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MARXISMO

VIVO
NOVA EPOCA

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Revista a serviço da investigação, elaboração e debate da teoria revolucionária.
O conteúdo dos artigos assinados é de inteira responsabilidade dos seus autores.

Todos os artigos, citando a fonte, podem ser reproduzidos.


Disponíveis também em: http://archivoleonTrotsky.org/revista.php

São Paulo
Março de 2020
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Jornalista Responsável: Mariúcha Fontana (MTb: 14.555)

Editor geral: Martín Hernández

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José Welmowicki
(Brasil – josweil@ig.com.br)

Projeto gráfico: Ana Clara Ferrari Revisão:


Diagramação e capa: Romerito Pontes Luciana Candido

Traduções: Luciana Candido e Notas da edição brasileira e revisão final:


Marcos Margarido Mariúcha Fontana e Luciana Candido

Responsáveis pela edição em português: Normalização técnica:


Mariúcha Fontana e Luciana Candido Iraci Borges (CRB: 8-2263)

Marxismo Vivo: Nova Época. N° 15 , março, 2020. São Paulo: Liga Internacional dos
Trabalhadores, 2019.

Semestral
ISSN: 1806-1591

Nota: circulou no período de setembro de 2000 até setembro de 2009 com o título Marxismo Vivo
1. Marxismo – teoria revolucionária

Assinaturas e pedidos de números avulsos:


editoralorca@gmail.com ou vendas@editorasundermann.com.br
SUMÁRIO
08 Atualidade
09 A gravidade de uma possível nova recessão mundial
Eduardo Almeida
21 Um estudo sobre a classse operária chinesa
Alejandro Iturbe

48 Tudo é história
49 Janeiro de 1919: os dez dias que abalaram
a Argentina – Segunda parte
Tito Mainer

80 Debates
81 Lógica marxista e correlação de forças mundial
Gustavo Machado

124 Resenha
125 La guerra contra la triple alianza en debate,
de Ronald Léon Núñez
Alicia Sagra
Aos nossos leitores
No momento em que escrevemos esta apresentação, os jornais e
as emissoras de televisão de todo o mundo anunciavam que os traba-
lhadores e o povo da Colômbia tinham protagonizado uma greve geral
com grandes mobilizações de massas, que continuam após o fim da
greve, no que possivelmente seja um dos três maiores protestos da
história colombiana, junto com o “bogotazo”1 de 1948 e o “Paro Cívico
Nacional”2 de 1977.
Um colaborador colombiano da Marxismo Vivo – Nova Época, ao
nos informar sobre os acontecimentos de seu país, disse: “Esta greve
só é possível graças às lutas no Equador e no Chile.” Ele tem toda razão.
O ano de 2019 foi particularmente rico em grandes insurreições em
diversos países do mundo, como foram as mobilizações pela indepen-
dência na Catalunha, os coletes amarelos na França, os acontecimen-
tos no Sudão, em Hong Kong, no Iraque, no Irã, na Tchecoslováquia... E
esses levantes das massas exploradas e oprimidas chegaram com toda
sua força à América Latina. No Haiti, no Equador e, particularmente,
no Chile, onde, mais do que uma explosão, começou uma revolução, na
qual milhões de trabalhadores e setores populares, entre os quais se
destacam os jovens e, entre eles, especialmente as mulheres, durante
mais de um mês ocupam as ruas de todo o país, lutando contra a re-
pressão, contra o governo, contra a miséria, contra as desigualdades e
em defensa do povo originário, os mapuches.
No Chile, começou uma revolução socialista, mesmo que a maioria
das massas que a protagonizam ainda não tenham consciência do que
estão fazendo. É uma revolução porque o grande protagonista são as
massas, num processo de mobilização muito superior ao que se deu
durante o governo de Allende, na década de 1970, por sua extensão
e duração e pela violência com que enfrentam seus inimigos; e é so-
cialista não só pelos inimigos que enfrentam (o capitalismo nacional
e internacional), mas porque quase nenhuma das reivindicações das
massas pode ser resolvida no marco do capitalismo.

1  Bogotazo: insurreição popular que ocorreu em Bogotá em 1948 como respos-


ta ao assassinato do líder do Partido Liberal, Eliécer Gaitán, que inaugurou uma
guerra civil, período conhecido como “violência”.
2  Paro Cívico Nacional (1977): originalmente, havia sido convocada uma greve
geral, mas esta deu origem a mobilizações, bloqueio de estradas, incêndios de edi-
fícios do governo e de bancos, saques... que se estenderam por todo o país.

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As massas chilenas estão na ofensiva, e o governo dos capitalistas,
na defensiva. O governo, com sua brutal repressão, com seus assassi-
natos, sequestros, feridos, presos e violações, não conseguiu parar a
mobilização, tampouco com suas reiteradas concessões, pelo menos
até agora.
No entanto, a vitória dessa revolução socialista não é uma tarefa
fácil. A burguesia, nacional e internacional, com suas centenas de anos
de experiência, tem não só as forças repressivas, mas uma grande ex-
periência política para enfrentar os explorados, da qual irá valer-se
para tentar acabar ou desviar essa revolução.
O movimento nas ruas, de caráter revolucionário, pode conseguir
derrotar as forças repressivas, pode libertar os presos, pode inclusi-
ve destituir o governo, mas não poderá satisfazer a reivindicação das
massas até o fim se os trabalhadores e o povo não assumirem o poder;
e, para isso, é necessário que atuem com base num programa e numa
política que só poderão alcançar se durante a revolução se organiza-
rem num partido revolucionário do qual hoje só existem embriões.
A construção da direção revolucionária parece uma tarefa impos-
sível. Porém é necessário entender, pela situação mundial, que o mais
provável é que a revolução, com seus altos e baixos, com suas vitórias
e derrotas, estenda-se por bastante tempo; e também é necessário en-
tender que, durante uma revolução, todos os processos se aceleram.
Essa revolução, como toda revolução, põe sobre a mesa velhos e
novos desafios teóricos, os quais os revolucionários chilenos terão de
enfrentar como condição para a elaboração de uma política revolucio-
nária, sem a qual a construção da direção revolucionária será impos-
sível. Problemas teóricos e políticos que há um mês faziam parte dos
livros surgem hoje com toda força, obrigando os marxistas chilenos a
abordá-los como condição para dar respostas políticas à atual situa-
ção. Por exemplo, durante anos se discutiu qual era o caráter do regime
que existe hoje no Chile. Atualmente, sem responder de forma correta
a essa questão, é impossível elaborar uma política revolucionária. O
mesmo ocorre com a questão da Assembleia Constituinte. A questão
de quem convoca a assembleia, que há um mês era uma questão sem
maior importância, hoje divide águas entre a revolução e a contrarre-
volução.
É obrigação dos revolucionários, dos marxistas de todo o mundo,
cercar de solidariedade a revolução chilena, em particular no que se
refere a superar a principal contradição dessa revolução, que é justa-
mente a construção da direção revolucionária.

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Nossa revista, Marxismo Vivo – Nova Época, que nasceu para aju-
dar a atualizar o programa marxista, assume o compromisso de dar
todo seu apoio aos revolucionários chilenos nesse terreno. Nossas pá-
ginas, a partir do próximo número, abordarão com toda intensidade as
questões programáticas, teóricas e políticas que surgem da revolução
chilena e, como sempre, suas páginas estarão abertas a todos os mar-
xistas que estejam dispostos a se somarem a esse esforço.
Com a publicação deste número, também celebramos a liberdade
de Daniel Ruiz e enviamos um abraço solidário a todos que, em dife-
rentes lugares do planeta, participaram desta campanha. A existência
do processo revolucionário que atinge diferentes países no mundo in-
fluenciou para que a campanha internacional pela liberdade do novo
integrante de nosso conselho editorial tivesse um resultado vitorioso.

Os editores

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Atuali
dade
A gravidade de uma possível nova
recessão mundial

Eduardo Almeida

O mundo vive hoje uma sucessão de processos convulsivos da


luta de classes, com ascensos revolucionários (como os vividos no
Chile, no Haiti, em Hong Kong, no Líbano, no Iraque e outros) e
também golpes contrarrevolucionários (como na Bolívia).
É importante localizar que existe uma base material para essa
realidade, que tem a ver com a crise econômica mundial que vem
desde 2007-2009. Para responder a essa crise, a burguesia impõe
seguidos planos neoliberais que provocam brutais retrocessos na
situação dos trabalhadores em todo o mundo. Isso é parte fun-
damental da explicação da radicalidade das lutas. Existem sinais
evidentes de barbárie no mundo, e as massas estão reagindo com
força contra o capitalismo.
Não existe uma relação mecânica entre crise econômica e as-
censo das massas. Por vezes, a reação à crise econômica é uma
paralisia dos trabalhadores, pela ação das direções reformistas
e o medo do desemprego. Mas dessa vez o que está ocorrendo é
uma reação furiosa dos trabalhadores e da juventude contra os
ataques duríssimos que levam a esse sentimento de “não ter o
que perder”.
Esses processos devem ampliar-se. Existem indícios crescen-
tes de agravamento da crise econômica (a guerra comercial EUA-
-China, a forte ampliação das bolhas financeiras, a decadência de
países e regiões inteiras) que apontam para a possibilidade de
uma nova recessão mundial num prazo relativamente curto de um
ou dois anos.
Pode-se imaginar os efeitos, que se alimentam de forma mútua,
das crises econômicas sobre as políticas e das políticas sobre as
crises econômicas nesse cenário apontado.
Este artigo busca explicar a situação econômica atual e suas
perspectivas.

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A curva longa descendente da economia capitalista
A economia capitalista evolui em ciclos. Existem os ciclos curtos,
em geral de cinco a sete anos, que são determinados por leis (essen-
cialmente a evolução da taxa de lucro).
Existem também os períodos mais longos que incorporam vários
ciclos curtos. Em 1919, Kondratiev1 assinalou a existência de ondas
longas da economia capitalista, em períodos de mais ou menos cin-
quenta anos, com uma parte ascendente e outra descendente. Ele deu
a elas praticamente o mesmo caráter dos ciclos curtos do capitalismo.
Na avaliação de Trotsky (que os chamava de “curvas do desenvolvi-
mento capitalista”), a qual compartilhamos, os ciclos longos não têm
duração pré-determinada nem o automatismo econômico dos ciclos
curtos São determinados por fatores extraeconômicos relacionados à
luta de classes (revoluções, guerras), à expansão (obtenção de novos
territórios) ou à evolução tecnológica...
Compreendemos a situação econômica mundial atual como parte
de uma fase descendente de uma onda longa.
A fase ascendente coincidiu com a “globalização”, começando nas
décadas de 1980 e 1990, com as derrotas do ascenso revolucionário
dos anos 1960-1970 e com a restauração capitalista na China e no Les-
te Europeu.
A fase descendente desse ciclo longo teve como primeiro marco po-
lítico a derrota da ofensiva militar e política de Bush e se expressou
com toda força na crise de 2007-2009. Essa foi a crise mais grave desde
1929 e explicitou a mudança da fase ascendente para a descendente.

Equilíbrios e desequilíbrios...
A onda ascendente da globalização na década de 90 do século
passado foi um ponto de equilíbrio do capitalismo dentro do enten-
dimento de Trotsky. Agora, no momento da onda descendente, pre-
domina o desequilíbrio:

El equilibrio capitalista es un fenómeno complicado; el régimen capi-


talista construye ese equilibrio, lo rompe, lo reconstruye y lo rompe

1  Nikolai Kondratiev (1892-1938): economista russo conhecido por sua teoria


dos ciclos longos ou dos ciclos de Kondratiev como se conhece hoje. Segundo sua
teoria, além dos ciclos curtos de desenvolvimento capitalista descritos por Marx
em O Capital haveria ciclos longos, de cerca de cinquenta anos, dentro dos quais os
ciclos curtos se desenvolvem. Kondratiev foi assassinado numa prisão stalinista.
(Nota da edição brasileira)

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otra vez, ensanchando, de paso, los límites de su dominio. En la esfera
económica, estas constantes rupturas y restauraciones del equilibrio
toman la forma de crisis y booms. En la esfera de las relaciones entre
clases, la ruptura del equilibrio consiste en huelgas, en lock-outs, en lu-
cha revolucionaria. En la esfera de las relaciones entre estados, la rup-
tura del equilibrio es la guerra, o bien, más solapadamente, la guerra
de las tarifas aduaneras, la guerra económica o bloqueo. El capitalismo
posee entonces un equilibrio dinámico, el cual está siempre en proceso
de ruptura o restauración. Al mismo tiempo, semejante equilibrio posee
gran fuerza de resistencia; la prueba mejor que tenemos de ella es que
aún existe el mundo capitalista.2

O primeiro grande elemento de desequilíbrio na fase descendente


se dá pelas próprias consequências da globalização.
O capitalismo pressupõe um choque das forças produtivas com as
fronteiras nacionais, na medida em que a tendência do capital é sua ex-
pansão internacional sem respeitar nenhuma fronteira. No momento de
ascenso da globalização, na onda ascendente, houve um salto na inter-
nacionalização da produção, com a redução das tarifas alfandegárias e a
ampliação qualitativa na liberdade de movimento do capital internacio-
nal com os planos neoliberais. Isso levou à expansão dos tratados inter-
nacionais e à preparação de avanços ainda maiores, com os pactos em
formação Estados Unidos-União Europeia e o Pacto do Pacífico.
No entanto, com a crise de 2007-2009 e a queda das taxas de lu-
cro, existe uma tendência à crise desses blocos e acordos. A UE está
em plena crise, cujo foco central é o Brexit. O acordo EUA-UE não se
concretizou, com atritos explícitos dentre Trump e o governo alemão,

2  “O equilíbrio capitalista é um fenômeno complicado; o regime capitalista cons-


trói esse equilíbrio, rompe, reconstrói e rompe outra vez, ampliando, de passagem,
os limites de seus domínios. Na esfera econômica, estas constantes rupturas e res-
taurações do equilíbrio tomam a forma de crises e booms. Na esfera das relações
entre as classes, a ruptura do equilíbrio consiste em greves, locautes, luta revolu-
cionária. Na esfera das relações entre Estados, a ruptura do equilíbrio é a guerra
ou, de forma mais velada, a guerra das tarifas aduaneiras, a guerra econômica ou
bloqueio. O capitalismo possui, então, um equilíbrio dinâmico, o qual está sempre
em processo de ruptura ou restauração. Ao mesmo tempo, tal equilíbrio possui
grande força de resistência; a prova melhor que temos disso é que ainda existe o
mundo capitalista.” Esse texto foi usado por Trotsky em seu discurso no 3º Con-
gresso da III Internacional, em 23 de junho de 1921. Pode ser encontrado com o
título “A situação mundial”. (Nota da edição brasileira)

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que antes eram os pilares dessa aproximação. Na Ásia, existem dois
tratados em disputa, com e sem a China.
Estão ampliando-se no mundo as reações protecionistas dos gover-
nos, a começar pelo próprio Trump, estendendo-se a governos popu-
listas de direita, como na Itália e em outros países (com populismo de
direita “contra a UE”), de rejeição parcial ao processo de globalização.
A curva descendente provoca desequilíbrios crescentes em aspec-
tos importantes do que foi conhecido como a “globalização”. Está em
xeque a divisão mundial do trabalho inaugurada nos 1980. Existem
regiões inteiras condenadas à decadência. Isso se expressa em impor-
tantes divisões da burguesia e na agudização da luta de classes.
Temos pela frente um período prolongado dessa fase descendente
que vai expressar-se nos ciclos curtos com crescimentos frágeis e cri-
ses fortes.

A forma específica da recuperação


pós-crise de 2007-2009
Existem duas características específicas da recuperação pós-crise
de 2007-2009 que precisam ser explicadas.
A primeira delas é que a saída encontrada pela grande burguesia
para frear a grande crise de 2007-2009, para evitar que avançasse a
uma depressão semelhante à de 1929, foi a injeção de grandes somas
dos Estados diretamente nos bancos e em grandes empresas. Isso se
deu em dimensões inéditas na história e significou uma gigantesca
transferência de mais-valia para o capital financeiro.
É um fato que a quebra dos bancos foi estancada depois da falência
do Lehman Brothers em 2008. Não existiu a falência em série dos
bancos estadunidenses como ocorreu em 1929. A GM esteve à beira da
falência, mas foi salva. Houve crise de Estados que foram rebaixados
na divisão mundial do trabalho, mas, em geral, deu-se na periferia dos
países imperialistas (como Grécia e Portugal).
Esse mecanismo de salvamento do grande capital, no entanto, tam-
bém teve outras consequências. Em geral, nas crises, a falência do capital
velho permite o surgimento do capital novo, e esse mecanismo ajuda a
recompor a taxa de lucro e a eclosão de um novo ciclo de crescimento.
No período pós-crise de 2007-2009, essa característica específica
da política de salvamento das grandes empresas contraditoriamente
dificultou a posterior retomada mais dinâmica da taxa de lucro do ca-
pital. Continuou havendo todo um setor da economia com uma taxa de
lucro baixa, e a economia como um todo, com uma capacidade ociosa.

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Para uma retomada mais vigorosa da economia capitalista seria neces-
sária uma queima maior de capitais.
A segunda especificidade da saída da crise de 2007-2009 foi o pa-
pel da China como uma espécie de motor auxiliar na retomada da eco-
nomia, que tinha nos países imperialistas uma recuperação anêmica.
Como segundo PIB entre os países do mundo e uma taxa de crescimen-
to muito acima de qualquer país imperialista, a China cumpriu esse
papel. Foi também determinante naquele período para o “boom das
commodities” que permitiu um crescimento importante para a Amé-
rica Latina e a Ásia.
Ter isso em conta é importante porque dificilmente poderemos ver a
China cumprindo esse papel caso exista uma nova recessão mundial agora.

A possibilidade de uma nova recessão mundial


Os chamados ciclos curtos da economia capitalista são determina-
dos pela evolução da taxa de lucro dos capitalistas. Quando existe uma
queda na taxa de lucro, a tendência é que os capitalistas parem de in-
vestir, determinando uma nova crise.
Não existe consenso entre os marxistas sobre essa abordagem.
Existe um setor (começando por Rosa de Luxemburgo) que compre-
ende que o que determina as crises é o subconsumo das massas, e não
a evolução da taxa de lucro dos capitalistas.
É importante localizar que economistas marxistas sérios como
Anwar Shaikh e Michael Roberts não só resgatam a relação teórica da
taxa de lucro dos capitalistas com a evolução dos ciclos, como a de-
monstram com estudos empíricos. Fazem isso tanto para a evolução
das curvas longas ascendentes e descendentes da economia quanto
para os ciclos curtos.
Ao nosso ver, estamos no final de um ciclo curto da economia den-
tro da curva descendente que vem desde 2007-2009.
Existe nesse momento uma estagnação da economia alemã, o car-
ro-chefe da economia europeia. No primeiro trimestre de 2019, cres-
ceu 0,5%; no segundo, teve uma queda de 0,2%; e no terceiro, um
crescimento de 0,1%. O conjunto da economia europeia aponta para
desaceleração e estagnação, embora de forma desigual.
A verdadeira guerra social contra os trabalhadores e o rebaixamen-
to de países da “periferia” imperialista, como Grécia e Portugal, não
foram suficientes para superar a decadência da economia europeia.
Agora são alguns dos países centrais que vivem uma grave crise política

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e econômica, incluindo Inglaterra e França. E é o carro-chefe da UE – a
Alemanha – que está freando o conjunto.
O Japão está num crescimento anêmico (o crescimento anuali-
zado do PIB foi de 0,2% no terceiro trimestre 2019) com uma ten-
dência de baixa.
A China segue seu processo de desaceleração com índice de 6,0%
no terceiro trimestre de 2019, o mais baixo em quase trinta anos. É
importante notar que os dados chineses são questionados fortemente
por economistas sérios que apontam maquiagem das estatísticas pela
ditadura de Xi Jinping. Além disso, todo o futuro da economia chinesa
está obviamente ligado à guerra comercial em curso com os EUA.
A economia mundial tem, como sempre teve e mais ainda agora,
uma referência fundamental na situação dos EUA. Até esse momento, a
economia estadunidense vinha crescendo a um ritmo superior ao dos
outros países imperialistas, aproveitando-se de seu controle financei-
ro e parasitário.
No entanto, dois elementos apontam para uma inflexão para baixo
da economia dos EUA. O primeiro é a própria lógica dos ciclos econô-
micos: depois de dez anos da última crise, a tendência é que o auge
atual aponte para um ponto de inflexão para uma queda. O segundo
tem a ver com os últimos dados, que apontam uma queda real na taxa
de lucro (antes mascaradas pela redução dos impostos de Trump) e
agora queda nas encomendas de bens duráveis de 2,1% em abril deste
ano3. A desaceleração pode ser explicitada na evolução do PIB (3,1%
no primeiro trimestre; 2,1% no segundo; 1,9% no terceiro).
Além disso, existe uma queda já definida da economia de países
emergentes como Brasil (queda de 0,1% do PIB no primeiro trimes-
tre), Argentina, Turquia e África do Sul. O único país dos BRICs com
crescimento importante (acima de 6%) continua sendo a Índia, em-
bora também esteja desacelerando desde os últimos meses de 2018.
Essa realidade está levando à possibilidade de uma nova recessão
mundial em um ou dois anos.

O grande capital luta para reverter a crise


Essa possível recessão não necessariamente terá a gravidade da
ocorrida em 2007-2009. Existem contratendências importantes na re-
alidade que podem atenuar seus efeitos, adiar ou mesmo evitar uma
nova recessão.

3  ROBERTS, Michael. “Queda Global”, maio de 2019.

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Na verdade, a burguesia imperialista está tentando recompor sua taxa
de lucro de tal maneira que possa evitar uma nova recessão e inclusive
possibilitar uma nova curva ascendente do capitalismo. Para que o impe-
rialismo retome um novo ciclo ascendente, necessita impor derrotas qua-
litativas ao proletariado mundial para recompor sua taxa de lucro.
O imperialismo está buscando as condições para uma nova fase
ascendente, transferindo somas inéditas dos Estados para as grandes
empresas e impondo planos de austeridade duríssimos numa guer-
ra social contra os trabalhadores para recompor sua taxa de lucro. É
também preciso redefinir uma nova divisão mundial do trabalho, as-
sim como novos setores produtivos que permitam pôr em marcha um
novo grande ciclo de investimentos em escala mundial.
É um fato que a burguesia está tentando pôr em prática essa recom-
posição com esses mecanismos que chamamos de contratendências.
A primeira contratendência é a aplicação de planos cada vez mais
duros para ampliar a taxa de mais-valia e recompor sua taxa de lucro.
É importante observar que, na maioria dos casos, a burguesia conta
com o apoio aberto ou não das burocracias sindicais e dos partidos
reformistas e consegue impor seus planos. Como já dissemos, as con-
sequências sociais incluem a existência já de elementos de barbárie
em muitos países do mundo.
A segunda é o acesso a novas tecnologias que possam ser incor-
poradas à produção. Existem sinais de que isso possa ocorrer com a
incorporação das redes 5G, da “internet das coisas”4, dos carros elé-
tricos e outros avanços. Pode ser que a burguesia esteja tocando pos-
sibilidades reais de avanços na produção. Fala-se que com as redes
5G seria possível reduzir fortemente a mão de obra de vários setores
da economia.
A terceira contratendência implica em mudanças na divisão mun-
dial do trabalho e no sistema de Estados. A transformação de países
imperialistas em semicoloniais, como Portugal e Grécia, e o rebaixa-
mento de países como Brasil, Argentina, África do Sul e outros na divi-
são mundial do trabalho é parte disso. Ou seja, podemos estar frente a
retrocessos qualitativos da localização de países na divisão mundial do
trabalho e a uma queima de capitais de maior peso. Isso está determi-
nando a decadência econômica de países e regiões inteiras.

4  A “internet das coisas” é um conceito que se refere à interconexão digital de


objetos de uso cotidiano e, a partir disso, seu funcionamento automático e/ou se-
miautomático.

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É importante ter em conta que nas últimas vezes em que o
imperialismo conseguiu reverter uma curva descendente para uma
nova ascendente foram momentos de grandes mudanças, como o
advento do imperialismo no final do século 19 e início do 20, o período
depois da Segunda Guerra Mundial, com todo o processo de reconstru-
ção da Europa, e o momento pós-restauração do capitalismo no Les-
te Europeu e na China. Como não existe na realidade perspectivas de
nova guerra mundial nem de incorporação de novos territórios como
se deu na restauração do capitalismo no Leste, os mecanismos para
uma recuperação do capital se reduzem a ataques ainda mais duros ao
proletariado e aos países colonizados e semicolonizados.
Até agora, apesar de todos os esforços do imperialismo, a economia
mundial não dá mostras de superação da crise aberta em 2007-2009.
Não existe uma recuperação da taxa de lucro que possibilite uma am-
pliação qualitativa dos investimentos. Isso determina a continuidade
da crise.

O grau de parasitismo financeiro pode agravar uma


nova recessão mundial
A dinâmica da economia também pode apontar para uma nova re-
cessão tão ou ainda mais grave que a de 2007-2009. Existem tendên-
cias na realidade que apontam nesse sentido. O primeiro elemento é
a hipertrofia e o parasitismo financeiro que já estavam presentes em
2007-2009 e avançou muito mais.
O capital financeiro controla o mundo em níveis superiores aos co-
nhecidos por Lenin quando definiu essa como uma das característi-
cas centrais do imperialismo. Como já vimos, a forma encontrada pela
burguesia para escapar da crise de 2007-2009 foi a injeção brutal de
capital nos bancos e em grandes empresas para evitar sua quebra.
No entanto, esse dinheiro não foi reinvestido na produção, mas no
salvamento dos próprios bancos e uma vez mais na especulação finan-
ceira. A resultante é que a dívida global agregada passou de US$ 177
trilhões (setembro de 2018) para US$ 247 trilhões.
O grau de parasitismo e a hipertrofia do capital financeiro geram
montanhas de capital fictício que se valorizam de forma artificial em
níveis impressionantes. A única forma de criar mais-valia é pela pro-
dução real. Essas massas de capital fictício se valorizam de forma ar-
tificial, criam bolhas especulativas e disputam mais valia com outros
setores da economia. Servem para alavancar a economia em cresci-
mento, como uma gigantesca pirâmide financeira, mas quando o ciclo

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vira para baixo podem ampliar qualitativamente o agravamento da
crise, como ocorreu com a bolha financeira imobiliária nos EUA em
2007-2009.
Hoje existem bolhas financeiras muito maiores que em 2007-2009.
As consequências dessa realidade nesse momento são graves. Uma
nova recessão mundial pode detonar várias dessas grandes bolhas,
aprofundando a crise em direção a uma nova depressão. E o recurso
usado nesses últimos dez anos – repassar grandes somas aos bancos
para frear a crise – já dá sinais evidentes de esgotamento.

