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A CIOCIARA

Alberto Moravia
CAPÍTULO I

A h! O s belos tempos em que me casei e deixei a minha aldeia para ir instalar-me em Roma! Todos
conhecem a canção: “Quando la ciociara si marita a chi tocca lo spago e a chi la ciocia”
Mas eu dei tudo ao meu marido, a sola e o cordão, porque era meu marido e também porque me levava para
Roma e eu gostava de ir para lá e não sabia que precisamente em Roma me esperava a desgraça. Tinha um rosto
redondo, olhos negros, grandes e fixos, cabelos pretos, que me cresciam quase por cima dos olhos, apartados
em duas tranças espessas, semelhantes a cordas. A minha boca, vermelha como o coral, mostrava, quando ria,
duas filas de dentes brancos, cerrados e regulares. Era bastante forte e capaz até de equilibrar à cabeça, sobre a
cercine (2), o peso de meio quintal. Meu pai e minha mãe eram camponeses, mas deram-me um enxoval de
senhora, trinta de tudo: trinta lençóis, trinta fronhas, trinta lenços, trinta camisas, trinta calcinhas. Tudo roupa
fina, de bom linho fiado e tecido à mão por minha mãe, no seu tear; alguns lençóis tinham até a cobra bordada
com muitos e lindos lavores. Também possuía joias de coral vermelho-escuro, o de mais alto preço.
Um colar, brincos de coral e ouro, um anel de ouro com um coral e até um belo alfinete também de ouro e
coral. A lém dos corais, tinha outros objetos de ouro, joias de família, e um medalhão para trazer ao peito, com
um camafeu muito bonito, no qual se via um pastorzinho com as suas ovelhas. Camponeses da ciociara, região
montanhosa das proximidades de Roma. Usam uma espécie de sandálias, ciocia, feita com um retângulo de
couro revirado para o peito do pé e ligado à perna por cordões ou correlas.
Q uando a ciociara se casa um dá o cordão a outro a sola. A lusão sem dúvida aos costumes bastante livres
das camponesas da região, que, uma vez casadas, não ligam grande importância à fidelidade.
Meu marido tinha uma pequena mercearia em Trastevere, no Hecoclos Cinco, e armou uma casita mesmo
por cima da loja, tanto que, se me debruçasse na janela do quarto, podia pôr os dedos na tabuleta cor de sangue
de boi com os dizeres: Pão e Massa.

2 Espécie de rolo, feito de trapo, usado para equilibrar pesos à cabeça, correspondente à nossa rodilha ou sogra.

A casinha tinha duas janelas que davam para o saguão e outras duas para a rua; eram quatro divisões ao
todo, pequeninas e baixas, mas eu as mobiliei bem: alguns móveis compramo-los em Campo di Fiori e outros
deu-nos a minha família. O quarto era todo novo, com o leito conjugal de ferro pintado a imitar madeira, a
caixeira enfeitada com ramos e grinaldas; na sala pus um lindo sofá de madeira com torcidos e estofo de flores
estampadas, duas cadeiras com o mesmo estofo e os mesmos tórridos, uma mesa redonda para as refeições e
um guarda louça para os pratos, todos de porcelana fina, com um vivo de ouro e no fundo um desenho de flor e
fruta.
O meu marido descia de manhã direto para a loja e eu arrumava a casa.
Esfregava, varria, dava lustro, sacudia o pó, limpava todos os cantos, todos os objetos; depois a casa ficava
mesmo um espelho, e das janelas, com cortinas brancas, vinha uma paz tranquila e doce, e eu olhava para os
quartos e vendo-os tão arrumados limpos e brilhantes, com todas as coisas no seu lugar, entrava-me não sei que
alegria no coração. A h! Como é bom ter casa nossa, onde ninguém entra e que ninguém conhece, e passar a
vida a limpá-la e a arrumá-la! A cabadas as limpezas, vestia-me, penteava-me com cuidado pegava no cabaz e ia
ao mercado fazer compras. O mercado era mesmo ali a poucos passos, e eu andava por entre as bancadas, mais
de uma hora, não tanto para comprar, porque grande parte das coisas tinha-as na loja, mas para ver. A ndava e
olhava para tudo: a fruta, os legumes, a carne, o peixe, os ovos; entendia daquilo e gostava de calcular os preços
e os lucros, avaliar a qualidade, descobrir as trapaças e os truques dos vendedores.
Gostava também de discutir, tomar o peso às coisas, deixá-las, depois discutir outra vez e por fim não
comprar nada. A lguns vendedores faziam-me a sorte, dando-me a entender que me ofereceriam isto e aquilo se
lhes desse troco; mas eu respondia-lhes de tal maneira que compreendiam logo que não estavam a falar com
quem julgavam.
S empre fui orgulhosa e não é preciso muito para me subir o sangue à cabeça; então vejo tudo vermelho e é
uma sorte que as mulheres não usem facas na algibeira, como os homens, porque, de outro modo, seria até
capaz de matar. A um vendedor que me aborrecia mais do que os outros e insistia em fazer-me propostas,
obrigando-me a aceitar-lhe presentes, corri um dia atrás dele com um grande alfinete na mão; por sorte
intervieram os guardas, senão espetava-lhe no lombo.
Bem, voltava para casa contente e, depois de pôr na água a ferver para o caldo os temperos, alguns ossos e
um bocadinho de ramo, fui imediatamente para a loja. Também ali era feliz. Vendíamos um pouco de tudo,
massa, arroz, legumes secos, vinho, azeite, conservas, e eu estava atrás do balcão como uma rainha, os braços
nus até o cotovelo e o meu medalhão com o camafeu ao peito: recebia as encomendas dos clientes, pesava, fazia
rapidamente as contas com o lápis num bocado de papel pardo, embrulhava-as, entregava-as. Meu marido, esse
era mais lento. Por falar no meu marido, esquecia-me de dizer que era já quase velho quando nos casamos e
houve até quem dissesse que o fiz por interesse; é verdade que nunca estive doida por ele, mas, tão certo como
D eus estar no Céu, sempre lhe fui fiel, se bem que ele o não fosse. Tinha lá as suas manias, o pobrezinho, e a
principal era a de agradar às mulheres, o que não correspondia à verdade. Era gordo, mas não uma gordura sã,
com olhos negros, raiados de sangue, e faces pálidas com pequenas manchas como migalhas de tabaco.
Bilioso, concentrado, grosseiro, ai de quem o contrariasse. Ausentava-se continuamente da loja e eu sabia
que ia encontrar-se com qualquer mulher, mas quase podia jurar que nenhuma lhe dava atenção senão a troco
de dinheiro. Com dinheiro, sabe-se, tudo se consegue, até mesmo que uma noiva levante a saia. Eu percebia
logo quando as coisas lhe corriam bem, porque então mostrava-se quase alegre e gentil. Q uando, ao contrário,
não conseguia nada, ficava sombrio, respondia-me mal e algumas vezes até me batia. Mas um dia disse-lhe:
“Vai lá para essas perdidas quando quiseres, mas não me toques, senão deixo-te e volto para a minha casa.”
Eu não queria ter amantes, embora, como já disse, muitos homens andassem atrás de mim; toda a minha
paixão a pus na casa, na loja e, depois de ser mãe, na minha filha. Com o amor não me importava, ou, antes,
provavelmente por só ter conhecido o meu marido, tão velho e feio, quase me enganava. Q ueria apenas viver
tranquila e que me não faltasse nada. D e resto, uma mulher deve ser fiel, aconteça o que acontecer, mesmo
quando o marido, como era o caso, não o é.
O meu marido, com os anos, deixou de encontrar mulheres que lhe dessem atenção, nem por dinheiro o
queriam, e tornou-se insuportável. Há muito tempo que não fazíamos vida de casados, mas de repente, talvez à
falta de melhor, apaixonou-se de novo por mim e quis me ter à viva força, não simplesmente, como marido e
mulher, mas como as marafonas com os amantes, tentando, com certas manobras, obrigar-me ao que nunca me
agradou e nuca quis, nem mesmo quando vim para Roma, casada de fresco, e me sentia tão feliz que cheguei
quase a imaginar que estava apaixonada por ele.
disse-lhe que me deixasse em paz, e ele, a primeira vez, bateu-me, fazendo-me até saltar o sangue pelo nariz;
depois, vendo que eu estava mesmo resolvida a não ceder, deixou de me importunar, mas passou a odiar-me e a
perseguir-me de todas as maneiras. Eu suportava tudo pacientemente, mas no fundo também o odiava e não
podia vê-lo. Até disse ao padre, em confissão: “I sto um dia acaba mal”, e o padre, como verdadeiro padre,
aconselhou-me a ter paciência e a dedicar os meus sofrimentos à Virgem. Entretanto, arranjei uma rapariga
para me ajudar, uma certa Bice, de quinze anos, cujos pais ma tinham confiado, pois era ainda quase criança, e
ele começou a arrastar-lhe a asa quando me via ocupada com os clientes, abandonava a loja, galgava os degraus
a quatro e quatro, ia à cozinha e deitava-se a ela como um lobo. D esta vez impus-me e disse-lhe que deixasse a
Bice em paz, mas, como ele insistisse em atormentá-la, mandei-a embora. Por causa disto, o meu marido passou
a odiar-me ainda mais e foi então que começou a chamar-me labrega: “A labrega já voltou?... O nde está a
labrega?”
Em suma, era bem pesada a minha cruz, e, quando ele adoeceu a sério, devo confessar, quase senti alívio.
Tratei-o, no entanto, com todo o carinho, como se deve tratar um marido doente, e todos sabem que nem quis
saber mais da loja, só para estar ao pé dele; até perdi o sono. Finalmente morreu e senti-me de novo quase feliz.
Tinha a loja e a casa, tinha a minha filha, que era um anjo, e na verdade não desejava mais nada da vida.
Foram aqueles os anos mais felizes que vivi: 1940, 1941, 1942, 1943. É verdade que havia a guerra, mas eu de
guerra não percebia nada, e, como só tinha aquela filha, não me preocupava que houvesse guerra ou não. Q ue
se matassem uns aos outros, com aviões, carros blindados, bombas, a mim não me importava, bastava-me a loja
e a casa para ser feliz, como de fato era. D e resto, sabia pouco de guerra, pois, embora saiba fazer contas e até
assinar o meu nome num postal ilustrado, para falar verdade, não sei ler lá muito bem e nos jornais só lia a
crônica dos crimes, ou, antes, mandava-a ler a Rose a. Para mim, alemães, ingleses, americanos, russos, como
diz o provérbio, caça, caça, que é tudo a mesma raça.
A os militares que apareciam na loja e diziam: venceremos além, iremos acolá, faremos isto e mais aquilo, eu
respondia: para mim tudo corre bem enquanto correr bem o negócio. E o negócio corria realmente bem,
embora houvesse aquele inconveniente das senhas e Rose a e eu passássemos todo o dia de tesoura na mão,
como se fôssemos costureiras, e não comerciantes. O negócio corria bem porque eu era esperta e no peso
conseguia ganhar sempre alguma coisa e também porque, como havia racionamento, fazíamos as duas um
pouco de mercado negro.
D e tempos a tempos, Rose a e eu fechávamos a loja e íamos à minha aldeia ou a qualquer outra localidade
mais próxima. Levávamos duas grandes malas de fibra, vazias, e as trazíamos para casa cheias de tudo: farinha,
presunto, ovos, batatas.
Com os fiscais não havia complicações porque eles também tinham fome, e assim cheguei a vender mais
coisas às escondidas do que às claras. Mas a um desses tipos meteu-se-lhe na cabeça aproveitar-se das
circunstâncias. Um dia disse que me denunciava se eu não lhe desse trela. Respondi-lhe, muito calma: “Está
bem... vai logo a minha casa.”
Ele ficou vermelho como se lhe tivesse dado um sopapo e foi-se embora sem dizer nada. À hora combinada
apareceu, mandei-o entrar pela cozinha, abri uma gaveta, agarrei numa faca e apontei-lhe logo ao pescoço,
dizendo: “Tu denuncias-me, mas eu primeiro mato-te.”
A ssustou-se e disse-me à pressa que eu era maluca, pois aquilo não passara duma brincadeira. E
acrescentou: “Não és como as outras mulheres? Não te agradam os homens?”
Respondi-lhe: “Vai perguntar isso às outras... eu sou viúva, tenho a minha loja e não penso em nada mais...
para mim o amor não existe, lembra-te disto, para teu governo.”
Ele não acreditou logo e durante algum tempo continuou a arrastar-me a asa, mas respeitosamente. E eu
tinha dito a pura verdade. O amor, depois do nascimento de Rose a, nunca mais me interessou, e talvez nem
mesmo antes. S ou assim, não suporto que alguém me ponha as mãos em cima. S e os meus pais, a seu tempo,
não tivessem combinado o meu casamento, creio que estaria ainda hoje como a minha mãe me deitou ao
mundo.
Mas a minha aparência engana, porque agrado aos homens, e, embora seja baixa e com os anos alargasse
um pouco, tenho a cara lisa, sem uma ruga, os olhos negros e os dentes brancos. N aquele período, que, como
disse, foi o mais feliz da minha vida, perdi a conta aos homens que me propuseram casamento. Mas eu sabia
que a loja e a casa é que os seduzia, mesmo àqueles que diziam amar-me a sério. Talvez nem eles próprios
soubessem que assim era e se iludissem sobre os seus sentimentos; mas eu julgava por mim e pensava: “Eu
trocaria qualquer homem pela loja e pela casa... Porque hão de ser eles diferentes?... S omos todos feitos da
mesma massa.”
S e ao menos fossem, não digo ricos, remediados; mas não, eram uns pobretanas, e via-se a uma légua de
distância que tinham necessidade de se amparar. A um de N ápoles, agente da segurança pública, que mais do
que qualquer outro fazia de apaixonado e procurava conquistar-me com adulações, enchendo-me de
cumprimentos e chamando-me até, à maneira napolitana, “D ona Cesira”, disse-lhe francamente: “Vejamos: se
eu não tivesse a loja e a casa, vinhas dizer-me essas coisas?”
Aquele ao menos foi sincero, Respondeu a rir: “Mas como tens a casa e a loja...”
Também é verdade que foi sincero porque lhe tirei todas as esperanças.
Entretanto, a guerra prosseguia, mas a mim não me interessava, e quando, na rádio, depois das cançonetas,
liam o comunicado, dizia a Rose a: “Fecha, fecha essa telefonia, que se matem à vontade uns aos outros, esses
filhos duma m... não quero ouvi-los; o que nos interessa a guerra?... Eles fazem-na sem se importarem nada com
a pobre gente que tem de ir para lá... portanto, nós, que somos a pobre gente, estamos no direito de não nos
importarmos também.”
Por outro lado, devo confessá-lo, a guerra favorecia-me: vendia cada vez mais no mercado negro, com preços
ao meu gosto, e cada vez menos na loja, com preços fixados pelo Governo. Q uando começaram os
bombardeamentos a Nápoles e a outras cidades, muita gente dizia-me: “Fujamos, se não matam-nos a todos.”
Eu respondia: “A Roma não vêm, porque em Roma está o papa... e, se me vou embora, quem cuida da loja?”
Também os meus pais me escreveram da aldeia, convidando-me a ir para lá, mas recusei. Rose a e eu íamos
cada vez mais frequentemente ao campo e trazíamos nas malas tudo o que encontrávamos: no campo havia
abundância de mantimentos, os camponeses não queriam vendê-los ao Governo, que pagava pouco, e
esperavam por nós, os do mercado negro, que pagávamos preços altos.
A lém do que metíamos nas malas, trazíamos muitas outras coisas; lembro-me que uma vez voltei a Roma
com alguns quilos de salsichas enroladas em volta da cintura, debaixo da saia, e até parecia grávida. Rose a
escondia os ovos no seio e, quando os tirava, estavam tão quentes como se acabassem de sair da galinha.
Estas viagens, porém, eram longas e perigosas; uma vez, para os lados de Frosinone, um avião metralhou o
comboio e estivemos parados em pleno campo; disse a Rosetta que descesse e se escondesse em qualquer fosso,
mas eu não desci porque tinha as malas cheias e no compartimento havia algumas caras pouco tranquilizadoras
e uma mala depressa se rouba. Estendi-me no chão, entre os assentos, com as almofadas em cima do corpo e da
cabeça, e Rose a desceu com os outros e escondeu-se num fosso. O avião, depois de nos metralhar a primeira
vez, deu uma volta no céu e voltou à carga, voando baixo por cima do comboio parado, com um barulho
infernal dos motores e o tique-tique continuo das metralhadoras, como granizo. Passou, afastou-se e tudo ficou
em silêncio.
Finalmente, os passageiros voltaram ao compartimento e o comboio partiu, D aquela vez até me mostraram
as balas, compridas como um dedo; uns diziam que eram americanas, outros afirmavam que eram alemãs.
Eu disse a Rose a: “Temos de ganhar para o enxoval e para o dote. O s soldados voltam da guerra, não é
verdade? E na guerra estão sempre a disparar contra eles, procurando matá-los de todas as formas... Pois bem,
nós também havemos de voltar a salvo destas viagens.”
Rose a não respondia, ou então dizia-me que iria aonde eu fosse. Tinha um feitio meigo, diferente do meu,
e D eus sabe que, se alguma vez houve um anjo na Terra, ela era mesmo um anjo. Eu dizia-lhe constantemente:
“Pede a Deus que a guerra dure ainda alguns anos... porque então não só terás um bom enxoval e um bom dote,
mas serás rica.”
Ela não respondia, ou suspirava, e por fim soube que o namorado andava na guerra e ela tinha medo que o
matassem. Escreviam-se, ele estava nessa altura na I ugoslávia; pedi informações e vim a saber que era um bom
rapaz de Pontecorvo, onde os pais tinham umas terrinhas; estudava para guarda livros e interrompera os
estudos por causa da guerra, mas contava retomá-los quando a guerra acabasse.
Então, disse a Rosetta: “O principal é que ele volte... do resto encarrego-me eu.”
Rose a abraçou-me, muito feliz. E eu podia de fato dizer, nessa altura. “do resto encarrego-me eu”: tinha a
casa, tinha a loja, tinha dinheiro guardado, e as guerras, já se sabe, um dia tem de acabar e tudo volta aos seus
lugares. Rose a até me deu a ler a última carta do noivo e lembro-me sobretudo duma frase: “A qui temos uma
vida muito dura. Estes eslavos não querem submeter-se e estamos sempre em estado de alerta.” Eu não sabia
nada da I ugoslávia, mas mesmo assim disse a Rose a: “Q ue diabo fomos nós fazer a esse país? N ão podíamos
ficar na nossa casa?
Eles não querem submeter-se e tem razão, digo-te eu.”
Em 1943 fiz um negócio importante: consegui trazer uma dezena de presuntos de S ermoneta para Roma.
A rranjei maneira de chegar a acordo com o dono duma camioneta que transportava cimento, ele meteu os
presuntos debaixo dos sacos e assim chegaram sãos e salvos e eu ganhei bastante dinheiro, pois toda a gente os
queria. Foi talvez por causa dos presuntos que nem dei conta do que estava a suceder. A o voltar de S ermoneta
disseram-me que Mussolini tinha fugido e que a guerra ia acabar. Eu respondi: “Para mim, Mussolini ou
Badoglio ou outro qualquer, pouco me importa, contanto que se faça negócio.”
Com Mussolini, de resto, nunca me importei, achava-o antipático, por causa dos olhos ameaçadores e
daquela boca que nunca se calava; aliás sempre pensei que as coisas lhe começassem a correr mal, desde o dia
em que se meteu com a Petacci, pois o amor faz perder a cabeça aos homens velhos e Mussolini já era avô
quando conheceu aquela rapariga. A única vantagem dessa noite de 25 de J ulho foi terem posto a saque um
armazém da I ntendência, na Via Garibaldi. Fui lá, como muitos outros, e levei para casa, à cabeça, um queijo
parmesão. Mas havia ali de tudo e não ficou nada para amostra. Um vizinho meu levou para casa, num
carrinho, o fogão de sala, de terracota, que estava no gabinete do administrador.
D urante aquele verão fizeram-se bons negócios, toda a gente tinha medo e amontoava em casa coisas e mais
coisas e nunca lhe pareciam bastante. Havia mais gêneros nas adegas e despensas do que nas lojas. Lembro-me
que um dia levei um presunto a uma senhora, para os lados da Via Veneto. Morava num lindo palácio. Um
criado de libré abriu-me a porta, eu levava o presunto na mala do costume, e a senhora, muito bonita e
perfumada, com tantas joias que até parecia N ossa S enhora, veio ao meu encontro na antecâmara, e atrás dela o
marido, baixinho e gordo, e quase me beijou, tal era a sua gratidão, dizendo-me: “Querida... oh! querida... venha
por aqui, faça favor... entre, entre.”
Eu segui-a por um corredor e a senhora abriu a porta da despensa: havia ali de tudo, mais do que numa
mercearia. Era uma divisão sem janelas, com prateleiras de alto a baixo, sobre as quais se alinhavam todas as
qualidades de gêneros: aqui, uma fila de caixas grandes, das de quilo, de sardinhas em azeite; ali, outras
conservas finas, americanas ou inglesas; mais além, pacotes de massa, sacos de farinha e de feijão, frascos de
doce e, pelo menos, uma dezena de presuntos e paios. Eu disse-lhe: “Minha senhora, tem aqui que comer para
dez anos.”
Mas ela respondeu: “Nunca se sabe.”
Pôs o presunto ao lado dos outros, o marido pagou-me ali mesmo e, enquanto tirava o dinheiro da carteira,
as mãos tremiam-lhe de alegria e não fazia senão repetir: “Q uando tiver coisas boas, lembre-se de nós...
estamos dispostos a pagar vinte e até trinta por cento mais do que os outros.”
Em suma, toda a gente queria coisas de comer e pagava qualquer preço sem hesitar; por isso nem pensei em
guardar para mim fosse o que fosse, pois me habituara a considerar o dinheiro a coisa mais preciosa; mas o
dinheiro não se come e, quando a escassez chegou, não tinha absolutamente nada. N a loja, as prateleiras
estavam vazias, não restavam senão alguns pacotes de massa e umas caixas de sardinha de má qualidade.
Tinha, sim, uns cobres amealhados em casa, e não no banco, por precaução, pois dizia-se que o Governo queria
fechar os bancos e ficar com as economias dos pobres; mas agora o dinheiro já ninguém o queria e, além disso,
não me agradava nada, depois de o ter ganho no mercado negro, ir gastá-lo no mesmo mercado, onde os preços
quase atingiam as estrelas.
Entretanto, tinham voltado os alemães e os fascistas e uma manhã, ao passar na Praça Colonna, vi a grande
bandeira negra dos fascistas a flutuar no balcão do palácio de Mussolini e toda a praça cheia de homens com
camisas negras, armados até aos dentes. O s que tinham feito todo aquele barulho na noite de 25 de J ulho
fugiam agora rente aos muros, como ratos quando aparece o gato. Eu disse a Rose a: “O xalá uns ou outros
vençam rapidamente a guerra, a ver se podemos comer seja o que for.”
Estávamos no mês de setembro e uma manhã disseram-me que havia uma distribuição de ovos para os
lados da Via della Vite. Fui lá e vi de fato dois caminhões cheios de ovos. Mas não distribuíam nada e um
alemão de calções e em mangas de camisa, com uma metralhadora a tiracolo, vigiava a descarga. J untaram-se
muitas pessoas em volta a ver descarregar os ovos sem dizerem nada, mas de olhos esgazeados, como se
estivessem cheias de fome, e na verdade estavam.
Via-se que o alemão tinha medo que o agredissem, pois não fazia outra coisa senão voltar-se para todos os
lados, a mão na metralhadora, dando saltos como uma rã na margem dum pântano. Era novo, gordo e branco,
muito vermelho por causa do sol, com queimaduras nas coxas e nos braços como se tivesse passado o dia à
beira-mar. A multidão, vendo que não distribuíam os ovos, começou e murmurar, primeiro baixinho, depois
cada vez mais alto, e o alemão, que estava cheio de medo, via-se a uma légua de distância, pegou na espingarda
e apontou-a para nós, dizendo: “Embora, embora, embora!”
Então perdi a cabeça, naquela manhã não tinha comido nada e estava com fome, e gritei-lhe: “D á-nos os
ovos, que nós vamo-nos embora!”
Ele repetiu: “Embora, embora”, apontando-me a espingarda; fiz um gesto, a indicar que tinha fome, levando
a mão à boca.
Mas ele não se deu por entendido e de repente pôs-me o cano da espingarda mesmo sobre o estômago, com
tal força que me magoou. Foi tanta a minha raiva que gritei: “Fizeram mal em mandar embora Mussolini...
estava-se melhor no tempo dele... desde que vocês vieram, não há que comer.”
N ão sei porquê, a estas palavras toda a gente começou a rir e alguns chamaram-me “labrega”, tal qual como
o meu marido; um disse-me: “Em Sgurgola não se lêem jornais?”
Respondi enfurecida: “S ou de Vallecorsa, e não de S gurgola... além disso, não te conheço e não falo
contigo.”
Mas os outros continuavam a rir e até o alemão parecia querer rir também.
Entretanto iam descarregando os ovos, em caixas abertas, muito brancos e índios, e levavam-nos para dentro
do armazém. Então, gritei: “Ah! malandros, queremos os ovos, compreendem... queremos os ovos!”
Da multidão saiu um polícia e ordenou-me: “Vai-te embora, que é melhor...”
Respondi-lhe: “Já comeste hoje? Eu ainda não.”
Ele então deu-me uma bofetada e empurrou-me para o meio da turba.
Palavra que até tive vontade de o matar; e debatia-me, dizendo-lhe tudo o que me vinha à cabeça; mas em
volta empurravam-me para me afastarem dali e por fim tive de me ir embora mesmo. N a balbúrdia, até perdi o
lenço. Fui para casa e disse a Rosetta: “Se não sairmos daqui a tempo, acabamos por morrer de fome.”
Ela pôs-se a chorar e murmurou: “mamãe, tenho tanto medo!”.
S enti-me mal, porque até esse momento Rose a nunca se lamentara e mais de uma vez me tinha encorajado
com a sua tranquilidade. disse-lhe: “Pateta, porque tens medo?”
Ela respondeu: “D izem que vêm com aviões e matam-nos a todos... parece que têm um plano: primeiro
destroem as linhas férreas os comboios e depois, quando Roma estiver isolada e não houver mais nada que
comer e ninguém puder fugir para o campo, matam-nos a todos com os bombardeamentos... O h! mamãee,
tenho tanto medo... e Gino não me escreve há mais de um mês e não sei nada dele!...”
Tentei consolá-la, dizendo-lhe as coisas do costume, que eu já não sabia se eram verdades: que em Roma
estava o papa, que os alemães iam ganhar depressa a guerra, que não havia razão para ter medo. Mas ela
continuava a soluçar. Por fim apertei-a nos braços e embalei-a como quando tinha dois anos. Enquanto a
acariciava e ela chorava e repetia: “Tenho tanto medo, mamãe!”, pensava que ela não se parecia comigo, pois
não tenho medo de nada nem de ninguém.
Mesmo fisicamente, não havia entre nós grandes parecenças: Rose a tinha uma cara de borreguinha, olhos
grandes, de expressão doce e quase ardente, o nariz fino arqueado um pouco para o lábio e uma boca bonita e
carnuda ligeiramente proeminente em relação ao queixo fugidio, tal como o das ovelhas. O s seus cabelos
lembravam a lã dos cordeiros, dum louro escuro, muito espessos e encaracolados, e a pele era branca, delicada,
salpicada de sardas, ao passo que eu tenho os cabelos negros e a carnação morena, como queimada do sol.
Finalmente, para acalmá-la, disse-lhe: “Todos pensam que a chegada dos ingleses é uma questão de dias e,
quando vierem, acaba a escassez... entretanto, sabes o que vamos fazer? Vamos para junto dos teus avós, para a
aldeia, enquanto a guerra não acaba. Há lá que comer, feijões, ovos, porcos. N o campo encontra-se sempre
qualquer coisa.”
Ela perguntou então: “E a casa?”
Respondi: “Minha filha, também já pensei nisso... arrendo-a a Giovanni... arrendo-a é uma maneira de
dizer... quando voltarmos, ele entrega-nos a casa tal qual... A loja, fecho-a, tanto mais que não tem nada dentro
e durante algum tempo não haverá que vender.”
É bom saber-se que Giovanni era comerciante de carvão e lenha e fora amigo do meu marido. Era um
homenzarrão, calvo, de cara vermelha, bigodes eriçados e olhos meigos. Em vida do meu marido tinham sido
companheiros, à noite, na taberna, com outros negociantes do bairro. Vestia habitualmente fatos largos e
amarrotados e trazia sempre metade dum charuto apagado entre os dentes, debaixo dos bigodes; nunca o vi
sem um canhenho e um lápis na mão, pois andava constantemente a fazer contas e a tomar notas e
apontamentos. A s suas maneiras eram, como os seus olhos, doces, afetuosas, familiares, e, quando Rose a era
pequena, perguntava sempre que me via: “Como está a boneca?... O que faz a boneca?”
D irei ainda... mas não estou bem certa, porque há coisas que acontecem e depois se duvida que tenham
sucedido, principalmente se as pessoas, como neste caso, não falam mais no assunto e se comportam como se
nada se tivesse passado.
Giovanni, ainda em vida do meu marido, subiu um dia a minha casa, não me lembro a que pretexto; eu
estava junto do fogão a cozinhar e ele sentou-se e começou a falar disto daquilo e por fim, do meu marido. Eu
J ulgava que eram amigos, e por isso pode imaginar-se a minha surpresa quando, de repente, o ouvi perguntar:
“Mas dize-me lá, Cesira, como consegues aturar esse malandro?”
Disse assim mesmo, “malandro", e eu nem queria acreditar no que ouvia e voltei-me para ele: estava sentado
tranquilamente, o charuto apagado ao canto da boca. A crescentou: “J á não se aguenta em pé e qualquer dia
morre...mas antes, à força de andar metido com prostitutas, ainda te pega alguma doença ruim."
Respondi: “Q uero lá saber do que faz o meu marido!... Q uando entra em casa, já tarde, mete se na cama, eu
volto-me para o outro lado, e boa noite.”
Então ele disse ou pareceu-me ouvir: “Mas tu ainda és nova; queres ir para freira? És nova e precisas dum
homem que te queira bem.”
Eu tornei-lhe: “Que te importa? Não preciso de homens e, mesmo que precisasse, que tinhas tu com isso?”
N esta altura ele levantou-se, parece-me que estou a vê-lo, veio ao pé de mim e pegou me no queixo, dizendo:
“Com vocês, mulheres, é preciso falar sempre pão pão, queijo queijo... Eu estou aqui, não vês? N unca pensaste
em mim?”
Já passaram tantos anos e as minhas recordações baralham-se neste ponto.
Mas estou quase certa de que me fez propostas de amor e lembro-me de lhe ter respondido: “N ão te
envergonhas? Vicenzo é teu amigo.”
Ele retorquiu: “Qual amigo! Não sou amigo de ninguém.”
E em seguida, posso jurá-lo, disse-me que, se quisesse ser dele, me dava dinheiro. A briu a carteira e, ali
mesmo, na mesa da cozinha, começou a pôr, uma a uma, muitas notas, enquanto me fitava e repetia: “Mais
ainda? Ou basta?”
Q uando lhe disse, sem me zangar, que desaparecesse, guardou as notas e saiu. Tudo isto sucedeu com
certeza, porque não o podia ter inventado, mas no dia seguinte ele não disse uma palavra sobre o assunto, nem
nos outros dias, nem nunca mais. A sua atitude para comigo voltou a ser o que sempre fora, simples e afetuosa,
de tal maneira que comecei a perguntar a mim mesma se acaso não teria sonhado que ele chamara malandro ao
meu marido e me fizera propostas de amor e pusera dinheiro em cima da mesa da cozinha. Com o decorrer dos
anos, essa sensação de que tudo fora um sonho prevaleceu no meu espírito. Mas, ao mesmo tempo, não sei
porquê, tinha a impressão de que Giovanni era o único homem que gostava de mim a valer, só pelo que eu era,
não pelo que possuía, e o único também que me poderia valer numa ocasião de apuro.
Por isso fui ter com Giovanni: encontrei-o na sua cave negra, cheia de molhos de lenha e sacos de carvão,
únicas mercadorias que havia em Roma naquela altura.
disse-lhe o que queria e ele ouviu-me em silêncio, piscando os olhos e mordiscando o charuto meio apagado.
Por fim, anuiu: “Está bem... olharei pela loja e pela casa enquanto estiveres fora... É uma maçada, especialmente
nos tempos que correm... nem sei mesmo porque o faço... admitamos que seja por aquela boa alma...”
