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ES
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NIÓ
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PESTES E EPIDEMIAS
EM PORTUGAL
PERIODICIDADE BIMESTRAL
CONTINENTE – €5,00
N.º 58 · ABRIL 2020
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SUMÁRIO
Cronologia
A longa crónica dos micróbios 4
1918
A pneumónica em Portugal,
por José Manuel Sobral 6
Outras pragas
Contágio planetário,
por Clara Teixeira 34
Q
Peste negra,
uando o mundo se confronta com a terrível ameaça da covid-19, é opor- por Luís Almeida Martins 44
tuno recordar situações equivalentes vividas no passado. Este número
é, pois, dedicado a pestes e a algumas das outras epidemias que, desde Peste negra em Portugal,
por André F. Oliveira da Silva 51
que há memória, assombraram a humanidade ou partes dela, e também
ao combate a essas doenças e aos progressos no campo da investigação A grande peste de 1569 53
que, com esse objetivo, têm sido feitos. Será interessante o leitor verificar
O combate aos surtos
os pontos de contacto e as semelhanças com a atualidade. na Idade Moderna,
E se, desde logo, nos ocorre a célebre Peste Negra que no século XIV vitimou por Laurinda Abreu 54
um terço da população europeia, muitas outras foram as pestilências que deixa-
ram o seu rasto de morte ao longo dos tempos. Na memória familiar de muitos
A vida em tempos de cólera,
por Maria Antónia Pires de Almeida 58
está ainda o flagelo da pneumónica (também conhecida por «gripe espanhola»)
que, há pouco mais de cem anos (1918-1919), ceifou dezenas de milhões de Terçar armas contra
pessoas em diversos continentes e, em Portugal, um número incerto que pode o 'micróbio' da cólera,
por Laurinda Abreu 62
ultrapassar as 140 mil.
Como sempre, contamos com a colaboração de especialistas no tema abordado, Os lazaretos, por Laurinda Abreu 65
entre os quais José Manuel Sobral e Helena da Silva (coordenadores de grandes
estudos de investigação sobre a pneumónica), Maria Antónia Pires de Almeida
A peste que fechou
o Porto, por Cesaltina Pinto 67
e Laurinda Abreu. A situação anómala que se vive forçou-nos, porém, a reduzir
o número de páginas e a recorrer, em dois casos, a material já antes publicado, Era uma vez a higiene,
embora devidamente editado e adaptado. por Maria Antónia Pires de Almeida 70
Ciência
O micróbio contra-ataca,
Os títulos, subtítulos e destaques dos artigos por Clara Pinto Correia 72
são da responsabilidade da redação
Entrevista
Foto da capa: Uma 'ilha' do Porto durante o surto
de peste bubónica na cidade, em 1899, de Aurélio Adelino Cardoso: a fronteira
da Paz dos Reis, Centro Português de Fotografia entre eu e o Outro 78
Humor 82
VISÃO H I S T Ó R I A 3
EPIDEMIAS // PESTE NEGRA
1414
Trazida por barcos
rcos
estrangeiros, a peste
este
1188 chega novamente e
Nove anos depois o,
a Lisboa e ao Porto, 1438
do reconhecimento da vitimando, Nova epidemia, de
independência de Portugal entre muitas outrass natureza desconhecida,
por bula do papa Inocêncio II e a
pessoas, a rainha entra no País e atinge 1485
volvidos três sobre a morte de stre.
D. Filipade Lencastre. D. Duarte, que morre em A persistente epidemia
D. Afonso Henriques, a peste faz Tomar. agrava-se, favorecida pela
a sua entrada no reino e provoca 1423 fome por ela própria gerada,
grande devastação. Uma epidemia 1464 num círculo vicioso.
indeterminada flagela Coimbra Ocorre uma nova epidemia, de
1202 e a sua região. D. Duarte, características indeterminadas, 1492
Novo surto de peste mata, ao associado ao governo do pai, havendo, segundo os termos de D. João II regula regimes de
que se calcula, um terço dos D. João I, administrando a uma crónica, «muita míngua de quarentena, manda instalar
habitantes de Portugal. justiça e as finanças, não mezinhas e boticas e perecendo esgotos, designa lugares
se desloca ao Mosteiro da muitas gentes». específicos para acumular
1312 Batalha para assistir às o lixo (monturos) e manda
A peste volta a atacar; muita exéquias do velho monarca, por 1466 acender fogueiras de alecrim
gente morre da doença e de ali reinar, segundo Rui de Pina, Repete-se o surto e desinfetar as casas dos
fome. «grande pestilência». epidémico. doentes.
A LONGA CRÓNICA
1347 1434 1468 1495
A grande epidemia da Peste Numa reunião das Cortes Coimbra é particularmente Évora é particularmente
Negra, originária da Ásia é reconhecido o mau atingida. flagelada. D. João II e a corte
Central, irrompe pela Europa. estado de salubridade passam o inverno
do reino. 1469 em Santarém, em
1348 É a vez de Lisboa ser flagelada. setembro a rainha
A Peste Negra chega a 1437 D. Leonor informa-
Portugal, em setembro, na Em fins de agosto 1478 -se do estado
tríplice forma bubónica, registam-se casos mortais de Após escassos anos de trégua, sanitário de Lisboa e
pulmonar e intestinal; peste em Lisboa e arredores; outra epidemia provoca grandes o rei morre em outubro,
particularmente mortífera, realizam-se conferências estragos em Évora, então no Algarve. Quando sobe ao
dura três meses antes de públicas semanais sobre a a segunda maior cidade do trono, o novo rei,
atingir o pico. profilaxia e o tratamento da País, onde D. João II manda D. Manuel I, encerra as Cortes
epidemia; D. Duarte aprova um construir uma casa de saúde reunidas em Montemor-o-Novo,
1384 sistema de medidas sanitárias e ordena medidas higiénicas, por a peste estar generalizada,
Durante as Guerras apresentado pela Câmara como a de se percorrer a cidade e durante mais de um ano
Fernandinas, entre Portugal de Lisboa, e no seu livro Leal com rebanhos, o que se sabe permanece afastado da capital.
e Castela, uma epidemia, não Conselheiro aborda o problema empiricamente ser eficaz.
se sabe ao certo se de peste recomendando o abandono dos 1503
se de tifo, ataca o exército lugares infetados. 1480 Irrompe uma epidemia mal
e a frota castelhanos que Quase colada à anterior, entra conhecida, em consequência
cercam Lisboa; morrem entre no País uma nova epidemia, da fome provocada pela
150 e 200 soldados por dia, que perdurará por 17 anos destruição das sementeiras por
acabando os castelhanos e estará particularmente tempestades.
por levantar o cerco. centrada em Lisboa.
1505
Uma nau proveniente de
Roma traz para Lisboa uma
epidemia «brava e cruel»,
que alastra para fora da
cidade; quando chega
a Évora, esta cidade
quase se despeja.
4 VISÃO H I S T Ó R I A
1832
18
No dec
decorrer da
1598 guerra civil cconhecida por
No 18º ano do domínio Lutas Liberais, navios que 1957
espanhol em Portugal, transportam tropas para o Chegam a Lisboa,
irrompe a «peste pequena», exército liberal de D. Pedro IV, no Moçambique, vindo
proveniente da Flandres cercado no Porto, trazem de de África, passageiros que
(então também domínio da Ostende uma epidemia de cólera transportam o vírus da gripe
1510 coroa espanhola) e chegada que depois alastra a Lisboa. asiática, que causou 4 milhões
Há registo de nova através da Espanha; a epidemia Durante quase 80 anos, o País de mortes em todo o mundo.
epidemia de natureza mantém-se por cinco anos. conhecerá oito epidemias de Em Portugal seriam 1050 as
desconhecida. cólera. vítimas. As escolas primárias
1645 foram encerradas. É a segunda
1514 Pouco depois da restauração 1861 p
pandemia de gripe do século XX.
Verifica-se novo surto da independência de Portugal, D. Pedro V morre vitimado
timado
epidémico. D. Manuel I manda chega de África a «peste do rante
pela febre tifoide; durante
construir cemitérios e evacuar Algarve», destinada a durar o seu reinado de oitoo anos
Lisboa, o que não chega a cinco anos e assim chamada registam-se surtoss de
acontecer dada a dificuldade de por ter alastrado com especial cólera e febre
concretizar tal medida. perigosidade na região algarvia. amarela.
DOS MICRÓBIOS
AAs epidemias têm sido
praticamente uma constante
na História de Portugal. Viagem
através de mais de oito séculos
VISÃO H I S T Ó R I A 5
6 VISÃO H I S T Ó R I A
ORFANATO DA CRUZ VERMELHA
VISÃO H I S T Ó R I A 7
EPIDEMIAS // 1918
A
pandemia que agora nos atinge
suscitou atenção para aquela que
terá sido a maior de todas elas, a
chamada «Gripe Espanhola», que
assolou o mundo em 1918 e 1919.
Houve muitas epidemias desde
então, incluindo de gripe, como a gripe
de 2009-2010 provocada por um vírus A
(H1N1) – que terá causado entre 100 mil e
400 mil mortos – sem falar de outras, uma
ILUSTRAÇÃO PORTUGUESA
8 VISÃO H I S T Ó R I A
REVISTA OCIDENTE (HOSPITAL DO REGO)
ILUSTRAÇÃO PORTUGUESA
Hospital do Rego Criado em 1906 para doenças infetocontagiosas (e rebatizado em 1929
de Curry Cabral, o nome do seu fundador), não chegou para tantos doentes e foi necessário
reabrir o Hospital de Arroios
ILUSTRAÇÃO PORTUGUESA
cias do flagelo surgirem em Espanha, país dos escuteiros foram
que, por não estar envolvido na Grande contagiados ao
socorrerem
Guerra, não se encontrava submetido à ação
os doentes
da censura. Em França e na sua área de
influência, como Portugal, chamou-se-lhe
gripe, do francês agripper ou gripper – agar-
rar (Honigsbaum, 2013). Em Portugal ficou médico Silva Correia, a mortalidade deveria de 1918 (Crosby, 2003), mas há outras hi-
conhecida como «gripe pneumónica», ou ser bem superior. Se se tivessem em conta os póteses que apontam para o foco inicial
simplesmente «pneumónica», por confusão falecimentos cuja causa era desconhecida e se encontrar em acampamentos militares
com a «peste pneumónica», uma infeção as mortes associadas a infeções decorrentes britânicos em França (Killingray, 2009),
pulmonar de origem bacteriana que tinha – como a pneumonia – o número de faleci- ou na China, de onde teria sido levada para
atingido o Porto em 1904 (Jorge, 1919). dos poderia superar em muito os 100 mil França por trabalhadores recrutados pelos
Não se sabe com rigor quantas vítimas mor- indivíduos (Correia, 1938). Há poucos anos, franceses e pelos ingleses para assegurar
tais fez a pneumónica. Alguns historiadores o demógrafo Leston-Bandeira (Bandeira, trabalhos na retaguarda durante a guerra
assinalam uma mortalidade global de 30 2009) apontou, somando o continente e o e detentores de alguma imunidade devido
milhões (Philllips & Killingray, 2003), ou- distrito açoriano de Ponta Delgada, para um à sua exposição a surtos anteriores. Aque-
tros colocam-na em 50 milhões no mínimo número superior a 130 mil mortes. Outras les trabalhadores viajaram para a Europa
(Honigsbaum, 2019) ou entre 50 e 100 mi- investigações assinalam um número inferior diretamente por via marítima ou, numa
lhões (Brown, 2018), existindo ainda quem a este, mas, ainda assim, perto das 120 mil, outra rota, depois de atravessarem o Pací-
avente a possibilidade de a cifra poder ser incluindo o impacto de uma quarta vaga fico até à costa oeste da América do Norte,
mais elevada (Johnson, 2006). no outono-inverno de 1919-20 (Nunes et prosseguiram o seu caminho em direção
Esta imprecisão também existe no caso al., 2018). à costa leste pelo caminho-de-ferro. Daí
português, em que a mortalidade foi enorme, embarcaram para a Europa, propagando o
das mais elevadas da Europa. De acordo com Origem nos EUA ou na China vírus (Langford, 2005).
as estatísticas oficiais, teriam morrido perto A opinião maioritária sobre a origem da A epidemia teria decorrido em três va-
de 60 mil pessoas – cerca de 56 mil em 1918, epidemia situa-a como tendo a sua origem gas, tanto a nível mundial (Werner, 1962;
mais 3 mil em 1919 (Sobral et al., 2009). No na região do médio-oeste americano, no Phillips & Killingray, 2003), como em Por-
entanto, como assinalaria anos mais tarde o Kansas, onde teria aparecido em março tugal. Aqui, teria começado na primavera
VISÃO H I S T Ó R I A 9
EPIDEMIAS // 1918
démica anterior das populações. Haveria que os casos mais graves sejam hospitalizados
ainda uma outra vaga importante, em abril e e isolados e que os médicos reformados e estudantes
maio de 1919, mas com menor gravidade do do último ano de Medicina se mobilizem
que a anterior (Jorge, 1919), existindo ainda ALGARVE
10 V I S Ã O H I S T Ó R I A
ARQUIVO HISTÓRICO DA CRUZ VERMELHA
ILUSTRAÇÃO PORTUGUESA
Pessoal do hospital provisório da Misericórdia, em Sintra Médicos da Cruz Vermelha A organização, criada para apoiar feridos
Repare-se que dentro do caixão está uma morta de guerra, passou a socorrer os contagiados pela pneumónica
VISÃO H I S T Ó R I A 11
EPIDEMIAS // 1918
A visita da
'espanhola'
Desenho de Stuart
Carvalhais em
O Século Cómico
de julho de 1918,
quando o País
foi atingido pela
primeira vez pela
epidemia. Ao lado,
texto humorístico
publicado no
mesmo suplemento
humoríostico
da Ilustração
Portuguesa,
ironizando com as
medidas tomadas
em Espanha contra
a gripe
12 V I S Ã O H I S T Ó R I A
O que os médicos
recomendavam para
tratar a pneumónica
ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA
Ambulância O transporte dos doentes foi entregue à Cruz Vermelha O doente devia cumprir isolamento
rigoroso no quarto (ou num espaço dividido
cargos de delegado e subdelegado de saúde e a dos municípios, que contratavam os por panos e lençóis, em áreas grandes),
a nível distrital e concelhio, com muito médicos do partido municipal. Só quem que devia ser arejado permanentemente.
poucos recursos, pouco mais podendo fa- possuía um mínimo de meios é que podia A roupa de cama devia ser substituída com
regularidade
zer do que enviar ofícios às autoridades ser cliente da clínica livre (Campos, 1983).
civis que apoiavam em matéria de saúde. A conjuntura agrava a situação do Banho, aspersão dos lençóis com água
Fundaram-se organismos novos como o combate à epidemia. Muitos médicos, ou colocação de panos encharcados na
Instituto Central de Higiene, em 1899, farmacêuticos e mesmo finalistas de Me- cabeça para fazer baixar a febre
atual Instituto Ricardo Jorge. Os meios dicina estavam a prestar serviço militar.
Uso de máscara, para os funcionários
modernos concentravam-se em Lisboa – E também como consequência da guer- sanitários e voluntários
com alguns hospitais especializados, como ra, que afetou profundamente a situa-
o do Rego, de 1906, destinado ao combate ção das classes trabalhadoras e dos mais Lavagem frequente das mãos, com
às doenças infetocontagiosas – cidade onde humildes em geral, havia fome e falta de sabonete ou desinfetante químico
também estava sediado um laboratório
Desinfeção dos quartos dos doentes com
bacteriológico importante, bem como nos creolina ou cal e, quando não podiam ser
hospitais civis, no Porto e em Coimbra, ventilados, fumigações de eucalipto
cidades onde havia hospitais ligados ao
ensino da Medicina. A maioria dos hos- Para desinfetar as vias áreas superiores,
gargarejos regulares com soluções
pitais do País pertencia às Misericórdias,
salinas, mentoladas, de fabrico caseiro ou
variando os seus recursos entre os mais vendidas nas farmácias, ou ainda com pasta
dotados, situados numa capital de distrito, dentífrica diluída em água
e os das povoações mais pequenas, muito
modestos. Faltava pessoal médico. Para se Proteção das fossas nasais com óleos,
vaselina, glicerina ou pasta dentífrica
ter uma ideia, em Portugal, em 1920, havia
um médico por cada 2338 habitantes e uma Na tentativa de diminuir a febre, o
farmácia por cada 3825 – a desproporção emprego de procedimentos caseiros tais
é enorme com a atualidade (2018), em que como a fricção do corpo, as cataplasmas
existe um médico por 189 habitantes (no de farinha de mostarda ou ainda os
clisteres com água e sabão e a aplicação
continente). Também as farmácias eram
de ventosas, secas ou escarificadas, foram
em número muito inferior ao dos nossos recomendados com frequência.
dias. No mesmo ano havia uma farmácia
por cada 3825 pessoas, hoje há uma por Aspirina (em comprimido ou em injeção,
cada 750 (Sobral, 2019). Era um tempo diluída em soro) ou quinino para baixar a
febre (em Portugal usou-se mais o quinino)
marcado por uma profunda assimetria no
acesso aos cuidados médicos, pois antes da Cataplasmas de farinha de mostarda e
existência do Serviço Nacional de Saúde os clisters com água e sabão eram remédios
mais carenciados, isto é, a maioria, fora caseiros para tentar diminuir a temperatura
Reflexos na publicidade
dos grandes centros só podiam contar com Anúncio publicado no jornal Fonte: Helena Rebelo de Andrade e David Felismino,
a assistência caritativa das Misericórdias O Século a 13 de outubro de 1918 «A Pandemia da Gripe 1918-1919», in Ler História 73
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EPIDEMIAS // 1918
14 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Feiras e feridos
Teatros e lojas
continuaram abertos,
mas feiras e romarias
foram proibidas (na
foto, mercado da
Ribeira, em Lisboa,
1918).
O Hospital da Cruz
Vermelha em Amarante
para combater a
bronco-pneumónica
verão. Mas recusou medidas como o fecho dispensados por um Presidente apostado Vermelha ou a Cruz Verde, as Cozinhas
de teatros e cinemas e, na sequência destes, numa relação direta com os cidadãos, ma- Económicas, e redes de iniciativa presi-
de igrejas, dos mercados, das fábricas, dos terializada mesmo em ações espetaculares dencial compostas por individualidades da
transportes, pois a vida social e económica como uma deslocação a Trás-os-Montes alta burguesia ou a Obra de Assistência 5
tinha de continuar, divertimentos incluí- num comboio de socorro presidencial em de Dezembro, que comemorava o golpe mi-
dos, para evitar «a desolação e o pânico». plena epidemia! Mas o conteúdo deste so- litar que o levou ao poder. Tudo se revelou
Quanto a outra medida clássica de combate corro é bem elucidativo dos limites da ação insuficiente. Os estudos monográficos, que
às epidemias, as desinfeções, recomendava do Estado: 20 sacos de açúcar (para xaro- estão a crescer neste momento, permitem-
moderação no seu uso, achando que eram pes), 30 com arroz, 50 cobertores (Sobral -nos uma visão das carências existentes e
um desperdício de recursos, mas não dei- et al., 2009). Um Estado a braços com o do sofrimento sentido na pandemia – que
xou de proceder a algumas em edifícios e esforço de guerra na Europa e em África, a também se revela nos raros relatos auto-
transportes.Em relação às medidas indivi- oferecer um auxílio débil aos seus cidadãos biográficos que evocam a pneumónica –,
duais – como lavagens do nariz e garganta pobres, que eram a maioria. bem como da fragilidade do Estado a quem
– também aconselhou moderação, pois não O Estado mobilizou os seus recursos, cabia combatê-la.
só duvidava da sua eficácia, como poderiam limitados, desde os financeiros, aos or- Um dos primeiros investigadores sobre
ter efeitos nocivos (Jorge, 1919). Quando ganizativos e logísticos. Votou subsídios a pandemia em Portugal, que trabalhou
o mal viesse, recomendava «cama, dieta, extraordinários, requisitou meios de trans- sobre o Algarve, transcreve o telegrama en-
tisanas e médico» (Jorge, 1918). porte, montou hospitais em edifícios públi- viado pelo governador-civil de Faro no pico
Não sabemos em que medida as opiniões cos – como o Liceu de Camões, em Lisboa da epidemia: «Exmo. Senhor Presidente
e diretivas do diretor-geral e comissário da – e mobilizou os seus agentes. Recorreu da República, Belém, Lisboa. Gravemente
luta contra a epidemia foram seguidas. Mas também aos apoios da Igreja, de particu- doente, solicito a V. Ex.ª proteção para o
parece existir correspondência entre algu- lares, fossem eles associações, como a Cruz Algarve. Epidemia varre povoações intei-
mas das suas opiniões sobre o isolamento ras havendo já cemitérios completamen-
e aquilo que ocorreu. Houve escolas, liceus te cheios, fazendo-se enterramentos em
e universidades encerradas, o parlamento campa rasa. Faltam medicamentos, arroz,
chegou a fechar, as comemorações oficiais açúcar, velas, petróleo, ma ssas, manteiga,
do 5 de Outubro foram canceladas (mas
As vítimas batatas e há três dias que não há pão (...).
não as particulares),no que foi interpretado principais eram Povo ordeiramente vem pedir-me pão e
pelos adversários do sidonismocomo um crianças vagueiam na rua chorando com
ataque ao regime republicano, mas conti-
os jovens adultos entre fome. (...) Rogo proteção V. Ex.ª acudindo a
nuou a haver ajuntamentos públicos, não os 15 e os 45 anos tanta miséria. A todo o momento cai gente
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EPIDEMIAS // 1918
16 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Atingiu sobretudo
as mulheres entre
VIANA
DO CASTELO os 15 e os 20 anos
3 306
993 BRAGA BRAGANÇA
5 977 VILA REAL 4 793
3 299 7 010
DISTRITO 1 718
ÓBITOS EM 1918 Em Bragança, Vila Real
e Guarda, a taxa de
ÓBITOS EM 1919 PORTO
Nos distritos de Guarda, mortalidade (número
12 658 Vila Real e Viseu, de pessoas mortas por
5 207 matou mais gente mil habitantes, por ano)
No início do século XX, registavam-se entre os 15 e os 20 anos subiu mais de 50%
PORTO
em Portugal 20 mortes por cada mil (cidade)
habitantes. Em 1918, passa para 41,4 mortes 3 981 AVEIRO
por cada mil habitantes 1 842 VISEU
5 027 8 751
1 443 2 529
GUARDA
As mulheres jovens foram mais 6 342
afetadas do que os homens 1 170
COIMBRA
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EPIDEMIAS // 1918
Vermelha Portuguesa
Embora vocacionada para atuar em teatros de guerra,
solar familiar cedido pela dama-enfermeira
Ana Guedes da Costa.