A guerra comercial EUA-China e suas consequências


O segundo elemento que pode agravar uma possível recessão mun-
dial é a guerra comercial entre EUA e China, uma das características
mais marcantes do cenário econômico mundial.
Já não existe a unidade burguesa que marcou a curva ascenden-
te do capitalismo no ascenso da globalização na década de 1990.
Esse é um dado novo e indica um desequilíbrio mais profundo da
divisão mundial do trabalho e do sistema de Estados, que pode ter
consequências importantes na geração e no agravamento de uma
possível nova recessão.
A explicação da guerra comercial é uma crise na divisão mundial
do trabalho. No período do ascenso da globalização, a China se trans-
formou na “fábrica do mundo” com investimentos imperialistas que se
aproveitavam dos baixos salários e da ditadura burguesa.
No entanto, o crescimento da burguesia chinesa, apoiada no enor-
me mercado chinês, alavancado por uma taxa de acumulação muito
superior à média dos países imperialistas e com um sistema bancário
ainda sob controle estatal, levou a que o país não coubesse mais na sua
localização anterior na divisão mundial do trabalho. É quase um sím-
bolo que a Apple, que produz na China, tenha sido superada na venda
de celulares em todo o mundo pela Huawei.
A disputa atual ao redor do controle da rede 5G é uma das ba-
ses mais importantes da guerra comercial em curso. É uma de-
monstração de que isso não é só obra do “louco” Trump e que
Google, Intel e Qualcomm apoiaram Trump, assim como apoiaram
outros países imperialistas.
O imperialismo estadunidense quer evitar que a China avance
quanto à rede 5G e quer impor uma abertura do mercado financeiro
nesse país, acabando com a vantagem particular da burguesia chinesa

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nesse terreno. Trump conta com o apoio do imperialismo europeu e
do Japão para isso.
Mas nada assegura que o imperialismo conseguirá impor esse re-
cuo da China. Xi Jinping acaba de visitar Putin e, como parte disso, a
Huawei fechou um acordo com a MTS – empresa russa de comunicações
– para fazer avançar o desenvolvimento tecnológico e a implantação das
redes 5G. Até esse momento, o governo chinês não deu sinais de aceita-
ção da abertura do mercado financeiro. Como vimos, a China já vem bai-
xando seus índices de crescimento, chegando aos 6%. Agora está sendo
mais atingida pela guerra comercial, podendo baixar ainda mais.
A guerra comercial tampouco se restringe à disputa entre EUA e
China. Existem enfrentamentos importantes entre EUA e União Euro-
peia. Continuam os enfrentamentos entre Trump e Merkel sobre a UE,
como no caso do Brexit. A postura protecionista de Trump coloca em
questão fluxos comerciais importantes e a própria existência da OMC.
A ruptura do acordo com o Irã sobre controle de armas nucleares e
com o acordo de Paris aumentam as divergências interimperialistas.
A realidade é que já não existe a grande unidade burguesa que mar-
cou o ascenso da fase ascendente da globalização. O protecionismo
está crescendo, a partir do próprio centro imperialista mais importan-
te, os EUA. Mas não só dos EUA. As disputas interburguesas já tiveram
consequências na queda do crescimento do comércio mundial, que
baixou de 5,1%, em 2017, a uma previsão de 2,1% em 2019.
Além disso, essa guerra comercial está levando a um desgaste
também político em suas pontas mais importantes. Pode prejudicar
Trump em sua tentativa de reeleição em 2020, caso se concretize uma
recessão nos EUA. E pode precipitar uma crise na ditadura chinesa,
caso gere um ascenso importante do movimento operário no país. A
guerra comercial pode agravar uma possível recessão mundial. Na opi-
nião de Michael Roberts, pode ser também o estopim dessa recessão.

A luta de classes pode incidir


diretamente na crise econômica
Existe uma relação direta da luta de classes com a evolução da eco-
nomia. As crises econômicas tanto influem na luta de classes quanto
recebem suas consequências.
Os ascensos revolucionários que afetam vários continentes, como
Chile, Equador, Haiti, Hong Kong, Iraque, Líbano, Irã, Sudão e Argélia,
têm consequências pesadas nesses países, assim como nas regiões
envolvidas. É possível que no próximo período esse ascenso atinja

18
países de maior peso econômico no cenário mundial como algum dos
países imperialistas ou ainda Índia e China.
É importante recordar os reflexos na luta de classes na última curva
descendente da economia capitalista nas décadas de 60-70 do século
passado. Ocorreram grandes convulsões da luta de classes, com pro-
cessos revolucionários e golpes militares contrarrevolucionários em
várias regiões do mundo.
Foi o período em que ocorreram o Maio de 68 na França, a revo-
lução portuguesa de 1974-1975, a vitória da revolução vietnamita
em 1974. Houve grandes ascensos em vários países do mundo. Agora
novamente existe uma tendência à polarização da luta de classes que
pressupõe um enfrentamento entre revolução e contrarrevolução de
forma mais dura e por vezes violenta.
A existência de processos revolucionários não significa que vão
ocorrer revoluções vitoriosas. A crise de direção revolucionária no fim
das contas pode decidir a resolução dessas crises. Podem ocorrer revo-
luções e contrarrevoluções, ascensos e golpes bonapartistas.
O que está ocorrendo no mundo hoje já sinaliza esse processo. No
momento em que escrevemos este texto, existe uma revolução em
curso no Chile, já com mais de um mês de enfrentamentos duríssimos
apesar da repressão do governo Piñera. Ocorreu uma insurreição no
Equador, que combinou a ocupação de Quito pelos indígenas por doze
dias, uma greve geral por cinco dias, um levante dos bairros populares
da capital e o bloqueio das principais estradas do país pelos campo-
neses. No Haiti, existe uma sublevação das massas pela derrubada do
governo Moïse há mais de dois meses.
Em Hong Kong, as mobilizações questionam diretamente o gover-
no de Carrie Lam, mesmo depois da retirada do decreto sobre extra-
dições que motivou o início das lutas. O problema é que o destino do
processo de Hong Kong está diretamente relacionado à evolução da
situação política da China, da qual o território oficialmente faz parte
hoje. O regime autoritário em Hong Kong é apoiado diretamente pela
burguesia local e pela ditadura chinesa.
Existe um levante no Líbano que questiona diretamente o governo
e o regime de unidade nacional, do qual participa o Hezbollah. Outra
sublevação se dá no Iraque contra o regime xiita. No Irã, crescem fortes
lutas contra o aumento dos combustíveis.
O golpe contrarrevolucionário ocorrido na Bolívia é parte do
mesmo processo convulsivo de enfrentamentos entre revolução e
contrarrevolução.

19
Quando este artigo estiver sendo lido, provavelmente novos
processos terão assumido a importância desses descritos. Esse ele-
mento da realidade política, a nosso ver mal avaliado pela maioria
dos economistas marxistas, é o decisivo para apontar a dinâmica da
economia mundial.
A enorme instabilidade causada por crises políticas e ascensos re-
volucionários afeta diretamente a disposição do grande capital para
investir. Isso pode precipitar ou agravar a crise econômica. Por outro
lado, se a burguesia conseguir derrotar esses processos, terá mais con-
dições para impor seus planos e escapar da crise.
Essas grandes lutas são sintomas da crise aberta em 2007-2009.
E, por outro lado, são também decisivas para a evolução da economia.
Como se trata de uma luta, a resultante segue em aberto. A evolução
da luta de classes vai ter importância decisiva no desenvolvimento da
crise econômica.

20
Um estudo sobre a classe
trabalhadora chinesa

Alejandro Iturbe

O objetivo central deste artigo é analisar o que aconteceu com a


grande onda de greves que se espalhou pela China entre 2014-2016 e
a situação atual da luta de classes nesse país, assim como o curso que
os ativistas e os sindicatos independentes que impulsionaram essa
onda seguiram. No entanto, no processo de investigação, de estudos e
de informação, fui incorporando dados sobre a situação salarial e tra-
balhista e algumas características desta classe trabalhadora.
É necessário explicar que se trata de um trabalho realizado com
base na leitura de informes especializados e de notícias jornalísticas,
sem nenhuma possibilidade de contrastar estes dados (e as conclusões
por parte dos autores) com informações ou contatos diretos. Por essa
razão, é necessário tomar com muito cuidado as hipóteses assinaladas
neste material e vê-las como um passo num processo de elaboração e
de acompanhamento que deve continuar.

O proletariado chinês
O primeiro elemento é a dimensão colossal da classe trabalhadora
chinesa e, dentro dela, do gigantesco proletariado industrial. A China tem
uma população de pouco menos de 1.400 bilhão de pessoas. Foi um país
de composição essencialmente agrária: inclusive, em 1980, só 20% da
população era urbana. Porém o processo acelerado de industrialização
e urbanização das últimas décadas fizeram com que em 2010 a metade
da população vivesse nas cidades1. Seguramente, hoje é um pouco mais.
Nesse marco, em 2013, o Departamento de Estatísticas do Ministério de
Recursos Humanos e Seguridade Social (MOHRSS) estimava uma “força
de trabalho de 937 milhões de pessoas”2. Calculava-se o desemprego em

1  Historias de China. “La sociedad china en datos”, por Javier Telletxea Gago, feve-
reiro de 2017. Disponível em: https://www.historiasdechina.com/2017/02/19/
la-sociedad-china-en-datos/
2  BBC News Mundo. “China, la ‘fabrica del mundo’ necesita mano de obra”, janeiro
de 2013. Disponível em: https://www.bbc.com/mundo/noticias/2013/01/130129_
china_trabajadores_mj

21
4,1% (pouco mais que 38 milhões de pessoas), o que nos dá um saldo
líquido de cerca de 900 milhões.
Nesse número, estão incluídos tanto os assalariados quanto os
proprietários (ou os camponeses que trabalham uma terra). Um
informe de 2015 indica que, nas atividades primárias (agricultura,
pecuária e pesca, principalmente por conta própria), trabalhavam
pouco mais de 28% da população ativa, ou seja, pouco mais de 250
milhões de pessoas3. Outro material se refere a “300 milhões de agri-
cultores”4. Vamos usar o primeiro número, obtido de estatísticas ofi-
ciais. O mesmo estudo citado no início informa 19,3% de “proprie-
tários urbanos” (abrangendo burgueses e pequenos proprietários),
isto é, pouco menos de 174 milhões de pessoas.
Na China há, então, cerca de 500 milhões de assalariados. Dentro des-
se total, o estudo informa que 29,3% da força de trabalho total está na
“indústria, construção e energia”. Isso significa que falamos de um prole-
tariado industrial de mais de 260 milhões de pessoas (isso abrange a in-
dústria privada e as empresas do Estado – nacionais, provinciais e munici-
pais – com atividades industriais, de construção e de produção de energia).
Essa quantidade tem um impacto ainda maior se considerarmos que em
2008 o conjunto dos países da OCDE tinha 131 milhões, e o Brasil (com
dados mais recentes), cerca de 20 milhões. O resto dos assalariados (en-
tre 230 e 240 milhões) pertencem a distintos ramos do setor de serviços
(“funcionários e empregados urbanos” públicos e privados). Estamos
falando da maior classe trabalhadora e do maior proletariado industrial
do planeta.

Localização geográfica
É evidente que uma classe trabalhadora e um proletariado industrial
desse tamanho não podem ser homogêneos e apresentam profundas
desigualdades em suas características de idade, salário, nível de
formação, tendências de consumo, nível de organização e de luta etc.
O maior setor do proletariado industrial e os trabalhadores de ser-
viços vivem e trabalham nas grandes cidades da costa e da faixa vizi-
nha. No entanto, também são numerosos nas cidades menores do inte-
rior. Em alguns casos, por meio de empresas provinciais e municipais.

3  Historias de China. “La sociedad china en datos”, por Javier Telletxea Gago, feve-
reiro de 2017. Disponível em: https://www.historiasdechina.com/2017/02/19/
la-sociedad-china-en-datos/
4  Banco Mundial. Disponível em: https://datos.bancomundial.org/indicador/
sl.agr.empl.zs

22
Em outros, porque várias empresas industriais privadas começaram a
transferir-se para o interior em busca de salários menores (como vere-
mos, o salário mínimo obrigatório varia muito de acordo com as regiões)
e de um proletariado mais “dócil” que o apresentado nas grandes cida-
des. Foi o caso da Foxconn (que transferiu parte de sua produção para
o interior depois dos casos de suicídio de vários trabalhadores) ou da
Yantai Hangzhi International (fábrica de lâmpadas de led)5. Esse proces-
so de transferência é incentivado pelo próprio governo desde 2000, mas
se acelerou desde 2010.
Aqui é necessário nos referirmos brevemente ao houkou (o passa-
porte interno requerido para se mudar do interior para as cidades da
costa e que determina o acesso à moradia, à saúde e à educação. Nes-
se sentido, começam a haver mudanças: “Antes os trabalhadores não
tinham muitas opções, salvo a migração. Faziam por necessidade, mas
eram muito discriminados, tanto com relação à moradia quanto com re-
lação à saúde e à educação de seus filhos. […] A migração continua sen-
do muito grande, mas agora muita gente prefere ficar em seu lugar de
origem, onde as fábricas pagam menos, mas há mais benefícios sociais”,
analiza Shueji Yao, um acadêmico chinês radicado na Grã-Bretanha6. Por
conta da combinação entre as empresas provinciais e municipais e da
nova localização de empresas privadas, inclusive em cidades menores
do interior, há milhares de trabalhadores e de operários industriais.

Elementos de diferenciação
Um primeiro elemento de diferenciação a se considerar é que o
salário mínimo obrigatório é diferenciado não só de acordo com as
províncias, mas também nas próprias cidades e regiões de uma pro-
víncia. Um leque que vai desde 1.150 yuanes na província de Anhui
(US$ 166,40) até 2.120 em Beijing e 2.420 em Xangai (US$ 306,80 e
US$ 350,20 respectivamente)7.8

5  BBC News Mundo. “China, la ‘fabrica del mundo’ necesita mano de obra”, janeiro
de 2013. Disponível em: https://www.bbc.com/mundo/noticias/2013/01/130129_
china_trabajadores_mj
6  Idem.
7  Usaremos yuan como moeda, ainda que, internamente, seja utilizado o ren-
minbi, de valor equivalente, mas não convesível.
8  China Briefing. “Salarios mínimos en China 2018-19”, dezembro de 2018.
Disponível em: https://www.china-briefing.com/news/salarios-minimos-en-chi-
na-2018-19/

23
Um segundo elemento é a migração do interior para as grandes cida-
des da costa e o houkou requerido para isso. Estima-se que esse proces-
so envolveu cerca de 250 milhões de pessoas que, como vimos, sofrem
discriminação não só nos temas de moradia, saúde e educação, mas
também na qualidade do emprego que conseguem, já que muitos mu-
nicípios privilegiam na contratação os “bons trabalhos” aos jovens re-
sidentes locais e “estimulam” as grandes empresas a fazerem o mesmo.
Um estudo concentrado em cinco plantas da indústria automotiva
informa que

Eles [os trabalhadores migrantes] se sentem discriminados por lhe serem atri-
buídas tarefas difíceis e pesadas, por fazerem o mesmo trabalho que os tra-
balhadores regulares por salários menores e menos benefícios e por serem
negadas a eles as mesmas oportunidades de treinamento e aprendizado, com
poucas chances de ascender na carreira e sem segurança no emprego.9

Esse mesmo estudo aponta outro elemento de diferenciação: a


crescente utilização de trabalhadores de agência10 por várias grandes
empresas (a maioria, migrantes com houkou); com base em outros es-
tudos, os autores estimam uma quantidade de 60 milhões de traba-
lhadores chineses nessas condições contratuais. De modo específico,
nas plantas automotivas nas quais está centrado o trabalho, o cálculo
era de 50% de trabalhadores “regulares” e 50% de trabalhadores de
agência. Estes últimos recebiam, em média, 80% do salário dos regu-
lares, tinham contratos de trabalho de menor duração e era quase im-
possível ascenderem a um contrato por tempo indeterminado. Além
disso, não podiam pertencer à mesma organização sindical oficial que
os “regulares”, apenas a um sindicato de “trabalhadores de agência”,
com um nível de filiação muito menor. O estudo conclui que, pelo nível

9  CHEN, Vincent; CHAN, Anita; “Regular and Agency Workers: Attitudes and re-
sistance in chinese auto joint ventures”. Em: Revista China Quarterly, nº 224, março
de 2018. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/322520102_
Yiu_Por_Vincent_Chen_and_Anita_Chan_Regular_and_Agency_Workers_Attitudes_
and_Resistance_in_Chinese_Auto_Joint_Ventures_China_Quarterly_March_2018_
no_224 (Tradução nossa)
10  Trabalhadores de agência são trabalhadores precarizados, terceirizados,
cujo contrato de trabalho não é feito direto com a empresa, mas com agências.

24
de associação e colaboração, as agências de emprego eram de fato sub-
sidiárias das empresas que as contratavam.11
Consideremos também a questão de gênero: as mulheres represen-
tam 50% da força de trabalho chinesa. Além de sua tradicional presen-
ça em setores como educação, saúde e outros serviços, sua presença
é majoritária em indústrias que requerem trabalhos de precisão em
tamanhos pequenos, como a montagem de celulares e computadores
(por exemplo, a Foxconn). Considerando-se em nível global, existe uma
“brecha de gênero” desfavorável calculada, em 2018, em 0,673 (zero
é a melhor pontuação; 1, a pior). Esse índice mede o tamanho de tal
desigualdade de gênero na participação na economia e no mundo do
trabalho qualificado, no aceso à educação etc. A China se encontra na
103ª posição entre 143 países estudados12.
Se nos referirmos especificamente à “lacuna salarial”, um estudo de
2012 indicava que as mulheres recebiam, em média, 67,3% do salá-
rio dos homens nas cidades e 56% nas zonas rurais. Embora o salário
das mulheres tenda a aumentar em valores absolutos, isso se dá num
ritmo menor que o dos homens, e a diferença agora é maior que há 20
anos13. A escritora Lijia Zang (focada em histórias do mundo do traba-
lho e da realidade feminina) expressou: “As reformas capitalistas que a
China introduziu em 1978, que trouxeram um crescimento econômico
enorme para o país, significaram uma expansão da desigualdade para
as mulheres.”14
Outro elemento a ser considerado é o crescente emprego (em espe-
cial nas cidades do interior) de estudantes de escolas técnicas (sujeitos
a contratos trabalhistas especiais e com menores salários). Por exem-
plo, cerca de 3% dos trabalhadores da Foxconn provêm desse sistema,
e também os 19 mil trabalhadores da nova planta da Yantai Hangzhi
no interior. Em 2017, segundo o Ministério da Educação da China, “o
número total de estudantes que trabalham como interinos ronda os
oito milhões”.

11  Idem.
12  Datos Macro. “China – Índice Global de la Brecha de Género”, 2018. Dispo-
nível em: https://datosmacro.expansion.com/demografia/indice-brecha-genero-
-global/china
13  Chinosfera. “El salario de hombres y mujeres en China”. Disponível em:
http://www.chinoesfera.com/inxianzai.php?id=65
14  “La apertura de China al capitalismo trajo más desigualdad para las mujeres”,
por Alba Moraleda. Disponível em: https://elpais.com/elpais/2019/05/27/muje-
res/1558971805_964715.html

25
Níveis salariais
O salário mínimo obrigatório (determinado pelos governos cen-
tral, provinciais e municipais) é a referência definida de um “piso
salarial” para os trabalhadores e operários chineses. Como vimos,
esse salário oscila entre 1.150 yuanes (US$ 166,40), em alguns mu-
nicípios da província de Anhui, e 2.420 (US$ 350,20) em Xangai.
Em muitas empresas estatais e nas grandes empresas privadas,
são agregados outros benefícios (em dinheiro ou em serviços), mas
para muitos trabalhadores das empresas estatais das províncias
mais pobres ou de muitas fábricas médias e pequenas é “o salário”
sem adições ou outros benefícios.
Em valores nominais, o salário mínimo vem aumentando de modo
constante, já que os diferentes “planos quinquenais” implementados
pelo governo determinaram aumentos anuais que oscilam entre 6% e
10% (ou mais, no plano 2011-2015). Em quase todos os casos, ficaram
acima da inflação (de 1% ou 2% ao ano, com picos de 6% em 2008 e
2011; 3,5% em 2017; 2,5 em 2018; estimada em 3% para 2019). No
entanto, a inflação dos alimentos foi muito maior, os quais representam
46% dos gastos das famílias urbanas de baixa renda (com picos de
10% em 2004; 13% em 2007; 14% em 2008 e 12% em 2011).
Por isso, nos últimos 15 anos, o salário mínimo nominal duplicou,
mas o aumento real do poder aquisitivo dos trabalhadores foi muito
menor, especialmente para aqueles trabalhadores que só têm essa ren-
da. De toda forma, tanto o salário mínimo quanto o salário médio dos
trabalhadores chineses vêm aumentando de modo quase constante,
calculado em dólares. Algumas informações falam de uma média sala-
rial nacional de US$ 880. Creio que, na verdade, não se trata da média
(soma dos salários dividido pelo total de trabalhadores), mas de uma
média [por amostragem] (uma amostra por categoria, dividido pelo
número de amostras).
Vejamos uma análise mais específica. Num estudo de 2017, o sa-
lário médio dos trabalhadores urbanos das empresas estatais se en-
contrava em US$ 11.670 ao ano (US$ 972,50 ao mês); das indústrias
de tecnologia, US$ 11.054,20 (US$ 921,18 ao mês); das indústrias de
menor valor agregado, US$ 9.121, 20 (US$ 760,10 ao mês); de ser-
viços financeiros, US$ 8.208,60 (US$ 684,05 ao mês); outros servi-
ços, US$ 7.183,80 (US$ 598,65). É interessante destacar que, enquanto
o salário nominal dos trabalhadores das empresas estatais cresceu
10% sobre o de 2016, o dos trabalhadores de serviços cresceu apenas

26
6,8%15. Alguns setores, como os operadores de gruas portuárias, podem
chegar a um salário mensal de US$ 1.258 (com muitas horas extras).
O aumento do valor do salário dos trabalhadores chineses em dóla-
res fez com que o país perdesse “competitividade” frente a outros países
da Ásia e com que algumas indústrias de baixa tecnologia (como têxtil,
confecção e calçados) transferissem seus investimentos a países de salá-
rios menores. Numa análise comparativa, hoje o trabalho industrial chi-
nês tem um custo maior que o de Bangladesh (US$ 38), Paquistão (US$
98), Vietnã (US$ 112) e, inclusive, Malásia (US$ 234). Também fez com
que a média do salário industrial dos trabalhadores chineses superasse
a de países como Brasil, México e Argentina16.

As montadoras
Voltemos agora ao estudo das cinco montadoras que já citamos,
realizado nas seguintes plantas: Guangzhou Toyota (GZ-TY), Shan-
ghai General Motors (SH-GM), Shanghai Volkswagen (SH-VW), Tianjin
Toyota (TJ-TY) e Yantai General Motors (YT-GM)17. Pela legislação chi-
nesa, trata-se de joint ventures (50/50) entre as empresas estrangeiras
e fabricantes chineses. Os sócios estrangeiros são responsáveis pela
tecnologia e pela produção, e os chineses pela administração e pelo
pessoal. São fábricas modernas, com 3.000 a 5.000 trabalhadores. Fo-
ram feitas cerca de 500 entrevistas no total (fora das fábricas); metade
era pessoal “regular” e a outra metade, pessoal de agência.
O salário total desses trabalhadores é composto de duas partes: o
salário básico (que, em média, duplica o mínimo legal, mas inclui o pa-
gamento das horas extras) e uma série de adicionais fixos. No total, os
trabalhadores regulares recebem, ao mês, de 3.648 yuanes (US$ 547),
na Toyota, a 6.144 yuanes (US$ 921), na GM Yantai. Os trabalhadores
de agência recebem de 2.851 (US$ 428), na Toyota, a 4.854 yuanes
(US$ 728), na GM-YT. A isso, deve somar-se um abono (que não é obri-
gatório, mas definido pela empresa) relacionado aos lucros da planta
(pode ser pago por ano ou dividido em cotas): em média, oscila entre

15  Diario del Pueblo. “El salario promedio de los empleados urbanos de Chi-
na llega a los 11.000 en 2017”, El Pueblo en Línea, maio de 2018. Disponível em:
http://spanish.peopledaily.com.cn/n3/2018/0517/c31620-9461115.html
16  El Cronista. “Los salarios en China superan a los de Brasil Argentina y Méxi-
co”, por Steve Johnson, fevereiro de 2017. Disponível em: https://www.cronista.
com/financialtimes/Los-salarios-en-China-superan-a-los-de-Brasil-Argentina-y-
-Mexico-20170228-0016.html
17  Ver nota 9.

27
três e quatro salários básicos por ano (varia entre empresas e entre
trabalhadores regulares e de agência).

Jornada de trabalho e condições de trabalho


Para tentar ordenar a grande quantidade de tipos de jornada e con-
dições de trabalho, em 2007 o Congresso do Povo aprovou a Lei de
Contrato de Trabalho e, em 2008, foi criado o Ministério de Recursos
Humanos e Seguridade Social (MOHRSS), dependente do Conselho de
Estado, como “responsável pela gestão da força de trabalho e das rela-
ções trabalhistas”.
Essa lei estabelece três tipos de sistemas de horários para os traba-
lhadores de turno integral:

a) Sistema de jornada de trabalho padrão: É o mais utilizado. Esta-


belece uma jornada base de oito horas diárias e uma semana base de
quarenta horas. Sobre essa base, pode-se incorporar até duas horas
extras diárias e um dia adicional de trabalho, devendo garantir-se o
mínimo de um dia de descanso semanal. O valor das horas extras deve
ser de 150% em dias da semana, 200% em dia adicional e 300% em fe-
riados. Isso determina, na prática, que inclusive nas fábricas com mais
privilégios (como as montadoras citadas) haja uma jornada diária real
de dez horas e uma semana de sessenta para conseguir um salário
bruto melhor. A lei também determina descansos internos obrigató-
rios para a refeição (meia hora) e entre períodos de duas ou três horas
(dez minutos).
A única exceção que encontrei em minha investigação foi o prin-
cipal centro produtivo da Huawei em Shenzhen: uma notícia basea-
da num informe da empresa fala de jornadas de oito horas e salários
mensais de 6.000 yuanes (US$ 900)18. A Foxconn, ao contrário, (cuja
gigantesca planta principal também se encontra em Shenzhen), foi de-
nunciada por exigir jornadas de doze horas e por submeter trabalha-
dores migrantes a um sistema de “dormitório interno”, no qual traba-
lhadores dormem em condições de superlotação e péssimas higiene e
manutenção. Em 2010, ocorreram explosões por acúmulo de poeira de
alumínio, deixando quarto mortos e 77 feridos. Nesse marco, o salário
mensal total não chegava a US$ 500, e essas condições provocaram o

18  El Financiero. “Planta de Huawei en China: 3,100 celulares por hora y mejor
salario que en México”, por Isaid Mera, outubro de 2017. Disponível em: https://
www.elfinanciero.com.mx/tech/100-celulares-por-hora-y-mejor-salario-que-en-
-mexico

28
suicídio de cerca de vinte trabalhadores. Isso gerou um escândalo in-
ternacional e uma investigação por parte da Apple e obrigou a Foxconn
a aumentar os salários e melhorar um pouco as condições de trabalho.
Ao mesmo tempo, como vimos, iniciou a transferência de algumas li-
nhas de produção para cidades do interior19.
Essa situação da Foxconn se reproduz nas fábricas provedoras da
cadeia de insumos ou em fabricantes de produtos de menor valor agre-
gado (em muitos casos, nem sequer são pagas as horas extras como
tais). Numa entrevista realizada no final de 2018, Pak Kin Wan, mem-
bro da Organização Não Governamental Labour Service and Education
Network (LESN), com base em Hong Kong, que se dedica a supervi-
sionar as condições de trabalho das grandes fábricas na China, disse
que as condições melhoraram nas multinacionais, mas nas fábricas de
propriedade de burgueses chineses, “sobretudo nas empresas do setor
tecnológico e eletrônico, as jornadas podem chegar facilmente às 12
horas ao dia, seis dias por semana. É duríssimo […]. Um dos abusos
que teve mais eco nos meios de comunicação são as horas extras não
pagas”20. Não é por acaso que a expressão “12.6” se popularizou na
China como critério e sistema de trabalho.

b) Sistema de horas de trabalho calculado de forma exaustiva. É


uma espécie de “banco de horas”, no qual as horas trabalhadas são
computadas durante um período para cálculo (mês, trimestre ou ano)
e são calculadas as médias por dia e por semana (não podendo exceder
oito horas diárias e quarenta horas semanais). Esse sistema elimina,
na prática, as horas extras (não consegui averiguar quais empresas o
utilizam).

c) Sistema flexível de horas de trabalho. Aplica-se aos transportes, à


pesca, à exploração marítima de petróleo etc. Implica períodos de tra-
balho intensivo e estendido, seguido de descansos prolongados (seme-
lhante ao que aplica a Petrobras nos setores offshore). A lei estabelece

19  La Información. “Foxconn, la fábrica de Apple en la que los trabajadores se


suicidan”, junho de 2014. Disponível em: https://www.lainformacion.com/mun-
do/foxconn-la-fabrica-de-apple-en-la-que-los-trabajadores-se-suicidan_oidt8C-
TkyBlc0HDAhTYL15/
20  El Diario. “Muchos empleados de fábrica en China no ven que su vida ten-
ga un futuro más allá de la cadena de montaje”, por Pau Rodríguez, novembro de
2018. Disponível em: https://www.eldiario.es/catalunya/China-mucha-forzada-
-trabajar-salario_0_830467858.html

29
que “o empregador deve obter autorização das autoridades competen-
tes antes de adotar o sistema flexível de horas de trabalho”.
Existe também um contrato de trabalho de tempo parcial: não mais
que quatro horas diárias e 24 horas semanais na média. Finalmente,
como vimos, está o trabalho do setor de estudantes de escolas técni-
cas ao qual nos referimos, mas tanto a jornada de trabalho quanto a
remuneração não estão definidas por essa lei, mas por disposições do
Ministério da Educação.

