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Exatamente isso que Paul Klee queria dizer: “Vocês sabem, falta o povo”. O povo falta e ao mesmo tempo
não falta. O povo falta, o que quer dizer (não é claro e não o será nunca) que esta afinidade fundamental
entre a obra de arte e um povo que todavia não existe, não é e não será jamais clara. Não há obra de arte
que não faça um chamado a um povo que, todavia, não existe.
A arte é endereçamento, pedido de partilha a um ou- grega, do ágape cristão ao contrato moderno. Perda e
tro. Ela o chama, ainda que o ignore, ainda que ele não promessa tramam-se à noção de comunidade. Mesmo
responda, ainda que esse outro talvez não exista. Ela a história foi pensada, como disse Jean-Luc Nancy, “so-
solicita o julgamento, o olhar e a palavra, a recompensa bre o fundo de comunidade perdida – a reencontrar e
de seu dom. Como, porém, esperar consenso quando a reconstituir”. 1 Reencontrar a unidade originária e sua
aquilo que recebe o nome “arte” parece desamparar o verdade foi o objetivo do saber metafísico; reencon-
pensamento e a sensibilidade? Como chamar de “arte” trar-se em semelhança com a face divina e comungar
essa imprecisão de uma nomeação? Ou será nessa im- em um só corpo, a missão religiosa; reconstruir essa
precisão, nesse desamparo, que a arte vem acontecer? unidade no fim do percurso, o projeto histórico da
Como transmitir ao outro aquilo que tocou minha sen- modernidade.
sibilidade? Não são a doação desse toque – em seu
Mas não se produz a comunidade pela vontade de um
desamparo, em seu desconcerto – e sua acolhida por
sujeito coletivo, segundo Nancy. Esse “nós substancial”
um outro as condições de existência da arte? A arte é
foi a grande ilusão moderna e de seu projeto. Uma
indissociável de uma dimensão comum que envolve ilusão que fez a representação social figurar-se muitas
desde nossas projeções da alteridade às figuras sonha- vezes pela imagem de um corpo (coletivo), que guar-
das de totalidade. Um “nós” que implica e interroga da ecos de seu fundo teológico, das noções de carne e
desde a relação a dois até a mais vasta comunidade. A encarnação, da relação com a interioridade carnal e
própria noção de humanidade está em questão nessa insurrecional.
partilha.
“Com”, “entre”, “em”,“fora...”, de diversas vozes ouvi-
De communis: o que pertence a muitos ou a todos. O mos ecoar preposições de relação substituindo os an-
imaginário ocidental alimentaria a promessa de um laço tigos substantivos que pretendiam definir o comum:
total, uma comunidade universal perdida na origem ou comunidade, humanidade, público, povo, família...
prometida no futuro. Não nos faltam paradigmas dessa
Bruno Vieira “Comunidade désoeuvrée,2 inconfessável, confronta-
comunidade (a família, a pólis ateniense, a república
Cidade de areia ,
2006 romana, a primeira comunidade cristã, as comunas) ou da, a comunidade que vem, a hospitalidade incondi-
fotografia (detalhe) figuras aptas a ativar o laço total: do deus Eros à philia cional, a partilha do sensível:”3 nesta época quando se
Foto: Bruno Vieira
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Se Bataille levou ao limite a reflexão sobre a sobe- intimidade. O com é seco e neutro: nem comunhão,
rania e a comunidade, a experiência-limite da co- nem atomização, somente a partilha de um lugar, quan-
munidade da morte e do sacrifício, indiretamente ele do muito de um contato: um ser-junto sem união”. 10
a preservou na dialética da negação, na ausência como O laço dessa coexposição não ata essências, não colo-
finalidade: “a comunicação de cada ser com nada (a ca em jogo sujeitos ou cidadãos, mas singularidades: é
soberania) é a mesma coisa que a comunicação dos um entre-dois. Se o com é exigência para ser, significa
seres (a comunidade)”. 9 Seria então necessário, diria que só poderá ser como preposição de relação ou
Nancy, pensar a comunidade como o impossível para como verbo transitivo, como “transit”. Só poderá ser
então retornar à “comunidade daqueles que são sem como “singular plural”. 1 1
comunidade”, conjecturada por Bataille.
