ninguém

recebe benefício algum, mas também as pessoas não arriscam seus recursos no movimento.

Neste caso, os membros da coletividade desejam o bem coletivo, mas ninguém está

disposto a investir recursos próprios para atingir este bem, conseqüentemente, levando a

um imobilismo e perda de possível melhoria individual e grupal, uma vez que o bem só

pode ser obtido coletivamente. Se todos os indivíduos fossem oportunistas como no caso

da célula C, o resultado lógico seria o caso da célula D, onde todos os membros do coletivo

deixariam de colaborar na espera do outro e, conseqüentemente, todos perderiam a

possibilidade de ter alguns benefícios devido ao imobilismo coletivo. Além dos casos do

cálculo oportunista, também se concentra, neste exemplo, os casos de situações de

agrupamentos com pouca ou nenhuma base para a ação coletiva, a falta de coesão social, a

falta de organização, talvez ilustrada por categorias ocupacionais de alto grau de

rotatividade, ou moradores recentes num determinado local.

O objetivo destes exemplos, extraído da teoria dos jogos, é contribuir para o

entendimento de que, na psicologia social dos movimentos sociais, o enfoque é dirigido a

analisar aqueles determinantes da dinâmica interna e externa nos movimentos sociais que

interferem nas formas de participação que as pessoas assumem frente às ações coletivas e

os movimentos sociais. Esta ótica psicológica-sociológica pressupõe um enfoque integrado

que analisa os fatores e os processos que determinam as formas e os motivos individuais

das pessoas agirem em situações de mobilização coletiva.

164
De acordo com Sandoval, a explicação determinista da dominação ideológica, seja

na vertente que atribui um poder exagerado ao papel da ideologia das classes dominantes,

seja na vertente da predominação da falsa consciência entre os membros das classes

subalternas, a submissão é menos devido à eficiência ideológica das classes dominantes e

mais conseqüência dos múltiplos mecanismos de controle social que desenvolvemos

indivíduos formas de pensar o mundo da política caracterizadas por uma concretude de

pensamento, fragmentária e permeada de inconsistências interpretativas e fáticas, com o

objetivo de ser pouco conducente a reflexão mais abstrata e crítica das relações sociais.

Em relação aos fatores determinantes da participação em mobilizações coletivas,

convém fazer uma distinção para fins analíticos, entre aqueles fatores de esfera interna

referentes à dinâmica dos agrupamentos envolvidos no movimento social (grupos,

identidades e identificações sociais, interesses e consciência política, experiências de

organização e lideranças) e aqueles fatores referentes à esfera externa do movimento

social, tais como a estrutura de poder no local e na sociedade, grupos ideológica e

politicamente importantes, conjuntura e correlação de forças políticas, alianças, etc. Entre

estas duas esferas e seus fatores, Sandoval (1989a) comenta brevemente alguns dos fatores

mais relevantes no referente à esfera interna do movimento social.

Entre estes mecanismos de controle social, destaca-se em primeiro lugar as noções

culturais, que são a expressão histórica de valores e crenças que permeiam as visões de

mundo das pessoas como pressupostos sobre a natureza da sociedade e a naturalidade das

relações sociais. Entre as noções culturais destacamos as seguintes como as mais

relevantes para a questão de conscientização política: pressuposto da naturalidade da

estabilidade social, da estratificação social, da hierarquia social, da desigualdade, da

legitimidade de autoridade, da reciprocidade entre camadas sociais.

165
Outros mecanismos de controle social são as restrições da vida cotidiana, impostas

ao indivíduo que reduzem as oportunidades de desenvolver sua capacidade de análise

abstrata. Considerando que é na vida cotidiana que o indivíduo se envolve nas relações

sociais e forma sua consciência sobre a sociedade, a estrutura e a dinâmica da vida

cotidiana são aspectos importantes para traçar uma compreensão dos obstáculos à

politização.

Neste sentido, a estrutura da vida pode ser caracterizada na seguinte maneira: sua

fragmentação e heterogeneidade, sua hierarquia de valores e critérios sociais, sua

espontaneidade e imediatismo das decisões, seu economicismo e pragmatismo, a

importância atribuída à confiança, fé e sorte para explicar o desconhecido dos

acontecimentos, o uso das ultrageneralizações, precedentes, analogias e imitações como

formas de definir comportamento em situações novas, o uso dos preconceitos e

estereótipos para definir pessoas desconhecidas e predominância dos papéis sociais para

interpretar e interagir em situações conhecidas e desconhecidas.

Apesar dos valores, crenças sociais e a rotina cotidiana, os indivíduos têm a

oportunidade de romper temporária e parcialmente com alguns dos mecanismos de

submissão e viver, no movimento social, experiências coletivas que, por sua vez, são

pedagógicas no sentido de que o indivíduo tem a oportunidade de vivenciar outras formas

de agir frente a seus problemas, interagir com outras pessoas no âmbito de um esforço

organizado coletivo e conhecer, experiencialmente, o sistema político na medida em que o

movimento social contesta o status quo político-distributivo e leva o indivíduo a se

defrontar com membros das elites políticas.

Para Sandoval (1989a), há fatores que podem impulsionar pessoas a participarem

num movimento social ou permanecerem alheios à mobilização. Estes fatores podem ser

apontados como relevantes no plano psicosociológico e, de acordo com o autor, são os

166
seguintes: fatores demarcadores das fronteiras dos agrupamentos e da comunidade que

caracterizam a coletividade em termos de localização, ou seja, a população no local cujos

membros em grande medida pertencem em termos de moradia e/ou trabalho local. Fatores

contribuidores à solidariedade entre os membros da coletividade.

Estes fatores poderiam ser classificados em dois tipos, categorias e redes sociais:

categorias sociais consistem de agrupamentos de pessoas que se distinguem de outros por

compartir os mesmos critérios ou atributos, por exemplo, características étnicas-raciais, de

local ou região de origem, de condições sócio-econômicas e situações de vida. As redes

sociais consistem de dois elementos: uma certa variedade de relações sociais e os

conjuntos de indivíduos interligados direta ou indiretamente por estas relações sociais.

Estas redes sociais são formais e informais, ligam os membros afetiva e funcionalmente

uns aos outros através de laços interpessoais que muitas vezes sobrepõem-se às instituições

locais.

A combinação de categorias sociais com redes sociais expressa a noção de grupo no

sentido de sua coesão social que outros conceitos carecem. A partir dessa combinação

surge a noção de organização. Entre mais extensiva e intensiva sejam a identificação e as

redes internas, maior e a organização do grupo (comunicação/coletividade). A interrelação

específica de aspectos de categoria e redes sociais influi nas formas organizativas que se

desenvolvem com a finalidade de mobilizar recursos para atingir coletivamente alguma

meta de interesse mútuo.

Aspectos relevantes são: a estrutura, funções, penetração e apoio local das

organizações, os issues explícitos e potenciais de onde surgem as metas do movimento, as

lideranças e outros atores locais (formadores de opinião) e interação desses com a

população, assim como a intermediação política entre a comunidade/grupo e instituições e

grupos externos.

167
As ações coletivas dependem em parte da experiência, extensão e capacidade de

juntar recursos dentro da comunidade e no engajamento de membros da comunidade na

utilização dos recursos em atividades coletivas. Neste sentido, a participação em

movimentos sociais é um processo de aprendizagem política em que indivíduos e grupos

aprendem a se organizar, mobilizar recursos e traçar formas de ações coletivas para obter

benefícios dos detentores do poder.

Com este modelo, Sandoval (1989a) pretende levantar a discussão sobre um

inventário de categorias de fatores importantes na análise do comportamento individual em

situações de mobilizações coletivas destacando a necessidade de abordar esta problemática

de um enfoque que explique melhor aquela dinâmica de fatores que conduzem a uma

maior participação num contexto social em que a participação tende estar ausente.

Utilizamos o modelo de Sandoval (2001) sobre consciência política para

aprofundarmos o entendimento da participação política. O autor entende a consciência

política como um contínuo processo de elaboração de visões de mundo e, em seu artigo49

“The Crisis of the Brazilian Labor Movement and the Emergence of Alternative Forms of

Working-Class Contention in the 1990s, elabora um modelo teórico que descreve sete

dimensões psicossociais que constituem a consciência política.

Assim, a consciência política não pode ser compreendida a partir de si mesma, mas

a partir dos significados que os indivíduos atribuem à realidade social. As sete dimensões

de Sandoval – identidade coletiva, crenças e valores societais, identificação de adversários

e de interesses antagônicos, eficácia política, sentimento de justiça e injustiça, metas de

ação coletiva e vontade de agir coletivamente – são explicitadas a seguir50:

A primeira dimensão do modelo de Sandoval (2001) é a Identidade Coletiva: esta

dimensão, de acordo com Sandoval (2001), é entendida como o sentimento de


49
Artigo publicado na Revista Psicologia Política VOL. 1,(1).2001.
50
Tradução de Soraia Ansara.

168
solidariedade em que o indivíduo desenvolve laços interpessoais que levam a um

sentimento de coesão social que faz com que o indivíduo se identifique com alguma

categoria social. Isso significa dizer que os indivíduos adquirem um sentimento de

pertença ao grupo valorizando esses laços, criando confiança e credibilidade na capacidade

do grupo, criando expectativas no que diz respeito às conseqüências em manter ou quebrar

a solidariedade grupal e ainda atribuindo valor à reação de outros indivíduos dentro e fora

do grupo. Além desse sentimento, existe a identificação com interesses comuns, ou seja, os

indivíduos compartilham os mesmos interesses dando origem ao sentimento de

reivindicações coletivas. Nesse sentido, atribuem valor às metas grupais e à mudança

social como benefício pessoal e coletivo, instrumentalizando-se para atingir a mudança

almejada. Sandoval define identidade coletiva como “uma dimensão da consciência

política que se refere ao caminho estabelecido pelos indivíduos como a identificação

psicológica com interesses e sentimentos de solidariedade e pertencimento a um ator

coletivo” (Sandoval, 2001:187).

A segunda dimensão refere-se às Crenças e valores societais que o indivíduo

desenvolve com respeito à sociedade em que vive e que expressa, claramente, a ideologia

política e a visão de mundo dos mesmos. Estas podem ser entendidas como a representação

social que os indivíduos constroem sobre a estrutura social, as práticas e finalidades das

relações sociais. São os significados que as pessoas atribuem à estrutura social

considerando as relações políticas entre as categorias sociais e as próprias intenções das

pessoas que constituem essas categorias.

Essas representações são produtos das interações sociais e da experiência dos

indivíduos nos vários grupos, instituições e contextos da vida em sociedade. A maior

conseqüência da vida em sociedade é o sentimento que os indivíduos desenvolvem de

pertencer ou não a uma categoria social de inclusão e de exclusão em diferentes categorias

169
e grupos sociais que contribuem para estruturar a vida em sociedade.

A dimensão Identificação de adversários e de interesses antagônicos consiste

nos sentimentos do indivíduo em relação ao modo como os interesses simbólicos e

materiais são opostos aos interesses de outros grupos e como os interesses antagônicos

levam a perceber a existência de adversários coletivos na sociedade. Essa dimensão, para

Sandoval (2001), ocupa um lugar chave na consciência política, pois sustenta a ação

coletiva, visto que, sem a noção de um adversário visível, é impossível mobilizar os

indivíduos a agir e coordenar ações em favor de um objetivo específico seja este

individual, grupal ou institucional.

Em outras palavras, essa dimensão da consciência começa a mobilizar os sujeitos à

ação coletiva manifestando claramente os conflitos de interesses que existem entre os

adversários. Ela é expressa no “(...) caráter antagonístico das relações de classe (na

medida em que esses são conflitos de interesse) e no significado que o indivíduo atribui ao

antagonismo em termos de obstáculos para lograr benefícios materiais e políticos”

(Sandoval, 1994a:67).

A Eficácia Política é a dimensão que se refere aos sentimentos que as pessoas têm

sobre sua capacidade de intervir em uma situação política. Sandoval (2001) recorre à teoria

da atribuição de Hewstone (1989), que mostra que as pessoas podem dar três tipos de

interpretações às causas e motivações para as coisas que lhes acontecem: na primeira, o

indivíduo atribui que os eventos são resultantes de forças transcendentais como tendências

históricas, desastres naturais e intervenções divinas. Essa interpretação, geralmente produz

nos indivíduos sentimentos de baixa eficácia política, ou seja, quanto mais acreditarem que

os eventos têm como causas as forças transcendentais, mais baixo será o sentimento de

eficácia política frente às ações que possam realizar para transcender as forças da natureza.

170
Esse tipo de interpretação gera reações submissas e conformismo frente às situações de

angústia social.

Uma segunda forma de interpretação pode ser a individual. Neste caso, as pessoas

acreditam que as motivações e razões sociais são o resultado da própria determinação e

capacidade da pessoa em lidar com uma situação específica. As pessoas atribuem as causas

dos conflitos e angústia sociais às ações ou capacidades individuais, procurando resolvê-

los solitariamente e culpabilizando a sua carência de habilidades para tratar da angústia

social. Em outras palavras, as pessoas procuram soluções individuais para situações sociais

(Sandoval, 2001).

Por fim, a terceira forma de interpretação das motivações e causas sociais atribui a

força às ações de outros indivíduos e/ou grupos. As pessoas acreditam que situações de

angústia social são o resultado das ações de certos grupos ou indivíduos. Isso faz com que

essas pessoas acreditem nas suas ações individuais ou coletivas, consequentemente

gerando um efeito de mudança da situação. Dessa maneira, essas formas de motivações

permitem que as pessoas sintam que suas ações contra os responsáveis pela situação de

angústia social podem ter um efeito de mudança social.

É por meio dessa interpretação que descobrimos que os indivíduos tornam-se atores

da mudança em suas vidas, ou seja, sentem que são capazes de mudar a sua própria vida e

a vida dos outros. Isto, evidentemente produz um maior sentimento de eficácia política,

pois as pessoas sentem que são capazes de superar os conflitos e a angústia social.

A quinta dimensão, Sentimentos de justiça e injustiça, compreende as formas

como o indivíduo percebe os acordos sociais e avalia se estes acordos representam um

nível de reciprocidade social entre os atores que ele considera como justos. Com base em

Berrington Moore (1978), Sandoval (2001) aponta que a justiça social é expressa por meio

dos sentimentos de reciprocidade entre obrigações e recompensas e afirma que os

171
indivíduos entendem como uma ruptura da reciprocidade em termos de injustiça sempre

que sentirem que o equilíbrio das relações de reciprocidade forem ameaçados.

Segundo o autor, são os próprios processos sócio-históricos que proporcionam uma

relação equilibrada de reciprocidade e que fazem com que os indivíduos percebam que

essa reciprocidade pode ser violada. Dessa maneira, uma grande parte dos critérios

elaborados para medir noções de reciprocidade e seu subseqüente sentimento de injustiça

são determinadas pelo contexto histórico.

Contudo, Sandoval explica que, quando estes sentimentos de reciprocidade, de

alguma maneira, deixam de existir ou são violados, se estabelece uma situação de injustiça

que provoca o descontentamento coletivo e suas ulteriores manifestações de protesto.

Freqüentemente, diz o autor, notamos que toda reivindicação dos movimentos sociais vai

contra uma situação de injustiça, conseqüentemente observamos que, por trás do que as

pessoas falam sobre sua participação nos movimentos sociais, em suas representações, se

ocultam referências à noção de injustiça que servem para legitimar suas reivindicações e

responsabilizar os adversários.

A sexta dimensão refere-se à Vontade de agir coletivamente, e tem a ver à

predisposição do indivíduo em incluir-se no jogo das ações coletivas como um modo de

compensar as injustiças que são cometidas contra ele mesmo. Essa dimensão tem as suas

raízes nos estudos de Klandermans (1992) e enfoca três aspectos ou situações que levam os

indivíduos a participação coletiva: a primeira refere-se à relação custo/benefício na

manutenção da lealdade interpessoal e dos vínculos que resultam na participação ou não no

movimento; a segunda diz respeito à percepção dos ganhos ou perdas de benefícios

materiais que resultam no envolvimento em movimentos sociais; a terceira refere-se à

percepção dos riscos físicos que implicam o engajamento em ações coletivas em

determinada condição situacional.

172
A sétima dimensão do modelo de consciência política de Sandoval (2001) é Metas

de ação coletiva e refere-se ao grau com que os participantes do movimento social

percebem a correlação entre as metas do movimento, as estratégias de ação do movimento

e seus sentimentos de injustiça, seus interesses e sentimentos de eficácia política. Esta

dimensão trata de “avaliar” até que ponto as metas e propostas dos movimentos sociais e

das suas lideranças correspondem aos próprios interesses materiais e simbólicos de seus

participantes. Nesse sentido, suas propostas de ação coletiva e seu discurso de

reivindicação de justiça contra os adversários percebidos estão no âmbito de seus próprios

sentimentos de eficácia política. A complexa tarefa de fazer a correspondência entre metas

e estratégias do movimento e suas aspirações e a auto-percepção das capacidades de seus

membros tem provocado sérias mudanças de posturas tanto para as lideranças quanto para

as pessoas comuns. Essa dimensão produz, ao mesmo tempo, outros componentes da

consciência política que interagem com as características de organização do movimento

percebidas na forma de predisposição psicológica para ação coletiva.

De acordo com Sandoval (2001), tanto a dimensão da consciência política Vontade

de agir coletivamente quanto Metas de ação coletiva, têm suas bases em alguns teóricos

da escolha racional como Olson (1965), que tem contribuído para o debate sobre os

determinantes da participação coletiva. Nesta perspectiva, é inegável que as pessoas, ao

decidirem participar, individual ou coletivamente, em movimentos sociais fazem uma

escolha dos elementos significativos que influenciam sua participação e o seu

compromisso com o movimento social.

Sandoval entende que estas escolhas são elementos que se tornam significativos

para o pensamento individual através das suas identidades coletivas; suas crenças, valores

e expectativas em relação à sociedade; seus sentimentos de eficácia política; suas

percepções do auto-interesse frente aos adversários e, finalmente, seus sentimentos de

173
justiça e injustiça (Sandoval, 2001:190). Ao mesmo tempo, essas dimensões contribuem

para a tomada de decisão dos indivíduos, o que leva o autor a afirmar que a escolha de

elementos significativos na avaliação da organização dos movimentos sociais, bem como

essas metas e estratégias são percebidas como formas relevantes de ação coletiva que

proporcionam uma pressão situacional.

174
CAPÍTULO V

Participação Política e Cidadania: alguns entrelaçamentos

Iniciamos, a partir deste capítulo, as análises das entrevistas realizadas, procurando

evidenciar como a participação política vem sendo construída pelos moradores e

trabalhadores de Unidades de Reciclagem de Lixo 51 em Porto Alegre, bem como as

repercussões que esta participação tem tanto para a vida das pessoas como para as políticas

públicas da cidade.

Repercussão da ... Moradores Na sua vida enquanto cidadãos

Participação para os...

Política ... Trabalhadores Nas políticas públicas da cidade

Ao longo do texto, discorreremos sobre o quanto a participação política interfere no

exercício da cidadania. Nossas idéias são ratificadas por muitos de nossos entrevistados,

que dão o seu depoimento sobre o significado que tem, para eles, exercer a cidadania e ser

– e descobrir-se – cidadão.

Relacionaremos a participação política dos entrevistados com a vida que levam na

cidade de Porto Alegre, no que diz respeito às vivências das políticas públicas voltadas

para a população. Entendemos que a participação política é uma via de mão dupla nesta

51
Para a análise dos dados, faremos um comparativo entre as falas dos moradores e dos trabalhadores das
Unidades de Reciclagem. Nossa nomenclatura diz respeito a seguinte classificação: Trabalhadores são os que
vivem nas comunidades entrevistadas e que trabalham nas Unidades de Reciclagem de Lixo, alguns dos
quais são lideranças comunitárias. São denominados também, ao longo do texto, de Recicladores. Moradores
são os que igualmente vivem nas comunidades, mas que não trabalham nas Unidades de Reciclagem, ou são
lideranças comunitárias, ou são papeleiros [são os que recolhem papel com carrinho ou carroça e reciclam em
sua própria casa] ou são moradores que exercem outras atividades profissionais. Entrevistados são os dois
grupos: moradores e trabalhadores.

175
relação, ou seja, ao mesmo tempo em que participa, o cidadão incrementa as políticas

públicas da cidade e, ao mesmo tempo em que incrementa as políticas públicas da cidade,

alimenta a sua confiança enquanto cidadão de direitos.

Mostraremos o quanto a participação política se fortalece nas reuniões do OP e nas

relações comunitárias, onde as redes se tornam mais consistentes, se organizam, e incidem

sobre as políticas públicas da cidade.

E, por fim, apresentaremos algumas análises iniciais sobre a relação que propomos

entre a participação política e a construção da consciência política, a qual será aprofundada

no capítulo 7.

O conceito de participação política é impregnado de conteúdo ideológico e é

utilizado para fazer referência a várias ações públicas, sejam elas individuais ou coletivas.

No capítulo quatro, dessa tese, fizemos uma extensa revisão bibliográfica sobre este

termo. Nesse capítulo de análise, vamos retomar algumas idéias dos autores sobre o que é

participação política, à luz das entrevistas realizadas. Utilizaremos, nesse texto a idéia de

que a participação política expressa, individual ou coletivamente, o engajamento da

população na vida pública da cidade, incidindo em políticas públicas, em políticas sociais e

em mudanças no comportamento político dos indivíduos.

De acordo com Sabucedo (1996), a participação dos indivíduos na tomada de

decisões políticas varia de acordo com o conceito de democracia. As diversas versões

sobre a democracia e o alcance que deve ter a participação dos cidadãos, permite a

existência de diferentes significados sobre a participação política e a implicação dessa com

o ideal do sistema democrático. A partir desta colocação, referimos que os dois tipos de

176
democracia que trataremos, indiretamente52, ao longo da análise sobre participação

política, são a democracia participativa e a democracia representativa53.

Retomando alguns autores para introduzir o tema da participação política, temos as

contribuições, já referidas nessa tese, de Verba e Nie (1972) que indicam a atividade na

comunidade como uma das categorias de participação política e rejeitam o modelo

unidimensional de participação. Também nessa linha, Booth y Seligson (1978) apontam as

atividades comunitárias como uma das formas de atividades políticas, desde que essas

tenham uma clara projeção política, ou seja, que para serem qualificadas como participação

política, tem que ter caráter reivindicativo frente às autoridades (Booth y Seligson, 1978,

citados por Sabucedo, 1996:88).

Acreditamos que podemos considerar as atividades na comunidade como

participação política, desde que esta participação incida sobre a vida pública dos

indivíduos, desde que viabilize redes de solidariedade e, conseqüentemente, de ação

política que garanta movimentos que beneficiem a comunidade como um todo, o que não

significa também, que as ações políticas sempre tenham que ter um caráter reivindicatório.

Conge (1988), rejeita a idéia de atividades na comunidade como formas de

participação política, pelos seguintes argumentos:

A política supõe relações de poder e autoridade;

Os atores principais nessas relações de poder e autoridade são os governos dos

Estados;

52
Queremos dizer com isso que não privilegiamos este tema nas entrevistas mas, inevitavelmente, ao falar de
participação política, nossos entrevistados inferem a relação com um governo democrático.
53
Utilizaremos as contribuições de Fernández (in Villasante, 2002), para definir democracia representativa e
participativa. A Democracia representativa tem como paradigma constitutivo, a delegação de poder. Através
do voto, o cidadão elege os representantes que tomarão as decisões sobre os assuntos de interesse da
população. A Democracia participativa entende que o cidadão é membro das instituições políticas da
comunidade, o que pressupõe a participação dos cidadãos na tomada de decisão sobre os assuntos de seu
interesse, resguardando o direito de falar, pensar e decidir.

177
A política se refere ao governo dos Estados, portanto, a participação política

implica nas condutas que se realizam dentro desse âmbito.

Para este autor, portanto, há a ausência de uma clara dimensão política nesse tipo de

comportamento nas comunidades, ou seja, se não há uma intervenção das autoridades

políticas encarregadas da distribuição dos recursos públicos, não podemos falar de

participação política, mas sim de participação social ou cívica.

A nossa proposta de análise refuta esta concepção de Conge, uma vez que nossos

entrevistados mostram que a intervenção da população sobre as decisões do poder público

é possível, e que as ações coletivas dos indivíduos podem, de fato, incidir em mudanças da

vida da cidade. A cidade não vive apenas as decisões tomadas nos espaços da

Administração Municipal, mas em espaços de participação popular, onde a população

delibera, de forma legítima, a distribuição de parte dos recursos públicos.

Montero (1995) faz a distinção de participação política e ação política. Para a

autora, a ação política pressupõe uma concepção de indivíduo como ator, como ser ativo,

como construtor da realidade e não como mero reprodutor ou simplesmente aquele que

reage diante de eventos que, de alguma maneira, exige uma resposta. Consideramos a

opinião de Montero, porém, insistimos no uso do termo participação política, para indicar

as ações do indivíduo enquanto ator social, construtor da sua realidade ou cidadão ativo,

dada a abrangência de representações que tem esse termo.

A participação política, para Sabucedo (1996), trata de todas aquelas ações

intencionais, legais ou não, desenvolvidas por indivíduos e grupos com o objetivo de

apoiar ou questionar a qualquer dos distintos elementos que configuram o âmbito do

político: tomada de decisões, autoridades e estruturas (Sabucedo, 1996:89).

Sandoval (1997) faz uma caracterização da participação política, destacando que

indivíduos e grupos desenvolvem vários tipos de ações em um empreendimento político,

178
onde cada tipo de ação ou conjunto de ações terão determinantes diferenciados devido às

características da ação, em termos das condicionantes estruturais e do tipo de participação.

Para o autor, o comportamento político não pode ser entendido de uma forma

determinista, dada a complexidade de determinantes sociais e psicossociais. Há de se

considerar, portanto, um enfoque que privilegie as interações entre os fatores, os contextos

e as situações que impactam o processo comportamental, pelo qual o ator elabora o tipo de

participação que realiza na arena política, ao mesmo tempo em que se define como ator e

atribui significado a suas ações.

Acreditamos que esta concepção se aproxima daquilo que entendemos por

participação política54, pois há múltiplas maneiras de incidir no processo político, à medida

que os indivíduos se revelam mais inclinados a intervir na esfera do político.

Com isso, passamos a apresentar algumas relações analíticas. Considerando a

amplitude que tem o conceito de participação política, vamos transcorrer nossa análise,

fazendo uma relação inicial com o tema da cidadania.

A cidadania, no nosso entender, transcende a garantia de direitos civis e políticos.

Ela é acessada quando o indivíduo incide na vida pública da cidade, quando ele é um ator

social no sentido de ter ações concretas que alteram a sua própria vida e a da cidade. A

idéia que apresentamos é que a cidadania, em Porto Alegre, foi se fortalecendo à medida

que as pessoas foram participando de fóruns de participação popular, dentre os quais

destacamos o Orçamento Participativo.

54
Relembramos o leitor a diferenciação que já fizemos na nota de rodapé 2, quanto a diferenciação da
nomenclatura que usamos – participação política – e da nomenclatura que a Administração Municipal utiliza
– participação popular. A diferenciação que propomos na análise é da ordem dos significados psicopolíticos
que estas nomenclaturas têm na vida política da cidade. Para a Prefeitura Municipal de Porto Alegre,
participação popular é a participação dos cidadãos em diversos fóruns de participação, dentre os quais, o OP,
de modo que a população ajude a decidir sobre as políticas públicas da cidade, a definindo como sinônimo de
participação política. Para nós, a participação popular é a participação dos indivíduos em diversos fóruns de
participação, porém, é uma participação instrumental, que constatamos através da pesquisa, ser a participação
do “garantir direitos” ou do “ganhar coisas”. Já a participação política, assim como a entendemos, requer
engajamento, compromisso, organização e reivindicação.

179
A aquisição da cidadania, como lembra Oliveira (1998), é um processo

interminável, pois, para o autor, no momento em que se adquire as aquisições cidadãs,

recomeça-se um trabalho de ampliação dos limites já alcançados, posto que as aquisições

de cidadania são o ponto de partida para as ampliações das conquistas. Podemos ilustrar

esta idéia com o movimento que percebemos dos moradores e trabalhadores das Unidades

de Lixo, no Orçamento Participativo. No momento em que algumas comunidades

conseguem garantir moradia, parte-se para novas demandas, como por exemplo, a

urbanização desse local de moradia.

Entendemos que este processo [de aquisição da cidadania] está presente na vida dos

moradores de Porto Alegre, viabilizado, em parte, pela proposta do Orçamento

Participativo. A vivência no OP foi um desencadeador para que os indivíduos se

descobrissem atores sociais, para que saíssem da esfera da cidadania passiva e passassem a

vivenciar a cidadania ativa. Marcos55 faz um relato que ilustra adequadamente essa

vivência da cidadania ativa:

...se tu ficas no teu canto, tu só estás esperando para receber, observando os


acontecimentos. A partir do momento que tu lutas, que tu conversas, que tu troca
idéias, que tu dá tua opinião, tu atua sobre teu meio, tu és um ator no processo de
transformação. Isso, o OP nos ensina. Até um certo ponto, nós que participamos do
OP nos sentimos meio vereadores. Claro que é no limite do que nós podemos
discutir. Mas as comunidades decidem o futuro delas. Não nos contentamos com
eleger as elites e deixá-as resolver os problemas. Trabalhamos juntos, na hora de
tomar uma decisão. Se a gente observa as coisas, a Câmara dificilmente mudará
uma decisão do OP. Isso é a nossa força. Um vereador não pode ir contra uma
vontade popular. É por isso que muitos políticos – a elite, os antigos senhores, os
neoliberais – estão contra o processo (Marcos, morador)

A vivência na comunidade mostra, no entanto, as contradições deste processo, no

sentido de que a cidadania não é vivenciada por todos da mesma forma, isso se deve às

55
Marcos é o nome fictício de um Conselheiro do OP, morador de uma comunidade; ele não faz parte dos
entrevistados. Seu depoimento está na obra: Organização Não-Governamental Solidariedade. Caminhando
para um mundo novo: OP de Porto Alegre visto pela comunidade. Petrópolis : Vozes, 2003.

180
crenças e valores de sociedade que os indivíduos têm, às diferentes vivências e às

representações que estabelecem acerca do mundo.

Analisaremos as respostas dos moradores e trabalhadores das Unidades de

Reciclagem, pois como já explicamos anteriormente, estabeleceremos um comparativo

entre suas vivências e suas percepções acerca de vários temas56, para confrontá-las com

nossas hipóteses e, posteriormente, confirmá-las ou refutá-las. Nossas hipóteses são as

seguintes:

 Os trabalhadores das Unidades são mais organizados do que os moradores

pelo fato de terem uma Associação e, com isso, serem uma entidade

representativa importante na comunidade;

 Os moradores são menos articulados em termos de organização comunitária

do que os trabalhadores;

 As políticas públicas são importantes para incrementar o exercício da

cidadania e isso se percebe principalmente com os grupos dos Trabalhadores

das Unidades.

As análises apresentadas a seguir tratam do entendimento que os moradores e

trabalhadores têm sobre o que é ser cidadão e o que é exercer a cidadania. A partir destas

análises, faremos a já referida relação com a participação política.

56
Refiro às perguntas realizadas nas entrevistas, as quais estão em anexo. Os temas das perguntas têm a ver
com cidadania, vivência na cidade e na comunidade, participação política, relação com entidades
representativas na comunidade e o significado do OP para os porto-alegrenses.

181
1- O “ser cidadão” através da participação política – dando voz aos moradores

e trabalhadores

Apresentamos a idéia de que o exercício da cidadania, em Porto Alegre, foi sendo

construído a partir da participação, e trata-se de um processo com avanços e recuos. Não

entendemos cidadania apenas como garantia de direitos fundamentais dos indivíduos, mas

o exercício de uma prática que permite, aos indivíduos, serem atores sociais do processo

político da sua cidade, seja exercendo o direito do voto, seja estendendo o seu

envolvimento político a outros processos, que estabeleçam canais de interlocução com o

poder público.

Foi possível perceber, durante a pesquisa, que o discurso assistencialista,

normalmente presente entre comunidades mais periféricas e carentes da cidade, foi se

diluindo à medida que políticas públicas foram sendo instauradas nas comunidades e,

conseqüentemente, a participação dos moradores foi sendo solicitada. Os porto-alegrenses

passaram a perceberem-se como sujeitos de direitos: com direito à fala, à manifestação de

suas opiniões e com possibilidade de deliberaram sobre o dinheiro público.

Trazemos o depoimento de Augusto para ilustrar o processo do “dar-se conta” de

que os indivíduos podem, principalmente pela participação, ser sujeitos ativos na

construção da cidadania. Para o entrevistado, ser cidadão é:

...é o que eu não era, porque eu não sabia os direitos que eu tinha, eu vivia o mundo
ao redor, depois que eu comecei estas caminhadas eu enxerguei uma luz no fim do
túnel, se o cara for um cidadão, ele tem melhores condições de vida pra ele e pros
outros... um cidadão tem que saber os direitos que ele tem... no começo que ele
começa a participar ele tem uma cidadania, eu fui um cidadão na marra. Busquei a
minha cidadania sem saber o que era a cidadania, hoje eu sei o que é
cidadania...(Augusto, trabalhador da Unidade de Reciclagem)

A caminhada que Augusto refere, trata-se da participação no Orçamento

Participativo. Hoje, Augusto é uma liderança na sua comunidade e procura trabalhar com

182
as crianças no sentido deles perceberem, desde jovens, que a participação é importante

para que se possa assegurar a autonomia em relação às suas vidas.

A única comunidade que tem uma associação mirim é a nossa. Ali eu estou formando
umas lideranças para o futuro. Quantas crianças se perdem no tráfico, nas drogas,
na prostituição... aqui tem hip hop...tem atividade que envolve a criançada...
(Augusto, trabalhador da Unidade de Reciclagem)

Ser cidadão ou exercer a cidadania tem diferentes significados para nossos

entrevistados. Nem sempre aquilo que eles referem sobre o conceito de cidadão, é

viabilizado na prática, ou seja, no exercício da cidadania.

A Constituição Brasileira nos garante, desde 1988, direitos básicos, civis e

políticos, a partir dos quais podemos redefinir o que é ser cidadão na sociedade brasileira.

Uma definição que atrela a pessoa ao direito. No entanto, sabemos que no cotidiano dos

cidadãos brasileiros, as palavras são resignificadas a partir das vivências, das histórias, das

relações que são estabelecidas dos indivíduos com outros indivíduos e com o mundo.

De acordo com Teixeira (2001), os direitos são garantidos por leis e estabilizam a

sociedade civil, no entanto, sua efetivação depende da própria sociedade civil, da cultura

política e de sua organização, que deve zelar pela construção de novos direitos de acordo

com novas necessidades e aspirações. O autor afirma que as leis não são suficientes para

evitar a exclusão social, mas podem tornar-se um instrumento de luta contra a dominação,

na medida em que os excluídos tenham acesso aos espaços públicos e possam discutir

temas e ações coletivas que representem seus interesses.

Percebemos esse instrumento de luta contra a dominação se fortalecendo em

diferentes espaços da cidade. Com base, principalmente no OP, outros espaços de

183
participação e discussão57 surgiram em Porto Alegre, onde os cidadãos são convidados a

debater todos os temas que constituem o cotidiano da cidade.

Os catálogos de direitos constituem a estrutura básica para permitir o


funcionamento de uma sociedade civil autônoma e participativa. (...) As liberdades
de expressão garantem a diversidade e a pluralidade de opinião. Esses direitos são,
porém, abstratos, e só se efetivam com a ação dos cidadãos, cuja mobilização é
também necessária na sua criação e implementação (Teixeira, 2001, p. 45).

Nossos entrevistados, ao mesmo tempo em que denunciam a distância real entre

conceitos constitucionais e realidade vivida, seja pelo discurso assistencialista que

sustentam, seja pelo discurso alienado que possuem, também nos mostram o desejo de

fazer valer estes direitos, o reconhecimento de que é possível ser cidadão para além das

páginas da Constituição Brasileira.

Essa idéia pode ser apresentada por Vitória, Magda, Carolina e Bárbara. Para elas,

ser cidadão...

...é ter direitos (Vitória, moradora);

...é poder ter direito de respostas, de dúvidas, de poder perguntar, de falar, ter

direito à vida (Magda, moradora)

...é ter as coisas da gente e ser dono daquilo, mandar e decidir (Carolina,

trabalhadora da Unidade)

...é participar, é viver coisas que favorecem a gente (Bárbara, trabalhadora da

Unidade)

57
Trata-se dos seguintes: CMDUA – Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental; Fóruns
regionais de planejamento; Fórum de Delegados; Congressos da Cidade; Conferências Municipais;
Comissões locais; Discussão do Plano Plurianual; Comathab; Conselhos Municipais; Comissões Municipais;
Instituição Comunitária de Crédito; Conselho da Ietinga e Conselho da Vila Tecnológica; Comitê de análise
do impacto socioeconômico dos grandes empreendimentos; Conselho de clientes da Carris; Conselho de
clientes do DMAE; Conselho do Orçamento Participativo; Centros Administrativos Regionais. A
especificação de cada um, encontra-se em anexo.

184
Ser cidadão também é exercer o direito de circular pelos espaços – públicos ou

privados – independente da roupa que veste ou do meio de transporte que utiliza, mas ser

respeitado na sua condição:

Sair de cabeça erguida, não ter medo, entrar em lugares em que todo mundo tem
direito, entra independentemente do poder aquisitivo, não por que trabalho nisso.
Morador de rua é rejeitado, era visto de outro jeito, é ter os mesmos direitos de
quem tem dinheiro (Helio, trabalhador da Unidade)

... é uma pessoa que ta num serviço, que pode cumprimentar as pessoas, entrar numa
loja e comprar o que tu quer, não ser corrida da loja como se fosse roubar (Roseli,
trabalhadora da Unidade)

Ser cidadão é ser respeitado principalmente pelo que a gente desempenha aqui, até
chegar no patamar que nós chegamos, na seletiva, a gente sofreu muita
discriminação. Então o mínimo de respeito que tem pela gente a respeito do trabalho
acho que isto, é o mínimo pra gente considerar o cidadão porque é horrível tu
chegar em num lugar e ser discriminado (Helio, trabalhador da Unidade).

Consideramos também, na nossa análise, a opinião dos técnicos58 que fizeram parte

da pesquisa. O que pensam e dizem acentua muito as percepções dos nossos entrevistados

e ratifica as nossas análises.

Sandra comenta que ser cidadão é estar incluído nos direitos dados à população,

não apenas tomando conhecimento de que as políticas públicas existem, mas que elas

sejam viabilizadas. Para Sandra, existem muitos direitos que existem por luta da população

organizada, você ter estes direitos e inclusive deveres, isso é ser cidadão, no entanto,

Sandra lembra que há muitas pessoas, inclusive na comunidade na qual trabalha, que não

podem acessar certos direitos por falta de documentos. E isso ocorre tanto pela

desorganização e desinformação familiar, como pela inexistência de registro da história e

da procedência das pessoas.

58
Eventualmente, os técnicos aparecerão na nossa análise para ratificar a opinião de nossos entrevistados,
bem como nossa compreensão sobre o tema.

185
Há muitas pessoas dessa comunidade que vieram do interior e não sabem informar

o hospital em que nasceram ou que seu filho nasceu. Muitos, inclusive, nascem em casa e

não são registrados pelos pais. Assim como há casos de famílias que perdem documentos e

registros de dados sobre sua história de vida em situações de enchentes e/ou incêndio: as

pessoas aqui não têm documentos e então não podem acessar certos direitos, têm pessoas

que não sabem se foram registradas; a cidadania vem dos direitos básicos e fundamentais,

no momento em que você registra um filho, você está dando a ele ingresso à cidadania

(Sandra, técnica).

Outra definição sobre o que é ser cidadão, diz respeito à preocupação com o outro,

com ações mais coletivas, voltadas para a comunidade ou para a sociedade como um todo.

Ser sujeito de direitos é importante para o indivíduo, mas é necessário também que isso se

estenda a outras pessoas, outros grupos.

Serlene e Bruna indicam, nas suas falas, que ser cidadão não é apenas beneficiar-se

a si próprio, mas beneficiar o outro também. A solidariedade é um sentimento que

pudemos observar, em muitos de nossos entrevistados, ao relatarem situações de seu

cotidiano, as falas seguintes são ilustrativas desta rede de solidariedade que existe em

muitas comunidades:

Ser cidadão é ajudar os outros a ser cidadão, é ter amor ao próximo, é atender as
pessoas, é olhar pras pessoas com amor, com atenção, com carinho, e não com o
nariz empinado (Serlene, moradora).
... é melhorar, acabar com a miséria, desemprego, o certo é cada ser humano ter
moradia e emprego e lazer, é um direito do ser humano (Bruna, trabalhadora da
Unidade).

Valdomiro também acentua que, ser cidadão, é ter ações que beneficiem não apenas

o próprio indivíduo, mas também os outros:

186
...um trabalho que tu desenvolve inclusive não é só pro nosso beneficio, é pro
beneficio do mundo inteiro, nós tamo lidando com a ecologia e eu acho que é isto. É
fazer o máximo possível pra se beneficiar e beneficiar as pessoas também... porque
tu ser cidadão não é só fazer por ti, tu é cidadão ajudando os que precisa também,
acho que muita gente precisa mais do que a gente e então não é só a gente achar que
precisa e sem ajudar as pessoas... (Valdomiro, trabalhador da Unidade)

Para Mirela, ser cidadão é poder garantir os direitos humanos, mas principalmente

exercer a solidariedade, ou seja, cidadão também é aquele que pensa nos interesses

coletivos e trabalha para que os direitos sejam para todos e não apenas para ele.

Cidadão é aquela pessoa que está consciente de tudo que está passando a sua volta,
se doa pra colaborar, em algum momento, com as coisas que estão acontecendo, não
só dando coisas, mas fazendo algo pra colaborar. Outra situação é no momento da
cobrança que você tem que fazer, não é só votar e acabou sua responsabilidade,
você também está atuando como cidadão pra fazer com que as pessoas cresçam
também, porque só entregar tudo de mão beijada, não funciona (Mirela, técnica).

Ser cidadão está, para alguns entrevistados, na dimensão de valores societais que

fazem parte de um ideal de vida em sociedade, ou seja, desejamos viver em uma sociedade

em que haja justiça, honestidade, liberdade, respeito, etc., mas esses valores societais

demarcam as polaridades da sociedade em que vivemos, ou seja, ser honesto já que

existem os desonestos, ser digno para não fazer parte do grupo dos que não prestam, ter

orgulho de seu trabalho e de seu sacrifício, mesmo que vivamos em uma sociedade com

diferenças salariais gritantes. Enfim, são discursos de uma ideologia dominante e opressora

que faz com que as pessoas se convençam que as coisas são assim mesmo, então há que se

conformar. Não queremos afirmar, com isso, que não concordamos que devamos viver em

uma sociedade justa, correta, digna, com uma vida baseada em princípios éticos e em um

sistema de valores que viabilizem o desenvolvimento humano e uma qualidade de vida,

mas destacamos o tom de conformismo implícito na fala dos entrevistados:

Cidadão é ser uma pessoa honesta, ter liberdade, dignidade, ser afetivo com o outro,
ter orgulho de sua casa, de seu trabalho, de sua moral, de seu sacrifício (Paulo,
trabalhador da Unidade);

187
É ser uma pessoa de bem, é se dar com todo mundo, não ser arrogante, ser humilde
(José, trabalhador da Unidade);

O sentimento de ser cidadão, de perceber-se como sujeito de direitos, de exercer a

cidadania ativa é reflexo e, ao mesmo tempo, possibilita a participação, isto é, o indivíduo

participa e se sente sujeito ativo e, se percebendo como sujeito ativo, participa. Mesmo que

a participação tenha níveis diferentes de envolvimento ou que, em certo momento, ela se

limite às reuniões do OP. De qualquer forma, os cidadãos forçam a Administração

Municipal a planejar políticas públicas ou aprimorar as políticas que já existem, em função

da participação das pessoas. O movimento dos moradores e trabalhadores,

indubitavelmente, exerce influência sobre as determinações da Administração Municipal

que, espontaneamente ou forçada pela organização comunitária, estabelece políticas

voltadas para garantir a qualidade de vida de seus cidadãos. Mas podemos inferir que o que

faz a diferença neste movimento dos indivíduos é a dimensão da consciência política desse

cidadão que faz com que ele tenha um entendimento mais ampliado das coisas do mundo e

que tenha ações mais coletivas.

No entanto, acreditamos que há um distanciamento entre o discurso e a prática.

Principalmente tratando-se de políticas públicas voltadas para as populações mais carentes.

O discurso da emancipação circula entre as instâncias administrativas do governo

municipal e os fóruns de participação popular. Com o intento de verificar até que ponto as

políticas públicas realmente fazem a diferença na vida das pessoas, até que ponto as

políticas públicas viabilizam a construção deste “ser cidadão”, perguntamos aos

entrevistados, o que é exercer a cidadania.

188
2- O “exercício da cidadania” através da participação política – dando voz aos

moradores e trabalhadores

Quando os entrevistados respondem a essa questão, é possível perceber uma

aproximação entre o que definem como sendo cidadão e o que é, de fato, exercer a

cidadania. Tanto as entrevistas como a história do cotidiano destes indivíduos dá

indicativos do exercício daquilo que eles consideram como sendo parte da cidadania.

Bruna e Serlene relatam o que pensam e o que fazem para colocar em prática esse discurso:

Se eu sou cidadão, de alguma forma eu exerço a cidadania, é dar a mão para


alguém, ir no OP, brigar pelos direitos de todos... (Bruna, trabalhadora da Unidade)

Exercer, praticar a cidadania e também passar pros outros, saber usar a cidadania,
saber o que ela é, não adianta eu ter ela só comigo, é ter solidariedade (Serlene,
moradora).

O exercício da cidadania pode ser um aprendizado a partir da vivência nos fóruns

de participação popular, que se estende para outras dimensões da vida, principalmente no

sentido de votar em quem tem projetos para a comunidade, e entender que cada indivíduo

tem um papel fiscalizador em relação àquele em quem votou.

O exemplo de Augusto ilustra como ele aprendeu a ser cidadão e, principalmente,

exercer a cidadania, pois, aos poucos, foi se dando conta de que era preciso participar para

conseguir melhorias para a sua comunidade. Nos parece uma lógica perversa, pois de fato,

aqueles que não participam ou os que não se organizam, não conseguem - ou demoram

muito - conquistar suas demandas. De qualquer forma, acreditamos que esse movimento é

necessário para que o discurso assistencialista se dilua, e que ações emancipatórias e de

autonomia possam fluir na comunidade.

Hoje eu sei, antigamente eu não sabia, que um vereador dentro da Câmara é o meu
representante, o Prefeito é o meu representante, exercer a cidadania é procurar
votar certo, votar naquela pessoa que a gente pode dizer assim: “eu vou votar nele
porque ele vai fazer aquilo que eu quero, que eu necessito, ele está a meu serviço,

189
ele vai governar a cidade como cidadão que é, pra melhoria de trabalho, de vida”,
apesar que muita gente vota errado, exercer a cidadania é votar correto, lutar pelos
direitos que a gente tem... (...) ... quando começou as reuniões do OP, eu não sabia
como tratar o prefeito... cheguei no gabinete do Tarso... meu pensamento naquela
época era bem pequeno, eu era tímido, pra mim Prefeito era da altura do Presidente
da República né, não tinha conhecimento, vereador eu já achava que era um baita
homem, que tinha um baita cargo! Bom, aí o Tarso começou a falar, e no momento
da fala dele, ele já começou a me ensinar como eu tinha que caminhar nos caminhos
do governo. Ele disse: “eu não quero ser paternalista”... isso foi o que mais me
chamou atenção na fala dele: “O prefeito não é bonzinho, eu sou um funcionário a
serviço do povo, os papeleiros já têm uma noção do que já está acontecendo, e o
prefeito não pode chegar lá e dizer, oh, eu vou dar uma casa para cada um, eu tenho
que ter pressão da comunidade, se a pressão do entorno for maior, o prefeito vai
pelo entorno, o prefeito vai pela maioria... (Augusto, trabalhador da Unidade)

Falar de emancipação nos remete falar de identidade. Concordamos com Melucci

(2004) de que a identidade é, em primeiro lugar, uma capacidade autônoma de produção e

de reconhecimento do nosso eu. O indivíduo consegue identificar-se quando se torna

distinto do ambiente (...) A identidade define, portanto, nossa capacidade de falar e de

agir, diferenciando-nos dos outros e permanecendo nós mesmos (Melucci, 2004:45). E,

como lembra o autor, a possibilidade de distinguir-se dos outros, deve ser reconhecida por

esses outros.

A fala de Augusto nos faz pensar então que o indivíduo adquire a sua capacidade

de emancipar-se à medida que se percebe como um indivíduo diferenciado do outro, nas

suas potencialidades, nas suas emoções, nas suas opiniões, e que é reconhecido como tal,

ou seja, participar de fóruns de participação popular, ter a oportunidade de falar com o

prefeito, reivindicar melhorias para a sua comunidade, são situações que vão construindo

no indivíduo a capacidade de se manifestar em prol de seus interesses e também de

interesses coletivos, mas construindo um discurso próprio, e não apenas reproduzindo o

discurso do outro.

Patrícia é outro exemplo de quem busca, na sua condição de vida, fortalecer seu

movimento de mudança, de autonomia, de emancipação. O problema, segundo ela, é que

190
quem faz o pobre é o rico... o pobre quer crescer, mas aí o rico acaba tirando do pobre a

ambição, tu não tem que ter inveja do rico e sim a ambição, mas acabam tirando por que é

mais fácil. Para Patrícia, é muito difícil exercer a cidadania quando a pessoa vive ganhando

coisas, quando não tem a chance de caminhar com as próprias pernas (Patrícia,

moradora).

Melucci (2004) lembra que a identidade é um sistema de relações e representações.

Configura-se como um sistema de vetores em tensão entre si, à constante procura de um

equilíbrio entre a identificação que operamos e aquela realizada pelos outros, entre a

diferença como a afirmamos e como ela é reconhecida pelos outros (Melucci, 2004:50).

O que percebemos na fala de Patrícia, a qual é representativa de muitas outras, é

que os indivíduos vivem em um sistema de relações onde muitos têm a capacidade de se

identificar de maneira autônoma, mas a diversidade – racial, cultural, étnica, sexual –

fixada pelos outros, muitas vezes anula essa capacidade autônoma de identificação. Trata-

se de uma identidade rotulada, como refere Melucci (2004), em que o indivíduo internaliza

o estigma que lhe é posto socialmente.

A capacidade autônoma de identificação de Patrícia é constantemente atravessada

pela condição de mulher, negra, pobre, papeleira, que o outro lhe demarca. Quando ela

refere que quem faz o pobre é o rico, nos remete dizer que essa identidade rotulada

interfere na possibilidade de construção de uma identidade autônoma e, com isso, o

exercício de uma cidadania ativa, o caminhar com as próprias pernas, ou o agir

coletivamente, ficam inviabilizados. Não estamos afirmando que a emancipação não é

possível, pelo contrário, defendemos a idéia de que se trata de um processo complexo de

aprendizagem que leva à autonomia do indivíduo e que, as muitas vivências permite-lhe a

resolução de problemas propostos pelo ambiente no qual está inserido. Os nossos

191
entrevistados são exemplos da complexidade desse processo e nos garantem a afirmação de

que a emancipação é possível.

Ao decorrer das entrevistas, pudemos perceber também, um sentimento de

pertencimento de alguns indivíduos, que faz com que o seu envolvimento na comunidade

seja maior.

Podemos entender, desta forma, que a cidadania está relacionada com os

sentimentos de pertencimento a um grupo, ou seja, tem a ver com a identidade coletiva.

Ora, nesta dimensão de entendimento, o indivíduo é capaz de ter ações coletivas onde não

apenas ele, mas também o grupo ao qual pertence, são beneficiados.

De acordo com Sandoval (2001), a identidade coletiva pode ser entendida como um

sentimento de solidariedade onde o indivíduo desenvolve laços interpessoais que levam a

um sentimento de coesão social que faz com que ele se identifique com alguma categoria

social. Entendemos que esse é um aspecto importante para a solidificação de ações

coletivas, uma vez que, estabelecidos os laços, o compromisso de uns com os outros é

maior, da mesma forma, o reconhecimento que cada indivíduo é importante na ação

coletiva, incrementa a sua identidade pessoal.

Os depoimentos seguintes são ilustrativos do significado que os indivíduos

atribuem à idéia de pertencimento ao grupo.

Para Lauro, o exercício da cidadania tem que estar presente no trabalho: é uma

equipe de trabalho, aqui, todos são importantes, um depende do outro, não tem nenhum

melhor que o outro, onde um falta, quebra o trabalho, todo mundo são peças

importantes... (Lauro, trabalhador da Unidade). Ele refere-se a isso para reforçar a idéia

de que exercer a cidadania também é pensar no outro, é colocar em prática a solidariedade,

pois no momento em que há colaboração, todos ganham mais, pois aumentam os

192
rendimentos advindos da venda do material reciclado. Além disso, o grupo se sente mais

identificado e fortalecido para reivindicar coisas para a sua comunidade.

Para Hélio, além desse aspecto, há também que se considerar que o trabalho nas

Unidades de Reciclagem contribui para a manutenção da Natureza: hoje é a grande

empresa deles...eles se consideram empresários no assunto ambiental, da importância que

o trabalho deles tem e do bem que faz pela natureza, eles sabem disso, e se consideram

agentes fiscais da natureza (Hélio, trabalhador da Unidade). Alguns trabalhadores, além

de terem, nas Unidades de Reciclagem, uma fonte de renda, têm também a consciência

ambiental de que seu trabalho é importante para o bem estar de todos.

De acordo com nossos entrevistados, a cidadania envolve a participação e

pressupõe a comunicação entre as pessoas, pois não basta cada pessoa participar

isoladamente, é preciso ter espírito de grupo, é preciso se perceber como coletivo, e para

que isso aconteça é necessário a comunicação entre as pessoas. O relato de Eva é um

exemplo: exercer a cidadania é participar, quando tem reunião no OP, a gente ir e

participar... é respeitar as pessoas também, se comunicar também com as pessoas, falar

sobre o que tá acontecendo pra melhorar junto (Eva, trabalhadora da Unidade).

Para alguns de nossos entrevistados, exercer a cidadania é votar. Entendemos que

esse seja um direito adquirido constitucionalmente, mas o analisamos separadamente, para

destacar a relação entre essa concepção de exercício da cidadania e a participação política

de alguns entrevistados. Participar politicamente é exercer a cidadania, votando em época

de eleição. Sabemos que o exercício do voto também é uma forma de participação política,

mas entendemos essa participação como algo que transcende o ato de votar. Por isso,

quando nossos entrevistados acreditam que o exercício do voto é o que define a cidadania,

dão indicativos dos limites da possibilidade de ação coletiva ou da organização

comunitária. Assim como isenta o indivíduo da responsabilidade, enquanto cidadão, de

193
incidir sobre a vida pública da sua cidade. Trouxemos as falas de Norton, José e Estela

para ilustrar esta idéia de exercício da cidadania.

É votar todos os anos (Norton, morador)

Eu estou fazendo os cursos de liderança e isso cai muito... é um direito que nós
temos, mas tem a ganância dos governantes, das pessoas que governam o país, que
são preparadas pra isso, que chegam em tempos de eleição, e fazem de tudo: beijam
crianças, não importa se suja, porque aquela roupa vai fora mesmo... a maior
esperança é quando há uma eleição, que eu vou exercer a minha cidadania...(José,
trabalhador da Unidade)

...é uma questão do voto, só poder votar já é exercer a cidadania (Estela, moradora).

O sentido de obrigação cívica, de acordo com Sabucedo (1988), parte de uma

identificação prévia do sujeito com o sistema político em que ele vive, ou seja, o indivíduo

se torna capaz de interiorizar normas e regras presentes neste sistema e desenvolver o tipo

de atuações demandadas por ele mesmo. Para o autor, o voto parece ser uma das condutas

políticas mais favorecidas pelo sentimento de obrigação cívica, nublando, desta forma, os

processos que são posteriores ao ato de votar.

O exercício da cidadania também demarca a estigmatização atribuída ao indivíduo,

ou seja, exercer a cidadania, para além do exercício do voto – que é um direito para todos

os brasileiros, independente de classe social e econômica – demarca, por exemplo, que

algumas pessoas exercem papéis ou ocupam lugares que incomoda a uma determinada

parcela da população – as elites. A vivência enquanto pesquisadora corrobora o que muitos

entrevistados denunciam: a idéia de que as vilas de Porto Alegre têm que estar na periferia

da cidade, quanto mais longe, melhor; conviver em espaços públicos com quem é pobre

incomoda; quem participa do OP é gente pobre que precisa ganhar coisas e por isso o rico

não participa.

194
Essa estigmatização de morador de comunidade carente é vivenciado

cotidianamente. José explicita um pouco esse sentimento:

Cidadania?! Principalmente da minha classe, da minha posição social, é uma


desigualdade tremenda, e quem tá lá em cima é muito mais fácil dar uma escarrada
na cabeça daquele que tá aqui embaixo do que alcançar a mão, podia pensar assim,
pelo menos: “ah, não vou te botar na minha altura, mas que tu raspe a cabeça na
minha perna”, então, ser cidadão é difícil, pois tem várias barreiras, vários
preconceitos, tu tá num mundo isolado, tu olha pra um lado, a pessoa te olha com
cara de nojo, tu olha pro outro, e a pessoa diz “sai daqui”, e às vezes eu fico até
pensando “será que eu sou um ser humano?” É tanto preconceito na vida, porque
depois, o preconceito vira nada... porque esta pessoa vai feder que nem eu... e com
certeza lá em cima não vai ter carro importado... ser cidadão hoje pra quem é classe
baixa é muito difícil, tem que lutar pra ser cidadão, tem que ter muita força de
vontade, mas eu prefiro ganhar R$ 100 por dia em vez de R$ 1000...quero ser um
cidadão direito, ter dignidade, saber que o que eu estou comendo é fruto do meu
trabalho... (José, trabalhador da Unidade)

Além disso, para José, é incompreensível o fato de um cidadão votar, poder,

teoricamente, exigir seus direitos e, concretamente, não ter acesso a esses políticos e cobrar

dos mesmos, coerência entre promessas de campanha e suas ações, ou seja, José denuncia

os limites da participação popular59 em Porto Alegre. É possível e desejável que a

população participe de diferentes fóruns de participação popular, mas é claro também que

o envolvimento da população com as questões administrativas tem esse limite. A

interlocução direta com os políticos continua sendo em época de campanha eleitoral,

quando esses se permitem contato com a população.

Entendemos que José solicita o cuidado, a responsabilidade do poder público no

sentido de estabelecer outros níveis de interlocução, para que a participação no OP não se

torne um engodo, no sentido de fazer as pessoas participarem, terem a percepção de que

são importantes neste processo mas, na realidade, não serem valorizados enquanto atores

sociais; e para que o OP não se torne também uma forma disfarçada – e legítima – de usar

a população carente:

59
De acordo com a definição utilizada pela Administração Popular.

195
Você é cidadão e como você não tem o direito, a oportunidade de conversar com
alguém que você colocou lá dentro, que você ajudou a colocar ali em cima? Não é
só ganhar a eleição e pronto, que [os políticos] conversassem com aquele que não
conseguiu sentar num banco de faculdade, mas aprendeu na vida, que no dia-a-dia
está aprendendo cada dia mais... (...) ...agora é a hora boa de conseguir tudo, depois
o que passou, passou... a nossa tragédia foi só momento, foi só mídia... passou a
mídia, terminou tudo... a gente não pode comprar nada, é tudo isso que passa pela
cabeça da gente... era humilde o que nós era, mas era o que nós tinha, hoje nem o
humilde nós temos, não temos uma decência (José, trabalhador da Unidade).

A tragédia que José refere-se é o incêndio que destruiu praticamente 70% da vila

em que moravam. Ele conta que, à época do incêndio, muitas pessoas se sensibilizaram

com a situação, e ajudaram os moradores da comunidade, dando móveis, roupas e comida,

pois eles haviam perdido tudo. As famílias foram imediatamente transferidas para casas de

aluguel até que as casas de passagem60 ficassem prontas, mas José comenta que tudo isso

foi momentâneo, que enquanto a mídia estava colocando a situação deles em destaque, “as

coisas aconteciam”, mas agora é díficil falar em exercer a cidadania se eles não têm o

mínimo para se sentirem cidadãos, tornando impossível o exercício da cidadania. Nesta

fala, é possível considerar várias coisas:

Primeiro: é fato que as ajudas, doações são mais intensificadas em

momentos de crise, quando passa a crise, se minimiza as ações. Isso nos

leva a inferir que há uma necessidade também de estar sempre sendo

“olhado” e “cuidado”. E, quando isso não ocorre, há uma sensação de

abandono, principalmente, pelo poder público;

Segundo: há um programa na Prefeitura que se chama "Prefeito na

Comunidade", onde, uma vez por semana, o prefeito visita as regiões da

cidade, acompanha, nos locais, o andamento de obras da Prefeitura que

estão em execução, visita obras já concluídas e debate com as lideranças

comunitárias e membros das instâncias do OP, a situação de cada Região.


60
No projeto de reassentamento, enquanto as casas estão sendo construídas, as famílias vivem em casas de
passagem, até que as moradias fiquem definitivamente prontas e em condições de habitabilidade.

196
As fragilidades do cotidiano das pessoas nem sempre as permite perceber

que o “cuidado” existe, mas não necessariamente na dimensão que as

pessoas desejam;

Terceiro: o tempo da burocracia, o tempo da administração pública é

diferente da lógica de tempo das pessoas. Cada vez mais percebemos um

imediatismo demarcando as relações e a forma de vida. Essa lógica também

é transferida para outras situações da vida cotidiana;

Quarto: a ocorrência de uma tragédia desta proporção e o estabelecimento

de ações emergenciais, mesmo de cunho assistencialista, incrementam a

identidade social de pobres, carentes e necessitados, e minimizam as ações

de emancipação que a comunidade é capaz de realizar a partir da

participação, da auto-gestão, e;

Quinto: percebemos que os moradores da comunidade que têm uma

capacidade autônoma de identificação (Melucci, 2004), conseguem utilizar

a crise – a tragédia – como um desafio a ser enfrentado para superar as

dificuldades e, neste movimento, se fortalecem enquanto comunidade

organizada e/ou enquanto lideranças comunitárias.

O exercício da cidadania pode produzir a emancipação, mas pode também demarcar

o preconceito. E esse preconceito pode ser um desencadeador para a superação dos

indivíduos, ou seja, incitar o desejo de melhorar para mudar sua condição e,

conseqüentemente, seu status. Mas pode também ser vivenciado como algo que oprime e

imobiliza.

Destacamos do ensaio de Heller (2004), Sobre os preconceitos, que, para a autora,

o preconceito, abstratamente considerado, é sempre [grifos da autora] moralmente

negativo, porque todo preconceito impede a autonomia do homem, ou seja, diminui sua

197
liberdade relativa diante do ato de escolha ao deformar e, conseqüentemente, estreitar a

margem real de alternativa do indivíduo (Heller, 2004:59).