O proletariado das indústrias


de propriedade do Estado
Num artigo publicado em 2015, citei a informação de que se calcula-
va que havia cerca de 70 milhões de trabalhadores no Estado e nas em-
presas estatais centralizadas e cerca de 100 milhões nas empresas pro-
vinciais e municipais21. Uma parte importante desses trabalhadores são
operários industriais em áreas como siderurgia, mineração (em especial
de carvão), construção civil e ferroviária, petrolífera e petroquímica.
Algumas dessas atividades industriais (como a produção de aço, a
produção de carvão e a petroquímica) começaram a desenvolver-se
durante o Grande Salto Adiante do final da década de 1950 e início da
de 1960, por meio de pequenas unidades produtivas de baixa produ-
tividade e de qualidade inferior, nos municípios e nas províncias. Em
seguida, passou-se a unidades médias (também de baixa produtivida-
de) e, por fim, às maiores e mais eficientes, mas aquele primeiro setor
continuou existindo e produzindo.
Há mais de uma década, o governo da China empreendeu um pla-
no de reestruturação dessas indústrias (em especial as de aço e de
carvão), fechando as plantas de menor produtividade e concentran-
do-se nas mais eficientes, melhorando sua tecnologia. Uma parte des-
se plano está em processo de implementação acelerado e implicou na
demissão de 1,8 milhão de trabalhadores22. O objetivo era melhorar a
produtividade global desses setores e os balanços das empresas. As

21  Liga Internacional dos Trabalhadores – Quarta Internacional. “Certezas


e interrogantes que plantea la crisis económica en China”, por Alejandro Iturbe,
outubro de 2015. Disponível em: https://litci.org/es/menu/mundo/asia/china/
certezas-e-interrogantes-que-plantea-la-crisis-economica-en-china/
22  Liga Internacional dos Trabalhadores – Quarta Internacional. “El gobierno
chino planea despedir dos millones de obreiros”, por Marcos Margarido, abril de
2016. Disponível em: https://litci.org/es/menu/mundo/asia/china/el-gobierno-
-chino-planea-despedir-dos-millones-de-obreros/

30
primeiras informações indicariam que o governo chinês está avançan-
do por esse caminho. Vejamos mais de perto alguns desses setores.

Siderurgia. A China é hoje o principal produtor de aço do mundo,


com cerca de 700 milhões de toneladas; seis das dez principais empre-
sas de aço do planeta estão na China. A produção se divide entre esse
setor inicial que já mencionamos e grandes siderúrgicas em Anshan,
Benxi, Pequim, Baotou, Taiyuan, Wuhan, Maanshan, Panzhihua, Chon-
gqing, Xangai e Tianjin. Em função das necessidades internas, inclusive
de algumas exportações, existe superprodução. Nesse marco, o gover-
no chinês elaborou um plano de eliminar a produção de 50 milhões
de toneladas de aço “improdutivo” (cerca de 7% do total da produção)
para concentrar-se nas grandes plantas do litoral. Isso implicou a de-
missão de 300 mil trabalhadores diretos (cerca de 15% do total do
setor)23. Significa que, hoje, falamos de cerca de 2 milhões de trabalha-
dores siderúrgicos.

Carvão. O carvão é o principal componente da matriz energética


chinesa (68% em 2003, 62% em 2018). As diferentes empresas carbo-
níferas estatais são coordenadas por uma grande corporação central.
Em 2004, a produção superou os 2,2 milhões de toneladas e continuou
aumentando. Também existe superprodução. Por isso, ligado ao au-
mento da produtividade da siderurgia e ao fechamento das siderúrgi-
cas, o plano foi reduzir a produção de carvão em 250 milhões de tone-
ladas com o fechamento de milhares de minas obsoletas e a demissão
de 1,5 milhão de trabalhadores diretos. O conjunto da mineração em-
pregava menos de 1% da força de trabalho e continuou expandindo-se
com outros itens além do carvão. Considerando essa redução, pode-
mos inclusive calcular cerca de 8 milhões de operários mineiros.

Construção. Neste ramo existe um setor majoritário de empresas


do Estado focado centralmente na construção de obras públicas, como
a CSCEC (sigla em inglês para Corporação Estatal Chinesa de Engenha-
ria e Construção, a maior empresa do setor), e na infraestrutura, como
a Corporação Chinesa de Construções Ferroviárias e a Corporação
para a Construção da Indústria Nacional de Carvão da China. Também
há grandes companhias privadas que predominam na área dos novos

23  Les Echos. “La Chine intensifie sa lutte contre les surcapacités”, agosto de
2016. Disponível em: https://www.lesechos.fr/2016/08/la-chine-intensifie-sa-
-lutte-contre-les-surcapacites-213616

31
edifícios residenciais, como a CCCC (China Communications Construc-
tion Co.) e as que atuam em outras áreas, como a CRG (China Railway
Group), que se expandiu do setor ferroviário para grandes obras de
infraestrutura (como portos e aeroportos) e assessoria de projetos.
Grande parte dessas empresas (estatais ou privadas) desenvolveram
projetos também no exterior.
No caso das estatais, é necessário considerar outros setores de
peso, como a produção de petróleo (concentrada em grandes empre-
sas como CNPC, CNOOC e SINOPEC); a petroquímica, que combina a
existência de muitas pequenas fábricas de fertilizantes nitrogenados
no interior (que utilizam uma técnica de produção desenvolvida no
país) com plantas maiores e mais modernas de fibras sintéticas, plás-
ticos e produtos farmacêuticos em Pequim, Xangai, Lanzhou, Shengli,
Yueyang, Anqing e Cantão (com uma tendência crescente a empresas
joint venture com capitais de Taiwan, Japão e outros países); a indústria
de alumínio (centralizada pela estatal Aluminum Corporation of China
Limited), que abarca desde a mineração de bauxita até a produção fi-
nal de itens destinados à construção, eletricidade, eletrônica, transpor-
te e embalagens); a indústria naval, setor no qual a China é o primeiro
produtor de navios do mundo. A atividade naval é centralizada pela
CSSC (China State Shipbuilding Corporation)24.
Um setor público em rápida expansão é o do transporte ferroviário
de passageiros e de carga, centralizado pela China Railway Corpora-
tion, e de metrôs nas grandes cidades (atualmente 27 cidades do país
contam com esse meio), com empresas que dependem das respecti-
vas municipalidades. Esse crescimento se apoia numa sólida indústria
ferroviária própria. Agreguemos, por fim, os trabalhadores portuários
e dos transportes em geral, atividade centralizada pelo Ministério do
Transporte da República Popular da China, do qual participam não só
várias empresas do Estado, mas também empresas privadas e autôno-
mos (caminhoneiros). É interessante agregar que a China já superou
os Estados Unidos como principal nação marítima do mundo25.
Fica pendente um estudo mais detalhado sobre a quantidade de
trabalhadores em cada setor do Estado. Como dados globais, um estu-

24  Mundo Marítimo. “China lidera la industria de astilleros superando a Corea


del Sur”, dezembro de 2017. Disponível em: https://www.mundomaritimo.cl/no-
ticias/china-lidera-la-industria-de-astilleros-superando-a-corea-del-sur
25  Poder Naval. “China ultrapassa EUA como principal nação marítima do mundo”,
setembro de 2018. Disponível em: https://www.naval.com.br/blog/2018/09/07/
china-ultrapassa-eua-como-principal-nacao-maritima-do-mundo/

32
do realizado entre 2003 e 2004 estimava que existiam “aproximada-
mente 350 mil empresas estatais... que representam 28% da produção
chinesa frente a 75% no final dos anos 1970, mas que empregavam
44% dos trabalhadores nas zonas urbanas”26.

Algumas considerações gerais


Falamos, então, de uma imensa classe operária e de um gigan-
tesco proletariado industrial, divididos por duas grandes linhas.
Uma é a que existe entre os trabalhadores de empresas estatais e os
de empresas privadas.
Os primeiros refletem um “velho” proletariado em dois sentidos.
Por um lado, mantêm algumas conquistas: melhores salários, maior
respeito às leis trabalhistas, mais estabilidade no trabalho e mais pos-
sibilidades de acesso à aposentadoria. Por outro lado, a média de idade
é quase dez anos superior à dos trabalhadores do setor privado. Por
isso, o “índice de rotatividade nos empregos” é de 10%, em muitos ca-
sos para conseguir melhores oportunidades em outras empresas do
Estado ou como supervisores na indústria privada. Os segundos são
um novo proletariado também em vários sentidos: surgem do desen-
volvimento industrial dos últimos anos, têm salários menores, traba-
lham mais horas, têm menos estabilidade e menos possibilidade de
acesso à aposentadoria. Nesse caso, o índice de rotatividade é de 22%.
Os trabalhadores do setor privado são mais jovens, especial-
mente nas indústrias de maior tecnologia. Por exemplo, no caso
das montadoras já citadas, a idade média dos trabalhadores é de
24 anos (nos principais países ocidentais, é de 40). Os emprega-
dos mais velhos vêm das empresas do Estado e ocupam cargos de
supervisão. Esse perfil de trabalhadores jovens se repete nas em-
presas fabricantes de celulares e computadores, que se negam a
empregar maiores de 30 anos e inclusive demitem os que superam
essa idade se não ocupam cargo de supervisão com amparo legal
para fazê-lo, “com o argumento de que esta pessoa já não agrega
nada à companhia. […] Os com menos de 30 anos não têm com-

26  GILES, John; PARK, Albert; FANG Cai. “How has Economic Restructuring
Affected China’s Urban Workers?” Em: The China Quarterly, novembro de 2004.
Disponível em: http://www.albertfpark.com/uploads/8/1/8/2/81828236/res-
tructure.pdf

33
promissos, são mais baratos, mais ‘exploráveis’ e mais rentáveis a
médio e longo prazo”, analisa um artigo sobre esse tema27.
Outro elemento importante que surge do informe sobre a indústria
automotiva é que todos os trabalhadores têm, no mínimo, 12 anos de
estudo [ensino médio completo] e muitos têm dois anos adicionais de
estudo técnico. Tomada de conjunto, a classe trabalhadora chinesa tem
um nível de formação crescente: em 2016, estimava-se uma média na-
cional de analfabetismo de 5,42%. Os índices são piores, é óbvio, nas
regiões mais isoladas, como Tibete, ou de economia rural, mas dimi-
nuem nas províncias e cidades da costa. Além disso, nas indústrias de
maior valor agregado, o ensino médio é um requisito para ingressar;
atualmente, há cerca de 90 milhões de pessoas com título universitário
e outras tantas com outro tipo de formação superior (professores ou
com formação profissional). O total nos dá mais de 13% de chineses
com educação superior28.
Isso corrobora o que apontamos no artigo de 2015:

É importante compreender que uma parte significativa da classe trabalhado-


ra industrial mudou seu caráter. Já não se trata da geração recém-chegada do
campo, mas de seus filhos, já criados nas grandes cidades, com melhores níveis
de educação e maiores aspirações sociais.29

Trata-se de um aspecto que terá importância tanto na análise da


onda de greves quanto nas perspectivas da situação atual.
Por sua vez, os trabalhadores mais velhos e com menor nível edu-
cacional, que não estão nas empresas do Estado ou não ascendem a
cargos de supervisão no setor privado, veem-se condenados de forma
crescente a postos de trabalho de salários menores e condições de

27  Xataka. “En China si tienes más de 30 años no puedes trabajar en empresas
tecnológicas: cuando la discriminación por edad es legal”, por Raúl Álvarez, maio
de 2018. Disponível em: https://www.xataka.com.co/otros/en-china-si-tienes-
-mas-de-30-anos-no-puedes-trabajar-en-empresas-tecnologicas-cuando-la-dis-
criminacion-por-edad-es-legal
28  Historias de China. “La sociedad china en datos”, por Javier Telletxea Gago, fe-
vereiro de 2017. Disponível em: https://www.historiasdechina.com/2017/02/19/
la-sociedad-china-en-datos/
29  Liga Internacional dos Trabalhadores – Quarta Internacional. “Certezas
e interrogantes que plantea la crisis económica en China”, por Alejandro Iturbe,
outubro de 2015. Disponível em: https://litci.org/es/menu/mundo/asia/china/
certezas-e-interrogantes-que-plantea-la-crisis-economica-en-china/

34
trabalho piores, como os das indústrias de vestuário, de utensílios de
cozinha ou de joias. No caso da indústria automotiva, são as produto-
ras de autopeças que têm as condições salariais e trabalhistas inferio-
res às das montadoras.
Dentro da indústria privada, outra grande linha divisora continua
sendo o houkou, o qual já analisamos.

Nível de vida e tendências de consumo


Analisamos que o aumento do salário real dos trabalhadores chi-
neses (à custa de jornadas extenuantes) vem aumentando seu poder
aquisitivo. Isso se expressou num aumento das estatísticas dos níveis
de consumo em valores absolutos como indica o quadro a seguir.

QUADRO 1 – Quadro de consumo por família


1995 2000 2005 2010 2014

Zonas Rurais 1.344 1.917 2.784 4.941 8.744

Zonas Urbanas 4.769 6.999 9.832 17.104 25.449

Nota: Os valores estão em renminbi sem sua conversão para dólar em cada ano. De
toda forma, mostram o aumento ao qual nos referimos.30

Porém esse aumento do valor absoluto se transforma numa curva


de dinâmica inversa quando se compara o consumo com o PIB chinês
de cada ano em termos percentuais.

QUADRO 2 – Quadro de consumo por lar


1995 2000 2005 2010 2014
Consumo por lar 45.8 47.0 40.1 36.6 37.9

Ou seja, as maiores possibilidades que a melhoria salarial oferece


não representam um aumento proporcional do consumo da classe tra-
balhadora. Por um lado, isso expressa uma tendência ao aumento da
desigualdade na distribuição da riqueza: “enquanto em 1993 as ren-

30  BUSTILLO, Ricardo; MAIZA, Adoni. “Reformas sociales en China: 2016-2020”.


Em: Problemas del desarrollo. Universidade Nacional Autônoma do México, vol. 47,
outubro-dezembro de 2016, pp. 9-35. Disponível em: https://www.sciencedirect.
com/science/article/pii/S0301703616300360

35
das do fator trabalho representavam cerca de 50% do PIB, em 2007
eram de 43%.”
Por outro lado, na realidade não houve aumento de possibilidades de
consumo para alguns setores porque o aumento nominal foi devorado
pela inflação dos alimentos, a moradia, a saúde e, como veremos, a ajuda
aos pais idosos. Em outros casos, nos quais existe sim [o aumento], os
trabalhadores optam por poupar esse dinheiro e não gastá-lo: o índice
de renda mensal destinado à poupança passou de 24%, em 2004, para
30% em 2014. Segundo o trabalho já citado, isso reflete “uma persisten-
te falta de confiança na rede de seguridade social”, tanto no que se refere
aos seguros por doença quanto a demissões e aposentadoria.
Isso nos leva a analisar o sistema de aposentadoria chinês e sua
cobertura limitada. Atualmente, o sistema oficial de pensões cobre
apenas 40% da população (contribuintes), com uma participação
majoritária dos empregados do Estado. A cobertura para o setor pri-
vado é muito débil. Por isso, os trabalhadores desse setor “preferem
privar-se de bens que melhorariam suas condições de vida para ter um
nível de tranquilidade e segurança maior”. O governo chinês tem um
plano de estender a cobertura do sistema de aposentadorias, mas isso
é, por ora, “música do futuro”.
Essa tendência majoritária se combina com outra minoritária de
setores da população que de fato aumentam seu consumo de bens
duráveis e que, muito possivelmente, já inclui algumas camadas mais
altas e privilegiadas da classe operária. Um informe de 2012 indicava
que mais de 300 milhões de chineses pertenciam à “classe média”, de-
finida não com critérios marxistas, mas como “aquelas famílias com
uma renda anual entre US$ 10.000 e US$ 60.000”31.
Em 2012, essa quantidade de pessoas representava quase 24% da
população do país e cerca de 48% da população urbana (embora nem
todos estivessem nas cidades). Vimos que uma parte dos integrantes
dessa faixa de renda opta por consumir menos e economizar. Porém
outra parte começa, de fato, a inclinar-se ao consumo, em especial os
mais jovens, em itens como produtos eletrônicos, cuidados de saúde e
beleza, academias e viagens.
Também se expressou num aumento da venda de carros. Em 2010,
foram vendidos no país 18 milhões de veículos. O número continuou
crescendo até 2017, quando chegou a 29 milhões (desse total, cerca

31  CNN Money. “China’s growing middle class”, por Tami Luhby, abril de 2012.
Disponível em: https://money.cnn.com/2012/04/25/news/economy/china-mid-
dle-class/

36
de 90% foram carros). Em 2018, houve uma queda de 11,41% (como
resultado da desaceleração da economia) e a venda caiu a menos de
26 milhões.
Mesmo com essa queda, a China é hoje o principal mercado de car-
ros do mundo. Porém é necessário localizar a real dimensão desses nú-
meros: no ano de maiores vendas, representavam 22 carros vendidos a
cada 1.000 habitantes. É uma proporção superior apenas à do Brasil em
2012, ano de pico de vendas (18 a cada 1.000), enquanto a China é um
país com uma quantidade muito menor de veículos acumulados. Existe
um setor que variou seus hábitos de consumo, mas a maioria da classe
operária chinesa continua andando de trem, metrô, ônibus, motocicle-
tas (em 2016, foram vendidas 17 milhões) e a tradicional bicicleta.
Então, um primeiro fator que impulsionou a onda de greves dos anos
anteriores foi resumido pelo já citado Pak Kin Wan: “Muitos empregados
de fábrica na China não veem sua vida com um futuro além da linha de
montagem.”32. Um segundo fator, ao qual também nos referimos, é o fe-
chamento das empresas siderúrgicas e carboníferas menos produtivas.

Os sindicatos oficiais
Antes de analisar a onda de greves e conflitos, suas reivindicações
e o papel dos novos sindicatos independentes, é importante dar uma
olhada nos sindicatos oficiais chineses.
A única organização sindical legal na China é a Federação Nacional
Sindical Chinesa (FNSC ou ACTFU na sigla em inglês). A legislação pro-
íbe a existência de outras organizações. Em 2006, tinha 134 milhões
de membros, com 1,713 milhão de sindicatos de base, 31 federações
provinciais, 10 grandes sindicatos industriais nacionais (que abarcam
diferentes empresas gigantescas) e duas federações específicas para
empregados do Partido Comunista e do aparato central do Estado33.
É a maior central sindical do mundo. No entanto, reúne apenas 27%
da classe trabalhadora chinesa. Na classe operária industrial, sua pre-
sença é maior nas empresas estatais e muito menor no setor privado.
Nas indústrias privadas, atua mais nas joint venture com o imperia-
lismo do que nas de burgueses chineses. Por exemplo, nas montadoras

32  El Diario. “Muchos empleados de fábrica en China no ven que su vida ten-
ga un futuro más allá de la cadena de montaje”, por Pau Rodríguez, novembro de
2018. Disponível em: https://www.eldiario.es/catalunya/China-mucha-forzada-
-trabajar-salario_0_830467858.html
33  “All-China Federation of Trade Unions and Its Work”, novembro de 2002. Dis-
ponível em: http://www.china.org.cn/english/2002/Nov/48588.htm

37
do estudo citado, 64% dos trabalhadores regulares estavam filiados
ao sindicato (no caso dos de agência, caía para 24%). Essas empresas,
além de serem as responsáveis pela assinatura do contrato coletivo,
atuam, por um lado, como “parte integrante da equipe gestora dos só-
cios chineses”; por outro, “sua função é muito parecida com os sindica-
tos das empresas estatais, cujas maiores responsabilidades envolvem
organizar atividades sociais, prover serviços de bem-estar e atender
problemas pessoais”. O primeiro aspecto (a conivência com os quadros
gestores) é também exposta por Pak Kin Wan: “Só há uma federação
permitida, a ACFTU, e é controlada pelo governo, que também contro-
la seus processos eleitorais, nos quais sempre ganham supervisores e
diretores.”
Sua presença é muito menor (quase desaparece) nas fábricas de
propriedade exclusiva de burgueses chineses, como a Huawei (como
vimos, com melhores condições salariais e trabalhistas) ou na Fox-
conn. Nesta última, depois dos escândalos que os incêndios e os suicí-
dios provocaram,

Guo Jun, diretor do departamento jurídico da Federação Nacional de Sindicatos


da China, transformou a Foxconn, com inúmeras fábricas no gigante asiático,
em alvo de suas críticas às empresas que obrigam seus empregados a traba-
lhar mais do que as 40 horas semanais que determina a lei trabalhista chinesa.

A empresa taiwanesa respondeu a essas críticas:

O senhor Guo Jun nunca veio a nenhuma de nossas fábricas, o que torna difícil
que convença alguém lançando estas conclusões. […] Assim como outras em-
presas, [a Foxconn] enfrenta continuamente o desejo dos empregados de fazer
horas extras para aumentar sua renda.34

A onda de greves e conflitos


É preciso entender que, além da proibição de organizar sindicatos
independentes, as greves e os protestos coletivos, na prática, também
estão proibidos na China. “Em caso de protesto, nenhuma lei te prote-
ge de ser despedido ou inclusive preso por alterar a ‘harmonia social’.

34  La Vanguardia. “El sindicato oficial chino carga contra Foxconn”, por Isidre
Ambrós, fevereiro de 2015. Disponível em: https://www.lavanguardia.com/tec-
nologia/20150208/54425948752/sindicato-oficial-chino-carga-contra-foxconn.
html

38
Por isso, muitos aceitam as condições e não se atrevem a levantar a
voz” (Pak Kin Wan). Ou seja, a greve e outras formas de conflitos cole-
tivos aparecem, então, como um último recurso, de alto risco não só ao
trabalho, como pessoal, só aplicável em casos extremos.
Mesmo com essas condições, a partir de 2007, houve um aumento
constante do número de greves e conflitos, processo que se acelerou
entre 2014 e 2016 (coincidindo com os primeiros sinais evidentes de
freio ou crise da economia chinesa). Nesses três anos, segundo um in-
forme da organização China Labour Bulletin, houve 6.700 greves e pro-
testos em diferentes pontos do país, um crescimento exponencial com
relação ao patamar inicial.
Quais foram as causas dessas greves e conflitos? Em muitas empre-
sas privadas, foram por conta de atrasos no pagamento dos salários,
pelo pagamento das horas extras de acordo com a lei, por melhores
condições de trabalho e também no sistema de aposentadorias e se-
guro saúde. Outras lutas na área privada foram pelo pagamento das
indenizações de empresas que fecharam para transferir-se a outra re-
gião (e até a outro país). Ainda que a legislação da China preveja um
pagamento nesses casos, muitas empresas aproveitam a situação para
não pagar. A grande maioria desses conflitos não se deu nas fábricas
maiores, mas nas médias e pequenas (é evidente que, por causa da
“magnitude chinesa”, isso pode chegar a 1.000 trabalhadores)35. Uma
exceção, em 2014, foi a greve da Yue Yuen Industrial, fabricante de cal-
çados, provedora de grandes marcas mundiais, que chegou a abranger
40 mil dos 200 mil trabalhadores das diferentes plantas dessa empre-
sa, por não pagar a contribuição do seguro social36.
Outra causa de greves e lutas foi o plano de reestruturação e o fe-
chamento de um setor de empresas e fábricas siderúrgicas e minas de
carvão que já analisamos. Isso se combina com a resposta a acidentes
(com feridos e vítimas), resultado das condições precárias de seguran-
ça na indústria, em particular nas minas de carvão. Por exemplo, em
2016, ocorreu o conflito dos trabalhadores da empresa de mineração
estatal Longmay, que protestavam contra vários meses de atraso no

35  Para uma mostra do que dizemos, ver o informe “China: las huelgas y protes-
tas obreras continúan a pesar de la caída de la producción industrial” (2012). Dis-
ponível em: https://www.cetri.be/IMG/pdf/China_las_huelgas_y_protestas_obre-
ras_continuan-1.pdf
36  Liga Internacional dos Trabalhadores – Quarta Internacional. “Brazos cruza-
dos, máquinas paradas”, maio de 2014. Disponível em: https://litci.org/es/menu/
mundo/asia/china/brazos-cruzados-maquinas-paradas/

39
pagamento de seus salários, no quadro do anúncio do governo de que
seriam despedidos 100 mil trabalhadores, cerca de 40% do total do
quadro de funcionários da empresa. Outro exemplo se deu na side-
rúrgica estatal Angang Lianzong, localizada na capital da província de
Guandong, na qual centenas de operários entraram em greve contra
um plano de reduzir em até 50% os salários e aumentar a jornada diá-
ria obrigatória para doze horas em alguns setores. Um panorama mais
completo dessa onda de greves pode ser encontrado numa página es-
pecial do China Labour Bulletin.
Nesse processo de lutas, é evidente que o papel dos sindicatos ofi-
ciais foi muito negativo. Em muitos casos, por ausência; em outros, por
jogar de forma aberta do lado da patronal ou das empresas do Estado.
No caso da Yue Yuen, alguns dias depois de iniciada a greve, a Federa-
ção Sindical e vários ministérios entraram em ação para pôr fim a ela.
O Departamento de Seguridade Social reconheceu que a empresa lhe
devia esse dinheiro, e a Yue Yuen respondeu, em acordo inquestioná-
vel com a FSNC, que “pagaria as cotas atrasadas da seguridade social se
os operários pagassem a parte deles” e que:

[...] aqueles que não voltassem ao trabalho em três dias a partir do comunicado
teriam o contrato cancelado por abandono de trabalho […]. A greve terminou
com a aceitação do acordo, com relutância, mas foram apresentadas ações le-
gais contra a empresa, que se viu obrigada a pagar cerca de US$ 31 milhões à
instituição da seguridade social, com uma perda de cerca de US$ 58 milhões
por causa da greve.37

Uma rara exceção foi o caso da filial da loja do Walmart em Changde


(com 135 trabalhadores), que fecharia devido ao plano de reestrutu-
ração da empresa no país. O surpreendente é que o enfrentamento foi
liderado por Huang Xingguo (líder da seção local da FSNC nesta loja).
A atividade incluiu piquetes de mais de 70 trabalhadores, apesar das
pressões dos dirigentes locais do Partido Comunista para que se man-
tivesse a luta nos marcos da “legalidade”38.

