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PESTES E EPIDEMIAS
EM PORTUGAL
PERIODICIDADE BIMESTRAL
CONTINENTE – €5,00
N.º 58 · ABRIL 2020

O combate à gripe espanhola • A pneumónica e a Grande Guerra


O impacto na economia mundial • A peste negra • Os primeiros cordões
sanitários • A quarentena nos lazaretos • A vida em tempos de cólera
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SUMÁRIO

Cronologia
A longa crónica dos micróbios 4

1918
A pneumónica em Portugal,
por José Manuel Sobral 6

Os esforços da Cruz Vermelha


Portuguesa, por Helena da Silva 18
ARQUIVO HISTÓRICO DA CRUZ VERMELHA

A trágica viagem do vapor


Moçambique 20

Ricardo Jorge, o sr. Saúde Pública,


por Maria Fátima Nunes 22

Tifo, a outra epidemia do ano, por


Cláudia Lobo 25

Sidónio Pais: de 'Presidente-Rei'


Na enfermaria Um hospital da Cruz Vermelha Portuguesa em 1918, durante a
a monarquia sem monarca
pneumónica
por Luís Almeida Martins 26

Guerra total, gripe global,


por Helena da Silva 30

Outras pragas
Contágio planetário,
por Clara Teixeira 34

Outras epidemias e pestes

Q
Peste negra,
uando o mundo se confronta com a terrível ameaça da covid-19, é opor- por Luís Almeida Martins 44
tuno recordar situações equivalentes vividas no passado. Este número
é, pois, dedicado a pestes e a algumas das outras epidemias que, desde Peste negra em Portugal,
por André F. Oliveira da Silva 51
que há memória, assombraram a humanidade ou partes dela, e também
ao combate a essas doenças e aos progressos no campo da investigação A grande peste de 1569 53
que, com esse objetivo, têm sido feitos. Será interessante o leitor verificar
O combate aos surtos
os pontos de contacto e as semelhanças com a atualidade. na Idade Moderna,
E se, desde logo, nos ocorre a célebre Peste Negra que no século XIV vitimou por Laurinda Abreu 54
um terço da população europeia, muitas outras foram as pestilências que deixa-
ram o seu rasto de morte ao longo dos tempos. Na memória familiar de muitos
A vida em tempos de cólera,
por Maria Antónia Pires de Almeida 58
está ainda o flagelo da pneumónica (também conhecida por «gripe espanhola»)
que, há pouco mais de cem anos (1918-1919), ceifou dezenas de milhões de Terçar armas contra
pessoas em diversos continentes e, em Portugal, um número incerto que pode o 'micróbio' da cólera,
por Laurinda Abreu 62
ultrapassar as 140 mil.
Como sempre, contamos com a colaboração de especialistas no tema abordado, Os lazaretos, por Laurinda Abreu 65
entre os quais José Manuel Sobral e Helena da Silva (coordenadores de grandes
estudos de investigação sobre a pneumónica), Maria Antónia Pires de Almeida
A peste que fechou
o Porto, por Cesaltina Pinto 67
e Laurinda Abreu. A situação anómala que se vive forçou-nos, porém, a reduzir
o número de páginas e a recorrer, em dois casos, a material já antes publicado, Era uma vez a higiene,
embora devidamente editado e adaptado. por Maria Antónia Pires de Almeida 70

Ciência
O micróbio contra-ataca,
Os títulos, subtítulos e destaques dos artigos por Clara Pinto Correia 72
são da responsabilidade da redação
Entrevista
Foto da capa: Uma 'ilha' do Porto durante o surto
de peste bubónica na cidade, em 1899, de Aurélio Adelino Cardoso: a fronteira
da Paz dos Reis, Centro Português de Fotografia entre eu e o Outro 78

Humor 82

VISÃO H I S T Ó R I A 3
EPIDEMIAS // PESTE NEGRA

1414
Trazida por barcos
rcos
estrangeiros, a peste
este
1188 chega novamente e
Nove anos depois o,
a Lisboa e ao Porto, 1438
do reconhecimento da vitimando, Nova epidemia, de
independência de Portugal entre muitas outrass natureza desconhecida,
por bula do papa Inocêncio II e a
pessoas, a rainha entra no País e atinge 1485
volvidos três sobre a morte de stre.
D. Filipade Lencastre. D. Duarte, que morre em A persistente epidemia
D. Afonso Henriques, a peste faz Tomar. agrava-se, favorecida pela
a sua entrada no reino e provoca 1423 fome por ela própria gerada,
grande devastação. Uma epidemia 1464 num círculo vicioso.
indeterminada flagela Coimbra Ocorre uma nova epidemia, de
1202 e a sua região. D. Duarte, características indeterminadas, 1492
Novo surto de peste mata, ao associado ao governo do pai, havendo, segundo os termos de D. João II regula regimes de
que se calcula, um terço dos D. João I, administrando a uma crónica, «muita míngua de quarentena, manda instalar
habitantes de Portugal. justiça e as finanças, não mezinhas e boticas e perecendo esgotos, designa lugares
se desloca ao Mosteiro da muitas gentes». específicos para acumular
1312 Batalha para assistir às o lixo (monturos) e manda
A peste volta a atacar; muita exéquias do velho monarca, por 1466 acender fogueiras de alecrim
gente morre da doença e de ali reinar, segundo Rui de Pina, Repete-se o surto e desinfetar as casas dos
fome. «grande pestilência». epidémico. doentes.

A LONGA CRÓNICA
1347 1434 1468 1495
A grande epidemia da Peste Numa reunião das Cortes Coimbra é particularmente Évora é particularmente
Negra, originária da Ásia é reconhecido o mau atingida. flagelada. D. João II e a corte
Central, irrompe pela Europa. estado de salubridade passam o inverno
do reino. 1469 em Santarém, em
1348 É a vez de Lisboa ser flagelada. setembro a rainha
A Peste Negra chega a 1437 D. Leonor informa-
Portugal, em setembro, na Em fins de agosto 1478 -se do estado
tríplice forma bubónica, registam-se casos mortais de Após escassos anos de trégua, sanitário de Lisboa e
pulmonar e intestinal; peste em Lisboa e arredores; outra epidemia provoca grandes o rei morre em outubro,
particularmente mortífera, realizam-se conferências estragos em Évora, então no Algarve. Quando sobe ao
dura três meses antes de públicas semanais sobre a a segunda maior cidade do trono, o novo rei,
atingir o pico. profilaxia e o tratamento da País, onde D. João II manda D. Manuel I, encerra as Cortes
epidemia; D. Duarte aprova um construir uma casa de saúde reunidas em Montemor-o-Novo,
1384 sistema de medidas sanitárias e ordena medidas higiénicas, por a peste estar generalizada,
Durante as Guerras apresentado pela Câmara como a de se percorrer a cidade e durante mais de um ano
Fernandinas, entre Portugal de Lisboa, e no seu livro Leal com rebanhos, o que se sabe permanece afastado da capital.
e Castela, uma epidemia, não Conselheiro aborda o problema empiricamente ser eficaz.
se sabe ao certo se de peste recomendando o abandono dos 1503
se de tifo, ataca o exército lugares infetados. 1480 Irrompe uma epidemia mal
e a frota castelhanos que Quase colada à anterior, entra conhecida, em consequência
cercam Lisboa; morrem entre no País uma nova epidemia, da fome provocada pela
150 e 200 soldados por dia, que perdurará por 17 anos destruição das sementeiras por
acabando os castelhanos e estará particularmente tempestades.
por levantar o cerco. centrada em Lisboa.
1505
Uma nau proveniente de
Roma traz para Lisboa uma
epidemia «brava e cruel»,
que alastra para fora da
cidade; quando chega
a Évora, esta cidade
quase se despeja.

4 VISÃO H I S T Ó R I A
1832
18
No dec
decorrer da
1598 guerra civil cconhecida por
No 18º ano do domínio Lutas Liberais, navios que 1957
espanhol em Portugal, transportam tropas para o Chegam a Lisboa,
irrompe a «peste pequena», exército liberal de D. Pedro IV, no Moçambique, vindo
proveniente da Flandres cercado no Porto, trazem de de África, passageiros que
(então também domínio da Ostende uma epidemia de cólera transportam o vírus da gripe
1510 coroa espanhola) e chegada que depois alastra a Lisboa. asiática, que causou 4 milhões
Há registo de nova através da Espanha; a epidemia Durante quase 80 anos, o País de mortes em todo o mundo.
epidemia de natureza mantém-se por cinco anos. conhecerá oito epidemias de Em Portugal seriam 1050 as
desconhecida. cólera. vítimas. As escolas primárias
1645 foram encerradas. É a segunda
1514 Pouco depois da restauração 1861 p
pandemia de gripe do século XX.
Verifica-se novo surto da independência de Portugal, D. Pedro V morre vitimado
timado
epidémico. D. Manuel I manda chega de África a «peste do rante
pela febre tifoide; durante
construir cemitérios e evacuar Algarve», destinada a durar o seu reinado de oitoo anos
Lisboa, o que não chega a cinco anos e assim chamada registam-se surtoss de
acontecer dada a dificuldade de por ter alastrado com especial cólera e febre
concretizar tal medida. perigosidade na região algarvia. amarela.

DOS MICRÓBIOS
AAs epidemias têm sido
praticamente uma constante
na História de Portugal. Viagem
através de mais de oito séculos

1520 1658 1899 2002


Funda-se, em Lisboa, um Vinda de Badajoz, grassa no o Manifesta-se no Porto uma Tem início na China
hospital para «doentes de cerco de Elvas, durante a epidemia de peste bubónica, um surto da síndrome
pestilença». Guerra da Restauração, uma provavelmente importada de respiratória aguda grave
epidemia de tifo exantemático. Bombaim, de que se registam (SARS).
1521 320 casos, 112 deles mortais,
Alastra pela capital uma 1721 contando-se entre os falecidos 2005
epidemia de encefalite Aparecem em Portugal os o higienista Câmara Pestana; A «gripe das aves», causada
letárgica, trazida das praças- primeiros casos de febre é imposto à cidade um cordão pelo vírus H5N1, dissemina-se
-fortes marroquinas de Arzila amarela, uma doença com toda sanitário, que indigna os seus a partir do Sudeste Asiático.
e Azamor; D. Manuel I morre a probabilidade proveniente do habitantes.
vitimado por essa Brasil. 2009
doença. Seguem-se 1910 A pandemia de gripe A,
novas epidemias, 1723 Surge na ilha da Madeira inicialmente conhecida por
chegando o Porto a A febre amarela alastra por uma epidemia de cólera, «gripe suína», faz vítimas em
ser quase evacuado Lisboa; surtos da doença transportada por imigrantes todos os continentes.
durante cinco meses. aparecerão repetidamente russos.
durante um longo período de 2020
1569 mais de 140 anos. 1918 Entra em Portugal o novo
Proveniente de Veneza, entra Alastra por Portugal, de coronavírus surgido na China
em Portugal a chamada «peste 1808 norte a sul, a pandemia em dezembro do ano
grande», uma catástrofe que Durante a Guerra internacionalmente designada anterior e designado
mata 60 mil pessoas em Peninsular (ou «gripe espanhola» e no nosso Covid-19.
Lisboa. Invv
Invasões Francesas) país mais conhecida por
irrompe o tifo «pneumónica», vitimando
1579 exantemático, que faz mais de cem mil pessoas.
A «peste grande» volta a mais vítimas do que Paralelamente, registam-se
fazer-se sentir com particular os combates entre os epidemias de tifo exantemático,
acuidade, sendo de novo exércitos anglo-luso varíola e difteria.
especialmente mortífera e napoleónico.
na capital. 1922
Irrompe nos Açores uma O essencial desta cronologia
epidemia de peste, que foi elaborado a partir do Dicionário
da História de Portugal, dirigido
se prolonga pelo ano por Joel Serrão
seguinte.

VISÃO H I S T Ó R I A 5
6 VISÃO H I S T Ó R I A
ORFANATO DA CRUZ VERMELHA

ANÚNCIO DO SÉCULO, OUTUBRO 1918

ENFERMARIA DO HOSPITAL DA CRUZ VERMELHA NA JUNQUEIRA /ARQUIVO HISTÓRICO DA CRUZ VERMELHA


TRANSPORTE DE DOENTES PELA CRUZ VERMELHA/ARQUIVO HISTÓRICO DA CRUZ VERMELHA

REGISTO DE DOENTES, CRUZ VERMELHA


A PNEUMÓNICA
EM PORTUGAL

DESENHO DE STUART CARVALHAIS, ILUSTRAÇÃO PORTUGUESA


A pandemia que em 1918-19 afetou o mundo,
com forte incidência no nosso país, tem sido
esquecida em detrimento de outras memórias,
mais «heroicas», como a da Grande Guerra,
que então decorria. Mas fez, de longe,
mais mortos do que o conflito
por José Manuel Sobral*

TRANSPORTE DE DOENTES, CRUZ VERMELHA


ORFANATO DA CRUZ VERMELHA

VISÃO H I S T Ó R I A 7
EPIDEMIAS // 1918

A
pandemia que agora nos atinge
suscitou atenção para aquela que
terá sido a maior de todas elas, a
chamada «Gripe Espanhola», que
assolou o mundo em 1918 e 1919.
Houve muitas epidemias desde
então, incluindo de gripe, como a gripe
de 2009-2010 provocada por um vírus A
(H1N1) – que terá causado entre 100 mil e
400 mil mortos – sem falar de outras, uma
ILUSTRAÇÃO PORTUGUESA

das quais, a SARS, se deve a um coronavírus,


e temos vindo a conviver com muitas mais,
como a causada pelo HIV. Se tivermos uma
perspetiva menos eurocêntrica ou menos
centrada nos países mais influentes do Nor-
te, vemos como as epidemias persistem,
Notícia na Ilustração Portuguesa de 23 de dezembro de 1918 Crianças de uma freguesia de
como o revelam os casos do ébola ou do zika. Carrazeda de Ansiães «uns dias antes da epidemia bronco-pneumómica, que o povo cognominou
E à escala global persiste um grande número 'a temerosa', e que enlutou quase todas as famílias daquela povoação transmontana»
de doenças por erradicar, como a malária,
ainda há poucas décadas presente em vários tência automática do passado no presente, tudo nas fontes históricas, na historiografia,
territórios de Portugal, ou a tuberculose. mas o produto de processos destinados a no meio científico dos epidemiologistas e
Mas a lembrança de uma pandemia tão fazer perpetuar determinadas componentes médicos, em imagens, em alguns relatos de
mortífera que alterasse de modo radical do passado. ficção ou autobiográficos, na oralidade dos
o quotidiano havia-se perdido. Trata-se, A comparação com o sucedido com a que viveram o trauma e transmitiram a sua
evidentemente, de esquecimento na esfe- Grande Guerra de 1914-18 é bem elucida- experiência. Virá a passar-se algo de diferen-
ra pública, não da parte dos especialistas tiva. Esta, comemorada anualmente, viu te com a atual pandemia? No momento em
da saúde que monitorizam as epidemias. essas celebrações reforçadas por ocasião do que este texto é escrito, 4 de abril, o Estado
Ou mesmo de outros, como Bill Gates, que centenário, em 2018. As comemorações e os chinês comemora em silêncio, na imobili-
alertou há pouco para a possibilidade de monumentos distribuídos pelo país contri- dade e com as bandeiras a meia-haste, os
uma pandemia, mencionando a de 1918 buem para manter viva a sua lembrança. «mártires» da Covid-19. Quantos o seguirão?
como exemplo (Gates, 1917). Art Caplan, A pandemia, pelo contrário, foi evocada pe- E com que consequências em termos da
um professor de bioética, evocou mesmo rante audiências reduzidas e em algumas recordação pública?
em 2016 a possibilidade de uma pandemia escassas publicações. A memória pública é
de gripe com origem na China. O vírus teria indissociável das narrativas nacionalistas es- Muitos milhões de mortos
sido detetado em aves mortas em mercados tatais, que celebram vitórias, ou, de qualquer A pandemia de 1918-19 foi a maior do sé-
chineses. As autoridades teriam sido lentas modo, a dignidade de morrer pela pátria. culo XX e a mais importante que atingiu
a reagir, para não provocar o alarme nem os E é indissociável também da ação do Estado a Eurásia desde o século XIV, quando este
prejuízos económicos decorrentes do abate e de outros agentes promotores da recorda- continente foi devastado pela Peste Negra.
das aves. Depois, chegara à América do Nor- ção, através dos desfiles e das romagens aos Possui várias designações. A mais corrente
te, porventura por intermédio de aves mi- cemitérios. Nada disto existe relativamente será, em inglês, a de Spanish Influenza,ou
gratórias, contaminando os aviários locais. à pandemia e, por isso, esta sobrevive sobre- Spanish Flu, vinculada à ideia antiga de
Entretanto, na China, o vírus passara aos
humanos e começara a propagar-se a uma
velocidade e com um grau de mortalidade «O isolamento, a arma comum das moléstias
que não se via desde 1918 (Caplan,, 2016).
Não houve, portanto, um esquecimento
cimento
contag
contagiosas, falece perante o ímpeto de um
total, mas a pandemia desaparecera ra da es- vírus qque quase instantaneamente se derrama
fera da recordação pública. Este facto
cto ensi-
na-nos muito sobre os processos sociais
ciais que
por um
uma cidade inteira e salta por cima
comandam a recordação e o esquecimento.
cimento. de tod
todas as barreiras»
A memória não é o resultado de uma a persis- Ricardo Jorge
Jorg

8 VISÃO H I S T Ó R I A
REVISTA OCIDENTE (HOSPITAL DO REGO)

ILUSTRAÇÃO PORTUGUESA
Hospital do Rego Criado em 1906 para doenças infetocontagiosas (e rebatizado em 1929
de Curry Cabral, o nome do seu fundador), não chegou para tantos doentes e foi necessário
reabrir o Hospital de Arroios

ser causada pela influência de fenómenos Auxílio O grupo de


naturais, dos «céus» (influenza coeli),de- escuteiros do Liceu
vendo-seprovavelmente o qualificativo de Camões montou um
hospital improvisado
«espanhola» ao facto de as primeiras notí- na escola. Alguns

ILUSTRAÇÃO PORTUGUESA
cias do flagelo surgirem em Espanha, país dos escuteiros foram
que, por não estar envolvido na Grande contagiados ao
socorrerem
Guerra, não se encontrava submetido à ação
os doentes
da censura. Em França e na sua área de
influência, como Portugal, chamou-se-lhe
gripe, do francês agripper ou gripper – agar-
rar (Honigsbaum, 2013). Em Portugal ficou médico Silva Correia, a mortalidade deveria de 1918 (Crosby, 2003), mas há outras hi-
conhecida como «gripe pneumónica», ou ser bem superior. Se se tivessem em conta os póteses que apontam para o foco inicial
simplesmente «pneumónica», por confusão falecimentos cuja causa era desconhecida e se encontrar em acampamentos militares
com a «peste pneumónica», uma infeção as mortes associadas a infeções decorrentes britânicos em França (Killingray, 2009),
pulmonar de origem bacteriana que tinha – como a pneumonia – o número de faleci- ou na China, de onde teria sido levada para
atingido o Porto em 1904 (Jorge, 1919). dos poderia superar em muito os 100 mil França por trabalhadores recrutados pelos
Não se sabe com rigor quantas vítimas mor- indivíduos (Correia, 1938). Há poucos anos, franceses e pelos ingleses para assegurar
tais fez a pneumónica. Alguns historiadores o demógrafo Leston-Bandeira (Bandeira, trabalhos na retaguarda durante a guerra
assinalam uma mortalidade global de 30 2009) apontou, somando o continente e o e detentores de alguma imunidade devido
milhões (Philllips & Killingray, 2003), ou- distrito açoriano de Ponta Delgada, para um à sua exposição a surtos anteriores. Aque-
tros colocam-na em 50 milhões no mínimo número superior a 130 mil mortes. Outras les trabalhadores viajaram para a Europa
(Honigsbaum, 2019) ou entre 50 e 100 mi- investigações assinalam um número inferior diretamente por via marítima ou, numa
lhões (Brown, 2018), existindo ainda quem a este, mas, ainda assim, perto das 120 mil, outra rota, depois de atravessarem o Pací-
avente a possibilidade de a cifra poder ser incluindo o impacto de uma quarta vaga fico até à costa oeste da América do Norte,
mais elevada (Johnson, 2006). no outono-inverno de 1919-20 (Nunes et prosseguiram o seu caminho em direção
Esta imprecisão também existe no caso al., 2018). à costa leste pelo caminho-de-ferro. Daí
português, em que a mortalidade foi enorme, embarcaram para a Europa, propagando o
das mais elevadas da Europa. De acordo com Origem nos EUA ou na China vírus (Langford, 2005).
as estatísticas oficiais, teriam morrido perto A opinião maioritária sobre a origem da A epidemia teria decorrido em três va-
de 60 mil pessoas – cerca de 56 mil em 1918, epidemia situa-a como tendo a sua origem gas, tanto a nível mundial (Werner, 1962;
mais 3 mil em 1919 (Sobral et al., 2009). No na região do médio-oeste americano, no Phillips & Killingray, 2003), como em Por-
entanto, como assinalaria anos mais tarde o Kansas, onde teria aparecido em março tugal. Aqui, teria começado na primavera

VISÃO H I S T Ó R I A 9
EPIDEMIAS // 1918

de 1918, como é sublinhado logo nesse ano


(Jorge, 1818), embora investigação recente Epidemia em três vagas
tenha referido a possibilidade de a sua
ocorrência ser anterior (Rebelo-Andrade 1918 MAIO É proibida a saída do País de todas as substâncias
e Felismino, 2018). A primeira vaga teria Registo dos PRIMEIROS CASOS em Vila Viçosa, medicamentosas. Escolas, teatros e locais públicos,
sido detetada no final de maio, em zonas provavelmente trazidos por trabalhadores como o Teatro Avenida em Lisboa, fecham
próximas da fronteira espanhola, entre que regressavam de Espanha. A gripe espalha-se casuisticamente, por falta de pessoal,
assalariados rurais alentejanos que haviam pelo Alentejo. Mas relatórios médicos apontam e não por medida oficial: Ricardo Jorge defendia
tomado parte nas ceifas das regiões de Ba- para que o vírus terá entrado antes e por vários restrições a grandes feiras e peregrinações, mas foi
lados, já que se registam em março casos de gripe contra o fecho de escolas, teatros, cinemas, cafés,
dajoz e de Olivença. Alastrou depois ao res-
num hospital do Porto que recebia militares igrejas, transportes coletivos, armazéns e fábricas
to do País, atingindo o seu pico no mês de
com tifo vindos da guerra
junho. Foi relativamente benigna, embora Primeira vaga
conduzisse a um aumento da mortalidade. Segunda vaga
JUNHO
Porém, como assinalava em junho de 1918
É registada a primeira morte, em Leiria, no dia 4.
o diretor-geral de Saúde, Ricardo Jorge, A 10, é identificada no Porto, em famílias e no Aljube.
numa comunicação ao Conselho Central MINHO
E a 11 em Lisboa, na prisão de Monsanto TRÁS-OS-MONTES
de Higiene, tal benignidade «proverbial» e na Casa Pia e porto. O centro do País é a zona
– aquela que o senso-comum ainda hoje PORTO VILA REAL
mais afetada nesta primeira vaga, que teve
associa à gripe – não impedia que «uma o seu pico neste mês
VILA NOVA
praga que a todos persegue pode esconder DE GAIA BEIRA
intenções traiçoeiras» (Jorge, 1918). Isso AGOSTO
veio a revelar-se plenamente na segunda Começa em Vila Nova de Gaia a SEGUNDA VAGA
fase, especialmente letal. de epidemia, a mais forte e mais mortal, causando
COIMBRA
Esta é primeiro detetada na zona do Porto pneumonias fulminantes e mortes súbitas.
em agosto, propagando-se rapidamente em Propaga-se por toda a zona do Porto, para noroeste
direção às zonas mais relacionadas com a e para as margens do Douro, até à fronteira LEIRIA
área do Porto, como o Noroeste e os territó- com Espanha
ESTREMADURA
rios confinantes com ambas as margens do
SETEMBRO
Douro até à fronteira espanhola. As regiões
As regiões costeiras, a maior parte do Centro e o Sul
costeiras, a maior parte do Centro e o Sul
são atingidos a partir de meados do mês.
apenas serão atingidos a partir de meados de LISBOA
A Direção-Geral de Saúde envia uma nota oficiosa VILA
setembro, sendo a sua presença assinalada aos jornais em que dizia que «a influenza continua VIÇOSA
no Algarve em inícios de outubro. Esta vaga ÉVORA
a sua invasão, assumindo, com insistência, o carácter
foi a mais importante, tendo ultrapassado pneumónico». No final do mês, a doença passa a ser
em mortalidade qualquer experiência epi- de notificação obrigatória. Ricardo Jorge pede ALENTEJO

démica anterior das populações. Haveria que os casos mais graves sejam hospitalizados
ainda uma outra vaga importante, em abril e e isolados e que os médicos reformados e estudantes
maio de 1919, mas com menor gravidade do do último ano de Medicina se mobilizem
que a anterior (Jorge, 1919), existindo ainda ALGARVE

quem refira uma quarta fase, de caraterísticas OUTUBRO FARO

similares a esta última, no outono-inverno A epidemia chega ao Algarve. NOVEMBRO


de 1920 (Nunes et al., 1918). A velocidade de São montados três novos hospitais em Lisboa, No dia 7, o Parlamento vota o seu encerramento
propagação do contágio esteve ligada a uma com 1 200 camas, no antigo convento das Trinas, até 3 de dezembro, alegadamente por causa
no hospital de Arroios (que estava desativado) da epidemia de gripe, mas, na verdade, por razões
forte mobilidade interna: militar, devido à
e no Liceu Camões. políticas. Na segunda metade do mês, o número
circulação dos soldados mobilizados num
A Cruz Vermelha Portuguesa instala um hospital de casos começaria a diminuir
país em guerra; agrícola, devido às desloca-
com mais de uma centena de camas no palácio
ções dos trabalhadores rurais para as fainas familiar da família Burnay na Junqueira, em Lisboa. 1919 FEVEREIRO
sazonais no Douro e no Sul; balnear, com a É aconselhada, pela Direção-Geral de Saúde, TERCEIRA VAGA epidémica, menos grave,
movimentação para férias e estâncias ter- a desinfeção química das casas e ruas. que se prolonga até maio. Há quem defenda
mais; e marítima, pelos transportes por mar A direção dos Hospitais Civis de Lisboa proíbe que houve ainda uma quarta fase,
(Jorge, 1919). a visita aos doentes internados. no outono-inverno de 1920

10 V I S Ã O H I S T Ó R I A
ARQUIVO HISTÓRICO DA CRUZ VERMELHA
ILUSTRAÇÃO PORTUGUESA

Pessoal do hospital provisório da Misericórdia, em Sintra Médicos da Cruz Vermelha A organização, criada para apoiar feridos
Repare-se que dentro do caixão está uma morta de guerra, passou a socorrer os contagiados pela pneumónica

contra em Portugal e nas próprias autoridades


médicas incumbidas do combate à epidemia.
O médico Almeida Garrett, encarregado por
Ricardo Jorge da direção do combate à epi-
demia em Vila Real, entendia «não serem
as classes pobres mais castigadas do que as
ricas». Não era essa a opinião de outros mé-
dicos, como Pires de Lima, que combateu a
JOSHUA BENOLIEL/ ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA epidemia no Vale do Ave, para quem os mais
afetados eram aqueles que viviam em piores
condições (Sobral et al. 2009). E também
não era essa a opinião do diretor-geral, que
escreveu no seu relatório apresentado à Co-
missão Sanitária dos Países Aliados: «Se todas
as classes pagaram o seu tributo, ele pesou
mais pesadamente sobre os mais humildes;
os horrores da epidemia juntaram-se uma
vez mais aos da miséria.» No mesmo escrito
Fome, novembro de 1918 Na fila para alimentos na Assistência 5 de Dezembro, conta o sucedido no vapor Moçambique, que
instituição criada por Sidónio Pais
transportava 952 passageiros entre aquela
A pandemia revestiu-se de facetas ines- Mais pobres, mais atingidos? colónia e Portugal e que teriam sido conta-
peradas. Não deflagrou no inverno, mas na Uma questão relevante – e sempre polémi- giados durante uma escala na África do Sul
primavera, e alcançou a sua maior intensi- ca – é a da avaliação do seu impacto social. (ler texto nesta revista).
dade no outono. Possuía uma mortalidade A pneumónica atingiu pessoas de todas as Um outro dado importante referente às
elevadíssima, o que a distinguia não só das classes sociais, músicos e artistas (como o implicações da desigualdade é proporcio-
gripes sazonais correntes, como mesmo de pintor Amadeo de Souza-Cardoso, de uma nado pelo facto de a mortalidade ser maior
pandemias de gripe anteriores, como a de burguesia rural abastada, que veio a falecer), nas zonas rurais, onde não existiam os mes-
Gripe Russa de 1889-1890. Tinha uma con- membros da alta burguesia, dirigentes polí- mos recursos médicos – e, acrescente-se,
tagiosidade extrema, um período de incuba- ticos: o presidente dos EUA, os primeiros- onde o rendimento médio dos habitantes
ção rapidíssimo e as vítimas principais eram, -ministros da Grã-Bretanha, da França, da era inferior –, do que nas urbanas (Rebelo
não os muito jovens ou os muito velhos e Alemanha, o presidente-eleito do Brasil. de Andrade e Felismino, 2018).
debilitados e doentes, como nas outras gri- A historiografia internacional encontra-se
pes, mas os jovens adultos entre os 15 e os 45 dividida a este respeito, entre quem pensa Limites da ciência
anos. Foi responsável por uma mortalidade que ela era «democrática» e quem defende A ciência médica conhecia triunfos desde
fortíssima e por um declínio acentuado da que atingiu os mais pobres de modo particu- os avanços no conhecimento das doenças
esperança de vida (Sobral et al., 2009). larmente gravoso. Esta cisão também se en- infeciosas pelas investigações da bacterio-

VISÃO H I S T Ó R I A 11
EPIDEMIAS // 1918

A visita da
'espanhola'
Desenho de Stuart
Carvalhais em
O Século Cómico
de julho de 1918,
quando o País
foi atingido pela
primeira vez pela
epidemia. Ao lado,
texto humorístico
publicado no
mesmo suplemento
humoríostico
da Ilustração
Portuguesa,
ironizando com as
medidas tomadas
em Espanha contra
a gripe

logia e da microbiologia que haviam con-


duzido à descoberta dos agentes causadores
dessas doenças (Castro et al., 2009). Mas
as discussões sobre o agente causador da
gripe não revelaram consenso, divergin-
do-se quanto à sua identificação, se seria
um bacilo, um vírus, se outro qualquer
(Rebelo de Andrade e Felismino, 2018).
O diretor-geral de Saúde, Ricardo Jorge,
não tinha dúvidas. Tratava-se de um vírus,
um «vírus filtrante», isto é, um vírus tão
pequeno que não era retido pelos filtros guês, às debilidades de caráter estrutural liberal no século XIX, preocupado com a
de porcelana que retinham os micróbios juntavam-se as dificuldades decorrentes da falta de higiene, propiciadora de doenças,
ordinários, bacilos e bactérias, e que não conjuntura dominada pela Grande Guerra e com o combate às doenças infeciosas e
podia ser observado através do microscópio e suas implicações económicas e sociais. epidemias que eram uma presença recor-
ótico, só pelo eletrónico. Esse vírus viria a Portugal, com cerca de 6 milhões de habi- rente no quotidiano português. A cólera, a
ser isolado na década de 1930 (Kilingray, tantes, era então um país pouco industria- febre-amarela, a varíola, a febre tifoide, o
2009; Werner, 1961). Infiltrava-se pelo na- lizado, com perto de 80% da população ati- carbúnculo, a difteria, o tifo exantemático
riz, atacava a garganta, as vias respiratórias, va ligada à agricultura, principal atividade eram notícia recorrente e a peste bubónica
os pulmões, podendo causar pneumonias. económica. A indústria estava concentrada e a gripe também se faziam sentir (Sousa et
O vírus causador da pandemia de 1918 é no Noroeste, junto aos grandes centros de al., 2009; Pires de Almeida, 2014). Existia
o vírus da gripe subtipo A (H1N1), como Lisboa e Porto e em alguns pontos do lito- uma gama enorme de doenças endémicas,
todos eles de origem aviária, que, através de ral e do interior. O comércio e os serviços como a malária, múltiplas doenças infantis
mutação adaptativa, passou a transmitir-se concentravam-se nas cidades, com destaque e a mortalidade provocada pela tuberculo-
entre pessoas (George, s/d) e que ataca o para as principais. Na sociedade portugue- se só foi superada pela da gripe em 1918.
aparelho respiratório. Para Ricardo Jorge, sa avultava uma população rural pobre de As lacunas de higiene eram tidas como
só uma vacina, no futuro, teria capacidade assalariados e pequeníssimos proprietários, propiciadoras da proliferação de doenças,
para lidar com o vírus (Jorge, 1919). a maioria a viver em aldeias e vilas, que via abissais. As melhorias em matéria de abas-
À impotência médica juntava-se a do na emigração, em particular para o Brasil, tecimento de água e de esgotos limitavam-
Estado para lidar com um flagelo destas o caminho principal para uma vida melhor -se a Lisboa e Porto e a alguma capital de
proporções. Não era especificamente por- (Sobral e Lima, 2018). distrito (Correia, 1938).
tuguesa, pois os estados mais poderosos do Havia carências de toda a ordem no que A preocupação com a saúde pública le-
mundo revelaram-se também impotentes respeita à saúde pública, que emergira vara à criação de um órgão centralizado,
para debelar a epidemia. No caso portu- como preocupação específica do Estado a Direção-Geral de Saúde, e à criação dos

12 V I S Ã O H I S T Ó R I A
O que os médicos
recomendavam para
tratar a pneumónica
ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA

«Cama, dieta, tisanas e médico», disse


Ricardo Jorge

Caldo de galinha, água com açúcar, sumo


de laranja (em Espanha, os médicos
recomendavam infusões de limão e o fruto
desapareceria dos mercados madrilenos)

