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HISTÓRIA RELIGIOSA

de PORTUGAL

CENTRO uníA i ILiGlCSA


HISTÓRIA RELIGIOSA
DE PORTUGAL
CENTRO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA RELIGIOSA
DA UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA
DIRECÇÃO DE
CARLOS MOREIRA AZEVEDO

VOLUME 1
FORMAÇÃO E LIMITES
DA CRISTANDADE

C O O R D E N A Ç Ã O DE:
Ana Maria C. M . Jorge
Ana Maria S. A. Rodrigues

A U T O R E S :
Ana Maria C. M . Jorge
Ana Maria S. A. Rodrigues
H e r m í n i a Vasconcelos Vilar
J o a q u i m C h o r ã o Lavajo
Maria de Lurdes Rosa
Maria José Ferro Tavares
Saul A n t ó n i o G o m e s

CírculoLeitores
CAPA E DESIGN GRÁFICO:
Fernando Rochinha Diogo
REVISÃO TIPOGRÁFICA:
F o t o c o m p o g r á f i c a , Lda.
CARTOGRAFIA:
F e r n a n d o Pardal
COMPOSIÇÃO:
F o t o c o m p o g r á f i c a , Lda.
FOTOMECÂNICA:
F o t o c o m p o g r á f i c a , Lda.

® Círculo de Leitores SA e Autores


Primeira edição para a língua portuguesa
Impresso e e n c a d e r n a d o em M a i o de 2 0 0 0
por Printer Portuguesa, I n d . Gráfica, Lda.
Casais d e M e m M a r t i n s , Rio de M o u r o
Edição n.° 0 0 4 6 6 1 2
D e p ó s i t o legal n.° 150 6 0 8 / 0 0
ISBN 972-42-2277-2
APRESENTAÇAO

INTRODUÇÃO 1

A DINÂMICA D A CRISTIANIZAÇÃO E O DEBATE O R T O D O - A PROCURA DO


X I A / H E T E R O D O X I A 13
O SINCRETISMO RELIGIOSO HISPÂNICO E A PENETRAÇÃO D O DEUS ÚNICO
C R I S T I A N I S M O 13 — D O C O M B A T E C O N T R A O P A G A N I S M O
A O C O N T R O L O D A S « S U P E R S T I Ç Õ E S » 20 — O E C L O D I R D A Convivências religiosas:
D I S S I D Ê N C I A : A Q U E R E L A A R I A N I S T A 25 — O R E P T O D O P R I S - um desafio multissecular
CILIANISMO E A E M E R G Ê N C I A DE «NOVAS» C O R R E N T E S H E -
íí
T E R O D O X A S 29 — O S U R G I M E N T O D A S C O R R E N T E S M I L E N A -
R I S T A S E D A Q U E S T Ã O D A P O B R E Z A V O L U N T Á R I A 35 —
A P E R M A N Ê N C I A DAS «SUPERSTIÇÕES» E A D I A B O L I Z A Ç Ã O DA
F E I T I Ç A R I A 43 — N O T A S 46

O DIFÍCIL DIÁLOGO E N T R E JUDAÍSMO E CRISTIANISMO 53


O S J U D E U S N O P O R T U G A L M E D I E V A L 53 — O A P E L O À C O N -
V E R S Ã O E A A P O L O G É T I C A 6 9 — O A N T I C R I S T I A N I S M O 86 —
N O T A S 88

ISLÃO E CRISTIANISMO: E N T R E A TOLERANCIA E A GUER-


RA SANTA 91
O S M O Ç Á R A B E S P O R T U G U E S E S 92 — A c o n q u i s t a m u ç u l m a n a da
Península Ibérica e o estatuto social dos cristãos 92 — E s t a t u t o e c o n ó m i c o
9 5 — L i b e r d a d e religiosa 9 6 — A vida cultural 100 — M O U R O S 102 —
A R e c o n q u i s t a cristã da Península Ibérica e o estatuto social dos m o u r o s 102 —
O r g a n i z a ç ã o j u r í d i c a e administrativa dos m o u r o s : as c o m u n a s 108 — S e g r e -
gação étnico-religiosa 109 — M o u r a r i a s 110 — Vestuário e sinais distintivos
111 — E s t a t u t o e c o n ó m i c o - p r o f i s s i o n a l dos m o u r o s p o r t u g u e s e s 112 —
Agricultura e ofícios m e c â n i c o s 112 — C o m é r c i o e finanças 113 — O u t r a s
actividades 114 — Impostos e heranças 114 — Aposentadoria 115 — Participa-
ção na guerra e na m a n u t e n ç ã o da o r d e m 115 — Liberdade religiosa 116 —
INTERCÂMBIO CULTURAL ISLAMO-CRISTÃO: U M BALANÇO
P O S I T I V O 117 — E n c o n t r o de dois p o v o s e duas culturas 117 — A língua
121 — A r t e e ciência 122 — A poesia lírica e a narrativa 126 — A filosofia
127 — U M E P Í L O G O T R Á G I C O : A E X P U L S Ã O D E 1496 127 — N O -
T A S 129

O R G A N I Z A Ç Ã O ECLESIÁSTICA D O ESPAÇO 137 A CONSTRUÇÃO


D O I M P É R I O R O M A N O A O R E I N O A S T U R I A N O - L E O N Ê S 137 —
E S P A Ç O E C L E S I Á S T I C O E M T E R R I T Ó R I O P O R T U G U Ê S (1096-1415) DE UMA IGREJA
142 — A geografia eclesiástica portuguesa na época medieval: estudos, fontes
144 — A geografia eclesiástica portuguesa na época medieval: territórios d i o c e - Agentes e estmturas de
sanos 146 — T u i (parte portuguesa) 146 — O r e n s e 148 — Braga 148 — F r e - enquadramento eclesiásticos
guesias m e d i e v a i s — M i n h o 150 — Freguesias medievais — T r á s - o s - M o n t e s Í35
156 — P o r t o 161 — C o i m b r a 166 — Viseu 170 — L a m e g o 172 — C i d a d e
R o d r i g o (parte portuguesa) 175 — G u a r d a 176 — B a d a j o z (parte p o r t u g u e -
sa) 179 — Lisboa 179 — É v o r a 185 — Algarve (Silves) 192 — A geografia
eclesiástica p o r t u g u e s a na é p o c a m e d i e v a l : c o n c l u s õ e s 193 — N O T A S 195

V
SUMÁRIO

AS INSTITUIÇÕES E O ELEMENTO H U M A N O 203


AS I N S T I T U I Ç Õ E S M O N Á S T I C A S E A F U G A D O M U N D O 2 0 3 —
A vida m o n á s t i c a na Hispânia d u r a n t e a A n t i g u i d a d e T a r d i a 2 0 3 — A p r o c u -
ra da p e r f e i ç ã o l o n g e d o m u n d o : da r e f o r m a b e n e d i t i n a à influência c l u n i a -
cense 2 0 6 — A m e n s a g e m de Cister: o ê x i t o d e u m a o r d e m 2 1 2 — A p r o -
cura social de u m a vivência alheia ao m u n d o 2 1 4 — A vida e r e m í t i c a 2 2 0 —
A VIVÊNCIA DE U M A R E G R A E N T R E O M O S T E I R O E O SÉCU-
L O 2 2 2 — O s C ó n e g o s R e g r a n t e s 2 2 2 — O s frades m e n d i c a n t e s 2 2 8 — O s
freires militares e hospitalários 2 3 3 — A P E R M A N Ê N C I A N O S É C U L O
2 3 7 — O e p i s c o p a d o 2 3 7 — A) Das origens à Alta Idade M é d i a 2 3 7 — B)
D a restauração diocesana ao século x v 241 — O clero catedralício 2 4 4 —
O clero paroquial 2 4 8 — N O T A S 2 5 3

PATRIMÓNIOS, DIREITOS E RENDIMENTOS


ECLESIÁSTICOS 261
A VIVÊNCIA CRISTÃ DA E C O N O M I A , E N T R E POBREZA EVAN-
G É L I C A E R I Q U E Z A I N S T I T U C I O N A L 261 — A P R O G R E S S I V A
AFIRJVIAÇÃO D O S D I R E I T O S E R E N D I M E N T O S D E N A T U R E Z A
R E L I G I O S A 2 6 1 — O f e r t a s e dádivas espontâneas 2 6 2 — Taxas obrigatórias
p e s a n d o sobre os fiéis 2 6 3 — R e n d i m e n t o s p r o v e n i e n t e s d o c u l t o f u n e r á r i o
265 — O S P A T R I M Ó N I O S E C L E S I Á S T I C O S , F A C E M A I S VISÍVEL
D A R I Q U E Z A D A I G R E J A 2 6 7 — F o r m a ç ã o e e v o l u ç ã o dos p a t r i m ó n i o s
eclesiásticos 2 6 7 — C o m p o s i ç ã o e distribuição espacial dos p a t r i m ó n i o s e c l e -
siásticos 2 7 1 — A e x p l o r a ç ã o directa e indirecta dos b e n s f u n d i á r i o s 2 7 9 —
As rendas e serviços d e o r i g e m senhorial e d o m i n i c a l 2 8 1 — R E P A R T I -
Ç Ã O D O S BENS E R E N D I M E N T O S 284 — A autonomização patrimo-
nial das igrejas rurais e dos c e n ó b i o s 2 8 4 — N o v o s r e n d i m e n t o s e novas p a r -
tilhas n o q u a d r o d i o c e s a n o 2 8 5 — A partilha dos r e n d i m e n t o s n o seio d o
clero regular 2 9 1 — N O T A S 2 9 4

MONARQUIA E IGREJA:
CONVERGÊNCIAS E OPOSIÇÕES 303
DA «IGREJA C O N S T A N T I N I A N A » A O R E I N O A S T U R I A N O - L E O -
N È S 3 0 3 — D E A F O N S O H E N R I Q U E S A S A N C H O II: U M A D I F Í C I L
D E L I M I T A Ç Ã O D E P O D E R E S (1128-1245) 3 0 7 — D o s p o d e r e s e m p r e -
sença 3 0 4 — R e i s e bispos 3 1 4 — O R E I E A I G R E J A - O E S T A B E L E -
C I M E N T O D A S C O N C Ó R D I A S (1245-1383) 3 1 8 — O C I S M A D O O C I -
DENTE E A IGREJA PORTUGUESA N O DEALBAR DO
S É C U L O X V 328 — N O T A S 334

VIVENDO A RELIGIÃO D O S CLÉRIGOS: VIVÊNCIAS ESPIRITUAIS,


ELABORAÇÃO D O U T R I N A L E TRANSMISSÃO
A PALAVRA CULTURAL 339
D O U T R I N A E C U L T U R A C R I S T Ã S 3 3 9 — A u n i d a d e da Igreja 3 4 2 —
DE DEUS O s santos p a d r e s h i s p â n i c o s 3 4 3 — L i t u r g i a v i s i g ó t i c o - m o ç á r a b e . O caso
d e G u i m a r ã e s 3 4 5 — A escatologia 3 4 8 — D o s m o d e l o s m o n á s t i c o s f r u -
Doutrina, espiritualidade
t u o s i a n o s a o C o n c í l i o d e C o y a n z a d e 1055 3 5 1 — O c o s t u m e b r a c a r e n s e
e cultura cristãs 3 5 4 — O espírito b e n e d i t i n o e C l u n y 3 5 6 — O e r e m i t i s m o 3 6 0 — O s
337 C ó n e g o s Regrantes de Santo Agostinho 3 6 2 — O s Cistercienses 367 —
O s M e n d i c a n t e s e a Imitado Christi 3 7 0 — Santa M a r i a 3 7 8 — P e c a d o e
c o n s c i ê n c i a pessoal 3 8 0 — M Ú N U S E P I S C O A L E Q U A D R O S N O R -
M A T I V O S 3 8 7 — A c i d a d e e p i s c o p a l p o r t u g u e s a : os e s p l e n d o r e s r o m â n i -
cos e g ó t i c o s 3 8 8 — A r e c o m p o s i ç ã o d o s p o d e r e s eclesiásticos seculares
391 — Audiências. Chancelarias. Contabilidade e arquivo 393 — A n o r -
mativa conciliar j u n t o d o clero p o r t u g u ê s 397 — O s sínodos, estatutos
d i o c e s a n o s e visitações 3 9 9 — C O N H E C I M E N T O E A P R E N D I Z A G E M
4 0 0 — O ensino d o clero 4 0 0 — Escolas c o n v e n t u a i s 4 0 2 — Escolas e p i s c o -
pais 4 0 6 — U n i v e r s i d a d e s e colégios 4 1 0 — Scriptoria e bibliotecas 4 1 3 —
N O T A S 418

vi
SUMÁRIO

A RELIGIÃO N O SÉCULO: VIVÊNCIAS E DEVOÇÕES D O S LEI-


GOS 423
CONDES, MOÇÁRABES E INFANÇÕES EM C O N S T R U Ç Ã O DE
I D E N T I D A D E R E L I G I O S A 4 2 3 — D o s d o n s dos santos ao esplendor sa-
grado: a religiosidade da condessa M u m a d o n a 4 2 3 — A força dos ritos na
identificação c o m u n i t á r i a : os m o ç á r a b e s de C o i m b r a e a i n t r o d u ç ã o da litur-
gia r o m a n a (1064-1116) 4 3 3 — R e l i g i ã o e c o n s t r u ç ã o d o p o d e r : os p a t r o n o s
de Santo Tirso e d e P a ç o d e Sousa n o século xi 4 4 0 — D O S C A V A L E I -
R O S D E C O I M B R A AS P R I M E I R A S R E A C Ç Õ E S A O S M E N D I C A N -
T E S : A V I T A L I D A D E D A S R E S P O S T A S L O C A I S 4 4 5 — O «guerreiro
dos Crúzios» e o «guerreiro dos guerreiros»: a c o n s t r u ç ã o d o leigo pelos t e x -
tos crúzios e a sua r e c e p ç ã o 4 4 5 — Q u a t r o infantes e n t r e a «tradição» e a
«modernidade»: os «príncipes de Cister» — Teresa, Sancha, Mafalda e P e d r o —
e n c o n t r a m os M e n d i c a n t e s 4 5 2 — U M A É P O C A D E D I N A M I S M O R E -
L I G I O S O 4 6 0 — D i n h e i r o , p o d e r e caridade: elites urbanas e estabeleci-
m e n t o s d e assistência (1274-1345) 4 6 0 — M e n d i c a n t e s e redes d e piedade f e -
m i n i n a (1278-1336): três donas e m busca de religiosidade própria e u m a o r d e m
q u e «descobre» a sua santa 4 7 0 — V I V Ê N C I A S E D E B A T E S E M T E M P O
D E A U T O N O M I Z A Ç Ã O D O S L E I G O S 4 8 0 — Salvação individual e o
culto dos antepassados: a f u n d a ç ã o de capelas d e m o r g a d i o n o s séculos x i v e
x v 4 8 0 — E n t r e a c o r t e e o e r m o : r e f o r m i s m o e radicalismo religiosos (fins
d o século x i v - s é c u l o xv) 4 9 2 — N O T A S 5 0 6

BIBLIOGRAFIA 511

VII
Introdução geral
Carlos A. Moreira Azevedo

C H E G O U O MOMENTO DE PROPORCIONAR a o p ú b l i c o i n t e r e s s a d o d o am-


b i e n t e cultural p o r t u g u ê s u m a História Religiosa de Portugal. C o m o se tra-
ç o u a história e c o n ó m i c a , social, política, cultural, p o d e r á c o m p l e m e n t a r - s e o
q u a d r o c o m o estudo da d i m e n s ã o religiosa.
D e s d e q u e existe o nível simbólico na pessoa h u m a n a , o facto religioso
existiu, nas etapas da história, de variadíssimas formas, mas c o m p e r m a n ê n c i a s
de impressionante peso e graus de parentesco, capazes de p e r m i t i r signifi-
cativas comparações.
C o m e c e m o s p o r esclarecer o q u e e n t e n d e m o s pelo adjectivo «religiosa»,
d a d o à história. D i g a m o s claramente qual é a nossa perspectiva sobre a p r e -
sença d o e l e m e n t o religião na vida pessoal e na evolução da sociedade 1 .
A clareza da experiência actual — o n d e a vivência d o religioso se d e s d o -
bra e m múltiplas faces, susceptíveis de diversas leituras — interroga e liberta
o olhar para, n o passado, descobrir os detalhes d o a c o l h i m e n t o da religião,
desde u m a adesão plena e global até u m a ligação t é n u e e distante. O s níveis
de p e r t e n ç a vão desde u m a fé explícita e c o m coerência vital até u m vago
plano de «busca de sentido», nas questões f u n d a m e n t a i s , e resposta livre e
subjectiva aos p r o b l e m a s da vida, através de c o m p o r t a m e n t o s concretos.
N e m toda a p r o c u r a de sentido global da vida apela para símbolos especí-
ficos das tradições q u e n o r m a l m e n t e c h a m a m o s religiosas. H á alternativas n ã o
religiosas para ser a u t e n t i c a m e n t e h u m a n o : a alternativa estética, ética, filosó-
fica... As construções culturais nas quais se expressa a p r o c u r a de sentido g l o -
bal p o d e m , p o r isso, ser o u n ã o de í n d o l e religiosa. Estas f o r a m as c o n s t r u -
ções mais destacadas, a atestar q u e há, a n t r o p o l o g i c a m e n t e , algo mais f u n d o
d o q u e a manifestação institucionalizada, «eclesial», da religião.
]Mão desejamos, p o r t a n t o , ficar limitados na «religião eclesiasticamente
orientada», c o m o lhe c h a m o u o sociólogo T h o m a s L u c k m a n n na sua obra
Religião invisível (The invisible Religion. N e w Y o r k : M a c m i l l a n , 1967). A situa-
ção religiosa d o território q u e virá a ser Portugal, desde a sua i n d e p e n d ê n c i a ,
passou pela identificação e n t r e Igreja e religião, mas p o r respeito à cientifici-
dade deste estudo n ã o o b e d e c e r e m o s a u m m o d e l o oficial d e religião, n e m
nos d e i x a r e m o s arrastar p o r c o n c e p ç õ e s redutoras. Analisamos a base a n t r o -
pológica e social, além d o aspecto institucional da religião.
A transformação dos m o d e l o s teóricos d e t e r m i n a e espelha u m a diferente
estratégia de c o n s t r u ç ã o d o o b j e c t o de análise. N o c e n t r o da investigação está
o p r o b l e m a de definir religião, debate inesgotável e insuperado. A clarificação
estabelecida pela sociologia religiosa entre religião f u n c i o n a l (o q u e a religião
desenvolve na sociedade) e religião substancial (o q u e d e f e n d e n o c o n t e ú d o
das crenças) n ã o a e s q u e c e m o s e desejamos dar-lhe equilibrado espaço. P o r
o u t r o lado há q u e m t e n h a u m a visão extensiva dos f e n ó m e n o s da crença, i n -
c l u i n d o diversas c o m b i n a ç õ e s ideológicas o u e n g l o b a n d o a c o n t e c i m e n t o s so-
ciais c o m f u n ç ã o de o f e r e c e r dispositivos de sentido, capazes de r e s p o n d e r às
questões últimas da vida.
A q u i o o b j e c t o de análise n ã o se r e d u z à religiosidade institucional, mas à
d i m e n s ã o antropológica d o sistema de sentido, q u e transcende os indivíduos.
Assim, a religião baseia-se na capacidade da pessoa h u m a n a transcender a p r ó -
pria natureza biológica, através da c o n s t r u ç ã o de u m c o n j u n t o articulado de
significados objectivos e m o r a l m e n t e vinculativos. São processos sociais e i n -
dividualizados q u e c o n d u z e m à c o n s t r u ç ã o d o Eu. N ã o se i d e n t i f i c a n d o reli-
<] Anta da C u n h a B a i x a
gião c o m autotranscendência, qual base antropológica, i m p o r t a valorizar os (Mangualde).
relativos universos simbólicos, conscientes da incapacidade de controlar a e x -
F O T O : N U N O CALVET/ARQUIVO
pansão ilimitada dos f e n ó m e n o s a c o m p r e e n d e r . C Í R C U L O DE LEITORES.

IX
INTRODUÇÃO GERAL

O t e r m o religioso é assim a s s u m i d o n u m s e n t i d o g e n é r i c o e global. P r e -


t e n d e m o s c a m i n h a r para u m a clara d i f e r e n c i a ç ã o dos c o n d i c i o n a m e n t o s d o -
m i n a n t e s da religião até ao p r e s e n t e . A o p o l i c e n t r i s m o cultural está a s u c e d e r
o p o l i c e n t r i s m o religioso, eclesial e t e o l ó g i c o . Esta actual a b e r t u r a d e h o r i -
zontes cria espaço para u m a leitura dos m ú l t i p l o s p a r a d o x o s , i n c o n g r u ê n c i a s e
c o n t r a d i ç õ e s d o f e n ó m e n o religioso e m P o r t u g a l e c o n c e d e l i b e r d a d e crítica
e c o n s c i ê n c i a h u m i l d e a q u e m se a p r o x i m a d o c o n h e c i m e n t o h i s t ó r i c o d e
u m a realidade c o m p l e x a : o m u n d o religioso.
N o c e n t r o d o q u e se c h a m a «o sagrado» está u m e n t e s u p e r i o r e a n t e r i o r
à pessoa h u m a n a , p r e s e n t e n ã o só n o c o r a ç ã o da criatura, mas t a m b é m n o
c e n t r o da realidade. P o d e m o s usar a categoria d e «mistério» para c e n t r o d o
m u n d o religioso: algo a b s o l u t a m e n t e t r a n s c e n d e n t e , c o m o qual se entra e m
relação, i n d o a l é m d e si m e s m o , p o r q u e está p r e s e n t e na vida e c o n f e r e u m a
missão aos h u m a n o s .
A pessoa h u m a n a , h o m e m e m u l h e r , r e s p o n d e à p r e s e n ç a d o m i s t é r i o ,
seja pela i n d i f e r e n ç a religiosa, seja pela r e j e i ç ã o da i n c r e n ç a , seja pela a c e i t a -
ção. A resposta d o ser h u m a n o à t r a n s c e n d ê n c i a i m a n e n t e d o m i s t é r i o dá
o r i g e m às m a n i f e s t a ç õ e s d o sagrado q u e são s e m p r e «hierofanias» c u l t u r a l -
m e n t e m a r c a d a s e s i g n i f i c a t i v a m e n t e simbólicas. C o m o o s u j e i t o da t r a n s -
c e n d ê n c i a é c o n d i c i o n a d o pela e x t e r i o r i d a d e , aí r e c o n h e c e o m i s t é r i o . A l é m
d o t e m p o está p r e s o ao espaço. Assim, s u r g e m as m e d i a ç õ e s objectivas: l u g a -
res e v o c a t i v o s , t e m p l o s , ritos, l i n g u a g e n s fixas e m d o u t r i n a e d o g m a s , s e n t i -
mentos.
N o u t r a s épocas valorizava-se o institucional e as práticas externas, nos ú l -
t i m o s t e m p o s g a n h a t e r r e n o o e s t u d o dos aspectos i n t e r n o s : a e x p e r i ê n c i a r e -
ligiosa, a d i m e n s ã o pessoal da religião. M a s aqui c o n v é m i g u a l m e n t e definir o
c o n c e i t o - b a s e d e e x p e r i ê n c i a religiosa nos seus diversos níveis.
A relação d o i n d i v í d u o c o m o t r a n s c e n d e n t e t e m base c o n s t i t u i n t e o u
o r i g i n a n t e q u e n ã o d e p e n d e dele, r e s p o n d e a u m a realidade o u p r e s e n ç a a n -
terior. A pessoa h u m a n a n ã o d e m o n s t r a , n e m p r o c u r a o m i s t é r i o , ele m a n i -
festa-se. A a t i t u d e religiosa é u m a e x p e r i ê n c i a d e s e n t i d o , e m c u j o c e n t r o está
o sagrado, o n u m i n o s o e santo, c o m o p o n t o ú l t i m o d e r e f e r ê n c i a e garantia
da realização plena da pessoa. N ã o é e x p e r i ê n c i a d o i m e d i a t o , m a s a p r o f u n -
d a m e n t o dele. E t a m b é m u m e n c o n t r o pessoal c o m D e u s q u e atinge o n ú -
cleo da pessoa, apesar da distância q u e a separa d o A b s o l u t o . R e c o n h e c e r a
T r a n s c e n d ê n c i a c o m o ser pessoal é descobri-la c o m o raiz e s e n t i d o da vida,
s e m e x e r c e r d o m í n i o i n t e l e c t i v o sobre o o b j e c t o , r e c o n h e c e n d o - a c o m o ser
q u e ultrapassa a sua f i n i t u d e , c e n t r o e razão da sua vida.
A m a r c a j u d e o - c r i s t ã e g r e c o - r o m a n a da cultura o c i d e n t a l foi o p o n t o d e
partida para a e l a b o r a ç ã o d e teologias.
A teologia racionalista e n c o n t r a dificuldades e m sair da lógica da d e m o n s -
tração científica. P ô r - s e a c a m i n h o d e u m a d e s c o b e r t a e r e s p o n d e r às i n t e r r o -
gações interiores até c h e g a r à raiz d o nosso c o n h e c e r , s e m c o n s e g u i r esgotar a
i m e n s i d a d e d o h o r i z o n t e d o ser, p ô r - s e a c a m i n h o n a finitude e d e s v e n d a r
q u e m s o m o s à luz d o i n f i n i t o são atitudes iniciais e f u n d a n t e s da v e r d a d e i r a
e x p e r i ê n c i a religiosa.
O s e g u n d o n í v e l situa-se n o r e c o n h e c i m e n t o dessa p r e s e n ç a . E o i n í c i o
d o s u j e i t o religioso o u a a t i t u d e religiosa f u n d a m e n t a l . O ser h u m a n o p e r c e -
b e - s e a si e r e c o n h e c e - s e p o r ser c h a m a d o ao i n f i n i t o , apesar da sua finitude.
E este o essencial a c t o d e fé, m u i t o mais d o q u e aceitar v e r d a d e s o u c o n v e r -
ter a fé e m crenças. P o r q u e , d e facto, a fé acredita n u m a v e r d a d e n ã o e v i d e n -
te e aceita o t e s t e m u n h o d e o u t r o s . A a t i t u d e religiosa o p e r a a u m nível p r o -
f u n d o e total da pessoa, r e q u e r u m a o p ç ã o f u n d a m e n t a l e escapa à h a b i t u a l
relação e n t r e s u j e i t o e o b j e c t o .
O s h o m e n s e m u l h e r e s a u t e n t i c a m e n t e religiosos a c e i t a m q u e o c e n t r o d e
si m e s m o s seja o m i s t é r i o e i n v e r t e m r a d i c a l m e n t e as i n t e n c i o n a l i d a d e s , s e n d o
o O u t r o o c e n t r o da relação. P o d e neste p o n t o q u e s t i o n a r - s e se u m a tal r e l a -
ção religiosa n ã o aniquilará a pessoa. E o p e r i g o i n e r e n t e à ex-periéncia, a
q u e m sai de si (ex) para dar a volta (peri), s e g u n d o a e t i m o l o g i a da palavra.
M a s os crentes c o n s i d e r a m q u e a a t i t u d e religiosa p e r m i t e ao ser h u m a n o

xviII
INTRODUÇÃO GERAL

realizar as e n o r m e s p o t e n c i a l i d a d e s d e i n f i n i t o situadas d e n t r o d e si, c o n f i a n -


d o - s e ao i n f i n i t o , a q u e m se a b r e m .
E m t e r c e i r o l u g a r este r e c o n h e c i m e n t o a s s u m e - s e nas distintas e x p r e s -
sões e acções. A e x p e r i ê n c i a m a n i f e s t a - s e através d e sinais q u e se e x p r e s s a m
e m l i n g u a g e n s e se p a r t i l h a m e m c o m u n i c a ç ã o . O ser h u m a n o a p r o p r i a - s e
das possibilidades da e x p e r i ê n c i a d o g r u p o e m q u e se insere. Esta c o m u n i c a -
ção experiencial acontece e m planos de espaço e t e m p o . N e s t e estudo subli-
n h a - s e a d i m e n s ã o d i a c r ó n i c a dessa e x p e r i ê n c i a . É u m p r o c e s s o d e r e c o r d a -
ç ã o e c r i a t i v i d a d e , v i n c u l a n t e p a r a g e r a ç õ e s sucessivas d e u m g r u p o e
e x t e n s i v o a vários p o v o s . A t e n d ê n c i a da c u l t u r a é fixar-se e absolutizar m o -
delos d e acesso à r e a l i d a d e , m a s t a m b é m l h e é específica a b u s c a p e r m a n e n t e
d e n o v i d a d e p o r q u e o h u m a n o n u n c a se d e t é m : p r o j e c t a c a m i n h o s , t e n t a
possibilidades. A d i m e n s ã o da e x p e r i ê n c i a religiosa está atingida p o r esta his-
t o r i c i d a d e . H á u m l e g a d o dos antepassados, u m a l i n g u a g e m , u m m o d o d e
v i v e r e vibrar. M a s a o m e s m o t e m p o há s e m p r e a b e r t u r a para u m a realiza-
ção mais c o m p l e t a , u m a m e t a final d e e s p e r a n ç a n ã o c o n s e g u i d a . A pessoa
d e fé a d a p t a a sua v i d a à e x p e r i ê n c i a p r o f u n d a d o m i s t é r i o . T o d a s as facetas
da sua p e r s o n a l i d a d e se o r i e n t a m s e g u n d o d e t e r m i n a d a m o r a l , d e a c o r d o
c o m cada p s i c o l o g i a , c u l t u r a , a m b i e n t e . N e s t e s e n t i d o , o religioso a s s u m e
n e c e s s a r i a m e n t e u m a d i m e n s ã o social. As i m p l i c a ç õ e s sociais d o f e n ó m e n o
religioso são d e três o r d e n s : o c o n c e i t o d e religião d e p e n d e da ideia d e s o -
c i e d a d e ; o c o n c e i t o d e religioso t e m u m a p l u r a l i d a d e d e f u n ç õ e s na c o m u -
n i d a d e social; a v a r i e d a d e d e f u n ç õ e s r e l a c i o n a - s e c o m os m o m e n t o s h i s t ó -
ricos e os c o n t e x t o s sociais.
Esclarecido o c o n c e i t o d e religião a d o p t a d o , c o n f r o n t e m o - l o , b r e v e m e n -
te, c o m a p ó s - m o d e r n i d a d e para p e r c e b e r o c o n t e x t o deste escrito.
D e facto, a religião é h o j e u m t e m a r e l e v a n t e , c o m o f a c t o r cultural e m
e v i d ê n c i a . A previsão a n u n c i a d a p o r D a n i e l Bell (O fim das ideologias), n o s
anos 6o, n ã o t r o u x e u m m u n d o u n i f i c a d o , mas u m apelo à ciência e à t é c n i -
ca, n o qual as g r a n d e s religiões serão instituições geradoras d e fins ú l t i m o s .
Aliás, t o d a a c u l t u r a a p o n t a para u m a raiz cultual o u d e c u l t o religioso.
A tradição ilustrada c o n c e b e u a religião c o m o s o b r e v i v ê n c i a d e algo a b -
s o l u t o , q u e p a u l a t i n a m e n t e se c o n s e g u i r á levar à e x t i n ç ã o . A t e n d ê n c i a para
c o n s i d e r a r a religião c o m o u m a a t i t u d e irracional p o d e e n t e n d e r - s e pelas sus-
peitas psíquicas e s o c i o e c o n ó m i c a s . Para F r e u d é u m a ilusão necessária para
s o b r e v i v e r às calamidades da vida e para M a r x é expressão alienada d o s o f r i -
m e n t o dos o p r i m i d o s . Se estas explicações f o r a m valiosas, n ã o c o n s e g u e m
abarcar a r i q u e z a d o f e n ó m e n o religioso na sua totalidade.
N o p e r m a n e n t e renascer d o religioso subjaz a crise da fé e m D e u s . A cri-
se dos ateísmos e o a u g e da i n d i f e r e n ç a agnóstica é a o u t r a face da crise d e
D e u s n o cristianismo. A q u e s t ã o d e D e u s d e i x o u d e ter seriedade, d e ser p e r -
tinente.
A débil i n c r e n ç a d e h o j e n ã o t e m agilidade para falar d e D e u s , « c o m o
q u e m n ã o q u e r a coisa», m a s t o m a - o d e m a s i a d o a sério, s e m se referir a E l e
v e r d a d e i r a m e n t e , à m a n e i r a d e u m a m e t á f o r a d e r e c u r s o na c o n v e r s a ç ã o i n -
t r a n s c e n d e n t e o u n o discurso estético, o u c o m o c h a v e c o d i f i c a d o r a da legiti-
m i d a d e d e u m g r u p o j u r í d i c o e civil. A religião r e c u p e r a significância social
c o m o s í m b o l o d o s o n h o h u m a n o d e felicidade, d e r e e n c a n t a m e n t o m í t i c o ,
d o r e f ú g i o q u e salva da i n t e m p é r i e existencial o u c o n f i r m a a i n o c ê n c i a d e s e -
j a d a e p r o c u r a d a . A religião a p a r e c e c o m o u m m e c a n i s m o capaz d e n o s p e r -
m i t i r v i v e r e q u i l i b r a d a m e n t e a c o n t i n g ê n c i a q u e n ã o p o d e m o s eliminar.
Afinal, o sagrado n ã o se d e s t r u i u na m o d e r n i d a d e , o c u l t o u - s e e i n i b i u - s e ,
subsistiu n o s u b c o n s c i e n t e cultural histórico, m a s c o m o é i n i b i d o p o d e r e t o r -
n a r pela p e r v e r s ã o o u pela n e u r o s e c a m u f l a d a . O s i m b o l i s m o p e l o qual o sa-
g r a d o se m a n i f e s t a está s u b c o n s c i e n t e na cultura m o d e r n a . H á q u e c o n j u g a r e
articular a razão e o s i m b o l i s m o , o u seja, o «espírito», c o m o h o r i z o n t e final
escatológico a q u e t e n d e r i a a figura h u m a n a .
A Ilustração foi m o v i m e n t o filosófico e i d e o l ó g i c o q u e c o m b a t e u c o n t r a
u m a s o m b r a c h a m a d a superstição, c o m todas as sequelas d e intolerância e fa-
n a t i s m o . H o j e é possível p e n s a r a religião apesar d o risco da religião n o s p e n -

xviII
INTRODUÇÃO GERAL

sar a partir dos seus d i t a m e s o u t e n t a ç õ e s integristas. P o r rigor filosófico e f e -


n o m e n o l ó g i c o i m p o r t a salvar o f a c t o r religioso na s o c i e d a d e .
A filosofia da religião c o m e ç a p o r u m e s f o r ç o d e c o m p r e e n s ã o da f e n o -
m e n o l o g i a e s u b m e t e à crítica o religioso, c o m o f a c t o r h u m a n o q u e é. H á ,
p o r isso, u m a pluralidade de filosofias da religião, c o n f o r m e os p r e s s u p o s t o s
a d o p t a d o s . Para os crentes, essa ciência é f o n t e d e p u r i f i c a ç ã o da sua religiosi-
d a d e e f o r m a de e n c o n t r a r u m a i n f r a - e s t r u t u r a q u e l h e d ê solidez h u m a n a .
A p ó s o c o s m o c e n t r i s m o g r e g o e o t e o c e n t r i s m o medieval, v e m o a n t r o p o -
c e n t r i s m o m o d e r n o e c o n t e m p o r â n e o , l a n ç a d o pela reflexão h u m a n i s t a de N i -
colau de Cusa e P i c o d e la M i r a n d o l a , alargado p o r Descartes, iniciador d e u m
p e n s a m e n t o n o qual a razão h u m a n a é a chave, n ã o só da pessoa mas de toda a
realidade. Espinosa elevará a razão h u m a n a a categoria divina e K a n t p r e s c i n -
dirá da c r e n ç a religiosa p o n d o t o d a a c o n f i a n ç a na razão crítica. C a m i n h a - s e
para a c o n c e p ç ã o absolutista d o ser h u m a n o , p r ó p r i a da Ilustração e d o i d e a -
lismo (Fichte, H e g e l , Schelling). O h o m e m c o m o realidade espiritual foi
s u b m e t i d o a u m p r o c e s s o d e racionalização universal, a p a g a n d o a sua s i n g u -
laridade e as marcas d e u m a realidade t r a n s c e n d e n t e a u t ó n o m a . As v e r d a d e s
religiosas v ê e m - s e reduzidas a expressões d e n a t u r e z a simbólica e m o r a l da
pessoa. A r e a c ç ã o existencialista a esta a n t r o p o l o g i a e x a l t o u a c o n d i ç ã o exis-
tencial da pessoa, v a l o r i z o u a i n t e r s u b j e c t i v i d a d e e a historicidade, f u n d a d a s
na l i b e r d a d e . Para alguns, mais radicais, a realização da liberdade h u m a n a t e m
lugar n o i n t r a - h i s t ó r i c o , s e m dar lugar à t r a n s c e n d ê n c i a (Sartre, M e r l e a u -
- P o n t y ) , para o u t r o s a a b e r t u r a ao t r a n s c e n d e n t e p e r m a n e c e (G. M a r e e i ,
K. Jaspers).
N e s t a perspectiva, a pessoa n ã o r e c o n h e c e n e n h u m o u t r o v a l o r a n ã o ser
ela p r ó p r i a , n o realizar das suas possibilidades. O e s f o r ç o actual da filosofia da
religião situa-se na análise das estruturas essenciais d o ser h u m a n o , na i d e n t i f i -
cação d e a l g u m e l e m e n t o o u d i m e n s ã o constitutiva q u e d e m o n s t r e a sua i n -
suficiência o n t o l ó g i c a e d i s p o n h a para o a c o l h i m e n t o d o d o m g r a t u i t o d e
instâncias superiores. H á u m a p e r m a n e n t e afirmação d o f u n d o t r a n s c e n d e n t e
d o h u m a n o . I m p o r t a descobrir o seu v e r d a d e i r o s e n t i d o e p r o c u r a r a c o e r e n -
te m e t a . N ã o há o p o s i ç ã o e n t r e D e u s e pessoa h u m a n a , q u a n d o D e u s é e n -
t e n d i d o c o m o s u p r e m o valor e se a p r o f u n d a o carácter a n t r o p o l ó g i c o da reli-
gião 2 .
A perspectiva d e m o d e r n i d a d e sobre a religião sofre d e p r e c o n c e i t o s h e r -
dados d o passado r e c e n t e , c o m o a c o n t e c e desde a p o s i ç ã o d e Voltaire, r e d u -
tora d o religioso a u m a f o r m a d e superstição.
A sociologia privilegiou esta temática n o s clássicos c o m o W e b e r , na sua
célebre Ética protestante e o espírito do capitalismo (1904) e D u r k h e i m (1858-1917),
p o r e x e m p l o , n o e s t u d o As formas elementares da vida religiosa (1912), b e m c o -
m o nos vários analistas marxistas. M a s a religião n ã o se identifica c o m a i r r a -
cionalidade, carisma e n u m i n o s o , e m b o r a c o m p o n e n t e s essenciais da r e l i g i o -
sidade. P o d e ser o b j e c t o d e e s t u d o racional, à luz d e p r i n c í p i o s claros e
rigorosos, o q u e n ã o é fácil.
A perspectiva religiosa da s o c i e d a d e situa-se n o g r a n d e d e b a t e sobre a s e -
cularização q u e d e s d e o século x i x se levanta e causa poeira. C o n d u z - n o s a
pensar q u e o a v a n ç o da secularização e da ciência c o r r e s p o n d e r i a ao d e c l í n i o
d o m u n d o religioso, d e s t i n a d o a i g n o r a n t e s .
U m a a p r o x i m a ç ã o filosófica e f e n o m e n o l ó g i c a é necessária para pensar a
religião n o final d o século xx. C o m o «ser d o limite» 3 , o ser h u m a n o está c i r -
c u n s c r i t o n o limite pela orla d o mistério q u e o e n v o l v e e o enlaça. A e x p e -
riência religiosa é a religação d o h u m a n o c o m o t r a n s c e n d e n t e . A r e v e l a ç ã o
manifesta a n a t u r e z a e s c o n d i d a desse c e r c o d e sagrado, o d e s v e n d a r parcial d o
mistério n o a p a r e c e r s i m b ó l i c o .
A análise sociológica da religião o u da religiosidade n ã o se p o d e f u n d a -
m e n t a r e m i n q u é r i t o s m e r a m e n t e quantitativos, m a s na análise qualitativa,
sob risco de p e r m a n e c e r na e p i d e r m e dos f e n ó m e n o s .
E n t r e as d i f e r e n t e s ciências da religião, c o m o a filosofia e f e n o m n o l o g i a
da religião, a sociologia e psicologia religiosas, se situa o e s t u d o da história,
q u e r na v e r t e n t e da história das religiões, q u e r na de história religiosa. A h i s -

xviII
INTRODUÇÃO GERAL

tória das religiões estuda a génese, d e s e n v o l v i m e n t o e realização d o f e n ó m e - Estátua de Sileno proveniente


n o religioso n o t e m p o e n o espaço. A o investigar s o b r e o passado religioso da do teatro romano de Lisboa
h u m a n i d a d e , c o n t r i b u i para a c o m p r e e n s ã o da e x p e r i ê n c i a religiosa, s u p e r a n - (mármore, século 1 d. C.).
Lisboa, Museu Nacional de
d o o p o s i t i v i s m o e a p r o f u n d a n d o os factos religiosos d e d e t e r m i n a d o t e m p o e Arqueologia.
lugar o u da história geral, investiga a c o o r d e n a ç ã o i n t e r n a destes factos, a sua
F O T O : D I V I S Ã O DE
m a r c a n o c o n t e x t o cultual e finalmente a o r i g e m e o p r o c e s s o e v o l u t i v o . DOCUMENTAÇÃO
A p l i c a m - s e os critérios da ciência histórica à a b o r d a g e m d e u m e v e n t o h i s t ó - FOTOGRÁFICA/INSTITUTO
rico particular, o religioso. P O R T U G U Ê S DE M U S E U S / J O S É
PESSOA.
H á , agora, s e r e n i d a d e intelectual suficiente para n ã o t e m e r a b o r d a r o t e -
m a da e v o l u ç ã o histórica d o f a c t o r cultural c h a m a d o religião n o t e r r i t ó r i o
<3 Ara votiva dedicada a
p o r t u g u ê s e n o â m b i t o a c a d é m i c o . A a n i m o s i d a d e anticlerical e a cultura Marte (mármore, século 1
ateia agressiva c o r r e s p o n d e m a ciclos e n c e r r a d o s , j u s t a m e n t e c o m o t e r m o d e d. C.). Lisboa, M u s e u
u m a a t i t u d e clericalista e o e m e r g i r d o diálogo i n t e r - r e l i g i o s o . Nacional de Arqueologia.
Estamos conscientes d o m o m e n t o histórico e m q u e nos contextuamos F O T O : D I V I S Ã O DE
neste escrito. V i v e - s e a passagem d e u m a religião total para u m a a u t o - i d e n t i - DOCUMENTAÇÃO
FOTOGRÁFICA/INSTITUTO
ficação religiosa, c o m desvio das Igrejas. Esta f r a g m e n t a ç ã o n o s u b j e c t i v o
P O R T U G U Ê S DE M U S E U S / J O S É
c o m p õ e o r o s t o da s o c i e d a d e d e c o n s u m o , c o n s t i t u i e l e m e n t o da «descons- PESSOA.
trução» d o religioso e m a n t é m práticas q u e ritualizam e m a r c a m s i m b ó l i c a -
m e n t e os e v e n t o s familiares e individuais, n o r e c o r t e d o q u o t i d i a n o .
Se h o j e o p r o b l e m a essencial d o h i s t o r i a d o r é d e i n t e r p r e t a ç ã o , p o r q u e os
factos o u a c o n t e c i m e n t o s estão p l e n o s d e segredos a d e s v e n d a r , e n t r e a n u -
m e r o s a e diversa q u a n t i d a d e d e factores a decifrar está o e l e m e n t o religioso
d o ser h u m a n o q u e c o m p õ e o q u a d r o histórico. Se a pessoa h u m a n a é o o b -
j e c t o d e e s t u d o essencial, n o c o n h e c i m e n t o da história, i m p o r t a i n d a g a r o
s e n t i d o da vida h u m a n a , na t r a m a dos a c o n t e c i m e n t o s , descritos c o m p r e c i -
são n o seu plural valor.
E tarefa delicada p e r s c r u t a r na c o n s c i ê n c i a h u m a n a a p r e s e n ç a d o T r a n s -
c e n d e n t e q u e m a r c a d e surpresas e liberdade, p r e n d e , equilibra o u d e s e n v o l v e
energia, i n t e r f e r e e m o v i m e n t a n ã o só a p r ó p r i a vida, m a s t a m b é m a s o c i e d a -
de. P a r t e - s e n e c e s s a r i a m e n t e d o c o n c r e t o , da vida d e h o m e n s e m u l h e r e s q u e
n o seu q u o t i d i a n o m o l d a m o espaço e o t e m p o . É na vida q u o t i d i a n a q u e os
a n t r o p ó l o g o s e n c o n t r a m as últimas m e t a vivências. E m e r g e a relevância t a n t o
dos santuários d o m é s t i c o s familiares, o n d e se g u a r d a a i n t i m i d a d e e as r e c o r -
dações, c o m o da riqueza simbólica dos c e n t r o s à volta d e igrejas e capelas.
A d q u i r e p e s o q u e r a realidade das confrarias organizadas d e m o d o social e
s i m b ó l i c o , q u e r a força v i n c u l a n t e da c o m u n i d a d e p a r o q u i a l . A t e n d e - s e ao

xviII
INTRODUÇÃO GERAL

colorido e p e r m a n ê n c i a das festas e ritos, b e m c o m o à capacidade c o n t r o l a -


dora das experiências pelas n o r m a s morais difundidas pela pregação.
O f e n ó m e n o religioso, c o m o p e r m a n e n t e sistema de sentido, criou fac-
tos, f o r m o u personagens, d e i x o u instituições, m a r c o u as letras, f o m e n t o u as
artes, agitou transformações, c o m o travou avanços. A p o n t o u valores, n o r t e o u
causas, a p r o x i m o u - s e dos dramas h u m a n o s .
Se a liberdade da pessoa h u m a n a d e t e r m i n a o r i t m o d o processo da his-
tória, essa liberdade é c o n d i c i o n a d a pelo f a c t o r religioso. Às vezes, e m b e n e -
ficio da e v o l u ç ã o d o b e m , da v e r d a d e e da beleza, outras vezes e m p r e j u í z o
desse devir positivo. Avaliar o c o e f i c i e n t e d e t r a n s c e n d ê n c i a na vida pessoal
e na acção h u m a n a , c o m o a g e n t e da história, é trabalho de i n t e r p r e t a ç ã o d i -
ficil.

Sendo a história p r o d u t o duplamente h u m a n o quer pelos agentes dos factos,


quer pelos actores da historiografia, c o n v é m esclarecer sobre os c o n d i c i o n a m e n -
tos, as o p ç õ e s e decisões de u m c e n t r o de estudos da U n i v e r s i d a d e Católica
q u e se s o c o r r e u da colaboração de especialistas de outras instituições e sensi-
bilidades. P r o c u r á m o s atenuar a subjectividade ao c o m u n i c a r o c o n h e c i m e n -
to, sem fugir à interpretação, d i f e r e n t e de fantasia o u distorsão, s e m evitar a
avaliação valorativa, diferente de j u í z o e m o t i v o .
Indagar d o coeficiente i d e o l ó g i c o e psicológico da leitura da história é es-
paço d o historiógrafo. O l h a r à distância os estudos d o passado c o n d u z a nossa
consciência a c o n c l u i r q u e na visão n o v a aqui p r o p o s t a t a m b é m se veicula
u m a antropologia e u m a m u n d i v i d ê n c i a e se revela a personalidade de g e n t e
Festa dos Tabuleiros e m concreta c o m a sua sensibilidade específica, a sua particular inteligência, o seu
Tomar. percurso f o r m a t i v o e c o n t e x t o h u m a n o .
F O T O : J O Ã O PAULO DIAS. Falar de historiografia religiosa e m relação ao passado é generosidade de

. t i

xviii
INTRODUÇÃO GERAL

c o n c e i t o p o r q u e a perspectiva eclesiástica i n v a d i u , quase i n t e i r a m e n t e , a p r o -


d u ç ã o d e sínteses existentes. N e m é para admirar, u m a v e z q u e o sistema d e
s e n t i d o q u e m a r c o u P o r t u g a l e m t e r m o s d e longa d u r a ç ã o foi o f e n ó m e n o
religioso d e m a t r i z cristã. A temática da religiosidade p o p u l a r traria à ribalta
o interesse p e l o e s t u d o d o f u n d o religioso p r i m i t i v o d o t e r r i t ó r i o e q u i v a l e n t e
a P o r t u g a l . P o r o u t r o lado, a n o v a a t i t u d e da Igreja C a t ó l i c a , e m relação à
globalidade d o f e n ó m e n o religioso, i n t r o d u z i r i a na i n t e r p r e t a ç ã o dos factos
u m a largueza d e olhar. A a f i r m a ç ã o da l i b e r d a d e religiosa, c o m o d i r e i t o h u -
m a n o f u n d a m e n t a l , e o a p r e ç o pela v e r d a d e existente nas plurais relações
c o m o t r a n s c e n d e n t e significam m u d a n ç a d e perspectiva.
N ã o há, p o r isso, a n t e c e d e n t e s sínteses d e historiografia religiosa d e P o r -
tugal. H á obras d e r e f e r ê n c i a eclesiástica, marcadas n a t u r a l m e n t e p e l o c o n t e x -
t o e m q u e surgiram.
B a n h a d e A n d r a d e j á a p o n t o u na i n t r o d u ç ã o ao Dicionário de História da
Igreja em Portugal (1980) u m a p a n o r â m i c a da respectiva p r o d u ç ã o h i s t o r i o g r á f i -
ca, seja global, seja parcelar (no t e m p o , n o espaço g e o g r á f i c o o u e m parte d o
c o n j u n t o das instituições) 4 .
A g o r a só nos d e t e r e m o s nas tentativas globais. A p e n a s n o século x v m ,
c o m a criação da A c a d e m i a R e a l d e História P o r t u g u e s a , se i n t e n t o u escrever
u m a «História Eclesiástica destes R e y n o s » , c o m o t í t u l o d e Lusitania Sacra, se-
g u n d o p r o p o s t a d e D . M a n u e l C a e t a n o d e Sousa. A sugestão d o título seria
acolhida p o r A n t ó n i o Pereira d e F i g u e i r e d o 5 para u m a o b r a c o n s e r v a d a e m
m a n u s c r i t o na A c a d e m i a das C i ê n c i a s d e Lisboa. A p r o d u ç ã o da ilustre a g r e -
m i a ç ã o histórica i n i c i o u o trabalho pela c o l e c ç ã o das m e m ó r i a s diocesanas o u
pelos catálogos d e bispos, e m c o n t i n u i d a d e da é p o c a seiscentista, ainda q u e
l i b e r t a n d o - s e das lendas e fantasias das velhas crónicas. N o v o passo seria d a d o
pela instituição da A c a d e m i a Litúrgica Pontifícia, e f e c t u a d a n o M o s t e i r o d e
Santa C r u z d e C o i m b r a e m 1747. A história eclesiástica integrava o c o n j u n t o
disciplinar e era atribuída à responsabilidade d o b a i a n o D . T o m á s da E n c a r -
n a ç ã o (1723-1784). T i n h a v i n d o n o v o para P o r t u g a l e feito os e s t u d o s d e A r -
tes e D i r e i t o Civil. D e s c o b r i u a v o c a ç ã o religiosa e faz-se c ó n e g o r e g r a n t e d e
Santa C r u z e m 1747. T o r n a r - s e - i a u m activista a c a d é m i c o . O c u p o u o cargo
d e p r e f e i t o d e E s t u d o s n o C o l é g i o d e H u m a n i d a d e s d e M a f r a até ser eleito
b i s p o d e P e r n a m b u c o , e m 1773, lugar q u e g o v e r n a r i a p o r d e z anos. C o n s e -
g u i u , n o seu m ú n u s e d u c a t i v o , c o m p o r a o b r a Historia Ecclesiae Lusitaniae per
singula saecula ab Evangelio promulgata ( C o l i m b r i a e , 1759-1763, 4 vol.). T o m á s
da E n c a r n a ç ã o era, n o dizer d e F o r t u n a t o d e A l m e i d a , n o p r e f á c i o à sua His-
tória, « u m espírito p o n d e r a d o e o r g a n i z a d o r ; m a s l u t o u c o m a escassez d e m a -
teriais e c o m a m á q u a l i d a d e de alguns q u e a p r o v e i t o u » (vol. 1, p. 7). Era
m u i t o d e v e d o r ao q u a d r o n a r r a t i v o p a u t a d o pelos pontífices. V e r n e y n a v e g a -
va j á n u m a c o n c e p ç ã o mais aberta.
N a F a c u l d a d e d e T e o l o g i a , e n t r e as matérias a l e c c i o n a r , os estatutos
p o m b a l i n o s (1772) s u b l i n h a m o lugar da História Eclesiástica, m a s n e n h u m
m a n u a l c h e g o u a ser p u b l i c a d o . O s vários mestres q u e o c u p a r a m a cadeira
n ã o d e r a m à e s t a m p a c o m p ê n d i o p r ó p r i o , e m b o r a fizessem p a r t e d o p r o g r a -
m a os sucessos principais da d o u t r i n a e história da Igreja p o r t u g u e s a 6 .
C o m o m a n u a l utilizaram, d e início, o c o m p ê n d i o d o italiano, e r e m i t a d e
S a n t o A g o s t i n h o , G i o v a n n i L o r e n z o B e r t i (1696-1766). O p r i m e i r o l e n t e da
cadeira, d e 1780 a 1793, foi J o a q u i m G u a d a l u p e (1728-1809), c ó n e g o r e g r a n t e
d e S a n t o A g o s t i n h o e m e m b r o da A c a d e m i a Litúrgica, para a qual escreveu
u m a dissertação s o b r e I d á c i o e Itácio. O seu sucessor, M a n u e l P a c h e c o R e -
s e n d e (1750-1837) o c u p o u o l u g a r d e 1794 a 1813 e f o i e s c o l h i d o n o v o c o m -
p ê n d i o d o jansenista Mathias D a n n e m a y r , editado e m C o i m b r a . O s suces-
sores na r e g ê n c i a da m a t é r i a n ã o d e r a m passos significativos. J á n o final d o
século e da instituição da f a c u l d a d e d e c i d e - s e alterar o c o m p ê n d i o , o q u e dá
azo a u m Relatorio m u i t o c i r c u n s t a n c i a d o e m i n u c i o s o na análise das possibili-
dades existentes, a c a b a n d o p o r a d o p t a r o d e F. Z e i b e r t , Compendium Historiae
eclesiasticae ( B r u n a e , 1884). O s professores A n t ó n i o R i b e i r o d e Vasconcelos,
Francisco M a r t i n s e J o a q u i m M e n d e s dos R e m é d i o s , a u t o r e s d o relatório, r e -
v e l a m total d o m í n i o da p r o d u ç ã o bibliográfica e u r o p e i a e n t ã o disponível.

xviII
INTRODUÇÃO GERAL

Q u a n t o à parte da história da Igreja e m P o r t u g a l d e v e ser c o m p l e t a d a p e l o


professor p o r q u e , c o n s i d e r a a comissão, «se n ã o t u d o , quase t u d o está p o r fa-
zer e n t r e n ó s e u r g e q u e a l g u m a coisa se faça» (Relatorío acerca de um Competi-
dio proposto pelo lente de História ecclesiastica [...]. C o i m b r a , 1897, p. 24).
A n a l i s a n d o o p e r c u r s o d o r e d u z i d o c o n t r i b u t o da u n i v e r s i d a d e , v o l t e m o s
a o u t r o â m b i t o a c a d é m i c o . A f u n d a ç ã o da A c a d e m i a R e a l das C i ê n c i a s e m
1779 sustentaria n o v o espírito crítico, d o qual é expressão a obra d o p a l e ó g r a -
f o J o ã o P e d r o R i b e i r o 7 . A i n d a g a ç ã o das f o n t e s é seguida da crítica selectiva
das notícias. As suas Dissertações Chronologicas e críticas sobre a Historia e Jurispru-
dência ecclesiastica e civil de Portugal (Lisboa, 1810-1836, 5 vol.) são v e r d a d e i r o
m o n u m e n t o c o m base d o c u m e n t a l . T o m o u c o n h e c i m e n t o deste a c e r v o n o
p e r c u r s o feito p e l o país, a visitar os arquivos. A sua p e n a p r o d u z i r i a t a m b é m
u m a História da Igreja Portugueza, desde o seu princípio athe os nossos tempos, p o r
l o n g o s anos m a n u s c r i t a ( B G U C M s . 213) até ser r e c o l h i d a nas páginas da r e -
vista c o i m b r ã Instituições Christãs, d e 1884 a 1888. O t r a b a l h o d e J o ã o P e d r o
R i b e i r o , n o seu c o n j u n t o , é o mais n o t á v e l c o n t r i b u t o científico dos séculos
xviii e x i x . D e s m a r c a - s e da usual visão fabulosa dos a c o n t e c i m e n t o s e a p o n t a
c a m i n h o s d e r i g o r n a análise e crítica d o c u m e n t a l e da a p r e s e n t a ç ã o r e t ó r i c a
dos dados. C o m o n ã o avança a l é m d o século vil n ã o n o s d a m o s c o n t a da
grandiosa tentativa. T a m b é m i n c o m p l e t a m a s a b u n d a n t e seria a p r o d u ç ã o d o
cardeal Saraiva (Frei Francisco d e São Luís). O b e n e d i t i n o r e c o l h e i n f o r m a -
ções preciosas sobre instituições e p e r s o n a g e n s eclesiásticas, c o m a t e n ç ã o a o
p r o b l e m a das relações e n t r e a Igreja e o E s t a d o , t e m a específico d e u m , l i b e -
ral, mas n ã o enceta u m a síntese. N a o b r a Reflexões históricas ( C o i m b r a : I m -
prensa da U n i v e r s i d a d e , 1835, v ° l - 1 ‫ י‬P• 2 3 s s ) J ° ã o P e d r o R i b e i r o traçava
u m a lista temática a a b o r d a r n u m a História Eclesiástica de P o r t u g a l .
M a s n ã o foi seguida a o r i e n t a ç ã o . D e facto, a História da Egreja Catholica
em Portugal, no Brasil e nas possesões portuguesas, da autoria d o p a d r e J o s é d e
Sousa A m a d o (1812-?) 8 , p u b l i c a d a e n t r e 1870 e 1879, e m n o v e v o l u m e s e d e z
t o m o s , n ã o revela o rigor crítico q u e j á seria d e exigir. E obra d e u m espírito
c o m b a t i v o , legitimista c o m o p o l í t i c o e a p o l o g é t i c o c o m o católico. A p e n a
fácil d o jornalista — d i r e c t o r d o s e m a n á r i o Domingo (1855-1857), r e d a c t o r d o
Bem Público (1857-1877) e c o l a b o r a d o r d e O Católico (1951-1853) — , b e m c o m o
a tendência do polemista implacável de qualquer jacobinismo c o n t e m p o r â -
n e o , n ã o estava a r m a d a de critérios históricos e d e m e t o d o l o g i a s apropriadas
para o p r o j e c t o q u e i n t e n t o u . Foi mais l e v a d o p o r a r d o r a p o s t ó l i c o e fácil
a p o l o g é t i c a d o q u e c o n d u z i d o p o r rigor científico. O p r i m e i r o v o l u m e a p a -
rece e m Lisboa e m 1870 e trata d o Brasil e das «possessões portuguesas», d e -
c a l c a n d o T o m á s da E n c a r n a ç ã o , l i m i t e q u e confessa. O s e g u n d o v o l u m e
abarca o p e r í o d o s u e v o até a o C o n d a d o P o r t u c a l e n s e ; o t e r c e i r o vai até
D . S a n c h o I. D a t a m d e 1871. E m 1872 p u b l i c a o q u a r t o , d e d i c a d o à é p o c a
d e D . A f o n s o II até D . Dinis. O q u i n t o v o l u m e e s t e n d e - s e d e D . A f o n s o IV
até ao final d o r e i n a d o d e D . J o ã o I e o sexto d e 1431 a 1503. A p a r e c e m e m
1873. O s é t i m o divide-se e m duas partes, s e n d o a p r i m e i r a d e 1875 e a s e g u n -
da d e 1876. T r a t a da presença p o r t u g u e s a e m África, A m é r i c a , Ásia e A u s t r á -
lia d e 1503 a 1605. O o i t a v o e o n o n o , saídos e m 1877 e 1879, o c u p a m - s e d o
p a d r o a d o da C o r o a n o O r i e n t e e J a p ã o . N e s t a o b r a p r i v i l e g i a m - s e as c o n t r o -
vérsias h i s t ó r i c o - d o u t r i n a i s exclusivistas e as lutas político-religiosas i n t o l e r a n -
tes, e m e s m o estes aspectos são tratados s e m o b j e c t i v i d a d e histórica, ao m o d o
u l t r a m o n t a n o m i s t u r a n d o fé e p a t r i o t i s m o . Era o c o n t r a p o n t o a u m a l i t e r a t u -
ra anticlerical d e H e r c u l a n o , R e b e l o da Silva, A n t ó n i o Eanes, O l i v e i r a M a r -
tins e T e ó f i l o Braga.
A p o s i ç ã o a p o l o g é t i c a n ã o era exclusiva d o catolicismo. T r a t a - s e de d e -
m o n s t r a r q u e a instituição e m análise agiu c o m o c o n v i n h a , u t i l i z a n d o o r e -
curso à ciência histórica para o f e r e c e r os d o c u m e n t o s , e m b o r a e m p r o v e i t o
d e u m a c o n c e p ç ã o teológica s e m p r e a p o l o g é t i c a . A i n t e r p r e t a ç ã o teológica é
c i e n t i f i c a m e n t e legítima, p o r q u e c o e r e n t e na e p i s t e m o l o g i a específica e s e m
i n t r o m i s s ã o e m áreas fora d o seu â m b i t o . A a t i t u d e a p o l o g é t i c a n ã o , u m a v e z
q u e mistura dois níveis, análise científica e i n t e r p r e t a ç ã o teológica, c a i n d o e m
descrédito por preconceito.

xviII
INTRODUÇÃO GERAL

U m a perspectiva global d e religião c o m base n o vasto l e q u e d e ciências


sociais e h u m a n a s é delineada p o r J o s é Leite d e V a s c o n c e l o s nas suas Religiões
da Lusitânia (1897-1913, 3 vol.). E s t u d a a diversidade e c o m p l e x i d a d e das c r e n -
ças n o O c i d e n t e p e n i n s u l a r n o d i n a m i s m o d o f e n ó m e n o religioso.
F o r t u n a t o d e A l m e i d a (1869-1933) 9 edita e m o i t o v o l u m e s a História da
Igreja em Portugal ( C o i m b r a , 1910-1922). D u r a n t e m e i o século nada d e m e l h o r
se adivinhava n o h o r i z o n t e . Já e m 1930 o p r ó p r i o F o r t u n a t o d e A l m e i d a t e n -
tava u m a s e g u n d a edição, mas n ã o foi a l é m d o p r i m e i r o v o l u m e . O i n t e n t o
seria l e v a d o a c a b o p e l o P r o f . D a m i ã o Peres ao apresentar u m a n o v a i m p r e s -
são a n o t a d a ( P o r t o , 1967-1971, 4 vol.).
Este m e s t r e e reitor d o Liceu C e n t r a l d e C o i m b r a r e d i g i u , desde e s t u d a n -
te, obras reveladoras d o seu t a l e n t o e caracterizadas p e l o rigor. Seria o seu
m e s t r e J o s é J o a q u i m Lopes Praça (1844-1920) a s u g e r i r - l h e e a a c o n s e l h á - l o a
p ô r d e p é a p r i m e i r a História Eclesiástica d e P o r t u g a l . A l é m desta o b r a p u b l i -
c o u , a partir d e 1922, u m a História de Portugal (1922-1929) e m seis v o l u m e s ,
b e m d e m o n s t r a d o r a d o a r r o j o das empresas q u e i n t e n t a v a . D e i x o u quase u m a
c e n t e n a d e escritos, e n t r e livros e opúsculos. P o l i t i c a m e n t e era r e g e n e r a d o r e
c o l o c o u - s e a o lado d e J o ã o F r a n c o . A p ó s a R e p ú b l i c a a b a n d o n o u a acção
partidária e e n t r e g o u - s e , c o m argúcia d e espírito, à ciência histórica, n o m e i o
dos c u i d a d o s d e u m a família n u m e r o s a . T i n h a f o r m a ç ã o teológica, a d q u i r i d a
n o S e m i n á r i o d e Viseu, j u r í d i c a , recebida na U n i v e r s i d a d e d e C o i m b r a , e p e -
dagógica, a p r e n d i d a na e x p e r i ê n c i a liceal. C o n s i d e r a v a seus mestres na arte da
história H e r c u l a n o (1810-1877) e G a m a Barros (1833-1925), q u e na sua História
da administração pública em Portugal (vol. 1, 1885) t i n h a r e c o l h i d o e l e m e n t o s s u -
gestivos para o c o n h e c i m e n t o d o clero m e d i e v a l p o r t u g u ê s .
F o r t u n a t o d e A l m e i d a t r a b a l h o u d e z anos na p r e p a r a ç ã o e o r g a n i z a ç ã o da
sua o b r a , c o l i g i n d o materiais c o m e r u d i ç ã o , mas s e m a possibilidade d e u m a
consulta exaustiva aos arquivos. A t i n g e , c o n t u d o , na sua História da Igreja, u m
a p r e c i a d o nível d e p e r c e p ç ã o crítica e s e r e n i d a d e d e j u í z o das pessoas e insti-
tuições, apesar da prisão apologética, e u m a a p o n t a d a liberdade d i a n t e da his-
toriografia eclesiástica, presa, ainda, às i n f o r m a ç õ e s das tradicionais crónicas
da vida religiosa e às crenças desprovidas d e o b j e c t i v i d a d e . E u m i n t r é p i d o
p i o n e i r o da história eclesiástica. Já alarga os h o r i z o n t e s às v e r t e n t e s e c o n ó m i -
co-sociais e da cultura. P r e f e r e c o m p i l a r m a n u s c r i t o s e s c o n d i d o s e s o b r e t u d o ,
d a d o ser e m p r e s a d e u m só h o m e m , revisitar c o m mais rigor d o c u m e n t o s j á
p u b l i c a d o s ( c o m o as crónicas monásticas, histórias das dioceses, biografias d e
bispos) para lhes acrescentar a p r o c u r a bibliográfica, usada c o m serenidade, li-
v r e d e c o m p r o m i s s o s sectários o u p o l i t i c a m e n t e regalistas o u laicizantes. F o r -
t u n a t o d e A l m e i d a presta contas d o seu a t u r a d o e s t u d o n u m a expressão d e
l u m i n o s a clareza e sapiente c o n c a t e n a ç ã o das ideias expostas.
O m a n u s e a m e n t o d e t a n t o material r e u n i d o , o r g a n i z a d o , j o e i r a d o e c o n -
t e x t u a l i z a d o p e r m a n e c e para q u a l q u e r e s t u d i o s o u m a base d e a r r a n q u e f u n d a -
m e n t a l , c o m o se verificará ainda nesta investigação, e m b o r a a historiografia
t e n h a recursos e pistas d e s c o n h e c i d a s ao nosso c a b o u q u e i r o e a d o c u m e n t a -
ção se t e n h a m u l t i p l i c a d o e t o r n a d o mais acessível p e l o a v a n ç o n o t r a t a m e n t o
dos a r q u i v o s e pela e x p l o r a ç ã o dos m e i o s i n f o r m á t i c o s .
U m c o n c e i t o m o d e r n o d e história c o m e ç a a g a n h a r c o r p o na o b r a d e
G o n ç a l v e s C e r e j e i r a (1888-1977), A Igreja e o pensamento contemporâneo (1924,
1930, 1944), q u e suscitaria o debate c o m Sílvio d e Lima, nas suas Notas críticas, e
envolveria Costa P i m p ã o e M a n u e l T r i n d a d e de Salgueiro (1898-1965) ( O caso
clínico dum teólogo, 1931). Nesta discussão evidencia-se o erguer d e u m n o v o
c o n c e i t o d e ciência histórica q u e seria aplicado na obra de M i g u e l de Oliveira
(1897-1968).
O p a d r e M i g u e l d e O l i v e i r a a p r e s e n t o u u m e x c e l e n t e c o m p ê n d i o d e His-
tória eclesiástica de Portugal (Lisboa: U n i ã o Gráfica, 1940, 1948, 1958, 1968; E u -
r o p a - A m é r i c a , 1994), v e n c e d o r d o P r é m i o A l e x a n d r e H e r c u l a n o . A crítica
e l o g i o u o a p a r e c i m e n t o d e síntese tão equilibrada e rigorosa, c o m m e t o d o l o -
gia a d e q u a d a à finalidade didáctica e c o m carácter científico, d e s p i d o d e o p i -
niões lendárias e erros r e p e t i d o s . R e s s e n t e - s e da u n i f o r m i d a d e política e reli-
giosa da n a ç ã o . J u n t a a segurança da i n f o r m a ç ã o à acessibilidade da exposição,

xviII
INTRODUÇÃO GERAL

XVIII
INTRODUÇÃO GERAL

o q u e se r e q u e r a u m c o m p ê n d i o . O s limites próprios de u m m a n u a l são r e -


c o n h e c i d o s pelo a u t o r q u e , n o e n t a n t o , a t e n d e na 2. a edição (1948) a algumas
críticas consideradas justas.
N o v o e m p e n h o da investigação foi a n i m a d o pelo C e n t r o de Estudos de
História Eclesiástica, vivo nos dez v o l u m e s da primeira série da sua revista
Lusitania Sacra (1956-1978). O c o n j u n t o de personagens eclesiásticas q u e d ã o
c o r p o a esta fase da historiografia religiosa são A n t ó n i o Brásio, A. da Silva
R e g o , A v e l i n o de Jesus da Costa, M á r i o Martins, M i g u e l de Oliveira e Isaías
da R o s a Pereira, q u e e n t r e o u t r o s vários leigos se e n v o l v e m nestes trabalhos.
O s c o n t r i b u t o s diversificados q u e p r o m o v e m lançam o c a m i n h o para u m a
a u t o n o m i a da investigação de leituras doutrinais. O C e n t r o r e n o v a - s e pelo
e n q u a d r a m e n t o na Faculdade de T e o l o g i a da U n i v e r s i d a d e Católica P o r t u -
guesa realizado e m 1984 e pela escolha de n o v a direcção operada e m 1988,
c o m alteração de n o m e , indicativa de m u d a n ç a de perspectiva: C e n t r o d e Es-
tudos de História Religiosa. D e s d e 1989 d e u c o n t i n u i d a d e à revista Lusitania
Sacra, j á c o m 11 v o l u m e s .
O c o n j u n t o d e monografias, muitas nascidas n o â m b i t o académico, e a
q u a n t i d a d e de artigos dispersos p o r revistas exigia u m a nova síntese a c o l h e d o -
ra dos n o v o s dados de r e c e n t e descoberta e análise. Nas últimas décadas s u r -
giram estudos renovadores, f r u t o de m a n u s e a m e n t o de novas fontes, d o uso
de n o v a técnica, aplicação de m o d e l o s de interpretação recente: n o v o s p r o -
blemas, n o v o s temas e novas aproximações.
A «nova história» d e i x o u ressonâncias na história religiosa. F o c o u a a t e n -
ção na piedade, nas devoções, nas peregrinações e superstições, e m c a m p o s
q u e se d e s e n v o l v e r a m e m psicoistória e sociologia histórica. U m n ú m e r o
considerável de d o m í n i o s n o v o s abriram-se para o historiador das m e n t a l i d a -
des, a f i n a n d o m é t o d o s na esfera d o religioso, m u i t o rico d e interligação de
factos políticos, sociais, jurídicos, pastorais, e c o n ó m i c o s , literários, i c o n o g r á f i -
cos. A n o v i d a d e de leituras é s u r p r e e n d e n t e na investigação ampla da variada
d o c u m e n t a ç ã o . T u d o p o d e ser p o n t o de partida, mais o u m e n o s utilizável.
I m p o r t a c e r t a m e n t e c o m b i n a r este alerta i n o v a d o r v i n d o da história das m e n -
talidades, sensível ao q u o t i d i a n o e ao p o v o , c o m a história das ideias, atenta
aos chefes e às elites. A divisão entre história das mentalidades e história da
ideias é repensada n o e n c o n t r o c o m a realidade.
Praticar, h o j e , história religiosa implica c o n h e c e r os n o v o s m é t o d o s s e m
ser escravo deles. São i n s t r u m e n t o s q u e alargam a visão e e n r i q u e c e m o c o -
n h e c i m e n t o . C o m p e t e à sagacidade d o historiador c o n j u g a r história das ideias
e da cultura c o m a banalidade quotidiana, objectividade dos a c o n t e c i m e n t o s
c o m a sua h e r m e n ê u t i c a , grandes figuras c o m a massa popular, o t e x t o c o m o
contexto.

O primeiro passo na concretização d o p r o j e c t o de u m a História Religiosa


de Portugal foi d a d o pelo C e n t r o de Estudos de História Religiosa, q u e consti-
tuiu u m primeiro g r u p o de trabalho q u e r e u n i u a 21 de J u n h o de 1994 na sede
d o C e n t r o . A elaboração de u m Dicionário de História Religiosa era u m a i n t e n -
ção primária, e mais próxima de realização. U m esboço de projecto de dicio-
nário temático, e m quatro volumes, é traçado e m N o v e m b r o de 1994. I m p o r -
tava procurar editor e estudar a viabilidade económica. Estiveram presentes:
Ana Maria R o d r i g u e s , A n t ó n i o C a m õ e s Gouveia, A n t ó n i o Matos Ferreira e
Carlos A. Moreira Azevedo. O s objectivos q u e n o r t e a v a m a equipa de traba-
lho, q u e se alargou para o p r o j e c t o de u m a História, e r a m os seguintes: contri-
buir para a percepção de c o m o a problemática religiosa cristã se articula c o m a
história de Portugal; assumir u m papel pedagógico e c o m u n i c a t i v o e m termos
de m e m ó r i a , acessível e destinada ao m e i o cultural português; recolher o d e -
senvolvimento de áreas novas de investigação; procurar respeitar a formulação
específica e técnica da linguagem religiosa; conjugar capítulos de síntese para <] Interior da Capela de
transmitir o p o n t o de situação da historiografia actual c o m a elaboração de ca- Nossa Senhora de La Salette
(Oliveira de Azeméis,
pítulos relativos ao estado aberto dos estudos para assuntos m e n o s trabalhados. 1923-1940).
Cada u m dos três v o l u m e s previstos para a História Religiosa de Portugal FOTO: N U N O CALVET/ARQUIVO
respeitaria u m q u a d r o geral estabelecido q u e a t e n d e a q u a t r o níveis de q u e s - C Í R C U L O DE LEITORES.

XXIII
INTRODUÇÃO GERAL

tões: articulação sociorreligiosa; p r o b l e m á t i c a d o u t r i n a l ; v e r t e n t e e s t r u t u r a l -


- i n s t i t u c i o n a l e vivência q u o t i d i a n a d o religioso.
S e m p r e t e n d e r r e v o l v e r os a r q u i v o s e fazer t r a b a l h o d e f i n i t i v o , s e m p r e
impossível nas lides históricas, foi c o n s c i e n t e o nosso l i m i t e d e d a r a c o n h e c e r
o estado da q u e s t ã o e m cada c a p í t u l o da n o v a História R e l i g i o s a e para isso
e s c o l h e m o s especialistas das várias áreas, c o m d o m í n i o d o p a n o r a m a da i n v é s -
tigação e das linhas historiológicas ainda e m a b e r t o .
Q u a n d o este p r o j e c t o ia a v a n ç a n d o surge o d e s e j o d o C í r c u l o d e Leitores
p u b l i c a r u m a História da Igreja e m P o r t u g a l . C o m o o Prof. J o s é M a t t o s o e s -
tava ao c o r r e n t e da nossa i n t e n ç ã o estabeleceu a p o n t e c o m o C í r c u l o . I n i -
c i a r a m - s e os c o n t a c t o s sobre a possibilidade e os detalhes d e u m a c o l a b o r a -
ção. A p r i m e i r a r e u n i ã o d e t r a b a l h o a c o n t e c e a 14 d e M a r ç o d e 1995, na sede
do Círculo, representado por Guilhermina Gomes e João Alvim, c o m Paulo
F o n t e s e Carlos A. M o r e i r a A z e v e d o , p o r p a r t e d o C e n t r o . M a n t é m - s e o d e -
s e n h o essencial d o p r i m i t i v o p r o j e c t o para o qual t í n h a m o s p r o m o v i d o três
e n c o n t r o s d e especialistas, p o r épocas d e e s t u d o . A g o r a , a c e r t a m - s e e c o r r i -
g e m - s e p o r m e n o r e s , t e n d o e m c o n t a o p r o m o t o r editorial da o b r a . A d i r e c -
ção d o C e n t r o e s c o l h e os c o o r d e n a d o r e s para cada v o l u m e e estes c o m e ç a m
a d e l i n e a r o e s q u e m a da sua parte, a e s c o l h e r os c i n c o o u seis c o l a b o r a d o r e s
q u e t í n h a m o s d e t e r m i n a d o c o m o m á x i m o para cada t o m o e a fixar o n ú m e r o
a p r o x i m a d o d e páginas p o r c a p í t u l o . A p ó s este p r i m e i r o e s b o ç o clarifica-se o
c o n t r a t o c o m o C í r c u l o , c o m d o c u m e n t o s assinados a 25 d e J u n h o d e 1996.
A p ó s r e u n i õ e s parcelares p o r v o l u m e estabelece-se a estrutura e o r i e n t a - s e o
t i p o d e a b o r d a g e m dos temas. N o s dias 6 e 7 d e J u l h o d e 1996, na F a c u l d a d e
d e Letras da U n i v e r s i d a d e d o P o r t o , os c o l a b o r a d o r e s d o s e g u n d o v o l u m e
desta o b r a realizaram u m s e m i n á r i o d e História R e l i g i o s a M o d e r n a para d e -
b a t e r a historiografia, discernir ideias e p r o b l e m a s e f o r n e c e r e l e m e n t o s para
u m v o c a b u l á r i o d e história religiosa m o d e r n a . O l o n g o t r a b a l h o d e r e d a c ç ã o
dos vários v o l u m e s vai-se p r o l o n g a n d o e os prazos r e c o n h e c e m - s e c u r t o s p a -
ra a a m b i ç ã o i n o v a d o r a da o b r a . O s mais c u m p r i d o r e s s e n t e m o atraso d o s
o u t r o s e o caudal d o rio vai-se l e n t a m e n t e c o m p l e t a n d o até c h e g a r à foz.

O p t á m o s p o r u m a História R e l i g i o s a , p o r ser u m a a b o r d a g e m mais


a b r a n g e n t e d o q u e u m a História da Igreja o u até u m a História d o Cristianis-
m o . Esta ú l t i m a , a d o C r i s t i a n i s m o , p r e t e n d e a t e n d e r à e v o l u ç ã o das várias
confissões, Igrejas o u c o m u n i d a d e s cristãs. Aí e s t u d a - s e a Igreja e n q u a d r a d a
n o cristianismo, e n q u a n t o f e n ó m e n o s o c i o c u l t u r a l visível. S e g u n d o a p e r s -
pectiva a n t e r i o r m e n t e exposta p r e f e r i m o s u m a História R e l i g i o s a . O C í r c u l o
d e Leitores a c e i t o u esta nossa perspectiva. P r o c u r o u - s e c o n s i d e r a r a c o m -
p r e e n s ã o d o f e n ó m e n o r e l i g i o s o na s o c i e d a d e p o r t u g u e s a , v a l o r i z a n d o a
m a t r i z c r i s t ã - c a t ó l i c a , m a s n ã o d e s c u r a n d o as diversas s e n s i b i l i d a d e s r e l i g i o -
sas e as suas p e r m a n ê n c i a s , r e a l ç a n d o m a i s a s p e c t o s da v i v ê n c i a espiritual d o
q u e as d i m e n s õ e s j á habituais, d e o r d e m i n s t i t u c i o n a l e organizativa. É i n t e n -
ção desta o b r a , t e n d o e m c o n t a as p o t e n c i a l i d a d e s e os limites da investigação
p r o d u z i d a , s u b l i n h a r a relação e n t r e os diversos estratos sociais e a v i v ê n c i a
religiosa nas suas variadas expressões, d e s t a c a n d o os processos d e socialização
e f o r m a s d e sociabilidade daí d e c o r r e n t e s . Assim, n ã o r e d u z i r e m o s o o l h a r
apenas a o e v o l u i r h i s t ó r i c o dos g r u p o s eclesiásticos, o u ao papel da h i e r a r q u i a
e acção dos protagonistas.
N a i n t r o d u ç ã o d e cada v o l u m e j u s t i f i c a r - s e - á e explicar‫־‬se-á o â m b i t o
científico, a lógica i n t e r n a dos t e m a s a c o l h i d o s n o t e x t o , a base historiográfica
da síntese o b t i d a , i n c l u i n d o assuntos mais «específicos». C o n s c i e n t e s d e esta
c o n s t i t u i r a p r i m e i r a tentativa global d e u m e s t u d o d e história p o r t u g u e s a s o b
a ênfase d o religioso, p r o c u r a r - s e - á a p o n t a r pistas d e investigação e m a b e r t o ,
p r o b l e m a s e h i p ó t e s e s a levantar. O s c o o r d e n a d o r e s t i v e r a m l i b e r d a d e para
a t e n d e r à especificidade d o t r a t a m e n t o q u e espelhe a d i f e r e n t e p o s i ç ã o e v i t a -
lidade d o factor religioso nas três épocas estabelecidas.
D e s d e o século x v n q u e a p e r i o d i z a ç ã o se p e r c e b e c o m o p r o b l e m a a g u d o

xviII
INTRODUÇÃO GERAL

d o historiador p o r q u e revela a avaliação das charneiras, das e v o l u ç õ e s f u n d a - C r u z processional (frente),


mentais, das transições. D i v i d i r e m diferentes p e r í o d o s é revelar u m perfil de século x v . Lisboa, M u s e u
Nacional de Arte Antiga.
p e n s a m e n t o , u m â n g u l o de visão dos factos. É mais u m e l e m e n t o subjectivo,
u m a perspectiva p r o p o s t a para o leitor. E v i t á m o s u m tipo de periodização F O T O : D I V I S Ã O DE
DOCUMENTAÇÃO
teológica o u m e s m o confessional. O discurso sobre a visão q u e está p o r d e - FOTOGRÃFICA/INSTITUTO
trás da divisão u n e - s e à escolha e à sistematização da matéria. PORTUGUÊS DE M U S E U S / J O S É
A o escolher para título d o p r i m e i r o v o l u m e Formação e limites da Cristan- PESSOA.

dade p r e t e n d e - s e abarcar o desafio multissecular das várias consciências reli-


giosas c o m a C r i s t a n d a d e e m ascenção, n o espaço c o r r e s p o n d e n t e ao t e r r i t ó - < ] Lápide funerária de
rio p o r t u g u ê s , desde o f u n d o religioso a u t ó c t o n e e r o m a n i z a d o até ao M o h a m e d Ibn Mahdi Ibn
H u d (meados do século XII).
c o n f r o n t o c o m o Islão e ao diálogo difícil c o m o j u d a í s m o . Beja, M u s e u R a i n h a
C e r t a m e n t e q u e o P o r t u g a l religioso t e m u m a história presente h o r i z o n - D . Leonor.
t a l m e n t e n o cristianismo e u r o p e u , mas t a m b é m possui u m a singularíssima FOTO: PRODUÇÕES TOTAIS/
história religiosa, na qual se j u n t a m m u n d o s culturais e m agitada relação na / A R Q U I V O C Í R C U L O DE
Península Ibérica. LEITORES.

P o r razões políticas e militares, a invasão m u ç u l m a n a da P e n í n s u l a e a


reconquista do território c o n v e r t e m Portugal em belicoso e n f r e n t a m e n t o .
A convivência pacífica e n t r e três etnias, três fés e três culturas, m u ç u l m a n o s ,
j u d e u s e cristãos, q u e c o n f o r m a m u m tipo d e sociedade plural, expressa-se
e m arte, vida, pensar, l i n g u a g e m e crenças q u e se e n t r e c r u z a m e p r o d u z e m
u m maravilhoso mosaico. Esta coexistência traz debates e controvérsias t e o l ó -
gicas, o p e r a d o s e n t r e a elite desses p o v o s , p r e s c r e v e n d o n o r m a s de c o n d u t a
para salvaguardar a própria i d e n t i d a d e religiosa. A questão da i d e n t i d a d e reli-
giosa p õ e - s e c o m o p r o b l e m a existencial, antes de ser político. Só surgirá c o -
m o p r o b l e m a de d i m e n s õ e s sociais e políticas n o século xv.
O a p a g a m e n t o da diversidade religiosa, d e q u e é e x e m p l o a «conversão
forçada» dos j u d e u s e expulsão dos m u ç u l m a n o s , marca o início de n o v o pe~
r í o d o na história religiosa de P o r t u g a l e o c u p a r á lugar n o s e g u n d o v o l u m e .
Este terá c o m o t e m a Humatiismos e reformas, perspectiva p r o l o n g a d a até à r e -

XvIII
INTRODUÇÃO GERAL

v o l u ç ã o liberal de 1820. É o t e m p o d o catolicismo t r i u n f a n t e , n o c o n f r o n t o


c o m a r e n o v a ç ã o evangélica das o r d e n s religiosas, a crítica dos h u m a n i s t a s , a
p r e s e n ç a d e m i n o r i a s protestantes, a r e f o r m a t r i d e n t i n a , os h u m a n i s m o s i l u -
m i n a d o s o u «racionais». Esta é p o c a significou para a história d o cristianismo
u m a v i r a g e m dramática e m m u i t o s sentidos. O m u n d o cristão ocidental p e r -
m a n e c i a u n i d o n o princípio da época. N o final aparece dividido.
As r e f o r m a s d o século x v i p r o d u z i r a m r e s s e n t i m e n t o s d e largo â m b i t o .
[> Menino Jesus Salvador do C o n s o l i d o u - s e o p r o c e s s o de confessionalização, c u j o significado decisivo p a -
Mundo. M a r f i m p o l i c r o m a d o , ra o n a s c i m e n t o na consciência m o d e r n a d e u m a n o v a f o r m a d e vida e d e
arte i n d o - p o r t u g u e s a a f i r m a ç ã o d o E s t a d o é h o j e realçado. São f e n ó m e n o s q u e a f e c t a m s o b r e t u d o
(século XVII). A l c o b a ç a , Santa o i n t e r i o r da Igreja, mas t a m b é m o d e s e n v o l v i m e n t o geral da vida cultural e
Casa da Misericórdia.
política.
FOTO: N U N O CALVET/ARQUIVO
F o r t a l e c e u - s e a vida e a d o u t r i n a d e n t r o das confissões da C r i s t a n d a d e d i -
C Í R C U L O DE LEITORES.
vidida, m a s n ã o se p ô d e i m p e d i r o a v a n ç o espiritual para a Ilustração e para
os c o m e ç o s de u m a secularização d o p e n s a m e n t o e dos c o m p o r t a m e n t o s .
C u s t ó d i a e m prata dourada
p r o v e n i e n t e da igreja da Pena F o r m o u - s e u m n o v o s e n t i d o da vida — s o b r e t u d o e m sectores elitistas —
(Lisboa, 1530-1540). Lisboa, e d e s e n c a d e a r a m - s e crises violentas n o final d o século x v m . E x p o r a c o n t i -
M u s e u N a c i o n a l de A r t e n u i d a d e , as crises e as r u p t u r a s n a e v o l u ç ã o , q u e vai desde a situação prévia à
Antiga. R e f o r m a até ao t e m p o i m e d i a t a m e n t e a n t e r i o r à R e v o l u ç ã o Francesa, é o b -
F O T O : D I V I S Ã O DE j e c t i v o a alcançar.
DOCUMENTAÇÃO A a p a r i ç ã o d o m u n d o b u r g u ê s n o s finais d e S e i s c e n t o s e d u r a n t e S e t e -
FOTOGRÃFICA/INSTITUTO
P O R T U G U Ê S DE M U S E U S / J O S É c e n t o s significará a m o r t e d o c r i s t i a n i s m o , o u , p e l o c o n t r á r i o , só faz e n t r a r
PESSOA. e m crise u m a d e t e r m i n a d a e x p r e s s ã o d o cristianismo? As d i f e r e n t e s p o s s i b i -

xviII
INTRODUÇÃO GERAL

lidades de existência cristã e x i g e m u m e s t u d o da p i e d a d e n o s séculos x v n e


XVIII.
A esta problemática c o r r e s p o n d e u u m a estrutura, u m a pastoral, u m senti-
m e n t o , u m a expressão literária e artística, p o r entre reacções, repressões, dissi-
dências, c a m i n h o s de alteridade. N o v a mentalidade se perfilava n o horizonte.
O terceiro v o l u m e assume esta n o v i d a d e n o título: Religião e secularização.
A religiosidade dos século x i x e x x é, p o r isso, abordada s e g u n d o e s q u e m a
diferente das épocas anteriores. U m capítulo lança a problemática relação e n -
tre Igreja e sociedade, e m a u t o n o m i a s difíceis, para depois serem analisadas as
e m e r g e n t e s respostas d o catolicismo às sucessivas crises, revoluções e c o n v u l -
sões. A c a b o u o A n t i g o R e g i m e e o n o v o é f r u t o de progressos imparáveis.
D u a s temáticas específicas atravessam estes séculos n o universo p o r t u g u ê s : a
actividade missionária e a pluralidade religiosa, q u e c o n s t i t u e m dois temas i n -
dependentes.
É n o século xix, rico de m u d a n ç a s e matizes, q u e o c o n c e i t o de seculari-
zação assume peso c o n o t a t i v o de luta cultural o u e n f r e n t a m e n t o e n t r e os p o -
deres eclesiais e os m u n d a n o s o u seculares, m a r c a d a m e n t e politizados. H á
u m a ilusão e esforço para através d o uso exclusivo da razão e n t e n d e r a i n t e -
gridade da existência h u m a n a . D i a n t e q u e r da e m a n c i p a ç ã o da sociedade b u r -
guesa, q u e r da cultura proletária aparece a tradição cristã a travar as m u d a n ç a s
socioculturais. O c o n c e i t o d e secularização nos críticos da religião da segunda
m e t a d e d o século x i x ganha pertinência. É u m t e r m o q u e expressa u m a série
de experiências vividas e n t r e a sociedade e a religião j á na época m o d e r n a e

Visitação (Igreja Matriz de


Alvorninha, madeira
policromada, século xvni).
F O T O : N U N O CALVET/ARQUIVO
C Í R C U L O DE LEITORES.

XXIII
INTRODUÇÃO GERAL

r e p r e s e n t a u m m o m e n t o sociocultural d e i n d e p e n d ê n c i a das diversas esferas


sociais r e l a t i v a m e n t e à religião. A ciência, a e c o n o m i a , a política, o direito,
assim c o m o a arte e, mais p r ó x i m o dos nossos dias, a ética e a família, g a -
n h a m a u t o n o m i a . A religião p e r d e o p a p e l d e l e g i t i m a d o r social tradicional.
O e c o n ó m i c o o c u p a o lugar central e a religião p r e t e n d e - s e privatizada, i n t e -
riorista.
O século x x singulariza-se pela m u n d i a l i z a ç ã o dos conflitos, e x t e n s ã o dos
êxitos e fracassos, r a p i d e z das notícias, c a d u c i d a d e das p e r m a n ê n c i a s morais,
religiosas e políticas. Instalou-se a ideia de q u e só a m u d a n ç a m e l h o r a as c o i -
sas. D e u s e a religião t o r n a m - s e quase supérfluos p o r q u e a pessoa m o d e r n a
g a n h a c o m p e t ê n c i a sobre o inexplicável. A ideia de D e u s limita-se a ser res-
posta às p e r g u n t a s s o b r e o s e n t i d o p r i m e i r o e ú l t i m o d o m u n d o e da vida,
dos valores e ideais, das decisões e atitudes. A b r e - s e u m m i l é n i o n o v o c o m
respeito m ú t u o e n t r e ciência e fé.
E m c o n t r a p o n t o ao m o v i m e n t o d e laicização da s o c i e d a d e d e s e n v o l v e - s e
u m p r o t a g o n i s m o dos leigos, c r e s c e m experiências de a p o s t o l a d o laical d e v a -
riado cariz e f o m e n t a m - s e f o r m a s n o v a s de espiritualidade.
R e n o v a - s e a p r e s e n ç a da Igreja C a t ó l i c a na s o c i e d a d e c o m o resposta lai-
cal à laicização liberal e à secularização c o n t e m p o r â n e a . Salta-se d o q u a d r o
p a r o q u i a l e da religiosidade q u o t i d i a n a e p o p u l a r e p r o m o v e m - s e acções d e
difusão d o catolicismo, c o m a principal i n t e r v e n ç ã o dos leigos, o q u e se a p e -
Jazigo dos condes do Ameal
(Cemitério da Conchada, lidou d e « m o v i m e n t o católico». E n t r e n ó s e m e r g e , n o s m e a d o s d o século x i x ,
Coimbra, 1893). e avança c o m lufadas de e n t u s i a s m o , alternadas c o m p r e s e n ç a apagada, até
FOTO: N U N O CALVET/ARQUIVO
eclodir na A c ç ã o Católica, o r g a n i z a ç ã o f u n d a m e n t a l n a e v o l u ç ã o d o catolicis-
C Í R C U L O DE LEITORES. m o social. G e r a iniciativas, defensoras de u m a relevância da p r e s e n ç a católica

xviII
INTRODUÇÃO GERAL

nos s e g m e n t o s da s o c i e d a d e e, assim, r e s p o n d e à r u p t u r a da f u n ç ã o social da


religião.
P e r m i t i m o - n o s d e m o r a r u m p o u c o a c a r a c t e r i z a r a s i t u a ç ã o , j á q u e esta
H i s t ó r i a R e l i g i o s a é filha d e u m a m e n t a l i d a d e nascida n o e n t e n d i m e n t o
n o v o d e s t e t e m a . H á u m a m u d a n ç a d e e s t r u t u r a s m e n t a i s . A religião j á n ã o
l e g i t i m a as práticas sociais políticas e e c o n ó m i c a s , j á n ã o d i r i g e a m u n d i v i -
d ê n c i a , p e l o m e n o s c o m o m o n o p ó l i o a n t e r i o r . C o m a ideia da l i b e r d a d e
religiosa p a s s o u - s e d e u m a c o s m o v i s ã o u n i t á r i a d e c a r á c t e r r e l i g i o s o para
u m a p l u r a l i d a d e d e visões. A c e n t u a - s e h o j e a f r a g m e n t a ç ã o c o s m o v i s i o n a l
q u e r e n u n c i a às visões d o m u n d o unitárias, o n d e se p e r d e a n a t u r a l i d a d e
para d e s c o b r i r os sinais d o s a g r a d o n o c o s m o s e se c h e g a a e r r a d i c a r os t r a -
ços d o r e l i g i o s o na c u l t u r a .
A religião (católica) c h e g o u , n o e n t a n t o , a e x e r c e r f u n ç õ e s legitimadoras
d e u m r e g i m e político, e até a p r o m o v e r u m a identificação religioso-civil d e
n o r m a s sociais ( m a t r i m ó n i o , festividades, trabalho). O processo d e seculariza-
ção desliga a religião d e u m a série d e tarefas sociais e culturais, q u e t r a d i c i o -
n a l m e n t e lhe estavam atribuídas.
Pela p r i m e i r a v e z na história, as instituições constitutivas da s o c i e d a d e e
os c o m p o r t a m e n t o s pessoais q u o t i d i a n o s a f i r m a m n ã o necessitar d e l e g i t i m a -
ção religiosa. Esta m u d a n ç a atinge as consciências.
C o m a p e r d a d e significância social da religião g a n h a t e r r e n o o pluralis-
m o . O relativismo das diversas explicações o u c o s m o v i s õ e s salta à vista. Se
n ã o se afastou o p r e d o m í n i o d e u m a religião (católica), c o n h e c e u - s e a p e r d a Custódia em prata branca e
da c o e r ç ã o social para a sua aceitação. dourada pertencente à igreja
A p r ó p r i a religião altera-se na pluralidade d e visões d o m u n d o , n u m a es- da Vestiaria (ourives
portuense, 1853-1861).
p é c i e d e m e r c a d o q u e obriga a racionalizar as estruturas sociorreligiosas. Já
n ã o são suficientes as legitimações teológicas da realidade. H á q u e e v i d e n c i a r FOTO: N U N O CALVET/ARQUIVO
C Í R C U L O DE LEITORES.
a eficácia social. D e s e n v o l v e - s e a b u r o c r a c i a p o r causa desta racionalização
organizativa. A t e n d ê n c i a para o e c u m e n i s m o é vista c o m o m o v i m e n t o d e
defesa m ú t u a p o r a f i n i d a d e e n t r e as diversas Igrejas. C o m o r e a c ç ã o a p a r e c e o
a t a q u e às t e n d ê n c i a s desagregadoras, a c u s a n d o - a s d e «descristianização» o u p a -
ganização. O c o n t e ú d o d o u t r i n a l sofre r e f o r m u l a ç õ e s para ser e n t e n d i d o e
aceite, c o m o p e r i g o o u t e n t a ç ã o d e adaptar-se ao m o m e n t o a custo da a u -
t e n t i c i d a d e d o u t r i n a l e c o m o m o e d a d e troca da relevância social.
A o p o s i ç ã o eclesial à secularização, a l é m d e resistência q u e desmascara as
f u n ç õ e s ideológicas sustentadoras d o processo, c o n d u z a u m a a t i t u d e d e f o r -
t a l e c i m e n t o institucional e p r o p o r c i o n a u m cristianismo d e t e n d ê n c i a e c l e -
siástica. Alguns, nesta linha, l ê e m a restauração católica p ó s - c o n c i l i a r c o m o
retrocesso d e e n d u r e c i m e n t o das n o r m a t i v a s eclesiais institucionais.
É d e r e c o n h e c e r , n o e n t a n t o , q u e foi a tradição bíblica a s e m e a r a secula-
rização, d e a l g u m a m a n e i r a f r u t o das virtualidades da m a t r i z j u d e o - c r i s t ã .
N ã o se p o d e , p o r isso, c h a m a r «descristianização» ao q u e é resultado d e u m
a v a n ç o d o p r ó p r i o cristianismo.
H á u m p r o c e s s o d e m u d a n ç a das f o r m a s d e presença social da religião, na
persistência d e f e n ó m e n o c o n s t i t u t i v o da sociedade. T e m g r a n d e p e s o , atra-
vés d o t o m valorativo l a n ç a d o sobre o sistema e da capacidade r e g u l a d o r a s o -
bre o compromisso motivacional do indivíduo. H á dificuldade e m m a n t e r
u m a visão essencialmente religiosa da vida, q u e n ã o interfira na universalida-
d e d o social.
As religiões (institucionalizadas) n ã o s a b e m c o m o c o l o c a r - s e nesta s o c i e -
d a d e m o d e r n a , d e m o c r á t i c a , funcionalista, s u p e r d i f e r e n c i a d a . H á reacções d e
desprivatização e u m a m e n t a l i d a d e q u e carece d e o r i e n t a ç õ e s valorativas p o r -
q u e necessita d e guia e barreiras. O u t r o s q u e r e m r e a d q u i r i r relevância social a
t o d o o custo.
A p ó s - m o d e r n i d a d e privilegia a d i m e n s ã o e m o c i o n a l , estético-expressiva,
simbólica. A c e n t u a as insuficiências da razão f u n c i o n a l para a c e d e r ao s e n t i d o
da vida. D e f e n d e atitudes d e escuta, a t e n ç ã o e gosto pela pluralidade e rique-
za da vida. T a n t o a c o n t e c e a p r o m o ç ã o d e u m a espiritualidade r e n o v a d o r a ,
c o m o há m o v i m e n t o s de carácter o r t o d o x o e c o n s e r v a d o r . A p a r e c e m r e a c -
ções c o n t r a m o d e r n a s , anti-ilustradas, q u e p r o c u r a m e v i d e n c i a r a religião e

xviII
INTRODUÇÃO GERAL

d e f e n d e m o seu i n f l u x o e p r e s e n ç a social. São sensíveis à t e m á t i c a d e ética c i -


vil, o u m e l h o r , a n o r m a s éticas d e vida da cidadania e m geral. As i n t e n ç õ e s
desta p o s i ç ã o são variadas.

E s t a m o s c o n s c i e n t e s d e q u e escrever u m a História é o p e r a r u m a i n t e r -
v e n ç ã o social e cultural. S e j a - n o s p e r m i t i d o a p o n t a r o nosso h o r i z o n t e p r o s -
p e c t i v o para os leitores c o n h e c e r e m o rasgo d o nosso olhar na o b s c u r i d a d e
do futuro.
S i t u a - s e este p r o j e c t o n o t e m p o p ó s - m o d e r n o e m q u e n ã o só as i d e o l o -
gias p e r d e r a m a f o r ç a de c o e s ã o social. T a m b é m u m a c o m u m i d e n t i d a d e
c u l t u r a l se esvai. Fala-se até n o f i m d o p l u r a l i s m o e na e m e r g ê n c i a d e p l u -
ralidades n ã o c o n v e r g e n t e s , p o r q u e paralelas. O p l u r a l i s m o p r e s s u p u n h a u m
centro, de algum m o d o , unificante. Pluralidade é o rebentar de novas reali-
dades q u e n e n h u m a a u t o r i d a d e c o n s e g u e disciplinar e h a r m o n i z a r , é a p e r d a
d e u m c e n t r o . O p l u r a l i s m o t e n d e a g o v e r n a r as diversas posições, a plurali-
d a d e verifica a m u l t i p l i c i d a d e .
O f i m da C r i s t a n d a d e é u m aspecto desta perda d e centralidade. T a m b é m
a Igreja Católica, c o m o o Estado, quais antagonistas q u e p r o t a g o n i z a v a m os
a c o n t e c i m e n t o s , v e r i f i c a m a p e r d a de c a m p o na s o c i e d a d e civil. A p ó s o
II C o n c í l i o d o V a t i c a n o a Igreja Católica, de m ã o s dadas c o m as outras I g r e -
jas cristãs, n ã o t e m a p r e s u n ç ã o d e o r i e n t a r a sociedade, mas p õ e - s e ao servi-
ç o da pessoa h u m a n a , c o m o c o n s c i ê n c i a crítica d e q u a l q u e r p r o j e c t o e c o m o
apelo à absoluta p r i o r i d a d e da salvação. Alerta para valores d e n t r o d o pluralis-
m o religioso e da a u t o r i d a d e da cidade terrena. N a e n c r u z i l h a d a deste r e c o -
n h e c i m e n t o t e ó r i c o , c o m c o m p o r t a m e n t o s ainda eivados de m e n t a l i d a d e a n -
terior, passa-se para o assumir a periferia nas estruturas d o sistema social. Esta
perda d e centralidade n ã o t r a d u z insignificância histórica da fé, n e m d e s a p a -
r e c i m e n t o d o religioso, mas d e d i c a ç ã o aos p r o b l e m a s f u n d a m e n t a i s da pessoa.
A n o v a f o r m a de p r e s e n ç a difusa t o r n a c o m p l e x a a relação e n t r e valores reli-
giosos e estrutura social. D e facto, os valores religiosos p o d e m p e r m a n e c e r n o
c e n t r o da pessoa h u m a n a . Será essa a m u d a n ç a para u m n o v o m o d o de ser
das Igrejas.
N ã o d e f e n d e m o s q u e o e v i d e n t e f i m da C r i s t a n d a d e signifique o início
d e u m a fase pós-religiosa da h u m a n i d a d e . H á u m a transferência d e valores e d e
procura de valores d o plano exterior para o plano das consciências, o q u e p o d e
aparecer c o m o risco de indiferença na sociedade pluralista e policêntrica.
Já n ã o se trata d e i m p o r qualquer perspectiva. T a l m é t o d o , na aparente efi-
cácia, d i m i n u i u a força da m e n s a g e m e distanciou-se da f o n t e original. A g o r a
t a m b é m é impossível p r o p o r u m ú n i c o q u a d r o de valores e cria-se u m a o r i e n -
tação para baixar o nível da «ética mínima», avaliada p o r cada u m , a igualar as
posições n u m a indiferença céptica diante d e qualquer proposta d e sentido. Esta
cultura da i n d i f e r e n ç a t o r n a - s e clima geral n o a n o n i m a t o d o p r o c e s s o p r o d u -
tivo, da p e r d a da q u a l i d a d e da vida interpessoal, na p e r d a d e significado das
relações intrafamiliares, na massificação d o uso d o t e m p o livre.
P o r q u e a c i ê n c i a / c o n h e c i m e n t o h i s t ó r i c o r e m e t e para u m a m e m ó r i a c o -
m o p e d a g o g i a , c o m esta História R e l i g i o s a q u e r e m o s f o r n e c e r u m c o n t r i b u t o
para u m a p e d a g o g i a da d i f e r e n ç a t o l e r a n t e , a m p l i f i c a n d o as i n t e r r o g a ç õ e s s o -
b r e o s e n t i d o , p r o m o v e n d o o a p r o f u n d a m e n t o das raízes n o s debates d e cada
pessoa c o m u m passado c o m p l e x o e a b r i n d o u m a leitura p e r m a n e n t e da m e -
m ó r i a , a m a l g a m a d a c o m a busca d e n o v o c o m p r o m i s s o , na p r e s e n ç a d o m i s -
tério.
O C e n t r o d e E s t u d o s d e História R e l i g i o s a da U n i v e r s i d a d e C a t ó l i c a
P o r t u g u e s a agradece ao C í r c u l o d e Leitores ter a c o l h i d o o nosso p r o j e c t o e
d a r - l h e a vasta d i f u s ã o editorial q u e se c o n h e c e . C o m t o d o s os c o o r d e n a d o r e s
e c o l a b o r a d o r e s dos vários v o l u m e s , o r i u n d o s d e d i f e r e n t e s origens a c a d é m i -
cas, partilha a alegria deste p a r t o , r e c o n h e c e n d o o e s f o r ç o e a i n t e r a j u d a p r ó -
prios e necessários a u m a o b r a c o m u m . O risco foi p e r c o r r i d o . A a v e n t u r a
p r o s s e g u e na leitura, passo para n o v o saber.

xviII
INTRODUÇÃO GERAL

NOTAS
1
Sobre o tema é abundante a bibliografia. Aqui se referem só alguns títulos recentes: GÓMEZ
CAFFARENA, ed. - Religión. Madrid: Trotta, 1993; DERRIDA, J.; VATTIMO, G., ed. - La religión.
Madrid: P P C , 1996; LUCAS HERNANDEZ, Juan de Sahagún - Fenomenologia y Filosofia de la religión.
Madrid: B A C , 1999; PIKAZA, Xabier - El fenómeno religioso: Curso fundamental de religión. Madrid:
Ed. Trotta, 1999.
2
Para mais desenvolvimento cf. LUCAS HERNANDEZ, Juan de Sahagún - Fenomenologia y Filo-
sofia de la religión. Madrid: B A C , 1999, com bibliografia actualizada.
3
Expressão de TRIAS, E. - La edad dei espiritu. Barcelona: Destino, 1994; IDEM - Pensar la reli-
gión. Barcelona: Destino, 1997.
4
DICIONÁRIO de História da Igreja em Portugal. Dir. de A. A. Banha de Andrade. Lisboa: Ed. R e -
sistência [1980], vol. 1, 15*-27*. C f também SERRÃO, J. Veríssimo - A historiografia portuguesa. Lisboa,
1972. 3 vol.; MATOS, Sérgio Campos - Historiografia contemporânea. In DICIONÁRIO de História
Religiosa de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2000, vol. 2 (no prelo).
3
Deixou publicada, além de fecunda investigação, uma obra de orientação para a história:
Princípios da história ecclesiastica escritos em forma de diálogo. Lisboa: Miguel Rodrigues, 1765. Subli-
nha a necessidade que a Igreja e o dogma têm da história.
6
Cf. AZEVEDO, C. A. Moreira - Teologia. In HISTÓRIA da Universidade, vol. 2 (no prelo).
7
Ver PINTO, A. Ferreira - Cabido da Sé do Porto: João Pedro Ribeiro cónego doutoral. Lu-
men. 2 (1938) 28-37.
8
NEVES, F. Moreira das - José de Sousa Amado. In DICIONÁRIO de História da Igreja em Por-
tugal. Lisboa, 1980, vol. 1, p. 188-191.
9
[SANTOS, Domingos Maurício Gomes dos] - Horizontes da historiografia eclesiástica em
Portugal (No centenário de Fortunato de Almeida). Brotéria. 88 (1969) 626-631; PERES, Damião -
O Professor Fortunato de Almeida académico e escritor. Memórias da Academia das Ciências de
Lisboa: Classe de Letras. 12 (1969) 7-14.

xviII
Introdução
Ana Maria S. A. Rodiigues
Ana Mana C. M. Jorge
C o m e ç a r u m a História Religiosa de Portugal p o r u m a é p o c a e m q u e
Portugal ainda n ã o existia p o d e parecer, à primeira vista, u m c o n t r a - s e n s o .
C o n t u d o , as mais recentes Histórias d o nosso país — a Nova História de Portu-
gal dirigida p o r J o e l Serrão e A. H . de Oliveira M a r q u e s , e as duas Histórias
de Portugal dirigidas, respectivamente, p o r José M a t t o s o e J o ã o M e d i n a —
p r i n c i p i a m todas, i g u a l m e n t e , na pré-história. N ã o p o r q u e t o m e m p o r a d q u i -
rido q u e a nação p o r t u g u e s a j á se e n c o n t r a v a prefigurada e m alguma das f o r -
m a ç õ e s territoriais e políticas locais anteriores à f u n d a d a p o r D . A f o n s o H e n -
riques, mas p o r q u e se tornaria ininteligível u m relato iniciado apenas c o m o
r e c o n h e c i m e n t o da i n d e p e n d ê n c i a da m o n a r q u i a p o r t u g u e s a , e m 1143, o u
m e s m o mais tarde, c o m a crise d e 1383-1385, q u a n d o n o calor da guerra c o n -
tra Castela se c o m e ç a a n o t a r a expressão de u m a incipiente consciência n a -
cional.
O c o n h e c i m e n t o das formas c o m o os h o m e n s interagiram c o m o espaço
e se organizaram d o p o n t o d e vista político, e c o n ó m i c o e social n o território
q u e f u t u r a m e n t e virá a ser português, antes m e s m o da constituição da entidade
política a u t ó n o m a a q u e c h a m a m o s Portugal, é indispensável à c o m p r e e n s ã o
da história nacional. Tal c o m o é f u n d a m e n t a l , para a c o m p r e e n s ã o da história
religiosa p o r t u g u e s a , o c o n h e c i m e n t o das crenças e práticas desses m e s m o s
h o m e n s , desde os t e m p o s mais recuados. P o r q u e , se foi a matriz cristã q u e
m a r c o u i n d e l e v e l m e n t e a d i m e n s ã o religiosa da sociedade p o r t u g u e s a d u r a n t e
toda a Idade M é d i a , esta n ã o se c o m p r e e n d e s e m os c o n t r i b u t o s de religiões
mais antigas q u e o cristianismo se esforçou p o r desalojar dos t e m p l o s e das
consciências, n e m s e m p r e c o m absoluto sucesso, e de outras religiões coevas
q u e ele c o m b a t e u c o m igual energia através da palavra e das armas, e m b o r a
tivesse aceite c o m elas coexistir d u r a n t e alguns séculos.
Este p r i m e i r o v o l u m e t e m , pois, c o m o cenário o território e m q u e , mais
tarde, virá a surgir o Portugal c o n t i n e n t a l q u e h o j e c o n h e c e m o s , s e m n u n c a
p e r d e r d e vista a sua inserção n u m c o n t e x t o peninsular e e u r o p e u mais alar-
g a d o — o da cristandade latina ocidental — , mas p r o c u r a n d o evitar as g e n e -
ralizações p o r vezes abusivas q u e t ê m sido feitas a partir de casos p r ó x i m o s .
T e m , ainda, c o m o balizas c r o n o l ó g i c a s a i n t r o d u ç ã o d o cristianismo nesse
espaço n o B a i x o I m p é r i o R o m a n o e o seu c o n f r o n t o c o m o f u n d o religioso
a u t ó c t o n e e r o m a n o , n u m a das e x t r e m i d a d e s t e m p o r a i s , e na o u t r a a situa-
ção d e crise m o r a l , social e e c o n ó m i c a a q u e a Igreja cristã — t a n t o na sua
a c e p ç ã o d e c o m u n i d a d e d e fiéis c o m o na d e instituição — c h e g o u e m m e a -
dos d o século xv, e q u e irá d e s e n c a d e a r e m Q u i n h e n t o s u m m o v i m e n t o d e
r e f o r m a i n t e r n a e e x t e r n a d e g r a n d e alcance e efeitos d u r a d o u r o s . O q u e
n ã o q u e r dizer q u e os r i t m o s p r ó p r i o s a cada estrutura n ã o t e n h a m levado,
e p i s o d i c a m e n t e , à a d o p ç ã o d e m a r c o s t e m p o r a i s mais restritos e m alguns c a -
pítulos.

A o intitularmos este v o l u m e Formação e limites da Cristandade, p r o c u r á m o s


sublinhar u m m o d e l o civilizacional assente na ideia de u n i d a d e religiosa, e m
c o n s t r u ç ã o ao l o n g o de toda a época medieval. Mas esta obra n ã o poderia
alhear-se da r e n o v a ç ã o historiográfica q u e , e m t e r m o s teóricos, t e m c o n t r i -
b u í d o para q u e a religião e a religiosidade medieval t e n h a m sido, nas últimas
décadas e e m países c o m o a França, a Itália, a Inglaterra e os E U A , cada vez
mais trabalhadas a partir da a n t r o p o l o g i a histórica. S o b as novas perspectivas
assim abertas, a n o ç ã o de Cristandade m u d o u de c o n t e ú d o s . D e u m c o n c e i t o
que, tal c o m o até há p o u c o os historiadores incautamente o utilizavam, era na

1
INTRODUÇÃO

realidade a p o l o g é t i c o e defensivo, c o n s t r u í d o afinal n u m a época tão tardia


c o m o o século xix, a partir «de dentro», pelos historiadores eclesiásticos d e
u m a Igreja q u e via desfazer-se t o d o u m sistema d o m u n d o e projectava n o
passado u m a visão idealizada d o m e s m o , passa-se agora, na esteira de autores
c o m o M i c h e l de C e r t e a u , à ideia de u m sistema d e crenças e práticas p r o f u n -
d a m e n t e diverso d o c o n t e m p o r â n e o , d a d o r d e s e n t i d o a partir da inscrição d o
sagrado e m todas as esferas da vida social. M u i t o mais q u e u m a é p o c a h i s t ó r i -
ca d e u m processo de «cristianização»/«descristianização» — visão à b o a m a -
neira evolucionista, refere c o m pertinência irónica A n d r é V a u c h e z — , trata-
- s e de u m «outro c o n t i n e n t e cultural» ( c o m o refere J . F. S c h a u b a p r o p ó s i t o
de B a r t o l o m é Clavero), q u e organiza a realidade h u m a n a a partir d o s o b r e n a -
tural, c o l o c a n d o u m m e s m o h o r i z o n t e passado e f u t u r o , m u n d o e A l é m ,
D e u s e os h o m e n s , e s u b o r d i n a n d o assim o presente a lógicas sacrais e m o -
rais, n ã o de u m a f o r m a instrumentalista, mas constitutiva, essencial.
E , se «o passado é u m país estrangeiro», o h i s t o r i a d o r a n t r o p ó l o g o n e -
cessita d e a p r e e n d e r a f u n d o a c u l t u r a deste, s o b p e n a d e n u n c a o v e r s e n ã o
c o m os o l h o s d o p r e s e n t e . E s t a m o s c o n s c i e n t e s , q u e este é o salto mais d i f í -
cil, só r e a l m e n t e c o n c r e t i z á v e l após u m a m u i t o m a i o r p e n e t r a ç ã o , n o n o s s o
m e i o c i e n t í f i c o , d o s n o v o s m o d e l o s t e ó r i c o s s o b r e a religiosidade m e d i e v a l .
T e n t á m o s , p o r é m , dar u m p e q u e n o passo neste s e n t i d o , ainda q u e p o r v e -
zes d e f o r m a p r e l i m i n a r , mais o u m e n o s explícita c o n f o r m e os textos, e
t e n t a d a s o b r e t u d o ao nível m e n o s p e r c e p t í v e l dos e n q u a d r a m e n t o s f o r m a i s ,
dos p l a n o s d e o b r a , dos a n i m a d o s d e b a t e s q u e p r e s i d i r a m à e l a b o r a ç ã o d o
projecto.
M u i t o d o q u e irá ser dito nas p r ó x i m a s páginas é, pois, f r u t o de investiga-
ções recentes o u m e s m o ainda e m curso, c u j o s resultados t ê m sido divulgados
e m teses de m e s t r a d o e de d o u t o r a m e n t o d e circulação restrita e e m r e u n i õ e s
científicas de acesso difícil, p o d e n d o e n c o n t r a r - s e , ainda, inéditos. N ã o i g n o -
rámos, todavia, o c o n t r i b u t o d e F o r t u n a t o d e Almeida, M i g u e l de Oliveira e
todos os o u t r o s autores «clássicos» da história eclesiástica p o r t u g u e s a . N o s d o -
m í n i o s e m q u e eles nos legaram u m a sólida base d e factos estabelecidos e
fontes levantadas, tal c o m o naqueles e m q u e o trabalho d e pesquisa r e c e n t e
foi l e v a d o mais longe, foi possível p r o c e d e r a sínteses. A l g u m a s abordagens,
p o r é m , revelaram-se de tal m o d o inéditas d e n t r o da historiografia religiosa
p o r t u g u e s a q u e apenas p o d í a m o s apresentar estudos d e caso e esboçar pistas
para investigações futuras. D e q u a l q u e r f o r m a , n ã o p r o c u r á m o s ser exaustivos
na transmissão de i n f o r m a ç ã o , mas sim p r o p o r u m a leitura i n o v a d o r a , c o e -
r e n t e e f u n d a m e n t a d a d o f e n ó m e n o religioso e m território p o r t u g u ê s das o r i -
gens da cristianização ao século xv.

A p r i m e i r a parte deste v o l u m e , intitulada «A p r o c u r a d o D e u s único»,


parte da situação d e pluralidade d e crenças e cultos vigente n o I m p é r i o R o -
t> Ara com inscrições gregas m a n o , para p e r c o r r e r o p e r í o d o medieval, d e coexistência e n t r e as três g r a n -
(mármore, século 1 d. C . ) .
des religiões monoteístas mas d u r a n t e o qual o cristianismo c o m b a t e d u r a -
Lisboa, Museu Nacional de
Arqueologia. m e n t e o paganismo, as «superstições» e as heresias, até chegar ao limiar de
u m a época m o d e r n a e m q u e os seguidores de outras fés são expulsos e a I n -
F O T O : D I V I S Ã O DE
DOCUMENTAÇÃO quisição é lançada n o encalço de todos os suspeitos d e desvios à o r t o d o x i a —
FOTOGRÁFICA/INSTITUTO marranos, mouriscos, bruxas, luteranos.
P O R T U G U Ê S DE M U S E U S / J O S É
PESSOA.
D e facto, os cerca de q u i n z e séculos q u e c o b r e este p r i m e i r o v o l u m e c o -
n h e c e r a m a interacção d e diversas crenças n o O c i d e n t e peninsular, e m b o r a o
cristianismo se fosse i m p o n d o , progressivamente, c o m o religião d o m i n a n t e ,
|> Sarcófago da vindima
(mármore, século 111 d. C . ) . até o c u p a r t o d o o espaço religioso. Às n u m e r o s a s divindades indígenas, os
Lisboa, Museu Nacional de r o m a n o s chegados à Fíispânia v i e r a m adicionar, n ã o só o seu p r ó p r i o p a n t e ã o
Arqueologia. e o c u l t o imperial mas t a m b é m os deuses orientais, q u e os hispanos talvez j á
F O T O : D I V I S Ã O DE c o n h e c e s s e m através d e c o n t a c t o s anteriores c o m fenícios, gregos e cartagi-
DOCUMENTAÇÃO nenses. Foi sobre este f u n d o de pluralismo e sincretismo religioso q u e , pelos
FOTOGRÁFICA/INSTITUTO
finais d o século 11, veio instalar-se a fé cristã.
P O R T U G U Ê S DE M U S E U S / J O S É
PESSOA. Trazida p o r m e r c a d o r e s , m a r i n h e i r o s e soldados, ela p e n e t r o u pelos p o r -

2
INTRODUÇÃO

tos e pelas estradas, i m p l a n t a n d o - s e s o b r e t u d o nos m e i o s urbanos. O s c a m -


pos, esses ficaram d u r a n t e m u i t o mais t e m p o entregues às antigas formas de
culto, praticadas e m plena natureza, j u n t o dos rios e das fontes o u e m eleva-
ções d o t e r r e n o , formas essas denunciadas p o r obras doutrinais c o m o o De
Correctione Rusticorum de São M a r t i n h o de D u m e e p o r sucessivos concílios
das épocas t a r d o - r o m a n a e visigótica, mas q u e seriam d e n o v o perseguidas,
séculos mais tarde, j u n t a m e n t e c o m as artes mágicas, a adivinhação e o u t r o s
«erros» persistentes.
N ã o f o r a m , p o r é m , apenas o paganismo e as «superstições» q u e o cristia-
n i s m o teve de c o m b a t e r p o u c o após a sua i n t r o d u ç ã o na Península. As g r a n -
des questões q u e agitaram a Igreja a partir d o século iv t a m b é m tiveram os
seus reflexos n o O c i d e n t e peninsular, o n d e P o t â m i o , bispo de Lisboa, se
c o n v e r t e u ao arianismo após ter perfilhado, d u r a n t e algum t e m p o , o c r e d o de
Niceia, ao qual regressou n o v a m e n t e n o final da sua vida. Mas foi c o m a
chegada dos p o v o s g e r m â n i c o s à Hispânia n o século v q u e o arianismo se
t o r n o u a religião d o g r u p o d e t e n t o r d o p o d e r político, l e v a n d o à coexistência
de bispos p e r t e n c e n t e s aos dois credos e m muitas dioceses. Só a conversão de
R e c a r e d o ao catolicismo veio estabelecer a u n i d a d e religiosa e n t r e os H i s p a -
n o - r o m a n o s e os Visigodos.
E n t r e t a n t o , outra heresia tinha-se declarado na Lusitânia: o priscilianismo,
divulgado pelo bispo de Avila, q u e consistia n u m ascetismo rigoroso e e m d o u -
trinas apodadas de maniqueístas e gnósticas. Após a condenação e execução de
Presciliano e m Trèves, e m 387, as práticas priscilianistas de vida religiosa i n -
tensa para os leigos n o â m b i t o de oratórios privados divulgaram-se t a m b é m
c o m g r a n d e intensidade na Galécia. A sua influência d e v e ter sido d u r a d o u r a ,
pois o concílio de Braga ainda as c o n d e n a e m 561.
O c o m b a t e à h e t e r o d o x i a n o p e r í o d o suevo-visigótico atingiu ainda o
m a n i q u e í s m o , o o r i g e n i s m o e o pelagianismo, de q u e n ã o são conhecidas,
c o n t u d o , manifestações n o território q u e f u t u r a m e n t e se tornará p o r t u g u ê s .
O m e s m o a c o n t e c e c o m as correntes h e t e r o d o x a s q u e se d e s e n v o l v e r a m após
o século VIII sob o d o m í n i o m u ç u l m a n o , p r o c u r a n d o a p r o x i m a ç õ e s ao isla-
m i s m o e ao j u d a í s m o .
Se o dualismo c o n t i n u a a estar p o r trás de u m dos grandes m o v i m e n t o s
heréticos q u e v o l t a m a assolar a Península a partir d o século XII — o cataris-
m o — , os restantes baseiam-se m e n o s e m questões doutrinais d o q u e e m
p r o b l e m a s de disciplina. A recusa da submissão à liturgia r o m a n a j á tinha sus-
citado a n t e r i o r m e n t e a desconfiança e a violência e m relação aos moçárabes,
n o m e a d a m e n t e os de C o i m b r a ; a pregação sem licença é, agora, m o t i v o para
a c o n d e n a ç ã o dos valdenses de Leão e Castela. Sobre os hereges portugueses
dessa época, c o n t u d o , quase nada sabemos, a n ã o ser q u e estava previsto o
seu j u l g a m e n t o pelos tribunais episcopais e o confisco dos seus bens para
a Coroa.

3
INTRODUÇÃO

Só a partir da centúria de T r e z e n t o s se t o r n a m mais nítidos os c o n t o r n o s


d o p e n s a m e n t o h e t e r o d o x o q u e circulava e m Portugal, e m resultado d o i n -
fluxo cultural p r o v o c a d o pela criação da universidade e das controvérsias reli-
giosas sustentadas c o m j u d e u s e m o u r o s . E n c o n t r a m - s e , assim, t a n t o e m obras
doutrinais c o m o e m crónicas e nos próprios p r e â m b u l o s das leis q u e as c o n -
d e n a v a m , reflexos das doutrinas de Averróis, J o a q u i m de Fiore e, mais tarde,
WyclifF e Huss. A repressão da heresia acentua-se, então, c o m a n o m e a ç ã o d e
inquisidores e o r e f o r ç o da legislação punitiva, ao m e s m o t e m p o q u e a luta
contra as «superstições» c o n h e c e t a m b é m u m r e c r u d e s c i m e n t o e se acentua a
segregação de m o u r o s e j u d e u s , a n t e c e d e n d o a sua expulsão.
A presença dos j u d e u s é assinalada na Península desde o p e r í o d o imperial
r o m a n o , e m b o r a os seus primeiros vestígios n o O c i d e n t e d a t e m apenas dos
finais d o século v. S o b o d o m í n i o visigodo, a sua situação era d e tal m o d o
precária q u e eles são suspeitos de t e r e m acolhido de braços abertos os i n v a s o -
res m u ç u l m a n o s , considerados mais tolerantes. A R e c o n q u i s t a veio e n c o n t r á -
-los b e m implantados nos principais centros urbanos, talvez j á agrupados nos
locais o n d e virão a surgir, mais tarde, as judiarias, e m b o r a alguns m o r a s s e m
misturados c o m os cristãos.
Apesar de a legislação civil transpor, desde cedo, as directivas canónicas
q u e i m p u n h a m a segregação dos j u d e u s e p r e t e n d i a m i m p e d i r q u a l q u e r p o -
der deles sobre os cristãos, eles g o z a v a m d e u m a efectiva p r o t e c ç ã o régia e d e
grande a u t o n o m i a , manifestada na liberdade d o culto e n o f o r o p r ó p r i o , e m
troca d o p a g a m e n t o de tributos e da prestação de serviços ao m o n a r c a . O seu
r e l a c i o n a m e n t o c o m a Igreja parece, t a m b é m , ter sido pacífico, se e x c l u i r m o s
alguns episódios gerados p o r pregadores mais exaltados.
A m e s m a atitude tolerante caracterizou, d u r a n t e séculos, a p o p u l a ç ã o e m
geral, e m b o r a a crise de finais de T r e z e n t o s tenha a c e n t u a d o a rivalidade e c o -
n ó m i c a entre os c o m e r c i a n t e s e artesãos j u d e u s e cristãos, suscitando u m cli-
ma de tensão q u e l e v o u os monarcas a legislar n o sentido da separação física
entre as duas c o m u n i d a d e s . O ó d i o crescente ao j u d e u usurário e c o b r a d o r
de impostos, personificação d o mal, c h e g o u a degenerar e m violência aberta,
c o m o n o caso dos assaltos, frustrados o u conseguidos, a diversas judiarias d o
país. E m finais da centúria de Q u a t r o c e n t o s , a chegada de n u m e r o s o s c o n -
versos e j u d e u s castelhanos, f u g i d o s da Inquisição instalada n o seu país, v e i o
exacerbar ainda mais essas tensões, reforçadas pela pressão política dos R e i s
Católicos sobre D . M a n u e l . Isto l e v o u - o a assinar o édito de expulsão d e
1496, a q u e só escapariam os q u e se convertessem ao cristianismo.
N ã o era esta, p o r é m , a primeira tentativa de conversão dos seguidores d o
culto moisaico e m Portugal. D e s d e D . A f o n s o II q u e existia u m a legislação
de apelo à conversão voluntária e individual — c o m p e n s a d a c o m i n ú m e r o s
privilégios e benefícios e c o n ó m i c o s — , sucessivamente c o n f i r m a d a e r e f o r ç a -
da pelos sucessores desse m o n a r c a . Existiam há m u i t o , t a m b é m , u m a tradição
de disputa religiosa e u m a literatura de a p o l o g é t i c a cristã de q u e algumas b i -
bliotecas monásticas g u a r d a m vestígios, e m b o r a sejam p o u c a s as obras d e
autores nacionais, c o m o quase i n e x i s t e n t e foi, t a m b é m , a p r o d u ç ã o literária
anticristã dos j u d e u s portugueses. N ã o parece ter havido, pois, e m resultado
dessas controvérsias, conversões e m massa o u de rabis ilustres, n o nosso país,
c o m o a c o n t e c e u e m Castela e Aragão.
Q u a n t o aos m u ç u l m a n o s , a sua presença na Península, ao q u e se sabe,
n ã o a n t e c e d e u a chegada das tropas de T a r i q u e , e m 711. C o n t u d o , à c o n q u i s -
ta de g r a n d e parte d o território p o r árabes e berberes islamizados seguiu-se a
conversão de n u m e r o s o s h i s p a n o - r o m a n o s e visigodos, atraídos pela rápida
integração na c o m u n i d a d e dos crentes, c o m direitos e prerrogativas iguais aos
dos restantes fiéis, q u e o islamismo assegurava. Assim surgiram e se m u l t i p l i -
caram os muladi-s, q u e c h e g a r a m a o c u p a r lugares de relevo na sociedade
muçulmana.
O s cristãos q u e n ã o quiseram converter-se, o u f o r a m s u b m e t i d o s pela
força, m o r t o s o u escravizados, o u o b t i v e r a m algumas garantias através da n e -
gociação de pactos c o m as novas autoridades. N e s t e caso, m e d i a n t e o p a g a -
m e n t o de diversos tributos previstos na lei alcorânica, p u d e r a m c o n t i n u a r a

4
INTRODUÇÃO

ter os seus chefes, reger-se pelas suas leis e praticar a sua religião. Tratava-se
dos mucahidún, c o n h e c i d o s nas fontes cristãs p o r moçárabes.
E m b o r a a vivência religiosa destes n o território q u e f u t u r a m e n t e virá a
ser p o r t u g u ê s seja mal c o n h e c i d a , sabe-se q u e m a n t i v e r a m a d e v o ç ã o a m á r t i -
res locais, assim c o m o a diversos santos. H á , t a m b é m , notícias ocasionais da
existência de bispos e m algumas dioceses, p o r vezes deslocados e m cidades já
recuperadas pelos cristãos, e d o f u n c i o n a m e n t o de mosteiros c o m as respecti-
vas escolas, c o m o n o caso de L o r v ã o e Vacariça.
Estes cristãos q u e m a n t i v e r a m as tradições litúrgicas e monásticas visigóti-
cas e m território islâmico n ã o tiveram, c o n t u d o , a vida fácil q u a n d o , e m p u r -
rados p o r sucessivas vagas de intolerância religiosa islâmica, f u g i r a m para o
N o r t e , o u se viram incluídos n o território cristão q u a n d o a R e c o n q u i s t a foi
atingindo o C e n t r o e o Sul da Península. O s seus correligionários o l h a v a m
c o m desconfiança as suas práticas cultuais e a sua particular vivência d o c e n o -
bitismo n u m m o m e n t o e m q u e , d e v i d o à r e f o r m a dita gregoriana, t r i u n f a v a m
e m t o d o o O c i d e n t e a liturgia r o m a n a e os costumes b e n e d i t i n o s c l u n i a c e n -
ses. A eles tiveram os moçárabes de submeter-se, sob pena de serem c o n s i d e -
rados heréticos.
Já e n t ã o viviam os m u ç u l m a n o s , e m território cristão, u m a experiência
semelhante à q u e os cristãos h a v i a m vivido e m território islâmico: se resis-
tiam à conquista, e r a m m o r t o s o u reduzidos à escravatura; se n e g o c i a v a m a
rendição, p o d i a m gozar da p r o t e c ç ã o régia e de u m estatuto q u e lhes garantia
a liberdade de culto e a a u t o n o m i a administrativa e judicial, m e d i a n t e o p a -
g a m e n t o de pesados impostos. Assim se constituíram as chamadas c o m u n a s
de m o u r o s forros e m diversas cidades d o Sul d o país, sediadas e m a r r u a m e n -
tos o u bairros fechados e m zonas periféricas, c o m as suas mesquitas, as suas
escolas alcorânicas, os seus banhos, o n d e os m o u r o s praticavam o artesanato e
o c o m é r c i o o u se d e d i c a v a m à policultura de abastecimento u r b a n o .
T a m b é m eles f o r a m postos perante a escolha entre a conversão o u a e x -
pulsão, p o r D . M a n u e l , e m 1496. T o d a v i a , ao invés d o q u e a c o n t e c e u c o m
os j u d e u s , n e m f o r a m baptizados à força n e m os seus filhos lhes f o r a m retira-
dos. O seu fraco peso d e m o g r á f i c o e e c o n ó m i c o tornava-os m e n o s i n d i s p e n -
sáveis à m o n a r q u i a , q u e n ã o c o l o c o u grandes obstáculos à sua saída d o reino.
E assim partiram, d e i x a n d o atrás de si u m a herança linguística, cultural e t é c -
nica a q u e só agora se c o m e ç a a dar o d e v i d o relevo.

