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Direito como Ciência

Maria de Fátima Alcântara de Oliveira

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 ASSUNTOS:
 CONCEITO DE DIREITO
 FILOSOFIA DO DIREITO

Observemos a pluridimensionalidade do objeto que chamamos "direito" , o


que permite diversos ângulos de abordagem, ora separados, ora ligados por nexos
meramente lógicos ou didáticos, ora interligados em formas sintéticas.

A palavra direito provém do latim directu, que suplantou a expressão jus, do


latim clássico, por ser mais expressiva. Em Roma havia o jus e o faz. O jus é o
conjunto de normas formuladas pelos homens, destinadas a dar ordem à vida em
sociedade; faz é o conjunto de normas de origem divina, religiosa, que regeriam as
relações entre os homens e as divindades.

No mundo moderno, direito em seu sentido objetivo, seria um conjunto de


regras dotadas de sanções que regem as relações dos homens que vivem em
sociedade, ou seja, o jus romano. Já no sentido didático, poderíamos entender o
direito, como sendo a ciência das regras obrigatórias que presidem às relações dos
homens em sociedade.

Para Limongi França, o direito pode ser entendido sobre quatro aspectos: o
primeiro, o direito como o justo; o segundo como regra de direito; o terceiro
como poder de direito e o quarto como sanção de direito.

O direito como que é justo. Os jurisconsultos romanos já ensinavam que - jus


est a justitia appellatum , isto é, que o direito provém da justiça. A criação do direito
não tem e não pode ter outro objetivo senão a realização da justiça.

Como regra de direito, é a ordem social obrigatória estabelecida para regular


a questão do meu e do seu. (Direito Objetivo)

Como poder de direito, é o conjunto de faculdades que as pessoas têm,


conferido pela regra de direito. (Direito Subjetivo).

E, por fim, como sanção de direito, onde se discute o fato de existir ou não
direito sem sanção, isto é, sem a força do poder público ou dos grupos sociais que o
torna obrigatório.

Entretanto, para Miguel Reale apenas as três primeiras perspectivas para a


compreensão da palavra direito, exprimem mais a realidade, uma vez que ao
entendermos estes três conceitos, teríamos aí a verdadeira concepção tridimensional
da experiência jurídica. Mais uma vez o direito num plano tridimensional, ou seja,
o elemento valor como intuição primordial; o elemento norma como medida de
concreção da conduta social; e, finalmente, o elemento fato, como condição da
conduta.

Já que definimos a palavra "direito", vejamos agora o significado da


palavra "ciência".

Ciência, segundo alguns estudiosos do direito, é a busca permanente e


constante pela verdade, e que pelo fato dela não ser unívoca, não há como se
designar um tipo específico de conhecimento, não existindo um critério único que
determine sua extensão, natureza ou caracteres, devido ao fato de vários critérios têm
fundamentos filosóficos que extravasam a prática científica. Mais uma vez, nos
deparamos com uma pluridimiensionalidede deste outro objeto que chamamos
"ciência".

A questão aqui não é a conceituação ou a interpretação literal das palavras,


mais sim, a nossa visão do direito como ciência, que para nós nada mais é que a
valoração de um fato (de cunho natural ou social) que por força de sua interpretação,
gera uma norma jurídica aplicável.

O direito como ciência, valoriza, qualifica, atribui conseqüências a um


comportamento. Não em função de critérios filosóficos, religiosos ou subjetivos, mas
em função da utilidade social. Para o direito, a conduta é o momento de uma relação
entre pessoas, e não o momento da relação entre pessoas e divindade e entre pessoa
e sua consciência, ou seja, o direito não se limita apenas na verificação simples dos
atos ou dos acontecimentos, muito pelo contrário, eles são analisados pelas
conseqüências que produzem.

Portanto, o direito como ciência se preocupa antes e principalmente com a


ordem e a segurança da sociedade. São as necessidades sociais e a vontade do
homem que atuam na interpretação dessas necessidades e transformam as regras
que essas necessidades impõem naquilo que se denomina direito positivo.

NORMA JURÍDICA (proceptum juris)

"É o preceito de direito transformado em lei".

TEXTOS RELACIONADOS

 Mutação social e jurídica: o direito quântico e a justiça social

 A curvatura do espaço jurídico: neutralidade, segurança jurídica e


hermenêutica na perspectiva quântica

 O Direito e a sua conceituação

 O debate metodológico contemporâneo em Teoria do Direito. Herbert Hart X


Ronald Dworkin

 Golpe militar de 1964 e legitimidade do direito


"Lei é uma norma de direito tornada obrigatória pela força coercitiva do
Estado".

Pela própria acepção da palavra, norma quer dizer regra, regra de direito, e
como toda regra é imperativa, impondo dever e fixando a conduta dos homens em
sociedade.

Também é a norma, autorizante, onde, segundo Maria Helena Dinis, "só a


norma jurídica é autorizante, porque só ela autoriza o lesado pela sua violação a exigir
seu cumprimento ou a reparação do mal sofrido, de modo que é a autorização a sua
diferença específica", e, por fim a norma advém no confronto dos fatos com os
valores, feitos pelo seu elaborador.

Diversos autores, estudiosos do direito, abordam o tema sobre vários


aspectos e/ou segmentos, há aqueles que entendem a norma jurídica como a única
constituidora da própria expressão formal da norma do direito; outros, de que ela é
bilateral, imperativa e coercitiva, ou seja, em seu mecanismo, alguém dispõe, os
demais obedecem, cuja inobservância acarretará a aplicação da sanção pelos órgãos
do poder público. É imperativa porque prescreve as condutas devidas e os
comportamentos proibidos. A relação entre norma e conduta é de subordinação, não
de causalidade.

A essência da norma jurídica se constitui simplesmente imperativo


autorizante.

De uma certa forma, estamos diante da teoria tridimensional, ou seja, a norma


prevê, de forma geral e abstrato, hipóteses de fato, devidamente classificadas por tipo,
a que imprime valoração jurídica. Sobre essa valoração, o Prof. Reis Friede, assim se
manifesta:

"(...) a valoração implícita da norma jurídica repousa sempre na própria idéia que
a inspira, indiretamente manifesta, por seu turno, na verdadeira estrutura orgânica que
a mesma obrigatoriamente apresenta - sem qualquer exceção -, dentro do contexto
específico de sua inerente complexidade".

Diante dessa complexidade, encontramos a norma inserida dentro de três


diferentes planos. O primeiro, o normativo, onde a norma é elaborada pelo poder
competente; o segundo, o ontológico, que corresponde a realidade social e, por fim, o
político, que corresponde às tendências políticas dominantes.

De uma certa forma, a norma jurídica não é uma arbitrariedade, apenas


corresponde a necessidades de ordem, de equilíbrio, de harmonia, de justiça, cujas
raízes se afundam numa determinada realidade social, logo não pode ser criação
arbitrária da imaginação humana ou da fantasia do Poder de que emana.

Em síntese, a norma jurídica é um produto humano que tende realizar certos


valores, tais como: ordem, segurança, justiça. É também, norma de conduta posta
pelo governo, com o intuito de regular seu comportamento social, com o objetivo de se
chegar à justiça.

INTERPRETAÇÃO DA NORMA JURÍDICA


Interpretar, em seu conceito fundamental, é explicar, esclarecer; dar o
significado de vocábulo, atitude ou gesto; reproduzir por outras palavras um
pensamento exteriorizado; mostrar o sentido verdadeiro de uma expressão; extrair,
de frase, sentença ou norma, tudo o que na mesma se contém. (grifo nosso).

Cabe ao interprete, extrair o real conteúdo da norma jurídica expressa no


texto da lei que a vincula. Examinar o texto em si, o seu sentido, o significado de cada
vocábulo, fazendo depois, uma comparação com outros dispositivos da mesma lei, e
com os de leis diversas.

Existem vários métodos de interpretação; quanto aos órgão de que emana,


pode ser: autêntica, judicial e doutrinal.

Autêntica, é aquela que emana do próprio poder que fez o ato cujo sentido e
alcance ela declara, ou seja, a que procede do próprio legislador, sob forma de outra
lei e, portanto, com caráter obrigatório.

Judicial, a que deriva dos órgão judiciários (juizes e tribunais). Não tem
caráter obrigatório senão para o caso em concreto, mas serve de diretriz para a
solução dos casos similares (as chamadas jurisprudências).

Doutrinal, a que é feita pelos escritores do direito, nos seus comentários às


leis escritas. Não é jamais obrigatória, mas dispõe também ela, de relevante prestígio.

Para o mestre Carlos Maximiliano, só a doutrinal merece o nome de


interpretação, no sentido técnico do vocábulo; porque esta deve ser, na
essência, um ato livre do intelecto humano.

Quanto à maneira de realizar-se, a interpretação pode ser: gramatical, lógica,


histórica, científica e sistemática.

Gramatical, literal ou "ad litterem", aquela que atende ao texto da lei, à sua
redação, à significação exata das palavras.

Lógica, a que, pela análise meticulosa do texto da lei, procura penetrar em


seu espírito e identificar-se com o pensamento do legislador na ocasião em que a
elaborou. Segundo Ihering, a interpretação lógica, consiste em procurar o
pensamento da lei na alma do seu autor, passando por cima das palavras.

Histórica, a que se apoia no estuda da evolução do direito através dos


tempos, para se chegar a uma justa aplicabilidade da norma legal.

Científica, que se confunde com a lógica, a que no dizer de Paula Batista,


"presta as premissas e dados para, por meio de legítimas conseqüências não só
atingir o sentido moral e sem defeitos, como também, adotar entre os sentidos
possíveis, aquele que exprimir com a maior seqüência possível a vontade do
legislador.

Sistemática, consiste em comparar o dispositivo sujeito a exegese, com


outros do mesmo repositório ou leis diversas, mas referentes ao mesmo objeto, ou
seja, consiste, ainda, "em resolver eventuais conflitos de normas jurídicas,
examinando-as sob a ótica de sua localização junto ao direito que tutela".
Quanto ao resultado, uma corrente doutrinária (adeptos a escola
tradicionalista ou clássica), classifica a interpretação como sendo declarativa,
extensiva e restritiva. Entretanto, outra corrente, não mais admite essa divisão, pois é
conceito firmado que toda interpretação é declarativa do conteúdo da lei e não
pode ampliar nem restringir esta.

Diante dessas diversas formas de se chegar a uma interpretação de um texto


legal, cabe ao intérprete, não só traduzir em linguagem clara o que o autor disse, mais
esforçar-se para entender mais e melhor do que aquilo que se acha expresso, buscar
o que inconscientemente o autor quis na realidade dizer.

O que se busca é definir, de modo preciso, o caráter especial da norma e a


matéria de que é objeto, porque, como nós vimos, existem diverso modos de
interpretação, bem como, existem diversos ramos do direito, variando desta forma o
critério de interpretação, conforme a espécie jurídica de que se trata.

Verba cum effectu, sunt accipienda: " Não se presumem, na lei, palavras
inúteis". Literalmente: "Devem-se compreender as palavras como tendo alguma
eficácia".

BIBLIOGRAFIA

ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Dicionário Enciclopédico de Direito, 1992 


DINIZ, Maria Helena. Conceito de Norma Jurídica como Problema de Essência, 1985 
FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Teoria da Norma Jurídica, 1986 
FRANÇA, R. Limongi. Instituições de Direito Civil, 1994 
FRIEDE, Reis. Ciência do Direito, Norma, Interpretação e Hermenêutica Jurídica,
1997 
LIMA, Hermes. Introdução à Ciência do Direito, 1980 
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito, 1981 
NÁUFEL, José. Novo Dicionário Jurídico Brasileiro, 1997

Leia mais: http://jus.com.br/artigos/4/direito-como-ciencia#ixzz3MOdyCZkD

http://jus.com.br/artigos/2644/direito-e-ciencia-na-teoria-pura-do-direito-de-hans-kelsen
Direito e Ciência na Teoria Pura do
Direito de Hans Kelsen
Mauro Almeida Noleto

Publicado em 02/2002. Elaborado em 05/2001.

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 ASSUNTOS:
 POSITIVISMO
 ESCOLAS JURÍDICAS
 FILOSOFIA DO DIREITO

RESUMO
A ousadia da Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, desqualificando a
importância do jusnaturalismo como teoria válida para o Direito e pretendendo dar
caráter definitivo ao monismo jurídico estatal, fez dele o alvo preferido das teorias
críticas no Direito, inconformadas com os déficits éticos do pensamento jurídico assim
purificado e com o consequente desinteresse dos juristas em realizar cientificamente
um Direito atrelado a critérios de legitimidade não apenas formais. Ocorre que,
atuando no marco do paradigma positivista, não poderia ser diferente o projeto
kelseneano: uma ciência das normas que atingisse seus objetivos epistemológicos de
neutralidade e objetividade. Era preciso expulsar do ambiente científico os juízos de
valor, aliás como já o haviam feito as demais disciplinas científicas. O plano da Teoria
Pura era, assim, atingir a autonomia disciplinar para a ciência jurídica. Essa é a grande
importância de seu pensamento, isto é, o seu caráter paradigmático. E se de fato
estamos vivendo um novo momento de transição paradigmática, nada melhor do que
bem compreender as bases desse paradigma que se transforma. Esse é o objetivo
deste texto e para tanto, iremos analisar a formulação de Kelsen, na Teoria Pura, da
relação entre ciência e direito, procurando, a partir de uma perspectiva crítica ao
positivismo que a caracteriza, vislumbrar, ao final, as limitações dessa formulação,
com apoio do que denominei aqui de o viés hermenêutico.

DIREITO E CIÊNCIA NA TEORIA PURA DO DIREITO DE


HANS KELSEN
Uma Leitura Crítica

No início do século XX, Hans Kelsen apresenta, na sua obra Teoria Pura do


Direito, uma concepção de ciência jurídica com a qual se pretendia finalmente ter
alcançado, no Direito, os ideais de toda a ciência: objetividade e exatidão. É com
esses termos que o autor apresenta a primeira edição de sua obra mais conhecida.
Para alcançar tais objetivos, Kelsen propõe uma depuração do objeto da ciência
jurídica, como medida, inclusive, de garantir autonomia científica para a disciplina
jurídica, que, segundo ele, vinha sendo deturpada pelos estudos sociológicos,
políticos, psicológicos, filosóficos etc.[1]

A ousadia do pensamento kelseneano, desqualificando a importância do


jusnaturalismo como teoria válida para o direito e pretendendo dar caráter definitivo ao
monismo jurídico estatal, fez de Kelsen o alvo preferido das teorias críticas no Direito,
inconformadas com os déficits éticos do pensamento jurídico assim purificado e com o
consequente desinteresse dos juristas em realizar cientificamente um direito atrelado a
critérios de legitimidade não apenas formais.

Ocorre que, atuando no marco do paradigma positivista, não poderia ser


diferente o projeto kelseneano: uma ciência das normas que atingisse seus objetivos
epistemológicos de neutralidade e objetividade. Era preciso expulsar do ambiente
científico os juízos de valor, aliás como já o haviam feito as demais disciplinas
científicas. O plano da teoria Pura era, assim, atingir a autonomia disciplinar para a
ciência jurídica.[2] Creio, por isso, que essa é a grande importância de seu pensamento,
isto é, o seu caráter paradigmático. E se de fato estamos vivendo um novo momento
de transição paradigmática, nada melhor do que bem compreender as bases desse
paradigma que se transforma. Esse é o objetivo deste texto e para tanto, iremos
analisar a formulação de Kelsen, na Teoria Pura, da relação entre ciência e direito,
procurando, a partir de uma perspectiva crítica ao positivismo que a caracteriza,
vislumbrar as limitações dessa formulação.

NORMAS E PROPOSIÇÕES JURÍDICAS


A relação entre direito e ciência na Teoria Pura do Direito de Kelsen começa
pela definição do objeto da ciência do direito, que para ele é constituído em primeiro
lugar pelas normas jurídicas e mediatamente pelo conteúdo dessas normas, ou seja,
pela conduta humana regulada por estas. Assim, enquanto se estudam as normas
reguladoras da conduta, o Direito como um sistema de normas em vigor, fica-se no
campo de uma teoria estática do Direito. Por outro lado, se o objeto do estudo
desloca-se para a conduta humana regulada (atos de produção, aplicação ou
observância determinados por normas jurídicas), o processo jurídico em seu
movimento de criação e aplicação, realiza-se o que ele chama de teoria dinâmica do
Direito. Esse dualismo, entretanto, é apenas aparente, já que a dinâmica está
subordinada à estática por uma relação de validade formal, pois os atos da conduta
humana que desencadeiam o movimento do Direito são eles próprios conteúdo de
normas jurídicas, e só nesta medida é que interessam para o estudo da ciência
jurídica.