Ambulância O transporte dos doentes foi entregue à Cruz Vermelha O doente devia cumprir isolamento
rigoroso no quarto (ou num espaço dividido
cargos de delegado e subdelegado de saúde e a dos municípios, que contratavam os por panos e lençóis, em áreas grandes),
a nível distrital e concelhio, com muito médicos do partido municipal. Só quem que devia ser arejado permanentemente.
poucos recursos, pouco mais podendo fa- possuía um mínimo de meios é que podia A roupa de cama devia ser substituída com
regularidade
zer do que enviar ofícios às autoridades ser cliente da clínica livre (Campos, 1983).
civis que apoiavam em matéria de saúde. A conjuntura agrava a situação do Banho, aspersão dos lençóis com água
Fundaram-se organismos novos como o combate à epidemia. Muitos médicos, ou colocação de panos encharcados na
Instituto Central de Higiene, em 1899, farmacêuticos e mesmo finalistas de Me- cabeça para fazer baixar a febre
atual Instituto Ricardo Jorge. Os meios dicina estavam a prestar serviço militar.
Uso de máscara, para os funcionários
modernos concentravam-se em Lisboa – E também como consequência da guer- sanitários e voluntários
com alguns hospitais especializados, como ra, que afetou profundamente a situa-
o do Rego, de 1906, destinado ao combate ção das classes trabalhadoras e dos mais Lavagem frequente das mãos, com
às doenças infetocontagiosas – cidade onde humildes em geral, havia fome e falta de sabonete ou desinfetante químico
também estava sediado um laboratório
Desinfeção dos quartos dos doentes com
bacteriológico importante, bem como nos creolina ou cal e, quando não podiam ser
hospitais civis, no Porto e em Coimbra, ventilados, fumigações de eucalipto
cidades onde havia hospitais ligados ao
ensino da Medicina. A maioria dos hos- Para desinfetar as vias áreas superiores,
gargarejos regulares com soluções
pitais do País pertencia às Misericórdias,
salinas, mentoladas, de fabrico caseiro ou
variando os seus recursos entre os mais vendidas nas farmácias, ou ainda com pasta
dotados, situados numa capital de distrito, dentífrica diluída em água
e os das povoações mais pequenas, muito
modestos. Faltava pessoal médico. Para se Proteção das fossas nasais com óleos,
vaselina, glicerina ou pasta dentífrica
ter uma ideia, em Portugal, em 1920, havia
um médico por cada 2338 habitantes e uma Na tentativa de diminuir a febre, o
farmácia por cada 3825 – a desproporção emprego de procedimentos caseiros tais
é enorme com a atualidade (2018), em que como a fricção do corpo, as cataplasmas
existe um médico por 189 habitantes (no de farinha de mostarda ou ainda os
clisteres com água e sabão e a aplicação
continente). Também as farmácias eram
de ventosas, secas ou escarificadas, foram
em número muito inferior ao dos nossos recomendados com frequência.
dias. No mesmo ano havia uma farmácia
por cada 3825 pessoas, hoje há uma por Aspirina (em comprimido ou em injeção,
cada 750 (Sobral, 2019). Era um tempo diluída em soro) ou quinino para baixar a
febre (em Portugal usou-se mais o quinino)
marcado por uma profunda assimetria no
acesso aos cuidados médicos, pois antes da Cataplasmas de farinha de mostarda e
existência do Serviço Nacional de Saúde os clisters com água e sabão eram remédios
mais carenciados, isto é, a maioria, fora caseiros para tentar diminuir a temperatura
Reflexos na publicidade
dos grandes centros só podiam contar com Anúncio publicado no jornal Fonte: Helena Rebelo de Andrade e David Felismino,
a assistência caritativa das Misericórdias O Século a 13 de outubro de 1918 «A Pandemia da Gripe 1918-1919», in Ler História 73

VISÃO H I S T Ó R I A 13
EPIDEMIAS // 1918

Souza-Cardoso, uma família dizimada


Amadeo de Souza-Cardoso, um tratar um problema de pele, e chega
dos maiores pintores do século XX, a Espinho. Lucie, a mulher, levara-lhe
morreu aos 30 anos e 11 meses, os pincéis e as tintas e o pintor monta
vítima de pneumónica. A sua história estúdio no mirante da casa da família,
é provavelmente um exemplo daquilo que acolhe os seus pais e irmãos. Entre
que aconteceu a muitas famílias passeios na praia e a vista do mar que
portuguesas. alcança do mirante, Amadeo pinta.
No princípio de agosto, Amadeo deixa A 22 de setembro, um jornal de

AMÉLIA REY COLAÇO/ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA


as Caldas das Taipas, onde tinha ido Amarante, concelho a que pertencia
a águas com o irmão António para Manhufe, onde os Souza-Cardoso
normalmente viviam, noticia que a
família do sr. José Emygdio de Souza-
Cardoso continua na praia de Espinho
e que a epidemia trazida por soldados
de artilharia vitimara 226 pessoas no
concelho. No princípio de outubro,
Amadeo dá notícias do que se passa
em Espinho ao irmão António, que
estava em Manhufe: a irmã Maria da
Graça com «altíssima temperatura»;
outra irmã, Maria Helena, doente;
Lucie «hoje caiu de cama e lá está
com febre e os característicos da
gripe»; ele próprio «constipadíssimo», administração central aos níveis distrital
«de vez em quando sinto uma concelhio, onde os responsáveis médicos
opressão no peito e tenho-me atirado principais eram os delegados e subdelega-
BIBLIOTECA DE ARTE FUNDAÇÃO GULBENKIAN

ao vinho do Porto como prevenção».


dos de Saúde e que funcionava em articu-
E remata a carta: «E por aí como
se têm atravessado com essa lação com as autoridades político-admi-
fatalidade? Não sei quê que me diz nistrativas. O diretor-geral estava não só
que vai haver uma grande mudança consciente da malignidade da epidemia,
na vida da nossa família.»
A 10 de outubro, Maria da Graça piora da
como pensava que nada verdadeiramente
broncopneumonia e falece, com apenas a poderia deter. Pouco antes do desenrolar
29 anos. Três dias depois, em Amarante, da segunda vaga, escreveu: «O isolamento,
um amigo de Amadeo é também levado a arma comum das moléstias contagiosas,
pela gripe. Uma das empregadas da
família, em Espinho, morre. E a 25, falece perante o ímpeto de um vírus que
Amadeo de Souza-Cardoso Cubista, uma sexta-feira, pelas nove da manhã, quase instantaneamente se derrama por
futurista, expressionista e… guitarrista depois de uma noite de agonia, Amadeo uma cidade inteira e salta por cima de todas
para espairecer, nas horas vagas sucumbe à gripe espanhola. C. L. as barreiras.» Não havia «torre de marfim»
possível para escapar ao contágio. De qual-
quer modo, não deixava de recomendar o
alimentos, devido ao racionamento e à heteróclita de republicanos, monárqui- isolamento dos epidemiados, reduzindo a
subida de preços. O mal-estar profundo cos, católicos e mesmo sindicalistas que exposição ao contágio. Também achava que
era conducente à revolta, que se traduzia se opunha ao republicanismo laico, an- se deveria acabar com as visitas aos enfer-
em atos muito diversos, desde o assalto ticlerical e intervencionista. Foi neste mos – «apesar de ser obra de misericórdia»
a mercearias e padarias, a movimentos estado larvar de quase guerra civil que – e recomendava acabar com os apertos de
grevistas, como a greve geral de 1918. se desenrolou o combate à pneumónica mão e beijos de cumprimentos, «gestos que
A agravar a tonalidade conflituosa da épo- (Sobral e Lima, 2018). repugnam à higiene e até à cultura» (Jorge,
ca, afrontamentos profundos de natureza 1918). A estas convicções juntava-se a sua
ideológica e política dividiam o País. Em DGS de então contra o perceção de que medidas mais radicais
1918 estava no poder Sidónio Pais, que isolamento de isolamento social – como as adotadas
inaugurara um regime presidencialista A coordenação do combate à pandemia foi na atual pandemia do Covid-19 – seriam
que depusera o governo republicano que entregue ao diretor-geral de saúde, Ricardo desajustadas. Acabar com feiras e peregri-
promovera a participação de Portugal no Jorge, nomeado alto comissário, que dirigia nações, sim, bem como adiar as atividades
conflito, e com ele estava uma coligação uma organização hierárquica que ia da escolares, interrompidas pelas férias de

14 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Feiras e feridos
Teatros e lojas
continuaram abertos,
mas feiras e romarias
foram proibidas (na
foto, mercado da
Ribeira, em Lisboa,
1918).
O Hospital da Cruz
Vermelha em Amarante
para combater a
bronco-pneumónica

ARQUIVO HISTÓRICO DA CRUZ VERMELHA

verão. Mas recusou medidas como o fecho dispensados por um Presidente apostado Vermelha ou a Cruz Verde, as Cozinhas
de teatros e cinemas e, na sequência destes, numa relação direta com os cidadãos, ma- Económicas, e redes de iniciativa presi-
de igrejas, dos mercados, das fábricas, dos terializada mesmo em ações espetaculares dencial compostas por individualidades da
transportes, pois a vida social e económica como uma deslocação a Trás-os-Montes alta burguesia ou a Obra de Assistência 5
tinha de continuar, divertimentos incluí- num comboio de socorro presidencial em de Dezembro, que comemorava o golpe mi-
dos, para evitar «a desolação e o pânico». plena epidemia! Mas o conteúdo deste so- litar que o levou ao poder. Tudo se revelou
Quanto a outra medida clássica de combate corro é bem elucidativo dos limites da ação insuficiente. Os estudos monográficos, que
às epidemias, as desinfeções, recomendava do Estado: 20 sacos de açúcar (para xaro- estão a crescer neste momento, permitem-
moderação no seu uso, achando que eram pes), 30 com arroz, 50 cobertores (Sobral -nos uma visão das carências existentes e
um desperdício de recursos, mas não dei- et al., 2009). Um Estado a braços com o do sofrimento sentido na pandemia – que
xou de proceder a algumas em edifícios e esforço de guerra na Europa e em África, a também se revela nos raros relatos auto-
transportes.Em relação às medidas indivi- oferecer um auxílio débil aos seus cidadãos biográficos que evocam a pneumónica –,
duais – como lavagens do nariz e garganta pobres, que eram a maioria. bem como da fragilidade do Estado a quem
– também aconselhou moderação, pois não O Estado mobilizou os seus recursos, cabia combatê-la.
só duvidava da sua eficácia, como poderiam limitados, desde os financeiros, aos or- Um dos primeiros investigadores sobre
ter efeitos nocivos (Jorge, 1919). Quando ganizativos e logísticos. Votou subsídios a pandemia em Portugal, que trabalhou
o mal viesse, recomendava «cama, dieta, extraordinários, requisitou meios de trans- sobre o Algarve, transcreve o telegrama en-
tisanas e médico» (Jorge, 1918). porte, montou hospitais em edifícios públi- viado pelo governador-civil de Faro no pico
Não sabemos em que medida as opiniões cos – como o Liceu de Camões, em Lisboa da epidemia: «Exmo. Senhor Presidente
e diretivas do diretor-geral e comissário da – e mobilizou os seus agentes. Recorreu da República, Belém, Lisboa. Gravemente
luta contra a epidemia foram seguidas. Mas também aos apoios da Igreja, de particu- doente, solicito a V. Ex.ª proteção para o
parece existir correspondência entre algu- lares, fossem eles associações, como a Cruz Algarve. Epidemia varre povoações intei-
mas das suas opiniões sobre o isolamento ras havendo já cemitérios completamen-
e aquilo que ocorreu. Houve escolas, liceus te cheios, fazendo-se enterramentos em
e universidades encerradas, o parlamento campa rasa. Faltam medicamentos, arroz,
chegou a fechar, as comemorações oficiais açúcar, velas, petróleo, ma ssas, manteiga,
do 5 de Outubro foram canceladas (mas
As vítimas batatas e há três dias que não há pão (...).
não as particulares),no que foi interpretado principais eram Povo ordeiramente vem pedir-me pão e
pelos adversários do sidonismocomo um crianças vagueiam na rua chorando com
ataque ao regime republicano, mas conti-
os jovens adultos entre fome. (...) Rogo proteção V. Ex.ª acudindo a
nuou a haver ajuntamentos públicos, não os 15 e os 45 anos tanta miséria. A todo o momento cai gente

VISÃO H I S T Ó R I A 15
EPIDEMIAS // 1918

na rua com doença e fome. Barcos de pesca


param serviço por falta de gente. Não há
peixe.» (Girão, 2009).
Portugal enlutado
Nos cálculos do demógrafo Mário Leston Bandeira, o número
Ontem e hoje de mortes presumidas por pneumónica terá atingido 135 257
Apesar do trauma, a vida continuou, e o pessoas, em 1918 e 1919, causando vítimas sobretudo entre
sofrimento dos mais afetados, aqueles que os 20 e 30 anos e afetando mais mulheres do que homens
perderam pais, filhos, maridos ou mulheres,
familiares, amigos, ficou retido no âmbito
privado das famílias, nas páginas de alguns NÚMERO TOTAL
escritos, na memória institucional das orga-
DE ÓBITOS (1918+1919)
nizações e dos especialistas, que sabem que
1918
135 257
fenómenos do mesmo tipo se podem repetir.
A epidemia do novo coronavírus (Co-
vid-19) fez despertar a curiosidade pela gran-
de pandemia de 1918. Estamos, porém, num
114 836
momento muito distinto do desses tempos,
sem um conflito mundial ou uma guerra civil
larvar. Possuímos um Estado bem mais forte
e um Serviço Nacional de Saúde aberto a to- 1919
dos, e a sociedade portuguesa, onde continua
a haver pobreza, tal como uma desigualdade
notória, não é contudo o universo miserável
20 421
desses tempos. A ciência médica identificou
o vírus, possui muito mais recursos e existiu
um amplo consenso quanto às medidas de
confinamento e distância social adequadas
ao combate à sua propagação. Com as no-
tícias restringidas à Imprensa, censurada,
não havia outrora a possibilidade sequer
de se ter uma perceção à escala nacional
e global do que acontecia, ao contrário da
época atual, dominada pelos audiovisuais e
pela internet, que diminuem a sensação de
isolamento e permitem que uma parte da
população trabalhe e estude. Ainda assim, Homenagem
aos mortos
a pandemia alterou profundamente o nosso
Marinheiros
quotidiano. Um quotidiano construído na colocam uma
rotina, no hábito, na repetição e do qual não coroa de flores
faz parte a consciência de que eventos como nas campas dos
tripulantes de um
estes o podem bruscamente alterar.
navio francês que
se encontrava
* José Manuel Sobral é investigador do Instituto
no porto de
de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa
Lisboa quando a
epidemia atingiu
Nota: Este texto assentou na pesquisa desenvolvida no
projeto «Gripe pneumónica em Portugal: Gestão de risco
a cidade
ILUSTRAÇÃO PORTUGUESA

e saúde pública no Portugal da Primeira República»,


Financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia
(Projeto POCI/HCT/60718/2004), realizado por uma
equipa de que faziam parte, além do autor, Maria Luísa
Lima, Paula Castro e Paulo Silveira e Sousa, coligida,
em boa parte, no livro A pandemia esquecida: Olhares
cruzados sobre a pneumónica (Imprensa de Ciências
Sociais, 2009).

16 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Atingiu sobretudo
as mulheres entre
VIANA
DO CASTELO os 15 e os 20 anos
3 306
993 BRAGA BRAGANÇA
5 977 VILA REAL 4 793
3 299 7 010
DISTRITO 1 718
ÓBITOS EM 1918 Em Bragança, Vila Real
e Guarda, a taxa de
ÓBITOS EM 1919 PORTO
Nos distritos de Guarda, mortalidade (número
12 658 Vila Real e Viseu, de pessoas mortas por
5 207 matou mais gente mil habitantes, por ano)
No início do século XX, registavam-se entre os 15 e os 20 anos subiu mais de 50%
PORTO
em Portugal 20 mortes por cada mil (cidade)
habitantes. Em 1918, passa para 41,4 mortes 3 981 AVEIRO
por cada mil habitantes 1 842 VISEU
5 027 8 751
1 443 2 529
GUARDA
As mulheres jovens foram mais 6 342
afetadas do que os homens 1 170
COIMBRA

TAXA BRUTA 8 043


Atingiu sobretudo 1 381
DE NATALIDADE (‰) as mulheres entre CASTELO
BRANCO
33,6 os 20 e os 24 anos
12 658
LEIRIA
32,6 32,1 5 755 DIFERENÇA ENTRE
31,5 31,4 560 A ESPERANÇA DE VIDA
29,7
À NASCENÇA
27,6 EM 1917 E EM 1918
SANTARÉM (EM ANOS DE VIDA)
1914 1915 1916 1917 1918 1919 1920
LISBOA 6 857 PORTALEGRE
COIMBRA 25,6
LEIRIA 22,3
2 534
VILA REAL 21,81
VISEU 21,66
17 011
1 327 SANTARÉM 20,66
ÉVORA FARO 20,46
Nos distritos de Évora, 2 990 VIANA DO CASTELO 19,47
Faro e Santarém,
Horta, Angra do Heroísmo LISBOA
matou mais gente BEJA 19,43
e Funchal parecem ter (cidade)
entre os 30 e os 35 anos BRAGANÇA 18,81
escapado aos efeitos da pandemia. 5 543
A Madeira não terá sido afetada 669 Benavente (concelho) GUARDA 18,27
– em 1918, 7 em cada
100 pessoas SETÚBAL AVEIRO 18,1
morrem de gripe BRAGA 16,69
BEJA CASTELO BRANCO 16,54
4 570 PORTALEGRE 16,43
PORTO 16,37
PONTA ÉVORA 16,29
DELGADA
PONTA DELGADA 16,06
1 701
790 LISBOA 15,78
FARO
FONTE Mário Leston Bandeira, «A sobremortalidade de 1918 em Portugal: análise CONTINENTE 18,9
demográfica» in A Pandemia Esquecida: olhares comparados sobre a Peumómica, ICS 6 290
NOTA O estudo de Mário Leston Bandeira não inclui dados relativos ao distrito de Setúbal INFOGRAFIA Álvaro Rosendo/VISÃO

VISÃO H I S T Ó R I A 17
EPIDEMIAS // 1918

Os esforços da Cruz vaga de gripe pneumónica. A delegação do


Porto mobilizou-se posteriormente para esta
outra epidemia, tendo organizado um hospi-
tal provisório em Amarante (Vila Meã), no

Vermelha Portuguesa
Embora vocacionada para atuar em teatros de guerra,
solar familiar cedido pela dama-enfermeira
Ana Guedes da Costa.
Em Lisboa, a CVP transportou doentes
para os vários hospitais e cadáveres para os
a instituição colaborou largamente com as autoridades cemitérios. No socorro à população lisboeta
durante as epidemias de 1918 e 1919 afetada pela gripe pneumónica, a organização
tinha dois postos de socorros gratuitos: um na
por Helena da Silva*
própria sede, na Praça do Comércio, com uma

E
média mensal de 1500 tratamentos em 1918; e
m 1918, perante as várias epidemias como em Coimbra ou Aveiro, ou montadas outro junto ao hospital da CVP na Junqueira,
que assolavam o País – nomeadamen- enfermarias para os tifosos, como na sede da com uma média mensal de 1600 tratamentos.
te gripe pneumónica e tifo –, a Cruz delegação em Âncora ou na Escola Conde Desde 1914, a CVP tinha também uma Casa
Vermelha Portuguesa, ultrapassando Ferreira, em Valongo. de Saúde em Benfica para tratar doentes par-
a sua missão inicial, colaborou com as Apesar de dificuldades financeiras e logísti- ticulares, com todas as condições necessárias,
autoridades civis e sanitárias prestan- cas, a delegação do Porto montou um hospital incluindo enfermeiras profissionais suíças.
do socorro à população. A Sociedade Portu- para militares nos pisos alugados no Hospital Mas foi sobretudo no Hospital Temporário
guesa da Cruz Vermelha (hoje Cruz Vermelha de Crianças Maria Pia, na Rua da Boavista. da Junqueira que a Cruz Vermelha Portugue-
Portuguesa, CVP) fora originalmente criada Em dezembro de 1917 chegaram os primei- sa acolheu as vítimas da pneumónica. A Vila
para socorrer militares feridos e doentes em ros militares, mas face à epidemia de tifo, o de Santo António (atual Centro Científico e
tempo de guerra, segundo os princípios de- hospital foi adaptado ao serviço antitifoso em Cultural de Macau) fora cedida pela condessa
finidos pela Convenção de Genebra, de 1864. fevereiro de 1918. Esta estrutura tinha um de Burnay, Maria Amélia de Carvalho Burnay
Tinha, um pouco por todo o País, delegações corpo clínico e administrativo bem delineado, (1847-1924), para que a CVP acolhesse ali
que organizavam as suas próprias atividades, desde pessoal para transporte de doentes, militares feridos e doentes regressados da
e que eram cerca de 40 em 1918. incluindo maqueiros, ao corpo de damas- Grande Guerra, até seis meses após o armis-
Como indicam os relatórios das atividades -enfermeiras encabeçado por Ana Guedes tício de novembro de 1918. Num primeiro
da Cruz Vermelha Portuguesa, as várias de- da Costa (1860-1947). Enquanto esteve aber- momento, estava em funcionamento apenas
legações responderam às epidemias de tifo e to, o hospital recebeu visitas de ministros o posto de socorros, com uma enfermaria e
de gripe pneumónica efetuando o transporte e do Presidente da República, Sidónio Pais. uma sala de cirurgia, enquanto prosseguiam
e tratamento de doentes, sobretudo no Porto, Apesar dos elogios, foi encerrado em 1918, as obras do hospital, que foi oficialmente
em Viana do Castelo e em Vila Real. Foram na sequência da ordem de despejo, tendo inaugurado em abril de 1917. Alguns dias
assim organizados hospitais de urgência, ainda recebido alguns doentes da primeira depois, o ministro da Guerra, Norton de Ma-
tos, visitou as instalações e convidou a CVP
Livro de a aumentar a capacidade daquela estrutura
registos
para descongestionar os hospitais militares
«A mãe faleceu
vítima de de Lisboa. Assim, reiniciaram-se por mais
pneumónica», alguns meses as obras, ficando o Hospital
lê-se na nota Temporário da Junqueira com uma capa-
de entrada de
cidade de 200 a 300 camas. Foi ali que se
uma criança no
formaram as damas-enfermeiras e o restante
ARQUIVO HISTÓRICO DA CRUZ VERMELHA

orfanato
pessoal sanitário que a CVP enviou para o
norte da França durante a Grande Guerra.

Uma enfermaria
para pneumónica
A primeira vaga de gripe pneumónica (maio-
-julho de 1918) não aumentou enormemente
a afluência ao hospital. Contudo, a situação

18 V I S Ã O H I S T Ó R I A
ARQUIVO HISTÓRICO DA CRUZ VERMELHA
D.R.

Ajuda Ana Guedes da Costa, chefe das Damas-Enfermeiras (sentada, à direita), montou um hospital na casa da família, em Amarante;
em Lisboa, a Cruz Vermelha criaria um orfanato

seria bem diferente na segunda. Em outubro, este hospital, que tinha sido estabelecido que, entre meados de outubro e novembro
o afluxo de pessoas era tal que a CVP decidiu para receber militares regressados dos tea- de 1918, mais de 80% das entradas foram
organizar uma enfermaria específica para tros de guerra, começou a admitir mulheres causadas pela gripe, sendo que um em cada
tratamento de doentes atacados de gripe em outubro. Os registos de entradas exis- quatro destes doentes acabou por falecer, com
pneumónica, cuja data exata de abertura é tentes estão incompletos, mas deixam saber uma mortalidade superior para as mulheres.
desconhecida. Numa tentativa de conter o ví- A gripe pneumónica, que alterou o funcio-
rus, essa enfermaria encontrava-se isolada do namento deste hospital, também acelerou o
restante hospital, com um pessoal específico seu encerramento. Com o aumento do número
que, quando dali saía, era desinfetado, sendo de crianças órfãs cujos pais eram vítimas da
até as refeições, loiças e talheres deixados na O Hospital Temporário pneumónica, a Cruz Vermelha foi recolhen-
entrada. Como o pessoal que trabalhava com do-as dos vários hospitais da capital, bem
os doentes de gripe corria risco de vida, foi
da Junqueira criou como de algumas casas particulares. Inicial-
decidido atribuir-lhe um conjunto de grati- uma enfermaria mente pensou-se encontrar uma instituição
ficações fixas e variáveis pelos seus serviços. para estes órfãos. No entanto, como o seu
As fontes consultadas no Arquivo Histórico
só para doentes número aumentava diariamente, contando
da Cruz Vermelha, em Lisboa, revelam que da pneumónica já com 67 crianças nos inícios de novembro,
foi decidido encerrar o hospital a 15 de de-
Crianças, zembro e adaptá-lo a orfanato. Foram assim
as vítimas
recolhidas mais de 700 crianças, de ambos
esquecidas
O Orfanato da os sexos, com idades compreendidas entre
Cruz Vermelha os 3 meses e os 14 anos. Passada a epidemia
abriu em de gripe pneumónica, algumas das crianças
dezembro de
1918 e deu
foram entregues a familiares, outras adotadas
abrigo a 700 por terceiros ou reencaminhadas para asilos
ou casas de educação. Em 1919, contudo, 200
ARQUIVO HISTÓRICO DA CRUZ VERMELHA

meninos e
meninas entre delas ainda estavam no orfanato da Junqueira.
os 3 meses e os
14 anos Assim, a CVP colmatou algumas das fa-
lhas existentes na assistência e minimizou
os efeitos das epidemias de tifo e de gripe
pneumónica na população civil.

* Helena da Silva é investigadora FCT no Instituto


de História Contemporânea da Universidade Nova de
Lisboa

VISÃO H I S T Ó R I A 19
EPIDEMIAS // 1918

O barco fúnebre
As coordenadas
geográficas do
sepultamento dos
mortos no mar
foi rigorosamente
registada, Em
baixo, postal da
Empresa Nacional
de Navegação a
Vapor para a África
Portuguesa, 1899)

A trágica viagem no livro de registo do «Comando Militar a


bordo do vapor Moçambique».
Este gesto repetiu-se meticulosamente
para todos os que pereceram a bordo deste

do vapor ‘Moçambique’
Quase 200 pessoas – 43 num só dia
vapor fúnebre, à exceção dos quatro últimos
óbitos, ocorridos já com Lisboa à vista. «O
contramestre de corneteiros, Raúl (Porto), foi
o último a ser sepultado no mar, 54 milhas ao
– morreram de pneumónica no percurso largo de Sines, nas coordenadas 37.057’0’’N
10.000’0’’W.» Rui M. Pereira concluiu que
de Lourenço Marques a Lisboa, em outubro de 1918
morreram 181 militares, 12 civis e 2 tripu-
por Helena da Silva lantes, isto é, um quinto dos embarcados

E
em Lourenço Marques, sendo que só no dia
m 26 dias de viagem, 195 pessoas Lisboa como destino final. Porém, logo a 28 e 29 11 de outubro se contabilizaram 43 óbitos.
faleceram a bordo, vítimas da gripe de setembro efetuou uma primeira paragem na À chegada a Lisboa, a 21 de outubro, o
pneumónica. Segundo o antropólogo Cidade do Cabo, para abastecimento de água e vapor foi forçado a fundear a meio do Tejo,
Rui M. Pereira, «a trágica viagem do carvão, escala que marcaria de forma dramática frente à Torre de Belém. No dia seguinte, os
vapor Moçambique pode e deve ser a restante viagem. Poucos dias depois os primei- passageiros foram encaminhados para fica-
encarada como um epifenómeno de- ros engripados eram admitidos na enfermaria rem em quarentena no Lazareto, localizado
monstrativo do que foi o impacto da pande- do vapor, que dispunha de quatro camas, dois na Margem Sul. O desespero seria tal que,
mia em Portugal, de como o País estava, ou médicos (um deles regressava à metrópole)
não, preparado para suster o embate de uma e três passageiros civis que voluntariamente
epidemia tão virulenta». ajudaram no serviço, com dezenas de doentes
O vapor Moçambique, fretado à Companhia a apresentarem-se diariamente na enfermaria.
Nacional de Navegação, foi utilizado durante a A 6 de outubro, quando o vapor passava
I Guerra Mundial para transportar da colónia ao largo da fronteira sul de Angola, ocorreu
As mortes por classe
homónima até à metrópole civis e militares con- o primeiro óbito. António José Serrano, espelham as diferentes
valescentes ou em fim de comissão de serviço. A soldado da 12ª Companhia do Regimento
investigação realizada por Rui M. Pereira sobre a de Infantaria 23 de Coimbra, tinha apresen-
condições de transporte:
trágica viagem deste vapor apurou que, quando tado os primeiros sintomas pouco mais de morreram 30%
«zarpou de Lourenço Marques, a 25 de setem- 24 horas antes. Foi imediatamente sepul-
bro de 1918, estavam embarcados 633 militares, tado no mar e as coordenadas geográficas
dos soldados mas
186 passageiros civis e 133 tripulantes», tendo do sepultamento rigorosamente anotadas nenhum oficial
20 V I S Ã O H I S T Ó R I A
LISBOA
21 DE OUTUBRO LISBOA
Chega e é obrigado
a fundear no meio
do Tejo. No dia seguinte, LAZARETO
o vapor é encaminhado 22 DE JANEIRO DE 1919
para o Lazareto, Morre um dos
na margem sul soldados embarcados
do Tejo. Fica numa
longa quarentena

11 DE OUTUBRO
Num único dia
morrem 43 homens

ANGOLA
AO LARGO DA COSTA
SUL DE ANGOLA MOÇAMBIQUE
6 DE OUTUBRO morre o primeiro
homem. A partir desse dia,
e até 19, registam-se
todos os dias óbitos a bordo LOURENÇO
MARQUES
Sai a 25 de
CIDADE DO CABO, setembro de 1918
ao chegar a Lisboa, e perante a ideia de per-
(África do Sul)
manecer em quarentena, «alguns se atiram
Faz uma paragem, para
à água e desertam para terra, regressando abastecer de água e carvão,
às suas famílias, porventura contribuindo 28 e 29 de setembro
para a difusão mais acelerada da gripe que,
entretanto, já iniciara o seu segundo e mais
mortal surto». No Lazareto continuaram a
morrer alguns dos passageiros do vapor. Rui
M. Pereira referiu que o tempo de quarentena
foi longo, como prova a morte a 22 de janeiro Anúncios da Empresa Nacional de
de 1919 de um dos soldados embarcados. Navegação, 1912 e 1915 Rebatizada
Companhia Nacional de Nevegação em 1918,
deteve até 1922 o monopólio para a África
Doença seletiva
A tragédia no vapor Moçambique foi agravada M. Pereira, a virulência da pneumónica no de Convalescentes de Goba e da ilha Xefina,
pelas condições em que os soldados viajavam. vapor Moçambique deveu-se a dois fatores no sul de Moçambique. Muitos destes mi-
Rui M. Pereira insistiu que a pneumónica foi específicos. litares sofriam de disenteria e/ou de palu-
seletiva, não pela classe mas pelas condições Primeiro, o facto de o navio ter acostado dois dismo, doenças contraídas comummente
sanitárias em que cada uma foi alojada no dias na Cidade do Cabo, apontada como um nas frentes de batalha do Rovuma (norte de
navio. Na realidade, os soldados viajavam dos focos para o segundo surto, visto a gripe Moçambique), que lhes deu direito a uma
amontoados no porão, sem condições hi- propagar-se ali nomeadamente entre os traba- curta baixa médica (raramente de mais de
giénicas (partilhando as latrinas), mal ali- lhadores das docas. Além disso, algumas horas quinze dias) e, posteriormente, à ordem
mentados, sendo apenas transportados para depois, acostaram junto ao Moçambique dois de regresso à metrópole. Enfraquecidos,
a enfermaria quando se encontravam num navios britânicos que transportavam milita- «quando o vapor acostou em Cape Town
estado crítico, propagando assim a gripe aos res desmobilizados da frente europeia, onde tornaram-se pasto fácil do surto mais viru-
camaradas. Os óbitos por classe espelham a pneumónica grassava. Por isso, não foi por lento da pandemia de pneumónica».
bem estas diferentes condições de transporte: coincidência que sete dias depois de deixar a Ricardo Jorge tinha alertado para a impor-
30,5% dos soldados e 14,3% dos sargentos fa- Cidade do Cabo tenha ocorrido o primeiro óbito tância da organização sanitária em campa-
leceram, enquanto não se registou nenhuma por gripe a bordo do Moçambique. O período nha na sua conferência para os militares, em
morte entre o corpo de oficiais, que ocupava de incubação era então de quatro a sete dias, Tancos. Rui M. Pereira concluiu que se essas
os camarotes individuais do convés superior. dando-se o óbito em menos de 48 horas. recomendações «tivessem sido tomadas em
Além dos fatores gerais como a ausência O segundo ponto deve-se ao facto de 85% consideração, em muito se teria minimizado
de boas práticas sanitárias, a insalubrida- dos militares falecidos a bordo terem em- o número de baixas por doença», nomeada-
de ou a alimentação deficiente, para Rui barcado depois de passarem pelos Depósitos mente por pneumónica.