Para muitos de nossos entrevistados, a idéia de que exercer a cidadania é cumprir

direitos ou lutar pelos direitos que se tem, é explícita em suas falas. Pensamos que, essa

forma de perceber a cidadania, demarca a responsabilidade do indivíduo, extrapola a idéia

do ter direitos, tirando esse indivíduo da condição de expectador, daquele que espera

receber coisas – e se não recebe, a culpa é do outro. E o coloca na condição de ator, ou

seja, aquele que é responsável pelas conquistas de direitos e aquele que tem obrigações

cívicas com os outros. A fala de Paulo é representativa de respostas semelhantes de outros

entrevistados:

Exercer a cidadania é cumprir direitos, é lutar pelos direitos que a comunidade


oferece hoje em dia, para ser um cidadão honesto, digno; estudar, para ter um
futuro melhor. (Paulo, trabalhador da Unidade)

Para os técnicos que foram entrevistados, profissionais que trabalham direta ou

indiretamente com as comunidades, a cidadania envolve um processo de participação e,

conseqüentemente, de responsabilidade sobre as decisões que são tomadas, de parceria

sobre os serviços que são prestados. Há atividades que fazem parte da dinâmica de trabalho

do serviço público, no entanto, os cidadãos precisam cumprir com seus deveres também. A

fala de Lígia é ilustrativa dessa idéia de que a relação entre cidadãos e a cidade deve ser de

troca, de parceria:

... você poder trocar com a cidade as coisas, a cidade te dar e você dar pra cidade.
Porto Alegre te oferece uma série de coisas que te favorecem a vida, te oferece uma
cidade organizada pra morar, que tem coleta, água, saneamento, em troca você tem
que fazer a tua parte, que é economizar água, separar o lixo, participar das
discussões políticas que existem, acho que é essa troca da cidade com o cidadão é
que faz com que a cidadania aflore, que ele seja realmente cidadão, que ele saiba
que ela é importante e que ele saiba fazer uso dela (Lígia, técnica).

198
Outros entrevistados remetem à idéia de que não basta ter os elementos para mudar,

é preciso que cada um queira ser agente da sua própria mudança. Não basta os outros – seja

a Administração Municipal, seja os profissionais ou entidades – querer que as coisas

mudem, se a pessoa mesmo não quer mudar. Os relatos de Patrícia e Valdomiro são

exemplos dessa idéia.

Valdomiro relata que:

...eu que moro no Sarandi, e freqüento outros bairros, e acho que é um lugar muito
violento, muito difícil de viver. Na comunidade é difícil, é muito difícil organizar as
pessoas, até aqui na Unidade é difícil que são 48 pessoas, imagina em uma
comunidade que são mais de 1000 famílias, é difícil, é muito difícil conseguir
alguma coisa... é difícil de convencer as pessoas, até mesmo convencer a pessoa a
uma mudança pra tirar eles de uma rotina do cotidiano, é difícil a convencer as
pessoas a mudar... eu moro ali naquela comunidade, e nunca foi conquistado nada
pra esta comunidade por isso que as pessoas desacreditam, eu conheço bairro aí,
comunidade que há menos de dois anos de existência já tá tudo loteado, já ta tudo
urbanizado, é isto que é a falta deles acreditarem eu acho. Não sabe na realidade o
que é que tão impedindo de conquistas, os benefícios pra comunidade (Valdomiro,
trabalhador da Unidade)

Patrícia refere sobre a esperança que tem de conseguir um emprego, deixar de ser

papeleira, já que terminou o curso de Ensino Médio e pretende fazer um curso de

informática ou artes gráficas pra conseguir um emprego decente:

... tem dias que bate um desânimo, tu tem que tá com a tua casa organizada pra
arrumar lá fora....tem que tá no sangue, tu nasce com aquilo ali, com a vontade de
melhorar de vida, se não nascer, não é o outro que vai injetar, para alguma coisa a
pessoa tem que servir na vida, ninguém está a passeio, se for passeio, é um passeio
de mal gosto. Tu tem que sonhar grande pra poder ir adiante, senão tu te desgosta, e
ficar olhando sempre o mesmo, não dá! Olha a minha visão aqui, é tudo papel... eu
quero sair disso, e dizer que tu vai sair só trabalhando é mentira, se tu não tiver
estudo, tu vai dar toda a tua saúde com sol e chuva e não sai disso... (Patrícia,
moradora).

Ao falar em estar com a casa organizada pra arrumar lá fora, Patrícia nos oferece

elementos para pensar não apenas na questão objetiva a que está se referindo, ou seja, dos

199
serviços domésticos, mas também de uma maneira subjetiva, o que refere todo o tempo da

entrevista, ou seja, que a mudança tem que ser interna, que não basta outros quererem

ajudar se o próprio indivíduo está acomodado, cada um precisa limpar a casa para ter

condições de buscar coisas novas para sua vida. Outro trecho da entrevista de Patrícia

ilustra novamente essa idéia:

... merece tá num Programa quem tem ambição, por que se tu não tem ambição
aqueles duzentos pila tá bom. Eles dão curso e as pessoas não aproveitam, querem
só saber do dinheiro e das bolsa. Se tu tem ambição, tu sabe que por aquele tempo,
tem que me mexer se não fica num círculo vicioso, tu alimenta o vício. E pro rico
isso é bom, por que ele pensa: “eu dei e não importa para onde foi, importa que eu
estou de bem com Deus” (Patrícia, moradora).

Assim como destacamos os discursos “emancipatórios”, também destacamos os

discursos “prontos”, ou seja, aqueles comportamentos que demonstram uma

intencionalidade ou uma estratégia dependendo do contexto em que estão inseridos:

responde-se aquilo que todo mundo diz ou aquilo que se pensa que o outro quer ouvir. Não

é um discurso adquirido e internalizado pelas vivências dos indivíduos na sociedade, pelas

relações que estabelecem e pelas experiências que têm.

Assim é possível perceber que algumas pessoas não têm clareza da amplitude que a

participação política lhes permite, da possibilidade de construção enquanto sujeitos ativos

no processo. Lisiane acredita que cidadão, no geral, é o que cumpre seu dever, seu serviço,

trabalha e tem casa. Tamires teve dificuldade de responder o que é ser cidadão, a primeira

reação foi dizer não sei o que é isso aí, depois, pensou um pouco e respondeu: cidadão são

as pessoas que têm liberdade, não é assim? Eu não sei, acho que é a pessoa ter seu

serviço. Para Carolina cidadão é a pessoa respeitada.

Destaco as falas destas entrevistadas, pois, de certa forma, são coerentes com a sua

postura. As três são trabalhadoras de Unidades de Reciclagem de Lixo, no entanto, não

participam de reuniões do Orçamento Participativo ou de outros fóruns de participação

200
popular na cidade. E, quando participam, é por obrigação, pelo fato de terem que fazer

número nas reuniões do OP para conseguirem demandar coisas para a Unidade de

Reciclagem. Não se percebe um envolvimento com outras questões, como por exemplo, a

percepção de si como sujeitos ativos do processo, como sujeitos autônomos, com uma vida

comunitária ativa, capazes de uma organização comunitária para reivindicar melhorias e

serviços para o seu local de moradia. Os indivíduos se apropriam do discurso da cidadania,

pois isso realmente está diluído na vida da cidade61, mas não é algo que faz parte, de fato,

de suas vidas, a ponto de desencadear em uma ação mais coletiva.

A falta de participação política é um indicativo de uma ‘alienação’ política presente

em muitos discursos e também no movimento de muitos porto-alegrenses. Talvez por isso

tenhamos os contrastes nos movimentos dos entrevistados. Talvez por isso tenhamos uma

longa caminhada em direção a uma conscientização política. Estes depoimentos nos fazem

pensar que o comportamento político requer ações individuais, mas também coletivas, que

vão sendo construídas na relação cotidiana de trabalho ou de convivência na comunidade.

Um exemplo deste contraste está no depoimento de Joana. Joana é uma mulher que,

em um primeiro momento, dá a impressão de ser participativa na vida da comunidade e

que reivindica benefícios para a sua comunidade. A conhecemos em uma reunião em que

algumas mulheres62 estavam reunidas para criar uma chapa para concorrer à diretoria da

Associação de Moradores da comunidade. Estas mulheres estavam insatisfeitas com a

61
Referimos ao fato de que a Administração Municipal mantém um discurso de que ser cidadão é participar,
é ter direitos, é ter qualidade de vida, etc. Percebemos que, muitas vezes, as pessoas falam sobre isso,
repetem essa idéia sem ter a dimensão e a compreensão do que isso realmente significa. É como vulgarmente
dizemos: “está na boca do povo”, ou ainda “falar da boca para fora”. Na relação entrevistado-entrevistador
percebemos que alguns entrevistados tinham receio de “responder errado” a determinadas questões, então,
inicialmente, diziam que não sabiam ou então davam respostas as quais denominamos “discursos prontos”,
ou seja, é uma resposta que alivia a angústia do “não saber responder”, mas que denuncia um “não fazer” na
vida cotidiana.
62
Moradoras de uma das comunidades pesquisadas. Nenhuma das que estavam presentes à reunião, são
trabalhadoras da Unidade de Reciclagem de Lixo na referida comunidade, a maioria são papeleiras. A
reunião estava acontecendo na creche municipal localizada dentro da comunidade, com o apoio da Assistente
Social que trabalha no Posto de Saúde.

201
administração da atual diretoria, a qual caracterizavam como “assistencialista” e ausente”.

Em um primeiro momento, pensamos que Joana fizesse parte deste movimento de

mulheres; depois, durante a entrevista, ela esclareceu que havia ido para acompanhar o que

estava acontecendo, pois gosta de estar por dentro do que acontece na comunidade.

Interessante é que Joana acredita que as pessoas têm que participar, se unir, mas ela

não se inclui nesse discurso. Isso pertence ao outro. Esse mesmo outro que, no sistema de

relações e representações, no qual concebemos a nossa identidade, nos reconhece e do qual

nos diferenciamos. É atribuído a ele – o outro – não apenas a função do

heteroconhecimento, mas também a responsabilidade de mudança.

Para Joana, ser cidadão é ter uma casa, ter coisas pra se alimentar também e

várias outras coisas. Joana nunca foi ao Orçamento Participativo, apesar de considerá-lo

muito importante por que as pessoas conseguem coisas, e a sua relação com a política

confirma esta impressão de distanciamento com a construção da conscientização política:

sabe assim, duas coisas que eu não presto atenção, não gosto de assistir é política e
jogo...que eu olho por olhar... mas não torço pra Grêmio nem pra Inter, e política é
a mesma coisa. Esse ano, se não comprarem o meu voto eu não vou votar. Vou
vender...eles não ganham nas costa da gente? (...) Olha, se pagarem o IPVA do meu
carro e me deram 500 pila para eu viajar tá bom e vai dar pouco... Vai dar uns 1000
reais (Joana, moradora).

Além dos fóruns de participação popular criados pela Administração Municipal,

acreditamos que a comunidade é o lugar onde as redes de solidariedade podem se fortalecer, a

capacidade de identificação autônoma pode potencializar o nível de ação coletiva dos

moradores e viabilizar a emancipação. Na verdade, na Administração Municipal, também

conhecida por Administração Popular, há um discurso de emancipação dos excluídos,

porém, acreditamos que não é a Administração Municipal que é responsável por isso, e

sim, o movimento dos cidadãos, a organização coletiva via lideranças ou trabalhadores das

Unidades de Reciclagem. A Administração Municipal viabilizou a participação, permitiu o

202
diálogo e outras formas de relação com o poder público, mas isso só foi possível, porque

houve receptividade dos indivíduos, porque houve mobilização, e isso foi gestado nas

comunidades, nas diferentes formas de relações comunitárias, em diferentes épocas e a

partir de diferentes demandas.

Evidenciamos isso a partir de relatos de lideranças comunitárias e/ou moradores

atuantes na comunidade e no OP. Para essas pessoas, é impossível afirmar que a vontade

política do governo foi a única responsável pelo processo [do OP]. Não se pode esquecer o

movimento popular que no final da década de 70 e início da década de 80, começava a se

organizar e a lutar para fazer valer as necessidades quase vitais da parte mais carente da

população. Carlos63 comenta que...

... foi o movimento popular organizado que implantou o processo. Sem ele, o OP
talvez teria surgido mas não teria o resultado que a gente conhece hoje. Porto
Alegre se tornou um exemplo internacional de gestão participativa mas a questão de
base é que tinha uma organização forte. Quando começamos, ninguém sabia como
fazer. A gente sentava com o prefeito, com os secretários, e procurava um caminho.
Os fóruns de delegados não existiam. Tudo passava pelas associações já existentes.
Por exemplo, na Região Leste, tínhamos uma união de vilas onde as pessoas
discutiam as prioridades. Em outro lugar, o debate se desenvolvia nos conselhos
populares (Carlos, morador).

A partir disso, evidenciamos que há um conjunto de elementos que compõem um

cenário propício para que a participação política seja significada como a possibilidade de

engajamento em ações coletivas, que tragam benefícios para o próprio indivíduo e para a

comunidade. O quadro abaixo esquematiza a relação que os entrevistados fizeram sobre o

que é ser cidadão e o que é exercer a cidadania, onde buscamos reafirmar que as

potencialidades do indivíduo na sua experiência individual podem incidir na realidade

social.

63
Carlos é o nome fictício de um morador de uma comunidade; ele não faz parte dos entrevistados. Seu
depoimento está na obra: Organização Não-Governamental Solidariedade. Caminhando para um mundo
novo: orçamento participativo de Porto Alegre visto pela comunidade. Petrópolis : Vozes, 2003.

203
Dimensão social
Ser cidadão é... Exercer a cidadania é...
...estabelecer relação de
pertencimento ao grupo
...ter atributos pessoais
...ser sujeito de direitos socialmente desejáveis
Dimensão ...vivenciar a emancipação ...votar Dimensão
Social ...reconhecer o outro também ...viver o preconceito individual
como sujeito de direitos ...cumprir direitos
...ter predisposição para a
mudança
...produção de “discursos
prontos”
Dimensão individual

3. A relação com Porto Alegre e com a comunidade... falando das vivências dos

entrevistados

Considerando que o nosso objetivo é evidenciar como a participação política vem

sendo construída por nossos entrevistados, assim como entender as repercussões que esta

participação tem para a vida das pessoas e para as políticas públicas da cidade,

relacionaremos a participação política dos entrevistados com a vida que levam na cidade

de Porto Alegre – bem como em suas comunidades – no que diz respeito às vivências das

políticas públicas voltadas para a população. Entendemos que a participação política é uma

via de mão dupla nesta relação, ou seja, ao mesmo tempo em que participa, o cidadão

incrementa as políticas públicas da cidade e, ao mesmo tempo em que incrementa as

políticas públicas da cidade, alimenta a sua confiança enquanto cidadão de direitos e nutre

melhores perspectivas de vida em termos de realizações pessoais e de trabalho.

Porto Alegre é uma cidade que se intitula participativa, que mantém em sua

administração, a intencionalidade de levar a todas as camadas da população, a cultura, o

lazer, o esporte, dando acesso gratuito às populações mais carentes financeiramente. É uma

administração que acredita que estas dimensões da vida do indivíduo não devam ser

elitizadas, que a apropriação cultural amplia a visão de mundo do indivíduo e que isso

204
também é cidadania, pois o lazer, o ócio, os espaços de convivência são prioritários para a

coletividade. Analisaremos, portanto, a relação dos entrevistados com a cidade.

3.1- Porto Alegre pelos olhos dos moradores e trabalhadores

Perguntados sobre as atividades culturais, esportivas e de lazer que Porto Alegre

oferece, muitos entrevistados demonstraram conhecer as opções que a cidade oferece, bem

como aproveitá-las em seus momentos de lazer. Todos reconhecem que tem muita coisa

para se fazer em Porto Alegre, é uma cidade que tem um bom transporte público, a frota de

ônibus é nova e freqüentemente renovada, as linhas de ônibus atendem a todos os bairros

da cidade com periodicidade satisfatória.

Há uma curiosidade: muitos moradores que moram nas Ilhas, que é um bairro de

Porto Alegre, que está situado depois da ponte do Rio Guaíba, não se consideram

moradores de Porto Alegre. Participam das reuniões do OP, mas não tem a dimensão

administrativa de que as Ilhas fazem parte da cidade de Porto Alegre. Quando perguntada

sobre as atividades que Porto Alegre oferece para seus moradores, Nilda (moradora)

respondeu: Não vou a Porto Alegre, mas penso que deve ter muita agitação por lá. Como

se estivesse referindo-se a outro lugar. O que queremos destacar é que assim com Nilda, há

muitos moradores das Ilhas que fazem essa mesma associação. Nilda é uma mulher atuante

em sua comunidade, mas há moradores que tampouco participam de qualquer fórum de

participação popular e vivem em uma situação e marginalidade concreta e simbólica, ou

seja, vivem em condições de miserabilidade e alienação.

Analisaremos, portanto, a relação dos entrevistados com a cidade, considerando, a

exemplo dos moradores das Ilhas, que as políticas públicas não chegam a todas as regiões

da cidade. Os relatos dos entrevistados, que destacamos, sintetizam suas opções de lazer:

...vou pras praças (Vitória, moradora).

205
Futebol e outras atividades esportivas nas praças (Robson, morador)

Porto Alegre é uma das cidades mais arborizadas do país. Possui 1 milhão de

árvores em vias públicas e 80.038 hectares de áreas verdes64. São inúmeras as Praças e os

Parques na cidade, os quais não são gradeados, onde a população circula livremente, faz

caminhadas, esportes, toma chimarrão, encontra-se com amigos, assiste a algum evento

cultural que normalmente é gratuito, e utiliza biblioteca pública e/ou outros espaços

culturais que têm na maioria destes locais.

Parque da Redenção nos domingos (Fernando, trabalhador da Unidade)

...levo meus filhos na Redenção pra jogar futebol (Carolina, trabalhadora da

Unidade).

O Parque da Redenção é um parque localizado na região central da cidade onde,

aos domingos, além de inúmeras atividades esportivas e de lazer que o parque oferece, há

uma feira de artesanato e antiguidades conhecida, pelos porto-alegrenses, como Brique da

Redenção, além de ser um espaço de manifestações artísticas e políticas.

Futebol, voleibol, corrida, bicicleta nas praças da cidade, no Parque Marinha do

Brasil ou na Redenção (Claudiomar, trabalhador da Unidade).

O Parque Marinha do Brasil é um Parque que está à beira do Rio Guaíba, perto da

Usina do Gasômetro e do Anfiteatro Pôr-do-sol.

Feira do Livro, quando tem (Joana).

A Feira do Livro é um evento anual que acontece em uma praça no centro de Porto

Alegre, a Praça da Alfândega. Além da venda de livros, há eventos diversos para o público

infantil e adulto, se instalam bares e praças de alimentação, que acaba sendo, durante o

período da Feira, um local propício para happy hour, além de outras atividades culturais,

como exposições de arte, que acontecem simultaneamente ao evento da Feira do Livro.


64
Fonte: http://www2.portoalegre.rs.gov.br/infocidade/default.php?p_secao=30. Pesquisa realizada em
03/01/06.

206
Na Explanada [praça do bairro], quando tem algum evento (Magda, moradora).

Muitos de nossos entrevistados, pelo que percebemos, valorizam muito as

atividades de sua comunidade, muitos preferem ficar nos seus bairros que também

apresentam uma infra-estrutura satisfatória a ponto de não terem necessidade de sair. A

cultura, a arte, os shows também chegam aos bairros.

Ir ao Gasômetro nos domingos, pois sempre tem alguma atividade cultural (Pedro,

morador)

A Usina do Gasômetro é hoje um espaço cultural importante na cidade. Localiza-se

à beira do Rio Guaíba, possui um calçadão, que permite aos porto-alegrenses fazerem

caminhadas diárias, ou simplesmente curtir o pôr-do-sol no Guaíba; além disso, nos finais

de semana e feriados, a avenida que circunda esse calçadão, é interrompida para o trânsito

de automóveis, para que as pessoas possam aproveitá-la como área de lazer. Da Usina

saem os passeios de barco pelo rio Guaíba e, na parte interior, constantemente, há

exposições artísticas e culturais.

Sair, jogar bola; fazia capoeira no Centro Comunitário, mas desisti, fiz até um

curso de informática, mas não terminei (Norton, morador).

Os Centros Comunitários, em Porto Alegre, têm uma vida muito ativa na

comunidade: oferecem cursos, serviços de profissionais da área da Psicologia, Pedagogia e

Assistência Social, além de terem os recursos materiais e humanos para atividades

esportivas, culturais e piscina, no verão, para a comunidade.

... costumo sair para dançar ou ir a um bar pela noite, beber uma cerveja (José,

trabalhador da Unidade).

Nos bares com os amigos e no Parque da Redenção (Taís, moradora)

Pescaria no Guaíba e Arambaré (Bárbara, trabalhadora da Unidade)

Ir no rio pescar (Helio, trabalhador da Unidade)

207
Tocar violão com os amigos e ir no cinema, e no CESMAR - Centro Comunitário

dos Irmãos Maristas, usar o computador, a internet (Silvio, trabalhador da Unidade).

Igreja pra aproveitar os cultos (Eva, trabalhadora da Unidade).

Há os que não costumam sair e aproveitam seus momentos de lazer para descansar:

...não saio, o único lugar que vou é na casa da minha nora que vive na Ilha dos

Marinheiros (Guilhermina, moradora).

...em função do papel, nós trabalhamos no sábado também e quando entramos pra

dentro de casa temos roupa pra lavar, casa pra limpar, então o lazer nós não temos

(Patrícia, moradora.)

...não costumamos sair (Joana, moradora).

...não costumo sair, fico em casa descansando (Roseli, trabalhadora da Unidade).

Porto Alegre oferece muita coisa, porém não aproveito, porque trabalho até nos

sábados e só tenho os domingos pra descansar (Lauro, trabalhador da Unidade).

No nosso entendimento, não era suficiente investigar apenas o conhecimento que os

entrevistados têm das atividades que a cidade em que vivem, oferece. Essa informação nos

dá interessantes elementos para pensar os canais de comunicação, divulgação e parceria

entre sociedade civil e poder público, na viabilização das políticas públicas. Para tanto,

perguntamos aos nossos entrevistados como é viver em Porto Alegre para entender o que

seus cidadãos pensam da cidade em que moram, e das comunidades em que moram. O que

pensam de uma cidade que se intitula inclusiva, participativa, cidadã.

Tentaremos analisar como estas categorias aparecem nos discursos que traduzem as

vivências das pessoas em relação a sua cidade e ao que ela oferece, pois, oferecer

atividades de lazer e entretenimento não garante, necessariamente, a inclusão, a

208
participação, a cidadania. É preciso que as pessoas se apropriem disso e vivenciem na

cidade e na comunidade. A impressão que as pessoas têm do lugar onde vivem é definidor

do sentimento de pertencimento que desenvolvem pela cidade ou comunidade. O

sentimento de pertencimento por sua vez, aumenta a necessidade do cuidado com o que é

seu, seja privado ou público, constrói a identidade coletiva e, conseqüentemente, viabiliza

a participação política, muito pelo desejo de continuar participando e fazendo parte da

construção de uma cidade melhor para todos.

A fala de Silmar65 é muito significativa na medida em que traduz essa idéia:

Quem não gosta de decidir? Isso faz parte do ser humano. Porém, quando existe a
possibilidade de decidir não só pra ti mas também para e com outras pessoas fica
ainda melhor. Não é uma decisão unilateral, ditatorial mas uma decisão que envolve
toda uma comunidade. Se torna muito mais interessante. Psicologicamente, a gente
se sente valorizado, útil para si mesmo, para sua família e também para a sociedade.
Isso é um sentimento verdadeiro de cidadania. (...) ...esse sentimento não surge de
um dia para o outro, passa por um caminho individual, um crescimento pessoal onde
o OP não é a causa exclusiva, mas certamente ele proporciona uma ampliação nos
horizontes de quem participa (Silmar, morador).

Os entrevistados apresentam uma radiografia muito interessante da cidade em que

vivem. Apontam para os aspectos positivos, de uma forma geral, ou seja, que Porto Alegre

é uma cidade limpa, organizada, arborizada, com muitos parques, praças, áreas de lazer,

opções gratuitas de lazer e cultura, com projetos voltados para as populações de baixa-

renda, dentre outros aspectos.

No entanto, é uma cidade que discrimina, que mantém uma política assistencialista

que impede a emancipação dos pobres, que tem violência, desemprego e muitos problemas

sociais. Traremos nossos entrevistados para que manifestem suas opiniões sobre a cidade.

Para Serlene (moradora), viver em Porto Alegre é bom, porque tem esporte, lazer,

tem o parque Farroupilha, Shopping, muito esporte, show e eu aproveito pouco.


65
Silmar é o nome fictício de um morador de uma comunidade; ele não faz parte dos entrevistados. Seu
depoimento está na obra: Organização Não-Governamental Solidariedade. Caminhando para um mundo
novo: orçamento participativo de Porto Alegre visto pela comunidade. Petrópolis : Vozes, 2003.

209
Bárbara também aproveita pouco as atividades que Porto Alegre oferece, mas acha

importante viver em uma cidade que oferece opções de lazer e de trabalho para seus

cidadãos:

Tem várias coisas, mas a gente não tem conhecimento. É lazer que a gente tem, tem
várias coisas, só que a gente não participa, mas tem. Se eu tivesse como viver no
interior, eu voltava, não gosto daqui por causa da violência, mas o bom daqui é que
a pessoa só fica parado aqui e não ganha o seu dinheiro se não quer trabalhar,
porque tem muita oportunidade, e no interior não é assim (Bárbara, trabalhadora da
Unidade).

Silvio (trabalhador da Unidade) reafirma a qualidade de vida expressa em

estatísticas. É uma cidade centralizada, têm bancos, hospitais, postos de saúde...

Roseli refere o aprendizado que teve vivendo nas ruas de Porto Alegre e que essa

vivência a fez ser a mulher que é hoje:

Muito na vida eu aprendi, eu era meio abobada mas aprendi muito nesta Porto
Alegre... às vezes eu vou em Gravataí visitar meus outros filhos, e me perguntam o
que que tem de tão bom, e eu respondo: aqui é o descanso na cabeça, a vida que eu
nunca tive, eu tô tendo, tenho um serviço, tenho uma casa, é só uma peça, mas é
minha, dependo de mim mesma, do meu serviço, se eu quiser sair, eu saio, lá não, lá
tu era afrontada, não podia ter uma amizade, não tinha liberdade, tu não podia
conversar com ninguém, aí pensei: vou tomar uma decisão na minha vida, ou vai ou
racha, pensei antes que eu faça uma besteria... aí vim pra cá... aqui eu tenho a vida
que eu quero, se eu quiser ter uma vida mais ou menos do que esta daqui, eu
consigo... fui pra rua por causa da família... os parentes maltratavam muito, passei
fome, dei dois filhos, porque a gente passava fome, mas agora é diferente...(Roseli,
trabalhadora da Unidade).

Paulo gosta de viver em Porto Alegre pois, segundo ele, para as pessoas que têm

capacidade e interesse em trabalhar, Porto Alegre é uma das cidades que melhor oferece

oportunidades, qualquer um pode juntar lixo, ter uma banca de camelô, qualquer coisa

que tu faz tu ganha dinheiro, é possível viver, é possível sobreviver, tu pode ter teu próprio

ritmo de vida (Paulo, trabalhador da Unidade).

Bárbara também acentua as oportunidades de emprego que Porto Alegre oferece:

210
...pra quem tem estudo é que é melhor pra trabalhar, tem emprego melhor, mais
facilidade. A gente trabalha em cidade pequena é mais difícil porque não tem
emprego como existe em Porto Alegre. Porto Alegre tem obras, lojas, lancherias,
tem diversos trabalhos que pode exercer aqui dentro em Porto Alegre, tem escritório
pra quem tem estudo né e lá fora [no interior] não existe isto há muito tempo. Eu
acho que Porto Alegre pra mim foi muito bom, muita experiência eu tive aqui
(Bárbara, trabalhadora da Unidade)

Para José, que é trabalhador da Unidade de Reciclagem, viver em Porto Alegre é

muito bom, pois é uma cidade que:

... oferece muito cinema, opções, diversão, é uma cidade que tá se organizando, mas,
por outro lado, falta opção de trabalho, o desemprego é grande, se tivesse emprego
Porto Alegre seria muito melhor. Tem duas partes: eu adoro Porto Alegre, que não
tem nada a ver com quem tá aí... Tem o Parque Marinha, a Redenção, o Parcão, tem
teatro, a OSPA, tem barzinho à noite, dá pra gente sair, tomar uma cervejinha, uma
porçãozinha de batatas fritas e, embora a segurança esteja ainda meio debilitada,
ainda dá pra sair em Porto Alegre (José, trabalhador da Unidade).

Augusto já esteve na França, em um evento66 em Paris, no qual foi convidado a

relatar a experiência de conquistas da Vila dos Papeleiros via Orçamento Participativo. Ele

comenta que:

...olha, eu já tive na França, né. França é uma cidade de primeiro mundo e se Porto
Alegre é modelo lá na França, Porto Alegre não tem nada errado e é a primeira do
mundo, eu não troco Paris por Porto Alegre, aqui a gente tem tudo que a gente quer,
calor humano das pessoas, cooperativismo, as pessoas não andam de cara
amarrada, porto-alegrense anda sorrindo, é a melhor cidade do mundo... eu vejo em
outras cidades tanta violência... Porto Alegre não tem violência, como o Rio, São
Paulo, que o pessoal anda se cuidando... em São Paulo a pessoa não pode sair de
noite, estacionar um carro (Augusto, trabalhador da Unidade).

Augusto diz que caiu de pára-quedas na Vila dos Papeleiros, ele trabalhava com

papel e o convidaram para ir morar na vila por que lá ele ia “ter trabalho e moradia”. Faz

seis anos que trabalho com papel, nunca consegui trabalhar numa firma, porque tenho

doze filhos, filhos de três casamentos, sempre trabalhei informal pra conseguir sustentar a
66
Não temos dados – nome, data, organizadores e local de realização. Sabemos que foi em Paris, organizado
por uma ONG brasileira em parceria com entidades internacionais interessadas em conhecer e divulgar a
experiência do OP como exemplo de democracia participativa.

211
família, porque salário de firma não dá. Conta que na terceira semana conseguiu seu

próprio carrinho e começou a reciclar, na semana seguinte, conseguiu um emprego de

porteiro em um prédio do centro da cidade. Ganhou R$ 60,00 na semana, sendo que na

reciclagem conseguiu ganhar R$ 80,00. Desde então resolveu continuar na reciclagem. E

como um sinal, na sexta semana eu achei 400 pila no lixo. Fiquei duas semanas com o

dinheiro no bolso caso aparecesse o dono, pra devolver o dinheiro, mas como não

apareceu o dono, eu fiquei com o dinheiro e paguei as minhas contas (Augusto,

trabalhador da Unidade).

A história de Augusto representa um pouco da história de muitos papeleiros, que

encontram neste trabalho, uma fonte de renda viável. Talvez por isso esta seja a

representação mais forte da reciclagem de lixo, muito mais do que a questão ambiental. E

talvez por isso alguns moradores pensam que Porto Alegre é uma cidade que oferece

muitas oportunidades, por que, na verdade, há demanda para trabalhar com reciclagem.

Porto Alegre tem 100% de coleta seletiva e há uma cultura de reciclagem na cidade, mas a

fonte de renda ainda é a mobilizadora deste trabalho, assim como a expectativa de

encontrar dinheiro ou objetos de valor no meio do lixo.

A opinião de Adriana reúne dois elementos importantes que são destacados por

nossos entrevistados. É o fato de Porto Alegre ser uma cidade boa de se viver porque

agrega as possibilidades de lazer e de trabalho: ...tem espaços reais de descentralização da

cultura em Porto Alegre. Tendo ou não dinheiro, a pessoa pode se divertir. Isso é muito

importante, isso é qualidade de vida, e outra coisa importante é que existe trabalho, tem o

que fazer, os alunos mesmos dizem: ai, professora, morando aqui fica sem dinheiro quem

quer, e é verdade, porque eles arrumam o que fazer (Adriana, técnica).

Porto Alegre é uma cidade que, a partir da fala de nossos entrevistados, deixa

transparecer suas fragilidades. Denominamos “fragilidades”, aos problemas sociais que são

212
característicos das grandes cidades: violência urbana, desemprego, problemas na saúde

pública, moradia, etc. Nesta relação, também se incluem os programas assistencialistas

que, com a aparente intencionalidade de “ajudar a famílias miserabilizadas”,

simbolicamente, incrementam o sentimento de assistencialismo de quem participa desses

programas.

Paulo (trabalhador da Unidade) destaca os aspectos bons de Porto Alegre, mas

também refere que é uma cidade que tem muita possibilidade, favorece a pessoa de um

lado, mas por outro, deixa a pessoa muito baseada porque tem muitos programas

assistencialistas... se eu ganho, por que vou querer trabalhar?!

A opinião de Paulo nos remete à semelhante opinião de Patrícia, já referida neste

texto. Não é apenas o rico – como refere Patrícia – que tira a ambição do pobre; as

políticas de assistência também nublam a capacidade de identificação autônoma desse

indivíduo, o coloca em uma situação passiva em relação a possibilidade de exercício da

cidadania, reforçando aquilo que Melucci (2004) chama de identidade rotulada, ou como

refere Heller (2004), impedindo a autonomia do indivíduo.

Lauro também reforça essa opinião:

No início também tavam assim, mas a gente mostrou que é sério, é com
trabalho, a Tatiana ajudou muito. Nós não aceitamos doação de alimentos, a doação
é pra criar vagabundo. Quer comer? Trabalha... tem que abrir frente de trabalho e
não com doação, não é que a gente esnoba, até existe lugar que precisa mais, mas
nós temos trabalho, não precisamos e não queremos doação (Lauro, trabalhador da
Unidade).

Norton apresenta os contrastes de Porto Alegre: não é ruim, mas também não é

bom. É bom por que dá pra sair pra passear, como é verão agora, né, tem o Lami, tem as

coisas boas. De ruim tem várias coisas, esgotos que não são muito tampado, muita gente

na rua (Norton, morador).

213
Assim como Robson e Magda confirmam os problemas sociais também expressos

em estatísticas:

...a violência que tá demais, tirando a violência tá tudo bom, eu gosto de morar aqui,
já saí e voltei muitas vezes, não consigo me adaptar em outro lugar...(Robson,
morador);

...tá começando agora este negócio de assalto, de crimes mas que infelizmente não é
só em Porto Alegre, né? (Magda, moradora).

Estela também destaca o que tem de ruim na cidade, mas reforça as coisas boas:

viver em Porto Alegre sempre foi bom, sempre morei aqui, nunca fui pra outro lugar
mais longe então pra mim é bom. O problema é o desemprego, roubo, pessoas que
assaltam, mas em compensação tem de bom as culturas que antes a gente não tinha
e agora tá tendo, canto, essas coisas, e lazer que a gente pode passear e tudo
(Estela, moradora).

3.2- A comunidade pelos olhos dos moradores e trabalhadores

Perguntamos para nossos entrevistados, a exemplo da relação com Porto Alegre,

quais as atividades culturais, esportivas e de lazer que as comunidades oferecem. Com

isso, pretendemos comparar as políticas públicas que são propostas pela Administração

Municipal com o que é viabilizado pelas comunidades. Da mesma forma, queremos

analisar como os cidadãos se apropriam destes espaços públicos, como inserem em suas

vidas, outros aspectos que não apenas o trabalho, e até que ponto isso tem a ver com

cidadania, até que ponto isso incrementa o sentimento de ser cidadão, e torna-se um

convite para a participação política, a fim de garantir e implementar outras políticas

públicas.

O espectro de respostas foi bem variado, indicando que as comunidades organizam

atividades para seus moradores com ou sem parceria das Secretarias Municipais.

Na maioria das comunidades há uma preocupação em manter atividades com as

crianças:

214
...há atividades recreativas com as crianças (Paulo, trabalhador da Unidade);

Depois da tragédia [incêndio], não há, e quando tem alguma atividade é mais pras
crianças (José, trabalhador da Unidade);

É mais pras crianças, pros adultos é uma iniciativa mais individual, de quem quer
sair, ir a um bar (Pedro, morador);

É mais pras crianças, algum jogo de futebol, por exemplo (Guilhermina, moradora).

Investir nas crianças tem vários aspectos: garante vários direitos, dentre eles o de

brincar, que precisa ser vivido na infância, minimiza situações de violência, pois o

indivíduo está canalizando sua agressividade para aspectos socialmente aceitáveis e

saudáveis para seu desenvolvimento, permite a descoberta de talentos no esporte, na arte, é

uma grande possibilidade de oferecer outra alternativa de vida que não seja as drogas, além

de ser uma atividade educativa e que contribui para a formação destes cidadãos, pois

trabalha aspectos importantes para a vida em sociedade, como respeito, solidariedade,

cooperação, saber lidar com a competitividade e frustração.

Esta é uma visível preocupação de Augusto:

Tem o projeto verão pra criançada, futebol pras crianças, em parceria com a
Secretaria de Esporte e com as empresas... tem passeios no Zôo, às vezes eu deixo de
sair com a minha família pra tá com as crianças... quantos talentos que são perdidos
pela droga... eu mesmo, quando é que eu imaginei que eu era um líder comunitário!
Se não fosse a dra Edite pra mim acordar, eu taria alienado a puxar carrinho, a
separar minha carga, a vender, a ser explorado. Ela me acordou pra um mundo
diferente, pra um mundo que se o brasileiro soubesse o que ele tem de direito e não
usa nem um terço... hoje uma criança que tem estudo, vai estudar, vai ter um bom
trabalho, ele não vai precisar tá chegando na Prefeitura e pedindo moradia, ele vai
comprar a moradia dele, o carro dele, vai ter um bom serviço... as atividades não
acontecem muito na vila... tem a Multisom, eles pegam quatro, cinco crianças e
pagam escolinha... tem hip hop... a gente perdeu alguns espaço aí, o incêndio deixou
uma reviravolta, o pessoal ficou espalhado, a nossa comunidade é a única
comunidade que tem uma associação mirim, ali eu tô formando uns líderes
futuramente, porque esta diretoria mirim faz alguma panfletagem na rua, define
passeio... (Augusto, trabalhador da Unidade).

215
Há também atividades promovidas pelas entidades que fazem parte da comunidade,

no sentido de que são formadas por pessoas que vivem nesse local, como por exemplo, as

Associações de Bairro e o Clube de Mães.

Feira de roupas que às vezes o Clube de Mães faz (Carolina, trabalhadora da

Unidade).

Festa Junina, festa do Dia das Mães, jogos de futebol (Claudiomar, trabalhador da

Unidade).

Festas no Campo de Futebol nas festas de Natal, Ano Novo e Páscoa na

Associação (Taís, trabalhadora da Unidade).

Galetos, reuniões entre as mulheres (Cléia, trabalhadora da Unidade).

Há também atividades promovidas e/ou organizadas por entidades e instituições

que trabalham com a comunidade em caráter profissional ou comunitário: são os Centros

Comunitários, Igrejas, Postos de Saúde, Escolas, entre outras.

... sei que há algumas atividades que o Centro Comunitário oferece, mas não sei
quais (Norton, morador.)

Antigamente tinha festa que a creche organizava, que eu saiba, não há nada hoje em
dia (Joana, moradora)

Atividades da Igreja Assembléia de Deus (Fernando, trabalhador da Unidade).

Tem na Esplanada, a Cama Mágica, torneios de vôlei futebol, corrida que eu levo
meus filhos... Tem teatro no SASE, tem dança, tem balé, tem canto também. Acho que
é a Prefeitura que faz porque é lá no Centro Comunitário e no SASE (Estela,
moradora).

Futebol e eventos na creche (Lisiane, trabalhadora da Unidade).

Eventos religiosos, festas nativistas, jogos de futebol (Silvio, trabalhador da


Unidade).

Tem alguma coisa no CESMAR, mas eu não participo, não gosto (Robson, morador).

216
Carnaval, Bailes Funks, teatro, cinema (Magda, moradora).

Shows e carnaval (Bruna, trabalhadora da Unidade).

Jogo de futebol (Tamires, trabalhadora da Unidade).

E há entrevistados que não tem conhecimento das atividades que a sua comunidade

oferece, ou que não participa de nada, por isso não sabe, ou que vive em uma comunidade

que realmente não se organiza a ponto de oferecer atividades para seus moradores,

tampouco, os moradores se organizam para isso. É o exemplo dos relatos de Hélio,

Bárbara, Valdomiro, Eva (trabalhadores da Unidade) e Vitória (moradora), que dizem que

não há nenhuma atividade que eles tenham conhecimento na comunidade.

3.3. A relação entre as comunidades e as Secretarias Municipais

Perguntamos aos técnicos quais as atividades culturais, esportivas e de lazer que a

Secretaria Municipal ou Estadual, a qual estão vinculados, oferece para as comunidades.

Nossa intenção é investigar como as políticas públicas de lazer e cultura são viabilizadas

pela parceria entre sociedade civil e poder público.

 Gabinete de Relações Comunitárias

Conforme relata Cristiano, não era atribuição do Gabinete promover as atividades,

e sim apoiar na viabilidade de projetos culturais, esportivos nas comunidades. Sempre que

alguma comunidade, via lideranças ou via OP, organizava alguma atividade para seus

moradores, o GRC mediava junto a outras Secretarias a viabilidade financeira destas

atividades.

 DMLU

Lígia faz o seguinte relato, explicando como é o trabalho do Departamento de

Limpeza Urbana junto às comunidades:

217
na verdade não é a nossa finalidade, há um setor de assessoria comunitária, mas
todo o trabalho é no sentido de promover a limpeza de um determinado bairro,
comunidade, ou de que num final de semana as pessoas separem todo o seu material,
neste sentido que o DMLU tem trabalho nas comunidades, sempre alguma coisa que
tenha a ver com a limpeza, que esta é a nossa finalidade última... em parceria com
outras Secretarias... em determinados períodos, tipo Semana do Meio Ambiente,
Semana de Porto Alegre e se trabalha junto... Se tem permanentemente um setor de
Educação Ambiental que vai promovendo a educação ambiental em Escolas,
Universidades, Empresas e que tem até um ônibus que faz visita orientada que se
chama Caminho do Lixo... que está à disposição das comunidades...

 DEMHAB

De acordo com Mariana, o DEMHAB oferece atividades culturais e de lazer no

período de reassentamento, como reconhecimento da área do entorno, atividades de visita

a áreas de preservação ambiental, não no sentido de não usar o espaço, mas de saber usar

o espaço, e no sentido de promover uma reflexão sobre o “novo viver”.

 Secretarias de Saúde

Sandra relata que trabalha com a comunidade tanto com atendimento à comunidade

como com questões comunitárias...

...a gente faz muitos grupos, voltados pra questão de lazer, pra questão cultural, que
a comunidade participa e tem vinculação com as festas, muitas vezes ajuda a
organizar.... além do trabalho da gente, do dia-a-dia do Posto, tem outras coisas que
a gente participa, a gente trabalha com crianças, tem um grupo de criatividade
infantil, que se trabalha o brincar... grupo de mulheres, onde se discute como elas
estão vivendo, o seu estilo de vida... isso acaba sendo um tema que tá no nosso
trabalho do dia-a-dia e tem outras atividades que a gente acaba se
envolvendo...(Sandra, técnica).

Carmem faz atendimentos de grupos com crianças, adolescentes e adultos, que faz

parte de suas atividades como Assistente Social na Associação Comunitária, além disso,

apóia e acompanha algumas atividades promovidas pela Associação: no final de semana

sempre há futebol, shows e outros eventos promovidos pela Associação Comunitária, de

alguma coisa eu participo.

218
Doralina é psicóloga e trabalha em uma das comunidades estudadas. Ela faz

atendimentos individuais e de grupo com a comunidade. Relata que fazem passeios, fazem

seminários, mas não é a Secretaria que oferece, é iniciativa deles, dos profissionais que

trabalham na comunidade...

... eu percebo que os moradores têm uma dificuldade muito grande de lazer, pra
serem úteis tem que estar trabalhando, então se você tá no lazer, você não tá fazendo
nada, logo, você não é útil e aí a gente programa cinemas, passeios, e é difícil as
pessoas irem... então tem que fazer atividades dentro da comunidade, tipo Ações
Globais que daí as pessoas aderem, aquela coisa de cortar cabelo, fazer pintura que
é algo que eles tem que fazer porque tem esta idéia, de que se tu não tá fazendo algo
que não é trabalho, então você tá perdendo tempo (Doralina, técnica).

 Secretarias de Educação

Foi possível constatar que as iniciativas de realização de atividades com a

comunidade são iniciativas isoladas das escolas, muito mais que uma parceria via

Secretaria de Educação. Os depoimentos abaixo esclarecem isso: ...há algumas atividades

que a escola faz, mas é uma iniciativa da escola e não da Secretaria de Educação, como

fazer festas e eventos (Adriana, técnica); ...há algumas atividades esportivas e culturais

que a escola oferece, como por exemplo “Os jogos da Escola Cidadã” (Gerci, técnica);

...há algumas atividades na escola e em parceria com o Centro Comunitário,

principalmente com atividades de esporte (Filomena, técnica); ...teatro, cinema, jogos de

futebol entre as escolas (Mercedes, técnica); ...a relação é da SEC e a da comunidade,

quando tem reuniões da rede, que eu não sei do que se trata, e a escola, que eu saiba não

faz nada (Mirela, técnica).

Podemos inferir algumas hipóteses sobre o fato das pessoas não se inteirarem das

atividades da sua comunidade:

o trabalho realmente as absorve;

a relação comunitária é tênue;

219
não há informação suficiente sobre as atividades que acontecem na

comunidade; ou

se trata de uma característica e/ou uma opção pessoal.

Analisando as respostas dos entrevistados, afirmamos que as nossas hipóteses se

confirmam, dada a complexidade dos fatores que compõem a realidade social, comunitária,

e a experiência individual de cada indivíduo.

Considerar as atividades que Porto Alegre oferece e relacionar isso com as

atividades que as comunidades oferecem, demonstra, no nosso entendimento, a efetivação

de algumas políticas públicas voltadas para as comunidades. Amplia o exercício da

cidadania no momento em que a cidade publiciza espaços, amplia o acesso à cultura. De

uma certa forma, isso também estimula as comunidades a se mobilizarem, a organizarem

atividades, a buscarem parcerias em projetos. É a viabilidade das políticas públicas

acontecendo em diferentes regiões da cidade, de uma maneira descentralizada.

Temos assim, as redes de sociabilidade estabelecidas entre as pessoas e, a vivência

na comunidade, fortalece os laços de afeto, de parceria e de solidariedade. Com isso, a

identidade coletiva que é construída a partir dessas relações fortalece também a vivência da

cidadania e, igualmente, da participação política.

3.4- Viver na comunidade

Perguntamos aos entrevistados como é viver na sua comunidade. As respostas

mostram a relação com a comunidade, desde a capacidade de organização comunitária que

essa possui, até a vivência do preconceito atribuída a quem mora em “comunidades

carentes”.

Viver na comunidade é, para Vitória, vivenciar o estigma de “ser pobre”. É como se

o lugar ficasse em destaque, ou seja, a pobreza ou a miserabilidade das pessoas diluídas na

220
cidade, dá margem à estigmatização, mas focado na pessoa. A pobreza está localizada mas,

ao mesmo tempo, diluída em meio a tantas outras pessoas, é como se fizesse parte do

cenário que compõe a cidade. No caso de uma comunidade, a visibilidade da condição de

pobre é maior, independente de condição financeira, nível de escolaridade ou profissão, se

o indivíduo é morador de vila, o estigma já está dado. E vivemos em uma sociedade, na

qual se atribuem às comunidades mais carentes, adjetivos pejorativos, ou seja, tudo que é

ruim, feio, violento, marginal, bandido, delinqüente, desqualificado, enfim, tudo o que não

presta:

...há preconceito, as pessoas que não vivem na vila, pensam que quem vive na vila

não tem valor, não é só porque são pobres que não têm valor ou educação (Vitória,

moradora).

Nilda relata como aprendeu a gostar da comunidade onde mora, refere ao

preconceito que viveu no início, e como, a partir desta vivência de preconceito, superou as

dificuldades e hoje é uma liderança na comunidade:

... eu odiava a Ilha, eu não era acostumada no mato, eu era acostumada com luz,
água, a Ilha na época era um mato, os vizinhos era lá um que outro, eram ilheiros
mesmo, eram pescadores, eu era muito discriminada porque eu era mãe solteira e
porque era negra... tinha que levar roupa no rio, eu não sabia lavar roupa no rio,
pra comprar coisas tinha que ir no mercado... eu vim pra cá com 18 anos, aqui na
ilha eu casei, fiquei, vivi três anos com meu primeiro marido, tive dois anos, perdi os
dois, não sabia me defender, não era a mulher que sou hoje, embora que eu vim da
cidade, eu era mais grossa que eles, eu era a “Maria” da casa, era dona de casa, só
que a vida me ensinou, eu chorava dia e noite, fui pra 45 quilos, agora eu amo a
Ilha, porque aqui eu aprendi a ser mulher... já faz 37 anos que tô com o terceiro
marido, tivemos 4 filhos, criei meus 4 filhos trabalhando, aprendi a dizer não,
aprendi a não passar a roupa do marido, a não fazer a vontade do outro, quer ficar
comigo tu fica, eu vou trabalhar. Não tenho mais o meu irmão pra me mandar,
homem nenhum vai me mandar (Nilda, moradora).

A comunidade também mostra a possibilidade de manter os laços de convivência,

de manter relações próximas de solidariedade e cooperação. Para exemplificar como é

221
viver na comunidade, Augusto faz o relato da situação que a sua comunidade viveu,

quando foi praticamente destruída67 por um incêndio:

...na hora de pegar um papel que pára lá na frente, é um arranca rabo, na hora que
chega rancho, eu sou contra dar rancho, mas é que nem piranha, mas na hora de
uma necessidade, todo mundo se ajuda...se caiu alguma coisa para dar, aí é
competição, mas em situação das pessoas serem humanas, de uma família tá mal,
etc...todo mundo tenta ajudar de alguma forma, ou com palavras, nesta situação o
pessoal é muito humano... na hora do incêndio, quando começou a incendiar as
casas, que tava pegando fogo, as pessoas podiam salvar alguma coisa que era seu,
mas a preocupação não era o material, a preocupação, mesmo nestes arranca rabo
que dá, pega rancho, pega aquilo, mas na hora do incêndio, a preocupação deles, do
povo, era acordar quem tava dormindo porque a vida é importante, a competição é
importante, mas a vida também é importante, a vida é muito mais importante... há
um sentimento pela vida... aqui é uma grande família e todo mundo é irmão e aqui
eu sou o pai de todos...(Augusto, trabalhador da Unidade).

José, morador da mesma comunidade, destaca os pontos positivos e negativos de

viver na comunidade:

... tem as partes boas e as partes ruins: antes de março [em que aconteceu o
incêndio na Vila], era cada um por si, a gente puxava o carrinho da gente, reciclava
no próprio pátio, vendia e cada um por si, era muito individualismo. Era falta de
estrutura, não tinha esgoto, água, luz, o Olívio deu a luz para nós, era um barral...
tinha muito egoísmo, passava um pelo outro, dizia só bom dia e boa tarde, mas
algumas coisas as pessoas não deixavam os outros na mão... e apesar disso a gente
tinha muita amizade, nunca sobre a comunidade, mas outro tipo de coisa, tipo,
fizemos uma Associação, tinha baile à noite, a gente não saía muito por causa da
segurança... depois conseguimos água, luz, se reuniu a própria comunidade para
trazer as melhorias pra cá... eu me dou com todo mundo, em comunidade tem uns
que você se dá mais, outros se dá menos, a gente se empresta dinheiro, pra fazer
churrasquinho junto, conversamos muito depois do incêndio, nos unimos mais, a
gente não pode prever o amanhã, mas pelo menos tem que tentar ser mais realista
pra se sentir um pouco mais fortificado (José, trabalhador da Unidade).

Roseli reconhece que a comunidade em que vive é solidária, mas relata que há

interesses em ajudar o outro, e também o fato de alguns vizinhos cobrarem das pessoas

67
De acordo com os moradores desta comunidade, cerca de 70% das famílias perderam tudo o que tinham,
pois o incêndio começou por volta de uma da manhã e a maioria dos moradores dormia.

222
como se todos tivessem a obrigação de ajudar, e isso não garante a manutenção de redes de

solidariedade: aqui na comunidade se relacionam bem, se tiver que ajudar o outro se

reúnem, mas naquele jeito meio balançado, hoje eu ajudo o fulano, amanhã o fulano me

ajuda, e aí o fulano já me olha de um jeito ruim, às vezes a gente fica meio arisca, de tanto

ajudar às vezes a gente leva tanto pataço que a gente fica meio arisca de ajudar as

pessoas... (Roseli, trabalhadora da Unidade).

Helio acentua que as redes de solidariedade da sua comunidade, se devem pela

característica da sua formação, ou seja, famílias oriundas do interior do Estado, que não se

contaminaram com o individualismo da cidade grande:

Olha, eu pelo menos tenho relação com muitas pessoas mas realmente com pessoas
que vieram de fora porque são pessoas mais simples, mais mansa, não tem aquela
coisa de querer brigar, querer matar, querer complicar o vizinho e tal este tipo de
gente. Eu me dô com todo mundo, mas é esta gente de fora, mais calma. (Helio,
trabalhador da Unidade).

Augusto indica, a partir de seu relato que, o olhar do outro sobre a comunidade na

qual vive, é importante para a representação que os moradores criam de sua comunidade:

eu descobri na doutora Edite que ela tinha amor por nós, amor a uma comunidade, como

se fosse uma família dela de menor poder aquisitivo, e eu aprendi a amar esta

comunidade... A gente briga e coisa, mas eu considero a Vila dos Papeleiros uma grande

família (Augusto, trabalhador da Unidade).

Esse sentimento de ser percebido pelo outro nos remete a questão identitária que é

defendida por Melucci (2004) e com a qual partilhamos. A identidade, para o autor, define

nossa capacidade de falar e agir, diferenciando-se dos outros e permanecendo nós mesmos.

Contudo, a auto-identificação deve gozar de um reconhecimento intersubjetivo para poder

alicerçar nossa identidade. Assim, nossa identidade pessoal encontra apoio no grupo ao

qual pertencemos, dentro de um sistema de relações.

223
O olhar da doutora Edite sobre a comunidade faz com que Augusto ressignifique

suas percepções sobre a sua comunidade e sobre si mesmo. Percebem-se valores nesta

comunidade antes impensáveis. E, da mesma forma que o indivíduo valoriza sua

comunidade, se auto-valoriza como pertencente dessa comunidade. Esse é um dos

caminhos para a emancipação.

Nilda é um exemplo disso. Ela se descobriu uma mulher forte, batalhadora, capaz

de viver livre da opressão do irmão ou do marido. Faz questão de contar com foi seu

aprendizado em relação à vida política, como se descobriu uma liderança na comunidade

na qual vive:

Em 1977, foi quando eu comecei a trabalhar com a comunidade, aí teve uma


reunião pra montar uma Associação de Moradores, quem chamou a reunião foi o
finado Afonso e o finado Nelso, eles iam tirar a Ilha e iam montar um parque, que já
tinha 350 moradores que não era da Ilha e nós fizemos a Associação e fomos
discutir os problemas da Ilha, o finado Nelso denunciou no jornal que o governo
matava à mingua os moradores da Ilha, então que botasse uma pedra no pescoço e
jogasse no rio. Então se criou a Associação dos Amigos e Moradores da Ilha Grande
dos Marinheiros, por que daí ele podia opinar, porque a gente não sabia nada
mesmo. Naquela época eu era como a criança no meio dos adultos, eu não sabia o
que era prefeito, vereador, governador, presidente, eu era um zero à esquerda, eu
era ruim mesmo... no intermédio do tempo, o PT apareceu e aí a gente teve aula,
fomos pra escola, fomos aprender, por que naquela época eu não sabia nem o que
era a letra a, e no aprender eu fui me despertando eu fui saber o que que era, mas
mesmo assim eu não sabia o que que a Prefeitura fazia dentro da Ilha... quando veio
o OP, me pediram pra ir pra uma reunião, aí comecei a entrar no debate e foi
quando aprendi a participar... aí eu comecei a entender a política... até levei estas
discussões pra dentro da Câmara de Vereadores.... sou a ilheira e aquela que luta
pelo moradores da Ilha, e que cheguei aqui sem gostar da Ilha... (Nilda, moradora).

Serlene, moradora de outra comunidade, chama a atenção para o processo de

emancipação na comunidade. Pensamos que nem sempre ela é possível, por que não

depende somente de condições externas, mas também da predisposição dos indivíduos de

viverem mais autonomamente em relação às instituições. Ela destaca o quanto a relação de

dependência que se estabelece com o poder púbico, pode ser facilmente transferida para as

entidades no bairro. Serlene relata que na comunidade em que vive, a relação é boa, às

224
vezes, a comunidade aposta muito na Associação, coisas que podiam mudar sozinhos, eles

vem procurar a Associação pra ter certeza, pra pedir ajuda (Serlene, moradora).

A comunidade também pode ser foco de doações e assistencialismo: viver na

comunidade é bom, porque aqui somos uma família, somos uma irmandade. Aqui na vila

temos o apoio de várias pessoas e instituições, temos dignidade, apesar daqueles que são

contra nós, tem muita gente que é a favor da gente, que gosta da gente, porque sabe que a

gente sabe conviver, não é só a Igreja São Geraldo e a Santa Rita, tem muita gente que

trabalha com a gente e nos ajuda... (Paulo, trabalhador da Unidade).

Paulo continua falando sobre as vantagens de morar na vila no sentido dos

benefícios que tem em termos de atendimento ou em termos de doações que recebem:

... é uma vila que tem muito apoio de várias pessoas e instituições, eu preciso de um
médico, eu vou na Santa Casa, eu consulto, vou no Conceição, eu consigo,
Presidente Vargas, Pronto Socorro, a gente é atendido, as pessoas de outras vilas
não conseguem ser atendidos, e nós aqui, através do Santa Marta ou de pessoas que
trabalham junto com a comunidade conseguimos (Paulo, trabalhador da Unidade).

O que Paulo não menciona é que o atendimento que eles recebem é por causa das

políticas públicas que a cidade tem, principalmente com as populações mais carentes. Eles

não são atendidos por que moram na Vila dos Papeleiros, eles são atendidos por que tem

direitos à saúde, a um atendimento digno, como qualquer outro cidadão que não more em

vilas.

Mas, como já inferimos nesse trabalho, as vivências cotidianas estabelecem o

sistema de representação sobre as coisas, logo, Paulo acaba reforçando a idéia do benefício

de viver na vila por ter acesso rápido à saúde, pois é esse o significado que atribui a essa

experiência. Ele desloca o significado que poderia ser construído acerca das políticas

públicas de atendimento para as políticas de assistencialismo.

225
Viver na comunidade também é viver uma exposição ao risco e aos perigos de

todos os tipos: risco de doenças, violência social e tragédias, como alagamentos e

incêndios:

A comunidade não oferece atividades por causa da tragédia, antes tinha mas era
muito pouco, mas mais pra criançada, e depois do incêndio, a coisa tá danada, é só
mesmo ir pro bar e deu. (José, trabalhador da Unidade).

Depois do incêndio alguns foram pra alojamentos emprestado e não deu muito certo
e agora a Prefeitura deu uma bolsa-aluguel, que se recebe pela FASC, R$ 150,00
pra solteiro e R$ 200,00 pra casal. Como as casa de passagem ainda não tão
prontas, a gente tá na indecisão... porque a bolsa-aluguel termina agora, nós
corremo o risco de ficar sem casa, a FASC disse que já fez tudo que tinha que fazer
nestes cinco meses, até concordo, mas não resolvem nada, manda ir pro DEMHAB,
o DEMHAB disse que as casas não tão pronta ainda... e vai ficar pronto só pra
dezembro. A gente tá num mundo que não é mundo, que o dinheiro vai acabar, vai.
Vai pras casas de passagem os que estão de aluguel... a FASC e o DEMHAB não
fazem reunião com a gente. Ficou aquele medo, se vocês saírem daqui totalmente
vocês perdem o lugar (Pedro, morador).

Na comunidade onde vivo tem situações de risco, de violência, de perigo, mas estou
acostumada, antes não gostava de viver na Vila Dique, agora eu gosto porque somos
nós que fazemos o lugar que a gente vive, depende da educação que a gente tem
(Vitória, moradora).

...é só não se meter em guerra, que é vida boa, mas se se meter, já se rala... me
acostumei no bairro, gosto de lá, conheço tudo lá, tem uns morro pra caminhar, tem
lugar pra ir...(Norton, morador).

Viver aqui é bom, tenho emprego, não me incomodo, não tenho queixa dos meus
vizinhos, tratam bem tudo, eu saio de casa pro serviço, do serviço pra casa, tá bom
onde eu vivo, tá melhorando tudo, negócio de asfalto... Tem crime e assalto, tem uns
barra pesada aí que não dá pra se envolver muito. Mas é bom por que é perto do
serviço (Robson, morador).

...é normal aqui, não tenho que me queixar da Restinga, não é o bairro que faz, são
as pessoas né, e tem posto e vai ter hospital, escola também tem, supermercado,
farmácia, que agora evoluiu bastante, antes não tinha nada disso. O problema é o
roubo também, antigamente tinha muita morte e agora não tem tanto, não é tanto
como antigamente mas tem muito pontos de tráfico de drogas (Estela, moradora).

Na comunidade é a lei do silêncio. A gente tem que saber conviver com esse pessoal.
(Bárbara, trabalhadora da Unidade).

Negativo é que é uma área de risco né! Porque tem valão dos dois lados. Então
aquilo ali é uma contaminação, moscas, mosquito, água poluída, mau cheiro no

226
verão .A Vila Dique precisava ter uma melhor organização... mudar a Vila dali e
colocar num bão lugar que tivesse uma diretoria que trabalhasse em prol da Vila
porque ali precisa Posto de Saúde, área de lazer, precisa muita coisa que não tem, e
que não tem como colocar também, né porque é a própria Prefeitura não tá de
acordo de ajudar porque é área verde... (Helio, trabalhador da Unidade).

Quanto à formação de algumas comunidades, a história é muito parecida: são

famílias que vem do interior do Estado em busca de uma vida melhor, de emprego, etc.

Não tem formação para trabalhar em outra coisa, pois no interior eram do campo, e acabam

caindo na marginalidade e descobrem na reciclagem, uma alternativa de trabalho e

sobrevivência. De todos os entrevistados, poucos nasceram em Porto Alegre, os demais são

do interior do Estado e, destes, praticamente todos vieram em busca de trabalho na capital

e aqui se instalaram nas vilas. Os relatos de Paulo e Bárbara ilustram este contexto:

A vila tem uns 40 e tantos anos... as pessoas vêm do interior, 70% vem do interior
com esperança de vida melhor na cidade grande... lá eles tavam acostumados a
capinar e plantar, chegaram aqui, só tinha asfalto, vai capinar? Não se deram bem,
viraram papeleiro. Fora isso os que nascem para Porto Alegre, já são filho do
pessoal do interior...não tem condições monetárias, cai aqui, fica sem dinheiro...
nunca consegue dinheiro para voltar...os governantes deveriam dar uma assistência
melhor pro pessoal do campo, tudo que tem na tua mesa, vem do campo, eles deixam
o pessoal do campo vir para cá, falta arroz e feijão na tua mesa... (Paulo,
trabalhador da Unidade).