TEXTOS RELACIONADOS

 O positivismo jurídico contemporâneo: Direito e autoridade

 Do positivismo jurídico ao neoconstitucionalismo/pós-positivismo

 Crítica de Dworkin ao positivismo de Hart e sua influência no Brasil

 Comentários a uma teoria da construção retórica do direito


 Interpretação jurídica, linguagem e objetividade

Kelsen apresenta o ordenamento jurídico positivo - conjunto das normas


válidas - como uma pirâmide de normas, onde se articulam o aspecto estático e o
aspecto dinâmico do Direito. A noção de validade formal é o elemento que integra
esses dois aspectos, pois, nesse arranjo, cada norma retira de uma outra que lhe é
superior, na escala hierárquica do ordenamento jurídico, a sua existência e validade.
Assim, por exemplo, no momento em que é criada ou aplicada (dinâmica), para que
seja considerada válida a norma, é preciso verificar se as condições de sua produção
ou aplicação (capacidade e/ou competência dos agentes, além do procedimento de
produção e aplicação) estão previamente contidos nos comandos de outras normas já
produzidas e integrantes do ordenamento jurídico (estática). O ponto final dessa
cadeia de validade é o que Kelsen chama de norma fundamental - pressuposto lógico
do sistema normativo. As considerações acerca desse tema demandariam um outro
esforço reflexivo que escapa aos objetivos do presente artigo.[3]

Segundo Kelsen, a ciência jurídica representa uma interpretação normativa


dos fatos: "Descreve as normas jurídicas produzidas através de atos de conduta
humana e que hão-de ser aplicadas e observadas também por atos de conduta e,
consequentemente, descreve as relações constituídas, através dessas normas, entre
os fatos por elas determinados"[4]. A diferença conceitual entre proposições jurídicas da
ciência, que são os juízos hipotéticos que enunciam que, de acordo com o
ordenamento, sob certas circunstâncias ali previstas, devem ocorrer certas
conseqüências também previstas por este ordenamento e normas jurídicas, que não
são juízos acerca de uma realidade externa, mas sim mandamentos que encerram
comandos, permissões e atribuições de poder ou de competência é então
estabelecida pelas funções: descritiva, da ciência e prescritiva, do Direito. É que, para
Kelsen, a ciência não produz direito, não possui essa função criadora, pois limitada ao
papel de conhecimento do direito produzido pela autoridade jurídica, isto é, por aquele
a quem o ordenamento atribui capacidade ou competência para produzir normas
jurídicas, na relação entre estática e dinâmica do Direito, que aprendemos como a
teoria dogmática das fontes do Direito.

Essa distinção entre ciência jurídica e Direito, Kelsen a situa no plano da


validade formal, afastando do campo do Direito as questões relativas à veracidade ou
falsidade de seus imperativos de conduta:

"A distinção revela-se no fato de que as proposições normativas formuladas


pela ciência jurídica, que descrevem o Direito e que não atribuem a ninguém
quaisquer deveres ou direitos, poderem ser verídicas ou inverídicas, ao passo que as
normas de dever-ser, estabelecidas pela autoridade jurídica - e que atribuem deveres
e direitos aos sujeitos jurídicos - não são verídicas ou inverídicas, mas válidas ou
inválidas, tal como também os fatos da ordem do ser não são quer verídicos, quer
inverídicos, mas apenas existem ou não existem, somente as afirmações sobre esses
fatos podendo ser verídicas ou inverídicas." [5]

Ao realizar esse deslocamento, Kelsen atrai para as proposições da ciência


jurídica a aplicação dos princípios lógicos (da não-contradição, p. ex.), uma vez que
não sendo as normas jurídicas passíveis de comprovação de sua verdade ou
falsidade, não se poderia colocar diretamente relacionado a elas o problema do
conflito ontológico entre prescrições. É a ciência que se encarrega de resolver os
problemas, o que lhe garante dignidade ou utilidade prática, caso contrário, poder-se-
ia atribuir-lhe um caráter supérfluo de mera repetidora daqueles preceitos normativos.
CAUSALIDADE (SER) E IMPUTAÇÃO (DEVER-SER)
Na modernidade, a ciência, impulsionada pelo racionalismo e pelo empirismo,
pretendeu ter emancipado o conhecimento "verdadeiro" acerca dos fatos naturais e
sociais das amarras e preconceitos místicos que caracterizavam o saber antigo. Para
tanto, invertendo a ordem do conhecimento estabelecido, que buscava a solução para
os problemas nas verdades absolutas e nos argumentos de autoridade, voltou sua
atenção para os próprios fenômenos, no sentido de identificar e descrever, em meio
ao aparente caos dos fatos, as regularidades, isto é, a verdadeira ordem das coisas.
Sua principal arma metodológica foi a aplicação do método indutivo para a elaboração
de proposições (leis e teorias) científicas fundadas no pressuposto de que a natureza
possui uma ordem que pode ser descrita em linguagem matemática. O princípio
explicativo dessa ordem natural passa a ser o princípio da causalidade, que se presta
apenas à descrição isenta, imparcial, de como as coisas realmente são, de como, sob
certas circunstâncias, determinado fato como causa será responsável
(inexoravelmente, para uns, ou estatisticamente, para outros) pela ocorrência de um
outro determinado fato, como seu efeito. Em tal concepção, não há espaço para
perguntas do tipo teleológicas, finalísticas. Essa revolução no conhecimento,
promovida pelo paradigma científico, foi assim explicada por Rubem Alves, no
seu Filosofia da Ciência, que me permito transcrever, pelo refinamento crítico e
implicitamente irônico de seu texto:

"Explicar alguma coisa em função da pergunta para quê? é compreendê-la em


função de seus propósitos, objetivos, finalidades. (...) Se o que fazemos se explica
teleologicamente, não se deverá concluir que a grande obra da divindade, o universo,
deve se explicar em função de seu propósito? É claro. Se se admite que a natureza é
um produto da ação criadora de Deus, a expressão mais alta da sabedoria é ter
consciências dos propósitos do Criador. E foi assim que as perguntas teleológicas
foram feitas à natureza e as respostas obtidas serviram para dar sentido à vida das
pessoas. Só havia um pequeno problema com elas: belas esteticamente, fascinantes
psicologicamente, mas irremediavelmente à mercê das idiossincrasias da
subjetividade. Elas não podiam ser testadas e corrigidas.

‘O livro da natureza está escrito em caracteres matemáticos’ (Galileu, Il


Saggiatore). De fato, momento crucial na história da ciência. Mais do que isso:
declaração subversiva, digna da inquisição. Que afirmava Galileu? Que o universo não
tem um sentido humano. Por meio dessa afirmação, ele arranca a natureza do quadro
quente e amigo marcado pelo amor e pela sabedoria divina, e a coloca num mundo
frio em que dominam as relações entre os números. No mundo dos números não se
pode mais fazer a pergunta acerca da finalidade do universo."[6]

De volta à Teoria Pura, segundo Kelsen, o que se denomina princípio da


imputação (responsabilização) tem, nas proposições jurídicas, função análoga à
do princípio da causalidade em relação às leis naturais. Tal qual uma lei natural,
também uma proposição da ciência jurídica liga entre si dois elementos: se "A" é, "B" é
(causalidade); se "A" é, "B" deve ser (imputação). A diferença consiste, no entanto, no
fato de que, na proposição da ciência jurídica, a ligação entre os elementos fáticos
(conduta como pressuposto e conseqüência punitiva, permissiva ou autorizativa, como
resultado) é produzida por uma norma jurídica, isto é, por um ato de vontade
autorizado.[7] A norma jurídica, assim como qualquer norma, não tem a finalidade de
descrever os fatos sociais, no caso, as condutas humanas, pelo contrário, ela
representa uma interferência na ordem natural ou social desses fatos, qualificando
imperativamente as condutas a que se refere (atribuindo responsabilidades, conferindo
poderes, ou interditando condutas). Mesmo assim, tais relações jurídicas, uma vez
constituídas por essa imperatividade formalmente autorizada, devem ser apenas
descritas pelo cientista, na medida em que compõe uma relação de imputabilidade.[8] O
conteúdo das normas (fatos e valores) deve permanecer intocado.

Criticam-se, assim, por inviabilidade científica, as proposições de uma teoria


metafísica do Direito e afirma também o autor que, limitada às descrições normativas,
à ciência jurídica também não cabe investigar a eficácia da norma - saber se esta é ou
não vivenciada como regra social -, pois aí estaria forçada a emitir juízos da ordem do
ser, juízos sobre a realidade. Assim, segundo ele, não cabe à ciência jurídica dizer se
uma norma é ou não justa, ou se é ou não obedecida, mas sim se é válida
formalmente, se tem vigência.

Kelsen ressalva, ou alerta, que embora se utilize da expressão dever-ser, o


sentido dessa expressão traz na proposição da ciência jurídica um caráter meramente
descritivo, ainda que o objeto dessa descrição - a norma jurídica - não seja um fato da
ordem do ser, mas também um dever-ser. O jurista científico - afirma - apenas
descreve o Direito; assim como o físico em relação ao seu objeto, ele apenas afirma a
ligação entre dois fatos. E mesmo considerando que o objeto da ciência jurídica seja
constituído pelas normas e, portanto, pelos valores ali inscritos, as proposições
científicas, assim como as leis naturais - enfatiza Kelsen - são uma descrição alheia a
valores.

Ainda raciocinando analogicamente, Kelsen compara as leis naturais,


elaboradas pela Física, enquanto descrição da ordem natural (ser), com as
proposições descritivas da ordem jurídica, produzidas pela ciência jurídica, que ele
então denomina leis jurídicas, que não são propriamente as normas jurídica (dever-
ser), mas apenas a sua descrição científica.

Esse jogo de espelhos entre o Direito (objeto) e a ciência jurídica (sujeito),


que resulta da formulação positivista de Kelsen, é de fato fonte de muita confusão. Há
momentos, durante a leitura, em que não se sabe bem de que lado está o quê,
principalmente quando Kelsen recorre à analogia com as ciências naturais para
justificar as funções que reputa idênticas àquelas da ciência jurídica, ou seja, a
descrição de seus respectivos objetos de conhecimento: os fatos da ordem natural
(ser) e as normas jurídicas (dever-ser): nesse momento a norma jurídica equipara-se a
um objeto reificado, uma coisa a ser descrita, um dever-ser-que-é válido formalmente -
ressalte-se. Mas aqui reside a primeira confusão, pois para ele, embora sejam
realidades ontologicamente diversas, prestam-se ao mesmo tipo de apreensão
cognitiva, isto é, podem ser descritas pelo conhecimento científico, desde que,
entretanto, sejam aplicados princípios explicativos diferentes: causalidade e
imputação. Portanto, são ciências diferentes, peculiares, mas comungam da mesma
metodologia positivista. Diz Kelsen:

"Assim como a lei natural é uma afirmação ou enunciado descritivo da


natureza, e não o objeto a descrever, assim também a lei jurídica é um enunciado ou
afirmação descritiva do Direito, a saber, da proposição jurídica formulada pela ciência
do Direito, e não o objeto a descrever, isto é o Direito, a norma jurídica. Esta - se bem
que quando tem caráter geral seja designada como ‘lei’ - não é uma lei, não é algo
que, por qualquer espécie de analogia com a lei natural, possa ser designado como
‘lei’. Ela não é, com efeito, um enunciado pelo qual se descreve uma ligação de fatos,
uma conexão funcional. Não é sequer um enunciado, mas o sentido de um ato com o
qual se prescreve algo e, assim, se cria a ligação entre fatos, a conexão funcional que
é descrita pela proposição jurídica, como lei jurídica."[9]

A meu ver, o problema dessa epistemologia positivista, que, num esforço de


abstração, produz a sua dicotomia central entre o que é Direito (norma) e o que é
Ciência (proposição ou lei jurídica), é não considerar preliminarmente que,
diferentemente da descrição da ordem natural, que se faz em linguagem matemática,
a descrição jurídica, embora aspire ao rigor matemático e sistêmico, se faz na mesma
linguagem natural (comum) e, portanto, imprecisa com a qual se produz o seu objeto,
as normas jurídicas (gerais e individuais, conforme a competência ou a capacidade do
agente produtor). Além disso, é mais ou menos certo que, na descrição da natureza, a
causalidade ocorra indepentemente do cientista, mas na "descrição" (compreensão)
da normatividade válida formalmente, o jurista, em razão da necessária interpretação
que realiza, não raramente recompõe a imputação.

Na verdade, essa aproximação epistemológica com as ciências naturais,


construídas dentro do paradigma positivista da separação total entre sujeito e objeto, é
bastante conveniente aos pressupostos da Teoria Pura, não obstante me parece ser
esse o ponto mais contraditório desse arranjo. É conveniente porque ao estabelecer a
equivalência entre os enunciados das ciências naturais (leis naturais causais) e as
proposições tidas por meramente descritivas da ciência jurídica (leis jurídicas
imputativas), Kelsen pretende ter resolvido o problema das valorações éticas do
ordenamento, afirmando serem estas questões metajurídicas. Visto assim, o Direito, o
ordenamento jurídico, analogicamente, seria como o sistema planetário, pronto para
ser descrito objetivamente, desde que o cientista saiba manejar um outro princípio
explicativo diferente do princípio da causalidade, o princípio da imputabilidade. Mas
não estaria então a Teoria Pura correndo o risco de desaguar, nessa transposição do
mundo natural para o mundo jurídico, ainda que por caminhos opostos, no mesmo
universo abstrato dos jusnaturalistas e sua representação idealizada - pois referida a
valores universais e imutáveis - da ordem social?

Ocorre que, havendo coincidência do veículo lingüístico pelo qual se


manifestam tanto a ciência quanto o seu objeto - a norma - já de saída torna-se muito
difícil acreditar que ambos irão se comportar sempre de maneira tão exemplar como,
por exemplo, o físico Kepler e a órbita do planeta Marte: o objeto ali, existindo (o
Direito como dever-ser, ressalte-se) e o sujeito aqui, descrevendo. Não parece
suficiente, portanto, para sustentar-se essa cisão perfeita, no terreno jurídico, o
recurso ao princípio da imputabilidade, pois sendo diferente a natureza do objeto
jurídico - prescrição normativa, dever-ser - a contaminação de ambos - sujeito e objeto
- parece ainda mais inevitável, pelo menos diante dos chamados hard cases.

Um relevante desdobramento da formulação kelseneana é assim procurar


desviar do Direito para a sua ciência as questões - tão caras aos cientistas naturais -
relativas ao controle de seus postulados, a partir de critérios de verdade e de
falsidade, de identidade e de não-contradição. E aqui transparece mais uma vez a
crença do autor na pureza de seu objeto, a norma jurídica formalmente válida, nada
podendo ser dito acerca de sua verdade ou falsidade - que no direito seria a
compatibilidade dessa normatividade com critérios valorativos -, pois este é
exatamente o ônus suportado pela ciência jurídica, eu diria, esta é, afinal, sua
dignidade.

Visto de uma outra forma, portanto, mesmo no marco da teoria pura, o papel
da ciência jurídica até então passivo e descritivo revela-se muito mais justificador do
que se imagina. É que se as proposições da ciência estão sujeitas à verificação de sua
verdade ou falsidade, quando afirmam a validade ou invalidade de uma norma, ainda
que esse exame se pretenda estritamente formal, a resposta daí resultante poderá ser
aplicada ainda que indiretamente, à própria norma. A esse respeito discorre o chileno
Oscar Sarlo:

"...de tal manera, la ciencia jurídica será el conjunto sistemático de


proposiciones acerca de normas, esto es, proposiciones que afirmam la validez de las
normas que integran un sistema jurídico, y por tanto son susceptibles de los valores de
verdad/fasedad. Mediante la crucial distinción - antes no tenida en cuenta por los
juristas - entre discurso normativo de la autoridad y el discurso descriptivo de los
juristas, Kelsen logra aplicar el control racional sobre la ciencia jurídica, e
idirectamente, a los propios enunciados normativos"[10]

Essa observação parece indicar que mesmo toda a preocupação com a


pureza não livra Kelsen do envolvimento de sua concepção de ciência com o mundo
essencialmente político da produção de normas, ainda que ele ressalve que a
autoridade criadora, seja o juiz ou o legislador, deve conhecer o Direito, valendo-se,
pois, do trabalho do jurista científico, apenas como uma etapa preliminar de seu
processo criativo, ou melhor, decisório.