Estas palavras soaram-me mal, pois parecia-me estar ainda a ouvi-lo: “Como consegues aturar esse
malandro?” E mais uma vez me custava a acreditar no que ouvia. D e repente escapou-me: “Espero que o faças
também por mim.”
N ão sei porque o disse, talvez por estar convencida de que ele me queria bem e de que sentiria prazer,
naquele momento difícil, de o ouvir afirmar que o fazia também por mim. Ele olhou-me um instante, tirou o
charuto da boca e pousou o na beira da mesa. D epois foi até a porta da cave, subiu os degraus, fechou-a, pos a
tranca, correu o ferrolho, e ficamos completamente às escuras.
Compreendi logo tudo, fiquei sem poder respirar, o coração batia-me apressado, mas não posso dizer que
aquilo me desagradava: sentia-me, sim, perturbada. I magino que a culpa foi das circunstâncias: Roma inteira
em desordem, a carestia, o medo, o desespero de deixar a loja e a casa e a sensação de não ter um homem ao
meu lado, como todas as outras mulheres, que naquele momento me ajudasse e desse coragem. A verdade é
que, pela primeira vez na minha vida, enquanto Giovanni, no escuro, caminhava ao meu encontro, senti o corpo
quebrar-se, tornar-se fraco, vencido; e, quando chegou ao pé de mim, sempre no escuro, e me tomou nos
braços, o meu primeiro impulso foi apertar-me contra ele e unir a minha à sua boca, arquejante. Ele empurrou-
me para cima duns sacos de carvão e ali me entreguei, sentindo que era a primeira vez que me dava
verdadeiramente a um homem: e, embora os sacos fossem duros, experimentei uma sensação de alívio e de
conforto: quando tudo acabou e ele se afastou de mim, fiquei ainda um bom bocado estendida em cima dos
sacos, tonta e feliz; quase me parecia ter voltado à juventude, ao tempo em que cheguei a Roma com o meu
marido, sonhando experimentar uma sensação semelhante e, ao contrário, passara a ter nojo dos homens e do
amor. Por fim, ele perguntou-me no escuro se eu queria falar do nosso negócio; levantei-me e disse-lhe que sim,
então acendeu uma lamparina e, à sua luz fraca, vi-o sentado à mesa, como antes, como se nada tivesse
acontecido, o charuto entre os dentes, os olhos semicerrados. E disse-lhe, aproximando-me: “Jura-me que nunca
contarás a ninguém o que se passou hoje... Jura!”
Giovanni sorriu e respondeu: “N ão sei a que te referes... N ão te compreendo... Vieste falar-me a respeito da
casa e da loja, não é verdade?”
D e novo tive a impressão de ter sonhado e, se não fosse o vestido em desalinho e as mascarras de carvão
bem visíveis, por me ter rebolado em cima dos sacos, na verdade podia pensar que nada acontecera. Balbuciei,
desconcertada: “Sim, tens razão... vim por causa da casa e da loja.”
Ele então pegou numa folha de papel, escreveu uma declaração na qual eu dizia que lhe alugava a casa e a
loja por um ano e mandou-me assinar. D epois meteu a folha de papel numa gaveta. Foi abrir a porta e disse:
“Estamos entendidos... hoje vou lá a casa fazer o inventário e amanhã vou buscá-las e acompanho-as à estação.”
Estava ao pé da porta e, quando passei em frente para sair, deu-me uma palmada no rabo, sorridente, como
se dissesse: “Estamos entendidos também neste negócio...”
Pensei comigo mesma que já não tinha o direito de protestar, deixara de ser uma mulher honesta, e admiti
que isto também era um efeito da guerra e da carestia; uma mulher honesta, em certa altura, sente que lhe dão
assim uma palmada e não pode dizer nada, precisamente porque já não é honesta...
Voltei para casa e comecei logo a fazer os preparativos da partida.
D esagradava-me, confrangia-me o coração ter de deixar aquela casa onde passara os últimos vinte anos, sem
nunca me afastar dela, a não ser para as viagens do mercado negro. Estava convencida, é certo, que os I ngleses
chegariam dum momento para o outro, dai a uma semana ou duas, e preparava-me para uma ausência de um
mês apenas; mas, ao mesmo tempo, tinha não sei que pressentimento não só duma ausência maior, mas
também de que o futuro me reservava qualquer tristeza. N unca me importara com a política e não sabia nada
dos fascistas, I ngleses, Russos ou A mericanos: todavia, à força de ouvir falar de tudo isso à minha volta, não
digo que compreendesse já alguma coisa, porque, para falar verdade, não compreendia patavina, mas percebia
que não andava nada de bom no ar para a pobre gente como nós. Era como no campo quando o céu se põe
negro à aproximação da tempestade, as folhas das árvores se voltam todas para o mesmo lado, as ovelhas se
encostam umas às outras e, embora no pino de verão, sopra um vento frio rente à terra, não se sabe de onde.
Tinha medo, mas não sabia de que, e apertava-me o coração ao pensar que ia deixar a minha casa e a minha loja,
como se soubesse ao certo que não as tornaria a ver. D isse, porém, a Rose a: “N ão leves muita roupa, pois não
estaremos lá mais de duas semanas e ainda faz calor.”
D e fato, estávamos em meados de setembro e fazia bastante calor, mais do que nos outros anos. A ssim,
enchemos duas pequenas malas de fibra com roupas leves e metemos nelas somente dois casacos de malha,
para o caso de fazer frio.
Eu, querendo consolar-me da partida, descrevia constantemente a Rose a o acolhimento que os meus pais
nos fariam lá na aldeia: “Verás, vão encher-nos de comida até mais não podermos... engordaremos e
descansaremos... no campo não existem todas estas coisas que tornam difícil a vida em Roma... estaremos bem,
dormiremos bem, e sobretudo comeremos melhor...
verás: têm porco, farinha, fruta, vinho... Vai ser uma vida regalada.”
Mas a Rose a esta perspectiva parecia que não bastava para a alegrar, pensava no noivo, que estava na
I ugoslávia e há um mês não dava notícias. Eu sabia que ela se levantava cedo todas as manhãs e ia à igreja rezar
por ele, para que não lho matassem e voltasse e pudessem casar.
Q uerendo mostrar que a compreendia, disse-lhe, abraçando-a e beijando-a: “Q uerida filha, tranquiliza-te,
Nossa Senhora vê-te e ouve-te e não permitirá que te suceda nenhum mal.”
Entretanto, continuava os preparativos da abalada e agora, passado o momento das apreensões, parecia-me
que nunca mais chegava a hora de partir.
Talvez porque nos últimos tempos, com os alarmes aéreos, a falta de comida, a ideia de partir e tantas
outras coisas, a vida para mim já não era vida, até nem tinha vontade de limpar a casa, eu que habitualmente
me punha de joelhos no chão para lhe dar brilho e não parava de esfregar enquanto tinha fôlego, tornando-a
luzidia como um espelho. Parecia-me que a vida se desconjuntara, como uma caixa que cai dum carro e se
desfaz, espalhando tudo o que contém na rua. S e pensava no que acontecera com o Giovanni, sobretudo na
palmada que ele me dera, sentia-me desconjuntada como a vida e capaz de fazer não sei o quê. Até de roubar
ou de matar, porque perdera o respeito por mim mesma e já não era o que fora antes.
Consolava-me pensando em Rosetta, que. Ao menos, tinha a mãe para a proteger.
Ela seria aquilo que eu já não era. A h! N a verdade, a vida é feita de hábitos e até a honestidade é um hábito
também; e, assim que se muda de hábitos, a vida torna-se um inferno, somos diabos à solta, sem respeito por
nós próprios nem pelos outros.
Rose a estava preocupada com o seu gato, um lindo gato pardo que encontrara na rua ainda pequenino e
criara com todo o carinho: à noite dormia com ela na cama e de dia seguia-a para toda a parte como um
cãozinho. disse-lhe que o confiasse à porteira do prédio ao lado e respondeu-me que assim faria. A gora estava
sentada no quarto, aos pés da cama, sobre a qual se encontrava a mala de viagem, já fechada, com o gato nos
joelhos, e acariciava-o devagarinho. O gato, coitado. N ão adivinhando que a dona o ia abandonar, fazia ronrom
de olhos fechados. Tive pena, vi que ela sofria, e disse-lhe “Q uerida filha... deixa passar este mau bocado, que
depois tudo entrará nos eixos... a guerra acaba, volta a abundância, tu casas-te, viverás com o teu marido e serás
feliz.”
Precisamente nesse momento, como para me dar resposta, soou a sirene de alarme, aquele ruído maldito
que me parecia trazer mau agouro e me confrangia sempre o coração. Então possuiu-me não sei que raiva, abri
a janela que dava para o saguão, levantei o punho para o céu e gritei: “Q ue morras e nem a alma se te aproveite
e mais quem te mandou cá vir!”
Rose a, que não se mexera, observou: “mamãe, porque te zangas tanto? D isseste agora mesmo que tudo há
de voltar ao seu lugar..."
Por amor daquele anjo, acalmei-me, embora com esforço, e respondi: “S im, mas entretanto temos de sair da
nossa casa e quem sabe o que sucederá mais ainda...”
N aquele dia sofri as penas do inferno. Parecia-me que já não era eu. O ra pensava no que tinha sucedido com
Giovanni, que me entregara a ele como qualquer reles mulher da rua, completamente vestida, em cima dos
sacos de carvão, e dava-me vontade de morder as mãos de raiva: ora olhava em volta, para a casa que fora minha
durante vinte anos e que tinha agora de deixar, e sentia-me desesperada. N a cozinha, o lume estava apagado;
no quarto, onde eu dormia com Rose a no leito conjugal, os lençóis estavam revolvidos, em desordem; e não
sentia forças para fazer a cama, na qual sabia que não havia de dormir tão cedo, nem para acender o fogão, que
no dia seguinte já não seria meu e onde não tornaria a cozinhar.
Comemos, na mesa sem toalha, pão e sardinhas; de vez em quando olhava para Rose a, muito triste, e
sentia um nó na garganta, cheia de pena e de medo por ela, pensando que tivera pouca sorte em nascer e viver
nos tempos que corriam. Por volta das duas horas deitamo-nos na cama por fazer e dormimos um pouco; ou,
melhor, Rose a adormeceu, muito aconchegada a mim, e eu fiquei de olhos abertos, pensando todo o tempo
em Giovanni, nos sacos de carvão e na palmada que ele me dera, na casa e na loja que ia deixar. Finalmente
bateram à porta; furtei-me com todo o cuidado ao peso de Rose a adormecida e fui abrir. Era Giovanni,
sorridente, de charuto na boca. Nem o deixei respirar: “Ouve”, disse-lhe, furiosa, “o que aconteceu, aconteceu, e
não sou mais o que era antes, concordo, e tens razão para me tratar como uma prostituta... mas se me dás outra
palmada como esta manhã, mato-te, tão certo como D eus existir... depois vou para a prisão, mas nesta altura
pode ser até que se esteja lá bem, e vou de boa vontade.”
Ele apenas arqueou um pouco as sobrancelhas, surpreendido, mas não disse nada. Passou à antecâmara,
pronunciando baixinho: “Então vamos lá fazer o inventário.”
Fui ao quarto e peguei numa folha de papel em que mandara escrever a Rose a tudo quanto tinha em casa e
na loja. A li discriminara até os mais pequenos objetos, não porque desconfiasse de Giovanni, mas porque é
mais seguro não confiar em ninguém. A ssim, antes de começar o inventário, disse-lhe, muito séria: “O lha que
tudo isto foi ganho com o meu suor e o do meu marido, em vinte anos de trabalho... toma cuidado, guarda tudo
bem, lembra-te que um prego é um prego, e aqui dentro não deve faltar nada quando eu voltar.”
Ele sorriu e respondeu: “Está descansada, encontrarás cá os pregos todos”.
Comecei pelo quarto. Tinha feito duas cópias desta lista: uma entreguei-a a ele e outra a Rose a e eu ia
indicando os objetos. Mostrei-lhe a cama, para duas pessoas, de ferro pintado a imitar madeira, tão bonita, com
todos os veios a conhecerem-se, que qualquer um julgaria ser de nogueira. Levantei a coberta e mostrei-lhe que
tinha dois colchões, um de crina e outro de lã. A bri o armário e contei as colchas, os lençóis e toda a roupa
branca. A bri as mesinhas de cabeceira e mostrei-lhe os bacios de porcelana, com flores vermelhas e azuis.
D epois enumerei os móveis: uma cômoda com tampo de mármore branco, um espelho oval com moldura
dourada, quatro cadeiras, uma cama, duas mesinhas de cabeceira, um guarda-vestidos com espelho nos dois
batentes. A pontei todas as ninharias: uma redoma de vidro com um ramo de flores de cera que pareciam
mesmo verdadeiras, prenda de casamento da minha madrinha; uma caixa de porcelana para amêndoas; duas
estatuetas que representavam uma pastorinha e um pastorzinho; uma almofada de veludo azul para alfinetes;
uma caixa de música de S orrento que, quando se abria, tocava uma aria e tinha na tampa um embutido
representando o Vesúvio; duas garrafas para água e os respectivos copos de vidro gravado e maciço; uma jarra
de porcelana colorida, em forma de tulipa, com três penas de pavão muito bonitas em vez de flores; dois
quadros a cores, um com a N ossa S enhora e o Menino e outro com uma cena de teatro, um mouro e uma
mulher loura, que me tinham dito ser duma ópera chamada O telo, que era também o nome do mouro. D o
quarto passei à sala de jantar que servia igualmente de sala de visitas e onde tinha a máquina de costura. A qui
quis que ele tocasse na mesa redonda, de nogueira escura, com um centro bordado e uma jarra de flores igual à
do quarto e quatro cadeiras em volta, forradas de veludo verde; depois abri o guarda-louça e contei peça por
peça todo o serviço de porcelana com flores e grinaldas, muito bonito, para seis pessoas, que talvez tivesse
servido apenas umas duas vezes em toda a minha vida. N essa altura adverti-o: “O lha que quero tanto a este
serviço como à luz dos meus olhos... se o partires, verás...”
Ele respondeu a sorrir: “Está descansada.”
Continuando o inventário, mostrei-lhe todos os outros objetos: dois quadros de flores, a máquina de
costura, o aparelho de rádio, o sofá estofado com as duas poltronas, a licoreira, de vidro cor-de-rosa e azul, com
seis cálices, algumas caixas para bolos, um bonito leque que estava pendurado na parede, de várias cores, com
uma vista de Veneza. D epois passamos à cozinha e aqui contei, peça por peça, todo o trem de cozinha, panelas
de alumínio e de cobre, faqueiro de aço inoxidável, e mostrei-lhe que não faltava nada, nem o forno, nem a
máquina de esmagar batatas, nem o armarinho das vassouras, nem o caixote do lixo. Em suma, viu tudo; a
seguir descemos à loja. A qui o inventário foi mais rápido porque, fora as prateleiras, o balcão e algumas
cadeiras, não ficara nada, tudo se tinha vendido, fora uma limpeza geral nos últimos meses de penúria.
Finalmente voltamos para cima. Então suspirei, desanimada: “Para que serve este inventário?... S into que não
voltarei mais.”
Giovanni, que se sentara e fumava, abanou a cabeça e respondeu: “O s ingleses chegam daqui a quinze dias,
até os fascistas o dizem... vais para férias duas semanas e voltas e faremos uma bela festa quando chegares...
Que dizes a isto?”
Giovanni, depois destas palavras, ainda acrescentou muitas outras para nos consolar e quase o conseguiu;
assim, quando se foi embora, ficamos mais animadas e ele, desta vez, embora estivéssemos sozinhos na
antecâmara, não repetiu a palmada, contentou-se em fazer-me uma caricia na face, como costumava fazer
muitas vezes em vida do meu marido, e eu fiquei lhe grata e quase me pareceu, na verdade, que nada se passara
entre nós e continuava a ser a mesma que sempre fora.
O resto do dia passeio a ultimar os preparativos. Primeiro que tudo, fiz um grande embrulho da comida
para a viagem: um salame, caixas de conserva de sardinha e de atum e um bocado de pão. Para o meu pai e a
minha mãe fiz um embrulho à parte: para o meu pai, um fato do meu marido, quase novo, que ele mandara
fazer pouco antes de morrer e me pedira que lho vestisse quando fosse para a cova; mas eu, no último
momento, pensei que era um pecado estragar assim um fato tão bom de lã azul e embrulhei-o num lençol
velho. Meu pai tinha quase a mesma estatura que o meu marido e ao fato juntei também os sapatos, J á usados,
mas ainda em bom estado. Para a minha mãe, decidi levar-lhe um xale e uma saia.
Meti no pacote tudo o que me restava de salsicharia e de mercearia, alguns quilos de açúcar e de café,
conservas e dois salames. Pus estas coisas numa terceira mala, de modo que tínhamos agora três malas, mais
um saco em que pus duas almofadas, para o caso de sermos obrigadas a dormir no comboio. Toda a gente me
dizia que os comboios levavam dois dias a chegar a N ápoles e nós íamos precisamente até meio caminho entre
Roma e Nápoles; por isso pensei que estas precauções não eram demasiadas.
À noite sentamo-nos à mesa, mas desta vez cozinhara alguma coisa para não entristecer ainda mais; mal
tínhamos começado, soou o alarme e vi que Rose a se tornava pálida de medo, toda ela tremia; compreendi
que, depois de resistir tanto tempo, agora já não podia mais, tinha os nervos num feixe.
Resignei-me a deixar a ceia e descemos para a cave, precaução aliás inútil, porque, se caísse alguma bomba,
a nossa casa, velha como era, ficava feita em pó e nós enterrados debaixo dela. Mesmo assim, lá fomos para o
abrigo, onde já estavam todos os inquilinos do prédio, e aí passamos três quartos de hora, sentadas nos bancos,
no escuro. Todos falavam da chegada dos I ngleses como de coisa certa, daí a poucos dias. Tinham
desembarcado em S alerno, que fica ao pé de N ápoles, e de N ápoles a Roma não levavam talvez uma semana,
mesmo a andar devagar, porque os alemães e os fascistas fugiam agora como lebres e não paravam senão nos
A lpes. A lguns, porém, diziam que os A lemães se preparavam para defender Roma, pois Mussolini continuava
na cidade e não se importava nada que ela ficasse reduzida a escombros, contanto que os I ngleses lá não
entrassem.
Eu ouvia estas coisas e pensava que fazia bem em ir-me embora. Rose a achegava-se muito a mim e eu
compreendia que ela agora estava cheia de medo e só sossegara quando saíssemos de Roma. Em certa altura,
alguém atirou: “Vê bem o que dizem? Q ue vão lançar para quedistas e que eles entram nas casas e fazem coisas
do arco-da-velha.”
“O quê?”
“Bem, primeiro pilham o que encontrarem, depois atiram-se às mulheres.”
Então eu disse: “Sempre quero ver se algum tem a coragem de me tocar.”
N o escuro a voz dum tal Proie i, um padeiro, homem estúpido como não havia outro e de língua comprida,
com quem nunca simpatizei proferiu, numa risada “A ti talvez não te toquem, porque já és velha, mas à tua
filha, não digo nada.”
Respondi: “Vê lá como fala... eu tenho trinta e cinco anos, pois casei com dezesseis, e há ainda quem queira
casar comigo, se não tornei a casar, foi porque não quis.”
“Sim”, respondeu ele, “a raposa e as uvas.”
Eu disse então, furiosa: “É melhor que penses na cabra da tua mulher... ela já agora tos põe e não estão cá os
para quedistas... imagina o que não será depois...”
J ulgava que a mulher estivesse na aldeia, eles eram de S utri e tinha-a visto partir uns dias antes; no entanto,
por coincidência, ela estava também no abrigo e eu não a vira por causa do escuro. Mas ouvi-a imediatamente
berrar: “Cabra és tu, bêbecia, velhaca, desgraçada!”
E senti que ela agarrava Rose a pelos cabelos, julgando que era eu, e Rose a gritava e a outra batia-lhe,
Então, sempre no escuro, atirei-me a ela e rolamos as duas pelo chão, dando pancadas e arrancando os cabelos
uma à outra, enquanto todos gritavam e Rose a chorava, rezava e chamava por mim. A cabaram por separar-
nos sempre no escuro, e creio que também aos pacificadores coube alguma lambada porque, de repente,
quando nos separaram, tocou a sirene do fim do alarme e alguém acendeu a luz estávamos uma em frente da
outra, desgrenhadas e arquejantes, presas pelos braços e os que nos agarravam, um tinha a cara arranhada e os
outros os cabelos em desalinho, Rosetta soluçava a um canto.
N aquela noite, depois desta cena deitamo-nos muito cedo, sem sequer acabarmos a ceia, que ficou em cima
da mesa e na manhã seguinte ainda lá estava.
N a cama, Rose a aninhou-se a mim, como quando era pequenina e como há muito tempo já não fazia.
Perguntei-lhe: “O quê, ainda tens medo?”
Ela respondeu: “N ão, não tenho medo mas é verdade, mamãe, que os para quedistas fazem aquilo às
mulheres?”
E eu: “Não dês ouvidos a esse parvo, não sabe o que diz.”
“Mas é verdade?” insistiu ela.
E eu: “N ão, não é verdade, e de resto, nós partimos amanhã, vamos para o campo e lá não acontece nada,
está tranquila”.
Rose a ficou calada um momento, depois disse: “Mas, para que possamos voltar para casa, quem deve
ganhar, os alemães ou os ingleses?”.
Esta pergunta deixou me atrapalhada, porque, como já disse, não lia jornais e, além disso, nunca me
interessou saber como ia a guerra Respondi: “N ão sei o que combinaram, sei só que são todos uns filhos da
mãe, ingleses e alemães, e que fazem a guerra sem perguntarem nada a nós, os pobres, todavias sabes o que te
digo? Precisamos que qualquer deles vença a sério e que a guerra acabe... alemães ou ingleses, não importa,
contanto que um seja o mais forte.”
Mas ela insistiu: “Todos dizem que os alemães são maus... mas o que fazem, mamãe?”
Então, respondi: “O que fazem? Em vez de estarem na terra deles, vieram para cá aborrecer-nos... por isso os
olhamos de mau modo.”
“Mas para onde vamos”, perguntou ela, “estão lá os alemães ou os ingleses?”
Eu não sabia que responder e disse: “Lá não há alemães nem ingleses... há campos, vacas, camponeses e
está-se bem... agora dorme.”
Rosetta não disse mais nada, aninhou-se a mim e pareceu-me que acabou por adormecer.
Q ue noite aquela! Eu acordava a todo o momento e creio que Rose a também não pregou olho, embora
fingisse dormir para não me inquietar. Às vezes julgava-me acordada e estava a dormir e a sonhar que
acordava, outras vezes supunha-me a dormir e, ao contrário, estava acordada e o cansaço e o nervosismo
iludiam-me. J esus no horto, na noite em que J udas o foi prender, não sofreu tanto como eu naquela noite.
A pertava-me o coração ao pensar que ia deixar a casa onde vivera tantos anos e receava que metralhassem o
comboio durante a viagem, ou então que deixasse de haver comboios, pois dizia-se que dum dia para o outro
Roma ficaria isolada. Pensava também em Rose a e na verdadeira desgraça que era para mim já não ter
marido, porque duas mulheres sozinhas no mundo. S em um homem a guiá-las e a protegê-las, são, em certo
sentido, como duas cegas que caminham sem ver e sem saber onde se encontram.
Uma vez, não sei que horas eram, ouvi tiros na rua; já estava habituada àquilo, disparavam todas as noites,
parecia que andavam a atirar ao alvo, mas Rosetta acordou e perguntou: “O que é, mamãe?”
Respondi: “N ada, nada... são esses filhos da mãe que se divertem a dar tiros... não se matarem eles uns aos
outros...”
O utra vez passou uma fila de caminhões, mesmo rente à casa, e todo o prédio tremia; os caminhões não
acabavam de passar: quando parecia que era o último, logo outro rodava com um barulho de ensurdecer. Eu
abraçava Rosetta, que tinha a cabeça sobre o meu peito, e, de repente, talvez por isso, lembrei-me de quando ela
era pequenina e lhe dava de mamar; eu tinha os peitos sempre cheios de leite, como todas as camponesas da
Ciociaria, que somos conhecidas como as melhores amas do Lácio, e ela sugava todo aquele leite e ficava cada
dia mais bonita, era mesmo uma flor, até as pessoas paravam na rua para a ver, e disse de mim para mim que
teria sido talvez melhor ela não ter nascido do que viver num mundo de ansiedades, perigos e medo. Mas
depois refleti que essas ideias só se tem à noite e é pecado pensar em tais coisas. E no escuro fiz o sinal da cruz
e encomendei-me a J esus e à Virgem. O uvi cantar um galo na casa ao lado, onde morava uma família que tinha
uma capoeira na frente, e pensei que não tardaria a nascer o dia. Julgo que então adormeci.
A cordei sobressaltada com a campainha da porta, que tocava e tornava a tocar, como se alguém estivesse a
tocá-la há bastante tempo. Levantei-me no escuro e fui abrir. Era Giovanni. Entrou, dizendo: “Eia, que sono,
estou a tocar há uma hora.”
Eu estava em camisa; ainda hoje tenho o peito rijo, bem direito, sem necessidade de o amparar, e naquela
altura era ainda mais belo, os seios fortes e firmes, os bicos salientes, como se quisessem por força fazer-se
notar por baixo da camisa. Vi que ele me olhava o peito e que os seus olhos ardiam sob as sobrancelhas, como
dois carvões em brasa debaixo das cinzas. Compreendi que estava prestes a atirar-se a mim e disse-lhe, de
súbito, dando uns passos atrás: “N ão, Giovanni, não... para mim não existes mais e deves esquecer o que
sucedeu... se não fosses casado, casava contigo... mas és casado e entre nós não deve haver mais nada.”
Ele não disse sim nem não, mas via-se que se esforçava por dominar-se. Por fim lá o conseguiu, dizendo,
numa voz natural: “Tens razão... esperemos que aquele estafermo da minha mulher morra durante a guerra...
assim, quando voltares, estarei viúvo e casamos... morre por aí tanta gente boa com os bombardeamentos,
porque não há de ela morrer?”
E eu mais uma vez fiquei apalermada; ao ouvir-lhe tal coisa, quase não queria acreditar no que ouvia, tal
como quando ele chamara malandro ao meu marido, pois até então julgava-os muito amigos, por assim dizer
inseparáveis. Conhecia a mulher de Giovanni e sempre supus que ele gostasse dela, ou pelo menos lhe tivesse
afeição, pois estavam casados há muitos anos e tinham três filhos; no entanto, eis que o ouvia falar dela com
ódio, desejando-lhe até a morte, e pela maneira como falava, dava bem a entender que a odiava há muito tempo
e não sentia por ela senão ódio, mesmo que alguma vez lhe tivesse manifestado outro sentimento. Para falar
verdade, quase me assustou pensar que um homem pudesse ser amigo de outro e marido duma mulher
durante tantos anos e depois lhes chamasse, com tamanha frieza e perversidade, malandro a ele e estafermo a
ela. Mas não disse nada disso a Giovanni, que entretanto fora para a cozinha, onde o ouvia a gracejar com
Rose a, também já levantada: “Verás que voltam as duas mais gordas; para vocês será essa a única
consequência da guerra... Lá no campo há queijos, ovos, cordeiros... vão comer do bom e do melhor.”
Estava tudo pronto; levei as três malas e o saco com os embrulhos para a entrada; Giovanni pegou em duas
malas, eu peguei no saco e Rose a na mala menor. O s dois foram descendo as escadas enquanto eu fingia
demorar-me a fechar a porta; logo que os vi dar a volta para descerem outro lance, entrei de novo em casa, fui
ao quarto, levantei um tijolo do pavimento e tirei o dinheiro que lá tinha escondido. Era uma soma importante
para aquele tempo, toda em notas de mil e não quis tirá-la na presença de Rose a, porque com o dinheiro todos
os cuidados são poucos e uma inocente pode cometer a imprudência de dizer o que não deve, e em questões de
dinheiro não devemos confiar em ninguém. Levantei a saia e meti as notas dentro dum saquinho de pano que
tinha feito de propósito. Depois fui juntar me a Giovanni e a Rosetta na rua.
À porta estava uma carroça, pois Giovanni não quis servir-se do caminhão do carvão, com medo que lho
requisitassem. Giovanni ajudou-nos a subir e depois subiu também. A carroça partiu e eu não pude deixar de
voltar-me para trás e olhar pela última vez a minha casa e a minha loja, pois tinha o mau pressentimento de que
nunca mais as tornaria a ver. A inda não era dia, mas já não era noite, e na semi obscuridade do alvorecer vi a
minha case, que fazia esquina, com as janelas todas fechadas, e, no rés-do-chão, a loja com os taipais corridos.
Em frente havia outra casa, também de esquina, que tinha no segundo andar, num nicho, um medalhão com a
imagem da Virgem circundada de raios de ouro e uma lamparina continuamente acesa. Pensei que aquela
luzinha que ardia até em tempo de guerra, até em tempo de fome, era um pouco como a minha esperança de
voltar e senti-me um tanto confortada essa esperança continuaria a aquecer-me quando estivesse longe. N a
claridade cinzenta, a esquina da rua dir-se-ia um palco de teatro vazio, depois de os atores o terem abandonado:
via-se que eram casas de gente pobre.
Pequenos casebres, em suma, um pouco inclinadas, como que para se apoiarem umas às outras, e um pouco
esfoladas, especialmente no rés-do-chão, por causa do roçar de carroças e automóveis, mesmo ao lado da minha
loja ficava a carvoaria de Giovanni e em volta da porta estava tudo negro como a boca dum forno: àquela hora
todo esse negrume, não sei porquê, me pareceu imensamente triste... e lembrei-me que durante o dia, nos bons
tempos, essa rua estava sempre cheia de gente, pessoas que passavam, mulheres sentadas em cadeiras de
palhinha na soleira das portas, gatos vagabundeando na calçada, garotos a correr e a saltar à corda, jovens a
caminho das oficinas ou entrando na taberna, sempre alegres. Pensando em tudo isto, senti despedaçar-me o
coração e percebi que aquelas casas e aquele sítio me eram queridos, talvez porque tivesse passado ali quase
toda a vida: quando os vira pela primeira vez, era ainda rapariga e agora era uma mulher feita, com uma filha já
crescida. Disse a Rosetta: “Não olhas para a nossa casa não olhas para a loja?”
Ela respondeu: “mamãe, sossega, tu própria me disseste que voltamos daqui a poucas semanas”. S uspirei e
não disse mais nada. A carroça dirigiu se para o Tibre e então voltei-me para olhar.
J á as ruas estavam desertas e o ar cinzento do amanhecer dava a ideia do vapor da barrela quando a roupa
está muito suja. N o chão, o orvalho fazia brilhar o empedrado, que dir-se-ia de ferro. N ão passava ninguém,
somente os cães: vi cinco ou seis, feios, esfomeados e sujos, a farejar os cantos e a alçar a perna contra as
paredes, donde pendiam, rasgados, os manifestos coloridos que incitavam à guerra.
Passamos o Tibre na Ponte Garibaldi, percorremos a Via A renula, atravessamos a Praça da A rgentina e a
Praça de Veneza. N a sacada do palácio de Mussolini pendia a mesma bandeira negra que tinha visto dias antes
na Praça Coionna e dois fascistas armados estavam postados ao lado da porta, A praça deserta parecia major do
que o costume. Primeiro não vi o lascio de ouro na bandeira negra, pareceu-me mesmo uma bandeira de luto,
tanto mais que não havia vento e pendia no mastro como aqueles crepes que se põem nas portas quando morre
alguém no prédio.
D epois, lá vi o lascio de ouro, emblema de Mussolini, por entre as cobras da bandeira. Perguntei a Giovanni:
“Mas Mussolini voltou?”
Ele fumava a ponta dum charuto e respondeu com ênfase: “Voltou e esperamos que para sempre.”
Fiquei de boca aberta, pois sabia que não simpatizava nada com Mussolini; mas ele estava constantemente a
causar-me surpresas e por isso nunca podia prever o que lhe passava pela cabeça.
Mas logo senti uma pequena cotovelada e vi que me piscava o olho na direção do cocheiro, como quem
queria dizer que aquelas palavras eram apenas para o outro ouvir. Pareceu-me um exagero, o cocheiro era um
pobre velho, via-lhe os cabelos brancos a aparecer em todo o lado por baixo do boné, parecia mesmo o meu avô,
decerto não era espião, mas não disse nada.
