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VIVO
NOVA EPOCA
15
Revista a serviço da investigação, elaboração e debate da teoria revolucionária.
O conteúdo dos artigos assinados é de inteira responsabilidade dos seus autores.
São Paulo
Março de 2020
Editora Sundermann Editora Lorca S.A.
Av. Nove de Julho, 925 Rua Conselheiro Carrão, 546
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José Welmowicki
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Marxismo Vivo: Nova Época. N° 15 , março, 2020. São Paulo: Liga Internacional dos
Trabalhadores, 2019.
Semestral
ISSN: 1806-1591
Nota: circulou no período de setembro de 2000 até setembro de 2009 com o título Marxismo Vivo
1. Marxismo – teoria revolucionária
48 Tudo é história
49 Janeiro de 1919: os dez dias que abalaram
a Argentina – Segunda parte
Tito Mainer
80 Debates
81 Lógica marxista e correlação de forças mundial
Gustavo Machado
124 Resenha
125 La guerra contra la triple alianza en debate,
de Ronald Léon Núñez
Alicia Sagra
Aos nossos leitores
No momento em que escrevemos esta apresentação, os jornais e
as emissoras de televisão de todo o mundo anunciavam que os traba-
lhadores e o povo da Colômbia tinham protagonizado uma greve geral
com grandes mobilizações de massas, que continuam após o fim da
greve, no que possivelmente seja um dos três maiores protestos da
história colombiana, junto com o “bogotazo”1 de 1948 e o “Paro Cívico
Nacional”2 de 1977.
Um colaborador colombiano da Marxismo Vivo – Nova Época, ao
nos informar sobre os acontecimentos de seu país, disse: “Esta greve
só é possível graças às lutas no Equador e no Chile.” Ele tem toda razão.
O ano de 2019 foi particularmente rico em grandes insurreições em
diversos países do mundo, como foram as mobilizações pela indepen-
dência na Catalunha, os coletes amarelos na França, os acontecimen-
tos no Sudão, em Hong Kong, no Iraque, no Irã, na Tchecoslováquia... E
esses levantes das massas exploradas e oprimidas chegaram com toda
sua força à América Latina. No Haiti, no Equador e, particularmente,
no Chile, onde, mais do que uma explosão, começou uma revolução, na
qual milhões de trabalhadores e setores populares, entre os quais se
destacam os jovens e, entre eles, especialmente as mulheres, durante
mais de um mês ocupam as ruas de todo o país, lutando contra a re-
pressão, contra o governo, contra a miséria, contra as desigualdades e
em defensa do povo originário, os mapuches.
No Chile, começou uma revolução socialista, mesmo que a maioria
das massas que a protagonizam ainda não tenham consciência do que
estão fazendo. É uma revolução porque o grande protagonista são as
massas, num processo de mobilização muito superior ao que se deu
durante o governo de Allende, na década de 1970, por sua extensão
e duração e pela violência com que enfrentam seus inimigos; e é so-
cialista não só pelos inimigos que enfrentam (o capitalismo nacional
e internacional), mas porque quase nenhuma das reivindicações das
massas pode ser resolvida no marco do capitalismo.
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As massas chilenas estão na ofensiva, e o governo dos capitalistas,
na defensiva. O governo, com sua brutal repressão, com seus assassi-
natos, sequestros, feridos, presos e violações, não conseguiu parar a
mobilização, tampouco com suas reiteradas concessões, pelo menos
até agora.
No entanto, a vitória dessa revolução socialista não é uma tarefa
fácil. A burguesia, nacional e internacional, com suas centenas de anos
de experiência, tem não só as forças repressivas, mas uma grande ex-
periência política para enfrentar os explorados, da qual irá valer-se
para tentar acabar ou desviar essa revolução.
O movimento nas ruas, de caráter revolucionário, pode conseguir
derrotar as forças repressivas, pode libertar os presos, pode inclusi-
ve destituir o governo, mas não poderá satisfazer a reivindicação das
massas até o fim se os trabalhadores e o povo não assumirem o poder;
e, para isso, é necessário que atuem com base num programa e numa
política que só poderão alcançar se durante a revolução se organiza-
rem num partido revolucionário do qual hoje só existem embriões.
A construção da direção revolucionária parece uma tarefa impos-
sível. Porém é necessário entender, pela situação mundial, que o mais
provável é que a revolução, com seus altos e baixos, com suas vitórias
e derrotas, estenda-se por bastante tempo; e também é necessário en-
tender que, durante uma revolução, todos os processos se aceleram.
Essa revolução, como toda revolução, põe sobre a mesa velhos e
novos desafios teóricos, os quais os revolucionários chilenos terão de
enfrentar como condição para a elaboração de uma política revolucio-
nária, sem a qual a construção da direção revolucionária será impos-
sível. Problemas teóricos e políticos que há um mês faziam parte dos
livros surgem hoje com toda força, obrigando os marxistas chilenos a
abordá-los como condição para dar respostas políticas à atual situa-
ção. Por exemplo, durante anos se discutiu qual era o caráter do regime
que existe hoje no Chile. Atualmente, sem responder de forma correta
a essa questão, é impossível elaborar uma política revolucionária. O
mesmo ocorre com a questão da Assembleia Constituinte. A questão
de quem convoca a assembleia, que há um mês era uma questão sem
maior importância, hoje divide águas entre a revolução e a contrarre-
volução.
É obrigação dos revolucionários, dos marxistas de todo o mundo,
cercar de solidariedade a revolução chilena, em particular no que se
refere a superar a principal contradição dessa revolução, que é justa-
mente a construção da direção revolucionária.
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Nossa revista, Marxismo Vivo – Nova Época, que nasceu para aju-
dar a atualizar o programa marxista, assume o compromisso de dar
todo seu apoio aos revolucionários chilenos nesse terreno. Nossas pá-
ginas, a partir do próximo número, abordarão com toda intensidade as
questões programáticas, teóricas e políticas que surgem da revolução
chilena e, como sempre, suas páginas estarão abertas a todos os mar-
xistas que estejam dispostos a se somarem a esse esforço.
Com a publicação deste número, também celebramos a liberdade
de Daniel Ruiz e enviamos um abraço solidário a todos que, em dife-
rentes lugares do planeta, participaram desta campanha. A existência
do processo revolucionário que atinge diferentes países no mundo in-
fluenciou para que a campanha internacional pela liberdade do novo
integrante de nosso conselho editorial tivesse um resultado vitorioso.
Os editores
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Atuali
dade
A gravidade de uma possível nova
recessão mundial
Eduardo Almeida
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A curva longa descendente da economia capitalista
A economia capitalista evolui em ciclos. Existem os ciclos curtos,
em geral de cinco a sete anos, que são determinados por leis (essen-
cialmente a evolução da taxa de lucro).
Existem também os períodos mais longos que incorporam vários
ciclos curtos. Em 1919, Kondratiev1 assinalou a existência de ondas
longas da economia capitalista, em períodos de mais ou menos cin-
quenta anos, com uma parte ascendente e outra descendente. Ele deu
a elas praticamente o mesmo caráter dos ciclos curtos do capitalismo.
Na avaliação de Trotsky (que os chamava de “curvas do desenvolvi-
mento capitalista”), a qual compartilhamos, os ciclos longos não têm
duração pré-determinada nem o automatismo econômico dos ciclos
curtos São determinados por fatores extraeconômicos relacionados à
luta de classes (revoluções, guerras), à expansão (obtenção de novos
territórios) ou à evolução tecnológica...
Compreendemos a situação econômica mundial atual como parte
de uma fase descendente de uma onda longa.
A fase ascendente coincidiu com a “globalização”, começando nas
décadas de 1980 e 1990, com as derrotas do ascenso revolucionário
dos anos 1960-1970 e com a restauração capitalista na China e no Les-
te Europeu.
A fase descendente desse ciclo longo teve como primeiro marco po-
lítico a derrota da ofensiva militar e política de Bush e se expressou
com toda força na crise de 2007-2009. Essa foi a crise mais grave desde
1929 e explicitou a mudança da fase ascendente para a descendente.
Equilíbrios e desequilíbrios...
A onda ascendente da globalização na década de 90 do século
passado foi um ponto de equilíbrio do capitalismo dentro do enten-
dimento de Trotsky. Agora, no momento da onda descendente, pre-
domina o desequilíbrio:
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otra vez, ensanchando, de paso, los límites de su dominio. En la esfera
económica, estas constantes rupturas y restauraciones del equilibrio
toman la forma de crisis y booms. En la esfera de las relaciones entre
clases, la ruptura del equilibrio consiste en huelgas, en lock-outs, en lu-
cha revolucionaria. En la esfera de las relaciones entre estados, la rup-
tura del equilibrio es la guerra, o bien, más solapadamente, la guerra
de las tarifas aduaneras, la guerra económica o bloqueo. El capitalismo
posee entonces un equilibrio dinámico, el cual está siempre en proceso
de ruptura o restauración. Al mismo tiempo, semejante equilibrio posee
gran fuerza de resistencia; la prueba mejor que tenemos de ella es que
aún existe el mundo capitalista.2
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que antes eram os pilares dessa aproximação. Na Ásia, existem dois
tratados em disputa, com e sem a China.
Estão ampliando-se no mundo as reações protecionistas dos gover-
nos, a começar pelo próprio Trump, estendendo-se a governos popu-
listas de direita, como na Itália e em outros países (com populismo de
direita “contra a UE”), de rejeição parcial ao processo de globalização.
A curva descendente provoca desequilíbrios crescentes em aspec-
tos importantes do que foi conhecido como a “globalização”. Está em
xeque a divisão mundial do trabalho inaugurada nos 1980. Existem
regiões inteiras condenadas à decadência. Isso se expressa em impor-
tantes divisões da burguesia e na agudização da luta de classes.
Temos pela frente um período prolongado dessa fase descendente
que vai expressar-se nos ciclos curtos com crescimentos frágeis e cri-
ses fortes.
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Para uma retomada mais vigorosa da economia capitalista seria neces-
sária uma queima maior de capitais.
A segunda especificidade da saída da crise de 2007-2009 foi o pa-
pel da China como uma espécie de motor auxiliar na retomada da eco-
nomia, que tinha nos países imperialistas uma recuperação anêmica.
Como segundo PIB entre os países do mundo e uma taxa de crescimen-
to muito acima de qualquer país imperialista, a China cumpriu esse
papel. Foi também determinante naquele período para o “boom das
commodities” que permitiu um crescimento importante para a Amé-
rica Latina e a Ásia.
Ter isso em conta é importante porque dificilmente poderemos ver a
China cumprindo esse papel caso exista uma nova recessão mundial agora.
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e econômica, incluindo Inglaterra e França. E é o carro-chefe da UE – a
Alemanha – que está freando o conjunto.
O Japão está num crescimento anêmico (o crescimento anuali-
zado do PIB foi de 0,2% no terceiro trimestre 2019) com uma ten-
dência de baixa.
A China segue seu processo de desaceleração com índice de 6,0%
no terceiro trimestre de 2019, o mais baixo em quase trinta anos. É
importante notar que os dados chineses são questionados fortemente
por economistas sérios que apontam maquiagem das estatísticas pela
ditadura de Xi Jinping. Além disso, todo o futuro da economia chinesa
está obviamente ligado à guerra comercial em curso com os EUA.
A economia mundial tem, como sempre teve e mais ainda agora,
uma referência fundamental na situação dos EUA. Até esse momento, a
economia estadunidense vinha crescendo a um ritmo superior ao dos
outros países imperialistas, aproveitando-se de seu controle financei-
ro e parasitário.
No entanto, dois elementos apontam para uma inflexão para baixo
da economia dos EUA. O primeiro é a própria lógica dos ciclos econô-
micos: depois de dez anos da última crise, a tendência é que o auge
atual aponte para um ponto de inflexão para uma queda. O segundo
tem a ver com os últimos dados, que apontam uma queda real na taxa
de lucro (antes mascaradas pela redução dos impostos de Trump) e
agora queda nas encomendas de bens duráveis de 2,1% em abril deste
ano3. A desaceleração pode ser explicitada na evolução do PIB (3,1%
no primeiro trimestre; 2,1% no segundo; 1,9% no terceiro).
Além disso, existe uma queda já definida da economia de países
emergentes como Brasil (queda de 0,1% do PIB no primeiro trimes-
tre), Argentina, Turquia e África do Sul. O único país dos BRICs com
crescimento importante (acima de 6%) continua sendo a Índia, em-
bora também esteja desacelerando desde os últimos meses de 2018.
Essa realidade está levando à possibilidade de uma nova recessão
mundial em um ou dois anos.
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Na verdade, a burguesia imperialista está tentando recompor sua taxa
de lucro de tal maneira que possa evitar uma nova recessão e inclusive
possibilitar uma nova curva ascendente do capitalismo. Para que o impe-
rialismo retome um novo ciclo ascendente, necessita impor derrotas qua-
litativas ao proletariado mundial para recompor sua taxa de lucro.
O imperialismo está buscando as condições para uma nova fase
ascendente, transferindo somas inéditas dos Estados para as grandes
empresas e impondo planos de austeridade duríssimos numa guer-
ra social contra os trabalhadores para recompor sua taxa de lucro. É
também preciso redefinir uma nova divisão mundial do trabalho, as-
sim como novos setores produtivos que permitam pôr em marcha um
novo grande ciclo de investimentos em escala mundial.
É um fato que a burguesia está tentando pôr em prática essa recom-
posição com esses mecanismos que chamamos de contratendências.
A primeira contratendência é a aplicação de planos cada vez mais
duros para ampliar a taxa de mais-valia e recompor sua taxa de lucro.
É importante observar que, na maioria dos casos, a burguesia conta
com o apoio aberto ou não das burocracias sindicais e dos partidos
reformistas e consegue impor seus planos. Como já dissemos, as con-
sequências sociais incluem a existência já de elementos de barbárie
em muitos países do mundo.
A segunda é o acesso a novas tecnologias que possam ser incor-
poradas à produção. Existem sinais de que isso possa ocorrer com a
incorporação das redes 5G, da “internet das coisas”4, dos carros elé-
tricos e outros avanços. Pode ser que a burguesia esteja tocando pos-
sibilidades reais de avanços na produção. Fala-se que com as redes
5G seria possível reduzir fortemente a mão de obra de vários setores
da economia.