VISÃO H I S T Ó R I A 21
EPIDEMIAS // 1918

RICARDO JORGE
O sr. Saúde Pública
A partir do Conselho Superior de Higiene, organismo de Estado criado
com a implantação da República, o higienista esteve aos comandos
da gestão das medidas sanitárias e da informação veiculada para os jornais
por Maria de Fátima Nunes*

R
icardo Jorge, homem do Porto, for- respiratórias, algo que não o apanha des- lar o pânico e impor medidas sanitárias.
mado na respetiva Escola Médico prevenido, ou incauto. Poderemos falar de O Diário de Notícias e O Século são dois
Cirúrgica, repartiu os seus escritos epidemias no laboratório da História de fi- excelentes arquivos de factos nacionais de
pelos mais variados domínios, desde nal do século XIX e XX através de Ricardo vários quadrantes e de notícias internacio-
a higiene pública à história da medi- Jorge? Já no Porto, em 1894, apreendera o nais que chegavam das agências noticiosas
cina e à crítica literária. Teve uma ful- fenómeno da peste de Lisboa, e em 1899, na pelo telégrafo. No caso da pneumónica, ti-
gurante carreira de protagonista nos sistemas zona ribeirinha portuense, efetua os registos nham como propósito noticiar oficialmente
institucionais de Saúde Pública em Portugal, minuciosos para o relatório que entregará às as ocorrências geográficas ao seus leitores,
a par de uma intensa atividade científica que o autoridades sanitárias municipais, expondo a divulgar a visão oficial das autoridades sani-
consagrou como epidemiologista e higienista. situação vivida, propondo medidas de higiene tárias, cujo protagonismo estava centrado na
Em 1918, viveu o surto de pneumónica como pública e urbana e defendendo melhores con- figura do diretor-geral de Saúde Pública, na
membro do Conselho Superior de Higiene, dições de vida para a população, uma vez que época professor da Faculdade de Medicina
posto que lhe deu projeção nacional e inter- as epidemias entram sempre mais depressa da Universidade de Lisboa, com um largo
nacional no campo da Saúde Pública, de que nos núcleos de miséria social. trabalho nacional e internacional no campo
se tornou referência incontornável. Tinha Em 1918 e 1919, sob a configuração de re- das epidemias.
já prestado serviço público de higienista ao latórios oficiais existe um terreno comum: Em 25 de setembro de 1918, o Diário de
enfrentar, sob o ponto de vista de política apontar os contextos políticos, económicos, Notícias (DN) publica na primeira página
sanitária, o surto epidémico de Lisboa de militares e por vezes ideológicos que contri- a nota oficial de Saúde Pública, de Ricardo
1894 e o surto de peste do Porto de 1899, buem para a rápida progressão da doença. Jorge: «Epidemia. A influenza pulmonar.»
quando ruma a Lisboa e contribui para fun- A epidemia aparece como um fenómeno negro Assim se designava oficialmente a nova
dar, em 1899, o Instituto Central de Higiene, decorrente de um processo mundial veiculado onda epidémica, afastando-a dos referentes
que passa a ter o seu nome a partir de 1929. por um discurso higienista, de biopolítica, com de pestes (como a bubónica do Porto) e de
Permanece na capital, envolvido em redes ações consertadas dentro de Estados. febres com passado recente (cólera, malária),
de saúde pública, até 1939, ano da morte. nas quais Ricardo Jorge já tivera um papel
No que toca à pandemia de 1918, sigamos Reflexos nos jornais de intervenção pública. São apresentados
duas publicações oficiais de Ricardo Jorge, de O grande desafio de um discurso de Esta- objetivos práticos e urgentes a atingir pelos
junho de 1918 e março de 1919: A Influenza. do sanitário é noticiar, aconselhar, contro- cidadãos no quotidiano para impedir a conta-
Nova Incursão Peninsular. Relatório apresen- minação, como por exemplo evitar os beijos.
tado ao Conselho Superior de Higiene, sessão Já impedir a circulação de pessoas e bens
de 18 junho 1918, Lisboa, Imprensa Nacio- era uma medida ultrapassada e desfasada
nal, 1918; e La Grippe, Rapport préliminaire Ricardo Jorge escolhe da realidade contagiosa deste surto gripal.
présenté à la Commission Sanitaire des Pays a palavra «pneumónica» As notícias tinham como duplo objetivo in-
Aliés, dans la session de mars 1919. Lisbonne, formar sobre as ocorrências de pneumónica
Imprimerie Nationale, 1919. para designar a nova pelo País e, sobretudo, evitar o pânico social.
A partir de setembro de 1918, na imprensa, estirpe de gripe que Tratava-se de uma epidemia silenciosa que
Ricardo Jorge escolhe a palavra «pneumóni- contrastava com as notícias ruidosas e de
ca» para designar uma nova estirpe de gripe afetava gravemente grande impacto que chegavam da frente de
que afetava gravemente os pulmões e as vias as vias respiratórias batalha da Grande Guerra.

22 V I S Ã O H I S T Ó R I A
AURÉLIO DA PAZ DOS REIS/CENTRO PORTUGUÊS DE FOTOGRAFIA

Ricardo Jorge no laboratório O epidemiologista combateu a pandemia de 1918-19 como membro do Conselho Superior de Higiene

O DN permite traçar a geografia da doen- o DN utiliza a sua rede telegráfica para no- tempo importava viver de forma isolada de
ça, difundindo informação sobre o número ticiar a geografia da epidemia, de sul para contactos sociais. A medida impunha-se por
de doentes nos vários distritos do País. Em norte, de Espanha até ao Atlântico, tendo razões médicas e sanitárias, mas os tempos
junho, entrevistas a médicos desdramatizam em conta que foram estas duas das principias de perturbação social e política – problemas
o contexto de doença. Anuncia-se a disponi- entradas. Surgem igualmente as primeiras com a distribuição de senhas de racionamen-
bilização de um pavilhão especial no Hos- medidas sanitárias profiláticas da atuação to, inflação, escassez de bens alimentares
pital do Rego, em Lisboa, para albergar os de Ricardo Jorge: proibição de feiras e ro- – adensavam o clima negro, tendo em conta
que venham a contrair o vírus da gripe. Este marias e redução de missas e atos litúrgicos, as críticas à ditadura de Sidónio Pais, a par-
hospital, criado em 1906 pelo governo de mantendo-se o cumprimento das normas ticipação portuguesa na Grande Guerra e o
Hintze Ribeiro, fora pensado de acordo com sanitárias do texto de junho de 1918. Estas colapso do Corpo Expedicionário Português
os princípios do Estado sanitário e higienista, medidas aconselhadas por Ricardo Jorge em (CEP) em abril de 1918, em La Lys.
tal como é amplamente referido numa revista nota oficial de 25 de setembro de 1918 foram No jornal O Século, o mês de outubro de
da época por Curry Cabral. noticiadas pelo DN, que tinha também como 1918 foi o período mais rico em informações
Porém, em setembro o mundo «parece finalidade o controlo da opinião pública para de primeira página. A par dos comunicados
desmoronar-se», surgindo as primeiras notí- evitar o pânico social generalizado e incutir oficiais da Direção-Geral de Saúde Pública,
cias de vítimas de pneumónica. Com o clima hábitos de comportamentos coletivos e in- o matutino difundia medidas profiláticas
a registar a baixa de temperatura de outono, dividuais adequados. Por breve intervalo de assentes na prevenção e fazia publicidade a

VISÃO H I S T Ó R I A 23
EPIDEMIAS // 1918

produtos de perfumaria e de farmácia, sendo


a gripe uma mais-valia para publicitar casas
comerciais como a Perfumaria da Moda e a
Farmácia Estácio, no Rossio.
Quase subitamente, em meados de novem-
bro, a pneumónica desaparece das primeiras
páginas do DN e de O Século. A gramática
de saúde pública que se adivinha no alinha- Publicações Contributos de Ricardo Jorge para o estudo das pestilências e da gripe
mento dos títulos dá lugar a outras matrizes e respetivo combate
informativas. O fim da Grande Guerra e a
chegada do CEP ao Cais das Colunas, a 23 em revistas científicas, ao longo das décadas O raciocínio lógico do Dr. Mirandela é o
de novembro, marcam o fim do ciclo de notí- de 1920 e 1930, ocorrem na Europa, nos Esta- seguinte: medidas de carácter político e ideo-
cias informativas gripais na imprensa diária. do Unidos e na América Latina, com especial lógico (leia-se pan-germanismo), afetando
A pneumónica vai sobreviver enquanto ma- destaque para o Brasil. O médico português diretamente a ida dos congressistas portu-
téria de notícia, nas páginas secundárias, afirmava-se, assim, no contexto da rede in- gueses ao Congresso Espanhol de Medicina,
veiculando os apoios da Cruz Vermelha e da ternacional da Saúde e da Higiene Pública, impediam médicos e agentes sanitários de se
Cruz Branca aos sobreviventes. terrenos em que os Estados ocidentais que reunirem em fórum de científico.
participaram na Grande Guerra tinham de, Dois pontos de vista distintos sobressaem
Visibilidade de uma carreira doravante, investir em medidas de fomento destes textos ocultos pela máscara de um
Após o surto da pneumónica, a carreira pro- do «bem estar social», única saída para o alter-ego. Por um lado, controlar o pânico
fissional e científica de Ricardo Jorge teve um controlo de epidemias de várias estirpes. social provocado pela epidemia; por outro,
grande desenvolvimento público, nomeada- Em 1926, Ricardo Jorge é indigitado re- o Dr. Mirandela não hesita em usar esses
mente na representação do Estado português presentante português no Comité de Higiene tempos de cólera para criticar as políticas sa-
na Sociedade das Nações. As suas publicações da Sociedade das Nações, lugar em que se nitárias de Espanha, desfasadas das políticas
mantém ativo até à sua morte. Com uma vida sanitárias europeias de que Portugal já fazia
pública e científica cheia de atividade, atra- parte, através de Ricardo Jorge…
vessou regimes – a Monarquia, a República, A trajetória de vida deste epidemiologista
o Estado Novo – sempre a trabalhar num permite-nos obter matizes cruzados de história
sistema de rede de contactos internacionais. de Saúde, Ciência, Cultura e diplomacia cien-
A pneumónica foi um dos seus principais la- tífica. Um olhar de cronologia que transporta
boratórios de experimentação e de observação Ricardo Jorge, e o tempo pós-pneumónica,
científica para determinar o papel que um para uma dimensão que ultrapassa a epide-
Estado do século XX deveria ter no plano da miologia e se situa no âmago das relações entre
legislação e das medidas de Saúde Pública. Estados a partir do papel que a Saúde Pública
passou a ter no seio da Sociedade das Nações.
O heterónimo de 1918
* Maria de Fátima Nunes é professora da
Sob pseudónimo Dr. Mirandela, publicou Universidade de Évora e investigadora do Instituto
Ricardo Jorge no DN dois artigos cujo tema de História Contemporânea
fundamental é a crítica à política sanitária
Para saber mais:
de Espanha, que, ao encerrar a fronteira A Epidemia Esquecida: olhares comparados sobre a
com Portugal, denotava, segundo o autor, Pneumónica 1918-1919, José Manuel Sobral e Maria
Assinados com um considerável atraso face às normas in- Luísa Lima, Paula Castro, Paulo Silveira e Sousa (Orgs),
Lisboa, ICS, 2009.
ternacionais. Trata-se de opiniões muito crí-
o pseudónimo ticas, onde se cruzam os meandros da Saúde
Centenário da Gripe Pneumónica. A pandemia em
retrospetiva Portugal 1919-1919, Coord. Helena da
Silva, Rui M. Pereira, Filomena Bandeira, Lisboa,
'Dr. Mirandela', Pública com contextos políticos em tempo de Ed. Igas, IHC-FSH-Nova, CNP, 2019.
Jaime Larry Benchimol, «Ricardo Jorge e as relações
guerra, tal como Ricardo Jorge, em fórum
publicou no Diário internacional, fará questão de referenciar em
entre Portugal, Brasil e África: o caso da febre-
amarela». In Da ciência luso-brasileira, 229-249.
de Notícias artigos que 1919. Uma contrainformação que o DN não Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013.
Jorge F. Alves, «Ricardo Jorge e a Saúde Pública
se importava de veicular, de forma a alargar
criticavam a política o leque de leitores e de assinantes, deixando
em Portugal. Um apóstolo sanitário», «Arquivos de
Medicina», 2008, 22 (2-3).
Revisitar a Pneumónica de 1918-1919 – dossier
sanitária de Espanha a inquietação em suspenso… temático, Ler História 73, 2019.

24 V I S Ã O H I S T Ó R I A
traça o rasto da infeção na cidade: desses nove
infetados, um «não deu caso nenhum de con-
tágio porquanto as condições habitacionais
da sua família eram razoáveis», ao contrário
dos outros, que infetaram muita gente. No
bairro da Sé, há seis casos em fevereiro e 96
em março. «É a freguesia de Braga onde se
ARQUIVO HISTÓRICO DA CRUZ VERMELHA

encontra ainda casario coevo da Sé, habitado


por inúmeras pessoas; lá encontramos a porca
com a sua ninhada de bacorinhos, debaixo da
cama de muito cidadão. É vulgaríssimo esse
costume. A aglomeração de gente pouco limpa
em casas de péssimas condições habitacionais
são explicação de peso», escreve o médico.
No Porto, no mesmo mês, registam-se mais
Hospital dos Tifosos no Porto Primeiro era cortado o cabelo e todos os pelos de 500 casos. «É uma epidemia expansiva,
do corpo, depois ia-se à desinfeção açoitando como é sua predileção as classes
ínfimas, maltratadas e malnutridas», comen-

Um país tífico
tará Ricardo Jorge.
A doença combatia-se com vigilância e
higiene. Postos de despiolhamento foram
montados nos hospitais para tifosos. «Na sala
Transmitido pelo piolho, o tifo afetava as classes mais de despir e despiolhamento, um empregado
pobres. Em 1918, Porto e Braga sofreram especialmente procede à depilação do indivíduo portador de
parasitas. Este mesmo empregado, depois de
por Cláudia Lobo o indivíduo estar despido, fricciona-o, nas

‘P
regiões pilosas, com um líquido insecticida
ortugal é um país tífico.» A fra- pessoas por ano – mas o número subiria para (mistura em partes iguais de azeite, petróleo
se é de Ricardo Jorge, dita em 1725 em 1918 e para 1252 em 1919. e aguarrás). O operando passa depois à sala
1918 a propósito do surto que de banho, onde é lavado com água quente e
afetava o Porto desde dezembro Porca debaixo da cama sabão», lê-se na tese de Eurico de Almeida. As
de 1917, antes do aparecimento Terá sido a partir desse foco infeccioso das «fe- roupas eram desinfetadas numa estufa antes
da pneumónica. O tifo, doença bres da Póvoa» que se iniciou, em dezembro de se lhe serem devolvidas. «Todo o despio-
infetocontagiosa causada por uma bactéria de 1917, o surto do Porto: muitos pescadores lhado recebia, depois de banhado, uma cédula
transmitida ao homem através do piolho, foi tinham acorrido a Matosinhos para a pesca da pessoal, com validade por cinco dias. Depois
tão persistente nas comunidades piscatórias sardinha. O tifo exantemático, ou tabardilho, de expirado esse prazo, passava novamente
a norte do Porto (Póvoa de Varzim, Vila do chega depois a Braga através de nove doentes pelo posto, tantas vezes quantas as necessá-
Conde, Matosinhos), que lhe chamavam «as que vão do Porto. Numa tese de doutoramen- rias até ser encontrado sem parasitas.»
febres da Póvoa». A doença, identificada ape- to apresentada à Faculdade de Medicina do A brigada de desinfetadores avançava para
nas em 1904 por um médico como tifo exante- Porto em 1920, o médico Eurico de Almeida as habitações dos tifosos: as roupas e enxergas
mático, terá chegado a Portugal no século XV eram recolhidas para serem desinfetadas;
e atacava sobretudo nos períodos de grande o chão era baldeado com um soluto de cal
agitação, como as Invasões Francesas ou as clorada e as paredes aspergidas com creolina.
Lutas Liberais. Causa temperatura elevada,
«A aglomeração À polícia sanitária cabia intimar todos os
prostração e debilidade e é reconhecível, num de gente pouco contactos dos doentes a irem ao posto de des-
segundo momento, pelas manchas vermelhas piolhamento e fazer «rusgas a bairros sujos».
de formato irregular e tamanhos variáveis na
limpa em casas No final de 1918, a doença tinha matado
pele, sobretudo nos pulsos e na parte lateral de péssimas condições 1203 pessoas, 19,2% dos infetados. Voltaria em
do abdómen. Se não for tratada, provoca 1919, mas com uma taxa de mortalidade mais
mortalidade de 10 a 30% dos atingidos. Na
habitacionais são baixa: 9,7 por cento. O último caso registado
década de 1910, morriam de tifo cerca de 50 explicação de peso» em Portugal data de 1950.

VISÃO H I S T Ó R I A 25
EPIDEMIAS // 1918

De ‘Presidente-Rei’
a monarquia
sem monarca
Enquanto lavrava a pneumónica, Portugal
conheceu uma ditadura de um ano e uma breve
restauração monárquica parcial

JOSHUA BENOLIEL/ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA


por Luís Almeida Martins

A
jovem República Portuguesa, direta- balança por pender em definitivo para o lado
mente envolvida na I Guerra Mun- sublevado quando uma delegação da União
dial desde 1916, tinha tropas a com- Operária Nacional lhe ofereceu a colaboração
bater contra a Alemanha no Norte dos seus sindicatos e grupos armados. Nos
de França e em África, enquanto dias imediatos, aproveitando a confusão,
na retaguarda o governo do Partido o povo lisboeta redobrou a frequência e a
Democrático se via a braços com uma onda intensidade dos saques a estabelecimentos,
greves e uma vaga de assaltos a mercearias mas, logo que situação se normalizou, a Jun-
e padarias motivada pela falta e a carestia de ta Revolucionária que tomou as rédeas do antes contra a participação de Portugal no con-
alimentos e pelo açambarcamento. O Presi- poder antes da posse de um novo governo flito ao lado da Inglaterra e tem sido acusado
dente da República, Bernardino Machado, e o pôs cobro a estas situações. de não promover o roulement das tropas nas
chefe do Governo, Afonso Costa, estavam de trincheiras. Para legitimar a tomada do poder,
visita à frente de batalha, em França, quando, A ‘República Nova’ submeteu posteriormente a plebiscito a sua
no meio da angústia, foi desencadeado o golpe Com a formação de um executivo em que candidatura à Presidência da República, numa
protofascista de Sidónio Pais. participaram políticos «unionistas», o País inédita ida às urnas em que toda a população
Após várias reuniões conspirativas, com entrou então numa nova fase da sua vida masculina pôde participar. A «República Ve-
destaque para as que decorreram na redação política, de recorte presidencialista segundo lha», ou seja, o anterior regime liberal em que
do jornal A Luta, afeto ao Partido Unionista, o modelo americano, que ficaria conhecida pontificava o Partido Democrático, apenas
de Brito Camacho (na oposição), a agitação por «República Nova». permitia que votassem os (po (poucos) homens
veio para a rua, protagonizada por militares Sidónio Pais fora representante
ntante diplomático alfabetizados, para não condi
condicionar o senti-
e civis. À frente do movimento estavam o de Portugal em Berlim até aoo corte de relações do do sufrágio à manipulação
ma dos
major do Exército e lente de Matemática Si- com a Alemanha e a declaração
aração de guerra. párocos e dos caciques.
ca
dónio Pais, de 45 anos, políticos «unionistas» Germanófilo assumido, manifestara-se
anifestara-se já Encerrando o parlamento
ESPÓLIO FERREIRA DA CUNHA/ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA
e, curiosamente, Machado Santos, «pai» e a pretexto do primeiro sur-
herói do 5 de Outubro de 1910. Malhas que to de gripe pneumónica
pn que
a revolução tece. então se fez sentir
s - mas na
Tal como aquando da revolução republica- verdade por razões
r políticas
na de sete anos antes, os golpistas de 7 de de-
Germanófilo, Sidónio
ónio -, Sidónio assu
assumiu pessoal-
zembro de 1917 escolheram a Rotunda (praça -se
Pais manifestara-se mente a chefia
chef do governo,
Marquês de Pombal) para concentrarem as fundou o Partido Na-
suas forças. Aderiram as principais unidades
já antes contra a ciona
cional Republica-
militares da capital, que se entrincheiraram e participação no, reatou os laços
ficaram a aguardar a adesão de grupos civis. entre o Estado e
ent
As forças lealistas tentaram assaltar a posição
de Portugal na a Igreja católica
insurreta, mas foram repelidas, acabando a Grande Guerra pondo fim ao
p

26 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Banho de multidão
Sidónio Pais era,
normalmente,
aclamado com
entusiasmo nas
ruas. Aqui, durante
uma visita à
Assistência 5 de
Dezembro, setembro
de 1918

conflito aberto entre esta e a República, dirigente republicano português, sendo ele lo negro, quando o tempo já não era propício
propugnou a lei e a ordem e apoiou-se na assumidamente germanófilo. Finalmente, a garbosas cavalarias, punha e tirava o capote
força das armas. quase caricato é o facto de a Igreja católica com movimentos enérgicos e fazia-se rodear
Tudo menos consensual, o «Presidente-Rei» o ter visto como salvador da fé, após anos de uma corte de cadetes que reproduziam os
(como lhe chamou Fernado Pessoa, que foi de anticlericalismo governamental, sendo seus gestos e tiques. A sua maneira de estar
seu admirador) simbolizou a metade direita ele um não praticante do catolicismo e até em público parecia ser inspirada no modelo
do País nesse tempo conturbado em que ardia possivelmente um agnóstico. dos próceres latino-americanos.
uma fogueira de paixões alimentada pela A sua popularidade está também direta-
lenha da penúria. ‘One man show’ mente ligada à pandemia da pneumónica.
Poço de contradições, o novo homem-forte Amado por uns e odiado por outros, este Era habitual encontrá-lo a visitar hospitais
do País era maçom e afirmara-se democrata político a seu modo inovador ficou na me- onde se encontravam internados doentes
desde a juventude, o que não o impediu de mória como um protagonista do então ainda afetados pela terrível doença, demonstrando
vir a ser acusado de ditador. Depois, embora incipiente espetáculo mediático. Num tempo uma coragem simultaneamente física e mo-
tivesse sido, ainda no tempo da monarquia, em que não havia televisão nem rádio e em ral, semelhante à de D. Pedro V no seu tempo.
membro do Partido Republicano Português, que, num país com 80% de analfabetos, os Sensibilizado por causas sociais de tipo assis-
acabou na prática por favorecer a possibilida- leitores de jornais eram muito poucos, ele tencialista, favoreceu a distribuição gratuita
de de uma eventual restauração monárqui- furou todas as barreiras impeditivas da co- de alimentos que ficaria conhecida por «sopa
ca. Em terceiro lugar, sendo embora filiado municação e tornou-se porventura o chefe de dos pobres» ou «sopa de Sidónio», e a sua
num partido (o Unionista, de Brito Camacho) Estado mais intensamente amado desde D. presença na inauguração dessas «cozinhas»
criou um regime que parecia ser contra os Pedro V (o popular monarca que morreu de muito contribuiu para cultivar a imagem de
partidos e acabou por fundar ele próprio um febre tifoide aos 24 anos, em 1861) e a mais Presidente generoso e amigo dos mais des-
novo partido. Não menor contradição foi a de palpável encarnação do mito sebastianista. favorecidos. O seu governo libertou grandes
este homem com uma formação positivista, Durante as suas digressões de norte a sul, somas para o combate à pneumónica e ao tifo
militar e matemático, ter sido idolatrado por marcadas por banhos de multidão, mostra- que também atingiu o País por essa altura.
muitos como um messias. Curiosa é tam- va-se fardado de general, embora possuísse Progressista na primeira parte da vida e
bém a circunstância de a Inglaterra o ter apenas a patente de major e tivesse sido até depois «revolucionariamente» conservador,
acolhido como o não fez a nenhum outro então sobretudo um civil. Montado num cava- Sidónio prenunciou um figurino destinado

VISÃO H I S T Ó R I A 27
EPIDEMIAS // 1918

a tornar-se moda alguns anos depois. Nem


poderia ter sido mais do que isso, visto os apa-
relhos e os métodos fascistas terem pretendido
responder com armas semelhantes mas de
sinal contrário aos aparelhos e aos métodos do
comunismo. Ora, como o «Dezembrismo» de
Sidónio data sensivelmente da mesma altura
em que na Rússia era desencadeada a revolu-
ção bolchevique, numa época em que o mundo
não tinha ainda podido medir o alcance dos
acontecimentos de Petrogrado, ele mais não
poderia ser do que um ensaio de resposta ao
Recriação Bilhete-postal com o assassinato de Sidónio Pais, na Estação do Rossio,
parlamentarismo «burguês» que, segundo os a 14 de dezembro de 1918
corifeus do «modernismo» político, teriam
marcado o «estúpido século XIX». Sidónio escolhera essa data para homenagear assuntos relacionados com a Junta Militar da
os tripulantes do navio caça-minas Augusto segunda cidade do País. Foi ao tomar o com-
A ‘leva da morte’ de Castilho, que combatera galhardamente boio, na Estação do Rossio, que o atingiram
No período final do seu consulado de doze contra um submarino alemão, e para presidir mortalmente dois tiros de pistola disparados
meses, Sidónio teve de se apoiar crescente- a uma obra de beneficência no Jardim Zooló- por um obscuro ex-sargento de 25 anos, tam-
mente no elemento castrense, que fundava gico. Ao sair do Palácio de Belém, foi alvejado bém com presumíveis ligações maçónicas,
«juntas militares» em diversas cidades. Vivia, por três tiros de revólver disparados pelo aluno chamado José Júlio da Costa.
porém, no fio da navalha, pois a oposição da de pilotagem Júlio Batista. Os disparos erra- A comitiva presidencial encontrava-se no
«República Velha» corroía o seu incipiente ram, porém, o alvo. Quando se veio a saber que átrio do andar superior da gare quando o
sistema, colocando a sua integridade física o pai do autor do atentado pertencia ao grupo atirador furou o cordão de segurança e dis-
constantemente em perigo. maçónico Pró-Pátria, a sede desta organização parou os tiros. Costa, que pouco antes jantara
Revoltas militares eclodiram em Coim- foi assaltada por populares indiscriminados. calmamente num restaurante do Chiado,
bra e em Lisboa, e em consequência disso Mais uma ironia, se recordarmos que Sidónio levava a arma dissimulada sob o amplo capote
as cadeias enchiam-se de prisioneiros. Um também era maçom. alentejano que envergava naquela noite fria.
grupo de 140 desses presos, parcialmente Gerou-se grande confusão e foram disparados
constituído por destacados políticos, ia ao Dois tiros na gare mais tiros, de que resultaram quatro mortos
final da tarde de 16 de outubro de 1918 ser Mas a segunda tentativa de assassínio have- além do «Presidente-Rei». Contudo, o homi-
transferido, sob escolta de 200 polícias ar- ria de resultar. Na noite de 14 de dezembro, cida não ofereceu resistência e imediatamente
mados, dos calabouços do Governo Civil de Sidónio ia partir para o Porto, a fim de tratar lhe deitaram a mão. Costuma contar-se que,
Lisboa, ao Chiado, para os fortes de Caxias antes de exalar o último suspiro, Sidónio Pais,
e de São Julião da Barra, estando previsto o estendido no chão com muita gente à volta,
embarque no comboio do Cais do Sodré às proferiu a frase sonante «Morro bem, salvem,
21 horas. Quando o grupo seguia pela Rua a Pátria». Mas, se ele alguma coisa disse, não
Vítor Cordon ouviram-se tiros disparados terá sido nada tão empolgante. O inventor
da Rua do Ferragial. Estabeleceu-se grande da tirada atribuída ao ditador foi o jornalista
confusão, com intenso tiroteio e rebentar de Reinaldo Ferreira, o depois popularíssimo
petardos, situação de que resultaram feri- Repórter X, na altura a trabalhar no diário
mentos em dezenas de presos e de polícias. O O Século. Incumbido de cobrir o assunto e
acontecimento ficou conhecido por «leva da tendo chegado atrasado ao local do crime,
morte» e minou definitivamente a reputação pôs a trabalhar a imaginação e escreveu a
de Sidónio Pais e do seu regime. História (com H grande) à sua maneira...
Num tempo pautado pela cisão nacional e Por falta de vontade política dos sucessivos
pela violência política, a sua eliminação física poderes, nunca se chegou a apurar ao certo o
era uma questão de dias. Uma primeira tenta- que, ou quem, esteve por detrás do atentado.
Jornal sidonista A notícia
tiva de assassínio do «Presidente-Rei» ocorreu Nos anos imediatos falou-se muito da Ma-
do assassínio do ditador
a 5 de dezembro, durante as festas comemo- preenche toda a primeira çonaria, e é verdade que José Júlio da Costa
rativas do aniversário da «República Nova». página tinha ligações pessoais (pelo menos de forte

28 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Saída da urna dos
Paços do Concelho
O funeral do
«Presidente-Rei»,
a 21 de dezembro,
teve grande
ANSELMO FRANCO/ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA

participação popular

admiração) ao grão-mestre Magalhães Lima. ram favoravelmente. Porém, os membros imponente parada militar. No edifício do
É, no entanto, mais natural que, a ter uma das Juntas Militares conservadoras iniciaram Governo Civil do Porto passou a funcionar
filiação secreta, o ex-sargento pertencesse movimentações exigindo «um governo de a Junta Governativa do Reino, presidida
à Carbonária, uma organização mais com- força». Contavam para isso com o apoio dos por Paiva Couceiro. O deposto rei D. Ma-
patível com o seu extracto socioprofissional. civis que giravam em torno do Integralismo nuel II não só acompanhava tudo com a
O assassino de Sidónio morreria em 1946, Lusitano, um movimento de intelectuais de máxima atenção a partir do seu exílio em
com 52 anos, internado no Hospital Miguel extrema-direita onde se destacavam António Inglaterra como dera mesmo luz verde à
Bombarda. Foi oficialmente considerado Sardinha, Rolão Preto, Pequito Rebelo, Hipó- movimentação monárquica.
um doente mental, tanto pela «República lito Raposo, Luís de Almeida Braga e outros. A ideia dos insurretos era obviamente
Velha» restaurada após o desaparecimento Quando tomou posse o governo republi- estender as suas movimentações a todo
de Sidónio como, em seguida, pela Ditadura cano constitucional, chefiado por Tamagni- o País, mas as Juntas Militares de Lisboa
Militar e pelo Estado Novo. ni Barbosa, o «eterno» ativista monárquico mostraram estar divididas. Contudo, a 22
Paiva Couceiro, líder das incursões antirre- de janeiro Aires de Ornelas, à frente de um
A ‘Monarquia do Norte’ publicanas de 1911 e 1912 em Trás-os-Mon- destacamento militar de uns 70 homens,
Ainda os tiros não tinham deixado de ecoar tes, partiu para o Porto, pois achava que ali hasteava a bandeira azul e branca no posto
na Estação do Rossio e já, na outra ponta da havia mais condições para levar a avante a de telegrafia sem fios (TSF) situado no alto
linha férrea que dali partia, era restaurado o restauração da monarquia. Seguiram-no, de Monsanto (onde ainda não havia Parque
regime monárquico. Com efeito, foi no Porto, dias depois, António Sardinha e Luís de Florestal). Ali acabariam por ser cercados
a 19 de janeiro de 1919, que a monarquia Almeida Braga. A monarquia foi efetiva- por militares e civis leais à República, sor-
foi de novo proclamada, pouco mais de oito mente proclamada e «selada» com uma rindo sem dificuldades a vitória às forças
anos depois do seu derrube na capital. Mas republicanas no recontro que ficaria conhe-
seria efémero esse fogacho dos setores que cido por Escalada de Monsanto.
sonhavam com o regresso às instituições do Mas não terminou aqui a pequena guerra
passado. civil de 1919. Só a 13 de fevereiro, depois de
Logo depois da morte de Sidónio, os de- A frase «Morro bem, combates no litoral centro do País, é que as
fensores da «República Velha» restauraram a forças republicanas entraram no Porto e pu-
Constituição de 1911 e formaram um governo
salvem a pátria» seram termo à efémera Monarquia do Norte.
nos moldes anteriores à experiência ditato- foi posta na boca Os políticos selavam – provisoriamente, é
rial. Puderam fazê-lo com relativa facilidade, certo – a paz, mas a pneumónica, essa, ata-
porque muitas unidades militares de Lisboa
do Sidónio moribundo cava de novo e fazia ainda mais numerosas
e a guarnição de Santarém se pronuncia- pelo Repórter X vítimas.

VISÃO H I S T Ó R I A 29
EPIDEMIAS // 1918
GETTY IMAGES

Soldados nas trincheiras, 1918 O vírus pode ter sido trazido pelas Forças Expedicionárias Americanas

Guerra total, gripe global


Durante muito tempo, a Grande Guerra e a pneumónica foram abordadas como
entidades independentes uma da outra. Contudo, é estreita a relação entre ambas
por Helena da Silva

Q
uando a «gripe espanhola» chegou a Sousa, partindo do livro de Alfred W. Crosby, do vírus pelo mundo devido à concentração de
Portugal, em maio de 1918, o País vivia America’s Forgotten Pandemic (2003). Na militares, sua circulação através das licenças,
já dias difíceis, numa situação agra- realidade, na guerra contra a gripe não houve mobilização e desmobilização e ainda pelas
vada pelo envolvimento na I Guerra vencedores, apenas vencidos, para quem o migrações de civis afetados pelo conflito. «É
Mundial (1914-1918); esta conjuntura esquecimento era uma forma de proteção, uma das piores pragas que pode cair sobre os
dificultou a implementação de respos- até porque a pandemia desapareceu sorra- exércitos beligerantes», afirmou Ricardo Jor-
tas, levando ao desastre sanitário. teiramente, sem uma data de Armistício para ge em 1918. Há outros pontos comuns entre
Os dois fenómenos mundiais, a Grande comemoração futura dos vencedores, como os dois fenómenos, como a origem do vírus.
Guerra e a pandemia de gripe, marcaram de no caso da I Guerra Mundial.
forma irreversível o século XX. Apesar de a Estes dois fenómenos globais, dramáticos Origem do vírus
gripe ter causado mais vítimas do que quatro e transversais à sociedade, foram tratados Inicialmente, o vírus era desconhecido e a
anos de guerra, a primeira seria rapidamente separadamente durante décadas, como se comunidade médica, com os meios técnicos
esquecida, ao invés do conflito. Esta situação fossem dois mundos à parte. Contudo, hoje e científicos existentes, debateu sobre o que
valeu-lhe a alcunha de «Pandemia Esqueci- não restam dúvidas de que estão interligados. causaria tantas vítimas num curto período.
da», atribuída por José Manuel Sobral, Maria A maioria dos investigadores concorda que a Na altura surgiram várias teorias, incluindo
Luísa Lima, Paula Castro e Paulo Silveira e guerra contribuiu para acelerar a propagação a ideia de uma guerra biológica. Para os Alia-

30 V I S Ã O H I S T Ó R I A
concentrou diversas estruturas hospitalares
e consequentemente milhares de militares
feridos, gaseados e doentes (incluindo por-
tugueses), tal como animais para consumo,
reunindo as condições para a propagação de
vírus, como o que causou a pandemia de gripe
de 1918-19. Uma terceira hipótese, menos
provável, aponta como origem a China, tendo
posteriormente o vírus chegado à Europa
através dos trabalhadores chineses utilizados
como mão-de-obra durante a Grande Guerra,
principalmente pelos britânicos e em menor
número pelos franceses.
ARNALDO GARCEZ/ARQUIVO HISTÓRICO-MILITAR

Certo é que a origem espanhola é errónea.