A segunda parte deste livro p r o c u r a mostrar c o m o se d e u «A c o n s t r u ç ã o


de u m a Igreja» n u m a óptica institucional, analisando a f o r m a ç ã o , o d e s e n v o l -
v i m e n t o e a mobilização d e recursos das estruturas de e n q u a d r a m e n t o ecle-
siástico e e v i d e n c i a n d o as m o t i v a ç õ e s e estratégias dos respectivos agentes,
q u e r a nível i n t e r n o q u e r n o seu r e l a c i o n a m e n t o c o m instituições de idêntico
relevo, c o m o a m o n a r q u i a .
O p r i m e i r o capítulo d e b r u ç a - s e sobre a organização eclesiástica d o espa-
ço, c o m e ç a n d o pela reestruturação provincial de D i o c l e c i a n o , e m 284-288,
q u e serviu de base a essa organização d u r a n t e t o d o o p e r í o d o t a r d o - r o m a n o .
As mais antigas sés episcopais da Hispânia f o r a m estabelecidas e m centros u r -
banos i m p o r t a n t e s e agrupadas e m províncias, t e n d o - s e estas t o r n a d o , n o sé-
culo iv, o q u a d r o preferencial de discussão e resolução das questões internas
das Igrejas locais. Mas outras c o m u n i d a d e s cristãs iam s e n d o fundadas nos
campos, q u e r p o r bispos q u e para lá enviavam clérigos c o m capacidade d e
baptizar, q u e r p o r leigos q u e p r e t e n d i a m atrair os p o d e r e s benéficos da d i v i n -
dade aos seus d o m í n i o s , ao m e s m o t e m p o q u e basílicas e oratórios e r a m
construídos para albergar relíquias de santos.
O Parochial Suevorum, de 572-582, m o s t r a - n o s q u e , na província da G a l é -
cia, existia j á nessa época u m a constelação de «paróquias» c o m distintas ori-
gens, cujos territórios n ã o t i n h a m ainda c o n t o r n o s precisos, e m b o r a t e n h a si-
d o possível estabelecer a c o r r e s p o n d ê n c i a entre algumas delas e o u t r o s tantos
arcediagados medievais, lançando u m a p o n t e sobre o p e r í o d o de o c u p a ç ã o
m u ç u l m a n a , q u e assistiu a u m a progressiva desagregação da administração
eclesiástica diocesana.

5
INTRODUÇÃO

D u r a n t e a R e c o n q u i s t a , o p r o g r a m a r e p o v o a d o r da m o n a r q u i a asturiano-
-leonesa e, p o s t e r i o r m e n t e , o da portuguesa levou à restauração de antigas
dioceses suevo-visigóticas, se b e m q u e e m c o n t e x t o n o v o , b e m c o m o à e r e c -
ção de outras inéditas. As fronteiras entre essas circunscrições f o r a m - s e clarifi-
c a n d o através de processos judiciais p o r vezes m u i t o longos, q u e n ã o obsta-
vam, p o r é m , à realização de arbitragens e ao estabelecimento de concórdias.
Todavia, o espaço eclesiástico e o espaço político não se tornaram coincidentes:
até finais do século xiv, h o u v e territórios portugueses q u e estiveram integrados
e m bispados galegos ou castelhanos, assim c o m o algumas dioceses lusitanas
f o r a m sufragâneas d e Santiago de C o m p o s t e l a ; inversamente, Braga estendeu
os seus direitos metropolitas a Astorga, T u i , O r e n s e e M o n d o n h e d o , além d o
P o r t o , Viseu e C o i m b r a .
T a m b é m os limites das paróquias f o r a m sendo demarcados c o m m i n ú c i a
entre o século x n e o início d o século xiv, c o m o o b j e c t i v o de assegurar u m
m e l h o r c o n t r o l e dos fiéis e a p e r c e p ç ã o dos direitos eclesiásticos. É , pois, p o s -
sível p r o c e d e r à e n u m e r a ç ã o das freguesias medievais portuguesas, diocese
após diocese, c o m u m elevado grau de precisão, e d e t e r m i n a r a q u e m elas
p e r t e n c i a m . O contraste mostra-se vivo e n t r e u m N o r t e e C e n t r o retalhados
e m pequeníssimas paróquias pertencentes, s o b r e t u d o , a senhores laicos que, a
dada altura, as e n t r e g a r a m aos mosteiros de seu patrocínio, e u m Sul de vastas
freguesias tuteladas pelo rei o u pelas ordens militares.
Q u a n t o à localização n o espaço dos mosteiros, ela revela u m a oposição
t a m b é m marcada e n t r e o Sul, d o m í n i o dos freires cavaleiros, e o C e n t r o , l o -
cal de implantação preferencial dos Cistercienses e dos C ó n e g o s R e g r a n t e s d e
Santo A g o s t i n h o , q u e se espalharam i g u a l m e n t e pelo N o r t e , terra de eleição

Fachada da igreja românica


de R i o Mau.
FOTO: N U N O CALVET/ARQUIVO
C Í R C U L O DE LEITORES.

6
INTRODUÇÃO

dos Beneditinos. Já os M e n d i c a n t e s m o s t r a r a m u m a preferência pelos centros


u r b a n o s meridionais, t e n d o deparado c o m grandes dificuldades para entrar
nas sedes de bispado n o r t e n h a s .
Mas q u e m e r a m os h o m e n s e m u l h e r e s q u e se d e d i c a v a m à c o n t e m p l a -
ção, à oração e ao serviço d o p o v o de Deus? O estudo d o e l e m e n t o h u m a n o
das instituições eclesiásticas é relativamente recente e revela ainda muitas z o -
nas de sombra. E m b o r a existissem eremitas e ascetas n o O c i d e n t e da Hispânia
desde os t e m p o s mais recuados, p o u c o se sabe sobre a sua vivência indivi-
dual. E apenas q u a n d o eles c o m e ç a m a ser s u b m e t i d o s a regras e a organizar-
-se e m congregações, n o século xiv, q u e s u r g e m registos, ainda q u e parcos,
da sua presença, n o m e a d a m e n t e n o A l e n t e j o .
Já sobre os partidários da vida cenobítica, as notícias são mais abundantes.
D e s d e o século vi, são atestados mosteiros e m diversos locais da Península,
servindo de focos de cristianização dos c a m p o s através da acção dos seus
m o n g e s - b i s p o s e monges-sacerdotes. H á , t a m b é m , c e n ó b i o s dúplices e o u t r o s
r e u n i n d o grupos familiares o u c o m u n i d a d e s camponesas n o seu c o n j u n t o ,
c o m o f o r m a de p r o t e c ç ã o m ú t u a e de o b t e n ç ã o de benefícios espirituais e Cálice e m prata dourada
e c o n ó m i c o s . As origens sociais destes m o n g e s p a r e c e m , pois, ser tão variadas (2.A metade do século XII).
q u a n t o as regras a q u e o b e d e c i a m ; apenas se lhes exigia q u e n ã o fossem ser- Lisboa, M u s e u Nacional
vos n e m libertos, e q u e ingressassem na vida religiosa de livre v o n t a d e . de Arte Antiga.
A multiplicidade das regras e a prevalência dos mosteiros de tipo familiar F O T O : D I V I S Ã O DE
DOCUMENTAÇÃO
perdura, n o N o r t e d o país, m e s m o após a invasão dos m u ç u l m a n o s e a p o s t e - FOTOGRÁFICA/INSTITUTO
rior retirada destes, nos séculos v m e ix. T o d a v i a , anseios de r e f o r m a a n u n - P O R T U G U Ê S DE M U S E U S / J O S É
ciam-se c o m São R o s e n d o e e x p r i m e m - s e a b e r t a m e n t e n o C o n c í l i o de PESSOA.

C o y a n z a , e m 1055, l e v a n d o à conversão de antigos c e n ó b i o s e à criação de


o u t r o s n o v o s de observância beneditina, s e g u i n d o q u e r os costumes clunia-
censes q u e r os cistercienses.
E m b o r a tal t e n h a sido feito c o m apoio régio e sob a influência da n o b r e -
za palatina e das linhagens d e infanções e m ascenção, estes mosteiros revelam
u m r e c r u t a m e n t o mais alargado d o q u e os d o p e r í o d o anterior, n ã o se l i m i -
t a n d o a m e m b r o s e protegidos das famílias patronais mas i n c l u i n d o professos
de origens modestas e até estrangeiros. O s abades, esses sim, e r a m recrutados
nas mais altas esferas sociais, d e s e m p e n h a n d o papéis políticos e religiosos de
relevo, c o m o testamenteiros, capelães e esmoleres dos monarcas, o u ainda
juizes e auditores dos papas. O m e s m o acontecia c o m os priores dos m o s t e i -
ros de c ó n e g o s regulares q u e se multiplicaram na m e s m a época, escolhidos
para chefiar dioceses o u actuar c o m o confessores e conselheiros régios.
N o s séculos x r v e xv, superadas as dificuldades d e implantação iniciais,
são os frades m e n d i c a n t e s q u e irão o c u p a r as f u n ç õ e s de directores espirituais
dos monarcas e príncipes, e d e professores da universidade, d e v i d o à p r o t e c -
ção régia e papal de q u e g o z a v a m e à sua f o r m a ç ã o de nível superior. Já os
m e m b r o s das ordens militares, d e v i d o à sua v o c a ç ã o guerreira, r e c r u t a v a m - s e
e n t r e os filhos segundos da nobreza e m e s m o da casa real, e m b o r a t a m b é m
p u d e s s e m provir de famílias mais obscuras, c o n t e n t a n d o - s e neste caso c o m
tarefas auxiliares o u c o m u m a vida c o n v e n t u a l mais contemplativa.
O s mosteiros femininos de todas estas ordens serviram igualmente de lugar
de abrigo para m u l h e r e s de famílias nobres, viúvas o u solteiras sem esperança
de casar, q u e m e s m o n o claustro c o n t i n u a r a m a dispor de b e n s e servidoras
dedicadas, e a p r o t e g e r os seus familiares e d e p e n d e n t e s . Algumas viúvas e fi-
lhas de cidadãos abastados c o n h e c e r a m u m destino semelhante, mas sobre as
professas de origens mais h u m i l d e s nada se sabe.
Q u a n t o aos clérigos seculares, e m b o r a proviessem dos meios sociais mais
diversos, as suas origens d e t e r m i n a v a m , e m larga m e d i d a , os cargos a q u e p o -
d i a m aspirar: a pertença a u m a família n o b r e e a p r o x i m i d a d e d o m o n a r c a o u
d o s u m o p o n t í f i c e facilitavam-lhes a o b t e n ç ã o d e u m a prelazia, u m a d i g n i d a -
de capitular o u u m a conezia; o parentesco c o m o u t r o s clérigos b e m c o l o c a -
dos o u o alto nível dos estudos realizados, a b r i n d o c a m i n h o para o serviço
régio e papal, p o d i a m surtir o m e s m o efeito. Já a p r o v e n i ê n c i a das elites u r -
banas o u da criação de u m prelado assegurava, apenas, u m a p o r ç ã o o u ração
n u m cabido de catedral o u colegiada. O s laços de d e p e n d ê n c i a e m relação a

7
INTRODUÇÃO

u m a família patronal garantiam ainda u m b e n e f í c i o c u r a d o n u m a igreja p a r o -


quial o u o serviço d e u m a capela funerária r i c a m e n t e dotada. Fora deste siste-
m a de solidariedades e alianças, sobravam apenas alguns lugares d e auxiliares e
substitutos para aqueles q u e n ã o t i n h a m a p r o t e c ç ã o de n i n g u é m o u se e n -
c o n t r a v a m n o início da carreira.
As mesmas diferenças n o t a v a m - s e ao nível dos recursos e c o n ó m i c o s d e
q u e cada m e m b r o d o clero podia dispor. D e s d e os primeiros t e m p o s d o cris-
tianismo, estipulara-se q u e os ministros d o culto d e v i a m viver das ofertas fei-
tas e s p o n t a n e a m e n t e pelos fiéis. T o d a v i a , o carácter v o l u n t á r i o dessas dádivas
foi-se p e r d e n d o , e os crentes viram-se c o m p e l i d o s ao p a g a m e n t o de dízimas,
primícias, votos de Santiago e o u t r o s tributos q u e n e m s e m p r e r e v e r t i a m para
os verdadeiros celebrantes d o culto, pois sobre esses r e n d i m e n t o s pesavam a
fiscalidade episcopal e pontifícia e os direitos dos p a t r o n o s e titulares da cura.
O s p r o v e n t o s d o clero não residiam, c o n t u d o , apenas nos direitos de c a -
rácter religioso q u e este fazia pesar sobre o p o v o de Deus. A o l o n g o dos
tempos, sés, colegiadas e c o n v e n t o s h a v i a m a c u m u l a d o grandes quantidades
de bens móveis e, s o b r e t u d o , imobiliários, p r o v e n i e n t e s de doações, legados,
compras e escambos, q u e e x p l o r a v a m d i r e c t a m e n t e o u p o r i n t e r m é d i o de f o -
reiros a q u e m c o n c e d i a m contratos de duração variável e que, e m troca, lhes
pagavam rendas e m géneros o u e m d i n h e i r o . Algumas dessas terras h a v i a m -
-lhes, m e s m o , sido concedidas pelos reis c o m a respectiva jurisdição, p o d e n -
do nelas exercer a justiça, tutelar as actividades económicas, administrar o t e r -
ritório d o p o n t o d e vista civil e militar e cobrar as multas, taxas e serviços
correspondentes.
E r a m os bispos, priores e abades o u abadessas q u e mais lucravam c o m t o -
dos estes ingressos, pois c o u b e r a - l h e s a parte de leão — dois terços — nas
partilhas efectuadas entre eles e os cabidos o u c o n v e n t o s a q u e presidiam; c ó -
negos, m o n g e s e freiras d e v i a m contentar-se, apenas, c o m o restante terço e
alguns recursos pessoais, se os tivessem. C o n t u d o , a crise demográfica e e c o -
n ó m i c a que, a partir de m e a d o s do século xiv, veio causar u m a t r e m e n d a
erosão nos p r o v e n t o s extraídos da terra a t o d o s afectou g r a v e m e n t e . A d i m i -
n u i ç ã o dos recursos levou m u i t o s clérigos a a c u m u l a r benefícios, t o r n a n d o - s e
absentistas, e n q u a n t o outros passaram a sobreviver dificilmente, substituindo
esses nas suas f u n ç õ e s p o r m e t a d e o u m e n o s das respectivas prebendas.
Se o p o d e r e c o n ó m i c o da Igreja portuguesa foi f o r t e m e n t e abalado n o s
finais da Idade M é d i a , a sua influência política não sofreu u m e m b a t e m e n o r ,
devido às crescentes i n t e r v e n ç õ e s régias na esfera eclesiástica. N a verdade, as
relações entre o p o d e r t e m p o r a l e o p o d e r espiritual n e m sempre f o r a m pací-
ficas. U m a primeira a p r o x i m a ç ã o entre a m b o s esboçara-se n o B a i x o I m p é r i o
R o m a n o ; as realezas sueva e, s o b r e t u d o , visigótica estreitaram as relações e n -
tre os reis e os bispos, o q u e g e r o u alguns m o m e n t o s de tensão mas outros d e
colaboração e e n t e n d i m e n t o e n t r e eles. Esse b o m r e l a c i o n a m e n t o deve ter-se
p e r d i d o durante a o c u p a ç ã o m u ç u l m a n a , mas foi r e c u p e r a d o pela m o n a r q u i a
asturiano-leonesa e pela e m e r g e n t e realeza portuguesa, q u e se apoiaram nas
sés e nas ordens religiosas para p r o m o v e r o p o v o a m e n t o e organização dos
territórios t o m a d o s aos m o u r o s , ou m e s m o para a conquista desses territórios,
n o caso das ordens militares.
M u i t o r a p i d a m e n t e , p o r é m , alguns prelados c o m e ç a r a m a acusar sucessi-
vos monarcas da primeira dinastia de praticarem atentados contra as liberda-
des e privilégios eclesiásticos e de tolerarem q u e os n o b r e s c o m e t e s s e m a b u -
sos e violências e m relação à Igreja e aos seus bens. O u t r o s , e m contrapartida,
p r ó x i m o s dos soberanos, a p o i a v a m - n o s , q u a n d o n ã o inspiravam m e s m o c e r -
tas medidas e atitudes condenadas. Desta f o r m a , apesar de censurados e, n o
caso de D . Afonso III, até e x c o m u n g a d o s , os reis portugueses persistiram na
sua política de centralização à custa dos p o d e r e s e riquezas da nobreza e, s o -
b r e t u d o , d o clero. C e r t o s q u e u m a parte deste, cortesã e envolvida na c o n s -
trução d o Estado m o d e r n o , lhes estava s e m p r e adquirida e, q u a n t o aos res-
tantes, sabendo j o g a r c o m as divisões existentes n o p r ó p r i o seio d o c o r p o
eclesiástico, exacerbadas na passagem de T r e z e n t o s para Q u a t r o c e n t o s d e v i d o
ao Cisma d o O c i d e n t e .

8
INTRODUÇÃO

N a terceira e ú l t i m a p a r t e deste v o l u m e v a m o s e n c o n t r a r os fiéis «Vi-


v e n d o a palavra de Deus». O s clérigos, e l a b o r a n d o e t r a n s m i t i n d o a d o u t r i -
na e a cultura cristãs. O s leigos, r e c e b e n d o e r e e l a b o r a n d o esses e n s i n a m e n -
tos à luz das suas tradições culturais. U n s e o u t r o s , p r o c u r a n d o dar resposta
aos seus anseios espirituais através de d e v o ç õ e s , ritos e práticas e m c o n s t a n t e
evolução.
Sobre a religiosidade dos clérigos, as fontes a b u n d a m , já q u e f o r a m eles
q u e preservaram a escrita nesses t e m p o s d e p r e d o m í n i o da oralidade. O terri-
t ó r i o p o r t u g u ê s c o n h e c e u formas de vida religiosa originais, c o m o o m o n a -
q u i s m o f r u t u o s i a n o , e liturgias específicas, c o m o a m o ç á r a b e , particularidades
essas q u e f o r a m erradicadas pela unificação monástica efectuada ao abrigo da
regra b e n e d i t i n a n o s e g u i m e n t o d o C o n c í l i o d e C o y a n z a e pela i n t r o d u ç ã o
da liturgia r o m a n a . T o d a v i a , o rito bracarense, sem contrariar esta última, irá
conservar ao l o n g o d e toda a Idade M é d i a e até aos nossos dias u m a relativa
originalidade.
A partir d o século xi, as f u n d a ç õ e s monásticas p o r t u g u e s a s a d o p t a m r e -
gras o u c o s t u m e s v i n d o s de a l é m - P i r i n é u s , c o r r e s p o n d e n d o a i n q u i e t a ç õ e s
espirituais e vivências religiosas diferentes. C l u n i a c e n s e s e cistercienses p r o -
c u r a m , tal c o m o os eremitas, o a f a s t a m e n t o d o m u n d o , e m b o r a os p r i m e i -
ros p r a t i q u e m n o e s p l e n d o r da liturgia e os s e g u n d o s n o trabalho intelectual
o u m a n u a l o serviço de D e u s a q u e os terceiros se d e v o t a m na ascese e na
m e d i t a ç ã o . Já os C ó n e g o s R e g r a n t e s d e S a n t o A g o s t i n h o e os M e n d i c a n t e s
v a l o r i z a m a p e r m a n ê n c i a n o século, e x e r c e n d o o seu m i n i s t é r i o j u n t o dos
crentes e d i s t i n g u i n d o - s e d o clero d i o c e s a n o pelos v o t o s evangélicos de cas-
tidade, o b e d i ê n c i a e p o b r e z a q u e os o b r i g a v a m a u m a vida mais frugal e r e -
catada.
N ã o admira, pois, q u e e n c o n t r e m o s irmãos m e n o r e s e pregadores, tal c o -
m o agostinhos, dedicados à instrução religiosa dos fiéis através da pregação,
e m b o r a esta e a catequese c o m p e t i s s e m , originariamente, ao clero secular.
T o d o s eles transmitiam as práticas rituais, a m o r a l e a d o u t r i n a elaboradas nos
claustros e proclamadas nos concílios e nos sínodos, cuja correcta assimilação
pelos leigos as visitas pastorais efectuadas pelos bispos o u pelos seus vigários
p r o c u r a v a m , depois, fiscalizar.
Mas o papel de educadores dos clérigos seculares e regulares não se esgota-
va na instrução dos crentes. Praticamente t o d o o sistema de ensino, e m P o r t u -
gal, estava nas mãos da Igreja, desde as humildes escolas paroquiais o n d e se e n -
sinavam os r u d i m e n t o s da leitura, da escrita, das contas e da Sagrada Escritura,
passando pelas escolas conventuais e episcopais o n d e se f o r m a v a m os futuros
m o n g e s e sacerdotes, até à universidade o n d e , mais d o q u e teologia, se estuda-
v a m leis e cânones, q u e abriam c a m i n h o a frutuosas carreiras na burocracia r é -
gia e eclesiástica. Professores, bibliotecários, copistas, notários, os clérigos m o -
nopolizavam as profissões ligadas à escrita e ao trabalho intelectual.
Sobre a religiosidade dos leigos, são p o u c o s e recentes os nossos c o n h e c i -
m e n t o s . D a í q u e , e m vez de u m a síntese, se apresente a análise a p r o f u n d a d a
de u m c e r t o n ú m e r o de casos, individuais o u colectivos, a partir da qual se
p r o c u r a avaliar e m q u e m e d i d a eles são representativos da vivência de g r u p o s
sociais mais vastos. D e p a r a m o - n o s , assim, c o m condessas e infanções q u e e n -
c o n t r a m , na f u n d a ç ã o de c e n ó b i o s de diferentes obediências, u m a f o r m a de
expressão da sua religiosidade mas i g u a l m e n t e de manifestação d o seu p o d e r e
de conservação de parte d o p a t r i m ó n i o familiar na órbita da l i n h a g e m . M o -
çárabes q u e c e r r a m fileiras e m t o r n o da sua Igreja e da respectiva liturgia para
preservarem a sua especificidade cultural contra a u n i f o r m i z a ç ã o de q u e são
vítimas e q u e acabará p o r triunfar. Cavaleiros q u e c o n s t r o e m u m a i m a g e m
d o chefe g u e r r e i r o cristão dissonante da propagada pelos clérigos, mas c o e -
r e n t e c o m os seus próprios valores. Infantes q u e p r o t e g e m n ã o só mosteiros
de antigas e tradicionais observâncias mas t a m b é m os novíssimos e mais radi-
cais m e n d i c a n t e s .
E ainda ricas cidadãs, n o b r e s damas e rainhas q u e se d e s p o j a m dos seus
bens para v i v e r e m c o m e c o m o as Clarissas. M e m b r o s das elites urbanas q u e
p r e t e n d e m m a n t e r viva a sua m e m ó r i a através dos t e m p o s , criando estabele-

9
INTRODUÇÃO

c i m e n t o s de assistência, e n o b r e s que, na prossecução d o m e s m o objectivo,


f u n d a m capelas de m o r g a d i o . Fidalgos, princesas e c o n d e s q u e a s s u m e m e x -
periências religiosas «radicais», eremíticas o u de clausura, e m r u p t u r a c o m os
seus m e i o s de o r i g e m .

C o n s t r u i r u m a obra colectiva é u m trabalho fascinante, pelo q u e implica


de reflexão e debates teóricos, d e divergências d e o p i n i ã o e d e c o m p r o m i s s o s
assumidos na s e q u ê n c i a de l o n g o s e p r o f í c u o s diálogos, mas t a m b é m d e o p -
ções feitas q u a n d o o a c o r d o n ã o é a t i n g i d o e d e decisões práticas t o m a d a s
p e r a n t e a u r g ê n c i a d o s prazos e a ditadura dos a c o n t e c i m e n t o s da vida q u o -
tidiana.
Este livro acolhe, pois, u m c o n j u n t o diversificado de perspectivas, c o r r e s -
p o n d e n d o à visão q u e cada u m dos autores tinha d o t e m a q u e lhe foi atribuí-
do, e q u e p ô d e e x p r i m i r l i v r e m e n t e . D e s d e l o g o nas problemáticas adoptadas,
nas formas de a b o r d a g e m escolhidas e na definição das sequências internas a
cada capítulo. A nós, c o m o c o o r d e n a d o r a s d o v o l u m e , c o u b e - n o s a escolha
dos colaboradores, o d e s e n h o d o plano geral da obra e a articulação final e n -
tre as suas diferentes partes, e v i t a n d o sobreposições, clarificando zonas d e
s o m b r a e p r e e n c h e n d o as lacunas mais gritantes.
Pelo m o d o c o m o , desde o p r i m e i r o instante, c o n n o s c o colaboraram c o m
os seus textos, as suas sugestões, os seus e n c o r a j a m e n t o s , e aceitaram as p r o -
postas de a p r o f u n d a m e n t o o u d e alteração q u e f o r m u l á m o s , q u e r e m o s deixar
aqui registado o nosso a g r a d e c i m e n t o aos autores, a q u e m , para a l é m d o res-
p e i t o e admiração científicos q u e j á inicialmente sentíamos, nos u n e agora
u m a sincera amizade.
Crucifixo gótico em cristal de Aos colegas d o C E H R , e m particular ao D r . P a u l o Fontes, o nosso m u i -
rocha, prata e cobre
(séculos xiv-xv). Lisboa, t o o b r i g a d o pelo seu a p o i o s e m p r e disponibilizado. A o D r . J a c i n t o G u e r r e i -
Palácio Nacional da Ajuda. ro, q u e secretariou a c o o r d e n a ç ã o e nos s e c u n d o u i n c a n s a v e l m e n t e na revisão
FOTO: JOSÉ MANUEL OLIVEIRA/
de textos e imagens, d e t e c t a n d o trocas, a p o n t a n d o gralhas, r e v e l a n d o i n c o e -
/ A R Q U I V O C Í R C U L O DE LEITORES. rências, o nosso b e m haja.
T a m b é m à D r a . G u i l h e r m i n a G o m e s e ao Sr. Leonel de Oliveira deseja-
m o s expressar o nosso r e c o n h e c i m e n t o pela c o m p r e e n s ã o e paciência c o m
q u e a c o l h e r a m os nossos atrasos, e pela c o m p e t ê n c i a c o m q u e c o n d u z i r a m a
p r o d u ç ã o material desta obra. F i n a l m e n t e , ao C í r c u l o de Leitores, o nosso
m u i t o o b r i g a d o pela confiança e m nós depositada.

io
A PROCURA
DO DEUS ÚNICO
Convivências religiosas:
um desafio multissecular

11
A dinâmica da cristianização
e o debate ortodoxia/heterodoxia

O SINCRETISMO RELIGIOSO HISPÂNICO


E A PENETRAÇÃO DO CRISTIANISMO*
O CRISTIANISMO, q u a n d o p e n e t r o u na Península Ibérica, através dos ca-
nais d o I m p é r i o R o m a n o , foi e n c o n t r a r u m «fundo religioso» multissecular
constituído p o r u m a multiplicidade de deuses e cultos.
E m b o r a a história das origens religiosas da Galécia e da Lusitânia desde
épocas p r é - r o m a n a s esteja ainda p o r escrever, n ã o nos p o d e m o s c o n t e n t a r
c o m imagens simplistas. Só a inventariação sistemática dos t e s t e m u n h o s r o -
m a n o s o u dos t e s t e m u n h o s legados p o r estes e revelando influências mais a n -
tigas constitui o c a m i n h o para traçar a p a n o r â m i c a d o q u e foi o f u n d o reli-
gioso hispânico antigo. É preciso, pois, c o m e ç a r p o r olhá-lo «de mais perto»
para vislumbrar os seus dinamismos f u n d a m e n t a i s e c o m p r e e n d e r c o m mais
p r o f u n d i d a d e o b i n ó m i o paganismo/cristianismo.
N o s p r i m e i r o s séculos, a inexistência de t e m p l o s e de f i g u r a ç õ e s divinas
terá l e v a d o os R o m a n o s a p e n s a r q u e os p o v o s a u t ó c t o n e s p e n i n s u l a r e s n ã o
p r e s t a v a m c u l t o a d i v i n d a d e s 1 . C o m o r e f e r e J o r g e Alarcão, esta i n e x i s t ê n -
cia d e t e m p l o s terá c o n f u n d i d o n ã o só E s t r a b ã o c o m o os a u t o r e s q u e l h e
serviram de f o n t e 2 . Esta ideia d e s v a n e c e u - s e , t o d a v i a , q u a n d o os R o m a n o s
se d e r a m c o n t a d e q u e n o t e r r i t ó r i o p o r eles o c u p a d o t a m b é m existia u m
p o l i t e í s m o , q u i ç á s e m e l h a n t e ao seu p o r q u e e n r a i z a d o n o m e s m o f u n d o
m i t o l ó g i c o i n d o - e u r o p e u 3 , e q u e a inexistência d e c o n s t r u ç õ e s específicas
para o c u l t o n ã o i m p l i c a v a a ausência d e deuses o u d e u m g r u p o d e sacer-
dotes 4 .
As descobertas mais recentes vão n o sentido de q u e os a u t ó c t o n e s teriam
privilegiado certos lugares campestres para aí se dirigirem às suas divindades,
inclusive através da o f e r e n d a de sacrifícios. O s deuses indígenas veneraram-se,
pois, e m rios e / o u fontes, sem t e m p l o s e sem imagens, c o n s u m a n d o u m a sa-
cralização d o espaço tribal.
E n t r e os deuses d e o r i g e m p r é - r o m a n a o u i n d í g e n a , t e r i a m sido v e n e -
rados na H i s p â n i a os q u e p o d e m o s c h a m a r tutelares: B a n d a , I u n a , C o s u s ,
Arentius, Munis, R e v a e Nabai, acompanhados de epítetos que variavam
d e r e g i ã o para região 5 . N o s ú l t i m o s a n o s t ê m - s e d e s c o b e r t o vários n o m e s
de deuses indígenas e m diversas partes d o país 6 .
N o O c i d e n t e hispânico as divindades indígenas t ê m sido classificadas, g e -
n e r i c a m e n t e , e m divindades aquáticas, salutíferas e infernais, graças às inseri-
ções epigráficas lavradas sob o d o m í n i o r o m a n o e manifestando formas de
culto romanizadas 7 .
N ã o se sabe se c o r r e s p o n d e r i a m a deidades específicas de grupos étnicos
concretos, visto os f e n ó m e n o s migratórios d e n t r o das províncias r o m a n a s se-
r e m frequentes 8 . C o n t u d o , alguns deuses seriam m a n i f e s t a m e n t e específicos
de u m populus, c o m o é o caso de Igaedus, deus dos Igaeditani o u d e Calaicia,
deusa dos Calaici.
O u t r o g r u p o de divindades indígenas seria p r o t e c t o r dos loci, castella o u
vici e a d o r a d o só nesses locais 9 . D e s c o n h e c e - s e , e m geral, o sentido religioso
exacto de muitas das divindades indígenas, s o b r e t u d o q u a n d o n ã o estavam as-
sociadas a u m deus clássico.
A o nível dos primeiros séculos, verifica-se e f e c t i v a m e n t e n o O c i d e n t e
peninsular u m a grande variedade de t e ó n i m o s , s o b r e t u d o a n o r t e de Évora,
e n q u a n t o para o Sul d o actual território de Portugal apenas u m a divindade *Ana Maria C. M. Jorge
3
A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

parece c o n c e n t r a r todas as atenções — E n d o v é l i c o , d o qual nos c h e g a m i n ú -


meros t e s t e m u n h o s d e devoção 1 0 . Este culto teria servido de catalizador, s o -
b r e p o n d o - s e a o u t r o s existentes e ilustrando, desta f o r m a , o sincretismo reli-
gioso da região. São i n ú m e r o s os t e s t e m u n h o s de E n d o v é l i c o p r o c e d e n t e s ,
p o r e x e m p l o , de São M i g u e l da M o t a (Alandroal) 1 1 .
N o s séculos 11 e m ter-se-ão t o r n a d o mais c o m u n s os templos e as aras, se
b e m q u e n e m s e m p r e se c o n h e ç a m as circunstâncias d o achado o u a natureza
d o local o n d e as inscrições se e n c o n t r a r a m . O s únicos santuários p r é - r o m a n o s
identificados a r q u e o l o g i c a m e n t e são os d e M i r ó b r i g a e Garvão, a m b o s n o
Alentejo.
A c o n s t r u ç ã o de templos aparece, pois, c o m o u m dos efeitos mais signifi-
cativos d o processo de romanização. C o m ela alteraram-se substancialmente
os aspectos concretos das práticas religiosas ao nível d o processo d e acultura-
ção entre r o m a n o s e indígenas 1 2 . A m e d i d a q u e a romanização se processou,
verificaram-se diversas manifestações de sincretismo e n t r e as divindades exis-
tentes.
C o m efeito, o I m p é r i o R o m a n o , q u e tinha c o m o «pano de f u n d o » a reli-
giosidade p r o t o - r o m a n a , c o m e ç o u a partir d o século 11 a instalar j u n t o dos
deuses r o m a n o s os n o v o s deuses recebidos d o estrangeiro 1 3 . O desapareci-
m e n t o dos cultos indígenas na Península p o d e r á ter c o m e ç a d o j á na é p o c a
p r é - r o m a n a p o r influência dos contactos c o m os Fenícios, G r e g o s e C a r t a g i -
nenses, q u e teriam i n t r o d u z i d o os seus sucedâneos. A o lado das divindades
indígenas, u m o u t r o g r u p o era f o r m a d o pelas divindades clássicas e orientais,
às quais p o d e m o s depois associar o culto imperial, c o m ampla p e n e t r a ç ã o e
difusão n o m e i o hispânico.
E p r o v á v e l q u e algumas divindades d o p a n t e ã o clássico r o m a n o e alguns
deuses orientais a d o r a d o s e m plena é p o c a r o m a n a t e n h a m sido i n t r o d u z i d o s
na Península na é p o c a das c o l o n i z a ç õ e s fenícia e grega. E graças a esta a d e -
são q u e h o j e p o d e m o s estudar o clima religioso p r é - r o m a n o . C o m e f e i t o ,
os cultos r o m a n o s persistiram e as suas manifestações r e v e l a m - n o s q u e foi à
m a n e i r a r o m a n a q u e as d i v i n d a d e s p r é - r o m a n a s passaram a ser veneradas,
m e d i a n t e u m v e r d a d e i r o f e n ó m e n o de sincretismo. Este manifestava-se,
aliás, na necessidade d e a c o m p a n h a r o n o m e dos deuses d o e q u i v a l e n t e r o -
m a n o , para desta fornia expressar m e l h o r o seu carácter 1 4 . T a m b é m são f r e -
q u e n t e s os casos e m q u e u m d e u s r o m a n o leva u m e p í t e t o i n d í g e n a , p o -
d e n d o ser i n t e r p r e t a d o s c o m o o t e s t e m u n h o de u m a i d e n t i f i c a ç ã o da
d i v i n d a d e antiga a u m deus r o m a n o . P o d e - s e estar ainda p e r a n t e u m a a p r o -
priação local de u m a d i v i n d a d e r o m a n a 1 5 .
A a d o p ç ã o de u m a divindade r o m a n a s e m a b a n d o n o d o culto de u m a d i -
vindade indígena anterior ou a substituição de u m a divindade p r é - r o m a n a
p o r u m a divindade clássica, assimiladas o u identificadas u m a à outra p o r inter-

H
A DINÂMICA DA CRISTIANIZAÇÃO E O DEBATE ORTODOXIA/HETERODOXIA

pretatio, n ã o é, s e g u n d o José Alarcão, fácil de estabelecer 1 6 . N ã o esqueçamos,


p o r e x e m p l o , q u e a língua usada nos e x - v o t o s era o latim e q u e os altares d e -
v i a m o b e d e c e r aos c â n o n e s estéticos r o m a n o s .
Apesar de t u d o , o sincretismo religioso l e v o u a soluções diversificadas c o -
m o , p o r e x e m p l o , a q u e se c o n c r e t i z o u e m Vilar d e Perdizes (Montalegre),
o n d e o culto de L a r o u c o se f u n d i u c o m o de J ú p i t e r , c e r t a m e n t e p o r se tratar
de divindades c o m f u n ç õ e s semelhantes, o u a d o recinto cultural de Panóias
(Vila R e a l , Braga), o n d e se c o n s e r v a m inscrições i n v o c a n d o divindades
orientais, r o m a n a s e indígenas. A q u i , o culto de Serápis u n i u - s e ao de o u t r o s
deuses e deusas. N e s t e santuário p o d e m o s distinguir, c o m efeito, vários níveis
de culto 1 7 . M e r e c e m ainda u m a m e n ç ã o os santuários de Lamas d e M o l e d o ,
de cabeço de Fráguas (Sabugal), de Marecos, de Valpaços e de M o g u e i r a
(Resende) 1 8 .
O processo de r o m a n i z a ç ã o m o s t r a - n o s , de u m a f o r m a geral, q u e R o m a
n ã o p r o c u r o u i m p o r u m a f o r m a de vida religiosa. As formas escolhidas pelo
culto imperial são u m a ilustração desta p r u d ê n c i a , facilitando m e s m o , nalguns
casos, o d e s e n v o l v i m e n t o das religiões locais.
A o nível dos cultos clássicos, a reconstituição dos q u e estavam instalados
nas cidades é indispensável para se c o m p r e e n d e r o f e n ó m e n o da difusão dos
m e s m o s n o m u n d o rural, mas a epigrafia é m a n i f e s t a m e n t e insuficiente para
esta reconstituição. Está p r o v a d o q u e o culto a J ú p i t e r foi, de todos estes c u l -
tos, o mais d i f u n d i d o na Península Ibérica. Este deus era g e r a l m e n t e a d o r a d o
c o m o Iuppiter Optimus Maximus. H á , c o n t u d o , inscrições consagradas a j ú p i -
ter s e m epíteto o u c o m o u t r o s n o m e s : conservator, depulvor, maximus™.
N ã o é d e estranhar q u e os cultos das divindades clássicas, e n t r e outros, t i -
vessem florescido, de m o d o particular, nas cidades 2 0 . D u r a n t e vários séculos,
a Galécia e a Lusitânia estiveram abertas à p e n e t r a ç ã o religiosa, f r u t o d e c o n -
tactos vários e n t r e civilizações, t e n d o p o r intermediários, f u n d a m e n t a l m e n t e ,
os soldados e os mercadores.
N a época imperial floresceram na Hispânia, c o m o e m t o d o o m u n d o r o -
m a n o , as religiões mistéricas q u e se caracterizavam pela p r o c u r a da salvação
individual. Este foi o caso da religião de Mitra, q u e teve d e v o t o s e m toda a
Hispânia e se t o r n o u a principal c o r r e n t e religiosa n o I m p é r i o ao lado d o
cristianismo, p r o p a g a n d o - s e s o b r e t u d o entre os soldados. E m m e a d o s d o sé-

15
A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

Santuário de Panóias (Vila culo 11 t e m o s , em M é r i d a , u m santuário d e d i c a d o a Mitra, v e n e r a n d o - s e este


Real). deus t a m b é m n o u t r o s lugares da Lusitânia e da Galécia.
FOTO: N U N O CALVET/ARQUIVO N o território a c t u a l m e n t e p o r t u g u ê s , Pax Julia parece ter sido a cidade
C Í R C U L O DE LEITORES.
o n d e mais facilmente p e n e t r a r a m os cultos orientais: e n c o n t r a m o s aqui, e n t r e
o u t r o s t e s t e m u n h o s , u m a placa colocada sob a i n v o c a ç ã o de Mitra 2 1 . Infeliz-
t> Igreja e piscina baptismal, m e n t e , n ã o se p o d e precisar c o m segurança o local d e m u i t o s destes achados.
edificadas sobre sepulturas
E m o r d e m de importância, a Mitra seguia-se Cibeles, deusa frigia da Ásia
paleocristãs, século vi (Milreu,
Estói). M e n o r , da qual se c o n h e c e m várias inscrições originárias de diversas regiões
da Lusitânia 2 2 . Estes vestígios p o d e m explicar-se pela a b u n d â n c i a d e escravos
FOTO: N U N O CALVET/ARQUIVO
C Í R C U L O DE LEITORES. orientais na Lusitânia m e r i d i o n a l e pelo c o m é r c i o d e s e n v o l v i d o p o r Lisboa e
Mérida c o m o O r i e n t e .
O c u l t o de Serápis t a m b é m e n t r o u c e d o na Hispânia graças aos c o n t a c t o s
comerciais. Este c u l t o coexistiu, p o r e x e m p l o , c o m o de Mitra e m M é r i d a e
c o m o dos deuses indígenas e m Panóias.
O culto à d i v i n d a d e egípcia Isis t a m b é m era u m a realidade. D e v e ter sido
trazido para a Hispânia na época republicana, p o r m e r c a d o r e s q u e a c o m p a -
n h a v a m os exércitos. Dele se c o n s e r v a m várias inscrições, estátuas e o u t r o s
m o n u m e n t o s . A Hispânia a d o r o u i g u a l m e n t e a g r a n d e deusa africana D e a
Caelestis, cujos d e v o t o s e r a m essencialmente escravos e libertos 2 3 .
A p e n e t r a ç ã o das religiões orientais vindas da Ásia M e n o r , Egipto, Síria,
Pérsia, n ã o é, c o n t u d o , própria d o m u n d o r o m a n o ; o m u n d o g r e g o t a m b é m
já a tinha c o n h e c i d o . Para J a c q u e l i n e C h a m p e a u x , o seu sucesso n o I m p é r i o
R o m a n o esteve relacionado c o m a natureza mística destes cultos face à «secu-
ra» dos deuses imperiais 2 4 .
A m e m ó r i a destes deuses chega-nos através da decoração de muitas das villae
romanas. E o caso de Milreu, de São C u c u f a t e e da Q u i n t a d o M a r i m (Olhão).
O principal problema reside na datação das diferentes fases de tais villae2‫י׳‬.
O c u l t o imperial, nascido ao r e d o r dos altares dedicados ao i m p e r a d o r n o
t e m p o d e A u g u s t o (cerca de 25 a. C.), foi-se progressivamente o r g a n i z a n d o
nas províncias d o I m p é r i o c o m o o indica o t e m p l o de M é r i d a , na Lusitânia, e

16
A DINÂMICA DA C R I S T I A N I Z A Ç Ã O E O DEBATE ORTODOXIA/HETERODOXIA

serviu f u n d a m e n t a l m e n t e para unificar os p o v o s da Hispânia. O s vestígios


deste culto r e v e l a m - n o s u m a autêntica hierarquia entre as cidades. N o caso
da Lusitânia, à volta de M e r i d a , capital provincial, desenvolveram-se cidades
c o m o Lisboa, Faro e Évora 2 6 .
O culto d o i m p e r a d o r c o n h e c e u c o m os A n t o n i n o s u m g r a n d e floresci-
m e n t o na Península Ibérica, dada a vinculação desta dinastia c o m a região.
O f l o r e s c i m e n t o d o culto n ã o ultrapassou, n o e n t a n t o , o reinado de M a r c o
Aurélio, n ã o se e n c o n t r a n d o dedicatórias posteriores a 17o 27 . E m c o n j u g a ç ã o
c o m as inscrições honoríficas ao i m p e r a d o r , a importância e a difusão deste
culto p o d e m t a m b é m ser atestadas através das dedicatórias imperiais feitas a
u m a divindade pelo i m p e r a d o r . Paralelamente, assistiu-se ao d e s e n v o l v i m e n t o
de u m a teologia d o culto imperial, associada à difusão das virtudes imperiais:
aeternitas, pietas e saluse providentia2*.
A o l o n g o d o Baixo I m p é r i o , R o m a , q u e a d o p t o u os deuses clássicos e os
deuses d o O r i e n t e , alargando, deste m o d o , o seu panteão ancestral a novas
divindades, foi-se, progressivamente, c o n v e r t e n d o ao cristianismo. D e p a r a -
m o s aqui c o m u m a r u p t u r a f u n d a m e n t a l relativamente a u m passado de p l u -
ralismo religioso e de escolhas espirituais diversificadas. O cristianismo, c o m o
religião oriental d e iniciados q u e era, seguiu as mesmas vias q u e as demais r e -
ligiões n o c o n t e x t o d o Império 2 9 . E difícil, c o n t u d o , datar a época e m q u e o
cristianismo, depois da conversão de C o n s t a n t i n o , t r i u n f o u e f e c t i v a m e n t e na
Hispânia sobre os deuses de R o m a .
As notícias mais antigas sobre a p e n e t r a ç ã o d o cristianismo na Península
Ibérica são as de I r e n e u d e Lião, d o fim d o século 11, e de T e r t u l i a n o , d o i n í -
cio d o século III. A m b o s falam da existência de cristandades florescentes na
Hispânia.
Ireneu, n o seu tratado Adversas haereses, escrito entre 182 e 188, explica
q u e a fé se transmitiu a t o d o o universo apesar da diversidade de p o v o s e lín-
guas existente. O a u t o r faz alusão às Igrejas da Ibéria («Hae [ecclesiae] quae in
Hiberiis sunt» 30 ), s u b l i n h a n d o o seu vigor n o c o m b a t e contra a heresia. P o -
demos, nesta base, s u p o r q u e existiam já n o final d o século 11 c o m u n i d a d e s
cristãs organizadas e n ã o apenas fiéis dispersos.

17
A PROCURA DO D E U S ÚNICO

T e r t u l i a n o , 2o anos mais tarde, afirma n o seu Adversus Iudaeus31 q u e o


cristianismo se tinha espalhado p o r t o d o o m u n d o , m e s m o nos «Hispaniarum
o m n e s t e r m i n i [...] C h r i s t o u e r o súbdita», p o r oposição ao j u d a í s m o circuns-
crito a Jerusalém. Este t e s t e m u n h o , de carácter geral c o m o o de Ireneu, dá,
apesar de t u d o , mais detalhes ao afirmar q u e os cristãos t i n h a m c h e g a d o a t o -
das as fronteiras da Hispânia. P o d e m o s , assim, s u p o r q u e aí existiam c o m u n i -
dades n ã o só nas cidades p r ó x i m a s d o litoral mas t a m b é m n o interior. As i n -
tensas relações comerciais e culturais e n t r e a Hispânia e o resto d o I m p é r i o
teriam c o n t r i b u í d o , s e m dúvida, para u m a i m p l a n t a ç ã o p r e c o c e d o cristianis-
m o na Lusitânia.
C o m o nas o u t r a s regiões d o I m p é r i o , o c r i s t i a n i s m o teria p e n e t r a d o na
Lusitânia r o m a n a através d e duas vias principais, j á referidas a p r o p ó s i t o
dos c u l t o s a n t e r i o r e s : a dos m e r c a d o r e s e d o s m a r i n h e i r o s , pelos p o r t o s , e a
dos m e r c a d o r e s e d o s soldados, pelas estradas 3 2 . E f e c t i v a m e n t e , as relações
c o m e r c i a i s c o m C a r t a g o e o N o r t e d e Africa, b e m c o m o c o m o O r i e n t e
b i z a n t i n o , t ê m v i n d o a ser c o n f i r m a d a s pelas escavações a r q u e o l ó g i c a s 3 3 .
O e x é r c i t o d e v e ter c o n s t i t u í d o , p o r sua v e z , u m i m p o r t a n t e canal d e p e -
n e t r a ç ã o d o cristianismo. N ã o e s q u e ç a m o s q u e os l e g i o n á r i o s , d e s l o c a d o s
e m t e r r i t ó r i o s afastados dos seus, d e v i a m partilhar c o n v i c ç õ e s religiosas
universalistas e c o m u m f o r t e s e n t i d o d e s o l i d a r i e d a d e , a fim d e se m a n t e -
r e m coesos 3 4 . N e s t e s e n t i d o , t a n t o a religião d e M i t r a , a q u e j á f i z e m o s a l u -
são a n t e r i o r m e n t e , c o m o o c r i s t i a n i s m o t e r i a m t i d o u m a ampla d i v u l g a ç ã o
e n t r e eles 3 '.
O u t r a prova da p e n e t r a ç ã o d o cristianismo foi a perseguição d e D i o c l e -
ciano q u e , desde 303, fez mártires e m diversas cidades da Lusitânia: M é r i d a ,
Lisboa, Ávila e É v o r a 3 6 são e x e m p l o s disso m e s m o , a d q u i r i n d o desta f o r m a
u m a primazia de h o n r a n o seio da c o m u n i d a d e cristã 37 .
A este p r o p ó s i t o , é interessante n o t a r q u e aqueles q u e passaram à história
c o m o mártires v i n h a m d o m e i o u r b a n o : é o caso de Eulália, e m M é r i d a ; dos
três irmãos Júlia, M á x i m a e Veríssimo, e m Lisboa; de V i c e n t e , S a b i n o e Cris-
teta, e m Ávila; e d e M â n c i o , e m Évora. Estamos, p r o v a v e l m e n t e , p e r a n t e
o indício d e u m a cristianização mais enraizada nas cidades d o q u e n o c a m p o ,
o q u e n ã o nos s u r p r e e n d e , visto o m u n d o r o m a n o ser, antes d e mais, u m
m u n d o u r b a n o . F o r a m , e f e c t i v a m e n t e , as cidades q u e atraíram os p r i m e i r o s
esforços d e cristianização e n q u a n t o centros d e vida administrativa e eixos pri-
vilegiados das vias de c o m u n i c a ç ã o .
A ausência d e i n f o r m a ç õ e s concretas sobre as^origens da p e n e t r a ç ã o d o
cristianismo d e u lugar a toda u m a série d e tradições. A primeira t e m o seu
f u n d a m e n t o na Carta aos Romanos, escrita e n t r e o a n o 57 e o 58, na qual
São P a u l o revela aos cristãos de R o m a o o b j e c t i v o d o seu apostolado: partir
para a Hispânia 3 8 . Esta referência vai depois ser utilizada p o r J e r ó n i m o 3 9 , A t a -
násio 4 0 , C i r i l o d e Jerusalém 4 1 e J o ã o C r i s ó s t o m o 4 2 , c o m o o b j e c t i v o d e ligar a
Igreja da Hispânia aos t e m p o s apostólicos. A actividade de São P a u l o «até aos
confins d o O c i d e n t e » , expressão consagrada para designar a Hispânia, e n c o n -
trará eco, p o s t e r i o r m e n t e , e m textos tardios d e carácter lendário, s o b r e t u d o a
partir d o século x 4 3 .
O u t r a tradição relata a vinda de São T i a g o à Hispânia. A crítica histórica
d e m o n s t r a q u e é impossível estabelecer a ligação e n t r e este apóstolo e as
Igrejas ibéricas 4 4 , visto q u e n ã o dispomos d e n e n h u m a referência a n t e r i o r ao
século vil 4 3 . O s relatos sobre a evangelização da Península p o r São T i a g o ,
m a n i f e s t a m e n t e tardios, d e s e n v o l v e r a m - s e s o b r e t u d o d u r a n t e a o c u p a ç ã o m u -
ç u l m a n a da Península Ibérica, a partir d o século v i u . A o l o n g o deste p e r í o d o ,
a tradição sobre a pregação de São T i a g o aparece relacionada c o m a d e s ç o -
berta d o t ú m u l o deste apóstolo e m C o m p o s t e l a 4 6 .
Q u e pensar t a m b é m da pregação dos sete «personagens apostólicos»?
C o n s a g r a d o s e m R o m a pelo apóstolo P e d r o , os sete enviados teriam sido e n -
carregados pelos apóstolos, d u r a n t e a perseguição de N e r o , de f u n d a r novas
Igrejas. A tradição r e p o r t a - n o s q u e eles t e r i a m dirigido as sete sés episcopais
mais antigas da Hispânia: T o r q u a t u s , a de Acci; C t e s i f o n t e , a de Vergi; S e -
c u n d u s , a de Ávila; Indalecius, a de U r c i ; Cecilius, a d e Elvira; Hesiquius, a

18
A D I N Â M I C A DA C R I S T I A N I Z A Ç Ã O E O D E B A T E ORTODOXIA/HETERODOXIA

O Sé de Lisboa, capitéis
d o portal principal,
S . Miguel e o dragão
e os Santos olisiponenses,
segunda metade d o século x n .
FOTO: JORGE RODRIGUES.

de Carcesa, e Eufrasius, a de Iliturgi. A sua pregação apostólica teria origina-


d o c o m u n i d a d e s d e tipo paulino. O d o c u m e n t o mais antigo q u e m e n c i o n a
estes «personagens apostólicos» é a Vita Torquati et comitum, de m e a d o s d o sé-
culo v i u 4 7 . O s calendários m o ç á r a b e s dos séculos VIII/X fazem-lhes t a m b é m
alusão e festejam os sete enviados apostólicos n o dia p r i m e i r o d e M a i o 4 8 .
O m e s m o a c o n t e c e c o m o Pasionario hispânico49.
A d i f i c u l d a d e d e relatar as o r i g e n s da cristianização hispânica é u m a
r e a l i d a d e i n c o n t o r n á v e l . As t r a d i ç õ e s d e o r i g e m l e n d á r i a n ã o f a z e m mais
d o q u e c o l m a t a r os silêncios das f o n t e s históricas e a r q u e o l ó g i c a s 5 0 . O s n o -
m e s dos «primeiros» bispos r e f l e c t e m , antes d e mais, a v o n t a d e d e a f i r m a r
q u e a cristianização da H i s p â n i a r e m o n t a à é p o c a apostólica. A p r ó p r i a f o r -
m a ç ã o das lendas m e r e c e r i a ser e s t u d a d a e m si m e s m a e n q u a n t o f a c t o his-
tórico51.
As lendas episcopais são autênticos mitos f u n d a d o r e s q u e servem para
p r e e n c h e r as lacunas da história e legitimar a antiguidade das Igrejas 5 2 . Elas
nascem, s o b r e t u d o , n o s séculos VIII/IX, da necessidade de afirmação e legiti-
m a ç ã o das Igrejas peninsulares n o c o n t e x t o da invasão m u ç u l m a n a , d u r a n t e a
qual se revelou necessário sublinhar a antiguidade das Igrejas face aos r e c é m -
-chegados.
A r e c o n s t i t u i ç ã o dos p o r q u ê s relativos à escolha e à q u a l i d a d e dos p e r s o -
n a g e n s m e n c i o n a d o s c o m o bispos para cada u m a das sés episcopais exigiria
u m a investigação a p r o f u n d a d a n o c a m p o da hagiografia e da história local,
ainda p o r fazer. C o n t u d o , a crítica histórica j á se p r o n u n c i o u sobre alguns
dos n o m e s dos bispos relativos às origens. É este o caso d e M â n c i o , q u e h a -
b i t u a l m e n t e era a p r e s e n t a d o c o m o o p r i m e i r o bispo d e Lisboa. E f e c t i v a -
m e n t e , trata-se de u m leigo q u e , c h e g a d o ao t e r r i t ó r i o d e É v o r a , teria sido
f o r ç a d o a práticas j u d i a s e d e p o i s m a r t i r i z a d o pelos j u d e u s naquela m e s m a
cidade 5 3 . Este leigo, h i s t o r i c a m e n t e atestado n o século v i / v n , foi d e p o i s i n -
t r a d u z i d o na liturgia ibérica. Só a partir de 1530/1540 é q u e c o m e ç o u o p r o -
cesso d e a f i r m a ç ã o d e M â n c i o c o m o m á r t i r das p e r s e g u i ç õ e s r o m a n a s e bis-
p o de Lisboa.
Foi i g u a l m e n t e u m p e r s o n a g e m histórico q u e , c o m o n o caso d e M â n c i o ,
d e u lugar à lenda d o terceiro bispo d e Lisboa: Gens, u m n o t á r i o martirizado
e m Aries, n o início d o século iv 5 4 . Parece e v i d e n t e q u e , nalguns casos, a his-
tória dos «primeiros» bispos se mistura c o m a dos p r i m e i r o s mártires 5 5 .
Este b r e v e p o n t o da situação d á - n o s c o n t a das p o u c a s i n f o r m a ç õ e s c o n -
cretas sobre as origens cristãs e sobre a f o r m a ç ã o , ao nível da civitas, de u m a
Igreja episcopal na Hispânia. N ã o p o d e m o s c o n h e c e r a maneira c o m o os
c o n t e m p o r â n e o s v i v e r a m estes a c o n t e c i m e n t o s . D a m e s m a f o r m a , é - n o s difí-

19
A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

cil imaginar a difusão e a organização das c o m u n i d a d e s cristãs e n t r e o século


p r i m e i r o e o terceiro, sendo, e v i d e n t e m e n t e , precipitado afirmar q u e a o r i -
g e m dos bispados peninsulares c o i n c i d e c o m a era apostólica. H i s t o r i c a m e n t e
é impossível atestá-lo.

DO COMBATE CONTRA O PAGANISMO


AO CONTROLO DAS «SUPERSTIÇÕES»56*
O BAIXO IMPÉRIO é u m a época de m u d a n ç a s significativas d o p o n t o de
vistas da cristianização. N e s t e c o n t e x t o , os cristãos, e m geral, e o episcopado,
e m particular, f o r a m colocados p e r a n t e o desafio de a p r o f u n d a r a sua i d e n t i -
dade: p r i m e i r o face às medidas de u m i m p é r i o pagão q u e lhes era hostil e, de
seguida, face aos «pagãos» na altura e m q u e o I m p é r i o se torna cristão.
N a perspectiva da p e n e t r a ç ã o d o cristianismo, data de 254 o p r i m e i r o tes-
t e m u n h o fiável sobre as origens de c o m u n i d a d e s cristãs peninsulares: trata-se
de u m escrito sinodal de C i p r i a n o de C a r t a g o , c o n t e m p o r â n e o da p e r s e g u i -
ção de D é c i o , d u r a n t e a qual alguns bispos r e n e g a r a m a fé cristã. O d o -
c u m e n t o r e m e t e - n o s , antes de mais, para a problemática d o diálogo cristia-
n i s m o / p a g a n i s m o , s i t u a n d o - n o s n o â m a g o das tensões entre a Igreja e o
p o d e r civil.
N ã o deixa de ser curioso, c o m o m u i t o b e m alertou José M a t t o s o , q u e a
primeira notícia concreta de c o m u n i d a d e s cristãs da Hispânia se refira exacta-
m e n t e a u m a área marginal (a Galécia) e m relação àquela e m q u e o cristianis-
m o p e n e t r o u d e c e r t o mais c e d o e c o m mais rapidez 5 7 , o Sul d o território p e -
ninsular (ao nível da Lusitânia).
D u r a n t e a p e r s e g u i ç ã o d e s e n c a d e a d a p e l o i m p e r a d o r D é c i o c o n t r a os
cristãos, o b i s p o de M é r i d a , M a r c i a l , e o b i s p o de L e ã o - A s t o r g a , Basilides,
r e n e g a r a m o cristianismo a fim de escapar à p e n a capital. M a r c i a l t i n h a si-
d o a c u s a d o de c e l e b r a r b a n q u e t e s c o m os a m i g o s e d e se e n t r e g a r a práticas
pagãs e m h o n r a dos d e f u n t o s . A a t i t u d e destes bispos, q u e s u p õ e , e v i d e n t e -
m e n t e , u m a vigilância t é n u e das Igrejas vizinhas s o b r e os responsáveis da
c o m u n i d a d e , n ã o f i c o u , c o n t u d o , s e m resposta. O s seus colegas n o e p i s c o -
p a d o o b r i g a r a m - n o s a r e n u n c i a r às suas cátedras e p r o c e d e r a m à eleição
dos seus substitutos, Félix e Sabinus 5 8 . A p e s a r da apostasia, os acusados
p r e t e n d e r a m m a n t e r a d i r e c ç ã o das suas sés 59 , o q u e c o l o c a v a graves p r o -
blemas.
N e s t e sentido, as c o m u n i d a d e s de M é r i d a e de Leão-Astorga p e d i r a m
conselho p o r escrito ao bispo C i p r i a n o d e Cartago 6 0 , através de u m a carta
q u e os dois bispos recém-eleitos f o r a m entregar pessoalmente. A C a r t a g o
c h e g a r a m t a m b é m outras cartas: a de u m padre de Lião, a de u m d i á c o n o de
M é r i d a e a de u m certo Félix d e Saragoça, aliás d e s c o n h e c i d o , todas elas m a -
nifestamente contrárias aos bispos apóstatas, Basilides e Marcial.
R o m a foi t a m b é m contactada sobre a questão. C o n t u d o , é a posição de
C i p r i a n o , p r e v e n d o a deposição dos apóstatas, q u e t e m m a i o r i m p a c t e na
Hispânia.
Para a l é m da j á referida carta d e C i p r i a n o , as actas d o C o n c í l i o de Elvira
t a m b é m atestam a c o n v i v ê n c i a dos bispos e d e o u t r o s clérigos c o m os p a -
gãos, c o n d e n a n d o várias práticas resultantes d e s e m e l h a n t e c o n v i v ê n c i a . E l -
vira constitui, pois, u m m o m e n t o capital para o c o n h e c i m e n t o d o e p i s c o p a -
d o n o q u e diz respeito ao c o m b a t e a u m p a g a n i s m o ainda florescente. Era,
e f e c t i v a m e n t e , a luta c o n t r a os cultos politeístas, para além da p r o b l e m á t i c a
relativa aos j u d e u s , q u e p r e n d i a as a t e n ç õ e s dos bispos r e u n i d o s n a q u e l e
concílio 6 1 .
O c o n c í l i o c o m e ç a p o r excluir da c o m u n h ã o os q u e , depois d o b a p t i s -
m o , c o m e t i a m idolatria ( c â n o n 1), os Jlamines q u e d e p o i s d o b a p t i s m o o f e r e -
c i a m sacrifícios o u o f e r e n d a s aos deuses (cânones 11 e i n ) , os Jlamines c a t e c ú -
m e n o s q u e faziam sacrifícios pagãos ( c â n o n iv), as cristãs q u e se casavam
c o m pagãos ( c â n o n x v - x v u ) , os gentios q u e d e s e j a v a m fazer p a r t e da c o m u -
*Ana Mana C. M. Jorge n i d a d e cristã (cânon xxxix), os rendeiros pagãos de a m o s cristãos (cânon XL),

20
A D I N Â M I C A DA C R I S T I A N I Z A Ç Ã O E O D E B A T E ORTODOXIA/HETERODOXIA

os escravos pagãos ( c â n o n XLI), as prostitutas pagãs q u e se c o n v e r t i a m (câ-


n o n XLIV). A lista segue, f a z e n d o - n o s constatar q u e , a par d o h o m i c í d i o e da
f o r n i c a ç ã o , o p a g a n i s m o aparecia c o m o u m dos p e c a d o s mais graves na
Igreja d e Elvira.
Através dos c â n o n e s relativos ao paganismo, a p e r c e b e m o - n o s d e q u e a
sua p r o p a g a ç ã o era considerada pela hierarquia n ã o c o m o u m p r o b l e m a pas-
toral mas, antes de t u d o , c o m o u m p r o b l e m a político q u e ameaçava directa-
m e n t e a res publica Christiana. Desta f o r m a se c o m p r e e n d e q u e o ministério dos
bispos na A n t i g u i d a d e T a r d i a n ã o se distinguisse da sua acção pública, era o
c o n j u n t o das suas prerrogativas sociais q u e c o m a n d a v a a sua acção c o n t r a as
«superstições». O C o n c í l i o d e Elvira d e i x a - n o s ainda p e r c e b e r q u e o bispo
era, antes de mais, u m «colonizador espiritual». Era c o m o chefe da militia
christi q u e ele tinha a missão de c o m b a t e r a idolatria e as forças d o mal. N e s t e
â m b i t o , o concílio faz t a m b é m referência aos hereges mas n ã o alude a q u e
heresias é q u e c o n c r e t a m e n t e se refere.
N o C o n c í l i o de Elvira os representantes da Igreja hispânica insurgiram-se
ainda c o n t r a as sobrevivências d o culto imperial. N ã o era d e admirar q u e as
elites locais dos séculos III/IV, m e s m o as mais cristianizadas, se vissem tentadas
a participar n o culto imperial, q u e se tinha t o r n a d o u m a u t ê n t i c o ritual de
p r o m o ç ã o político-social ao serviço da coesão d o I m p é r i o .
A partir d o século iv, a Igreja hispânica, e m p l e n o d e s e n v o l v i m e n t o , c o -
m o n o - l o atesta a realização d o C o n c í l i o de Elvira, d o t o u - s e de limites b e m
precisos: limites e x t e r n o s q u e o p u n h a m os cristãos aos pagãos, aos j u d e u s e
aos m u ç u l m a n o s ; limites internos q u e distinguiam os b o n s dos m a u s cristãos,
os o r t o d o x o s dos heréticos e dos cismáticos, e n t r e os quais f o r a m colocados
os «supersticiosos» q u e praticavam formas pervertidas de religião 6 2 .
N a sequência d o E d i t o de Milão, de 313, q u e estabelecia a liberdade de
culto, da legislação de C o n s t â n c i o , de 341, q u e proibia os sacrifícios pagãos, e
da oficialização d o cristianismo c o m T e o d ó s i o , e m 394, impôs-se, progressi-
v ã m e n t e , a adaptação dos antigos t e m p l o s à n o v a religião. C o m o a v a n ç o d o
processo de cristianização, passou a ser m u i t o significativa a presença de u m
santuário cristão n o local o n d e existia a n t e r i o r m e n t e u m santuário d e d i c a d o a
o u t r o s deuses.
E t a m b é m a partir dos finais d o século iv q u e várias villae r e c e b e m u m a
c o n s t r u ç ã o basilical cristã, c o m o é o caso das d e T o r r e d e Palma ( M o n f o r t e ) ,
São C u c u f a t e (Vidigueira) o u Vila V e r d e de Ficalho. N o N o r t e d o país, a p e -
sar d o grau d e r o m a n i z a ç ã o ser m e n o r , t a m b é m t e m o s vestígios d e villae tar-
d o - r o m a n a s cristianizadas. C o m segurança, p o d e m o s m e n c i o n a r o sítio d o
P r a d o ( t e r m o d e São M a r t i n h o d o Peso, M o g a d o u r o ) , p o r e x e m p l o . Desta
f o r m a , dava-se às anteriores práticas religiosas u m sentido n o v o .
A partir de 409/411 a situação política na Península Ibérica alterou-se ra-
d i c a l m e n t e , c o m a p e n e t r a ç ã o dos p o v o s g e r m â n i c o s e, s o b r e t u d o , c o m a fi-
xação dos Suevos e dos Visigodos na Galécia e na Lusitânia, r e s p e c t i v a m e n -
te 6 3 . C o n t u d o , os t e s t e m u n h o s c o n t i n u a m a amalgamar crenças e rituais
«supersticiosos», d e n u n c i a n d o cultos idolátricos antigos 6 4 .
P o r esta época, Paulo O r ó s i o , inspirado p o r Santo A g o s t i n h o , c o m o i n d i -
ca n o p r ó l o g o , c o m p ô s u m a obra intitulada Historiarum adversus paganos65. P a -
ralelamente à Cidade de Deus, este escrito p õ e C r i s t o n o c e n t r o da história;
Ele é a salvação da história h u m a n a , q u e deverá eliminar d o seu seio os resí-
d u o s pagãos 6 6 . A obra tinha, e f e c t i v a m e n t e , c o m o o b j e c t i v o a apologia d o
cristianismo p e r a n t e a desagregação d o I m p é r i o R o m a n o d e v i d o às invasões
germânicas 6 7 .
Se, c o m a p r o p a g a ç ã o d o cristianismo, os n o m e s dos diversos deuses f o -
r a m desaparecendo, os santos, a V i r g e m Maria e o p r ó p r i o Cristo f o r a m p o u -
co a p o u c o d e s e m p e n h a n d o , ao nível da acção da Igreja, algumas das f u n ç õ e s
q u e os A n t i g o s atribuíam aos seus deuses 6 8 . O s santos c o m e ç a r a m , ao l o n g o
da A n t i g u i d a d e Tardia, a ser apresentados, e f e c t i v a m e n t e , c o m o os enviados
de D e u s capazes de p r o t e g e r os h o m e n s das forças maléficas 6 9 . A par disso d e -
s e n v o l v e m - s e os rituais de b ê n ç ã o s de coisas e pessoas q u e terão depois u m
grande d e s e n v o l v i m e n t o na época m o d e r n a .

21
A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

Apesar de t u d o , a adoração dos deuses pagãos p e r m a n e c i a vivaz e n t r e os


camponeses, q u e c o n t i n u a v a m a invocá-los nos m o n t e s , nos bosques, nas
fontes o u nos rios 7 0 . As fontes miraculosas, f r e q u e n t e m e n t e cristianizadas, são
colocadas sob o v o c á b u l o de u m santo, p e r m a n e c e n d o c o m o «pano de f u n -
do» as divindades antigas. As práticas ancestrais persistiam sob a aparência d e
cultos cristãos, n o p e r í o d o s u e v o e visigodo, c o m o n o - l o r e v e l a m os textos
eclesiásticos, s e n d o possível de detectar nas gentes da Galécia e da Lusitânia,
convertidas à n o v a religião, a p e r m a n ê n c i a de e l e m e n t o s o r i u n d o s das reli-
giões ditas pagãs.
N ã o p o d e m o s e s q u e c e r q u e a designação paganus — o h a b i t a n t e d o pa-
gus, u n i d a d e territorial rural r o m a n a — foi utilizada desde C o n s t a n t i n o
(306-337 d. C.) c o m o e q u i v a l e n t e d o s e g u i d o r d o p o l i t e í s m o , p o r o p o s i ç ã o
ao h a b i t a n t e da cidade. Esta palavra reveste-se, d e p o i s , de u m c o n t e ú d o a n -
ticristão, resultante da f o r m a c o m o foi utilizada na oratória e na p r é d i c a
cristãs.
A t e n t a t i v a d e e r r a d i c a ç ã o d o s c u l t o s pagãos, m á g i c o s e «supersticiosos»
n o s t e r r i t ó r i o s a cristianizar fez c o m q u e a Igreja, ao l o n g o da A n t i g u i d a d e
T a r d i a , tivesse c o n d e n a d o u m g r a n d e n ú m e r o de práticas e c r e n ç a s « m e -
n o s claras», r e f o r ç a n d o , s i m u l t a n e a m e n t e , a sua i m a g e m d e d e f i n i d o r a da
o r t o d o x i a religiosa. Já a n t e r i o r m e n t e S a n t o A g o s t i n h o , n o seu s e r m ã o aos
rústicos 7 1 , t i n h a a p r e s e n t a d o u m a m p l o i n v e n t á r i o das «superstições» q u e o
cristão devia evitar.
C e r c a de 572, c o m São M a r t i n h o d e Braga e D u m e , esta p r o b l e m á t i c a
reaviva-se. O t e x t o d o De correctione rusticorum e n v i a d o ao b i s p o P o l é m i o
de A s t o r g a , e m resposta a u m p e d i d o deste 7 2 , o f e r e c e - n o s u m dos mais b e -
los e x e m p l o s de c a t e q u e s e p o p u l a r e m o s t r a - n o s o c o n h e c i m e n t o q u e o
b i s p o b r a c a r e n s e t i n h a dos H i s p a n o - R o m a n o s . T r a t a - s e de u m v e r d a d e i r o
p r o g r a m a d e erros c o n d e n a d o s e a c o r r i g i r . O t e x t o d o De correctione é, p o r
si m e s m o , r e v e l a d o r d e u m a g r a n d e i n q u i e t u d e missionária, n e m s e m p r e
p e r c e p t í v e l nas Igrejas hispânicas 7 3 . A leitura a t e n t a d o d o c u m e n t o r e v e l a -
- n o s q u e a sucessão dos assuntos n ã o t e m o r d e m a p a r e n t e o u escala de v a -
lores.
N o seu Sermão aos rústicos, o bispo de Braga refere u m a g r a n d e h e t e r o g e -

22
A DINÂMICA DA CRISTIANIZAÇÃO E O DEBATE ORTODOXIA/HETERODOXIA

neidade de costumes vigentes na Galécia: é o caso da adoração de certas f o r -


ças da natureza (astros, pedras e águas), da prognosticação d o f u t u r o a partir
d o m o v i m e n t o dos astros o u d o v o o d e certas aves, da utilização de ramos d e
loureiro ã porta das casas para afugentar os m a u s espíritos, da vocalização
de certas fórmulas c o m a finalidade d e aplacar a ira dos seres sobrenaturais,
e n t r e o u t r o s aspectos. Estamos, e m suma, p e r a n t e variadas modalidades de
«superstição» c u j o c o m b a t e e alteração d e sentido p o r parte da Igreja parece
n ã o ter sido fácil.
O s e r m ã o d e São M a r t i n h o faz-nos, ainda, p e r c e b e r q u e o t e r m o «su-
perstição» se revestia de u m a c o n o t a ç ã o negativa p o r p a r t e da elite cristã,
caracterizando gestos e crenças «incorrectos», isto é, n ã o o r t o d o x o s . E pois
i m p o r t a n t e sublinhar q u e , d u r a n t e a A n t i g u i d a d e T a r d i a , o e s t a b e l e c i m e n t o
e a difusão d o cristianismo passou m u i t o pela f o r m a c o m o os clérigos dis-
c e r n i r a m as «superstições» e l u t a r a m c o n t r a elas. O t e x t o de M a r t i n h o t e n d e
t a m b é m a identificar a «superstição» c o m a religiosidade dos rústicos, na
qual se m a n i f e s t a v a m e l e m e n t o s ligados a antigos cultos pré-cristãos 7 4 . O p a -
g a n i s m o sobrevivia, assim, n o i n t e r i o r d o p r ó p r i o cristianismo, p o r isso
M a r t i n h o p r o c u r a u m a b a n d o n o das sequelas d o p a g a n i s m o e u m n o v o e n -
q u a d r a m e n t o dos fiéis cristãos 7 5 . C o m efeito, este bispo p a r e c e ter c o n c e b i -
d o a c o n v e r s ã o dos rústicos c o m o u m processo q u e exigia u m ultrapassar
c o n s t a n t e das «superstições» e de outras crenças indignas de cristãos. Mas o
c a m p o das «superstições» é, e f e c t i v a m e n t e , u m sector ainda p o u c o e x p l o r a -
d o e q u e carece de estudos a p r o f u n d a d o s , n ã o só e m P o r t u g a l c o m o n o u t r a s
regiões da E u r o p a .
S e g u n d o J o s é M a t t o s o , este processo d e cristianização baseou-se f u n d a -
m e n t a l m e n t e n u m a política q u e articulava três vertentes f u n d a m e n t a i s 7 6 : a) a
restrição da n o ç ã o de sagrado; b) a atribuição de p o d e r e s benéficos sagrados
aos santos; c) a atribuição de p o d e r e s maléficos sobrenaturais ao D i a b o . N e s t e
sentido, a acção d e São M a r t i n h o revela-nos u m a d i m e n s ã o f u n d a m e n t a l da
dinâmica pastoral da Igreja d e então: a luta d o dia-a-dia c o n t r a as «supersti-
ções», que, tal c o m o na vizinha Gália 7 7 , era tarefa levada a cabo p o r u m santo
bispo 7 8 . E neste c o n t e x t o q u e se desenvolve, t a m b é m , o culto a São M a r t i -
n h o d e T o u r s n o t e r r i t ó r i o da Galécia, sob a acção de M a r t i n h o d e D u m e e
seus sucessores. L e m b r e m o s , a este p r o p ó s i t o , o papel dos santos bispos d e
M é r i d a p r o t e g i d o s p o r Santa Eulália, c u j o santuário era c o n h e c i d o , inclusive,
na vizinha Galécia, c o m o n o - l o revela a Vida de São F r u c t u o s o , bispo d e
Braga e D u m e , q u e c h e g o u m e s m o a visitar o t ú m u l o da santa emeritense 7 9 .
C o m o observa M e s l i n , p o d e m o s i n t e r r o g a r - n o s e m q u e m e d i d a o Ser-
mão aos rústicos, t e s t e m u n h o ú n i c o na Hispânia, n ã o reflecte u m c o n h e c i -
m e n t o mais literário d o q u e c o n c r e t o das práticas pagãs q u e d e n u n c i a 8 0 . S u -
b l i n h e - s e , n o e n t a n t o , q u e o t e x t o p o d e ser c o n f i r m a d o p o r o u t r o s
d o c u m e n t o s , c o m o os c â n o n e s dos concílios 8 1 e as m e d i d a s legislativas t o -
madas pelos s o b e r a n o s visigodos, q u e m e n c i o n a r e m o s d e seguida, e q u e
m o s t r a m q u e a acção de M a r t i n h o era actual, p e r m a n e c e n d o m e s m o até ao
início d o século VIII 82 .

23
A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

P o r t o d o o O c i d e n t e , d u r a n t e esta época, os concílios anatematizaram a


divinação e c o n d e n a r a m as práticas pagãs e m geral: foi o caso dos concílios
de Laodiceia (366), Agda (505), Orleães (511), Braga (561), A u x e r r e (570), N a r -
b o n a (589), entre outros. N o caso d o I C o n c í l i o de Braga (561), os padres
conciliares c o n d e n a r a m , especificamente, a astrologia c o m o prática perigosa
n o c â n o n x 8 3 . T o d a v i a , entre os H i s p a n o - R o m a n o s , a luta contra a «ciência
antiga» ultrapassou o limiar dos concílios para se constituir m e s m o e m acusa-
ção diante d o tribunal civil — esta foi a realidade presente na c o n d e n a ç ã o d e
Prisciliano, c o m o v e r e m o s mais à frente.
E interessante sublinhar q u e , das várias espécies de magias definidas n o sé-
culo vil p o r Isidoro de Sevilha, u m g r a n d e n ú m e r o dizia respeito à previsão
d o f u t u r o , o q u e mostra tratar-se de u m a t e n d ê n c i a séria ainda naquela é p o -
ca 84 .
N e s t a linha v ã o t a m b é m os artigos da legislação d o rei E r v í g i o o u o p e -
nitencial de Vigila, q u e m o s t r a m q u e o p a g a n i s m o p e r m a n e c i a , n o final d o
século v i l , início d o século v m , u m a realidade c o m q u e se c o n f r o n t a v a a
acção da Igreja 8 5 .
N e s t e m e s m o sentido v e m ainda o II C o n c í l i o de Braga (572), q u e i m p õ e
a visita dos bispos às igrejas de suas dioceses a fim de p r e g a r e m aos rústicos e
c o m b a t e r e m os erros e as práticas de idolatria 8 6 . Este concílio revela-nos,
t a m b é m , a persistência n o c o m b a t e aos «resíduos pagãos» p o r parte de São
M a r t i n h o , q u e assumiu a sua presidência. A colecção de c â n o n e s q u e se l h e
seguiu, organizada pelo m e s m o bispo e dirigida ao bispo Nitigisio de L u g o
(Capitula Martini), c o n t i n u a e c o m p l e t a o seu c o m b a t e ímpar 8 7 .
Foi t a m b é m a pensar n u m a cristianização efectiva da sociedade suévica
q u e M a r t i n h o c o m p ô s os seus escritos de carácter moral: Pro repellanda iactan-
tia, De superbia, Exhortatio humilitatis, De ira, d e d i c a d o ao bispo V i t i m i r o d e
O r e n s e , e a Formulae vitae honestae, dedicada ao rei M i r o 8 8 . M a r t i n h o publica
ainda u m p e q u e n o tratado, De trina mersione, dirigido a u m bispo d e s c o n h e c i -
do, o n d e r e s p o n d e às críticas dos q u e a t r i b u e m às Igrejas suévicas desvios nas
cerimónias d o baptismo 8 9 .
D e p r e e n d e - s e da acção d o nosso b i s p o e da a c t i v i d a d e c o n c i l i a r c o n -
t e m p o r â n e a que a penetração d o cristianismo pressupunha u m a verdadeira
t é c n i c a d e o c u p a ç ã o d o t e r r e n o . T r a t a v a - s e d e s u b s t i t u i r in situ o s a n t u á r i o
p a g ã o pela capela cristã, s e n d o o a c e n t o , ao nível da missão e p i s c o p a l d u -

Igreja construída sobre o


aproveitamento de u m templo
romano (Santana do C a m p o ,
Arraiolos).
FOTO: N U N O CALVET/ARQUIVO
C Í R C U L O DE LEITORES.

24
A D I N Â M I C A DA C R I S T I A N I Z A Ç Ã O E O D E B A T E ORTODOXIA/HETERODOXIA

r a n t e a A n t i g u i d a d e T a r d i a , s e m p r e p o s t o na c o n c e p ç ã o m i l i t a n t e d o ke-
rygma\ c o l o n i z a r e s p i r i t u a l m e n t e os c a m p o s , n o s quais reinava ainda o p a -
g a n i s m o , e lutar c o m o miles christi c o n t r a o e r r o e o mal s o b todas as
formas.

O ECLODIR DA DISSIDÊNCIA: A QUERELA


ARIANISTA*
SURGIDO NO IMPÉRIO ROMANO DO ORIENTE, O arianismo constitui u m
dos m o v i m e n t o s dissidentes mais antigos d i f u n d i d o s n o O c i d e n t e , n o q u a d r o
dos debates teológicos acerca da natureza de Cristo, e n t r e o século iv e m e a -
dos d o século vi. O arianismo hispânico teve a sua o r i g e m n o C o n c í l i o de
C o n s t a n t i n o p l a , de 360, o n d e o h o m e í s m o a n t i n i c e n o triunfara. Adverso ao
c r e d o n i c e n o , este m o v i m e n t o dissidente teria sido n o século iv partilhado
pelo p r i m e i r o bispo de Lisboa, P o t â m i o 9 0 , p e r m a n e c e n d o todavia d e s c o n h e -
eido o i m p a c t e desta c o r r e n t e e n t r e os cristãos daquela diocese. N o s s é c u -
los v / v i o m o v i m e n t o reapareceu e m território hispânico, divulgado pelos
g e r m a n o s q u e c o n t a c t a r a m c o m esta c o r r e n t e doutrinal através d o bispo U l f i -
las. Para Idácio, r e c o n h e c i d o cronista daquela época, o arianismo significava a
ruína da vida cristã e u m perigo ainda m a i o r q u e o das próprias invasões 9 1 .
A figura de P o t â m i o t e m sido m u i t o abordada d o p o n t o de vista da o r t o -
doxia 9 2 . D e a c o r d o c o m as i n f o r m a ç õ e s fornecidas pelo De confessione uerae
fidei, escrito p o r dois padres de R o m a , Faustino e M a r c e l i n o , seguidores de
Lúcifer, e m 383-384, pensa-se q u e P o t â m i o t e n h a professado a d o u t r i n a
de N i c e i a n o início d o seu episcopado, t e n d o passado, p o r volta de 355, ao
arianismo 9 3 .
O l a c o n i s m o das f o n t e s i m p e d e - n o s d e saber se, d u r a n t e esta fase n i c e -
na, ele p a r t i c i p o u o u n ã o n o C o n c í l i o de Aries d e 353 — o p r i m e i r o c o n c í -
lio i m p e r i a l c o n v o c a d o pela a u t o r i d a d e civil à qual os bispos d o O c i d e n t e
o b e d e c i a m — , o u ainda n o C o n c í l i o d e M i l ã o de 355. W i l m a r t pensa q u e o
bispo d e Lisboa t o m o u parte n o C o n c í l i o de Aries, mas nada p e r m i t e p r o -
vá-lo.
O t e x t o d o De confessione c o n t i n u a c o m a referência da apostasia de P o t â -
m i o . C o n t u d o , c o m o refere M o n t e s M o r e i r a , é preciso ter p r u d ê n c i a na i n -
terpretação d o relato, s o b r e t u d o n o q u e diz respeito aos detalhes fornecidos,
d a d o o carácter panfletário e a p r o v e n i ê n c i a luciferina d o De confessione uerae
fideP4. E m t o d o o caso, n o m o m e n t o da sua apostasia, P o t â m i o parece ter
assinado u m d o c u m e n t o de carácter herético, p r o v a v e l m e n t e a f ó r m u l a d e
S i r m i u m , de 357. E n q u a n t o a maioria d o episcopado ocidental era fiel ao n i -
ceísmo, P o t â m i o , a c o m p a n h a d o de S a t u r n i n o d e Aries e de P a t e r n o de P é r i -
gueux, abandonava-o95.
U m c o n t e m p o r â n e o de P o t â m i o originário da Gália, Febádio de A g e n ,
ao c o m e n t a r certos aspectos cristológicos da f ó r m u l a d e 357 n o seu Contra
arianos, fala t a m b é m de P o t â m i o 9 6 , a c u s a n d o - o de ter participado na assem-
bleia de S i r m i u m 9 7 . T o d a v i a , M o n t e s Moreira sublinha q u e «Se as i n f o r m a -
ções de Febádio p e r m i t e m afirmar q u e e m 357 P o t â m i o desempenhava u m pa-
pel de relevo n o seio d o partido ariano, n o m e a d a m e n t e através das suas
p r o d u ç õ e s literárias, é n o e n t a n t o difícil f o r n e c e r o u t r o s dados c o n c r e t o s so-
b r e a sua actividade e m favor da heresia.» 9 8
Hilário de Poitiers vai b e m mais longe q u e Febádio, a t r i b u i n d o várias v e -
zes a P o t â m i o a redacção da f ó r m u l a de S i r m i u m n o seu Liber de synodis, 3 " .
S u b l i n h e m o s , especialmente, n o n.° 11 a maneira c o m ele transcreve a f ó r m u -
la, i n t i t u l a n d o - a «Exempla blasphemiae a p u d S i r m i u m p e r O s i u m et P o t a -
m i u m conscriptae» 1 0 0 .
Ainda s e g u n d o M o n t e s M o r e i r a , as afirmações de Hilário são exageradas
e a crítica histórica n ã o nos p e r m i t e ir tão longe 1 0 1 . Este ú l t i m o t e s t e m u n h o
n ã o acrescenta, p o r é m , nada de n o v o à nossa problemática. C o m efeito, n o
estado actual da d o c u m e n t a ç ã o é impossível definir o papel d e s e m p e n h a d o
e x a c t a m e n t e p o r P o t â m i o e m S i r m i u m . O s historiadores estão divididos n o *Ana Mana C.M. Jorge
2-5
A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

q u e a isso respeita. N o e n t a n t o , a participação de P o t â m i o naquela assembleia


conciliar p õ e e m evidência as relações e n t r e a cidade de Lisboa e o O r i e n t e
n o relativo à questão ariana, graças ao M e d i t e r r â n e o , q u e servia de canal d e
c o m u n i c a ç ã o entre os «dois m u n d o s » . P o d e m o s admitir, i g u a l m e n t e , q u e o
manifesto de 357 t e n h a circulado c o m o n o m e d o bispo de Lisboa 1 0 2 e
q u e este tenha participado na difusão d o d o c u m e n t o 1 0 3 .
A i n t e r v e n ç ã o d e P o t â m i o na questão d o papa Libério, n o início de 357,
atesta q u e ele estava j á c o m p r o m e t i d o n o m o v i m e n t o ariano, antes m e s m o
d o C o n c í l i o d e S i r m i u m 1 0 4 . S e g u n d o M o n t e s M o r e i r a , as reacções a t r i b u í -
das p o r Hilário ao b i s p o da diocese de Lisboa a p r o p ó s i t o d o c o n t e ú d o d o
Studens paci105, n o qual Libério c o m u n i c a aos bispos orientais, e m p r i n c í p i o s
d e 357, q u e a b a n d o n a v a a c o m u n h ã o c o m Atanásio, m o s t r a m b e m q u e P o -
t â m i o estava d e s c o n t e n t e c o m a a t i t u d e talvez d e m a s i a d o tardia d o papa:
«sed p o t a m i u s et Epitetus, d u m d a m n a r e urbis R o m a e e p i s c o p u m g a u -
dent» 1 0 6 . Isto indica q u e o a b a n d o n o d o n i c e í s m o p o r P o t â m i o n ã o c o n s t i -
tui p r o b l e m a .
E m r e s u m o , as afirmações/acusações d o De confessione p e r m i t e m afirmar
q u e o nosso bispo se m a n t e v e n i c e n o p e l o m e n o s até ao C o n c í l i o de M i l ã o
de 355. C o m efeito, a apostasia d e P o t â m i o teria tido lugar p o u c o antes d o
exílio d e Ó s i o de C ó r d o v a , q u e o tinha d e n u n c i a d o ao episcopado ibérico,
l e v a n d o - o a apresentar queixa ao i m p e r a d o r 1 0 7 .
D u r a n t e a sua fase ariana, s e m p r e de a c o r d o c o m as i n f o r m a ç õ e s f o r n e c i -
das pelo De confessione uerae fidei escrito pelos padres luciferinos de R o m a ,
P o t â m i o teria m e s m o r e c e b i d o u m a uilla das m ã o s d o i m p e r a d o r c o m o
«recompensa» pelo facto de se ter c o l o c a d o ao lado dos arianos 1 0 8 .
È lastimável n ã o p o d e r m o s c o n f i r m a r todas estas i n f o r m a ç õ e s através d e
outras fontes. T o d a v i a , p a r e c e - n o s e v i d e n t e q u e a c o n d u t a d o bispo de Lis-
b o a e m matéria de fé t e n h a levantado suspeitas. Senão, c o m o refere M o n t e s
M o r e i r a , n ã o se p e r c e b e p o r q u e é q u e os luciferinos se teriam interessado e m
denegrir a i m a g e m de P o t â m i o se ele se tivesse m a n t i d o s e m p r e fiel ao n i -
ceismo 109
Mais tarde, p o r volta de 359, p r o v a v e l m e n t e d e p o i s d o C o n c í l i o de R i -
m i n i , P o t â m i o v o l t o u c e r t a m e n t e à o r t o d o x i a de N i c e i a , c o m o o m o s t r a a
carta p o r ele dirigida a Atanásio. A o p o s i ç ã o e n t r e os escritos d e P o t â m i o d e
t i p o a r i a n o e o n i c e í s m o da sua Epistula ad Athanasium dá lugar a i n t e r p r e t a -
ções contraditórias: os apologistas da o r t o d o x i a d o b i s p o d e Lisboa n e g a m o
valor das notícias q u e p õ e m a t ó n i c a n o seu arianismo; p o r o u t r o lado, os
q u e d e f e n d e m o arianismo d o bispo de Lisboa a f i r m a m q u e a Epistula d e v e
ser a n t e r i o r a 357 110 . D e q u a l q u e r f o r m a , t e m o s c o n s c i ê n c i a de q u e o r e t o r -
n o à o r t o d o x i a n ã o teria estado isento d e i m p l i c a ç õ e s canónicas. S a b e m o s
q u e o C o n c í l i o de A l e x a n d r i a , d e 362, b e m c o m o os o u t r o s concílios da
restauração nicena, d e c i d i r a m m a n t e r à cabeça das suas sés t o d o s os q u e se
t i n h a m retractado, à e x c e p ç ã o dos q u e d e s e m p e n h a v a m cargos relevantes,
n o m e a d a m e n t e d e d i r e c ç ã o , n o p a r t i d o ariano 1 1 1 . Este p a r e c e ter sido o c a -
so de P o t â m i o . Mas, p o r paradoxal q u e pareça, o nosso bispo m a n t i n h a o
p l e n o e x e r c í c i o das suas f u n ç õ e s episcopais n o m o m e n t o da r e d a c ç ã o da
Epistula ad Athanasium e d o De substantia, b e m c o m o na fase p o s t e r i o r aos
a c o n t e c i m e n t o s de 357. T o d a v i a , a incerteza n o q u e diz respeito à data
exacta d o seu r e t o r n o à o r t o d o x i a deixa e m a b e r t o a questão c a n ó n i c a da
sua e v e n t u a l deposição 1 1 2 .
Se o De substantia e a Epistula ad Athanasium sustentam formalmente o
n i c e í s m o de P o t â m i o , n ã o p o d e m o s dizer o m e s m o d o De Lazaro o u d o De
Isaia. Nestas homilias, nada n o s r e m e t e para a defesa d e posições arianas o u
p r ó x i m a s d o arianismo. C o n t u d o , elas t a m b é m n ã o r e f l e c t e m , ao nível d o
seu c o n t e ú d o , q u a l q u e r t o m a d a d e posição clara n o p l a n o da t e o l o g i a t r i n i -
tária. Apesar de t u d o , as designações Filius, Deus, Salvator et Dominus a t r i -
buídas a Jesus n o De Lazaro seriam, e m rigor, susceptíveis d e i n t e r p r e t a ç ã o
ariana. C o m efeito, «os arianos a t r i b u í a m estes a t r i b u t o s t a m b é m a C r i s t o
sem, c o n t u d o , os i n t e r p r e t a r e m e m s e n t i d o estrito e, p o r c o n s e q u ê n c i a , s e m
a d m i t i r e m r e a l m e n t e a sua divindade» 1 1 3 . Para M . M e s l i n , o e x c e r t o d o De

26
A DINÂMICA DA C R I S T I A N I Z A Ç Ã O E O DEBATE ORTODOXIA/HETERODOXIA

Lazaro s o b r e as lágrimas d e C r i s t o — «Flebat D e u s m o r t a l i u m lacrimis e x c i -


tatus» 1 1 4 — a p r o x i m a - s e das teses h e t e r o d o x a s relativas à psicologia h u m a n a
de C r i s t o , s e m q u e P o t â m i o tivesse visto nisso u m a marca da i n f e r i o r i d a d e
o n t o l ó g i c a d o Filho 1 1 5 . S i m o n e t t i e M o n t e s M o r e i r a 1 1 6 são m e n o s a f i r m a -
tivos.
Para além dos escritos j á referidos, P o t â m i o redigiu o u t r o s n ã o só q u a n d o
defendia o niceísmo, mas t a m b é m na época e m q u e militava n o partido aria-
n o . Destes escritos, infelizmente perdidos, só u m p o d e ser identificado c o m
segurança: a Epistula citada p o r Febádio d ' A g e n n o q u i n t o capítulo d o seu
Contra Arianos117.
D e u m a maneira geral, p o d e m o s dizer q u e o apostolado literário d e P o t â -
m i o esteve ao serviço d e u m a das maiores controvérsias religiosas d o Baixo
I m p é r i o : a querela arianista q u e r e b e n t o u e n t r e o C o n c í l i o de N i c e i a (325) e
o de R i m i n i (359). C o m P o t â m i o , Lisboa inscreveu-se e f e c t i v a m e n t e na
grande controvérsia doutrinal e n t r e arianos e nicenos, os primeiros n e g a n d o a
verdadeira divindade de Cristo, os segundos a f i r m a n d o - a de a c o r d o c o m os
cânones d o C o n c í l i o de Niceia. N o e n t a n t o , é preciso r e c o n h e c e r q u e o es-
pecífico d o arianismo n ã o era a negação da T r i n d a d e , mas o r e c o n h e c i m e n t o
estrito da divindade d o Pai 1 1 8 , recusando-se a aceitar q u e o filho t a m b é m era
Deus.
Para concluir, a acção episcopal de P o t â m i o inscreveu-se, e f e c t i v a m e n t e ,
n o â m b i t o d o d e b a t e e m t o r n o d o arianismo, p r e c e d i d o e c o n t i n u a d o p o r
duas fases nicenas, c o m o referimos a n t e r i o r m e n t e . Nestas fases, e n o segui-
m e n t o dos escritores o r t o d o x o s seus c o n t e m p o r â n e o s , P o t â m i o p r o c u r o u , a n -
tes de mais, dar u m a solução ao p r o b l e m a q u e residia na consubstancialidade
entre o Filho e o Pai, negada p o r Ario. A sua profissão d e fé na T r i n d a d e foi,
aliás, clara nas suas fases nicenas: «Ergo Patris et Filii et Spiritus sancti u n a
substantia est» 119 , e a sua a r g u m e n t a ç ã o n ã o podia ser mais evidente, insistin-
d o s e m p r e na q u e s t ã o - c h a v e q u e era a da consubstancialidade — «Mérito u n a
Patris et Filli substantia est.» 120
N e s t e c o n t e x t o , d a m o - n o s conta d e q u e evangelizar significava acima de
t u d o concretizar a d o u t r i n a e q u e o arianismo a c o m p a n h o u , c o m o b e m o s u -
b l i n h o u E. Leach 1 2 1 , a transformação d o cristianismo e m religião de Estado.
N e s t e sentido, a obra literária d e P o t â m i o manifesta n ã o apenas o n ú c l e o das
p r e o c u p a ç õ e s pastorais da época mas t a m b é m u m tipo de evangelização e m
q u e as f o r m u l a ç õ e s doutrinais b r o t a m da gesta episcopal.
O debate e m t o r n o d o arianismo n o fim d o século iv, e m plena época
r o m a n o - c r i s t ã , vai ser transportado e / o u r e c u p e r a d o logo nos séculos v / v i
pelos p o v o s germânicos, Suevos e Visigodos, a q u a n d o da sua chegada e insta-
lação na Galécia e na Lusitânia. E f e c t i v a m e n t e , foi c o m os Suevos e Visigo-
dos, q u e , entre 466 e 589, o arianismo se t o r n o u a religião d o g r u p o d e t e n t o r
d o p o d e r político na Hispânia.
A o nível d o r e i n o visigodo, na segunda m e t a d e d o século vi, Leovigildo
chega m e s m o a f u n d a r o seu p r o g r a m a n o arianismo, p r o c u r a n d o , desta f o r -
ma, f u n d a m e n t a r a u n i d a d e política na u n i d a d e religiosa. A conquista d o rei-
n o suevo p o r Leovigildo levaria à abjuração d o catolicismo p o r parte de al-
guns bispos d o N o r t e , c o m o é o caso d o bispo d o P o r t o e d o de Viseu. N o
t e m p o de R e c a r e d o , o arianismo resistia ainda na Lusitânia, apesar de os bis-
pos arianos o t e r e m a b j u r a d o n o III C o n c í l i o d e T o l e d o , e m 589.
C o m e f e i t o , a instalação d o s S u e v o s e d o s V i s i g o d o s na H i s p â n i a p ô s
e m c o n t a c t o n ã o só duas c o m u n i d a d e s (a r o m a n a e a g e r m â n i c a ) mas t a m -
b é m duas profissões d e fé distintas (o c a t o l i c i s m o d e N i c e i a e o a r i a n i s m o ) ;
estas a p r e s e n t a v a m - s e , r e s p e c t i v a m e n t e , c o m o a fides romana e c o m o a fides
gótica. O e s t u d o destes c o n t a c t o s , f r e q u e n t e m e n t e d o l o r o s o s , q u e n ã o p o -
"demos tratar a q u i e m d e t a l h e mas para os quais c o n v é m c h a m a r a a t e n ç ã o ,
t o r n a - s e difícil p o r causa d o d e s a p a r e c i m e n t o d o s escritos arianos — t e o l ó -
gicos, litúrgicos e disciplinares — de o r i g e m visigótica. Para p r e e n c h e r este
vazio é necessário r e c o r r e r aos t e x t o s p r o v e n i e n t e s d e c o m u n i d a d e s arianas
d o O c i d e n t e l a t i n o da é p o c a i m e d i a t a m e n t e a n t e r i o r às invasões g e r m â n i -
cas 122.

27
A PROCURA DO D E U S ÚNICO

Silhar e m mármore, no qual A p ó s o século v , e de a c o r d o c o m as i n f o r m a ç õ e s de Paulo O r ó s i o e d e


estão representados dois Idácio, verifica-se, n u m p r i m e i r o m o m e n t o , u m a certa «convivialidade reli-
cervídeos e uma
giosa» e n t r e H i s p a n o - R o m a n o s e G e r m a n o s , graças aos contactos p e r m a n e n -
ave-do-paraíso enquadrados
por u m conjunto de arcos em tes, inclusivamente aos casamentos mistos, entre as duas gentes 1 2 3 .
ferradura, século x(?) (Lisboa, C o n t u d o , a partir de m e a d o s d o século vi, as relações e n t r e os arianos e
colecção do cabido da sé). o clero católico c o m e ç a r a m a d e t e r i o r a r - s e . Apesar da p o p u l a ç ã o h i s p a n o -
‫ ־‬r o m a n a ser essencialmente católica, surgiram, q u e r n a Galécia q u e r na L u -
[> Lucerna paleocristã de sitânia, vários f o c o s de tensão religiosa e social e várias disputas e n t r e c a t ó l i -
Tróia de Setúbal, c o m a cena cos e arianos. U m a delas foi e n c a b e ç a d a p o r J o ã o de Biclara, natural d e
bíblica dos Exploradores de Scallabis, o u t r a p o r Massona d e M é r i d a , t e n d o valido a a m b o s o d e s t e r r o n o
Canaã. Desenho existente na t e m p o d e Leovigildo. Este ú l t i m o c o n f l i t o teve lugar d u r a n t e os d e r r a d e i r o s
Biblioteca Pública e A r q u i v o
anos d o r e i n a d o d e Leovigildo, p o r volta de 570, e teve c o m o c e n á r i o a
Distrital de Évora (seg.
reprodução feita por Leite de Igreja d e M é r i d a . S e g u n d o as Vitae sanctorum patrum emeritensium, trata-se d e
Vasconcelos). u m c o n f l i t o e n t r e o rei e o b i s p o e, p o r m e i o destes, e n t r e os arianos e os
católicos 1 2 4 .
Leovigildo p r o c u r o u construir a u n i d a d e política d o seu reino, c o m o já o
referimos atrás, sobre a u n i d a d e religiosa. N o e n t a n t o , os seus planos para
c o n v e r t e r o reino ao arianismo viram-se contrariados pelo m e t r o p o l i t a d e
Mérida, Massona, q u e representava os cristãos fiéis ao c r e d o de Niceia. E m
reacção à oposição daquele bispo, Leovigildo n o m e o u para a Sé de M é r i d a
Sunna, q u e se t o r n o u u m dos prelados mais c o m b a t i v o s d o g r u p o ariano. O s
d o c u m e n t o s c o n h e c i d o s até h o j e n ã o n o s p e r m i t e m saber se S u n n a foi o u
n ã o o p r i m e i r o bispo ariano da cidade; n ã o p o d e m o s t a m b é m afirmar se a sé
ariana estava vacante há m u i t o o u p o u c o t e m p o e, c o m o sugere A l o n s o
C a m p o s , q u e a eleição de S u n n a tivesse significado u m a restauração desta
diocese 1 2 5 .
E m t o d o o caso, n o m e a n d o S u n n a , o rei t o m a d e u m a f o r m a decisiva
p a r t i d o c o n t r a os católicos e c h a m a à sua causa o sector a r i a n o da cidade.
E assim q u e o v e m o s forçar a Igreja Católica a c e d e r ao clero ariano várias
igrejas c o m os seus respectivos p a t r i m ó n i o s 1 2 6 . L e m b r e m o s q u e , a n t e r i o r -
m e n t e a este c o n f l i t o , de a c o r d o c o m as i n f o r m a ç õ e s das Vitae sanctorum pa-
trum emeritengium, os arianos, dirigidos p e l o bispo S u n n a , t i n h a m j á o c u p a d o
algumas igrejas de M é r i d a para aí instalar o seu clero. N a s e q u ê n c i a desta
política, S u n n a p r o c u r a o c u p a r a Basílica d e Santa Eulália, q u e t i n h a até e n -
tão escapado ao c o n t r o l o dos arianos 1 2 7 . Esta escolha foi p o u c o neutral,
c o m o b e m sublinha Collins 1 2 8 , f a z e n d o eclodir a o p o s i ç ã o v i o l e n t a d o a r c e -
bispo o r t o d o x o de M é r i d a , M a s s o n a . Este ú l t i m o c o n s e g u e levar o rei a sus-
citar u m c o n f r o n t o p ú b l i c o e n t r e os dois bispos n o atrium da Igreja de Santa
Eulália. D e a c o r d o c o m o v e r e d i c t o dos j u í z e s designados p e l o m o n a r c a , a
Basílica d e Santa Eulália devia ser e n t r e g u e ao v e n c e d o r . Este j u l g a m e n t o
p ú b l i c o , d e c o r r i d o na presença d o p o v o , t e s t e m u n h a a rivalidade e n t r e os
dois p o d e r e s c o n c o r r e n t e s na cidade: o d o clero ariano, a p o i a d o p e l o rei, e
o d o bispo católico 1 2 9 .

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A D I N Â M I C A DA C R I S T I A N I Z A Ç Ã O E O D E B A T E ORTODOXIA/HETERODOXIA

Massona foi o grande vencedor 1 3 0 . A derrota do arianismo reforçou, ao


m e s m o t e m p o , o p o d e r do bispo católico que, protegido p o r Santa Eulália,
j u n t o a q u e m a vitória tinha decorrido, readquire o seu ascendente sobre os
hispano-romanos da cidade. Isto não impediu o rei de prosseguir os seus objec-
tivos de implantação do arianismo, condenando ao exílio o bispo católico 131 .
Alguns anos mais tarde, depois de Massona ter regressado do exílio, M é -
rida t o r n o u - s e mais u m a vez o cenário de conflitos entre católicos e arianos
q u e envolveram vários nobres da Lusitânia. E o caso do dux Lusitaniae C l a u -
dius, que t o m o u a defesa do bispo 1 3 2 .
N a perspectiva da história religiosa, todos estes conflitos d e v e m ser e n -
tendidos c o m o expressão de u m a efectiva luta religiosa na qual o credo cató-
lico e o credo ariano eram utilizados c o m o armas políticas. N u m a perspectiva
mais alargada, p o d e m o s considerar estes conflitos o reflexo de u m e n c o n t r o
problemático entre duas culturas, a dos H i s p a n o - R o m a n o s e a dos Godos 1 3 3 .
E m suma, p o d e m o s concluir q u e as divergências da interpretação da fé f o -
ram, desde o século iv, progressivamente substituindo o c o n f r o n t o entre os
deuses, e que a heresia passou a ser u m a questão, essencialmente, de clérigos
e de intelectuais, c o m o veremos na alínea seguinte sobre o priscilianismo 1 3 4 .

O REPTO DO PRISCILIANISMO
E A EMERGÊNCIA DE «NOVAS»
CORRENTES HETERODOXAS*
CONTEMPORÂNEO DA HETERODOXIA ARIANA, e m f i n a i s d o s é c u l o iv, o p r i s -
cilianismo foi divulgado na Lusitânia p o r Prisciliano, bispo de Ávila. E Sulpí-
cio Severo q u e m nos f o r n e c e as informações mais completas sobre o p r o t a -
gonista deste m o v i m e n t o 1 3 5 .
A crónica de Sulpício Severo diz-nos, c o m efeito, que Prisciliano era de
origem n o b r e , o que não o impediu de praticar u m ascetismo rigoroso. N o
que respeita às suas origens geográficas, o silêncio do cronista, c o m o , aliás, o
de outras fontes contemporâneas, é absoluto. P o d e m o s apenas supor que
Prisciliano era originário da Lusitânia do Sul, talvez de u m a região próxima
da fronteira c o m a Bética (o que p o d e explicar que u m a das primeiras reac-
ções face a esta corrente tivesse v i n d o de Higinius, bispo de C ó r d o v a , na B é -
tica). A questão p e r m a n e c e e m aberto. Alguns autores mais tardios avançaram
a hipótese de Prisciliano ter nascido na Galécia, e m data desconhecida, dei-
x a n d o mais tarde esta província para passar à Lusitânia. Esta suposição poderá
encontrar a sua justificação n o facto de o priscilianismo se ter desenvolvido
consideravelmente na Galécia.
A doutrina pregada p o r Prisciliano aos seus adeptos c o m p r e e n d i a essen-
cialmente o j e j u m dominical durante t o d o o ano, u m retiro durante o A d -
v e n t o e a Quaresma, o desprezo dos bens deste m u n d o e o c o n h e c i m e n t o
a p r o f u n d a d o da Sagrada Escritura. S e g u n d o o t e s t e m u n h o de J e r ó n i m o , estes
ensinamentos faziam-se nos oratórios das casas privadas. Este corpus doutrinal
integrava t a m b é m a exigência da continência para a hierarquia, de acordo
c o m o prescrito pelo Concílio de Elvira.
Ainda segundo o já citado t e s t e m u n h o de J e r ó n i m o , Prisciliano teria
aprendido a magia através de leituras 136 . Esta informação é corroborada t a m -
b é m p o r Sulpício Severo 1 3 7 , q u e acrescenta q u e ele teria tido c o m o mestres
naquelas artes u m certo Ágape e u m certo Helpidius, os dois discípulos de
M a r c o de Mênfis 1 3 8 , que habitava na cidade d o m e s m o n o m e , reputada c o -
m o centro de artes da magia. Isidoro de Sevilha r e t o m a estas informações n o
seu De uiris illustribus, q u a n d o m e n c i o n a o opúsculo de u m bispo d e n o m i n a -
do Itácio, o C/aro 139 . A obra citada refere t a m b é m q u e Prisciliano aprendeu a
magia c o m M a r c o de Mênfis, discípulo directo de Mani. E provável q u e
Prisciliano tenha aprendido estes ensinamentos n o Egipto, região c o m a qual
a Península Ibérica tinha relações, mas p o d e m o s pensar t a m b é m q u e t u d o is-
to não passava de suposições dos autores. R e t e n h a m o s , f u n d a m e n t a l m e n t e , *Ana Mana C. MJorge
29
A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

q u e Prisciliano r e c e b e u c o m m u i t a probabilidade u m a cultura leiga d u r a n t e a


sua j u v e n t u d e . Nesta fase da vida ele d e v e t a m b é m ter lido os apócrifos q u e
circulavam na Hispânia 1 4 0 .
Para além das referências feitas, os t e s t e m u n h o s disponíveis n ã o nos
adiantam nada mais sobre o m o d o de vida de Prisciliano, e os raros escritos
q u e lhe são atribuídos n ã o acrescentam t a m b é m nada mais de c o n c r e t o . N e s -
te sentido, os silêncios da história p o d e m explicar p a r c i a l m e n t e muitas das
construções da historiografia eclesiástica, q u e até ao nosso século c o n s i d e r o u
Prisciliano c o m o u m herético. C o m efeito, a questão da o r t o d o x i a e da h e t e -
rodoxia t e m sido até h o j e o pivot de toda a reflexão e m t o r n o deste autor 1 4 1 .
N o s escritos sobre Prisciliano a p a r e c e m c o m o u m a constante as acusações
de m a n i q u e í s m o 1 4 2 e de gnosticismo 1 4 3 . T r a t a r - s e - ã o , e f e c t i v a m e n t e , de duas
bases essenciais d o priscilianismo? E difícil responder a esta questão. A invés-
tigação q u e p õ e a tónica nestes temas baseia-se, e m geral, nos escritos prisci-
lianistas; é o caso dos tratados c o m p i l a d o s n o Corpus de PVurzburg144, na sua
maioria posteriores à m o r t e de Prisciliano 1 4 5 . C o n t u d o , é f u n d a m e n t a l t e r m o s
presente que, se as teses contidas nestes escritos se enraízam nas ideias d e s e n -
volvidas pelo p r ó p r i o Prisciliano, estes escritos r e p o r t a m - s e a práticas o b s e r -
vadas pelos priscilianistas, s o b r e t u d o na Galéria 1 4 6 . É , pois, f u n d a m e n t a l dis-
tinguir na análise d o dossier priscilianista u m a primeira fase, limitada à vida d e
Prisciliano, e u m a segunda fase posterior à m o r t e d o nosso bispo, isto é: o
p e r í o d o de d e s e n v o l v i m e n t o das suas ideias na província eclesiástica vizinha.
Assinalemos, simplesmente, q u e foi d u r a n t e esta etapa histórica d o priscilia-
n i s m o na Galéria q u e se d e s e n h a r a m as relações e n t r e esta província d o N o r -
te da Península e a Aquitânia, c o m o b e m o s u b l i n h o u J. Fontaine 1 4 7 . N ã o
esqueçamos que, após a m o r t e de Prisciliano, as acusações de m a n i q u e í s m o
e gnosticismo se d i f u n d i r a m a m p l a m e n t e fora d o q u a d r o peninsular, c o m o o
revelam as obras d e A g o s t i n h o e P r ó s p e r o de Aquitânia 1 4 8 .
C o m o nota José M a t t o s o , as acusações de gnosticismo e de m a n i q u e í s m o
formuladas p o r Santo A g o s t i n h o e o u t r o s autores, b e m c o m o as de magia, d e
doutrinas perversas e d e práticas obscenas q u e f o r a m p r e t e x t o para a c o n d e -
nação d e Prisciliano 1 4 9 , representam, antes de mais, as reacções a u m a i n t e r -
pretação religiosa adaptada às gentes dos campos 1 5 0 .
E u m a realidade q u e o principal resultado da acção de Prisciliano consis-
tiu na criação de u m a nova c o n c e p ç ã o d e vida cristã na Lusitânia, reforçada,
depois, pela acção dos bispos priscilianistas na Galéria. A infiltração destas
ideias nas zonas rurais faz pensar na existência aí de «um cristianismo» m e n o s
c o n t r o l a d o pelo episcopado local.
A própria f o r m a vaga c o m o a d o u t r i n a de Prisciliano foi mais tarde i n t e r -
pretada resultou d o facto de se tratar de u m f e n ó m e n o p r e d o m i n a n t e m e n t e
rural e de os interlocutores d o conflito serem h o m e n s de cultura citadina,
c o m u m a m e n t a l i d a d e inspirada nas ideias estóicas q u e dificilmente p o d i a
admitir as crenças às quais Prisciliano dava rosto.
U m a das acusações feitas a Prisciliano foi ter levado os cristãos das cidades
a deslocarem-se para as villae retiradas n o c a m p o . S u p õ e - s e q u e Prisciliano
tenha sido m e s m o proprietário de algumas villae o u q u e estas estivessem si-
tuadas nos d o m í n i o s de amigos seus. M a s quantas villae priscilianistas t e r i a m
existido? O n d e se situavam? E preciso r e c o n h e c e r q u e n ã o existe, a este p r o -
pósito, q u a l q u e r d o c u m e n t a ç ã o esclarecedora 1 5 1 . T a m b é m n ã o c o n h e c e m o s
n e n h u m a villa cujos vestígios arqueológicos façam pensar q u e ali tivessem
tido lugar práticas priscilianistas.
Finalmente, ao nível d o processo d e inculturação d o cristianismo p o r
Prisciliano e seus seguidores, p o d e m o s constatar u m p e r m a n e n t e c o n f r o n t o
c i d a d e / c a m p o q u e c e r t a m e n t e estimulou, p o r u m lado, a cristianização e, p o r
o u t r o , g e r o u divisões internas. C o m efeito, as práticas priscilianistas t e r i a m
c o n t r i b u í d o para a expansão d o cristianismo nas regiões rurais q u e escapavam
na maioria dos casos à esfera de influência das cidades.
C o n c r e t a m e n t e , a questão priscilianista surgiu p o r volta de 378/379 q u a n -
d o Higinius, bispo de C ó r d o v a , se dirigiu a Idácio, bispo de M é r i d a e m e t r o -
polita da Lusitânia, para lhe sugerir q u e tomasse posição face a u m m o v i m e n -

59
A DINÂMICA DA CRISTIANIZAÇÃO E O DEBATE ORTODOXIA/HETERODOXIA

to d e s e n c a d e a d o p o r u m g r u p o de leigos naquela região 1 5 2 . S e g u n d o ele,


aqueles leigos ensinavam doutrinas de tipo gnóstico e maniqueísta e viviam
u m ascetismo rigoroso. Idácio d e M é r i d a t o m o u a sério este repto, d e s e n c a -
d e a n d o o c o m b a t e a Prisciliano c o n j u n t a m e n t e c o m Itácio de Faro.
P o r volta de 380, o m o v i m e n t o priscilianista foi r e p r i m i d o n o C o n c í l i o
de Saragoça. Faltam ao t e x t o d o concílio as assinaturas, q u e teriam sido o m i -
tidas e m data desconhecida 1 5 3 . Apesar da designação das sés n ã o ser referida,
p o d e m o s r e c o n h e c e r os participantes da Lusitânia graças ao p r ó l o g o d o t e x t o
conciliar: Itácio d e Faro e Idácio de Mérida 1 5 4 , m e t r o p o l i t a da Lusitânia. U m
e o u t r o d e s e m p e n h a r a m u m papel i m p o r t a n t e n o C o n c í l i o de Saragoça, d a d o
a f o r m a c o m p r o m e t i d a c o m q u e participaram n o debate priscilianista.
A presença dos bispos da Aquitânia (Delphinus, bispo de B o r d é u s e F e b á -
dio d ' A g e n ) n a q u e l e concílio mostra q u e esta questão interessava t a m b é m
àquela região, e atesta q u e a pregação de Prisciliano se tinha estendido n ã o
apenas ao N o r t e da Hispânia mas t a m b é m ao Sul da Gália. Saragoça, d e v i d o
à sua situação geográfica na Bética, foi escolhida c o m o local privilegiado para
a realização d e u m a assembleia episcopal dos bispos galo-hispanos, q u e teve
c o m o principal o b j e c t i v o resolver a questão priscilianista 1 5 5 . N ã o teria a B é t i -
ca estado s e m p r e ao c o r r e n t e d o desafio priscilianista? T u d o indica q u e sim.
A participação dos bispos n o concílio revelou u m a verdadeira communio
episcopal 1 5 6 e m a n i f e s t o u u m esforço notável de dar c o n t i n u i d a d e a acções
c o n j u n t a s a fim de garantir a o r t o d o x i a . Desta f o r m a , t o m a m o s consciência
de q u e para aqueles bispos a diocese n ã o era u m território isolado e a partici-
pação nos concílios era u m a autêntica f o n t e de inspiração para o seu labor
pastoral. E nesta perspectiva q u e deve ser e n t e n d i d o o c â n o n 5 d o C o n c í l i o
d e Saragoça 1 5 7 .
N a realidade, n e m a p r o x i m i d a d e geográfica, n e m a organização da hierar-
quia eclesiástica explicam a reunião de Saragoça. Nela p o d e m o s ver, c o m o o b -

Frescos da basílica paleocristã


de Tróia, séculos rv-v
(Setúbal).
FOTO: N U N O CALVET/ARQUIVO
C Í R C U L O DE LEITORES.

31
A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

jectivo c o m u m , o desejo de confundir os priscilianistas e de pôr fim às pertur-


bações q u e aqueles causavam nas c o m u n i d a d e s cristãs da Galécia e da
Aquitânia. N ã o é certamente u m acaso que o n o m e de Prisciliano e dos seus
discípulos não apareça uma única vez nos cânones do concílio. T a m b é m não é
mencionado o n o m e de n e n h u m outro m o v i m e n t o dissidente. Neste sentido,
c o m o refere Griffe, «[...] é certo que os termos por vezes sibilinos mas sempre
moderados, dos cânones proclamados pelos bispos reunidos e m Saragoça não
deixavam prever os acontecimentos dramáticos ocorridos e m Tréves [...]» 158 .
C o m efeito, o que d o m i n a n o C o n c í l i o de Saragoça é u m a clara t e n d ê n -
cia antiascética e antipriscilianista. O cânon 1 deste concílio faz m e s m o alusão,
na nossa opinião, à prática ascética priscilianista que envolvia u m a participa-
ção feminina significativa 159 . O s cânones 2 e 4 p r o í b e m as reuniões litúrgicas
nas villae e exortam os fiéis a m a n t e r e m - s e unidos à Igreja episcopal"'".
Por seu lado, o cânon 7 menciona, p r o v a v e l m e n t e para c o m b a t e r o ensi-
n o p o r parte dos leigos n o m o v i m e n t o priscilianista, q u e a investidura de u m
doctor devia ser canónica 1 6 1 . C o m o sabemos, era n o r m a l n o século iv que o
doctor fosse u m bispo e não u m clérigo, o u m e s m o u m leigo, c o m o era o caso
de Prisciliano antes de ter recebido a ordenação episcopal 1 6 2 . O que está e m
causa é, efectivamente, o controlo eclesiástico. P o r isso, o concílio insiste na
condenação de t o d o o ensino ministrado fora do quadro das instituições de
ensino e catequese eclesiásticos. As reacções conciliares visavam ainda o «ma-
gistério privado» q u e o bispo de Ávila desempenhava ao nível dos seus trata-
dos, c o n d e n a n d o toda e qualquer possibilidade de interpretação da Escritura
fora do quadro oficial da Igreja.
E evidente, t a m b é m , que o j e j u m c o n d e n a d o pelos participantes d o c o n -
cílio visava a prática priscilianista atestada nesta mesma época, aliás, t a m b é m
por Agostinho 1 6 3 . E m suma, p o d e m o s ver aqui a intensa preocupação de u m
episcopado c o m p r o m e t i d o de forma directa n o desenvolvimento da vida cris-
tã na Hispânia.
Finalmente, se o Concílio de Saragoça c o n d e n o u as práticas cristãs desen-
volvidas à m a r g e m das Igrejas locais, e m assembleias n o c o n t e x t o das villae,
será que p r o n u n c i o u condenações pessoais? D e acordo c o m o texto conciliar
parece q u e não. E m contrapartida, Sulpício Severo refere o concílio c o m o
indiciam sacerdotale para acentuar o c o m b a t e levado a cabo pelo episcopado
contra os «heréticos» 164 .
N a sequência d o Concílio de Saragoça, em 381, Idácio de Mérida e Itácio
de Faro, interessados e m impedir o progresso da «seita», denunciaram a G r a -
ciano o m o v i m e n t o priscilianista. Visando Prisciliano e os seus seguidores, o
imperador publicou imediatamente u m édito o r d e n a n d o a expulsão dos «he-
réticos» daquelas Igrejas 165 .
Acusados e m Tréves do crime de malefiáum e de práticas religiosas obsce-
nas, Prisciliano e quatro dos seus discípulos são aí condenados à m o r t e e e x e -
cutados. Para além disso, alguns dos seus acompanhantes são condenados ao
exílio 1 6 6 .
D e acordo c o m o t e s t e m u n h o de Idácio, o bispo de Ávila foi executado
e m Tréves e m 387, vindo, n o seguimento da sua condenação, a Galécia a ser
invadida pelas ideias priscilianistas. Estes acontecimentos são para este autor,
n o seu estilo combativo, reveladores da «heresia» 167 .
Para além da referência à difusão da doutrina priscilianista, o t e s t e m u n h o
de Sulpício Severo diz c o n c r e t a m e n t e que, n o seguimento dos a c o n t e c i m e n -
tos de Tréves, o culto de Prisciliano se expandiu na Hispânia 1 6 8 . Esta notícia
poderá reflectir a necessidade, sentida n o N o r t e da Península Ibérica, de «in-
ventar» os seus mártires e «alimentar» assim, espiritualmente, as comunidades,
tendo, simultaneamente, relíquias disponíveis para a consagração dos edifícios
de culto 1 6 9 .
S e g u n d o esta tradição, os restos mortais de Prisciliano teriam sido deposi-
tados e m Astorga, por volta de 396. O metropolita da Galécia, Sinfósio, t o r -
nar-se-ia, aliás, o principal herdeiro espiritual de Prisciliano, e a cidade de
Astorga u m pólo de atracção de i n ú m e r o s peregrinos que v i n h a m rezar aos
túmulos dos «mártires» priscilianistas.