37  Liga Internacional dos Trabalhadores – Quarta Internacional. “El gobierno


chino planea despedir dos millones de obreros”, por Marcos Margarido, abril de
2016. Disponível em: https://litci.org/es/menu/mundo/asia/china/el-gobierno-
-chino-planea-despedir-dos-millones-de-obreros/
38  Idem.

40
A organização sindical independente
Tal como observamos, a organização sindical independente é
proibida na China. A existência de núcleos permanentes dentro das
fábricas é clandestina e, por isso, apresenta grandes dificuldades de
acesso a informações precisas.
De fato, existem várias ONGs que atuam no país que tentam “su-
pervisionar” as condições salariais e trabalhistas, apoiar as reivin-
dicações e dar certo amparo a elas. Como disse Pak Kin Wan ao se
referir aos sindicatos independentes: “As ONGs assumiram algumas
de suas funções, que servem de apoio para os trabalhadores para co-
locá-los em contato com advogados trabalhistas ou para apresentar
denúncias diretamente.” A grande maioria dessas ONGs tem sede em
Hong Kong e está ligada ao conselho editorial do China Labour Bul-
letin, que, por sua vez, está ligado à CIOSL (hoje integrada na CSI) e a
sindicatos dos países imperialistas. Ou seja, são uma espécie de “polo
sindical” exterior das empresas e fábricas e, em certos casos, alguns
de seus membros atuam ao estilo dos “organizadores externos” dos
sindicatos estadunidenses.
Quando se deflagra um movimento coletivo, “as greves são
sempre dirigidas por comissões de trabalhadores eleitos em cada
mobilização, que são invariavelmente demitidos e, em muitos ca-
sos, detidos por sua atuação na greve”39. Nessas condições, é quase
impossível a existência de uma organização sindical independente
dentro das fábricas ou empresas.
Um setor muito importante entre aqueles que lideraram e partici-
param das lutas do setor privado foram os trabalhadores com houkou:

Desde 2007, a vanguarda indiscutível são os imigrantes internos, quando as


greves se concentraram na província de Guangdong [antiga Cantão, NdR],
sudeste da China. Desde então, sua situação econômica não teve nenhuma
mudança significativa, mas seu poder de fogo aumentou, principalmente pela
experiência adquirida nestes anos e por fatores sociais e demográficos.40

O estudo sobre a indústria automotiva começava a tirar uma con-


clusão parecida, especialmente no setor de autopeças:

39  Idem.
40  Idem.

41
A nova geração de trabalhadores temporários da indústria automobilística
chinesa começou a mostrar a capacidade e o potencial de atuar de forma cole-
tiva e de lutar por mudanças positivas.

Endurece a repressão enquanto


fazem algumas concessões
Diante dessa onda ascendente de conflitos e greves, o governo chi-
nês combinou um endurecimento da repressão aos dirigentes e ati-
vistas, que também se estendeu a membros de algumas ONGs que os
apoiavam ou que eram mais combativas. Esse aumento da repressão
se fez mais evidente desde dezembro de 201541, quando teve início um
operativo nacional de demissões e detenções:

[...] depois de uma severa repressão, em dezembro de 2015, as ONGs traba-


lhistas independentes se viram gravemente afetadas, e seus trabalhadores fi-
caram sem recursos organizativos.42

Atualmente, o China Labour Bulletin informa que há cerca de 50


pessoas em diferentes formas de prisão (entre trabalhadores e mem-
bros das ONGs) e menciona ativistas desaparecidos. O símbolo dos que
sofreram a repressão é Liu Shaoming (61 anos), ativista dos direitos
sindicais e democráticos que participou da mobilização da Praça Tia-
nanmen [Praça da Paz Celestial, NdR] (onde se uniu à extinta Fede-
ração Autônoma de Trabalhadores) e ajudou a organizar a greve da
Yue Yuen e outros movimentos. Liu já está preso há quatro anos por
“incitar a subversão do poder do Estado”43.
Essa repressão passou a ser também “preventiva”. Em maio de
2018, antes de uma liquidação44 com menos do que seu salário, um

41  China Labour Bulletin. “China’s workers’ movement will continue despite
crackdown on labour activists”, abril de 2019. Disponível em: https://clb.org.hk/
content/china%E2%80%99s-workers%E2%80%99-movement-will-continue-
-despite-crackdown-labour-activists
42  El Salto. “El Partido Comunista Chino contra las leyes laborales chinas”, por
Eli Friedman e Elaine Hui, novembro de 2018. Disponível em: https://www.elsal-
todiario.com/china/xi-jinping-visita-espana-china-32-obreros-arrestados-inco-
municados-desaparecidos-jasic
43  China Labour Bulletin. “Labour activist Liu Shaoming marks four years in jail
as crackdown continues”, maio de 2019. Disponível em: https://clb.org.hk/con-
tent/labour-activist-liu-shaoming-marks-four-years-jail-crackdown-continues
44  É o dinheiro que o trabalhador deve receber após rescindir seu contrato com a empresa.

42
grupo de trabalhadores da Shenzhen Jasic Technology Co. (Jasic) co-
meçou a tentar organizar um sindicato da empresa. Fizeram isso den-
tro dos marcos legais e solicitaram ingressar no ramo local da FNSC.
Foram confrontados não apenas pela empresa, mas também pelo go-
verno e pela FSNC. A campanha dos trabalhadores obteve o apoio de
ONGs, de trabalhadores de fábricas próximas e de estudantes. Inicia-
ram-se as demissões e, como o movimento continuava, em 27 de julho,
32 pessoas foram presas de forma violenta, entre elas, trabalhadores
da Jasic, membros de uma ONG, operários e estudantes que se solida-
rizaram. Alguns ainda estão detidos e outros, desparecidos45.
Essa política central se combinou com algumas concessões por par-
te do governo, como os aumentos salariais permanentes previstos nos
planos quinquenais, os planos de ampliação do sistema de aposenta-
dorias e de seguridade social. Também por parte das empresas, muitas
das quais concediam a reivindicação pela qual havia começado a mobi-
lização ou usavam mecanismos de dispersão de situações explosivas,
como é o caso da Foxconn. De modo preventivo, faziam algumas con-
cessões nas grandes joint venture com empresas estrangeiras. Como
expressou Pak Kin Wan:

Algumas aprenderam a lição e viram que não podem abusar dos direitos de
seus empregados, porque isso prejudica sua imagem mundial. Em suas fábri-
cas, as condições já não são tão ruins como em outras.

A situação atual
A política do governo parece ter sido evitar que a onda de lutas se
estendesse e se aprofundasse pelas grandes cidades industriais da
costa, em especial pelos batalhões pesados da indústria privada. Esse
objetivo parece ter sido alcançado. O mapa de greves de 2018 da CLB
se refere a “1.701 incidentes” (no pico do processo, superava ampla-
mente os 2.000), dos quais 73,3% afetaram empresas privadas locais,
11,6% empresas estatais, e somente 2,9% empresas estrangeiras ou
joint venture46.

45  El Salto. “El Partido Comunista Chino contra las leyes laborales chinas”, por
Eli Friedman e Elaine Hui, novembro de 2018. Disponível em: https://www.elsal-
todiario.com/china/xi-jinping-visita-espana-china-32-obreros-arrestados-inco-
municados-desaparecidos-jasic
46  China Labour Bulletin. “The state of labour relations in China, 2018”, janeiro de
2019. Disponível em: https://clb.org.hk/content/state-labour-relations-china-2018

43
Além da já mencionada luta dos trabalhadores da Jasic, que teve
repercussão nacional, quero me referir a outras duas de grande signifi-
cado, que também ocorreram em 2018. A primeira foi a de operadores
de guindastes de torre dos grandes pátios de estoque, uma peça chave
no processo produtivo e de transporte de mercadorias e da indústria
da construção. Chegam a obter um bom salário mensal, mas com mui-
tas horas extras em trabalhos de extrema tensão e exigências perma-
nentes. Por exemplo, nas áreas de tecnologia mais obsoletas, foram re-
portados, só em 2013, 130 acidentes de trabalho, com 15 mortos e 12
feridos. Em maio de 2018, fizeram uma greve por aumento de salários
e melhores condições de trabalho. A greve teve uma grande repercus-
são na imprensa, mas não conquistou suas reivindicações.
A outra afetou os caminhoneiros autônomos, predominantes neste
tipo de transporte: havia cerca de 30 milhões de pequenos proprie-
tários. A greve se desenvolveu durante um fim de semana do mês de
julho, tendo como ponto central uma linha de aproximadamente 1.500
quilômetros que une as cidades de Chengdu a oeste com Jinhua ao
leste, afetando ao menos doze polos de transporte. Com alguns traços
semelhantes aos da greve de caminhoneiros do Brasil, foi lançada pe-
las redes sociais em protesto contra o preço dos combustíveis, o baixo
valor dos fretes e o fato de que um aplicativo que conecta os caminho-
neiros com os que necessitam de transporte não só lhes acrescenta um
custo, como também reduz os preços dos fretes. Por isso, suas rendas
líquidas se reduziram de forma significativa47.

Algumas conclusões
A repressão e algumas concessões conseguiram frear a dinâmica de
expansão da onda de greves e fazê-la retroceder um pouco. Porém não
conseguiram liquidá-la e, inclusive, incorporaram outros setores sociais.
As bases objetivas que a geraram permanecem intactas e agora co-
meçam a combinar-se com outros elementos. Por exemplo, com o im-
pacto que a guerra comercial com os Estados Unidos terá no país e em
sua economia. Ou as profundas contradições que a política do “filho

47  Diário Norte, “China: huelga de camioneros por el alto precio de los com-
bustibles”, junho de 2018. Disponível em: https://www.diarionorte.com/
article/167386/china-huelga-de-camioneros-por-el-alto-precio-de-los-
-combustibles-
Liga Internacional dos Trabalhadores – Quarta Internacional. “Certezas e interro-
gantes que plantea la crisis económica en China”, por Alejandro Iturbe, outubro
de 2015. Disponível em: https://litci.org/es/menu/mundo/asia/china/certezas-
-e-interrogantes-que-plantea-la-crisis-economica-en-china/

44
único” (aplicada desde 1979), embora tenha sido revogada, exerce so-
bre o envelhecimento da população e o tamanho da força de trabalho.
O regime e a burguesia chinesa continuam sentados sobre o barril
de pólvora da maior classe trabalhadora e do maior proletariado in-
dustrial do mundo. Como dizia no artigo de 2015:

A gigantesca classe trabalhadora chinesa e seu proletariado industrial estão


despertando e começando a agir. Se este processo continuar, pode adquirir
proporções nunca antes vistas em nenhum país do mundo e entrar em choque
não apenas com o modelo econômico do país, mas também com o regime dita-
torial controlado pelo Partido Comunista.

[...]

O grande problema para o regime e para a burguesia da China é que não exis-
tem no país mecanismos de mediação que lhes permitam hoje amortecer ou
desviar esses possíveis choques ou canalizar essas aspirações. A única organi-
zação política existente é o PC e não há qualquer liberdade democrática para
as massas ou para os setores médios. Os sindicatos oficiais e seus dirigentes
são, de fato, organismos e funcionários do Estado que se mantêm em seus
postos mediante o medo e a repressão e, por isso, são odiados pela base. E a
burguesia (e a nova pequena burguesia em que ela pode se apoiar) é numeri-
camente fraca diante da imensa classe trabalhadora e dos camponeses pobres.

[...]

Ou seja, seria um confronto direto, sem mediações, em “estado bruto”.

[...]

É fato que o regime e a burguesia chinesa mostraram ser extremamente


pragmáticos e poderiam promover uma “abertura”. Mas até agora não se
dispuseram a fazê-lo e pode ser que, mais adiante, seja tarde demais (ou sejam
obrigados a fazê-lo pelo ascenso).

Evidentemente, eles têm a alternativa de tentar esmagar o movimento com


a repressão, como fizeram em Tiananmen. Para isso, contam com ferramen-
tas muito poderosas: forças armadas com 3.500.000 efetivos e forças policiais
com 1.600.000, com armamentos poderosos, cada vez mais modernos.

45
Entretanto, além do fato de que 80% dos membros das forças armadas são
recrutas e reservistas (portanto, uma base com muitos vasos comunicantes
com as massas) [...]

A realidade social do país, porém, é muito diferente hoje do que


era na época de Tiananmen: diferentemente de 1989, enfrentará uma
classe trabalhadora jovem e de dimensões colossais. É impossível pre-
ver os altos e baixos que esse processo terá, tampouco seus ritmos,
mas é, em grande medida, inevitável. Nesse caminho, a questão da or-
ganização sindical e do direito à existência de sindicatos independen-
tes e à realização de greves, como um primeiro passo de organização e
aprendizado de luta, passa a ser uma palavra de ordem de fundamen-
tal importância.

46
47
Tudo
é
História
Janeiro de 1919: os dez dias que
abalaram a Argentina –
Segunda parte
Insurreição operária e crise revolucionária
Tito Mainer

Um verdadeiro Plano Condor:


a contrarrevolução e o pogrom
A sucessão de reuniões no Centro Naval, aproveitando a relativa
paz do domingo, não era acidental: as forças contrarrevolucionárias,
com o apoio implícito do governo, da polícia, do exército e dos princi-
pais jornais, foram organizadas para “assustar” os sindicatos rebeldes,
principalmente o ativismo da ala revolucionária da revolta. Na segun-
da-feira, dia 13, La Vanguardia destacou que “a caça ao russo” havia
começado e contava um episódio.

A esposa de Salomón Bronstein, 36 anos, domiciliado à rua Bermejo, 562 [hoje


rua Jean Jaurés], um ferreiro mecânico (que trabalha em Palermo há 12 anos
nas oficinas metalúrgicas da Industrial Electricity Company), chegou ao nosso
escritório denunciando, com lágrimas nos olhos, que, às 10 horas da manhã de
ontem, um grupo de 12 ou 13 soldados da cavalaria, entre os quais alguns com
galões, que podem ser de classe ou oficiais, invadiram a casa, na qual há quatro
moradores e, com o revólver na mão e entre ameaças, insultos e injúrias, des-
ferindo golpes, levaram aquele operário como prisioneiro. [...] Com Bronstein,
foram capturados pela mesma força do exército quatro vizinhos do térreo e
sete do andar superior da mesma casa. Um escondeu-se e foi ferido na cabeça,
e a Assistência Pública teve de ser chamada. Apesar das contínuas negativas do
chefe de polícia, três trabalhadores russos foram levados ao departamento de
polícia ontem à tarde, acusados de constituir um soviete. Eles foram golpeados
e espancados por soldados e guardas. Foram então jogados por uma escada
abaixo. Agora dizem que cometeram suicídio. Todos se gabam dizendo: “Você
verá como vamos tratá-los.” Os jornalistas que testemunharam o incidente fo-
ram forçados a passar por uma sala adjacente.

49
O interior toma a frente, entre a “normalidade”
e a “contraofensiva”
Enquanto Buenos Aires e Mar del Plata eram militarizadas e as “for-
ças-tarefas” intensificavam suas ações, Rosário se tornava a vanguar-
da. Em Tucumán, Córdoba e Mendoza, o movimento continuava forte.
Com um tom quase eufórico, o La Época (LE) da segunda-feira
abriu suas páginas com algumas “considerações” apropriadas para
apresentar aqui:

No dia de hoje, o processo de normalização da vida na capital avançou rápido.


Os medos inspirados pelos aspectos sediciosos que o movimento assumiu a
certa altura desapareceram por completo. No espírito público, a tranquilidade
foi completamente restaurada. Como término dos eventos sangrentos, restam
apenas palavras de condenação para seus promotores e expressões de aplauso
pela moderação e energia com que os poderes públicos foram conduzidos.

Um detalhe que favoreceu o retorno à normalidade foi a resolução


dos vendedores de jornais de encerrar a greve. Para a cidade, era deci-
sivo que o serviço de coleta de lixo também fosse restaurado.
No entanto, o jornal enfatizava que a contraofensiva oficial continu-
aria porque “em todas as instalações que a polícia invadiu ontem, ela
encontrou numerosas espingardas, revólveres e outras armas”. De fato,
LE observou que “todos os indivíduos presos possuíam armas de fogo
e estavam abundantemente equipados”.
A greve marítima era total, e a Federação Ferroviária sustentava o
movimento mantendo suas próprias reivindicações, que incluíam o
pedido de

[...] liberdade a todos os presos; readmissão de trabalhadores e empregados


que participaram da última greve; estrito cumprimento do decreto sobre re-
gulamentos trabalhistas emitido pelo Poder Executivo em outubro de 1910; a
imediata sanção das leis de aposentadoria e regulamentação do trabalho da
ferrovia que tramita no Senado; e o compromisso das empresas de não retaliar.

Relatava-se que em Santa Fé “a greve dos trabalhadores portuários


e dos marinheiros continua” e que “algumas embarcações já carrega-
das estão atracadas no porto, impossibilitadas de partir devido à falta

50
de pessoal”. Embora não tenha havido incidentes, todas as tropas esta-
vam aquarteladas. Em Rosário,

[...] a cidade amanheceu triste. As lojas mantinham todas as vitrines fechadas,


muitas com as portas entreabertas. Os únicos veículos vistos nas ruas eram da
polícia e poucos pertenciam a indivíduos.

A paralisação ferroviária era total e – relatou La Época – já provo-


cava perdas. Os trabalhadores municipais atacaram um caminhão de
lixo, grevistas derrubaram barreiras, passagens de nível e placas, e
foi relatado: “ontem à tarde a polícia prendeu 36 agitadores nas ins-
talações da Federação (Ferroviária) considerados membros do comitê
executivo do soviete de Rosário.” Ao meio-dia do dia 13, os grevistas
incendiaram um armazém da Central Argentina, e a companhia de
bondes decidiu suspender seus serviços. As lojas de varejo fecharam
suas portas. Além disso, o sindicato dos tipógrafos “entrou em greve”,
o que significava que os jornais não seriam impressos e “uma parte do
sindicato dos padeiros entrou em greve.”
O ambiente social também estava agitado em Paraná, capital de En-
tre Ríos. Seguimos os correspondentes de La Nación (LN):

Os trabalhadores municipais de ensino, obras públicas, parques e jardins en-


traram em greve porque o prefeito Uranga não concordou com a reivindicação de
que as novas disposições sobre o trabalho de limpeza fossem deixadas sem efeito.

Como consequência,

[...] ontem à noite, os delegados das diferentes organizações sindicais decidi-


ram eleger uma comissão mista [...] para definir a atitude que os sindicatos
devem adotar diante da greve dos trabalhadores municipais.

“Em atitude de solidariedade”, os ferroviários de oficinas e arma-


zéns deixaram o trabalho no início do dia 14, enquanto suas instala-
ções foram fechadas pelas autoridades “devido aos distúrbios”, mas
reabertas no dia 15.

51
Os representantes dos sindicatos – informa o LN do dia 16 – solicitaram autori-
zação para comemorar amanhã uma manifestação de protesto contra a atitude
do prefeito, que se recusa a readmitir o pessoal já substituído.

Enfrentamentos em Córdoba
No mesmo dia 14, uma semana após o primeiro massacre à porta
de Vasena, ocorreu um sério confronto na cidade de Córdoba. Em um
telegrama, o governador da província resumiu:

No momento em que uma manifestação patriótica foi realizada, cerca de 150


pessoas localizadas no parapeito da sede do La Voz del Interior, jornal de ten-
dências maximalistas1, atiraram nos manifestantes.

O relatório observou que “o tiroteio, no qual a força policial inter-


veio, durou duas horas” e que “mais tarde a sede do jornal foi invadi-
da e cerca de 80 pessoas foram presas”. Nas páginas do La Prensa, foi
apresentada outra versão:

[...] ao terminar, ontem à tarde, uma demonstração patriótica, um núcleo denso


de manifestantes desfilou na frente do jornal La Voz del Interior, proferindo
gritos hostis contra ele. De repente, um tiro soou, que os manifestantes dizem
ter vindo do jornal, iniciando-se imediatamente um forte tiroteio, no qual
vários dos agressores ficaram feridos. A polícia ocupou o local após a briga e
prendeu muitas pessoas que estavam no jornal citado. Confiscou armas e mu-
nições guardadas no jornal. A polícia diz que também havia balas explosivas.

O correspondente assinalou:

Os manifestantes afirmam que […] receberam tiros vindos da coluna de mani-


festantes enquanto permaneciam na varanda assistindo a passeata, apesar das
manifestações hostis que lhes foram feitas aos gritos de: “Abaixo os traidores
da pátria!”

1  Maximalista é como os adeptos do bolchevismo eram chamados. (Nota do tradutor)

52
Mil mortos e quatro mil feridos?
Em Buenos Aires, as manchetes do La Vanguardia na terça-feira,
14, estabeleceram um número que a história copilou e que La Protesta
tornaria seu: “Balanço trágico: 700 mortos e 2.000 feridos (numa pá-
gina interna aumenta o número para 3.000)”. Outras notas apontam
que “o terror branco continua” e referem-se à “novela policial sobre o
soviete maximalista”. Também afirmava: “o governo pensa em estado
de sítio”, e perguntava: “Que novas barbaridades preparam?” Naquele
dia, a imprensa socialista fez um extenso relato da situação nos vários
sindicatos, destacando a importância da unanimidade da greve maríti-
ma e a generalização da greve dos ferroviários. Também hierarquizou
seu papel na Câmara dos Deputados, na qual ainda não havia tido a
obtenção de relatórios do ministro do Interior, enquanto os deputados
radicais preparavam um projeto de declaração de estado de sítio que a
bancada socialista rejeitou.
Mas dois dias depois um artigo do Buenos Aires Herald (BAH) inti-
tulado “As vítimas” afirmou:

Parece que o número total de mortes nos infelizes eventos que ocorreram du-
rante a semana está entre 850 e 1.000 vítimas, com uma estimativa de 4.000
feridos. Não será possível estabelecer o número exato de feridos, uma vez que
os grevistas levaram seus companheiros feridos com eles após a batalha com a
polícia, deixando apenas os mortos e os feridos graves.

É curioso que o número assustador exceda facilmente o oferecido por


socialistas e anarquistas. Os relatórios diplomáticos subsequentes dos
Estados Unidos e da França aumentariam esse número: o cônsul ameri-

53
cano não se preocupou em informar a seus superiores sobre mais de
1.300 mortos2.

Um estado de sítio de fato


No Congresso Nacional, todos queriam “se dar bem”. Os socialistas,
denunciando o governo e exigindo explicações; os radicais, apoian-
do uma lei de estado de sítio; e os conservadores, exigindo rigor, mas
pressionando Yrigoyen3 a decretar a Lei Marcial. Na sessão realizada
na terça-feira, dia 14, La Nación detalhou:

O ministro do Interior disse que se limitaria a elaborar um resumo dos eventos


[…], porque os fatos e as medidas tomadas para conjurá-los eram de notorie-
dade pública. Não poderia acrescentar nada que o Congresso não soubesse e
o Executivo, por meio dele, declarou que se havia limitado a cumprir com seu
dever. As reivindicações dos trabalhadores foram atendidas e nenhum esforço
é poupado para impedir que a situação anormal pela qual o país está passando
seja terminada em breve. [...] Apesar dos esforços do Poder Executivo, não foi
possível evitar os eventos conhecidos, que se estendem às províncias, como
confirmaram os telegramas recebidos, nos quais foram denunciados não ape-
nas os ataques e explosões de ataques violentos, mas também foram solicita-
das forças para salvaguardar a propriedade e a vida dos cidadãos. A convoca-
ção de reservistas, em sua opinião, era uma medida necessária [...] acreditava

2  La Razón de 11 de janeiro informa que “é impossível determinar em que cir-


cunstâncias a infinidade de pessoas perdeu a vida, dada a confusão que prevalece
em muitos bairros e a tarefa dos policiais. La Nación afirma que os mortos são
100 e os feridos 400, mas La Vanguardia eleva o número para 700 mortos e 2.000
feridos. Diego Abad de Santillán, autor do La FORA, argumenta que o número total
de prisioneiros e fichados foi de 55.000. Muitos dos anarquistas e a direção forista
ficaram presos na Ilha Martín García antes da deportação. Nesse enxame de núme-
ros, os arquivos diplomáticos dos Estados Unidos registram 1.350 mortos e cerca
de 5.000 feridos, e a missão francesa registrou 800 mortos e entre 3.000 e 4.000
feridos. O relatório do Comissário Romariz especifica um número ... entre 60 e 65
mortos reconhecidos. Quanto ao número de detidos, mais duas crônicas nos per-
mitem ampliar o quadro: “É materialmente impossível – diz a terceira edição do La
Razón de 13 de janeiro – fornecer por enquanto o número exato de prisões feitas
pela polícia e bombeiros. Sabe-se que existem mais de 2.000 pessoas alojadas nas
celas e masmorras do departamento central, delegacias de polícia e bombeiros. Os
detidos, quase inteiramente, são trabalhadores. 50% dos detidos são russos [e] os
catalães os seguem em proporção”.
3  Hipólito Yrigoyen foi presidente da Argentina nos períodos de 12 de outubro
de 1916 a 12 de outubro de 1922 e de 12 de outubro de 1928 a 6 de setembro de
1930. (Nota da edição brasileira)

54
que o pedido de forças era uma medida acertada, porque as províncias preci-
sam da ajuda do governo nacional.

A extensão das lutas para o interior justificou então o estado de sí-


tio e a convocação dos recrutas recém-licenciados da classe de 1897.
Na sessão, o deputado socialista Nicolás Repetto se referiu ao pe-
rigo representado pela proliferação de “policiais ou guardas particu-
lares” ao que se limita a chamar de “uma complicação inútil e às vezes
dolorosa”. Falando na primeira pessoa – como parte do Estado burguês
–, o deputado socialista disse:

Persistimos nas manifestações xenófobas de nove ou dez anos atrás. E agora,


quando tudo foi modificado como se diz, não apenas reincidimos nessa via,
mas também já se fala de estado de sítio.

