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uma espécie de quebra-cabeça composto de, ao menos, três áreas diferencia
das: um pequeno centro, uma áreaintermediária relativamente desenvolvida e
uma enorme periferia.'^
Fernando A. Novais^ notou, com grande propriedade, que os lucros de
rivados da captura dos ameríndios ficavam nas mãos dos colonos. Por outro la
do, a acumulação gerada pela conexão africana acabava nas mãos de comer
ciantes metropolitanos especializados no comércio dessa mercadoria única, o
cativo africano. Novais chegou a propor que "é começando com o comércio de
escravos que é possível entender a escravidão colonial, e não o contrário".^ O
comércio de escravos não deveria ser interpretado como um efeito colateral do
sistema colonial escravista, mas o contrário.® Mário Maestri concluiu que toda
a estrutura colonial dependia dos mercadores de escravos e de seus interesses.^
Dale Tomich relacionou o desenvolvimento do trabalho assalariado, na Eu
ropa, à expansão da escravidão no Novo Mundo, ressaltando que não haveria
acumulação de capital, na Europa, sem a exploração do trabalho escravo na
periferia. Como Novais afirmou,sem meios-termos: as colônias mostravam
as vísceras da Europa"." Entretanto, devemos reconhecer que enquanto a es
cravidão for predominante, a relação capitalista pode ser apenas esporádica e
subordinada, nunca dominante", nas palavras de Marx.'^
Não deveríamos, contudo, nesse processo, subestimar a importância dos
mercadores africanos de escravos. Herbert S. Klein recorda que os africanos
controlavam o volume total e a origem étnica dos cativos oferecidos aos eu
ropeus, vendendo os escravos a preços que eram, ao menos, capazes de ma
nipular.'^ O estudo mais aprofundado do papel dos africanos no início do perío
do moderno concluiu que
devemos aceitar que a participação africana no tráfico de escravos era voluntária
e estava sob o controle de africanos [...] o desejo da elite política e comercial
africana de fornecer escravos deveria ser buscado na sua própria dinamica inter
na e história.'"'
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tivermos conscientes dos níveis insuportáveis de barbarismo associado à es
cravidão no Novo Mundo, torna-se fácil entender a importância dos quilom
bos.'^ A resistência do negro à escravidão foi característica marcante da
história dos africanos nas colônias americanas, e os escravos responderam à
exploração com a má vontade, a sabotagem ao trabalho, a revolta ou a fuga
para quilombos." Considerando-se que a línguafranca do período era o latim,
é natural que os acampamentos de fügitivos fossem chamados, nos documen
tos da época, res publicae (Estados), termos logo traduzidos para as línguas
modernas como repúblicas, republics, républiques.'^ Por esse motivo, ainda
hoje se utiliza a expressão "República de Palmares", cujo sentido nada tem a
ver, portanto,com a idéia de "regime republicano", por oposição à monarquia,
e Palmares nunca foi uma república nesse sentido. Outras designações, como
quilombos, maroons,palanques, mocambos foram introduzidas um pouco de
pois, normalmente de forma depreciativa. Nos documentos em português re
ferentes a Palmares o quilombo foi chamado mocambo, do ambundu mukam-
bo, "esconderijo".^" O termo inglês maroon deriva do castelhano címarrôn,
inicialmente aplicado a animais fugidos,^' e constitui uma boa tradução dos
vocábulos latinos eruditos usados nos documentos, latebra e pagus.^^
Quilombos logo se tomariam comuns na vida colonial americana,sendo
o mais efetivo meio de se opor à escravidão, um desafio direto ao sistema pa
trimonial e autocrático.^' Gilberto Freyre estudou jomais do século xix e con
cluiu que os escravos fugidos tinham sido especialmente maltratados por seus
capatazes, antes da fuga,e o mesmo,com toda a probabilidade, devia ocorrer
nos primeiros séculos da colonização. Os quilombos foram estudados por
diversos estudiosos e o quilombo dos Palmares, datado do século xvn,foi lo
go considerado o maior, mais importante e duradouro mocambo da Améri-
ca.^^ A maioria dos habitantes do famoso quilombo veio da África, particular
mente as áreas bantos dos atuais países africanos Angola e Zaire. A história da
intervenção portuguesa na África é bastante longa. Em 1491 uma missão por
tuguesa chegou à corte do rei Nzinga Cúwo, chefe de uma confederação de
Estados locais (atual Zaire). O monarca, chamado manícongo, e muitos de
seus auxiliares diretos tornaram-se cristãos. O rei cristão Afonso ascendeu ao
trono em 1506, mas os portugueses estavam mais interessados em escravizar
do que em catequizar os habitantes locais e, após alguns anos, Afonso passou
a ser considerado, por seu próprio povo, como um títere. O rei perdeu o con
trole da situação e, após a sua morte, em 1545, o tráfico de escravos acabou
por incentivar a rivalidade entre os chefetes locais, solapando a autoridade do
manícongo. A chegada dos jagas orientais ocasionou a derrocada do reino
manícongo.
A escravização tinha dizimado a população e destruído a unidade do
reino. Os interesses escravistas dos portugueses dirigiram-se para Angola, ao
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sul.-^ Durante o século xvi,os caçadores de escravos buscaram-nos na costa, ao
sul e, a partir do início desse século, um pequeno Estado Ndongo expandiu-se
e fortaleceu-se, ganhando independência em 1556. Em 1571, tomou-se uma
colônia portuguesa. Pelos dois séculos sucessivos. Angola esteve condenada a
produzir mão-de-obra escrava para as fazendas no Brasil e em outros lugares."^
O comércio português atlântico obteve escravos, principalmente, da costa an
golana, ao sul do rio Zaire, especialmente de Luanda, a partir de 1570, e de
Benguela, desde 1610.'® A maioria das sociedades africanas escravizava os
prisioneiros de guerra, mas raramente os vencedores retinham-nos como
serviçais e a grande maioria deles era vendida para os comerciantes de es-
cravos.^^
Uma aliança formal entre os imbangalas ou jagas e os portugueses for-
malizou-se em 1612. O Estado imbangala culachingo, assim como outros Es
tados bundos, formaram acampamentos mercenários vizinhos aos portugue
ses. Esses Estados eram governados por guerreiros treinados que capturavam
os camponeses locais para venda como escravos e que se juntavam aos por
tugueses em expedições rumo ao interior africano. Ao sul do rio Cuanza,entre
tanto,os guerreiros do kilombo estavam em permanente hostilidade com os eu
ropeus. O kilombo era uma sociedade guerreira ovimbundo com rituais de
iniciação muito precisos e com uma disciplina militar estrita. A magia associa
da aos seus dirigentes, bem como sua destreza militar, permitiram que esses
bandos de guerreiros imbangalas dominassem os bundos, no final do século
XVII. Os guerreiros do kilombo forneciam cativos em troca de bens europeus. ®
Do outro lado do oceano Atlântico, no Brasil, os portugueses logo desen
volveram a cultura da cana-de-açúcar. Em 1570,já havia mais de cinqüenta
engenhos na colônia e,em 1584,15 mil escravos africanos por aqui labutavam
nas fazendas.^' Os índios também eram escravizados e alguns autores consi
deram que os bandeirantes introduziram cerca de 350 mil escravos, nos sécu
los XVI e XVII, ou um terço de todos os escravos que atu9.ram na economia
brasileira nesses dois séculos.^^ É provável, portanto, que as fazendas combi
nassem escravos africanos e indígenas com algum trabalho assalariado.
A produção do açúcar era controlada pelos portugueses e financiada pe
los Países Baixos. Em 1629 os holandeses ocuparam Pernambuco e ficaram
em Recife até 1654.Em 1600já havia cerca de 20 mil escravos africanos e,em
meados do século, de 33 mil a 50 mil.'^"* Graças à invasão holandesa e ao baixo
preço do açúcar, a partir do terceiro quartel do século ocorreu um declínio con
tínuo da indústria do açúcar, que se acentuou em 1670.^^ Politicamente, o
Brasil tinha sido permeado por formas patrimoniais de organização, e
podemos interpretar a política colonial brasileira como uma série de lutas pa
trimoniais entre a Coroa e seus súditos em busca do controle dos recursos e
29
oportunidades,impedindo a emergência do capitalismo moderno por estas pla
gas.^® Em Portugal, seja sob os Habsburgos, até 1640,ou após a restauração da
independência,a nobreza reteve o controle do Estado e poderíamos considerar
a perseguição oficial dos cristãos-novos, na verdade,como um ataque aos mer
cadores em geral, o que fazia parte da luta entre a burguesia e a nobreza."
Logo após a restauração da independência, o rei João iv estabeleceu o
Conselho Ultramarino, cujo estatuto foi dado a público no dia 14 de julho de
1642.^' Como conseqüência do controle central patrimonial, criou-se a Com
panhia Geral do Comércio para o Estado do Brasil,em 1647,e,a partir de 1661,
navios estrangeiros não podiam mais aportar na colônia, e desde 1684 os
navios que partiram do Brasil não podiam atracar em portos estrangeiros.^' No
interior da colônia, os bandeirantes tiveram um papel importante na manuten
ção da ordem escravista. Viajavam distâncias gigantescas e, a partir de 1620,
sua principal área de atuação confinava com o Paraguai, mas eram usados,
também no Nordeste, para caçar escravos fugidos. É nesse contexto que deve
mos considerar a história dos mocambos pernambucanos do século xvii, sua
expansão, guerras e destruição.
Palmares nasceu de escravos fugidos que se estabeleceram na Zona da
Mata, cerca de setenta quilômetros a oeste do litoral, no início do século xvii
(mapa I).
Pemambuco
3
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Andalaquituxet^ ^Màtaco
SúQupir|eè
Maceió V
o 25lan
Sergipe I . I Serra
30
A primeira expedição portuguesa a Palmares,em 1612, demonstra a im
portância dessa respublicará no início do século. O Estado negro continuou a
crescer até os anos 1640, quando os holandeses chegaram a considerar Pal
mares "um sério perigo". Lintz descreve-o como formado por duas áreas: a
aldeia capital, na serra da Barriga,e uma aldeia menor,na margem esquerda do
rio Gurungumba (fig. 1).
Bartolomeu Lintz, segundo Barleus,"viveu entre eles [e] tendo ficado
com eles [conheceu] seus lugares e modos de vida".''" Isso parece indicar que
brancos viviam no quilombo sem causar suspeita, pois Barleus refere-se a
Lintz e seus "antigos companheiros".Talvez a perseguição a minorias étnicas,
comojudeus,'" mouros e outros, além do combate às bruxas,heréticos,ladrões
e criminosos possa explicar o fato de que ao menos alguns brancos tivessem
decidido viver em Palmares e, aparentemente, tivessem sido aceitos pela co
munidade rebelde."*^
Baro comandou um ataque holandês ao reino rebelde,em 1644,e afirmou
ter abatido cem pessoas e capturado 31, de um total de 6 mil que viveriam na
capital. Esta foi descrita como uma aldeia de uma milha de comprimento,cer
cada por uma dupla paliçada, com duas entradas e muitas roças. Dos 31 cap
turados, sete eram ameríndios, sugerindo que cerca de 20% da população po
dia ser nativa.
No ano seguinte, Reijmbach liderou uma expedição holandesa aos Pal
mares Novos,tendo descrito os Palmares Velhos como uma aldeia bem menor,
com cerca de 1500 pessoas, vivendo em 220 casas. No total, Palmares com
punha-se de nove aldeias(mapa 2).'"
Depois que os holandeses deixaram o Brasil, os portugueses puderam
levar adiante diversas expedições contra Palmares,de 1654 a 1677. A partir de
1670, as autoridades puseram em marcha um plano de destruição sistemática,
com ataques quase anuais às aldeias. Entre 1670 e 1687,o Estado foi governa
do por um Grande Senhor,ou Ganga Zumba,« que vivia na fortaleza principal.
Macaco, fundada, talvez, em 1642.^' O nome dessa cidade poderia derivar de
línguas bantos (e.g. mococo),"^ embora os portugueses o interpretassem como
uma menção a um macaco. Era chamada,também.Cerca Real.