32
A DINÂMICA DA C R I S T I A N I Z A Ç Ã O E O DEBATE ORTODOXIA/HETERODOXIA

O C o n c í l i o de T o l e d o realizado e m 4 0 0 , depois da e x e c u ç ã o de Priscilia- [ > E m cima: Lucerna


n o e m Trèves, situa-se na m e s m a perspectiva d o c o m b a t e à heresia travado paleocristã c o m representação
de u m cisne e m gaiola aberta,
desde o século iv. A sua presidência foi assumida p o r Patruino, bispo d e M é -
símbolo da alma que se
rida e m e t r o p o l i t a da Lusitânia 1 7 0 . liberta do corpo, proveniente
U m a parte significativa d o concílio foi consagrada ao priscilianismo, c u j o de Balsa, T o r r e de Ares,
principal representante n o século v parecia ser Sinfósio de Astorga, a p o i a d o Tavira (Lisboa, Museu
p o r seu filho Dictinius 1 7 1 . O C o n c í l i o de T o l e d o de 4 0 0 é, p o r si só, revela- Nacional de Arqueologia).
d o r dos problemas das Igrejas hispânicas naquele virar de século. DESENHO: HELENA FIGUEIREDO.
N ã o se deve, de f o r m a alguma, c o n f u n d i r situações e problemas a n t e r i o -
res e posteriores às e x e c u ç õ e s de Trèves. C o m efeito, o C o n c í l i o de T o l e d o [> A o meio: Lucerna
de 4 0 0 refere-se, acima de t u d o , ao d e s e n v o l v i m e n t o d o priscilianismo na paleocristã c o m representação
Galécia. N o e n t a n t o , é preciso lembrar q u e este ú l t i m o concílio p r o c u r o u de uma raposa ateadora de
garantir a o r t o d o x i a na Hispânia a d m i t i n d o o c r e d o e a disciplina d o C o n c í - f o g o , ao mesmo tempo
reportando-se a histórias
lio de Niceia. Foi o caso das Regulae fidei catholicae contra omnes haereses et romanas e bíblicas,
quam maxime contra Priscillianosm, da responsabilidade de vários bispos hispâ- proveniente de Balsa, T o r r e
nicos ali presentes e enviadas a Balcónio, m e t r o p o l i t a da Galécia, para este as de Ares, Tavira (Lisboa,
c o m u n i c a r a t o d a a p r o v í n c i a . O q u e estava v e r d a d e i r a m e n t e e m causa era o Museu Nacional de
m o d e l o h i e r á r q u i c o da Igreja privilegiado e m N i c e i a e q u e se o p u n h a a t o - Arqueologia).
da e q u a l q u e r o u t r a c o n c e p ç ã o da vida cristã, n o m e a d a m e n t e à organização DESENHO: HELENA FIGUEIREDO.
da Igreja pela c o m u n i d a d e 1 7 3 .
Apesar de t u d o , as decisões d o C o n c í l i o de T o l e d o n ã o c o n s e g u i r a m p ô r D> E m baixo: Lucerna
fim ao m o v i m e n t o priscilianista: este c o n t i n u o u a expandir-se n o seio das p o - paleocristã c o m representação
de u m crísmon, proveniente
pulações d o Noroeste 1 7 4 . P o r volta de 530, duas cartas de M o n t a n o de T o l e -
de Tróia de Setúbal(?)
d o d i z e m q u e , e m diversas igrejas de Palência, n ã o m u i t o l o n g e de Astorga, (Lisboa, Museu Nacional de
existia o c o s t u m e de celebrar Prisciliano e n t r e os santos. C o n t u d o , o bispo de Arqueologia).
T o l e d o censurava os cristãos q u e faziam m e m ó r i a de u m herético. A atestar o DESENHO: HELENA FIGUEIREDO.
d e s e n v o l v i m e n t o d o priscilianismo n o N o r t e t e m o s ainda o C o n c í l i o de B r a -
ga de 561, n o â m b i t o d o qual esta «heresia» voltava «à cena hispânica».
O s «erros» espalhados na m e t r ó p o l e da Galécia pela heresia priscilianista
são m e n c i o n a d o s , t a m b é m , n u m a carta enviada pelo papa Vigílio a P r o f u t u r o
de Braga 1 7 5 . Nela o papa louva o zelo d o prelado bracarense, q u e lhe tinha
solicitado directivas sobre a atitude a t o m a r c o m os priscilianistas q u e se absti-
n h a m d o uso de carne. A carta faz t a m b é m alusão à controvérsia ariana, ao
aludir à f ó r m u l a d o rito da celebração d o b a p t i s m o e à atitude a ter c o m os
apóstatas que, depois de rebaptizados pelos arianos, voltavam ao seio das Igre-
jas reconstruídas. A resposta c o n t i n h a as fórmulas usadas e m R o m a na missa
da Páscoa e o ritual r o m a n o d o baptismo. Estas i n f o r m a ç õ e s f a z e m deste d o -
c u m e n t o u m a f o n t e indispensável para a história religiosa e, especialmente,
para a história da liturgia d o século vi. Só a acção evangelizadora e u n i f o r m i -
zadora da d o u t r i n a cristã desenvolvida n o t e r r e n o p o r São M a r t i n h o de D u -
m e acabaria p o r erradicar esta heresia d e e n t r e a população 1 7 6 .
D o dossier priscilianista p o d e m o s d e p r e e n d e r q u e o c o n f r o n t o d o g m á t i c o
entre as duas c o m u n i d a d e s cristãs rivais — priscilianismo e catolicismo de
Niceia — revelou, desde o século iv, u m a faceta i m p o r t a n t e d o discurso cris-
tão na sua relação c o m o p o d e r civil e, s i m u l t a n e a m e n t e , atestou a capacidade
d o episcopado de definir a o r t o d o x i a . A acentuação é, efectivamente, posta
n u m a c o n c e p ç ã o militante d o kerygma m o s t r a n d o , ao m e s m o t e m p o , os laços
q u e u n i a m o cristianismo, o episcopado e o m u n d o u r b a n o . T u d o parece i n -
dicar q u e , sob a aparência da d o u t r i n a e d o d o g m a , os grandes problemas se
situavam, f u n d a m e n t a l m e n t e , n o â m b i t o da disciplina eclesiástica. Só assim
se p o d e m c o m p r e e n d e r as reacções c o n t r a Prisciliano 1 7 7 .
Para além d o priscilianismo, f o r a m t a m b é m c o n h e c i d o s n o O c i d e n t e p e -
ninsular d u r a n t e o p e r í o d o suevo-visigótico o m a n i q u e í s m o , o o r i g e n i s m o e
o pelagianismo. Idácio e O r ó s i o a t e s t a m - n o nas suas obras.
Apesar de, n o século v, c o m o j á r e f e r i m o s , o p r o b l e m a mais p r e o c u p a n -
te para o clero galego ser o priscilianismo, m e n c i o n a d o aliás na d e c r e t a i d e
Leão I dirigida ao b i s p o T o r i b i o d e Astorga 1 7 8 , v e r i f i c a m o s p a r a l e l a m e n t e
o u t r a s dificuldades devidas ao m a n i q u e í s m o , c u j o f o c o foi d e s c o b e r t o e m
Astorga, e n t r e 445-448' 7 9 . N e s t e c o m b a t e c o n j u g a r a m esforços o b i s p o l o -
cal T o r i b i o e o m e t r o p o l i t a da Lusitânia, A n t o n i n o . T o r i b i o c h e g o u m e s -

33
A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

m o a e s c r e v e r ao p a p a Leão I, q u e r e s p o n d e u e e x a m i n o u as heresias d i v u l -
gadas na Galécia, o r d e n a n d o a c e l e b r a ç ã o d e u m c o n c í l i o geral d e t o d o s os
bispos da P e n í n s u l a o u p e l o m e n o s de u m s í n o d o r e g i o n a l 1 8 0 . Idácio teria
t a m b é m estado p r e s e n t e n e s t e processo, c o m o n o - l o dá a p e r c e b e r a sua
Crónica.
N o seu Commonitorum a Santo Agostinho 1 8 1 , P a u l o O r ó s i o e x p õ e n ã o só
os «erros» dos priscilianistas mas faz t a m b é m referência aos origenistas (discí-
pulos de Orígenes, escritor eclesiástico de Alexandria m u i t o apreciado pelas
suas obras de t e n d ê n c i a gnóstica, q u e grassavam na Galécia) 1 8 2 . Desta b r e v e
narrativa c o n c l u i u - s e q u e o o r i g e n i s m o c h e g o u até à Galécia trazido p o r u m
p e r e g r i n o da T e r r a Santa c h a m a d o Avito 1 8 3 . O interesse de O r ó s i o pela e v o -
lução desta heresia s u p õ e q u e ele a c o n h e c e u q u a n d o estava ainda e m Braga e
q u e o o r i g e n i s m o tinha atingido aí os cristãos, n o início d o século v 1 8 4 .
Paulo O r ó s i o participou t a m b é m n o d e b a t e o r t o d o x i a / h e t e r o d o x i a e x t r a -
fronteiras da Hispânia. D e p o i s de ter passado p o r África, o n d e o u v i u Santo
A g o s t i n h o , O r ó s i o foi c o m p l e t a r a sua f o r m a ç ã o exegética na Palestina, o n d e
ficou algum t e m p o c o m São J e r ó n i m o . Foi ali q u e seguiu a g r a n d e p o l é m i c a
sobre o pelagianismo, t o m a n d o partido contra Pelágio, a favor de S a n t o
A g o s t i n h o e São J e r ó n i m o , c o m o n o - l o indica a sua obra Contra Pelagium, de
arbitrii libertate]s5. N ã o c o n h e c e m o s , c o n t u d o , a expansão concreta desta c o r -
rente n o O c i d e n t e peninsular.
Para além das heresias de t e n d ê n c i a filosófico-mística (gnose, o r i g e n i s m o ,
priscilianismo, etc.), e m c o n t e x t o de o c u p a ç ã o m u ç u l m a n a nos séculos VIII-
-ix, b r o t a r a m outras tendências c o m o resultado dos múltiplos contactos c o m
o O r i e n t e e d o c o n f r o n t o c o m os m u ç u l m a n o s e m território peninsular.
A f o r m a ç ã o doutrinal cristã e a solidez das crenças d o p o v o h i s p a n o - g o d o d e -
veriam ser m u i t o superficiais, daí t e r e m surgido novas correntes h e t e r o d o x a s
n o seio das c o m u n i d a d e s moçárabes 1 8 6 . N a s fontes disponíveis, n ã o t e m o s
e l e m e n t o s q u e nos p e r m i t a m afirmar a presença e o d e s e n v o l v i m e n t o destes
m o v i m e n t o s nos territórios da Galécia e da Lusitânia, p r o v a v e l m e n t e p e l o
facto d e serem territórios marginais e m relação ao p o d e r carolíngio e m plena
expansão nos séculos e m causa.
O l h e m o s e n t ã o de relance para este fervilhar h e t e r o d o x o .
P o r m e a d o s d o século VIII, p r o d u z i u - s e u m caso d e sabelianismo e m T o -
ledo, t e n d o o bispo desta diocese p r o c u r a d o controlar de i m e d i a t o os h e r e -
ges. Tratava-se de u m tipo de m o n o t e í s m o antitrinitário — d e s e n v o l v i d o p o r
influência m u ç u l m a n a e j u d a i c a — q u e conciliava a crença alcorânica c o m o
d o g m a católico.
Ainda n o século viii v e m o s aparecer o u t r o tipo d e síntese teológica c o m
c o n t e ú d o d o u t r i n a l sui generis, a p r e s e n t a d o p o r M i g é c i o , p r o v a v e l m e n t e
o r i u n d o da Bética. Para este autor, a T r i n d a d e estava integrada p o r três p e s -
soas corpóreas, reais e históricas: o Pai, David; o Filho, Jesus d e N a z a r é e o
Espírito Santo, o apóstolo São Paulo. Esta d o u t r i n a foi c o n d e n a d a p o r u m a
assembleia de bispos reunida e m Sevilha 1 8 7 .
Paralelamente, surge t a m b é m o a d o p c i o n i s m o , q u e g e r o u ampla c o n t r o -
vérsia na Igreja hispânica. Estamos p e r a n t e u m a n o v a tentativa d e a p r o x i m a -
ção interconfessional n o â m b i t o da d o u t r i n a cristológica. Elipando, m e t r o p o -
lita de T o l e d o , foi o principal m e n t o r desta corrente 1 8 8 , d e f e n d e n d o q u e Jesus
Cristo, pela sua natureza h u m a n a e servil, n ã o seria filho de D e u s mas filho
de Maria, t o r n a d o servo de Deus.
A aparição d o bispo de Urgel, Félix, d e f e n d e n d o a teoria h e t e r o d o x a d e
Elipando, fez c o m q u e a p o l é m i c a ultrapassasse a marca hispânica e atingisse o
território sob d o m í n i o de Carlos M a g n o , c o m o refere R i v e r a R e c i o 1 8 9 . Este
m o n a r c a c h e g o u m e s m o , a p o i a d o pelos seus teólogos, a solicitar o parecer d e
R o m a sobre o m o v i m e n t o e m causa. Face aos reptos desta c o r r e n t e , o papa
A d r i a n o I reagiu, dirigindo u m a carta aos bispos hispânicos c h a m a n d o a a t e n -
ção para o erro de confessar Jesus Cristo filho a d o p t i v o de Deus 1 9 0 . P o r seu
D> A quinta trombeta do lado e na linha de R o m a , os prelados da G e r m â n i a , Gália e Aquitânia t a m -
Apocalipse, tapeçaria
do século xiv (Museu b é m fixaram os seus p o n t o s d e vista n u m a longa carta intitulada Epistola epis-
de Angers, França). coporum Franciaem.

34
A D I N Â M I C A DA C R I S T I A N I Z A Ç Ã O E O D E B A T E ORTODOXIA/HETERODOXIA

O SURGIMENTO DAS CORRENTES


MILENARISTAS E DA QUESTÃO DA POBREZA
VOLUNTÁRIA*
A PARTIR DA I D A D E MJÉDIA C E N T R A L , e ao contrário do que acontece na
restante Hispânia 1 9 2 , n ã o voltamos a e n c o n t r a r sinais de grandes surtos h e r é t i -
cos n o território p o r t u g u ê s . P e r m a n e c e m , c o n t u d o , alguns t e s t e m u n h o s , a i n -
da q u e ténues e fragmentários, sobre divergências doutrinárias e de c o m p o r -
t a m e n t o m o r a l e social, q u e t ê m suscitado análises p o r vezes de sinal o p o s t o
entre os nossos historiadores. Assim, a referência a hereges na legislação ecle-
siástica e secular, p o r e x e m p l o , se para uns é sinal i n e q u í v o c o da sua existên-
cia entre nós, para o u t r o s é m e r o reflexo de realidades estranhas q u e se p r o -
curava acautelar, quiçá a simples transcrição de disposições conciliares a q u e a
Igreja lusitana, c o m o as demais, se encontrava obrigada.
N a falta de referências directas e significativas a eventuais heresias e seus
respectivos aspectos doutrinais, mais d o q u e recapitular as discussões havidas
e m t o r n o dos parcos e l e m e n t o s de i n f o r m a ç ã o disponíveis, p a r e c e - n o s i m -
p o r t a n t e analisar se, e m Portugal, se verificaram as mesmas c o n d i ç õ e s espiri-
tuais, sociais e e c o n ó m i c a s que, n o u t r o s locais da E u r o p a cristã, f o r a m t e r r e -
n o fértil para a eclosão e o d e s e n v o l v i m e n t o de correntes heréticas. P o r q u e ,
se a c t u a l m e n t e já n i n g u é m ousa afirmar q u e estas n ã o são mais d o q u e a f o r -
m a de expressão possível, n u m a sociedade d o m i n a d a pela Igreja, de m o v i - *Ana Mana S. A. Rodngues

35
A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

m e n t o s colectivos d e contestação da o r d e m vigente, r e c o n h e c e n d o - s e a sua


a u t o n o m i a e n q u a n t o f e n ó m e n o s religiosos, o seu carácter social n ã o t e m d e i -
xado, p o r isso, de c o n t i n u a r a ser realçado 1 9 3 .
D e b r u ç a n d o - s e sobre o surto h e t e r o d o x o q u e surgiu p o r alturas d o virar
d o p r i m e i r o m i l é n i o , Georges D u b y pôs e m relevo a e m e r g ê n c i a de u m a n o -
va o r d e m social — a feudalidade -— n u m m o m e n t o de intensa expectativa
apocalíptica, q u e teria gerado u m a reacção de tipo religioso p r e t e n d e n d o res-
p o n d e r n ã o só à inquietação espiritual causada pela i m i n ê n c i a d o fim dos
t e m p o s c o m o às consequências materiais das novas clivagens sociais. Daí q u e
estas heresias tivessem e m c o m u m a reivindicação da igualdade e n t r e todos os
crentes, a recusa d o m o n o p ó l i o de m a n i p u l a ç ã o d o sagrado d e t i d o pelo clero
e a exigência de penitência e purificação para o estabelecimento d o r e i n o d e
D e u s e n t r e os h o m e n s . A r e f o r m a então e m p r e e n d i d a pela Igreja, tanto r e g u -
lar c o m o secular, p e r m i t i u , e m grande parte, r e s p o n d e r a estas críticas, ao
m e s m o t e m p o q u e o d e s e n v o l v i m e n t o e c o n ó m i c o , g e r a n d o m a i o r riqueza
para todos, levou a u m abrandar da contestação herética nos finais d o sé-
c u l o XI 1 9 4 .
Se é p o n t o assente q u e parte d o território q u e f u t u r a m e n t e virá a ser p o r -
tuguês — aquela q u e se libertara da d o m i n a ç ã o islâmica — t a m b é m assistiu à
imposição, p o r m e i o s violentos, da nova o r d e m feudal e v i v e n c i o u a m e s m a
expectativa milenarista 1 9 5 , o c e r t o é q u e n ã o se c o n h e c e m , nela, manifesta-
ções heréticas neste p e r í o d o . A dureza da luta contra u m i n i m i g o de fé d i v e r -
sa terá p o r v e n t u r a c o n t r i b u í d o para p r e v e n i r divergências religiosas, e m b o r a a
relativa f r o u x i d ã o d o e n q u a d r a m e n t o eclesiástico da zona e a escassez de f o n -
tes t a m b é m possam ser explicações válidas para a ausência de notícias a esse
respeito. Já a m u d a n ç a da liturgia m o ç á r a b e para a r o m a n a , q u e constituiu
u m dos aspectos centrais da «reforma gregoriana» na Península, suscitou, c o -
m o se sabe, violentas reacções p o r parte dos q u e seguiam o rito hispânico,
e m relação aos quais passou a pairar a suspeita de heresia 1 9 6 .
O n o v o surto h e t e r o d o x o q u e varreu a cristandade ocidental a partir d e
finais d o século x n foi resultado da crise espiritual gerada pela rápida passa-
g e m de u m a sociedade e m i n e n t e m e n t e rural, cuja e c o n o m i a se baseava na p i -
l h a g e m e na troca de «ofertas» espontâneas o u obrigatórias, para u m a socieda-
de urbana assente na p r o c u r a d o lucro 1 9 7 . G i r a n d o e m t o r n o da crítica à
excessiva riqueza d o clero n u m t e m p o e m q u e o total d e s a m p a r o de m u i t o s
se acentuava, mas t a m b é m da reivindicação d o direito à p r o c l a m a ç ã o da pala-
vra de D e u s p o r parte dos fiéis q u e seguiam o e x e m p l o de vida dos apóstolos,
essas diferentes heresias tiveram destinos i g u a l m e n t e diversos, c o n s o a n t e a
gravidade da ameaça q u e constituíam para a Igreja.
U m a s — caso dos valdenses e «humilhados», p o r e x e m p l o , c u j o m a i o r
p e c a d o consistia na desobediência à interdição de pregar q u e era feita aos lei-
gos e aos religiosos n ã o autorizados para o efeito — , acabaram p o r ser p a r -
cialmente recuperadas, através da transformação dos seus grupos m e n o s radi-
cais e m ordens religiosas c o m formas de vida própria, inclusive n o século 1 9 8 .
O u t r a s — n o m e a d a m e n t e os cátaros e o u t r o s cultos de tipo dualista — , p o r
apresentarem divergências doutrinais irreconciliáveis, f o r a m f e r o z m e n t e p e r -
seguidas, através d o estabelecimento da inquisição episcopal e até d o lança-
m e n t o de cruzadas 1 9 9 . E, mais u m a vez, d o p r ó p r i o interior da instituição
abalada surgiu u m m o v i m e n t o de r e f o r m a q u e , t e n d o a pobreza voluntária
c o m o principal estandarte, constituiu u m a resposta à f e r m e n t a ç ã o herética 2 0 0 .
Este n o v o surto de contestação social e religiosa d e i x o u alguns vestígios
e m Portugal. Data, c o m efeito, d o r e i n a d o de D . A f o n s o II (1211) a primeira
m e d i d a legislativa secular q u e preconiza o confisco dos bens para os «ereges
q u e f o r e m u e n ç u d o s per j u i z o dos bispos» 201 , o u seja, c o n d e n a d o s pelo t r i b u -
nal episcopal 2 0 2 , assimilando-os aos culpados d o c r i m e de lesa-majestade. O u -
tra o r d e n a ç ã o d o m e s m o m o n a r c a , cuja data crítica foi fixada e n t r e 1218 e
122o, t e m sido relacionada c o m esta q u e s t ã o . N e l a , o m o n a r c a i n s u r g e - s e
c o n t r a uns «decretos laicales» q u e o p r i o r dos D o m i n i c a n o s , Frei S o e i r o
G o m e s , havia p r o m u l g a d o para p u n i ç ã o de d e l i n q u e n t e s , o r d e n a n d o q u e
n ã o fossem aplicados pois i a m c o n t r a o d i r e i t o exclusivo da realeza d e criar

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A DINÂMICA DA CRISTIANIZAÇÃO E O DEBATE ORTODOXIA/HETERODOXIA

novas leis. D i v e r s o s autores t ê m i n t e r p r e t a d o tais decretos, c u j o clausulado


se d e s c o n h e c e , c o m o repressores da heresia, d e v i d o ao t e o r d o m ú n u s pas-
toral e x e r c i d o p e l o r e f e r i d o i r m ã o p r e g a d o r , mas o c e r t o é q u e tal t e r m o
n u n c a é explicitamente referido na d o c u m e n t a ç ã o 2 0 3 . Mais r e c e n t e m e n t e ,
eles f o r a m relacionados c o m a possível persistência de tradições moçarábicas
e m Santarém 2 0 4 .
C o n t u d o , outros indícios há reveladores de u m a ambiência social p r o p i -
ciadora de eventuais desvios doutrinais e de c o m p o r t a m e n t o . D e facto, data
d o m e s m o reinado a primeira lei c o n h e c i d a r e p r i m i n d o a vadiagem 2 0 5 , q u e
p o r toda a parte se havia t o r n a d o u m p r o b l e m a , pois o d e s e n r a i z a m e n t o e a
m o b i l i d a d e dos h o m e n s p r o p i c i a v a m u m a divulgação mais rápida e mais alar-
gada das ideias perigosas, ao m e s m o t e m p o q u e o crescente afastar entre ricos
e pobres as suscitava. E a c o n d e n a ç ã o da heresia parece ter tido m e s m o , neste
p e r í o d o , honras de representação iconográfica para edificação dos fiéis, se
c o m ela «identificarmos a figura amordaçada d o p ó r t i c o da Sé de Évora, e m
cuja m o r d a ç a se lê " h e r o " » , c o m o sugere u m a historiadora e m obra r e c e n -
te 2 0 6 . N ã o dispomos, p o r é m , de quaisquer e l e m e n t o s q u e nos p e r m i t a m e n -
trever e m q u e correntes espirituais se filiariam os possíveis hereges p o r t u g u e -
ses de então.
O caso m u d a de figura a partir de m e a d o s de T r e z e n t o s : n ã o só os teste-
m u n h o s sobre a existência de correntes h e t e r o d o x a s e m Portugal se m u l t i p l i -
c a m c o m o estas se t o r n a m identificáveis e o c o m b a t e contra elas se intensifi-
ca, q u e r através d o r e f o r ç o da legislação civil e canónica, q u e r da redacção de
tratados de apologética, q u e r ainda da n o m e a ç ã o de inquisidores. B u s q u e m o s
os m o t i v o s de u m a tal m u d a n ç a .
U m deles p o d e r á residir na f u n d a ç ã o d o E s t u d o Geral e m Lisboa, e m
1290. C o m efeito, sabe-se q u e u m dos meios e m q u e mais se desenvolveu o
p e n s a m e n t o h e t e r o d o x o «culto» 207 foi a universidade. A criação da universi-
dade portuguesa veio abrir n o v o s locais ao debate doutrinal e atraiu a Lisboa
e depois a C o i m b r a mestres e, talvez, escolares estrangeiros, portadores das
ideias desviantes q u e então c o r r i a m nos centros de saber mais antigos e pres-
tigiados, c o n t r i b u i n d o para as divulgar entre nós.
E n c o n t r a m o s reflexos disto n o p r i m e i r o tratado escrito e m P o r t u g a l sobre
a questão da h e t e r o d o x i a , q u e suscita opiniões desencontradas nos nossos his-
toriadores. Para Morais Barbosa, Álvaro Pais, n o Collyrium fidei adversus haere-
ses, q u e c o m p ô s após t e r m i n a r o Speculum regum e m 1344 208 , limitou-se a
«contrapor, a cada preceito d o direito c a n ó n i c o u m a heresia q u e dele se afas-
tasse» 209 ; daí q u e ele considere a obra imprestável c o m o f o r m a de a p r o x i m a -
ção à realidade social d o século x i v p o r t u g u ê s . O u t r o s autores, p o r é m , atri-
b u e m algum crédito às palavras d o bispo de Silves, e m particular n o q u e toca
às controvérsias q u e ele afirma ter tido, e m C o i m b r a e Lisboa, c o m alguns
religiosos e até m e s m o u m j u d e u , reveladoras d o «clima de liberdade de p e n -
s a m e n t o e d e expressão» então vigente e m Portugal, pois era «possível a u m
opositor d e f e n d e r n u m t e m p l o o u u m a universidade, proposições q u e são,
para a Igreja, m a n i f e s t a m e n t e heréticas» 2 1 0 .
Q u e proposições e r a m essas? T o m á s Escoto, p e r s o n a g e m sobre o qual se
d e t é m mais l o n g a m e n t e o prelado e q u e devia ser originário das Ilhas Britâni-
cas, perfilhava u m aristotelismo de coloração averroísta 2 1 1 : afirmava q u e a fé
se provava m e l h o r pela filosofia d o q u e pela Bíblia e pelo direito c a n ó n i c o .
Proclamava ainda q u e Moisés tinha e n g a n a d o os j u d e u s , tal c o m o Cristo os
cristãos e M a o m é os m u ç u l m a n o s , e q u e o Anticristo, q u a n d o viesse, e n g a n a -
ria todos os h o m e n s , i n c l u i n d o os próprios servidores de Deus; acreditava
q u e a graça de curar passava de pais para filhos212; negava a imortalidade da
alma, a d i v i n d a d e d e Jesus, a virgindade d e Nossa S e n h o r a e a castidade de
São B e r n a r d o e Santo A n t ó n i o . P o r estes e o u t r o s erros doutrinais, este m e n -
dicante r e n e g a d o acabou p o r ser c o n d e n a d o pelo tribunal eclesiástico e e n -
cerrado n u m a prisão 2 1 3 .
Mas Álvaro Pais vitupera i g u a l m e n t e , n o Collyrium, a nova heresia de uns
«pseudo-religiosos» q u e ele encontrara nas escolas lisboetas, p r o c l a m a n d o q u e
os decretos dos concílios e as constituições papais n ã o t i n h a m a m e s m a a u t o -

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38
A DINÂMICA DA CRISTIANIZAÇÃO E O DEBATE ORTODOXIA/HETERODOXIA

ridade q u e o V e l h o e N o v o Testamentos 2 1 4 . E n o De statu refere-se a m e n d i -


cantes q u e p u n h a m e m causa o p o d e r pontifício, n u m c o n t e x t o q u e p o d e l e -
var a crer tratar-se de u m a situação vivida e m Portugal 2 1 5 . E , pois, provável
q u e , aqui c o m o na restante E u r o p a , a prática da p o b r e z a evangélica e a c o n -
d e n a ç ã o d o excessivo e n r i q u e c i m e n t o d o clero tivessem levado alguns leigos
e frades franciscanos mais radicais a atravessar a estreita fronteira instituída p e -
la Igreja entre o seu ideal de vida ascético e a heresia 2 1 6 .
P o r fim, o bispo de Silves t a m b é m dá conta, nos seus escritos, de u m a
controvérsia c o m u m seguidor d o culto moisaico. J u d e u s e m o u r o s n ã o e r a m
considerados hereges, e o culto de ambas as religiões era respeitado, c o m o
v e r e m o s , desde q u e e x e r c i d o d e n t r o dos limites impostos pela lei. C o n t u d o ,
parece ter havido, ã época, a l g u m esforço de conversão, d a d o d a t a r e m de e n -
tão várias obras d e apologética e m p o r t u g u ê s , c o m o u m tratado t e o l ó g i c o
a n ó n i m o , o Speculum disputationis contra hebraeos de Frei J o ã o de Alcobaça, o
Livro da corte enperial e o p r ó p r i o Collyrium217.
O p e n s a m e n t o h e t e r o d o x o n ã o era, p o r é m , u m exclusivo dos m e i o s u n i -
versitários. Nesta segunda m e t a d e da centúria de T r e z e n t o s , a Cristandade,
submetida ao triplo flagelo da f o m e , da peste e da guerra, estava a ser varrida
p o r m o v i m e n t o s d e revolta anti-senhorial e anticlerical, muitas vezes suscita-
dos p o r pregadores itinerantes q u e p r o c l a m a v a m a igualdade de todos os h o -
m e n s p e r a n t e D e u s e fustigavam a excessiva riqueza e a vida dissoluta da h i e -
rarquia eclesiástica, e n c o n t r a n d o u m p ú b l i c o a t e n t o e m o t i v a d o para a luta,
q u e r e n t r e os c a m p o n e s e s esmagados pelas exacções senhoriais, q u e r e n t r e
o proletariado u r b a n o sujeito ao d e s e m p r e g o e a c o n d i ç õ e s de vida miserá-
veis 2 1 8 .
Portugal n ã o se m a n t e v e alheio a esta c o n j u n t u r a . L o g o após a g r a n d e
peste, e m 1349, surge u m a o r d e n a ç ã o q u e p r o c u r a c o m p e l i r ao trabalho m a -
nual n ã o só aqueles q u e h a v i a m r e c e b i d o heranças e j á n ã o q u e r i a m exercer
os m e s m o s ofícios q u e antes, mas i g u a l m e n t e os h o m e n s e m u l h e r e s válidos
q u e viviam p e d i n d o , m a n d a n d o q u e estes fossem açoitados e expulsos das p o -
voações se n ã o quisessem trabalhar. C o n t u d o , os d e s o c u p a d o s e errantes n ã o
d e i x a r a m de se multiplicar, a c o r r e n d o às cidades e m vez d e p e r m a n e c e r e m
nos campos, o n d e os seus braços tanta falta faziam. A Lei das Sesmarias, p r o -
m u l g a d a v i n t e e seis anos mais tarde, é ainda mais precisa, ao referir q u e m u i -
tos desses pedintes a n d a v a m c o m hábitos de religiosos « n o m e n t r a n d o n e m
s e e n d o professos e m n e n h ú a s das h o r d e e n s relegiosas stabeleçudas e aprouadas
pella santa egreia, n o m f a z e n d o n e m h u s a n d o de fazer alguma obra p r o u e i t o -
sa ao b e m c o m ú u » , e arrastavam consigo o u t r o s h o m e n s q u e se p e r d i a m para
a agricultura e os mesteres, constituindo ademais possíveis focos subversivos 2 1 9 .
D e facto, diversas revoltas rurais e urbanas acabaram p o r verificar-se t a m -
b é m n o nosso país, q u e r a q u a n d o d o casamento de D . Fernando c o m D . Leo-
n o r Teles quer após a m o r t e d o rei, perante a ameaça da invasão castelhana.
Para além das evidentes motivações políticas e socioeconómicas, é possível q u e
elas t e n h a m tido, igualmente, u m a inspiração religiosa de c u n h o h e t e r o d o x o ,
pois p o r essa altura multiplicam-se os sinais da existência de u m ambiente a c o -
lhedor às teses milenaristas e às doutrinas sobre a pobreza evangélica.
Assim, sabe-se q u e entre 1350 e 1380 u m g r u p o de portugueses, espanhóis
e italianos, c h e f i a d o p o r u m tal Vasco de Portugal, v e i o de Itália para a P e -
nínsula Ibérica esperar a descida d o Espírito Santo predita p e l o seu mestre,
T o m a s u c c i o da Foligno — u m eremita leigo p r ó x i m o dos círculos francisca-
nos radicais — , e participar na f u n d a ç ã o de u m a n o v a o r d e m religiosa q u e
reformaria o m u n d o antes d o fim dos tempos 2 2 0 .
P o r o u t r o lado, F e r n ã o Lopes, na Crónica de D.João I, m o s t r o u à sacieda-
de q u e os partidários d o mestre de Avis o consideravam o seu salvador, o
Messias, u s a n d o m e s m o as m o e d a s c o m a sua efígie ao pescoço, c o m o m e d a -
lhas; e a iconografia v e m , u m a vez mais, reforçar estes indícios, se analisarmos
as pinturas da Colegiada de Nossa S e n h o r a da Oliveira, e m G u i m a r ã e s —
o n d e J o ã o das R e g r a s foi prior, e m 1388 — , q u e associam a lenda d o Graal à
<] Glorificação de São Tomás de
luta pela i n d e p e n d ê n c i a de P o r t u g a l c o n t r a os cismáticos castelhanos, à luz d o Aquino, c. 1345 (Itália, Pisa,
p e n s a m e n t o escatológico h e t e r o d o x o 2 2 1 . Igreja de Santa Catarina).

39
A PROCURA DO D E U S ÚNICO

40
A DINÂMICA DA C R I S T I A N I Z A Ç Ã O E O DEBATE ORTODOXIA/HETERODOXIA

Se n ã o p o d e m o s i g n o r a r o carácter propagandístico da obra d o cronis-


ta 222 , é, p o r é m , verosímil q u e o «edifício mitológico» c o n s t r u í d o p o r F e r n ã o
Lopes e m r e d o r de D . J o ã o I n ã o se limite a ser u m a i n v e n ç ã o posterior des-
tinada a enaltecer o f u n d a d o r da nova dinastia, mas recolha tradições da época
d o m o n a r c a q u e revelam o «ambiente de exaltação messiânica e milenarista»
existente e m t o r n o dele 2 2 3 . C o m efeito, o papel d e s e m p e n h a d o pelos Francis-
canos — q u e r verdadeiros frades q u e r simples m e m b r o s da o r d e m terceira vi-
v e n d o u m a vida ascética exemplar 2 2 4 — na criação das c o n d i ç õ e s propícias à
u n i ã o d o p o v o e m t o r n o d o m o n a r c a e na c o n d u ç ã o de alguns dos e v e n t o s
revolucionários deste p e r í o d o foi já e v i d e n c i a d o p o r diversos autores 2 2 5 , q u e
t a m b é m d e t e c t a r a m , na p r ó p r i a f o r m a de Lopes e s t r u t u r a r a sua narrativa,
décadas mais tarde, ecos d o p e n s a m e n t o h i s t ó r i c o - t e o l ó e i c o d e J o a q u i m d e
Fiore 2 2 6 .
O c e r t o é q u e , c o m o multiplicar dos h o m e n s e m u l h e r e s sensíveis às se-
d u ç õ e s das doutrinas heréticas o u s i m p l e s m e n t e desviantes, a c e n t u o u - s e t a m -
b é m a repressão c o n t r a eles. A legislação civil a este respeito t o r n o u - s e mais
a b u n d a n t e e precisa: n o início d e T r e z e n t o s , D . Dinis estatui e m relação
àquele q u e descrer de D e u s e da V i r g e m «e os doestar q u e lhi t i r e m a ljngua
pelo p e s c o ç o e o q u e y m e m » 2 2 7 — p e n a preconizada desde 1224 pela Igreja
para os hereges 2 2 8 e já incluída n o F u e r o R e a l de A f o n s o X 2 2 9 . D . A f o n s o V,
e m c o n t r a p a r t i d a , separa as situações d e blasfémia e de heresia, m a n t e n d o
para a s e g u n d a as p e n a s d e m o r t e e d e c o n f i s c o de b e n s j á decretadas p o r
D . A f o n s o II e D . J o ã o I, e e s t i p u l a n d o para a p r i m e i r a castigos m e n o s pesa-
dos mas ainda rigorosos: p e c u n i á r i o s , n o caso de os p r e v a r i c a d o r e s s e r e m fi-
dalgos, e c o r p o r a i s — açoites c o m u m a agulha d e albardeiro espetada na
língua o u d e a m b u l a ç õ e s e m t o r n o da igreja c o m u m a silva ao p e s c o ç o — se
p e r t e n c e n t e s ao p o v o 2 3 0 .
E q u e «Podia suceder q u e a blasfémia n ã o significasse r u p t u r a c o m a
crença religiosa, antes ser f r u t o da ira m o m e n t â n e a desencadeada p o r razões
ocasionais» 2 3 1 , c o m o alguma disputa pessoal o u o j o g o . Assim acontecia na
maioria dos casos, h a v e n d o , p o r isso, u m relativo laxismo na aplicação da lei
p o r parte dos juízes, q u e contrastava c o m a severidade da p u n i ç ã o 2 3 2 .
S e g u n d o o t e x t o da j á citada lei de A f o n s o V contra os hereges, era aos
juízes eclesiásticos q u e , desde sempre, cabia o j u l g a m e n t o destes casos, e m b o -
ra fosse o b r a ç o secular a aplicar as respectivas penas, p o r serem de sangue.
N o e n t a n t o , e c u r i o s a m e n t e , as actas dos sínodos q u e c h e g a r a m até nós prati-
c a m e n t e n ã o r e f e r e m o c r i m e de heresia, a n ã o ser e n t r e os casos reservados
aos bispos 2 3 3 , d e t e n d o - s e c o m m u i t o mais p o r m e n o r nos d e superstição, b a r -
regania e feitiçaria; de igual m o d o nos faltam os textos das c o r r e s p o n d e n t e s
sentenças dos tribunais episcopais e as cartas de p e r d ã o relativas aos c r i m i n o -
sos c o n d e n a d o s .
O m e s m o a c o n t e c e c o m eventuais sentenças de u m possível tribunal i n -
quisitorial. Sabemos, c o m efeito, q u e f o r a m n o m e a d o s inquisidores para P o r -
tugal desde finais d e T r e z e n t o s , escolhidos, c o m o nos o u t r o s locais e m q u e
f u n c i o n o u tal instituição medieval, e n t r e os Mendicantes 2 3 4 : u m tal M a r t i n h o
Vasques, franciscano, p o r 1376; o u t r o franciscano, Frei R o d r i g o de Sintra, e m
1394; Frei V i c e n t e d e Lisboa, d o m i n i c a n o , p o r 1399; o u t r o frade m e n o r , Frei
A f o n s o de Alprão, e m 1413235, a q u e p o d e m o s acrescentar ainda Frei G o n ç a l o
M e n d e s , provincial dos Pregadores, já e m 1438 236 . C o m o dissemos, n ã o res-
t a m vestígios da sua actuação c o n c r e t a c o n t r a os heréticos, mas p a r e c e - n o s
significativo q u e as referências à sua existência c o i n c i d a m c o m o p e r í o d o de
mais intensa agitação social e espiritual n o país.
N ã o se d e d u z a daqui, todavia, q u e , passado esse m o m e n t o , o restante sé-
culo x v foi isento de contestação doutrinal e m Portugal. C a d a vez mais a b e r -
to às influências vindas de além-Pirinéus, d e v i d o às alianças m a t r i m o n i a i s e
diplomáticas estabelecidas pela nova dinastia e à circulação mais alargada de <3 Igreja da Colegiada de
h o m e n s e mercadorias, o país n ã o p o d i a m a n t e r - s e à m a r g e m das propostas Nossa Senhora da Oliveira,
Guimarães.
reformistas q u e e n t ã o se disseminavam pela E u r o p a , e m particular as de W y -
clif e Huss 2 3 7 . FOTO: ALMEIDA D'EÇA/
/ A R Q U I V O C I R C U L O DE
E n c o n t r a m o s reflexos das doutrinas d e a m b o s t a n t o e m obras d e p e n d o r LEITORES.

4!
A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

42
A D I N Â M I C A DA C R I S T I A N I Z A Ç Ã O E O D E B A T E ORTODOXIA/HETERODOXIA

moralista c o m o nos d o c u m e n t o s da prática. N o Leal conselheiro, p o r e x e m p l o ,


D . D u a r t e mostra ter plena consciência dos perigos q u e acarretava a i n t e r p r e -
tação pessoal da Bíblia r e c o m e n d a d a , n o m e a d a m e n t e , p o r W y c l i f , a c o n s e -
l h a n d o u m a leitura das Escrituras e dos livros piedosos exclusivamente o r i e n -
tada pela Igreja e p o r h o m e n s sábios e virtuosos 2 3 8 . O m o n a r c a insurge-se
ainda contra os hereges q u e n ã o acreditavam na vida eterna 2 3 9 e os erros dos
discípulos de R a m o n Lull 2 4 0 , sinal de q u e tais desvios doutrinais d e v i a m c o r -
rer e m Portugal n o seu t e m p o 2 4 1 .
D . A f o n s o V é ainda mais específico ao referir-se, n u m seu alvará de 18
de A g o s t o d e 1451242, aos q u e se a g r u p a v a m para ler e c o m e n t a r Frei G á u d i o ,
J o ã o C r i s t ó v ã o — heresiarcas portugueses de q u e n e n h u m o u t r o t e s t e m u n h o
p e r d u r o u — , e ainda W y c l i f e Huss, cujas obras estavam proibidas mas, pelos
vistos, circulavam n o país; os livros daqueles d e v e r i a m ser q u e i m a d o s e eles,
levados p e r a n t e o tribunal, p e r d e r i a m todos os seus bens.
As O r d e n a ç õ e s Afonsinas, n o s e g u i m e n t o de n o r m a s anteriores, penaliza-
v a m t a m b é m c o m a m o r t e os j u d e u s e os m o u r o s q u e , c o n v e r t i d o s ao cristia-
nismo, regressassem depois à sua fé original; e m c o m p e n s a ç ã o , c o n f i r m a v a m
a lei c o m q u e D . J o ã o I p r o t e g e r a os conversos castelhanos fugidos às p e r s e -
guições n o seu país, i m p e d i n d o q u e fossem i g u a l m e n t e molestados e m P o r t u -
gal sob p r e t e x t o d e abjuração 2 4 3 . N o t e m p o de D . J o ã o II, todavia, face à e n -
trada de u m a n o v a e n u m e r o s a vaga de j u d e u s e cristãos-novos castelhanos
n o reino, q u e suscitou u m recrudescer d o s e n t i m e n t o a n d j u d a i c o e a n t i c o n -
verso, a situação alterou-se: foi criado u m c o r p o de inquisidores contra os
marranos estrangeiros e f o r a m efectuados os primeiros a u t o s - d e - f é de q u e há
m e m ó r i a e m Portugal, a n t e c i p a n d o e m m e i o século cenas q u e depois se t o r -
narão correntes 2 4 4 .

A PERMANENCLA DAS «SUPERSTIÇÕES»


E A DIABOLIZAÇÂO DA FEITIÇARIA
SE O CONCEITO DE HERESIA, d e i n í c i o , a b a r c a v a e s s e n c i a l m e n t e questões
dogmáticas o u disciplinares, ele foi-se alargando c o m o passar dos séculos,
v i n d o a incluir, p o r equiparação, desvios morais e de c o m p o r t a m e n t o c o m o
o adultério, a s o d o m i a , o incesto, e ainda crenças e práticas «supersticiosas»,
mágicas e divinatórias, i n c l u i n d o a feitiçaria, os sortilégios, a astrologia, a n i -
gromancia, etc. 2 4 5 .
N o q u e toca a estas últimas, q u e são as q u e nos interessa considerar aqui,
essa e v o l u ç ã o n ã o foi, p o r é m , pacífica. D e facto, d u r a n t e m u i t o t e m p o , o r e -
curso às artes mágicas foi considerado u m p e c a d o e n ã o u m c r i m e de fé. Só
q u a n d o a obsessão pelo diabo, nascida nos mosteiros p o r alturas d o século XII,
se estendeu a toda a sociedade através dos e n s i n a m e n t o s dos pregadores e dos
teólogos, é q u e os feiticeiros — e, e m particular, as bruxas — c o m e ç a r a m a
ser acusados de o b t e r os seus p o d e r e s através da i n v o c a ç ã o dos d e m ó n i o s e d o
estabelecimento de pactos c o m o maligno. Isso p e r m i t i u aos inquisidores es-
t e n d e r as suas c o m p e t ê n c i a s a esses delitos 2 4 6 .
E m b o r a j á e m 1270 a Summa de Officio Inquisitoris apontasse o c a m i n h o da
fogueira às feiticeiras 2 4 7 , foi a bula Super illius specula, de 1320, q u e d e u p o d e r
à Inquisição para intervir sobre a bruxaria 2 4 8 . O século x i v c o n h e c e u , e m
c o n s e q u ê n c i a , u m grande n ú m e r o de processos p o r feitiçaria, a t i n g i n d o m e s -
m o as mais altas esferas da sociedade, o mais célebre dos quais talvez tenha
sido o dos Templários 2 4 9 . M a s foi só a partir de u m a outra bula de I n o c ê n -
cio VIII, datada de 1484, q u e se d e s e n c a d e o u de f o r m a generalizada, n o C e n -
tro da E u r o p a , u m a «caça às bruxas» q u e virá a ter a sua plena expressão na
época m o d e r n a 2 5 0 . <] Bíblia hebraica, fólio de
E m Portugal, a repressão da magia t a m b é m foi u m a realidade d u r a n t e a abertura ( C o i m b r a , Biblioteca
Geral da Universidade de
Idade M é d i a , mas n ã o parece ter alcançado o m e s m o grau de violência q u e
Coimbra).
noutras paragens p o r q u e a coexistência de c o m u n i d a d e s étnico-religiosas dis-
tintas n o território nacional «deu lugar a u m intenso trabalho d e pregação e F O T O : VARELA P É C U R T O /
/ARQUIVO C Í R C U L O DE
de debate t e o l ó g i c o c o m a religião islâmica e a religião judaica», e m c u j o LEITORES.

43
A PROCURA DO D E U S ÚNICO

c o n t e x t o «as práticas religiosas marginais [...] e desviadas [...] n ã o a s s u m e m


suficiente i m p o r t â n c i a para serem o b j e c t o de u m a c a m p a n h a sistemática d e
erradicação» 2 5 1 . Esta atitude m u d o u u m p o u c o na centúria de Q u i n h e n t o s ,
sob influência dos m o d e l o s c e n t r o - e u r o p e u s , mas s e m consequências radicais
na perseguição d o delito de feitiçaria 2 5 2 . E x a m i n e m o s , pois, a situação e m d e -
talhe.
N o t e m p o de São M a r t i n h o de D u m e , c o m o vimos, as «superstições»
e r a m consideradas u m a persistência dos antigos cultos, q u e se p r o c u r a v a e x -
tirpar através da pregação, da destruição dos templos e ídolos pagãos, o u da
sua substituição p o r igrejas e santos cristãos. Q u a n d o assistimos ao seu ressur-
g i m e n t o , a partir d o século x n i , nos textos n o r m a t i v o s da Igreja e das a u t o -
ridades seculares portuguesas, m a u grado o silêncio das fontes nas centúrias
intermédias, é g r a n d e a tentação de ver nelas u m a p e r m a n ê n c i a de gestos e
atitudes n ã o resultante d o acaso, mas antes da reiterada adesão aos m e s m o s
«erros» d e clérigos e leigos 2 5 3 .
D e facto, algumas dessas «superstições» tardo-medievais r e m e t e m para
formas de culto cujas origens se p e r d e m n o t e m p o , c o m o é o caso das procis-
sões e missas realizadas e m plena natureza — nos m o n t e s , c a m p o s e o u t r o s
«lugares desonestos» 2 5 4 — , típicas de sociedades agrárias tradicionais e cuja
l o n g e v i d a d e se nos afigura extraordinária, pois ainda h o j e e n c o n t r a m e x p r e s -
são na p i e d a d e popular 2 5 5 . O u t r a s p a r e c e m estar mais d i r e c t a m e n t e ligadas ao
passado r o m a n o , c o m o o uso de prantear os m o r t o s , as festas das Janeiras e
das Maias e as práticas divinatórias 2 5 6 , e m b o r a possam ter g a n h o d i f e r e n t e sig-
nificado n u m c o n t e x t o cristão e feudal 2 5 7 .
Mas outras, ainda, só t ê m razão de ser n u m a sociedade j á p l e n a m e n t e
cristianizada, q u e acredita na eficácia simbólica dos objectos sagrados: as r e c o -
m e n d a ç õ e s , multiplicadas nos sínodos, para q u e a eucaristia e os santos óleos
fiquem b e m fechados e para q u e a pia baptismal seja d e v i d a m e n t e guardada 2 5 8
revelam o receio d e q u e o seu uso fosse desviado para o u t r o s fins c o n s i d e r a -
dos sacrílegos 2 5 9 . D a í q u e n e m todas as crenças e práticas definidas pelos ecle-
siásticos c o m o «superstições» d e v a m ser vistas c o m o simples p e r m a n ê n c i a s
pagãs, p o d e n d o resultar, pelo contrário, de interpretações desviantes d o m a r a -
vilhoso cristão.
D e facto, a Igreja aceitava certas formas de adivinhação, c o m o os sonhos,
as visões e as profecias, e n c a r a n d o - a s m e s m o c o m o m a n i f e s t a ç õ e s da graça
divina; da m e s m a f o r m a , e r a m c o n s i d e r a d o s milagres, e, c o m o tal, sinais d e
santidade, algumas curas inesperadas e f e n ó m e n o s inexplicáveis 2 6 0 . O u t r o s ,
p o r é m , e r a m classificados c o m o ilusões, prestígios o u , até, inspirações d e m o -
níacas 2 6 1 . A fronteira q u e separava a religião da magia era, pois, tão estreita
q u a n t o a q u e separava a o r t o d o x i a da heresia, d e p e n d e n d o de subtis distin-
ções teológicas q u e ultrapassavam largamente o e n t e n d i m e n t o d o c o m u m dos
fiéis.
P o r vezes, elas ultrapassavam, m e s m o , o de alguns eclesiásticos. O s í n o d o
de Braga de 1281, p o r e x e m p l o , c o n d e n a v a os q u e , clérigos o u leigos, c ô n s u l -
tassem agoureiros e feiticeiros, e s t e n d e n d o - s e a c o n d e n a ç ã o , dois séculos mais
tarde, aos abades e capelães de igrejas q u e n ã o expulsassem delas os prevarica-
dores; a p u n i ç ã o espiritual prevista para os q u e praticavam tais artes e os q u e
as solicitavam era a e x c o m u n h ã o 2 6 2 . E m 1489, o Tratado de confissom referia-se
ainda ao l a n ç a m e n t o de sortes p o r clérigos 2 6 3 .
P o d e parecer estranho q u e os próprios sacerdotes cristãos fossem acusados
de r e c o r r e r a oficiantes de artes mágicas, mas, ignorantes das letras m u i t o s d e -
les, v i v e n d o u m a vida simples e m c o m u n h ã o c o m as p o p u l a ç õ e s rurais q u e
serviam, é natural q u e partilhassem c o m elas — e propagassem, c o m o seu
e x e m p l o e os seus e n s i n a m e n t o s — algumas das suas crenças «erróneas» 2 6 4 .
P o r o u t r o lado, q u a n t o à acusação de praticarem eles m e s m o s essas artes, é fá-
cil imaginar q u e , habituados a c o n h e c e r e manipular as forças sagradas, o p u -
dessem fazer tanto para o b e m c o m o para o mal 2 6 5 . N o e n t a n t o , n ã o nos c h e -
garam notícias de quaisquer c o n d e n a ç õ e s de clérigos p o r feitiçaria.
E m contrapartida, elas existem para leigos, p e r m i t i n d o - n o s , assim, c o n h e -
cer u m p o u c o mais de p e r t o a realidade da magia e dos mágicos medievais

44
A DINÂMICA DA CRISTIANIZAÇÃO E O DEBATE ORTODOXIA/HETERODOXIA

portugueses 2 6 6 , especialmente os d o sexo f e m i n i n o . P o r q u e , se é c e r t o q u e


deparamos c o m alguns h o m e n s a praticar curas milagrosas e feitiços, as m u -
lheres ultrapassavam-nos de l o n g e e m n ú m e r o , c o m o t e m sido n o t a d o p o r
todos os autores q u e se d e b r u ç a r a m sobre esta questão 2 6 7 .
N o caso das m u l h e r e s , era m u i t o c o m u m a acusação de feitiçaria vir asso-
ciada às de prostituição e alcovitaria, mais r a r a m e n t e às de violência e r o u b o .
D e facto, elas praticavam, s o b r e t u d o , u m a magia destinada a favorecer as
u n i õ e s amorosas 2 6 8 , suas o u das clientes, legítimas o u ilegítimas. Para isso, ela-
b o r a v a m filtros e alimentos q u e d a v a m a ingerir às vítimas, o u faziam r e p r e -
sentações destas e m cera, barro e metal, q u e depois s u b m e t i a m a m a n i p u l a -
ções diversas 2 6 9 . T a m b é m acontecia, e m b o r a c o m m e n o s frequência, f a z e r e m
ligamentos, curas mágicas, e lançarem sortes para descobrir objectos r o u b a d o s
ou adivinharem o futuro.
O s feiticeiros masculinos o c u p a v a m - s e , de preferência, da restauração da
saúde dos h o m e n s e dos animais, através de bênçãos e orações, o q u e n ã o e x -
cluía, ocasionalmente, o uso de ervas e outras matérias naturais. Faziam, a i n -
da, «çircos» nas estradas e nas encruzilhadas, talvez destinados a afastar dos
c a m p o s circundantes os caprichos m e t e o r o l ó g i c o s , o u a assegurar a p r o t e c ç ã o
dos viandantes 2 7 0 .
Para além destas práticas mágicas, atestadas pelas cartas de p e r d ã o d o sé-
culo xv, e q u e nós sabemos serem punidas c o m penas de prisão, e m b o r a r e -
míveis a d i n h e i r o , outras fontes r e v e l a m - n o s a existência de crenças «erró-
neas» c o n d e n a d a s a p u r g a r castigos espirituais. O Livro das confissões d e M a r t i m
Perez, datado de inícios de T r e z e n t o s e c o p i a d o para p o r t u g u ê s nos finais
dessa centúria 2 7 1 , refere u m extenso rol de «superstições» q u e i n c l u e m a c r e n -
ça e m estrelas e signos, fadas, esconjuros, malefícios, etc., aplicando-lhes u m
n ú m e r o variável de anos de penitência 2 7 2 . E nele q u e , pela primeira vez na
Península 2 7 3 , se faz referência à crença e m m u l h e r e s q u e «sááem d e n o y t e
e a n d a m p o r os ááres e p o r as terras e q u e e n t r a m p o r os buracos e c o m e n e
ç u g a m as creaturas» 2 7 4 , espécie de bruxas cruzadas c o m vampiros, c o m o j á fez
n o t a r u m historiador português 2 7 5 .
V e r d a d e i r o catálogo dos «pecados de Dollatria e costumes danados dos
gentios» se mostra o estatuto a p r o v a d o na câmara de Lisboa e m 1385 — c u m -
prindo u m a promessa feita para propiciar a vitória na Batalha de Aljubarrota — ,
v i t u p e r a n d o práticas c o m o feitiços, ligamentos, e n c a n t a m e n t o s , olhados, adi-
vinhações, c h a m a m e n t o de diabos e ainda, c o m o j á dissemos, os prantos p e -
los m o r t o s , as Janeiras e as Maias 2 7 6 . Tais c o n d e n a ç õ e s f o r a m reafirmadas p e l o
s í n o d o de Lisboa de 1403, q u e r e t o m o u as prescrições d o prelado anterior 2 7 7 ,
e repetidas pela lei q u e D . J o ã o I p r o m u l g o u nesse a n o e D . A f o n s o V c o n f i r -
m o u e c o m p l e t o u , décadas mais tarde. A p e n a civil para os q u e se dedicassem
a tais práticas e r a m os açoutes públicos, s e n d o a m o r t e reservada aos q u e e m -
pregassem a feitiçaria para causar o f a l e c i m e n t o , a desonra o u a l g u m d a n o à
pessoa, estado e fazenda de alguém 2 7 8 .
A lei p o r t u g u e s a fazia, pois, a distinção e n t r e u m a feitiçaria malévola, dia-
bólica, sujeita à p e n a capital 2 7 9 , e «superstições» reprováveis e u m a magia ile-
gítima mas q u e n ã o tendia para o mal, c o n d e n a n d o - a s a castigos mais ligeiros.
Daí que, e m b o r a os m o d e l o s da feiticeira v o a d o r a e dos invocadores dos d e -
m ó n i o s estivessem inscritos n o imaginário p o p u l a r desde a centúria de T r e -
zentos, pelo m e n o s , eles n ã o recobrissem todos os praticantes de sortilégios,
ligamentos e adivinhações, p o u p a n d o a grande maioria deles à violenta p e r s e -
guição q u e c o n h e c e r a m noutras paragens.

45
A PROCURA DO DEUS ÚNICO

NOTAS
1
ESTRABÃO - Geographia, 3, 3, 6 , e 4 , 16.
2
ALARCÃO - O domínio romano, p . 153 ss.
3
ENCARNAÇÃO - A r e l i g i ã o , p . 4 4 2 ss.
4
FABIÃO - O p a s s a d o p r o t o - h i s t ó r i c o , p . 198.
5
O i n v e n t á r i o d o s d e u s e s i n d í g e n a s d a G a l é c i a r e a l i z a d o p o r A l a i n T r a n o y e m 1981 r e g i s t a
p e l o m e n o s 35 d i v i n d a d e s n a p a r t e p o r t u g u e s a d o conventus d e B r a g a . C f . TRANOY - La Galice ro-
maine, p . 266-286 e ENCARNAÇÃO - A r e l i g i ã o , p . 4 4 2 - 4 6 1 .
6
C f . o s e s t u d o s d e J . d ' E n c a r n a ç ã o e d e C a r d i m R i b e i r o . S o b r e as d i v i n d a d e s i n d í g e n a s e
s u a c r o n o l o g i a , c f . T R A N O Y - La Galice romaine, p. 266-307. O autor fornece u m a ampla biblio-
grafia s o b r e a p r o b l e m á t i c a e m causa. C o n s u l t a r t a m b é m a r e c o l h a d e inscrições e n c o n t r a d a s e m
P o r t u g a l p o r GARCIA - Religiões antigas de Portugal, s o b r e t u d o p . 2 7 7 - 4 5 2 e p . 651-681. Estas ú l t i -
m a s p á g i n a s i n t e g r a m u m a vasta bibliografia r e c o l h i d a até aos a n o s 90.
7
D e p o i s d a o b r a d e VASCONCELOS — Religiões da Lusitânia, d o início d o século xx, t a m b é m
BLÁZQUEZ M A R T I N E Z v i r i a a d e b r u ç a r - s e s o b r e o a s s u n t o n a o b r a Religiones primitivas de Hispania,
e s c r i t a n a d é c a d a d e 6 0 . S u c e d e r a m - s e n o s ú l t i m o s a n o s v á r i o s t r a b a l h o s d a a u t o r i a d e JOSÉ
ALARCÃO e d e J . C . B E R N E J O BARREIRA.
8
FABIÃO - O p a s s a d o p r o t o - h i s t ó r i c o , p . 198.
1
'ALARCÃO - O domínio romano, p . 158.
10
C f . MACIEL e MACIEL - F r a g m e n t o d e ara a E n d o v é l i c o , P . 6 4 .
11
P o d e c o n s u l t a r - s e a r e f l e x ã o f e i t a p o r MACIEL e MACIEL - A p r o p ó s i t o d e u m a n o v a ara,
p . 9-11.
12
C f . BLAZQUEZ - Religiones en la Espana, p . 126.
13
C f . FÉVRIER - R e l i g i o s i t é t r a d i t i o n n e l l e , p . 58 ss.
14
T O V A R e BLAZQUEZ - Historia de la Hispania, p . 171.
1
' A L A R C Ã O — O domínio romano, p . 170.
16
Ibidem, p . 168.
17
S o b r e este santuário p a r t i c u l a r m e n t e estudado c f . a b i b l i o g r a f i a c i t a d a p o r TRANOY - La
Galice romaine, n o t a 21, p . 336.
18
C f . ENCARNAÇÃO - A r e l i g i ã o , p . 4 4 9 .
19
ALARCÃO - O domínio romano, p . 167.
20
T R A N O Y - La Galice romaine, p. 334-349.
21
ENCARNAÇÃO - A r e l i g i ã o , p . 4 5 9 . A p r o p ó s i t o d o s t e s t e m u n h o s r e l a t i v o s a Isis, M i t r a e S e -
r á p i s , c f . T R A N O Y - La Galice romaine, p . 335 ss. S o b r e o c u l t o i m p e r i a l , c o n t i n u a a c t u a l o e x c e -
l e n t e t r a b a l h o d e É T I E N N E - Le culte imperial, 1974. O s d o c u m e n t o s e p i g r á f i c o s d e s d e e n t ã o d e s -
c o b e r t o s n ã o a l t e r a r a m s i g n i f i c a t i v a m e n t e as c o n c l u s õ e s d e s t e e s t u d o .
22
T O V A R e BLÁZQUEZ - Historia de la Hispania, p . 173.
23
Ibidem, p. 177.
24
CHAMPEAUX — La religión romaine.
25
FABIÃO - O p a s s a d o p r o t o - h i s t ó r i c o , p . 2 8 6 .
26
É T I E N N E - Le c u l t e i m p é r i a l , 1 9 9 0 , p . 215-231.
27
T O V A R e BLÁZQUEZ - Historia de la Hispania, p . 183 ss.
28
ENCARNAÇÃO - A r e l i g i ã o , p . 4 5 7 .
29
C f . JAEGER — Cristianismo primitivo, p. 79.
30
IRENEU DE LIÃO - Aduersus haereses, 1.10, c o l . 552-553.
31
TERTULIANO - Aduersus Iudaeos, 7 . 4 , p . 1354.
32
C f . SOTOMAYOR Y M U R O - L a I g l e s i a e n la E s p a n a , v o l . 1, p . 14.
33
Vários m o n u m e n t o s funerários p a r e c e m corresponder a protótipos africanos. C o n v é m l e m -
b r a r a q u i as i n t e n s a s r e l a ç õ e s c o m e r c i a i s e n t r e a Á f r i c a e a H i s p â n i a . C f . JOVER ZAMORA, d i r . - His-
toria de Espana, 2, p . 4 2 0 .
34
C f . GARCÍA M O R E N O - I g l e s i a y c r i s t i a n i z a c i ó n , p . 2 2 9 - 2 3 0 .
35
C f . JOVER ZAMORA, d i r . - Historia de Espana, v o l . 2 , p . 4 1 9 e GARCÍA Y BELLIDO - E l c u l t o
a M i t h r a , p . 283 ss.
36
E l b o r a f o i , d e a c o r d o c o m a t o p o g r a f i a d a Passio d e S a n t a L e o c á d i a , i d e n t i f i c a d a c o m a a c -
t u a l c i d a d e d e T a l a v e r a d e la R e i n a , s i t u a d a e n t r e T o l e d o e M é r i d a . C f . FÁBREGA G R A U , e d . -
Pasionario hispânico, 2, p. 6 6 - 6 7 . H o j e o s a u t o r e s são p r a t i c a m e n t e u n â n i m e s e m i d e n t i f i c a r E l b o r a
c o m a c i d a d e d e É v o r a , n o A l e n t e j o . C f . JOVER ZAMORA, d i r . - Historia de Espana, 2, p. 4 2 0 .
37
C f . LEPELLEY - Les cites de 1'Afrique, p. 402.
38
CARTA aos Romanos, 15, 2 4 .
39
J E R Ó N I M O - Commentariorum in Isaiam, 2 , 1 2 . 4 , c o l . 54.
40
A T A N Á S I O - Epistula ad Dracontium, 4, c o l . 528.
41
C I R I L O DE ALEXANDRIA - Catecheses, 17.26; col. 997.
42
J O Ã O CRISÓSTOMO - Epistula ad hebraeos, pref., c o l . 11.
43
O s historiadores c o n t e m p o r â n e o s n ã o estão de a c o r d o sobre a realização desta viagem. P a -
ra u n s ela t e v e c e r t a m e n t e l u g a r , p a r a o u t r o s ela t e r i a s i d o u m m e r o p r o j e c t o . C f . a este p r o p ó s i -
t o M O R E I R A - A c r i s t i a n i z a ç ã o , p . 35 ss.
44
C f . BLÁZQUEZ M A R T Í N E Z - Ciclos y temas, p . 2 8 8 e VEGA - L a v e n i d a d e S a n P a b l o , p . 7 - 7 8 .
S o b r e esta p r o b l e m á t i c a v e r DÍAZ Y DÍAZ - E n t o r n o d e los o r í g e n e s d e i c r i s t i a n i s m o , p . 4 2 7 , sa-
l i e n t a q u e : «La n a r r a c i ó n d e e s t e a p o s t o l a d o d e S a n t i a g o c i r c u l o c o m o p u r o d a t o d e e r u d i c i ó n
h a s t a q u e s e a b r e c a m i n o p o p u l a r a fines d e i s i g l o VIII d e la E s p a n a d e i N o r t e , y q u i e r o s u b r a y a r
l o d e E s p a n a d e i N o r t e p o r q u e e n t r e l o s m o z á r a b e s (...) e l c u l t o a S a n t i a g o , q u e a l c a n z a u n r e l i e -
v e n o t a b l e , n o a p a r e c e n u n c a i n t e r f e r i d o p o r la n o t i c i a d e s u p r e d i c a c i ó n h i s p â n i c a . »
45
C f . a n o t í c i a d e Aldhelmus ( a b a d e d e M a l m e s b u r y ) - Poema de Aris Beatae Mariae, col. 293.
E s t a n o t í c i a é r e t i r a d a d o Breviarium apostolorum, c o m p o s t o p o r v o l t a d e 6 0 0 . E s t a o b r a está n a

46
A DINÂMICA DA CRISTIANIZAÇÃO E O DEBATE ORTODOXIA/HETERODOXIA

o r i g e m d e t o d a s as i n f o r m a ç õ e s p o s t e r i o r e s r e l a t i v a s à c h e g a d a d e S ã o T i a g o à H i s p â n i a . C f . t a m -
b é m GAIFFIER, e d . - Le Breviarium apostolorum, p . 89-116.
46
Para u m e s t a d o d a q u e s t ã o , v e r SOTOMAYOR Y M U R O - La Iglesia en la Espana, vol. 1,
p . 150-156.
47
C f . VIVES, e d . - L a v i t a T o r q u a t i e t c o m i t u m , p . 2 2 7 - 2 3 0 . A o r i g e m d a t r a d i ç ã o d o s « p e r -
s o n a g e n s apostólicos» está, p r o v a v e l m e n t e , r e l a c i o n a d a c o m a r e o r g a n i z a ç ã o d o t e r r i t ó r i o e c l e -
s i á s t i c o a p ó s as i n v a s õ e s m u ç u l m a n a s . S o b r e e s t a p r o b l e m á t i c a , c f . GARCÍA R O D R I G U É Z - El culto
de los santos, p . 351 e VIVES - L a s A c t a s d e l o s V a r o n e s , p . 33-43.
48
C f . LE LÍBER Ordinum, p . 319.
49
C f . PASIONARIO hispânico, v o l . 1, p . 125-130.
50
O m e s m o a c o n t e c i a n a G á l i a , c o m o m o s t r a ROBLIN - F o n t a i n e s s a c r é e s , p . 235.
51
C f . D E L P E C H - L a l é g e n d e : r é f l e x i o n s , p . 3 0 0 e BOUREAU - P o u r u n d i s c o u r s d e la mé-
t h o d e religieuse, p. 46.
52
C f . o e s t u d o s o b r e as l e n d a s a p o s t ó l i c a s d e OLIVEIRA - Lenda e história, p . 79-110.
53
C f . FERNÁNDEZ C A T Ó N - San Maneio, p . 237.
54
C f . MARTYROLOGIUM romanum [25 a o u t ] , p . 4 4 7 . S o b r e o p e r s o n a g e m G e n s , c f . D A V I D -
Etudes historiques, p . 2 0 5 - 2 0 9 e M O R E I R A - Potamius de Lisbonne, p . 51-52.
55
C o m o a c o n t e c i a , a l i á s , n o O r i e n t e . C f . FÉVRIER - M a r t y r e e t s a i n t e t é , p . 6 4 ss.
56
O t e r m o s e r á s e m p r e u t i l i z a d o e n t r e a s p a s (tal c o m o f e z S C H M I T T - Les « s u p e r s t i t i o n s » ) , p a -
ra m a r c a r q u e se trata d e u m a p a l a v r a d a é p o c a e n ã o d e u m c o n c e i t o a c t u a l d o h i s t o r i a d o r .
57
MATTOSO - A difusão d o cristianismo, p. 285.
58
C f . C I P R I A N O DE CARTAGO - Epistula 67, p . 4 4 6 - 4 6 2 . S o b r e esta carta d e C i p r i a n o , ver
t a m b é m VELADO G R A S A - L a c a r t a s i n o d a l , p . 2 9 3 .
59
O s casos d e apostasia d e bispos d u r a n t e a p e r s e g u i ç ã o d e D é c i o f o r a m n u m e r o s o s . Cf., p o r
e x e m p l o , EUSÉBIO DE CESAREIA, Historia - 8.3, 1, p . 8.
60
S o b r e C i p r i a n o d e C a r t a g o , v e r SAUMAGNE - Saint Cyprien, 1975.
61
C f . a p r o p ó s i t o d a i d o l a t r i a , p o r e x e m p l o , o c â n o n 4 1 ( « A d m o n e r i p l a c u i t fideles, u t i n
q u a n t u m p o s s u n t p r o h i b e a n t n e i d o l a v i n d o m i b u s suis h a b e a n t . Si v e r o v i m m e t u u n t s e r v o r u m
v e l se i p s o s p u r o s c o n s e r v e n t ; si n o n f e c e r i n t , a l i e n i a b e c c l e s i a h a b e a n t u r » ) e s o b r e o s j u d e u s e as
s u a s r e l a ç õ e s c o m o s c r i s t ã o s , o s c â n o n e s 16, 4 9 e 50, VIVES - Concílios, p . 4 , 9 e 10.
62
S C H M I T T , Les « s u p e r s t i t i o n s » , p . 4 2 5 .
63
S o b r e e s t e p e r í o d o h i s t ó r i c o cf. MATTOSO - A é p o c a s u e v a e v i s i g ó t i c a , p . 302-359.
64
LEGUAY - O « P o r t u g a l » g e r m â n i c o , p . 91.
65
C f . e d . da U n i v e r s i d a d e d o M i n h o , 1986.
66
C f . SILVA - I n t r o d u ç ã o , História contra os pagãos, p. 7.
67
Ibidem, p . 11.
68
C f . VASCONCELOS - Religiões da Lusitânia, v o l . 3, p . 5 9 4 .
69
B R O W N - Le culte des saints.
70
LEGUAY - O « P o r t u g a l » g e r m â n i c o , p . 9 2 .
71
S C H M I T T - Les « s u p e r s t i t i o n s » , p . 4 2 9 ss.
72
M A R T I N H O DE. BRAGA, Instrução pastoral sobre superstições. Cf., a este p r o p ó s i t o , o capítulo i n -
t r o d u t ó r i o d e NASCIMENTO, A i r e s d o - O D e c o r r e c t i o n e r u s t i c o r u m : f o r m a , c o n t e ú d o s , i n t e n -
c i o n a l i d a d e , n a e d i ç ã o c i t a d a , p . 3 7 ss.
73
DÍAZ Y DÍAZ - Las o r i g e n e s cristianas, p . 277-284.
74
C f . e n t r e o u t r o s , MACIEL - O D e c o r r e c t i o n e r u s t i c o r u m , p . 483-561 e MATTOSO - Acultu-
r a ç ã o r e l i g i o s a , p . 83 ss.
75
C f . M A C I E L - T e x t o s o b r e as c r e n d i c e s , p . 3 0 9 - 3 2 0 e FÉVRIER - R e l i g i o s i t é t r a d i t i o n n e l l e ,
p . 7 6 . S o b r e a a c ç ã o d e M a r t i n h o d e D u m e c f . t a m b é m BRANCO - S t . M a r t i n o f B r a g a .
76
M A T T O S O - A c u l t u r a ç ã o r e l i g i o s a , p . 8 5 - 8 9 . C f . t a m b é m a e s t e p r o p ó s i t o IDEM - R a í z e s d a
missionação, p. 78
77
C f . FÉVRIER - R e l i g i o s i t é t r a d i t i o n n e l l e , p . 7 5 - 8 3 .
78
S C H M I T T - Les « s u p e r s t i t i o n s » , p . 4 4 2 .
79
C f . VITA Sancti Fructuosi, v o l . 2, p . 98.
80
M E S L I N — P e r s i s t a n c e s p a i e n n e s , p . 512-524.
81
C f . SILVA - N o r m a e d e s v i o , p . 1 4 4 - 1 4 6 .
82
C f . BENNASSAR e BONNASSIE - Histoire des Espagnols, v o l . 1, p . 33-35.
83
VIVES - Concílios, p . 68.
84
C f . ISIDORO DE SEVILHA - Etimologias, 8.9, p . 713-717.
85
LEGUAY - O « P o r t u g a l » g e r m â n i c o , p . 9 0 .
86
VIVES - Concílios, c a n . 1.°, p . 81.
87
Ibidem, p . 8 5 - 1 0 6 . C f . t a m b é m CHAVES - C o s t u m e s e t r a d i ç õ e s , p . 2 4 3 - 2 7 8 .
88
C f . BARLOW - Martini episcopi, p . 6 5 , 6 9 , 7 4 , 150, 2 0 4 .
89
Ibidem, p . 2 5 6 ss.
90
M O R E I R A - Potamius de Lisbonne.
91
IDÁCIO - Chronicon, 2 3 2 , p . 173.
92
C f . s o b r e t u d o o a r t i g o d e D O M Í N G U E Z DEL VAL - P o t â m i o d e L i s b o a , p . 2 3 7 - 2 5 8 .
93
FAUSTINO e M A R C E L I N O - De confissione uerae fidei, 32, p . 3 6 8 .
94
C f . M O R E I R A - Potamius de Lisbonne, p . 91.
95
Ibidem, p. 96.
96
FEBÁDIO DE A G E N - Liber contra arianos, 5, c o l . 16.
97
S o b r e e s t a q u e s t ã o v e r e s p e c i a l m e n t e M O R E I R A - Potamius de Lisbonne, p . 114.
98
Ibidem, p . 151.
99
H I L Á R I O DE POITIERS - Liber de synodis, 3, c o l . 4 8 2 - 4 8 3 .
100
Ibidem, 11, c o l . 4 8 7 .
101
C f . M O R E I R A - Potamius de Lisbonne, p . 158.

47
A PROCURA DO DEUS ÚNICO

102
Ibidem, p . 1 4 6 e 151.
103
Ibidem, p . 122-123; IDEM - Le r e t o u r d e P o t a m i u s , p . 314.
104
C f . s o b r e o c o n j u n t o da p r o b l e m á t i c a M O R E I R A - Potamius de Lisbotme, p. 96-106.
105
C f . H I L Á R I O DE POITIERS - Collectanea antiariana, 3.1, p . 155.
106
C f . Ibidem, 3.2, p . 155.
107
FAUSTINO e M A R C E L I N O - De confessione uerae fidei, 32, p . 3 6 8 .
108
Ibidem, 41, p . 3 7 0 .
109
C f . M O R E I R A - Potamius de Lisbonne, p. 68.
110
Ibidem, p. 190.
111
C f . ATANÁSIO - Epistula ad Epictetum, 1, c o l . 1051-1052.
112
C f . M O R E I R A - Le r e t o u r d e P o t a m i u s , p . 3 4 2 .
113
C f . IDEM - Potamius de Lisbonne, p . 257.
114
POTÂMIO - De Lazaro, p. 302.
115
C f . M E S L I N - Les Ariens d'Occident, p . 32.
116
C f . SIMONETTI - L a c r i s i a r i a n a , p . 131 e M O R E I R A - Le r e t o u r de Potamius, p . 328.
117
FEBÁDIO DE A G E N - Liber contra arianos, 5, p . 16.
118
C f . s o b r e t u d o BOULARAND - L'hérésie d'Árius, 1972.
" 9 P O T Â M I O , Epistula de substantia, 18, c o l . 2 0 8 .
120
Ibidem, 10, c o l . 2 0 6 .
121
L'UNITÉ de 1'homme, p . 257.
122
U m g r u p o s i g n i f i c a t i v o d e s t e s t e x t o s é d e o r i g e m a f r i c a n a . C f . , p o r e x e m p l o : Sermo arría-
norum, c o l . 6 7 7 , 6 8 7 ; Ad Trasimundo regem vandalorum, 3, c o l . 2 2 3 - 3 0 4 e Sermo fastidiosi, ed. J.-P.
M i g n e , c o l . 3 7 5 - 3 7 7 . C o n s u l t a r t a m b é m ORLANDIS - E l a r r i a n i s m o v i s i g o d o , p . 8; SIMONETTI -
A r i a n e s i m o l a t i n o , p . 6 8 9 e G O D O Y e VILLELA - De la fides gothica, p . 117-144.
123
A p r o p ó s i t o d a c o e x i s t ê n c i a e n t r e R o m a n o s e G e r m a n o s n a H i s p â n i a , c f . as i n f o r m a ç õ e s
f o r n e c i d a s p o r PAULO O R Ó S I O — Historiarum adversus paganos, e IDÁCIO — Chronicon. Cf. t a m b é m
ORLANDIS — Historia de Espana, p. 46-50.
124
C f . Ibidem, p . 9 9 ss.
125
C f . ALONSO CAMPOS - S u n n a , M a s o n a y N e p o p i s , p . 152.
126
C f . VITAE sanctorum patrum emeritensium, 5.5, p . 57.
127
Ibidem, p . 58.
128
C O L L I N S - D ó n d e e s t a b a n les a r r i a n o s , p . 215.
129 yITAE sanctorum patrum emeritensium, 5.5, p . 5 8 - 5 9 . S o b r e o c o n f r o n t o , e m M é r i d a , e n t r e o
b i s p o M a s o n a e o b i s p o a r i a n o S u n n a , c f . a i n d a SCHAEFERDIEK - Die Kirche in den Reichen der
Westgoten, p . 165-179 e GARCÍA M O R E N O - Prosopograjia dei Reino, n . ° 435, p . 1 6 6 - 1 6 9 .
130 y1TAE sanctorum patrum emeritensium, 5.5, p . 6 2 .
131
Ibidem, 5.6, p . 7 0 - 7 1 .
132
Ibidem, 5.10, p . 8 2 - 8 5 E JOÃO DE BICLARA - Chronicon, anno vtt, Mauricii, 1, p . 9 7 . V e r tam-
bém GARCÍA M O R E N O - Prosopografia dei Reino, n.°35, p. 40-43.
133
C f . A L O N S O C A M P O S - S u n n a , M a s o n a y N e p o p i s , p . 154.
134
B O L O G N E - Da chama à fogueira, p. 78.
135
SULPÍCIO SEVERO - Chronica, 2, 4 6 . 3 , p . 9 9 .
136
C f . J E R Ó N I M O - Epistula 7 5 , 3 . 4 , p . 32-33.
137
SULPÍCIO SEVERO - Chronica, 2, 4 6 . 5 , p . 9 9 .
138
Ibidem, 2, 4 6 . 2 , p . 9 9 .
139
C f . ISIDORO DE SEVILHA - De uiris ilustribus, p . 135.
140
P e n s e m o s n o e x c e r t o j á c i t a d o d a h o m i l i a d e P o t â m i o s o b r e o s u p l í c i o d e Isaías q u e atesta
b e m a leitura n o O e s t e peninsular de apócrifos judaico-cristãos.
141
I s t o m e s m o é s u b l i n h a d o p o r M E N É N D E Z PELAYO - História de los heterodoxos espaiioles, 1,
p . 131-247. E s t e a u t o r c o n s i d e r a P r i s c i l i a n o c o m o h e r é t i c o e i n i c i a d o r d e u m a s e i t a g n ó s t i c a d e
raiz m a n i q u e i a .
142
Esta d o u t r i n a o p u n h a r a d i c a l m e n t e o b e m a o m a l e o e s p í r i t o à m a t é r i a . P o r isso, c o n d e -
n a v a a h i e r a r q u i a religiosa e civil, a s e x u a l i d a d e e a posse d e b e n s materiais.
143
E s t a m o s perante u m a doutrina q u e p r o c l a m a v a a prevalência d o c o n h e c i m e n t o espiritual
o u místico sobre toda a espécie de práticas cultuais, a prevalência da vivência sobre a doutrina, e
a das práticas iniciáticas d e s t i n a d a s a a l g u n s s o b r e a liturgia p ú b l i c a d e s t i n a d a a t o d o s .
144 ££ TRACTATUS CSEL, 18, p . 1 - 1 0 6 . S o b r e a a u t o r i a d e s t e s t r a t a d o s v e r ESCRIBANO PANO -
Iglesia y Estado, p . 57-113.
145
C f . M A D O Z - A r r i a n i s m o y p r i s c i l i a n i s m o , p . 7 2 . P a r a e s t e a u t o r , o s Tratados de Wiirzburg
contribuíram para agravar o debate sobre o m a n i q u e í s m o e o gnosticismo, acusações q u e a tradi-
ç ã o faz cair s o b r e P r i s c i l i a n o .
146
S o b r e o d e s e n v o l v i m e n t o d o p r i s c i l i a n i s m o n a G a l é c i a a p a r t i r d o s é c u l o v , c f . ESCRIBANO
P A N O - Iglesia y Estado, p . 46-52.
147
S o b r e t u d o a r t i g o P a n o r a m a e s p i r i t u a l , 1981.
148
A G O S T I N H O DE H I P O N A - Epistula 36, p . 57 e PRÓSPERO DE AQUITÂNIA - Chronica, 1171,
p. 4 6 0 .
149
S o b r e as f o n t e s a n t i p r i s c i l i a n i s t a s c f . a lista d e ESCRIBANO P A N O - Iglesia y Estado, p . 4 2 ss.
150
C f . MATTOSO - R a í z e s da m i s s i o n a ç ã o , p . 73.
151
C f . R O D R Í G U E Z CASIMIRO - La Galicia, p . 2 9 3 - 2 9 4 .
152
C f . SULPÍCIO SEVERO - Chronica, 2, 4 6 . 8 e 4 7 . 3 - 4 , p . 1 0 0 - 1 0 5 .
153
C f . R O D R Í G U E Z - C o n c i l i o I d e Z a r a g o z a , p . 12.
154 V [ v E S _ Concílios, p . 16.
156
C f . FATAS - C a e s a r a u g u s t a C h r i s t i a n a , p . 155.
156
C f . RAMOS-LISSON - E s t ú d i o s o b r e e l c â n o n v , p . 2 0 7 - 2 2 4 .
157
C f . VIVES - Concílios, p . 17.

48
A DINÂMICA DA CRISTIANIZAÇÃO E O DEBATE ORTODOXIA/HETERODOXIA

158
GRIFFE — É t u d e s u r le c â n o n n , p . 162.
159
VIVES - Concílios, p . 16.
160
Ibidem, p . 16-17.
161
Ibidem, p . 17-18.
162
S o b r e e s t a p r o b l e m á t i c a c f . GONZÁLEZ BLANCO - E l c â n o n 7 d e i c o n c i l i o , p . 2 5 2 , o n d e
n o t a q u e «El c â n o n , p u e s , n o d e b e e n t e n d e r s e e n el s e n t i d o d e q u e los laicos n o p u e d a n e n s i n a r ,
s i n o q u e s u p u e s t o u n c o n t e x t o social e n el q u e el m a g i s t é r i o n o está c e n t r a l i z a d o y los o b i s p o s
r e u n i d o s v e n l o s p r o b l e m a s q u e a c a r r e a la i n i c i a t i v a p r i v a d a e n la v i d a C r i s t i a n a d e las c o m u n i d a -
des, el c â n o n p r e t e n d e e s t a b e l e c e r u n o r d e n y u n c o n t r o l , l o m i s m o q u e s o l í a n h a c e r los c o n c i -
l i o s e n las m a t é r i a s d i s c i p l i n a r e s o d o g m á t i c a s . »
163
C f . A G O S T I N H O DE H I P O N A - Epistula 36, 2 8 . 1 - 2 , p . 57, n a q u a l c r i t i c a o s priscilianistas
q u e , c o m o os m a n i q u e u s , t i n h a m o h á b i t o d e j e j u a r a o d o m i n g o .
164
SULPÍCIO SEVERO - Chronica, 2 , 4 7 . 1 - 3 . p . 1 0 0 . V e r t a m b é m ESCRIBANO PANO - S o b r e la
p r e t e n d i d a c o n d e n a n o m i n a l , p . 123-133.
165
Ibidem, 2, 4 7 . 5 - 7 , p . 1 0 0 - 1 0 1 . V e r t a m b é m BABUT - Priscillien, p . 149-151.
166
C f . SULPÍCIO SEVERO - Chronica, 2 , 5 0 . 8 e 51.2-3, p . 1 0 3 - 1 0 4 .
167
IDÁCIO - Chronicon, 16, p . 1 0 9 .
168
SULPÍCIO SEVERO - Chronica, 2, ,51.7-8, p . 1 0 4 - 1 0 5 .
169
C f . C H A D W I C K - Prisciliano de Avila, p. 206.
170
VIVES - Concílios, p . 19.
171
Ibidem, p . 2 8 ss. C o n s u l t a r , a e s t e p r o p ó s i t o , BABUT - Priscillien, p . 187 e 2 8 6 .
172
C f . VIVES - Concílios, p . 25-28.
173
C f . ESCRIBANO PANO - C r i s t i a n i z a c i ó n y l i d e r a n z o , p . 271.
174
C f . T R A N O Y - La Galice romaine, p . 4 2 8 ss.
175
V I G I L O - Epistula, p . 49-53.
176
MATTOSO - A d i f u s ã o d o c r i s t i a n i s m o , p . 283-287.
177
IDEM - B r e v e i n t e r p r e t a ç ã o , p . 291.
178
LEÃO I — Ad Turibium, col. 693-695.
179
IDXCIO - Chronicon, 130, 133, 138, p . 1 4 0 - 1 4 2 . S o b r e a I g r e j a e o s S u e v o s c f . SOTOMAYOR -
Iglesia, p . 3 9 0 - 3 9 2 .
180
C f . , a e s t e p r o p ó s i t o , TRANOY - La Galice romaine, p. 443.
181
C0MM0NIT0RWM In. PL 31, c o l . 1211-1216.
182
M A R T I N S - Correntes da filosofia, p. 74.
183
Ibidem, p . 150.
184
S o b r e e s t e s m o v i m e n t o s c f . a i n d a Ibidem, p . 143-165.
185
Liber apologeticus, PL 31, c o l . 1173-1212. C f . t a m b é m SILVA - I n t r o d u ç ã o , História contra os
pagãos, p . 9 . S o b r e a l u t a a n t i p e l a g i a n a v e r M A R T I N S - Correntes de filosofia, p . 1 7 9 .
,8
'‫ י‬C f . s o b r e t u d o RIVERA R E C I O - L a I g l e s i a m o z a r a b e , p . 2 1 - 6 0 .
187
Ibidem, p . 35-36.
188
S o b r e a p r o b l e m á t i c a d o a d o p c i o n i s m o n o s s é c u l o s VIII e i x c f . GAVADINI - T h e last c h r i s -
t o l o g y o f t h e W e s t e RIVIERA R E C I O - El adopcionismo en Espana.
LS
" RIVERA R E C I O - L a I g l e s i a m o z a r a b e , p . 41.
190
C f . PL 1 0 4 , c o l . 4 4 1 .
191
M G H c o n c , v o l . 2, 123.
192
V e j a - s e , n o m e a d a m e n t e , a i m p o r t â n c i a d o c a t a r i s m o e d o v a l d i s m o na C a t a l u n h a e, em
m e n o r m e d i d a , e m L e ã o e C a s t e l a : O L I V E R - L a h e r e j í a , p . 82-111.
193
GEREMEK - H é r é s i e s m é d i é v a l e s , p . 55-56.
194
D U B Y - O ano mil. IDEM - As três ordens.
195
MATTOSO - P o r t u g a l n o r e i n o a s t u r i a n o - l e o n ê s , p . 491-525.
196
S o b r e e s t a q u e s t ã o , v e r 1.* P a r t e , c a p . 3. A l g o d e s e m e l h a n t e a c o n t e c e u e m T o l e d o -
c f . PASTOR DE T O G N E R I - Del Islam al Cristianismo, p . 114-118.
197
LITTLE — Pobreza voluntária.
198
B O L T O N - A reforma, p . 6 3 - 7 6 .
199
A b i b l i o g r a f i a s o b r e o c a t a r i s m o é i n f i n d á v e l . V e j a - s e , e n t r e o u t r o s , D U V E R N O Y - La reli-
gion des cathares. IDEM - L'Histoire des cathares. N E L L I - Q s cátaros. S o b r e a p e r s i s t ê n c i a d e s t a h e r e -
sia a t é a o s é c u l o x r v , c f . L E ROY LADURIE - Montaillou.
200 \ 4 I T R E E GRANDA - Las grandes herejías, p . 173-177.
201
LIVRO das Leis e Posturas (LLP), p . 10-11. ORDENAÇÕES del-rei D. Duarte (ODD), p. 44-45.
202
D e f a c t o , o C o n c í l i o d e V e r o n a , d e 1184, n o q u a l se h a v i a a n a t e m a t i z a d o d i v e r s o s t i p o s d e
heréticos, havia c o n f i a d o a busca e perseguição d e s t e s a o o r d i n á r i o l o c a l (OLIVER - L a i n q u i s i -
c i ó n m e d i e v a l , p . 112.)
203
S o b r e e s t a q u e s t ã o , c f . HERCULANO - História de Portugal, v o l . 2 , p . 3 0 5 - 3 0 9 , 3 3 9 - 3 4 0 , 5 9 7 -
- 6 0 1 e 6 5 2 . AZEVEDO - História de Portugal, v o l . 5, p . 1 8 0 - 1 8 6 . ROSÁRIO - P r i m ó r d i o s d o m i n i c a n o s ,
p . 2 0 5 - 2 4 9 . CAEIRO - S o b r e h e r e s i a s .
204
CUSTÓDIO - R e l i g i o s i d a d e m e d i e v a l , p . 7 6 - 7 7 .
205
LLP, p . 1 9 - 2 0 , ODD, p . 53.
206
TAVARES - H e r e s i a , n o p r e l o .
207
P o r o p o s i ç ã o a o p o p u l a r ( c f . LEEF - H é r é s i e s a v a n t e , p . 219).
208
COSTA - Estudos sobre Alvaro Pais, p. 66.
209
BARBOSA - O «De Statu», p . 107.
210
CAEIRO - Heresias e pregação, n o t a 6, p. 302.
211
T a l f o r m a d e p e n s a m e n t o havia florescido na U n i v e r s i d a d e d e Paris n o século anterior, t e n d o
s i d o c o n d e n a d a p o r i n i c i a t i v a d o b i s p o l o c a l e m 1 2 7 7 (cf. L E G O F F - Os intelectuais, p . 113-119).
212
Crença q u e partilhava c o m o u t r o herético, Afonso Geraldes de M o n t e m o r , igualmente
f u s t i g a d o p o r A l v a r o Pais. C f . MARTINS - F r e i A l v a r o Pais, p. 7 4 .

49
A PROCURA DO D E U S ÚNICO

213
Ibidem; IDEM - A s a c u s a ç õ e s , p . 2 8 5 - 3 0 6 .
214
C O S T A - Estudos sobre Alvaro Pais, p . 6 7 .
215
BARBOSA - O «De Statu», p . 7 6 e 85.
216
S o b r e e s t a q u e s t ã o c f . MANTEUFFEL - Naissance d'une hérésie.
217
CAEIRO - H e r e s i a s e p r e g a ç ã o , p . 301. M A R T I N S - A p o l é m i c a r e l i g i o s a e F r e i João,
p. 307-326. S o b r e a apologética antijudaica, leia-se o capítulo seguinte deste v o l u m e .
218
S o b r e e s t e s m o v i m e n t o s c f . M O L L A T e W O L F F - Ongles bleus. F O U R Q U I N - Les soulèvements
populaires. H Í L T O N - Bond men made Jree.
219
S o b r e o c o n t e x t o social deste p e r í o d o e a multiplicação d e p e d i n t e s e p r e g a d o r e s i t i n e r a n -
t e s c f . RAU - Sesmarias medievais, p . 7 6 - 9 3 ( c i t a ç ã o d a lei p . 2 6 9 ) e CAEIRO - H e r e s i a s e p r e g a ç ã o ,
p. 303-304.
220
CARVALHO - C o n q u i s t a r e profetizar, p. 72-75. S o b r e a figura deste eremita português
c f . IDEM - N a s o r i g e n s .
221
TAVARES - C o n f l i t o s s o c i a i s , p . 3 0 9 . S o b r e e s t a s f o r m a s d e p e n s a m e n t o c f . , c o m f o r t e e s p í -
rito c r í t i c o , BRUNETI - A lenda do Graal.
222
J á p o s t o e m e v i d ê n c i a p o r TAVARES - C o n f l i t o s s o c i a i s , p . 318-319. M O N T E I R O - Fernão Lo-
pes, p . 114-119. AMADO - Fernão Lopes, p . 31-32.
223
VENTURA - O Messias, p . 1 - 2 . IDEM - O A l g a r v e , p . 7 4 .
224
C o m o e r a o c a s o d e F r e i J o ã o d a B a r r o c a , s e g u n d o MARTINS - Um capítulo de mística,
p. 470.
225
TAVARES - C o n f l i t o s s o c i a i s , p . 318-319. REBELO - A concepção do poder, p . 8 0 - 8 1 . VENTURA -
O Messias, p. 27-42.
226
REBELO - A concepção do poder, p . 6 8 - 7 1 . VENTURA - O Messias, p . 51. S o b r e e s t e p e n s a d o r
m e d i e v a l , c f . REEVES - Joachim of Fiore.
227
LLP, p . 8 2 . ODD, p. 298.
228
TAVARES - Judaísmo, p. 107.
229
FERREIRA - Afonso X , p. 262.
230
ORDENAÇÕES 'de D. Afonso V ( C M ) , L . v , T i t . 1, p . 2 - 5 e T i t . LXXXXVIII, p . 353-355.
231
MORENO - Injúrias e blasfémias, p. 86.
232
D U A R T E - Justiça e criminalidade, p . 3 6 8 . E s t e a u t o r a p e n a s e n c o n t r o u 18 c a s o s d e a c u s a ç õ e s
d e b l a s f é m i a e n t r e as c a r t a s d e p e r d ã o q u e e s t u d o u , r e p r e s e n t a n d o 1,4 % d o t o t a l - Ibidem, p . 2 6 6
e 269.
233
SYNODICON, v o l . 11, p . 119, 321, 3 7 6 .
234
C r i a d a a p a r t i r d o I V C o n c í l i o d e L a t r ã o , d e 1215, e s t a i n q u i s i ç ã o f o i m e s m o , p o r tal m o t i -
v o , i n t i t u l a d a d e m o n á s t i c a - O L I V E R - L a i n q u i s i c i ó n m e d i e v a l , p . 113.
235
PEREIRA - U m p r o c e s s o , p . 1 9 6 - 1 9 7 .
236
G O M E S - É t i c a e p o d e r , d o e . 2 3 A , p . 134.
237
S o b r e e s t e s h e r e s i a r c a s c f . W O R K M A N - John Wyclif e V O O G H T - Vhérésie de Jean Huss.
238
D U A R T E , D o m - Leal conselheiro, p . 3 4 0 , 343, 3 4 8 e ss.
239
Ibidem, p. 302.
240
Ibidem, p . 141. A o b r a d e s t e a u t o r , a c u s a d o d e m a g i a m a s b e a t i f i c a d o a p ó s o s e u m a r t í r i o às
m ã o s d o s m u ç u l m a n o s , f o i d e c l a r a d a h e r é t i c a p o r G r e g ó r i o X I e m 1376, e r e a b i l i t a d a e m 1419
(cf. B O L O G N E - Da chama à fogueira, p. 68-70).
241
C o m o j á f o i s u g e r i d o p o r CARVALHO - Desenvolvimento da filosofia, p . 3 4 9 e VENTURA —
H e r e s i a s e d i s s i d ê n c i a s , p . 314-315.
242
CABIDO da Sé, p . 131 e 301-301.
243
LLP, p . 121-122. OA, L 11, T i t . LXXVII, LXXXXV e c x x i , p . 4 5 7 - 4 6 1 , 5 2 0 - 5 2 1 e 5 6 3 - 5 6 4 .
244
TAVARES - Os Judeus, p. 4 4 4 - 4 4 7 . S o b r e a I n q u i s i ç ã o m o d e r n a , v e r o 2.° v o l u m e desta c o -
lecção.
245
CAEIRO - H e r e s i a s e p r e g a ç ã o , p . 3 0 0 . VENTURA - H e r e s i a s e d i s s i d ê n c i a s , p . 3 0 4 - 3 0 5 .
246
C f . B O L O G N E - Da chama à fogueira, p. 282-292.
247
BURCKHARDT - A civilização da Renascença p. 420.
248
G O G L I N - Les misérables, p. 206.
249
B O L O G N E - Da chama à fogueira, p. 263-264.
250
M U C H E M B L E D - La sorcière au village, p . 73.
251
B E T H E N C O U R T - O imaginário da magia, p . 258-259.
252
Ibidem, p. 259-260.
253
É e s s a a h i p ó t e s e d e SILVA - N o r m a e d e s v i o , p . 121-122.
254
S í n o d o d e B r a g a d e 1477, c o n s t i t . 4 4 - SYNODICON, v o l . 2 , p . 117.
255 V e j a - s e SANCHIS - Arraial.
256
S í n o d o d e L i s b o a d e 1 4 0 3 , c o n s t i t . 23 - SYNODICON, v o l . 2 , p . 335.
257
S o b r e as c o n t i n u i d a d e s e as d i f e r e n ç a s patentes, por exemplo, nos rituais da morte
cf. MATTOSO - O p r a n t o f ú n e b r e , p . 205-214.
258
S í n o d o s d e B r a g a d e 1281, c o n s t i t . 4 0 e d e 1 4 7 7 , c o n s t i t . 11 - SYNODICON, v o l . 2, p . 2 2 - 2 3
e 88.
259
Proteger animais da doença é o exemplo dado por SCHMITT - Les «superstitions»,
p . 510-511.
260
C f . BOLOGNE - Da chama à fogueira, p . 185-201.
261
A s s i m , u m a u t o r p r o f u n d a m e n t e cristão c o m o D . D u a r t e alerta os seus leitores contra
a c r e n ç a e m p r o f e c i a s , s o n h o s , v i s õ e s e c i ê n c i a s o c u l t a s ( L e a l conselheiro, p . 146).
262
S í n o d o s d e B r a g a d e 1281, c o n s t i t . 35, d e 1 4 7 7 , c o n s t i t . 4 6 e d e 1505, c o n s t i t . 2 2 ; s í n o d o d a
G u a r d a d e 1500, c o n s t i t . 64; s í n o d o d e L i s b o a d e c. 1240, c o n s t i t . 9; s í n o d o d o P o r t o d e 1496,
c o n s t i t . 25; SYNODICON, v o l . 2, p . 21, 119, 156, 2 5 7 , 2 9 0 e 373.
263
TRATADO de Confissom, p . 196.
264
SILVA - N o r m a e d e s v i o , p . 128-130.

50
A DINÂMICA DA CRISTIANIZAÇÃO E O DEBATE ORTODOXIA/HETERODOXIA

265
Sobre os papas e clérigos acusados de feitiçaria cf. BOLOGNE - Da chama à fogueira,
p. 62-67.
266
D i v e r s o s a u t o r e s c o m p i l a r a m c a r t a s d e p e r d ã o r e l a t i v a s a c r i m e s d e f e i t i ç a r i a : AZEVEDO -
B e n z e d o r e s e f e i t i c e i r o s , p . 3 3 0 - 3 4 7 . IDEM - S u p e r s t i ç õ e s p o r t u g u e s a s , p . 2 0 0 - 2 1 5 . M O R E N O -
A f e i t i ç a r i a , p . 35-41. F o i n e l a s q u e c o l h e m o s o s d a d o s q u e a s e g u i r a n a l i s a m o s .
267
M O R E N O - A f e i t i ç a r i a , p . 33. FERREIRA - B r e v e s n o t a s s o b r e f e i t i c e i r a s , p . 12. BETHENCOURT -
O imaginário da magia, p . 1 7 6 - 1 7 7 . BOLOGNE - Da chama à fogueira, p. 47.
28
'‫ ׳‬C o m o j á n o t a r a m M O R E N O - A f e i t i ç a r i a , p . 2 7 e BOLOGNE - Da chama à fogueira, p. 47.
269
Estes p r o c e d i m e n t o s são os relatados nas cartas d e p e r d ã o p o r t u g u e s a s ; o u t r o s s ã o - n o s d e s -
c r i t o s p o r B O L O G N E - Da chama à fogueira, p . 235-237.
270
A m a g i a ligada à agricultura e à p r o t e c ç ã o pessoal era tão c o m u m q u a n t o a magia amoro-
sas (cf. BOLOGNE - Da chama à fogueira, p. 237-243).
271
GARCÍA Y GARCÍA - O « L i b r o d e las C o n f e s i o n e s » , p . 148. M A R T I N S - O «Livro das Con-
fissões», p . 8 2 . IDEM - O P e n i t e n c i a l d e M a r t i n i P e r e z , p . 6 2 - 6 3 .
272
MARTINS - O « L i v r o d a s C o n f i s s õ e s » , p . 9 0 - 9 2 . IDEM - O Penitencial de M a r t i m Perez,
p. 99-100.
273
E m b o r a o m i t o d a s m u l h e r e s v o a d o r a s se p o s s a d e t e c t a r d e s d e o s é c u l o x n o u t r o s l u g a r e s
d a E u r o p a ( c f . BOLOGNE - Da chama à fogueira, p . 51-53).
274
M A R T I N S - O « L i v r o d a s C o n f i s s õ e s » , p . 91.
275
MARQUES - A Sociedade, p. 170.
276
ELEMENTOS para a história do município de Lisboa, v o l . 1, p . 2 6 4 - 2 8 0 .
277
SYNODICON, v o l . 2 , p . 334-335.
278
OA, L . v , T i t . x x x x i i , p . 152-154.
279
T a l c o n t i n u a v a a s u c e d e r , e m plena c e n t ú r i a d e Q u i n h e n t o s , nas O r d e n a ç õ e s Manuelinas
(cf. B E T H E N C O U R T - O imaginário da magia, p . 2 3 0 - 2 3 1 ) .

51
O difícil diálogo entre judaísmo e cristianism
Mana José Feno Tavares

OS JUDEUS NO PORTUGAL MEDIEVAL


JUDEUS E CRISTÃOS CONVIVERAM n a P e n í n s u l a I b é r i c a , a Sefarad, desde o
I m p é r i o R o m a n o , s e g u n d o os estudos mais recentes 1 . Y o s e f H a C o h e n , c r o -
nista j u d e u d o século xvi, afirmava que, na Hispânia, se e n c o n t r a v a m os f u g i -
tivos de Jerusalém desde o t e m p o de A d r i a n o , q u e destruiu a resistência j u -
daica encabeçada p o r B e n Koseba 2 .
A arqueologia t e m assinalado a presença hebraica na Península, desde os
séculos 1 e 11 d. C . Se a menorah, o candelabro de sete braços, p o d e q u e r e r
identificá-la, t a m b é m a e n c o n t r a m o s e m finais d o século v, e m M é r t o l a , o n -
de foi e n c o n t r a d a u m a lápide funerária truncada c o m a menorah gravada.
S e g u e m - s e - l h e as duas pedras sepulcrais c o m inscrições hebraicas, p r o v e -
nientes de Espiche, p e r t o de Lagos, identificadas p o r Schwarz, q u e as d a t o u
dos séculos VI-VII. Nelas se r e f e r e m dois m e m b r o s da família C o h e n 3 .
O s j u d e u s d e v e m ter p e r m a n e c i d o nas cidades mais a o c i d e n t e d o A l -
- A n d a l u z , e m b o r a p o u c o se saiba sobre a sua presença n o território q u e viria
a ser Portugal. D e facto, a referência d o c u m e n t a l mais antiga à m i n o r i a p e r -
t e n c e às cartas de foral, c o m o as de Lisboa e de Évora, que, para além de e n -
tregarem aos alvazis os pleitos e m q u e entrassem indivíduos de c r e d o moisai-
co, m e n c i o n a v a m a existência de mercadores 4 .
T a m b é m antiga era a c o m u n i d a d e judaica de C o i m b r a , pois data d o sé-
culo xi u m a cópia d o C o n c í l i o de C o i a n ç a de 1050, o n d e se i m p u n h a a sepa-
ração entre j u d e u s e cristãos. U m m o n g e d o m o s t e i r o de Vacariça t r o u x e r a - a
e u m copista i n t e g r o u - a n o Livro preto da Sé de C o i m b r a . N e l a se lia: «ne-
n h u m cristão o u cristã seja tão ousado q u e habite e m casa c o m j u d e u s o u t o -
m e alimentos c o m eles» 5 .
As relações entre a maioria e a m i n o r i a f o r a m , desde c e d o , previstas. Aliás
os nossos monarcas p o d i a m apresentar-se c o m o soberanos de súbditos p e r t e n -
centes às três religiões, sendo a c o n v i v ê n c i a entre elas baseada na tolerância.
Viviam n o reino, t e n d o c o m o seu s e n h o r o rei a q u e m p e r t e n c i a m e q u e os
designava pelo possessivo meus judeus.
Assim, cabia ao s o b e r a n o permitir, o u não, a sua presença n o território
p o r t u g u ê s . Escassos n o início d o reino, d e v e n d o habitar os c o n c e l h o s mais
populosos, c o m o Lisboa, Santarém, C o i m b r a , Évora, os j u d e u s residiam nos
seus bairros q u e , e m alguns casos, d e v i a m r e m o n t a r , na localização, ao passa-
d o islâmico, c o m o e m Lisboa, o n d e a c h a m a d a Judiaria Velha se situava n o
arrabalde da cidade m u ç u l m a n a . N o e n t a n t o , a existência de u m a judiaria,
c o m o e m Lisboa, n ã o significava q u e eles n ã o se encontrassem t a m b é m dis-
persos p o r e n t r e a p o p u l a ç ã o cristã. A efectiva separação espacial seria tardia e
só se generalizou ao r e i n o d u r a n t e o século xv.
D e s c o n h e c e m o s se a c o m u n a , e n t i d a d e paralela ao c o n c e l h o , para os
j u d e u s , c o m m a g i s t r a d o s p r ó p r i o s eleitos e n t r e os i n d i v í d u o s da m i n o r i a ,
o u n o m e a d o s p e l o rei, n o u t r o s casos, e n t r e estes, r e m o n t a r i a aos alvores da
n a c i o n a l i d a d e o u se seria u m privilégio p o s t e r i o r . O m e s m o se passa c o m o
cargo de r a b i - m o r , o c u p a d o p o r u m j u d e u c o r t e s ã o da c o n f i a n ç a d o m o - <] Fuste de coluna visigótica,
narca, e q u e t i n h a c o m o f u n ç ã o s u p e r i n t e n d e r na j u s t i ç a destes súbditos, c o m representação de u m
vaso sagrado e de duas
e m n o m e d o rei. Apesar d e a f u n ç ã o deste j u d e u c o r t e s ã o se e n c o n t r a r d o -
perdizes ladeando u m a
c u m e n t a d a d e s d e o r e i n a d o d e D . A f o n s o III, só viria a ser d e f i n i d a e m f i - serpente (Beja, M u s e u R a i n h a
nais d o s é c u l o x i v , c o m o o c o r r e g e d o r na c o r t e para os j u d e u s , n ã o t e n d o D . Leonor).
paralelo na m i n o r i a m u ç u l m a n a q u e estava d e p e n d e n t e , na c o r t e , d o c o r r e -
FOTO: JOSÉ MANUEL OLIVEIRA/
g e d o r cristão. /ARQUIVO CÍRCULO DE LEITORES.

53
A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

Confirmação dos privilégios P e r t e n ç a d o rei, este tratava os j u d e u s c o m o u m c o r p o social, religioso,


da judiaria de Leiria, por judicial e tributário a u t ó n o m o da maioria. Assim, regiam-se pela T o r a e p e l o
D . J o ã o I, 1386 (Lisboa,
T a l m u d e i n t e r n a m e n t e , e m b o r a estivessem s u b m e t i d o s às o r d e n a ç õ e s gerais
Instituto dos Arquivos
Nacionais/Torre do T o m b o ) .
d o r e i n o e tivessem c o m o j u i z s u p r e m o o m o n a r c a .
Possuíam chancelarias próprias: das c o m u n a s , dos arrabiados das comarcas
FOTO: JOSÉ ANTÓNIO SILVA.
e d o a r r a b i a d o - m o r , as quais i n f e l i z m e n t e se p e r d e r a m . P u d e r a m m a n t e r o
hebraico nos d o c u m e n t o s oficiais até ao r e i n a d o de D . J o ã o I, altura e m q u e
D> Interior da sinagoga de
este foi substituído pelo p o r t u g u ê s . P e r m a n e c e r i a , n o e n t a n t o , c o m o língua
Tomar.
religiosa e de c o m u n i c a ç ã o interna, s e n d o a sua escrita usada para transliterar
FOTO: JOSÉ MANUEL OLIVEIRA/
/ A R Q U I V O CÍRCULO DE LEITORES.
o p o r t u g u ê s e m c o r r e s p o n d ê n c i a particular.
A u t ó n o m o s d o c o n c e l h o , e m b o r a ocupassem u m espaço deste, os j u d e u s
eram, n o e n t a n t o , c o m p e l i d o s a pagar-lhe certos impostos para a defesa, a p o -
sentadoria e outras necessidades municipais. Até ao r e i n a d o de D . D u a r t e , os
j u d e u s f o r a m definidos c o m o vizinhos dos concelhos, p a g a n d o o soldo de v i -
zinhança e u s u f r u i n d o dos m e s m o s privilégios q u e os cristãos, c o m o a isenção
d o p a g a m e n t o da p o r t a g e m . P o s t o e m causa este direito, j á n o t e m p o d e
D . F e r n a n d o , seria D . D u a r t e , ainda e m t e m p o de seu pai, q u e o revogaria,
pois tal direito n ã o se devia aplicar aos «infiéis».
O r e l a c i o n a m e n t o da m i n o r i a judaica c o m o s o b e r a n o foi, até à expulsão,
perfeito, t e n d o este m a n t i d o os privilégios e a p r o t e c ç ã o pessoal para c o m os
«seus» j u d e u s q u a n d o a agressividade dos cristãos e dos m u n i c í p i o s , contra a
a u t o n o m i a das c o m u n a s , se c o m e ç o u a manifestar e a crescer. E ó b v i o q u e
esta p r o t e c ç ã o n ã o era gratuita. Ela tinha a contrapartida dos i n ú m e r o s i m -
postos q u e os j u d e u s d o r e i n o e n t r e g a v a m à C o r o a . Súbditos d o rei, eles p a r -
ticipavam, tal c o m o os cristãos, nas entradas reais e nos demais festejos e m
h o n r a d o soberano o u da família real 6 .
É neste r e l a c i o n a m e n t o c o m o m o n a r c a q u e d e v e m o s e n t e n d e r a existên-
cia de vassalos j u d e u s q u e serviam o rei c o m cavalo e armas, c o m cavaleiros e
peões seus correligionários. U s u f r u í a m d o privilégio de vassalos d o rei, q u e
tinha apenas u m carácter vitalício, mas q u e podia ser transmitido à viúva, e n -
q u a n t o esta permanecesse na sua «honra». R e l e m b r e m o s aqui m e s t r e A b r a ã o
N e g r o , ú l t i m o r a b i - m o r de Portugal, físico de D . A f o n s o V, q u e viria a m o r -
rer na conquista de Arzila, l u t a n d o contra os m o u r o s ao lado d o rei de P o r -
tugal 7 .
Pacífica parece ter sido t a m b é m a relação c o m a Igreja p o r t u g u e s a , a
q u e m p a g a v a m o d í z i m o , apesar de tal p a g a m e n t o ser contestado pelas c o m u -
nas. E m b o r a p u g n a s s e m alguns bispos p e l o c u m p r i m e n t o das n o r m a s c o n c i -
liares c o n t r a os j u d e u s , tal defesa m a n i f e s t o u - s e mais na luta e n t r e a Igreja e o

54
O DIFÍCIL DIÁLOGO ENTRE JUDAÍSMO E CRISTIANISMO

p o d e r real d o q u e c o m o f o r m a de incentivar, entre os cristãos, o desenvolvi-


m e n t o d e u m antijudaísmo.
Estável, mas c o m alguns sobressaltos, foi o r e l a c i o n a m e n t o da m i n o r i a
c o m a maioria. E m b o r a estes n ã o tivessem suscitado o aspecto deliberada-
m e n t e agressivo dos l e v a n t a m e n t o s populares c o n t r a os j u d e u s sentido n o res-
to da Península e E u r o p a , a verdade é q u e n ã o p o d e m o s ignorar a rejeição da
supremacia de u m p o v o eleito sobre o o u t r o p o v o eleito p o r D e u s . A discus-
são da primazia de u m sobre o o u t r o , de u m a religião sobre a outra, iria m a r -
car o p o s i c i o n a m e n t o social da maioria sobre a m i n o r i a e da constante t e n t a -
tiva de afirmação desta sobre aquela.
N ã o p o d e n d o deter e f e c t i v a m e n t e o p o d e r , a m i n o r i a judaica, através da
riqueza, da cultura e d o saber, acabava p o r privar de p e r t o c o m o p o d e r e
p o r e x e r c ê - l o , directa o u i n d i r e c t a m e n t e , apesar das directivas e m c o n t r á r i o
da legislação canónica, transpostas para as o r d e n a ç õ e s gerais d o reino. Assim,
vários rabis-mores c o n f i r m a r a m d o c u m e n t o s régios, c o m o J u d a e G u e d e l h a ,
rabis-mores de D . Dinis, o u J u d a A b e n M e n i r , r a b i - m o r e tesoureiro de
D. Fernando.
Assim, o e n t e n d i m e n t o entre a maioria cristã e a m i n o r i a j u d a i c a d e v e ser
c o m p r e e n d i d o n u m a interacção o n d e , p o r vezes, o individual e o colectivo
local se s o b r e p u n h a m às o r d e n a ç õ e s gerais civis e canónicas; noutras vezes
e r a m estas, c o m o seu carácter diferenciador, q u e v i n g a v a m sobre o relacio-

55
A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

n a m e n t o entre os indivíduos d e credo diferente. P o d e m o s , n o e n t a n t o , s u p o r


q u e o p e r í o d o de m a i o r p r o d u ç ã o de legislação antijudaica, nos fmais d o sé-
culo x i v e inícios d o xv, admita u m a dupla leitura: o c r e s c i m e n t o d o a n t i j u -
daísmo e m Portugal, p o r u m lado, e, p o r o u t r o , a necessidade d e p r o t e g e r a
minoria, através de restrições na sua m o b i l i d a d e pelo reino c o m c o n s e q u ê n -
cias nas suas actividades económicas, da imposição dos sinais e da o c u p a ç ã o
de u m espaço, f e c h a d o c o m portas.
S e n d o o r e l a c i o n a m e n t o da minoria c o m a maioria cristã q u e nos interes-
sa, é necessário descobri-lo n o q u o t i d i a n o da vida d o reino.
Assim, se u m cristão provocasse f e r i m e n t o s n u m seguidor da Lei de M o i -
sés, este devia ir queixar-se ao alcaide e aos alvazis. D e facto, s e m p r e q u e o
cristão fosse réu, devia r e s p o n d e r perante os juízes cristãos. Tal n ã o sucedia se
fosse o j u d e u réu. N e s t e caso, o j u d e u respondia p e r a n t e os rabis e a lei m o i -
saica.
C u m p r i n d o as prescrições canónicas d o IV C o n c í l i o de Latrão, D . A f o n -
so II proibia aos indivíduos da m i n o r i a o exercício de cargos q u e implicassem
c o m a n d o sobre os cristãos. O m e s m o sucedia q u a n t o a tê-los e m suas casas
c o m o servidores. N e s t e caso o transgressor perderia os bens, confiscados para
a Coroa.
A este m o n a r c a p e r t e n c e a mais antiga o r d e n a ç ã o de t e o r proselitista.
O apelo à c o n v e r s ã o é c o r r o b o r a d o pela posse i m e d i a t a dos b e n s : u m t e r -
ço, se h o u v e r mais i r m ã o s , e m e t a d e se f o r filho ú n i c o . S e m e l h a n t e r e p a r -
tição de b e n s a c o n t e c i a se o c o n v e r s o fosse u m dos c ô n j u g e s . O n e ó f i t o era
i m e d i a t a m e n t e afastado da c o n v i v ê n c i a da sua família d e s a n g u e , s e n d o e n -
t r e g u e , n o caso de ser m e n o r , a u m a família cristã para ser e d u c a d o na n o -
va fé.
S a n c h o II c e d o esqueceu as o r d e n a ç õ e s de seu pai, mas o clero iria r e c o r -
dar-lhas à força. D e facto, o bispo de Lisboa queixava-se ao papa d o i n c u m -
p r i m e n t o das d e t e r m i n a ç õ e s d o IV C o n c í l i o de Latrão, p o r parte d o m o n a r -
ca, pelo q u e G r e g ó r i o I X enviaria a P o r t u g a l os bispos de Astorga e de L u g o
c o m a bula Ex Speciali, o n d e advertia o rei de q u e n ã o era p e r m i t i d o c o n c e -
der a j u d e u s cargos c o m autoridade sobre os cristãos.
O c r e s c i m e n t o da circulação m o n e t á r i a e das feiras vai exigir a resposta d e
D . A f o n s o III a novas realidades e c o n ó m i c a s . Assim, proibia o e m p r é s t i m o a
j u r o i m o d e r a d o . O facto de n ã o especificar o g r u p o c r e d o r faz-nos c o n c l u i r
q u e a legislação se dirigia a t o d o s os corpos sociais, o maioritário e os m i n o r i -
tários, pelo q u e n ã o a p o d e m o s e n t e n d e r c o m o u m dispositivo legal de carga
antijudaica. Já nos foros de Santarém o d e v e d o r devia saldar a sua dívida a
u m j u d e u perante j u d e u s e cristãos, e se o c r e d o r n ã o estivesse n o c o n c e l h o ,
q u a n d o ele quisesse fazer entrega d o d i n h e i r o , deveria e n t r e g á - l o a u m h o -
mem-bom.
T a m b é m nos m e s m o s foros, o s o b e r a n o prescrevia a igualdade das três r e -
ligiões, cristã, j u d a i c a e islâmica, n o t e s t e m u n h o de u m a luta e n t r e indivíduos
da maioria e das minorias 8 .
O s foros de Beja, datados d o reinado d e D . A f o n s o III, retiram ao m o r -
d o m o p o d e r sobre os j u d e u s , s e m p r e q u e haja h o m i c í d i o sobre u m o u t r o j u -
d e u o u u m m o u r o . E m c o n t e n d a entre j u d e u s , valia o t e s t e m u n h o de cris-
tãos, j u d e u s o u m u ç u l m a n o s e m igualdade. Se a d e m a n d a fosse c o m cristão e
este saísse ferido, a prova devia ser feita c o m t e s t e m u n h o s cristãos o u p o r j u -
deus e cristãos, se o j u d e u fosse residente n o c o n c e l h o . Caso este fosse u m
estranho, devia ser c o n d e n a d o à m o r t e e a e x e c u ç ã o seria feita pelas justiças
régias.
N o título das provas, os foros de Beja d e t e r m i n a v a m q u e o j u d e u provas-
se contra u m cristão apenas c o m t e s t e m u n h a s cristãs. S e n d o os t e s t e m u n h o s
dados sob j u r a m e n t o , previa-se o j u r a m e n t o d o j u d e u sobre a T o r a , na sina-
goga, presentes a parte, o rabi e o p o r t e i r o d o c o n c e l h o , q u e confirmaria p e -
rante o j u i z o j u r a m e n t o feito 9 .
O s f o r o s da G u a r d a , o u t o r g a d o s p o r S a n c h o I e c o n f i r m a d o s p o r seu fi-
l h o , p r o i b i a m aos j u d e u s t r a b a l h a r e m ao d o m i n g o , sob p e n a de dois m a r a -
vedis para o alcaide. T e r m i n a v a m estes foros c o m duas o r d e n a ç õ e s sobre

56
O DIFÍCIL DIÁLOGO ENTRE JUDAÍSMO E CRISTIANISMO

Documento da dívida de
Domingos Eanes de
Folgosinho a Isaque
Guedelha, judeu de Gouveia,
1334 (Lisboa, Instituto dos
Arquivos Nacionais/Torre do
Tombo).
FOTO: JOSÉ A N T Ó N I O SILVA.

57
A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

e m p r é s t i m o s feitos p o r j u d e u s a cristãos, emanadas da c o r t e d e D . A f o n -


so III, n o a n o de 1266, o n d e p o d e m o s observar a r e f e r ê n c i a à «malícia d o s
judeus» 1 0 .
D e s t e soberano o u de seu pai era a o r d e n a ç ã o , c o n f i r m a d a p o r D . Dinis,
de q u e os j u d e u s n ã o p u d e s s e m , tal c o m o os m u ç u l m a n o s , ser p r o c u r a d o r e s
o u advogados e m causas de cristãos 11 .
T a m b é m desta centúria de D u z e n t o s era a legislação q u e minorizava o
t e s t e m u n h o d o j u d e u perante o cristão, j u s t i f i c a n d o tal «por ssas maldades».
A e x c e p ç ã o aberta neste caso respeitava aos pleitos e n t r e j u d e u s e cristãos e m
q u e a m b o s os t e s t e m u n h o s d e v i a m ser t o m a d o s c o m o dignos d e fé 1 2 .
E n c o n t r a v a m - s e excluídos da p r o t e c ç ã o da Igreja, s e g u n d o o direito civil,
e m caso de dívida a cristão o u e m caso d e h o m i c í d i o 1 3 .
O F o r o R e a l , t r a d u z i d o e m finais d o s é c u l o x m e a d o p t a d o na legisla-
ção portuguesa, proibia o proselitismo judaico, interditando, sob pena de
m o r t e , a c i r c u n c i s ã o de u m cristão 1 4 . A lei d e D . A f o n s o II a p e n a s p r e v i a a
a b j u r a ç ã o de u m c o n v e r s o , a q u a l era castigada c o m a m o r t e p o r d e g o l a ç ã o
se o a d m o e s t a d o n ã o se a r r e p e n d e s s e 1 5 , o q u e n o s p o d e fazer c o n c l u i r q u e
u m a m á c a t e q u e s e o u o a p e l o dos familiares e e x - c o r r e l i g i o n á r i o s p o d i a l e -
var u m n e ó f i t o a d e s c r e r da n o v a religião e a abraçar a antiga. A o r d e n a ç ã o
p o r t u g u e s a n ã o n o s p e r m i t e c o n c l u i r q u e o p r o s e l i t i s m o j u d a i c o , tal c o m o
é c o n t e m p l a d o n o F u e r o R e a l de D . A f o n s o X , n ã o incidisse n o s cristãos
d e n a s c i m e n t o , e m b o r a a d o c u m e n t a ç ã o seja omissa s o b r e tais casos d e
apostasia, q u e , o b v i a m e n t e , d e v i a m cair sob a alçada d o t r i b u n a l eclesiás-
tico.
P r o c u r a n d o refrear contactos íntimos e a criação de laços afectivos e n t r e
indivíduos de credos diferentes, o legislador proibia, sob pena d e multa n o
valor de 50 maravedis para o rei, q u e u m cristão desse os seus filhos a criar a
u m a ‫ ׳‬família j u d i a e vice-versa 1 6 .
É na centúria d e D u z e n t o s q u e as p r e o c u p a ç õ e s dos legisladores p e n i n s u -
lares c o m e ç a m a incidir na questão da usura, reflexo d o a u m e n t o da circula-
ção m o n e t á r i a e d o i n v e s t i m e n t o de capital, tal c o m o j á referimos a p r o p ó s i t o
dos foros de Santarém e da Guarda, c o m as medidas tomadas p o r D . A f o n -
so III. Igual p r e o c u p a ç ã o c o m o e m p r é s t i m o a j u r o i m o d e r a d o se observa n o
códice legal de A f o n s o X , o Sábio, q u e proibia q u e o j u r o ultrapassasse os três
maravedis p o r cada quatro, ao ano, assim c o m o d e t e r m i n a v a q u e o c r e d o r
n ã o pudesse desfazer-se d o p e n h o r deixado pelo devedor 1 7 .
M e d i d a de semelhante t e o r seria t o m a d a p o r D . A f o n s o III, e m 1266, ao
legislar n o sentido d e q u e o j u r o n ã o ultrapasse os 100 % d o e m p r é s t i m o , i n -
d e p e n d e n t e m e n t e d o t e m p o q u e tivesse d e c o r r i d o e n t r e o p r i m e i r o e m p r é s t i -
m o e a solvência da dívida. E acrescentava a esta u m a outra o r d e n a ç ã o d e
idêntico c o n t e ú d o , justificada pela malícia dos judeus contra os cristãos.
N o século seguinte, esta lei seria c o n f i r m a d a nos m e s m o s t e r m o s , e m b o r a
fosse alargada aos e m p r é s t i m o s a j u r o e n t r e cristãos 1 8 .
O p r o b l e m a da usura a c e n t u o u - s e n o século xiv, d e v i d o às crises agrícolas
e monetárias q u e g e r a r a m o e m p o b r e c i m e n t o de m u i t o s estratos da p o p u l a -
ção. A q u e d a e m p o b r e z a dos g r u p o s sociais de g e n t e h o n r a d a , n o b r e o u n ã o ,
c o n d u z i u ao e n d i v i d a m e n t o p o r hipoteca dos bens m ó v e i s o u imóveis j u n t o
de credores que, nos protestos dos p r o c u r a d o r e s dos c o n c e l h o s nas C o r t e s ,
e r a m identificados c o m os j u d e u s . Daí as queixas nas C o r t e s de 1331 e de 1352,
q u e tiveram resposta legislativa e m 1340, 1349 e noutras leis cuja data precisa
nos é desconhecida 1 9 .
R e s p i g á m o s alguns p r ó l o g o s significativos de u m a m e n t a l i d a d e q u e via
n o p o d e r e c o n ó m i c o dos j u d e u s o i n i m i g o a abater, d e v i d o à sua associação
c o m o mal. Assim, vejamos:
— « P o r q u e nos fora dicto e q u e r e l a d o j a t e m p o ha q u e os J u d e u s d o n o s -
so s e n h o r i o o n z e n a v a m contra a ley divina e humanai»;
— «Nos disseram q u e ha nossa terra era astragada per os J u d e u s q u e v i -
v i a m nos nossos senhorios p o r q u e faziam seus c o n t r a u t o s c o m os christãos
e m tal f o r m a q u e levam deles m o y t o m a y o r e s onzenas q u e n u n c a f o r o m l e -
vadas»;

58
O DIFÍCIL DIÁLOGO ENTRE JUDAÍSMO E CRISTIANISMO

— «E p i d i a m nos p o r m e r c e e os dictos p r o c u r a d o r e s e m n o m e das dietas


Cidades [...] q u e m a n d á s e m o s e posesemos p o r ley q u e n e h u u m J u d e u n e m
J u d i a n o m p o d e s e fezer taes contrautos p e r q u e o christão lhe fosse o b r i g a d o
aa dar o u a ffazer alguma cousa ata certo tempo»;
— «E p e r outra maneira n o m p o d í a m o s refrear as malícias dos dictos J u -
deus»;
— «E q u e m o y t o s christãos e christãas e r a m astragados e deytados p e r
portas.» 2 0
Estes p r e â m b u l o s e r a m a resposta aos protestos dos p o v o s de q u e e r a m es-
tragados pelos j u d e u s , afirmação c o r r o b o r a d a p o r c o n c e l h o s c o m o Lisboa,
Bragança o u Sintra 2 1 . Se os p r i m e i r o s t i n h a m u m a c o n c e n t r a ç ã o de p o p u l a -
ção j u d a i c a significativa, acentuada n o r e i n a d o de D . Dinis, q u e p o d i a expli-
car tal reacção, o m e s m o j á n ã o se e n t e n d e n u m o u t r o c o n c e l h o d o t e r m o de
Lisboa c o m o Sintra, o n d e a c o m u n i d a d e judaica n ã o era expressiva.
O s textos legislativos de D . A f o n s o IV e r a m o e x e m p l o d o c r e s c i m e n t o
de u m a atitude e c o n ó m i c a antijudaica p o r parte de certos sectores da p o p u l a -
ção cristã, ao m e s m o t e m p o q u e se foijava o estereótipo de q u e o j u d e u era
rico, s e n d o - o à custa dos cristãos. Se os excessos usurários, c o m e t i d o s p o r j u -
deus, e r a m c o n f i r m a d o s p o r o u t r o s correligionários «dignos d e fé», a v e r d a d e
é q u e o s o b e r a n o passava a r e c o n h e c e r e m textos legais q u e a usura era prati-
cada p o r cristãos, j u d e u s e m u ç u l m a n o s .
Nas C o r t e s de 1352, os p r o c u r a d o r e s dos c o n c e l h o s r e q u e r i a m ao rei a
proibição de os j u d e u s p o d e r e m realizar contratos, q u e r c o m cristãos q u e r
c o m m o u r o s . Procurava-se, pela primeira vez, limitar-lhes a liberdade de
contratar n o reino, c i r c u n s c r e v e n d o esta apenas ao interior das judiarias. T e r -
m i n a v a m p r o p o n d o q u e os m e m b r o s da m i n o r i a se tornassem agricultores:
«que as terras sseeriam b e m lavradas e aproffeytadas sse m a n d a s s e m o s q u e os
j u d e u s lavrassem viinhas e herdades e criassem gaados o q u e p o d e r i a m m u i
b e m ffazer p o r q u e t e e m m u i t o movil» 2 2 .
Esta p o s i ç ã o era c o n t r a d i t ó r i a c o m a assumida nas C o r t e s de Lisboa d e
1331. Nestas, os p r o c u r a d o r e s c o n t e s t a r a m a aquisição d e h e r d a d e s pelos
m e m b r o s da m i n o r i a , o u seja, c o n d e n a v a m q u e estes, à s e m e l h a n ç a da b u r -
guesia cristã e n d i n h e i r a d a , investissem na posse da terra 2 3 . Era c o n t r a esta
i d e n t i f i c a ç ã o q u e os h o m e n s - b o n s e cidadãos d e Lisboa p r o t e s t a v a m , t a n t o
mais q u e os j u d e u s ricos se t r a n s f o r m a v a m , t a m b é m , e m p r o p r i e t á r i o s a b - Aspectos da judiaria de
sentistas. Castelo de Vide.
Aliás, datava dos princípios da centúria e dos finais da anterior a utilização F O T O : JOSÉ M A N U E L OLIVEIRA/
das famílias judaicas n o p o v o a m e n t o d e certas regiões d o reino, c o m o B r a - / A R Q U I V O C Í R C U L O DE LEITORES.