A bancada radical insistiu na necessidade de declarar o estado de


exceção e assinou um projeto de lei: “O Senado e a Câmara dos Depu-
tados da Nação decidem: Art. 1º declarar o território da república em
estado de sítio pelo período de 30 dias. Art. 2º Comunicar ao Poder
Executivo”. O ministro do Interior declarou que “o poder executivo o
faria seu”, e o projeto foi finalmente aprovado por 65 votos contra 5, de
um total de 120 deputados. La Nación ressaltou: “O Senado pode reu-
nir-se hoje se o Poder Executivo expressar urgência na sanção dessa lei
extraordinária.” Porém esclarecia que “entre os senadores houve uma
opinião adversa ao projeto”. Os conservadores das províncias preferi-
ram que Poder Executivo assumisse a responsabilidade e, finalmente,
a “meia aprovação” dos deputados nunca seria aprovada na Câmara
Alta. De fato, nos dias seguintes foi considerado desnecessário e, além
disso, uma arma perigosa nas mãos de um governo “intervencionista”:
o Buenos Aires Herald disse que o Senado rejeitaria a aprovação do es-
tado de sítio no qual não via sentido, e o El Diario do dia 16 avisava: “O
estado de sítio não é oportuno nem necessário.”
O crescimento do conflito nas províncias multiplicou os pedidos de
reforço pelos governadores e, ao mesmo tempo, as comissões “em de-
fesa da ordem” de “defesa legal” e dos “jovens patrióticos” que conse-
guiram assinaturas e coletas em favor das forças da ordem e alistavam-
-se como guardas civis. Organizações desse tipo se formaram em locais
muito diversos, em alguns casos diretamente sob responsabilidade do

55
comitê radical local, como em Salta, província de Buenos Aires, “cujos
membros” – de acordo com La Nación do dia 14 – “viajam pela cida-
de armados com carabinas e cometem todos os tipos de abusos com
quem não é da sua filiação política”. Em Santa Fé, no mesmo dia,

[...] ocorreu uma manifestação entusiasmada para condenar os excessos ma-


ximalistas, patrocinada pelo Comitê Pró-Nacionalidade. [...] O comitê convidou
os jovens a se inscreverem na legião voluntária que será formada para defen-
der a cidade no caso de os grevistas tentarem cumprir suas ameaças.

La Nación informou que no dia 14

foi constituído um Comitê Pró-Nacionalidade, formado pela maioria dos mem-


bros do Clube da Ordem, que redigiu um manifesto ao povo declarando propó-
sitos de “consolidar a ideia nacional […]; oferecer sua cooperação ao governo
da província, a fim de manter a ordem social em seu conceito mais amplo, den-
tro dos preceitos constitucionais; condenar e combater as doutrinas maxima-
listas utópicas neste país de todas as liberdades e que oferece a seus próprios
e estranhos os benefícios honestos e positivos que o trabalho e a inteligência
proporcionam, aplicados a todas as atividades”.

Em Rosário, “nesta tarde, alguns jovens conhecidos – de famílias tra-


dicionais – percorreram a cidade e distribuíram um panfleto convidan-
do argentinos e estrangeiros que formaram seus lares sob nossas leis a
prestar uma ajuda às autoridades para manter a ordem” e convidaram a
uma reunião para esse efeito. La Nación assegurou que “a manifestação
organizada pelo Comitê Patriótico assumiu grandes proporções”.
Em Bahía Blanca, entretanto, no mesmo dia 14 à noite, “reuniram-
-se numerosos israelitas que decidiram enviar aos jornais uma nota
deixando explícito seu protesto pelos atos realizados por seus com-
patriotas”. O pogrom, cujo epicentro era o bairro de Once na capital,
estendia-se também a outras localidades que tinham a presença de
comunidades judaicas consideráveis.

Añatuya, Tafí Viejo, Cruz del Eje…


A greve ferroviária teve picos máximos de tensão em alguns locais
que funcionavam como entroncamentos ferroviários. No norte de Cór-
doba, no dia 11, o movimento de greve assumiu um caráter violento

56
em Cruz del Eje: “Uma grande parte dos trabalhadores iniciou o mo-
vimento queimando o armazém de estopas e óleos, um vagão de pas-
sageiros e outro carregado de mercadorias.” Naquele dia, “vários dos
principais líderes” foram conduzidos à prisão conforme relatado pelo
La Nación. Sem atos de violência, a ferrovia continuou totalmente pa-
ralisada, com concentrações em Cañada de Gómez, Governador Gálvez,
Santa Fé e nas oficinas de Tafí Viejo em Tucumán.
Em 15 de janeiro, um telegrama enviado de Añatuya, Santiago del
Estero, para o La Nación dizia:

[...] ontem à noite, declararam-se [em] greve os ferroviários desta, incendiando


setenta vagões, dez máquinas e depósitos de lenha [no] valor de um milhão
de pesos aproximadamente. A greve e os incêndios foram feitos simultanea-
mente. […] Essa greve de caráter revolucionário não é dirigida por comissões
de trabalhadores como as anteriores, mas todo o pessoal da empresa aderiu, à
exceção de oito ou dez funcionários superiores.

Añatuya ficou incomunicável, pois “a linha telegráfica foi cortada


pelos grevistas”.
Por outro lado,

[...] foram recebidas notícias de San Cristóbal (Santa Fé), nas quais [se] diz que
uma bomba explodiu em um dos esgotos da linha férrea no quilômetro 206 e
outra foi encontrada sem explodir no quilômetro 207. As bombas estavam car-
regadas com nitroglicerina e compostas por tubos de caldeira e percussores de
fábrica [...] sem causar danos pessoais.

Outro relatório indica que “os cabos telegráficos foram encontra-


dos destruídos numa extensão de cerca de um quilômetro”. “A inter-
rupção do tráfego ainda é total entre Baradero – ao norte de Buenos
Aires – e Añatuya – a oeste de Santiago –”, uma distância de cerca de
700 quilômetros.
Em relação a Tucumán, digamos que no dia 15 os cocheiros e mo-
toristas entraram em greve e que no mesmo dia a polícia fechou todas
as sedes de organizações operárias. No sindicato ferroviário, dado que
os trabalhadores não obedeceram à ordem de desalojar, “o esquadrão
disparou sobre eles (La Prensa, 17 de janeiro). Além disso, houve con-
frontos com “mais de oitenta disparos numa fábrica de conservas”. O go-

57
verno provincial decidiu – de acordo com La Época do dia 15 – “que um
batalhão de voluntários composto por 200 recrutas fosse organizado
para ajudar a polícia a manter a ordem”. A polícia de Tucumán

[...] solicita autorização para que o comandante da divisão utilize duzentos


fuzis Mauser, duzentos cinturões completos e vinte mil tiros de guerra – mil
balas por voluntário! –, durante o tempo em que durarem as atuais e anormais
circunstâncias.

A reação ao movimento operário deu rédeas soltas a várias respos-


tas. Em Tucumán, foi a própria polícia que se lançou para equipar civis.
O modelo de militarização iniciado por Dellepiane em Buenos Aires foi
repetido em quase todo o país.
Enquanto isso, o Estado nacional e alguns governos provinciais
convocaram os reservistas das classes de 1896 e 1897. No dia 14, a
cidade de Salta acusou a chegada de “agitadores maximalistas fazendo
propaganda secreta”: pelo menos do dia 12 ao dia 15 a província foi
mantida incomunicável com a capital.
No outro extremo do país, em 19 de janeiro, o La Prensa relatou
que os trabalhadores das barracas de San Antonio Oeste “entraram em
greve e apresentaram uma pauta solicitando aumento de salário e a
não admissão de trabalhadores não afiliados ao sindicato, greve que se
estendeu aos trabalhadores das casas de comércio”. Um despacho do
governador, recebido em Buenos Aires no dia 28,

[...] informa que a greve foi resolvida: na fórmula do acordo, está estabelecido
que os trabalhadores ganharão sete pesos por dia, trabalharão 8 horas por dia
e receberão 1,50 pesos por hora extra. Os empresários do comércio promete-
ram não retaliar e permitir que os trabalhadores sejam afiliados a qualquer
associação.

Outra notícia vinha do extremo sul da Argentina, da área próxima


à agitada Punta Arenas chilena. Em sua edição de 29 de janeiro, o La
Prensa destacava a “falta de garantias” em Santa Cruz e a “necessidade
de enviar tropas regulares”. Um enviado da Sociedade Rural de Santa
Cruz declarava:

58
[...] na esteira dos eventos do Lago Buenos Aires4, os residentes e a Sociedade
Rural de Deseado conseguiram do governo que as tropas nacionais que foram
para impedir qualquer excesso ficassem permanentemente no território, por-
que sua simples presença implicava uma garantia de ordem.

Por outro lado, as notícias vindas de Mendoza ordenaram a crise


política aberta na província que se arrastava há vários meses5. As notas
de terça-feira, 14 de janeiro, indicavam que, após vários dias de greve
dos motoristas e paralisação dos transportes – e greves de solidarie-
dade a eles –, “após três dias de paralisação nesta manhã, os jornais
locais apareceram”, mas “as comunicações telegráficas com a capital
são muito escassas”. Além disso, foi relatado:

[...] hoje a cidade recuperou sua aparência habitual; no entanto, vários sindica-
tos continuam em greve e estão trabalhando ativamente para que a Federação
declare novamente a greve geral na província.

No dia 16, o El Diario informava: “a polícia conseguiu prender qua-


se todos os elementos anarquistas e afins desta província, que passam
de cem.” Essa lista de supostos “maximalistas” incluía muitos lencinis-
tas e outros opositores, num caso semelhante ao de La Voz del Interior
de Córdoba. Na vizinha e geralmente pacífica San Juan, no entanto, no
âmbito de um processo eleitoral local, no dia 15, houve um retorno
ao trabalho dos trabalhadores do serviço de limpeza da cidade após
vários dias de greve “trazendo estes os inconvenientes que se devem
supor na atual estação de verão” como destaca o El Pueblo (EP). Pas-
sados alguns dias, a associação “Liga de Defesa Nacional” fez uma ma-
nifestação no sábado, 20. Em um dos discursos e perante uma plateia
superior a 5.000 pessoas, Alfredo Molna Figueroa disse:

4  Lago na Patagônia na fronteira com o Chile.


5  Em 1917, o presidente Yrigoyen organizou a intervenção na província gover-
nada pelos conservadores e nas eleições realizadas o líder popular José Néstor
Lencinas foi imposto. Pouco depois de assumir o governo, Lencinas iniciou um
processo de profundas reformas sociais e manifestou diferenças com o presidente,
o que causou uma nova intervenção na província em 24 de dezembro de 1918.
Nesse contexto de confrontos entre os radicais “yrigoyenistas” e os “lencinistas”,
emergiram as reivindicações dos funcionários públicos, imediatamente prejudica-
dos pela crise.

59
É necessário acabar com nossa tolerância para com esses desalmados que pregam
a dissolução social; é necessário, é urgente, é patriótico, jogar para fora do país
essa escória que infecta e prostitui, e os argentinos maximalistas devem ser
cuspidos e amaldiçoados como traidores infames da pátria. (EP, 21 de janeiro)

No dia seguinte, constituído na província “em função dos últi-


mos acontecimentos”, o novo fascismo de San Juan resolveu “aderir
à Liga Patriótica Argentina de Buenos Aires e iniciar uma série de
reuniões públicas”.

Buenos Aires sob controle


Para concluir este percurso, retornamos à província de Buenos Ai-
res de acordo com o “panorama” de La Nación do dia 15:

General Sarmiento: 60% do pessoal da refinaria de Mattaldi, que estavam em


greve, retomaram suas tarefas; em Mar del Plata, os cocheiros retomaram suas
funções; em San Nicolás, um grupo de cerca de 50 grevistas causou alguns da-
nos nos trilhos e na estação, e a polícia dissolveu-os e fez algumas prisões.

De Zárate, um boato indica que “a cidade permanece calma, desa-


parecendo a perspectiva de greve anunciada”, embora logo se diga que
“o pessoal do F. C. Argentino Central e do Frigorífico Hall está em gre-
ve”; em Lincoln, “a incerteza que prevalecia até as dezessete horas de
hoje foi dissipada com a chegada de um trem de passageiros, lendo os
jornais avidamente […]. A polícia prendeu hoje por algumas horas uma
comissão de trabalhadores que percorreu o comércio convidando ao
fechamento das casas”; em Trenque Lauquen, a agitação dos trabalha-
dores “tende a desaparecer”; e em Balcarce, “com os reforços das de-
legacias vizinhas, a ordem foi restaurada”. Uma “disposição” assumida
na cidade de Azul dava como certo um estado de sítio “local”:

[...] Os líderes do comitê socialista foram convocados verbalmente à delegacia


ontem, onde foram notificados de que por resolução superior estava proibido reunir-
se no referido comitê ou em vias públicas em número maior que duas pessoas.

60
Na maneira de apresentar as notícias do sul da província, uma linha
praticamente contradiz a seguinte. “Bahía Blanca: até hoje o telégrafo
nacional ficou sem receber notícias por causa das medidas adotadas
pela greve. Nesta [cidade] o movimento não teve nenhuma repercus-
são.” Mas os padeiros estavam em greve desde 25 de dezembro do ano
anterior, uma luta que

[...] é tomada como pretexto para incitar a greve geral, com a adesão dos outros
sindicatos. Até hoje, gráficos, pedreiros e anexos, barraqueiros6 e outros aderi-
ram à greve. Se a greve for aprovada, seria por 24 horas. Entre os trabalhado-
res e os donos de padarias, as negociações foram suspensas e a polícia decidiu
fechar a sede da sociedade de resistência dos padeiros.

Salta merece menção especial:

Uma parte da polícia local foi enviada a La Plata por ocasião dos eventos que
ocorreram lá. A vigilância está sob responsabilidade dos poucos agentes que
restam e do comitê radical governista, cujos membros percorrem a cidade ar-
mados com carabina, cometendo todo tipo de abusos com quem não é da sua
filiação política. [...] A polícia e particulares reuniram todas as armas que esta-
vam nas casas de negócio, deixando explícito que procediam dessa maneira
porque foi declarado um Estado de Sítio, o que é incerto.

Em relação à Grande Buenos Aires, em Avellaneda, a situação

[...] no campo operário não sofreu nenhuma variante que valha a pena men-
cionar. […] A polícia, diante de certos excessos cometidos por elementos estra-
nhos no bairro de Piñeyro, compostos por trabalhadores, redobrou a vigilância
prestando um serviço especial naquele local, com cem homens do esquadrão
de segurança e carcereiros.

Enquanto isso,

[...] o Centro Estudantil de Avellaneda, diante de eventos recentes, enviou uma


nota ao comissário da primeira seção, Sr. Sánchez Vera, parabenizando-o por

6  São os trabalhadores dos depósitos de materiais de construção, as “barracas”.

61
sua atitude. [...] O referido funcionário, perante um pedido feito pelas oficinas
navais de Mihanovich enviou uma dotação de agentes para salvaguardar, tanto
quanto possível, os interesses daquela empresa que se consideram ameaça-
dos, segundo o gerente da mesma, pelos trabalhadores em greve.

Além disso, sem escapar das formalidades da lei, La Nación enfa-


tizou que, na mesma Avellaneda, “nesta manhã – quarta-feira, dia 15
– autores desconhecidos tentaram incendiar as instalações que a So-
ciedade Israelita de Ajuda Mútua ocupa na Rua Arenales, 312, pondo
fogo em duas janelas externas”. Em Lanús: “Tudo está calmo. Os funcio-
nários do bonde do Sul estão agora em greve, apresentando esta tar-
de uma pauta de reivindicações. As carruagens começaram a circular
hoje”; em Quilmes, “os padeiros entraram em greve”
As últimas notícias agrupam as informações sobre La Plata e outras
localidades menores.

[...] Três Lomas: o bairro está alarmado com a retirada da polícia. Faz cinco
dias que estamos sem trens, correspondência e jornais da capital. La Plata: a
polícia de investigações prendeu hoje os conhecidos agitadores anarquistas
Antilli e González Pacheco. [...] Campana: os sinalizadores, guardas, operários
e trabalhadores das oficinas da ferrovia Central Argentina, os marítimos e pa-
deiros estão em greve. Alguns agitadores foram presos. [...] A polícia acaba de
surpreender uma casa na qual os maximalistas se encontravam diariamente
para organizar a propaganda [...] invadindo a casa da Rua Rivadavia, 242, ocu-
pada por um negócio de compra e venda de roupas usadas, na qual encontra-
ram, numa sala interior, cento e trinta livros de autores anarquistas escritos
principalmente em hebraico. A sagacidade do referido oficial não terminou aí.
Com a energia que o caso aconselhou, ele começou a inspecionar as roupas
usadas existentes no negócio e encontrou mais de dois mil panfletos contendo
programas governamentais maximalistas e folhetos que convidavam à greve
revolucionária. Isso aconteceu às dezenove horas de hoje, e os proprietários
da empresa, José Gelman, Alfredo Bercovich e Moisés Rolsen, foram presos. No
momento, a polícia está fazendo outras prisões porque tem a lista completa
dos membros do centro, além de papéis comprometedores para os detidos.

A Comissão Pró-Defensores da Ordem

62
Na sede da Associação do Trabalho (Bolsa de Trabalho), foi realizada uma
assembleia de personalidades do setor bancário, comércio, indústria etc.; na
qual foi constituída a Comissão Pró-Defensores da Ordem, que visa promover
uma coleta nacional de donativos para marinheiros, soldados, bombeiros e po-
liciais encarregados de restaurar a ordem durante os eventos desses últimos
dias. A comissão em referência propõe enviar sua ajuda a todos aqueles que de
forma direta ou indireta contribuíram para o trabalho das autoridades supe-
riores e principalmente aos que foram feridos nos vários encontros ocorridos,
bem como para as famílias dos que caíram para sempre.

Os membros da comissão presidida pelo contra-almirante Manuel


Domecq García são então registrados7.

Algumas doações valiosas recebidas no início – sublinha-se – permitem atri-


buir-lhe grandes proporções. A comissão fará uma reunião esta tarde para dis-
cutir como fazer os recursos chegarem aos necessitados para que possam ser
realmente eficazes.

Controle operário nos navios e assembleia


da FORA combativa
Em outra ordem, tentava-se canalizar a continuidade do conflito
dos sindicatos marítimos por meio da mediação oficial, mas o Centro
de Cabotagem “não acredita que seja viável”, e a FOM manteve sua
pauta de reivindicações com toda a intransigência. A greve nos portos
era total, durava quase um mês e fora estendida a todos os portos de
Paraná. Na troca de propostas entre a federação e os empregadores
reunidos no Centro de Cabotagem, foram entregues cartas nos dias 3,
7 e 8 de janeiro, que a FOM respondeu em 13 de janeiro. No dia 15,
informou-se sobre a

7  Presidente: Domecq García; primeiro vice-presidente, D. Pedro Christopher-


sen; segundo vice-presidente, doutor Manuel de Iriondo; tesoureiro, don Juan Mig-
naquy; pró-tesoureiro, D. José Etcheverry; secretários Dr. Enrique Uriburu, capitão
de fragata Francisco Guerrico e Dr. Atilio Dell’Oro Maini; vogais, senhor engenheiro
Guillermo White, Dr. Luis Zuberbühler, José Drysdale, Dr. Joaquín S. de Anchorena,
Carlos Lumb, Antonio Lanusse, Fernando Guerrico, Juan Rómulo Lanusse, Alberto
Almirón e Celedonio Pereda.

63
[...] a assembleia operária realizada ontem pelos trabalhadores dos sindicatos
afiliados à FOM, [que] concordaram em manter a resolução adotada na assem-
bleia anterior, decretando a greve parcial do sindicato8. Por consequência, a
FOM forneceria pessoal apenas para as embarcações cujos armadores aceitas-
sem as reivindicações que lhes foram apresentadas no mês passado.

FIGURA 1 – Desenho de Rodolfo Fucile, ilustrador e cartunista nascido em Buenos


Aires em 1978. Publicou os livros Artistas irrelevantes (2008), Vicios y virtudes del
Carnicero (2010), El Supervisor (2012), Fuera de Serie (2013), Bagatelas. Dibujos
de Buenos Aires (2016) e os desenhos utilizados neste artigo, que fez, de modo
oportuno, para Semana Trágica, publicado por Ediciones Del Antiguo, Buenos Ai-
res, Argentina, 2018 (www.rodolfofucile.com.ar).

FIGURA 2 – Rodolfo Fucile

8  Greve parcial significa que a medida de força é geral, mas não se cumpriria nas
empresas que aceitassem a pauta e firmassem essa aceitação.

64
As médias e pequenas empresas tendiam a aceitar as reivindica-
ções dos trabalhadores, e o conflito se concentrou na disputa com os
armadores mais importantes, como Mihanovich e Dodero. Com a gre-
ve “parcial”, um verdadeiro controle operário foi imposto nas águas do
Paraná e do Prata:

Os clientes das embarcações cujos detalhes precedem – de acordo com o dis-


posto pelos grevistas – receberão uma credencial especial fornecida pela fede-
ração, que deve ser exibida às comissões de fiscalização que se apresentarem.

Além do conflito marítimo, na terça-feira, dia 14, à tarde – de acordo


com a manchete do EP da manhã seguinte –, reuniram-se em assem-
bleia todos os sindicatos afiliados à FORA anarquista do V Congresso,
em sua sede à rua Independencia, 3618, na qual “foi nomeada uma
comissão para se reunir com o chefe de polícia e explicar as condições
para o retorno ao trabalho”, cujas bases fundamentais eram:

a libertação imediata de todos os presos por crimes sociais; a retirada de to-


das as forças armadas, considerando que a presença das tropas constitui uma
provocação constante aos trabalhadores; ampla liberdade de reunião; que os
trabalhadores não serão responsáveis por nenhum dos atos criminosos come-
tidos; e o fim de todos os tipos de ações e abusos cometidos pela polícia.

A assembleia aguardou o retorno da comissão até as 18h. “Como


não regressava, foi aprovada uma moção, estabelecendo um prazo de
24 horas para a liberdade de todos os presos por crimes sociais; caso
contrário, não retornarão ao trabalho”, disse o jornal católico. Os “quin-
tistas”, que lideravam o conflito marítimo, ainda estavam em posição
de impor algumas condições. De fato, em Vasena, a produção ainda não
havia sido retomada.

A Liga Patriótica Argentina


Na crônica dos dias 11 e 12, falamos das reuniões do chamado Co-
mitê Nacional da Juventude, incentivado, sobretudo, por jovens uni-
versitários e yrigoyenistas. Paralelamente, outras forças mais tradicio-
nais, com a participação de oficiais militares e marítimos, começaram
a organizar a Comissão Pró-Defensores da Ordem, que por alguns dias

65
foi chamada de “Legião ou Guarda Cívica” e que no dia 20 adotou o
nome de Liga Patriótica Argentina
La Prensa do dia 13 disse:

No Centro Naval, os membros do Comitê Nacional da Juventude se reuniram


às 9 da manhã [do dia 12] para determinar sua ação nas circunstâncias atuais.
Procedeu-se à inscrição de todos os cidadãos que, sem distinção de ideias po-
líticas, simpatizem com a iniciativa do comitê de formar uma guarda nacional
para cooperar na manutenção da ordem na cidade.

Da mesma forma, o La Nación da segunda-feira destacou que “seu


presidente se reuniu com o general Dellepiane para consultá-lo sobre
como os serviços do comitê poderiam ser aproveitados”. Segundo o re-
lato do LN,

[...] o general Dellepiane disse que, como o distúrbio tende a desaparecer, o


concurso oferecido, que ele agradeceu devidamente, não é necessário por
enquanto. No entanto, o comitê considera apropriado, dada a gravidade dos
eventos produzidos, continuar a organização empreendida.

Como apontamos, outro grupo – composto por “notáveis” – reunia-


-se com os mesmos propósitos.

No Centro Naval – relata o LN – um grande grupo de pessoas reuniu-se no


local, convidadas por vários cidadãos que haviam oferecido seus serviços para
ajudar as forças do Estado a fim de aumentar a eficiência de suas atividades.
O vice-almirante Domecq García, acompanhado pelos capitães de fragata [Ma-
nuel] Malbrán e [Jorge] Yalour, comunicou aos participantes o anúncio do go-
verno do fim da greve, portanto a oferta em questão era desnecessária.

Embora aparentemente seus serviços tenham sido rejeitados pela


autoridade militar, foi anunciado: “hoje às 9h30, esses jovens farão
nova reunião no mesmo lugar.”
Esse primeiro ramo da organização misturou-se às primeiras ações
do pogrom, que começaram naquele fim de semana. Na quinta-feira,
dia 16, o LN intitulou de “Em defesa da ordem” a nota referente à con-
formação da “guarda cívica”:

66
Ontem, foi realizada uma reunião no Centro Naval com os representantes de
todos os centros que aderiram ao objetivo de formar uma guarda cívica. O vi-
ce-almirante D. Manuel Domecq García presidiu o evento e os seguintes cava-
lheiros compareceram: Federico Leloir, representando o Iate Clube Argentino;
Jorge Artayeta Castex, pelo Círculo de Armas; Capitão Tiburcio Aldao, pelo Pro-
gress Club; Capitão Jorge Yalour, pelo Centro Naval; Dr. Raúl Sánchez Elía pelo
Jockey Club; Major Just E. Diana, pelo Círculo Militar; Sr. Asdrúbal Figuerero,
pela Associação Mutualista de Estudantes; Dr. Rodolfo Medina e o capitão de
fragata Pedro Etchepare, como secretários.

Como se pode observar, os patrocinadores da nascente “guarda cí-


vica” eram todos personagens da alta sociedade local e reuniam todas
as instituições do que era conhecido como “a sociedade de Buenos Ai-
res”, ou seja, o setor mais importante da oligarquia e da aristocracia
patrícia argentina.

Esta reunião – precisa o LN – teve como objetivo concretizar a maneira pela


qual a guarda cívica será constituída, determinar seus objetivos e buscar os
fundos com os quais deve ser sustentada. Resolveu-se informar que a insti-
tuição não possui finalidades políticas e que apenas persegue as aspirações
especificadas na seguinte fórmula: Estimular, sobretudo, o sentimento de ar-
gentinidade para revigorar a personalidade livre da nação; cooperar com as
autoridades na manutenção da ordem pública e na defesa dos habitantes, ga-
rantindo a tranquilidade dos lares, somente quando movimentos de caráter
anarquista perturbem a paz da república.

“Quanto ao seu funcionamento, foi estabelecido que será autônomo


e que sua manutenção será paga pelos centros, clubes e particulares,
por meio de uma ínfima contribuição”. A independência do Estado não
era alheia aos ressentimentos e ao desprezo classista que essas ins-
tituições sentiam em relação ao governo radical e, em particular, ao
presidente Yrigoyen.

“É fácil ser valente contra o fraco”


Um jornal inglês relatou que um grupo de legisladores se reuniu
com o general Dellepiane ao meio-dia do dia 15, quarta-feira, dando
a ele várias listas de prisioneiros e pedindo sua libertação, e [dizia] que

67
“o general prometeu revisar os antecedentes de cada homem o mais
rápido possível”. Nesse encontro, os deputados pediram para visitar os
prisioneiros alojados no departamento, autorizados por Dellepiane. La
Prensa do dia 16 comentou:

Os detidos estão amontoados e pode-se ver grupos heterogêneos e quase


completamente desconhecidos entre si. Em sua maioria, declararam não
possuir antecedentes policiais e que eram pessoas pacíficas, muitas delas
de filiação socialista e radical [...] acrescentando que os procedimentos po-
liciais foram inéditos.