A existência é, portanto, ek-sistência (ek-stase), um fora
Se Nancy se empenha na elucidação dos sentidos dela mesma, ex-posta. Uma pluralidade no próprio ato
ontológicos que alimentaram as ilusões do comum, é da exposição que é “excesso” e “desvio”. 12 É a experi-
para pensá-lo além deles. É apenas pela exposição de ência de espaçamento e de seu fora extático, como
uns aos outros, de uns com outros, que o comum (não reinterpretação do êxtase de Bataille, que abre a ex-
substancial) poderá ocorrer, responderá Nancy. Exis- periência do comum.
tir não é outra coisa senão ser exposto: sair da identi-
dade de um si mesmo e de sua pura posição, expon- Blanchot escreveria A comunidade inconfessável em
do-se ao fora, à exterioridade, à alteridade e à altera- resposta ao artigo de Nancy. Ao paradoxo apontado
ção. O comum não é sobreposto ao existente. Este por Nancy no pensamento de Bataille sobre um co-
não tem consistência própria e subsistência à parte: é mum que, sem próprio, sem nome e sem cabeça, ain-
pela coexistência que se “definem, a um só tempo, a da preserva como finalidade sua própria ausência,
própria existência e um mundo em geral”. Há apenas o Blanchot responderia com uma “comunidade da au-
“com”: a proximidade e seu espaçamento, a estrangei- sência” no lugar da ausência da comunidade. Uma
ra familiaridade de todos os mundos no mundo. Existir comunidade sem comunidade na partilha de um prin-
é coexistir, existir com, a partir desse com. É um “com” cípio, apropriado de Bataille, de incompletude e in-
extraído da com-munidade, como “índice mais limpo suficiência. A partilha de um silêncio, de um
do distanciamento no coração da proximidade e da “inconfessável” e de uma intimidade sem deus e sem
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eu. “A ilusão acéfala é aquela do abandono vivido em uma palavra: seu rosto, seu eidos.”18 Um fora, como o
comum, o abandono de e a angústia última que dá o espaço ao lado, como a vizinhança próxima, como o
êxtase”. 13 ter lugar para a comunidade que vem. “O ter-lugar de
todo ser singular é já sempre comum, espaço vazio
Esse princípio de insuficiência não é busca para associ- oferecido à única, irrevogável hospitalidade.”1 9
ar-se a outro com o qual formaria, dialeticamente, uma
“substância de integridade”. 14 Não se busca o outro Ora, pensar uma democracia por vir, que não cumpra
para se reconhecer, mas para “ser composto e decom- mais o papel de ideal universal e regulador, mas que
posto constante, violenta e silenciosamente”. Para co- permaneça suspensa à prática da hospitalidade incon-
locar a própria existência em seu questionamento ou dicional, foi o que propôs Jacques Derrida. 20 Hospita-
no questionamento de seu próprio. “A existência de lidade como prática da acolhida sem álibi, metafísico
cada ser apela ao outro ou à pluralidade de outros”, ou teológico, que se abra à alteridade absoluta. Hospi-
diz Blanchot: é essa privação que o torna consciente talidade que não seja condicionada por regras ou con-
da impossibilidade de ser ele mesmo, de se insistir como tratos, que não submeta o outro à violência de sua
ipse ou como indivíduo separado. A insuficiência não casa e de sua identidade, que não exija sequer a titulação
se coloca a partir de um momento de suficiência, mas de estrangeiro e um nome de família para ser aceito. A
do “excesso de uma falta que se aprofunda à medida noção de incondicionalidade (da hospitalidade, do dom,
que se preencheria”. 15 do perdão) em Derrida requer interrogação e negoci-
ação incessantes, no aqui e no agora, entre o incondi-
Singularidade qualquer: o ter lugar do comum cional e as condições efetivas em que um aconteci-
mento pode ter lugar.