Em 1667, houve uma missão de reconhecimento a Palmares, comanda
da por Zenóbio Accioly de Vasconcelos e, logo em seguida, o governador de
Pernambuco tentou impedir que os colonos negociassem com os quilombo-
las. Dois anos depois, Antônio Bezerra atacou Palmares, em 1672, e já em
1673 houve nova expedição liderada por Cristóvão Lins. O governador de
Pernambuco,Pedro de Almeida,em 1674 reafirmava em sua posse que lutaria
contra Palmares, e uma expedição, organizada por Manoel Lopes no ano
seguinte, achou uma grande área arenosa com uma praça-forte contendo mais
31
de 2 mil casas. A aldeia foi destruída, a maioria dos habitantes conseguiu fu
gir e estabelecer novo quilombo na mata cerrada {per sylvas et nemora,como
costumavam dizer osjesuítas em seus documentos). O sobrinho do rei Ganga
Zumba,Zumbi,atuou, pela primeira vez,com grande destaque, nessa batalha.
Seu próprio nome.Zumbi, refere-se a seu provável papel espiritual na comu
nidade, nzumbi sendo associado com um título banto, religioso e militar a um
só tempo.""
Fernão Carrilho liderou uma expedição a Palmares, em 1676, desco
brindo em Subupira uma aldeia fortificada, queimada e abandonada antes que
fosse capaz de tomá-la de assalto. Em 1678, Carrilho afirmou ter destruído o
quilombo,trazendo consigo dois filhos do rei Ganga Zumba. Os portugueses e
emissários de Palmares encontraram-se em Recife e a paz foi celebrada. O re
sultado não foi aceito por alguns líderes quilombolas e seu sobrinho Zumbi foi
proclamado rei. Os quinze anos seguintes testemunharam o período mais vio
lento da história de Palmares. De 1679 a 1692, diferentes capitães locais ten
taram, em vão, destruí-lo, mas Gonçalo Moreira (1679), André Dias (1680),
Manoel Lopes(1682),Femão Carrilho(1683)e João Freitas Cunha(1684)não
conseguiram ameaçar sua independência.
Nessa altura, tomou-se evidente que as forças locais não dariam conta do
Estado rebelde. A indústria açucareira brasileira entrou em um período de es
tagnação e declínio, como conseqüência da queda nos preços do açúcar e do
aumento dos preços dos escravos."® A partir de 1670, a indústria açucareira e,
portanto, a economia brasileira estavam em apuros."' O fracasso das milícias
locais no combate a Palmares ressalta a importância dos bandeirantes na
manutenção da ordem colonial no Brasil. O comentário de Antônio Vieira,em
1648, de que "sem Angola não há negros"®" deveria ser complementado com
outro: sem bandeirantes não seiia possível escravidão segura.
Em 1685, o bandeirante Domingos Jorge Velho pediu autorização para
conquistar os ameríndios da capitania de Pernambuco e, dois anos depois, as
autoridades decidiram usá-lo contra Palmares. Um acordo relativo ao destino
dos cativos e das terras palmarinas foi estabelecido entre o bandeirante e o
governador Souto-Maior visando à destruição do quilombo. Como coman-
dante-em-chefe das expedições. Domingos Jorge Velho reivindicou a maior
parte das presas de guerra,segundo o preceito,corrente na época,e derivado do
direito romano: iuste possidet, qui auctore pmetore possidet[é legal possuir
aquilo que foi obtido pelo comando militar]. Em fevereiro de 1694, após 42
dias de sítio. Macaco caiu, duzentos quilombolas morreram, outros duzentos
pereceram ao cair de precipícios e quinhentos foram capturados e vendidos
fora da capitania. Diversos quilombolas, entre eles Zumbi,conseguiram fugir,
mas no dia 20 de novembro de 1695 o rei foi capturado,executado e sua cabeça
32
miii
1. única imagem contemporânea de Palmares, apresentada por Barleus em 1647.
exposta em local público como um terrível memorial: os escravos devem obe
decer ao sistema escravista, e não desafiá-lo.
Os documentos históricos referem-se à existência de casas, ruas, capelas,
estátuas, estábulos e até mesmo palácios." Os palmarinos cultivavam milho,
mandioca, feijão, batata-doce, além de cana-de-açúcar e banana. Em 1671,
Femão Coutinho encontrou fundições e oficinas; e os palmarinos produziam,
também,cerâmica e obras em madeira.
Uma boa parte da tecnologia do quilombo deve ter sido desenvolvida nas fazen
das, durante o cativeiro. Os índios interagiam com os escravos, seja como com
panheiro de desventuras,seja como parceiros comerciais,ou de outras formas.As
tecnologias indígenas — do fabrico da cerâmica à preparação de redes, passando
pela pesca e o processamento da mandioca — foram apropriadas e, muitas vezes,
desenvolvidas pelos escravos."
A ARQUEOLOGIA DEPALMARES
34
Recife
daSk^'^
Arotirene^^
irene%<7
_ Tabocas ífl
Zumbi® rt Serinhaem
Dambrabanga 'V
•A^ualtene
Subupira Í
Calvo
Macaco
Andalaquituche
Alagoas do Sul
25 km
I
36
discussões com o professor Orser e com Clóvis Moura, decidimos propor o
Projeto Arqueológico Falmares.'' O Projeto foi pensado de maneira a congre
gar pesquisas arqueológicas, históricas, geográficas e etnográficas sobre Pal-
mares,sendo, portanto de caráter multidisciplinar.
Em fevereiro de 1992, o professor Orser e o autor encontraram-se em
Londres com o professor Michael Rowlands (University College London).
Sendo um renomado antropólogo e arqueólogo africanista, o professor Row
lands pediu — e obteve — uma ajuda do Conselho de Pesquisa Britânico para
viajar ao Brasil e participar da etapa de campo inicial, em 1992.0 Projeto Ar
queológico Palmares recebeu apoio de cinco órgãos financiadores interna
cionais, viabilizando sua execução inicial nos anos de 1992 e 1993.*° O traba
lho tampouco seria possível sem a participação do Núcleo de Estudos
Afro-brasileiros da Universidade Federal de Alagoas, dirigido por Zezito de
Araújo, e do Museu Théo Brandão, ambos em Maceió.*'
A primeira etapa das escavações em Palmares ocorreu em julho de 1992
e a segunda,em julho de 1993.A prospecção começou na área considerada co
mo a capital do quilombo. Macaco, na serra da Barriga(mapa 3).
A colina estende-se, de leste a oeste, por quatro quilômetros e, de norte a
sul, de quinhentos metros a um quilômetro, na Zona da Mata. A estratégia de
pesquisa consistiu em coletar uma amostra representativa do maior número
serra da Barriga
Umão dos Palmares
1 km
_J
37
Sítio 14
Sítio 11
Síüo 12
Síüo 3
Seira da Bamga
38
milheiral
1 m unidade de teste
40N
pilha de entulho
grande vaso ceranuco
20 N«
monumento
rocha
a Zumbi
•30S
•40S canavial
•50S
casas dos moradores
•60S
•70 8
•80 8
palmeiras
• unidades testes de escavação
10 m
■ postes de iluminação
superfície
vista de perfil
não escavado
□ 10 YR 3/2 - 3/3 Solo marrom, muito acinzentado, pendendo para solo argiloso, marrom escuro ^
□ 10 YR 5/6 - 5/8 Subsolo arenoso de cor marrom-amarelado trincheira em 50 m leste
Figura 2. Trincheira no sítio 1.
perfil a 40 norte
vaso cerâmico
(a partir do oeste)
I I 5 YR 4/6 Solo argiloso de cor vermelha amarelada, subsolo sem vestígios arqueológicos
bora não seja ainda possível determinar a função dessa cabana, na medida em
que foi apenas parcialmente escavada, não cabe dúvida de que se relaciona,
por um lado, com os vasos enterrados a sudoeste e, por outro, com a possível
paliçada a sudeste. Poderia ser um abrigo ou depósito em superfície, adjacente
aos potes enterrados e protegido pela paliçada. Por fim, fizemos uma son
dagem,de 50 X 50 centímetros, a oeste do monumento,encontrando uma gran
de abundância de cerâmica comum,confirmando a intensa utilização de toda a
área em época colonial.
O sítio 2 consiste em um grande ajuntamento de fragmentos cerâmicos
comuns, a cerca de cem metros do sítio 1, com grande quantidade de material
superficial. O sítio 3 situa-se na trilha em direção ao topo da serra da Barriga
quatrocentos metros a sudoeste do sítio 1. Na superfície encontramos cerâ
mica comum, maiólica ou louça vidrada e louça não vidrada comum. A maió-
lica é bastante simples, com uma camada amarela aplicada a um fundo cinza
(figs. 6 e 7).
Encontramos fragmentos cerâmicos de forma elaborada, provavelmente
ligados à tradição tupinambá. Escavamos dois testes e no segundo deles havia
duas estruturas, destruídas contudo pela chuva antes que fossem propriamente
registradas. Tratava-se de uma fogueira de época colonial cujos restos foram
perturbados por uma forte queda d'água, impossibilitando seu adequado re-
estrutura 3
estrutura 2
1 metro
estrutura 1
Serra da Barriga
Sítio 1
Trincheira 2
18/7/93
45,
o PROJETO ARQUEOLÓGICO PALMARES E SUAS
CONSEQÜÊNCIAS SOCIAIS E ACADÊMICAS
46
safios à interpretação da cultura material do quilombo e à sua apropriação pe
los grupos sociais atuais são imensos. A questão da "negritude" de Palmares
suscita paixões e, ao estudarmos a etnicidade do quilombo estaremos lidando,
antes de mais nada,com a simbologia associada ao mocambo."Terra de heróis"
e "solo sagrado" são expressões carregadas de emoção, tantas vezes usadas
para referir-se a Palmares. Mas escavar heróis é tarefa particularmente difícil.
Estamos, ainda, iniciando a pesquisa arqueológica sobre esses fugitivos, es
cravos e outros excluídos que lutaram contra a opressão e encontraram abrigo
na serra. Esperamos continuar nossos eforços científicos visando a resgatar a
cultura daqueles que ousaram lutar pela liberdade.^'
NOTAS
47
1650", in Richard Price (org.), Maroon societies (Baltimore, Johns Hopkins University Press,
1979), p. 82;Aquiles Escalante,"Palanques in Colombia",in ibid., p. 74.
(19)Edison Carneiro, O quilombo dos Palmares,São Paulo, Nacional, 1988, p. 33.
(20)R. K. Kent,"Palmares: an African State in Brazil", in Price (org.), Maroon societies
p. 174.
(21)Eric Wolf,Europe and the people without history, Berkeley, University of Califórnia
Press, 1990, p. 156.
(22)A publicação de documentos históricos relativos ao período colonial não é comum,e
quase todos são em português,como constatam José Roberto do Amaral Lapa {História e histo
riografia, Brasilpós-64. Rio de Janeiro,Paz e Terra, 1985)e Carlos Fico e Ronald Polito {A His
tória no Brasil, 1980-1989, voU, Ouro Preto, ufop, 1992, p. 83). Sobre Palmares, especifica
mente, os documentos publicados restringem-se àqueles em línguas modernas, e o mesmo se
aplica a Angola. Isso é uma pena, pois grande parte das informações permanece inacessível. Do
cumentos inéditos no vernáculo,evidentemente,também estão para ser descobertos e publicados.
(23) João José Reis, "Différences et résistances: les noirs à Bahia sous Tesclavage"
Cahiersd'EtudesAfricaines, 125(1992),p. \l\C\6y\sUom2i,Rebeliões da senzala. Quilombos
insurreições, guerrilhas. Rio de Janeiro, Conquista, 1972, p. 87; Joseph Dunkerley,"Beyond
utopia: the State of the left in Latin América",New Left Review,206(1994), p. 31.
(24) Gilberto Freyre, O escravo nos anúncios dosjornais brasileiros do século XIX São
Paulo, Nacional, 1979, p. 29.
^5) Por exemplo, Clóvis Moura, Os quilombos e a insurreição negra, São Paulo,
Brasiliense, 1981; do mesmo autor. Quilombos, resistência ao escravismo, São Paulo, Ática,
1987;e Décio Freitas,Palmares: a guerra dos escravos. Porto Alegre, Movimento, 1984.