O VIÉS HERMENÊUTICO: CONTAMINANDO O


MÉTODO JURÍDICO.
As objeções mais fortes ao relativismo axiológico de Kelsen, que acabou por reduzir a ciência
jurídica aos estreitos limites do formalismo normativista, vêm sendo elaboradas no bojo do
chamado movimento de renascimento da filosofia jurídica, ocorrido após a trágica experiência
histórica do Estado-assassino de Hitler.[11] Além do ressurgimento das questões axiológicas,
trazidas pela urgência civilizatória do novo pacto ético celebrado em torno da defesa
intransigente dos direitos humanos, novas abordagens epistemológicas acerca do direito e de
sua ciência, com um visível acento na hermenêutica e na argumentação jurídica, vão conduzir
a um cenário hoje denominado de pós-positivismo. Sobre essa virada, nos fala Margarida Maria
Lacombe Camargo:

"(...) Kelsen cinge-se à idéia do resgate da objetividade e da segurança no


campo do direito, propondo a construção de uma teoria que excluísse
quaisquer elementos de natureza metafísico-valorativa. Como vimos, a idéia
era a de que a atividade jurisdicional ficasse circunscrita a operações lógico-
dedutivas extraídas de um sistema dinâmico de normas feitas pelo Estado
capaz de gerar uma norma individual como sentença para cada caso concreto.
No entanto, as correntes que vêem a aplicação do direito como atividade criadora insurgem-se
em opor severas críticas ao positivismo kelseneano, apontando para a falibilidade do modelo
lógico-dedutivo. Acredita-se que o direito existe concretamente e não de forma virtual, ou
melhor, que ele vale à medida que é capaz de compor interesses, desconsiderando-se o seu
valor meramente potencial, Este movimento, que encerra o predomínio da dogmática
tradicional, é denominado pós-positivismo."[12]

Segundo Camargo, destacam-se nesse universo, as contribuições teóricas da tópica de


Theodore Viehweg, a nova retórica de Chaim Perelman, a filosofia da lógica do razoável, de
Recasen Siches, etc. Não caberia, no espaço deste artigo uma discussão mais aprofundada
acerca dos desdobramentos teóricos de cada uma dessas formulações. Portanto, elas serão
apresentadas, à guisa de conclusão, apenas na medida em que representam novos pontos de
partida para a reinserção da teoria jurídica na concretude histórica de onde foi arrancada pela
pureza cética do positivismo jurídico.

Pois bem, contra o caráter sistêmico-normativo atribuído ao Direito pelo positivismo, Viehweg
opõe a tópica como método ou estilo típico do raciocínio jurídico, que os antigos chamavam de
prudência. No prefácio à edição brasileira de Tópica e Jurisprudência, Tércio Sampaio Ferraz
Jr. assim descreve as bases da análise de T. Viehweg:

"Nas origens, Viehweg remonta a Aristóteles, para quem se coloca uma


diferença entre demonstrações apodíticas e dialéticas. O grego tinha um
conceito bastante estrito de ciência. A cientificidade é apenas atribuível à coisa
tal como ela é (Na. Post. 1, 2, 71b). Ou seja, ao conhecimento da causalidade,
da relação e da necessidade da coisa. Nestes termos nos falava ele em
conhecimento universal. A lógica deste conhecimento é a analítica, que
constrói suas demonstrações a partir de premissas verdadeiras, por meio de
um procedimento silogístico estrito. Neste sentido, as demonstrações da
ciência são apodíticas, em oposição às argumentações retóricas, que são
dialéticas. Dialéticos são os argumentos que concluem a partir de premissas,
aceitas pela comunidade como parecendo verdadeiras. A dialética é, então,
uma espécie de arte de trabalhar com opiniões opostas, que instaura entre elas
um diálogo, confrontando-as no sentido de um procedimento crítico. Enquanto
a analítica está na base da ciência, a dialética está na base da prudência.
É esta prudência, enquanto sabedoria, virtude de saber sopesar os argumentos, confrontar
opiniões e decidir com equilíbrio, que Viehweg investiga em seu livro, desde a jurisprudência
romana, passando pelo mos itálicos e pela Era Moderna, até a civilística contemporânea.
(...)."[13]

Viehweg parte do conceito aristotélico de tópica, estilo de pensar a partir de situações


problemáticas, e que fornece caminhos decisórios, em busca de premissas mais ou menos
aceitas, no contexto de uma disputa argumentativa e dialética, em oposição à analítica, que se
caracteriza pelo método, segundo aristóteles, propriamente científico, dedutivo e sistemático.
Assinala Viehweg:

"A tópica é um conhecimento em busca de premissas, conforme sublinhou


Cícero, ao diferenciá-la, como ars inveniendi, da lógica demonstrativa, ou ars
iudicandi. Isto tem pleno sentido. Pois é possível distinguir uma reflexão que
busca o material para pensar, de outra que se ajusta à lógica. É igualmente
claro que na prática esta última deve vir depois daquela. Vista desta maneira, a
tópica é uma meditação prológica. A tópica mostra como se acham as
premissas; a lógica recebe-as e as elabora.
O modo de buscar as premissas influi na índole das deduções e, ao contrário, a índole das
conclusões indica a forma de buscar as premissas."[14]

Segundo Viehweg, é com o racionalismo moderno - principalmente depois da consolidação do


positivismo como paradigma científico no Direito - que a cultura jurídica moderna, pretendendo
emprestar ao Direito uma estrutura lógica de sistema de normas e conceitos, realiza a
substituição do estilo tópico pelo método dedutivo, em nome dos ideais de certeza e
racionalidade. No entanto, a idéia de um sistema jurídico, logicamente perfeito, é para este
autor algo impossível de se atingir. É que, desde a escolha dos princípios objetivos
fundamentais (axiomas) que irão constituir o topo do sistema de deduções, até propriamente a
tarefa das puras operações lógico-dedutivas, ocorrem influências ou infiltrações tópicas. Com
isso, ressalta que o sistema jurídico, isto é, o Direito efetivo - realidade normativa passível de
descrição científica, como quer Kelsen - é algo, de saída, impuro, contaminado pela
interpretação, que é um tipo de pensamento que deve, segundo Viehweg, mover-se dentro do
estilo da tópica. Parte daí para sustentar que a jurisprudência (ou o que chamamos de ciência
jurídica) é uma disciplina essencialmente problemática, sendo que suas partes integrantes
(conceitos e proposições) "têm de ficar ligados de um modo específico ao problema e só
podem ser compreendidos a partir dele."[15]

O problema último, ou a aporia fundamental, que se estabelece no raciocínio jurídico e que


atribui sentido aos conceitos é, segundo Viehweg, a aporia da justiça, levando-se em conta -
contra o jusnaturalismo - as condições históricas.[16] Esse raciocínio permite até, digamos, uma
compatibilização entre a tópica e a visão sistêmica. Não obstante, mantendo-se o foco nos
problemas, os sistemas jurídicos devem conservar uma textura aberta em torno da atualização
constante das questões relacionadas à realização da justiça. [17]

Viehweg reconhece a existência de sistemas jurídicos - assim mesmo, no plural - como


conjunto de tópicos elaborados como premissas mutáveis, permanecendo constante apenas a
pergunta fundamental em torno da justiça. Mais uma vez, permito-me citar o texto do próprio
autor tendo em vista o espaço sintético deste artigo e a necessidade de preservar ao máximo a
autenticidade de sua elaboração. Assim, conforme Viehweg:

"A estrutura total da jurisprudência, como dissemos mais acima (cf. I, 1), só pode ser
determinada a partir do problema. (...) Ao tomar posição de uma determinada maneira frente ao
problema fundamental (por exemplo, a autonomia privada parece justa), origina-se um conjunto
de questões que se pode determinar com bastante precisão e que baliza o âmbito de uma
disciplina especial, por exemplo, o do direito privado. Toda a organização de uma disciplina
jurídica se faz partindo do problema. Quando se diferenciam certas séries de questões do
modo indicado, agrupam-se ao redor delas as tentativas de resposta do respectivo direito
positivo. Naturalmente, estes quadros de questões não devem ser sobreestimados em sua
constância. Sua formação depende de alguns pressupostos de compreensão que não são
imutáveis. O único efetivamente permanente é a aporia fundamental. Porém, isto não impede
que, com frequência, uma situação de longa duração permita formular certos complexos de
perguntas permanentes. Em suas linhas fundamentais e em suas conexões, têm geralmente
um alto grau de fixidez, do mesmo modo que as soluções. Cabe à Sociologia do Direito a tarefa
de investigar com mais detalhe as relações que aqui existem, ainda que sem cair num
sociologismo todo-poderoso e unilateral."[18]

Na esteira desse raciocínio, certeira, me parece, é a análise de Perelman, para quem Kelsen e
sua teoria pura partem de uma pressuposto equivocado que é a cisão absoluta dos planos
de ser e dever-ser. Ora, fracassado o intento de purificar o objeto, a ciência jurídica deve, pois,
atuar no desenvolvimento de uma racionalidade prática, escapando da tentação relativista que
lhe impõe o positivismo, enquanto procura de critérios e mecanismos razoáveis de decisão. É
que uma conseqüência paradoxal desse relativismo na teoria pura é a equiparação da decisão
do juiz - autorizado pela normatividade a proferir, nos casos concretos, uma norma individual
(sentença) - à decisão do legislador, que também autorizado pela normatividade, cria regras
gerais. Ambos participam da dinâmica do Direito, havendo entre eles apenas uma diferença de
grau. Mas aí, Kelsen é forçado a reconhecer que não é possível para a ciência jurídica
estabelecer qualquer tipo de juízo preventivo acerca das decisões judiciais, pois o juiz assim
como o legislador cria direito novo, condicionados apenas formalmente por uma moldura
normativa.[19] E aqui o paradoxo: como sustentar a idéia de um sistema jurídico unitário e
escalonado de normas em que as decisões que realimentam esse sistema são assim
incontroláveis e, portanto, em probabilidade, contraditórias? Sabendo de antemão que, no
processo criativo (ou dinâmico, como prefere Kelsen) do Direito, a contaminação fático-
axiológica típica do procedimento hermenêutico resulta da relação constante entre autoridades
competentes e cientistas, parece mesmo vã a tentativa purificadora.

Segundo Menezes Cordeiro, diante da riqueza dos casos concretos, as posturas positivistas e
formalistas se mostram insuficientes. Expõem suas limitações diante das necessidades de
efetiva realização do Direito nas situações mais críticas, quais sejam: a proibição do non
liquet (o juiz é obrigado a decidir) diante das lacunas do ordenamento; a ocorrência cada vez
mais freqüente de conceitos indeterminados, ou normas em branco (urgência, relevância,
ordem pública, relevante valor social ou moral, etc.); as colisões de princípios fundamentais
(privacidade e direito à informação); e, finalmente, "o juspositivismo detém-se perante a
questão complexa, mas inevitável das normas injustas".[20]

Conclui o autor português, confirmando as conseqüências paradoxais da epistemologia


positivista, quando aplicada aos processos jurídicos concretos:

"(...) obrigado, pela proibição do non liquet a decidir, o julgador encontrará sempre uma
qualquer solução, mesmo havendo lacuna, conceito indeterminado, contradição de princípios,
ou injustiça grave. Munido, porém, de instrumentação meramente formal ou positiva, o julgador
terá de procurar, noutras latitudes, as bases da decisão. A experiência, a sensibilidade, certos
elementos extra-positivos e, no limite, o arbítrio do subjectivo, serão utilizados. Dos múltiplos
inconvenientes daqui emergentes, dois sobressaem: por um lado, a fundamentação que se
apresente será aparente: as verdadeiras razões da decisão, estranhas aos níveis juspositivos
da linguagem, não transparecem na decisão, inviabilizando o seu controlo; por outro, o
verdadeiro e último processo de realização do Direito escapa à Ciência dos juristas: a decisão
concreta é fruto, afinal, não da Ciência do Direito, mas de factores desconhecidos para ela,
comprometendo, com gravidade, a previsibilidade, a seriedade e a própria justiça de decisão." [21]

Mais uma vez, recorro ao texto dos autores aqui mencionados, para concluir, com Perelman
que:

"Se se adota o dualismo kelseniano, que é também o de Hägeström, deve-se


renunciar à ilusão da razão prática em todos os domínios, e não somente em
direito. (...) Mas então, pode-se falar seriamente em uma decisão razoável, de
um julgamento bem motivado, de uma escolha fundamentada, de uma
pretensão fundamentada? E se semelhantes asserções não forem mais do que
racionalizações destinadas a enganar os ingênuos, exprimiria toda a vida social
alguma coisa que não relações de força? E a filosofia prática serviria a outra
coisa senão para cobrir com um manto de respeitabilidade aquilo que os
interesses e paixões impõem pela coerção?
Parece-me que todos os paradoxos da teoria pura do direito, bem como todas
as suas implicações filosóficas, derivam de uma teoria do conhecimento que
não atribui valor senão a um saber incontroverso, inteiramente fundado nos
dados da experiência e na prova demonstrativa, negligenciando totalmente o
papel da argumentação. (...)
Mas, seria possível, à falta de prova demonstrativa, renunciar a justificar por uma
argumentação igualmente convincente e possível nossas escolhas e decisões, nossos valores
e normas? E seria preciso, na ambição de constituir uma ciência do direito e uma teoria pura do
direito, considerar como juridicamente arbitrário tudo o que só pode ser justificado mediante
semelhante argumentação?[22]

Essas ponderações questionadoras e problematizantes de Perelman conseguem colocar em


xeque os postulados kelseneanos, mas, como afirmei atrás, aqui foram expostos apenas
alguns pontos de partida para uma investigação epistemológica e seus necessários
desdobramentos. Impossível, portanto, seria a tentativa de concluir-se, decretando o total
esgotamento do legado de Kelsen para a ciência jurídica, e celebrar o advento de um novo
paradigma epistemológico marcado pelo que chamei de o viés hermenêutico. Ora, nem aquele
se esgotou, embora seja merecedor de muitas das críticas a si direcionadas, nem este se
instalou, enquanto nova matriz epistemológica da ciência jurídica. Ademais, convém ressalvar
que uma metodologia centrada na total autonomia e no voluntarismo dos intérpretes, ou, como
costumamos chamar, dos operadores do Direito - que não é o caso, é preciso dizer, nem da
tópica de Viehweg, que nos fala em catálogos de tópicos, orientados pela realização da justiça,
nem da lógica argumentativa de Perelman, que lembra a necessidade de desenvolverem-se
mecanismos e critérios racionais de justificação das decisões que vão compor o mundo jurídico
- perderia, assim, até suas pretensões de cientificidade, posto que não se submeteria a
nenhuma espécie de controle ou de verificação.

Não obstante, esse novo viés hermenêutico reúne, a meu ver, as potencialidades para a
reconstrução das bases epistemológicas da ciência jurídica, principalmente porque a partir dele
será possível trazer para a luz aquilo que o brilho da normatividade pura tinha ofuscado: os
dados da experiência histórica, analisados sociologicamente, relevantes para o jurista, na
medida em que resultem na formulação de finalidades éticas, que devam realizar-se
normativamente, no contexto de discursos de poder que, por sua vez, não se furtem a justificar
de forma racional suas decisões.

NOTAS
1. Machado Neto levantou razões de ordem histórico-sociológicas para explicar a atitude do
estrito formalismo de Kelsen: "Se o jusnaturalismo racionalista foi a expressão do mundo
burguês ascendente, o historicismo, a expressão da contra-revolução, o legalismo exegético e
o positivismo sociológico, as ideologias jurídicas do mundo burguês dominante, o relativismo da
teoria pura será o pensamento jurídico solidário com o período de transição e de decadência do
mundo burguês em que vivemos. (...) Fruto de um mundo em que os totalitarismos nascentes
conviviam com o liberalismo democrático mais franco e aberto, a teoria pura do direito devia - a
menos sob pena de ser anacrônica - reconhecer a existência de direitos de diverso conteúdo
político, devia ser uma teoria da ciência jurídica que reconhecesse a existência, ao lado do
direito democrático-liberal, de um direito soviético, um direito fascista, um direito nazista, etc.
MACHADO NETO, A. L. Introdução à Ciência do Direito. 1º V. São Paulo: Saraiva, 1960, p.
183.

2. Segundo Recasen Siches, "El punto de vista lógico-formal del método jurídico de Kelsen no
pretende llegar a la absorción de todos los estudios sobre el Derecho. El proprio Kelsen
reconoce que la posición rigorosamente normativa de su método jurídico, es unilateral y parcial,
y que, por lo tanto, no puede abarcar la totalidad de los ingredientes del fenómeno jurídico."
SICHES, Luis Recasens.Panorama del Pensamiento Jurídico en el Siglo XX. Mexico: Editoria
Porrua, 1963, pp. 149/150.