S eguimos pela Via N acional e o ar já estava menos cinzento: no cimo da Torre de N ero via-se até uma faixa
luminosa de sol. Mas, quando chegamos à estação e entramos. Lá dentro era como se ainda fosse noite, com
todas as lâmpadas acesas por causa da escuridão. A estação estava apinhada de gente, a maior parte gente
pobre como nós, com os seus embrulhos, mas havia também muitos soldados alemães, carregados de armas e
mochilas, de pé, uns junto dos outros, nos cantos mais escusos. Giovanni foi comprar os bilhetes e deixou nos
ali, com a bagagem, no meio da estação, Enquanto esperávamos, soou de repente um enorme banzé e vimos
aparecer uma dezena de motociclistas, todos vestidos de negro, como os diabos do I nferno. D epois da bandeira
negra da Praça de Veneza, aqueles motociclistas, vestidos também de negro, inspiraram-me tal indignação que
pensei: “Mas porque negro, porquê todo este negro? Estes filhos duma cabra, com a sua maldita cor, acabam
por nos deitar mau olhado.” O s motociclistas pararam as motos, encostaram nas às colunas da entrada e
postaram-se aos lados da porta, a cara meio tapada pelos capacetes de couro negro e as mãos nas pistolas que
traziam nos cinturões. N esse momento faltou-me a respiração, tive medo, o coração começou a bater-me
apressado, pensei que aqueles motociclistas negros tinham vindo ali e guardavam as saídas para prender toda a
gente, como muitas vezes sucedia, metendo depois as pessoas em caminhões, para nunca mais se saber delas.
O lhei em volta, à procura duma saída por onde pudesse escapar. Foi então que vi aproximar-se um grupo de
homens, enquanto outros gritavam: “Deixem passar! Deixem passar!”
Compreendi que aqueles motociclistas estavam ali por causa da chegada de alguma personagem
importante. N ão a cheguei a ver, com toda aquela multidão não se podia ver nada, mas logo a seguir tornei a
ouvir o barulho das malditas motocicletas e concluí que iam atrás do automóvel da tal personagem.
Giovanni veio buscar-nos, com os bilhetes na mão, dizendo-nos que eram para Fondi: daí, atravessando a
montanha, poderíamos atingir a aldeia. Entramos na gare, dirigimo-nos para o comboio. A li já havia sol, os
seus raios alongavam se no pavimento e parecia o sol que se vê nas salas dos hospitais e nos pátios das prisões.
N ão se via ninguém e o comboio, muito comprido, dir-se-ia vazio. Mas, quando subimos e começamos a andar
nos corredores, verifiquei que estava completamente cheio de soldados alemães, todos armados, as mochilas às
costas, os capacetes enterrados até aos olhos, as espingardas entre as pernas. Havia não sei quantos,
passávamos de um compartimento para outro e víamos sempre oito soldados alemães, com toda a sua tralha,
parados e mudos como se tivessem recebido ordem para não se mexerem nem falarem. Finalmente, numa
carruagem de terceira, encontramos italianos. Estavam amontoados nos corredores e nos compartimentos,
como animais levados para o açougue e que não importa instalar comodamente, pois daí a pouco vão morrer;
também eles, como os alemães, não diziam nada e não se mexiam: mas compreendia-se que a sua imobilidade e
o seu silêncio eram devidos ao cansaço e ao desespero, ao passo que os alemães estavam prontos a saltar do
comboio e a combater imediatamente. Disse a Rosetta: “Verás que teremos de fazer toda a viagem em pé.”
D e fato, depois de andarmos não sei quanto tempo, com aquele sol que entrava pelos vidros sujos e já
abrasava as carruagens, conseguimos arrumar as malas no corredor e ali nos acomodamos como pudemos.
Giovanni, que nos acompanhava, disse nos nesse momento: “Bem, vou deixá-las, daqui a pouco o comboio
parte.”
Mas um fulano qualquer, vestido de preto e sentado em cima duma mala, rebateu-o, taciturno, sem levantar
os olhos: “Daqui a pouco, é uma maneira de falar... estamos à espera já há três horas...”
Por fim, Giovanni despediu-se, beijou Rose a nas duas faces e a mim ao canto da boca; talvez quisesse
beijar-me mesmo na boca, mas eu voltei a cara a tempo. Logo que Giovanni partiu, sentamo-nos em cima das
malas, eu na mais alta e Rose a na mais baixa, com a cabeça apoiada nos meus joelhos. Rose a, depois de
estarmos assim meia hora, sem falar, perguntou: “Mama, quando partimos?”
Eu respondi: “Minha filha, sei tanto como tu.”
E fiquei ali quieta com Rose a agachada aos meus pés, nem sei quanto tempo. A s pessoas no corredor
dormitavam e suspiravam, o sol queimava e lá fora, no cais, não se ouvia um único rumor. O s alemães estavam
muito calados, dir-se-ia que nem estavam ali. Mas, de repente, no compartimento ao lado, começaram a cantar.
N ão se pode dizer que cantassem mal, vozes baixas e roucas, mas afinadas, porém eu, que ouvira tantas vezes
cantar alegremente os nossos soldados, como sempre fazem quando viajam juntos, enchi-me de tristeza porque
cantavam na língua deles qualquer coisa que me parecia muito triste. Era um canto arrastado e lento e fiquei
com a impressão de que não tinham grande vontade de andar na guerra. Por isso, disse àquele homem vestido
de negro que ia ao meu lado: “A guerra também não lhes agrada... no fim de contas, são homens como os
outros... ouve como cantam com tristeza.”
Mas ele resmungou: “Não entendes nada disto... é o hino deles... é como a nossa marcha real.”
Em seguida, passado um momento de silêncio: “A verdadeira tristeza a temos nós, os Italianos.”
Finalmente, o comboio pôs-se em movimento, sem um apito, sem um toque de corneta, sem barulho
nenhum, como por acaso. Queria encomendar-me uma última vez à Virgem, para que nos protegesse, a mim e a
Rose a, de todos os perigos com que iríamos deparar. Mas veio-me um sono tão grande que não tive forças.
Pensei somente: “Estes filhos duma cabra...” E não sabia se pensava nos alemães, ou nos ingleses, ou nos
fascistas, ou nos italianos... Talvez um pouco em todos eles. E assim adormeci.
CAPÍTULO II

A cordei uma hora depois e o comboio estava parado. Reinava um grande silêncio. D entro da carruagem,
agora, quase nem se podia respirar com o calor: Rose a levantara-se e fora para a janela, a olhar não sei o quê.
Muitos outros assomavam também às janelas, em fila, ao longo do corredor. Levantei-me a custo, sentia-me
suada e tonta, e aproximei-me de Rose a. Havia sol, e via o céu azul, os campos verdes, as colinas cobertas de
vinhedos e numa delas, mesmo na nossa frente, uma casinha branca, recentemente incendiada. D as janelas
saíam ainda línguas vermelhas de fogo e nuvens negras de fumo, e aquelas chamas e aquele fumo eram as
únicas coisas que se moviam na paisagem, porque tudo o mais estava imóvel e tranquilo: um dia
verdadeiramente lindo, e não se via ninguém...
Depois, na carruagem, todos gritaram: “Olhem! Lá vem ele!”
O lhei para o céu e vi um inseto negro no horizonte que logo tomou a forma dum avião e depois
desapareceu. D e súbito senti-o mesmo por cima da cabeça, a sobrevoar o comboio, qual martelar terrível dum
ferreiro louco, e, no meio desse barulho, o tique-taque duma máquina de costura. O estrépito durou um
instante, depois atenuou se e logo a seguir houve uma explosão fortíssima e próxima: todos se deitaram no
chão, exceto eu, que não o fiz a tempo ou nem pensei nisso sequer.
A ssim, vi a casinha incendiada desaparecer numa nuvem cinzenta, que logo começou a alastrar pela colina,
descendo em lufadas na direção do comboio; agora estava tudo outra vez em silêncio e as pessoas levantaram-
se, quase não acreditando que ainda viviam: então todos voltaram para as janelas, para ver. O ar estava
carregado dum pó fino que provocava tosse; depois a nuvem dissipou-se lentamente e vimos que a casinha
branca já não existia.
Passados alguns minutos, o comboio retomou a sua marcha. I sto foi o mais importante que aconteceu em
toda a viagem. Houve muitas paragens, sempre no meio do campo, às vezes meia hora, outras uma; assim, o
comboio, que em tempo normal levaria cerca de duas horas a fazer o percurso, demorou quase seis.
Rose a, que tanto medo sentira em Roma durante o bombardeamento, desta vez, depois de ver a casinha
branca ir pelos ares, quando o comboio a se pôs em marcha, disse: “N o campo tenho menos medo do que em
Roma. A qui há sol, ar livre. Em Roma tinha receio de que a casa me caísse em cima. A qui, se morresse, ao
menos via o sol.”
Então, um dos que viajavam conosco no corredor observou: “Eu vi os mortos ao sol, em N ápoles. Havia duas
filas nos passeios, depois do bombardeamento. Pareciam montes de roupa suja. A queles viram bem o sol antes
de morrer.”
E outro comentou, a rir: “Como diz a canção napolitana: Oh! querido Sol!.”
Mas ninguém tinha verdadeiramente vontade de falar e muito menos de rir; e assim ficamos em silêncio
durante todo o tempo que durou ainda a viagem.
D evíamos descer em Fondi e, mal passamos Terracina, disse a Rose a que se aprontasse. O s meus pais
viviam na montanha, numa aldeiazinha para os lados de Vallecorsa, onde tinham uma casita e um bocado de
terra, D e Fondi lá, pela estrada principal, em automóvel, era coisa duma hora. Mas quando, como D eus quis,
chegamos por alturas do Monte S an Biagio, uma aldeia encarapitada numa colina donde se avista o vale de
Fondi, vi que toda a gente saía da carruagem. O s alemães já tinham descido em Terracina; no comboio seguiam
apenas italianos.
D esceram todos e nós as duas ficamos no compartimento vazio. Então senti-me melhor, porque estávamos
sozinhas e fazia um lindo dia; depressa chegaríamos a Fondi e dali seguiríamos para junto dos meus pais. O
comboio estava parado, mas não me admirei, pois já tinha parado muitas vezes.
Disse a Rosetta: “Verás como no campo te sentes reviver: comes, dormes e tudo correrá bem.”
Continuei a falar do que faríamos e entretanto o comboio não saía do mesmo sítio. S eria uma hora da tarde
ou talvez mesmo duas e estava muito calor. Decidi: “Vamos comer.”
Tirei para baixo a maleta onde pusera as provisões, abri-a e fiz dois sanduíches com o pão e o salame. Tinha
também uma garrafa de vinho e dei um copo a Rose a e bebi outro. Comemos, o calor cada vez apertava mais e
o silêncio era absoluto. Através das janelas viam-se somente os platôs que circundavam o largo da estação,
brancos de pó, queimados do sol, com cigarras a cantar na folhagem como se estivéssemos em pleno agosto.
Era o campo, o verdadeiro campo onde eu tinha nascido e vivido até aos dezesseis anos, o campo da minha
aldeia, cheirando e poeira quente, a estrume seco e a ervas queimadas.
“A h! como me sinto bem!”, não pude deixar de exclamar, estendendo as pernas em cima do banco da frente.
“Não te agrada este silêncio? Estou contente por ter abandonado Roma”
N esse instante, a porta do compartimento abriu-se e apareceu alguém. Era um ferroviário, magro e moreno,
de boné ao lado, o casaco desabotoado, a barba comprida. Entrou e disse: “Bom apetite...”, mas com ar sério,
quase zangado.
Pensei que tivesse fome, o que era normal nesse tempo, e indiquei-lhe o papel amarelo onde estavam as
fatias de salame: “É servido?”
Mas ele respondeu cada vez de pior catadura: “Qual servido, nem qual carapuça! Têm é que descer!”
Eu respondi, mostrando-lhe os bilhetes: “Nós vamos para Fondi.”
Ele nem sequer os olhou e retorquiu: “Mas não viram que já desceu toda a gente? O comboio não passa
daqui.”
“Não vai até Fondi?”
“Qual Fondi! As linhas estão cortadas.”
Passado um momento acrescentou, um pouco mais amável: “A pé, podem chegar a Fondi em meia hora.
Mas têm de descer, porque daqui a pouco o comboio parte novamente para Roma”.
E foi-se embora, batendo com a porta.
Ficamos petrificadas, olhando uma para a outra, com o pão dentado nas mãos. D isse a Rose a: “I sto começa
mal.”
E ela, como se adivinhasse os meus pensamentos, respondeu: “Mas não, mamãe, descemos e encontraremos
uma carroça ou um automóvel.”
Eu já não a ouvia. Tirei para baixo as malas, abri a porta e desci do comboio.
N a estação não estava ninguém, atravessamos a sala de espera: nem viva alma; saímos para a praça: a
mesma coisa. D a praça partia uma estrada, uma estrada mesmo do campo, branca, poeirenta, deslumbrante de
sol, por entre sebes cobertas de pó e algumas árvores também com poeira. N um canto da praça havia uma
fonte; o calor e a ansiedade tinham-me secado a boca, fui lá para beber: nem um pingo de água deitava. Rose a
ficara junto das malas e olhava-me com uma cara assustada: “mamãe, que vamos fazer agora?”
Eu conhecia bem aqueles sítios e sabia que a estrada ia direita a Fondi: “Filha, que queres que faça? Temos
de meter os pés ao caminho.”
“E as malas?”
“Levamo-las nós.”
Ela não disse nada, mas olhou desolada para as malas: não compreendia como as poderíamos levar. A bri
uma e tirei dois guardanapos, com que fiz duas rodilhas, uma para mim e outra para ela. Em rapariga estava
habituada a transportar pesos à cabeça, era capaz de levar até cinquenta quilos. Enquanto fazia os rolos, disse-
lhe: “Agora a mamãe ensina-te como se faz.”
Rose a, reanimada, sorriu. Pus a rodilha na cabeça, bem calcada, e convidei Rose a a fazer o mesmo.
D epois tirei os sapatos e as meias e disse-lhe que se descalçasse também. Em seguida coloquei em cima da
minha rodilha a mala maior, a do meio e o embrulho das provisões, por ordem de tamanhos, e pus à cabeça de
Rose a a mala menor. Expliquei-lhe que devia caminhar com o pescoço bem direito, amparando com uma das
mãos o canto da mala. Vi que tinha compreendido, pondo-se a caminhar com a mala à cabeça. Então pensei:
“N asceu em Roma, mas é uma ciociara; quem sai aos seus não degenera”. E assim, de malas à cabeça, os pés
descalços, caminhando pela beirada da estrada, onde crescia alguma erva, dirigimo-nos para Fondi.
A ndamos um bocado. A estrada estava deserta e no campo também não se via-ninguém. Para uma pessoa
da cidade, podia parecer tudo normal; mas eu fora camponesa antes de ser citadina e por isso percebi logo que
atravessávamos um campo abandonado: os cachos de uvas das vinhas, que já deviam estar vindimadas,
pendiam ainda entre as folhas amareladas, demasiado douradas, alguns já castanhos, podres, meio comidos
por vespas e lagartas. A qui e além via-se milho espalhado no chão, em desordem, com muitas folhas e as
espigas maduras, quase vermelhas. Em volta das figueiras, o solo estava juncado de figos caídos dos ramos,
maduros de mais, estragados e abertos, debicados pelos pássaros. N ão se via um só camponês e julguei que
todos tivessem fugido. N o entanto, estava um dia lindo, quente e sereno, um magnífico dia de campo. Tudo
parece normal, pensei, mas o caruncho da guerra avança, roendo sempre; os homens, tomados de medo, fogem,
enquanto o campo continua, indiferente, a desentranhar-se em frutos, trigo, ervas e plantas, como se nada
acontecesse. É isto a guerra...
Chegamos às portas de Fondi com pó a embranquecer-nos as pernas até os joelhos, a garganta seca,
cansadas e mudas. D isse a Rose a: “A gora vamos a uma hospedaria, bebemos e comemos qualquer coisa e
repousamos um pouco. D epois veremos se encontramos um automóvel ou uma carroça que nos leve a casa dos
teus avós.”
S im, uma hospedaria, um automóvel, uma carroça! Mal entramos em Fondi, vimos imediatamente que a
cidade estava deserta e abandonada. N ão passava viva alma, todas as lojas tinham os taipais corridos e um ou
outro bocado de papel branco fixado aqui e além explicava que os proprietários se tinham ausentado; as casas
tinham as portas e portões trancados, as janelas fechadas e até as gateiras entaipadas. Parecia que andávamos
numa cidade cujos habitantes houvessem sido dizimados por alguma epidemia. E pensar que em Fondi é
costume, naquela época, toda a gente andar na rua, mulheres, homens, crianças, juntamente com gatos, cães,
burros, cavalos e também galinhas, uns na sua lida, outros aproveitando a beleza do dia para passear ou sentar-
se à soleira das portas ou nas esplanadas dos cafés. A lgumas ruelas davam a impressão de vida por causa da
luz forte do S ol que batia na calçada e nas fachadas; mas, olhando-se melhor, viam-se as janelas fechadas, as
portas trancadas, e aquele sol que se espreguiçava nas pedras da calçada quase metia medo; como metia medo
o silêncio e, no meio do silêncio, o rumor dos nossos passos. Parava de vez em quando, batia a uma porta,
chamava, mas ninguém abria, ninguém aparecia a responder-me. Por fim, chegamos à Hospedaria do Galo,
com uma tabuleta de madeira na qual se via um galo pintado, já muito descolorido e maltratado. A porta estava
fechada, uma velha porta pintada de verde, com fechadura antiga, de grande buraco. A pliquei nele um olho e
espreitei.
Vi ao fundo da escuridão da sala a janela que dava para o jardim e debaixo da parreira, ainda verde,
inundada de luz, uma mesa a brilhar ao sol; e era tudo.
Também aqui ninguém respondeu: o dono fugira, como todos os outros.
A ssim estava o campo: pior do que Roma! E, pensando que me tinha enganado ao imaginar que encontraria
no campo aquilo que faltava em Roma, voltei-me para Rose a e disse: “S abes o que te digo? Vamos descansar
um momento e depois voltamos para a estação e tomamos outra vez o comboio para Roma.”
A ntes o tivesse feito. Mas vi que Rose a fazia uma cara assustada, decerto a pensar nos bombardeamentos,
e acrescentei à pressa: “Porém, antes de renunciar, quero fazer uma última tentativa. Isto é Fondi.
Experimentemos o campo. Pode ser que encontremos algum camponês que nos deixe dormir em sua casa
uma ou duas noites. Depois veremos.”
A ssim, sentamo-nos uns momentos num muro baixo, sem falar, pois naquele deserto até as nossas vozes
nos metiam medo, e em seguida tornamos a pôr as malas à cabeça e saímos da cidade pelo lado oposto àquele
por onde havíamos entrado. Caminhamos talvez meia hora pela estrada principal, à torreira do sol, a respirar
aquele pó branco e farinhento. Mal começaram os laranjais dos dois lados da estrada, meti pelo primeiro
carreiro entre as árvores, pensando: há-de ir ter a algum lado, no campo os atalhos vão sempre dar a qualquer
parte. A s laranjeiras, muito juntas umas às outras, com a folhagem luzidia e sem pó, enchiam o pomar de
sombra; depois da estrada principal, soalheira e poeirenta, aquela frescura revigorava-nos. A certa altura,
enquanto seguíamos o carreiro que serpenteava por entre as árvores, Rose a perguntou: “mamãe, quando se
colhem as laranjas?”
Respondi sem pensar: “Em novembro começam a colhê-las. Verás como são doces.”
I mediatamente mordi os lábios, pois estávamos ainda em fins de setembro e eu sempre lhe dissera que não
ficaríamos fora de Roma mais de dez dias, embora soubesse que isso não era verdade, e agora tinha-me traído.
Mas, por sorte, ela nem reparou e continuamos a andar.
Por fim, ao fundo do atalho, desembocamos numa clareira, no meio da qual havia uma casinha que em
tempos devia ter sido cor-de-rosa, mas agora, com a umidade e a velhice, estava toda negra e escalavrada. Uma
escada exterior subia para o segundo piso, onde havia uma varanda com um arco, do qual pendiam enfiadas de
pimentões, tomates e cebolas. D iante da casa, na eira, uma quantidade de figos espalhados, a secar ao sol. Uma
casa de camponeses habitada. D e fato, o dono apareceu imediatamente, ainda antes de o chamarmos, e
compreendi que estava escondido em qualquer sítio para ver quem chegava. Era um velho tão magro que até
fazia impressão, de cara mirrada, nariz comprido de ave de rapina, olhos encovados, testa estreita e cabeça
calva: parecia um milhafre.
Disse-nos: “Quem são vocês? o que querem?”
E tinha na mão uma foicinha, como para se defender. Eu porém não me desconcertei, sobretudo porque
estava ali Rose a, e não se faz ideia da força que nos dá uma pessoa mais fraca que precisa da nossa proteção.
Respondi-lhe que não queríamos nada, que éramos de Lenola, o que não deixava de ser verdade, pois nasci num
lugar não muito distante de Lenola, que naquele dia tínhamos andado muito e lá não podíamos mais, e, se ele
nos arranjasse um quarto para passarmos a noite, pagaríamos bem, como no hotel.
Ele ouviu-me, parado no meio da eira, de pernas abertas: com as calças rasgadas, o casaco cheio de buracos e
a foicinha na mão, parecia mesmo um espantalho. Creio que de tudo quanto lhe disse só percebeu que eu
pagava bem, pois mais tarde vim a descobrir que era meio parvo e só compreendia as coisas se lhe cheirava a
dinheiro. Mas mesmo isso devia custar-lhe bastante a compreender, porque levou não sei quanto tempo a
remoer o que eu dizia, respondendo: “Nós não temos quartos, e tu pagas, mas com que pagas?”
Eu não queria mostrar-lhe o dinheiro que tinha no saquinho debaixo da saia; em tempo de guerra nunca se
sabe, todos podem tornar-se ladrões e assassinos e ele de ladrão e talvez de assassino já tinha cara; por isso me
limitei a responder que estivesse tranquilo, pois pagava-lhe com certeza. Mas ele não compreendia. E já Rose a
me puxava pelas mangas, dizendo-me baixinho que era melhor irmo-nos embora, quando por sorte apareceu a
mulher, uma mulherzinha pequena e magra, muito mais nova do que ele, com ar ofegante e exaltado e olhos
cintilantes. A o contrário do marido, ela compreendeu imediatamente e quase nos deitou os braços ao pescoço,
repetindo: “Mas, naturalmente, um quarto, porque não? N ós dormiremos na varanda ou no palheiro e
cedemos-te o nosso quarto. E também de comer, comerás conosco, coisas simples, comida de camponeses,
claro...”
O marido tinha-se afastado e olhava-nos, sombrio; parecia um galo doente, daqueles que reviram os olhos e
ficam monos e não querem comer. Ela agarrou-me o braço, repetindo: “A nda, vou mostrar-te o quarto, anda,
dou-te a minha cama, eu e o meu marido dormiremos na varanda.”
E lá subimos a escada exterior para o segundo piso.
A ssim começou para nós a vida em casa de Conce a, pois era este o nome da mulher. O marido chamava-se
Vincenzo e tinha mais vinte anos do que ela: era rendeiro, ou, melhor, meeiro dum tal Festa, um comerciante
que fugira, como tantos outros da cidade, e vivia agora numa casinha no cimo dum dos montes que
circundavam o vale. Tinham dois filhos, Rosário e Giuseppe, ambos morenos, de caras maciças e brutas, olhos
pequenos e testa baixa; nunca falavam e só raramente os víamos: escondiam-se porque na altura do armistício
estavam nas fileiras e tinham fugido, não tornando a apresentar-se: agora receavam ser presos pelas patrulhas
fascistas, que andavam por toda a parte a arrebanhar homens para irem trabalhar na A lemanha. Escondiam-se
nos laranjais, apareciam à hora das refeições, comiam à pressa, quase sem falar, e desapareciam novamente,
não sei para onde. Eram amáveis conosco, todavia achava-os antipáticos, sem saber porquê, e às vezes dizia até
de mim para mim que estava a ser injusta: mas um belo dia compreendi que o meu instinto não me enganara, e
na verdade eram pouco recomendáveis, como suspeitava desde o princípio.
A pouca distancia da casa, entre as laranjeiras, havia uma grande barraca pintada de verde, com telhado de
zinco. Conce a dissera-me que naquela barraca metiam as laranjas à medida que as iam colhendo, e talvez
fosse verdade, mas agora não se colhiam laranjas, estavam ainda nas árvores, e, não obstante isso, reparei que
tanto os dois filhos como Vincenzo e Concetta iam muitas vezes para lá.
N ão sou curiosa, mas, encontrando-me sozinha com a minha filha em casa de gente estranha, na qual, para
falar verdade, não confiava muito, tinha de o ser, a bem dizer por necessidade.
N uma tarde em que toda a família foi para a barraca, passado algum tempo saí também e escondi-me atrás
dumas laranjeiras. A barraca ficava numa clareira menor e parecia mesmo um montão de ruínas toda
destingida. O telhado à banda, as tábuas tão desconjuntadas que só por milagre se mantinham unidas. N o
meio da clareira estava a carroça de Vincenzo, atrelada a um macho, e, amontoadas na carroça, vi não sei
quantas coisas: colchões, enxergões, cadeiras, mesas de cabeceira, embrulhos vários. A porta da barraca,
bastante larga, de dois batentes, estava escancarada e os filhos de Conce a desatavam as cordas que
amarravam todo aquele material. Vincenzo mantinha-se à parte, meio apalermado, como de costume, sentado
num cepo, a fumar o seu cachimbo: mas Conce a estava lá dentro, não a via, mas ouvia-lhe a voz: “Vamos,
despachem-se, andem depressa. já é tarde!”
O s dois filhos, que sempre vi calados e molengões, como que assustados, pareciam agora outros: ágeis,
diligentes, desembaraçados, enérgicos. Pus-me a pensar que é preciso ver as pessoas a fazer o que lhes
interessa, os camponeses nos campos, os operários na oficina, os comerciantes na loja e, em suma, digamos
também, os ladrões às voltas com o que roubam.
Porque aqueles colchões, aquelas cadeiras, aquelas mesas de cabeceira, enfim, todos aqueles embrulhos,
eram coisas roubadas: tive imediatamente essa suspeita e Conce a confirmou-a na mesma noite, quando,
enchendo-me de coragem, lhe perguntei, de improviso, a quem pertenciam os trastes que tinham estado a
descarregar nesse dia na barraca. O s filhos, como de costume, não estavam, já tinham saído: Conce a, por
momentos, pareceu ficar desconcertada, mas logo se recompôs e disse com aquela sua alegria entusiástica e
exaltada: “A h! viste-nos?... Fizeste mal em não aparecer para nos ajudar. N ão tínhamos nada e esconder,
mesmo nada. S ão coisas duma casa de Fondi. O proprietário, o pobrezinho, fugiu para as montanhas e
ninguém sabe quando voltará. Em vez de deixarmos essa mobília lá em casa, para ser destruída no próximo
bombardeamento, já se sabe, preferimos ficar com ela. A o menos, assim, serve a alguém. Estamos em guerra,
claro, e é preciso ter expediente, seja o que for que se abandone é coisa perdida, minha rica. A lém disso, esse
proprietário, no fim da guerra, será reembolsado pelo Governo, e decerto compra outros móveis ainda mais
bonitos do que estes.”
Confesso que me senti mal, ou, antes, assustei-me e creio que me pus pálida, pois Rose a levantou os olhos
para mim e perguntou: “Que tens, mamãe?”
Eu estava aterrada, porque, como comerciante, tinha um forte sentimento da propriedade: era honesta e
sempre pensei que o meu é meu e o teu é teu, sem margem para confusões, pois, quando as há, anda tudo em
desordem. E eis que vinha parar a uma casa de ladrões, e o pior é que estes ladrões não tinham medo de nada,
pois na região não havia leis nem carabineiros. E não só não tinham medo, mas quase se vangloriavam de
roubar. No entanto, achei melhor não abrir o bico.
Conce a percebeu em mim qualquer coisa, pois acrescentou: “Entendamo-nos: se trouxemos esses trastes, é
porque, como o outro que diz, não são de ninguém. S omos gente honesta, Cesira, e provo todo imediatamente:
bate aqui.”
Levantou-se e deu algumas pancadas na parede da cozinha, à esquerda do fogão. Levantei-me e bati
também: senti que a pancada ressoava como se atrás da parede houvesse um vazio. Perguntei: “O que é que
está aqui?”
E Conce a, com entusiasmo: “S ão as coisas de Festa, é um tesouro, todo o enxoval da filha, todas as roupas
de casa: lençóis, cobertas, linhos, pratas, louças, objetos de valor.”
Fiquei pasmada, pois não esperava aquilo. Conce a, sempre com aquele estranho entusiasmo que punha
em tudo quanto dizia e fazia, explicou-me: Vicenzo e Filippo Festa eram, como se diz, compadres isto é, Festa
batizou o filho de Vicenzo e Vicenzo é padrinho da filha de Festa; assim unidos por S . Giovanni, como dizem,
são quase parentes. Festa confiou em S . Giovanni e, antes de se refugiar nas montanhas, emparedou todas as
suas coisas na cozinha de Vincenzo e obrigou o a jurar que lhas restituiria tal qual no fim da guerra e Vincenzo
jurou.
“Estas coisas de Festa são para nós sagradas”, concluiu Concetta com ênfase, como se falasse do Santíssimo.
“Era mais fácil matar-me do que tocar-lhes. Estão aí há um mês e aí hão de ficar até a guerra acabar.”
Eu continuei desconfiada e nem mesmo me convenci quando Vincenzo, até então calado, tirou o cachimbo
da boca e disse em voz cavernosa: “I sso mesmo, sagradas. O s alemães ou os italianos terão de passar por cima
do meu corpo antes de lhes tocarem”.
Conce a, ao ouvir estas palavras, olhou para mim de olhos brilhantes e excitados, como se me dissesse:
“Vês? O que te disse eu? Somos ou não gente honesta?”
Mas eu continuava na minha e, lembrando-me dos dois filhos atarefados a descarregar a carroça, pensava de
mim para mim: Arreda, ladrões... Cesteiro que faz um cesto...”
A descoberta daquela ladroeira foi a razão principal por que comecei a pensar em deixar a casa de Conce a
e ir para outro sítio. Eu tinha aquele dinheiro escondido no saquinho debaixo da saia aliás bastante dinheiro, e
nós éramos duas mulheres sozinhas, sem ninguém para nos defender, e não havia ali nem leis nem
carabineiros e pouco seria preciso para subjugar duas pobres como nós e tirar-nos tudo quanto possuíamos. E
verdade que eu nunca mostrara o saquinho a Conce a; mas dava-lhe de vez em quando uma pequena
importância pela alimentação e pelo quarto e dissera que tencionava pagar bem; certamente haviam de supor
que em qualquer sítio escondia as notas. A gora roubavam coisas abandonadas, amanhã poderiam roubar o
meu dinheiro, matar-me talvez, não sabia do que seriam capazes.
O s dois filhos tinham cara de salteadores, o marido parecia estúpido, Conce a tinha sempre um ar exaltado;
na verdade não se podia prever o que sucederia. E aquela casa, embora a pouca distância de Fondi, estava
enterrada entre os laranjais, escondida e solitária; podia-se matar ali um cristão, que ninguém daria por isso.
Era, claro, um bom esconderijo; mas um desses esconderijos onde nos podem suceder males maiores do que ao
ar livre, à mercê dos aviões.
N aquela mesma noite, depois de nos deitarmos, disse a Rose a: “É uma família de criminosos. Podem não
nos fazer mal nenhum, mas também podem matar-nos e enterrar-nos como esterco debaixo das laranjeiras.
Isso para eles é indiferente.”
Falei apenas para desabafar a inquietação; mas fiz mal, pois Rose a, que ainda não se refizera do susto dos
bombardeamentos de Roma, começou logo a chorar, apertando-se a mim e murmurando: “mamãe, tenho tanto
medo, porque não saímos já daqui?” Procurei então tranquilizá-la, dizendo-lhe que naturalmente eram tudo
fantasias minhas; que a culpa era da guerra; que Vincenzo, Conce a e os filhos eram decerto boa gente. Ela não
pareceu muito convencida e disse por fim: “Eu ia-me embora na mesma; porque estamos mal aqui.”
Prometi-lhe que sairíamos dali o mais depressa possível. A esse respeito ela tinha razão: não podíamos estar
pior.
Estávamos mal de fato e hoje, ao recordá-lo, posso dizer que, em todo aquele tempo de guerra que passamos
fora, nunca estivemos tão mal como em casa de Conce a. D eu-nos o quarto onde ela dormia com o marido
desde que se casaram, mas, posso afirmá-lo, embora eu fosse camponesa como ela, nunca vi nos dias da minha
vida tamanha porcaria. O quarto cheirava tão mal que, mesmo com as janelas escancaradas, faltava o ar e quase
se sufocava. Porque cheiraria tão mal o quarto?