A terceira contratendência implica em mudanças na divisão mun-
dial do trabalho e no sistema de Estados. A transformação de países
imperialistas em semicoloniais, como Portugal e Grécia, e o rebaixa-
mento de países como Brasil, Argentina, África do Sul e outros na divi-
são mundial do trabalho é parte disso. Ou seja, podemos estar frente a
retrocessos qualitativos da localização de países na divisão mundial do
trabalho e a uma queima de capitais de maior peso. Isso está determi-
nando a decadência econômica de países e regiões inteiras.
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É importante ter em conta que nas últimas vezes em que o
imperialismo conseguiu reverter uma curva descendente para uma
nova ascendente foram momentos de grandes mudanças, como o
advento do imperialismo no final do século 19 e início do 20, o período
depois da Segunda Guerra Mundial, com todo o processo de reconstru-
ção da Europa, e o momento pós-restauração do capitalismo no Les-
te Europeu e na China. Como não existe na realidade perspectivas de
nova guerra mundial nem de incorporação de novos territórios como
se deu na restauração do capitalismo no Leste, os mecanismos para
uma recuperação do capital se reduzem a ataques ainda mais duros ao
proletariado e aos países colonizados e semicolonizados.
Até agora, apesar de todos os esforços do imperialismo, a economia
mundial não dá mostras de superação da crise aberta em 2007-2009.
Não existe uma recuperação da taxa de lucro que possibilite uma am-
pliação qualitativa dos investimentos. Isso determina a continuidade
da crise.
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vira para baixo podem ampliar qualitativamente o agravamento da
crise, como ocorreu com a bolha financeira imobiliária nos EUA em
2007-2009.
Hoje existem bolhas financeiras muito maiores que em 2007-2009.
As consequências dessa realidade nesse momento são graves. Uma
nova recessão mundial pode detonar várias dessas grandes bolhas,
aprofundando a crise em direção a uma nova depressão. E o recurso
usado nesses últimos dez anos – repassar grandes somas aos bancos
para frear a crise – já dá sinais evidentes de esgotamento.
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nesse terreno. Trump conta com o apoio do imperialismo europeu e
do Japão para isso.
Mas nada assegura que o imperialismo conseguirá impor esse re-
cuo da China. Xi Jinping acaba de visitar Putin e, como parte disso, a
Huawei fechou um acordo com a MTS – empresa russa de comunicações
– para fazer avançar o desenvolvimento tecnológico e a implantação das
redes 5G. Até esse momento, o governo chinês não deu sinais de aceita-
ção da abertura do mercado financeiro. Como vimos, a China já vem bai-
xando seus índices de crescimento, chegando aos 6%. Agora está sendo
mais atingida pela guerra comercial, podendo baixar ainda mais.
A guerra comercial tampouco se restringe à disputa entre EUA e
China. Existem enfrentamentos importantes entre EUA e União Euro-
peia. Continuam os enfrentamentos entre Trump e Merkel sobre a UE,
como no caso do Brexit. A postura protecionista de Trump coloca em
questão fluxos comerciais importantes e a própria existência da OMC.
A ruptura do acordo com o Irã sobre controle de armas nucleares e
com o acordo de Paris aumentam as divergências interimperialistas.
A realidade é que já não existe a grande unidade burguesa que mar-
cou o ascenso da fase ascendente da globalização. O protecionismo
está crescendo, a partir do próprio centro imperialista mais importan-
te, os EUA. Mas não só dos EUA. As disputas interburguesas já tiveram
consequências na queda do crescimento do comércio mundial, que
baixou de 5,1%, em 2017, a uma previsão de 2,1% em 2019.
Além disso, essa guerra comercial está levando a um desgaste
também político em suas pontas mais importantes. Pode prejudicar
Trump em sua tentativa de reeleição em 2020, caso se concretize uma
recessão nos EUA. E pode precipitar uma crise na ditadura chinesa,
caso gere um ascenso importante do movimento operário no país. A
guerra comercial pode agravar uma possível recessão mundial. Na opi-
nião de Michael Roberts, pode ser também o estopim dessa recessão.
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países de maior peso econômico no cenário mundial como algum dos
países imperialistas ou ainda Índia e China.
É importante recordar os reflexos na luta de classes na última curva
descendente da economia capitalista nas décadas de 60-70 do século
passado. Ocorreram grandes convulsões da luta de classes, com pro-
cessos revolucionários e golpes militares contrarrevolucionários em
várias regiões do mundo.
Foi o período em que ocorreram o Maio de 68 na França, a revo-
lução portuguesa de 1974-1975, a vitória da revolução vietnamita
em 1974. Houve grandes ascensos em vários países do mundo. Agora
novamente existe uma tendência à polarização da luta de classes que
pressupõe um enfrentamento entre revolução e contrarrevolução de
forma mais dura e por vezes violenta.
A existência de processos revolucionários não significa que vão
ocorrer revoluções vitoriosas. A crise de direção revolucionária no fim
das contas pode decidir a resolução dessas crises. Podem ocorrer revo-
luções e contrarrevoluções, ascensos e golpes bonapartistas.
O que está ocorrendo no mundo hoje já sinaliza esse processo. No
momento em que escrevemos este texto, existe uma revolução em
curso no Chile, já com mais de um mês de enfrentamentos duríssimos
apesar da repressão do governo Piñera. Ocorreu uma insurreição no
Equador, que combinou a ocupação de Quito pelos indígenas por doze
dias, uma greve geral por cinco dias, um levante dos bairros populares
da capital e o bloqueio das principais estradas do país pelos campo-
neses. No Haiti, existe uma sublevação das massas pela derrubada do
governo Moïse há mais de dois meses.
Em Hong Kong, as mobilizações questionam diretamente o gover-
no de Carrie Lam, mesmo depois da retirada do decreto sobre extra-
dições que motivou o início das lutas. O problema é que o destino do
processo de Hong Kong está diretamente relacionado à evolução da
situação política da China, da qual o território oficialmente faz parte
hoje. O regime autoritário em Hong Kong é apoiado diretamente pela
burguesia local e pela ditadura chinesa.
Existe um levante no Líbano que questiona diretamente o governo
e o regime de unidade nacional, do qual participa o Hezbollah. Outra
sublevação se dá no Iraque contra o regime xiita. No Irã, crescem fortes
lutas contra o aumento dos combustíveis.
O golpe contrarrevolucionário ocorrido na Bolívia é parte do
mesmo processo convulsivo de enfrentamentos entre revolução e
contrarrevolução.
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Quando este artigo estiver sendo lido, provavelmente novos
processos terão assumido a importância desses descritos. Esse ele-
mento da realidade política, a nosso ver mal avaliado pela maioria
dos economistas marxistas, é o decisivo para apontar a dinâmica da
economia mundial.
A enorme instabilidade causada por crises políticas e ascensos re-
volucionários afeta diretamente a disposição do grande capital para
investir. Isso pode precipitar ou agravar a crise econômica. Por outro
lado, se a burguesia conseguir derrotar esses processos, terá mais con-
dições para impor seus planos e escapar da crise.
Essas grandes lutas são sintomas da crise aberta em 2007-2009.
E, por outro lado, são também decisivas para a evolução da economia.
Como se trata de uma luta, a resultante segue em aberto. A evolução
da luta de classes vai ter importância decisiva no desenvolvimento da
crise econômica.
20
Um estudo sobre a classe
trabalhadora chinesa
Alejandro Iturbe
O proletariado chinês
O primeiro elemento é a dimensão colossal da classe trabalhadora
chinesa e, dentro dela, do gigantesco proletariado industrial. A China tem
uma população de pouco menos de 1.400 bilhão de pessoas. Foi um país
de composição essencialmente agrária: inclusive, em 1980, só 20% da
população era urbana. Porém o processo acelerado de industrialização
e urbanização das últimas décadas fizeram com que em 2010 a metade
da população vivesse nas cidades1. Seguramente, hoje é um pouco mais.
Nesse marco, em 2013, o Departamento de Estatísticas do Ministério de
Recursos Humanos e Seguridade Social (MOHRSS) estimava uma “força
de trabalho de 937 milhões de pessoas”2. Calculava-se o desemprego em
1 Historias de China. “La sociedad china en datos”, por Javier Telletxea Gago, feve-
reiro de 2017. Disponível em: https://www.historiasdechina.com/2017/02/19/
la-sociedad-china-en-datos/
2 BBC News Mundo. “China, la ‘fabrica del mundo’ necesita mano de obra”, janeiro
de 2013. Disponível em: https://www.bbc.com/mundo/noticias/2013/01/130129_
china_trabajadores_mj
21
4,1% (pouco mais que 38 milhões de pessoas), o que nos dá um saldo
líquido de cerca de 900 milhões.
Nesse número, estão incluídos tanto os assalariados quanto os
proprietários (ou os camponeses que trabalham uma terra). Um
informe de 2015 indica que, nas atividades primárias (agricultura,
pecuária e pesca, principalmente por conta própria), trabalhavam
pouco mais de 28% da população ativa, ou seja, pouco mais de 250
milhões de pessoas3. Outro material se refere a “300 milhões de agri-
cultores”4. Vamos usar o primeiro número, obtido de estatísticas ofi-
ciais. O mesmo estudo citado no início informa 19,3% de “proprie-
tários urbanos” (abrangendo burgueses e pequenos proprietários),
isto é, pouco menos de 174 milhões de pessoas.
Na China há, então, cerca de 500 milhões de assalariados. Dentro des-
se total, o estudo informa que 29,3% da força de trabalho total está na
“indústria, construção e energia”. Isso significa que falamos de um prole-
tariado industrial de mais de 260 milhões de pessoas (isso abrange a in-
dústria privada e as empresas do Estado – nacionais, provinciais e munici-
pais – com atividades industriais, de construção e de produção de energia).
Essa quantidade tem um impacto ainda maior se considerarmos que em
2008 o conjunto dos países da OCDE tinha 131 milhões, e o Brasil (com
dados mais recentes), cerca de 20 milhões. O resto dos assalariados (en-
tre 230 e 240 milhões) pertencem a distintos ramos do setor de serviços
(“funcionários e empregados urbanos” públicos e privados). Estamos
falando da maior classe trabalhadora e do maior proletariado industrial
do planeta.
Localização geográfica
É evidente que uma classe trabalhadora e um proletariado industrial
desse tamanho não podem ser homogêneos e apresentam profundas
desigualdades em suas características de idade, salário, nível de
formação, tendências de consumo, nível de organização e de luta etc.
O maior setor do proletariado industrial e os trabalhadores de ser-
viços vivem e trabalham nas grandes cidades da costa e da faixa vizi-
nha. No entanto, também são numerosos nas cidades menores do inte-
rior. Em alguns casos, por meio de empresas provinciais e municipais.
3 Historias de China. “La sociedad china en datos”, por Javier Telletxea Gago, feve-
reiro de 2017. Disponível em: https://www.historiasdechina.com/2017/02/19/
la-sociedad-china-en-datos/
4 Banco Mundial. Disponível em: https://datos.bancomundial.org/indicador/
sl.agr.empl.zs
22
Em outros, porque várias empresas industriais privadas começaram a
transferir-se para o interior em busca de salários menores (como vere-
mos, o salário mínimo obrigatório varia muito de acordo com as regiões)
e de um proletariado mais “dócil” que o apresentado nas grandes cida-
des. Foi o caso da Foxconn (que transferiu parte de sua produção para
o interior depois dos casos de suicídio de vários trabalhadores) ou da
Yantai Hangzhi International (fábrica de lâmpadas de led)5. Esse proces-
so de transferência é incentivado pelo próprio governo desde 2000, mas
se acelerou desde 2010.
Aqui é necessário nos referirmos brevemente ao houkou (o passa-
porte interno requerido para se mudar do interior para as cidades da
costa e que determina o acesso à moradia, à saúde e à educação. Nes-
se sentido, começam a haver mudanças: “Antes os trabalhadores não
tinham muitas opções, salvo a migração. Faziam por necessidade, mas
eram muito discriminados, tanto com relação à moradia quanto com re-
lação à saúde e à educação de seus filhos. […] A migração continua sen-
do muito grande, mas agora muita gente prefere ficar em seu lugar de
origem, onde as fábricas pagam menos, mas há mais benefícios sociais”,
analiza Shueji Yao, um acadêmico chinês radicado na Grã-Bretanha6. Por
conta da combinação entre as empresas provinciais e municipais e da
nova localização de empresas privadas, inclusive em cidades menores
do interior, há milhares de trabalhadores e de operários industriais.
Elementos de diferenciação
Um primeiro elemento de diferenciação a se considerar é que o
salário mínimo obrigatório é diferenciado não só de acordo com as
províncias, mas também nas próprias cidades e regiões de uma pro-
víncia. Um leque que vai desde 1.150 yuanes na província de Anhui
(US$ 166,40) até 2.120 em Beijing e 2.420 em Xangai (US$ 306,80 e
US$ 350,20 respectivamente)7.8
5 BBC News Mundo. “China, la ‘fabrica del mundo’ necesita mano de obra”, janeiro
de 2013. Disponível em: https://www.bbc.com/mundo/noticias/2013/01/130129_
china_trabajadores_mj
6 Idem.
7 Usaremos yuan como moeda, ainda que, internamente, seja utilizado o ren-
minbi, de valor equivalente, mas não convesível.
8 China Briefing. “Salarios mínimos en China 2018-19”, dezembro de 2018.
Disponível em: https://www.china-briefing.com/news/salarios-minimos-en-chi-
na-2018-19/
23
Um segundo elemento é a migração do interior para as grandes cida-
des da costa e o houkou requerido para isso. Estima-se que esse proces-
so envolveu cerca de 250 milhões de pessoas que, como vimos, sofrem
discriminação não só nos temas de moradia, saúde e educação, mas
também na qualidade do emprego que conseguem, já que muitos mu-
nicípios privilegiam na contratação os “bons trabalhos” aos jovens re-
sidentes locais e “estimulam” as grandes empresas a fazerem o mesmo.
Um estudo concentrado em cinco plantas da indústria automotiva
informa que
Eles [os trabalhadores migrantes] se sentem discriminados por lhe serem atri-
buídas tarefas difíceis e pesadas, por fazerem o mesmo trabalho que os tra-
balhadores regulares por salários menores e menos benefícios e por serem
negadas a eles as mesmas oportunidades de treinamento e aprendizado, com
poucas chances de ascender na carreira e sem segurança no emprego.9
9 CHEN, Vincent; CHAN, Anita; “Regular and Agency Workers: Attitudes and re-
sistance in chinese auto joint ventures”. Em: Revista China Quarterly, nº 224, março
de 2018. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/322520102_
Yiu_Por_Vincent_Chen_and_Anita_Chan_Regular_and_Agency_Workers_Attitudes_
and_Resistance_in_Chinese_Auto_Joint_Ventures_China_Quarterly_March_2018_
no_224 (Tradução nossa)
10 Trabalhadores de agência são trabalhadores precarizados, terceirizados,
cujo contrato de trabalho não é feito direto com a empresa, mas com agências.