(26)Robert W. July, A history ofthe African People, Nova York, Charles Scribner's Sons
Press, 1980, p. 191.
(27)Idem,pp. 187-91 et passim.
(28)Joseph C. Miller,"A marginal institution ofthe margin ofthe Atlantic system: the Por-
tuguese Southem Atlantic slave trade in the 18th. century",in Solow (org.), Slavery and the rise
ofthe Atlantic system, pp. 123-4.
(29)Philip Curtin, The rise andfali ofthe plantation complex. Essay in Atlantic history
Cambndge,Cambridge University Press, 1990, p. 37.
(30)Joseph C. Miller, Kings and kinsmen. Early Mbundu states in Angola, Oxford Clare-
don Press, 1976.
(31)Luís Palacin,Sociedade colonial(1549 a 1599), Goiânia, ufgo, 1981, p. 82.
(32)Curtin, The rise andfali, p. 203.
(33)Wolf,Europe and the people, p. 150.
(34) Roberto C. Simonsen, História econômica do Brasil(1500-1820), São Paulo Na
cional, 1978, p. 133.
(35)Celso Furtado,Formação econômica do Brasil, São Paulo, Nacional, 1982, p. 65.
(36)John R. Hall,*The patrimonial dynamic in colonial Brazil", in Graham (org.) Brazil
and the world system, pp.62,64,65 etpassim.
(37) Stuart B. Schwartz,*The voyage of the vassals: royal power, noble obligations, and
merchant capital before the Portuguese restoration ofIndependence, 1624-1640",American His-
torical Review,96:3(1991), pp. 735-62.
(38)Caio Prado Jr., História econômica do Brasil,São Paulo, Brasiliense, 1974, p. 51.
(39)Raimundo Faoro, Os donos do poder. Porto Alegre, Globo, 1976, p. 151.
(40) Casp^ Barleus, História dosfeitos recentemente praticados durante oito anos no
Brasil,Belo Horizonte,Itatiaia, 1974,p. 252;cf. Charles E. Orser Jr.,"Toward a global historical
Archaeology. an example from Brazil", Historical Archaeology, 28:1 (1994), p. 14.
48
(41)J. A. G. de Mello,'*0 domínio holandês na Bahia e no Nordeste", in S. B. de Hollan-
da (org.), História geral da civilização brasileira, São Paulo, Difel, 1963, vol. 1, p. 248.
(42) Há referências explícitas a mouros, indígenas e brancos, em Palmares, cf. Carneiro,
O quilombo dos Palmares, pp. 62-3. Mulatos são, freqüentemente, citados nos documentos da
época. Diferentes estudiosos modernos referem-se, explicitamente, ao fato de que Palmares reu
nia africanos, índios,europeus e marginalizados em geral. Um exemplo recente é o artigo de J. F.
S. Saraiva, **Silencio y ambivalência: el mundo de los negros en Brasil", América Negra,6
(1993), p. 46:"se transformó en el más importante centro de resistência africana, indígena y de
otros grupos marginales dei orden esclavista". A famosa descrição de Eugene D. Genovese,em
From rebellion to revolution. Afro-american slave revolts in the making ofthe modem world,Ba-
ton Rouge,Louisiana State University Press, 1981, p.53:"a cultura que surgiu nessas bases com
binava elementos africanos, europeus, ameríndios e provenientes da senzala, de maneira com
plexa, inovadora e variada". Os restos arqueológicos do quilombo permitirão, provavelmente,
avaliar a importância real dos diferentes traços étnicos e culturais no interior da comunidade.
(43) Os nomes dos sítios são Andalaquituche, Macaco, Subupira, Dambrabanga,Zumbi,
Tabocas,Acotirene e Amaro. R. K. Kent, na obra citada, à página 180,relaciona Macaco a Loan-
go.Tabocas a Ambúndu,Andalaquituche,ou Ndala Cafuche,a Quisama,Osenga a Cuango,Subu
pira a Zande, Dambrabanga a Benguela-Iombe. Todos, como Zumbi, de origem banto. Amaro
"deriva de chimarrão, erva muito amarga, termo próximo de cimarrones, como os quilombos
eram chamados nas índias Ocidentais". Contudo, Subupira é um topônimo tupi, assim como
Tabocas, segundo Teodoro Sampaio em seu O tupi na geografia nacional, São Paulo, Nacional,
1987. A associação de Amaro com o castelhano cimarrón é,etimologicamente,insustentável.
(44)O título nganga foi estudado,recentemente,por Jean Nsondé,em "Christianisme et re-
ligion traditionnelle au pays Koongo aux xvii-xviir siècles", Cahiers d*ÉtudesAfricaines, 128,32,
4(1992), p. 706:"servia,antigamente,e ao mesmo tempo,para designar os praticantes da religião
tradicional, adivinhos e outros curandeiros; e os sacerdotes católicos puderam, portanto, ser con
siderados como um tipo de nganga,sem outra diferença a não ser que eram brancos e professavam
um culto de origem estrangeira". Também Michael Rowlands e Jean-Pierre Warmer,em "Sorceiy,
power,and the modem State in Cameroon",Man(NS),23(1992), p. 121,relatam a importância da
magia para os governantes africanos:"a magia não é apenas um modo de ação popular mas está no
centro do processo de criação do Estado, tanto no presente como no passado". Cf. M.Rowlands,
"From tribe to state" in West Central África, Symposium at Cascais on criticai approaches in
Archaeology: natural life, meaning, and power. Manuscrito inédito, 30 páginas.
(45) Alfredo de Carvalho,"Diário da viagem do capitão João de Blaer aos Palmares em
1645", Revista do Instituto de Arqueologia e Geografia de Pernambuco, 10(1902), pp. 87-96.
Hoje chama-se serra da Barriga, mas a maioria dos documentos em português da época referem-
se a oiteiro da Barriga; cf. Carneiro, O quilombo dos Palmares, p.61 et passim.
(46)Kent,"Palmares", p. 180.
(47) Não sabemos que língua se falava em Palmares. Sobre os quilombolas da Jamaica,
Bryan Edwards,em "Observation of the disposition, character, manners,and habits of life, of the
Maroon negros of the island of Jamaica", in R. Price (org.), Maroon societies, p. 239, escrevia,
em 1774, que "ignoram nossa língua, e todos estão aferrados às superstições africanas".
Aparentemente, contudo, os palmarinos, como uma população de origem variada, congregando
africanos de diferentes tribos, índios e europeus,deviam usar uma espécie de língua comum,não
necessariamente com base banto. Se lembrarmos do caso do quilombo do Cafundó,estudado por
Carlos Vogt e Peter Fry em livro ainda inédito(A comunidade negra do Cafundó:linguagem e so
ciedade), essa possibilidade parece reforçada, pois esses quilombolas utilizam palavras bantos e
quimbundos mas empregam a estrutura gramatical da língua portuguesa.
49
(48)Jacob M Price,"Credit in the slave trade and plantation economies", in Solow (org.),
Slavery and the ríse ofthe Atlantic system, Cambridge, p. 298.
(49) Fredéric Mauro, Expansão européia, 1600-1870, São Paulo, Pioneira/Edusp, 1980,
p. 147.
(50)Charles E. Orser Jr., In search of Zumbi, Normal,Illinois State University, 1992, p. 7.
(51)Carneiro, O quilombo dos Paímares, p. 203 et passim.
(52) Richard Price, "Introduction: Maroons and their communities", in Price (org.),
Maroonsocieties,pA2.
(53)Charles E. Orser Jr. editou o volume Historical Archaeology on southem plantations
andfarms, vol. 24:4, especial, da revista Historical Archaeology, em 1990, com artigos que
demonstram os notáveis avanços desses estudos nos Estados Unidos; na bibliografia do volume
estão citadas mais de 450 obras, publicadas principalmente no período entre 1970 e 1989,o que
permite avaliar a quantidade de pesquisas efetuadas.
(54)Elizabeth J. Reitz,"Zooarchaeological analysis of a free African community: Gracia
Real de Santa Teresa de Mose",Historical Archaeology, 28:1 (1994), p. 23.
(55)Reitz, **Zooarchaeological analysis"; Elizabeth J. Reitz,"Morphometric data for cat-
tíe from North América and the Caribbean prior to the 1850s",Journal ofArchaeological Science,
21 (1994), pp. 699-713; e, da mesma autora,"Native Americans and animal husbandry in the
North American colony of Spanish Florida", World Archaeological Congress-3(Nova Delhi,
1994), 11 pp., manuscrito inédito.
(56)Reitz,"Zooarchaeological analysis", p. 36.
(57)C. R.Boxer, The Dutch in Brazil, 1624-1654. Oxford, Clarendon Press, 1973, p. 140.
(58)Theresa A. Singleton,"An archaeological framework for slavery and emancipation,
1740-1880", in M.P. Leone e P. B. Potter Jr. (orgs.), The recovery of meaning (Washington,
Smithonian Institution Press, 1988), p. 364.
(59)Orser Jr., In search ofZumbi,p.8 et passim.
(60)O apoio financeiro provém das seguintes instituições: Illinois State University Re-
search Office, National Geographic Society, Joint Committe on Latin American Studies of the
Social Science Research Council,American Council of Leamed Societies, National Endowment
for the Humanities e Ford Foundation.
(61)Diversas pessoas colaboraram no trabalho de campo:João José Reis,Demian Moreira
Reis, Cenildes Alcântara Guanaes, Paulo Eduardo Zanettini, César Múcio, Charles Fox, Lori
Madden,Julie Ruiz-Sierra e Cícero Ângelo. O trabalho contou com o apoio logístico de José Al
berto Feitosa de Alencar (ibpc), Eliana Moura de Almeida Soares(Museu Théo Brandão), José
Alberto Gonçalves e Zezito de Araújo.
(62) Uma descrição detalhada dos sítios encontra-se em C. E. Orser Jr. e P. P. A. Funari,
"Pesquisa arqueológica inicial em Palmares",Estudos Ibero-Americanos, 18:2(1992), pp.53-69,
em C.E.Orser Jr,In search ofZumbi,e C.E.Orser Jr.,In search ofZumbi, the 1993season. Nor
mal, Illinois State University, 1993. Os resultados foram apresentados em Kansas City, em
janeiro de 1993, pelos diretores do projeto, e em Londres, no University College, Institute of
Archaeology,em 27 de janeiro de 1994, por este autor.
(63)Cf. C.E. Orser Jr.,"The archaeology of African-American slave religion in the ante-
bellum South", Cambridge ArchaeologicalJoumal,4:1 (1994), pp. 33-45.
(64)Orser Jr.,*Toward a global historical", p. 15.
(65)Boxer, The Dutch in Brazil, p. 138.
(66)Herbert Aptheker,"Maroons within the present limits of the United States", in Price
(org.), Maroon societies, p. 165.
50
(67)Cf. Frank Tannenbaum,Slave and citizen. The negro in lhe Américas, Nova York,Aca-
demic Press, 1946; Herbert S. Klein, A comparaüve study of Virgínia and Cuba, Chicago, Uni-
versity of Chicago Press, 1967; em sentido contrário, Staniey J. Stein, Vassouras, Cambridge,
Cambridge University Press, 1957; Roger Bastide e Florestan Fernandes, Brancos e negros em
São Paulo,São Paulo, Nacional, 1959; Octavio lanni,Ajmetamorfoses do escravo,São Paulo,Na
cional, 1962; Fernando H. Cardoso, Capitalismo e escravidão no Brasil meridional,. São Paulo,
Nacional, 1962; Robert Conrad,"Neither slave nor free: the emancipados of Brazil, 1818-1868",
Hispanic American Historical Review,53:1 (1973),pp.50-70. Recentemente,Thomas E.Skidmore
publicou uma avaliação do estado da questão das relações raciais no Brasil, e com discussão do
passado escravista,em "Bi-racial u.s.a. vs. multi-racial Brazil: is the contrast still valid?", Jour-
nal ofLatin American Studies, 25(1993), pp. 373-86.
(68)A. J. R. Russel-Wood,"Black and mulatto brotherhoods in colonial Brazil: a study in
collective behavior", Hispanic American Historical Review,54:4(1974), p. 573.