3. Sobre o conceito de norma fundamental, KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 5ª ed. Trad.
João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1996; para uma visão crítica, consultar o
meu Subjetividade Jurídica - A Titularidade de Direitos em Perspectiva Emancipatória.Porto
Alegre: Sergio Fabris, 1998, p. 58.

4. KELSEN, Hans. Op. Cit., p. 80.


5.Idem, ibidem, p. 82.

6.ALVES, Rubem. Filosofia da Ciência - Introdução ao Jogo e a Suas Regras. São Paulo:


Loyola, 2000, pp. 86, 87.

7.Segundo Kelsen as relações constituídas juridicamente, embora análogas (estabelecem uma


conexão funcional entre fatos), não caracterizam a relação causal de fatos do mundo natural. É
que no mundo da natureza - explica - um determinado fato será a causa de outro fato (efeito),
que por sua vez será causa de outro fato, numa cadeia interminável de causalidades, nos dois
sentidos. Coisa diversa ocorre com a imputação, na qual o número de elos da cadeia
imputativa se esgota na realização de cada qualificação normativa das condutas.

8.Segundo Recasens Siches: "La estructura lógica denominada imputación es el modo de


enlace típico de los hechos en la norma. Los elementos contenidos en la norma jurídica se
relacionan entre sí, no por el principio de causalidad, sino por el vínculo del deber ser. (...) La
pena es imputada al delito, y el delito a la persona castigada, porque la norma así lo establece.
Si a este enlace de dos o más elementos en la norma (establecido por el deber ser), lo
llamamos imputación, entonces ésta viene a constituir, en reino del sistema jurídico, el princípio
análogo a la causalidad en el reino de la naturaleza." SICHES, Luis Recasens. OP. Cit., p.155.

9.Kelsen, Hans, Op. Cit., p. 90

10.SARLO, Oscar Luis. Kelsen y Dworkin: Del Concepto a La Concepcion del Derecho in
Revista de Ciencias Sociales. Valparaiso, nº 38. Chile: Universidad de Valparaiso, Facultad de
Derecho y Ciencias Sociales, 1993, pp.364/365.

11.Segundo Perelman, "(...) com o advento do Estado-criminoso que foi o Estado nacional-
socialista, pareceu impossível, mesmo a positivistas declarados, tais como Gustav Radbruch,
continuar a defender a tese de que ’Lei é lei’, e que o juiz deve, em qualquer caso, conformar-
se a ela. Uma Lei injusta, dirá Radbruch, não pertence ao direito." PERELMAN, Chaïm. Lógica
Jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 95.

12.CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e Argumentação - Uma Contribuição


ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, pp. 131/132.

13.FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Prefácio in VIEHWEG, Theodore. Tópica e Jurisprudência.


Brasília: Ministério da Justiça e Universidade de Brasília (co-edição), 1979, p. 5.

14.VIEHWEG, T. Op. Cit., pp.39/40.

15.Idem, ibidem, p. 89.

16.Idem, ibidem. P. 90.

17.Entre nós, vale lembar, além da famosa teoria tridimensional do direito desenvolvida por
Miguel Reale, em perspectiva culturalista, foi Roberto Lyra Filho, hoje reconhecido como
patrono da teoria crítica no Brasil, quem desenvolveu o conceito de direito como "um processo
histórico de legítima organização social da liberdade", afirmando a necessidade de a ciência
jurídica, com o apoio da sociologia e da filosofia jurídicas, voltar-se também para a análise
histórica dos processos sociais em busca daqueles critérios de atualização dos padrões de
justiça (finalidades éticas) e de legitimidade (mecanismos razoáveis de decisão e de aplicação
do direito). Sobre o pensamento de Lyra Filho, consultar LYRA, Doreodó Araújo
(org.). Desordem e Processo - Estudos em Homenagem a Roberto Lyra Filho. Porto Alegre:
Sergio Fabris, 1986; SOUSA Jr., José Geraldo de. Para Uma Crítica da Eficácia do Direito.
Porto Alegre: Sergio Fabris, 1984; NOLETO, Mauro Almeida. Op. Cit.
18.VIEHWEG, Theodore. Op. Cit. pp.91/92.

19.KELSEN, Hans. Op. Cit., p. 99.

20.MENEZES CORDEIRO, A. Introdução in: CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento


Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. Lisboa: Calouste Gulbekian, 1989,
pp. XX-XXII.

21.Idem., Ibidem. pp. XXIII/XXIV.

22.PERELMAN, Chaïm. A Teoria Pura do Direito e a Argumentação. Tradução: Ricardo R. de


Almeida. http://www.puc-rio.br/sobrepuc/dpto/direito/pet_jur/c1perelm.html. 14/11/2000.

Leia mais: http://jus.com.br/artigos/2644/direito-e-ciencia-na-teoria-pura-do-direito-de-hans-
kelsen/3#ixzz3MOdOwgLC

http://pt.wikipedia.org/wiki/Teoria_pura_do_direito

Teoria pura do direito


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favor, adicione mais referências e insira-as corretamente no texto ou no rodapé. Material sem fontes poderá ser removido.
—Encontre fontes: Google (notícias, livros e acadêmico)

Teoria Pura do Direito (em alemão Reine Rechtslehre) é a obra mais famosa de Hans


Kelsen,filósofo e jurista austríaco, naturalizado estadunidense. Escrito em 1934, o livro se
insere nos cânones da escola juspositivista.
Nessa obra, Kelsen busca desenvolver uma teoria científica do direito, definindo a ciência
jurídica como campo de estudo cujo objeto são as normas jurídicas positivas. O autor
sustenta a necessidade de renunciar ao até então enraizado costume de defender ideais
políticos, de caráter subjetivo, em nome de uma ciência do direito supostamente objetiva.

Índice
  [esconder] 

 1 Pureza metodológica e objetivismo científico


 2 Objeto de estudo
 3 Separação entre ser e dever ser
 4 Legislação e costume
 5 Sanção e o direito como ordem social coativa
 6 Conceito de pessoa
 7 Fundamento de validade do sistema jurídico: a "norma fundamental"
 8 Interpretação jurídica
 9 Críticas à obra
 10 Referências
 11 Bibliografia

Pureza metodológica e objetivismo


científico[editar | editar código-fonte]
A Teoria Pura do Direito de Kelsen pretendia elevar o direito à altura de uma ciência
genuína, aproximando tanto quanto possível os seus resultados dos ideais de toda ciência:
objetividade e exatidão.
Em sua busca por uma descrição neutra e objetiva do fenômeno jurídico, o autor procura
desvencilhar o direito de todos os elementos que lhe são estranhos, pertencentes a outras
ciências como a psicologia, a sociologia, a ética e a teoria política. Sua pureza derivaria,
portanto, de seu postulado metodológico fundamental, qual seja, não fazer quaisquer
considerações que não sejam estritamente jurídicas, nem tomar nada como objeto de
estudo senão as normas jurídicas. Kelsen pretendia construir uma ciência jurídica objetiva
e clara, que se abstivesse de julgar segundo quaisquer critérios de justiça as normas que
buscava descrever e explicar.
É importante ressaltar que Kelsen não busca criar uma "teoria do direito puro", ou seja, ele
não nega a ligação existente entre o direito, a política, a sociologia e outros ramos das
ciências sociais, nem tenta eliminar essas relações. Ele simplesmente afirma que a ciência
jurídica é ciência autônoma, que não se confunde com política do direito e não deve,
portanto, se contaminar por ideologias políticas:
De um modo inteiramente acrítico, a jurisprudência tem-se confundido com a psicologia e a
sociologia, com a ética e a teoria política. Esta confusão pode porventura explicar-se pelo facto
de estas ciências se referirem a objectos que indubitavelmente têm uma estreita conexão com
o Direito. Quando a Teoria Pura empreende delimitar o conhecimento do Direito em face destas
disciplinas, fá-lo, não por ignorar ou, muito menos, por negar essa conexão, mas porque intenta
evitar um sincretismo metodológico que obscurece a essência da ciência jurídica e dilui os
limites que lhe são impostos pela natureza do seu objecto.
– Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito1

Objeto de estudo[editar | editar código-fonte]


A teoria kelseniana pressupõe uma identidade entre o direito e as normas jurídicas. Assim,
o objeto de estudo da ciência jurídica seriam as normas jurídicas. As condutas humanas,
por sua vez, só seriam objeto de estudo desta ciência na medida em que constituíssem o
conteúdo das normas jurídicas.
Na Teoria Pura do Direito, o estudo do direito divide-se, basicamente, em dois grandes
ramos:

 Teoria estática do direito: concentra-se sobre as normas em vigor, reguladoras


da conduta humana, e estuda a pessoa como sujeito jurídico, a capacidade jurídica, a
relação jurídica, o dever, a sanção, a responsabilidade, os direitos subjetivos e as
competências; e
 Teoria dinâmica do direito: concentra-se sobre as normas em vigor que
regulamentam o processo jurídico em que o direito é produzido e aplicado e estuda o
fundamento de validade da ordem normativa e a estrutura escalonada da ordem
jurídica(as relações hierárquicas entre as normas).
A Teoria Pura do Direito chegou a algumas conclusões amplamente aceitas na atualidade,
tais como a identidade entre Estado e direito, a redução da pessoa física à pessoa jurídica,
a redução do direito subjetivo a direito objetivo e da autorização ao dever e a negação do
caráter de direito internacional ao chamado direito internacional privado.

Separação entre ser e dever ser[editar | editar código-fonte]


A base da Teoria Pura do Direito é a distinção fundamental elaborada por Kelsen entre o
que ele denomina "ser" e "dever ser".
O âmbito do ser seria o mundo natural, explicado pelas ciências naturais com base nas
premissas de verdadeiro/falso. Este domínio obedeceria ao princípio da causalidade,
segundo o qual uma causa conduz a um efeito (quando A é, B é), sendo que o número de
elos de uma série causal seria ilimitado. As leis naturais predizem eventos futuros e podem
ser confirmadas ou não. Em não sendo aplicáveis, são falsas e devem ser substituídas.
Já o âmbito do dever ser diria respeito às normas, enquanto atos de vontade que se
dirigem intencionalmente a uma conduta considerada obrigatória tanto pelos indivíduos
que põe as regras quanto do ponto de vista de um terceiro interessado, e que vinculam
seus destinatários. O dever ser insere-se no domínio das ciências sociais e se explica não
com base nas premissas de verdadeiro/falso, mas de válido/inválido. Este domínio
obedeceria ao princípio da imputação (quando A é, B deve ser), sendo que o número de
elos de uma série imputativa é necessariamente limitado. As leis jurídicas prescrevem,
autorizam ou permitem condutas e admitem um certo grau de não aplicação, ou ineficácia,
que não conduz à sua anulação.
Segundo a Teoria Pura, a ciência jurídica não pretende com as proposições jurídicas por
ela formuladas mostrar a conexão causal, mas a conexão de imputação entre os
elementos de seu objeto.
A conduta humana (ser) só adquire uma significação jurídica quando coincide com uma
previsão normativa válida (dever ser). A conduta humana pode se conformar ou contrariar
uma norma e, dessa forma, pode ser avaliada como positiva ou negativa. Já as normas
são estabelecidas por atos de vontade humana e, por este motivo, os valores através
delas constituídos são arbitrários e relativos. Com efeito, outros atos de vontade humana
poderiam produzir outras normas, diversas das primeiras e, assim, constituir outros
valores. A separação entre "ser" e "dever ser" permite, assim, que a teoria jurídica
desenvolvida por Kelsen independa do conteúdo material das normas jurídicas.
A separação entre "ser" e "dever ser" não é, todavia, absoluta. Embora Kelsen chame
atenção para o fato de que a validade de uma norma, o dever de se conduzir da forma
como a norma determina, não pode ser confundida com a eficácia da norma, ou seja, com
o fato de que as pessoas efetivamente assim se conduzem, admite que uma ordem
coercitiva só pode ser considerada válida quando seja globalmente eficaz.
As normas jurídicas gerais criadas pela via legislativa são normas conscientemente
postas, ou seja, estatuídas. Já os atos que constituem o fato legislação são atos
produtores de normas, ou também chamados atos instituidores de normas, denotando um
sentido subjetivo de dever-ser. Assim, através da constituição, o sentido subjetivo é alçado
a uma significação objetiva, o que transforme o fato legislativo como fato produtor do
direito.

Legislação e costume[editar | editar código-fonte]


Kelsen admite que o escalão imediatamente seguinte ao da constituição constitui-se pelas
normas gerais criadas pela legislação ou pelo costume. Dessa forma, a constituição
também pode instituir como fato produtor de direito um determinado fato consuetudinário.
Para o autor, o fato consuetudinário caracteriza-se pela circunstância de os indivíduos
pertencentes à comunidade jurídica conduzirem-se por forma sempre idêntica sob certas e
determinadas circunstâncias, da conduta ser repetida por um período longo, resultando no
surgimento do costume, uma vontade coletiva de que valem os indivíduos para se
conduzirem.
No entanto, pela própria crítica que faz ao direito natural, nas ciências humanas não
podem ser erigidas normas que tenham como fundamento certa regularidade da conduta
do homem, já que esta regularidade não existe e mesmo que a resposta fosse positiva,
não é possível mensurá-la e avaliá-la de maneira objetiva2 . A regularidade somente ocorre
em um tempo preciso e em um local determinado, constituindo o costume de uma dada
sociedade. Porém, os costumes são muito variáveis no espaço e no tempo.
Contudo, vale ressaltar que mesmo sendo possível vislumbrar na conduta humana alguma
regularidade, desse fato do ser não poderia ser derivada uma norma, ou seja, um dever-
ser, já que o valor não é imanente à realidade. Deste modo, o sentido subjetivo do fato
consuetudinário somente pode ser pensado como norma jurídica válida se for inserido na
constituição como fato produtor de normas jurídicas. Esta concepção e caracterização do
costume decorre da noção de validade para Kelsen, que não está ligada a uma
conformidade com elementos de natureza ética ou metafísica, mas vincula-se a um
procedimento específico de produção de normas, significando obrigatoriedade 3 .
De acordo com a própria explicação de Kelsen, uma norma não somente pode, pois, ser
criada por um ato de vontade, dirigido conscientemente para a sua produção, como
também pelo costume, ou seja, pode ser produzida pelo fato de que seres humanos
costumam conduzir-se efetivamente de determinada maneira. 4 Assim, de uma forma ou de
outra, por ato de fixação ou pelo costume, a norma entra em validade. Validade é a
específica existência da norma, que precisa ser distinguida da existência de fatos naturais,
e especialmente da existência dos fatos pelos quais ela é produzida.
O direito consuetudinário apenas pode ser aplicado pelo órgãos aplicadores do direito
quando estes órgãos sejam considerados competentes para tal. No entanto, se o costume
qualifica não é instituído como fato produtor de direito em seu sentido positivo, é preciso
pressupor que a instituição do costume como fato produtor de direito já se operou na forma
fundamental como constituição em sentido lógico-jurídico. É necessário pressupor-se uma
norma fundamental que institua como fato produtor de direito não só o fato legislativo
como também o fato do costume qualificado.
A constituição de uma comunidade jurídica pode surgir pela forma consuetudinária, deste
modo, o costume é um fato produtor de direito, mas, esta pressuposição apenas pode ser
a norma fundamental, ou seja, a constituição em sentido lógico-formal. Nesse sentido, o
direito legislado e o direito consuetudinário revogam-se um ao outro.