Em Lisboa, a CVP transportou doentes
para os vários hospitais e cadáveres para os
a instituição colaborou largamente com as autoridades cemitérios. No socorro à população lisboeta
durante as epidemias de 1918 e 1919 afetada pela gripe pneumónica, a organização
tinha dois postos de socorros gratuitos: um na
por Helena da Silva*
própria sede, na Praça do Comércio, com uma
E
média mensal de 1500 tratamentos em 1918; e
m 1918, perante as várias epidemias como em Coimbra ou Aveiro, ou montadas outro junto ao hospital da CVP na Junqueira,
que assolavam o País – nomeadamen- enfermarias para os tifosos, como na sede da com uma média mensal de 1600 tratamentos.
te gripe pneumónica e tifo –, a Cruz delegação em Âncora ou na Escola Conde Desde 1914, a CVP tinha também uma Casa
Vermelha Portuguesa, ultrapassando Ferreira, em Valongo. de Saúde em Benfica para tratar doentes par-
a sua missão inicial, colaborou com as Apesar de dificuldades financeiras e logísti- ticulares, com todas as condições necessárias,
autoridades civis e sanitárias prestan- cas, a delegação do Porto montou um hospital incluindo enfermeiras profissionais suíças.
do socorro à população. A Sociedade Portu- para militares nos pisos alugados no Hospital Mas foi sobretudo no Hospital Temporário
guesa da Cruz Vermelha (hoje Cruz Vermelha de Crianças Maria Pia, na Rua da Boavista. da Junqueira que a Cruz Vermelha Portugue-
Portuguesa, CVP) fora originalmente criada Em dezembro de 1917 chegaram os primei- sa acolheu as vítimas da pneumónica. A Vila
para socorrer militares feridos e doentes em ros militares, mas face à epidemia de tifo, o de Santo António (atual Centro Científico e
tempo de guerra, segundo os princípios de- hospital foi adaptado ao serviço antitifoso em Cultural de Macau) fora cedida pela condessa
finidos pela Convenção de Genebra, de 1864. fevereiro de 1918. Esta estrutura tinha um de Burnay, Maria Amélia de Carvalho Burnay
Tinha, um pouco por todo o País, delegações corpo clínico e administrativo bem delineado, (1847-1924), para que a CVP acolhesse ali
que organizavam as suas próprias atividades, desde pessoal para transporte de doentes, militares feridos e doentes regressados da
e que eram cerca de 40 em 1918. incluindo maqueiros, ao corpo de damas- Grande Guerra, até seis meses após o armis-
Como indicam os relatórios das atividades -enfermeiras encabeçado por Ana Guedes tício de novembro de 1918. Num primeiro
da Cruz Vermelha Portuguesa, as várias de- da Costa (1860-1947). Enquanto esteve aber- momento, estava em funcionamento apenas
legações responderam às epidemias de tifo e to, o hospital recebeu visitas de ministros o posto de socorros, com uma enfermaria e
de gripe pneumónica efetuando o transporte e do Presidente da República, Sidónio Pais. uma sala de cirurgia, enquanto prosseguiam
e tratamento de doentes, sobretudo no Porto, Apesar dos elogios, foi encerrado em 1918, as obras do hospital, que foi oficialmente
em Viana do Castelo e em Vila Real. Foram na sequência da ordem de despejo, tendo inaugurado em abril de 1917. Alguns dias
assim organizados hospitais de urgência, ainda recebido alguns doentes da primeira depois, o ministro da Guerra, Norton de Ma-
tos, visitou as instalações e convidou a CVP
Livro de a aumentar a capacidade daquela estrutura
registos
para descongestionar os hospitais militares
«A mãe faleceu
vítima de de Lisboa. Assim, reiniciaram-se por mais
pneumónica», alguns meses as obras, ficando o Hospital
lê-se na nota Temporário da Junqueira com uma capa-
de entrada de
cidade de 200 a 300 camas. Foi ali que se
uma criança no
formaram as damas-enfermeiras e o restante
ARQUIVO HISTÓRICO DA CRUZ VERMELHA
orfanato
pessoal sanitário que a CVP enviou para o
norte da França durante a Grande Guerra.
Uma enfermaria
para pneumónica
A primeira vaga de gripe pneumónica (maio-
-julho de 1918) não aumentou enormemente
a afluência ao hospital. Contudo, a situação
18 V I S Ã O H I S T Ó R I A
ARQUIVO HISTÓRICO DA CRUZ VERMELHA
D.R.
Ajuda Ana Guedes da Costa, chefe das Damas-Enfermeiras (sentada, à direita), montou um hospital na casa da família, em Amarante;
em Lisboa, a Cruz Vermelha criaria um orfanato
seria bem diferente na segunda. Em outubro, este hospital, que tinha sido estabelecido que, entre meados de outubro e novembro
o afluxo de pessoas era tal que a CVP decidiu para receber militares regressados dos tea- de 1918, mais de 80% das entradas foram
organizar uma enfermaria específica para tros de guerra, começou a admitir mulheres causadas pela gripe, sendo que um em cada
tratamento de doentes atacados de gripe em outubro. Os registos de entradas exis- quatro destes doentes acabou por falecer, com
pneumónica, cuja data exata de abertura é tentes estão incompletos, mas deixam saber uma mortalidade superior para as mulheres.
desconhecida. Numa tentativa de conter o ví- A gripe pneumónica, que alterou o funcio-
rus, essa enfermaria encontrava-se isolada do namento deste hospital, também acelerou o
restante hospital, com um pessoal específico seu encerramento. Com o aumento do número
que, quando dali saía, era desinfetado, sendo de crianças órfãs cujos pais eram vítimas da
até as refeições, loiças e talheres deixados na O Hospital Temporário pneumónica, a Cruz Vermelha foi recolhen-
entrada. Como o pessoal que trabalhava com do-as dos vários hospitais da capital, bem
os doentes de gripe corria risco de vida, foi
da Junqueira criou como de algumas casas particulares. Inicial-
decidido atribuir-lhe um conjunto de grati- uma enfermaria mente pensou-se encontrar uma instituição
ficações fixas e variáveis pelos seus serviços. para estes órfãos. No entanto, como o seu
As fontes consultadas no Arquivo Histórico
só para doentes número aumentava diariamente, contando
da Cruz Vermelha, em Lisboa, revelam que da pneumónica já com 67 crianças nos inícios de novembro,
foi decidido encerrar o hospital a 15 de de-
Crianças, zembro e adaptá-lo a orfanato. Foram assim
as vítimas
recolhidas mais de 700 crianças, de ambos
esquecidas
O Orfanato da os sexos, com idades compreendidas entre
Cruz Vermelha os 3 meses e os 14 anos. Passada a epidemia
abriu em de gripe pneumónica, algumas das crianças
dezembro de
1918 e deu
foram entregues a familiares, outras adotadas
abrigo a 700 por terceiros ou reencaminhadas para asilos
ou casas de educação. Em 1919, contudo, 200
ARQUIVO HISTÓRICO DA CRUZ VERMELHA
meninos e
meninas entre delas ainda estavam no orfanato da Junqueira.
os 3 meses e os
14 anos Assim, a CVP colmatou algumas das fa-
lhas existentes na assistência e minimizou
os efeitos das epidemias de tifo e de gripe
pneumónica na população civil.
VISÃO H I S T Ó R I A 19
EPIDEMIAS // 1918
O barco fúnebre
As coordenadas
geográficas do
sepultamento dos
mortos no mar
foi rigorosamente
registada, Em
baixo, postal da
Empresa Nacional
de Navegação a
Vapor para a África
Portuguesa, 1899)
do vapor ‘Moçambique’
Quase 200 pessoas – 43 num só dia
vapor fúnebre, à exceção dos quatro últimos
óbitos, ocorridos já com Lisboa à vista. «O
contramestre de corneteiros, Raúl (Porto), foi
o último a ser sepultado no mar, 54 milhas ao
– morreram de pneumónica no percurso largo de Sines, nas coordenadas 37.057’0’’N
10.000’0’’W.» Rui M. Pereira concluiu que
de Lourenço Marques a Lisboa, em outubro de 1918
morreram 181 militares, 12 civis e 2 tripu-
por Helena da Silva lantes, isto é, um quinto dos embarcados
E
em Lourenço Marques, sendo que só no dia
m 26 dias de viagem, 195 pessoas Lisboa como destino final. Porém, logo a 28 e 29 11 de outubro se contabilizaram 43 óbitos.
faleceram a bordo, vítimas da gripe de setembro efetuou uma primeira paragem na À chegada a Lisboa, a 21 de outubro, o
pneumónica. Segundo o antropólogo Cidade do Cabo, para abastecimento de água e vapor foi forçado a fundear a meio do Tejo,
Rui M. Pereira, «a trágica viagem do carvão, escala que marcaria de forma dramática frente à Torre de Belém. No dia seguinte, os
vapor Moçambique pode e deve ser a restante viagem. Poucos dias depois os primei- passageiros foram encaminhados para fica-
encarada como um epifenómeno de- ros engripados eram admitidos na enfermaria rem em quarentena no Lazareto, localizado
monstrativo do que foi o impacto da pande- do vapor, que dispunha de quatro camas, dois na Margem Sul. O desespero seria tal que,
mia em Portugal, de como o País estava, ou médicos (um deles regressava à metrópole)
não, preparado para suster o embate de uma e três passageiros civis que voluntariamente
epidemia tão virulenta». ajudaram no serviço, com dezenas de doentes
O vapor Moçambique, fretado à Companhia a apresentarem-se diariamente na enfermaria.
Nacional de Navegação, foi utilizado durante a A 6 de outubro, quando o vapor passava
I Guerra Mundial para transportar da colónia ao largo da fronteira sul de Angola, ocorreu
As mortes por classe
homónima até à metrópole civis e militares con- o primeiro óbito. António José Serrano, espelham as diferentes
valescentes ou em fim de comissão de serviço. A soldado da 12ª Companhia do Regimento
investigação realizada por Rui M. Pereira sobre a de Infantaria 23 de Coimbra, tinha apresen-
condições de transporte:
trágica viagem deste vapor apurou que, quando tado os primeiros sintomas pouco mais de morreram 30%
«zarpou de Lourenço Marques, a 25 de setem- 24 horas antes. Foi imediatamente sepul-
bro de 1918, estavam embarcados 633 militares, tado no mar e as coordenadas geográficas
dos soldados mas
186 passageiros civis e 133 tripulantes», tendo do sepultamento rigorosamente anotadas nenhum oficial
20 V I S Ã O H I S T Ó R I A
LISBOA
21 DE OUTUBRO LISBOA
Chega e é obrigado
a fundear no meio
do Tejo. No dia seguinte, LAZARETO
o vapor é encaminhado 22 DE JANEIRO DE 1919
para o Lazareto, Morre um dos
na margem sul soldados embarcados
do Tejo. Fica numa
longa quarentena
11 DE OUTUBRO
Num único dia
morrem 43 homens
ANGOLA
AO LARGO DA COSTA
SUL DE ANGOLA MOÇAMBIQUE
6 DE OUTUBRO morre o primeiro
homem. A partir desse dia,
e até 19, registam-se
todos os dias óbitos a bordo LOURENÇO
MARQUES
Sai a 25 de
CIDADE DO CABO, setembro de 1918
ao chegar a Lisboa, e perante a ideia de per-
(África do Sul)
manecer em quarentena, «alguns se atiram
Faz uma paragem, para
à água e desertam para terra, regressando abastecer de água e carvão,
às suas famílias, porventura contribuindo 28 e 29 de setembro
para a difusão mais acelerada da gripe que,
entretanto, já iniciara o seu segundo e mais
mortal surto». No Lazareto continuaram a
morrer alguns dos passageiros do vapor. Rui
M. Pereira referiu que o tempo de quarentena
foi longo, como prova a morte a 22 de janeiro Anúncios da Empresa Nacional de
de 1919 de um dos soldados embarcados. Navegação, 1912 e 1915 Rebatizada
Companhia Nacional de Nevegação em 1918,
deteve até 1922 o monopólio para a África
Doença seletiva
A tragédia no vapor Moçambique foi agravada M. Pereira, a virulência da pneumónica no de Convalescentes de Goba e da ilha Xefina,
pelas condições em que os soldados viajavam. vapor Moçambique deveu-se a dois fatores no sul de Moçambique. Muitos destes mi-
Rui M. Pereira insistiu que a pneumónica foi específicos. litares sofriam de disenteria e/ou de palu-
seletiva, não pela classe mas pelas condições Primeiro, o facto de o navio ter acostado dois dismo, doenças contraídas comummente
sanitárias em que cada uma foi alojada no dias na Cidade do Cabo, apontada como um nas frentes de batalha do Rovuma (norte de
navio. Na realidade, os soldados viajavam dos focos para o segundo surto, visto a gripe Moçambique), que lhes deu direito a uma
amontoados no porão, sem condições hi- propagar-se ali nomeadamente entre os traba- curta baixa médica (raramente de mais de
giénicas (partilhando as latrinas), mal ali- lhadores das docas. Além disso, algumas horas quinze dias) e, posteriormente, à ordem
mentados, sendo apenas transportados para depois, acostaram junto ao Moçambique dois de regresso à metrópole. Enfraquecidos,
a enfermaria quando se encontravam num navios britânicos que transportavam milita- «quando o vapor acostou em Cape Town
estado crítico, propagando assim a gripe aos res desmobilizados da frente europeia, onde tornaram-se pasto fácil do surto mais viru-
camaradas. Os óbitos por classe espelham a pneumónica grassava. Por isso, não foi por lento da pandemia de pneumónica».
bem estas diferentes condições de transporte: coincidência que sete dias depois de deixar a Ricardo Jorge tinha alertado para a impor-
30,5% dos soldados e 14,3% dos sargentos fa- Cidade do Cabo tenha ocorrido o primeiro óbito tância da organização sanitária em campa-
leceram, enquanto não se registou nenhuma por gripe a bordo do Moçambique. O período nha na sua conferência para os militares, em
morte entre o corpo de oficiais, que ocupava de incubação era então de quatro a sete dias, Tancos. Rui M. Pereira concluiu que se essas
os camarotes individuais do convés superior. dando-se o óbito em menos de 48 horas. recomendações «tivessem sido tomadas em
Além dos fatores gerais como a ausência O segundo ponto deve-se ao facto de 85% consideração, em muito se teria minimizado
de boas práticas sanitárias, a insalubrida- dos militares falecidos a bordo terem em- o número de baixas por doença», nomeada-
de ou a alimentação deficiente, para Rui barcado depois de passarem pelos Depósitos mente por pneumónica.
VISÃO H I S T Ó R I A 21
EPIDEMIAS // 1918
RICARDO JORGE
O sr. Saúde Pública
A partir do Conselho Superior de Higiene, organismo de Estado criado
com a implantação da República, o higienista esteve aos comandos
da gestão das medidas sanitárias e da informação veiculada para os jornais
por Maria de Fátima Nunes*
R
icardo Jorge, homem do Porto, for- respiratórias, algo que não o apanha des- lar o pânico e impor medidas sanitárias.
mado na respetiva Escola Médico prevenido, ou incauto. Poderemos falar de O Diário de Notícias e O Século são dois
Cirúrgica, repartiu os seus escritos epidemias no laboratório da História de fi- excelentes arquivos de factos nacionais de
pelos mais variados domínios, desde nal do século XIX e XX através de Ricardo vários quadrantes e de notícias internacio-
a higiene pública à história da medi- Jorge? Já no Porto, em 1894, apreendera o nais que chegavam das agências noticiosas
cina e à crítica literária. Teve uma ful- fenómeno da peste de Lisboa, e em 1899, na pelo telégrafo. No caso da pneumónica, ti-
gurante carreira de protagonista nos sistemas zona ribeirinha portuense, efetua os registos nham como propósito noticiar oficialmente
institucionais de Saúde Pública em Portugal, minuciosos para o relatório que entregará às as ocorrências geográficas ao seus leitores,
a par de uma intensa atividade científica que o autoridades sanitárias municipais, expondo a divulgar a visão oficial das autoridades sani-
consagrou como epidemiologista e higienista. situação vivida, propondo medidas de higiene tárias, cujo protagonismo estava centrado na
Em 1918, viveu o surto de pneumónica como pública e urbana e defendendo melhores con- figura do diretor-geral de Saúde Pública, na
membro do Conselho Superior de Higiene, dições de vida para a população, uma vez que época professor da Faculdade de Medicina
posto que lhe deu projeção nacional e inter- as epidemias entram sempre mais depressa da Universidade de Lisboa, com um largo
nacional no campo da Saúde Pública, de que nos núcleos de miséria social. trabalho nacional e internacional no campo
se tornou referência incontornável. Tinha Em 1918 e 1919, sob a configuração de re- das epidemias.
já prestado serviço público de higienista ao latórios oficiais existe um terreno comum: Em 25 de setembro de 1918, o Diário de
enfrentar, sob o ponto de vista de política apontar os contextos políticos, económicos, Notícias (DN) publica na primeira página
sanitária, o surto epidémico de Lisboa de militares e por vezes ideológicos que contri- a nota oficial de Saúde Pública, de Ricardo
1894 e o surto de peste do Porto de 1899, buem para a rápida progressão da doença. Jorge: «Epidemia. A influenza pulmonar.»
quando ruma a Lisboa e contribui para fun- A epidemia aparece como um fenómeno negro Assim se designava oficialmente a nova
dar, em 1899, o Instituto Central de Higiene, decorrente de um processo mundial veiculado onda epidémica, afastando-a dos referentes
que passa a ter o seu nome a partir de 1929. por um discurso higienista, de biopolítica, com de pestes (como a bubónica do Porto) e de
Permanece na capital, envolvido em redes ações consertadas dentro de Estados. febres com passado recente (cólera, malária),
de saúde pública, até 1939, ano da morte. nas quais Ricardo Jorge já tivera um papel
No que toca à pandemia de 1918, sigamos Reflexos nos jornais de intervenção pública. São apresentados
duas publicações oficiais de Ricardo Jorge, de O grande desafio de um discurso de Esta- objetivos práticos e urgentes a atingir pelos
junho de 1918 e março de 1919: A Influenza. do sanitário é noticiar, aconselhar, contro- cidadãos no quotidiano para impedir a conta-
Nova Incursão Peninsular. Relatório apresen- minação, como por exemplo evitar os beijos.
tado ao Conselho Superior de Higiene, sessão Já impedir a circulação de pessoas e bens
de 18 junho 1918, Lisboa, Imprensa Nacio- era uma medida ultrapassada e desfasada
nal, 1918; e La Grippe, Rapport préliminaire Ricardo Jorge escolhe da realidade contagiosa deste surto gripal.
présenté à la Commission Sanitaire des Pays a palavra «pneumónica» As notícias tinham como duplo objetivo in-
Aliés, dans la session de mars 1919. Lisbonne, formar sobre as ocorrências de pneumónica
Imprimerie Nationale, 1919. para designar a nova pelo País e, sobretudo, evitar o pânico social.
A partir de setembro de 1918, na imprensa, estirpe de gripe que Tratava-se de uma epidemia silenciosa que
Ricardo Jorge escolhe a palavra «pneumóni- contrastava com as notícias ruidosas e de
ca» para designar uma nova estirpe de gripe afetava gravemente grande impacto que chegavam da frente de
que afetava gravemente os pulmões e as vias as vias respiratórias batalha da Grande Guerra.
22 V I S Ã O H I S T Ó R I A
AURÉLIO DA PAZ DOS REIS/CENTRO PORTUGUÊS DE FOTOGRAFIA
Ricardo Jorge no laboratório O epidemiologista combateu a pandemia de 1918-19 como membro do Conselho Superior de Higiene
O DN permite traçar a geografia da doen- o DN utiliza a sua rede telegráfica para no- tempo importava viver de forma isolada de
ça, difundindo informação sobre o número ticiar a geografia da epidemia, de sul para contactos sociais. A medida impunha-se por
de doentes nos vários distritos do País. Em norte, de Espanha até ao Atlântico, tendo razões médicas e sanitárias, mas os tempos
junho, entrevistas a médicos desdramatizam em conta que foram estas duas das principias de perturbação social e política – problemas
o contexto de doença. Anuncia-se a disponi- entradas. Surgem igualmente as primeiras com a distribuição de senhas de racionamen-
bilização de um pavilhão especial no Hos- medidas sanitárias profiláticas da atuação to, inflação, escassez de bens alimentares
pital do Rego, em Lisboa, para albergar os de Ricardo Jorge: proibição de feiras e ro- – adensavam o clima negro, tendo em conta
que venham a contrair o vírus da gripe. Este marias e redução de missas e atos litúrgicos, as críticas à ditadura de Sidónio Pais, a par-
hospital, criado em 1906 pelo governo de mantendo-se o cumprimento das normas ticipação portuguesa na Grande Guerra e o
Hintze Ribeiro, fora pensado de acordo com sanitárias do texto de junho de 1918. Estas colapso do Corpo Expedicionário Português
os princípios do Estado sanitário e higienista, medidas aconselhadas por Ricardo Jorge em (CEP) em abril de 1918, em La Lys.
tal como é amplamente referido numa revista nota oficial de 25 de setembro de 1918 foram No jornal O Século, o mês de outubro de
da época por Curry Cabral. noticiadas pelo DN, que tinha também como 1918 foi o período mais rico em informações
Porém, em setembro o mundo «parece finalidade o controlo da opinião pública para de primeira página. A par dos comunicados
desmoronar-se», surgindo as primeiras notí- evitar o pânico social generalizado e incutir oficiais da Direção-Geral de Saúde Pública,
cias de vítimas de pneumónica. Com o clima hábitos de comportamentos coletivos e in- o matutino difundia medidas profiláticas
a registar a baixa de temperatura de outono, dividuais adequados. Por breve intervalo de assentes na prevenção e fazia publicidade a
VISÃO H I S T Ó R I A 23
EPIDEMIAS // 1918
24 V I S Ã O H I S T Ó R I A
traça o rasto da infeção na cidade: desses nove
infetados, um «não deu caso nenhum de con-
tágio porquanto as condições habitacionais
da sua família eram razoáveis», ao contrário
dos outros, que infetaram muita gente. No
bairro da Sé, há seis casos em fevereiro e 96
em março. «É a freguesia de Braga onde se
ARQUIVO HISTÓRICO DA CRUZ VERMELHA
Um país tífico
tará Ricardo Jorge.
A doença combatia-se com vigilância e
higiene. Postos de despiolhamento foram
montados nos hospitais para tifosos. «Na sala
Transmitido pelo piolho, o tifo afetava as classes mais de despir e despiolhamento, um empregado
pobres. Em 1918, Porto e Braga sofreram especialmente procede à depilação do indivíduo portador de
parasitas. Este mesmo empregado, depois de
por Cláudia Lobo o indivíduo estar despido, fricciona-o, nas
‘P
regiões pilosas, com um líquido insecticida
ortugal é um país tífico.» A fra- pessoas por ano – mas o número subiria para (mistura em partes iguais de azeite, petróleo
se é de Ricardo Jorge, dita em 1725 em 1918 e para 1252 em 1919. e aguarrás). O operando passa depois à sala
1918 a propósito do surto que de banho, onde é lavado com água quente e
afetava o Porto desde dezembro Porca debaixo da cama sabão», lê-se na tese de Eurico de Almeida. As
de 1917, antes do aparecimento Terá sido a partir desse foco infeccioso das «fe- roupas eram desinfetadas numa estufa antes
da pneumónica. O tifo, doença bres da Póvoa» que se iniciou, em dezembro de se lhe serem devolvidas. «Todo o despio-
infetocontagiosa causada por uma bactéria de 1917, o surto do Porto: muitos pescadores lhado recebia, depois de banhado, uma cédula
transmitida ao homem através do piolho, foi tinham acorrido a Matosinhos para a pesca da pessoal, com validade por cinco dias. Depois
tão persistente nas comunidades piscatórias sardinha. O tifo exantemático, ou tabardilho, de expirado esse prazo, passava novamente
a norte do Porto (Póvoa de Varzim, Vila do chega depois a Braga através de nove doentes pelo posto, tantas vezes quantas as necessá-
Conde, Matosinhos), que lhe chamavam «as que vão do Porto. Numa tese de doutoramen- rias até ser encontrado sem parasitas.»
febres da Póvoa». A doença, identificada ape- to apresentada à Faculdade de Medicina do A brigada de desinfetadores avançava para
nas em 1904 por um médico como tifo exante- Porto em 1920, o médico Eurico de Almeida as habitações dos tifosos: as roupas e enxergas
mático, terá chegado a Portugal no século XV eram recolhidas para serem desinfetadas;
e atacava sobretudo nos períodos de grande o chão era baldeado com um soluto de cal
agitação, como as Invasões Francesas ou as clorada e as paredes aspergidas com creolina.