N aturalmente por estar sempre fechado, concentrando o cheiro a suor antigo e rançoso, a bichos e a urina.
A o procurar descobrir a origem de tal fedor, abri as duas mesinhas de cabeceira: continham dois bacios altos e
estreitos, sem asa, semelhantes a tubos, de porcelana branca com flores cor-de-rosa; mas com certeza nunca
tinham sido lavados, por dentro estavam de todas as cores e uma boa parte do mau cheiro vinha dali. Coloquei-
os fora da porta e Conce a quase me bateu, dizendo, furiosa, que tinha herdado aqueles bacios da mãe, eram
da família, e não compreendia porque é que eu não os queria no quarto.
N a primeira noite que dormimos no grande leito conjugal, sobre um colchão cheio de covas e tarolos,
atulhado de coisas que chiavam e picavam e coberto com um pano tão fino que parecia ir romper-se ao menor
movimento, mal me deitei, senti comichões em todo o corpo; Rose a também não tinha descanso e só fazia
mudar de posição sem conseguir dormir. Por fim acendi a vela e, com o castiçal na mão, examinei a cama: à luz
da chama vi, não um ou dois, mas grupos compactos de percevejos que fugiam em todas as direções, vermelho
escuros, grandes, cheios do sangue que nos tinham sugado naquelas horas. A cama estava negra de percevejos,
e digo a verdade se afirmar que nunca vi tantos duma só vez. Em Roma acontecia-me às vezes encontrar um ou
dois, mas imediatamente mandava encher de novo o colchão e nunca mais davam sinal. Mas aqui eram aos
milhares, e não estavam só escondidos no colchão, mas também na madeira da cama e em todo o quarto. N a
manhã seguinte, Rose a e eu levantamo-nos e fomos ver-nos ao espelho do guarda-vestidos: estávamos
cobertas, em todo o corpo, de bolhas vermelhas; os percevejos tinham-nos mordido tanto que dir-se-ia
sofrermos de alguma doença de pele. Chamei Conce a e mostrei-lhe Rose a toda nua sentada em cima da
cama, a chorar, e disse-lhe que era uma vergonha ter a cama com tantos percevejos. Ela, habitualmente
exaltada, respondeu: “Tens razão, é uma vergonha, é uma indecência, sei que os percevejos são uma porcaria.
Mas nós somos uns pobres camponeses e tu és uma senhora da cidade para nós percevejos, para ti lençóis de
seda.”
D ava-me razão com entusiasmo, mas dum modo estranho, como se troçasse de mim; e, de fato, depois de
me dar razão, concluiu duma maneira inesperada, dizendo que os percevejos também são criaturas de D eus e
se D eus os criou é porque servem para alguma coisa. Em conclusão, disse-lhe que daí em diante dormiríamos
na cabana onde guardavam o feno para o macho. O feno picava e também havia lá um ou outro inseto, mas
eram bichos limpos, daqueles que passeiam pelo corpo e fazem cócegas, mas não chupam o sangue. Mas vi logo
que não podíamos ficar ali muito tempo.
N aquela casa tudo era nojento: até a comida. Conce a, desleixada e porca, fazia tudo à pressa e sem
cuidado: a sua cozinha era um antro escuro e as frigideiras e os pratos tinham crostas de porcaria acumulada
durante anos e anos; nunca havia água, não lavava nada e cozinhava a correr, mal e porcamente.
D ava-nos todos os dias a mesma comida, aquilo que na minha terra se chama minestrina: fatias finas de pão
caseiro, postas em cima umas das outras, até encher uma terrina, que era um alguidar de louça; a seguir, por
cima do pão, deita-se uma panela de caldo de feijões. Este prato come-se frio, depois de o caldo ter aboborado
bem o péo, reduzindo-o a papa. N unca gostei de minestrina, mas em casa de Conce a até me revolvia o
estômago, um pouco por causa da porcaria, pois encontrava sempre uma mosca ou qualquer outro bicho, e
também porque ela nem ao menos sabia fazer esse prato tão simples. A lém disso, comiam à maneira dos
camponeses, sem pratos, cada qual metendo a sua colher no alguidar de todos, levando-a depois à boca e
tornando-a a meter nas papas. É incrível? Um dia fiz uma observação a propósito das moscas que encontrava
mortas entre o pão e os feijões e Conce a, ignorante como era, respondeu: “Come, não te apoquentes. Q ue é
uma mosca? É carne, tal como a vitela, nem mais nem menos.”
Por fim, vendo que Rose a não era capaz de tragar aquelas mixórdias, passei a ir com Conce a, de vez em
quando, à estrada principal. Era agora ali o mercado; na cidade, por causa dos alarmes aéreos e das requisições
dos fascistas, não havia segurança de espécie nenhuma. Por isso as camponesas se punham na estrada principal
e aí vendiam ovos, fruta, um bocadinho de carne e às vezes até peixe.
Vendiam caro e zangavam-se se alguém discutia e procurava regatear o preço.
Respondiam: “Está bem, come o dinheiro, que eu como os ovos.” Em suma, sabiam que havia fome e que o
dinheiro em tempo de escassez não serve para nada e pediam couro e cabelo. Eu comprava sempre qualquer
coisa e acabei assim por dar de comer também à família de Conce a: por isso o dinheiro me escorria das mãos
como a água, e isso era para mim mais um motivo de inquietação.
Pensávamos sair dali. Mas para onde? Um dia disse a Conce a que, como os ingleses não chegavam, o
melhor era irmos numa carroça, ou mesmo a pé, para a aldeia dos meus pais e esperarmos lá o fim da guerra.
Ela aprovou logo com entusiasmo: “Fazes muito bem. S ó em nossa casa nos sentimos à vontade. Q uem pode
ocupar o lugar da mãe? Fazes bem, aqui nada te agrada, há percevejos, as sopas são más, mas a casa dos teus
pais, com os mesmos percevejos e as mesmas sopas, há-de parecer-te um paraíso. E porque não? A manhã
Rosário leva-as na carroça, vão dar um bonito passeio.”
Contentes e confiadas, esperamos pelo dia seguinte, em que Rosário havia de voltar não sei donde. D e fato
voltou, mas, em vez da carroça com o macho, trouxe um saco cheio de más notícias: os alemães requisitavam os
homens, os fascistas prendiam quem se arriscava nas estradas, os ingleses deitavam bombas, os americanos
lançavam-se em para quedas, e havia fome, carestia e revolução: não tardaria nada que ingleses e alemães
travassem batalha mesmo na região onde ficava a aldeia dos meus pais: entretanto, soubera-o no comando
alemão, a aldeia fora evacuada e todos os habitantes levados para um campo de concentração perto de
Frosinone. D isse ainda que as estradas eram perigosas por causa dos aviões que voavam baixo e metralhavam
as pessoas e não deixavam de metralhar enquanto não as viam mortas: que nem pelos caminhos da montanha
se andava em segurança, pois estavam cheios de desertores e salteadores que, sem mais nem menos, matavam
quem quer que fosse; em suma, era melhor esperarmos ali a chegada dos ingleses, que deviam entrar em Fondi
dentro de dias, pois o exército aliado avançava e não demoraria uma semana. Em conclusão, disse muitas coisas
falsas e outras verdadeiras, misturadas de tal forma que as verdadeiras faziam com que as falsas parecessem
verdadeiras também. Era certo que havia bombardeamentos e que metralhavam as pessoas, mas não era
verdade que se ia travar uma batalha perto da aldeia dos meus pais nem que a aldeia tivesse sido evacuada. Mas
nós ficamos assustadas; sozinhas e sem outras informações além daquelas, não percebemos que nos davam
tantas más noticias só para nos reterem ali e continuarem a ganhar dinheiro conosco.
Evidentemente, os tempos estavam ruins a valer e eu tinha uma filha e não queria correr o risco de me
meter com ela ao caminho, mesmo que houvesse só uma probabilidade em cem de encontrar os perigos que ele
anunciava. Decidi por isso adiar para outra altura a viagem e esperar em Fondi a chegada dos Aliados.
Mas, de qualquer maneira, impunha-se que deixássemos o mais depressa possível a casa de Conce a,
porque também naquele isolamento, no meio dos laranjais, como já disse, podia acontecer o pior... E os filhos
de Conce a, com o decorrer do tempo, causavam-me cada vez mais medo. D isse que eram taciturnos; mas,
quando se punham a falar, revelavam um caráter que não me agradava nada.
Um deles contou um dia, por brincadeira: “N uma aldeia da A lbânia dispararam contra nós e tivemos dois
feridos. Em represália, sabem o que fizemos? Como os homens tinham fugido, agarramos as mulheres, as mais
agradáveis, claro, e passamo-las todas... umas fizeram-no de boa vontade, umas croias que só esperavam aquela
ocasião para armar os maridos, outras fizeram-no à força... e algumas tantas vezes que depois já não se
aguentavam em pé e pareciam como mortas.”
Eu ficava gelada com tais histórias; mas Conce a ria e repetia: “A h, rapazes... S abe-se o que são rapazes...
gostam de raparigas... têm o sangue a ferver...”
A inda pior do que eu, ficava Rose a: vi-a empalidecer, tremer quase, e então explodi: “A cabem lá com isso,
está aqui a minha filha e não se fala dessa maneira diante duma rapariga solteira.”
Teria preferido que protestassem, talvez mesmo que me injuriassem; mas não disseram nada, limitaram-se
a olhar Rose a de alto a baixo, com aqueles olhos de carvão em brasa, cintilantes, que metiam medo, enquanto
a mãe repetia: “Rapazes... já se sabe... rapazes com o sangue a ferver... Mas tu, Cesira, não tens que recear pela
tua filha. Os meus filhos não lhe tocariam, nem por um milhão.
Vocês são hóspedes e um hóspede é sagrado. A tua filha aqui está tão segura como na igreja.”
Mas, no meio do silêncio dos filhos e da exaltação da mãe, eu sentia aumentar o medo. Foi por isso talvez
que comprei a um camponês uma navalha de ponta e mola e a trazia sempre comigo, juntamente com o
dinheiro. N ão me fiava e, se tentassem alguma coisa, teriam primeiro de se ver comigo e eu era capaz até de os
matar.
Porém, o que nos convenceu definitivamente a sair dali foi o que se passou umas duas semanas após a nossa
chegada. Uma manhã, Rose a e eu estávamos sentadas na eira, atentas a desfolhar espigas de milho, para
passar o tempo, quando de súbito desembocaram dois homens no carreiro. Compreendi logo o que eram, não
só por causa das espingardas que traziam ao ombro e das camisas negras bem à vista debaixo dos casacos, mas
também porque Rosário, um dos filhos de Conce a, que estava um pouco adiante a comer pão e cebola, mal os
viu, desapareceu imediatamente, correndo a bom correr. D isse baixinho a Rose a: “S ão fascistas, não digas
nada, deixa-os comigo.”
Conhecia bem esses novos fascistas, que apareceram depois do 25 de J ulho, pois lidara com eles em Roma:
uns brutos da pior espécie, uns vagabundos que tinham interesse em vestir a camisa negra quando a gente
honesta já não a queria usar, mas todos homens fortes, como há muitos em Trastevere e na Ponte. Estes dois,
porém, vi logo que não passavam de dois migalhos de gente, dois idiotas chapados, uns coitadinhos que tinham
mais medo das próprias espingardas do que as pessoas a quem queriam assustar. Um era meio zarolho, de
cabeça calva, cara mirrada como uma castanha pilada, os ombros tão estreitos que até causava dó, olhos
encovados, nariz achatado e barba comprida; o outro era quase anão, com cabeça de professor, olhos grandes,
carrancudo e gordo.
Conce a desceu imediatamente e saudou o primeiro com uma alcunha que era mesmo um retrato: “Q ue
procuras por estes lados, Scimmiozzo?”
S cimmiozzo, o calvo e magro, respondeu, fanfarrão, bamboleando-se e batendo com a mão na coronha da
espingarda: “Comadre Concetta, entendamo-nos, sabes muito bem o que procuramos.”
“Palavra de honra que não sei. Q uerem vinho? Q uerem pão? Temos pouco pão, mas posso arranjar uma
garrafa de vinho e também alguns figos secos. Coisas do campo, já se vê.”
“Comadre Concetta, és esperta, mas desta vez encontras um mais esperto ainda.”
“Scimmiozzo, que dizes tu?! Esperta eu?!”
“Sim, esperta; e esperto também o teu marido, e mais espertos ainda os teus dois filhos.”
“O s meus dois filhos?! Q uem me dera ver os meus filhos! Há tanto tempo que os não vejo! Estão na
A lbânia. Pobres filhos, estão na A lbânia a combater pelo rei e por Mussolini, e que D eus conserve ambos
sempre de boa saúde.”
“Qual rei nem meio rei, estamos em República, Concetta.”
“Então, viva a República!”
“E os teus filhos não estão na Albânia, estão aqui.”
“Aqui? Quem me dera que fosse verdade!”.
“Sim estão aqui, ainda ontem foram vistos, no mercado negro, para os lados de Coccuruzzo.”
“O que estás para aí a dizer, S cimmiozzo? O s meus filhos aqui? J á te disse, quem me dera que fosse
verdade, abraçava-os, sabia-os longe do perigo, eu que me consumo a chorar todas as noites e sofro por eles
mais do que a Virgem das Sete Dores.”
“Basta, diz onde estão e acaba lá com isso.”
“Q ue sei eu deles? Posso dar-te vinho, posso dar-te figos secos, posso dar-te também farinha de milho,
embora tenha pouca, mas os meus filhos, como posso eu dar-te, se não sei deles?”
“Hum... entretanto, venha de lá esse vinho.”
S entaram-se então na eira, em duas cadeiras. Conce a, muito entusiasmada como de costume, foi buscar
uma garrafa de vinho e dois copos e trouxe também um cesto cheio de figos secos. S cimmiozzo escarranchou-se
na cadeira, bebeu o vinho e depois disse: “O s teus filhos são desertores. S abes o que o decreto manda fazer aos
desertores? Se os apanhamos, são fuzilados. É a lei.”
E ela, muito contente: “Têm razão: os desertores devem ser fuzilados... tratantes... devem ser todos
fuzilados. Mas os meus filhos não são desertores, Scimmiozzo.”
“O que são senão isso?”
“São soldados. Combatem por Mussolini, que Deus o conserve cem anos.”
“Sim, a fazer mercado negro?”
“Queres mais vinho?”
Q uando não podia responder doutro modo, Conce a oferecia-lhes vinho; e eles, que tinham vindo ali
sobretudo pelo vinho, aceitavam e bebiam.
Nós as duas estávamos à parte, sentadas nos degraus da escada.
S cimmiozzo, mesmo a beber, não fazia outra coisa senão olhar para Rose a, mas não a olhava como um
polícia que quisesse esticar-se se alguém tinha ou não os papéis em ordem, olhava-lhe para as pernas, para o
peito, como um homem a quem uma mulher agrada e está com o sangue a ferver. Finalmente, perguntou a
Concetta: “Quem são aquelas duas?”
A pressei-me eu a responder em vez de Conce a, pois não queria que os fascistas soubessem que éramos de
Roma: “Somos primas de Concetta, viemos de Vallecorsa.”
E Conce a, entusiasmada, reforçou: “S im, são minhas primas, Cesira é filha dum tio meu, são do meu
sangue, vieram para estar conosco, pois, já se vê, o sangue não é água.”
Mas S cimmiozzo não ficou convencido. Via-se que era mais inteligente do que parecia: “N ão sabia que
tinhas parentes em Vallecorsa. Sempre me disseste que eras de Minturno. E como se chama esta linda rapariga?
“Chama-se Rosetta”, disse eu.
Ele esvaziou o copo, depois levantou-se e veio até junto de nós: “A gradas-me, Rose a. Precisamos na sede
duma criada que cozinhe e faça as camas. Queres vir conosco?”
E, dizendo isto, estendeu a mão e pegou-lhe no queixo. D ei-lhe imediatamente uma palmada: “A baixa lá as
patinhas!”
Ele olhou-me, abriu muito os olhos e, fingindo-se admirado: “Olá, que bicho te mordeu?”
“Não quero que toques na minha filha”.
E o malandro tirou a espingarda do ombro e apontou-me: “Sabes com quem falas? Mãos ao alto!”
Eu então, muito calma, como se, em vez da espingarda, ele me estendesse a colher para mexer a polenta,
afastei o cano um quase nada e disse-lhe com desprezo: “Q ual mãos ao alto! J ulgas que me metes medo com a
tua espingarda?
S abes para que ela te serve? Para arranjares vinho e figos secos, é só para isso que te serve. Até um cego vê
que andas morto de fome.”
Ele, com grande admiração nossa, acalmou-se imediatamente e, rindo, disse para o outro: “Merecia pelo
menos ser fuzilada, que dizes?”
Mas o outro encolheu os ombros e resmungou qualquer coisa como: “São mulheres, não faças caso.”
Então S cimmiozzo baixou a espingarda e declarou com ênfase: “Por esta vez estás perdoada, mas fica
sabendo que escapaste por pouco à morte: quem toca na milícia recebe bala.”
Esta frase estava escrita nas paredes de Roma e também nas de Fondi e aquele safado tinha-a aprendido de
cor. Passado um momento acrescentou: “Mas fica entendido que nos mandas a tua filha para ser criada na sede,
em Coccuruzzo.”
Eu respondi: “Bem podes sonhar com a minha filha. Não faltava mais nada senão mandar-ta.”
Ele voltou-se então para Conce a: “Façamos uma troca, Conce a: nós deixamos de procurar os teus filhos,
que andam por aí, e tu sabê-lo muito bem; se os procurássemos a valer, decerto os encontrávamos. Mas tu, em
troca, mandas-nos a priminha. Estamos entendidos, hem?”
A quela malvada Conce a, tanto mais exaltada quanto mais criminosas e impossíveis eram as coisas que lhe
propunham, respondeu, até me custa dizê-lo, com calor: “Pois naturalmente, amanhã mesmo, de manhã,
Rosetta estará lá na sede.
A companho-a eu, fiquem descansados, Rose a será cozinheira, criada de quarto, fará tudo o que quiserem.
Sim, amanhã de manhã eu levo-a.”
Desta vez, embora sentisse o sangue a ferver, por prudência não disse nada.
A queles dois safardanas ainda se demoraram um bocado, beberam mais uns copos de vinho, papas de
farinha de milho, e depois, um levando a garrafa, o outro o cesto dos figos secos, foram-se embora pelo carreiro
por onde tinham vindo.
Mal desapareceram, disse a Conce a “Tu és doida... Preferia ver a minha filha morta a mandá-la servir de
criada aos fascistas.”
Não disse isto com muita energia, pois no fundo julgava que Concetta tivesse concordado apenas pró-forma,
para não contrariar os dois fascistas e deixá-los ir embora contentes. Mas fiquei furiosa ao ver que ela, ao
contrário, não estava nada indignada como eu supunha: “Bem, no fim de contas, ninguém te comia Rose a. E
os fascistas, comadre, têm de tudo: vinho, farinha, carne, feijões. N a sede comem todos os dias bom macarrão e
boa vitela. Rosetta estaria lá como uma rainha.”
“Mas que estás para aí a dizer? És doida?”
“N ão digo nada, digo somente que estamos em guerra e na guerra o importante é estar ao lado do mais
forte. Hoje os fascistas são os mais fortes, pois bem, é preciso estar com os fascistas. A manhã serão talvez os
ingleses3, estaremos então ao lado dos ingleses.”
“Mas não compreendes que eles querem Rose a sei lá para que? N ão viste que esse malandro esteve todo o
tempo a comê-la com os olhos?”
“E que tem isso? Tanto faz um homem como outro, algum há-de ser o primeiro... Estamos em guerra e as
mulheres, já se vê, em tempo de guerra não devem olhar demasiado a delicadezas nem pretender que as tratem
com respeito como em tempo de paz. A lém disso, comadre, cão que ladra não morde... Conheço o S cimmiozzo:
só pensa em encher a panca.”
Em resumo, era claro como água que ela tomara muito a sério a proposta de S cimmiozzo: dá-me Rose a e
eu deixo os teus filhos em paz. N ão digo que do seu ponto de vista não tivesse razão: se Rose a fosse para
criada dos fascistas, ou para coisa pior, aqueles dois malandros, que eram seus filhos, poderiam dormir
sossegados em casa e ninguém mais os procurava. Mas essa liberdade dos filhos queria ela pagá-la com a
minha filha, e eu, que também era mãe, compreendi que, por amor dos filhos, ela era capaz de chamar os
fascistas no dia seguinte e entregar-lhes Rosetta. Protestar não servia de nada, era preciso simplesmente fugir.
Por isso mudei de tom e disse com grande calma: “Bem, vou pensar. E verdade que nesta e noutras
passagens, Rosetta, ao pé dos fascistas, seria, como dizes, uma rainha, mas não queria...”
“Ora, histórias, comadre. É preciso estar com o mais forte. Vivemos em guerra.”
“Esta noite decidirei.”
“Pensa bem. N ão há pressa. Eu conheço os fascistas, direi que Rose a irá ter com eles daqui a uns dias.
Esperarão... Mas, depois, podes ter a certeza, não te faltará nada. O s fascistas têm tudo, azeite, vinho, carne de
porco, farinha... junto deles não se faz outra coisa senão beber e comer. Vão passar bem e engordar.”
“Decerto, decerto.”
“Foi a Providência, Cesira, que mandou cá esses fascistas, pois eu, para falar verdade, não tinha já
possibilidades de lhe hospedar. É certo que pagas, mas há a carestia e em tempo de carestia contam mais as
provisões do que o dinheiro. E, além disso, os meus filhos não podiam continuar nesta vida, sempre fugidos,
como
3 Por ingleses, subentenda-se A liados, pois era assim que os I talianos geralmente designavam os A liados na
última guerra.
ciganos. A ssim, deixam-nos tranquilos, já podem dormir em paz e trabalhar. S im, foi mesmo a Providência
que mandou cá hoje esses fascistas.”
Em suma, ela parecia decidida a sacrificar Rose a. E eu, por meu lado, estava decidida a ir-me embora
naquela mesma noite. Comemos os quatro, como de costume: nós as duas, Conce a e Vincenzo; os filhos
tinham ido a Fondi. A ssim que chegamos à cabana de feno, disse a Rose a: “N ão julgues que estou de acordo
com Conce a. Fingi, porque com gente desta nunca fiando... A gora vamos fazer as malas e, mal desponte o dia,
saímos daqui.”
“Mas para onde vamos, mamãe?”, perguntou ela numa voz chorosa.
“O que é preciso é sair desta casa de malfeitores. Vamos para onde pudermos.”
“Mas para onde?”
Pensara já tantas vezes nesta fuga que tinha as minhas ideias. Respondi: “Para junto dos teus avós não
podemos ir, pois a aldeia foi evacuada e sabe D eus onde estão a esta hora. Primeiro que tudo, vamos a casa de
Tommasino: é bom homem, pedimos-lhe conselho. disse-me muitas vezes que o irmão está na montanha e está
lá bem, com toda a família. Há de saber dar qualquer indicação.
N ão tenhas medo, estás ao pé da tua mãe, que te quer bem, e temos uns patacos, que são os melhores
amigos e os únicos em quem podemos confiar. Havemos de encontrar algum sítio para onde ir.”
Em resumo, tranquilize-a; ela também conhecia Tommasino, meio irmão de Festa, o proprietário da herdade
cultivada por Vincenzo. Este Tommasino era comerciante e, embora quase morresse todos os dias de medo, não
se decidia a ir juntar-se aos parentes, na montanha, por amor ao mercado negro, pois negociava e vendia de
tudo. Morava num casebre ao fundo da planície, no sopé dos montes. E ganhava bom dinheiro, arriscando a
vida e continuando a negociar apesar dos bombardeamentos, das prepotências dos fascistas e das requisições
dos Alemães.
Mas, toda a gente sabe, por dinheiro até os covardes se tornam corajosos: Tommasino pertencia a esse
número.
A ssim, à luz duma candeia, metemos dentro das malas as poucas coisas que tínhamos tirado de lá quando
chegamos e depois, vestidas como estávamos, deitamo-nos em cima do feno e dormimos talvez umas quatro
horas. Rose a, claro, de boa vontade dormiria, era jovem e tinha o sono pesado; podia até vir a banda de
música da aldeia e pôr-se a tocar ao pé dos seus ouvidos, que não acordava. Mas eu, mais velha, tinha o sono
leve, e desde que fugíramos, por causa das preocupações e do nervosismo, dormia pouco. Q uando os galos
começaram a cantar, era ainda noite, mas a alvorada já estava próxima e os galos sabem-no bem; primeiro mais
ao longe, ao fundo da planície, depois mais perto, e por fim mesmo ao lado, na capoeira de Vincenzo. Levantei-
me do feno e comecei a sacudir Rosetta.
D igo “comecei” porque ela não queria acordar, repetindo, com voz chorosa: “O que é, o que é?”, como se
tivesse esquecido que estávamos em Fondi, em casa de Conce a, e se julgasse ainda em Roma, na nossa casa,
onde nunca nos levantávamos antes das sete. Finalmente acordou, muito queixosa, e disse-lhe: “Preferias talvez
dormir até ao meio-dia e ser acordada por um homem de camisa negra?”
A ntes de sair da cabana assomei à porta e olhei para a eira: viam-se no chão os figos espalhados a secar,
uma cadeira na qual Conce a estivera sentada, um cesto cheio de milho, a parede cor-de-rosa da casa, toda
esfolada e enegrecida, mas não se via ninguém. Então, eu e Rose a pusemos as males à cabeça, tal como
tínhamos feito ao chegarmos à estação de Monte S an Biagio, saímos da cabana e corremos rapidamente para o
fiea de carreiro que atravessava os laranjais.
Eu sabia o caminho e, uma vez na estrada principal, tomei a direção das montanhas que ficam ao norte da
planície de Fondi. N ascia o dia. Lembrei-me da outra alvorada, quando fugira de Roma, e pensei: “Q uem sabe
quantas outras como esta verei ainda antes de voltar para case?” Uma luz cinzenta e falsa espalhava-se por todo
o campo; no céu, dum branco incerto, uma e outra estrela, aqui e além a brilhar, como se não estivesse para
nascer o dia, mas sim parecia começar outra noite, menos negra do que a primeira; a geada cobria as árvores,
tristes e imóveis, e o cascalho da estrada ali muito frio, gelava-me os pés descalços. Havia um silêncio, mas já
não como o silêncio noturno: distinguiam-se os estalidos secos, adejos e rumores; lentamente, o campo
acordava.
Eu caminhava adiante de Rose a e olhava para as montanhas que se erguiam em volta, tendo por fundo o
céu; eram montanhas nuas, com uma ou outra mancha acastanhada aqui e além; pareciam desertas. Mas, como
sou montanhesa, sabia que, uma vez lá em cima, encontraríamos terra cultivada, bosques, matos, cabanas,
casas, camponeses e fugitivos. E imaginava o que iria suceder-nos nessas montanhas, augurando que a sorte
nos seria mais favorável e encontraríamos boa gente, e não criminosos como Conce a e a família. S obretudo
esperava estar lá pouco tempo e desejava que os ingleses chegassem depressa para poder voltar a Roma, para a
minha casa e para a minha loja. Entretanto, o sol erguia-se no horizonte, por trás da orla dos montes, e os
cumes e o céu em volta começaram a ungir-se de vermelho. J á não havia mais estrelas no céu, que se tornara
azul pálido; o sol brilhou de repente, claro como ouro, no fundo dos olivais, por entre os ramos escuros, e os
seus raios espreguiçaram-se na estrada, e, embora fossem ainda fracos e hesitantes, pareceu-me imediatamente
que debaixo dos meus pés o saibro já não estava tão frio.
Reconfortada com esse sol, disse a Rose a: “Q uem diria que há guerra; no campo nunca se percebe que há
guerra.”
Rose a nem teve tempo de responder; dos lados do mar surgiu um avião a uma velocidade incrível:
primeiro apenas lhe senti o ronco medonho, sempre a crescer, depois vi-o descer do céu, em direção a nós, de
focinho para baixo. S ó tive tempo de agarrar Rose a por um braço e deitar-me com ela para além da beira da
estrada, num campo de milho onde caímos de bruços no meio das espigas; o avião, voando baixo, passou-nos
por cima com um barulho de enlouquecer, raivoso; parecia mesmo estar enfurecido conosco; depois chegou até
a curve da estrada, voltou atrás, empinou-se de repente sobre uma fila de choupos e por fim afastou-se, voando
a meia encosta: parecia uma mosca a mover-se diante do sol.
Eu estava de bruços, com em Rose a achegada a mim, e olhava para a estrada, onde ficara a mala pequena,
que Rose a deixara cair no chão quando a puxei. N o momento em que o avião passava vi erguerem-se umas
pequeninas nuvens de pó que dir-se-ia correrem em direção aos montes juntamente com ele.
Q uando tudo sossegou, saí do campo de milho, fui olhar e vi a mala esburacada em vários sítios. N a estrada
havia nas muitas balas do comprimento do meu dedo mínimo. A ssim, não havia dúvidas: aquele avião tinha
disparado mesmo contra nós, pois dali não havia mais ninguém. Pensei: “Malditos sejam!” e senti em mim um
ódio feroz contra a guerra: aquele aviador não nos conhecia, talvez fosse um bom rapaz da idade de Rose a, e,
só porque estávamos em guerra, quisera matar-nos, por simples capricho, tal como um caçador que anda no
mato à caça com o seu cão e atira ao acaso para uma árvore, pensando: “Talvez mate alguma coisa, nem que seja
um pássaro.” S im, nós éramos apenas dois pássaros, a servir de alvos a um caçador vadio, que depois, se os
pássaros caem mortos, os deixa no mesmo sítio, pois não lhe servem para nada.
“mamãe”, disse Rose a, passado pouco tempo, enquanto caminhávamos, “disseste que no campo não havia
guerra e no entanto aquele tentou matar-nos.”
Respondi: “Minha filha, enganei-me. A guerra está em toda a parte, tanto no campo, como na cidade.”
CAPÍTULO III

D epois de meia hora de caminho, pouco mais ou menos, chegamos a uma encruzilhada: à direita havia uma
ponte sobre um ribeiro e, do outro lado, uma casinha branca, onde, como já sabia, morava Tommasino.
D ebruçando-me na ponte, vi uma mulher que lavava roupa no rio, ajoelhada nas pedras. Gritei-lhe: “Mora aqui
Tommasino?”
Ela acabou de torcer um pano já lavado e respondeu: “Sim, mora aqui. Mas não está em casa. Foi a Fondi.”
“E volta?”
“Sim, volta.”
N ão podíamos fazer mais nada senão esperar, e foi o que fizemos; sentamo-nos num banco de pedra à
entrada da ponte. Durante algum tempo ficamos ali caladas, ao sol, que a pouco e pouco se tornava mais quente
e luminoso.
Rose a, por fim, perguntou: “J ulgas que a A nnina me restituirá o Pallino são e salvo quando voltarmos para
Roma?”
Eu estava mergulhada em pensamentos tão diferentes que no primeiro instante não compreendi. D epois
lembrei-me que A nnina era a porteira do prédio ao lado do nosso, em Roma, e Pallino o gato pardo de que
Rose a gostava muito e que, por isso mesmo, antes de partir, confiara a A nnina. Tranquilizei-a, dizendo-lhe
que com certeza encontraria o Pallino mais bonito e mais gordo, quanto mais não fosse porque A nnina era irmã
de um cortador e, apesar da carestia, a eles nunca faltava carne.
A minha resposta pareceu confortá-la e calou-se de novo, semicerrando os olhos por causa do sol. Menciono
aqui esta pergunta de Rose a, naquele momento tão crítico, para mostrar que ela, embora tivesse já mais de
dezoito anos, era ainda uma criança pelo caráter. Revelava-o bem tal preocupação quando não sabíamos ainda
onde dormiríamos naquela noite ou se teríamos que comer.
Por fim, lá apareceu um homem na curva da estrada; caminhava devagar, sugando uma laranja. Reconheci
imediatamente Tommasino, que era tal e qual um hebreu do gueto, a cara comprida, a barba duma semana, o
nariz adunco, os olhos à flor da pele, o passo arrastado, os pés para fora. Ele também me reconheceu, pois era
sua freguesa e nessas duas semanas tinha-lhe comprado muitas coisas; mas, desconfiado, não respondeu ao
meu cumprimento e continuou a chupar a laranja de olhos no chão. Q uando chegou ao pé de mim, disse-lhe:
“Tommasino, nós saímos da casa de Concetta. Agora tens de nos ajudar, pois não sabemos para onde ir.”
Ele então apoiou-se ao parapeito da ponte, com um pé contra o muro, deu uma dentada noutra laranja que
tirou do bolso, atirou a casca na minha direção e respondeu: “I sso é bom de dizer. Mas... nestes tempos cada
um trata de si e Deus de todos. Como queres que te ajude?”