Sanção e o direito como ordem social


coativa[editar | editar código-fonte]
A Teoria Pura do Direito rejeita que a justiça seja a característica distintiva do direito em
relação a outras ordens coercitivas em razão do caráter relativo do juízo de valor segundo
o qual uma ordem social pode ser considerada justa ou injusta. Para ela, o fato de o
conteúdo de uma ordem coercitiva eficaz ser julgado como injusto não é um fundamento
para não considerar como válida essa ordem coercitiva.
Diferentemente, a visão kelseniana acerca do direito elege o conceito de sanção como
central para a definição do fenômeno jurídico. Segundo o autor, o direito é uma ordem
normativa social, que regula a conduta humana em relação a outras pessoas e que pode
prescrever ou proibir condutas. A conduta oposta àquela normativamente prescrita
pressupõe uma sanção, uma punição para o agente que se comporta contrariamente aos
interesses da comunidade jurídica.
Como conseqüência de uma situação de fato considerada socialmente prejudicial, as
sanções devem ser executadas mesmo contra a vontade da pessoa atingida e, em caso
de resistência, mediante o emprego da força física. As sanções são, portanto, socialmente
organizadas. Há um monopólio da coação por parte da comunidade jurídica, que a
emprega de forma centralizada por meio de seus órgãos (tribunais e autoridades
executivas), o que termina por restringir a autodefesa.
Embora Kelsen identifique que o elemento "coação" é o que distingue o direito de toda e
qualquer outra ordem social, ele admite a existência de normas especiais, que não
preveem sanções - as normas derrogatórias de outras normas, as normas que conferem
competência (poder jurídico a um indivíduo para produzir novas normas) e as normas
interpretativas - mas que, de qualquer forma, estão ligadas às normas típicas que
prescrevem condutas e preveem sanções. O direito poderia ser, portanto, definido como
uma ordem social coativa e o Estado como uma ordem de coação centralizadora e limitada
no seu domínio territorial. Se uma ordem de coação é ilimitada no seu domínio territorial, e
dentro desse território, é de tal maneira eficaz que exclui toda e qualquer outra ordem de
coação, ela pode ser considerada uma ordem jurídica, e a comunidade que ela constitui,
um "Estado".
O autor concebe o ordenamento jurídico como um sistema jurídico que regula toda e
qualquer conduta humana seja de forma positiva, seja de forma negativa: "uma conduta
que não é juridicamente proibida é – neste sentido negativo – juridicamente permitida". 5

Conceito de pessoa[editar | editar código-fonte]


Segundo a Teoria de Kelsen as condutas individuais das pessoas só têm relevância
jurídica na medida em que interferem de alguma maneira com o sistema normativo, seja
ao produzir atos que se atribuem ao sistema jurídico (como o legislador, o juiz e o
administrador), seja ao se envolver em conflitos que serão submetido à apreciação deste
sistema.
Em termos jurídicos, a pessoa é considerada um sujeito de "imputação" de normas: suas
ações são consideradas válidas apenas na medida em que o sistema legal o permite. Em
última análise, o Estado e o direito é que criam a personalidade, assim entendida como a
capacidade jurídica das pessoas.

Fundamento de validade do sistema jurídico: a


"norma fundamental"[editar | editar código-fonte]
Kelsen concebe o ordenamento jurídico como um sistema hierárquico de normas em que a
validade de uma norma pode ser verificada em função da sua conformidade com uma
norma hierarquicamente superior. O sistema positivista não comporta o reconhecimento de
uma lei moral objetiva ou de uma lei natural como critério de validade da norma positiva,
nem indaga da justiça ou injustiça das leis. Se a norma está de acordo com a norma
superior hierárquica numa cadeia sucessória ou piramidal, ela é válida. Qualquer
referencial externo ao sistema jurídico é rejeitado.
A última norma desta estrutura hierárquica, no entanto, não pode ter sua validade
verificada em função de uma norma superior. Kelsen chama esta norma superior máxima
de "norma fundamental", a qual constitui o fundamento de validade de todo o sistema
jurídico:
Ordem é um sistema de normas cuja unidade é constituída pelo facto de todas elas terem o
mesmo fundamento de validade. E o fundamento de validade de uma norma é – como veremos
– uma norma fundamental da qual se retira a validade de todas as normas pertencentes a essa
ordem. Uma norma singular é uma norma jurídica enquanto pertence a uma determinada
ordem jurídica, e pertence a uma determinada ordem jurídica quando a sua validade se funda
na norma fundamental dessa ordem.
– Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito5
Esta norma deve ser pressuposta, e não extrai sua validade ou legitimidade senão
exclusivamente da força e do poder de império do Estado. No âmbito de uma teoria pura, a
justiça e a legitimidade desta norma mais alta não é discutida pelo autor, basta que ela
exista e se imponha para que exista um sistema jurídico.
A norma fundamental estabelece como as leis devem ser feitas e por quem. O Estado se
constitui assim em um sistema de normas estruturadas logicamente a partir de uma norma
superior, simplesmente imposta e garantida por um sistema eficaz de sanções.
Uma vez definido o Estado como fonte última e única do direito, nada pode dizer-lhe o que
deve proibir ou permitir, salvo sua própria definição normativa. Se um movimento
revolucionário derroga a forma de Estado vigente e impõe uma nova, na medida em que
esta consegue consolidar-se e reger no tempo, essa seria a definição normativa vigente, o
novo direito.

Interpretação jurídica[editar | editar código-fonte]


A Teoria Pura do Direito fornece, também, uma teoria da interpretação jurídica. Sustenta,
basicamente que existem duas espécies de interpretação: a interpretação do direito pelo
órgão que o aplica e a interpretação do direito pelo jurista.
Conforme sustenta a teoria pura, uma norma de escalão superior regula o ato pelo qual
uma norma de escalão inferior deve ser produzida e aplicada pelos tribunais. Essa
determinação, no entanto, nunca é completa, de modo que resta, sempre, uma margem de
livre apreciação para o aplicador da lei. Assim, a norma do escalão superior tem sempre o
caráter de uma moldura, a ser preenchida por este ato de produção ou execução
normativa.
Esta indeterminação pode ser intencional ou não, por exemplo, quando o sentido verbal da
norma não é unívoco, ou quando o texto discrepa da vontade da autoridade legislativa
segundo o aplicador, ou ainda quando duas normas que pretendem valer simultaneamente
se contradizem.
De todo modo, Kelsen visualiza o direito a ser aplicado aos casos concretos como uma
moldura, dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, todas elas igualmente
corretas do ponto de vista jurídico. A interpretação de uma lei não deve necessariamente
conduzir a uma solução única como sendo a solução correta, mas a várias soluções que
têm igual valor, embora apenas uma delas se torne, efetivamente, direito positivo no ato da
aplicação da norma pelo juiz. Assim, dizer que uma sentença é fundada na lei significa
apenas que a sentença positivou uma das normas individuais que poderiam ser
produzidas dentro da moldura geral fixada pela lei.
O autor defende que a teoria usual da interpretação parte do pressuposto equivocado de
que o órgão aplicador do direito apenas põe em ação o seu entendimento, a sua razão,
para chegar à única resposta correta e justa, quando na verdade, ele utiliza a sua vontade
para escolher entre as possibilidades. A questão de saber, entre as possibilidades de
interpretação, qual seria a correta, é um problema de política do direito e não de teoria do
direito, já que a produção do ato jurídico dentro da moldura da norma é livre e produz
direito. A sentença judicial seria, assim, um ato de produção normativa que dá
continuidade à normatização efetuada pelo legislador.
Já o papel do jurista ao interpretar o direito não seria outro senão o de estabelecer as
possíveis significações de uma norma jurídica, sem tomar qualquer decisão entre as
possibilidades. A decisão deve ser deixada ao órgão que, segundo a ordem jurídica, tem a
competência para aplicar o direito. A noção de uma interpretação correta é, assim,
considerada uma ficção de que se servem os juristas para consolidar o ideal de segurança
jurídica, mas não uma verdade científica, apenas um juízo de valor.

Críticas à obra[editar | editar código-fonte]


A Teoria Pura do Direito revolucionou o estudo do direito, e seu autor foi considerado um
dos maiores juristas do século XX. Não obstante, sua teoria é alvo de severas críticas que
apontam, em geral, para seu formalismo excessivo e consideram equivocada a tentativa
de desvincular o estudo do direito da sociologia e da moral.
No prefácio à primeira edição da Teoria Pura do Direito, de 1934, o autor afirmando que
sua teoria teria provocado forte oposição, "oposição feita com uma paixão quase sem
exemplo na história da ciência jurídica". 6 Para Kelsen, o principal motivo de tamanho
combate à Teoria Pura do Direito não tem origem em motivações científicas, mas em
motivações políticas, já que a desvinculação entre direito e política postulada pelo autor
teria como consequência uma limitação da influência dos juristas na política. Com efeito,
na visão de seu formulador a ideia de uma teoria pura do direito não comporta ideias
políticas e torna impossível afirmar como ciência uma escolha política.
Kelsen critica seus opositores de construir uma falsa imagem da sua teoria pura, sem
reconhecer a sua verdadeira essência, para criticá-la:
É destituída de qualquer conteúdo, é um jogo vazio de conceitos ocos, dizem com desprezo
uns; o seu conteúdo significa, pelas suas tendências subversivas, um perigo sério para o
Estado constituído e para o seu Direito, avisam outros. Como se mantém completamente alheia
a toda política, a Teoria Pura do Direito afasta-se da vida real e, por isso, fica sem qualquer
valor científico. É esta uma das objeções mais frequentemente levantadas contra ela. Porém,
ouve-se também com não menos freqüência: a Teoria Pura do Direito não tem de forma
alguma a possibilidade de dar satisfação ao seu postulado metodológico fundamental e é
mesmo tão-só a expressão de uma determinada atitude política. Mas qual das afirmações é
verdadeira? Os fascistas declaram-na liberalismo democrático, os democratas liberais ou os
sociais-democratas consideram-na um posto avançado do fascismo. Do lado comunista é
desclassificada como ideologia de um estatismo capitalista, do lado capitalista-nacionalista é
desqualificada, já como bolchevismo crasso, já como anarquismo velado. O seu espírito é –
asseguram muitos – aparentado com o da escolástica católica; ao passo que outros crêem
reconhecer nela as características distintivas de uma teoria protestante do Estado e do Direito.
E não falta também quem a pretenda estigmatizar com a marca de ateísta. Em suma, não há
qualquer orientação política de que a Teoria Pura do Direito não tenha ainda se tornado
suspeita. Mas isso precisamente demonstra, melhor do que ela própria poderia fazer, a sua
pureza.
– Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito7
O positivismo jurídico, escola de pensamento jurídico de que a obra de Hans Kelsen é
precursora, é criticado por diversas correntes da teoria do direito como o jusnaturalismo,
que defende a existência de um direito natural paralelo ao direito posto, e o moralismo,
que defende que direito e moral não podem ser dissociados.
Uma das mais frequentes críticas à teoria kelseniana questiona se o Estado antecede o
direito ou o contrário. Nessa linha, Gustav Radbruch, professor da Universidade de
Heidelberg, sustenta que se o Estado tem o poder de determinar o que é justo e o que não
é, com base apenas na vontade do legislador, qualquer agressão aos direitos humanos
ficaria inteiramente justificada, já que prevista no ordenamento jurídico. Assim, o direito
positivo se tornaria mera expressão da vontade do poder, isto é, da força social dominante.
O autor critica o formalismo da teoria de Kelsen, que deixa de lado a discussão sobre o
conteúdo da norma e a questão da sua eventual justiça ou injustiça. Afirma que "há leis
que não são direitos e há um direito acima das leis" e, ainda, que "quando nem sequer se
aspira a realizar a justiça, quando na formulação do direito positivo se deixa de lado
conscientemente a igualdade, que constitui o núcleo da justiça, então não estamos diante
de uma lei que estabelece um ‘direito defeituoso’, mas o que ocorre é que estamos diante
de um caso de ausência de Direito."8
Segundo Radbruch, foi a visão exclusivamente positivo-formalista do direito que permitiu a
ascensão do nazismo na Alemanha e as suas conseqüências. Após a Segunda Guerra
Mundial em Cinco Minutos de Filosofia do Direito, publicado em 12 de setembro de 1945,
em forma de circular dirigida aos estudantes da Universidade de Heidelberg diz: "Esta
concepção da lei e sua validade, que chamamos Positivismo, foi a que deixou sem defesa
o povo e os juristas contra as leis mais arbitrárias, mais cruéis e mais criminosas. Torna
equivalentes, em última análise, o direito e a força, levando a crer que só onde estiver a
segunda estará o primeiro".9
A ideia de que a visão formalista sobre a validade e a interpretação do direito permitiria
legitimar qualquer vontade política ganhou força após o fim do regime nazista, com o
término da segunda guerra mundial, quando a maioria dos juristas alemães estava à
procura de uma teoria do direito que condenasse a recente barbárie e evitasse a sua
repetição. Trata-se, no entanto, conforme sustenta Dimitri Dimoulis, de um mito que
merece ser destruído, já que existe uma clara diferença entre a abordagem do positivismo
jurídico e a prática dos regimes ditatoriais do século XX, os quais pregavam a
reinterpretação do direito com referência a valores nacionalistas e racistas enquanto
rejeitavam frontalmente a visão positivista de segurança e formalidades jurídicas.
Para Dimoulis, quem critica o positivismo porque adota uma postura neutra, atribuindo a
qualidade de "direito" a qualquer sistema de normas, sejam elas justas ou injustas,
confunde os requisitos de validade da norma e os requisitos de validade do sistema. Os
positivistas afirmam que qualquer norma pode vigorar desde que satisfaça os requisitos de
validade estabelecidos pelo sistema. O sistema, por sua vez, deve ser socialmente eficaz,
ou seja, respeitado pela população de maneira geral. Assim, se o direito nazista vigorou,
não foi porque os positivistas constataram tal fato, mas porque a população alemã aderiu
às previsões do direito nazista.

Referências

1. Ir para cima↑ Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito. Coimbra: Arménio Amado, 1979. p.


17.
2. Ir para cima↑ Matos, Anditytas Soares de Moura Costa. Filosofia do Direito e Justiça na
obra de Hans Kelsen - 2. ed / Andiyas Soares de Moura Costa Matos - Belo Horizonte:
Del Rey, 2006. p. 204.
3. Ir para cima↑ Barzotto, Luís Fernando. O positivismo jurídico contemporâneo; uma
introdução a Kelsen, Ross e Hart / Luís Fernando Barzotto - São Leopoldo: UNISINOS,
1999. p. 39.
4. Ir para cima↑ Kelsen, Hans. Teoria geral das normas. Tradução de José Florentino
Duarte, Porto Alegre, Fabris, 1986. pp. 3 e 4.
5. ↑ Ir para:a b Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito. Coimbra: Arménio Amado, 1979. p. 71.
6. Ir para cima↑ Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito. Coimbra: Arménio Amado, 1979. p.
8.
7. Ir para cima↑ Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito. Coimbra: Arménio Amado, 1979. p.
9-10.
8. Ir para cima↑ Leyes que no son derecho y derecho por encima de las leyes, in:
'Derecho injusto y derecho nulo, Aguilar, Madrid, 1971.
9. Ir para cima↑ Versão em português no Apêndice II, da tradução feita por Cabral de
Moncada, de sua Filosofia do Direito - Armênio Amado, Editor, Sucessor Coimbra,
1974, 5a. edição, pp. 415 - 418.

Bibliografia[editar | editar código-fonte]

 DIMOULIS, Dimitri. Positivismo Jurídico. São Paulo: Método, 2006.


 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Coimbra: Arménio Amado, 1979.
 MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Filosofia do Direito e Justiça na Obra
de Hans Kelsen. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
 MATOS, Andityas Soares de Moura Costa; SANTOS Neto, Arnaldo Bastos
(orgs.). Contra o Absoluto - Perspectivas Críticas, Políticas e Filosóficas da Obra de
Hans Kelsen. Curitiba: Juruá, 2011.
 RADBRUCH, Gustav. Arbitrariedad Legal y Derecho Supralegal. Buenos Aires:
Abeledo-Perrot, 1962.
 SGARBI, Adrian. Hans Kelsen (Ensaios Introdutórios). Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2006.

O Direito e a ciência no pensamento de Hans Kelsen


Nicole da Silva Paulitsch

 
 

Resumo: O presente trabalho objetiva uma análise epistemológica do terceiro capítulo da obra Teoria
Pura do Direito, Direito e ciência, do jurista austríaco Hans Kelsen. Através da uma breve exposição dos
principais aspectos bibliográficos e das ideias centrais do autor, fazendo referência às suas
características e contribuições ao Direito. Descreve, ainda, o centro de interesse da Teoria Pura, qual
seja a tentativa de conferir à ciência jurídica um método e um objeto próprios, depurando-os de
quaisquer influências da ideologia política e dos elementos da ciência natural. Ao final, expõe e arrazoa
algumas das objeções designadas à concepção de ciência subjacente ao pensamento kelseniano.

Palavras-chave: Teoria pura do direito. Normativismo. Direito e ciência. Hans Kelsen.

Abstract: This work aims to an epistemological analysis of the third chapter of the work of pure Theory
of law, Law and Science, wrote by austrian jurist Hans Kelsen. Through a brief exposure of main
bibliographic aspects and core ideas of the author, referring to their characteristics and contributions to
the law. Describes the Centre of interest of Pure Theory, which is attempting to give the legal science a
method and an object themselves, debugging them any influences from political ideology and the
elements of natural science. In the end, exposes and some of the reasons from a foundation designated
objections to the design of the underlying science kelseniano thinking.

Key-words: Pure theory of Law. Normativism. Law and science. Hans Kelsen.

INTRODUÇÃO

O jurista e filósofo austríaco Hans Kelsen, considerado um dos maiores pensadores do século XX, deixou
um vasto legado teórico-literário, do qual se destaca sua obra Teoria Pura do Direito. A importância
desta obra se dá, especialmente, pelo rompimento com os ditames da filosofia jurídica tradicional da
época, a qual, segundo Kelsen, era contaminada com a ideologia política de todos os elementos da
ciência natural. Pretendia o autor, assim, desenvolver uma teoria jurídica pura, ou seja, consciente da
legalidade específica do seu objeto[1].