Lutas Liberais. Causa temperatura elevada,
«A aglomeração À polícia sanitária cabia intimar todos os
prostração e debilidade e é reconhecível, num de gente pouco contactos dos doentes a irem ao posto de des-
segundo momento, pelas manchas vermelhas piolhamento e fazer «rusgas a bairros sujos».
de formato irregular e tamanhos variáveis na
limpa em casas No final de 1918, a doença tinha matado
pele, sobretudo nos pulsos e na parte lateral de péssimas condições 1203 pessoas, 19,2% dos infetados. Voltaria em
do abdómen. Se não for tratada, provoca 1919, mas com uma taxa de mortalidade mais
mortalidade de 10 a 30% dos atingidos. Na
habitacionais são baixa: 9,7 por cento. O último caso registado
década de 1910, morriam de tifo cerca de 50 explicação de peso» em Portugal data de 1950.
VISÃO H I S T Ó R I A 25
EPIDEMIAS // 1918
De ‘Presidente-Rei’
a monarquia
sem monarca
Enquanto lavrava a pneumónica, Portugal
conheceu uma ditadura de um ano e uma breve
restauração monárquica parcial
A
jovem República Portuguesa, direta- balança por pender em definitivo para o lado
mente envolvida na I Guerra Mun- sublevado quando uma delegação da União
dial desde 1916, tinha tropas a com- Operária Nacional lhe ofereceu a colaboração
bater contra a Alemanha no Norte dos seus sindicatos e grupos armados. Nos
de França e em África, enquanto dias imediatos, aproveitando a confusão,
na retaguarda o governo do Partido o povo lisboeta redobrou a frequência e a
Democrático se via a braços com uma onda intensidade dos saques a estabelecimentos,
greves e uma vaga de assaltos a mercearias mas, logo que situação se normalizou, a Jun-
e padarias motivada pela falta e a carestia de ta Revolucionária que tomou as rédeas do antes contra a participação de Portugal no con-
alimentos e pelo açambarcamento. O Presi- poder antes da posse de um novo governo flito ao lado da Inglaterra e tem sido acusado
dente da República, Bernardino Machado, e o pôs cobro a estas situações. de não promover o roulement das tropas nas
chefe do Governo, Afonso Costa, estavam de trincheiras. Para legitimar a tomada do poder,
visita à frente de batalha, em França, quando, A ‘República Nova’ submeteu posteriormente a plebiscito a sua
no meio da angústia, foi desencadeado o golpe Com a formação de um executivo em que candidatura à Presidência da República, numa
protofascista de Sidónio Pais. participaram políticos «unionistas», o País inédita ida às urnas em que toda a população
Após várias reuniões conspirativas, com entrou então numa nova fase da sua vida masculina pôde participar. A «República Ve-
destaque para as que decorreram na redação política, de recorte presidencialista segundo lha», ou seja, o anterior regime liberal em que
do jornal A Luta, afeto ao Partido Unionista, o modelo americano, que ficaria conhecida pontificava o Partido Democrático, apenas
de Brito Camacho (na oposição), a agitação por «República Nova». permitia que votassem os (po (poucos) homens
veio para a rua, protagonizada por militares Sidónio Pais fora representante
ntante diplomático alfabetizados, para não condi
condicionar o senti-
e civis. À frente do movimento estavam o de Portugal em Berlim até aoo corte de relações do do sufrágio à manipulação
ma dos
major do Exército e lente de Matemática Si- com a Alemanha e a declaração
aração de guerra. párocos e dos caciques.
ca
dónio Pais, de 45 anos, políticos «unionistas» Germanófilo assumido, manifestara-se
anifestara-se já Encerrando o parlamento
ESPÓLIO FERREIRA DA CUNHA/ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA
e, curiosamente, Machado Santos, «pai» e a pretexto do primeiro sur-
herói do 5 de Outubro de 1910. Malhas que to de gripe pneumónica
pn que
a revolução tece. então se fez sentir
s - mas na
Tal como aquando da revolução republica- verdade por razões
r políticas
na de sete anos antes, os golpistas de 7 de de-
Germanófilo, Sidónio
ónio -, Sidónio assu
assumiu pessoal-
zembro de 1917 escolheram a Rotunda (praça -se
Pais manifestara-se mente a chefia
chef do governo,
Marquês de Pombal) para concentrarem as fundou o Partido Na-
suas forças. Aderiram as principais unidades
já antes contra a ciona
cional Republica-
militares da capital, que se entrincheiraram e participação no, reatou os laços
ficaram a aguardar a adesão de grupos civis. entre o Estado e
ent
As forças lealistas tentaram assaltar a posição
de Portugal na a Igreja católica
insurreta, mas foram repelidas, acabando a Grande Guerra pondo fim ao
p
26 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Banho de multidão
Sidónio Pais era,
normalmente,
aclamado com
entusiasmo nas
ruas. Aqui, durante
uma visita à
Assistência 5 de
Dezembro, setembro
de 1918
conflito aberto entre esta e a República, dirigente republicano português, sendo ele lo negro, quando o tempo já não era propício
propugnou a lei e a ordem e apoiou-se na assumidamente germanófilo. Finalmente, a garbosas cavalarias, punha e tirava o capote
força das armas. quase caricato é o facto de a Igreja católica com movimentos enérgicos e fazia-se rodear
Tudo menos consensual, o «Presidente-Rei» o ter visto como salvador da fé, após anos de uma corte de cadetes que reproduziam os
(como lhe chamou Fernado Pessoa, que foi de anticlericalismo governamental, sendo seus gestos e tiques. A sua maneira de estar
seu admirador) simbolizou a metade direita ele um não praticante do catolicismo e até em público parecia ser inspirada no modelo
do País nesse tempo conturbado em que ardia possivelmente um agnóstico. dos próceres latino-americanos.
uma fogueira de paixões alimentada pela A sua popularidade está também direta-
lenha da penúria. ‘One man show’ mente ligada à pandemia da pneumónica.
Poço de contradições, o novo homem-forte Amado por uns e odiado por outros, este Era habitual encontrá-lo a visitar hospitais
do País era maçom e afirmara-se democrata político a seu modo inovador ficou na me- onde se encontravam internados doentes
desde a juventude, o que não o impediu de mória como um protagonista do então ainda afetados pela terrível doença, demonstrando
vir a ser acusado de ditador. Depois, embora incipiente espetáculo mediático. Num tempo uma coragem simultaneamente física e mo-
tivesse sido, ainda no tempo da monarquia, em que não havia televisão nem rádio e em ral, semelhante à de D. Pedro V no seu tempo.
membro do Partido Republicano Português, que, num país com 80% de analfabetos, os Sensibilizado por causas sociais de tipo assis-
acabou na prática por favorecer a possibilida- leitores de jornais eram muito poucos, ele tencialista, favoreceu a distribuição gratuita
de de uma eventual restauração monárqui- furou todas as barreiras impeditivas da co- de alimentos que ficaria conhecida por «sopa
ca. Em terceiro lugar, sendo embora filiado municação e tornou-se porventura o chefe de dos pobres» ou «sopa de Sidónio», e a sua
num partido (o Unionista, de Brito Camacho) Estado mais intensamente amado desde D. presença na inauguração dessas «cozinhas»
criou um regime que parecia ser contra os Pedro V (o popular monarca que morreu de muito contribuiu para cultivar a imagem de
partidos e acabou por fundar ele próprio um febre tifoide aos 24 anos, em 1861) e a mais Presidente generoso e amigo dos mais des-
novo partido. Não menor contradição foi a de palpável encarnação do mito sebastianista. favorecidos. O seu governo libertou grandes
este homem com uma formação positivista, Durante as suas digressões de norte a sul, somas para o combate à pneumónica e ao tifo
militar e matemático, ter sido idolatrado por marcadas por banhos de multidão, mostra- que também atingiu o País por essa altura.
muitos como um messias. Curiosa é tam- va-se fardado de general, embora possuísse Progressista na primeira parte da vida e
bém a circunstância de a Inglaterra o ter apenas a patente de major e tivesse sido até depois «revolucionariamente» conservador,
acolhido como o não fez a nenhum outro então sobretudo um civil. Montado num cava- Sidónio prenunciou um figurino destinado
VISÃO H I S T Ó R I A 27
EPIDEMIAS // 1918
28 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Saída da urna dos
Paços do Concelho
O funeral do
«Presidente-Rei»,
a 21 de dezembro,
teve grande
ANSELMO FRANCO/ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA
participação popular
admiração) ao grão-mestre Magalhães Lima. ram favoravelmente. Porém, os membros imponente parada militar. No edifício do
É, no entanto, mais natural que, a ter uma das Juntas Militares conservadoras iniciaram Governo Civil do Porto passou a funcionar
filiação secreta, o ex-sargento pertencesse movimentações exigindo «um governo de a Junta Governativa do Reino, presidida
à Carbonária, uma organização mais com- força». Contavam para isso com o apoio dos por Paiva Couceiro. O deposto rei D. Ma-
patível com o seu extracto socioprofissional. civis que giravam em torno do Integralismo nuel II não só acompanhava tudo com a
O assassino de Sidónio morreria em 1946, Lusitano, um movimento de intelectuais de máxima atenção a partir do seu exílio em
com 52 anos, internado no Hospital Miguel extrema-direita onde se destacavam António Inglaterra como dera mesmo luz verde à
Bombarda. Foi oficialmente considerado Sardinha, Rolão Preto, Pequito Rebelo, Hipó- movimentação monárquica.
um doente mental, tanto pela «República lito Raposo, Luís de Almeida Braga e outros. A ideia dos insurretos era obviamente
Velha» restaurada após o desaparecimento Quando tomou posse o governo republi- estender as suas movimentações a todo
de Sidónio como, em seguida, pela Ditadura cano constitucional, chefiado por Tamagni- o País, mas as Juntas Militares de Lisboa
Militar e pelo Estado Novo. ni Barbosa, o «eterno» ativista monárquico mostraram estar divididas. Contudo, a 22
Paiva Couceiro, líder das incursões antirre- de janeiro Aires de Ornelas, à frente de um
A ‘Monarquia do Norte’ publicanas de 1911 e 1912 em Trás-os-Mon- destacamento militar de uns 70 homens,
Ainda os tiros não tinham deixado de ecoar tes, partiu para o Porto, pois achava que ali hasteava a bandeira azul e branca no posto
na Estação do Rossio e já, na outra ponta da havia mais condições para levar a avante a de telegrafia sem fios (TSF) situado no alto
linha férrea que dali partia, era restaurado o restauração da monarquia. Seguiram-no, de Monsanto (onde ainda não havia Parque
regime monárquico. Com efeito, foi no Porto, dias depois, António Sardinha e Luís de Florestal). Ali acabariam por ser cercados
a 19 de janeiro de 1919, que a monarquia Almeida Braga. A monarquia foi efetiva- por militares e civis leais à República, sor-
foi de novo proclamada, pouco mais de oito mente proclamada e «selada» com uma rindo sem dificuldades a vitória às forças
anos depois do seu derrube na capital. Mas republicanas no recontro que ficaria conhe-
seria efémero esse fogacho dos setores que cido por Escalada de Monsanto.
sonhavam com o regresso às instituições do Mas não terminou aqui a pequena guerra
passado. civil de 1919. Só a 13 de fevereiro, depois de
Logo depois da morte de Sidónio, os de- A frase «Morro bem, combates no litoral centro do País, é que as
fensores da «República Velha» restauraram a forças republicanas entraram no Porto e pu-
Constituição de 1911 e formaram um governo
salvem a pátria» seram termo à efémera Monarquia do Norte.
nos moldes anteriores à experiência ditato- foi posta na boca Os políticos selavam – provisoriamente, é
rial. Puderam fazê-lo com relativa facilidade, certo – a paz, mas a pneumónica, essa, ata-
porque muitas unidades militares de Lisboa
do Sidónio moribundo cava de novo e fazia ainda mais numerosas
e a guarnição de Santarém se pronuncia- pelo Repórter X vítimas.
VISÃO H I S T Ó R I A 29
EPIDEMIAS // 1918
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Soldados nas trincheiras, 1918 O vírus pode ter sido trazido pelas Forças Expedicionárias Americanas
Q
uando a «gripe espanhola» chegou a Sousa, partindo do livro de Alfred W. Crosby, do vírus pelo mundo devido à concentração de
Portugal, em maio de 1918, o País vivia America’s Forgotten Pandemic (2003). Na militares, sua circulação através das licenças,
já dias difíceis, numa situação agra- realidade, na guerra contra a gripe não houve mobilização e desmobilização e ainda pelas
vada pelo envolvimento na I Guerra vencedores, apenas vencidos, para quem o migrações de civis afetados pelo conflito. «É
Mundial (1914-1918); esta conjuntura esquecimento era uma forma de proteção, uma das piores pragas que pode cair sobre os
dificultou a implementação de respos- até porque a pandemia desapareceu sorra- exércitos beligerantes», afirmou Ricardo Jor-
tas, levando ao desastre sanitário. teiramente, sem uma data de Armistício para ge em 1918. Há outros pontos comuns entre
Os dois fenómenos mundiais, a Grande comemoração futura dos vencedores, como os dois fenómenos, como a origem do vírus.
Guerra e a pandemia de gripe, marcaram de no caso da I Guerra Mundial.
forma irreversível o século XX. Apesar de a Estes dois fenómenos globais, dramáticos Origem do vírus
gripe ter causado mais vítimas do que quatro e transversais à sociedade, foram tratados Inicialmente, o vírus era desconhecido e a
anos de guerra, a primeira seria rapidamente separadamente durante décadas, como se comunidade médica, com os meios técnicos
esquecida, ao invés do conflito. Esta situação fossem dois mundos à parte. Contudo, hoje e científicos existentes, debateu sobre o que
valeu-lhe a alcunha de «Pandemia Esqueci- não restam dúvidas de que estão interligados. causaria tantas vítimas num curto período.
da», atribuída por José Manuel Sobral, Maria A maioria dos investigadores concorda que a Na altura surgiram várias teorias, incluindo
Luísa Lima, Paula Castro e Paulo Silveira e guerra contribuiu para acelerar a propagação a ideia de uma guerra biológica. Para os Alia-
30 V I S Ã O H I S T Ó R I A
concentrou diversas estruturas hospitalares
e consequentemente milhares de militares
feridos, gaseados e doentes (incluindo por-
tugueses), tal como animais para consumo,
reunindo as condições para a propagação de
vírus, como o que causou a pandemia de gripe
de 1918-19. Uma terceira hipótese, menos
provável, aponta como origem a China, tendo
posteriormente o vírus chegado à Europa
através dos trabalhadores chineses utilizados
como mão-de-obra durante a Grande Guerra,
principalmente pelos britânicos e em menor
número pelos franceses.
ARNALDO GARCEZ/ARQUIVO HISTÓRICO-MILITAR
VISÃO H I S T Ó R I A 31
EPIDEMIAS // 1918
da teoria microbiana e do desenvolvimento de pletos, pois apresentam apenas os óbitos Fora de combate Um
dos dois hospitais de
antissépticos. Como salientou Mark Harrison ocorridos em França, deixando de fora os
sangue do Exército
no livro The Medical War (2010), os inúme- prisioneiros de guerra portugueses. Por outro português em França,
ros avanços na medicina militar permitiram lado, os limites temporais não correspondem onde os feridos
delinear um retrato relativamente positivo no à pandemia de gripe, que se prolongou em eram tratados por
períodos mais longos,
controlo das doenças, sobretudo em contex- abril e maio de 1919. Por último, sabemos que e uma enfermaria; em
to europeu, exceção feita à gripe. A Grande haveria dificuldades em efetuar uma análise baixo, um cemitério
Guerra foi um dos primeiros conflitos em que estatística correta, pois a correspondência da de ingleses, onde
o número de mortes por doença foi inferior época menciona que muitos casos não eram foram sepultados os
primeiros portugueses
aos óbitos resultantes dos combates, tam- atribuídos à gripe ou influenza, o que coloca mortos na guerra
bém devido à violência da guerra industrial. em causa estes números.
Na ausência de antibióticos que pudessem Numa tentativa de colmatar estas falhas,
controlar as complicações respiratórias ou contabilizámos as mortes que poderiam ser
de uma vacina preventiva, os médicos foram atribuídas à gripe entre abril de 1918 e maio
incapazes de pôr fim a esta pandemia nos de 1919, partindo dos livros de óbitos dos resposta dos serviços sanitários e ao elevado
vários exércitos. militares do CEP existentes no Arquivo His- número de mortes na segunda vaga. Efetiva-
Este quadro aplica-se ao Corpo Expedicio- tórico Militar em Lisboa. Concluímos assim mente, as autoridades e as organizações volun-
nário Português enviado em 1917 para o norte que haveria pelo menos 146 óbitos causados tárias e profissionais de saúde estavam então
da França, mas não às sucessivas expedições pela gripe pneumónica, isto é, 6,7% do total concentradas no conflito, o que dificultou a
enviadas para Angola e Moçambique desde das mortes do CEP, incluindo prisioneiros intervenção das autoridades administrativas e
1914. As campanhas africanas ficaram marca- de guerra. A análise revelou ainda três picos, sanitárias, bem como a articulação com outros
das por problemas estruturais que causaram correspondentes às diferentes vagas: julho e agentes sociais aptos a prestar cuidados de
a morte a um grande número de homens, novembro de 1918 e abril de 1919. Confirma- saúde à população.
sobretudo por doenças como o paludismo e -se assim que, entre as doenças, a gripe foi a Também no caso de Portugal sentiu-se a au-
as disenterias. segunda causa de morte no CEP, ultrapassa- sência de profissionais de saúde, mobilizados
Quanto ao Corpo Expedicionário Portu- da pela tuberculose, e que teve um impacto em França e África. Além disso, a participação
guês (CEP), as mortes por combate surgem menor do que noutros exércitos. no conflito agravou a instabilidade política e
em maior número, seguindo-se as mortes Várias hipóteses podem ser apresentadas os conflitos sociais, com as crises da carestia
por doenças ou acidente. Neste grupo, des- para esta situação, como o facto de a partir de vida e as carências de bens de base que
taca-se a tuberculose, o grande flagelo das de meados de 1918 o exército português estar ajudaram à propagação do vírus.
tropas portuguesas em França, e logo depois menos presente nas linhas da frente, onde
a gripe pneumónica. Tal como em Portugal, a as condições de vida eram mais propícias à Na frente interna
primeira vaga foi vista como uma gripe banal, propagação de doenças. Ao mesmo tempo, o Relativamente à situação política em Portu-
enquanto a segunda originou um grande nú- número de homens era menor, havendo mais gal, convém recordar que eram grandes as
mero de baixas às estruturas de saúde e uma médicos e restante pessoal e ainda estrutu- expetativas de mudança e de modernidade
maior mortalidade. ras de saúde apetrechadas que responderam com a implantação da República em 1910.
Segundo o relatório apresentado em 1919 como era possível à epidemia gripal. Também Contudo, a realidade foi bem diferente e
por Ricardo Jorge à Comissão Sanitária dos podemos referir que as tropas portuguesas a desilusão real, como no caso do alarga-
Países Aliados, as tropas portuguesas «foram não estiveram entre os primeiros focos da mento do direito de voto, resultando numa
pouco dizimadas pela influenza», referindo epidemia, o que permitiu ter uma ligeira sucessão de governos e de presidentes da
38 óbitos até dezembro de 1918, partindo dos vantagem e seguir as medidas profiláticas República com conflitos parlamentares e
dados fornecidos por António Vieira Barradas, adotadas pelos exércitos aliados. uma revolução popular em dezembro de
médico responsável pela estatística médica do Um outro ponto a ter em conta é que a 1917, que levou Sidónio Pais ao poder. As
CEP. No artigo que publicou em 1920, tam- importante mobilização médica na «guerra divergências e as cisões internas entre re-
bém Barradas concluiu que a gripe teve um total» também contribuiu para a propagação publicanos eram evidentes, como sobre a
«eco não muito acentuado» e menos vítimas do vírus da gripe, ou melhor, não permitiu participação portuguesa na Grande Guerra,
do que nos exércitos britânico e belga, sem uma resposta tão rápida e eficaz quanto seria que apenas enfraqueceu a República. Em
motivo aparente, contabilizando 51 óbitos expectável, afetando negativamente as po- 1918, houve várias tentativas de pôr fim ao
em França até 31 de março de 1919. pulações civis. O historiador francês Patrick regime sidonista que levaram à instituição
Contudo, estes dois estudos estão incom- Zylberman chamar-lhe-ia o «holocausto no do «estado de sítio» em outubro, quando a
holocausto» referindo-se à incapacidade de pneumónica já grassava em Portugal. Se-
32 V I S Ã O H I S T Ó R I A
ARQUIVO HISTÓRICO-MILITAR
guiu-se o assassinato do presidente Sidónio conflito e os consequentes aumentos dos pre- rias revelaram-se ineficazes para melhorar a
Pais em dezembro de 1918 e, no mês se- ços e dificuldades de aprovisionamento, em saúde da população, sendo a cobertura médi-
guinte, a contrarrevolução fracassada para meados de 1918 deu-se uma crise de escassez ca e hospitalar muito deficitária. Segundo o
restaurar a monarquia, que culminou com de bens, e Portugal viu-se obrigado a racionar Anuário Estatístico, em 1917 Portugal tinha
os partidos da «República Velha» no poder. os bens alimentares. 231 hospitais civis, sendo a grande maioria
Em termos económicos e financeiros, a Re- Como os salários não acompanhavam a in- administrados pelas misericórdias, mesmo
pública herdou os problemas financeiros da flação, aumentaram os protestos da população se com fundos estatais. Existiam ainda 34
monarquia, nomeadamente o défice orçamen- contra a carestia de vida e a falta de produtos hospitais militares, um hospital da marinha,
tal, agravado pelo aumento da despesa pública alimentares. Em abril de 1918 criaram-se as dois hospitais de alienados e um hospital
na sequência da intervenção na Grande Guer- «sopas dos pobres» para acalmar a população. colonial, mas, havendo zonas do País sem
ra. Numa tentativa de equilibrar as contas, a Apesar da violência e da repressão, entre 1917 estruturas hospitalares ou com estruturas
nova moeda (o escudo) foi constantemente e 1918 contaram-se mais de 200 greves e a de pequena dimensão, estes rapidamente
desvalorizada e foram contraídos sucessivos greve geral de 18 de novembro de 1918, em se revelaram insuficientes face à epidemia
empréstimos, incluindo um empréstimo plena pandemia de gripe. A população por- de gripe. Também o número de farmácias,
de guerra junto da Grã-Bretanha. Portugal tuguesa, maioritariamente rural, analfabeta de pessoal médico e de enfermagem estaria
continuava a falhar a sua industrialização e e pobre, vivia então em habitações insalubres, muito longe de responder às necessidades
modernização, com reduzidas taxas de cres- condições propícias para a propagação de um da população, numa situação agravada pela
cimento. A indústria conserveira foi uma das conjunto de doenças. I Guerra Mundial, com a mobilização mas-
que mais beneficiaram com a guerra. Contu- Efetivamente, em Portugal, a tuberculose siva de profissionais de saúde, bem como
do, a agricultura manteve-se como a principal e a sífilis eram então verdadeiros flagelos, pela falta de bens e aumento dos preços
atividade, com uma produção em reduzida agravados pela recorrência de surtos epidé- nas farmácias.
escala como no caso dos cereais, que Portugal micos de varíola, febre tifoide e de tifo exan- Foi neste contexto que a população, mal
importava em grande quantidade. Perante o temático. As tentativas de reformas sanitá- alimentada e empobrecida, teve de fazer frente
ao vírus. Num momento crucial, Portugal
vivia a braços com uma conjuntura sui generis
que dificultou a implementação das medidas
decretadas pelo diretor-geral de Saúde face
à gripe. Em menos de um ano, a pneumóni-
ARNALDO GARCEZ/ARQUIVO HISTÓRICO-MILITAR
VISÃO H I S T Ó R I A 33
Califórnia, outubro
de 1918
O auditório de
Oakland, transformado
em enfermaria de
mulheres contagiadas
com influenza.