Contudo, a «gripe espanhola» ficou assim co-
nhecida também devido ao conflito. A maioria
dos países beligerantes tinha implementado
medidas de censura da imprensa que impe-
diram a publicação de informações sobre a
gripe, ao contrário da Espanha, país neutral.
Assim, desde maio de 1918 surgiram diversos
artigos nos periódicos espanhóis, incluindo a
notícia de que o rei Afonso XIII estava infe-
Na guerra Militares portugueses feridos, em França, com uma enfermeira da Cruz Vermelha
tado com gripe, deixando supor que a origem
do surto estaria naquele país.
dos, a Alemanha estaria, através da Bayer, a
disseminar o vírus. Contudo, tanto os alemães Sucessos e fracassos
como os austro-húngaros estavam também a A pandemia marcou o último ano da Gran-
ser afetados pela gripe e, claro, não tinham de Guerra e coincidiu com as últimas fases
qualquer antídoto. do conflito, havendo quem acreditasse que
E ainda hoje investigadores de todo o contribuíra para a derrota alemã. A primeira
mundo debatem sobre a origem geográfica vaga, na primavera de 1918, coincidiu com
do vírus, apontando várias hipóteses, todas a última grande ofensiva alemã (em que se
elas relacionadas com a Grande Guerra. Uma incluiu a Batalha de La Lys, uma das princi-
das possibilidades comummente apresentada pais derrotas das forças portuguesas) e tam-
é a do campo militar de Funston, no Arkansas bém com a chegada das tropas americanas
(EUA), onde os primeiros casos de gripe sur- à Europa. A segunda vaga, mais mortal, no
giram, em março de 1918. No mês seguinte, os outono, correspondeu aos últimos combates e
primeiros elementos das Forças Expedicioná- à assinatura do Armistício (11 de novembro).
rias Americanas chegavam a França, depressa A terceira, no primeiro semestre de 1919,
propagando a gripe entre os vários exércitos. acompanhou a desmobilização das tropas e o
Autores como John Oxford puseram em causa lento regresso dos prisioneiros de guerra aos
esta hipótese, apresentando uma outra ori- países de origem. Recorde-se que o vírus tinha
gem, anterior a 1918. Oxford baseou-se nos a particularidade de afetar jovens adultos
relatos da existência de uma doença que cau- entre os 20 e os 40 anos, exercendo pois um
sava febres de origem desconhecida e que pro- impacto direto nos exércitos beligerantes.
liferava nos acampamentos militares no sul da
Para os Aliados, Os quatro anos de «guerra total» levaram a
Inglaterra e no norte da França, defendendo a Alemanha estaria, um desenvolvimento da medicina militar,
uma mutação do vírus para justificar a sua quer no controlo de doenças entre os exércitos
maior letalidade. Efetivamente, em Étaples
através da Bayer, recorrendo, por exemplo, à vacinação em mas-
(França), a Força Expedicionária Britânica a disseminar o vírus sa, quer na cirurgia de guerra, beneficiando

VISÃO H I S T Ó R I A 31
EPIDEMIAS // 1918

da teoria microbiana e do desenvolvimento de pletos, pois apresentam apenas os óbitos Fora de combate Um
dos dois hospitais de
antissépticos. Como salientou Mark Harrison ocorridos em França, deixando de fora os
sangue do Exército
no livro The Medical War (2010), os inúme- prisioneiros de guerra portugueses. Por outro português em França,
ros avanços na medicina militar permitiram lado, os limites temporais não correspondem onde os feridos
delinear um retrato relativamente positivo no à pandemia de gripe, que se prolongou em eram tratados por
períodos mais longos,
controlo das doenças, sobretudo em contex- abril e maio de 1919. Por último, sabemos que e uma enfermaria; em
to europeu, exceção feita à gripe. A Grande haveria dificuldades em efetuar uma análise baixo, um cemitério
Guerra foi um dos primeiros conflitos em que estatística correta, pois a correspondência da de ingleses, onde
o número de mortes por doença foi inferior época menciona que muitos casos não eram foram sepultados os
primeiros portugueses
aos óbitos resultantes dos combates, tam- atribuídos à gripe ou influenza, o que coloca mortos na guerra
bém devido à violência da guerra industrial. em causa estes números.
Na ausência de antibióticos que pudessem Numa tentativa de colmatar estas falhas,
controlar as complicações respiratórias ou contabilizámos as mortes que poderiam ser
de uma vacina preventiva, os médicos foram atribuídas à gripe entre abril de 1918 e maio
incapazes de pôr fim a esta pandemia nos de 1919, partindo dos livros de óbitos dos resposta dos serviços sanitários e ao elevado
vários exércitos. militares do CEP existentes no Arquivo His- número de mortes na segunda vaga. Efetiva-
Este quadro aplica-se ao Corpo Expedicio- tórico Militar em Lisboa. Concluímos assim mente, as autoridades e as organizações volun-
nário Português enviado em 1917 para o norte que haveria pelo menos 146 óbitos causados tárias e profissionais de saúde estavam então
da França, mas não às sucessivas expedições pela gripe pneumónica, isto é, 6,7% do total concentradas no conflito, o que dificultou a
enviadas para Angola e Moçambique desde das mortes do CEP, incluindo prisioneiros intervenção das autoridades administrativas e
1914. As campanhas africanas ficaram marca- de guerra. A análise revelou ainda três picos, sanitárias, bem como a articulação com outros
das por problemas estruturais que causaram correspondentes às diferentes vagas: julho e agentes sociais aptos a prestar cuidados de
a morte a um grande número de homens, novembro de 1918 e abril de 1919. Confirma- saúde à população.
sobretudo por doenças como o paludismo e -se assim que, entre as doenças, a gripe foi a Também no caso de Portugal sentiu-se a au-
as disenterias. segunda causa de morte no CEP, ultrapassa- sência de profissionais de saúde, mobilizados
Quanto ao Corpo Expedicionário Portu- da pela tuberculose, e que teve um impacto em França e África. Além disso, a participação
guês (CEP), as mortes por combate surgem menor do que noutros exércitos. no conflito agravou a instabilidade política e
em maior número, seguindo-se as mortes Várias hipóteses podem ser apresentadas os conflitos sociais, com as crises da carestia
por doenças ou acidente. Neste grupo, des- para esta situação, como o facto de a partir de vida e as carências de bens de base que
taca-se a tuberculose, o grande flagelo das de meados de 1918 o exército português estar ajudaram à propagação do vírus.
tropas portuguesas em França, e logo depois menos presente nas linhas da frente, onde
a gripe pneumónica. Tal como em Portugal, a as condições de vida eram mais propícias à Na frente interna
primeira vaga foi vista como uma gripe banal, propagação de doenças. Ao mesmo tempo, o Relativamente à situação política em Portu-
enquanto a segunda originou um grande nú- número de homens era menor, havendo mais gal, convém recordar que eram grandes as
mero de baixas às estruturas de saúde e uma médicos e restante pessoal e ainda estrutu- expetativas de mudança e de modernidade
maior mortalidade. ras de saúde apetrechadas que responderam com a implantação da República em 1910.
Segundo o relatório apresentado em 1919 como era possível à epidemia gripal. Também Contudo, a realidade foi bem diferente e
por Ricardo Jorge à Comissão Sanitária dos podemos referir que as tropas portuguesas a desilusão real, como no caso do alarga-
Países Aliados, as tropas portuguesas «foram não estiveram entre os primeiros focos da mento do direito de voto, resultando numa
pouco dizimadas pela influenza», referindo epidemia, o que permitiu ter uma ligeira sucessão de governos e de presidentes da
38 óbitos até dezembro de 1918, partindo dos vantagem e seguir as medidas profiláticas República com conflitos parlamentares e
dados fornecidos por António Vieira Barradas, adotadas pelos exércitos aliados. uma revolução popular em dezembro de
médico responsável pela estatística médica do Um outro ponto a ter em conta é que a 1917, que levou Sidónio Pais ao poder. As
CEP. No artigo que publicou em 1920, tam- importante mobilização médica na «guerra divergências e as cisões internas entre re-
bém Barradas concluiu que a gripe teve um total» também contribuiu para a propagação publicanos eram evidentes, como sobre a
«eco não muito acentuado» e menos vítimas do vírus da gripe, ou melhor, não permitiu participação portuguesa na Grande Guerra,
do que nos exércitos britânico e belga, sem uma resposta tão rápida e eficaz quanto seria que apenas enfraqueceu a República. Em
motivo aparente, contabilizando 51 óbitos expectável, afetando negativamente as po- 1918, houve várias tentativas de pôr fim ao
em França até 31 de março de 1919. pulações civis. O historiador francês Patrick regime sidonista que levaram à instituição
Contudo, estes dois estudos estão incom- Zylberman chamar-lhe-ia o «holocausto no do «estado de sítio» em outubro, quando a
holocausto» referindo-se à incapacidade de pneumónica já grassava em Portugal. Se-

32 V I S Ã O H I S T Ó R I A
ARQUIVO HISTÓRICO-MILITAR

guiu-se o assassinato do presidente Sidónio conflito e os consequentes aumentos dos pre- rias revelaram-se ineficazes para melhorar a
Pais em dezembro de 1918 e, no mês se- ços e dificuldades de aprovisionamento, em saúde da população, sendo a cobertura médi-
guinte, a contrarrevolução fracassada para meados de 1918 deu-se uma crise de escassez ca e hospitalar muito deficitária. Segundo o
restaurar a monarquia, que culminou com de bens, e Portugal viu-se obrigado a racionar Anuário Estatístico, em 1917 Portugal tinha
os partidos da «República Velha» no poder. os bens alimentares. 231 hospitais civis, sendo a grande maioria
Em termos económicos e financeiros, a Re- Como os salários não acompanhavam a in- administrados pelas misericórdias, mesmo
pública herdou os problemas financeiros da flação, aumentaram os protestos da população se com fundos estatais. Existiam ainda 34
monarquia, nomeadamente o défice orçamen- contra a carestia de vida e a falta de produtos hospitais militares, um hospital da marinha,
tal, agravado pelo aumento da despesa pública alimentares. Em abril de 1918 criaram-se as dois hospitais de alienados e um hospital
na sequência da intervenção na Grande Guer- «sopas dos pobres» para acalmar a população. colonial, mas, havendo zonas do País sem
ra. Numa tentativa de equilibrar as contas, a Apesar da violência e da repressão, entre 1917 estruturas hospitalares ou com estruturas
nova moeda (o escudo) foi constantemente e 1918 contaram-se mais de 200 greves e a de pequena dimensão, estes rapidamente
desvalorizada e foram contraídos sucessivos greve geral de 18 de novembro de 1918, em se revelaram insuficientes face à epidemia
empréstimos, incluindo um empréstimo plena pandemia de gripe. A população por- de gripe. Também o número de farmácias,
de guerra junto da Grã-Bretanha. Portugal tuguesa, maioritariamente rural, analfabeta de pessoal médico e de enfermagem estaria
continuava a falhar a sua industrialização e e pobre, vivia então em habitações insalubres, muito longe de responder às necessidades
modernização, com reduzidas taxas de cres- condições propícias para a propagação de um da população, numa situação agravada pela
cimento. A indústria conserveira foi uma das conjunto de doenças. I Guerra Mundial, com a mobilização mas-
que mais beneficiaram com a guerra. Contu- Efetivamente, em Portugal, a tuberculose siva de profissionais de saúde, bem como
do, a agricultura manteve-se como a principal e a sífilis eram então verdadeiros flagelos, pela falta de bens e aumento dos preços
atividade, com uma produção em reduzida agravados pela recorrência de surtos epidé- nas farmácias.
escala como no caso dos cereais, que Portugal micos de varíola, febre tifoide e de tifo exan- Foi neste contexto que a população, mal
importava em grande quantidade. Perante o temático. As tentativas de reformas sanitá- alimentada e empobrecida, teve de fazer frente
ao vírus. Num momento crucial, Portugal
vivia a braços com uma conjuntura sui generis
que dificultou a implementação das medidas
decretadas pelo diretor-geral de Saúde face
à gripe. Em menos de um ano, a pneumóni-
ARNALDO GARCEZ/ARQUIVO HISTÓRICO-MILITAR

ca ceifou mais de 100 mil vidas em Portu-


A mobilização médica gal, um número muito superior aos mais de
na «guerra total» 7 mil militares portugueses caídos na Gran-
de Guerra. Apesar do número de vítimas, o
também contribuiu contexto pós-epidemia não permitiu grandes
para a propagação alterações na política de saúde do País. Assim,
a pneumónica (a última fase do ciclo das epi-
do vírus, impedindo demias, como Charles Rosenberg definiu em
uma resposta eficaz 1992) caiu no esquecimento.

VISÃO H I S T Ó R I A 33
Califórnia, outubro
de 1918
O auditório de
Oakland, transformado
em enfermaria de
mulheres contagiadas
com influenza.
Em 60 dias, morreram
500 pessoas na cidade

34 V I S Ã O H I S T Ó R I A
CONTÁGIO
PLANETÁRIO
Nenhuma doença provocou tantos
mortos em tão pouco tempo como
a pneumónica de há um século.
Os médicos foram surpreendidos
por um vírus desconhecido
que dizimou milhões de jovens
adultos, sem que uma cura
ou uma vacina fossem
encontradas
Por Clara Teixeira

GETTY IMAGES

VISÃO H I S T Ó R I A 35
EPIDEMIAS // 1918

N
Rio de Janeiro
um ano, entre março de 1918 e feve- «Uma cidade
reiro de 1919, de 50 a 100 milhões morta e sem
de pessoas não resistiram ao vírus da vida», onde
gripe pneumónica, considerada até «apenas a
tosse quebra
hoje a maior epidemia que atingiu o o silêncio
mundo desde a Peste Negra de mea- circunstante»
dos do século XIV. A doença manifestou-se no
final da I Guerra Mundial, quando milhares
de soldados se movimentavam entre os Es-
tados Unidos, a Europa, o norte de África e
a Ásia ocidental, transformando os portos, registaram-se focos da doença em Boston,
estradas e caminhos-de-ferro em vias rápidas nos EUA, e em Freetown, na Serra Leoa. Em
para a propagação. A segunda, e mais mortal setembro, o vírus aportava na África do Sul,
vaga da pneumónica, coincidiu com a assi- provocando cerca de 300 mil vítimas mortais,
natura do armistício, em novembro de 1918. na maioria entre a população negra.
A terceira fez-se sentir no final do inverno de O novo vírus da gripe matou muitas pessoas,
1919, arrebatando ainda mais vidas. e muito depressa. Entre 1918 e 1919 viriam a
As investigações históricas mais sólidas indi- morrer cerca de 675 mil norte-americanos,
cam que a doença alastrou a partir dos Estados mais do que nas duas guerras mundiais e nas
Unidos da América (EUA) para o resto do guerra das Coreia e a do Vietname juntas. Com
mundo. Aquele que seria hoje designado por muitos médicos e enfermeiras mobilizados
«paciente zero» foi identificado a 4 de março de para a frente de batalha na Europa, grandes
1918 em Camp Funston, um campo de instru- cidades como Saint Louis viram-se forçadas
ção dos militares americanos, no Kansas. Um a parar e a isolar os doentes. Lojas e escolas
mês depois, o novo vírus tinha atravessado o encerraram (mas não as igrejas), eventos des-
Atlântico e iniciado a sua disseminação pela portivos foram cancelados e até os cortejos
Europa, seguindo o rasto das tropas que par- fúnebres foram desincentivados, por medo do
ticipavam na ofensiva final da Grande Guerra. contágio. Em Nova Iorque criaram-se regu-
Mas o pior estava para vir. A segunda vaga lamentos que proibiam os cidadãos de espir-
dizimou milhões de pessoas na flor da idade rar, tossir ou cuspir na rua. Os elétricos eram
entre setembro e novembro de 1918, nos dois convertidos em carros funerários e os mortos
lados do Atlântico e não só. O primeiro caso Itália, cartaz da autoridade de saúde enterrados em valas comuns, à falta de caixões
«Lavar as mãos e evitar todos os contactos
terá sido detetado a 22 de agosto, em Brest, um desnecessários», entre outras medidas em número suficiente. Segundo a revista The
importante porto de desembarque das tropas New Yorker, os cadáveres apodreciam nas mor-
americanas em França. Na mesma semana, gues e os funcionários abriam as portas para
ventilar o interior. Alfred Crosby escreve que

Apanhados pela gripe espanhola

GUILLAUME MAX WEBER GUSTAV KLIMT RODRIGUES ALVES AFONSO XIII


APOLLINAIRE O pai da sociologia O pintor simbolista O presidente eleito do Infetado aos 32 anos,
O poeta francês não resistiu ao vírus. morreu em Viena, Brasil não chegou a tomar o Rei de Espanha deu
morreu aos 38 Faleceu em Munique, em fevereiro de 1918. posse. Faleceu aos 70 ainda mais notoriedade à
anos em Paris, em aos 56 anos, em Tinha 55 anos anos no Rio de Janeiro, em chamada gripe espanhola,
novembro de 1918 junho de 1920 janeiro de 1919 da qual recuperou

36 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Polícias em Londres Na capital inglesa morriam 4500 pessoas por semana, em outubro de 1918.
Depois da pandemia, foi criado o Ministério da Saúde

poucos esquimós resistiram à epidemia no em todos os países onde a doença se insta- por polícias e funcionários dos serviços, em
Alasca. Com a descida das temperaturas no lou. Frederick Trump, avô paterno do atual tempos de doença e miséria eram também
inverno, famílias inteiras morreram de frio Presidente dos EUA, Donald Trump, foi uma procuradas por assaltantes de bancos e outros
porque as pessoas estavam tão doentes que das primeiras vítimas mortais nos EUA, em criminosos que se faziam passar por médicos
nem conseguiam alimentar as lareiras. março de 1918. Tinha 50 anos. Já o então e farmacêuticos para burlar os incautos. O dia
Pior ficaram as cidades que pouco ou nada Presidente, Woodrow Wilson, teve mais sorte: do armistício, 11 de novembro, foi celebrado
fizeram para combater o vírus. Filadélfia per- adoeceu no início de 1919, quando negociava nas ruas das principais cidades da Califórnia
deu cerca de 11 mil habitantes num único o Tratado de Versalhes, mas sobreviveu. por multidões de rosto coberto por máscaras
mês. Na sua esmagadora maioria, os infeta- enquanto cantavam e dançavam de alegria.
dos eram jovens adultos até então saudáveis. Máscaras feitas de gaze O vírus devastou a Europa em poucas sema-
Cerca de três em cada quatro mortos tinha Sabe-se hoje que a propagação terá sido fa- nas. A partir de Espanha, o primeiro país onde
menos de 60 anos, e perto de metade menos vorecida pela movimentação dos soldados, a ausência de censura permitiu a publicação
de 15 anos – um padrão tristemente repetido concentração de pessoas em feiras e migra- de notícias sobre a doença – resultando daí
ção de trabalhadores rurais. Mas nada terá o nome, impróprio, de «gripe espanhola» –,
favorecido mais a elevada mortandade como disseminou-se rapidamente por Portugal
a falta de preparação dos médicos, quando e atravessou os Pirenéus, propagando-se
confrontados com um vírus desconhecido, e com uma extraordinária velocidade entre o
a ausência de medidas sanitárias adequadas. Atlântico e os Urais. Na Noruega, os lapões,
A pneumónica chegou sem avisar, e o mundo sem defesas imunitárias contra o novo vírus,
foi apanhado desprevenido. foram o grupo de habitantes a registar mais
Para fazer face à pandemia, muitos países vítimas mortais. Entre os não europeus, os
adotaram o uso de máscaras de gaze para pro- mais afetados foram os índios americanos e
teger boca e nariz das pessoas e, assim, dimi- os indígenas das ilhas do Pacífico, como a Sa-
GEORGES CLÉMENCEAU FRANZ KAFKA nuir o perigo de contágio. Em São Francisco, a moa Ocidental, que perdeu cerca de 20% da
Era primeiro-ministro da O escritor checo de Cruz Vermelha distribuiu máscaras fabricadas população. Na Nova Zelândia, a mortandade
França quando a I Guerra expressão alemã pela marca de calças de ganga Levi Strauss entre os maoris foi sete vezes mais elevada.
terminou. Resistiu ao adoeceu
vírus, que o atacou aos com 35 anos, & Co, que colocou a sua linha de produção Na Austrália, o vírus matou mais de 14 mil
77 anos mas sobreviveu ao serviço da luta contra a epidemia. Usadas pessoas em poucos meses, apesar da resposta

VISÃO H I S T Ó R I A 37
EPIDEMIAS // 1918

rápida das autoridades sanitárias. Em África,


os quase 2,4 milhões de óbitos fizeram da
doença território fértil para as cerimónias
religiosas de veneração dos deuses milenares.
À Índia, a joia da coroa britânica, o vírus
chegou por mar e espalhou-se através das
estradas e das linhas férreas. Os números re-
portados apontam para cerca de 18,5 milhões
de vítimas mortais, fazendo do país um dos
mais atingidos. Uma das maiores compa-
nhias de seguros da Índia reportou que «a
virulência da epidemia foi de tal ordem que
os pedidos de indemnização por morte mais
do que duplicaram».
A gripe pneumónica era de declaração
obrigatória em todos os territórios do Impé-
rio Britânico, o que permitiu maior rigor na
contagem dos mortos. Em Inglaterra, terão
UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA

sido 200 mil. Só em Londres, os óbitos de-


clarados em outubro de 1918 somaram 4500
por semana, com a capacidade dos hospitais
esgotada e sem os médicos saberem como
tratar os pacientes: tanto prescreviam álcool
e ópio, como quinino e aspirina, entre outras
receitas. Sempre sem resultados. No fim da
epidemia foi criado o Ministério da Saúde, inquietaram-se e exigiram respostas das muitas pessoas. O seu período de incubação
tendo a Inglaterra sido um dos primeiros autoridades em geral e da classe médica em era muito curto e as pessoas morriam em
países da Europa a fazê-lo. particular, tendo esta apostado no estudo e poucos dias, por vezes em plena rua.
preparação de vacinas. Tal como em França
O vírus desconhecido e Inglaterra, a esperança residia nas vacinas De Dacar para o Brasil
Em Espanha, um dos países mais atingidos, as mistas ou nas vacinas pneumocócicas puras O Brasil contou cerca de 180 mil óbitos
três vagas (primavera e outono de 1918 e início contra os vírus já conhecidos das anteriores causados pela epidemia. A doença foi dete-
de 1919) causaram 270 mil mortos. O país gripes sazonais. Quando muito, ajudavam a tada entre militares brasileiros estacionados
ficou à margem da I Guerra Mundial, mas a tratar as complicações broncopulmonares em Dacar, daí ter sido chamada «peste de
crise política, económica e social estava ins- da nova doença, conclui Maria Isabel Porras Dacar». Em setembro de 1918, o vírus seria
talada. As condições sanitárias da população Gallo, na comunicação «Uma vacina ‘espe- descoberto em solo brasileiro, julga-se que
eram muito deficientes, o que contribuiu para cífica’ para combater a gripe de 1918-19 em transportado por navios com destino ao
o avanço da doença. A primeira vaga causou Espanha». Nordeste e ao Rio de Janeiro. O Recife terá
inúmeros óbitos em Madrid, mas a segunda Mas este vírus era novo, distinguindo-se sido o primeiro porto afetado, com a chega-
foi a que mais matou no resto do território. do bacilo de Pfeiffer, causador de doenças da, a 15 de setembro, dos 562 passageiros
As medidas profiláticas passaram pelo iso- anteriores. Em maio de 1918, quando foram do Demerara, originário da cidade inglesa
lamento dos doentes, reforço da assistência conhecidos os primeiros casos em Madrid, de Liverpool com escalas em Lisboa e Da-
médica em casa e nos hospitais, criação de os cientistas não conseguiram chegar a um car. Das cinco mortes entre os passageiros,
cordões sanitários (um dos quais na fronteira consenso. A dúvida instalou-se entre os mé- apenas uma foi atribuída à gripe espanhola.
com Portugal), encerramento dos locais mais dicos, em nada contribuindo para travar a Da cidade pernambucana seguiu viagem
frequentados, desinfeção de pessoas, merca- propagação. Antes de serem determinadas para o Rio, onde a doença se fez notar no
dorias e espaços físicos, assim como pelo uso as características do vírus, a gripe espanhola espaço de pouco dias.
de máscaras no rosto. desapareceu ao fim de três vagas mortais. Pouco preparados, os serviços médicos
Tranquilizar a população era o objetivo O vírus, sabe-se agora, era o H1N1, altamen- brasileiros acreditavam estar a lidar com
principal, mas as medidas foram insuficien- te contagioso e capaz de se disseminar com «simples casos de gripe», considerados
tes para travar a epidemia. Os espanhóis grande rapidez em locais frequentados por «muito naturais no atual período do

38 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Protegidos Muitas atividades, como
ir ao barbeiro, passaram a ser
realizadas ao ar livre. Em Seattle,
Washington, como noutros pontos
dos EUA, era proibido andar de
transportes públicos sem máscara.
Em baixo, um varredor de ruas de
Nova Iorque

cidade morta e sem vida», onde «apenas a


tosse quebra o silêncio circunstante», segun-
do a descrição de um cronista da imprensa
carioca. Enquanto a cidade parecia suspen-
sa, as farmácias, os hospitais e os postos de
CRUZ VERMELHA AMERICANA

socorro atraíam pessoas em desespero. A


negação, e a seguir a impotência das autorida-
des sanitárias brasileiras só foi compensada,
em parte, pelo auxílio da sociedade civil às
vítimas da pneumónica. Confrontados com
a enormidade da tragédia da guerra, da fome
e da doença, muitos viam a gripe como o
ano». A 9 de outubro, o inspetor de saúde davam vazão aos enterros. Com os coveiros verdadeiro apocalipse, um castigo divino pela
do porto do Rio Grande, no Rio Grande também doentes, a prefeitura de São Paulo alegada falta de religiosidade e o materialis-
do Sul, informou que o paquete Itajubá aumentou os salários em cinco vezes para mo da sociedade brasileira.
se encontrava de quarentena com 38 tri- atrair substitutos. Um cemitério do Rio recor- O medo só passou com a descida de novos
pulantes contagiados pelo vírus da gripe, reu aos prisioneiros para cavar as sepulturas. casos de contágio no início de 1919, quan-
mas que este era «de caráter benigno». De O historiador Cláudio Bertolli Filho, autor da do até os blocos de Carnaval se atreveram
seguida, autorizou o desembarque sem História da Saúde Pública no Brasil, relatou a brincar com a epidemia do ano anterior,
isolar os passageiros que já apresentavam que «quando o serviço de transporte de ca- cantando versos como estes: «Durante o ano
sintomas da doença e sem ter ordenado dáveres deparava com um morto que já há passado/ ninguém do bloco comia/ tudo era
a desinfeção da embarcação. bastante tempo esperava sepultamento, fazia bem guardado/ pra fazer economia/ até que
Os próprios médicos questionavam se a um acordo com a família enlutada, deixando veio a espanhola/ vestida de epidemia/ de
maleita que tinha atacado em Dacar teria na residência um cadáver que expirara há facão e castanhola/ fazendo sua arrelia/ […]
sido causada pelo vírus da gripe espanhola, poucas horas, levando aquele ele que falecera Com as migalhas do povo/ muita gente entrou
«porque não mata desta maneira». O discur- há mais tempo». na linha/
linh levando só por um ovo/
so só mudou com os primeiros mortos em Depois do encerramento dos cafés e bares, o valo
valor de uma galinha/ […] Se
solo brasileiro, relata Anny Jackeline Torres o aspeto do Rio de Janeiro o era o de «uma é para
pa frente é que se anda/
Silveira, na comunicação «Uma crónica da vou seguir caminho reto/ Vou
influenza espanhola no Brasil». pedir a Dona Gripe/ que me
pe
E eis que, de repente, tudo se alterou. Na fo
forme por decreto/ Avan-
primeira quinzena de outubro, sumiram-se os Em Nova Iorque, te menino/ avante rapaz/
empregados nas lojas e nos serviços públicos, quem toma quinino/ não
q
encerraram-se escolas, cinemas, parques e
passou a ser anda para trás.» Em janei-
an
museus, suspenderam-se comboios e carros proibido espirrar, ro de 1920, era finalmente
elétricos e os preços dos bens essenciais en- criado o Departamento Na-
cri
traram numa espiral de subida. Os cadáveres
tossir ou cuspir cional de Saúde Pública no
ci
contavam-se às centenas e as funerárias não na rua Brasil.

VISÃO H I S T Ó R I A 39
EPIDEMIAS // 1918

Uma epidemia global


Num ano, em três vagas, aquele que viria
mais tarde a ser identificado como o vírus H1N1
deu a volta ao mundo. Calcula-se que terão
morrido entre 50 e 100 milhões de pessoas.
O retrato possível, a partir de uma revisão PAÍSES
BAIXOS
ISLÂNDIA
dos dados oficiais, que os investigadores 484 48 000
PAÍS/CONTINENTE
acreditam não registarem todas as mortes
NÚMERO DE VÍTIMAS
DO VÍRUS H1N1
EIRE ESCÓCIA INGLATERRA
18 367 33 700 E PAÍS DE GALES DINAMARCA
200 000 12 374

PORTUGAL ESPANHA
CANADÁ EUA 59 000 257 000
50 000 675 000
TOTAL EUROPA
2 375 000

MÉXICO
300 000
MAURITÂNIA
CARAÍBAS 12 000
CARAÍBAS BRITÂNICAS
1º VAGA MARÇO/ABRIL DE 1918 100 000 30 000 SENEGAL
Começa no centro dos EUA, espalha-se GÂMBIA 37 500
pela Europa, alastra à África do Norte GUATEMALA 7 800
e à Ásia, chega à Austrália em julho 48 000

2º VAGA COMEÇA EM AGOSTO 1918, a mais mortífera. GANA NIGÉRIA CAMARÕES


Vírus transportado pelas tropas norte-americanas 88 500 455 000 250 000
que viajaram do Norte de África para França. BRASIL
Estende-se da costa africana para o interior: setembro 180 000
está na África do Sul, novembro e dezembro está
em toda a Europa e tinha chegado à Ásia
e contaminado todas as Américas URUGUAI
2 050
3º VAGA INÍCIO DE 1919 CHILE
Espalhou-se através dos comboios e dos barcos. 35 000
Austrália – a doença chegou mais tarde,
só no início de 1919, e mais devagar, ARGENTINA RESTO DA
por causa de uma quarentena marítima 10 200 AMÉRICA
DO SUL
Escandinávia – em 1920, voltou. 100 000 TOTAL AMÉRICAS
a registar casos
1 514 000
FONTE Niall Philip, Alan Sean Johnson e Juergen Mueller,
in Updating the Accounts: Global Mortality of the 1918–1920
“Spanish” Influenza Pandemic, 2002

40 V I S Ã O H I S T Ó R I A
NORUEGA SUÉCIA FINLÂNDIA
14 600 34 370 18 000

CROÁCIA
109 000
SUÍÇA
23 277
TOTAL ÁSIA
36 000 000
ÁUSTRIA PRÚSSIA RÚSSIA
20 458 236 660 450 000

FRANÇA ALEMANHA
240 000 225 000 CHINA
9 500 000
HUNGRIA
100 000
ITÁLIA
390 000
MALTA
588 JAPÃO
TAIWAN 388 000
25 394
EGITO
AFEGANISTÃO
138 600
320 600
FILIPINAS
CONGO 93 686
BELGA
300 000 CEILÃO
91 600
QUÉNIA
SAMOA
150 000 INDONÉSIA OCIDENTAL
1 500 000 FIJI 8 500
9 000

BOTSWANA
7 000 ÍNDIA AUSTRÁLIA
14 528
18 500 000
TOTAL OCEÂNIA
ÁFRICA DO SUL
300 000
85 000

TOTAL ÁFRICA
2 375 000

INFOGRAFIA Álvaro Rosendo/VISÃO

VISÃO H I S T Ó R I A 41
EPIDEMIAS // 1918

Uma economia essenciais dispararam. A espiral inflacionista


só era comparável à dos países perdedores
do conflito, como a Alemanha, a Áustria e
a Hungria. O PIB recuou 11% entre 1914 e

doente
A catástrofe causada pela pneumónica apenas
1919 e o défice disparou para 8% ao ano, em
média. Nos meios urbanos faltava quase
tudo. Os assaltos a mercearias e armazéns
tornaram-se frequentes, mas nada se com-
terá sido superada pelas duas guerras mundiais parou à «revolução da batata», quando os
e pela Grande Depressão preços triplicaram num único dia, a 14 de
maio de 1917. Nas noites seguintes, Lisboa foi
por Clara Teixeira
assolada por uma onda de assaltos, distúrbios

U
e tiroteios da polícia. O estado de sítio foi
ma pandemia não traz nada de fez sentir-se em outubro de 1918, um mês proclamado e o governo da cidade entregue
bom, muito menos para a economia. antes da assinatura do Armistício que pôs ao comando militar.
A gripe pneumónica, que entre 1918 um ponto final no conflito bélico. A econo- Mas o pior ainda estava para vir, nos anos
e 1920 ceifou milhões de vidas huma- mia, já em recessão devido ao esforço militar, que se seguiram. A pneumónica surgiu em
nas, terá estado na origem do quarto afundou-se ainda mais. Por todo o lado havia maio de 1918, num país à beira da exaustão,
maior choque económico mundial miséria, fome, desemprego, racionamento causando muito mais mortos do que a Grande
desde 1870. Pior, só mesmo as mossas nos PIB de bens essenciais, açambarcamento e es- Guerra. A par com outras doenças, como o
causadas pela II Guerra Mundial, a Grande peculação de preços, contrabando, mercado tifo, a varíola e a tuberculose, terá vitimado
Depressão de 1929 e a I Guerra Mundial, esta negro, greves, motins e repressão. Animadas milhares de portugueses só em 1918. A pan-
última coincidente com o início do surto viral com o fim dos combates, só as bolsas não demia atingia essencialmente os mais jovens
da gripe pneumónica, também conhecido cederam ao medo, regressando rapidamente e mais aptos para trabalhar. Em 1920, a es-
como gripe espanhola. aos ganhos. perança de vida era de cerca de 35 anos para
Num estudo publicado em 2008 e atuali- Os efeitos da guerra não pouparam Por- os homens e de 36 anos para as mulheres.
zado em março último, para incluir os efei- tugal. Durante o conflito, os preços dos bens A economia continuava de rastos e não
tos potenciais da Covid-19, os economistas recuperaria antes do final da década. O cor-
Robert Barro, José Ursúa e Joanna Weng dão sanitário imposto pelos espanhóis jun-
hierarquizaram as maiores catástrofes da eco-
Impactos da pneumónica to à fronteira portuguesa, foco de contágio
nomia mundial a partir das quebras médias e da I Guerra inicial, impedia os trabalhadores agrícolas
superiores a 10% na produção ou no consu- de emigrar. O governo imprimia dinheiro
mo, durante um ou mais anos. De acordo Coincidentes no tempo, a pandemia descontroladamente, a inflação disparava e a
e a guerra tiveram efeitos diferentes
com esta análise, nos 43 países (incluindo moeda desvalorizava-se. As greves sucediam-
na economia
Portugal) onde foi possível recolher estatísti- -se, inspiradas pelos ventos de leste que tra-
cas, a pneumónica causou, entre 1918 e 1920, ziam notícias da revolução russa. Pararam os
quebras de 6% no PIB e de 8,1% no consumo, PNEUMÓNICA I GUERRA barbeiros, os padeiros, os funcionários públi-
valores que os autores do estudo comparam cos, os empregados dos correios e telégrafos,
PIB CONSUMO PIB CONSUMO
com os da crise financeira de 2008-2009. os condutores e guarda-freios dos elétricos,
Já a Grande Guerra provocou, entre 1914 e os ferroviários, os «almeidas» (homens da
1918, perdas de 8,4% no PIB e de 9,9% no recolha de lixo)... Uma crise política juntava-se
consumo. Mas o triste recorde pertence à assim a uma crise económica e sanitária.
Alemanha, que na fase final do III Reich e
imediatamente a seguir à II Guerra Mundial, Economia encolhe, salários
entre 1944 e 1946, sofreu um declínio no PIB -6% sobem
de 74% do seu valor. Estudar o impacto de acontecimentos como a
A gripe espanhola abateu-se sobre a hu- -8,1% -8,4% Grande Guerra e a pneumónica, na segunda
manidade quando a Grande Guerra, quase década do século passado, levanta sérias difi-
a terminar, deixava para trás um rasto de mi- -9,9% culdades aos economistas. É quase total a au-
lhões de mortos e uma economia em ruínas. sência de estatísticas sobre rendimento, tro-
A segunda – e mais mortal – vaga da doença FONTE Barro, Urzúa e Weng AR/VISÃO cas comerciais, emprego e salários. É através

42 V I S Ã O H I S T Ó R I A
GETTY IMAGES

Fábrica de cigarros na Florida, EUA, década de 1920 Em consequência da falta de mão-de-obra, os salários subiram

da leitura dos jornais da época que sabemos per capita nos EUA. Elizabeth Brainerd e participou no conflito. Karlsson, Nilsson
que nos Estados Unidos da América, um dos Mark V. Siegler, autores do estudo The Eco- e Pichler, autores de um estudo sobre os
países mais afetados em número de vítimas nomic Effects of the 1918 Influenza Epidemic, efeitos da gripe espanhola, concluíram
mortais (e onde terá começado o surto), o admitem, no entanto, que essa subida não que, apesar da neutralidade, a economia
vírus se mostrou mais letal nas cidades do que terá passado de um «regresso» aos valores sueca sofreu os danos colaterais do esforço
nos meios rurais. (Em Portugal terá sido ao anteriores à pandemia. Como a gripe vitimou de guerra de dois dos seus maiores par-
contrário, por falta de médicos no interior.) milhões de jovens adultos com idades entre ceiros comerciais, a Alemanha e a Rússia.
O comércio norte-americano, apesar de ter os 18 e os 40 anos, levando muitos negócios E a redução do número de trabalhadores,
sofrido quebras nas vendas para metade ou à falência por falta de braços, os anos a seguir tombados pelo vírus da gripe, não tor-
um terço, manteve as portas abertas. No pico ao choque foram de retoma. A escassez da nou mais produtivos os que sobreviveram
da epidemia, o caminho-de-ferro de Mem- força de trabalho resultou numa melhoria nem o rendimento per capita melhorou.
phis, no estado do Tennessee, viu-se obrigado (mesmo que temporária) nos salários reais, A pneumónica trouxe, sim, um aumen-
a funcionar com menos de dois terços dos embora esse benefício não tenha anulado to dos níveis de pobreza, já que muitas
seus 400 funcionários, e uma companhia te- os efeitos das perdas de vidas e da recessão famílias perderam os filhos mais jovens,
lefónica pediu aos clientes para restringirem o da economia. que eram o seu ganha-pão. «O retorno do
número de chamadas ao mínimo necessário, capital diminuiu, o desemprego disparou e
por falta de assistentes. Diversas minas nos O caso da Suécia o PIB diminuiu cerca de 5% num só ano»,
EUA, no Peru e no antigo Congo Belga fecha- A Suécia é um dos poucos países onde se afirma-se no estudo.
ram porque uma parte dos mineiros falecera. torna possível separar os efeitos económi- A recuperação, no entanto, «foi muito rá-
Enquanto muitos negócios encerravam por cos da pandemia dos da guerra, já que não pida». Em 1922, o PIB da Suécia cresceu 8%
falta de pessoal, outros profissionais ficavam e a economia manteve-se animada até ao
no desemprego porque aquilo que sabiam final da década. Mas, apesar destes sinais, as
fazer deixara de ter procura. sombras permaneceram. A pobreza tornou-se
Mas até uma ameaça mortal como a gripe Na Suécia, que não mais persistente, e a geração nascida durante
pneumónica pode ter um efeito «robusto» na
economia das nações. No início da década de
entrou na guerra, o PIB a pandemia conheceu níveis de educação
mais baixos, problemas de saúde e nunca
20, assistiu-se a um aumento do rendimento cresceu 8% em 1922 conseguiu ganhar salários muito altos.