Neste aspecto, o objetivo do presente trabalho é empreender uma incursão ao pensamento de Kelsen,
em especial na análise da relação entabulada entre ciência e direito proposta pelo autor no capítulo
terceiro de sua obra magna – a Teoria Pura do Direito, considerando sua atuação no paradigma
normativista, apresentando suas diretrizes basilares, bem como uma análise das suas limitações, por
meio de um arrazoado das críticas mais pertinentes recebidas.  

Para tanto, antes de se passar à análise da obra referida, notadamente no referido capítulo acerca
do Direito e Ciência, a primeira parte do presente artigo destina-se a descrever breves linhas sobre a
biografia do autor, a qual se justifica pelo auxilio na compreensão de muitas de suas escolhas
metodológicas.

Após, em uma segunda etapa, procura apresentar uma exposição das principais idéias contidas nos
prefácios à primeira e segunda edições, assim como daquelas inseridas no capítulo fulcral do presente
estudo, qual seja o terceiro capítulo de Teoria Pura do Direito – Direito e Ciência. Tendo em conta a
extensão e a importância da obra em apreço, o recorte temático faz com que o objetivo do presente
artigo não assuma a pretensão de esgotar todos os aspectos do pensamento teórico constantes na obra,
mas tão-somente aqueles arrolados no capítulo terceiro, que aborda a relação entre direito e ciência.

Ao final, a terceira parte trata da análise às objeções suscitadas pela doutrina no que pertine à
formulação de Kelsen na determinação de objeto e métodos próprios ao Direito, livre de toda e
qualquer influência da ideologia política e dos elementos da ciência natural, além do normativismo
proposto pelo filósofo austríaco, através de um viés hermenêutico.

1 HANS KELSEN: BREVE PERSPECTIVA BIOGRÁFICA


Hans Kelsen nasceu na cidade de Praga em 11 de outubro de 1881. Graduou-se na Faculdade de Direito
na Universidade de Viena, instituição em que iniciou sua carreira lecionando a partir de 1911 até 1930.
Convocado em 1917, serviu como assessor jurídico no Ministério da Guerra, o que lhe permitiu colaborar
na redação da nova Constituição Republicana. Atuou, ainda, como juiz da Corte Constitucional da
Áustria no período compreendido entre os anos de 1921 a 1930. Após, mudou-se para Colônia, onde
permaneceu até ser expulso pelo governo nacional-socialista da Alemanha em 1933, ocasião em que se
dirigiu para Genebra e, doravante, para Praga, no lapso temporal de 1933 a 1940. Neste mesmo ano,
transferiu-se para os Estados Unidos da América, onde lecionou junto às Universidades de Harvard e
Berkeley, até sua aposentadoria em 1952. Faleceu em 19 de abril de 1973[2].

Importa salientar que, no período em que Hans Kelsen lecionou junto à Universidade de Viena, esteve
em contato o neopositivismo do chamado “Círculo intelectual de Viena”, os quais exerceram – assim
como Kant – grande influência sobre a obra de Kelsen. A Escola de Viena era caracterizada pela busca da
metodologia perfeita, conforme descreve Schwartz:

“[...] os integrantes do Círculo de Viena acreditavam que as palavras da lei deviam fazer valer as
regras semânticas, isto é, não há na lei letra a mais do que o necessário, pois toda letra de um diploma
legal possui um significado, e, por este motivo, encontra-se em seu corpo. A lei não pode ressentir-se
de vício algum, quanto mais em sua linguagem. Para o Círculo de Viena, a crise da ciência residia no
problema da linguagem. Assim, a descoberta de uma linguagem neutra, capaz de traduzir
perfeitamente o pensamento vigente, resolveria o problema do conhecimento.”[3]

A propósito, pode-se verificar a extensão de tal influência desde as premissas neokantianas, como na
formulação do princípio de pureza, da possibilidade de interlocução do Direito com outras áreas, a
matriz positivista, na rejeição do transcendentalismo e também na noção de escalonado do
ordenamento jurídico no positivismo jurídico kelseniano. 

No entanto, adverte Reale acerca do alcance desta influência do Círculo de Viena sobre Kelsen,
referindo que:   

“Há duas Escolas de Viena: — uma, a dos neopositivistas, no campo da Filosofia científica; e outra, a de
Kelsen, nos domínios do Direito. Já temos visto, muitas vezes, confusões sobre este ponto, embora se
deva reconhecer que, em certas conseqüências, as duas correntes apresentam, máxime nos últimos
anos, crescentes pontos de contato, assemelhando-se por sua tendência antimetafísica e pelo
empirismo radical.”[4]

No que pertine à obra teórica-literária, verifica-se que Kelsen publicou seu primeiro livro em 1911,
intituladoProblemas capitais da teoria do direito estatal (no original, Hauptprobleme der
Staatsrechsiehre entwickelt aus der Lehre vom Rechtssatze). Com esta obra, sua carreira como teórico
legal começou a ter expressão no meio acadêmico, sendo possível encontrar neste trabalho algumas das
bases da sua teoria pura do direito, as quais seriam aprofundadas em sua obra magna: Teoria Pura do
Direito.

Destarte, tem-se que a obra de maior denodo de Kelsen consiste na já mencionada Teoria Pura do
Direito, uma espécie de condensação de todos os estudos do autor acerca do direito, contando com
quatro edições fundamentais – ou, como insinuam alguns críticos de Kelsen, quatro versões da mesma
obra. Sua primeira edição, intitulada “Reine Rechtslehre” foi publicada em 1934, na cidade de Viena.
Por sua vez, a segunda foi editada pela Universidade de Harvard em 1945, com o nome “General Theory
of Law and State”, e a terceira foi a edição francesa, publicada na Suíça, em 1953, chamada
“Théorie Pure du Droit”. A quarta e definitiva edição foi a chamada segunda edição alemã de “Reine
Rechtslehre”, publicada em 1961, e, assim como a primeira, restou editada na cidade de Viena[5].

Oportuno referir, neste aspecto, que a edição alemã 1961 registra um maior aprofundamento
substancial em diversos pontos e um refinamento nas noções básicas de sua teoria pura, inclusive
chegando a modificar alguns de seus posicionamentos inicialmente sustentados quando da edição de
1934.     

Logo, considerando a importância e o caráter compilador intrínsecos de Teoria Pura do Direito, em


especial a abordagem desempenhada pelo autor acerca da relação entre o direito e a ciência, tem-se
que justificado o estudo ora empreendido, o qual possui por objeto o exame e apreciação crítica desta
relação entabulada entre o direito e a ciência.

2 TEORIA PURA DO DIREITO: ASPECTOS INTRODUTÓRIOS


O mote inicial de Teoria Pura do Direito, enquanto marco teórico, se situa quando Hans Kelsen
enfaticamente eleva o Direito a uma categoria científica autônoma. Para tanto, apõe uma depuração do
objeto da ciência jurídica, em especial de toda ideologia política, moral e dos elementos de ciência
natural, ou seja, uma teoria jurídica pura pautada na neutralidade científica. Assim, alicerça sua
proposição nos ideais de objetividade e especificidade, levados a termo pelo autor através da definição
das normas jurídicas como objeto da ciência jurídica, sublinhando, ainda, se tratar de ciência jurídica e
não política do Direito[6].

Oportuno ressaltar, neste aspecto, que esta pureza sugerida por Kelsen não se cinge ao objeto do
estudo, mas igualmente enquanto método, conforme anota Moreira:

“Metodologicamente Kelsen é detalhista, minucioso, repetitivo, extraordinariamente lógico. Foi um


defensor da neutralidade científica aplicada à ciência jurídica. Sempre insistiu na separação entre o
ponto de vista moral e político. A ciência do Direito não caberia fazer  julgamentos morais nem
avaliações políticas sobre o direito vigente. Com o objetivo de discutir e propor os princípios e métodos
à teoria jurídica - até então inexistentes -  aliado à necessidade de dar ao Direito uma autonomia
científica própria, capaz de superar as confusões metodológicas da livre interpretação do direito, uma
tendência à um retorno aos parâmetros do direito natural ou mesmo a aplicação de critérios de livre
valoração, Kelsen propõe o que denominou princípio da pureza.

O princípio da pureza aplica-se portanto tanto ao método como ao objeto do estudo, ou seja é instituto
instrumental e delimitador da ciência jurídica, significando que  a premissa básica desta é o enfoque
normativo. O direito para o jurista deveria ser encarado como norma (e não como fato social ou
como valor transcendental [7].”

Corrobora com a tese aludida, a própria manifestação de Kelsen no prefácio à primeira edição, quando
afirma ser seu objetivo formular uma teoria pura do direito, i.e., purificada de toda ideologia política e
dos elementos de ciência natural, consciente da legalidade específica do seu objeto[8].

Esclarece, ainda, que sua luta se trata, de fato, pela relação entre ciência jurídica e a política, pela
rigorosa separação entre elas, pela renúncia ao costume de, invocando-se a égide da ciência do Direito
e, apelando a uma suposta objetividade, advogar postulados políticos de caráter deveras subjetivo[9].

E isso implica a diferenciação entre a Teoria Pura do Direito e a ciência jurídica tradicional, a qual com
muita propriedade elucida Wolkmer, afirmando que:

“Nisso resulta a diferença entre a Teoria Pura do Direito e a ciência jurídica tradicional, que,
consciente ou inconscientemente, ora em maior ora em menor grau, tem um caráter ‘ideológico’. [...] 
Precisamente, através desta sua tendência antiideológica revela-se a teoria pura do direito como
verdadeira ciência do Direito. Com efeito, a ciência tem, como conhecimento, a intenção imanente de
desvendar seu objeto. A ‘ideologia’, porém, encobre a realidade enquanto [...] a desfigura.” [10]

Note-se, portanto, que a importância da teoria pura do direito formulada por Kelsen consiste
justamente no rompimento com os paradigmas até então adotados no período, o jusnaturalismo, assim
como o realismo jurídico, através do estabelecimento de uma ciência jurídica autônoma e neutra de
quaisquer influências político, morais, sociais e de outras ciências. Na mesma medida, o autor sugere
uma ciência do direito alicerçada em proposições normativas que descrevem sistematicamente o
direito, ou seja, nas palavras de Rocha, “propõe uma ciência do direito como uma metalinguagem
distinta de seu objeto”[11].

Sem embargo, afere-se que este ideal de ciência pura restou delineado no capítulo terceiro de Teoria
pura do direito, possuindo como uma de suas diretrizes epistemológicas fundamentais o dualismo
kantiano, entre ser e dever ser, no qual os juízos de realidade e juízos de valor restam contrapostos.
Seguindo a orientação neo-kantiana, Kelsen elegeu a edificação de um sistema jurídico centrado
exclusivamente no mundo do dever ser. No entanto, tal escolha, conforme assinala Rocha, “acarretou a
superestimação dos aspectos lógicos constitutivos da teoria pura, em detrimento dos suportes fáticos do
conhecimento”[12].

2.1 O direito e a ciência apresentados na Teoria pura do direito

Na presente seção serão apontadas, brevemente, as principais idéias de Kelsen acerca do Direito e a
ciência, as quais foram articuladas no terceiro capítulo de sua obra magna, de igual nomenclatura –
Direito e ciência. 
O autor inicia o supramencionado capítulo esclarecendo que o objeto da ciência jurídica cinge-se nas
normas jurídicas, sendo a conduta humana apenas quando configurar conteúdo da norma jurídica. Isso
porque, em suas palavras, afirma que:

“A ciência jurídica procura apreender o seu objeto. ‘juridicamente’, isto é, do ponto de vista do
Direito. Apreender algo juridicamente não pode, porém, significar senão apreender algo como Direito,
o que quer dizer: como norma jurídica ou conteúdo de uma norma jurídica, como determinado através
de uma norma jurídica.”[13]

No que concerne à conduta humana, observa o pensador austríaco, enfatizando que esta apenas o será
objeto da ciência jurídica quando configurar o próprio conteúdo da norma jurídica seja enquanto
pressuposto ou consequência, representando assim uma interpretação normativa destes fatos de
conduta.

Logo, para compreender a teoria do ordenamento jurídico proposta por Hans Kelsen, necessária se faz
traçar a distinção entre norma jurídica (Rechtsnorm) e proposição jurídica (Rechtssatz).

Com efeito, tem-se que as normas jurídicas não são juízos, nem tampouco traduzem, diretamente,
nenhum comando ou imperativo. Isso porque, a norma é logicamente indicativa e de estrutura
hipotética, uma vez que se limita a ligar um fato condicionante a uma conseqüência – a sanção –, sem
enunciar qualquer juízo a respeito do valor moral ou político dessa conexão. Assim, se a lei natural
discorrer que: se A é, B tem de ser; a lei jurídica, por seu turno, irá declarar: se A é, B deve ser, sendo
que a ligação "deve ser" significa uma forma de conexão inequívoca com a do nexo entre causa efeito.

Note-se que o sentido deste ato é diverso do sentido da proposição jurídica,  juízo hipotético, descreve
as relações constituídas, através das normas jurídicas, entre os fatos por elas determinados, ou seja,
descreve o Direito. Importa, ainda, trazer à baila, que a forma de exteriorização do enunciado,
entretanto, não é essencial; o que importa, realmente, é o seu sentido. A norma jurídica, editada pela
autoridade, tem caráter prescritivo e se configura em manifestação de um ato de vontade, enquanto a
proposição jurídica, emanada da doutrina, tem natureza descritiva e decorre de ato de conhecimento.

A função significativa de uma norma jurídica, portanto, não é enunciar, porém prescrever determinado
comportamento humano, i.e., impor um dever[14].

Mister destacar, ainda, a observação de que Kelsen situa as normas jurídicas no plano da validade,
atraindo para estas a aplicação dos princípios lógicos, em especial o princípio da não contradição e as
regras da concludência do raciocínio. Isso se dá, uma vez que tais princípios são aplicáveis unicamente a
proposição cujo resultado seja falso ou verdadeiro – e as proposições da ciência jurídica enquanto
prescrições são válidas ou inválidas.

Daí, possível compreender a crítica do pensador austríaco às proposições de uma teoria metafísica do
direito e sua observação de que, limitada às descrições normativas, à ciência jurídica não cabe
investigar a eficácia da norma, mas tão somente se pronunciar acerca de sua validade formal, ou se
possui vigência. Isso porque, ao discorrer se determinada norma é ou não vivenciada como regra social,
estaria emitindo juízos referentes à ordem do ser, juízos sobre a realidade, o que fere seu propósito de
pureza[15].

2.1.1 Causalidade e imputação

A concepção normativista e seu ideal de pureza formulados por Kelsen tem como uma de suas bases a
diferenciação entre lei da natureza e norma jurídica. Isso porque, no mundo do ser (Sein), na natureza
os sistemas de elementos estão interligados entre como causa e efeito, isto é, pelo princípio da
causalidade, que prescreve que “quando é A, B também é (ou será)”. A relação entre pressuposto e
conseqüência está expressa na lei natural, não é produzida[16].

Nesta perspectiva, cumpre-se destacar a lição de Rocha, o qual traz à baila, com muita propriedade,
esta dicotomia fundamental entre ser e dever ser no pensamento de Hans Kelsen, in verbis:

“A TPD (Teoria Pura do Direito) tem, como uma de suas diretrizes basilares, o dualismo metodológico
Kantiano, entre ser/dever ser. [...] Como sabemos, entre os juízos de realidade e os juízos de valor,
Kelsen, fiel à tradição relativista do neo-Kantismo, de Marburgo, optou pela construção de um sistema
jurídico centrado unicamente no mundo do dever ser. Tal ênfase, acarretou a superestimação dos
aspectos lógicos constitutivos nas análises Kelsenianas, em detrimento dos suportes fáticos do
conhecimento.”[17]  

A conduta humana se situa no mundo do dever ser (Sollen), devendo ser entendida como ordem
normativa da conduta dos homens entre si, estando sob a égide do princípio da imputação, em virtude
da qual se atribui uma conseqüência em razão da prática de determinado ato. O esquema estrutural das
normas jurídicas e morais, constituindo-se numa proposição, é diverso daquele das leis físico-naturais,
na medida em que, como afirma Kelsen[18], “quando é A, B deve ser”, inclusive por força do princípio
da imputação. Sua relação de pressuposto e consequência se dá por meio de uma norma posta pelos
homens, porém independente de toda a intervenção desta espécie, ou seja, com interferência e
definição a partir da vontade e liberdade humanas.