(69)Cf. Maestri, A servidão, p. 8.
(70)Alguns autores foram acusados de defenderem o sistema escravista, enquanto outros
foram acusados de enfatizarem demasiadamente a resistência escrava. Como quer que seja,
apresenta-se, normalmente,como uma oposição entre a ciência e a autoridade,do lado do cn'tico,
e a falta de credenciais científicas, do lado do criticado. Lilia K. M.Schwarcz,em "De festa tam
bém se vive: reflexões sobre o centenário da abolição em São Paulo",Estudos Affo-Asiáticos, 18
(1990), pp. 13-26, estudou a comemoração da Abolição, em 1988, e sua sutil análise antropoló
gica da comunidade acadêmica merece atenção.
(71) Este trabalho não seria possível sem a ajuda de diversos colegas: Zezito de Araújo,
José Roberto do Amaral Lapa, Mário Maestri,Clóvis Moura,Charles E.Orser Jr., João José Reis,
Elizabeth J. Reitz, Michael Rowlands,Theresa Singleton e Thomas Skidmore. As idéias são de
exclusiva responsabilidade do autor.
51
PAIMARES COMO PODERIA TER SIDO
Richard Príce
52
Minha própria especialidade é unnia sociedade quilombola localizada a
cerca de 2500 quilômetros ao norte de Palmares, onde é hoje a república do
Suriname,ex-colônia holandesa. À primeira vista, ela parece ter muitas seme
lhanças com Palmares, mas com uma grande diferença—os quilombolas sara-
makas continuam a existir hoje como um povo orgulhoso e semi-indepen-
dente. Tive o privilégio de trabalhar com os saramakas como etnólogo e
historiador durante quase trinta anos, e o que pretendo é extrair algumas pos
síveis lições daquele trabalho que possam se aplicar a nossa compreensão de
Palmares.
Chama-me a atenção o fato de que, se dependêssemos apenas de docu
mentos escritos —,e os documentos holandeses das guerras contra os sara
makas são bastante semelhantes aos documentos holandeses e portugueses das
guerras contra Palmares —,poderíamos ter uma visão da sociedade saramaka,
durante seu primeiro século de existência, muito parecida com a visão que
temos de Palmares durante seu próprio século de esplendor. No entanto, com
base em outros tipos de evidência — não disponíveis para Palmares — agora
sabemos que esse retrato dos saramakas seria incompleto e falso em muitos e
importantes aspectos. Publiquei uma antologia de documentos da época rela
tivos às guerras coloniais contra os saramakas — diários de campo de coman
dantes das expedições, o interrogatório oficial de um escravo espião enviado
para informar-se sobre os saramakas e que depois escapou e retomou aos bran
cos, os relatos de expedições "pacificadoras", além de tratados de paz detalha
dos celebrados entre autoridades coloniais e quilombolas.^ Há muita coisa de
interesse, e é um exercício possível tentar "penetrar nesses documentos para
buscar entender, de dentro, aquilo que aqueles observadores olhavam funda
mentalmente de fora. Mas esse esforço acaba por ter um alcance dramatica
mente limitado, conforme vou sugerir, quando situado no contexto de infor
mações produzidas pelos próprios saramakas. É importante enfatizar que a
maior parte de nosso conhecimento sobre Palmares se origina de escritos
semelhantes de militares ou de autoridades, todos empenhados em destruir o
grande quilombo. Assim, esses escritos são bons em descrever fortificações
militares, armas palmarinas e coisas afins. Nunca devemos esquecer que quase
tudo que sabemos sobre Palmares deriva das palavras escritas por seus inimi
gos mortais.
O que é diferente, no caso dos saramakas,é que me foi possível conviver
com os descendentes diretos do mesmo povo que lutou nas guerras coloniais
de libertação, e que hoje preserva memórias preciosas e precisas daquele
período e do seu contínuo significado para suas vidas; memórias,que registrei,
da visão que têm os saramakas dos acontecimentos e da sociedade durante os
anos que chamam de "Primeiro Tempo", período que vai de 1685 a 1762
53
aproximadamente. O quadro que daí emerge da vida e da sociedade saramaka
difere,em importantes aspectos, daquele contido nos documentos escritos pe
los adversários. E ao considerar algumas dessas diferenças talvez possamos
começar a imaginar algo do que pode estar faltando em nosso quadro de Pal-
mares, até agora pintado a partir de fontes semelhantes.
Meio século de persistentes expedições organizadas contra Palmares pro
duziu o que a maioria dos estudiosos considera um quadro claro da organiza
ção política do quilombo: um sistema quase monárquico, que fazia sentido
para holandeses e portugueses (que pensavam em termos de modelos eu
ropeus)e para historiadores de meados do século xx (que vislumbraram mo
delos africanos) — Ganga Zumba com seu alto-conselho,seguido pelo temível
Zumbi.O que emerge dos relatos sar^akas do século xx é,em primeiro lugar,
que a suposta centralização de poder fora grandemente exagerada pelos bran
cos e, em segundo, que a identidade de muitos dos mais importantes líderes
saramakas era absolutamente desconhecida pelos colonizadores brancos.
A população e o território dos saramakas no final do século xviii eram ba
sicamente comparáveis em escala com os de Palmares, ou seja, diversas comu
nidades diferentes espalhadas sobre uma vasta superfície. Agora sabemos, no
entanto, que a real autoridade política era bem mais dispersa do que acredi
tavam os brancos, existindo diversos líderes rivais de comunidades(ou grupos
de comunidades)geograficamente dispersas,constantemente manobrando para
aumentar seu poder. Os relatos orais também tomam claro que um dos princí
pios fundamentais da estratégia de sobrevivência saramaka era não revelar para
os brancos quem eram seus verdadeiros líderes. No curso das guerras, alguns
nomes dos líderes de fato vazaram(em torturas de prisioneiros, interrogatórios
de escravos espiões enviados para obter informações e no decorrer das negocia
ções para tentativas abortadas de paz). Mas a identidade da maioria dos líderes
políticos — e certamente dos principais líderes rituais/espirituais, que com fre
qüência possuíam igual autoridade — foi com sucesso escondida dos brancos.
Sem a etnografia histórica dos saramakas do século xx, teríamos uma
visão muito pálida da real natureza da organização militar e política saramaka
durante as guerras de libertação,e nem mesmo saberíamos os nomes de alguns
de seus maiores líderes. O mesmo vale para os nomes das próprias comu
nidades quilombolas em guerra. Quantos, dos onze nomes de centros popula
cionais de Palmares — Macaco, Sucupira, Acotirene e assim por diante —,
eram nomes usados pelos próprios palmarinos? Apenas alguns, a julgar pela
experiência surinamesa, em que os nomes dados pelos brancos aos redutos
saramakas substituem, nos documentos, os nomes usados pelos próprios sara
makas(nomes com freqüência deliberadamente protegidos do conhecimento
54
dos colonizadores). Mesmo bem mais tarde, nos anos 1960, alguns nomes de
povoações saramakas que apareciam nos mapas oficiais do Suriname eram de
cemitérios próximos, ou eram nomes obscenos, dados pelos saramakas do
campo a cartógrafos da cidade que os interrogavam e que não lhes entendiam
a língua.
Da mesma forma, nossa compreensão do tratado de 1678, assinado por
Ganga Zumba em Recife, merece melhor interpretação com base em tratados
análogos do Suriname. O acordo dos palmarinos para devolver às autoridades
os membros da comunidade que não houvessem nascido em Palmares tem si
do interpretado pelos estudiosos como um exemplo de fraqueza de Ganga
Zumba e a causa principal de sua queda.'* De uma perspectiva surinamesa eu
faria diversas especulações alternativas. Primeiro, a proporção de pessoas
nascidas em Palmares deveria ser muito alta por aquela época(embora,talvez,
como já foi sugerido,^ não tão alta no mocambo de Zumbi quanto na capital
Macaco). Porém, mais importante é lembrar que cláusulas semelhantes foram
comuns em tratados de paz celebrados por quilombolas em todo o continente
americano e que os quilombolas, com o tempo, calma e eficazmente subver
tiam essa parte do tratado. Temos informações muito detalhadas, cobrindo
cinqüenta anos, sobre os resultados do tratado assinado pelos saramakas e
que eles "assinaram" com os brancos bebendo mútua e ritualmente o sangue
uns dos outros — concordando em devolver aos senhores todos os compa
nheiros que já não fossem membros de suas comunidades antes do tratado.
A história coligida dos documentos dos brancos(que celebram sucesso gene
ralizado a esse respeito)e a história dos relatos orais saramakas são de um con
traste radical. Com efeito, os saramakas esconderam dos brancos uma parcela
muito grande de sua população que era, de acordo com o tratado, ilegal', e o
fizeram apesar da presença em suas povoações de funcionários coloniais du
rante muito tempo depois dos tratados. Seria muito complexo discutir aqui co
mo conseguiram tal proeza.^ Contudo, há pouca razão para se acreditar que
fossem mantidas promessas,feitas por quilombolas a seus inimigos coloniais,
de trair, digamos, suas próprias irmãs ou seus próprios cunhados(e essas se
riam as conseqüências do tratado saramaka ou do de Palmares caso fos
se honrado). Enquanto a ênfase, ao pensar Palmares, tem sido em parte de
vido à natureza dos documentos disponíveis na guerra e nas estratégias
militares, mais atenção deveria ser dada a estratégias de dissimulação, aos
meios pelos quais os palmarinos interagiam com as populações vizinhas, aos
meios pelos quais eles sem dúvida vieram a saber bem mais sobre os brancos e
suas intenções do que estes sabiam sobre eles.
Passemos a um outro exemplo: o caráter da organização doméstica. Os
documentos coloniais retratam um Palmares severamente carente de mulheres
55
(um escravo espião relatou ser comum a poliandria)e que os quilombolas,co
mo os saramakas,freqüentemente atacavam de surpresa engenhos e fazendas
para levá-las à força. Juntem-se a isso as especiíicidades da realidade psicosse-
xual brasileira,que parecem te»* criado uma peculiar fixação por parte dos colo
niais em histórias do gênero "rapto das Sabinas", envolvendo mulheres bran
cas — histórias alimentadas pelo medo de ver esposas e filhas sendo raptadas
por quilombolas e que pouco ajudam a entender o que se passava no interior
das próprias comunidades palmarinas. Embora a taxa de masculinidade —
proporção homem/mulher — fosse, no início, indubitavelmente alta em Pal-
mares(como o era nos engenhos da época), em duas ou três décadas pro
porções equilibradas entre os sexos provavelmente se tomaram a norma, na
medida em que novas gerações de crianças se tornavam adultas, mulheres
casavam logo após a menarca e os homens adultos morriam nos ataques de sur
presa e na frente de batalha. Em Saramaka pelo menos, uma vida doméstica
bastante normal, que incluía a poligamia para os homens de poder, se desen
volveu rapidamente e contribuiu para a estabilidade da vida social durante os
anos de guerra.E não há evidência segura para se supor que Palmares tenha si
do diferente.
Já a presença em Macaco de uma "capela",e passagens aqui e ali nos es
critos dos adversários dos palmarinos, levaram estudiosos como Edison
Carneiro a concluir que "os negros tinham uma religião mais ou menos seme
lhante à católica",e mesmo a "explicar" isso por meio de uma suposta "pobre
za mística dos povos bantos".^ É claro que, nos anos 1940,os estudiosos ainda
não tinham conhecimento da genuína riqueza do pensamento e das práticas re
ligiosas bantos. Mas, mesmo assim, a presença daquela "capela" — como re
latos semelhantes de santuários nas povoações quilombolas do Suriname de
vastadas pelos exércitos coloniais — não chega sequer a começar a dizer-nos
algo sobre a vida ritual, enormemente complexa, desfrutada pelos primeiros
quilombolas. No caso dos saramakas,o testemunho oral revelou um arsenal de
proteção ritual usado, de uma forma ou de outra, por todo homem que seguia
para a guerra para se proteger contra balas e baionetas, para levar o inimigo a
tomar a direção errada, para tomar invisíveis os guerreiros.