24
de associação e colaboração, as agências de emprego eram de fato sub-
sidiárias das empresas que as contratavam.11
Consideremos também a questão de gênero: as mulheres represen-
tam 50% da força de trabalho chinesa. Além de sua tradicional presen-
ça em setores como educação, saúde e outros serviços, sua presença
é majoritária em indústrias que requerem trabalhos de precisão em
tamanhos pequenos, como a montagem de celulares e computadores
(por exemplo, a Foxconn). Considerando-se em nível global, existe uma
“brecha de gênero” desfavorável calculada, em 2018, em 0,673 (zero
é a melhor pontuação; 1, a pior). Esse índice mede o tamanho de tal
desigualdade de gênero na participação na economia e no mundo do
trabalho qualificado, no aceso à educação etc. A China se encontra na
103ª posição entre 143 países estudados12.
Se nos referirmos especificamente à “lacuna salarial”, um estudo de
2012 indicava que as mulheres recebiam, em média, 67,3% do salá-
rio dos homens nas cidades e 56% nas zonas rurais. Embora o salário
das mulheres tenda a aumentar em valores absolutos, isso se dá num
ritmo menor que o dos homens, e a diferença agora é maior que há 20
anos13. A escritora Lijia Zang (focada em histórias do mundo do traba-
lho e da realidade feminina) expressou: “As reformas capitalistas que a
China introduziu em 1978, que trouxeram um crescimento econômico
enorme para o país, significaram uma expansão da desigualdade para
as mulheres.”14
Outro elemento a ser considerado é o crescente emprego (em espe-
cial nas cidades do interior) de estudantes de escolas técnicas (sujeitos
a contratos trabalhistas especiais e com menores salários). Por exem-
plo, cerca de 3% dos trabalhadores da Foxconn provêm desse sistema,
e também os 19 mil trabalhadores da nova planta da Yantai Hangzhi
no interior. Em 2017, segundo o Ministério da Educação da China, “o
número total de estudantes que trabalham como interinos ronda os
oito milhões”.
11 Idem.
12 Datos Macro. “China – Índice Global de la Brecha de Género”, 2018. Dispo-
nível em: https://datosmacro.expansion.com/demografia/indice-brecha-genero-
-global/china
13 Chinosfera. “El salario de hombres y mujeres en China”. Disponível em:
http://www.chinoesfera.com/inxianzai.php?id=65
14 “La apertura de China al capitalismo trajo más desigualdad para las mujeres”,
por Alba Moraleda. Disponível em: https://elpais.com/elpais/2019/05/27/muje-
res/1558971805_964715.html
25
Níveis salariais
O salário mínimo obrigatório (determinado pelos governos cen-
tral, provinciais e municipais) é a referência definida de um “piso
salarial” para os trabalhadores e operários chineses. Como vimos,
esse salário oscila entre 1.150 yuanes (US$ 166,40), em alguns mu-
nicípios da província de Anhui, e 2.420 (US$ 350,20) em Xangai.
Em muitas empresas estatais e nas grandes empresas privadas,
são agregados outros benefícios (em dinheiro ou em serviços), mas
para muitos trabalhadores das empresas estatais das províncias
mais pobres ou de muitas fábricas médias e pequenas é “o salário”
sem adições ou outros benefícios.
Em valores nominais, o salário mínimo vem aumentando de modo
constante, já que os diferentes “planos quinquenais” implementados
pelo governo determinaram aumentos anuais que oscilam entre 6% e
10% (ou mais, no plano 2011-2015). Em quase todos os casos, ficaram
acima da inflação (de 1% ou 2% ao ano, com picos de 6% em 2008 e
2011; 3,5% em 2017; 2,5 em 2018; estimada em 3% para 2019). No
entanto, a inflação dos alimentos foi muito maior, os quais representam
46% dos gastos das famílias urbanas de baixa renda (com picos de
10% em 2004; 13% em 2007; 14% em 2008 e 12% em 2011).
Por isso, nos últimos 15 anos, o salário mínimo nominal duplicou,
mas o aumento real do poder aquisitivo dos trabalhadores foi muito
menor, especialmente para aqueles trabalhadores que só têm essa ren-
da. De toda forma, tanto o salário mínimo quanto o salário médio dos
trabalhadores chineses vêm aumentando de modo quase constante,
calculado em dólares. Algumas informações falam de uma média sala-
rial nacional de US$ 880. Creio que, na verdade, não se trata da média
(soma dos salários dividido pelo total de trabalhadores), mas de uma
média [por amostragem] (uma amostra por categoria, dividido pelo
número de amostras).
Vejamos uma análise mais específica. Num estudo de 2017, o sa-
lário médio dos trabalhadores urbanos das empresas estatais se en-
contrava em US$ 11.670 ao ano (US$ 972,50 ao mês); das indústrias
de tecnologia, US$ 11.054,20 (US$ 921,18 ao mês); das indústrias de
menor valor agregado, US$ 9.121, 20 (US$ 760,10 ao mês); de ser-
viços financeiros, US$ 8.208,60 (US$ 684,05 ao mês); outros servi-
ços, US$ 7.183,80 (US$ 598,65). É interessante destacar que, enquanto
o salário nominal dos trabalhadores das empresas estatais cresceu
10% sobre o de 2016, o dos trabalhadores de serviços cresceu apenas
26
6,8%15. Alguns setores, como os operadores de gruas portuárias, podem
chegar a um salário mensal de US$ 1.258 (com muitas horas extras).
O aumento do valor do salário dos trabalhadores chineses em dóla-
res fez com que o país perdesse “competitividade” frente a outros países
da Ásia e com que algumas indústrias de baixa tecnologia (como têxtil,
confecção e calçados) transferissem seus investimentos a países de salá-
rios menores. Numa análise comparativa, hoje o trabalho industrial chi-
nês tem um custo maior que o de Bangladesh (US$ 38), Paquistão (US$
98), Vietnã (US$ 112) e, inclusive, Malásia (US$ 234). Também fez com
que a média do salário industrial dos trabalhadores chineses superasse
a de países como Brasil, México e Argentina16.
As montadoras
Voltemos agora ao estudo das cinco montadoras que já citamos,
realizado nas seguintes plantas: Guangzhou Toyota (GZ-TY), Shan-
ghai General Motors (SH-GM), Shanghai Volkswagen (SH-VW), Tianjin
Toyota (TJ-TY) e Yantai General Motors (YT-GM)17. Pela legislação chi-
nesa, trata-se de joint ventures (50/50) entre as empresas estrangeiras
e fabricantes chineses. Os sócios estrangeiros são responsáveis pela
tecnologia e pela produção, e os chineses pela administração e pelo
pessoal. São fábricas modernas, com 3.000 a 5.000 trabalhadores. Fo-
ram feitas cerca de 500 entrevistas no total (fora das fábricas); metade
era pessoal “regular” e a outra metade, pessoal de agência.
O salário total desses trabalhadores é composto de duas partes: o
salário básico (que, em média, duplica o mínimo legal, mas inclui o pa-
gamento das horas extras) e uma série de adicionais fixos. No total, os
trabalhadores regulares recebem, ao mês, de 3.648 yuanes (US$ 547),
na Toyota, a 6.144 yuanes (US$ 921), na GM Yantai. Os trabalhadores
de agência recebem de 2.851 (US$ 428), na Toyota, a 4.854 yuanes
(US$ 728), na GM-YT. A isso, deve somar-se um abono (que não é obri-
gatório, mas definido pela empresa) relacionado aos lucros da planta
(pode ser pago por ano ou dividido em cotas): em média, oscila entre
15 Diario del Pueblo. “El salario promedio de los empleados urbanos de Chi-
na llega a los 11.000 en 2017”, El Pueblo en Línea, maio de 2018. Disponível em:
http://spanish.peopledaily.com.cn/n3/2018/0517/c31620-9461115.html
16 El Cronista. “Los salarios en China superan a los de Brasil Argentina y Méxi-
co”, por Steve Johnson, fevereiro de 2017. Disponível em: https://www.cronista.
com/financialtimes/Los-salarios-en-China-superan-a-los-de-Brasil-Argentina-y-
-Mexico-20170228-0016.html
17 Ver nota 9.
27
três e quatro salários básicos por ano (varia entre empresas e entre
trabalhadores regulares e de agência).
18 El Financiero. “Planta de Huawei en China: 3,100 celulares por hora y mejor
salario que en México”, por Isaid Mera, outubro de 2017. Disponível em: https://
www.elfinanciero.com.mx/tech/100-celulares-por-hora-y-mejor-salario-que-en-
-mexico
28
suicídio de cerca de vinte trabalhadores. Isso gerou um escândalo in-
ternacional e uma investigação por parte da Apple e obrigou a Foxconn
a aumentar os salários e melhorar um pouco as condições de trabalho.
Ao mesmo tempo, como vimos, iniciou a transferência de algumas li-
nhas de produção para cidades do interior19.
Essa situação da Foxconn se reproduz nas fábricas provedoras da
cadeia de insumos ou em fabricantes de produtos de menor valor agre-
gado (em muitos casos, nem sequer são pagas as horas extras como
tais). Numa entrevista realizada no final de 2018, Pak Kin Wan, mem-
bro da Organização Não Governamental Labour Service and Education
Network (LESN), com base em Hong Kong, que se dedica a supervi-
sionar as condições de trabalho das grandes fábricas na China, disse
que as condições melhoraram nas multinacionais, mas nas fábricas de
propriedade de burgueses chineses, “sobretudo nas empresas do setor
tecnológico e eletrônico, as jornadas podem chegar facilmente às 12
horas ao dia, seis dias por semana. É duríssimo […]. Um dos abusos
que teve mais eco nos meios de comunicação são as horas extras não
pagas”20. Não é por acaso que a expressão “12.6” se popularizou na
China como critério e sistema de trabalho.
29
que “o empregador deve obter autorização das autoridades competen-
tes antes de adotar o sistema flexível de horas de trabalho”.
Existe também um contrato de trabalho de tempo parcial: não mais
que quatro horas diárias e 24 horas semanais na média. Finalmente,
como vimos, está o trabalho do setor de estudantes de escolas técni-
cas ao qual nos referimos, mas tanto a jornada de trabalho quanto a
remuneração não estão definidas por essa lei, mas por disposições do
Ministério da Educação.
30
primeiras informações indicariam que o governo chinês está avançan-
do por esse caminho. Vejamos mais de perto alguns desses setores.
23 Les Echos. “La Chine intensifie sa lutte contre les surcapacités”, agosto de
2016. Disponível em: https://www.lesechos.fr/2016/08/la-chine-intensifie-sa-
-lutte-contre-les-surcapacites-213616
31
edifícios residenciais, como a CCCC (China Communications Construc-
tion Co.) e as que atuam em outras áreas, como a CRG (China Railway
Group), que se expandiu do setor ferroviário para grandes obras de
infraestrutura (como portos e aeroportos) e assessoria de projetos.
Grande parte dessas empresas (estatais ou privadas) desenvolveram
projetos também no exterior.
No caso das estatais, é necessário considerar outros setores de
peso, como a produção de petróleo (concentrada em grandes empre-
sas como CNPC, CNOOC e SINOPEC); a petroquímica, que combina a
existência de muitas pequenas fábricas de fertilizantes nitrogenados
no interior (que utilizam uma técnica de produção desenvolvida no
país) com plantas maiores e mais modernas de fibras sintéticas, plás-
ticos e produtos farmacêuticos em Pequim, Xangai, Lanzhou, Shengli,
Yueyang, Anqing e Cantão (com uma tendência crescente a empresas
joint venture com capitais de Taiwan, Japão e outros países); a indústria
de alumínio (centralizada pela estatal Aluminum Corporation of China
Limited), que abarca desde a mineração de bauxita até a produção fi-
nal de itens destinados à construção, eletricidade, eletrônica, transpor-
te e embalagens); a indústria naval, setor no qual a China é o primeiro
produtor de navios do mundo. A atividade naval é centralizada pela
CSSC (China State Shipbuilding Corporation)24.
Um setor público em rápida expansão é o do transporte ferroviário
de passageiros e de carga, centralizado pela China Railway Corpora-
tion, e de metrôs nas grandes cidades (atualmente 27 cidades do país
contam com esse meio), com empresas que dependem das respecti-
vas municipalidades. Esse crescimento se apoia numa sólida indústria
ferroviária própria. Agreguemos, por fim, os trabalhadores portuários
e dos transportes em geral, atividade centralizada pelo Ministério do
Transporte da República Popular da China, do qual participam não só
várias empresas do Estado, mas também empresas privadas e autôno-
mos (caminhoneiros). É interessante agregar que a China já superou
os Estados Unidos como principal nação marítima do mundo25.
Fica pendente um estudo mais detalhado sobre a quantidade de
trabalhadores em cada setor do Estado. Como dados globais, um estu-
32
do realizado entre 2003 e 2004 estimava que existiam “aproximada-
mente 350 mil empresas estatais... que representam 28% da produção
chinesa frente a 75% no final dos anos 1970, mas que empregavam
44% dos trabalhadores nas zonas urbanas”26.
26 GILES, John; PARK, Albert; FANG Cai. “How has Economic Restructuring
Affected China’s Urban Workers?” Em: The China Quarterly, novembro de 2004.
Disponível em: http://www.albertfpark.com/uploads/8/1/8/2/81828236/res-
tructure.pdf
33
promissos, são mais baratos, mais ‘exploráveis’ e mais rentáveis a
médio e longo prazo”, analisa um artigo sobre esse tema27.
Outro elemento importante que surge do informe sobre a indústria
automotiva é que todos os trabalhadores têm, no mínimo, 12 anos de
estudo [ensino médio completo] e muitos têm dois anos adicionais de
estudo técnico. Tomada de conjunto, a classe trabalhadora chinesa tem
um nível de formação crescente: em 2016, estimava-se uma média na-
cional de analfabetismo de 5,42%. Os índices são piores, é óbvio, nas
regiões mais isoladas, como Tibete, ou de economia rural, mas dimi-
nuem nas províncias e cidades da costa. Além disso, nas indústrias de
maior valor agregado, o ensino médio é um requisito para ingressar;
atualmente, há cerca de 90 milhões de pessoas com título universitário
e outras tantas com outro tipo de formação superior (professores ou
com formação profissional). O total nos dá mais de 13% de chineses
com educação superior28.