Os moradores vêm de todo Estado... vem do interior e acham que vão encontrar vida
melhor na capital, acham que a capital vai oferecer condição melhor de trabalho...
chega aqui, dá com o nariz na porta e tu chega aqui e o que que sobra? Chegar do
interior e ficar escravo dos outros ... (Bárbara, trabalhadora da Unidade).

Retomando o que afirmamos no início deste capítulo, defendemos a idéia de que é

na comunidade que as redes de solidariedade se fortalecem e, a partir das redes de

solidariedade, o indivíduo amplia sua cidadania, e viabiliza a participação política. No

momento em que ele participa das reuniões do OP e vê sua comunidade melhorando por

conta desta participação, a identidade coletiva também lhe permite uma sensação de

pertencimento a esse grupo, a essa comunidade.

227
Nestas relações também há o desdobramento de aspectos vivenciados pelos

moradores e trabalhadores no seu cotidiano, que tem a ver com o preconceito, o estigma, a

questão da exposição aos riscos e perigos, mas também do fortalecimento dos laços de

convivência e como isso encaminha para as relações comunitárias. Viver na cidade ou na

comunidade, traduz e/ou confirma o exercício da cidadania. Quando o indivíduo fala das

atividades que a cidade e a comunidade oferece, está traduzindo o seu conhecimento sobre

as coisas que a cidade oferece, mas isso pode estar “distante” dele e ele pode não

aproveitar. Mas quando esse indivíduo fala do que é viver nesta cidade, ele fala das suas

vivências, dos seus sentimentos em relação à cidade e à comunidade. E as suas percepções

têm a ver com a sua história de vida nesta cidade e a sua forma de relação com a mesma.

4. O cotidiano e as perspectivas de vida em termos de realizações pessoais

Nos interessava saber como a cidade que se diz inclusiva, cidadã e participativa,

viabiliza oportunidades de uma vida melhor para seus cidadãos. Como, os cidadãos, a

partir do que vivem, cotidianamente, na cidade, conseguem dimensionar melhorias para

suas vidas e, como, de uma forma implícita, as políticas públicas são vivenciadas e

percebidas pela população.

Os nossos entrevistados querem “melhorar de vida”, como exemplifica Magda

(moradora): espero vencer na vida, adquirir tudo que eu quero; obviamente, para cada um,

esta expressão tem um significado diferente. Suas representações sobre o que seja

“melhorar de vida” têm a ver com as suas vivências, com a sua cultura, com a sua

educação.

Para muitos de nossos entrevistados, as perspectivas de futuro, em termos de

realizações pessoais, têm a ver com a possibilidade de oferecer uma vida melhor para os

228
filhos: ter um lar digno, dar um estudo digno a meus filhos, dar o que não consegui ter na

minha infância e juventude, ter dignidade e moradia (Paulo, trabalhador da Unidade).

...penso mais nos meus filhos, quero dar a eles o que eu não tive (Fernando, trabalhador

da Unidade).

...a gente tem que pensar no futuro dos filhos, a minha esperança é os filhos. Futuramente

espero que melhore mais aqui, em termos de política, que ganhe o melhor e quanto a nós,

que continue esse trabalho que é daqui que nós vivemos (Bárbara, trabalhadora da

Unidade).

...espero melhoria cada vez mais tanto pra mim como pros meus filhos...(Estela,

moradora).

O que observamos e inferimos é que alguns entrevistados vivem uma postura de

realmente “esperar” que algo melhor aconteça, enquanto outros querem ser agentes de sua

história e realmente procuram trabalhar e viver de forma a modificar sua vida, fazendo

com que seu futuro seja diferente a partir do presente. Outros, esperam que o futuro seja

diferente esperando que o futuro chegue. Mas quando este futuro, se torna presente, e há a

constatação de que as coisas estão iguais, e então se projeta novamente o futuro. Sem ter

uma ação hoje, dificilmente, o futuro atenderá as perspectivas das pessoas. Colocar no

outro, ou apenas nele, a responsabilidade de sua vida, ajuda muito pouco que essa vida

melhore.

As falas de Silvio e Robson nos levam a pensar como o cotidiano “petrifica” o

tempo, o futuro é colocado nos outros e quase sempre esses outros são os filhos. Temos a

sensação de que já se viveu tudo e agora a vida é o presente. O que se faz é pelos filhos e

não por si mesmo. Silvio refere que: ...o meu futuro, eu penso pros meus filhos, eu já não

tenho objetivos por que já tenho 36 anos, não estudei por que não tinha passagem pra ir

pro colégio, mas quero deixar meus filhos bem (Silvio, trabalhador da Unidade).

229
Robson (morador) comenta que deseja melhorar um pouco, pois com esta idade que

eu tô, não dá pra exigir muita coisa mesmo.

O cotidiano anula ou inviabiliza a realização de alguns sonhos: trabalhar por

prazer seria com música ou eletro-técnica (Silvio, trabalhador da Unidade). O trabalho

não pode ser prazeroso. Trabalho é obrigação, tem seu código, que não é o mesmo do

lazer.

Augusto é um exemplo de quem pensa nos outros, pensa nos seus filhos, nas

crianças da comunidade em que vive, mas não esquece de si; não quer que seus filhos

trabalhem na Reciclagem, também quer que eles tenham uma atividade melhor, no entanto,

deseja continuar investindo na atividade da reciclagem e torná-la uma “grande empresa”:

Desde que eu comecei a lutar pela vida, já tive altos e baixos, já vendi algodão doce,
depois churros, eu só penso em vencer, já caí muito mas sempre pensei em vencer...
mas com isso agora, eu tô enxergando uma visão da vida melhor pra mim e pra
todos... isso aqui é uma fonte de renda, aqui vai ser uma grande empresa, porque do
jeito que tá caminhando, eu vejo isso aqui um mundo melhor pra todo mundo. Pra
futuro, vejo a gurizada sentadinha no computador né, porque hoje o que vai dar
dinheiro é informática, eu tenho orgulho de ser papeleiro hoje, mas não tenho
orgulho que os meus filhos sejam papeleiros, me orgulho porque busquei a minha
cidadania sendo papeleiro...(Augusto, trabalhador da Unidade).

O trabalho na Reciclagem traz, para os trabalhadores, esperança de uma vida

melhor, mas também o desejo que os filhos trabalhem em outra atividade que não com o

lixo. A reciclagem é importante por todo o movimento que representa na busca de

melhorias para as comunidades ou para as Unidades, pela organização que permitiu aos

grupos participarem das reuniões do OP e, portanto, aprenderem a exercer a cidadania, mas

os entrevistados acreditam que vida melhor é trabalhar em um emprego mais decente, em

um lugar limpo, com carteira assinada, com todos os direitos trabalhistas garantidos.

José, no entanto, é realista em relação a sua vida, a partir do que vive na

comunidade:

230
... eu não tenho perspectiva nenhuma, porque com este troca-troca, com esta
desesperança, todo mundo criticando, com este preconceito tremendo sobre o
trabalho da gente de reciclador, então a gente se sente só. Meu sonho é ter minha
casa e ter pelo menos a decência de dormir bem, chegar no chuveiro e tomar meu
banho, chegar na mesa e comer nem que seja meu feijão com arroz. Este é meu
sonho, ter a minha casa, que pode ser interrompido de uma hora pra outra ou até
mesmo se prolongar, por que quem tá no poder não se preocupa com quem tá lá
embaixo. Eu não tenho perspectiva, porque hoje eu saio daqui e vou pra uma casa
de passagem, sabe lá quanto tempo vai demorar, então é tanta coisa que a gente tem
para pensar que a gente nem pensou ainda na vida da gente (José, trabalhador da
Unidade).

As pessoas que trabalham nas Unidades de Reciclagem têm uma perspectiva mais

otimista do que os papeleiros, que reciclam o lixo em casa. Pois esses últimos têm

condições de vida precárias e pouco usufruem direitos. São trabalhadores que reciclam lixo

no pátio da sua casa, para chegarmos dentro da casa, é preciso passar por uma montanha de

papel, a convivência com ratos e baratas é permanente. A vida, para esses indivíduos, se

apresenta de forma cruel e as perspectivas de melhorar ou pelo menos, alcançar um

patamar mínimo de dignidade, é grande. É o caso de muitos entrevistados, que são

representados pelas falas de Vitória, Patrícia, Norton:

Queria melhorar de vida, ter serviço bom e melhorar (Vitória, moradora).

... eu vou me candidatar pra vereadora. Tem que ter um envolvimento, ter feito
alguma coisa pela comunidade. Tu tem que sonhar grande pra poder ir senão tu te
desgosta, e ficar olhando o mesmo... olha a minha visão, é tudo papel, eu quero sair
disso...e dizer que tu vai sair trabalhando é mentira, se tu não tiver estudo, tu vai dar
toda a tua saúde com sol e chuva e não sai disso. Eu tenho um sonho grande, quando
eu morava em Alvorada eu não tinha alternativa, eu era aquilo ali e dali não ia
passar... aí quando eu vim para cá eu sempre sonhei de estudar. Eu suportava tudo
da minha mãe, ter passado fome e tal. Mas a maior revolta que eu tinha com ela foi
ela ter me tirado do colégio, saí pra trabalhar pra ajudar e tal, saí do colégio com
12, tava na 5ª série. Aí eu vim pra cá e entrei nesta bolsa do CECOFLOR: aí numa
reunião, as psicólogas perguntaram pra nós: o que vocês mais queriam hoje? Aí
umas gurias botaram casa, carro, dinheiro, e eu botei voltar a estudar porque se eu
voltasse a estudar, a minha vida ia mudar, sempre acreditei nisso... tanta coisa para
botar, as gurias pedindo coisas, elas disseram ah! E se fossem dar mesmo?! Eu disse
pra elas, gurias, ninguém dá nada pra ninguém, no mínimo o que podem fazer é
ajudar, não é assim, agora se eu estudar, eu vou me comparar, eu vou tá no mesmo
nível delas, e o que elas fizeram? Elas tão aí porque elas estudaram, quem sabe eu
não chego aí onde elas tão, e meu sonho é ser advogada (Patrícia, moradora).

231
Quero trabalhar, porque tenho um filho pra sustentar. Gosto mais ou menos de
trabalhar na Reciclagem. Queria trabalhar na Cootravipa (Cooperativa de Limpeza
Urbana), já fui várias vezes e não consegui pegar, ta ruim deles dar vagas...
(Norton, morador).

Para Tatiana, o exercício da cidadania está relacionado com a possibilidade do

cidadão ter um emprego, um salário e poder realizar coisas que garantam a sua dignidade,

que o coloca no patamar na inclusão de serviços e de acesso a lazer:

Exercer a cidadania é proporcionar a dignidade, e ter dignidade é poder viver, é ter


salário, que o salário seja bom, que quando tu pára, tu tá cansado, por que a mente
vazia é a oficina do diabo... enquanto tu tá envolvida com o trabalho, tu tá bem... o
grupo aqui é integrado, eles sabem, controlam a produção, eles mesmos fazem o
salário deles... trabalho também é lazer, pode ser um prazer, o trabalho preenche
um monte a vida da gente, o ser humano que não tem um comprometimento, tem uma
vida sozinha, o trabalho te dá objetivo, como é bom a gente levantar de manhã e ter
um lugar certo para ir. E quem quer ganhar o seu dinheiro honesto consegue, existe
uma demanda imensa na área de faxina, por exemplo, o negócio é ir à luta, e aqui
eles sabem que o trabalho é participativo de todos, neste tipo de trabalho não pode
ter ninguém beneficiado em separado, o beneficio é de todos...(Tatiana, técnica).

5. O cotidiano e as perspectivas de vida em termos de trabalho

5.1- Para os trabalhadores das Unidades

Em termos de trabalho, os recicladores reconhecem tudo o que já conquistaram em

termos de cidadania, a partir da organização do trabalho de reciclagem, no entanto, muitos

gostariam de ter um emprego melhor, mais limpo, com carteira assinada, como o que

desejam para seus filhos.

As opiniões variam: meu sonho é ter outro trabalho melhor que a reciclagem

(Paulo, trabalhador da Unidade)

...não considero o trabalho com o lixo como um emprego, pois não tenho carteira
assinada, nem garantias, nem direitos... mas se desse pra ficar na reciclagem era bom,
porque é um serviço que a gente conhece (Cléia, trabalhadora da Unidade).

232
Lauro reforça a idéia de Cléia de que é possível melhorar as condições de trabalho

nas Unidades de Reciclagem. Não precisa mudar de trabalho, para mudar de vida. A

história de Lauro e seus colegas é uma história de rua, eles sempre trabalharam com papel

e é o que sabem fazer e dizem gostar do que fazem: como eles sabem muito bem dessa

área, então entramos na área que mais eles sabiam fazer, é uma forma de geração de

renda eu não me vejo fora do lixão...(Lauro, trabalhador da Unidade).

Eva já trabalhou em outras atividades, mas afirma preferir o trabalho na reciclagem:

eu trabalho desde os 12 anos na reciclagem, o que eu gosto é isso aqui, é o que eu adoro

fazer, é reciclar, já trabalhei de doméstica, mas prefiro aqui... (Eva, trabalhadora da

Unidade).

Hélio gosta de trabalhar na reciclagem até mesmo por que acredita que com a idade

que está, não conseguiria emprego melhor:

pra mim tá bom aqui na reciclagem... eu sou pescador...profissional. No tempo que


eu vou andar num armazém procurar bebida por aí, eu vou pescar... aí fico
analisando, pensando... o que tinha que vir já veio, eu penso não em mim, mas eu
penso nos outros. Eu não tô trabalhando aqui, pensando no meu futuro. Eu tô
trabalhando aqui pensando no futuro dos outros que estão trabalhando... (Helio,
trabalhador da Unidade).

Estela (moradora), no dia da entrevista, havia sido escolhida para trabalhar na

creche comunitária, sua resposta foi bem direcionada, e deixa implícito que o trabalho na

reciclagem não é um bom futuro: meu futuro já tá começando na creche e eu espero que

seja cada vez melhor... porque lá eu vou ser uma educadora né.

Para José, o preconceito é forte demais, e a perspectiva de futuro fica distorcida por

causa disso: ...é outra coisa... tudo vem nesta fase que eu te falei... hoje estamos aqui como

amanhã podemos estar embaixo da ponte...(José, trabalhador da Unidade).

233
5.2- Para os Moradores

A maioria dos moradores que trabalham como papeleiros reconhecem que não tem

um emprego, que estão expostos a todo tipo de risco, de falta de direitos, enfim, dizem que

“isso não é vida”. Suas perspectivas de trabalho é justamente ter um emprego e ser

respeitado.

...ter um emprego, pois trabalho com papel desde que vivo na Vila Dique (Vitória,

moradora).

...quero ter um curso técnico, por que o respeito é outro (Patrícia, moradora).

A partir do que nos dizem nossos entrevistados, acreditamos que as perspectivas de

futuro em termos pessoais e profissionais têm a ver com a participação política, na medida

em que retrata a coerência da viabilidade de políticas públicas que permitem o acesso à

cidadania, ou seja, se o indivíduo participa, ele incrementa as suas expectativas de vida. As

suas perspectivas de vida e de trabalho tem a ver com a questão da moradia, do trabalho,

que sempre estiveram presentes nas políticas de reassentamento, ora, para se exigir a

participação e o desenvolvimento de uma consciência política, é preciso dar o mínimo para

os cidadãos se sentirem pertencentes à vida da cidade. No momento que isso acontece, se

visualiza melhor que a participação dá retorno para a vida das pessoas, e que vale a pena

participar para continuar melhorando. Isso fortalece a vida que já se tem – e o que vai

conquistando – e permite às pessoas sonharem e realizarem seus sonhos.

6- A participação política fortalecendo as relações comunitárias

Como referimos no início desse capítulo, acreditamos que a participação política se

incrementa nas reuniões do OP e nas relações comunitárias, assim como fortalece essas

relações e permite que as pessoas constituam redes de cooperação, se organizem e incidam

sobre as políticas públicas da cidade.

234
As políticas públicas propostas pela Administração Municipal, seja por iniciativa da

própria Administração, seja por pressão da comunidade, acentua o sentimento de cidadania

e o acesso a ela. Para que as políticas sejam efetivadas, no entanto, é necessário que haja

receptividade por parte da população. E acreditamos que essa receptividade foi sendo

construída pela participação.

É possível referir que as perspectivas de trabalho e de realizações pessoais também

são propiciadas pelo que a cidade oferece para seus cidadãos, à medida que as pessoas

percebem que as expectativas criadas sobre as coisas estão pautadas nas condições

objetivas que elas têm.

Se os indivíduos vivem em uma cidade com políticas sociais e públicas voltadas

para melhorar as suas condições de vida, certamente, desejarão uma vida melhor e farão

algo para realizar isso. Ver – e vivenciar – a cidade melhorando, solidifica mais as

perspectivas de vida. Ter uma Unidade de Reciclagem ou uma política de coleta de lixo,

traz a experiência real do trabalho e com isso a perspectiva de realizar coisas que sem

dinheiro e sem trabalho, são impossíveis. As políticas públicas ampliam o sentimento de

cidadania e, ao mesmo tempo, incentivam o indivíduo a continuar participando.

Mas o exercício da cidadania não ocorre de uma forma linear, como se os

constantes aprendizados se sobrepusessem uns aos outros até se chegar a um nível

desejado. Nos parece, muitas vezes, que é essa a atitude que se espera da população.

Doralina, no entanto, alerta para o fato de que o exercício da cidadania pode estar em ações

que nem sempre são consonantes às expectativas do poder público. A entrevistada relata

que:

... exercer a cidadania é estar se dando conta disso e se organizando dentro deste
espaço, colocando o que você pensa de uma forma organizada, às vezes, a
organização deles não é aquela que a gente espera né, na Vila dos Papeleiros, por
exemplo, a organização deles era boicotar todo o nosso trabalho, é uma forma de

235
organização, eles estavam muito bem organizados para isso, eles estavam
entendendo e buscando o direito deles, o que eles entediam por direito. Na Ilha, eles
buscam uma organização dentro do espaço que eles estão e batalham por isso...
exercer a cidadania é dizer o que pensa, se expressar, buscar espaço de expressão
pros outros também, isso é organização... (Doralina, técnica).

O relato de Doralina em relação à Vila dos Papeleiros também remete a experiência

da Padre Cacique, ou seja, os trabalhadores se organizam, reivindicam coisas para a sua

comunidade, criticam a Administração Municipal, limitam as parcerias, principalmente no

que diz respeito às políticas de assistência, no entanto, não podemos inferir que não são

organizados, que não são articulados e que não participam politicamente.

Ratificamos que o nível de participação política não está relacionado, de acordo

com o que mostram nossos entrevistados, apenas ao vínculo a entidades representativas na

comunidade. Está relacionada às vivências cotidianas, às relações sociais e interpessoais,

através das quais, os indivíduos criam suas redes de significados acerca do mundo. Usamos

apenas, porque percebemos que, de uma certa forma, há diferença nas perspectivas de

quem trabalha nas Unidades e de quem não trabalha, pois, as perspectivas, de uma maneira

geral, tem a ver com as políticas públicas da cidade. É possível inferir que os papeleiros

carecem mais da vivência de direitos. Vivem em um mundo excludente, competitivo,

preconceituoso; isso ficou claro nas entrevistas, até porque quem trabalha nas Unidades de

Reciclagem, faz parte da Associação de Recicladores, e tem outra forma de organização.

Além de terem seus direitos garantidos, se sentem incluídos.

Para Doralina, os porto-alegrenses estão aprendendo a se expressarem e serem

cidadãos mesmo, de colocarem e buscarem o que querem:

...tá num início de viver a democracia, tem muita coisa pra melhorar ainda, mas só
o fato de saber que existem caminhos, a gente não faz por eles, e eles sabem que é
eles que tem que caminhar mesmo aprendendo ainda, quebrando a cabeça, Porto
Alegre está aprendendo a vivenciar a democracia, nas eleições agora quem ganhou
foi a democracia, o morador de Porto Alegre já sabe por onde tem que andar pra
dizer o que quer, vai ser muito mais difícil um governo que imponha seu ponto de

236
vista sem escutar a comunidade de Porto Alegre, aqui o povo diz o que pensa
(Doralina, técnica).

Reafirmamos a importância do profissional que trabalha nas comunidades.

Defendemos a idéia de que não basta haver políticas públicas voltadas para as

comunidades, é preciso que as pessoas acreditem que estas políticas são viáveis e, neste

caso, os profissionais que trabalham nas comunidades são importantes personagens para

garantir essas políticas.

O trabalho que Tatiana desenvolve na comunidade em que trabalha reflete isso, ela

trabalha com a comunidade desenvolvendo a idéia de cidadania, a partir do que ela acredita

que seja cidadão. Para ela, cidadão é o que pode entrar em qualquer lugar e poder se

bancar, a dignidade é conseqüência, é o cara que tem consciência, sabe em quem vai votar

e por que vai votar, é o que se mantém, que não depende de ninguém, no sentido de

ganhar coisas, é o que trabalha e se banca, se determina, é buscar, é ter esse tipo de

autonomia (Tatiana, técnica).

Doralina, profissional de outra comunidade, percebe a responsabilidade que ela tem

em relação à comunidade na qual trabalha, no sentido de trabalhar de uma forma

emancipatória, para que os moradores sejam de fato e de direito, cidadãos. Para Doralina,

ser cidadão é a forma de se colocar dentro do lugar que você está, como você se

reconhece, assim como você conhece também o lugar que você está e como você se

movimenta.

Para Mariana, ser cidadão é estar incluído, é ser conhecedor dos seus direitos,

limites e conhecer a forma como o Estado se organiza e como organiza as políticas

públicas, e a partir desse conhecimento, poder incidir sobre ele, apresentar a sua

reivindicação sobre as coisas que precisa. Mariana destaca que Porto Alegre é uma cidade

que permite a inclusão, que se preocupa com o meio ambiente, que permite o exercício da

237
cidadania, e que isso aumenta o sentimento de pertencimento, pois não se perde as relações

de vizinhança: ... e a cidade trabalhou neste sentido, de dar o empoderamento pras

comunidades, por que isso também vai incidir nas questões de violência, a forma como nós

trabalhávamos era uma forma mais inclusiva, onde esse enfrentamento se dava muito

menos pela repressão e muito mais pela valorização dos aspectos positivos.

Com isso, queremos inferir que Porto Alegre é uma cidade que oferece

oportunidades de convivência dos mesmos espaços independente da condição social dos

seus cidadãos. A cultura, em Porto Alegre, se publicizou muito mais. E isso ajudou a

aumentar o nível cultural das pessoas. Tatiana ilustra essa idéia quando relata que uma vez

por mês, os moradores e trabalhadores de uma das Unidades de Reciclagem e ela, vão há

uma churrascaria conhecida da cidade, e eles são tratados como cidadãos e não como ex-

moradores de rua. Há ainda muito que fazer, aprender, aprimorar, mas sem dúvida, essa

relação trouxe ao cidadão porto-alegrense um sentimento de cidadania muito maior. Até

por que muitos acreditam que é através destas políticas públicas voltadas à cultura e ao

lazer que encontramos um canal para aumentar a solidariedade, a coletividade, os espaços

de convivência e, conseqüentemente, uma forma de minimizar relações de violência.

Falando do que é viver em Porto Alegre, Cristiano refere que é muito bom viver em

Porto Alegre e que se a cidade é hoje o que é, ou seja, uma cidade voltada para a cultura,

lazer, uma cidade politizada, a responsabilidade é da população porto-alegrense: isso não

existe sem uma população que sustente e valorize isso, tem uma população que tem um

grau de apego à cultura que é bom, é uma cidade arborizada, Porto Alegre tem uma

população que está a altura desta cidade, que construiu esta cidade (Cristiano, técnico).

Para Lígia, viver em Porto Alegre é:

...saber o que existe a tua disposição, tu exigir do poder público as coisas que tu tens
direito, participar das discussões do que vai ser feito e não vai ser feito, de com

238
quem tu tem que dividir, do que é mais importante fazer naquele momento em função
de que de repente a verba na dá pra tudo, e isso o porto-alegrense aprendeu no OP,
a abrir mão de algumas coisas da sua região em proveito dos outros. O que tem de
negativo na cidade é a violência, que não é uma exclusividade nossa; e de positivo é
que é uma cidade limpa, organizada, bonita, que tem atividade cultural, de lazer, se
tu quer sair tu tem facilidade de transporte pra andar na cidade e pra fora da cidade
(Lígia, técnica).

Sandra também destaca aspectos positivos e negativos de viver em Porto Alegre e

fala da admiração que tem pela cidade:

Porto Alegre é uma cidade organizada, eu acredito na Administração Municipal,


acho que é boa, tem muita coisa boa, é uma cidade que se preocupa com a questão
cultural, com o povo, é uma cidade que tá se modernizando, Porto Alegre é hoje um
canteiro de obras... é uma cidade limpa, bonita, eu trabalho num local que é
excluído destes direitos, direitos que não chegaram aqui, mas temos projetos
habitacionais importantes... de manter o pessoal no seu local... pra continuar
trabalhando, como por exemplo, o projeto entrada da cidade. Não resolve o todo do
problema porque o problema todo não é um problema de Porto Alegre. As pessoas
tão vindo de fora, a vila tá aumentando, mas existe uma política... tem o OP, que é
importante, só acho que hoje a Prefeitura investe pouco em fazer uma coisa que se
fazia muito na criação do OP, que é um trabalho de base. Hoje tu vê a Prefeitura
vindo fazer serviço pros pobrezinhos, vindo entender isso aqui como uma vila, mas
falta trabalhar a organização deles, mas falta alguém da cidade, exatamente pela
questão da inclusão, alguém ligado à Prefeitura, as próprias Assessorias
Comunitárias, por exemplo, pouco vinculadas ao trabalho de base, pra trabalhar e
ensinar, por que a comunidade é desorganizada, então pra poder acessar precisava
alguém... o processo do OP é tão antigo, é como se as pessoas já estivessem
acostumadas, já soubessem, e é um processo viciado... aqui eu acho que falta disso...
(Sandra, técnica).

Diante disso, podemos renomear nosso subtítulo, pois é possível entender que não é

apenas a participação política que fortalece as relações comunitárias, mas essas também

dão consistência e significado à participação política.

7- Participação política e consciência política: algumas análises iniciais

Nos referimos, no início desse capítulo, que nosso objetivo era analisar a

repercussão da participação política para a vida dos moradores e trabalhadores das

Unidades de Reciclagem de Lixo para as políticas públicas.

239
Buscamos entender os processos de envolvimento e participação dos nossos

entrevistados, a partir do modelo de consciência política de Sandoval (2001). O modelo do

autor não trata de níveis que se sobrepõem uns aos outros, mas dimensões que podem ou

não estar presentes nas ações coletivas. O modelo trata de questões que vão dando suporte

para que o indivíduo vá se fortalecendo enquanto um ator político.

Acreditamos que a consciência política que o indivíduo tem, ajuda a definir

políticas públicas que o beneficiam; que de fato, viabilize o exercício da cidadania, que

garanta direitos pela via da emancipação e da autonomia e que não seja direitos dados, pelo

fato de vivermos uma democracia que precisa, teoricamente, garantir minimamente os

direitos civis dos cidadãos.

Nesse sentido, consideramos que a relação entre o indivíduo e a sociedade perfaz o

cenário adequado para a análise sobre a participação política e suas interfaces com a

consciência política, ou seja, consideramos na nossa análise o universo individual e o

universo social no qual está inserido o indivíduo.

A consciência política se forma pelo conjunto de ações coletivas, de representações

e significados que são estabelecidos em relação às vivências que os sujeitos têm, sendo que

uma dessas vivências é a participação popular.

Nossos entrevistados reafirmam nossas impressões. Conhecemos pessoas que, ao

relatarem suas experiências de vida, relataram também o aprendizado da participação, e as

conseqüências disso para suas vidas. Concluímos que essa aprendizagem viabiliza a

percepção de uma identidade individual e social capaz de desencadear, no indivíduo, a

percepção como um ator social e político, que decide e incide sobre a vida pública, um ator

e não um espectador que espera as decisões serem tomadas.

Relembramos o depoimento de Marcos, que afirma que no momento em que o

indivíduo luta, conversa, dá a opinião, ele está atuando sobre seu meio, ele é um ator no

240
processo de transformação, e Marcos aponta que esse aprendizado é graças ao OP: ...isso, o

OP nos ensina. Até um certo ponto, nós que participamos do OP nos sentimos meio

vereadores. Claro que é no limite do que nós podemos discutir. Mas as comunidades

decidem o futuro delas. Não nos contentamos com eleger as elites e deixá-as resolver os

problemas. Trabalhamos juntos, na hora de tomar uma decisão.

A fala de Marcos é significativa para o nosso entendimento sobre consciência

política. Inferimos que esse conjunto de ações aos quais Marcos e outros indivíduos têm a

oportunidade de vivenciar, possibilita a eles, entender o processo político no qual estão

inseridos. Essa aprendizagem ressignifica o entendimento sobre o que é ser cidadão e o que

é exercer a cidadania, de fato e não apenas de direito. Ou seja, o conceito de cidadania

extrapola as ações de obtenção de direitos garantidos constitucionalmente, o que coloca o

indivíduo numa situação individual de cidadão de direitos. O conceito de cidadania se

refere à predisposição de agir coletivamente, de pensar na comunidade, de buscar

melhorias, mas tentando engajar as pessoas nos movimentos, para que o status de

necessitado e carente se dilua. E que as pessoas possam se fortalecer enquanto grupo, nesse

movimento, ou seja, que cada indivíduo perceba de uma maneira diferente, a partir de seu

próprio universo de representações acerca do mundo. Por isso reafirmamos a importância

de considerar a relação entre a questão individual e a social, que compõe o contexto que

interfere nas decisões do indivíduo perante suas escolhas individuais e seu engajamento no

grupo. Analisaremos na seção seguinte, a relação entre cidadania e a participação política,

buscando compreender como essa relação é atravessada pela consciência política.

7.1- A participação política tem a ver com o exercício da cidadania

Apresentamos a idéia de que o exercício da cidadania, em Porto Alegre, foi sendo

construído a partir da participação. Reafirmamos que nosso entendimento acerca da

241
cidadania é que essa não se restringe aos direitos fundamentais dos indivíduos, mas ao

exercício de uma prática que lhes permite ser atores sociais do processo político da sua

cidade, seja exercendo o direito do voto, seja estendendo o seu envolvimento político a

outros processos, que estabeleçam canais de interlocução com o poder público.

Nossos entrevistados reconhecem que um elemento importante para garantir a

cidadania é ter os direitos preservados: ser cidadão é ter direitos, poder falar, se

manifestar, perguntar, decidir sobre as coisas, ter direito de resposta... ou seja,

percebemos que o leque de direitos é amplo e contempla várias dimensões da vida do

indivíduo, que implica não apenas em ter direito de falar, mas que essa fala seja escutada,

que ele seja percebido enquanto ator social. Não basta que ele tenha o direito de se

manifestar, mas a sua ação tem que ser reconhecida e legitimada pelo outro. Por isso

relacionamos a participação política e o exercício da cidadania, pois entendemos que à

medida que o indivíduo participa e sua participação é reconhecida pelo outro - seja esse

outro a Administração Municipal, ou integrantes dos fóruns de participação popular – ele

incrementa a percepção da cidadania e vai se apropriando dessa identidade e isso

retroalimenta a participação.

O discurso dos entrevistados nos remete pensar na descoberta que eles estão

fazendo do que é de fato ter direitos e poder acessá-los e exercê-los. A história recente do

nosso país mostra as nuances das conquistas e cassação de direitos. Muitos dos

entrevistados viveram o período de cassação dos direitos na época da ditadura militar, por

isso talvez o discurso de que cidadania é ter direitos seja tão forte, tão presente nas suas

representações do que seja exercer de fato, a cidadania, relacionada hoje, em Porto Alegre,

com a possibilidade da fala, da reivindicação, sem o cerceamento de liberdades, sem a

repressão, sem a punição por manifestações contrárias à ideologia dominante.

242
A cidadania, na opinião dos entrevistados, remete a valores societais que fazem

parte de um ideal de vida em sociedade, ou seja, o ideal da justiça, honestidade, liberdade e

respeito. Na verdade, demarca também o discurso de uma ideologia dominante e opressora

que faz com que as pessoas se convençam da naturalidade dos eventos sociais e, como as

coisas são assim mesmo, então há que se conformar. Destacamos, portanto, o conformismo

implícito na fala dos entrevistados, quando nos dizem que ser cidadão é ser uma pessoa

honesta, ter liberdade, dignidade, ser afetivo com o outro, ter orgulho de sua casa, de seu

trabalho, de sua moral, de seu sacrifício, é ser uma pessoa de bem, é se dar com todo

mundo, não ser arrogante, ser humilde. Já dissemos, nesse texto, que não somos contrários

à idéia de que não seja esse o ideal de sociedade que desejamos enquanto seres sociais,

mas demarcamos o tom conformista das falas que, de uma certa forma, encobre a

possibilidade de ação coletiva, pois, se os eventos sociais são naturais, são dados dessa

forma, então não há que lutar para transformar a realidade social, basta apenas melhorá-la.

Além disso, a repercussão dessa percepção em períodos eleitorais, pode encobrir as

propostas políticas realmente voltadas para a comunidade, pois, em nome da carência, dos

excluídos, da corrupção... muitos personagens se elegem muito mais pelo seu estereótipo

do que por suas propostas.

Candidatos como “pai dos pobres”, “vassourinha”, “nega diaba”, personagens que

estampam a característica de pessoas honradas, honestas, o modelo da moral familiar, o pai

de família, o marido provedor, o patrão humano e eficaz, ou a mulher sensível e corajosa

sensibilizam a população que buscam a identificação com personagens super-heróis que

respondem a essa necessidade dos indivíduos.

Percebemos que, em relação à percepção da cidadania, não há diferença nos

discursos de moradores e recicladores. Ou seja, tanto um grupo quanto o outro, refere os

mesmos indicativos do que seja ser cidadão e exercer a cidadania. Isso nos leva a inferir

243
que as políticas públicas estão direcionadas para toda a população, pois há a percepção das

necessidades, há a valorização das coisas que eles tem acesso ou que ainda não tem.

Além dessas percepções, nossos entrevistados referem sobre a possibilidade de

vivenciar a emancipação, de estabelecer uma relação de pertencimento ao grupo, de ter

predisposição para a mudança. Identificamos essas três definições como elementos

importantes para a formação da consciência política e, destacamos a dimensão da

Identidade Coletiva, do modelo de consciência política de Sandoval (2001).

De acordo com esse autor, essa dimensão trata de um sentimento de solidariedade,

onde o indivíduo desenvolve laços interpessoais que levam a um sentimento de coesão

social que faz com que o indivíduo se identifique com alguma categoria social. Quando

Bruna, por exemplo, diz que ser cidadão é dar a mão para alguém, ir no OP, brigar pelos

direitos de todos... ou quando Serlene afirma que exercer a cidadania é também passar

pros outros, saber o que ela é, e não ter ela pra si, é ter solidariedade... nos faz pensar

que, quando o indivíduo consegue colocar em prática um tipo de discurso como esse, ele

está mais próximo da possibilidade de coesão social. Está mais próximo da possibilidade

de se identificar com esse grupo, ou pela necessidade de melhorar, de ensinar o outro que é

possível melhorar, ou então pela força que o grupo vai estabelecendo a medida em que luta

junto. Isso reforça as relações interpessoais, pois há interesses em comum, que podem

motivar para a ação coletiva.

Serlene fala de uma experiência real, ou seja, eu descubro o que é ser cidadão, isso

me favorece, logo, para que eu mantenha esse status de cidadania, é preciso que outros

também o tenham, e que outros também reconheçam esse benefício. Por isso não basta eu

saber o que é a cidadania e praticá-la, pois estarei beneficiando a mim mesma.

Esse benefício, do qual fala Serlene, pode perder a força, pois ele tem

características coletivas, por exemplo: o saneamento, a moradia, o calçamento, o transporte

244
público, a iluminação pública, enfim, são benefícios de âmbito coletivo, onde os indivíduos

passam a entender que as ações precisam ser coletivas, isso porque, as pessoas adquirem,

de acordo com Sandoval (2001), um sentimento de pertença ao grupo, valorizando esses

laços, criando confiança e credibilidade na capacidade do grupo, criando expectativas no

que diz respeito às conseqüências em manter ou quebrar a solidariedade grupal e ainda

atribuindo valor à reação de outras pessoas dentro e fora do grupo. Além desse sentimento,

existe a identificação com interesses comuns, ou seja, os indivíduos compartilham os

mesmos interesses dando origem ao sentimento de reivindicações coletivas.

Relacionamos essa dimensão da consciência política com a percepção da cidadania,

pois percebemos a vivência da cidadania como o cenário propício para o indivíduo

estabelecer e fortalecer esses laços de pertencimento ao grupo. Ainda temos depoimentos

de entrevistados em que a percepção sobre a cidadania é restrita ao ato de votar, à vivência

do preconceito, aos “discursos prontos”.

Percebemos, ao longo da pesquisa, que essa dimensão da identidade coletiva não

está presente na vida de todos os entrevistados. Há pessoas que não conseguem definir o

que seja a cidadania, que repetem aquilo que todos dizem, que ainda não se apropriaram

desse discurso, talvez por que não tenham tido vivências que corroborassem o discurso.

Então, sua dimensão de definição ainda é muito individual, e esse indivíduo ainda não

consegue desenvolver o sentimento de pertencimento a um grupo e valorizar laços. Sua

definição de cidadania passa por ações individuais – a ação de votar e a repetição de

discursos prontos, dos quais o indivíduo se apropria e repete. Além disso, há a vivência do

preconceito: percebemos duas possibilidades de ações diante disso:

O indivíduo se vincula, desenvolve uma identidade coletiva, para

desenvolver ações coletivas, para originar sentimentos reivindicatórios e

mudar a imagem negativa atribuída a seu grupo social, ou;

245
O indivíduo não se vincula, como uma forma de negar a identidade social

negativa atribuída a seu grupo social. Por isso, mantém suas ações em uma

dimensão individual: o indivíduo não reivindica, não melhora, mas também

não se expõe, e não necessita se deparar com a realidade social na qual vive

e que lhe demarca o status do qual não quer se apropriar.

A associação que a cidadania se expressava pelo voto também justifica em parte a

opinião de alguns moradores. Criou-se um discurso nacional de que votar é exercer a

cidadania, sim, de fato é, mas não é só isso. Mas, para muitos entrevistados exercer a

cidadania é votar, logo, eu exerço a minha cidadania em época de eleição. Isso traz alguns

agravantes em termos psicossociais:

Primeiro: no momento em que eu acredito que votar é exercer a cidadania,

uma vez cumprida a minha obrigação de votar, acaba meu compromisso, fiz

a minha parte, agora não é mais comigo!

Segundo: se exercer a cidadania é votar, logo, há um descompromisso com

as outras coisas da vida pública, inclusive exercer o papel de fiscalizador

das coisas da vida pública;

Terceiro: isso fomenta as práticas assistencialistas, pois, como muitos dos

nossos entrevistados relataram, as práticas de compra de voto ainda

acontecem nas comunidades mais necessitadas.

Queremos destacar, com isso, que a dimensão da identidade coletiva é perpassada

pela participação política do indivíduo, que tem a ver com o conjunto de vivências que ele

tem no contexto no qual está inserido, como ele atribui significado às relações

interpessoais e as vivências cotidianas.

Da mesma forma, entendemos que a construção de uma identidade individual

autônoma, no sentido do indivíduo ter a capacidade de diferenciar-se do outro e ser

246
reconhecido por esse outro, também interfere na forma como esse indivíduo se vincula ao

grupo ao qual pertence, pois o fortalecimento da identidade pessoal pode fazer com que ele

assuma a sua identidade social, mesmo que essa seja desqualificada enquanto grupo social,

se vincule ao grupo ao qual pertence e tenha predisposição para transformação dessa

realidade. A vinculação ao grupo depende também de como esse indivíduo se percebe

enquanto ser social no mundo.

O estabelecimento de uma identidade coletiva, permite aos indivíduos atribuírem

valor às metas grupais e à mudança social como benefício pessoal e coletivo,

instrumentalizando-se para atingir a mudança almejada. O autor define identidade

social/coletiva como “uma dimensão da consciência política que se refere ao caminho

estabelecido pelos indivíduos como a identificação psicológica com interesses e

sentimentos de solidariedade e pertencimento a um ator coletivo” (Sandoval, 2001, p.187).

Ou seja, tem a ver com o exercício da cidadania, como o indivíduo desenvolve a sua

identidade pessoal e coletiva, como se enxerga e como se identifica com seu grupo de

iguais para realizar essa ação.

Pontuamos isso com base em nossa pesquisa. Temos situações de entrevistados que

participam do OP com seu grupo de trabalhadores, não porque mantém uma vinculação

com esse grupo e por que identificam causas reivindicatórias em comum, mas por que são

obrigados. Se esses indivíduos estabelecessem uma identidade coletiva com seu grupo,

certamente, o nível de reivindicação seria mais amplo e constante, todavia eles participam

pontualmente e tampouco discutem causas reivindicatórias para a sua comunidade. Logo,

se esse indivíduo tivesse uma identidade menos fragilizada, teria mais condições de

vincular-se ao seu grupo e originar ações coletivas e reivindicatórias.

Por isso percebemos que não há diferença nas respostas dos moradores e dos

trabalhadores no sentido de pertencerem ou não a grupos organizados. Percebemos a

247
diferença pela questão da identidade. Ou seja, aqueles indivíduos que têm uma identidade

pessoal autônoma – nos termos de Melucci – têm condições de vincular-se a causas mais

coletivas, de pensar na comunidade, de pensar coletivamente, independente se é

trabalhador ou morador. E, ao mesmo tempo, aqueles que tem uma identidade individual

mais fragilizada, não se identificam coletivamente e, tampouco, conseguem manter o

sentimento de pertencimento ao grupo e sustentar, por muito tempo, as ações coletivas.

7.2- A participação política tem a ver com a relação com a cidade

Da mesma forma que acreditamos que o exercício da cidadania, viabilizado pela

participação política, compõe um cenário importante para a formação da consciência

política, também reforçamos a importância da relação que o cidadão tem com a cidade e

com a comunidade na qual vive.

Quanto à vivência na cidade e na comunidade, percebemos que há elementos em

comum nas opiniões dos moradores e dos trabalhadores. A questão da participação implica

em outras vivências, em participação em outros fóruns, em engajamento com questões

coletivas na comunidade, logo, só o fato de ser da Unidade de Reciclagem - e estar inserido

diretamente em políticas públicas - não garante a participação política e a formação da

consciência política.

O Orçamento Participativo é responsável pelo movimento dos moradores. Foi o

fórum de participação popular que obrigou os moradores a manterem outra relação com o

poder público. A partir do OP, a população se deu conta de que, para ter melhorias, não

basta ser bem relacionado ou vender seu voto em época de eleição. O OP trouxe o

aprendizado de que a participação política transcende o ato de votar, é preciso – e possível

– também, ser um agente fiscalizador, manifestar-se publicamente, organizar-se, mesmo

que forçadamente, ou seja, a população teve que mudar sua forma de agir.

248
Mudou também a sua forma de se relacionar com a cidade, em termos

administrativos e políticos, assim como a sua maneira de se relacionar com a sua

comunidade e, da mesma forma sua comunidade teve que se fazer mais presente e ser mais

atuante do que simplesmente esperar que a Administração, generosamente, levasse a ela,

melhorias. Por isso, destacamos essa relação como um elemento desencadeador do

processo de formação da consciência política.

Percebemos que o aprendizado da participação, leva ao exercício da cidadania, não

apenas pela possibilidade de participar, de fazer valer a sua opinião, de se fazer ouvir, mas

porque, com essa participação, se chegou a níveis de qualidade de vida antes inatingíveis

para determinada camada da população. Isso, indubitavelmente, fortaleceu o sentimento de

cidadania das pessoas, no momento em que passaram a entender que ser cidadão é ser

sujeito com direitos [garantidos constitucionalmente] e sujeito de direitos [pela

responsabilidade e compromisso consigo mesmo e com o outro, seja seu grupo social ou

sua comunidade].

Pelas respostas de nossos entrevistados, não percebemos diferença entre a relação

que estabelecem com a cidade. Independente de ser morador ou trabalhador, as pessoas

circulam pelos espaços públicos, percebem a cidade organizada administrativa e

politicamente. Têm experiências de inclusão social, pelos programas e projetos sociais,

assim como pelas políticas públicas, reconhecem que é uma cidade onde é possível – e

desejável – a participação popular, é uma cidade que proporciona experiências de

cidadania ativa.

Essas categorias aparecem nos discursos das pessoas e acreditamos que fornecem

elementos para que os indivíduos definam suas crenças e valores de sociedade. Como já

referimos anteriormente, não basta que a cidade ofereça atividades de lazer e

entretenimento, pois isso não garante, necessariamente, a inclusão, a participação, a

249
cidadania. É preciso que as pessoas se apropriem disso e vivenciem na cidade e na

comunidade.

A impressão que as pessoas têm do lugar onde vivem é definidor do sentimento de

pertencimento que desenvolvem pela cidade ou comunidade. O sentimento de

pertencimento por sua vez, aumenta a necessidade do cuidado com o que é seu, seja

privado ou público, constrói a identidade coletiva e, conseqüentemente, viabiliza a

participação política, muito pelo desejo de continuar participando e fazendo parte da

construção de uma cidade melhor para todos.

Essa situação nos remete à segunda dimensão da consciência política do modelo de

Sandoval (2001), que se refere às Crenças, Valores e Expectativas societais que o

indivíduo desenvolve em relação à sociedade em que vive e que expressa a ideologia

política e a visão de mundo dos mesmos. Estas podem ser entendidas como a representação

social que os indivíduos constroem sobre a estrutura social, as práticas e finalidades das

relações sociais. São os significados que as pessoas atribuem à estrutura social

considerando as relações políticas entre as categorias sociais e as próprias intenções das

pessoas que constituem essas categorias. Essas representações são produtos das interações

sociais e da experiência dos indivíduos nos vários grupos, instituições e contextos da vida

em sociedade.

Acreditamos que as crenças e valores de sociedade que o indivíduo constrói, estão

relacionadas com a relação que ele estabelece com a cidade e como vai se apropriando dos

espaços públicos. O sentimento de pertencer a um grupo e sentir-se excluído ou de sentir-

se incluído, ressignifica o que eles pensam sobre cidadania, sobre política, sobre

participação.

Retomando o que já referimos nessa análise, os entrevistados têm uma percepção

muito concreta da cidade em que vivem. Apontam para os aspectos positivos, ou seja, de

250
uma forma geral, Porto Alegre é uma cidade limpa, organizada, arborizada, com muitos

parques, praças, áreas de lazer, opções gratuitas de lazer e cultura, com projetos voltados

para as populações de baixa-renda, dentre outros aspectos. Mas também é uma cidade que

discrimina, que mantém uma política assistencialista que impede a emancipação dos

pobres, que tem violência, desemprego e muitos problemas sociais.

Essas configurações são determinantes na forma como o indivíduo transita pela

cidade, e como constrói suas representações de pertencimento à cidade. Quanto mais

elevado o grau de pertencimento, maior a responsabilidade com a cidade, pois o indivíduo

também está implicado nesse contexto, também faz parte desse cenário. As relações

interpessoais e as vivências cotidianas proporcionam ao indivíduo o sentimento do que é

estar inserido na vida pública – e política – da cidade.

A participação política implica em um posicionamento político sobre o mundo, não

basta que a participação seja popular, que seja garantida pelos fóruns de participação, mas

é importante que ela incida sobre a vida pública e conseqüentemente, privada desse

indivíduo.

Participar de reuniões na associação, nos conselhos, nos fóruns, custa muito tempo

e tem que ser uma ação voluntária, tempo que tem que ser roubado da vida privada.

Vivemos em uma sociedade onde o imediatismo é uma característica da vida

cotidiana, no sistema de relações que estabelecemos entre as pessoas. Percebemos, ao

longo de nossa pesquisa que a presença do jovem nas discussões do OP é ainda muito

restrita. Dos nossos 30 entrevistados, 3 tem até 25 anos e 27 tem acima de 25 anos. Desses

3, 1 é trabalhador de Unidades e 2 são moradores.

251
20

15
Trabalhador
10
Morador
5

0
Até 25 anos Acima de 25 anos

Inferimos com isso que o contato com políticas públicas favorece a vivência

política, por que coloca mais a mostra a vivência das crenças e valores societais, demarca

mais as concepções de eficácia política que as pessoas podem desenvolver.

Para os entrevistados, o exercício do voto pode ser significado como algo de muita

importância, pois viveram em períodos da história nacional em que esse direito lhes foi

cassado, logo, a tendência a valorizar a possibilidade de escolher e decidir sobre seus

representantes é ampla. Além disso, identificamos também o fato dos nossos entrevistados

valorizarem políticos que tenham projetos voltados para as suas comunidades no sentido de

melhorá-las, e não apenas usá-las como instrumento de conquista de voto, em época

eleitoral.

Percebemos também que há entrevistados que têm uma postura silenciada em

relação ao exercício da cidadania; por terem vivido neste período de cassação de direitos,

hoje reproduzem o silenciamento daquela época, que calou vozes no seu direito à

manifestação e exercício da política.

Não pretendemos classificar nossos entrevistados por idade, referindo que os mais

velhos tem mais potencial de reivindicação que os mais jovens, ou que os mais jovens não

têm espírito de reivindicação pelo fato de não ter vivido na ditadura, e muito menos

queremos inferir que os mais velhos têm opiniões diferentes e que valorizam mais o

exercício da cidadania, a participação política e a possibilidade de ser um ator político. Isso

252
seria muito reducionista e contraditória à idéia que defendemos de que as representações

são construídas pelas vivências que as pessoas têm ao longo de sua vida, pelas inter-

relações que estabelecem, até por que esse não foi um foco da pesquisa, mas é um dado

que observamos a partir da composição das respostas de nossos entrevistados. Queremos

destacar, entretanto, que este é um fator que nos chamou atenção nos discursos de nossos

entrevistados e, portanto, devemos considerar como um elemento de análise.

A maior conseqüência da vida em sociedade é o sentimento que os indivíduos

desenvolvem de pertencer ou não a uma categoria social de inclusão e de exclusão em

diferentes categorias e grupos sociais que contribuem para estruturar a vida em sociedade.

A participação não é neutra, ela é imbuída de juízos de valor, de identificações

sociais que revelam o posicionamento político das pessoas. Sendo assim, a participação

pode cristalizar as crenças e valores societais e levar à alienação do indivíduo, como pode

romper com essa estabilidade na medida em que seja capaz de reinterpretar seu cotidiano

por meio de valores e crenças que negam essa alienação. Agregado ao que já dissemos

sobre a vivência do preconceito, reforçamos nossa idéia de que os significados que as

pessoas dão às coisas, leva a um efeito paralisante ou mobilizador.

Dissemos que a participação política também se constrói no OP. Permite que as

redes se tornem mais consistentes e que a configuração sobre as crenças e expectativas

societais também se configuram nessa relação, com isso, não podemos deixar de considerar

a influência da representação que se cria em relação ao que é política e, conseqüentemente,

participação política.

7.3- A participação política fortalece as relações comunitárias

A participação política é uma via de mão dupla, por que ao mesmo tempo em que

participa, incrementa a participação, a auto-estima e autoconfiança e, conseqüentemente,

esses sentimentos incrementam a participação. O que consideramos relevante é que à

253
medida que o fluxo dessa via vai fluindo, também vai dando elementos para que o

indivíduo vá caracterizando suas crenças e valores societais, vai estabelecendo uma

identidade coletiva com o grupo ao qual pertence e vai desencadeando uma terceira

dimensão do modelo de Sandoval (2001) que consideramos importante neste contexto, que

é a vontade de agir coletivamente.

Essa dimensão é, de acordo com Sandoval (2001), uma dimensão mais instrumental

e se refere à predisposição do indivíduo em incluir-se no jogo das ações coletivas como um

modo de compensar as injustiças que são cometidas contra ele mesmo. Essa dimensão tem

as suas raízes nos estudos de Klandermans (1992) e enfoca três aspectos que levam os

indivíduos à participar coletivamente:

Primeiro: refere-se à relação custo/benefício na manutenção da lealdade

interpessoal e dos vínculos que resultam na participação ou não no

movimento;

Segundo: diz respeito à percepção dos ganhos ou perdas de benefícios

materiais que resultam no envolvimento em movimentos sociais;

Terceiro: refere-se à percepção dos riscos físicos que implicam o

engajamento em ações coletivas em determinada condição situacional.

Considerando esses aspectos ou situações, os indivíduos ou os movimentos sociais

avaliam sua capacidade para implementar suas propostas de ação coletiva.

Para Sandoval (1989a), em geral, os indivíduos são mais predispostos a não

participar do que participar em ações coletivas já que avaliam, racionalmente, os custos e

benefícios, as perdas e os ganhos materiais e os riscos concretos que envolvem a sua

escolha em participar ou não de movimentos sociais ou de ações coletivas: “(...) pensando

racionalmente em termos de custos e benefícios relacionados ao ato de participar

254
politicamente, pode-se dizer que as pessoas seriam mais predispostas a não participar do

que o contrário” (Sandoval, 1989a:62).

Percebemos essa dimensão em vários movimentos dos entrevistados, na sua relação

nas comunidades, na sua vivência no OP, que são situações que fazem com que o

indivíduo tenha a predisposição a participar, a mudar a sua vida, a dar mais qualidade de

vida ao seu cotidiano. Mas observamos também que, muitos entrevistados entendem que é

importante participar, mas identificamos que essa participação está no outro. Já referimos

isso nesse trabalho, e isso diferencia as atitudes dos que acreditam que participar é

importante e participam de fato, e os que acreditam que participar é importante, mas não

participam, ou seja, não participam por que não tem a predisposição para agir

coletivamente, isso acaba interferindo também na formação da consciência política, pois

não há vivência que configure a participação como algo importante para transformar a

realidade social.

Durante a pesquisa, nos perguntamos se há diferença entre a participação dos

moradores e dos trabalhadores das Unidades nestes diferentes contextos. Tínhamos como

hipóteses iniciais que:

 Os trabalhadores das Unidades são mais organizados do que os moradores

pelo fato de terem uma Associação e, com isso, serem uma entidade

representativa importante na comunidade;

 Os moradores são menos articulados em termos de organização comunitária

do que os trabalhadores;

 As políticas públicas são importantes para incrementar o exercício da

cidadania e isso se percebe principalmente com os grupos dos Trabalhadores

das Unidades.

255
Acreditamos que, em termos de participação política, há diferença, mas o que

demarca essa diferença não é apenas a vivência de políticas públicas, como antes havíamos

pensado. Essa vivência é elementar, mas há outros fatores, já referidos neste texto, que

interferem nas relações sociais e interpessoais dos indivíduos e que lhes dão base para suas

escolhas.

Perguntamos também se há diferença entre a relação com a cidade nas falas dos

moradores e dos trabalhadores. Neste aspecto, acreditamos que não. O que percebemos é

que, independente de ser trabalhador ou morador, os entrevistados se relacionam com a

cidade aproveitando os seus espaços públicos. Percebemos que os que não saem têm

motivos pessoais, e isso faz parte de suas opções de lazer. No entanto, percebemos também

que há informações que não chegam aos porto-alegrenses. Temos elementos, com isso,

para pensar que nossa hipótese não se confirma de todo, pois os grupos de recicladores são

organizados até um certo momento.

De qualquer modo, a população conquistou, ao longo deste período de participação

no OP, principalmente, o espaço da fala. O campo democrático desenvolveu uma cultura

política de mobilização e pressão direta como prática principal de demandas que a

população tinha, muito porque as práticas paternalistas e clientelistas usadas pelo poder

constituído não respondiam aos anseios da sociedade, ou seja, tínhamos uma sociedade que

desejava o exercício da cidadania de forma direta, assim como previsto na Constituição.

Ora, nossos entrevistados ilustram, em parte, esse anseio. O que representa por exemplo

dizerem que o OP não é do partido e sim do povo? Significa, no nosso entendimento, que

os canais de interlocução foram apropriados, que participar é muito mais que ir a uma

reunião e reivindicar coisas pontuais. Em termos psicossociais e em termos psicopolíticos,

a vivência é significativa por que o indivíduo vai se fortalecendo enquanto ator social e

político, cria condições de incidir sobre a vida pública, deixa de existir uma concentração

256
de poder por parte do Estado em relação à sociedade civil, o poder passa a ser

compartilhado, mesmo que haja limites nessa intervenção da sociedade civil, o fato é que

está estabelecida aqui uma nova relação de poderes. O Estado controla, mas não

totalmente, o Estado decide, mas tem que compartilhar. Já não é mais possível governar

sem ouvir o que a população precisa e demanda, já não é mais possível governar sem

prestar contas.

Sabemos também que as relações de poder e dominação não deixaram de existir,

mas certamente elas ganharam novos formatos e configurações e, seguramente, é um

caminho sem volta. E, certamente, personagens como Augusto, Elira e Patrícia, que se

descobriram cidadãos ao longo deste processo, não se permitirão a práticas demagógicas,

enganosas e paternalistas, principalmente se estas tentarem silenciar suas vozes.

Esses movimentos são importantes no sentido de construir uma nova configuração

de ação coletiva, com base no desejo de uma sociedade diferente, mas não apenas para si,

como também para o outro. Assim como essas categorias são reconfiguradas, também o é a

idéia de comunidade, que deixa de ser um espaço geograficamente definido e passa a ser

uma categoria da realidade social e da possibilidade de intervenção social nessa realidade.

As comunidades se tornaram espaços onde as redes se fortaleceram, a organização

dos grupos se solidificou e as reivindicações coletivas tomaram formato e passaram a ser

visíveis. Nos anos 90, se fortaleceu não apenas a reivindicação das necessidades básicas,

que eram direitos sociais dos cidadãos, mas que o atendimento a essas necessidades tivesse

uma qualidade mínima, compatível com uma vida digna.

E é isso que muitos dos nossos entrevistados reivindicam nas suas falas e muitos

deles solicitam nas reuniões do OP. Temos situações de comunidades que já conquistaram

muitas melhorias no plano concreto para suas comunidades: saneamento, moradia,

Unidades de Reciclagem, escolas, postos de saúde, etc. Depois de conquistadas estas

257
demandas, a comunidade passa a reivindicar outros serviços. Assim como há os moradores

que depois de conquistar as demandas que foram solicitar nas reuniões do OP, deixam de

participar.

Com isso, as comunidades também se fortaleceram mais, descobriram ou

redescobriram seu poder: de ação, de reivindicação, de organização. A comunidade Padre

Cacique e do Campo da Tuca são um exemplo disso. São comunidades que tem

características diferentes, pois a Padre Cacique é uma comunidade pequena que está dentro

de um bairro, que é continuação do espaço da Unidade de Reciclagem, e o Campo da Tuca

faz parte de um bairro bem mais estruturado, é uma comunidade bem populosa. No

entanto, suas histórias se aproximam, no sentido que são comunidades que se descobriram

com um poder de reivindicação e auto-gestão muito grande.

Acreditamos que a consciência política vai se produzir não por um tipo de atividade

determinada e de uma forma automática, mas pelas relações que se estabelecem entre tais

atividades e a vida cotidiana das pessoas e, neste contexto, as redes sociais e os valores que

mantêm são determinantes. Por isso ressaltamos o conjunto de vivências que o indivíduo

tem na sua vida, nas relações interpessoais que estabelece que, na nossa opinião, formam

um conjunto de fatores e valores que dimensionam, para o indivíduo, as suas ações

individuais e coletivas.

A emancipação é uma palavra que faz parte da história destas comunidades, não

apenas no aspecto psicossocial mas também no aspecto psicopolítico, ou seja, a

emancipação não é apenas em nível individual e que reverte em benefícios para a

comunidade, que fortalece o indivíduo nas suas relações interpessoais, mas também o

fortalece no seu potencial em relação aos processos políticos, as decisões que lhe dizem

respeito.

258
No entanto, alguns de nossos entrevistados reforçam a postura de tutela, confirmada

por muitos dos técnicos que trabalham com as comunidades e falam da dificuldade que tem

de trabalhar conceitos como emancipação e autonomia com muitos moradores. Há uma

carência material real, que inviabiliza muitas vezes, o discurso emancipatório pois, como

os próprios técnicos expressam, é impossível se pensar em cidadania, participação, se o

indivíduo tem fome, se convive com ratos, baratas, se está exposto a toda sorte de doenças.

Mas também há que se considerar que a representação coletiva de que o pobre é incapaz,

não tem voz nem vez foi internalizada pela população, não apenas a população pobre, mas

as elites também tentam sustentar esta cultura.

Nossos entrevistados ratificam esta idéia. Patrícia é um exemplo, pois diversas

vezes em sua entrevista ela refere que o rico faz o pobre, que tanto o rico como o pobre

ganham com a pobreza, ou como a fala de pessoas que dizem que querem que seus filhos

estudem para que tenham um futuro melhor, pois se tiverem um emprego melhor não

precisam depender do governo pra ganhar coisas... ou como os relatos de tantos moradores

que dizem que em época de eleição vendem seu voto, ou relatam situações de candidatos

que em época de eleição dão churrasco, roupas, cesta básica e com isso compram votos das

pessoas, ou também de pessoas que se beneficiam, ou tendo seu IPVA pago, ou sendo

aposentado como funcionário do governo estadual, enfim, estas são as contradições com as

quais convivemos.

As entrevistas nos mostram também que estes cidadãos também aprenderam a se

beneficiar da sua própria condição, ou seja, não apenas no sentido de ganhar coisas por ser

pobre, mas no sentido de se descobrirem atores sociais que fazem parte de um contexto do

qual participam outros atores também, e que mesmo guardadas as diferenças sociais e

econômicas, fazem parte do mesmo cenário e gozam dos mesmos direitos, garantidos

constitucionalmente. Mas o exercício da cidadania, o descobrir-se “esse” cidadão que

259
estamos nos referindo permite às pessoas, a escolha de não quererem ser mais usadas. De

não aceitarem mais a tutela do governo, de não se aceitarem mais na condição de amorfos,

de incapazes. Isso nos traz exemplos de comunidades que “cansaram de serem usados

como cobaias”, “cansaram de serem objetos68 de pesquisa” e que trabalham no formato de

parceria, ou seja, o pesquisador pode entrar na comunidade e pesquisar, mas sua ação tem

que reverter em algum trabalho ou projeto que beneficie a comunidade.

Consideramos esse um grande avanço em termos psicossociais pois demonstra que

as pessoas conseguem se enxergar para além da condição de sujeitos submissos e passam a

outra categoria de relação interpessoal. É como nos faz lembrar Roseli quando nos relata

que é muito bom poder entrar no supermercado e as pessoas não ficarem olhando como se

ela fosse roubar alguma coisa por que é pobre, é poder comprar o que quiser e pagar com

seu próprio dinheiro, ou é como diz Tatiana, que trabalha em uma das comunidades

pesquisadas, que ser cidadão é se bancar, ou seja, é poder ir numa churrascaria e pagar o

seu rodízio, assim como pagam os que tem muito mais dinheiro que um trabalhador de

Unidade de Reciclagem. Ou é como nos lembra a própria vida da cidade, que permite a

convivência de pessoas com poder aquisitivo diferente, freqüentando os mesmos espaços

públicos da cidade.