VISÃO H I S T Ó R I A 43
PESTE NEGRA
A MÃE DE TODAS
AS EPIDEMIAS
Segundo os cálculos mais prudentes, a peste negra terá devastado
um terço da população europeia entre 1348 e 1351. Mas o balanço
pode ser ainda mais trágico. Da pior epidemia de sempre nasceria
uma sociedade nova
por Luís Almeida Martins

44 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Peste em Florença
A Itália foi duramente
atingida (miniatura
de 'Decameron',
de Bocaccio)

VISÃO H I S T Ó R I A 45
EPIDEMIAS // PESTE NEGRA

‘N
o mês de julho do ano da graça
de 1348, depois da festa de São
Bento, produziu-se um estranho
acontecimento: uma monstruosa
nuvem apareceu vinda do Leste,
uma nuvem avermelhada e ma-
ciça, carregada de ameaças, deslizando len-
tamente sob a limpidez do céu. […] A chuva
cessou finalmente e um doentio sol outonal
pôs-se a brilhar sobre a terra encharcada.
[…] Os campos cobriam-se de monstruosos
cogumelos de cores e tamanhos nunca vistos:
vermelhos alguns, arroxeados outros, negros,
brancos. Parecia que a terra doente se cobrira
de pústulas; o musgo e o líquen maculavam
os muros e a Morte brotava da terra alagada.
Morriam os homens, morriam as mulheres e
as crianças, morria o barão no seu castelo, o
agricultor na sua quinta, o monge no seu con- Legenda arranque Legenda texto Obis il ipit
qui is ut queSimusam
vento e o servo da gleba na sua choupana. […]
Durante o inverno os cadáveres foram apodre-
cendo nas bermas dos caminhos, porque não
havia quem os enterrasse. Em muitas aldeias
não sobrou vivalma. E chegou finalmente a
primavera, trazendo o sol, a saúde e o riso, a
primavera mais verde, mais doce e mais terna
de todas. Mas só metade das pessoas pôde go-
zar-se dela, pois a outra metade desaparecera
com a grande nuvem púrpura.» calamidade foi-se abatendo gradualmente de combater: a «peste», como se chamava
Propõe-se o desvendar de um mistério: sobre a Europa durante meia dúzia de anos, a a todas as doenças transmissíveis, nas suas
quem é o autor deste texto sobre o maior partir de 1347 ou 1348, e Portugal não escapou várias modalidades. No verão o cheiro das
dos flagelos não provocados direta e inten- ao pesadelo. Crê-se que um terço da população ruas tornava-se insuportável. O historiador
cionalmente pelo bicho homem que alguma europeia terá morrido. francês Albert Malet conta que o rei Filipe
vez assolaram a Europa. Disse Conan Doyle? À época, a sujidade das ruas favorecia o Augusto certa vez desmaiou quando estava à
Elementar, meu caro Leitor. Trata-se (em tra- aparecimento, a transmissão e o rápido de- janela do Louvre, devido às exalações de uma
dução livre) de um trecho do romance histórico senvolvimento das epidemias – fosse esta ou poça de água fétida agitada pela passagem
Sir Nigel, do criador de Sherlock Holmes, cuja outras. No inverno tiritava-se de frio junto de uma carroça…
ação decorre na Inglaterra do século XIV, no das lareiras e corria-se o risco de morrer Às infeções provocadas pelas águas para-
início da Guerra dos Cem Anos. Mas estes pa- queimado num incêndio, mas mal o tem- das juntavam-se as que tinham origem nos
rágrafos referem-se a o outra tragédia que não po começava a aquecer o perigo era outro, cemitérios. Os «campos santos» situavam-se
a da guerra, e afinal bem maior – à peste negra. eventualmente ainda mais sinistro e difícil no meio das cidades, geralmente no adro das

Um cheiro que faz desmaiar


A versão é literária e romantizada, mas trans-
mite a forma como a epidemia era vista pelas O povo tentava aplacar a cólera
vítimas, ignorantes de que os transmissores da
doença eram – como depois se pensou durante
celestial organizando procissões
muito tempo – as ratazanas e, mais provavel- em que as pessoas se flagelavam
mente, os piolhos e as pulgas. As pessoas mor-
riam em poucos dias com inchaços debaixo dos
mutuamente, os chamados
braços, no meio dos maiores sofrimentos. Esta «cortejos dos flagelantes»
46 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Tournai, atual Bélgica, 1349
A construção de caixões para enterrar
as vítimas, numa miniatura
de Gilles de Muisit

Cem dias de histórias


A célebre obra Decameron, de Bocaccio, tem como ponto de partida
o flagelo da peste negra. Para escapar ao contágio, um grupo de
aristocratas florentinos de ambos os sexos entra em quarentena
isolando-se do mundo num palácio rural da Toscana. Para entreter
a monótona passagem dos dias, entretêm-se a organizar sessões
em que cada um vai contando um conto e, claro, acrescentando
um ponto. No total, são cem histórias, que marcam a transição da
literatura piedosa medieval para o realismo.
Alguns extratos da Introdução: (A peste, em Florença) «não foi
como no Oriente, onde a saída de sangue pelo nariz era sinal de
morte inevitável». «Apareciam no início, tanto em homens como
em mulheres, nas virilhas ou nas axilas, uns inchaços a que o povo
chamava bubões» (Daí o nome de peste bubónica). «Depois o aspeto
da doença começou a alterar-se. Apareciam manchas escuras ou
pálidas nos doentes. Nuns casos grandes e espalhadas, noutros
pequenas e abundantes.»
Toda a gente já viu gravuras representando os «médicos da peste»,
com um grande chapéu, rosto tapado e um longo bico semelhante
ao das aves pernaltas. Aquele bico era uma espécie de máscara
antigás: estava cheio de substâncias balsâmicas destinadas a
purificar o ar que respiravam. Mas ao contrário da ideia feita, este
equipamento não é do tempo da Peste Negra, mas sim bastante
posterior, pois foi usado sobretudo no século XVII.

igrejas, e não possuíam sequer um muro a com luz artificial, devido aos riscos de manter muito tempo a eclosão da peste negra a um tipo
separá-los da rua. Circulava-se neles como o fogo aceso durante a noite, pelo que era de ratazana oriunda da Ásia e trazida, segundo
numa praça pública e era até frequente ha- obrigatório apagar as lareiras (talvez à exce- uns, a bordo dos navios de carga provenientes
ver bancas de vendedores entre as campas. ção de umas brasas que permanecessem sob a do mar Negro, segundo outros, pelas hordas
Quando as epidemias – a tal peste – se aba- cinza, para se poder cozinhar logo de manhã, de invasores mongóis que desde o tempo de
tiam sobre as cidades, os habitantes morriam num tempo em que não havia fósforos) e daí Gengis Khan se deslocavam para Ocidente.
aos milhares, eram enterrados apressada- a expressão francesa couvre-feu ou a inglesa Um estudo levado a cabo por investigadores
mente nesses mesmos cemitérios onde se curfew, que em português não encontram da universidade norueguesa de Oslo e da sua
passeava e fazia compras. correspondência direta mas que costumamos congénere italiana de Ferrara, apresentado em
A própria estrutura física das cidades favo- traduzir por toque de recolher. Mas apesar 2018, absolve porém os ratos do seu papel de
recia o alastrar da peste. As casas amontoa- destas medidas de prudência as catástrofes vilões desta história, fazendo incidir as culpas
vam-se em ruelas estreitas e superpovoadas. eram frequentes – uma fonte francesa regista, da propagação do mal aos piolhos e às pulgas
Se, por exemplo, numa delas eclodia um por exemplo, que em 25 anos, entre 1200 e que parasitam o ser humano. Para chegar a
incêndio era inevitável que as chamas se 1225, a cidade de Ruão, na Normandia, ardeu estas conclusões, basearam-se os investigadores
propagassem a todo o bairro, quando não ao nada menos que seis vezes. em diversos factos, como o de a propagação
burgo inteiro. Como não existiam bombas de A vida é uma permanente aventura e viver da doença através de ratos não poder ter sido
pressão de água, nem sequer corpos organi- na Idade Média era viver perigosamente. tão rápida como na realidade foi, o de não se
zados de algo equivalente a bombeiros, no A Peste Negra de 1348-1351 foi, de qual- registar grande mortandade entre os roedores
combate ao fogo os habitantes limitavam-se quer modo, a mais traumática das expe- e o de estes não verem reunidas as condições
a ir passando baldes de água de mão em mão, riências coletivas da época, com reflexos de sobrevivência em climas tão frios como a
com uma eficácia quase nula relativamente nos modelos de relacionamento humano Escandinávia, onde a peste negra fez no entanto
ao objetivo pretendido. pelos séculos fora. numerosas vítimas humanas.
Geralmente não era permitido trabalhar A comunidade científica atribuiu durante Independentemente do agente transmis-

VISÃO H I S T Ó R I A 47
EPIDEMIAS // PESTE NEGRA

sor, foram provavelmente os navegadores Escócia e a Escandinávia e os países bálti- O ‘pico’ em Itália e na Flandres
genoveses que trouxeram para a Europa cos – as tais regiões onde as ratazanas não É impossível estabelecer com rigor o número
Ocidental a doença a partir da sua colónia poderiam sobreviver. A origem chinesa do de vítimas em cada local por onde a epidemia
de Caffa, na Crimeia, então cercada pelos mal parece ficar confirmada pela narrativa ia passando. Os cronistas medievais, natural-
mongóis. Esta ideia é defendida pelo his- das viagens do marroquino Ibn Battuta, que mente impressionados pela mortandade e a
toriador francês Yves Renouard, mas já se- esteve no Império do Meio entre 1342 e desolação reinantes, referem-se à peste negra
gundo o historiador e economista vitoriano 1342 e, de regresso à sua Tânger natal, des- em termos superlativos, sobre os quais talvez
Thorold Rogers a epidemia teria vindo em creveu a tragédia que por lá testemunhara. seja prudente refletir. Mesmo assim, estima-se,
1347 do Extremo Oriente, provavelmente da Há ainda quem defenda terem sido os cru- fazendo a conta por defeito, que um terço dos
China, começando, no Ocidente, por atingir zados que, no regresso da Terra Santa, trouxe- europeus terá sido vitimado pelo flagelo.
a ilha de Chipre e depois, progressivamen- ram a doença com eles, teoria esta hoje mais Foi nas cidades que ocorreu o maior nú-
te, já em 1348, as costas mediterrânicas afastada. Mas é inegável que entrou por via mero de mortes, dadas as condições de pro-
vizinhas, a Itália, a Córsega, o Magrebe, a marítima, e assim sendo a sua propagação ia-se miscuidade e de superpovoamento. A Itália
Península Ibérica, a França, a Alemanha, fazendo do litoral para o interior, ao longo das foi duramente atingida, nomeadamente as
a Suíça, a Áustria, a Hungria, a Flandres e rotas comerciais de penetração, fossem elas cidades-estado de Florença (ver caixa sobre
a Inglaterra. Em 1350 alcançou mesmo a rios ou estradas. o Decameron), Siena, Pisa, Veneza e Milão.
Os centos urbanos da Flandres, como Gand
ou Ypres, ostentaram igualmente cenários de
São Roque, o milagreiro pesadelo. Os conventos e outros centros de
vida comunitária destas regiões também ofe-
Costuma ser representado com um bastão milagrosamente, Roque conseguiu receram campo favorável à rápida propagação
de peregrino, uma ferida na perna e um regressar a Montpellier. do mal. A partir de diversos dados cruzados,
cão aos pés. São Roque, que no «panteão» E aqui entramos simultaneamente na
católico ocupa o lugar de padroeiro dos história de aventuras e no melodrama. estima-se que, quer em Itália quer na Flan-
inválidos e dos cirurgiões, é invocado pelos A cidade estava em guerra civil dres, a mortandade terá ceifado entre 40% e
crentes contra as pestes e as epidemias em e Roque foi tomado por espião e 60% da população. O que é verdadeiramente
geral. encarcerado. Segundo algumas
assombroso.
Na vida real, Roque – no original, Roch versões, o governador era seu tio
– nasceu no seio de uma família de materno, mas não o reconheceu nem Compreensivelmente, na Península Ibé-
comerciantes abastados de Montpellier, no ele se identificou. Resultado: ficou a rica as regiões
regiõ mais atingidas foram aquelas
sul de França, à roda de 1350, e faleceu na «apodrecer» na cela, em sofrimento e onde se efetuavam
efe mais trocas comerciais –
mesma cidade com apenas 28 anos. Entre oração. Narra a devoção popular que um
na altura, a Catalunha e a Andaluzia. Já em
estes dois acontecimentos fundamentais, dia o carcereiro, que era coxo, deparou
ficou órfão, doou os bens familiares e partiu com o corpo de Roque França, foram
fora os grandes portos de Marselha
em peregrinação a Roma sem um tostão aparentemente sem vida. e Bordéus queq mais sofreram com o flagelo –
no bolso. No caminho, atravessou cidades Ao tocar-lhe numa perna além de Paris,
Par onde a concentração humana
flageladas pelas então recorrentes para verificar se estava de
grandes epidemias (embora o «pico» facto morto, curou-se ele
era muito eelevada.
da peste negra já tivesse então próprio milagrosamente, Mas a população
po rural também sofreu um
passado) e prestou auxílio a doentes, deixando de coxear. A abalo. Como deduzimos da leitura do
grande abal
protagonizando então, segundo se notícia espalhou-se e o sugestivo (a(ainda que subjetivo) texto de Co-
conta, algumas curas milagrosas. cadáver (porque Roque
Já no regresso da Cidade Eterna morrera de facto) acabou por nan Doyle, em certos locais de Inglaterra a
à sua terra natal, foi, ele próprio, ser identificado pela família, mortandade foi avassaladora, da ordem dos
mortandad
atacado pela peste, o que o graças a um sinal em forma 60% a 70% da população. Só na Universidade
decidiu a isolar-se numa floresta de cruz que teria no peito. de Oxford, morreram em 1348 dois terços
perto de Placência, para não Não se conhece a data da
contaminar outras pessoas canonização de Roque, que dos estudantes.
estudan E o texto de um pergaminho
e não incomodar ninguém terá sido de natureza mais informa-nos que num convento do Yorkshire
informa-no
com os seus lamentos. É popular do que propriamente faleceram 4 40 dos 50 monges residentes. Os
aqui que entra em cena um oficializada pela Igreja romana,
eclesiásticos foram uma classe especialmente
cão, que diariamente lhe leva mas no século XV era já
mantimentos. Um dia, o dono do grande o seu culto por toda a atingida, vi
visto estarem em contacto perma-
cão, homem abastado mas pouco Cristandade. São Roque teve nente com os moribundos a quem davam a
virtuoso, segue o animal, vem a templos erigidos praticamente extrema-unção. Outros documentos ingleses
extrema-un
conhecer Roque e é induzido em todas as grandes cidades
mostram-nos que em 1349 foram lavrados
mostram-n
por este a emendar a sua europeias; o de Lisboa, com uma
conduta. rica decoração interior, data da neste país 151 vezes mais testamentos do que
Curado (decerto) segunda metade do século XVI. em anos nonormais. Os ingleses são, aliás, mui-

48 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Uma «loucura» coletiva apoderou-se das
gentes. O povo tentava aplacar a cólera celestial
organizando grandes procissões em que as
pessoas se chicoteavam mutuamente, e por
isso se lhes chamava Cortejos dos Flagelantes.
É que a única explicação para o que estava a
passar-se só poderia ser o castigo divino… Não
tardou, contudo, que entre os ditos flagelantes
se infiltrasse a escumalha, que aproveitava
a ocasião para efetuar rapinas. Além disso,
mulheres e homens desfilavam nus, ou quase,
o que fez que estas manifestações incorressem
na má vontade da Igreja, acabando por ser
proibidas pelo Papa no outono de 1349.
Como seria de esperar atendendo ao con-
texto, os menos tolerantes – e raras eram as
pessoas tolerantes num mundo dogmático
– atribuíam a «culpa» do sucedido aos ju-
deus, que acusavam de envenenarem os poços.
Pretexto renovado, pois, para um redobrar
de intensidade dos recorrentes e interminá-
veis pogroms, essas perseguições movidas aos
membros da etnia coletivamente acusada de
ter entregado à morte Jesus Cristo (e cuja elite
detinha a maioria do capital financeiro). Os ju-
deus, originários do Próximo Oriente, tinham
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vindo em números significativos para Europa


acompanhando na qualidade de mercadores
e de «fornecedores de serviços» os exércitos
Revoltas camponesas em França As Jacqueries foram a resposta aos trabalhos forçados árabes, quando estes se lançaram, no século
VIII, à conquista do Ocidente. Desde então,
to pródigos em documentação coeva acerca oito foi atingido. Porém, quase nenhum ponto serviam de bode expiatório para tudo o que de
do flagelo. Num documento citado por H.G. escapou à peste negra, à exceção da Polónia, mal acontecia… até um passado ainda recente,
Wells na sua História Universal lê-se que, onde os seus efeitos pouco se fizeram sentir. quando Hitler foi senhor da Alemanha e de
devido à escassez de braços para o trabalho, Se é hoje possível fazer um balanço, ter-se-ão grande parte da Europa.
«os carneiros e o gado erravam pelos campos perdido no mínimo 25 milhões de vidas, mas
de cultivo, sem que tenha ficado vivo ninguém há quem fale do triplo. Na ausência de dados Um novo mundo
para tratar deles». demográficos rigorosos, fiquemo-nos pelo Por mais tremenda que tenha sido, a peste
balanço dos efeitos das perdas, e este aponta negra favoreceu no entanto o surgimento de
Flagelantes e ‘pogroms’ efetivamente para, no mínimo, um terço do um novo tecido de relações sociais. Sabendo-se
É o já referido Yves Renouard que (num texto total de vidas humanas. que as sociedades evoluem de qualquer forma,
publicado numa revista académica francesa encontrando sempre pontos de apoio para
em 1948 e citado no Dicionário de História firmar as suas alavancas, o ponto de apoio para
de Portugal dirigido por Joel Serrão) faz um A Peste Negra foi o desencadear das crises europeias da segunda
balanço geral das perdas humanas na Europa, metade do século XIV foi, efetivamente, a
estabelecendo uma cifra que oscila, consoan-
o ponto de partida grande epidemia. Há mesmo historiadores
te as regiões, entre dois terços e um oitavo das crises europeias que a apontam como linha de fronteira entre
da população. Significa isto que locais houve a Idade Média e a Idade Moderna, embora a
em que a grande maioria das pessoas não
da segunda metade divisória mais consagrada e aceite seja a da
sobreviveu e outros em que «apenas» um em do século XIV expansão europeia, designadamente as viagens

VISÃO H I S T Ó R I A 49
EPIDEMIAS // PESTE NEGRA

de Cristóvão Colombo e Vasco da Gama, que


abririam a Europa a novas possibilidades de
O alastrar da mancha 1347
relações comerciais e culturais. Este mapa da Europa mostra 1348
de uma forma aproximativa,
Mas que novidades foram essas? Basica- 1349
o avanço da Peste Negra,
mente, o dobre de finados do feudalismo ou num movimento de oriente 1350
da sua versão ibérica mais branda, que foi para ocidente e,
o regime senhorial (em que os nobres não depois, para norte 1351
deixavam de se comportar, dentro de certos 1352
limites, como vassalos do rei). Ora bem, as ÁREAS NÃO AFETADAS
relações entre senhor terratenente e servo,
DADOS INEXISTENTES
assentes na servidão da gleba e no trabalho
não remunerado, sofreriam uma reviravolta
quando a escassez de mão-de-obra motivada
pela pandemia obrigou o amo a pensar duas
vezes antes de mandar chicotear o trabalhador
menos submisso. Manda a prudência que não
se trate mal a mão que nos alimenta, e era o
servo que amanhava as terras e desempenhava
as outras tarefas de sobrevivência (à exceção
da caça, privilégio e autêntica «loucura» da
nobreza).
MT/AR/VISÃO
Foi deste estado de emergência, ou mesmo de
aflição, que brotaram as grandes revoltas cam-
ponesas. Escasseava a força de trabalho e havia esfomeadas. Foi da boca do inglês John Ball classe começou a ganhar peso social: a dos
penúria de géneros, mas os donos das terras, que então se ouviu o que podemos considerar plebeus endinheirados, habitantes das cidades,
fossem eles nobres ou religiosos, eram demasia- a primeira declaração de igualdade de direitos ou seja, dos burgos, de onde a designação de
do ignorantes para fazerem uma leitura lúcida humanos. Na Europa Central, o movimento burgueses. Perguntar-se-á: e esses burgueses
do que estava a passar-se. Por isso, vendo as suas hussita (do nome do seu líder, o checo Jan não foram atingidos pela peste negra? Claro
terras votadas ao abandono, engendraram leis Huss, precursor do protestantismo e man- que sim. Por isso mesmo, os elementos dela
muito violentas, que por um lado compeliam os dado queimar vivo pela Igreja) preconizava que sobreviveram ficaram mais ricos, graças
jornaleiros ao trabalho forçado sem qualquer o regresso à forma de vida comunitária do ao número elevado de óbitos familiares e aos
aumento de salário ou outra compensação e, Cristianismo primitivo. testamentos feitos em seu favor.
por outro, os impediam de ir procurar outro Paralelamante, importa reter que, com o de- Depois da grande investida da peste negra,
modo de vida. Como é natural, o sentimento de saparecimento de grande parte da população, para atrair os assalariados rurais, cada vez em
revolta dos camponeses traduziu-se em motins eclipsou-se também um enorme número de menor número, os proprietários de terras abri-
violentos. Em França, eclodiram as chamadas pobres. Significa isto que, por um lado, a mão- ram-se a concessões, reduzindo o peso das rendas
Jacqueries, levantamentos espontâneos das -de-obra passou a escassear e, por outro, que as e permitindo alugueres a longo prazo. Na prática,
camadas mais pobres da sociedade, que assal- classes ficaram economicamente mais nivela- o camponês torna-se o verdadeiro dono da terra
tavam os castelos por meio de autênticas ma- das. A velha nobreza ressentiu-se, e uma nova que amanha, enquanto à nobreza não resta gran-
nobras de cerco e pilhavam os bens dos nobres de alternativa que não seja solicitar os favores
e dos conventos. Na Alemanha, estes motins da corte centralizada. Assim se podem explicar
deixaram um rasto de sangue. Foi por esta altura também o desaparecimento do feudalismo de
Foi também por esta altura que começaram além-Pirenéus e do regime senhorial ibérico, e
a fazer-se ouvir os primeiros profetas de algo
que começaram o concomitante fortalecimento do poder real,
que poderemos designar já por comunismo. a fazer-se ouvir característico do período final da Idade Média,
Num mundo profundamente religioso, as rea- já prenunciador da Idade Moderna. E tudo terá
lidades do dia-a-dia eram facilmente transpos-
os primeiros profetas ficado a dever-se à peste negra? Não sejamos tão
tas para a esfera espiritual, e assim nasceram de algo que poderemos redutores, mas que a epidemia terá contribuído
correntes de pensamento de base mística, bastante para isso é inegável.
derivando para seitas em que pontificaram
designar já por
oradores escutados com fervor pelas massas «comunismo» Versão atualizada de um texto publicado originalmente
na VISÃO História nº 40

50 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Mosteiro de Alcobaça
Os efeitos da epidemia
fizeram-se sentir tanto
na comunidade como
entre os seus foreiros

que, por norma, seria inicialmente urbano.


Depois de algumas semanas de letargia, coin-
cidentes com a contaminação das colónias
de ratos da área, a mortalidade dos roedores
libertaria uma enorme quantidade de pulgas
infetadas, sedentas de uma alternativa aos
seus hospedeiros habituais. No horizonte,
de forma quase acidental, o homem torna-
va-se o seu pasto. Assim, como pedradas no
charco, as ondas de peste espalhar-se-iam,
entrecruzando-se e sobrepondo-se, o que,

MARCOS BORGA
numa certa área, levaria a uma propagação
generalizada.

Três meses de devastação

A peste negra
Algumas fontes referem que a peste durou
três meses, mas estes cerca de 90 dias de-
verão corresponder apenas ao período mais

em Portugal
intenso da epidemia. No Norte, o período
mais devastador terá sido entre outubro de
1348 e janeiro de 1349, altura em que a do-
cumentação praticamente cessa e os poucos
A epidemia terá chegado no verão de 1348 testemunhos dão conta, por exemplo, do
e abalou o País até fevereiro do ano seguinte. desaparecimento de tabeliães, o que impedia
O Norte e o Centro foram as zonas mais afetadas a produção de (entre outros documentos)
testamentos com pública fé. O arcebispo
por André F. Oliveira da Silva* de Braga, D. Gonçalo Pereira, troca corres-

D
pondência com a Santa Sé de Avinhão, pro-
epois de ter entrado na Europa em A ecologia da peste confere-lhe uma capa- curando desesperadamente ir suprindo as
1347, a Peste Negra chegou a Portugal cidade de propagação difícil de visualizar. A mortes do clero diocesano, até à sua própria
no ano seguinte, em 1348. Tradicio- contaminação poderia ser feita em distân- morte, provavelmente vítima do flagelo, no
nalmente, e com base nos anais do Li- cias médias e longas – imagina-se, do Porto início de 1349.
vro da Noa, do Mosteiro de Santa Cruz para Guimarães –, espalhando-se depois No Centro, os meses de maior impacto te-
de Coimbra, situa-se essa ocorrência radialmente a partir do foco de propagação rão coincidido com os do Norte, e Coimbra
no dia de São Miguel (29 de setembro), mas
tudo aponta para uma contaminação anterior,
provavelmente no início do verão. Mais cor- DA COSTA PARA O INTERIOR
retamente, a peste deve ter chegado em vagas A epidemia terá sido mais intensa durante três meses.
e através de vários meios. Por barco, com os O Norte e o Centro foram as zonas mais afetadas
portos do Porto, Lisboa, Setúbal e Algarve
como os candidatos mais bem posicionados;
por terra, através dos eixos de comunicação Coimbra foi o epicentro
com a Galiza – sobretudo através da passagem O período mais da epidemia nesta região
Valença-Tui, coincidente com o Caminho de devastador registou-se
Santiago, e com a fronteira de Chaves. Já no
entre outubro de 1348 ELVAS
Sul, é possível que tenha sido o lado português A epidemia não teve
a transmitir ao castelhano.
e janeiro de 1349
tanto impacto e terá
A propagação ter-se-á feito sobretudo da chegado mais tarde
costa para o interior, com o exército de pul- ao sul do País.
gas vetores e ratos hospedeiros a circular Elvas foi afetada
entre terras, a bordo de cargas e mercadorias. só no início de 1349 AR/VISÃO

VISÃO H I S T Ó R I A 51
EPIDEMIAS // PESTE NEGRA

parece ser o epicentro de uma das zonas mais Mosteiro


devastadas. Além do já referido Livro da Noa, do Lorvão
Um dos locais
sabemos que morreram todos os raçoeiros da mais afetados:
igreja de São Pedro da Almedina, de Coim- grande parte
bra, e que, perto da cidade, o mosteiro cis- da sua gente
terciense feminino do Lorvão foi gravemente morreu
afetado, com uma parte significativa da sua
comunidade a perecer. A poderosa abadia de
Alcobaça também terá sentido os efeitos da
epidemia, tanto na comunidade como entre
os seus foreiros.
No Sul, provavelmente pela sua demogra-
fia – já então bem menos densa do que no
D:R:

território a norte do Tejo –, talvez devido às


suas características ambientais, não é tão evi-
dente um impacto massivo da epidemia, ainda abadessa do mosteiro de Vairão. Na família
que a sua passagem esteja inequivocamente Outras epidemias real portuguesa houve uma vítima: a infanta
documentada. Tudo indica que a cronologia O território que hoje é Portugal foi, D. Leonor, rainha de Aragão por casamen-
por certo, vítima de epidemias antes
é ligeiramente mais tardia. As referências to com Pedro IV, o Cerimonioso, morreu de
da Peste Negra, mas a parcimónia
sugerem, por exemplo, que Elvas terá sido das fontes e a escassa investigação peste na cidade valenciana de Jérica, a 29 de
afetada sobretudo no início de 1349. O cenário do tema permitem adiantar pouco outubro de 1348, aos 20 anos, apenas um ano
geral, porém, mantém-se: autoridades ecle- mais do que hipóteses. após desembarcar em Barcelona.
Se a primeira pandemia de peste
siásticas e Coroa procuram dar resposta nos Os sinais de reorganização surgem logo
(c.541- c.750) atingiu o ocidente
seus raios de ação, a documentação escasseia peninsular, como o fez na costa em fevereiro de 1349, mas é difícil falar de
e abundam silêncios. mediterrânica ibérica, não foi ainda recuperação. Muitas instituições do Norte
encontrada qualquer prova. Há são obrigadas a baixar as rendas dos seus
também referências esparsas a
Número incerto de mortos estes males no reinado de
bens. Procuram rapidamente garantir que
Não há como saber quantas pessoas morre- D. Sancho I, de 1185 a 1211. pelo menos uma parte do rendimento ante-
ram da doença em Portugal. As estimativas A Crónica de Portugal de 1419 rior seja garantida, mas há quedas que vão
que costumam ser invocadas correspondem refere, dois séculos após os eventos, dos 25 aos 90 por cento. Outras instituições
uma epidemia na Terra de Santa
a aproximações, tão cómodas quanto vagas, Maria (a atual área de Santa Maria parecem simplesmente paralisadas durante
e muitas vezes pouco fundamentadas. Temos da Feira) e uma dor terrível, que anos. No Sul, o cenário é um pouco diferente.
o clássico «um terço da população», ainda parecia fazer os corpos dos doentes Se a quebra dos rendimentos não parece tão
arderem por dentro, antes de
que, quando a documentação permite apro- evidente, a tentativa de substituir rapida-
morrerem, na área de Braga. Se se
ximações menos especulativas, a cifra pareça trata de um flagelo epidémico ou de mente os foreiros (mortos pela peste?) nas
ser bem mais alta em muitas paragens euro- uma construção literária é algo que, suas terras produz um assinalável número de
peias. Em Portugal, por ora, limitamo-nos por ora, permanece em aberto. novos contratos nos três anos após o flagelo.
a uma aproximação qualitativa – e parece Há muitas coisas que não aconteceram
que, dependendo da localização, houve uma em Portugal, ou assim parece: não temos
mortalidade assinalável, refletida numa de- perseguições a judeus, transformados nor-
sorganização socioeconómica e na paralisação malmente em bodes expiatórios. Não terá
de alguns ofícios. Na família real havido flagelantes como noutros países, nem
Podemos, por outro lado, referir algumas heterodoxias milenaristas. Não houve uma
mortes, provocadas pela peste ou coincidindo
portuguesa houve proliferação de representações da morte e da
com ela no tempo, o que as torna suspeitas: uma vítima: a infanta danse macabre. Mas são inequívocos os sinais
o já referido arcebispo de Braga, D. Gonçalo de que a Peste Negra provocou uma desorga-
Pereira, mas também os bispos de Lamego
D. Leonor, rainha de nização generalizada e de que a recuperação
e Viseu, frei Salvador Martins e D. João. No Aragão por casamento socioeconómica conduziu a uma realidade
clero regular, por exemplo, terão morrido os diferente da anterior.
priores dos mosteiros da Junqueira, de Mo-
com Pedro IV,
reira da Maia e de Vila Boa do Bispo, além da o Cerimonioso * André F. Oliveira da Silva é bolseiro da FCT e
investigador nas Universidades do Porto e de Évora