Da mesma forma, a agricultura — que os coloniais descrevem em seus
documentos com uma visão de fora, puramente utilitária —,na visão dos
quilombolas,dependia de inúmeros rituais. E,novarnente no caso do Suriname,
toda a área desconhecida de floresta que os quilombolas ocuparam qyando fu
giram teve de ser, na visão deles,"domesticada"; eles tiveram de agir como
bons vizinhos dos ainda desconhecidos espíritos e outros seres sobrenaturais
que já viviam ali. Assim, por meio de práticas divinatórias — que ainda hoje
são lembradas com detalhes consideráveis — os primeiros quilombolas sara-
56
makas consultaram a Mãe das Águas, mergulhando até o fundo do rio; apren
deram a respeito de certos tipos de^divindades conhecidas como apúkus, que
habitavam as árvores da floresta, e lograram se relacionar bem com elas; des
cobriram e aprenderam a aplacar várias espécies de deuses que vivem nas co
bras constritoras, as boas e anacondas; e, enfim, procuraram e encontraram a
solidariedade de uma legião de outros seres semelhantes que moravam na flo
resta que os cercava. Também sabemos, dos testemunhos orais, que os ritos
fúnebres, os ritos de cura e de nascimento, além daqueles ligados a muitas ou
tras ocasiões "marcantes" entre os saramakas,envolviam crenças e práticas es
petacularmente elaboradas. Na verdade, a vida dos primeiros quilombolas —
segundo a conhecemos a partir de um tipo de "documento" que infelizmente
não temos para Palmares — era perpassada por preocupações rituais, da mes
ma forma que o é a vida dos seus descendentes hoje. E eu sugerina que a vida
dos palmarinos teria tido inflexões semelhantes de sua própria religião afro-
americana, apesar de nos faltarem evidências decisivas que o confirmem.
Também sabemos, por meio dos documentos, que os africanos que cons
tituíram a população original de Palmares — como os que formaram Sarama-
ka — eram altamente multiétnicos. O processo cultural central que teria carac
terizado os primeiros anos foi de sincretismo interafricano, com a criação de
novas formas culturais com base em diversas crenças, idéias e práticas dos
africanos que compunham a população originária. Pergunto se, ao invés de in
terpretar a história de Palmares simplesmente em função de nossas necessi
dades ideológicas atuais(à Ia Carlos Diegues, que diz ter feito o filme Ganga
Zumba para enfatizar o tema da "liberdade" e Quilombo para enfatizar o da
"utopia",® o mesmo tipo de sensibilidade política que Alex Haley usou na con
cepção de Raízes)^ não haveria algo a aprender tentando "ler Palmares" da pers
pectiva ideológica das sociedades quilombolas do Suriname. O processo sin
gular experimentado por ambas as comunidades, que podemos chamar de
processo de "crioulização-enquanto-em-estado-de-guerra , certamente im
pregna de uma semelhança assustadora os dois casos. E pode abrir umajanela
através da qual talvez possamos tentar discernir mais sobre o que aconteceu
dentro de Palmares durante seus tumultuados cem anos.
Não pude ler os documentos e interpretações sobre Palmares sem imagi
nar um desfecho diferente daquele de trezentos anos atrás. No Suriname colo
nial os saramakas(e seus vizinhos e irmãos de infortúnio, os djukas)represen
taram, ao longo de quase um século de hostilidades, uma ameaça ao sistema
escravocrata suficiénte para levar a Coroa holandesa a buscar a paz e a ofere
cer-lhes liberdade. Os homens e mulheres de Palmares chegaram dolorosa
mente perto do mesmo resultado, pois tendo representado uma séria ameaça ao
sistema colonial e derrotado, durante décadas sucessivas, ondas de entradas or-
57
ganizadas contra eles, poderiam ter conquistado a paz e chegado provavel
mente a criar uma vibrante e singular cultura afro-americana. Mas não era para
ser assim.
Eu estaria fugindo a minha responsabilidade se não relatasse que nem tu
do vai bem com os saramakas e com outros descendentes de quilombolas do
Primeiro Tempo, que hoje vivem no Suriname. O período da independência
nacional do país, que teve início em 1975,em geral não foi gentil com a repú
blica do Suriname,assolada por uma guerra civil entre 1986 e 1992,da qual es
tá ainda longe de se recuperar. Para os saramakas e outras populações quilom
bolas, que representam 15% da população nacional, a década passada foi um
verdadeiro desastre. A guerra civil lançou-os contra o exército nacional e, no
processo, centenas de quilombolas civis — mulheres e crianças, além dos
homens — foram brutalmente assassinados. Povoações inteiras foram ar
rasadas pelas tropas governamentais e cerca de 20% da população quilombola
foi obrigada a buscar refúgio do outro lado da fronteira, na Guiana Francesa.
A essas conseqüências da guerra pode-se agora acrescentar um espectro
ainda mais sinistro e talvez mais devastador: em seu esforço para unificar a
nação,o governo iniciou um plano de unificação,ou normalização,concebido
para acabar com aquilo que vê como autonomia étnica e privilégios especiais
de grupos populacionais como os quilombolas e ameríndios. No Brasil do fi
nal do século XX, não preciso explicar as implicações da luta em curso entre
grupos indígenas e o Estado em tomo de direitos territoriais,em torno de direi-
" tos de decidir que tipo de organização econômica e familiar prevalecerá dentro
das comunidades e assim por diante. Mas quero realmente enfatizar que os des
cendentes dos quilombolas do Suriname,que ao longo dos últirnos três séculos
mantiveram tradições muito afins àquelas dos heróicos palmarinos, se encon
tram hoje sob enorme ameaça—ameaça a seus direitos humanos,ameaça a di
reitos territoriais pelos quais lutaram tão duramente durante séculos e,em últi
ma análise, ameaça à continuidade de sua existência enquanto povo singular
no contexto do mundo modemo.'
A língua falada pelos palmarinos, de acordo com o que li, era um tipo de
português misturado com elementos africanos,'" mas diferente o suficiente
para que outros brasileiros não a entendessem — havia sempre intérpretes
acompanhando as entradas com o objetivo de interrogar os prisioneiros de
guerra. A língua saramaka foi descrita pelas fontes coloniais nos mesmos ter
mos. O saramakano é, na verdade, uma língua crioula radicada no português
— pois os senhores de escravos de quem a maioria dos saramakas fugiu eram
judeus sefarditas, vindos para o Suriname do Brasil acompanhando os holan
deses derrotados em Pernambuco —,uma invenção lingüística do Novo Mun
do que incorporou, em profundidade, princípios gramaticais africanos. Então
58
meu sonho é o seguinte: eu, entrando hoje em Palmares — com suas roças de
mandioca, batata-doce e banana —,me dirijo em saramakano à primeira pes
soa que vejo. E ela me responde e nos entendemos — uma e outra língua
quilombola, cruzando florestas, atravessando o tempo.
Existirão maneiras de nós, historiadores e antropólogos, construirmos so
bre esse sonho uma maior compreensão da experiência de Palmares e de seu
significado para o Brasil e para nós todos?
NOTAS
(1) Uma primeira versão deste texto foi apresentada no congresso "Palmares: 300 anos'\
São Paulo, novembro de 1994. Esta versão foi traduzida por João José Reis.
(2) Minha perspectiva comparativa sobre sociedades quilombolas foi primeiramente apre
sentada em Richard Price (org.), Maroon societies: rebel slave communities in the Américas^ Bal-
timore, Johns Hopkins University Press, 1979. Há uma edição em espanhol, Sociedades cimar-
ronas, México, Siglo xxi, 1981.
(3)Richard Price, To slay the hydra: the historical vision ofan Afro-american people,Ann
Arbor, Karoma, 1983.
(4)Richard Price, First-time: the historical vision ofan Afro-american people, Baltimore,
Johns Hopkins University Press, 1983. Também disponível em francês: Les premiers temps.
Paris, Editions du Seuil, 1994.
(5)R. K.Kent,"Palmares:an African State in Brazil",in Price(org.), Maroon societies, p. 185.
(6) Ver detalhes em Richard Price, Alabi's world, Baltimore, Johns Hopkins University
Press, 1990.
(7)Edison Carneiro, Guerra de los Palmares, México,Pondo de Cultura Econômica, 1946,
p. 40.
(8)Nelson Nadotti e Carlos Diegues, Quilombo,Rio de Janeiro, Achiamé, 1984,pp. 169-71.
(9)Richard Price,"Executing ethnicity: the killings in Suriname'', Cultural Anthropology,
10:4(1995).
(10)Ver por exemplo Décio Freitas,Palmares: a guerra dos escravos. Porto Alegre, Movi
mento, 1973, p. 46.
59
DEUS CONTRA PALMARES
Representações senhoriais e idéiasjesuíticas
Ronaldo Vainfas
Deus é letra
Foi Jean Delumeau que, num de seus mais célebres livros, afirmou que o
medo das sedições foi seguramente um dos que mais afligiram as classes diri
gentes européias no Antigo Regime. Reis e príncipes, nobreza e clero, os donos
do poder e os diretores de consciência da velha cristandade, católica e protes
tante, todos viviam apavorados com a virtual eclosão de rebeliões e motins.
Rebeliões de camponeses esfomeados, a exemplo dos sectários de Muntzer na
Alemanha quinhentista, levante de pobres da cidade, molestados pela peniíria
que os assolava cotidianamente. Medo especial sentiam todos dos mendigos,
vagabundos e salteadores, filhos de uma Europa em transformação, cuja re
pressão ocupou boa parte da "legislação social" na Europa moderna."É pre-
60
ciso temer as iras, furores e sedições dos povos", escreveu, em 1602, um dos
autores das populares p/ríZ/cí/o/íí francesas, prognósticos que temperavam
com levantes populares a visão de apocalipses.'
No mundo colonial o quadro não seria diferente, as classes dirigentes dos
enclaves ultramarinos europeus a viverem apavoradas em face do iminente
levante dos povos subjugados. E talvez ali, nas Américas, Ásias e Áfricas, o
medo das elites fosse mesmo maior do que o sentido nas metrópoles, guarda
das as inúmeras variações regionais. É que, no mundo ultramarino, os perigos
tendiam a ser concretamente maiores. Poucos os colonos, e milhares ou mi
lhões os "povos inquietos". Fracos os poderes repressivos e muito fervoroso o
rancor de sociedades inteiras submetidas à exploração e à destruição de suas
tradições. Na situação-limite encontrava-se a massa de africanos de variada
origem,gente arrancada violentamente de seu meio e embarcada em navios in
fectos para ser escravizada na América. Não por acaso, os companheiros es
cravizados de travessia atlântica costumavam se tratar de malungiis, ao menos
no caso dos povos de língua banto: companheiros de viagem para a calunga, o
mundo dos mortos de onde vinham os brancos.-
A história da América portuguesa, o nosso Brasil colonial, deu exemplos
dos mais eloqüentes desse clima de insurreição, a ira dos povos , e o conse
qüente medo, para não dizer pânico, dos que os governavam e escravizavam
corpos e almas,sempre que possível. E tudo isso desde o século xvi,tempo em
que os portugueses mal arranhavam a praia como caranguejos, para usar a co
nhecida imagem de frei Vicente. Circunscrita ao litoral, a gente portuguesa
erigiu engenhos de cana, mormente nas capitanias do Nordeste, à frente das
quais Pernambuco e Bahia, economia alimentada de início pelos braços indí
genas. Partiu com certeza deles, dos nativos escravizados, a reação à voraci
dade dos apresadores, reação animada por crenças e ritos tradicionais.
Portugueses e mamelucos a seu serviço viram-se assim,com alguma fre
qüência, objeto de ritos antropofágicos, devorados na cerimônia dedicada a re
por os parentes da tribo que o colonialismo tragava na conquista e no cativeiro.
É em contexto similar de reação que se incluem as chamadas santidades in
dígenas, verdadeiros ancestrais dos quilombos em terra brasílica, comu
nidades de índios foragidos da escravidão e da catequese.