E esta idéia confirma a proposta de análise desta tese, ou seja, a possibilidade de

cooperação gera a possibilidade de participação. Os processos de vinculação criam redes

de cooperação social e possibilitam a ação coletiva. Esta participação também é instigada

pela relação com o Estado. E neste caso em específico, podemos entender o Orçamento

Participativo como um elemento importante para o desencadeamento do enfrentamento do

conflito, ou seja, certos conteúdos permanecem, durante um período, ausentes no

desencadeamento de mobilizações, e são utilizados como recurso referencial quando o

68
Grifo nosso.

260
movimento aparece ou reaparece. E a participação ocorre porque há sentimentos, valores,

motivações que fazem com que uma pessoa se identifique com a causa e,

conseqüentemente, participe.

Participação Política

Cidadania ativa

OP

Sintetizamos a nossa idéia a partir do esquema acima, ou seja, acreditamos que a

cidadania ativa, a participação política e o OP são instâncias que interatuam

permanentemente. O OP, nesse caso, representa os demais fóruns de participação popular.

A cidadania ativa se contrapõe à cidadania passiva, que representa a transição que vivem

os porto-alegrenses. Essa depende do conjunto de crenças e valores que os indivíduos vão

mantendo ao longo de suas relações interpessoais. Quanto mais a vivência da cidadania vai

se intensificando, tanto mais o indivíduo vai se apropriando da cidadania ativa e se

distanciando da cidadania passiva. A participação política, por sua vez, fortalece e é

fortalecida não apenas à medida que a cidadania ativa vai sendo significada pelo indivíduo,

261
mas também nas relações comunitárias, assim, destacamos o papel importante da

comunidade nesse cenário.

Apresentamos também as contradições do processo do OP, mais uma vez,

esclarecemos que o OP representa os demais fóruns de participação popular, e esse

conjunto de contradições interfere na participação política do indivíduo, seja em nível

individual ou coletivo.

Neste capítulo, descrevemos o que apareceu nos discursos, destacando as definições

do que é ser cidadão e do que é exercer a cidadania, que implicações estas definições têm

para a vida cotidiana destas pessoas e de que forma isso tudo implica na constituição da

consciência política das pessoas.

No capítulo seguinte, apresentaremos a relação dos entrevistados com os fóruns de

participação e instituições que trabalham na comunidade de forma a aprofundar a

organização comunitária e diferenciar que estamos chamando de participação popular e

participação política.

262
Capítulo VI

Políticas públicas incidindo na participação política dos


moradores e trabalhadores das Unidades de Reciclagem de Lixo

No quinto capítulo, investigamos como a participação política vem sendo

construída pelos moradores e trabalhadores de Unidades de Reciclagem de Lixo em Porto

Alegre e incide no sentimento de cidadania, bem como as repercussões que esta

participação tem tanto para a vida das pessoas como para as políticas públicas da cidade.

Neste capítulo, analisaremos as entrevistas realizadas, procurando evidenciar de

que forma as políticas públicas incidem na vida dos moradores e trabalhadores de

Unidades de Reciclagem de Lixo69 em Porto Alegre, e de que forma nossos entrevistados

interagem com essas políticas, efetivamente, seja na relação com as entidades/instituições

que trabalham nestas comunidades, seja pelos fóruns de participação popular.

Constatamos que o conjunto de iniciativas referentes a políticas voltadas para a

população porto-alegrense é amplo; além disso, garante espaços de participação da

população em termos de gestão, formulação e fiscalização da eficácia dessas políticas. E

constatamos também que, da parte da comunidade, há participação efetiva, principalmente

de entidades comunitárias, como Associações de Bairro, Associação de Recicladores ou

Clube de Mães.

69
Como já explicamos no capítulo anterior: Trabalhadores são os que vivem nas comunidades entrevistadas e
que trabalham nas Unidades de Reciclagem de Lixo, são denominados também, ao longo do texto, de
Recicladores. Moradores são os que igualmente vivem nas comunidades, mas que não trabalham nas
Unidades de Reciclagem, ou são lideranças comunitárias, ou são papeleiros [são os que recolhem papel com
carrinho ou carroça e reciclam em sua própria casa] ou são moradores que exercem outras atividades
profissionais. Entrevistados são os dois grupos: moradores e trabalhadores.

263
Percorrendo a história da gestão da Administração Popular70, encontramos

elementos para confrontar com nossas entrevistas. Porto Alegre71 se intitula uma cidade

com uma firme tradição de organização da sociedade, traduzida em comissões, associações

de moradores, clubes de mães, conselhos escolares, e inúmeras outras formas de

mobilizações, que visam o aperfeiçoamento das relações de convivência nesta estrutura da

cidade. Além disso, tem construído políticas públicas que materializam melhores

condições urbanas, sociais, ambientais, culturais. As ações setoriais também acrescentaram

novos enfoques. O desenvolvimento econômico, a educação, a cultura, as infra-estruturas

viárias e de abastecimento, o saneamento, a educação ambiental, o transporte público, o

esporte e o lazer, a saúde, a assistência social, a organização da cidade, todos foram

estimulados pelos novos instrumentos de participação da população.

Porto Alegre é uma cidade que busca garantir o acesso pleno e equânime da

população às políticas de educação, saúde, assistência, habitação, esportes, trabalho,

cultura e lazer, bem como de saneamento básico. Procura estabelecer um programa

intersetorial para atender a população com elevado grau de vulnerabilidade, a partir da

renda mínima, apoio à família e geração de renda, atentando para estabelecer ações de

“travessia” da política compensatória ao desenvolvimento da autonomia, assim como

desenvolver um programa que venha ampliar e/ou qualificar os projetos sociais 72.

A cidade avançou na gestão participativa, sendo referência nacional e internacional.

O Orçamento Participativo, os Fóruns diversos da cidade e os Conselhos Municipais se

constituem, hoje, em instâncias consagradas e experimentadas no trato de problemas

urbanos. Da mesma forma, as ações de desenvolvimento e de políticas sociais têm sido

70
Relembramos o leitor que Administração Popular refere-se especificamente à gestão da Frente Popular na
Prefeitura de Porto Alegre, que tem como slogan “O governo da participação popular”.
71
Fonte: http://www2.portoalegre.rs.gov.br/cs/default.php?p_secao=3. Pesquisa realizada em 03.02.06.
72
Renda Mínima, Geração de Renda (cooperativas, Ecoturismo, Agricultura Local, Projeto Educação para o
Trabalho e Cidadania, Projeto Ações Coletivas, Projeto Reinserção à Atividade Produtiva; Unidades de
Triagem de resíduos; Incubadoras); Gerências ampliadas vinculadas a reassentamentos.

264
uma constante dentro de uma estratégia de inclusão social (como as ações contra o

analfabetismo e a educação dos meninos de rua, dentro da proposta da Escola Cidadã), de

oportunidades de geração de trabalho e renda ou de programas integrantes de uma rede de

Assistência Social, especialmente voltada para crianças e adolescentes, iniciativas estas

executadas em boa medida através da parceria governo-sociedade, e que compõem hoje

um marco de referência para ações mais amplas no sentido de enfrentar a crise social. As

políticas na área cultural, por sua vez, têm incentivado sobremaneira, através de ações

descentralizadas, a participação e a criatividade popular.

Elira (trabalhadora da Unidade) ratifica essa referência. Sua fala, no entanto, é de

reivindicação para que os convênios da Prefeitura com as entidades que atendem a

crianças, adolescentes e famílias, sejam garantidos por lei: conquistamos muito nas

políticas de educação e assistência social, mas as políticas para a infância devem ter a

garantia de continuar avançando.

As principais idéias do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental -

PDDUA73 estão guiadas pelo espírito de uma cidade que possa ser desfrutada por todos os

cidadãos, sem nenhum tipo de discriminação. Está proposto um tipo de planejamento, onde

a democracia, a participação da sociedade e a descentralização são fundamentais para a

construção do futuro de Porto Alegre. Busca-se, assim, uma cidade onde todos tenham uma

vida com qualidade, diminuindo as diferenças sociais; em equilíbrio com a natureza; em

que as diferentes opiniões possam conviver criando, uma cidade diversificada, capaz de

73
O PDDUA é fruto de um processo participativo e de construção coletiva; atualiza uma série de conceitos e
deixa de ser uma lei essencialmente baseada em normas, como era a lei anterior, para constituir-se num plano
estratégico. Dentre outras inovações, propõe uma cidade mais “miscigenada” onde, com critérios, seja
possível um maior convívio entre as atividades residenciais, industriais, de comércio e de serviços. O
PDDUA procura, ainda, dar um melhor aproveitamento à infra-estrutura que muitos bairros já dispõem,
dentro do conceito de “cidade sustentável” e economicamente viável. Além disto, valoriza a preservação
ambiental e divide a Capital em oito Regiões de Planejamento, ampliando a participação da população nas
questões referentes ao ordenamento urbano. Sobre o histórico e etapas, ver anexo.
Fonte: http://www.portoalegre.rs.gov.br/planeja/manualpddua.pdf e
http://www.portoalegre.rs.gov.br/planeja/proposta.htm

265
enfrentar os desafios existentes, e que seja rica em suas formas de expressão e idéias. E isto

deverá ocorrer pela integração entre os interesses dos proprietários particulares, dos

empreendedores e do conjunto dos cidadãos, através da Prefeitura de Porto Alegre.

Esses interesses são expressos em estratégias de ação conjunta, de forma a garantir

a viabilidade de políticas públicas, assim como programas e projetos – públicos e privados.

Essas políticas tratam de temas que estão intrincados na vida da cidade e atingem

diretamente os cidadãos. Os temas são:

* Estruturação urbana: trata da forma como são integrados os diferentes lugares

(bairros, avenidas, ruas, praças e parques, morros e o Guaíba) valorizando os espaços

existentes e estimulando a criação de outros. Nela, estão propostos os Espaços Abertos

(lugares onde as pessoas possam se divertir, passear, buscar atendimento médico, comprar

ou vender e aprender). Estes locais precisam estar espalhados pela cidade de uma maneira

que cada habitante chegue até eles, a partir de suas casas, com facilidade, seja a pé ou de

ônibus. Podem ser constituídos por áreas verdes (praças e parques), ou por edificações,

como um shopping, um teatro ou mesmo um estádio de futebol. Esta estratégia também

prevê um programa de integração com os municípios vizinhos possibilitando a definição de

políticas de interesse comum e facilitando o acesso e a comunicação entre as cidades.

* Mobilidade urbana: a cidade deve também planejar seus sistemas de transporte de

passageiros, de cargas e sua malha viária, para que possa oferecer rapidez, conforto e

segurança para motoristas, passageiros e pedestres em suas diferentes necessidades de

deslocamento. As ruas e avenidas são espaços públicos. Portanto, devem ser usados de

forma a favorecer o transporte coletivo, o pedestre, ciclistas e o trânsito de veículos. Para

tanto, devem ser reservadas para "circulação" e cada vez menos usadas como

estacionamento.

266
* Uso do solo privado: prevê as regras para as novas construções, quanto ao uso e à

forma dos prédios e aos tipos de parcelamento (divisão de terra) que podem ser feitos na

cidade. Estão propostas, também, formas de controle do número máximo de pessoas que

podem morar ou trabalhar em cada zona da cidade (densificação), sem que haja problemas

às redes de infra-estrutura. Além disto, é preciso buscar um equilíbrio entre os

investimentos feitos pela Prefeitura e o número de pessoas que vão usufruir as melhorias.

Fazer obras caras para beneficiar um número pequeno de moradores caracteriza

desperdício de dinheiro público. O PDDUA propõe uma cidade que seja econômica e

ambientalmente "sustentável".

* Qualificação ambiental: fazer com que a cidade se desenvolva em harmonia e que

seja possível qualificar o território municipal destacando o que de melhor existe em cada

lugar, de forma a manter as tradições culturais, a sua paisagem e os valores naturais. O

termo ambiental, neste Plano, significa a cidade vista e analisada como um conjunto único,

onde convivem entre si diferentes tipos de cidade, com características bem específicas.

Assim, passa a tratar os aspectos culturais e naturais como questões igualmente

importantes, cujos espaços representativos deverão ter sua ocupação e seu uso preservados

para as futuras gerações.

* Produção da cidade: uma cidade deve produzir e, assim, gerar trabalho. É preciso

estimular iniciativas da própria população, o surgimento de locais de trabalho próximos

das áreas onde vivem as pessoas e incentivar a produção de alimentos e criação de animais

para um melhor abastecimento da cidade. Além disto, é necessário reforçar o papel de

Porto Alegre como centro das atividades da Região Metropolitana, bem como redefinir seu

papel junto ao Mercosul.

* Promoção da cidade: a cidade é resultado de uma construção conjunta, onde cada

um deve fazer a sua parte. O Município fornece condições e orientações para que as

267
empresas e os proprietários de terra contribuam para o desenvolvimento urbano, reduzindo

o desequilíbrio social, bem como promovendo uma política para a construção de moradias

de baixo custo. Três caminhos básicos orientam a atuação do Município nas questões que

envolvem a produção da cidade: a possibilidade de examinar propostas de construção

através de Projetos Especiais; o programa voltado para as habitações de interesse social e o

gerenciamento e utilização de todos os instrumentos de planejamento com vistas a buscar

uma melhor distribuição dos recursos públicos.

* Sistema de planejamento: Esta estratégia dá dinamismo ao Sistema Municipal de

Gestão do Planejamento articulando políticas e ações, acompanhando o desempenho

urbano de maneira que, quando forem identificadas mudanças necessárias, tanto pela

Prefeitura, como pela população, o Plano Diretor possa ser readequado. Para poder

consultar os cidadãos sobre as questões importantes da cidade é necessário garantir a

participação popular. Assim, está proposta a divisão da cidade em oito Regiões de Gestão

do Planejamento, cada uma agrupando vários bairros. Nelas são elaborados, em conjunto

com o Município, os chamados "Planos de Ação Regional". Para tanto, os cidadãos terão

esclarecimentos e acesso a todas as informações que necessitarem sobre sua região e a

cidade.

Além de manter essa condição de cidade, a Administração Municipal busca

consolidar, através de iniciativas concretas, políticas integradas, que dêem corpo a um

movimento pela sustentabilidade. Isto significa proteção ambiental, equidade social, outro

padrão de eficiência econômica, colocando no centro do debate, a relação do homem com a

natureza.

Tendo como pano de fundo este contexto social e político da cidade, procuramos

identificar, em nossos entrevistados, a sua relação com essas políticas, como nossos

268
entrevistados transitam simbólica e concretamente por essa cidade que pretende ser

construída pela participação popular.

Começamos nossas análises pela investigação que fizemos sobre o Orçamento

Participativo, coletando o que nossos entrevistados pensam do OP, que importância

atribuem e que melhorias reconhecem terem sido adquiridas, via OP, para suas

comunidades. Nossa intenção é relacionar essas percepções e vivências com as políticas

públicas da cidade.

Em seguida, analisaremos a relação com a Escola e com o Conselho Tutelar.

Escolhemos estas duas entidades pelos seguintes motivos:

* a escola é uma instituição importante na vida da comunidade, não apenas pelas

questões de ensino-aprendizagem que é seu papel, por excelência, mas pela referência que

se torna para a comunidade, nesta concepção de cidade participativa, inclusiva e cidadã: a

aprendizagem desses conceitos passa pela escola. Além disso a escola é um espaço

público, onde políticas e projetos sociais são viabilizados, agregados ao contexto

educacional, o qual a escola tem que dar conta;

* a escola é o canal de interlocução sobre a política de educação ambiental,

representando o poder público junto à comunidade;

* o Conselho Tutelar é um importante Conselho que trabalha em parceria com as

escolas e com a comunidade;

* tanto a escola quanto o Conselho Tutelar trabalham diretamente com políticas

públicas, principalmente, as voltadas para as crianças e adolescentes.

Por isso, entendemos que a relação com essas duas entidades, são esclarecedoras do

que pensam e de como agem nossos entrevistados em relação às políticas da cidade.

Na seqüência de nossa análise, abordaremos a questão da resolução de problemas e

a violência. Foram duas perguntas feitas de forma ampla para que os entrevistados

269
pudessem falar sobre o que era significativo para eles. Nossos entrevistados referiram tanto

problemas amplos, de uma dimensão macro, como pequenos problemas, de uma dimensão

micro. Buscamos, nestas manifestações, entender, mais uma vez, a relação com as políticas

públicas, ou seja, como os entrevistados recorrem aos serviços de atendimento à

comunidade e como os reconhecem como sendo parte de um planejamento da cidade para

atender a população, e até que ponto esses serviços têm a credibilidade e a confiabilidade

necessária para ser eficaz e cumprir seu papel junto à comunidade.

Investigamos qual o significado da Unidade de Reciclagem de Lixo. Diferenciamos

as opiniões de quem trabalha nas Unidades e de quem não trabalha, pois, no início da nossa

pesquisa, partimos do pressuposto de que os grupos dos trabalhadores são mais

organizados, participativos e mais atuantes, principalmente, no OP.

E, por fim, analisaremos quais as repercussões dos movimentos dos moradores para

as políticas públicas da cidade, tentando relacionar, dessa forma, a participação política e

as políticas públicas.

1. Políticas públicas sendo viabilizadas no OP: a repercussão dessa vivência

para a vida dos cidadãos

Pretendemos apresentar a opinião dos entrevistados sobre a vivência no Orçamento

Participativo: suas opiniões, a crítica ao processo, como vivenciam a questão da

participação política pela participação no OP e em outros fóruns de participação. Além

disso, pretendemos analisar como as categorias de cidadania e participação política se

entrelaçam nesta vivência.

Identificamos, a partir das falas dos nossos entrevistados, que nem sempre as

pessoas respondem ativamente às demandas da Administração Municipal no que tange a

projetos e parcerias. Muitas vezes, são nesses momentos, que as pessoas se paralisam mais

270
do que se mobilizam. Por isso teremos, ao longo da análise, os elementos necessários para

identificar o que faz com que as pessoas participem de ações coletivas ou não.

Efeito mobilizador ◄ Políticas ► Efeito paralisante


Públicas

1.1- A vivência do Orçamento Participativo em Porto Alegre – o que dizem os

moradores e trabalhadores

Apresentamos a idéia dos moradores e trabalhadores da Unidade de Reciclagem de

Lixo sobre a vivência no Orçamento Participativo. Acreditamos que as falas são

significativas do ponto de vista da análise, pois demonstram a possibilidade de

conscientização política através do exercício da participação, assim como também

mostram as contradições e limites desta participação.

Para a maioria dos entrevistados, o Orçamento Participativo é importante, por

diferentes motivos. Percebemos que, de uma forma geral, um dos conjuntos de razões tem

a ver com as melhorias objetivas que a comunidade conquistou: moradia, saneamento,

posto de saúde, escola e diversos serviços. O outro conjunto de razões tem a ver com

questões mais subjetivas, ou seja, aquelas relacionadas ao aprendizado de participação, ao

aprendizado do que é ser cidadão, e do que é exercer a cidadania. A fala de Augusto ilustra

esses aprendizados:

Não penso que um político sem sentir a pressão vai fazer qualquer coisa para o
povo. Então a gente tem que se mobilizar para que nossos direitos sejam
respeitados. Se a gente soubesse todos os direitos que tem, a vida seria bem melhor.
Aprendi que o povo unido é forte. Aprendi que posso falar. A primeira vez que fiquei
em frente do microfone, me senti tão pequenininho como uma formiguinha no meio
dum monte de elefantes. Mas conhecia a necessidade da minha comunidade, então
decidi botar a timidez de lado e comecei a falar. Falei com o coração, da vida aqui
onde nem um cachorro quer viver. Deu um impacto tão grande. Quanto mais papéis

271
e lixo apanhamos, menos árvores cortadas e rios poluídos... somos os pequenos que
trabalham para a natureza e ela nos agradece... gosto deste trabalho e, pelo OP,
consegui valorizá-lo, nos valorizar como pessoas, como trabalhadores (Augusto,
trabalhador da Unidade).

A moradia sempre foi uma das prioridades do OP, tanto por parte dos moradores

das comunidades, como por parte da Administração Municipal, pela sua política

habitacional. A Administração Popular, nos 16 anos de sua gestão, manteve como

prioridade o investimento na política habitacional da cidade. Nessa política, a habitação é

concebida como direito humano, e a moradia digna, como base para a concepção de que

todas as pessoas possuem o direito à cidade e aos seus serviços, como transporte, saúde,

educação, cultura, esporte, lazer, assistência social, trabalho e renda. Nossos entrevistados

expressam sua opinião sobre isso:

...o Orçamento Participativo é muito importante porque o OP traz moradia pra

gente (Paulo, trabalhador da Unidade). Para Paulo, a conquista pela moradia é o mais

significativo pois, ao trazer moradia, traz também dignidade de morar bem, além de

fomentar a percepção da cidadania.

Augusto comenta que a moradia foi uma das necessidades de sua comunidade e que

agora que já conseguiram moradia, há outras necessidades a serem reivindicadas no OP: o

OP é muito importante porque tudo o que já conquistei, essa necessidade foi uma

[necessidade de moradia], mas depois que tiver as casa, tem outras necessidades, como

por exemplo, educação, pra minha gurizada jovem né, eu vou ter o telecentro74, que já

conseguimos… Se não tivesse o OP acho que não conseguiria moradia, porque lá é o

74
São ambientes informatizados, instalados em espaços comunitários, que oferecem acesso gratuito à
Internet e a programas de capacitação. Cada local tem computadores, scanner e impressoras. Três monitores
da comunidade orientam os usuários e realizam oficinas de informática básica. Em média, os telecentros
recebem quase 15 mil pessoas por mês, com faixa de um a quatro salários mínimos de renda. Quem quiser
pode ter seu próprio e-mail.

272
lugar que a pessoa discute, que a pessoa pede o que quer, mas tem que ter muita luta pra

chegar nisso aí (Augusto, trabalhador da Unidade).

Nilda também refere que as conquistas do OP não se limitam a uma determinada

demanda. É um processo, quanto mais se conquista, mais coisas há para serem

conquistadas: conseguimos muita coisa: Telecentro, Assistente Social, reforma da creche,

sempre há um movimento em agito... tem reuniões que às vezes junta 200 pessoas. (Nilda,

moradora).

Fernando reconhece o quanto a sua comunidade melhorou com o OP: só melhorou,

não tinha luz, nem água, isso foi antes do OP, as coisas melhoraram, foi coisa da

Prefeitura (Fernando, trabalhador da Unidade).

Esses depoimentos nos levam a inferir que as políticas são acessadas por todos os

cidadãos e, no caso da nossa pesquisa, tanto pelos moradores quanto pelos trabalhadores

das Unidades. As falas de Augusto e de Nilda nos dão exemplos do que denominamos

anteriormente de efeito mobilizador das políticas públicas, ou seja, quanto mais conquistas

se consegue no OP, mais estimulados a participar e reivindicar, os indivíduos se tornam.

Há entrevistados que apontam, de uma certa forma, as contradições do OP. O

discurso mobilizador do OP é a participação popular, onde os cidadãos participam para

reivindicar suas demandas e para melhorar sua comunidade. Percebemos, no entanto, que

há pessoas que participam circunstancialmente, ou seja, apenas quando há interesse em

conseguir alguma melhoria imediata para a comunidade ou para a Unidade de Reciclagem.

No momento em que se consegue as melhorias, deixam de participar. Essa fala foi mais

visível entre os trabalhadores das Unidades:

...às vezes vou pela Associação dos Recicladores. Acho importante a gente ir pra
saber o que vai acontecer... (Claudiomar, trabalhador da Unidade);

273
...fui delegada 4 anos, pela Associação. OP é muito importante por que tudo que
pede a gente ganha. Agora não tô participando, mas por que não teve gente pra tirar
os delegados. Na época que eu participava, a gente conseguia muita coisa, pra
dentro do Galpão, as maquinarias, o próprio serviço... (Cléia, trabalhadora da
Unidade);

...vou no OP só quando tem alguma coisa referente ao Galpão. É importante porque


através dele a gente consegue adquirir muita coisa. (Bruna, trabalhadora da
Unidade).

José entende que seja importante participar do OP mas, efetivamente, não vivencia

o seu próprio discurso. É possível perceber isso em muitos entrevistados:

...já cansei, já fui várias vezes e depois desisti. Ia pela Associação (de Moradores e
Recicladores). O OP é muito importante, eu não entendia o que estavam debatendo,
parei um tempo de ir, depois fui umas duas, três vezes, comecei a entender, aí a
gente ia... e aí a gente parou por causa desta tragédia né... mas se sobrar OP pro
próximo ano, aí a gente volta a ir (José, trabalhador da Unidade).

Guilhermina reforça essa vivência desconectada do seu discurso:

Quando tem reunião poucos são os que vão, normalmente é o seu Augusto que vai
sozinho, mas acho muito importante esse Participativo aí (Guilhermina, moradora)

Lisiane também mostra a contradição na sua fala, pois, para ela, o OP é importante

para se conseguir coisas que se quer, mas ela não reconhece nenhuma melhoria na região

que mora. Os benefícios do OP são para os outros, não são para todos, são para os que

participam, os que não participam não são beneficiados:

...é importante por que a gente consegue algumas coisas que a gente quer.

Melhorias eu não sei por que eu nunca vi, eu moro aqui neste canto então o que acontece

lá embaixo a gente não fica sabendo... tem as ruas que abriram, que asfaltaram, mas não

tenho certeza... (Lisiane, trabalhadora da Unidade).

Tatiana, assistente social em uma das comunidades pesquisadas, é categórica ao

falar das suas decepções com o OP:

274
... já fui muito. Participei 3 anos, no último ano tiramos 12 delegados, 6 pra Saúde, 6
pra Assistência Social. Tive uma decepção tão grande que o caderninho já veio
pronto pra o próximo ano e quando eles tentavam se manifestar e colocar as
necessidades da população de rua, não dá comunidade, mandavam os delegados
calar a boca... as políticas vêm prontas... o OP beneficiou sim as comunidades com
representações importantes, mas morador de rua não é importante... é só número. O
movimento é uma luta... eles não têm essa perseverança porque a necessidade deles
são todas... tudo é urgente... não tem essa visão... é muita dependência, o
esquecimento é um anestésico (Tatiana, técnica).

Hélio corrobora com a opinião de Tatiana. Participava – e gostava de participar –

das reuniões do OP, mas cansou, se decepcionou com o processo:

Costumava ir, agora parei, não tenho ido porque te falei né... cansei de ir, de
conquistar e não ganhar, isso aí que me deixou meio aborrecido com o OP... a gente
tanto conquistava como ajudava os outros a conquistar o que precisava, porque ali
têm diversas Associações, Associações dos Moradores, de hortifrutigranjeiros,
fruticultores, pescadores ...então a gente ia e eles precisavam, a gente dava o voto
pra eles e quando nós precisava, eles davam os votos pra gente... então a gente
conquistava assim. Só que agora eu conquistei este galpão aí, já fazem anos e não
veio a reforma ainda, então desanima a gente... (Helio, trabalhador da Unidade).

Gerci dá indicativos dos limites da participação no OP, o que também pode estar

relacionado com os motivos do esvaziamento ou da falta de credibilidade que o processo

vai instaurando na percepção de algumas pessoas. Não é apenas a decepção com o não

atendimento de demandas ou com o atraso nas obras que afasta as pessoas do OP. O

processo funciona, mas para quem participa, o que indica uma lógica perversa, pois,

mesmo que uma comunidade precise de serviços ou melhorias, os ganhará, se participar.

Isso requer tempo – pois as reuniões são à noite; dinheiro – pois a população não ganha

para participar, ou seja, a participação é espontânea, e as pessoas precisam se deslocar até o

local das reuniões; responsabilidade e compromisso – pois é preciso participar de todas as

reuniões, pois a ausência prejudica a comunidade.

É uma forma, é legitima, é válida, funciona? Em parte. Funciona pra quem vai, pra
quem tem tempo de ir, pra quem tem disponibilidade. Significa que as maiores
prioridades são atendidas na cidade? Não. Neste sentido não funciona. Os que são

275
articulados conseguem, mas não significa que as maiores prioridades são
atendidas... Aí é uma forma da Administração se isentar de algumas
responsabilidades, ou só há compromisso social se elas participarem! Mas a gente
só aprende a participar se houver condições pra isso, então fica ambivalente:
porque é popular, é democrático, mas se tu não foi então tu não vai ganhar...(Gerci,
técnica).

Valdomiro não faz a crítica que Gerci faz ao processo, mas reforça a idéia de que as

comunidades conseguem as melhorias se participarem:

...costumo ir, é muito importante, por que o que a gente conquistou hoje foi por
causa do OP. Hoje, se não participar do Orçamento é muito difícil conseguir, Vou
pela Unidade (Valdomiro).

Além disso, faz parte desse grupo de contradições, algumas situações inusitadas,

mas que demarcam um efeito mobilizador e um efeito paralisante na vida das pessoas que

participam:

Há situações de casais que se organizam e participam, levando seus filhos,

independente da idade, nas reuniões do OP;

Há casais que não levam os filhos, mas se organizam de modo que alguém possa

ficar cuidando das crianças de vários casais para que esses possam participar;

Há famílias que se desorganizam, brigam e colocam a culpa no OP;

Há famílias em que o casal se separa por que o marido – ou a mulher – chega tarde

das reuniões, e o cônjuge desconfia de traição; ou por que o cônjuge está muito

mais preocupado com questões coletivas do que familiares;

Há famílias que se formam em função das reuniões do OP, pois os casais se

conhecem nessa ocasião;

Há maridos que não deixam as mulheres participarem pois é uma reunião para

homens, no entanto, eles não participam também.

276
Destas situações, há os que culpabilizam o OP pelo transtorno que causa em sua

vida privada, e essas pessoas, normalmente, passam a boicotar o processo e, neste caso, o

OP tem um efeito paralisante. E há os que identificam os benefícios do processo para seu

crescimento pessoal e se tornam cada vez mais estimulados a participarem e, neste caso, o

OP tem um efeito mobilizador.

Ilustramos um desses aspectos com a fala de Carlos75:

Estou feliz assim, tão feliz. Já perdi uma família, me separei da mulher por causa
desse trabalho voluntário mas é isso que eu gosto. Minha mãe, outro dia, discutia
com minha namorada sobre o meio de me tirar da política. Mas disse pra elas que é
impossível. Aprendi demais com essa experiência (Carlos, morador).

Apesar do OP fazer parte da vida da cidade desde 1989, há muitos moradores que

não tem clareza do que seja o OP. Reproduzem o que denominamos de discursos prontos,

ou seja, falam que é importante por que todo mundo fala que é importante. Não podemos

inferir que esta falta de clareza seja por conta da falta de divulgação e de informação.

Reconhecemos que há divulgação, inclusive na mídia impressa e televisiva, convidando as

pessoas a participarem, comunicando as datas e horários das reuniões, no entanto, o

esclarecimento do processo é mais precário, ou seja, no início, se fazia um trabalho de

base nas comunidades para que as pessoas entendessem a importância da participação. No

momento em que o OP alcançou um número razoável de participantes, se deixou de fazer

esse trabalho de base e se passou a tratar o OP como se ele tivesse vida própria, como se

toda a população tivesse pleno conhecimento do que é, como funciona e para que serve o

OP. Acreditamos que, de uma certa forma, isso fragilizou a relação com o OP que passou a

ser visto, por muitos como um instrumento de participação e não como um canal

permanente de interlocução com o poder público. Se não há continuidade sobre um

75
Carlos é o nome fictício de um morador de uma comunidade; ele não faz parte dos entrevistados. Seu
depoimento está na obra: Organização Não-Governamental Solidariedade. Caminhando para um mundo
novo: orçamento participativo de Porto Alegre visto pela comunidade. Petrópolis : Vozes, 2003.

277
trabalho de base, dando o permanente conhecimento e informação sobre as coisas, é grande

a probabilidade da alienação em vez da consciência política:

...não vou, não sei bem o que é, já ouvi falar... a idéia que tenho é que é pra
melhorar, pra arrumar mais creche, que tem muitas casinhas no morro, então acho
que é pra dar casa pras pessoas... (Norton, morador).

...eu ia às vezes, pelo Galpão. É importante [pensa um pouco antes de responder]


deixa eu ver, é, ele até é importante porque a gente aprende muita coisa né, da
comunidade mesmo da gente... (Tamires, trabalhadora da Unidade).

...o OP é importante eu acho, até ontem me falavam disso aí, mas eu nunca fui, é
importante por que... ah, sobre isso eu não sei... (Guilhermina, moradora).

eu nunca fui porque nunca me interessei. Não faz a minha cabeça. Não sei de
melhorias, ouvi moradores de rua falar que é bom porque tu escuta muita coisa, mas
escutar não vai te adiantar, porque eles não vão te dar o que tu quer... (Roseli,
trabalhadora da Unidade).

Sandra, que trabalha com uma comunidade onde o discurso e a prática

assistencialista é muito forte, fala dos problemas do OP e das práticas que se perderam ao

longo do processo, como os trabalhos de base com a população, por exemplo:

Participo no OP e vou como trabalhadora da Vila Dique, apesar de morar na


mesma região... já participei de todo o processo porque na verdade quem incentivou
a participação fomos nós (do Posto de Saúde) então ia com eles....depois a gente
parou... no início eles iam de carroça e de carro... quando a Associação começou a
participar, eles se afastaram, eles tiraram delegados e não iam... há três anos
voltamos a ir porque a FASC começou a ir, como parceria, porque o pessoal que
recebia bolsa da FASC tinha que se envolver e a gente como parceria começou a ir
também. Eles conseguem tirar delegados e são pouquíssimos delegados que
participam, e tem outra coisa bem séria, é que existe toda uma discussão dentro dos
órgãos da Prefeitura, que não adianta grifar recursos pra Vila Dique porque a Vila
vai sair daqui, isto existe historicamente.... que o que precisa são serviços... não
adianta também dizer isso pras pessoas que elas vão parar de ir, então ao menos
assim, eles vão lá e estão brigando por habitação... A Prefeitura tinha que assumir,
porque não tem nada certo... Fizemos um movimento junto à Prefeitura pra discutir
algo proposto pela Prefeitura, na época do Raul, e quando se trocou o Governo,
quando o Tarso assumiu, o processo se perdeu, e enquanto isso, os moradores da
vila que se envolveram e depois se candidataram pra eleição da Associação,
perderam, porque ficaram desacreditados... Eu não trago mais proposta de fora pra
dentro, tipo tentar vincular a Prefeitura no processo deles e incluir eles no processo
da Prefeitura, “tivemos algumas decepções... a cada troca do partido, não há
continuidade”. O OP é importante: na realidade, a proposta é muito boa, sempre fui

278
fã de defender. Acho importante também ter mudado esta visão de que por exemplo,
nós precisamos de uma creche, então vamos procurar o Deputado ou Secretário
tal...nós vamos ter que se organizar, disputar... é um ganho do OP (Sandra, técnica).

Cristiano também concorda que o OP é um processo importante, mas que se perdeu

ao longo dos anos, reproduzindo um vício de um continuísmo nas suas práticas, como se

todos já tivessem aprendido o que era o OP e não precisasse mais falar sobre o assunto,

ou como se o fato de ir a reuniões fosse suficiente para se conhecer todo o processo. Mas

Cristiano destaca um aspecto fundamental do OP na vida dos cidadãos: o que é importante

neste processo é que o OP levou a necessidade, a idéia de organização para todo o lado

da cidade. Este movimento popular forte que tava localizado em algumas áreas da cidade,

a idéia mais se organizando e mobilizando para conseguir (Cristiano, técnico).

De acordo com Melucci (2001), a informação está se convertendo no recurso mais

importante da sociedade contemporânea, uma vez que acentua a dimensão reflexiva e

construída na vida social. Para o autor: La mayor parte de nuestra experiencia diaria es

una experiencia de grado n, lo cual quiere expresar que acontece en contextos cada vez

más construidos por la información, que es difundida por los medios de comunicación e

internalizada por los individuos, en una suerte de espiral interminable que transforma la

realidad cada vez más en signos e imágenes (Melucci, 2001:65).

Ainda de acordo com Melucci (2001), a maior parte de nossas atividades cotidianas

são afetadas por estas transformações na esfera da informação, posto que dependem cada

vez mais dela e alimenta a espiral que faz com que a ação social seja cada vez mais

reflexiva. Porém, para que a informação seja reconhecida como recurso crucial e tenha

valor, é necessário que a esfera simbólica da ação humana se faça autônoma a respeito de

seus vínculos materiais. Não é apenas a existência de grande quantidade de informação, em

termos de conteúdo, o que a converte em um recurso, mas sim, é o nosso domínio dos

códigos que organizam esses signos, as informações e as dá sentido. Para o autor, todo

279
aquello que afecta a nuestra vida personal y relacional depende de nuestra capacidad de

atribuir sentido, de generar significado para nuestros actos, planes, sueños, etc. (Melucci,

2001:67).

Sendo assim, entendemos que o desconhecimento sobre o OP está relacionado com

a maneira como os indivíduos atribuem significados a este processo. Não queremos

afirmar que essa seja a única explicação para o desconhecimento, no entanto, consideramos

que é um elemento importante. De fato, nossa vida cotidiana é bombardeada de

informações, no entanto, não é a quantidade de informações que garante que a esfera

simbólica da ação humana se faça autônoma a respeito de seus vínculos materiais. É

preciso que o indivíduo, a partir de suas vivências, atribua significados às experiências, de

modo que possa ser reflexivo, crítico, autônomo no seu pensamento. Que tenha condições

de fazer suas escolhas a partir do seu pensamento e do seu desejo e não de uma forma

tutelada.

Por isso, o processo é complexo, porque a autonomia de pensamento leva a

autonomia de ação. E a fronteira dessa autonomia pode ser tênue, pois podemos nos

perguntar se as pessoas que participam do OP são reflexivas, são críticas ou apenas

reproduzem a ideologia dominante – porque nesse caso também seria alienação. Nos

perguntamos se, de fato, basta dizer que o OP é importante por que podemos decidir sobre

o dinheiro público, ou por que conquistamos melhorias para a comunidade, para que isso

seja um indicativo de pensamento autônomo, de emancipação. Acreditamos que não.

Pensamos que a complexidade do processo reside no fato de que a participação popular –

nos termos da Administração Municipal – exige um processo de formação da consciência

política para que possa sustentar o discurso da emancipação e da autonomia.

O OP é, para muitos entrevistados, um fórum de esclarecimento para a população:

280
...o Orçamento Participativo é importante pelo fato de que a comunidade dirige o

dinheiro. Via OP conseguimos as máquinas, pelo poder público (Silvio, trabalhador da

Unidade).

...tem coisas que fazem e dizem que ficam claras, que a gente fica sabendo o que

está acontecendo, esclarecem coisas sobre os direitos de cada um (Carolina, moradora)

...a gente precisa saber o que está acontecendo para reclamar os nossos direitos

(Vitória, moradora).

...é importante por que tu fica informado de tudo que vai acontecer em Porto

Alegre, para onde vai as verbas, fica por dentro de tudo que está acontecendo ou que vai

acontecer (Claudiomar, trabalhador da Unidade).

Retomamos, brevemente, a discussão iniciada na seção anterior. Afirmamos, a

partir da fala dos nossos entrevistados, que a informação é necessária para que o indivíduo

tenha esclarecimento sobre as coisas da vida pública. Mas não necessariamente o acúmulo

dessa informação fará alguma diferença na sua vida. O indivíduo pode saber do que trata o

processo e, justamente por isso, não querer se envolver; ele pode preferir preservar a sua

vida privada.

Se retomarmos a fala de Carolina, por exemplo, quando ela refere que tem coisas

que fazem e dizem que ficam claras, que a gente fica sabendo o que está acontecendo,

esclarecem coisas sobre os direitos de cada um, inferimos que esse conhecimento pouco

mudará a sua vida, se o nível de informação que ela possa adquirir não for processado de

forma que ela entenda o que representa essa informação para sua vida pública. Não basta

ter a informação, é preciso decodificá-la, é preciso significá-la dentro de um sistema de

relações interpessoais e comunitárias.

Assim, é possível acreditar que o indivíduo possa ter elementos que contribuam,

dentre outros elementos, para a vivência real de conceitos como cidadania, autonomia,

281
emancipação, ou seja, como refere Montero (2004), que possa ser um ator social

comprometido em um processo de transformação social e psicossocial que os capacita a

realizar mudanças em seu meio social.

O OP também é um fórum de descoberta da cidadania, da descoberta das

potencialidades, da auto-estima:

... aí por necessidade de uma vida melhor, a doutora Edite me convidou pra ir numa
reunião na Secretaria de Saúde. Antes eu era menos falante, a doutora Edite me
apóia até hoje, ela faz um trabalho comunitário na vila, pensei naquela época:
“vamos lá, eu vou de carro e volto de carro”. Mas ela fez ele falar na reunião, eu
disse bah, a senhora me trouxe, a senhora fala, não, fala o senhor que o senhor é
morador... ela fez a inscrição na marra e eu comecei a falar... meio tímido, e daqui a
pouco virou uma polêmica sobre o que eu tava falando... aí a doutora Edite me
incentivou a ir no OP, aí fomos na primeira reunião, ela me incentivou a falar dos
problemas da vila, aí eu falei da vila, das necessidades, que a gente vivia no meio do
barro, da lama, no meio do lixo, e o que a Prefeitura podia fazer por nós,
“precisamos de moradias melhores”. “A Vila dos Papeleiros foi gerada na reunião
da Saúde, a sementinha começou ali e a gestação foi no OP”. (Augusto, trabalhador
da Unidade).

Augusto continua nos contando sobre como esse processo pessoal teve seus

desdobramentos em um nível mais coletivo:

No OP, eles disseram: pra vocês terem legitimidade dentro deste fórum, vocês têm
que ter uma Associação, e a doutora Edite deu todos os caminhos pra montar uma
associação, ela conhecia o Paulo Guarnieri que era de outra Associação e podia
apoiar a criação da nossa... começamos a fazer reunião... todos acharam que seria
interessante ter uma Associação, começamos a procurar alguém de bastante tempo
na vila, porque eu tinha um ano e pouco de vila, aí apareceu o Pantanal que tinha
uns quinze anos de vila, chegou no dia da eleição, o Pantanal desapareceu bem na
hora da eleição, e todo mundo ali reunido resolveu me escolher. O Pantanal tava
escondido embaixo da cama, porque sabia que era difícil. Quando eu vi, eu era
presidente de uma comunidade! Ele sabia que era difícil e fugiu e eu que não sabia
que era difícil, acabei abraçando. E o que eu faço agora? Vamos a luta, disse a
doutora Edite. Hoje eu sou presidente até às 15:30 da tarde... depois deste horário,
eu sou papeleiro, porque eu tenho família pra sustentar, quando tem reunião do OP,
eu deixo o meu carrinho carregado, vou na reunião, e depois chego aqui às 23hs da
noite aqui... Às vezes tem um amigo que pega o carrinho pra mim e traz pra cá,
quando eu tenho reunião até tarde da noite. (Augusto, trabalhador da Unidade).

282
... e como essa ação coletiva resultou em melhorias para a sua comunidade e como

ele se tornou uma liderança comunitária:

Começamos a fazer as demandas... a primeira coisa que consegui foi o Galpão de


Reciclagem... a Associação Cristóvão Colombo demandou este Galpão aqui para os
papeleiros... era a Marta Busatto e o marido dela que eram presidentes ali, acharam
que a Vila dos Papeleiros tinha que ter um Galpão, então isso caiu de mão
beijada...quando eu assumi aqui a vila, no outro ano que eu era presidente, saiu o
Galpão ganho já... como a gente ganhou este espaço aqui e a CEEE precisa de um
espaço pra fazer uma casa de força ali pra geração de energia, a Prefeitura
regularizou toda esta área, a viação férrea saiu ganhando, tinha um grupo que
começou comigo, umas trinta pessoas, que era um grupo muito unido, que
participava comigo, mas tinha muitos que não acreditavam disso aí. Hoje tenho
muitas pessoas que estão do meu lado porque estão vendo as coisas acontecer, tenho
que fazer um baita agradecimento pelas pessoas que não acreditavam porque essas
deram força pra fazer, pra mim poder fazer e acontecer aquilo que eu dizia, porque
até hoje eu nunca menti pra esta comunidade. Nunca trouxe um fato não oficial pra
dentro da vila, tenho que dizer aquilo que tá no papel, porque o que tá no papel tá
garantido... (Augusto, trabalhador da Unidade).

Nilda, Elira, Valdomiro, Lauro e Serlene são exemplos de pessoas que percebem a

possibilidade de autonomia e de emancipação:

...não é o prefeito que sabe, é a comunidade quem sabe do problema da comunidade,


é a própria comunidade. É tão bom a gente dizer “tal época, tal OP eu consegui
isso”, é tão gostoso dizer isso (Nilda, moradora).

...no OP eu vou sempre, é importante, é fundamental esta política, é onde tu exerce a


tua cidadania, tu coloca o que a tua comunidade e a região precisa, não desenvolve
só a tua comunidade. Tu também aprende a dividir, faz parceria e isso abre a
consciência das pessoas, os moradores vão nas reuniões, tem crescido o número de
pessoas, independentemente de ter vínculo com a Associação, os moradores vão.
(Elira, trabalhadora da Unidade).

...o OP busca se consolidar nas comunidades, há reconhecimento na comunidade de


um espaço legítimo pra reivindicação (Valdomiro, trabalhador da Unidade).

...através da participação, da qualificação, ou maior número de processos


democráticos participativos, há maior número de informação que a população pode
ter para entender o macro e para entender o micro que envolvam a população de
uma forma organizada (Lauro, trabalhador da Unidade).
...a gente tem um espírito de melhorar e às vezes a gente leva muitos anos para
construir qualquer coisa (Serlene, moradora).

283
A fala de Serlene é significativa para a nossa análise, pois demonstra a

compreensão de que “dar-se conta” da possibilidade de autonomia é um processo, e é

demorado. Percebemos isso no cotidiano do OP ou de qualquer outro fórum de

participação popular: conseguir coisas demora, seja conseguir coisas para a comunidade,

seja conseguir que a população participe ou se torne autônoma.

Doralina participa do OP como trabalhadora e destaca a importância do OP para a

comunidade com a qual trabalha, na aprendizagem que esse processo traz para a

construção da cidadania:

O OP tem uma história legal: o OP é da região Humaitá, Farrapos e Ilhas... as Ilhas


sempre teve uma expressão muito pequena dentro do OP, de 700 pessoas das
reuniões do OP, as Ilhas conseguiam levar 100, quando conseguiam levar e, pra
conseguir alguma melhoria, conseguiam via articulação e porque os outros ficavam
com pena e as Ilhas sempre ocupou este lugar, mas eles queriam muito mudar a
imagem deles, principalmente por causa do filme do Jorge Furtado. Em 2002, eu
pensei “é até injusto eles irem no OP se nunca vão ganhar nada a não ser que... vá
umas quantas pessoas e tal... então eles já estavam querendo fazer algumas coisas
pra aparecer e tal e aí, via lideranças, fizemos uma caminhada até o OP, pra marcar
a presença das Ilhas no OP, colocamos umas 250 pessoas na rua, fechamos a ponte,
e a gente tem feito isso todos os anos quase, foi emocionante, a gente entrando no
OP, acharam que eu tava fazendo passeada contra o governo e tal... e hoje eles
entendem o processo do OP, mas as Ilhas não mais pediu alguma coisa, “nós
queremos ser vistos, queremos ser respeitados, queremos ser ouvidos, nós somos
cidadãos, nós somos excluídos de Porto Alegre, nós não temos água encanada e nós
moramos na capital...” e aí o Prefeito e todo mundo que estava apavorado porque já
estavam sabendo da caminhada, valorizaram a presença e aí as Ilhas conseguiu
colocar desenvolvimento econômico, Assistência Social e desde 2002 está sendo um
peso no OP e conseguiram várias coisas com isso, conseguiram trabalho com o
DMLU, mostrando que as Ilhas existem... o problema é que falta lei que garanta o
trabalho do educador social, porque as vezes a gente é contratada pra não procurar
fazer o trabalho de gestão, mas de dar um rancho, escutar, mas é só isso, o objetivo
não é se organizar... Tu tem que trabalhar a família, mas é impossível não trabalhar
nestas questões a comunidade... não tem que trabalhar a comunidade como se fosse
um grande hospital geral, como se fosse todo mundo igual, como se todo mundo
fosse doente, como se não fosse esse o produto de uma sociedade doente também...
(Doralina, técnica).

284
2. Escola e comunidade: uma parceria ideal ou real?

Apresentamos, neste item, a opinião dos entrevistados sobre a relação com a

Escola, com o intuito de investigar a relação que os moradores e trabalhadores mantêm

com instituições que atuam na comunidade.

Na Administração Popular, as políticas de educação procuraram inovar na relação

entre a escola e a comunidade. A proposta da Escola Cidadã rompe com modelos

tradicionais de ensino, mas percebemos no dia-a-dia da escola um distanciamento entre o

ideal e o real.

Os técnicos entrevistados também se manifestaram em relação à importância da

escola na comunidade. A maioria refere que a escola é importante no sentido de melhorar a

condição de vida dos indivíduos, a partir da reflexão, da autonomia, da participação. No

entanto, denunciam a dificuldade que a escola tem de entender seu papel dentro deste

contexto, a fragilidade desta instituição que não consegue responder a contento as

demandas que lhes são feitas. A escola está cristalizada em modelos tradicionais de ensino-

aprendizagem e de preconceitos sobre as comunidades mais carentes. Muitos profissionais

entendem que muitos de seus alunos, filhos de papeleiros ou recicladores, não serão

grande coisa na vida, logo, o mínimo que fizerem já está suficiente. Não há investimento

nas potencialidades do indivíduo e a escola, infelizmente, a cada dia que passa se distancia

das expectativas que os pais colocam nela, de que a escola é importante para que seus

filhos tenham um futuro melhor. Destacamos as falas de Mariana como representativa da

opinião de outros técnicos sobre esta idéia:

...a Escola tem a questão da superação, a política de habitação te dá a melhoria de


habitabilidade e a escola te dá a condição da superação daquela situação de
vulnerabilidade, a escola é fundamental pra que estas comunidades tão excluídas,
tão fragilizadas na suas relações sociais e econômicas, que elas possam ter
efetivamente condições de superar, de buscar melhores condições de vida, condições
sociais... A escola tem este potencial de ser uma referência diferente daquela

285
referência que as pessoas tiveram... é uma fonte, ela pode se transformar em
desencadeador de várias questões, de Educação Ambiental, dos resíduos sólidos...
de lidar com o lixo... na verdade são prestadores de serviço do planeta... a questão
da preservação, da reutilização do material... a escola pode proporcionar debates
em termos destas questões ambientais... (Mariana, técnica).

Nos deparamos com um cenário de contradições e conflitos, uma vez que o OP é

considerado pela Administração Popular, uma escola de cidadania. A expectativa que se

coloca na escola é, por isso, muito grande. Espera-se da escola que ela possa dar elementos

para que a comunidade escolar seja crítica, reflexiva, participativa, pois acredita-se que

esses são elementos importantes para o desenvolvimento da autonomia e emancipação.

Conforme pesquisa feita por uma ONG em parceria com a Administração Municipal76,

professores e alunos representaram 11,5% do universo da 1a Rodada do OP em 2000. Além

disso há o OP da própria Secretaria Municipal de Educação, destinado a programas

elaborados e disputados pelas escolas, tendo reunido em 2000, 12.463 pessoas nas

assembléias respectivas.

Detalhamos a proposta da Escola Cidadã por dois motivos:

 A maioria das escolas que pesquisamos são municipais, apenas duas são

estaduais e nenhuma particular;

 Estamos analisando as políticas públicas municipais;

A Escola Cidadã possui uma proposta político-educacional77 que visa um

movimento dialético de ação-reflexão-ação, sendo concebida como uma instituição social

que se insere em um contexto mais amplo do que o contexto puramente acadêmico. Um

contexto sócio-político-econômico-cultural do qual a escola não está dissociada, sendo

expressão dos seus avanços e recuos, contendo, inclusive, uma face conservadora e outra

progressista e todas as demais contradições sociais. Nesta visão de currículo processual, a

76
De olho no orçamento (Cidade – Centro de Assessoria e Estudos Urbanos, Porto Alegre), ano 5, no 9, dez-
99, p. 3.
14
Fonte: Porto Alegre (1996).

286
Rede Municipal de Ensino propõe a estrutura de três Ciclos de Formação78, tendo cada

ciclo duração de três anos, o que amplia para nove a escolaridade básica obrigatória de

Ensino Fundamental.

Em cada Ciclo de Formação existe um conjunto de princípios e conhecimentos que

norteiam, complexificam e aprofundam o trabalho pedagógico. Esses princípios não podem

se tornar cristalizados pois, à medida que os educandos chegam aos objetivos propostos

para cada ciclo, suas vivências deverão ser enriquecidas com outras informações e

conhecimentos, dando a necessária continuidade ao processo de aprendizagem.

De acordo com a concepção da Escola Cidadã79, o ensino está organizado por

Complexos Temáticos nos Ciclos de Formação. Estes pressupõem uma visão de totalidade

e abrangência, através do olhar particular de cada área do conhecimento, olhar esse que

rompe com o conhecimento fragmentário. A avaliação do aluno, neste processo, é

concebida como processual, contínua, participativa, diagnóstica e investigativa. Estas

informações propiciam o redimensionamento da ação pedagógica e educativa,

reorganizando as próximas ações do educando, da turma, dos educadores, do coletivo no

78
Para um maior detalhamento sobre a relação entre a estrutura curricular por ciclos e as faixas etárias, ver
Porto Alegre (1996), p. 13-25 e 59-64.
15
A concepção de Escola Cidadã é o resultado de um processo de discussão realizado com o conjunto das
escolas da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre, a qual é entendida como espaço vivo e democrático
privilegiado da ação educativa que: garanta a todos o acesso ao ensino de qualidade que favoreça a
permanência do aluno; seja gratuita, laica e pluralista; voltada para o trabalho das classes populares uma vez
que estas têm sido historicamente excluídas dos bens produzidos pela sociedade como um todo; propicie
práticas coletivas de discussão, garantindo a participação de toda a comunidade escolar; viabilize a
descentralização do poder, no que se refere às definições do seu projeto de escola, tanto na relação com o
governo/escola como descentralização das responsabilidades da busca de soluções; contribua, através de
objetivos estratégicos e articulados com outras organizações da comunidade, para a construção de uma
sociedade diferente na justiça social, na igualdade e na democracia; oportunize o acesso ao conhecimento,
sua construção e recriação permanente envolvendo a realidade dos alunos, suas experiências, saberes e
cultura, estabelecendo uma constante relação entre teoria e prática; que tenha espaços de formação para os
educadores, na perspectiva da construção de sujeitos críticos e de investigação permanente da realidade
social, tendo como objetivo a qualificação da ação pedagógica e o resgate de sua cidadania; que busque
superar todo tipo de opressão, discriminação, exploração e obscurantismo de valores éticos de liberdade,
respeito à diferença e à pessoa humana, solidariedade e preservação do ambiente natural (Porto Alegre, 1996,
p. 35).

287
Ciclo e mesmo na escola, no sentido de avançar no entendimento e desenvolvimento do

processo de aprendizagem.

Essa abordagem leva-nos a propor que a avaliação não fique centrada no educando
e no seu desempenho cognitivo, mas que seja um re-olhar sobre o conjunto da
escola, pois as situações de aprendizagem e produção de conhecimento não são
responsabilidades de apenas um dos segmentos da comunidade escolar (...). Isso
aponta para a necessidade de compreender a avaliação como uma ação humana
concreta e contextualizada, portanto, inserida no cotidiano da escola (Porto Alegre,
1996, p. 28).

Além disso, o conhecimento seria um processo humano, histórico, incessante de

busca de compreensão, de organização, de transformação do mundo vivido e sempre

provisório. Teria origem na prática do homem e nos processos de transformação da

natureza, seria uma ação humana atrelada ao desejo de saber.

De qualquer forma, a proposta da Escola Cidadã procura respeitar a caminhada de

cada sujeito de um determinado grupo. Entende que esta é uma aprendizagem necessária e

fundamental em uma vivência dentro de uma perspectiva interdisciplinar, sendo necessário

eliminar as barreiras que se criam entre as pessoas para o estabelecimento de uma relação

dialógica. Na interdisciplinaridade ter-se-á uma relação de reciprocidade, de mutualidade,

que possibilitará o diálogo entre os interessados, proporcionando trocas generalizadas de

informações e de críticas contribuindo para uma reorganização do meio científico e

institucional a serviço da sociedade e do homem.

O projeto político-administrativo-pedagógico deverá emergir do todo, dentro de

uma visão contextualizada do processo educativo, sustentado teoricamente, fundamentando

a prática docente. O seu referencial teórico deve ser produto da construção coletiva dos

indivíduos, voltado para o interesse das classes populares. Propõe-se um projeto

pedagógico onde o currículo esteja historicamente situado e culturalmente denominado,

que seja um ato político, que objetive a emancipação das camadas populares. E a escola

288
aparece, neste contexto, como o espaço destinado à socialização do saber sistematizado,

saber que tem caráter permanente e que resiste ao tempo. A escola deve efetivar a

distribuição social do conhecimento dentro de um projeto emancipador, destruindo a

hegemonia do saber dominante informando intelectuais de outras classes, habilitando-os a

sistematizar organicamente a concepção de um mundo dessas classes.

A proposta educacional possibilita, em teoria, a participação dos segmentos da

escola. Busca um processo pedagógico centrado na realidade e demandas dos alunos. A

partir dos fundamentos da Escola Cidadã, é possível perceber que ela está inserida em um

contexto social cuja filosofia é a de participação, da escola para todos, da inclusão ou não-

exclusão, da significação da escola para a comunidade escolar a partir de seus próprios

interesses e vivências. As falas de Adriana e Doralina anunciam alguns dos problemas que

acontecem no dia-a-dia das escolas. Os conflitos entre as concepções de Educação,

indivíduo e sociedade que os profissionais e que os alunos têm, que na maioria das vezes

são divergentes, e isso repercute de forma conflitiva no cotidiano da escola; os valores dos

alunos e de seus familiares, que denunciam a fragilidade social e psicológica com a qual,

muitas vezes, os profissionais não conseguem lidar de maneira eficaz; o contexto social no

qual a escola está inserida, e que a remete para uma nova concepção de Educação:

O papel da escola hoje é lutar contra a evasão escolar, porque o meio propicia que
eles optem por não mais ficar na escola, então o papel da escola é fazer com que
eles achem esse lugar viável e necessário para a vida deles... trabalhamos que a
escola não é um trampolim para conseguir um emprego assalariado, numa visão
muito capitalista, de trabalho, fazer com que as comunidades consigam encontrar
alternativas para se auto-gerir... construir possibilidades para trabalhar
coletivamente para que se busquem maneiras de sobreviver... De conquistar
autonomia, de entender que cada um pode fazer sua história e criar possibilidades...
(Adriana, técnica).

... os adolescentes têm um problema sério ali [na escola], eles estão sem uma
referência positiva... eles dizem coisas do tipo: eu sufoquei um gatinho e adorei ver
ele morrer, de se sentir bem, sentir prazer de ver o limite da vida, o limite entre a
vida e a morte, até porque eles testemunham a insegurança pela falta de trabalho do

289
pai e mãe, alcoolismo, violência doméstica e tal... e tem escola que não acredita
neles como criança e adolescente, já partem do pressuposto de que são um bando de
vagabundos mesmo, que carroceiros não tem futuro mesmo... tem situações que
aconteceram na escola, como por exemplo, eles colocarem bixiguinha com água no
ventilador, a escola chamar a polícia por causa de uma briga de duas gurias de 7
anos, tem problema de drogas, que eles trazem de casa, problemas na relação
professor e aluno, professor e professor, pais e professor, então, a escola tá com
problema sério... tem cada história com aquela escola que eu me irrito mas tenho
que atender... (Doralina, técnica).

Portanto, ao mesmo tempo em que pretendemos analisar a relação dos indivíduos

com as instituições que atuam na comunidade – e por isso consideramos as escolas

estaduais; também pretendemos enfatizar as políticas públicas municipais – e por isso

consideramos em separado a Escola Cidadã.

Os nossos entrevistados acreditam que a escola é uma instituição importante. Os

motivos são diversos: desde a importância dada pelo fato de se ter um futuro melhor, ou de

ter esclarecimento suficiente para lidar com quem tem estudo ou para saber conversar, ou

para desenvolver a consciência ambiental nas pessoas:

...a escola serve pra tirar as pessoas das ruas, educando as pessoas, elas não podem
ser ludibriadas, as pessoas com estudo usam palavras que tonteiam o povo, então a
educação ajuda (Silvio, trabalhador da Unidade).

É fundamental. Tanto que tem muitos moradores que se estivessem mais grau de
estudos, não seriam moradores de rua (Lauro, trabalhador da Unidade).

Gerci acredita também que o papel da escola é proporcionar um futuro melhor, mas

que esse futuro seja a construção de uma vida com escolhas autônomas, que o indivíduo

possa perceber-se com dignidade e com autonomia.

...proporcionar experiências de participação de construção da cidadania de


aprendizagem, que possam conseguir, também porque a cidade é competitiva, não
sendo considerados os coitadinhos, mas ter o seu espaço de dignidade, que saibam
conviver e contribuir para a construção de conceitos e aprendizagem do que é ser
cidadão (Gerci, técnica).

290
É esperado80 da escola que essa cumpra o papel de orientar seus alunos a

valorizarem o trabalho de reciclagem e desenvolver consciência ambiental, percebemos

uma contradição, pois a educação ambiental não é trabalhada em parceria com as

comunidades, mesmo que a maioria dos alunos tenha contato, na sua comunidade, com a

reciclagem.

Na região em que Roseli mora, a parceria é com escola particulares, no sentido da

escola levar o lixo seco para ser reciclado, não no sentido de desenvolver consciência

ambiental a partir de uma realidade que está no seu contexto. E por parte das escolas

municipais, não há trabalho de parceria com a Unidade de Reciclagem de Lixo:

Escola é importante porque ensina muita coisa, se eu fosse nova agora eu


continuaria estudando, muita coisa tu aprende, não pelo estudo, mas muita coisa tu
aprende, não sei fazer conta, leio pouco, a minha filha de 13 anos tá na 6a série, eu
incentivo muito ela de estudar... já tentei fazer supletivo... já pensei em voltar a
estudar...tem muita coisa que eu estudei, eu não sei, e os parentes me tiraram do
colégio, porque eu tinha que trabalhar, por isso eu fugi dos parentes... não sei o
nome da escola da minha filha... só uma vez trouxeram os alunos pra conhecer a
Reciclagem... uma vez fizeram uma gincana e tal... a turma da minha filha não veio
ainda...(Roseli, trabalhadora da Unidade).

Augusto comenta da parceria que tem com a escola que atende a maioria dos alunos

da comunidade. A relação é distante. Ele, que é presidente da Associação, é chamado na

escola, para falar sobre a reciclagem: o colégio Camila é o que mais tem alunos

papeleiros... constantemente eu sou chamado lá por algum projeto... há uma preocupação

com o deslocamento quando se mudarem pras casas de passagem... (Augusto, trabalhador

da Unidade).