52 V I S Ã O H I S T Ó R I A
EPIDEMIAS // 1569

O outro terramoto
Em 1569, a grande peste que se abateu sobre Lisboa
Os espanhóis chegam à capital portuguesa
no início de agosto, quando morriam cerca
de 600 pessoas por dia. «Corria-se toda a
cidade e muitas vezes não se topava em toda
ela cinco pessoas vivas e sãs», lê-se no Memo-
chegou a matar 600 pessoas por dia. Para a combater, rial de Pedro Rodrigues Soares. Os doentes
D. Sebastião mandou vir dois médicos de Sevilha morriam de «inchaços», outros de «mortes

Q
muito apressadas, estando a falar uns com os
uando começaram a correr notí- medo na gente», explicava o padre jesuíta Dio- outros» e havia ainda quem se deitasse de boa
cias sobre uma nova mortanda- go de Carvalho numa carta enviada ao Colégio saúde e de manhã fosse encontrado morto.
de em Lisboa, em maio de 1569, de Coimbra. Era o terror de um terramoto, que Os corpos eram enterrados nas praças pú-
D. Sebastião, então com 15 anos de se dizia que a 13 de julho destruiria a cidade: blicas, como o Largo da Graça, e em valas
idade, convocou uma junta médica o monte do Castelo juntar-se-ia ao do Bairro comuns, abertas em praias, trabalho feito
para averiguar se o mal era ou não Alto e a Almada, e o Tejo inundaria as ruas e por presos e forcados das galés em troca de
peste. Os físicos mais novos defenderam que praças. Apavoradas, as pessoas tinham fugido. liberdade, à falta de cangalheiros.
os bubões que apareciam nas pessoas se de- «A gente saiu, sete e oito léguas de redor da Houve ordem para abater os animais va-
viam ao facto de o inverno ter sido longo e cidade, e porque não havia casas se punham dios, que andavam de casa em casa atraídos
chuvoso, mas os mais velhos, que conheciam pelos campos ao pé das oliveiras, e como não pelos cheiros putrefactos e transmitindo a
a epidemia que viveram 30 anos antes, não havia água, nem iam providos de comer bas- doença, pagando-se a quem o fizesse.
tiveram dúvidas: era peste, sim senhor. tante, dão-nos por novas que morrem por lá No início de setembro, está impresso o
Pelo São João, morriam na capital entre 50 com fome e sede», continua o relato do padre. manual sanitário elaborado pelos médicos
e 60 pessoas por dia. D. Sebastião, recolhido «As ruas estão desertas.» espanhóis em colaboração com os portu-
A chegada
gueses. Recopilação das coisas que convém
da peste de guardar-se no modo de preservar a cidade
1569 a Lisboa de Lisboa e os sãos, e criar os que estiverem
Representação enfermos de peste segue as medidas de limpeza
do livro Fundação
do Mosteiro preconizadas desde o século XIV: fogueiras
do Salvador nas ruas de manhã e ao início da noite, com
da Cidade madeiras e ramos de cedro, cipreste, oliveira,
de Lisboa, zimbro e alecrim; casas lavadas com água
de Soror Maria
Batista e vinagre e perfumadas com rosas; ferver e
purificar as águas dos poços com canela, erva
BIBLIOTECA NACIONAL DE PORTUGAL

doce ou cravo, no inverno, e com azedas ou


vinagre no verão; não usar roupa de pregas
nas visitas aos doentes, porque o ar infetado
fica dentro delas.
Os doentes tratam-se com sangrias, sua-
douros e purgantes. Mas não só. Nos incha-
ços, recomendava-se colocar cebolas assadas
com azeite de açucenas – e quanto maior a
na Penha Longa, em Sintra, desde o mês an- Mas a fome faria o seu caminho – e o povo dor, mais assada devia estar a cebola. Ou
terior, atribuía a peste ao facto de Lisboa ser voltaria à cidade, aumentando o número de depenar um galo vivo, polvilhá-lo com sal
ingrata com São Sebastião: a cidade não lhe mortos. moído e colocá-lo no bubão.
tinha sabido agradecer a proteção que o santo No Natal, a epidemia parecia debelada, mas
lhe dera nos últimos 40 anos. E manda cons- Galos nos bubões Lisboa demoraria a retomar o seu quotidiano.
truir um templo a São Sebastião na Mouraria, D. Sebastião, entretanto refugiado em Óbidos, As portas da cidade só foram reabertas em
mudando-se o local depois para o Terreiro manda vir do Porto navios com cereais, car- maio de 1570, um ano depois de a peste ter
do Paço (mas nunca chegou a ser erguido). ne, galinhas e ovos. E chama de Sevilha dois chegado. Cláudia Lobo
Os três governadores que o rei nomeara para médicos, Tomás Álvares e Garcia de Salzedo
Para saber mais: A «peste grande de 1569 em Lisboa»,
tomarem conta de Lisboa chegam à cidade em Coronel, conhecedores do mal semelhante de Mário da Costa Roque, in Anais – Volume 28,
julho e encontram-na vazia. «Entrou outro que dois antes atingira a cidade andaluza. Academia Portuguesa de História

VISÃO H I S T Ó R I A 53
EPIDEMIAS // QUARENTENAS

O combate aos surtos


na Idade Moderna
Quais as medidas de contenção adotadas contra as
frequentes pestes e outras epidemias? Respostas que
podem surpreender-nos pela semelhança com o presente
por Laurinda Abreu *

O
«mal de peste de que Deus nos livre lizadas na Trafaria por ter o único lazareto
[…], sendo tão contagioso que em permanente do País.
breves horas mata» (1), abateu-se so- Nestes serviços superintendia o provedor-
bre o Ocidente em meados do século -mor da saúde, nos termos do regimento que
XIV e deixou atrás de si um rasto de levava o nome do primeiro titular do cargo
morte e destruição. A recorrência (Regimento que Leva Pedro Vaz sobre o que
da epidemia, ainda que em escalas muito toca ao bem da saúde de Lisboa em 1526), um
menores, mobilizou os poderes públicos para texto que compilava alguns procedimentos
uma ação concertada, procurando estancar já em vigor desde o século XIV e outros que
a sangria de vidas humanas e assegurar a o próprio observara, a mando do rei D. João posição de guarda-mor da saúde. De entre as
integridade territorial dos estados. Apesar III, em Roma, Florença e Milão. Foi neste suas primeiras ordens estava o encerramento
de desconhecerem a etiologia da doença, a contexto que Lisboa passou a contar com das portas e postigos e a colocação de ban-
perceção do seu carácter contagioso impeliu dispositivos sanitários definitivos e profis- deiras brancas nas muralhas, sinal de que o
as autoridades das cidades da Croácia e da sionalizados, tendo em vista gerir o espaço espaço estava de quarentena.
Itália a impor o isolamento, as quarentenas urbano durante as epidemias e prevenir as Em Évora, sobre a qual abundam teste-
e os cordões sanitários para evitar a sua pro- que poderiam entrar «de muito longe (…) munhos destas práticas, as portas da cida-
pagação e proteger as populações, procedi- nas caixas dos marinheiros e nas próprias de, vigiadas em permanência por homens
mentos rapidamente seguidos um pouco por mercadorias», conforme se lê no dito docu- armados, eram abertas às 5 horas da manhã
toda a Europa. mento. Nenhuma outra cidade do País foi, e fechadas ao final da tarde, ao toque das Ave-
As condições morfológicas de Portugal e as nesta altura, munida de disposições similares -Marias. Só era permitida a entrada a quem
dinâmicas da economia nacional instigaram de combate às epidemias, embora se repro- apresentasse a dita carta de saúde (no século
a Coroa a prestar uma particular atenção à duzissem, em diferentes níveis, as medidas XVI, o período de quarentena estava redu-
fronteira marítima, sobretudo em torno de adotadas na capital. zido a 20 dias) e a saída apenas por razões
Lisboa, principal cidade portuária do reino e de força maior: era o caso dos trabalhadores
tão amiúde visitada pela peste, nas palavras Muralhas ‘protetoras’ agrícolas – as cidades não eram autossufi-
de D. Manuel I. As primeiras edificações para Nas urbes fortificadas, as muralhas funcio- cientes –, mas não dos estudantes, «uma vez
controlo sanitário dos barcos que vinham navam como cordão sanitário, onde só se que nada tinham a fazer no campo», como
aportar na cidade datam de 1492, situadas no passava mediante a apresentação de uma lembravam as posturas camarárias. Durante
eixo Trafaria-Belém; estas estruturas foram «carta de saúde», documento formalizado a noite, sentinelas patrulhavam as muralhas,
ampliadas na segunda metade de Quinhen- pelo príncipe D. João, antes de 1481, para de modo a garantir o acatamento das regras
tos, com o Lazareto (na Trafaria) e a extensão a vila de Beja, mas logo adotado por outras do isolamento.
do porto, em Paço de Arcos. Ao longo da costa, localidades; nele, o viandante fazia prova, sob Na cidade em clausura, se a peste já a tives-
nos demais centros portuários, as instalações juramento, de que não estivera «em lugar se tocado, identificavam-se e isolavam-se os
eram quase sempre precárias e provisórias. onde morrem» nos 30 dias antecedentes. No infetados, transferindo-os para a ermida de
Em 1695, quando foi elaborado o Regimento seu interior, ao rebate de peste, era nomeado S. Brás, extramuros da cidade, onde funciona-
para o porto de Belém, as quarentenas dos um grupo de trabalho («guarda da saúde»), vam as «casas da saúde». Aqui, um cirurgião,
barcos passaram a ser obrigatoriamente rea- chefiado por um dos notáveis, que assumia a mais raramente um médico, um sangrador

54 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Évora, no foral de 1501 Nos períodos
uma espécie de corpos paramilitares con- visitantes espalharam a morte e o terror na
de quarentena, na altura de 20 dias, trolados pelos municípios, em que eram cidade, que recorda desse período um total
para entrar na cidade era preciso obrigados a alistar-se todos os homens vá- de 25 mil vítimas mortais, um número que
apresentar a carta de saúde lidos entre os 15 e os 60 anos. Durante as quase duplica o de habitantes à época.
epidemias, estas forças tentavam impedir Entre cada surto epidémico (e foram mui-
a circulação das pessoas e, através delas, a tos até ao século XIX, de peste ou de qualquer
e um padre prestavam aos doentes cuidados transmissão das doenças. Assim se cons- outra doença infeciosa passível de ocultar sob
paliativos e apoio espiritual. Queimados os tituíram os primeiros cordões sanitários aquela designação), o País tentava regressar à
bens dos empestados, higienizadas e seladas territoriais realizados em Portugal. Como normalidade, às vezes por períodos tão cur-
as suas habitações, procedia-se à limpeza da as demais medidas de confinamento e pro- tos que não permitiam retomar os trabalhos
cidade, purificava-se o ar queimando ervas teção, também estes cordões sanitários eram agrícolas: entrelaçadas, doenças e fomes es-
aromáticas, fiscalizava-se os locais de abas- custeados pelas populações, quase sempre tiveram entre os mais poderosos obstáculos
tecimento de água e de bens alimentares, com impostos especificamente criados para ao crescimento da população.
desinfetava-se a correspondência com vinagre o efeito. Acresce o facto de os concelhos ca-
e fogo, porque «o papel é uma das coisas recerem de autorização da Coroa para imple- Cordões sanitários
que com mais facilidade recebe o contágio» mentar as providências mais penalizadoras militarizados
(2); impedia-se a realização de mercados, para a economia, o que podia ter conse- Os finais do século XVIII e inícios do século
procissões ou de qualquer outro tipo de ajun- quências desastrosas, porquanto a epidemia XIX marcam um ponto de viragem na defesa
tamento. Pelas ruas, um pregão relembrava tendia a ser mais célere do que os decisores das fronteiras nacionais contra as epidemias,
os castigos a aplicar aos incumpridores ou políticos. Não raro, tinham ainda de lidar daí em diante mais dependente da inter-
desordeiros – coimas pecuniárias e quatro com as contradições dos monarcas, que, ao venção da marinha e do exército. O reforço
anos de degredo para o Ultramar, tratando-se mesmo tempo que apertavam as regras do do papel da marinha, que já fazia algum
de grupos privilegiados; açoitamento público isolamento, cediam aos interesses dos po- policiamento ao longo da costa atlântica,
e dois anos de degredo nas galés, para o povo. derosos, que as subvertiam. Foi esse o caso está ligado às transações comerciais com
em 1569, quando D. Sebastião condescendeu o Norte de África, restabelecidas depois de
Pressões dos poderosos com as pressões de alguns nobres da corte, normalizadas as relações diplomáticas entre
Nas terras sem muros que as protegessem, onde corria descontrolada a peste, e forçou Portugal e Marrocos e, em janeiro de 1774,
esse papel era assumido pelas Ordenanças, o seu acolhimento em Évora. Infetados, os da assinatura do Tratado de Paz e Comércio.

VISÃO H I S T Ó R I A 55
EPIDEMIAS // QUARENTENAS

as investidas dos barcos estrangeiros prove-


nientes dos locais infestados, afastando-os da
costa portuguesa, embora nem sempre com
sucesso. Importante ainda era a rede consular
em Cádis, Tânger e Gibraltar, que recolhia e
fazia circular a informação relativa às doenças
infeciosas que deflagravam naquelas zonas.
É em função destas disposições que me-
lhor se compreende o facto de Portugal ter
escapado praticamente ileso às epidemias
que, em 1800 e 1804, devastaram o territó-
rio espanhol e justificaram a realização dos
primeiros cordões militarizados de fronteira
em território nacional. Em ambos os anos, o
foco das epidemias esteve na costa marítima
espanhola, respetivamente em Cádis (entre
finais de 1799 e inícios de 1800, Cádis terá
perdido entre 7400 e 8500 habitantes) e
Málaga. Enquanto o surto de 1804 avançou
incontrolável para terra, o primeiro, apesar
da sua virulência, mantinha-se geografica-
Lisboa, 1520 As primeiras medidas de controlo sanitário nos portos da capital começaram
cerca de 30 anos antes mente mais circunscrito. Todavia, o cordão
sanitário de 1800 fixou-se entre o Algarve e
Numa conjuntura de grave crise de subsis- vimentavam no golfo de Cádis, estreito de o Tejo e depois no nordeste transmontano.
tências e de recorrentes surtos epidémicos, Gibraltar e costa do Magrebe, para evitar o O cordão não terá estado diretamente ligado
os mecanismos estabelecidos para assegurar corso e a passagem dos seus barcos do Me- à epidemia (cujo controlo terá contado com
as importações de Marrocos acabaram por diterrâneo para o Atlântico –, os navios da a Esquadra do Estreito e dispositivos asso-
operar como um verdadeiro cordão sanitário armada que acompanhavam os comboios de ciados), mas com a situação política que se
marítimo, que ajudou a proteger o País das cereais e carne até Lisboa, e as autoridades vivia, no contexto do regresso de Napoleão
epidemias provenientes do Mediterrâneo. marítimas que guardavam as costas algarvias Bonaparte do Egito a França, em outubro de
Destes mecanismos fazia parte a Esquadra e onde os barcos de mercadorias faziam es- 1799, e do Bloqueio Continental; o argumento
do Estreito – navios de guerra que se mo- cala. Dotados de poder do fogo, controlavam da defesa da saúde das populações poderá ter
facilitado o alistamento dos homens para a
guerra que se avizinhava e assim se explica a
geografia dos cordões: de frente para as tropas
que a Espanha já tinha naqueles locais. As
operações foram entregues à Intendência-
-Geral da Polícia, atribuição justificada pelo
conhecimento da instituição sobre a situação
sanitária do País, num tempo em que a defesa
da saúde pública estava entre as competên-
cias da polícia (polícia no sentido de «ciência
da administração geral do Estado»). Neste
enquadramento, não terá sido despicienda
a experiência do intendente Pina Manique
em termos de recrutamento militar.
Situação diferente terá ocorrido em 1804,
já que não se vislumbram outros motivos
para o cordão sanitário além dos de saúde
pública. O aviso para a catástrofe iminente
em Espanha e consequente necessidade de

56 V I S Ã O H I S T Ó R I A
1800 Os cordões
sanitários
1804
BRAGANÇA
MINHO TRÁS-OS-MONTES
de 1800 e 1804 TRÁS-OS-MONTES
MINHO

PORTO PORTO
GUARDA-MOR DA SAÚDE

O cordão não teria tanto a ver OFICIAIS MILITARES REGIONAIS (1800)


com a epidemia, mas com
BEIRA a situação política da altura. OFICIAIS DA ADMINISTRAÇÃO BEIRA
Os homens foram colocados CENTRAL E LOCAL Criados lazaretos
de frente para as tropas que temporários
Espanha já tinha naqueles locais CORREGEDORES em todos os portos
do país
PROVEDORES
JUÍZES DE FORA/JUÍZES ORDINÁRIOS (1804)
ESTREMADURA ESTREMADURA

LAZARETO DA TRAFARIA

LISBOA ALENTEJO ELVAS LAZARETOS (1804) LISBOA ALENTEJO ELVAS


HOSPITAIS DAS MISERICÓRDIAS (1804)
ÉVORA
HOSPITAIS MILITARES (1804) ÉVORA

ORDENANÇAS (1804)
BEJA BEJA
POSTOS MILITARES
PORTOS
De Montalvão ao Guadiana,
3 151 soldados, de cavalaria
CORDÕES DE SAÚDE e infantaria, foram colocados ALGARVE
TAVIRA
ALGARVE
TROPAS DE LINHA em torno das aldeias, nós
rodoviários e portos fluviais
FARO
ORDENANÇAS AR/VISÃO

fechar toda a fronteira terrestre com um cor- Ao contrário do de 1800, o cordão sanitá- sugestão das chefias locais para regressar a
dão militarizado partiram da Esquadra do rio de 1804 seguiu os preceitos internacio- Lisboa, porque sabia da importância da sua
Estreito, estacionada na baía de Algeciras. nalmente estabelecidos quanto à organi- missão. Ainda assim, decidira levantar ânco-
O governo chamou de novo a Intendência- zação, funcionamento e recursos humanos ra e «cruzar constantemente entre a ponta
-Geral da Polícia, lembrando os bons servi- e materiais. A título de exemplo, no setor da Europa e Ceuta», para não confrontar os
ços prestados em 1800. Recebida a ordem, identificado como «de Montalvão até ao Gua- seus homens com a visão de Gibraltar onde
e dotado de «poderes extraordinários», o diana» foram colocados 3151 soldados, entre diariamente «se não faz outra coisa mais que
intendente dispôs no terreno um vasto con- cavalaria e infantaria, posicionados em torno enterrar cadáveres».
junto de ações, que passaram, entre outras, das aldeias, nos nós rodoviários e nos portos
* Laurinda Abreu é professora e investigadora da
pela criação de lazaretos temporários em fluviais. Agiam como uma primeira linha de Universidade de Évora/CIDEHUS
todos os portos; fiscalização das quarentenas combate, a que se seguia a dos lazaretos e,
NOTAS
dos barcos comerciais e das suas tripulações; por fim, a dos hospitais. 1) Arquivo da Câmara Municipal de Évora, Livro XIII
controlo das deslocações internas e das con- Ainda mais para sul, já no mar, continuava dos Originais, nº 83, fl. 605. Os documentos foram
transcritos com a grafia atual. 2) Não eram novos estes
dições de higiene dos locais de venda de pro- a Esquadra do Estreito. Apesar de ter a tripu- procedimentos, mas em tempos de contestação contra
dutos alimentares. Paralelamente, solicitava lação fragilizada pela falta de mantimentos e a união ibérica, que, em Évora, também se fazia através
da escrita panfletária, os termos desta ordem régia
ao exército que deslocasse os soldados para tomada pelo escorbuto, o comandante, tam- deixam pouca margem sobre o que efetivamente estava
a fronteira com a Espanha. bém ele enfermo do mesmo mal, recusou a em causa. ADE, Livro 5 de Registos, n.º 139, fls. 34-35v.

VISÃO H I S T Ó R I A 57
EPIDEMIAS // CÓLERA
CARTOON DA REVISTA SATÍRICA INGLESA PUNCH/GETTY IMAGES

DESENHO DO VICE-CONSUL INGLÊS EM GRANADA/GETTY IMAGES


A vida em tempos
abdominais. Nos casos mais graves estes sin-
tomas são seguidos de queda de temperatura
corporal e morte. A prevenção resume-se à
adoção de medidas de saneamento básico.

de cólera
Depois da chegada a bactéria à Europa, em 1832,
A desinfeção das águas com cloro, que foi
posta em prática na Europa e na América
do Norte ao longo do século XX, extinguiu a
doença nestas regiões do globo, se bem que
beber água era um perigo que podia ser mortal. noutras, onde estas medidas continuam a
Portugal não escapou ser de mais difícil execução, a doença ainda
surja com gravidade. Nestes casos, aplicam-
por Maria Antónia Pires de Almeida*
-se medidas de quarentena e isolamento dos

N
pacientes, e o tratamento faz-se com soluções
o século XIX, poucas crianças chega- asma e outras doenças que nem tinham sido que repõem a água e os sais minerais perdidos
vam à idade adulta e a esperança de identificadas, como a hepatite, a cirrose ou a e com antibióticos.
vida era muito baixa. A alimentação diabetes (a insulina só foi isolada em 1921,
era deficiente e as condições sanitárias por Banting, Best e Macleod, que ganharam Da Índia para o mundo
inimagináveis para quem está habi- o Prémio Nobel da Fisiologia em 1923). No A origem da cólera encontra-se no rio Ganges,
tuado a água corrente nas torneiras, entanto, já em 1865 o cancro foi objeto de na Índia, e a partir dali espalhou-se por todo
esgotos e duches prolongados. Nada disso teses na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa. o mundo pelas rotas comerciais. Chegou pri-
existia e beber água era um perigo, pois ge- Perante tal estado de debilidade da popu- meiro à Rússia, de onde se propagou à Europa
ralmente estava contaminada. Sobreviver às lação, e ainda com epidemias recorrentes de e daqui, à América. Em 1832 morreram 6536
doenças infantis sem vacinas constituía uma peste negra, febre amarela e varíola, em 1832 pessoas em Londres e 20 mil em Paris. Em
vitória, e o mesmo se passava com as doen- chegou pela primeira vez à Europa o cholera toda a França a doença fez mais de 100 mil
ças endémicas, entre as quais a tuberculose, morbus, ou cólera, que alterou a história da vítimas. Esta primeira vaga da epidemia che-
a sífilis, a lepra, o tétano, a febre tifoide e a Ciência e da Medicina. Só em 1883 Robert gou a Portugal em 1833, ao Porto, a bordo do
malária (as chamadas «sezões»), e as sazo- Koch identificou a bactéria Vibrio cholerae. vapor com soldados belgas vindos para ajudar
nais, como as gripes, gastrites, enterites e A sua transmissão faz-se pela ingestão de os liberais na guerra civil. Durante o cerco do
disenterias; não esquecendo a sarna, a raiva águas ou alimentos contaminados. Os pri- Porto, e depois quando se espalhou pelo País,
(hidrofobia), a gonorreia e tantas outras para meiros sintomas são fortes diarreias, seguidas a epidemia de cólera acabou por causar mais
as quais não havia tratamentos. Havia ainda a de desidratação, febres altas, vómitos e dores de 40 mil mortos, um número mais elevado

58 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Causas e
consequências
Foi num bairro pobre
de Londres que John
Snow descobriu
que a doença era
transmitida pela água.
Uma das formas de
combater a doença
era fazer fogueiras
para desinfetar as ruas de novos conceitos de higiene e saúde pública,
(Granada, em 1850). Em que ainda hoje vigoram. Os Estados reagiram
baixo, o 'homem que
previne a cólera', numa às epidemias
epidem por vezes de forma divergente,
gravura alemã de 1830 com medidas
med restritivas que privilegiavam
os cordõe
cordões sanitários e as quarentenas, e que
tinham cconsequências económicas por vezes
tão devastadoras
devas como a própria doença.
partir de 1851 as potências europeias co-
A parti
meçaram a enviar os seus melhores especia-
listas a conferências
co sanitárias internacionais,
iniciadas em Paris e repetidas em Constan-
tinopla (I(Istambul) em 1866, Viena em 1874,
Washington em 1881, Roma em 1885, Veneza
Washingt
em 1892
1892, Dresden em 1893 e de novo em
Veneza em 1897. Em todas estas conferências
discutiu-se a questão do contágio, que não era
discutiu-s
consensual, e identificaram-se as doenças e
consensu
respetivas medidas profiláticas e tratamentos.
respetiva
Por observação
ob e experiência, os médicos
de beber água no chafariz de Broad Street. árabes m medievais aceitavam que as doenças
do que o da própria guerra. Depois desta, Ao fechá-lo, em poucos dias o foco epidémico eram con
contagiosas. Em Granada, Ibn al-Kha-
seguiram-se mais oito vagas epidémicas, in- cessou. Esta foi a primeira observação válida tib (1313
(1313-1374) viveu a experiência da Peste
tensificadas pela falta de higiene nas casas e sobre
obre a transmissão da afeção, que até então Negra e formulou uma teoria do contágio,
nas ruas, pelo uso de água e alimentos con- see considerava ter como veículos os «mias- numa época
ép em que as epidemias eram con-
taminados e pela concentração dos doentes mas», ou maus cheiros, e o ar em geral. Com a sideradas castigos divinos. No século XVI a
em pequenos espaços. colaboração de Henry Whitehead, um pastor noção de contágio foi estabelecida cientifi-
A segunda grande vaga epidémica começou anglicano, Snow estabeleceu a relação direta camente e apoiada pelos Estados quando
em Paris em 1849 e espalhou-se para Londres. entre a contaminação da água e a doença. Mas estabeleceram as primeiras quarentenas.
E a terceira, entre 1852 e 1860, causou mais estes conhecimentos demoraram décadas a Porém, o século XIX viu surgir uma nova
de um milhão de mortes, afetando sobretudo serem divulgados. geração de cientistas que negaram o contágio
a Rússia. Foi quando esta epidemia de cólera Esta epidemia, agressiva e devastadora, das doenças, baseando-se na ineficácia das
chegou a Inglaterra que foram dados os pri- obrigou a medidas sanitárias drásticas e con- quarentenas e dos cordões sanitários, espe-
meiros passos para a identificação e prevenção tribuiu para alterar o modo de encarar as cialmente na altura da epidemia de cólera de
da doença: em 1854 o médico John Snow veri- doenças por parte do poder político. A sua 1832, e que lutaram pela liberdade do indiví-
ficou que 500 casos mortais ocorridos em dez influência no desenvolvimento de políticas sa- duo e do comércio. Verificou-se assim, numa
dias na zona central de Londres resultaram nitárias foi fundamental e resultou na criação clara associação entre teorias anticontágio
e interesses comerciais, que os governos do
Norte da Europa, mais liberais e progres-
sistas, avançaram com políticas higienistas,
O representante de Portugal abolindo quarentenas e cordões sanitários. Os
Nascido em Lisboa em 1806, Bernardino António Gomes estudou países do Sul da Europa, mais conservadores,
Medicina em Paris e Matemática em Coimbra, onde foi professor.
Foi o primeiro médico a utilizar o clorofórmio em Portugal e um mantiveram as práticas correspondentes à
aparelho de inalação de éter como formas de anestesia. Acompanhou, teoria do contágio. Apesar da circulação do
juntamente com outros clínicos, a doença do rei D. Pedro V e dos seus conhecimento científico e da apropriação
irmãos D. Fernando e D. João, após uma caçada em Vila Viçosa, em 1861.
deste por parte das autoridades, que o usaram
Os três faleceram dias depois. Foi aberto um inquérito policial e a equipa de
médicos que realizou a autópsia negou a hipótese de envenenamento, declarando para combater a doença com todos os meios
como causa de morte a febre tifoide. de que dispunham, a urgência das crises epi-
Estudou a fundo as epidemias do século XIX e representou Portugal nas conferências démicas não era compatível com o maior
sanitárias internacionais realizadas para discutir as medidas de prevenção e controlo das
problema a resolver a longo prazo: a falta de
crises epidémicas. Defendeu a teoria do contágio e das quarentenas e cordões sanitários,
contra, por exemplo, o Reino Unido e a Alemanha, que propugnavam os seus interesses higiene, tanto pessoal como das habitações,
económicos e exigiam liberdade de comércio e de circulação. Faleceu em Lisboa em 1877. especialmente nas cidades.

VISÃO H I S T Ó R I A 59
EPIDEMIAS // CÓLERA

Portugal, 1855
«Estamos no período que mais é para recear,
estamos no tempo dos pepinos, das amei-
xas, das frutas mal sazonadas, que os nossos
camponeses, não por fome, mas por vício e
repreensível abuso não deixam de comer»
(O Século, 14/08/1855).
«Em geral, todas as pessoas que têm sido
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atacadas pertencem às classes menos abasta-
das da sociedade; tem sido gente mal vesti-
da, mal alimentada e de vida pouco regular»
(O Comércio, 06/12/1855). Cientista ímpar Robert Koch (à direita, na foto), o homem que identificou a bactéria da cólera,
Eram estes os argumentos usados para ne- numa das suas viagens a África, em 1905
gar a epidemia de cólera em 1855 em Portugal:
os pobres estavam doentes porque tinham e bens. Com isto, os produtores poderiam podiam passar a doença umas às outras,
vícios. Era preciso encontrar um culpado e, ir à falência e a população, sem acesso aos mas porque consideravam que a verdadeira
entre as causas conhecidas para a doença, a alimentos, arriscava-se a passar fome, o causa da doença residia em comportamentos
pobreza parecia ser a que reunia maior una- que era visto como pior do que a própria desviantes, falta de cuidados e de higiene e
nimidade. De facto, os pobres eram sempre os epidemia. Além destas questões práticas, maus hábitos alimentares. O próprio medo
primeiros a morrer nestas epidemias e os que as medidas de isolamento foram também era referido como transmissor da doença.
tinham maiores taxas de mortalidade. A misé- vistas como uma interferência da capital Nesta fase abundavam os conselhos para
ria estava definitivamente associada à doença, na autonomia municipal. Durante todo o limpeza das casas e das ruas com vista a
o que levou a que certamente muitos casos de período epidémico, o Porto reclamou o res- combater os «miasmas pútridos», conside-
morte nas classes mais altas simplesmente tabelecimento da liberdade do comércio, rados a principal origem de contaminação.
não tenham sido declarados como cólera. E essencial para a sua sobrevivência. Por esse Não havia tratamentos específicos: acon-
os comportamentos reprováveis incluíam a motivo a imprensa local negava o contágio: selhavam o espírito de cânfora, esfregar os
negligência, a má alimentação e a ingestão as medidas higiénicas preventivas eram con- doentes com água salgada morna, bebidas
de frutas e legumes. sideradas essenciais, não porque as pessoas espirituosas, menta, iodo, fumigações com
A epidemia atingiu a região Norte de enxofre, água quente, canja e um xarope com
Portugal em 1855, assim como o Algarve. goma-arábica, ovo e láudano. A aplicação de
A maioria dos jornais dedicou grande aten- sanguessugas foi um recurso a que também
ção a esta doença, divulgando as medidas se fez referência: «A alguns coléricos têm-
sanitárias impostas pelas autoridades cen-
A epidemia chegou -se-lhes aplicado com sucesso bichas sobre
trais em Lisboa. No Porto estabeleceu-se a Portugal em 1833, ao o estômago» (O Comércio, 24/09/1855). Os
um cordão sanitário protegido pelo exército, conselhos sobre alimentação incidiam em
impôs-se a quarentena aos navios, foram
Porto, a bordo do vapor preferir alimentos cozinhados, especialmen-
criados lazaretos (hospitais especiais para com soldados belgas te os cozidos, evitar as frutas e os legumes
as quarentenas), isolaram-se os doentes, verdes, as saladas e todos os excessos. «Os
proibiram-se feiras e mercados e foi impe-
vindos para ajudar os alimentos mais saudáveis são os caldos de
dida a concentração e circulação de pessoas liberais na guerra civil vaca, carnes frescas assadas e arroz, com
moderação. O chá, mesmo com leite, pou-
co doce, pode usar-se sem receio, e igual-

De novo, em 1974 mente o vinho bom, e sempre com reserva»


(O Século, 07/08/1855). Na prática, mesmo
Quando, em 1974, se verificou uma epidemia de cólera em Portugal, as medidas sem saberem a razão científica, os conselhos
anunciadas pelas autoridades apresentaram inovações significativas em relação ao
século anterior. A epidemia começara em Tavira em abril e foi intitulada «doença dos incidiam sobre a fervura da água, que este-
pobres». Espalhou-se no verão e em agosto havia mil casos registados, segundo o rilizava os alimentos.
jornal Expresso. Os maiores números verificaram-se em Lisboa e no Porto, seguidos do Entre as medidas oficiais para combater a
Algarve. Foram anunciadas normas de higiene individual, coletiva e alimentar, incluindo
cólera salientam-se a instalação de hospitais, a
quimioprofilaxia com tetraciclina a todos os contactos dos doentes, vacinação dos
grupos de maior risco, desinfeção das águas, manutenção da rede pública de esgotos, visitação das casas de malta e das ilhas (bairros
vigilância dos mercados, hortaliças e fruta. operários) do Porto, e o fornecimento gratuito

60 V I S Ã O H I S T Ó R I A
AKG/FOTOBANCO

Desinfeção das ruas Uma brigada sanitária atuando em Hamburgo, na Alemanha, em 1892

de medicamentos nas farmácias. As aulas da provisões e medicamentos. Aliás, as pequenas são os oficiais em meio hospitalar e seriam
universidade foram encerradas. A educação povoações longe dos centros urbanos foram bastante mais elevados se contabilizados os
e o comércio não foram as únicas atividades as mais afetadas pela falta de assistência, pois falecimentos em casa.
a serem afetadas: também o turismo sofreu, os próprios médicos ficaram doentes e os me- Até as alterações do clima, questões que têm
afetando as populações das vilas costeiras que dicamentos eram inexistentes. No total, em preocupado cientistas ao longo dos séculos,
já nessa época dependiam das receitas trazidas 1855 faleceram 8718 pessoas em Portugal, o foram apresentadas como causas da epidemia
no verão pelas famílias da elite. que representa cerca de 45% dos doentes. de cólera. J. A. d’Oliveira publicou artigos so-
O Algarve apresentou um cenário muito No ano seguinte a cólera espalhou-se até à bre este e outros temas, nos quais apresentou
pior, devido à falta de médicos e de qualquer Madeira e faleceram mais 9 mil pessoas em teorias muito para além do seu tempo: «Sob
espécie de assistência. Houve vilas inteiras todo o País, 3600 das quais em Lisboa. Em pretexto de explorar o seu domínio, o homem
que ficaram desertas, não só pela morte dos 1856, a febre-amarela, importada do Brasil destruiu o equilíbrio estabelecido entre as
habitantes, mas também pela fuga, provocada em julho, ajudou a aumentar a taxa de mor- diferentes espécies de vegetais. Os bosques,
pelo terror. Foram necessárias medidas como talidade. Em 1857 quase 10% da população de cuja missão era moderar o frio dos invernos
o envio de um vapor de guerra com médicos, Lisboa contraiu esta doença. Estes números e o calor dos estios, reter as humidades no
solo, resolver as eletricidades atmosféricas
As vítimas da cólera resinosas, etc., foram destruídos. As culturas

1 milhão
estenderam-se no globo, mas ao acaso (...) e
por isso o clima, até então regular, se tornou

20 mil
irregular, sofrendo grandes vicissitudes, e as
estações pervertidas. Daqui nasceram todos
os flagelos, que devastam a agricultura, a gea-
da, a saraiva, as tempestades, os furacões, as
mortos em Paris inundações, as epizootias, e as epidemias,
em 1832 de mortos na Europa que afetam o homem...» E concluiu que se o

40 mil
na década de 1850 homem «continuar na ignorância e desprezo
das leis da meteorologia, será o autor da sua
própria ruína» (O Comércio, 30/11/1855).