Em 60 dias, morreram
500 pessoas na cidade
34 V I S Ã O H I S T Ó R I A
CONTÁGIO
PLANETÁRIO
Nenhuma doença provocou tantos
mortos em tão pouco tempo como
a pneumónica de há um século.
Os médicos foram surpreendidos
por um vírus desconhecido
que dizimou milhões de jovens
adultos, sem que uma cura
ou uma vacina fossem
encontradas
Por Clara Teixeira
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VISÃO H I S T Ó R I A 35
EPIDEMIAS // 1918
N
Rio de Janeiro
um ano, entre março de 1918 e feve- «Uma cidade
reiro de 1919, de 50 a 100 milhões morta e sem
de pessoas não resistiram ao vírus da vida», onde
gripe pneumónica, considerada até «apenas a
tosse quebra
hoje a maior epidemia que atingiu o o silêncio
mundo desde a Peste Negra de mea- circunstante»
dos do século XIV. A doença manifestou-se no
final da I Guerra Mundial, quando milhares
de soldados se movimentavam entre os Es-
tados Unidos, a Europa, o norte de África e
a Ásia ocidental, transformando os portos, registaram-se focos da doença em Boston,
estradas e caminhos-de-ferro em vias rápidas nos EUA, e em Freetown, na Serra Leoa. Em
para a propagação. A segunda, e mais mortal setembro, o vírus aportava na África do Sul,
vaga da pneumónica, coincidiu com a assi- provocando cerca de 300 mil vítimas mortais,
natura do armistício, em novembro de 1918. na maioria entre a população negra.
A terceira fez-se sentir no final do inverno de O novo vírus da gripe matou muitas pessoas,
1919, arrebatando ainda mais vidas. e muito depressa. Entre 1918 e 1919 viriam a
As investigações históricas mais sólidas indi- morrer cerca de 675 mil norte-americanos,
cam que a doença alastrou a partir dos Estados mais do que nas duas guerras mundiais e nas
Unidos da América (EUA) para o resto do guerra das Coreia e a do Vietname juntas. Com
mundo. Aquele que seria hoje designado por muitos médicos e enfermeiras mobilizados
«paciente zero» foi identificado a 4 de março de para a frente de batalha na Europa, grandes
1918 em Camp Funston, um campo de instru- cidades como Saint Louis viram-se forçadas
ção dos militares americanos, no Kansas. Um a parar e a isolar os doentes. Lojas e escolas
mês depois, o novo vírus tinha atravessado o encerraram (mas não as igrejas), eventos des-
Atlântico e iniciado a sua disseminação pela portivos foram cancelados e até os cortejos
Europa, seguindo o rasto das tropas que par- fúnebres foram desincentivados, por medo do
ticipavam na ofensiva final da Grande Guerra. contágio. Em Nova Iorque criaram-se regu-
Mas o pior estava para vir. A segunda vaga lamentos que proibiam os cidadãos de espir-
dizimou milhões de pessoas na flor da idade rar, tossir ou cuspir na rua. Os elétricos eram
entre setembro e novembro de 1918, nos dois convertidos em carros funerários e os mortos
lados do Atlântico e não só. O primeiro caso Itália, cartaz da autoridade de saúde enterrados em valas comuns, à falta de caixões
«Lavar as mãos e evitar todos os contactos
terá sido detetado a 22 de agosto, em Brest, um desnecessários», entre outras medidas em número suficiente. Segundo a revista The
importante porto de desembarque das tropas New Yorker, os cadáveres apodreciam nas mor-
americanas em França. Na mesma semana, gues e os funcionários abriam as portas para
ventilar o interior. Alfred Crosby escreve que
36 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Polícias em Londres Na capital inglesa morriam 4500 pessoas por semana, em outubro de 1918.
Depois da pandemia, foi criado o Ministério da Saúde
poucos esquimós resistiram à epidemia no em todos os países onde a doença se insta- por polícias e funcionários dos serviços, em
Alasca. Com a descida das temperaturas no lou. Frederick Trump, avô paterno do atual tempos de doença e miséria eram também
inverno, famílias inteiras morreram de frio Presidente dos EUA, Donald Trump, foi uma procuradas por assaltantes de bancos e outros
porque as pessoas estavam tão doentes que das primeiras vítimas mortais nos EUA, em criminosos que se faziam passar por médicos
nem conseguiam alimentar as lareiras. março de 1918. Tinha 50 anos. Já o então e farmacêuticos para burlar os incautos. O dia
Pior ficaram as cidades que pouco ou nada Presidente, Woodrow Wilson, teve mais sorte: do armistício, 11 de novembro, foi celebrado
fizeram para combater o vírus. Filadélfia per- adoeceu no início de 1919, quando negociava nas ruas das principais cidades da Califórnia
deu cerca de 11 mil habitantes num único o Tratado de Versalhes, mas sobreviveu. por multidões de rosto coberto por máscaras
mês. Na sua esmagadora maioria, os infeta- enquanto cantavam e dançavam de alegria.
dos eram jovens adultos até então saudáveis. Máscaras feitas de gaze O vírus devastou a Europa em poucas sema-
Cerca de três em cada quatro mortos tinha Sabe-se hoje que a propagação terá sido fa- nas. A partir de Espanha, o primeiro país onde
menos de 60 anos, e perto de metade menos vorecida pela movimentação dos soldados, a ausência de censura permitiu a publicação
de 15 anos – um padrão tristemente repetido concentração de pessoas em feiras e migra- de notícias sobre a doença – resultando daí
ção de trabalhadores rurais. Mas nada terá o nome, impróprio, de «gripe espanhola» –,
favorecido mais a elevada mortandade como disseminou-se rapidamente por Portugal
a falta de preparação dos médicos, quando e atravessou os Pirenéus, propagando-se
confrontados com um vírus desconhecido, e com uma extraordinária velocidade entre o
a ausência de medidas sanitárias adequadas. Atlântico e os Urais. Na Noruega, os lapões,
A pneumónica chegou sem avisar, e o mundo sem defesas imunitárias contra o novo vírus,
foi apanhado desprevenido. foram o grupo de habitantes a registar mais
Para fazer face à pandemia, muitos países vítimas mortais. Entre os não europeus, os
adotaram o uso de máscaras de gaze para pro- mais afetados foram os índios americanos e
teger boca e nariz das pessoas e, assim, dimi- os indígenas das ilhas do Pacífico, como a Sa-
GEORGES CLÉMENCEAU FRANZ KAFKA nuir o perigo de contágio. Em São Francisco, a moa Ocidental, que perdeu cerca de 20% da
Era primeiro-ministro da O escritor checo de Cruz Vermelha distribuiu máscaras fabricadas população. Na Nova Zelândia, a mortandade
França quando a I Guerra expressão alemã pela marca de calças de ganga Levi Strauss entre os maoris foi sete vezes mais elevada.
terminou. Resistiu ao adoeceu
vírus, que o atacou aos com 35 anos, & Co, que colocou a sua linha de produção Na Austrália, o vírus matou mais de 14 mil
77 anos mas sobreviveu ao serviço da luta contra a epidemia. Usadas pessoas em poucos meses, apesar da resposta
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EPIDEMIAS // 1918
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Protegidos Muitas atividades, como
ir ao barbeiro, passaram a ser
realizadas ao ar livre. Em Seattle,
Washington, como noutros pontos
dos EUA, era proibido andar de
transportes públicos sem máscara.
Em baixo, um varredor de ruas de
Nova Iorque
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EPIDEMIAS // 1918
PORTUGAL ESPANHA
CANADÁ EUA 59 000 257 000
50 000 675 000
TOTAL EUROPA
2 375 000
MÉXICO
300 000
MAURITÂNIA
CARAÍBAS 12 000
CARAÍBAS BRITÂNICAS
1º VAGA MARÇO/ABRIL DE 1918 100 000 30 000 SENEGAL
Começa no centro dos EUA, espalha-se GÂMBIA 37 500
pela Europa, alastra à África do Norte GUATEMALA 7 800
e à Ásia, chega à Austrália em julho 48 000
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NORUEGA SUÉCIA FINLÂNDIA
14 600 34 370 18 000
CROÁCIA
109 000
SUÍÇA
23 277
TOTAL ÁSIA
36 000 000
ÁUSTRIA PRÚSSIA RÚSSIA
20 458 236 660 450 000
FRANÇA ALEMANHA
240 000 225 000 CHINA
9 500 000
HUNGRIA
100 000
ITÁLIA
390 000
MALTA
588 JAPÃO
TAIWAN 388 000
25 394
EGITO
AFEGANISTÃO
138 600
320 600
FILIPINAS
CONGO 93 686
BELGA
300 000 CEILÃO
91 600
QUÉNIA
SAMOA
150 000 INDONÉSIA OCIDENTAL
1 500 000 FIJI 8 500
9 000
BOTSWANA
7 000 ÍNDIA AUSTRÁLIA
14 528
18 500 000
TOTAL OCEÂNIA
ÁFRICA DO SUL
300 000
85 000
TOTAL ÁFRICA
2 375 000
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EPIDEMIAS // 1918
doente
A catástrofe causada pela pneumónica apenas
1919 e o défice disparou para 8% ao ano, em
média. Nos meios urbanos faltava quase
tudo. Os assaltos a mercearias e armazéns
tornaram-se frequentes, mas nada se com-
terá sido superada pelas duas guerras mundiais parou à «revolução da batata», quando os
e pela Grande Depressão preços triplicaram num único dia, a 14 de
maio de 1917. Nas noites seguintes, Lisboa foi
por Clara Teixeira
assolada por uma onda de assaltos, distúrbios
U
e tiroteios da polícia. O estado de sítio foi
ma pandemia não traz nada de fez sentir-se em outubro de 1918, um mês proclamado e o governo da cidade entregue
bom, muito menos para a economia. antes da assinatura do Armistício que pôs ao comando militar.
A gripe pneumónica, que entre 1918 um ponto final no conflito bélico. A econo- Mas o pior ainda estava para vir, nos anos
e 1920 ceifou milhões de vidas huma- mia, já em recessão devido ao esforço militar, que se seguiram. A pneumónica surgiu em
nas, terá estado na origem do quarto afundou-se ainda mais. Por todo o lado havia maio de 1918, num país à beira da exaustão,
maior choque económico mundial miséria, fome, desemprego, racionamento causando muito mais mortos do que a Grande
desde 1870. Pior, só mesmo as mossas nos PIB de bens essenciais, açambarcamento e es- Guerra. A par com outras doenças, como o
causadas pela II Guerra Mundial, a Grande peculação de preços, contrabando, mercado tifo, a varíola e a tuberculose, terá vitimado
Depressão de 1929 e a I Guerra Mundial, esta negro, greves, motins e repressão. Animadas milhares de portugueses só em 1918. A pan-
última coincidente com o início do surto viral com o fim dos combates, só as bolsas não demia atingia essencialmente os mais jovens
da gripe pneumónica, também conhecido cederam ao medo, regressando rapidamente e mais aptos para trabalhar. Em 1920, a es-
como gripe espanhola. aos ganhos. perança de vida era de cerca de 35 anos para
Num estudo publicado em 2008 e atuali- Os efeitos da guerra não pouparam Por- os homens e de 36 anos para as mulheres.
zado em março último, para incluir os efei- tugal. Durante o conflito, os preços dos bens A economia continuava de rastos e não
tos potenciais da Covid-19, os economistas recuperaria antes do final da década. O cor-
Robert Barro, José Ursúa e Joanna Weng dão sanitário imposto pelos espanhóis jun-
hierarquizaram as maiores catástrofes da eco-
Impactos da pneumónica to à fronteira portuguesa, foco de contágio
nomia mundial a partir das quebras médias e da I Guerra inicial, impedia os trabalhadores agrícolas
superiores a 10% na produção ou no consu- de emigrar. O governo imprimia dinheiro
mo, durante um ou mais anos. De acordo Coincidentes no tempo, a pandemia descontroladamente, a inflação disparava e a
e a guerra tiveram efeitos diferentes
com esta análise, nos 43 países (incluindo moeda desvalorizava-se. As greves sucediam-
na economia
Portugal) onde foi possível recolher estatísti- -se, inspiradas pelos ventos de leste que tra-
cas, a pneumónica causou, entre 1918 e 1920, ziam notícias da revolução russa. Pararam os
quebras de 6% no PIB e de 8,1% no consumo, PNEUMÓNICA I GUERRA barbeiros, os padeiros, os funcionários públi-
valores que os autores do estudo comparam cos, os empregados dos correios e telégrafos,
PIB CONSUMO PIB CONSUMO
com os da crise financeira de 2008-2009. os condutores e guarda-freios dos elétricos,
Já a Grande Guerra provocou, entre 1914 e os ferroviários, os «almeidas» (homens da
1918, perdas de 8,4% no PIB e de 9,9% no recolha de lixo)... Uma crise política juntava-se
consumo. Mas o triste recorde pertence à assim a uma crise económica e sanitária.
Alemanha, que na fase final do III Reich e
imediatamente a seguir à II Guerra Mundial, Economia encolhe, salários
entre 1944 e 1946, sofreu um declínio no PIB -6% sobem
de 74% do seu valor. Estudar o impacto de acontecimentos como a
A gripe espanhola abateu-se sobre a hu- -8,1% -8,4% Grande Guerra e a pneumónica, na segunda
manidade quando a Grande Guerra, quase década do século passado, levanta sérias difi-
a terminar, deixava para trás um rasto de mi- -9,9% culdades aos economistas. É quase total a au-
lhões de mortos e uma economia em ruínas. sência de estatísticas sobre rendimento, tro-
A segunda – e mais mortal – vaga da doença FONTE Barro, Urzúa e Weng AR/VISÃO cas comerciais, emprego e salários. É através
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Fábrica de cigarros na Florida, EUA, década de 1920 Em consequência da falta de mão-de-obra, os salários subiram
da leitura dos jornais da época que sabemos per capita nos EUA. Elizabeth Brainerd e participou no conflito. Karlsson, Nilsson
que nos Estados Unidos da América, um dos Mark V. Siegler, autores do estudo The Eco- e Pichler, autores de um estudo sobre os
países mais afetados em número de vítimas nomic Effects of the 1918 Influenza Epidemic, efeitos da gripe espanhola, concluíram
mortais (e onde terá começado o surto), o admitem, no entanto, que essa subida não que, apesar da neutralidade, a economia
vírus se mostrou mais letal nas cidades do que terá passado de um «regresso» aos valores sueca sofreu os danos colaterais do esforço
nos meios rurais. (Em Portugal terá sido ao anteriores à pandemia. Como a gripe vitimou de guerra de dois dos seus maiores par-
contrário, por falta de médicos no interior.) milhões de jovens adultos com idades entre ceiros comerciais, a Alemanha e a Rússia.
O comércio norte-americano, apesar de ter os 18 e os 40 anos, levando muitos negócios E a redução do número de trabalhadores,
sofrido quebras nas vendas para metade ou à falência por falta de braços, os anos a seguir tombados pelo vírus da gripe, não tor-
um terço, manteve as portas abertas. No pico ao choque foram de retoma. A escassez da nou mais produtivos os que sobreviveram
da epidemia, o caminho-de-ferro de Mem- força de trabalho resultou numa melhoria nem o rendimento per capita melhorou.
phis, no estado do Tennessee, viu-se obrigado (mesmo que temporária) nos salários reais, A pneumónica trouxe, sim, um aumen-
a funcionar com menos de dois terços dos embora esse benefício não tenha anulado to dos níveis de pobreza, já que muitas
seus 400 funcionários, e uma companhia te- os efeitos das perdas de vidas e da recessão famílias perderam os filhos mais jovens,
lefónica pediu aos clientes para restringirem o da economia. que eram o seu ganha-pão. «O retorno do
número de chamadas ao mínimo necessário, capital diminuiu, o desemprego disparou e
por falta de assistentes. Diversas minas nos O caso da Suécia o PIB diminuiu cerca de 5% num só ano»,
EUA, no Peru e no antigo Congo Belga fecha- A Suécia é um dos poucos países onde se afirma-se no estudo.
ram porque uma parte dos mineiros falecera. torna possível separar os efeitos económi- A recuperação, no entanto, «foi muito rá-
Enquanto muitos negócios encerravam por cos da pandemia dos da guerra, já que não pida». Em 1922, o PIB da Suécia cresceu 8%
falta de pessoal, outros profissionais ficavam e a economia manteve-se animada até ao
no desemprego porque aquilo que sabiam final da década. Mas, apesar destes sinais, as
fazer deixara de ter procura. sombras permaneceram. A pobreza tornou-se
Mas até uma ameaça mortal como a gripe Na Suécia, que não mais persistente, e a geração nascida durante
pneumónica pode ter um efeito «robusto» na
economia das nações. No início da década de
entrou na guerra, o PIB a pandemia conheceu níveis de educação
mais baixos, problemas de saúde e nunca
20, assistiu-se a um aumento do rendimento cresceu 8% em 1922 conseguiu ganhar salários muito altos.
VISÃO H I S T Ó R I A 43
PESTE NEGRA
A MÃE DE TODAS
AS EPIDEMIAS
Segundo os cálculos mais prudentes, a peste negra terá devastado
um terço da população europeia entre 1348 e 1351. Mas o balanço
pode ser ainda mais trágico. Da pior epidemia de sempre nasceria
uma sociedade nova
por Luís Almeida Martins
44 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Peste em Florença
A Itália foi duramente
atingida (miniatura
de 'Decameron',
de Bocaccio)
VISÃO H I S T Ó R I A 45
EPIDEMIAS // PESTE NEGRA
‘N
o mês de julho do ano da graça
de 1348, depois da festa de São
Bento, produziu-se um estranho
acontecimento: uma monstruosa
nuvem apareceu vinda do Leste,
uma nuvem avermelhada e ma-
ciça, carregada de ameaças, deslizando len-
tamente sob a limpidez do céu. […] A chuva
cessou finalmente e um doentio sol outonal
pôs-se a brilhar sobre a terra encharcada.
[…] Os campos cobriam-se de monstruosos
cogumelos de cores e tamanhos nunca vistos:
vermelhos alguns, arroxeados outros, negros,
brancos. Parecia que a terra doente se cobrira
de pústulas; o musgo e o líquen maculavam
os muros e a Morte brotava da terra alagada.
Morriam os homens, morriam as mulheres e
as crianças, morria o barão no seu castelo, o
agricultor na sua quinta, o monge no seu con- Legenda arranque Legenda texto Obis il ipit
qui is ut queSimusam
vento e o servo da gleba na sua choupana. […]
Durante o inverno os cadáveres foram apodre-
cendo nas bermas dos caminhos, porque não
havia quem os enterrasse. Em muitas aldeias
não sobrou vivalma. E chegou finalmente a
primavera, trazendo o sol, a saúde e o riso, a
primavera mais verde, mais doce e mais terna
de todas. Mas só metade das pessoas pôde go-
zar-se dela, pois a outra metade desaparecera
com a grande nuvem púrpura.» calamidade foi-se abatendo gradualmente de combater: a «peste», como se chamava
Propõe-se o desvendar de um mistério: sobre a Europa durante meia dúzia de anos, a a todas as doenças transmissíveis, nas suas
quem é o autor deste texto sobre o maior partir de 1347 ou 1348, e Portugal não escapou várias modalidades. No verão o cheiro das
dos flagelos não provocados direta e inten- ao pesadelo. Crê-se que um terço da população ruas tornava-se insuportável. O historiador
cionalmente pelo bicho homem que alguma europeia terá morrido. francês Albert Malet conta que o rei Filipe
vez assolaram a Europa. Disse Conan Doyle? À época, a sujidade das ruas favorecia o Augusto certa vez desmaiou quando estava à
Elementar, meu caro Leitor. Trata-se (em tra- aparecimento, a transmissão e o rápido de- janela do Louvre, devido às exalações de uma
dução livre) de um trecho do romance histórico senvolvimento das epidemias – fosse esta ou poça de água fétida agitada pela passagem
Sir Nigel, do criador de Sherlock Holmes, cuja outras. No inverno tiritava-se de frio junto de uma carroça…
ação decorre na Inglaterra do século XIV, no das lareiras e corria-se o risco de morrer Às infeções provocadas pelas águas para-
início da Guerra dos Cem Anos. Mas estes pa- queimado num incêndio, mas mal o tem- das juntavam-se as que tinham origem nos
rágrafos referem-se a o outra tragédia que não po começava a aquecer o perigo era outro, cemitérios. Os «campos santos» situavam-se
a da guerra, e afinal bem maior – à peste negra. eventualmente ainda mais sinistro e difícil no meio das cidades, geralmente no adro das
igrejas, e não possuíam sequer um muro a com luz artificial, devido aos riscos de manter muito tempo a eclosão da peste negra a um tipo
separá-los da rua. Circulava-se neles como o fogo aceso durante a noite, pelo que era de ratazana oriunda da Ásia e trazida, segundo
numa praça pública e era até frequente ha- obrigatório apagar as lareiras (talvez à exce- uns, a bordo dos navios de carga provenientes
ver bancas de vendedores entre as campas. ção de umas brasas que permanecessem sob a do mar Negro, segundo outros, pelas hordas
Quando as epidemias – a tal peste – se aba- cinza, para se poder cozinhar logo de manhã, de invasores mongóis que desde o tempo de
tiam sobre as cidades, os habitantes morriam num tempo em que não havia fósforos) e daí Gengis Khan se deslocavam para Ocidente.
aos milhares, eram enterrados apressada- a expressão francesa couvre-feu ou a inglesa Um estudo levado a cabo por investigadores
mente nesses mesmos cemitérios onde se curfew, que em português não encontram da universidade norueguesa de Oslo e da sua
passeava e fazia compras. correspondência direta mas que costumamos congénere italiana de Ferrara, apresentado em
A própria estrutura física das cidades favo- traduzir por toque de recolher. Mas apesar 2018, absolve porém os ratos do seu papel de
recia o alastrar da peste. As casas amontoa- destas medidas de prudência as catástrofes vilões desta história, fazendo incidir as culpas
vam-se em ruelas estreitas e superpovoadas. eram frequentes – uma fonte francesa regista, da propagação do mal aos piolhos e às pulgas
Se, por exemplo, numa delas eclodia um por exemplo, que em 25 anos, entre 1200 e que parasitam o ser humano. Para chegar a
incêndio era inevitável que as chamas se 1225, a cidade de Ruão, na Normandia, ardeu estas conclusões, basearam-se os investigadores
propagassem a todo o bairro, quando não ao nada menos que seis vezes. em diversos factos, como o de a propagação
burgo inteiro. Como não existiam bombas de A vida é uma permanente aventura e viver da doença através de ratos não poder ter sido
pressão de água, nem sequer corpos organi- na Idade Média era viver perigosamente. tão rápida como na realidade foi, o de não se
zados de algo equivalente a bombeiros, no A Peste Negra de 1348-1351 foi, de qual- registar grande mortandade entre os roedores
combate ao fogo os habitantes limitavam-se quer modo, a mais traumática das expe- e o de estes não verem reunidas as condições
a ir passando baldes de água de mão em mão, riências coletivas da época, com reflexos de sobrevivência em climas tão frios como a
com uma eficácia quase nula relativamente nos modelos de relacionamento humano Escandinávia, onde a peste negra fez no entanto
ao objetivo pretendido. pelos séculos fora. numerosas vítimas humanas.