O pânico senhorial em face dessas santidades indígenas foi realmente ex
traordinário, e nelas também os africanos tomaram parte, unindo-se aos índios
nas cerimônias e guerras marcadamente anticolonialistas. A principal das san
tidades ocorreu na Bahia, no início dos anos 1580,liderada por certo índio que
havia passado pelas mãos dos jesuítas, no aldeamento de Tinharé. índio sem
dúvida especial, porque pajé-açu ou caraiba Tupinambá, um xamã que dizia
encarnar o ancestral-mor dos Tupinambá (Tamandaré), ao mesmo tempo que
61
dizia ser "o papa da verdadeira igreja". Santidade rebelde era essa da Bahia,
movimento que fez tremer o recôncavo, incendiando engenhos e aldeamentos
jesuíticos, prometendo a seus adeptos a iminente alforria na "terra sem mal",
paraíso tupi, e a morte ou escravização futura dos portugueses pelos mesmos
índios submetidos ao colonialismo.
A santidade baiana foi responsável por verdadeiro frenesi entre os se
nhores da capitania,jesuítas e governadores, mesmo após a destruição do tem
plo indígena, em 1585, por ordens do governador Manuel Teles Barreto, e
conseqüente punição e reescravização dos rebeldes. Disso dá mostras a do
cumentação da Primeira Visitação do Santo Ofício ao Brasil, concentrada na
Bahia e em Pernambuco, entre 1591 e 1595. Visitação que, por razões que es
capam aos objetivos do presente artigo, terminaria por trazer à luz os detalhes
dessa grande insurreição indígena no Brasil quinhentista. Nela predominavam
índios,sobretudo os da etnia tupinambá, uns "cristãos", outros ainda "pagãos",
mas dela participaram ativamente alguns "negros e negras da Guiné", como
então eram chamados os escravos da África, atraídos quem sabe pela "promes
sa de liberdade" anunciada na cerimônia rebelde dos índios."*
A santidade baiana foi, por tudo isso, uma espécie de antecessora,à moda in
dígena,do que seria Palmares no século xvii, a grande rebeldia africana do Brasil
colonial, concentrada na capitania de Pernambuco, região das Alagoas, serra da
Bamga. Na santidade baiana havia rebeldes africanos, assim como em Palmares
haveria índios, uma e outra rebeliões frontais contra o colonialismo escravocrata.
Mas talvez Palmares seja,com razão,o símbolo da resistência maior. Durou quase
cem anos. Impôs derrotas humilhantes aos portugueses e seus asseclas em
inúmeras ocasiões. Recusou negociar com os potentados coloniais, ao contrário
da santidade tupinambá,e apesar do"acordo de Recife",firmado por Ganga Zum
ba, líder palmarino,com o governador Aires de Souza e Castro,em 1678.
Palmares foi, quando menos, uma resistência maior pelo seu próprio
nome. Os próprios rebeldes o chamavam de Angola Janga,"pequena Angola",
e o reduto ficou registrado na história não com um nome português e cristão, a
exemplo da santidade dos tupis rebeldes, senão como quilombo, vocábulo de
origem banto {kilombo) alusivo a acampamento ou fortaleza. Quilombo ou
mocambo, este último termo derivado do quimbundo mukambu, foram
palavras que os portugueses usariam para designar as povoações africanas cons
truídas nas matas brasílicas pelos africanos em diáspora.^
62
quilombolas, parecem datar de fins do século xvi. É o que nos conta Décio Frei
tas, autor de um dos livros mais divulgados sobre o assunto, mencionando
uma sublevação de negros cativos de um engenho no extremo sul da capitania
de Pernambuco.''
Fins do século xvi, inícios do século xvii: tempo em que a escravidão
africana crescia expressivamente na agromanufatura do açúcar, substituindo o
cativeiro indígena. As insurreições de escravos não tardariam a se alastrar pelo
litoral da América portuguesa, sobretudo no Nordeste. O medo que colonos,
jesuítas e autoridades régias havia muito sentiam dos índios seria, então, cada
vez mais acrescido pelo pavor das rebeliões negras, pânico de longuíssima du
ração que, longe de se restringir ao período colonial, atingiria seu ápice no
século XIX.
Palmares foi, com efeito, a maior rebelião e a manifestação mais em
blemática, como é sabido, dos quilombos coloniais. Resistiu por cerca de cem
anos às expedições repressivas, promoveu assaltos aos engenhos e povoações
coloniais e estimulou fugas em massa de escravos na capitania. Palmares
provocou tanta inquietação entre colonos, padres e funcionários dei rei que a
própria Monarquia portuguesa, submetida a inúmeras pressões, tentou em di
versos momentos negociar com os rebeldes, a exemplo do que os governos
coloniais fizeram ou fariam em outras partes da Afro-América. Os agentes do
colonialismo português por várias vezes não souberam mesmo o que fazer,
apavorados com o cotidiano da rebelião palmarina,frustrados com as sucessi
vas derrotas que os calhambolas impunham a seus terços. Acabariam, por isso
mesmo, prisioneiros de muitos dilemas e hesitações.
As inquietações e hesitações começariam já no limiai do século xvii,
quando ainda era supostamente frágil e recente o ajuntamento da serra da Bar
riga. Comprova-o a tardança do governador Diogo Botelho em seguir viagem
para a Bahia, após desembarcar no Recife,em 1602. Acabaria por ficar mais de
um ano em Pernambuco justamente por causa dos assaltos palmarinos, dos
quais teve de cuidar. A carta testemunhai que fez processar em seu favor, para
dar conta do atraso, ao rei Felipe ii(Felipe iii de Espanha),reuniu mais de vinte
moradores, declarando todos, unanimemente, que fora a necessidade de com
bater "os negros alevantados de Palmares o motivo da permanência do go
vernador em Pernambuco.
Diogo Botelho enviara,de fato, uma expedição comandada por certo Bar-
tolomeu Bezerra e composta basicamente de mamelucos,seguindo nisso o es
tilo dos seus antecessores quinhentistas no combate às santidades e rebeliões
indígenas. E, do mesmo modo que aqueles, assumiria o tom triunfalista, asse
gurando ao rei que lograra desbaratar o quilombo, vanglória inócua que nossos
antigos governadores costumavam apregoar de si mesmos. O tempo demons-
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traria o contrário a d. Diogo Botelho, governador que sonhara fazer do Brasil
"um outro Peru".
Nem Diogo Botelho nem seus sucessores lograriam, por muitas décadas,
desbaratar o refúgio palmarino. A seguir as pistas de Décio Freitas, o quadro só
fez agravar-se, conforme demonstra, cabalmente, a correspondência do gover
nador Diogo Menezes, sucessor de Botelho. Escrevendo de Pernambuco ao
Paço pouco depois de chegar ao Brasil, em 1608, o governador chegaria ao
cúmulo de propor radicalmente o fim da escravidão africana na capitania, subs-
tituindo-se totalmente os negros pelos índios:"os negros viviam alevantados",
e ninguém podia com eles. "Podem crescer de maneira que custe muito o des
baratá-los", escreveu Diogo Menezes no calor da hora.'
Décio Freitas menciona um outro documento, possivelmente do mesmo
governador,em 1612,em que o quadro descrito é francamente mais tenso. Men
ciona que os próprios índios dos aldeamentos inacianos — os mesmos que o in
gênuo governador antes julgara pacíficos — andavam a engrossar os ajunta
mentos dos "negros da Guiné",todos a fazer "abomináveis vivendas e ritos" e a
perpetrar "furtos escandalosos e violências". Impossível não lembrar que, ape
nas um ano depois, seria a vez de os moradores da Bahia se queixarem ao rei de
uma certa santidade de índios foragidos e acantonados na mesma região de
Jaguaripe, lugar onde outrora eclodira a grande insurreição tupi de que já falei.
Na mesma Jaguaripe, antecessora indígena de Palmares, pulsava ainda a rebe
lião, e também ali se encontravam os negros da Guiné para desespero geral."
Invertidas as proporções — maioria de índios na Bahia, predomínio de
africanos em Pernambuco —,os povos colonizados continuavam a infernizar
a vida dos senhores de escravos e colonos do Brasil. No caso da Bahia, a san
tidade indígena atravessava a sua derradeira fase,já residual, mas, na capitania
de Pernambuco, Palmares se encontrava em nítida ascensão. Nos dois casos,
porém, índios e africanos apareciam juntos, a incendiar canaviais, a estimular
fugas e a promover cerimônias em suas vivendas, assunto infelizmente pouco
conhecido dos historiadores.
Tudo parece indicar que a inflexão da história palmarina ocorreu nas dé
cadas de 1630 a 1650, tempo em que os holandeses ocuparam Pernambuco,
onde permaneceram de 1630 a 1654, depois da malograda tentativa de con
quistar a Bahia, em 1624. Foi nesse contexto das guerras luso-flamengas e de
altíssimo crescimento do tráfico para Pernambuco — e Angola esteve, durante
algum tempo,sob o domínio holandês — que Palmares consolidou sua posição
de Estado negro" encravado no Brasil escravista.
E certo que muitíssimos africanos ou crioulos lutaram nos terços dos dois
exércitos colonizadores, atraídos pela promessa de alforria com que lhes ace
navam os europeus. E também certo que alguns chegaram mesmo a se notabi-
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lizar nesses combates,a exemplo do célebre Henrique Dias,comandante negro
da insurreição luso-pernambucana contra os batavos, "patrono" do afamado
terço negro dos Henriques, tradicional na história colonial nordestina. Mas é
igualmente certo que, no conjunto, a crescente população africana escravizada
na capitania soube aproveitar as guerras intercolonialistas para fugir em massa
para o reduto palmarino,fazendo dele um foco permanente de contestação ao
escravismo colonial.
Em Pernambuco saído do período holandês, Palmares era uma realidade
político-militar que não se podia desconhecer, apesar da bazófia dos primeiros
governadores do século xvii. Diante das sucessivas derrotas que as expedições
oficiais sofriam nas cercanias de Palmares, bem como do prosseguimento dos
mkls quilombolas na capitania, foi tomando corpo o projeto de se fazer um
armistício com o Estado negro. Talvez o primeiro a aventar sinceramente a
idéia tenha sido Francisco de Brito Freyre, sucessor do célebre André Vidal de
Negreiros na governança da capitania, a qual exerceu entre 1661 e 1664.
Apesar das pressões em contrário da classe senhorial pernambucana, que
insistia em fazer guerra aos quilombolas sem considerar os sucessivos malo-
gros militares. Brito Freyre cogitou de conceder alforria aos palmarinos "na
forma de todos os outros negros alistados no terço de Henrique Dias". Para
doxo incrível propôs o governador,a revelar a hesitação e medo dos agentes do
colonialismo lusitano; conceder alforria aos quilombolas, equiparando-os, no
plano discursivo e jurídico, aos negros que haviam lutado por Portugal e sua
colonização escravocrata.
Hesitações e medos à parte, a concessão de alforria a quilombolas e o re
conhecimento político dos quilombos não era uma exclusividade portuguesa.
Assim procederam e continuariam a proceder os poderes do colonialismo
noutras partes da Afro-América, sobretudo no Caribe, região de permanente
conflagração entre senhores e escravos desde o século xvii até o xix.' Não se
pode negar que havia algo de estratégico nesse aparente recuo senhorial em
face da rebeldia organizada. Conceder alforria aos quilombolas em troca da
suspensão das guerrilhas e da devolução de novos fugitivos implicava quebrar
o nexo entre os mocambos e os escravos das plantações. A longo prazo, en-
fraquecer-se-iam os quilombos,facilitando a repressão,que muitas vezes ocor
reu, ou pelo menos aquietava-se a colônia enquanto durasse a paz. Para os
quilombolas,que,a bem da verdade,quase nunca combateram a escravidão em
princípio, os tratados eram um meio de obter a alforria para os amotinados e
garantir, ao menos pro teinpore, a autonomia das povoações negras.
Desnecessário insistir em quão precários eram tais acordos, mais
precários talvez que os próprios acordos tácitos concertados entre senhores e
escravos no cotidiano da escravidão. De parte a parte reinava a desconfiança:
65
o medo da reescravização, no caso quilombola; o medo da continuação de
razias e assaltos negros, no caso dos colonos e seus agentes. O próprio Brito
Freyre sugeriu o acordo com os palmarinos sem esconder, no entanto, a suma
desconfiança que sentia "desta gente bárbara". Mas insistia em que alguma paz
era preciso fazer com Palmares, pois das supostas vitórias portuguesas contra
os negros em Pernambuco restava "mais a memória que o efeito".