Pensar uma política da singularidade qualquer, isto é, de
um ser cuja comunidade não fosse mediada nem por A aporia da partilha
condição de pertencimento nem pela ausência de toda
condição de pertencimento (como a comunidade nega- Foi debruçando-se sobre o tempo que Roland Barthes
tiva de Blanchot), mas pelo próprio pertencimento,1 6 colocou-se como questão o viver junto. Entre a soli-
foi o que se propôs Giorgio Agamben. dão e a comunidade, como imaginar uma topologia
da distância e da proximidade? Algo como a “aporia
Partindo da etimologia de qualquer, quodlibet, “o de uma partilha da distância”, 21 como denominou essa
ser que toda forma importa”, em geral traduzida do estranha “fantasia ou fantasmática” do “viver junto”. A
latim equivocadamente como “não importa qual, in- essa fantasia, o filósofo daria o nome de “idiorritmia”.
diferentemente”, Agamben afirma que “o ser que Composta de ídios (próprio) e rhythmós (ritmo), a
vem é um ser qualquer”. 17 Nem identidade, nem palavra é apropriada do universo religioso, mas para
conceito, o que determina a singularidade é a tota- se estender e abrir-se ao mundo profano . Idiorritmia
lidade das possibilidades: o “tudo importar” do qual- remete a toda comunidade em que o ritmo de cada
quer, não sua indiferença. A singularidade nesse um possa ter vez. Pensada a partir do cotidiano e
qualquer, que a tudo importa, renuncia assim ao fal- seus ritos, de suas cadências particulares, de suas re-
so dilema entre o “caráter inefável do indivíduo e o gras de proximidade, é a tentativa de conciliar a vida
inteligível do universal”. O comum é a zona de coletiva e a liberdade de cada um, a solidão e a soci-
indecidibilidade entre o próprio e o impróprio ou, abilidade do grupo, a partir do uso do tempo. Um
antes, é a impropriedade incorporada. viver junto que não se estabelece na homogeneidade,
mas que permite várias modalidades de encontro, que
O que o qualquer adiciona à singularidade, na vizinhança se desregula e se engendra na fluidez aleatória dos
contaminadora das palavras, é um espaço vazio adja- tempos e dos episódios.
cente, como a própria palavra. Um fora que, em várias
línguas européias, significa “à porta”: forest em latim, à Se Barthes viu, na “partilha das distâncias”, uma aporia,
porta da casa; em grego, a soleira. “Não é apenas o Jacques Rancière diria que a própria partilha (partage
espaço situado além de um espaço determinado, mas em francês) comporta ambigüidade: “pelo termo cons-
é a passagem, a exterioridade que lhe dá acesso – em tituição estética deve-se entender aqui a partilha do
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sensível que dá forma à comunidade. Partilha significa nesse desvio que a política se constitui. O nós que se
duas coisas: a participação em um conjunto comum e, enuncia nesse intervalo político é antes “o salto da
inversamente, a separação, a distribuição em quinhões. metáfora” e não forma de comunhão. Um nós que só
Uma partilha do sensível é, portanto, o modo como se existe como ficção.