59
A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

gança, através da sua fixação à terra e ao solo u r b a n o . Assim, D . Dinis p e r m i -


tiu q u e os j u d e u s deste c o n c e l h o c o m p r a s s e m propriedades n o valor d e
3500 maravedis, distribuídos p o r vinhas, herdades e casas, p r o i b i n d o - l h e s a
venda o u o escambo 2 4 .
I m p o r t a n t e i g u a l m e n t e seria a herdade, n o t e r m o de T o r r e s Vedras, q u e
Moisés e Aviziboa v e n d e r a m p o r 1000 libras à infanta D . Sancha, filha de
D . A f o n s o III, e m 1277 25 , o u as p r o p r i e d a d e s q u e o M o s t e i r o de Santa C r u z
t r o c o u c o m u m g r u p o de j u d e u s de C o i m b r a 2 6 . Judas N a v a r r o e R e i n a , sua
m u l h e r , v e n d i a m a D . Dinis u m a p r o p r i e d a d e e m Á g u a dos Peixes, t e r m o de
Alvito, c o m p o s t a p o r casas, azenha, p o m a r e vinha, e n q u a n t o G u e d e l h a , ra-
b i - m o r deste m o n a r c a , recebia e m p r é s t a m o u m a quinta e m Frielas e m paga-
m e n t o d o «muyto serviço q u e m i el fez e faz b e m e l e a l m e n t e c o m sseu c o r -
p o e c o m sseu aver» 27 .
O e x e m p l o mais característico de p r o p r i e t á r i o absentista n o p e r í o d o de
T r e z e n t o s foi o j u d e u cortesão Moisés N a v a r r o , r a b i - m o r de D . P e d r o I, q u e
instituiu dois m o r g a d i o s e m n o m e de cada u m dos seus filhos: u m a quinta
c o m casas, lagar, torre, vinhas e o u t r o s b e n s na P ó v o a d o M o n t i j o , outra
quinta c o m casais, herdades, vinhas e p o m a r e s e m C a r n a x i d e , o u t r a quinta
c o m p a ç o , torres, vinhas e herdades e m Caspolima ( P o r t o Salvo — Oeiras) e
outra q u i n t a c o m adegas, lagar, casas, torres e vinhas e m Palma, t e r m o de
Lisboa, c o m o as demais 2 8 .
Estes eram os sinais q u e faziam recear os p r o c u r a d o r e s dos concelhos,
pois a p r o x i m a v a m as elites da m i n o r i a às da maioria, o u seja, aquelas d e f i n i a m
t a m b é m o seu estatuto social p e l o i n v e s t i m e n t o e m b e n s imóveis tal c o m o
sucedia c o m os cristãos, u m a vez q u e a posse de propriedades rurais e urbanas
n u n c a lhes estivera interdita.
Nas C o r t e s de 1352 era n o t ó r i a a ascensão da burguesia cristã e n d i n h e i r a d a
q u e desejava investir n o crédito e q u e p r e t e n d i a arredar deste os seus p e r i g o -
sos rivais de c r e d o j u d a i c o . P o r isso, na falta de braços para a lavoura e na d i -
m i n u i ç ã o d o r e n d i m e n t o agrícola, queria v e r os j u d e u s t o r n a r e m - s e agricul-
tores e, assim, apelava ao rei para q u e estes investissem na terra.
P o r o u t r o lado, t o d o este acervo de contestação aos contratos feitos p o r
j u d e u s , sob a alegada prática usurária, m o s t r a - n o s q u e eles e r a m os credores
mais p r o c u r a d o s pela p o p u l a ç ã o cristã, dos c a m p o n e s e s ao rei, o q u e p r e o c u -
pava u m g r u p o ascendente de m e r c a d o r e s - f i n a n c e i r o s cristãos q u e se sentiam
secundarizados profissional e socialmente.
A alegação d o e m p o b r e c i m e n t o da g e n t e h o n r a d a cristã p o r insolvência
o u p o r perda da h i p o t e c a de b e n s fundiários nas mãos d o c r e d o r j u d e u c o n -
duziu à afirmação dos p r o c u r a d o r e s às C o r t e s de Elvas de 1361 de q u e
D . A f o n s o IV proibira o e m p r é s t i m o a j u r o , o u seja, o c r e d o r apenas devia
receber a quantia emprestada o u o b e m h i p o t e c a d o n o seu valor, sem qual-
q u e r espécie de j u r o 2 9 .
D . P e d r o I r e q u e r e u - l h e s q u e lhe apresentassem tal d o c u m e n t o de seu
pai. C o n t r a a queixa de q u e e r a m estragados pelos j u d e u s , pelo q u e solicita-
v a m ao s o b e r a n o a p r o r r o g a ç ã o d o prazo das dívidas, este o r d e n a v a q u e as
pagassem 3 0 .
A luta contra a usura fora a primeira f o r m a de rivalidade e c o n ó m i c a e x -
pressa pela maioria contra a minoria. Ela trazia o peso d e u m a sociedade agrí-
cola q u e e m p o b r e c i a c o m os m o v i m e n t o s d e capital e q u e ainda, e m grande
parte, n ã o sabia aproveitá-los, ao contrário dos m e m b r o s da m i n o r i a j u d a i c a
que, desde t e m p o s r e m o t o s , viviam d o i n v e s t i m e n t o da riqueza m ó v e l . Se-
guir-se-ia, e m finais de T r e z e n t o s , a c o n c o r r ê n c i a nos lanços das rendas reais,
municipais e da Igreja.
Estas estiveram nos séculos x m e x i v nas mãos de j u d e u s ricos q u e subar-
r e n d a v a m a correligionários seus parcelas d o a r r e n d a m e n t o geral d o r e i n o o u
de u m a o u várias comarcas e almoxarifados. Tal sucedeu c o m D . J o s e p e e os
seus j u d e u s rendeiros, satirizado n u m a cantiga de Estêvão da G u a r d a , para o
reinado d e D . Dinis 3 1 , o u D a v i d N e g r o e D . J u d a A b e n M e n i r , q u e , n o rei-
n a d o de D . F e r n a n d o , rivalizavam u m c o m o o u t r o na o b t e n ç ã o dos lanços
das rendas gerais d o r e i n o . Estes e r a m os grandes investidores q u e surgiam ao

60
O DIFÍCIL DIÁLOGO ENTRE JUDAÍSMO E CRISTIANISMO

lado de u m a maioria de m é d i o s e p e q u e n o s investidores regionais, seus c o r r e - Aspecto da judiaria de


ligionários 3 2 . Tomar.
E m b o r a alguns cristãos ensaiassem o i n v e s t i m e n t o n o s lanços, c o m o a F O T O : JOSÉ M A N U E L OLIVEIRA/
condessa D . G u i o m a r , m u l h e r d o c o n d e J o ã o A f o n s o T e l o , tio de L e o n o r /ARQUIVO C Í R C U L O DE LEITORES.

T e l e s , estes e s t a v a m , m a i o r i t a r i a m e n t e , nas m ã o s das g e n t e s da m i n o r i a .


T a l facto r e v e l a v a - s e c o m o u m a a t i t u d e d e d o m í n i o desta s o b r e a m a i o r i a O Selo de D . Dinis (Lisboa,
cristã, o q u e ia c o n t r a as d e t e r m i n a ç õ e s da Igreja, para a l é m de se t r a d u z i r Instituto dos Arquivos
n u m a opressão s o b r e os cristãos, f o m e n t a d o r a d o a n t a g o n i s m o social g e - Nacionais/Torre do T o m b o ) .
FOTO: JOSÉ A N T Ó N I O SILVA.
r a d o p e l o ó d i o ao c o l e c t o r d e i m p o s t o s , i d e n t i f i c a d o , neste caso, c o m o j u -
deu33.
O d o m í n i o das gentes de c r e d o moisaico nos a r r e n d a m e n t o s foi q u e b r a d o
c o m os a c o n t e c i m e n t o s d e 1383-1385. A subida ao t r o n o d o candidato d o p o -
v o d e Lisboa viria p e r t u r b a r este p r e d o m í n i o e c o n ó m i c o e m favor da b u r -
guesia dos c o n c e l h o s . D e facto, t e m p o r a r i a m e n t e afastados dos a r r e n d a m e n t o s
e obrigados a associarem-se aos cristãos, os j u d e u s p e r d e r i a m o í m p e t o dos
grandes lanços. A tal t a m b é m n ã o seria estranho o facto de D a v i d N e g r o e
J u d a A b e n M e n i r , os dois grandes rendeiros d o reinado f e r n a n d i n o , t e r e m se-
g u i d o o partido d e Leonor Teles e de Castela.
Assim, D . J o ã o I e seu filho, D . D u a r t e , s u b m e t e r - s e - i a m à pressão cristã,
p r o i b i n d o aos j u d e u s o exercício de f u n ç õ e s q u e se traduzissem e m opressão
sobre a maioria religiosa. N o e n t a n t o , a constituição de sociedades mistas de
cristãos e j u d e u s p e r m i t i u a estes iludir as o r d e n a ç õ e s d o r e i n o e as d e t e r m i -
nações canónicas. O c o n c e l h o de Lisboa requeria ao r e g e n t e D . P e d r o q u e
n ã o aceitasse os j u d e u s c o m o r e c e b e d o r e s das rendas eclesiásticas e reais, n e m
c o m o fiadores de rendeiros cristãos, e rematava p e d i n d o ao infante q u e desse
as rendas aos cristãos, e m b o r a p o r m e n o r valor d o q u e a j u d e u s p o r m a i o r
preço 3 4 .
N o e n t a n t o , ainda n o r e i n a d o de D . D u a r t e , os lanços feitos p o r j u d e u s

61
A PROCURA DO D E U S ÚNICO

o u p o r sociedades d e j u d e u s cresciam para se r e a f i r m a r e m n o reinado d e


D . A f o n s o V. D e n o v o , grandes m e r c a d o r e s - b a n q u e i r o s investiam nas rendas
reais, c o m o os N e g r o , os Abravanel, os Latam, os Palaçano e outros, apesar
de os seus interesses principais residirem n o g r a n d e c o m é r c i o e n o crédito à
C o r o a e à família real.
O s c o n t r a t o s q u e D . J o ã o II estabeleceria c o m os seus j u d e u s r e n d e i r o s
e x i g i a m destes g r a n d e c a p a c i d a d e de m o v i m e n t a ç ã o d e capital. Isaac B e n a -
dife a r r e m a t a v a as r e n d a s de Lisboa e P o r t o e as dos p o r t o s m a r í t i m o s c o m
alfândegas, p r o m e t e n d o ao rei o c r e s c i m e n t o de mais d e u m m i l h ã o d e
reais e m cada a n o , d u r a n t e seis anos. Isaac T o l e d a n o , p o r sua vez, a u m e n -
t o u o r e n d i m e n t o da sisa dos p a n o s d e l g a d o s d o r e i n o e m seis m i l h õ e s d e
reais.
Se pensarmos q u e os a r r e n d a m e n t o s dos direitos reais o u o u t r o s e r a m
u m a f o r m a de i n v e s t i m e n t o d e capital c o m o o b j e c t i v o de lucro, p o d e m o s
concluir q u e , para o r e n d e i r o o b t e r o a l m e j a d o g a n h o , acabaria p o r o p r i m i r
os colectados. Daí q u e m u i t o s desses grandes rendeiros se fizessem a c o m p a -
nhar p o r grupos de h o m e n s armados. P o r isso, t a m b é m os protestos dos p o -
vos t o r n a v a m a subir às C o r t e s c o n t r a os rendeiros j u d e u s .
Ainda n o t e m p o de D . Afonso V, durante a regência d o príncipe
D . J o ã o , este p r o i b i r - l h e s - i a o a r r e n d a m e n t o das r e n d a s eclesiásticas. Já rei,
ao s e r - l h e solicitada nas C o r t e s a p r o i b i ç ã o d e os j u d e u s l a n ç a r e m nas r e n -
das reais, D . J o ã o II r e i t e r a v a - l h e s os lugares d e r e n d e i r o s d o rei e da n o -
breza e m d e t r i m e n t o dos r e n d e i r o s cristãos, j u s t i f i c a n d o a sua a t i t u d e c o m
Carta de privilégio de a acusação d e q u e estes e r a m mais opressores d o p o v o c o l e c t a d o q u e a q u e -
D. Afonso V ao judeu José les 35 .
Prateiro, antigo ourives de
D. Leonor (Lisboa, Instituto O u t r o s investiam n o trato das moradias da Casa R e a l , q u e revestia t a m -
dos Arquivos Nacionais/ b é m a f o r m a de c o n t r a t o de a r r e n d a m e n t o . D e facto, desde 1446, o p a g a -
/Torre do Tombo).
m e n t o das tenças aos m o r a d o r e s da Casa R e a l era feito p o r sociedades mistas
FOTO: JOSÉ A N T Ó N I O SILVA. d e m e r c a d o r e s - b a n q u e i r o s j u d e u s e cristãos, o n d e se distinguiam os A b r a v a -

62
O DIFÍCIL DIÁLOGO ENTRE JUDAÍSMO E CRISTIANISMO

nel, os Lomellini e J o ã o Dias Beleágua. Para além do p a g a m e n t o das tenças à


nobreza, a C o r o a arrendava t a m b é m os casamentos desta, assim c o m o as
compras da Casa Real. Estes arrendamentos permitiam ao soberano beneficiar
de u m crédito q u e pagava, posteriormente, e m dinheiro o u e m benefícios
de vária o r d e m , o n d e o favor real e o prestígio social que dele advinha não
seria o m e n o r 3 6 .
C o m o investimentos que eram, os lanços apresentavam o aspecto de cré-
dito a j u r o , p o r vezes demasiado elevado, a crermos nos versos do Cancioneiro
geral de Garcia de R e s e n d e , o n d e se cantava q u e os grandes m e r c a d o r e s - b a n -
queiros j u d e u s e n t e n d i a m c o m o perda o lucro de 30 % 3 7 .
Se, para a c e n t ú r i a de T r e z e n t o s , d e s c o n h e c e m o s o papel d o g r a n d e
capitalista j u d e u , c o m e x c e p ç ã o dos a r r e n d a m e n t o s dos direitos da C o r o a ,
tal j á n ã o sucede para o século seguinte, o n d e o v e m o s a financiar as e m -
presas régias o u os casamentos da família real. D e facto, se n o século x i v
e n c o n t r a m o s os N e g r o o u Judas A b e n M e n i r , o século x v c o n h e c e o u t r o s
m e r c a d o r e s - b a n q u e i r o s e c o n o m i c a m e n t e mais p o d e r o s o s q u e aqueles, c o -
m o os Abravanel, G u e d e l h a Palaçano, Moisés Latam, J u d a s T o l e d a n o e
outros.
A família Abravanel, de o r i g e m sevilhana, c o m e ç o u a sua actividade de
b a n q u e i r a da família real ao serviço d o i n f a n t e D . F e r n a n d o , q u e viria a
m o r r e r e m Fez. Este devia-lhes 52 0 0 0 reais. P o u c o depois passavam a c r e -
dores de D . A f o n s o V, a q u e m c o n c e d e r a m , p o r diversas vezes, e m p r é s t i -
m o s avultados, q u e r para o c a s a m e n t o de D . Leonor, imperatriz da A l e m a -
nha, q u e r para a guerra c o n t r a Castela, e m defesa dos direitos de D . J o a n a ,
a Beltraneja. F o r a m - n o , t a m b é m , da infanta D . Beatriz, c u n h a d a d o rei, a
q u e m a r r e n d a r a m as rendas da O r d e m de C r i s t o , assim c o m o o viriam
a ser dos d u q u e s de Bragança e de Viseu, a q u e m f i n a n c i a r a m na c o n s p i r a -
ção c o n t r a D . J o ã o II, p e l o q u e viriam a ser c o n d e n a d o s c o m o traidores.
Participaram n o c o m é r c i o de África e n o trato d o açúcar, v i n d o a ser i n -
d e m n i z a d o s das perdas sofridas p o r D . M a n u e l n u m seu d e s c e n d e n t e cris-
tão 3 8 .
N o c a m p o dos empréstimos à C o r o a , os Abravanel não tiveram c o n c o r -
rentes à altura entre os mercadores nacionais cristãos. O s seus mais perigosos
rivais eram os italianos e os flamengos; p o r isso, inicialmente, nas Cortes de
meados d o século xv, os protestos dos povos incidiam sobre as casas m e r c a n -
tis estrangeiras, ignorando ainda as judaicas q u e se afirmariam c o m o p o d e r
e c o n ó m i c o na segunda metade da centúria.
Este t o r n a v a - s e s o b r e m a n e i r a visível n o e m p r é s t i m o c o n c e d i d o a
D . Afonso V para a guerra contra Castela, e m 1478. E n q u a n t o Guedelha P a -
laçano e Isaac Abravanel emprestavam quantias na o r d e m dos quase dois m i -
lhões de reais, o m e r c a d o r cristão q u e deles mais se aproximava era Fernão
G o m e s da Mina, c o m 900 0 0 0 reais. O s demais credores cristãos n ã ç atin-
giam a centena de milhar, c o m excepção d o príncipe D . J o ã o e de D . Álvaro,
q u e emprestaram, respectivamente, 1 257 0 9 0 e 630 345 reais. N o entanto,
m e s m o os p e q u e n o s credores cristãos sofriam u m a forte concorrência dos
m e m b r o s da minoria, que os ultrapassavam e m n ú m e r o 3 9 .
O p o d e r e c o n ó m i c o de u m a minoria de j u d e u s cortesãos e residentes e m
Lisboa transformava estes e m verdadeiros poderosos, colocando-os n u m a p o -
sição de d o m í n i o sobre os cristãos, contra o agrado destes e das ordenações
canónicas e d o reino. Estes rejeitavam essa supremacia e faziam-no sentir nas
Cortes, englobando nos seus protestos toda a c o m u n i d a d e judaica.
As Cortes iriam ser, ao longo da segunda metade d o século xv, o local
privilegiado d o extravasar de u m a rivalidade económica, p o r parte dos p r o -
curadores dos concelhos, q u e sub-repticiamente atiçava a animosidade reli-
giosa contra o j u d e u . Esta crescia n o inconsciente colectivo da maioria cristã,
ultrapassando o indivíduo para se identificar c o m a ascensão das principais ci-
dades do reino e das suas burguesias.
Significativo deste sentir era o conselho que u m a n ó n i m o frade de São
Marcos dava a D . Afonso V: «Agora, senhor, c o m a cobiça de obter maior
r e n d i m e n t o acha-se a cristandade submetida à jurisdição judaica, e os estra-

63
A PROCURA DO D E U S ÚNICO

n h o s ao país levam a substância das mercadorias d o vosso reino, ao passo q u e


os m e r c a d o r e s nacionais p e r e c e m de miséria.» 4 0
E ó b v i o q u e desta nacionalidade eram excluídos os j u d e u s , apesar de n a -
turais d o reino, pois, desde D . D u a r t e , t i n h a m - s e visto afastados d o direito d e
vizinhança, q u e n ã o se aplicava a «infiéis». P o r o u t r o lado, a maioria destes
j u d e u s cortesãos b a n q u e i r o s da C o r o a , c o m o os Abravanel, e r a m de o r i g e m
castelhana. A fobia ao estrangeiro associava-se à animadversão ao crente j u -
daico, apesar de n ã o c o n s e g u i r e m irradiar este da c o n c o r r ê n c i a .
Era e m Lisboa q u e residia a maioria dos grandes m e r c a d o r e s j u d e u s q u e
o b t i v e r a m permissão, entre 1466 e 1491, para exportar e i m p o r t a r mercadorias
p o r via marítima e m n o m e de cristãos, utilizando as marcas destes o u as suas
próprias, além de p o d e r e m cambiar d i n h e i r o n o estrangeiro. As grandes f a m í -
lias de m e r c a d o r e s - b a n q u e i r o s cortesãos e n c o n t r a v a m - s e entre estes m e r c a d o -
res e x p o r t a d o r e s - i m p o r t a d o r e s .
N ã o seriam, c e r t a m e n t e , os únicos a participar neste tráfego e x t e r n o , p e l o
q u e o seu n ú m e r o inquietava os cristãos. O soberano p r e o c u p a v a - s e c o m os
prejuízos q u e os ataques de corso causassem nos bens, liberdade e vida dos
j u d e u s portugueses 4 1 .
E m 1481, D . J o ã o II requeria aos R e i s Católicos a p r o t e c ç ã o para c o m es-
tes e as suas mercadorias, q u e r viajassem p o r terra q u e r p o r mar, o q u e o b t e -
ria a anuência dos soberanos castelhanos 4 2 . C o m e r c i a v a m c o m o N o r t e d e
Africa islâmico, as cidades italianas, o Levante peninsular o u as cidades d o
N o r t e da E u r o p a . Açúcar, especiarias, tecidos, livros e r a m algumas das m e r -
cadorias transaccionadas p o r estes m e r c a d o r e s de g r a n d e trato.
O u t r o s d e s e n v o l v i a m u m m é d i o e p e q u e n o c o m é r c i o terrestre e n t r e os
diversos reinos peninsulares, a p o i a d o e m relações familiares. P a n o s de C a s -
tela, sedas, gado, m o e d a s e metais e r a m n e g o c i a d o s p o r estes a l m o c r e v e s

64
O DIFÍCIL DIÁLOGO ENTRE JUDAÍSMO E CRISTIANISMO

q u e c a l c o r r e a v a m as estradas, m u i t a s vezes d e s e n v o l v e n d o u m c o m é r c i o
clandestino.
N o e n t a n t o , n o reinado de D . J o ã o II alteraram-se as c o n d i ç õ e s de p r e -
d o m í n i o e c o n ó m i c o . N o t o u - s e u m r e c u o na concessão de cartas aos grandes
m e r c a d o r e s j u d e u s e na permissão de estes p o d e r e m fazer lanços nas rendas
eclesiásticas. P o r o u t r o lado, nas Cortes, os p r o c u r a d o r e s dos c o n c e l h o s p r o -
testavam c o n t r a o luxo excessivo usado n o vestuário pelos j u d e u s mais ricos e
acrescentavam ao seu p r o t e s t o a contestação ao i n d i v í d u o da m i n o r i a m e s t e i -
ral, q u e p r e t e n d i a m ver c o n f i n a d o à judiaria.
Era a afirmação, na política e na e c o n o m i a municipal, dos artesãos cris-
tãos q u e p r o c u r a v a m irradiar da c o n c o r r ê n c i a os mesteirais j u d e u s p o r t u g u e -
ses, aos quais se v i n h a m s o m a n d o os mesteirais j u d e u s castelhanos q u e i m i -
gravam para Portugal. Aliás, o n ú m e r o de artesãos p e r t e n c e n t e s à m i n o r i a era
significativo e m todos os c o n c e l h o s d o reino, p o d e n d o afirmar-se q u e a vita-
lidade e c o n ó m i c a da maioria dos m u n i c í p i o s portugueses radicava, e m parte,
na significativa p r o d u ç ã o artesanal dos j u d e u s q u e neles habitavam.
A rivalidade e c o n ó m i c a q u e t o m o u , ao l o n g o dos séculos x i v e xv, c a m -
biantes diversos, da usura às rendas, destas ao grande c o m é r c i o de sociedades
mistas e deste ao artesanato, foi a c o m p a n h a d a pela interiorização m e n t a l d o
a r q u é t i p o d o j u d e u c o m o símbolo da riqueza, d o infiel e d o mal.
A p o n t a d o c o m o rico, mas possuidor de u m a riqueza entendida c o m o i n d e -
vida p o r q u e obtida à custa d o fiel cristão, q u e ele oprimia e explorava c o m o
usurário e colector de impostos, o j u d e u via associar-se-lhe a ideia d o mal, ain-
da n o século xrv. A ideia de riqueza iria despoletar a tentativa abortada de assai-
to à Judiaria G r a n d e de Lisboa, e m D e z e m b r o de 1383, após o assassinato do
c o n d e de A n d e i r o pelo mestre de Avis. Só a pronta intervenção deste dissuadiu
o p o v o m i ú d o , q u e inverteu a marcha e m direcção ao bairro judaico 4 3 .

Igreja da Misericórdia de
Leiria, construída sobre a
antiga sinagoga.
FOTO: N U N O CALVET/ARQUIVO
C Í R C U L O DE LEITORES.

<3 Carta de privilégio


de D. Afonso V ao ourives
judeu Salomão Almerdam,
1469 (Lisboa, Instituto dos
Arquivos Nacionais/Torre do
Tombo).
FOTO: JOSÉ A N T Ó N I O SILVA.

65
A PROCURA DO D E U S ÚNICO

R e f l e x o d o c r e s c i m e n t o da interiorização d o j u d e u c o m o o outro na s o -
ciedade portuguesa foi o assalto à Judiaria G r a n d e d e Lisboa, e m D e z e m b r o
de 1449, o n d e os gritos de «matar» e «roubar» as gentes da m i n o r i a , n o m e a d a -
m e n t e as mais ricas, se associaram n o p r i m e i r o e ú n i c o l e v a n t a m e n t o a n t i j u -
daico q u e se saldou p o r d e r r a m a m e n t o d e sangue e perda de vidas p o r parte
da m i n o r i a , até à sua expulsão 4 4 .
A l e m b r a n ç a d o deicídio d e v e ter despoletado o l e v a n t a m e n t o contra os
j u d e u s d e Leiria, na Semana Santa de 1378, q u e se traduziu n o a p e d r e j a m e n t o
das casas da judiaria 4 5 .
O carisma d o mal q u e o j u d e u infiel podia p r o v o c a r n o c r e n t e cristão,
n o m e a d a m e n t e na m u l h e r , iria justificar a legislação segregacionista, p r o m u l -
gada p o r D . P e d r o I, na sequência das C o r t e s de Elvas de 1361. A o b r i g a t o r i e -
dade de, nos c o n c e l h o s mais populosos, c o m o Lisboa, os j u d e u s residirem e m
bairros apartados, q u e se e n c e r r a v a m ao t o q u e das A v e - M a r i a s e se abriam ao
nascer d o Sol, vinha na sequência de legislação canónica q u e i m p u n h a a se-
gregação espacial para evitar os contactos mais í n t i m o s entre indivíduos d e
religião e sexo d i f e r e n t e s e, s o b r e t u d o , o p r o s e l i t i s m o j u d a i c o j u n t o d o s
cristãos 4 6 .
O s finais d o século x i v v e r i a m a segregação espacial ser r e t o m a d a e e n d u -
recida p o r D . J o ã o I, e m 1390, talvez c o m o reflexo d o clima de instabilidade
q u e se vivia e m Castela e q u e terminaria n o pogrom de 1391, e m Sevilha e o u -
tras localidades. E m 1395, a p e d i d o d o c o n c e l h o de Lisboa, c o n f i r m a v a a p r o i -
bição d e os j u d e u s habitarem n o exterior da judiaria e, e m 1400, o r d e n a v a
q u e as judiarias se estendessem para o u t r o s espaços q u a n d o reduzidas para
a c o l h e r e m toda a p o p u l a ç ã o j u d a i c a d o c o n c e l h o . Nesta última o r d e n a ç ã o
penalizava g r a v e m e n t e o j u d e u q u e fosse a p a n h a d o fora d o bairro j u d a i c o ,
depois d o anoitecer.
Mais tarde, e m 1412, a p e d i d o das c o m u n i d a d e s judaicas d o r e i n o , a t e n u a -
va a dureza da lei, q u e era atentatória da sobrevivência e c o n ó m i c a da m i n o -

66
O DIFÍCIL DIÁLOGO ENTRE JUDAÍSMO E CRISTIANISMO

ria, e x c e p t u a n d o alguns profissionais e os j u d e u s e m trânsito q u e entrassem Solicitação do concelho


na localidade depois d o t o q u e d o sino da oração. C o m p l e t a r i a esta m e d i d a leiriense para que o físico e
cirurgião mestre B e l h a m i m
u m a outra de D . D u a r t e q u e se aplicava aos q u e tivessem d e a b a n d o n a r a j u -
pudesse viver fora da judiaria,
diaria antes d o Sol nascer. 1455 (Lisboa, Instituto dos
A segregação espacial d e v e ter-se aplicado exclusivamente, d u r a n t e a c e n - Arquivos Nacionais/Torre do
túria de T r e z e n t o s , e m Lisboa, e seria estendida a o u t r o s c o n c e l h o s c o m forte Tombo).
densidade d e p o p u l a ç ã o judaica n o final d o reinado de D . J o ã o I, p o r u m a lei FOTO: JOSÉ ANTÓNIO SILVA.
d o infante D . D u a r t e , e n t ã o associado na g o v e r n a ç ã o ao seu pai. Assim, a i n -
c o m u n i c a b i l i d a d e a partir de determinadas horas seria extensiva a Santarém, <] Lápide sepulcral judaica,
Évora, P o r t o , C o i m b r a , Beja, Elvas e E s t r e m o z . encontrada j u n t o à torre de
A circulação de pessoas passava a estar legalmente restringida. Assim, era m e n a g e m do Castelo de Beja,
p r o i b i d o às m u l h e r e s cristãs deslocarem-se à judiaria sem i r e m a c o m p a n h a d a s 1378 (Tomar, Museu Luso-
de cristãos adultos e aos j u d e u s e n t r a r e m e m casas de cristãs, s e m q u e nelas -hebraico Abraham Zacut).
estivessem cristãos adultos. F O T O : JOSÉ M A N U E L OLIVEIRA/
/ARQUIVO C Í R C U L O DE LEITORES.
D . J o ã o I e D . D u a r t e r e t o m a v a m o espírito da lei de D . P e d r o I, o q u e
nos p e r m i t e c o n c l u i r q u e , apesar das limitações da convivência entre a m a i o -
ria e a m i n o r i a , esta c o n t i n u a v a a fazer-se. A c o n f i r m a r esta realidade, e n c o n -
travam-se o s í n o d o de Lisboa, feito n o t e m p o de D . J o ã o A f o n s o de A z a m -
buja, e as posturas municipais de m e a d o s d o século xv, q u e c o n d e n a v a m a
p r o m í s c u a vizinhança, e n t r e cristãos e j u d e u s , q u e levava uns e o u t r o s a esta-
r e m presentes e m festividades e casamentos.
Assim, o c o n c e l h o d e Lisboa p r o i b i a aos j u d e u s e s t a r e m p r e s e n t e s e m
bodas, festas, vigílias, P e n t e c o s t e s e outras festividades «que os christãos f e -
z e r e m asy na ç i d a d e c o m o n o s m o n t e s a d a m ç a r n e m a t o m g e r n e m a bail-
lar n e m fazer o u t r o s jogos», sob p e n a d e m u l t a s p e c u n i á r i a s q u e i a m das
500 libras às 1000 libras e prisão, c o n s o a n t e a r e i n c i d ê n c i a . T a m b é m os
m o n a r c a s D . J o ã o I e D . A f o n s o V se p r e o c u p a r a m c o m esta c o n v i v ê n c i a e
os seus perigos, p r o i b i n d o - l h e s o p o r t e d e armas q u a n d o f o s s e m c o n v i d a -
dos para c a s a m e n t o s , j o g o s e o u t r a s festas dos cristãos dos locais o n d e v i -
vessem 47

67
A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

Solicitação do concelho I g u a l m e n t e se e x c l u í a m o u t r a s relações p r ó x i m a s , c o m o a f r e q u ê n c i a


leiriense para que o físico e das tabernas pelas gentes dos dois c r e d o s o u o t r a b a l h o c o n j u n t o . N e s t e c a -
cirurgião mestre Abraão
so, p r o c u r a v a - s e evitar q u e o cristão o b e d e c e s s e ao j u d e u , t r a b a l h a n d o nas
Abeatra pudesse usar uma
porta da sua casa directamente suas p r o p r i e d a d e s o u e m sua casa. Era o regresso à legislação c a n ó n i c a d o
para o exterior, 1471 (Lisboa, IV C o n c í l i o d e L a t r ã o de 1213, p r o m u l g a d a nas o r d e n a ç õ e s régias, d e s d e
Instituto dos Arquivos D . A f o n s o II.
Nacionais/Torre do T o m b o ) . C o m estas medidas, o legislador procurava d e f e n d e r a salvação d o cristão
F O T O : JOSÉ A N T Ó N I O SILVA. mais fraco mas, s o b r e t u d o , preservar as m u l h e r e s cristãs dos contactos í n t i m o s
c o m os h o m e n s da minoria. A o legislador n ã o interessava o desvio da m u l h e r
j u d i a , q u e , p o r estranho q u e pareça, ficava t a m b é m mais defendida d o h o -
m e m cristão c o m o e n c e r r a m e n t o e a vigilância da judiaria.
A par da limitação dos m o v i m e n t o s das gentes da minoria, o século xiv,
na senda das prescrições canónicas d o século xi, r e t o m a d a s e m Latrão, c o n h e -
cia t a m b é m a segregação física, c o m a imposição d o uso d o sinal diferencia-
d o r ao j u d e u . Assim, D . A f o n s o IV determinava, talvez pela instabilidade psí-
quica e social criada pela Peste N e g r a , q u e os j u d e u s usassem u m a estrela
amarela de seis pontas, q u e seria m u d a d a p o r D . J o ã o I para v e r m e l h a e d o
t a m a n h o d o selo real. O sinal devia ser usado n o exterior d o vestuário, e m
local b e m visível, sobre o estômago 4 8 .
D e s c o n h e c e m o s se, à semelhança d o q u e acontecia e m Castela c o m
A f o n s o X I e t a m b é m e m Aragão, o traje dos j u d e u s era escuro, pois a legisla-
ção portuguesa é omissa sobre a cor d o vestuário. Apenas sabemos q u e eles
d e v i a m vestir-se c o m o o p o v o , o u seja, sem a d o r n o s de l u x o e vestes caras.
N o e n t a n t o , t e m o s de c o n c l u i r q u e tal n ã o era praticado pelos j u d e u s mais ri-
cos, a c r e r m o s nos protestos dos p r o c u r a d o r e s dos concelhos, apresentados
nas C o r t e s . O m e s m o se passava c o m o p r ó p r i o distintivo, q u e os j u d e u s es-
tavam dispensados de usar e m viagem, para evitar os assaltos c o n t r a as suas
pessoas e fazendas.
A c o m p a n h a n d o a exteriorização da diferença, a maioria interiorizava
t a m b é m o j u d e u c o m o o outro, n ã o a d m i t i n d o a e q u i d a d e da justiça régia
q u a n d o a vítima era o infiel. Tal a c o n t e c e u q u a n d o as justiças actuaram sobre
os assaltantes da judiaria de Lisboa, e m D e z e m b r o de 1449, q u e m a t a r a m al-
guns j u d e u s . O p o v o m i ú d o l e v a n t o u - s e contra a autoridade judicial e c o n t r a
o p r ó p r i o rei, q u e teve de a b a n d o n a r t e m p o r a r i a m e n t e a cidade.

68
O DIFÍCIL DIÁLOGO ENTRE JUDAÍSMO E CRISTIANISMO

A d i f e r e n ç a levava a identificar o outro c o m o ser i m p u r o q u e c o n s p u r c a -


va t u d o aquilo e m q u e tocava. O s j u d e u s sujavam os adros das igrejas, cons-
purcavam os a l i m e n t o s e m q u e t o c a v a m . P o r isso, os cristãos p r e t e n d i a m q u e
o m e r c a d o fosse f r e q u e n t a d o p r i m e i r o pelos i n d i v í d u o s da m a i o r i a e só d e -
pois pelos j u d e u s , para q u e estes n ã o danassem os g é n e r o s alimentícios, ao
tocá-los.
C o m i d ê n t i c o significado se lhes atribuía a maldade o u a ruindade, c o m o
diria o infante D . J o ã o , q u e os definia c o m o «a mais r u i m g e n t e d o m u n d o » .
Ser inferior e m relação ao cristão, o j u d e u era, n o século xv, h u m i l h a d o
p o r este e m algumas festas populares, c o m o a de Santo Estêvão. E m Setúbal,
caçava-se neste dia o porco pisco, o javali. O s cristãos c o s t u m a v a m entrar à f o r -
ça na judiaria e maltratar c o m paus afiados os j u d e u s q u e a p a n h a v a m , os
quais, para se v e r e m livres deles, lhes d a v a m t u d o q u a n t o q u e r i a m , n o r m a l -
m e n t e d i n h e i r o . Igual festa se fazia e m Castelo de Vide. O Bispo Estêvão, u m
cristão escolhido para tal efeito, entrava na judiaria e exigia-lhes d i n h e i r o q u e
depois era gasto n o seu j a n t a r e n o da sua comitiva 4 9 .
Era a exteriorização de sentimentos x e n ó f o b o s da maioria q u e se m a n i f e s -
tavam e m d e t e r m i n a d o s períodos d o calendário religioso, c o m o a S e m a n a
Santa. D u r a n t e as cerimónias desta, alguns cristãos mais inflamados pelas p r e -
gações e cerimónias religiosas da Paixão de Cristo faziam extravasar a sua r e -
volta n o ó d i o ao j u d e u deicida. Tal se verificou e m Leiria, nos finais d o sé-
culo xiv, e n o C r a t o , nos fins da centúria seguinte.
T a m b é m na festa d o C o r p o de D e u s alguns c o n c e l h o s exigiam a c o n t r i -
b u i ç ã o da m i n o r i a para a procissão. E m geral, esta cedia-lhes o vestuário c o m
os sinais diferenciadores q u e e r a m usados pelos figurantes. Fácil seria forjar
u m clima e m o t i v o n o p o v o m i ú d o q u e r a p i d a m e n t e extrapolava os últimos
dias da vida de Cristo para os vizinhos j u d e u s q u e , assim, se t o r n a v a m presa
fácil de insultos e h u m i l h a ç õ e s .

O APELO À CONVERSÃO E A APOLOGÉTICA


O NOVO POVO DE DEUS afirmava-se deste m o d o sobre o p o v o eleito d o
A n t i g o T e s t a m e n t o , s u b j u g a n d o - o e r e j e i t a n d o - o m e n t a l m e n t e . Ele era o in-
fiel, o cego e surdo à v o z de D e u s , o seguidor de Satanás, o q u e recusava aceitar
o Messias p r o m e t i d o p o r D e u s aos profetas. P o r isso, D . J o ã o II, e m 1492, na
sequência da entrada e m massa de j u d e u s castelhanos, expulsos de Castela p e -
los R e i s Católicos, escreveria, n o p r e â m b u l o da o r d e n a ç ã o de apelo à c o n -
versão livre da m i n o r i a , q u e aos príncipes era lícito usar q u a l q u e r processo
q u e levasse à conversão dos infiéis. D a í os amplos privilégios sociais e fiscais
q u e c o n c e d i a aos q u e abjurassem o j u d a í s m o . Esta o r d e n a ç ã o viria a ser c o n -
templada p o r D . M a n u e l , n o seu apelo à apostasia voluntária dos j u d e u s , após
a p r o m u l g a ç ã o d o édito de expulsão e m D e z e m b r o de 1496 50 .
Aliás, estas medidas mais n ã o e r a m q u e o corolário de toda u m a legislação
d e apelo à conversão, p r o m u l g a d a p o r D . A f o n s o II e ampliada p o r D . J o ã o I
e D . A f o n s o V. E m todas elas estava subjacente o t010‫ ׳‬individual e n ã o a i m -
posição d o p o d e r real o u d o p o d e r religioso, pelo q u e a conversão forçada
estava proibida pela legislação geral d o reino 5 1 .
E neste sentido de apelo à conversão voluntária, e f e c t u a d o pela Igreja e
pelos monarcas, q u e t e m o s de e n t e n d e r a literatura de apologética, p r o d u z i d a
p o r grandes n o m e s da Igreja. Destinava-se, s o b r e t u d o , a instruir os p r e g a d o -
res e o clero secular. N o e n t a n t o , ela f o r m a v a i d e o l o g i c a m e n t e , p o r via da
palavra, a m e n t a l i d a d e da sociedade cristã, desde a c o r t e ao h o m e m h u m i l d e ,
e m b o r a c o m interpretações diversas, c o n s o a n t e a cultura e a força d o senti-
m e n t o religioso de cada u m .
Federico P é r e z Castro, A n t o n i o Pacios Lopes, M á r i o Martins, J o a q u i m
Lavajo e o u t r o s historiadores peninsulares a p r e s e n t a r a m - n o s u m a síntese da
p o l é m i c a j u d e o - c r i s t ã , desde o início da Igreja, c h a m a n d o - n o s a atenção para
os grandes temas desta controvérsia, tal c o m o eles f o r a m estabelecidos pelos
primeiros Padres da Igreja 5 2 .

69
A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

S a b e m o s p o u c o sobre a sua p r o d u ç ã o e m Portugal, tal c o m o d e s c o n h e c e -


m o s o m o d o c o m o ela influiu na parenética d o p e r í o d o m e d i e v a l até aos al-
vores da m o d e r n i d a d e .
J o s é Maria S o t o R á b a n o s , n u m seu trabalho, insistia na i g n o r â n c i a d o
p o v o cristão c o m u m a q u e p o d e r í a m o s acrescentar m u i t o s curas d e aldeia, a
c r e r m o s nas referências à i g n o r â n c i a destes nos sínodos m e d i e v a i s p o r t u g u e -
ses. A q u e l e a u t o r e n c o n t r a na ignorância religiosa u m o b s t á c u l o ao d i á l o g o
i n t e r - r e l i g i o s o e acrescenta: «En realidad, la Iglesia se d e b a t e e n t r e u n d e s e o
y u n t e m o r . El deseo de q u e , a través da la c o n v i v ê n c i a , la p a r t e t e ó r i c a -
m e n t e débil, r e p r e s e n t a d a p o r j u d i o s y m u s u l m a n e s , ceda ante la parte f u e r -
te, los cristianos, y d e esta m a n e i r a se llegue a f o r m a r u n a u n i d a d de fe
v e r d a d e r a m e n t e católica, universal; y el t e m o r d e q u e , a la h o r a de la c o n -
vivência, dei roce, dei contraste, la fe de los cristianos sufra más d e t r i m e n t o
que provecho.
Al deseo c o r r e s p o n d e n la permisividad, hasta cierto p u n t o , d e la c o n v i -
vencia, así c o m o la progresiva intensificación de la política proselitista de la
Iglesia y de los p o d e r e s civiles. Al t e m o r , en c a m b i o , r e s p o n d e n las m e d i d a s
de p r o t e c c i ó n , q u e afectan m a y o r m e n t e al p u e b l o Cristiano llano.» 5 3
E d e n t r o desta dialéctica d e diálogo inter-religioso, de v e c t o r proselitista
d o lado da Cristandade para c o m a m i n o r i a religiosa, p o r u m lado, e de c a t e -
quese e p r o t e c ç ã o d o p o v o cristão, p o r o u t r o , q u e d e v e m o s e n t e n d e r a litera-
tura apologética e as disputas religiosas q u e se d e s e n v o l v e r a m na França e na
Península Ibérica, i n c l u i n d o Portugal.
Pelos f u n d o s de Alcobaça e de Santa C r u z de C o i m b r a t e m o s c o n h e c i -
m e n t o de q u e as bibliotecas destes mosteiros possuíam obras de apologética
talvez c o m a finalidade de i n s t r u í r e m os respectivos m o n g e s . Assim, e m A l -
cobaça e n c o n t r a m o s as seguintes:
— Adversus Hebraeos de Santo Isidoro;
— Dialogus contra judaeos d e P e d r o A f o n s o ;
— Disputado Cristiani et judei de G i l b e r t o Crispino;
— Speculum disputationis contra Hebraeos de Frei J o ã o , m o n g e d e Alcobaça;
— Contra inftdeles e De regimine judaeorum de São T o m á s de A q u i n o ;
para além, c e r t a m e n t e , de o u t r o s q u e desapareceram na v o r a g e m dos t e m p o s
e dos h o m e n s . Integrados neste c o n j u n t o das obras de apologética, havia a i n -
da n o m o s t e i r o dois textos d e autores a n ó n i m o s , intitulados Dialogo entre
huum philosofo gentil e huum grande maestre em teologia e o Livro da corte impe-
rial54. O p r i m e i r o devia ser cópia da obra d e R a m o n Lull e o s e g u n d o era d e
u m a u t o r a n ó n i m o d o século xiv. Sobre o ú l t i m o v i r e m o s a d e b r u ç a r - n o s à
frente.
M á r i o M a r t i n s foi o p r i m e i r o h i s t o r i a d o r a c h a m a r a a t e n ç ã o para esta
literatura a p o l o g é t i c a alcobacense a q u e a c r e s c e n t o u o u t r o s códices e x i s t e n -
tes n o P o r t o e e m C o i m b r a . N a Biblioteca M u n i c i p a l d o P o r t o e n c o n t r a m -
-se as obras de P e d r o A f o n s o e de S a n t o Isidoro j á referenciadas e m A l c o -
baça, e n q u a n t o na Biblioteca da U n i v e r s i d a d e de C o i m b r a se e n c o n t r a a
obra de R a i m u n d o M a r t i , Secunda et tertia partes pugionis jugulantis petfidiam
judaeorum.
Já o ú n i c o estudo feito sobre a biblioteca de Santa C r u z é omisso sobre a
apologética, talvez p o r q u e n ã o fosse esse o interesse d o seu autor 5 5 , e m b o r a
C r u z P o n t e s tivesse e n c o n t r a d o na biblioteca de Santa C r u z o Livro da corte
imperial.
Destes livros dois e r a m da autoria de j u d e u s conversos dos séculos xi e
xii, respectivamente, P e d r o H i s p a n o e G i l b e r t o Crispino. D a p r o d u ç ã o n a -
cional, apenas c o n h e c e m o s o m a n u s c r i t o d o alcobacense Frei J o ã o , j á q u e o
m a n u s c r i t o da Corte imperial p o d e r á , s e g u n d o Adel Sidarus, ter u m a p r o v e -
niência catalã c o m tradução portuguesa 5 6 .
D e p r o v e n i ê n c i a nacional seria o m a n u s c r i t o apologético Ajuda da fé, es-
O Bíblia de Cervera, crito a p e d i d o de D . J o ã o II, p o r mestre A n t ó n i o , seu físico e afilhado, e x -
frontispício (Lisboa, Biblioteca -rabi natural de Tavira 5 7 . Este t e x t o insere-se na política proselitista deste
Nacional). soberano, na tentativa de c o n v e r t e r a c o m u n i d a d e j u d a i c a através da c o m p r o -
F O T O : LAURA GUERREIRO. vação d e q u e Cristo era o Messias a n u n c i a d o pelos profetas.

70
O DIFÍCIL DIÁLOGO ENTRE JUDAÍSMO E CRISTIANISMO

71
A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

N ã o p o d e m o s falar de u m a literatura apologética nacional, e m b o r a as r e -


ferências a disputas existam. N o e n t a n t o , a escassa p r o d u ç ã o nacional, se n o s
basearmos n o q u e a v o r a g e m d o t e m p o e dos h o m e n s p e r m i t i u q u e s o b r e v i -
vesse, leva-nos a integrá-la na c o r r e n t e de apologética peninsular q u e r e m o n -
ta ao p e r í o d o visigótico, a qual, p o r sua vez, se integra na literatura contra os
j u d e u s dos Padres da Igreja.
As atitudes proselitistas de algumas cortes ibéricas dos séculos XII a x v
iriam beneficiar d o espírito de apelo ã abjuração d o j u d a í s m o p o r parte de al-
guns neófitos de o r i g e m judaica. Seriam estes e os M e n d i c a n t e s q u e iriam
marcar o p e n s a m e n t o apologético das cortes peninsulares, n o m e a d a m e n t e a
aragonesa e a castelhana. Tais c o m p o r t a m e n t o s p a r e c e m n ã o ter s u c e d i d o e m
Portugal, q u e o saibamos, o u , se existiram, f o r a m m e n o s agressivos d o q u e
nos o u t r o s reinos ibéricos o n d e as conversões forçadas, provocadas p o r d i s p u -
tas religiosas, pregações e l e v a n t a m e n t o s populares, f o r a m frequentes, na se-
g u n d a m e t a d e de T r e z e n t o s e primeira m e t a d e de Q u a t r o c e n t o s .
Aliás, a apologética cristã peninsular s o u b e socorrer-se d o c o n h e c i m e n t o
d o T a l m u d e q u e alguns conversos possuíam. Era o caso de P e d r o A f o n s o ,
e x - M o i s é s ha-Sefardí, natural de Huesca, que, n o início d o século XII, se
c o n v e r t e u ao cristianismo, t e n d o p o r p a d r i n h o A f o n s o I de Aragão. O seu
texto é u m diálogo entre o seu passado e o seu presente, o u seja, e n t r e o j u -
deu Moisés e o cristão P e d r o . N e l e p r o c u r a v a afirmar a verdade d o cristianis-
m o , c o n d e n a n d o o j u d a í s m o mas sem utilizar «o a r g u m e n t o de q u e a litera-
tura talmúdica difama Cristo e o cristianismo». Pela primeira vez, o m u n d o
cristão c o n h e c i a a refutação d o j u d a í s m o c o m critérios talmúdicos, agora tra-
duzidos para latim. Esta obra c o n h e c e u u m a g r a n d e divulgação, d u r a n t e a
Idade M é d i a , t e n d o sido u m a pedra basilar e m toda a literatura cristã de a p o -
logética 5 8 . Talvez, p o r isso, se perceba a sua existência, q u e r e m Alcobaça,
q u e r e m Santa C r u z d e C o i m b r a , p e l o m e n o s , e m b o r a p e n s e m o s q u e b i -
bliotecas de o u t r o s mosteiros, n o m e a d a m e n t e os m e n d i c a n t e s , as possuíssem
também.
As disputas religiosas nos reinos peninsulares e e m França e r a m usuais e
muitas delas f o r a m patrocinadas pelos próprios soberanos e pela Igreja. N o
e n t a n t o , n ã o seriam apenas o paço e os mosteiros os espaços privilegiados
dessas disputas e n t r e teólogos das diferentes religiões. T a m b é m a praça p ú b l i -
ca era cenário desta controvérsia e m q u e os intervenientes cristãos seriam lei-
gos, c o m o parece q u e r e r reflectir a disputa de M a i o r c a , entre u m m e r c a d o r
genovês e três j u d e u s , dos quais u m era rabi.
Mas o diálogo j u d e o - c r i s t ã o q u e m a r c o u o século XIII aragonês e até p e -
ninsular foi a disputa de Barcelona, patrocinada p o r J a i m e I c o m o a p o i o dos
M e n d i c a n t e s , e m 1263. O s seus intervenientes f o r a m P a u l o Cristiano, u m d o -
m i n i c a n o de o r i g e m j u d i a , e o rabi Moisés N a h m a n de G e r o n a . Mais u m a
vez se discutia a verdadeira religião, mas desta vez P a u l o Cristiano utilizava
os a r g u m e n t o s d o T a l m u d e para provar a v e r d a d e d o cristianismo. A N a h m a -
nides fora-lhe garantida a p r o t e c ç ã o régia para atacar a fé cristã e m defesa d o
judaísmo.
N e l a se discutiram os passos de Shilon d o Génesis, as profecias de D a n i e l
e o t e x t o de Isaías sobre o Messias. A m b a s as partes a r g u m e n t a v a m c o m base
nos textos talmúdicos, midráshicos e agádicos, para a l é m de passagens da e x e -
gese bíblica. Procurava-se, e m Barcelona, c o n v e r t e r através d o c o n h e c i m e n t o
d o outro religioso e c o n t r a - a r g u m e n t a v a - s e q u e os erros n ã o estavam n o T a l -
m u d e mas n o p o v o j u d e u , q u e n ã o o interpretava c o r r e c t a m e n t e . Era a esco-
la de R a i m u n d o d e P e n a f o r t e .
P o r seu lado N a h m a n i d e s contestava o d o g m a da T r i n d a d e , a identifica-
ção d o Messias de Isaías c o m Cristo, a interpretação da era messiânica, a d o u -
trina d o p e c a d o original. A sua a r g u m e n t a ç ã o q u e passaria a escrito viria a ser
a base da a r g u m e n t a ç ã o usada pelos rabis e m disputas futuras 5 9 .
N a centúria de D u z e n t o s , surgia e m Aragão, na escola dos D o m i n i c a n o s ,
a obra d e apologética de R a i m u n d o Marti, o Pugio Fidei adversus Maurus et
Iudeos, a obra mais i m p o r t a n t e e original deste p e r í o d o . R . Barkai e O r a L i -
m o r a f i r m a m q u e «se o Pugio Fidei é a m a i o r criação polémica antijudia d o

72
O DIFÍCIL DIÁLOGO ENTRE JUDAÍSMO E CRISTIANISMO

século, c o n t r i b u i u t a m b é m , na f o r m a dialéctica, para u m m a i o r c o n h e c i m e n -


to d o j u d a í s m o e da literatura religiosa e n t r e os cristãos» 60 . C o n t e m p o r â n e o
da disputa de Barcelona, M a r t i escrevia para os seguidores das outras religiões
q u e n ã o a cristã e, n o m e a d a m e n t e , para os j u d e u s e m Capistmm judeorum e
Pugio Fidei, obras terminadas e m 1267 e 1278, respectivamente. Esta última se-
ria redigida e m latim e e m hebraico.
E. C o l o m e r escreve a p r o p ó s i t o d o c o n h e c i m e n t o das fontes judaicas p o r
este a u t o r cristão: «Marti utiliza o Talmud e os seus c o m e n t a d o r e s , o Targum
de J o n a t h a n b e n Uzziel, os Midrashim, inclusive u m q u e depois se p e r d e u , es-
crito n o século XII p o r Moisés H a d d a r s c h a m de N a r b o n a , o Zohar, e e n t r e os
mestres d o p e n s a m e n t o j u d a i c o , Salomão b e n Isaac, Abraão b e n Ezra, D a v i d
K i m h i , Moisés M a i m ó n i d e s e o seu c o n t e m p o r â n e o Moisés N a h m a n . » 6 1
N o Pugio Fidei, M a r t i fazia-se reflexo de u m a ideia q u e c o m e ç a v a a ser
interiorizada na cristandade cruzadística: o j u d e u era o i n i m i g o q u e residia n o
interior da Cristandade e, p o r isso, o mais perigoso. Daí q u e , na sua dialécti-
ca, usasse expressões pejorativas para c o m as minorias: stultitia, caecitas, perfi-
dia, deliramentum, fatuitas, imprudentia, pertinatia. Declara-os e m cativeiro p o r Josephi Historiaram Judaicae
causa da m o r t e de Cristo. I g u a l m e n t e os atacava pela sua incredulidade e m Antiquitatis, impresso em
n ã o aceitarem q u e C r i s t o era o Messias p r e d i t o pelos profetas. P o l e m i z o u , Lisboa em 1237 (Lisboa,
Biblioteca Nacional).
e m Barcelona, c o m Salomão b e n Adret, e m 1284 62 .
F O T O : LAURA GUERREIRO.
N a sua controvérsia utilizou os textos de Daniel, n o m e a d a m e n t e as s e t e n -
ta semanas, o s o n h o de N a b u c o d o n o s o r , o a r g u m e n t o d o Génesis sobre o
Shiloh e as profecias de Isaías, Malaquias, A g e u e H a b a c u c . T a m b é m s o u b e
usar as f o n t e s rabínicas e as suas o b j e c ç õ e s c o m base e m J e r e m i a s , Isaías,
D a n i e l , Zacarias e o D e u t e r o n ó m i o , para a l é m da tradição j u d a i c a dos dois
Messias.
R a m o n Lull é o u t r o a p o l o g e t a , mas p e r t e n c e n t e à O r d e m d e São F r a n -
cisco; tal c o m o o d o m i n i c a n o , estava i g u a l m e n t e m a r c a d o pela escolástica.
E n t r e as suas obras d e c a r á c t e r proselitista e n c o n t r a m o s o Libre dei gentil e
los tres savis, o b r a o n d e a p o l é m i c a se d e s e n r o l a v a n u m t o m c o r t ê s e n u m
a m b i e n t e b u c ó l i c o , escrita e m 1272 e m árabe e d e p o i s e m catalão. N e l a
Lull dissertava s o b r e D e u s e a ressurreição, p o n d o depois, e m paralelo, u m
j u d e u , u m cristão e u m m u ç u l m a n o a d e f e n d e r a respectiva religião 6 3 . N o
seu Liber de Trinitate et Incarnatione adversus judeos et sarracenos o u Liber ad
probandum qualiter judei sunt in errore o u De erroribus judeorum, escrito e m
1305, e n o De adventu Messiae, o o b j e c t o da sua p o l é m i c a era a recusa dos
j u d e u s e m a c e i t a r e m o d o g m a da T r i n d a d e , a E n c a r n a ç ã o e C r i s t o , c o m o o
Messias 6 4 .
N o Liber de Trinitate, Lull a r g u m e n t a v a c o m base e m textos bíblicos, G é -
nesis, Isaías e o Saltério, sobre as três pessoas da T r i n d a d e e a sua u n i d a d e i n -
finita e eterna, assim c o m o sobre as qualidades divinas, ao l o n g o de 52 ser-
m õ e s . I n t r o d u z estes, explicando a sua necessidade: « Q u o n i a m iudei c r e d u n t
esse in veritate p e r legem Moysi, allegando a u c t o r i t a t e m illius legis, et c u m
intellectus naturaliter sit i u d e x rationi, et iudei extant ad d e c e m precepta, i n -
t e n d i m u s p r o c e d e r e tribus m o d i s in libro isto, scilicet, c u m auctoritatibus v e -
teris Legis, et c u m p r o b l e m a u t i b u s et c u m preceptis, p r o b a n d o q u o d iudei
sunt in errore.» 6 5
T o d o s os sermões t e r m i n a v a m a f i r m a n d o a verdadeira fé dos cristãos c o n -
tra a e r r ó n e a de j u d e u s e m u ç u l m a n o s .
A primeira m e t a d e d o século x i v p e r t e n c e a obra d o valenciano Frei B e r -
n a r d o Oliver, Tractatus contra coecitatem iudeorum. Este m o n g e agostinho, q u e
viria a ser bispo e m T o r t o s a , c o m e ç a v a o seu tratado pelo p e c a d o , especial-
m e n t e pela malícia daqueles q u e «singulari m o d o D o m i n o p e c c a v e r u n t , l h e -
s u m C h r i s t u m D e i filium iniuste mortis supplicio i n t e r i m e n d o ; p r o p t e r q u o d
speciali m o d o facti sunt ceci inter o m n e s gentes» 6 6 .
R e f e r i n d o - s e à «cegueira» e à «surdez», citava Isaías e declarava o f i m da
Lei de Moisés, anunciada pelo A n t i g o T e s t a m e n t o , q u e afirmava q u e depois
da Lei de Moisés u m a n o v a Lei viria mais perfeita q u e a anterior. Isaías era o
profeta da Lei N o v a , mas ao seu lado seleccionava extractos de Malaquias, d o
Ê x o d o , d o Eclesiastes e dos apóstolos 6 7 . O Messias foi o u t r o dos temas a b o r -

73
A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

Cristo crucificado. P o r m e n o r dados, n o capítulo s o b r e a c r e n ç a dos j u d e u s d e q u e a Lei antiga era p e r p é -


da cruz processional tua. N e s t e a b o r d a v a a crença n a v i n d a d o Messias e a recusa e m a c e i t a r e m
proveniente da igreja de
C r i s t o c o m o o Messias p r o m e t i d o , pois este devia reedificar J e r u s a l é m e tal
Alcabideche, século x v
(Lisboa, M u s e u N a c i o n a l de n ã o sucedera. E t e r m i n a v a este capítulo: «pro p é r f i d a o b s t i n a t i o n e i u d e o -
Arte Antiga). r u m » 68
F O T O : DIVISÃO DE
As questões da circuncisão e da T r i n d a d e f o r a m i g u a l m e n t e analisadas e
DOCUMENTAÇÃO FOTOGRÁFICA/ contestadas as posições dos j u d e u s . Pelos seus pecados e, n o m e a d a m e n t e , p e l o
/INSTITUTO PORTUGUÊS DE p e c a d o m a i o r c o n t r a Cristo, este p o v o estava e m cativeiro havia 1247 anos:
M U S E U S / J O S É PESSOA.
«Ergo quia per p e c c a t u m c o m m i s s u m c o n t r a C h r i s t u m iudei i n c u r r e r u n t
m a i o r e m p e n a m in ista ultima captivitate q u e iam duravit MCCXLVH annis
q u a m f u e r i t aliqua p e n a eis n u n q u a m immissa p r o p t e r p e c c a t u m idolatrie.» 6 9
C o m base n o c ô m p u t o das setenta semanas d e Daniel, acabava p r o v a n d o
q u e a Lei Velha j á desaparecera e fora sucedida pela Lei N o v a e só a i g n o r â n -
cia dos j u d e u s impedia estes d e a c o n h e c e r e m 7 0 .
C o n t e m p o r â n e o s de B e r n a r d o O l i v e r f o r a m os conversos A f o n s o d e V a l -
ladolid, e x - A b n e r d e Burgos, a u t o r de Mo ré Sedeq, e J e r ó n i m o de Santa Fé,
ex-Joshua h a - L o r q u i , q u e i n t e g r o u a disputa de T o r t o s a . Já n o século xv, u m

74
O DIFÍCIL DIÁLOGO ENTRE JUDAÍSMO E CRISTIANISMO

o u t r o converso, P a u l o d e B u r g o s o u P a u l o de Santa Maria, escrevia u m dos


mais famosos textos de apologética peninsular, o Scrutinium Scripturarum.
A maioria destes autores tinha e m c o m u m o passado j u d e u e u m p r o f u n d o
c o n h e c i m e n t o d o p e n s a m e n t o rabínico, n o qual se apoiavam para contestar
as posições anticristãs dos seus ex-correligionários.
N a disputa de T o r t o s a , a a r g u m e n t a ç ã o católica baseou-se e m P e d r o
A f o n s o e, s o b r e t u d o , e m R a i m u n d o M a r t i e n o Pugio Fidei, e m b o r a se verifi-
q u e q u e os temas e r a m c o m u n s aos o u t r o s autores 7 1 . J e r ó n i m o de Santa Fé
sabia usar, na oposição feita às asserções dos seus ex-correligionários, os textos
antigos da literatura rabínica: os Targumim babilónicos e palestinenses, a Mi-
shná e os Midrashim antetalmúdicos e talmúdicos, para além dos textos bíbli-
cos 7 2 .
Algumas das autoridades judaicas aduzidas para a disputa t i n h a m j á sido
usadas p o r R a i m u n d o Marti, pelo q u e m u i t a da a r g u m e n t a ç ã o de J e r ó n i m o
de Santa Fé radicava nos textos d o frade d o m i n i c a n o .
P o r o r d e m d o papa B e n t o X I I I , o p r i m e i r o assunto a ser tratado foi o da
vinda d o Messias a n u n c i a d o pelos profetas, e de q u e este era Cristo, a q u e se
seguiram os erros insertos n o T a l m u d e . A a r g u m e n t a ç ã o tinha c o m o o b j e c t i -
v o c o m b a t e r os erros, os pecados, a perfídia, a cegueira dos j u d e u s , p o r cuja causa
estes ainda se e n c o n t r a v a m e m cativeiro. O s seus interlocutores e r a m os rabis
Astruch, Ferrer, José A l b o , Moisés A b e n A b e t e outros, p r o v e n i e n t e s d e v á -
rias c o m u n a s aragonesas. N o final o papa c o n d e n a v a , à semelhança de G r e g ó -
rio I X e I n o c ê n c i o IV, a perversa d o u t r i n a d o T a l m u d e e os erros e heresias
q u e c o n t i n h a . C o n d e n a ç ã o q u e se estendia t a m b é m aos seus seguidores, p r o i -
b i n d o - o s de e r g u e r e m novas sinagogas o u d e a u m e n t a r e m as existentes, de
a r r e n d a r e m casas a cristãos, de t e r e m sociedade c o m cristãos o u possuírem
servidores cristãos e m suas casas o u n o trabalho, de f r e q u e n t a r e m os b a n h o s
ao m e s m o t e m p o q u e estes, d e s e r e m m é d i c o s o u parteiros(as) das g e n t e s da
maioria. A n a t e m i z a v a - o s , i m p e l i n d o - o s para as judiarias, e acusava-os d e
c u p i d e z e d e e n r i q u e c e r e m à custa da usura 7 3 .
O resultado i m e d i a t o desta disputa foi a conversão de m u i t o s j u d e u s , al-
guns ilustres rabis, e suas famílias. L o g o n o início, abjuraram o j u d a í s m o
D . Vidal b e n B e n v e n i s t e da Cavalaria e seus familiares 7 4 .
A maioria das proposições aduzidas p o r J e r ó n i m o de Santa Fé, e m T o r t o -
sa, f o r a m extraídas d o Pugio Fidei de M a r t i e prevaleceriam na a r g u m e n t a ç ã o
apologética dos séculos x v e xvi, e m Castela, c o m o p o d e m o s verificar n o Li-
vro da sabedoria de Deus d o c o n v e r s o A f o n s o de Z a m o r a , n o p r i m e i r o quartel
de Q u i n h e n t o s 7 5 .
J e r ó n i m o de Santa Fé escreveria, c o m base nas suas alegações e m T o r t o s a ,
o Tractatus contra perfidiam judeorum e De Judaeis erroribus ex Talmuth.
Às disputas j u n t a v a m - s e , e m Aragão e Castela, as pregações d o d o m i n i c a -
n o V i c e n t e Ferrer, q u e criavam assim u m clima artificial p r o p í c i o às c o n v e r -
sões.
E m Portugal, sabemos p o u c o sobre a influência de u m a s e outras nas
conversões de indivíduos da minoria. A d o c u m e n t a ç ã o r e f e r e - n o s algumas
c o m a m e n ç ã o da entrada de alguns neófitos e m o r d e n s religiosas, c o m o na
d e Alcobaça. O seu escasso n ú m e r o p e r m i t e - n o s c o n c l u i r q u e elas seriam v o -
luntárias, s e m a pressão e m o c i o n a l p r o v o c a d a pelo clímax das disputas t e o l ó -
gicas o u das pregações inflamadas.
S a b e m o s q u e , para i m p e d i r o abraço f o r ç a d o d o cristianismo, D . J o ã o I
proibia q u e nas terras da O r d e m de Santiago, o n d e se p r o c u r a v a pregar aos
j u d e u s , estes fossem obrigados a ir assistir aos sermões, tal c o m o , s e g u n d o a
tradição, teria i m p e d i d o São V i c e n t e Ferrer de vir pregar a Portugal.
Seria j á n o r e i n a d o de D . A f o n s o V q u e u m c o n v e r s o bracarense, Frei
Paulo, causaria transtornos na c o m u n i d a d e judaica da região 7 6 .
Das obras d e apologética contra os j u d e u s escritas e m p o r t u g u ê s , apenas
c h e g a r a m até nós o Tratado teológico em que se prova a verdade da religião de Jesus
Cristo, a falsidade da Lei dos Judeus e a vinda do Messias, o Speculum hebraeorum
o u Speculum disputationis contra hebraeos da autoria d e Frei J o ã o , frade alcoba-
cense, e m resposta à célebre controvérsia havida entre Frei Paulo e o rabi

75
A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

76
O DIFÍCIL DIÁLOGO ENTRE JUDAÍSMO E CRISTIANISMO

Moisés b e m N a h m a n , o Livro da corte imperial e o Ajuda da fé de mestre A n t ó -


nio, o ú n i c o a u t o r c o n v e r s o c o n h e c i d o 7 7 .
Para além destes textos d e apologética, é provável q u e , e m Portugal, à se-
m e l h a n ç a d o q u e ocorria n o u t r o s reinos da Península e e m França, sucedes-
sem disputas religiosas. D . D u a r t e referia-as n o Leal conselheiro78 e, antes dele,
Frei J o ã o de Alcobaça censurava o seu a m a d o r i s m o , pois e m q u a l q u e r praça
pública os cristãos disputavam c o m os j u d e u s 7 9 . Álvaro Pais referia-as n o seu
Colírio da fé contra as heresias, ao escrever: «Disputando eu e m Lisboa c o m u m
e m b u s t e i r o h e b r e u s e m i c u l t o [...J.» 80 S e g u n d o parece, tal h á b i t o era f r e q u e n t e
na corte de D . A f o n s o V , o n d e o s o b e r a n o discutiria assuntos teológicos c o m
José Ibn Yahia 8 1 .
T o d a esta literatura, à semelhança d o q u e ocorrera n o resto da Península
o u e m França, assentava e m dois princípios antagónicos entre si. Para os j u -
deus, Cristo n ã o era o Messias e este ainda n ã o tinha v i n d o para c o n d u z i r o
seu p o v o , de n o v o , a Eretz Israel, à T e r r a P r o m e t i d a , e para estabelecer o rei-
n o universal c o m sede e m Jerusalém. Para os cristãos, C r i s t o era o Messias
p r o m e t i d o p o r D e u s aos profetas. Esta disputa sobre qual das duas religiões
era a verdadeira d e v e ter m a r c a d o , e m Portugal, o p e n s a m e n t o cristão e t a m -
b é m o j u d e u , apesar d o clima de tolerância q u e aqui se vivia.
E m Portugal, m u i t o s destes textos e r a m e c o d o q u e se passava nos reinos
vizinhos. Assim, a obra de Frei J o ã o de Alcobaça, datada dos princípios d o
século x i v e u m a das versões existentes d o a n o d e 1333, apresentava-se c o m o
u m a resposta à versão hebraica, escrita p o r N a h m a n i d e s na disputa de B a r c e -
lona, e m 1263, e m q u e este fora u m dos intervenientes e o o u t r o o d o m i n i c a -
n o de o r i g e m j u d a i c a P a u l o Cristiano. T e n d o , c o m o ele diz, consultado o
t e x t o latino e o hebraico, Frei J o ã o p r o p u n h a - s e d e f e n d e r a v e r d a d e da reli-
gião cristã c o n t r a os erros dos j u d e u s e acrescentava: «Intitulei-o Espelho dos
Hebreus para q u e assim c o m o o h o m e m p o d e discernir n o espelho as m a n c h a s
d o rosto, assim t a m b é m possam os j u d e u s e os conversos c o n t e m p l a r neste li-
v r o os antigos erros.» 82
Assim, admitia a controvérsia contra os seguidores da Lei de Moisés q u e
se e n c o n t r a v a m nas «trevas», pois n ã o e n t e n d i a m a verdade anunciada pelos
profetas. R e c o r r i a , c o m o o u t r o s autores, ao a r g u m e n t o d o cativeiro e m q u e
eles ainda p e r m a n e c i a m , d e v i d o aos seus pecados, n o m e a d a m e n t e d e v i d o à
n ã o aceitação da vinda d o Messias 8 3 .
A f o n t e de Frei J o ã o é catalã e reflectia o clima de controvérsia religiosa,
desenvolvido pelos D o m i n i c a n o s e pela corte de J a i m e I de Aragão, q u e p r e -
sidiu e o r d e n o u a redacção latina da disputa e q u e institucionalizou os ser-
m õ e s nas sinagogas. T e m a s constantes dessa disputa e r a m a vinda d o Messias,
a natureza de C r i s t o e o d o g m a da Santíssima T r i n d a d e , e n t r e outros. Tal
c o m o o u t r o s pregadores, Frei J o ã o t a m b é m referia «as trevas da maldade j u -
daica» 84 .
I g n o r a m o s se a finalidade de Frei J o ã o seria essa m e s m a : criar i n s t r u m e n -
tos q u e permitissem aos pregadores nacionais d o u t r i n a r p u b l i c a m e n t e os j u -
deus n o seu p r ó p r i o t e r r e n o religioso. C o n t u d o , estamos mal i n f o r m a d o s so-
b r e esta prática para p e r í o d o s anteriores ao reinado d e D . J o ã o I, t e n d o este
acabado p o r proibir as pregações nas sinagogas.
O Livro da corte imperial é u m t e x t o de apologética q u e , s e g u n d o Sidarus,
teria tido a sua o r i g e m na C a t a l u n h a e e n t r a d o e m P o r t u g a l c o m o c a s a m e n t o
de Isabel de Aragão e D . Dinis, sendo traduzido para p o r t u g u ê s . Este a u t o r
coloca a redação d o original catalão p o r altura d o casamento de J a i m e II c o m
Maria de C h i p r e , talvez p o r e n c o m e n d a da c o r t e aragonesa, e declara-o f o r -
t e m e n t e m a r c a d o pela ideologia apologética de R a m o n Lull, n o q u e respeita
aos pagãos, p o r R a i m u n d o M a r t i na controvérsia c o n t r a o Islão, e p o r N i c o -
lau de Lira na disputa c o n t r a os j u d e u s 8 5 .
T r a z i d o o u n ã o pela rainha D . Isabel, irmã de J a i m e II, para Portugal, a
verdade é q u e , c o m o v e r e m o s , o Livro da corte imperial teve g r a n d e divulgação 0 Tora (Pentatateuco), Lisboa,
n o reino, na sua versão portuguesa q u e t e m sido datada d o século xiv. 1491 (Lisboa, Biblioteca
A n t ó n i o C a e t a n o de Sousa assinalou a sua presença na biblioteca de Nacional).
D . D u a r t e e o m e s m o o u outra cópia deste m a n u s c r i t o era m e n c i o n a d o n o F O T O : LAURA GUERREIRO.

77
A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

testamento da infanta D . Beatriz, sua nora. Deveria estar suficientemente d i -


vulgado n o século xv, para q u e u m a das suas cópias manuscritas pertencesse
a u m h o m e m h o n r a d o do P o r t o , Afonso Vasques de Calvos, precisamente a
que c h e g o u m e l h o r conservada até nós e se encontra depositada na Biblioteca
Municipal do Porto. U m o u t r o exemplar existia na biblioteca d o M o s t e i r o
de Santa C r u z de C o i m b r a 8 6 .
Tal c o m o já foi salientado pelos autores que o estudaram, o objectivo
desta controvérsia era salientar a verdade da fé cristã perante os infiéis j u d e u s ,
m u ç u l m a n o s e gentios. R e m e t o para C r u z Pontes a identificação dos extrac-
tos de outras obras de apologética, n o m e a d a m e n t e das obras de Nicolau de
Lira, e de temas usuais nas controvérsias religiosas, inseridos n o manuscrito
português.
A Igreja apresenta-se c o m o u m a rainha resplandecente que defende as v e r -
dades do cristianismo contra gentios, j u d e u s e muçulmanos, n u m a corte i m p e -
rial presidida pelo imperador supremo, que mais não é do que a corte celeste.
Nela decorre uma disputa religiosa, narrada à imagem e semelhança das dispu-
tas teológicas feitas e m Aragão sob o patrocínio do rei e da Igreja, o n d e a rai-
nha que identifica a Igreja discute sobre a verdadeira religião, o cristianismo,
c o m vários interlocutores: diversos rabis judeus, u m filósofo gentio e u m alfa-
qui. Apenas nos interessa abordar aqui a polémica religiosa c o m o judaísmo.
O j u d e u aparece identificado «com sua barua grande e seu naijz l o n g o
uestido e m panos pretos» 87 . O primeiro d o g m a a ser trazido para a discussão
c o m a «católica rainha» foi o da Trindade. A interlocutora afirmar-lhe-ia p r o -
var a T r i n d a d e divina c o m textos da Sagrada Escritura e c o m o p e n s a m e n t o
filosófico, e remontava aos primeiros t e m p o s d o cristianismo o n d e os p r i m e i -
ros cristãos foram j u d e u s . E m seguida explicava a razão por q u e os j u d e u s
não se convertiam: o m e d o de serem pobres fazia-os presos dos bens t e m p o -
rais; o ó d i o ao cristianismo e m que eram criados desde o nascimento; a i n -
c o m p r e e n s ã o e rejeição da T r i n d a d e e da Eucaristia 8 8 .
Sucede, n o diálogo c o m os rabis j u d e u s , a explicação da T r i n d a d e c o m o
Génesis e c o m o salmo «pello u e r b o do senhor som firmados os çeeos e pello
spiritu da sua boca toda a virtude delles e m aquello q u e diz u e r b o se e n t e n d e
a pesoa d o filho e m aquello q u e diz do s e n h o r se mostra a pesoa d o padre.
E pello spiritu da sua boca se e n t e n d e a pesoa d o spiritu sancto». Vai buscar a
identificação da pluralidade na unidade divina à palavra Eloim, «que sygnifica
mais q u e húa cousa he n o m e de deus» n o acto da criação do m u n d o , narrado
n o Génesis, a Josué, a Jeremias q u e associa o «senhor das ostes» a «nome d e
deus tetagramaton» 8 9 .
Identificava Cristo c o m o «verbo» divino q u e existe desde o início da
criação e contestava a objecção judaica q u e associava a criação d o h o m e m à
i m a g e m dos anjos e não de Deus. Invocava e m sua defesa Isaías q u e t a m b é m
afirmava D e u s u n o e trino, associando as pessoas divinas a «deus tetagrama-
ton», o u seja, Yahvé 9 0 .
A Incarnação foi o u t r o tema abordado c o m o rabi j u d e u e foi p r e t e x t o
para abordar a figura do Messias «prometido e m a lley e e m nos profetas h e
uerdadeiro deus se uerdadeiro h o m e m » . Jeremias era citado a propósito da
geração de David de o n d e viria o Messias para os filhos de Israel: «Pois se a
ditta autoridade segundo os doutores dos j u d e u s se e n t e n d e d o misia quy se
mostra e m a dita autoridade q u y auya de uijir e m proueza concludese ergo
dele q u y seia deus e h o m e m . [...] E ergo d o m rreby dise a rreinha católica
n o m uos espantedes n e m digades quy xpisto n o m p o d e seer uerdadeiro deus
e uerdadeiro h o m e m pois quy as uosas escripturas o dizem asy c o m o auedes
ouujdo.» 9 1
O último tema abordado foi o da vinda d o Messias que os rabis j u d e u s
alegavam não ter ainda vindo, utilizando textos de Isaías, Zacarias, Jeremias,
t> Perush Há-Berakhot
(Comentário à ordem das Ezequiel. A rainha contestava as suas asserções c o m base na profecia de J a c o b ,
orações), Lisboa, 1489 (Porto, n o Génesis, n o s o n h o de Daniel, n o Salmo 94, na interpretação de rabi Bara-
Biblioteca Pública Municipal). quias. C o m p l e t a v a a temática da controvérsia contra os j u d e u s a Eucaristia 9 2 .
F O T O : BIBLIOTECA PÚBLICA E O s j u d e u s apareciam aqui sem argumentos suficientes e fortes para v e n c e r
M U N I C I P A L DO P O R T O . as asserções da «católica rainha», que se baseava sempre na Sagrada Escritura e

78
O DIFÍCIL DIÁLOGO ENTRE JUDAÍSMO E CRISTIANISMO

79
A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

n o texto hebraico, a c a b a n d o p o r se calarem vencidos mas n ã o c o n v e n c i d o s ,


pois n ã o se c o n v e r t i a m ao cristianismo, ao contrário d o gentio.
Verifica-se q u e a temática seguida pela Corte imperial é a q u e respeita ao
Messias na apologética catalã antijudaica, n o m e a d a m e n t e n o Pugio Fidei de
Marti, apesar da «colagem» a N i c o l a u de Lira, c o m o d e f e n d e m C r u z P o n t e s e
Sidarus. E s t a n d o atribuída a tradução p o r t u g u e s a ao século xiv, este m a n u s -
crito s u r g e - n o s c o m o c o n t e m p o r â n e o d o t e x t o de Frei J o ã o de Alcobaça e
das obras latinas de Álvaro Pais, bispo de Silves.
N ã o s e n d o a c o m u n i d a d e j u d a i c a tão i m p o r t a n t e social, e c o n ó m i c a e c u l -
t u r a l m e n t e q u a n t o a catalã/aragonesa, apenas v e m o s c o m o explicação para a
existência das duas obras portuguesas de nítidas influências catalãs o peso q u e
as relações c o m Aragão tiveram na corte portuguesa, a q u e se j u n t a r i a a i n -
fluência ideológica da apologética m e n d i c a n t e .
Curiosa t a m b é m é a referência constante ao trajo n e g r o dos rabis j u d e u s :
«Mais l o g o o u t r o j u d e u m u j u e l h o uistido e m panos negros c o m o o p r i m e i -
ro»; «Mais logo se l e u a n t o u o u t r o j u d e u u e l h o e amarello e m n o rrosto c o m
seu g r a n d e tabardo p r e t o e sua barua m u y longua»; «E l o g o se l e u a n t o u o u t r o
j u d e u m u y u e l h o e m u j m a g r o b e n assy uistido de d o o c o m e os primeiros
seos cabellos longos e m na cabeça»; «outro rreby j u d e u c o m sua cabeça toda
calua e seu narjz l o n g o sem mesura uestido asy c o m e os outros. E a sua barua
m u j espessa»; «Mais logo se l e u a n t o u o u t r o j u d e u m u y dessasemelhado ssua
collor amarella e sua barua m u j a m c h a e asy uistido c o m e os outros.» 9 3 A d i -
ferença tornava-se patente, n ã o só pela religião, mas t a m b é m pela fisionomia,
a cor da pele e o vestuário, para além, o b v i a m e n t e , da onomástica.
N o e n t a n t o , o t o m usado pela «católica rainha» era coloquial, afável r e f e -
rindo s e m p r e o seu i n t e r l o c u t o r p o r «rabi», « d o m rabi», «rabi amigo» e até
p o r «rabi Moisés» o u «rabi Papias» 94 , e m b o r a exteriorize alguns topoi q u e v i -
riam a caracterizar o j u d e u : cegueira, perfídia, p o v o e m cativeiro p o r q u e m a -
t o u Cristo 9 4 .
O p o v o j u d e u saía v e n c i d o da disputa: «Calouse o rraby e os j u d e u s c o m
sua perfia e estauam c o m olhos baixos e m tera p o r q u e de m a a o talente
o l h a u a m a católica rrainha q u e os ia c o n f o n d e n d o . » 9 6
Apesar da c o n t u m á c i a j u d a i c a , a «católica rainha» declarava a lei dos j u -
deus b o a , p o r q u e era f u n d a m e n t o da religião cristã 97 .
T a m b é m na Biblioteca Pública de Braga, C r u z P o n t e s e n c o n t r o u u m
m a n u s c r i t o d o século xiv, c o n h e c i d o p o r Carta do rabi Samuel, q u e teria sido
escrita n o século xi, e m Fez, p e l o rabi Samuel ao rabi Isaac. N e l a n ã o se dis-
cute a verdade d o j u d a í s m o o u d o cristianismo, mas a a r g u m e n t a ç ã o apresen-
tada sobre o cativeiro de Babilónia, sobre o c u m p r i m e n t o das setenta semanas
de Daniel e das profecias dos cristãos, lança as dúvidas sobre a verdadeira reli-
gião n o espírito de rabi Samuel, tanto mais q u e os árabes t a m b é m afirmavam
q u e o Messias já viera 9 8 . C u r i o s a m e n t e , u m a cópia desta carta era c o n h e c i d a
pelos cristãos-novos de Lisboa, existindo u m e x e m p l a r na posse de mestre
Tomás.
A única obra de apologética portuguesa, escrita p o r u m converso, é Ajuda
da fé, c u j o autor, mestre A n t ó n i o , foi c i r u r g i ã o - m o r de D . J o ã o II. N a t u r a l de
Tavira, c o n v e r t e r a - s e c o m 40 anos de idade ao cristianismo depois de estudar
o T a l m u d e e outros escritos antigos de apologética, de «disputas». Baptizado,
resolvera c h a m a r à religião verdadeira os seus ex-correligionários, escrevendo
e m 1486 o seu m a n u s c r i t o apologético q u e C r i s t ó v ã o R o d r i g u e s A c e n h e i r o
viria a copiar, a p e d i d o de mestre P e d r o M a r g a l h o , p r e g a d o r de D . J o ã o III 9 9 .
Este m a n u s c r i t o inicia-se c o m a invocação d o salmo « A d j u t o r i u m n o s -
t r u m in n o m y n e d o m i n i qui fecit celurn et terram», i n v o c a ç ã o usada t a m b é m
nas m o e d a s portuguesas, desde D . J o ã o I. D e s i g n a - o Adjutorium fidei «porque
sera ajuda e esforço a alguuns zelantes sabeer os f u n d a m e n t o s da sancta fee
católica m o r m e n t e aa J u d e u s q u e e m tam p e q u e n a c o m t a a t e e m , asy p o r
n a m e n t e n d e r e m n e m q u e r e r e m saber os f u n d a m e n t o s dela c o m o p o r n o m
saberem todalas cousas q u e seus doctores sobre cada h u u m artigo falaram g r o -
sando as profecias. E p o r q u e os J u d e u s t e m h u u m livro aa q u e c h a m a m v e r g o -
nha dos christãos, prazendo ao Salvador este sera a tal v e r g o n h a pera eles c o m o

80
O DIFÍCIL DIÁLOGO ENTRE JUDAÍSMO E CRISTIANISMO

h o virem o u o u v i r e m o u ser-lhe-a neçesario serem christãos o u ficarem e m tal


vergonha q u e n a m teram reposta pera p o r sy daar e m este caso» 100 .
D . J o ã o II p e d i r a - l h e q u e o escrevesse, talvez na sequência d o possível
impacte d o b a p t i s m o de tão i m p o r t a n t e rabi j u n t o dos j u d e u s portugueses.
M e s t r e A n t ó n i o tivera p o r p a d r i n h o o p r ó p r i o m o n a r c a , s e g u n d o Garcia de
Resende.
P o d e m o s crer q u e a sua conversão fora a c o n s e q u ê n c i a de u m a fé a d q u i -
rida n o estudo, pois, d u r a n t e cerca de q u i n z e anos, debruçara-se sobre «as
verdades e f u n d a m e n t o s da dita fee c o m o era f u n d a d a asy e m muitas disputas
contra christãos» e «no T a l m u d q u e m u i b e m passei t o d o c o m o e m outras es-
prituras e disputas amtigas» 1 0 1 .
As fontes da sua apologética filosófico-religiosa são Aristóteles (Ética, Me-
tajisica e Moral), n o qual se baseou para explicar o livre arbítrio, o A n t i g o
T e s t a m e n t o , o n d e se salientam os profetas, os Salmos, o Génesis, o T a l m u d e ,
a Misna Torach, o Midrash Sir, mestre Moisés d o Egipto, rabi A q u i b a e o u t r o s
autores j u d e u s , textos cabalísticos e os livros de disputas dos conversos, o u se-
ja, a apologética peninsular q u e o a n t e c e d e u .
A sua a r g u m e n t a ç ã o centrava-se à volta d o Messias e pretendia p r o v a r a
vinda deste aos seus antigos c o m p a n h e i r o s , u s a n d o os escritos judaicos: «Ma-
xima h e n o T a l m u d E m b e r a h o d , capitulo p r i m e i r o , e mestre M o s s e m n o li-
vro c h a m a d o M i s n e T o r a d o b r o da ley, neste diz q u e a ley d e spritura n o m
obriga t a n t o salvo a ley de c o o r e Moyses a m a n d o u a Y o s u e e aos velhos e
t o d o Isrrael p o r t a n t o foy chamada ley de c o o r . E p o r q u e agora hos J u d e u s
c o m o v e e m a l g u u m c o n v e r s o q u e lhes sabe hos cantos da casa d i z e m q u e
n a m sam obrigados de os goardar na ley.» 102
Criticava os autores conversos, seus antecessores, p o r q u e «neses lyvros d e
disputas desses conversos q u e eu vii, achey h u u m grande i n c o n v e n i e n t e q u e
h e o u a r g u e m mais d o q u e asolvem o u p o r m e t e m mais d o q u e d a m . P o r q u e
mestre J e r o n i m o q u a n d o se c o n v e r t e o a m t e q u e fose bispo d ' A v y n h ã o fez
h u m a g r a n d e disputa de q u e grandes leterados j u d e u s f o r a m desbaratados e
deles b o o n s christãos, fez h u u m livro q u e m e p a r e ç e o levar m u y b o a regra,
mas c o m o q u e r q u e ele grande leterado foy o u p o r n o m veer tantas cousas
o u c o m o q u e r q u e foy n o m satisfez t a m b e m c o m o eu quisera, eu levarey a
sua regra mais mais [51c] rijo argoyrey e mais largo provarei» 1 0 3 . C o m a sua ar-
g u m e n t a ç ã o p r e t e n d e «alumiar os olhos de m u i t o s çegos».
Verificamos q u e mestre A n t ó n i o c o n h e c i a as disputas peninsulares, n o -
m e a d a m e n t e a disputa de T o r t o s a e a obra de J e r ó n i m o de Santa Fé q u e se-
guiria d e m u i t o p e r t o , s o b r e t u d o o Livro 1, na temática e nas citações dos
textos judaicos, assim c o m o d o Pugio fidei104.
N u m a disputa q u e se desenrolava entre mestre A n t ó n i o e u m j u d e u
«amigo», tentaria provar, ao l o n g o de d o z e capítulos, q u e Cristo era o M e s -
sias p r o m e t i d o na Lei:
«Capitulo p r i m e i r o diraa c o m o toda a discórdia antre nos e h o J u d e u h e
f u n d a d a sobre a vinda d o Misia e neste capitulo h i r a m os seus a r g u m e n t o s
prinçipaes q u e h o J u d e u m o v e contra nos;
C a p i t u l o s e g u n d o diraa a vinda d o Misia q u e foy n o t e m p o p r o m e t i d o ;
C a p i t u l o terçeiro diraa c o m o o dito Mesia n a ç e e o e m B e l e e m ;
C a p i t u l o q u a r t o diraa c o m o n a ç e o da V i r g e m Maria e falara na e n c a r -
nação;
C a p i t u l o q u i n t o diraa q u e h o Misia h e D e u s e h o m e m e fala na T r i n d a d e ;
C a p i t u l o seisto diraa c o m o era profetizado d o t e m p o d ' A b r ã o e q u e os
rex lhe t r o z e r i a m presentes;
C a p i t u l o s e p t y m o q u e antes da vinda d o Misia todalas almas e r a m n o i n -
f e r n o pelo p e c a d o de A d d a m ;
C a p i t u l o o y t a v o c o m o h o Mesia avia de reçeber m o r t e e p a i x a m e q u e
ao terceiro dia avia de resuscitar e sobir ao c e o e estar a destra de D e u s padre;
C a p i t u l o n o v e n o falara n o sacrifício q u e avya de ficar depois da vinda d o
Mesia;
C a p i t u l o d e ç i m o c o m o h o Misia avia de dar h y n o u a e tiraar m u i t o s
m a n d a m e n t o s , çirimonias e pascoas;

81
A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

C a p i t u l o xj diraa c o m o d e p o i da vinda d o Misia se avia de r e m o v e r a


ydolatria e das gentes avia de fazer p o v o n o v o e saçerdotes e Isrrael avia de
teer o u t r o n o m e e avyam d e ser salvos p e l o b a u t i s m o ;
C a p i t u l o xij q u e ante q u e viese sua v i m d a avia d e ser apregoada e q u e
veria c o m m u i t a h u m i l d a d e e q u e h o catyveiro dos J u d e u s foy pelo q u e lhe
fizeram e n u n c a mais foy o u v i d a o r a ç a m d e Judeu.» 1 0 5
N o p r ó l o g o d o seu texto, mestre A n t ó n i o declarava provar q u e o Messias
já viera, t o m a n d o c o m o base o Midrash Rut; rabi Sahuna e rabi Y o s h u a ; m e s -
tre Moisés d o E g i p t o n o livro dos Juízes; o T a l m u d e , para afirmar q u e era
h e r e g e o q u e negava a vinda d o Messias; a interpretação da visão d e Zacarias
p o r rabi Salomão. C o n c l u í a verificando q u e era difícil a olhos «cegos» e n t e n -
d e r e m a fé: «E depois q u e c o m e ç e y gostar da fee e c o m m u i t o c h o r o m e e n -
c o m e n d e y aa D e u s e aa sancto A n t o n y o q u e rogase p o r m y m a nosso S e n h o r
q u e m e mostrasse seu c a m i n h o ate q u e p r o u v e a nosso S e n h o r m e dar tal
graça [...] E assy r o g o aa t o d o j u d e u p o r a m o r de D e u s q u e faça c o m o eu fiz
e o u l h e h o q u e o u l h e y e trabalhe c o m o trabalhey e l o g o se lhe abriram os
olhos da alma [...].» 106
A o p r i m e i r o a r g u m e n t o d o j u d e u sobre a promessa de q u e o Messias h a -
via de vir para os j u d e u s e q u e C r i s t o n ã o só n ã o viera para os j u d e u s , c o m o
ainda os fizera cair e m cativeiro, r e s p o n d i a - l h e c o m o T a l m u d e , livro de Me-
kilta, c o m a glosa talmúdica de rabi S a l o m ã o q u e dizia «que n o t e m p o d o
Mesias seriam as gentes repartidas e m q u a t r o partes», c o m Midrash Rut, a p r o -
pósito da aplicação d o n o m e d e Israel aos estrangeiros, c o m Isaías e c o m o
Talmud Sanhedrim glosado p o r rabi Samaia 1 0 7 .
A segunda dúvida d o j u d e u sobre o Messias q u e havia de c o n d u z i r o p o -
v o de Israel, espalhado p o r t o d o o m u n d o , a Jerusalém, s e g u n d o Isaías, res-
p o n d i a mestre A n t ó n i o associando esta Jerusalém à J e r u s a l é m celeste, e alicer-
ç a n d o - s e e m mestre Moisés d o E g i p t o n o livro Mada, n o t e x t o d o Génesis
sobre a escada de J a c o b , n o Bereshit Raba, e m rabi Moisés, o C o h e n , e n o
d o u t o r B e n Balao 1 0 8 .
A afirmação de q u e o Messias reconstruiria a casa d e D e u s e m Jerusalém,
c o m o profetizava Zacarias, mestre A n t ó n i o baseava-se na profecia de M a l a -
quias: «eu enviarey o m e u a m g e o e alinpara h o c a m i n h o diante m y m e subi-
to viraa aa seu paço», n o salmo «Esperamos D e u s tua gloria», e m rabi Ioshua
b e n Levi n o Genesim Magno, na glosa Midrash Telim, e m rabi A q u i b a e rabi
Aba q u e interpretaram Sião c o m o Paraíso 1 0 9 .
Alegava ainda o j u d e u q u e Cristo n ã o podia ser o Messias, p o r q u a n t o
destruiu a Lei de Moisés. M e s t r e A n t ó n i o rebateria esta asserção, c o m e ç a n d o
pela carne de p o r c o q u e era proibida pela Lei, animal q u e era t a m b é m desig-
n a d o p o r «tornado», pois D e u s faria c o m q u e Israel o viesse a c o m e r . Para tal
baseava-se n o Talmud Enveraod, e m B e n Z o m a , q u e relacionavam essas p r o i -
bições c o m a saída d o Egipto, e r e t o m a v a as explicações s e g u i n d o o Salmo
81, o Ketubot, n o capítulo dos Juízos, rabi José, Isaías, c o n c l u i n d o q u e todos
afirmavam q u e a Lei ia ser m u d a d a .
Acrescentaria q u e muitas dessas m u d a n ç a s f o r a m t a m b é m feitas pelos j u -
deus e dava o e x e m p l o da festa d e Ester, da H a n u c a , da c o m e m o r a ç ã o da vi-
tória d o M a c a b e u s , d o P u r i m , d o lavar as mãos, da candeia ao sábado, etc.
P o r isso, Cristo podia fazer a m u d a n ç a da Lei, pois a Ele se aplicava o sacrifí-
cio d o p ã o e d o v i n h o , c o m o profetizava Isaías, c o m o fora glosado n o Mi-
drash Telim e nas confissões de rabi A n t o da família d e rabi Levi e d e rabi
M e n a é m da Galileia. C o n c l u í a q u e a única lei eterna e r a m os D e z M a n d a -
mentos.
P o r isso contestava a circuncisão, tida c o m o c o n d i ç ã o de salvação pelos
j u d e u s ; a Páscoa d o pão ázimo q u e apenas tinha p o r explicação relembrar a
saída d o E g i p t o e p r e n u n c i a r o c o r d e i r o associando-o a Cristo e o p ã o à h ó s -
tia; o sábado, i n t e r p r e t a d o c o m o o sétimo dia e m q u e D e u s descansou depois
de ter trabalhado, e p o r isso, foi o r d e n a d o ao h o m e m q u e trabalhasse seis dias
e descansasse n o sétimo. P o r fim rebatia o uso de imagens c o m o acto de i d o -
latria.
S e n d o preceitos f u n d a m e n t a i s da religião judaica a prática d o sábado e a

82
O DIFÍCIL DIÁLOGO ENTRE JUDAÍSMO E CRISTIANISMO

ausência de imagens, mestre A n t ó n i o t o m a v a u m c u i d a d o especial e m r e b a t ê -


-los, citando autoridades judaicas, tais c o m o rabi Acer nos Haçagod, rabi
Abraão, rabi Ismael, A q u i b a R a d a e z .
Das imagens e da criação passou ao t e m a da E n c a r n a ç ã o , j á p r e n u n c i a d a
n o salmo de D a v i d «Eu c o m justiça verei tuas faces» e na profecia de Isaías.
E t e r m i n a v a a sua a r g u m e n t a ç ã o c o n t r a o j u d e u , declarando q u e Cristo era o
verdadeiro Messias, p o r q u e « n o m m i n g o o u a ley mas c o m p r i u - a e d e c l a r o u -
- h a c o m o avia d e seer pois era m a y o r q u e todolos o u t r o s profetas» 1 1 ".
E m j e i t o de conclusão sumariava as várias proposições q u e identificavam
Cristo c o m o Messias:
1.a — o Messias havia d e ser h o m e m ;
2. a — havia de nascer de u m a v i r g e m ;
3 / — havia d e ser D e u s , sendo h o m e m ;
4. a — havia de ser visitado pelos R e i s q u e lhe trariam presentes;
5.a — havia d e vir n o fim da segunda casa de Jerusalém;
6. a — havia de nascer e m B e l é m ;
7_a — a sua vinda havia d e ser anunciada e pregada;
8.a — viria e m h u m i l d a d e e pobreza;
9_a — todas as almas dos santos, antes da sua vinda, estavam n o L i m b o e
outras n o I n f e r n o , p o r causa d o p e c a d o de Adão;
10.a — veio para salvar as almas;
11.a — m o r r e u e p a d e c e u para tirar as almas dos padres santos d o I n f e r n o
e as de todos os q u e nele c r e r e m ;
12.a — ressuscitou ao terceiro dia e apareceu aos discípulos;
13/ — subiu ao C é u o n d e está à direita de D e u s Pai;
14.3 — logo o t e m p l o e a casa santa f o r a m destruídos;
15.a — D e u s n u n c a mais escutou oração feita p o r j u d e u ;
16." — os j u d e u s estão e m cativeiro p o r n ã o O aceitarem;
17_a — a sua salvação era para todos os povos, e m b o r a tivesse v i n d o para
os j u d e u s ;
18.a — fez u m n o v o sacerdócio das gentes convertidas;
19.a — a sua misericórdia estava aberta para os q u e O q u i s e r e m c o n h e c e r ;
20. a — a salvação das almas era dada pela água d o baptismo e pela graça
d o Espírito Santo;
21.a — havia de dar Lei N o v a e T e s t a m e n t o N o v o ;
22. a — havia de substituir todas as cerimónias da Lei Velha;
23.a — havia de proibir todos os sacrifícios, e x c e p t o o d o p ã o e d o v i n h o ;
24. a — havia de expulsar toda a idolatria d o m u n d o e todos O h a v i a m de
adorar;
25.a — havia de «dar tal pastor q u e tyvese tal p o d e r q u e o q u e ele fechase
fose f e c h a d o e o q u e abrise fose aberto»;
26.1 — havia de «arrancar a estaqua primeira e q u e avya d e chantar outra
e m lugar fiel»;
27. a — havia d e m a n d a r os seus mensageiros pelo m u n d o para a n u n c i a -
r e m a Sua Glória a todos os h o m e n s ;
28. a — a p r e g o o u aos h o m e n s a Lei;
29. a — esteve n o m o n t e das Oliveiras três dias, para c u m p r i r a meia se-
m a n a d e Daniel;
30. a — declarou os D e z M a n d a m e n t o s e toda a Lei c o m o principais 1 1 1 .
E p o r q u e os «Judeus sam p o v o d u r o de ouvir» e a f i r m a v a m q u e n ã o havia
t e m p o d e f i n i d o para a vinda d o Messias, remetia para o capítulo seguinte a
justificação das asserções enunciadas.
Malaquias, Isaías, Daniel e Zacarias e r a m citados para referenciar o t e m p o
da vinda d o Messias e identificá-lo c o m Cristo. I g u a l m e n t e se socorria d o
Midrash Tilim, na glosa d o Saltério, n o q u e respeitava à entrada de Jesus e m
Jerusalém. Baseava-se nos 6 0 0 0 anos da criação d o m u n d o e citava rabi Saio-
m ã o , a p r o p ó s i t o dos 1000 anos equivalentes a u m dia de D e u s , c o n c l u i n d o
q u e a época messiânica coincidia c o m o fim dos 4 0 0 0 anos, c a b e n d o os últi-
m o s 2000, depois dos 2 0 0 0 anos da Lei, ao t e m p o d o Messias. N o sétimo
m i l é n i o seria a destruição d o m u n d o . N a altura, s e g u n d o mestre A n t ó n i o ,

83
A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

e r a m j á passados 1486 anos d o p e r í o d o messiânico. E rematava: «dixe Elias aa


raby J u d a a n o m mingoara h o m u n d o de l x x x b gibileus e n o j u b i l e y derra-
d e y r o h o filho de D a v i t viraa contados estes gibileus v e e m a própria conta
e m q u e nosso S e n h o r veyo».
A p r o p ó s i t o d o n a s c i m e n t o d o Messias e m Belém, c o n f o r m e profetizara
Isaías, profecia e m q u e os j u d e u s ainda acreditavam, c o n t r a p u n h a a r g u m e n -
t a n d o q u e , n o m o m e n t o , e m B e l é m d o m i n a v a o Islão, pelo q u e n ã o podia
nascer n e n h u m Messias. R e m a t a v a , alegando q u e assim se c o n f i r m a v a q u e
Cristo era o Messias 1 1 2 .
N o q u a r t o capítulo, tratava d o n a s c i m e n t o d o Messias de u m a v i r g e m .
Jeremias, Isaías, D a v i d , Ezequiel, Salomão e as glosas d o Midrash Tilim, d o
Sanhederim e de o u t r o s d o u t o r e s j u d e u s e r a m n o v a m e n t e chamadas para c o n -
firmar os textos sagrados e a identificação d e Jerusalém celeste c o m a Igreja.
Utilizava o hebraico para explicar «virgem», vetula q u e significava alma e se
aplicava a toda a m u l h e r v i r g e m e m o ç a 1 1 3 .
A E n c a r n a ç ã o e a T r i n d a d e f o r a m o b j e c t o de a r g u m e n t a ç ã o nos capítulos
seguintes, o n d e se usava a m e s m a dialéctica: os textos d o A n t i g o T e s t a m e n t o ,
d o Génesis aos Profetas, passando pelo C â n t i c o dos C â n t i c o s e os Salmos, f o -
ram os a r g u m e n t o s usados j u n t a m e n t e c o m as glosas dos d o u t o r e s da Lei. P a -
ra explicar a u n i d a d e divina na T r i n d a d e seguiu rabi Asser n o livro Da unida-
de: «E diz as dignidades de D e u s s o m trees e s o m c h a m a d o s padres e os seus
n o m e s s o m m e r ç e e e j u i z o e misericórdia e asy cada h u m a destas trees h u u m
arvore t e m todas n o m t e m a p a r t a m e n t o n e m soluçam e m suas dynidades p o r -
q u e cada h u m a he c o m p r e n d i d a na outra [...].»
E confirmava a sua a r g u m e n t a ç ã o c o m Aristóteles, q u e «diz q u e D e u s h e
tres causas fynaes juntas», c o m o T a l m u d e , o n d e se lê «que h o v e r b o de H e -
l o y m mostra sobrejuizo de trees», c o m o Génesis na narração da criação de
Adão, c u j o s glosadores afirmavam q u e E l o i m é n o m e plural, n o acto da C r i a -
ção, e c o m Santo A g o s t i n h o , e n t r e m e a n d o nos seus a r g u m e n t o s e x e m p l o s
vários d o p e n s a m e n t o j u d a i c o sobre a E n c a r n a ç ã o e a Ressurreição. Tal c o -
m o o u t r o s autores, seus antecessores nas disputas, associava a T r i n d a d e ao t e -
tragramata, o u seja, a Yahvé 1 1 4 .
R e t o m a r i a o t e m a da T r i n d a d e , a p r o p ó s i t o da visita dos R e i s M a g o s , e
associava o cordeiro d o sacrifício de A b r a ã o a Cristo. C o n c l u í a q u e a vinda
d o Messias fora revelada aos «padres santos» e aos gentios 1 1 5 .
O t e m a da salvação da h u m a n i d a d e p o r Cristo era associado ao p e c a d o de
A d ã o q u e c o n d e n a r a a espécie h u m a n a ao I n f e r n o , nos capítulos sete e oito.
N o n o n o capítulo provava q u e o ú n i c o sacrifício era o da Eucaristia, ou seja,
o d o p ã o e o d o v i n h o q u e os j u d e u s t o m a v a m p o r idolatria. P e r a n t e a des-
crença dos j u d e u s na Eucaristia, referia a crença deles d e q u e Elias estava p r e -
sente e m toda a circuncisão e p o r isso t i n h a m s e m p r e u m a cadeira disponível
para o profeta q u e n u n c a chegaram a ver. N o d é c i m o capítulo, o tema é a
Lei N o v a q u e veio substituir a Lei Velha, tal c o m o predisseram Jeremias,
Isaías e o u t r o s profetas.
P o d e m o s concluir q u e o o b j e c t i v o deste converso é provar q u e Cristo
era o Messias p r o m e t i d o na Lei Velha e q u e os j u d e u s p e r m a n e c i a m e m cati-
veiro p o r q u e n ã o o aceitaram, e m virtude da sua cegueira e p o r q u e são «jente
dura de çerviz».
O t e x t o d o m a n u s c r i t o n ã o é u n i f o r m e . C o m e ç a - s e p o r u m diálogo e n t r e
mestre A n t ó n i o e u m «judeu» a m i g o , n o p r i m e i r o capítulo, para t e r m i n a r na
refutação dos a r g u m e n t o s dos j u d e u s e m geral contra Cristo e a religião cris-
tã: «meterey algumas perguntas q u e os j u d e u s m e e m esto ja fizeram». Esta-
m o s p o r t a n t o perante u m a disputa ideal q u e t e m p o r base os textos das dis-
putas peninsulares dos séculos x m e xiv.
A f o n t e directa é o Livro 1 d e J e r ó n i m o de Santa Fé, pelo q u e as fontes
judaicas, citadas p o r mestre A n t ó n i o , p o d e m advir daquela, e m b o r a se possa
supor q u e o c o n v e r s o p o r t u g u ê s as conhecesse t a m b é m . Ignora, p e l o m e n o s
na cópia d o século xvi q u e nos c h e g o u , o Livro 11 de J e r ó n i m o d e Santa Fé
q u e tratava dos erros d o T a l m u d e .
Assim e n c o n t r a m o s referências à Mishné Tora e à More de M a i m ó n i d e s ,

84
O DIFÍCIL DIÁLOGO ENTRE JUDAÍSMO E CRISTIANISMO

aos Sanhedrin, à Mekiltá, ao Bereshit Rabbá de Moisés h a - D a r s h a n , ao Abot de Cristo a caminho do Calvário,
rabi Natal, aos Midrashim, aos Targumim, n o m e a d a m e n t e de O n q e l o s e J o n a - retábulo da capela-mor da
igreja do Escalhão, Figueira
tan b e n Uzziel, ao T a l m u d e , a A b o d a Zara, a rabi Aquiba, a R a s h i , a N a h - de Castelo R o d r i g o (mestre
manides, a Ibn Ezra, etc. 1 1 6 . Arnao e Henrique Fernandes,
Algumas delas j á f o r a m utilizadas nas disputas anteriores e passadas a escri- c. 1524).
to n o Pugio Fidei de Marti, pelo q u e p o d e m o s c o n c l u i r q u e há u m g r a n d e FOTO: N U N O CALVET/ARQUIVO
e n f e u d a m e n t o à apologética medieval de o r i g e m catalã/aragonesa. Verifica-se C Í R C U L O DE LEITORES.
t a m b é m q u e a a r g u m e n t a ç ã o é semelhante à da Corte imperial e à d o t e x t o de
Frei J o ã o , pois o o b j e c t i v o de toda esta apologética era d e m o n s t r a r q u e o
Messias j á tinha v i n d o , l e v a n d o assim os j u d e u s à conversão.
M e s t r e A n t ó n i o , ao e x p u r g a r d o seu m a n u s c r i t o os c a p í t u l o s s o b r e os
erros d o T a l m u d e , i d e n t i f i c a v a - s e c o m u m a c o r r e n t e proselitista m e n o s
agressiva c o n t r a os j u d e u s , tal c o m o s u c e d e r a c o m P e d r o A f o n s o , e asso-
ciava-se à m e n s a g e m q u e aqueles dois t e x t o s t r a n s m i t i a m . T a l c o m o o t e x -
t o d a q u e l e c o n v e r s o , a o b r a de m e s t r e A n t ó n i o era u m d i á l o g o e n t r e o
cristão m e s t r e A n t ó n i o e u m j u d e u «amigo», e n t r e o seu p r e s e n t e e o seu
passado.
P o r o u t r o lado, o Ajuda da fé apresentava afinidades estruturais c o m a es-
cola barcelonesa, n o m e a d a m e n t e c o m o Pugio Fidei d e R a m o n Marti, q u e
t a m b é m fora a obra q u e mais marcara a a r g u m e n t a ç ã o de J e r ó n i m o d e Santa

85
A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

Fé e m T o r t o s a e n o seu livro sobre o Messias. Mas, ao c o n t r á r i o deste, n ã o


p r o c u r a v a c o n d e n a r o T a l m u d e , c o m o livro herético q u e atacava Cristo e o
cristianismo, u t i l i z a n d o - o antes para a r g u m e n t a r a favor da Lei N o v a contra a
«cegueira» dos j u d e u s .
E curioso salientar a p r e o c u p a ç ã o c o m este texto, e m vésperas da entrada
da Inquisição e m Portugal. D e facto, a sua cópia, a p e d i d o de m e s t r e P e d r o
M a r g a l h o , p r e g a d o r de D . J o ã o III, reflectia a necessidade de c o n v e r t e r os
cristãos-novos à causa d o cristianismo e de Cristo, c o m o Messias, q u a n d o cir-
culava e n t r e os e x - j u d e u s a ideia de u m rei dos j u d e u s e m j e s u r a l é m , veicula-
da p o r D a v i d R e u b e n i , q u a n d o da sua vinda à c o r t e portuguesa. O u seja,
aproximava-se o t e m p o da vinda d o Messias dos j u d e u s q u e lhes daria a liber-
tação d o cativeiro e os conduziria a Sião, estabelecendo o j u d a í s m o c o m o r e -
ligião universal, esperança q u e Isaac Abravanel, Samuel U s q u e e Ibn Verga
transmitiriam nos seus escritos 1 1 7 .
Este estilo de apologética desapareceria n o p e r í o d o m o d e r n o , o n d e a a r -
g u m e n t a ç ã o c o m base nos c o m e n t á r i o s bíblicos e n o s textos rabínicos daria
lugar à transmissão d e topoi distorcidos sobre o outro, o j u d e u . Agora aparecia
a semelhança física c o m Satanás, a referência à m e n s t r u a ç ã o e a o u t r o s este-
reótipos q u e nada t i n h a m a ver c o m a apologética medieval e q u e assentavam
n u m imaginário p o p u l a r , cujas raízes talvez se d e v a m p r o c u r a r n o exterior da
Península Ibérica.

O ANTICRISTIANISMO
T E M O S FALADO NO DIFÍCIL DIÁLOGO d o c r i s t ã o c o m o j u d e u . N o entanto,
e s q u e c e m o - n o s s e m p r e de q u e t o d o o diálogo implica a existência de u m
«eu» e d e u m «tu», o u seja, de u m «nós». O facto de o p o v o j u d e u ter vivido,
desde os séculos 1-11 d. C . , e m diáspora, fora da Palestina, o b r i g o u - o a c o n v i -
ver e a viver c o m os goim, os pagãos, os q u e n ã o p e r t e n c i a m ao p o v o eleito,
os q u e n ã o e r a m j u d e u s .
O s goim n ã o p r a t i c a v a m a circuncisão, n ã o festejavam o sabbat, n e m
a Páscoa do p ã o ázimo, n e m j e j u a v a m o Y o m Q u i p p u r , não f r e q u e n t a v a m a
sinagoga, n ã o rezavam diariamente a Shema Israel, n ã o j e j u a v a m d o nascer ao
p ô r d o Sol, n ã o celebravam a Páscoa dos T a b e r n á c u l o s o u S u k k o t , f a z e n d o
p e q u e n a s tendas cobertas de ramos de palmeiras e d e flores nos terraços d e
suas casas o u nas ruas, n e m a festa da Lei, a S i m h a t h T o r a h , n e m a H a n u c á
o u a festa da purificação d o T e m p l o , n e m a Páscoa de S h a v u o t h o u P e n t e -
costes, n ã o se g u i a v a m pelo calendário lunar. C o m i a m alimentos proibidos
pela Lei, acreditavam n u m D e u s u n o e trino, d e f e n d i a m q u e o E v a n g e l h o era
a Lei N o v a substituta da Lei Velha dos j u d e u s , acreditavam q u e e r a m o n o v o
p o v o eleito p o r D e u s , etc. E m b o r a tivessem a Bíblia c o m o t e x t o sagrado, n ã o
e r a m j u d e u s , pois n ã o se d e f i n i a m pela m e s m a história, religião, tradição, l í n -
gua e escrita. N ã o esperavam a vinda d o Messias, pois, para eles, o Messias
a n u n c i a d o pelos profetas já viera e era Cristo. O s cristãos e r a m os outros para
os j u d e u s .
N o r e l a c i o n a m e n t o c o m os goim era p e r m i t i d a a usura q u e a Lei vedava
entre os seus seguidores ( D e u t . 20-21). Estavam-lhes vedados os casamentos
c o m cristãos, q u e r pela T o r a q u e r pelas o r d e n a ç õ e s gerais d o r e i n o e c a n ó n i -
cas, o u t e r e m relações sexuais extracasamento c o m m e m b r o s de outras reli-
giões, pelo q u e nas judiarias mais populosas, c o m o Lisboa, havia u m a m a n c e -
bia.
R e j e i t a v a m os conversos, c h a m a n d o - l h e s «tornadiços», o q u e , a c r e r m o s
e m mestre A n t ó n i o , sobre a designação d e «tornado» aplicada ao p o r c o , seria
s i n ó n i m o de «marrano» o u «marano», pois «tornadiço» e «marrano» identifica-
v a m - s e c o m aquele animal. «Marano» era o insulto q u e Abraão, filho de J a -
c o b Jeca, lançava a^ Gil Fernandes e a seus filhos. Samuel Saiam de Barcelos
c h a m a r a a P e d r o Alvares « m a r a n o velhaco» e acrescentara «que n o m c u y -
dasse q u e p o r h u u m a p o u c a d ' a g u a de b a u t i s m o q u e r e ç e b e r a q u e vallia
mais q u e ante, p o r yisso, vallia m e n o s e outras palavras injuriossas e q u e

86
O DIFÍCIL DIÁLOGO ENTRE JUDAÍSMO E CRISTIANISMO

brasfamara c o m t r a elle e c o m t r a a fe católica». Igual reacção d e u m seu e x -


- c o r r e l i g i o n á r i o tivera a conversa Beatriz M e n d e s , q u e f o r a h u m i l h a d a p u -
blicamente118.
O c o n v e r s o seria o l h a d o c o m suspeição p o r a m b a s as c o m u n i d a d e s .
P o r isso, os nossos s o b e r a n o s lhes o u t o r g a r a m privilégios, e x t e n s i v o s aos
m a r i d o s , n o caso d e o i n d i v í d u o c o n v e r t i d o p e r t e n c e r ao s e x o f e m i n i n o .
E n t r e esses privilégios e s t a v a m as isenções fiscais e a dispensa d e serviço
militar.
O anticristianismo existia t a m b é m , e m b o r a fosse mais e s c o n d i d o q u e o
antijudaísmo. S e n d o o j u d a í s m o u m a religião minoritária e tolerada na C r i s -
tandade n ã o c o n v i n h a aos seus seguidores dar sinais de hostilidade para c o m a
religião maioritária e acolhedora. E s t a n d o o j u d e u sob a alçada das o r d e n a -
ções gerais d o reino, t o d o o c r i m e d e blasfémia c o n t r a o cristianismo devia
cair sob a jurisdição régia. N o e n t a n t o , ele n ã o nos aparece m u i t o d o c u m e n -
tado nos textos oficiais, pelo q u e n ã o será talvez de excluir a hipótese da alça-
da eclesiástica.
T a m b é m é u m f a c t o q u e o e q u i l í b r i o das relações e n t r e a m a i o r i a e a
m i n o r i a p r e v a l e c e u , d u r a n t e três séculos, n ã o t e n d o h a v i d o aqui o a m b i e n -
te p r o p í c i o à escrita d e t e x t o s t e o l ó g i c o s c o n t r a o c r i s t i a n i s m o e e m f a v o r
d o j u d a í s m o , c o m o o c o r r e u e m A r a g ã o . P o r isso a agressividade j u d a i c a
n ã o se e x t e r i o r i z a v a , a n ã o ser e x c e p c i o n a l m e n t e p o r actos m e r a m e n t e i n -
dividuais c o n t r a a religião m a i o r i t á r i a e, s o b r e t u d o , c o n t r a os apóstatas,
c o n t r a os q u e a b a n d o n a r a m o j u d a í s m o . Insultos, blasfémias e actos d i v e r -
sos d e d e s p r e z o d o cristianismo t o r n a v a m - s e actos isolados e s e m expressão
significativa.
Abraão Levi, m o r a d o r e m Ó b i d o s , foi réu n u m a inquirição devassa p o r
ter afirmado q u e «Santa Maria, nossa senhora, fora j u d i a e J e s u u Christo, n o s -
so senhor, fora çapateiro o u alfayate e q u e dissera q u e D e u s era h u u m e fa-
ziam delle trres e q u e disera mais q u e n e n h u u m n o m o avia de ver e q u e os
christaãos q u e o v i a m e m cada h u u m dia e falavam c o m ele e q u e mais arra-
negara de D e u s e de Santa Maria». Estamos p e r a n t e a contestação dos d o g m a s
da T r i n d a d e e da Eucaristia p o r parte de u m j u d e u q u e afirmava q u e as o r i -
gens d o cristianismo estavam n o j u d a í s m o .
P o r sua vez os j u d e u s de Silves f o r a m acusados de satirizar a Páscoa cristã,
fazendo «jogos c o m dyabos e gadanhos e a m d a v o m apus h u u m q u e andava
vistido c o m o m o l h o d i z e n d o lhe doestos e a b o d e g a n d o e f a z e n d o t o d o e m
desprozo» da fé da maioria.
Fé arrenegada era c o m o B o i n o de Leão definia o cristianismo q u e u m seu
ex-correligionário assumira c o m o religião sua e insultava a filha deste c o n v e r -
so q u e p e r m a n e c e r a j u d i a , c h a m a n d o - l h e filha de tornadiço. Pelo insulto fora
c o n d e n a d o à p e n a de açoites.
Igual castigo fora atribuído a Abraão, filho de Tigesso, m o r a d o r e m O l i -
vença, o u a sua substituição p o r u m a multa de mil reais brancos p o r ter cus-
p i d o n o crucifixo.
Isaac M o n t e s i n h o , natural de P o n t e de Lima, fora a p a n h a d o a blasfemar
contra a fé católica, D e u s e a V i r g e m , pelo q u e os desembargadores da Casa
da Suplicação o c o n d e n a r a m à pena de açoites na praça pública c o m u m a
agulha enterrada na língua e a d e g r e d o p e r p é t u o para São T o m é .
Samuel N e e m i a s , sapateiro, fora c o n d e n a d o a desterro para o c o u t o de
A r r o n c h e s , p o r ter c o l o c a d o cruzes n o interior das solas dos sapatos 1 1 9 .
E m conclusão, a história d o r e l a c i o n a m e n t o dos cristãos c o m os j u d e u s
e m Portugal, d u r a n t e a Idade M é d i a , até à sua expulsão pelo édito d e 5 de
D e z e m b r o de 1496, foi caracterizada pela convivência e pela estabilidade, n ã o
t e n d o sofrido os sobressaltos de r e l a c i o n a m e n t o dos demais reinos p e n í n s u l a -
res. Apesar da tolerância existente, definida p o r dispositivos legais régios e ca-
nónicos, n ã o p o d e m o s esquecer q u e t o d o o diálogo, entre maiorias e m i n o -
rias, se reveste d e u m substrato i d e o l ó g i c o d e dois v e c t o r e s q u e , e m
circunstâncias de «crises», se a f i r m a m d e sinais contrários. Estes vectores anta-
gónicos f o r a m p a r t i c u l a r m e n t e visíveis n o ú l t i m o q u a r t o d o século x v e p r e -
pararam, c o m o u t r o s factores externos, a expulsão.

87
A PROCURA DO DEUS ÚNICO

NOTAS

‫ י‬GARCIA M O R E N O - Los Judios.


2
HA‫־‬COHEN - El valle, p. 41.
3
D Í A Z ESTEBAN - Lápidas judias, p . 207-215.
4
FERRO - Os judeus em Portugal no século xiv, 1979, p. 9-10.
‫ י‬LIVRO preto da Sé de Coimbra, v o l . 3, p . 2 4 6 . A s t r a n s c r i ç õ e s s e r ã o actualizadas.
'‫ י‬V e j a - s e TAVARES - O s judeus cm Portugal no século xv, cap. 1, 11, IN e v u .
7
Ibidem, cap. iv.
8
FOROS de Santarém, v o l . 4 , p . 555, 5 6 6 .
9
FOROS de Beja, v o l . 5, p . 4 7 9 , 5 0 5 , 5 0 6 , 511, 5 2 0 .
10
FOROS da Guarda, v o l . 5, p . 4 3 3 , 4 4 8 .
11
LIVRO de leis e posturas, p . 35, 211.
12
Ibidem, p. 37.
13
Ibidem, p. 483.
14
FERREIRA - Afonso X, v o l . 1, p. 263.
15
LIVRO de leis e posturas, p . 19.
16
FERREIRA - Afonso X, p. 263.
17
Ibidem.
18
LIVRO de leis e posturas, p . 26-27, 96•
19
Ibidem, p. 3 9 8 - 4 0 0 , 417-419, 458-462.
20
Ibidem, p. 458-462.
21
CORTES portuguesas: Reinado de D. Afonso IV (1325-135•/), p . 35, 55, 71, 97-98.
22
Ibidem, p . 126 (art.° 4. 0 ).
23
Ibidem, p . 82 (art.° 71).
24
FERRO - Os judeus em Portugal no século xiv, p . 108.
25
I A N T T . C R , A l c o b a ç a , m . 16, n . ° 8.
26
Ibidem. C R , S a n t a C r u z d e C o i m b r a , m . 15, n . ° 6 .
27
Ibidem. D i r e i t o s R e a i s , l i v . 2, fl. 2 0 0 v ; C h a n c e l a r i a d e D . D i n i s , l i v . 3, fl. 1 6 2 .
28
FERRO - Os judeus em Portugal no século xiv, p . n o .
29
CORTES portuguesas: Reinado de D. Pedro I (1357-1367), p . 44.
30
Ibidem, p. 48'
31
CANTIGAS d'escarnho e mal dizer, p. 203-205.
32
FERRO - Os judeus em Portugal no século xiv, p . 117-128.
33
CORTES portuguesas: Reinado de D. Fernando I (1367-1383), p. 42-43, 134.
3 4
IANTT. C h a n c e l a r i a d e D . A f o n s o V , l i v . 2 0 , fl. 9 0 .
35
TAVARES — Os judeus em Portugal no século xv, p . 313-326.
36
Ibidem, p . 327-328.
37
RESENDE - Cancioneiro geral. v o l . 1, p. 62-63.
38
TAVARES - Os judeus em Portugal no século xv, p . 312, 288.
39
FARO - Receitas, p. 244-276.
4(1
HERCULANO - História da origem, vol. 1, p . 99.
41
LIVRO v e r m e l h o d e D . A f o n s o V , v o l . 3, p . 4 6 1 - 4 6 2 .
42
DOCUMENTOS referentes, v o l . 2 , p . 210.
43
LOPES — Crónica de dom João I, P. 29.
44
MORENO - O assalto à Judiaria Grande.
45
TAVARES - Os judeus em Portugal no século xv, p . 32.
46
FERRO - Os judeus em Portugal no século xiv, p . 6 0 - 6 4 , 108-210.
47
TAVARES - Os judeus em Portugal no século xv, p . 397-416.
48
Ibidem, cap. VIL
49
Ibidem, p. 32.
511
TAVARES — Judaísmo e Inquisição, p. 24-27.
51
IDEM - Os judeus cm Portugal no século xv, p . 431-434.
52
PEREZ CASTRO - El manuscrito apologético, p . x c i v - c i . PACIOS LOPES - La disputa, v o l . 1.
M A R T I N S — Estudos de literatura, p . 3 0 7 - 3 2 6 . LAVAJO - A c o n t r o v é r s i a j u d e o - c r i s t ã , p . 3-11.
53
S O T O RÁBANOS - L a i g n o r a n c i a d e i p u e b l o , p . 9 9 - 1 1 4 .
54
INVENTÁRIO dos códices alcobacenses, vol. v i . MARTINS - Estudos de literatura, p. 307-316.
55
CRUZ - Santa Cruz de Coimbra.
5
'‫ י‬SIDARUS - Le L i v r o d a C o r t e E n p e r i a l , p . 131-155.
57
B N L . Ajuda da Fé. R e s e r v a d o s , F . G . M a n s . 6 9 6 7 .
58
BARKAI - D i á l o g o F i l o s ó f i c o - R e l i g i o s o , p . 11-12.
59
JVDAISM 011 Trial, p . 3 9 - 7 5 , 1 0 2 - 1 5 0 .
60
BARKAI - Diálogo, p . 21. V e j a - s e LAVAJO - Cristianismo e islamismo, vol. 1, 2.
61
COLOMER - La controvérsia, p . 244.
62
COLOMER - La controvérsia, p . 245-255.
63
LULL - El Liber predicationis, p. 21-27.
64
Ibidem, p. 31.
65
Ibidem, p. 71.
66
O L I V E R - El Tratado, p. 67-68.
67
Ibidem, p . 6 9 - 7 1 , 91-103.
68
Ibidem, p. 104-109.
69
Ibidem, p. 139.
7,1
Ibidem, p. 140-150.
71
PACIOS LOPES - La disputa, v o l . 1.
72
Ibidem, p. 359-368.

88
O DIFÍCIL DIÁLOGO ENTRE JUDAÍSMO E CRISTIANISMO

73
Ibidem, vol. 2.
74
Ibidem, v o l . 1, p . 45-84.
75
PÉREZ CASTRO - El manuscrito apologético, p . c r .
76
TAVARES — Os judeus em Portugal no século xv, p. 437-445.
77
MARTINS - Estudos de literatura, p . 307-326.
78
D . DUARTE — Leal conselheiro p . 198.
79
MARTINS — Estudos de literatura, p . 356.
80
PAIS - Colírio da fé, v o l . 2, p . 47.
81
TAVARES - Os judeus em Portugal no século xv, p . 439.
82
MARTINS - Estudos de literatura, p . 325. LAVAJO - A controvérsia, p . 43.
83
PONTES - Estudo, p. 70-75.
84
MARTINS - Estudos de literatura, p . 349-355. LAVAJO - A controvérsia, p . 12-43. PONTES - Estu-
do, p . 9 - 7 6 .
85
SIDARUS - Le Livro, p . 150-155.
86
PONTES - Estudo, p . 1-2.
87
Ibidem, p. 123.
88
Ibidem, p. 124-125.
89
Ibidem, p. 204-208.
90
Ibidem, p. 131-136.
91
Ibidem, p. 138-139.
92
Ibidem, p . 137-145, 3 6 4 - 3 9 1 , 4 2 5 - 4 3 0 .
93
Ibidem, p. 208, 210, 213, 221, 224.
94
Ibidem, p . 214-218, 2 3 0 , p o r exemplo.
95
Ibidem, p. 341, 348, 359.
96
Ibidem, p. 355.
97
Ibidem, p. 450.
98
Ibidem, p. 44-47.
99
B N L . Ajuda da fé, £1. 1-1 v.
100
Ibidem, £1. 1. É p r o v á v e l q u e o l i v r o r e f e r i d o c o m o « v e r g o n h a d o s c r i s t ã o s » s e j a o t e x t o h e -
braico da a r g u m e n t a ç ã o d e M o i s é s N a h m a n , e m Barcelona.
101
Ibidem, £1. 1 v.
102
Ibidem, £1. 2 v.
103
Ibidem, £1. 2 v.
104
PACIOS LOPES - La disputa, v o l . 1, p . 345-368.
105
B N L . Ajuda da fé, £1. 3-3 v.
106
Ibidem, fl. 5 v . C u r i o s a m e n t e , d e v e t e r s i d o d a s u a f é e m S a n t o A n t ó n i o q u e t o m o u o n o -
m e do santo q u a n d o recebeu o baptismo.
107
Ibidem, fl. 6-6 v.
108
Ibidem, fl. 6 v-8 v.
109
Ibidem, fl. 8 v - 9 v.
110
Ibidem, fl. 9 v-18.
111
Ibidem, fl. 18-19.
112
Ibidem, £1. 19-23.
113
Ibidem, fl. 33-37.
114
Ibidem, fl. 37-47.
115
Ibidem, fl. 47-49.
116
S o b r e as f o n t e s d e J e r ó n i m o d e S a n t a F é , v e j a - s e : PACIOS LOPES - La disputa, p . 355-368.
117
V e j a - s e TAVARES - Judaísmo‫׳‬, IDEM - Los Judios en Portugal.
118
TAVARES - Os judeus em Portugal no século xv, p . 443-444.
119
Ibidem, p . 430-431.