Com efeito, verifica-se que a norma jurídica não preceitua um juízo de valor, todavia apenas comina
uma sanção ou conseqüência no caso de se preferir conduta contrária à juridicamente devida. Como
adverte Reale, o “fazer é algo que não pertence ao campo estritamente jurídico: — quando um homem
pratica certo ato, age por motivos que não são jurídicos.”[19].

Para Kelsen, a norma jurídica possui uma estrutura lógica com a forma do dever ser lógico, consistente
na imputação de uma conseqüência a um suposto fato. Nessa perspectiva, constata-se que o autor apoia
sua teoria no denominado princípio da imputação. Tendo por base a liberdade, que existe dentro da
sociedade e essencial para as relações humanas, tornando-se requisito indispensável da imputação, o
princípio da imputação caracteriza-se como uma relação normativa ou de imputação, cujos elos desta
série imputativa são limitados.

Gize-se que a sobredita liberdade se refere ao homem, como personalidade jurídica ou moral, livre e,
portanto, responsável. A imputação encontra seu ponto terminal na conduta do homem, interpretada
como ato meritório, como pecado ou ilícito. Segundo Kelsen, “sua vontade é causa de efeitos, mas não
é ela mesma o efeito das causas.”[20], concluindo o autor que não se imputa algo ao homem porque ele
é livre; mas ao contrário, o homem é livre porque se lhe imputa algo.

De outra banda, o princípio da causalidade está atrelado a uma relação causal, cuja base se fulcra
nanecessidade. A cadeia de causa e efeito é interminável, pois na natureza toda causa pressupõe como
efeito uma outra causa; e todo efeito deve ser considerado como causa de um outro efeito concreto.
Note-se que o homem enquanto parte da natureza não é livre, ou seja, sua conduta, considerada como
fato natural, é por força de uma lei da natureza, causada por outros fatos.

Por conseguinte, um indivíduo será moral ou juridicamente responsável por um evento quando
provocado pelo seu ato de vontade ou pela omissão de um ato de vontade que evitaria tal evento,
estando a imputação e a liberdade ligadas essencialmente entre si. O homem é livre porque esta sua
conduta determina à imputação, ainda que seja casualmente determinada. Por isso, não há que se falar
em contradição entre causalidade da ordem natural e a liberdade sob a ordem moral ou jurídica, tendo
em conta que a primeira é uma ordem do ser e as outras são ordens do dever ser, e apenas podem haver
contradições no que pertine um ser e um ser, ou entre um dever ser e um dever ser, enquanto objeto de
asserções ou enunciados[21].

2.1.2 A negação do dever ser e o Direito como ideologia

Na segunda edição de Teoria Pura do Direito, Hans Kelsen buscou aprofundar muitos de seus
posicionamentos adotados na primeira edição da obra em apreço, por vezes redefinindo conceitos
estabelecidos como por outras vezes recolocando-os, a fim de evitar mal entendidos que motivavam
repúdio à sua teoria, mas especialmente buscou esclarecer muitas das críticas sofridas.

Em particular no que se refere ao capítulo em análise – Direito e ciência, Kelsen arrazoou acerca da tese
suscitada por seus opositores, na qual a possibilidade de uma ciência normativa é posta em questão sob
o argumento deque o conceito de dever ser, cuja expressão é a norma, seria sem sentido ou se
constituiria em mera ilusão ideológica.

Com efeito, na construção de uma ciência do Direito, efetuada através da identificação de objeto
próprio de estudo do Direito, o qual depurou de toda e qualquer variável que não pertença ao Direito,
Kelsen tece uma distinção fundamental entre a Sociologia do Direito, cujo objeto foca-se nos fenômenos
paralelos da natureza e não no próprio Direito, ou seja, nos fatos da ordem do ser, e a Teoria Pura do
Direito, a qual se ocupa das normas jurídicas, destinada a descrever o "dever ser" da norma. A Ciência
Normativa, por seu turno, é aquela que descreve o Direito como sistema de normas, no qual o dever ser
é expresso na norma.

Logo, ao se referir que se trata de ilusão ideológica, significa que impossível uma ciência jurídica
normativa ou apenas possível enquanto compreendida como sociologia jurídica. Nesta ótica, os atos
jurídicos são tomados apenas na sua facticidade, não levando em conta o sentido específico do teor que
aparecem. Todavia, afere-se que a Teoria Sociológica jurídica ocupa-se unicamente com os fatos da
ordem do ser, não colocando em relação as normas válidas. Em outros termos, descreve uma conexão
causal entre quaisquer fatos políticos ou econômicos e atos produtores de direito, assim como entre
atos produtores de direito e a conduta humana por eles visada – quando motivada pela representação da
intenção de um ato –.

No entanto, conforme explicita Kelsen, a proposição jurídica que descreve o direito não se cinge em
mero significado de uma conexão funcional específica. Isso porque, na imputação há conexão funcional
distinta daquela decorrente do nexo causal, vez que os fatos que a imputação jurídica conexiona entre
si são diversos, na medida em que a imputação jurídica liga o fato, determinado pela ordem jurídica,
com a consequência fixada pela mesma ordem jurídica.

Portanto, ao se considerar o direito como ideologia, tem-se que este não seria exigível, ou seja, que as
normas jurídicas não seriam aplicáveis, assim como considerar-se-iam equivocadas, uma vez que a
ideologia é por si mesma equivocada. Destarte, esta formulação acaba por distanciar-se da neutralidade
apregoada pelo autor em sua teoria pura do direito, de forma que, nas palavras de Wolkmer, “[...] toda
e qualquer sistematização jurídica que não seja a ‘teoria pura normativa’ [...] resulta em formulações
ideológicas.”[22]  Tal ilusão possui vez, contudo, quando, com o dever ser jurídico, se afirme um valor
moral absoluto.

No que concerne à negação do dever ser, i.e., do conceito do dever ser como algo sem sentido,
equivaleria declarar que os atos de produção jurídica apenas podem ser conhecidos como meios de
provocar uma determinada conduta dos indivíduos a quem se dirigem tais atos. Em outras palavras, o
sentido jurídico positivo torna-se equivalente ao sentido moral. Consequentemente, perde-se o próprio
sentido na afirmação de que algo “deve ser”. Entretanto, aquilata-se que tal posição encontra óbice no
fato de que as normas são imperativas.

3 CRÍTICAS À TEORIA DE KELSEN

A tese formulada por Hans Kelsen, na qual defende uma ciência do Direito, com objeto próprio de
estudo do Direito e livre de toda e qualquer influência da ideologia política e dos elementos da ciência
natural, bem como sua proposição de que o Direito deveria ser apreendido como norma e não como fato
social ou como valor transcendental, foi recepcionada na época de sua publicação com grande polêmica
e ressalva.

Uma das críticas cardiais sofridas por Kelsen diz respeito à denúncia de que sua teoria seria deveras
reducionista quanto ao objeto jurídico e a natureza puramente normativa ventiladas pelo autor, de
forma a olvidar as dimensões sociais e valorativas, relegando o fenômeno jurídico a uma mera forma
normativa. De fato, a cientificidade e pureza propaladas pelo mestre normativista não deixam, também
elas, de serem consideradas ideologias por si próprias, uma vez que transforaram-se em instrumentos de
legitimação de inúmeras ordens político jurídicas[23].

Para Warat, o caráter idealista da teoria pura de Kelsen, sob a égide epistemológica, se denota a partir
da não-diferenciação entre o idealismo – ou metafísica – e o positivismo, uma vez que, para o referido
autor, este seria tão-somente uma forma de idealismo, afirmando que:

“[...] Sustenta-se que Kelsen sofre influência de uma dupla fonte de inspiração em suas idéias
metodológicas vertebrais: Kant e o positivismo científico, respectivamente redefinidos pelo
neokantismo e o positivismo lógico. A fusão de algumas idéias do kantismo com outras do positivismo
determinou um processo dialético entre ambas as posturas, cuja síntese é a teoria pura do Direito. Isto
é, um pensamento relativamente distante e reformulado dos pressupostos indicados. Quaisquer que
sejam as variantes introduzidas nas diversas versões da teoria pura, durante a longa vida de Kelsen, o
saldo teórico não deixa de ser um pensamento idealista, e isto porque, tanto o processo positivista do
conhecimento (em sua forma experimental ou em sua modalidade lógica) como o racionalismo (em sua
forma pré-gnoseológica e dogmática ou transcendental) têm como base a mesma problemática
epistemológica, definem a mesma temática fundamental e ao mesmo tempo evitam possíveis relações
da teoria com a realidade.
Por razões epistemológicas, sustento a tese de que o positivismo é uma forma de idealismo, porquanto
diacronicamente define sua problemática através de um movimento duplo: racional e empírico,
conceitual e referencial, que, aceitando sua dialética, ao mesmo tempo está desprezando tanto o
idealismo puro como o empirismo ingênuo. Conseqüentemente, temos como síntese um idealismo
crítico que não admite um conhecimento exclusivamente processado pelo pensamento sem fazer
referência à experiência para constituir a razão em fator determinante do conhecimento a partir da
experiência; e um positivismo lógico, que se distancia dos dados sensíveis, desembocando em um
conceitualismo vazio e formal, que se conforma com um controle sintático da realidade.

A Teoria pura do Direito, ao ser reduzida a um conceitualismo presente tanto no idealismo crítico como
no positivismo lógico, consegue eliminar de sua problemática a discussão sobre os fatores co-
determinantes da realidade jurídica, como também sobre o papel social e político do Direito e as
dimensões ideológicas dos diversos discursos enquanto prática jurídica concreta.”[24]

Importa trazer à baila, ainda, outra objeção fundamental em Kelsen, qual seja a impossibilidade de
proceder com a separação rígida entre o mundo do ser e do dever ser, concebidos como categorias
ontológicas radicalmente distintas. Isso porque, entre ser e dever ser existe um nexo de implicação e
polaridade, o que torna compreensível a complementariedade dialética própria do Direito, mantendo-
se, porém, infenso a qualquer apreensão deste tipo.

Logo, o embasamento lançado pelo filósofo, de um formalismo normativista abstrato, vai de encontro
com um dos fundamentos inerentes à essência do próprio Direito: a matéria social regulada. De fato,
tem-se que a ciência jurídica deve se ocupar na elaboração de uma racionalidade prática na definição
de critérios e mecanismos razoáveis de decisão, sob pena de recair no relativismo imposto pelo
positivismo.

Na esteira desse raciocínio, certeira é a lição de Reale, que enfrenta com muita propriedade tal
questão, argumentando que:

“Ora, é impossível focalizar-se o problema da funcionalidade de dever ser e ser, como assunto de
Teoria do Direito, sem necessariamente se ultrapassar a esfera da Lógica Jurídica, ou seja, sem se
correlacionar o que está prescrito na norma jurídica in abstracto com o que ela efetivamente
representa no plano concreto dos comportamentos humanos.

À margem desta questão, não é demais repetir duas observações fundamentais, que se completam: — é
verdade que do mundo do ser não se pode passar para o dever ser, porque aquilo que é não se
transforma naquilo que deve ser; a recíproca, porém, não é verdadeira, porque o dever ser, que jamais
possa ou venha a ser, é sonho, é ilusão, é quimera, não é dever ser propriamente dito. Quando
reconhecemos que algo deve ser, não é admissível que jamais venha a ser de algum modo. Um dever
ser que nunca se realize parcialmente é uma abstração sem sentido. O que acontece, porém, é que, por
outro lado, jamais o dever ser poderá converter-se totalmente em ser. Para que haja dever ser, é
necessário que o ser jamais o esgote totalmente [...]”.[25]

Vislumbra-se, portanto, o caráter de distanciamento da realidade que assume o filósofo austríaco, por
sua proposição de que o direito deve ser encarado como juízo hipotético formalmente elaborado
composto por dois elementos ligados pela cópula do dever ser, a despeito da necessária postura que os
sistemas jurídicos, na qualidade de conjuntos de premissas mutáveis, devem conservar de uma textura
abertura em relação à constante atualização das questões relacionadas à sociedade e a justiça.

Em que pese às censuras pela impossibilidade prática de separação do ser e dever ser, urge-se destacar
a oportuna anotação de Rocha, no sentido de que Kelsen não nega a complexidade do mundo, tendo
como escopo a investigação por uma metalinguagem para elaboração de uma teoria capaz de reduzir a
complexidade social, argumentando que:

“Kelsen, ao contrário do que pensam seus críticos apressados, por filiar-se à tradição da "teoria do
conhecimento", assume como inevitável a complexidade do mundo em si. Para ele, o social (e o direito)
são devido as suas heteróclitas manifestações constituídas por aspectos políticos, éticos, religiosos,
psicológicos e históricos. E a esse respeito não cabe ao cientista do direito nada comentar. A função do
cientista é a construção de um objeto analítico próprio e distinto destas influências. A partir desta
constatação é que Kelsen vai procurar, assim como Kant, depurar essa diversidade e elaborar uma
"ciência do direito". Ou seja, na teoria pura uma coisa é o direito, outra distinta é a ciência do direito.
O direito é a linguagem objeto e a ciência do direito a meta-linguagem: dois planos lingüísticos
diferentes”.[26]
Afere-se, portanto, o intransponível argumento de que o Direito é indissociável da comunicação com
outros ramos e ciências, em particular a ética, na medida em que se dirige à conduta social do homem
no complexo da realidade social e se coaduna, enquanto caráter de valor, na qual sua fonte comum
axiológica é próprio homem. Assim sendo, tem-se que superada a tese do filósofo austríaco na qual o
Direito deveria se limitar às descrições normativas, posto que o jurista quando procede com a
imputação, acaba necessariamente por compreender a norma aplicando sua interpretação.

Nessa direção, desdobram-se as posições de Viehweg e Perelman. Para Viehweg[27], o sistema jurídico,
isto é, o Direito efetivo – realidade normativa passível de descrição científica, segundo orienta Kelsen –
é algo desde logo impuro, corrompido pela interpretação do jurista, que é um tipo de pensamento que
deve, conforme Viehweg, mover-se dentro do estilo da tópica.

Perelman[28], por seu turno, também comunga a opinião de que a teoria pura articulada por Hans
Kelsen é maculada, pois depende de decisões, de atos de vontade, que não se fundam em direito, mas
se justificam por considerações de ordem política ou moral.

Corrobora o argumento suscitado, igualmente, a questão acerca da validade e eficácia das normas
jurídicas, as quais dependem para serem consideradas válidas em um sistema jurídico de sua
constatação prática e vivência social. Ou seja, um sistema jurídico existe, enquanto tal, unicamente
como realidade social, que por sua vez consiste no fato que a população aceita e obedece a certas
normas.

Em complementação, importa ressaltar que a estrutura lógica da norma não se confunde com sua
existência real e concreta. Isso porque, a norma não se esgota como estrutural formal ou, nas palavras
do mestre austríaco, trata-se de uma pura proposição lógica de natureza ideal. Mas, ao revés, afigura
como momento culminante da experiência jurídica, com existência real, no tempo e espaço, com
finalidades e valores implícitos.

A objeção última que se estabelece na teoria de pureza do Direito, diz respeito ao fracasso da tentativa
da matriz analítica, na qual se classifica o ideal kelseniano, em elaborar uma linguagem pura para o
direito. Isso porque, adotando-se a classificação propedêutica de Rocha das matrizes teórico-jurídicas
de acordo com a sua inserção semiótica, contempla-se que a teoria kelseniana encontra guarida na
filosofia analítica enquanto desdobramento da sintaxe, em consequência de seu postulado de uma
ciência do direito alicerçada em proposições normativas que descrevem sistematicamente o objeto
direito, ou seja, através da análise lógico formal das normas jurídicas[29].

Entretanto, verifica-se que tal matriz segue uma postura de neutralidade no tocante aos seus aspectos
políticos, provocando conseqüências teóricas graves, devido a sua incapacidade de pensar uma
complexidade social mais ampla.

Dessa feita, a filosofia analítica normativista, baseada em critérios sintático-semânticos, conforme


proposto por Kelsen em Teoria Pura do Direito, passou a enfrentar dificuldades ante ao surgimento de
novos anseios teórico-sociais. Em resultado às exigências, a filosofia analítica iniciou um processo de
reestruturação, a fim de voltar-se para a análise de critérios pragmáticos de racionalidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A despeito das críticas formuladas à teoria de pureza apregoada por Hans Kelsen, tem-se que inegável a
importância e genialidade de seu pensamento na determinação das construções lógico-formais da
Ciência Jurídica, em especial no rompimento de paradigmas vigentes em sua época, desqualificando o
direito natural como teoria válida do Direito, além das inumeráveis contribuições na seara da
dogmática, tais como na reformulação dos conceitos e objetivo do próprio Direito fomentados por suas
ideias revolucionárias.