Isso corrobora o que apontamos no artigo de 2015:
27 Xataka. “En China si tienes más de 30 años no puedes trabajar en empresas
tecnológicas: cuando la discriminación por edad es legal”, por Raúl Álvarez, maio
de 2018. Disponível em: https://www.xataka.com.co/otros/en-china-si-tienes-
-mas-de-30-anos-no-puedes-trabajar-en-empresas-tecnologicas-cuando-la-dis-
criminacion-por-edad-es-legal
28 Historias de China. “La sociedad china en datos”, por Javier Telletxea Gago, fe-
vereiro de 2017. Disponível em: https://www.historiasdechina.com/2017/02/19/
la-sociedad-china-en-datos/
29 Liga Internacional dos Trabalhadores – Quarta Internacional. “Certezas
e interrogantes que plantea la crisis económica en China”, por Alejandro Iturbe,
outubro de 2015. Disponível em: https://litci.org/es/menu/mundo/asia/china/
certezas-e-interrogantes-que-plantea-la-crisis-economica-en-china/
34
trabalho piores, como os das indústrias de vestuário, de utensílios de
cozinha ou de joias. No caso da indústria automotiva, são as produto-
ras de autopeças que têm as condições salariais e trabalhistas inferio-
res às das montadoras.
Dentro da indústria privada, outra grande linha divisora continua
sendo o houkou, o qual já analisamos.
Nota: Os valores estão em renminbi sem sua conversão para dólar em cada ano. De
toda forma, mostram o aumento ao qual nos referimos.30
35
das do fator trabalho representavam cerca de 50% do PIB, em 2007
eram de 43%.”
Por outro lado, na realidade não houve aumento de possibilidades de
consumo para alguns setores porque o aumento nominal foi devorado
pela inflação dos alimentos, a moradia, a saúde e, como veremos, a ajuda
aos pais idosos. Em outros casos, nos quais existe sim [o aumento], os
trabalhadores optam por poupar esse dinheiro e não gastá-lo: o índice
de renda mensal destinado à poupança passou de 24%, em 2004, para
30% em 2014. Segundo o trabalho já citado, isso reflete “uma persisten-
te falta de confiança na rede de seguridade social”, tanto no que se refere
aos seguros por doença quanto a demissões e aposentadoria.
Isso nos leva a analisar o sistema de aposentadoria chinês e sua
cobertura limitada. Atualmente, o sistema oficial de pensões cobre
apenas 40% da população (contribuintes), com uma participação
majoritária dos empregados do Estado. A cobertura para o setor pri-
vado é muito débil. Por isso, os trabalhadores desse setor “preferem
privar-se de bens que melhorariam suas condições de vida para ter um
nível de tranquilidade e segurança maior”. O governo chinês tem um
plano de estender a cobertura do sistema de aposentadorias, mas isso
é, por ora, “música do futuro”.
Essa tendência majoritária se combina com outra minoritária de
setores da população que de fato aumentam seu consumo de bens
duráveis e que, muito possivelmente, já inclui algumas camadas mais
altas e privilegiadas da classe operária. Um informe de 2012 indicava
que mais de 300 milhões de chineses pertenciam à “classe média”, de-
finida não com critérios marxistas, mas como “aquelas famílias com
uma renda anual entre US$ 10.000 e US$ 60.000”31.
Em 2012, essa quantidade de pessoas representava quase 24% da
população do país e cerca de 48% da população urbana (embora nem
todos estivessem nas cidades). Vimos que uma parte dos integrantes
dessa faixa de renda opta por consumir menos e economizar. Porém
outra parte começa, de fato, a inclinar-se ao consumo, em especial os
mais jovens, em itens como produtos eletrônicos, cuidados de saúde e
beleza, academias e viagens.
Também se expressou num aumento da venda de carros. Em 2010,
foram vendidos no país 18 milhões de veículos. O número continuou
crescendo até 2017, quando chegou a 29 milhões (desse total, cerca
31 CNN Money. “China’s growing middle class”, por Tami Luhby, abril de 2012.
Disponível em: https://money.cnn.com/2012/04/25/news/economy/china-mid-
dle-class/
36
de 90% foram carros). Em 2018, houve uma queda de 11,41% (como
resultado da desaceleração da economia) e a venda caiu a menos de
26 milhões.
Mesmo com essa queda, a China é hoje o principal mercado de car-
ros do mundo. Porém é necessário localizar a real dimensão desses nú-
meros: no ano de maiores vendas, representavam 22 carros vendidos a
cada 1.000 habitantes. É uma proporção superior apenas à do Brasil em
2012, ano de pico de vendas (18 a cada 1.000), enquanto a China é um
país com uma quantidade muito menor de veículos acumulados. Existe
um setor que variou seus hábitos de consumo, mas a maioria da classe
operária chinesa continua andando de trem, metrô, ônibus, motocicle-
tas (em 2016, foram vendidas 17 milhões) e a tradicional bicicleta.
Então, um primeiro fator que impulsionou a onda de greves dos anos
anteriores foi resumido pelo já citado Pak Kin Wan: “Muitos empregados
de fábrica na China não veem sua vida com um futuro além da linha de
montagem.”32. Um segundo fator, ao qual também nos referimos, é o fe-
chamento das empresas siderúrgicas e carboníferas menos produtivas.
Os sindicatos oficiais
Antes de analisar a onda de greves e conflitos, suas reivindicações
e o papel dos novos sindicatos independentes, é importante dar uma
olhada nos sindicatos oficiais chineses.
A única organização sindical legal na China é a Federação Nacional
Sindical Chinesa (FNSC ou ACTFU na sigla em inglês). A legislação pro-
íbe a existência de outras organizações. Em 2006, tinha 134 milhões
de membros, com 1,713 milhão de sindicatos de base, 31 federações
provinciais, 10 grandes sindicatos industriais nacionais (que abarcam
diferentes empresas gigantescas) e duas federações específicas para
empregados do Partido Comunista e do aparato central do Estado33.
É a maior central sindical do mundo. No entanto, reúne apenas 27%
da classe trabalhadora chinesa. Na classe operária industrial, sua pre-
sença é maior nas empresas estatais e muito menor no setor privado.
Nas indústrias privadas, atua mais nas joint venture com o imperia-
lismo do que nas de burgueses chineses. Por exemplo, nas montadoras
32 El Diario. “Muchos empleados de fábrica en China no ven que su vida ten-
ga un futuro más allá de la cadena de montaje”, por Pau Rodríguez, novembro de
2018. Disponível em: https://www.eldiario.es/catalunya/China-mucha-forzada-
-trabajar-salario_0_830467858.html
33 “All-China Federation of Trade Unions and Its Work”, novembro de 2002. Dis-
ponível em: http://www.china.org.cn/english/2002/Nov/48588.htm
37
do estudo citado, 64% dos trabalhadores regulares estavam filiados
ao sindicato (no caso dos de agência, caía para 24%). Essas empresas,
além de serem as responsáveis pela assinatura do contrato coletivo,
atuam, por um lado, como “parte integrante da equipe gestora dos só-
cios chineses”; por outro, “sua função é muito parecida com os sindica-
tos das empresas estatais, cujas maiores responsabilidades envolvem
organizar atividades sociais, prover serviços de bem-estar e atender
problemas pessoais”. O primeiro aspecto (a conivência com os quadros
gestores) é também exposta por Pak Kin Wan: “Só há uma federação
permitida, a ACFTU, e é controlada pelo governo, que também contro-
la seus processos eleitorais, nos quais sempre ganham supervisores e
diretores.”
Sua presença é muito menor (quase desaparece) nas fábricas de
propriedade exclusiva de burgueses chineses, como a Huawei (como
vimos, com melhores condições salariais e trabalhistas) ou na Fox-
conn. Nesta última, depois dos escândalos que os incêndios e os suicí-
dios provocaram,
O senhor Guo Jun nunca veio a nenhuma de nossas fábricas, o que torna difícil
que convença alguém lançando estas conclusões. […] Assim como outras em-
presas, [a Foxconn] enfrenta continuamente o desejo dos empregados de fazer
horas extras para aumentar sua renda.34
34 La Vanguardia. “El sindicato oficial chino carga contra Foxconn”, por Isidre
Ambrós, fevereiro de 2015. Disponível em: https://www.lavanguardia.com/tec-
nologia/20150208/54425948752/sindicato-oficial-chino-carga-contra-foxconn.
html
38
Por isso, muitos aceitam as condições e não se atrevem a levantar a
voz” (Pak Kin Wan). Ou seja, a greve e outras formas de conflitos cole-
tivos aparecem, então, como um último recurso, de alto risco não só ao
trabalho, como pessoal, só aplicável em casos extremos.
Mesmo com essas condições, a partir de 2007, houve um aumento
constante do número de greves e conflitos, processo que se acelerou
entre 2014 e 2016 (coincidindo com os primeiros sinais evidentes de
freio ou crise da economia chinesa). Nesses três anos, segundo um in-
forme da organização China Labour Bulletin, houve 6.700 greves e pro-
testos em diferentes pontos do país, um crescimento exponencial com
relação ao patamar inicial.
Quais foram as causas dessas greves e conflitos? Em muitas empre-
sas privadas, foram por conta de atrasos no pagamento dos salários,
pelo pagamento das horas extras de acordo com a lei, por melhores
condições de trabalho e também no sistema de aposentadorias e se-
guro saúde. Outras lutas na área privada foram pelo pagamento das
indenizações de empresas que fecharam para transferir-se a outra re-
gião (e até a outro país). Ainda que a legislação da China preveja um
pagamento nesses casos, muitas empresas aproveitam a situação para
não pagar. A grande maioria desses conflitos não se deu nas fábricas
maiores, mas nas médias e pequenas (é evidente que, por causa da
“magnitude chinesa”, isso pode chegar a 1.000 trabalhadores)35. Uma
exceção, em 2014, foi a greve da Yue Yuen Industrial, fabricante de cal-
çados, provedora de grandes marcas mundiais, que chegou a abranger
40 mil dos 200 mil trabalhadores das diferentes plantas dessa empre-
sa, por não pagar a contribuição do seguro social36.
Outra causa de greves e lutas foi o plano de reestruturação e o fe-
chamento de um setor de empresas e fábricas siderúrgicas e minas de
carvão que já analisamos. Isso se combina com a resposta a acidentes
(com feridos e vítimas), resultado das condições precárias de seguran-
ça na indústria, em particular nas minas de carvão. Por exemplo, em
2016, ocorreu o conflito dos trabalhadores da empresa de mineração
estatal Longmay, que protestavam contra vários meses de atraso no
35 Para uma mostra do que dizemos, ver o informe “China: las huelgas y protes-
tas obreras continúan a pesar de la caída de la producción industrial” (2012). Dis-
ponível em: https://www.cetri.be/IMG/pdf/China_las_huelgas_y_protestas_obre-
ras_continuan-1.pdf
36 Liga Internacional dos Trabalhadores – Quarta Internacional. “Brazos cruza-
dos, máquinas paradas”, maio de 2014. Disponível em: https://litci.org/es/menu/
mundo/asia/china/brazos-cruzados-maquinas-paradas/
39
pagamento de seus salários, no quadro do anúncio do governo de que
seriam despedidos 100 mil trabalhadores, cerca de 40% do total do
quadro de funcionários da empresa. Outro exemplo se deu na side-
rúrgica estatal Angang Lianzong, localizada na capital da província de
Guandong, na qual centenas de operários entraram em greve contra
um plano de reduzir em até 50% os salários e aumentar a jornada diá-
ria obrigatória para doze horas em alguns setores. Um panorama mais
completo dessa onda de greves pode ser encontrado numa página es-
pecial do China Labour Bulletin.
Nesse processo de lutas, é evidente que o papel dos sindicatos ofi-
ciais foi muito negativo. Em muitos casos, por ausência; em outros, por
jogar de forma aberta do lado da patronal ou das empresas do Estado.
No caso da Yue Yuen, alguns dias depois de iniciada a greve, a Federa-
ção Sindical e vários ministérios entraram em ação para pôr fim a ela.
O Departamento de Seguridade Social reconheceu que a empresa lhe
devia esse dinheiro, e a Yue Yuen respondeu, em acordo inquestioná-
vel com a FSNC, que “pagaria as cotas atrasadas da seguridade social se
os operários pagassem a parte deles” e que:
[...] aqueles que não voltassem ao trabalho em três dias a partir do comunicado
teriam o contrato cancelado por abandono de trabalho […]. A greve terminou
com a aceitação do acordo, com relutância, mas foram apresentadas ações le-
gais contra a empresa, que se viu obrigada a pagar cerca de US$ 31 milhões à
instituição da seguridade social, com uma perda de cerca de US$ 58 milhões
por causa da greve.37
40
A organização sindical independente
Tal como observamos, a organização sindical independente é
proibida na China. A existência de núcleos permanentes dentro das
fábricas é clandestina e, por isso, apresenta grandes dificuldades de
acesso a informações precisas.
De fato, existem várias ONGs que atuam no país que tentam “su-
pervisionar” as condições salariais e trabalhistas, apoiar as reivin-
dicações e dar certo amparo a elas. Como disse Pak Kin Wan ao se
referir aos sindicatos independentes: “As ONGs assumiram algumas
de suas funções, que servem de apoio para os trabalhadores para co-
locá-los em contato com advogados trabalhistas ou para apresentar
denúncias diretamente.” A grande maioria dessas ONGs tem sede em
Hong Kong e está ligada ao conselho editorial do China Labour Bul-
letin, que, por sua vez, está ligado à CIOSL (hoje integrada na CSI) e a
sindicatos dos países imperialistas. Ou seja, são uma espécie de “polo
sindical” exterior das empresas e fábricas e, em certos casos, alguns
de seus membros atuam ao estilo dos “organizadores externos” dos
sindicatos estadunidenses.
Quando se deflagra um movimento coletivo, “as greves são
sempre dirigidas por comissões de trabalhadores eleitos em cada
mobilização, que são invariavelmente demitidos e, em muitos ca-
sos, detidos por sua atuação na greve”39. Nessas condições, é quase
impossível a existência de uma organização sindical independente
dentro das fábricas ou empresas.
Um setor muito importante entre aqueles que lideraram e partici-
param das lutas do setor privado foram os trabalhadores com houkou:
39 Idem.
40 Idem.
41
A nova geração de trabalhadores temporários da indústria automobilística
chinesa começou a mostrar a capacidade e o potencial de atuar de forma cole-
tiva e de lutar por mudanças positivas.