89
Islão e cristianismo:
entre a tolerância e a guerra sant
Joaquim Chorão Lavajo
O CRISTIANISMO E o ISLAMISMO s ã o d u a s e x p r e s s õ e s d i f e r e n t e s d e f é no
m e s m o D e u s , ú n i c o e v e r d a d e i r o , q u e se revela aos h o m e n s para lhes indicar
o c a m i n h o individual e c o m u n i t á r i o , q u e os c o n d u z à plena realização n a t u -
ral e sobrenatural. Esta base f u n d a m e n t a l c o m u m c o n f e r e - l h e s u m a c e n t u a d o
ar d e família, q u e se reflecte, s o b r e t u d o , nas respectivas vertentes teológica,
j u r í d i c a e moral.
A o a p e r c e b e r e m - s e d o f u n d o matricial c o m u m , estas duas religiões t ê m
dificuldade e m suportar as diferenças q u e as caracterizam, e acabam p o r m u -
t u a m e n t e se rejeitar e p o r c o n v e r t e r o m ú t u o e secular r e l a c i o n a m e n t o práti-
co e m c o n v e r g ê n c i a d i v e r g e n t e e o respectivo discurso a p o l o g é t i c o e m diálo-
g o p o l é m i c o . A explicação desta aparente a n t i n o m i a e n c o n t r a - s e n o facto de
os f u n d a m e n t o s doutrinais e m q u e se a p o i a m , a Bíblia e o Alcorão, serem
parcialmente c o i n c i d e n t e s e parcialmente divergentes.
O s m u ç u l m a n o s aceitam a Bíblia c o m o palavra de D e u s , mas n u m estádio
histórica e d o u t r i n a r i a m e n t e p r o p e d ê u t i c o da revelação alcorânica. A g r a n d e
divergência consiste, pois, n o facto de os m u ç u l m a n o s , apesar d o respeito
q u e n u t r e m pela Bíblia, pelos profetas e p o r Cristo, os c o n s i d e r a r e m ultrapas-
sados e actualizados pelo A l c o r ã o e p o r M a o m é . C o m efeito, s e g u n d o o isla-
m i s m o , os profetas, n o m e a d a m e n t e Moisés e Jesus, ensinaram o n ú c l e o f u n -
d a m e n t a l das verdades sobre D e u s , o h o m e m e o m u n d o , q u e havia de ser
d e f i n i t i v a m e n t e r e t o m a d o e actualizado p o r M a o m é .
N a perspectiva islâmica, o cristianismo é válido e m t u d o aquilo q u e c o n c e r -
ne o m o n o t e í s m o e os artigos da fé concordantes c o m a revelação autêntica al-
corânica e é erróneo e m t u d o aquilo q u e p o r esta foi ultrapassado ou q u e d e c o r -
re da falsificação da Escritura, operada, segundo os muçulmanos, pelos j u d e u s e
pelos cristãos.
P o r seu lado, o cristianismo, ao identificar o e n c e r r a m e n t o da R e v e l a ç ã o
c o m o ú l t i m o livro d o N o v o T e s t a m e n t o , rejeita i m p l i c i t a m e n t e a a u t e n t i c i -
dade da revelação islâmica, q u e o c o r r e u quase seis séculos mais tarde. A l é m
disso, rejeita e x p l i c i t a m e n t e t u d o q u a n t o se o p õ e à revelação j u d e o - c r i s t ã ,
c o m p e n d i a d a na Bíblia. Nessa rejeição parcial da d o u t r i n a m u ç u l m a n a reside
a razão pela qual o islamismo foi d u r a n t e m u i t o t e m p o considerado pelos
cristãos c o m o u m a heresia e n ã o c o m o u m a religião.
U m a g r a n d e parte dos d e s e n t e n d i m e n t o s q u e e n v e n e n a r a m as relações se-
culares e n t r e os cristãos e os m u ç u l m a n o s teve o seu f u n d a m e n t o n o d e s e n -
t e n d i m e n t o doutrinal q u e os constitui e m t e r m o s d e alteridade; c o n v é m esta-
b e l e c e r , l o g o d e i n í c i o , os p ó l o s básicos da c o n v e r g ê n c i a / d i v e r g ê n c i a
doutrinal e m o r a l e n t r e as duas religiões. P a r t i n d o da perspectivação islâmica,
p o d e m o s reduzi-los a dois grupos:
— os seis artigos f u n d a m e n t a i s da teologia islâmica (Kalâm): D e u s , os a n -
jos, a Palavra de D e u s , os enviados, o U l t i m o Dia e a predestinação;
— os c i n c o pilares o u m a n d a m e n t o s d o islamismo: a profissão d e fé (cha-
hâda), a oração ritual (salât), o i m p o s t o social o u esmola legal (Zakât), o j e j u m
(sawm), a p e r e g r i n a ç ã o ( H a j j ) .
T o d o s estes princípios, q u e f a z e m parte d o p a t r i m ó n i o espiritual c o m u m ,
são g e n e r i c a m e n t e aceites pelas duas religiões, mas a sua explicitação específi-
ca p r o v o c o u , ao l o n g o dos séculos, u m a c e n t u a d o mal-estar d e uns e m rela-
<] A l c o r ã o manuscrito da
ção aos outros. Esse mal-estar foi agravado p o r outras divergências de carácter época almóada ( M a r r á q u e x e ,
moral, c o m o p o r e x e m p l o , a m o r a l m a t r i m o n i a l e doutrinal, p r i n c i p a l m e n t e Biblioteca Ibn Y u s u f ) .
pela rejeição m u ç u l m a n a dos d o g m a s f u n d a m e n t a i s d o cristianismo:
F O T O : A R Q U I V O C Í R C U L O DE
— o mistério da Santíssima T r i n d a d e , q u e os m u ç u l m a n o s , e m n o m e d o LEITORES.

91
A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

Mirhab, o u nicho de orações,


da antiga mesquita de
Mértola.
F O T O : C A M P O ARQUEOLÓGICO
DE M É R T O L A / A N T Ó N I O C U N H A .

m o n o t e í s m o radical, c o n d e n a m v i o l e n t a m e n t e , acusando os cristãos de asso-


ciadores o u politeístas (muchrik-s)*;
— os mistérios da divindade e incarnação de Cristo, q u e os m u ç u l m a n o s
consideram u m simples h o m e m , ainda q u e e x o m a d o da dignidade de profeta.
Estas notas introdutórias a j u d a m - n o s a c o m p r e e n d e r t a n t o a situação dos
cristãos sob a d o m i n a ç ã o islâmica, c h a m a d o s moçárabes, de q u e n o s o c u p a r e -
m o s na primeira parte, c o m o a dos m u ç u l m a n o s sob d o m i n a ç ã o cristã, i m -
p r o p r i a m e n t e c o n h e c i d o s ao l o n g o de toda a Idade M é d i a p o r t u g u e s a p o r
mouros e h o j e , p o r influência castelhana, t a m b é m c h a m a d o s mudéjares, q u e se-
rão analisados na segunda parte.

OS MOÇARABES PORTUGUESES
A conquista muçulmana A INVASÃO E CONQUISTA MUÇULMANAS d a P e n í n s u l a I b é r i c a f o r a m f u l m i n a n -
tes. A rapidez das operações deixou os H i s p a n o - R o m a n o s e os Visigodos deso-
da Península Ibérica e o
rientados e quase paralisados durante alguns decénios. E m cerca de apenas cinco
estatuto social dos cristãos anos (711-716), os Berbero-Ârabes conseguiram controlar t o d o o território hispâ-
nico, à excepção de u m p e q u e n o reduto asturiano, na cadeia montanhosa dos
Picos da Europa, e de pequenas bolsas demográficas entrincheiradas nos Pirenéus.
Ainda h o j e , à distância de mais de o n z e séculos e m e i o , ficamos i m p r e s -
sionados c o m a rapidez da conquista m u ç u l m a n a da Hispânia. Ela ficou a d e -
ver-se, e m p r i m e i r o lugar, ao d i n a m i s m o da jihâd, t e r m o q u e significa o es-
forço, a luta espiritual d o h o m e m contra as paixões e as forças d o mal,
incarnadas pelo d e m ó n i o 2 , mas q u e passou, p o s t e r i o r m e n t e , a significar a

92
ISLÃO E CRISTIANISMO: ENTRE A TOLERÂNCIA E A GUERRA SANTA

guerra santa, isto é, a guerra desencadeada pelos m u ç u l m a n o s c o n t r a os i n -


fiéis, para os subjugar o u obrigar a abraçar o Islão 3 .
A conquista da Hispânia não ficou a dever-se apenas ao dinamismo religioso
islâmico, filho da jihâd. Só u m apoio m u i t o c o m p r o m e t i d o de forças oriundas
d o seio da c o m u n i d a d e hispano-romana e visigoda permite c o m p r e e n d e r u m
colapso tão rápido e estrondoso. D e entre essas forças salientamos as seguintes:
— o exagerado c o m p r o m i s s o existente e n t r e a Igreja e o p o d e r político
t o r n o u cada u m solidário das vicissitudes d o o u t r o . P e r a n t e u m ataque v i n d o
d o exterior, c o m a c o n i v ê n c i a d e forças internas, n e m a Igreja teve força m o -
ral suficiente para d e n u n c i a r e travar os dislates dos m e m b r o s traidores,
o r i u n d o s das fileiras da nobreza visigodo-vitizana, n e m os partidários hispa-
n o - r o m a n o s de R o d r i g o c o n s e g u i r a m atrair para o seu lado as forças clericais,
para, unidos, i m p e d i r e m a entrada d o i n i m i g o c o m u m . H o u v e n o b r e s e ecle-
siásticos q u e se c o l o c a r a m a c t i v a m e n t e ao lado d o exército invasor;
— a débil implantação d o cristianismo e m certas zonas da Hispânia facili-
t o u a adesão dos nativos à n o v a religião;
— os antigos invasores visigodos, e m convivência político-social diária
c o m os H i s p a n o - R o m a n o s , assimilaram, j u n t a m e n t e c o m a cultura, os efeitos
negativos d o a b r a n d a m e n t o dos costumes e d o a m o l e c i m e n t o das virtudes
militares q u e , e m séculos anteriores, lhes h a v i a m garantido a força. O e x é r c i -
t o hispânico e n f e r m a v a cada vez mais dos vícios q u e o u t r o r a t i n h a m p r o v o -
cado a ruína d o I m p é r i o R o m a n o ;
— o d e s c o n t e n t a m e n t o generalizado d o p o v o , penalizado pelo peso cada
vez mais insuportável dos impostos a q u e estava sujeito, levava-o a anelar a
libertação, d e q u a l q u e r parte q u e ela viesse;
— o sistema de eleição dos monarcas constituía u m p e r i g o para aquele
p o v o , c u j o civismo d e m o c r á t i c o n ã o era m u i t o forte. A luta de m o r t e q u e
separou vitizanos e rodriguistas foi apenas u m b r e v e episódio de u m c o n t e x t o
político b e m mais alargado 4 ;
— u m a terceira força, marginalizada e acorrentada d u r a n t e séculos p o r
medidas legais adversas, sonhava c o m u m a m u d a n ç a , q u e dificilmente poderia
ser para pior. R e f e r i m o - n o s aos j u d e u s , q u e viram na possível reviravolta p o -
lítica u m a hipótese de m e l h o r a r a sua situação, c o m u m p e q u e n o risco de a
agravarem ainda mais;
— a aspiração dos servos e escravos à libertação era cada vez mais acentuada;
— a participação activa dos filhos de Vitiza e d e Julião q u e , p o r razões de
o r d e m política, se p u s e r a m ao serviço dos invasores, foi decisiva;
— os posteriores casamentos de Abdelaziz c o m a viúva de R o d r i g o , e de
M u n u z a , valido das Astúrias, c o m u m a irmã de Pelágio, imobilizaram o u
atraíram m e s m o para o lado dos invasores g r u p o s sociais de g r a n d e influência
sobre as populações.
Muitos hispano-romanos e visigodos, entre os quais sobressaíram eclesiásticos,
não querendo converter-se ao islamismo, n e m sujeitar-se aos invasores, abando-
naram as suas terras e refúgiaram-se n o reino merovíngio, na Itália e n o N o r t e da
Península, isto é, nas Astúrias e na Vascónia, o n d e reforçaram a resistência contra
os muçulmanos, contribuindo, assim, para o início da Reconquista hispânica. As
crónicas de 741 e 754 fazem-se eco das violências q u e provocaram essa debanda-
da. O s estratos mais baixos da população, demasiado explorados durante a d o m i -
nação romana e visigótica, adaptaram-se mais facilmente à nova situação.
O substrato d e m o g r á f i c o indígena, e m b o r a p o l i t i c a m e n t e d o m i n a d o , foi
s e m p r e mais n u m e r o s o d o q u e as minorias berbero-árabes. S e g u n d o C l á u d i o
Sánchez A l b o r n o z , o total dos orientais q u e e n t r a r a m na Península Ibérica e
se disseminaram entre os milhões de hispanos q u e nela habitavam n ã o ultra-
passou os 30 0 0 0 . M e s m o q u e tivessem sido 150 0 0 0 o u 2 0 0 0 0 0 os g u e r r e i -
ros árabes e berberes q u e a invadiram, d u r a n t e o século V I I I , c o m o p r e t e n d e ,
talvez e x a g e r a d a m e n t e , P. G u i c h a r d , o total dos invasores n ã o teria passado
de u m a acentuada m i n o r i a e m relação aos autóctones 5 .
N o r m a l m e n t e , os árabes conquistadores n ã o i m p u n h a m o islamismo aos
p o v o s q u e c o n s i d e r a v a m detentores da revelação divina, a q u e c h a m a v a m
«gentes d o Livro» (ahl al-Kitâb). M e d i a n t e c o n d i ç õ e s p r e v i a m e n t e negociadas,

93
A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

os cristãos, os j u d e u s e os zoroastristas p o d i a m c o n t i n u a r a praticar l i v r e m e n t e


as respectivas religiões.
A o ser d o m i n a d a pelos m u ç u l m a n o s , a p o p u l a ç ã o hispânica c i n d i u - s e e m
três grandes grupos:
— os q u e aceitaram a conversão ao islamismo q u e , de a c o r d o c o m a lei
alcorânica 6 , era n o r m a l m e n t e proposta antes d o ataque, ingressaram na c o m u -
nidade islâmica (umma) e passaram a usufruir, ao m e n o s t e o r i c a m e n t e , dos d i -
reitos e prerrogativas atribuídos aos respectivos crentes. E r a m os c h a m a d o s
musalima ou muladi-s (muwalladun; sing. muwallad) o u adoptados, q u e os cris-
tãos consideravam e apelidavam f r e q u e n t e m e n t e de renegados. Q u a n t i t a t i v a -
m e n t e n u m e r o s o s , alguns c h e g a r a m a o c u p a r lugares d e relevo na sociedade e
t o r n a r a m - s e m e d i a d o r e s culturais entre os invasores e os moçárabes 7 ;
— os cristãos q u e n ã o aceitavam o c o n v i t e à conversão ao islamismo e
q u e não assinavam o respectivo pacto de rendição e r a m submetidos pela força
(1anwatan), q u e podia ir até à destruição das suas muralhas, e n q u a n t o os seus
templos eram derrubados o u convertidos e m mesquitas. Privados dos seus bens,
p o d i a m c o n t i n u a r a tratar as terras, mas c o m o simples arrendatários e s e m p r e
na c o n t i n g ê n c i a de serem expulsos;
— os q u e , v o l u n t a r i a m e n t e o u p o r e x i g ê n c i a das circunstâncias, se s u -
j e i t a v a m à d o m i n a ç ã o islâmica, n e g o c i a v a m a l i b e r d a d e c o m u m p a c t o i n -
dividual (sulh) o u c o l e c t i v o ( c ahd). Esse p a c t o p e r m i t i a - l h e s c o n t i n u a r na
posse d o s seus b e n s e g o z a r d e u m a certa a u t o n o m i a j u r í d i c a e religiosa,
p r o p o r c i o n a l ao grau de submissão n e g o c i a d o e à m a i o r o u m e n o r t o l e r â n -
cia dos c h e f e s locais. As c r ó n i c a s hispânicas m e d i e v a i s c o n s i d e r a m esta si-
t u a ç ã o generalizada, s o b r e t u d o n o C e n t r o e n o N o r t e da P e n í n s u l a Ibérica.
U m a s a p r o v a m - n a ; o u t r a s r e p r o v a m - n a e a c u s a m d e traição aqueles q u e a
aceitam.
O s cronistas árabes d e n o m i n a r a m os cristãos s u b m e t i d o s p o r p a c t o aos
m u ç u l m a n o s mu'ahidân (os q u e assinaram u m pacto) 8 , o u dimmí-s (tributá-
rios). C o m o t e m p o , na Hispânia m u ç u l m a n a , o p r i m e i r o t e r m o ficou reser-
v a d o para os cristãos e o s e g u n d o para os j u d e u s . O s d o c u m e n t o s latinos, cas-
telhanos e portugueses medievais d e s i g n a m - n o s p o r moçárabes, palavra q u e
v e m d o árabe musta'rab (tornado árabe), para significar os cristãos q u e , n ã o t e n -
d o abdicado da sua fé, aceitaram viver sob o d o m í n i o islâmico 9 .
E n t r e as cidades q u e se s u b m e t e r a m aos m u ç u l m a n o s m e d i a n t e u m p a c t o
p r é v i o c o n t a m - s e Lisboa, e m Portugal; e M é r i d a , T o l e d o , Lérida, P a m p l o n a ,
C a r m o n a , C ó r d o v a , Sevilha e M ú r c i a , na Espanha. O s textos desses pactos
p e r d e r a m - s e quase todos. C o n s e r v a r a m - s e e t o r n a r a m - s e célebres o assinado
e m 713 pelo filho d e M u ç a , c A b d al- c Az1z Ibn M u ç â , c o m o c h e f e g o d o d e
Múrcia, Teodomiro10, e u m excerto do de Toledo11.
Apesar de t e r e m sido d o m i n a d a s pela força, Santarém, C o i m b r a e Seia
acabaram p o r assinar c o m M u ç a u m p a c t o de coexistência pacífica, cujas
cláusulas deveriam ser ainda mais vantajosas q u e as dos c o n h e c i d o s pactos d e
T o l e d o e M ú r c i a , pois os cristãos c o n t i n u a r a m na posse dos seus b e n s e isen-
tos d o i m p o s t o predial o u caraje12. Apesar d o clima de insegurança q u e se es-
tabeleceu a partir das incursões de A f o n s o I das Astúrias, f o r a m m u i t o s os
cristãos q u e p e r m a n e c e r a m na região de E n t r e D o u r o e M o n d e g o .
C o m a conquista de C o i m b r a p o r A f o n s o III, e m 878, os moçárabes c o -
m e ç a r a m a gozar de u m estatuto mais favorável, ainda q u e provisório, pois as
lutas e n t r e cristãos e m u ç u l m a n o s c o n t i n u a r a m a assolar a região, c o m r e p e t i -
dos avanços e recuos. E m 987, a cidade foi r e t o m a d a p o r A l m a n ç o r , para só
e m 1064 ser d e f i n i t i v a m e n t e reconquistada p o r F e r n a n d o M a g n o , na s e q u ê n -
cia de Seia (em 1055), L a m e g o (1058) e Viseu (1057).
O s moçárabes e r a m vítimas de muitas outras vexações discriminatórias.
Assim, p o r exigência dos pactos realizados c o m os m u ç u l m a n o s d o m i n a d o r e s ,
e r a m obrigados a dar h o s p e d a g e m gratuita nas suas igrejas e casas, d u r a n t e três
dias e três noites, aos viandantes m u ç u l m a n o s . O s cristãos n ã o p o d i a m vestir
n e m calçar c o m o os m u ç u l m a n o s ; t i n h a m de rapar só a parte a n t e r i o r da c a -
beça; era-lhes v e d a d o andar de cavalo; p o d i a m deslocar-se apenas d e mula o u
de b u r r o , desprovidos de selins e de estribos, e viajar c o m os dois pés p e n -

94
ISLÃO E CRISTIANISMO: ENTRE A TOLERÂNCIA E A GUERRA SANTA

dentes para o m e s m o lado d o animal; n ã o p o d i a m andar m u n i d o s d e espada,


n e m fabricar o u utilizar armas.
S o b o p o n t o de vista administrativo, os moçárabes g o z a v a m de u m a rela-
tiva a u t o n o m i a , na m e d i d a e m q u e lhes era p e r m i t i d o serem g o v e r n a d o s p o r
leis e chefes p o r eles escolhidos.
V i v e n d o n o r m a l m e n t e e m espaços próprios, separados das c o m u n i d a d e s
islâmicas, os m o ç á r a b e s e r a m g o v e r n a d o s e protegidos p o r u m comes (qâmís),
p o r eles eleito 1 3 mas n o m e a d o p e l o p o d e r central m u ç u l m a n o , de q u e m d e -
pendia. O comes era s e c u n d a d o p o r u m exceptor o u c o b r a d o r de impostos, q u e
recebia a jizia a q u e os dimmí-s estavam sujeitos, e p o r u m censor ou qâdí l-na-
sârâ (juiz dos cristãos), q u e os julgava nos litígios internos, d e a c o r d o c o m o
direito visigótico, c o m p e n d i a d o n o Liber Judicum, mais tarde c h a m a d o Foro
juzgo. O s conflitos e n t r e m u ç u l m a n o s e cristãos e r a m j u l g a d o s p e l o qâdí e n -
carregado da polícia (churta), c h a m a d o zavalmedina o u prefeito da cidade.
O m e s m o acontecia c o m os litígios e n t r e cristãos, q u a n d o u m a o u ambas as
partes o exigiam. O s cristãos e x e r c i a m ainda o u t r o s cargos, q u e f o r a m c o n -
servados, c o m a respectiva d e n o m i n a ç ã o m u ç u l m a n a , pela administração cris-
tã, após a R e c o n q u i s t a . E n t r e eles, o almoxarife, o u i n t e n d e n t e da fazenda; o
almotacé o u fiel de pesos e medidas; o alarife o u p e r i t o d e construções.
Alguns cristãos e x e r c i a m cargos i m p o r t a n t e s na burocracia emiral e califal
e n o p r ó p r i o exército árabe, c o m o nos d e s c r e v e m d o c u m e n t o s da época, n o -
m e a d a m e n t e os referentes a C ó r d o v a 1 4 .
N o decurso da d o m i n a ç ã o árabe e b e r b e r e da Península Ibérica, n ã o foi
fácil a c o n v i v ê n c i a de cristãos e m u ç u l m a n o s . Aos historiadores q u e , ainda
h o j e , na sequência das posições assumidas p o r M e n é n d e z Pidal, Sánchez A l -
b o r n o z e A m é r i c o Castro, p r o c l a m a m a e x e m p l a r i d a d e da coabitação pacífica
dos p o v o s das religiões do Livro e m terras d e A l - A n d a l u z , t e m o s d e r e c o r d a r
q u e o aparente passivismo c o m q u e a Península Ibérica se s u b m e t e u à d o m i -
nação islâmica n ã o foi, c e r t a m e n t e , s i n ó n i m o de paz, n e m d e aceitação i n -
c o n d i c i o n a l dos d o m i n a d o r e s .
O s cronistas d o século VIII caracterizaram a paz instaurada pelos m u ç u l m a -
nos na Península Ibérica c o m o u m a paz fraudulenta (pax fraudifica). O redactor
moçárabe da Crónica de 754 dá-nos conta das devastações e atrocidades q u e os
árabes semearam à sua passagem, desde a R o m â n i a , isto é, o Império Bizantino,
c o m a destruição total de cidades, c o m o Pérgamo, até à Hispânia, o n d e , c o m a
«espada, a f o m e e o cativeiro [gladio, fame et captivitate], deixaram a desolação» 15 .
E m a b o n o da veracidade dos cronistas d o século viu, q u e foram testemunhas
oculares da implantação d o islamismo na Península Ibérica, devemos evocar as
próprias fontes árabes, certamente insuspeitas. Elas descrevem, c o m u m realismo
não inferior ao dos cristãos, os atropelos e atrocidades então cometidas 1 6 .
Apesar das pressões q u e levaram m u i t o s cristãos a c o n v e r t e r - s e à fé islâmi-
ca, a c o m u n i d a d e m o ç á r a b e resistiu e sobreviveu religiosa, linguística e c u l t u -
ralmente, apesar da tentativa de absorção p o r parte dos m u ç u l m a n o s 1 7 .
P o r detrás da aparente serenidade c o m q u e acatavam a i n g e n t e exploração
tributária e a marginalização a q u e se v i a m reduzidos, na periferia das cidades
e nos campos, os moçárabes a l i m e n t a v a m p a c i e n t e m e n t e , ao l o n g o de gera-
ções, o v e e m e n t e anseio de libertação e levantavam-se e m armas cada vez
q u e as c o n j u n t u r a s políticas o p e r m i t i a m e aconselhavam.

SE OS CUSTOS DE ORDEM RELIGIOSA e social e r a m pesados para os cristãos Estatuto económico


e j u d e u s (ahl al-dimma), mais o e r a m os d e o r d e m e c o n ó m i c a . R e l e g a d o s p e -
los invasores para os m e i o s rurais, os moçárabes viram-se obrigados a traba-
lhar nas suas antigas terras, mas e m p r o v e i t o dos n o v o s donos, q u e os o n e r a -
v a m c o m pesados impostos. P o r exigência da lei alcorânica 1 8 , e r a m obrigados
a pagar duas espécies d e impostos: a jízia o u capitação e o caraje (harâj).
A jízia era u m a c o n t r i b u i ç ã o imposta a cada cristão e devia ser paga n o
f i m d e cada m ê s lunar 1 9 . O seu quantitativo variava d e a c o r d o c o m as respec-
tivas posses: quarenta e o i t o dirhems para os ricos, v i n t e e q u a t r o para a classe
m é d i a e d o z e para os q u e viviam d o trabalho manual 2 0 . C o m o seu p a g a m e n -
to, era-lhes garantida a liberdade religiosa c o n c e d i d a pelo A l c o r ã o às «gentes

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A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

do Livro» (ahl al-kitâb). Dela estavam isentos os idosos, as m u l h e r e s , as crian-


ças, os inválidos, os pedintes, os doentes, os loucos e os m o n g e s .
Apesar dos privilégios a q u e dava direito, a jízia era u m mal a que obri-
gatoriamente deviam sujeitar-se os cristãos. O próprio ritual do pagamento visava
humilhar os contribuintes e induzi-los a renegar a religião cristã. D e pé e publi-
camente, o cristão depositava o imposto nas mãos do recebedor que, por sua vez,
o entregava ao senhor, solenemente instalado n u m a poltrona. Depois, o senhor,
seguido n o r m a l m e n t e pelos muçulmanos presentes, agarrava o cristão pelo pesco-
ço e exclamava, e m t o m sarcástico: «o dimmí, inimigo de Alá, paga a jízia»21.
O caraje era u m i m p o s t o a q u e t a m b é m estavam sujeitos os m u ç u l m a n o s .
Incidia sobre os r e n d i m e n t o s dos bens prediais o u territoriais, d e q u e devia
ser e n t r e g u e ao Estado u m a certa p e r c e n t a g e m , q u e podia ir até 2o %. O seu
p a g a m e n t o , a q u e os habitantes da Península já estavam habituados desde a
época r o m a n a , garantia aos contribuintes a posse das suas propriedades e,
c o n s e q u e n t e m e n t e , u m a relativa a u t o n o m i a e c o n ó m i c a .
O quantitativo dos impostos variava d e a c o r d o c o m a natureza dos pactos
e ainda c o m as alterações, p o r vezes unilaterais, a q u e estavam sujeitos, desde
o início da d o m i n a ç ã o m u ç u l m a n a . T u d o d e p e n d i a d o instável condicionalis-
m o s o c i o e c o n ó m i c o e da v o n t a d e dos chefes locais. A Crónica moçárabe, d e
754, dava-nos j á c o n t a desse f e n ó m e n o e das reacções de q u a n t o s p o r ele
eram penalizados 2 2 .
A situação dos cristãos q u e viviam sob o d o m í n i o islâmico variava, pois,
s e g u n d o as épocas e lugares, e p o d e ser caracterizada c o m o u m a tolerância
discriminatória.

Liberdade religiosa A LIBERDADE DE QUE GOZAVAM OS cristãos q u e v i v i a m sob a d o m i n a ç ã o is-


lâmica era m u i t o c o n d i c i o n a d a p o r imposições e restrições de o r d e m social,
religiosa e e c o n ó m i c a , altamente discriminatórias. O s pactos assinados e n t r e
M a o m é e os cristãos da Arábia e da Síria 23 assinalavam já essa situação, q u e
viria a agravar-se c o m o t e m p o , p r i n c i p a l m e n t e na Península Ibérica.
D e a c o r d o c o m a letra e o espírito dos pactos, n ã o era p e m i i t i d o aos cris-
tãos ostentar a cruz nas igrejas n e m pregar, ensinar e realizar procissões ou o u -
tras manifestações religiosas fora delas; não p o d i a m tocar os sinos; nos funerais
e outras cerimónias religiosas e r a m obrigados a rezar e m voz baixa, sempre q u e
estivesse presente algum m u ç u l m a n o ; os d e f u n t o s cristãos t i n h a m de levar o
rosto coberto e ser sepultados e m cemitérios próprios; a linguagem dos cristãos
era controlada, pois não p o d i a m utilizar n o m e s , palavras o u expressões m u ç u l -
manas 2 4 , n e m proclamar verdades da sua fé, c o m o a divindade de Cristo e a
Santíssima Trindade, sempre q u e se o p u n h a m ao Alcorão; não lhes era p e r m i -
tido presidir a reuniões e m q u e participassem m u ç u l m a n o s , n e m sentar-se,
q u a n d o estes estavam de pé; n ã o lhes era p e r m i t i d o ter criadas o u escravas m u -
çulmanas; os cristãos p o d i a m converter-se ao islamismo, mas se u m m u ç u l m a -
n o optasse pelo cristianismo era a u t o m a t i c a m e n t e m o r t o ; as mulheres cristãs
que casassem c o m m u ç u l m a n o s eram obrigadas a abraçar a fé islâmica.
O s moçárabes da Península Ibérica viviam, n o r m a l m e n t e , agrupados e m
c o m u n i d a d e s , das quais as mais i m p o r t a n t e s f o r a m as de T o l e d o , C ó r d o v a ,
Sevilha e Mérida. Algumas dioceses d o f u t u r o território português continuaram
activas. Entre elas, as de Lisboa e Coimbra, até à reconquista, e a de Santa Maria
al Garb (Oxónoba) até à invasão almóada, e m 114725. A situação da diocese de
Braga n ã o é m u i t o clara até à reconquista definitiva, p o r F e r n a n d o M a g n o .
Sabe-se q u e teve vários bispos, residentes nas Astúrias, e q u e A f o n s o , o Casto,
c o l o c o u a cidade d e Braga sob a d e p e n d ê n c i a d o bispo de L u g o . L a m e g o t e -
ve bispos próprios até finais d o século x, pois c o n h e c e m - s e d o c u m e n t o s p o r
eles assinados. Viseu t a m b é m teve bispos ao l o n g o d o século x e primeira
m e t a d e d o seguinte. C o n h e c e m - s e os n o m e s de vários bispos d o P o r t o d u -
rante a d o m i n a ç ã o islâmica, ainda q u e se d e s c o n h e ç a m a respectiva c r o n o l o -
gia, a actividade desenvolvida e a situação e m relação à residência 2 6 .
Igual incerteza histórica reina sobre a situação dos mosteiros do O c i d e n t e p e -
ninsular ao longo dos séculos de dominação d o Crescente. Passada a agitação dos
primeiros tempos, muitos deles refizeram a sua normalidade. A partir de meados

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ISLÃO E CRISTIANISMO: ENTRE A TOLERÂNCIA E A GUERRA SANTA

do século IX, sobretudo nas regiões do Porto e Coimbra, é nos mosteiros que Cálice e patena moçárabes, final
muitos cristãos encontram o local apropriado para se consagrarem a Deus e do século x (Braga, Tesouro
da Sé).
que os moçárabes das vizinhanças vão alimentar a sua fé. Entre outros, há c o n h e -
FOTO: JOSÉ MANUEL OLIVEIRA/
cimento do f u n c i o n a m e n t o dos mosteiros de Cete, Lavra, Crestuma, Lorvão,
/ A R Q U I V O C Í R C U L O DE
Vacariça, Guimarães, São Miguel de R j b a Paiva, Vairão, Moreira e Pedroso 2 7 . LEITORES.
Apesar d o o p t i m i s m o c o m q u e é n o r m a l m e n t e referida a situação dos
cristãos hispânicos d o p e r í o d o p r é - a l m ó a d a , d e v e m o s salientar q u e e r a m m u i -
tas as dificuldades q u e lhes cerceavam a liberdade religiosa. N e m outra coisa
era de esperar, se p e n s a r m o s q u e os bispos instituídos após a invasão, ainda
q u e designados pelas c o m u n i d a d e s cristãs, ficavam sujeitos à aprovação dos
m o n a r c a s m u ç u l m a n o s , q u e n ã o quiseram abdicar deste e d e o u t r o s privilé-
gios, herdados dos seus predecessores visigodos. Daí a subserviência de alguns
deles. O c o n t r o l o da Igreja m o ç á r a b e tornava-se ainda mais cerrado pelo fac-
to de os concílios serem c o n v o c a d o s pelos sultões.
Aos cristãos era assegurada a liberdade de culto, mas só d e n t r o das igrejas
j á existentes na altura da invasão. Tal c o m o as casas de habitação e os m o s t e i -
ros cristãos, as igrejas situavam-se n o r m a l m e n t e fora da madina. O s cristãos
n ã o p o d i a m construir n o v o s t e m p l o s d e n t r o das cidades, n e m reconstruir os
q u e se arruinavam. M u i t o s deles f o r a m c o n v e r t i d o s e m mesquitas 2 8 .
U m a das mais i m p o r t a n t e s manifestações da vitalidade religiosa foi o culto
dos santos, q u e c o n t i n u o u aceso e p e r d u r o u d u r a n t e toda a d o m i n a ç ã o islã-
mica n o território peninsular q u e mais tarde havia de ser o de Portugal.
S e g u n d o Idrisi (século xii), a Igreja de São V i c e n t e p e r m a n e c e u inaltera-
da desde o t e m p o d o d o m í n i o cristão visigótico e t o r n o u - s e m u i t o i m p o r t a n -
te d u r a n t e a d o m i n a ç ã o islâmica, pelo facto d e ter r e c o l h i d o os restos mortais
d o mártir São V i c e n t e q u a n d o , perseguidos f e r o z m e n t e pelo e m i r A b d e r r a -
m ã o I (755-788), os cristãos de Valência aí se refugiaram c o m as relíquias, ra-
zão pela qual o local veio a r e c e b e r o n o m e de c a b o de São V i c e n t e . A Igreja
d o C o r v o (Kanisat al-Gurab)29, n o m e pelo qual era c o n h e c i d o o referido

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A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

t e m p l o d u r a n t e o t e m p o da d o m i n a ç ã o islâmica, t o r n o u - s e u m i m p o r t a n t e
c e n t r o d e peregrinações dos cristãos d e A l - A n d a l u z .
U m m o ç á r a b e , mestre Estêvão, c h a n t r e da Sé de Lisboa, relata a transia-
dação das relíquias d o santo para Lisboa, realizada p o r D . A f o n s o H e n r i -
ques 3 0 . A Crónica do mouro Rasis refere t a m b é m esse a c o n t e c i m e n t o 3 1 , e n -
q u a n t o D . Dinis, Z u r a r a e D . D u a r t e se r e f e r e m ao culto d o santo.
As peregrinações a Santa M a r i a de Faro c o m e ç a r a m a ter g r a n d e p r o j e c -
ção d u r a n t e o g o v e r n o dos B a n ú H a r u n , n o século xi 3 2 . Foi p o r essa altura
q u e a cidade d e i x o u de ser c o n h e c i d a pela designação r o m a n a d e O s s ó n o b a
para t o m a r a de Santa Maria, o q u e e x p r i m e b e m a força religiosa e social dos
moçárabes na região. A f o n s o X de Castela recolhe, e m u m a das Cantigas de
Santa Maria, os ecos da d e v o ç ã o q u e os moçárabes n u t r i a m p o r Santa Maria
de Faro, cuja i m a g e m r e m o n t a v a j á ao t e m p o dos Visigodos 3 3 .
A i m p o r t â n c i a religiosa de q u e se revestiram São V i c e n t e e Santa M a r i a
de Faro, j u n t a m e n t e c o m H u e l v a , d u r a n t e a d o m i n a ç ã o islâmica, levaram
C h r i s t o p h e Picard a considerar esta zona d o G h a r b A l - A n d a l u z c o m o «um
dos grandes santuários d o cristianismo» daqueles tempos 3 4 .
E m Lisboa, além de São V i c e n t e , os moçárabes v e n e r a v a m os mártires,
Justa, M á x i m o e Veríssimo, cujas actas de martírio r e m o n t a m ao século x 3 5 .
O s b e r n o evoca essa d e v o ç ã o , recebida da época pré-islâmica, e a destruição,
pelos m o u r o s , da igreja a eles dedicada 3 6 . E natural q u e os cristãos, emigrados
n o t e m p o da conquista o u p o s t e r i o r m e n t e , t e n h a m levado consigo esse culto
e o t e n h a m c o m u n i c a d o às p o p u l a ç õ e s q u e os a c o l h e r a m .
Tal c o m o e m Faro, São V i c e n t e , Lisboa e Évora, os moçárabes de outras
terras e regiões v e n e r a v a m os seus santos, t r a n s m i t i n d o o respectivo culto às
p o p u l a ç õ e s da R e c o n q u i s t a . Assim, Sanbras (São Brás d e Alportel) venerava o

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ISLÃO E CRISTIANISMO: ENTRE A TOLERÂNCIA E A GUERRA SANTA

santo q u e lhe dera o n o m e ; Évora, São M a n ç o s 3 7 ; Beja, São Sisenando; e Capitel de pilastra moçárabe
Santarém, Santa Iria. O u t r o s santos v e n e r a d o s pelos moçárabes, e m diferentes pertencente à Igreja de São
regiões, e r a m Santa C o m b a , São Paio e São M a m e d e 3 8 . Frutuoso de Montélios,
século x i (Braga, Igreja de
A tolerância q u e inicialmente caracterizara os m u ç u l m a n o s de Al-Andaluz São J e r ó n i m o do Real).
foi d e s a p a r e c e n d o cada vez mais. A partir d o final d o século x e, s o b r e t u d o ,
F O T O : D I V I S Ã O DE
das invasões almorávida e almóada, passou a ser u m a pálida s o m b r a daquilo D O C U M E N T A Ç Ã O FOTOGRÁFICA/
q u e fora antes. Mosteiros e igrejas, inicialmente pujantes, acabaram p o r s o ç o - /INSTITUTO PORTUGUÊS DE
brar ante as violências anticristãs dos m u ç u l m a n o s . Assim, o M o s t e i r o de São M U S E U S / A R N A L D O SOARES.
Vicente, e m Sagres, i m p o r t a n t e c e n t r o de peregrinação para os cristãos d e
Al-Andaluz, d e v e ter sido destruído p o r u m g r u p o de almorávidas q u e c h a c i - <3 Selo do concelho de
n o u parte da p o p u l a ç ã o e l e v o u cativa outra parte, sem, n o e n t a n t o , t e r e m Lisboa, representando a
destruído o t ú m u l o d o santo 3 9 . Y a q u b A l m a n ç o r declarava o r g u l h o s a m e n t e veneração das relíquias de São
n ã o ter deixado de p é n e n h u m a igreja n e m sinagoga. Vicente, século x i v (Lisboa,
Instituto dos Arquivos
As perseguições, o isolamento nos c a m p o s o u nos bairros periféricos das Nacionais/Torre do T o m b o ) .
cidades e a marginalização social, e c o n ó m i c a e religiosa a q u e estavam sujei- FOTO: JOSÉ A N T Ó N I O SILVA.
tos levava m u i t o s moçárabes a emigrar para o N o r t e cristão.
M u i t o s m o n g e s d o Sul, ao v e r e m destruídos o u ameaçados os seus m o s - <3 Interior da igreja de
teiros, f o r a m f u n d a r o u t r o s n o N o r t e , i n f l u e n c i a n d o c o m a sua cultura e c o m I danha-a-Velha.
os arabismos d o seu r o m a n ç o m o ç a r á b i c o , c o m o lhe c h a m a Leite d e V a s c o n - FOTO: N U N O CALVET/ARQUIVO
celos, as p o p u l a ç õ e s das vizinhanças. O c o n h e c i m e n t o da língua e cultura C Í R C U L O DE LEITORES.
árabes irá p e r m i t i r a tradução de obras para latim. H á notícias d e m o n g e s
emigrantes, c o m o o abade R a n u l f o q u e , n o final d o século x, fugiu às invés-
tidas de A l m a n ç o r e foi fixar-se e m P a ç o de Sousa, e o abade T u d e i l d u s , q u e
se r e c o l h e u n o m o s t e i r o d e Leça, j u n t o d o P o r t o 4 0 .
O processo de r e p o v o a m e n t o da Península Ibérica m o s t r a - n o s t a m b é m
q u e m u i t o s m o n g e s e m i g r a r a m de A l - A n d a l u z para os reinos cristãos d o
N o r t e . P o r vezes, e m i g r a r a m c o m u n i d a d e s inteiras.
N ã o foi fácil o e n c o n t r o da cristandade do N o r t e , p r o f u n d a m e n t e influen-
ciada pela França, c o m os moçárabes. Paralelamente à estabilização política,
h o u v e a p r e o c u p a ç ã o de restaurar as dioceses d o território r e c é m - c o n q u i s -
tado e insuflar nos mosteiros de tradição visigótica o espírito r e f o r m a d o r de
C l u n y e Cister, b e m c o m o a observância agostiniana de São R u f o de A v i -
n h ã o , q u e foi implantada e m Santa C r u z de C o i m b r a . Isso implicava a substi-
tuição d o rito v i s i g ó t i c o - m o ç á r a b e pelo r o m a n o .

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A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

O l o n g o e conflituoso processo da i n t r o d u ç ã o d o rito r o m a n o na P e n í n -


sula Ibérica d o c u m e n t a e l o q u e n t e m e n t e as lutas e n t ã o travadas. O s m o ç á r a b e s
e r a m detentores d o rito visigótico, de q u e se consideravam os fiéis depositá-
rios, razão p o r q u e t o m o u o n o m e de rito m o ç á r a b e . P o r isso, recusavam-se a
aceitar a liturgia r o m a n a , veiculada pelos cristãos r e c o n q u i s t a d o r e s d o N o r t e e
q u e A f o n s o VI havia i m p o s t o ao reino d e Leão, e m 1080.
Tal c o m o a n t e r i o r m e n t e os moçárabes de T o l e d o , t a m b é m os de C o i m -
bra, a q u a n d o da reconquista, e m 1064, liderados pelo m o ç á r a b e Sisnando, l u -
taram c o n t r a as imposições d o N o r t e . O apego às suas tradições, c o n o t a d a s
c o m o islamismo, custou-lhes a acusação de traidores. Graças a Sisnando, f o -
r a m restauradas, reactivadas e construídas muitas igrejas e entregues, algumas
delas, a clérigos emigrados de A l - A n d a l u z . N o bispo D . P a t e r n o , transferido
da Sé d e Tortosa, e n c o n t r o u Sisnando u m precioso c o l a b o r a d o r na empresa
c o m u m de restabelecer na região os p o d e r e s civil e religioso d o r e i n o d e
Leão, mas c o m u m forte c o l o r i d o m o ç a r á b i c o .
Só após a m o r t e de Sisnando (1092) foi possível n o m e a r u m bispo de rito
r o m a n o , C r e s c ó n i o de T u i . Graças aos seus esforços e aos d o sucessor,
D . G o n ç a l o Pais d e Paiva, f o r a m vencidas as últimas resistências moçárabes e
levada a cabo a r e f o r m a litúrgica 4 1 .
Foi impressionante o m o v i m e n t o de reconversão monástica q u e a c o m p a -
n h o u a f o r m a ç ã o d o C o n d a d o Portucalense. O s mosteiros de tradição visigó-
tica, masculinos, f e m i n i n o s o u dúplices, t r o c a r a m a R e g r a de São F r u t u o s o
o u Regula Communis pela de C l u n y e, p o s t e r i o r m e n t e , a partir de 1143-1144,
c o m a afiliação d o M o s t e i r o d e São J o ã o de T a r o u c a a Claraval e a f u n d a ç ã o
d o M o s t e i r o de Alcobaça, pela de Cister. Algumas c o m u n i d a d e s , c o m o a d e
Fiães, a d o p t a r a m , sucessivamente, os hábitos p r e t o e b r a n c o .

A vida cultural A CONQUISTA DA PENÍNSULA IBÉRICA p e l o s m u ç u l m a n o s p r o v o c o u o e s -


t a n c a m e n t o progressivo da florescente cultura cristã aí implantada, cultura
q u e se havia f o r m a d o através da c o n f l u ê n c i a da cultura clássica c o m as c u l t u -
ras visigótica e suévica, caldeadas pela seiva revitalizadora da m e n s a g e m cristã.
A cultura hispano-árabe, e m q u e se inscreve a luso-árabe, f o r m o u - s e l e n t a -
m e n t e , a partir d o e n c o n t r o desse substrato inicial ibérico c o m e l e m e n t o s
culturais árabes e berberes. P o r isso, n ã o é u m a cultura árabe, n o sentido o r i -
ginal da palavra, n e m hispânica, mas participa das duas c o m p o n e n t e s , razão
p o r q u e deve chamar-se hispano-árabe.
A islamização e m p r o f u n d i d a d e só viria a realizar-se a partir de m e a d o s
d o século ix, c o m A b d e r r a m ã o II (822-853). Este califa a p r o v e i t o u - s e da crise
abácida de B a g d a d e para atrair à Hispânia sábios e artistas orientais. E n v i o u
emissários através d o Egipto, d o Iraque e de o u t r o s países m u ç u l m a n o s , à
p r o c u r a de livros; o r d e n o u a cópia de manuscritos e f o r m o u u m a biblioteca
q u e atingiu p r o p o r ç õ e s gigantescas. D i z - s e q u e c h e g o u a integrar 4 0 0 0 0 0
v o l u m e s , n u m a época e m q u e as c o n g é n e r e s dos principais centros culturais
d o O c i d e n t e latino n ã o ultrapassavam as poucas centenas.
O período mais intenso da arabização da Península Ibérica coincidiu c o m o
m o v i m e n t o da Reconquista, q u e atingiu o apogeu ao longo dos séculos xii e xin.
A divisão d o antigo p o v o hispânico e m dois g r u p o s social, política e reli-
giosamente distintos p r o v o c o u u m a diversificação cada vez mais a c e n t u a d a
das respectivas culturas:
— os muladí-s, ao assumirem a religião islâmica, acabaram p o r assumir
t a m b é m , ainda q u e l e n t a m e n t e , o estatuto cultural dos outros m u ç u l m a n o s 4 2 ;
— os moçárabes, na m e d i d a e m q u e viviam socialmente marginalizados
e m relação aos m u ç u l m a n o s d o m i n a d o r e s e rejeitavam a religião islâmica,
q u e era o principal suporte da respectiva cultura, f o r a m m u i t o m e n o s i n -
fluenciados p o r esta.
A língua e a cultura dos moçárabes, apesar de se d e i x a r e m g r a d u a l m e n t e
c o n t a m i n a r pelo árabe, m a n t i v e r a m s e m p r e ligações directas c o m o latim, s o -
b r e t u d o através da liturgia cristã e dos contactos c o m a Bíblia, c o m os escritos
dos autores cristãos anteriores à conquista islâmica e c o m os dos seus c o n t e m -
p o r â n e o s de a l é m - P i r e n é u s .

100
ISLÃO E CRISTIANISMO: ENTRE A TOLERÂNCIA E A GUERRA SANTA

A avaliar pelas obras dos moçárabes de C ó r d o v a d o século ix (Sperain-


deo, E u l ó g i o , Paulo Álvaro, Sansão e Leovigildo), as grandes obras da cultura
clássica e cristã e r a m c o n h e c i d a s na Península Ibérica. C o m o n ã o podia d e i -
xar de ser, a Bíblia o c u p a v a o lugar cimeiro.
O s e g u n d o lugar cabe à literatura dos Padres e D o u t o r e s da Igreja, de q u e
os mais citados e r a m Santo A g o s t i n h o , Santo A m b r ó s i o , Santo Atanásio,^ São
J e r ó n i m o , Santo Hilário e, ainda, O r í g e n e s , T e r t u l i a n o e São J o ã o C r i s ó s t o -
m o . D o s autores hispânicos, os preferidos e r a m Santo Isidoro de Sevilha, São
Bráulio, Santo Ildefonso, São Julião e T a i o .
T a m b é m a p a r e c e m f r e q u e n t e m e n t e citados os autores clássicos, principal-
m e n t e C í c e r o , Virgílio, C a t ã o , H o r á c i o , J u v e n a l , L u c a n o , Q u i n t i l i a n o e P o r -
fírio. A utilização desses autores n ã o significa q u e os moçárabes deles se
servissem acriticamente. Pelo contrário, são f r e q u e n t e s as investidas, p r i n c i -
p a l m e n t e de P a u l o Álvaro, c o n t r a a petulância formal e os erros doutrinais de
q u e os autores pagãos e r a m portadores 4 3 .
H o j e é j á p a c i f i c a m e n t e aceite a tese de que, d u r a n t e os primeiros t e m p o s
da d o m i n a ç ã o islâmica da Península Ibérica, os moçárabes e os muladi-s e r a m
detentores de u m a cultura m u i t o mais elevada d o q u e a dos anteriores inva-
sores. Estes eram, na sua maioria, berberes, isto é, pastores d o Alto Atlas, e
b e d u í n o s d o deserto, familiarizados c o m os trabalhos duros d o c a m p o e das
armas e, p o r isso, alheios às actividades d o espírito.
C o n h e c e d o r e s d o latim e da cultura visigótica e m a n t e n d o f r e q u e n t e s
contactos c o m os seus irmãos de religião de a l é m - P i r e n é u s , os moçárabes, ao
a p r e n d e r e m a língua árabe, passaram a o c u p a r u m a situação de v a n t a g e m c u l -
tural sobre os invasores 4 4 . P o r sua vez, os muladi-s, p o r q u e religiosa e social-
m e n t e mais p r ó x i m o s dos d o m i n a d o r e s , c o n t r i b u í r a m ainda mais decisiva-
m e n t e para o esplendor da cultura m u ç u l m a n a , c o n f e r i n d o - l h e u m matiz
local, q u e veio a constituir a diferença cultural específica da variante h i s p a n o -
-árabe. O e l e m e n t o mais estruturante e especificante da originalidade da c u l -
tura hispano-árabe, q u a n d o c o m p a r a d a c o m a cultura árabe oriental, foi, c e r -
t a m e n t e , o c o n t r i b u t o cultural d o O c i d e n t e cristão 4 5 .
C o m o t e m p o , a dialéctica da separação social e religiosa dos d o m i n a d o -
res e d o m i n a d o s p r o v o c o u u m a crescente inversão da relação cultural das
duas c o m u n i d a d e s religiosas hispânicas, c o m v a n t a g e m para a islâmica. E isto
p o r duas razões, e n t r e outras:
— os h i s p a n o - m u ç u l m a n o s , e m c o n t a c t o directo c o m os seus irmãos d o
O r i e n t e , j á d e t e n t o r e s dos legados culturais g r e c o - r o m a n o , sírio, persa, egíp-
cio e outros, n ã o pararam de progredir c u l t u r a l m e n t e , até a t i n g i r e m o a p o g e u
n o século x;
— os moçárabes, separados d o resto da Cristandade, p e r d e r a m gradual-
m e n t e o c o n t a c t o c o m as raízes culturais cristãs, o q u e p r o v o c o u , p o r u m la-
do, u m gradual d e f i n h a m e n t o da sua cultura original e, p o r o u t r o , u m a cres-
c e n t e arabização. E m m e a d o s d o século ix, P a u l o Alvaro de C ó r d o v a
registava e lamentava já, e d u r a m e n t e , esse f e n ó m e n o 4 6 .
Tal c o m o n o resto da E u r o p a , até ao século XII, t a m b é m na Península
Ibérica, d u r a n t e os séculos da d o m i n a ç ã o islâmica, f o r a m os mosteiros os mais
lídimos representantes e p r o m o t o r e s da cultura. As escolas dos mosteiros f o -
r a m as m e l h o r e s cidadelas da cultura cristã na Hispânia. Só C ó r d o v a e os seus
arredores t i n h a m q u i n z e . E m Portugal, tiveram m u i t a importância, na região
c o i m b r ã , os de L o r v ã o e da Vacariça.
Pelos escritos de Santo E u l ó g i o e de P a u l o Alvaro, sabemos q u e as c i ê n -
cias, as artes liberais e a teologia e r a m ensinadas nas escolas das igrejas cristãs e
dos mosteiros d e C ó r d o v a , frequentadas n ã o apenas p o r j o v e n s da região, mas
t a m b é m p o r gentes vindas de toda a Península, i n c l u i n d o o território q u e h a -
via de ser p o r t u g u ê s , c o m o foi o caso de São Sisenando de Beja, q u e estudou
na Igreja de São Z o i l o .
A o serem i n c o r p o r a d o s nos n o v o s reinos cristãos, os moçárabes levaram
consigo e transmitiram aos seus irmãos na fé o legado da cultura haurida j u n -
to dos m u ç u l m a n o s , i n f l u e n c i a n d o assim a vida e c o n ó m i c a , militar, adminis-
trativa, judicial, literária e artística da época. F o r m a d o s e m A l - A n d a l u z , os

IOI
A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

moçárabes restituíam ao O c i d e n t e a sua cultura, mas transformada e revitali-


zada pelas influências hispano-árabes.
N o processo da R e c o n q u i s t a , os m o ç á r a b e s estabeleceram o u estreitaram
os laços étnicos, culturais e religiosos dos n o v o s reinos cristãos c o m o passado
r o m a n o - v i s i g ó t i c o c o m u m , insuflando-lhes alguns dos matizes civilizacionais
hispano-árabes, q u e haviam m o l d a d o o seu perfil d u r a n t e o t e m p o de c o n v i -
vência c o m os m u ç u l m a n o s .
Mas n ã o p o d e m o s exagerar o peso da influência m o ç á r a b e nos reinos da
R e c o n q u i s t a . E m m u i t o s casos, até a própria m e m ó r i a desapareceu quase p o r
c o m p l e t o , d e i x a n d o ténues rastos n o vocabulário t o p o n í m i c o e o n o m á s t i c o .
Isto c o m p r e e n d e - s e se p e n s a r m o s q u e os moçárabes d o Sul f o r a m acolhidos
c o m muitas reservas pelos conquistadores, q u a n d o n ã o eram massacrados o u
reduzidos à escravidão o u ao cativeiro, c o m o se p o d e d o c u m e n t a r , e m rela-
ção ao território p o r t u g u ê s , c o m os cristãos q u e O r d o n h o II l e v o u consigo
para as Astúrias, q u a n d o atacou, saqueou e quase destruiu Évora, n o a n o d e
91347; c o m o assassinato d o bispo m o ç á r a b e d e Lisboa, p e r p e t r a d o pelos p r ó -
prios r e c o n q u i s t a d o r e s cristãos; e c o m os m o ç á r a b e s da região de Lisboa, q u e
D . A f o n s o H e n r i q u e s reduziu à escravidão. Foi c o n t r a esta m e d i d a q u e se i n -
surgiu São T e o t ó n i o , p r i o r d o M o s t e i r o d e Santa C r u z de C o i m b r a , q u a n d o
i n t e r p e l o u d u r a m e n t e D . A f o n s o H e n r i q u e s e seus h o m e n s p o r t e r e m arrasta-
d o consigo para C o i m b r a , c o m o cativos e escravos, mais de u m milhar d e
moçárabes. O e n é r g i c o p r i o r o b r i g o u o rei a c o n c e d e r - l h e s a liberdade e o f e -
receu-lhes pousada nas d e p e n d ê n c i a s d o mosteiro 4 8 .
A m e d i d a q u e as terras d o N o r t e iam s e n d o conquistadas, c o u b e aos m o s -
teiros e às catedrais restauradas a tarefa de recuperar a cultura visigótica, q u e
havia sobrevivido nas zonas m e n o s controladas pelos m u ç u l m a n o s .
Há, pois, que relativizar, simultaneamente, tanto a posição unilateral daqueles
que subestimam o contributo hispano-árabe para a formação idiossincrática dos
povos português e espanhol, c o m o a daqueles que exageram a dimensão desse
contributo, acusando o N o r t e reconquistador de ter imposto violentamente ao
Sul não apenas a religião cristã mas t a m b é m os cânones culturais importados de
além-Pirenéus. Estão n o primeiro caso, entre outros, Alexandre Herculano 4 9 e
Sánchez Albornoz 5 0 , e n o segundo Borges Coelho 5 1 e Cláudio Torres 5 2 .
A religião, a língua e a cultura hispânicas são, f u n d a m e n t a l e respectiva-
m e n t e , cristã, latina e r o m a n a , matizadas p o r i n t e r v e n ç õ e s de o u t r o s p o v o s ,
c o m o os G e r m â n i c o s , os Semitas (árabes e j u d e u s ) e os Francos, q u e c o n t r i -
b u í r a m t a m b é m m u i t o p o s i t i v a m e n t e para a identidade hispânica, f r e n t e a
outras identidades, q u e tiveram diferentes origens e i n t e r v e n i e n t e s e t n o c u l t u -
rais, linguísticos e religiosos.
A marca civilizacional árabe de que os moçárabes eram portadores não foi
sempre tolerada pelos reis e cristãos do N o r t e , que algumas vezes os rejeitaram
ostensivamente. T a m b é m tem q u e ver c o m essa marca e c o m a herança visigóti-
ca a peculiar vivência da liturgia, que levou os moçárabes a resistirem tenazmente
à introdução do rito romano, q u e acabou p o r ser imposto na Península Ibérica.

MOUROS
A Reconquista cristã da A RECONQUISTA FOI O MOVIMENTO HISTÓRICO r e s p o n s á v e l p e l a r e c u p e r a -
Península Ibérica e o ção cristã d o espaço hispânico, iniciado p o r u m p e q u e n o g r u p o de ástures,
acantonados nos Picos da E u r o p a . Liderados p o r Pelágio e apoiados p o r al-
estatuto social dos mouros guns n o b r e s visigodos, esses h o m e n s d o N o r t e resistiram d e n o d a d a m e n t e
contra as forças islâmicas, q u e e m vão t e n t a r a m ultimar a conquista integral
da Península Ibérica.
D e início, tratava-se de u m a luta de sobrevivência contra os exércitos
berberes e siro-árabes, sem q u a l q u e r c o n o t a ç ã o nacionalista o u cristã, c o m o
se d e p r e e n d e da leitura das crónicas hispânicas de 741 e 754, r e s p e c t i v a m e n t e
c o n h e c i d a s pelo n o m e de B i z a n t i n o - Á r a b e e M o ç á r a b e . Só m u i t o l e n t a m e n t e
o crescente g r u p o d e resistência assumiu c o m o essencial à sua luta pela l i b e r -
dade as d i m e n s õ e s étnico-política e religiosa, q u e c o n t r i b u í r a m d e c i s i v a m e n t e

102
ISLÃO E CRISTIANISMO: ENTRE A TOLERÂNCIA E A GUERRA SANTA

para dar consistência e c o n t i n u i d a d e ao m o v i m e n t o r e c o n q u i s t a d o r . C o u b e às


crónicas d o ciclo de A f o n s o III d e Leão (866-910) o m é r i t o de explicitar e su-
blimar os objectivos de restauração nacionalista e religiosa q u e c o n f e r i r a m
à luta a mística da R e c o n q u i s t a cristã. C h a m a m o s a esse processo ideológico a
«gotização» e cristianização da R e c o n q u i s t a 5 3 .
N a arrancada militar q u e levou as forças asturo-leonesas até ao D o u r o ,
Afonso I (739-757) e r m o u e arrasou o território q u e separava este rio d o rio M i -
n h o , n o intuito de criar u m espaço que servisse de barreira de protecção e m r e -
lação aos muçulmanos, isto é, u m a t e r r a - d e - n i n g u é m , controlada pelos cristãos.
A Galiza, herdeira da antiga m o n a r q u i a sueva, ficava assim dividida pelo
rio M i n h o e m duas zonas b e m demarcadas: a d o N o r t e , mais p o v o a d a , q u e
herdaria o n o m e original; e a d o Sul, e m expansão na direcção d o M o n d e g o ,
q u e r e c e b e u o n o m e inicialmente exclusivo d o i m p o r t a n t e b u r g o q u e c o n -
trolava a d e s e m b o c a d u r a d o rio D o u r o e se aplicava j á ao território adjacente:
Portucale o u Portugale54. Esse n o m e passaria, doravante, a designar a região q u e
viria a ser a Terra Portucalense, Província Portucalense, Condado Portucalense, o u
s i m p l e s m e n t e Portucale.
A região de Portucale, diferenciada d o resto da Galiza pelo e r m a m e n t o à
q u e se viu sujeita d u r a n t e mais de u m século, adquiriu m a i o r coesão c o m
o r e p o v o a m e n t o de q u e foi alvo d u r a n t e os reinados de O r d o n h o I (850-866)
e A f o n s o III (866-910). Este rei, a p r o v e i t a n d o os conflitos dos muladí-s c o m
os árabes, c o n s e g u i u alargar o seu d o m í n i o até à cidade d o M o n d e g o e r e p o -
voar, entre outras, as cidades de Braga, P o r t o , Viseu e L a m e g o 5 3 .
Portugal detinha j á u m a certa individualidade geográfica, mas faltava-lhe
a individualidade política. Esta, adquiri-la-ia apenas a partir do final d o século xi,
d u r a n t e o reinado de A f o n s o VI.
E m 1096, talvez p o r q u e D . R a i m u n d o n ã o revelara força bastante para
g o v e r n a r o extenso território q u e lhe havia sido confiado, o u p o r q u e n ã o
conseguia suster o í m p e t o almorávida, o u p o r q u e D . Teresa, apesar de ilegíti-
ma, era a sua favorita, o u p o r todas estas razões juntas, A f o n s o VI retirou
o g o v e r n o de Portugal e de C o i m b r a a D . R a i m u n d o para o entregar a
D . H e n r i q u e . A partir d o casamento c o m D . Teresa, e m 13 de Fevereiro de
1099, D . H e n r i q u e passou a chamar-se c o n d e , c o n f e r i n d o assim u m a n o v a
consistência j u r í d i c a ao território q u e governava.
A o assumir a direcção d o C o n d a d o Portucalense, D . H e n r i q u e a p e r c e -
b e u - s e d o alcance das pretensões dos arcebispos de Braga e T o l e d o à j u r i s d i -
ção m e t r o p o l i t a n a sobre o território situado entre o C a n t á b r i c o e o D o u r o .
A luta pela configuração religiosa da n o v a realidade política arrastou-se, c o m
altos e baixos para as duas partes. Só n o reinado de D . A f o n s o H e n r i q u e s
conseguiria Braga i m p o r o seu p r i m a d o a todas as dioceses de Portugal, c o n -
t r i b u i n d o assim, c o m a u n i d a d e eclesiástica, para a u n i d a d e política.
P o r t u g a l ficava d o t a d o , a partir de então, das valências q u e o h a v i a m de
creditar c o m o país i n d e p e n d e n t e e c o m o u m dos mais vigorosos m o t o r e s da
R e c o n q u i s t a peninsular: u m a consciência nacional; u m a idiossincrasia cristã;
u m a língua q u e mais e mais se individualizava e adaptava à expressão da alma
lusitana; u m a configuração geográfica ajustada à realidade político-religiosa;
chefes políticos à m e d i d a d o n o v o estado; u m a d e t e r m i n a ç ã o c o n v e r g e n t e de
todas as forças estruturais e c o n j u n t u r a i s n o sentido de f a z e r e m c o m q u e P o r -
tugal fosse e se afirmasse c o m o nação i n d e p e n d e n t e .
T e r m i n a d a a reconquista d o seu território, c o m a t o m a d a de Silves, Alvor
e Albufeira, e m 1249, P o r t u g a l sentia-se liberto d o g l a n d e pesadelo q u e era o
perigo islâmico a r o n d a r as suas fronteiras, mas c o n t i n u a v a a ser c o n f r o n t a d o ,
n o seu interior, c o m a m e s m a realidade, agora convertida e m m i n o r i a é t n i c o -
-religiosa, p o l i t i c a m e n t e submissa. É da situação da c o m u n i d a d e minoritária
islâmica e das suas relações c o m a c o m u n i d a d e maioritária cristã e m terra
portuguesa q u e passamos a o c u p a r - n o s .
A situação dos m u ç u l m a n o s e m terras de cristãos, q u e r n o O r i e n t e q u e r
n o O c i d e n t e , era análoga, mutatis mutandis, à dos cristãos sob d o m i n a ç ã o islã-
mica. Esta analogia verificava-se t a n t o n o c a m p o religioso c o m o nos c a m p o s
e c o n ó m i c o , social e político.

103
A PROCURA DO D E U S ÚNICO

D> Santiago combatendo os N o início da R e c o n q u i s t a cristã, os m o u r o s v e n c i d o s q u e n ã o c o n s e -


mouros, baixo-relevo da Igreja g u i a m fugir e r a m sistematicamente passados ao fio da espada, o u reduzidos à
Matriz de Santiago do C a c é m
escravidão. M u i t o s dos q u e escapavam acabavam p o r n ã o resistir à d e s u m a n i -
(século xiv).
dade c o m q u e e r a m tratados 5 6 .
FOTO: N U N O CALVET/ARQUIVO
C Í R C U L O DE LEITORES. O r d o n h o I (850-866) p o u p a v a as vidas dos civis, r e d u z i n d o - o s à escravi-
dão 5 7 , e A f o n s o III estendeu essa prática aos inimigos, exigindo resgate pela
sua libertação.
F e r n a n d o M a g n o , q u e se regia p o r princípios mais realistas, mais h u m a n i -
tários e mais consentâneos c o m as exigências da religião e ética cristãs, a d o p -
t o u a política de p o u p a r as vidas dos inimigos vencidos, o c u p a n d o - o s e m a c -
tividades e c o n o m i c a m e n t e rentáveis, o u servindo-se deles c o m o m o e d a d e
venda o u de troca p o r cativos cristãos. O s m o u r o s s u b m e t i d o s e r a m d o a d o s
aos h o m e n s de guerra, c o m o a c o n t e c e u após a reconquista de Seia (1055) e
Viseu (1058), o u utilizados na c o n s t r u ç ã o d e igrejas, c o m o se verificou c o m
os cativos de L a m e g o (1057), o u expulsos para terras d e m o u r o s , c o m o a c o n -
teceu c o m os de C o i m b r a (1064) 58 .
Foi essa a política seguida e desenvolvida p o r A f o n s o VI de Leão e C a s t e -
la (1072-1109) e pelos reis portugueses, q u e apenas r e d u z i a m à escravidão
aqueles q u e de maneira alguma acatavam a d o m i n a ç ã o cristã. Foi o q u e a c o n -
teceu d u r a n t e a reconquista de Lisboa, e m 1147, e de Alcácer d o Sal, e m 1217.
Este princípio viria a ser consagrado pelas Partidas de A f o n s o X , o Sábio59.
Mais d o q u e p o r razões de o r d e m religiosa, essa atitude era ditada pelas leis
gerais da guerra, de q u e , f r e q u e n t e m e n t e , e r a m vítimas os p r ó p r i o s m o ç á r a -
bes, apesar de serem cristãos c o m o os conquistadores.
S a b e m o s pelos forais d o Sul de Portugal e p o r o u t r o s d o c u m e n t o s q u e os
m o u r o s escravos e r a m c o m p r a d o s , vendidos, trocados, doados, legados e m
t e s t a m e n t o , ou entregues c o m o m o e d a , c o m o se fossem m e r o s animais o u
coisas inanimadas 6 0 .
O s senhores e r a m de tal maneira d o n o s dos seus escravos q u e os p o d i a m
açoitar, mutilar, apedrejar, encadear e até q u e i m a r , s e m p r e q u e lesassem os
seus interesses. Só n ã o p o d i a m castrá-los o u matá-los. A lei obrigava os d o n o s
a pagar impostos, foros, dízimas e portagens e a r e s p o n d e r pelos actos dos
seus escravos 6 1 . Se u m m o u r o fugisse, era-lhe cortado u m pé 6 2 ; se falsificasse
m o e d a , era-lhe cortada u m a m ã o 6 3 ; se assaltasse u m a igreja era q u e i m a d o à
porta da mesma 6 4 .
Apesar da d e s u m a n i d a d e de semelhantes leis e práticas, e talvez p o r causa
delas, m u i t o s m o u r o s , c o m a conivência de cristãos, m o u r o s forros o u j u d e u s ,
f u g i a m aos seus senhores para outras terras o u para fora d o reino. As retalia-
ções contra os cúmplices n ã o se faziam esperar p o r parte dos cristãos e m geral
e dos lesados, e m especial.
D. D u a r t e , c h o c a d o c o m a «malícia e maldade» daqueles q u e c o l a b o r a -
v a m d o l o s a m e n t e na fuga dos escravos m o u r o s , redigiu u m a lei, p o s t e r i o r -
m e n t e publicada e revalidada p o r D . A f o n s o V, e m q u e penalizava d u r a m e n -
te os infractores 6 5 .
O s m o u r o s escravos p o d i a m alcançar a liberdade através de vários p r o c e s -
sos: pela fuga para o estrangeiro, p r i n c i p a l m e n t e para o N o r t e de África; p e l o
r e f ú g i o e m d e t e r m i n a d o s concelhos, c o m o os de Freixo, C o v i l h ã e U r r o s ,
que, para fazerem face à falta d e m ã o - d e - o b r a e de p o v o a d o r e s , lhes c o n c e -
d i a m a alforria 6 6 ; pela conversão ao cristianismo, q u a n d o e r a m escravos de j u -
deus; p o r carta de i n g e n u i d a d e , passada pelos respectivos senhores; pelo res-
gate c o m d i n h e i r o i m p o r t a d o d o estrangeiro; pelo escambo c o m cristãos
cativos e m terra de m o u r o s .
O resgate e a troca de prisioneiros e n t r e cristãos e m u ç u l m a n o s foi u m a
prática implantada n o G h a r b , l o g o desde o início da R e c o n q u i s t a , c o m o b e -
neplácito tanto das autoridades religiosas cristãs c o m o islâmicas. As crónicas
latinas e árabes f a z e m eco desse c o m é r c i o 6 7 . O s cerca d e 4 0 0 0 m u ç u l m a n o s e
moçárabes levados cativos p o r O r d o n h o II a q u a n d o d o saque e destruição de
Évora, e m 913, destinavam-se, na sua maioria, ao e s c a m b o c o m cristãos p r i -
sioneiros e m A l - A n d a l u z e n o N o r t e de África 6 8 . N o século xii, a v e n d a e
troca de prisioneiros capturados na região e n t r e É v o r a e Beja atingiu p r o p o r -

104
ISLÃO E CRISTIANISMO: ENTRE A TOLERÂNCIA E A GUERRA SANTA

105
A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

ções m u i t o elevadas e constituiu u m a f o n t e de receita s e m e l h a n t e à da p i l h a -


g e m , c o m o r e f e r e m ainda os cronistas árabes Ibn H a y y â n , Ibn Sâhib e Ibn
'Idâri. O m e s m o f e n ó m e n o acontecia e m relação aos portugueses caídos nas
mãos dos m u ç u l m a n o s . O facto de D . A f o n s o H e n r i q u e s ter destinado o seu
mais i m p o r t a n t e legado (1o 0 0 0 morabitinos) ao resgate dos cristãos cativos é
deveras esclarecedor 6 9 . O m o v i m e n t o de resgate e e s c a m b o de cativos era tão
intenso na Idade M é d i a q u e se institucionalizou a figura d o alfaqueque, q u e
era t a n t o o cristão q u e ia a terra de m o u r o s , c o m o o m o u r o q u e v i n h a a terra
de cristãos libertar os respectivos cativos.
M u i t o s d o c u m e n t o s da época atestam q u e os m u ç u l m a n o s , m e s m o os
q u e se r e n d i a m , e r a m expulsos das cidades conquistadas pelos cristãos. É isso
q u e refere o sacerdote francês q u e presenciou a expulsão dos m u ç u l m a n o s
q u e viviam d e n t r o e fora dos m u r o s de Lisboa, na altura da reconquista 7 0 .
E m t e m p o s de paz, os q u e se sujeitavam aos conquistadores i n t e g r a v a m -
-se, p o u c o a p o u c o , na p o p u l a ç ã o e constituíam u m i m p o r t a n t e e l e m e n t o d e
colonização. O s m o u r o s forros g o z a v a m e n t ã o de u m a especial p r o t e c ç ã o p o r
parte dos monarcas. O foral d a d o p o r A f o n s o VI à cidade de Santarém, e m
1095, m o s t r a - n o s claramente q u e os m u ç u l m a n o s , q u e constituíam o grosso
da p o p u l a ç ã o , c o n t i n u a v a m a viver na cidade, tal c o m o os j u d e u s e os m o ç á -
rabes, e e r a m protegidos pelo p r ó p r i o rei 7 1 . U s u f r u í a m de liberdade social e
religiosa, c o n t i n u a v a m na posse dos seus b e n s e p o d i a m ausentar-se e regres-
sar ao país. E m troca destes privilégios, os m o u r o s e r a m obrigados a pagar os
impostos a q u e antes estavam sujeitos pelos reis m u ç u l m a n o s .
L o g o a partir d o início da R e c o n q u i s t a portuguesa, as c o m u n a s dos m o u -
ros f o r a m legalizadas e dotadas de direitos p r ó p r i o s e colocadas sob a p r o t e c -
ção directa dos reis. Tal c o m o antes acontecia e m relação aos reis m u ç u l m a -
nos e aos emires, os m o u r o s portugueses e r a m considerados p e r t e n ç a d o rei
p o r t u g u ê s (mauri meí), q u e protegia a organização interna da c o m u n i d a d e is-
lâmica, o u t o r g a n d o - l h e direitos próprios, q u e a c o l o c a v a m fora da alçada dos
m e m b r o s da c o m u n i d a d e cristã. Através d e d o c u m e n t o s c o m o a declaração
solicitada p o r D . J o ã o I aos « M o u r o s leterados da cidade de Lisboa», q u e foi
redigida de a c o r d o c o m o direito islâmico, sabemos q u e , e m d e t e r m i n a d a s
circunstâncias, o rei era o legítimo h e r d e i r o dos mudéjares. Só n ã o herdava
nada dos m o u r o s q u a n d o o d e f u n t o deixava c o m o herdeiros u m filho varão,
irmãos g e r m a n o s o u consanguíneos, tios, primos, sobrinhos, ascendentes o u
descendentes masculinos e nascidos p o r via t a m b é m masculina 7 2 . A d e p e n -
dência directa d o rei, b e m expressa pelos forais, garantia às c o m u n a s a a u t o -
n o m i a e m relação a interferências dos cristãos e j u d e u s e, e m caso de abuso
p o r parte destes, conferia-lhes o direito d e apelarem para aquele.
O p r i m e i r o estatuto j u r í d i c o dos m o u r o s portugueses, h o j e c o n h e c i d o ,
foi o foral d a d o e m 1170 p o r D . A f o n s o H e n r i q u e s aos m o u r o s forros de Lis-
boa, Almada, Palmela e Alcácer d o Sal 73 . Aí lhes e r a m oficialmente r e c o n h e -
eidos os direitos à convivência pacífica c o m os cristãos e j u d e u s , a v i v e r e m d e
a c o r d o c o m as suas próprias leis e c o s t u m e s e a c o n t i n u a r e m na posse dos
seus bens. Era-lhes t a m b é m r e c o n h e c i d o o direito de elegerem alcaides p r ó -
prios, c o m jurisdição nos c a m p o s administrativo e judicial e c o m o apoio d e
outros f u n c i o n á r i o s t a m b é m próprios, n o m e a d a m e n t e tabeliães e escrivães.
P o r t u d o isto, a partir da idade e m q u e p o d i a m trabalhar para ganhar a vida,
e r a m obrigados a pagar a n u a l m e n t e ao rei u m maravedi, a tratar as suas v i -
nhãs e a v e n d e r os seus figos e o seu azeite. A l é m disso, t i n h a m de pagar a
décima dos gados (alfitra) e dos frutos da terra (azaqui o u azoque).
O s direitos e deveres o u t o r g a d o s aos m o u r o s pelo foral de D . A f o n s o
H e n r i q u e s f o r a m c o n f i r m a d o s p o r D . A f o n s o II, e m 121774, e estendidos p o r
D . A f o n s o III aos forais c o n c e d i d o s aos m o u r o s forros de Silves, Tavira, L o u -
lé e Faro, e m 1269 75 ; aos de Évora, e m 1273 76 ; e aos de M o u r a de 1296 77 .
Apesar da p r o t e c ç ã o explicitamente oferecida pelos reis portugueses aos
m u d é j a r e s e da defesa intransigente q u e estes faziam dos direitos p o r eles l e -
g a l m e n t e adquiridos, n u n c a d e i x a r a m de se fazer ouvir, n o m e a d a m e n t e nas
Cortes, os protestos v e e m e n t e s da c o m u n i d a d e maioritária, s o b r e t u d o q u a n d o
os seus m e m b r o s n ã o t i n h a m acesso aos m e s m o s direitos. A f u n d a m e n t a ç ã o

106
ISLÃO E CRISTIANISMO: ENTRE A TOLERÂNCIA E A GUERRA SANTA

n o r m a l m e n t e utilizada nestes protestos, alguns dos quais serão explicitados Infante D. Fernando (escola
mais adiante, consiste na suposta injustiça e c o n s e q u e n t e escândalo p r o v o c a d o portuguesa, século x v , Lisboa,
Museu Nacional de Arte
pelo facto de os reis privilegiarem os «infiéis» e m d e t r i m e n t o dos cristãos. Foi
Antiga).
o q u e a c o n t e c e u , p o r e x e m p l o , q u a n d o os representantes de t o d o o r e i n o se
F O T O : D I V I S Ã O DE
queixaram a D . A f o n s o V, nas C o r t e s de Lisboa de 1439, contra o facto de os D O C U M E N T A Ç Ã O FOTOGRÁFICA/
cristãos t e r e m de pagar a dízima ao rei e à Igreja, pelos bens c o m p r a d o s aos / I N S T I T U T O P O R T U G U Ê S DE
m o u r o s , e n q u a n t o estes só e r a m obrigados a pagar ao rei. Assim, c o n c l u í a m M U S E U S / J O S É PESSOA.
os queixosos, «os infiéis, q u e são servos, t ê m razão para enriquecer, e os cris-
tãos ser pobres, o q u e parece coisa estranha» 7 8 .
Mas n e m tudo eram privilégios e m relação aos mudéjares e deveres e m rela-
ção aos cristãos. A realidade era b e m outra. O s m o u r o s estavam sujeitos a muitas
medidas sociais discriminatórias e m relação aos outros grupos étnicos e religio-
sos. Essa discriminação legal visava impedir a contaminação dos cristãos através
da promiscuidade c o m os indivíduos de outras raças e religiões. Segundo a m e n -
talidade da época, os credos islâmico e judaico eram considerados c o m o epide-
mias de q u e urgia preservar os fiéis cristãos. A legislação portuguesa era, neste
campo, u m decalque das legislações eclesiástica e hispânica, q u e determinavam o
local de habitação, o modus vivendi e o vestuário dos judeus e dos mouros.
Apesar das interdições da Igreja e da legislação civil, n o m e a d a m e n t e das
O r d e n a ç õ e s Afonsinas, realizavam-se p o r vezes casamentos e uniões entre
m e m b r o s das duas c o m u n i d a d e s . O e x e m p l o vinha já de l o n g e e de b e m al-
to. C o m efeito, A f o n s o VI de Leão casara c o m Zaida, filha d e A l m o t á m i d e , o
rei-poeta de Sevilha. O e n v o l v i m e n t o de D . A f o n s o H e n r i q u e s c o m u m a
m o u r a d e u - l h e u m filho natural, M a r t i m Afonso, c o n h e c i d o p o r C h i c h o r -
ro 7 9 . Análoga ligação p r o p o r c i o n o u a D . A f o n s o III u m a filha, D . Urraca,
q u e veio a casar c o m P ê r o Anes.
M u i t o s cristãos, i n c l u i n d o os reis, serviam-se de j u d e u s e m o u r o s para
p u n i r e m outros cristãos. O papa, através d o artigo x v da primeira c o n c o r d a t a
d e D . Dinis c o m o clero, o b r i g o u o rei a n ã o utilizar os m o u r o s e o u t r o s

107
A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

agentes contra a vida e segurança dos bispos e seus «sergentes» 80 . O artigo vil
da terceira c o n c o r d a t a fez análoga d e t e r m i n a ç ã o , ao proibir o m e s m o rei d e
se servir de j u d e u s e m o u r o s para violar o direito de asilo, o b r i g a n d o os cris-
tãos a sair das igrejas, para os p r e n d e r e m e t e r e m ferros 8 1 . A interdição lança-
da p o r G r e g ó r i o I X contra o infante de Serpa, e m 1239, q u e se servira de u m
g r u p o de m u ç u l m a n o s para maltratar e expulsar de u m a igreja de Lisboa os
cristãos aí refugiados, foi exemplar 8 2 .

Organização jurídica e SEMPRE QUE OS MOUROS PORTUGUESES a t i n g i a m u m n ú m e r o r a z o á v e l , o r -


ganizavam-se e m colónias, chamadas c o m u n a s , ou, c o m o f r e q u e n t e m e n t e
administrativa dos mouros: lhes c h a m a m as O r d e n a ç õ e s Afonsinas e outros d o c u m e n t o s , communs dos
as comunas mouros. O s já referidos forais de 1170, 1217, 1269, 1273 e 1296 c o n c e d e r a m o u
r e c o n h e c e r a m personalidade jurídica a algumas c o m u n a s . Essa personalidade
foi c o n f i r m a d a e alargada, através de o u t r o s d o c u m e n t o s régios o u das o r d e n s
militares de Santiago e de É v o r a / A v i s , a outras c o m u n i d a d e s d o território
p o r t u g u ê s . N ã o é fácil d e t e r m i n a r o n ú m e r o e a persistência das c o m u n a s ao
l o n g o dos tempos, pois, e m m u i t o s casos, os seus m e m b r o s f o r a m - s e c o n v e r -
t e n d o ao cristianismo o u aculturaram-se d e tal maneira n o seio da maioria
cristã q u e os d o c u m e n t o s c o m p r o v a t i v o s da sua personalidade j u r í d i c a se p e r -
deram, d e v i d o à falta de interesse o u às inclemências erosivas da história.
Mais do q u e a expressão da generosidade e tolerância das c o m u n i d a d e s
cristãs e m relação aos m u ç u l m a n o s , as c o m u n a s e r a m u m a f o r m a de simplifi-
car a burocracia administrativa e constituíam «verdadeiros enclaves j u r i s d i c i o -
nais n o seio de territórios q u e g o z a m de u m a legislação cristã» 83 .
Mas n ã o se pense que o facto de os m o u r o s pertencerem a u m enclave j u -
risdicional tornava ilimitada a sua liberdade de actuação, m e s m o e m problemas
tão importantes c o m o o do uso da própria língua. Assim, era expressamente
proibida aos tabeliães m u ç u l m a n o s e j u d e u s a utilização das respectivas línguas
n o exercício da sua profissão. A gravidade da falta intui-se da gravidade da pena,
q u e era a morte, a não ser q u e o fizessem p o r ignorância o u erro. Nesse caso, o
prevaricador seria açoitado e irreversivelmente privado d o seu oficio 8 4 . Era u m a
maneira de permitir ao rei o acesso e controlo directos dos textos notariais.
C o m base em Gama Barros, Leite de Vasconcelos, Maria Filomena Lopes de
Barros e Saul António Gomes, q u e nos fornecem dados recolhidos nas chancela-
rias reais e n u m diploma da Sé de Coimbra, p o d e m o s elaborar o seguinte quadro,
que nos situa n o período que vai desde o reinado de D . Pedro até à expulsão 85 :
Sabemos que algumas destas comunas e outras não mencionadas n o presen-
te quadro são m u i t o anteriores ao referido reinado, mas desconhecemos a sua
história e evolução concretas. É o que acontece c o m as de Almada, Palmela e
Alcácer d o Sal, que f o r a m instituídas, j u n t a m e n t e c o m a de Lisboa, pelo foral de
D . Afonso Henriques, e m 1170, ainda que delas nada mais se conheça, ou p o r -
q u e desapareceram c o m a instabilidade d o processo da conquista-reconquista,
ou p o r q u e os d o c u m e n t o s a elas referentes se perderam. As de Tavira, Faro,
Loulé e Silves foram fundadas pelo foral de D . Afonso III, e m 1269; a de Évora
recebeu existência legal através d o foral de 1273, da autoria do m e s m o soberano;
e a de M o u r a ficou a dever-se ao foral dionisino de 1296 86 . Maria Filomena L o -
pes Barros refere q u e o desaparecimento das comunas de Leiria, Avis, Alenquer
e Estremoz se o p e r o u na passagem do século xrv para o xv, ainda que t e n h a m
continuado a viver m o u r o s nas três últimas localidades referidas 87 .
O s contenciosos internos da c o m u n i d a d e islâmica eram j u l g a d o s de a c o r -
d o c o m a lei islâmica, s e g u i n d o assim a prática q u e vinha j á d o t e m p o d e
D . A f o n s o H e n r i q u e s , q u e os havia c o n f i a d o à jurisdição dos alcaides dos
m o u r o s . A o transitarem para a alçada de juízes cristãos, c o m e ç o u a h a v e r
abusos p o r parte destes, q u e t e i m a v a m e m julgá-los d e a c o r d o c o m a lei p o r -
tuguesa. O s m o u r o s protestaram v i v a m e n t e e, f a z e n d o - s e representar p o r
mestre Alie, físico d e D . A f o n s o IV, reclamaram a reposição dos direitos q u e
vigoravam n o t e m p o de D . Dinis e seus antecessores. P o r carta d e 17 de F e -
vereiro d e 1340, o rei a t e n d e u o seu p e d i d o e o r d e n o u aos juízes, o u v i d o r e s e
todas as justiças dos seus reinos o c u m p r i m e n t o dessa lei, tão arraigada na tra-
dição 8 8 . P o r q u e m u i t o s c o n t i n u a r a m a fazer dela letra m o r t a , D . A f o n s o V

108
ISLÃO E CRISTIANISMO: ENTRE A TOLERÂNCIA E A GUERRA SANTA

viu-se obrigado a r e t o m á - l a e decidiu q u e as c o n t e n d a s existentes e n t r e os


m o u r o s fossem julgadas «pelos direitos da sua Lei; e b e m assy pelos usos, e
costumes, q u e antre sy ateequi usarom, e costumaram» 8 9 .
C o m o recurso para estes e o u t r o s casos duvidosos, a m e s m a legislação sal-
vaguardava o direito de apelação para o rei e para os oficiais para isso d e p u t a -
dos, r e c o m e n d a n d o a estes o dever de j u l g a r e m de a c o r d o c o m o direito islã-
m i c o . O l e g i s l a d o r t e v e t a m b é m o c u i d a d o d e e x i m i r desta lei os
contenciosos respeitantes a dízimas, portagens, sisas e o u t r o s direitos reais,
q u e d e v e r i a m ser julgados pelos respectivos juízes, de a c o r d o c o m o direito
p o r t u g u ê s o u , n o caso de este os n ã o c o n t e m p l a r , c o m o direito c o m u m 9 0 .

A s TRÊS COMUNIDADES ÉTNICO-RELIGIOSAS ( j u d a i c a , c r i s t ã , muçulmana) Segregação


que, ao l o n g o de séculos, c o n v i v e r a m n o território p o r t u g u ê s sentiam n e c e s - étnico-religiosa
sidade de viver separadas u m a s das outras, n ã o apenas para m e l h o r e x e r c e r e m
os seus ritos religiosos e resistirem ao perigo da «contaminação», mas t a m b é m
p o r q u e todos desconfiavam de todos e p o r q u e a experiência secular lhes h a -
via m o s t r a d o q u a n t o a segurança, apesar de garantida pelas leis, era facilmente
p e r t u r b a d a p o r interesses individuais o u excessos sectaristas de grupos radicais.
O nosso p r i m e i r o rei foi bastante mais realista q u e o avô, A f o n s o VI. N o
foral c o n c e d i d o aos m o u r o s de Lisboa, Almada, Palmela e Alcácer d o Sal, e m
1170, m a n i f e s t o u essa diferença e m relação ao de Santarém, de 1095. A f o n -
so VI era mais liberal e integrador q u e D . A f o n s o H e n r i q u e s . O s forais p o r -
tugueses insistem mais sobre os deveres d o q u e sobre os direitos dos m o u r o s .
O s privilégios q u e estes recebiam estavam condicionados pelos serviços a pres-
tar directamente ao rei e visavam garantir a sua protecção contra possíveis a b u -
sos dos cristãos. Mais d o q u e o aspecto exploratório, era o da protecção real
q u e estava subjacente à expressão mauri mei, tão repetida pelos nossos reis.

109
A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

A separação dos m e m b r o s das três c o m u n i d a d e s assumia várias formas, a


principal das quais era a da delimitação e isolamento dos respectivos bairros,
d e n t r o da estrutura física urbana.

MOURARIAS
D e a c o r d o c o m a legislação eclesiástica e civil, consignada, respectiva-
m e n t e , n o IV C o n c í l i o de Latrão, e m 1215, e nas C o r t e s de Elvas, e m 1361, os
adeptos d o Alcorão e r a m acantonados e m zonas habitacionais urbanas, c h a -
madas mourarias o u aljamas, situadas n o r m a l m e n t e n o arrabalde 9 1 e separadas
p o r u m m u r o das zonas destinadas aos cristãos. Para i m p e d i r q u a l q u e r c o n t a c -
to n o c t u r n o entre os habitantes das duas zonas, os m o u r o s estavam sujeitos a
horários, de a c o r d o c o m os quais eram obrigados a cerrar as portas das m o u -
rarias ao cair da noite, n o r m a l m e n t e ao t o q u e das T r i n d a d e s o u da «oora-
çom» 9 2 , e a abri-las só de m a n h ã , a partir d o t o q u e da primeira missa.
P o r pressão dos representantes d o p o v o , as C o r t e s de Elvas d e 1361, sob
D . P e d r o , d e t e r m i n a r a m a instituição desses bairros e m todas as localidades
q u e tivessem o m í n i m o de dez m o u r o s 9 3 . I n v o c a n d o essa legislação, f r e q u e n -
t e m e n t e desrespeitada, D . J o ã o I e D . A f o n s o V apelaram de n o v o para a n e -
cessidade de todos os m o u r o s se a g r u p a r e m nas mourarias e d e t e r m i n a r a m o
alargamento das respectivas áreas sempre q u e o a u m e n t o d e m o g r á f i c o o e x i -
gisse. Era u m a maneira prática de m a n t e r os agarenos «fora da c o m p a n h i a , e
c o n v e r s a ç o m dos Chrisptaãos» 9 4 .
As mourarias e r a m g e r a l m e n t e dotadas das estruturas e serviços necessá-
rios a u m n o r m a l a g l o m e r a d o populacional. A l é m das casas d e habitação,

Travessa do M o n t a l v o e da
Hera (Santarém). Arruamentos
de tradição e continuidade
islâmicas.
F O T O : N U N O CALVET/ARQUIVO
C Í R C U L O DE LEITORES.

110
ISLÃO E CRISTIANISMO: ENTRE A TOLERÂNCIA E A GUERRA SANTA

t i n h a m u m a o u mais mesquitas (masjid), escola (madrasah), a ç o u g u e (suq =


m e r c a d o ) , padaria, tendas, b a n h o s (hammam-s), c e m i t é r i o o u almocávar (al-
-muqâbar), cadeia (aljube) e albergaria.
A separação subjacente à ideia de m o u r a r i a tinha c o m o o b j e c t i v o f u n d a -
mental, c o m o j á foi referido, evitar o c o n v í v i o e, s o b r e t u d o , as relações ilíci-
tas entre os fiéis dos dois credos. Para erradicar os escândalos, q u e a u m e n t a -
v a m na cidade de Lisboa, D . P e d r o I, p o r lei d e 19 de S e t e m b r o de 1366,
p r o d u z i u legislação apropriada, q u e r e s u m i m o s :
— a m u l h e r cristã q u e entrasse só na mouraria, m e s m o q u e fosse de dia,
seria enforcada;
— o m o u r o o u m o u r a q u e recebesse ilegalmente e m sua casa u m a cristã
seriam m o r t o s ;
— o m o u r o q u e fosse e n c o n t r a d o fora da mouraria, depois da hora d e r e -
colher, pagaria, pela primeira vez, 5000 libras; se as n ã o possuísse na altura,
seria preso até as pagar. Pela segunda vez, pagaria 10 0 0 0 libras; pela terceira,
seria p u b l i c a m e n t e açoitado, s e m outra pena.
Apesar da dureza da lei, os abusos c o n t i n u a r a m a repetir-se. P r o v a - o a r e -
petição da legislação a eles respeitante. D . J o ã o I i m p ô s a m u l t a de 10 libras
da m o e d a antiga aos m o u r o s e n c o n t r a d o s fora das mourarias entre o t o q u e d o
r e c o l h e r e a missa de São Vicente 9 5 . P o r seu t u r n o , D . A f o n s o V reiterou a
lei d o r e c o l h e r obrigatório logo após o t o q u e das Trindades 9 6 .
Para evitar e q u í v o c o s fraudulentos, os m o u r o s q u e se disfarçassem de cris-
tãos para mais f a c i l m e n t e p e r v e r t e r e m as cristãs, a l é m de ficarem sujeitos às
penas c o r r e s p o n d e n t e s aos seus actos, e r a m reduzidos à servidão 9 7 . O s alcovi-
teiros q u e p r e t e n d e s s e m c o r r o m p e r as cristãs e m favor dos m o u r o s e r a m c o n -
siderados réus de m o r t e .
P o r volta de 1402-1414, o arcebispo de Lisboa, D . J o ã o Esteves de A z a m b u -
ja, para erradicar a indesejável promiscuidade entre os m e m b r o s das duas c o -
munidades, proibiu, sob pena de e x c o m u n h ã o , os cristãos de viverem nas
mourarias, de servirem e m casas de m o u r o s , de participarem nas suas festas, de
cuidarem dos seus filhos, de assistirem às suas bodas o u de os r e c e b e r e m e m
suas casas. A o m e s m o t e m p o , proibia os m o u r o s de viverem e m casas situadas
na área residencial dos cristãos. Se isso fosse inevitável, exigia q u e n ã o traba-
lhassem nos d o m i n g o s e dias festivos e q u e não comessem n e m cozinhassem
carne durante a Q u a r e s m a , nas sextas-feiras e nos restantes dias de abstinência e
j e j u m 9 8 . Para evitarem a dependência dos cristãos e m relação aos m u ç u l m a n o s ,
esses monarcas reiteraram a proibição de os m o u r o s exercerem cargos públicos
e serem oficiais dos infantes, condes, prelados e outros senhores.
O s m o u r o s q u e , n o t e m p o de D . J o ã o I, fossem apanhados a b e b e r nas
tabernas de Lisboa c o m os cristãos e r a m penalizados c o m u m a multa d e 25 li-
bras antigas.
Apesar d o rigor das legislações eclesiástica e civil, os abusos n u n c a d e i x a -
r a m de existir, n ã o apenas na esfera social, mas t a m b é m na religiosa.
O s m o u r o s , tal c o m o os j u d e u s , c o s t u m a v a m abrilhantar as festas religio-
sas e reais, r e c e b e n d o os soberanos c o m j o g o s e danças. P o r vezes, a c o l a b o -
ração realizava-se até nos próprios actos de culto. H á referências d o c u m e n t a i s
da sua participação nas procissões d o C o r p o de D e u s . Nessas alturas, estavam
expressamente proibidos de usar armas 9 9 . N ã o foi p o r acaso q u e o C o n c í l i o
de Valhadolid, e m 1322, se insurgiu, ao c o n d e n a r a actuação de cantores e ac-
tores m u ç u l m a n o s nas igrejas cristãs. Essa p r o i b i ç ã o foi c e r t a m e n t e ditada p e -
10 o b j e c t i v o de estancar u m c o s t u m e generalizado. A legislação lisboeta de
m e a d o s d o século x v t a m b é m os proibia de tocar, dançar o u realizar outras
manifestações artísticas nas festas dos cristãos.

VESTUÁRIO E SINAIS DISTINTIVOS


O c â n o n 68 d o IV C o n c í l i o de Latrão (1215), para evitar a p r o m i s c u i d a d e
entre os m e m b r o s de diferentes religiões e para i m p e d i r q u a l q u e r c o n t a c t o
susceptível de transmitir os g é r m e n s da i m p u r e z a religiosa, i m p ô s aos m u ç u l -
m a n o s e aos j u d e u s residentes e m países cristãos o uso de distintivos e o b r i -
g o u - o s a n ã o a p a r e c e r e m e m p ú b l i c o d u r a n t e alguns dias da Semana Santa"" 1 .

in
A PROCURA DO D E U S ÚNICO

Esses distintivos eram, pois, p o r u m lado, u m sinal e x t e r n o da inferioridade


social e religiosa dos m u ç u l m a n o s e m relação aos cristãos; p o r o u t r o , consti-
t u í a m u m a expressão visível d o separatismo.
E m c o n f o r m i d a d e c o m a legislação geral eclesiástica, t a m b é m os m o u r o s
portugueses e r a m obrigados a usar u m vestuário específico. A primeira legis-
lação civil c o n c e r n e n t e à i n d u m e n t á r i a dos m o u r o s , h o j e c o n h e c i d a , foi e m a -
nada p o r D . A f o n s o IV, q u e lhes impôs o uso de u m sinal b r a n c o n o barrete
e o c o r t e d o cabelo à navalha 1 0 1 .
Apesar dessa legislação, reiterada p o r D . P e d r o , n ã o foi p a c i f i c a m e n t e
aceite pelos cristãos, ao l o n g o dos tempos, a i n d u m e n t á r i a dos m u ç u l m a n o s .
O s primeiros n ã o toleravam, p o r e x e m p l o , q u e usassem albernozes, e os se-
g u n d o s apelavam para os reis, r e c l a m a n d o o respeito pelas leis q u e salvaguar-
davam os seus usos e costumes e i n v o c a n d o q u e essa era a i n d u m e n t á r i a p o r
eles usada e m terras de m o u r o s 1 0 2 . Para serenar os â n i m o s exaltados dos cris-
tãos, D . A f o n s o V v o l t o u a legislar p o r m e n o r i z a d a m e n t e sobre o vestuário
dos sarracenos. S e g u n d o a lei afonsina, os m o u r o s d e v i a m observar as s e g u i n -
tes determinações, sob a pena m í n i m a de p e r d e r e m a r o u p a e serem penaliza-
dos c o m 15 dias de prisão 1 0 3 :
— as aljubas d e v i a m ser a c o m p a n h a d a s de aljubetes e ter mangas tão lar-
gas «que possam revolver e m cada h u m a delias h u m a :11 da1(14 de m e d i r pano»;
— os albernozes deviam ser fechados e cosidos c o m os escapulários;
— os balandraus ou capuzes deviam trazer u m escapulário atrás.
D . J o ã o II o b r i g o u ainda os m o u r o s a usarem capuzes abertos e a ostentar
u m a lua v e r m e l h a n o o m b r o 1 0 5 . Já depois da expulsão, e m 1502, D . M a n u e l
libertou os q u e residissem o u passassem p o r Portugal da referida lua v e r m e -
lha 1 0 6 .

Estatuto A QUEM AUSCULTE o VIVER das p o p u l a ç õ e s medievais portuguesas, é fácil


aperceber-se de q u e aos m o u r o s estavam n o r m a l m e n t e confiados os ofícios
cconómico-profissioml dos mais difíceis, o que, só p o r si, é u m indicativo da discriminação social a q u e
mouros portugueses e r a m votados.
Após a R e c o n q u i s t a cristã d o território português, os m o u r o s q u e aceita-
r a m viver entre os cristãos c o n t i n u a r a m ligados às actividades e c o n ó m i c a s q u e
exerciam d u r a n t e a d o m i n a ç ã o islâmica. Isto significa q u e u m a g r a n d e parte
deles c ç n t i n u o u a dedicar-se à vida agrícola, a principal f o n t e de riqueza d o
reino. É natural q u e o seu estatuto e c o n ó m i c o - p r o f i s s i o n a l se tivesse d e g r a d a -
d o c o m a R e c o n q u i s t a , na m e d i d a e m q u e p e r d e r a m direitos antigos e m fa-
vor dos n o v o s senhores. N a m a i o r parte dos casos, passaram a cultivar as t e r -
ras c o m o arrendatários o u enfiteutas, e m c o n d i ç õ e s idênticas às dos cristãos
q u e gozavam d o m e s m o estatuto. E m m u i t o s casos, n o e n t a n t o , m a n t i v e r a m
a posse plena das antigas terras 1 0 7 .

AGRICULTURA E OFÍCIOS MECÂNICOS


A agricultura era exercida n ã o apenas p o r aqueles q u e viviam nos c a m -
pos, mas t a m b é m pelos q u e residiam nos centros u r b a n o s . N a periferia das c i -
dades, i n c l u i n d o os arrabaldes, realizavam-se actividades agrícolas, principal-
m e n t e a pastorícia, a vinicultura e o cultivo dos cereais, q u e exigiam grandes
extensões de terra. D e n t r o das próprias muralhas, cultivavam-se os legumes e
as árvores de fruta. Daí a existência de muitas hortas (almuinhas) e p o m a r e s .
N ã o é difícil p e r c e b e r a importância vital da agricultura «urbana» para a e c o -
n o m i a da população, s o b r e t u d o e m t e m p o s de guerra, e m q u e chegava a r e -
presentar a única garantia de sobrevivência.
Está h o j e b e m d o c u m e n t a d a a existência e a i m p o r t â n c i a de q u e as a l m u i -
nhãs de cidades c o m o Lisboa, P o r t o e É v o r a se revestiam, n ã o apenas c o m o
p u l m õ e s da cidade, mas t a m b é m c o m o m e i o s de subsistência e sobrevivência
das respectivas populações 1 0 8 .
U m a das principais actividades agrícolas dos m o u r o s era o a m a n h o das v i -
nhãs. N ã o é p o r acaso q u e alguns forais, c o m o o o u t o r g a d o p o r D . A f o n s o
H e n r i q u e s , e m 1170, aos m o u r o s forros de Lisboa, Almada, Palmela e Alcácer
do Sal, r e f e r e m o facto de lhes serem confiadas as vinhas d o rei 1 0 9 .

112
ISLÃO E CRISTIANISMO: ENTRE A TOLERÂNCIA E A GUERRA SANTA

O vocabulário p o r t u g u ê s regista ainda h o j e m u i t o s t e r m o s agrícolas árabes Lápide funerária, c o m


o u de o r i g e m árabe. E n t r e m u i t o s outros, registem-se os seguintes: adil ( c atíl), inscrições árabes, proveniente
de Lisboa, da R u a das
pousio; alacil (sasír), é p o c a das vindimas; albarda (bárdaca); alfaia (haja); a l m a n - Madres à M a d r a g o a (Lisboa,
xar (manchar), lugar para secar figos; a l m a r g e m (marj), prado; a l m u i n h a (mu- M u s e u da Cidade).
nya), horta; alqueive (qalíb), terra de pousio; atafona (tahâna), m o i n h o m o v i -
FOTO: ANTÓNIO RAFAEL.
d o p o r animal; ceifa (sayfá); lezíria (jaza'ir) \ quintal (qintâr).
S o b r e t u d o n o A l e n t e j o , os m o u r o s d e d i c a v a m - s e à caça c o m o u m a das
principais actividades. O foral e as posturas da câmara de É v o r a e os costumes
d e Beja são claros a esse respeito 1 1 0 .
A i n d a q u e as o r d e n a ç õ e s n ã o refiram outras actividades dos m o u r o s , sabe-
mos, através de m u i t o s d o c u m e n t o s da época, c o m o forais, cartas régias e
posturas, q u e eles se d e d i c a v a m a ofícios mecânicos, tais c o m o sapateiros, f e r -
reiros e oleiros, e ainda c o m o carpinteiros, tapeteiros, pedreiros, albardeiros,
esteireiros, esparteiros, tosadores, etc.
Para suprir a falta de artífices q u e afectava as p o v o a ç õ e s , n o r m a l m e n t e
avessas aos ofícios mecânicos, os nossos reis, muitas vezes a p e d i d o daquelas,
o u t o r g a v a m f r e q u e n t e m e n t e aos m o u r o s privilégios, q u e iam desde a i m u n i -
dade de tributos até ao estatuto de vizinhos 1 1 1 .

C O M É R C I O E FINANÇAS
M u i t o s m o u r o s dedicavam-se ao c o m é r c i o , q u e r fixo, q u e r a m b u l a n t e 1 1 2 .
O s sedeados nas zonas de fronteira e n o Algarve c o m e r c i a v a m , respectiva-
m e n t e , c o m Castela e c o m o N o r t e de África. Era o q u e acontecia c o m os de

113
A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

Elvas, f r e q u e n t e m e n t e e n v o l v i d o s e m n e g ó c i o s c o m os p o v o s da raia estre-


m e n h a 1 1 3 . O s forais r e f e r e m f r e q u e n t e m e n t e a a c t i v i d a d e c o m e r c i a l dos m o u -
ros e o p r i v i l é g i o d e isenção d o s direitos d e p o r t a g e m .
O m o u r o e o j u d e u , p e l o simples facto d e s e r e m c o n s i d e r a d o s «o o u t r o » ,
e r a m vítimas da e x p l o r a ç ã o a t o d o s os níveis, p r i n c i p a l m e n t e ao n í v e l e c o n ó -
m i c o . A prática da usura, ainda q u e p r o i b i d a pelas leis cristãs, t o r n o u - s e t ã o
n o r m a l e n t r e os m e m b r o s das d i f e r e n t e s c o m u n i d a d e s religiosas q u e D . A f o n -
so III se v i u o b r i g a d o a p r o m u l g a r u m a lei carregada d e sanções, a q u e d e u
p o r t í t u l o «Ley p e r q u e e l - R e i d e f e n d e o aos cristaãos e m jeerall e a m o u r o s e
a j u d e u s q u e n o m f a ç o m c o n t r a u t o s n e m e m p r e s t e m h u u n s aos o u t r o s s e n o m
h u a c o u s a p o r o u t r a semelhauel». C o m ela, o legislador t i n h a c o m o o b j e c t i v o
evitar, p o r u m lado, os p r e j u í z o s e c o n ó m i c o s q u e o seu n ã o c u m p r i m e n t o
acarretava para os d e v e d o r e s e, p o r o u t r o , a prática da usura, e x p l i c i t a m e n t e
declarada «defesa d e d e r e i t o d e u y n o e d e d e r e i t o p o s e t i u o » . N a s C o r t e s d e
S a n t a r é m , e m 1273, o m e s m o rei, p r e s s i o n a d o pelos fidalgos e p e l o s c o n c e -
lhos, q u e se q u e i x a v a m dos efeitos p e r v e r s o s dessa lei, t e v e d e a r e v o g a r , n ã o
s e m reiterar as p e n a s r e f e r e n t e s à usura 1 1 4 .

OUTRAS ACTIVIDADES
A o l a d o d o s m u d é j a r e s q u e « m o u r e j a v a m » n o s trabalhos d u r o s , m u i t o s
havia q u e a s c e n d i a m a cargos social e e c o n o m i c a m e n t e elevados, t a n t o d e n -
t r o c o m o fora das c o m u n a s . S a b e - s e , p o r e x e m p l o , q u e j u n t o da c o r t e d e
D . D i n i s existia u m m o u r o , d e n o m e M a o m é , q u e c o l a b o r o u c o m Gil Peres,
clérigo d e P ê r o A n e s d e P o r t e l na t r a d u ç ã o da Crónica do mouro Rasis, u m a
das principais f o n t e s da Crónica geral de Espanha de Í344]l5. D . Afonso V tinha
c o m o físico u m m o u r o , c h a m a d o Alie 1 1 6 . O m e s m o rei, p o r carta d e 17 d e
M a r ç o d e 1451, n o m e o u seu r e q u e r e d o r , solicitador e p r o c u r a d o r j u n t o dos
o u t r o s m o u r o s a C a i d e C a c i z , c o n c e d e n d o - l h e «todas as liberdades, rendas,
foraes e direitos q u e ao d i t o o f f i c i o p e r t e n c e m » 1 1 7 .

IMPOSTOS E HERANÇAS
N o r m a l m e n t e , os m o u r o s e s t a v a m sujeitos aos i m p o s t o s q u e i m p e n d i a m
s o b r e a g e n e r a l i d a d e da p o p u l a ç ã o , c o m o p o r t a g e n s , p e a g e n s e c o s t u m a g e n s .
A l é m disso, r e c a í a m s o b r e eles várias t r i b u t a ç õ e s específicas.
As Leges p u b l i c a r a m u m a «Declaração» dos i m p o s t o s q u e os m o u r o s d e -
v i a m p a g a r ao rei 1 1 8 . T r a t a - s e d e u m d o c u m e n t o n ã o d a t a d o , i n s e r i d o nas In-
quirições de D. Afonso III (fl. i o v ) , q u e G a m a B a r r o s diz ter sido r e d i g i d o n o
r e i n a d o d e D . J o ã o I 1 1 9 . P o r q u e estes t r i b u t o s j á e x i s t i a m e m t e m p o s a n t e r i o -
res 1 2 0 , é u m b o m i n d i c a d o r d o s e n c a r g o s fiscais a q u e e s t a v a m sujeitos os
m o u r o s f o r r o s p o r t u g u e s e s . E m síntese, e r a m estes os i m p o s t o s :
— a c a p i t a ç ã o o u alfitra (al-fitr) 1 2 1 , q u e incidia s o b r e t o d o s os m o u r o s , l o -
g o a p a r t i r d o n a s c i m e n t o , e consistia e m seis d i n h e i r o s , p a g o s n o p r i m e i r o
dia d e cada a n o 1 2 2 . A p a r t i r da i d a d e e m q u e p o d i a m g a n h a r a v i d a , p a g a v a m
v i n t e soldos da m o e d a antiga, q u e c o r r e s p o n d i a a u m a libra. P o r isso, a « D e -
claração» c h a m a - l h e «libra de cabeça»;
— a d í z i m a a n u a l (azaqui) 1 2 3 d o p ã o , d o v i n h o , d o azeite, d o s l e g u m e s ,
dos figos passados, das uvas, d o m e l , da cera e das crias d o g a d o cavalar e asi-
n o , a q u e e s t a v a m sujeitos t o d o s os m o u r o s , a partir d o s q u i n z e a n o s d e i d a -
de 1 2 4 . E s t e i m p o s t o era c o b r a d o à m e d i d a q u e se r e a l i z a v a m colheitas o u r e n -
dimentos;
— o azaqui o u q u a r e n t e n a ( 2 , 5 % o u 1 / 4 0 ) , o u a c o r r e s p o n d e n t e p e r c e n -
t a g e m e m d i n h e i r o , q u a n d o se tratava d e q u a n t i a s baixas, das crias dos g a d o s
b o v i n o , o v i n o e c a p r i n o e d o s c a m e l o s e d e t o d o s os o u t r o s b e n s , i n c l u i n d o
os h a v e r e s e m o u r o e prata, a q u e e s t a v a m sujeitos os v a r õ e s c o m c a p a c i d a d e
para g a n h a r a vida. Este i m p o s t o era p a g o n o dia 1 d e M a i o d e cada a n o ;
— a q u a r e n t e n a da c o m p r a e v e n d a d e b e n s d e raiz, c a b e n d o o u t r o t a n t o
ao i n t e r l o c u t o r n o n e g ó c i o ;
— a d í z i m a d o t r a b a l h o , q u e o n e r a v a os m o u r o s j o r n a l e i r o s , d o s e x o
m a s c u l i n o , n ã o sujeitos ao azaqui;
— a d í z i m a d o resgate e da alforria;

114
ISLÃO E C R I S T I A N I S M O : E N T R E A TOLERÂNCIA E A G U E R R A SANTA

— a dízima dos b e n s m ó v e i s e de raiz deixados e m herança, q u a n d o os


herdeiros só os r e c l a m a v a m depois d e j á t e r e m sido inventariados pelo a l m o -
xarife d o rei, pelo r e n d e i r o o u pelo recebedor 1 2 5 ;
— prestações e m espécie, q u e recaíam sobre os q u e c u i d a v a m das vinhas
d o rei.
Estes impostos, aos quais há a acrescentar derramas extraordinárias, parece
n ã o e x o r b i t a r e m os lindes d o razoável, q u a n d o considerados isoladamente.
Analisados, p o r é m , c u m u l a t i v a m e n t e , e t e n d o e m c o n t a q u e incidiam sobre
todas as actividades e p r o d u t o s , t o r n a v a m - s e demasiado pesados para as p o p u -
lações mouriscas. M a s t e m o s d e ter presentes dois factores: p o r u m lado, o
facto de a situação e c o n ó m i c a n ã o ser mais favorável aos m o u r o s q u a n d o es-
tavam sujeitos aos respectivos p o d e r e s islâmicos, c o m o se d e p r e e n d e dos c o n -
vénios assinados e n t r e eles e os reis cristãos, l o g o após a R e c o n q u i s t a 1 2 6 ; p o r
o u t r o lado, ao passarem para a d e p e n d ê n c i a pessoal d o rei (mauri me 1) e ao
trabalharem as suas terras, os m u d é j a r e s ficaram sujeitos a deveres fiscais se-
m e l h a n t e s aos dos exploradores dos d o m í n i o s públicos dos estados m u ç u l m a -
nos. H á ainda a n o t a r q u e , n o c u r t o espaço de vinte e três anos, a situação
e c o n ó m i c a dos m u d é j a r e s se d e g r a d o u , c o m o se d e p r e e n d e da leitura c o m p a -
rada dos forais de É v o r a (1273) e M o u r a (1296).

APOSENTADORIA
Tal c o m o d u r a n t e a d o m i n a ç ã o islâmica, e m q u e os m u ç u l m a n o s se h o s -
p e d a v a m e m casas de cristãos, sem q u e estes p u d e s s e m recalcitrar, n e m sequer
contra os abusos q u e ultrapassavam os limites da lei, t a m b é m , após a R e c o n -
quista, os senhores cristãos c o s t u m a v a m hospedar-se e m casas de m u ç u l m a n o s
e de j u d e u s . O s m o u r o s q u e i x a v a m - s e f r e q u e n t e m e n t e aos nossos reis da e x -
ploração de q u e e r a m vítimas p o r parte de pessoas sem consciência. D . A f o n -
so II, sensível a esses apelos, a p o i o u as suas reivindicações, ao c o n f i r m a r , e m
1217, o foral de 117o 127 .
A p e s a r da legislação favorável, q u e os isentava da o b r i g a ç ã o da a p o s e n -
tadoria, os abusos c o n t i n u a r a m , pois, e m 1364, os m o u r o s d e S a n t a r é m
q u e i x a r a m - s e a D . P e d r o d a q u e l e s q u e se h o s p e d a v a m e m suas casas. O rei
o r d e n o u q u e , d e f u t u r o , n i n g u é m c o m e t e s s e esse abuso, a n ã o ser c o m u m
m a n d a t o especial seu. O s p r e v a r i c a d o r e s seriam expulsos das casas dos
m o u r o s e o b r i g a d o s a r e p a r a r os d a n o s causados. O m e s m o rei p r o i b i u t o -
dos os cristãos, m e s m o os seus filhos, d e se a p o s e n t a r e m nas casas dos m o u -
ros d e É v o r a , b e m c o m o d e se a p r o p r i a r e m das suas r o u p a s e d e o u t r o s
bens.
C o m o t e m p o , o c u m p r i m e n t o das d e t e r m i n a ç õ e s reais p r o v o c o u r e a c -
ções contrárias p o r parte dos cristãos. E m 1439 e 1446, os habitantes de Elvas,
escandalizados pelo facto de «que o livre fosse servo e o infiel fosse isento» 1 2 8 ,
apresentaram a D . A f o n s o V u m a queixa contra a i n c o n g r u ê n c i a d o p e d i d o
d e isenção de aposentadoria feito pelos m o u r o s . I n d i f e r e n t e a essas queixas, o
rei c o n f i r m o u à referida c o m u n a todos os privilégios, liberdades e mercês q u e
j á havia r e c e b i d o de monarcas anteriores 1 2 9 .

PARTICIPAÇÃO NA GUERRA E NA M A N U T E N Ç Ã O DA ORDEM


O s m o u r o s estavam dispensados d o serviço militar. D u r a n t e a guerra, ti-
n h a m apenas o e n c a r g o de guardar as tendas reais e d e f e n d e r os seus tesouros.
E x c e p c i o n a l m e n t e , assumiram muitas vezes a defesa d o reino, m i l i t a n d o ao
lado das p o p u l a ç õ e s cristãs.
I g u a l m e n t e estavam isentos de trabalhos paramilitares, c o m o o d e trans-
p o r t a r e m presos e dinheiros. Q u a n d o , abusivamente, a isso e r a m obrigados,
q u e i x a v a m - s e ao rei, c o m o a c o n t e c e u n o t e m p o de D . P e d r o I, c o m os
m o u r o s de Lisboa, Setúbal, Avis e A l e n q u e r . O m o n a r c a r e c o m e n d o u e n t ã o
aos alvazis e às justiças a atenção devida a tais situações.
Q u a n d o o rei ia à cidade de Lisboa, os m o u r o s c o n t r i b u í a m indirecta-
m e n t e para a sua defesa, p r o p o r c i o n a n d o g é n e r o s ao m o n t e i r o - m o r , aos
m o ç o s d o m o n t e , aos m o n t e i r o s de cavalo, aos escudeiros e m o ç o s d e c â -
mara d o rei.

5
A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

Liberdade religiosa O DIREITO ECLESIÁSTICO distinguiu s e m p r e o estatuto dos j u d e u s d o dos


m u ç u l m a n o s . E n q u a n t o os primeiros n ã o t ê m pátria própria, v i v e n d o disse-
m i n a d o s entre os o u t r o s povos, os m u ç u l m a n o s p o s s u e m - n a , ainda q u e a t e -
n h a m c o n q u i s t a d o aos cristãos o u a o u t r o s povos. P o r essa razão, n u n c a os
cristãos d e r a m tréguas aos m u ç u l m a n o s . D a d a a sua c o n o t a ç ã o religiosa, a
guerra dos cristãos c o m os m u ç u l m a n o s foi s e c u l a r m e n t e considerada pelos
dois lados c o m o u m a guerra santa, q u e r se revista da f o r m a de •jihâd islâmica,
q u e r de cruzada o u R e c o n q u i s t a cristã. Para os cristãos, trata-se d e u m a g u e r -
ra justa, pois t e m c o m o objectivos primordiais a defesa e reconquista dos ter-
ritórios q u e outrora lhes p e r t e n c e r a m .
O Decretum de Graciano, n o c â n o n e intitulado Iudeos non debemus persequi,
sed Sarracenos, integra u m a carta enviada pelo papa Alexandre II (1063) aos
bispos da Hispânia, o n d e aquele r e c o n h e c e «haver u m a i m p o r t a n t e diferença
entre a posição dos j u d e u s e a dos sarracenos. C o n t r a estes, t e m o s legitima-
m e n t e u m direito d e guerra p o r q u e p e r s e g u e m os cristãos e os expulsam das
suas cidades e reinos» 1 3 0 . Este c â n o n e f o r n e c e a f u n d a m e n t a ç ã o juridica aos
teóricos da R e c o n q u i s t a , c o m o o bispo de Silves, D . Alvaro Pais, para legiti-
m a r o direito de guerra 1 3 1 .
È c o m base nestes pressupostos q u e deve ser e n t e n d i d a a p r o i b i ç ã o d o
c o m é r c i o de armas c o m os m o u r o s , tão repetida pelos papas e príncipes e u -
ropeus, pois esse c o m é r c i o favorecia i n d i r e c t a m e n t e os inimigos na guerra
contra os cristãos.
Apesar da mentalidade e das legislações eclesiástica e civil, os cristãos e os
m u d é j a r e s viviam n o r m a l m e n t e e m c o n t a c t o uns c o m os outros e m a n t i n h a m
i n t e r c â m b i o sociocultural n o intervalo das guerras; d i s p u n h a m de chefes reli-
giosos (imãs)132, de pregadores (cátibes), de teólogos (mutakalim-s), de juristas
(alfaquis), e de sábios o u d o u t o r e s (ulemás); p o d i a m ter, e t i n h a m de facto,
mesquitas, o n d e realizavam os seus actos d e culto e a partir de cujos m i n a r e -
tes os muezins c h a m a v a m os m u ç u l m a n o s à oração. Apesar de o C o n c í l i o de
Viena ter p r o i b i d o esse c o s t u m e nas terras cristãs e m 1311, e m Portugal essa lei
eclesiástica só foi aplicada a partir das C o r t e s de C o i m b r a de 1396, a instâncias
dos capítulos gerais do p o v o .
O s filhos da m e s q u i t a d e s f r u t a v a m ainda de l i b e r d a d e para o b s e r v a r e m
os p r e c e i t o s morais islâmicos, alguns dos quais e r a m m u i t o estranhos à civi-
lização cristã e ocidental, n o m e a d a m e n t e o de os h o m e n s p o d e r e m casar si-
m u l t a n e a m e n t e c o m q u a t r o m u l h e r e s , o da i n t e r d i ç ã o da carne de p o r c o e
d o v i n h o , o da observância ritual da sexta-feira, e m vez d o d o m i n g o , c o m o
dia de descanso 1 3 3 , o da circuncisão e o d o j e j u m d u r a n t e o m ê s d o R a m a -
dão.
A liberdade religiosa dos m o u r o s e m terras de cristãos era u m a exigência
da d o u t r i n a eclesiástica, q u e proibira oficialmente, desde sempre, a conversão
forçada dos m u ç u l m a n o s . Isto n ã o significa q u e a Igreja e os príncipes cristãos
não se p r e o c u p a s s e m c o m a evangelização e conversão dos adeptos d o A l c o -
rão. A Igreja fazia-0 através da persuasão e os reis através dos pesados i m p ô s -
tos q u e faziam recair sobre os m u ç u l m a n o s , ao m e s m o t e m p o q u e distri-
b u í a m privilégios n ã o apenas p o r aqueles q u e se c o n v e r t i a m à fé cristã, mas
t a m b é m pelos cristãos q u e casavam c o m m o u r a s convertidas ao cristianis-
mo134.
A p e s a r de os p r i n c í p i o s s e r e m claros, h o u v e s e m p r e abusos, q u e r n o
p l a n o eclesiástico, q u e r n o civil. Foi c o n t r a esses abusos q u e legislaram
D . J o ã o I, D . D u a r t e e D . A f o n s o V, de a c o r d o c o m a legislação ibérica e
c o m base e m textos q u e os papas C l e m e n t e VI e B o n i f á c i o I X h a v i a m c o n s a -
grado aos j u d e u s 1 3 5 .
O s privilégios dos m o u r o s q u e se c o n v e r t i a m ao cristianismo desencadea-
r a m f r e q u e n t e s d e s c o n t e n t a m e n t o s , polémicas e desacatos sociais p o r parte
dos «cristãos-velhos». Estes apelidavam os cristãos-novos o r i u n d o s d o islamis-
m o de tornadiços, palavra mal c o n o t a d a na época. N a q u e l e c o n t e x t o social e
m e n t a l p r o f u n d a m e n t e m a r c a d o pela p o l é m i c a religiosa, tal d e n o m i n a ç ã o
constituía u m a ofensa de tal maneira grave q u e os sucessivos legisladores tive-
r a m necessidade de p r o i b i r essa prática e d e a tornar passível de p e n a civil 1 3 6 .

116
ISLÃO E CRISTIANISMO: ENTRE A TOLERÂNCIA E A GUERRA SANTA

INTERCAMBIO CULTURAL ISLAMO-CRISTAO:


UM BALANÇO POSITIVO
C O N T R A O QUE SERIA DE ESPERAR d a m u l t i s s e c u l a r p r e s e n ç a muçulmana Encontro de dois povos
n o G h a r b Al-Andaluz, se o c o m p a r a r m o s c o m outras regiões da Península
Ibérica, foi d i m i n u t o o c o n t r i b u t o islâmico prestado à arte e, de u m a maneira
e duas culturas
mais a b r a n g e n t e , à cultura portuguesa. As razões foram várias: p o r u m lado, a
natureza g e o g r a f i c a m e n t e periférica d o O c i d e n t e peninsular e m relação aos
grandes centros de decisão política, e c o n ó m i c a e religiosa de A l - A n d a l u z n ã o
favoreceu a radicação de sábios e artistas n e m o dispêndio de grandes energias
na região; p o r o u t r o , a m a r c h a erosiva d o t e m p o a p a g o u e destruiu implaca-
v e l m e n t e as marcas d e u m a civilização q u e n ã o interessava preservar; p o r o u -
tro, ainda, o a p r o v e i t a m e n t o de estruturas e materiais antigos p o r gerações
mais m o d e r n a s n ã o se c o m p a d e c e u c o m o c o n t e x t o e objectivos originais,
r e c o n v e r t e n d o - o s e descaracterizando-os de a c o r d o c o m a nova idiossincrasia
social, cultural e religiosa; p o r ú l t i m o , a ancestral oposição das c o m u n i d a d e s
cristã e islâmica e n d u r e c e u as relações m ú t u a s e c h e g o u a justificar, na altura
da R e c o n q u i s t a , a subvalorização, q u a n d o n ã o o desprezo sistemático d o le-
g a d o civilizacional d o adversário d e tantos séculos.
H o j e , mais sensíveis d o q u e n u n c a às raízes culturais da nossa história, é
nítido, u m p o u c o p o r toda a parte, o esforço para salvar, recuperar e restaurar
os marcos essenciais, integrantes e identificadores da cultura p o r t u g u e s a n o
c o n t e x t o das outras culturas. Essa p r e o c u p a ç ã o está a p r o d u z i r os seus frutos e
p r o m e t e alterar, e m sentido positivo, o balanço da presença m u ç u l m a n a e n t r e
nós. A crescente r e c u p e r a ç ã o de muralhas e castelos, de igrejas e palácios, de
becos e ruelas sinuosas, de açoteias e chaminés, v e m carregada de surpresas.
P o r detrás d o b a r r o e da cal e p o r baixo da sobreposição de sucessivas c a m a -
das de pedras e terra, acumuladas e m épocas posteriores, d e s c o b r e m - s e f r e -
q u e n t e n a e n t e preciosidades artísticas e arqueológicas insuspeitadas. M é r t o l a ,
c o m a madina islâmica e respectivas muralhas e c o m a actual igreja matriz,
q u e n ã o p o d e e s c o n d e r a sua verdadeira identidade d e mesquita islâmica, é
u m símbolo da redescoberta da nossa história na sua integridade pluriciviliza-
cional 1 3 7 .
Após a Reconquista, as cidades hispânicas continuaram a tradição cultural is-
lâmica, criando centros de tradução do árabe para o latim e para as nascentes lín-
guas modernas. Sabe-se hoje que, já n o século x, foram traduzidos para latim, n o
Mosteiro de Santa Maria de Ripoll, vários pequenos tratados sobre o astrolábio.
A fama das escolas hispânicas foi tal que, nos séculos XII e x m , estudiosos de
toda a Europa, principalmente da França, Inglaterra e Itália, v i n h a m estagiar e m
centros peninsulares, para neles se cultivarem na língua e ciência árabes 138 .
Através do árabe, o O c i d e n t e latino r e t o m o u o contacto c o m as muitas
obras filosóficas e literárias gregas, q u e haviam sido quase olvidadas pelos p o v o s
germânicos, ao repartirem e n t r e si o d e c a d e n t e I m p é r i o R o m a n o . D u r a n t e
alguns séculos, a E u r o p a viveu c u l t u r a l m e n t e bastante estagnada, a l i m e n t a n -
d o - s e apenas de umas tantas obras enciclopédicas, q u e c o n s e g u i r a m preservar
os restos da cultura clássica: as obras de M a r c i a n o Capella e Santo A g o s t i n h o ,
n o século v; as d e B o é c i o e Cassiodoro, n o século vi; a de Santo Isidoro de
Sevilha, n o século VII; as de Beda, o Venerável, A l c u í n o e R á b a n o M a u r o , nos
s é c u l o s VIII e ix.
A i n t e r v e n ç ã o d o árabe c o m o língua de m e d i a ç ã o cultural entre o grego
e o latim foi tão i m p o r t a n t e q u e , p o d e m o s dizer, divide a história científica,
cultural e filosófica da Idade M é d i a e m duas épocas distintas, de q u e o século
XII é charneira 1 3 9 .
N e s t e processo de i n t e r c â m b i o cultural, e m q u e a língua árabe exerceu
u m papel p r e p o n d e r a n t e e decisivo, f o r a m marcos i m p o r t a n t e s as i n t e r v e n - C o n v e r s ã o de u m
ções de P e d r o , o Venerável, e da corte de A f o n s o X de Castela, q u e p r o p o r - m u ç u l m a n o . D e s e n h o baseado
nas iluminuras das Cantigas de
c i o n a r a m a tradução de muitas obras para o latim e para as línguas vernáculas.
Santa Maria, de A f o n s o X ,
A corte de D . Dinis foi t a m b é m u m i m p o r t a n t e c e n t r o de traduções d o c. 128o (Espanha, M u s e u de
árabe, e m q u e participaram activamente, ao lado de intelectuais portugueses, San L o r e n z o dei Escoriai).

117
A PROCURA DO D E U S ÚNICO

m o u r o s residentes e m Portugal. A tradução da célebre Crónica do mouro Rasis,


u m a das mais i m p o r t a n t e s fontes da Crónica geral de Espanha de 1344, d o c o n -
de D . P e d r o de Barcelos, ficou a dever-se a u m m o u r o , de n o m e M a o m é , e
a u m clérigo, P e d r o Anes de Portel, a p e d i d o de D . Dinis 1 4 0 .
O a m b i e n t e de aceitação e respeito m ú t u o s das diferentes etnias p e n i n s u -
lares era p r o p í c i o à convivência dos p o v o s peninsulares e, c o n s e q u e n t e m e n t e ,
ao i n t e r c â m b i o de valores culturais. Jograis islamitas d e a m b u l a v a m de corte
e m corte e m a r c a v a m a sua presença e m datas solenes, c o m o as dos c a s a m e n -
tos e das visitas de reis e príncipes às várias localidades. A tradição dos c a n t o -
res e bailarinos m o u r o s a a n i m a r e m as festas dos cristãos p r o l o n g o u - s e até à
sua expulsão. O s cancioneiros medievais portugueses d o c u m e n t a m esse f e n ó -
m e n o e a respectiva dimensão cultural e social. A i n t e r v e n ç ã o artística dos
m o u r o s n o c a s a m e n t o d o príncipe D . A f o n s o , filho de D . J o ã o II, e m Évora,
m e r e c e u especial atenção aos cronistas R u i de Pina e Garcia d e R e s e n d e .