Um bom número de detidos que apresentavam ferimentos contu-


sos e golpes disseram que foram causados por indivíduos agrupados
em “patotas” protegidas pelas forças policiais. A negociação culminou
com a libertação de 120 prisioneiros socialistas e 345 trabalhadores
vinculados à FORA X. Além disso, na noite anterior, soube-se que “o
general Dellepiane enviou uma nota a todas as delegacias de polícia
pedindo que não mais prendessem aqueles que foram marcados como
simples suspeitos”.
Por sua vez, a Associação Judaica de Auxílio Mútuo denunciou que
as instalações da rua Arenales, 313, foram destruídas pela polícia e o
El Diario Israelita, um jornal publicado em hebraico, enviou uma nota
ao BAH

[...] afirmando que, diante do pânico predominante entre a população judaica


da cidade e devido aos atos cometidos contra eles, o diretor do jornal hebraico
pediu ao Dr. Alfredo L. Palacios que o acompanhasse ontem ao Departamento
Central de Polícia para comparecer perante o general Dellepiane, a quem o di-
retor queria expressar o terror que mães e filhos estão passando no momento.

O chefe da repressão respondeu que era “muito simples ser valente


contra os fracos”.
Ainda houve algumas ações esporádicas:

Em pontos isolados, houve tentativas de perturbar a ordem pública, mas elas


foram repelidas com mão dura. Nas primeiras horas da manhã de ontem, uma
patrulha foi atacada com armas de fogo na esquina das ruas Corrientes e Mar-

68
ble. Uma das balas disparadas atravessou o capacete do sargento no comando.
A escuridão reinante naquela hora tornou impossível perseguir os culpados.

As tropas militares se retiram


Esta tarde – descreve o Herald – o Departamento de Polícia recuperou a paz
de espírito. Sentinelas foram removidas, pode-se andar livremente pelas cal-
çadas, todos que quiserem podem entrar e sair de casa livremente e a ordem
voltou a reinar. Hoje, a ordem de aquartelamento foi levantada para todo o
pessoal da polícia e oficiais, classes e agentes receberam folga, à exceção da-
queles de guarda.

O relato conclui denotando euforia e gratidão:

Pouco depois das 13h, o general Dellepiane retirou-se do Departamento Cen-


tral entre vivas e aplausos dos soldados, oficiais e um grande número de pes-
soas que se reuniram em frente à casa.

As tarefas de caça dos opositores pelos uniformizados aparente-


mente terminavam. As de civis armados, por outro lado, continuariam
por vários dias, em especial nos bairros judeus.
De fato, como dissemos, o Senado nunca aprovou a lei e o chamado
“estado de sítio” que foi de fato aplicado com a militarização de Buenos
Aires e outros lugares estratégicos do país – como estações ferroviá-
rias e terminais portuários – por pelo menos sete dias, entre 9 e 15
de janeiro (e mais alguns dias referentes à manutenção de centenas
de prisioneiros políticos e sociais e durante o pogrom antijudaico que
duraria até o dia 20), que nunca tiveram vigência legal. Ou seja, além
dos assassinatos e torturas – por si próprios “ilegais” – ou “excessos re-
pressores”, todas as buscas nas sedes sindicais, clubes e instalações po-
líticas, a proibição de reuniões públicas (mesmo em locais fechados), a
vigência de fato da lei marcial noturna – atirava-se para matar diante
de reuniões ou até ruídos “suspeitos” –, as prisões de centenas de pes-
soas sem causa ou processo ou com causas completamente inventa-
das – como o famoso “Caso Wald” entre muitos outros, e até a prisão
de menores; todas foram ações ilegais que retiraram todos os direitos
da população, indefesa perante a selvageria descontrolada das forças

69
de repressão e pelas ações dos grupos parapoliciais e paramilitares.
A maldita Liga Patriótica Argentina é uma das heranças da “semana
trágica”: seu papel decisivo iria até o início dos anos trinta e projetaria
sua sombra sobre vários golpes militares subsequentes, como os de
1943 e 1955.

O Caso Wald, o complô da Casa Cultura e os pogroms


A prisão de várias pessoas da comunidade israelita e a sub-
sequente denúncia de uma suposta “conspiração maximalista”
que abrangeu ambas as capitais do Rio da Prata – Buenos Aires
e Montevidéu – resultou numa verdadeira comédia que envol-
veu as autoridades policiais, judiciais e políticas dos dois países.
Grande parte da imprensa ecoou os chamados “sovietes” chefia-
dos por Pinnie (ou Pedro) Wald na Argentina, que até “nomeou”
seus futuros funcionários, como o “comissário político” – de so-
brenome incerto Selestuk, Macar ou Ziazin – que faria as vezes
de um Trotsky do Rio da Prata e, no Uruguai, por um misterioso
ativista chamado Iván Romanoff, acusado de colocar uma bom-
ba no Teatro Colón em 1909.
O grotesco da montagem desapareceu em dias: nada era ver-
dade, a tal ponto que nem se podia verificar a existência de um
boletim de ocorrência por algum crime. Mas o “complô” difundi-
do durante aquela semana foi funcional para o desenvolvimento
do primeiro – e único – pogrom ocorrido em terras americanas
e ao inusitado fervor nacionalista que deu origem à Liga Patrió-
tica Argentina e a várias comissões de “Defesa da Ordem”.
Acusado de ser o “futuro presidente” do soviete de Buenos
Aires, Pinnie Wald era, de fato, um membro socialista pacifista
do Bund polonês que escrevia em um jornal hebraico, Avangard,
de posições social-democratas e favoráveis a um Estado laico e
pluriétnico na Palestina, que era então uma colônia britânica.
Wald foi torturado para obter dele uma autoincriminação que o
caracterizaria como “bolchevique” e anarquista. Sua namorada,
Rosa Wainstein, também foi presa. O jornal El Diario de 13 de ja-
neiro anunciou sua morte durante a prisão, afirmando também
que Selestuk estava à beira da morte.
Em menos de sete dias, quando ninguém mais acreditava
na farsa montada – e depois de lhe negarem um habeas corpus
–, Wald foi libertado ao pagar uma fiança por “posse de armas”.

70
Anos depois, deixou seu testemunho num romance histórico
intitulado Pesadilla.9
Simultaneamente, a polícia de Montevidéu desativou outro
suposto soviete liderado por Isaac Molinoff (sob a sombra do tal
Romanoff). O grupo “maximalista”, segundo relatos, tinha uma
atividade especial em Villa del Cerro, onde “existem três frigorí-
ficos e vários curtumes que usam cerca de quinze mil trabalha-
dores no total, incluindo um grande número de nacionalidade
russa” (La Nación, 11 de janeiro). Durante as operações, dezenas
de judeus russos foram presos e reunidos na Casa Cultura, na
Rua Galiza, acusados de ter... centenas de livros em hebraico.

WALD, Pinnie. Pesadilla. Una novela de la Semana Trágica.


Buenos Aires: Ed. Ameghino, 1998.

FIGURA 3 – A popular revista Caras y Caretas aparecia aos sábados. O nú-


mero 1.059, de 18 de janeiro, com ampla cobertura fotográfica, foi dedica-
do inteiramente à cobertura dos incidentes da semana anterior e publicou
as imagens de Wald e Ziazin. Suas legendas são eloquentes: “O ‘ditador’
chamado Pedro Wald, que foi preso pela 7ª delegacia; Juan Selestuk, ou
Macar, ou Macario Ziazin, futuro chefe de polícia, preso quando andava de
bicicleta e armado com um revólver.”

9 WALD, Pinnie. Pesadilla. Una novela de la Semana Trágica. Buenos Ai-


res: Ed. Ameghino, 1998.

71
A Liga Patriótica é constituída
La Prensa do dia 21 confirma que no dia 20, segunda-feira, numa
assembleia realizada no Centro Naval, a Liga Patriótica Argentina foi
formalmente constituída:

Os lamentáveis eventos ocorridos em Buenos Aires e em algumas cidades


da República durante a recente greve produziram uma reação cívica e pa-
triótica concretizada por um grupo de numerosos cidadãos chefiados pelo
vice-almirante M. Domecq García, que se encontraram ontem. [...] Depois
de ler as atas da sessão anterior e ouvir as cartas de adesão de vários se-
nhores e sociedades, o presidente da assembleia [...] iniciou a votação para
batizar a projetada associação, resultando por grande maioria Liga Patrió-
tica Argentina. Assim, foi descartado o nome Guardia Cívica e foram dados
os primeiros passos no trabalho.

O apoio da União Industrial Argentina10


Em outra frente, o Conselho Diretor da UIA se reuniu no dia 14 de-
cidindo o seguinte:
1. Contribuir com doações para a pujante Liga Patriótica; 2. Exigir
do Estado a regulamentação do funcionamento das associações ope-
rárias para que o trabalho obtenha o caráter de um contrato coletivo
entre as associações e as empresas; 3. Opor-se à sanção da jornada de
oito horas, uma vez que aumentaria os custos, facilitando a penetração
de fabricantes estrangeiros. Propõe-se que, se uma jornada legal má-
xima for estabelecida para todas as indústrias privadas, seja de nove
horas; 4. Opor-se a toda regulamentação do salário mínimo até que o
problema de uma legislação trabalhista global seja resolvido; 5. Exigir
a seleção de imigrantes para impedir a entrada de agitadores; 6. Re-
querer a modificação da lei de acidentes de trabalho num sentido mais
favorável aos trabalhadores; 7. Exigir que toda a legislação trabalhista
leve em consideração as desigualdades entre as indústrias das diferen-
tes regiões.
Alguns dias depois, em 29 de janeiro, o Conselho Central Diretor da
LPA proclamou várias resoluções transcritas pelo La Prensa do dia 30,
quinta-feira:

10  A citação é de Godio, Julio, op. cit., p. 199, cuja fonte é “El capital y el
Trabajo. Responsabilidad jurídica de los gremios”. Em: La Prensa, 19 de
janeiro de 1919. Deve-se salientar que a Liga Patriótica Argentina adotou
esse nome formalmente numa assembleia realizada em 20 de janeiro.

72
O Almirante Domecq García, de acordo com os poderes que lhe são conferi-
dos pelas associações patrióticas que patrocinam a Liga Patriótica Argentina,
convidou os seguintes senhores a ingressar no conselho central diretor: Dr.
Luis Agote, engenheiro Carlos Aubone, Nicolás A. Calvo, Dr. José Cortejarens,
Dr. Manuel Carlés, Juan José Biedma, monsenhor Miguel de Andrea, major Jus-
to A. Diana, Dr. Aquiles González Oliver, Dr. Vicente C. Gallo, Federico Leloir, Dr.
Francisco P. Moreno, general Eduardo Munilla, Dr. José Luis Murature, pastor
S. Obligado, Ezequiel P. Paz, Dr. Dardo Rocha, Dr. José Saravia, Dr. Raúl Sánchez
Valiente, Dr. Manuel de Iriondo e Dr. Estanislao S. Zeballos.

Segundo informações, todas essas pessoas aceitaram a oferta do almirante


Domecq García. Para constituir essa comissão, no dia 3 do próximo mês, às 10
horas, será realizada uma reunião preliminar no salão de atos do Centro Naval.
Nessa reunião, o conselho central apresentará um plano de trabalho, redigirá
um manifesto-programa e provavelmente nomeará várias comissões, incluin-
do as de propaganda e a encarregada de redigir os estatutos e regulamentos
da corporação.

Segundo informações, diariamente na secretaria da Liga, no Centro Naval, são


recebidas inúmeras e importantes adesões e iniciativas que o conselho consi-
derará oportunamente. Também nos é dito, em resposta a vários pedidos de
folhetos explicativos dos propósitos da corporação, feitos à secretaria por in-
divíduos e associações, que ainda não podem ser entregues e que o serão logo
que o manifesto-programa de referência seja publicado. [...]

Por sua vez, a Comissão Pró-Defensores da Ordem – também presidida por


Domecq García – solicita às autoridades policiais, em 11 de fevereiro, a lista
completa dos policiais mortos e feridos durante os eventos de janeiro, a fim de
incluí-los na distribuição do dinheiro arrecadado com a adesão pública. O rela-
tório começa indicando que, no total, 1.800 policiais e bombeiros, 958 subofi-
ciais e 6.792 agentes participaram da repressão, totalizando 9.550 homens. O
pedido, assinado por Domecq García e pelo secretário Dell’Oro Maini, aponta
que a instituição foi fundada em 14 de janeiro daquele ano, e a lista enviada a
eles detalha um total de 79 mortos e feridos.11

11  Os 79 policiais mortos e feridos são assim distribuídos: 41 agentes, 6


membros da cavalaria; 7 bombeiros, 15 suboficiais, 8 auxiliares ou escre-
ventes e 2 oficiais.

73
FIGURA 4 – Rodolfo Fucile

De 15 de janeiro a 23 de abril
O El Diario do dia 16, quinta-feira, diz, sem esconder um certo tom
jocoso:

Se forem excluídos os fatos sem nenhuma importância informados pela im-


prensa da manhã, pode-se dizer que vivemos no melhor dos mundos, embora
a vida seja cada vez mais cara.

No entanto, ele relata que

[...] misteriosamente se fala da prisão de um jovem chamado Drile, em San Fer-


nando, que, de acordo com documentos encontrados num centro anarquista
naquela cidade, é acusado de ser candidato à presidência maximalista que o
general Dellepiane conseguiu decapitar pela raiz. Em relação a essa importan-
te captura, bem como as de Teodoro Antilli e Temístocles Natta, informaremos
mais tarde com dados precisos que esperamos que nos sejam fornecidos pela
polícia, onde estão arquivados.

74
Quase zombando daquela verdadeira “comédia de costumes” que
eram as repetidas falsas acusações da polícia, na mesma edição as no-
tícias anteriores foram “elucidadas”:

Detenções. Não há notícias da prisão do Sr. Drile que se diz ter sido realizada
em San Fernando e ao que parece é um exagero ou confusão daqueles que são
tão frequentes hoje em dia. Mas se Drile parece não existir, foi preso em San
Fernando o sujeito Juan Aguilar, que é considerado um agitador perigoso. O Sr.
Latta, detido na capital da província por ter ideias avançadas e ser propagan-
dista delas, foi libertado por não haver acusações contra ele.

Esta segunda nota – insistimos, publicada na mesma edição – cul-


mina com uma conclusão:

Esperamos que os momentos de perigo tenham passado e, portanto, é mais


provável que amanhã comece a ser retirada a extraordinária vigilância que foi
enviada a alguns centros operários.

Também foi o dia em que a acusação a Pinnie Wald foi alterada, seu
habeas corpus rejeitado e ele foi transferido para o juiz federal Saúl Es-
cobar, passando sua acusação, em 72 horas, “de ser candidato a presi-
dente da Confederação dos Sovietes da Argentina” para “portar armas
e provocar desordem...”
Mas, se a repressão conseguiu controlar alguns centros de agitação,
outros se desenvolviam. Na greve das padarias de Bahía Blanca, por
exemplo, não havia acordo, e a polícia fechou a sede da Sociedade de
Resistência dos Padeiros. O correspondente do ED relata que:

No último minuto, os sindicatos dos gráficos, de construtores de carruagens e


vagões, de pedreiros e anexos e outros aderiram à greve geral. A greve duraria
24 horas como um ato de solidariedade com os padeiros e de protesto contra a
atitude dos patrões que não aceitam a pauta de reivindicações.

Além disso, não parece um bom negócio cumprir o papel de “pele-


go”. O ED relata que “os novos carteiros que substituíram os grevistas
não recebem seus salários há quatro meses, sem que por isso os su-

75
periores tenham se dado ao trabalho de melhorar a situação desses
humildes servidores”.
Dada a situação que se estendeu no sul de Buenos Aires,

[...] as tropas continuam aquarteladas no arsenal do Porto Militar, e os dois


batalhões de desembarque, formados por tripulantes do Moreno e do Rivada-
via estão prontos para partirem à primeira ordem. Seis baterias de artilharia
e metralhadoras com todo o suprimento de munições também estão prontas.

Em resumo, durante a segunda quinzena de janeiro, depois que a


Federação Ferroviária declarou o fim do movimento, o único conflito
nacional dos trabalhadores em pé era o dos marinheiros, que levaria
muito tempo para encontrar uma solução. O conflito, no entanto, con-
tinuou em centenas de reivindicações e pautas. As fotos que encontra-
mos no Arquivo Geral da Nação dão conta de movimentos, ainda em
março, de costureiras, telefonistas e balconistas – sindicatos majorita-
riamente de mulheres – e ainda em maio do mesmo ano, de uma greve
de artistas de teatro com importantes manifestações de rua.
Com relação ao conflito na fábrica Vasena, ainda há muitas páginas
para serem escritas: em fevereiro e março, houve novas paralisações
e reivindicações, entre as quais: que os “grevistas” tomados como em-
pregados e renegados pelos trabalhadores fossem removidos da em-
presa. Em 23 de abril, Alfredo Vasena – em resposta a um acordo an-
terior, do dia 17 – informa ao ministro do Interior Ramón Gómez que

“ontem de manhã reabrimos as várias seções de nossos estabelecimentos, ad-


mitindo […] a todos os trabalhadores que assim o solicitaram em sua apresen-
tação ao Exmo. Sr. Presidente da Nação, totalizando 1.231 trabalhadores em
todas as suas fábricas,

[...] restabelecendo assim a liberdade de trabalho (que) será devidamente


protegida e efetivamente garantida contra os propósitos de desarmonia e de-
sorganização que os agitadores não renunciam em sua ânsia de prejudicar o
retorno do império da ordem e do trabalho produtivo.

Um primeiro balanço
Essa conquista pode ser considerada, afinal, um triunfo sindical?
É muito difícil usar esse termo em vista do terrível saldo regado a

76
sangue e repressão, não apenas na capital, mas também em grande
parte do país. Triunfo parcial? Acredito que não podemos falar de
“derrota histórica”: os sucessivos conflitos de 1919 obtiveram uma
série de triunfos, entre eles a extensão da jornada de oito horas para
muitos sindicatos.
O balanço do papel das direções também nos diz que a incapacida-
de da ala revolucionária de dar um programa aos trabalhadores cau-
sou um declínio significativo da influência anarquista no movimento
sindical e um relativo fortalecimento dos socialistas e dos sindicalistas.
Nos anos seguintes, haveria outras duas batalhas sangrentas, em Santa
Cruz e no Chaco. Em ambos, a “democracia radical” presidida por Hipó-
lito Yrigoyen entre 1916 e 1922 e continuada por seu afilhado político,
Marcelo T. de Alvear, até 1928, mostraria novamente que não hesitavam
em atacar o movimento operário com toda crueldade, realizando ma-
tanças indiscriminadas e recorrendo a métodos selvagens de repressão
contra os trabalhadores mobilizados. A experiência de janeiro de 1919
mostra o papel abertamente traidor da FORA do IX Congresso, que boi-
cotou os movimentos e se aliou-se abertamente ao governo, a ponto de
começar a ser conhecida como “capacho”... porque estava sempre na an-
tessala dos escritórios do governo. Isolados, os combativos anarcocomu-
nistas da FORA V foram castigados de forma brutal, e sua organização foi
desmantelada. Somente em 1922 seria assinada a chamada pax alvearis-
ta, abrindo um período de calma na luta de classes.

FIGURA 5 – Rodolfo Fucile

77
EM HONRA DOS MORTOS E COMO EPITÁFIO

A voz de um comissário:
“Os mortos, agora, já são cinzas”
José Ramón Romariz foi policial durante aqueles trágicos
eventos. Muitos anos depois, em 1952, aposentado como comis-
sário, publicou um livro com suas memórias sobre os aconteci-
mentos. Em uma de suas páginas, ele comenta:

A viúva do agente Giusti, morto em frente à porta da delega-


cia, ainda vive e caminha por aí. Fazia três anos que havia casado
com a jovem mulher que, chorosa, de luto rigoroso, implorava ao
comissário que lhe dissesse onde os restos mortais de seu marido
haviam sido enterrados. Fui nomeado para averiguar.
No Necrotério Central, ao qual me dirigi, disseram-me: “Não
podemos fornecer nenhum relatório por ordem superior. Tentem
prolongar o assunto para que a viúva vá esquecendo e não mais
insista em saber onde o marido foi enterrado.” Mas, secretamente
e por confiança, acrescentaram: “Esses corpos foram cremados,
agora todos são cinzas. Mantenha segredo.”

Iniciais de publicações periódicas, jornais e revistas


BAH: Buenos Aires Herald; DN: Diario Nuevo (San Juan); ED: El
Diario; EP: El Pueblo; EPor: El Porvenir (San Juan); LC: La Capital
(Rosario); LE: La Época; LN: La Nación; LPre: La Prensa; LPro: La
Protesta; LR: La Razón; LV: La Vanguardia

Referências
AIZEMBERG, Matías. “Un pogrom en el Once”. Em: Legado, revista do
Archivo General de la Nación de la Argentina, nº 14, Buenos Aires,
abril de 2019.
BILSKY, Edgardo J. La semana trágica. Buenos Aires: Centro Editor de
América Latina, 1984.

78
DE TITTO, Ricardo. Los hechos que cambiaron la historia argentina en el
siglo XX. La semana trágica. Buenos Aires: El Ateneo, 2004.
DE TITTO, Ricardo, “Cronología de una larga semana. Los diez días que
conmovieron a la Argentina”. Em: Legado, revista do Archivo General
de la Nación de la Argentina, nº 14, Buenos Aires, abril de 2019.
DÍAZ DE GUIJARRO, Eduardo; LINARES, Martha. Reforma universitaria
y conflicto social. 1918-2018. Buenos Aires: Batalla de Ideas, 2018.
GODIO, Julio. La semana trágica de enero de 1919. Buenos Aires: Hys-
pamérica, 1985.
ROMARIZ, José. La semana trágica. Buenos Aires: Hemisferio, 1952.
SEIBEL, Beatriz. Crónicas de la semana trágica. Buenos Aires: Corregi-
dor, 1999.
SOLOMINSKY, Naúm, La Semana Trágica en la Argentina. Ejecutivo
Sudamericano del Congreso Judío Mundial, Buenos Aires, 1971.
SURIANO, Juan. “El periodismo escrito y los diversos enfoques
de la Semana Trágica de enero de 1919”. Em: Legado, revista
do Archivo General de la Nación de la Argentina, nº 14, Buenos
Aires, abril de 2019.
WALD, Pinnie. Pesadilla. Una novela de la Semana Trágica. Buenos
Aires: Ameghino, 1998.

79
Deb
ate
Sobre atualização programática
Lógica marxista e correlação
de forças mundial

Gustavo Machado

Após algumas leituras e releituras do texto “Sobre a definição de


‘correlação de forças’ mundial”1, de Alejandro Iturbe, publicado na re-
vista Marxismo Vivo – Nova Época nº 13, concluí, no que diz respeito
à polêmica em questão, que tenho pleno acordo com a posição
sustentada por Felipe Alegría, Ricardo Ayala e Ángel Luis Parras em
contribuição denominada “Sobre as etapas”2, publicada na edição nº
9 da mesma revista. A polêmica gira em torno da seguinte questão: é
possível estabelecer uma definição da correlação de forças em nível
mundial válida por um longo período e aplicável a distintas regiões?
Teria apenas considerações pontuais a fazer a respeito do artigo
de Alegría, Ayala e Parras, não fosse pelo fato de a abordagem de Itur-
be basear-se num aspecto a que tenho dedicado grande energia nos
últimos anos e acumulo, quanto ao tema, diferenças consideráveis
em relação a abordagem que por décadas fora reproduzida pela nos-
sa corrente, a saber: o tema da lógica e da dialética em termos genui-
namente marxistas.
O artigo de Iturbe tem dois grandes méritos. Em primeiro lugar, ex-
plicita com nitidez os pressupostos teóricos e metodológicos de sua
interpretação. Em segundo, o faz com plena consciência das premissas
teóricas que assume, apresentando um artigo de grande qualidade.
Isso torna um ponto de partida adequado para a polêmica que aqui
apresento, já que ela tem como alvo exatamente essas premissas teóri-
cas e metodológicas. Dito em outros termos, nosso intuito não é apre-

1  ITURBE, Alejandro. “Sobre a definição de ‘correlação de forças’ mundial”. Em:


Marxismo Vivo – Nova Época. São Paulo: Liga Internacional dos Trabalhadores, nº
13, 2019, pp. 19-38.
2  ALEGRÍA, Felipe; AYALA, Ricardo; PARRAS, Ángel Luis. “Sobre as etapas”. Em:
Marxismo Vivo – Nova Época. São Paulo: Liga Internacional dos Trabalhadores, nº
9, 2017, pp. 151-174.

81
sentar erros na argumentação de Iturbe, trata-se de uma exposição
bastante coerente, mas questionar a própria base da qual parte.

Existe uma lógica marxista?


Iturbe problematiza em seu artigo:

[...] é possível e necessário fazer uma definição da correlação de forças da luta


de classes em escala mundial como uma ferramenta para entender a realida-
de? A lógica marxista nos fornece os elementos que precisamos para fazê-la?

A essas perguntas, antecede outra que pretendemos trazer à luz: no


final das contas, que lógica é esta denominada marxista? Existe uma
lógica marxista?
Para termos uma lógica marxista, digna desse nome, deve-se
pressupor que trata-se de uma lógica objetiva, passível de ser estu-
dada, aprendida e aplicada a todas as realidades particulares. Como
diz o próprio Iturbe, “capaz de analisar e definir qualquer totalidade,
mesmo a mais complexa, heterogênea e contraditória”. Perguntamos,
como, sem metafísica, poderíamos encontrar tal lógica? Ora, uma ló-
gica capaz de definir qualquer totalidade deve possuir uma base mais
geral que se eleva para além das totalidades históricas e materiais que,
em seguida, ela mostra-se capaz de definir. Somente com pressupostos
metafísicos, colocados para além da matéria e da história, poderíamos
construir tal lógica.
Marx foi certamente tributário de Hegel em inúmeros aspectos,
sobretudo no que diz respeito à dialética. No entanto, ao contrário de
Hegel, não se encontra em Marx nenhuma lógica dialética, nenhuma
Lógica com L maiúsculo.
Já todo o sistema de Hegel tem como pressuposto a Ciência da Ló-
gica (1993). Ali, Hegel desenvolve uma dialética pura do pensamento
que culmina numa unidade especulativa racional: a ideia lógica. So-
mente num estágio posterior de seu sistema, após o desdobrar ima-
nente desse domínio puramente conceitual – o que poderíamos cha-
mar de lógica dialética – veremos emergir o domínio da Natureza e do
Espírito, no interior do qual se encontra a história, a arte, a religião e
a filosofia.
Mas em Hegel isso é possível porque todo seu sistema pressupõe
um sujeito absoluto, Deus, que se exterioriza no curso da história. Por
isso, em Hegel, pode existir uma Lógica com L maiúsculo, porque essa

82
lógica estaria, enquanto verdade mais essencial e profunda, pressu-
posta como potência desde a origem do universo e da história. Tra-
ta-se, portanto, de expor toda esta lógica essencial: a lógica dialética
ou ciência da lógica, para em seguida mostrar como ela se manifesta
no curso do tempo, em particular no curso da histórica humana. Cabe
perguntar, como esse esquema em particular poderia ser válido para
um autor materialista como Marx? Em realidade, não é. Marx, ao con-
trário de Hegel, não escreveu nenhuma lógica nem pressupôs aquela
escrita por Hegel. Vejamos!3
Marx diz explicitamente, em um de seus últimos textos de crítica da
economia política, Glosas marginais ao tratado de economia política de
Adolf Wagner, datado de 1879: “eu não começo nunca dos ‘conceitos’,
[...] parto da forma social mais simples em que se corporifica o produto
do trabalho na sociedade atual, que é a ‘mercadoria’” (MARX, 1970, p.
176). E adiante diz ainda que seu “método analítico, que não parte do
homem, senão de um período social concreto, não tem a menor rela-
ção com aquele método de entrelaçamento de conceitos que gostam
de empregar os professores alemães” (MARX, 1970, p. 179). Como se
vê, Marx não aplica nenhuma lógica, não parte de nenhum conceito ló-
gico no seu exame da sociedade capitalista, ao menos, nenhuma lógica
que não seja aquela que encontra como produto interno da própria
forma social capitalista.
Não sem razão, justamente quando estudava a Lógica de Hegel, Le-
nin concluiu: “Marx não nos deixou a Lógica (com L maiúsculo), dei-
xou-nos a lógica de O capital” (LENIN, 2011, p. 201).
Com relação ao presente tema, parecem-nos certeiras as conclu-
sões do filósofo Zeleny (1974). Segundo esse autor, posto que

[...] Marx não conhece nada dado a priori, desconsidera também a lógica ex-
terna e exige “concreção”, o descobrimento “da lógica específica do objeto
específico, com isso desautoriza radicalmente todas tentativas de abstrair
de O Capital uma metodologia dialética geral já pronta e aplicável a todos os
objetos (desautoriza, pois, as tentativas de entender a dialética de Marx no
sentido de Lassalle).