determina no sensível a relação entre um conjunto
comum partilhado e a divisão de partes exclusivas”. 22 Como a arte, a política constrói ficções. Como a arte,
ela constrói novas relações entre o visível e seu signi-
Uma comunidade política é, para Rancière, sempre ficado, entre o singular e o comum, entre a passivida-
reconfiguração, deslocamento no interior de um co- de e a atividade. “Mas a arte não produz conheci-
mum para colocar ali o que não era comum. É diferen- mentos ou representações para a política. Ela produz
ça reivindicada no interior de uma “figura de comuni- ficções ou dissensos, agenciamentos de relações de
dade”, subjetivação imprópria que a redesenha, desfa- regimes heterogêneos do sensível. Ela os produz não
zendo-a, porque tal experiência nova e incomum não para a ação política, mas no seio de sua própria polí-
poderia ser incluída nas partilhas existentes sem esti- tica”25 . Se a arte recompõe a experiência sensível que
lhaçar os códigos de inclusão e os modos de visibilida- se abre às novas subjetivações políticas, Rancière afir-
de que as regulavam. mará que a arte diretamente política, denominada
engajada, ativista, é vazia de sentido. A arte é política,
O comum não aparece nas representações substanci- sim, dirá, enquanto “o que ela determina interfere
ais, mas nas fraturas, nas aberturas de novos mundos com o recorte dos espaços e dos tempos, dos sujei-
que surgem de desregramentos e das redistribuições tos e dos objetos, do privado e do público, das com-
dos lugares e das temporalidades, dos corpos que rei- petências e das incompetências, que define uma co-
vindicam ocupar outros lugares e ritmos diferentes munidade política”. 2 6
daqueles que lhes eram demarcados. O comum surge
nos interstícios de um tecido de dissensos, quando Rancière reprovará em particular a “estética relacional”,
novas figuras do sentir, do fazer e do pensar, novas teorizada por Nicolas Bourriaud, uma vez que ela de-
relações entre elas e novas formas de visibilidade dessa seja operar como “medicina social”, em que a arte tem
rearticulação são demandadas e engendram novas for- a tarefa de “restaurar as falhas do vínculo social”, nas
mas de subjetivação. A política é assim o estabeleci- palavras do próprio Bourriaud. Ao fazê-lo, essa arte
mento de relações inéditas entre as significações, as exaure a invenção política das situações de dissensos,
significações e os corpos, os corpos e seus modos de que abrem mundos em um mundo que se lhes opõe.
enunciação, lugares e destinações.23
Bourriaud, em seu livro Estética relacional,27 defende a
A estética está no cerne da política, dirá. “A multiplica- tese de que, em um mundo em que a comunicação
ção da arte ou sua captação fatal pelo discurso, a gene- engole os contatos humanos em espaços de controle,
ralização do espetáculo ou a morte da imagem são transformando os laços sociais em produto e imagem,
indicações suficientes de que, hoje em dia, é no terre- a arte permanece terreno rico de experimentações so-
no estético que prossegue a batalha ontem centrada ciais, criando microutopias de proximidade,
nas promessas da emancipação e nas ilusões e desilu- microterritórios relacionais. Única instância capaz de
sões da história.”24 preservar-se da uniformização dos comportamentos,
último espaço de liberdade, a arte volta-se para a cons-
O comum aparece nos interstícios, no “entre”. Não tituição de modelos de sociabilidade. Por isso a prática
um “entre sujeitos”, uma intersubjetividade, mas entre artística dos anos 90 se tornaria, segundo o autor, pre-
um nós enunciador e o nome desse nós enunciado, dominantemente “relacional” ou “modeladora”: ou os
entre uma subjetivação e sua predicação. Assim, quan- objetos de arte são transitivos da relação entre indiví-
do se diz “nós somos o povo”, esse povo não é uma duos e grupos, entre artista e mundo, entre especta-
identidade, é um ato de subjetivação, uma simbolização dor e mundo; ou o artista transforma a própria esfera
e uma ficção. Entre esse nós e o povo, ou entre uma das relações inter-humanas em obra de arte. Herança
subjetivação e sua predicação, há, sobretudo, desvio, da vanguarda, sem o dogmatismo teleológico e seu
jamais coincidência. Não apenas porque o desvio per- imaginário baseado no conflito. O conflito exigido, para
mite as novas formas de subjetivação, mas porque é Rancière, nos redesenhos do comum.