A escola, na comunidade em que Robson vive, também está distanciada da

comunidade na qual está inserida: a escola é bom porque ensina as pessoas a ler pra quem

80
O Regimento Interno da Escola Cidadã prevê que ela ajude a desenvolver indivíduos autônomos,
reflexivos, críticos e conscientes dos problemas sociais, de âmbito local ou mundial. Quando nos referimos é
esperado, queremos dizer que esse é um desdobramento de uma política de educação.

291
não sabe nada. A escola aqui se envolve em algumas atividades da comunidade, mas eu

não sei direito (Robson, morador).

A fala de Filomena confirma a percepção de nossos entrevistados: Secretaria e

comunidade? Está muito longe do que se pretende, são poucos os momentos que nos

encontramos. As reuniões, quando acontecem, é quando a comunidade está em uma

situação de risco, por exemplo, na história da remoção da Vila Dique... em vez de fazer

uma prevenção a gente tá sempre tentando curar... (Filomena, técnica).

Bruna (trabalhadora da Unidade) refere os limites da parceria com a escola. Diz que

alguns professores levam seus alunos na Unidade de Reciclagem para ver como funciona,

como é o trabalho, mas não levam lixo, e tampouco, reciclam na escola.

Nos perguntamos, diante destes depoimentos, que tipo de trabalho realmente a

escola está fazendo: o que os professores desenvolvem em sala de aula em termos de

Educação Ambiental? Que tipo de percepção têm das pessoas que trabalham na

reciclagem? Será que a escola está conseguindo cumprir seu papel de desenvolver um

pensamento crítico, de formar cidadãos conscientes, críticos e reflexivos sobre as coisas

que vivem no seu cotidiano? Pelas falas dos entrevistados, certamente, a resposta é não: a

escola é importante porque ensina as crianças a lidar com o lixo, como se cuidar, de vez

em quando tem visita das escolas pra ver como funciona a Reciclagem, buscando

informações pra poder ensinar pros alunos... mas não trazem lixo... (Bruna, trabalhadora

da Unidade).

Para Norton, a escola não tem significado, não percebe que a escola pode fazer

diferença na sua vida. A sua vivência desmonta o discurso da escola. Ele fala que a escola

é importante, muito mais por achar que é isso que a pesquisadora quer ouvir, do que

realmente alguma coisa na qual acredita. Norton é um exemplo do quanto o discurso e a

ação da escola está distante da vida cotidiana de seus alunos: a escola é importante mas até

292
me desinteressei, parei de ir, mas eu tenho meus amigos que já tão terminando, eu sei que

faz parte, que é importante, mas... (Norton, morador).

A fala de Patrícia demonstra o problema pelo qual as escolas passam hoje em dia

nas comunidades. A família delega à escola a responsabilidade de educar o filho. A escola

entende que esse não é seu papel, mas num misto de não saber bem o que fazer, acaba

assumindo papéis que não lhe pertence e acaba esquecendo que seu papel primeiro, é

ensinar: quem educa mesmo é a escola, por que quando tu chega em casa, tu tem pouco

tempo pra ficar com teu filho, pra passar alguma coisa pra ele; até os 5-6 anos tu cria, e

depois tu entrega pra escola e é a escola que cuida do teu filho. Eu disse pra professora:

cria como eu crio em casa (Patrícia, moradora). Como a escola vai educar como ela cria,

se não há base de referência, não há parâmetros de educação dados pela família?

Taís também coloca em segundo plano o papel de ensinar, para ela, estando na

escola, a criança não está na rua roubando, traficando ou vagabundeando, além de ter

comida, então já que está lá mesmo, aproveita e já estuda. Como se esse não fosse o

compromisso primeiro da escola. A escola não serve pra estudar, serve pra tirar crianças da

rua, então estando na escola, não importa muito o que estão fazendo lá: pras crianças

principalmente, em vez de estarem na rua roubando pra comer, então vão pra escola, lá

tem comida, tem lanche, então vai lá, come e já estuda... (Taís, trabalhadora da Unidade).

Mas há escolas também que fazem parcerias importantes com a comunidade. As

falas de Estela, Cléia, Bárbara e Vitória, são exemplos disso: a escola é muito importante,

porque se não tivessem a escola muitas pessoas iam ser analfabetas porque não estudaram

né. A escola tem o projeto TIM, “pequenos embaixadores”, que as crianças tocam, fazem

apresentação... (Estela, moradora).

...a percepção que as pessoas tem é muito boa, antes as casas eram um chiqueirinho
e agora todas as famílias que se organizaram e procuraram ir à luta e ir atrás de seu
ideal, hoje em dia tem uma casa pra morar (Cléia, trabalhadora da Unidade).

293
...meu filho faz parte de um grupo no colégio que explica como é a reciclagem, por
que no começo ele se sentiu humilhado, por que se ele aparecia com um tênis, os
colegas diziam que não podia ser comprado por que a mãe trabalhava no lixo e ele
sentiu a necessidade de explicar como era o trabalho com o lixo (Bárbara,
trabalhadora da Unidade).

...um sonho de aprender a ler e escrever, porque a gente passa por muita
humilhação (Vitória, moradora).

A escola é geralmente o primeiro espaço público81 com o qual a pessoa se defronta.

O modo como as famílias vêem as estruturas escolares mostra as contradições das relações

público/privado. Algumas famílias ainda esperam da escola uma rigorosa disciplina na

educação de seus filhos. Outras famílias criticam a escola, sobretudo a escola pública, pela

precária qualidade do ensino, que não prepara para o mercado de trabalho. Ou então

creditam na escola a responsabilidade dos filhos sucumbirem ao mundo das drogas e da

violência. Há famílias que querem apenas um lugar para deixar os filhos durante o dia.

Tanto numa como noutra perspectiva, a relação com a escola é essencialmente

individual. São pais isoladamente preocupados, ou não, com a escola de seus filhos. A

escola, por sua vez, ou reage em conformidade ao que se espera dela ou das críticas que

recebe, ou seja, faz um trabalho que não produz mudanças significativas na vida de seus

alunos, tampouco da comunidade; ou tenta superar essas críticas de modo a desenvolver

um trabalho sério e competente com os alunos, que possa refletir também em suas vidas

fora da escola.

Trouxemos o depoimento de Adriana para exemplificar que há movimentos da

Escola para implementar ou manter algumas políticas voltadas para a comunidade, no

81
Entende-se aqui por espaços públicos, conforme J. Habermas, os espaços nos quais se produz a opinião
pública. Neste sentido, podem ser tanto espaços públicos estatais (formais, tipo parlamento, conselhos
institucionais) como não-estatais (tipo fóruns ou conselhos populares, ou ainda, os espaços regionais e
temáticos do Orçamento Participativo); o que os define é a existência de um público de pessoas produzindo
através da argumentação uma opinião mais ou menos consensual entre os participantes.

294
entanto, esses movimentos são viabilizados pelos técnicos da instituição, o que confirma a

importância que atribuímos aos profissionais:

Relação da Secretaria com a comunidade? Não existe. Quando são chamadas,


comparecem. As iniciativas da escola não é iniciativa da SMED nem da Prefeitura, é
iniciativa da escola. Não existe movimento espontâneo ou política da Secretaria, o
que existe são movimentos isolados de algumas pessoas, mas não é espontâneo, não
é política... (Adriana, técnica).

A escola, recentemente, vem desenvolvendo um papel mais comunitário na sua

relação com a comunidade escolar. A presença da comunidade na escola é mais constante,

seja em atividades diversas que ocorrem na escola e contam com a presença e auxílio dos

pais e alunos, seja, em atividades de finais de semana, nos projetos de escola aberta à

comunidade. Mas para que a escola constitua-se, de fato, como espaço público, não basta

que as portas estejam abertas, é preciso trabalhar constantemente a construção deste

público. Significa a capacidade de articular os vários setores organizados dentro das

comunidades e mesmo na cidade para uma relação pró-ativa com a escola, o que só é

possível com um planejamento participativo em que a comunidade escolar detenha poder

real de gerenciamento.

Acreditamos que a parceria real entre escola e comunidade seja possível, é um

processo complexo e demorado, mas é possível. Temos exemplos de experiências exitosas

que nos levam a fazer essa afirmação, no entanto, sabemos que não é apenas uma questão

de formação profissional, mas de concepções. E essas concepções advêm dos significados

que atribuímos as coisas, por isso a complexidade que envolve esse cenário.

3- A relação com o Conselho Tutelar: quase sempre uma relação conflituosa

O Conselho Tutelar82 é um órgão importante da municipalização do atendimento a

crianças e adolescentes, pois se trata de uma equipe (ou equipes, pois os municípios podem

82
Fonte: http://www.portoalegre.rs.gov.br/conselho_tutelar/default.asp?proj=573&secao=1662

295
ter tantas quantas forem necessárias ou possíveis) autônoma e independente, que cobrará

dos responsáveis pela efetivação dos direitos elencados no Estatuto da Criança e do

Adolescente - ECA, encaminhando, quando necessário, práticas de atos ilegais ou

criminosos à Justiça.

O Conselho Tutelar atua caso a caso, somente no âmbito do Município, atendendo e

dando os encaminhamentos pertinentes à situação. Assim, o Conselho Tutelar recebe

denúncias de violação de direitos, tais como violência física, psicológica e sexual,

negligência, abandono ou a própria conduta, apurando e encaminhando aos órgãos

competentes prestarem o atendimento à necessidade que a situação apresenta.

As atribuições do Conselho Tutelar estão expressas no artigo 136 do ECA83.

O ECA é o resultado de uma ampla mobilização da sociedade, vindo a substituir a

legislação expressa no Código de Menores. A criança e o adolescente passam a ser tratados

como cidadãos e a família, a sociedade e o Estado são responsáveis pelo atendimento das

condições plenas para o desenvolvimento da criança e do adolescente.

Porto Alegre foi a primeira capital brasileira e implantar o Conselho Tutelar,

através da Lei Municipal n.º 6787/91, em 11 de janeiro de 1991. Entrou em funcionamento

a partir de agosto de 1992. O município tornou-se referência nacional84 no que se refere ao

conjunto de ações de poder público e da sociedade civil para a garantia dos direitos da

criança e do adolescente.

83
A Lei Federal n.º 8069/90 revolucionou o direito infanto-juvenil, inovando quanto a forma de ver e tratar a
criança e o adolescente, ao adotar a concepção da doutrina da proteção integral. Esta nova visão é baseada
nos direitos próprios e especiais da criança e do adolescente, os quais, na condição peculiar de pessoa em
desenvolvimento, necessitam de proteção diferenciada, especializada e integral. A nova doutrina, baseada na
total proteção aos direitos infanto-juvenis, tem seu alicerce jurídico e social na Convenção Internacional
sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembléia Geral da Nações Unidas no dia 20 de novembro de
1989. O Brasil adotou o texto, em sua totalidade, pelo Decreto n.º 99.710 de 21 de novembro de 1990, após
ser ratificado pelo Congresso Nacional (Decreto Legislativo n.º 28, de 14 de setembro de 1990. Dessa forma,
o novo instrumento legal volta-se para o desenvolvimento da população jovem do país, garantindo proteção
integral a todas crianças e todos adolescentes.
84
Porto Alegre recebeu por dois anos consecutivos – 1999 e 2000 – o prêmio Prefeito Criança, concedido
pela Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança.

296
Quanto à estrutura, o Conselho Tutelar está vinculado financeira e

administrativamente à Prefeitura Municipal de Porto Alegre, através da Secretaria do

Governo Municipal, que coloca à disposição toda a estrutura necessária ao funcionamento

do órgão. Conta com uma Equipe de Apoio Operacional encarregada pelas questões

administrativas, e uma Equipe Técnica encarregada pela assessoria aos Conselheiros

diante das dificuldades dos casos atendidos.

Desde a implantação do Conselho Tutelar, em Porto Alegre, a cidade está dividida

em oito microrregiões85, cada uma atendida por um colegiado de cinco Conselheiros

Tutelares, eleitos pelos cidadãos porto-alegrenses, através do voto direto universal

facultativo para mandato de três anos, permitida uma recondução.

A competência de atuação dos Conselheiros Tutelares está circunscrita aos limites

do Conselho Tutelar para o qual foram eleitos, ressalvando o Plantão Centralizado e as

notificações e/ou visitas para instrução de expediente em andamento. Bem como,

observando o que dispõe o ECA, o Caderno de Procedimento e o Regimento Interno

aprovado pela Assembléia Geral da Coordenação dos Conselhos Tutelares. Por não se

constituir órgão de Justiça, o Conselho Tutelar não julga nem processa. Sua tarefa é aplicar

e acompanhar as medidas de proteção previstas no ECA86.

Os Conselhos Tutelares fiscalizam entidades da sociedade civil e governamentais

quanto a sua atuação no atendimento à criança e ao adolescente, bem como tem a

atribuição de assessorar o Poder Executivo Municipal na proposta orçamentária para

planos e programas de atendimento dos direitos da criança e do adolescente. Existem ainda

as Comissões e Grupos de Trabalho para estudos e/ou execuções de atribuições e

procedimentos relativos à ação do Conselho Tutelar. Atualmente, existem duas comissões

constituídas na estrutura do Conselho Tutelar: Comissão de Educação e Comissão de


85
As microrregiões do Conselho Tutelar são as mesmas do OP.
86
No artigo 101, I ao VII; artigo 129, I ao VII, e artigo 136.

297
Políticas Públicas e Fiscalização. Todas são compostas por um representante de cada

microrregião. Tanto os grupos como as comissões terão sua composição formada conforme

a necessidade.

A Coordenação do Conselho Tutelar, composta por um conselheiro tutelar de cada

uma das oito microrregiões tem, dentre as suas atribuições, prestar contas, semestralmente,

dos trabalhos realizados pelos Conselhos Tutelares, enviando relatório ao Executivo

Municipal, ao Legislativo e ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do

Adolescente (CMDCA), bem como à comunidade em geral, avaliando a necessidade de

sugerir medidas para a melhoria e aperfeiçoamento das atividades desenvolvidas pelos

Conselhos.

De acordo com nossa pesquisa, pudemos perceber que a relação da comunidade

com o Conselho Tutelar, quase sempre está definida por tensões que retardam um trabalho

de parceria. A relação com o Conselho Tutelar depende da vivência que os nossos

entrevistados têm com esse Conselho. A maioria pensa, no entanto, que o Conselho Tutelar

faz muito menos do que deveria e poderia fazer:

...o Conselho Tutelar é um cabide de emprego como está hoje, porque eu conheço
um monte de gente que trabalha com criança e que não se elege a conselheiro...
(Augusto, trabalhador da Unidade).

...se conselho fosse bom ninguém dava, vendia... o Conselho não tira o filho de uma
mãe, mas ajuda... CT é bom pra umas partes, é ruim pra outras... (Roseli,
trabalhadora da Unidade).

... já passei várias vezes pelo Conselho Tutelar, ajudou um pouco né senão de
repente... muitas vezes que eu tava meio descontrolado, eles arrumavam uma coisa
pra eu fazer... estar descontrolado é saí por aí, fazia umas trapalhadas aí... (Norton,
morador).

... nunca tive contato, toda vez que alguém procurou, tem vezes que não foi atendido,
tem toda uma burocracia... (Magda, moradora).

298
Há os que acham que o Conselho estragou as crianças que passaram a ser mais

ousadas: ... uma parte é bom, mas a outra parte, eu acho que eles dão muita ousadia pras

crianças... das crianças se meterem nos assuntos dos adultos, dos pais não poderem

educar, bater e tal... (Estela, moradora).

Para os técnicos que trabalham com as comunidades, o Conselho Tutelar é muito

menos participativo do que deveria ser. É uma instância que deveria ter um papel

importante na comunidade, contribuindo para que as famílias desenvolvessem a

responsabilidade sobre a educação de seus filhos, desenvolvendo um trabalho de prevenção

de problemas sociais que envolvem crianças e adolescentes, mas que, no entanto, não esta

cumprindo esse papel e dá muita ênfase a um papel mais curativo e de modo repressivo.

Selecionamos a fala de duas técnicas para representar esta idéia:

O Conselho Tutelar está infelizmente pendendo pra uma medida mais curativa, um papel da
punição, da repressão, e é uma lástima porque eles poderiam fazer um trabalho mais
preventivo, ter uma relação melhor com os serviços, entendem as coisas de uma forma muito
fragmentada, agressiva até... que acaba não construindo, que acaba distanciando os
conselheiros dos serviços, tu perde um potencial imenso que é um recurso humano
substancial, são 40 conselheiros que poderiam estar muito mais engajados e contribuindo
pro serviço público... (Mariana, técnica).

... estão na rede... está sendo positiva esta gestão... a gestão passada desarticulou muito...
falta não o conhecimento, mas a paixão pelo trabalho... de entender que se existe limites,
tem que trabalhar estes limites, e a falta deste papel dá um furo muito grande pra rede, dá
uma ansiedade, uma insegurança, uma desproteção pras pessoas... (Doralina, técnica).

A nossa intenção, nessa análise, é mostrar que tanto a escola como o Conselho

Tutelar são instituições que estão desarticuladas da comunidade. E são as que mais

deveriam estar em sintonia com as questões comunitárias. A escola não discute educação

ambiental, não trabalha a consciência ambiental e, muito menos, a política. Falar de

política é estar fazendo campanha política, portanto, prefere-se boicotar a discussão e o

conhecimento. O aprendizado desta forma, fica pela vivência política dos pais, da

299
participação nas reuniões do OP, ou pelo que vêem na televisão e pelos aprendizados

advindos das políticas assistencialistas.

A educação ambiental faz parte de uma política pública que envolve também a

questão da habitação, trabalho, saúde, mas que é totalmente negligenciada pela escola.

Mais grave ainda é o fato de que a escola reproduz uma ideologia dominante que segrega,

que demarca cada vez mais o distanciamento entre as classes sociais. Não acreditamos no

fim do abismo que existe em relação às diferenças sociais, mas podemos minimizar seus

efeitos, podemos melhorar a qualidade de vida de todos, mesmo com a existência das

diferenças sociais e econômicas.

A escola está aí, teoricamente, para trabalhar a emancipação. Mas isso é discurso e

desejo de alguns, não é realidade. A verdade é que a escola não é parceira em projetos

emancipatórios. Critica as políticas voltadas para isso, não consegue trabalhar e têm

profissionais enraizados em posturas retrógradas que não querem mudar a sua prática, por

que a mudança gera desacomodação e envolvimento, e há muitos profissionais que não se

dispõem a mudar. Além disso, uma grande parte não vê na educação uma profissão e sim

um “bico”, e as conseqüências da falta de qualificação profissional reflete o tipo de prática

que o professor tem na sua sala de aula. E, o que é mais grave, uma parte desses

profissionais não acredita em discursos emancipatórios, de autonomia e de cidadania.

Portanto, fazer o mínimo já está suficiente, pois disso, eles não vão passar nunca mesmo.

Assim, não há como viabilizar projetos sociais, ambientais, que passem por reflexão e

práxis. Os alunos e a família reagem de acordo com o que a escola pensa, assim, não há

parceria, não há envolvimento, não há compromisso, e sim, o caos!

Há políticas públicas, mas há poucos profissionais que acreditem nelas e que as

viabilizem. A escola é a instituição que tem condições de organizar o pensamento em

direção a esta discussão, pois é onde o conhecimento científico circula, é o lugar da práxis.

300
Mas é necessário estabelecer uma linguagem comum entre pais, alunos e trabalhadores da

educação. Uma tutela excessiva dos professores, por exemplo, pode determinar um viés

muito corporativo na organização da vida escolar. Delegar todo poder aos pais e alunos,

por outro lado, pode gerar uma ditadura do senso comum, retirando do espaço da escola

sua especificidade educativa.

No entanto, a escola não está conseguindo viabilizar isso, por isso inferimos a

importância do profissional, pois sem essa mediação é difícil acontecer a política. O

discurso se esvazia em práticas isoladas, quando estas existem.

Da mesma forma, o Conselho Tutelar também tem profissionais que reproduzem o

status quo, não desenvolvem consciência, não estimulam a responsabilidade sobre nenhum

processo da vida das pessoas, o que dificulta bem mais o nível de participação coletiva,

ora, se não há comprometimento com seus filhos, com sua família, consigo mesmo, como

o indivíduo pode ter condições de se comprometer com a comunidade, com os outros?

Impossível.

O Conselho Tutelar tem medidas muito mais punitivas, ameaçadoras do que

preventivas. Isso também repercute no imaginário das pessoas, principalmente, das

crianças e adolescentes em formação, que aprendem esse modelo de relação, logo, a

relação que estabelecem com os outros e com a sociedade também é de descompromisso,

que cedo ou tarde, acarreta em punição. Não é trabalhado o sentimento de pertencimento

em relação à sociedade, mas é exacerbado o sentimento de exclusão.

4- A comunidade e a resolução de problemas

Investigaremos, nessa seção, a mobilização dos nossos entrevistados – seja em

nível individual, seja em nível coletivo – para a resolução de problemas na sua

comunidade, bem como a forma como lidam com situações de violência.

301
Iniciamos a apresentação das opiniões, no entanto, com a fala dos técnicos que, por

não morarem nas comunidades, obviamente, têm uma percepção diferente dos moradores,

uma visão mais distanciada e fundamentada na relação institucional. O OP é a instância

mais mencionada como um canal de comunicação entre comunidades e Administração

Municipal, na busca de resolução de problemas:

Resolvem problemas muito no OP, e muito porque as comunidades sabem que se


cobrar elas acabam levando, é uma prática que extrapola o próprio OP, as
comunidades sabem que se elas vierem em um determinado órgão, se pressionarem
elas acabam conseguindo, na medida que é possível... por exemplo, essa coisa de ter
muito mais gente trabalhando no lixo do que no andar do OP, hoje a gente utiliza o
OP também pra atender estas demandas destas comunidades que não foram no OP,
mas que vieram aqui falar conosco, dizer que eles também trabalham com o lixo,
querem continuar trabalhando com o lixo, e querem trabalhar de forma mais
organizada e pra isso alguma infra-estrutura mínima a gente acaba fazendo... então
é uma forma de nos pressionar, não exatamente com o OP, mas ainda sim de vir nos
cobrar... (Lígia, técnica).

... eles aprenderam a conhecer diferentes atores sociais, hoje eles sabem, mas antes
não sabiam, o que é o poder legislativo, do município, do Estado, Federal, porque
eles moram dentro de um parque, que não podia ter habitação e tem, então eles têm
que estar discutindo a vida deles com todos esses atores sociais, hoje eles já
conhecem e sabem o que é de responsabilidade de cada um destes atores sociais. A
forma de resolver os problemas, eles aprenderam a discutir entre eles o que eles
querem, a buscar parceria dentro deste entendimento do que cada um pode
contribuir e discutir em conjunto, se tu chega lá na Ilha e tenta resolver um
problema sozinho, tu certamente vai te dar mal, porque já se constituiu um fórum
que é a Rede, e que tem todos os representantes lá, e mais a comunidade, que por ali
passa todas as discussões do que acontece na comunidade, então eles aprenderam a
discutir as coisas em conjunto... acho que a comunidade mesmo já está fazendo
discussão do que é assistência social que assiste e assistência social que emancipa,
eles mesmos não querem assistencialismo e sim emancipação, geração de renda,
autogestão, e este discurso já extrapolou o nosso trabalho, já tá na vida deles... se
isso é bom ou ruim, eu não sei ... (ri) essa fala já está com eles, já pertence a eles,
pode ser que seja um atravessamento da nossa cultura no meio deles, mas eu vejo
como um avanço, eles dizerem que eles não querem só doação, que eles querem
trabalho, ser incluídos, que possam participar mais...Tem muitas Ilhas, Pavão, Ilha
Grande, Pintada, das Flores... cada Ilha tem a sua organização diferente... a Ilha da
Pintada tem o CAR, e cada Ilha tem uma organização própria... e tem uma
rivalidade entre eles... pra eles reivindicarem e garantirem a permanência deles ali,
eles tiveram que entender o que é o Concema pra poder discutir e tal... A
comunidade pressionou pra que a escola permanecesse aberta... a comunidade tá
fazendo este movimento... eles vão em tudo que é espaço pra solicitar uma escola
aberta onde eles podem entrar e os filhos aprender, a escola não quer, é uma

302
relação forçada... tem uma dificuldade muito grande de diálogo com a escola... e é
serio, assim como a família, a escola é um lugar de referência importante pra
criança... (Doralina, técnica).

Sandra destaca a dificuldade de trabalhar com a comunidade, tendo elementos de

imediatismo no seu cotidiano, ou seja, as pessoas não buscam soluções ou caminhos que

demandem muito tempo, e sim, ações que resolvam os problemas de uma forma imediata:

... as pessoas são muito imediatistas, é muito improvisado, elas resolvem os


problemas hoje, elas combinam uma coisa, e as pessoas não vão, e aí se tu pergunta
porque não foi, a desculpa é uma qualquer... não conseguem enxergar os projetos a
longo prazo, não construindo um projeto pra comunidade.... as pessoas são
desorganizadas em todos os aspectos da sua vida... cito o exemplo da alimentação...
a organização se dá a partir de uma vivência do social... então aqui, o horário é
muito pelo horário do colégio... que é o horário mais rígido que eles tem aqui...
Acho que pela organização... se a gente não entender o processo como uma coisa
lenta a gente se desmotiva e não consegue trabalhar com este tipo de população, é
uma proposta lenta, mas eu acredito que é via organização deles... Eu que trabalho
aqui há muitos anos, sei que teve muito mais influência de gente de fora do que
deles... mas todos estes processos de alguma forma, arrastam alguém, até porque
tem que ter alguém da comunidade... a conquista é bom pra eles, mas eles tem que se
organizar... porque é se organizando que eles vão conseguir qualquer coisa...
(Sandra, técnica).

Mirela não conhece o movimento dos moradores, sabe definir que a escola não é

procurada para resolver problemas, isso talvez se justifique pelos depoimentos de outros

profissionais que trabalham na mesma comunidade sobre a relação conflituosa que a escola

mantém com a comunidade:

Buscar a escola pra pedir ajuda não, porque eles têm o SASE que é um núcleo da
Prefeitura, que atende esta população, então eu não sei o que eles fazem. Eu sei o
que a gurizada conta... dizem que é a mesma coisa que aqui, até achei que fossem
mais rígidos, eles são mais cobrados mas respeitam muito aqui os padres, aos
maristas, com os maristas é mais controlado a coisa, mas eles vão pela comida, eles
vão, mas não gostam, mas eles vão...mais nos irmãos maristas do que no SASE
(Mirela, técnica).

Doralina também denuncia um problema abordado pela maioria dos técnicos, ou

seja, o quanto é difícil, hoje, lidar com a questão da violência, por que cada um tem o seu

303
significado para o que seja violência, portanto, estando em lugares diferentes, tendo

vivências diferentes, as pessoas terão definições diferentes para o que seja violência. Isso

dificulta o trabalho, pois é necessário haver sintonia entre o que é dito pelo diferentes

atores sociais para que o trabalho tenha eficácia, caso contrário, a intencionalidade é uma e

o entendimento é completamente diferente:

... o pessoal quer segurança, quer polícia, mas uma polícia que não bote no paredão,
que trabalhe com educação, tem muito medo de denunciar... tem briga de família
que se matam, como já aconteceu às três da tarde... a violência faz parte do
cotidiano deles e às vezes eles até não se dão conta de que é um problema, de tão
natural que é... é problema quando acaba causando morte ou problema físico sério,
mas te chamar de vagabunda pra eles não é problema, além de que pais que pensam
que educar filhos tem que bater ou deixar assim...eles não sabem como construir
uma relação de educação à base do diálogo... mas o diálogo tem a ver com uma
reflexão e isso é difícil de fazer, e o trabalho pra eles também é uma forma de
educação dos filhos pra não ter a opção pelo crime, porque assim como a gente
disputa a criança com o crime, os pais também... então a estratégia é botar os filhos
a trabalhar... (Doralina, técnica).

Perguntamos aos nossos entrevistados de que forma eles resolvem os problemas,

tanto em nível individual como em nível coletivo, com o intento de identificar a relação

que os moradores e trabalhadores estabelecem com o poder público, através de suas

instituições. Se consideram que o poder público pode ser um parceiro na resolução de

problemas e quais os canais que são utilizados para isso.

Apresentamos uma síntese das formas de resolução, no quadro abaixo:

Problemas de âmbito individual Problemas de âmbito coletivo

Problemas Resolução Problemas Resolução

Violência
Entre família Entre família Polícia ou omissão
criminal/física

violência Entre os envolvidos Comunitários Via entidades ou OP

União solidariedade diálogo

304
Cada comunidade, cada indivíduo apresenta uma dinâmica de resolução de

problemas, o que varia também pelo nível de problema. Na grande maioria das respostas,

percebemos que os entrevistados resolvem problemas de nível mais individual, igualmente,

de uma forma individual, ou seja, problemas do âmbito familiar, são resolvidos entre os

envolvidos. Problemas de violência são resolvidos entre os envolvidos ou pela polícia ou

as pessoas não se envolvem. Se a violência é física ou verbal, as pessoas tentam resolver

entre elas; se for criminal, chama-se a polícia. Problemas da comunidade são resolvidos via

entidades que trabalham na comunidade, ou via Orçamento Participativo.

A idéia de união apareceu em grande parte das respostas, ou seja, independente do

problema, a união, a solidariedade e o diálogo são elementos importantes para a resolução

de problemas:

... resolvemos na união... somos unidos nesta parte... se tiver que resolver, vai todo
mundo, não fica um pra trás, na hora boa a gente quer se unir e na hora que não é
boa não tem que se separar... (Roseli, trabalhadora da Unidade).

... algumas pessoas procuram ajuda, muitos não procuram, muitos já discutem,
outras já procuram conversar “não, vamos sentar e conversar”, a melhor forma de
resolver os problemas é conversar (Valdomiro, trabalhador da Unidade).

...eu mesmo resolvo né, acho que cada um resolve do seu jeito... e muita gente
procura o CESMAR, ali tem médico e tem tudo... (Robson, morador).

Há moradores que indicam um movimento mais coletivo na resolução de problemas

da comunidade, inferindo a importância de reivindicação de melhorias coletivas:

...com manifestações, tipo assim: quando não tinha médico no Posto, tinham
crianças doentes, morrendo, aí o povo se uniu, reivindica Posto, médico... a relação
da comunidade com as entidades do bairro é um trabalho importante, pelo menos as
pessoas que eu conheço e me relaciono acham que é importante, buscam parceria
quando precisam (Bruna, trabalhadora da Unidade).

...com assembléia, vem pra uma roda de reunião, tem que sair da reunião pelo
menos com uma solução para ser tentada, através da própria comunidade, auto-

305
organização da própria comunidade, solidariedade entre eles (Lauro, trabalhador
da Unidade).

Assim como há os que buscam soluções mais individuais: as pessoas vão pra uma

psicóloga, assistente social, aqui no Galpão só vem pra procurar emprego. Resolvem os

problemas desse jeito, tem gente que procura psicólogo, assistente social, outras

trabalham, lutam pra melhorias (Eva, trabalhadora da Unidade).

Ou os que buscam as instituições competentes para resolver o problema: resolvem

os problemas chamando os órgãos competentes. Se é problema nosso, da comunidade,

acho que as pessoas vão pra Associação pedir ajuda. (Tamires, trabalhadora da

Unidade).

Consideramos que a organização comunitária é importante para a vida das pessoas.

Para definirmos organização comunitária, utilizamos as concepções de Montero (2004), a

qual defende que la comunidad organizada cuenta con herramientas para desarrollar las

condiciones de consistencia, resistencia, persistencia e insistencia que según los teóricos

(veanse Mugny, 1981 e Paicheler, 1985) hacen de ella una minoría activa (Montero, 2004,

p. 131). A partir dessa idéia, entendemos que a organização comunitária trata de um

conjunto ações que são organizadas por grupos específicos, membros da comunidade, que

podem ou não contar com o apoio de membros externos a comunidade, e que tem por

finalidade, conquistar metas com interesses comunitários.

Da mesma forma que a comunidade tem diferentes formas de lidar com os

problemas, também tem diferentes formas de lidar com a questão da violência. Se for uma

situação de violência social, normalmente se busca ajuda. Se for uma situação de violência

criminal, se chama a polícia ou então se impera a lei do silêncio para garantir a

convivência e a sobrevivência.

306
Violência social  busca-se ajuda de instituições, profissionais, amigos e vizinhos

Violência criminal  chama-se a polícia

Selecionamos alguns entrevistados para ilustrar a forma como lidam com a

violência:

... a gente tem até medo de sair de casa, às vezes tá escuro, às vezes, é 20:30, 21hs
tem tiroteio... se você chama a polícia, eles vêm na tua casa, te matam... (Robson,
morador).

...violência é uma situação bem precária, chamam a polícia, quanto mais polícia dá,
mais violência acontece... (Elira, trabalhadora da Unidade).

...quanto à violência, chamam a polícia, se é entre vizinhos, resolvem entre vizinhos.


O CECORES é procurado porque tem a psicóloga e a assistente social... (Bruna,
trabalhadora da Unidade).

A partir das respostas de nossos entrevistados, podemos inferir que os canais de

comunicação com o poder público são usados para resolver problemas. A comunidade

estabelece redes de solidariedade e fortalece as redes de atendimento. No caso da

violência, percebemos também que os problemas da ordem do crime têm que ser resolvidas

pela Segurança Pública, mas e se tratando de outros problemas, há movimento das pessoas

que levam em conta aspectos mais coletivos e de organização comunitária. Inferimos ainda

que esta relação é possível pois há um sentimento de identidade coletiva, de pertencimento

e de redes de solidariedade estabelecidos entre as pessoas na comunidade.

Destacamos ainda, que a relação com entidades representativas mostra um certo

grau de autonomia em relação às iniciativas que precisam ser tomadas, mostra um

movimento de ir em busca de, e não apenas esperar que o poder público resolva, quando

conseguir resolver. Da mesma forma, mostra a força da comunidade. Se é na comunidade

que se fortalecem as redes de solidariedade, é na comunidade que é possível fortalecer o

movimento comunitário, a organização e, com isso, abrir precedente para a participação na

307
vida coletiva e, conseqüentemente, na vida pública. Destacamos também que as

instituições são importantes na vida das pessoas, assim como, igualmente importantes, são

os profissionais que trabalham nestas instituições.

Temos enfatizado a noção de fortalecimento na comunidade ao longo do texto. De

acordo com Montero (2004), essa noção tem sido consideradas uma das vias fundamentais

para o desenvolvimento e a transformação das comunidades. Cabe definir o que

entendemos por fortalecimento da comunidade, do ponto de vista psicossocial. Nesse

sentido, concordamos com a definição de Montero (2004). Para a autora, fortalecimento é:

El proceso mediante el cual los miembros de una comunidad (individuos interesados


y grupos organizados) desarrollan conjuntamente capacidades y recursos para
controlar su situación de vida, actuando de manera comprometida, conciente y
crítica, para lograr la transformación de su entorno según sus necesidades y
aspiraciones, transformándose al mismo tiempo a sí mismos (Montero, 2004:72).

Alguns técnicos, no entanto, utilizam a palavra empoderamento. Sobre isso,

Montero (2004) faz uma distinção da palavra fortalecimento. Para a autora, o uso da

palavra empoderamento apresenta inadequação para corresponder ao entendimento e

abrangência psicossocial da palavra fortalecimento. É uma palavra importada, de

influência americana, que produziu una reacción de copia automática de la denominación,

incluso en ámbitos donde ya se hablaba de fortalecimiento (Montero, 2004:61).

Entendemos, pelo contexto das manifestações dos técnicos que, ao referir-se a

empoderamento, estão significando a palavra da maneira que definimos fortalecimento.

Respeitaremos, no entanto, a linguagem utilizada pelos técnicos entrevistados. Mariana

refere-se ao contexto de troca, de diálogo, mas principalmente do empoderamento o qual

os indivíduos vão se apropriando:

... eu participo sim, pela minha região de trabalho. É importante, por que além das
pessoas estarem lá disputando aquilo que elas acreditam ser importante pra elas,
antes elas estão conversando sobre o que realmente é importante pra elas, estão
saindo do anonimato pra poder se conhecer entre eles e se dar um pouco de poder,

308
porque discutir a questão do orçamento dá uma sensação de empoderamento pra
comunidade e isso é importante no processo de democracia (Mariana, técnica).

Além do empoderamento, a responsabilidade de decidir e dividir: o OP é

importante porque a comunidade tem que dizer o que quer: divide a responsabilidade, a

responsabilidade é de todos, isto tem no OP, se deu certo ou se deu errado é de todos

(Mirela, técnica); o OP faz com que a pessoa amplie sua cidadania. Como o OP é

efetivado pela participação eu posso ajudar a decidir. É uma instância participativa e

decisória, se as pessoas conseguissem entender o quanto é importante participar, não é

pouca coisa, eu estou ajudando a decidir sobre o dinheiro da minha cidade (Carmem,

técnica).

Ser cidadão é ser autônomo, então isso implica em estabelecer movimentos de

busca na resolução de problemas e nem tanto ficar esperando que as coisas aconteçam. Ser

cidadão é também estar incluído, é ter direitos, é ter acesso a esses direitos, portanto, isso

favorece o estabelecimento de uma identidade coletiva de um grupo que está incluído, que

tem direitos, os quais são respeitados, incrementando o sentimento de pertencimento.

5- Construção e importância das Unidades de Reciclagem

Pretendemos analisar o conhecimento que os entrevistados têm em relação à

construção da Unidade de Reciclagem para entendermos os significados que a Reciclagem

têm nas suas vidas e também de que maneira vivenciam essa política pública. Para isso

perguntamos também qual a importância da Unidade de Reciclagem de Lixo. Aqui, há

diferenças nas respostas, pois para os recicladores, predomina a importância financeira,

além da ecológica; para os que são papeleiros, trabalhar com o lixo, predominantemente, é

uma questão de sobrevivência.

309
5.1- A construção das Unidades de Reciclagem de Lixo

Percebemos que o nível de informação sobre a construção das Unidades de

Reciclagem de Lixo tem a ver com dois fatores:

1º- o tempo de serviço na Unidade; e,

2º- o significado que tem o trabalho para a vida do indivíduo, seja ele reciclador ou

morador.

Quanto ao primeiro fator, identificamos que, os recicladores que trabalham nas

Unidades desde a construção, conhecem total ou parcialmente, sua história. Sabem dizer

por que foi construída, quem construiu, etc. Já a maioria dos recicladores que estão a

menos tempo neste trabalho, não sabe reproduzir, com clareza, a história da construção da

Unidade.

Mas atribuímos isso à questão do significado que tem o trabalho na vida das

pessoas, por que há recicladores que têm menos tempo de serviço, mas se inteiram de onde

estão trabalhando, e a inserção que tem esse trabalho na comunidade.

Norton, por exemplo, tem informações muito preliminares sobre a construção da

Unidade de Reciclagem. Na época da entrevista, não pareceu demonstrar que a Unidade

tem alguma importância na sua vida: sei que muitos passaram necessidade né, não tinham

o apoio do DMLU, e puxavam lixo das ruas, e traziam pra cá e reciclavam, eles moravam

na rua, agora tem casa, acho que melhorou... (Norton, morador).

Robson não conhece a história do local onde trabalha, mas sabe que a Unidade

existe há mais de dez anos na comunidade: da construção sei muito pouco, sei que tem

mais de 10 anos... (Robson, morador).

Magda é outro exemplo da falta de conhecimento sobre a construção da Unidade de

Reciclagem: parece que estavam num terreno mais pra baixo, com condições precárias de

310
trabalho e aí foram pra este atual prédio... se eu não me engano o DMLU fez este prédio

pra dar melhores condições de trabalho... (Magda, moradora).

Bruna, apesar de ser presidente da Associação de uma das Unidades, não conhece

bem a história também: ... eu tô aqui faz três anos... quando eu vim já tava construído...

era mais pra lá, era mais banhado... não sei explicar muito bem... acho que é do DMLU

porque eles dizem que o prédio é deles... (Bruna, trabalhadora da Unidade).

Adriana é uma técnica que trabalha com a comunidade, através da escola. Seus

comentários ratificam a falta de conhecimento que alguns moradores têm sobre a história e

o trabalho na Unidade de Reciclagem. No entanto, refere por que, na sua opinião, as

Unidades de Reciclagem são grupos fechados:

O que eu sei sobre a Reciclagem de Lixo? Sei que é um grupo pequeno porque o
grupo é fechado, pequeno, não faz questão de abrir as portas do Galpão por
inúmeras coisas, porque estavam cansados de serem pesquisados, de serem cobaias,
de ouvir promessas da própria SMED que não foram cumpridas [promessa do EJA],
então eles vão se fechando, não se envolvem, o grupo só quer se auto-gerir,
conseguir a sobrevivência... e então até os próprios alunos tem pouco conhecimento
de como funciona o galpão, o trabalho, e tal... esse conhecimento não é socializado
na comunidade. Sai um e entra outro por indicação (Adriana, técnica).

Muitas Unidades foram construídas para atender a necessidade de trabalho

organizado com os recicladores que já trabalhavam com o lixo, muitas Unidades fazem

parte do projeto de reassentamento das comunidades que vivam em zonas de risco da

capital, de modo a manter as pessoas no seu local de moradia, pois, na política

habitacional, estava previsto que não bastava dar condições melhores de moradia para as

pessoas mas, principalmente, condições de trabalho para que eles pudessem permanecer

em seu novo local de moradia. Esta história é reconhecida por muitos trabalhadores.

Reproduzimos a fala de Silvio para exemplificar este processo:

...a construção da Unidade de Reciclagem se deu porque eles moravam na Vila


Tripa, que foi retirada na época também por iniciativa de um hiper mercado que se

311
instalou na região, e criado para que as pessoas ficassem no lugar de moradia.
Iniciativa da Igreja Católica, dos Irmãos Maristas e umas pessoas com ações
isoladas e empresas... (Silvio, trabalhador da Unidade).

Hélio conhece a história da Unidade em que trabalha, assim como reconhece a

importância do trabalho que eles desenvolvem, no entanto, demarca que esse

reconhecimento não é da parte de todos os que trabalham na Reciclagem:

Tem gente que trabalha no Galpão de Reciclagem e ele nem sabe que benefício tá
dando pra população em geral. Ele não tá sabendo que é um ambientalista, que tá
trabalhando em bem do povo, em bem do ambiente, ele não sabe... ele recebe aquele
troquinho e ele não sabe chegar pra ninguém e dizer para pegar aquela sacolinha,
que tem que botar lá na beira da rua pros caminhão pegar... ele não sabe que não
pode atirar uma sacolinha dentro da água que prejudica a água, que vai entupir os
boeiros. Que vai ainda no Guaíba e nós vai beber essas água aí poluída, que tão
terminando com os peixes. Eu tenho briga danada lá no rio Gravataí... e eu já falei
pra eles quantas vezes... se a pessoa sabe participar, aquele rio não tava podre como
está, porque no verão tu não fica lá perto, fica tudo poluído, os peixe morre tudo, é
uma judiaria, aonde que aquilo ali podia ta alimentando tanta pessoa com aquele
peixe, sabendo que além do peixe ser um alimento, é um fortificante, porque se a
pessoa comer peixe ela tem mais 10 anos de vida e pode pega em qualquer lida...
mas pra te falar da história, foi o seguinte: isso se deu assim porque nós tava
trabalhando precariamente lá embaixo [no lixão], eles [DMLU] trouxeram uns
cestos pra depositar material de tela com palanques e nós trabalhava na chuva,
trabalhava no sol e eu achei que aquilo era prejudicial pro pessoal, eu quero ajudar
o povo, quero que me enxergue trabalhando pra eles. No OP eu comecei a brigar
por eles, discuti e pedi isto aqui [Unidade de Reciclagem], aonde eles chegaram à
conclusão que tinha que construir o Galpão, aí construíram... (Hélio, trabalhador da
Unidade).

O critério para se trabalhar nas Unidades varia de acordo com a administração de

cada Unidade. A maioria são grupos fechados em que o(a) presidente escolhe quem vai

trabalhar, na maioria das vezes, seus amigos. Outra forma é propor que os trabalhadores

novos passem por um estágio, é o caso da Unidade em que trabalha Valdomiro: a gente

teve um apoio do DMLU para aprender a lidar com o lixo, a escolha do presidente da

Associação é por eleição, se alguém quer trabalhar aqui, passa por 15 dias de estágio.

(Valdomiro, trabalhador da Unidade).

312
Mais uma vez aparece a diferença que faz um profissional engajado no movimento

dos moradores: a construção da Unidade aconteceu através da dona Tatiana, ela que

montou, ela que deu a idéia, ela que puxou nós pra dentro....o DMLU conversou com nós,

trazia o lixo pra nós... muitos pegaram, muitos largaram, achavam que não ia dar certo,

mas deu... muitos não tinham fé no troço, a pessoa não vai saber se vai dar certo ou não

vai, se tu não for atrás... (Roseli, trabalhadora da Unidade).

Doralina, em seu extenso relato, refere a construção não apenas da Unidade de

Reciclagem, mas das entidades representativas na comunidade:

... eu sei muita coisa, mas não dá pra dizer assim, o primeiro a ser construído foi o
Galpão... aí o Galpão acabou se envolvendo com o tráfico, e algumas famílias
acabaram tomando conta: a família Azevedo e a família do Gino, e então era difícil
outras famílias entrarem, inclusive a família Azevedo tinha um envolvimento com o
tráfico... aí teve muito trabalho da Matilde, do Carlinhos do DMLU de tentar mexer
naquela estrutura... quando eu cheguei em 99 pra implantar o programa NASF, pra
descentralizar da Assistência, que tinha bastante resistência dentro da instituição...
tinha esta discussão do Galpão, e o Clube de Mães que sempre diziam que estas
mães não queriam nada com nada, tinha a Amália, do PTB, ligada ao Zambiasi, que
vinha trazer muita doação, e uma queixa de não conseguir acessar, e a comunidade
numa participação muito agressiva... e a gente começou a trazer as discussões pra
dentro da rede de proteção da criança e do adolescente... e a comunidade levava os
problemas que tinham e começou a se criar este espaço da rede... a escola tem
muitos problemas sérios... tinha a questão do preconceito racial de professoras em
relação aos alunos negros... depois de uma situação específica (?!) na escola, a
situação foi levada pra rede e foi uma discussão muito interessante, tensa, mas muito
rica, porque discutiam o que era educação pra eles... e isso fortaleceu a rede como
um espaço de discussão de assuntos do cotidiano da comunidade. E, neste meio
tempo, a Nilda também começou a se fortalecer como liderança comunitária... em
99, na Ilha do Pavão, uma família tomava água com açúcar e estavam passando
fome e tal... então eles começaram a receber doação de tudo quanto é lugar do
Estado e a Amália começou a organizar a comunidade para invadir o Clube de
Mães... e aquele dia o pessoal invadiu, e desde este dia, a Nilda resolveu assumir o
Clube de Mães... e ela se fortaleceu, porque a Amália apertou o braço dela, ela
botou um processo e acabou se fortalecendo. Em 2000, veio o Coletivo de Trabalho,
projeto piloto do Estado... por causa do Ministério Público que queria tirar os
porcos mas que tinha que dar um trabalho, no primeiro mês só fizeram o curso, e
depois entraram na fase laboral. Bom, destas 400 pessoas, 20 organizaram a
cooperativa COPAL, desde 2002, mas a discussão deles é sobre autogestão,
desenvolvimento econômico, discutir o cotidiano da comunidade, diferente do Clube
de Mães, e há uma rivalidade entre eles que acabaram sendo representantes da
comunidade, primeiro o Galpão, que era restrita a algumas famílias, depois o Clube

313
de Mães e depois a Copal, e aí começou toda uma discussão dos carroceiros, porque
Porto Alegre é a única capital que tem carroça, e se continuasse as carroças o
Ministério Público ia multar... aí a prefeitura apreendeu 4 combis, porque como não
podia circular de carroça, eles começaram a circular de combi... só que aí o lixo ia
pras cooperativas, da Vila Pinto, e não tinha mais lixo, as cooperativas começaram
a pressionar a Prefeitura pq não tinha lixo pra trabalharem... aí a Prefeitura
começou a discutir que eles eram ladrão de lixo, e isso reativou a Associação de
Carroceiros, que é outra organização forte na Ilha, e fora isso tem as Cooperativas
de Mulheres que estão surgindo de uma forma mais leve, mas que estão organizando
de uma forma bem legal, acho que as lideranças conseguiram entender o que é um
grupo, entender as pessoas e estão conseguindo trabalhar... o espaço na Ilha é um
problema... a Nilda é matriarca, assistencialista, bastante sedutora, a Copal tem
uma organização mais coletiva, discutem em grupo, a Copal não tem sede... a
discussão entre as instituições se dá na rede, que acontece de 15 em 15 dias...
(Doralina, técnica).

5.2- A importância das Unidades de Reciclagem de Lixo

Esta questão nos faz entender a importância da Unidade na vida dos nossos

entrevistados, tanto para os que trabalham nas Unidades como para os que não trabalham.

Há posturas que indicam um engajamento maior em relação à participação política e ao

conhecimento sobre as políticas públicas. São depoimentos que demonstram o que

entendem por cidadania, e como a exercem. É possível perceber claramente os discursos

que destacam a importância da questão ecológica e aqueles discursos que acentuam a

questão financeira, por uma questão de sobrevivência. Iniciamos a análise apresentando o

depoimento de Paulo, para ele:

... a importância é 99,9%, aqui é tudo, nós tamos construindo, dando continuidade
pra aquilo que nós perdemos. É um trabalho humilde, mas é digno. A perspectiva é
cada vez ganhar mais... se a gente quiser, a gente transforma o mundo, mas a gente
tem que se unir, sozinho não se vai a lugar nenhum... a reciclagem é o início, meio e
fim de tudo, é muito importante. Esta reciclagem é pra 203 famílias, como a
prefeitura não tem demanda, estamos em 117, e dividimos o Galpão pra quem quer
ganhar sozinho, é quem trabalha nos boxes, são moradores da vila também. Como a
demanda do lixo não tá dando conta, a gente tira a pessoa... quem manda é o lixo, se
tem lixo, tem pessoas trabalhando, se não tem, não tem... (Paulo, trabalhadora da
Unidade).

... importância? É que as pessoas tiram o sustento da Reciclagem, muitas vezes é


nojenta, mas muitas vezes vem umas panelas, dinheiro, TV, rádio, seguidamente a

314
pessoa acha coisa de valor. Se eu achar um anel de ouro, ele é meu, eu achei no lixo.
É lixo trabalhando pro lixo... quando eu comecei trabalhar nesta área aqui, eu tinha
15 anos de idade, praticamente adolescente, agora eu tenho 3 filhos e a perspectiva
de vida é crescer junto com este trabalho, pra dá o melhor pra minha família, é o
que espero tô esperando desde 92 e parece tô desenvolvendo o trabalho que agora
vai sair, eu acho que vai, porque a coleta seletiva, de 5 anos pra cá, ela caiu muito,
cresceram muito as pessoas trabalhando nesta área aí, e a organização
[Administração Municipal] se acomodou muito. Eu acho também que as pessoas
teriam que se organizar melhor pra conseguir mais Galpões e divulgar melhor, só
divulgando a reciclagem cresce... (Valdomiro, trabalhador da Unidade).

Há relações bem mais imediatas com as Unidades de Reciclagem e, a partir das

quais percebemos que não há grandes articulações com a questão da participação política.

A participação, nestes casos, é bem pontual, e a relação com a Unidade é de trabalho: o

galpão dá trabalho pra quem precisa... (Eva, trabalhadora da Unidade).

...a importância é grande, por que é a importância monetária... (Guilhermina,


moradora).

a maior parte vive daqui né... e tem gente que não sabe ler não sabe nada, e eu com
esta idade que eu tô, onde vou arrumar serviço (Robson, morador).

Importância da Unidade de Reciclagem é ótima, não só por causa de emprego, mas


antigamente os recicladores eram olhados de uma maneira inferior por trabalharem
no lixo, lixo é solução e dinheiro, emprego e renda...(Cléia, trabalhadora da
Unidade).

na verdade, é normal, eles sabem que foi feito a Associação pra organizar o
trabalho, as pessoas se cadastraram e tal, eu tô bem contente de trabalhar na
reciclagem, existe uma norma, a gente respeita (Paulo, trabalhador da Unidade)

...acho que é conscientização, não é por que usou e não serve pra mais nada, que o
lixo também não serve mais, o lixo é dinheiro, tem gente que sobrevive do lixo (Taís,
trabalhadora da Unidade).

Norton também é um exemplo desta relação:

Reciclagem é importante porque é um serviço, agora tá ruim de arrumar serviço do


jeito que tá, serviço bom tá ruim, eu também não estudei, desisti, estudei até a 6a
série, parei por causa de umas bronca aí que eu tive, não sinto vontade de voltar a
estudar, não sinto falta, acho que o estudo não altera a vida da gente, mas melhora,
se quiser pegar um serviço bom, com carteira assinada, de computador, se expressar
melhor também tu já sabe... aqui na Reciclagem eu me envolvo, pelo menos eu ia
ficar de bobeira nas esquinas e não tô né, acho que tô aprendendo a ter uma
profissão (riu)... não sei né? Pra mim, eu tô achando melhor, tenho o dinheiro pra

315
mim, pra comprar roupa, alguma coisa, leite e fralda pro meu filho, de um ano e
pouco (Norton, morador).

Fernando também não faz referência da importância da reciclagem para a Natureza.

Destaca a importância de dar empregos a quem precisa:

É bom por que a gente acolhe as pessoas que estão passando necessidade, quando
tem mais lixo e dá pra chamar mais pessoas pra trabalhar, a gente vai nas casas, vê
se tá passando necessidade e dá trabalho. Alguns respeitam, mas a maioria não
respeita. Roubam o cabo da prensa e lixo também. Quando roubam o cabo da
prensa, tem que comprar outro, aí precisa vender o lixo pra comprar. O DMLU não
ajuda. Aí diminui o salário por que tem que tirar da renda do galpão para repor o
que foi roubado (Fernando, trabalhador da Unidade).

Alguns entrevistados demonstram uma postura de esperar demais a ajuda de

outrem, se colocando assim em um “confortável” lugar de vítima. Como relata Eva, por

exemplo, em relação ao lixo: estamos esperando87 que os lugares que davam lixo voltem a

entregar, pois desde que o DMLU entrou na história, o pessoal parou de dar lixo. Já falei

e agora tamo esperando resposta (Eva, trabalhadora da Unidade). Em relação à

depredação das Unidades, cabe uma pergunta: por que roubam? Roubam por que as

Unidades se tornam grupos fechados, onde um grupo decide quem vai trabalhar; nem

sempre é o critério de necessidade ou por lista de espera, quase sempre, em alguns lugares,

é por amizade, ou por panelinha, como dizem muitos. Assim, o roubo, a depredação acaba

representando a insatisfação, o protesto pela maneira como a administração da Unidade é

conduzida.

E, se estamos falando de um contexto de desemprego em que a Unidade de

Reciclagem é vista como uma alternativa de emprego, é “compreensível” que grupos se

revoltem contra a administração de algumas Unidades, uma vez que, como as próprias

pessoas referem, nem sempre os que estão trabalhando nas Unidades, precisam, realmente,

trabalhar.

87
Grifo nosso.

316
Os técnicos são incontestáveis sobre a importância que tem a Unidade de

Reciclagem de Lixo para os moradores. Reconhecem a importância financeira, a questão

da sobrevivência, no entanto, destacam a possibilidade de vivenciar elementos importantes

da cidadania, além da possibilidade de desenvolver a consciência ambiental.

Destacamos as falas de Mariana como representativa dos depoimentos dos técnicos.

Mariana refere a política habitacional da Administração Popular:

As populações que a gente reassenta, elas já tem uma relação com os resíduos
sólidos no lugar onde moram, muitas vezes é uma importante estratégia de
sobrevivência, não é a única... a idéia de contemplar a questão do trabalho pelas
Unidades, isto é uma estratégia fundamental para manter as pessoas no lugar de
moradia, para que as famílias fiquem. Na política habitacional, eles querem que as
famílias fiquem nos empreendimentos que está se construindo, que a intervenção
seja efetiva, então, pra que eles fiquem, se estabeleçam, desenvolvam a questão do
pertencimento, se sintam integrantes daquele empreendimento, é necessário que a
questão da sobrevivência seja, se não garantida, no mínimo que ela esteja muito
próxima de ser, no mínimo, igual àquilo que ele tinha anteriormente, senão ele vai se
desfazer desta unidade habitacional como muita rapidez. (Mariana, técnica).

A Reciclagem para alguns entrevistados, além de ter importância financeira,

desencadeia uma consciência ambiental:

...é o ganha pão da gente. A gente faz um favor pra rua, de limpar, contribuir para a
limpeza, as pessoas acham que a gente é desmoralizada por que as pessoas não
gostam de deixar carrinho na frente. Às vezes conversam com o síndico, há síndicos
que vendem, tem gente que compra o lixo, por que a concorrência é grande. A
ganância do ser humano também. Os moradores não colaboraram na reciclagem,
jogam o lixo no valão. (Vitória, moradora).

Mas percebemos que, de uma forma geral, não há consciência ambiental. Mesmo os

que trabalham com a reciclagem, não reciclam seu próprio lixo:

o lixo vem de fora, os moradores da vila não reciclam, se reciclam eu não sei.
Algumas pessoas de fora da vila trazem espontaneamente o lixo, mas não é uma
prática de todos. Talvez os recicladores particulares recolham. Não há trabalho de
Educação Ambiental na vila (Carolina, trabalhadora da Unidade);

317
...o lixo é misturado, mesmo trabalhando em uma Unidade de Reciclagem, a gente

não tem consciência, na Nova Minuano, mas na Nova Brasília tem reciclagem. Passa o

tratorzinho, é lixo misturado, não tem a consciência ainda de separar o lixo (Bárbara,

trabalhadora da Unidade), ou seja, como a própria entrevistada relata, se trabalha na

Reciclagem mas não se separa o lixo.

Há os que destacam a importância ecológica do trabalho que realizam, como é o

caso de Bruna:

a Unidade de Reciclagem é importante porque desde que começou a reciclagem tu


não vê mais aqueles horrores de lixo nas esquinas, lixo no meio da rua, eles não
trazem muito, não dão muita importância pra isso. Na comunidade, a parceria é com
os carrinheiros, eles reciclam, mas não vem pra cá. O lixo é dado pros carrinheiros
e não pra Unidade (Bruna, trabalhadora da Unidade).

... e o caso de Hélio também...

... os maiores ambientalistas que tem somos nós que recolhemos o lixo, porque se
não fosse nós, pra onde é que ia esse lixo? Pros aterros? Não, ia pros rios... aí o que
acontece? Porque a gente tem a nossa camada de ozônio que tem que cuidar, por
causa do meio ambiente, e principalmente a nossa água, é nós, a humanidade, que
tamos fazendo isto... Isto é a maior importância que tem. Pelo menos eu acho pra
mim que além de nós tá limpando o município, tamo limpando as ruas, tamo
ganhando o nosso dinheiro... as pessoas que não conseguem trabalho em outro
lugar, tão ali trabalhando, sobrevivendo e com seu filho no colégio, seu filho na
creche, tão vestindo, tão se alimentando, tão sobrevivendo e eu acho que defendendo
o meio ambiente é a primeira coisa que tem (Helio, trabalhador da Unidade).

...é bom porque daí a sociedade tá mais limpa, o bairro tá mais limpo, porque

antigamente a gente via só lixo na rua, mato, agora tem mais comercio e tudo, né (Cléia,

trabalhadora da Unidade), ou seja, a cidade mais limpa, proporciona não apenas uma

sensação de dignidade no sentido de morar em um lugar decente, mas também viabiliza o

progresso, através do comércio, assim como traz oportunidades de emprego para os

moradores da própria comunidade.

318
Serlene, Silvio e Claudiomar também acreditam nesta função da reciclagem: a

Unidade de Reciclagem é importante pelo fato de não ver o lixo na rua, ter uma vida limpa

e organizada, apesar deles não terem isso bem consciente. É um horror o que tem de

dinheiro ali no arroio, então se a gente conseguir construir isso (Serlene, moradora);

...a reciclagem é importante por que está tirando o lixo e resíduo sólido do ambiente.
E o segundo motivo é pela renda mesmo, são 36 famílias que vivem da reciclagem
(Silvio, trabalhador da Unidade);

...o serviço daqui é muito bonito, por que preserva a natureza e protege as árvores;
no início não gostava muito, a mãe me inscreveu, eu e meus dois irmãos, eles
ficaram umas duas semanas, eu levei a sério e fiquei até hoje. As pessoas reclamam
dos ratos, que o Galpão junta rato, que o vento leva o lixo para frente, reclamam por
causa dos ratos... a maioria traz lixo, mas também trazem lixo podre, nos finais de
semana trazem bicho podre, sofá, etc. (Claudiomar, trabalhador da Unidade);

Carmem destaca a falta de consciência ambiental das pessoas e a dificuldade delas

perceberem que as Unidades de Reciclagem não é um “lixão” e que tem a sua importância

econômica e ambiental: tem os moradores que colaboram. Tem parte que não tem

consciência, acham que isso aqui é um lixão. Idéia de Educação Ambiental. Tem algumas

ações de parceria com a Prefeitura, é mais o boca-a-boca mesmo, tem o curso do papel,

tem ações educativas da FASC para o fórum de Educação, mas é um trabalho muito

voltado para o papel (Carmem, técnica).

Os trabalhadores valorizam o trabalho na Unidade, mas denunciam o preconceito

vivido pelo fato de trabalharem nas Unidades: ... no bairro tem pessoas que consideram a

gente como lixeiros, a não ser o pessoal que trabalha aqui, que para eles é fantástico, que

é daqui que eles tiram para comer, para sustentar os filhos. É um serviço honesto, igual

aos outros, eles não vêem o Galpão como um trabalho, tem pessoas que nem conhecem

isso daqui. Acham que a gente trabalha no lixo, que ainda estamos no lixão, são poucos os

que dão valor ao serviço daqui (Bárbara, trabalhadora da Unidade).

319
um dia eu estava lá no OP com uma mulher da Vila Respeito e ela ficou dizendo
“ah! Esse pessoal da Vila Dique que fica jogando lixo no valão, aí entope tudo...
mas ela não se dá conta de que o lixo vem de lá, então não somos nós que jogamos
lixo, o lixo é que vem...” (Fernando, trabalhador da Unidade).