41 China Labour Bulletin. “China’s workers’ movement will continue despite
crackdown on labour activists”, abril de 2019. Disponível em: https://clb.org.hk/
content/china%E2%80%99s-workers%E2%80%99-movement-will-continue-
-despite-crackdown-labour-activists
42 El Salto. “El Partido Comunista Chino contra las leyes laborales chinas”, por
Eli Friedman e Elaine Hui, novembro de 2018. Disponível em: https://www.elsal-
todiario.com/china/xi-jinping-visita-espana-china-32-obreros-arrestados-inco-
municados-desaparecidos-jasic
43 China Labour Bulletin. “Labour activist Liu Shaoming marks four years in jail
as crackdown continues”, maio de 2019. Disponível em: https://clb.org.hk/con-
tent/labour-activist-liu-shaoming-marks-four-years-jail-crackdown-continues
44 É o dinheiro que o trabalhador deve receber após rescindir seu contrato com a empresa.
42
grupo de trabalhadores da Shenzhen Jasic Technology Co. (Jasic) co-
meçou a tentar organizar um sindicato da empresa. Fizeram isso den-
tro dos marcos legais e solicitaram ingressar no ramo local da FNSC.
Foram confrontados não apenas pela empresa, mas também pelo go-
verno e pela FSNC. A campanha dos trabalhadores obteve o apoio de
ONGs, de trabalhadores de fábricas próximas e de estudantes. Inicia-
ram-se as demissões e, como o movimento continuava, em 27 de julho,
32 pessoas foram presas de forma violenta, entre elas, trabalhadores
da Jasic, membros de uma ONG, operários e estudantes que se solida-
rizaram. Alguns ainda estão detidos e outros, desparecidos45.
Essa política central se combinou com algumas concessões por par-
te do governo, como os aumentos salariais permanentes previstos nos
planos quinquenais, os planos de ampliação do sistema de aposenta-
dorias e de seguridade social. Também por parte das empresas, muitas
das quais concediam a reivindicação pela qual havia começado a mobi-
lização ou usavam mecanismos de dispersão de situações explosivas,
como é o caso da Foxconn. De modo preventivo, faziam algumas con-
cessões nas grandes joint venture com empresas estrangeiras. Como
expressou Pak Kin Wan:
Algumas aprenderam a lição e viram que não podem abusar dos direitos de
seus empregados, porque isso prejudica sua imagem mundial. Em suas fábri-
cas, as condições já não são tão ruins como em outras.
A situação atual
A política do governo parece ter sido evitar que a onda de lutas se
estendesse e se aprofundasse pelas grandes cidades industriais da
costa, em especial pelos batalhões pesados da indústria privada. Esse
objetivo parece ter sido alcançado. O mapa de greves de 2018 da CLB
se refere a “1.701 incidentes” (no pico do processo, superava ampla-
mente os 2.000), dos quais 73,3% afetaram empresas privadas locais,
11,6% empresas estatais, e somente 2,9% empresas estrangeiras ou
joint venture46.
45 El Salto. “El Partido Comunista Chino contra las leyes laborales chinas”, por
Eli Friedman e Elaine Hui, novembro de 2018. Disponível em: https://www.elsal-
todiario.com/china/xi-jinping-visita-espana-china-32-obreros-arrestados-inco-
municados-desaparecidos-jasic
46 China Labour Bulletin. “The state of labour relations in China, 2018”, janeiro de
2019. Disponível em: https://clb.org.hk/content/state-labour-relations-china-2018
43
Além da já mencionada luta dos trabalhadores da Jasic, que teve
repercussão nacional, quero me referir a outras duas de grande signifi-
cado, que também ocorreram em 2018. A primeira foi a de operadores
de guindastes de torre dos grandes pátios de estoque, uma peça chave
no processo produtivo e de transporte de mercadorias e da indústria
da construção. Chegam a obter um bom salário mensal, mas com mui-
tas horas extras em trabalhos de extrema tensão e exigências perma-
nentes. Por exemplo, nas áreas de tecnologia mais obsoletas, foram re-
portados, só em 2013, 130 acidentes de trabalho, com 15 mortos e 12
feridos. Em maio de 2018, fizeram uma greve por aumento de salários
e melhores condições de trabalho. A greve teve uma grande repercus-
são na imprensa, mas não conquistou suas reivindicações.
A outra afetou os caminhoneiros autônomos, predominantes neste
tipo de transporte: havia cerca de 30 milhões de pequenos proprie-
tários. A greve se desenvolveu durante um fim de semana do mês de
julho, tendo como ponto central uma linha de aproximadamente 1.500
quilômetros que une as cidades de Chengdu a oeste com Jinhua ao
leste, afetando ao menos doze polos de transporte. Com alguns traços
semelhantes aos da greve de caminhoneiros do Brasil, foi lançada pe-
las redes sociais em protesto contra o preço dos combustíveis, o baixo
valor dos fretes e o fato de que um aplicativo que conecta os caminho-
neiros com os que necessitam de transporte não só lhes acrescenta um
custo, como também reduz os preços dos fretes. Por isso, suas rendas
líquidas se reduziram de forma significativa47.
Algumas conclusões
A repressão e algumas concessões conseguiram frear a dinâmica de
expansão da onda de greves e fazê-la retroceder um pouco. Porém não
conseguiram liquidá-la e, inclusive, incorporaram outros setores sociais.
As bases objetivas que a geraram permanecem intactas e agora co-
meçam a combinar-se com outros elementos. Por exemplo, com o im-
pacto que a guerra comercial com os Estados Unidos terá no país e em
sua economia. Ou as profundas contradições que a política do “filho
47 Diário Norte, “China: huelga de camioneros por el alto precio de los com-
bustibles”, junho de 2018. Disponível em: https://www.diarionorte.com/
article/167386/china-huelga-de-camioneros-por-el-alto-precio-de-los-
-combustibles-
Liga Internacional dos Trabalhadores – Quarta Internacional. “Certezas e interro-
gantes que plantea la crisis económica en China”, por Alejandro Iturbe, outubro
de 2015. Disponível em: https://litci.org/es/menu/mundo/asia/china/certezas-
-e-interrogantes-que-plantea-la-crisis-economica-en-china/
44
único” (aplicada desde 1979), embora tenha sido revogada, exerce so-
bre o envelhecimento da população e o tamanho da força de trabalho.
O regime e a burguesia chinesa continuam sentados sobre o barril
de pólvora da maior classe trabalhadora e do maior proletariado in-
dustrial do mundo. Como dizia no artigo de 2015:
[...]
O grande problema para o regime e para a burguesia da China é que não exis-
tem no país mecanismos de mediação que lhes permitam hoje amortecer ou
desviar esses possíveis choques ou canalizar essas aspirações. A única organi-
zação política existente é o PC e não há qualquer liberdade democrática para
as massas ou para os setores médios. Os sindicatos oficiais e seus dirigentes
são, de fato, organismos e funcionários do Estado que se mantêm em seus
postos mediante o medo e a repressão e, por isso, são odiados pela base. E a
burguesia (e a nova pequena burguesia em que ela pode se apoiar) é numeri-
camente fraca diante da imensa classe trabalhadora e dos camponeses pobres.
[...]
[...]
45
Entretanto, além do fato de que 80% dos membros das forças armadas são
recrutas e reservistas (portanto, uma base com muitos vasos comunicantes
com as massas) [...]
46
47
Tudo
é
História
Janeiro de 1919: os dez dias que
abalaram a Argentina –
Segunda parte
Insurreição operária e crise revolucionária
Tito Mainer
49
O interior toma a frente, entre a “normalidade”
e a “contraofensiva”
Enquanto Buenos Aires e Mar del Plata eram militarizadas e as “for-
ças-tarefas” intensificavam suas ações, Rosário se tornava a vanguar-
da. Em Tucumán, Córdoba e Mendoza, o movimento continuava forte.
Com um tom quase eufórico, o La Época (LE) da segunda-feira
abriu suas páginas com algumas “considerações” apropriadas para
apresentar aqui:
50
de pessoal”. Embora não tenha havido incidentes, todas as tropas esta-
vam aquarteladas. Em Rosário,
Como consequência,
51
Os representantes dos sindicatos – informa o LN do dia 16 – solicitaram autori-
zação para comemorar amanhã uma manifestação de protesto contra a atitude
do prefeito, que se recusa a readmitir o pessoal já substituído.
Enfrentamentos em Córdoba
No mesmo dia 14, uma semana após o primeiro massacre à porta
de Vasena, ocorreu um sério confronto na cidade de Córdoba. Em um
telegrama, o governador da província resumiu:
O correspondente assinalou:
52
Mil mortos e quatro mil feridos?
Em Buenos Aires, as manchetes do La Vanguardia na terça-feira,
14, estabeleceram um número que a história copilou e que La Protesta
tornaria seu: “Balanço trágico: 700 mortos e 2.000 feridos (numa pá-
gina interna aumenta o número para 3.000)”. Outras notas apontam
que “o terror branco continua” e referem-se à “novela policial sobre o
soviete maximalista”. Também afirmava: “o governo pensa em estado
de sítio”, e perguntava: “Que novas barbaridades preparam?” Naquele
dia, a imprensa socialista fez um extenso relato da situação nos vários
sindicatos, destacando a importância da unanimidade da greve maríti-
ma e a generalização da greve dos ferroviários. Também hierarquizou
seu papel na Câmara dos Deputados, na qual ainda não havia tido a
obtenção de relatórios do ministro do Interior, enquanto os deputados
radicais preparavam um projeto de declaração de estado de sítio que a
bancada socialista rejeitou.
Mas dois dias depois um artigo do Buenos Aires Herald (BAH) inti-
tulado “As vítimas” afirmou:
Parece que o número total de mortes nos infelizes eventos que ocorreram du-
rante a semana está entre 850 e 1.000 vítimas, com uma estimativa de 4.000
feridos. Não será possível estabelecer o número exato de feridos, uma vez que
os grevistas levaram seus companheiros feridos com eles após a batalha com a
polícia, deixando apenas os mortos e os feridos graves.
53
cano não se preocupou em informar a seus superiores sobre mais de
1.300 mortos2.
54
que o pedido de forças era uma medida acertada, porque as províncias preci-
sam da ajuda do governo nacional.
55
comitê radical local, como em Salta, província de Buenos Aires, “cujos
membros” – de acordo com La Nación do dia 14 – “viajam pela cida-
de armados com carabinas e cometem todos os tipos de abusos com
quem não é da sua filiação política”. Em Santa Fé, no mesmo dia,
56
em Cruz del Eje: “Uma grande parte dos trabalhadores iniciou o mo-
vimento queimando o armazém de estopas e óleos, um vagão de pas-
sageiros e outro carregado de mercadorias.” Naquele dia, “vários dos
principais líderes” foram conduzidos à prisão conforme relatado pelo
La Nación. Sem atos de violência, a ferrovia continuou totalmente pa-
ralisada, com concentrações em Cañada de Gómez, Governador Gálvez,
Santa Fé e nas oficinas de Tafí Viejo em Tucumán.
Em 15 de janeiro, um telegrama enviado de Añatuya, Santiago del
Estero, para o La Nación dizia:
[...] foram recebidas notícias de San Cristóbal (Santa Fé), nas quais [se] diz que
uma bomba explodiu em um dos esgotos da linha férrea no quilômetro 206 e
outra foi encontrada sem explodir no quilômetro 207. As bombas estavam car-
regadas com nitroglicerina e compostas por tubos de caldeira e percussores de
fábrica [...] sem causar danos pessoais.
57
verno provincial decidiu – de acordo com La Época do dia 15 – “que um
batalhão de voluntários composto por 200 recrutas fosse organizado
para ajudar a polícia a manter a ordem”. A polícia de Tucumán
[...] informa que a greve foi resolvida: na fórmula do acordo, está estabelecido
que os trabalhadores ganharão sete pesos por dia, trabalharão 8 horas por dia
e receberão 1,50 pesos por hora extra. Os empresários do comércio promete-
ram não retaliar e permitir que os trabalhadores sejam afiliados a qualquer
associação.
58
[...] na esteira dos eventos do Lago Buenos Aires4, os residentes e a Sociedade
Rural de Deseado conseguiram do governo que as tropas nacionais que foram
para impedir qualquer excesso ficassem permanentemente no território, por-
que sua simples presença implicava uma garantia de ordem.
[...] hoje a cidade recuperou sua aparência habitual; no entanto, vários sindica-
tos continuam em greve e estão trabalhando ativamente para que a Federação
declare novamente a greve geral na província.
59
É necessário acabar com nossa tolerância para com esses desalmados que pregam
a dissolução social; é necessário, é urgente, é patriótico, jogar para fora do país
essa escória que infecta e prostitui, e os argentinos maximalistas devem ser
cuspidos e amaldiçoados como traidores infames da pátria. (EP, 21 de janeiro)
60
Na maneira de apresentar as notícias do sul da província, uma linha
praticamente contradiz a seguinte. “Bahía Blanca: até hoje o telégrafo
nacional ficou sem receber notícias por causa das medidas adotadas
pela greve. Nesta [cidade] o movimento não teve nenhuma repercus-
são.” Mas os padeiros estavam em greve desde 25 de dezembro do ano
anterior, uma luta que
[...] é tomada como pretexto para incitar a greve geral, com a adesão dos outros
sindicatos. Até hoje, gráficos, pedreiros e anexos, barraqueiros6 e outros aderi-
ram à greve. Se a greve for aprovada, seria por 24 horas. Entre os trabalhado-
res e os donos de padarias, as negociações foram suspensas e a polícia decidiu
fechar a sede da sociedade de resistência dos padeiros.
Uma parte da polícia local foi enviada a La Plata por ocasião dos eventos que
ocorreram lá. A vigilância está sob responsabilidade dos poucos agentes que
restam e do comitê radical governista, cujos membros percorrem a cidade ar-
mados com carabina, cometendo todo tipo de abusos com quem não é da sua
filiação política. [...] A polícia e particulares reuniram todas as armas que esta-
vam nas casas de negócio, deixando explícito que procediam dessa maneira
porque foi declarado um Estado de Sítio, o que é incerto.
[...] no campo operário não sofreu nenhuma variante que valha a pena men-
cionar. […] A polícia, diante de certos excessos cometidos por elementos estra-
nhos no bairro de Piñeyro, compostos por trabalhadores, redobrou a vigilância
prestando um serviço especial naquele local, com cem homens do esquadrão
de segurança e carcereiros.