Eu disse então: “Conheces algum camponês na montanha que possa dar-nos agasalho até chegarem os
Ingleses?”
E ele: “N ão conheço ninguém e todas as casas estão cheias de gente, segundo me disseram. Mas se vais para
a montanha, alguma coisa hás-de encontrar: uma cabana, um palheiro.”
Respondi: “N ão, assim à aventura não vou. Tens lá o teu irmão e conheces os camponeses. Podes dar-me
alguma indicação.”
E ele, atirando fora outra casca: “No teu lugar sabes o que fazia?”
“Que fazias?”
“Voltava para Roma.”
Compreendi que não queria ajudar-nos porque nos julgava umas pobretanas; aliás, já sabia que ele só
pensava no dinheiro e, enquanto não visse dinheiro, era escusado, não fazia nada por ninguém. N unca lhe
dissera que tinha comigo um bom pecúlio, mas entendi que era chegado o momento de lho dizer. N ele podia
confiar, éramos os dois da mesma raça: ele também tinha uma mercearia em Fondi e agora fazia mercado negro
exatamente como eu fizera antes: em suma, como o outro que diz: um cão não morde outro cão. A ssim, sem
insistir no assunto, disse: “Eu para Roma não vou, por causa dos bombardeamentos e da carestia e também
porque já não há comboios: além disso, a minha Rose a está ainda impressionada com as bombas. D ecidi ir
para a montanha e procurar lá alojamento.
Pagarei o que for preciso. Q uero também levar algumas provisões, por exemplo, azeite, feijão, laranjas,
queijo, farinha, um pouco de tudo. Pagarei à vista, tenho umas economias, quase cem mil liras. Tu não queres
ajudar-me, está bem, dirijo-me a qualquer outro; não és o único aqui em Fondi, há o Esposito, o S calise e muitos
outros. Vamos, Rosetta.”
Falei num tom resoluto e logo a seguir pus a mala à cabeça, Rose a fez o mesmo e demos alguns passos na
estrada, em direção ao Monte San Biagio.
Q uando me ouviu dizer que tinha cem mil liras, Tommasino arregalou os olhos e ficou, por momentos,
indeciso, com os dentes fincados na laranja que estava a descascar. Em seguida deitou a laranja fora e correu
atrás de nós. Por causa da mala que levava à cabeça, não podia voltar-me, mas ouvi-o dizer, numa voz rouca e
perturbada: “Pára um momento, que diabo! Estás com uma pressa... Para... falemos um pouco...”
Por fim, parei e, depois de me fazer rogada, consenti em voltar atrás e entrar na casinha dele. Mandou-nos
entrar para um quartinho branco e nu, no rés-do-chão, no qual não havia senão uma cama de ferro com os
lençóis em desalinho. S entamo-nos os três em cima da cama e então ele disse, num tom quase amável: “Bem,
vamos lá fazer a lista das provisões que precisas. N ão prometo nada, porque é uma altura ruim e os
camponeses tornaram-se finórios. A ssim, quanto aos preços, deves confiar em mim e não discutir: não estamos
em Roma em tempo de paz, estamos em Fondi em tempo de guerra. S obre a casa na montanha, nada prometo.
Havia muitas antes dos bombardeamentos, mas depois alugaram-se todas.
Porém, como vou falar hoje com o meu irmão, vocês as duas podem vir comigo para cima e alguma coisa se
há de arranjar, especialmente se estás disposta a pagar bem. Q uanto às provisões, terás de esperar pelo menos
uma semana. Entretanto, se arranjares alojamento lá em cima, o meu irmão ou qualquer outro refugiado pode
emprestar-te ou vender-te o que for preciso.”
D itas estas palavras em tom prático e razoável, tirou do bolso um caderninho todo ensebado e rasgado,
escolheu uma página em branco, agarrou num lápis, molhou o bico na boca e recomeçou: “Então dize lá: que
farinha precisas?.”
D itei-lhe o rol, cuidadosamente: tanto de farinha de trigo, tanto de farinha de milho, tanto de azeite, tanto
de feijão, tanto de queijo de ovelha, tanto de banha, tanto de salame, tanto de laranjas, e assim por diante. Ele
escreveu tudo, depois meteu no bolso o canhenho e saiu do quarto, voltando dai a pouco com um pão e metade
dum salame: “Eis um bom princípio... agora comam e fiquem aqui à minha espera... dentro de uma hora iremos
por ai acima... Entretanto, é melhor que me pagues já o pão e o salame... assim evitam-se confusões.”
Tirei logo uma nota de mil liras e dei-lhe e ele, depois de a ver bem contra a luz, deu-me o troco, uma porção
de notas tão rotas e sujas como eu nunca vira. S ão estas as notas que se encontram no campo, onde há pouco
dinheiro e esse pouco gira e torna a girar dumas mãos para outras, nunca se renovando, pois os camponeses
não gostam de entregar o seu dinheiro ao banco e preferem escondê-lo em casa. A inda lhe restitui algumas
daquelas notas, por estarem demasiado sujas, e ele trocou-as, observando: “Tivesses tu uma carrada delas, que
não me importava de poder trocá-las.”
Tommasino deixou-nos, avisando-nos de que voltava dai a pouco, e nós comemos o pão e o salame sentadas
na cama, sem falar, mas agora mais tranquilas com a certeza de que em breve não nos faltaria casa e comida.
A penas disse, a certa altura, não sei porquê, talvez seguindo o fio dos meus pensamentos: “Vês Rose a, o que
vale ter dinheiro?”
E ela: “Nossa Senhora ajudou-nos, mamãe, eu sei, e há de ajudar-nos sempre.”
N ão ousei contradizê-la, sabia que era religiosa, mesmo muito, e rezava todas as manhãs quando se
levantava e à noite ao deitar; eu própria lhe dera essa educação, como é uso nas nossas aldeias; mas não pude
deixar de pensar que, a ser verdade, a ajuda de N ossa S enhora me parecia bastante estranha: o dinheiro
convencera Tommasino a auxiliar-nos, mas esse dinheiro ganhara-o eu no mercado negro, graças à guerra e à
carestia. N ossa S enhora teria querido também a guerra e a carestia. Mas porquê? Para nos punir dos nossos
pecados?
D epois de comermos o pão e o salame, estendemo-nos em cima dos lençóis sujos de Tommasino e
dormimos aí uma meia hora. Estávamos a pé desde o nascer do dia e o sono atrasado turvava-nos a cabeça,
como o vinho bebido em jejum.
D ormíamos ainda quando Tommasino voltou e nos bateu na cara, dizendo, muito alegre: “A cordem, vamos
partir, acordem!” Estava contente, via-se que contabilizava já os ganhos que esperava obter conosco.
Levantamo-nos e o seguimos. Em frente da casa, junto à ponte, um burro cinzento, muito pequeno,
daqueles a que chamam burros da S ardenha, já estava bem ajoujado com uma porção enorme de pacotes, em
cima dos quais Tommasino atara as nossas malas. Partimos, Tommasino à frente com o burrico pela arreata,
uma vergasta na mão, vestido como um citadino, de chapéu preto, casaco preto, calças pretas às riscas, mas sem
gravata, e nos pés botas de soldado, de vitela amarela, todas enlameadas. Nós as duas seguíamos atrás.
Primeiro contornamos, na planície, o sopé duma daquelas montanhas; depois metemos por um atalho que
saía da estrada principal e ia obliquando encosta acima, cheio de pedras, pó e buracos, entre duas sebes de
silvas. Começamos a trepar e bem depressa nos encontramos num vale apertado e íngreme, entre dois montes,
que estreitava cada vez mais, como um funil, à medida que subíamos, até se tornar em acanhada garganta, lá
em cima, perto do céu, entre dois cumes rochosos. Mas, querem acreditar?, mal pus os pés no atalho pedregoso,
com excrementos de animais, pó e buracos, experimentei logo grande alegria. S ou camponesa da montanha e
tinha percorrido tantos atalhos como aquele, para cima e para baixo, até os dezesseis anos que, ao senti-lo
debaixo dos pés, me pareceu ter encontrado finalmente qualquer coisa familiar, como se, na falta dos meus
pais, tornasse a ver ao menos os lugares onde tinha sido criada. Até aqui, pensei, estivemos na planície e a
gente da planície é falsa, ladra, porca e traiçoeira; mas agora, com este querido atalho cheio de pedras e esterco,
poeirento e escarpado, encontro a montanha e a minha gente.
N ão disse nada disto a Tommasino, primeiro porque não me compreenderia e depois porque também ele
pertencia à planície, com aquela cara de judeu e aquela mania de aforrar dinheiro. Mas disse baixinho a Rose a,
quando passávamos em frente duma linda sebe na qual cresciam muitos ciclames: “Colhe aqueles ciclames, faz
um raminho e põe nos cabelos, fica bem.”
Lembrou-me de repente que costumava fazer isso quando era rapariga: colhia os ciclames, fazia um
raminho, punha-o nos cabelos por cima duma orelha, e parecia-me que ficava duas vezes mais bonita. Rose a
seguiu o meu conselho e, no momento em que paramos para tomar fôlego, colheu um raminho para ela e outro
para mim e com eles nos enfeitamos. D isse, a rir, a Tommasino, que nos olhava espantado: “Q ueremos entrar
bonitas na nova casa.”
Mas ele nem sequer sorriu: estava sempre de olhos fitos não se sabia onde, a fazer cálculos sobre o que ia
vender ou comprar e os ganhos ou perdas. Um verdadeiro comerciante do mercado negro e ainda por cima da
planície!
O atalho passou primeiro junto dum grupo de casas, na embocadura do vale, depois voltou à direita,
flanqueando o monte, por entre o mato. S ubia lentamente, aos ziguezagues, quase plano, de vez em quando
com um troço mais íngreme, e eu sentia que não me cansava, as minhas pernas estavam habituadas a subir
desde nascença, por assim dizer, e subitamente, como por instinto, reencontravam o seu passo de montanha,
lento e regular, de tal modo que nem sequer me esfalfava nas maiores subidas, ao passo que Rose a, que
nascera em Roma, e Tommasino, que era da planície, tinham de parar de vez em quando para tomar fôlego.
Entretanto, à medida que o atalho subia, ia-se descortinando a natureza do vale, ou, melhor, do desfiladeiro,
pois não se podia chamar vale a garganta tão estreita: era uma escada imensa com degraus mais largos em
baixo e mais estreitos em cima. N estes degraus estavam as culturas, espécie de terraços a que nós,
montanheses, chamamos socalcos e que consistem em faixas compridas e estreitas de terreno fértil,
sustentadas por murinhos de pedras soltas. S obre essas faixas cresce de tudo: trigo, batatas, milho, hortaliças,
linho e até árvores de fruto, plantadas aqui e além no meio das culturas. Eu conhecia bem os socalcos; quando
moça trabalhara, que nem besta de carga, acarretando à cabeça cestos de pedra para erguer os muros de
suporte e habituara-me a andar para cima e para baixo pelos íngremes carreirinhos e escadinhas que
estabelecem comunicação entre um socalco e outro. Custam muito trabalho estes socalcos; para os construir, o
camponês tem de desbravar a encosta da montanha, arrancar-lhe o mato, tirar todos os calhaus a um e um e
levar para lá, à força de braços, as pedras necessárias para os muros e às vezes a própria terra. Mas, depois de
feitos, asseguram-lhe a vida, dando-lhe tudo quanto precisa, de modo que, por assim dizer, não tem
necessidade de comprar nada.
S eguimos o atalho não sei por quanto tempo: vagabundo, ora trepava um bom bocado, montanha acima, à
esquerda do vale, ora passava para o outro lado e começava a subir à direita. A gora podíamos ver toda a
encosta, em declive, e lá no alto o céu onde findava a escadaria gigantesca dos socalcos principiava a faixa
escura do mato; depois o mato rareava e viam-se algumas árvores espalhadas na vertente nua; por fim, também
as árvores cessavam, só se via saibro branco por baixo do céu azul. Mesmo no cume havia um tufo de verdura,
no meio da qual se entreviam algumas rochas vermelhas.
Tommasino disse-nos que entre aquelas rochas ficava a entrada duma caverna profunda, onde se escondera,
há muitos anos, o famoso pastor de Fondi que queimara viva a noiva numa cabana e depois fora para o outro
lado da montanha e lá casara e tivera filhos e netos; quando descobriram o seu crime, era já um bom velho, pai,
sogro e avô, de barba branca, amado e respeitado por todos.
Tommasino acrescentou que para lá desse cume ficavam os montes da Ciociaria, entre os quais o monte das
Fadas. Lembrei-me então que o nome daquele monte, em criança, me fazia sempre sonhar, e muitas vezes
perguntara a minha mãe se nele havia na verdade fadas; ela respondia-me que não, que o monte se chamava
assim nem sabia porquê; mas nunca acreditei; e mesmo hoje, já mulher e com uma filha crescida, estive quase
tentada a perguntar a Tommasino porque é que o monte tem esse nome e se alguma vez as fadas teriam
andado por lá.
D e súbito, numa volta do atalho, no meio da escadaria dos socalcos, eis que surge um boi branco atrelado à
sua charrua e um camponês a conduzi-lo numa dessas faixas estreitas e compridas. I mediatamente Tommasino
levou as mãos à boca e gritou: “OIá! Paride!”
O camponês revolveu a terra mais alguns passos com o arado, depois parou e, sem pressas, veio ao nosso
encontro.
Era um homem não muito alto, mas bem proporcionado, como os de Ciociaria, de cabeça redonda, testa
baixa, nariz pequeno e curvo, em gancho, maxilar pesado e boca grande, cortada a direito, que parecia não ser
feita para sorrir. Tommasino disse-lhe, indicando-nos: “Paride, estas duas senhoras são de Roma e procuram
uma casinha aqui nas montanhas... até chegarem os ingleses, claro, uma questão de dias.”
Paride tirou o chapéu preto e olhou-nos fixamente, sem expressão, como olham, fascinados e estúpidos, os
camponeses que passam horas e horas sozinhos com o boi, o arado e os sulcos; depois disse, lentamente e de
má vontade, que ali já não havia casas, as poucas que existiam estavam todas alugadas; em resumo, não via
onde pudéssemos ficar.
Rose a fez logo uma cara triste e desolada, mas eu continuei calma, tinha comigo dinheiro e sabia que com
dinheiro tudo se consegue. D e fato, assim que Tommasino lhe disse, quase rudemente: “Paride, vamos ver se
nos entendemos... estas senhoras pagam... não pedem nada a ninguém... pagam a pronto”.
Paride coçou a cabeça e a seguir, baixando os olhos, admitiu que tinha uma espécie de estábulo, um casebre
encostado à sua casa, onde instalara o tear e onde nós, se fosse por poucos dias, poderíamos acomodar-nos.
Tommasino observou então: “Vês como sempre havia uma casa... A falar é que a gente se entende... Bem,
Paride, volta ao teu trabalho... eu cá apresento as senhoras à tua mulher.”
Paride pronunciou ainda algumas palavras e depois voltou à sua charrua e nós retomamos a subida.
A gora já faltava pouco. D e fato, apenas mais um quarto de hora de caminho e vimos três casinhotos
dispostos em semicírculo na planura dum socalco. Eram casas pequenas de duas divisões, encostadas à
vertente; os camponeses constroem-nas, por assim dizer, sozinhos, as mais das vezes até sem a ajuda dum
mestre de obras. N estas casas só dormem. O resto do tempo andam a trabalhar nos campos; e quando chove,
ou às horas das refeições, estão numas cabanas, ainda mais fáceis de construir, que podem erguer numa só
noite, com uma parede de pedras soltas e um telhado de palha. E de fato havia muitas cabanas espalhadas aqui
e além, em redor das casas, formando com estas uma espécie de minúscula aldeia.
A lgumas, com o seu penacho de fumo, indicavam-nos que se cozinhava lá dentro, outras pareciam palheiros
ou estábulos onde à noite se fecham os animais.
Ia e vinha gente entre as casas e as cabanas, no apertado espaço do socalco.
Q uando, por fim, chegávamos, vimos que aquela gente que ia e vinha estava a pôr uma grande mesa ao ar
livre, quase à beira do socalco, à sombra duma figueira. Tinham colocado já os pratos e os copos em cima da
toalha e agora dispunham em volta grandes cepos de madeira para servirem de cadeiras. Um dos homens, logo
que nos viu, veio imediatamente ao encontro de Tommasino, a gritar: “Chegaste mesmo a tempo de te sentares
à mesa!”
Era Filippo, o irmão de Tommasino, e nunca vi dois irmãos tão diferentes. Oque um tinha de reservado,
silencioso, fechado consigo e quase taciturno, sempre a calcular os ganhos, a roer as unhas e a olhar para o
chão, tinha o outro de expansivo e cordial. Filippo era comerciante como Tommasino, mas, enquanto este tinha
uma mercearia, o irmão possuía um verdadeiro armazém onde vendia de tudo.
Era um homem atarracado, de pescoço curto, a cabeça quase enterrada nos ombros muito largos, que até
parecia um tarro voltado ao contrário com a parte mais estreita para cima e a mais larga para baixo e o nariz
exatamente como o bico dos tarros. Tinha as pernas curtas, o busto amplo, o peito saliente e um pouco de
barriga, de forma que as calças, presas com o cinto, dir-se-ia irem escorregar e cair ao primeiro movimento.
Filippo, quando ouviu dizer que éramos refugiadas e íamos morar lá em cima com eles, que tínhamos
dinheiro e éramos comerciantes (todas estas coisas lhas disse Tommasino, taciturno e reticente, como se falasse
consigo mesmo), pouco faltou para nos saltar ao pescoço: “S entem-se aqui à mesa... temos massa com feijão...
comam conosco... enquanto não chegam as vossas provisões, servem-se das nossas... tanto mais que os I ngleses
estão ai a chegar e trazem de tudo, haverá abundância... o que é preciso agora é comer e cara alegre.”
I a e vinha, enfatuado, em redor da mesa, apresentou-nos a filha, uma moreninha meiga e um pouco triste, e
o filho, um rapaz baixo, de ombros largos, um tanto encurvado, de tal modo que quase se pensava que fosse
corcunda, mas não era, muito moreno, com grossas lentes de míope; era doutor, pelo menos assim o disse o
pai: “Apresento-lhes o meu filho Michele... é doutor.”
D epois apresentou-nos também a mulher, com cara espantada, muito branca, olhos pisados e encovados e
seios enormes: sorria de asma e também, segundo penso, de medo; parecia de fato doente.
Filippo, como disse, assim que soube que eu tinha uma loja em Roma, tornou-se cordial, ou, melhor,
fraternal, e, depois de me perguntar se eu tinha dinheiro e de saber que sim, confessou-me que também trazia
uma grande soma no bolso das calças, que lhe chegaria para viver mesmo que os I ngleses demorassem um ano
a chegar. Falava-me num tom confidencial, de igual para igual, ou, antes, de negociante para negociante, e
senti-me de novo animada. N ão sabia ainda, e ele também não, que toda aquela importante soma, se a guerra
durasse, a pouco e pouco iria perdendo o seu valor, e por fim o dinheiro que poderia manter uma família
durante um ano não chegaria sequer para um mês.
Filippo disse ainda: “N ós ficamos cá em cima até chegarem os I ngleses; comemos e bebemos e nada de
preocupações... Q uando os I ngleses vierem, trazem vinho, azeite, farinha, feijão, volta a abundância, e nós, os
comerciantes, abrimos imediatamente as lojas, como se nada tivesse acontecido.”
O bjetei, só para dizer alguma coisa, que podia dar-se o caso de os I ngleses não virem e de os A lemães
vencerem a guerra. E ele: “Q ue nos importa isso a nós? A lemães ou I ngleses é a mesma coisa, contanto que
vença um... a nós importa-nos somente o negócio.”
D isse isto em voz alta, com grande segurança; então, o filho, que estava sozinho à beira do socalco,
contemplando o panorama de Fondi, voltou-se como uma víbora e afirmou: “Para ti talvez isso não tenha
importância... mas eu, se os Alemães ganharem a guerra, suicido-me.”
Disse isto num tom tão sério e convicto que me admirei e perguntei: “Mas que mal te fizeram os Alemães?”
Ele olhou-me de esguelha e depois: “A mim, pessoalmente, nenhum mal... mas ouve, se alguém te dissesse:
olha, ponho em tua casa esta serpente venenosa, trata-a bem, que dirias?”
Fiquei pasmada e respondi: “Bem, eu não queria uma serpente em minha casa.”
“E porquê, se essa serpente não te tinha feito mal nenhum?”
“Sim, mas sabe-se que as serpentes venenosas, mais cedo ou mais tarde, acabam por morder.”
“Pois é isso mesmo, embora os A lemães não me tenham feito nenhum mal pessoalmente, sei que os
Alemães, ou, melhor, os nazis, mais cedo ou mais tarde acabam por morder como as serpentes.”
N aquele momento, Filippo, que estivera a ouvir-nos com impaciência, pôs-se a gritar: “Para a mesa, para a
mesa... nada de alemães nem de ingleses... para a mesa, já cá estão as sopas!”
E o filho, pensando talvez que, afinal, eu não passava duma pobre camponesa e não valia a pena gastar
palavras comigo, dirigiu-se para a mesa, como os outros. Q ue almoço aquele! Lembrar-me-ei sempre dele
enquanto viver, pela estranheza do lugar e pela abundância. A estranheza do lugar: uma mesa comprida e
estreita, numa faixa de terreno comprida e estreita; por baixo de nós, a escadaria gigantesca dos socalcos,
descendo até o vale de Fondi; em volta, a montanha e por cima, o céu azul, iluminado pelo sol dum setembro
doce e quente. E, sobre a mesa, a abundância: pratos de salame e presunto, queijos da serra, pão feito em casa,
quente, a estalar, legumes em conserva, ovos cozidos, manteiga e sopa de massa com feijão nuns pratos
enormes, cheios até acima, que a filha, a mãe e a mulher de Filippo traziam, uma atrás da outra, da cabana onde
cozinhavam. Havia também vinho engarrafado e até uma garrafa de conhaque. Enfim, ninguém imaginaria ali
que lá em baixo, no vale, havia carestia, que um ovo custava oito liras e em Roma se morria de fome.
Filippo andava em volta da mesa esfregando as mãos, o rosto a luzir de satisfação. Repetia: “Vamos
comendo e bebendo... quando chegarem os Ingleses, chega a abundância.”
O nde foi ele buscar essa ideia de que os I ngleses trariam a abundância, não o sei dizer. Mas lá em cima
todos acreditavam nela e a repetiam constantemente uns aos outros. Creio que essa convicção a tinham colhido
através da rádio, onde, como me disseram, um inglês que falava italiano tal qual como um italiano fazia
propaganda, repetindo, todos os dias, que, mal os I ngleses chegassem, nadaríamos em prosperidade e bem-
estar.
Uma vez servida a sopa, sentamo-nos à mesa. Q uantos éramos? Estava Filippo com a mulher e os dois
filhos; Paride e a sua mulher, Luísa, loura, pequena, de cabelos encaracolados e olhos azuis de expressão
taciturna, e o filho de ambos, D onato; estava Tommasino com a mulher, alta, magra, de bigode, carrancuda, e a
filha, que também tinha um rosto cavalar como a mãe, mas meiga, de olhos negros e bondosos; estavam quatro
ou cinco homens mal vestidos e de barba comprida, gente de Fondi refugiada na serra, que andavam sempre
em volta de Filippo como se o reconhecessem por chefe. Tinham sido todos convidados por Filippo para
festejar o aniversário do seu casamento. Mas isso soube-o mais tarde: naquele momento tive a impressão de
que Filippo dispunha de tantas provisões que podia deitá-las pela janela fora, convidando todos os dias para a
sua mesa os habitantes do lugarejo.
Comemos, sem exagero, pelo menos durante três horas. Primeiro foi a sopa de massa com feijão; a massa
era leve, feita com ovos, amarela como ouro, e o feijão da melhor qualidade, branco, tenro, grande, desfazendo-
se na boca como manteiga. Todos comeram dois e até três pratos de sopa, cheios até as bordas, tão boa ela
estava. A seguir foi a vez do antepasto: presunto da serra, um pouco salgado, mas estimulante, salame feito em
casa, ovos cozidos, legumes em conserva. D epois as mulheres precipitaram-se para a cabana, ali a dois passos, e
voltaram com travessas cheias de grandes bocados de carne assada, cortados ao acaso, vitela de primeira
qualidade, tenra e clara; tinham abatido um bezerro no dia anterior e Filippo comprara alguns quilos. A seguir
à vitela foi a vez do cabrito picadinho, tenro e delicado, com molho branco, ácido e doce, muito bom; em
seguida comemos queijo de ovelha, duro como pedra, picante, feito de propósito para puxar bastante vinho, e
ainda fruta: laranjas, figos, uvas, frutos secos. Houve também doces, sim senhor, feitos no forno, de massa
folhada, polvilhados com açúcar e baunilha, e, por fim, com o conhaque, comemos alguns biscoitos duma
grande caixa que a filha de Filippo foi buscar à casinha onde moravam. Q uanto bebemos? Pelo menos um litro
por cabeça, mas houve quem bebesse mais de um litro e outros menos de um quarto, como, por exemplo,
Rosetta, que nunca bebia.
A alegria daquela mesa não se pode descrever: todos comiam e bebiam e não faziam senão falar em comidas
e bebidas, tanto do que estavam a comer e a beber como do que tinham comido e bebido em tempos. Para esta
gente de Fondi, e o mesmo sucede na minha aldeia, comer e beber é tão importante como em Roma ter
automóvel e um apartamento em Parioli; para eles, quem come e bebe pouco é considerado um pobretão; por
isso, quem se quer dar ares de senhor procura comer e beber o mais possível, sabendo que é a única maneira de
ser admirado e considerado. Eu estava sentada ao lado da mulher de Filippo, aquela senhora muito branca, de
peito enorme, que parecia doente. Ela não estava nada alegre, coitada, e via-se que não se sentia bem; todavia
gabava-se da comida que tinham sempre em casa: “N unca menos de quarenta ovos, seis presuntos e outros
tantos salames e queijos... nunca menos de uma dúzia de cabeças de porco. Toucinho, comíamos tanto que um
dia dei um arroto e um bocado que já me descera para o estômago tornou a subir e saiu-me pela boca fora,
como uma segunda língua, mas esta muito branca.”
Repito isto porque ela o disse assim, simplesmente, para me impressionar.
Em suma, gente do campo, que não sabe ainda que os senhores da cidade comem pouco, ou, melhor,
pouquíssimo, em especial as mulheres, e gastam toda a sua riqueza na casa, nas joias e nos vestidos. A qui, ao
contrário, andam vestidas como mendigas, mas têm tanto orgulho nos seus ovos e no seu toucinho como as
damas de Roma nos seus vestidos de noite.
Filippo bebia mais do que todos os outros, não só porque, como nos anunciou a certa, altura, era o dia do
aniversário do seu casamento, mas também por ter esse pequeno vício; várias vezes o vi, mais tarde, de olhos
brilhantes e nariz vermelho, a todas as horas do dia, mesmo às nove da manhã. A ssim, talvez porque estivesse
bêbedo, a meio do jantar pôs-se a fazer confidências: “Eu digo-lhes isto”, começou de súbito, com o copo na
mão, “a guerra é ruim somente para os parvos... para os outros, não. S abem o que eu gostava de escrever na
minha loja, por cima da caixa? 'A qui não há papalvos.' É o que dizem em N ápoles, mas nós também o dizemos,
e é a pura verdade. N ão sou papalvo e nunca o serei; porque neste mundo só há duas categorias de pessoas: os
parvos e os espertos; e ninguém que eu saiba quer pertencer à primeira. O importante é saber certas coisas e ter
os olhos bem abertos. O s parvos são os que acreditam nas mentirolas dos jornais e pagam as contribuições e
vão para a guerra e talvez lá deixem a pele. O s espertos, ah, ah, os espertos são o contrário, eis tudo. E, nos
tempos que correm, quem é parvo perde-se e quem é esperto salva-se; os parvos não podem deixar de ser
parvos como antes, mas quem é esperto tem de tornar-se muito esperto. A h! S abem o provérbio: é melhor um
burro vivo do que um doutor morto. O u este outro: é melhor um pássaro na mão do que dois a voar. O u ainda
este: prometer e manter é próprio do homem mesquinho. D igo mais: daqui para o futuro, já não há lugar no
mundo para os parvos, ninguém pode dar-se ao luxo de ser parvo, nem um só dia; doravante é preciso ser-se
esperto, muito esperto, porque vivemos tempos perigosíssimos e, se damos um dedo, tomam-nos logo a mão;
vejam o que sucedeu a esse pobre Mussolini, que julgava ir fazer uma guerrazinha à França e ficou contra o
mundo inteiro e agora tem de fazer figura de parvo à força, ele que quis sempre armar em esperto... Escutem
bem, os governos vão e vêm e fazem as guerras com a pele da gente pobre e depois fazem a paz e tudo o que
lhes apetece, mas para nós a única coisa que conta e nunca muda é o comércio. Q ue venham os A lemães, que
venham os I ngleses, que venham os Russos, o importante para nós, negociantes, é sobretudo e sempre o
negócio; se o negócio corre bem, tudo corre bem.”
Este pequeno discurso custou-lhe sem dúvida um esforço extraordinário, porque no fim já suava na testa e
nas fontes e, depois de esvaziar o copo dum só trago, limpou a cara com o lenço. O s refugiados, que, como
disse, formavam o seu bando aplaudiram-no calorosamente, tanto mais que estavam a comer à sua custa e
queriam agradecer-lhe; de resto, não passavam duns esfomeados e aduladores.
“Viva Filippo e viva o comércio!” gritou um.
O utro observou a rir: “Tu podes bem dizer que o negócio não muda, pois, apesar de muitas coisas terem
acontecido, continuas a fazer bons negócios...”
Um terceiro, um pouco hesitante, mas sabichão, opôs: “Q ue venham os A lemães ou os I ngleses, de acordo;
mas não digas que venham os Russos, Filippo.”
“E porquê?” perguntou ele, que tinha bebido já tanto vinho que naturalmente nem entendia o que lhe
diziam.
“Porque os Russos não te deixariam negociar, Filippo... não sabes? O s Russos são sobretudo contra os
negociantes.”
“Chavelhudos!”, exclamou Filippo, baixo e sentenciosamente, deitando mais vinho no copo e observando-o
amorosamente enquanto o via subir. Por fim, um quarto gritou: “Filippo, tens razão, aqui ninguém é parvo;
disseste a pura verdade.”
N esta altura, enquanto todos riam com frase tão sincera, eis que, de repente, o filho de Filippo se levanta e
diz com expressão sombria: “Aqui ninguém é parvo, exceto eu, que sou um imbecil.”
Houve um silêncio depois desta intervenção inesperada e todos olhamos uns para os outros, espantados. O
filho de Filippo continuou, passado um momento: “E, como os parvos não estão bem na companhia dos
espertos, desculpem-me, mas vou dar uma volta.”
D ito isto, enquanto alguns se apressavam a gritar-lhe: “Eh! vamos, porque te ofendeste? N inguém te
chamou parvo...”, ele afastou a cadeira e caminhou lentamente ao longo do socalco.
Todos se voltaram para o ver distanciar-se; mas Filippo estava demasiado bêbedo para levar aquilo a mal.
Ergueu o copo na direção do filho e disse: “À tua saúde... um parvo, ao menos, em cada família é preciso, não
estraga.”
Todos riram ao ver o pai, que se julgava esperto, beber à saúde do filho, que se proclamava parvo, e riram
ainda mais quando Filippo, levantando a voz, gritou: “Tu podes fazer de parvo porque em casa cá estou eu para
ser esperto.”
Alguém observou: “E é bem verdade: Filippo trabalha e arranja os cobres, e entretanto o filho passa o tempo
a ler livros e a dar-se ares.”
Mas Filippo, que, no fundo, parecia ter orgulho que o filho fosse diferente dele e tão instruído, acrescentou,
passado um momento, tirando a ponta do nariz de dentro do copo: “Entendamo-nos: o meu filho,
verdadeiramente, é um idealista... mas, nestes tempos, o que é um idealista? Um parvo. Talvez não por culpa
dele, talvez por culpa das circunstâncias, mas mesmo assim um parvo.”