Interior da antiga mesquita


de Mértola.
FOTO: ANTÓNIO CUNHA.

118
ISLÃO E CRISTIANISMO: ENTRE A TOLERÂNCIA E A GUERRA SANTA

É f r e q u e n t e encontrar e m obras medievais hispânicas cenas q u e m o s t r a m


c o m o os m e m b r o s das duas comunidades viviam e m sintonia cultural, partici-
p a n d o nos mesmos divertimentos. São eloquentes as ilustrações d o Libro de aje-
drez de Afonso X , e m q u e aparecem, p o r u m lado, guerreiros m o u r o s e cristãos
j o g a n d o o xadrez, c o m o se nada os separasse sob o p o n t o de vista político e r e -
ligioso e, p o r outro, duas damas, u m a m o u r a e outra cristã, fazendo d o m e s m o
j o g o espaço de convívio e de amizade. É igualmente eloquente a ilustração das
Cantigas de Santa Maria (1265), recolhidas pelo m e s m o rei, q u e apresenta u m
m o u r o e u m cristão cantando j u n t o s e dedilhando alaúdes idênticos.
P o r vezes, a colaboração de gentes de diferentes credos religiosos realiza-
va-se até nos próprios actos de culto. Foi neste sentido q u e o C o n c í l i o de
Valhadolid, e m 1322, se insurgiu, ao c o n d e n a r a actuação de cantores e a c t o -
res m u ç u l m a n o s nas igrejas cristãs. Essa proibição foi c e r t a m e n t e ditada pela
v o n t a d e decidida de estancar u m c o s t u m e generalizado.

119
A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

E m t e m p o de paz, as populações fronteiriças, para a t e n d e r e m às necessida-


des da vida quotidiana, não deixavam de recorrer aos seus vizinhos, m e s m o q u e
estes não c o m u n g a s s e m dos m e s m o s ideais políticos e religiosos. Estes contactos
realizavam-se, sobretudo, ao nível d o comércio. A isenção de portagem e m t o -
d o o reino, concedida p o r D . Afonso Henriques, e m 1181, aos habitantes de
Évora e O u r i q u e q u e comprassem animais e outros artigos para uso próprio ou
para comércio, faz-nos pensar que, sem esses privilégios, as referidas populações
eram forçadas a negociar c o m os seus vizinhos muçulmanos 1 4 1 .
Até as lides da guerra c o n t r i b u í r a m para o c o n t a c t o e osmose das culturas
dos p o v o s inimigos. O s principais agentes d o i n t e r c â m b i o cultural islamo-
-cristão f o r a m os seguintes:
— os prisioneiros e exilados, ao s e r e m transferidos para as zonas islâmi-
cas, l e v a v a m c o n s i g o a cultura de o r i g e m e, ao regressarem às suas terras,
v i n h a m e n r i q u e c i d o s c o m a cultura árabe, assimilada d u r a n t e a p e r m a n ê n c i a
n o exílio;
— os moçárabes, emigrados d o Sul, carregavam consigo para o N o r t e ,
j u n t a m e n t e c o m a cultura t a r d o - r o m a n a e visigótica, d e q u e e r a m os mais lí-
d i m o s representantes, e l e m e n t o s culturais islamo-árabes. Foi política m u i t o
seguida pelos reis conquistadores cristãos f i x a r e m m o ç á r a b e s nas zonas desabi-
tadas das marcas, c o m vista a u m a mais fácil integração f u t u r a n o s seus terri-
tórios e, e m última análise, ao r e p o v o a m e n t o . M u i t o s desses m o ç á r a b e s i m -
p u s e r a m às p o v o a ç õ e s e lugares p o r eles f u n d a d o s os n o m e s das terras
de o r i g e m . Assim, o C o i m b r õ e s d o P o r t o , d e Viseu e de Braga e a C o i m b r ó
de Vila R e a l ; a C ó r d o v a de Viseu, a C o r d o v e l a o u C o r d o v e l h a d e Viana d o
Castelo e o M o n t e C ó r d o v a d o P o r t o ; o M e r i d ã o s d e Viseu, a Grada (de
Granada) e a Malga de C o i m b r a e o Merideses de Bragança; o Santarém
de Braga e Viseu; o B o r b a da M o n t a n h a , d e C e l o r i c o de Basto; e tantos o u -
tros t o p ó n i m o s de o r i g e m meridional 1 4 2 . T a m b é m é f r e q u e n t e a p a r e c e r e m

149
ISLÃO E CRISTIANISMO: ENTRE A TOLERÂNCIA E A GUERRA SANTA

locais c o m n o m e s árabes de pessoas, c o m o são os casos de M a f a m e d e , n o Inscrição alusiva à Batalha do


Porto; Afife e Fazamões, e m Viseu 1 4 3 . O s grandes êxodos de cristãos do sul Salado, século x i v (Évora,
Sé).
para o centro e norte situaram-se, sobretudo, em três m o m e n t o s históricos b e m
definidos: o da conquista árabe, o do recrudescimento das perseguições em m e a - F O T O : N U N O CALVET/ARQUIVO
C Í R C U L O DE LEITORES.
dos d o século ix e o das invasões almorávidas e almóadas, nos séculos xi e xii.
É historicamente sabido q u e a cada u m destes m o m e n t o s corresponde u m a <3 Exterior da antiga mesquita
crescente arabização; de Mértola.
— os muladt-s que, p o r razões de o r d e m étnica ou religiosa, para se liber- FOTO: ANTÓNIO CUNHA.
tarem e r e m i r e m d o escrúpulo da apostasia, regressavam para o convívio dos
antigos irmãos na fé, à procura de u m clima q u e lhes possibilitasse a reinte-
gração e vivência d o cristianismo. O s muladi-s deixaram o rasto da sua e m i -
gração e permanência n o N o r t e de Portugal e m vocábulos c o m o o t o p o a n -
t r o p o n í m i c o Moldes, existente nos distritos de Viana d o Castelo, Braga,
Porto, Aveiro e Viseu 1 4 4 ;
— os m o u r o s e mouriscos, ao ficarem entre os cristãos nas terras r e c o n -
quistadas, o u ao serem para lá conduzidos das terras d o Sul, c o m o cativos de
guerra, influenciaram c o m a sua cultura as comunidades e m q u e se integra-
ram, p r o v o c a n d o u m a simbiose natural e lenta de culturas, o mudejarismo.
M u i t o s cristãos aceitavam a cultura islâmica, i g n o r a n d o f r e q u e n t e m e n t e a sua
proveniência e desvinculando-a das crenças religiosas a q u e antes estava asso-
ciada. O s m u ç u l m a n o s i m p r i m i r a m marcas da sua presença n o território p o r -
tuguês n o r t e n h o e m t o p o a n t r o p o n í m i c o s c o m o Vilar de M o u r o s , e m Viana
do Castelo; São M a r t i n h o de M o u r o s , e m Viseu; São P e d r o de Sarracenos,
e m Bragança; e Sarrazinhos, e m Braga 145 .
T o d o s estes grupos contribuíram para a miscigenação demográfica e para
a osmose cultural que caracterizou, ao l o n g o da Idade Média, não apenas o
Sul, mas t a m b é m o N o r t e de Portugal.

A INFLUÊNCIA DA LÍNGUA ÁRABE s o b r e a portuguesa foi relativamente A língua


i m p o r t a n t e . É fácil detectá-la, ainda h o j e , tanto ao nível e r u d i t o c o m o p o -
pular. Apesar da sistemática rejeição d o islamismo, subjacente à R e c o n q u i s -
ta cristã, e c o n t i n u a d a ao l o n g o dos séculos seguintes, essa influência ficou
i n d e l e v e l m e n t e impressa e m várias centenas de vocábulos d i r e c t a m e n t e i m -
portados d o árabe. As áreas lexicais mais d i r e c t a m e n t e influenciadas pela
língua árabe, veiculada pelos moçárabes, m o u r o s e mouriscos, são as da a d -
ministração, justiça, vida social, u r b a n i s m o , utensílios domésticos, vestuário,
construções e matérias de construção, gastronomia, ofícios, i n s t r u m e n t o s de
música, agricultura, fauna, flora, frutas, legumes, flores, recursos naturais,
ciências e p r o d u t o s químicos, astronomia, climatologia, medidas e moedas,
actividade bélica e marítima, cores e colorantes 1 4 6 . E n t r e muitas outras, é de

121
A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

o r i g e m árabe u m a b o a parte das palavras p o r t u g u e s a s c o m e ç a d a s pelo p r e f i -


x o «al».
A o nível da fonética portuguesa, a influência árabe fez-se sentir, m e s m o
sobre palavras de o r i g e m latina, veiculadas pelos moçárabes. E m m u i t o s casos,
esse f e n ó m e n o foi c o n s e q u ê n c i a da pressão social, q u e o b r i g o u as minorias
moçárabes a a d a p t a r e m a sua p r o n ú n c i a à da maioria arabófona. Assim, p o r
influência da língua árabe, q u e n ã o c o n h e c e a letra p, esta c o n v e r t e u - s e na
mais p r ó x i m a , isto é, n o b. Foi o q u e a c o n t e c e u e m palavras c o m o víbora
(< vipêra) e baço (< opaciu < opacus).
N o u t r o s casos, a influência árabe a c t u o u c o m o isolador, s o b r e t u d o n o
Sul, i m p e d i n d o a e v o l u ç ã o q u e seria n o r m a l esperar. Assim, o / e o n i n t e r -
vocálicos latinos m a n t i v e r a m - s e n o Sul e m alguns t o p ó n i m o s e provincianis-
m o s c o m o canito, malina e taleiga, e m contraste c o m a t e n d e n t e nasalação d o n
e supressão d o /, q u e se verifica n o N o r t e , o n d e v e n c e r a m os vocábulos cãozi-
to, malinha e teiga147.

Arte e ciência O s MOÇÁRABES FORAM OS mais lídimos representantes da tradição artística


visigótica, q u e e n r i q u e c e r a m c o m a i m p o r t a ç ã o de e l e m e n t o s de o r i g e m ára-
be, colhidos ao l o n g o da sua p e r m a n ê n c i a e m A l - A n d a l u z . A o e m i g r a r e m
para o N o r t e ou ao serem assimilados pelo m o v i m e n t o r e c o n q u i s t a d o r , d e i -
xaram a sua marca e m igrejas e outras construções. São representativos da arte
m o ç á r a b e as igrejas d e Santa Maria de M e l q u e (Toledo), São C e b r i a n de M a -
zote e São M i g u e l da Escalada, e m Espanha, e a igreja p r é - r o m â n i c a de São
P e d r o de Lourosa, e m Portugal, construída e m 912 148 .
U m a das manifestações mais ricas d o e n c o n t r o artístico dos cristãos d o
N o r t e , e m c o n t a c t o directo c o m a arte europeia, e os d o Sul, foi a dos «Bea-
tos de Liebana», isto é, a dos c o m e n t á r i o s ao Livro d o Apocalipse, feitos pelo
Beato de Liébana, n o século VIII, alguns dos quais f o r a m e n r i q u e c i d o s c o m
belas iluminuras, ao l o n g o dos séculos ix a XIII. O s «Beatos» c o n s t i t u e m u m a
prova irrefragável da simbiose intercultural e inter-religiosa operada na P e -
nínsula Ibérica, na m e d i d a e m q u e a p r e s e n t a m u m t e x t o cristão, i l u m i n a d o
pela sensibilidade artística islâmica. Nas mesmas páginas e n c o n t r a m o s a escrita
visigoda, o arco de ferradura visigótico-islâmico, o m o d i l h ã o de lóbulos e a
e x u b e r a n t e natureza oriental 1 4 9 . U m dos rebentos desses «Beatos» é o d o
mosteiro de Lorvão, c o n c l u í d o e m 1189.
Após a R e c o n q u i s t a , era f r e q u e n t e encontrarem-se, na construção de m o -
n u m e n t o s românicos e góticos, tanto espanhóis c o m o portugueses, artistas m u -
déjares e moçárabes a trabalharem lado a lado c o m cristãos d o N o r t e . A c o n t e -
ceu isso, p o r e x e m p l o , ao l o n g o d o século x n , na construção da Catedral de
C o i m b r a , nas muralhas e igrejas de Santarém e n o Castelo d o Alandroal. P o r
vezes, os mudéjares deixaram expressos e m inscrições lapidares os seus sentimen-
tos anticristãos e de solidariedade para c o m os seus correligionários andaluzes.
A lápide d o Castelo d o Alandroal é u m e x e m p l o típico. E m m u i t o s m o n u -
m e n t o s , s o b r e t u d o alentejanos, é manifesta a influência islâmica, n o m e a d a -
m e n t e nos seguintes aspectos: n o s arcos de ferradura, h e r d a d o s dos visigodos;
n o uso privilegiado d o tijolo, d o estuque e d o azulejo; nas adufas e grafitos;
nas açoteias e chaminés; e n o sofisticado trabalho e m madeira dos tectos de
alfaije. E a arte m u d é j a r , u m a das mais ricas expressões d o e n c o n t r o das c u l -
turas cristã e m u ç u l m a n a . Ultrapassando as divergências religiosas, os seus i m -
pulsionadores e artistas f o r a m capazes de criar u m a arte t i p i c a m e n t e hispânica,
e m q u e os canteiros cristãos d o N o r t e trabalhavam c o m azulejadores e e s t u -
cadores d e f o r m a ç ã o hispano-árabe. E m Portugal, a arte m u d é j a r foi reactiva-
da nos finais d o século x v e ao l o n g o d o xvi, s o b r e t u d o na arquitectura civil.
A n o r t e d o T e j o , o P a ç o da Vila, e m Sintra, e o Castelo de O u r é m são
exemplares típicos d o m u d e j a r i s m o . O p r i m e i r o foi c o n s t r u í d o pelos artistas
de D . M a n u e l , q u e lhe i m p r i m i r a m marcas d o m u d e j a r i s m o andaluz, e n t ã o
m u i t o e m voga na Península Ibérica. O s azulejos f o r a m i m p o r t a d o s de S e -
vilha.
A o sul d o T e j o , É v o r a é a cidade mais marcada pelo m u d e j a r i s m o q u i -
nhentista, de raiz espanhola. Ele manifesta-se e m vários m o n u m e n t o s religio-

122
ISLÃO E CRISTIANISMO: ENTRE A TOLERÂNCIA E A GUERRA SANTA

sos e civis: nos c o n v e n t o s de São B e n t o de Cástris e dos Lóios; nos antigos


Paços d o C o n c e l h o , nos palácios de D . M a n u e l , dos c o n d e s de Basto, d o V i -
m i o s o e dos d u q u e s d e Cadaval.
E interessante n o t a r q u e m u i t o s dos mais expressivos e x e m p l o s d o m u d e -
j a r i s m o p o r t u g u ê s ficaram a dever-se a artistas portugueses, q u e h e r d a r a m os
cânones estéticos da cultura luso-árabe, veiculados, s o b r e t u d o , pelos m o ç á r a -
bes e m u d é j a r e s e, a partir d o r e i n a d o d o Venturoso, pelos artistas vindos de
além-fronteiras. Estevão L o u r e n ç o e D i o g o d e Arruda, respectivamente, e m
São B e n t o d e Cástris e n o c o n v e n t o dos Lóios, são e x e m p l o s de artistas cris-
tãos q u e a d o p t a r a m c â n o n e s arquitectónicos mudéjares.
A partir d o século XII, as obras científicas árabes e, c o m elas, muitas das
obras da A n t i g u i d a d e Clássica, a n t e r i o r m e n t e transladadas para a língua d o
Alcorão, passaram a ser traduzidas para latim e para as línguas vernáculas.
A Hispânia d e s e m p e n h o u neste processo, c o m o já referimos, o mais i m p o r -
tante papel de m e d i a d o r cultural.
N o c a m p o da medicina, exerceu u m i n f l u x o inestimável o Canon (Chifa)
de Avicena, q u e , d u r a n t e séculos, foi a d o p t a d o c o m o livro de t e x t o e m m u i -
tas universidades europeias. A esse livro, b e m c o m o aos Aforismos de G a l e n o ,
traduzidos para árabe e para latim, r e c o r r i a m o b r i g a t o r i a m e n t e os físicos e
boticários da época. O Canon foi o principal veículo da c o n c e p ç ã o da m e d i -
cina c o m o ciência e c o n t r i b u i u decisivamente para libertar o m e n t a l colecti-
v o ocidental da crença supersticiosa d e q u e a d o e n ç a era u m a c o n s e q u ê n c i a
da i n t e r v e n ç ã o directa d o d e m ó n i o sobre os h o m e n s . Sabemos p o r N i c o l a u
C l e n a r d o q u e o m é d i c o eborense A n t ó n i o Filipe se servia dessas obras e m
árabe e q u e , através delas, i n t r o d u z i u o d o u t o h u m a n i s t a nos segredos da lín-
gua d o Alcorão. O u t r a obra médica, traduzida de u m t e x t o d o século xi, q u e
m u i t o i n f l u e n c i o u o O c i d e n t e , foi o De simpliàbus.
A ciência m é d i c a árabe ficou b e m d o c u m e n t a d a na vida e na obra de P e - Igreja moçárabe de Lourosa
d r o J u l i ã o e de São Frei Gil de Santarém, dois h o m e n s q u e e x e r c e r a m u m a da Serra (Oliveira do
p r o f u n d a influência na cultura portuguesa. Hospital).
O s c a m p o s da geografia e da historiografia portuguesas f o r a m considera- FOTO: N U N O CALVET/ARQUIVO
v e l m e n t e e n r i q u e c i d o s pela tradução da Crónica do mouro Rasis, e n c o m e n d a d a C Í R C U L O DE LEITORES.

123
A PROCURA DO D E U S ÚNICO

p o r D . Dinis a u m clérigo, P ê r o Anes de Portel, e a u m certo m o u r o , de n o -


m e M a o m é . Essa crónica é u m e x e m p l o í m p a r d o i n t e r c â m b i o cultural isla-
m o - c r i s t ã o , na m e d i d a e m q u e r e c o l h e i n f o r m a ç õ e s d e escritores cristãos c o -
m o São J e r ó n i m o , Paulo O r ó s i o e Santo Isidoro de Sevilha e veio a ser, a seu
t e m p o , largamente aproveitada p o r D . P e d r o de Barcelos, na redacção da
Crónica geral de Espanha de Í 3 4 4 1 5 0 .
A gesta p o r t u g u e s a dos D e s c o b r i m e n t o s m u i t o f i c o u a d e v e r à ciência
náutica e aos c o n h e c i m e n t o s geográficos t r a n s m i t i d o s pelos árabes. A o r i -
g e m da caravela n o a n t i g o kârib h i s p a n o - á r a b e , o a p e r f e i ç o a m e n t o e d i v u l -
gação d o astrolábio e das «tábuas toledanas» e a utilização da bússola e cartas
árabes f o r a m alguns dos m u i t o s c o n t r i b u t o s científicos, técnicos e o p e r a t ó -
rios d e q u e o h o m e m p o r t u g u ê s se a p r o p r i o u para fazer f r e n t e ao i g n o t o
«mar-oceano»151.
A astronomia árabe era e n t r e nós c o n h e c i d a através de traduções feitas na
Hispânia e fora dela. A obra f u n d a m e n t a l era, nesse c a m p o , a m o n u m e n t a l
c o m p i l a ç ã o m a n d a d a executar p o r A f o n s o X de Castela, sob o título Libro dei
saber de astronomia. Nela colaboraram, lado a lado, sábios j u d e u s e cristãos,
q u e traduziram e adaptaram obras de autores árabes, e n t r e os quais A l b u h a z e n
(Abú-l-Hasan), A l b a t ê n i o (Al-Battâni), Albumasar (Abu Ma c char) e Azar-
quiel. As tábuas astronómicas, conhecidas pelo n o m e de Tábuas afonsinas, pelo
facto de t e r e m sido t a m b é m compiladas p o r o r d e m d o rei Sábio, a c o m p a n h a -
v a m n o r m a l m e n t e os Libros dei saber, facilitando a aplicação dos c o n h e c i m e n -
tos teóricos à prática d o saber a s t r o n ó m i c o 1 5 2 .
As obras de autores árabes, c o m o Idrisi, Ibn Said, Ibn Batuta e Ibn Kal-
d u n , portadoras de i n f o r m a ç õ e s sobre a geografia e o c o m é r c i o africanos, a i n -
da q u e n ã o estivessem traduzidas e m p o r t u g u ê s , e r a m c e r t a m e n t e conhecidas
entre nós através dos m u ç u l m a n o s e dos moçárabes d o G h a r b A l - A n d a l u z ,
sucessivamente i n t e g r a d o n o r e i n o de Portugal. O m e s m o deve dizer-se e m

124
ISLÃO E CRISTIANISMO: ENTRE A TOLERÂNCIA E A GUERRA SANTA

relação aos grandes escritores lusos Ibn c A m m a r de Silves, Ibn c A b d u n de F r a g m e n t o de seda atribuído
Évora e Ibn Bassân de Santarém, cujas obras estão a ser traduzidas para a nossa aos séculos x r v ou x v (Lisboa,
M u s e u N a c i o n a l de Arte
língua. Mais importante ainda é referir o n o m e d o jurista eborense A b u c A b d - Antiga).
-Allâh que, já e m pleno século XIII, estudou e m Évora e aí adquiriu a estrutura
F O T O : D I V I S Ã O DE
intelectual q u e o t o r n o u célebre n o N o r t e de África, o n d e foi c o n h e c i d o pelo DOCUMENTAÇÃO
n o m e de A l - Y â b u r í (o Eborense). A o f u n d a r u m a escola de Fiqh (direito islã- FOTOGRÁFICA/INSTITUTO
mico) e d e sufismo e m R a b a t e ao m o r r e r c o m fama de santo, p e r p e t u o u n o P O R T U G U Ê S DE M U S E U S / M A N U E L
PALMA.
m e n t a l colectivo e na religiosidade p o p u l a r d o M a g r e b e a m e m ó r i a da c u l t u -
ra luso-árabe 1 5 3 .
O D o i s painéis de azulejos do
P o v o e s s e n c i a l m e n t e agrícola e de pescadores, os m o u r o s d o G h a r b A l - início d o século x v i . Sevilha
- A n d a l u z , t a n t o antes c o m o d e p o i s da R e c o n q u i s t a cristã, c o n t r i b u í r a m p a - (Lisboa, M u s e u Nacional do
ra o progresso das respectivas técnicas. As principais actividades agrícolas Azulejo).
e r a m a cerealicultura, a oleicultura, a f r u t i c u l t u r a , a viticultura e a h o r t i c u l - F O T O : ALEXANDRE N O B R E PAIS.
tura. A l g u m a s técnicas agrícolas árabes passaram d i r e c t a m e n t e para o p a t r i -
m ó n i o laboral p o r t u g u ê s . Assim, ligados à actividade m o a g e i r a , l e g a r a m - n o s <] T i g e l a de mesa proveniente
as atafonas (tâhâna) o u m o i n h o s de tracção animal, as azenhas (assania) o u de Mértola, meados d o
m o i n h o s d e água, e os m o i n h o s m o v i d o s a v e n t o (rahâ); ligadas à irrigação, século x i (Museu de Mértola).
a n o r a (nâ'ura) e a a z e n h a (sâniya o u sâkiya); ligada à pesca, a almadrava (al- FOTO: ANTÓNIO CUNHA.
-madraba).
N a área d o artesanato, Portugal h e r d o u dos m u ç u l m a n o s técnicas ainda
h o j e pujantes, n o m e a d a m e n t e n o respeitante à olaria. Materiais de cerâmica,
e x u m a d o s e m diferentes centros d o Sul d o nosso país e da Andaluzia O c i -
dental, m a n i f e s t a m semelhanças q u e apelam para u m parentesco de técnicas e
de materiais. O s trabalhos arqueológicos realizados e m M é r t o l a e Silves i n d u -
z e m - n o s a pensar n ã o apenas na semelhança dos artefactos, mas t a m b é m na
sua difusão pelo Sul peninsular. A cerâmica de mesa utilizada nesta região, a
partir de finais d o século xi, isto é, sob a d o m i n a ç ã o dos Almorávidas e A l -
móadas, era artisticamente mais apurada e q u i m i c a m e n t e diferente da de c o -
zinha. A sua o r i g e m era, c e r t a m e n t e , norte-africana 1 5 4 .
A p ó s a R e c o n q u i s t a , a difusão e i m p o r t a ç ã o dessa cerâmica passou a ser
assegurada pelos m o ç á r a b e s e, s o b r e t u d o , pelos mudéjares. N ã o é p o r acaso
q u e os costumes de Beja, dos finais d o século XIII, a t r i b u e m a estes g r u p o s a
p r o d u ç ã o da cerâmica 1 5 5 .

125
A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

A poesia lírica e a narrativa HÁ UMA SEMELHANÇA de c o n t e ú d o e de f o r m a e n t r e a lírica hispano-árabe


e a de trovadores c o m o G u i l h e r m e I X de Aquitânia, C e r c a m e r o n e M a r c a -
b r ú . N y k l faz o paralelismo e n t r e a muwachchâha, o zegel, a poesia provençal e
os primeiros poetas hispânicos, coincidentes nos seguintes aspectos: a rima
«aaab» de Ibn Q u z m â n e dos provençais; o estribilho árabe c o r r e s p o n d e n t e à
«finada» provençal; o n ú m e r o d e estrofes, q u e oscilam, n o r m a l m e n t e , entre
cinco e n o v e ; as temáticas e a utilização de n o m e s fictícios; a i n t e r v e n ç ã o de
u m mensageiro c o m o m e d i a d o r entre o a m a n t e e a amada; a analogia das ati-
tudes daquele para c o m esta 156 .
G o n z á l e z Palencia cita e x e m p l o s das Cantigas de A f o n s o X e d e El libro de
buen amor de J u a n R u i z (o arcipreste de Hita) q u e s e g u e m o m o d e l o d o ze-
gel157. B o m seria q u e os trabalhos de R o d r i g u e s Lapa fossem c o n t i n u a d o s e
levados a t e r m o e m relação à o r i g e m da poesia galaico-portuguesa.
H o j e , n ã o há dúvida de q u e a narrativa árabe e oriental i n f l u e n c i o u d i -
r e c t a m e n t e a literatura ocidental. Essa influência processou-se através da tra-
d u ç ã o para o latim e para o v e r n á c u l o de muitas obras q u e a l i m e n t a r a m a
cultura e a imagética medievais e se p r o j e c t a r a m sobre a Idade M o d e r n a p e -
ninsular e europeia.
As obras mais significativas da narrativa oriental q u e , através d o árabe,
i n f l u e n c i a r a m a narrativa o c i d e n t a l e m a r c a r a m a sua presença na literatura
p o r t u g u e s a , f o r a m as seguintes: Disciplina clericalis, As mil e uma noites (Alf

Jarra m u ç u l m a n a e m «corda
seca», proveniente de Mértola,
primeira metade do século x n
(Museu de Mértola).
F O T O : M U S E U DE MÉRTOLA.

126
ISLÃO E C R I S T I A N I S M O : E N T R E A T O L E R Â N C I A E A G U E R R A SANTA

Layla wa-Laylà), Calila e Dimna (Kalíla wa-Dimna), Libro de los engannos et los
asayamientos de las mujeres, t a m b é m m u i t o c o n h e c i d o p e l o n o m e d e Livro
dos dez sábios o u Dez visires (Sindbar o u Syntipas) e o Liber Scalae (Kitâb al-
-Micrãj).

D U R A N T E A I D A D E M É D I A , O O c i d e n t e cristão teve u m c o n h e c i m e n t o A filosofia


m u i t o i m p e r f e i t o d o p e n s a m e n t o clássico. A l é m de três diálogos de Platão,
d o Organon de Aristóteles, da Isagoge de Porfírio e das compilações de Cássio-
d o r o , Beda, o Venerável, Santo Isidoro e A l c u í n o , p o u c o mais se c o n h e c i a . O s
bizantinos estavam mais voltados para a teologia d o q u e para a filosofia e o u -
tras ciência. Esta situação agravou-se q u a n d o Justiniano m a n d o u encerrar as
escolas filosóficas de Atenas e Alexandria (529).
E n t r e t a n t o , Platão e Aristóteles c o n t i n u a r a m a ser lidos e estudados n o
E g i p t o , na Síria e na M e s o p o t â m i a , o n d e a expansão cultural helenista, c o n -
t e m p o r â n e a das campanhas de A l e x a n d r e M a g n o , n o século iv a. C , os havia
deixado. Aí os f o r a m e n c o n t r a r os árabes, na altura das conquistas.
Foi através d o árabe q u e a E u r o p a cristã e n t r o u de n o v o e m c o n t a c t o
c o m o m u n d o clássico. Esse f e n ó m e n o realizou-se c o m as traduções dos sé-
culos x n e xiii. D u r a n t e esses séculos, f o r a m sucessivamente traduzidas obras
de Aristóteles, Platão, o Liber de Causis, Avicena, A v i c e b r o n , Averróis e M a i -
mónides 1 5 8 .
H o j e , j á n i n g u é m d u v i d a d e q u e a i n t r o d u ç ã o n o O c i d e n t e da filosofia
á r a b e e, c o m ela, da filosofia grega, f o i u m dos m o t o r e s d e a r r a n q u e d o
r e n a s c i m e n t o d o s séculos x n e XIII 159 . U m d o s m e l h o r e s i n t é r p r e t e s h i s p â -
n i c o s d o p e n s a m e n t o árabe f o i o m a i o r q u i n o R a m o n Lull, q u e t a n t o p u g -
n o u pela a p r o x i m a ç ã o d o c r i s t i a n i s m o e d o i s l a m i s m o , s e r v i n d o - s e da filo-
sofia d e cariz á r a b e para sensibilizar e atrair à fé cristã os s e g u i d o r e s d o
A l c o r ã o . A i n f l u ê n c i a d o lullismo foi d e tal m a n e i r a g r a n d e e m obras p o r -
tuguesas, c o m o o Livro da corte imperial, o Boosco deleitoso, o Leal conselheiro,
e a l i t e r a t u r a f r a n c i s c a n a , q u e b e m m e r e c e c o n t i n u a r a ser d e s c o b e r t a e
e x p l o r a d a 1 6 0 . O e s t u d o d o lullismo e d e o u t r a s c o r r e n t e s d e p e n s a m e n t o
v e i c u l a d o r a s da c u l t u r a á r a b e d e v e r á c o n t r i b u i r para u m m e l h o r c o n h e c i -
m e n t o d o s laços culturais e religiosos q u e , ao l o n g o da I d a d e M é d i a , p e r -
m i t i r a m u m a c o n v i v ê n c i a pacífica, t o l e r a n t e e até c o l a b o r a n t e , t a n t o dos
m o ç á r a b e s e m terras d e A l - A n d a l u z , c o m o d o s m o u r o s e m terras d e C r i s -
tandade.

UM EPILOGO TRÁGICO:
A EXPULSÃO DE 1496
TERMINADA A RECONQUISTA, OS m o u r o s f o r a m escasseando cada vez mais
n o território p o r t u g u ê s , c o m o se infere da decrescente presença de r e f e r ê n -
cias d o c u m e n t a i s . E m m e a d o s d o século xiv, ainda e n c o n t r a m o s m u i t o s n o
Algarve. A partir d e finais d o século xv, os d o c u m e n t o s r e f e r e m - s e , s o b r e t u -
d o , aos m o u r o s emigrados d o N o r t e de Africa, q u e e n t r a r a m e m Portugal
p o r razões de o r d e m e c o n ó m i c a o u c o m o resultado das campanhas m a r r o -
quinas e das expedições esclavagistas.
Apesar da crescente rejeição a q u e a maioria cristã portuguesa votava as
minorias étnico-religiosas e de algumas tomadas de posição dos c o n c e l h o s e
da Igreja c o n t r a o l u x o pessoal e das mesquitas 1 6 1 , a vida i n t e r c o m u n i t á r i a
processava-se c a l m a m e n t e , pelo q u e nada fazia p r e v e r o d e c r e t o c o m q u e
D . M a n u e l , n o início de D e z e m b r o de 1496, c o l o c o u os j u d e u s e os m o u r o s
ante a alternativa: o u conversão, o u expulsão 1 6 2 .
Q u e razões de f u n d o terão levado o Venturoso a publicar lei tão inespera-
da c o m o iníqua, t e n d o e m conta, s o b r e t u d o , q u e o seu espírito tolerante o
havia levado, logo após a ascensão ao t r o n o , nas C o r t e s de M o n t e m o r , a
c o n c e d e r a alforria aos j u d e u s emigrados de Castela, q u e D . J o ã o II reduzira à
escravatura?

127
A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

C e r t a m e n t e q u e tiveram m u i t o peso as opiniões dos m e m b r o s d o seu


conselho, mas, pela análise dos d o c u m e n t o s da época, sabemos q u e a razão
mais forte foi a cláusula imposta pela princesa D . Isabel, filha dos R e i s C a t ó -
licos e viúva d o m a l o g r a d o príncipe D . A f o n s o , de q u e só casaria c o m o m o -
narca p o r t u g u ê s se este «não consentisse e m seus estados a g e n t e j u d a i c a , c e -
ga, e em sua cegueira obstinada» 1 6 3 . D . M a n u e l o p t o u d e c i d i d a m e n t e pela
voz d o coração e pela v o n t a d e de unificar a religião n o reino.
C o m o c o n s e q u ê n c i a da lei manuelina, os j u d e u s e os m o u r o s q u e n ã o
quisessem ser baptizados d e v i a m a b a n d o n a r o reino até ao final d o mês de
O u t u b r o de 1497, l e v a n d o consigo os respectivos bens. O s q u e d e s o b e d e c e s -
sem seriam m o r t o s e os seus b e n s entregues aos denunciantes.
Q u a n t o aos m o u r o s , o rei p o r t u g u ê s , m o v i d o talvez pelo receio de q u e
os m u i t o s portugueses cativos o u s i m p l e s m e n t e residentes e m países islâmicos
da Europa, da Africa e da Ásia fossem alvo de represálias, não só os n ã o obrigou
a receber o b a p t i s m o n e m lhes arrebatou as crianças para serem baptizadas,
c o m o fez aos j u d e u s , mas até facilitou aos q u e n ã o quisessem ser baptizados
a partida para Africa, sem s o f r e r e m q u a l q u e r i n c ó m o d o 1 6 4 .
A lei m a n u e l i n a n ã o tinha c o m o o b j e c t i v o directo e ú l t i m o expulsar os
j u d e u s e m o u r o s , mas apenas pressioná-los ao baptismo, assegurando assim a
unificação religiosa, ideológica e política d o reino. Essa a razão p o r q u e difi-
cultou ao m á x i m o a saída dos j u d e u s , n e g a n d o - l h e s os barcos i n i c i a l m e n t e
prometidos.
As fontes coevas i n f o r m a m - n o s de q u e m u i t o s j u d e u s e m o u r o s se c o n -
v e r t e r a m então ao cristianismo, r e c e b e n d o , c o m o baptismo, u m n o m e cris-
tão, f r e q u e n t e m e n t e o dos respectivos senhores o u padrinhos. A partir da
conversão dos j u d e u s e m o u r o s , passava a haver oficialmente e m Portugal
dois tipos de cristãos, os cristãos-velhos, o u simplesmente cristãos, e os cris-
t ã o s - n o v o s o u mouriscos.
O s protestos contra a política de conversão forçada fizeram sentir-se u m
p o u c o p o r toda a parte. U m dos mais fortes e mais autorizados críticos foi o
bispo de Silves, D . F e r n a n d o C o u t i n h o , q u e afirma ter visto m u i t o s j u d e u s a
serem levados pelos cabelos à pia baptismal e critica d u r a m e n t e o b a p t i s m o
forçado dos j u d e u s , apelando para a invalidade de tal acto, r e c e b i d o p o r c o a c -
ção 1 6 5 .
Por seu t u r n o , D . J e r ó n i m o O s ó r i o , t a m b é m ele f u t u r o bispo d o Algarve,
invoca razões de o r d e m jurídica, ética e teológica para c o n d e n a r o b a p t i s m o
forçado dos j u d e u s 1 6 6 .
D a m i ã o de Góis, apesar d o m u i t o q u e se t e m escrito e m c o n t r á r i o e d o
h u m a n i s m o q u e o caracterizava, p a c t u o u c o m a imposição d o b a p t i s m o aos
j u d e u s , acabando p o r b r a n q u e a r a atitude de D . M a n u e l 1 6 7 .
Para o b t e r a plena integração dos cristãos-novos na c o m u n i d a d e cristã, o
rei Venturoso o u t o r g o u - l h e s m u i t o s privilégios, c o m o aqueles q u e lhes p e r m i -
tiram o acesso à n o b r e z a , a cargos e dignidades eclesiásticas 168 , às o r d e n s m i l i -
tares, às universidades, à magistratura, às câmaras e a r e c e b e r e m os direitos d e
vizinhança, cidadania e outros.
A partir de D . J o ã o III, os m o u r i s c o s e os cristãos-novos de j u d e u s t o r n a -
ram-se t e r r e n o fértil para a actuação da Inquisição portuguesa 1 6 9 . C o m efeito,
apesar da recepção d o baptismo, da m u d a n ç a de n o m e e da aceitação e x t e r i o r
dos ritos cristãos, m u i t o s c o n t i n u a v a m a praticar, na clandestinidade, os ritos
e tradições ancestrais. O s processos da Inquisição referentes aos m o u r i s c o s
manifestam a sua fidelidade à profissão de fé na u n i c i d a d e de D e u s e na p r o -
fecia de M a o m é , à oração ritual, à esmola legal, e ao j e j u m d o R a m a d ã o .
A l é m disso, i n v o c a v a m a intercessão de M a o m é e dos santos m u ç u l m a n o s ,
e m n o m e de q u e m j u r a v a m ; n ã o c o m i a m carne de p o r c o , n e m b e b i a m v i -
n h o ; g u a r d a v a m a sexta-feira c o m o dia santo e observavam as tradições islã-
micas relativas aos nascimentos, casamentos, funerais, festas, hábitos a l i m e n t a -
res e outras 1 7 0 .
C o m o c o n s e q u ê n c i a da instabilidade religiosa e dos p o u c o s apoios d o u t r i -
nais q u e recebiam, era grande a ignorância dos mouriscos, t a n t o e m relação
ao islamismo c o m o ao cristianismo. U m a b o a parte deles praticava u m sin-

128
ISLÃO E CRISTIANISMO: ENTRE A TOLERÂNCIA E A GUERRA SANTA

cretismo religioso, u m a espécie de religião mista, e passava facilmente d o


cristianismo para o islamismo e vice-versa, ao sabor d o a m b i e n t e sociorreli-
gioso e m q u e se situavam.
Alguns m o u r o s c o n s e g u i r a m furar as malhas da Inquisição e c o n t i n u a r a m
a viver e m P o r t u g a l sem serem baptizados n e m m u d a r e m de n o m e : uns, gra-
ças à p r o t e c ç ã o d o rei o u de pessoas influentes; outros, p o r q u e c o n s e g u i a m
escapar ao c o n t r o l o policial. A sua presença entre nós foi-se esvaindo l e n t a -
m e n t e , até desaparecer, assimilada pela maioria cristã.

NOTAS
1
C f . LAVAJO - M a r i a , p . 3 0 9 - 3 2 9 .
2
T a m b é m a Bíblia, t a n t o n o A n t i g o c o m o n o N o v o T e s t a m e n t o , e s t á c h e i a d e a p e l o s f o r t e s
a o e s f o r ç o e à l u t a c o n t r a as p a i x õ e s q u e d e g r a d a m o h o m e m , a f a s t a n d o - o d e D e u s . C f . L c . 2 8 ,
19-20.
3
N o s n o s s o s d i a s , o t e r m o jihâd a d q u i r i u t a m b é m o s i g n i f i c a d o d e l u t a c o n t r a o s u b d e s e n -
v o l v i m e n t o e c o n ó m i c o , social e cultural.
4
J I M E N E Z D U Q U E - La Espiritualidad, p. 203-204.
5
Apud SÁNCHEZ, M a n u e l - A l - A n d a l u z (711-1031), p . 81.
6
C o . 4, 92, 9, 6 - 7 .
7
C f . C H E J N E . - Historia, p. 104.
8
S e g u n d o o Vocabulista in Arábico ( e d . S c h i a p a r e l l i , F l o r e n ç a , 1871), p . 1 9 0 e 6 1 6 , p a i . (Uri-
butarius»), mu'ahidun v e m d e mu'ahid ( p a r t i c í p i o a c t i v o ) e n ã o d e mu'ahad (particípio passivo).
O p r i m e i r o s i g n i f i c a «o q u e a s s i n o u u m p a c t o » , o s e g u n d o , «o q u e se e n c o n t r a v i n c u l a d o a u m
pacto».
‫ יי‬C f . SILVEIRA — T o p o n í m i a , p . 6 7 - 6 9 .
10
A d d a b b i , C o . A r . E s c u r . N . ° 1 6 7 6 , a c t u a l 1671, d a B i b i . A r . E s c . D e D . M i g u e l C a s i r i . In
C O D E R A , F . - Bibliotheca Arabico-Hispana, v o l . 3, p . 2 5 9 .
11
C f . LÉVI-PROVENÇAL - L'Espagne musulmane, p . 211-212.
12
O t e x t o r e f e r e n t e a T o l e d o e n c o n t r a m o - l o n a CRÓNICA Geral de Espanha, v o l . 2, p. 386, e
o d e M ú r c i a e m LÉVI-PROVENÇAL - Historia de Espana, v o l . 4 , p . 21.
13
«Et u n u s q u i s q u e e x i l l o r u m o r i g i n e d e s e m e t i p s o s c o m i t é s e l i g e r e n t q u i p e r o m n e s h a b i -
t a n t e s t e r r a e i l l o r u m p a c t a R é g i s c o n g r e g a r e n t u r » , CHRONICA Albeldense, n.° 78.
14
C f . SANCHEZ M A R T I N E Z - A p o g e o y c r i s i s d e i e s t a d o c o r d o b e s , p . 239-240.
15
CRÓNICA Mozárabe de 7 5 4 , n . ° 54, p . 7 0 - 7 2 .
16
A L ‫ ־‬M A Q Q A R I - Apêndice II de Ahbâr Majimi'a, p . 1 8 0 , 193.
17
C f . LOMAX - La Reconquista, p . 11-12.
18
C o . 9, 29: « C o m b a t e i os q u e n ã o c r ê e m e m D e u s n e m n o ú l t i m o D i a , n e m p r o í b e m o
q u e D e u s e o seu E n v i a d o p r o í b e m os q u e n ã o praticam a religião da v e r d a d e entre aqueles
a q u e m foi d a d o o Livro! C o m b a t e i - o s até q u e p a g u e m o t r i b u t o p o r sua p r ó p r i a m ã o (an yadin)
e s e j a m h u m i l h a d o s » . A j í z i a a q u e o A l c o r ã o se r e f e r e a b r a ç a o d u p l o i m p o s t o pessoal e t e r r i t o -
rial q u e , p o s t e r i o r m e n t e , f o i d e s d o b r a d o .
" LEVOLGILDO - De Habitu Clericorum, n . ° 1. I n CORPUS. E d . J u a n G i l , p . 6 6 8 : « u t q u i n o b i s
ad r e m a n e n t e s d o c t o r e s imbecillitate corporis p r e p e d i e n t e dirigere gressos n e q u i b e r i t , aut i n q u i -
sito c e n s u u m uectigalis, q u o d o m n i lunari m e n s e p r o Christi n o m i n e solbere c o g i m u r , r e t i n u e -
r i t , s a l t i m n o c t u r n o t e m p o r e i n t e r e c c l e s i a s t i c a m u n i a q u i n e c e s s a r i u m d u x e r i t l e g a t [...]». E U L Ó -
GIO DE C Ó R D O V A - Memoriale Sanctorum. V o l . 1, n . ° 21, e d . p o r Ibidem p . 385: «[...] q u o d l u n a r i t e r
soluimus c u m graui m o e r o r e tributum».
20
E s t e s i m p o s t o s v a r i a v a m s e g u n d o as c i r c u n s t â n c i a s , d e p a c t o p a r a p a c t o . A s s i m o d e T e o -
d o m i r o obrigava este c h e f e e seus súbditos a «pagar a n u a l m e n t e u m t r i b u t o pessoal, c o n s t i t u í d o
p o r u m dinar e m metal, quatro almudes de trigo e quatro de cevada, quatro medidas de mosto,
q u a t r o d e v i n a g r e , d u a s d e m e l e d u a s d e azeite. Esta taxa ficará r e d u z i d a à u n i d a d e para os es-
cravos».
21
C f . SIMONET - Historia, v o l . 1, p . 9 2 - 9 3 ; V A S C O N C E L O S - Etnografia portuguesa, vol. 4,
P• 2 ? 8 ‫י‬
22
CRÓNICA Mozárabe de 754, n . ° 75, p . 9 0 .
23
V e r t r a d u ç ã o c a s t e l h a n a e m S I M O N E T - Historia, vol. 4, p. 801-804.
24
A utilização d e expressões árabes d e cariz religioso foi o d e t o n a d o r da d e t e n ç ã o e d o s 4 0
a ç o i t e s q u e o c o m e r c i a n t e c r i s t ã o , J o ã o , t e v e d e s u p o r t a r . PAULO ÁLVARO DE C Ó R D O V A - Indiculus
Luminosus, n . 5, e d . p o r G i l : CORPUS, p . 2 7 7 - 2 7 8 .
25
CONQUISTA de Lisboa, p . 7 7 . A o l o n g o d a d o m i n a ç ã o i s l â m i c a , a c i d a d e c o n s e r v o u o s e u
b i s p o m o ç á r a b e q u e , n o m o m e n t o da r e c o n q u i s t a , f o i u m a das v í t i m a s das v i o l ê n c i a s d o s assai-
tantes c o l o n e n s e s e f l a m e n g o s , c o m o refere ainda o relato realístico dos a c o n t e c i m e n t o s feito p e -
lo r e f e r i d o c r u z a d o inglês. A l g u n s a u t o r e s p e n s a m q u e este b i s p o p o d e r i a ter sido eleito a q u a n d o
d a r e c o n q u i s t a d a c i d a d e p o r A f o n s o V I , e m 1 0 9 4 o u 1095, isto é, c i n q u e n t a e três a n o s a n t e s .
N ã o a c h a m o s isso m u i t o p r o v á v e l , p o i s , n a a l t u r a d a n o v a c o n q u i s t a i s l â m i c a e n o c l i m a d e i n s e -
gurança e desconfiança p r ó p r i o da guerra, os n o v o s senhores dificilmente aceitariam a l g u é m tão
influente e tão ligado aos inimigos.
26
A L M E I D A - História, v o l . 1, p . 8 0 .
27
Ibidem, p. 75.
28
C f . LÉVI-PROVENÇAL - L'Espagne musulmane, p. 211-212.

129
A PROCURA DO D E U S ÚNICO

29
Este n o m e veio-lhe da tradição q u e refere q u e q u a n d o o i m p e r a d o r D é c i o , depois de ter
m a n d a d o martirizar São V i c e n t e , o r d e n o u q u e o seu c o r p o p e r m a n e c e s s e i n s e p u l t o , para ser
d e v o r a d o pelas feras, u m c o r v o v e i o p o s t a r - s e d i a n t e , para o d e f e n d e r . S e g u n d o a m e s m a t r a d i -
ç ã o , n u n c a m a i s o s c o r v o s o a b a n d o n a r a m , m e s m o d e p o i s d a s u a t r a n s l a d a ç ã o p a r a as p r o x i m i -
dades d e Sagres. Al-Idrisi, q u e visitou a referida igreja, narra a presença de dez c o r v o s e abu
H a m i d a l - A n d a l u s i , c i t a d o p o r O m a r I b n e A l u a r d i n o l i v r o Pérola das Maravilhas, relata várias
lendas q u e circulavam n o seu t e m p o e d o c u m e n t a m a d e v o ç ã o de q u e o c o r p o d o santo era
rodeado.
30
M E S T R E ESTEVÃO - T r a n s l a t i o e t m i r a c u l a s a n c t i V i c e n t i i . I n PMH: Scriptores, p. 96-97.
31
CRÓNICA Geral de Espanha de 1)44, v o l . 2 , p . 3 6 8 .
32
D O M I N G U E S - Ossónoba, p. 45-47.
33
VASCONCELOS - Etnografia, vol. 4, p. 276.
34
PICARD - Histoire, p . 342.
35
C f . J I M É N E Z D U Q U E - La espiritualidad, p. 238.
36
C f . CONQUISTA de Lisboa, p . 35.
37
M I G N E , J . P . - Patrologia Latina, 9 4 , c o l . 9 2 1 - 9 2 2 . C f . BAPTISTA - S . Manços, p. 5-6.
38
N ã o r e f e r i m o s a q u i a d e v o ç ã o a S. C u c u f a t e , p o i s c a r e c e m o s d e d a d o s históricos s e g u r o s .
R e m e t e m o s , n o e n t a n t o , o l e i t o r p a r a RAU - Semanas medievais portuguesas, p. 148-149, e MATTO-
s o - O s M o ç á r a b e s , p . 15. C l á u d i o T o r r e s , i n v o c a n d o l e v a n t a m e n t o s e t n o - a r q u e o l ó g i c o s e a h a -
gionímia, refere a presença de m o n g e s e m São C u c u f a t e e na p o v o a ç ã o d o M o s t e i r o , j u n t o d e
M é r t o l a , q u e p r e s t a r i a m a a s s i s t ê n c i a r e l i g i o s a às p o p u l a ç õ e s r u r a i s d a s r e d o n d e z a s . T O R R E S —
O G a r b - A l - A n d a l u z , p . 3 6 1 ss.
39
C F . M A R T I N S - Peregrinações, p . 31-33; c f . VASCONCELOS - Etnografia portuguesa, vol. 4,
p. 280.
40
M A T T O S O - Le monachisme, p. 201.
41
M A T T O S O - O s M o ç á r a b e s , p . 13-14.
42
C o m m a i o r p r o p r i e d a d e d e t e r m o s , o s muwalladún e r a m os d e s c e n d e n t e s d e cristãos c o n -
v e r t i d o s a o i s l a m i s m o o u d e c a s a m e n t o s m i s t o s , e n q u a n t o o s q u e se c o n v e r t i a m p o r v o n t a d e
própria recebiam a designação de musâlima.
43
PAULO ALVARO DE CÓRDOVA - Epistola xiv. E d . J . G i l : CORPUS, p . 2 2 7 .
44
C f . S I M O N E T - Historia, p. 344, 642.
45
LÉVI-PROVENÇAL - La civilisation arabe, p . 1 0 2 .
46
PAULO ALVARO DE CÓRDOVA - Indiculus Luminosus. E d . J . G i l : CORPUS, p . 314-315.
47
O r d o n o II e o s s e u s t r i n t a m i l h o m e n s t e r ã o l e v a d o c o n s i g o q u a t r o m i l c a t i v o s , m u l h e r e s e
crianças, d e p o i s d e ter m o r t o os s e t e c e n t o s militares q u e d e f e n d i a m a fortaleza.
48
V i t a S a n c t i T h e o t o n i . I n PMH: Scriptores, p . 8 4 - 8 5 ; CRÓNICA dos sete primeiros reis de Portu-
gal. E d . S i l v a T a r o u c a , v o l . 1, p . 4 8 - 4 9 .
49
H E R C U L A N O - História. E d . M a t t o s o , v o l . 3, p . 2 4 7 - 2 5 0 .
50
S Á N C H E Z - A L B O R N O Z - Espana, v o l . 1, p . 157 ss.
51
C O E L H O — Portugal na Espanha árabe, v o l . 3, P r ó l o g o .
52
T O R R E S - O G a r b - A l - A n d a l u z , p . 361 ss.
53
LAVAJO - A R e c o n q u i s t a , p . 15-29.
54
A s c r ó n i c a s d e A f o n s o I I I d e L e ã o f a l a m r e p e t i d a s v e z e s d e Portugalem o u Portucalem em
s e n t i d o restrito, isto é, referidas ao antepassado d o P o r t o , c o m o u m a c i d a d e e n t r e outras. Assim a
CRÓNICA Albeldense, «Vrbes quoque Bracarensis, Portucalensis, Aucensis, Eminensis, Uesensis, atque La-
mezensis a xpistianis populantur», e d . G ó m e z M o r e n o - L a s p r i m e r a s , p . 6 0 4 ; C f . Rotense, i n Ibi-
dem, p . 615.
55
CRÓNICA Albeldense. In Ibidem.
56
R e f e r i n d o - s e às c i d a d e s c o n q u i s t a d a s p o r A f o n s o I d a s A s t ú r i a s n a r e g i ã o d e E n t r e D o u r o e
M i n h o , o c r o n i s t a S e b a s t i a n i a f i r m a : «Omnes quoque arabes supradictarum civitum inteificiens»; Cf.
VASCONCELOS - Etnografia portuguesa, vol. 4, p. 2 9 9 - 3 0 0 .
57
É a i n d a S e b a s t i a n i , c o n t e m p o r â n e o d o s a c o n t e c i m e n t o s , q u e m o r e f e r e : «Bellatores eorum
omnes interfecit, reliquum vero vulgum vergo dulgum cum uxoribus etfiliis sub corona vendidit»; C f . BAR-
ROS - História da Administração, 1914, p . 65, n . ° 1.
58
C f . VASCONCELOS - Etnografia portuguesa, v o l . 4 , p . 301.
59
Partida i v , t i t . 21, l e i 1.
60
V e r , p o r e x e m p l o , Leges, 1, 4 1 7 ; EORAES de Vila Viçosa, p . 53.
61
N o s forais d o tipo d o d e É v o r a , a p o r t a g e m exigida aos m o u r o s c o r r e s p o n d i a à dos animais
de grande porte, e q u í d e o ou b o v i n o ; n o de Santarém, equivalia a m e t a d e dos m e l h o r e s equídeos
o u e r a i g u a l às d o s m é d i o s . O p r e ç o d e v e n d a v a r i a v a e n t r e 5 a 10 m o r a b i t i n o s , i s t o é , o p r e ç o d e
u m a p e q u e n a p r o p r i e d a d e agrícola. S a b e m o s p o r u m decreto d o m u n i c í p i o de É v o r a que, e m
1382, o s m o u r o s c o n t i n u a v a m a s e r o b j e c t o d e v e n d a . C f . PEREIRA - Documentos históricos, v o l . 1,
p . 154.
62
C f . COSTUMES e f o r o s d a G u a r d a . I n Leges, v o l . 2, 10.
63
C f . H E L E N O - Os escravos, p . 156.
64
Esta lei, q u e c o n d e n a v a a o f o g o os q u e assaltassem igrejas, f o i o r i g i n a r i a m e n t e e m i t i d a p o r
D . A f o n s o I I I c o n t r a o s j u d e u s e a p l i c a d a p o r D . A f o n s o V a o s m o u r o s . C f . ORDENAÇÕES Afonsi-
nas, l i v . 11 , t í t . 8 7 , p . 501; Ibidem, t í t . 115, p . 556.
65
ORDENAÇÕES Afonsinas, l i v . 11, t í t . 114, p . 554-555.
66
C f . H E L E N O - Os escravos, p . 1 6 0
67
C f . AJBAR Machmua (Colección de tradiciones): Crónica anónima dei siglo xi, p. 116.
68
C f . M A R W Â N - Al Muktabas, p . 23.
69
BOISSELLIER - La vie rurale, v o l . 2 , p . 4 0 7 .
70
C f . BOISSELLIER - La vie rurale, v o l . 2, p . 3 9 4 .
71
PMH: Leges et Consuetudines, v o l . 1, p . 3 4 9 .

130
ISLÃO E CRISTIANISMO: ENTRE A TOLERÂNCIA E A GUERRA SANTA

72
ORDENAÇÕES Afonsinas, l i v . 11, t í t . 2 8 , p . 2 2 2 ss.
73
Ibidem, 1, p . 3 9 6 .
74
Ibidem, p. 396-397.
75
Ibidem, p. 715-716.
76
Ibidem, p. 729-730.
77
ANTT - Chancelaria de D. Dinis. L i v . 11, fl. 124.
78
VASCONCELOS - Etnografia portuguesa, v o l . 4 , p . 323.
79
C f . PMH: Scriptores, v o l . 1, p . "182.
80
ORDENAÇÕES del-Rei D. Duarte, a r t . x v , p . 233.
81
Ibidem, art. vil, p. 263.
82
C f . COSTA - Mestre Silvestre e Mestre Vicente, p . 2 6 6 . A c o l a b o r a ç ã o d e c r i s t ã o s c o m m u ç u l -
m a n o s , e v i c e - v e r s a , v e r i f i c a - s e t a m b é m a o n í v e l d e a l i a n ç a s e n t r e p o v o s e c h e f e s rivais, a l g u m a s
vezes c o n t r a os seus p r ó p r i o s correligionários. O s e x e m p l o s d e A l m a n s o r , d e C i d o C a m p e a d o r ,
d e S e s n a n d o D a v i d i z e d e G i r a l d o S e m P a v o r m a n i f e s t a m esse i n t e r c â m b i o p o l í t i c o - m i l i t a r , q u e
acarretava t a m b é m , certamente, o intercâmbio cultural.
83
BOISSELLIER — La vie mrale, v o l . 2, p. 402.
84
ORDENAÇÕES Afonsinas. L i v . 11, t í t . 116, p . 557-558.
85
BARBOS - J u d e u s e M o u r o s , v o l . 34, p . 2 0 5 , 2 0 7 - 2 0 8 . VASCONCELOS - Etnografia portuguesa,
v o l . 4 , p . 335. G O M E S - A M o u r a r i a , p . 155 ss. BARROS - A s c o m u n a s m u ç u l m a n a s , p . 85 ss; IDEM -
A comuna muçulmana de Lisboa, p . 2 0 - 2 1 . T a m b é m a m o u r a r i a d e C o i m b r a p o d e r á v i r a i n c l u i r e s -
t e q u a d r o , q u a n d o as i n v e s t i g a ç õ e s f o r e m m a i s a p r o f u n d a d a s .
86
O s espaços e m branco não significam necessariamente a inexistência de c o m u n a mas ape-
nas a ausência o u d e s c o n h e c i m e n t o da respectiva d o c u m e n t a ç ã o .
87
BARROS - A comuna muçulmana de Lisboa, 1998.
88
S e g u n d o o u t r o s m a n u s c r i t o s , p o d e r á t e r s i d o e m 16 d e F e v e r e i r o d e 1339. C f . ORDENAÇÕES
Afonsinas, p . 534, n . (a) e ( c ) .
89
Ibidem, l i v . 11, t í t . 101, p . 534.
90
Ibidem, p . 534-535.
91
I n i c i a l m e n t e , o t e r m o arrabalde e r a s i n ó n i m o d e mouraria e judiaria, ainda q u e , na altura da
reconquista de u m a p o v o a ç ã o o u p o s t e r i o r m e n t e , p o r causa d o a u m e n t o d e m o g r á f i c o , m u i t o s
c r i s t ã o s , p o r f a l t a d e e s p a ç o d e n t r o d e m u r o s , t i v e s s e m d e ficar i n s t a l a d o s f o r a , c o m o a c o n t e c e u
na cidade de Lisboa.
92
C f . ORDENAÇÕES Afonsinas, l i v . 11, t í t . 1 0 4 , p . 5 4 0 ; Ibidem, t í t . 112, p . 552-553.
93
CORTES Portuguesas, Reinado de D. Pedro I, p . 52.
94
ORDENAÇÕES Afonsinas, l i v . 11, t í t . 1 0 2 , p . 535; c f . l i v . 11, t í t . 7 6 , p . 4 5 6 .
95
C f . BARROS - J u d e u s e M o u r o s , p . 172.
96
ORDENAÇÕES Afonsinas, l i v . 11, t í t . 1 0 4 , p . 5 4 0 ; c f . t í t . 112, p . 552-553.
97
ORDENAÇÕES Afonsinas, liv. v , tít. 2 6 , p . 9 6 ; C f . ORDENAÇÕES Manuelinas, liv. v , tít. 21, p . 7 0 .
98
CONSTITUIÇÕES d o A r c e b i s p a d o d e L i s b o a , d e c r e t a d a s p o r D . J o ã o E s t e v e s d e A z a m b u j a
( 1 4 0 2 - 1 4 1 4 ) . Revista Archeologica. 1 (1887) 6 2 - 6 3 ; c f . VASCONCELOS - Etnografia portuguesa, vol. 4,
p . 332-333. M o v i d o s p e l a s m e s m a s r a z õ e s , D . D u a r t e e D . A f o n s o V l e g i s l a r a m t a m b é m n e s s e s e n -
t i d o , a p l i c a n d o a l e i j á e x i s t e n t e p a r a o s j u d e u s : ORDENAÇÕES Afonsinas, l i v . 11, t í t . 1 0 6 - 1 0 7 ,
P• 542-543•
99
C f . ORDENAÇÕES Afonsinas, l i v . 11, t í t . 117, p . 558.
100
C f . H E R C U L A N O - História, v o l . 2, p . 4 6 9 - 4 7 0 .
101
BRANDÃO, A . - Mon. Lus. v o l . 7 , L i s b o a , 1683, p . 2 4 3 - 2 4 4 ; C f . VASCONCELOS - Etnografia
portuguesa, v o l . 4 , p . 333.
102
ORDENAÇÕES Afonsinas, liv. 11, t í t . 103, p . 537.
103
ORDENAÇÕES Afonsinas, liv. 11, t í t . 103, p . 538-539.
104
A alda o u alna e q u i v a l i a a o c ô v a d o , isto é, a três p a l m o s .
105
C f . GUERREIRO - M o u r o s , v o l . 4 , p . 352-353.
106 V I T E R B O - O c o r r ê n c i a s d a v i d a m o u r i s c a , p . 8 4 . A l u a , q u e i n i c i a l m e n t e e r a v e r m e l h a ,
passou d e p o i s a ser a m a r e l a e, finalmente, retomou a cor vermelha.
107
C f . C f . BOISSELLIER - La vie rurale, v o l . 2 , p . 3 9 8 - 3 9 9 . S a b e m o s , p o r e x e m p l o , q u e o s
m o u r o s d e L o u l é , a q u a n d o da R e c o n q u i s t a , f i c a r a m c o m u m q u a r t o d o s b e n s , e m r e g i m e d e
p r o p r i e d a d e t o t a l ; CRÓNICA de cinco reis de Portugal, p . 213 ss. E r a e s s e o s e n t i d o d a i n t e r v e n ç ã o d o
arcebispo d e Braga j u n t o dos m u ç u l m a n o s , antes da conquista de Lisboa.
108
C f . AZEVEDO - D o A r e e i r o à M o u r a r i a , p . 215; AZEVEDO - O r g a n i z a ç ã o E c o n ó m i c a ,
v o l . 2 , p . 4 0 . C f . VASCONCELOS - Etnografia portuguesa, v o l . 4 , p . 310.
109
C f . Leges, v o l . 1, p . 3 9 6 .
110
C f . BOISSELLIER - La vie mrale. V o l . 2, p . 4 0 0 ; PEREIRA - Documentos históricos, p . 134.
111
VASCONCELOS - Etnografia portuguesa, v o l . 4 , p . 318-319.
112
D . Afonso IV atribuiu a u m m o u r o o a f o r a m e n t o de u m a tenda e m Beja, a troco de doze
l i b r a s a n u a i s . E s s e a f o r a m e n t o e r a v á l i d o d u r a n t e t r ê s v i d a s . C f . BARROS - História da Administra-
ção Pública, v o l . 3, p . 6 2 4 .
113
C f . BARROS - J u d e u s e M o u r o s , v o l . 35, p . 1 9 3 - 1 9 4 .
114
ORDENAÇÕES del-Rei D. Duarte, p . 518-523.
115
C f . CRÓNICA Geral, v o l . 1, p . 330-331; LAVAJO - A C r ó n i c a d o M o u r o . RESENDE - História
da Antiguidade de Évora, cap. xi.
116
Cf. ORDENAÇÕES Afonsinas, l i v . 11, t í t . 101, p . 533.
117
CHANCELARIA de D. Afonso V. L i v . 2, fl. 6 v ; C f . BARROS - J u d e u s e M o u r o s , p . 2 0 0 .
118
«Esta h e a d e c l a r a ç o m d o s f o r a e e s d o s m o u r o s d e c o m o d e v e m d e p a g a r os d e r e i t o s a e l -
- R e i p e r esses f o r a e e s e p e r d e r e i t o d o s m o u r o s . E p e r c u s t u m e d e q u e e l R e i a n t i g a m e n t e stá
e m p o s s e d e l l e s p e r e s t a g u i s a o s m o u r o s e as m o u r a s p a g a r e m a e l R e i s e u s d e r e i t o s » . I n Leges,
v o l . 2, p . 9 8 - 1 0 0 .

131
A PROCURA DO DEUS ÚNICO

119
BARROS - J u d e u s e M o u r o s , p . 2 2 o ss.; 2 2 8 - 2 3 0 ; VASCONCELOS - Etnografia portuguesa, vol. 4,
p . 319 ss.
120
C f . f o r a i s d o s m o u r o s f o r r o s d e 1170 ( L i s b o a , A l m a d a , P a l m e l a e A l c á c e r ) , 1 2 6 9 (Silves,
T a v i r a , L o u l é e F a r o ) , 1273 ( É v o r a ) e 1 2 9 6 ( M o u r a ) .
121 p/lr e r a 0 i m p o s t o q u e a c o m p a n h a v a a f e s t a d a r u p t u r a d o R a m a d ã o .
122
E m m e a d o s d o século xiv, 1 libra equivalia a 20 soldos e a 240 d i n h e i r o s .
123
A Zakât i s l â m i c a e r a a e s m o l a l e g a l , d i f e r e n t e d a sadaqa, q u e era a e s m o l a voluntária.
124
C f . forais d o s m o u r o s f o r r o s d e Lisboa ( D . A f o n s o H e n r i q u e s ) , Silves, T a v i r a , L o u l é e F a -
r o ( D . A f o n s o I I I , d e 1 2 6 9 ) , e d e 1 2 9 6 ( d e D . D i n i s ) ; Leges, v o l . 2 , p . 9 8 - 1 0 0 .
125
C f . ORDENAÇÕES Afonsinas, l i v . 11, t í t . 28, § 59, p . 241.
126
BRANDÃO, A . - Mon. Lus. P a r t e 4 , l i v r o 15, c a p . 6 . " , n a e d . d e 1725, p . 3 4 3 - 3 4 4 ; Leges,
v o l . 2, p . 9 8 - 1 0 0 ; C f . VASCONCELOS - Etnografia portuguesa, v o l . 4 , p . 328.
127
«Et insuper do vobis pro foro nullus pauset in vestris domibus contra vestram voluntatem». Leges,
v o l . 1, 3 9 7 .
128
C f . VASCONCELOS — Etnografia portuguesa, vol. 4, p. 326.
129
C h a n c e l a r i a d e D . A f o n s o V , l i v . v , fl. 6 v . I n ARQUIVO Histórico Português.
V o l . 3, p . 4 3 0 .
130
Apud LOPES - O D o m í n i o Á r a b e , p . 4 2 2 ; c f . LAVAJO - A l v a r o P a i s , p . 10-12.
3
‫'י‬
132
A i n d a h o j e é c o n h e c i d a na t o p o n í m i a lisboeta a R u a d o C a p e l ã o , referente ao capelão d o s
mouros.
133
O s Costumes da Guarda, q u e r e m o n t a m aos séculos x m - x i v , p r o i b i a m explicitamente aos
m o u r o s de trabalhar ao D o m i n g o , sob pena de multa e m dois maravedis e m favor d o alcaide.
C f . Leges, v o l . 2 , 16.
134
ORDENAÇÕES Afonsinas, l i v . n , t í t . 110, p . 5 4 6 - 5 4 7 .
135
C f . Partida vil, t í t . 25, l e i 2, p . 7 6 v . ; ORDENAÇÕES Afonsinas, l i v . 11, t í t . 9 8 , p . 515-518; Ibi-
dem, t í t . 119, p . 561; D U A R T E - Leal Conselheiro, p . 6 2 ; ORDENAÇÕES del-Rei D. Duarte, a r t . 19,
p. 268.
136
ORDENAÇÕES del-Rei D. Duarte, art. x i x , p. 268.
137
TORRES - O G a r b - A l - A n d a l u z , p . 361-416.
138
A p r o p ó s i t o d e T o l e d o , v e r SCHACK - Poesia y Arte de los Árabes en Espana y Sicilia, v o l . 2,
p . 253.
139
C f . M E N E N D E Z PELAYO - Historia de los Heterodoxos, v o l . 1, p . 4 2 7 - 4 2 8 .
140
CRÓNICA dei Moro Rasi, p . 10; c f . LAVAJO - A C r ó n i c a d o M o u r o , p . 1 2 7 ss.
141
C f . A r q . M u n i e , d e É v o r a — Livro do Padre José Lopes de Mira, fl. 8.
142
C f . SERRA - Contribuição, p . 35 ss.
143
SERRA - A i n f l u ê n c i a á r a b e , p . 1 0 2 .
144
C f . Ibidem, p . 58-59.
145
C f . Ibidem, p. 62, 75-76.
146
LAVAJO - Cristianismo e Islamismo, v o l . 2, p . 8 3 0 - 8 4 1 .
147
C f . FERREIRA - V e s t í g i o s , p . 2 2 0 ; C I N T R A - Estudos, p . 7 2 - 7 5 , 109-116.
148
O s claustros da colegiada de N o s s a S e n h o r a da Oliveira, e m G u i m a r ã e s d e n o t a m t a m b é m
uma forte i n f l u ê n c i a m o ç á r a b e , s o b r e t u d o n o r e s p e i t a n t e aos arcos d e tradição visigótica.
149
C f . AYALA - E l A r t e M u d é j a r , p . 111-112.
150
C f . LAVAJO - A crónica do Mouro, p . 128 ss.
151
C f . ARAÚJO - O s M u ç u l m a n o s , v o l . 1, p . 2 8 9 .
152
C f . ALBUQUERQUE - Introdução à História dos Descobrimentos Portugueses, p . 2 1 0 ss.
153
C f . TAZI - A b u c A b d - A l l â h a l - Y â b u r i , p. 363.
154
S o b r e e s t a p r o b l e m á t i c a v e r MACÍAS - Mértola, p. 126-127.
155 PMH: Leges, v o l . 2, p . 57; c f . BOISSELLIER - La vie rurale, v o l . 2, p . 4 1 6 . E s t e a u t o r r e f e r e -
- s e t a m b é m , às « e s t r e i t a s m o u r i s c a s d a a l e m m a r » , i m p o r t a d a s p o r V e i r o s , n a s e g u n d a m e t a d e d o
século xrv.
156 JS]YKL - El Cancionero de Abencusmán, p . x v n ; IDEM - Hispano-Arabic Poetry, p . 2 7 1 ss.;
C H E J N E - Historia, p . 219.
157
G O N Z A L E Z PALENCLA — Historia de la literatura arábigo-espaíiola, p . 333 ss.
158
P a r a l e l a m e n t e , a i n d a q u e t e n h a m c o m e ç a d o d e p o i s , p r o c e s s a m - s e as t r a d u ç õ e s d i r e c t a s
d o g r e g o p a r a o l a t i m . C o m e ç a n d o c o m o Fedon e o Ménon de Platão, ainda n o século xii,
c o n t i n u a m c o m A r i s t ó t e l e s e r e s p e c t i v o s c o m e n t a d o r e s g r e g o s , P r o c l o (a Elementato Physica, no
s é c u l o XII, e a Elementatio theologica, n o século xin), São João D a m a s c e n o e outros.
159
C f . GRABMANN - Historia de la Teologia Católica, p . 6 0 ; ASÍN PALACIOS - Un aspecto inexplo-
rado de los origenes de la Teologia Escolástica, v o l . 2, p . 55-56; c f . CASCIARO - El diálogo Teológico,
p . 4 9 ss. F o i e s t a o b r a q u e m e s u g e r i u as d u a s ú l t i m a s c i t a ç õ e s .
160
CAEIRO - E l L u l i s m o , p . 4 6 1 ss.
161
C o r t e s d e 1451, c a p í t u l o s g e r a i s , n . ° 12 e c a p í t u l o s d o c l e r o , n . ° 12, c i t . p o r SOUSA - 1325-
- 1 4 8 0 , p . 354.
162
ORDENAÇÕES Manuelinas., liv. 11, t í t . 41, p . 213-214; G ó i s - Chronica do Felicíssimo Rei
D. Emanuel, fl. 14 r.
163
ARRAIS - Diálogos, Dialogo Segundo: da gente judaica, c a p . 11.
164
G Ó I S - Chronica do Felicíssimo, fl. 15 v ; c f . O S Ó R I O - De Rebvs Emmanvelis, p . 21.
165
C O U T I N H O , D . F e r n a n d o . I n SYMMICTA Lusitana, v o l . 31, fl. 7 0 ss. B i b l i o t e c a d a A j u d a ;
c f . ALMEIDA - História, v o l . 2, p . 352.
166
O S Ó R I O - De Rebvs Emmanvelis, p . 20-21.
167
G ó i s - Chronica do Felicíssimo, fl. 15 v .
168
A S é d e É v o r a c o n t o u e n t r e os seus dignitários alguns c r i s t ã o s - n o v o s , c o m o J o ã o N a v a r r o
q u e , e m 1512, e r a f e i t o b a c h a r e l ( É v o r a , A S E , c ó d . C E C - 6 - v i i , fl. 130 v-131, 1 4 0 r - 1 4 0 v) e P e d r o
F e r n a n d e s C ó r d o v a , r e c e b i d o c o m o c ó n e g o ( A N T T - Inquisição de Évora. N . ° 7 9 5 1 , fl. 25).

132
ISLÃO E CRISTIANISMO: ENTRE A TOLERÂNCIA E A GUERRA SANTA

169
A I n q u i s i ç ã o f o i e s t a b e l e c i d a e m P o r t u g a l p e l o p a p a C l e m e n t e V I I , e m 1531, a p e d i d o d e
D . J o ã o III. O p r i m e i r o i n q u i s i d o r - g e r a l f o i F r e i D i o g o da Silva, da O r d e m d o s M í n i m o s d e S ã o
F r a n c i s c o d e P a u l a , n o m e a d o p e l o r e f e r i d o p a p a , a t r a v é s d a b u l a Cum ad ttihil magis, d e 17 d e
D e z e m b r o daquele ano.
170
S o b r e e s t e t e m a , v e r as d e c l a r a ç õ e s d o s p r o c e s s o s d a I n q u i s i ç ã o d e É v o r a , a n a l i s a d o s p o r
BRAGA - O s M o u r i s c o s , 6 3 ss.

33
A CONSTRUÇÃO
DE UMA IGREJA
Agentes e estruturas
de enquadramento eclesiásticos
Organização eclesiástica do espaç

DO IMPÉRIO ROMANO AO REINO


ASTURIANO-LEONÉS*
A REORGANIZAÇÃO GERAL DO IMPÉRIO ROMANO l e v a d a a c a b o p o r D i o c l e -
ciano, entre 284 e 388, alterou p r o f u n d a m e n t e a anterior organização p r o v i n -
ciai de A u g u s t o q u e , e m 27 a. C . 1 , tinha dividido a Península e m três p r o v i n -
cias (Bética, T a r r o c o n e n s e e Lusitânia).
C o m D i o c l e c i a n o , as três antigas províncias hispânicas dão lugar a cinco:
T a r r a c o n e n s e , Cartaginense, Bética, Lusitânia e Galécia 2 (estas duas últimas
abarcando g r a n d e parte daquele q u e seria p o s t e r i o r m e n t e o espaço d o t e r r i t ó -
rio português).
N e s t e c o n t e x t o , as divisões administrativas internas e m civitates3 c o n t i n u a -
r a m a e x p r i m i r u m a realidade n ã o só histórica e administrativa, mas t a m b é m
geográfica, e c o n ó m i c a e m e s m o religiosa.
N o q u e respeita às fronteiras das províncias e das civitates p o d e m o s consta-
tar q u e os R o m a n o s fizeram coincidir os limites territoriais c o m os acidentes
naturais, orográficos o u hidrográficos 4 . O traçado das vias r o m a n a s teria t a m -
b é m c o n t r i b u í d o t a m b é m para as delimitações das fronteiras h o j e n e m s e m -
pre fáceis de reconstituir 5 .
D e s d e a r e f o r m a de D i o c l e c i a n o até ao f i m da d o m i n a ç ã o r o m a n a , as
províncias administrativas d o I m p é r i o m a n t i v e r a m - s e p r a t i c a m e n t e inalterá-
veis c o n s t i t u i n d o a base da organização eclesiástica. N o seu seio as civitates
f o r n e c e r a m o «suporte administrativo» à nova estrutura diocesana. E nelas
q u e f o r a m criadas as primeiras sés episcopais. O p e r í o d o visigótico acabou
t a m b é m p o r reconstituir, ao nível eclesiástico, a divisão administrativa de
D i o c l e c i a n o , g a r a n t i n d o a sua c o n t i n u i d a d e ao l o n g o da A n t i g u i d a d e Tardia.
É na Carta de Cipriano de Cartago (254/255) q u e e n c o n t r a m o s os primeiros
dados c o n c r e t o s sobre a organização eclesiástica da Hispânia. Para além das
três Igrejas destinatárias da carta (Leão-Astorga e Mérida) 6 , C i p r i a n o m e n e i o -
na a Igreja de Saragoça 7 e alude à existência de outras sés episcopais estabele-
cidas e m civitates, d e q u e n ã o m e n c i o n a os n o m e s 8 .
S e g u n d o M . C . Díaz y Díaz, d e v e m o s estar p e r a n t e cidades e m relação
estreita c o m a presença, na Península, da Legio VII G e m i n a 9 . Esta alusão r e -
m e t e - n o s , efectivamente, para a importância da presença militar na p r o p a g a -
ção d o cristianismo.
Nesta época, a província eclesiástica ainda n ã o seria u m a realidade insti-
tuída mas constituiria j á u m referencial i m p o r t a n t e para a resolução das q u e s -
tões internas às Igrejas locais 1 0 . A Carta de C i p r i a n o faz-lhe alusão q u a n d o r e -
fere q u e nas eleições episcopais d e v i a m intervir os bispos da província na qual
elas se realizavam 1 1 .
Algumas décadas mais tarde, as actas d o C o n c í l i o de Elvira (306/314) 12
d ã o - n o s a c o n h e c e r a existência de c o m u n i d a d e s cristãs organizadas na H i s p â - <3 Charola do Convento de
nia, para além das a n t e r i o r m e n t e m e n c i o n a d a s , atestando a sua organização, Cristo, Tomar (!.' metade do
n o início d o século iv, e m várias províncias eclesiásticas 13 . século xm).
F O T O : JOSÉ M A N U E L OLIVEIRA/
A l é m da diocese de M é r i d a , c e n t r o administrativo e j u r í d i c o de r e c o n h e -
/ARQUIVO CÍRCULO DE LEITORES.
cida importância desde o século in 1 4 , o C o n c i l i o de Elvira m e n c i o n a , p o r
e x e m p l o , pela primeira vez as dioceses de Évora e Faro, na Lusitânia. O facto
de estas cidades se t e r e m t o r n a d o sedes de bispados significa, c e r t a m e n t e , q u e
t i n h a m a d q u i r i d o u m papel de m a i o r relevo na vida da Hispânia d o q u e e m
anos anteriores 1 5 . *Ana Maria C. M. Jorge
!37
A CONSTRUÇÃO DE UMA IGREJA

Mapa das divisões


administrativas da Hispânia
romana (segundo J o r g e
Alarcão). R e p r o d u z i d o in J o s é
Mattoso, História de Portugal,
1, p. 229.

O estabelecimento das sés episcopais teria o b e d e c i d o n ã o só a m o t i v a ç õ e s


de carácter político-administrativo, mas t a m b é m a questões de o r d e m g e o -
gráfica e social, c o m o era o caso da p r o x i m i d a d e de estradas importantes 1 6 .
A organização diocesana ter-se-ia, efectivamente, m o l d a d o sobre a hierarquia
civil das cidades hispânicas, c o m o é e v i d e n c i a d o pelos estudos realizados ao
nível da Lusitânia 1 7 .
D o s cânones d o C o n c í l i o d e Elvira, p o d e m o s ainda deduzir a existência
de c o m u n i d a d e s cristãs distantes da cidade episcopal 1 8 . Este concílio indica,
c o m efeito, q u e o cristianismo se p r o p a g a v a de u m a f o r m a e v i d e n t e nas c i -
dades, mas q u e t a m b é m se e x p a n d i a para a l é m destas, nas villae, e m c o m u n i -
dades organizadas p r o v a v e l m e n t e sob a d i r e c ç ã o de u m clérigo o u de u m
d i á c o n o , q u e p o d i a m aí administrar o b a p t i s m o .
N ã o d i s p o m o s , todavia, de vestígios a r q u e o l ó g i c o s , para o i n í c i o d o s é -
c u l o iv, relativos a edifícios cristãos c o m baptistério 1 9 . Para os finais d o
século i v e para o século v, p o d e m o s j á constatar c o n s t r u ç õ e s d e t e m p l o s
cristãos e m e s m o baptistérios e m algumas villae: é o caso de M i l r e u (Estói-Fa-
ro), São C u c u f a t e , T o r r e de Palma e M o n t e da C e g o n h a 2 0 , p o r e x e m p l o .
C o m o refere, M . C . Diaz y Diaz 2 1 , a cristianização realizou-se n ã o só n o pia-
n o social mas t a m b é m n o p l a n o geográfico.
N o q u e respeita à estrutura provincial, o C o n c í l i o de Elvira utiliza o t e r -
m o «província» mas n ã o define n e m o seu carácter, n e m o seu â m b i t o . Aliás,
só p o d e m o s pensar q u e a expressão era utilizada para designar as províncias
eclesiásticas 22 p o r q u e ela aparece e m p r e g u e n o c o n t e x t o de u m a assembleia
eclesial. A c o r r e s p o n d ê n c i a e n t r e a província administrativa d o I m p é r i o R o -
m a n o e a província eclesiástica é u m a questão q u e c o n t i n u a e m aberto 2 3 .
N ã o se c o n h e c e , para a A n t i g u i d a d e T a r d i a e Alta Idade M é d i a , a d e l i m i -
tação territorial e n t r e as diferentes províncias. C o n v é m m e s m o l e m b r a r q u e a
delimitação territorial implicava u m a c o n c e p ç ã o de fronteira q u e ainda n ã o
existia. F o r a m , c o m efeito, questões de natureza disciplinar — c o m o a dos
lapsi, p o r e x e m p l o — q u e c o m e ç a r a m a colocar este p r o b l e m a . A ausência d e
limites precisos e n t r e os bispados n o interior de u m a província colocava,
aliás, p r o b l e m a s f r e q u e n t e s d e jurisdição e n t r e bispos, c o m o sabemos pelos
concílios visigóticos.

138
ORGANIZAÇÃO ECLESIÁSTICA DO ESPAÇO

E m 4 0 0 , o c â n o n e 5 d o I C o n c í l i o de T o l e d o f o r n e c e - n o s a primeira r e -
ferência, implícita, sobre a organização «paroquial», q u a n d o diz q u e os p a -
dres, os diáconos e os subdiáconos d e v i a m participar nos ofícios quotidianos,
q u e r residissem na cidade, q u e r habitassem fora desta, n u m castellum, vicus o u
n u m a villa c o m igreja 2 4 . Estamos aqui p e r a n t e u m a distinção clara e n t r e a
Igreja da cidade e a Igreja dos meios rurais.
S e g u n d o Alberto Sampaio, teria h a v i d o u m a coincidência e n t r e os limites
geográficos das villae e os das paróquias q u e lhes sucederam 2 5 . M i g u e l d e O l i -
veira, d e b r u ç a n d o - s e t a m b é m sobre este tema, d e f e n d e q u e as paróquias mais
antigas teriam tido a sua o r i g e m n ã o só nas igrejas das villae mas t a m b é m nas
igrejas monásticas 2 6 .
N o século vi, é através dos concílios d e Braga, realizados e m 561 e 572, na
Galécia, q u e t o m a m o s c o n h e c i m e n t o da existência de «novas» dioceses e m
c o n t e x t o hispânico. Nestas datas, o r e i n o suevo fixado na Galécia chegava até
ao Sul d o D o u r o t e n d o anexado algumas cidades da província romana da Lusi-
tânia, c o m o é o caso das de Lamego, Viseu, C o n i m b r i g a e Idanha, q u e passa-
ram a estar sob a direcção d o bispo de Braga 27 . Só e m meados d o século vil,
mais de m e i o século depois da destruição d o r e i n o suevo p o r Leovigildo (por
volta de 585), é q u e o m e t r o p o l i t a da Lusitânia r e t o m a sob a sua autoridade os
bispados situados e n t r e o D o u r o e o T e j o .
Para além dos concílios de Braga, encontramos ainda referência a estas q u a -
tro dioceses e à sua organização n o Parochial suevorum, c o n h e c i d o igualmente
pelo n o m e de Division Theodomiri o u ainda de Concílio de Lugo, de 569 28 .
Ú n i c o n o seu género e m t o d o o O c i d e n t e , este d o c u m e n t o é constituído pela
lista de «paróquias» da província eclesiástica de Braga, elaborada p o r volta de
572-582, sendo depois completada durante a R e c o n q u i s t a cristã, entre os sécu-
los vil e XII, n o q u e respeita ao limite das dioceses 29 . C o m base nesta fonte, p o -
demos afirmar q u e a organização eclesiástica dos bispados anexados pelo reino
suevo comportava n o século vi u m a autêntica «constelação paroquial» 30 .
N a análise q u e fez d o Parochial, P. D a v i d mostra c o m o as «paróquias» sur-
giram da iniciativa episcopal na periferia das cidades, q u e constituíam o c e n -
tro da diocese, e se desenvolviam c o m o n o v o s lugares de culto providos de
u m clero p r ó p r i o e de u m baptistério n o â m b i t o d o q u a d r o administrativo
diocesano, atestando a expansão da sé episcopal 3 1 . T e s t e m u n h a n d o o zelo o r -
ganizador d o bispo n o â m b i t o da sua província eclesiástica, estas «paróquias»
f o r a m c e r t a m e n t e criadas à m e d i d a das necessidades dos fiéis n ã o só nos pagi e

A Capitel da Igreja de São


G i ã o (Nazaré).
FOTO: MANUEL REAL.

Interior da Igreja de São Gião


(Nazaré).
F O T O : PUBLICAÇÕES ALFA, S . A .

139
A CONSTRUÇÃO DE UMA IGREJA

nos vici (lugares s e m jurisdição territorial), mas t a m b é m nos castella (lugares


fortificados).
P. D a v i d distingue claramente entre as primeiras igrejas da periferia e as
fundadas nas villae o u nos fundi, na maioria dos casos, p o r iniciativa dos seus
proprietários e escapando ao c o n t r o l o directo d o bispo. N ã o p o d e m o s , c o m
efeito, esquecer q u e o bispo podia, t a m b é m ele, f u n d a r igrejas nas villae das
quais era proprietário o u c o m o a c o r d o d o respectivo proprietário.
Para além destas igrejas, P. D a v i d m e n c i o n a ainda as basílicas e os o r a t ó -
rios, construídos para venerar as relíquias dos santos.
A c t u a l m e n t e , c o m o refere José M a t t o s o , a d m i t e - s e q u e as villae p u d e s s e m
ter servido de q u a d r o à f u n d a ç ã o de igrejas rurais, mas é possível pensar t a m -
b é m q u e muitas paróquias p u d e s s e m ter surgido a partir de igrejas monásticas,
e m e s m o de igrejas fundadas p o r a g r u p a m e n t o s de camponeses, s e m n e n h u m
p r e c e d e n t e anterior 3 2 .
Nesta época, ainda n ã o é possível estabelecer limites precisos entre estas
c o m u n i d a d e s criadas na esfera d e influência das cidades; os seus territórios só

Mapa das paróquias suevas


(segundo Almeida Fernandes,
1968). Este mapa representa
a única tentativa de
identificação das paróquias
que constam da lista a o
Paroquial Suevo (reproduzido
in J o s é Mattoso, História de
Portugal, 1, p. 313).

140
O R G A N I Z A Ç Ã O E C L E S I Á S T I C A DO ESPAÇO

Mapa das dioceses da época


visigótica (segundo
J. Orlandis). Reproduzido in
José Mattoso, História de
Portugal, 1, p. 329.

serão delimitados mais tarde j á e m c o n t e x t o medieval 3 3 . C o n t u d o , p o d e m o s


constatar q u e n o II C o n c í l i o de Braga (572) a ideia de «território episcopal»
tinha j á u m a certa consistência 3 4 . Se n ã o p o d e m o s falar ainda nesta época de
u m a rede c o n t í g u a de paróquias, v e m o s já aqui presente a ideia de u m a
«constelação de comunidades». P. D a v i d c h a m a precisamente a atenção para a
c o m p l e x i d a d e d o p r o b l e m a m o s t r a n d o a c o r r e s p o n d ê n c i a entre algumas «pa-
róquias» suevas e alguns arcediagados medievais 3 5 .
O processo de d e s e n v o l v i m e n t o das «paróquias» c o m o células de e n q u a -
d r a m e n t o é c o n t e m p o r â n e o , pelo m e n o s desde os séculos v m até x, d o esta-
b e l e c i m e n t o da aldeia c o m o m a r c o social e m o d e l o de fixação dos h o m e n s 3 6 .
A rede paroquial e as f u n ç õ e s da paróquia, tal c o m o a c o n h e c e m o s na
época medieval, só c o m e ç a r a m a fixar-se c o m a i n t r o d u ç ã o d o direito c a n ó -
nico r o m a n o n o século xi. É a partir desta época q u e se fixam t a m b é m p r o -
gressivamente os limites paroquiais.
Para além das referências dos concílios, as dioceses visigóticas são t a m b é m
conhecidas graças ao Decreto de Gundemar, de 610. Este d o c u m e n t o r e ú n e
u m a série de assinaturas d e bispos, c o m referência das respectivas sés, a f i m de
c o n f i r m a r a supremacia da Sé de T o l e d o face aos desafios d o p o d e r político e
religioso dos bizantinos estabelecidos n o Sul da península 3 7 .
Para os séculos VII/VIII, dispomos, para além das assinaturas dos diversos
concílios realizados e m T o l e d o , de duas listas de bispos: a Nomine ávitatum
Hispanie, datada d o século vii e conservada n u m a cópia d o século v m 3 8 , e a
lista incluída n o Chronicon Albeldense59, c o n t e n d o os n o m e s das dioceses visi-
góticas, mas escrita d u r a n t e o p e r í o d o da R e c o n q u i s t a cristã n o século x.
A p ó s a invasão m u ç u l m a n a , e m 711, a administração eclesiástica diocesana
foi-se progressivamente desagregando e o p r e d o m í n i o d o r e g i m e das igrejas
próprias (privadas) foi sujeitando o clero à influência dos p o d e r e s senhoriais.
A m e d i d a q u e avançamos para os séculos ix e x a m e m ó r i a d o antigo q u a d r o
eclesiástico administrativo dos Suevos e Visigodos t o m o u - s e , c o m efeito, vaga.
N o s séculos ix/x, o p r o g r a m a r e p o v o a d o r da m o n a r q u i a asturiana-leonesa
incluiu c o m o p o n t o s f u n d a m e n t a i s a restauração da vida diocesana e seu c o n -

141
A CONSTRUÇÃO DE UMA IGREJA

trolo pela autoridade régia 4 0 . Paralelamente assistiu-se à erecção d e novas d i o -


ceses c o m o n o - l o atesta a crónica albeldense, q u e o f e r e c e u m q u a d r o da o r -
ganização eclesiástica do r e i n o asturiano-leonês.

O ESPAÇO ECLESIÁSTICO EM TERRITÓRIO


PORTUGUÊS (1096-1415)*
E N T R E O Ú L T I M O Q U A R T E L D O S É C U L O XI e m e a d o s d o s é c u l o X I I I , as i n s t i t u i -
ções eclesiásticas da cristandade latina do Ocidente, sob a coordenação do Papa e
da cúria pontifical romana, autonomizavam-se relativamente ao p o d e r imperial,
ao m e s m o t e m p o que encorajavam o m o v i m e n t o expansionista das Cruzadas e
p r o m o v i a m o protagonismo político-militar de potentados laicos q u e as d e f e n -
dessem. Nesse m e s m o espaço geopolítico, a organização clerical consolidou p r o -
gressivamente ao longo deste período u m c o n j u n t o amplo de privilégios estatu-
tários (as sempre invocadas e d e n o d a d a m e n t e defendidas «liberdades eclesiásticas»,
a saber, isenção fiscal, isenção de obrigações militares e autonomia jurisdicional —
incluindo o direito de asilo), consignados n o Corpus Iuris Canoniá.
N o s reinos peninsulares, o crescimento destas instituições fez-se e m estreita
articulação c o m o p o d e r soberano dos reis, e m virtude d o particular e n q u a d r a -
m e n t o da conquista d o Al-Andalus. E m Portugal, entre 1096 e 1249, a corte
dos condes D . H e n r i q u e e D . Teresa e dos reis seus descendentes, estirpe fide-
líssima a R o m a , afirmava a sua superioridade político-militar ao l o n g o da faixa
ocidental da Península Ibérica a sul d o rio M i n h o , primeiro sobre o território
constituído pelos antigos condados de Portugal e C o i m b r a (1096-1139), depois
pela Estremadura (1139-1147) e, finalmente, pela Beira Baixa e A l e n t e j o até à
costa algarvia (1147-1249). Estabelecia-se assim a unidade política conhecida c o -
m o reino de Portugal e d o Algarve até 1415 — data e m q u e D . J o ã o I acres-
c e n t o u o senhorio de C e u t a à intitulação dos reis de Portugal, c o r r e s p o n d e n t e
ao primeiro alargamento do espaço tutelado pela sua C o r o a .
D e t e n t o r de g r a n d e parte dos c o n h e c i m e n t o s técnicos então disponíveis,
principal sustentáculo intelectual da cúria régia, o clero m o l d o u o espaço
p o r t u g u ê s à sua própria administração fiscal e judicial s e g u n d o a antiga tradi-
ção h i s p a n o - g o d a adaptada às contingências próprias da conquista para sul.
A o l o n g o dos séculos XII e XIII, o clero secular estruturou nos territórios
diocesanos u m a organização eclesiástica, articulada e m três níveis: o mais ele-
vado, a cidade cabeça de diocese — civitas; o nível i n t e r m é d i o , dos arcediaga-
dos e / o u arciprestados (ausentes nas dioceses c o m administração mais c e n t r a -
lizada); e, finalmente, as paróquias ou freguesias.
C o t e j a n d o o c o n c e i t o de «burocracias gémeas» utilizado p o r J a c k G o o d y
para referir a estreita interligação entre a administração civil e eclesiástica na
Idade M é d i a europeia, a administração régia e a administração eclesiástica
c o n f i g u r a r a m o m e s m o espaço s e g u n d o a sua própria organização, g e r a n d o
«geografias sobrepostas» — e c o m p l e m e n t a r e s , p o r q u e t u t e l a n d o gentes e ins-
tituições diversas. O u m e l h o r , dimensões diversas da vivência das mesmas
gentes sob a tutela de diferentes instituições.
Assim, entre o p e r í o d o d o g o v e r n o d o c o n d e D . H e n r i q u e e o período d o
reinado de D . J o ã o I anterior à conquista de Ceuta e ao Concílio de C o n s t a n -
ça/Basileia (1415-1417), o espaço territorial p o r t u g u ê s foi organizado pela I g r e -
j a e m n o v e territórios diocesanos, quase t o d o s herdeiros das antigas dioceses
visigóticas. E r a m eles, e p o r o r d e m cronológica da restauração/criação, Braga
(arquidiocese), C o i m b r a , P o r t o , Lamego, Viseu, Lisboa (arquidiocese a partir
de 1393), Évora, Algarve (Silves) e Guarda.
Alguns espaços situados nas franjas fronteiriças de Portugal n ã o se e n q u a -
dravam nesta organização diocesana: o E n t r e M i n h o e Lima (administração
de Valença), p r i m e i r o p e r t e n c e n t e à diocese de T u i , depois a u t ó n o m o e t e m -
porariamente ligado à novel diocese de C e u t a e, finalmente, integrado na arqui-
diocese de Braga n o princípio d o século xvi; o quase-enclave de São Pedro d e
T o u r é m , p e r t e n c e n t e ao arcediagado de Lima da diocese de O r e n s e — pelo
*Bernardo de Sá Nogueira m e n o s até ao século xiv; as terras de R i b a c o a (inicialmente pertencentes à d i o -

142
ORGANIZAÇÃO ECLESIÁSTICA DO ESPAÇO

M a p a das metrópoles
eclesiásticas (reproduzido in
J o s é Mattoso, História de
Portugal, 11, p. 39).

cese de C i d a d e R o d r i g o e, depois, integradas na diocese de Lamego); e, p o r


fim, C a m p o Maior, O u g u e l a e Olivença, até ao início d o reinado de D . J o ã o I
freguesias da diocese de Badajoz para, após p e r í o d o de administração a u t ó n o -
ma, os seus r e n d i m e n t o s serem atribuídos à diocese de C e u t a , j á fora d o e n -
q u a d r a m e n t o cronológico q u e nos p r o p o m o s tratar (1444), sendo o território
administrado pelo arcediago de Olivença, sob tutela d o arcebispo de Braga.
A l é m de o território tutelado pelos reis de P o r t u g a l e d o Algarve n ã o
coincidir e x a c t a m e n t e c o m os territórios sob administração dos bispados c o m
sede nesse território, e n t r e 1199 e 1393 as dioceses de Lisboa, Guarda, É v o r a e
L a m e g o f o r a m sufragâneas da m e t r ó p o l e arquidiocesana de Santiago d e
C o m p o s t e l a , após decisão papal n o s e g u i m e n t o de disputa p r o l o n g a d a e n t r e
as arquidioceses bracarense e compostelana — desde 1120. D u r a n t e o m e s m o
p e r í o d o , e m contrapartida, a arquidiocese de Braga foi m e t r o p o l i t a , além das
dioceses portuguesas d o P o r t o , Viseu e C o i m b r a , das dioceses g a l a i c o - l e o n e -
sas de Astorga, T u i , O r e n s e e M o n d o n h e d o . Q u a n t o à diocese de Silves, o
seu bispo devia obediência ao m e t r o p o l i t a d e Sevilha.
P o r o u t r o lado, havia áreas d e n t r o de cada espaço diocesano q u e se e x i -
m i a m (em m a i o r o u m e n o r grau) à tutela da autoridade episcopal. C o m efei-
to, apoiadas e m privilégios c o n c e d i d o s pelos reis e c o n f i r m a d o s (ou o u t o r g a -
dos) pelos papas, e m certas zonas d o território p o r t u g u ê s algumas instituições
monásticas (por e x e m p l o , os mosteiros cistercienses, o M o s t e i r o de Santa
C r u z de C o i m b r a e m Leiria, os T e m p l á r i o s e m T o m a r e os Hospitalários n o
Crato) t i n h a m sobre si g o v e r n o quase a u t ó n o m o — r e c o n h e c e n d o o b e d i ê n -
cia ao superior da respectiva o r d e m , o u d i r e c t a m e n t e ao Papa. E m b o r a c o m
força decrescente a partir d o século x m e, s o b r e t u d o , d o século xiv, u m n ú -

143
A CONSTRUÇÃO DE UMA I G R E J A

m e r o significativo de freguesias n o N o r t e / C e n t r o senhorial eram tuteladas


por padroeiros leigos — exercendo direitos adquiridos p o r herança (ou usur-
pação) dos fundadores da respectiva igreja paroquial.
O padroado laico, evolução do antigo regime j u r í d i c o da ecclesia própria,
fazia c o m que os patronos tivessem sobre as igrejas, entre outros direitos, o de
n o m e a r e m o pároco. M u i t o enraizado nas dioceses o n d e preponderava o siste-
ma senhorial, o regime do padroado leigo conferia aos descendentes dos f u n -
dadores das igrejas e mosteiros u m c o n j u n t o de direitos significativos sobre o
respectivo governo e património. Ao l o n g o dos séculos XII e XIII, várias f a m í -
lias da nobreza transferiram para os mosteiros p o r si patrocinados esses direi-
tos. Assim, nos bispados de Braga, Porto, L a m e g o e C o i m b r a , casas m o n á s t i -
cas c o m o P o m b e i r o , Santo Tirso, Grijó, Paço de Sousa, Arouca e Santa C r u z
de C o i m b r a exerciam influência considerável sobre o eclesiástico paroquial
da diocese o n d e se encontravam implantados.
Por isso, a autoridade episcopal sobre a totalidade dos territórios diocesa-
nos (sobretudo nos bispados do N o r t e senhorial) só se afirmaria l e n t a m e n t e a
partir do século XIII, graças em parte ao apoio colhido pelos bispos na corte
dos reis de Portugal, n u m intercâmbio frutuoso entre o episcopado e o p a -
droado régio 4 1 .
A questão da origem das paróquias, analisada p o r Miguel de Oliveira e
José Mattoso n o seguimento do estudo de Pierre David dedicado ao parochiale
suévico 4 2 , só ficará definitivamente apurada após análise exaustiva da organi-
zação paroquial em cada diocese portuguesa. Refira-se que as freguesias v i -
ram os seus limites demarcados c o m crescente minúcia pela hierarquia dioce-
sana entre o século xii e o início do século xiv, independentemente de terem
emergido dos antigos centros jurídicos da administração clerical do p e r í o d o
h i s p a n o - r o m a n o ou suévico (restaurados após a conquista) ou das igrejas p a r -
ticulares fundadas durante a Alta Idade Média. E x i g i a m - n o a cobrança dos
direitos eclesiásticos (sobretudo o dízimo) e a necessidade de fazer c o r r e s p o n -
der u m a hierarquia b e m definida a cada área geográfica delimitada c o m exac-
tidão, de m o d o a garantir u m a tutela rigorosa sobre a ecclesia (no q u e se refere
à jurisdição do clero) e a christianitas (principalmente a determinação do c u m -
p r i m e n t o das obrigações dominicais pelos fiéis).
Para o período proposto, este texto c o n t é m u m a descrição do espaço
eclesiástico estruturado em cada u m dos territórios diocesanos localizados e m
território português, precedida da indicação dos trabalhos de historiografia
sobre o tema da geografia eclesiástica portuguesa na Idade Média e das fontes
de informação utilizadas para o estudar. Essa descrição inclui, para cada d i o -
cese, a organização paroquial (com especial referência ao padroado régio) e a
distribuição das principais ordens religiosas (incluindo as militares) 43 .

A geografia eclesiástica O ESTADO ACTUAL DOS CONHECIMENTOS sobre a organização do espaço pelas
instituições eclesiásticas e m Portugal durante a Idade Média não é h o m o g é n e o
portuguesa na época
para todas as áreas do território. O m e n o r interesse relativo dos historiadores
medieval: estudos, fontes por determinadas dioceses ou áreas da administração eclesiástica deve-se, c o m
frequência, à escassa informação que conseguem recolher nas poucas fontes dis-
poníveis. C o m efeito, se a documentação é abundante para as dioceses de Bra-
ga, Porto e Coimbra e menos para as de Lamego e Viseu, já para os territórios
diocesanos de Lisboa e Évora ela só é significativa a partir da segunda metade
do século XIII e século xiv. Q u a n t o a Guarda e a Silves, as fontes de informa-
ção escrita relativas ao período e m apreço são insuficientes. Acresce que, para
este período e para as dioceses d o C e n t r o / S u l e Interior, o grosso do trabalho
de investigação se fundamenta e m documentação avulsa — p o r ausência de sé-
ries semelhantes às existentes para os territórios do N o r t e / C e n t r o e Litoral.
A preocupação de enquadrar n o espaço a implantação das instituições
eclesiásticas n o território português durante a Idade Média não é recente na
historiografia portuguesa, encontrando-se pelo m e n o s desde o século x v m
e m J o ã o Baptista de Castro 4 4 . Já n o século xx, Fortunato de Almeida, A u g u s -
to Vieira da Silva, Miguel de Oliveira 4 5 e, depois, as monografias pioneiras de
Avelino de Jesus da Costa e José Mattoso sobre o território arquidiocesano

144
ORGANIZAÇÃO ECLESIÁSTICA DO ESPAÇO

de Braga (até ao século xiv) e os mosteiros da diocese d o P o r t o 4 6 abriram ca-


m i n h o a n u m e r o s o s estudos centrados nesta perspectiva.
Aqueles trabalhos, j u n t a m e n t e c o m os de Maria H e l e n a da C r u z C o e l h o
(mosteiro de A r o u c a , séculos x-xin), D o m M a u r C o c h e r i l (mosteiros cister-
cienses), José M a r q u e s (arquidiocese de Braga, século xv), Iria Gonçalves
(Mosteiro de Alcobaça, séculos xiv-xv) e A n a Maria R o d r i g u e s (colegiadas
de T o r r e s Vedras, séculos xiv-xv), são raízes i m p o r t a n t e s da historiografia d o
p e r í o d o m e d i e v a l n o d o m í n i o da geografia eclesiástica 47 . D e s d e o final dos
anos 8o, os historiadores da Idade M é d i a portuguesa t ê m d a d o n u m e r o s o s
c o n t r i b u t o s (muitos dos quais sob a f o r m a d e dissertações de mestrado, i n é d i -
tas) para o esclarecimento progressivo da organização d o espaço territorial
p o r t u g u ê s pelas instituições eclesiásticas — seculares e regulares. As institui-
ções eclesiásticas d e alguns territórios diocesanos t ê m m e r e c i d o mais atenção.
É o caso das dioceses de Lisboa — c o m os trabalhos d e P e d r o Barbosa
(mosteiros de Alcobaça e C ó s , até 1325)48, M a n u e l a Santos Silva (colegiadas
de Óbidos) 4 9 , Sílvio C o n d e e Maria de Fátima B o t ã o (colegiada de Santa
Maria da Alcáçova de Santarém) 5 0 , J o e l M a t a (mosteiro de Santos) 5 1 , F i l o m e -
na A n d r a d e (mosteiro de Cheias) 5 2 , José Varandas (mosteiro de Almoster) 5 3 ,
Carlos Silva (mosteiro d e São V i c e n t e de Fora) 5 4 e Inez M a r q u e s (colegiada
de São M a r t i n h o de Sintra) 5 5 — , C o i m b r a — investigações de Maria José
A z e v e d o Santos (Mosteiro de São Paulo de Almaziva), 5 6 Maria d o R o s á r i o
M o r u j ã o (mosteiro d e Celas de Guimarães) 5 7 , Saul G o m e s (Mosteiro de San-
ta C r u z ) 5 8 e R u i M a r t i n s (mosteiro de Semide) 5 9 — e Braga — estudos de
Maria Alegria Fernandes M a r q u e s (padroado régio e m igrejas e mosteiros) 6 0 ,
Cláudia R a m o s (colegiada de Guimarães) 6 1 , Sérgio Lira (Mosteiro de São Si-
m ã o da Junqueira) 6 2 , Maria d o R o s á r i o Bastos (Mosteiro de Santa Maria da
Oliveira) 6 3 e A n a Barros, Cristina C a r v a l h o e Alexandra N o g u e i r a (cabido de
Braga) 64 . M e r e c e r a m t a m b é m a atenção dos investigadores as dioceses d o P o r -
to, C i d a d e R o d r i g o (parte portuguesa), T u i (parte portuguesa) e Évora, c o m
os trabalhos de Luís Amaral (mosteiro de Grijó) 6 5 , Júlia Castro (mosteiro das
dominicanas de Gaia) 66 , A n t ó n i o Balcão Vicente (Mosteiro de Santa Maria de
Aguiar) 6 7 , Teresa de Jesus R o d r i g u e s (administração de Valença) 6 8 e H e r m í -
nia Vilar (diocese de Évora) 6 9 . F i n a l m e n t e , u m a referência a trabalhos relati-
vos a instituições n ã o confinadas a u m a só diocese, a b r a n g e n d o áreas t e r r i t o -
riais mais vastas o u m e s m o a totalidade de Portugal: é o caso das ordens
militares — Cristina C u n h a ( O r d e m de Avis) 70 , M á r i o C u n h a ( O r d e m de
Santiago) 7 1 , Paula Costa ( O r d e m d o Hospital) 7 2 — e d o p a d r o a d o régio —
B e r n a r d o de Sá N o g u e i r a (igrejas e mosteiros d o p a d r o a d o régio) 7 3 .
G r a n d e parte da i n f o r m a ç ã o utilizada pelos historiadores t e m sido colhida
e m d o c u m e n t a ç ã o p r o d u z i d a pelas administrações eclesiástica e régia e p r e -
servada nos antigos arquivos dos mosteiros, cabidos, colegiadas e da C o r o a .
E m primeiro lugar os cartulários. Estas compilações de d o c u m e n t o s (cartu-
Iaé) — sobretudo patrimoniais — f o r a m ordenadas pelas instituições eclesiásti-
cas, principalmente cabidos e mosteiros, c o m a intenção de garantir q u e a m e -
m ó r i a dos actos registada apenas e m originais n ã o se perdesse c o m a
deterioração destes. Elaborados a partir dos finais d o século xi, t ê m geralmente
grande relevância para o estudo da organização d o espaço pelas instituições q u e
p r o m o v e r a m essa elaboração. C o m a d o c u m e n t a ç ã o n o r m a l m e n t e ordenada
p o r sequência de propriedades, espelhando a natureza orgânica d o arquivo sub-
jacente, é correcto afirmar-se q u e cada cartulário p e r m i t e cartografar o patri-
m ó n i o da instituição q u e o m a n d o u fazer n o m o m e n t o da sua elaboração.
D e entre os cartulários refiram-se e m especial os t o m b o s d e n o m i n a d o s
censuais, registos das obrigações de natureza diversa q u e vinculavam os foreiros
à instituição proprietária dos prédios q u e exploravam. Especialmente i m p o r t a n -
tes a n o r t e do D o u r o , permitiram a Avelino de Jesus da Costa reconstituir e
interpretar a organização de u m a parte importante do espaço diocesano braça-
rense a partir d o fim d o século xi.
O u t r a i m p o r t a n t e f o n t e de i n f o r m a ç ã o é constituída pelas listas de igrejas.
A mais i m p o r t a n t e é a de 1320-1321, publicada p o r F o r t u n a t o de Almeida, ela-
borada para avaliar os direitos fiscais p e r t e n c e n t e s e m território p o r t u g u ê s ao

145
A CONSTRUÇÃO D E UMA IGREJA

fisco pontifical r o m a n o q u e iriam ser doados pelo papa J o ã o X X I I a D . Dinis.


Este inventário, principal f o n t e de i n f o r m a ç ã o utilizada pelos historiadores
para quantificar o n ú m e r o de freguesias existente e m território p o r t u g u ê s d u -
rante a Idade M é d i a , constitui a base principal d o presente estudo 7 4 .
R e l e v a n t e s são t a m b é m as listas de igrejas d o p a d r o a d o régio, provável-
m e n t e elaboradas na chancelaria régia. A mais antiga, d o reinado d e D . A f o n -
so II, é u m simples inventário das igrejas q u e p e r t e n c i a m e m cada diocese ao
padroado dos reis de Portugal; das restantes, elaboradas nos reinados de
D . A f o n s o III e D . Dinis, constam as n o m e a ç õ e s («apresentações») dos párocos
a essas igrejas. Estas listas especificam o n o m e d o apresentado, o seu estatuto,
o n o m e da igreja, a diocese e m q u e se encontrava e a data da apresentação d o
p á r o c o pelo p a t r o n o (neste caso o rei) à c o n f i r m a ç ã o d o bispo. P e r m i t e m , p o r
isso, reconstituir a cartografia da malha administrativa eclesiástica tutelada pela
C o r o a e m cada diocese. Existentes para os períodos de 1259-1270 e 1279-1321,
são mais significativas, e m t e r m o s qualitativos e quantitativos, para o reinado
de D . Dinis, conservando-se possivelmente na totalidade n o s e g u n d o p e r í o d o .
C o n s t i t u e m a segunda principal f o n t e de i n f o r m a ç ã o deste texto 7 5 .
O u t r a fonte régia de grande relevo para o estudo da geografia eclesiástica
portuguesa são as inquirições gerais. Estes inquéritos, conduzidos pelos oficiais
da administração régia entre os reinados de D . Afonso II e D . Afonso IV, f o r n e -
c e m informação valiosa sobre a tutela patronal das igrejas paroquiais, por u m la-
do, e os direitos jurisdicionais das instituições eclesiásticas nos territórios dioce-
sanos de T u i (administração d e Valença), Braga, P o r t o , L a m e g o , Viseu,
C o i m b r a e Guarda. Para a diocese de Lisboa, apenas f o r n e c e m informação rela-
tiva ao património das ordens militares. Maria Alegria Fernandes Marques utili-
zou as alçadas de 1258 para estudar o padroado régio na arquidiocese de Braga.
D e e n t r e a d o c u m e n t a ç ã o avulsa, m e r e c e referência especial o c o n j u n t o
de d o c u m e n t o s judiciais relativos a litígios. P o r e x e m p l o , os litígios travados
entre as diversas administrações diocesanas sobre os limites fronteiriços das
mesmas — s o b r e t u d o d u r a n t e o século x i n . São p a r t i c u l a r m e n t e significativos
os c o n j u n t o s relativos à diocese da G u a r d a ( c o m C o i m b r a , Viseu e Évora),
sendo i g u a l m e n t e de destacar os q u e se r e f e r e m aos conflitos entre C o i m b r a e
P o r t o (século x n ) . B o a parte desta i n f o r m a ç ã o é colhida e m sentenças p r o f e -
ridas p o r juízes apostólicos, c o m p o d e r e s delegados pelo Papa para d i r i m i r e m
os conflitos q u e o p u n h a m as diversas dioceses. Litígios t a m b é m d e n t r o de ca-
da diocese: entre bispos e cabidos, pela administração das rendas da diocese; e
entre a hierarquia secular diocesana e as c o m u n i d a d e s monásticas c o m privi-
légios de isenção, n o r m a l m e n t e sobre direitos fiscais e jurisdicionais.

A geografia eclesiástica ENTRE o s FINAIS DO SÉCULO XI e O p r i m e i r o quartel d o século xv, a j ú r i s -


dição eclesiástica n o território s e n h o r e a d o p o r el-rei de Portugal e d o Algar-
portuguesa na época
v e dividia-se p o r 13 dioceses: T u i , O r e n s e , Braga, P o r t o , C o i m b r a , Viseu,
medieval: territórios L a m e g o , C i d a d e R o d r i g o , Guarda, Badajoz, Lisboa, É v o r a e Algarve (Silves).
diocesanos A exposição q u e se segue p e r c o r r e a totalidade d o território medieval
p o r t u g u ê s , de n o r t e para sul. Analisa as fronteiras de cada diocese c o m as v i -
zinhas, o a g r u p a m e n t o das freguesias (incluindo, sem diferenciação, igrejas
paroquiais e particulares) n o interior de cada espaço diocesano, a presença d o
p a d r o a d o régio nos diversos bispados (indicadora da p r o x i m i d a d e e n t r e o cie-
ro ao serviço da C o r o a e a administração eclesiástica d e cada diocese) e, final-
m e n t e , a i m p o r t â n c i a relativa das ordens religiosas (incluindo o r d e n s milita-
res) e m cada u m deles.

TUI (PARTE PORTUGUESA)


L i m i t e s — A t é aos finais d o século xiv, o território d o E n t r e M i n h o e
Lima p e r t e n c e u à diocese de T u i , apesar d e integrado n o s e n h o r i o de el-rei
de Portugal. O s seus limites naturais são perfeitos: o c e a n o Atlântico a oeste,
rio M i n h o a norte, rio Lima a sul. A leste a fronteira c o m o território galaico
da diocese tudense — d o s e n h o r i o de el-rei de Castela e Leão — era quase
exclusivamente definida na região de Castro Laboreiro p o r afluentes dos rios
M i n h o e Lima.

146
ORGANIZAÇÃO ECLESIÁSTICA DO ESPAÇO

A historiografia refere-se-lhe c o m o administração (ou c o m a r c a eclesiásti-


ca) de Valença — principal c e n t r o político da região. S e g u n d o A. H . Oliveira
Marques, «devido às consequências d o G r a n d e Cisma d o O c i d e n t e e d o I o n -
go conflito político-militar c o m Castela», e m 1381 o clero elegeu os seus p r ó -
prios administradores eclesiásticos «separando-se de facto» da diocese de Tui 7 6 .
Já fora d o â m b i t o c r o n o l ó g i c o p r o p o s t o para este artigo, e m 1444, os r e n d i -
m e n t o s eclesiásticos d o território ( j u n t a m e n t e c o m os de C a m p o M a i o r e O l i -
vença, antigos territórios da diocese de Badajoz) seriam anexados à r e c é m -
-criada diocese de C e u t a , t o t a l m e n t e desprovida de meios de subsistência. E m
1512, a administração de Valença foi finalmente integrada na arquidiocese de
Braga. R e c o r d e - s e q u e o território se encontrava, até 1393, i n d i r e c t a m e n t e d e -
p e n d e n t e d o arcebispo bracarense, m e t r o p o l i t a do bispo de T u i .

F r e g u e s i a s m e d i e v a i s — S e g u n d o Oliveira M a r q u e s , o território estava


dividido e m cerca de 180 freguesias, agrupadas e m seis zonas maiores 7 7 .
A lista de 1320, publicada p o r F o r t u n a t o de Almeida 7 8 , indica-nos os n o -
mes dessas zonas e das freguesias q u e existiam e m cada u m a delas. A oeste,
a b r a n g e n d o a costa atlântica, a terra de Viana (onde e n c o n t r a m o s , entre o u -
tras, as igrejas de Viana, C a m i n h a , Afife, A n c o r a e os mosteiros de São Salva-
d o r da T o r r e e Cabanas). A n o r t e , rio M i n h o acima, situavam-se dois g r u p o s
de freguesias: o arcediagado de Cerveira (incluindo, e n t r e outras, as igrejas de
Cerveira, M o n ç ã o , Valença, C o u r a , R u i v ã e s e Silva, b e m c o m o os mosteiros
masculinos de Sanfins de Friestas, Ganfei e Arga e o f e m i n i n o de V a l b o m ) e,
depois, a terra de Valadares (igrejas de Castro Laboreiro, M e l g a ç o , Penso,
Porta, e mosteiros de P a d e r n e e Fiães, entre outros). A sul, s u b i n d o o rio Li-
ma, o arcediagado de Labruja (igrejas de Labruja, Calheiros, Arcozelo, R i o
Frio, Estorãos, Bertiandos, e m o s t e i r o de R e f o j o s de Lima, entre outros), t e r -

A Mapa das dioceses


medievais portuguesas.

Portal da Igreja Matriz de


Viana do Castelo (século xv).
FOTO: N U N O CALVET/ARQUIVO
C Í R C U L O DE LEITORES.

147
A CONSTRUÇÃO DE UMA IGREJA

ra de Valdevez (igrejas de Valdevez, A b o i m , Giela e Soajo e mosteiros de


M i r a n d a e E r m e l o , e n t r e outros) e terra d e T á v o r a (igrejas de Santa Maria,
São M a r t i n h o e Santa Cristina de Távora, S o u t o e Padreiro) 7 9 .
A influência d o padroado régio era significativa, e m articulação c o m o cie-
ro de T u i . N a transição entre os séculos XIII e x i v o rei era padroeiro nesta r e -
gião dos mosteiros de Santa Maria de E r m e l o , Arga, Sanfins de Friestas, G a n -
fei, São Salvador da T o r r e , São J o ã o de Cabanas e Santa Maria de M i r a n d a de
Valdevez, o u t o r g a n d o a eleição dos abades feita pelos respectivos c o n v e n t o s e,
c o m o era de regra, apresentando-os à confirmação d o bispo de Tui 8 0 .
D u a s das cerca de 8o apresentações a igrejas d o p a d r o a d o régio n o E n t r e
M i n h o e Lima entre 1279 e 1321 e v i d e n c i a m ligações institucionais e pessoais
dos apresentados ao clero de T u i e à administração régia 8 1 .

O r d e n s r e l i g i o s a s — O s mosteiros existentes na parte portuguesa da


diocese d e T u i c o r r e s p o n d i a m , na quase totalidade, a c o m u n i d a d e s fundadas
n o século xi q u e a d o p t a r a m os costumes da regra b e n e d i t i n a r e f o r m a d a p o r
C l u n y mas n ã o p e r t e n c i a m à o r d e m d o m o s t e i r o b o r g o n h ê s . C o m o refere
José M a t t o s o , ao contrário d o q u e se o b s e r v o u nas dioceses de Braga e P o r t o ,
a larguíssima maioria dos mosteiros criados na região da administração de V a -
lença e m data anterior a 1100 m a n t e v e - s e para além de 1200 82 .
O s mosteiros de P a d e r n e (Melgaço) e R e f o j o s d o Lima ( P o n t e de Lima)
t o r n a r a m - s e canonicais, r e c e b e n d o c o m u n i d a d e s de c ó n e g o s regrantes de
Santo A g o s t i n h o , antes d o final d o século XII. O p r i m e i r o fora antes u m c o n -
vento feminino.
T a m b é m localizado p r ó x i m o de M e l g a ç o , o antigo mosteiro b e n e d i t i n o
de Santo A n d r é de Fiães transitou para O r d e m de Cister n o final d o sécu-
lo XII83. E m b o r a D o m M a u r C o c h e r i l o identifique c o m o cisterciense, o
mosteiro de E r m e l o ainda pertencia ao p a d r o a d o régio e m 1305.
E m 1320 o p a d r o a d o da igreja de R i o Frio, n o arcediagado d e Labruja,
era da O r d e m de Cristo.

ORENSE
Localizado a n o r t e d o arcediagado bracarense de Barroso, o p e q u e n o t e r -
ritório de T o u r é m , qual espigão encravado e m terras galegas, «chegou a estar
i n c o r p o r a d o na diocese de Orense» 8 4 .
N a s listas das apresentações de párocos às igrejas d o p a d r o a d o régio d u -
rante os reinados d e D . A f o n s o III e D . Dinis f i g u r a m várias n o m e a ç õ e s à
Igreja de São P e d r o d e T o u r é m (datadas de 1248 a 1270 e de 1289 a 1319), c o -
m o parcialmente p e r t e n c e n t e aos reis de Portugal e integrada n o arcediagado
de Lima da diocese de O r e n s e 8 5 .
E m 18 de O u t u b r o de 1284, o rei exercia o direito de p a d r o a d o i n e r e n t e à
posse da terça parte da igreja de R u i v ã e s , n o m e a n d o para ela c o m o p á r o c o o
clérigo M a r t i m R o d r i g u e s . Esta igreja surge i g u a l m e n t e referida c o m o p e r -
t e n c e n t e à diocese d e O r e n s e 8 6 .

BRAGA
L i m i t e s — Desorganizada a administração eclesiástica após a conquista
m u ç u l m a n a de 711, a diocese de Braga só voltaria a ser restaurada e m 1070,
pelo bispo D . P e d r o . Para esta restauração c o n t r i b u i u decisivamente a e x t i n -
ção da dinastia asturiana-leonesa e m 1037, u m a vez q u e os reis d e O v i e d o e
Leão h a v i a m favorecido a m a n u t e n ç ã o de Braga sob tutela, p r i m e i r o , de L u -
go (até à primeira m e t a d e d o século x) e, depois, de I r i a / C o m p o s t e l a . C o m o
m o s t r o u Avelino de Jesus da Costa, o bispo D . P e d r o foi o g r a n d e i m p u l s i o -
n a d o r da organização da diocese, trabalho esse q u e seria c o n t i n u a d o pelo seu
sucessor, São Geraldo 8 7 . Posta e m perigo a autoridade dos arcebispos entre a
m o r t e d o c o n d e D . H e n r i q u e e o ascenso de D . A f o n s o H e n r i q u e s (1112-
-1128), d e v i d o às pressões exercidas pelo arcebispo de C o m p o s t e l a e barões
galegos n o sentido d e reintegrar o território portucalense na Galiza, a partir
da «primeira tarde portuguesa» n ã o mais seria questionada a p r e e m i n ê n c i a
bracarense e m território português 8 8 .

148
ORGANIZAÇÃO ECLESIÁSTICA DO ESPAÇO

O território diocesano de Braga era, a seguir ao de Évora, o mais extenso


das dioceses portuguesas. Se c o m e ç a r m o s pela costa atlântica, a arquidiocese
iniciava o seu limite na foz d o A v e e seguia até à foz d o Lima, s u b i n d o este
rio até u m p o u c o acima d o Lindoso. N o início d o século XII, verifica-se q u e
a diocese «se estendia para além de Verin, seguindo a p r o x i m a d a m e n t e u m a
linha recta traçada d e u m p o n t o situado u m p o u c o a n o r t e d o L i n d o s o até às
margens d o rio Rabaçal». O conflito c o m o bispo e cabido d e O r e n s e sobre
estas terras, d e n o m i n a d a s d e Baronceli, m a n t e r - s e - i a d u r a n t e o século XII. A o
l o n g o d o século x m , «a jurisdição de Braga sobre este território seria substi-
tuída pela d o C a b i d o de Orense» 8 9 .
Mais para leste, Braga disputou c o m a diocese de Astorga a região d o ar-
cediagado de Aliste, situado n o e x t r e m o nordeste de T r á s - o s - M o n t e s na r e -
gião a sul d e Puebla de Sanabria. N o T r a t a d o de Alcanises, celebrado entre o
rei D . Dinis e a regência de Castela e Leão (na m e n o r i d a d e d o rei F e r n a n -
d o IV), e r a m d e f i n i t i v a m e n t e resolvidos «os diferendos c o m os bispos d e
O r e n s e e Astorga p o r causa dos territórios de Baronceli e Aliste»90. N e s t e trata-
d o ficaria t a m b é m para s e m p r e marcada a restante fronteira terrestre c o m o
reino de Leão. D e p o i s , a fronteira leste da arquidiocese c o m Samora e C i d a d e
R o d r i g o era f o r m a d a pelo rio D o u r o até Barca de Alva. D a í até à c o n f l u ê n -
cia d o D o u r o c o m o C o r g o , a linha fluvial duriense c o n t i n u a v a a marcar os
limites diocesanos, c o m C i d a d e R o d r i g o (parte portuguesa) e c o m L a m e g o .
C o m e ç a v a m aqui os limites c o m a diocese d o P o r t o , entre as terras de
Panóias (Braga) e P e n a g u i ã o (Porto, ao l o n g o d o C o r g o ) . D e p o i s , a partir da
m a r g e m direita d o C o r g o , a fronteira inflectia para oeste até ao rio T â m e g a ,
na região de A m a r a n t e , ao l o n g o da serra d o M a r ã o , d a n d o a t r a n s m o n t a n a
terra de Panóias lugar à «minhota» terra de Gestaçô (freguesias de C a r n e i r o e
C a n d e m i l ) , d o lado bracarense. D o lado p o r t u e n s e , de leste para oeste, à terra
de P e n a g u i ã o (freguesias de Fontes e M e d r õ e s ) seguiam-se, sucessivamente, a
terra d e Baião e de G o u v e i a e B e n v i v e r (mosteiro de Jazente).
Passado o T â m e g a para a m a r g e m direita, o limite descia até Santo Isidro
e, daí, seguia até ao rio Ave. D o lado de Braga ficavam, p o r e x e m p l o , C o n s -
tance, C a í d e de R e i , Carvalhosa, os mosteiros de São M i g u e l de Vilarinho e
R o r i z , e R e b o r d õ e s , nas zonas definidas pela lista de 1320 c o m o terras de
Sousa, de Ferreira e de Negrelos. D o lado d o P o r t o , nas terras de M e i n e d o ,
Penafiel de Sousa, Aguiar de Sousa e R e f o j o s , ficavam São M a m e d e de R e -
cezinhos, o m o s t e i r o de Bustelo, F r e a m u n d e , Santa Eulália de Paços de F e r -
reira, e os mosteiros de Santo Tirso e de M o n t e C ó r d o v a 9 1 . A linha divisória
atingia o rio A v e na região entre Santo Tirso (Porto) e R e b o r d õ e s (Braga).
O rio A v e estabelecia a parte final d o limite e n t r e a arquidiocese de Braga
(arcediagados d e V e r m o i m e Faria) e a diocese d o P o r t o (terras de R e f o j o s e
da Maia) até ao mar.

F r e g u e s i a s m e d i e v a i s — José M a r q u e s s u b l i n h o u j á a fluidez (e p r o -
gressiva atomização) das áreas da administração eclesiástica e n t r e m e a d o s d o
século XII e m e a d o s d o século x m e a falta de c o r r e s p o n d ê n c i a e n t r e estas d i -
visões e as da administração régia n o m e s m o território (julgados e terras) 9 2 .
O s limites acima traçados m o s t r a m c o m o o território diocesano de Braga
era vastíssimo, f a z e n d o fronteira c o m nada m e n o s q u e 7 dioceses: T u i (parte
portuguesa), O r e n s e , Astorga, Samora, C i d a d e R o d r i g o (parte leonesa e p o r -
tuguesa), L a m e g o e P o r t o . N e l e se e n c o n t r a v a m e m 1320 entre 950 e 1000
paróquias, divididas e m 38 grupos 9 3 .
U m a sequência d e m o n t a n h a s (serras de P e n e d a , Gerês, Cabreira, Alvão e
Marão) separavam a região atlântica m i n h o t a d o interior t r a n s m o n t a n o da
diocese, d e f i n i n d o e m cada u m dos «lados» da linha divisória áreas b e m d e -
marcadas da administração diocesana.
D e n o r t e para sul, a fronteira entre o espaço m i n h o t o e t r a n s m o n t a n o da
arquidiocese era assim definida: d o lado d o M i n h o , n o E n t r e H o m e m e C á -
v a d o p o r terra de B o u r o e n o E n t r e C á v a d o e A v e p o r terra de Vieira; d o la-
d o de T r á s - o s - M o n t e s , p o r terra de Barroso. A linha separadora era f o r m a d a
pelas serras da P e n e d a e Gerês ( B o u r o - B a r r o s o ) e Cabreira (Vieira-Barroso).