O depoimento de José é outro exemplo da vivência do preconceito:

A gente tinha péssimas condições de vida, a gente trabalhava na chuva, no frio,


porque não tinha o galpão ainda cedido... isso aqui nunca teve tão limpo como está
agora... a gente procura conscientizar os carrinheiros pra limpar bem os carrinhos e
não deixar lixo na rua, pelo menos pra aliviar os 50% dos pensamentos negativos
que tinham contra nós... a Prefeitura tá cuidando da rua Paraíba, esta rua nunca foi
tão limpa, o entorno aqui dizia que a gente era responsável pela prostituição, tráfico
de drogas. Aí a gente se reuniu pra se fortalecer de espírito, de alma, pra desabafar
os pontos negativos contra nós... nós estamos com a cabeça na guilhotina esperando
descer... conversamos muito, porque sabemos que não somos isso, após esta
passagem, vai ter um ser humano que vai nos dizer que nós não somos isso...
qualquer palavra de incentivo é como se fosse uma comida, que você come na hora
em que está com fome, conversamos de não provocar os moradores do bairro, e
trabalhar pra levar comida pros nossos filhos... continuar a nossa missão que é
trabalhar, não estamos com fome, não estamos mendigando, enquanto a gente
estiver caminhando com as nossas próprias pernas, a gente só tem que agradecer a
Deus e não pedir nada... aí como uma resposta a tudo isso, a gente recebeu duas
prensas, um elevador e uma balança de 500 kg, que era a necessidade do dia-a-dia
da gente porque duplica o preço, e tô fazendo o curso de liderança e tô ajudando
eles, eu tenho a palavra de Deus né, eu falo e parece que é Deus que manda eu dizer
isso ou aquilo... (José, trabalhador da Unidade).

O preconceito está diluído na vida cotidiana das pessoas. Trabalhar na Unidade de

Reciclagem é a garantia para alguns trabalhadores ou até mesmo moradores poderem fazer

compras no comércio, a partir do comprovante de renda e endereço que a Associação

fornece:

Não tem Clube de Mães... tavam fazendo uma organização, mas com o incêndio
parou tudo, mas com o pessoal tudo junto, organizado, vai ter um Clube de Mães, o
pessoal vai tá mais unido até... tem mulheres com interesse. É uma associação só...
sou filiado a FARGS (Federação da Associação de Recicladores do RS), tive o
privilégio também de ser a primeira Associação filiada a FARGS. A nossa aqui é
Associação de Reciclagem Ecológica Vila dos Papeleiros, porque toda a vila são
recicladores, todos são papeleiros... A maioria das pessoas busca a Associação pra
dar comprovante de endereço, pra várias coisas... (Augusto, trabalhador da
Unidade).

320
A Unidade de Reciclagem também melhora a auto-estima das pessoas pela

possibilidade do trabalho, como refere Roseli: a Unidade de Reciclagem é muita coisa,

pois a gente nunca trabalhou na vida, quando surgiu esse Galpão, foi uma felicidade total,

a gente tem o dinheirinho, eu nunca tinha trabalhado na reciclagem, é uma coisa muito

boa... o Galpão é uma coisa muito boa, mas muito boa mesmo... É interessante observar o

quanto o trabalho permite a esta mulher recuperar a sua auto-estima, a sua história, o seu

desejo de reencontrar o seu filho e reparar seus erros do passado. Roseli continua:

o Galpão muita coisa me fez, eu pude entrar em um supermercado grande como o


BIG, eu pude comprar minhas coisas, um rancho com o dinheiro que eu ganho aqui,
que é uma coisa que eu nunca fiz, eu trabalhava de doméstica, mas não ganhava o
dinheiro que eu ganho hoje, trabalhava, mas só dava pra comer e não dava pra se
vestir, hoje eu como, me visto, e como muito bem...tenho a minha peça... lá eu
dependia de parentes, aqui eu dependo de mim mesma...(Roseli, trabalhadora da
Unidade).

... a importância é grande porque a gente, trabalhando aqui, não leva lixo para
dentro das casas, por causas dos ratos, também é bom pra saúde da gente... antes,
era moradia e lixo no mesmo tempo e agora o lixo fica retirado da casa da gente
(Paulo, trabalhador da Unidade).

Tatiana destaca que o grupo, quando está articulado, consegue desenvolver um bom

trabalho, mesmo sem a ajuda do poder público. Tatiana destaca o movimento que os

trabalhadores fizeram para conseguir a Unidade de Reciclagem, e que isso, dá outro

significado para este trabalho. Os trabalhadores, ao “brigar” para conseguir o trabalho,

valorizam mais, se identificam mais e passam a desenvolver a importância que isso tem

para a natureza e, conseqüentemente, a importância que eles, enquanto trabalhadores têm:

A reciclagem aqui se criou sem ter nada de órgão técnico nenhum. Depois de dois
anos teve um namoro com o DMLU, as outras Unidades foram montadas pelo
DMLU, tanto que a nossa é a referência pela auto-organização. A gente não quer
cair na mesmice da alienação, nosso trabalho é diferente de todas as outras
Unidades e não queremos o modelo do poder público, porque não funciona. A única
coisa que temos do poder público é o lixo que eles colocam aqui dentro... (Tatiana,
técnica).

321
E Roseli ratifica esse movimento de autonomia que as pessoas desenvolveram em

relação a seu trabalho e as suas vidas, com a ajuda da assistente social que trabalha na

comunidade:

A Reciclagem? É emprego, se vê a limpeza urbana, higiene e é educativo... na


Reciclagem foi aquilo né... eram carrinheiros, o material não era fardado e aos
poucos descobriram que existia preço... depois entrou as parcerias com a Prefeitura
e foi melhorando ...eu penso em continuar a trabalhar na Reciclagem, é um serviço
que tu não é mandada, tu trabalha ali de cabeça baixa. Se tu não quer trabalhar, tu
não trabalha, não tem problema de ser mandada, aqui tu não é mandada. Só a Dona
Tatiana não deixa a peteca cair, dá um empurrão... não pode largar o serviço, tem
que trabalhar... tu tem regras, mas não é aquelas regras que tu é presa, muitos
dizem que aqui é uma prisão, mas não é prisão, se tu colocar a cabeça funcionar, tu
vai ver... não é o que eles dizem lá fora. Aqui é um lugar bom. Se a pessoa souber
levar, tem tudo (Roseli, trabalhadora da Unidade).

Concluímos então que há alguns trabalhadores que são mais articulados, assim como

há os papeleiros mais articulados do que os trabalhadores das Unidades. A construção das

Unidades faz parte de uma política de trabalho e habitacional. Mas há cidadãos que não

entendem dessa forma. Nos perguntamos: o que faz com que eles participem, ou que esta

participação tenha limites ou níveis de participação? Há relação do trabalho com a

escolaridade? Se os trabalhadores são um grupo organizado, como lidam com o estigma?

Previamente percebemos que há trabalhadores com escolaridade e que trabalham na

Unidade, que tem consciência ambiental, assim como os que não tem muita escolaridade e

também trabalham na Unidade mas não tem consciência ambiental. É possível inferir que

pode haver relação não entre o tipo de trabalho, necessariamente, mas entre o nível de

consciência.

Quanto ao preconceito, este é vivenciado tanto pelos grupos que trabalham nas

Unidades como os que são papeleiros. A participação nas reuniões do OP demarca a

carência, a falta e a necessidade de participar, pois os grupos que não precisam, não

322
participam. Assim, se estabelece que quem precisa ir ao OP é “pobre”, é “população

carente”, é “o pessoal das vilas”, e isso independente do nível de escolaridade. Os

trabalhadores são organizados para defender seus direitos e suas demandas. Esta

organização tem limites. Mas acredito que o estigma também é conveniente. É conveniente

para a articulação e conquista de demandas e é conveniente para os ganhos secundários.

6- Repercussão dos movimentos dos moradores para as políticas públicas

Nessa seção vamos dar continuidade à análise das entrevistas, com vistas na formação

da consciência política, tendo como pano de fundo da nossa análise, a repercussão dos

movimentos dos moradores para as políticas públicas.

Inicialmente, traremos a opinião dos técnicos, pois consideramos que a percepção de

quem é de fora da comunidade e trabalha nas Secretarias e Departamentos que viabilizam

políticas públicas para as comunidades, é extremamente importante para confrontarmos

com os significados e representações que os entrevistados têm sobre essa questão.

6.1- A percepção dos técnicos

Perguntamos aos técnicos88, os quais trabalham nas Secretarias Municipais que têm

políticas públicas voltadas para as comunidades, qual a repercussão dos movimentos dos

moradores para as políticas públicas da cidade, para que pudéssemos entender o quanto o

movimento dos moradores exercem a pressão necessária para a efetivação e manutenção

das políticas públicas de Porto Alegre. Lígia diz que:

... tudo se dá em torno do movimento dos moradores, o próprio OP é regionalizado,


todo este processo existe em função das diferentes regiões, mas tudo em função da
demanda dos bairros. Não sei como é a relação com as entidades do bairro por que
não lido diretamente com as comunidades em geral, é mais direcionado com os
grupos que trabalham com a reciclagem e este é o nosso público, e a gente tenta
estar atendendo da melhor maneira possível... eles são muito específicos na maneira
88
No texto da tese, denominamos técnicos, todos os profissionais que trabalham com as comunidades
pesquisadas. Na citação, no entanto, há a especificação de que profissional é e de que Órgão Municipal ou
Entidade trabalha.

323
de encarar o trabalho, de levar a vida, então a gente tenta trabalhar com estas
diferenças... (Lígia, técnica do DMLU89).

Para Doralina, o movimento dos moradores fortalece a participação em diferentes

espaços da vida pública:

Não sei se todas as políticas conseguiram clarear pra comunidade durante este
tempo de governo, mas os Conselhos né, que são garantidos em lei e a comunidade
já entende o que é fazer parte de um Conselho, pelo menos dentro do Conselho da
Assistência Social isso tá bem claro, então tem algumas coisas que já está se
garantindo pra próxima gestão via Conselho, porque tem um poder junto a gestão
para que a comunidade não fique tão refém de uma gestão pública, a não ser que se
manipule o Conselho, mas aqui em Porto Alegre não vai mais ser possível fazer,
porque o pessoal já tem clareza do que é um Conselho Municipal que define e
discute política pública, estes espaços o pessoal já está se organizando... acho que
Porto Alegre entendeu isso (Doralina, psicóloga da FASC90).

Para Mariana e Cristiano, as políticas são propostas para atender as necessidades da

população mais carente, mas principalmente são mantidas pelos movimentos desta

população:

Ao estabelecer o OP como espinha dorsal da relação do governo com a sociedade,


tudo se dava por meio do OP com incidência da participação da comunidade. É uma
população excluída e não é uma exclusão econômica e sim uma exclusão política.
Ser cidadão é estar incluído, tem que ser conhecedor de seus direitos, limites,
conhecer a forma como o Estado, e as políticas públicas se organizam. Receber as
informações que necessita. A nossa política habitacional é voltada para uma
população de baixíssima renda. Pessoas que são historicamente excluídas, que tem
história de exclusão, que passa a sua própria geração. São excluídas de várias
práticas. A habitação tenta resgatar a dignidade de morar, fomenta outros direitos e
permite acesso a outros direitos de cidadania que as pessoas têm. Reconhecer os
direitos e fomentar outras políticas (Mariana, técnica do DEMHAB91).

A participação deles é decisiva, o OP não é o único instrumento de participação,


tem vários Conselhos e nestas militâncias elas interferiram fortemente nas nossas
políticas que foram desenhadas a partir destas expressões... não só por essas
expressões, porque um governo sério tem que ter proposta... (Cristiano, técnico do
GRC92).

89
DMLU: Departamento Municipal de Limpeza Urbana
90
FASC: Fundação de Assistência Social e Comunitária, órgão vinculado à Prefeitura Municipal.
91
DEMHAB: Departamento Municipal de Habitação
92
GRC: Gabinete de Relações Comunitárias

324
Carmem comenta que as políticas públicas são importantes, que muita coisa mudou

em Porto Alegre, devido à participação dos moradores, mas que ainda há muito o que

mudar, há muito para ser feito. Carmem percebe as comunidades muito passivas ainda: nas

comunidades tem os complicadores, se eles soubessem que a solidariedade... se soubessem

que unidos mudariam toda essa coisa que tem o Brasil, não se sujeitariam às políticas de

assistencialismo. Quem trabalha com essas políticas não tem interesse de trabalhar a

autonomia. Se trabalhasse com a política da autonomia, só eles juntos dariam a

visibilidade para a causa... (Carmem, assistente social da Associação de Moradores de

uma das comunidades pesquisadas).

Tatiana não acredita que o movimento dos moradores repercuta nas políticas

públicas, pois ela trabalha com uma população de ex-moradores de rua, e sua experiência

de conquista de melhorias se deu muito mais por outro tipo de pressão – via protestos na

mídia, ou trabalho em parceria com ONGs que deram visibilidade ao movimento – do que

pelo movimento em si. Ao contrário, Tatiana conta que, a depender da participação dos

moradores no OP, nunca se conseguiu o mínimo que eles precisavam:

Até acredito que no início, era diferente, que dava certo, mas hoje?!... e não tem
nenhuma política pública direcionada para esta população, não vejo trabalho
nenhum na área social, esta é a política de Porto Alegre para a população de rua?!
O que se lutou muito foi por transporte público na área de saúde para dar
assistência para eles na rua, e a SAMU não atende eles porque contamina as
ambulâncias, se brigou muito, nem que fosse uma combi, essa demanda se lutou
muito e não conseguimos. No FSM, deixamos de participar lá porque é muito oba-
oba, o Fórum são discussões vazias. O que mudou nestes 4 anos?! ... o que fizemos?
Trouxemos as pessoas pra cá. Veio gente do Canadá, da Espanha... as pessoas
conheceram o trabalho aqui, onde o trabalho acontece. Esse ano vamos fazer a
mesma coisa, até eu vou participar porque a Rosinha me convidou pra falar sobre
Economia Solidária. A Assistência Social, Educação, Saúde, Moradia... não podem
ser descolados. Cada Secretaria trabalha como se tivessem um prefeito diferente.
Estudar dá uma visão de vida diferente, os livros ainda são a tua viagem... a doença
do pobre é a carência, é do olhar, do ouvir, tem que ter médicos comunitários
porque não é medicação que cura, é a atenção que cura... o Brasil tem carência de
moradia, tu resolve moradia, tu tá resolvendo vários problemas... o problema é que
as políticas são fragmentadas (Tatiana, assistente social da Associação dos
Recicladores).

325
Defendemos a idéia de que as políticas públicas existem e são propostas tanto pelo

governo municipal, pois como refere Cristiano, um governo sério tem que ter propostas,

quanto pela comunidade. Muitas destas políticas foram gestadas e aprimoradas nos fóruns

de participação, dentre os quais, o OP.

Para Cristiano, a experiência do OP é muito importante, e todo o processo que foi

gestado nos anos da Administração Popular se deve principalmente à receptividade de um

grupo que tinha a demanda de mobilização, de mudança. Para Cristiano:

... a existência do OP, experiência reconhecida e tal, a sua existência não se deve com
a chegada da Frente Popular em 88 na Prefeitura de Porto Alegre. Em Porto Alegre
tem a ver com uma organização popular e comunitária que começou muito antes de
88, na verdade, no início da década de 80, que foi um período forte de organização
popular em todo o Brasil, tanto o movimento sindical como o movimento urbano
comunitário e popular... ela foi mais organizada do que os outros, não cabe o
comparativo com outras capitais, mas teve, sem dúvida, uma forte organização
popular e comunitária que criou as Associações de Moradores e outras associações
organizadas, que passou a definir ou interferir no destino dos recursos da cidade,
então isso já estava colocado antes, e foi esta forte organização popular que foi
responsável inclusive pela eleição de uma nova proposta em 88, “coragem de mudar”
“a inversão de prioridades” isso chega ao governo muito em função do movimento
popular organizado que deu sustentação a isso, que comprou esta proposta, que
comprou esta idéia. Então com esta nova proposta política, com este movimento
popular, foi o que contribuiu, não é mérito só do governo, de uma proposta política
do governo, mas é mérito de uma realidade social bem importante da cidade, mas era
um movimento organizado e mobilizado que fazia ações bem importantes, coisas
simples, que exigiam uma mobilização frente popular no governo de certa forma, este
espaço do OP, com tudo que isso tem de bom, produziu, isso teve um reflexo na forma
das comunidades se organizar, no mínimo deve nos preocupar, hoje temos uma
realidade de falta de vida orgânica democrática, de reunir a sua diretoria, de fazer
uma assembléia para depois escutar a opinião dos moradores, isso é o que falta na
cidade hoje, em regra as associações, estão esvaziadas/comandadas nem pela sua
diretoria, mas por alguém/membro da diretoria que define as coisas da diretoria.
Muitas vezes os delegados do OP não são frutos de uma reunião dos moradores, são
frutos de um ofício que o presidente determina, talvez consulte mais um outro da
diretoria. Falta vida orgânica real... tem no governo não mais um inimigo mas tem
parceiro no governo então basta se organizar, tu garante conquistas para tua
comunidade, melhorias de condição de vida sem aquele desgaste de energia que em
outros momentos já existiu, mas isso debilitou muito a organização popular em Porto
Alegre do ponto de vista orgânico, mobilização e democracia. Isto que o OP
representa do Governo em relação à sociedade de transparência de abrir... isto não
está indo até a ponta lá nas comunidades do ponto de vista das suas organizações,
das suas associações, Clube de Mães, seja o que for esta democracia, transparência e
abertura das questões para decidir em conjunto, lá na ponta não está indo, é mais na

326
mão de um e dois que conhecem e dominam o processo. Hoje temos pouquíssimas
regiões que tem necessidades/demandas e não participam do OP. O OP tem uma
história de levar comunidades sem nenhuma tradição de participação, organização
comunitária, que tinha aversão à questão da política e que se mobilizaram. Podemos
perguntar qual é a finalidade que tem essa participação? Ta, ela pode ser muito
pragmática, mas acho que isso é um avanço da situação anterior de ficar esperando
que um dia alguém faça alguma coisa (Cristiano, técnico do GRC).

6.2- O papel do OP

Quando as políticas saem da dimensão da cobrança de direitos e é diluída em outras

instâncias de participação, viabiliza os elementos do exercício da cidadania e leva o

indivíduo a uma consciência do lugar em que ocupa e do papel que desempenha no cenário

político-administrativo da cidade.

O OP, como um instrumento de mobilização agrega milhares de pessoas em

assembléias para decidir os investimentos que serão realizados na cidade a cada ano. O OP

é um grande exercício de democracia, de poder do povo. Nesse novo modelo de gestão,

implantado pela Administração Popular, o poder deixa de ser um atributo exclusivo do

governante e passa a ser compartilhado com a comunidade.

A democracia participativa devolve aos cidadãos a prática cotidiana da decisão dos

rumos da vida em sociedade. O Orçamento Participativo tem como características

principais a participação popular e a prática direta, ou seja, a tomada de decisão pelos

próprios cidadãos e cidadãs. Outra característica é a auto-organização, em que os próprios

participantes decidem as regras de sua atuação, aprofundando seu comprometimento com

as mesmas.

Por outro lado, esse processo não é perfeito e há políticas que não são

implementadas, mesmo com a participação dos moradores, como é o caso dos moradores

de rua. Por que isso acontece? Não há interesse por parte do poder público? Não dá

visibilidade política? É mais conveniente politicamente atender as comunidades do que os

327
moradores de rua? Falta uma participação? Falta organização adequada? Depende do

profissional que trabalha? Há diferença quando é um profissional que lidera o movimento e

quando é uma liderança comunitária ou uma entidade de bairro?

Provavelmente possamos responder sim a quase todas as perguntas. Não é possível

negar que há interesses políticos, apesar das limitações de verbas ou de operacionalização

das demandas, além da burocracia do sistema público. E não há como negar que o voto das

comunidades atendidas manteve a Administração Popular no poder durante 16 anos.

De qualquer forma, a participação forçou uma experiência diferente na vida das

pessoas, e cada um teve a sua vivência a partir do lugar que ocupa neste cenário:

Há os que não conseguiram melhorias. Desses, há os que entendem que é

preciso participar e tentam se fortalecer nas suas comunidades, ou encontrar

formas de articulação com outras comunidades, e há os que continuam

acreditando nas políticas assistencialistas.

Há os que conseguiram muitas coisas. Desses, há os que tinham uma

participação pontual, ou seja, precisavam de determinadas melhorias, então

participavam, conseguiram as melhorias, e deixaram de participar. E há os

que, por ter conseguido coisas, continuam participando por acreditar que

esse é o caminho.

Há os que nunca participaram e que provavelmente nunca vão participar.

Desses, há os que não acreditam no OP, ou por que não compreendem o

processo, ou por que não acreditam que esse seja o caminho de se conseguir

alguma coisa e sim, via amigos influentes ou políticos em busca do voto da

“população carente”, ou por que moram em um bairro em que há alguma

comunidade carente e como essa comunidade participa, logo, as melhorias

conquistadas para o bairro beneficiarão esse indivíduo, mesmo que ele não

328
participe, ou por que pertencem a uma classe economicamente alta e que

vive em bairros que já tem uma infra-estrutura excelente, que não há

demandas e, quando há, a pressão é direta no governo municipal.

Ou seja, o OP é para a população carente mesmo. Renata93 relata que:

...o OP necessita uma implicação forte, uma disponibilidade. Tem que ser aberto
para pontos de vista que discordam totalmente do que a gente pensa e as pessoas
[da classe média e alta] não estão preparadas para isso, para essa nova divisão de
poder, essa convivência. Também não temos tantas necessidades. Mas mesmo
quando temos, a classe média e alta prefere usar outras vias, como por exemplo, as
federações profissionais (Renata, moradora).

Ou seja, demarca que os espaços de reivindicação popular são para quem precisa

conquistar coisas. Demarca também que a classe média não tem a mesma disponibilidade

de reivindicação do que a classe chamada popular; demarca ainda a dificuldade de

compartilhar poder, pois isso implica também compartilhar saberes e opiniões.

Por outro lado, há também uma lógica perversa nessa participação, ou seja, a classe

média acaba se beneficiando das melhorias conquistadas pelas classes populares, que

participam do OP, isso porque nos bairros convivem pessoas pertencentes a diferentes

classes sociais, e as melhorias conquistadas beneficiam a todos, independente de quem

participa.

De acordo com levantamentos estatísticos sobre o OP, há dois grupos bem

definidos que ainda não participam: os excluídos – os que não tem nada, nem condições de

se deslocar às reuniões – e a classe média. O relato abaixo ilustra a complexidade da

participação no OP e, conseqüentemente, a compreensão da importância da ação coletiva.

Para atrair a participação da classe média nas reuniões do OP de uma região de

Porto Alegre, os delegados dessa região, por iniciativa própria, produziram e distribuíram

93
Renata é o nome fictício de uma moradora de Porto Alegre; ela não faz parte dos entrevistados. Seu
depoimento está na obra: Organização Não-Governamental Solidariedade. Caminhando para um mundo
novo: orçamento participativo de Porto Alegre visto pela comunidade. Petrópolis : Vozes, 2003.

329
seis mil convites aos moradores de edifícios da região. Nos convites94, estava escrito o

seguinte: “Como nós, você utiliza água tratada, esgoto pluvial esgoto cloacal... Utiliza o

transporte coletivo ou, se tem carro, a pavimentação das ruas, a sinalização e iluminação

das mesmas... Talvez utilize as praças e parques da cidade, uma escola pública ou um

posto de saúde... Como nós, você precisa de segurança, de energia elétrica e de uma

infinidade de outros serviços e investimentos públicos. Temos muitas coisas em comum...

Porém, há uma diferença muito importante. Nós utilizamos e decidimos sobre estes

serviços e investimentos, você apenas os utiliza. Queremos a sua participação, pois não é

justo que a gente decida por você, sem pelo menos lhe fazer um convite a participar destas

decisões. Venha, traga suas idéias, reclamações ou necessidades. Você será muito bem-

vindo!”. Resultado: seis pessoas compareceram a uma primeira reunião e depois não

retornaram mais.

Independente da condição econômica do público que participa do OP, o fato é que

identificamos dois tipos de participação: a obrigatória, a do discurso assistencialista, a que

aliena; e a espontânea, a do discurso da autonomia, a que emancipa.

Através de instrumentos como o Orçamento Participativo, os conselhos, entre

outros fóruns, a política passa de algo distante para algo próximo, que depende de vontades

e desejos de mudança de cada cidadão. Com as novas tecnologias de comunicação, a

democracia participativa pode ser potencializada e a política ter um novo espaço na vida de

todos. O que transforma o OP em uma escola de cidadania é um processo contínuo e

consciente do cidadão na construção das decisões políticas. É através de sua aplicação que

a gestão do Estado poderá passar, cada vez mais, da elite governante para a base popular.

94
Fonte: Organização Não-Governamental Solidariedade. Caminhando para um mundo novo: orçamento
participativo de Porto Alegre visto pela comunidade. Petrópolis : Vozes, 2003.

330
No entanto, nos perguntamos se basta para uma sociedade – ou mais concretamente

para uma localidade – tornar-se democrática, que exista a participação popular na definição

dos investimentos públicos? Esta participação pode provocar uma mudança na tradicional

cultura política brasileira de autoritarismo, clientelismo e corrupção? E, mais ainda, a

participação popular toca na cultura do individualismo, dos interesses mais imediatos?

Assim, passamos a falar de uma cultura política a ser redimensionada pelos sujeitos

que administram o Estado e pelos sujeitos organizados coletivamente na sociedade civil.

Com isto, podemos dizer que a participação popular precisa ir além de um instrumento

específico, como o Orçamento Participativo, por exemplo. Tornar efetivamente pública as

instituições que regulam a vida dos sujeitos é pressuposto para forjar uma sociedade

democrática. A participação popular só pode gerar democracia quando e na medida em que

põe cidadãos e cidadãs em movimento, em luta.

O processo do OP deu visibilidade às identidades do mosaico urbano. Trouxe à luz

a nossa diversidade cultural, étnica, social. Levou a população a um nível de diálogo que

fez da cidade um marco nessa obscura contemporaneidade. Proporcionou uma mudança na

cultura política e na forma de gerir a coisa pública, trouxe também a possibilidade de uma

profunda mudança sobre a finalidade e a função do conhecimento, ou seja, contribuir com

o conhecimento da realidade local e de suas múltiplas e complexas conexões com a

realidade global. Isso significaria inverter o processo de fabricação do conhecimento: ao

invés de se propor a conhecer apenas um suposto universal para poucos, passar a conhecer

os verdadeiros locais para muitos.

Seja como for, a cidade tem o enfoque da qualidade de vida, tem construído

políticas públicas que materializam melhores condições urbanas, sociais, ambientais e

culturais. Isto é fruto de um movimento coletivo, da interação entre as ações do governo e

as ações da cidadania.

331
O que descrevemos sobre o processo do OP nos remete a identificar a dimensão de

consciência política de Sandoval (2001) que trata da eficácia política.

A Eficácia Política refere-se aos sentimentos que as pessoas têm sobre sua

capacidade de intervir em uma situação política. Sandoval (2001) recorre à teoria da

atribuição de Hewstone (1989), que mostra que as pessoas podem dar três tipos de

interpretações às causas e motivações para as coisas que lhes acontecem:

* Primeiro: o indivíduo atribui que os eventos são resultantes de forças

transcendentais como tendências históricas, desastres naturais e intervenções divinas. Essa

interpretação, geralmente produz nos indivíduos sentimentos de baixa eficácia política, ou

seja, quanto mais acreditarem que os eventos têm como causas as forças transcendentais,

mais baixo será o sentimento de eficácia política frente às ações que possam realizar para

transcender as forças da natureza. Esse tipo de interpretação gera reações submissas e

conformismo frente as situações de angústia social.

* Segundo: as pessoas acreditam que as motivações e razões sociais são o resultado

da própria determinação e capacidade da pessoa em lidar com uma situação específica. As

pessoas atribuem as causas dos conflitos e angústia sociais às ações ou capacidades

individuais procurando resolvê-los solitariamente e culpabilizando a sua carência de

habilidades para tratar da angústia social. Em outras palavras, as pessoas procuram

soluções individuais para situações sociais (Sandoval, 2001).

* Terceiro: as pessoas acreditam que situações de angústia social são o resultado

das ações de certos grupos ou indivíduos. Isso faz com que essas pessoas acreditem nas

suas ações individuais ou coletivas, conseqüentemente gerando um efeito de mudança da

situação. Dessa maneira, essas formas de motivações permitem que as pessoas sintam que

suas ações contra os responsáveis pela situação de angústia social podem ter um efeito de

mudança social. É por meio dessa interpretação que descobrimos que os indivíduos

332
tornam-se atores da mudança em suas vidas, ou seja, sentem que são capazes de mudar a

sua própria vida e a vida dos outros.

Elira demonstra essa idéia a partir de sua fala, para ela, o OP é importante, a

política é fundamental, é onde o indivíduo exerce a sua cidadania, coloca o que a sua

comunidade e a região precisa, não desenvolve só a sua comunidade. Também aprende a

dividir, faz parceria e isso abre a consciência das pessoas.

Isto, evidentemente produz um maior sentimento de eficácia política, pois as

pessoas sentem que são capazes de superar os conflitos e a angústia social.

Lauro também nos dá exemplo do quanto o sentimento de eficácia política permite

uma relação diferente com a cidade, com a cidadania, com a responsabilidade e

compromisso consigo mesmo e com os outros, fazendo com que o engajamento com a

comunidade, seja viabilizado. A presença dessa dimensão é importante para a formação da

consciência política e de uma diferente ação sobre o mundo, visando a transformação da

realidade social. Para Lauro, através da participação, da qualificação, ou maior número de

processos democráticos participativos, há maior número de informação que a população

pode ter para entender o macro e para entender o micro que envolvam a população de

uma forma organizada.

O sentimento de eficácia política também é desencadeado pelos canais de

interlocução que os indivíduos vão estabelecendo e se apropriando ao longo da vida.

Quanto mais os indivíduos participam, percebem as melhorias acontecendo, percebem que

as suas decisões são respeitadas e transformadas em ação, mais fortificados serão na crença

da eficácia política que suas ações têm e, conseqüentemente, terão mais capacidade e

disponibilidade de articulação e organização comunitária. Por outro lado, o que começou a

ocorrer com o OP nos últimos anos, ou seja, alguns vícios do tipo: atraso nas obras,

organização de umas comunidades que não tinham como base a solidariedade e por votos,

333
conquistavam coisas que outras comunidades não conquistavam, traz um sentimento de

impotência frente ao processo do OP, e isso tira a força do sentimento de eficácia política.

A experiência contada por Rodrigo95 ilustra essa idéia:

Hoje nós temos jovens aqui que se preparam para o vestibular, para ir à
universidade ou que fazem cursos técnicos. Isso é a influência do OP que melhorou a
qualidade de vida e deu novas esperanças. Quando a gente morava na Vila das
Placas, tinha dificuldade até para conseguir um emprego. Se um jovem dava como
endereço a vila, sua ficha ia para baixo dos outros candidatos. Agora isso mudou.
As pessoas sentem orgulho de dizer que moram no condomínio dos Anjos e muitas já
encontraram um trabalho. O OP faz com que, além das demandas, as comunidades
resolvam seus problemas internos. As pessoas se dão conta que, unidas, se tornam
mais fortes e que têm que respeitar os outros. Ninguém mais tem essas reações
violentas como antes, essas posições radicais, porque a gente se acostuma a debater,
discutir, confrontar opiniões. Assim, algumas pessoas que não se enxergavam mais
por causa de uma briga já antiga, voltam a se cumprimentar, a bater um papo.
Antes, a esquina da rua só servia pra tomar cachaça e falar mal dos outros. Hoje a
gente continua tomando uma cachaça, mas também troca idéias e discute as
questões da comunidade, com respeito (Rodrigo, morador).

Já referimos em outro momento, nesta tese, que o Orçamento Participativo

comprovou também que a criação de mecanismos práticos de participação e o

compromisso do governo de fazer o que a população decide são fundamentais para romper

as barreiras burocráticas que separam a sociedade civil96 do Estado, e para a construção de

uma cidadania ativa e mobilizada. Em Porto Alegre, hoje em dia, os cidadãos conhecem e

decidem sobre os recursos públicos e se transformam, desta maneira, cada vez mais, em

sujeitos de seu próprio futuro. A ação direta exercida através do Orçamento Participativo

se revelou muito positiva no desenvolvimento da consciência e da prática política dos

cidadãos que se apropriam de informações e do controle sobre o Estado.

95
Rodrigo é o nome fictício de um morador de uma comunidade; ele não faz parte dos entrevistados. Seu
depoimento está na obra: Organização Não-Governamental Solidariedade. Caminhando para um mundo
novo: orçamento participativo de Porto Alegre visto pela comunidade. Petrópolis : Vozes, 2003.
96
Sociedade civil entendida, de acordo com Bobbio, como a esfera das relações entre os indivíduos, entre os
grupos, entre as classes sociais, que se desenvolvem à margem das relações de poder que caracterizam as
instituições estatais. É o terreno dos conflitos econômicos, ideológicos, sociais e religiosos que o Estado tem
a seu cargo resolver, intervindo como mediador ou suprimindo-os; como a base da qual partem as
solicitações as quais o sistema político está chamado a responder; como o campo das várias formas de
mobilização, de associação e de organização das forças sociais que impelem a conquista do poder político.

334
Além disso, sua população ocupa espaços de participação e debate, define recursos

e cria políticas para cada uma das áreas de interesse coletivo. Diretrizes, leis, ações

específicas que dão rumo ao crescimento, ao desenvolvimento sustentável e à inclusão de

milhares de porto-alegrenses nos serviços e no conhecimento da vida moderna.

Relacionamos esse item com a dimensão da consciência política de Sandoval

(2001) que trata das metas e ações do movimento social. Essa dimensão se refere ao grau

com que os participantes do movimento social percebem a correlação entre as metas do

movimento, as estratégias de ação do movimento e seus sentimentos de injustiça, seus

interesses e sentimentos de eficácia política. Esta dimensão trata de “avaliar” até que ponto

as metas e propostas dos movimentos sociais e das suas lideranças correspondem aos

próprios interesses materiais e simbólicos de seus participantes. Nesse sentido, suas

propostas de ação coletiva e seu discurso de reivindicação de justiça contra os adversários

percebidos estão no âmbito de seus próprios sentimentos de eficácia política. A complexa

tarefa de fazer a correspondência entre metas e estratégias do movimento e suas aspirações

e a auto-percepção das capacidades de seus membros tem provocado sérias mudanças de

posturas tanto para as lideranças quanto para as pessoas comuns. Essa dimensão produz, ao

mesmo tempo, outros componentes da consciência política que interagem com as

características de organização do movimento percebidas na forma de predisposição

psicológica para ação coletiva.

De acordo com Sandoval (2001), tanto a dimensão da consciência política Vontade

de agir coletivamente quanto Metas e ações do movimento social, têm suas bases em

alguns teóricos da escolha racional como Olson (1965), que tem contribuído para o debate

sobre os determinantes da participação coletiva. Nesta perspectiva, é inegável que as

pessoas, ao decidirem participar, individual ou coletivamente, em movimentos sociais

335
fazem uma escolha dos elementos significativos que influenciam sua participação e o seu

compromisso com o movimento social.

Sandoval entende que estas escolhas são elementos que se tornam significativos

para o pensamento individual através das suas identidades coletivas; suas crenças, valores

e expectativas em relação à sociedade; seus sentimentos de eficácia política; suas

percepções do auto-interesse frente aos adversários e, finalmente, seus sentimentos de

justiça e injustiça (Sandoval, 2001:190). Ao mesmo tempo, essas dimensões contribuem

para a tomada de decisão dos indivíduos, o que leva o autor a afirmar que a escolha de

elementos significativos na avaliação da organização dos movimentos sociais, bem como

essas metas e estratégias são percebidas como formas relevantes de ação coletiva que

proporcionam uma pressão situacional.

Percebemos que o OP é um instrumento que permite o estabelecimento de metas e

estratégias que viabilizam a ação coletiva. Valdomiro identifica o OP dessa forma, para

ele, o OP busca se consolidar nas comunidades, há reconhecimento na comunidade de um

espaço legítimo pra reivindicação.

Lígia tem uma relação distanciada com o OP enquanto moradora, ou seja, não

participa do OP para reivindicar coisas para a sua comunidade, mas participa enquanto

trabalhadora:

... eu moro no centro, fui algumas vezes, não vou pra reivindicar coisas pra mim,
mas acompanho mais onde o pessoal das Unidades participam, até porque a gente
incentiva que vão, porque a gente sabe que aquele é o canal... É importante, com
esse grupo que a gente trabalha é fundamental, embora nem tudo aconteça pelo OP,
as coisas mais importantes acontecem, por exemplo: estas Unidades que já existem,
as melhorias que tem que ser feitas, elas tem que ser reivindicadas no OP, a
quantidade de dinheiro que vai ser investido, isso é definido no OP, então é
fundamental que eles participem porque os equipamentos, por mais bem cuidados
que sejam, acabam tendo problemas, e então tem que ser repostos, consertados, os
prédios, a mesma coisa, então se não for pelo OP não acontece nada (Lígia,
técnica).

336
Pela experiência de Porto Alegre, as políticas públicas da cidade viabilizam o

exercício da cidadania, principalmente as voltadas para a população mais carente, na

medida em que essa população se utiliza dessas políticas como um direito e não como um

favor que a Administração Municipal está fazendo para a população carente.

Nos parece óbvio que o discurso e as práticas assistencialistas são fortes, até mesmo

desejadas e intencionalmente colocadas na relação com a sociedade civil, talvez, por isso,

tenhamos moradores que sustentam essa prática. No entanto, o comportamento político dos

indivíduos mudou e nossos entrevistados mostram que ainda se mantém, em algumas

comunidades, o discurso assistencialista, a prática de venda de votos; mas há também a

escolha pelas propostas que os candidatos apresentam para as comunidades,

independentemente de partido político.

De qualquer forma, pela definição dos moradores do que é ser cidadão e o que é

exercer a cidadania, podemos dizer que, mesmo com as contradições do processo, as

políticas públicas viabilizam o exercício da cidadania e ampliam a visão de mundo dos

indivíduos.

Essa reflexão nos leva a associar o movimento dos moradores com a dimensão de

interesses antagônicos e adversários, a qual consiste nos sentimentos do indivíduo em

relação ao modo como os interesses simbólicos e materiais são opostos aos interesses de

outros grupos e como os interesses antagônicos levam a perceber a existência de

adversários coletivos na sociedade. Essa dimensão, para Sandoval (2001), ocupa um lugar

chave na consciência política, pois sustenta a ação coletiva, visto que, sem a noção de um

adversário visível, é impossível mobilizar os indivíduos a agir e coordenar ações em favor

de um objetivo específico seja este individual, grupal ou institucional.

Em outras palavras, essa dimensão da consciência começa a mobilizar os sujeitos à

ação coletiva manifestando claramente os conflitos de interesses que existem entre os

337
adversários. Ela é expressa no ...caráter antagonístico das relações de classe - na medida

em que esses são conflitos de interesse - e no significado que o indivíduo atribui ao

antagonismo em termos de obstáculos para lograr benefícios materiais e políticos

(Sandoval, 1994b:67).

Acreditamos que o OP é um fórum em que podemos visualizar essa dimensão, no

sentido que é um fórum em que os antagonismos aparecem, ou seja, o OP é um fórum que

mostra as carências e as necessidades de uma parcela da população. No momento em que

essa parcela percebe que lhe falta coisas que para outros não falta, os adversários se tornam

visíveis, adversários esses que motivam o indivíduo a agir politicamente de modo a

diminuir as diferenças.

Cristiano reconhece que a Administração Municipal poderia ter enfatizado, com os

indivíduos, a necessidade de acessar direitos sim, mas também que é preciso ter deveres;

que a cidadania pressupõe estes dois aspectos que, na verdade, se complementam. O que

podemos inferir, com isso, é o fato de que esse pode ser um elemento que obscurece a

possibilidade da cidadania ativa, no sentido de que quando o indivíduo, enquanto cidadão,

focaliza exageradamente os direitos, possibilita o estabelecimento do discurso

assistencialista.

Ora, se o indivíduo se percebe como um ser de direitos, a possibilidade de pensar

que esses direitos tem que ser dados por outrem é mais convincente do que o entendimento

que os direitos tem que ser garantidos, pois esse verbo pressupõe a ação do indivíduo

também, enquanto o verbo dar, implica na ação do outro muito mais do que a do indivíduo

que espera.

Podemos inferir que a participação de muitos grupos é, por isso, restrita a reuniões

necessárias para garantir os direitos, mas essa participação não se amplia para além das

reuniões. Por isso, lembramos de tantos depoimentos onde os entrevistados referem que o

338
Orçamento Participativo é importante “porque as pessoas ganham casas” ou “porque eles

[Prefeitura Municipal] dão moradia pras pessoas”. Recordamos também a surpresa de

Augusto com a fala do Prefeito quando esse disse que não era bonzinho, nem paternalista

e que não podia dizer que ia dar casas para os papeleiros sem que esses se organizassem

para demandar moradia nas reuniões do OP.

De uma certa forma, essa idéia acaba sendo reforçada pela própria Administração

Municipal, através de suas Secretarias. Mesmo que haja um discurso de emancipação dos

seus cidadãos, principalmente os de baixa renda, a prática guarda nas suas entrelinhas, uma

postura paternalista. Por isso talvez, Cristiano tenha dito que trabalhamos pouco isso se

referindo ao trabalho com os moradores no sentido do cumprimento de suas obrigações

com o coletivo.

Defendemos a idéia de que o OP assim como outros fóruns de participação são

importantes para desenvolver a participação, para incrementar o sentimento de cidadania, e

o sentimento de pertencimento à cidade, no entanto, apresentamos também as contradições

desta participação, pois se trata de um contexto político complexo.

Nesse contexto consideramos que é fundamental a dimensão da consciência política

de Sandoval (2001) que trata da vontade de agir coletivamente. Como já referimos no

capítulo anterior, essa dimensão se refere à predisposição do indivíduo em incluir-se no

jogo das ações coletivas como um modo de compensar as injustiças que são cometidas

contra ele mesmo. Para Sandoval (1989), em geral, os indivíduos são mais predispostos a

não participar do que participar em ações coletivas já que avaliam, racionalmente, os

custos e benefícios, as perdas e os ganhos materiais e os riscos concretos que envolvem a

sua escolha em participar ou não de movimentos sociais ou de ações coletivas.

Percebemos essa dimensão em vários movimentos dos entrevistados, na sua relação

nas comunidades, na sua vivência no OP, que são situações que fazem com que o

339
indivíduo tenha a predisposição a participar, a mudar a sua vida, a dar mais qualidade de

vida ao seu cotidiano. A identidade coletiva também influencia as escolhas das ações

coletivas.

O esquema abaixo sintetiza a nossa reflexão nesse capítulo. Entendemos que há a

relação entre a participação política e as políticas públicas da cidade, no sentido que elas se

retroalimentam, ou seja, ao mesmo tempo em que o indivíduo participa, seja em entidades

e associações na comunidade ou nas reuniões do OP, ele incrementa, fiscaliza e viabiliza

políticas públicas e instiga o indivíduo a continuar ou começar a participar. Esses

elementos permitem um sentimento de cidadania ativa, ou seja, a possibilidade que o

indivíduo tem de perceber-se como ator político. E, por sua vez, isso dá ao indivíduo

elementos para a formação da consciência política.

Participação Política

Relações OP e

Comunitárias demais fóruns

Políticas Públicas

Consciência Cidadania
Política Ativa

340
Nesse capítulo, analisamos a repercussão do movimento dos moradores para as

políticas públicas da cidade. Consideramos a opinião dos técnicos que trabalham nas

Secretarias e Departamentos Municipais responsáveis pela viabilização de grande parte

dessas políticas, bem como de nossos entrevistados. Destacamos a relação com o OP,

como um dos principais instrumentos de interlocução entre a sociedade civil e o Governo

Municipal, como um espaço para reivindicar por melhorias para a comunidade, para

resolver alguns problemas de âmbito comunitário, para decidir sobre as políticas públicas e

também como aprendizado do exercício da cidadania. Constatamos que a organização

comunitária e a participação política dos nossos entrevistados, de fato, interfere nas

políticas públicas, seja no sentido de implementá-las ou melhorá-las. Entendemos que esse

processo de participação é fundamental para desenvolver a consciência política nos

indivíduos.

No capítulo seguinte, apresentaremos a relação entre a participação política e

consciência política, em um âmbito conclusivo, ou seja, defendemos a idéia de que a

participação política é atravessada pela consciência política e, da mesma forma, a

consciência política se forma pela vivência que o indivíduo tem na sua realidade social.

Destacamos a participação política como um elemento determinante na formação da

consciência política. E apresentamos a complexidade da participação política através do

significado que os indivíduos atribuem ao que é participar politicamente, em como buscar

as melhorias para a sua comunidade e como percebem as opiniões do entorno sobre a

comunidade na qual vivem.

341
Capítulo VII

Participação Política e Consciência Política: uma abordagem


psicopolitica

No quinto capítulo, investigamos como a participação política vem sendo

construída pelos moradores e trabalhadores de Unidades de Reciclagem de Lixo em Porto

Alegre e incide no sentimento de cidadania, bem como as repercussões que esta

participação tem tanto para a vida das pessoas como para as políticas públicas da cidade.

No sexto capítulo, analisamos as entrevistas realizadas, procurando evidenciar de que

forma as políticas públicas incidem na vida dos moradores e trabalhadores de Unidades de

Reciclagem de Lixo em Porto Alegre, e de que forma nossos entrevistados interagem com

essas políticas, efetivamente, seja na relação com as entidades/instituições que trabalham

nestas comunidades, seja pelos fóruns de participação popular. Neste capítulo de análise,

investigaremos a relação entre participação política e consciência política.

Analisaremos a relação entre a participação política e a preferência político-

partidária de nossos entrevistados com o intuito de entender a relação entre a preferência

partidária e os níveis de participação os cidadãos.

Buscaremos relacionar também a definição de participação política que os

entrevistados têm e o movimento por busca de melhorias para a sua comunidade; se, nessa

relação, predomina um movimento mais emancipatório ou assistencialista.

Trataremos da questão da percepção que os entrevistados têm de si mesmos e da

opinião que eles pensam que o entorno têm em relação às comunidades. Nosso intuito é

entender de que forma essa vivência de preconceito interfere na participação política das

pessoas.

342
E, por fim, retomaremos, de uma forma mais conclusiva, a análise iniciada no

quinto capítulo, sobre a relação entre participação política e consciência política. Para

tanto, é conveniente que investiguemos, de forma mais apurada, o que entendemos por

consciência política. Retomamos, para tanto, a contribuição de Sandoval, sobre o conceito

de consciência política, com o qual concordamos.

De acordo com Sandoval (1994b:59), consciência é um conceito psicossociológico

referente aos significados que os indivíduos atribuem às interações diárias e

acontecimentos em suas vidas, ou seja, o contexto social é significado pelos indivíduos de

acordo com a realidade vivida. Desta forma, a consciência não é um mero espelhamento

do mundo material (Giddens, 1982, citado por Sandoval, 1994b:59).

O que é pensado, o que é dito, o que é expresso têm a ver com o contexto no qual as

pessoas vivem, uma vez que este é um campo fértil de significados. A experiência local -

aquela mediada por relações próximas, que fazem parte do contexto imediato de relações

do indivíduo, e a experiência geral - aquela que faz parte da conjuntura política,

econômica, social, cultural do indivíduo, e que ajudam a constituir seu universo simbólico,

são fontes que condicionam e moldam as relações de classe e vêm afetar a consciência

política. Por isso, a estruturação de classe sempre implica em condições para o

afloramento da consciência política (Sandoval, 1994b:60).

Sandoval (1994b) apresenta, de forma sucinta, as três dimensões básicas que

formam a consciência, propostas por Touraine:

 Identidade, que é a dimensão que compreende as percepções de

identificação de classe do indivíduo, em termos de percepção das

características que separam a classe com a qual se auto-identifica de outras

classes sociais;

343
 Oposição, que é aquela dimensão que focaliza a percepção que o indivíduo

tem da relação entre a sua classe e outras classes, especialmente com

respeito à classe dominante.

 Totalidade se refere à percepção que o indivíduo tem da sociedade em

termos de sua dinâmica social, distribuição de bens sociais e do sistema de

dominação.

Sandoval acrescenta, às dimensões de Touraine, uma quarta dimensão, que

denomina de:

 Predisposição para a intervenção, a qual está relacionada à percepção que

o indivíduo tem da sua capacidade de intervenção para alcançar seus

interesses.

Para o autor, o conceito de consciência está intimamente relacionado ao

engajamento do comportamento social em busca de auto-interesse e de interesse de classe.

É com essa compreensão que pretendemos analisar o comportamento político de

nossos entrevistados, ou seja, entendemos que a questão identitária é fundamental para que

o indivíduo se diferencie enquanto ser autônomo em relação a outro grupo social, mas

também em relação a outros indivíduos dentro de seu próprio grupo. Essa diferenciação lhe

dará condições de discernimento sobre as suas escolhas e engajamento em ações coletivas.

A oposição também é essencial no sentido em que fornece a o indivíduo os

elementos para sustentar sua ação coletiva em prol das melhorias para a sua vida. É o que

permite ao indivíduo perceber que ser pobre, carente, vileiro, não é uma condição natural;

que é possível qualificar a sua condição de vida; que é possível acessar os direitos

garantidos constitucionalmente, independente de classe social.

A dimensão da totalidade se torna primordial no sentido de permitir ao indivíduo

compreender a dinâmica do contexto social no qual está inserido, bem como entender a

344
configuração das relações de poder, para que tenha condições de incidir sobre essa

realidade.

E, por fim, o conhecimento, assim como a capacidade de discernimento sobre esses

contextos, se esvaziaria se não possibilitasse ao indivíduo a capacidade de intervenção –

individual e coletiva – para transformar a sua realidade social e romper com o status quo.

Há de se considerar, de acordo com Sandoval (1989a:123) os processos mediadores

e a natureza dos vínculos entre o indivíduo e a decisão coletiva do grupo.

Considerando os fatores determinantes da participação em mobilizações coletivas,

Sandoval (1989), faz uma distinção entre os fatores da esfera interna e externa, referentes à

dinâmica dos agrupamentos envolvidos no movimento social, que exercem um papel de

controle social. Destacam-se, primeiramente, as noções culturais que são a expressão

histórica de valores e crenças que permeiam as visões de mundo das pessoas como

pressupostos sobre natureza da sociedade e a naturalidade das relações sociais. Outro

mecanismo seria as restrições da vida cotidiana impostas aos indivíduos que reduzem a

oportunidade de desenvolver sua capacidade de análise abstrata. O acomodar-se passa a

ser uma alternativa atraente para muitos que não possuem elementos para uma reflexão

mais abstrata e crítica da realidade.

No entanto, apesar dos valores, crenças sociais e a rotina cotidiana, os indivíduos

têm a oportunidade de romper parcial e temporariamente com os mecanismos de

submissão, e viver experiências coletivas e interagir com outras pessoas no âmbito de um

esforço organizado coletivo.

Nossos entrevistados dão indicativos de que esse movimento é possível entre os

indivíduos, ou seja, falam de experiências individuais e coletivas que rompem com os

mecanismos de submissão e impõem um novo modelo de relações, em que a busca pela

emancipação individual e coletiva é um dos eixos de ação.

345
Sandoval (1989) destaca os fatores que impulsionam os indivíduos a participarem

em movimentos sociais ou ações coletivas:

♦ Um destes fatores seria os demarcadores das fronteiras dos agrupamentos e

da comunidade, que caracterizam a coletividade em termos de localização,

ou seja, tem a ver com as pessoas que compartilham o mesmo local de

moradia e/ou trabalho. Para o autor, no entanto, curiosamente, esse ainda

não é um fator facilitador das mobilizações nas comunidades, ao contrário, a

fragmentação ainda é o determinante.

Podemos inferir, preliminarmente, que, em alguns casos, esse fator é um

impulsionador das ações coletivas de alguns grupos da comunidade. Percebemos, por

exemplo, que, no caso das Unidades de Reciclagem, os grupos dos recicladores se

mobilizam para solicitar demandas no OP, mas são demandas relacionadas ao trabalho. A

fragmentação se torna visível no sentido de que não há a participação no OP, por parte

desses mesmos grupos, para solicitar melhorias para a sua comunidade. Nesse sentido,

concordamos com Sandoval ao apontar para o fato de que compartilhar o local de moradia

não implica em um elemento naturalmente impulsionador de mobilização.

♦ O segundo grupo de fatores seria os fatores contribuidores à solidariedade

entre os membros da coletividade, que podem ser classificados em dois

tipos: categorias e redes sociais. As categorias sociais consistem em

agrupamentos de pessoas que se distinguem de outros [agrupamentos] por

compartilhar os mesmos critérios ou atributos; as redes sociais consistem

em dois elementos: uma variedade de relações sociais e os conjuntos de

indivíduos interligados direta ou indiretamente por estas relações sociais.

A partir da nossa pesquisa identificamos que a solidariedade é um elemento

importante para estimular as ações coletivas. Exemplificamos o que acontece nas reuniões

346
do OP: os grupos precisam se articular para que as demandas sejam votadas, ou seja, o

princípio do OP carrega a contradição de administrar a rivalidade e a solidariedade. Uma

comunidade tem que ser unida para conseguir um investimento, mas cada conquista pode

significar que outra comunidade não será contemplada. Então a solidariedade é um

princípio que tem que estar presente tanto entre os membros da mesma comunidade, como

entre diferentes comunidades. Rafael97 fala sobre isso:

Isso é a teoria do umbigo, a gente olha só pro umbigo e esquece a barriga. A gente
trabalhou muito pra mudar essa cultura. Claro que tu vai no OP pra conseguir um
melhoramento, reformar o que já foi feito ou avançar no que ainda falta. Porém, a
partir do momento que tu não ganha, mas que um outro vai ganhar, sempre penso
que é mais uma conquista da população e o ano seguinte vou tentar de novo. Na
verdade, nem todo mundo aceita isso. Então tem um certo conflito que tem que
administrar. Tu tem que convencer, articular os grupos, puxar pra cá e pra lá. Mas
pouco a pouco conseguimos trabalhar com mais solidariedade (Rafael, morador).

♦ O terceiro grupo de fatores estaria relacionado à vida organizativa, ou seja, a

combinação de categorias sociais com redes sociais expressa a noção de

grupo no sentido de sua coesão social que outros conceitos carecem.

Entendemos que esse grupo de fatores representa um processo de aprendizagem em

relação às mobilizações coletivas, necessárias, inclusive, para a obtenção de recursos para

melhorias nas comunidades. A situação descrita a seguir, por Ivan98, ilustra nossa

afirmação:

... somos contra essa idéia que quem tem mais delegados vai ter mais força e
conquistar tudo. Fiscalizamos isso. Nossa utopia sempre foi de buscar uma outra
cultura, sempre foi que as comunidades sentem à mesa para fazer uma discussão de
alto nível e buscar a unidade. Por exemplo, todas vão se organizar e trabalhar
juntas para a demanda de uma, de forma bem sistemática para ter mais peso. É aqui
onde entra o segredo da história: a negociação. Alguns precisam de uma escola e

97
Rafael é o nome fictício de um morador de uma comunidade; ele não faz parte dos entrevistados. Seu
depoimento está na obra: Organização Não-Governamental Solidariedade. Caminhando para um mundo
novo: orçamento participativo de Porto Alegre visto pela comunidade. Petrópolis : Vozes, 2003.
98
Ivan é o nome fictício de um morador de uma comunidade; ele não faz parte dos entrevistados. Seu
depoimento está na obra: Organização Não-Governamental Solidariedade. Caminhando para um mundo
novo: orçamento participativo de Porto Alegre visto pela comunidade. Petrópolis : Vozes, 2003.

347
outros de uma creche? Vamos discutir o que é mais emergencial e dentro dessa
discussão a gente vai abrir mão de uma coisa para conquistar uma outra. Isso
implica consciência e sensibilidade de cada um (Ivan, morador).

♦ E, por último, estaria o acervo de experiências em mobilizar recursos e agir

coletivamente, bem como o valor atribuído a essas experiências, o que o

autor chama de repertório de ações coletivas.

Acreditamos que esse repertório de ações coletivas, além de impulsionar os

indivíduos para a mobilização, também permite que se adquira elementos para a formação

da consciência política, uma vez que essa não é, como já referimos, um mero espelhamento

do mundo material, e sim um conjunto de significados que os indivíduos atribuem às

interações diárias e acontecimentos em suas vidas.

Nossos entrevistados dão elementos para entendermos os processos mediadores no

engajamento em ações coletivas. Iniciaremos nossa análise, verificando o que pensam

nossos entrevistados sobre a participação política, para que tenhamos possibilidades de

relacioná-la, posteriormente, com a consciência política.

1- A relação entre a participação política e a questão partidária

Pretendemos conhecer o nível de identificação dos nossos entrevistados com o

partido político de sua preferência. Nossa intenção é investigar a relação com o poder

público e quais os argumentos dos moradores para definir a sua participação política,

confirmando ou refutando algumas de nossas hipóteses:

o Nossos entrevistados participam do OP e de outros fóruns de participação

popular por influência partidária, ou seja, participam por obrigação, por que

se não for desta maneira, não conquistam melhorias; e não aprofundam a

questão da reflexão sobre os processos políticos;

348
o Nossos entrevistados participam do OP e de outros fóruns de participação

popular por influência partidária, mas aprofundam discussões acerca de

questões políticas e refletem sobre os processos políticos da cidade;

o Nossos entrevistados não participam do OP e de outros fóruns de

participação popular, justamente pelo partido político que incentiva a

participação; e demonstram isso criticando e/ou boicotando o processo

político;

o Nossos entrevistados não participam do OP e de outros fóruns de

participação popular, não por causa de algum partido em específico, mas

porque não são engajados politicamente, e pensam que se envolver com

política é perder tempo.

1.1- A preferência político-partidária e a participação política – a inter-relação

a partir da percepção dos moradores e trabalhadores das Unidades de Reciclagem

Os moradores e trabalhadores nos fornecem interessantes depoimentos sobre a

relação entre a preferência político-partidária e a participação política. Não temos a

intenção de vincular a análise a uma questão partidária, no entanto, é inegável a associação

que se faz99 entre o Orçamento Participativo e o Partido dos Trabalhadores. A intenção de

fazer a pergunta, portanto, é a de investigar até que ponto a participação é - ou pode ser -

parte de um discurso panfletário, ou realmente é algo que foi apropriado pela população.

Os entrevistados comentam que o OP não é do partido, é do povo, sendo assim,

queremos investigar até que ponto não é feita essa vinculação e até que ponto os

entrevistados enxergam o OP desatrelado do PT. Isso por que percebemos que há uma

99
Os cidadãos de uma forma geral, a mídia impressa e televisiva, e a própria Administração Municipal.
Dependendo de onde vem, essa associação pode ter um caráter pejorativo ou não. Em épocas eleitorais,
principalmente, se distribuía nos Comitês do Partido, um adesivo para carros escrito: OPTEI. Em alguns
adesivos se destacavam as consoantes OP e, em outros, as consoantes PT. Cabe acrescentar também que, a
atual Administração Municipal, tinha como principal promessa de governo, manter o OP, com o slogan:
“Manter o que está bom [referindo-se principalmente ao OP] e mudar o que precisa”.

349
aversão ao OP de quem não é militante ou simpatizante do Partido dos Trabalhadores, e

muitas vezes, a não participação é uma forma de boicotar o trabalho, muito mais do que

um não acreditar no OP.

Os técnicos entrevistados acreditam que o OP proporciona uma aprendizagem em

relação à participação política. Para Lígia, a participação política dos moradores está

atrelada, principalmente, à vivência do OP:

o porto-alegrense aprendeu e sabe de carteirinha como buscar, participar, como ter


conquistas, então todos estes avanços que tiveram estes grupos que trabalham com a
gente, tiveram pela participação popular, equipamentos, manutenção das Unidades,
as Unidades de Triagem eram conquistadas só via OP, esta participação política, ela
tá integrada na maneira de trabalhar, de viver, até não só destas comunidades mais
carentes, como do porto-alegrense no geral (Lígia, técnica).

Para Doralina, a questão da participação política é complexa, mas demonstra o

aprendizado que a comunidade teve ao longo de sua experiência de participação e

mobilização comunitária:

as pessoas têm idéia que quem define são as pessoas... então eles se decepcionaram
com os candidatos que não votaram os projetos deles, porque eles votam em bloco...
tem algumas pessoas que votam nas pessoas e algumas pessoas que estão entendendo
que existem propostas políticas e que eles são enganados muitas vezes, são usados e
enganados. Então alguns começaram a cobrar bastante do PT, porque eles estão se
dando conta, que não tem uma clareza dos partidos pra vida deles... eles querem
definir o que que eles querem pra vida deles, então quando for bom pra comunidade é
bom pra eles, eles vão tensionar dentro dos partidos as melhorias que eles querem,
mas tem alguns que estão se definindo pelo PT, em número maior, estão agora
decepcionados com algumas coisas que se sentiram usados, mas também tem clareza
de quanto já foram usados politicamente, eles tem isso bem claro, mas também sabem
como se usar disso também e às vezes eles tem uma percepção bem maior do que a
gente....então eles tão se definindo pelo partido da comunidade... Quanto à
participação política, a referência deles é diferente da minha, a deles é de abandono,
eles aprenderam a viver desta forma, é abandono da família, das instituições, do
Estado... ouvem muito não, então eles vão se constituindo desta forma, então a forma
deles se colocarem como pessoa na sociedade, como cidadão, é bastante agressiva,
de colocar medo, ou de tensionar, eles já tem a idéia de que pra buscar algo pra eles,
tem que estar tensionando, tem que batalhar por isso, então quem tá num processo de
busca de inclusão, quem já aderiu a um processo de organização, já fora da
organização aceita em comum, já coloca uma reação de medo pra ti, vai se colocando
como provocando assim medo pra se colocar numa relação de poder, pra adquirir o
que tá buscando, ou burlando algumas regras, e por outro lado, quem tá organizado,
tem a clareza, conhece bem os serviços, conhecem a gente, e tem claro o quanto eles

350
precisam estar unidos pra batalhar por aquilo que eles querem, então a forma deles
batalhar é de resistência, por esta sensação de abandono, de resistir e existir dentro
de um espaço, então a forma de organização é bem intencionada, é de tensionar, de
busca de parcerias, mas a partir disso, de estar colocando a crítica, de estar dizendo
o que não está bom, mais por essa via do que elogiando, dizendo o quanto tá bom pra
conseguir o que quer (Doralina, técnica).
Passamos agora a analisar as respostas dos nossos entrevistados, considerando sua

opinião sobre a participação política.

Montero (2004) define consciência como los procesos de movilización de la

conciencia (concientización) que implican desideologización, desalineación, desarrollo de

la crítica (incluyendo autocrítica) y comprensión del carácter histórico de los fenómenos

comunitarios (Montero, 2004:66).

Quando nossos entrevistados indicam que participação política é consciência,

entendemos que há um nível de compreensão dos processos psicopolíticos que faz com que

o indivíduo entenda que a participação política pode incidir sobre mudanças na sua vida;

que a conquista de melhorias tem a ver com um direito que lhe pertence e não com um

favor que o poder público lhe faz; e que ele desempenha um papel de ator social e não de

receptor de ações assistencialistas.