Enquanto isso,
61
sua atitude. [...] O referido funcionário, perante um pedido feito pelas oficinas
navais de Mihanovich enviou uma dotação de agentes para salvaguardar, tanto
quanto possível, os interesses daquela empresa que se consideram ameaça-
dos, segundo o gerente da mesma, pelos trabalhadores em greve.
[...] Três Lomas: o bairro está alarmado com a retirada da polícia. Faz cinco
dias que estamos sem trens, correspondência e jornais da capital. La Plata: a
polícia de investigações prendeu hoje os conhecidos agitadores anarquistas
Antilli e González Pacheco. [...] Campana: os sinalizadores, guardas, operários
e trabalhadores das oficinas da ferrovia Central Argentina, os marítimos e pa-
deiros estão em greve. Alguns agitadores foram presos. [...] A polícia acaba de
surpreender uma casa na qual os maximalistas se encontravam diariamente
para organizar a propaganda [...] invadindo a casa da Rua Rivadavia, 242, ocu-
pada por um negócio de compra e venda de roupas usadas, na qual encontra-
ram, numa sala interior, cento e trinta livros de autores anarquistas escritos
principalmente em hebraico. A sagacidade do referido oficial não terminou aí.
Com a energia que o caso aconselhou, ele começou a inspecionar as roupas
usadas existentes no negócio e encontrou mais de dois mil panfletos contendo
programas governamentais maximalistas e folhetos que convidavam à greve
revolucionária. Isso aconteceu às dezenove horas de hoje, e os proprietários
da empresa, José Gelman, Alfredo Bercovich e Moisés Rolsen, foram presos. No
momento, a polícia está fazendo outras prisões porque tem a lista completa
dos membros do centro, além de papéis comprometedores para os detidos.
62
Na sede da Associação do Trabalho (Bolsa de Trabalho), foi realizada uma
assembleia de personalidades do setor bancário, comércio, indústria etc.; na
qual foi constituída a Comissão Pró-Defensores da Ordem, que visa promover
uma coleta nacional de donativos para marinheiros, soldados, bombeiros e po-
liciais encarregados de restaurar a ordem durante os eventos desses últimos
dias. A comissão em referência propõe enviar sua ajuda a todos aqueles que de
forma direta ou indireta contribuíram para o trabalho das autoridades supe-
riores e principalmente aos que foram feridos nos vários encontros ocorridos,
bem como para as famílias dos que caíram para sempre.
63
[...] a assembleia operária realizada ontem pelos trabalhadores dos sindicatos
afiliados à FOM, [que] concordaram em manter a resolução adotada na assem-
bleia anterior, decretando a greve parcial do sindicato8. Por consequência, a
FOM forneceria pessoal apenas para as embarcações cujos armadores aceitas-
sem as reivindicações que lhes foram apresentadas no mês passado.
8 Greve parcial significa que a medida de força é geral, mas não se cumpriria nas
empresas que aceitassem a pauta e firmassem essa aceitação.
64
As médias e pequenas empresas tendiam a aceitar as reivindica-
ções dos trabalhadores, e o conflito se concentrou na disputa com os
armadores mais importantes, como Mihanovich e Dodero. Com a gre-
ve “parcial”, um verdadeiro controle operário foi imposto nas águas do
Paraná e do Prata:
65
foi chamada de “Legião ou Guarda Cívica” e que no dia 20 adotou o
nome de Liga Patriótica Argentina
La Prensa do dia 13 disse:
66
Ontem, foi realizada uma reunião no Centro Naval com os representantes de
todos os centros que aderiram ao objetivo de formar uma guarda cívica. O vi-
ce-almirante D. Manuel Domecq García presidiu o evento e os seguintes cava-
lheiros compareceram: Federico Leloir, representando o Iate Clube Argentino;
Jorge Artayeta Castex, pelo Círculo de Armas; Capitão Tiburcio Aldao, pelo Pro-
gress Club; Capitão Jorge Yalour, pelo Centro Naval; Dr. Raúl Sánchez Elía pelo
Jockey Club; Major Just E. Diana, pelo Círculo Militar; Sr. Asdrúbal Figuerero,
pela Associação Mutualista de Estudantes; Dr. Rodolfo Medina e o capitão de
fragata Pedro Etchepare, como secretários.
67
“o general prometeu revisar os antecedentes de cada homem o mais
rápido possível”. Nesse encontro, os deputados pediram para visitar os
prisioneiros alojados no departamento, autorizados por Dellepiane. La
Prensa do dia 16 comentou:
68
ble. Uma das balas disparadas atravessou o capacete do sargento no comando.
A escuridão reinante naquela hora tornou impossível perseguir os culpados.
69
de repressão e pelas ações dos grupos parapoliciais e paramilitares.
A maldita Liga Patriótica Argentina é uma das heranças da “semana
trágica”: seu papel decisivo iria até o início dos anos trinta e projetaria
sua sombra sobre vários golpes militares subsequentes, como os de
1943 e 1955.
70
Anos depois, deixou seu testemunho num romance histórico
intitulado Pesadilla.9
Simultaneamente, a polícia de Montevidéu desativou outro
suposto soviete liderado por Isaac Molinoff (sob a sombra do tal
Romanoff). O grupo “maximalista”, segundo relatos, tinha uma
atividade especial em Villa del Cerro, onde “existem três frigorí-
ficos e vários curtumes que usam cerca de quinze mil trabalha-
dores no total, incluindo um grande número de nacionalidade
russa” (La Nación, 11 de janeiro). Durante as operações, dezenas
de judeus russos foram presos e reunidos na Casa Cultura, na
Rua Galiza, acusados de ter... centenas de livros em hebraico.
71
A Liga Patriótica é constituída
La Prensa do dia 21 confirma que no dia 20, segunda-feira, numa
assembleia realizada no Centro Naval, a Liga Patriótica Argentina foi
formalmente constituída:
10 A citação é de Godio, Julio, op. cit., p. 199, cuja fonte é “El capital y el
Trabajo. Responsabilidad jurídica de los gremios”. Em: La Prensa, 19 de
janeiro de 1919. Deve-se salientar que a Liga Patriótica Argentina adotou
esse nome formalmente numa assembleia realizada em 20 de janeiro.
72
O Almirante Domecq García, de acordo com os poderes que lhe são conferi-
dos pelas associações patrióticas que patrocinam a Liga Patriótica Argentina,
convidou os seguintes senhores a ingressar no conselho central diretor: Dr.
Luis Agote, engenheiro Carlos Aubone, Nicolás A. Calvo, Dr. José Cortejarens,
Dr. Manuel Carlés, Juan José Biedma, monsenhor Miguel de Andrea, major Jus-
to A. Diana, Dr. Aquiles González Oliver, Dr. Vicente C. Gallo, Federico Leloir, Dr.
Francisco P. Moreno, general Eduardo Munilla, Dr. José Luis Murature, pastor
S. Obligado, Ezequiel P. Paz, Dr. Dardo Rocha, Dr. José Saravia, Dr. Raúl Sánchez
Valiente, Dr. Manuel de Iriondo e Dr. Estanislao S. Zeballos.
73
FIGURA 4 – Rodolfo Fucile
De 15 de janeiro a 23 de abril
O El Diario do dia 16, quinta-feira, diz, sem esconder um certo tom
jocoso:
74
Quase zombando daquela verdadeira “comédia de costumes” que
eram as repetidas falsas acusações da polícia, na mesma edição as no-
tícias anteriores foram “elucidadas”:
Detenções. Não há notícias da prisão do Sr. Drile que se diz ter sido realizada
em San Fernando e ao que parece é um exagero ou confusão daqueles que são
tão frequentes hoje em dia. Mas se Drile parece não existir, foi preso em San
Fernando o sujeito Juan Aguilar, que é considerado um agitador perigoso. O Sr.
Latta, detido na capital da província por ter ideias avançadas e ser propagan-
dista delas, foi libertado por não haver acusações contra ele.
Também foi o dia em que a acusação a Pinnie Wald foi alterada, seu
habeas corpus rejeitado e ele foi transferido para o juiz federal Saúl Es-
cobar, passando sua acusação, em 72 horas, “de ser candidato a presi-
dente da Confederação dos Sovietes da Argentina” para “portar armas
e provocar desordem...”
Mas, se a repressão conseguiu controlar alguns centros de agitação,
outros se desenvolviam. Na greve das padarias de Bahía Blanca, por
exemplo, não havia acordo, e a polícia fechou a sede da Sociedade de
Resistência dos Padeiros. O correspondente do ED relata que:
75
periores tenham se dado ao trabalho de melhorar a situação desses
humildes servidores”.
Dada a situação que se estendeu no sul de Buenos Aires,
Um primeiro balanço
Essa conquista pode ser considerada, afinal, um triunfo sindical?
É muito difícil usar esse termo em vista do terrível saldo regado a
76
sangue e repressão, não apenas na capital, mas também em grande
parte do país. Triunfo parcial? Acredito que não podemos falar de
“derrota histórica”: os sucessivos conflitos de 1919 obtiveram uma
série de triunfos, entre eles a extensão da jornada de oito horas para
muitos sindicatos.
O balanço do papel das direções também nos diz que a incapacida-
de da ala revolucionária de dar um programa aos trabalhadores cau-
sou um declínio significativo da influência anarquista no movimento
sindical e um relativo fortalecimento dos socialistas e dos sindicalistas.
Nos anos seguintes, haveria outras duas batalhas sangrentas, em Santa
Cruz e no Chaco. Em ambos, a “democracia radical” presidida por Hipó-
lito Yrigoyen entre 1916 e 1922 e continuada por seu afilhado político,
Marcelo T. de Alvear, até 1928, mostraria novamente que não hesitavam
em atacar o movimento operário com toda crueldade, realizando ma-
tanças indiscriminadas e recorrendo a métodos selvagens de repressão
contra os trabalhadores mobilizados. A experiência de janeiro de 1919
mostra o papel abertamente traidor da FORA do IX Congresso, que boi-
cotou os movimentos e se aliou-se abertamente ao governo, a ponto de
começar a ser conhecida como “capacho”... porque estava sempre na an-
tessala dos escritórios do governo. Isolados, os combativos anarcocomu-
nistas da FORA V foram castigados de forma brutal, e sua organização foi
desmantelada. Somente em 1922 seria assinada a chamada pax alvearis-
ta, abrindo um período de calma na luta de classes.
77
EM HONRA DOS MORTOS E COMO EPITÁFIO
A voz de um comissário:
“Os mortos, agora, já são cinzas”
José Ramón Romariz foi policial durante aqueles trágicos
eventos. Muitos anos depois, em 1952, aposentado como comis-
sário, publicou um livro com suas memórias sobre os aconteci-
mentos. Em uma de suas páginas, ele comenta:
Referências
AIZEMBERG, Matías. “Un pogrom en el Once”. Em: Legado, revista do
Archivo General de la Nación de la Argentina, nº 14, Buenos Aires,
abril de 2019.
BILSKY, Edgardo J. La semana trágica. Buenos Aires: Centro Editor de
América Latina, 1984.
78
DE TITTO, Ricardo. Los hechos que cambiaron la historia argentina en el
siglo XX. La semana trágica. Buenos Aires: El Ateneo, 2004.
DE TITTO, Ricardo, “Cronología de una larga semana. Los diez días que
conmovieron a la Argentina”. Em: Legado, revista do Archivo General
de la Nación de la Argentina, nº 14, Buenos Aires, abril de 2019.
DÍAZ DE GUIJARRO, Eduardo; LINARES, Martha. Reforma universitaria
y conflicto social. 1918-2018. Buenos Aires: Batalla de Ideas, 2018.
GODIO, Julio. La semana trágica de enero de 1919. Buenos Aires: Hys-
pamérica, 1985.
ROMARIZ, José. La semana trágica. Buenos Aires: Hemisferio, 1952.
SEIBEL, Beatriz. Crónicas de la semana trágica. Buenos Aires: Corregi-
dor, 1999.
SOLOMINSKY, Naúm, La Semana Trágica en la Argentina. Ejecutivo
Sudamericano del Congreso Judío Mundial, Buenos Aires, 1971.
SURIANO, Juan. “El periodismo escrito y los diversos enfoques
de la Semana Trágica de enero de 1919”. Em: Legado, revista
do Archivo General de la Nación de la Argentina, nº 14, Buenos
Aires, abril de 2019.
WALD, Pinnie. Pesadilla. Una novela de la Semana Trágica. Buenos
Aires: Ameghino, 1998.
79
Deb
ate
Sobre atualização programática
Lógica marxista e correlação
de forças mundial
Gustavo Machado
81
sentar erros na argumentação de Iturbe, trata-se de uma exposição
bastante coerente, mas questionar a própria base da qual parte.
82
lógica estaria, enquanto verdade mais essencial e profunda, pressu-
posta como potência desde a origem do universo e da história. Tra-
ta-se, portanto, de expor toda esta lógica essencial: a lógica dialética
ou ciência da lógica, para em seguida mostrar como ela se manifesta
no curso do tempo, em particular no curso da histórica humana. Cabe
perguntar, como esse esquema em particular poderia ser válido para
um autor materialista como Marx? Em realidade, não é. Marx, ao con-
trário de Hegel, não escreveu nenhuma lógica nem pressupôs aquela
escrita por Hegel. Vejamos!3
Marx diz explicitamente, em um de seus últimos textos de crítica da
economia política, Glosas marginais ao tratado de economia política de
Adolf Wagner, datado de 1879: “eu não começo nunca dos ‘conceitos’,
[...] parto da forma social mais simples em que se corporifica o produto
do trabalho na sociedade atual, que é a ‘mercadoria’” (MARX, 1970, p.
176). E adiante diz ainda que seu “método analítico, que não parte do
homem, senão de um período social concreto, não tem a menor rela-
ção com aquele método de entrelaçamento de conceitos que gostam
de empregar os professores alemães” (MARX, 1970, p. 179). Como se
vê, Marx não aplica nenhuma lógica, não parte de nenhum conceito ló-
gico no seu exame da sociedade capitalista, ao menos, nenhuma lógica
que não seja aquela que encontra como produto interno da própria
forma social capitalista.
Não sem razão, justamente quando estudava a Lógica de Hegel, Le-
nin concluiu: “Marx não nos deixou a Lógica (com L maiúsculo), dei-
xou-nos a lógica de O capital” (LENIN, 2011, p. 201).