Geralmente não era permitido trabalhar A comunidade científica atribuiu durante Independentemente do agente transmis-
VISÃO H I S T Ó R I A 47
EPIDEMIAS // PESTE NEGRA
sor, foram provavelmente os navegadores Escócia e a Escandinávia e os países bálti- O ‘pico’ em Itália e na Flandres
genoveses que trouxeram para a Europa cos – as tais regiões onde as ratazanas não É impossível estabelecer com rigor o número
Ocidental a doença a partir da sua colónia poderiam sobreviver. A origem chinesa do de vítimas em cada local por onde a epidemia
de Caffa, na Crimeia, então cercada pelos mal parece ficar confirmada pela narrativa ia passando. Os cronistas medievais, natural-
mongóis. Esta ideia é defendida pelo his- das viagens do marroquino Ibn Battuta, que mente impressionados pela mortandade e a
toriador francês Yves Renouard, mas já se- esteve no Império do Meio entre 1342 e desolação reinantes, referem-se à peste negra
gundo o historiador e economista vitoriano 1342 e, de regresso à sua Tânger natal, des- em termos superlativos, sobre os quais talvez
Thorold Rogers a epidemia teria vindo em creveu a tragédia que por lá testemunhara. seja prudente refletir. Mesmo assim, estima-se,
1347 do Extremo Oriente, provavelmente da Há ainda quem defenda terem sido os cru- fazendo a conta por defeito, que um terço dos
China, começando, no Ocidente, por atingir zados que, no regresso da Terra Santa, trouxe- europeus terá sido vitimado pelo flagelo.
a ilha de Chipre e depois, progressivamen- ram a doença com eles, teoria esta hoje mais Foi nas cidades que ocorreu o maior nú-
te, já em 1348, as costas mediterrânicas afastada. Mas é inegável que entrou por via mero de mortes, dadas as condições de pro-
vizinhas, a Itália, a Córsega, o Magrebe, a marítima, e assim sendo a sua propagação ia-se miscuidade e de superpovoamento. A Itália
Península Ibérica, a França, a Alemanha, fazendo do litoral para o interior, ao longo das foi duramente atingida, nomeadamente as
a Suíça, a Áustria, a Hungria, a Flandres e rotas comerciais de penetração, fossem elas cidades-estado de Florença (ver caixa sobre
a Inglaterra. Em 1350 alcançou mesmo a rios ou estradas. o Decameron), Siena, Pisa, Veneza e Milão.
Os centos urbanos da Flandres, como Gand
ou Ypres, ostentaram igualmente cenários de
São Roque, o milagreiro pesadelo. Os conventos e outros centros de
vida comunitária destas regiões também ofe-
Costuma ser representado com um bastão milagrosamente, Roque conseguiu receram campo favorável à rápida propagação
de peregrino, uma ferida na perna e um regressar a Montpellier. do mal. A partir de diversos dados cruzados,
cão aos pés. São Roque, que no «panteão» E aqui entramos simultaneamente na
católico ocupa o lugar de padroeiro dos história de aventuras e no melodrama. estima-se que, quer em Itália quer na Flan-
inválidos e dos cirurgiões, é invocado pelos A cidade estava em guerra civil dres, a mortandade terá ceifado entre 40% e
crentes contra as pestes e as epidemias em e Roque foi tomado por espião e 60% da população. O que é verdadeiramente
geral. encarcerado. Segundo algumas
assombroso.
Na vida real, Roque – no original, Roch versões, o governador era seu tio
– nasceu no seio de uma família de materno, mas não o reconheceu nem Compreensivelmente, na Península Ibé-
comerciantes abastados de Montpellier, no ele se identificou. Resultado: ficou a rica as regiões
regiõ mais atingidas foram aquelas
sul de França, à roda de 1350, e faleceu na «apodrecer» na cela, em sofrimento e onde se efetuavam
efe mais trocas comerciais –
mesma cidade com apenas 28 anos. Entre oração. Narra a devoção popular que um
na altura, a Catalunha e a Andaluzia. Já em
estes dois acontecimentos fundamentais, dia o carcereiro, que era coxo, deparou
ficou órfão, doou os bens familiares e partiu com o corpo de Roque França, foram
fora os grandes portos de Marselha
em peregrinação a Roma sem um tostão aparentemente sem vida. e Bordéus queq mais sofreram com o flagelo –
no bolso. No caminho, atravessou cidades Ao tocar-lhe numa perna além de Paris,
Par onde a concentração humana
flageladas pelas então recorrentes para verificar se estava de
grandes epidemias (embora o «pico» facto morto, curou-se ele
era muito eelevada.
da peste negra já tivesse então próprio milagrosamente, Mas a população
po rural também sofreu um
passado) e prestou auxílio a doentes, deixando de coxear. A abalo. Como deduzimos da leitura do
grande abal
protagonizando então, segundo se notícia espalhou-se e o sugestivo (a(ainda que subjetivo) texto de Co-
conta, algumas curas milagrosas. cadáver (porque Roque
Já no regresso da Cidade Eterna morrera de facto) acabou por nan Doyle, em certos locais de Inglaterra a
à sua terra natal, foi, ele próprio, ser identificado pela família, mortandade foi avassaladora, da ordem dos
mortandad
atacado pela peste, o que o graças a um sinal em forma 60% a 70% da população. Só na Universidade
decidiu a isolar-se numa floresta de cruz que teria no peito. de Oxford, morreram em 1348 dois terços
perto de Placência, para não Não se conhece a data da
contaminar outras pessoas canonização de Roque, que dos estudantes.
estudan E o texto de um pergaminho
e não incomodar ninguém terá sido de natureza mais informa-nos que num convento do Yorkshire
informa-no
com os seus lamentos. É popular do que propriamente faleceram 4 40 dos 50 monges residentes. Os
aqui que entra em cena um oficializada pela Igreja romana,
eclesiásticos foram uma classe especialmente
cão, que diariamente lhe leva mas no século XV era já
mantimentos. Um dia, o dono do grande o seu culto por toda a atingida, vi
visto estarem em contacto perma-
cão, homem abastado mas pouco Cristandade. São Roque teve nente com os moribundos a quem davam a
virtuoso, segue o animal, vem a templos erigidos praticamente extrema-unção. Outros documentos ingleses
extrema-un
conhecer Roque e é induzido em todas as grandes cidades
mostram-nos que em 1349 foram lavrados
mostram-n
por este a emendar a sua europeias; o de Lisboa, com uma
conduta. rica decoração interior, data da neste país 151 vezes mais testamentos do que
Curado (decerto) segunda metade do século XVI. em anos nonormais. Os ingleses são, aliás, mui-
48 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Uma «loucura» coletiva apoderou-se das
gentes. O povo tentava aplacar a cólera celestial
organizando grandes procissões em que as
pessoas se chicoteavam mutuamente, e por
isso se lhes chamava Cortejos dos Flagelantes.
É que a única explicação para o que estava a
passar-se só poderia ser o castigo divino… Não
tardou, contudo, que entre os ditos flagelantes
se infiltrasse a escumalha, que aproveitava
a ocasião para efetuar rapinas. Além disso,
mulheres e homens desfilavam nus, ou quase,
o que fez que estas manifestações incorressem
na má vontade da Igreja, acabando por ser
proibidas pelo Papa no outono de 1349.
Como seria de esperar atendendo ao con-
texto, os menos tolerantes – e raras eram as
pessoas tolerantes num mundo dogmático
– atribuíam a «culpa» do sucedido aos ju-
deus, que acusavam de envenenarem os poços.
Pretexto renovado, pois, para um redobrar
de intensidade dos recorrentes e interminá-
veis pogroms, essas perseguições movidas aos
membros da etnia coletivamente acusada de
ter entregado à morte Jesus Cristo (e cuja elite
detinha a maioria do capital financeiro). Os ju-
deus, originários do Próximo Oriente, tinham
GETTY IMAGES
VISÃO H I S T Ó R I A 49
EPIDEMIAS // PESTE NEGRA
50 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Mosteiro de Alcobaça
Os efeitos da epidemia
fizeram-se sentir tanto
na comunidade como
entre os seus foreiros
MARCOS BORGA
numa certa área, levaria a uma propagação
generalizada.
A peste negra
Algumas fontes referem que a peste durou
três meses, mas estes cerca de 90 dias de-
verão corresponder apenas ao período mais
em Portugal
intenso da epidemia. No Norte, o período
mais devastador terá sido entre outubro de
1348 e janeiro de 1349, altura em que a do-
cumentação praticamente cessa e os poucos
A epidemia terá chegado no verão de 1348 testemunhos dão conta, por exemplo, do
e abalou o País até fevereiro do ano seguinte. desaparecimento de tabeliães, o que impedia
O Norte e o Centro foram as zonas mais afetadas a produção de (entre outros documentos)
testamentos com pública fé. O arcebispo
por André F. Oliveira da Silva* de Braga, D. Gonçalo Pereira, troca corres-
D
pondência com a Santa Sé de Avinhão, pro-
epois de ter entrado na Europa em A ecologia da peste confere-lhe uma capa- curando desesperadamente ir suprindo as
1347, a Peste Negra chegou a Portugal cidade de propagação difícil de visualizar. A mortes do clero diocesano, até à sua própria
no ano seguinte, em 1348. Tradicio- contaminação poderia ser feita em distân- morte, provavelmente vítima do flagelo, no
nalmente, e com base nos anais do Li- cias médias e longas – imagina-se, do Porto início de 1349.
vro da Noa, do Mosteiro de Santa Cruz para Guimarães –, espalhando-se depois No Centro, os meses de maior impacto te-
de Coimbra, situa-se essa ocorrência radialmente a partir do foco de propagação rão coincidido com os do Norte, e Coimbra
no dia de São Miguel (29 de setembro), mas
tudo aponta para uma contaminação anterior,
provavelmente no início do verão. Mais cor- DA COSTA PARA O INTERIOR
retamente, a peste deve ter chegado em vagas A epidemia terá sido mais intensa durante três meses.
e através de vários meios. Por barco, com os O Norte e o Centro foram as zonas mais afetadas
portos do Porto, Lisboa, Setúbal e Algarve
como os candidatos mais bem posicionados;
por terra, através dos eixos de comunicação Coimbra foi o epicentro
com a Galiza – sobretudo através da passagem O período mais da epidemia nesta região
Valença-Tui, coincidente com o Caminho de devastador registou-se
Santiago, e com a fronteira de Chaves. Já no
entre outubro de 1348 ELVAS
Sul, é possível que tenha sido o lado português A epidemia não teve
a transmitir ao castelhano.
e janeiro de 1349
tanto impacto e terá
A propagação ter-se-á feito sobretudo da chegado mais tarde
costa para o interior, com o exército de pul- ao sul do País.
gas vetores e ratos hospedeiros a circular Elvas foi afetada
entre terras, a bordo de cargas e mercadorias. só no início de 1349 AR/VISÃO
VISÃO H I S T Ó R I A 51
EPIDEMIAS // PESTE NEGRA
52 V I S Ã O H I S T Ó R I A
EPIDEMIAS // 1569
O outro terramoto
Em 1569, a grande peste que se abateu sobre Lisboa
Os espanhóis chegam à capital portuguesa
no início de agosto, quando morriam cerca
de 600 pessoas por dia. «Corria-se toda a
cidade e muitas vezes não se topava em toda
ela cinco pessoas vivas e sãs», lê-se no Memo-
chegou a matar 600 pessoas por dia. Para a combater, rial de Pedro Rodrigues Soares. Os doentes
D. Sebastião mandou vir dois médicos de Sevilha morriam de «inchaços», outros de «mortes
Q
muito apressadas, estando a falar uns com os
uando começaram a correr notí- medo na gente», explicava o padre jesuíta Dio- outros» e havia ainda quem se deitasse de boa
cias sobre uma nova mortanda- go de Carvalho numa carta enviada ao Colégio saúde e de manhã fosse encontrado morto.
de em Lisboa, em maio de 1569, de Coimbra. Era o terror de um terramoto, que Os corpos eram enterrados nas praças pú-
D. Sebastião, então com 15 anos de se dizia que a 13 de julho destruiria a cidade: blicas, como o Largo da Graça, e em valas
idade, convocou uma junta médica o monte do Castelo juntar-se-ia ao do Bairro comuns, abertas em praias, trabalho feito
para averiguar se o mal era ou não Alto e a Almada, e o Tejo inundaria as ruas e por presos e forcados das galés em troca de
peste. Os físicos mais novos defenderam que praças. Apavoradas, as pessoas tinham fugido. liberdade, à falta de cangalheiros.
os bubões que apareciam nas pessoas se de- «A gente saiu, sete e oito léguas de redor da Houve ordem para abater os animais va-
viam ao facto de o inverno ter sido longo e cidade, e porque não havia casas se punham dios, que andavam de casa em casa atraídos
chuvoso, mas os mais velhos, que conheciam pelos campos ao pé das oliveiras, e como não pelos cheiros putrefactos e transmitindo a
a epidemia que viveram 30 anos antes, não havia água, nem iam providos de comer bas- doença, pagando-se a quem o fizesse.
tiveram dúvidas: era peste, sim senhor. tante, dão-nos por novas que morrem por lá No início de setembro, está impresso o
Pelo São João, morriam na capital entre 50 com fome e sede», continua o relato do padre. manual sanitário elaborado pelos médicos
e 60 pessoas por dia. D. Sebastião, recolhido «As ruas estão desertas.» espanhóis em colaboração com os portu-
A chegada
gueses. Recopilação das coisas que convém
da peste de guardar-se no modo de preservar a cidade
1569 a Lisboa de Lisboa e os sãos, e criar os que estiverem
Representação enfermos de peste segue as medidas de limpeza
do livro Fundação
do Mosteiro preconizadas desde o século XIV: fogueiras
do Salvador nas ruas de manhã e ao início da noite, com
da Cidade madeiras e ramos de cedro, cipreste, oliveira,
de Lisboa, zimbro e alecrim; casas lavadas com água
de Soror Maria
Batista e vinagre e perfumadas com rosas; ferver e
purificar as águas dos poços com canela, erva
BIBLIOTECA NACIONAL DE PORTUGAL
VISÃO H I S T Ó R I A 53
EPIDEMIAS // QUARENTENAS
O
«mal de peste de que Deus nos livre lizadas na Trafaria por ter o único lazareto
[…], sendo tão contagioso que em permanente do País.
breves horas mata» (1), abateu-se so- Nestes serviços superintendia o provedor-
bre o Ocidente em meados do século -mor da saúde, nos termos do regimento que
XIV e deixou atrás de si um rasto de levava o nome do primeiro titular do cargo
morte e destruição. A recorrência (Regimento que Leva Pedro Vaz sobre o que
da epidemia, ainda que em escalas muito toca ao bem da saúde de Lisboa em 1526), um
menores, mobilizou os poderes públicos para texto que compilava alguns procedimentos
uma ação concertada, procurando estancar já em vigor desde o século XIV e outros que
a sangria de vidas humanas e assegurar a o próprio observara, a mando do rei D. João posição de guarda-mor da saúde. De entre as
integridade territorial dos estados. Apesar III, em Roma, Florença e Milão. Foi neste suas primeiras ordens estava o encerramento
de desconhecerem a etiologia da doença, a contexto que Lisboa passou a contar com das portas e postigos e a colocação de ban-
perceção do seu carácter contagioso impeliu dispositivos sanitários definitivos e profis- deiras brancas nas muralhas, sinal de que o
as autoridades das cidades da Croácia e da sionalizados, tendo em vista gerir o espaço espaço estava de quarentena.
Itália a impor o isolamento, as quarentenas urbano durante as epidemias e prevenir as Em Évora, sobre a qual abundam teste-
e os cordões sanitários para evitar a sua pro- que poderiam entrar «de muito longe (…) munhos destas práticas, as portas da cida-
pagação e proteger as populações, procedi- nas caixas dos marinheiros e nas próprias de, vigiadas em permanência por homens
mentos rapidamente seguidos um pouco por mercadorias», conforme se lê no dito docu- armados, eram abertas às 5 horas da manhã
toda a Europa. mento. Nenhuma outra cidade do País foi, e fechadas ao final da tarde, ao toque das Ave-
As condições morfológicas de Portugal e as nesta altura, munida de disposições similares -Marias. Só era permitida a entrada a quem
dinâmicas da economia nacional instigaram de combate às epidemias, embora se repro- apresentasse a dita carta de saúde (no século
a Coroa a prestar uma particular atenção à duzissem, em diferentes níveis, as medidas XVI, o período de quarentena estava redu-
fronteira marítima, sobretudo em torno de adotadas na capital. zido a 20 dias) e a saída apenas por razões
Lisboa, principal cidade portuária do reino e de força maior: era o caso dos trabalhadores
tão amiúde visitada pela peste, nas palavras Muralhas ‘protetoras’ agrícolas – as cidades não eram autossufi-
de D. Manuel I. As primeiras edificações para Nas urbes fortificadas, as muralhas funcio- cientes –, mas não dos estudantes, «uma vez
controlo sanitário dos barcos que vinham navam como cordão sanitário, onde só se que nada tinham a fazer no campo», como
aportar na cidade datam de 1492, situadas no passava mediante a apresentação de uma lembravam as posturas camarárias. Durante
eixo Trafaria-Belém; estas estruturas foram «carta de saúde», documento formalizado a noite, sentinelas patrulhavam as muralhas,
ampliadas na segunda metade de Quinhen- pelo príncipe D. João, antes de 1481, para de modo a garantir o acatamento das regras
tos, com o Lazareto (na Trafaria) e a extensão a vila de Beja, mas logo adotado por outras do isolamento.
do porto, em Paço de Arcos. Ao longo da costa, localidades; nele, o viandante fazia prova, sob Na cidade em clausura, se a peste já a tives-
nos demais centros portuários, as instalações juramento, de que não estivera «em lugar se tocado, identificavam-se e isolavam-se os
eram quase sempre precárias e provisórias. onde morrem» nos 30 dias antecedentes. No infetados, transferindo-os para a ermida de
Em 1695, quando foi elaborado o Regimento seu interior, ao rebate de peste, era nomeado S. Brás, extramuros da cidade, onde funciona-
para o porto de Belém, as quarentenas dos um grupo de trabalho («guarda da saúde»), vam as «casas da saúde». Aqui, um cirurgião,
barcos passaram a ser obrigatoriamente rea- chefiado por um dos notáveis, que assumia a mais raramente um médico, um sangrador
54 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Évora, no foral de 1501 Nos períodos
uma espécie de corpos paramilitares con- visitantes espalharam a morte e o terror na
de quarentena, na altura de 20 dias, trolados pelos municípios, em que eram cidade, que recorda desse período um total
para entrar na cidade era preciso obrigados a alistar-se todos os homens vá- de 25 mil vítimas mortais, um número que
apresentar a carta de saúde lidos entre os 15 e os 60 anos. Durante as quase duplica o de habitantes à época.
epidemias, estas forças tentavam impedir Entre cada surto epidémico (e foram mui-
a circulação das pessoas e, através delas, a tos até ao século XIX, de peste ou de qualquer
e um padre prestavam aos doentes cuidados transmissão das doenças. Assim se cons- outra doença infeciosa passível de ocultar sob
paliativos e apoio espiritual. Queimados os tituíram os primeiros cordões sanitários aquela designação), o País tentava regressar à
bens dos empestados, higienizadas e seladas territoriais realizados em Portugal. Como normalidade, às vezes por períodos tão cur-
as suas habitações, procedia-se à limpeza da as demais medidas de confinamento e pro- tos que não permitiam retomar os trabalhos
cidade, purificava-se o ar queimando ervas teção, também estes cordões sanitários eram agrícolas: entrelaçadas, doenças e fomes es-
aromáticas, fiscalizava-se os locais de abas- custeados pelas populações, quase sempre tiveram entre os mais poderosos obstáculos
tecimento de água e de bens alimentares, com impostos especificamente criados para ao crescimento da população.
desinfetava-se a correspondência com vinagre o efeito. Acresce o facto de os concelhos ca-
e fogo, porque «o papel é uma das coisas recerem de autorização da Coroa para imple- Cordões sanitários
que com mais facilidade recebe o contágio» mentar as providências mais penalizadoras militarizados
(2); impedia-se a realização de mercados, para a economia, o que podia ter conse- Os finais do século XVIII e inícios do século
procissões ou de qualquer outro tipo de ajun- quências desastrosas, porquanto a epidemia XIX marcam um ponto de viragem na defesa
tamento. Pelas ruas, um pregão relembrava tendia a ser mais célere do que os decisores das fronteiras nacionais contra as epidemias,
os castigos a aplicar aos incumpridores ou políticos. Não raro, tinham ainda de lidar daí em diante mais dependente da inter-
desordeiros – coimas pecuniárias e quatro com as contradições dos monarcas, que, ao venção da marinha e do exército. O reforço
anos de degredo para o Ultramar, tratando-se mesmo tempo que apertavam as regras do do papel da marinha, que já fazia algum
de grupos privilegiados; açoitamento público isolamento, cediam aos interesses dos po- policiamento ao longo da costa atlântica,
e dois anos de degredo nas galés, para o povo. derosos, que as subvertiam. Foi esse o caso está ligado às transações comerciais com
em 1569, quando D. Sebastião condescendeu o Norte de África, restabelecidas depois de
Pressões dos poderosos com as pressões de alguns nobres da corte, normalizadas as relações diplomáticas entre
Nas terras sem muros que as protegessem, onde corria descontrolada a peste, e forçou Portugal e Marrocos e, em janeiro de 1774,
esse papel era assumido pelas Ordenanças, o seu acolhimento em Évora. Infetados, os da assinatura do Tratado de Paz e Comércio.