Augusto consegue indicar esse tipo de compreensão. Ele identifica que o trabalho

que a Prefeitura faz nas comunidades, nada mais é que sua obrigação para com a

população. Na percepção de Augusto, a Administração Municipal não trata a sua

comunidade com paternalismo pelo fato de serem moradores de vila. Pelo contrário, a

relação é de cobrança de uma organização comunitária, a partir da qual eles possam

garantir melhorias:

... eu tinha uma baita bronca com o entorno, porque eles falavam dos papeleiros... já
que eu não podia brigar com o entorno, porque eles têm dinheiro, eles têm isso, tem
aquilo e eu não tenho nada, eu vou ir pro lado deles, começar a fazer uma política
de boa vizinhança... comecei a trabalhar aqui a minha gurizada pra não andar na
avenida rasgando saco, que isso é uma reclamação que eles tinham... a gente tá aqui
fazendo um trabalho pra conseguir uma moradia melhor, então em vez de vocês
rasgar saco, vocês amarrem este saco que tá aberto, pra mostrar pro povo aqui que

351
nós somos gente, somos papeleiros, mas somos educados... e a gurizada começou a
ir por mim... não rasgavam saco, não faziam baderna... tinha uma boa parceria com
eles, veio certificado de vizinho nota dez... fui mostrando que os papeleiros não eram
isso, não eram aquilo... então eles pararam de pressionar a Prefeitura e eu aqui
pressionando a Prefeitura a mil... o que resultou? Resultou em 213 moradias, 2
quadras de esporte, uma creche pra 80 crianças, este Galpão, mas aquele lá de
lambuja, que aquele é nosso porque tem muita gente que precisa trabalhar... 40
bolsa-auxílio pro pessoal aí desassistido... essa Prefeitura, se eu falar dela, eu sou
um baita falador, porque ela nos acudiu muito no incêndio, eu tava preocupado com
o fogo aqui né... o fogo começou a uma e pouco, duas e pouco tava toda a Prefeitura
aqui, desde o Prefeito, todo mundo... eu sinto que eles fazem porque é aquilo que a
gente tem direito... a gente tem um carisma com eles... não é pra agradar... e o que
eles fizeram pros papeleiros até hoje, é uma obrigação bem feita... a gente tem
direito a moradia melhor, a trabalho, não adianta ter moradia e não ter um trabalho
pra manter ela.... eles dão a moradia e uma condição de trabalho... (Augusto,
trabalhador da Unidade).

Nilda é um exemplo de quem não associa o OP ao partido político, tampouco se

sente presa ao PT. Ela conta que, foi na Administração Municipal, que aprendeu a ler e

escrever [no EJA100], que aprendeu o que é política, o que é cidadania e o que é participar,

mas não se sente na obrigação de votar no PT por causa disso; pensa que tem o direito de

apoiar e votar em quem ela acha que fará mais pela comunidade:

...eu acompanho todas as entrevistas...e ele não ratiou, ele afirmou uma coisa do
começo ao fim... ele não fez que nem o Alceu Collares, que disse que quem mandava
era ele... e este não, ele afirmou do começo ao fim a mesma coisa, que ele vai
continuar com o OP e se ele vai continuar com o OP, vai ter demanda com ele, o OP
não é do partido, é do povo, é o povo que vai, é o povo que busca, eu consegui muita
coisa aqui... eu digo eu, porque eu ia sozinha, mas eu não ia sozinha, eu ia
representando o Clube de Mães... todos nós se demos bem... o único que eu tive
atrito foi com o presidente da Associação dos Carroceiros... tivemos um atrito
fechado, é uma briga interna, sem discussão, sem baixaria... Quando eu abro a
minha boca, eu falo o certo... não adianta nós fazer barraco, tem que marcar uma
reunião com eles, quando a gente vai pedir alguma coisa a gente pede independente
de partido. E o Fogaça, eu vou cobrar dele, ele vai sofrer na minha mão, porque ele
ganhou dentro da Ilha e ele vai ter que olhar pela Ilha. Este ano ele ganhou, porque
eles esquecem da gente (Nilda, moradora).

José e Paulo, ao falarem de suas preferências partidárias, indicam a compreensão

que têm sobre a vida política:

100
Educação de Jovens e Adultos.

352
...depende, na vila aparece todos os partidos. O nosso pessoal tem uma expectativa
sempre na mudança. Tem uma tendência a se filiar a se agregar com aquele que
propõe mudança independente do partido... observam muito o que a pessoa propõe
de mudança na nossa vida e a garantia que esse candidato pode dar pra que a gente
permaneça onde estamos (José, trabalhador da Unidade).

Hoje é o Lula, comecei a votar pelo PMDB, na época da arena, depois defini o PT, e
sou filiado e não vou me escabelar, matar um por causa do partido. Porque eu penso
que se aquele partido que chegar, trabalhar e governar, e a situação melhorar pro
povo, ele vai ser digno, vai ter uma dignidade, não é aquele partido que vem buscar
o teu voto e depois te dá um pontapé na bunda do cara. Se lutar pelas nossas
pessoas velhinhas, nossos idosos, pessoas que não tem da onde tirar condições de
trabalhar, os beneficientes [deficientes] e ele apoiar, ele é um partido digno... aqui a
maior parte é por aquele partido que apóia a comunidade, mas tem as pessoas que
se ilude com o que recebem, com os que dão coisas: se eu te dou uma carroça, você
vota em mim... são muito fácil, se ilude muito ligeiro, não tem estudo, nunca teve
numa sala de aula, então a pessoa ilude, as pessoas não tem consciência que agora
tá começando a desenvolver uma idéia diferente pra conseguir melhorias, mas tem
que ter paciência, tem que lutar. Não adianta querer tudo de uma hora pra outra,
por mais estúpido que a gente seja, vai chegar uma hora que a gente vai ter que
entender como a gente vai conseguir as coisas. Tem que pressionar, mas com
dignidade. (Paulo, trabalhador da Unidade).

Não salientamos a questão da consciência por causa da preferência partidária que os

entrevistados têm, ressaltamos os argumentos dos indivíduos para justificarmos a dimensão

da consciência, ou seja, entendemos que as pessoas percebem que, independente de

partido, um político deve trabalhar pensando no benefício da comunidade, do povo que o

elegeu, e não em benefício próprio.

Nilda costuma dizer que o OP é do povo e a participação é um processo que não

acabou e muito ainda se tem pra aprender mas, apesar disso, tem uma prática

assistencialista, que se mistura com seu discurso emancipatório:

as pessoas vão sempre pedir coisas no Clube de Mães... eu dou as coisas para
muitas pessoas, mas também vou cuidando pra ver até que ponto não é
provalecimento. Não é o prefeito que sabe, é a comunidade; quem sabe dos
problemas da comunidade é a própria comunidade “tal época, tal OP eu consegui
isso” é tão gostoso dizer isso (Nilda, moradora).

353
Cléia refere que tem sua preferência política, independente das melhorias que o

Partido dos Trabalhadores proporcionou aos cidadãos porto-alegrenses:

...de partido eu vou de PTB, escolho os candidatos vendo os debates, vendo as


propostas deles, as idéias... na comunidade, eu acho que na comunidade, eles votam
pelas coisas que aparecem, pelas melhorias, eu acho que é assim...(Cléia,
trabalhadora da Unidade).

Ao ser perguntada sobre a participação política, Elira fala de seu aprendizado, como

liderança comunitária, conquistado nas reuniões do OP, principalmente, e que ainda há

muitos moradores que não compreendem a importância desse processo para a vida das

comunidades:

Muitos moradores estão esperando, nem todos os moradores perceberam a


importância da participação do OP, não tem uma efetiva participação: a fulana vai e
então eu não preciso ir, a participação podia ser ampliada. Socialização não existe,
só se é meu interesse. Quando é pra ganhar, a participação é maciça. Quando se
trata de convocar pra uma luta reivindicatória é mais complicado, que é que eu
ganho em lutar, em participar por melhorias pela limpeza do riacho, por exemplo?
Quando tem interesse pessoal, há uma luta, quando ganhou, solucionou, há
acomodação. Pra mim isso é um resquício da ditadura, que o povo não tinha direito
de nada e tinha que ficar quieto, e esses é os que tem a mesma prática de, em época
de campanha, você vem comprar alguém... tem pessoas que ainda caem nisso
(doações) e tem os que tem consciência e se dão conta de que não adianta votar em
função só das coisas em épocas de eleição. Vêem a associação como a salvação!
Associada a uma cultura que se criou de que o “presidente faz tudo” e por que ainda
tem muito caudilho por aí (Elira, moradora).

Para Serlene, a sua participação política foi sendo construída e fortalecida, à medida

que seu bairro foi melhorando. Para ela, isso é definição de participação política, ou seja, a

possibilidade que o indivíduo tem de incidir sobre a sua realidade social, transformando-a e

se transformando. Para Serlene, todo esse processo se deve ao PT, e esse é seu argumento

para justificar sua preferência político-partidária:

É um bairro que participa bastante, a gente que tem bastante conhecimento, é um


dos bairros que se avançou bastante. O OP é importante porque tu consegue, antes
tu não tinha forma de pedir uma melhoria, e agora tu tem forma de se organizar e só
depende de juntar e organizar uma população e pedir. Entendem que tem que

354
conseguir as coisas juntos, porque a gente sempre construiu que se não tiver todo
mundo junto a gente não consegue. Eu prefiro o PT, porque conseguimos construir
muito do que se tem aí com a Administração Municipal na comunidade. Tem
determinados políticos que oferecem churrasco, comida, há três meses da eleição, e
tem gente que aceita isso... mas tem os que tem consciência da sua preferência.
(Serlene, moradora).

Vitória deseja uma comunidade mais participativa, mas reconhece que é difícil

conseguir isso quando se tem práticas assistencialistas que inviabilizam a mobilização:

O pessoal não se une, não são unidos, tinha uma facção entre os de baixo e os de
cima, as pessoas reclamavam, uns queriam dividir a vila. Uns pagavam para fazer
parte da Associação e esses é que tinham direito a doações, etc. Pedro (um dos
presidentes) morreu e o Nicolau assumiu com churrasco, trazendo ônibus pras
pessoas de fora votarem nele, ele se mudou e agora não tem Associação presente.
Não se faz nada por que a vila vai sair (Vitória, moradora).

E Taís, moradora de outra comunidade reforça a idéia de Vitória, pois também

acredita que a mobilização é fundamental para que a comunidade consiga melhorias:

Todo mundo tem que participar junto, não adianta ir 30 e o resto ficar em casa, não
adianta uma rua ir a outra não ir. Convida o teu amigo, sempre tem alguém que
convidar, mas na hora, vai meia dúzia, para melhorar o bairro tem que ir todo
mundo. Não é toda a comunidade que vai no OP, tem gente que mora há bem mais
tempo aqui e ainda não sabe, ainda não entrou na cabeça o que é uma comunidade
(Taís, trabalhadora da Unidade).

Bruna faz dois comentários: um primeiro referente à responsabilidade da

participação, e um segundo, reforçando essa idéia de que é importante se expor,

reivindicar, para não se acomodar em promessas passageiras que inviabilizam a ação

coletiva: o governo estadual não tá grande coisa até agora, quem tem que cobrar é o povo.

O Rigotto prometeu e não fez nada até agora... Trabalhando, se esforçando, falando e

reclamando... não se pode deixar levar pelos outros... A maioria dos moradores não tem

grau de instrução, então eles vão pro lado fácil, onde tá vindo, eles vão, não tem uma

consciência mais assim... (Bruna, trabalhadora da Unidade).

355
Vitória reafirma o que Bruna comenta de sua comunidade, de que muitos ainda se

levam por promessas eleitoreiras: ... eu votei no Lula, mal ou bem ainda conseguiu fazer

alguma coisa, de vereda ele não vai conseguir fazer tudo, eu ainda acredito que ele vai

conseguir fazer mais coisas até o final do mandato. A maioria vota pelas promessas dos

candidatos (Vitória, moradora).

Bárbara é convicta na sua preferência político-partidária: sou PT desde que nasci –

não interessa se tem defeito, ou se não tem – esse é meu partido e não vou mudar... tudo é

política, tem políticos que só procuram na hora da eleição... (Bárbara, trabalhadora da

Unidade).

A fala de Bárbara reafirma nosso argumento de que a formação da consciência

política se dá a partir das representações que as pessoas vão construindo e que as levam a

agir politicamente. A comunidade é uma instância importante, porque permite que estas

vivências aconteçam, porque apresenta a necessidade, e faz com que a comunidade se

mobilize e se organize.

Alguns técnicos relataram que essa era uma preocupação em seu trabalho, ou seja,

fortalecer a comunidade para que ela pudesse ser, de fato, um espaço de organização

comunitária e ações coletivas.

A Secretaria a qual Mariana está vinculada, por exemplo, não trabalha com os

moradores no sentido de abordar diretamente a questão política, apesar dela achar que as

escolhas são conseqüências de uma prática:

... tenho alguma dificuldade de identificar isso, porque esta nunca foi uma tônica,
uma preocupação técnica como profissional, a questão política passa ser discutida,
a importância da participação na política, na política de implementação destes
serviços, mas na questão partidária, a gente não aborda... eu percebo que a própria
Administração Popular ao fortalecer, implementar, ao criar instrumentos e fóruns
onde esta participação é valorizada ela não é apenas uma fachada, isso aproxima da
questão partidária também, mas tem que fazer esta diferenciação: uma coisa é esta
Administração Pública, dos serviços públicos e outra coisa é uma opção partidária,

356
acho que isso não faz parte do período de trabalho, desenvolver atividades neste
sentido...(Mariana, técnica).

... e dá uma importância muito grande para as lideranças comunitárias neste

processo:

... são importantíssimas e fundamentais neste processo. Apesar de que algumas que
tem dificuldades de entender o seu papel real no coletivo. Há posturas mais
conservadoras de participação que tem estratégia assistencialista e muitas vezes em
benefício próprio. Os agentes públicos deveriam investir nesta discussão, para que a
comunidade não fique refém da liderança, tem que dar o empoderamento pra
comunidade e a liderança tem que ter o espírito coletivo acima do interesse
individual. O importante é que o OP proporcionou a consolidação de um espaço de
participação popular onde garante as reivindicações das comunidades, tu define o
orçamento, o investimento público, a partir do olhar daquele que está sendo
beneficiado, isso envolve, tu possibilita que aquele cidadão se veja envolvido
também no não atendimento, porque ele tem que compreender que existe um limite
neste investimento, a discussão disso, possibilitou que as pessoas se apropriem desta
discussão e também acontece o reconhecimento das prioridades, reconheçam as
necessidades vizinhas e que possam fazer os seus ajustes diante disso... (Mariana,
técnica).

Roseli é desacreditada em relação à política, pensa que não ajuda em nada, e vota

por obrigação, não por acreditar que vá alterar alguma coisa em sua vida. Tem uma

relação passiva em relação à participação política que, para ela, se resume ao dia de

votação eleitoral: partido político pra mim é zero, não ajuda nada, só política, pra mim

político não existiria... eu votei mas me arrependi, eu votei no Raul, mas eu não sei o que

me levou a votar nele, quem sabe mudaria alguma coisa né... não sabe se vai mudar

alguma coisa... até o outro partido entrar muita coisa vai ter que rolar, a gente não leva

muita fé... tem que esperar... (Roseli, trabalhadora da Unidade).

Norton também demonstra, pela sua postura, que sua concepção de participação

política tem a ver com o voto: meu partido político? Não sei, até esqueci em quem eu

votei... foi no Fogaça eu acho que eu votei... primeira vez que eu votei... votei no Fogaça

357
porque ele ia fazer, parece que ia arrumar o campo nosso lá, mas por enquanto não fez

nada ainda101... (Norton, morador).

Robson não faz relação entre partido político e OP, tampouco à participação. Ele se

diz do PMDB e do PT, não tenho nem candidato ainda, escolho na proposta... isso aí a

gente não pode escolher muito né, tem que fechar os olhos e ir... aqui tem um pessoal que

tem um monte de faixa da Maria Celeste e Mauro Pinheiro (PT), mas é dividido...

(Robson, morador);

Lisiane é outra entrevistada que tem dificuldade de definir sua preferência político-

partidária: ...como eu votei no PT eu acho que é o PT. Na comunidade é dividido, porque

uns votaram no Fogaça, outros no Raul... acho que é dividido... eu votei no PT por que

tinha uma tia que trabalhava ali e eu votei pra ajudar ela (Lisiane, trabalhadora da

Unidade).

Tamires e Guilhermina também não fazem suas escolhas pelas plataformas políticas

dos candidatos: ... não votava antes, aí pensei, por que não votar. Eu não tenho tempo pra

ver o debate, eu voto assim: quem tá na frente, eu voto. (Tamires, trabalhadora da

Unidade).

...de política eu não entendo, olha, eu não dou muita importância pra isso, eu votei...
o Fogaça aqui deu muito pouquinho, porque os outros aí incentivava muito o
pessoal pra votar no pessoal do PT, vinham e diziam que tinha que votar no PT...
(Guilhermina, moradora).

Essa relação distanciada da participação política com uma organização comunitária

e uma ação coletiva, também aparece, na nossa pesquisa, em um contexto coletivo. Há

comunidades que ainda vivem em condições precárias, o que dificulta a vivência de

101
A informação de Norton sobre a vida política da cidade é muito restrita. Ele não tem conhecimento de que
o Fogaça só iria assumir a Prefeitura dia 01 de Janeiro de 2005.

358
participação política e aumenta a necessidade de manter o discurso assistencialista do

receber coisas.

Para Tatiana, o processo de participação é complicado, por causa dos referenciais

que as pessoas têm sobre os processos, sobre as suas vivências, que ajudam a sustentar esse

discurso assitencialista:

O que não tem para essas pessoas é consciência, saber que ele pode ser autônomo...é
fácil, mas entrar na cabeça de alguém que é complicado... se chegar alguém falando
bonito, aí tu tem credibilidade, não precisa nem convencer eles, mas eles têm a
credibilidade, é só ter o dom da palavra. Ele vai me dar madeira... isso é direito, não
é favor... esse tipo de coisa que eu sinto que não vamos conseguir tão cedo. Todos os
programas eu cortei... eu não encaminho ninguém para nenhum programa
assistencialista, para mim é assistencialista, isto é atrelar cada vez mais o pobre,
alienar mais o pobre, porque ele é dependente sim, é uma forma de alienar pessoas;
votei e exigi projeto, “não quero cargo de confiança”, mas cada pessoa que for
trabalhar contigo exige um projeto e dá um prazo para esse projeto ser executado”...
nosso problema é o continuísmo...dá um galeto e pronto. Se essa população miserável
soubesse a força que tem, mudava o país, porque ela é alienada... os caras sabem. E
relação ao nosso governo, estou com mais esperança, com um governo de oposição
partidária, não oposição de trabalho... porque eu fui muito boicotada, tudo que
puderam fazer para destruir o meu trabalho, fizeram... não conseguiram porque eu
tenho uma personalidade muito forte e um objetivo...sou de luta... e tenho muitos
parceiros...???? dentro da RBS... eu vou acreditar...espero que não seja mais uma
mentira política... que ele disse que tem propostas... o que é bom fica, o que não tá
ruim vai ser melhorado... eu tô acreditando...(Tatiana, técnica).

Gerci e Adriana ratificam a opinião de Tatiana. A visão assistencialista é a tônica

no depoimento delas. Adriana, no entanto, atenta para o fato de que é necessário dar uma

formação de base para as pessoas, não adianta esperar um comportamento que as pessoas

não sabem ter:

...é muito pequena ainda pelo pouco grau de instrução que eles tem, não imaginam a
força política que eles, como número, teriam. Confiam muito nas entidades que eles
tem. Associações de Bairro, Igreja, que possam representá-los politicamente como
ser humanos, eles não se vem como política atuante que possa decidir o rumo da sua
vida... eles têm uma visão assistencialista, esperam ganhar as coisas, não é uma
comunidade articulada politicamente falando, eles não tem força política porque
não conseguem trabalhar em grupo, não tem articulação comunitária. Também
existe uma desmotivação geral, as vezes que eles tentaram se organizar, eles
fracassaram...não criaram afeto por aquele local então não se organizam... o nosso
trabalho tem sido de delimitar os papéis, isso é da nossa alçada... (Gerci, técnica).

359
...a participação é na base do se tu me dá alguma coisa eu voto em ti, participação
política na comunidade é assim... são muito individualistas. Do que o município vem
propondo, o pessoal se acha um pouco usado... são usados como cobaia... já teve
vários movimentos... a comunidade não se organiza pra nada porque foi muito
abandonada quando se organizou, é uma comunidade retirante, não foi feita pra
ficar assim... houve movimento pelo OP pra conseguir coisas, saneamento, casa,
etc... estas questões ficam claras... existe esta desmotivação... eles sabem que não
vão permanecer aqui, a Prefeitura nunca vai dar melhoria pra esta zona porque é
uma zona que vai desaparecer... Têm que ter uma vontade política, sem isso, sem
que as pessoas que estão no poder entendem que tem que ter um trabalho de base,
dar apoio, apoiar antes de cobrar a participação, não vai mudar isso. O
fundamental seria investir em educação, criar canais de diálogo entre a comunidade
e a administração local, que não existe, apesar de se veicular uma gestão
democrática através de processos supostamente democráticos, não existe canais,
veículos que cheguem até essas comunidades - tentar mobilizá-las ou organizá-las
ou se auto-gestionar - ou não é legitimo, na comunidade não existe isso. Apesar de
tudo isso, acho que o OP, embora tenha problema, é um canal, é um dos canais que
se criou pra ouvir a população, coisa que até então não existia. É um movimento e é
importante que as pessoas possam participar de alguma forma dos processos de
onde mora, mas tem que mudar algumas coisas (Adriana, técnica).

Para Silvio, a participação política tem a ver com o voto. Ele comenta que o voto

deveria ser facultativo, e essa é a forma de demonstrar sua insatisfação com a política: o

voto deveria ser facultativo, antes eu achava legal ir votar, agora não... eu agora voto na

pessoa e não no partido. (Silvio, trabalhador da Unidade).

Patrícia indica que a participação política extrapola o ato de votar. Ao falar de sua

comunidade, no entanto, ela denuncia a dificuldade que as pessoas têm de participarem

politicamente, de uma maneira consciente, e não trocando sua participação por doações:

outra coisa que o povo faz errado, larga na mão de um presidente e não faz, não fica ali

para saber se o presidente vai passar adiante... não acompanha mais nada, não cobra

mais nada... o problema é que o erro de um faz o outro também cometer erros. Para evitar

a frustração, o sofrimento, Patrícia “contra-ataca”: ...eu escolho pelos olhos. Esse vai me

roubar, eu voto nele, porque se ele me roubar eu já sabia. Porque se eu votar em um que

não vai me roubar e ele roubar, eu vou ficar decepcionada (Patrícia, moradora).

360
O discurso da participação está presente no discurso dos entrevistados, mas a

participação é quase sempre externa, são os outros que têm que se unir, são os outros que

têm que participar: ... o pessoal tem que se unir que daí consegue as coisas (Joana,

moradora), mas eu102 estar presente neste discurso é mais difícil. As pessoas preferem não

se envolver. Temos exemplos, a partir de nossa pesquisa, que demonstram a dificuldade

que o indivíduo tem, de desenvolver uma consciência sobre a realidade social na qual está

inserido. Muitos são filhos de recicladores, os pais trabalham na reciclagem e eles não

sabem reciclar. Reciclam o que é do outro, mas não o que é seu. Reciclam por que é

trabalho, e desse trabalho tiram seu sustento, mas não reciclam porque tem consciência que

a ação deles é extremamente importante para o benefício de todos em termos ambientais,

inclusive deles mesmos. Temos dois argumentos sobre isso:

♦ Não se valorizam, pelo fato de não terem uma auto-estima forte o suficiente

que os faça ver sua profissão como algo socialmente potencializado;

♦ O estigma e o preconceito são muito fortes e os impede de potencializar sua

profissão. O discurso mobilizador da organização desses grupos passa,

muitas vezes, pelo estigma, ou seja, se organizam porque se trata de um

grupo que precisa demandar melhorias para a Unidade de Reciclagem, para

incrementar as suas condições de trabalho, e conseqüentemente, de renda.

O contraponto da participação política enquanto engajamento na vida coletiva,

incidindo na transformação da realidade social, refere-se ao assistencialismo. Percebemos

que esse modo de relação é comum nas comunidades carentes. O que reforça a idéia para

alguns, que é conveniente ser pobre, ser necessitado, pois se ganha coisas, além das

pessoas se sentirem olhadas, percebidas, independente do tipo de olhar que lhes é dado: ...

é bom viver aqui na Dique, porque tem auxílio para quem tá desempregado, é difícil

102
Grifo nosso.

361
conseguir emprego..... tem mais saída pra serviço, tem a Ceasa, eles dão serviço pra quem

precisa (Fernando, trabalhador da Unidade).

...temos umas ONGs que ajudam bastante, tem distribuição de cesta básica, tem um
colégio pra quem não sabe ler, tem muitos projetos, mas eles vão trazer os projetos
quando tiver a vila pronta. O pessoal ajuda muito a Vila dos Papeleiros, recebemos
muitas doações, a LBV traz coisas, tem umas quantas ONGs que ajudam, distribuem
roupa, comida... pedem pro pessoal fazer uma fila e distribuem. É uma vila muito
ajudada (Pedro, morador).

Nossa identidade é, de acordo com Melucci (2004, p. 46-7), uma capacidade

autônoma de produção e de reconhecimento do nosso eu, o que implica em uma situação

paradoxal, porque se trata, para cada um de nós, de perceber-se semelhante aos outros

(portanto, de reconhecer-se e ser reconhecido) e de afirmar a própria diferença como

indivíduo. No entanto, essa diferenciação do outro pode justamente demarcar a identidade

do indivíduo pobre, necessitado, dependente do outro. Assim, podemos inferir que o

indivíduo pode ter elementos para desenvolver uma consciência crítica, pois se diferencia

do outro de uma forma mais autônoma, mas se reconhece como um ator social. E podemos

inferir também que o indivíduo pode, na diferenciação, manter-se alienado, sem ter

atingido um estágio de movimento ou de consciência.

Na seção seguinte, analisaremos de que forma a identidade individual pode

interferir na identidade coletiva e, conseqüentemente, nas ações coletivas que visam as

melhorias para a comunidade.

2. A comunidade em busca de melhorias

Pretendemos investigar quais são os caminhos percorridos para se buscar as

melhorias que a comunidade necessita, que tipo de mobilização é feita e como a

participação política está presente na busca por estas melhorias.

362
Doralina, por exemplo, fala de um trabalho de fortalecimento psíquico do

indivíduo, um trabalho de construção de uma identidade individual e social que dê

condições ao indivíduo ter clareza de suas ações e de suas escolhas.

... discutir a partir do que eles trazem, eles buscam muito a informação e às vezes a
gente fica trabalhando muito no abstrato, que eu penso uma coisa e eles pensam
outra, e acho que falta técnica pra trabalhar o concreto, mas não uma coisa
infantilizada, tipo mandar fazer um desenho e tal... mas com um projeto que a gente
tem que se chama farmacinha comunitária, tu parte de algo concreto que é as
plantas que tu vai manipular, vai conhecer e transformar aquilo em um remédio, e
às vezes tu vai estar resgatando uma história, um conhecimento da tua mãe, da tua
avó, e que tu não dava tanta importância, e importância que extrapola tua própria
família, a partir de algo concreto tu trabalha varias coisas dentro de um grupo... e
fora que tu acaba, pela palavra, tu acaba ficando em uma situação de poder, como
se tu tivesse o poder sobre a vida do outro. (Doralina, técnica).

Os nossos entrevistados acreditam, de um modo geral, que a participação no OP, a

união, a reivindicação e a organização comunitária, são as formas mais adequadas para

conseguir melhorias para a comunidade.

Augusto é enfático em sua opinião: a melhor forma é a união... povo unido

consegue o que quer, se tiver uma montanha na frente, eles removem ela, se tiver uma

jamanta atolada, eles desatolam ela, quer dizer, a união faz a força... (Augusto,

trabalhador da Unidade).

Mesmo os moradores que não tem uma participação política muito efetiva,

acreditam que a melhor forma de conseguir melhorias, é coletivamente: ...melhorias? É

correr atrás das coisas que a gente quer pra comunidade... (Roseli, trabalhadora da

Unidade).

...Forma de conseguir melhorias? Se unir, estudar né, se une e conversa pra ver o
que tá acontecendo... (Norton, morador).

...Melhorias pra comunidade? Tem que ir a luta, caminhar, enfrentar estes homens,
se ajuntar, falar com vereador, prefeito por que senão, não sai nada, só promessa...
(Claudiomar, trabalhador da Unidade).

363
...as melhorias acontecem se unindo e indo à luta, o movimento tem um lado ruim
nele, por que parte para a violência ... reivindicar tem que ser de forma passiva,
educada... Fazer parceria com a Prefeitura via OP, precisa se unir mais, mas é
difícil, por que para fazer isso, basta alguém fazer a frente. Falta tempo, dinheiro, as
coisas são difíceis para todos. (Silvio, trabalhador da Unidade).

Para Bruna, a melhor forma de ter melhorias é ter mais oportunidade pra emprego

mesmo né... acho que é fazer uma comissão e ir à luta, falar com os que podem e ver se

conseguem... (Bruna, trabalhadora da Unidade).

Ou como refere Patrícia, tem que ter uma liderança forte, ter um cara que vai

brigar pela comunidade e ter uma boa equipe e a comunidade se envolver, se fazer

presente... vila é o lado do fracasso do prefeito... (Patrícia, moradora).

Valdomiro e Bárbara mostram que as comunidades ainda têm muito que fazer para

melhorar, no entanto, há problemas que atingem outras instâncias e nem sempre depende

da participação direta das pessoas: é mais por que não tem segurança, a minha vila

continua necessitada, é uma vila péssima. Cada presidente que pega não faz nada

(Valdomiro, trabalhador da Unidade); na comunidade é a lei do silêncio. A gente tem que

saber conviver com esse pessoal. (Bárbara, trabalhadora da Unidade).

Destacamos essas falas para inferir algumas idéias:

 A importância da liderança comunitária:

Não aprofundaremos, nesse momento, o tema das lideranças comunitárias.

Extrairemos da extensa contribuição de Montero (2004), um aspecto relacionado à

atividade do líder, com a qual concordamos. Para a autora, não se trata de atribuir

responsabilidades e tarefas à pessoa do líder; o caráter participativo do movimento

comunitário supõe que todos os membros da comunidade são conscientes das mesmas

necessidades e que se apóiam entre si:

364
…el mayor beneficio que se puede derivar de esa condición de pertenencia,
identificación, historia común, elementos de vida compartidos y compromiso no sólo
con la comunidad, sus expectativas y sus aspiraciones, sino además con la
organización que actúa como representante activa de ella, es la amplia comprensión
y conocimiento acerca de las necesidades de la comunidad, acerca de las
capacidades y limitaciones de muchos de sus miembros, de los recursos en su poder
y de los recursos a obtener (Montero, 2004, p. 95).

O que percebemos, a partir da nossa pesquisa, é que os indivíduos esperam que as

iniciativas sejam tomadas pelas lideranças comunitárias ou pelos presidentes de

Associações. Não se tem o entendimento da parceria, é um atribuir responsabilidades.

 Esperar que os outros façam:

Achar que a mudança está no outro. Como refere Valdomiro: cada presidente que

pega na faz nada, mas diante dessa colocação, nos perguntamos: O que a comunidade está

fazendo para mudar? A responsabilidade de fazer alguma coisa é apenas do presidente? Se

considerarmos as falas de alguns entrevistados de que as melhorias para a comunidade

acontecem pela união, pela reivindicação, pela participação, como então esses princípios

são viabilizados no cotidiano da comunidade? Já inferimos em outro momento dessa tese

que, enquanto o indivíduo esperar que outro indivíduo faça alguma coisa para mudar,

sempre haverá um outro – real ou imaginário – para responsabilizar pelo não fazer.

 Saber conviver é respeitar a lei do silêncio:

Acreditamos que as representações são construídas nos contextos nos quais o

individuo está inserido, e repercutem em diferentes dimensões de sua vida. O calar-se por

causa do tráfico, é o mesmo calar-se para melhorar sua vida: há que se conformar com o

contexto das drogas e da violência urbana, e há que se conformar em viver em uma vila

péssima, sem qualidade de vida condizente com os direitos que os cidadãos têm.

365
Nesse sentido, apresentamos a vivência de Serena103. A experiência da participação

a colocou em um lugar de ator social na vida pública, e fez com que isso repercutisse na

sua vida privada: ...tinha medo demais de falar errado, dizer besteiras. Ela conta que,

lentamente, foi se sentindo mais segura e com essa vivência, decidiu voltar a estudar.

Como delegada do OP, foi escolhida para fazer um curso sobre Direitos Humanos e acabou

se separando do marido: queria deixá-lo, mas não tinha coragem, graças a tudo isso,

soube onde ir, como ser ajudada e consegui decidir a minha vida (Serena, moradora).

Temos a compreensão da complexidade que envolve o problema da violência

criminal e urbana na sociedade contemporânea, mas percebemos que o silenciamento, no

disfarce da auto-proteção – tem que saber conviver com esse pessoal – denuncia um não

fazer, um não agir, um não organizar-se para transformar essa realidade.

Há os que identificam que a melhor forma de conseguir melhorias é pelo OP:

melhor forma de conseguir melhorias, acho que indo nas reuniões do OP, com

manifestações. Melhorias que já tivemos do OP: o asfalto nas ruas, creche que o Galpão

conseguiu, o colégio, a creche que tá começando, os discursos que eles tão dando pros

jovens, os psicólogos... (Magda, moradora).

Serlene atribui as melhorias ao OP, pois reconhece o quanto sua comunidade

avançou pelas reivindicações do OP, melhorias para Serlene, é tudo o que representa

objetiva e subjetivamente a participação no OP: ... enquanto tiver um governo que dê para

brigar pelo Orçamento, a gente consegue de tudo. Com esta forma de administrar, quando

a gente consegue administrar junto, a gente vai conseguir terminar algumas coisas na

Tuca e outras nós vamos brigar muito ainda. (Serlene, moradora).

103
Serena é o nome fictício de uma moradora de uma comunidade; ela não faz parte dos entrevistados. Seu
depoimento está na obra: Organização Não-Governamental Solidariedade. Caminhando para um mundo
novo: orçamento participativo de Porto Alegre visto pela comunidade. Petrópolis : Vozes, 2003.

366
Elira, que é moradora da mesma comunidade, concorda com Serlene, mas também

destaca a importância da Associação Comunitária: ... participando e cobrando da

Associação Comunitária, a Associação foi fundada há 26 anos, teve uma comissão um ano

anterior que foi muita resistência. Quando a Tuca não existia nem no mapa da cidade,

tinha 400 moradores... (Elira, moradora).

Entendemos que, quanto mais o indivíduo percebe as melhorias pelas quais foi

responsável, aumenta seu sentimento de auto-estima, de responsabilidade, de compromisso

coletivo e individual. E incrementa toda a discussão sobre cidadania, entendendo que não é

favor, e sim obrigação, do poder público, cumprir com os direitos do cidadão.

Considerando a complexidade das relações interpessoais, sabemos que nem todos

percebem o processo dessa maneira, há indivíduos que continuam relacionando as

melhorias – ou o desejo delas – a uma postura paternalista por parte do poder público. São

indivíduos que não conseguem desenvolver uma consciência política sobre os processos de

participação política e cidadania ativa, e mantém uma relação alienada e conformista com

o poder público.

3- As diferentes percepções sobre a comunidade

Perguntamos aos entrevistados qual a percepção que eles têm de si mesmos e o que

pensam sobre a percepção que os outros, que não moram nas comunidades, têm deles.

Pensamos nestas questões como uma forma de investigar a vivência do preconceito. Até

porque estamos tratando de grupos que conseguem se organizar para reivindicar coisas, são

grupos que participam das reuniões e de outras instâncias da administração municipal, e

são responsáveis pelas melhorias das comunidades.

367
3.1- Percepção do entorno – pelos moradores e trabalhadores

A vivência do estigma é cotidiana para alguns dos entrevistados: um dia consegui

um emprego no centro da cidade e quando dei meu endereço, perdi o emprego no mesmo

momento (Estela, moradora).

A opinião de quem mora em vila é pobre, bandido e marginal é reforçada pelo

sentimento de insegurança que as pessoas vivem na sociedade contemporânea, e agregado

ao pensamento preconceituoso de que tudo que não presta está nas vilas, que marginal e

ladrão moram em vilas, logo, todos que moram lá não prestam também. Esta percepção é

bem real para os moradores que moram nas comunidades pesquisadas, ou seja, eles sabem

que as pessoas do entorno pensam isso, mas alertam para o fato de que nem todos os que

moram nas vilas são bandidos, também há gente honesta, que trabalha e é de bem.

Trazemos alguns entrevistados para explicar o que vivenciam no seu dia-a-dia:

Enxergam como marginais, inclusive motorista de táxi não entra lá na vila por que
tem medo. Somos reconhecidos como as menores pessoas, por ser pobres e pelas
pessoas mesmo que moram ali e fazem atos... e às vezes vem de outras vilas mesmo e
ali matam, roubam, tiroteiam e aí as vilas ficam difamadas como marginais,
faveleiros. A maioria é trabalhador. (Bárbara, trabalhadora da Unidade).

A vila fica difamada por causa dos pontos de droga, a comunidade da volta tem uma
visão ruim e agrupam todo mundo. (Pedro, morador).

Já deixei de receber uma mensagem ao vivo, não vieram porque era na Tuca
(Lisiane, trabalhadora da Unidade).

Se eu convido as pessoas pra vir na minha casa, alguns dizem: ah não! Na Tuca eu
não vou, tem tiroteio, ladrão... mas isso tem em todo o lugar... (Taís, trabalhadora
da Unidade).

Tem algumas pessoas que tem até medo de vir pra Restinga. Mas antes escutavam
que assaltaram e mataram fulana, falavam na Restinga e as pessoas nem queriam
saber. (Bruna, trabalhadora da Unidade).

Mora na Dique, é tudo gente que não presta. Só podia ser maloqueiro da Dique...
Há preconceito. Nas lojas também, não pode abrir conta por que não tem carteira
assinada... No shopping, também as pessoas ficam por perto, deixam a gente

368
sestroso, ficam cuidando. Isso magoa a gente, a gente não tem dinheiro para colégio
particular e o tratamento é diferenciado. (Vitória, moradora).

A fala de Vitória nos remete pensar também que o entendimento que ela tem é

distorcido e exacerbado pelo preconceito vivenciado, ela não pode abrir conta por que não

tem carteira assinada, mas isso não é porque ela mora em vila, mas por que é uma

determinação do comércio para qualquer pessoa.

Joana também reforça a idéia de que as pessoas têm uma visão muito distorcida de

quem mora nas vilas: a opinião é péssima [sobre a Vila Dique] em relação ao comércio, o

pessoal não entrega a mercadoria por que os da ponta roubam os caminhões das lojas. As

lojas não entregam, Arno, Arapuá não entregam, por que o pessoal do início da Dique

assalta os caminhões de entrega, uns são piores que os outros.

Apesar disso, gostam de morar na vila, pela conveniência de morar sem pagar luz,

água, e outras obrigações tributárias: ... não paga água, luz, tem área verde, gostam daqui,

os que podem, saem mas voltam por que gostam da vila (Joana, moradora).

Essa informação também é ratificada por Vitória, moradora da mesma comunidade.

Ela confirma que há um grupo de meninos que assaltam os caminhões e isso é conhecido

por todos e por isso as lojas não fazem entregas: a dificuldade é só com os meninos que

roubam, mas todos se dão bem, às vezes jogam pedra no galpão (Vitória, moradora).

Tamires relata que o sentimento que as pessoas têm em relação ao lugar que eles

moram, também é sentido por eles quando eles se deslocam pra outra comunidade

desconhecida: quando a gente chega numa outra vila, a gente tem medo, acho que é assim,

ser conhecido, ser da comunidade, dá mais segurança. (Tamires, trabalhadora da

Unidade).

Há outras opiniões que associam os moradores não à categoria de bandidos ou

marginais, mas de vulgares ou baderneiros: é que o pessoal da Restinga é muito

369
bagunceiro, muito festeiro, muito alegre, então quando alguém vê um povo assim dizem

“ah, só pode ser da Restinga” (Magda, moradora).

...não gosta da gente porque eles fazem muita baderna, muita coisa o que acontece
cai tudo na gente, aí uns pagam pelos outros, aqueles que não tem nada a ver pagam
por aqueles que fazem (Pedro, morador).

E há os moradores que não percebem o preconceito, por que não percebem o

mundo a sua volta, vivem o seu mundo, numa postura de esperar que as coisas aconteçam

ou de simplesmente viver cada dia: acho que eles acham bom, né, é que nem todos são

ruins mas cada um tem a sua opinião (Robson, morador).

Patrícia, apesar de concordar que as pessoas do entorno têm uma visão

preconceituosa, também denuncia que a pobreza é conveniente tanto para o pobre como

para o rico, pois ambos tiram vantagens da situação:

Tem muita gente que ganha vantagem em cima do pobre, se promove e depois nem
lembra mais de quem foi... Alguns concordam com a idéia preconceituosa, mas não
fazem nada e não resolve nada, é cada um por si e Deus pra todos... No final do ano,
na Dique, não precisaria o negócio da fome zero, ninguém passa fome. Bah, tu mora
naquele bairro que é muito perigoso, a maioria dos que tão lá, não são bandido, são
trabalhador, tem gente de bem... (Patrícia, moradora).

Se eu saio suja, todo mundo ajuda, me dão cesta básica, me dão roupa, comida... se
eu me arrumar e sair, ninguém dá nada, se eu tô bem vestida ele não dá, é muito
mais vantajoso ser um mendigo porque daí ganha coisas, eu suja e outra pessoa
limpa, aí quem ganha é a que tá suja.... (Patrícia, moradora).

Eva (trabalhadora da Unidade), quando refere que é bom viver na comunidade

porque uns trazem doações... nos remete a pensar que o nível de entendimento que ela tem

é que não sente o preconceito por que as pessoas trazem coisas, o não trazer, o não olhar, o

não perceber é preconceito... por que há uma queixa por que nem todos trazem e nem todos

ajudam.

Sandra trabalha na Vila Dique há muitos anos. Ela fala com propriedade sobre a

dificuldade de combater as políticas assistencialistas, a dificuldade de trabalhar a

370
autonomia, a participação, a emancipação. Sandra comenta que muitos não querem mudar,

preferem viver de doações, preferem continuar sendo os “coitadinhos da Vila Dique” e os

avanços são lentos e os retrocessos freqüentes:

Tem uma coisa que tem a ver, que é a forma como estas pessoas se vêem na
sociedade... se alguém der qualquer coisa pra eles, eles se ajoelham... a gente tem
trabalhado (com outras entidades que trabalham lá na vila) no sentido de que as
pessoas parem de dar coisas pra eles, porque você só prejudica, é claro que as
pessoas têm necessidades imediatas, mas é uma preocupação muito de quem não
conhece esta realidade. Ninguém morre de fome na Vila Dique, nem numa cidade
como Porto Alegre, mas dar coisas, distribuindo cestas básicas, faz com que a visão
de inserção que as pessoas tem da sociedade é que “os bondosos vem e dão coisas
pra eles, e os maus não dão coisas pra eles”, e isso é excluir, no Natal é chocante...
as pessoas vêm, param seu carro aqui, ou porque fizeram promessas, ou porque são
boas de coração (ironizando), ou querem ter um Natal mais perto de Jesus
(ironizando). Então como as crianças atacam o carro, eles passam e jogam, porque
tem medo, então elas não saem de dentro do carro, e jogam, elas querem doar e tem
medo, então elas querem dar pra nós e tem medo... e as pessoas da vila, por sua vez,
reagem exatamente assim, se você organiza um tipo de ação, as pessoas passam a
atacar, a exigir que recebam e se você tenta propor que façam alguma coisa pra
receber, existe um rechaço...é uma visão ruim que as pessoas têm, então entra a
questão política... qualquer candidato que vier e oferecer cesta básica, as pessoas
dão o seu voto e o seu agradecimento eterno... aquele cara é bom... mas o Deputado
tal vai dar isso ou aquilo pra gente. E é como eles votam, em quem eles votam, em
alguém que vai fazer pra eles... é assim que eles se vêem: é uma posição de vítima e
de exclusão... “eu fui no posto consultei e não tinha remédio pra tomar (dado) então
eu não tomei remédio, bom, tem o agravante de que não tem dinheiro, mas a questão
é que não foi discutido que eu podia buscar e tal...” Na época de eleição dá muita
raiva, porque tem partidos que vem dar coisas, outros vem fazer discussão... e as
pessoas perguntam “o que que tu vai me dar”. A sociedade reforça este tipo de
exclusão, por exemplo, a política de bolsa, de você incluir as pessoas em políticas de
bolsa, está no caminho errado, eu entendo isso (do Governo querer fazer alguma
coisa), mas enquanto você tiver dando coisas pra umas pessoas, ou incluir as
pessoas numa bolsa porque elas são pobres, ou porque são desnutridas, enquanto
você tiver isso como critério pra incluir essas pessoas para ganhar alguma coisa,
você está excluindo, mas quem faz as políticas não está aqui, e não entende isso...
(Sandra, técnica).

Há uma idéia reforçada pelo entorno de que pobre tem que morar à margem da

cidade. O ideal é que estejam afastados do centro, para que as pessoas não precisem se

deparar com o fracasso da sociedade pela qual todos somos responsáveis. Esse preconceito

371
motivou uma das críticas que o Governo Municipal sofreu em relação à política

habitacional de deixar as pessoas vivendo em seu local de moradia, em regiões centrais da

cidade. É o que acontece com a Vila dos Papeleiros, por exemplo, na qual a vivência do

preconceito é forte:

Acham que a gente não é digno de morar na Vila dos Papeleiros... há


marginalizão... mas aqui dentro a gente sabe quem é marginal, quem não é; mas
quem tá de fora, não sabe, então tem um preconceito grande por todos, como se
todos fossem marginais... aqui não é só vila dos papeleiros que tem... mas os
carrinheiros, todos os carrinheiros que tem é como se morassem na vila dos
papeleiros... mas nem todos são da vila... (Paulo, trabalhador da Unidade).

Quem não conhece, não sabe o trabalho que a gente faz ali, é como se fosse um
bando de marginais, não enxergam a gente como gente... Tinha uns amigos que
falavam dos papeleiros, e eles não sabiam que eu era papeleiro e que morava na
vila, e um dia desafiei os caras para ir na vila... e eles chegaram lá e todo mundo
tava trabalhando numa sexta-feira à noite e eles disseram bah! o que que a gente
pensa de um povo que a gente não conhece! Os que fazem baderna são os que se
infiltram no nosso meio porque a polícia não entra. Porque se a polícia entrasse
mais seguido dentro das vilas, não seria o quadro que eles pensam... Uma coisa que
eu não posso controlar mas eu sou contra é quem vem traficar... que é um cara que
vem de fora e fica ganhando dinheiro... se a polícia tá sabendo que eles traficam ali,
a nossa segurança tem uma falha neste sentido... parece até que eles tão ganhando
um troquinho com isso aí... (Augusto, trabalhador da Unidade).

E também na Padre Cacique: um tempo atrás, enxergavam como se a gente fosse

um marginal, agora enxergam como a pessoa que trabalha, que tem uma vida tranqüila,

antes tinham medo da gente, agora até cumprimentam a gente, antigamente a gente ficava

arisca também, mas o que é que eu fiz? A gente pensava. Por que esta gente tá nos

olhando assim? No comércio, eles nos tratam melhor, atendem muito bem... hoje as

pessoas perguntam como tá o serviço. (Roseli, trabalhadora da Unidade).

3.2- Percepção de si mesmos – pelos moradores e trabalhadores

Perguntados sobre qual a percepção que os moradores têm de si mesmos, as

respostas foram bem variadas, desde respostas de âmbito mais individual até a percepção

372
enquanto uma comunidade. Nilda justifica as críticas ao seu trabalho assistencialista,

dizendo que as pessoas não entendem, ou seja, na percepção dela, ela está correta e se há

alguém que a critica, o problema está no outro e não na sua ação: as pessoas que fazem

críticas do meu trabalho, são pessoas sofridas, que não entendem e que não sabem do meu

trabalho na comunidade (Nilda, moradora). Até por que ela, como presidente do Clube de

Mães, vive o papel de matriarca da comunidade:

A comunidade pede bastante ajuda... quando a gente tem a gente dá... nós atendemos
a mãe, o adolescente, a criança e o bebê... tem a Pastoral da Criança, da Saúde...
são pessoas que querem melhorar, querem aprender, hoje eles sabem que a Entidade
está com as portas abertas e eles querem aprender, eles sabem que não se ganha
nada, a gente dá uma sacola de comida... no começo a gente chamava dando, aí
depois eu acho que se ensinar a pescar é melhor... “Pra trabalhar com a
comunidade tu tem que gostar, primeiro tu tem que gostar de ti... pra depois tu
trabalhar com a comunidade, se tu gostar de ti tu vai gostar do serviço que tu faz e
aí tu vai gostar da comunidade...” (Nilda, moradora).

Muitos se percebem como pessoas dignas, trabalhadoras, até por que hoje, eles têm

um trabalho e tem moradia, ou seja, as políticas públicas são responsáveis pela percepção

positiva das pessoas, pela auto-estima elevada: acho que a maior parte se enxerga como eu

me enxergo, digno, batalhador, um lutador, um cara digno, mas nem todos pensam como

eu penso (Paulo, trabalhador da Unidade).

...aqui na Restinga tem marginal, tem ladrão, mas isso tem em tudo que é lugar...

se o povo for civilizado, vai se dar bem e vai ser sempre civilizado, se eu for ladrão, vou

ser ladrão em todo o lugar, aqui, na Restinga ou em Ipanema, Camaquã ou no Centro, se

é de fazer, faz mesmo... Quem mora aqui, mora há 50 anos, é difícil não se conhecer

(Bruna, trabalhadora da Unidade). E muitos se valorizam pela importância que atribuem

ao seu trabalho de recicladores:

Papeleiro tem um baita de um potencial... às vezes se sentem discriminados... ele fica


magoado, ele fica sentido, mas ele sabe que ele não é, ele segue a vida... antes os
papeleiros eram revoltados porque eram atropelados, desrespeitados pela

373
população... hoje a visão mudou um pouco... antes só chamavam os papeleiros de
maloqueiros, “então porque os papeleiros iam se arrumar, se cuidar se eram
maloqueiros mesmo”, mas a gente começou a passar a visão de que a gente trabalha
para a nossa mãe Natureza, que a nossa mãe Natureza está desgastada, a gente está
contribuindo para a sociedade, fazendo um trabalho de grande importância não só
pra Porto Alegre mas para o mundo, que está virado só em edifício, prédios e lixo!
Agora não, a gente recicla o lixo... se a gente não reciclasse o papelão eram mais
árvores cortadas, a nossa bauxita, que é um minério ruim de extrair, a gente recicla
as latinhas e o nosso papeleiro sabe disso... hoje já tem a consciência ambiental e
tem a econômica também porque dali ele tira o sustento da sua família... (Augusto,
trabalhador da Unidade).

Adriana concorda com os entrevistados quanto à essa percepção:

... é uma comunidade muito batalhadora, com esperança de que os filhos, através do
estudo, se tornem pessoas melhores, com mais chance de trabalho, melhor moradia,
de forma geral, a comunidade é muito correta, muito justa nas suas leis e tem um
respeito muito grande em relação à escola (Adriana, técnica).

A fragilidade da situação de alguns moradores exacerba a percepção do estigma e

do abandono:

Com 52 anos, eu vi o último pedacinho da minha casa caindo... eu custei a ficar


ciente e pensar “o meu caminho agora é outro, esse já foi”, a gente só vai se
enxergar cidadão quando tiver a casa. Quando a gente foi para um galpão, a gente
ficou sem privacidade. O futuro da gente fica abalado, eu trabalhei 33 anos com
papel, comprei coisas, e agora o que tenho é fruto de doação... a tua história foi, aí
vem o preconceito, que é uma barreira, aí vem o abandono, que tu tem que passar...
tá que nem um corredor, a cada 100 metros com barreira... (José, trabalhador da
Unidade).

...faz com que as pessoas encontrem estratégias de se proteger do estigma:

... a associação aqui e o da Cristóvão Colombo, as associações querem um parque,


um shopping... pra eles nos semos menos que lixo... então pra garantir o espaço, nós
nos dividimos, um pessoal ficou em barraca e tal... são umas 50 famílias e de aluguel
são 40 famílias... quase toda a vila ficou sem nada... ficou uns 30% que não
perderam nada, uns 70% ficou sem nada... eu saí com a roupa do corpo... eu a
minha mulher, meus filhos... e graças a Deus tem este servicinho aqui... a gente quer
saber o que vai acontecer com a gente... você tem que entender o que é perder tudo e
no futuro não ter nada...é muito desagradável, muito desconfortável, você não pode
comprar nada... a gente tá morando mal, a casa que eu tô é 3X5, é menos que isso
aqui... (José, trabalhador da Unidade).

374
Não me envolvo muito, fico muito dentro de casa, agora acho que antes as pessoas
até tinham medo de sair pra rua (Estela, moradora).

... e faz com que as pessoas busquem estratégias de sobrevivência:

Na rua era outra coisa, aqui é uma coisa muito boa... lá na rua a gente sofre muito,
na rua você aprende a roubar: eu roubava, eu cheirava, eu fumava, eu bebia... a
dona Tatiana fez eu parar, eu brigava, ela foi uma mãe para gente... se a gente parar
pra pensar, muita coisa ela ensinou para gente. (Roseli, trabalhadora da Unidade).

Há os que denunciam a estigmatização pelo fato de trabalharem nas Unidades de

Reciclagem: somos discriminados, quem trabalha na Reciclagem é chamado de “lixeiros”

(Valdomiro, trabalhador da Unidade), tanto pelas pessoas do entorno, como pelas pessoas

da própria comunidade; ... a gente se dá com todo mundo não tenho nada que reclamar.

Reclamei para não entupir o arroio, o bueiro, as pessoas não colaboram, tem que

continuar jogando lixo no arroio...Tem muitos que juntam, trazem o lixo já separado e

outros não (Taís, trabalhadora da Unidade).

Viver em algumas comunidades é viver o estigma de ser baderneiro, de ser vulgar,

de não ter classe, mas para a comunidade, isso é sinônimo de festa, de alegria, de estar de

bem com a vida: acho que as pessoas são bem agitadas, quem não é assim, não consegue

viver aqui na Restinga, é festa e festa, sempre tem movimento, sempre tem evento, se você

não gosta de barulho não consegue viver assim, não se adapta. (Magda, moradora).

Alguns entrevistados falaram da percepção que têm em relação a sua comunidade,

na maioria dos casos, comentam que a comunidade poderia ser mais unida, que poderia

haver mais participação e colaboração com as lideranças comunitárias:

a percepção é boa, mas poderia ser mais unida. Poderiam se articular mais. Quando
a gente se torna uma liderança, não tem mais lazer, falta companheirismo, falta
união, ou seja, a comunidade deixa tudo pras lideranças, não ajudam. Há
movimentos individuais pra resolver problemas, se tornam coletivos se há uma
liderança que organize (Silvio);

375
... é que tem isso também das pessoas conseguir emprego e daí a dica para outro ir
roubar. É a gente aqui dentro que tem que mudar esse conceito Aqui quem tem mais,
se sente o dono quem tem mais, não tem lixo no pátio. Esta comunidade dá nos
nervos. São muito descansados. A vida deles é receber... a maioria não quer se
envolver com os problemas da comunidade (Patrícia, moradora).

As falas de Elira e Serlene também referem para a vida em comunidade, de como é

difícil fazer com que as pessoas entendam a importância de colaborar, de forma que todos

se beneficiem e diminuam a percepção negativa do entorno:

... hoje se sentem bem, antigamente não davam seu endereço de morador da Tuca ou
não gostavam de quem era morador da Tuca. Tem a característica dos que moram
da rua D pra baixo, são os moradores mais antigos da vila que por si só são os
brigões, que reclamam, que não participam, que tu passa pela rua deles, e eles vão
te reclamar um monte de coisas, cobram, mas se for um momento difícil, se estamos
com problemas, esses vem em peso para defender as propostas da comunidade. O
pessoal da rua D pra cima, que é o pessoal mais novo, que se acham os melhores, já
tem mais conservadores, batizaram uma área da Tuca de cantos, que é o pessoal
mais pobre que tem carroceiros... esses são mais de participar da festa social,
reuniões ou pra uma festividade, quando tem uma autoridade ajudam, participam,
mas é diferente, é um outro nível de participação. E tem o grupo do esporte que é
muito forte, que tem nove grupos, mas atuantes mesmo são cinco grupos. (Elira,
moradora).

... tem uma camada que ainda não conseguiu perceber o crescimento das coisas
boas e que eles podem tirar proveito ainda dos espaços que a comunidade oferece,
não tem a clareza que a gente enquanto dirigente tem do crescimento, aconteceu
muita coisa boa, só o fato das pessoas irem pra faculdade, das pessoas sonharem e
realizarem ...(Serlene, moradora).

Silvio também comenta que, muitas vezes, o envolvimento de alguns moradores

com a comunidade é tanta, que eles acabam esquecendo deles mesmos, mas são atitudes

que valem a pena para melhorar a situação da comunidade e também é uma forma de

trabalhar sua auto-estima, pois estas lideranças se tornam importantes para a comunidade, e

tem uma respeitabilidade e credibilidade que é conveniente para as lideranças: ... a gente

desenvolve tanto as questões comunitárias que a gente até esquece da gente, mais tá junto,

a questão da vida da gente, tá no sucesso da organização da comunidade. Ainda falta

376
muito a questão consciência, integração, mas aos poucos a gente vai fazendo (Silvio,

trabalhador da Unidade).

A identidade coletiva fortalece as redes de solidariedade, os níveis de

pertencimento à comunidade e isso, sem dúvida, favorece o grau de participação na

comunidade e fortalece as lideranças comunitárias. Acreditamos que a participação política

envolve ações coletivas, ações que revertam benefícios para a comunidade, para o coletivo

e não apenas benefícios individuais. Sendo assim, afirmamos que a organização dos

moradores influencia as políticas públicas, em diferentes níveis:

* seja através da participação daqueles que freqüentam as reuniões do OP;

* seja pelos que não participam, mas que forçam uma atitude do poder público de

pensar estratégias de ação com esta parcela da população; e

* seja com os que não acreditam e não participam por razões partidárias, ou por

interesses de manter o status quo de vileiros para continuar garantindo o círculo vicioso

das doações.

De acordo com Montero (2004), o processo de fortalecimento pode ser longo e

árduo e as pessoas que trabalham com a comunidade – no caso de Montero, quem faz

psicologia comunitária – tem que estar conscientes que, precisamente por que é um

processo cujos atores principais são as pessoas da comunidade, não depende dos planos,

desejos ou interesses dos profissionais: ...el tiempo del proceso no necesariamente coincide

con el tiempo esperado o programado en los proyectos de trabajo comunitarios de los

agentes externos. Se trata del tiempo de la comunidad y es necesario que sepamos

observar, esperar e incluso ser sorprendidos (Montero, 2004:74).

3.3- Percepção da comunidade – pelos técnicos

Os técnicos percebem algumas comunidades muito dependentes do poder público, e

outras no entanto, com uma capacidade de organização comunitária muito grande.

377
Analisemos, primeiramente, a fala de Lígia:

Este setor (DMLU) tem uma divisão de reaproveitamento e reciclagem, e projetos


sociais que tenham a ver com o resíduo sólido, a partir do momento que o resíduo
sólido pode estar gerando um tipo de renda, modo de viver, para os trabalhadores.
Então essa é a finalidade do nosso setor, é acompanhar estes grupos e por isso
temos contato com as comunidades. Percebemos que são pessoas que tem
historicamente uma relação com o lixo, e que a gente minimamente consegue manter
uma ingerência sobre o trabalho deles, e a nossa obrigação enquanto Prefeitura é
organizar a cidade, recolher e gerenciar o resíduo da cidade, que a cidade gera, a
gente tenta minimamente organizar o trabalho com eles, ou trazendo para o trabalho
conosco direto ou levando o lixo até eles. Tentamos dar uma ordem neste trabalho
de maneira que a gente não fique sobrepondo o trabalho deles nem eles ao nosso, de
maneira que haja lixo pra todo mundo... hoje se trabalha de uma maneira bem
diversificada, até um tempo atrás a gente se limitava àquelas pessoas que vinham
até o DMLU pelo OP, vinham disputando em ter um Galpão de Reciclagem, era até
então as comunidades com as quais a gente trabalhava, mas de uns dois anos pra cá,
com o advento dos carroceiros, carrinheiros, deste monte de gente que trabalha do
lixo, que a gente não pode fazer de conta que não existe e nem tirar deles isso aí, por
que é a renda que eles têm, então a gente tenta se aproximar e organizar um pouco
o trabalho com eles, o nosso grande sonho era poder estar levando lixo para todo
mundo, porque recolher, dar destino pro lixo da cidade é uma atribuição do DMLU,
por lei, não é uma coisa que a gente faça porque acha que tem que fazer, Porto
Alegre tem código de limpeza urbana que prevê que nós somos obrigados a recolher
todo o resíduo e destinar para projetos sociais, aterros, para diferentes destinos que
se tem, mas é uma atribuição da Prefeitura. Já estamos trabalhando com grupos de
carrinheiros, carroceiros, com os mesmos grupos que a gente já vem trabalhando há
muitos anos, mas os horizontes estão se abrindo cada dia mais... (Ligia, técnica).

Para Mariana, o trabalho do DEMHAB é tentar trabalhar com as comunidades no

sentido de que as Associações de bairro sejam realmente legítimas:

... para que os moradores se sintam representados, se não se sentem por aqueles
líderes, colocar outros. É sempre fortalecer a necessidade de que aquela
comunidade tenha uma forma de organização, representativa, o mais legítima
possível, para que todos os processos sejam respeitados. Sempre se trabalha neste
sentido, tentando aprimorar, quando tem reassentamento que tem diferentes
comunidades, fazemos trabalho mais diferenciado tentando aproximá-los e criar
vínculos, com visitas orientadas, encontros... para que já possa ir se acostumando,
se interando, e depois de reassentados, fazemos atividades mais intensas no sentido
de criar uma associação entre aqueles que foram reassentados. (Mariana, técnica).