Entretanto caía a tarde, o sol escondera-se por trás das montanhas e, por fim, uns de um lado, outros do
outro, todos se levantaram da mesa. O s homens foram jogar as cartas em casa de Filippo, os camponeses
voltaram para o trabalho e nós, as mulheres, começamos a levantar a mesa. Lavamos a louça numa celha cheia
de água, ao pé do poço, e depois fizemos uma pilha de pratos, que eu levei para os aposentos que Filippo e a
família ocupavam na casinha do meio. Era uma casa de dois pisos; para o segundo piso subia-se por uma
escada exterior. Fiquei surpreendida quando entrei: Filippo e os amigos estavam sentados no chão, no meio da
sala, de chapéu na cabeça e cartas na mão: jogavam o scopone. Em toda a volta não havia móveis, mas sim
colchões enrolados e arrumados aos cantos e muitos sacos. N ão sei quantos seriam, mas devo reconhecer que,
pelo menos em relação às provisões, Filippo aplicara as suas ideias e procedera como esperto, e não como
parvo. Havia ali sacos de farinha de trigo, empoeirados de branco, sacos de farinha de milho, estes empoeirados
de amarelo, uns sacos menores que deviam conter feijão, grão-de-bico, lentilhas, ervilhas. Havia também várias
caixas, sobretudo com conserva de tomate; na janela estavam dependurados dois presuntos e em cima dos
sacos viam-se alguns queijos. Vi também numerosos boiões com banha e tapados com papel, garrafões de
azeite, dois garrafões de vinho e, pendentes do teto, muitas salsichas caseiras. Em resumo, havia ali dentro o
essencial para fazer comida, porque, quando há farinha, gordura e tomate, por muito mal que corram as coisas,
pode-se arranjar sempre um prato de massa.
Como disse, Filippo e os amigos jogavam o scopone no meio da sala; a mulher e a filha, uma ao pé da outra,
estavam em cima dum colchão, recostadas, meio despidas, tontas com o calor e a digestão. Filippo, assim que
me viu entrar, disse, sem levantar os olhos das cartas: “Vês, Cesira, estamos bem instalados cá em cima... vai
pedir a Paride que te mostre o teu quartinho... verás que ficas lá como uma abadessa.”
N ão respondi, pousei os pratos no chão e saí em busca de Paride para resolver o problema do alojamento.
Encontrei-o a partir lenha junto da cabana e disse-lhe que desejava ver o quarto que me prometera. Ele
apoiando num cepo de madeira o pé calçado com um tamanco e tendo na mão o machado, ouvia-me por baixo
da aba do chapéu preto. D epois pronunciou: “Bem, Tommasino fala como se fosse o dono, mas o verdadeiro
dono aqui sou eu... primeiro disse-te que sim, mas agora, pensando bem, tenho receio de não poder dispensar-
te aquele quarto... a Luísa trabalha lá todo o dia no tear... o que vão fazer vocês durante esse tempo?...
Naturalmente não podem andar pelos campos.”
Compreendi que ele não se fiava muito em nós, como autêntico camponês; então tirei da bolsa uma nota de
500 liras e entreguei-lha, dizendo: “Tens medo que não te pague?... Estão aqui 500 liras, dou-as já por conta;
quando me for embora, pagarei o resto.”
Ele calou-se e agarrou no dinheiro; mas agarrou-o duma maneira especial, que vou descrever, porque tem
importância para se compreender a mentalidade dos camponeses da montanha. Pegou na nota, aproximou-a do
ventre com as duas mãos e ficou a olhá-la com uma admiração profunda e embaraçada, como se fosse um
objeto estranho, voltando-a de um lado e outro. Mais tarde vi-lhe fazer os mesmos gestos sempre que lhe
chegava dinheiro às mãos e compreendi porquê.
Eles quase nunca veem dinheiro, pois fazem em casa tudo o que precisam, mesmo o vestuário, e o pouco
dinheiro de que dispõem obtêm-no com a venda dos molhos de lenha que levam ao vale, à cidade, durante o
I nverno; assim, o dinheiro para eles é uma coisa rara e preciosa, mais que dinheiro, quase um deus. N a
realidade, estes camponeses da montanha, junto dos quais passei tanto tempo, não são religiosos nem sequer
supersticiosos e para eles a coisa mais importante do mundo é o dinheiro: um pouco porque nunca o têm e
nunca o veem, e um pouco também porque com o dinheiro, pelo menos assim julgam, se obtém tudo quanto é
bom. É o que pensam e eu, como comerciante, não posso deixar de lhes dar razão.
Por fim, depois de ter contemplado bem a minha nota, declarou: “S e não te importas com o barulho do tear,
podes ficar no quartinho.”
S egui-o até à casa dele, que ficava à esquerda do lugarejo, encostada, como todas as outras, ao muro de
suporte do socalco. A o lado da casita de dois pisos havia uma pequena construção, apoiada à parede rochosa,
com o telhado de telhas, uma portinha e uma janela sem vidros. Entramos e vi que, como ele me avisara,
metade do quarto estava ocupada pelo tear, um tear antigo, todo de madeira. N a outra metade, uma espécie de
tarimba, quero dizer, dois cavaletes de ferro sustentando algumas tábuas postas ao comprido e em cima um
saco de tecido grosseiro cheio de palha de milho. Lá dentro, a custo se podia andar direito sob o teto inclinado:
a parede do fundo era a rocha nua e as outras tinham várias teias de aranha e manchas de umidade. Baixei os
olhos para o chão. N ão havia tijolos nem pedras, só terra, tal qual como um estábulo. Paride disse, coçando a
cabeça: “É este o quarto... vê se podes instalar-te.”
Rosetta, que nos seguia, perguntou em tom de espanto: “mamãe, vamos dormir aqui?”
Mas eu mandei-a calar, respondendo: “Em tempo de guerra não se limpam armas.”
Depois, voltando-me para Paride: “Não tenho lençóis, me dás?”
Começamos a discutir, ele não queria dar os lençóis, que pertenciam ao enxoval da mulher, mas por fim
combinamos que lhe pagaria um tanto pelo aluguer dos lençóis. N ão tinha cobertores, mas prometeu-me, em
vez dum cobertor, o seu capote preto, pagando eu o aluguel, claro. E foi assim para tudo o mais: a bacia de
cobre da água para nos lavarmos, as toalhas de mãos, as louças, até uma cadeira em que pudéssemos sentar-
nos, uma de cada vez, tudo foi arrancado com unhas e dentes e tudo foi obtido somente depois de lhe prometer
o pagamento do aluguel de cada objeto. Por fim perguntei lhe onde podíamos cozinhar e respondeu-me que na
cabana, onde eles também cozinhavam.
disse-lhe então: “Bem, vamos lá ver essa cabana, para fazer uma ideia.”
A ideia fui-a fazendo logo, enquanto seguia a caminho da cabana, situada um pouco mais abaixo, no socalco
imediato. Era uma cabana com chão de pedra solta e telhado de palha em forma de barco virado ao contrário,
de quilha para cima. Eu conhecia estas cabanas; na minha aldeia metem-se nelas as alfaias e os animais; podem
construir-se num só dia se se trabalhar com vontade. Primeiro faz-se a parede, colocando-se as pedras umas
sobre as outras, ajustando-as bem, sem cal.
D epois erguem-se nas duas extremidades do recinto, que tem forma oval, dois ramos bifurcados. S obre eles
coloca-se horizontalmente um pau comprido. Por fim, em camadas sobrepostas, poe-se palha dos dois lados,
em feixes unidos por vimes, até se obter uma espessura suficiente. N ada de janelas, e a porta é constituída por
duas pedras direitas, os umbrais, e uma horizontal, a arquitrave, e é sempre bastante baixa, o que obriga as
pessoas a dobrarem a espinha para a transpor. A cabana de Paride era semelhante em tudo às da minha aldeia.
Perto da porta, e pendurado num prego, estava um balde cheio de água com uma cucharra. A ntes de entrar,
Paride pegou na cucharra, bebeu e depois deu-me para eu beber também.
Entramos. D urante um momento foi como se estivesse cega, porque não havia janelas e Paride fechara a
única porta atrás de si. D epois ele acendeu uma lamparina de azeite e então, a pouco e pouco, comecei a ver. O
chão parecia de terra batida, no meio havia uma fogueira moribunda e um tripé de ferro sobre o qual estava
pousada uma panela toda negra. Levantei os olhos: em cima, no escuro, pendiam fieiras de salsichas e
chouriços de sangue postos ali a curar e também numerosos penduricalhos de fuligem, negros e leves, que
faziam lembrar as decorações duma árvore de Natal, mas uma árvore de Natal ornamentada de luto.
Em volta do fogo havia alguns cepos dispostos em círculo e, sentada num deles, admirei-me de ver uma
velha muito velha, de rosto parecido com a lua minguante, só nariz e queixo, a fiar no seu fuso, completamente
às escuras. Era a mãe de Paride e acolheu-me com estas palavras: “Muito bem, senta-te, disseram-me que és
uma senhora de Roma... isto não é um salão de Roma, mas uma cabana... tens de contentar-te, por agora... vem
cá, senta-te aqui...”
Eu, para dizer a verdade, não tinha vontade nenhuma de me sentar num daqueles cepos estreitos e pouco
faltou para perguntar onde estavam as cadeiras; mas contive-me a tempo. Mais tarde descobri que nunca há
cadeiras nas cabanas; tem-nas em casa, consideram-nas um luxo que só se usa nas festas e nos acontecimentos
solenes, como casamentos, funerais ou outros semelhantes; para não se estragarem, penduram-nas no teto,
viradas ao contrário, como se fossem presuntos. Um dia em que entrei na casa de Paride bati com a cabeça
numa cadeira e pensei cá com os meus botões que me encontrava numa terra deveras atrasada.
A cabana estava agora toda iluminada e eu podia ver que era mesmo um lugar próprio para animais: fria e
escura, com o chão lamacento e as pedras da parede e a palha do teto completamente negras e pegajosas da
fuligem. O ar estava saturado do fumo daquele lume moribundo, naturalmente porque a lenha era verde; e o
fumo, à falta de janelas, acumulava-se lá dentro, só saindo a muito custo pelas frinchas do teto; passado pouco
tempo, Rose a e eu começamos a tossir e a lacrimejar. N essa altura descobri, deitados e quase escondidos na
ampla saia da velha, um feio cão mestiço e um velho gato já sem pelo, os quais, até parece impossível, também
choravam, coitadinhos, como se fossem cristãos, por causa daquele fumo tão acre e pungente: mas choravam
sem se mexer, de olhos abertos, sinal de que estavam habituados.
Eu não gosto nada de porcaria e a minha casa em Roma, embora modesta, quanto a limpeza era um
verdadeiro espelho. Por isso, vendo aquela cabana, o coração constrangeu-me ao pensar que, dali em diante,
Rose a e eu tínhamos de cozinhar, comer e viver ali dentro, como duas cabras ou duas ovelhas. D isse, como se
pensasse em voz alta: “Ainda é uma sorte ser por poucos dias, só enquanto não chegam os Ingleses...”
E Paride: “Porquê, a cabana não te agrada?”
Respondi: “Na minha aldeia metem-se os animais nestas cabanas.”
Paride era um tipo curioso, como descobri em seguida, insensível e sem amor-próprio, por assim dizer.
Retorquiu, esboçando um sorriso estranho: “E aqui vivem os cristãos.”
A velha disse, na sua voz estridula de cigarra: “N ão te agrada a cabana, hem... Mas sempre é melhor do que
estar no meio dum prado. S abes lá quantos desses pobres soldados que estão na Rússia, maridos das mulheres
daqui, não se importariam de voltar para viver toda a vida numa cabana como esta... Mas não voltam, matam-
nos a todos, e nem lhes dão sepultura de cristãos, porque na Rússia já não conhecem Cristo nem a Virgem.”
Fiquei surpreendida com previsões tão sombrias; Paride esboçou um sorriso e disse: “A minha mãe vê tudo
pelo pior porque é velha, está aqui sozinha todo o dia e ainda por cima é surda.”
Depois, levantando a voz: “Mas quem te disse que não voltam? Voltam, com certeza, agora é uma questão de
dias.”
A velha resmungou: “Não só eles não voltam, mas também nos matam a nós, com os aviões.”
D e novo Paride sorriu, como se o caso fosse para rir; mas eu, assustada com tanto pessimismo, disse à
pressa: “Bem, havemos de nos tornar a ver... adeus.”
E ela, com a sua voz de mau agouro: “Tornaremos a ver-nos, não tenhas medo, pois não voltas para Roma
tão depressa e talvez mesmo nunca mais lá tornes...”
Com este remate, Paride riu então a valer, mas eu pensei que aquilo não tinha graça nenhuma e
mentalmente fui fazendo esconjuros contra o mau-olhado.
A quela tarde passeia a limpar o casebre onde estava a nossa cama e onde não imaginava que tivéssemos de
viver muito tempo. Varri o chão, raspando da terra nua a porcaria acumulada durante anos e anos, dei a Paride,
para os pôr noutro sítio, não sei quantos sachos e enxadas amontoados nos cantos, tirei as teias de aranha das
paredes. A seguir, arrumei a cama a um canto, contra a parede de rocha, ajustei as tábuas nos cavaletes, dei
uma sacudidela ao saco de palha de milho, pus os lençóis, muito lindos, de linho forte tecido à mão, brancos da
barrela, em cima dos quais estendi como cobertor o capote preto.
A mulher de Paride, Luísa, aquela loura que já descrevi, de rosto fechado, olhos azuis e cabelos ondulados,
sentara-se ao fundo, em frente do tear, e manobrava-o para cima e para baixo, com braços fortes e musculosos,
sem parar, fazendo um barulho incrível que me obrigou a dizer-lhe: “Mas o quê, estarás sempre aqui dentro a
fazer esse banzé?”
Ela respondeu, rindo: “S ei lá quanto tempo aqui estarei... tenho de tecer pano para fazer calças a Paride e
aos rapazes.”
Exclamei: “Pobres de nós, vamos ficar surdas.”
E ela: “Eu ainda não estou surda... verás que te habituas.”
Enfim, esteve ali cerca de duas horas, sempre a manobrar o tear, para cima e para baixo, com aquele barulho
seco e sonoro de madeira a bater uma na outra; nós as duas, depois de arrumarmos tudo, sentamo-nos. Rose a
na cadeira que eu alugara a Paride e eu sobre a cama, e assim ficamos, a ver Luísa tecer, como duas palermas,
de boca aberta, sem fazer nada.
Luísa não era faladora, mas respondeu de boa vontade às nossas perguntas.
A ssim, soubemos que de tantos homens que havia na aldeia antes da guerra, Paride foi o único que ficou,
por ter dois dedos a menos na mão direita. Os outros andavam longe, quase todos na Rússia.
“A não ser eu”, disse Luísa com um sorriso ambíguo, num tom quase de regozijo, “todas as mulheres daqui
é como se fossem já viúvas.”
A dmirei-me e, supondo que Luísa fosse tão pessimista como a sogra, opus: “Mas porque hão de morrer
todos? Estou certa de que alguns voltam.”
Luísa abanou a cabeça, sorrindo: “N ão me compreendeste. S e não acredito que voltem, não é porque os
matem a todos, mas sim porque às mulheres russas agradam os nossos homens. O
estrangeiro agrada sempre, já se sabe... Q uando a guerra acabar, essas mulheres são capazes de os
convencer a ficar por lá, e então ninguém mais os vê.”
Em suma, ela encarava a guerra como uma questão entre fêmeas e machos; e via-se que estava muito
satisfeita por conservar o seu macho graças àqueles dois dedos a menos, enquanto as outras, por causa das
fêmeas russas, os perdiam.
Falamos também dos Festas e disse-me que Filippo conseguira que o filho não fosse para a guerra à custa de
recomendações e favores: mas os camponeses, como não têm dinheiro nem conhecimentos, tiveram de marchar
e talvez deixassem lá a pele. Recordei então as palavras de Filippo sobre as duas categorias em que se dividia o
mundo, parvos e espertos, e compreendi que também neste caso se comportara como esperto.
Q uando D eus quis, veio a noite e Luísa parou com aquele barulho do tear e foi preparar a ceia. N ós as duas
estávamos tão cansadas que ficamos no mesmo sítio durante uma hora, sem nos movermos, sem falarmos, eu
sentada na cama e Rose a na cadeira, junto da cabeceira. A candeia de azeite dava uma luz fraca e com essa luz
o quartinho parecia mesmo uma espelunca: eu olhava para Rosetta.
Rose a olhava para mim, e os nossos olhares exprimiam sempre coisas diferentes e não falávamos porque
nos compreendíamos muitíssimo bem só com o olhar e sabíamos que as palavras eram supérfluas e nada
podiam acrescentar ao que os nossos olhos diziam. O s de Rose a significavam: “mamãe, o que vamos fazer?...
Tenho medo... Onde viemos nós parar?...”, e assim por diante. Os meus respondiam: “Filha da minha alma, está
tranquila, me tens aqui ao teu lado, não tenhas medo...”, e outras coisas parecidas.
A ssim, em silêncio, trocamos muitas e muitas reflexões; por fim, a concluir esta desesperada conversa,
Rose a encostou a cadeira à cama e pôs a cabeça no meu regaço, abraçando-me os joelhos; eu, sempre em
silêncio, comecei a acariciar-lhe os cabelos devagarzinho. Ficamos assim talvez meia hora; depois a porta abriu-
se, alguém a empurrava, e logo, muito em baixo, apareceu a cabeça dum rapazinho, era D onato, o filho de
Paride: “O pai manda perguntar se querem comer conosco.”
N ão tínhamos muita fome depois de toda aquela comezaina do almoço, à mesa de Filippo; mas aceitei o
convite porque me sentia de fato cansada e deprimida e não me agradava nada a ideia de passar o serão sozinha
com Rosetta, naquele casebre tão triste.
S eguimos portanto D onato, que nos precedia quase a correr, como se visse no escuro, tal qual os gatos, e
chegamos à cabana situada no socalco mais abaixo.
Encontramos Paride rodeado de quatro mulheres: a mãe, a mulher, a irmã e a cunhada. Estas últimas
tinham cada uma três filhos, mas os maridos estavam ausentes, eram soldados e tinham-nos mandado para a
Rússia. A irmã de Paride chamava-se Giacinta; era também morena e tinha uns olhos desvairados, de brilho
intenso, e rosto largo, de expressão dura: parecia possessa e só falava com aspereza, sempre para repreender os
três filhos, que lhe agarravam às saias, como cãezinhos em roda duma cadela, e não faziam senão choramingar;
algumas vezes nem lhes falava, limitava-se a bater-lhes em silêncio, duramente, de punho fechado, na cabeça.
A cunhada chamava-se A nita e era mulher dum irmão de Paride que, em tempo de paz, morava para os lados
de Cisterna; era morena e pálida, magra, de nariz aquilino, olhos serenos, expressão calma e meditativa. A o
contrário de Giacinta, que quase metia medo, A nita dava uma impressão de tranquilidade e doçura. Também
tinha os filhos em sua volta, não agarrados às saias, mas sentados nos bancos, com muito propósito e educação,
esperando em silêncio e sem impaciência que lhes dessem de comer.
Q uando entramos, Paride disse-nos, com aquele seu sorriso estranho, meio embaraçado e meio sonsa:
“Pensamos que estavam sozinhas e talvez quisessem jantar conosco...”
A crescentou, passado um momento: “Enquanto não chegarem as vossas provisões, podem comer na nossa
companhia: depois faremos contas.”
Em suma, dava-nos a entender que não era de graça, mas eu fiquei-lhe igualmente agradecida, pois sabia
que eram pobres e havia carestia. J á representava muito que quisessem dar-nos de comer a troco de dinheiro,
pois, em tempos de escassez, quem tem algumas provisões guarda-as para si e não as reparte com outros por
dinheiro nenhum.
Enfim, lá nos acomodamos e Paride acendeu um candeeiro de acetilene; uma linda luz branca iluminou-nos
a todos, sentados nos bancos e nos cepos em volta do tripé, em cima do qual fervia uma pequena panela.
Éramos só mulheres e crianças à exceção de Paride, o único homem. A nita, a cunhada, não sem melancolia,
pois, como já disse, tinha o marido na Rússia, brincou, a propósito: “D eves estar contente, Paride, rodeado de
tantas mulheres: és um felizardo.”
Paride respondeu com um melo sorriso: “Fortuna que dura pouco.”
Mas a velha mãe, sempre pessimista, imediatamente o rebateu: “Pouco? N ós ainda acabamos primeiro do
que a guerra.”
Entretanto Luísa pôs em cima da mesa bamboleante uma terrina de barro; depois pegou num pão e,
encostando-o ao peito, rapidamente, com uma faca afiada, começou a cortar fatias delgadas até a terrina ficar
completamente cheia. Então, tirou do fogo a panela e deitou o conteúdo por cima das fatias sobrepostas: era a
sopa que costumávamos comer em casa de Concetta, isto é, uma papa de pão com caldo de feijões.
Enquanto esperávamos que o pão aboborasse bem, Luísa pôs no chão, no meio da cabana, um grande
alguidar e nele deitou a água duma caldeira que estava a aquecer no borralho, junto do tripé. Então, todos
começaram a tirar os tamancos, sem pressas e com certa gravidade, como se executassem um rito, que se
repetia todas as noites e sempre da mesma forma. Eu, ao princípio, não compreendi, mas depois, quando vi
Paride, que foi o primeiro a meter o pé nu, todo negro de terra entre os dedos e em volta do calcanhar, na água
do alguidar, percebi: nós, na cidade, antes de comer lavamos as mãos; eles, coitados, como andam o dia inteiro
na lama dos campos, lavam os pés. Mas, como todos se lavam no mesmo alguidar, sem mudar a água, pode
imaginar-se como ficou aquela água, depois de mergulharem nela tantos pés, incluindo os das crianças: da cor
do chocolate. S ó nós as duas não nos lavamos e um dos meninos perguntou ingenuamente: “Porque não se
lavam?”
A o que a velha, que também não se lavara, respondeu, taciturna: “S ão senhoras de Roma. N ão trabalham a
terra como nós.”
Entretanto a sopa já estava pronta; Luisa levou dali o alguidar cheio de água suja e pôs no meio a mesa com
a terrina. Começamos a comer todos juntos, cada qual metendo a sua colher na sopa. Creio que Rose a e eu
não comemos mais do que duas ou três colheradas cada uma; mas os outros deram-lhe com tanta gana,
especialmente as crianças, que daí a pouco a terrina estava vazia e compreendi, pelas caras um pouco
desiludidas e ainda ávidas, que muitos tinham ficado com fome.
Paride distribuiu a seguir uma mancheia de figos secos a cada um: em seguida tirou dum buraco da parede
da cabana uma garrafa de vinho e serviu todos, até as crianças, sempre pelo mesmo copo, Um após outro,
íamos bebendo e de cada vez Paride limpava o rebordo do copo à manga, enchia-o de vinho com cuidado e
oferecia-o, pronunciando em voz baixa o nome da pessoa a quem se destinava: parecia que estávamos na igreja.
O vinho era áspero, quase vinagre, vinho da serra, claro, mas vinho de uvas, lá disso podíamos ter a certeza.
Terminada a refeição, que decorreu em silêncio, as mulheres retomaram a roca e o fuso e Paride, à luz do
acetilene, começou a rever o exercício de aritmética do filho Donato.
Paride era analfabeto, mas sabia um pouco de contas e queria que o filho as aprendesse também. Parece-me,
porém, que D onato, um garoto de cabeça grande e cara simples e sem expressão, era bastante estúpido, porque
depois de várias vezes ter tentado em vão ensinar-lhe não sei que problema, Paride zangou-se e deu-lhe um
forte murro na cabeça, dizendo: “Parvalhão!”
O punho ressoou como se a cabeça fosse de madeira, mas o garoto não deu mostras de contundido e
começou, muito calado, a brincar no chão com o gato.
Perguntei então a Paride por que razão tomava tanto a peito que o filho aprendesse aritmética, se, tal como
ele, não sabia ler nem escrever. E compreendi que, em sua opinião, os números eram importantes e as letras
não, pois os números serviam ao menos para se contar o dinheiro, enquanto as letras não serviam para nada.
Q uis descrever este nosso primeiro serão com os Morrone (assim se chamava a família, porque, uma vez
descrito o primeiro, ficam descritos todos os que se seguiram, rigorosamente iguais, e também porque naquele
dia comi de manhã com os refugiados e à noite com os camponeses, ficando assim em condições de notar as
diferenças entre ambos os grupos. D igo a verdade: os refugiados eram mais ricos, pelo menos alguns; com eles
comia-se melhor; sabiam ler e escrever; não traziam tamancos nos pés e as mulheres andavam vestidas como
mulheres da cidade. N o entanto, desde esse primeiro dia, e depois cada vez mais, preferi sempre os
camponeses aos refugiados. Esta preferência devia-se não só ao fato de eu ter sido camponesa antes de ser
comerciante, mas sobretudo à estranha sensação que experimentava junto dos refugiados, em especial se os
comparava aos camponeses: era gente a quem a instrução só servira para os tornar piores. Um pouco como
acontece com certos rapazes turbulentos que, mal entram na escola e aprendem a escrever, a primeira coisa que
fazem é cobrir as paredes de palavrões. Enfim, em minha opinião, não basta instruir, é preciso sobretudo
ensinar a fazer bom uso da instrução.
Q uando todos cabeceavam com sono e algumas crianças tinham mesmo adormecido, Paride levantou-se e
anunciou que iam deitar-se. S aímos da cabana e despedimo-nos, desejando uns aos outros boa noite; depois,
Rose a e eu ficamos sozinhas, na beira do socalco, contemplando no escuro o ponto onde sabíamos que ficava
Fondi. N ão se via nenhuma luz; tudo era negrume e silêncio; como únicas coisas vivas, as estrelas a brilhar lá
no alto, num céu completamente negro, como outros tantos olhos de ouro que nos olhassem e soubessem tudo
a nosso respeito, enquanto nós não sabíamos nada delas. Rosetta disse-me baixinho: “Que linda noite mama!”
Perguntei-lhe se estava contente por ter vindo para ali e ela respondeu que se sentia sempre contente ao pé
de mim. Estivemos ainda alguns momentos a contemplar a noite, depois ela puxou-me pela manga e
murmurou que queria rezar e agradecer à Virgem por termos chegado lá acima sãs e salvas. D isse-o baixinho,
como se receasse ser ouvida, e eu admirei-me e perguntei: “Aqui?”
Ela acenou que sim com a cabeça e depois deixou-se cair de joelhos na beira do socalco, sobre a erva,
obrigando-me a fazer o mesmo. N ão me desagradou aquela iniciativa; Rose a, por assim dizer, interpretava o
meu sentimento nessa noite tão silenciosa e tranquila, depois de tantos trabalhos e fadigas: um sentimento de
gratidão por alguém ou alguma coisa que nos auxiliara e protegera. A ssim, obedeci-lhe de boa vontade, juntei
também as mãos e, movendo rapidamente os lábios, recitei a oração que é costume recitar antes de ir para a
cama. Há tempos já que não rezava, não o fazia desde que me entregara a Giovanni, e se não rezara mais desde
esse dia é porque me considerava em pecado; mas, por outro lado, não sei porque, não me sentia inclinada a
reconhecê-lo. A ssim, em primeiro lugar, pedi perdão a J esus pelo que tinha feito com Giovanni e prometi
nunca mais o fazer. Em seguida, talvez sugestionada por aquela noite tão vasta e tão negra, que encerrava
tantas vidas e tantas coisas sem se ver nada, rezei por todos, por mim e por Rose a, pela família de Festa e pela
de Paride, e ainda pela gente que estava espalhada pelas montanhas naquele instante, pelos I ngleses, que
viriam libertar-nos, e por nós, I talianos, que sofríamos, e ainda pelos A lemães e pelos fascistas, que nos faziam
sofrer, mas que também eram cristãos.
Confesso: à medida que, quase contra a minha vontade, a oração se alongava, sentia-me comovida e tinha os
olhos rasos de lágrimas, e, embora pensasse que isso talvez fosse por efeito do cansaço, dizia de mim para mim
que era bom um tal sentimento e ainda bem que o experimentava. Rose a rezava de cabeça inclinada; depois,
subitamente, apertou-me um braço e exclamou: “Olha, olha.”
O lhei e vi, no fundo da noite, subir no espaço um risco luminoso, que, ao atingir grande altura, se
transformou numa flor verde e caiu em seguida, lentamente, iluminando por instantes os montes em volta, os
bosques e até, parece-me, as casas de Fondi. S oube mais tarde que aquelas luzes verdes tão lindas eram
foguetes e serviam para iluminar na noite a frente de batalha e descobrir no escuro os pontos que deviam ser
atingidos pelos tiros dos canhões e as bombas dos aviões. N aquele momento, porém, pareceu-me um bom
augúrio, como que um sinal da Virgem a dar-me a entender que ouvira a minha prece e estava disposta a
atendê-la.
Q uis falar desta oração, sobretudo, para dar uma ideia do caráter de Rose a, que até agora não descrevi.
Mais tarde, devido à guerra, esse caráter ficou diferente como o dia da noite, e por isso quero dizer como era
Rose a nessa altura, no momento em que chegamos ao cimo daquele monte, pelo menos como até então me
parecia que fosse. A s mães, já se sabe, nunca conhecem os filhos; mas esta é a ideia que eu fazia de Rose a e
mesmo hoje, que ela, como disse, mudou do branco para o negro, penso que essa ideia não estava errada.
Eu educara Rose a com todo o cuidado, como filha de gente rica, procurando mantê-la na ignorância de
todas as ruindades do mundo e, tanto quanto me era possível, afastando-a delas. N ão sou o que se chama uma
mulher muito religiosa, embora seja praticante: em mim a religião sobe e desce e dá voltas; por exemplo,
naquela noite, no socalco, pareceu-me acreditar sinceramente, ao passo que noutras ocasiões, como nos dias em
que tivemos de fugir de Roma, não acredito mesmo nada. Mas, seja como for, a religião não me faz perder de
vista a realidade, que é o que é e, por mais que os padres se esforcem em explicá-la, muitas vezes contradiz,
ponto por ponto, as suas afirmações. Mas com Rose a as coisas passavam-se doutro modo. N ão sei se pelo fato
de a ter confiado às freiras, como semi-interna, até os doze anos, ou por sua natural tendência, o certo é que
Rose a era profundamente religiosa, duma maneira absoluta, sem hesitações nem dúvidas, tão segura e
convencida, por assim dizer, que nunca falava no assunto e talvez nem sequer pensasse nele: para ela a religião
era como o ar que se respire, que entra e sai dos pulmões sem darmos sequer por isso.
É difícil para mim explicar agora, depois de tudo quanto se passou, o que era Rose a no tempo da nossa
fuga de Roma. Limitar-me-ei a dizer que de vez em quando me sucedia pensar que ela era perfeita. Era de fato
um desses seres a quem nem mesmo os mais maldizentes conseguem atribuir qualquer defeito.
Rose a era boa, franca, sincera, desinteressada. Eu tenho mudanças bruscas de humor, sou capaz de me
enraivecer, de gritar, até de bater, pois às vezes perco a cabeça. Mas Rose a nunca me respondeu mal, nunca
me guardou rancor, mostrou-se sempre, em suma, uma filha perfeita. A sua perfeição, porém, não residia
apenas em não ter defeitos: manifestava-se também no fato de fazer e dizer sempre o que era justo, o que devia
fazer e dizer. Muitas vezes quase me assustava e dizia tenho uma filha santa! E na verdade havia razão para
pensar que fosse santa. Comportar-se tão bem e de forma tão perfeita, não tendo nenhuma experiência da vida
e sendo, no fundo, uma criança, é só próprio dos santos. Ela não fizera ainda mais nada na vida senão viver
comigo; depois de educada no pensionato, ajudava-me no arranjo da casa e algumas vezes também na loja; mas
comportava-se como se tivesse feito tudo e conhecesse tudo. A gora penso, porém, que aquela perfeição, que me
parecia quase incrível, resultava da inexperiência e da educação que lhe tinham dado as freiras.
I nexperiência e religião, fundidas, formavam uma perfeição que eu julgava sólida como uma torre e, ao
contrário, era frágil como um castelo de cartas. Em suma, não levava em conta que a verdadeira santidade é
feita de conhecimento e de experiência, muito embora dum gênero particular, e não pode resultar da candura e
da ignorância, como era o caso de Rose a. Mas que culpa tive eu? Criei-a com amor; e, como todas as mães
deste mundo, tive o cuidado de lhe ocultar as coisas ruins da vida; pensava que, quando saísse de casa, quando
casasse, essas coisas as conheceria até depressa de mais. N ão contei com a guerra, que nos obriga a conhecer
tudo, ainda que não queiramos, e nos força a ter experiência antes do tempo, duma maneira que não é natural,
mas cruel. A ssim, a perfeição de Rose a era própria para tempos de paz, com a loja a marchar bem, eu a juntar
uns cobres para o seu dote e um rapaz ajuizado que gostasse dela, com quem casasse e de quem tivesse filhos; e
assim, depois de ter sido uma criança perfeita e uma rapariga perfeita, seria também uma mulher perfeita. Mas
não é este gênero de perfeição que se requer na guerra, a qual exige outras qualidades, não sei quais, mas não as
de Rosetta.