VISÃO H I S T Ó R I A 55
EPIDEMIAS // QUARENTENAS
56 V I S Ã O H I S T Ó R I A
1800 Os cordões
sanitários
1804
BRAGANÇA
MINHO TRÁS-OS-MONTES
de 1800 e 1804 TRÁS-OS-MONTES
MINHO
PORTO PORTO
GUARDA-MOR DA SAÚDE
LAZARETO DA TRAFARIA
ORDENANÇAS (1804)
BEJA BEJA
POSTOS MILITARES
PORTOS
De Montalvão ao Guadiana,
3 151 soldados, de cavalaria
CORDÕES DE SAÚDE e infantaria, foram colocados ALGARVE
TAVIRA
ALGARVE
TROPAS DE LINHA em torno das aldeias, nós
rodoviários e portos fluviais
FARO
ORDENANÇAS AR/VISÃO
fechar toda a fronteira terrestre com um cor- Ao contrário do de 1800, o cordão sanitá- sugestão das chefias locais para regressar a
dão militarizado partiram da Esquadra do rio de 1804 seguiu os preceitos internacio- Lisboa, porque sabia da importância da sua
Estreito, estacionada na baía de Algeciras. nalmente estabelecidos quanto à organi- missão. Ainda assim, decidira levantar ânco-
O governo chamou de novo a Intendência- zação, funcionamento e recursos humanos ra e «cruzar constantemente entre a ponta
-Geral da Polícia, lembrando os bons servi- e materiais. A título de exemplo, no setor da Europa e Ceuta», para não confrontar os
ços prestados em 1800. Recebida a ordem, identificado como «de Montalvão até ao Gua- seus homens com a visão de Gibraltar onde
e dotado de «poderes extraordinários», o diana» foram colocados 3151 soldados, entre diariamente «se não faz outra coisa mais que
intendente dispôs no terreno um vasto con- cavalaria e infantaria, posicionados em torno enterrar cadáveres».
junto de ações, que passaram, entre outras, das aldeias, nos nós rodoviários e nos portos
* Laurinda Abreu é professora e investigadora da
pela criação de lazaretos temporários em fluviais. Agiam como uma primeira linha de Universidade de Évora/CIDEHUS
todos os portos; fiscalização das quarentenas combate, a que se seguia a dos lazaretos e,
NOTAS
dos barcos comerciais e das suas tripulações; por fim, a dos hospitais. 1) Arquivo da Câmara Municipal de Évora, Livro XIII
controlo das deslocações internas e das con- Ainda mais para sul, já no mar, continuava dos Originais, nº 83, fl. 605. Os documentos foram
transcritos com a grafia atual. 2) Não eram novos estes
dições de higiene dos locais de venda de pro- a Esquadra do Estreito. Apesar de ter a tripu- procedimentos, mas em tempos de contestação contra
dutos alimentares. Paralelamente, solicitava lação fragilizada pela falta de mantimentos e a união ibérica, que, em Évora, também se fazia através
da escrita panfletária, os termos desta ordem régia
ao exército que deslocasse os soldados para tomada pelo escorbuto, o comandante, tam- deixam pouca margem sobre o que efetivamente estava
a fronteira com a Espanha. bém ele enfermo do mesmo mal, recusou a em causa. ADE, Livro 5 de Registos, n.º 139, fls. 34-35v.
VISÃO H I S T Ó R I A 57
EPIDEMIAS // CÓLERA
CARTOON DA REVISTA SATÍRICA INGLESA PUNCH/GETTY IMAGES
de cólera
Depois da chegada a bactéria à Europa, em 1832,
A desinfeção das águas com cloro, que foi
posta em prática na Europa e na América
do Norte ao longo do século XX, extinguiu a
doença nestas regiões do globo, se bem que
beber água era um perigo que podia ser mortal. noutras, onde estas medidas continuam a
Portugal não escapou ser de mais difícil execução, a doença ainda
surja com gravidade. Nestes casos, aplicam-
por Maria Antónia Pires de Almeida*
-se medidas de quarentena e isolamento dos
N
pacientes, e o tratamento faz-se com soluções
o século XIX, poucas crianças chega- asma e outras doenças que nem tinham sido que repõem a água e os sais minerais perdidos
vam à idade adulta e a esperança de identificadas, como a hepatite, a cirrose ou a e com antibióticos.
vida era muito baixa. A alimentação diabetes (a insulina só foi isolada em 1921,
era deficiente e as condições sanitárias por Banting, Best e Macleod, que ganharam Da Índia para o mundo
inimagináveis para quem está habi- o Prémio Nobel da Fisiologia em 1923). No A origem da cólera encontra-se no rio Ganges,
tuado a água corrente nas torneiras, entanto, já em 1865 o cancro foi objeto de na Índia, e a partir dali espalhou-se por todo
esgotos e duches prolongados. Nada disso teses na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa. o mundo pelas rotas comerciais. Chegou pri-
existia e beber água era um perigo, pois ge- Perante tal estado de debilidade da popu- meiro à Rússia, de onde se propagou à Europa
ralmente estava contaminada. Sobreviver às lação, e ainda com epidemias recorrentes de e daqui, à América. Em 1832 morreram 6536
doenças infantis sem vacinas constituía uma peste negra, febre amarela e varíola, em 1832 pessoas em Londres e 20 mil em Paris. Em
vitória, e o mesmo se passava com as doen- chegou pela primeira vez à Europa o cholera toda a França a doença fez mais de 100 mil
ças endémicas, entre as quais a tuberculose, morbus, ou cólera, que alterou a história da vítimas. Esta primeira vaga da epidemia che-
a sífilis, a lepra, o tétano, a febre tifoide e a Ciência e da Medicina. Só em 1883 Robert gou a Portugal em 1833, ao Porto, a bordo do
malária (as chamadas «sezões»), e as sazo- Koch identificou a bactéria Vibrio cholerae. vapor com soldados belgas vindos para ajudar
nais, como as gripes, gastrites, enterites e A sua transmissão faz-se pela ingestão de os liberais na guerra civil. Durante o cerco do
disenterias; não esquecendo a sarna, a raiva águas ou alimentos contaminados. Os pri- Porto, e depois quando se espalhou pelo País,
(hidrofobia), a gonorreia e tantas outras para meiros sintomas são fortes diarreias, seguidas a epidemia de cólera acabou por causar mais
as quais não havia tratamentos. Havia ainda a de desidratação, febres altas, vómitos e dores de 40 mil mortos, um número mais elevado
58 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Causas e
consequências
Foi num bairro pobre
de Londres que John
Snow descobriu
que a doença era
transmitida pela água.
Uma das formas de
combater a doença
era fazer fogueiras
para desinfetar as ruas de novos conceitos de higiene e saúde pública,
(Granada, em 1850). Em que ainda hoje vigoram. Os Estados reagiram
baixo, o 'homem que
previne a cólera', numa às epidemias
epidem por vezes de forma divergente,
gravura alemã de 1830 com medidas
med restritivas que privilegiavam
os cordõe
cordões sanitários e as quarentenas, e que
tinham cconsequências económicas por vezes
tão devastadoras
devas como a própria doença.
partir de 1851 as potências europeias co-
A parti
meçaram a enviar os seus melhores especia-
listas a conferências
co sanitárias internacionais,
iniciadas em Paris e repetidas em Constan-
tinopla (I(Istambul) em 1866, Viena em 1874,
Washington em 1881, Roma em 1885, Veneza
Washingt
em 1892
1892, Dresden em 1893 e de novo em
Veneza em 1897. Em todas estas conferências
discutiu-se a questão do contágio, que não era
discutiu-s
consensual, e identificaram-se as doenças e
consensu
respetivas medidas profiláticas e tratamentos.
respetiva
Por observação
ob e experiência, os médicos
de beber água no chafariz de Broad Street. árabes m medievais aceitavam que as doenças
do que o da própria guerra. Depois desta, Ao fechá-lo, em poucos dias o foco epidémico eram con
contagiosas. Em Granada, Ibn al-Kha-
seguiram-se mais oito vagas epidémicas, in- cessou. Esta foi a primeira observação válida tib (1313
(1313-1374) viveu a experiência da Peste
tensificadas pela falta de higiene nas casas e sobre
obre a transmissão da afeção, que até então Negra e formulou uma teoria do contágio,
nas ruas, pelo uso de água e alimentos con- see considerava ter como veículos os «mias- numa época
ép em que as epidemias eram con-
taminados e pela concentração dos doentes mas», ou maus cheiros, e o ar em geral. Com a sideradas castigos divinos. No século XVI a
em pequenos espaços. colaboração de Henry Whitehead, um pastor noção de contágio foi estabelecida cientifi-
A segunda grande vaga epidémica começou anglicano, Snow estabeleceu a relação direta camente e apoiada pelos Estados quando
em Paris em 1849 e espalhou-se para Londres. entre a contaminação da água e a doença. Mas estabeleceram as primeiras quarentenas.
E a terceira, entre 1852 e 1860, causou mais estes conhecimentos demoraram décadas a Porém, o século XIX viu surgir uma nova
de um milhão de mortes, afetando sobretudo serem divulgados. geração de cientistas que negaram o contágio
a Rússia. Foi quando esta epidemia de cólera Esta epidemia, agressiva e devastadora, das doenças, baseando-se na ineficácia das
chegou a Inglaterra que foram dados os pri- obrigou a medidas sanitárias drásticas e con- quarentenas e dos cordões sanitários, espe-
meiros passos para a identificação e prevenção tribuiu para alterar o modo de encarar as cialmente na altura da epidemia de cólera de
da doença: em 1854 o médico John Snow veri- doenças por parte do poder político. A sua 1832, e que lutaram pela liberdade do indiví-
ficou que 500 casos mortais ocorridos em dez influência no desenvolvimento de políticas sa- duo e do comércio. Verificou-se assim, numa
dias na zona central de Londres resultaram nitárias foi fundamental e resultou na criação clara associação entre teorias anticontágio
e interesses comerciais, que os governos do
Norte da Europa, mais liberais e progres-
sistas, avançaram com políticas higienistas,
O representante de Portugal abolindo quarentenas e cordões sanitários. Os
Nascido em Lisboa em 1806, Bernardino António Gomes estudou países do Sul da Europa, mais conservadores,
Medicina em Paris e Matemática em Coimbra, onde foi professor.
Foi o primeiro médico a utilizar o clorofórmio em Portugal e um mantiveram as práticas correspondentes à
aparelho de inalação de éter como formas de anestesia. Acompanhou, teoria do contágio. Apesar da circulação do
juntamente com outros clínicos, a doença do rei D. Pedro V e dos seus conhecimento científico e da apropriação
irmãos D. Fernando e D. João, após uma caçada em Vila Viçosa, em 1861.
deste por parte das autoridades, que o usaram
Os três faleceram dias depois. Foi aberto um inquérito policial e a equipa de
médicos que realizou a autópsia negou a hipótese de envenenamento, declarando para combater a doença com todos os meios
como causa de morte a febre tifoide. de que dispunham, a urgência das crises epi-
Estudou a fundo as epidemias do século XIX e representou Portugal nas conferências démicas não era compatível com o maior
sanitárias internacionais realizadas para discutir as medidas de prevenção e controlo das
problema a resolver a longo prazo: a falta de
crises epidémicas. Defendeu a teoria do contágio e das quarentenas e cordões sanitários,
contra, por exemplo, o Reino Unido e a Alemanha, que propugnavam os seus interesses higiene, tanto pessoal como das habitações,
económicos e exigiam liberdade de comércio e de circulação. Faleceu em Lisboa em 1877. especialmente nas cidades.
VISÃO H I S T Ó R I A 59
EPIDEMIAS // CÓLERA
Portugal, 1855
«Estamos no período que mais é para recear,
estamos no tempo dos pepinos, das amei-
xas, das frutas mal sazonadas, que os nossos
camponeses, não por fome, mas por vício e
repreensível abuso não deixam de comer»
(O Século, 14/08/1855).
«Em geral, todas as pessoas que têm sido
GETTY IMAGES
atacadas pertencem às classes menos abasta-
das da sociedade; tem sido gente mal vesti-
da, mal alimentada e de vida pouco regular»
(O Comércio, 06/12/1855). Cientista ímpar Robert Koch (à direita, na foto), o homem que identificou a bactéria da cólera,
Eram estes os argumentos usados para ne- numa das suas viagens a África, em 1905
gar a epidemia de cólera em 1855 em Portugal:
os pobres estavam doentes porque tinham e bens. Com isto, os produtores poderiam podiam passar a doença umas às outras,
vícios. Era preciso encontrar um culpado e, ir à falência e a população, sem acesso aos mas porque consideravam que a verdadeira
entre as causas conhecidas para a doença, a alimentos, arriscava-se a passar fome, o causa da doença residia em comportamentos
pobreza parecia ser a que reunia maior una- que era visto como pior do que a própria desviantes, falta de cuidados e de higiene e
nimidade. De facto, os pobres eram sempre os epidemia. Além destas questões práticas, maus hábitos alimentares. O próprio medo
primeiros a morrer nestas epidemias e os que as medidas de isolamento foram também era referido como transmissor da doença.
tinham maiores taxas de mortalidade. A misé- vistas como uma interferência da capital Nesta fase abundavam os conselhos para
ria estava definitivamente associada à doença, na autonomia municipal. Durante todo o limpeza das casas e das ruas com vista a
o que levou a que certamente muitos casos de período epidémico, o Porto reclamou o res- combater os «miasmas pútridos», conside-
morte nas classes mais altas simplesmente tabelecimento da liberdade do comércio, rados a principal origem de contaminação.
não tenham sido declarados como cólera. E essencial para a sua sobrevivência. Por esse Não havia tratamentos específicos: acon-
os comportamentos reprováveis incluíam a motivo a imprensa local negava o contágio: selhavam o espírito de cânfora, esfregar os
negligência, a má alimentação e a ingestão as medidas higiénicas preventivas eram con- doentes com água salgada morna, bebidas
de frutas e legumes. sideradas essenciais, não porque as pessoas espirituosas, menta, iodo, fumigações com
A epidemia atingiu a região Norte de enxofre, água quente, canja e um xarope com
Portugal em 1855, assim como o Algarve. goma-arábica, ovo e láudano. A aplicação de
A maioria dos jornais dedicou grande aten- sanguessugas foi um recurso a que também
ção a esta doença, divulgando as medidas se fez referência: «A alguns coléricos têm-
sanitárias impostas pelas autoridades cen-
A epidemia chegou -se-lhes aplicado com sucesso bichas sobre
trais em Lisboa. No Porto estabeleceu-se a Portugal em 1833, ao o estômago» (O Comércio, 24/09/1855). Os
um cordão sanitário protegido pelo exército, conselhos sobre alimentação incidiam em
impôs-se a quarentena aos navios, foram
Porto, a bordo do vapor preferir alimentos cozinhados, especialmen-
criados lazaretos (hospitais especiais para com soldados belgas te os cozidos, evitar as frutas e os legumes
as quarentenas), isolaram-se os doentes, verdes, as saladas e todos os excessos. «Os
proibiram-se feiras e mercados e foi impe-
vindos para ajudar os alimentos mais saudáveis são os caldos de
dida a concentração e circulação de pessoas liberais na guerra civil vaca, carnes frescas assadas e arroz, com
moderação. O chá, mesmo com leite, pou-
co doce, pode usar-se sem receio, e igual-
60 V I S Ã O H I S T Ó R I A
AKG/FOTOBANCO
Desinfeção das ruas Uma brigada sanitária atuando em Hamburgo, na Alemanha, em 1892
de medicamentos nas farmácias. As aulas da provisões e medicamentos. Aliás, as pequenas são os oficiais em meio hospitalar e seriam
universidade foram encerradas. A educação povoações longe dos centros urbanos foram bastante mais elevados se contabilizados os
e o comércio não foram as únicas atividades as mais afetadas pela falta de assistência, pois falecimentos em casa.
a serem afetadas: também o turismo sofreu, os próprios médicos ficaram doentes e os me- Até as alterações do clima, questões que têm
afetando as populações das vilas costeiras que dicamentos eram inexistentes. No total, em preocupado cientistas ao longo dos séculos,
já nessa época dependiam das receitas trazidas 1855 faleceram 8718 pessoas em Portugal, o foram apresentadas como causas da epidemia
no verão pelas famílias da elite. que representa cerca de 45% dos doentes. de cólera. J. A. d’Oliveira publicou artigos so-
O Algarve apresentou um cenário muito No ano seguinte a cólera espalhou-se até à bre este e outros temas, nos quais apresentou
pior, devido à falta de médicos e de qualquer Madeira e faleceram mais 9 mil pessoas em teorias muito para além do seu tempo: «Sob
espécie de assistência. Houve vilas inteiras todo o País, 3600 das quais em Lisboa. Em pretexto de explorar o seu domínio, o homem
que ficaram desertas, não só pela morte dos 1856, a febre-amarela, importada do Brasil destruiu o equilíbrio estabelecido entre as
habitantes, mas também pela fuga, provocada em julho, ajudou a aumentar a taxa de mor- diferentes espécies de vegetais. Os bosques,
pelo terror. Foram necessárias medidas como talidade. Em 1857 quase 10% da população de cuja missão era moderar o frio dos invernos
o envio de um vapor de guerra com médicos, Lisboa contraiu esta doença. Estes números e o calor dos estios, reter as humidades no
solo, resolver as eletricidades atmosféricas
As vítimas da cólera resinosas, etc., foram destruídos. As culturas
1 milhão
estenderam-se no globo, mas ao acaso (...) e
por isso o clima, até então regular, se tornou
20 mil
irregular, sofrendo grandes vicissitudes, e as
estações pervertidas. Daqui nasceram todos
os flagelos, que devastam a agricultura, a gea-
da, a saraiva, as tempestades, os furacões, as
mortos em Paris inundações, as epizootias, e as epidemias,
em 1832 de mortos na Europa que afetam o homem...» E concluiu que se o
40 mil
na década de 1850 homem «continuar na ignorância e desprezo
das leis da meteorologia, será o autor da sua
própria ruína» (O Comércio, 30/11/1855).
VISÃO H I S T Ó R I A 61
EPIDEMIAS // CÓLERA
E
por Laurinda Abreu
ntre as medidas tomadas pela Monar- das medidas de precaução que tem mandado
quia Constitucional para impedir a pro- observar em todos os portos do reino», con-
pagação de doenças contagiosas, sobres- jugando a segurança da saúde pública com
saem os cordões sanitários colocados à o mínimo de limitações do comércio. Uma
volta das localidades ou nas fronteiras, justificação que o poder político considerava
providências em que os militares desem- necessária, uma vez que as práticas quarente-
62 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Comboios vindos
de Espanha parados lamentos. Chamadas de atenção que, igual-
Para conter o surto em 1885, mente, atingiram o ministro da Guerra (Defesa
a entrada de composições Nacional), quando teve conhecimento de que
ferroviárias provenientes do as viagens no Douro tinham sido autorizadas
país vizinho foi proibida até os
lazaretos terrestres estarem por um subalterno, o comandante do cordão
a funcionar. Depois disso, militar estacionado em Barca d’Alva. Neste
quem chegava de comboio caso, ordenou-lhe que controlasse os seus su-
ficava obrigatoriamente
bordinados, advertindo-os de que se deviam
de quarentena (gravura da
inauguração do caminho-de- abster «de toda a iniciativa em assuntos de
-ferro-direto a Madrid, 1881) saúde e que se limitem unicamente a prestar
às autoridades administrativas e sanitárias o
auxílio que pedirem». Não competia às auto-
ridades militares, afirmava, julgar as ordens
que recebiam.
VISÃO H I S T Ó R I A 63
EPIDEMIAS // CÓLERA Cordão sanitário de 1885
VALENÇA
VIANA DO
CASTELO BRAGANÇA
BRAGA
VILA REAL
PORTO
Freitas citava o caso de Espanha – «que já hoje eram exigidas cartas de saúde para se poder
está convertida num hospital e parece tender VISEU VILAR viajar de comboio no País. De um modo
FORMOSO
a converter-se num cemitério» – para fazer geral, a rede sanitária ajustava-se às ligações
aprovar as medidas quarentenárias. Por sua GUARDA ferroviárias e fluviais a Espanha e respetivos
vez, a oposição bradava contra o uso de méto- CASTELO ramais, e nesse percurso foram estrategi-
COIMBRA BRANCO
dos arcaicos, considerando que não resolviam camente colocados postos de vigilância e
os problemas sanitários do País e agravavam alguns hospitais temporários.
a situação económica, beneficiando apenas LEIRIA MARVÃO Como tinha ocorrido no surto de 1855,
os envolvidos no combate ao «micróbio». todas as formas de mobilidade entre Portu-
Também nesses termos se lhe referia Ricardo SANTARÉM PORTALEGRE gal e Espanha foram fortemente limitadas,
Jorge, que alertava para o facto de nada estar LISBOA ELVAS impondo-se pesadas multas aos infratores.
a ser feito em relação aos «micróbios da casa» Determinava-se, ainda, o afundamento dos
(por contraste com o importado, o da cólera), TRAFARIA ÉVORA barcos de quem ousasse pescar no rio Minho.
varíola, tifo e tuberculose, conforme se lê em A quarentena era obrigatória, quer para os
Higiene Social e Aplicada à Nação Portuguesa, passageiros de comboios e barcos quer para
BEJA
publicada nesse ano de 1885, obra que reunia as centenas de trabalhadores portugueses que
quatro conferências sobre saúde pública, ini- se encontravam em Espanha – muitos deles
ciadas um mês antes da epidemia de 1884. tiveram de esperar pelo fim do surto para se-
Não havendo grandes diferenças a assinalar VILA REAL rem repatriados. O mesmo aconteceu com
AR/VISÃO
FARO DE SANTO
entre as medidas tomadas em 1884 e em 1885, ANTÓNIO os porcos e as vacas que também lá tinham
nota-se, no segundo surto, a agilização da má- permanecido.
quina administrativa do Estado, que mostra LAZARETOS POSTOS MILITARES Em finais de novembro, as medidas de vi-
ter aprendido com as deficiências registadas HOSPITAIS DE COLÉRICOS PORTOS/ESTAÇÕES gilância começaram a ser atenuadas: reduzi-
no ano anterior. Evidencia-se o papel diretivo GOVERNOS CIVIS DE SAÚDE ram-se as quarentenas nos lazaretos para entre
do Ministério do Reino, assumido por Barjona cinco e três dias, conforme os locais; em 12 de
ARMADA CORDÃO SANITÁRIO
de Freitas: em 1884, demorou uma semana janeiro de 1886, para um dia. Porém, só em
POSTOS DE VIGILÂNCIA CAMINHOS-DE-FERRO
a perceber as dificuldades dos governadores abril o surto seria considerado extinto. No Par-
civis (a quem começara por entregar o co- lamento, de novo se ouviam as críticas contra
mando das operações) em fazerem cumprir as Em julho, já tinham sido deslocados 4500 o mau uso das verbas públicas em «cordões de
suas ordens. Em 1885, ele próprio solicitou a homens e 538 cavalos, cerca de um quinto do oiro», enquanto o País continuava sem estru-
imediata intervenção do Ministério da Guerra exército e reservistas, para as seis secções que turas sanitárias e as populações desprotegidas.
para, com o apoio do Ministério da Fazenda compunham o cordão sanitário, um número Necessidades que o governo não negava, mas
(Finanças), controlarem a fronteira terrestre que foi crescendo até atingir os 6500 militares que sabia difíceis de satisfazer, dado o estado
e darem início ao cordão sanitário. Simulta- em janeiro de 1886. Numa outra frente, prepa- das finanças públicas e até a situação política.
neamente, mandava instalar telégrafos nos ravam-se espaços para instalar hospitais para Por isso, tal como os seus congéneres do sul
distritos administrativos, para rapidamente acolher coléricos, em acomodações militares da Europa, continuava a defender o direito
contactar os governadores civis. ou edifícios públicos. Por serem dispendiosos, de cada país a escolher os meios de proteção
As primeiras de muitas centenas de men- evitavam-se os «hospitais-barracas» (hospi- que considerasse mais ajustados à sua situação
sagens dirigidas aos governadores civis come- tais de campanha), mas também os imóveis geográfica, económica e sanitária.