3  Ao contrário do que é dito por vários teóricos marxistas, Marx nunca prome-
teu escrever uma “dialética”. O que ele se propôs e não teve tempo de realizar foi
a indicar o que era racional e místico na dialética hegeliana. O que ele prometeu
foi “escrever algumas páginas para expor o núcleo racional da dialética de Hegel,
retirá-la de seu invólucro místico”.

83
E vai além.

Com o marxismo nasce, pois [...] uma racionalidade científica de tipo novo.
Aqui desaparece o solo sobre o qual se levanta a metodologia geral em um
sentido positivista tradicional e no sentido hegeliano (“ciência da lógica ou
metodologia geral). (p. 184)

Aqui existem dois elementos que gostaríamos de destacar.


1) Em Crítica à Filosofia do Direito, Marx escreve contra Hegel:

O trabalho filosófico [de Hegel] não consiste em que o pensamento se con-


cretize nas determinações políticas, mas em que as determinações políticas
existentes se volatilizem no pensamento abstrato. O momento filosófico não é
a lógica da coisa, mas a coisa da lógica. (MARX, 2005: 38-9)

O trecho é preciso. Marx advoga que se procure a lógica da coisa


analisada e não se aplique à coisa analisada uma lógica dada de fora.
Daí ser um absurdo pensar numa lógica objetiva no geral, mas na lógi-
ca específica do que se analisa. Em seguida, Marx arremata de modo a
não deixar dúvidas com relação à sua concepção:

A crítica verdadeiramente filosófica da atual constituição do Estado não indica


somente contradições existentes; ela esclarece essas contradições, compreen-
de sua gênese, sua necessidade. Ela as apreende em seu significado específico.
Mas esse compreender não consiste, como pensa Hegel, em reconhecer por
toda parte as determinações do Conceito lógico, mas em apreender a lógica
específica do objeto específico. (grifo nosso) (MARX, 2005, p. 114)

2) Deve-se, certamente, a Lassalle a concepção de dialética como


metodologia geral e lógica dialética. Essa posição foi apresentada em
seu livro Heráclito, o obscuro. Tal obra foi severamente criticada por
Marx, justamente por pretender basear-se numa “lógica dialética”. Foi
por meio da influência de Lassalle na social-democracia Alemã que tal
concepção foi contrabandeada para o interior da tradição marxista.
Dentre as múltiplas passagens de Marx referentes a esse livro, em uma
delas podemos ler: “uma coisa é construir uma crítica de uma ciência e
assim, pela primeira vez, levá-la ao ponto em que uma exposição dialé-
tica é possível, e outra coisa bem diferente é aplicar um sistema lógico

84
abstrato, já feito” (MARX; ENGELS, 1972, p. 96). Lenin, em 1915, leu e
formulou alguns comentários ao livro de Lassalle. Nas linhas conclusi-
vas de suas anotações escreve: “Em geral, é justa a referência de Marx.
Não vale a pena ler o livro de Lassalle” (LENIN, 1989, p. 297).
Sabemos que mesmo nos bons autores da tradição marxista, como
Trotsky, o termo “lógica dialética” aparece algumas vezes. Mas em
Trotsky, notadamente, não se trata jamais de um sistema lógico marxis-
ta propriamente dito, mas da exigência de que se considere as múltiplas
realidades de forma dialética. Em sua autobiografia, Trotsky escreve:

Não assimilei logo de início o materialismo histórico numa forma dogmática. A


dialética apresentou-se, para mim, desde o início, não em definições abstratas,
mas como uma viva engrenagem que descobri no próprio processo histórico,
no momento em que tentava compreendê-lo. (TROTSKY, 2017, p. 163)

Também em sua autobiografia, referindo-se aos debates sobre a


questão chinesa, Trotsky escreve:

A dialética desses processos não é tão complexa em si mesma. Mas é mais fá-
cil formulá-la em suas linhas gerais do que verificá-la em cada situação que se
apresenta, nos próprios fatos da vida. Até hoje, deparo-me, a esse respeito, com
previsões teimosas que, em política, conduzem a erros grosseiros e graves
consequências. (TROTSKY, 2017, p. 269, grifo nosso)

Fica evidente, portanto, que nunca se tratou, para Trotsky, da apli-


cação de uma lógica dialética, mas de se descobrir, de forma dialética,
a lógica específica do objeto específico. Na mesma direção, Lenin con-
cluíra, ao estudar Hegel, que Marx não deixara uma Lógica com L mai-
úsculo, mas a lógica de O Capital, isto é, a lógica específica de um objeto
específico, com suas leis, contradições e tendências internas. Jamais,
leis e tendências da forma lógica dialética no geral, mas da totalidade
real em exame, que no caso do capitalismo sempre se pressupõe uma
base de desenvolvimento mundial.
Pode-se argumentar, evidentemente, que a lógica dialética leva em
conta os múltiplos conteúdos. Ora, mas se é assim, como poderíamos
ter uma lei da dialética que independe do conteúdo analisado? Como
sem metafísica e pressupostos eternos? Por mais que reflita sobre o

85
tema, não consigo encontrar qualquer saída minimamente consistente
para a questão em termos marxistas e materialistas.

Marx e o virar ao avesso a lógica hegeliana


Muitos veem no texto de Marx comumente intitulado “Método da
economia política” ou “Introdução dos Grundrisse” um esboço do que
viria a ser a lógica dialética. É exatamente este célebre texto que foi
citado de forma ampla por Iturbe. Mas não se trata exatamente disso.
Após uma primeira redação deste escrito, Marx o abandonou.
O motivo é que, longe de ser a lógica aplicada em O Capital, este
texto era, muito mais, a conclusão do percurso depois que este já
fora realizado, ao menos no estágio em que se encontrava em 1859,
quando foi escrito.
Esse texto deveria ser a introdução do texto Contribuição à crítica
da economia política. Marx o suprimiu pelos motivos que ele mesmo
explicita no prefácio da referida obra:

Suprimo uma introdução geral que esbocei em tempos porque, pensando


bem, parece-me que antecipar conclusões que é preciso demonstrar em pri-
meiro lugar é pouco correto, e o leitor que quiser me seguir deverá decidir-se
passar do particular ao geral. (MARX, 1971, p. 27)

Como se vê, apesar de ter esboçado uma introdução, Marx decidiu


suprimi-la, evitando, assim, “antecipar conclusões”. Para alcançá-las
não bastava ser enunciadas antes, é preciso seguir todo o percurso
que vai do particular ao geral, do abstrato ao concreto, das determina-
ções mais superficiais e aparentes tal como se apresentam diante dos
agentes do modo de produção capitalista à sua articulação total e con-
traditória. Como fica em absoluto evidente, o texto da Introdução dos
Grundrisse não é um sistema lógico dialético abstrato a ser aplicado a
vários conteúdos; ao contrário, é o resultado. Ou, ainda, é a explicitação
do percurso dialético após ter sido percorrido.
E de fato, entre os aspectos de ruptura entre Marx e Hegel (e exis-
tem muitas continuidades que não abordaremos aqui), encontra-se
exatamente a impossibilidade de uma lógica dialética. Os motivos são,
além do que já indicamos, os seguintes.
No prefácio à segunda edição de O Capital, podemos ler: a dialé-
tica de Hegel “está assentada sobre a cabeça. É preciso invertê-la
(umstülpen), para que possa ser descoberto o seu núcleo racional en-

86
volvido no invólucro místico” (MEW 23, p. 27). Como já indicou o es-
tudioso alemão Hans Friedrich Fulda em célebre ensaio publicado em
1974, não se trata, nessa passagem, de um mero virar de cabeça para
baixo a dialética hegeliana e, assim, arrancar fora o núcleo racional de
seu envoltório místico, tal como o coelho cai da cartola que retiramos
da mão de um mágico especulativo e, em seguida, viramos de cabe-
ça para baixo. Fulda propõe a tradução de umstülpen não apenas por
inverter, mas também por virar ao avesso. Assim, ao virar ao avesso
a realidade invertida e mistificada pela forma social capitalista, a
contradição que aparecia em Hegel como exterior transforma-se no
seu verdadeiro interior e, por outro lado, o que estava no interior – a
unidade integradora, sistemática e metafísica das contradições – reve-
la-se como seu exterior aparente, um envoltório que é ao mesmo tem-
po místico e mistificador.
Em resumo, é justamente porque, em Hegel, as contradições exte-
riores manifestam uma unidade interior que seria possível existir uma
lógica, como tradução conceitual dessa unidade essencial e eterna. Tal
lógica seria esta unidade interior, depois desdobrada de forma contra-
ditória na história. Tal unidade é possível graças ao pressuposto teoló-
gico, divino e idealista de seu sistema, que faz um Absoluto existir des-
de sempre, eternamente, com todas suas determinações já dadas em
potência. Para Marx, é o contrário. A unidade é a aparência da forma
social capitalista e seu interior é contraditório. Mais ainda. Essa uni-
dade contraditória não é a expressão de uma forma lógica geral, mas
a expressão de um modo de produção particular, de uma totalidade
específica: o capital e o capitalismo.
Daí que aquilo que Hegel viu como uma expressão lógica geral e
metafísica de toda realidade, Marx viu como a aparência, a superfície o
modo de manifestação da sociedade capitalista, que dissolve as contra-
dições em abstrações da circulação de mercadorias como igualdade,
liberdade e propriedade. Ali onde Hegel viu contradições aparentes
da sociedade, Marx viu as contradições internas e mais fundamentais
da sociedade capitalista e, portanto, impossível de ser arrancada deste
modo de produção historicamente particular e transformada num tipo
lógico geral.

Existem leis da dialética?


Ora, se não existe uma lógica dialética no sentido que indicamos
acima, necessariamente não poderiam existir leis dessa lógica dialéti-
ca geral. O que temos, com toda certeza, são leis daquelas totalidades

87
específicas que analisamos de forma dialética. Nesse sentido preciso,
indica as célebres palavras do resenhista russo, citado por Marx no
posfácio de O Capital:

Dir-se-á, porém, que as leis gerais da vida econômica são as mesmas, sejam
elas aplicadas no presente ou no passado. Isso é precisamente o que Marx
nega. Para ele, tais leis abstratas não existem [...]. De acordo com sua opinião,
ao contrário, cada período histórico possui suas próprias leis [...]. Marx nega, por
exemplo, que a lei da população seja a mesma em todas as épocas e em todos
os lugares. Ao contrário, ele assegura que cada etapa de desenvolvimento tem
sua própria lei da população. […] O valor científico de tal investigação reside na
elucidação das leis particulares que regem o nascimento, a existência, o desen-
volvimento e a morte de determinado organismo social e sua substituição por
outro, superior ao primeiro. (C I, p. 90)

De fato, ao acompanharmos a “lógica de O Capital”, a única lógica


que Marx nos deixou nos dizeres de Lenin, encontramos muitas leis: lei
do valor, lei geral da acumulação capitalista, lei da queda tendencial da
taxa média de lucro, dentre muitas outras. Tais leis contêm, dentro de
si, contradições e expressam um movimento social de uma forma his-
tórica específica: a forma de organização social capitalista. Para com-
preendermos essas leis não recorremos a uma definição geral abstrata
de lógica e dialética, mas à exposição dialética dessas relações sociais
tal como realizada por Marx em O Capital.
Essa exposição certamente é dialética. Ela é dialética não porque
pressupõem um método ou lógica dialética geral. É exatamente o con-
trário. Procura analisar a realidade capitalista em si e por si mesma.
Sem axiomas, sem princípios universais que precedem e, assim, deter-
minam toda análise. Tal exposição dialética parte do modo de aparecer
da realidade capitalista e, caminhando internamente a esta, desenvol-
ve as articulações que produzem este modo sempre enganoso de apa-
recimento, revelando, portanto, as violentas contradições que encerra.
Vai, portanto, do abstrato ao concreto, do simples ao complexo, não
por um método externo ou aplicação de uma lógica externa, não pela
criação artificiosa de abstrações construtivas, mas de forma completa-
mente imanente.
Iturbe, todavia, parece de fato apontar para as tais leis gerais da
dialética, o que exemplifica com a lei do desenvolvimento desigual e
combinado. Em suas palavras, “o marxismo elaborou a lei do desenvol-

88
vimento desigual e combinado, formulada pela primeira vez de forma
explícita por Trotsky”. E mais adiante: “Podemos dizer que é a lei mais
geral da lógica marxista, aquela que resume e incorpora todas as ou-
tras leis.” De fato, Trotsky escreve em sua História da Revolução Russa:

O desenvolvimento desigual, que é a lei mais geral do processo histórico, não


se revela, em nenhuma parte, com maior evidência e complexidade do que no
destino dos países atrasados. Açoitados pelo chicote das necessidades mate-
riais, os países atrasados se veem obrigados a avançar aos saltos. Dessa lei uni-
versal do desenvolvimento desigual da cultura, decorre outra que, por falta de
nome mais adequado, chamaremos de lei do desenvolvimento combinado, alu-
dindo à aproximação das distintas etapas do caminho e à confusão de distintas
fases, ao amálgama de formas arcaicas e modernas. (TROTSKY, 2017, p. 22)

Importante frisar que não temos nenhuma dúvida de que o desen-


volvimento dos distintos países no interior da totalidade mundial capi-
talista é desigual e combinado. A questão não é essa. A questão é seria
esta afirmação de fato uma lei? Mais ainda, uma lei geral da dialética?
Quando dizemos que tal desenvolvimento é desigual e combinado,
nada sabemos sobre que aspectos são desiguais, como se desenvol-
vem, como se combinam. Dito de outro modo que tipo de lei seria esta
que não nos informa, nem em termos abstratos, absolutamente nada?
Os trotskistas do SU4 e de outras correntes reformistas alardeiam
aos quatro ventos, de Löwy a Bensaïd, que a grande contribuição de
Trotsky para o marxismo é exatamente a lei do desenvolvimento desi-
gual e combinado. Fizessem eles análises de peso da obra de Trotsky
– por exemplo, dos textos voltados à Rússia, à França ou à Alemanha
–, certamente saltaria aos olhos as contradições inescapáveis entre o
pensamento de Trotsky e a prática política dessas organizações. No
lugar disso, preferem alardear um ensinamento abstrato: a lei do de-
senvolvimento desigual e combinado. De nossa parte, parece-nos em
absoluto estranho que as palavras deixadas por Trotsky em um pará-
grafo do célebre primeiro capítulo da História da Revolução Russa e em
mais duas ou três frases isoladas em outras obras sejam, para esses
autores, a grande contribuição de Trotsky para o marxismo. Se isso é

4  Secretariado Unificado (SU): uma das correntes que se formaram no interior


da IV Internacional. Seu dirigente mais conhecido foi Ernest Mandel. (Nota da edi-
ção brasileira)

89
verdade, devemos admitir que a contribuição de Trotsky para o mar-
xismo foi bastante reduzida. Mas na verdade não foi assim.
Pode-se virar e revirar como se queira, não se encontrará um único
texto de Trotsky destinado a expor a tal lei do desenvolvimento desi-
gual e combinado. O termo foi utilizado sempre na sequência de uma
análise específica de um objeto específico. Todas suas conclusões de-
correm dessa análise e não da aplicação de uma lei abstrata, que, em
verdade, não diz muita coisa. Esse é o caso da análise do primeiro capí-
tulo da História da Revolução Russa.
Aqui, o termo lei não aparece no mesmo sentido que o empregado
por Marx em O Capital. Esta lei não denota uma articulação precisa en-
tre as partes analisadas, apontando uma tendência necessária. Todas
as leis apresentadas por Marx em O Capital indicam uma tendência
precisa: queda da taxa média de lucro, acumulação de riqueza em um
polo e pobreza no outro, regulação da produção e consumo por um
valor impessoal etc. Já a “lei do desenvolvimento desigual” denota,
em sentido bem mais abstrato, um elemento em comum com o de-
senvolvimento de todos os países. Mas qual a dinâmica e a articula-
ção interna desse desenvolvimento? Ora, tal lei do desenvolvimento
desigual nada diz a esse respeito: temos de analisar a lógica específi-
ca do objeto específico.
Perguntamos ainda: seria mesmo a “lei do desenvolvimento com-
binado” a mais geral da dialética? A tese me parece bastante frágil. Se
é incontestável que os mais distintos povos ao longo da histórica hu-
mana se desenvolveram de forma desigual (como afirma Trotsky), em
ritmos e direções diversas, tais desenvolvimentos se combinaram de
forma intensa e profunda somente na sociedade capitalista. No curso
da história humana, até o capitalismo, as comunidades humanas em
sua maior parte tiveram pouco contato umas com as outras ou, se o
tiveram, foi sempre de forma parcial e superficial. Exceto quando pas-
saram a ser diretamente dominadas e, assim, incorporadas por outras
civilizações, a maioria das comunidades seguiu seu curso de forma
bastante independente, com uma conexão apenas tênue e superficial
por algumas relações comerciais e culturais. Se é assim, perguntamos,
como uma lei que sequer se aplica a toda história humana pode ser a
lei mais geral da dialética?
Cabe aqui, ainda, alguns apontamentos mais que são decisivos para
uma correta compreensão do problema. Uma lei, se se pretende ser
dialética, necessita ter conexão interna e jamais uma formulação abs-
trata que de fora é aplicada a diversos conteúdos. Devemos também a

90
Lassalle esse equívoco conforme já foi assinalado. Mas o próprio En-
gels cometeu desvios nesse sentido, como nas alardeadas três leis da
dialética tão utilizadas pelo stalinismo. Lenin teve plena consciência
desses problemas. Ele escreve em suas anotações sobre Hegel:

A justeza deste aspecto do conteúdo da dialética deve ser comprovada por


meio da história da ciência. Habitualmente (por exemplo Plekhanov) dá-se in-
suficiente atenção a este aspecto da dialética: a identidade dos opostos é toma-
da como soma de exemplos (por exemplo, o grão; por exemplo, o comunismo
primitivo). Também em Engels. Mas isso “para popularizar”...), e não como lei
do conhecimento (e lei do mundo objetivo). (LENIN, 1989, p. 298)

Como se vê, uma lei dialética não é uma formulação geral aplicada
a distintos conteúdos como um somatório de exemplos. A lei do fenô-
meno é apresentada por meio das articulações internas do próprio fe-
nômeno. É este o sentido preciso do método dialético assinalado por
Hegel e desde o seu primeiro desenvolvimento em Platão. Aspectos
amplamente desenvolvidos por Lenin em suas anotações. O método,
diz Hegel,

[...] não se comporta como reflexão exterior, e sim toma o [elemento] determi-
nado desde seu objeto mesmo, já que o método mesmo é o princípio imanente
e a alma do objeto. – É isso que Platão exigiu do conhecer, que se considerem
as coisas em si e para si mesmas, ora em sua universalidade, ora, porém, não
se desviando delas e recorrendo a circunstâncias, exemplos e comparações, e sim
tendo-as sozinhas diante de nós e trazendo diante da consciência o que nelas é
imanente. (HEGEL, 1993, p. 566)

Ou, como diz Hegel em outra passagem, “o método é a consciên-


cia a respeito da forma do automovimento interno do seu conteúdo”
(HEGEL, 1993, p.70). Como se depreende, apenas uma concepção que
tome como pressuposto um conteúdo eterno pode encontrar uma es-
pécie de lógica dialética geral com as leis que lhe são próprias.

Marxismo não é estruturalismo


Existe, no entanto, um problema maior de fundo que, por assim di-
zer, demarcam as diferenças entre a posição que aqui apresento e a
do camarada Iturbe. Em sua exposição, ganha sentido a noção de uma
lógica dialética e suas leis gerais porque sua fundamentação, de fundo,

91
é estruturalista, ao menos em alguns de seus traços fundamentais. E
aqui temos plena consciência de que tal fundamentação estruturalis-
ta se faz presente, igualmente, nos textos de caráter mais filosófico de
Nahuel Moreno, que Iturbe segue. Para essa caracterização, são neces-
sárias algumas considerações prévias sobre o estruturalismo e seus
traços distintivos.
O termo estrutura que nomeia essa corrente filosófica tem pouca
relação com a acepção marxista do termo, mesmo aquela empregada
pelo marxismo vulgar. Estrutura significa, no estruturalismo, um con-
junto de relações abstratas definidas pelo pensamento e subentende
um modelo válido para vários conteúdos diferentes. Um dos pais do
estruturalismo, o antropólogo Lévi-Strauss, diz que a estrutura serve
ao antropólogo como um “modelo lógico” para entender outras for-
mas, ou esferas, da comunicação social. O elemento central que distin-
gue o estruturalismo quanto a esse aspecto é a separação entre objeto
do pensamento e objeto do conhecimento. As totalidades propostas pelo
estruturalismo não traduzem nem pretendem traduzir as relações e
interconexões reais entre os objetos apresentados, mas constituem
uma estrutura circunscrita ao âmbito do pensamento, aplicada de fora
e, portanto, de modo não dialético, aos múltiplos conteúdos.
Esse aspecto está expressamente presente no artigo de Iturbe:

[...] o concreto é a aparência com que a realidade nos é apresentada, e as abstra-


ções são construções mentais que o pensamento humano faz para entender e
apreender a realidade. (grifo do original)

Mais adiante, temos uma citação de Moreno no mesmo sentido:

Se o conhecimento é uma atividade, ou melhor, uma construção, como tal,


mesmo o fato mais empírico tem que passar pelo filtro de uma coorde-
nação de ações, ou seja, por estruturas [do pensamento] construídas pelo
sujeito. (grifo nosso)

Ora, é evidente que o conhecimento é uma construção do pensa-


mento humano. A questão é, o conhecimento que visa atingir o marxis-
mo, tais estruturas do pensamento expressam diretamente as relações
e estruturas reais ou subsistem como meras construções mentais que
apenas posteriormente são aplicadas a múltiplos conteúdos? Enten-

92
demos que Iturbe se inclina para a segunda alternativa, ou seja, aquela
estruturalista. Para justificar essa concepção, Iturbe cita Marx:

O todo como um todo de pensamentos, tal como aparece na cabeça, é um pro-


duto da cabeça pensante que se apropria do mundo do único modo que lhe
é possível, um modo que é diferente de sua apropriação artística, religiosa e
prático-mental.5

O trecho completo, no entanto, passa uma perspectiva bem diversa.


Logo antes da citação acima, criticando Hegel justamente por dar vida
própria aos conceitos mentais, diz Marx que “o método de ascender
do abstrato ao concreto é somente o modo do pensamento de se apro-
priar do concreto, de reproduzi-lo como um concreto mental” (grifo
nosso). Ao fim do mesmo parágrafo, escreve: “também no método teó-
rico, o sujeito, a sociedade, tem de estar continuamente presente como
pressuposto da representação” (MARX, 2011, p. 55). Ou seja, as repre-
sentações conceituais, as representações do pensamento pressupõem
sempre um conteúdo a que se referem e expressam diretamente, ainda
que este conteúdo real seja uma síntese de determinações diversas,
uma totalidade, não diretamente acessível aos sentidos, mas nem por
isso menos real. O sujeito ao qual Marx se refere não é o sujeito do
conhecimento, mas o modo de produção capitalista. Quatro páginas
adiante Marx é ainda mais explícito:

[...] o sujeito, aqui a moderna sociedade burguesa, é dado tanto na realidade


como na cabeça, e que, por conseguinte, as categorias expressam formas de
ser, determinações de existência” (MARX, 2011, p. 59, grifo nosso).

Assim, diferentemente de Moreno, pensamos que não há ana-


logia válida entre Jean Piaget e a dialética marxista. É verdade que
Piaget, ao contrário da maior parte dos estruturalistas, confere
certo papel à história e ao sujeito. Ele procura pensar a gênese
histórica das estruturas, mas o faz apenas para reconciliar o es-
truturalismo com tais perspectivas. Piaget, como os demais estru-
turalistas, deslocam os debates sobre as totalidades para o âmbito
do pensamento humano, onde elas subsistem. No fundo, sua base

5  MARX, Karl. Grundrisse. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011, p. 79.

93
é kantiana. Foi Kant quem, pela primeira vez, separou os fenôme-
nos (os objetos do conhecimento) das coisas em si. Representação
da coisa e a própria coisa. A representação pertenceria unicamente
ao nosso pensamento, sem pretensão de reproduzir o objeto exter-
no. Essa posição será fortemente combatida por Lenin no seu Mate-
rialismo e empirocriticismo.
Para Piaget, a atividade do sujeito que conhece “é geradora das
estruturas em sua construção ou reconstrução permanentes”, “não
existe estrutura sem uma construção, ou abstrata ou genética”. E
o sujeito que constrói essas estruturas em Piaget não é a socieda-
de capitalista – em seguida reconstruída pelo pensamento daquele
que a analisa –, mas o sujeito do conhecimento puro e simples. Para
Marx, ao contrário do kantismo e do estruturalismo, o pensamento
deve expressar a totalidade real, com seus nexos e relações reais,
expressos de forma dialética pelo pensamento. Esta existe enquan-
to tal, independentemente de ser reconstruídas pelo pensamento
abstrato de quem quer que seja.
Assim, para um estruturalista, a totalidade é uma totalidade de
pensamentos que explica a realidade. O conceito explica externa-
mente a realidade. Para o marxismo, a totalidade de pensamento
é a tradução discursiva da totalidade real. Assim, a síntese de múl-
tiplas determinações em Marx não é a abstração construtiva de
Piaget nem a generalização do empirismo. Esta síntese respeita as
relações objetivas do próprio objeto: eis a categoria de valor, capital
etc. Elas não são generalizações de dados empíricos: não as perce-
bemos diretamente. Elas não são puros conceitos existentes apenas
no pensamento: existem como relações objetivas sempre reprodu-
zidas no interior da forma social capitalista. Como tais categorias
são síntese de relações diversas, unidades de elementos contradi-
tórios, temos de partir de seus elementos mais simples e abstratos
e reconstruí-los pelo pensamento. Mas não saímos da realidade e
mergulhamos num universo paralelo dos conceitos para, somente
então, voltarmos à realidade. O pensamento dialético, e marxista,
caminha do início ao fim ao lado de abstrações e relações que tra-
duzem diretamente a realidade examinada.
O estruturalismo, como toda corrente teórica, não paira nas nu-
vens. Sua origem está na total perda de uma perspectiva burguesa
de futuro, manifesta com particular intensidade na Segunda Guerra
Mundial. Abandonou-se, então, concepções que traziam dentro de
si a noção de progresso, perspectivas assentadas em algum tipo de

94
historicidade, como é o caso do positivismo, do darwinismo social
etc. A história é arrancada fora enquanto ferramenta conceitual
e, no lugar, cria-se estruturas, modelos lógicos abstratos. Assim,
constrói-se, por exemplo, uma estrutura lógica das civilizações hu-
manas, cujas distintas formas sociais são apenas distintas combi-
nações desse alfabeto estrutural, sem qualquer acepção interna
de devir ou progresso. Se o estruturalismo abandona a história e
os sujeitos históricos em função de uma forma lógica puramente
racional, será a continuidade do estruturalismo, ao derrubar esta
última fronteira, ao dissolver as totalidades estruturais, que fará
emergir o pós-estruturalismo ou o pós-modernismo: eis Foucault,
Derrida e Deleuze.