* Maria Antónia Pires de Almeida é investigadora


do ISCTE e autora do livro Saúde pública e higiene na
mortos em Portugal imprensa diária em anos de epidemias, 1854-1918,
em 1833 Lisboa, Colibri, 2013

VISÃO H I S T Ó R I A 61
EPIDEMIAS // CÓLERA

Terçar armas contra


o ‘micróbio’ da cólera
A luta contra esta doença, entrada no período
das Lutas Liberais, mobilizou meios militares
ao longo de todo o século XIX

E
por Laurinda Abreu

ntre as medidas tomadas pela Monar- das medidas de precaução que tem mandado
quia Constitucional para impedir a pro- observar em todos os portos do reino», con-
pagação de doenças contagiosas, sobres- jugando a segurança da saúde pública com
saem os cordões sanitários colocados à o mínimo de limitações do comércio. Uma
volta das localidades ou nas fronteiras, justificação que o poder político considerava
providências em que os militares desem- necessária, uma vez que as práticas quarente-

REVISTA OCCIDENTE, 1881


penharam um papel relevante. O mais antigo nárias tradicionais estavam a ser abandonadas
cordão sanitário formado no novo contexto em vários países da Europa, substituídas por
político terá sido localizado na margem sul do alargados programas de vacinação contra a
Tejo, para proteger Lisboa durante o primeiro varíola e reforço das medidas higienistas;
surto de cólera, que atingiu o País no início ações que tinham vantagens para o comércio
da década de 1830. Os seguintes, também internacional, mas que Portugal não conse-
contra a cólera, datam de 1855 – circunscrito guia acompanhar. e os estudos desenvolvidos por André Pita
ao Algarve e ao Porto – e de 1884 e 1885. Por apontam para dois focos de entrada da cólera
fim, o de 1899 mais uma vez isolou o Porto, no Mais mortos que os da guerra civil em Portugal, no início da década de 1830: o do
contexto de um surto de peste. Os cordões de Foi em outubro de 1830, no centro da crise Porto, transmitido pelos soldados vindos de
1884 e 1885 terão contornado toda a fronteira política que antecedeu a guerra civil (1832-34) Ostende para apoiar os liberais, e o de Lisboa,
com a Espanha, podendo ter envolvido de 10 que chegaram a Lisboa as primeiras notícias introduzido pelos navios ingleses. O controlo
a 12 mil soldados e um custo financeiro entre sobre a «peste com o nome de cólera-morbo» da informação feito quer por miguelistas quer
900 e mil contos de réis. que lavrava na Rússia, enviadas pelo cônsul por liberais – os primeiros tentando evitar
Militares com funções de defesa da saúde em São Petersburgo. Pela rede consular, o que o pânico alastrasse entre a população; os
pública também estacionavam no porto de governo foi seguindo a marcha do «mal asiá- segundos, com receio de que os militares se
Lisboa, numa embarcação de guerra fundeada tico». Soube-se do cordão sanitário composto negassem a ir até Lisboa – não terá facilitado
em permanência junto à Torre de Belém, em por 60 mil homens que o Império Austro- a atempada implementação de providências
1815. E, em 1824, estavam destacadas tropas -Húngaro mobilizara para a sua fronteira e para frear a propagação da doença, nem sequer
nas duas margens do Tejo, em «auxílio da da decisão da Inglaterra de obrigar os navios na capital, não obstante o cordão sanitário
saúde pública», num total de 104 soldados. provenientes da Rússia a fazer quarentena. estabelecido a sul do Tejo em agosto de 1832.
Outros acompanhavam o pessoal médico que Portugal intentou então impor a mesma res- A este primeiro surto de cólera são atribuí-
durante as epidemias era deslocado para as trição às embarcações inglesas que aportavam dos cerca de 40 mil mortos, um número que
estações de saúde, estabelecidas nos portos em Lisboa, mas a decisão foi rejeitada pelo estará sobreavaliado, mas que terá sido supe-
atlânticos (32 em 1844). Também a Junta cônsul britânico (previamente consultado rior ao das vítimas causadas pela guerra civil.
da Saúde, criada em agosto de 1813, contava para o efeito), relembrando ao governo, em O segundo surto de cólera a abalar Portugal
com a presença de militares. agosto de 1831, o acordo assinado entre os dois ocorreu durante os primeiros anos do governo
Entre 1814 e a sua extinção, em 1820, a países em 1810 que não permitia a Portugal regenerador, já a França e a Inglaterra tinham
Junta da Saúde utilizou a imprensa para jus- acionar tal mecanismo unilateralmente. Por experimentado a devastação da epidemia em
tificar as medidas quarentenárias aplicadas essa altura, Londres já lutava contra diversos 1849 (só em Londres, terá matado mais de
aos barcos. Explicava em cada edital que se focos infeciosos. 14 mil pessoas) e, em Paris, os poderes inter-
pretendia «legitimar a austeridade aparente O episódio ocorrido com o cônsul inglês nacionais haviam tentado, na primeira Con-

62 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Comboios vindos
de Espanha parados lamentos. Chamadas de atenção que, igual-
Para conter o surto em 1885, mente, atingiram o ministro da Guerra (Defesa
a entrada de composições Nacional), quando teve conhecimento de que
ferroviárias provenientes do as viagens no Douro tinham sido autorizadas
país vizinho foi proibida até os
lazaretos terrestres estarem por um subalterno, o comandante do cordão
a funcionar. Depois disso, militar estacionado em Barca d’Alva. Neste
quem chegava de comboio caso, ordenou-lhe que controlasse os seus su-
ficava obrigatoriamente
bordinados, advertindo-os de que se deviam
de quarentena (gravura da
inauguração do caminho-de- abster «de toda a iniciativa em assuntos de
-ferro-direto a Madrid, 1881) saúde e que se limitem unicamente a prestar
às autoridades administrativas e sanitárias o
auxílio que pedirem». Não competia às auto-
ridades militares, afirmava, julgar as ordens
que recebiam.

Os cordões sanitários terrestres


Os cordões sanitários então estabelecidos, sob
fortes contestações da população e dos agentes
económicos, terão integrado mais de 6 mil
soldados. Os custos humanos foram elevados
(cerca de 9 mil mortos), mas, segundo os estu-
dos de Rui Cascão, terão ficado muito aquém
dos do surto de 1831-1833. O mesmo modo
de atuação replicou-se nas duas epidemias
seguintes, as de 1884 e 1885. Os militares e
ferência Sanitária Internacional, encontrar Pública que tomasse várias providências no os políticos estiveram no centro destas opera-
uma resposta comum às doenças infeciosas. sentido de estancar o avanço da epidemia e ções, prática que estava em consonância com
Preparando-se para o pior, o executivo pro- tratar os doentes. Dirigiu-se igualmente às o espírito da reforma da lei da saúde pública,
mulgava, a 10 de janeiro de 1854, uma lei que autoridades regionais: ao governador civil de ocorrida em 1868. A medida desagradava aos
lhe concedia os poderes «indispensáveis para Aveiro determinou que proibisse o trânsito médicos, por considerarem que o seu papel
o bom serviço sanitário contra a invasão e no Douro a barcos que não comprovassem o seria subestimado na administração da saúde.
marcha do mesmo flagelo» (a cólera). De entre bom estado sanitário; ao governador civil da O tempo que mediou entre o primeiro e o
outras medidas, salienta-se a possibilidade Guarda, solicitou que lhe explicasse por que segundo surtos coléricos da década de 1880
de poder utilizar edifícios particulares para escolhera estabelecer o lazareto em Penedono, foi extremamente curto. Ainda o País discutia
servirem como hospitais. local que não lhe parecia o mais adequado; os custos do cordão que estivera implantado
Noutra linha, o governo reforçava a autori- repreendeu-o ainda por não ter interditado a entre setembro de 1884 e janeiro de 1885, e
dade médica na Comissão de Saúde Pública, Feira de São João, como mandavam os regu- já surgia a notícia, nos finais de maio, de que
e esta terá então iniciado a reforma da admi- tinham sido detetados novos casos de cóle-
nistração sanitária do País, como foi analisado ra na província espanhola de Valência. Sob
por Rita Garnel. Todavia, esta tarefa, entre o comando do ministro do Reino, Augusto
outras circunstâncias, terá feito descuidar
Durante o surto César Barjona de Freitas, o País de imediato
os focos de cólera entretanto assinalados em de 1885, Barjonaa cerrou
ce ou fileiras
e as co
contra a ameaça. Desconhece-se
alguns concelhos de Viseu e do Algarve. Neste o número das baixas
ba que a cólera terá feito em
contexto, em maio de 1855 o ministro do
nistro
de Freitas, ministro Portugal neste
nestes dois anos – correspondência
Reino (equivalente a Administração Interna), do Reino, entre o gove
governo e os governadores civis
Rodrigo da Fonseca Magalhães, questionava mostra que continuava
c presente mesmo
a racionalidade de se estar a privilegiar a
mandou instalar
lar depois de declarado
dec o fim do primeiro cor-
reforma do sistema em vez de conter a doen- telégrafos paraa dão; contudo,
contudo a doença não teve caráter
ça e chamou a si o comando do combate. epidémico. Em Espanha, terão perecido
Num tom pautado por alguma agressividade,
contactar os mais
mai de 236 mil pessoas.
o ministro ordenou ao Conselho de Saúde governadores civis No Parlamento, Barjona de

VISÃO H I S T Ó R I A 63
EPIDEMIAS // CÓLERA Cordão sanitário de 1885
VALENÇA
VIANA DO
CASTELO BRAGANÇA
BRAGA
VILA REAL
PORTO
Freitas citava o caso de Espanha – «que já hoje eram exigidas cartas de saúde para se poder
está convertida num hospital e parece tender VISEU VILAR viajar de comboio no País. De um modo
FORMOSO
a converter-se num cemitério» – para fazer geral, a rede sanitária ajustava-se às ligações
aprovar as medidas quarentenárias. Por sua GUARDA ferroviárias e fluviais a Espanha e respetivos
vez, a oposição bradava contra o uso de méto- CASTELO ramais, e nesse percurso foram estrategi-
COIMBRA BRANCO
dos arcaicos, considerando que não resolviam camente colocados postos de vigilância e
os problemas sanitários do País e agravavam alguns hospitais temporários.
a situação económica, beneficiando apenas LEIRIA MARVÃO Como tinha ocorrido no surto de 1855,
os envolvidos no combate ao «micróbio». todas as formas de mobilidade entre Portu-
Também nesses termos se lhe referia Ricardo SANTARÉM PORTALEGRE gal e Espanha foram fortemente limitadas,
Jorge, que alertava para o facto de nada estar LISBOA ELVAS impondo-se pesadas multas aos infratores.
a ser feito em relação aos «micróbios da casa» Determinava-se, ainda, o afundamento dos
(por contraste com o importado, o da cólera), TRAFARIA ÉVORA barcos de quem ousasse pescar no rio Minho.
varíola, tifo e tuberculose, conforme se lê em A quarentena era obrigatória, quer para os
Higiene Social e Aplicada à Nação Portuguesa, passageiros de comboios e barcos quer para
BEJA
publicada nesse ano de 1885, obra que reunia as centenas de trabalhadores portugueses que
quatro conferências sobre saúde pública, ini- se encontravam em Espanha – muitos deles
ciadas um mês antes da epidemia de 1884. tiveram de esperar pelo fim do surto para se-
Não havendo grandes diferenças a assinalar VILA REAL rem repatriados. O mesmo aconteceu com

AR/VISÃO
FARO DE SANTO
entre as medidas tomadas em 1884 e em 1885, ANTÓNIO os porcos e as vacas que também lá tinham
nota-se, no segundo surto, a agilização da má- permanecido.
quina administrativa do Estado, que mostra LAZARETOS POSTOS MILITARES Em finais de novembro, as medidas de vi-
ter aprendido com as deficiências registadas HOSPITAIS DE COLÉRICOS PORTOS/ESTAÇÕES gilância começaram a ser atenuadas: reduzi-
no ano anterior. Evidencia-se o papel diretivo GOVERNOS CIVIS DE SAÚDE ram-se as quarentenas nos lazaretos para entre
do Ministério do Reino, assumido por Barjona cinco e três dias, conforme os locais; em 12 de
ARMADA CORDÃO SANITÁRIO
de Freitas: em 1884, demorou uma semana janeiro de 1886, para um dia. Porém, só em
POSTOS DE VIGILÂNCIA CAMINHOS-DE-FERRO
a perceber as dificuldades dos governadores abril o surto seria considerado extinto. No Par-
civis (a quem começara por entregar o co- lamento, de novo se ouviam as críticas contra
mando das operações) em fazerem cumprir as Em julho, já tinham sido deslocados 4500 o mau uso das verbas públicas em «cordões de
suas ordens. Em 1885, ele próprio solicitou a homens e 538 cavalos, cerca de um quinto do oiro», enquanto o País continuava sem estru-
imediata intervenção do Ministério da Guerra exército e reservistas, para as seis secções que turas sanitárias e as populações desprotegidas.
para, com o apoio do Ministério da Fazenda compunham o cordão sanitário, um número Necessidades que o governo não negava, mas
(Finanças), controlarem a fronteira terrestre que foi crescendo até atingir os 6500 militares que sabia difíceis de satisfazer, dado o estado
e darem início ao cordão sanitário. Simulta- em janeiro de 1886. Numa outra frente, prepa- das finanças públicas e até a situação política.
neamente, mandava instalar telégrafos nos ravam-se espaços para instalar hospitais para Por isso, tal como os seus congéneres do sul
distritos administrativos, para rapidamente acolher coléricos, em acomodações militares da Europa, continuava a defender o direito
contactar os governadores civis. ou edifícios públicos. Por serem dispendiosos, de cada país a escolher os meios de proteção
As primeiras de muitas centenas de men- evitavam-se os «hospitais-barracas» (hospi- que considerasse mais ajustados à sua situação
sagens dirigidas aos governadores civis come- tais de campanha), mas também os imóveis geográfica, económica e sanitária.
çaram a ser emitidas no dia 11 de junho, ora privados, embora a lei de 1854 (restabelecida
ordenando-lhes que isolassem os locais onde em 1884) o permitisse. Nota:
Sintetizam-se neste e no primeiro texto da autora
surgiam suspeitas de cólera e fizessem as po- os trabalhos «A luta contra as invasões epidémicas
pulações utilizar água fervida, ora avisando-os Sem comboios de Espanha em Portugal: políticas e agentes, séculos XVI-XIX»,
Ler História 73, 2018, e «Epidemics, quarantine and
dos materiais remetidos de Lisboa, como era o Na retaguarda do cordão, em Vila Real de state control in Portugal, 1750-1805», Mediterranean
caso dos desinfetantes, ora mandando reativar Santo António, Elvas, Marvão, Vilar For- Quarantines, 1750-1914, Manchester, Reino Unido,
Manchester University Press, 2018, de onde também
as comissões sanitárias nas capitais de distrito moso e Valença, estavam os lazaretos que foram adaptados os mapas originais, desenhados por
e de concelho e as comissões de beneficência António Manuel da Cunha Belém, junta- Luís Gonçalves. As informações relativas aos lazaretos
resultam da análise, ainda em curso, à obra Os lazaretos
nas freguesias ou autorizando as câmaras mu- mente com outros médicos militares, foi terrestres de fronteira nos anos de 1885 e 1886:
nicipais a recrutar médicos e cirurgiões. Ou, encarregado de fiscalizar e reabrir. Enquanto Marvão, Elvas, Vilar Formoso, Valença e Vila Real de
Santo António: relatório apresentado a sua excelência
ainda, instando a que apoiassem a constituição tal não acontecesse, ficavam suspensos os o Ministro do Reino, A. M. da Cunha Belém e Guilherme
dos cordões sanitários. comboios vindos de Espanha. E, em julho, José Ennes, Lisboa, Imprensa Nacional, 1886.

64 V I S Ã O H I S T Ó R I A
«Pontes
monumentais...»

«...para desembarque dos


empestados»

«Primeiras consolações que se encontram


na chegada à Pátria»

Os lazaretos recebidos os passageiros, as suas bagagens


e demais mercadorias, os espaços onde se
realizavam as desinfeções, os cemitérios e

terrestres de fronteira
até os acampamentos militares. Vedados e
patrulhados por soldados da cavalaria desde
o recolher até ao toque da alvorada, os laza-
retos rememoravam as urbes amuralhadas
Como funcionavam no século XIX em tempos de peste.
os locais de quarentena obrigatória para viajantes No seu interior, conforme a disponibilidade
por Laurinda Abreu das instalações, o espaço dividia-se entre o

O
hospital, uma divisão exclusivamente dedi-
s lazaretos portugueses estarão, por- ça) como em fortes (Elvas), ou em casas de cada ao tratamento dos coléricos, e os aloja-
ventura, entre as instituições ligadas madeira construídas para o efeito (Vilar mentos para os quarentenários, a cozinha,
à saúde pública menos conhecidas e Formoso e Vila Real). Normalmente, eram a lavandaria, etc. Em 1885, os funcionários
estudadas. A crer em Rafael Bordalo acrescentados por um conjunto variado de passaram a ser distinguidos por braçadeiras,
Pinheiro, que, como todos os viajan- anexos que englobavam os locais onde eram amarelas para os «impedidos» (todos aqueles
tes que naquele tempo chegavam do que contactavam com os quarentenários ou
Brasil, foi obrigado a quarentenar no Laza- com os espaços por eles percorridos) e azuis
reto de Lisboa, em 1879, o local era pouco para os «desimpedidos». A «incomunicabi-
menos que tenebroso, «uma penitenciária» lidade» entre ambos era absolutamente vital,
que alimentava os cofres do Estado e dos sob pena de os desimpedidos serem obrigados
fornecedores e «que prende tudo menos a a cumprir a quarentena.
febre amarela», a doença infeciosa que então
atemorizava o País. Para os cinco lazaretos Fumigações e irrigações
terrestres de fronteira existentes no século Saídos dos comboios ou dos barcos, em bal-
XIX (Marvão, Valença, Elvas, Vilar Formoso
e Vila Real), as informações disponíveis são
sobretudo de carácter normativo e regula- O livro que Rafael Bordalo
tório e datam de 1884 e de 1885, estando
relacionadas, portanto, com os dois últimos
Pinheiro publicou em
surtos de cólera que ameaçaram Portugal 1881 relata a sua estada
no século XIX.
Os lazaretos, administrados por médicos
no lazareto da Trafaria,
militares e vigiados por soldados de infan- chegado do Brasil. Nestas
taria e cavalaria cuja presença foi reforçada
em 1885, tanto podiam ser estabelecidos em
páginas, alguns dos
propriedades particulares (Marvão e Valen- desenhos da obra
VISÃO H I S T Ó R I A 65
EPIDEMIAS // QUARENTENAS

«Na alfândega: passa o coco da massa para o «Torna a passar do lado empestado para o
lado empestado» outro que o não está, sem ser beneficiado

«Os quartos
de 1ª classe

Os quartos
de 2ª classe

Os quartos
de 3ª classe

Isto é: três classes


distintas, e só
«Procede-se à beneficiação das bagagens...
uma verdadeira»
em benefício do fisco»

deações que em Monção e Valença obedeciam sulfúrico. O lazareto não se responsabiliza- era com as fezes e vómitos dos doentes, su-
a coreografias com alguma complexidade, os va por possíveis danos causados durante as jeitos a uma tripla desinfeção antes de serem
passageiros entregavam as suas bagagens desinfeções. soterrados. Já os cadáveres dos coléricos,
para desinfeção, sendo depois conduzidos À chegada às instalações, os quarentená- envolvidos em panos embebidos em soluto
para as barracas de inspeção, onde era ava- rios eram questionados sobre a classe em de cloreto de zinco, deviam ser imediatamen-
liado o seu estado de saúde. Escoltados por que se queriam inscrever (havia disponíveis te enterrados em cova mais funda do que o
soldados, seguiam para o lazareto, em macas quatro classes), o que é um dado relevante habitual e cobertos com «muita» cal. Aos
nos casos de doença ou no carro de transporte pois dele dependia a qualidade dos serviços e mortos, era devido um «enterro decente»
coletivo. Era-lhes permitido levar consigo as das refeições, estas quase sempre adquiridas mas sem acompanhamento, a não ser que
bagagens de mão, previamente desinfetadas no exterior. Da classe dependia também o algum padre se oferecesse, por sua conta e
através de fumigações de enxofre e irrigação valor da fatura a pagar no final da estada. risco, para realizar o serviço fúnebre, o que
com soluto de sublimado corrosivo, ou outros Se a higiene dos quarentenários era uma o colocava na situação de «impedido». Uma
produtos químicos especificados nos regu- preocupação para os administradores – no carta de saúde, terminado o isolamento,
lamentos. A restante bagagem só lhes era lazareto de Marvão, por exemplo, referia-se funcionava como salvo-conduto que per-
entregue à saída do lazareto, após sete dias o cuidado a ter para evitar que o espaço fosse mitia aos passageiros seguir viagem até ao
de descontaminação por vapores de ácido infetado por parasitas –, a maior precaução seu destino.

66 V I S Ã O H I S T Ó R I A
AURÉLIO DA PAZ DOS REIS/CENTRO PORTUGUÊS DE FOTOGRAFIA

Desinfeção Uma brigada de limpeza em atuação numa «ilha», durante o surto

A peste que fechou o Porto


Depois de o médico investigador
Ricardo Jorge comunicar o aparecimento de peste bubónica no Porto, em 1899,
seguiram-se meses de agitação e revolta face a Lisboa,devido à imposição
de um cordão sanitário

G
por Cesaltina Pinto

regorio Blanco, espanhol, 47 anos e cambaleante», o que foi interpretado por casas vizinhas. E, depois, em locais próximos:
de idade, era carrejão de bordo e de amigos e vizinhos como resultado de bebida a Rua dos Mercadores, Escadas dos Guindais,
armazéns de porto e, ultimamente, mais. «Foi à latrina, e como se demorasse, os Muro dos Bacalhoeiros... Ou noutros pontos
carregava trigo para os armazéns da companheiros foram dar com ele já morto.» da cidade do Porto, em pessoas que, soube-se
casa Barreto. Há uns tempos que não Nada mais a assinalar. Enterre-se. depois, tinham convivido em determinada
andava a sentir-se bem. Achava-se Alguns dias depois, porém, novas maleitas altura com os anteriores afetados.
«adoentado» e queixava-se «de uma pontada são sentidas em quem partilhava com Gre- A notícia de que andava por ali um «an-
no lado direito». A 5 de junho, «depois de um gorio o nº 88 da Rua Fonte Taurina, bem no daço» circulava de boca em boca. A 4 de
dia de serviço, entrou no domicílio taciturno coração da Ribeira. O mesmo aconteceu em julho, um mês depois da morte de Gregorio,

VISÃO H I S T Ó R I A 67
EPIDEMIAS // 1899

No Laboratório de Higiene
Municipal do Porto Belo de Morais
e outros médicos em ação
AURÉLIO DA PAZ DOS REIS/CENTRO PORTUGUÊS DE FOTOGRAFIA

AURÉLIO DA PAZ DOS REIS/CENTRO PORTUGUÊS DE FOTOGRAFIA


Uma «ilha», na altura da peste A epidemia pôs a nu a falta de condições de higiene e saneamento

«um negociante da Rua de S. João» envia Lisboa, Câmara Pestana (que morreria vítima de «defesa do reino» que, a 23, se reforçam
um bilhete ao diretor do Posto de Saúde da própria peste pouco depois). com a imposição de um cordão sanitário em
Municipal, Ricardo Jorge, alertando-o das O calendário marcava o ano de 1899 e o torno da cidade «alargada» – que impedia
maleitas de alguns que, entretanto, tinham bacilo tinha sido descoberto quatro anos entradas e saídas do Porto –, já a confusão
resultado em óbitos. Lente da Escola Médi- antes por Alexandre Yersin. Em 1840, esta reina ali. Entre as duas datas, levam-se a cabo
co-Cirúrgica, Ricardo Jorge envia primeiro peste tinha gerado uma epidemia na pro- ações de fiscalização e desinfeção em zonas
um seu funcionário ao local. Fica a saber víncia de Yunnan, na China. Cerca de 60 portuárias e nas estações de caminho-de-fer-
que anda por ali «uma espécie de febre com anos depois chegava ao Porto, sem que ro. Mercadorias ficam paradas nos portos, sem
nascidas debaixo dos braços», uns «bubões». alguma vez se tivesse identificado a sua chegarem às casas de comércio. Estas, assim
No dia 6, o médico mete pés ao caminho. porta de entrada. como algumas fábricas, encerram portas. Há
Correlaciona casos (dez infetados) e mortes Quando, a 17 de agosto, «o governo do pro- gente que fica sem emprego e, por isso, con-
(quatro), recolhe amostras. No seu próprio gressista Luciano de Castro» decreta medidas dena quem decreta a peste. Há manifestações
laboratório bacteriológico – munido já de nas ruas e os jornais ajudam à missa. Diabo-
um microscópio –, começa a não ter dúvidas: liza-se Ricardo Jorge, que passa a fazer-se
tudo indicava tratar-se da peste bubónica, acompanhar por escolta policial, mesmo que
vulgo «peste negra». nunca tenha defendido o cordão sanitário. A
No dia 12 informa, por ofício, o governador
civil da cidade, Pina Callado – que, por sua
Em 1840, esta peste burguesia, em franco progresso económico, vê
a sua vida andar para trás e convoca reuniões
vez, põe ao corrente as autoridades em Lisboa tinha sido identificada no átrio do Palácio da Bolsa. E contabilizam-se
–, com a recomendação de «internamento e
isolamento de todos os contagiados». A 28
na China. Não se sabe cerca de 20 mil saídas da cidade antes da che-
gada das tropas, pois a quem tentasse «iludir
de julho reafirma a sua convicção, já com qual a porta de entrada o cerco» aplicava-se «pena de prisão de três
os resultados dos exames bacteriológicos.
A confirmação seria validada a 8 de agosto
no Porto, 60 anos a seis meses».
A situação piora quando surgem as
pelo diretor do Instituto de Bacteriologia de depois tropas: Infantaria 3 de Viana do Castelo,

68 V I S Ã O H I S T Ó R I A
AURÉLIO DA PAZ DOS REIS/CENTRO PORTUGUÊS DE FOTOGRAFIA

Cuidar dos mortos Carro funerário da Misericórdia do Porto

Infantaria 20 de Guimarães, Cavalaria 6 tempo de eleições, nas quais foram eleitos, pobre e suja, com a sua classe operária a viver
de Chaves, Cavalaria 10 de Aveiro. Cer- pela primeira vez, três republicanos do Por- em condições insalubres e sem saneamento
ca de 2500 homens deveriam estabele- to, apelidados de «deputados da peste») e básico. Abundavam os ratos e as pulgas –
cer «um cerco militar que partia de Leça recordavam outro cerco à cidade, durante a talvez a razão mais plausível da transmissão
da Palmeira, seguia o rio Leça, S. Mame- guerra civil de 1832-34. O governador civil, do bacilo ao homem. Houve desinfestação,
de Infesta, Ermesinde, Valbom, passando Pina Callado, bem como o presidente da casas queimadas.
o rio Douro, em Avintes, e indo até ao mar, câmara, João Lima Júnior, demitiram-se, Depois de ter sido nomeado inspetor-geral
em Gaia, na zona da Madalena. O cruzador mas as suas demissões não foram aceites. de saúde pública, em Lisboa, Ricardo Jorge
Adamastor seria mobilizado para garantir o Ricardo Jorge, que considerou o cordão promove a criação do Instituto Central de
cerco marítimo». sanitário «um disparate máximo», acabou Higiene, o que leva à criação de uma Dire-
refugiando-se em Lisboa. ção-Geral da Saúde. A epidemia foi natu-
O «boicote» de Lisboa Os jornais – Comércio do Porto, Jornal de ralmente controlada. O cordão sanitário foi
Ninguém aceitou de bom grado uma decisão Notícias e Voz Pública – negavam a peste, levantado em dezembro, a tempo das festas
tomada pelo governo central e por pessoas alimentavam polémicas em títulos de pri- de Natal. Oficialmente, registaram-se 320
que nunca tinham posto os pés no terreno. meira página com discursos de vitimização casos, com 132 óbitos. Mas há quem ainda
As gentes do Porto viram nesta medida uma face à capital. Ao ponto de Lisboa considerar hoje defenda que «nunca mais o Porto foi
«humilhação». A burguesia e os comer- «urgente» a necessidade de «pronta repres- o mesmo». Instalou-se o ressentimento da
ciantes, que tinham criado a ideia do Porto são» dos seus «desmandos». Aos processos segunda maior cidade do País, «capital do
«cidade do trabalho», olhavam a decisão juntou-se a suspensão. Para a driblar, o JN Norte», face ao poder de Lisboa.
de Lisboa como uma forma de boicote aos mudou de nome duas vezes, para Notícias, Este texto, originalmente publicado na VISÃO 1406,
tempos de prosperidade que viviam. Os primeiro, e Diário da Manhã, depois. A ver- de 13 de fevereiro. foi escrito com base em: A Peste
Bubónica no Porto, Ricardo Jorge; O cerco da peste no
políticos, alguns republicanos, encaravam dade é que conseguiu, neste final do ano de Porto, tese de mestrado de David Pontes; O Cerco –
isto como uma consequência do movimento 1899, aumentar a tiragem de 16 mil para 22 Sobre a epidemia de peste bubónica no Porto em 1899
e sobre a sua documentação fotográfica, ensaio de
dos revoltosos de 31 de janeiro, ocorrido oito mil exemplares. Renato Roque. Depoimento de Jorge Alves, docente de
anos antes (ainda por cima, tudo surgia em Tudo isto acabou por expor uma cidade História da FLUP.

VISÃO H I S T Ó R I A 69
EPIDEMIAS // HÁBITOS

O COMÉRCIO DO PORTO Nº 33 1918.02


O COMÉRCIO DO PORTO Nº 281 1899.11.26

O COMÉRCIO DO PORTO Nº 281 1899.11.26

O COMÉRCIO DO PORTO Nº 88 1918.04.16


O COMÉRCIO DO PORTO Nº 196 1918.08

Era uma vez a higiene


sobre a saúde incorporou a higiene também
como fator de prestígio: a elegância e a boa
aparência passaram a estar associadas aos
hábitos de asseio e higiene pessoais. Surgem
Antes até dos conselhos médicos, foi a publicidade assim anúncio nos jornais e revistas dedica-
veiculada na imprensa do final do século XIX e início dos a estes temas.
Logo em 1855, uma notícia ensinou a matar
do século XX que ajudou a divulgar os cuidados a ter percevejos a partir das experiências científicas
por Maria Antónia Pires de Almeida de um «sábio químico francês», que ensaiou
o uso do sabão e resultou! Assim, o jornal

A
O Comércio, que no ano seguinte mudou o
publicidade orienta, fornece infor- Mas a democratização dos produtos de nome para O Comércio do Porto, recomendou
mação, divulga cultura, hábitos de higiene corporal e das habitações não de- aos seus leitores o ensaio desta «receita tão
higiene, elegância e bom-gosto. Gera pendeu apenas da publicidade. Para fica- simples e de tão fácil aplicação» (26/10/1855).
mercados, cria necessidades, aumenta rem mais baratos e acessíveis, estes novos
a procura e intensifica a produção, o objetos de consumo foram o resultado do Lavar as mãos e os dentes
que faz baixar os preços. Antes mesmo desenvolvimento da indústria química, da Curiosamente, as referências aos cuidados
de os relatórios e conselhos médicos serem criação laboratorial de produtos e do isola- com a higiene das mãos estão praticamente
divulgados à população, já os anúncios ensi- mento de substâncias ativas a partir de ma- ausentes dos conselhos médicos publicados
navam os leitores dos jornais diários a lavarem térias-primas de origem natural. No século para o grande público. Por exemplo, durante a
os dentes, a criar hábitos de higiene pessoal, a XIX foi dada grande importância à higiene epidemia de cólera há apenas uma referência
desinfetar as casas como prevenção de doenças. das habitações, que passou a fazer parte do ao «estranho comportamento» dos médicos
Por exemplo, as lâminas de barbear para uso discurso oficial como parte fundamental da do hospital de Roma que, «pela falsa ideia de
diário foram inventadas por um fabricante de saúde das sociedades. Repetem-se nos jornais que a moléstia é contagiosa», não se «che-
lâminas que focou na sua publicidade o aspeto da época as preocupações com a limpeza gavam perto dos doentes senão com a cara
de higiene, limpeza e elegância masculina. e o arejamento das casas, das roupas, dos coberta com máscara e luvas nas mãos…»
Aumentou o mercado e os preços baixaram. móveis, e do corpo dos doentes. O discurso (O Comércio, 20/09/1854). Só no final do

70 V I S Ã O H I S T Ó R I A
O COMÉRCIO DO PORTO Nº 196 1918.08

O COMÉRCIO DO PORTO Nº 196 1918.08


DN Nº 18831 1918.04.18

O COMÉRCIO DO PORTO Nº 27 1918.02


O COMÉRCIO DO PORTO Nº 196 1918.08

Educar o público Alguns anúncios publicados em jornais portugueses

século XIX, perante a epidemia de peste ne- pour la conservation des dents et des gencives. neige preparado especialmente para uso do
gra no Porto, é que Ricardo Jorge introduziu D. de Vitry, chirurgien-dentiste de Leurs Ma- banho, reunindo a vantagem de se conservar
esta ideia revolucionária nas suas Instruções gestés»... (Diário de Notícias, 21/05/1865). Os sempre ao de cima de água, e a de branquear
profiláticas sobre a peste bubónica. Mas até anúncios dos pós-dentífricos e elixires para e perfumar agradavelmente a pele. Vende-se
em 1918 a lavagem das mãos ainda não era desinfeção da boca acentuavam no título a sabão aromatizado a peso. À la Corbeille
uma prioridade nos conselhos à população. «limpeza quotidiana» para evitar a «dor nos de Fleurs, praça D. Pedro, 101»(Diário de
Assim, foi a publicidade que insistiu no dentes, cariação [sic], e mais padecimentos Notícias, 15/03/1865).
tema e que mais o divulgou. Desde 1899 de boca» (Diário de Notícias, 19/11/1865).
repetiram-se os anúncios a sabonetes, que A pasta dentífrica foi introduzida apenas em Termas e banhos
tinham o valor de educar o público para a 1873, pela Colgate, mas claramente nestes As termas e os banhos de mar também se
necessidade de desinfetar as mãos para evitar anos a higiene oral era ainda algo apenas inserem no movimento higienista, contri-
o contágio da peste. O mesmo se passou com acessível a uma elite. buindo para o desenvolvimento do turismo
a higiene oral: enquanto não há qualquer A mesma perfumaria do Rossio também de saúde, do qual Ricardo Jorge foi grande
alerta de médicos ou autoridades sanitárias anunciou repetidamente neste ano «Grande impulsionador, acentuando a questão da
para a sua necessidade, foi nos anúncios que sortimento de sabonetes. Incluindo os de saúde pela água, assim como a distribuição
se encontraram as primeiras referências à glicerina, pó-de-arroz, e o savon leger à la de águas engarrafadas.
lavagem diária dos dentes. Em 1865, uma Os anúncios de termas começavam antes
perfumaria recentemente aberta no Rossio, do verão e prolongavam-se durante toda a
chamada À la Corbeille de Fleurs, anunciou estação balnear, não esquecendo as refe-
«um grande sortimento de escovas para den- rências à alimentação saudável e à anima-
tes, unhas, fato, cabelo e chapéus; pentes e A elegância e a boa ção necessária a umas férias bem passadas:
muitas qualidades para caspa e alizar» (Diá- «Estabelecimento Hidrológico de Pedras
rio de Notícias, 25/03/1865). E um dentista
aparência passaram Salgadas. Abriu no dia 10 de maio. Assis-
francês, também estabelecido no Rossio, pu- a estar associadas tência médica e farmácia, banhos alcalinos
blicou, na sua língua, um anúncio a «Grand e duches. Vacaria permitindo o regime lácteo
choix de dentifrices, d’une renommée juste-
aos hábitos de asseio rigoroso. Bons hotéis. Casino» (O Comércio
ment acquise; poudre et elixirs très efficaces e higiene pessoais do Porto, 02/07/1899).