Sandra trabalha na Vila Dique, uma comunidade problemática do ponto de vista

geográfico. É uma vila que está para ser deslocada a, no mínimo, quinze anos. Não é

378
possível demandar obras porque é uma moradia provisória, os moradores estão em uma

área de risco, e é uma população que tem um discurso e uma postura assistencialista muito

forte. A Vila Dique é um reduto para campanhas eleitoreiras conhecida na zona norte da

cidade. Os moradores trocam com grande facilidade seu voto por comida, roupa, ou

qualquer outro tipo de doações. Sandra mostra um pouco da radiografa da Vila Dique:

É uma comunidade muito pobre, extremamente pobre, uma das mais pobres de Porto
Alegre, porque eles realmente vivem à margem da cidadania, a maioria das pessoas,
a grande maioria mesmo vive na informalidade, a nível de trabalho, de direitos, eles
não acessam direitos fundamentais que a gente tem e eles não tem. No lazer por
exemplo, eles não acessam os direitos de lazer comum a qualquer comunidade de
Porto Alegre, e com isso vem o atraso cultural... a grande maioria veio do interior e
se adaptou na cidade e se adaptou a uma cultura de sub-cidadão, eles não se
adaptaram aquela idéia de você morar em uma cidade grande e por isso ter direitos,
participar, estar incluído. É uma população que se caracteriza pela exclusão e esta
exclusão vem da sua origem desde que eles vieram pra cá eles já vieram numa
situação de exclusão, eles nunca fizeram parte desta cultura, e com tudo isso vem as
outras coisas, eles são desorganizados, não tem uma cultura de organização, de
lutar pelas suas coisas, não buscam isso. Já houve tentativa de trabalho com eles no
entendimento do que representa a Reciclagem para uma cidade como Porto Alegre,
mas eles não sentem isso, eles não vêem isso, eu vejo isso, pra eles é sobrevivência...
até o lixo não tem pra todo mundo... até pra você catar você tem que ter
determinados recursos... você nao pode sair da Vila Dique e trazer papel nas
costas... tem que ter um mínimo de condições mesmo para ser catador... e aqui tem
famílias assim: há famílias que catam no lixo do vizinho... o vizinho ganha 10
centavos e você ganha um décimo disso ou a possibilidade de ter um prato de
comida... a gente dá uma importância para reciclagem, mas eles não têm essa
visão... a gente já trabalhou muitas vezes com a questão de limpeza da vila, em
parceria com o DMLU, de trabalhar com Educação Ambiental... as pessoas não
cuidam, viver no lixo é um costume, e isso é uma exigência minha e não deles. Então
o pessoal da saúde procura trabalhar como as pessoas percebem o seu ambiente...
as pessoas não reciclam, as pessoas atiram o seu lixo no valão... e o lixo que vem
pra reciclar, o que não é reciclado, é deixado ali no rio... eles não entendem da
mesma maneira que eu entendo... é dramático porque a saída não é só de fora, é
também interna deles, você conseguir mudar esta visão para quem está numa
miséria desgraçada, é complicado...(Sandra, técnica).

Para Mirela, a comunidade com a qual ela trabalha, é muito carente, dependente e

submissa. Tem uma visão muito negativa, mas talvez, realista, da comunidade:

Sempre sabem lidar, tem um espírito de só receber como se as pessoas estão fazendo
um favor. O que é da comunidade não é meu, então eu posso destruir. Eles não tem

379
um espírito de cuidado, de coletivo, acham que o profissional tá ali e eles tem que
falar o que eles querem! ... a comunidade é muito carente, por mais que eles estejam
aqui na segunda Ilha, pertíssimo do centro, tem crianças que não vão ao centro, que
não tem conhecimento tão muito bitoladas no trabalho (reciclagem) e esse mundinho
da escola. Por um lado eu vejo muita violência, mas também é uma forma de
proteção. Eles se protegem antes de serem agredidos, eles já agridem, que é o que a
gente sofre aqui, mas você vê com o tempo, pessoas carinhosas, amorosas, gratos
pelo trabalho que a gente faz, pela atenção que a gente procura dar pros filhos e
pros netos. Mas é muito carente, financeiramente, culturalmente, eles não tem nada
pra fazer aqui, se não é a gurizada, se não é a escola, eles não tem nada pra fazer...
tem um clube, que eles vão à noite, não é um clube, é um salão que normalmente tem
festas, imagina o que são as festas, e é por isso que tem um monte de gurias
grávidas... perdemos muito nossas alunas aqui...(Mirela, técnica).

Doralina, que trabalha na mesma comunidade, tem uma visão um pouco diferente.

Entendemos que o lugar que o profissional ocupa na comunidade é definidor de sua

percepção da comunidade, e igualmente definidor do tipo de trabalho, o tipo de

investimento que se faz nessa comunidade. Se eu penso que eles são carentes, pobres, uns

coitados que não querem nada com nada, a probabilidade de eu não investir nesta

comunidade por que eles não vão mudar mesmo, é muito grande! Por outro lado, se eu

enxergar esta comunidade como uma comunidade em construção, com potencial de

mudança, meu trabalho estará direcionado para despertar isso na comunidade, mesmo que

eu tenha dificuldades, mesmo que tenha resistências, mesmo que eu não consiga atingir a

todos:

Cada dia é diferente, a comunidade é bem dinâmica, assim como a gente, a relação
é de constituição, de troca, a proposta é sempre de mudança, a partir daquilo que se
quer mudar, às vezes o que a gente quer mudar não é o que eles querem mudar e
vice-versa, mudança de algumas coisas que se identifica junto que não tá legal né...
a imagem, por exemplo, de que lá na Ilha são vagabundos ou ficar apanhando
dentro de casa, então se trabalha em cima disso, então há uma transformação de
todos (comunidade e trabalhador social) neste processo, a percepção da
comunidade não dá pra ter, o que tem é uma vontade de trabalhar junto, sentimento
de impotência, de mudança, de dificuldade de enfrentar estas mudanças em comum;
medo que as pessoas tem de enfrentar estas mudanças. Relação da FASC com as
entidades: a política precisa ser construída com os representantes... é diferente, lá
na Ilha, nós da FASC estamos dentro da comunidade, então estamos bem mais
próximos, na Farrapos é mais institucional, o público é mais apático então é uma
relação de pedir mais do que estar trocando... e na Farrapos não é a comunidade

380
que vai, discute e vai representar a comunidade, a Farrapos tem um representante
que se diz representante e na verdade não é. ... me angustio do que vai acontecer
com o meu trabalho... de como isso vai ser multiplicado e tal... é um peso ser esse
profissional que também é frágil, que também sentem tem dificuldade, etc... Na Vila
dos Papeleiros, a relação é bem individualista, bah! eu sei onde tu mora, eu vou
botar fogo na tua casa... muito impregnada a idéia de que eu sou maloqueiro, sou
vagabundo mesmo, todo mundo tem medo de mim, então tu também vai ter... e eles
tem ganhos com isso também, porque eles estão aqui no centro, eles se sustentam
muito bem neste lugar, e aí é difícil tu mexer pra mudar... ali eles são muito bem
organizados, é bem claro, os lugares de poder diferenciados, eles se construíram
assim... então tem uma organização bem clara, não é só a questão de vitima, mas
pra eles tem uma organização bem definida (Doralina, técnica).

A alienação não é apenas por parte dos moradores, também pode ser por parte dos

técnicos, que possuem uma visão preconceituosa dos moradores:

... como esse ano minha turma são os pequenos, a minha turma e toda dá até gosto,
esse ano dá para dizer “a elite da Dique”, eles vem vestidinhos, vem com tudo, com
merendinhas, com salgadinhos, tu olha e não diz que mora lá, e tem aqueles outros
mais pobrezinhos né, e aquele que puxa coisa do lixo, vem sujinho, mas a maioria
são fofinho (Mercedes, técnica).

4- Participação política e consciência política: análises finais

Neste capítulo nos propusemos a investigar a relação entre participação política e

consciência política. Após a realização da pesquisa e das análises preliminares, temos

condições de afirmar que a participação política é atravessada pela consciência política.

Diferenciamos o que a Administração Municipal denomina como participação

popular, pois entendemos que há uma diferença fundamental não apenas em termos de

nomenclatura, mas em termos concretos de ação coletiva. Para a Administração Municipal,

participação popular é a participação dos cidadãos em diversos fóruns, dentre os quais, o

OP, além de viabilizar a gestão compartilhada de modo que a população ajude a decidir

sobre as políticas públicas da cidade.

Para nós, a participação popular é a participação dos moradores em diversos fóruns

de participação, porém, essa participação não implica engajamento, não implica em

381
estabelecimento de metas para ações coletivas, tampouco implica compromisso com os

outros em termos de busca por melhorias para a comunidade. Para nós, esses elementos

diferenciam a participação popular da política, pois a participação popular pode ser apenas

circunstancial, ou seja, ir a uma reunião para garantir direitos ou ganhar coisas. A

participação política implica engajamento, compromisso, organização e reivindicação. Por

isso entendemos que nem toda a participação popular é política.

Observemos o quadro abaixo que procura ilustrar o nosso entendimento a partir da

pesquisa realizada em Porto Alegre:

Tipo de Aspectos psicopolíticos relacionados aos tipos de participação


Participação
Participação Uso dos fóruns e OP Reação imediatista a Relação com as
popular como instrumento para uma necessidade políticas públicas da
conseguir coisas específica cidade:
 alienação e assistencialismo, ou
comodismo seja, governo tem que
prover
Participação Uso dos fóruns e OP Consciência política Relação com as
política como canais de  sujeitos engajados políticas públicas da
interlocução com o poder em ações coletivas cidade: emancipação,
público e outras  ator político qualidade de vida,
instituições/ONGs para cidadania...
além do conseguir coisas

Entendemos que a diferença encontra-se nas ações individuais e,

conseqüentemente, nas ações coletivas. Para nós, a participação popular não implica em

participação política, pois, a partir do que observamos e analisamos na nossa pesquisa, a

participação popular traduz a participação dos indivíduos em um nível mais instrumental,

382
ou seja, as pessoas participam dos fóruns e do OP para conseguir coisas. Há uma

necessidade específica e há, conseqüentemente, uma reação imediata a participar para

conseguir o que se precisa. Identificamos, portanto, que a relação com as políticas públicas

da cidade é de assistencialismo, ou seja, é o Governo tem que prover, mas, uma vez que a

participação é condição para conseguir coisas, então os indivíduos participam até esse

limite.

A participação política, por sua vez, é a participação dos indivíduos em fóruns e

OP, mas esses são canais de interlocução com o poder público e outras instituições/ONGs

para além do conseguir coisas. A participação política fornece elementos para a formação

da consciência política, os indivíduos são engajados em ações coletivas e a relação com as

políticas públicas da cidade é de emancipação, qualidade de vida, exercício da cidadania

ativa.

4.1- Mudança no comportamento político: alguns indicativos da consciência

política

Em um contexto em que se fala de aprendizado em relação à cidadania,

participação popular, autonomia, o partido que levou isso para a população perde as

eleições para o candidato de oposição. Em um primeiro momento, podemos pensar que

isso é incompreensível, pois a lógica é que as pessoas continuem querendo na

Administração Municipal, o partido político que lhes proporcionou todo esse aprendizado.

Sabemos que a complexidade desse comportamento político dos porto-alegrenses é

ampla: há várias razões que pelas quais isso aconteceu. E não é nosso objetivo, nesta tese,

aprofundar essa questão, pois abriríamos um amplo leque de discussões. Queremos

destacar, no entanto, a fala de Augusto, que acreditamos ser representativa de um conjunto

383
de opções que levaram ao resultado das urnas e, principalmente porque é a justificativa que

a maioria dos porto-alegrenses104 deram para a derrota.

Na opinião de Augusto, a derrota do PT começou com as eleições para o Estado.

Na verdade, Augusto denuncia a perda da confiança, talvez o mesmo sentimento que tenha

afastado muitas pessoas do OP:

Por que o PT perdeu... começou com o Tarso: promessa de governar 4 anos e


perdeu no governo também... o Tarso deveria estar saindo agora... talvez o PT não
perdesse... esse que entrou agora, ele fez uma política de não agredir, de não dar
contra nada, porque não tem nada pra dar contra né... bom, se vai manter o que tá
bom, vai manter o OP, dá pra votar no homem, ele foi um cara que não prometeu
nada, agora o Rigotto vai cair do cavalo, porque o Rigotto prometeu um posto de
saúde a cada km... isso aí eu quero vê... ele prometeu tudo que já tinha... o OP ele
não vai poder terminar, porque se ele terminar o OP, mais ligeiro nós vamos...
porque o OP deu voz ao Augusto papeleiro, graças ao OP que eu busquei a minha
cidadania, e tem líder comunitário aí que com todo este trabalho que eles fizeram,
trocaram de partido não sei porque, o gaúcho é burro, e o porto-alegrense é mais
ainda... a pessoa tem que votar naqueles que tão fazendo e não naqueles que dizem
que vai fazer... aonde o PT governa, você não vê falar de CPI, disso ou daquilo, e o
que aparece é infundado... eu como papeleiro eu tenho toda a receita que a
Prefeitura recebe, a receita que ela gasta com funcionário, com saúde, eu tenho a
prestação de contas... agora eu quero ver se ele vai fazer a prestação de contas... O
Lula tá fazendo um monte de coisa que teve um monte de gente que ninguém fez e
ainda tão criticando o homem, coisas que os outros não tiveram coragem de fazer...
(Augusto, trabalhador da Unidade).

Além da perda de confiança, o que queremos destacar da fala de Augusto é que ele

indica que o outro candidato não agrediu, as pessoas estão cansadas das baixarias na

política, não se toleram mais o jogo de ficar acusando o outro; foi assim no Estado,

enquanto Tarso brigava com Britto, Rigotto manteve um discurso plácido, que o levou a

vitória nas eleições para o governo do Estado. As propostas de campanha não eram tão

convincentes como demonstrou ser seu caráter. Ora, as pessoas não aprenderam a ter

dignidade, exercer a cidadania com respeito, não aprenderam no OP o valor da

solidariedade, do compartilhar, de ter propostas para as comunidades? Então, se

104
Comentário dos entrevistados e divulgado em pesquisas na mídia impressa.

384
aprenderam isso, certamente esses valores vão buscar nos candidatos. Nossos entrevistados

também afirmam isso, muitos votam pela proposta do candidato e não tanto pelo partido

político.

Não entraremos na questão das siglas partidárias, mas sabemos que o movimento

anti-PT, no Estado do RS, se fortaleceu muito, principalmente, com a vitória de Rigotto, e

culminou na vitória de Fogaça na Prefeitura de Porto Alegre: um homem honesto,

professor, com uma carreira política consistente, poeta, compositor de músicas dedicadas a

Porto Alegre, inclusive, que utilizou a mesma estratégia de Rigotto, ou seja, não atacou e

não respondeu às críticas, além disso, prometeu que não ia tirar o OP. Ora, uma população

que estava conseguindo ver os vícios do partido, os vícios do OP, que estava demandando

mudanças, encontrou a possibilidade de viabilizar isso.

Percepção sobre comportamento político: primeiro vem a preocupação, depois o lado


positivo, muito dessas lideranças mudaram neste período... de um lado, tem uma
forma pragmática de pensar as políticas, com essa nova opção, com este novo
governo, tudo isto tá colocado... sobre as possibilidades de garantia dos avanços que
se teve, isto tá colocado em cima desta questão, qual a capacidade de organização, de
mobilização que tá acontecendo, se elas vão se manter pra garantir e atender aquelas
conquistas que travaram até aqui, se elas entenderam as conquistas que tiveram até
aqui, se elas entendem que isso tá em jogo ou não, porque tá colocado no próximo
período, aí é voltar a ter a vida orgânica (Cristiano, técnico).

Os técnicos destacam o quanto a derrota nas eleições representou a mudança dos

moradores, a opção consciente que eles fizeram e, de uma certa forma, a insatisfação com

falta de outras políticas, ou de políticas mais eficazes. Apresentaremos a fala de Mariana e

Doralina, que consideramos significativas:

... sobre a mudança de partido nas eleições municipais... é difícil te dizer isso, do
ponto de vista da minha carreira funcional, eu tenho vários medos, porque trata-se de
compromissos absolutamente diferenciados, muito mais pro mercado, muito mais
com serviços privatizados, muito mais pra um rechaçamento do serviços públicos, do
ponto de vista de políticas públicas, tenho receio de que a gente tenha retrocesso na
construção das políticas, porque você pode ter brilhantismo na proposta, mas ela não
vai ser efetiva se ela não tiver uma construção por parte daqueles que são o público
alvo destes projetos.... que estes fóruns, que estas instâncias de participação popular

385
que não tenham a mesma valoração e acabem por isso se esvaziando e acabem se
extinguindo naturalmente sem que haja um decreto pra isso... ponto de vista de
moradora da cidade, eu tenho a impressão de que talvez porque nós não tenhamos
conseguido traduzir pra aqueles que não são beneficiados pelas políticas públicas, a
importância do trabalho com as camadas populares... dar este empoderamento... A
cidade fez essa opção, queria mudar, queria sangue novo, eu acho que talvez a cidade
tenha condições de no próximo período perceber exatamente que opção foi essa. Eu
não sei se isso tá muito claro, houve essa questão de lidar com esse imaginário de
mudança, que mudança é bom talvez algumas pessoas tenham e é claro né, nós temos
que considerar que uma parte da população se sente agredida, não concorda com
esta política, não se sente contemplada, e acha errado... tem que deixar de trabalhar
com esses vagabundos etc... o ideal pra determinada parcela da população é que a
população marginalizada das vilas sejam jogadas na periferia da cidade, onde tu
implementar uma política diferente dessa, efetivamente, tu entra em conflito com
determinadas camadas da população, então evidentemente não agradava a todos...
(Mariana, técnica).

... parece que aquele slogan do Fogaça: fica o que tá bom, muda o que não tá,
pegou. Eles vão cobrar isso, acho que tem a insegurança e preocupação, é normal
no momento de transição, mas teve um fortalecimento do movimento comunitário e
eles sabem o seu lugar agora. O próximo governo vai ter uma oposição bastante
forte dentro de partidos e olhares bastante precisos da comunidade, pra garantir o
que já tinham e mudar o que não tá bom, e é isso que eu tenho ouvido. (Doralina,
técnica).

Há várias hipóteses, desde a necessidade de mudança, a simpatia por um programa

de governo mais assistencialista, a necessidade de romper com certos vícios da

administração popular, o descrédito em relação ao governo municipal e suas propostas, a

decepção com a atitude do partido nas eleições estaduais, quebrando o voto de confiança

que a população tinha dado ao partido. Percebemos também que as pessoas deixam de

discutir política por associar isso com a questão partidária. Por isso, é comum escutarmos

frases do tipo: futebol e política eu não discuto; eu não gosto de política; política não serve

pra nada.

Mirela, professora de uma escola situada em uma das comunidades, dá um

depoimento que ilustra o que normalmente acontece nas escolas, ou seja, os professores

não se manifestam politicamente, tampouco, discutem política na sala de aula: ... percebi

muito pouco na época da campanha, tem o porteiro que é filiado a algum partido, ele

386
trabalhou um pouco, muito superficial, os alunos não falavam de política. Nos

perguntamos como desencadear a participação política sem discuti-la – a escola, que é uma

instituição que deveria tratar assuntos do cotidiano das pessoas, acaba negligenciando

discussões importantes para a construção de uma identidade política, de uma consciência

política... desta forma, o aprendizado da participação política fica por conta de outras

instâncias, como por exemplo, no caso do OP, assim, os que não tem acesso, os que não

participam das reuniões ficam distanciados do processo político da cidade. Na continuação,

Mirela comenta que:

... até quando se falava em política, os alunos achavam que eu estava defendendo
algum partido, mas não é, eu estava mostrando algumas posições, plataformas, a
gente evita como funcionário público ficar falando, a escola pede que a gente evite
falar muita coisa, por que pode estar influenciando... eu vim com um adesivo e uma
aluna me perguntou se eu ia votar nesse partido, não era a minha intenção ficar
influenciando, por ética, procuro não misturar... na minha disciplina eu digo que
eles têm que assistir a um telejornal, é o tema de casa e vale nota, aí eles reclamam
por que é o horário de outros programas... tudo é mais importante do que aprender
alguma coisa... (Mirela, técnica).

Mirela destaca a percepção que tem da comunidade, que pensa que eles são muito

passivos e desmobilizados: ... o que eu ganhar contigo, eu voto em ti, aqui aconteceu com

a direção da escola. Se eu tiver vantagens eu voto em ti. Porque eles são muito pobres,

eles não tem nada, eles não tem nada a perder. Aqui eles esperam muito tudo “vinde a

mim”. Porque a água lá pra cima é carregada por caminhão pipa, eles não têm água

encanada, vejo um grupo que é bem estruturado, que é o pessoal da limpeza. Com esse

depoimento, introduzimos uma questão que acreditamos que influencia na atribuição de

significados que as pessoas formam sobre a participação política, que trata do estigma.

4.2- Participação política e estigma: algumas interrelações

Percebemos que a questão do estigma está relacionada à vivência dos moradores,

porque é muito forte no cotidiano deles, tanto entre eles mesmos, como vindo do entorno.

387
Acreditamos, contudo, que a identidade social de pobres é conveniente para quem é pobre -

por que ganha com isso, e para quem é rico - porque pode deduzir suas despesas do

Imposto de Renda, além de ficar de bem com a sua consciência, como dizem os

entrevistados.

Entendemos que a vivência do estigma interfere no tipo de participação política que

o indivíduo vai ter. Já referimos, nessa tese, que a participação popular em si, já permite

uma atribuição pejorativa de quem participa, ou seja, o povo. E a tradução de povo, nesse

caso, é comunidade carente. Acreditamos que isso desvirtua a possibilidade de ampliação

dessa participação. Sendo assim, o estigma está impresso não apenas em uma contexto

micro, no sentido de como as pessoas se definem em termos identitários e se definem em

relação ao grupo ao qual pertencem, mas esse estigma está impresso também em um

contexto macro, no sentido da atribuição de significados que o indivíduo tem sobre o

contexto da participação.

No estudo de Elias e Scotson (1998), o que permite ao grupo de estabelecidos – ou

seja, o grupo antigo na comunidade – se afirmar como superior e lançar um estigma sobre

os outsiders – ou seja, o grupo dos recém chegados – como pessoas de estirpe inferior, em

geral, tem a ver com as diferenças grupais étnicas, nacionais e a antiguidade na

comunidade, ou seja, tem a ver com o grau de coesão das famílias. O sentimento do status

de cada um e da inclusão na coletividade tinha a ver com a vida e com as tradições

comunitárias.

No caso da participação política, percebemos que o estigma está relacionado,

principalmente, a questões sociais e econômicas. E podemos perceber isso não apenas nas

relações entre quem mora e quem não mora nas comunidades, mas também dentro das

próprias comunidades, ou seja, há os mais articulados, mais organizados, de melhor poder

388
aquisitivo e os que tem trabalho – por isso esses têm um status – e há os que não tem

condições nem disponibilidade de manter esse status, e por isso são estigmatizados.

Os próprios dados do OP confirmam que os dois grupos que não participam são a

classe média e os excluídos, ou seja, os grupos miserabilizados. No entanto, destacamos,

conforme lembra Goffman (1988), que o indivíduo que é estigmatizado usará,

provavelmente, seu estigma para ganhos secundários como desculpa pelo fracasso a que

chegou por outras razões. O estigmatizado pode também ver as privações que sofre como

uma graça secreta, especialmente devido à crença de que o sofrimento pode mostrar muito

a uma pessoa sobre a vida e sobre as outras pessoas.

Apesar desse aspecto - da busca do estigmatizado para consertar seu problema -

Goffman aborda a questão dos “contatos mistos”, que são os momentos em que os

estigmatizados e os normais estão na mesma “situação social”, ou seja, na presença física

imediata um do outro, tanto durante uma conversa, como na mera presença simultânea em

uma reunião formal. E, para Goffman (1988:23) esses momentos serão aqueles em que

ambos os lados enfrentarão diretamente as causas e efeitos do estigma.

No nosso contexto de pesquisa, esses momentos dos quais refere Goffman, se dão,

na maioria das vezes, nas reuniões do OP. Por isso o OP é uma instância de tensão, no

sentido que mostra as contradições da participação popular, nos dá indicativos da

complexidade desses elementos, por isso, acreditamos que utilizar o modelo de consciência

política de Sandoval (2001), ajuda a explicar a complexidade dessa participação.

À medida que os indivíduos vão se apropriando das dimensões da consciência

política, vão reconfigurando o tipo de participação nas instâncias populares e, podemos, a

partir disso, identificar a diferenciação que já fizemos nesse capítulo de análise, daquilo

que denominamos participação política – que não é o mesmo que participação popular.

389
Nos estudos sociológicos sobre pessoas estigmatizadas, o interesse dos

pesquisadores está geralmente voltado para o tipo de vida coletiva que levam aquelas

pessoas que pertencem a uma categoria particular ou então aquelas pessoas que atuam

como representantes de uma categoria estigmatizada:

São pessoas com estigma, que têm, de início, um pouco mais de oportunidades de
expressar-se, são um pouco mais conhecidas ou mais relacionadas de que seus
companheiros de sofrimento e que, depois de um certo tempo, podem descobrir o
“movimento” absorve todo seu dia e que se converteram em profissionais (Goffman,
1988:35).
Em uma perspectiva psicopolítica, podemos dizer que nosso interesse é

compreender de que forma esse estigma é significado a ponto de interferir na vida política

dos cidadãos. Identificamos dois movimentos possíveis a partir da vivência do estigma. Os

indivíduos reconfiguram sua identidade social e, a partir dessa identidade, buscam as

melhorias para o seu grupo de modo a minimizar – ou eliminar – esse estigma. Ou os

indivíduos sustentam essa identidade social e, por isso, não conseguem se mobilizar

coletivamente.

Esse conseguir ou não conseguir se mobilizar coletivamente, associamos às

dimensões da consciência política. Já foi dito que a consciência política se forma pelo

conjunto de ações coletivas, de representações e significados que são estabelecidos em

relação às vivências que os sujeitos têm.

Podemos pensar na questão dos ganhos secundários que a população estigmatizada

tem, e esse estigma pode ser um elo para a participação: o indivíduo participa porque é

pobre, marginal e necessita moradia... e, ao mesmo tempo em que participa, tem reforçado

o estigma, por que quem precisa reivindicar é quem não tem, ou seja, o pobre, o marginal,

o que não tem moradia.

Ao mesmo tempo, o fato de não ir ao OP também pode ser entendido como um não

querer misturar-se, por que não se identificam com esse grupo, logo, não vêem motivos de

390
estar lutando por uma causa comum, por isso não participam. Assim, o estigma de pobre

que tem que receber algo se intensifica.

Serlene comenta que, na sua comunidade, algumas pessoas ainda não conseguiram

se engajar nos grupos que lutam por melhorias na comunidade: ... tem uma camada que

ainda não conseguiu perceber o crescimento das coisas boas e que eles podem tirar

proveito ainda dos espaços que a comunidade oferece, não tem a clareza que a gente

enquanto dirigente tem do crescimento, aconteceu muita coisa boa, só o fato das pessoas

irem pra faculdade, das pessoas sonharem e realizarem ...

Serlene valoriza as ações coletivas que os indivíduos são capazes de realizar para

reivindicar benefícios, e reconhece que as melhorias na comunidade, para algumas pessoas

é um desencadeador de ações individuais que, em outra circunstância, estava em um plano

inatingível. Agora, com o cenário do qual fazem parte, melhorado, as pessoas tem

condições de transformar a realidade social em benefício próprio também. No entanto, a

fala de Serlene não exclui o preconceito de moradores de vila.

Retomamos o que nos diz Augusto, sobre o preconceito que as pessoas que não

moram na comunidade têm dos que vivem na comunidade, para destacar a vivência

permanente do preconceito: ...quem não conhece, não sabe o trabalho que a gente faz ali, é

como se fosse um bando de marginais, não enxergam a gente como gente... Tinha uns

amigos que falavam dos papeleiros, e eles não sabiam que eu era papeleiro e que morava

na vila, e um dia desafiei os caras para ir na vila... e eles chegaram lá e todo mundo tava

trabalhando numa sexta-feira à noite e eles disseram bah! o que que a gente pensa de um

povo que a gente não conhece!

Essas relações e percepções dos outros favorecem a construção da identidade social

negativa do grupo. Augusto e Serlene indicam movimentos de superação dessa idéia

preconceituosa, não apenas em relação a si mesmos, mas no âmbito coletivo. A fala desses

391
dois entrevistados ilustra o que Tajfel (1981) refere sobre a relação dos indivíduos e sua

percepção sobre a identidade social que é atribuída e internalizada pelos mesmos.

Como nos rememora Tajfel (1981), as características do grupo de uma pessoa, no

seu conjunto (tais como o seu estatuto, riqueza ou pobreza, cor da pele ou capacidade para

atingirmos os seus fins) atingem todo o seu significado quando relacionadas com a

percepção de diferenças em relação a outros grupos e a conotação de valor dessas

diferenças. A privação econômica, por exemplo, adquire toda a sua importância nas

atitudes, intenções e ações sociais, fundamentalmente quando passa a ser privação

relativa; o acesso fácil ou difícil a meios de produção e consumo de bens, a benefícios e

oportunidades, tornam-se psicologicamente salientes sobretudo em relação às comparações

com outros grupos, a definição de um grupo (nacional, racial, ou outro) não tem sentido, ao

menos que existam outros grupos à sua volta. Um grupo torna-se grupo no sentido em que

existe a percepção de que tem características comuns, ou um destino comum, sobretudo

porque existem outros grupos no meio.

Conseqüentemente, a identidade social de um grupo concebida como o

conhecimento que ele tem de que pertence a determinados grupos sociais, juntamente com

o significado emocional e de valor que ele atribui a essa pertença só podem ser definidos

através dos efeitos das categorizações sociais que dividem o meio social do indivíduo no

seu próprio grupo e em outros.

De acordo com Tajfel (1981), se um grupo não oferece condições adequadas para a

preservação da identidade social positiva, o indivíduo irá abandoná-lo – psicológica ou

objetivamente, ou ambos. A situação complica-se mais quando caracterizada pela estrutura

de crenças na mudança social. Em certas condições, um grupo social só pode preencher

essa função de proteger a identidade social dos seus membros, se conseguir manter a sua

distinguibilidade positivamente valorizada em relação a outros grupos. Noutras condições,

392
é preciso criar, adquirir e, talvez, lutar por essa distinguibilidade através de várias formas

de ação social relevante. Noutras condições ainda, alguns ou quase todos os indivíduos de

um grupo desfavorecido apostarão, implícita ou explicitamente, em determinados

processos de mudança social objetiva, na esperança de que possam conduzir a uma genuína

estrutura de mobilidade social, isto poderia significar a dissolução, a longo prazo, de um

grupo que atualmente é definido sobretudo pelos seus atributos negativos quando

comparados com outros grupos.

A atividade reflexiva desses grupos lhes permite desenvolver uma consciência de

grupo através de processos de interação nos quais se constroem novos códigos de

significados, que conferem sentido à participação.

Sandoval (1997:19) atenta para o fato de que estudar o comportamento político

requer estudar as várias formas de agir como parte de uma seqüência de ações coletivas

que constituem esse fenômeno político. Nesse sentido, o enfoque deveria ser interativo ao

analisar as relações entre as diferentes formas de agir como partes de um processo político

de participação.

Sandoval (1994b) alerta para o fato de que:

... a compreensão de como certas ações individuais ou coletivas ocorrem ou deixam


de ocorrer não é apenas uma questão de circunstância histórica ou da percepção do
indivíduo de sua realidade social, mas também do repertório disponível de ações
possíveis e da legitimidade atribuída às mesmas por seus atores. (...) O estudo da
consciência política sem um exame cuidadoso da percepção de ações coletivas seria
incompleto na medida em que falha em ligar visões societais a alternativas
comportamentais possíveis e implícitas em situações específicas de relações de
poder (Sandoval, 1994b:68).
As explicações destes modelos sociológicos explicam por que um conjunto de

pessoas, compartilhando interesses, age coletivamente, mas deixam um hiato em relação ao

engajamento individual em formas de ação coletiva. De qualquer forma, concordamos

quando Sandoval (1994a) chama a atenção para o fato de que ainda se desconhece aspectos

393
fundamentais explicativos das mobilizações populares e os determinantes implícitos na

participação das pessoas nessas mobilizações.

Além das conseqüências destes estigmas para as relações das pessoas entre si e com

a vizinhança do entorno, é possível entender que os entraves para a efetivação de uma

organização comunitária são marcados, dentre outros fatores, por uma visão coletiva

fragmentada e permeada pelo preconceito e discriminação. Há os ganhos secundários e a

manutenção dessa condição, mas também há a insatisfação dessa condição por aqueles que

desejam realmente mudar, ter um status diferente do que o de vileiro, que participam

porque se acreditam personagens importantes nesse cenário e que não se permitem mais

serem usados para fins eleitoreiros.

Relacionamos esse movimento dos nossos entrevistados com a dimensão da

consciência política de Sandoval (2001), que trata dos sentimentos e justiça e injustiça.

Essa dimensão compreende as formas como o indivíduo percebe os acordos sociais e

avalia se estes acordos representam um nível de reciprocidade social entre os atores que ele

considera como justos. Com base em Berrington Moore (1978), Sandoval (2001) aponta

que a justiça social é expressa por meio dos sentimentos de reciprocidade entre obrigações

e recompensas e afirma que os indivíduos entendem como uma ruptura da reciprocidade

em termos de injustiça sempre que sentirem que o equilíbrio das relações de reciprocidade

forem ameaçados.

O nosso entendimento acerca dessa dimensão faz com que reforcemos a nossa

percepção sobre o movimento dos entrevistados, ou seja, à medida que o indivíduo percebe

que ser pobre, carente, vileiro, não é uma condição natural, que é possível qualificar a sua

condição de vida, que é possível acessar os direitos garantidos constitucionalmente,

independente de classe social, ele tem elementos para sustentar sua ação coletiva em prol

das melhorias para a sua vida, ele tem condições de compreender a dinâmica do contexto

394
social no qual está inserido, bem como entender a configuração das relações de poder, para

que tenha condições de incidir sobre essa realidade social e transformá-la.

Sendo assim, acreditamos que a vivência do preconceito traz à tona a demarcação

da diferença e essa vivência acaba influenciando a maneira como as pessoas mantém as

suas redes de reciprocidade. A fala de José é um exemplo de organização em busca da

manutenção dessas redes. Quando a vila onde morava foi praticamente destruída pelo

incêndio, os moradores se organizaram de forma a não saírem do lugar de moradia para

não perderem o direito de voltarem a construir as suas casas nesse local. Percebemos que

esse sentimento se incrementa à medida em que as pessoas já vivenciam comumente

situações de injustiça social: ...a associação aqui é a da Cristóvão Colombo, as

associações querem um parque, um shopping... pra eles nós semos menos que lixo... então

pra garantir o espaço, nós nos dividimos, um pessoal ficou em barraca e tal... são umas 50

famílias e de aluguel são 40 famílias...

Segundo Sandoval, são os próprios processos sócio-históricos que proporcionam

uma relação equilibrada de reciprocidade e que fazem com que os indivíduos percebam

que essa reciprocidade pode ser violada. Dessa maneira, uma grande parte dos critérios

elaborados para medir noções de reciprocidade e seu subseqüente sentimento de injustiça

são determinadas pelo contexto histórico.

Contudo, Sandoval explica que, quando estes sentimentos de reciprocidade, de

alguma maneira, deixam de existir ou são violados, se estabelece uma situação de injustiça

que provoca o descontentamento coletivo e suas ulteriores manifestações de protesto.

Freqüentemente, diz o autor, notamos que toda reivindicação dos movimentos sociais vai

contra uma situação de injustiça, conseqüentemente, observamos que, por trás do que as

pessoas falam sobre sua participação nos movimentos sociais, em suas representações, se

395
ocultam referências à noção de injustiça que servem para legitimar suas reivindicações e

responsabilizar os adversários.

Percebemos essa justificativa na fala de Serlene, que aponta o OP como um espaço

onde as pessoas foram agindo de maneira a minimizar as situações de injustiça social das

quais eram vítimas. Entendemos, entretanto, que a reivindicação para resolver uma

situação de injustiça precisa ser percebida como uma injustiça, caso contrário, não se

sustenta por muito tempo. É o que nos faz inferir que a participação política via OP se dá

no momento em que essa dimensão é compreendida e passa a fazer parte do universo de

representações do indivíduo. Rememoramos a fala de Serlene sobre isso: ... enquanto tiver

um governo que dê para brigar pelo Orçamento, a gente consegue de tudo. Com esta

forma de administrar, quando a gente consegue administrar junto, a gente vai conseguir

terminar algumas coisas na Tuca e outras nós vamos brigar muito ainda.

Ou seja, há o reconhecimento de que há muita coisa para se conseguir ainda para a

comunidade. O estímulo em continuar participando está na conquista e na melhoria da

comunidade na qual vive, pois lhe traz o sentimento de minimizar as situações de injustiça

em que vivem.

Esse conjunto de escolhas individuais e coletivas para fundamentar as ações

coletivas dos indivíduos e das comunidades, nos remete inferir, mais uma vez a dimensão

de consciência política do modelo de Sandoval (2001) que trata da vontade de agir

coletivamente. Como já foi dito, essa é uma dimensão mais instrumental e se refere à

predisposição do indivíduo em incluir-se no jogo das ações coletivas como um modo de

compensar as injustiças que são cometidas contra ele mesmo.

Essa dimensão tem as suas raízes nos estudos de Klandermans (1992) e enfoca três

situações que levam os indivíduos à participação coletiva: a primeira refere-se à relação

custo/benefício na manutenção da lealdade interpessoal e dos vínculos que resultam na

396
participação ou não no movimento; a segunda diz respeito à percepção dos ganhos ou

perdas de benefícios materiais que resultam no envolvimento em movimentos sociais; a

terceira refere-se à percepção dos riscos físicos que implicam o engajamento em ações

coletivas em determinada condição situacional. Por último, considerando essas situações,

os indivíduos ou os movimentos sociais avaliam sua capacidade para implementar suas

propostas de ação coletiva.

Ou seja, os indivíduos avaliam a relação custo-benefício em participar

coletivamente. No caso da participação popular – nos termos da Administração Municipal

– a participação é voluntária, ou seja, o custo da ida às reuniões é por conta dos indivíduos.

Logo, os indivíduos levam em conta até que ponto vale a pena gastar dinheiro e tempo. A

tendência é que, quando esses indivíduos pensam que não vale a pena, deixam de

participar, mesmo porque, não participando, eles acabam sendo beneficiados, caso alguém

mais da sua comunidade participe. Quando os indivíduos acreditam que os benefícios, os

aprendizados compensam o desgaste físico e financeiro, incrementam a sua percepção e

vontade de agir coletivamente.

Isso é reforçado também pelas relações interpessoais que os indivíduos

estabelecem. Quanto maior o nível de amizade e conhecimento pessoal, maior a

probabilidade de participar. Muitos entrevistados relatam esse fato, ou seja, as pessoas vão

porque amigos ou vizinhos próximos convidam e esse se torna um elo de compromisso

com o outro. Alguns, mantém a participação porque ressignificam o valor dessa

participação, e passam a vê-la como a possibilidade de emancipação, mesmo reconhecendo

as dificuldades e limites do processo. Outros, desistem de participar por acreditar que esse

processo não trará nenhum tipo de contribuição e benefício para a sua vida.

397
CAPÍTULO VIII

O impacto das políticas públicas no comportamento político dos

indivíduos: algumas considerações finais

Pretendemos encerrar nossa reflexão nessa tese, apresentando nossas considerações

sobre os impactos psicopolíticos da participação política dos moradores e trabalhadores das

Unidades de Reciclagem de Lixo.

Quando iniciamos nossa análise, tivemos a necessidade de diferenciar os conceitos

de participação popular e participação política. Sem essa distinção, corríamos o risco de

confundir nosso leitor quanto aos significados importantes sobre a questão da participação

política, objeto de nosso estudo.

Essa necessidade foi desencadeada pelo fato de que pensávamos que havia

diferença entre a participação dos moradores e dos trabalhadores da Unidade de

Reciclagem de Lixo. Estabelecemos algumas hipóteses acerca da participação política dos

nossos entrevistados que, ao longo do trabalho, foram sendo confirmadas e outras,

refutadas.

Constatamos também que não há diferença entre as opiniões dos moradores e

trabalhadores, partindo da hipótese de que os trabalhadores são mais organizados,

participativos e atuantes, principalmente em fóruns de participação como o Orçamento

Participativo. A diferença de opiniões dos moradores e trabalhadores está na rede de

significados que esses indivíduos constroem acerca do conceito de participação política e

não pelo seu nível de organização.

398
Percebemos, a partir do que disseram nossos entrevistados que, a participação

popular, assim como define a Administração Municipal, não garante o que chamamos

nessa tese de participação política. A complexidade desses fatores é grande, e não

pretendemos, nesse trabalho, ser reducionistas, mas enunciaremos algumas hipóteses que

auxiliam na compreensão desse universo complexo e dinâmico da participação política:

 Identificamos que os moradores têm uma vivência de exclusão maior do que os

trabalhadores. Consideramos que isso é possível pelo fato de que os trabalhadores

estão vinculados a uma Associação de Recicladores, e tem uma relação de trabalho

com o poder público, mais organizada. O fato de vivenciarem políticas públicas

interfere na percepção que as pessoas têm sobre a vivência na cidade, a concepção

de cidadania, etc;

 Percebemos, no entanto, que, mesmo fazendo parte de uma Associação de

Recicladores, fazendo parte das reuniões do OP, isso não garante que os

trabalhadores tenham uma articulação com a comunidade a qual pertence; às vezes,

ao contrário, os moradores são mais participativos, respondem mais às demandas

de uma democracia participativa.

 Às vezes, a organização cristaliza as ações, como muitas vezes percebemos com

alguns de nossos entrevistados, trabalhadores das Unidades. Para algumas

comunidades, ou, para algumas pessoas, a organização, a estrutura, imobiliza o

indivíduo, enquanto deveria ser o suporte para o desafio de mudar.

 Acreditamos, por isso, que as políticas públicas são importantes, que o efeito

mobilizador deve prevalecer sobre o efeito paralisante das políticas públicas, no

entanto, isso é garantido mediante a disponibilidade interna de cada indivíduo, bem

como sua capacidade de mobilização comunitária.

399
Nos propusemos, ao longo dessa análise de dados, apresentar a idéia de que a

participação política é atravessada pela consciência política. Entendemos com isso que, à

medida que os indivíduos se apropriam das dimensões da consciência política,

ressignificam a realidade social na qual estão inseridos e entendem a participação política

sob uma perspectiva mais ampla e complexa.

Concordamos com Sandoval (1994b) quando esse refere que os padrões de

comportamento, as crenças sociais, os pontos de vistas políticos, os modismos estão

presentes na vida cotidiana dos indivíduos e são expressos de maneira não-racional e

espontânea, visto que o cotidiano impõe sobre as pessoas uma forma de pensar imediatista

e utilitária favorecendo o desenvolvimento do pensamento superficial que leva ao

comodismo e à alienação do sujeito que é tipicamente manifestada em:

...suposições não-questionadas da inevitabilidade da rotina diária e o ´natural` das


desigualdades e dominação nas relações de poder na sociedade, tal como se
encontram estruturadas. A aceitação espontânea de normas sociais e em última
instância da estruturação de classes, desigualdades sociais e submissão política
disfarçada de requisito do viver rotineiro, podem ter o efeito de tornar o indivíduo
um conformista na medida em que carece da instrumentação intelectual para
raciocínio sistemático e crítico, e das práticas diárias do exercício democrático de
direitos e obrigações de cidadania (Sandoval, 1994:64-65).

Sandoval (1994) acredita que é necessária uma ruptura desta rotina cotidiana para

que possa emergir outras modalidades de consciência política, uma vez que visões de

mundo segmentadas podem fragmentar a consciência do indivíduo e impedir a formação

da sua consciência política.

A análise nos permitiu compreender a complexidade das relações cotidianas de

nossos entrevistados, a qual nos faz inferir que, de fato, é importante uma ruptura com a

rotina cotidiana de modo que o indivíduo possa perceber o mundo de uma forma reflexiva.

400
Ao considerarmos diferentes aspectos que estão presentes no cotidiano dos nossos

entrevistados, entendemos que a vida cotidiana é heterogênea, é segmentada entre as várias

atividades desempenhadas pelos indivíduos. Este cotidiano aparece, muitas vezes, como

natural, como a realidade do aqui e agora, guiado pelo senso comum. Se o indivíduo se

propõe a desafiar a realidade do natural deverá se propor também a alterar sua lógica do

senso comum para uma lógica teórica ou filosófica. Em geral, as pessoas tendem a viver

seu cotidiano como se esse não necessitasse de re-interpretação. (Heller, 1972)

Ao avaliarmos as atitudes de alguns entrevistados, deparamo-nos com o fato de que

a fragmentação do cotidiano mantém segmentado o universo de significados que os

indivíduos atribuem à realidade social. Alguns entrevistados trabalham com reciclagem de

lixo, seja na Unidade de Reciclagem, ou em suas próprias residências e, no entanto, não

reciclam seu próprio lixo. Não há a compreensão de que a reciclagem é fundamental para a

preservação do meio ambiente, e que isso beneficiará a todos. A importância está na

rentabilidade que a venda do lixo traz para o indivíduo.

Esse cotidiano obscurece a possibilidade de reflexão sobre esse trabalho, o qual

pode ser percebido como natural, sem a necessidade de um posicionamento, e não como

um problema a ser resolvido.

Outra característica diz respeito ao fato de que o indivíduo, normalmente, conduz as

atividades da vida rotineira com um certo economicismo, ou seja, de forma a garantir a

continuidade da rotina, mas não necessariamente com reflexão sobre as ações.

Além disso, a rotina da vida cotidiana favorece a alienação, a qual se manifesta,

imperceptivelmente, entre as tarefas do dia-a-dia. Expressa-se também na aceitação

espontânea das normas sociais e das estruturas definidoras do cotidiano. Essa alienação

401
encontra possibilidades de inserção na rotina cotidiana uma vez que pressupõe a ausência

de uma instrumentação intelectual para o raciocínio sistemático e crítico.

O que alguns de nossos entrevistados vivem é um misto de não querer e não saber

como fazer. É como se a rotina do cotidiano estivesse a serviço da manutenção desta

alienação a fim de obscurecer o sofrimento do dia-a-dia, causado pela pobreza e

submissão.

Destacamos a vida cotidiana em nossa análise, pois percebemos que é nesse

cotidiano que nossos entrevistados constroem seus significados, como o que é ser cidadão

e o que é exercer a cidadania.

Percebemos que a maneira como atribuem os significados está relacionada à

maneira como vivem as políticas públicas. Esse foi um aspecto que detectamos no

comportamento psicopolítico de nossos entrevistados, ou seja, quando as políticas públicas

são vivenciadas como algo do campo dos direitos, como uma possibilidade de ampliar a

qualidade de vida individual e coletiva, quando desencadeia engajamentos em ações

coletivas, viabilizam o sentimento de cidadania ativa. No entanto, para que esse

comportamento seja possível, é importante que o indivíduo rompa com um cotidiano

alienante, que obscurece as probabilidades de refletir sobre os processos que impedem as

ações coletivas.

O modelo de consciência política de Sandoval (2001) nos dá elementos para

entender os argumentos de nossos entrevistados, que envolve as escolhas das ações

individuais e para seu engajamento – ou não – em ações coletivas, tendo a capacidade de

se perceber como um ator político, e transformar a realidade social. Isso porque se trata de

um modelo conceitual no qual a consciência política está organizada em modalidades de

402
percepção da realidade social as quais são passíveis de análise sistemática. Em outras

palavras, o esquema teórico proposto pelo autor, como ele próprio sugere, permite uma

análise empírica da consciência política que é viável operacionalmente.

Sandoval destaca que:

O imediatismo do pensar e do comportamento quotidiano obscurece a


diferença entre o ‘possível’ e o ‘correto’, tanto quanto no comportamento
diário tende a reduzir o correto ao possível e, em decorrência, a encobrir as
questões de direito de cidadania e moralidade política. Assim, a atitude
quotidiana é tipicamente pragmática. Essa falha na racionalidade e a ênfase
no pragmaticismo se refletem no caráter fragmentário do pensamento das
pessoas combinando a mescla não-sistemática de material cognitivo e juízos
superficiais de valores, convertendo a pressa no ‘desejável’ a eficiência no
‘natural’, na medida em que as opções de comportamento delas lhe permite
continuar no ritmo do dia-a-dia com um mínimo de perturbação (Sandoval,
1994:64).

Através desta reflexão, podemos apresentar alguns argumentos sobre nossas

hipóteses levantadas em outras seções dessa tese. Ao longo da pesquisa, percebemos dois

grupos distintos, no que diz respeito à participação política: o grupo dos que freqüentam do

OP e os que não freqüentam.

Destacamos o Orçamento Participativo como um importante fórum de participação

política, que permite aos indivíduos exercitarem a participação e serem co-responsáveis no

que diz respeito à vida pública da cidade.

Analisando a participação política de nossos entrevistados, pudemos constatar que

algumas hipóteses que havíamos estabelecido foram ratificadas:

* Os nossos entrevistados participam do Orçamento Participativo e de outros fóruns

de participação popular por influência partidária, ou seja, participam por obrigação,

403
visando a busca por melhorias sem aprofundar a questão da reflexão sobre os processos

políticos;

* Alguns entrevistados participam do Orçamento Participativo e de outros fóruns de

participação popular por influência partidária, mas aprofundam discussões acerca de

questões políticas e refletem sobre os processos políticos da cidade;

* Há entrevistados que não participam do OP e de outros fóruns de participação

popular, justamente pelo partido político que incentiva a participação; e demonstram isso

criticando e/ou boicotando o processo político;

* Há os que não participam do Orçamento Participativo e de outros fóruns de

participação popular, não por causa de algum partido político em específico, mas porque

não são engajados politicamente, e pensam que se envolver com política é perder tempo.

Reafirmamos, a partir dessas constatações, que as ações têm sua base nas vivências

que os indivíduos possuem ao longo de sua vida e de como ressignificam o seu cotidiano

através da ruptura que fazem com o seu cotidiano e, por isso, conseguem perceber as

tensões presentes no mesmo, bem como, refletir sobre os problemas.

Atribuímos também essa significação à identidade social e coletiva que esse

indivíduo tem em relação ao seu grupo e que lhe permite criar e manter redes de

solidariedade e reciprocidade, assim como nos sentimentos de eficácia política que ele

atribui as suas ações coletivas, seja as metas e ações que estabelece para sustentar a

organização comunitária ou o movimento dos moradores das comunidades junto aos fóruns

de participação popular.

404
Outras ações relevantes são as crenças e valores societais que o indivíduo constrói

através de suas vivências, e a partir da realidade social na qual está inserido. A

identificação dos adversários visíveis fazem com que os indivíduos percebam os interesses

antagônicos dos grupos e possam mobilizar os indivíduos para a ação coletiva. Os

sentimentos de justiça e injustiça social são expressos por meio dos sentimentos de

reciprocidade entre obrigações e recompensas e levam os indivíduos à ação, à medida que

esses percebem uma ruptura da reciprocidade e um desequilíbrio nessas relações.

Constatamos, portanto, que, distintamente do que havíamos pensado no início dessa

pesquisa, não há diferença entre os trabalhadores e moradores, pelo fato dos primeiros

estarem mais expostos a políticas públicas que os segundos. A diferença está na formação

da consciência política desses indivíduos, que os fazem mais engajados - ou não - nas

ações coletivas. Pelo exposto acima, ratificamos que o modelo de consciência política de

Sandoval (2001) é fundamental para a compreensão da participação política de nossos

entrevistados.

Acreditamos que a relevância de nosso trabalho está no fato de ressaltarmos a

importância dos fóruns de participação popular como canais de interlocução permanente,

pois viabilizam a constituição de espaços de manifestação, de escuta, de respeito às

reivindicações e opiniões, além de ser decisivo para a configuração de valores societais que

permitem aos indivíduos se fortalecerem enquanto atores sociais e políticos, bem como se

engajar coletivamente em ações que possibilitem o exercício da cidadania, a emancipação

e a qualidade de vida.

Constatamos que, normalmente, quando se formulam políticas públicas para

populações vulneráveis, não se leva em conta os aspectos psicopolíticos que repercutirão

405
nas ações e nos engajamentos dos indivíduos nessas políticas, assim como tampouco se

considera o repertório de significados desses indivíduos sobre a realidade social.

É como se a implantação de políticas públicas, por si só, já garantisse a

participação. O que destacamos, analisando a realidade pesquisada, é que o processo é

muito mais complexo do que as boas intenções do poder público podem conter. Nem

sempre está previsto essa complexidade no comportamento político dos indivíduos e,

normalmente, quando esse comportamento não corresponde às expectativas dos gestores

das políticas, é entendido como um comportamento dissociado, como um “problema a ser

resolvido”.

As políticas públicas incidem na vida dos indivíduos. Esses interagem e se

beneficiam das políticas de uma forma individual ou coletiva. A questão que levantamos é

que essa interação apresenta diferentes níveis, ou seja, desde o mais instrumental, ou seja,

o participar por participar, pela “obrigação”, pela troca de benefícios e vantagens, até a

participação pela crença de que essa representa uma maneira de conquistar e garantir

melhorias para si mesmo e para a coletividade.

Prevêem-se os aspectos materiais e a aceitabilidade imediata a essas políticas, mas

não são contemplados os impactos dessas mudanças para a formação da consciência

política, do engajamento desses indivíduos em ações coletivas, em situações que

demandam um compromisso coletivo com o outro.

Nesse sentido, afirmamos a relevância desse estudo para compreendermos que não

basta pensarmos ou estabelecermos políticas públicas voltadas para a população de baixa

renda, mas é fundamental considerarmos os impactos psicopolíticos, já destacados nessa

seção, que incidem na participação dos cidadãos em relação a essas políticas.

406
Ressaltamos, de igual modo, os indicativos de novas perspectivas de pesquisa nesse

sentido. Estudos que contemplem os aspectos da formação da consciência política e que

contribuam para entendermos a complexidade da participação política dos indivíduos, no

sentido de entendermos que a participação popular, assim como denomina a Administração

Municipal de Porto Alegre, não garante engajamento em ações coletivas, não garante a

consciência política capaz de fazer com que esse indivíduo continue participando em

outros fóruns de participação política.

407
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SOUZA, J. M. de. (1993). Cidade: momentos e processos. São Paulo: Marco Zero.

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________. & GARRIDO, F. J. (coordinadores). (2002). Metodologías y presupuestos


participativos. Construyendo ciudadanía. Vol. 3. Madrid: Iepala.

415
ANEXOS

416
ANEXO I: Questionário com moradores

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP


Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social
Doutoranda: Giseli Paim Costa
Orientador: Prof. Dr. Salvador Antonio Mireles Sandolval

Questionário com moradores


Local:_________________________________________________________________
Data:__________________________________________________________________

Dados pessoais
Nome: ________________________________________________________________
Idade: _________________________________________________________________
Profissão: ______________________________________________________________
Estado civil: ____________________________________________________________
Escolaridade: ___________________________________________________________
Naturalidade: ___________________________________________________________
Tempo em que mora na comunidade: ________________________________________
Onde vivia antes – cidade e/ou bairro de Porto Alegre: __________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
Razões que o levou a vir para Porto Alegre e/ou escolher este bairro: _______________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
Observações: ___________________________________________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________

417
ANEXO II: Questionário com técnicos

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP


Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social
Doutoranda: Giseli Paim Costa
Orientador: Prof. Dr. Salvador Antonio Mireles Sandolval

Questionário com técnicos

Local:_________________________________________________________________
Data:__________________________________________________________________

Dados pessoais
Nome: ________________________________________________________________
Idade: _________________________________________________________________
Profissão: ______________________________________________________________
Escolaridade: ___________________________________________________________
Naturalidade: ___________________________________________________________
Secretaria ou Departamento em que trabalha: __________________________________
Tempo em que trabalha neste setor: _________________________________________
Cargo ou função: ________________________________________________________
Observações: ___________________________________________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________

418
ANEXO III: Entrevista com moradores

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP


Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social
Doutoranda: Giseli Paim Costa
Orientador: Prof. Dr. Salvador Antonio Mireles Sandolval

Entrevista com moradores

1- Quais as atividades culturais, esportivas e de lazer que Porto Alegre oferece (durante a
semana e nos fins de semana) que você costuma aproveitar?
2- Quais as programações culturais que a comunidade organiza e/ou oferece para seus
moradores?
3- Quais as suas perspectivas de vida? (Em termos de expectativas e possibilidades de
realizações pessoais)
4- Quais as perspectivas de trabalho?
5- O que é ser cidadão?
6- O que é exercer a cidadania?
7- Como é viver em Porto Alegre?
8- Quais os pontos positivos e negativos de morar em Porto Alegre?
9- Como é viver em seu bairro/em sua comunidade?
10- Quais os pontos positivos e negativos de morar nesta comunidade?
11- Costuma ir ao Orçamento Participativo?
12- Acha o Orçamento Participativo importante? Porque?
13- Como acha que as pessoas que não moram aqui os vêem?
14- Como acha que as pessoas que vivem aqui se enxergam?
15- Como as pessoas se relacionam entre si na comunidade?
16- Como percebe a comunidade na qual vive?
17- Qual o papel / importância da Unidade de Reciclagem de Lixo para os moradores?
18- Como é a relação da comunidade com a Associação de Bairro, Associação dos
Recicladores, ou outras entidades comunitárias?
19- Como a comunidade resolve os seus problemas?
20- Qual a preferência político-partidária?
21- Qual a melhor forma, na sua opinião, de conseguir as melhorias que se deseja para a
comunidade?
22- Como se deu a construção da Unidade de Reciclagem de Lixo, a Associação de
Moradores e a Associação das Unidades de Reciclagem nesta Comunidade?
23- Na sua opinião, qual o papel da escola nesta comunidade? E de uma forma geral?
24- A escola participa das atividades da comunidade? Intervém nos seus problemas? De
que forma?
25- Como é vista e trabalhada a questão da violência nesta comunidade?

419
ANEXO IV: Entrevista com técnicos

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP


Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social
Doutoranda: Giseli Paim Costa
Orientador: Prof. Dr. Salvador Antonio Mireles Sandolval

Entrevista com técnicos

1- Quais as atividades culturais, esportivas e de lazer que Porto Alegre oferece (durante a
semana e nos fins de semana) que você costuma aproveitar?
2- Quais as programações culturais, esportivas e de lazer que a Secretaria/Departamento
em que você trabalha organiza e/ou oferece para as comunidades?
3- Qual a percepção que você tem das comunidades?
4- Como você entende/identifica a participação política destes moradores?
5- O que é ser cidadão?
6- O que é exercer a cidadania?
7- Como é viver em Porto Alegre?
8- Quais os pontos positivos e negativos de morar em Porto Alegre?
9- Como as comunidades resolvem, na sua opinião, os problemas que enfrentam?
10- Qual a melhor forma, na sua opinião, de conseguir as melhorias que se deseja/que são
necessárias para as comunidades?
11- Costuma ir ao Orçamento Participativo? Na sua região de moradia ou trabalho?
12- Acha o Orçamento Participativo importante? Porque?
13- Qual a repercussão do movimento dos moradores para as políticas públicas da
Administração Municipal ?
14- Como é a relação desta Secretaria/Departamento com as entidades representativas da
comunidade (Associação de Bairros, Clube de Mães e Unidades de Reciclagem de Lixo?
15- Como se deu a construção das Unidades de Reciclagem de Lixo de cada comunidade?
16- Como se deu a construção da Associação de Moradores de cada comunidade?
17- Qual o papel / importância da Unidade de Reciclagem de Lixo para os moradores?
18- Como se deu a construção das Associações das Unidades de Recicladores de cada
comunidade?
19- Como você percebe a preferência político-partidária dos moradores de cada
comunidade?
20- Na sua opinião, qual o papel da escola nesta comunidade? E de uma forma geral?
21- A escola participa das atividades da comunidade? Intervém nos seus problemas? De
que forma?
22- Como é vista e trabalhada a questão da violência nesta comunidade?

420
Anexo V

TERMO DE CONFIDENCIALIDADE E CONSENTIMENTO

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO


PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA SOCIAL

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Porto Alegre, _________ de 2004.

Prezado(a) Senhor(a),

Desde o ano de 2002 estou realizando uma pesquisa de Doutorado sobre a


participação política e a organização comunitária dos moradores de algumas comunidades
de Porto Alegre. Pretendo investigar a identidade social que os moradores destas
comunidades tem e o quanto isso repercute na participação política e nos movimentos de
busca por melhorias para a comunidade. No presente momento, necessito realizar
entrevistas com os trabalhadores desta Unidade de Reciclagem de Lixo, por esta Unidade
fazer parte da seleção da amostra delimitada na pesquisa. Estas entrevistas poderão ser
gravadas, desde que consentidas pelas pessoas envolvidas, e posteriormente, serão
analisadas no texto da tese.
Solicito a sua colaboração para que possa gravar as entrevistas e utilizar suas falas
para analisá-las em meu texto. Afirmo que tomarei todos os cuidados de privacidade e
confidencialidade das falas e que estas serão utilizadas para fins de produção de
conhecimento. Este trabalho de coleta de dados será realizado, nesta Unidade, no presente
período, as entrevistas serão analisadas até Junho de 2005 e, após, o conteúdo das fitas será
apagado. O sigilo dos nomes dos entrevistados e dos locais de realização da pesquisa, será
preservado no texto final com a substituição por nomes fictícios. Pretendo que os
resultados desta pesquisa possam auxiliar na melhor compreensão da participação política
e da organização comunitária enquanto um elemento de articulação em diferentes
instâncias dentro ou fora da comunidade local.
Desde já agradeço a sua colaboração e me coloco à disposição para quaisquer
outras dúvidas.

Atenciosamente

___________________________________________
Giseli Paim Costa
Doutoranda em Psicologia Social/PUCSP
End.: Av. Dom Claudio J.G. Ponce de Leão, 34/408
Vila Ipiranga, 91370-70. Porto Alegre
E-mail: giselipc@terra.com.br
F: (051)9961-5471

421
Anexo VI

TERMO DE CONFIDENCIALIDADE E CONSENTIMENTO

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO


PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA SOCIAL

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Porto Alegre, _________ de 2004.

Prezado(a) Senhor(a),

Desde o ano de 2002 estou realizando uma pesquisa de Doutorado sobre a


participação política e a organização comunitária dos moradores de algumas comunidades
de Porto Alegre. Pretendo investigar a identidade social que os moradores destas
comunidades tem e o quanto isso repercute na participação política e nos movimentos de
busca por melhorias para a comunidade. As comunidades que fazem parte da minha
amostra de pesquisa são comunidades que têm Unidades de Reciclagem de Lixo. Além de
entrevistar os trabalhadores das Unidades, faço contato, também, com Entidades,
Instituições e Organizações que trabalham com a comunidade, motivo pelo qual estou
solicitando sua colaboração nesta pesquisa. Estas entrevistas poderão ser gravadas, desde
que consentidas pelas pessoas envolvidas, e posteriormente, serão analisadas no texto da
tese.
Solicito a sua colaboração para que possa gravar as entrevistas e utilizar suas falas
para analisá-las em meu texto. Afirmo que tomarei todos os cuidados de privacidade e
confidencialidade das falas e que estas serão utilizadas para fins de produção de
conhecimento. Este trabalho de coleta de dados será realizado no presente período, as
entrevistas serão analisadas até Junho de 2005 e, após, o conteúdo das fitas será apagado.
O sigilo dos nomes dos entrevistados e dos locais de realização da pesquisa, será
preservado no texto final com a substituição por nomes fictícios. Pretendo que os
resultados desta pesquisa possam auxiliar na melhor compreensão da participação política
e da organização comunitária enquanto um elemento de articulação em diferentes
instâncias dentro ou fora da comunidade local.
Desde já agradeço a sua colaboração e me coloco à disposição para quaisquer
outras dúvidas.
Atenciosamente

___________________________________________
Giseli Paim Costa
Doutoranda em Psicologia Social/PUCSP
End.: Av. Dom Claudio J.G. Ponce de Leão, 34/408
Vila Ipiranga, 91370-70. Porto Alegre
E-mail: giselipc@terra.com.br
F: (051)9961-5471

422
Anexo VII
Mapa da cidade de Porto Alegre com as especificações das regioes do OP.

423

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