Com relação ao presente tema, parecem-nos certeiras as conclu-
sões do filósofo Zeleny (1974). Segundo esse autor, posto que
[...] Marx não conhece nada dado a priori, desconsidera também a lógica ex-
terna e exige “concreção”, o descobrimento “da lógica específica do objeto
específico, com isso desautoriza radicalmente todas tentativas de abstrair
de O Capital uma metodologia dialética geral já pronta e aplicável a todos os
objetos (desautoriza, pois, as tentativas de entender a dialética de Marx no
sentido de Lassalle).
3 Ao contrário do que é dito por vários teóricos marxistas, Marx nunca prome-
teu escrever uma “dialética”. O que ele se propôs e não teve tempo de realizar foi
a indicar o que era racional e místico na dialética hegeliana. O que ele prometeu
foi “escrever algumas páginas para expor o núcleo racional da dialética de Hegel,
retirá-la de seu invólucro místico”.
83
E vai além.
Com o marxismo nasce, pois [...] uma racionalidade científica de tipo novo.
Aqui desaparece o solo sobre o qual se levanta a metodologia geral em um
sentido positivista tradicional e no sentido hegeliano (“ciência da lógica ou
metodologia geral). (p. 184)
84
abstrato, já feito” (MARX; ENGELS, 1972, p. 96). Lenin, em 1915, leu e
formulou alguns comentários ao livro de Lassalle. Nas linhas conclusi-
vas de suas anotações escreve: “Em geral, é justa a referência de Marx.
Não vale a pena ler o livro de Lassalle” (LENIN, 1989, p. 297).
Sabemos que mesmo nos bons autores da tradição marxista, como
Trotsky, o termo “lógica dialética” aparece algumas vezes. Mas em
Trotsky, notadamente, não se trata jamais de um sistema lógico marxis-
ta propriamente dito, mas da exigência de que se considere as múltiplas
realidades de forma dialética. Em sua autobiografia, Trotsky escreve:
A dialética desses processos não é tão complexa em si mesma. Mas é mais fá-
cil formulá-la em suas linhas gerais do que verificá-la em cada situação que se
apresenta, nos próprios fatos da vida. Até hoje, deparo-me, a esse respeito, com
previsões teimosas que, em política, conduzem a erros grosseiros e graves
consequências. (TROTSKY, 2017, p. 269, grifo nosso)
85
tema, não consigo encontrar qualquer saída minimamente consistente
para a questão em termos marxistas e materialistas.
86
volvido no invólucro místico” (MEW 23, p. 27). Como já indicou o es-
tudioso alemão Hans Friedrich Fulda em célebre ensaio publicado em
1974, não se trata, nessa passagem, de um mero virar de cabeça para
baixo a dialética hegeliana e, assim, arrancar fora o núcleo racional de
seu envoltório místico, tal como o coelho cai da cartola que retiramos
da mão de um mágico especulativo e, em seguida, viramos de cabe-
ça para baixo. Fulda propõe a tradução de umstülpen não apenas por
inverter, mas também por virar ao avesso. Assim, ao virar ao avesso
a realidade invertida e mistificada pela forma social capitalista, a
contradição que aparecia em Hegel como exterior transforma-se no
seu verdadeiro interior e, por outro lado, o que estava no interior – a
unidade integradora, sistemática e metafísica das contradições – reve-
la-se como seu exterior aparente, um envoltório que é ao mesmo tem-
po místico e mistificador.
Em resumo, é justamente porque, em Hegel, as contradições exte-
riores manifestam uma unidade interior que seria possível existir uma
lógica, como tradução conceitual dessa unidade essencial e eterna. Tal
lógica seria esta unidade interior, depois desdobrada de forma contra-
ditória na história. Tal unidade é possível graças ao pressuposto teoló-
gico, divino e idealista de seu sistema, que faz um Absoluto existir des-
de sempre, eternamente, com todas suas determinações já dadas em
potência. Para Marx, é o contrário. A unidade é a aparência da forma
social capitalista e seu interior é contraditório. Mais ainda. Essa uni-
dade contraditória não é a expressão de uma forma lógica geral, mas
a expressão de um modo de produção particular, de uma totalidade
específica: o capital e o capitalismo.
Daí que aquilo que Hegel viu como uma expressão lógica geral e
metafísica de toda realidade, Marx viu como a aparência, a superfície o
modo de manifestação da sociedade capitalista, que dissolve as contra-
dições em abstrações da circulação de mercadorias como igualdade,
liberdade e propriedade. Ali onde Hegel viu contradições aparentes
da sociedade, Marx viu as contradições internas e mais fundamentais
da sociedade capitalista e, portanto, impossível de ser arrancada deste
modo de produção historicamente particular e transformada num tipo
lógico geral.
87
específicas que analisamos de forma dialética. Nesse sentido preciso,
indica as célebres palavras do resenhista russo, citado por Marx no
posfácio de O Capital:
Dir-se-á, porém, que as leis gerais da vida econômica são as mesmas, sejam
elas aplicadas no presente ou no passado. Isso é precisamente o que Marx
nega. Para ele, tais leis abstratas não existem [...]. De acordo com sua opinião,
ao contrário, cada período histórico possui suas próprias leis [...]. Marx nega, por
exemplo, que a lei da população seja a mesma em todas as épocas e em todos
os lugares. Ao contrário, ele assegura que cada etapa de desenvolvimento tem
sua própria lei da população. […] O valor científico de tal investigação reside na
elucidação das leis particulares que regem o nascimento, a existência, o desen-
volvimento e a morte de determinado organismo social e sua substituição por
outro, superior ao primeiro. (C I, p. 90)
88
vimento desigual e combinado, formulada pela primeira vez de forma
explícita por Trotsky”. E mais adiante: “Podemos dizer que é a lei mais
geral da lógica marxista, aquela que resume e incorpora todas as ou-
tras leis.” De fato, Trotsky escreve em sua História da Revolução Russa:
89
verdade, devemos admitir que a contribuição de Trotsky para o mar-
xismo foi bastante reduzida. Mas na verdade não foi assim.
Pode-se virar e revirar como se queira, não se encontrará um único
texto de Trotsky destinado a expor a tal lei do desenvolvimento desi-
gual e combinado. O termo foi utilizado sempre na sequência de uma
análise específica de um objeto específico. Todas suas conclusões de-
correm dessa análise e não da aplicação de uma lei abstrata, que, em
verdade, não diz muita coisa. Esse é o caso da análise do primeiro capí-
tulo da História da Revolução Russa.
Aqui, o termo lei não aparece no mesmo sentido que o empregado
por Marx em O Capital. Esta lei não denota uma articulação precisa en-
tre as partes analisadas, apontando uma tendência necessária. Todas
as leis apresentadas por Marx em O Capital indicam uma tendência
precisa: queda da taxa média de lucro, acumulação de riqueza em um
polo e pobreza no outro, regulação da produção e consumo por um
valor impessoal etc. Já a “lei do desenvolvimento desigual” denota,
em sentido bem mais abstrato, um elemento em comum com o de-
senvolvimento de todos os países. Mas qual a dinâmica e a articula-
ção interna desse desenvolvimento? Ora, tal lei do desenvolvimento
desigual nada diz a esse respeito: temos de analisar a lógica específi-
ca do objeto específico.
Perguntamos ainda: seria mesmo a “lei do desenvolvimento com-
binado” a mais geral da dialética? A tese me parece bastante frágil. Se
é incontestável que os mais distintos povos ao longo da histórica hu-
mana se desenvolveram de forma desigual (como afirma Trotsky), em
ritmos e direções diversas, tais desenvolvimentos se combinaram de
forma intensa e profunda somente na sociedade capitalista. No curso
da história humana, até o capitalismo, as comunidades humanas em
sua maior parte tiveram pouco contato umas com as outras ou, se o
tiveram, foi sempre de forma parcial e superficial. Exceto quando pas-
saram a ser diretamente dominadas e, assim, incorporadas por outras
civilizações, a maioria das comunidades seguiu seu curso de forma
bastante independente, com uma conexão apenas tênue e superficial
por algumas relações comerciais e culturais. Se é assim, perguntamos,
como uma lei que sequer se aplica a toda história humana pode ser a
lei mais geral da dialética?
Cabe aqui, ainda, alguns apontamentos mais que são decisivos para
uma correta compreensão do problema. Uma lei, se se pretende ser
dialética, necessita ter conexão interna e jamais uma formulação abs-
trata que de fora é aplicada a diversos conteúdos. Devemos também a
90
Lassalle esse equívoco conforme já foi assinalado. Mas o próprio En-
gels cometeu desvios nesse sentido, como nas alardeadas três leis da
dialética tão utilizadas pelo stalinismo. Lenin teve plena consciência
desses problemas. Ele escreve em suas anotações sobre Hegel:
Como se vê, uma lei dialética não é uma formulação geral aplicada
a distintos conteúdos como um somatório de exemplos. A lei do fenô-
meno é apresentada por meio das articulações internas do próprio fe-
nômeno. É este o sentido preciso do método dialético assinalado por
Hegel e desde o seu primeiro desenvolvimento em Platão. Aspectos
amplamente desenvolvidos por Lenin em suas anotações. O método,
diz Hegel,
[...] não se comporta como reflexão exterior, e sim toma o [elemento] determi-
nado desde seu objeto mesmo, já que o método mesmo é o princípio imanente
e a alma do objeto. – É isso que Platão exigiu do conhecer, que se considerem
as coisas em si e para si mesmas, ora em sua universalidade, ora, porém, não
se desviando delas e recorrendo a circunstâncias, exemplos e comparações, e sim
tendo-as sozinhas diante de nós e trazendo diante da consciência o que nelas é
imanente. (HEGEL, 1993, p. 566)
91
é estruturalista, ao menos em alguns de seus traços fundamentais. E
aqui temos plena consciência de que tal fundamentação estruturalis-
ta se faz presente, igualmente, nos textos de caráter mais filosófico de
Nahuel Moreno, que Iturbe segue. Para essa caracterização, são neces-
sárias algumas considerações prévias sobre o estruturalismo e seus
traços distintivos.
O termo estrutura que nomeia essa corrente filosófica tem pouca
relação com a acepção marxista do termo, mesmo aquela empregada
pelo marxismo vulgar. Estrutura significa, no estruturalismo, um con-
junto de relações abstratas definidas pelo pensamento e subentende
um modelo válido para vários conteúdos diferentes. Um dos pais do
estruturalismo, o antropólogo Lévi-Strauss, diz que a estrutura serve
ao antropólogo como um “modelo lógico” para entender outras for-
mas, ou esferas, da comunicação social. O elemento central que distin-
gue o estruturalismo quanto a esse aspecto é a separação entre objeto
do pensamento e objeto do conhecimento. As totalidades propostas pelo
estruturalismo não traduzem nem pretendem traduzir as relações e
interconexões reais entre os objetos apresentados, mas constituem
uma estrutura circunscrita ao âmbito do pensamento, aplicada de fora
e, portanto, de modo não dialético, aos múltiplos conteúdos.
Esse aspecto está expressamente presente no artigo de Iturbe:
92
demos que Iturbe se inclina para a segunda alternativa, ou seja, aquela
estruturalista. Para justificar essa concepção, Iturbe cita Marx:
93
é kantiana. Foi Kant quem, pela primeira vez, separou os fenôme-
nos (os objetos do conhecimento) das coisas em si. Representação
da coisa e a própria coisa. A representação pertenceria unicamente
ao nosso pensamento, sem pretensão de reproduzir o objeto exter-
no. Essa posição será fortemente combatida por Lenin no seu Mate-
rialismo e empirocriticismo.
Para Piaget, a atividade do sujeito que conhece “é geradora das
estruturas em sua construção ou reconstrução permanentes”, “não
existe estrutura sem uma construção, ou abstrata ou genética”. E
o sujeito que constrói essas estruturas em Piaget não é a socieda-
de capitalista – em seguida reconstruída pelo pensamento daquele
que a analisa –, mas o sujeito do conhecimento puro e simples. Para
Marx, ao contrário do kantismo e do estruturalismo, o pensamento
deve expressar a totalidade real, com seus nexos e relações reais,
expressos de forma dialética pelo pensamento. Esta existe enquan-
to tal, independentemente de ser reconstruídas pelo pensamento
abstrato de quem quer que seja.
Assim, para um estruturalista, a totalidade é uma totalidade de
pensamentos que explica a realidade. O conceito explica externa-
mente a realidade. Para o marxismo, a totalidade de pensamento
é a tradução discursiva da totalidade real. Assim, a síntese de múl-
tiplas determinações em Marx não é a abstração construtiva de
Piaget nem a generalização do empirismo. Esta síntese respeita as
relações objetivas do próprio objeto: eis a categoria de valor, capital
etc. Elas não são generalizações de dados empíricos: não as perce-
bemos diretamente. Elas não são puros conceitos existentes apenas
no pensamento: existem como relações objetivas sempre reprodu-
zidas no interior da forma social capitalista. Como tais categorias
são síntese de relações diversas, unidades de elementos contradi-
tórios, temos de partir de seus elementos mais simples e abstratos
e reconstruí-los pelo pensamento. Mas não saímos da realidade e
mergulhamos num universo paralelo dos conceitos para, somente
então, voltarmos à realidade. O pensamento dialético, e marxista,
caminha do início ao fim ao lado de abstrações e relações que tra-
duzem diretamente a realidade examinada.
O estruturalismo, como toda corrente teórica, não paira nas nu-
vens. Sua origem está na total perda de uma perspectiva burguesa
de futuro, manifesta com particular intensidade na Segunda Guerra
Mundial. Abandonou-se, então, concepções que traziam dentro de
si a noção de progresso, perspectivas assentadas em algum tipo de
94
historicidade, como é o caso do positivismo, do darwinismo social
etc. A história é arrancada fora enquanto ferramenta conceitual
e, no lugar, cria-se estruturas, modelos lógicos abstratos. Assim,
constrói-se, por exemplo, uma estrutura lógica das civilizações hu-
manas, cujas distintas formas sociais são apenas distintas combi-
nações desse alfabeto estrutural, sem qualquer acepção interna
de devir ou progresso. Se o estruturalismo abandona a história e
os sujeitos históricos em função de uma forma lógica puramente
racional, será a continuidade do estruturalismo, ao derrubar esta
última fronteira, ao dissolver as totalidades estruturais, que fará
emergir o pós-estruturalismo ou o pós-modernismo: eis Foucault,
Derrida e Deleuze.