çaram a ser emitidas no dia 11 de junho, ora privados, embora a lei de 1854 (restabelecida
ordenando-lhes que isolassem os locais onde em 1884) o permitisse. Nota:
Sintetizam-se neste e no primeiro texto da autora
surgiam suspeitas de cólera e fizessem as po- os trabalhos «A luta contra as invasões epidémicas
pulações utilizar água fervida, ora avisando-os Sem comboios de Espanha em Portugal: políticas e agentes, séculos XVI-XIX»,
Ler História 73, 2018, e «Epidemics, quarantine and
dos materiais remetidos de Lisboa, como era o Na retaguarda do cordão, em Vila Real de state control in Portugal, 1750-1805», Mediterranean
caso dos desinfetantes, ora mandando reativar Santo António, Elvas, Marvão, Vilar For- Quarantines, 1750-1914, Manchester, Reino Unido,
Manchester University Press, 2018, de onde também
as comissões sanitárias nas capitais de distrito moso e Valença, estavam os lazaretos que foram adaptados os mapas originais, desenhados por
e de concelho e as comissões de beneficência António Manuel da Cunha Belém, junta- Luís Gonçalves. As informações relativas aos lazaretos
resultam da análise, ainda em curso, à obra Os lazaretos
nas freguesias ou autorizando as câmaras mu- mente com outros médicos militares, foi terrestres de fronteira nos anos de 1885 e 1886:
nicipais a recrutar médicos e cirurgiões. Ou, encarregado de fiscalizar e reabrir. Enquanto Marvão, Elvas, Vilar Formoso, Valença e Vila Real de
Santo António: relatório apresentado a sua excelência
ainda, instando a que apoiassem a constituição tal não acontecesse, ficavam suspensos os o Ministro do Reino, A. M. da Cunha Belém e Guilherme
dos cordões sanitários. comboios vindos de Espanha. E, em julho, José Ennes, Lisboa, Imprensa Nacional, 1886.
64 V I S Ã O H I S T Ó R I A
«Pontes
monumentais...»
terrestres de fronteira
até os acampamentos militares. Vedados e
patrulhados por soldados da cavalaria desde
o recolher até ao toque da alvorada, os laza-
retos rememoravam as urbes amuralhadas
Como funcionavam no século XIX em tempos de peste.
os locais de quarentena obrigatória para viajantes No seu interior, conforme a disponibilidade
por Laurinda Abreu das instalações, o espaço dividia-se entre o
O
hospital, uma divisão exclusivamente dedi-
s lazaretos portugueses estarão, por- ça) como em fortes (Elvas), ou em casas de cada ao tratamento dos coléricos, e os aloja-
ventura, entre as instituições ligadas madeira construídas para o efeito (Vilar mentos para os quarentenários, a cozinha,
à saúde pública menos conhecidas e Formoso e Vila Real). Normalmente, eram a lavandaria, etc. Em 1885, os funcionários
estudadas. A crer em Rafael Bordalo acrescentados por um conjunto variado de passaram a ser distinguidos por braçadeiras,
Pinheiro, que, como todos os viajan- anexos que englobavam os locais onde eram amarelas para os «impedidos» (todos aqueles
tes que naquele tempo chegavam do que contactavam com os quarentenários ou
Brasil, foi obrigado a quarentenar no Laza- com os espaços por eles percorridos) e azuis
reto de Lisboa, em 1879, o local era pouco para os «desimpedidos». A «incomunicabi-
menos que tenebroso, «uma penitenciária» lidade» entre ambos era absolutamente vital,
que alimentava os cofres do Estado e dos sob pena de os desimpedidos serem obrigados
fornecedores e «que prende tudo menos a a cumprir a quarentena.
febre amarela», a doença infeciosa que então
atemorizava o País. Para os cinco lazaretos Fumigações e irrigações
terrestres de fronteira existentes no século Saídos dos comboios ou dos barcos, em bal-
XIX (Marvão, Valença, Elvas, Vilar Formoso
e Vila Real), as informações disponíveis são
sobretudo de carácter normativo e regula- O livro que Rafael Bordalo
tório e datam de 1884 e de 1885, estando
relacionadas, portanto, com os dois últimos
Pinheiro publicou em
surtos de cólera que ameaçaram Portugal 1881 relata a sua estada
no século XIX.
Os lazaretos, administrados por médicos
no lazareto da Trafaria,
militares e vigiados por soldados de infan- chegado do Brasil. Nestas
taria e cavalaria cuja presença foi reforçada
em 1885, tanto podiam ser estabelecidos em
páginas, alguns dos
propriedades particulares (Marvão e Valen- desenhos da obra
VISÃO H I S T Ó R I A 65
EPIDEMIAS // QUARENTENAS
«Na alfândega: passa o coco da massa para o «Torna a passar do lado empestado para o
lado empestado» outro que o não está, sem ser beneficiado
«Os quartos
de 1ª classe
Os quartos
de 2ª classe
Os quartos
de 3ª classe
deações que em Monção e Valença obedeciam sulfúrico. O lazareto não se responsabiliza- era com as fezes e vómitos dos doentes, su-
a coreografias com alguma complexidade, os va por possíveis danos causados durante as jeitos a uma tripla desinfeção antes de serem
passageiros entregavam as suas bagagens desinfeções. soterrados. Já os cadáveres dos coléricos,
para desinfeção, sendo depois conduzidos À chegada às instalações, os quarentená- envolvidos em panos embebidos em soluto
para as barracas de inspeção, onde era ava- rios eram questionados sobre a classe em de cloreto de zinco, deviam ser imediatamen-
liado o seu estado de saúde. Escoltados por que se queriam inscrever (havia disponíveis te enterrados em cova mais funda do que o
soldados, seguiam para o lazareto, em macas quatro classes), o que é um dado relevante habitual e cobertos com «muita» cal. Aos
nos casos de doença ou no carro de transporte pois dele dependia a qualidade dos serviços e mortos, era devido um «enterro decente»
coletivo. Era-lhes permitido levar consigo as das refeições, estas quase sempre adquiridas mas sem acompanhamento, a não ser que
bagagens de mão, previamente desinfetadas no exterior. Da classe dependia também o algum padre se oferecesse, por sua conta e
através de fumigações de enxofre e irrigação valor da fatura a pagar no final da estada. risco, para realizar o serviço fúnebre, o que
com soluto de sublimado corrosivo, ou outros Se a higiene dos quarentenários era uma o colocava na situação de «impedido». Uma
produtos químicos especificados nos regu- preocupação para os administradores – no carta de saúde, terminado o isolamento,
lamentos. A restante bagagem só lhes era lazareto de Marvão, por exemplo, referia-se funcionava como salvo-conduto que per-
entregue à saída do lazareto, após sete dias o cuidado a ter para evitar que o espaço fosse mitia aos passageiros seguir viagem até ao
de descontaminação por vapores de ácido infetado por parasitas –, a maior precaução seu destino.
66 V I S Ã O H I S T Ó R I A
AURÉLIO DA PAZ DOS REIS/CENTRO PORTUGUÊS DE FOTOGRAFIA
G
por Cesaltina Pinto
regorio Blanco, espanhol, 47 anos e cambaleante», o que foi interpretado por casas vizinhas. E, depois, em locais próximos:
de idade, era carrejão de bordo e de amigos e vizinhos como resultado de bebida a Rua dos Mercadores, Escadas dos Guindais,
armazéns de porto e, ultimamente, mais. «Foi à latrina, e como se demorasse, os Muro dos Bacalhoeiros... Ou noutros pontos
carregava trigo para os armazéns da companheiros foram dar com ele já morto.» da cidade do Porto, em pessoas que, soube-se
casa Barreto. Há uns tempos que não Nada mais a assinalar. Enterre-se. depois, tinham convivido em determinada
andava a sentir-se bem. Achava-se Alguns dias depois, porém, novas maleitas altura com os anteriores afetados.
«adoentado» e queixava-se «de uma pontada são sentidas em quem partilhava com Gre- A notícia de que andava por ali um «an-
no lado direito». A 5 de junho, «depois de um gorio o nº 88 da Rua Fonte Taurina, bem no daço» circulava de boca em boca. A 4 de
dia de serviço, entrou no domicílio taciturno coração da Ribeira. O mesmo aconteceu em julho, um mês depois da morte de Gregorio,
VISÃO H I S T Ó R I A 67
EPIDEMIAS // 1899
No Laboratório de Higiene
Municipal do Porto Belo de Morais
e outros médicos em ação
AURÉLIO DA PAZ DOS REIS/CENTRO PORTUGUÊS DE FOTOGRAFIA
«um negociante da Rua de S. João» envia Lisboa, Câmara Pestana (que morreria vítima de «defesa do reino» que, a 23, se reforçam
um bilhete ao diretor do Posto de Saúde da própria peste pouco depois). com a imposição de um cordão sanitário em
Municipal, Ricardo Jorge, alertando-o das O calendário marcava o ano de 1899 e o torno da cidade «alargada» – que impedia
maleitas de alguns que, entretanto, tinham bacilo tinha sido descoberto quatro anos entradas e saídas do Porto –, já a confusão
resultado em óbitos. Lente da Escola Médi- antes por Alexandre Yersin. Em 1840, esta reina ali. Entre as duas datas, levam-se a cabo
co-Cirúrgica, Ricardo Jorge envia primeiro peste tinha gerado uma epidemia na pro- ações de fiscalização e desinfeção em zonas
um seu funcionário ao local. Fica a saber víncia de Yunnan, na China. Cerca de 60 portuárias e nas estações de caminho-de-fer-
que anda por ali «uma espécie de febre com anos depois chegava ao Porto, sem que ro. Mercadorias ficam paradas nos portos, sem
nascidas debaixo dos braços», uns «bubões». alguma vez se tivesse identificado a sua chegarem às casas de comércio. Estas, assim
No dia 6, o médico mete pés ao caminho. porta de entrada. como algumas fábricas, encerram portas. Há
Correlaciona casos (dez infetados) e mortes Quando, a 17 de agosto, «o governo do pro- gente que fica sem emprego e, por isso, con-
(quatro), recolhe amostras. No seu próprio gressista Luciano de Castro» decreta medidas dena quem decreta a peste. Há manifestações
laboratório bacteriológico – munido já de nas ruas e os jornais ajudam à missa. Diabo-
um microscópio –, começa a não ter dúvidas: liza-se Ricardo Jorge, que passa a fazer-se
tudo indicava tratar-se da peste bubónica, acompanhar por escolta policial, mesmo que
vulgo «peste negra». nunca tenha defendido o cordão sanitário. A
No dia 12 informa, por ofício, o governador
civil da cidade, Pina Callado – que, por sua
Em 1840, esta peste burguesia, em franco progresso económico, vê
a sua vida andar para trás e convoca reuniões
vez, põe ao corrente as autoridades em Lisboa tinha sido identificada no átrio do Palácio da Bolsa. E contabilizam-se
–, com a recomendação de «internamento e
isolamento de todos os contagiados». A 28
na China. Não se sabe cerca de 20 mil saídas da cidade antes da che-
gada das tropas, pois a quem tentasse «iludir
de julho reafirma a sua convicção, já com qual a porta de entrada o cerco» aplicava-se «pena de prisão de três
os resultados dos exames bacteriológicos.
A confirmação seria validada a 8 de agosto
no Porto, 60 anos a seis meses».
A situação piora quando surgem as
pelo diretor do Instituto de Bacteriologia de depois tropas: Infantaria 3 de Viana do Castelo,
68 V I S Ã O H I S T Ó R I A
AURÉLIO DA PAZ DOS REIS/CENTRO PORTUGUÊS DE FOTOGRAFIA
Infantaria 20 de Guimarães, Cavalaria 6 tempo de eleições, nas quais foram eleitos, pobre e suja, com a sua classe operária a viver
de Chaves, Cavalaria 10 de Aveiro. Cer- pela primeira vez, três republicanos do Por- em condições insalubres e sem saneamento
ca de 2500 homens deveriam estabele- to, apelidados de «deputados da peste») e básico. Abundavam os ratos e as pulgas –
cer «um cerco militar que partia de Leça recordavam outro cerco à cidade, durante a talvez a razão mais plausível da transmissão
da Palmeira, seguia o rio Leça, S. Mame- guerra civil de 1832-34. O governador civil, do bacilo ao homem. Houve desinfestação,
de Infesta, Ermesinde, Valbom, passando Pina Callado, bem como o presidente da casas queimadas.
o rio Douro, em Avintes, e indo até ao mar, câmara, João Lima Júnior, demitiram-se, Depois de ter sido nomeado inspetor-geral
em Gaia, na zona da Madalena. O cruzador mas as suas demissões não foram aceites. de saúde pública, em Lisboa, Ricardo Jorge
Adamastor seria mobilizado para garantir o Ricardo Jorge, que considerou o cordão promove a criação do Instituto Central de
cerco marítimo». sanitário «um disparate máximo», acabou Higiene, o que leva à criação de uma Dire-
refugiando-se em Lisboa. ção-Geral da Saúde. A epidemia foi natu-
O «boicote» de Lisboa Os jornais – Comércio do Porto, Jornal de ralmente controlada. O cordão sanitário foi
Ninguém aceitou de bom grado uma decisão Notícias e Voz Pública – negavam a peste, levantado em dezembro, a tempo das festas
tomada pelo governo central e por pessoas alimentavam polémicas em títulos de pri- de Natal. Oficialmente, registaram-se 320
que nunca tinham posto os pés no terreno. meira página com discursos de vitimização casos, com 132 óbitos. Mas há quem ainda
As gentes do Porto viram nesta medida uma face à capital. Ao ponto de Lisboa considerar hoje defenda que «nunca mais o Porto foi
«humilhação». A burguesia e os comer- «urgente» a necessidade de «pronta repres- o mesmo». Instalou-se o ressentimento da
ciantes, que tinham criado a ideia do Porto são» dos seus «desmandos». Aos processos segunda maior cidade do País, «capital do
«cidade do trabalho», olhavam a decisão juntou-se a suspensão. Para a driblar, o JN Norte», face ao poder de Lisboa.
de Lisboa como uma forma de boicote aos mudou de nome duas vezes, para Notícias, Este texto, originalmente publicado na VISÃO 1406,
tempos de prosperidade que viviam. Os primeiro, e Diário da Manhã, depois. A ver- de 13 de fevereiro. foi escrito com base em: A Peste
Bubónica no Porto, Ricardo Jorge; O cerco da peste no
políticos, alguns republicanos, encaravam dade é que conseguiu, neste final do ano de Porto, tese de mestrado de David Pontes; O Cerco –
isto como uma consequência do movimento 1899, aumentar a tiragem de 16 mil para 22 Sobre a epidemia de peste bubónica no Porto em 1899
e sobre a sua documentação fotográfica, ensaio de
dos revoltosos de 31 de janeiro, ocorrido oito mil exemplares. Renato Roque. Depoimento de Jorge Alves, docente de
anos antes (ainda por cima, tudo surgia em Tudo isto acabou por expor uma cidade História da FLUP.
VISÃO H I S T Ó R I A 69
EPIDEMIAS // HÁBITOS
A
O Comércio, que no ano seguinte mudou o
publicidade orienta, fornece infor- Mas a democratização dos produtos de nome para O Comércio do Porto, recomendou
mação, divulga cultura, hábitos de higiene corporal e das habitações não de- aos seus leitores o ensaio desta «receita tão
higiene, elegância e bom-gosto. Gera pendeu apenas da publicidade. Para fica- simples e de tão fácil aplicação» (26/10/1855).
mercados, cria necessidades, aumenta rem mais baratos e acessíveis, estes novos
a procura e intensifica a produção, o objetos de consumo foram o resultado do Lavar as mãos e os dentes
que faz baixar os preços. Antes mesmo desenvolvimento da indústria química, da Curiosamente, as referências aos cuidados
de os relatórios e conselhos médicos serem criação laboratorial de produtos e do isola- com a higiene das mãos estão praticamente
divulgados à população, já os anúncios ensi- mento de substâncias ativas a partir de ma- ausentes dos conselhos médicos publicados
navam os leitores dos jornais diários a lavarem térias-primas de origem natural. No século para o grande público. Por exemplo, durante a
os dentes, a criar hábitos de higiene pessoal, a XIX foi dada grande importância à higiene epidemia de cólera há apenas uma referência
desinfetar as casas como prevenção de doenças. das habitações, que passou a fazer parte do ao «estranho comportamento» dos médicos
Por exemplo, as lâminas de barbear para uso discurso oficial como parte fundamental da do hospital de Roma que, «pela falsa ideia de
diário foram inventadas por um fabricante de saúde das sociedades. Repetem-se nos jornais que a moléstia é contagiosa», não se «che-
lâminas que focou na sua publicidade o aspeto da época as preocupações com a limpeza gavam perto dos doentes senão com a cara
de higiene, limpeza e elegância masculina. e o arejamento das casas, das roupas, dos coberta com máscara e luvas nas mãos…»
Aumentou o mercado e os preços baixaram. móveis, e do corpo dos doentes. O discurso (O Comércio, 20/09/1854). Só no final do
70 V I S Ã O H I S T Ó R I A
O COMÉRCIO DO PORTO Nº 196 1918.08
século XIX, perante a epidemia de peste ne- pour la conservation des dents et des gencives. neige preparado especialmente para uso do
gra no Porto, é que Ricardo Jorge introduziu D. de Vitry, chirurgien-dentiste de Leurs Ma- banho, reunindo a vantagem de se conservar
esta ideia revolucionária nas suas Instruções gestés»... (Diário de Notícias, 21/05/1865). Os sempre ao de cima de água, e a de branquear
profiláticas sobre a peste bubónica. Mas até anúncios dos pós-dentífricos e elixires para e perfumar agradavelmente a pele. Vende-se
em 1918 a lavagem das mãos ainda não era desinfeção da boca acentuavam no título a sabão aromatizado a peso. À la Corbeille
uma prioridade nos conselhos à população. «limpeza quotidiana» para evitar a «dor nos de Fleurs, praça D. Pedro, 101»(Diário de
Assim, foi a publicidade que insistiu no dentes, cariação [sic], e mais padecimentos Notícias, 15/03/1865).
tema e que mais o divulgou. Desde 1899 de boca» (Diário de Notícias, 19/11/1865).
repetiram-se os anúncios a sabonetes, que A pasta dentífrica foi introduzida apenas em Termas e banhos
tinham o valor de educar o público para a 1873, pela Colgate, mas claramente nestes As termas e os banhos de mar também se
necessidade de desinfetar as mãos para evitar anos a higiene oral era ainda algo apenas inserem no movimento higienista, contri-
o contágio da peste. O mesmo se passou com acessível a uma elite. buindo para o desenvolvimento do turismo
a higiene oral: enquanto não há qualquer A mesma perfumaria do Rossio também de saúde, do qual Ricardo Jorge foi grande
alerta de médicos ou autoridades sanitárias anunciou repetidamente neste ano «Grande impulsionador, acentuando a questão da
para a sua necessidade, foi nos anúncios que sortimento de sabonetes. Incluindo os de saúde pela água, assim como a distribuição
se encontraram as primeiras referências à glicerina, pó-de-arroz, e o savon leger à la de águas engarrafadas.
lavagem diária dos dentes. Em 1865, uma Os anúncios de termas começavam antes
perfumaria recentemente aberta no Rossio, do verão e prolongavam-se durante toda a
chamada À la Corbeille de Fleurs, anunciou estação balnear, não esquecendo as refe-
«um grande sortimento de escovas para den- rências à alimentação saudável e à anima-
tes, unhas, fato, cabelo e chapéus; pentes e A elegância e a boa ção necessária a umas férias bem passadas:
muitas qualidades para caspa e alizar» (Diá- «Estabelecimento Hidrológico de Pedras
rio de Notícias, 25/03/1865). E um dentista
aparência passaram Salgadas. Abriu no dia 10 de maio. Assis-
francês, também estabelecido no Rossio, pu- a estar associadas tência médica e farmácia, banhos alcalinos
blicou, na sua língua, um anúncio a «Grand e duches. Vacaria permitindo o regime lácteo
choix de dentifrices, d’une renommée juste-
aos hábitos de asseio rigoroso. Bons hotéis. Casino» (O Comércio
ment acquise; poudre et elixirs très efficaces e higiene pessoais do Porto, 02/07/1899).
VISÃO H I S T Ó R I A 71
Laboratório de //
EPIDEMIIAS CIÊNCIA
Selman
Waksman Foi aqui que, em
1943, o doutorando Albert
Schatz, num projeto financiado
pela farmacêutica Merck,
descobriu a estreptomicina,
começando assim a vencer-se
a guerra à tuberculose
72 V I S Ã O H I S T Ó R I A
O MICRÓBIO
CONTRA-ATACA
Um resumo muito breve da história muito antiga de algumas
das muitas guerras virais, todas elas muito exponenciais
por Clara Pinto Correia*
VISÃO H I S T Ó R I A 73
EPIDEMIIAS // CIÊNCIA
A
s grandes doenças, bem como as Federico Cesi
grandes descobertas mais ou me- No grande
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nos científicas que lhes estão asso- entusiasmo da
«sua» Academia
ciadas, costumam encher de medo
do Lince,
sociedades bipolares como a nossa, descobre-se a
atavicamente dependentes dos con- Hernán Cortez incrível perfeição
ceitos de Bem e de Mal para organizarem os Especula-se sobre a hipótese de ter usado das primeiras
a varíola para conquistar o México células
seus pensamentos – e as suas jogadas polí-
ticas. As doenças causadas por organismos
invisíveis que parecem só precisar de tempo
para se espalharem pelo globo em padrões Louis Pasteur Lazzaro
exponenciais que deixam toda a gente à sua Isolou a vacina Spalanzani
mercê sempre foram as piores. Serviram para contra a raiva, Foi ele o autor
que passa a das primeiras
uns impérios conquistarem outros, para uns
ser usada nos experiências que
exércitos serem chacinados por outros, e até humanos em estabelecem a
para a implementação de políticas perversas 1884 existência de
de exploração colonial. A História nunca in- duas respirações
venta grandes novidades. diferentes, uma
com e outra sem
Nem sequer sabemos muito bem quando oxigénio
é que os primeiros vírus terão infetado as
primeiras populações humanas. Até 2019
a resposta era «há 6 mil anos, na China», A varíola como arma um uso deliberado, agora na América do Nor-
mas depois passou a ser «há 7 mil anos, Ninguém precisou da descrição da morfo- te, em 1763, por iniciativa de Lord Jeffrey
na Alemanha». A descrição de um vírus logia ou da forma de ação dos vírus para Amherst, o comandante das forças inglesas
costumava ser «só tem ARN, muito mais lhes reconhecer a utilidade bélica. Em 1492, na guerra contra os franceses e os índios.Tal
pequeno, simples, e leve do que o ADN», Cristóvão Colombo observa a morte da po- como no caso de Cortez contra Montezuma,
e em 2017 passou a ser «os mais antigos pulação de uma das ilhas das Caraíbas onde ainda hoje se discute se Lord Amherst fez de
também podiam ter ADN»; tal como o «no aporta depois de os chamados «índios» te- propósito, mas, a pretexto da aproximação do
mínimo tem ácido nucleico e membrana rem contactado com marinheiros com va- inverno, enviou aos inimigos a arma viral. Os
simples» veio a dar origem ao moderno ríola. Aparentemente, a segunda ilha já é índios Ottawa do chefe Pontiac agradeceram
«pode nem sequer ter qualquer membrana». exposta à varíola de propósito, para que os uma oferta de cobertores infetados com va-
A história do conhecimento humano está habitantes morram ou fiquem debilitados. As ríola. Escusado será dizer que ficaram todos
cheia de lacunas e reviravoltas. próximas expedições de conquista do Novo doentes, e que ou morreram ou se renderam.