Mas, adiante. Por fim, levantamo-nos e caminhamos ao longo do socalco, no escuro, para a nossa cabana.
Passamos por baixo da janela de Paride e ouvi que Paride e os seus não tinham ainda adormecido, mexiam e
falavam lá dentro em voz baixa, como as galinhas no poleiro que se agitam antes de dormir. D epois, eis o nosso
casebre encostado à casa e ao socalco, com a portinha de tábuas, o telhado inclinado e o janelico sem vidros.
Empurrei a porta e encontramo-nos no escuro.
Mas tinha comigo fósforos e acendi primeiramente um coto de vela; em seguida, com uma tire de pano
rasgada dum lenço, fiz uma torcida que pus na candela de azeite. A esta luz clara, mas triste, sentamo-nos as
duas na cama e eu disse a Rosetta: “Tiremos apenas a saia e a blusa. Só temos os lençóis e este capote de Paride;
se nos despirmos, naturalmente teremos frio.”
E assim fizemos. Em saia de baixo, uma apôs outra, metemo-nos na cama.
O s lençóis, de linho tecido à mão, pesados e frescos, eram a única coisa normal naquela cama que
verdadeiramente não era cama. Mal me mexia, sentia logo as folhas de milho rangerem debaixo de mim,
abrirem-se em dois montinhos separados, e, através do pano fino do saco, os meus ossos tocarem nas tábuas
auras. N unca na minha vida dormira num leito assim, nem em criança, na aldeia, onde havia leitos normais,
com colchão e enxergão. A certa altura fiz qualquer movimento e não só as folhas se abriram, mas também as
tábuas e lá vou eu por ali abaixo bater com os costados no chão. N o escuro, levantei-me, pus no seu lugar as
tábuas e o saco de palha e tornei a deitar-me, abraçando-me muito a Rose a, que me virara as costas e estava
toda enrolada, junto à parede.
Mas foi uma noite bastante agitada. N ão sei a que horas, talvez depois da meia-noite, acordei e ouvi um pio
muito fraco, ainda mais leve que o dos pássaros.
Vinha de baixo da cama e, por isso, daí a pouco acordei Rose a e perguntei-lhe se também ouvia. Ela
respondeu-me que sim. Então, acendi a candeia e espreitei. Vi logo que o que quer que fosse estava metido
numa pequena caixa que parecia conter apenas alguns ramos de camomila e hortelã. Mas, reparando melhor,
descobrimos, entre a camomila, um ninho feito de palha e de pelos e dentro dele oito ou dez ratos recém-
nascidos, mais ou menos do tamanho do meu dedo mínimo, cor-de-rosa, durinhos, quase transparentes.
Rose a disse logo que não os devíamos matar, era a primeira noite que passávamos lá em cima e matá-los
podia trazer-nos desgraça. Tornamos pois a meter-nos na cama e, mal ou bem, lá adormecemos novamente.
Mas eis que, passada uma hora, no escuro, começou a passear por cima da minha cara e do meu peito não sei o
quê macio e pesado. D ei um grande grito de medo; Rose a acordou de novo; acendemos a candeia e, por
coincidência, depois dos ratos um gato. D e fato, vimos um bonito gato preto, de olhos verdes, magro, mas novo
e lustroso, sentado aos pés da cama, a olhar-nos fixamente, pronto a saltar pela janelinha por onde entrara.
Rose a, porém, chamou-o a seu modo – tinha a paixão dos gatos e sabia tratar com eles – e o gato aproximou-
se, muito confiado; enfim, pouco depois estava também debaixo dos lençóis, a fazer ronrom. Este gato dormiu
conosco todo o tempo que estivemos em S anta Eufêmia e chamava-se Gigi. Tinha os seus hábitos, chegava
sempre depois da meia-noite, metia-se debaixo dos lençóis, entre nós as duas, e ficava ali até de madrugada. Era
meigo e afeiçoado a Rose a; mas se, durante o sono, uma de nós ousava fazer qualquer movimento,
imediatamente sentíamos o Gigi eriçar se todo no escuro, como para nos dizer: “O lá, não se pode dormir
tranquilo?!”
N aquela noite, depois de acordar por causa dos ratos e do gato, acordei ainda mais vezes e tive sempre
dificuldade em reconhecer onde estava. Uma vez ouvi um avião que voava baixo, muito lento, com um rumor
regular, grave e doce, como se andasse na água e não no ar, e pareceu-me que esse rumor me falava e dizia
coisas tranquilizadoras. Mais tarde explicaram-me que esses aviões se chamam cegonhas e andam de noite em
observação, por isso voam tão baixo; por fim habituei-me a eles, de tal modo que às vezes estava acordada de
propósito só para os ouvir e, se não os ouvia, ficava desiludida. Essas cegonhas eram aviões ingleses e eu sabia
que os Ingleses haviam de chegar um dia para nos libertar e permitir que regressássemos a casa.
CAPÍTULO IV

E assim começou a vida em S anta Eufêmia, que era o nome daquele lugarejo. Começou como se fosse
provisória, apenas para durar algumas semanas; mas, na realidade, prolongou-se por nove meses. D e manhã
dormíamos até tão tarde quanto podíamos, pois não havia nada que fazer; além disso, estávamos exaustas com
as privações e angústias que passáramos em Roma e, portanto, na primeira semana dormíamos às vezes doze e
catorze horas seguidas. Vamos para a cama cedo, acordávamos durante a noite, depois tornávamos a adormecer
e acordávamos novamente de madrugada, ferrávamos outra vez no sono e, quando já era dia, voltávamo-nos
para a rocha do socalco, de costas viradas para a luz que entrava pela janela e dormíamos até manhã alta.
N unca dormi tanto na minha vida e era um sono bom, profundo, saboroso como o pão feito em casa, sem
sonhos nem inquietações, um sono verdadeiramente repousante, de tal modo que de dia para dia
readquiríamos as forças que tínhamos perdido em Roma e em casa de Concetta.
A quele sono longo e pesado fazia-nos mesmo bem; de fato, ao fim duma semana, estávamos as duas
transformadas, os olhos vivos, sem olheiras, as faces cheias e coradas, a pele macia e lisa, a cabeça desanuviada.
N esse sono parecia-me que a terra em que nascera e que abandonara há tanto tempo me retomava no seu seio e
me comunicava a sua força, um pouco como sucede às plantas arrancadas e depois replantadas, que
imediatamente readquirem vigor e começam a dar folhas e flores.
O h, sim, somos plantas e não seres humanos, ou, melhor, mais plantas do que seres humanos, e é da terra
onde nascemos que vem toda a nossa força; se a abandonamos, não somos uma coisa nem outra, nem plantas
nem seres humanos, apenas leves farrapos que a vida atira para aqui e para ali, ao sabor do vento das
circunstâncias.
D ormíamos tanto e com tanto gosto que todas as durezas da vida lá em cima nos pareciam leves e as
enfrentávamos alegremente, quase sem darmos por elas, assim um pouco como um macho folgado e bem
alimentado que puxa dum só fôlego o seu carro por uma ladeira acima e, ao chegar ao fim, tem ainda forças
para um bom trote, como se nada fosse com ele. Mas, como já disse, a vida lá em cima era dura, em breve o
percebemos. Começava logo de manhã com as limpezas: era preciso, ao sair da cama, ter todo o cuidado para
não sujar os pés; por isso coloquei aqui e além algumas pedras lisas, para não nos enlamearmos nos dias de
chuva, quando o chão era um perfeito lamaçal. D epois tínhamos de ir tirar água do poço que ficava em frente
do nosso casinhoto. Enquanto durou o O utono, isso não foi difícil; mas no I nverno, como estávamos a quase
mil metros de altitude, a água gelava no fundo do poço, e todas as manhãs, quando deitava lá para dentro o
balde, as mãos se me inteiriçavam e a água que conseguia tirar era tão fria que até fazia parar a respiração. Eu
sou friorenta e por isso me limitava a lavar as mãos e a cara; mas Rose a, que preferia o frio à porcaria, punha-
se nua no meio do quarto e despejava por cima da cabeça o balde cheio de água gelada. Era tão robusta e sadia
a minha Rose a que a água lhe escorria pelo corpo como se a sua pele tivesse óleo e não ficavam senão algumas
gotas nos seios, nos ombros, no ventre e nas nádegas. D epois de vestidas, saíamos e começávamos os trabalhos
da cozinha.
Também aqui, enquanto durou o O utono e o bom tempo, as coisas não correram mal de todo; as
dificuldades começaram verdadeiramente no Inverno.
Tínhamos de ir ao mato mesmo debaixo de chuva, para cortarmos, com o auxilio de podões, alguns caniços e
arbustos. D epois íamos para a cabana e começava a loucura do fogo. A lenha verde e molhada não ardia, os
caniços faziam um fumo negro e denso, tínhamos de nos dobrar em duas, pôr a cara na lama do chão e soprar,
soprar, até que o fogo pegasse. Ficávamos enlameadas, com os olhos a arder, cheios de lágrimas, exaustas e
nervosas, e tudo isto para cozer, numa pequena panela, uma mancheia de feijões e um ovo... Comíamos como
os camponeses, isto é, uma primeira refeição muito ligeira, aí pelas onze horas, e mais tarde o verdadeiro
jantar, aí pelas sete. D e manhã comíamos umas papas de farinha de milho temperadas com unto de salsicha ou
então contentávamo-nos com uma cebola e um bocado de pão ou uma mancheia de alfarrobas; à noite
comíamos a sopa que já descrevi e um pedacinho de carne, quase sempre de cabra, nas suas três variedades:
cabra, bode e cabrito. D epois da refeição da manhã, não havia mais nada a fazer senão esperar pela refeição da
tarde. S e estava bom tempo, íamos dar um passeio; contornávamos a montanha, caminhando sempre no
mesmo socalco, e chegávamos por fim ao bosque; aí escolhíamos; um sítio bom e com sombra, debaixo duma
árvore, estendíamo-nos, na erva, e lá ficávamos toda a tarde diante do imenso panorama. Mas com o mau
tempo, que naquele I nverno durou meses inteiros, não saiamos do quartinho, eu sentada na cama e Rose a na
cadeira, sem fazermos nada, enquanto Luísa, como de costume, tecia no tear, com esse barulho de enlouquecer
de que atrás falei.
A s horas que ali passei com mau tempo, hei de lembrá-las toda a vida. A chuva não parava, compacta e
regular, eu sentia-a crepitar nas telhas, gorgolhar no cano da goteira antes de cair no poço; no quartinho, para
pouparmos o azeite, pois não tínhamos muito, estávamos quase às escuras, apenas com aquela luz, velada pela
chuva, que entrava pela janelinha, ou, melhor, devo antes chamar-lhe goteira, tão pequena era; e nós caladas,
pois não tínhamos coragem de falar nos assuntos habituais, que eram só dois: a carestia e a chegada dos
I ngleses. A ssim passavam as horas, naquele entorpecimento; eu tinha perdido já a noção do tempo e não sabia
em que mês nem em que dia estávamos; parecia-me até que ia ficando estúpida, já que não fazia uso da cabeça,
pois não havia nada em que pensar; sentia-me às vezes quase enlouquecer e, se não fosse Rose a, a quem,
como mãe, tinha de dar o exemplo, nem sei o que faria, talvez saísse para o campo a gritar, ou talvez
esbofeteasse Luisa, que parecia fazer todo aquele barulho com o tear de propósito para nos entontecer e tinha
sempre não sei que sorriso malévolo estampado na cara, como a dizer-nos: “Esta é a vida que nós, os
camponeses, fazemos habitualmente... agora também a têm de fazer vocês, belas damas de Roma... O que
dizem a isto? Agrada-lhes?”
O utra coisa me fez quase perder o juízo durante todo o tempo que ali estive: a estreiteza do lugar em que
vivíamos, especialmente comparado com a vastidão do panorama de Fondi. D e S anta Eufêmia víamos muito
bem todo o vale, sombreado por escuros laranjais, aqui e além salpicados pelas manchas brancas das casas. A
direita, para os lados de S perlonga, avistava-se uma nesga do mar e nesse mar havia a ilha de Ponza, que com
tempo claro víamos algumas vezes. S abíamos que em Ponza estavam os I ngleses, por isso essa ilha era para nós
o símbolo da liberdade. Entretanto, não obstante aquela vastidão da paisagem, continuávamos a viver e a
mover-nos e a esperar sobre aquele socalco comprido e estreito, tão estreito que, mal se davam quatro passos
em frente, nos arriscávamos a cair noutro socalco igual. Estávamos lá em cima como pássaros empoleirados
num ramo durante uma inundação, à espera do momento favorável de levantar voo para lugares enxutos. Mas
esse momento nunca mais chegava...
D epois daquele primeiro convite no dia da nossa chegada, os Festas convidaram-nos ainda algumas vezes,
mas muito mais friamente, até que, por fim, deixaram de nos convidar, pois, como disse Filippo, ele tinha
família, e, quando se trata de comida, deve-se pensar primeiro na família. Por sorte, passados poucos dias,
Tommasino chegou do vale, puxando pela rédea o seu burrico, carregado, é caso para dizer, como um burro,
com grande quantidade de embrulhos e malas.
Eram as nossas provisões, que ele mercadejara aqui e além, por todo o vale de Fondi, conforme a lista que
juntos elaboráramos. Q uem nunca se encontrou em condições semelhantes, com dinheiro que praticamente
não valia nada, estranho entre estranhos, no cimo duma montanha, e não sabe o que quer dizer a falta de
comida em tempo de guerra, não poderá compreender a alegria com que acolhemos Tommasino. São coisas que
é difícil explicar: normalmente, quem vive na cidade, onde há armazéns cheios de tudo, não acumula em casa
abastecimentos, pois sabe que em qualquer altura que precise vai às lojas e as encontra bem fornecidas.
A ssim, convence-se de que comprar nas lojas o que lhe faz falta é uma coisa absolutamente natural, tal
como as estações do ano, a chuva e o Sol, a noite e o dia.
Lérias. A s coisas podem faltar de repente, como faltaram de fato naquele ano, e então todos os milhões do
mundo não chegam para comprar um pedaço de pão, e sem pão morre-se de fome.
Tommasino chegou, todo ofegante, puxando pela cabeçada o jerico, que quase não podia mais, e disse-me:
“Comadre, tem aqui que comer pelo menos para seis meses.”
Em seguida fez-me entrega de tudo, verificando as coisas pelo que estava escrito no papel amarelo onde eu
fizera o rol. Lembro-me bem desse rol e cito-o aqui para se fazer uma ideia do que era a vida nesse O utono de
1943. A nossa vida, a minha e a de Rose a, estava confiada a um saco duns cinquenta quilos de farinha de trigo
para fazer o pão e a massa, a um outro saco mais pequeno de farinha de milho para fazer papas, a um saquinho
duns vinte quilos de feijão da pior qualidade, a alguns quilos de grão-de-bico, ervilhas e lentilhas, a cinquenta
quilos de laranjas, a um boião de banha com o peso de dois quilos e a dois quilos de salsichas.
Tommasino trouxera também um saquinho de frutos secos: figos, nozes e amêndoas, e uma boa quantidade
de alfarrobas, que habitualmente se dão aos cavalos, mas agora, como já indiquei, eram muito boas também
para nós.
Metemos tudo isso no casinhoto, a maior parte das coisas debaixo da cama, e depois fiz as contas com
Tommasino. Vi que os preços, numa só semana, tinham subido quase trinta por cento. Muitos pensariam que
Tommasino os fizera subir, pois ele, para arranjar dinheiro, era até capaz de fazer moeda falsa, mas eu, que sou
comerciante, quando lhe ouvi dizer que os preços tinham subido, acreditei-o logo, pois sabia por experiência
própria que não podia deixar de ser assim. E, se as coisas continuassem a correr como corriam, isto é, os
I ngleses parados em Garigliano e os A lemães a arrebanharem tudo, a meterem medo a toda a gente,
impedindo-a de trabalhar, os preços subiriam ainda mais e talvez atingissem as estrelas. S ucede assim em
tempo de carestia: todos os dias os produtos se tornam mais raros, todos os dias, no mercado, diminui o
número de pessoas que têm dinheiro suficiente para comprar e, por fim, pode suceder até que ninguém mais
venda e ninguém mais compre e todos, com dinheiro ou sem ele, morram de fome.
A creditei em Tommasino quando ele me disse que os preços tinham subido e paguei sem protestar; além
disso, também pensei que um homem como ele, ávido bastante para afrontar os perigos da guerra na ânsia da
ganhuça, era um verdadeiro tesouro nos tempos que corriam e era preciso estimá-lo. Paguei e, ao pagar,
mostrei-lhe o maço de notas de mil liras que tinha na bolsa por baixo da saia; ele, quando viu o dinheiro,
deitou-lhe uns olhos como um milhafre deita a um frango e disse-me que nós os dois fôramos feitos para nos
entendermos, que, quando quisesse, me arranjaria mais coisas, sempre ao preço corrente, nem um tostão a
menos nem um tostão a mais.
N aquela ocasião pude observar, mais uma vez, a consideração que o dinheiro nos dá, ou, neste caso, a
comida. O s Festas, nos últimos dias, como vissem que as nossas provisões nunca mais chegavam para
comermos, socorriamo-nos de Paride, que, embora de má catadura, nos sentava à sua mesa, pagando nós, bem
entendido, evitavam estar conosco e, quando chegava a hora das refeições, iam-se embora sorrateiramente,
quase envergonhados. Mas, logo que Tommasino chegou com o burrico, a sua atitude mudou como do dia para
a noite. Sorrisos, saudações, carícias, conversas e até, embora já não precisássemos, convites para jantar.
Vieram mesmo ver os nossos abastecimentos e, nessa altura, Filippo disse-me, com sincero regozijo, pois
tinha simpatia por mim, não tanta que me desse de comer, mas a suficiente para ficar satisfeito por me ver bem
fornecida: “Tu e eu, Cesira, somos os únicos aqui em cima que podemos olhar o futuro com tranquilidade, pois
somos os únicos que temos dinheiro.”
O filho Michele, ao ouvir estas palavras, tornou-se mais sombrio do que o costume e pronunciou entre
dentes: “Estás certo disso?”
O pai soltou uma gargalhada e deu-lhe uma palmada no ombro: “S e estou certo?! É a única coisa de que
tenho a certeza... N ão sabes que o dinheiro é o melhor amigo, o mais fiel, o mais constante que um homem
pode ter?.
Eu ouvi e não disse nada. Mas pensava de mim para mim que aquilo não era tão verdade como parecia.
N esse mesmo dia. o tal amigo tão fel tinha-me feito a partida de baixar trinta por cento o seu poder de compra.
E hoje, que cem liras só chegam para comprar um bocado de pão, ao passo que antes da guerra chegavam para
se viver durante meio mês, posso afirmar que não há amigos fiéis em tempo de guerra, nem homens, nem
dinheiro, nem nada. A guerra revolve tudo e, juntamente com as coisas que vemos, destrói muitas outras que
não vemos e no entanto existem.
D esde o dia em que chegaram as provisões, começou a nossa vida normal em S anta Eufêmia. D ormíamos,
levantávamo-nos, vestíamo-nos, apanhávamos os tojos e a lenha para o lume, acendiamo-los na cabana, depois
passeávamos um pouco, conversando sobre isto e aquilo com os outros refugiados, comíamos, passeávamos de
novo, tornávamos a cozinhar e comíamos segunda vez e, por fim, para economizar o azeite da candeia, íamos
para a cama com as galinhas.
O tempo estava lindo, ameno e calmo, sem vento e sem nuvens, um outono mesmo magnífico, com todos os
bosques em volta, nas encostas das montanhas, salpicados de vermelho e amarelo. D izia-se que este era o
tempo ideal para os A liados fazerem um avanço rápido e decisivo e chegarem pelo menos até Roma e ninguém
se convencia de que não o fizessem e ficassem por alturas de N ápoles ou um pouco mais acima. Esta, de resto,
era a conversa mais frequente em S anta Eufêmia, ou, melhor, a única conversa. S ó falávamos dos A liados,
quando vinham, porque não vinham, como e de que maneira viriam. Falavam nisso sobretudo os refugiados,
pois tinham um único desejo: voltar depressa a Fondi e retomar a sua vida normal; os camponeses falavam
menos, um pouco porque, no fundo, a guerra era para eles um bom negócio, alugavam as casotas e obtinham
ainda muitos outros pequenos lucros com os refugiados; além disso, continuavam a fazer a mesma vida que
faziam em tempo de paz e a chegada dos Aliados pouco ou nada mudaria o seu viver.
O que eu falei dos A liados, a andar para cima e para baixo no socalco, contemplando o panorama de Fondi e
o mar azul lá ao longe; ou à noite, na cabana de Paride, quase no escuro, com o fumo a fazer-me chorar, diante
do lume melo apagado; ou ainda na cama, abraçada a Rose a, antes de adormecer!... Falei tanto e tanto que a
pouco e pouco esses A liados se tornaram quase como os santos da aldeia que fazem milagres e trazem a chuva
e o bom tempo: um reza-lhes e outro insulta-os, mas todos esperam qualquer coisa deles. Todos esperavam
coisas extraordinárias desses A liados, precisamente como dos santos, e todos estavam certos de que, com a sua
chegada, a vida não sô se tornaria normal, mas até muito melhor do que o normal. Valia a pena ouvir,
sobretudo, Filippo. S uponho que ele imaginava o exército dos A liados como uma coluna sem fim de caminhões
cheios de todos os bens que nos dá D eus, com soldados encarrapitados em cima e encarregados de os distribuir
de graça a nós, I talianos. E era um homem experiente, um comerciante que se gabava de pertencer à categoria
dos espertos, que assim falava, pensando que os A liados eram uns parvos e só nos queriam fazer bem, a nós,
Italianos, que lhes tínhamos feito guerra, matando-lhes os filhos e obrigando-os a gastar milhões!
Poucas notícias certas nos chegavam desses benditos A liados, ou, melhor, quase nenhumas. Às vezes,
Tommasino aparecia em S anta Eufêmia. Vinha do vale, mas, como sô se interessava pelo dinheiro e pelo
mercado negro, era difícil arrancar-lhe mais do que algumas frases incompletas; se aparecia lá em cima algum
aldeão, como era camponês, só dizia coisas sem pés nem cabeça. O utras vezes chegavam rapazes de
Pontecorvo, com sacos às costas, para vender sal e tabaco, de que havia grande escassez. O tabaco era em
folhas, úmido e amargo, e os refugiados picavam-no e faziam cigarros, enrolando-o em papel de jornal; o sal era
de péssima qualidade, daquele que se dá aos animais. Estes rapazes também nos traziam noticias, mas a maior
parte delas eram fantásticas. Primeiro acreditávamos, mas, quando as examinávamos com vagar, víamos que se
pareciam ao sal que vendiam, que pesava o dobro por causa da água que continha: também as notícias eram
misturadas com fantasias que pesavam como verdades; depois, ao calor do exame, a fantasia evaporava-se e
qualquer um compreendia que da verdade restava pouco. D iziam que estava em curso uma grande batalha: ao
norte de N ápoles, afirmavam uns; para os lados de Caserta, garantiam outros; para as bandas de Cassino e ali
pertinho, em I tri, declaravam alguns ainda. Tudo mentiras. N a realidade, o que lhes interessava era vender o
sal e o tabaco e, quanto às noticias, diziam apenas o que supunham agradar aos que os interrogavam.
O único acontecimento daqueles primeiros dias que nos lembrou que estávamos em guerra foi ouvirmos
uma manhã não sei quantas explosões dos lados do mar, na direção de S perlonga. O uviram-se distintamente
essas explosões e uma mulher que apareceu lá em cima a vender laranjas disse-nos que os A lemães estavam a
destruir os diques dos pântanos e canais de escoamento para retardarem o avanço dos I ngleses. N ão tardaria
que tudo ficasse inundado, debaixo de água, e muita gente que trabalhara a vida inteira a cultivar esses campos
ficaria arruinada, porque, já se sabe, a água destrói as culturas e depois são precisos anos e anos para secar e
tornar a terra de novo cultivável. Essas explosões sucediam-se, como os disparos dos morteiros numa festa de
aldeia, e produziam-me um efeito estranho, porque tinham qualquer coisa de festivo, e, no entanto, eu sabia
que significavam miséria e desespero para os que moravam lá em baixo, nas terras enxutas. Estava um dia
lindíssimo, sereno, calmo, o céu sem uma nuvem, e toda a planície de Fondi, verde e próspera, alongando-se até
a linha vaporosa do mar, tão bela, assim azul e sorridente. E mais uma vez, ouvindo aqueles estrondos e
olhando aquela paisagem, pensei que os homens andam para um lado e a natureza para outro e, quando a
natureza desencadeia um temporal de trovões, raios e chuva, muitas vezes os homens são felizes em suas casas,
ao passo que, quando a natureza sorri e parece querer prometer uma felicidade eterna, os homens se
desesperam e desejam a morte.
Passaram assim alguns dias e as notícias da guerra eram sempre incertas; os habitantes do vale que subiam
a S anta Eufêmia continuavam a dizer que um grande exército inglês ia a caminho de Roma. Mas naturalmente
esse grande exército avançava a passo de tartaruga, pois, mesmo que caminhasse a pé e parasse de vez em
quando para tomar fôlego, já devia ter chegado e ainda não se via. Eu, entretanto, não podia ouvir falar mais
dos I ngleses, nem de quando chegariam, nem da abundância que trariam consigo; por isso procurei ocupar o
tempo de qualquer maneira, por exemplo a fazer malha. Comprei a Paride certa quantidade de lá e fazia malha
com agulhas, pois parecia-me que teríamos de ficar lá em cima mais tempo do que supunha e pensava no frio
que não tardaria a chegar e nós as duas não tínhamos nada que vestir. Era uma lá gordurosa e escura, cheirando
a estábulo, lã das poucas ovelhas que Paride possuía; tosquiavam-nas todos os anos e fiavam depois a lã com a
roca e o fuso, à moda antiga, fazendo com ela meias e camisolas.
De resto, lá em cima todos andavam assim vestidos, como no tempo em que Berta fiava.
A família de Paride tinha tudo o que precisava, não só para comer, mas também para vestir, isto é, linho, lã e
couro, o que era um bem para eles, pois, como já disse, quase não viam a cor do dinheiro e, se não se
arranjassem desta forma, teriam de andar nus. Cultivavam o linho, das ovelhas tiravam a lã e, quando matavam
as vacas, aproveitavam o couro para o calçado e as jaquetas. A lã e o linho, depois de fiados, como disse, teciam-
nos no tear, no nosso quarto, ora Luísa, ora a irmã, ora a cunhada de Paride; mas devo dizer que as três juntas
não prestavam para nada e que, apesar de todo aquele trabalho de fuso, roca e tear, ficava tudo mal feito. O
tecido que fabricavam, tingiam-no depois de azul-claro, mal, com tintas péssimas, e por fim cortavam-no para
fazer calças e casacos (nunca vi roupa mais mal talhada, parecia feita a machado); mas, passada uma semana,
rompia-se logo nos joelhos e nos cotovelos; as mulheres punham então remendos nos buracos, e, assim, quinze
dias depois de terem estreado os fatos novos, a família já andava remendada e maltrapilha. É verdade que
faziam tudo quanto precisavam, e não tinham de comprar nada, mas faziam-no mal e porcamente.
Michele, o filho de Filippo, a quem comuniquei as minhas observações, respondeu-me, muito a sério,
abanando a cabeça: “Mas quem trabalha hoje à mão, quando existem má quinas?! S ó miseráveis como estes, sô
os camponeses de um país atrasado e pobre como é a Itália...”
N ão se julgue, porém, por estas palavras, que Michele desprezava os camponeses, antes pelo contrário. É
que se exprimia sempre assim, duro e peremptório, com a máxima aspereza, mas, ao mesmo tempo, e era o que
me fazia impressão, sem qualquer violência na voz, num tom tranquilo, como se dissesse coisas evidentes e
indiscutíveis, com as quais já não perdia tempo, limitando-se a enunciá-las como outro qualquer diria que o S ol
brilha no céu ou está a chover.
Era um tipo curioso, este Michele; e, como depois nos tornamos amigos e me afeiçoei a ele como a um filho,
quero descrevê-lo, quanto mais não seja, para o ter uma última vez diante dos olhos. N ão era alto, antes um
pouco baixo, ombros largos, cabeça grande e testa ampla. Usava óculos e tinha um andar firme, um porte altivo
e soberbo, como quem não se deixa intimidar nem submeter por ninguém. Era muito culto, e ouvi o pai dizer
que nesse mesmo ano devia licenciar-se ou se licenciara, já não me recordo. Em suma, tinha uns vinte e cinco
anos, embora, por causa dos óculos e também pelo seu ar sempre muito sério, aparentasse ter pelo menos
trinta. Mas sobretudo o seu caráter era invulgar, diferente do dos outros refugiados e igualmente diferente do
de todas as pessoas que eu até então conhecera. Como disse, exprimia-se com absoluta segurança, como quem
está convencido de ser o único a conhecer e a dizer a verdade. D esta convicção derivava, a meu ver, aquele fato
curioso que já notei, mesmo quando dizia coisas duras ou violentas: não se encolerizava, pronunciava-as num
tom calmo e razoável, por assim dizer quase casual e sem relevo, como se se tratasse de coisas velhas, sobre as
quais todos já estavam de acordo há muito tempo. E, no entanto, isso não era verdade, pelo menos em relação a
mim, pois, ao ouvi-lo falar, por exemplo, do fascismo e dos fascistas, experimentava sempre uma sensação de
espanto. D urante vinte anos, isto é, desde que começara a raciocinar, só tinha ouvido dizer bem do Governo e,
embora de vez em quando encontrasse isto ou aquilo a criticar, sobretudo em coisas que diziam respeito à
minha loja, pois também nunca me preocupei com a política, pensava no fundo que, se os jornais aplaudiam
sempre o Governo, deviam ter boas razões para isso e não nos competia a nós, pobres e ignorantes, julgar o que
não compreendíamos nem conhecíamos.
Mas eis que Michele negava isso tudo: onde os jornais tinham dito sempre branco, ele dizia preto; e não
havia nada de bom a apontar naqueles vinte anos: tudo quanto se fizera em I tália estava errado. S egundo
Michele, Mussolini, os seus ministros, os homens importantes, todos, enfim, que eram alguma coisa, não
passavam de bandidos. A ssim mesmo: bandidos. Eu ficava de boca aberta com tais a firmações, pronunciadas
com tanta segurança, indiferença e calma. Tinha sempre ouvido dizer que Mussolini era um gênio, pelo menos;
que os seus ministros eram grandes homens, sem favor; que os secretários federais, para falar com modéstia,
eram pessoas de bem e inteligentes; e que todos os outros, os mais pequenos, sempre em linguagem comedida,
eram gente em quem se podia confiar de olhos fechados; e eis que Michele, como se costuma dizer, mandava
isso tudo à fava, chamando a todos, nem mais nem menos e sem exceção, bandidos. As vezes perguntava a mim
própria como teria ele chegado àquela conclusão; porque não parecia que tivesse começado a pensar assim,
como tantos outros na I tália, a partir do momento em que a guerra principiou a correr mal. N ão; como já
acentuei, dir-se-ia que tinha nascido com aquelas ideias, e falava delas tão naturalmente como os outros
meninos dão um nome às plantas, aos animais ou às pessoas.
S implesmente, manifestava uma desconfiança instintiva, sólida, inabalável, por tudo e por todos. E isto
parecia-me tanto mais surpreendente quanto é certo que ele tinha apenas vinte e cinco anos e, por isso, só
conhecera o fascismo e fora criado e educado pelos fascistas. A ssim, logicamente, se a educação serve para
alguma coisa, devia ser também fascista ou, pelo menos, um daqueles, como havia agora tantos, que criticavam
o fascismo, mas a meia voz e sem convicção. Mas, ao contrário, Michele, com toda a sua educação fascista, era
mesmo desenfreado contra o fascismo. E eu não pude deixar de pensar que naquela educação havia qualquer
coisa que não estava certa, de outra forma Michele não falaria de tal maneira.
Poder-se-á supor que Michele, para falar assim, tivera algumas amargas experiências; é sabido que quando
se sofre qualquer desilusão ou injustiça, e isso pode suceder mesmo com os melhores governos, se é levado a
generalizar, a ver tudo negro, tudo mal, tudo errado. Mas não, o convívio com Michele convenceu-me, a pouco e
pouco, que eram muito limitadas as suas experiências, e essas mesmo insignificantes, como sucede aliás a
todos os jovens da sua condição e da sua idade. Criado em Fondi com a família, lá fizera os seus primeiros
estudos. Como todos os outros rapazes da sua idade, fora balilla e vanguardista. D epois inscrevera-se na
Universidade de Roma e em Roma estudou e viveu alguns anos em casa dum tio magistrado. E era tudo. N unca
tinha ido ao estrangeiro; e da I tália, além de Fondi e de Roma, conhecia apenas as cidades mais importantes.