Epistemologia e pós-modernismo
Nesse sentido, pensamos que o questionamento do conceito de
etapa pelos camaradas Alegría, Ayala e Parras não se assenta numa
premissa pós-moderna como sustenta Iturbe. A questão não está na
querela epistemológica racionalismo versus irracionalismo, isto é,
nos limites e possibilidades do conhecimento. Uns afirmam ser pos-
sível encontrar a lei racional de absolutamente tudo, outros negam a
possibilidade do conhecimento objetivo dos fenômenos. Não é isso
que está em debate, mas a natureza mesma do objeto considerado.
Para o marxismo, não existem questões gerais de teoria do
conhecimento ou epistemologia independentes da realidade analisada.
O universo do conceito não se separa da realidade que este procu-
ra expressar. Foi Kant quem postulou a necessidade de estabelecer
critérios epistemológicos independentes da realidade analisada.
Curiosamente, esse é um dos pontos em que Marx certamente se-
gue Hegel e não Kant.
Em sua Enciclopédia das Ciências Filosóficas, Hegel critica o pro-
grama kantiano ao pretender examinar a faculdade de compreen-
são antes de se examinar a natureza das coisas. Para ele, o conheci-
mento humano e filosófico é um fato inquestionável atestado pela
própria história do pensamento, e buscar analisar a priori os limi-
tes e possibilidades do conhecimento, conhecer o conhecimento, é
um programa quixotesco. Nesse sentido, Hegel diz:
95
aprender-se a conhecer o instrumento antes de se empreender o trabalho que,
mediante o mesmo, deve-se levar a cabo; se o instrumento fosse insuficiente,
todo o esforço se despenderia em vão. [...] Mas querer conhecer antes de se co-
nhecer é tão destoante como o sábio propósito daquele escolástico [Hiérocles]
de aprender a nadar antes de se aventurar à água (HEGEL, 1988, p. 79).
96
O estudo da sociedade capitalista por Marx está recheado de exem-
plos de aspectos que não podemos traduzir em categorias fixas, em
leis; não por um limite do conhecimento humano, mas porque a pró-
pria forma de organização social capitalista não se desdobra com base
em tais regularidades. Assim, o valor regula os preços e a concorrên-
cia regula a taxa de lucro. Mas não conseguimos definir de antemão os
preços e a taxa de lucro, porque tais tendências são efetivadas não por
uma lei racional, mas pela irracionalidade objetiva do mercado que
confronta todos os capitais e mercadorias uns em relação aos outros,
sem qualquer padrão de medida previamente estabelecido.
Outro exemplo. Marx mostra no Livro II de O Capital que a pos-
sibilidade de a produção e o consumo coincidirem no capitalismo
existe, mas não há garantia alguma disso. Marx diz que “o equilíbrio
só existe no caso de o importe de valor das compras unilaterais coin-
cidir com o importe de valor das vendas unilaterais”. No entanto,
essas mesmas condições se convertem “em outras tantas condições
do transcurso anormal, em possibilidades de crises, já que o pró-
prio equilíbrio, dada a configuração natural-espontânea dessa pro-
dução, é algo acidental” (MARX, 2015, 602). Ou seja, a coincidência
entre produção e consumo é meramente acidental. Não existe uma
regra racional que a determine. Isso não ocorre porque Marx é um
irracionalista pós-moderno que nega a possibilidade de se conhe-
cer a regulação interna dessa totalidade. Isso ocorre porque, nesse
aspecto em particular, a totalidade não possui qualquer tipo de re-
gulação interna, não possui objetivamente nenhum padrão racional
que o pensamento possa traduzir conceitualmente.
Segundo nosso juízo, é nesse sentido que caminha a argumentação
de Alegría, Ayala e Parras, pelos motivos já indicados no artigo “So-
bre as etapas”. Nesse sentido, etapa não seria uma totalidade nem um
conceito (do pensamento ao modo estruturalista) capaz de explicar
a realidade. Mas, de nossa parte, não negamos unilateralmente o
uso do termo, desde que não seja entendido como totalidade, o que
efetivamente não é.
Evidentemente, existem derrotas e vitórias da classe trabalha-
dora que influenciam de forma significativa a luta de classes em
nível mundial por um longo período. A vitória da Revolução Russa
não apenas produziu efeitos subjetivos de curto prazo na classe
trabalhadora, como criou a União Soviética: um aparato objetivo
a serviço da revolução mundial por um longo período. Da mesma
forma, a vitória do nazifascismo e da contrarrevolução stalinista
97
criaram aparatos contrarrevolucionários permanentes. Os mes-
mos efeitos podem ser verificados na destruição desses aparatos
na Segunda Guerra Mundial e em 1989. No entanto, entendo esses
aspectos como resultados objetivos que influenciam a correlação
de forças entre as classes por um longo período, se se quiser, uma
etapa. Mas não se segue desses elementos, por relevantes que sejam,
e são, que a correlação de forças será esta ou aquela. Afinal, ao lado
desses elementos existem outros tantos, mundiais e locais, passíveis
de serem conhecidos no interior da totalidade da situação mundial,
mas não na forma de uma regularidade que se impõe por um longo
período e em todos os locais. Daí que tais “marcos” podem ser vistos,
no nosso modo de ver, como influenciando toda uma etapa histórica,
mas de modo algum podem, por si só, determiná-la.
Referências
FULDA, H. “These zur Dialektik als Darstellungsmethode (im ‘Kapital’
von Marx)”. Em: Hegel-Jahrbuch. Köln: Pahl-Rugenstain Verlag, 1974.
HEGEL, G.W. F. Ciência de la lógica. Buenos Aires: Ediciones Solar, 6ª ed.,
1993.
_______. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Epı́tome Volume I. Lis-
boa: Edições 70, 1988.
LENIN, V. I. Cadernos sobre a dialética de Hegel. Rio de Janeiro: UFRJ,
2011.
_______. “Conspecto do livro de Lassalle A Filosofia de Heráclito, O Obscu-
ro, de Éfeso”. Em: Obras Escolhidas em seis tomos, tomo VI, 1989.
_______. “Sobre a questão da dialética”. Em: Obras Escolhidas em seis
tomos, tomo VI, 1989.
MARX, K.; ENGELS, F. Correspondencia. Buenos Aires: Editorial Cartago,
1972.
MARX, K. Contribuição para a crítica da economia política (1971).
_______. Glosas Marginales al “Tratado de economia politica de Adolph
Wagner”. Em: DOBB, Maurice (Org.). Estudios sobre El Capital I. Bue-
nos Aires: Ediciones Signos, 1ª ed., 1970, p. 169-183.
_______. Grundrisse. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011.
_______. O Capital. São Paulo: Boitempo Editorial, Livro I, 2013.
98
_______. O Capital. São Paulo: Boitempo Editorial, Livro II, 2015.
_______. Crítica à filosofia do Direito de Hegel. Tradução de Rubens Ender-
le e Leonardo de Deus. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005.
PIAGET, J. O estruturalismo. São Paulo: Difel, 1979.
TROTSKY, Leon. Minha Vida. São Paulo: Editora Sundermann, 2017.
_______. História da Revolução Russa. São Paulo: Editora Sundermann,
tomo I, 2017.
ZELENY, J. La estructura lógica de “El capital” de Marx. México: Grijalbo,
1974.
99
Res
e
nha
La guerra contra la Triple Alianza en
debate, de Ronald León Núñez
Alicia Sagra
Bem, a essa altura, o leitor certamente estará avisado que este trabalho não se
destina a alcançar a ideia falaciosa e não científica, que não entendo ao certo,
mas que alguns estudiosos invocam chamando-a de “imparcialidade histórica”.
Não pretendo alcançar algo que não existe. Por isso, direi desde o início que este
livro é parcial.
101
históricos narrados no contexto de um confronto permanente com outras cor-
rentes de pensamento.
Por que dizemos que se trata de uma visão diferente se são muitos
os que se localizam no mesmo lugar no combate, ou seja, contra o geno-
cídio praticado pela Tríplice Aliança sobre o povo paraguaio? Pelo que
explica o autor mais adiante:
102
La colonización española, portuguesa, inglesa, francesa y holandesa en Améri-
ca, fue esencialmente capitalista. Sus objetivos fueron capitalistas y no feudales:
organizar la producción y los descubrimientos para efectuar ganancias prodi-
giosas y para colocar mercancías en el mercado mundial. No inauguraron un
sistema de producción capitalista porque no había en América un ejército de
trabajadores libres en el mercado. Es así como los colonizadores, para poder ex-
plotar en forma capitalista a América, se ven obligados a recurrir a relaciones de
producción no capitalistas: la esclavitud o una semiesclavitud de los indígenas.
Producción y descubrimiento por objetivos capitalistas; relaciones esclavas o
semiesclavas; formas y terminologías feudales (al igual que el capitalismo me-
diterráneo), son los tres pilares en que se asentó la colonización de América1
103
tempo, sendo uma expressão inquestionável disso o fato de que a inde-
pendência paraguaia (1811) foi reconhecida após a batalha de Caseros
(1852). Ele descreve como tudo isso não tinha uma base ideológica abs-
trata, mas explicitamente econômica. Os heróis de maio lideravam uma
revolução burguesa e, como tal, nesse processo, defendiam interesses de
um setor burguês contra outro, como expressa a discussão dos impostos
sobre exportações e do velho litígio sobre a livre navegação nos rios.
Ao mesmo tempo, León Núñez coloca a hipótese de que essa polí-
tica opressora, que desde o primeiro momento orquestrou-se a partir
de Buenos Aires, esteve na base do isolamento negativo que o regime
liderado por Gaspar Rodríguez de Francia manteve em relação à guerra
de independência latino-americana.
É aceitável, para quem se diz marxista, passar a ideia de que durante o regime do
Dr. Francia a “encomienda e as aldeias indígenas” – concentrações de indígenas
dirigidas por autoridades religiosas ou coloniais para facilitar a exploração da
força de trabalho nativa – teriam mudado de caráter “a favor dos explorados”?
Por acaso acabou a exploração nos tempos do Dr.?
104
história das sociedades humanas existiu “Estado plebeu e camponês”? Nunca,
isso é cientificamente impossível. Nos tempos do Dr. Francia, ou seja, na época
das revoluções burguesas e de decadência do absolutismo monárquico, só exis-
tiam dois tipos de Estados: o feudal e o capitalista.
E conclui:
É fato que o Dr. Francia, um advogado rico, foi obrigado a atacar os interesses de
um setor da “oligarquia”. Porém isso não o transforma num “governo popular”.
Simplesmente demonstra que existiu uma luta entre frações burguesas e que
Francia tinha um lado nesse embate [...] Para polemizar com o liberalismo anti-
nacional, insistimos, não é necessário recriar nenhum “paraíso social”. Tampou-
co se pode fazer um relato na condição de um patriarca que queria “acabar com
as classes sociais” enfrentando a “oligarquia”.
Como deixa evidente o autor, nada que foi dito implica negar o pa-
pel individual de figuras como o Dr. Francia ou os López na consoli-
dação e na defesa da independência nacional. Contudo, é necessário
compreender que os indivíduos respondem a interesses de classe e
são produto de processos estruturais, profundos, e não o contrário.
A “Guerra Grande”
Assim, através dessas e de outras polêmicas, chega-se ao tema e ao
debate central: que foi a Guerra da Tríplice Aliança?
León Núñez diz:
Mais de 150 anos depois de ser deflagrada, a Guerra contra o Paraguai [1864-
1870] continua sendo a questão mais polêmica na historiografia sul-americana,
tanto na esfera política quanto nos círculos acadêmicos.
105
E existem motivos de sobra para que isso seja assim. Trata-se do maior conflito
armado internacional que se desenvolveu na América Latina. O mais extenso e
mortal. Durou mais de cinco anos e envolveu populações de quatro nações cuja
área atual representa dois terços do subcontinente.
106
Como observa León Núñez, é necessário compreender que os teóri-
cos do nacionalismo de esquerda, ao assumir certos postulados chauvi-
nistas e populistas, não são inocentes. Têm um objetivo político explícito:
apresentar Solano López como uma espécie de Fidel Castro ou Salvador
Allende do século 19. Em outras palavras, essa história esteve sempre a
serviço de justificar, no século 20, uma estratégia política reformista e
frentepopulista – a política de aliança com setores burgueses que Stalin
impôs no 7º Congresso da Internacional Comunista, em 1935 –, teoria
que é incompatível com a estratégia socialista e que levou a classe traba-
lhadora a grandes derrotas.
Porém, como dissemos, o debate central é com a historiografia oficial,
liberal-conservadora, e com sua variante aggiornada, a chamada nova
historiografia sobre a Guerra da Tríplice Aliança, a qual um de seus mais
conhecidos representantes, o historiador brasileiro Francisco Doratioto,
definiu como Interpretação Sistêmica Regional. Essa corrente defende,
centralmente, que a guerra foi regional, que a Grã-Bretanha não teve ne-
nhuma ingerência, que o Paraguai foi o país agressor e que não é possí-
vel falar em genocídio nem em crimes de guerra.
León Núñez se apoia em Marx e em Lenin para debater sobre o ca-
ráter da guerra e fornece números contundentes sobre o apoio econô-
mico da Grã-Bretanha e sobre o genocídio do povo paraguaio. Desses
números, destacamos os seguintes: segundo os dados que Doratioto
fornece, o império brasileiro mobilizou 139 mil soldados (1,52% de sua
população); a Argentina, 30 mil (1,72% de sua população); e o Uruguai,
5.582 (2,23% de sua população).3
Por outro lado, a população paraguaia se reduziu (nos cinco anos de
guerra) entre 69% e 70%, enquanto o Brasil, a Argentina e o Uruguai
perderam 0,64% de sua população total.
Não há dúvidas. Os números falam por si.
107
Como observa de Titto,
[...] este livro estuda o Paraguai, mas se refere sempre a um processo supranacio-
nal, à geopolítica do Cone Sul da América. E esse é o primeiro aspecto a ser des-
tacado na obra: como assinala Nahuel Moreno no início de seu Método de inter-
pretación de la historia argentina, a análise dos fenômenos nacionais e regionais
deve ser feita à luz dos acontecimentos mundiais. Mérito importante, portanto, é
não se perder em banalidades e curiosidades menores, nestas “pequenas coisas”
tão em moda entre certo “jornalismo da história”, o qual tanto gostam de visitar
os historiadores autointitulados “revisionistas”, muitos documentários “sérios”
de televisão e narradores de “histórias verdadeiras” ou “eventos ocultos jamais
revelados”, que as editoras convertem em best-sellers passageiros, publicações
depois esquecidas por completo.
108