VISÃO H I S T Ó R I A 71
Laboratório de //
EPIDEMIIAS CIÊNCIA
Selman
Waksman Foi aqui que, em
1943, o doutorando Albert
Schatz, num projeto financiado
pela farmacêutica Merck,
descobriu a estreptomicina,
começando assim a vencer-se
a guerra à tuberculose

72 V I S Ã O H I S T Ó R I A
O MICRÓBIO
CONTRA-ATACA
Um resumo muito breve da história muito antiga de algumas
das muitas guerras virais, todas elas muito exponenciais
por Clara Pinto Correia*

VISÃO H I S T Ó R I A 73
EPIDEMIIAS // CIÊNCIA

A
s grandes doenças, bem como as Federico Cesi
grandes descobertas mais ou me- No grande

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nos científicas que lhes estão asso- entusiasmo da
«sua» Academia
ciadas, costumam encher de medo
do Lince,
sociedades bipolares como a nossa, descobre-se a
atavicamente dependentes dos con- Hernán Cortez incrível perfeição
ceitos de Bem e de Mal para organizarem os Especula-se sobre a hipótese de ter usado das primeiras
a varíola para conquistar o México células
seus pensamentos – e as suas jogadas polí-
ticas. As doenças causadas por organismos
invisíveis que parecem só precisar de tempo
para se espalharem pelo globo em padrões Louis Pasteur Lazzaro
exponenciais que deixam toda a gente à sua Isolou a vacina Spalanzani
mercê sempre foram as piores. Serviram para contra a raiva, Foi ele o autor
que passa a das primeiras
uns impérios conquistarem outros, para uns
ser usada nos experiências que
exércitos serem chacinados por outros, e até humanos em estabelecem a
para a implementação de políticas perversas 1884 existência de
de exploração colonial. A História nunca in- duas respirações
venta grandes novidades. diferentes, uma
com e outra sem
Nem sequer sabemos muito bem quando oxigénio
é que os primeiros vírus terão infetado as
primeiras populações humanas. Até 2019
a resposta era «há 6 mil anos, na China», A varíola como arma um uso deliberado, agora na América do Nor-
mas depois passou a ser «há 7 mil anos, Ninguém precisou da descrição da morfo- te, em 1763, por iniciativa de Lord Jeffrey
na Alemanha». A descrição de um vírus logia ou da forma de ação dos vírus para Amherst, o comandante das forças inglesas
costumava ser «só tem ARN, muito mais lhes reconhecer a utilidade bélica. Em 1492, na guerra contra os franceses e os índios.Tal
pequeno, simples, e leve do que o ADN», Cristóvão Colombo observa a morte da po- como no caso de Cortez contra Montezuma,
e em 2017 passou a ser «os mais antigos pulação de uma das ilhas das Caraíbas onde ainda hoje se discute se Lord Amherst fez de
também podiam ter ADN»; tal como o «no aporta depois de os chamados «índios» te- propósito, mas, a pretexto da aproximação do
mínimo tem ácido nucleico e membrana rem contactado com marinheiros com va- inverno, enviou aos inimigos a arma viral. Os
simples» veio a dar origem ao moderno ríola. Aparentemente, a segunda ilha já é índios Ottawa do chefe Pontiac agradeceram
«pode nem sequer ter qualquer membrana». exposta à varíola de propósito, para que os uma oferta de cobertores infetados com va-
A história do conhecimento humano está habitantes morram ou fiquem debilitados. As ríola. Escusado será dizer que ficaram todos
cheia de lacunas e reviravoltas. próximas expedições de conquista do Novo doentes, e que ou morreram ou se renderam.
Não temos registos claros de pessoas a Mundo já incorporarão a varíola como arma A Europa somou territórios e lucros, mas não
morrerem de doenças virais como a gripe até de guerra. O que Colombo ainda não sabe é conseguiu libertar-se da sífilis.
chegarmos aos manuscritos do médico ro- que os mesmos três barcos que transportaram
mano Hipócrates, de 412 a.C. Mas o primeiro a varíola para o Novo Mundo vão trazer para Pessoas curiosas
surto unanimemente aceite enquanto tal é a Europa a peste insaciável da sífilis. Perante a evidência do papel de grande des-
já de 1580. E o verdadeiro vírus da gripe, o A partir de 1519, quando Hernán Cortez taque que as doenças e as suas curas desem-
infame Influenza A, só foi isolado em 1930. conquista o México, muito se tem especu- penham na conquista da «legítima superio-
Daqui resultou a primeira vacina para o vírus lado sobre as suas armas secretas. Como ridade dos povos», a luta pelo combate às
A e B, a partir de segmentos inativados do conseguiu um pequeno grupo de bêbados doenças também começa cedo… Combatê-las
vírus, alcançada nos Estados Unidos em famintos deitar abaixo uma civilização tão pressupõe entendê-las, e entendê-las pressu-
1945. Estas datas começam a organizar-se requintada, guerreira e pujante como o im- põe conseguirmos ver alguma coisa que não
de forma suspeita em torno das duas guer- pério Azteca? Cortez parece ter recorrido à se vê. Como o espírito humano é inquieto, há
ras mundiais, e não é por acaso: tal como arma secreta dos conquistadores e enviado muito tempo que há quem queira saber como
as outras grandes vacinas e os primeiros emissários bexigosos para negociarem uma é que estas doenças funcionam. É evidente que
grandes antibióticos, as grandes vitórias dos paz fictícia. Quando viu o seu povo começar se movem por mecanismos invisíveis, que ge-
destemidos caçadores de micróbios têm uma a cair morto com varíola, o imperador Mon- ram, multiplicam e agitam agentes invisíveis.
ressonância bélica que já vem do princípio tezuma acreditou num castigo dos deuses e Desde que, no século IV a.C., Demócri-
dos tempos. rendeu-se. A varíola ainda conheceria mais to apresentou o seu modelo explicativo da

74 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Paul Ehlrich
Em 1909,
encontra um
novo composto
orgânico do
arsénico, a
arsfenamina,
capaz de
combater a sífilis
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matéria composto por átomos em perpétuo estes esforços produzem no século XX? Várias para aí toda a gente, envergonhadíssima, a
movimento no vácuo, que os seus herdeiros guerras locais, duas guerras mundiais e, por chamar-lhe «doença do inimigo»: conforme
procuram encontrar o mundo vivo que certa- fim, Hiroxima e Nagasáqui. as guerras em curso, é a «doença dos espa-
mente existe abaixo do limite de resolução dos A coberto dos seus esforços de contribuição nhóis», «dos franceses», «dos ingleses», e
nossos olhos. No século XVIII do Iluminismo para a guerra, alguns investigadores euro- por aí fora. Como qualquer maldição, é uma
europeu, Voltaire deu a alcunha zombeteira peus centram-se na descoberta de remédios doença importada das colónias. De cada vez
de Micromegas ao mundo minúsculo que é para doenças até ali sem cura, e quase sempre que parece desaparecida, basta uma frente
uma versão minúscula do mundo maiúsculo, causadoras de morte precoce depois de um de combate encontrar outra para recomeçar
um código secreto à espera de uma chave para calvário maldoso e vergonhoso que as des- o seu trabalho dos dois lados da barricada.
podermos decifrá-lo. figura e paralisa. Isto quer dizer que, ao fim A transmissão sexual já é vergonhosa so-
Mas uma coisa é o termo e outra é o con- de cinco séculos de pesadelo, vamos prestar bretudo tendo em conta a quantidade de
ceito. Este já vinha na bagagem como dado a devida atenção à sífilis. prelados e monarcas que vai sendo atingida
adquirido. Era só aparecer um instrumento – mas pior ainda é que a «doença do inimi-
que nos permitisse visualizá-lo. Isso vai ter de As doenças do inimigo go» se propaga especialmente depressa nas
esperar pela Revolução Científica do século A situação da Europa não pode ser mais de- trincheiras, sem a presença de uma única
XVII, quando a tecnologia permite a vários primente. Ninguém sabe travar uma vaga de prostituta, pelo que só resta a explicação da
investigadores com bons patronos construí- fundo destas, embora toda a gente perceba ocorrência de relações sexuais constantes
rem os primeiros microscópios. No grande que a melhor cadeia de transmissão da sífilis entre os soldados todos homens.
entusiasmo da Academia do Lince, formada é o contágio sexual. E, por isso, agora anda Ainda por cima, desde que chega do Novo
em Roma pelo conde Federico Cesi em 1603 Mundo e até nova ordem, a sífilis só se com-
e que contou entre os membros fundadores bate na lógica de usar o fogo contra o fogo.
com o próprio Galileu, descobre-se a incrível Usam-se emplastros de mercúrio e até supo-
perfeição das primeiras células e dos primeiros
Só no século XVII sitórios de mercúrio. Este método corrosivo
organismos unicelulares. A imprensa espalha a tecnologia permitiu não só desfigura como faz sofrer ainda mais
essas descobertas pelos países ricos, onde a os pacientes ricos que recorrem ao mercúrio
classe culta é cada vez maior.
a vários investigadores disponível na terra deles. Também mata os po-
É de toda esta febre de perfeição que a com bons patronos bres que administram esses tratamentos aos
Europa herda o Romantismo, o Colonialis- ricos, como as meninas das ruelas adjacentes
mo e umas ilha distantes para onde exporta
a construção dos ao Cais do Sodré que aplicavam as compressas
prisioneiros e prostitutas. O que é que todos primeiros microscópios de mercúrio à aristocracia lisboeta.

VISÃO H I S T Ó R I A 75
EPIDEMIIAS // CIÊNCIA

Alexander
Fleming
Em 1928, anunciou
ao mundo a
descoberta oficial
da penicilina

A ideia de que as doenças observam uma


moralidade, e de que essa moralidade castiga
uns comportamentos e premeia outros é tão
antiga como a nossa cultura, justifica decisões
e ajuda a manter discriminações. Sempre
foi assim, pelo menos desde que a queda do
Império Romano às mãos dos bárbaros foi
justificada enquanto flagelação divina de uns
bandos desregrados de bissexuais epicuristas,
até às primeiras décadas da sida, inicialmente
apresentada como flagelo dos homossexuais
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desregrados, finalmente castigados pelo seu
modo de vida promíscuo e perigoso para a profiláticos do antigo Egito. Para compreen- vasora» dos doentes como parte da sua cura
sociedade. dermos melhor o pavor da raiva, que justifi- já existia. Faltava passar da ideia de usar os
cou o seu estudo enquanto primeira doença invasores como defesa depois do facto con-
E fez-se a luz meritória da primeira vacina, recordem-se sumado, como os antibióticos fazem contra
Andamos para aqui nestes pânicos morais, registos como os do Município de Londres nas as bactérias, à ideia de usá-los para evitar a
todos eles terrivelmente exponenciais, até que, duas primeiras semanas de janeiro de 1877: criação do facto consumado, que é basica-
está o século XIX a chegar ao fim, e finalmente 29 mortes por hidrofobia só nos hospitais – e mente o que fazem as vacinas conta os vírus.
faz-se a luz. Em 1880 aparece Louis Pasteur só na sequência de internamentos de urgên-
em Paris, de bata branca impecável. Traz o seu cia, sobretudo de crianças atacadas por cães, Antepassados e herdeiros
microscópio monocular numa mão e um tubo raposas, lobos, texugos ou ursos. O primeiro grande expoente de microsco-
de ensaio na outra. Dentro do tubo está um li- Antes de se interessar pela raiva, Pasteur pistas empenhados em entender o funciona-
quido esbranquiçado. Ao menos que se avance já se tinha interessado pela cólera. Este seu mento do mundo invisível no século XVIII
por aí: Pasteur isolou a vacina contra a raiva. primeiro interesse também já tinha sido fru- foi o padre italiano Lazzaro Spallanzani,
Agora já nem se trata de salvar os doen- tífero, por muito que o sucesso assentasse em fundador do Museu de História Natural da
tes, mas de impedir que os que estão bem de fundamentos que para ele eram bastante mais Universidade de Pavia, autor das primeiras
saúde adoeçam, recorrendo às transmissões obscuros: em termos de rotinas laboratoriais, experiências que estabelecem a existência
em cadeia de uma espécie de fragmentos do a ideia de usar fragmentos da «entidade in- de duas respirações diferentes, uma com
parasita. Os seus primeiros resultados vêm de e outra sem oxigénio – e, já agora, de duas
estudos feitos em cães. O sucesso das vacinas reproduções diferentes, uma em que os «mi-
nos humanos torna-se público em 1884. Não houve entre cróbios» se reproduzem sozinhos por sim-
Até aos dias de Pasteur, a raiva não tinha ples crescimento e separação, e outra, muito
uma forma de combate mais científica para
as potências mais complicada, que implica o contacto
além de merecer o nome fino de hydropho- colonizadoras grande físico entre os ovos da fêmea e o esperma
bia, que lhe fora aplicado na aurora da Idade do macho, destinado a formar um embrião
Média. Não havia tratamento para além das
preocupação com independente dos progenitores. Spallanzani
antigas prescrições de pensos com alho e gor- as doenças coloniais infere que os micróbios mantêm a sua simpli-
dura de texugo, não muito diferentes das já re- cidade usando a reprodução por separação,
comendadas no século XI, para utilização nos
até elas começarem e Pasteur beneficia desse conceito na luta
conventos, como métodos anticoncepcionais, a interferir com a contra a raiva tanto quanto outros caçadores
pelo medico português Pedro Hispano, mais de micróbios do período vão beneficiar logo
tarde Papa com o nome João XXI – e que, por
exploração das riquezas depois dele na luta contra outras grandes
seu turno, se inspirou nos antigos supositórios dos trópicos doenças que dantes não tinham cura.

76 V I S Ã O H I S T Ó R I A
A primeira destas é a maldita sífilis. Em A primeira imagem
1909, o médico e químico Paul Ehrlich e o seu Numa microfotogafia
feita pela Universidade
colaborador Sahachiro Hata encontram um
da Pensilvânia, veem-se
novo composto orgânico do arsénico. Chama- estes pontos cizentos
-se arsphenamina, e é a primeira molécula em que são o vírus da gripe
606 amostras que cumpre o desígnio a que
se destina. Chama-se Salvarsan. A Molécula
606 é a bala mágica com que a química con-
tra-ataca. Acabou-se a sífilis.
O Salvarsan não era um composto químico
fácil de manusear e baseava-se num veneno de
poderes letais. Não foi certamente por acaso
que o biólogo, botânico e farmacêutico escocês Prémio Nobel da Medicina. Não quer dizer Um assassino
Alexander Flemming se tornou rapidamente que o curso dramático da guerra tivesse tra- muito bem
conhecido entre a populaça como «Soldado vado a investigação subsequente. Em 1943,
606». Fleming juntou-se a Ehrlich em Londres o doutorando na Rutgers University Albert escondido
para estudar melhor a molécula do Salvarsan, Schatz, dirigido por Selman A. Waksman num Inicialmente, uma das grandes
e conseguiu manipulá-la tão bem que em breve projeto financiado pela farmacêutica Merck, dificuldades na luta contra os vírus
foi o total desconhecimento de causa
conseguia ministrar doses precisas pelo mé- e desta vez seguindo pequenas linhagens de dos que tentavam exterminá-los. Uma
todo então recente e melindroso da injeção cobaias infetadas, também já tinha desco- bactéria vê-se bem em microscopia
intravenosa. Assim que começou a Grande berto a estreptomicina Desta vez, tratava-se ótica, mas um vírus nem pensar. É
em 1892 que o russo Dimitri Ivanosky,
Guerra acompanhou a sua equipa de volta ao da guerra à tuberculose, a mais insidiosa e
baseado em experiências feitas com
Saint Mary Hospital, então transformado em desavergonhada doença dos pobres, gerada plantas de tabaco, compreende que os
hospital de campanha, e começou a ficar muito na miséria mas capaz de atingir os ricos. filtros utilizados para reter micróbios,
impressionado com a quantidade de soldados Em 1945, com tudo o que já se sabia, como efetivos na retenção de bacilos, não
estão a filtrar um outro agente tóxico
feridos que aparentemente davam entrada é que as pessoas haviam de continuar a aceitar
qualquer, que passa pelos seus poros
com pouco mais que infeções causadas por morrer em consequência de uma epidemia ou e atinge em mosaico as folhas do
estilhaços de granadas, mas depois começavam de uma doença? A Ciência trataria de tudo... tabaco sem qualquer dificuldade.
a ter febres altas, pus, inchaços e finalmente, Restava manter a liderança, a calma – e, claro, Depois destas observações, a equipa
londrina de Mill Hill consegue cultivar
lhe morriam nos braços. Eram infeções muito a economia. o agente invisível de Ivanosky em
simples, causadas por micróbios muito simples Resta referir que não houve entre as potên- ovos de pinto. Este é um grande passo
– merecedores já na época, segundo a nomen- cias colonizadoras grande preocupação com à frente no que toca à aceitação do
clatura em uso, do termo «bactéria», que se as doenças coloniais, como por exemplo a conceito do patogene invisível. Depois
destes preâmbulos, o americano
refere a um micróbio com núcleo e membrana malária, até elas começarem a interferir com a Wendell M. Standley viria a ganhar o
externa. O médico suíço usou o método do exploração das riquezas dos trópicos. Ou que Nobel da Química, em 1946, com o seu
médico alemão para descobrir agentes capa- é no mínimo estranho ainda termos de estar trabalho em purificação e cristalização
zes de combater os micróbios causadores das a explicar elementos básicos de bioestatística dos vírus, demonstrando que estes
venenos obscuros têm mesmo uma
infeções dos soldados, e andou a correr caixa a uma cultura que já devia conhecê-los desde estrutura molecular. Foi preciso
atrás de caixa – até que descobriu o bolor da os primórdios da escolaridade obrigatória. esperar pela microscopia eletrónica,
família penicillium que aparentemente tinha Ou mesmo a última moralidade de toda a com as ampliações milhares de vezes
mais elucidativas que proporciona,
derrotado a bactéria causadora desta infeção e nossa arrogância, que nos levou a abusar dos
para vermos um vírus com os nossos
colonizado todo o espaço disponível, impedin- antibióticos e a descurar deliberadamente as próprios olhos.
do-a de voltar a crescer. Testado noutras caixas, vacinas: os «micróbios» têm uma capacidade A partir daqui, o contra-ataque da
o mesmo bolor voltou a colonizar caixas pre- de resposta tão infinitamente maior do que medicina começou, finalmente, a fazer
perfeito sentido em dois carrinhos de
viamente assaltadas por bactérias infeciosas. a nossa, que já conhecemos o registo da sua
definição precisa. As bactérias, que
Em 1928, entre os escombros pouco pro- atividade em Marte desde 1998. Estávamos com qualquer corante se veem com
missores do fim da I Guerra Mundial e as à espera de quê para lhes termos um mínimo qualquer microscópio, combatem-se
infeções devastadoras que haviam de começar de respeito, nestas jogadas sem fim do inter- com antibióticos depois de a pessoa
estar doente. Os vírus, que só podem
com a II Guerra, Fleming anunciou ao mundo minável xadrez do mundo vivo? contrastar-se com o tetróxido de
a descoberta oficial da penicilina. Em 1945, a ósmio e só se veem em microscopia
descoberta do agente antimicróbio vale-lhe o * Clara Pinto Correia é bióloga e escritora eletrónica, evitam-se com vacinas.

VISÃO H I S T Ó R I A 77
EPIDEMIAS // ENTREVISTA

ADELINO CARDOSO
‘As pestes e epidemias
estabelecem a fronteira
entre nós e o Outro’
Investigador da Universidade Nova
de Lisboa nas áreas da Filosofia e História da Medicina,
analisa o efeito das epidemias ao longo dos tempos
por Emília Caetano

Com que recuo histórico podemos falar em epidemias? do Nilo são transformadas em sangue putrefacto, que
Podemos recuar bastante, mas com precauções. As doen- mata todos os peixes e tem um poder contaminador. A
ças têm história e, porventura, não existiu na Antiguidade terceira cobre homens e animais com piolhos e a sexta
nenhum fenómeno análogo à Covid-19. E há, desde logo, com pústulas.
uma questão de linguagem. O nome mais comum que As pragas estabelecem a fronteira entre nós e os outros,
podia corresponder a epidemia é peste ou praga. A palavra entre os bons e os maus, entre o povo judaico e o Faraó.
ADELINO CARDOSO
Investigador do epidemia, que encontramos na fundação da Medicina Segundo o relato bíblico, resultaram, porque o Faraó
CHAM – Centro grega, com Hipócrates, era uma doença que afetava toda libertou mesmo os judeus.
de Humanidades a população de uma região ou de determinada comuni- Mas estava-se no domínio do mítico. Não sei se, histo-
da Universidade
dade. Epi significa ‘sobre’ e demos,' povo’. Portanto, é uma ricamente, existem muitos casos idênticos, mas há um
Nova de Lisboa,
doutorado em doença que se abate sobre um povo. Seja epidemia ou que acho extraordinário e nos diz respeito, enquanto
Filosofia, tem peste, é sempre um fenómeno que se revela imprevisível, portugueses.
coordenado incontrolável e que evidencia a fragilidade do Homem,
projetos como
Filosofia,
quer face ao sobrenatural quer à natureza. Ele mostra-se Refere-se a quê?
Medicina e incapaz, quer pela Ciência quer pela técnica, de controlar À Crónica de D. João I. Quando Fernão Lopes relata o
Sociedade (2007- microrganismos à sua volta que lhe afetam a saúde. cerco à cidade de Lisboa pelo exército castelhano, em 1384,
-2011). É membro tem um capítulo intitulado Da pestilença que andava entre
da Comissão de
Ética do IPO–Lisboa O termo influenza, habitualmente usado para a gripe, os Castelãos e dalguns capitães que em ela morreram. Ali
e do Conselho de não tinha a ver com isso? diz que «Deus teve um papel providencial na proteção
Ética da Fundação Sim. O Homem, pela sua própria condição, estava sujeito dos portugueses e castigo dos castelhanos operando um
Champalimaud à influência de determinadas forças sobrenaturais ou verdadeiro milagre, de modo que os castelhanos eram
fenómenos da natureza. infetados e morriam às centenas, ao passo que os portu-
gueses, mesmo os prisioneiros e outros que estavam em
Quais são as referências mais antigas a estas crises? contacto direto com os castelhanos, ficavam incólumes».
As que nos chegam pela tradição religiosa e pela tradição, É extraordinário ele afirmar que, do lado português,
que não direi científica, mas naturalista. Assim, as fontes ninguém era contaminado. Os castelhanos mandariam
mais antigas não são muito precisas. A Bíblia, no livro do até alguns infetados à frente das suas tropas, para con-
Êxodo, fala nas pragas do Egito. O povo judaico estava tagiar os portugueses, mas sem efeito. E acabaram por
cativo, sujeito às ordens do Faraó e, por isso, Jeová lançou abandonar o cerco. Assim, também aqui foi Deus que
sucessivas pragas para libertar o seu povo. Algumas delas espalhou a peste, para dividir entre os bons e os maus.
têm a ver com a saúde e a doença. Na primeira, as águas Embora os castelhanos também fossem cristãos, na nar-

78 V I S Ã O H I S T Ó R I A
A cura de Naaman
O episódio bíblico
do II Livro dos Reis,
em que o general
sírio é curado da
lepra, é evocado
num vitral da abadia
cisterciense de
Altenberg, Colónia
(Alemanha)


rativa de Fernão Lopes há uma clara preferência de Deus por organismos invisíveis a olho nu e disseminados pelo
pelos portugueses. vento. Não havia qualquer ideia de contágio. Na medi-
cina de matriz hipocrática, que prevaleceu até ao século
Fala em nós e os outros. As pragas não trazem consigo XVII, tudo o que havia a fazer era purificar o ambiente,
o estigma? se necessário de toda uma região. E, quando não era
Até ao século
Sem dúvida. Basta recorrermos a outro exemplo bíblico, possível, as pessoas tinham de fugir. Mas Hipócrates era XVI não havia
que é o da lepra. Diz-se no Levitico que o sacerdote, e um médico muito observador. qualquer ideia
não o médico, pode ver, mediante critérios precisos, se a de contágio»
pessoa com determinadas chagas tem ou não lepra. Em Viu que havia mais alguma solução?
caso afirmativo, o leproso deve rasgar as suas roupas, Constatou que os artesãos que trabalhavam com o fogo
desalinhar o cabelo, tapar-se até a boca, ao mesmo tempo estavam praticamente imunes à peste. Pensou que, fazen-
que diz várias vezes «Impuro, impuro!». E tem de ir viver do fogueiras em pontos nevrálgicos da cidade, o ar seria
para um lugar isolado, fora do acampamento, já que os purificado e a peste vencida. A verdade é que resultou,
judeus eram nómadas. O diagnóstico do sacerdote era embora não creia que se tenha baseado em qualquer
acompanhado pelo estigma, a exclusão. Esta questão do princípio teórico.
Outro surge também na primeira narrativa histórica de
uma peste no espaço europeu. E não havia relação com a guerra?
Isso volta a colocar-nos a questão do Outro. Não é aciden-
E que foi? tal que esta peste surgisse pouco depois do início da Guerra
A peste de Atenas, por volta de 430 a.C., que julgo ser do Peloponeso, que envolveu Atenas e os seus aliados
a primeira bem documentada historicamente. Os dois contra Esparta. Tucídides acha muito surpreendente que
grandes historiadores gregos, Heródoto e Tucídides, fa- a peste ocorresse quando Atenas respirava «uma ótima
laram nela, mas sobretudo Tucídides, na sua História da saúde a respeito das outras doenças». Portanto, haveria
Guerra do Peloponeso. É interessante a coincidência de uma relação entre a invasão da Ática e a peste. A culpa
Hipócrates, que foi o pai-fundador da Medicina ocidental, era do inimigo.
ter ido então expressamente a Atenas para ver o que podia Os camponeses foram uma classe social bastante atingida.
ser feito. A teoria médica, já antes desenvolvida por Hipó- Como havia a guerra, fugiam para a cidade à medida que
crates e a sua escola no livro Dos Ares, Águas e Lugares, as suas terras eram invadidas e muitos perderam a vida.
era a de que a peste resultava de uma contaminação do A peste de Atenas ficou confinada a uma região, mas
ar, que afetava o espaço público. Os ares contaminados há, pelo menos, um caso na Antiguidade que pode ser
produziriam miasmas, que seriam venenos, constituídos considerada uma pandemia.

VISÃO H I S T Ó R I A 79
EPIDEMIAS // ENTREVISTA


O triunfo da morte
Uma pandemia? Um esqueleto
Sim, a peste antonina, entre os anos 165 e 180, que abar- humano cavalgando
cou todo o espaço do Império Romano e foi a primeira o esqueleto de um
cavalo vai colhendo
As pestes peste global do Ocidente. Começou durante o cerco das
as vítimas pelo
mostram os tropas romanas à cidade de Selêucia, na Mesopotâmia, caminho, numa
atual Iraque. A conquista foi lenta e, dadas as deficientes pintura italiana
limites do condições de salubridade do acampamento dos soldados anónima de meados
ser humano, romanos, a peste eclodiu e alastrou-se entre os militares, do século XV
do seu que, no regresso do Médio Oriente, a transmitiram em lar-
conhecimento, ga escala. Assim, alastrou-se pela Europa, Norte de África,
e confrontam- Ásia Ocidental, enfim, pelo que eram os limites do império.
nos com Entre os mortos, contam-se os imperadores Lúcio Vero e
Marco Aurélio. O médico que sistematizou e desenvolveu
a nossa a medicina hipocrática, Galeno, encontrava-se então em
dificuldade Roma e descreveu os sintomas: febre, diarreia, pústulas.
em conviver Fiel à teoria hipocrática de que as pestes resultavam da
com a contaminação dos ares, saiu de Roma, regressando um
incerteza tempo à sua cidade natal, Pérgamo. E escapou à pandemia.

Também a Peste Negra dizimou grande parte da po-


pulação europeia...
Sim, durou de 1347 a 1352/53, e foi extremamente de-
vastadora. Começou na China e espalhou-se pelas rotas
comerciais. A explicação predominante foi então a religio-
sa, que fazia uma associação entre o pecado do Homem, o
castigo divino e a penitência como único remédio. Houve
um número grande de autoflageladores, pessoas que se
flagelavam em público, para aplacarem a ira divina.
Ao mesmo tempo, houve também a posição médica,
embora menos influente, que defendia a fuga, já que a
peste se devia aos maus ares. O rei de Aragão, Pedro III,
casado com D. Leonor de Portugal, filha de D. Afonso
IV, seria surpreendido pela peste quando estava perto de
Barcelona. Seguiu então para Teruel e dali para Saragoça,
onde constatou que a mulher estava infetada. Daí levou-a conjunto de médicos italianos, chamado Conselhos contra
para Jérica, numa zona montanhosa, com bons ares, mas a Peste. Diziam eles que, assim como quem fugia à guerra
ela morreu dois dias depois da chegada. É provável que não corria o risco de lá morrer, quem não respirasse o ar
as próprias pessoas em fuga, neste caso as da comitiva do contaminado evitava ser atingido pela peste.
monarca, fossem as contagiadoras. Essa estratégia de fuga
manteve-se ao longo dos séculos XV, XVI e XVII. Dela se Quando mudou a perspetiva médica sobre a peste?
socorreram personalidades bem conhecidas. A partir do século XVI vamos ter pela primeira vez a ideia
de contágio. Isso deve-se sobretudo a Girolamo Fracasto-
Está a referir-se a quem? ro, que tratou vários casos de sífilis e estudou as causas,
Por exemplo, Petrarca ou Erasmo andaram fugidos à o modo de transmissão e a cura da doença, que surgira
peste. E houve um caso curioso, no final do século XVI, nos finais do século XV e depressa se propagara à escala
em França. Os médicos de Saint-Omer abandonaram a planetária. Com ele surgiu então o conceito de contágio,
sua atividade e foram-se embora. As autoridades muni- entendido como a transmissão de uma doença através de
cipais fizeram um apelo a que regressassem, para tratar um agente invisível, um microrganismo ínfimo, sem que
dos doentes, sob pena de serem destituídos. Eles disseram o portador tivesse consciência disso. Esta nova perspetiva
que sim, mas só voltaram depois da peste. Há também implicava atenção não só à qualidade do ar e das águas,
um documento muito interessante de 1563, escrito por um mas também à proximidade entre indivíduos, passando a

80 V I S Ã O H I S T Ó R I A
“Hoje, tal como
no passado,
as epidemias
mostram os
limites do
ser humano,
do seu
conhecimento
incentivar-se o isolamento e a restrição de contactos com o Olhando para as epidemias ao longo do tempo, que
resto da população e outro tipo de doentes. Rapidamente paralelismos lhe ocorrem?
foram construídos hospitais destinados especificamente a Hoje, tal como no passado, mostram os limites do ser
infetados pela peste. Exemplo disso foram os dois hospitais humano, do seu conhecimento. Portanto, diminuem
criados na periferia, na sequência de peste de 1568, em a confiança no seu saber. Há um elemento sempre
Lisboa. Daí para a frente, encontraremos uma atitude referido quando se fala em pestes ou epidemias, que
diferente, quer da parte médica quer dos responsáveis é ser uma doença desconhecida. Isso sucede desde a
políticos pela saúde pública. E, em Portugal, há uma Guerra do Peloponeso até agora, ao Covid-19. Con-
figura que me ocorre de imediato... frontam-nos com a nossa dificuldade em conviver
com a incerteza.
Quem? A peste e as epidemias alteram muito as formas de
Ricardo Jorge e a sua intervenção na peste bubónica, que convivência. Têm sempre a ver com o coletivo, com o
teve o epicentro no Porto. O que me impressiona é a rapi- espaço público. Em cada circunstância surge o receio de
dez com que este médico portuense respondeu ao alerta que o Outro possa infetar-me. Desaparece uma atitude
de um comerciante, o rigor do diagnóstico, a prescrição fundadora da cidade que é a relação de proximidade
de medidas de confinamento e higiene. Destaco ainda a entre os homens. Gera-se o contrário, a desconfiança,
coragem com que se bateu pelas suas ideias o colocar o Outro no lugar de um potencial inimigo.

VISÃO H I S T Ó R I A 81
EPIDEMIAS // HUMOR

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