149
A CONSTRUÇÃO DE UMA IGREJA

Seguidamente, da parte m i n h o t a a terra de Basto (freguesia de R i o D o u r o ) ,


confinava primeiro c o m Barroso (freguesia de Cambezes), na m a r g e m direita
do Tâmega; depois, na m a r g e m esquerda, c o m terra de Aguiar de Pena, da
qual se encontrava separado pela serra de Alvão e, ainda, c o m a terra de P a -
nóias. A sul de Basto, a terra de Gestaçô t a m b é m lindava c o m terra de
Panóias pelo Marão, t e r m i n a n d o assim a fronteira entre o M i n h o e Trás-os-
- M o n t e s . A localização geográfica da vasta terra de Basto, e m ambas as m a r -
gens do T â m e g a , tornava-a n u m eixo de articulação entre a zona m i n h o t a e
transmontana da diocese, certamente i m p o r t a n t e para a administração dioce-
sana. Mas, tal c o m o hoje, a rota principal entre Braga e Panóias fazia-se p o r
Guimarães, Felgueiras e Amarante (Gestaçô).
Utilizando os censuais de Entre Lima e Ave, das terras de Guimarães e de
M o n t e l o n g o , da terra de Panóias, do couto de Braga e terra de Faria, do sé-
culo xi, o censual do cabido de Braga (da segunda metade do século xiv), a di-
visão dos arcediagados feita em 1145 pelo arcebispo D . J o ã o Peculiar (e a c o n -
firmação de 1188, pelo arcebispo D . G o d i n h o Fernandes), todos publicados p o r
Avelino de Jesus da Costa, a lista de 1320-1321, e a divisão proposta p o r José
Marques para meados do século xv, procuraremos reconstituir o m o d o c o m o a
administração eclesiástica organizou o espaço da diocese nos séculos XII a xiv.
Dada a extensão do território, separá-lo-emos e m M i n h o e Trás-os-Montes.
Mais de quinhentas das quase 1350 apresentações de igrejas constantes das
listas do padroado régio do reinado de D . Dinis (1279-1321) dizem respeito a
cerca de 200 paróquias da arquidiocese de Braga 9 4 . C o m p a r a t i v a m e n t e aos
restantes territórios diocesanos, a influência do padroado régio na arquidioce-
se era grande: e m termos de n ú m e r o de paróquias verificamos que, na vira-
g e m do século x m para o xiv, correspondia a cerca de u m quinto.
A rigorosa análise das inquirições de 1258 efectuada p o r Maria Alegria
Fernandes Marques indica que cerca de 20 % das paróquias bracarenses eram
do padroado régio, ora pelo facto de o respectivo padroado pertencer (total
ou parcialmente) ao rei, ora p o r se localizarem e m herdades foreiras do rei e
se dizerem realengas (sobretudo e m Trás-os-Montes). Valor percentual grosso
modo aproximado, portanto 9 5 .
E m meados do século xv, o padroado régio na arquidiocese estava r e d u -
zido a 60 igrejas — ou seja, o equivalente a cerca de 6 % das cerca de 1050
paróquias então existentes 9 6 .

Freguesias medievais — Minho


N a parte minhota do território arquidiocesano bracarense, a lista de 1320
indica cerca de 750 paróquias repartidas p o r 25 áreas da administração eclesiás-
tica medieval 9 7 . As vinte áreas situadas entre os rios Lima e Ave/Vizela pare-
c e m orientar-se e m função dos rios que c o r r e m para o Atlântico. A sul do V i -
zela, as terras de Negrelos e Ferreira teriam resultado da formação do limite
fronteiriço c o m a diocese do Porto, e n q u a n t o que as terras de Sousa, Basto e
Gestaçô se enquadravam nas bacias do rios Sousa e T â m e g a (as duas últimas).
N o M i n h o , o n ú m e r o de freguesias d o padroado régio era significativo
e m poucas regiões, p r e d o m i n a n d o o p a d r o a d o particular: de p o v o a m e n t o
mais antigo, o eclesiástico da zona m i n h o t a ficara definido antes de se iniciar
o processo de afirmação do p o d e r régio 9 8 .

E N T R E LIMA E C Á V A D O
D u r a n t e a Idade Média, a administração eclesiástica foi gradualmente d i -
vidindo as cerca de 240 freguesias desta região em n o v e zonas 9 9 .
Subindo o rio Lima, encontrava-se primeiro o E n t r e Lima e N e i v a da d i -
visão dos arcediagados de 1145, d e n o m i n a d o e m 1320 terra de Aguiar de N e i -
va. Abrangia então a zona entre os rios Lima e N e i v a e parte da divisão a d -
ministrativa régia de Santo Estêvão de Ribalima 1 0 0 , mas integrava t a m b é m
algumas freguesias até ao C á v a d o (sobretudo correspondentes a mosteiros),
s o b r e p o n d o a sua área de cobertura às do arcediagado de N e i v a e do arce-
diagaâo de E n t r e C á v a d o e N e i v a . Das cerca de 40 freguesias q u e f i g u r a m
n o catálogo-lista de 1320, constam, p o r exemplo, os mosteiros de São R o m ã o

150
ORGANIZAÇÃO ECLESIÁSTICA DO ESPAÇO

d o N e i v a , C a r v o e i r o , B a n h o , P a l m e e M a n h e n t e (este ú l t i m o e x t i n t o n o sé-
culo x v e r e d u z i d o a igreja paroquial) e as igrejas de São T i a g o de Castelo d e
N e i v a , São T i a g o de A n h a , São M a r t i n h o de Vila Fria, Santo A n d r é de V i t o -
rino, São M i g u e l de Facha, Santa Eulália de P a n q u e , São P e d r o de D e ã o ,
Santa Maria de Barco, Santa Leocádia d e Geraz, Santa M a r i n h a de M o r e i r a e
São M a m e d e de Deocriste.
A montante, hoje centrada na vila de P o n t e de Lima, surgia a terra do Prior
do século xi, depois d e n o m i n a d a terra de Penela, que abrangia cerca de 25 igre-
jas e mosteiros, alguns dos quais de Santo Estêvão de Ribalima. Entre outras pa-
róquias, refiram-se os mosteiros femininos de Vitorino das Donas e Cerzedelo e
as igrejas de Santa Maria de R e b o r d õ e s , São P e d r o de Calvelo, São T o m é de
Correlhã, São M a r t i n h o de Gandra, Santa Maria de P o n t e de Lima, São Miguel
de G o n d u f e , Santa Eulália de Godinhaços, São Salvador do Souto, Santa C r u z
de Ribalima, Santa Maria de Duas Igrejas e São P e d r o de Goães.
C o n t i n u a n d o a subir o rio Lima pela m a r g e m esquerda, a última divisão
administrativa, até Lindoso, era o p r i m i t i v a m e n t e d e n o m i n a d o arcediagado
de V a d e (século XII) depois terra da N ó b r e g a ( p r o v a v e l m e n t e a p r o p r i a n d o a
designação da administração régia, articulada e m t o r n o d o Castelo da N ó b r e -
ga). E m 1320, entre as cerca d e 30 paróquias contabilizadas para esta região
(hoje centrada e m P o n t e da Barca), e n c o n t r a v a m - s e os mosteiros de Vila
N o v a de M u í a , São M a r t i n h o de Crasto e Bravães e as igrejas d e São T o m é
de Vade, São P e d r o de Vade, São P e d r o de Codesseda, São M a r t i n h o de P a -
ço V e d r o (de Magalhães), Santa Maria de Covas, São Salvador da N ó b r e g a ,
São T i a g o de Vila C h ã , Santa Maria d e A b o i m , São V i c e n t e de G e r m i l , São Igreja de São Salvador
de Bravães.
M a r t i n h o de Britelo, Santa Eulália de R u i v o s e, n o e x t r e m o oriental da terra,
São M a m e d e de Lindoso. FOTO: JOSÉ M A N U E L OLIVEIRA/
/ A R Q U I V O C Í R C U L O DE
I m e d i a t a m e n t e a sul de terra da N ó b r e g a , descendo ao l o n g o d o rio H o - LEITORES.

151
A CONSTRUÇÃO DE UMA IGREJA

m e m até terra de Prado, estendia-se a longa e estreita faixa c o n h e c i d a c o m o


Regalados n o século xi (designação mantida pela administração régia), arcedia-
gado de Santo A n t o n i n o (de Barbudo) n o século XII e terra d o D e a d o e m 1320
e e m diante. E n t r e as cerca de 45 paróquias d o território, t e n d o p o r centro V i -
la Verde, ficavam o Mosteiro de São Salvador de Valdreu e as igrejas de São
J o ã o de C o u c i e i r o , São Miguel d o Prado (de Regalados), Santa Eulália de Vila
Verde, Santa Maria de B a r b u d o , Santa M a r i n h a de O r i z , São M a m e d e de
Gonderiz, São Julião de Lajes, Santa Maria de Turiz, São Paio de Mós, São
T o m é de Lanhas, São J o ã o de Atães, São T i a g o de Atiães, São M a m e d e de
Marrancos, Santa Maria de Freiriz e São Salvador de Portela das Cabras.
D o o u t r o lado d o rio H o m e m , d e m a r c a d o p o r este e pelo C á v a d o , ficava
u m dos mais c o n h e c i d o s «entre-rios» d o M i n h o : o arcediagado de E n t r e H o -
m e m e C á v a d o , assim d e f i n i d o nas duas divisões dos arcediagados, de 1145 e
1188. E m 1320, p o r é m , j á se havia subdividido e m E n t r e H o m e m e C á v a d o
e terra de B o u r o .
E n t r e H o m e m e C á v a d o abrangia a parcela d o território mais p r ó x i m a da
confluência dos rios. E n t r e as cerca de 20 freguesias avaliadas e m 1320, esta-
v a m o m o s t e i r o de R e n d u f e e as igrejas de São Salvador de Orneias, São M i -
guel de Fiscal, São M a r t i n h o de Carrazedo, Santa Maria de Caires, São Salva-
dor de Amares, São M i g u e l do P o r t o , São Paio de Sequeiros, São P e d r o d e
Figueiredo e São Paio de Besteiros.
A m o n t a n t e , fazendo a fronteira c o m o arcediagado transmontano do B a r -
roso nas serras da Peneda e Gerês, o entre-rios passara entretanto a designar-se
terra de B o u r o , por ter c o m o centro principal o mosteiro cisterciense de Santa
Maria de B o u r o . E n t r e as cerca de 20 paróquias levantadas, refiram-se São J o ã o
de C a m p o , São Salvador do S o u t o , São J o ã o de R i o Caldo, São T i a g o d e
C h a m o i m , São J o ã o de Balança, Santa M a r i n h a d e C h o r e n c e , São Paio
de Carvalheira, São Paio de C e r a m i l e Santa M a r i n h a de Valdosende.
N a restante zona d o E n t r e Lima e C á v a d o , a sul d o N e i v a e a oeste d o
rio Febros, as divisões dos arcediagados de 1145 e 1188 i n d i c a m duas zonas:
E n t r e C á v a d o e N e i v a e arcediagado de Neiva 1 0 1 . E m 1320, a região dividia-
-se e m três áreas: o E n t r e C á v a d o e N e i v a passara a d e n o m i n a r - s e M e s t r e - E s -
colado, c o m o sugere José Marques 1 0 2 , a terra de T a m e l a u t o n o m i z a r a - s e c o -
m o zona da administração eclesiástica e o arcediagado de N e i v a abrangia a
m a i o r parte deste território. T o d o s os mosteiros destas três sub-regiões s u r -
giam agrupados à terra de Aguiar de N e i v a , já atrás referida.
E n t r e as cerca d e 20 freguesias da terra d o Mestre-Escolado, situada e m
t o r n o da vila de Barcelos e d o mosteiro de Palme (agrupado a Aguiar d e
Neiva), s u r g e m as igrejas de Santa Maria de Barcelos, Santa Logriça (Santa
Lucrécia de Aguiar), Santa Maria de T o r g o s a , Vila Frescainha (São Simeão,
São M a r t i n h o e São Pedro), São T i a g o d e Arcozelo, Santa Eulália de Faro,
São M i g u e l de Gemeses, São P e d r o de Fragoso e São M a r t i n h o de Escariz.
A p e q u e n a terra de T a m e l , centrada n o m o s t e i r o d e M a n h e n t e ( t a m b é m
a g r u p a d o a Aguiar de Neiva), abrangia cerca de 15 freguesias e m 1320, e n t r e
as quais T a m e l (São Veríssimo e Sanfins), Santa Maria de Galegos, Santa M a -
ria de Lijó, São M a m e d e de Arcozelo, São M a r t i n h o d e Alvito e São J o ã o d e
Vila Boa (de T a m e l ) .
Restava o agrupamento de freguesias correspondente ao arcediagado de N e i -
va, geograficamente heteróclito p o r q u e entrecruzado c o m as terras de Aguiar de
Neiva, Penela, T a m e l e Mestre-Escolado e q u e se estendia desde a costa atlântica
(São Miguel de Cepães, ou das Marinhas) até quase ao Lima (São Salvador de
Ginzo). Entre as cerca de 30 freguesias aí avaliadas e m 1320, encontram-se igrejas
c o m o São Paio de Perelhal, São Pedro de Alvite, Santa Marinha de Alheira,
Santa Eulália de Cabanelas, São Salvador de Regaúfe, Santa Maria de Abade,
Santa Marinha de Foijães, São Paio de Antas, Santa Maria de Geraz, Santa Maria
de Quintiães, São Salvador de Cervães e São M a r t i n h o de Aborim.
N o E n t r e Lima e C á v a d o , o p a d r o a d o régio tinha u m a presença p e q u e n a
e dispersa, excepto e m terra de Aguiar de N e i v a . N a s terras d o D e a d o e d e
E n t r e H o m e m e C á v a d o essa influência era nula, o u quase nula 1 0 3 . Talvez
p o r esta razão terra de B o u r o se tivesse a u t o n o m i z a d o e m relação a E n t r e

152
ORGANIZAÇÃO E C L E S I Á S T I C A DO ESPAÇO

H o m e m e C á v a d o , u m a vez q u e aí e n c o n t r a m o s três paróquias realengas: São


T i a g o de C h a m o i m , Santa M a r i n h a de C h o r e n c e e São J o ã o de C a m p o .

E N T R E C Á V A D O E AVE
A divisão dos arcediagados de 1145 m o s t r a - n o s a administração eclesiástica
desta região dividida e m q u a t r o grandes áreas: arcediagado de Faria, arcedia-
gado de V e r m o i m , Archidiaconatum de in circuitu Bracare (situado e m t o r n o da
cidade e a b r a n g e n d o u m a área superior à d o c o u t o ) e arcediagado de L a n h o -
so. As cerca de 270 freguesias indicadas na lista de 1320 e n c o n t r a v a m - s e dis-
tribuídas p o r oito terras: Faria, V e r m o i m 1 0 4 , Penafiel (de Bastuço), c o u t o de
Braga, C h a n f r a d o , Lanhoso, Pedralva e Vieira.
A vasta terra de Faria tinha p o r limite a costa atlântica entre os rios C á v a -
d o e A v e a oeste, o rio C á v a d o a n o r t e , os rios A v e e Este, a sul. A leste, Fa-
ria lindaria d i r e c t a m e n t e c o m o arcediagado d e Braga, a princípio, e, mais
tarde, c o m a terra de Penafiel de Bastuço, p r e s u m i v e l m e n t e após a a u t o n o -
mização desta e m relação ao c o u t o de Braga. E n t r e as cerca de 6 0 paróquias
da lista de 1320, c o n t a m - s e , p o r e x e m p l o , os mosteiros de Santa Clara de Vila
d o C o n d e e de São P e d r o de R a t e s e as igrejas de Santa Eulália de R i o C o -
vo, Santa Maria de N i n e , São M i g u e l de Carreira, São Salvador de Nabais,
São Salvador de M i n h o t ã e s , São L o u r e n ç o de Alvelos, São M i g u e l de Arcos,
São Salvador de A r n o s o , São M i g u e l de Argivai, São T i a g o de Vila Seca, São
M i g u e l de Laundos, São T i a g o de A m o r i m , São R o m ã o d e F o n t e C o b e r t a ,
São Salvador de Fornelos, Santa Maria de G ó i o s e São Salvador d e Crastelo.
A terra de V e r m o i m localizava-se a oriente de terra de Faria, além d o rio
Este. O limite m e r i d i o n a l e oriental era f o r m a d o pelo rio Ave, q u e a separava
p r i m e i r o da diocese d o P o r t o e, depois, das terras de E n t r e Ambas-as-Áves e
Guimarães. N a fronteira n o r t e surgiria a terra de Penafiel (de Bastuço), d e -
pois de a u t o n o m i z a d a c o m o área da administração eclesiástica. A noroeste,
V e r m o i m feria na terra d o C h a n t r a d o — terra de Sande n o século XII 105 . M e -
nos vasta mas mais d e n s a m e n t e p o v o a d a q u e a terra de Faria, tinha e m 1320
cerca de 7 0 paróquias. E n t r e elas os mosteiros de Oliveira, L a n d i m , São Si-
m ã o da J u n q u e i r a , R e q u i ã o e Sande (os dois últimos extintos n o século xv,
sendo reduzidos a igrejas paroquiais) e as igrejas de São J o ã o de Brito, São
M a r t i n h o de Leitões, São T i a g o de R o n f e , São T i a g o da Carreira, Santa M a -
ria de V e r m o i m , Santa Maria de A b a d e (de V e r m o i m ) , Santa Maria de Vila
N o v a (de Sande), São M i g u e l d o M o n t e , São M i g u e l de C e i d e , Sanfins de
R i b a d e Ave, São C o s m e d o Vale, Santo Adrião (de Vila N o v a de Famali-
cão), Santa Maria de B a g u n t e , Santa Leocádia de Fradelos, São Salvador d e
Vilarinho, São Salvador de Lagoa, Santa Eulália de Palmeira, São T i a g o
de Antas e São C r i s t ó v ã o de C a b e ç u d o s .
A n o r t e de terra de V e r m o i m , até ao C á v a d o , localizava-se a terra de P e -
nafiel (de Bastuço), a b r a n g e n d o as freguesias d o antigo território d o c o u t o de
Braga o u t r o r a lindantes c o m terra de Faria. E n t r e as cerca de 35 paróquias si-
tuadas nesta região e m 1320, são de referir os mosteiros da Várzea e Vilar d e
Frades (ambos extintos e reduzidos a igrejas paroquiais n o século xv) e as
igrejas de Bastuço (São Paio, São J o ã o e Sanfins), Santa Maria de A r n o s o , São
M a m e d e de Cesures, Santa Cristina de Algoso, São T i a g o de E n c o u r a d o s ,
São T i a g o de C e q u i a d e , São Salvador de R e g o e l a , São J o r g e de Airó, São
S a l v a d o r d e T e b o s a , São P e d r o de Adães, São T i a g o de Priscos, São J u l i ã o
d e Paços, São M i g u e l de C u n h a , Santa Maria de Sequeira, São L o u r e n ç o de
Celeiros e São P e d r o de Sá.
A cidade e o c o u t o d e Braga ficavam n o coração d o E n t r e C á v a d o e Ave,
mais p r ó x i m o s d o p r i m e i r o rio. E m 1320, entre as cerca d e 40 paróquias
abrangidas pelo antigo Archidiaconatum de in circuitu Bracare e n c o n t r a v a m - s e os
mosteiros de Tibães, Adaúfe, V i m i e i r o e L o m a r ( c o m e x c e p ç ã o d o p r i m e i r o ,
todos extintos e reduzidos a igrejas paroquiais n o século xv) e as igrejas d e
São Paio e São P e d r o de M e r e l i m , São F r u t u o s o de M o n t é l i o s , São M i g u e l
de Foroços, São P e d r o de M a x i m i n o s , São Vítor, São J o ã o d o S o u t o , São
M a r t i n h o de D u m e , Santa Maria de Panóias, Santa Maria de M i r , São J o ã o
de S e m e l h e , Santo Adrião de P a d i m , Santa Maria de Palmeira, Este (São Si-

153
A CONSTRUÇÃO DE UMA IGREJA

meão, São P e d r o e São M a m e d e ) , São M i g u e l de Gualtar, Santa Eulália de


Tenões, Santa Maria de Lamaçães e São J o ã o de N o g u e i r a .
N a extrema noroeste da terra de V e r m o i m , além de terra de Sande, c o n -
f r o n t a n d o c o m o c o u t o de Braga, situava-se a terra d o C h a n t r a d o — consti-
tuída a partir de parte das paróquias da antiga terra de Sande. Centrada e m
Briteiros, tinha p o u c o mais de u m a dezena de freguesias, entre as quais São
Salvador, Santo Estêvão e Santa Locaia (Santa Leocádia) de Briteiros, Santa
Cristina de Longos, São C l e m e n t e de Sande, São C r o i o (Cláudio) de Barco e
São T o m é de Caldelas.
A restante zona do Entre Cávado e Ave era formada n o século x u pelo ar-
cediagado de Lanhoso, tendo juntas as igrejas de Sande (integradas nas terras de
V e r m o i m e do Chantrado), de Penafiel de Soaz, Pedralva e Vieira. E m 1320, já
as duas últimas circunscrições se haviam autonomizado e m relação a Lanhoso.
Localizada entre as terras do Chantrado e de Lanhoso e o couto de Braga, a
pequeníssima terra de Pedralva tinha origem nas antiquíssimas encomunhações
de Pratu Alvari, sendo constituída por apenas sete freguesias, entre as quais C o -
dessosa, Sobreposta, São T o m é de Lageosa e São Salvador de Pradalvarinho.
Terra de Lanhoso ficava na m a r g e m esquerda do rio C á v a d o . E m 1320,
incorporadas as igrejas de Penafiel de Soaz, confrontava a norte c o m as terras
de Entre H o m e m e C á v a d o e de B o u r o , na m a r g e m direita do rio, a oriente
c o m terra de Vieira, a sudeste c o m o rio A v e (terras de Guimarães e M o n t e -
longo na m a r g e m esquerda d o rio), a sul c o m terras d o C h a n t r a d o e de P e -
dralva e, finalmente, a oeste c o m o c o u t o de Braga. E n t r e as cerca de 20 fre-
guesias q u e então lhe pertenciam, refiram-se São L o u r e n ç o de Navarra, Santa
Maria de M o u r e , Santa Lucrécia de Algeriz, Santa Eulália de Crespos, São
M a r t i n h o de Aguas Santas, São J o ã o de R e i , São M a r t i n h o de M o n ç u l , Santo
Estêvão de Geraz, São Tiago de Lanhoso e São Paio de Pousada.
A m o n t a n t e , o E n t r e C á v a d o e Ave terminava c o m a terra de Vieira, já
nos contrafortes da serra da Cabreira — fronteira c o m a transmontana terra
(ou arcediagado) de Barroso. E n t r e as vinte e três paróquias que a f o r m a v a m
e m 1320, refiram-se o mosteiro de Fonte Arcada (reduzido a igreja paroquial
n o século xv) e as igrejas de São M i g u e l de Taíde, São J o ã o e São Paio
de Vieira, São Salvador de R o ç a s , São Julião de Tabuaças, Santo Estêvão de
Cantelães e São J o ã o das Covas.
O rei era u m padroeiro influente na região ocidental d o E n t r e C á v a d o e
Ave — terras de Faria, V e r m o i m e Penafiel de Bastuço — , apresentando os
párocos e m cerca de 25 igrejas. Talvez Penafiel de Bastuço se tivesse consti-
tuído e m área administrativa a u t ó n o m a relativamente ao c o u t o de Braga p o r
essa mesma razão: d o antigo Archidiaconatum de in circuito Bracare só e m Bastu-
ço existiam paróquias do padroado régio (Sanfins de Bastuço, São M i g u e l de
C u n h a , Santa Cristina de Algoso e São Salvador de Regoela) n o reinado
de D . Dinis.
E m contrapartida, na região central desta zona — terra do c o u t o de B r a -
ga, e vizinhas terras do C h a n t r a d o e de Pedralva — não e n c o n t r á m o s qual-
quer referência a apresentações régias.

E N T R E AVE E V I Z E L A
As cerca de 95 paróquias deste c o n h e c i d o «entre-rios» m i n h o t o , geral-
m e n t e designado na Idade M é d i a c o m o E n t r e Ambas-as-Aves («Antre A m b a -
las Aves»), surgem agrupadas nas divisões d o século XII e m três zonas, de j u -
sante para m o n t a n t e dos rios: as igrejas de E n t r e Ambas-as-Aves (stricto sensu),
o arcediagado de Guimarães e as igrejas de M o n t e l o n g o (já arcediagado e m
1188). M o n t e l o n g o , a zona mais a m o n t a n t e , entestava c o m terra de Vieira, a
norte, e terra de Basto, a leste. E m 1320, encontra-se a m e s m a divisão.
A terra de Entre Ambas-as-Aves, situada n o troço imediatamente a m o n -
tante da confluência entre os rios Ave e Vizela, tinha e m 1320 cerca de u m a
dezena de freguesias 106 .
E m terra de Guimarães (arcediagado de Guimarães nas divisões de 1145 e
1188), centrada na importantíssima colegiada/mosteiro da vila do m e s m o n o -
me, existiam em 1320 quase 70 freguesias. Entre elas, as correspondentes aos

154
ORGANIZAÇÃO ECLESIÁSTICA DO ESPAÇO

mosteiros de Costa, São T o r q u a t o e S o u t o (os dois últimos reduzidos a igre-


jas paroquiais n o século xv) e às igrejas de São R o m ã o de Arões, Santa E u l á -
lia de Golães, São P e d r o de Polvoreira, São M a r t i n h o de C a n d o s o , São Sal-
v a d o r de Pinheiro 1 0 7 , Santa Maria de Inflas, Santa Maria de Infantas, São
M i g u e l e São J o ã o d e Caldas (de Vizela), Santa Eulália de G o n t i m , Santa E u -
lália de F e r m e n t õ e s , Santa Eulália de Nespereira, São T o m é de Aveção, S a n -
to Estêvão de Urgeses, São Paio de R i b a de Vizela, São P e d r o de Freitas, São
Julião de Cerafão, Santa Maria de Sobradelo e São J o ã o de P o n t e .
N a secção superior d o E n t r e A v e e Vizela, l i n d a n d o c o m terra de Basto,
ficava a terra de M o n t e l o n g o (hoje Fafe), na qual se a g r u p a v a m cerca d e
q u i n z e paróquias. E n t r e elas, Santa O v a i a Antiga (Santa Eulália de Fafe), San-
ta Eulália de R e v e l h e (em t e m p o s anteriores ao século x i v c o n h e c i d a p o r
Santa Eulália de Gamazãos), Santa Maria de A n t i m e , São T o m é de Estorãos,
São M a r t i n h o de M o r e i r a de R e i , São G e n s de M o n t e l o n g o e Santa C o m b a
de Fornelos ( M o n t e l o n g o ) .
O E n t r e A v e e Vizela — p r i n c i p a l m e n t e as terras de Guimarães e M o n t e -
l o n g o — era d e c e r t o o c e n t r o administrativo d o p a d r o a d o régio na região
m i n h o t a , senão m e s m o na arquidiocese. A q u i o rei era p a d r o e i r o da m u i t o
poderosa colegiada de Santa Maria de Guimarães, dos mosteiros da Costa e
São T o r c a t o e de numerosas igrejas — d i r e c t a m e n t e , o u anexas à colegiada.

E N T R E AVE E T Â M E G A
A região q u e abrangia R i b a de Vizela e Sousa constituía a fronteira t e r -
restre c o m a diocese d o P o r t o a oeste d o T â m e g a : ia deste rio até ao A v e e
ao Vizela, atravessando o t r o ç o i n t e r m é d i o da bacia d o rio Sousa. A n o r t e ,
subia até terra de Basto. Surge na divisão dos arcediagados de D . J o ã o P e c u -
liar (1145) separada apenas e m duas partes: «Ecclesiis qui sunt in R i p a Avicelle
a Vilarino usque Burgaanes» e arcediagado de Sousa 1 0 8 . N a lista de 1320 a p r i -
meira é d e n o m i n a d a terra de N e g r e l o s e a segunda terra de Sousa, surgindo
e n t r e ambas terra de Ferreira. P o r conseguinte, três terras.
N a fronteira c o m a diocese do Porto, terra de Negrelos (ou as antigas «Igre-
jas de R i b a Vizela») era constituída p o r u m a dezena de freguesias. Entre elas, os
mosteiros canonicais de São Miguel de Vilarinho e São P e d r o de R o r i z e as
igrejas de São Tiago de R e b o r d õ e s , São Tiago de Burgães, São M a r t i n h o d o
C a m p o e São M a m e d e de Negrelos. D o lado de lá da fronteira, e m território
d o Porto, situavam-se os mosteiros de Santo Tirso e M o n t e C ó r d o v a .
E m seguida, s e m p r e j u n t o à linha de fronteira, ficando d o lado da diocese
p o r t u e n s e as actuais vilas de Paços de Ferreira e F r e a m u n d e , encontrava-se
terra de Ferreira c o m apenas seis freguesias: São T i a g o de Carvalhosa, São
J o ã o da Portela, São T i a g o de Lustosa, São J o ã o de Eiriz, São T i a g o de Fi-
g u e i r ó e Sanfins de Ferreira 1 0 9 .
G r a n d e parte d o limite bracarense c o m o P o r t o era f o r m a d o p o r terra de
Sousa, c o m cerca de 70 freguesias. N e l a se integravam, entre outros, os m o s -
teiros masculinos de P o m b e i r o , C a r a m o s , M a n c e l o s , Travanca, Freixo e o f e -
m i n i n o de Vila C o v a (os dois últimos reduzidos a igrejas paroquiais n o sécu-
lo xv), b e m c o m o as igrejas d e São V i c e n t e de Sousa, São M i g u e l de Borba,
Santo Adrião d e R i b a de Vizela, Santa Maria de Arões, Santa Maria de Idães,
São Veríssimo de Lagares, Santa M a r i n h a da Pedreira, Telões, Santa Maria d e
Vilar de T o r n o , São P e d r o de Caíde, A m a r a n t e e São Salvador de Lousada.

BASTO
N o t e r m o d o M i n h o ficava a terra d e Basto. E n q u a d r a d a na bacia h i d r o -
gráfica d o T â m e g a , esta região estendia-se p o r ambas as margens d o rio: C a -
beceiras e C e l o r i c o na m a r g e m direita, M o n d i m na m a r g e m esquerda. T e r r a
de Basto era a fronteira d o M i n h o c o m T r á s - o s - M o n t e s (Cabeceiras c o m
Barroso, e M o n d i m c o m Aguiar de P e n a e Panóias). N a lista de 1320 e n c o n -
tramos o território dividido e m cerca de 40 paróquias 1 1 0 . E n t r e elas os m o s -
teiros de R e f o j o s de Basto e A r n ó i a e igrejas c o m o São Salvador de O v e l h ó
(hoje Bilhó), São V i c e n t e de E r m e l o , Fervença, São C r i s t ó v ã o de M o n d i m ,
São P e d r o de Cabeceiras, São M a r t i n h o de Baúlhe, São T i a g o de O u r i l h e ,

155
A CONSTRUÇÃO DE UMA IGREJA

Santo A n d r é de R i o D o u r o , São Salvador de Ribas, São M a r t i n h o de Sei-


dões, Santa Senhorinha de Basto, Santa Maria do O u t e i r o e Santa Maria de
Borba de Juniores.

GESTAÇÔ
Cerca de dezena e meia de paróquias figuram na lista de 1320 para a área
administrativa d e n o m i n a d a terra de Gestaçô, a leste d o T â m e g a . M e t a d e
eram vigararias do p o d e r o s o mosteiro b e n e d i t i n o de P o m b e i r o , o qual é aqui
contabilizado — e m b o r a estivesse situado e m terra de Sousa, mais perto d o
rio Vizela. Gestaçô fazia fronteira a sul c o m a diocese d o P o r t o (mais exacta-
m e n t e c o m as terras de Gouveia e de Baião) e c o m terra de Panóias, a leste.
A norte ficava-lhe o território m o n d i n e n s e , pertencente a Basto.
Aqui estavam localizados t a m b é m os mosteiros femininos de G o n d a r e
Lufrei, ambos reduzidos a igrejas paroquiais n o século xv. Incluindo f r e g u e -
sias maronenses c o m o C a n d e m i l e Carneiro, a terra de Gestaçô é dificilmente
integrável n o M i n h o .

Freguesias medievais — Trás-os-Montes


N a divisão dos arcediagados de 1145 realizada p o r D . J o ã o Peculiar, a re-
gião transmontana da arquidiocese de Braga está arrumada e m cinco grandes
áreas administrativas, a saber: arcediagado de Barroso, arcediagado de Panóias,
arcediagado de Aliste, arcediagado de M o n t e n e g r o (com as igrejas de Baronce-
11) e, finalmente, arcediagado de Bragança, Miranda, Lampaças, Ferreira e Le-
dra. Perdidas as igrejas de Baronceli e do arcediagado de Aliste para as dioceses
de O r e n s e e Astorga, respectivamente, e m 1297, c o m o acima se viu, não c e n -
traremos sobre elas a nossa atenção.
A lista de 1320 mostra-nos as cerca de 245 paróquias de T r á s - o s - M o n t e s
distribuídas por 13 terras 111 : terra de Panóias, terra de Vilariça 112 , terra de
Freixo de Espada à Cinta, terra de Ledra, terra de Lampaças, terra de M i r a n -
da, terra de Bragança, terra de Vinhais, terra de M o n t e n e g r o , terra de Ferrei-
ra 113 , terra de Chaves, terra de Aguiar de Pena, terra de Barroso.
Esta multiplicação do n ú m e r o de terras ter-se-á certamente devido ao i n -
tenso p o v o a m e n t o da região transmontana verificado durante o século XIII.
As terras de Vilariça e de Freixo, situadas a oriente d o rio T u a e a sul das ser-
ras de Bornes e de M o g a d o u r o , p o d e r i a m ter-se constituído p o r d e s m e m b r a -
m e n t o dos territórios meridionais do arcediagado de Bragança (em relação a
Miranda e Lampaças) o u dos territórios orientais de terra de Panóias. Pela sua
localização, a área administrativa de terra de Aguiar de Pena resultou c o n c e r -
teza de cisão relativamente a terra de Barroso o u terra de Panóias (separada
da terra de Chaves pela serra da Padrela, n ã o é provável que tivesse emergido
desta). A terra de Chaves de 1320 corresponde à antiga terra de M o n t e n e g r o ,
então transformada n u m a área residual a nordeste da terra de Chaves, na
fronteira c o m terra de Vinhais. Q u a n t o a terra de Vinhais (dividida e m duas,
Vinhais e Lomba, n o século xv), resultou p r o v a v e l m e n t e de divisão do arce-
diagado de Bragança — e m b o r a se pudesse ter igualmente destacado de
M o n t e n e g r o . Interessante é o facto de se m a n t e r a existência de terra de Fer-
reira e m 1320, uma vez que n o século XII ela aparecia agrupada a Bragança —
e não a M o n t e n e g r o o u Barroso. Q u a n t o a Ledra, Lampaças e Miranda, já r e -
feridas e m 1145, autonomizaram-se e v i d e n t e m e n t e e m relação a Bragança.
U m a das características marcantes do eclesiástico transmontano é a p r e -
sença do padroado régio, particularmente nas terras de Panóias, Lampaças,
Bragança e Barroso.
Entremos em Trás-os-Montes por terra de Panóias 114 . Esta terra transmonta-
na, a única documentada nos censuais publicados por Avelino de Jesus da C o s -
ta 115 , tinha cerca de 30 paróquias que se estendiam, de oeste para leste, da serra
do Marão (São Miguel da Pena, Santo André de Campeã 1 1 6 ) até ao Tua (Santo
Estêvão de Abreiro e São M a m e d e de Rábatua), e, de norte para sul, da vizi-
nhança de terra de Aguiar de Pena (Santa Maria de Jales e São Miguel de Tras-
mires, hoje Tresminas) até ao rio D o u r o . Além das freguesias já indicadas, a lista
de 1320 refere, entre outras, as de São Salvador de Mouçós, São Jorge de Fa-

156
ORGANIZAÇÃO ECLESIÁSTICA DO ESPAÇO

vaios, Santa Maria de Alijó, São Tiago de Murça, São Félix (Sanfins) do D o u r o ,
São Pedro de Abaças, Santa Maria de Constantina, São Tiago de Vila Nova,
Santa Maria de Paços, São Salvador de Torgueda e Santa C o m b a do Corgo.
Prosseguindo para leste, além d o T u a , encontrava-se terra de Vilariça.
Das cerca de 15 paróquias abrangidas nesta área administrativa, quase todas se
situam entre os rios T u a e Sabor, t e n d o a n o r t e terra de Ledra, a serra de
Bornes e a mais meridional das freguesias de terra de Lampaças — Santa M a -
ria de Sambade. N a extrema oriental ficava a freguesia de São P e d r o de Al-
fandega (da Fé). A leste do rio Sabor, u m a importante paróquia: São Tiago
de T o r r e de M o n c o r v o , lindando c o m a serra de R e b o r e d o e, logo, c o m a
terra de Freixo de Espada à Cinta. Importantes eram, t a m b é m , as igrejas de
São B a r t o l o m e u de Vila Flor, São Salvador e São J o ã o de Ansiães, Santa M a -
ria de Vilarinho de Castanheira e São M i g u e l de Linhares. O Mosteiro de
Santa Maria de B o u r o era padroeiro da Igreja de Santa C o m b a de Frades.
N a p e q u e n a (para a escala transmontana) terra de Freixo de Espada à
Cinta, existiam quatro paróquias: São M i g u e l de Freixo, São B a r t o l o m e u de
Urros, M ó s e, j u n t o às águas durienses, Alva. Esta terra era b e m delimitada a
oeste, sul e leste pelo rio D o u r o e a n o r t e pela serra de R e b o r e d o . Até o n d e
se estenderia além desta?
A n o r t e das terras de Vilariça e de Freixo estendiam-se, de oeste para les-
te, as terras de Ledra, Lampaças e Miranda, abrangendo a região central d o
leste transmontano a sul de terra de Bragança.
Geograficamente situada n o «coração» de T r á s - o s - M o n t e s e t e n d o p o r
centros principais Santa Maria de Mirandela e Santa C r u z de Lamas de O r e -
lhão, a terra de Ledra confrontava c o m seis outras divisões da administração
eclesiástica bracarense n o território: a sul Vilariça, a sudoeste e oeste Panóias,
a oeste Chaves, a noroeste M o n t e n e g r o , a norte e nordeste Bragança, a leste
e sudeste Lampaças. Das 13 paróquias aí existentes, refiram-se Santa Maria de
T o r r e de D . C h a m a , Santa Maria de Nuzelos, Santa Eugênia de Ala, Santa
Maria de Mascarenhas, São T o m é de Abambres e Fornos de Ledra.
E n t r e terra de Ledra e terra de Miranda, c o m terra de Bragança a norte e
terra de Vilariça a sul, situava-se a extensa terra de Lampaças. E n t r e as 36 p a -
róquias q u e dela faziam parte e m 1320, encontravam-se São L o u r e n ç o de Sal-
selas, São Nicolau de Salsas, São P e d r o de Cendas, Santa Maria de Izeda, São
P e d r o de Carção (no e x t r e m o oriental), Santa Maria de Talhinhas, Santa M a -
ria de Castro Vicente, Santa Maria de Sambade (no e x t r e m o meridional),
Santa C o m b a de C h a c i m e São Marta de Bornes, M a c e d o de Cavaleiros,
M a c e d o do M a t o e Castro R o u p a l . A Igreja de São Cristóvão pertencia à
O r d e m do Hospital 1 1 7 .
Finalmente, a oriente da faixa central de T r á s - o s - M o n t e s as paróquias es-
tavam agrupadas na terra de Miranda. Esta ocupava toda a fronteira leste c o m
a diocese de Samora, a sul de Bragança, c o n f r o n t a n d o c o m terra de Bragança
a norte, terra de Lampaças a oeste (talvez Vilariça a sudoeste) e terra de Frei-
x o a sul. E n t r e as 22 paróquias bracarenses q u e aqui encontramos, p o d e m r e -
ferir-se M o g a d o u r o , Penas Róias, Santa Maria de Miranda, Maladas, V i m i o -
so, Veguzelo e Pinhelo (ambas do mosteiro de Castro de Avelãs), Ifanes,
Angueira e Palaçoulo (as três do mosteiro de Moreruela, da diocese de Leon)
e Ulgoso. Esta diversidade do padroado das igrejas reflecte, certamente, a p o -
sição fronteiriça de Miranda e a disputa pelo eclesiástico da região entre
poderosos mosteiros e ordens militares.
N o e x t r e m o nordeste de Trás-os-Montes, lindando quase totalmente
c o m a diocese de Astorga, a administração eclesiástica surge dividida e m duas
zonas: terra de Bragança e terra de Vinhais.
E m terra de Bragança a lista de 1320 localiza 51 paróquias 1 1 8 . E n t r e elas o
mosteiro de Castro de Avelãs e as igrejas de Santa Maria, São Tiago, São
J o ã o e São Vicente de Bragança, Santo A n d r é de Ouzilhão, Santo Estêvão de
Fresulfe, Santa Maria de G o n d e s e n d e , Zeive, São L o u r e n ç o de França, São
R o m ã o de Baçal, Guadramil, Santa Maria de Deilão, Penas Junças, Ervedosa,
Santa Maria de Alfaião, A m e i x i e d o , A r i m o n d e , São J o ã o de Trabasceiro e
Santa Marinha de R i o Frio.

157
A CONSTRUÇÃO DE UMA IGREJA

N o limite c o m a diocese de O r e n s e , terra de Vinhais tinha apenas 1o p a -


róquias, e n t r e elas Santo A n d r é e São M i g u e l de Vinhais, São N i c o l a u de
C a n d e d o , Santa Eulália (hoje Santalha), R e b o r d e l o e Sobreiro.
A sul, entre Vinhais e terra d e Chaves, talvez c o m terra de Ferreira a oes-
te (partilhando ambas c o m Vinhais a fronteira c o m a diocese de O r e n s e ) fica-
va terra de M o n t e n e g r o , o u t r o r a a b r a n g e n d o toda a região de C h a v e s a sul
mas e m 1320 já reduzida a u m a p e q u e n a área administrativa c o m 3 f r e g u e -
sias 119 . E r a m elas São B a r t o l o m e u de Águas Réveis, Santa Maria d e Moreiras
e Santa C o m b a dos Vales.
Terra de Ferreira pertencia ao arcediagado de Bragança na divisão de 1145.
Apesar de a lista de 1320 a designar p o r «terra de Frieira» e de existir, ainda h o -
je, u m a localidade d e n o m i n a d a Frieira e m território transmontano (entre Izeda
e M a c e d o d o Mato), a maioria das 13 freguesias então incluídas nesta terra situa-
vam-se todas na fronteira c o m Orense: Vilela Seca, Vilar de Perdizes, São J u -
lião de M o n t e n e g r o , São Pedro de M o n f o r t e de R i o Livre, Santa Olaia (Santa
Eulália de M o n f o r t e de R i o Livre) e São J o ã o de Castanheira de R i o Livre.
C o r r e s p o n d e , portanto, à terra de M o n f o r t e de R i o Livre referida p o r José
Marques. Geograficamente discrepante parece a inclusão neste g r u p o da igreja
de Tinhela, situada entre as terras de Chaves, Panóias e Aguiar de Pena 1 2 0 .
Terra de C h a v e s ocupava t a m b é m u m a posição central n o território
t r a n s m o n t a n o , c o n f r o n t a n d o c o m Ferreira e M o n t e n e g r o a n o r t e e noroeste,
Ledra a leste, Panóias a sul, Aguiar de P e n a a sudoeste e Barroso a oeste 1 2 1 .
A lista de 1320 contabiliza 15 freguesias e m terra de Chaves 1 2 2 . E n t r e elas, San-
ta Maria de Chaves, São N i c o l a u de C a r r a z e d o , São J o ã o de Ervões, São
T i a g o de Alhariz, São Salvador d e Vilar de N a n t e s , Faiões, Santa Leocádia de
M o n t e n e g r o e São L o u r e n ç o d e Lilela. D u a s das igrejas paroquiais e r a m d o
p a d r o a d o da O r d e m d o Hospital.
Este périplo pelas terras da administração eclesiástica bracarense e m T r á s -
- o s - M o n t e s termina na fronteira c o m terra de Basto e, depois, c o m terras de
Vieira e d e B o u r o . As últimas áreas administrativas são terra de Aguiar de P e -
na e terra de Barroso.
N a p e q u e n a terra de Aguiar de Pena, a lista de 1320 inclui apenas seis f r e -
guesias, entre elas, Santa M a r i n h a de Pena, São Salvador de Pena, Pensalvos e
Telões.
C o m as terras transmontanas de Aguiar de Pena a sudeste, C h a v e s a leste
e Ferreira a nordeste, as terras m i n h o t a s de Basto a sul e sudoeste, e de Vieira
e B o u r o a oeste e, finalmente, as terras galegas (e portuguesas) 1 2 3 da diocese
de O r e n s e a norte, situava-se a vastíssima terra de Barroso, na qual e n c o n t r a -
m o s 30 freguesias. R e f i r a m - s e , entre outras, o m o s t e i r o de Pitões das Júnias,
da O r d e m de Cister, São T i a g o de M o u r i l h e e P a d o r n e l o s ( b e m a norte),
São P e d r o de C o v e l o , Santa Maria de Biade, Santa Maria de M o n t a l e g r e ,
Santa Maria de Covas, Santa Maria de Salto, Santa M a r i n h a de C o v e l o , São
T i a g o de Guilhofrei, Cervos, Bobadela, Santo A n d r é d e Fiães, São Salvador
de C a n e d o e, n o e x t r e m o da fronteira meridional, São P e d r o de C e r v a e São
M a m e d e de C a m b e z e s .
A presença relativa d o p a d r o a d o régio e m T r á s - o s - M o n t e s era m u i t o
mais i m p o r t a n t e (excepto nas terras de Aguiar de P e n a e de Freixo) d o q u e
n o M i n h o , dado o m u i t o m e n o r n ú m e r o d e freguesias nesta parte d o t e r r i t ó -
rio diocesano bracarense 1 2 4 .
Esta presença cresceu m u i t o na região d u r a n t e os reinados de D . A f o n -
so III e D . Dinis, depois de o p r i m e i r o reservar para a C o r o a o direito de
apresentação às paróquias sem p a t r o n o . N e s t e esforço, o Bolonhês e o Lavrador
c o n t a r a m c o m o a p o i o dos arcebispos de Braga, s o b r e t u d o D . M a r t i m Pires
de Oliveira 1 2 5 .

O r d e n s r e l i g i o s a s — S e g u n d o José M a t t o s o , dos 78 mosteiros f u n d a d o s


na região m i n h o t a da arquidiocese de Braga p r i n c i p a l m e n t e n o século xi (e,
e m m u i t o m e n o r grau, até m e a d o s d o século XII), apenas 46 p e r m a n e c e r a m
para além de 1200 126 . E m m e a d o s d o século xv, p o u c o mais de 20 subsistiam
na região 1 2 7 .

158
ORGANIZAÇÃO ECLESIÁSTICA DO ESPAÇO

Vista geral do Mosteiro de


Santa Maria de Pitões das
Júnias (século XII).
FOTO: JOSÉ MANUEL OLIVEIRA/
/ A R Q U I V O C Í R C U L O DE
LEITORES.

A c o m p a n h a n d o o g r a n d e c r e s c i m e n t o d e m o g r á f i c o da região m i n h o t a
d u r a n t e o século xi, s o b r e t u d o e m E n t r e C á v a d o e Ave, o n ú m e r o foi-se r e -
d u z i n d o ao l o n g o da segunda m e t a d e d o século xii. Para esta r e d u ç ã o c o n t r i -
b u i u a c o n c o r r ê n c i a e n t r e u m n ú m e r o excessivo de mosteiros, cuja sobrevi-
vência d e p e n d e u d e factores c o m o a absorção de c o m u n i d a d e s mais fracas, a
integração (directa o u indirecta) nas novas o r d e n s monásticas surgidas d e
além-fronteiras e d o a p o i o de p a t r o n o s c o m ligações estreitas à corte.
D o s mosteiros b e n e d i t i n o s q u e h a v i a m p e r m a n e c i d o para além de 1200,
apenas n o v e sobreviveram ao século xv: os mosteiros masculinos d e São R o -
m ã o de N e i v a , C a r v o e i r o , P a l m e e R e n d u f e n o E n t r e Lima e C á v a d o , T i -
bães n o E n t r e C á v a d o e Ave, P o m b e i r o , Travanca, A r n ó i a e R e f o j o s de Bas-
t o e m E n t r e A v e e T â m e g a ; p o r fim, o m o s t e i r o f e m i n i n o d e V i t o r i n o das
D o n a s , n ã o l o n g e d e P o n t e de Lima. D u r a n t e o século x v e r a m extintos e
reduzidos a igrejas paroquiais os masculinos d e M a n h e n t e , Várzea, Vilar d e
Frades (cedido depois aos Lóios), Várzea, Rates, V i m i e i r o , L o m a r , Sande,
A d a ú f e e F o n t e Arcada e os f e m i n i n o s d e C e r z e d e l o (Lima), Vila C o v a , L u -
fiei e G o n d a r (Sousa e T â m e g a ) .
E m T r á s - o s - M o n t e s a única c o m u n i d a d e b e n e d i t i n a de q u e há notícia era
o m u i t o p o d e r o s o m o s t e i r o de Castro de Avelãs, c o m influência considerável
n o eclesiástico b r i g a n t i n o e mirandês. N a região de terra d e M i r a n d a , o m o s -
teiro leonês de M o r e i r o l a (ou M o r e r u e l a ) detinha o p a d r o a d o de algumas
igrejas.
D o s mosteiros canonicais q u e a d o p t a r a m a R e g r a d e Santo A g o s t i n h o (ou
f o r a m criados d e n o v o ) a partir d o s e g u n d o quartel d o século XII, na esteira
de Santa C r u z d e C o i m b r a , f o r a m extintos n o século x v Bravães, B a n h o , R i o
M a u , R e q u i ã o , S o u t o , São T o r c a t o e Freixo, restando 11: Vila N o v a de
M u í a , São M a r t i n h o d e Crasto e Valdreu (Entre C á v a d o e Lima), São Simão
da J u n q u e i r a , L a n d i m e Santa Maria da Oliveira (Entre C á v a d o e Ave, j u n t o
a este), Costa (Entre Ambas-as-Aves), Vilarinho e R o r i z ( R i b a d e Vizela),
C a r a m o s e M a n c e l o s (Entre o Sousa e o T â m e g a ) . Vale a p e n a referir q u e os
mosteiros canonicais se c o n c e n t r a m quase todos ora p e r t o da fronteira c o m a
diocese d o P o r t o , j u n t o aos rios A v e e Vizela, ora p e r t o d o Lima.

159
A CONSTRUÇÃO DE UMA IGREJA

Q u a n d o comparada c o m outras dioceses, sobretudo Lamego, C o i m b r a e


Lisboa, a presença cisterciense na arquidiocese de Braga foi m u i t o discreta,
restringindo-se a zonas de m e n o r p o v o a m e n t o : e m terra de B o u r o , o M o s t e i -
ro de Santa Maria d o B o u r o (primeiro u m eremitério, depois mosteiro b e n e -
ditino e integrado e m Cister p o r volta de 1195) e, e m terra de Barroso, o de
Pitões das Júnias (inicialmente b e n e d i t i n o e, a partir de 1248, cisterciense, mas
contra a vontade d o arcebispo de Braga) 1 2 8 .
Q u a n t o às ordens mendicantes, a sua instalação na arquidiocese data de
b e m cedo. C o m e ç a n d o pelos Franciscanos, as primeiras fundações foram as
dos conventos de Guimarães e Bragança, c o m p r o v a d a m e n t e n o terceiro
quartel d o século XIII129. As primeiras clarissas tiveram c o m o casa o C o n v e n t o
de Santa Clara de Vila do C o n d e , f u n d a d o e m 1318 pelo bastardo régio
D . Afonso Sanches e sua mulher 1 3 0 . Até à fundação do mosteiro de Vila
Real, n o t e m p o do arcebispo D . Fernando da Guerra, j á n o século xv, o ú n i -
0 M a p a dos conventos e co c o n v e n t o d o m i n i c a n o na arquidiocese foi o de Guimarães.
mosteiros no século x v (seg. A influência das ordens militares n o eclesiástico da arquidiocese de Braga
A . H . O . Marques, Portugal na
nota-se quase exclusivamente e m Trás-os-Montes, principalmente e m terra
crise dos séculos xiv e xv,
p. 383).
de Miranda. E n c o n t r a m o s referência s o b r e t u d o aos T e m p l á r i o s / C r i s t o e
Hospitalários.
Nas terras d o M i n h o , essa presença c o n f m a v a - s e e m 1320 às igrejas de
M a p a das instituições
monásticas (seg. M . H . C . Santa Maria de A b o i m ( N ó b r e g a ) e São A n t ã o e Santa Eulália de Sousela
C o e l h o , Portugal em definição (Sousa), da O r d e m d e São J o ã o d o Hospital. E m território t r a n s m o n t a n o ,
de fronteiras, p. 251). p o r é m , p e r t e n c i a m aos Hospitalários as igrejas de São C r i s t ó v ã o (Lampa-

160
ORGANIZAÇÃO ECLESIÁSTICA DO ESPAÇO

Igreja românica da Cedofeita


(Porto).
FOTO: N U N O CALVET/ARQUIVO
C Í R C U L O D E LEITORES.

ças), Freixel e R o i o s (Vilariça), Vila M a r i m , P o i a r e s e A b r e i r o (Panóias) 1 3 1 ,


E r v õ e s e T u a z e n d e (Chaves) e U l g o s o ( M i r a n d a ) . A O r d e m d e C r i s t o t i -
n h a apenas o eclesiástico das p a r ó q u i a s de M o g a d o u r o e P e n a s R ó i a s ( M i -
randa).

PORTO
L i m i t e s — R e s t a u r a d a e n t r e 1112 e 1114, a antiga d i o c e s e s u e v o -
-visigótica d o P o r t o alargaria d u r a n t e o século XII os seus t e r m o s antigos a
expensas dos territórios das vizinhas Braga e C o i m b r a . D . H u g o , o p r i m e i r o
bispo (sagrado e m M a r ç o d e 1113), foi n o m e a d o p o r i n t e r v e n ç ã o d o arcebis-
p o de C o m p o s t e l a , D i e g o G e l m í r e z , d e q u e m era h o m e m d e c o n f i a n ç a .
A a u t o n o m i z a ç ã o d o t e r r i t ó r i o d i o c e s a n o d o P o r t o , até aí c o n f i a d o à a d m i -
nistração de Braga (à s e m e l h a n ç a d o q u e s u c e d e u c o m os territórios de L a -
m e g o e Viseu, c o n f i a d o s ao bispo de C o i m b r a ) , foi possível d e v i d o à f r a g i -
lidade da posição bracarense face a C o m p o s t e l a , causada pela m o r t e d o c o n d e
D . H e n r i q u e (1112) e pela i n t e r v e n ç ã o e x t r e m a m e n t e desfavorável d o papa
Calisto II 1 3 2 .
A questão dos limites c o m a diocese de C o i m b r a ficou encerrada c o m a
bula d o papa I n o c ê n c i o IV Provisionis nostrae, de 12 de S e t e m b r o de 1253.
Q u a n t o a Braga a solução definitiva teria d e esperar p e l o p o n t i f i c a d o de
Leão X I I I , j á n o século xix. S e g u n d o D o m i n g o s M o r e i r a , apesar de e m 1193
o cardeal G r e g ó r i o de Santo Angelo, legado d o papa Celestino III, ter r e c o -
m e n d a d o ao arcebispo bracarense q u e admitisse o alargamento d o bispado

161
A CONSTRUÇÃO DE UMA IGREJA

162
ORGANIZAÇÃO ECLESIÁSTICA DO ESPAÇO

p o r t u e n s e e n t r e t a n t o verificado, os prelados de Braga n u n c a o r e c o n h e c e r a m


de facto. José M a r q u e s questiona este alargamento, c o m base na investigação
de C â n d i d o dos Santos para época posterior 1 3 3 .
S e g u n d o José M a r q u e s , a fronteira quatrocentista e n t r e a diocese d o P o r -
to e a arquidiocese de Braga c o m e ç a v a na foz d o rio A v e e inflectia para su-
deste e depois para leste até ao T â m e g a , d e i x a n d o d e n t r o de Braga Santo T i r -
so, São M i g u e l d o C o u t o , M o n t e C ó r d o v a , P e n a m a i o r , M e i x o m i l , Santa
Eulália de Paços de Ferreira, F r e a m u n d e , Figueiras, Cristelos, Pias, M e i n e d o ,
R e c e z i n h o s , Ataíde, Castelões e C o n s t a n c e 1 3 4 . N a lista das igrejas de 1320,
p o r é m , e n c o n t r a m o s d o lado da diocese d o P o r t o , agrupados nas igrejas d e
terra de R e f o j o s e igrejas de M e i n e d o , os mosteiros de Santo Tirso e M o n t e
C ó r d o v a e as igrejas de São Salvador de Castelões, Santa Eulália de Paços de
Ferreira e São M a m e d e de R e c e z i n h o s . P o r o u t r o lado, d o lado de Braga e n -
c o n t r a m o s , e n t r e muitas outras, as igrejas de R e b o r d õ e s , Carvalhosa, L o u s a -
da, C o v a s e C a í d e d e R e i . D o m i n g o s M o r e i r a p r o p õ e q u e o limite, s u b i n d o
o Ave, seguia rio Vizela acima e, depois, p o r terra, seguia até ao m o n t e T e -
m o n e (lugar de Vila M e ã , freguesia de P o m b e i r o , c o n c e l h o de Felgueiras),
prosseguindo r u m o ao m o n t e Éguas ( R i o D o u r o , Cabeceiras de Basto) até ao
m o n t e Farinha (Senhora da Graça, M o n d i m de Basto) e, daí, pela serra d o
M a r ã o e pelo rio C a m p e ã até ao rio C o r g o e deste até ao D o u r o 1 3 5 . Este li-
mite, até Cabeceiras e M o n d i m d e Basto, terras de Basto a d e n t r o , é difícil de
aceitar 1 3 6 . As discrepâncias de opinião existentes m o s t r a m q u e o assunto n ã o
está t o t a l m e n t e esclarecido e obriga a estudo rigoroso137. O território d i o c e -
sano p o r t u e n s e ter-se-ia alargado de facto e n t r e os século XII e xiv, r e -
c u p e r a n d o a arquidiocese algumas das freguesias perdidas na época de D . F e r -
n a n d o da G u e r r a — o u antes 1 3 8 ?
A sul d o D o u r o , a fronteira c o m os bispados de L a m e g o e de C o i m b r a
c o m e ç a v a na foz d o Arda, s u b i n d o p o r este ao m o n t e M e d a (Lamego), deste
até ao m o n t e N a b a l (limite das freguesias de Escariz e C h a v e ) e deste pelo rio
A n t u ã até ao m a r (fronteira c o m C o i m b r a ) .
Entre 1132 e 1137 a terra de Santa Maria transitou, de facto, da jurisdição de
C o i m b r a para a d o Porto. C o m efeito, e m 1132 o bispo Bernardo de C o i m b r a
fazia doação das igrejas de Argoncilhe, Perosinho, Serzedo, Travanca, Travaçô
e Eirol ao mosteiro de Grijó e a 26 de O u t u b r o de 1137 o bispo d o Porto,
D . J o ã o Peculiar, confirmava esta doação e, reportando-se às três primeiras, re-
fere ter a terra de Santa Maria pertencido outrora à diocese de C o i m b r a .
P o s t e r i o r m e n t e os bispos de C o i m b r a t e n t a r a m recuperar as freguesias
perdidas para o P o r t o , mas c o m êxito relativo e apenas t e m p o r á r i o . A terra
de Santa Maria encontrava-se solidamente vinculada à jurisdição d o bispo d o
Porto.

F r e g u e s i a s m e d i e v a i s — N o território diocesano d o P o r t o , a organiza-


ção d o espaço está d o c u m e n t a d a para t o d o o p e r í o d o medieval ora estudado.
N o século xii, a diocese p o r t u e n s e encontrava-se dividida e m dez a g r u -
p a m e n t o s d e freguesias referidos c o m o arcediagados: Santa Maria (terra da
Feira), Maia, R e f o j o s , Aguiar (de Sousa), Penafiel (de Sousa), M e i n e d o ( L o u -
sada), G o u v e i a (Amarante), B e n v i v e r (Marco de Canaveses), Baião e P e n a -
guião (Régua).
N a lista de 1320, as igrejas da diocese d o P o r t o s u r g e m divididas e m n o v e
terras: Baião, P e n a g u i ã o , G o u v e i a e B e n v i v e r (juntas), M e i n e d o , Penafiel,
Aguiar, R e f o j o s , Maia e Santa Maria 1 3 9 .
A lista das Rationes Decimarum, de 1371, d á - n o s Santa Maria, Maia, R e f o -
jos, Aguiar e Ferreira, M e i n e d o , Penafiel e Baião e P e n a g u i ã o . O u seja, F e r -
reira acrescentada a Aguiar de Sousa e P e n a g u i ã o agrupada a Baião.
C o m base nestas três cartografias, D o m i n g o s M o r e i r a elaborou u m i n v e n -
tário exaustivo das freguesias da diocese d o P o r t o para os séculos x i v e xv 1 4 0 .
Passamos a resumi-lo, a p o i a n d o - n o s na seguinte divisão e m n o v e g r u p o s de <] Portal do mosteiro de C e t e
paróquias (incluindo a cidade): P o r t o (civitas e t e r m o ) , Santa Maria, Maia, (c. 1320), Paredes.
R e f o j o s , Aguiar de Sousa e Ferreira, M e i n e d o , Penafiel, G o u v e i a e Benviver,
FOTO: N U N O CALVET/ARQUIVO
Baião e P e n a g u i ã o . C Í R C U L O DE LEITORES

163
A CONSTRUÇÃO DE UMA IGREJA

R e t i r a n d o as freguesias das terras de Sousa e Negrelos (pertencentes a B r a -


ga) e da terra de V o u g a (pertencentes a C o i m b r a ) , contabilizamos cerca de 310
freguesias, apesar da extinção de u m p u n h a d o de paróquias medievais durante
os séculos x v e xvi e respectiva incorporação nas freguesias contíguas 1 4 1 .
E m algumas das 310 igrejas acima referidas, era o rei q u e tinha o direito de
n o m e a r («apresentar») o pároco 1 4 2 . A julgar pelas listas das apresentações às
igrejas d o padroado régio nos reinados de D . Afonso III e D . Dinis, na diocese
d o P o r t o a influência régia era m u i t o diminuta, excepto e m terra da Maia 1 4 3 .
N a cidade d o P o r t o , existia apenas a freguesia da Sé (única até ao final d o
século xvi). N o t e r m o D o m i n g o s M o r e i r a identifica oito freguesias, a saber,
Aldoar, C a m p a n h ã , Cedofeita, São M a r t i n h o de L o r d e l o , Miragaia, São M i -
guel de N e v o g i l d e , Paranhos, São M a r t i n h o de L o r d e l o e R a m a l d e (estas
duas possivelmente d o p a d r o a d o régio).
R o d e a n d o a cidade e t e r m o d o Porto, situava-se a vasta terra da Maia (in-
cluindo Bouças/Matosinhos), c o m o rio Ave a norte, separando a diocese p o r -
tuense da bracarense. Aqui existiam na Idade Média 64 freguesias, 38 das quais
localizadas nos actuais concelhos da Maia e Vila do C o n d e e as restantes nos de
Matosinhos, Santo Tirso, G o n d o m a r e Valongo (apenas três). Entre elas as p a r ó -
quias correspondentes ao priorado de Leça e aos mosteiros de Vairão, R i o T i n -
to, Moreira e Aguas Santas 144 — este do padroado régio, j u n t a m e n t e c o m as
igrejas de Santa Maria de Alvarelhos, Santa Maria de Avioso, São Miguel
de M o r o ç a , São Tiago de Milheiros, Santa Maria de Nogueira, Santa Ovaia de
Aveleda, São Pedro de Fajozes, São Salvador de Macieira da Maia e Guifões 1 4 5 .
V i n h a depois a terra de R e f o j o s , princípio da fronteira terrestre c o m a a r -
quidiocese bracarense (até aí definida p e l o rio Ave). As 11 freguesias identifi-
cadas nesta terra estavam localizadas, na sua totalidade, n o actual c o n c e l h o d e
Santo Tirso, i n c l u i n d o os mosteiros de Santo Tirso e de R e f o j o s de M o n t e
C ó r d o v a . As igrejas de São Salvador de M o n t e C ó r d o v a e Santa Maria R e -
g u e n g a e r a m d o rei.
E m seguida temos, i g u a l m e n t e na fronteira c o m Braga, as duas terras d e
Aguiar d e Sousa e Ferreira, reunidas na lista de 1371. E n c o n t r a m o s aí 38 f r e -
guesias, distribuídas pelos actuais c o n c e l h o s de Paços de Ferreira, Paredes (so-

164
ORGANIZAÇÃO ECLESIÁSTICA DO ESPAÇO

b r e t u d o este), V a l o n g o , G o n d o m a r , Lousada e Penafiel. E n t r e elas, os m o s -


teiros de V a n d o m a , C e t e , Vilela e Lordelo. E r a m d o rei as igrejas de São
R o m ã o de Aguiar de Sousa 1 4 6 , Baltar, Cristelo, R e b o r d o s a , Melres, Santa
Ovaia de Paços de Ferreira e o M o s t e i r o de Santa Ovaia de V a n d o m a .
O p e q u e n o território d o arcediagado de M e i n e d o , t a m b é m na fronteira
c o m a arquidiocese, fazia j á a ligação ao T â m e g a , nele se e n c o n t r a n d o n o v e
freguesias, localizadas nos actuais c o n c e l h o s de Lousada, Penafiel e A m a r a n t e
(oito das quais nos dois primeiros). A freguesia de São M a m e d e de R e c e s i -
n h o s pertencia ao p a d r o a d o régio.
As 31 freguesias recenseadas para a época medieval na terra de Penafiel de
Sousa, fim da fronteira terrestre c o m Braga até ao T â m e g a , na m a r g e m direi-
ta d o rio, p e r t e n c i a m aos actuais c o n c e l h o s de Penafiel e M a r c o de Canaveses
(das quais 29 ao primeiro), i n c l u i n d o os mosteiros de P a ç o de Sousa, Bustelo
e E n t r e - o s - R i o s . Apenas a Igreja de São M i g u e l de Paredes pertencia ao p a -
d r o a d o régio, nesta zona e m i n e n t e m e n t e senhorial 1 4 7 .
N a terra de G o u v e i a e Benviver, na m a r g e m esquerda d o rio T â m e g a ,
D o m i n g o s M o r e i r a levantou 25 freguesias e integrou-as nos actuais c o n c e l h o s
de M a r c o d e Canaveses e A m a r a n t e (20 das quais n o primeiro). E n t r e elas i n -
cluíam-se os mosteiros de São J o ã o de P e n d u r a d a , Vila B o a d o Bispo e
Tuias. D u a s freguesias, Ariz e São Salvador d o M o n t e , e r a m realengas.
Finalmente, a terra de Baião e P e n a g u i ã o teria na Idade M é d i a a p r o x i m a -
d a m e n t e 35 freguesias, localizadas na actualidade nos c o n c e l h o s de Baião ( m e -
tade), M e s ã o Frio, Santa Marta de P e n a g u i ã o , Peso da R é g u a (outra m e t a d e
nestes três) e M a r c o de Canaveses (apenas uma). A serra d o M a r ã o a n o r t e e
o rio C o r g o a leste e r a m as fronteiras naturais c o m Braga. E m terra de Baião
situava-se o M o s t e i r o de Santo A n d r é de A n c e d e . P e r t e n c i a m ao p a d r o a d o
régio as igrejas de Barqueiros, Fontes, M e d i m , Santo Adrião de Sever e, tal-
vez, São Fraústo da R é g u a 1 4 8 .
A sul d o D o u r o o território diocesano p o r t u e n s e abrangia u m a grande
área o u t r o r a p e r t e n c e n t e ao bispado de C o i m b r a : a terra de Santa Maria (jul-
gado de Feira). Aí são levantadas 85 freguesias, identificáveis nos actuais c o n -
celhos de Feira, Gaia, Oliveira de Azeméis, O v a r , E s p i n h o , A r o u c a , Estarreja
e São J o ã o da M a d e i r a (três quartos das quais nos três primeiros concelhos) 1 4 9 .
Aqui se localizavam os mosteiros de Grijó, P e d r o s o , C u c u j ã e s e Vila C o v a .
D o rei e r a m as paróquias de Esmoriz, São N i c o l a u da Feira, F e r m e d o , L o u -
rosa, M a f a m u d e e Santa Maria de Gaia.

O r d e n s r e l i g i o s a s — D o s 55 mosteiros f u n d a d o s na diocese d o P o r t o
entre os séculos ix e XII, só 25 p e r m a n e c e r i a m além de 1200.
D o s sobreviventes, a maioria adoptara a regra beneditina r e f o r m a d a p o r
C l u n y (não se filiando, p o r é m , na o r d e m ) o u recebera os C ó n e g o s R e g r a n t e s
de Santo A g o s t i n h o após a f u n d a ç ã o de Santa C r u z de C o i m b r a e m 1131 (pri-
m e i r o G r i j ó e, até ao fim d o século XII, A n c e d e , Lordelo, Tuias, Vilela, Vila
Boa d o Bispo e Moreira) 1 5 0 . E m 1320, o mais rico de todos era Santo Tirso
(beneditino). A bastante distância, os de P a ç o de Sousa (beneditino) e G r i j ó
(canonical), seguidos de P e d r o s o e São J o ã o de P e n d u r a d a e, logo, de Vila
Boa d o Bispo e Bostelo. O s restantes f o r a m taxados e m m o n t a n t e s iguais (e
p o r •vezes inferiores) aos de igrejas paroquiais.
P o r sua vez, os mosteiros de Santo Tirso e G r i j ó d e t i n h a m o p a d r o a d o de
várias igrejas na diocese, s o b r e t u d o e m terra da Maia e de Santa Maria, res-
pectivamente.
A o r d e m militar de São J o ã o d o Hospital era i n f l u e n t e n o eclesiástico
(e n o temporal) da diocese d o P o r t o . N ã o só aí se e n c o n t r a v a a primeira sede
d o seu p r i o r a d o e m Portugal, o bailiado de Leça, c o m o t a m b é m aí detinha,
e m 1320, o p a d r o a d o de 8 igrejas — s o b r e t u d o e m terra da Maia (Leça d o
Bailio) e, i g u a l m e n t e , e m terra de Santa Maria e terra de P e n a g u i ã o ( j u n t o à
bracarense terra d e Panóias, o n d e a o r d e m era poderosa).
A presença da O r d e m d o T e m p l o / C r i s t o n o eclesiástico p o r t u e n s e era
simbólica, apenas c o m o p a d r o a d o de u m a igreja e m 1320. A lista cria i n e x -
plicavelmente e m terra de Santa Maria u m g r u p o de freguesias intitulado

165
A CONSTRUÇÃO DE UMA IGREJA

Portal da Sé Velha de
Coimbra.
FOTO: N U N O CALVET/ARQUIVO
CÍRCULO DE LEITORES.

«Igrejas da T e r r a da O r d e m de Cristo», mas n ã o atribui à o r d e m o p a d r o a d o


de q u a l q u e r delas 151 .
D u a s ordens presentes na diocese d o P o r t o t i n h a m vínculos ao p a d r o a d o
régio: os premonstratenses d o M o s t e i r o (e antigo eremitério) de Santa O v a i a
de V a n d o m a e a mal c o n h e c i d a O r d e m d o Santo Sepulcro de Jerusalém, cuja
sede e m Portugal ficava n o m o s t e i r o de Aguas Santas 1 5 2 .
A entrada dos Mendicantes na cidade d o Porto (sobretudo dos Francisca-
nos), durante a década de 30 do século XIII, foi a c o m p a n h a d a de grandes c o n -
vulsões na cidade, n o caso dos Franciscanos, e de transferências de direitos de
padroado de igrejas para o bispo por parte de leigos, n o caso dos Pregadores —
consignadas n o censual d o cabido da Sé d o P o r t o . As Clarissas entrariam e m
1257 n o m o s t e i r o d e E n t r e - o s - R i o s , r e f o r m a n d o - o , e as D o m í n i c a s estavam
presentes e m Vila N o v a de Gaia desde 1345.

COIMBRA
L i m i t e s — E n t r e 1064 e 1147, a diocese de C o i m b r a esteve situada na
fronteira político-militar d o r e i n o de Leão c o m o Al-Andaluz. Aliada a c o m -
plexas c o n j u n t u r a s d e transição provocadas pela conquista para sul, esta p o s i -
ção de fronteira (mantida depois n o p l a n o cultural) p r o v o c o u b o a parte da
instabilidade da vida eclesiástica na diocese — q u e se atenuaria c o m D . A f o n -
so III. N o e n t a n t o , ao t o m a r posse e m 1279, ainda o bispo D . A y m e r i c
d ' E b r a r d encontrava a administração diocesana e m m a u estado.
D e p o i s da conquista definitiva de C o i m b r a pelo rei de Leão F e r n a n d o
M a g n o , e m 1064, a diocese de C o i m b r a , restaurada p r o v a v e l m e n t e p o r volta
de 1080, durante o g o v e r n o de D . Sesnando, viveria depois d e 1088 «dias
c o n t u r b a d o s c o m o c h o q u e e n t r e o tradicionalismo m o ç á r a b e e as novas
ideias da r e f o r m a gregoriana» 1 5 3 . Esses c h o q u e s , s e g u n d o José M a t t o s o a g u d i -
zados pela n o m e a ç ã o de dois bispos p r ó - f r a n c o s e m 1092 (Crescónio) e 1128
(Bernardo) contra a v o n t a d e d o clero capitular, m a i o r i t a r i a m e n t e m o ç á r a b e ,

166
ORGANIZAÇÃO ECLESIÁSTICA DO ESPAÇO

culminariam, n o s e g u i m e n t o da escolha de B e r n a r d o e m d e t r i m e n t o d o arce-


diago T e l o , na f u n d a ç ã o d o M o s t e i r o de Santa C r u z e m 1131.
Patrocinado pelo rei, apoiado e m sectores poderosos e politicamente influen-
tes da nobreza, da cavalaria coimbrã e da corte régia, o mosteiro tornar-se-ia
mais poderoso que o próprio cabido da Sé de C o i m b r a ao longo d o século XII.
Isentos da jurisdição e fisco episcopais e m C o i m b r a e e m Leiria, os C ó n e g o s
Crúzios alargariam a sua influência (patrimonial e espiritual) e m toda a diocese e
fora dela — e m Cidade R o d r i g o , Lisboa e Évora (Arronches). O governo da
diocese p o r dois bispos crúzios entre 1147 e 1176, D . J o ã o Anaia e D . M i g u e l
Pais Salomão, parece ter aumentado a influência d o mosteiro na diocese.
O s apoios e êxito d o M o s t e i r o de Santa C r u z fizeram c o m q u e vários a n -
tigos mosteiros acolhessem a r e f o r m a canonical. Talvez n ã o seja p o r acaso
q u e a passagem definitiva da terra de Santa Maria para a diocese d o P o r t o é
simbolizada, c o m o acima referimos, pela doação pelo bispo B e r n a r d o ao
M o s t e i r o de São Salvador de G r i j ó (aí localizado) das igrejas de A r g o n c i l h e ,
P e r o s i n h o e Serzedo. Este fora o mais i m p o r t a n t e dos antigos mosteiros a r e -
c e b e r os C r ú z i o s .
N ã o foi apenas a «cisão crúzia» q u e e n f r a q u e c e u a autoridade episcopal de
C o i m b r a . E m 1147, após a conquista de Lisboa, o rei n o m e a v a bispos para as Cabeceira da igreja
antigas dioceses visigóticas de L a m e g o e Viseu, até aí sujeitas à administração do Convento de Santa
coimbrã. C o m a transferência da terra de Santa Maria (Feira) para o bispado Clara-a-Velha (Coimbra).
d o P o r t o e os d e s m e m b r a m e n t o dos territórios lamecense e viseense, o bispa- FOTO: N U N O CALVET/ARQUIVO
d o de C o i m b r a adquiria a sua configuração definitiva, acabando p o r d e f i n i r - C Í R C U L O DE LEITORES.

167
A CONSTRUÇÃO DE UMA IGREJA

-se e m q u a t r o zonas: cidade e t e r m o e os arcediagados de V o u g a , Seia e P e -


nela, c o m o adiante se especificará.

F r e g u e s i a s m e d i e v a i s — As cerca de 240 freguesias da diocese d e


C o i m b r a (incluindo os mosteiros) s u r g e m agrupadas na avaliação de 1320 e m
q u a t r o g r u p o s de igrejas. Destas, n o e n t a n t o , a lista n ã o contabiliza i n d i v i -
d u a l m e n t e as dez paróquias d o isento de Leiria, subsumidas aos c o n t í g u o s
priorado de Leiria (jurisdição eclesiástica d o prior de Santa C r u z ) e ao p r i o r a -
d o de C o l m e i a s (jurisdição eclesiástica d o bispo de C o i m b r a ) . Algumas d e z e -
nas das paróquias da diocese p e r t e n c i a m ao p a d r o a d o régio, c o n f o r m e teste-
m u n h a d o pelas listas de D . A f o n s o III (1259-1266) e D . Dinis (1279-1321).
N a primeira, sem título, a lista inclui as oito paróquias dá civitas (Sé, São
J o ã o de Almedina, São Salvador, São Cristóvão, São B a r t o l o m e u , São Tiago,
Santa Justa e São Pedro), acrescentando-lhes ainda os numerosos, e i m p o r t a n -
tes, mosteiros da diocese. C o m excepção d o mosteiro de Folques, e m Arganil,
e dos priorados de Leiria e de Colmeias, de Santa C r u z , os mosteiros referidos
ficavam quase todos situados ora perto da cidade (Santa C r u z , Almaziva, Santa
Clara, São Jorge, Celas de Guimarães, Celas j u n t o da ponte), ora n o Baixo
M o n d e g o (Seiça) o u na região central da diocese (Semide e Lorvão).
E m seguida, a lista divide o bispado de C o i m b r a e m três grandes t e r r i t ó -
rios. O m a i o r , a n o r t e d o M o n d e g o , era o arcediagado de V o u g a , fronteira
c o m os bispados d o P o r t o , de L a m e g o e d e Viseu; o arcediagado de Seia, a
leste de C o i m b r a , abrangia i g u a l m e n t e u m vasto território a leste q u e lindava
c o m as dioceses de Viseu e da G u a r d a ; finalmente, n o arcediagado de Penela,
a sul d o M o n d e g o , C o i m b r a lindava c o m a G u a r d a e c o m Lisboa — f i c a n d o
os isentos templário e crúzio de p e r m e i o .
C o m quase 100 freguesias e m 1320, o arcediagado de V o u g a começava a
n o r t e p o r u m a estreita faixa d o m i n a d a pela serra da Gralheira o n d e se i d e n t i -
ficam, e n t r e outras, as freguesias de C o d a l , Macieira d e C a m b r a (régia), São
P e d r o d e Castelões e São M i g u e l de T r a v a ç ó , encaixadas entre os bispados
d o P o r t o (fronteira p o r t u e n s e constituída p o r O v a r , Avanca e as zonas de i n -
fluência de São J o ã o da M a d e i r a e Oliveira de Azeméis), L a m e g o (região d e
Arouca, c o m a freguesia hospitalária de Rossas mais p e r t o d o território c o i m -
brão) e Viseu (extrema d o arciprestado de Lafões, c o m as freguesias de J u n -
queira, Sever, R i b e i r a d i o , R e i g o s o e Arcozelo) 1 5 4 .
D e p o i s a área d o arcediagado estendia-se para sul até ao M o n d e g o , s u b i n -
d o o rio desde a foz até Santa C o m b a D ã o (excepto a civitas e t e r m o d e
C o i m b r a ) e, daí para norte, f a z e n d o fronteira a leste c o m a diocese de Viseu.
Este g r a n d e território era d o m i n a d o pela bacia d o rio V o u g a e pelas ribeiras
da m a r g e m direita d o M o n d e g o . A influência d o p a d r o a d o régio era m u i t o
forte nesta região, sendo d o rei as igrejas de São Miguel de Aveiro, Santa Maria
e São T i a g o de Vagos, São V i c e n t e de Branca, Ilbavo, Eixo, R e q u e i x o , São
P e d r o d e Segadães, Santa Eulália de Á g u e d a , São V i c e n t e de Sangalhos, S a n -
to Adrião de Ões 1 5 5 , São L o u r e n ç o d o Bairro, São C r i s t ó v ã o de M a c i n h a t a ,
São Paio de Arcos, São P e d r o de Valongo, Santa Maria e São Julião de P e n a -
cova, São Salvador e São Paio de Figueiredo, Santa Maria de Antes, T e n t u -
gal, as igrejas de M o n t e m o r - o - V e l h o (Santa Maria, São M a r t i n h o , São Salva-
dor, Santa Maria M a d a l e n a , São M i g u e l e São João), São C u c u f a t e de M o i t a ,
Santa Eulália de Á g u e d a , Santa Maria de Lamas, São V i c e n t e d e O u r e n ç a ,
São M i g u e l de Oliveira, Eiras, Covelos, Carregosa, São M i g u e l de Sobral,
Espinhei, Santa Eulália e São T i a g o de Vale G r a n d e , Avelãs, São M i g u e l d e
Fermelã e, n o interior, j u n t o ao limite c o m a diocese de Viseu, São Salvador
da Albergaria de D o n i n h a s 1 5 6 e Maceira de Alcova. A l é m das igrejas d o rei, a
lista de 1320 refere, mais a n o r t e , as paróquias de Salreu, Cacia, Soza, E s g u e i -
ra; entre a Anadia e C o i m b r a e, M o n d e g o abaixo, pela m a r g e m direita até à
foz, Vilarinho, B o l h o , M u r t e d e , C a n t a n h e d e , C o r d i n h ã , O u t i l , B o t ã o , S o u -
selas, Brasfemes, Sanfins, M a i o r c a , Alhadas e Foz d o M o n d e g o ; f i n a l m e n t e ,
na região leste d o arcediagado até à c o n f l u ê n c i a e n t r e o D ã o e o M o n d e g o ,
além da serra d o B u ç a c o e a b r a n g e n d o - a , Sazes, C a r v a l h o / C e r c o s a , M a r m e -
leira, E s p i n h o , M o r t á g u a , São J o a n i n h o e Santa C o m b a D ã o .

168
ORGANIZAÇÃO ECLESIÁSTICA DO ESPAÇO

N o território d o arcediagado de Seia, que correspondia grosso modo ao es-


paço definido entre o rio M o n d e g o e o rio Alva e a serra da Estrela, até ao
Ceira, a lista de 1320 dá-nos cerca de 65 paróquias. Enquadravam-se nesta
área várias igrejas d o padroado régio — c o m o São Julião e São P e d r o de
Gouveia (esta doada a Santa Clara de C o i m b r a depois de 1317), Santo Isidro
de Linhares, São Pedro de Folgosinho, São T o m é de Penalva de Alva, São João
de Lagos, São Pedro de Travanca (de Lagos), Santa Maria de Seia, São R o m ã o
de Seia, Bobadela, Sinde e São J o ã o de M o i m e n t a — além de, entre outras,
as freguesias de Mesquitela, Cadoiço, Vila Cortês, Melo, Casal, Nabais, São
Paio, Arcozelo, V i n h ó , Pinhanços, Valezim, Loriga, Sameice, M e r u g e , T r a -
vancinha, Santo A n d r é do Ervedal, Midões, Tábua, Oliveira do Hospital,
N o g u e i r a do Cravo, a antiquíssima São P e d r o de Lourosa, Avô, Coja, Arga-
nil e, finalmente, Góis.
O arcediagado de Penela era configurado a n o r t e pelos rios M o n d e g o e
Ceira, a leste e sudeste pela serra da Lousã e pelo rio Zêzere (divisória entre
as dioceses de C o i m b r a e da Guarda) até Ferreira; a sul, pela fronteira c o m o
isento de T o m a r e c o m a diocese de Lisboa, ficando do lado desta Alpedriz,
P o r t o de M ó s e O u r é m e, do lado de C o i m b r a , o território dos priorados
crúzios de Leiria e Colmeias. As cerca de 60 paróquias da região agrupavam-
-se sobretudo ao l o n g o das bacias hidrográficas. Primeiramente, a n o r t e e
oeste, na m a r g e m esquerda do M o n d e g o e n o território entre os seus afluentes
Arunca/Anços e Ceira, existiam, entre outras, as freguesias de Lavos, Samuel,
Figueiró, as templárias Ega 1 5 7 , Soure, R e d i n h a , Pombal e Abiul, a crúzia Al-
vorge, P o m b a l i n h o , Antanhol, Zambujal, Podentes, Almalaguês, C e r n a c h e e
quatro freguesias do padroado régio: São M i g u e l e Santa Eufêmia de Penela,
Miranda (do C o r v o ) e Santo Ildefonso de Anobra. Mais para leste, na zona
do Ceira e da serra, Lousã, Serpins, Vilarinho e São Paio de A r o u c e — esta
d o rei. Já localizadas ao longo d o sistema subsidiário do T e j o (Zêzere e N a -
bão), mais a sul, ficavam Ansião, Aguda, Pousafoles — h o j e Pousaflores — ,
Pedrógão, Alvaiázere (régia) e Pelmá, alcançando a extrema sueste da diocese
e m Águas Belas, D o r n e s e Ferreira do Z ê z e r e (as duas últimas da O r d e m de
Cristo). Finalmente, na bacia constituída pelos rios Lis/Lena ficavam as dez
paróquias dos priorados de Leiria e Colmeias cuja jurisdição eclesiástica se di-
vidia entre o prior do Mosteiro de Santa C r u z (São Pedro, São M a r t i n h o ,
Santo Estêvão, São Tiago, da vila, e Paredes, do termo) e o bispo de C o i m -
bra (Colmeias, Espite, Vermoil, Souto e São Simão) 1 5 8 . A fortíssima presença
n o arcediagado de Penela dos cavaleiros templários, depois de Cristo, recorda
igualmente a fase da conquista posterior à instalação da milícia do T e m p l o
(1128, ainda c o m D . Teresa) até à conquista de Santarém e Lisboa (1147).
Ficava igualmente n o arcediagado de Penela a Igreja de Santo Estêvão de
Pereira do padroado régio.

O r d e n s religiosas — Sendo C o i m b r a capital de Portugal durante o mais


importante período de formação do reino (1128-1248), natural é que as grandes
mudanças na vida eclesiástica então ocorridas — e m estreita ligação c o m o
m o v i m e n t o das Cruzadas, e m geral, e da conquista peninsular, e m especial —
fossem vividas ou se repercutissem de m o d o m u i t o particular nesta diocese.
A já referida fundação do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, em 1131,
constitui u m dos primeiros marcos. Protegido pela estirpe régia, panteão dos
dois primeiros reis, o mosteiro crúzio irradiaria imediatamente a sua influência
pelas dioceses do Porto, Braga e Lisboa, levando à adopção da vida canonical
e m mosteiros tão importantes c o m o São Vicente de Fora, Grijó, São Simão da
Junqueira e outros. Só superado em riqueza pelo Mosteiro de Alcobaça, deten-
tor de património vastíssimo centrado na diocese de Coimbra (Leiria sobretudo)
mas estendendo-se às de Évora, Lisboa e Cidade R o d r i g o (transferido para o
Mosteiro de Santa Cruz de Cortes, após fundação deste), o mosteiro era pa-
droeiro de numerosas igrejas localizadas na diocese conimbricense e gozava de
jurisdição eclesiástica plena em cinco das dez paróquias do priorado de Leiria.
O u t r o importante mosteiro canonical era São Jorge de Coimbra, influente
na Covilhã, ao qual pertencia o padroado da Igreja de Santa Maria Madalena

169
A CONSTRUÇÃO DE UMA IGREJA

de Portalegre, doado por D . Afonso III. T a m b é m o Mosteiro de São Pedro de


Folques e m Arganil, igualmente detentor d o padroado de igrejas na diocese da
Guarda, tinha relações estreitas c o m Santa Cruz. O mosteiro de Celas j u n t o à
p o n t e de Coimbra, f u t u r o Mosteiro de Santa Ana, era de irmãs crúzias.
Impacte igual ou maior teve a implantação da o r d e m cisterciense na d i o -
cese. Principalmente devido aos mosteiros femininos de Celas de Guimarães
(para o n d e foi transferida a c o m u n i d a d e de Celas de Alenquer) e de Lorvão
(de o n d e foram expulsos os m o n g e s beneditinos aí existentes), entregues ao
senhorio das infantas Teresa e Sancha, filhas de D . Sancho I, n o início do sé-
culo x m . A l é m de Celas e Lorvão, existiam igualmente as comunidades mas-
culinas de São Paulo de Almaziva e de Seiça.
A lista de 1320 refere ainda as monjas beneditinas de Semide, c o n v e n t o
localizado perto de Miranda d o C o r v o .
O Mosteiro de Santa Clara (a cujo padroado pertencia a Igreja de São
P e d r o de Gouveia e m 132o)159 tinha então dimensões ainda b e m modestas,
fundado que fora p o u c o antes, e m 1288. Desde a segunda década d o século x m
que os Frades M e n o r e s (1221) e Pregadores (1227) haviam criado casas na ci-
dade, estabelecendo-se os Franciscanos e m Leiria e m 1231. C o m o m o s t r o u J o -
sé Mattoso, o m o d e l o de espiritualidade crúzia desenvolvido na urbe p o r
Santa C r u z propiciou o êxito d o m o v i m e n t o m e n d i c a n t e na cidade 1 6 0 .
Defensora da fronteira a sul de C o i m b r a entre 1128 e 1147 e participante
activa na conquista de Santarém e Lisboa, a O r d e m do T e m p l o dominava
nos eclesiásticos de dois núcleos territoriais do arcediagado de Penela: na b a -
cia dos rios A n ç o s / A r u n c a , as igrejas de Ega, Soure, R e d i n h a e P o m b a l e,
j u n t o ao rio Zêzere, n o e x t r e m o sudeste da diocese, nas igrejas de Dornes,
Ferreira d o Zêzere e Poços.
Fronteira e m época anterior a esta, duas outras ordens militares estavam
t a m b é m presentes n o arcediagado de Seia, mas menos: os Hospitalários e m
Oliveira d o Hospital e Figueiró, j u n t o à fronteira c o m a Guarda, e os cava-
leiros de Avis n o Casal.

VISEU
L i m i t e s — A antiga diocese visigótica de Viseu foi restaurada e m 1147, na
mesma ocasião da sua «irmã gémea» de Lamego. Após a conquista de Lisboa,
c o m o atrás referimos para a diocese de Coimbra, o rei D . Afonso Henriques
nomearia bispos para ambas, separando-as d o bispado de Coimbra — a cujas
autoridades eclesiásticas havia sido confiada a administração da diocese viseense
desde a restauração da diocese conimbricense n o último quartel d o século xi.
N a lista de 1320, as cerca de 160 igrejas d o espaço diocesano viseense
apresentam-se agrupadas e m sete regiões. D e oeste para leste p o d e m o s e n u -
merá-las: arciprestado de Lafões, arciprestado de Besteiros, igrejas de A q u é m -
- M o n t e , igrejas de Aguiar, igrejas de T r a n c o s o e t e r m o , igrejas de Pinhel e
t e r m o e igrejas de Castelo M e n d o . Surge ainda u m a oitava região d e n o m i n a -
da igrejas da Mouraria, que não conseguimos localizar 161 .
E m 1279-1321, o rei apresentava os párocos à confirmação d o bispo e m
cerca de 30 freguesias e m toda a diocese de Viseu. Nesse período, a influên-
cia d o padroado régio encontrava-se e m t o d o o território, c o m excepção de
Castelo M e n d o e Pinhel 1 6 2 .

Freguesias m e d i e v a i s — N a fronteira c o m a diocese de C o i m b r a , a oes-


te, ficavam o arciprestado de Lafões e o arciprestado de Besteiros. N o centro
da diocese, envolvendo a civitas, encontramos as igrejas de A q u é m - M o n t e .
Ainda na zona central mas para norte, fazendo já fronteira c o m Lamego, fica-
vam as igrejas de Aguiar. Depois, a leste, v i n h a m primeiro as igrejas de T r a n -
coso e t e r m o e, fazendo fronteira c o m os bispados de Cidade R o d r i g o e da
Guarda, as igrejas de Pinhel e termo e as igrejas de Castelo M e n d o .
O arciprestado de Lafões, t e n d o por núcleo central a terra de Lafões (São
Cristóvão, São Pedro do Sul, Sul, Vouzela, Santa Cruz), abrangia t o d o o n o -
roeste da diocese e m t o m o do rio Vouga, c o m e ç a n d o j u n t o ao limite c o m
C o i m b r a e fazendo toda a fronteira c o m Lamego até à zona u m p o u c o a leste

170
ORGANIZAÇÃO ECLESIÁSTICA DO ESPAÇO

d o eixo Viseu-Castro Daire. Esta sub-região da diocese viseense era delimitada


pelas serras da Gralheira (nordeste), Arada (norte) e C a r a m u l o (sul), estreitan-
do-se a partir da área de Lafões/Sul e c o n f r o n t a n d o c o m o rio Vouga a sul.
Entre as cerca de 45 igrejas do arciprestado, conseguimos identificar na e x -
trema nordeste a noroeste da fronteira c o m C o i m b r a as paróquias de Junqueira,
Santa Maria de Sever, Ribeiradio, Arcozelo, R e i g o s o , Campia, Alcafaz, Álcofra
e, já n o Caramulo, São J o ã o de Souto. Depois, subindo o Vouga, encontramos
na zona de Lafões propriamente dita as freguesias de Vouzela, Santa C r u z , o
mosteiro cisterciense de São Cristóvão de Lafões, São Paio de Oliveira (hoje de
Frades), São P e d r o d o Sul e, mais a norte, Sul e Figueiredo de Alva, entre o u -
tras. N a extrema leste desta área diocesana ficavam as freguesias de São Pedro
de M õ e s e Santa Maria da Várzea. São Pedro do Sul e Santa Maria de Vouzela,
j u n t a m e n t e c o m as igrejas de São M a r t i n h o de Alva de Reriz, São Miguel d o
M a t o , Santa Maria de Pidelo, Santa Maria de P e p i m e São Miguel de D o m a -
m o u r o s (mais tarde M a m o u r o s ) pertenciam ao padroado régio.
N o sudoeste da diocese, a sul da serra d o C a r a m u l o , f a z e n d o fronteira
c o m o bispado de C o i m b r a , localizavam-se as cerca d e 20 freguesias d o arei-
prestado de Besteiros. Esta zona estava centrada nas freguesias d e São T i a g o e
Santa Eulália de Besteiros, Molelos, Ardavaz, T o n d e l a e T o n d a , ficando a sul,
a c a m i n h o d o M o n d e g o , as paróquias de T r e i x e d o , Papízios, P i n h e i r o de
Àzere e Parada, e a n o r t e as de Fráguas e Caparrosa. O rei apresentava os p á -
roços e m q u a t r o igrejas, a saber, São Salvador de Castelões, São M a r t i n h o d e
Ó v o a , Santa Maria de T o n d e l a e São P e d r o de Molelos.
E m seguida, a lista de 1320 apresenta a m a i o r área d e n t r o da diocese de V i -
seu c o m o igrejas de A q u é m - M o n t e . A designação, característica de q u e m vive
n o planalto beirão, n ã o p o d e deixar de referir-se à região a oeste o n d e p r e d o -
minava a serra d o C a r a m u l o — enquadrada pelos arciprestados de Lafões e
Besteiros. As quase 50 paróquias de « A q u é m - M o n t e » estendiam-se d o rio
V o u g a , a norte, ao rio M o n d e g o , a sul, até à fronteira c o m a zona de T r a n c o -
so e a diocese da Guarda (Celorico) a leste. R e u n i n d o - a s e m dois grupos, E n -
tre V o u g a e D ã o e E n t r e D ã o e M o n d e g o , encontramos, entre outras, n o pri-
m e i r o as freguesias de Silgueiros, São M a r t i n h o e Santa Eulália d o C o u t o (da
cidade de Viseu?) 163 , Lordosa, Cepões, Cavernães, São Miguel de Budiosa,
Santa Maria de Sátão, São M a r t i n h o de P i n d o e São Miguel de R i o de M o i -
n h o s (as quatro últimas d o p a d r o a d o régio), e, n o segundo, Oliveira d o C o n -
de, Cabanas, Canas de S e n h o r i m , Senhorim, Alcafache, os mosteiros de M a -
ceira-Dão e de Santa E u f ê m i a de Ferreira de Aves, São M i g u e l de Fornos de
Azurara (Mangualde), Matança, São Julião de Azurara, São P e d r o de Santar,
São P e d r o de Penalva d o Castelo, Santa Maria d o Castelo de Tavares, São M i -
guel de Fornos de Algodres e São P e d r o de Pena Verde. O s párocos das seis
últimas paróquias eram apresentados pelo rei, b e m c o m o os de duas outras
igrejas de A q u é m - M o n t e : São Miguel de Ribafeita e Santa Maria de Gulfar.
A n o r t e de « A q u é m - M o n t e » , lindando c o m a diocese de Lamego, ficava o
território d e n o m i n a d o igrejas de Aguiar, incluindo apenas três freguesias: na
vila as de São P e d r o e Santo Eusébio 1 6 4 ; a sudeste de Aguiar, ficava Santa M a -
ria de Carapitos. A p e q u e n a dimensão desta área administrativa, a sua localiza-
ção j u n t o à diocese de L a m e g o e o facto de as duas da vila (Santo Eusébio e
São Pedro) t e r e m c o m o p a t r o n o o rei, faz-nos pensar se Aguiar da Beira n ã o
teria u m a importância estratégica para o eclesiástico régio na diocese de Viseu.
N a região oriental e n c o n t r a m o s p r i m e i r o as 16 freguesias d e n o m i n a d a s
igrejas de T r a n c o s o 1 6 5 . N a vila e imediações identificamos nada m e n o s q u e
n o v e paróquias: Santa Maria, Santa Maria d o Sepulcro, Santa Luzia, São T o -
m é , São M i g u e l , São B a r t o l o m e u , São T i a g o , São P e d r o e São J o ã o de Vila
N o v a de T r a n c o s o , s e n d o as três últimas d o p a d r o a d o régio. N o t e r m o , l o c a -
lizado a leste de T r a n c o s o , figuram, e n t r e outras, as igrejas de Freches, Maçai,
Vila Franca (então d o C o n d e ) , M o r e i r a de R e i e São J o ã o da P ó v o a de R e i
(no século xiii ainda São J o ã o de P ó v o a de Ervas Tenras, o u de P ó v o a N o v a
d e l - R e i ) . Nestas duas, c o m o a designação b e m explica, era o rei q u e m a p r e -
sentava o p á r o c o .
A leste de T r a n c o s o , n o limite oriental d o espaço diocesano viseense,

171
A CONSTRUÇÃO DE UMA IGREJA

j u n t o às dioceses de Lamego, C i d a d e R o d r i g o e G u a r d a , ficavam as cerca de


2o paróquias designadas c o m o igrejas de Pinhel. N a vila e n c o n t r a m o s as oito
freguesias de Santo A n d r é , São P e d r o , Santa Maria Madalena, São M a r t i n h o ,
Santa Maria d o Castelo, São T i a g o , São Salvador e São J o ã o (esta da O r d e m
d o Hospital), localizando-se j u n t o dela a Igreja de São J o ã o d o Seixo. A oeste
da vila, e n t r e esta e o t e r m o de T r a n c o s o , c o m a fronteira lamecense a norte,
identificamos as paróquias de Santa E u f ê m i a e V a l b o m . S e g u i n d o para sul,
j u n t o ao t e r m o de T r a n c o s o , ficava p r i m e i r o a paróquia de Ervas T e n r a s e
depois, j á p e r t o da diocese da Guarda, as de Freixedas e Lamegal. J u n t o
à fronteira cudana c o m C i d a d e R o d r i g o , face a A l m e i d a e Castelo B o m , si-
t u a v a m - s e as freguesias de Valverde e Atalaia — n o m e b e m sugestivo da res-
pectiva posição estratégica.
F o r m a n d o u m a «bolsa» a sul d o t e r m o d e Pinhel, e n t r e os territórios d i o -
cesanos da Guarda e C i d a d e R o d r i g o , estavam localizadas as 1o igrejas da t e r -
ra de Castelo M e n d o , as freguesias mais distantes da civitas viseense. D o lado
oriental, as paróquias da vila (São Vicente, Santa Maria e São P e d r o , esta d o
p a d r o a d o régio), j u n t a m e n t e c o m Santa Maria de Leomil e P o r t o de O v e l h a
c o n f r o n t a v a m c o m R i b a c o a . D o lado ocidental, Cerzeira (do M o s t e i r o d e
Santa Maria de Aguiar), Cabreiros e M o r e i r a voltavam-se para a G u a r d a .
N ã o e n c o n t r á m o s apresentações régias a quaisquer igrejas de Pinhel.

O r d e n s religiosas — N a lista de 1320, além do antigo mosteiro beneditino


de Santa Eufemia de Ferreira de Aves e dos cistercienses de São Cristóvão de La-
fões e Maceira-Dão, a única instituição referida é a O r d e m d o Santo Sepulcro, à
qual estava anexo o mosteiro de Vila N o v a , incluído entre as «igrejas de A q u é m -
- M o n t e » e, por dedução a partir do n o m e (não encontrado e m outra igreja d o
território português), a Igreja de Santa Maria do Sepulcro e m Trancoso.
Integradas n o p a d r o a d o da O r d e m de São J o ã o d o Hospital estavam as
igrejas d e São J o ã o e m Pinhel e a de Ansemil (no arciprestado de Lafões). N a
região d o arciprestado de Besteiros figura a única freguesia da O r d e m d e
Cristo: P i n h e i r o de Ázere.

LAMEGO
L i m i t e s — A diocese de L a m e g o foi restaurada e m 1147, j u n t a m e n t e
c o m Viseu, sendo ambas desmembradas da diocese d e C o i m b r a .
M a n u e l Gonçalves da Costa não faz referência específica às fronteiras da
diocese d e L a m e g o entre os séculos XII e xv, m e n c i o n a n d o quase exclusiva-
m e n t e os limites diocesanos na época suevo-visigótica 1 6 6 . S u p o m o s q u e tal si-
lêncio significa q u e a linha divisória seria pacífica relativamente às dioceses d e
C o i m b r a e Viseu, c o m as quais c o n f r o n t a v a a oeste e sul. Até 1147, r e c o r d e -
-se, as três haviam coexistido d e n t r o d o espaço c o n i m b r i c e n s e .
Q u a n t o aos limites c o m o P o r t o , c o m a qual c o n f r o n t a v a a o c i d e n t e e
n o r t e ( c o m o D o u r o de p e r m e i o neste quadrante), estes teriam ficado d e f i n i -
dos ainda antes da restauração da diocese q u a n d o , e n t r e 1132 e 1137, a j u r i s d i -
ção dos bispos d o P o r t o sobre a terra de Santa Maria se firmou (ver limites da
diocese d o P o r t o , supra).
A leste, a região entre C ô a e Á g u e d a seria integrada e m L a m e g o e m 1403,
depois d e p e r t e n c e r à diocese de C i d a d e R o d r i g o .
L a m e g o lindava c o m as dioceses de Braga, P o r t o , C o i m b r a , Viseu e C i -
dade R o d r i g o . Apenas a partir de 1403, ao integrar as terras de R i b a c o a , pas-
saria a ter c o n f r o n t a ç õ e s c o m a diocese da Guarda.

F r e g u e s i a s m e d i e v a i s — M a n u e l Gonçalves da Costa agrupa as f r e g u e -


sias medievais da diocese de L a m e g o e m 15 núcleos: L a m e g o (civitas e t e r m o ) ,
T a r o u c a , Caria e M o i m e n t a , A r m a m a r , T a b u a ç o , São J o ã o da Pesqueira,
N u m ã o , M e d a , P e n e d o n o , Sernancelhe, Alto Paiva, C a s t r o Daire, R e s e n d e ,
Cinfães e, p o r ú l t i m o , Paiva e Arouca 1 6 7 . As paróquias de R i b a c o a , integradas
na diocese de L a m e g o e m 1403, são referidas na secção dedicada à diocese d e
C i d a d e R o d r i g o — à qual p e r t e n c i a m . A presença d o p a d r o a d o régio na d i o -
cese de Lamego, particularmente forte n o aro da civitas e nas terras de N u m ã o ,

172
ORGANIZAÇÃO ECLESIÁSTICA DO ESPAÇO

Igreja de São Martinho dos


M o u r o s (séculos x n - x n i ) .
FOTO: JOSÉ M A N U E L OLIVEIRA/
/ A R Q U I V O C Í R C U L O DE
LEITORES.

Castro D a i r e e M e d a e quase ausente nos territórios de T a r o u c a , Sernancelhe


e Alto Paiva, parece ter e n f r a q u e c i d o a partir d o reinado de D . Dinis.
N a cidade de Lamego, existiam duas freguesias — Sé e Almacave. N o ter-
m o ( d e n o m i n a d o aro), são identificadas 23 paróquias, a saber, Avões, Bagaús-
te, Balsemão, Britiande, C e p õ e s , Ferreirim, M ó s , Ferreiros de Avões, Lalim,
Magueija, Melcões, Parada d o Bispo, Sande, Várzea de Abrunhais, Lazarim,
M e i j i n h o s , Penajóia, São M a r t i n h o de C a m b r e s , São M i g u e l de Belães, São
P e d r o de P e n u d e , Samodães, Valdigem e São J o ã o de Figueira (das quais as
n o v e últimas eram d o p a d r o a d o régio, sendo o p á r o c o de Figueira apresenta-
d o alternadamente pelo rei, pelos herdadores e pela l i n h a g e m de Berredo).
A partir d o reinado d o Lavrador, c o n t u d o , a influência d o rei n o aro l a m e c e n -
ce diminuiria: Valdigem seria doada ao bispo de L a m e g o (depois de 1289), La-
zarim a D . Estevainha Pires de Alvarenga (1302), Samodães ao M o s t e i r o de
São J o ã o de T a r o u c a (1306) e, a partir da segunda m e t a d e d o século xv, as
igrejas de M e i j i n h o s e Penajóia deixariam de p e r t e n c e r ao p a d r o a d o régio.
N o arciprestado de T a r o u c a , c e n t r a d o na bacia hidrográfica d o rio V a r o -
sa, s u r g e m q u a t r o paróquias (Tarouca, Dalvares, M o n d i m e Várzea da Serra)
e seis igrejas anexas, o u seja, u m total de 10 igrejas.
E m terra de Caria e M o i m e n t a e r a m sete as freguesias medievais (Santa
Maria e São Paio de Caria, M o i m e n t a da Beira, Leomil, Cabaços, São Fins e
Peravelha) c o m sete igrejas anexas — u m total de 14 igrejas. A o p a d r o a d o r é -
gio p e r t e n c e u , apenas até ao século xv, a Igreja de São Paio de Caria.

173
A CONSTRUÇÃO DE UMA IGREJA

E n t r e as zonas anteriores e o rio D o u r o , d o Varosa ao T á v o r a , ficava a


região m o n t a n h o s a d o arciprestado de A r m a m a r , c o m q u a t r o paróquias (São
M i g u e l de A r m a m a r , Fontelo, Folgosa e São M a r t i n h o das Chãs) e 11 igrejas
anexas, r e p r e s e n t a n d o u m total de 15 igrejas. O rei apresentava o p á r o c o nas
igrejas de São M i g u e l de A r m a m a r , E r m i d a de São D o m i n g o s de Q u e i m a d a
e São P e d r o de Q u e i m a d a , anexa a Folgosa.
Nas acidentadas terras d o arciprestado d e T a b u a ç o , e m t o r n o da bacia d o
rio T á v o r a , existiam quatro paróquias ( T a b u a ç o , Sabroso, Granja d o T e d o e
Aldeia de Sendim) e 10 igrejas anexas, c o r r e s p o n d e n d o a u m total de 14 igre-
jas. Granja d o T e d o talvez tivesse p e r t e n c i d o ao p a d r o a d o régio, mas só até
ao século xv.
D o u r o acima, o arciprestado de São J o ã o da Pesqueira era f o r m a d o p o r
seis freguesias (São P e d r o , São T i a g o e São J o ã o da Pesqueira, S o u t e l o , T r e -
vões e Paredes da Beira) e u m a igreja anexa, totalizando sete igrejas. O rei
apresentava o p á r o c o e m São J o ã o da Pesqueira.
Alcandorada sobre o rio, na fronteira c o m a diocese de C i d a d e R o d r i g o ,
a rochosa terra de N u m ã o abrangia sete paróquias (São P e d r o d e N u m ã o ,
Santa Maria de N u m ã o , V a l b o m , H o r t a d e N u m ã o , M u x a g a t a , C e d o v i m e
Santa Maria da Veiga e m Foz C ô a ) e q u a t r o anexas, n u m total d e 11 igrejas.
A forte influência d o p a d r o a d o régio — igrejas de São P e d r o e Santa Maria
de N u m ã o , Santa Maria de Vale de Boi, Santa Maria e São J o ã o d e C e d o v i m
e Santa Maria da Veiga e m Foz C ô a — d i m i n u i u c o m a doação de São P e -
d r o e São J o ã o ao bispo de L a m e g o (1302 e 1304). E m 1403 as duas paróquias
de C e d o v i m seriam unidas n u m a só, sendo o respectivo p á r o c o n o m e a d o al-
t e r n a d a m e n t e pelo bispo e p e l o rei.
E m b o r a designada p o r arciprestado da M e d a , a região e m causa era d o m i -
nada p o r Longroiva e Marialva, q u e f o r m a v a m c o m N u m ã o os dois centros
da linha de fronteira c o m o r e i n o de Leão, entre 1169 e 1297. E r a m oito as
freguesias medievais — a saber, M e d a , Longroiva, São J o ã o , São T i a g o , Santa
Maria e São P e d r o d e Marialva, São P e d r o e Santa Maria de R a n h a d o s , além
de seis anexas: o u seja, u m total de 14 igrejas n o território. N a região d e p e n -
d e n t e de Marialva, a diocese d e L a m e g o lindava c o m as dioceses de C i d a d e
R o d r i g o e Viseu. O rei apresentava párocos às igrejas d e São J o ã o , São T i a g o
e Santa Maria de Marialva, b e m c o m o às d e São P e d r o e Santa Maria de R a -
nhados. Aveloso, igreja anexa à da M e d a , t a m b é m p e r t e n c e r a aos reis de P o r -
tugal até D . A f o n s o II, q u e a d o o u ao bispo de L a m e g o .
N a agreste região d o arciprestado de P e n e d o n o havia três paróquias (São
P e d r o e São Salvador de P e n e d o n o e Santa Maria de Penela), c o m sete a n e -
xas, n u m total de 10 igrejas. E r a m realengas as igrejas d e Santa Maria de P e -
nela e S o u t o de P e n e d o n o , anexa à primeira.
N a extrema meridional das terras altas da diocese de L a m e g o , n o limite
c o m a d e Viseu, o arciprestado de Sernancelhe tinha três freguesias (Sernan-
celhe, F o n t e Arcada e Vila da P o n t e ) e seis anexas, totalizando n o v e igrejas.
N a região do Alto Paiva f o r a m levantadas q u a t r o freguesias medievais
(Alhais, Fráguas, P e n d i l h e e Vila C o v a - a - C o e l h e i r a , esta d o p a d r o a d o da O r -
d e m d o Hospital), c o m duas anexas, totalizando seis igrejas.
P e r t o d o rio Paiva, o planalto granítico do arciprestado de Castro D a i r e
dividia-se p o r seis paróquias (São P e d r o e Santa Maria de Castro Daire, E r -
mi da de D . R o b e r t o , Baltar, São J o ã o de P i n h e i r o e G o s e n d e ) , além d e seis
anexas, n u m total de 12 igrejas. E r a m realengas as igrejas de São P e d r o e S a n -
ta Maria d e Castro Daire, Parada de Ester e São J o ã o d e P i n h e i r o , b e m c o m o
o m o s t e i r o da E r m i d a de D . R o b e r t o .
O arciprestado de R e s e n d e era constituído p o r c i n c o freguesias ( R e s e n -
de, A n r e a d e , Aregos, São J o ã o de M i o m ã e s e São M a r t i n h o d e M o u r o s ) ,
c o m três anexas, totalizando oito igrejas. O rei era p a d r o e i r o das igrejas de
São M a r t i n h o de M o u r o s e da de São J o ã o de M i o m ã e s .
Partilhando a mesma paisagem c o m R e s e n d e ficava o arciprestado de C i n -
fàes, p r o l o n g a n d o - s e desde o D o u r o à serra de M o n t e m u r o . O s visitadores
percorriam oito freguesias (São J o ã o de Cinfães, São Cristóvão de N o g u e i r a ,
Santiago de Piães, Ferreiros de Tendais, Santa Cristina de Tendais, Alvarenga,

174
ORGANIZAÇÃO E C L E S I Á S T I C A DO ESPAÇO

Nespereira e M o i m e n t a d o D o u r o ) , q u e t i n h a m anexos oito templos, n u m t o -


tal de 16 igrejas. P e r t e n c i a m ao padroado régio as paróquias de São J o ã o de
Cinfães, São P e d r o de Ferreiros de Tendais e Santa Cristina de Tendais.
N a e x t r e m a ocidental da diocese, fronteira c o m as dioceses d o P o r t o e de
C o i m b r a , estavam as terras de Paiva e A r o u c a , c o m seis freguesias (Sobrado,
Castelo de Paiva, Santa M a r i n h a d e R e a l , P e d o r i d o , A r o u c a e Moldes) e 11
anexas, totalizando 17 igrejas. O rei apresentou o p á r o c o de Santa Maria de
S o b r a d o até ao século xv.
M e s m o se acrescentarmos as freguesias da região de R i b a c o a unidas à
diocese e m 1403, ao total a p u r a d o d e 187 paróquias da diocese de L a m e g o
(incluindo as anexas), verificamos que, mais u m a vez, existe discrepância c o m
o valor de 182 indicado na bibliografia 1 6 8 . Esta discrepância entre contagens,
possivelmente devida a critérios diferentes de contabilização, sublinha de n o -
v o a necessidade de u n i f o r m i z a ç ã o daqueles, de m o d o a p e r m i t i r u m levanta-
m e n t o rigoroso das paróquias medievais.

O r d e n s r e l i g i o s a s — A influência cisterciense era p r e d o m i n a n t e na d i o -


cese de L a m e g o , aí existindo q u a t r o c o n v e n t o s da o r d e m : A r o u c a , de m o n j a s
(em 1320 o s e g u n d o m o s t e i r o cisterciense mais rico de Portugal, a seguir a
Alcobaça), São J o ã o de T a r o u c a , Salzedas e São P e d r o das Águias. São J o ã o
de T a r o u c a foi o p r i m e i r o c o n v e n t o da o r d e m f u n d a d o e m Portugal, ainda
q u a n d o o território lamecense se encontrava sujeito ao bispo de C o i m b r a 1 6 9 .
E m L a m e g o estavam localizados i g u a l m e n t e os mosteiros b e n e d i t i n o s f e -
m i n i n o s de T a r o u q u e l a e R e c i ã o , este m e n o s i m p o r t a n t e . T a r o u q u e l a — ini-
cialmente masculino, p r i m e i r o b e n e d i t i n o , depois canonical — passaria às
m o n j a s bentas n o final d o século XII, n ã o sem resistência da c o m u n i d a d e de
c ó n e g o s regrantes aí residente. Q u a n t o a R e c i ã o , e m plena decadência n o se-
g u n d o quartel d o século xv, foi palco de agitadíssima disputa pela sua tutela
entre duas facções de m o n j a s de vida bastante secular e os frades Lóios, e n v i a -
dos para r e f o r m a r o c o n v e n t o 1 7 0 .
R e f i r a m - s e i g u a l m e n t e o m o s t e i r o canonical de C á r q u e r e , ligado aos se-
n h o r e s de R e s e n d e , e o antigo e r e m i t é r i o da E r m i d a de D . R o b e r t o (ou
Santa Maria de Paiva), depois mosteiro premonstratense, v i n c u l a d o ao p a -
d r o a d o régio 1 7 1 .
A influência da O r d e m d o T e m p l o / C r i s t o era significativa na região
oriental da diocese — entre 1169 e 1297 fronteira c o m o r e i n o de Leão. E m
1320, p e r t e n c i a m aos cavaleiros de Cristo as igrejas de M u x a g a t a (terra de
N u m ã o ) , M e d a , L o n g r o i v a e F o n t e Longa. T a m b é m São P e d r o de Marialva
e a anexa de São P e d r o de Vale de Ladrões são referidas p o r M a n u e l G o n ç a l -
ves da Costa c o m o p e r t e n c e n t e s aos Templários.

CIDADE RODRIGO (PARTE PORTUGUESA)


L i m i t e s — As paróquias situadas e n t r e os rios C ô a e Á g u e d a , chamadas
terra de R i b a c o a , p e r t e n c e r a m à diocese de C i d a d e R o d r i g o até 1403, a n o
e m q u e f o r a m transferidas para a diocese de L a m e g o . M a n u e l Gonçalves da
Costa inventaria cerca de 50 freguesias neste território, entre igrejas p a r o -
quiais e anexas 1 7 2 , n ú m e r o c o i n c i d e n t e c o m as 54 indicadas c o m o transferidas
e m 4 de J u l h o de 1403 173 .
E m 12 de S e t e m b r o de 1297, p o r a c o r d o celebrado e m Alcanices, o rei de
Castela e Leão F e r n a n d o IV desistia de R i b a c o a , q u e passava a integrar o t e r -
ritório s e n h o r e a d o p o r seu f u t u r o sogro, o rei de Portugal D . Dinis. N o ecle-
siástico, p o r é m , a tutela d o território c o n t i n u o u a p e r t e n c e r ao bispo de C i -
dade R o d r i g o .
A sucessiva n o m e a ç ã o de dois leoneses para a sé lamecense e n t r e 1302 e
1312, pelos papas B o n i f á c i o VIII e C l e m e n t e V, p o d e r á ter-se destinado a
contrabalançar a perda de influência da m o n a r q u i a castelhano-leonesa na r e -
gião. S e g u n d o M . Gonçalves da Costa, e m 1302 o papa teria seguido o inusi-
tado p r o c e d i m e n t o de n o m e a r o bispo D . A f o n s o das Astúrias, a n t e r i o r m e n t e
c ó n e g o de Palência, sem i n t e r v e n ç ã o d o cabido e sem aguardar o beneplácito
p r é v i o d o rei 174 .

175
A CONSTRUÇÃO DE UMA IGREJA

F r e g u e s i a s m e d i e v a i s — A lista de 1320 indica os principais centros da


região: Castelo R o d r i g o , Almeida, Castelo B o m , Vilar M a i o r , Sabugal e, fi-
n a l m e n t e Alfaiates, cada qual c o m os seus termos.
C o m e ç a n d o de n o r t e para sul, na área d e n o m i n a d a igrejas de Castelo
R o d r i g o localizava-se o m a i o r n ú m e r o de freguesias — cerca d e 20. E n t r e
elas, na zona ocidental, de fronteira p r i m e i r o c o m a diocese de L a m e g o e d e -
pois c o m a de Viseu, ficavam São Salvador de Castelo M e l h o r , Santa Maria,
São Salvador e São T i a g o de A l m e n d r a e Santa Maria de P e n h a d e Aguiar 1 7 5
(Lamego) e Vilar T o r p i m (Viseu). Mais para o interior, Santa Maria e São J o ã o
de Castelo R o d r i g o , São Vicente de Figueira de Castelo R o d r i g o , São P e d r o
de Almofala, Vilar T o r p i m , Escalhão, Algodres, Vilar Amargo, São Miguel de
Escarigo e Santa Maria de Vermiosa e, limite sul, Malpartida.
A fronteira c o m a diocese d e Viseu c o n t i n u a v a nas freguesias d e Almeida,
Castelo B o m e Vilar M a i o r .
N o g r u p o das igrejas de A l m e i d a f i g u r a m apenas, na lista de 1320, as três
freguesias de Santa Maria de Almeida, Santa Maria M a d a l e n a de Vale da J u n -
ça e Santa Maria de Vale da M u l a .
Das igrejas de Castelo B o m faziam parte as paróquias de Santa Maria e
São M a r t i n h o de Castelo B o m , São J o ã o de Vilar F o r m o s o , São T i a g o de
Nabais, Santa Maria de Freineda e São P e d r o de R i o Seco.
As seis freguesias de Vilar M a i o r eram São P e d r o e Santa Maria de Vilar
Maior, São J o ã o de Malhada Sorda, Santa Maria de Besmula, São B a r t o l o -
m e u de N a v e de H a v e r e São J o ã o de F e r m e l o .
D o s últimos dois grupos de freguesias, Sabugal e Alfaiates, só o p r i m e i r o
lindava c o m u m a diocese portuguesa — a da G u a r d a .
As 14 paróquias d o Sabugal incluíam, além de São J o ã o , Santa Maria d o
Castelo, São Tiago, São L o u r e n ç o , Santa Maria Madalena, São M i g u e l e São
P e d r o , as sete da vila, as freguesias de São M i g u e l de Aldeia d o Bispo, Q u a -
drazais e Santa Maria d o S o u t o .
Entre as sete igrejas de Alfaiates contavam-se São Tiago e São J o ã o da vila e,
ainda, a de Santa Maria de Aldeia da Ponte, Peça e Santa Maria de Vila Flor.
N ã o s u r g e m quaisquer apresentações às igrejas da diocese de C i d a d e R o -
drigo nas listas d o p a d r o a d o régio de D . A f o n s o III e D . Dinis. A t e n d e n d o à
sua i n c o r p o r a ç ã o n o território p o r t u g u ê s depois de 1297, c o m o T r a t a d o de
Alcanices, após longa integração n o r e i n o d e Leão desde 1169, esse facto n ã o
causa admiração.

O r d e n s r e l i g i o s a s — M u i t o p e r t o de Figueira de Castelo R o d r i g o fica-


va o M o s t e i r o de Santa Maria d e Aguiar, o r i g i n a l m e n t e de f u n d a ç ã o b e n e d i -
tina mas integrado na o r d e m cisterciense n o ú l t i m o quartel do século XII.
N a freguesia de Pereiro, das igrejas de Castelo R o d r i g o , teve p r o v á v e l -
m e n t e a sua primeira sede a O r d e m Militar de São Julião d o Pereiro, mais
tarde de Alcântara após a sua transferência para a cidade leonesa d o m e s m o
n o m e , situada j u n t o à m a r g e m esquerda d o rio T e j o — m u i t o p e r t o da f r o n -
teira c o m a diocese da Guarda. E m 1320, o p a d r o a d o da igreja ainda pertencia
aos cavaleiros de Alcântara.

GUARDA
L i m i t e s — Erigida entre 1199 e 1203 n o lugar da antiga diocese visigótica
da Egitânia (Idanha-a-Velha), a diocese da G u a r d a o c u p o u u m a posição c e n -
trai n o território p o r t u g u ê s , c o n f r o n t a n d o a oeste e n o r o e s t e c o m C o i m b r a , a
n o r t e e nordeste c o m Viseu, a leste c o m as dioceses de C i d a d e R o d r i g o (La-
m e g o , a partir de 1403, depois da integração de R i b a c o a neste território d i o -
cesano) e Coria, a sudeste c o m Badajoz, a sul c o m É v o r a e a sudoeste c o m
Lisboa 1 7 6 .
A f u n d a ç ã o da diocese da G u a r d a veio abrir conflitos c o m os bispados v i -
zinhos sobre territórios fronteiriços. O litígio de maiores p r o p o r ç õ e s , c o m
C o i m b r a , arrastou-se entre 1204 e 1256, c o m sucessivas m e d i a ç õ e s de juízes
apostólicos delegados. E m 27 d e Abril de 1256, sentença definitiva proferida
pelo papa Alexandre IV atribuía ao bispo da Guarda as igrejas de B e l m o n t e ,

176
ORGANIZAÇÃO ECLESIÁSTICA DO ESPAÇO

Inguias, Olas ( m a n t e n d o o bispo de C o i m b r a o s e n h o r i o secular das mesmas),


C e l o r i c o , Misarela, Prados e V i d e m o n t e e ao bispo de C o i m b r a Linhares e
seu t e r m o e a parte d o t e r m o de Seia e m litígio 177 . Antes de resolvido o c o n -
flito c o m C o i m b r a , b r e v e d o papa I n o c ê n c i o IV dava solução, e m 1249, ao
litígio q u e o p u n h a os bispos de G u a r d a e Viseu, a t r i b u i n d o as igrejas d o aro e
de J e r m e l o e as de Castelo M e n d o ao segundo 1 7 8 . S e g u n d o P i n h a r a n d a G o -
mes, o litígio c o m É v o r a ficou resolvido q u a n d o , e m 1241, o bispo D . V i c e n -
te se c o m p r o m e t e u a aceitar a resolução dada pelo chantre de Lisboa e pelo
arcediago da C o v i l h ã sobre as terras egitanienses de a l é m - T e j o , q u e n ã o iam
além d o t e r m o de Portalegre 1 7 9 .