Seja como for, prevaleceu a opção beligerante até fins dos anos 1670,
malgrado o fracasso militar do colonialismo que, entre inúmeras expedições,
recuava sempre, sem derrotar os quilombolas, apesar das conhecidas van-
glórias dos comandantes expedicionários. A fama de Palmares se alastraria
além dos limites da capitania, bem como o medo que a todos inspirava a re
sistência quilombola. Vale lembrar,a propósito, a recusa dos paulistas em com
bater Palmares, na altura de 1675 — eles que então se encontravam na Bahia
sob a chefia de Estevão Baião Ribeiro Parente, afamado dizimador e apresador
de índios. Segundo Décio Freitas, alegaram os paulistas que uma coisa era en
frentar a tática suicida dos índios, que se arremessavam imprudentemente con
tra o inimigo, tornando fácil a vitória dos mamelucos, por poucos que fossem.
Outra coisa era enfrentar a guerrilha sorrateira dos negros, escamoteados nos
matos, para o que não possuíam experiência.
No govemo de Pedro de Almeida, o antigo projeto de armistício ganhou
novo alento, na esteira das derrotas ou falsas vitórias do experiente Fernão Car
rilho. Através de um alferes dos Henriques, o governo enviaria a Ganga Zum
ba,o chefe-mor dos palmarinos,uma proposta de paz. Contava o governo a seu
favor com a captura de filhos e parentes do "rei de Palmares", mas a proposta
de conjunto era bem mais ampla do que simplesmente libertá-los: garantia de
alforria e direito à terra aos que capitulassem. O armistício foi efetivamente
sancionado já no governo de Aires de Souza e Castro, em 1678, embora lá es
tivesse em pessoa o ex-governador Pedro de Almeida,com a presença da pom
posa comitiva de Ganga Zumba.Em troca da paz, que o rei negro aceitou, ofe
receram-lhe alforria para os nascidos em Palmares, a concessão de terras em
Cucaú,a garantia de poderem comerciar com os moradores circunvizinhos e o
foro de vassalos da Coroa.
Do restante da história não me ocuparei detalhadamente aqui, por escapar
aos objetivos deste ensaio. Mas seus grandes traços são bem conhecidos: dis
sidência de líderes palmarinos que,sob a liderança de Zumbi,insistiram na in-
surgência; conspiração contra Ganga Zumba;assassinato do ex-líder por enve
nenamento; guerra entre facções palmarinas; desagregação do ajuntamento
"oficial" de Cucaú. No desfecho dos acontecimentos, boa parte dos habitantes
de Cucaú,que alguns chamam de "anti-Palmares", acabou reescravizada e dis-
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tribuída entre os senhores da região. Os principais líderes da defecção anti-
Ganga Zumba foram sumariamente degolados.
A insurgência palmarina prosseguiu, como se sabe, e talvez com mais vigor
a partir de tais episódios. Nenhuma possibilidade de negociação. Esforço supre
mo de guerra da parte dos colonizadores. Convocação do bandeirante Domingos
Jorge Velho para liderar uma expedição, homem talvez mais destemido que Es
tevão Baião e mais afamado do que ele nas lides da razia e apresamento de cativos.
Derrota final de Palmares e morte do lendário Zumbi,em 1695.
O que realmente interessa reter, a esta altura da reflexão, diz respeito aos
episódios de Cucaú, especialmente à reescravização, a título de "servidão per
pétua", dos que haviam seguido Ganga Zumba no seu, por assim dizer, exílio.
Ela deu ensejo àquela que talvez tenha sido a primeira grande intervenção je-
suítica em matéria de Palmares. Fê-la de Lisboa,em 1680,o padre Manuel Fer
nandes, professor de retórica, filosofia e teologia, confessor particular de
ninguém menos que o rei d. Pedro ii.
Nosso caro jesuíta afirmou, com todas as letras, que o povo de Cucaú era
livre e jamais poderia ter sido cativado, alegando para tanto quatro razões, que
passo a resumir.'"
Os moradores de Cucaú tinham obtido a alforria por garantia do gover
nador Aires de Souza e Castro em nome de Sua Alteza Real. Fizeram-se
cristãos, foram batizados e crismados, instruídos na santa fé católica. Não
poderiam, como tais, recair em cativeiro, por ser isso contra as leis do Estado.
No mais — e esse é um argumento no mínimo curioso —,só poderiam recair
em cativeiro por sentença jurídica, porque "a escravidão equipara-se à morte,
e a morte não se dá sem se ouvir o réu".
Muitos habitantes de Cucaú eram crianças de pouca idade, outros es
tavam doentes, e vários nem sequer tinham conspirado contra Ganga Zumba
nem haviam se aliado à facção palmarina. Não havia argumento, portanto, para
se castigarem todos, sendo apenas alguns os traidores do acordo de 1678.
O acordo de 1678 somente previa a possibilidade de reescravização para
os que o rompessem, voltando a delinqüir, garantindo-se a liberdade a todos os
que observassem o concertado no armistício. Em reforço à segunda razão,oje
suíta insistia em que vários cativeiros feitos em 1680 eram sobremodo injustos
e contrariavam frontalmente a lei do armistício.
O crime imputado à maioria dos habitantes de Cucaú se havia calcado em
"informações extrajudiciais, em cada um dá, ou pode tirar notícias mal tiradas".
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Insurgia-se, pois, o insigne jesuíta confessor dei rei contra o cativeiro dos
que haviam abjurado da rebelião. Se aqueles negros dela haviam abjurado,
abraçando a "verdadeira fé cristã", como poderiam ser cativos? Insinuava-se,
assim, uma idéia cara aos inacianos, segundo a qual ser escravo e ser cristão
eram situações excludentes. Idéia cara efartamente apregoada no tocante aos
índios, desde Nóbrega e Anchieta,jamais em relação aos africanos. E que
nesse caso, ao que parece, o jesuíta se apegara a formalidades jurídicas, à le
gitimidade da "guerra justa", para ele ausente no caso de Cucaú, e ao fato de
que muitos negros reescravizados eram crianças, doentes e, no mais das vezes,
fiéis, a Deus e ao rei.
Permanece, no entanto, uma grande incoerência ou imprecisão. Incoerên
cia antes de tudo histórica, posto que,como se verá adiante, os jesuítas sempre
haviam justificado e defendido a escravidão dos negros, ainda que cristãos,
apesar de combaterem o cativeiro dos índios. No caso dos índios, vale lembrar,
catequese e escravidão se opunham — como se pode perceber nos escritos de
Nóbrega e Anchieta no século xvi, e no sermonário de Antônio Vieira no sécu
lo seguinte. Já no caso dos africanos, pelo contrário, tanto melhores escravos
seriam os negros quanto mais cristãos se tornassem — assim pensaram os ina
cianos no Brasil, a começar pelo próprio Vieira no século xvii. Escrevendo de
Lisboa, e sem experiência colonizadora, padre Manoel Fernandes chegaria a
equiparar escravidão e morte, admitindo que negros rebeldes pudessem
usufruir do status de forros reservado aos indígenas do Brasil.
Cristianização versus escravidão, eis o dilema em que se debatia o jesuí
ta, confessor do rei de Portugal, ao condenar o apresamento dos negros de
Cucaú. Dilema completamente singular, para não dizer despropositado,tratan
do-se de um jesuíta a discorrer, em pleno século xvii, sobre o cativeiro de
africanos. Os jesuítas falaram pouco de Palmares — assunto tabu —,e o
primeiro a enfrentar o tema fê-lo com grande vacilação de princípios, levando-
se em consideração a postura escravocrata da Companhia de Jesus. Afinal,
nunca é demais lembrar que os mesmos jesuítas, notabilizados como mis
sionários, educadores e letrados no Brasil colonial, lograram formar valioso
patrimônio, sobretudo nos séculos xvil e xviii, incluindo engenhos de açúcar e
escravos.
68
Escrevendo de Lisboa, Manoel Fernandes pareceu mergulhar nos dilemas
da própria classe senhorial pernarnbucana que, amedontrada, não sabia o que
fazer com os palmarinos. Era mister uma correção de rumos, buscar uma coe
rência doutrinária que fundamentasse a cristianização de todos, conforme
mandara o Concilio de Trento, e a escravização de alguns, para glória do rei e
aquietação da cólera divina. Conciliar a universalidade da fé católica e a ma
nutenção dos privilégios de classe, eis, em suma, o que ocupou a atenção dos
jesuítas do Brasil, para não falar dos da África, antes mesmo que Palmares se
consolidasse.
Mas Palmares, a bem dizer, foi matéria de suma importância para a re
flexão jesuítica acerca da escravidão africana. E falar em reflexão jesuítica não
é pouco, pois eram os inacianos a fina flor da intelectualidade portuguesa,con
troladores da educação, apologistas do humanismo cristão da Igreja tridentina,
herdeiros da escolástica de Santo Tomás, mestres da pregação barroca,
doutores na arte da transfiguração à base de alegorias e metáforas de sentido
edificante.
É verdade que poucos jesuítas falaram explicitamente de Palmares. Mas
falaram muito da escravidão africana e, quero crer, fizeram-no sobretudo por
causa de Palmares. O silêncio inaciano foi, nesse caso, mais aparente que real,
como convinha ao tempo do barroco. Pareciam seguir a máxima de Calderón
de La Barca: "se temos de ver cair na obscuridade o poder, a majestade e pom
pa,saibamos aproveitar disso o bocado que nos toca, porque apenas vivemos o
que em sonhos gozamos". Sonho jesuítico de conciliar escravidão e catolicis
mo dos negros. Utopia que mais se adequava aos versos de Álvaro de Brito, no
antigo Cancioneiro geral:
Não devemos ser comuns,
senão para Deus amarmos
e sennrmos.
69
cristã dos senhores no governo dos escravos(1705)ou da célebre obra de An-
dreoni, o nosso Antonil, Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas
(1711). Apenas indícios, volto a dizer, que no entanto podem iluminar, antes de
tudo, uma preocupação mais generalizada dos inacianos com a questão do
cativeiro dos negros.
Só se conhece bem o que foi publicado, mas é presumível que esse gênero
de sermões pregados nas irmandades negras ou nas igrejas freqüentadas pelos
colonos fosse, na realidade, mais difundido. A mensagem que tais sermões ou
receituários buscava introjetar no público obviamente variava conforme o pos
sível receptor do discurso. Aos escravos recomendavarse o conformismo com
a situação de cativos e a esperança de uma vida melhor após a morte. Aos se
nhores,o tom era quase sempre de ameaça com castigos do Céu e da Teira, ca
so não cuidassem da salvação espiritual e humana dos negros, negando-lhes a
possibilidade da catequese e abusando do direito de explorá-los e castigá-los.
O teor desses discursos indicava, de todo modo, uma preocupação nova,
pois até então a Companhia de Jesus se havia limitado, em matéria de es
cravidão, a combater o cativeiro dos índios, confrontando-se claramente com o
"sentido mercantil da colonização" em favor da catequese e da missão. Quan
to aos africanos, no século xvi, não se percebe nenhuma preocupação com a
catequese, nenhuma indignação contra apresamentos injustos ou castigos
exagerados. A novidade do século xvii reside justamente nessa "tomada de
consciência" por parte dos jesuítas. Perceberam que se fazia necessário cuidar
da alma dos negros e amenizar a desdita do cativeiro. Mas, ao contrário do que
fizeram no tocante ao índio, não combateram jamais a escravidão africana,
apesar do embate que travaram com os senhores do Brasil.
Penso que o pano de fundo desta preocupação era, no conjunto, o próprio
crescimento do tráfico, da escravidão africana no litoral e, conseqüentemente,
das fugas e rebeliões. Se no século xvi os cativos dos engenhos eram sobretu
do índios, embora houvesse africanos escravizados, na virada para o século
XVII seriam os negros a mão-de-obra básica da economia colonial litorânea."