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dissentimentos. de escolha espontânea e particular dela participar. Esse
é um dos aspectos mais interessante que podemos des-
Originário e inato em cada sujeito, o juízo estético dobrar do sentido de autonomia suposta no juízo esté-
kantiano é juízo afetivo: é tributário da crença iluminista tico formulado por Kant: é a liberdade do espectador
em uma humanidade ligada por laços fraternos. Sua de concordar ou discordar do juízo do outro e de unir-
autonomia e liberdade a qualquer fim prescrito de or- se a essa comunidade.
dem cognitiva, empírica e moral o distinguem dos de-
mais juízos. Se o juízo estético é subjetivo, como torná- O que Kant pretendia então ao afirmar que “cada um
lo comunicável? Em seu desígnio transcendental, é juízo espera e exige de qualquer outro a consideração pela
partilhado por todos os homens: é o puro sentimento comunicação universal, como se a partir de um con-
transitado imediatamente. O que está em jogo nessa trato originário ditado pela própria humanidade?”33 A
“comunicabilidade originária” é a existência de uma tese de Kant sustenta que juízo do gosto, não sendo
comunidade naturalmente sentimental, estética. O juízo
demonstrável, só pode demandar assentimento uni-
de gosto designa assim uma espécie de sensus
communis, um “sentimento comunitário”31 que nos versal. Por outro lado, todos nós, em nossa humanida-
anuncia uma comunidade original “ditada pela própria de, partilhamos a capacidade de julgar esteticamente
humanidade”. Pressupõe, portanto, “a presença de pelo sentimento, mas podemos no máximo comparar
outros”, 32 como diz Arendt. Poderíamos concluir daí nossos julgamentos, como se “no lugar de outro”. “No
que o espectador do juízo estético ocupa um lugar lugar do outro” – e não pelo outro – passa a ser, assim,
ambíguo: afastado da ação, mas inserido em uma audi-
uma das chaves para se compreender a
ência com quem partilha seu ponto de vista.
comunicabilidade do juízo estético. A existência de “so-
Se a razão prática dita os juízos morais, o mesmo não ciabilidade natural”, requisito do homem como criatu-
ocorre com o gosto: esse afeta diretamente; não media- ra destinada à sociedade, ou seja, à própria humanida-
do pelo pensamento, dele não se depreende o certo ou de, é testada no juízo estético. 3 4 Não sendo
o errado, não interferem os imperativos categóricos, o
demonstrável ou obrigatório, apenas podemos pres-
dever ou a obrigação. Se todos os juízos se endereçam
ao outro e se refletem sobre os outros, a diferença fun- supor o sensus communis na experiência estética,
damental do juízo estético é que, se a comunidade ética “como se” existisse sentimento compartilhado, “como
é prescrita e conduzida por deveres e obrigações que se” existisse comunidade, “como se” existisse a huma-
cerceiam a sensibilidade humana, a comunidade estética nidade. O que o juízo de gosto nos promete e propõe
não preceitua a adesão forçada de todos a um fim, mas
– não sem suspeita de sua (im)possibilidade? – é a pró-
fica aberta à adesão de cada um: qualquer um pode fa-
zer parte dessa comunidade sentimental, mas depende pria existência de um “nós”.
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A prerrogativa do outro qualquer de curiosidade. Arte como endereçamento ao outro
qualquer “que toda forma importa”, como traduziu
O que dizer então da arte moderna que, distante do Agambem, como partilha do comum incomum, do
horizonte de consenso universal, foi marcada pelo próprio impróprio.
dissentimento? Pela rejeição de muitos, pela acolhida
de alguns. Uma após outra, as convenções da arte fo- É essa transmissão do intransmissível que descon-
ram transgredidas, abandonadas nesses dois séculos, o certa a sensibilidade, que desabriga o pensamento,
que impôs incessante renegociação do que é arte. que abre, quem sabe, a possibilidade de amar, a
Negociação levada ao limite pelo ready-made de possibilidade de “tomber amoureux” que a arte ace-
Duchamp, que evidenciou a ilusão da comunidade es- na em várias de suas mitologias de origem como em
tética originária e questionou o pacto transcendental seus juízos de gosto. Fenda na espessura do mundo
entre sujeitos suposto no juízo estético kantiano, ao
para que esse nós tenha lugar e existência. Um nós
apontar a própria arte como convenção a ser acorda-
como ficção, desvio, êxtase. Um nós em perpétuo
da. Duchamp, porém, reformula a autonomia do juízo entrelaçar e em imprevisível fuga.