Nem demais notar, desde logo, que a problemática em torno do objetividade científica do direito
atualmente se encontra no cerne de discussões do chamado neopositivismo ou pós-positivismo, em
particular considerando as novas abordagens epistemológicas acerca do direito e sua ciência, com
notável acento na hermenêutica jurídica, e contando com o desenvolvimento da filosofia da linguagem e
da argumentação jurídica. Logo, afere-se que o tema ainda persiste fascinante quanto controvertido.

Nesta perspectiva, a tomada de uma posição ligada ao normativismo e ao Estado pode se tornar
extremamente limitada. Na lição de Rocha “não se pode assim continuar mantendo uma noção de
racionalidade no Direito ao se insistir no ideal kelseniano”[30].
A guisa de conclusão, impõe-se destacar a necessidade premente de se produzir uma epistemologia
construtivista que tenha como fundamento a temática da pluralidade social, partindo-se da premissa da
complexidade do mundo em si, dos paradoxos e riscos, a fim de tentar superar – ou ao menos contornar
– a crise instaurada no Direito e suas instituições. Isso porque, a crise do Direito não se insurge de mera
deficiência em sua estrutura tradicional, contudo, ao revés, tal crise emerge de igual forma da ausência
de integração dos seus pressupostos dogmáticos e as necessidades decorrentes da sociedade globalizada
– os chamados novos direitos.

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WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

 
Notas:

[1] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2009, p. XI.

[2] MOREIRA, Felipe Kern A construção teórica do conceito de legitimidade no direito internacional:


a inaplicabilidade da Norma Fundamental da Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen. Brasília: UNB,
2009, 602 f., il. Tese (doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais, Instituto de
Relações Internacionais, Universidade de Brasília, Brasília, 2009, p. 261.

[3] SCHWARTZ, Germano André Doederlein. Considerações sobre a teoria kelseniana. In: GRUNWALD,


Astried Brettas (org.). Revista do Curso de Direito. v. 5, n. 5 (jan./dez.) – Cruz Alta: UNICRUZ, 2000, p.
97.

[4] REALE, Miguel. Filosofia do direito. 20. ed. 5. tiragem. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 458.

[5] MOREIRA, Felipe Kern A construção teórica do conceito de legitimidade no direito internacional:


a inaplicabilidade da Norma Fundamental da Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen. Brasília: UNB,
2009, 602 f., il. Tese (doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais, Instituto de
Relações Internacionais, Universidade de Brasília, Brasília, 2009, p. 281.

[6] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2009, p. 79.

[7] MOREIRA, Felipe Kern. A ciência do Direito em Hans Kelsen: Abordagem filosófico-crítica. In:


Âmbito Jurídico, Rio Grande, 7, 30 nov. 2001 [Internet]. Disponível em: <http://www.ambito-
juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id =5516>. Acesso em 11 jul.
2011.

[8] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2009, p. XI.

[9] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2009, p. XII.

[10] WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 4. ed. São Paulo: Saraiva,
2002, p. 164.

[11] ROCHA, Leonel Severo. Da Epistemologia Jurídica Normativista ao Construtivismo


Sistêmico. In: ROCHA, Leonel Severo; SCHWARTZ, Germano; CLAM, Jean. Introdução à Teoria do
Sistema Autopoiético do Direito.Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 16.

[12] ROCHA, Leonel Severo. Da Epistemologia Jurídica Normativista ao Construtivismo


Sistêmico. In: ROCHA, Leonel Severo; SCHWARTZ, Germano; CLAM, Jean. Introdução à Teoria do
Sistema Autopoiético do Direito.Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 16.

[13] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2009, p. 79.

[14] DINIZ, Maria Helena. Conceito de norma jurídica como problema de essência. 4. ed. São Paulo:
Saraiva, 2003, p. 69.

[15] NOLETO, Mauro Almeida. Direito e Ciência na Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen. Jus


Navigandi, Teresina, ano 7, n. 54, 1 fev. 2002. Disponível em: <http://jus.uol.com.br
/revista/texto/2644>. Acesso em: 10 jul. 2011.

[16] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2009, p. 100.

[17] ROCHA, Leonel Severo. O Sentido Politico da Teoria Pura do Direito. In: Seqüência (Florianópolis),


Florianópolis, v. 9, p. 57-75, 1984, p. 60.

[18] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2009, p. 100.
[19] REALE, Miguel. Filosofia do direito. 20. ed. 5. tiragem. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 461.

[20] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2009, p. 104.

[21] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2009, p. 110.

[22] WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 4. ed. São Paulo: Saraiva,
2002, p. 164.

[23] WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 4. ed. São Paulo: Saraiva,
2002, p. 166.

[24] WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito II: a epistemologia jurídica da


modernidade. Tradução de José Luiz Bolzan de Morais. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995,
pp. 131-132.

[25] REALE, Miguel. Filosofia do direito. 20. ed. 5. tiragem. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 469.

[26] ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia jurídica e democracia. 2. ed. São Leopoldo: Unisinos, 2003,
p. 72,

[27] VIEHWEG, Theodore. Tópica e jurisprudência. Brasília: Ministério da Justiça e Universidade de


Brasília (co-edição): 1979, p. 89.

[28] PERELMAN, Chaïm. A Teoria Pura do Direito e a Argumentação. Tradução: Ricardo R. de Almeida.


Rio de Janeiro. Disponível na internet: <http://www.puc-rio.br/sobrepuc/dpto/direito/pet_jur/
c1perelm.html>. Acesso em: 19 jul. 2011.

[29] ROCHA, Leonel Severo. Da Epistemologia Jurídica Normativista ao Construtivismo


Sistêmico. In: ROCHA, Leonel Severo; SCHWARTZ, Germano; CLAM, Jean. Introdução à Teoria do
Sistema Autopoiético do Direito.Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, pp. 15-16.

[30] ROCHA, Leonel Severo. Entre o Normativismo e a Sociedade: Percursos do Direito a procura de


sua Unidade. São Leopoldo: 2007. Disponível na internet: <
http://www.unisinos.br/pastanet/arqs/0450/1606/texto ied20071.doc>. Acesso em: 05 jul. 2011.

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O Direito como Ciência


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Publicado por Marcus Valério Saavedra Guimarães De Souza (extraído pelo JusBrasil) - 3 anos atrás

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Por Marcus Valério Saavedra Guimarães de Souza*

O conceito de ciência tem sido objeto, ao longo do tempo, de uma gama variada de
interpretações. Contudo, hodiernamente, Ciência, sem ser apenas um conceito que expressa a
validade global de seus postulados, designa o próprio objeto de sua investigação.
O vocábulo, portanto, implica a descrição evolucionista dos fenômenos do mundo objetivo.

Nesse contexto, é o Direito uma Ciência? Tem-se concebido a disciplina como Ciência Social
Hermenêutica, embora, numa ótica mais acurada, tal classificação se ostente muito singela.

Com efeito, ao contrário das outras ciências sociais, o Direito se particulariza por via de
exteriorizar uma mundividência ideal, que se traduz, em linguagem prática, no dever-se, além
de ser uma ciência de cunho eminentemente axiológico.

Numa circunstância analítica mais profunda e objetiva, a ciência do Direito, trabalha com
fenômenos sociais, aplicando um complexo sistema interpretativo-descritivo de fatos sociais,
não limitado à mera valoração dos mesmos, num extenso processo de normas. Indo além da
interpretação e revisando a própria norma, concebe Segunda norma, desta feita, de natureza
aplicativa.

São, portanto, dois os momentos interpretativos por que o Direito transita. Num primeiro, assim
como as demais ciências, e tendo como estrutura o trinômio fato/valor/norma, constitui o
processo legislativo de concepção da norma in abstratum.

Noutro momento, podemos dizer, exclusivo e inerente à Ciência Jurídica, há o processo de


efetiva aplicação do material abstrato, através da identificação da norma concreta ou efetiva.

Estes conceitos, pacíficos entre os estudiosos da ciência jurídica, para os quais,


incontestavelmente, incorpora o Direito um ramo científico independente e autônomo, são,
contudo, contestados por diversos autores, estudiosos de outras ciências que entendem que o
Direito constitui apenas uma subdivisão da Ciência Política, nunca uma ciência desvinculada e
autônoma.

Para estes cientistas, o Direito nada mais é do que um instrumento da Ciência Política, que tem
como objeto de investigação a harmônica convivência em sociedade, a manutenção da paz
social, utilizando a imposição da ordem estabelecida.
Eros Roberto Grau, citado por FRIEDE (Friede, 1999), leciona: "o Direito não se constitui
propriamente em uma ciência". Para esse autor, o Direito é estudado e descrito, sendo, pois,
mero objeto de uma ciência, a Ciência do Direito.

Segundo ainda a ótica do referido estudioso, o Direito é normativo, não descritivo, mas
prescritivo. Disso se depreende que, mesmo quando uma norma jurídica descreve certa coisa
ou situação, ainda assim é prescritivo, isto é, ela descreve para prescrever.

Como decorrência, tem-se que a ciência jurídica não é como à primeira vista parece,
normativa. Mas, como toda e qualquer ciência, descritiva.

Impera, por isso, um conceito diverso entre Direito e Ciência do Direito. Esta descreve,
prescrevendo como, porque e quando o Direito.

Embora nem sempre os estudiosos do Direito percebam, o certo é que essa oposição é da
mais alta importância, por isso que muita vez este fato é causa primeira de numerosos
conceitos falaciosos.

Por isso mesmo que se têm, de um lado, os princípios do Direito e, de outro, os princípios da
Ciência do Direito.

Afirma Friede (Friede, 1999), que o Direito é uma invenção do homem, "um produto cultural".

É lógico que o abalizado autor se refere ao Direito, enquanto elemento integrante da cultura, e
sem pretensão filosófica. De maneira bem didática, o renomado preceptor ensina que o Direito
legítimo não é constituído somente pelo poder, assim como não deve a vontade do Estado
prevalecer como fonte desse mesmo Direito.

Em síntese, viu-se o Direito em face de sua qualidade de ciência, em consonância com esse
conceito, passando pela diferença existente entre o Direito propriamente dito e a ciência do
Direito, chegando-se, por fim, à menção superficial aos elementos constitutivos do Direito.

Nesse trabalho, que não tem a pretensão de profundidade, mas de simples noções
elementares, nem por isso pode olvidar a importância, posição e pensamento de Paulino
Jacques sobre a matéria ora sob enfoque, notadamente quanto à liquidez universal dos
princípios do Direito.
As idéias de Jacques chamaram a atenção para um possível equívoco em que estão a incorrer
os defensores da ciência do direito, como ramo científico independente.

É evidente que o Direito não possui princípios de validez universal, justamente por ser, como
fez questão de assinalar Fried, que ele é produto da cultura e, portanto, criação do homem.

Não há dúvida de que o que mais caracteriza uma ciência, é, exatamente, a aceitação geral e
universal dos seus postulados, das suas "leis"(leis da Química, da Física, da Biologia, etc.).

Efetivamente, o Direito não conta com leis, entenda-se, postulados, que tenham validade
universal, valendo repetir, por absoluta e imperativa pertinência, que nada há de geral nos
princípios gerais do Direito.

Assim sendo, o Direito não pode se autodefinir, rigorosamente falando, de ciência, justamente
porque, a exemplo de outros ramos do conhecimento social, não ostenta princípios de
reconhecida validade universal a lhe ensejar, legitimamente, a denominação de ciência.

Sob o enfoque classificatório adotado por Reis Friede, (1999), a ciência pode ser Natural,
Instrumental e Social, esta, de particular interesse para o presente estudo.

As ciências sociais, ou humanas, latu sensu, possuem como objeto de observação os


fenômenos sociais, e são bifurcadas em Hermenêuticas ou interpretativas, como o Direito; e
Não Hermenêuticas, ou Humanas em sentido estrito, como a Antropologia, a Sociologia, a
História, etc.

A Ciência hermenêutica do Direito, à sua vez, tem duas etapas interpretativas, sendo que a
primeira, que é comum às demais ciências e, privativa do Poder Legislativo, no caso do Direito.

Já na Segunda fase interpretativa, é específica da ciência hermenêutica do Direito e, no caso


deste, privativa do Poder Judiciário.

Na primeira fase interpretativa, o Direito enquanto Ciência estuda o fato, atribuindo ao mesmo
uma valoração intrínseca.
O fato assim perquirido se preocupa com o conjunto axiológico de valores de uma dada
sociedade, no tempo e no espaço, chegando, assim à noção da norma, como expressão ideal
do universo do dever-ser.

Finalmente chega-se à aplicação da norma como corolário do emprego dos planos


metodológicos de interpretação normativa.

No plano binomial do signo lingüistico, o conceito de Ciência denota variadas conceituações,


assim como diversas traduções do vocábulo respectivo.

No plano sintagmático, porém, de mais ampla abrangência semântica, contemporaneamente, o


termo designa a busca perene e constante da verdade, universalmente pertinente, através da
explicação evolucionista dos fenômenos que se verificam no universo.

Paulino Jacques, referência de Reis Friede, pretende impor uma universal validade de
aceitação dos postulados, como requisito indispensável para se caracterizar uma ciência.

Contudo, atualmente, ciência pressupõe uma moderna concepção, a qual se inspira no próprio
objeto de sua investigação, ou dizer, na procura constante e permanente da verdade quanto à
completa explicação evolucionista dos fenômenos naturais e sociais.

Assim, a concepção de ciência é insuscetível de coexistir ao lado de princípios de validez


universal, máxime em se considerando que a validade intrínseca destes mesmos princípios
científicos sempre é mutável, como corolário da própria evolução dos postulados científicos.

Dessarte, os conhecidos Princípios Gerais do Direito não se mostram

universais, muito menos permanentes, haja vista que os fenômenos sociais que os presidem
são dotados de maior complexidade que os fenômenos naturais, campo ocupacional de outras
ciências.

Não resta dúvida de que há uma tendência universalizante e aproximativa das concepções, a
exemplo dos conceitos e conclusões trabalhadas seja pela Física, seja pela Química, pela
astronomia.
Justiça, enquanto concepção axiológica, um valor intrínseco do Direito, vem sofrendo nítido
processo de universalização, inobstante as inúmeras culturas e bem assim os mais diferentes
estágios evolutivos dos inúmeros grupamentos humanos.

De forma que ciência deve ser considerada como uma busca; não como uma verdade
absoluta, até porque já hoje é aceita a chamada "verdade" relativa, vale dizer, verdades de
aceitação limitada ou restrita.

Ainda numa perspectiva tópica-classificatória, repisamos que o Direito integra as chamadas


ciências sociais, subtipo hermenêutica ou interpretativa, justificando-se essa descrição pelo fato
de que observa os fenômenos sociais, transpondo a simples visão superficial de sua valoração
intrínseca, ocupando-se da norma e a concepção interpretativa.

Como ciência social hermenêutica, o Direito ainda se isola como uma ciência de projeção de
um mundo ideal, por isso que se enquadra como ciência de natureza essencialmente valorativa
ou axiológica.

Fundado nos princípios axiológicos, ocupa-se o Direito, mais do que qualquer outra ciência, de
um intrincado e complexo sistema de mensuração factual, inclusive de matrizes intrínsecos,
especialmente a idealização da segurança prática das relações jurídicas e da incessante busca
do ideal de justiça, ainda que de modo heterogênico, através dos mais diversos segmentos do
Direito.

Tratando especificamente do Direito, cumpre ressaltar que esse ramo do conhecimento


elaborou relativa emancipação da Filosofia e da Religião, por obra dos romanos, derivando
desse processo de autonomia a derivação de denominação própria, tão logo compreendeu
aquele povo da antigüidade clássica que esta ciência, de forma alguma era Religião ou
Filosofia.

Com o tempo, com a expansão do Direito Romano, de grande influência no Direito Bárbaro,
houve a universalização do conceito de Jurisprudência, acabando por miscigenar-se ao Direito
Germânico.

Desse processo restou que, à míngua de nomenclatura mais ajustada, aliada mais à ausência
da noção de ciência, terminou por se espraiar a tradicional denominação de Ciência do Direito.
Muitas são as contradições e as discussões sobre o tema, como se depreende da progressiva
leitura da obra de Reis Friede, (in Ciência do Direito, Norma, Interpretação e Hermenêutica
Jurídica). O certo é que o assunto está longe de ser esgotado, e o consenso parece estar
distante, dadas as desencontradas e divergentes opiniões dos estudiosos do problema.

*Marcus Valério Saavedra Guimarães de Souza  - Advogado Criminalista - Membro da


Associação dos Criminalistas do Estado do Pará - Membro da Academia de Júri do Estado do
Pará - Membro Fundador do Instituto Paraense do Direito de Defesa.

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