Mas não resta dúvida de que as crescentes rebeliões e fugas de negros ates
tadas, entre outras fontes, pela documentação do Governo Geral já no século
XVI — tiveram peso considerável nessa tomada de consciência dos "soldados
de Cristo".
Palmares foi sempre omitido pelos jesuítas, quer nos sermões, quer nos
manuais de como bem tratar e governar os escravos. Ao pregarem para públi
co de senhores, aludiam, no máximo, ao perigo dos mocambos, das rebeldias,
das fugas e vinganças dos negros. Compraziam-se em adverti-los por meio de
metáforas, acenando aos senhores com o triste destino de reis e povos que se
desviaram de Deus e por isso pereceram. No entanto, silenciavam acerca de
70
Palmares. Mas estou convencido de que os quilombolas chefiados por Ganga
Zumba, e depois por Zumbi, figuravam nas dobras desses discursos, e tanto
mais quanto a resistência palmarina se revelava tenaz e afamada. Se não
chegou a ser o leitmotiv do novo discursojesuítico sobre o cativeiro dos negros,
Palmares parecia um fantasma a assombrar tanto a fala dos pregadores como a
recepção dos ouvintes.
Senhores, que hoje vos chamais assim,considerai que para passar da liberdade ao
cativeiro não é necessária a transmigração da Babilônia, e na vossa terra pode
suceder esta mudança..
71
Delumeau captou muito bem o sentido conservador dessa lógica essencial
mente tridentina que associava cristianização, aparente desprezo pelas coisas
do mundo e "recusa de toda sedição e, com mais razão, de toda revolução"."
No Brasil colonial. Vieira pregaria aos escravos e aos senhores até o fim
da vida, apelando aos primeiros para que se vergassem ao "doce inferno" dos
engenhos,e ameaçando os segundos com os piores castigos do Céu e da Terra,
caso não minorassem os maus-tratos impingidos aos cativos. Castigos do Céu:
a interdição do Paraíso e a condenação eterna dos senhores. Castigos da Terra:
a rebelião e a sedição, de que Palmares daria o maior exemplo, embora dele
não falassem os jesuítas em suas pregações.
Foi o jesuíta italiano Jorge Benci o autor do receituário mais sistemático
dirigido ao senhores para o tratamento dos escravos à moda cristã. Benci per
maneceu no Brasil entre 168.^ e 1700. Assumiu diversas funções no colégio da
74
anos e seu prestígio era apenas uma sombra do que fora na Companhia e mes
mo na Monarquia, décadas antes. Vieira já passara pelos embates no Mara
nhão, onde fora missionário e visitador. Escrevera os grandes libelos sebas-
tianistas que fizeram de Bandarra, o sapateiro de Trancoso, o profeta da
Restauração portuguesa, em 1640. Servira, como político e diplomata, no
reinado de d. João iv, o primeiro dos Bragança, tempo em que atingiu o má
ximo de prestígio e importância política no Reino. Amargara também algum
tempo de cárcere e um processo inquisitorial, acusado de apregoar a ressur
reição de d. João iv em seus escritos. Seria depois reabilitado, é verdade, mas
nunca voltaria a ser o Vieira sebastianista, o mordaz acusador de apresador de
índios, o audacioso crítico da Inquisição e da perseguição aos cristãos-novos
que o celebrizaram.
D. Pedro ii considerava "pérfido" e "intrigante" o outrora prestigiado
Vieira que,retomando ao Brasil, em 1681, acompanharia de perto o crescente
prestígio dos jesuítas italianos e alemães, em detrimento dos portugueses, do
que resultaram querelas em parte provocadas pela ascensão de Antonil na
Companhia de Jesus,ele que fora levado ao Brasil pelo próprio Vieira como se
cretário.
Apesar de tudo, foi a Vieira, em 1691, que se dirigiu Roque Monteiro
Paim, presidente da Junta das Missões, segundo João Lúcio de Azevedo, de
sembargador do Paço e secretário dei rei, segundo Décio Freitas. A consulta
tratava, entre outros tópicos, do caso de Palmares.Infelizmente não é conheci
do o teor dessa consulta na íntegra(pelo menos até hoje), mas é certo que trata
va muito de Palmares. O momento era, então, de grande hesitação. Cresciam
os assaltos palmarinos aos engenhos e fazendas de Pernambuco, liderados os
quilombolas pelo aguerrido Zumbi. O governo colonial não sabia mais o que
fazer, fracassado o armistício firmado com Ganga Zumba e destroçado o "re
fúgio oficial" de Cucaú. A própria Monarquia e o Conselho Ultramarino pare
ciam perplexos.
A carta enviada de Lisboa a Vieira solicitava, como,principal assunto, que
o jesuíta apreciasse a sugestão de um religioso italiano, ao que parece jesuíta,
de "ir aos Palmares". Ir para catequizá-los,ir para convencê-los a render-se ou
para fazer uma nova tentativa de acordo, não se sabe exatamente o que, ao cer
to, sugeria o religioso italiano. Pode-se afirmar, no entanto, que a idéia era ter
com os palmarinos e propor-lhes alguma espécie de acordo, sendo encarrega
dos os jesuítas dessa importante missão.
A resposta de Vieira é contudo conhecida, publicada na íntegra por João
Lúcio de Azevedo na sua História de Antônio Vieira^ documento depositado na
Biblioteca de Évora com o título de "carta de Antônio Vieira a certo fidalgo",
datada de 2dejulho de 1691 No longo trecho relativo a Palmares,além de es-
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L
tranhar que semelhante proposta não fosse do conhecimento dos superiores da
província jesuítica no Brasil, Vieira começa por desqualificar o religioso ita
liano autor da proposta. Padre de "não muitos anos",escreveu Vieira,"de pou
ca ou nenhuma experiência nestas matérias", ainda que "de bom espírito e fer
voroso". Seria ele Jorge Benci,jesuíta empenhado na questão escravista, então
com a metade da idade do octogenário jesuíta?
Desqualificado o jesuíta italiano. Vieira passou a desmerecer a proposta,
acrescentando que o assunto fora posto em consulta e todos os padresjulgaram
impossível ir a Palmares. Arrolou para tanto cinco razões, que passo a citar:
"Porque se isto fosse possível, havia de ser por meio dos padres naturais
de Angola que temos, nos quais crêem,e deles se fiam e os entendem como de
sua própria pátria e língua; mas todos concordam que é matéria alheia de todo
fundamento e esperança."
"Porque até deles, neste particular, se não hão de fiar por nenhum modo,
suspeitando e crendo sempre que são espias dos governadores para os avi
sarem secretamente de como podem ser conquistados."
"Porque bastará a menor destas suspeitas,ou em todos ou em alguns, para os
matarem com peçonha,como fazem oculta e secretissimamente uns aos outros."
"Porque ainda que cessassem os assaltos que fazem no povoado dos por
tugueses, nunca hão de deixcu: de admitir aos de sua nação que para eles fu
girem."
"Fortíssima e total, porque sendo rebelados e cativos, estão e perseveram
em pecado contínuo e atual, de que não podem ser absoltos, nem receber a
graça de Deus,sem se restituírem ao serviço e obediência de seus senhores, o
que de nenhum modo hão de fazer. Só havia um meio eficaz e efetivo para ver
dadeiramente se reduzirem, que era concedendo-lhe Sua Majestade e todos os
seus senhores, espontânea, liberal e segura liberdade, vivendo naqueles sítios
como os outros índios e gentios livres,e que então os padres fossem seus páro
cos e os doutrinassem como os demais."
As cinco alegações de Vieira, mormente as duas últimas, são de extraor
dinária riqueza não apenas para rastrear qual era, afinal, o teor da proposta do
'religioso italiano", mas sobretudo para esclarecer de vez a posição dos jesuí
tas em face da escravidão negra e da rebelião. Pela primeira vez,ao que parece,
osjesuítas se pronunciavam sobre Palmares por escrito em terra brasílica.
A primeira razão é, por assim dizer, de ordem "técnica", pertencendo
antes ao domínio da comunicação: somente padres naturais de Angola ou,
quem sabe, padres "línguas" poderiam tratar com os quilombolas,já que entre
os palmannos predominavam os da cultura banto. As duas razões seguintes
põem abaixo,porém,a hipótese inicial, alegando Vieira que, mesmo no caso de
irem os tais padres a Palmares, era grande o perigo de serem tomados por es-
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iPr '.Cp'r ^ '"s!;
ui' i^^iiiijjüiipiteífra y—^
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mantiveram a coerência de não catequizar sediciosõs, mantendo unidas, no ca
so dos negros, as idéias de cativeiro e cristiamzação.
Palmares foi destruído,é verdade. Mas osjesuítas também não lograriam
êxito no "santíssimo propósito" de erigir uma escravidão cristã no Brasil. Ao
fim e ao cabo, o embate entre Deus e Palmares ficaria sem vencedor.
NOTAS
(1)Apud Jean Delumeau, História do medo no Ocidente (1300-1800), São Paulo, Com-
panhia das Letras, 1989, p. 198. , u o r» d
(2)Robert Slenes,"Malungu, Ngoma vem!: África coberta e redescoberta no Brasil ,Re-
ví5/a t/SP, 12(dez.-jan.-fev. 1991/1992), pp.49-67.
(3)Santidade foi o nome que osjesuítas atribuíram, antes de tudo,a certo ntual tupmambá
{caraimonhang),no qual pajés especiais chamados de caraíbas entravam em contato com os an
cestrais mortos,encarnavam-nos
mar,espéciede por vezes,
paraíso na mitologia heróicae exortavam o grupo
tupi.Embora à guerra
osjesuítas e à busca dafalsaasan-
considerassem terra sem
tidade dos caraíbas,o nome acabou difundido entre os colonizadores, passando a designar nao só
o ritual mas também os movimentos dele derivados, a exemplo de guerras, nugraçoes e evantes
indígenas no século XVII. i i • i c-
(4)Ronaldo Vainfas,4 heresia dos índios-catolicismo e rebeldia no Brasil colonial,Sao
Paulo, Companhia das Letras, 1995. i
(5)Para discussão etimológica mais precisa, ver Schwartz,Stuart."Mocambos,quilombos
e Palmares". n.° 17(1987), pp. 83-6. j. - j t í-- i
(6) Décio Freitas, Palmares — a guerra dos escravos, 2 e içao, lo e aneiro, raa ,
1978.
{l)Apud¥it\\.dLS, Palmares, pp.WOA. r
(8)"Carta de el-rey a Gaspar de Souza"(Lisboa, 19 dejaneiro de 1613). Biblioteca do Ita-
maraty. Rio de Janeiro, ff. 218-218v. , t o x>r- ^ \ c ; r
(9)Richard Price,"Les sociétés d'esclaves marrons''. In: S. Mintz(org.), Esclave,facteur
de production — l'économiepoUtique de Vesclavage,Paris,Bordas, 1981,pp.87 118.
(\0)FvQÍias, Palmares, pp. 129-30. . , » , • , o~
(11)Stuart Schwartz,Segredos internos-engenhos e escravos na sociedade colonial,Sao
Paulo, Companhia das Letras, 1988, pp. 40-73. , u • /- j j / •, d j
(12)Antônio Vieira,"Sermão xxvii"(Bahia,anos 1680).In: Hemani Cidade(org). Padre
Aníônio Vieira, Lisboa, 1940, vol. iii, p. 11L , ,.
(13)Antônio Vieira,"Sermão xiv. Na Bahia,à irmandade dos pretos de um engenho em dia
de são João Evangelista, no ano de 1633".In H.Cidade(org.).Padre Antônio Vieira, pp. 30-1.
(14)Antônio Vieira, Sermões,Lisboa, Officina de Miguel Deslandes, 1679-1689,vol. vu,
pp.402-3.
(15)Jean Delumeau,Le péché et Ia peur-Ia culpabilization en Occident(XIIP-XVIIP siè-
cles). Paris, Fayard, 1983, p. 513.
(16)Benci baseava-se, na realidade,num discípulo de Aristóteles que destacava três coisas
concernentes aos escravos: trabalho, pão e comida.VerT.Wiedmann,Greek and Roman slavery.
Baltimore, Johns Hopkins University Press, 1981, p. 186.
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