F r e g u e s i a s m e d i e v a i s — A lista de 1320 divide as quase 220 paróquias


d o território diocesano da G u a r d a p o r 10 zonas: G u a r d a (cidade e t e r m o ) ,
C e l o r i c o (vila e t e r m o ) , B e l m o n t e , Sortelha, P e n a m a c o r , M o n s a n t o , P o r t a l e -
gre, M a r v ã o e Castelo de Vide, Abrantes e Covilhã. O eclesiástico da diocese
da G u a r d a era influenciado pelo p a d r o a d o das ordens militares, s o b r e t u d o d o
T e m p l o / C r i s t o , mas t a m b é m d o Hospital e de Avis e Alcântara, estas duas
e m m u i t o m e n o r grau. O p a d r o a d o régio n ã o era significativo.
A sul a diocese da G u a r d a prolongava-se além d o T e j o , e m dois c o r r e d o -
res. O p r i m e i r o , e s t e n d e n d o - s e da m a r g e m direita à m a r g e m esquerda d o
T e j o e f a z e n d o fronteira nas duas margens c o m a diocese de Lisboa, reunia as
15 freguesias d e n o m i n a d a s igrejas de Abrantes. N a m a r g e m direita d o T e j o ,
este g r u p o incluía, entre outras, as de Vila de R e i , M a r t i n c h e l , A m ê n d o a ,
M a ç ã o , Alcaravela, as cinco de Abrantes (Santa Maria d o Castelo, São V i c e n -
te, São J o ã o , São T i a g o e São Pedro) e a de São Julião de P u n h e t e ( C o n s t â n -
cia); na m a r g e m esquerda, s u r g e m - n o s a de L o n g o m e l e a de São Francisco
de P o n t e de Sor — esta na e x t r e m a sul dos limites c o m Évora 1 8 0 . N o s r e i n a -
dos de D . A f o n s o III e D . Dinis, p e r t e n c i a m ao p a d r o a d o régio nesta zona as
igrejas de Santa Maria, São J o ã o e São P e d r o de Abrantes, Vila de R e i e São
Julião de P u n h e t e , esta cedida ao bispo da G u a r d a e m 1292.
A i n d a a sul d o T e j o , mais a leste, separado da zona de influência de
Abrantes p o r u m p r o l o n g a m e n t o da diocese de É v o r a até ao T e j o pelo C r a t o
e Amieira ( o n d e p r e d o m i n a v a a O r d e m de São J o ã o d o Hospital), ficava o
s e g u n d o c o r r e d o r . N e s t e estavam situadas 18 freguesias: as sete agrupadas nas
igrejas de M a r v ã o e Castelo de V i d e (incluindo Alegrete) e as oito corres-
p o n d e n t e s às igrejas de Portalegre, além das três freguesias transtaganas das
igrejas da C o v i l h ã ( M o n t a l v ã o , Alpalhão e Santa Maria de Nisa) 1 8 1 . N o p n -
m e i r o g r u p o , e r a m d o rei Santa Maria e São T i a g o de M a r v ã o , Santa Maria,
São P e d r o e São Salvador de Castelo de V i d e e São J o ã o de Alegrete. N a s
listas d o p a d r o a d o d o reinado de D . Dinis n ã o figura q u a l q u e r apresentação
relativa a Portalegre, depois de D . A f o n s o III ter n o m e a d o párocos para as
igrejas de São V i c e n t e , São T i a g o e São M a r t i n h o e n t r e 1260 e 1266 182 . Teria
o p a d r o a d o das igrejas de Portalegre feito parte d o s e n h o r i o d o a d o pelo Bolo-
nhês ao seu filho s e g u n d o D . A f o n s o e m 1271, ao contrário d o das de Castelo
de Vide e M a r v ã o (cujas apresentações p e r m a n e c e m ao l o n g o d o p e r í o d o
dionisino) 1 8 3 ?
A m a i o r subdivisão d o espaço diocesano egitaniense apresentada na lista
de 1320 abrangia as 74 igrejas da C o v i l h ã , abarcando toda a zona central e
ocidental da diocese, a n o r t e e leste das igrejas de Abrantes 1 8 4 . M e n o s aperta-
da na área m e r i d i o n a l , a malha paroquial incluía, e n t r e outras, as freguesias de
R ó d ã o , Castelo B r a n c o , Q u e b r a d a , Sarzedas e São T i a g o de Sovereira F o r -
mosa (esta d o p a d r o a d o régio) e, mais a oeste, e m zona de influência dos
Hospitalários, Sertã, Maceira, Oleiros e Álvaro. Mais para n o r t e o n ú m e r o de
paróquias parece a u m e n t a r , p r i m e i r o ao l o n g o da fronteira serrana ocidental
c o m C o i m b r a (Pampilhosa, Cambas, J a n e i r o , Dornelas, O u r o n d o , Silvares) e,
depois, e m t o r n o da C o v i l h ã e d o F u n d ã o . N a C o v i l h ã existiam 13 igrejas:
São Salvador, São P e d r o , São B a r t o l o m e u , Santa Maria M a d a l e n a , São D o -
mingos, Santo Estêvão, São M a r t i n h o , São M i g u e l , São Silvestre, São T i a g o ,
São L o u r e n ç o , São V i c e n t e e Santa Maria d o Castelo, sendo o p á r o c o desta
apresentado pelo rei. N a região e m t o r n o d o F u n d ã o existiam, entre outras,

177
A CONSTRUÇÃO DE UMA IGREJA

as freguesias de Castelejo, F u n d ã o , Alcongosta, S o u t o da Casa, Alpedrinha,


Alcaide, Valverde, Fatela, São V i c e n t e da Beira, Lardosa, B e m p o s t a , P ê r o V i -
seu, C a p i n h a , Paul, T o r t o s e n d o , Peraboa, Caria, Orjais, T e i x o s o , Verdelhos
e Santa Maria da Mata, esta d o p a d r o a d o régio. N o e x t r e m o n o r t e , ficavam a
freguesia d o C o l m e a l e, encravadas na serra da Estrela, as igrejas d e Manteigas
(São P e d r o era d o rei) e a de Valhelhas.
A leste d o distrito eclesiástico covilhanense, j u n t o à fronteira, localizava-
-se u m a região de f o r t e influência da O r d e m d o T e m p l o / C r i s t o . Aí se situa-
v a m as freguesias c o r r e s p o n d e n t e s às igrejas de M o n s a n t o (13, i n c l u i n d o ,
além das duas igrejas de M o n s a n t o , R o s m a n i n h a l , Segura, Salvaterra, Ida-
n h a - a - N o v a , O l e d o , Acha, P r o e n ç a - a - V e l h a , P e n h a Garcia, M e d e l i m , A l -
deia de J o ã o Pires e Aldeia de D . Salvador). E n t r e 1310 e 1318 s u r g e m diversas
apresentações d o rei às igrejas d e R o s m a n i n h a l , Salvaterra, I d a n h a - a - V e l h a ,
Segura, P r o e n ç a - a - V e l h a , A c h a e O l e d o . T a l c o m o e m Nisa, t r a t o u - s e so-
m e n t e de u m a interferência t e m p o r á r i a do p a d r o a d o régio, d e v i d o à e x t i n -
ção da O r d e m d o T e m p l o . C o m a criação da O r d e m de Cristo, e m 1319, es-
tas igrejas f o r a m integradas n o p a d r o a d o da n o v a milícia, s e n d o referidas pela
avaliação de 1320 c o m o p e r t e n c e n t e s à o r d e m ( e x c e p t o a de O l e d o ) . Das
igrejas de M o n s a n t o , era ainda d o p a d r o a d o régio a d e Aldeia (que foi) de
D . Salvador.
Ainda a leste da região tutelada pela Covilhã, a n o r t e de M o n s a n t o , as f r e -
guesias surgem agrupadas e m duas pequenas áreas q u e confinavam c o m as terras
portuguesas da diocese de C i d a d e R o d r i g o : as igrejas de P e n a m a c o r (oito
igrejas, i n c l u i n d o , além das cinco de P e n a m a c o r , M e i m ã o , M e i m o a e Santa
Maria de Aranhas, p e r t e n c e n d o esta e São P e d r o de P e n a m a c o r ao p a d r o a d o
Mapa dos conventos
franciscanos, dominicanos e régio) e as igrejas da Sortelha (oito igrejas, as três da vila e M o i t a , B e n d a d a ,
de clarissas (reproduzido in Aguas Belas, P e n a l o b o e Valverde, sendo d o rei Santa Maria d e Sortelha).
J o s é Mattoso, História de V e m de seguida o p e q u e n o território das igrejas de B e l m o n t e , o n d e ,
Portugal, 11, p. 234). a l é m dos t e m p l o s da vila, f i c a v a m Olas e M a ç a i n h a s . É possível q u e , a l é m
de exígua, esta área fosse descontínua 1 8 5 .
As igrejas da G u a r d a e seu t e r m o abrangiam, além das oito freguesias da
civitas (Santa Maria d o M e r c a d o , Santa Maria d o T e m p l o , São T i a g o , São J u -
lião, São Vicente, São N i c o l a u , São P e d r o e Santa Maria Madalena), outras
41. Algumas, poucas, a oeste (Faia e V i d e m o n t e ) e sul (Vela e Aldeia d o Bis-
po) da cidade. A maioria das paróquias d o t e r m o , p o r é m , encontrava-se si-
tuada a nordeste, leste e sudeste da Guarda: ora p e r t o da fronteira c o m a d i o -
cese de Viseu (entre outras, Avelãs, Pêra d o M o ç o , A r g o m i l , J e r m e l o ,
Pousade e R o c h o s o ) , ora c o m a de C i d a d e R o d r i g o (Marmeleiro, Pega,
T o u r o ) , ora mais para o interior (Vila F e r n a n d o , Pousafoles e Aldeia de Santa
Maria Madalena). A l é m das igrejas de J e r m e l o , na região da G u a r d a restava
ao rei e m 1313 a igreja de M a r m e l e i r o , depois de, e m 1292, D . Dinis ter cedi-
d o ao bispo D . J o ã o M a r t i n s o p a d r o a d o das igrejas de Santa Maria d o M e r -
cado e capela de Mileu 1 8 6 .
N a e x t r e m a setentrional da diocese da G u a r d a estavam localizadas as cerca
de 20 freguesias c o r r e s p o n d e n t e s às igrejas de C e l o r i c o e seu t e r m o . E n t r e
outras, c o n s e g u i m o s identificar as de F o r n o T e l h e i r o , C o r t i ç o , Prados, R a p a ,
P o r t o da C a r n e , Sobral, Açores, Aveloso, Baraçal e M i n h o c a l , a l é m das q u a -
tro da vila (Santa Maria, Santo A n d r é , São J o ã o e São M a r t i n h o ) .
E m 1285 e 1309, talvez vestígio residual da situação p o u c o clara causada
pelos conflitos fronteiriços c o m as dioceses d e C o i m b r a e de Viseu, e m t e m -
pos idos mas n ã o m u i t o distantes, e n c o n t r a m o s p o r e n g a n o registadas nas lis-
tas d o p a d r o a d o régio c o m o p e r t e n c e n t e s à G u a r d a as igrejas de São P e d r o de
Castelo M e n d o (Viseu) e Santo Isidro de Linhares (Coimbra) 1 8 7 .

O r d e n s r e l i g i o s a s — As ordens militares, s o b r e t u d o a O r d e m d o T e m -
p i o / C r i s t o , t i n h a m u m grande peso na diocese egitaniense. A l é m da p r e p o n -
derância na zona das igrejas de M o n s a n t o — seis das quais (pelo m e n o s ) l h e
p e r t e n c i a m — , s e g u n d o a lista de 1320 e r a m três freguesias tuteladas pelos
T e m p l á r i o s na área d e influência da cidade da Guarda: Santa Maria d o T e m -
pio, na cidade, M a r m e l e i r o , Jaiva e T o u r o 1 8 8 . À o r d e m pertencia ainda o p a -

178
ORGANIZAÇÃO E C L E S I Á S T I C A DO ESPAÇO

d r o a d o d e 14 das igrejas da C o v i l h ã , desde Aldeia de M a r t i n i Anes a B e m p o s -


ta, Castelo N o v o , Lordosa, T o r r e d o Alcizado, Fatela, Castelejo, Silvares,
Alpedrinha, Castelo B r a n c o , R ó d ã o e Vidigueira e, na m a r g e m esquerda d o
T e j o , Nisa e Alpalhão. E m Portalegre era sua a Igreja de Santa Maria M a i o r .
O u seja, pelo m e n o s 24 paróquias.
M e n o s i n f l u e n t e n o eclesiástico, mas c o m vastos d o m í n i o s temporais na
diocese, a O r d e m de São J o ã o d o Hospital tinha o p a d r o a d o de n o v e igrejas:
Santa Maria d o M e r c a d o , na cidade da G u a r d a , C o r t i ç o , n o t e r m o de C e l o r i -
co, Sertã, Álvaro, O l e i r o s e Cortiçada, na região oeste da diocese ( m a r g e m
esquerda d o rio Zêzere) e, f i n a l m e n t e , na vila de Portalegre, o n d e nada m e -
nos de três paróquias (São T i a g o , São M a r t i n h o e São João) lhe p e r t e n c i a m
e m 1320. A O r d e m de Avis tutelava três freguesias: Valhelhas (na serra da Es-
trela), São V i c e n t e da Beira e Santa Maria d o Castelo de Portalegre. P o r fim,
a lista de 1320 declara p e r t e n c e r e m à O r d e m de Santiago as igrejas de Santa
Maria de M a ç ã o e A m ê n d o a , na área de influência de Abrantes.
A q u a n d o dessa avaliação, e r a m d o m o s t e i r o canonical d e São P e d r o de
Folques de Arganil (diocese de C o i m b r a ) as igrejas de Santa Maria da P a m p i -
lhosa (da Serra) e de São J o ã o de M a n t a e m C o l o ( t e r m o da Covilhã), b e m
p r ó x i m a s d o limite e n t r e as duas dioceses.
Das o r d e n s m e n d i c a n t e s , até ao final d o r e i n a d o de D . Dinis apenas os
Franciscanos se h a v i a m i m p l a n t a d o na diocese: G u a r d a (1233), C o v i l h ã (1235)
e, depois, Portalegre (1266).
A lista d e 1320 refere ainda o m o s t e i r o de Maceira, t r i b u t a d o n u m m o n -
tante s e m e l h a n t e ao dos mais débeis mosteiros das dioceses d e Braga e P o r t o .
Era c e r t a m e n t e o m o s t e i r o de Maceira da C o v i l h ã (ou Santa Maria da Estre-
la), referido p o r D o m M a u r C o c h e r i l c o m o u m dos mais pobres da o r d e m
e m Portugal. N ã o e n c o n t r á m o s sobre ele mais informações 1 8 9 .
D o m o s t e i r o egitaniense de Santo A n t ã o de B e m Espera, irradiaria n o sé-
culo x v para Lisboa, Santarém, P i n h e l e Besteiros a obra hospitaleira dos C ó -
negos R e g r a n t e s de Santo A n t ã o , o r i u n d o s de França e instituídos e m o r d e m
pelo papa n o final d o século XIII 190 .

BADAJOZ (PARTE PORTUGUESA)


D o i s territórios portugueses situados nas m a r g e n s direita e esquerda d o rio
Guadiana, j u n t o à fronteira c o m Castela, p e r t e n c i a m à diocese d e Badajoz.
N a m a r g e m direita C a m p o M a i o r , c o m as igrejas de Santa Clara de C a m p o
M a i o r e Santa Maria de O u g u e l a . N a m a r g e m esquerda, O l i v e n ç a , c o m as
igrejas de Taliga e d e O l i v e n ç a .
E m 1444, j á fora d o â m b i t o desta exposição, o território seria a n e x a d o à
diocese de C e u t a . E m 1472, e m b o r a c o n t i n u a n d o a p e r t e n c e r à diocese de
C e u t a , a administração d o arcediagado de O l i v e n ç a era atribuída à a r q u i d i o -
cese d e Braga, a título de i n d e m n i z a ç ã o p o r trocas c o m o bispo de C e u t a r e -
lativas t a m b é m à c o m a r c a eclesiástica de Valença. E m 1570 seria f i n a l m e n t e
i n c o r p o r a d o na n o v a diocese de Elvas 1 9 1 .

LISBOA
L i m i t e s — A diocese de Lisboa lindava c o m os territórios diocesanos de
C o i m b r a , a n o r t e , G u a r d a , a leste (em ambas as m a r g e n s d o rio T e j o ) e E v o -
ra, a sul. R e s t a u r a d a e m 1147, n o s e g u i m e n t o da conquista de Santarém e Lis-
boa, a n o v a diocese teve c o m o p r i m e i r o bispo o inglês Gilbert of Hastings,
n o m e a d o pelo rei D . A f o n s o H e n r i q u e s e sagrado pelo arcebispo de Braga,
D . J o ã o Peculiar — j u n t a m e n t e c o m os bispos de Viseu e de L a m e g o 1 9 2 .
A diocese olisiponense estaria na linha de fronteira c o m o Islão ( j u n t a m e n t e
c o m a diocese d e É v o r a a partir da conquista desta cidade, e m 1166) até 1217,
data da conquista de Alcácer d o Sal.
A p a r e n t e m e n t e , o p r i m e i r o bispo a dar o r d e n a m e n t o às freguesias foi
D . Aires Vasques, a instância d o papa A l e x a n d r e IV, e m b r e v e datado de 27
de S e t e m b r o de 1257. E m 1382, o bispo D . M a r t i n h o teria p r o c e d i d o a n o v a
divisão.
E m 1393, a diocese era instituída e m arquidiocese. A n o v a m e t r ó p o l e pas-

179
A CONSTRUÇÃO DE UMA IGREJA

sava a ter c o m o sufragâneas L a m e g o , G u a r d a , Évora e Algarve (Silves). As


três primeiras, tal c o m o Lisboa, d e p e n d i a m a n t e r i o r m e n t e da m e t r ó p o l e
c o m p o s t e l a n a e Silves da sevilhana.
O padroado régio foi i m p o r t a n t e na diocese de Lisboa, pelo m e n o s até ao
reinado de D . Dinis. N o s períodos de 1259-1266 e 1279-1321, os párocos da
grande maioria das freguesias dos principais centros urbanos — a saber, Lisboa,
Santarém, Sintra, T o r r e s Vedras, Alenquer, Torres Novas, Ó b i d o s , O u r é m e
P o r t o de M ó s — surgem n o m e a d o s pelo rei. U m a vez q u e a corte itinerava
durante b o a parte do ano entre Lisboa e Santarém, os reis precisavam de ter na
diocese de Lisboa os benefícios eclesiásticos necessários ao sustento dos clérigos
que, na corte, constituíam u m i m p o r t a n t e pilar da sua administração 1 9 3 .
Cabeceira da Igreja Matriz de
Atouguia da Baleia. F r e g u e s i a s m e d i e v a i s — N a Idade M é d i a , o bispado de Lisboa era cia-
FOTO: N U N O CALVET/ARQUIVO r a m e n t e d o m i n a d o p o r dois centros u r b a n o s grandes e c o m p l e m e n t a r e s : Lis-
C Í R C U L O DE LEITORES. b o a e Santarém, únicos arcediagados da diocese.

180
ORGANIZAÇÃO ECLESIÁSTICA DO ESPAÇO

A lista de 1320, depois d e designar estas duas áreas c o m o arcediagados,


passa a agrupar as freguesias p e r t e n c e n t e s a cada u m a sob os títulos «Igrejas de
Santarém» e «Igrejas de Lisboa». A l é m destes dois grupos, a lista subdivide as
freguesias d o território olisiponense e m mais onze: a sul d o T e j o , as igrejas de
Almada, de Setúbal e de Palmela; a n o r t e d o rio, as igrejas de Sintra, de M a -
fra, d e A l e n q u e r , de T o r r e s Vedras, de Ó b i d o s , de P o r t o de M ó s , de O u r é m
e de T o r r e s N o v a s . A distribuição geográfica das igrejas indicadas na lista e v i -
dencia algumas descontinuidades e c r u z a m e n t o s e n t r e os territórios de Santa-
r é m , A l e n q u e r , Ó b i d o s e P o r t o de Mós.
C o m e ç a n d o pela região n o r t e e n o r d e s t e da diocese, na f r o n t e i r a c o m as
dioceses d e C o i m b r a e da G u a r d a e c o m o isento de Leiria (do M o s t e i r o de
Santa C r u z ) e o isento d e T o m a r (da O r d e m de Cristo), a n o r t e das serras
dos C a n d e e i r o s e de Aire, existiam na é p o c a m e d i e v a l as sete igrejas de P o r -
t o d e M ó s ( i n c l u i n d o as três da vila, Santa Maria, São P e d r o e São J o ã o , as
duas últimas d o p a d r o a d o régio, a de Santa Maria de A l j u b a r r o t a e, estra-
n h a m e n t e agregadas a este g r u p o , São B a r t o l o m e u de O t a , Santa Maria d e
P o v o s e Santa M a r i a da A z a m b u j a ) 1 9 4 e, logo, as c i n c o igrejas de O u r é m ,
i n c l u i n d o as q u a t r o freguesias da vila (Santa Maria, São J o ã o , São T i a g o e Fachada da Sé de Lisboa.
São P e d r o ) e a p a r ó q u i a de Freixiedas. Destas c i n c o , só São T i a g o n ã o era FOTO: N U N O CALVET/ARQUIVO
d o rei. C Í R C U L O DE LEITORES.
A CONSTRUÇÃO DE UMA IGREJA

A sul da área de O u r é m e, j u n t o à serra de Aire e a leste desta, situava-se


a região das igrejas d e T o r r e s N o v a s , o n d e a lista de 1320 contabiliza t a m b é m
cinco freguesias: as q u a t r o da vila (Santa Maria, São Salvador, São P e d r o e
São T i a g o , todas d o p a d r o a d o régio) e a Igreja de Santa Maria da Serra —
talvez c o r r e s p o n d e n t e à actual A l m o n d a .
A sul das serras dos C a n d e e i r o s e de Aire situava-se a vastíssima região
designada p o r igrejas de Santarém, cujas mais de 40 paróquias abrangiam t o d a
a região leste e sudeste da diocese de Lisboa (desde a fronteira c o m as dioceses
da G u a r d a e de Évora, nas margens direita e esquerda d o T e j o , até ao eixo
R i o M a i o r / A v e i r a s , a oeste) e se estendiam ao e x t r e m o n o r o e s t e d o território
diocesano olisiponense ( n o m e a d a m e n t e as freguesias de Alpedriz, d o p a d r o a d o
régio 1 9 5 , C ó s e Pederneira). A sul do T e j o , é feita referência às igrejas de U l -
me, Montargil, Salvaterra de Magos e M u g e . A lezíria ribatejana da m a r g e m
esquerda, maioritariamente integrada na diocese de Lisboa, era atravessada p o r
u m espigão da diocese de Évora constituído pelas vilas e termos de C o r u c h e e
Benavente, c h e g a n d o possivelmente até ao T e j o . As freguesias transtaganas da
diocese d e Lisboa situadas a oeste desta «testa de ponte» eborense já n ã o sur-
gern incluídas nas igrejas de Santarém. N a m a r g e m direita d o rio, as paróquias
mais importantes q u e figuram na lista de 1320 são as de Aveiras, R i o Maior,
Almoster, Achete, Pernes, Golegã, Santa Maria d o Zêzere, Santa Maria d e
T o m a r e três igrejas cujos párocos eram apresentados pelo rei: Abitureiras,
Azinhaga (já assim d e n o m i n a d a e m 1320, mas a n t e r i o r m e n t e conhecida c o m o
Santa Maria de Almonda) e Alcanede 1 9 6 . P o r fim, e v i d e n t e m e n t e , as muitas
igrejas situadas na vila de Santarém e arredores — Santa Maria da Alcáçova,
Santa Iria, São Mateus, São M a r t i n h o , São L o u r e n ç o , São B a r t o l o m e u , São
Salvador, Santa C r u z , São P e d r o e São J o ã o de Alfange (todas do p a d r o a d o r é -
gio), Marvila, São N i c o l a u , Santo Estêvão, São Julião e São Tiago — , os m o s -
teiros escalabitanos (Almoster, São D o m i n g o s , Santa Clara, Trindade) e dois
mosteiros de Lisboa agrupados às igrejas de Santarém: Cheias e T r i n d a d e .
C a m i n h a n d o para oeste, a lista de 1320 dá-nos e m seguida as igrejas d e
A l e n q u e r . Das c i n c o freguesias da vila — Santo Estêvão, São T i a g o , Santa
Maria da Várzea, São P e d r o e Santa Maria de T r i a n a — e r a m d o p a d r o a d o
régio as três últimas. Pertencia t a m b é m ao rei, já na serra de M o n t e j u n t o , a
Igreja de Santa Maria de Aldeia Galega da M e r c e a n a ( a n t e r i o r m e n t e M o n t e s
de Alenquer), na fronteira c o m T o r r e s Vedras e Ó b i d o s 1 9 7 . P o r razões q u e
n ã o logramos alcançar, o M o s t e i r o de Alcobaça (o mais rico de Portugal) e a
Igreja de São Leonardo da A t o u g u i a (o mais rico dos benefícios d o p a d r o a d o
régio) s u r g e m integrados n o título das igrejas de Alenquer 1 9 8 .
A b r a n g e n d o a m a i o r parte da região costeira central da diocese de Lisboa,
a sul dos coutos de Alcobaça e até a sul da serra de M o n t e j u n t o , ficavam as
oito igrejas de Ó b i d o s . Nelas se c o n t a v a m as q u a t r o freguesias da vila (Santa
Maria, São J o ã o , São P e d r o e São T i a g o , s e n d o os párocos apresentados pelo
rei nas duas últimas) e as de Santa Maria d e A l v o m i n h a , a leste, Santa Maria
da Vila V e r d e , a sul ( M o n t e j u n t o ) , e Santa Maria da L o u r i n h ã , a sudoeste.
Santa Maria da A r r u d a surge i g u a l m e n t e i n c o r p o r a d a e m Ó b i d o s ( q u a n d o ,
pela lógica da c o n t i n u i d a d e , deveria estar integrada o u e m A l e n q u e r o u e m
T o r r e s Vedras). Encravada n o território d e Ó b i d o s , recorde-se, ficava a f r e -
guesia da A t o u g u i a , associada a A l e n q u e r .
N a zona costeira a sul e oeste dos territórios de Ó b i d o s e Alenquer situa-
vam-se as sete igrejas de Torres Vedras, incluindo as quatro freguesias da vila
(Santa Maria, São Tiago, São Pedro e São Miguel, todas d o padroado régio),
Santa Susana de Alcabrichel e, além de M o n t e j u n t o , Carvoeira e M o n t e Agraço.
A sul de Torres, na região costeira ocidental, até ao mar, c o m o t e r m o d e
Lisboa a leste, s u r g e m - n o s as três igrejas de M a f r a (Santo A n d r é de M a f r a ,
São M i g u e l de Alcains e Santa Maria de Cheleiros) e, depois, as cinco igrejas
de Sintra, g r u p o constituído pelas q u a t r o freguesias da vila (São P e d r o , São
M a r t i n h o , Santa Maria e São M i g u e l , as duas últimas de apresentação régia) e
pela paróquia da E n x a r a d o Bispo.
A n o r t e d o T e j o resta referir as mais de 30 paróquias de Lisboa. C o m S i n -
tra a oeste e noroeste, Torres Vedras a n o r t e e, assim o cremos, Santarém a

182
ORGANIZAÇÃO ECLESIÁSTICA DO ESPAÇO

nordeste, existiam n o vastíssimo t e r m o olisiponense as freguesias de Alhandra,


Tojal, Loures, Odivelas, Belas, Santa Maria de Bucelas, São Silvestre de
U n h o s e São Julião de Frielas. Estas três e r a m d o p a d r o a d o régio, tal c o m o
Santa Maria de Sacavém e São J o ã o d o Lumiar, localizadas, à semelhança de
São L o u r e n ç o de C a r n i d e e Santa Maria dos Olivais, nos arrabaldes mais p r ó -
x i m o s da cidade. V e j a m o s as 23 freguesias da u r b e lisboeta. D e n t r o da muralha
antiga da cidade e n c o n t r a v a m - s e sete paróquias: além da sé, as igrejas de Santa
C r u z da Alcáçova, São M a r t i n h o , São B a r t o l o m e u , São J o r g e , São T i a g o e
São J o ã o da Praça (as quatro últimas d o p a d r o a d o régio). Fora da cerca m o u r a ,
mas depois rodeadas pela cerca fernandina, p o d e m o s reunir as restantes 16 f r e -
guesias e m dois grupos. Primeiro, n o da parte oriental, i n c l u e m - s e o M o s t e i r o
de São Vicente de Fora, São P e d r o , São M i g u e l e Santo Estêvão de Alfama (as
três apresentadas pelo rei) e — entre São Vicente, Alfama e o castelo — as p a -
róquias de São T o m é , Santa M a r i n h a d o O u t e i r o , Santo A n d r é e São Salva-
dor. O s párocos das duas últimas e r a m igualmente de n o m e a ç ã o régia, tal c o -
m o os das igrejas de São L o u r e n ç o , Santa Maria de A l c a m i m (mais tarde São
Cristóvão), São M a m e d e e Santa Maria Madalena, localizadas na parte o c i d e n -
tal da cidade velha, na encosta d o castelo. A zona d o antigo esteiro d o T e j o ,
na actual Baixa, era abrangida pelas igrejas de São N i c o l a u , São Julião e Santa
Justa 1 9 9 . A parte ocidental da cidade nova, além da Baixa e até Alcântara, esta-
va integrada na freguesia d e Santa Maria dos Mártires.
Destas 23 freguesias, e r a m as dos Mártires, a oeste, Santa Justa, a noroeste,
e Santo Estêvão de Alfama, a n o r t e , q u e lindavam c o m os arrabaldes. S u r -
p r e e n d e n t e é a i n c o r p o r a ç ã o nas igrejas de Lisboa da igreja de C a n h a , d o p a -
d r o a d o da O r d e m d e Santiago. Esta, q u e r pela p r o x i m i d a d e geográfica q u e r
pela afinidade d o p a d r o a d o , deveria surgir associada o u às igrejas de Setúbal
o u às de Palmela.
F i n a l m e n t e , as paróquias da diocese de Lisboa a sul d o T e j o , e x c e p t o C a -
nha, s u r g e m - n o s integradas e m três grupos. E m todos eles, o p a d r o a d o da
O r d e m de Santiago é d o m i n a n t e 2 0 0 .
N a s igrejas d e Almada, todas da O r d e m de Santiago, incluíam-se, além
das duas freguesias da vila (São T i a g o e Santa Maria), a p a r ó q u i a de Santa
Maria de Sesimbra. As duas igrejas de Palmela (São P e d r o e Santa Maria)
e r a m t a m b é m santiaguistas, tal c o m o q u a t r o das cinco igrejas de Setúbal (San-
ta Maria e São Julião, São L o u r e n ç o de Alhos V e d r o s e Sabonha). Só a Igreja
de Santa Maria de Samora C o r r e i a n ã o é referida c o m o p e r t e n c e n t e aos cava-
leiros espatários.

O r d e n s r e l i g i o s a s — Só c o m D . A f o n s o III o c e n t r o da g o v e r n a ç ã o p o -
lítica d o r e i n o de P o r t u g a l (e, então, d o Algarve) se deslocaria para Lisboa.
N o e n t a n t o , a influência da cidade e da diocese h a v i a m - s e r e f o r ç a d o c o m a
conquista de Alcácer d o Sal, e m 1217, protagonizada pelo p r ó p r i o bispo. Era
na diocese olisiponense q u e se e n c o n t r a v a u m m a i o r e mais diversificado n ú -
m e r o de instituições religiosas, i n v a r i a v e l m e n t e sedeadas na cidade de Lisboa
e na vila de Santarém.
A o r d e m cisterciense d e s e m p e n h a v a na diocese u m papel crucial: o M o s -
teiro de Alcobaça, o mais rico existente e m Portugal, foi p a n t e ã o dos reis de
P o r t u g a l entre D . A f o n s o II e D . P e d r o I. D . Dinis fez construir o m o s t e i r o
f e m i n i n o de Santa M a r i a de Odivelas, para aí se fazer sepultar 2 0 1 . A l é m d e
Alcobaça e Odivelas, existiam na diocese de Lisboa os mosteiros f e m i n i n o s
de C ó s (a n o r t e d e Alcobaça) e A l m o s t e r ( p r ó x i m o de Santarém). E r a m d o
M o s t e i r o de Alcobaça o p a d r o a d o da igreja de M u g e e d o m o s t e i r o de O d i -
velas o das igrejas de São Julião d e Frielas e Santo Estêvão de A l e n q u e r .
O M o s t e i r o de São V i c e n t e de Fora, f u n d a d o após a conquista da cidade
e a restauração da diocese de Lisboa, p e r t e n c i a aos C ó n e g o s R e g r a n t e s de
Santo A g o s t i n h o . P r o p r i e t á r i o de vastos d o m í n i o s e m zonas limítrofes de Lis-
b o a (Telheiras e Loures, entre outras), o m o s t e i r o tinha, e m 1320, u m perfil
tributário semelhante aos de São J o ã o de T a r o u c a e Salzedas ( m u i t o distante,
pois, dos riquíssimos Alcobaça e Santa C r u z e dos m u i t o ricos A r o u c a o u
Santo Tirso).

183
A CONSTRUÇÃO DE UMA IGREJA

M a p a dos domínios de
A l c o b a ç a e dos T e m p l á r i o s
(reproduzido in J o s é Mattoso,
História de Portugal, 11, p. 68).

E r a m n u m e r o s o s os c o n v e n t o s f e m i n i n o s na d i o c e s e d e Lisboa: a l é m d e
C ó s , O d i v e l a s e A l m o s t e r , e x i s t i a m as d o n a s de Santos (da o r d e m militar
de Santiago) e de Cheias, as clarissas de Santa Clara de S a n t a r é m (original-
m e n t e estabelecido e m Lamego) e de Lisboa 2 0 2 , e as domínicas de São D o -
m i n g o s de Santarém.
As o r d e n s m e n d i c a n t e s c e d o m a r c a r a m presença na diocese d e Lisboa, aí
e x e r c e n d o desde logo, tal c o m o nas restantes dioceses d o C e n t r o e Sul, signi-
ficativa influência sobre os m o v i m e n t o s d e leigos e m t o r n o de confrarias e ir-
mandades 2 0 3 . E m b o r a n ã o m e n c i o n a d o s na lista de 1320, s u p o m o s q u e p o r
n ã o p o s s u í r e m b e n s taxáveis, deve fazer-se referência à presença dos frades
m e n o r e s e m Lisboa. P r i m e i r o e m Lisboa e A l e n q u e r (no s e g u n d o d e c é n i o d o
século XIII) e, já na década seguinte a 1240, e m Santarém. O s Frades P r e g a -
dores (só mais tarde c o n h e c i d o s c o m o D o m i n i c a n o s ) tiveram c o m o c e n t r o
de o r i g e m e m P o r t u g a l a vila d e Santarém, logo e m 1218. E m b o r a Santarém
fosse u m dos centros urbanos mais antigos e i m p o r t a n t e s na génese da própria
o r d e m , o c o n v e n t o de Lisboa cedo g a n h o u a s c e n d e n t e sobre o escalabitano
após a sua f u n d a ç ã o e m 1241.
R e s t a referir a O r d e m da Santíssima T r i n d a d e , da r e d e n ç ã o dos cativos.
Estabelecida até m e a d o s d o século XIII apenas na diocese de Lisboa, c o m
c o n v e n t o s e m Lisboa e S a n t a r é m (este c o m bens i m p o r t a n t e s na diocese d e
Évora, e m Alvito), a sua implantação geográfica d e m o n s t r a b e m c o m o os as-
suntos relacionados c o m o resgate de prisioneiros diziam respeito à região
m e r i d i o n a l d o território e e r a m tutelados de p e r t o pela C o r o a .
A presença das ordens militares n o eclesiástico de Lisboa era m u i t o forte.

184
ORGANIZAÇÃO E C L E S I Á S T I C A DO ESPAÇO

O s T e m p l á r i o s r e c e b e r a m e m doação a totalidade d o p a d r o a d o das igrejas de


Santarém, d e v i d o à sua m u i t o activa participação na conquista das urbes esca-
labitana e olisiponense. Esse privilégio seria p o s t e r i o r m e n t e p e r m u t a d o p o r
i m p o r t a n t e s contrapartidas, associadas à constituição d o isento de T o m a r .
A sua influência era p a r t i c u l a r m e n t e significativa na região oriental da d i o c e -
se, j u n t o ao c o n v e n t o de T o m a r e ao isento desta vila — p e r t o da fronteira
c o m a diocese da G u a r d a o n d e os cavaleiros d i s p u n h a m de grande p o d e r . E m
1320, e r a m templárias as igrejas de Casével, São T i a g o de Santarém, São L o u -
r e n ç o de C a r n i d e (em Lisboa) e Santa Maria de T o m a r .
D e t e r m i n a n t e na c o n q u i s t a de Alcácer d o Sal e m 1217, e m 1320 a O r -
d e m d e S a n t i a g o d e t i n h a o p a d r o a d o da t o t a l i d a d e das igrejas d e A l m a d a ,
P a l m e l a , Sesimbra e Setúbal, a l é m das igrejas de A l p e d r i z e B e l m o n t e . N o
p a d r o a d o da O r d e m d e Avis i n t e g r a v a m - s e as igrejas d e A l c a n e d e e M o n -
targil.
Implantados e m Lisboa desde m e a d o s d o século XIII estavam t a m b é m os
Eremitas de Santo A g o s t i n h o , mais tarde c o n h e c i d o s c o m o Frades Gracianos,
depois de e m 1362 t e r e m c o l o c a d o o seu c o n v e n t o sob a invocação de Nossa
Senhora da Graça. O u t r a s casas seriam fundadas na diocese de Lisboa ainda
n o século XIII, e m T o r r e s Vedras e, talvez, e m P e n a f i r m e . N o final d o sé-
culo x i v surgiria u m c o n v e n t o e m Santarém 2 0 4 .

É V O R A
L i m i t e s — Após a conquista portuguesa da cidade aos m u ç u l m a n o s e m
1165, Évora foi restaurada c o m o diocese 2 0 5 . A t é ao p e r í o d o q u e m e d i o u e n t r e
a f u n d a ç ã o da cidade da G u a r d a e a notícia d o p r o v i m e n t o d o p r i m e i r o bispo
egitaniense (1199-1203), o território diocesano eborense teve limites extensíssi-
m o s — e p r o v a v e l m e n t e mal definidos, u m a vez q u e se encontrava localiza-
d o e m terra de fronteira.
N o limite n o r t e , É v o r a prolongava-se p o r u m estreito c o r r e d o r até à e x -
trema administrativa natural — a saber, o curso p o r t u g u ê s d o rio T e j o . Este
c o r r e d o r da diocese de Évora até Amieira seria ladeado pelos dois p r o l o n g a -
m e n t o s transtaganos da diocese da Guarda: a oeste, a extensão da administra-
ção abrantina além d o T e j o , até P o n t e de Sor; a leste, as áreas de influência
de Nisa, M a r v ã o , Castelo de Vide e Portalegre.
A fronteira e n t r e É v o r a e Lisboa c o m e ç a v a na zona de Montargil: ficando
esta freguesia e a da Erra d o lado de Lisboa, a linha divisória inflectia de n o v o
para n o r o e s t e até ao T e j o de m o d o a incluir C o r u c h e e B e n a v e n t e e m É v o -
ra. Situadas a leste e oeste deste «espigão» eborense cravado na lezíria ribateja-
na, Salvaterra de M a g o s e Samora C o r r e i a p e r t e n c i a m à diocese de Lisboa.
D e p o i s a linha limítrofe descia para sul, c o n t o r n a v a as p o v o a ç õ e s de C a -
n h a e P e g õ e s Velhos (pertencentes ao eclesiástico olisiponense) e, passando
p o r Landeira, terminava p r o v a v e l m e n t e na zona da Marateca — u m a vez q u e
a área de influência de Alcácer d o Sal j á pertencia a Évora 2 0 6 .
D u r a n t e a época romano-visigótica, a diocese de Beja, antigo conventus
r o m a n o , mantivera a sua p r e p o n d e r â n c i a n o A l e n t e j o . N o e n t a n t o , p o r ra-
zões relacionadas c o m as vicissitudes político-militares da conquista d o A l -
- A n d a l u z , o território acabou p o r ficar sujeito à igreja de É v o r a d u r a n t e toda
a Idade M é d i a — e m u i t o além dela, até ao século xviii.
C o m pertinência, J ú l i o César Baptista c o n j e c t u r a q u e a própria conquista
da cidade p o r G e r a l d o S e m - P a v o r , acrescida da atribuição da conquista ao
m e s m o e à sua iniciativa desenquadrada (isto é, a p a r e n t e m e n t e i n d e p e n d e n t e
de u m p o d e r s o b e r a n o legítimo), se teria d e v i d o ao facto de D . A f o n s o H e n -
riques n ã o p o d e r protagonizá-la de iure, pois desse m o d o infringiria a letra d o
A c o r d o de P o n t e v e d r a firmado e m 1165 c o m o rei F e r n a n d o II d e Leão. N o
e n t a n t o , criado o bispado e n o m e a d o o p r i m e i r o prelado pelo rei p o r t u g u ê s ,
isso significava o r e c o n h e c i m e n t o de facto da sua p r e e m i n ê n c i a sobre a totali-
dade d o território alentejano — c o n q u i s t a d o e p o r conquistar. Se levantada, a
questão da restauração da diocese de Beja teria posto e m causa n ã o só a j ú r i s -
dição eclesiástica desses territórios, mas t a m b é m a soberania política sobre os
mesmos.

185
A CONSTRUÇÃO DE UMA IGREJA

Até à conquista definitiva d o Algarve, e m 1249, a linha de demarcação


a sul ter-se-ia m a n t i d o igualmente flexível. N o entanto, n ã o há notícia de a
diocese eborense ter tido alguma vez jurisdição — n e m de direito, n e m d e
facto — sobre o Algarve. A fugaz criação da diocese de Silves, após a c o n q u i s -
ta temporária da cidade (1189-1191), teria certamente c o n t r i b u í d o para definir
b e m cedo a separação entre os territórios eclesiásticos alentejano e o algarvio.
N a fronteira oriental, os limites diocesanos terão sido fluidos neste p e r í o -
do. N ã o é plausível que, até m e a d o s de D u z e n t o s , os direitos jurisdicionais
Interior da Sé de Évora de É v o r a tivessem colidido c o m os das dioceses castelhanas adjacentes — s o -
(finais do século xiu-inícios b r e t u d o Badajoz. M a n t e n d o - s e i n t e r m i t e n t e o d o m í n i o cristão nesta cidade
do século xrv). até 1230, data da conquista definitiva de Elvas e Badajoz, a administração p o -
FOTO: N U N O CALVET/ARQUIVO lítico-militar ( m u i t o m e n o s a eclesiástica) n ã o estaria ainda consolidada.
C Í R C U L O DE LEITORES. Após a criação da diocese da Guarda e até m e a d o s d o século x m , as dis-

186
ORGANIZAÇÃO ECLESIÁSTICA DO ESPAÇO

putas e n t r e os bispos da G u a r d a e É v o r a sobre a jurisdição episcopal n o terri-


tório d o r e c é m - d e f i n i d o t e r m o de M a r v ã o (1226) i m b r i c a m - s e nas vicissitudes
da conquista d o Al-Andalus.
O s p r i m e i r o s bispos egitanienses (entre os quais o antigo chanceler de
D . S a n c h o II, mestre Vicente), travaram acerbos pleitos c o m os bispos das
dioceses vizinhas a p r o p ó s i t o da d e m a r c a ç ã o da diocese. N a fronteira sul da
diocese da Guarda, a l é m - T e j o , os bispos egitanienses r e c l a m a r a m c o m o p e r -
t e n c e n t e ao seu território diocesano (fundados c e r t a m e n t e na delimitação da
antiga Sé de Idanha) aquele q u e , e m 1226, seria d e m a r c a d o c o m o o t e r m o de
M a r v ã o . O s bispos d e É v o r a — senão de direito, c e r t a m e n t e de facto —
consideravam a região c o m o integrada na G u a r d a . C o m o se viu acima, e m
1241 o bispo D . V i c e n t e c o m p r o m e t i a - s e a aceitar a decisão dos juízes a p o s t o -
licos n o m e a d o s para dar solução a este conflito.
A intromissão dos diversos p o d e r e s regionais nesta questão, n o q u a d r o da
c o n j u n t u r a (para mais e x t r e m a m e n t e confusa) da definição das áreas de c o n -
quista dos reinos de Portugal, Leão e Castela, c o n t r i b u i u p r o v a v e l m e n t e para
agravar o conflito e p o r adiar a sua solução p o r algumas décadas. U m exemplo:
e m 1215, D . Afonso Teles, o Velho, senhor de A l b u q u e r q u e , e a sua m u l h e r
D . Teresa Sanches, filha bastarda d o rei de P o r t u g a l D . S a n c h o I e de D . M a -
ria Pais R i b e i r a , r e c o n h e c i a m , através de carta dirigida ao bispo de Évora, a
jurisdição deste sobre o território q u e senhoreavam 2 0 7 .
E m 1226, D . S a n c h o II concedia carta de foral aos cavaleiros de M a r v ã o
e, c o m ela, u m extensíssimo t e r m o . A d o a ç ã o ter-se-ia p r o v a v e l m e n t e desti-
n a d o a assegurar a participação desta força militar na (malograda) tentativa de
conquista de Elvas desse a n o e p r o t e g e r a retaguarda contra o rei de Leão.
C o m efeito, desde o e n c o n t r o d o Sabugal c o m o rei F e r n a n d o III de Castela
e Leão, e m 1224, q u e as relações c o m os Leoneses n ã o e r a m as melhores.
É possível q u e p o r detrás deste m o v i m e n t o reivindicativo (ou e m arti-
culação c o m ele) estivessem as ambições territoriais d o rei A f o n s o I X de Leão
e / o u de alguma o r d e m militar — o u várias. A partir d o terceiro quartel d o
século xii e até m e a d o s d o século XIII, a conquista dos territórios alentejano e
algarvio foi essencialmente protagonizada pelas ordens militares — s o b r e t u d o
Avis e Santiago.

F r e g u e s i a s m e d i e v a i s — A lista c o r r e s p o n d e n t e à avaliação de 1320-1321


divide a diocese de Évora e m 12 grupos de freguesias, a p a r e n t e m e n t e e n c a b e -
çados pelos centros u r b a n o s mais i m p o r t a n t e s da C o r o a nessa área. O cruza-
m e n t o desta i n f o r m a ç ã o c o m as listas das apresentações às igrejas d o p a d r o a d o
régio d e D . A f o n s o III (1259-1266) e D . Dinis (1279-1321) p e r m i t e - n o s analisar
o eclesiástico e b o r e n s e c o m a l g u m p o r m e n o r .
Se dispusermos de n o r t e para sul as unidades resultantes dessa divisão, cia-
r a m e n t e resultante de elaboração p o r parte de funcionários ligados à C o -
roa 2 0 8 , p o d e m o s reconstituir u m itinerário.
Incluído n o final da lista e n ã o considerado c o m o g r u p o de freguesias fi-
cava o território mais setentrional da diocese, constituído pelas igrejas d o
p r i o r a d o d o C r a t o (que se declara p e r t e n c e r e m à O r d e m d o Hospital, j u n t a -
m e n t e c o m Amieira, a n o r t e , e Portel). I m e d i a t a m e n t e a sul surge o g r u p o
das igrejas d e Alter d o C h ã o . E m b o r a incluído na diocese de Évora, o t e x t o
explicita q u e a Igreja d e Santa Maria de Alter d o C h ã o (afinal a única d o
grupo) «é d o bispo e cabido da Guarda». A t e n d e n d o a esta descrição, as a u t o -
ridades eclesiásticas eborenses teriam u m a influência m u i t o escassa sobre a r e -
gião mais a n o r t e da diocese.
Seguia-se depois u m vasto território d e n o m i n a d o c o m o igrejas de M o n -
forte, c u j o d e n o m i n a d o r c o m u m parece ser a tutela da O r d e m de Avis 2 0 9 . As
freguesias situam-se ao l o n g o da bacia d o Sorraia desde o T e j o (Benavente e
C o r u c h e ) , sendo rodeadas p o r u m aro constituído p o r Galveias, Seda, Alter
P e d r o s o , C a b e ç o da Vide, M o n f o r t e , Veiros e E s t r e m o z , d e n t r o d o qual fica-
v a m C a b e ç ã o , Pavia, Avis, Benavila, Ervedal, Fronteira, C a n o e Sousel. N e s -
te g r u p o são t a m b é m integradas as igrejas de B o r b a , Vila Viçosa 2 ' 0 , Alandroal
e J u r o m e n h a , além das distantes igrejas de N o u d a r e de Santa Maria de B e -

187
A CONSTRUÇÃO DE UMA IGREJA

Concelhos do Centro e Sul


dos domínios das ordens
militares (reproduzido in José
M a t t o s o , História de Portugal,
II, p . 212).

ja — ambas da O r d e m de Avis. D a presença h e g e m ó n i c a dos cavaleiros da


antiga Milícia de É v o r a n o eclesiástico desta zona parece destoar apenas a vila
de M o n f o r t e , o n d e o rei era p a d r o e i r o das igrejas de Santo Estêvão, São Sal-
vador, Santa Maria Madalena e São P e d r o .
A leste d o anterior território, c o n f r o n t a n d o c o m a diocese da G u a r d a a
n o r t e e a de Badajoz a leste e a sudeste, ficava o g r u p o das igrejas de Elvas.
N e l e são incluídos, além dos t e m p l o s da vila — dos quais Santa Maria d o
A ç o u g u e (ou d o Foro), São P e d r o e São Salvador e r a m de apresentação r é -
gia, tal c o m o a igreja de Vila F e r n a n d o — , Vila B o i m , Barbacena, Assumar e
Arronches.
N a zona central da diocese e n c o n t r a m o s as igrejas da cidade de Évora,
a b r a n g e n d o o m o s t e i r o das donas de Castris, da O r d e m de Cister. N o e n t o r -
n o i m e d i a t o da civitas de Évora, a n o r t e e leste, q u a t r o p e q u e n o s grupos:
além das igrejas de Arraiolos (Vimieiro incluído) e das igrejas de É v o r a M o n -

188
ORGANIZAÇÃO ECLESIÁSTICA DO ESPAÇO

te (incluindo a de M o n t o i t o ) , as igrejas de T e r e n a (Santa Maria e São João) e Exterior da Igreja Matriz de


as igrejas de M o n s a r a z (São J o ã o , São B a r t o l o m e u , São Tiago, Santa Maria), Viana do Alentejo.
todas seis d o p a d r o a d o régio. FOTO: N U N O CALVET/ARQUIVO
C Í R C U L O DE LEITORES.
C o m p l e t a n d o a z o n a central, e r o d e a n d o a civitas a oeste e sul, são e n u -
meradas as igrejas de M o n t e m o r , a g r u p a n d o Lavre, M o n t e m o r - o - N o v o , A l -
cáçovas, Aguiar, Vila N o v a d o Alvito, C u b a , Santa Clara da Vidigueira, S a n -
ta Maria de Viana, Santa Maria de Ares 2 1 1 , Santa Maria e São B a r t o l o m e u de
O r i o l a e Vila R u i v a de Malcabrão, as seis últimas de apresentação régia — o
q u e revela u m a c o n c e n t r a ç ã o de igrejas d o p a d r o a d o d o rei na s u b z o n a de
Viana até à Vidigueira. N o t e - s e q u e n ã o existem quaisquer apresentações às
igrejas de M o n t e m o r - o - N o v o nas listas dionisinas, depois de, e n t r e 1259 e
1266, figurarem nas listas d o p a d r o a d o afonsino os t e m p l o s de São T i a g o ,
Santa Maria (do A ç o u g u e ) e São J o ã o 2 1 2 .
A região sul da diocese é dividida e m três áreas. N o c e n t r o , as igrejas de
Beja 2 1 3 . A oeste, a b r a n g e n d o a bacia hidrográfica d o Sado e o litoral alenteja-
n o até à zona de influência d o Mira, ficavam as igrejas de C a m p o de O u r i -
q u e , r e u n i n d o Garvão, Panóias, Ferreira, T o r r ã o , Santiago d o C a c é m e Alcá-
cer d o Sal a O u r i q u e , única circunscrição cujas freguesias e r a m d o rei (Santa
Maria de M a r a c h i q u e e Santa Maria de Vila N o v a de O u r i q u e ) 2 1 4 .
E s t e n d e n d o - s e desde o litoral sul d o A l e n t e j o pela fronteira c o m o Algar-
ve até ao limes c o m Castela ( R i b a - O d i a n a ) , e n c o n t r a m o s , p o r fim, as igrejas
d e O d e m i r a . F o r a m integradas neste g r u p o as igrejas de O d e m i r a (Santa M a -
ria e São Salvador, ambas d o p a d r o a d o régio), A l m o d ô v a r , Castro Verde,
Messejana, Aljustrel, M é r t o l a , Serpa, M o u r a e M o u r ã o .

189
A CONSTRUÇÃO DE UMA IGREJA

N e n h u m destes agrupamentos correspondia, ao contrário do q u e se veri-


ficava na maioria das dioceses d o N o r t e e C e n t r o , a divisões do tipo arcedia-
gado ou arciprestado. A organização centralista da diocese de Évora está b e m
patente n o facto de o primeiro arcediagado só ter surgido n o final d o sé-
c u l o XIV 2 1 5 .

O r d e n s r e l i g i o s a s — A influência de Cister na diocese de Évora fazia-se


sentir de diversas maneiras. E m primeiro lugar através do c o n v e n t o f e m i n i n o
de São B e n t o de Castris, estabelecido nas proximidades da civitas j u n t o à es-
trada para Arraiolos 2 1 6 . E m segundo lugar, pela presença do Mosteiro de A l -
cobaça — c o m o proprietário e senhor, mas sem peso directo n o eclesiástico
da diocese — e m Elvas, M o n t e m o r e Beja (couto de Beringel).
Mas a O r d e m de Cister influía n o eclesiástico da diocese de Évora devido
principalmente às igrejas do padroado da O r d e m de Avis 217 . Inicialmente se-
deada e m Évora e, depois de 1214, e m Avis, a o r d e m possuía vastos d o m í n i o s
na diocese que se distribuíam desde Beja a Benavente. N o entanto, o grosso
do seu p o d e r centrava-se n o vale do Sorraia, estendendo-se, além de Estre-
moz, a Borba, Vila Viçosa, Alandroal e J u r o m e n h a . Das 32 igrejas desta área
denominadas igrejas de M o n f o r t e na lista de 1320 (incluindo Santa Maria de
Beja), só as da própria vila de M o n f o r t e não pertenceriam à ordem 2 1 8 .
M u i t o poderosa na diocese de Évora era, t a m b é m , a O r d e m de Santiago.
A área de influência dos cavaleiros espatários principiava n o Guadiana, e m
Mértola, prolongando-se primeiro até O u r i q u e . A sul da serra algarvia, a o r -
d e m exercia u m controlo quase sem concorrência sobre o eclesiástico da d i o -
cese de Silves. Depois, entre a costa atlântica e a bacia do Sado, os Santia-
guistas d o m i n a v a m até Alcácer d o Sal — e, já na diocese de Lisboa, Setúbal,
Almada, Palmela e Sesimbra. S e g u n d o a lista de 1320 pertenceriam ao p a d r o a -
do dos cavaleiros espatários na diocese eborense as igrejas de Mértola, Castro
Verde, Messejana, Almodôvar, Aljustrel, Alcácer do Sal, Garvão e Ferreira d o
Alentejo. O escambo de 1249 entre o mestre D . Paio Peres Correia e o bispo
D . M a r t i n h o referia t a m b é m as de Santiago de C a c é m , T o r r ã o e Cabrela.
A sede da o r d e m e m Portugal, inicialmente localizada e m Alcácer do Sal
(diocese de Évora), seria mais tarde transferida para Palmela (diocese de Lis-
boa). E m que medida teria o «factor diocese» contribuído para esta mudança?
Após o acordo de 1260 entre os bispos de Évora e da Guarda relativo aos
territórios transtaganos da diocese egitaniense, Arês era a única igreja mantida
pela O r d e m do T e m p l o na diocese eborense.

Exterior da Igreja da B o a
N o v a (Terena, Alandroal,
2. a metade do século xiv).
F O T O : N U N O CALVET/ARQUIVO
C Í R C U L O DE LEITORES.

190
O R G A N I Z A Ç Ã O E C L E S I Á S T I C A DO ESPAÇO

Igreja da Flor da Rosa


(Crato, 2.a metade
do século xiv).
F O T O : JOSÉ M A N U E L OLIVEIRA/
/ A R Q U I V O C Í R C U L O DE
LEITORES.

A O r d e m d o Hospital tinha algum p o d e r n o espaço eclesiástico d e Évora,


p e r t e n c e n d o - l h e as igrejas de Portel, C r a t o e Amieira. O s territórios destas
duas últimas vilas e castelos levavam a fronteira da diocese e b o r e n s e até ao
T e j o . D o o u t r o lado, e m terras egitanienses, ficava Belver, i g u a l m e n t e h o s p i -
talária. A t é 1271, foi da o r d e m t a m b é m o s e n h o r i o das vilas de M o u r a , M o u -
rão e Serpa. E m 1320, j á M o u r ã o pertencia a Avis, sendo as igrejas de Serpa e
M o u r a d o rei. N o t e r m o de Portel, d o a d o aos cavaleiros pelo m o r d o m o - m o r
d o rei D . A f o n s o III, D . J o ã o Peres de A b o i m , a o r d e m erigiu o M o s t e i r o de
Vera C r u z do Marmelar 2 1 9 . O priorado, inicialmente estabelecido n o século XII
e m Leça, e m terra da Maia (diocese d o P o r t o ) , seria transferido n o século XIII
para o C r a t o .
A l é m d o M o s t e i r o de Alcobaça, outras c o r p o r a ç õ e s religiosas n ã o sedea-
das e m É v o r a exerciam influência n o eclesiástico eborense. E r a m elas os m o s -
teiros da T r i n d a d e de Santarém e de São V i c e n t e d e Fora (de Lisboa) e o
M o s t e i r o de Santa C r u z de C o i m b r a .
Santa C r u z r e c e b e u e m 1236 d o rei D . S a n c h o II o s e n h o r i o da vila de
A r r o n c h e s , inicialmente integrado n o t e r m o d e M a r v ã o d e f i n i d o e m 1226 p e -
lo m e s m o rei 2 2 0 . O m o s t e i r o detinha inicialmente, além da igreja da vila, a de
Assumar, ambas o b j e c t o de acordos c o m o bispo de É v o r a e m 1248 e 1266.
A lista de 1320 j á só refere c o m o p e r t e n c e n t e aos C r ú z i o s a freguesia de A r -
ronches 2 2 1 .
A influência d o M o s t e i r o de São V i c e n t e de Fora n o espaço eclesiástico
e b o r e n s e teve curta duração. C o m efeito, a d o a ç ã o q u e D . A f o n s o III lhe fez
d o M o s t e i r o de São C u c u f a t e , j u n t o à Vidigueira, acabaria p o r ser desfeita
e m 1305 p o r m e i o de escambo, de n o v o c o m a C o r o a , q u e faria regressar o
d o m í n i o e o eclesiástico ao rei, p o r p e r m u t a c o m R i b a m a r de Algés e o p a -
d r o a d o de Santa Justa d e Lisboa 2 2 2 .
Já o M o s t e i r o da T r i n d a d e d e Santarém entraria na diocese d e É v o r a atra-
vés da d o a ç ã o da vila d o Alvito, feita e m t e s t a m e n t o (datado de 1279) pelo
chanceler de D . A f o n s o III, Estêvão Eanes 2 2 3 . A o c o n t r á r i o de São V i c e n t e
de Fora, a sua presença n ã o enfraqueceria.

191
A CONSTRUÇÃO DE UMA IGREJA

O s Franciscanos e os D o m i n i c a n o s c h e g a r a m c e d o a Évora e Estremoz,


d u r a n t e o reinado d e D . S a n c h o II. O s Frades M e n o r e s criariam depois casa
e m Beja, ainda d u r a n t e o século XIII. Q u a n t o aos Frades Pregadores, o p r i -
m e i r o c o n v e n t o de São D o m i n g o s seria instalado e m Elvas e, n o final de D u -
zentos, e m Évora.
A partir d o século x i v o e r e m i t i s m o t o r n o u - s e u m a i m p o r t a n t e realidade
na diocese de Évora. N o início d o século estabeleciam-se e m Vila Viçosa os
Frades Gracianos (Eremitas de Santo Agostinho) 2 2 4 . M a s o grande c e n t r o da
vida eremítica n o A l e n t e j o foi a serra de Ossa, p e r t o d o R e d o n d o , d o n d e ir-
radiou, s e g u n d o Ângela Beirante, grande parte das c o m u n i d a d e s criadas a
partir da segunda m e t a d e de T r e z e n t o s 2 2 5 .

ALGARVE (SILVES)
L i m i t e s — A d i o c e s e d o A l g a r v e (Silves) lindava a n o r t e c o m a d i o c e -
se d e É v o r a e a leste c o m a d e Sevilha. C r i a d a pela p r i m e i r a v e z e m 1189,
na s e q u ê n c i a da e f é m e r a c o n q u i s t a da c i d a d e aos m u ç u l m a n o s , l o g o seria
p e r d i d a e m 1191, a q u a n d o da invasão a l m ó a d a . A o r g a n i z a ç ã o da d i o c e s e
seria iniciada e m 1252, p o r a c ç ã o de A f o n s o X de Castela. P o r isso foi s u -
fragânea de Sevilha até 1393, passando e n t ã o a ter c o m o m e t r o p o l i t a Lis-
b o a , elevada a a r q u i d i o c e s e pela bula de B o n i f á c i o I X In eminentissimis dig-
nitatis226.

F r e g u e s i a s m e d i e v a i s — N a diocese d o Algarve n ã o existia divisão e m


territórios, c o m o se diz n o índice da avaliação de 1320-1321227.
A semelhança da diocese d e Évora, a administração eclesiástica n o r e i n o
d o Algarve era m u i t o centralizada, u m a vez q u e para a totalidade d o t e r r i t ó -
rio não identificámos senão 14 freguesias — algumas delas a b r a n g e n d o certa-
m e n t e áreas m u i t o extensas.
P e r c o r r e n d o o território da diocese d e oeste para leste, s u r g e m - n o s e m
p r i m e i r o lugar as freguesias de Aljezur e de Santa Maria de Lagos 2 2 8 .
C o n t i n u a n d o p o r barlavento, encontrava-se e m seguida o espaço p a r o -
quial c o r r e s p o n d e n t e à Sé Catedral de Silves. Depois, p r o s s e g u i n d o até à r e -
gião central do território, estavam localizadas as freguesias de Santa Maria de
Porches 2 2 9 , Santa Maria de Albufeira, São D o m i n g o s e Santa Maria de P a d e r -
ne 2 3 0 , São C l e m e n t e de Loulé e Santa Maria de Faro.
Já n o sotavento, ficavam as duas freguesias de Tavira, Santa Maria e São
Tiago, e a de Santa Maria de Cacela. Finalmente, as d e São T i a g o de C a s t r o
M a r i m e Santa Maria de A l c o u t i m .
As listas d o p a d r o a d o régio dionisino m o s t r a m - n o s apresentações a várias
igrejas d o bispado d o Algarve, a saber, Santa Maria e São D o m i n g o s de P a -
d e r n e (1285-1294), São C l e m e n t e de Loulé (1280-1294), Santa Maria de A l j e -
zur (1286-1289), Santa Maria de Porches (1289) e Santa Maria de Lagos (1293).
P o r é m , q u a n d o e m 22 de Abril de 1321 os juízes e x e c u t o r e s da avaliação p r i n -
cipiaram a avaliar c o n j u n t a m e n t e os bispados de É v o r a e d o Algarve, j á se
declarava p e r t e n c e r e m ao p a d r o a d o da O r d e m de Santiago as igrejas de L o u l é
e Aljezur. Assim sendo, n o final d o r e i n a d o de D . Dinis a presença d o rei c o -
m o p a d r o e i r o n o Algarve reduzia-se a Lagos, P o r c h e s e Paderne. M u i t o p o u -
co significativa, p o r t a n t o .

O r d e n s r e l i g i o s a s — A h e g e m o n i a d o p a d r o a d o da O r d e m d e S a n t i a -
g o s o b r e as igrejas paroquiais d o Algarve é c l a r a m e n t e d e m o n s t r a d a pela lis-
ta de 1320 (1321 para o r e i n o d o Algarve). E m 1321, à e x c e p ç ã o d e Albufeira,
as restantes freguesias p e r t e n c i a m aos Espatários — algumas das quais, c o m o
acima se viu, r e c e n t e m e n t e transferidas d o p a d r o a d o régio. Isto revela e
e n o r m e i n f l u ê n c i a da o r d e m n o eclesiástico da região — p a r t i l h a n d o - o ,
p r o v a v e l m e n t e s e m i n t e r f e r ê n c i a de o u t r o s p o d e r e s , c o m o b i s p o e c a b i d o
de Silves.
Da presença de outras o r d e n s religiosas na região d u r a n t e o p e r í o d o e m
apreço, apenas nos é d a d o c o n h e c i m e n t o da f u n d a ç ã o d o c o n v e n t o francisca-
n o de Tavira, e m 1320.

192
O R G A N I Z A Ç Ã O E C L E S I Á S T I C A DO ESPAÇO

ENTRE O ÚLTIMO QUARTEL d o século xi e m e a d o s do século x m , o espaço A geografia eclesiástica


eclesiástico definiu-se e m território p o r t u g u ê s e m t o r n o das dioceses de B r a - portuguesa na época
ga, C o i m b r a , P o r t o , L a m e g o , Viseu, Lisboa, Évora, G u a r d a e Silves. As f r e -
medieval: conclusões
guesias dos bispados de T u i , O r e n s e , C i d a d e R o d r i g o e Badajoz localizadas
e m Portugal acabariam p o r ser integradas e m dioceses portuguesas n o século xv.
E m 1393, c o m a elevação de Lisboa a arquidiocese e a afectação à nova m e t r ó -
pole das sufragâneas da Guarda, Évora e Silves, e de Lamego à arquidiocese de
Braga, o espaço diocesano português passava a corresponder, quase totalmente,
ao território do reino de Portugal e d o Algarve. E m termos de área, as maiores
dioceses eram Évora e Braga. Grandes territórios tinham t a m b é m a Guarda, Lis-
boa e C o i m b r a . D e m e n o r e s dimensões eram Viseu, Algarve, P o r t o e Lamego.
N o s séculos XII a xiv, a cartografia da organização paroquial portuguesa
apresenta u m a organização d o espaço m u i t o diversa entre N o r t e e Sul. P o r
u m lado, o elevado n ú m e r o de freguesias existente n o N o r t e / C e n t r o s e n h o -
rial, p r i n c i p a l m e n t e nas dioceses de Braga e P o r t o , mas t a m b é m , e m b o r a e m
m e n o r grau, nas de L a m e g o e Viseu e n o arcediagado de V o u g a da diocese
de C o i m b r a , fazia c o m q u e fosse reduzida a área tutelada pela administração
paroquial. P o r o u t r o , na região d o território d o C e n t r o / S u l c o n c e l h i o , as p a -
róquias o c u p a v a m áreas m u i t o vastas, administradas p o r colegiadas n o r m a l -
m e n t e localizadas nas sedes dos concelhos — a b r a n g e n d o superfícies signifi-
cativas d o respectivo t e r m o 2 3 1 .
O p a d r o a d o leigo nas igrejas e mosteiros d o N o r t e / C e n t r o senhorial,
m u i t o significativo até ao século XII, foi s e n d o transferido para os mosteiros
patrocinados pelas famílias patronais, tornados m e d i a d o r e s privilegiados dessas Cabeceira da Sé de Silves
linhagens e m matéria eclesiástica a partir d o século x m . (século xv).
M a s o rei era o mais i m p o r t a n t e p a d r o e i r o . O p a d r o a d o dos reis de P o r - F O T O : N U N O CALVET/ARQUIVO
tugal, e m e r g e n t e a partir de D . A f o n s o II e r e f o r ç a d o n o r e i n a d o de C Í R C U L O DE LEITORES.

193
A CONSTRUÇÃO DE UMA IGREJA

D . A f o n s o III c o m a atribuição pela C o r o a a si p r ó p r i a d o direito de p a -


d r o a d o d e todas as igrejas s e m p a t r o n o , m a r c a v a presença n o eclesiástico d e
todas as dioceses d o r e i n o . N o r e i n a d o d e D . Dinis, as c e n t e n a s de igrejas
d o p a d r o a d o régio e m t o d o o t e r r i t ó r i o — m u i t o i m p o r t a n t e n o bispado d e
Lisboa e n o arcebispado de Braga, quase insignificante n o Algarve — d a v a m
ao rei o p o d e r de n o m e a r os p á r o c o s de m u i t a s freguesias d o r e i n o , e m b o r a
essas n o m e a ç õ e s estivessem sujeitas à c o n f i r m a ç ã o dos bispos da respectiva
diocese. N o arcebispado de Braga, a i n f l u ê n c i a d o p a d r o a d o r é g i o era m e -
diada pela colegiada de Santa M a r i a de G u i m a r ã e s , a mais i m p o r t a n t e de t o -
d o o eclesiástico régio. A localização das paróquias régias j u n t o aos limites
e x t e r n o s da arquidiocese ( c o m o P o r t o , T u i — parte p o r t u g u e s a , e O r e n s e ) ,
o u p e r t o dos limites i n t e r n o s das diversas áreas da administração eclesiástica,
o b r i g a m a p o n d e r a r se existiria u m a estratégia b e m d e t e r m i n a d a d o p a d r o a -
d o régio e m Braga.
Nas dioceses d o Sul, o p a d r o a d o das o r d e n s militares era p r e p o n d e r a n t e .
A sul d o T e j o , a O r d e m de Santiago d o m i n a v a o eclesiástico de toda a bacia
d o rio Sado, o curso inferior d o Guadiana ( o n d e mais tarde escambaria alguns
p o n t o s de influência c o m a O r d e m de Cristo), a região da diocese de É v o r a
q u e lindava c o m o r e i n o d o Algarve e a diocese de Silves. Várias dezenas d e
igrejas nas dioceses de Lisboa, Évora e Silves pertenciam aos cavaleiros espatá-
rios. N o N o r t e da diocese de Évora, e s t e n d e n d o - s e da m a r g e m esquerda d o
T e j o à m a r g e m direita do Guadiana, a b r a n g e n d o toda a bacia d o Sorraia, até
E s t r e m o z e mais a leste, a O r d e m de Avis reservava para si o eclesiástico d e
algumas dezenas de igrejas, n u m a relação de conflito c o m o bispo e c a b i d o
eborenses. A O r d e m d o T e m p l o / C r i s t o apresentava párocos n u m elevado
n ú m e r o de freguesias d o arcediagado de Penela da diocese de C o i m b r a , n o
arcediagado de Santarém da diocese de Lisboa e u m p o u c o p o r toda a d i o c e -
se da Guarda, m a r c a n d o t a m b é m presença na fronteira oriental da diocese d e
L a m e g o e e m terra de M i r a n d a , n o arcebispado de Braga. Finalmente, a O r -
d e m d o Hospital marcava o eclesiástico da diocese d o P o r t o (terra da Maia),
d o arcebispado de Braga (sobretudo e m terra de Panóias) e, finalmente, da
diocese d e Évora (priorado d o Crato) — e, n o arcediagado de Seia, e m O l i -
veira d o Hospital.
Se a região p o r excelência das ordens militares se situava nos territórios a
sul d o sistema m o n t a n h o s o central e d o M o n d e g o (excepto os Hospitalários),
os Cistercienses t i n h a m feito das dioceses de L a m e g o , C o i m b r a e Lisboa o
espaço central de implantação das suas casas conventuais. Aí se e n c o n t r a v a
o m a i o r n ú m e r o dos mais ricos c o n v e n t o s dos m o n g e s e m o n j a s de h á b i t o
b r a n c o — A r o u c a , São J o ã o d e T a r o u c a , Salzedas, Lorvão, Celas de G u i m a -
rães, Alcobaça, Odivelas e Almoster. Só m u i t o mais tarde presentes n o Algar-
ve, os Cistercienses t i n h a m u m a presença m u i t o m e n o s i m p o r t a n t e nas d i o -
ceses de Évora, G u a r d a e C i d a d e R o d r i g o (parte portuguesa), Viseu, Braga e
T u i (parte portuguesa).
Já os C ó n e g o s R e g r a n t e s d e Santo A g o s t i n h o , nascidos na diocese c o -
n i m b r i c e n s e c o m a implantação de Santa C r u z entre C o i m b r a e Leiria, e m -
bora alargassem a sua influência a Lisboa e C i d a d e R o d r i g o c o m a f u n d a ç ã o
de São V i c e n t e de Fora e Santa C r u z de Cortes, respectivamente, o r i e n t a r a m
a sua expansão s o b r e t u d o para as dioceses do P o r t o e de Braga, o n d e m u i t o s
antigos mosteiros r e c e b e r a m a r e f o r m a canonical o u f o r a m f u n d a d o s de n o -
v o — s o b r e t u d o na diocese p o r t u e n s e e na região fronteiriça entre o t e r r i t ó -
rio bracarense e os do P o r t o e T u i (parte portuguesa).
O s mosteiros b e n e d i t i n o s situavam-se quase exclusivamente nas dioceses
de T u i , Braga e P o r t o , m e n o s e m L a m e g o — sendo residual a sua presença
e m Viseu. D o s quase 12o mosteiros f u n d a d o s nas dioceses de Braga e P o r t o
d u r a n t e os séculos x i e XII, e n t r e B e n e d i t i n o s e C a n o n i c a i s apenas cerca de
70 alcançaram o século XIII e n ã o mais de 4 0 sobreviviam e m m e a d o s d o sé-
culo xv.
I r r o m p e n d o a partir da segunda década do século XIII, a partir de Santa-
r é m , Lisboa e C o i m b r a , as ordens mendicantes cedo conquistaram a espiritua-
lidade dos meios urbanos, sobretudo das confrarias de leigos, aí se constituindo

194
ORGANIZAÇÃO ECLESIÁSTICA DO ESPAÇO

e m m e d i a d o r e s da relação c o m o A l é m e pregadores eméritos. Franciscanos e


D o m i n i c a n o s , s o b r e t u d o os primeiros, e x p e r i m e n t a r i a m graves dificuldades
ao implantar-se nas cidades d o P o r t o e de Braga. D o s primeiros, o p o u c o q u e
c o n h e c e m o s diz respeito aos conventuais, j á q u e o m o d o de vida da obser-
vância p o u c o se prestava à m a n u t e n ç ã o de arquivos significativos. Q u a n t o aos
Trinitários, a r e d e n ç ã o dos cativos a q u e se d e d i c a v a m fez c o m q u e escolhes-
sem Lisboa e Santarém c o m o c e n t r o das suas operações.
O u t r a s ordens presentes n o Portugal medieval, e m b o r a mal conhecidas,
f o r a m os Freires d o Santo Sepulcro (Porto e Viseu), os Premonstratenses (Por-
to e Lamego), os Eremitas de Santo Agostinho (Lisboa e Évora), C ó n e g o s de
Santo Antão (Guarda) e os Eremitas da Serra de Ossa (Évora). É provável q u e a
p o u c a importância q u e atribuíam à acumulação de p a t r i m ó n i o , p o r u m lado, e
a sua implantação confinada a zonas específicas d o território, p o r o u t r o , expli-
q u e m q u e seja h o j e difícil reconstituir a m e m ó r i a dessa presença.
Assim se descreveu, ainda q u e parcialmente, a f o r m a c o m o a Ecclesia cristã
d o O c i d e n t e m a r c o u a organização d o espaço territorial n o r e i n o de Portugal
e d o Algarve, e n t r e o século XII e o princípio d o século xv. A estreita ligação
entre as suas instituições e a sociedade portuguesa dessa época fez c o m q u e ,
p o r t o d o o Portugal, a paisagem construída e a vivência das gentes, na sua
maioria p e r t e n c e n t e s à Christianitas, reflectissem v i n c a d a m e n t e essa presença.

NOTAS

‫ י‬C f . ESTRABÃO - G e o g r a p h i a , 3, 4, 1978. R e d i g i d a n a é p o c a d e A u g u s t o , e s t a o b r a c o n s t i t u i


u m a f o n t e etimológica f u n d a m e n t a l para o c o n h e c i m e n t o dos p o v o s da Hispânia antiga. Cf.
t a m b é m ALBERTINI - Les divisions admínistratives, p . 25 ss.
2
C f . STROHEKER - S p a n i e n i m S p ã t r ó m i s c h e n , p . 5 8 7 - 6 0 5 . S o b r e a a d m i n i s t r a ç ã o p r o v i n c i a l
n a H i s p â n i a c f . TRANOY - La Galice romaine, p . 1 4 6 - 1 6 7 .
3
C f . ALARCÃO - O domínio romano, p . 28. E s t e a u t o r p r o c u r o u , p e l a p r i m e i r a v e z , i d e n t i f i c a r
as civitates d a L u s i t â n i a e t r a ç a r as suas f r o n t e i r a s . V e r t a m b é m IDEM — I d e n t i f i c a ç ã o d a s c i d a d e s d a
L u s i t â n i a , p . 21-34.
4
C f . CHEVALIER - C i t é e t t e r r i t o i r e , p . 7 6 2 - 7 6 6 .
5
SILLLIÈRES - V o i e s r o m a i n e s , p . 7 4 - 8 1 ; FERNANDEZ CORRALES - E l t e r r i t ó r i o d e A u g u s t o
E m e r i t a , p . 8 8 9 - 8 9 8 ; FRANCISCO MARTÍN - Conquista y Romanización, p . 35.
6
C f . CIPRIANO DE CARTAGO - E p i s t u l a 6 7 , p . 4 4 7 .
7
Ibidem, 6.1, p . 4 5 6 .
8
Ibidem, 5.1, p . 4 5 4 .
9
C f . D Í A Z Y DÍAZ - E n t o r n o d e l o s o r í g e n e s , p . 4 2 3 - 4 4 3 ; JOVER ZAMORA ( d i r . ) — Historia de
Espana, v o l . 2, p . 419.
10
S o b r e o b i s p o m e t r o p o l i t a , cf. MAISONNEUVE - M é t r o p o l e , M é t r o p o l i t a i n , c o l . 7 2 - 7 3 ;
GARCÍA-VILLOSLADA (dir.) - Historia de la Iglesia, v o l . 1, p . 4 9 4 - 4 9 6 .
11
CIPRIANO DE GARTAGO - E p i s t u l a 6 7 , 5.2, p . 4 5 4 .
12
C f . VIVES - Concílios, p . 1.
13
C f . o s c â n o n e s 19 e 2 4 , VIVES — Concílios, p . 5-6.
14
C f . ÉTIENNE - M é r i d a , c a p i t a l e d u v i c a r i a t , p . 2 0 4 - 2 0 7 . S o b r e M é r i d a cf. t a m b é m ARCE -
M é r i d a tardorromana, p. 209-226.
15
ALARCÃO - S o b r e a r o m a n i z a ç ã o , p . 105.
16
C f . D Í A Z Y D Í A Z - L ' e x p a n s i o n d u c h r i s t i a n i s m e , p . 85; ALARCÃO - O domínio romano,
p. 87-106.
17
C f . ÉTIENNE - Le c u l t e i m p é r i a l , p . 215.
18
C f . o c â n o n e 38, VIVES - Concílios, p . 8.
19
C f . G O D O Y FERNÁNDEZ - B a p t i s t é r i o s h i s p â n i c o s , p . 6 0 7 .
20
C f . p a r a u m e n q u a d r a m e n t o g e r a l , GORGES - Les «villae» hispano-romaines, e ALARCÃO;
ÉTIENNE; MAYET - Les villas romaines, 1990.
21
DÍAZ Y DÍAZ - L ' e x p a n s i o n d u c h r i s t i a n i s m e , p . 85.
22
C f . a e s t e p r o p ó s i t o , BLÁZQUEZ MARTÍNEZ - Nuevos estúdios, p . 4 6 0 .
23
A p e s a r da c o r r e s p o n d ê n c i a e n t r e a divisão a d m i n i s t r a t i v a e a divisão eclesiástica t e r sido es-
t a b e l e c i d a , a o n í v e l d a I g r e j a u n i v e r s a l , e m 451, p e l o C o n c í l i o d e C a l d e d ó n i a . C f . G U R T Y ESPAR-
RAGUERA; RIPOLL LÓPEZ; C . G O D O Y FERNANDEZ - T o p o g r a f i a d e la A n t i g u e d a d , p . 164, 168.
24
VIVES, Concílios, p . 21: «... si i n t r a c i v i t a t e m f u e r i t v e l i n l o c o i n q u o est e c c l e s i a a u t Castelli
a u t v i c u s a u t villae...».
25
SAMPAIO - A s villas d o N o r t e d e P o r t u g a l , p . 3-254.
26
OLIVEIRA - As paróquias rurais.
27
C f . DAVID - La m é t r o p o l e e c c l é s i a s t i q u e d e G a l i c e , p . 211-251; MANSILLA - A n t i g u a s d i v i -
s i o n e s p o l i t i c a s - a d m i n i s t r a t i v a s , p . 433-475.
28
C f . COSTA ( e d . ) - Liber fidei, v o l . 1, n o t a 1, p . 16. S o b r e a t o p o n í m i a « p a r o q u i a l » d o s é -
c u l o v i , cf. MATTOSO - Identificação de um país, p . 180, 273; N E T O - O Leste do território bracarense,
p . 4 5 - 6 0 ; MARTINS - O e s p a ç o p a r o q u i a l d a d i o c e s e d e B r a g a , p . 2 8 3 - 2 9 4 .

195
A CONSTRUÇÃO DE UMA IGREJA

29
D A V I D - Études historiques, p. 45-82.
30
C f . Ibidem, p. 36-38.
31
Ibidem, p. 1-6.
32
M A T T O S O - História de Portugal, v o l . 1, p . 4 7 0 .
33
C f . IDEM - A h i s t ó r i a d a s p a r ó q u i a s , p . 3 7 - 5 6 .
34
C f . SÁNCHEZ SALOR - Jerarquias eclesiásticas, p . 22.
35
C f . COSTA — O bispo D. Pedro, v o l . 1, p . 126-138.
36
C f . GARCÍA DE CORTÁZAR - La sociedad rural, p . 1 7 - 4 6 ; IDEM - O r g a n i z a c i ó n s o c i a l d e i e s -
pacio, p. 197-236.
37
C f . G O N Z A L E Z BLANCO - E l d e c r e t o d e G u n d e m a r o , p . 1 5 9 - 1 6 9 .
38
E s t a lista é c o n h e c i d a t a m b é m p o r Nomina sedium episcopalium e conserva-se n o códice
o v e t e n s e d e 7 8 0 . C f . , a‫ ׳‬e s t e p r o p ó s i t o , SANCHEZ ALBORNOZ - Fuentes para el estúdio de las divisiones
eclesiásticas; DAVID - Études Historiques, p . 1.
39
C f . CRÓNICAS Asturianas, p. 228-229.
4(1
M A T T O S O - História de Portugal, v o l . 1, p . 4 7 5 .
41
SX-NOGUEIRA - I g r e j a e E s t a d o .
42
DAVID - Etudes historiques; OLIVEIRA - As paróquias rurais; MATTOSO - H i s t ó r i a d a s p a r ó q u i a s .
43
B r e v e s í n t e s e s o b r e o t e m a : SÁ-NOGUEIRA — G e o g r a f i a eclesiástica.
44
MAPPA de Portugal Antigo e Moderno. 2. ; ' E d . , L i s b o a , 1 7 6 3 .
45
ALMEIDA - História da Igreja; SILVA - As freguesias de Lisboa; OLIVEIRA - As paróquias rurais.
46
COSTA — O bispo D. Pedro; M A T T O S O — Le monachisme ibérique.
47
C O E L H O — O mosteiro de Arouca; C O C H E R I L — Routicr des abbayes cisterciennes; MARQUES —
A arquidiocese de Braga; GONÇALVES - O património do Mosteiro de Alcobaça; RODRIGUES - A s c o l e -
giadas de T o r r e s Vedras.
48
BARBOSA - Povoamento e estmtura agrícola.
49
SILVA - E n s a i o p a r a u m a m o n o g r a f i a .
50
C O N D E - S o b r e o p a t r i m ó n i o ; BOTÃO - Uma instituição medieval de prestígio.
51
M A T A — A comunidade feminina da Ordem de Santiago.
52
A N D R A D E — O mosteiro de Cheias.
53
VARANDAS — Monacato feminino e domínio rural.
54
SILVA — São Vicente de Fora.
55
M A R Q U E S - A colegiada de São Martinho de Sintra.
56
SANTOS — Vida e morte de um mosteiro cisterciense.
57
M O R U J Ã O — Um mosteiro cisterciense feminino.
58
E n t r e os n u m e r o s o s estudos d e s t e a u t o r s o b r e g e o g r a f i a eclesiástica, ver: O r g a n i z a ç ã o p a r o -
quial e j u r i s d i ç ã o eclesiástica n o p r i o r a d o d e Leiria.
59
M A R T I N S - Património, parentesco e poder.
60
MARQUES - A l g u n s a s p e c t o s d o p a d r o a d o n a s i g r e j a s e m o s t e i r o s .
61
RAMOS — O mosteiro e a colegiada de Guimarães.
62
LIRA - O mosteiro de S. Simão da Junqueira.
63
BASTOS - Santa Maria da Oliveira.
' 4 ‫ י‬BARROS - A aquisição e gestão de bens; CARVALHO - O património do cabido; N O G U E I R A —
A formação e defesa do património.
' , 5 AMARAL - São Salvador de Grijó.
6
'‫ י‬CASTRO — O Mosteiro de São Domingos de Donas.
67
V I C E N T E - Santa Maria de Aguiar.
68
RODRIGUES - O Entre Minho e Lima [ t r a b a l h o i n c i d e n t e s o b r e o t e r r i t ó r i o j á d e p o i s d a s e -
paração relativamente a Tui].
69
VILAR — As dimensões de um poder.
70
C U N H A - A ordem militar de Avis.
71
C U N H A — A ordem militar de Santiago.
72
COSTA — A ordem militar do Hospital.
73
SÁ-NOGUEIRA - A o r g a n i z a ç ã o d o p a d r o a d o r é g i o .
74
A p e s a r d a s l a c u n a s s u b l i n h a d a s , p o r e x e m p l o , p o r J . MARQUES p a r a a a r q u i d i o c e s e d e B r a g a -
A arquidiocese, p . 2 6 1 - 2 6 2 . O u t r a s o p i n i õ e s s o b r e o c a t á l o g o d e 1320-1321 ( d o r a v a n t e r e f e r i d o c o -
m o L i s t a d e 1 3 2 0 ) : M A T T O S O - H i s t ó r i a d a s p a r ó q u i a s , p . 4 8 ; VILAR - Diocese de Évora, p . 2 2 2 ; e a
s í n t e s e d e M . A . F. MARQUES - O c l e r o - h o m e n s d e o r a ç ã o e a c ç ã o , p . 2 2 9 .
75
A N T T , Gavetas da Torre do Tombo, G a v e t a 19, m . 3, n . ° 4 7 ; m . 14, n . ° 3; m . 6 , n . ° 31 e m . 1,
n . ° 13 ( r e i n a d o d e D . D i n i s , 1279-1321) e G a v e t a 10, m . 3, n . ° 15 ( r e i n a d o d e D . A f o n s o I I I , s ó
1 2 5 9 - 1 2 6 6 ) . D o r a v a n t e r e f e r i d a s c o m o Gavetas, seguidas da cota respectiva.
76
M A R Q U E S - Portugal na crise, p . 365.
77
M A R Q U E S - Portugal na crise, p . 3 6 7 .
78
C a t á l o g o d e t o d a s as i g r e j a s , c o m e n d a s e m o s t e i r o s q u e h a v i a n o s r e i n o s d e P o r t u g a l e A l -
g a r v e s , p e l o s a n o s 1320 e 1321... (ALMEIDA - História da Igreja, p . 9 0 - 1 4 4 ) .
79
A L M E I D A - História da Igreja, v o l . 4 , p . 113-116.
80
Gavetas, 19-14-3, fl. 31 ( a p r e s e n t a ç õ e s a o m o s t e i r o d e G a n f e i , d a t a d a s d e 2 8 / 3 / 1 2 9 9 e 2 4 / 8 / 1 3 0 5 )
e fl. 41 ( a p r e s e n t a ç ã o a o m o s t e i r o d e E r m e l o , d e 2 9 / 8 / 1 3 0 5 ) . E m 1 2 9 8 , o v i c e - c h a n c e l e r d e D . D i -
nis, A f o n s o M a r t i n s , registava carta d e D . F e r n a n d o , b i s p o d e T u i , d a t a d a d e 8 d e M a r ç o d e
1278, c o n f i r m a n d o G o n ç a l o M o g o , a p r e s e n t a d o c o m o p á r o c o p o r D . A f o n s o I I I à I g r e j a d e S a n t a
C r i s t i n a d e M e i a d e l a ( G a v e t a s , 1 9 - 1 4 - 3 , f. 3 0 v ) .
81
F e r n ã o P a i s , c ó n e g o d e T u i , e r a a p r e s e n t a d o e m 1 d e M a r ç o d e 1298 à I g r e j a d e S a n t a M a r i a
d e M o n ç ã o ( G a v e t a s , 19-14-3, f. 2 9 ) . J o ã o E s t e v e s , filho d o a l m o x a r i f e d e V a l e n ç a E s t ê v ã o E a n e s e r a
a p r e s e n t a d o e m 6 d e M a r ç o d e 1320 à I g r e j a d e S a n t a M a r i a d e C a m i n h a ( G a v e t a s , 19-1-13, f. 2 ) .
82
M A T T O S O - Identificação de um país, v o l . 1, p . 195.
83
C O C H E R I L - Routie des abbayes cisterciennes, p. 29-30.

196
ORGANIZAÇÃO ECLESIÁSTICA DO ESPAÇO

84
MARQUES - A arquidiocese de Braga, p . 251. P e r t e n c e u à d i o c e s e d e O r e n s e a t é , p e l o m e n o s ,
a o r e i n a d o d e D . D i n i s . D e p r e e n d e - s e da e x p o s i ç ã o d e J o s é M a r q u e s q u e j á estaria s o b tutela da
arquidiocese d e Braga na é p o c a d e D . F e r n a n d o da G u e r r a .
85
Gavetas, 10-3-15 ( D . A f o n s o I I I ) ; 19-14-3; 19-1-3; ( D . D i n i s ) . E m 2 d e M a r ç o d e 1291, P e d r o
Galvão, arcediago de Lima pela igreja de O r e n s e , m a n d a v a aos p a r o q u i a n o s q u e acatassem o p á -
r o c o apresentado p o r D . Dinis. T o u r é m pertencia, pois, ao arcediagado aurensiano de Lima ( G a -
vetas, 19-14-3, fl. 19).
86
Gavetas, 19-14-3, fl. 3 v .
87
V e r c r o n o l o g i a e p o n t o s principais d o l o n g o e s t u d o d e d i c a d o p o r este a u t o r ao t e m a e m
COSTA - O b i s p o D . P e d r o (1990) p . 3 7 9 - 4 3 4 .
88
MATTOSO - A formação da nacionalidade, p. 47-56.
89
MARQUES - A arquidiocese, p. 240.
9(1
MARQUES - A arquidiocese, p. 240.
91
V e r abaixo, n o t e x t o sobre a diocese d o P o r t o , mais d a d o s acerca desta fronteira.
92
MARQUES - A arquidiocese, p . 255-263.
93
S e g u i n d o a L i s t a d e 1320, O l i v e i r a MARQUES (Portugal na crise, p . 3 6 7 ) i n d i c a 9 3 7 f r e g u e s i a s
d i s t r i b u í d a s p o r 39 g r u p o s . B a s e a d o s n a m e s m a lista, c o n t a b i l i z á m o s c e r c a d e 9 9 0 , s e g u i n d o
J . MARQUES e n ã o a c e i t a n d o a d i v i s ã o e n t r e V e r m o i m d e S u s ã o e V e r m o i m d e J u s ã o . A p o i a d o
s o b r e t u d o nas c o n f i r m a ç õ e s de D . F e r n a n d o da G u e r r a , d o s e g u n d o quartel d o século xv,
J . MARQUES (A arquidiocese, p . 2 6 1 - 2 6 2 ) a p u r a 1058, d i s t r i b u í d a s p o r 4 3 g r u p o s . P a r a m e a d o s d o s é -
c u l o XIII, M . A . F . MARQUES c o n t a b i l i z a 9 5 0 ( A l g u n s a s p e c t o s d o p a d r o a d o , p . 373).
94
D o t o t a l d a s i g r e j a s c o n s e g u i m o s i d e n t i f i c a r 187 (93 n a s t e r r a s d o M i n h o e 9 4 n a s d e T r á s -
- o s - M o n t e s ) . F i c a m p o r i d e n t i f i c a r 33. N o e n t a n t o , d e v i d o às p o t e n c i a i s r e p e t i ç õ e s j á i d e n t i f i c a -
das ( p o r e x e m p l o , a m e s m a i g r e j a c o m n o m e s d i f e r e n t e s ) , o p t a m o s p o r esta e s t i m a t i v a c o n s e r v a -
d o r a . P a r a o n ú m e r o d e a p r e s e n t a ç õ e s v e r SÀ-NOGUEIRA - A o r g a n i z a ç ã o d o p a d r o a d o r é g i o ,
p . 423.
95
MARQUES - A l g u n s a s p e c t o s d o p a d r o a d o , p . 373.
96
MARQUES - A arquidiocese, p . 1 0 7 5 - 1 0 7 6 . M e s m o a t e n d e n d o à c o n t a b i l i z a ç ã o d o p r i o r a d o d e
G u i m a r ã e s c o m o u m a só p a r ó q u i a , a d i m i n u i ç ã o é m u i t o clara.
97
D i f e r e n ç a d e cerca d e v i n t e p a r ó q u i a s a m e n o s da nossa c o n t a g e m (749) r e l a t i v a m e n t e ao
c ô m p u t o d e 7 6 7 f r e g u e s i a s r e a l i z a d o p o r J . MARQUES p a r a as á r e a s c o r r e s p o n d e n t e s a o M i n h o
( m e a d o s d o século xv). E m t e r m o s relativos, a m a i o r discrepância (onze) e n c o n t r a - s e e m terra d e
Basto.
98
MARQUES - A l g u n s a s p e c t o s d o p a d r o a d o , p . 373.
99
A e x t e n s ã o e c o m p o s i ç ã o d e s t a s z o n a s a d m i n i s t r a t i v a s f o r a m - s e a l t e r a n d o e n t r e o final d o
s é c u l o x i e o s e g u n d o q u a r t e l d o s é c u l o x v . J . MARQUES c o n s i d e r a m a i s d u a s t e r r a s , a l é m d a s n o -
ve adiante enunciadas; N e i v a (destacada ao arcediagado de Neiva?) e P r a d o (destacada à terra d o
D e a d o ? ) (A arquidiocese, p. 261-262).
100
D e s i g n a d a c o m o « t e r r a d e A b a d e » n o c e n s u a l d e E n t r e L i m a e A v e (COSTA - O bispo
D. Pedro, v o l . 2, p . 142-147).
101
N o c e n s u a l d e E n t r e L i m a e A v e , d o s é c u l o x i , esta z o n a é d e n o m i n a d a « E n t r e N e i v a e
C á v a d o e d e s d e o F e b r o s a t é a o m a r » . C o m o o b s e r v a A v e l i n o d e J e s u s d a COSTA, « a l é m d a s fre-
guesias próprias desta terra o u d o arcediagado d e N e i v a , abrange outras q u e p o s t e r i o r m e n t e p e r -
t e n c e r a m às t e r r a s d e A g u i a r d e N e i v a e d e A g u i a r d e R i b a L i m a , B a r c e l o s , D e a d o , M e s t r e -
- e s c o l a d o , P e n e l a , P r a d o e T a m e l » ( O bispo D. Pedro, v o l . 2, p . 148).
102
MARQUES - A arquidiocese, p. 263.
103
A p e n a s u m a apresentação à Igreja de São M i g u e l d e Crastêlo, de P e n e g a t e .
104
A Lista d e 1320 s u b d i v i d e - a e m t e r r a d e V e r m o i m d e S u s ã o e t e r r a d e V e r m o i m d e J u s ã o .
U m a v e z q u e J o s é M a r q u e s ( A arquidiocese, p . 2 6 2 ) n ã o r e t é m e s t a s u b d i v i s ã o p a r a o s é c u l o x v ,
n ã o a c o n s i d e r a r e m o s . C o m o o u t r a s d a L i s t a d e 1320, é p o s s í v e l q u e n ã o c o r r e s p o n d e s s e a u m a
área administrativa orgânica.
105
A t é 1320, o m o s t e i r o d e S a n d e e o u t r a s i g r e j a s d a t e r r a d e S a n d e f o r a m i n c o r p o r a d a s e m
t e r r a d e V e r m o i m e as r e s t a n t e s ( e n t r e as q u a i s as d e B e s t e i r o s ) p a s s a r a m a p e r t e n c e r à t e r r a d o
C h a n trado.
106 Q C E N S U A ! D E G u i m a r ã e s e M o n t e l o n g o (COSTA - O bispo D. Pedro, v o l . 2, p . 221-256) n ã o
p e r m i t e i d e n t i f i c a r q u a l q u e r d e l a s , p a r e c e n d o - n o s e m f a l t a . N a Lista d e 1320 s ã o a q u i a g r u p a d a s
as s e g u i n t e freguesias: S ã o P e d r o d o M o n t e , S a n t a M a r i a d e G r a d i z e l a , S ã o P e d r o d e R i b e i r a d e
Ave (Riba d'Ave), Santo A n d r é d o Sobrado, São Miguel de Entre Ambas-as-Aves, São Tiago de
Lordelo, São L o u r e n ç o de R o m ã o , Cerzedelo, São Salvador de Gandarela, São J o ã o de Calvos e
S ã o B a r t o l o m e u (ALMEIDA - História da Igreja, v o l . 4 , p . 1 0 4 ) .
107
R e f e r i d a c o m o S ã o T i a g o e m 1320 (COSTA - O bispo D. Pedro, v o l . 2, p . 2 3 9 ) .
108
COSTA - O bispo D. Pedro, v o l . 2, p . 4 2 7 .
109
C o m o a d i a n t e v e r e m o s , a d e s i g n a ç ã o desta z o n a c o m o «terra d e Ferreira» terá sido tardia.
N a d i v i s ã o d e 1145, F e r r e i r a e r a u m a d a s t e r r a s t r a n s m o n t a n a s d e p e n d e n t e d o a r c e d i a g a d o d e B r a -
g a n ç a (COSTA - O bispo D. Pedro, p . 4 2 7 ) .
110
U m a d a s d i f e r e n ç a s m a i s s i g n i f i c a t i v a s e n t r e a L i s t a d e 1320 e o s n ú m e r o s d e J . MARQUES,
q u e a p o n t a 51 freguesias p a r a t e r r a d e B a s t o e m m e a d o s d o s é c u l o x v ( A arquidiocese, p . 261).
111
N ú m e r o i n f e r i o r às 291 c o n t a b i l i z a d a s p o r J . MARQUES (A arquidiocese, p . 2 6 1 - 2 6 2 ) . A d i f e -
rença justifica-se pelo m u i t o m a i o r n ú m e r o de paróquias e m terra de C h a v e s e terra de Bragança
n o segundo quartel d o século xv.
112
S e m p r e r e f e r i d a c o m o «Valariça». O p t a m o s p o r é m p o r Vilariça, s e g u i n d o A v e l i n o d e J e s u s
da C o s t a e José M a r q u e s .
113
N o t e x t o p u b l i c a d o está «Frieira». U m a v e z q u e n o s é c u l o x i i existia u m a «Ferreira» i n -
c l u í d a n o a r c e d i a g a d o d e B r a g a n ç a , s u p o m o s q u e se t r a t a r á d e s t a (ALMEIDA - História da Igreja,
v o l . 4 , p . 112). A s i g r e j a s n e l a i n c l u í d a s c o r r e s p o n d e m às d e M o n f o r t e d e R i o L i v r e .

197
A CONSTRUÇÃO DE UMA IGREJA

114
P a r a o s e g u n d o quartel d o século xv, a i m p o r t â n c i a d e terra d e Panóias c o m o acesso da
a d m i n i s t r a ç ã o eclesiástica a T r á s - o s - M o n t e s está b e m d e m o n s t r a d a n o s i t i n e r á r i o s d o a r c e b i s p o
D . F e r n a n d o da G u e r r a , reconstituídos p o r J o s é M a r q u e s . V e m o s q u e o P a ç o d e M a t e u s era a
p r i n c i p a l r e s i d ê n c i a a r q u i e p i s c o p a l e m t e r r i t ó r i o t r a n s m o n t a n o (A arquidiocese, p . 75, 8 4 e 9 0 ) .
115
C e n s u a l d a t e r r a d e P a n ó i a s , d o s é c u l o XIII (COSTA - O bispo D. Pedro, v o l . 2, p . 2 5 7 - 2 8 0 ) .
116
C u j a albergaria, c o n h e c i d a c o m o Albergaria d o M a r ã o , o u da C a m p e ã , era p r o v a v e l m e n t e
p o n t o o b r i g a t ó r i o d e d e s c a n s o na d u r a travessia da serra d o M a r ã o .
117
S ã o J e r ó n i m o d e V a l e d e P r a d o s , u m a das f r e g u e s i a s q u e a L i s t a d e 1320 a g r u p a a L a m p a -
ças, f i c a v a n o c e n t r o d e t e r r a d e L e d r a .
118
E n o r m e d i f e r e n ç a r e l a t i v a m e n t e a o c ô m p u t o d e 7 9 f r e g u e s i a s f e i t o p o r j . MARQUES p a r a o
s e g u n d o q u a r t e l d o s é c u l o x v ( A arquidiocese, p . 261). P a r t e p o d e r á d e v e r - s e a i g r e j a s a t r i b u í d a s
e m 1320 a M i r a n d a e m a i s t a r d e a B r a g a n ç a : c o m e f e i t o , a Lista d e 1320 d á 2 2 p a r ó q u i a s a M i r a n -
d a , e n q u a n t o q u e J . MARQUES c o n t a b i l i z a 16. M a s o u t r a e x p l i c a ç ã o t e r á d e s e r e n c o n t r a d a p a r a
esta g r a n d e d i s c r e p â n c i a , a m a i o r i d e n t i f i c a d a p a r a t o d a a a r q u i d i o c e s e d e B r a g a .
119
J . MARQUES i n d i c a 5 p a r a o 2 . ° q u a r t e l d o s é c u l o x v ( A arquidiocese, p . 261).
1:11
T a l v e z a d i s c r e p â n c i a n ã o seja t ã o g r a v e , u m a v e z q u e o u t r a s igrejas o u t r o r a p e r t e n c e n t e s
a M o n t e n e g r o / C h a v e s t a m b é m figuram n e s t e g r u p o .
121
N ã o c o n s e g u i m o s d e t e r m i n a r se n a f r o n t e i r a n o r d e s t e M o n t e n e g r o se i n t e r p o r i a e n t r e
C h a v e s , V i n h a i s e B r a g a n ç a , o u se C h a v e s l i n d a v a d i r e c t a m e n t e c o m a m b a s - s o b r e t u d o c o m
Vinhais, d e v i d o à localização de R e b o r d e l o .
122
O u t r a e n o r m e d i s c r e p â n c i a r e l a t i v a m e n t e a o c ô m p u t o d e J . MARQUES, q u e l e v a n t a 31 f r e -
g u e s i a s ( A arquidiocese, p . 261). P a r t e e x p l i c a r - s e - á p e l a i n c l u s ã o d e c e r c a d e u m a d e z e n a d e p a r ó -
q u í a s f l a v i e n s e s e m t e r r a d e F e r r e i r a ( o u M o n f o r t e d e R i o L i v r e ) , n a q u a l a Lista d e 1320 c o n t a -
b i l i z a 13 i g r e j a s , c o n t r a 3 n o s é c u l o x v .
123
São P e d r o de T o u r é m .
124
A p e s a r d e n ã o s u r g i r q u a l q u e r a p r e s e n t a ç ã o às i g r e j a s d a t e r r a d e F r e i x o n a s listas d i o n i s i -
n a s , n a L i s t a d e 1320 l ê - s e q u e a t e r ç a d a I g r e j a d e S ã o M i g u e l d e F r e i x o e r a d o r e i (ALMEIDA -
História da Igreja, vol. 4, p. 112).
125
MARQUES - A l g u n s a s p e c t o s d o p a d r o a d o , p . 373-375; SÁ-NOGUEIRA - A o r g a n i z a ç ã o d o
p a d r o a d o r é g i o , p . 432.
126
MATTOSO - Identificação de um país, v o l . 1, p . 195.
127
MARQUES - A arquidiocese, p . 6 5 4 ( m a p a x v ) e 721 ( m a p a XVII).
128
COCHERIL - Routier des abbayes cisterciennes, p . 52. A l é m d a r e s i s t ê n c i a d o c u m e n t a d a À filia-
ção de Júnias na O r d e m de Cister p o r parte d o arcebispo D . J o ã o Viegas de Portocarreiro, é
p o s s í v e l q u e a i m p l a n t a ç ã o d o s C i s t e r c i e n s e s e m B r a g a f o s s e i g u a l m e n t e d i f i c u l t a d a p e l a falta d e
locais a p r o p r i a d o s , d a d o o n ú m e r o e l e v a d í s s i m o d e m o s t e i r o s e x i s t e n t e . C o n h e c e n d o os rigoro-
sos c r i t é r i o s s e g u i d o s p o r esta o r d e m p a r a e s c o l h e r o s locais d e i m p l a n t a ç ã o , esta e x p l i c a ç ã o p a r e -
ce aceitável.
129
MARQUES - A arquidiocese, p . 825, 828.
130
Q u a n t o ao C o n v e n t o d e Santa Clara d e A m a r a n t e , e m b o r a c o m p r o v a d a a sua existência
n o t e m p o d o a r c e b i s p o D . F e r n a n d o d a G u e r r a , s ó p o d e r i a t e r p a s s a d o às C l a r i s s a s a p ó s m e a d o s
d o s é c u l o (MARQUES - A arquidiocese, p . 835).
131
A ú l t i m a t e r i a s i d o i n t e g r a d a n a o r d e m p o u c o a n t e s : e m 5 d e A g o s t o d e 1298 a i n d a o r e i
a p r e s e n t a v a o r e s p e c t i v o p á r o c o ( G a v e t a s , 19-4-3, A- 2 9 ) •
132
MATTOSO — A f o r m a ç ã o n a n a c i o n a l i d a d e , p . 4 5 - 4 8 .
133
MARQUES — A arquidiocese, p . 245.
134
Ibidem.
135
MOREIRA — Freguesias da diocese do Porto.
136
C o m e f e i t o , a L i s t a d e 1320-1321 l o c a l i z a n a a r q u i d i o c e s e d e B r a g a , a g r u p a d o s às « I g r e j a s d e
T e r r a d e Basto» (entre Fafe, C e l o r i c o e C a b e c e i r a s d e Basto), e n t r e o u t r o s t e m p l o s os d e O u r i -
lhe, C a ç a r i l h e , Seidões, R i b a s , P e d r a ç a , B a ú l h e , O u t e i r o e, mais a c i m a , R i o D o u r o - a l é m d o
m o s t e i r o d e A r n ó i a . N a m a r g e m e s q u e r d a d o T â m e g a , s u r g e m as i g r e j a s d e M o n d i m , E r m e l o e
F e r v e n ç a . L o g o , n ã o p a r e c e p o s s í v e l q u e a d i o c e s e d o P o r t o a l c a n ç a s s e , e n t ã o , estas p a r a g e n s .
137
A l g u n s e x e m p l o s q u e d e m o n s t r a m b e m q u e o assunto d e v e ser e s t u d a d o à lupa. C o m o se
v i u , J . MARQUES a f i r m a q u e as i g r e j a s d e S ã o M a m e d e d e R e c e z i n h o s e d e S a n t a E u l á l i a d e P a -
ç o s d e F e r r e i r a p e r t e n c i a m à a r q u i d i o c e s e e m m e a d o s d o s é c u l o x v (Arquidiocese, p . 245). O r a n ã o
s ó a L i s t a d e 1320 as i n d i c a c o m o p e r t e n c e n t e s à d i o c e s e d o P o r t o , c o m o as listas d a s a p r e s e n t a -
ç õ e s d o p a d r o a d o r é g i o c o r r o b o r a m e s t e f a c t o , p e l o m e n o s n o r e i n a d o d e D . D i n i s (Gavetas, 19-
- 3 - 4 7 - fls. 33 e 39 p a r a S a n t a O v a i a d e P a ç o s , e m 1 3 0 0 e 1303; e fl. 51 v p a r a S ã o M a m e d e d e R e -
c e z i n h o s , e m 1312). J á a I g r e j a d e S ã o P e d r o d e C a í d e , o u C a í d e d e R e i ( t e r r a d e S o u s a ) ,
a t r i b u í d a p o r D o m i n g o s M o r e i r a à d i o c e s e d o P o r t o , é r e f e r i d a n a s m e s m a s listas c o m o p e r t e n -
c e n t e à a r q u i d i o c e s e d e B r a g a (1307-1314: ibidem, fls. 45, 56). P a r e c e ú t i l , p o r t a n t o , u m e s t u d o
c e n t r a d o n a d e t e r m i n a ç ã o d o s l i m i t e s f r o n t e i r i ç o s e n t r e P o r t o e B r a g a e s u a p o s s í v e l fluidez a o
l o n g o d o século xrv, q u e atenda s o b r e t u d o a d o c u m e n t a ç ã o dos m o s t e i r o s de R o r i z e São M i -
g u e l d e V i l a r i n h o - o n d e J . MARQUES a f i r m a e n c o n t r a r e m - s e as p r o v a s d a d e l i m i t a ç ã o q u e d e -
f e n d e (Arquidiocese, p . 252). T a l v e z a s s i m s e j a p o s s í v e l a p u r a r , c o m s e g u r a n ç a , o m o d o c o m o e v o -
l u i u a r e p a r t i ç ã o d e f r e g u e s i a s e n t r e as d u a s d i o c e s e s n e s t a z o n a .
138
D o m i n g o s M o r e i r a d á - n o s u m i n v e n t á r i o das p a r ó q u i a s c o m existência d o c u m e n t a d a n a
I d a d e M é d i a q u e a c t u a l m e n t e p e r t e n c e m à d i o c e s e d o P o r t o , p o d e n d o d a r a e n t e n d e r q u e essas
freguesias j á na é p o c a medieval p e r t e n c i a m à diocese d o P o r t o — o q u e n ã o acontecia.
139
A s u b d i v i s ã o das «Igrejas da T e r r a da O r d e m d e C r i s t o » à p a r t e , n o t a d a na Lista d e
1320, d e s t i n o u - s e p r o v a v e l m e n t e a t e r e m c o n t a a n o v a o r d e m e n t ã o e m p r o c e s s o d e c o n s t i -
t u i ç ã o . N ã o n o s p a r e c e q u e c o r r e s p o n d e s s e a u m a d i v i s ã o r e a l . ALMEIDA - História da Igreja,
v o l . 4 , p . 93.
140
MOREIRA - Freguesias.

198
ORGANIZAÇÃO ECLESIÁSTICA DO ESPAÇO

141
C o u ç o em Moreira (Maia), Santa Cristina de C o r o n a d o em Folgosa (Maia), Santa Maria
de Negrelos e m R o r i z (Santo Tirso), Parada de Castanheira em Lordelo (Paredes), São Veríssi-
m o da Ribeira e m Regilde (Felgueiras), Ervosa em São Martinho de Bougado (Santo Tirso),
São Paio de Virães e m R o r i z (Santo Tirso) e São Miguel de Vila Verde em Telões (Amarante)
(MOREIRA — Freguesias, p. 109). Além das extintas, fica a questão das freguesias cuja atribuição é
feita ora a Braga ora ao Porto. Alista fornecida p o r j . MARQUES (Arquidiocese, p. 246) correspon-
de àquelas sobre as quais existem dúvidas. Domingos Moreira situa as freguesias nos concelhos
actuais, o que facilita a respectiva localização.
142
SÁ-NOGUEIRA — A organização do padroado régio.
143
Note-se que a presença do padroado régio na diocese foi determinada c o m base na infor-
mação de listas de apresentações referentes à época de 1259-1321. A evolução destas ao longo do
reinado de D. Dinis mostra u m enfraquecimento claro do padroado régio, por doação dos direi-
tos de apresentação a terceiros.
144
O rei apresentava c o m o prior ao mosteiro de Águas Santas u m freire/cónego (surgem
ambas as designações) da O r d e m do Santo Sepulcro, pelo mesmo método acima referido para os
mosteiros da administração de Valença. As três apresentações a este mosteiro datam de 1264, 1283
e 1309 (Gavetas, 19-4-3, As- 2 e 47; 10•(15‫־‬3‫־‬
145
A igreja de Almoroça figura na Lista de 1320 (ALMEIDA - História da Igreja, vol. 4, p. 94).
Domingos Moreira — que, recorde-se, indica os nomes actuais das freguesias — não a refere.
146
Por lapso, uma apresentação régia de 4 de Dezembro de 1298 dá esta igreja na arquidioce-
se de Braga (Gavetas, 19-14-3, fl. 30). N a Lista de 1320, porém, da diocese do Porto consta refe-
rência à igreja de Aguiar, na rubrica «Igrejas da Terra de Aguiar», enquanto que nas «Igrejas da
Terra de Sousa» da arquidiocese bracarense não existe qualquer menção a uma igreja de Aguiar
ou de São R o m ã o (ALMEIDA - História da Igreja, vol. 4, p. 99 e 105-106). Mais u m exemplo que
permite duvidar que que a pertença de algumas freguesias nesta zona de charneira fosse clara.
147
Da lista consta a Igreja de São Pedro de Paredes. A dificuldade da diferença de orago é
importante.
148
Da lista consta São Fraústo de Sever. Sendo «Sever» o antigo n o m e da Régua, e dada a
raridade do orago, fizemos a identificação. M e d i m figura na Lista de 1320 (ALMEIDA - História da
Igreja, vol. 4, p. 96).
149
Domingos Moreira identifica 18 freguesias no arcediagado de Vouga, a sul da diocese do
Porto na fronteira c o m Coimbra, c o m o pertencentes à diocese portuense — localizadas nos m o -
dernos concelhos de Estarreja (2), Vale de Cambra (6), Oliveira de Azeméis (6) e Albergaria-
-a-Velha (4). Mas a fonte por si indicada, a Lista de 1320, dá todas essas freguesias na diocese de
Coimbra. Ver nota 138 supra.
150
GOMES - Cónegos Regrantes de Santo Agostinho.
151
N ã o i d e n t i f i c a d o p o r MATTOSO; KRUS; ANDRADE - O castelo e a feira, p . 162-163.
152
Águas Santas pertencia ao padroado régio no reinado de D. Dinis (ver nota supra). E m
1320, estava-lhe anexado o mosteiro de Vila Nova, e m Viseu (ALMEIDA - História da Igreja,
vol. 4, p. 120). Ver GOMES - Premonstratenses.
153
MARQUES — O clero — homens de oração e acção, p. 225.
154
E m 1 de Março de 1281, o rei apresentava o clérigo Paio Domingues c o m o pároco da
Igreja de Santa Maria de Mosteiro, ignorada na Lista de 1320 (Gavetas, 19-3-47, fl. 6). Se esta fre-
guesia corresponde ao Mosteiro localizado a norte de Macieira de Cambra, então a fronteira e n -
tre as dioceses de Coimbra e Lamego seria u m p o u c o mais extensa.
155
A Lista de 1320 dá c o m o orago Santo André (ALMEIDA - História da Igreja, vol. 4, p. 123).
156
N a Lista de 1320, diz-se que a freguesia de Macieira de Alcova estava unida à Albergaria
(ALMEIDA - História da Igreja, vol. 4, p. 124).
157
Supomos que a apresentação do rei à Igreja de Santa Maria de Ega, em 23 de Abril de
1319 (Gavetas, 19-3-31, fl. 2), terá sido meramente temporária. Terá obedecido quase decerto à
mesma explicação adiantada mais abaixo para o grupo das «Igrejas de Monsanto» da diocese da
Guarda: sob custódia provisória da Coroa, após a extinção da O r d e m do Templo, transitaria de-
pois para a O r d e m de Cristo.
158
GOMES — Organização paroquial.
159
Pertenceu ao rei pelo menos até 12 de Setembro de 1317, data da apresentação de mestre
Estêvão, físico do rei, c o m o pároco da igreja (Gavetas, 19-1-13, f. 4).
160
MATTOSO - Cluny, Crúzios e Cistercienses na formação de Portugal, p. 112.
161
Dela faziam parte as igrejas de Santa Marinha, Santa Maria, São Vicente, da T o r r e e a de
Freimim de Santo Antão (ALMEIDA - História da Igreja, vol. 4, p. 121-122).
162
Das igrejas viseenses constantes das listas das apresentações de D. Afonso III para 1259-1266
(Gavetas, 19-3-15) ainda constava a de São Salvador do Lamegal (termo de Pinhel), sem apresenta-
ção durante o reinado de D. Dinis. Continuaria a pertencer ao padroado régio?
163
Ao contrário do que sucede nas outras dioceses, a Lista de 1320 apresenta a Igreja Catedral
de Santa Maria no final, depois do termo de Trancoso (ALMEIDA — História da Igreja, vol. 4,
p. 122).
164
N a Lista de 1320 lê-se «Santos Velhos», e m vez de «Santo Osevho» (ALMEIDA - História da
Igreja, vol. 4, p. 121).
165
Separadas na Lista de 1320 entre vila e termo.
166
COSTA - História do bispado e cidade de Lamego, vol. 1, p. 52-57. Depois de terminado este tex-
to, o dr. Anísio Saraiva informou-nos de que o primeiro arcediagado surgiu em Lamego apenas no
século xv. Por isso a Lista de 1320 apresenta as igrejas da diocese de Lamego numa só sequência,
sem qualquer subdivisão. Apesar de o agrupamento proposto por M. Gonçalves da Costa não ser,
portanto, medieval, mantivemo-lo por comodidade de exposição, com esta ressalva.
167
COSTA - História do bispado e cidade de Lamego, vol. 2.
168
MARQUES - Portugal na crise, p. 367.

199
A CONSTRUÇÃO DE UMA IGREJA

169
Ver FERNANDES - A acção dos Cistercienses de Tarouca.
170
COSTA - História do bispado, v o l . 2, p . 517-537.
171
GOMES - Premonstratenses.
172
COSTA - História do bispado, v o l . 2, p . 410-432.
173
Ibidem, vol. 1, p. 188. A Lista de 1320 indica cerca de 60.
174
Ibidem, vol. 1, p. 154.
175
H o j e Penha d A g u i a , terra natal do historiador António Joaquim Ribeiro Guerra, que
aqui recordamos.
176
GOMES - História da diocese da Guarda. Pelo menos até 1320, a diocese da Guarda não c o n -
frontava a norte com a de Lamego, mas somente c o m a de Viseu. C o m efeito, aquando da ava-
liação de 1320, as igrejas dos territórios de Trancoso e Pinhel surgem todas integradas na diocese
viseense. Assim, só em 1403 as dioceses da Guarda e de Lamego passaram a ser vizinhas, c o m a
integração de Ribacoa no território lamecense.
177
T e x t o integral e m GOMES - História da diocese, p. 34-44.
178
GOMES - História da diocese, p. 46.
179
GOMES - História da diocese, p. 44.
180
Ao comentar esta subdivisão da Lista de 1320, Pinharanda Gomes (História da diocese,
p. 47-48) não faz qualquer referência à inclusão das igrejas transtaganas de Longomel e Ponte de
Sor no bispado da Guarda.
181
A Igreja de Santa Maria de Nisa, da O r d e m do Templo, era apresentada pelo rei a João
Domingues, filho de Aparício Domingues, em 28 de Julho de 1313 (Gavetas, 19-14-3, n.° 3, f. 54).
Intromissão temporária, apenas, verificada no período posterior à extinção dos Templários e an-
terior à criação da O r d e m de Cristo.
182
Gavetas, 10-3-15. Sobre as freguesias de Portalegre, ver VIANA - Notas sobre a organização
paroquial.
183
Sobre este senhorio ver SÁ-NOGUEIRA - A constituição do senhorio fronteiriço. E m t o d o
o caso, e m 1320 todas pertenciam a ordens militares, excepto a de Santa Maria Madalena, do
mosteiro canonical de São Jorge de Coimbra. Mas nessa data já o senhorio se havia desintegrado.
184
Pinharanda Gomes (História da diocese, p. 48) contabiliza apenas 63 igrejas, contagem que é
insuficiente.
185
Se a igreja de Maçainhas indicada na Lista de 1320 corresponder à actual localidade de
Maçainhas de Baixo, entre ela e Belmonte ficavam várias freguesias pertencentes às Igrejas da
Covilhã e do termo da Guarda (a saber, Colmeal, Vela, Aldeia do Bispo e Fernão Joanes).
186
Às duas igrejas da Guarda juntava-se a de São Julião de Punhete (Constância). GOMES —
História da diocese, p. 47.
187
Gavetas, 19-14-3, £1. 4 (1/4/1285, Castelo M e n d o ) e £1. 47 (30/7/1309, Linhares).
188
Esta igreja de Jaiva é talvez a de Pousafoles. E m 1259, o concelho da Guarda doava T o u r o
e Pousafoles («Tauri e Saigafales») à O r d e m do T e m p l o (GOMES - História da diocese, p. 50).
189
COCHERIL - Routier des abbayes cisterciennes, p. 133-136.
190
VILAR - Cónegos Regrantes de Santo Antão.
191
ALMEIDA - História da Igreja, vol. 1, p. 282.
192
MATTOSO - A formação da nacionalidade, p. 76.
193
N o s dois primeiros anos do seu reinado, por exemplo, por exemplo, D. Dinis apresentava
a igrejas do padroado régio olisiponense o chanceler mestre Pedro Martins (Santa Maria da Alcá-
çova de Santarém), mestre Pedro seu médico (São Tiago de Óbidos), Domingos Eanes Jardo, di-
to seu antigo chanceler (São Leonardo da Atouguia), além de outros «clérigos do rei» (Gavetas,
19-3-47).
194
As igrejas da Azambuja e de Povos, perto do T e j o , eram ambas do padroado régio, tal c o -
m o as de Porto de Mós. Sobre a da Ota, embora a Lista de 1320 não o refira, é provável que
pertencesse ao Mosteiro de Alcobaça.
195
Após seis apresentações régias entre 1279 e 1316, a Lista de 1320 indica que pertencia à O r -
d e m de Santiago. Teria sido doada n o intervalo entre 1316 e 1320?
196
Existem três apresentações régias à igreja de Alcanede entre 1279 e 1289. A Lista de 1320 já
a atribuía à O r d e m de Avis.
197
N a apresentação feita ao escrivão da cozinha do rei Afonso Domingues, e m 10 de Julho
de 1319, o orago da igreja é São Lourenço (Gavetas, 19-6-31).
198 p e [ a lógica da continuidade geográfica, Atouguia incorporar-se-ia nas igrejas de Óbidos e
o Mosteiro de Alcobaça neste grupo - ou no das igrejas de Santarém. Segundo esta mesma lógi-
ca, também a Igreja de Santa Maria da Ventosa, integrada nas igrejas de Alenquer, deveria figurar
nas igrejas de Torres Vedras.
199
São Nicolau ainda era do padroado régio e m 1265, ano e m que mestre Pedro de Bena-
vente foi apresentado c o m o pároco (Gavetas, 10-3-15). A ausência de qualquer apresentação d u -
rante o período dionisino faz-nos presumir que o seu padroado tivesse sido alienado. Para São
Julião existem várias apresentações ao longo do reinado de D . Dinis. O padroado de Santa Justa
seria doado pelo rei ao Mosteiro de São Vicente de Fora em 1305, por permuta c o m o da Igreja
de São Cucufate, perto da Vidigueira (Torre do T o m b o , Chancelaria de D. Dinis, Livro 5.0,
fl. 17 v).
200
Esse predomínio prolongava-se pela diocese de Évora, imediatamente a sul, através de
dois grupos de paróquias: as igrejas de O u r i q u e e as igrejas de Odemira (ver diocese de Évora).
201
T a m b é m D. Afonso IV e D. Fernando ficaram sepultados na diocese de Lisboa, o primei-
ro na sé (com a rainha D. Beatriz) e o segundo e m Santa Maria da Alcáçova de Santarém.
202
A Lista de 1320 refere as clarissas de Lisboa (ALMEIDA - História da Igreja, vol. 4, p. 127),
embora José MATTOSO não as inclua no seu mapa dos conventos franciscanos e dominicanos
(A formação da nacionalidade, p. 234.)
203
MATTOSO - A formação da nacionalidade, p. 235.

CENTRO DE hSTUUOo D!. H&lOhU htUulUárt


ORGANIZAÇÃO ECLESIÁSTICA DO ESPAÇO

204
ALONSO - A g o s t i n h o s .
205
A h i s t ó r i a d a r e s t a u r a ç ã o d a d i o c e s e d e É v o r a n a s e g u n d a m e t a d e d o s é c u l o XII, b e m c o -
m o da d e f i n i ç ã o dos seus limites, e n c o n t r a - s e estudada e m dois valiosos estudos d o P.e J ú l i o C é -
s a r BAPTISTA - L i m i t e s d a d i o c e s e d e É v o r a ; IDEM - R e s t a u r a ç ã o d a d i o c e s e d e É v o r a .
206
BAPTISTA - L i m i t e s , p . 7 .
207
Ibidem, p . 6 , 2 7 . M a r t i m S a n c h e s , i r m ã o d e D . T e r e s a , e r a e n t ã o m u i t o i n f l u e n t e n a c o r t e
d o rei d e Leão, A f o n s o I X - p o r s e r e m a m b o s p r i m o s direitos d o rei e n e t o s d e D . A f o n s o H e n -
riques. P o d e presumir-se que, p o r detrás deste r e c o n h e c i m e n t o , favorável ao bispo d e Évora, es-
tariam interesses políticos q u e t r a n s c e n d i a m o conflito e n t r e jurisdições episcopais. P o r outras p a -
lavras, é possível q u e o c o n f l i t o ultrapassasse o estrito â m b i t o dos n e g ó c i o s eclesiásticos; o u ,
então, q u e estes d o m i n a s s e m a d i n â m i c a política secular.
208
S ó a s s i m se e x p l i c a q u e as i g r e j a s d e M é r t o l a e M o u r a s e j a m d e f i n i d a s c o m o « I g r e j a s d e
O d e m i r a » e A l c á c e r d o Sal c o m o « I g r e j a s d e O u r i q u e » . O u r i q u e e O d e m i r a e r a m o s ú n i c o s c e n -
tros d o p a d r o a d o régio nestas duas sub-regiões.
209
A c o m p r o v á - l o a inclusão d e u m a só igreja d e Elvas neste g r u p o , a d e Santa M a r i a da A l -
c á ç o v a , d a q u a l se d i z « q u e é d a o r d e m d e S. B e n t o d e A v i z » . A s r e s t a n t e s i g r e j a s d e E l v a s c o n s -
t i t u e m u m g r u p o à parte. T a m b é m a Igreja de Santa M a r i a é a única d e Beja q u e figura neste
g r u p o , c e r t a m e n t e p o r p e r t e n c e r à antiga milícia de É v o r a ( i n f o r m a ç ã o cedida pelo dr. H e r m e -
negildo Fernandes).
210
E m 22 d e J a n e i r o d e 1280, o r e i d a v a - l h e c o m o p á r o c o J o ã o M a r t i n s , i r m ã o d e m e s t r e P e -
d r o M a r t i n s , s e u c h a n c e l e r e f u t u r o b i s p o d e C o i m b r a (Gavetas, 1 9 - 3 - 4 7 , fl. 3). A L i s t a d e 1320 j á
a refere c o m o p e r t e n c e n t e à O r d e m de Avis.
211
Santa M a r i a de Ares, Santa M a r i a e São B a r t o l o m e u de O r i o l a e Vila R u i v a de M a l c a b r ã o
n ã o f i g u r a m n a L i s t a d e 1320, e m b o r a c o m a p r e s e n t a ç õ e s r é g i a s e n t r e 1315 e 1317. A i d e n t i f i c a ç ã o
d e A r e s c o m A r ê s s e r i a d i f í c i l , d e v i d o à g r a n d e d i s t â n c i a g e o g r á f i c a e n t r e as i g r e j a s d e M o n t e -
m o r - o - N o v o e e s t a v i l a , m a s s o b r e t u d o p e l o f a c t o d e a i g r e j a d e A r ê s t e r ficado n a O r d e m d o
T e m p l o após o a c o r d o d e 1260 e n t r e o m e s t r e da o r d e m e o b i s p o d e É v o r a . P o r c o n s e g u i n t e ,
t a l v e z a A r e s a p r e s e n t a d a p e l o r e i e m 13 d e A b r i l d e 1315 a o c l é r i g o A f o n s o E a n e s c o r r e s p o n d a à
actual Aires.
212
Gavetas, 10-3-15. T a m b é m a I g r e j a d e S ã o M a m e d e d e É v o r a d e i x a d e i n t e g r a r as listas
d i o n i s i n a s , d e p o i s d e e m 1 2 6 4 figurar n a s d e D . A f o n s o I I I .
213
E x c e p t o a p r i n c i p a l , S a n t a M a r i a , a s s o c i a d a às i g r e j a s d e M o n f o r t e p o r p e r t e n c e r p a r c i a l -
m e n t e à O r d e m de Avis, c o m o já referimos.
214
E m 1261, a i g r e j a d e V i l a N o v a d e O u r i q u e a i n d a e r a r e f e r i d a c o m o « o u t r a i g r e j a a f a z e r
e m M a r a c h i q u e » (Gavetas, 10-3-15).
215
VILAR - As dimensões de um poder. A e s t e i m p o r t a n t e t r a b a l h o , q u e t o r n a É v o r a ( j u n t a m e n -
te c o m Braga) a única diocese portuguesa o b j e c t o d e estudo a p r o f u n d a d o para o p e r í o d o m e d i e -
vai, só t i v e m o s acesso e m fase j á a d i a n t a d a d e e l a b o r a ç ã o d e s t e t e x t o .
216
M o s t e i r o p o b r e e m 1320, u m a v e z q u e a a v a l i a ç ã o o t r i b u t a a p e n a s e m 15 l i b r a s ( c o m p a r e -
-se c o m o u t r o s m o s t e i r o s cistercienses f e m i n i n o s : A r o u c a : 9 0 0 0 ; L o r v ã o : 5000; Celas: 1 0 0 0 li-
b r a s ; O d i v e l a s : 2 0 0 0 ; A l m o s t e r : 1100).
217
A O r d e m d e Avis estava e s t r e i t a m e n t e ligada à O r d e m d e Cister e m P o r t u g a l , através d o
M o s t e i r o d e A l c o b a ç a . M a s t a m b é m e m C a s t e l a - L e ã o a O r d e m d e C a l a t r a v a t i n h a esse f o r t e v í n -
c u l o ( J o s e p h 0'CALLAGHAN - T h e affiliation o f t h e o r d e r o f C a l a t r a v a w i t h t h e o r d e r o f C i t e a u x ,
i n The Spanish military orders of Calatrava and its affiliates, L o n d r e s , 1975 - apud VILAR).
218
Sobre os conflitos entre a O r d e m de Avis e o bispo e cabido de É v o r a relativos a jurisdi-
ç ã o e c l e s i á s t i c a , fisco, e t c . , v e r VILAR - As dimensões de um poder, p . 2 4 5 - 6 8 . O c a p í t u l o s o b r e
« O e s t a b e l e c i m e n t o d a s u n i d a d e s p a r o q u i a i s » (p. 218-243), m o s t r a a l g u m a s d i s c r e p â n c i a s c o m a
L i s t a d e 1320 — p o r e x e m p l o , o p a d r o a d o d e C o r u c h e n o b i s p o e c a b i d o (das t r ê s p a r ó q u i a s ? ) , o
d e E s t r e m o z n a O r d e m d e S a n t i a g o . M a s as c r o n o l o g i a s s ã o d i f e r e n t e s e as t r a n s f e r ê n c i a s e e s -
c a m b o s d e p a d r o a d o s e r a m c o m u n s n a t r a n s i ç ã o d o s é c u l o XIII p a r a o x i v .
219
VILAR — As dimensões de um poder, p . 2 7 6 - 2 8 0 .
220
SA-NOGUEIRA - A c o n s t i t u i ç ã o d o s e n h o r i o f r o n t e i r i ç o , p . 22.
221
VILAR - As dimensões de um poder, p . 2 8 6 - 2 8 7 .
222
VILAR - As dimensões de um poder, p . 2 8 4 . A a u t o r a r e f e r e q u e a i n f l u ê n c i a d e S ã o V i c e n t e
n ã o desapareceria p o r c o m p l e t o n o s e g u i m e n t o desse e s c a m b o .
223
SÁ-NOGUEIRA — O t e s t a m e n t o d e E s t ê v ã o E a n e s .
224
ALONSO - A g o s t i n h o s .
225
BEIRANTE - E r e m í t i s m o .
226
ALMEIDA - História da Igreja, v o l . 1, p . 283.
227
ALMEIDA - História da Igreja, v o l . 4 , p . 9 2 .
228
S a n t a M a r i a d e L a g o s n ã o figura n a lista d a a v a l i a ç ã o d e 1320-1321. N o e n t a n t o , e m 9 d e
J u n h o d e 1293 o c l é r i g o D o m i n g o s P i r e s e r a a p r e s e n t a d o c o m o p r i o r à c o n f i r m a ç ã o d o b i s p o d e
S i l v e s (Gavetas, 19-14-3, fl. 17 v ) .
229
S a n t a M a r i a d e P o r c h e s t a m b é m n ã o figura n a lista d a a v a l i a ç ã o d e 1320-1321. N o e n t a n t o ,
e m 28 d e A b r i l d e 1289 M i g u e l P i r e s , e s c r i v ã o d e L o u l é , e r a a p r e s e n t a d o c o m o p r i o r à c o n f i r m a -
ç ã o d o b i s p o d e S i l v e s (Gavetas, 19-14-3, fl. 9 v ) .
230
S a n t a M a r i a d e P a d e r n e n ã o figura n a lista d a a v a l i a ç ã o d e 1320-1321, m a s s u r g e p o r d u a s
v e z e s n a s listas d o p a d r o a d o r é g i o , c o m a p r e s e n t a ç õ e s e m 1291 e 1292 (Gavetas, 19-14-3, fl. 12 v
e14).
231
RODRIGUES - Colegiadas.

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