estético de Kant. “Os olhadores é que fazem o qua-
dro”, dizia o artista. O espectador/olhador é soberano Marisa Flórido Cesar é doutora em Artes Visuais pelo Programa
em seu juízo de arte, criador de seus acessos e senti- de Pós-Graduação em Arte Visuais da EBA/UFRJ, na área de His-
tória e Crítica da Arte. Este artigo é o resumo de um dos capítu-
dos, árbitro de sua escolha e do acolhimento (da arte,
los da tese de doutoramento intitulada Nós, o outro, o distante,
do outro/si). Autonomia da arte como prerrogativa do/ sob orientação da professora Glória Ferreira, a quem agradeço.
com outro.
Notas
A arte contemporânea radicaliza em acordo instável
1 Nancy, Jean-Luc. Lacommunautédésoeuvrée. Paris: Christian Bourgois
a renegociação do que é arte. O que boa parte de Editeurs, 1986: 29.
suas práticas atuais faz é apontar pactos adjacentes a
2 Na dificuldade de tradução precisa, preferi manter a palavra em
essa nomeação. Talvez para permitir a reflexão sobre francês, como no original.Désoeuvréeé apropriado de um ter-
a viabilidade de um contrato social nestes tempos pós- mo utilizado por Blanchot,désoeuvrement,“desfazimento”.
iluministas. Pactos que são engendrados antes e du- 3 Lacommunautédésoeuvrée (1983) eLa communauté affronté(2001)
rante a produção e a recepção de um trabalho de de Jean-Luc Nancy; Lacommunautéinavouable (1983)deMaurice
Blanchot; La communauté qui vient: théorie de la singularité
arte, especialmente na rua, quando está desprotegido quelconque(1990) de Giorgio Agambem;Da Hospitalidadede
do museu e da galeria como moldura de recepção Jacques Derrida; A partilha do sensível (2000) de Jacques Rancière.
de arte. La communauté désoeuvrée,que abre a discussão sobre a co-
munidade, surge primeiro como artigo, em 1983, na revista Alea.
A arte é endereçamento, apela a um nós que excede 4 Nancy, 1986, op.cit.: 11.
qualquer desenho e promessa. É solidão e fora da so- 5 Idem, ibidem: 56.
lidão. Entre a falta e o excesso, entre o encontro e o
6 Blanchot, Maurice.La communauté inavouable. Paris: Les Éditions de
desvio, entre o laço e a crise, há sempre dom e violên- Minuit, 1983: 11.
cia nessa relação, que é a violência em qualquer rela-
7 Nancy, Jean-Luc. La communauté affrontée.Paris: Éditions Galilée,
ção com outro, mediada ou não pela arte. Uma rela- 2001: 42.
ção que não é apenas apaziguadora, mas tanto hostil 8 Acéphale foi revisa que teve quatro números ao longo de quatro
como hospitaleira, como nos diz Derrida ao apontar o anos, de 1936 a 1939 (em meio, portanto, aos movimentos fas-
étimo comum às duas palavras (do latim, hostis). cistas e aos totalitarismos que ascendiam a partir da Europa).
Dirigida por Bataille, a referência a Nietzsche é central. O primei-
ro número, La Conjuration Sacrée, apresenta o Anti-Deus
Enfrentar essa ambigüidade e repensar a arte em Acéphalee afirma que “o que nós (GeorgesAmbrosino,Georges
receptividade alargada é nosso desafio. Arte como Bataille, Pièrre Klossowski e André Masson) empreendemos é
uma guerra”. A comunidade acéfala surge na mesma época, em-
transmissão do intransmissível, como dizia Blanchot, não bebida nas mesmas disposições e reflexões.
como impasse, mas como abertura ao outro. Não o
9 Nancy, 1986, op.cit.: 58.
outro como o idêntico das minorias ou o antropológi-
co de culturas distantes expostos como em gabinetes 10 Nancy, 2001, op.cit.: 43.
24
12 Idem, ibidem. 110, 2004: 51-79. [Disponível em http://roundtable.kein.org/files]
26 Idem, ibidem.