Não temos registos claros de pessoas a Mundo já incorporarão a varíola como arma A Europa somou territórios e lucros, mas não
morrerem de doenças virais como a gripe até de guerra. O que Colombo ainda não sabe é conseguiu libertar-se da sífilis.
chegarmos aos manuscritos do médico ro- que os mesmos três barcos que transportaram
mano Hipócrates, de 412 a.C. Mas o primeiro a varíola para o Novo Mundo vão trazer para Pessoas curiosas
surto unanimemente aceite enquanto tal é a Europa a peste insaciável da sífilis. Perante a evidência do papel de grande des-
já de 1580. E o verdadeiro vírus da gripe, o A partir de 1519, quando Hernán Cortez taque que as doenças e as suas curas desem-
infame Influenza A, só foi isolado em 1930. conquista o México, muito se tem especu- penham na conquista da «legítima superio-
Daqui resultou a primeira vacina para o vírus lado sobre as suas armas secretas. Como ridade dos povos», a luta pelo combate às
A e B, a partir de segmentos inativados do conseguiu um pequeno grupo de bêbados doenças também começa cedo… Combatê-las
vírus, alcançada nos Estados Unidos em famintos deitar abaixo uma civilização tão pressupõe entendê-las, e entendê-las pressu-
1945. Estas datas começam a organizar-se requintada, guerreira e pujante como o im- põe conseguirmos ver alguma coisa que não
de forma suspeita em torno das duas guer- pério Azteca? Cortez parece ter recorrido à se vê. Como o espírito humano é inquieto, há
ras mundiais, e não é por acaso: tal como arma secreta dos conquistadores e enviado muito tempo que há quem queira saber como
as outras grandes vacinas e os primeiros emissários bexigosos para negociarem uma é que estas doenças funcionam. É evidente que
grandes antibióticos, as grandes vitórias dos paz fictícia. Quando viu o seu povo começar se movem por mecanismos invisíveis, que ge-
destemidos caçadores de micróbios têm uma a cair morto com varíola, o imperador Mon- ram, multiplicam e agitam agentes invisíveis.
ressonância bélica que já vem do princípio tezuma acreditou num castigo dos deuses e Desde que, no século IV a.C., Demócri-
dos tempos. rendeu-se. A varíola ainda conheceria mais to apresentou o seu modelo explicativo da
74 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Paul Ehlrich
Em 1909,
encontra um
novo composto
orgânico do
arsénico, a
arsfenamina,
capaz de
combater a sífilis
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matéria composto por átomos em perpétuo estes esforços produzem no século XX? Várias para aí toda a gente, envergonhadíssima, a
movimento no vácuo, que os seus herdeiros guerras locais, duas guerras mundiais e, por chamar-lhe «doença do inimigo»: conforme
procuram encontrar o mundo vivo que certa- fim, Hiroxima e Nagasáqui. as guerras em curso, é a «doença dos espa-
mente existe abaixo do limite de resolução dos A coberto dos seus esforços de contribuição nhóis», «dos franceses», «dos ingleses», e
nossos olhos. No século XVIII do Iluminismo para a guerra, alguns investigadores euro- por aí fora. Como qualquer maldição, é uma
europeu, Voltaire deu a alcunha zombeteira peus centram-se na descoberta de remédios doença importada das colónias. De cada vez
de Micromegas ao mundo minúsculo que é para doenças até ali sem cura, e quase sempre que parece desaparecida, basta uma frente
uma versão minúscula do mundo maiúsculo, causadoras de morte precoce depois de um de combate encontrar outra para recomeçar
um código secreto à espera de uma chave para calvário maldoso e vergonhoso que as des- o seu trabalho dos dois lados da barricada.
podermos decifrá-lo. figura e paralisa. Isto quer dizer que, ao fim A transmissão sexual já é vergonhosa so-
Mas uma coisa é o termo e outra é o con- de cinco séculos de pesadelo, vamos prestar bretudo tendo em conta a quantidade de
ceito. Este já vinha na bagagem como dado a devida atenção à sífilis. prelados e monarcas que vai sendo atingida
adquirido. Era só aparecer um instrumento – mas pior ainda é que a «doença do inimi-
que nos permitisse visualizá-lo. Isso vai ter de As doenças do inimigo go» se propaga especialmente depressa nas
esperar pela Revolução Científica do século A situação da Europa não pode ser mais de- trincheiras, sem a presença de uma única
XVII, quando a tecnologia permite a vários primente. Ninguém sabe travar uma vaga de prostituta, pelo que só resta a explicação da
investigadores com bons patronos construí- fundo destas, embora toda a gente perceba ocorrência de relações sexuais constantes
rem os primeiros microscópios. No grande que a melhor cadeia de transmissão da sífilis entre os soldados todos homens.
entusiasmo da Academia do Lince, formada é o contágio sexual. E, por isso, agora anda Ainda por cima, desde que chega do Novo
em Roma pelo conde Federico Cesi em 1603 Mundo e até nova ordem, a sífilis só se com-
e que contou entre os membros fundadores bate na lógica de usar o fogo contra o fogo.
com o próprio Galileu, descobre-se a incrível Usam-se emplastros de mercúrio e até supo-
perfeição das primeiras células e dos primeiros
Só no século XVII sitórios de mercúrio. Este método corrosivo
organismos unicelulares. A imprensa espalha a tecnologia permitiu não só desfigura como faz sofrer ainda mais
essas descobertas pelos países ricos, onde a os pacientes ricos que recorrem ao mercúrio
classe culta é cada vez maior.
a vários investigadores disponível na terra deles. Também mata os po-
É de toda esta febre de perfeição que a com bons patronos bres que administram esses tratamentos aos
Europa herda o Romantismo, o Colonialis- ricos, como as meninas das ruelas adjacentes
mo e umas ilha distantes para onde exporta
a construção dos ao Cais do Sodré que aplicavam as compressas
prisioneiros e prostitutas. O que é que todos primeiros microscópios de mercúrio à aristocracia lisboeta.
VISÃO H I S T Ó R I A 75
EPIDEMIIAS // CIÊNCIA
Alexander
Fleming
Em 1928, anunciou
ao mundo a
descoberta oficial
da penicilina
76 V I S Ã O H I S T Ó R I A
A primeira destas é a maldita sífilis. Em A primeira imagem
1909, o médico e químico Paul Ehrlich e o seu Numa microfotogafia
feita pela Universidade
colaborador Sahachiro Hata encontram um
da Pensilvânia, veem-se
novo composto orgânico do arsénico. Chama- estes pontos cizentos
-se arsphenamina, e é a primeira molécula em que são o vírus da gripe
606 amostras que cumpre o desígnio a que
se destina. Chama-se Salvarsan. A Molécula
606 é a bala mágica com que a química con-
tra-ataca. Acabou-se a sífilis.
O Salvarsan não era um composto químico
fácil de manusear e baseava-se num veneno de
poderes letais. Não foi certamente por acaso
que o biólogo, botânico e farmacêutico escocês Prémio Nobel da Medicina. Não quer dizer Um assassino
Alexander Flemming se tornou rapidamente que o curso dramático da guerra tivesse tra- muito bem
conhecido entre a populaça como «Soldado vado a investigação subsequente. Em 1943,
606». Fleming juntou-se a Ehrlich em Londres o doutorando na Rutgers University Albert escondido
para estudar melhor a molécula do Salvarsan, Schatz, dirigido por Selman A. Waksman num Inicialmente, uma das grandes
e conseguiu manipulá-la tão bem que em breve projeto financiado pela farmacêutica Merck, dificuldades na luta contra os vírus
foi o total desconhecimento de causa
conseguia ministrar doses precisas pelo mé- e desta vez seguindo pequenas linhagens de dos que tentavam exterminá-los. Uma
todo então recente e melindroso da injeção cobaias infetadas, também já tinha desco- bactéria vê-se bem em microscopia
intravenosa. Assim que começou a Grande berto a estreptomicina Desta vez, tratava-se ótica, mas um vírus nem pensar. É
em 1892 que o russo Dimitri Ivanosky,
Guerra acompanhou a sua equipa de volta ao da guerra à tuberculose, a mais insidiosa e
baseado em experiências feitas com
Saint Mary Hospital, então transformado em desavergonhada doença dos pobres, gerada plantas de tabaco, compreende que os
hospital de campanha, e começou a ficar muito na miséria mas capaz de atingir os ricos. filtros utilizados para reter micróbios,
impressionado com a quantidade de soldados Em 1945, com tudo o que já se sabia, como efetivos na retenção de bacilos, não
estão a filtrar um outro agente tóxico
feridos que aparentemente davam entrada é que as pessoas haviam de continuar a aceitar
qualquer, que passa pelos seus poros
com pouco mais que infeções causadas por morrer em consequência de uma epidemia ou e atinge em mosaico as folhas do
estilhaços de granadas, mas depois começavam de uma doença? A Ciência trataria de tudo... tabaco sem qualquer dificuldade.
a ter febres altas, pus, inchaços e finalmente, Restava manter a liderança, a calma – e, claro, Depois destas observações, a equipa
londrina de Mill Hill consegue cultivar
lhe morriam nos braços. Eram infeções muito a economia. o agente invisível de Ivanosky em
simples, causadas por micróbios muito simples Resta referir que não houve entre as potên- ovos de pinto. Este é um grande passo
– merecedores já na época, segundo a nomen- cias colonizadoras grande preocupação com à frente no que toca à aceitação do
clatura em uso, do termo «bactéria», que se as doenças coloniais, como por exemplo a conceito do patogene invisível. Depois
destes preâmbulos, o americano
refere a um micróbio com núcleo e membrana malária, até elas começarem a interferir com a Wendell M. Standley viria a ganhar o
externa. O médico suíço usou o método do exploração das riquezas dos trópicos. Ou que Nobel da Química, em 1946, com o seu
médico alemão para descobrir agentes capa- é no mínimo estranho ainda termos de estar trabalho em purificação e cristalização
zes de combater os micróbios causadores das a explicar elementos básicos de bioestatística dos vírus, demonstrando que estes
venenos obscuros têm mesmo uma
infeções dos soldados, e andou a correr caixa a uma cultura que já devia conhecê-los desde estrutura molecular. Foi preciso
atrás de caixa – até que descobriu o bolor da os primórdios da escolaridade obrigatória. esperar pela microscopia eletrónica,
família penicillium que aparentemente tinha Ou mesmo a última moralidade de toda a com as ampliações milhares de vezes
mais elucidativas que proporciona,
derrotado a bactéria causadora desta infeção e nossa arrogância, que nos levou a abusar dos
para vermos um vírus com os nossos
colonizado todo o espaço disponível, impedin- antibióticos e a descurar deliberadamente as próprios olhos.
do-a de voltar a crescer. Testado noutras caixas, vacinas: os «micróbios» têm uma capacidade A partir daqui, o contra-ataque da
o mesmo bolor voltou a colonizar caixas pre- de resposta tão infinitamente maior do que medicina começou, finalmente, a fazer
perfeito sentido em dois carrinhos de
viamente assaltadas por bactérias infeciosas. a nossa, que já conhecemos o registo da sua
definição precisa. As bactérias, que
Em 1928, entre os escombros pouco pro- atividade em Marte desde 1998. Estávamos com qualquer corante se veem com
missores do fim da I Guerra Mundial e as à espera de quê para lhes termos um mínimo qualquer microscópio, combatem-se
infeções devastadoras que haviam de começar de respeito, nestas jogadas sem fim do inter- com antibióticos depois de a pessoa
estar doente. Os vírus, que só podem
com a II Guerra, Fleming anunciou ao mundo minável xadrez do mundo vivo? contrastar-se com o tetróxido de
a descoberta oficial da penicilina. Em 1945, a ósmio e só se veem em microscopia
descoberta do agente antimicróbio vale-lhe o * Clara Pinto Correia é bióloga e escritora eletrónica, evitam-se com vacinas.
VISÃO H I S T Ó R I A 77
EPIDEMIAS // ENTREVISTA
ADELINO CARDOSO
‘As pestes e epidemias
estabelecem a fronteira
entre nós e o Outro’
Investigador da Universidade Nova
de Lisboa nas áreas da Filosofia e História da Medicina,
analisa o efeito das epidemias ao longo dos tempos
por Emília Caetano
Com que recuo histórico podemos falar em epidemias? do Nilo são transformadas em sangue putrefacto, que
Podemos recuar bastante, mas com precauções. As doen- mata todos os peixes e tem um poder contaminador. A
ças têm história e, porventura, não existiu na Antiguidade terceira cobre homens e animais com piolhos e a sexta
nenhum fenómeno análogo à Covid-19. E há, desde logo, com pústulas.
uma questão de linguagem. O nome mais comum que As pragas estabelecem a fronteira entre nós e os outros,
podia corresponder a epidemia é peste ou praga. A palavra entre os bons e os maus, entre o povo judaico e o Faraó.
ADELINO CARDOSO
Investigador do epidemia, que encontramos na fundação da Medicina Segundo o relato bíblico, resultaram, porque o Faraó
CHAM – Centro grega, com Hipócrates, era uma doença que afetava toda libertou mesmo os judeus.
de Humanidades a população de uma região ou de determinada comuni- Mas estava-se no domínio do mítico. Não sei se, histo-
da Universidade
dade. Epi significa ‘sobre’ e demos,' povo’. Portanto, é uma ricamente, existem muitos casos idênticos, mas há um
Nova de Lisboa,
doutorado em doença que se abate sobre um povo. Seja epidemia ou que acho extraordinário e nos diz respeito, enquanto
Filosofia, tem peste, é sempre um fenómeno que se revela imprevisível, portugueses.
coordenado incontrolável e que evidencia a fragilidade do Homem,
projetos como
Filosofia,
quer face ao sobrenatural quer à natureza. Ele mostra-se Refere-se a quê?
Medicina e incapaz, quer pela Ciência quer pela técnica, de controlar À Crónica de D. João I. Quando Fernão Lopes relata o
Sociedade (2007- microrganismos à sua volta que lhe afetam a saúde. cerco à cidade de Lisboa pelo exército castelhano, em 1384,
-2011). É membro tem um capítulo intitulado Da pestilença que andava entre
da Comissão de
Ética do IPO–Lisboa O termo influenza, habitualmente usado para a gripe, os Castelãos e dalguns capitães que em ela morreram. Ali
e do Conselho de não tinha a ver com isso? diz que «Deus teve um papel providencial na proteção
Ética da Fundação Sim. O Homem, pela sua própria condição, estava sujeito dos portugueses e castigo dos castelhanos operando um
Champalimaud à influência de determinadas forças sobrenaturais ou verdadeiro milagre, de modo que os castelhanos eram
fenómenos da natureza. infetados e morriam às centenas, ao passo que os portu-
gueses, mesmo os prisioneiros e outros que estavam em
Quais são as referências mais antigas a estas crises? contacto direto com os castelhanos, ficavam incólumes».
As que nos chegam pela tradição religiosa e pela tradição, É extraordinário ele afirmar que, do lado português,
que não direi científica, mas naturalista. Assim, as fontes ninguém era contaminado. Os castelhanos mandariam
mais antigas não são muito precisas. A Bíblia, no livro do até alguns infetados à frente das suas tropas, para con-
Êxodo, fala nas pragas do Egito. O povo judaico estava tagiar os portugueses, mas sem efeito. E acabaram por
cativo, sujeito às ordens do Faraó e, por isso, Jeová lançou abandonar o cerco. Assim, também aqui foi Deus que
sucessivas pragas para libertar o seu povo. Algumas delas espalhou a peste, para dividir entre os bons e os maus.
têm a ver com a saúde e a doença. Na primeira, as águas Embora os castelhanos também fossem cristãos, na nar-
78 V I S Ã O H I S T Ó R I A
A cura de Naaman
O episódio bíblico
do II Livro dos Reis,
em que o general
sírio é curado da
lepra, é evocado
num vitral da abadia
cisterciense de
Altenberg, Colónia
(Alemanha)
“
rativa de Fernão Lopes há uma clara preferência de Deus por organismos invisíveis a olho nu e disseminados pelo
pelos portugueses. vento. Não havia qualquer ideia de contágio. Na medi-
cina de matriz hipocrática, que prevaleceu até ao século
Fala em nós e os outros. As pragas não trazem consigo XVII, tudo o que havia a fazer era purificar o ambiente,
o estigma? se necessário de toda uma região. E, quando não era
Até ao século
Sem dúvida. Basta recorrermos a outro exemplo bíblico, possível, as pessoas tinham de fugir. Mas Hipócrates era XVI não havia
que é o da lepra. Diz-se no Levitico que o sacerdote, e um médico muito observador. qualquer ideia
não o médico, pode ver, mediante critérios precisos, se a de contágio»
pessoa com determinadas chagas tem ou não lepra. Em Viu que havia mais alguma solução?
caso afirmativo, o leproso deve rasgar as suas roupas, Constatou que os artesãos que trabalhavam com o fogo
desalinhar o cabelo, tapar-se até a boca, ao mesmo tempo estavam praticamente imunes à peste. Pensou que, fazen-
que diz várias vezes «Impuro, impuro!». E tem de ir viver do fogueiras em pontos nevrálgicos da cidade, o ar seria
para um lugar isolado, fora do acampamento, já que os purificado e a peste vencida. A verdade é que resultou,
judeus eram nómadas. O diagnóstico do sacerdote era embora não creia que se tenha baseado em qualquer
acompanhado pelo estigma, a exclusão. Esta questão do princípio teórico.
Outro surge também na primeira narrativa histórica de
uma peste no espaço europeu. E não havia relação com a guerra?
Isso volta a colocar-nos a questão do Outro. Não é aciden-
E que foi? tal que esta peste surgisse pouco depois do início da Guerra
A peste de Atenas, por volta de 430 a.C., que julgo ser do Peloponeso, que envolveu Atenas e os seus aliados
a primeira bem documentada historicamente. Os dois contra Esparta. Tucídides acha muito surpreendente que
grandes historiadores gregos, Heródoto e Tucídides, fa- a peste ocorresse quando Atenas respirava «uma ótima
laram nela, mas sobretudo Tucídides, na sua História da saúde a respeito das outras doenças». Portanto, haveria
Guerra do Peloponeso. É interessante a coincidência de uma relação entre a invasão da Ática e a peste. A culpa
Hipócrates, que foi o pai-fundador da Medicina ocidental, era do inimigo.
ter ido então expressamente a Atenas para ver o que podia Os camponeses foram uma classe social bastante atingida.
ser feito. A teoria médica, já antes desenvolvida por Hipó- Como havia a guerra, fugiam para a cidade à medida que
crates e a sua escola no livro Dos Ares, Águas e Lugares, as suas terras eram invadidas e muitos perderam a vida.
era a de que a peste resultava de uma contaminação do A peste de Atenas ficou confinada a uma região, mas
ar, que afetava o espaço público. Os ares contaminados há, pelo menos, um caso na Antiguidade que pode ser
produziriam miasmas, que seriam venenos, constituídos considerada uma pandemia.
VISÃO H I S T Ó R I A 79
EPIDEMIAS // ENTREVISTA
“
O triunfo da morte
Uma pandemia? Um esqueleto
Sim, a peste antonina, entre os anos 165 e 180, que abar- humano cavalgando
cou todo o espaço do Império Romano e foi a primeira o esqueleto de um
cavalo vai colhendo
As pestes peste global do Ocidente. Começou durante o cerco das
as vítimas pelo
mostram os tropas romanas à cidade de Selêucia, na Mesopotâmia, caminho, numa
atual Iraque. A conquista foi lenta e, dadas as deficientes pintura italiana
limites do condições de salubridade do acampamento dos soldados anónima de meados
ser humano, romanos, a peste eclodiu e alastrou-se entre os militares, do século XV
do seu que, no regresso do Médio Oriente, a transmitiram em lar-
conhecimento, ga escala. Assim, alastrou-se pela Europa, Norte de África,
e confrontam- Ásia Ocidental, enfim, pelo que eram os limites do império.
nos com Entre os mortos, contam-se os imperadores Lúcio Vero e
Marco Aurélio. O médico que sistematizou e desenvolveu
a nossa a medicina hipocrática, Galeno, encontrava-se então em
dificuldade Roma e descreveu os sintomas: febre, diarreia, pústulas.
em conviver Fiel à teoria hipocrática de que as pestes resultavam da
com a contaminação dos ares, saiu de Roma, regressando um
incerteza tempo à sua cidade natal, Pérgamo. E escapou à pandemia.
80 V I S Ã O H I S T Ó R I A
“Hoje, tal como
no passado,
as epidemias
mostram os
limites do
ser humano,
do seu
conhecimento
incentivar-se o isolamento e a restrição de contactos com o Olhando para as epidemias ao longo do tempo, que
resto da população e outro tipo de doentes. Rapidamente paralelismos lhe ocorrem?
foram construídos hospitais destinados especificamente a Hoje, tal como no passado, mostram os limites do ser
infetados pela peste. Exemplo disso foram os dois hospitais humano, do seu conhecimento. Portanto, diminuem
criados na periferia, na sequência de peste de 1568, em a confiança no seu saber. Há um elemento sempre
Lisboa. Daí para a frente, encontraremos uma atitude referido quando se fala em pestes ou epidemias, que
diferente, quer da parte médica quer dos responsáveis é ser uma doença desconhecida. Isso sucede desde a
políticos pela saúde pública. E, em Portugal, há uma Guerra do Peloponeso até agora, ao Covid-19. Con-
figura que me ocorre de imediato... frontam-nos com a nossa dificuldade em conviver
com a incerteza.
Quem? A peste e as epidemias alteram muito as formas de
Ricardo Jorge e a sua intervenção na peste bubónica, que convivência. Têm sempre a ver com o coletivo, com o
teve o epicentro no Porto. O que me impressiona é a rapi- espaço público. Em cada circunstância surge o receio de
dez com que este médico portuense respondeu ao alerta que o Outro possa infetar-me. Desaparece uma atitude
de um comerciante, o rigor do diagnóstico, a prescrição fundadora da cidade que é a relação de proximidade
de medidas de confinamento e higiene. Destaco ainda a entre os homens. Gera-se o contrário, a desconfiança,
coragem com que se bateu pelas suas ideias o colocar o Outro no lugar de um potencial inimigo.
VISÃO H I S T Ó R I A 81
EPIDEMIAS // HUMOR
Um ‘cartoon’ de 1918
NIPC: 514674520.
Gerência da TRUST IN NEWS: Luís Delgado,
Filipe Passadouro e Cláudia Serra Campos.
Composição do Capital da Entidade
Proprietária: 10.000 euros
Principal acionista: Luís Delgado (100%)
Publisher: Mafalda Anjos
Tal como hoje, o isolamento era o único remédio, conforme
recomenda o humor da época da «gripe espanhola»
Diretora: Cláudia Lobo
Editor: Luís Almeida Martins
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Dias úteis – 9h às 19h
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