Epistemologia e pós-modernismo
Nesse sentido, pensamos que o questionamento do conceito de
etapa pelos camaradas Alegría, Ayala e Parras não se assenta numa
premissa pós-moderna como sustenta Iturbe. A questão não está na
querela epistemológica racionalismo versus irracionalismo, isto é,
nos limites e possibilidades do conhecimento. Uns afirmam ser pos-
sível encontrar a lei racional de absolutamente tudo, outros negam a
possibilidade do conhecimento objetivo dos fenômenos. Não é isso
que está em debate, mas a natureza mesma do objeto considerado.
Para o marxismo, não existem questões gerais de teoria do
conhecimento ou epistemologia independentes da realidade analisada.
O universo do conceito não se separa da realidade que este procu-
ra expressar. Foi Kant quem postulou a necessidade de estabelecer
critérios epistemológicos independentes da realidade analisada.
Curiosamente, esse é um dos pontos em que Marx certamente se-
gue Hegel e não Kant.
Em sua Enciclopédia das Ciências Filosóficas, Hegel critica o pro-
grama kantiano ao pretender examinar a faculdade de compreen-
são antes de se examinar a natureza das coisas. Para ele, o conheci-
mento humano e filosófico é um fato inquestionável atestado pela
própria história do pensamento, e buscar analisar a priori os limi-
tes e possibilidades do conhecimento, conhecer o conhecimento, é
um programa quixotesco. Nesse sentido, Hegel diz:

Um ponto de vista fundamental da filosofia crı́tica [a de Kant] é que, antes de se


proceder a conhecer Deus, a essência das coisas etc., importa primeiro inves-
tigar a faculdade de conhecer e ver se ela é capaz de realizar tal [tarefa]; deve

95
aprender-se a conhecer o instrumento antes de se empreender o trabalho que,
mediante o mesmo, deve-se levar a cabo; se o instrumento fosse insuficiente,
todo o esforço se despenderia em vão. [...] Mas querer conhecer antes de se co-
nhecer é tão destoante como o sábio propósito daquele escolástico [Hiérocles]
de aprender a nadar antes de se aventurar à água (HEGEL, 1988, p. 79).

Pensamos que, nesse aspecto em particular, Marx segue Hegel.


Tanto é assim que jamais se dedicou à problemática do conhecimento
considerada em si mesma, independente de um referencial histórico
e social. Categorias como totalidade, negação, contradição, identidade
e assim por diante estão disponíveis para serem utilizadas na exata
medida que expressem relações reais, “formas de ser”, “determinações
da existência”. Não se trata de enquadrar a realidade neste ou naquele
conceito, mas, antes disso, de recorrer às categorias na exata medida
que expressem aspectos da realidade que se tem por referência.
Assim, rejeito de antemão a ideia do conceito de etapa como uma
mera totalidade de pensamento que, posteriormente, explica, defi-
ne os elementos da correlação de forças mundial entre as classes. A
questão é se existem regularidades objetivas que permitem estabe-
lecer essa categoria como traduzindo efetivamente a correlação de
forças entre as classes em nível mundial por um longo período e em
distintas regiões do planeta. Ou seja, o debate não é sobre teoria do
conhecimento, mas sobre a natureza mesma do capitalismo, suas
regularidades e heterogeneidades. Até que ponto esse conceito pode
ou não expressar sem distorcer a realidade objetiva a que se refere.

Por fim, as etapas


A questão em debate não se esgota, de forma alguma, na definição
do capitalismo como uma totalidade, uma totalidade que combina as-
pectos desiguais, uma unidade da diversidade. Estas frases tornam-se
vazias se não se compreende efetivamente como esses aspectos desi-
guais se combinam, como essa totalidade une de forma efetiva a diver-
sidade que a constitui.
A questão não é a formulação kantiana sobre se é possível conhecer
a correlação de forças em nível mundial por um longo período e em
distintas regiões; a questão é se tal correlação de forças efetivamente
se mantêm a mesma, ao menos em suas linhas mais gerais, em diver-
sas regiões e por um longo tempo.

96
O estudo da sociedade capitalista por Marx está recheado de exem-
plos de aspectos que não podemos traduzir em categorias fixas, em
leis; não por um limite do conhecimento humano, mas porque a pró-
pria forma de organização social capitalista não se desdobra com base
em tais regularidades. Assim, o valor regula os preços e a concorrên-
cia regula a taxa de lucro. Mas não conseguimos definir de antemão os
preços e a taxa de lucro, porque tais tendências são efetivadas não por
uma lei racional, mas pela irracionalidade objetiva do mercado que
confronta todos os capitais e mercadorias uns em relação aos outros,
sem qualquer padrão de medida previamente estabelecido.
Outro exemplo. Marx mostra no Livro II de O Capital que a pos-
sibilidade de a produção e o consumo coincidirem no capitalismo
existe, mas não há garantia alguma disso. Marx diz que “o equilíbrio
só existe no caso de o importe de valor das compras unilaterais coin-
cidir com o importe de valor das vendas unilaterais”. No entanto,
essas mesmas condições se convertem “em outras tantas condições
do transcurso anormal, em possibilidades de crises, já que o pró-
prio equilíbrio, dada a configuração natural-espontânea dessa pro-
dução, é algo acidental” (MARX, 2015, 602). Ou seja, a coincidência
entre produção e consumo é meramente acidental. Não existe uma
regra racional que a determine. Isso não ocorre porque Marx é um
irracionalista pós-moderno que nega a possibilidade de se conhe-
cer a regulação interna dessa totalidade. Isso ocorre porque, nesse
aspecto em particular, a totalidade não possui qualquer tipo de re-
gulação interna, não possui objetivamente nenhum padrão racional
que o pensamento possa traduzir conceitualmente.
Segundo nosso juízo, é nesse sentido que caminha a argumentação
de Alegría, Ayala e Parras, pelos motivos já indicados no artigo “So-
bre as etapas”. Nesse sentido, etapa não seria uma totalidade nem um
conceito (do pensamento ao modo estruturalista) capaz de explicar
a realidade. Mas, de nossa parte, não negamos unilateralmente o
uso do termo, desde que não seja entendido como totalidade, o que
efetivamente não é.
Evidentemente, existem derrotas e vitórias da classe trabalha-
dora que influenciam de forma significativa a luta de classes em
nível mundial por um longo período. A vitória da Revolução Russa
não apenas produziu efeitos subjetivos de curto prazo na classe
trabalhadora, como criou a União Soviética: um aparato objetivo
a serviço da revolução mundial por um longo período. Da mesma
forma, a vitória do nazifascismo e da contrarrevolução stalinista

97
criaram aparatos contrarrevolucionários permanentes. Os mes-
mos efeitos podem ser verificados na destruição desses aparatos
na Segunda Guerra Mundial e em 1989. No entanto, entendo esses
aspectos como resultados objetivos que influenciam a correlação
de forças entre as classes por um longo período, se se quiser, uma
etapa. Mas não se segue desses elementos, por relevantes que sejam,
e são, que a correlação de forças será esta ou aquela. Afinal, ao lado
desses elementos existem outros tantos, mundiais e locais, passíveis
de serem conhecidos no interior da totalidade da situação mundial,
mas não na forma de uma regularidade que se impõe por um longo
período e em todos os locais. Daí que tais “marcos” podem ser vistos,
no nosso modo de ver, como influenciando toda uma etapa histórica,
mas de modo algum podem, por si só, determiná-la.

Referências
FULDA, H. “These zur Dialektik als Darstellungsmethode (im ‘Kapital’
von Marx)”. Em: Hegel-Jahrbuch. Köln: Pahl-Rugenstain Verlag, 1974.
HEGEL, G.W. F. Ciência de la lógica. Buenos Aires: Ediciones Solar, 6ª ed.,
1993.
_______. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Epı́tome Volume I. Lis-
boa: Edições 70, 1988.
LENIN, V. I. Cadernos sobre a dialética de Hegel. Rio de Janeiro: UFRJ,
2011.
_______. “Conspecto do livro de Lassalle A Filosofia de Heráclito, O Obscu-
ro, de Éfeso”. Em: Obras Escolhidas em seis tomos, tomo VI, 1989.
_______. “Sobre a questão da dialética”. Em: Obras Escolhidas em seis
tomos, tomo VI, 1989.
MARX, K.; ENGELS, F. Correspondencia. Buenos Aires: Editorial Cartago,
1972.
MARX, K. Contribuição para a crítica da economia política (1971).
_______. Glosas Marginales al “Tratado de economia politica de Adolph
Wagner”. Em: DOBB, Maurice (Org.). Estudios sobre El Capital I. Bue-
nos Aires: Ediciones Signos, 1ª ed., 1970, p. 169-183.
_______. Grundrisse. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011.
_______. O Capital. São Paulo: Boitempo Editorial, Livro I, 2013.

98
_______. O Capital. São Paulo: Boitempo Editorial, Livro II, 2015.
_______. Crítica à filosofia do Direito de Hegel. Tradução de Rubens Ender-
le e Leonardo de Deus. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005.
PIAGET, J. O estruturalismo. São Paulo: Difel, 1979.
TROTSKY, Leon. Minha Vida. São Paulo: Editora Sundermann, 2017.
_______. História da Revolução Russa. São Paulo: Editora Sundermann,
tomo I, 2017.
ZELENY, J. La estructura lógica de “El capital” de Marx. México: Grijalbo,
1974.

99
Res
e
nha
La guerra contra la Triple Alianza en
debate, de Ronald León Núñez
Alicia Sagra

A apresentação deste livro em Assunção, Paraguai, por seu autor,


teve uma repercussão importante tanto com relação ao público quanto
à imprensa escrita e de rádio. Isso se refletiu, em termos comerciais, no
pedido das livrarias, inclusive das mais conhecidas, que o colocaram em
destaque em suas estantes.
A que se deve essa repercussão quando existem muitos livros sobre
o tema publicados no Paraguai, sobretudo neste momento, em que se
completam 150 anos do fim da guerra?
A explicação foi dada por diversos jornalistas paraguaios: com o livro de
Ronald León Núñez, temos uma visão sobre a “Guerra Grande” (como é cha-
mada no Paraguai) diferente de todas as que foram publicadas até agora.

Uma visão diferente


Este livro não é imparcial. O autor afirma de forma categórica na in-
trodução:

Bem, a essa altura, o leitor certamente estará avisado que este trabalho não se
destina a alcançar a ideia falaciosa e não científica, que não entendo ao certo,
mas que alguns estudiosos invocam chamando-a de “imparcialidade histórica”.
Não pretendo alcançar algo que não existe. Por isso, direi desde o início que este
livro é parcial.

Mais adiante, León Núñez se refere ao caráter de seu trabalho:

Em síntese, o livro é dedicado ao debate historiográfico colocado em termos po-


líticos. Portanto, como questionaram alguns historiadores profissionais, este é
um livro político, um livro militante. Não aspira a privilegiar a análise de aspec-
tos isolados, curiosidades, ou fazer uma reconstrução ordenada da sequência de
fatos diplomáticos ou dos avatares militares. Isso é importante, mas superficial.
O centro de seu conteúdo é a abordagem dos problemas teóricos que considero
chave; a atenção está focada em buscar o caminho até as definições dos eventos

101
históricos narrados no contexto de um confronto permanente com outras cor-
rentes de pensamento.

Contudo, de que perspectiva me envolvo nessas discussões? Certamente, não


será nem acadêmica nem erudita, embora em muitos temas discutirei com al-
guns acadêmicos que se acreditam eruditos. O ponto de vista da análise e a in-
terpretação dos fatos será o do materialismo dialético, o método marxista [...]
Porém nada está más longe de minhas interpretações do que encerrar o estudo
ou a discussão [...] Por isso, este livro deve ser tomado como uma tentativa de se
aproximar um pouco mais da matéria. Nem mais nem menos. [...] Evidentemen-
te, o combate ideológico mais duro será com os liberais ou neoliberais, ou seja,
com aqueles que, de uma forma ou de outra, justificam a Tríplice Aliança.

Por que dizemos que se trata de uma visão diferente se são muitos
os que se localizam no mesmo lugar no combate, ou seja, contra o geno-
cídio praticado pela Tríplice Aliança sobre o povo paraguaio? Pelo que
explica o autor mais adiante:

Porém estou convencido de que, no justo afã de questionar a história escrita


pelos vencedores, não é aceitável fazer nenhuma concessão teórico-política aos
exageros e delírios políticos da corrente revisionista, tanto em sua variante de
direita quanto na de esquerda.

Ou seja, depois de definir de forma categórica seu lado na “Guerra


Grande”, León Núñez desenvolve uma série de polêmicas: sobre o ca-
ráter da conquista e da colonização espanhola; sobre as contradições
da guerra de independência latino-americana, em especial do papel de
Buenos Aires; sobre o caráter de classe e histórico das medidas e do re-
gime do Dr. Francia; sobre o caráter da guerra e o papel do imperialismo
inglês... É um trabalho polêmico do início ao fim. Nesta resenha, citare-
mos alguns desses debates.

Sobre a colonização europeia


Aqui o autor polemiza centralmente com os que defendem o caráter
feudal da colonização, como no caso do liberalismo e de historiadores
stalinistas, e assume a posição de Nahuel Moreno em seu Quatro teses
sobre a colonização espanhola e portuguesa na América Latina:

102
La colonización española, portuguesa, inglesa, francesa y holandesa en Améri-
ca, fue esencialmente capitalista. Sus objetivos fueron capitalistas y no feudales:
organizar la producción y los descubrimientos para efectuar ganancias prodi-
giosas y para colocar mercancías en el mercado mundial. No inauguraron un
sistema de producción capitalista porque no había en América un ejército de
trabajadores libres en el mercado. Es así como los colonizadores, para poder ex-
plotar en forma capitalista a América, se ven obligados a recurrir a relaciones de
producción no capitalistas: la esclavitud o una semiesclavitud de los indígenas.
Producción y descubrimiento por objetivos capitalistas; relaciones esclavas o
semiesclavas; formas y terminologías feudales (al igual que el capitalismo me-
diterráneo), son los tres pilares en que se asentó la colonización de América1

A posição de Moreno (1948), foi também adotada por Milcíades Peña


(1955), e Núñez León mostra como esses dois autores, ao fazer essas
afirmações, estavam seguindo as elaborações de Marx e Engels sobre os
objetivos e o sentido da empresa colonizadora.

Sobre as contradições da guerra de independência


A afirmação que o autor faz sobre o fato de que líderes do movimento
de independência, muito progressivos para sua época, como Manuel
Belgrano ou Mariano Moreno, tiveram, apesar disso, uma política opres-
sora sobre o Paraguai, provavelmente será muito polêmica entre histo-
riadores argentinos, sobretudo entre aqueles que, de forma anacrônica,
apresentam esses heróis da independência como se fossem dirigentes
operários revolucionários, os quais, além disso, sacralizam.
León Núñez mostra como a política opressora de Buenos Aires não
existiu só no início da guerra de independência, mas permaneceu no

1  “A colonização espanhola, portuguesa, inglesa, francesa e holandesa na Amé-


rica foi essencialmente capitalista. Seus objetivos foram capitalistas e não feudais:
organizar a produção e os descobrimentos para efetuar lucros prodigiosos e para
colocar mercadorias no mercado mundial. Não inauguraram um sistema de pro-
dução capitalista porque não havia, na América, um exército de trabalhadores li-
vres no mercado. É assim que os colonizadores, para poder explorar a América
no modo capitalista, veem-se obrigados a recorrer a relações de produção não
capitalistas: a escravidão ou uma semiescravidão dos indígenas. Produção e des-
cobrimento por objetivos capitalistas; relações escravas ou semiescravas; formas e
terminologias feudais (igual ao capitalismo mediterrâneo), são os três pilares nos
quais se assentou a colonização da América.” MORENO, Nahuel. Cuatro tesis sobre
la colonización española y portuguesa en América, 1948. Disponível em: https://
www.marxists.org/espanol/moreno/obras/01_nm.htm

103
tempo, sendo uma expressão inquestionável disso o fato de que a inde-
pendência paraguaia (1811) foi reconhecida após a batalha de Caseros
(1852). Ele descreve como tudo isso não tinha uma base ideológica abs-
trata, mas explicitamente econômica. Os heróis de maio lideravam uma
revolução burguesa e, como tal, nesse processo, defendiam interesses de
um setor burguês contra outro, como expressa a discussão dos impostos
sobre exportações e do velho litígio sobre a livre navegação nos rios.
Ao mesmo tempo, León Núñez coloca a hipótese de que essa polí-
tica opressora, que desde o primeiro momento orquestrou-se a partir
de Buenos Aires, esteve na base do isolamento negativo que o regime
liderado por Gaspar Rodríguez de Francia manteve em relação à guerra
de independência latino-americana.

Sobre o caráter das medidas e do regime


de Gaspar Rodríguez de Francia
Aqui o livro entra em outro tema extremadamente polêmico, desta
vez com historiadores centralmente paraguaios, mas não exclusivamen-
te, que para enfrentar o liberalismo defendem um suposto “igualitaris-
mo” do regime de Francia.
León Núñez diz:

É interessante notar que a caracterização de um regime “igualitário” durante o


governo de Francia foi funcional tanto aos historiadores liberais quanto aos au-
tores nacionalistas “de esquerda”. Os primeiros para hostilizá-lo; os segundos,
para render-lhe homenagem.

Polemizando com o historiador brasileiro Mario Maestri2, sustenta:

É aceitável, para quem se diz marxista, passar a ideia de que durante o regime do
Dr. Francia a “encomienda e as aldeias indígenas” – concentrações de indígenas
dirigidas por autoridades religiosas ou coloniais para facilitar a exploração da
força de trabalho nativa – teriam mudado de caráter “a favor dos explorados”?
Por acaso acabou a exploração nos tempos do Dr.?

Em oposição à concepção marxista de Estado, Maestri coloca o conceito de “Es-


tado francista, de evidente sentido plebeu e camponês”. Em algum momento da

2  MAESTRI, Mario. Paraguai, a república camponesa, 1810-1865. Porto Alegre,


2014. Citado por: LEÓN NÚÑEZ, Ronald. Em: La guerra contra la Triple Alianza en
debate. São Paulo: Editora Lorca, 2019, p. 280.

104
história das sociedades humanas existiu “Estado plebeu e camponês”? Nunca,
isso é cientificamente impossível. Nos tempos do Dr. Francia, ou seja, na época
das revoluções burguesas e de decadência do absolutismo monárquico, só exis-
tiam dois tipos de Estados: o feudal e o capitalista.

E conclui:

É fato que o Dr. Francia, um advogado rico, foi obrigado a atacar os interesses de
um setor da “oligarquia”. Porém isso não o transforma num “governo popular”.
Simplesmente demonstra que existiu uma luta entre frações burguesas e que
Francia tinha um lado nesse embate [...] Para polemizar com o liberalismo anti-
nacional, insistimos, não é necessário recriar nenhum “paraíso social”. Tampou-
co se pode fazer um relato na condição de um patriarca que queria “acabar com
as classes sociais” enfrentando a “oligarquia”.

A discussão de fundo com o liberalismo não é essa. É sobre se o período de 1813


a 1870 foi progressivo ou foi um “retrocesso” num sentido histórico e global.

O fundamental é demonstrar que o projeto burguês de tornar a nação inde-


pendente, fortalecer o Estado nacional e, acima de tudo, nacionalizar a terra, no
contexto do século XIX, era essencialmente progressivo e, portanto, devia ser
defendido.

Como deixa evidente o autor, nada que foi dito implica negar o pa-
pel individual de figuras como o Dr. Francia ou os López na consoli-
dação e na defesa da independência nacional. Contudo, é necessário
compreender que os indivíduos respondem a interesses de classe e
são produto de processos estruturais, profundos, e não o contrário.

A “Guerra Grande”
Assim, através dessas e de outras polêmicas, chega-se ao tema e ao
debate central: que foi a Guerra da Tríplice Aliança?
León Núñez diz:

Mais de 150 anos depois de ser deflagrada, a Guerra contra o Paraguai [1864-
1870] continua sendo a questão mais polêmica na historiografia sul-americana,
tanto na esfera política quanto nos círculos acadêmicos.

105
E existem motivos de sobra para que isso seja assim. Trata-se do maior conflito
armado internacional que se desenvolveu na América Latina. O mais extenso e
mortal. Durou mais de cinco anos e envolveu populações de quatro nações cuja
área atual representa dois terços do subcontinente.

A principal batalha divulgada é colocada com a historiografia oficial,


a versão dos vencedores, que apresenta a guerra como uma atitude de-
fensiva dos três países diante da “loucura” de Solano López, que empre-
endeu uma aventura militar contra as principais potências da região,
levando seu povo à destruição.
Nessa versão, como aponta León Núñez,

[...] a guerra, além de “necessária”, cumpriu um papel “civilizador” num Paraguai


“bárbaro”, que não só estava dominado por uma “tirania” feroz, como também
praticava, nas palavras de Mitre, “uma política restritiva e exclusivista em oposi-
ção ao livre comércio e à livre navegação nos rios”.

Porém esse não é o único debate. O autor também polemiza com o


revisionismo nacionalista de direita, que teve antes de tudo o objetivo de
reabilitar a figura de Solano López, que, na visão dessa corrente, passou
a ser um herói nacional. E, em menor medida, discute também com o
chamado revisionismo de esquerda, sobre o qual manifesta:

Esta corrente teve um mérito importante: procurou focar-se na análise dos


aspectos mais estruturais, acentuando elementos da história econômica, além
de oferecer uma proposta de interpretação global da guerra. Inseriu o conflito
no marco de uma leitura da economia e da política mundiais, não apenas “re-
gionais”. Denunciou de forma dura o papel do império britânico e, é óbvio, o da
Tríplice Aliança. Assim, desafiou a ideia liberal de que esta representava a “civi-
lização”, e o Paraguai dos López, “a barbárie” [...] E, o mais importante, levantou
o debate e condenou o genocídio e a destruição do Paraguai. Porém a principal
virtude dessa corrente, insistimos, reside num aspecto metodológico: tentar en-
tender o conflito em escala mundial, não apenas local.

No entanto, o “revisionismo de esquerda” apresenta uma série de exageros, in-


consistências e anacronismos que não só abriram – e ainda abrem – flancos des-
necessários no debate com a historiografia liberal-conservadora, como também
supostos erros conceituais que acarretam conclusões políticas equivocadas.

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Como observa León Núñez, é necessário compreender que os teóri-
cos do nacionalismo de esquerda, ao assumir certos postulados chauvi-
nistas e populistas, não são inocentes. Têm um objetivo político explícito:
apresentar Solano López como uma espécie de Fidel Castro ou Salvador
Allende do século 19. Em outras palavras, essa história esteve sempre a
serviço de justificar, no século 20, uma estratégia política reformista e
frentepopulista – a política de aliança com setores burgueses que Stalin
impôs no 7º Congresso da Internacional Comunista, em 1935 –, teoria
que é incompatível com a estratégia socialista e que levou a classe traba-
lhadora a grandes derrotas.
Porém, como dissemos, o debate central é com a historiografia oficial,
liberal-conservadora, e com sua variante aggiornada, a chamada nova
historiografia sobre a Guerra da Tríplice Aliança, a qual um de seus mais
conhecidos representantes, o historiador brasileiro Francisco Doratioto,
definiu como Interpretação Sistêmica Regional. Essa corrente defende,
centralmente, que a guerra foi regional, que a Grã-Bretanha não teve ne-
nhuma ingerência, que o Paraguai foi o país agressor e que não é possí-
vel falar em genocídio nem em crimes de guerra.
León Núñez se apoia em Marx e em Lenin para debater sobre o ca-
ráter da guerra e fornece números contundentes sobre o apoio econô-
mico da Grã-Bretanha e sobre o genocídio do povo paraguaio. Desses
números, destacamos os seguintes: segundo os dados que Doratioto
fornece, o império brasileiro mobilizou 139 mil soldados (1,52% de sua
população); a Argentina, 30 mil (1,72% de sua população); e o Uruguai,
5.582 (2,23% de sua população).3
Por outro lado, a população paraguaia se reduziu (nos cinco anos de
guerra) entre 69% e 70%, enquanto o Brasil, a Argentina e o Uruguai
perderam 0,64% de sua população total.
Não há dúvidas. Os números falam por si.

Uma importante contribuição


O trabalho de León Núñez é enriquecido pelo prólogo do historiador
Ricardo de Titto, que lança o olhar de um marxista argentino sobre essa
guerra genocida e sobre a dupla opressão que se sustenta, que o Para-
guai sofreu e ainda sofre, por parte do imperialismo e das burguesias
regionais.

3  Essas proporções aplicadas aos números atuais equivaleriam a uma invasão


de quatro milhões de soldados a um país de sete milhões de habitantes.

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Como observa de Titto,

[...] este livro estuda o Paraguai, mas se refere sempre a um processo supranacio-
nal, à geopolítica do Cone Sul da América. E esse é o primeiro aspecto a ser des-
tacado na obra: como assinala Nahuel Moreno no início de seu Método de inter-
pretación de la historia argentina, a análise dos fenômenos nacionais e regionais
deve ser feita à luz dos acontecimentos mundiais. Mérito importante, portanto, é
não se perder em banalidades e curiosidades menores, nestas “pequenas coisas”
tão em moda entre certo “jornalismo da história”, o qual tanto gostam de visitar
os historiadores autointitulados “revisionistas”, muitos documentários “sérios”
de televisão e narradores de “histórias verdadeiras” ou “eventos ocultos jamais
revelados”, que as editoras convertem em best-sellers passageiros, publicações
depois esquecidas por completo.

Diferente destas abordagens superficiais e amadoras que buscam


o entretenimento e não a reflexão, trata-se de manter o ponto de vis-
ta científico de forma consequente, estudando todos os fenômenos em
sua complexidade, mas partindo da situação internacional. Um primeiro
problema de método de análise, então, está salvo, e vale destacar o cui-
dado de Ronald León Núñez e seu mérito a esse respeito.
Além disso, está escrito numa linguagem inteligível e simples, livre de
qualquer tipo de pedantismo ou arrogância academicista, o que o con-
verte numa leitura acessível aos lutadores operários e populares.
Sua leitura será útil para todos os lutadores anti-imperialistas e so-
cialistas. Em especial, para os revolucionários argentinos, brasileiros e
uruguaios, temos a necessidade de aprofundar o conhecimento sobre
esta guerra para rechaçar com fundamento e força o genocídio que nos-
sos países cometeram contra o Paraguai. É uma dívida de honra que
temos com a classe trabalhadora e o povo paraguaio.

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