Em suma, nunca lhe aconteceu nada de extraordinário, ou, se lhe aconteceu, eram dessas coisas que se passam
só no pensamento, não na vida.
Por exemplo, quanto a mulheres, a meu ver, nunca tivera qualquer experiência amorosa, que, em certos
casos, à falta de melhor, ajuda a abrir os olhos para a vida. Ele próprio nos confessou várias vezes que nunca
tinha estado apaixonado, nem noivo, nem fizera a corte a nenhuma mulher. Q uando muito, pareceu-me
compreender, ter-se-ia aproximado de alguma prostituta, como fazem os rapazes como ele que não têm
dinheiro nem conhecimentos. A ssim, cheguei à conclusão de que aquelas convicções tão arraigadas as
adquirira, por assim dizer, sem dar por isso, talvez só por espírito de contradição. D urante vinte anos os
fascistas tinham-se esfalfado a proclamar que Mussolini era um gênio e todos os seus ministros grandes
homens; e ele, mal começou a raciocinar, pensou precisamente o contrário daquilo que os fascistas
proclamavam, tão naturalmente como uma planta estende os seus ramos para o lado donde recebe o sol. S ão
coisas misteriosas, bem sei, e, como sou uma pobre ignorante, não pretendo compreendê-las nem explicá-las.
Mas tenho observado que às vezes as crianças fazem precisamente o contrário do que os pais lhes dizem para
fazer ou do que eles próprios fazem, não por entenderem verdadeiramente que os pais procedem mal, mas pela
única e boa razão de que são crianças, e os pais são pais, e eles querem ter também a sua própria vida, tal como
os pais tiveram antes a deles. Penso que sucedeu o mesmo a Michele. Foi educado pelos fascistas para ser
fascista; mas, porque queria viver e pensar a seu modo, tornou-se antifascista.
Michele, naqueles primeiros tempos, passava conosco quase todo o dia. N ão sei o que o atraia em nós, pois
éramos duas mulheres simples, pouco diferentes de sua mãe e de sua irmã; por outro lado, como direi adiante,
não mostrava por Rosetta uma atração particular. Provavelmente, preferia-nos à família e aos refugiados porque
éramos de Roma e não falávamos em dialeto, nem conversávamos, como os outros, das coisas de Fondi, que,
dizia ele muitas vezes, não lhe interessavam e até o aborreciam. A parecia logo de manhã, mal nos
levantávamos, e só nos deixava à hora das refeições, estando assim conosco praticamente o dia inteiro. Parece-
me que ainda o estou a ver quando espreitava à porta da cabana, onde nós estávamos sem fazer nada, eu
deitada na cama, Rose a sentada na cadeira, e nos perguntava com voz jovial: “Então que me dizem a um bom
passeio?”
A ceitávamos, embora esses seus bons passeios fossem sempre iguais: seguíamos o socalco que contornava a
montanha, caminhando sempre a direito, a meio da encosta, e íamos ter a outro vale ao lado, em tudo
semelhante ao de S anta Eufêmia; ou então trepávamos, até lá acima, por entre penedos e carvalhedos; ou,
ainda, descíamos em qualquer ponto da encosta. Mas escolhíamos quase sempre o caminho plano, para não nos
fatigarmos muito, e, caminhando pelo socalco, atingíamos o esporão do monte da esquerda, que descia a pique
sobre o vale. A li havia uma grande alfarrobeira e em volta o mato muito verde e cheio de sol; no chão, o musgo
macio servia-nos de almofada. S entávamo-nos quase na ponta do esporão, não longe duma rocha azulada
donde se abrangia todo o panorama de Fondi, lá em baixo; ali ficávamos horas sem fim. O que fazíamos?
A gora, que penso nisso, não sei dizê-lo. Rose a algumas vezes andava pelo mato, juntamente com Michele, e
colhiam ciclames, que naquela época cresciam densos, lindos e grandes, com as suas corolas dum cor-de-rosa
vivo, muito direitos no meio da folhagem escura onde quer que houvesse um pouco de borraccina (4). Ela fazia
um grande ramo e me trazia, e eu, mais tarde, punha-o num copo em cima da mesa do nosso cubículo. O u
então ficávamos ali sentados e não fazíamos nada: olhávamos o céu, o mar, o vale, as montanhas... D aqueles
passeios, para dizer a verdade, de pouco me recordo, a não ser das conversas de Michele. D estas, sim, lembro-
me bem, como me lembro dele, porque eram conversas novas para mim, e ele próprio um tipo novo, como
nunca encontrara outro igual até então.
N ós éramos duas mulheres ignorantes e ele um homem que lera muitos livros e sabia muitas coisas. Mas eu
possuía uma experiência da vida que ele não tinha; e hoje penso que, com todos os livros que lera e todas as
coisas que sabia, Michele era, no fundo, um ingênuo, não conhecia nada da vida e sobre muitos assuntos fazia
uma ideia errada. Lembro-me, por exemplo, duma conversa nos primeiros dias: “Tu (tratava-nos por tu e nós
tratávamo-lo da mesma forma), tu, Cesira, é verdade que és comerciante e não pensas senão no negócio, mas
nem por isso estás estragada; por sorte tua, continuas a ser o que eras em criança.”
Perguntei: “Continuo a ser o quê?”
E ele: “Uma camponesa.”
Respondi-lhe: “N ão me lisonjeias com isso... O s camponeses, fora a terra, não conhecem mais nada, não
sabem seja o que for, vivem como animais.”

4 Espécie de musgo.

Michele riu, retorquindo: “N ão era um elogio aqui há algum tempo... mas hoje é... hoje os que lêem,
escrevem e vivem na cidade, os senhores, são os verdadeiros ignorantes, os verdadeiros incultos, os verdadeiros
selvagens... com eles não há nada a fazer...
mas com vocês, os camponeses, pode começar-se do princípio.”
Eu não compreendia bem o que ele queria dizer e insisti: “O que significa isso de começar do princípio?”
E ele: “Bem, fazer deles homens novos.”
Exclamei: “Vê-se logo que não conheces os camponeses, meu caro... com os camponeses não há nada a
fazer... o que julgas que são? Mais atrasados não há outros. S ão exatamente o contrário de homens novos... já
eram camponeses antes de haver gente na cidade. São camponeses e continuarão a sê-lo sempre...”
Michele abanou a cabeça com compaixão e não disse nada. E eu tive a impressão de que ele via os
camponeses como eles não eram nem nunca seriam; ou, antes, que, por motivos particulares, os via como
desejava que eles fossem, e não como eram na realidade.
Michele só falava bem dos camponeses e dos operários; mas, a meu ver, não conhecia uns nem outros. Um
dia disse-lhe: “Michele, falas dos operários, mas não os conheces.”
Ele perguntou-me: “E tu, os conhece?”
Respondi: “Compreende-se que os conheça, iam muitos à minha loja, moram ali perto.”
“Que espécie de operários?”
“Oh! artífices, funileiros, pedreiros, eletricistas, carpinteiros... gente que trabalha... de tudo um pouco...”
“E como te parece que sejam os operários?”, perguntou ele nesta altura, com ar trocista, preparado para
ouvir asneiras. Respondi-lhe: “Meu caro, não sei como são... para mim essas diferenças não existem... são
homens como os outros... há bons e maus... uns preguiçosos, outros trabalhadores... alguns gostam das suas
mulheres, outros andam atrás das prostitutas... alguns bebem, outros jogam... Em suma, há de tudo, como em
toda a parte, como entre os burgueses, os camponeses, os funcionários e todos os mais.”
Ele disse então: “Talvez tenhas razão... olhas para eles como homens iguais aos outros e assim devia ser... S e
todos os vissem como tu, isto é, como homens iguais aos outros, e os tratassem em conformidade, não
sucederiam certas coisas e talvez não estivéssemos cá em cima em Santa Eufêmia.”
Eu perguntei: “Então como os veem?”
E ele: “Não simplesmente como homens, mas apenas como operários.”
“E tu como os vês?”
“Eu também os vejo só como operários.”
“Então”, disse-lhe, “também tens culpa de estarmos cá em cima... Bem entendido, estou a repetir o que
disseste, embora não compreenda porque os consideras apenas como operários, e não como homens iguais aos
outros.”
E ele: “Compreende-me, Cesira... É certo que só os considero como operários...
mas é necessário ver porquê...Para alguns é cômodo considerá-los assim para os explorar melhor... quanto a
mim, é cômodo, mas para os defender.”
“Em suma”, disse-lhe de repente, “és um subversivo.”
Michele ficou desconcertado e perguntou: “Porque dizes isso?”
Volvi: “O uvi-o dizer a um sargento da polícia que ia à minha loja... estes subversivos provocam a agitação
entre os operários.”
Michele respondeu, passado um momento: “Pois admitamos que eu seja um subversivo.”
Eu insisti: “Mas já fizeste agitação entre os operários?”
Ele encolheu os ombros e declarou por fim, de má vontade, que não tinha feito. disse-lhe então: “Vês que
não os conheces?”
D esta vez não me respondeu. A pesar destas conversas difíceis, que nem sempre compreendíamos, Rose a e
eu preferíamos a sua companhia à dos outros homens que estavam lá em cima. Ele era o mais delicado e, além
disso, o único que não pensava no negócio e no dinheiro, e isso tornava-o menos aborrecido do que os outros,
porque o negócio e o dinheiro são certamente coisas importantes, mas ouvir falar sempre no mesmo acaba por
causar uma sensação opressiva. Filippo e os outros refugiados não falavam senão nisso, isto é, do que vendiam
e do que compravam, dos preços e dos lucros, de quanto as coisas custavam antes da guerra e de quanto
custariam depois. Q uando não falavam de negócios, jogavam as cartas: reunidos na pequena habitação de
Filippo, sentados no chão, de pernas cruzadas, encostados aos sacos de farinha e de feijão, o chapéu na cabeça e
o cigarro na boca, numa atmosfera empestada de mau cheiro e de fumo, ali passavam horas e horas a bater as
cartas, com gritos e vociferações que parecia que se matavam. Em volta dos quatro que jogavam havia sempre,
pelo menos, outros quatro que olhavam, como sucede nas tabernas de aldeia. Eu, que nunca suportei o jogo,
não compreendia como eles podiam passar dias inteiros naquela jogatina, com umas cartas porcas e sebentas,
em que já nem se conheciam as figuras, tão sujas estavam. Mas era ainda pior quando, em vez de falarem de
negócios ou de jogarem, Filippo e os companheiros se punham a conversar. Eu sou uma ignorante e não
entendo senão da minha loja e do campo, mas percebia perfeitamente que aqueles homens com barba, adultos,
quando não falavam do comércio, só diziam asneiras. E isto tornava-se para mim ainda mais evidente porque
estabelecia o confronto com Michele, que não era ignorante como eles, e o que dizia, embora muitas vezes não
o compreendesse, percebia que eram coisas acertadas. Estes homens, repito, raciocinavam como estúpidos, ou,
pior, como animais, se os animais pudessem raciocinar: quando não diziam tolices, diziam coisas que ofendiam
pela crueza e brutalidade. Lembro-me, por exemplo, dum certo A ntônio que era padeiro, homem franzino,
muito trigueiro, com um defeito numa vista: tinha um olho menor do que o outro e sempre a abrir e a fechar,
como se tivesse lá dentro uma palhinha.
Um dia, não sei como, quatro ou cinco refugiados, entre eles esse A ntônio, estavam a falar da guerra e do
que nessas alturas se fez e acontece, todos sentados nas pedras do socalco; Rose a e eu escutávamos. Este
A ntônio estivera na guerra da Líbia quando tinha vinte anos e gostava de falar dessa guerra, pois fora para ele
muito importante: entre outras coisas, perdera lá o olho. Em certa altura, Rose a e eu ouvimo-lo dizer:
“Mataram três dos nossos... mas matar é dizer pouco... tinham-lhes tirado os olhos, cortado a língua, arrancado
as unhas... Então decidimos exercer represálias...
de manhã cedo fomos a uma das aldeias, queimamos as cabanas e matamos todos os homens, mulheres e
crianças... às raparigas, a filha duma cabra, enfiamos-lhes as baionetas pela barriga acima e atiramo-las para o
monte... ficaram sem vontade de fazer mais atrocidades.”
N esta altura, um deles tossiu um pouco, a avisar que nós as duas estávamos presentes, pois A ntônio talvez
não nos visse, encobertas atrás de uma árvore. O uvi A ntônio desculpar-se, dizendo: “Bem, na guerra sucede
isto e ainda pior.”
Corri atrás de Rose a, que se afastara dali imediatamente. Caminhava de cabeça baixa; por fim parou e vi-
lhe os olhos marejados de lágrimas. Estava extremamente pálida. Perguntei-lhe o que tinha. Respondeu-me:
“Ouviste o que disse o Antônio...”
Também não encontrei nada melhor pare lhe dizer: “N a guerra, infelizmente, sucedem estas e outras coisas,
minha filha.”
Ela ficou calada um momento e depois proferiu, como se falasse consigo mesma: “Hei de preferir sempre
estar entre os que morrem a estar entre os que matam.”
D esde esse dia afastamo-nos ainda mais do grupo dos refugiados, porque Rose a não queria de maneira
nenhuma encontrar-se com Antônio nem falar-lhe.
Com Michele, também Rose a só estava de acordo até certo ponto; no capítulo da religião, o desacordo
entre os dois era absoluto. Michele detestava particularmente os fascistas, como já disse, e logo a seguir os
padres; e não se percebia bem se odiava mais uns do que outros; muitas vezes, a brincar, ele dizia que fascistas
e padres eram uma e a mesma coisa, a única diferença é que os fascistas tinham cortado a sotaina,
transformando-a em camisa negra, enquanto os padres a conservavam inteira até os pés. A mim, as suas fúrias
contra a religião, ou, melhor, contra os padres, não me aqueciam nem arrefeciam: pensei sempre que nestas
coisas cada um deve regular-se por si e como melhor lhe parece; sou religiosa, sim, mas não ao ponto de querer
impor a minha religião aos outros. A lém disso, dei conta de que Michele, apesar de toda a sua aspereza, no
fundo não era ruim; algumas vezes cheguei mesmo a pensar que ele dizia mal dos padres, não por os odiar
como padres, mas porque lhe desagradava que não se comportassem como, em seu entender, os ministros da
religião deviam comportar-se. Em conclusão, provavelmente era religioso, mas ao mesmo tempo um
desiludido. Às vezes, são as pessoas como Michele, no fundo mais exigentes do que os outros, que atacam com
maior severidade os padres, justamente por causa da sua desilusão. Mas Rose a era de uma espécie diferente
da minha; acreditava na religião e queria que os outros também acreditassem; não podia suportar que falassem
mal dela, mesmo quando, como no caso de Michele, o faziam de boa fé e sem verdadeira maldade. A ssim, logo
ao princípio, mal lhe ouviu a primeira fúria contra os padres, advertiu-o claramente: “S e queres continuar a ver-
nos, Michele, tens de acabar com esses discursos.”
Eu esperava que ele insistisse ou se zangasse, como era costume quando o contradiziam. A o contrário, com
grande assombro meu, não protestou, não disse nada; limitou-se a observar, passado um momento: “Há alguns
anos atrás, eu era como tu... pensava até a sério em ser padre... depois, isso passou-me.”
Fiquei pasmada com esta inesperada informação: nunca, mas mesmo nunca, me podia ter passado pela
ideia que ele tivesse alimentado semelhante intenção.
Perguntei: “Mas, a sério, querias ser padre?”
Ele respondeu: “Sim... podes perguntá-lo a meu pai, se não acreditas.”
“E então porque renunciaste?”
“Bem, era uma criança, e dei conta de que não tinha vocação. O u melhor”, acrescentou com um sorriso,
“senti que a tinha e precisamente por isso é que não devia sê-lo.”
Rose a desta vez não disse nada e a conversa findou ali. Entretanto, as coisas mudaram, lentamente, e não
para melhor. D epois de tantos boatos contraditórios, chegou-nos por fim uma notícia certa: uma divisão alemã
estava acampada na planície de Fondi e a frente de batalha fixava-se no rio Garigliano. I sto queria dizer que os
I ngleses não avançavam e que os A lemães, por seu lado, se preparavam para passar o I nverno conosco. Q uem
chegava do vale dizia que havia soldados alemães por todos os lados, a maior parte escondidos nos pomares de
laranjeiras, com os seus carros blindados e as suas tendas cobertas de manchas verdes, azuis e amarelas,
mimetizadas, como diziam. Mas, para nós, tais falas não passavam de boatos; ninguém vira ainda os A lemães,
digo ninguém dos que estavam lá em cima, pois nenhum alemão subira a S anta Eufêmia. D epois aconteceu
qualquer coisa que nos pôs em contacto com os A lemães e nos fez compreender que raça de gente é essa.
Conto-o porque desde esse dia pode dizer-se que as coisas mudaram; e, de certo modo, foi então que a guerra
apareceu lá em cima pela primeira vez, para nunca mais se ir embora.
Entre os refugiados que jogavam as cartas com Filippo havia um alfaiate chamado S everino, o mais novo de
todos, um homem pequeno e magro, de cara amarela e bigode preto e que parecia estar sempre a dar piscadelas
de olho de entendimento; este hábito vinha-lhe do seu ofício, pois, enquanto cosia na loja, agachado numa
cadeira, tinha sempre um olho meio fechado e outro aberto.
S everino fugira de Fondi, como os outros, logo após os primeiros bombardeamentos e estava alojado numa
casota pouco distante da nossa, com uma filha e a mulher, pequena e modesta como ele. S everino era o mais
inquieto de todos os que estavam lá em cima porque, durante a guerra, aplicara todo o seu dinheiro numa
quantidade de fazendas inglesas e italianas e escondera-as num lugar seguro, mas na realidade não tão seguro
que não estivesse sempre em ânsias pelo destino do seu pequeno patrimônio. S everino, no entanto, passava da
ansiedade à esperança, quando não pensava no presente, nos A lemães, nos fascistas, na guerra e nos
bombardeamentos, e falava do futuro. Para quem queria ouvi-lo, expunha um plano que, em sua opinião, mal
acabasse a guerra, o tornaria riquíssimo. Esse plano consistia em aproveitar o período, talvez seis meses, talvez
um ano, entre o fim da guerra e o regresso à normalidade. N esses seis meses, ou nesse ano, faltaria tudo,
porque não estariam regularizados os transportes, as trocas e o comércio, e na I tália, ocupada pelos militares,
os negócios seriam difíceis, para não dizer impossíveis. Então, durante esses seis meses ou esse ano, S everino
meteria as suas fazendas num caminhão, iria para Roma e ai, peça por peça, com os preços mais altos do que as
estrelas, devido à escassez, ficaria rico, vendendo a retalho as fazendas que comprara por junto. Era um plano
acertado, como se vê, e demonstrava que S everino, talvez o único entre todos os que estavam lá em cima,
compreendera bem o mecanismo dos preços, que iam subindo à medida que as coisas faltavam e os A lemães,
os A liados e os I talianos emitiam papel-moeda sem nenhum valor. Era um plano acertado, repito, mas
infelizmente os planos acertados são sempre aqueles que não vingam, sobretudo em tempo de guerra.
Resumindo, numa daquelas manhãs chegou da planície, todo ofegante, um rapazinho que fora empregado
de S everino; ainda antes de atingir o socalco, gritou lá de baixo para o alfaiate, que, muito nervoso, o esperava
na beira do muro: “Severino, roubaram-te tudo... descobriram o esconderijo e roubaram-te os tecidos.”
Eu estava ao pé dele e vi-o vacilar ao ouvir aquelas palavras, como se alguém, à traição, lhe tivesse batido
com um pau na cabeça. O rapaz, entretanto, chegou ao socalco; ele agarrou-o pelo peitilho da camisa, muito
aflito, balbuciando, de olhos esbugalhados: “Não pode ser... que dizes tu?... Os tecidos?... Os meus tecidos?...
Roubados? Não pode ser... E quem os roubou?”
“Eu sei lá ...”, respondeu o rapaz.
Todos os refugiados tinham acorrido e estavam em volta dele. S everino fazia gestos de louco, revirava os
olhos, deitava as mãos à cabeça e arrancava os cabelos; Filippo procurava acalmá-lo, dizendo: “N ão te excites...
pode ser apenas boato.”
“Qual boato”, volveu ingenuamente o rapaz, “vi eu, com os meus olhos, a parede esburacada e o esconderijo
vazio.”
S everino, ao ouvir isto, fez um gesto de desespero com a mão no ar, como se quisesse invocar o auxílio do
Céu; depois lançou-se em correria pela vertente abaixo e desapareceu. Ficamos todos muito impressionados
com esta cena: queria ela dizer que a guerra não só continuava, como até piorava, pois já não havia consciência
e, se agora roubavam, qualquer dia começariam a matar. A lguém disse a Filippo, que, mais do que os outros,
esbracejava a comentar o sucedido e censurava S everino por não ter tomado suficientes precauções: “Tu
escondeste as tuas coisas na parede do teu meeiro, toma cuidado, não te aconteça o mesmo.”
Lembrei-me das conversas de Conce a e Vincenzo e pensei que aquele refugiado tinha razão; a parede a
todo o momento podia ser abatida. Mas Filippo abanou a cabeça com segurança, confiado: “S ou compadre do
meu meeiro... batizei-lhe o filho e ele batizou-me a filha... não sabes que entre compadres não há velhacarias?”
Pensei então, ao ouvi-lo falar assim, que se pode ser muito esperto, como ele julgava ser, e em dada altura
fazer figura de parvo, porque acreditar em histórias de compadres em relação a Concetta e Vincenzo parecia-me
que era mesmo uma tolice, sem dúvida simpática, mas apesar de tudo tolice. N ão disse nada, para não o
consumir com suspeitas. Tanto mais que já alguém experimentara pô-lo de sobreaviso e de pouco servira.
N aquela mesma noite S everino voltou do vale, coberto de pó até os olhos, triste e cansado. D isse que fora à
cidade e encontrara a parede esburacada e o esconderijo vazio; tinham-lhe levado tudo e agora estava
arruinado; julgava que tanto podiam ter sido os A lemães como os I talianos, mas supunha que tivessem sido os
italianos, ou, antes, os fascistas, pelo pouco que pudera apurar, interrogando as raras pessoas que continuavam
na cidade. D adas estas explicações, para ali ficou mudo, encolhido numa cadeira, diante da porta da casa de
Filippo, mais amarelo e mais escuro do que o costume, abraçando o espaldar e olhando só com um olho para
Fondi, onde o tinham roubado, enquanto o outro parecia fechar-se em piscadelas de entendimento, e isto era
talvez o mais triste, porque só se pisca o olho quando se está satisfeito e a ele pouco faltava para se matar de
desespero.
D e vez em quando abanava a cabeça e repetia em voz baixa: “O s meus tecidos... não tenho nada... levaram-
me tudo...” D epois passava a mão na testa, como se não pudesse convencer-se. Por fim, disse: “Fiquei velho
num só dia...” E desandou para a sua casita, sem aceitar a ceia de Filippo, que procurava consolá-lo e acalmá-lo.
N o dia seguinte via-se que ele continuava a pensar nos seus tecidos e meditava na maneira de os reaver.
Estava convencido de que quem lhos roubara era gente da terra, provavelmente fascistas, ou, melhor, esses que
se intitulavam agora fascistas e antes da queda de Mussolini eram conhecidos no vale como vagabundos e
pedintes. Esses vagabundos, mal o fascismo voltou, inscreveram-se imediatamente na Milícia, com o único fito
de comer e gozar à custa da população, que, devido à guerra e à ausência das autoridades, se encontrava
completamente abandonada, entregue a si própria. S everino, firmemente resolvido a reaver os seus tecidos,
pode dizer-se que ia todos os dias ao vale, voltando à noite cansado, coberto de pó e de mãos vazias, mas mais
decidido do que nunca. Essa firme resolução revelava-se até na sua atitude: sempre calado, os olhos cintilantes,
fixos, um nervo constantemente a tremer sob a pele esticada do maxilar. S e alguém lhe perguntava o que ia
fazer todos os dias a Fondi, limitava-se a responder: “Vou à caça”, dando a entender que ia à caça dos seus
tecidos e de quem lhos roubara.
A pouco e pouco, das converses de S everino com Filippo depreendi que esses fascistas de quem ele
desconfiava estavam entrincheirados num barracão duma quinta chamada do Uomo Morto. Eram uns doze e
tinham transportado para esse refúgio grande quantidade de provisões, arrancadas à força aos camponeses, e lá
comiam e bebiam e gozavam, servidos por algumas rameiras que tinham sido antes criadas de servir ou
operárias. À noite saíam e andavam pela cidade, entravam nas casas abandonadas pelos refugiados,
revistavam-nas uma por uma, roubavam o que lá ficara e batiam com as espingardas em todas as paredes e
pavimentos para ver se havia algum esconderijo. Estes fascistas andavam todos armados com metralhadoras,
bombas e punhais e sentiam-se em segurança porque em todo o vale, como já disse, não havia agora
carabineiros, pois todos tinham fugido ou sido presos pelos A lemães, nem polícia nem outra qualquer
autoridade.
Ficara, é certo, um guarda municipal, mas era um pobre homem, carregado de família, que andava de quinta
em quinta, roto e esfomeado, a pedir aos camponeses que lhe dessem, por amor de D eus, um bocado de pão ou
um ovo. Em suma, não havia lei e os gendarmes do exército alemão, que se distinguiam dos outros soldados
porque traziam ao peito uma espécie de colar, eram os únicos que a faziam respeitar; mas era a lei deles, não a
dos I talianos, e era uma lei que, por assim dizer, nos parecia feita de propósito para lhes permitir arrebanhar os
homens, roubar as coisas e fazer toda a espécie de exigências.
Para dar uma pálida ideia de tudo quanto sucedia naqueles tempos, basta afirmar que um camponês duma
localidade perto de S anta Eufêmia, uma manhã, não sei por que razão, deu uma navalhada num sobrinho, um
rapaz de dezoito anos, deixando-o na vinha a esvair-se em sangue até morrer. I sto sucedeu às dez horas da
manhã. Às cinco horas do mesmo dia, o assassino foi ao talho clandestino comprar meio quilo de carne. O
crime já era conhecido de toda a gente, mas ninguém se atreveu a dizer-lhe nada: eram coisas lá entre eles e
todos tinham medo de intervir. S ó uma mulher teve a coragem de lhe observar: “Mas que coração é o teu...
mataste o sobrinho e vens aí muito sossegado comprar carne?”
E ele retorquiu: “Toca a quem toca... ninguém me prende, pois agora já não há lei e cada qual faz o que lhe
apetece...”
E tinha razão; não o prenderam e ele enterrou o sobrinho debaixo duma figueira e continuou a viver sem
ninguém o incomodar.
S everino, então, meteu-se-lhe em cabeça fazer justiça por suas próprias mãos, visto já não haver justiça
oficial. N ão sei o que combinou nesses passeios a Fondi, mas uma manhã chegou lá acima um rapazito do
campo, com um palmo de língua de fora por subir a encosta a correr, e gritou que S everino vinha aí com os
alemães, que tinha os alemães do seu lado e que eles o iam ajudar a recuperar as fazendas, porque tinham
chegado a acordo. Todos os refugiados saíram dos casinhotos e nós as duas também. S eríamos umas vinte
pessoas no socalco, a vigiar o carreiro, à espera de ver surgir Severino e os alemães.
Entretanto todos diziam que S everino fora inteligente e sensato, pois a verdade é que a autoridade estava
agora na mão dos A lemães e estes não eram vagabundos nem delinquentes como os fascistas e não só lhe
restituiriam os tecidos, como castigariam os culpados. Filippo era o que mais falava a favor dos A lemães: “É
gente séria, que faz tudo a sério: a guerra, a paz e o negócio... S everino fez bem em recorrer a eles... O s A lemães
não são como nós, I talianos, anárquicos e indisciplinados... têm disciplina e em tempo de guerra roubar é um
ato contrário à disciplina... Estou certo de que vão restituir as fazendas ao S everino e punir esses malandros
fascistas... Valente S everino, fez o que devia fazer: quem tem hoje autoridade na I tália? O s A lemães. Então é
necessário recorrer aos Alemães...”
Filippo pensava em voz alta, pavoneando-se e cofiando o bigode. É claro, pensava nas duas coisas
escondidas em casa do meeiro; ficaria contente se S everino recuperasse as fazendas e se os ladrões fossem
castigados, pois também tinha bens escondidos e também receava que lhos roubassem.
O lhávamos para o carreiro, onde por fim assomou S everino, mas, em vez dos alemães que julgávamos que
subissem com ele em patrulha armada, vimos só um alemão e, ainda por cima, simples soldado, nem sequer
era da polícia militar.
Q uando chegaram lá acima ao socalco, S everino, altivo e satisfeito, apresentou-o com o nome de Hans, que
em alemão quer dizer J oão, e todos o rodearam, de mãos estendidas, mas Hans não apertou nenhuma e
limitou-se a fazer a saudação militar, batendo os calcanhares e levando a mão à pala do boné, como para pôr
uma distância entre ele e os refugiados. Este Hans era um homem baixinho, lourinho, de ancas largas como
uma mulher, cara branca e um pouco cheia. Tinha duas ou três grandes cicatrizes na face e, quando lhe
perguntaram onde as recebera, respondeu secamente: “Estalingrado."
Por causa daquelas cicatrizes, a sua cara mole e não muito redonda, como que amolgada, parecia mesmo um
pêssego ou uma maçã caídos da árvore e que, ao caírem, se racham e machucam e depois, quando se partem,
estão por dentro meio podres. Tinha olhos azuis, mas não bonitos, de um azul deslavado, inexpressivo, muito
claro, como que de vidro. S everino, entretanto, muito orgulhoso, explicava-nos que se tornara amigo daquele
Hans porque, por coincidência, Hans, na sua terra, em tempo de paz, era também alfaiate. A ssim, entre
alfaiates, tinham-se entendido, e ele contara-lhe o roubo e Hans prometera-lhe recuperar os tecidos, pois,
precisamente porque era alfaiate, podia compreender melhor do que qualquer outro as suas preocupações.
Resumindo, o alemão não era da polícia, não eram muitos alemães, mas um só, não se tratava de uma coisa
oficial, mas particular, entre amigos do mesmo ofício, ambos alfaiates. Mas o alemão estava fardado, tinha a
metralhadora a tiracolo e comportava-se como verdadeiro soldado; logo, todos ao desafio, lhe mostraram boa
cara. Um perguntava-lhe quanto tempo duraria a guerra, outro interrogava-o sobre a Rússia, onde ele tinha
estado, outro queria saber se os I ngleses dariam batalha ou se seriam os A lemães a tomar a ofensiva. Hans,
quanto mais perguntas lhe faziam, mais inchava de importância, como um balão vazio que alguém assopra.
D isse que a guerra ia durar pouco porque os A lemães possuíam armas secretas... que os Russos combatiam
bem, mas os A lemães combatiam melhor... que em breve os A lemães desencadeariam a ofensiva e lançariam os
I ngleses ao mar. Em suma, incutia respeito; Filippo, por fim, convidou-o para almoçar com S everino em sua
casa.
Eu também assisti ao almoço; já tinha almoçado, mas estava com curiosidade de ver aquele alemão, o
primeiro que aparecia lá em cima. Q uando cheguei, iam na fruta. Toda a família de Filippo estava presente,
menos Michele, que odiava os A lemães e pouco antes, quando Hans falava com bazófia da grande vitória que
em breve iriam alcançar sobre os I ngleses, o olhara, sombrio e ameaçador, como se quisesse saltar-lhe em cima
e dar cabo dele aos murros. A gora, graças ao vinho que bebera, o alemão ganhara mais confiança. N ão fazia
senão bater no ombro de S everino, repetindo que os dois eram alfaiates e amigos até à morte e iria fazer com
que lhe restituíssem as fazendas. D epois tirou do bolso a carteira e mostrou a fotografia duma mulher alta e
gorda, fazia dois dele, de cara bonacheirona; disse que era sua mulher. Voltaram a falar da guerra e Hans
repetiu: “Nós fazer ofensiva e lançar ao mar Ingleses.”
Filippo, que queria amansá-lo, lisonjeando o reforçou: “Pois claro, claro... deitam-nos ao mar, a todos... esses
assassinos.”
Mas o alemão respondeu: “Não, assassinos não, bravos soldados.”
E Filippo: “São bravos soldados, decerto, sabe-se, são bravos soldados.”
Mas o alemão volveu: “Tu admiras soldados ingleses... tu traidor.”
E Filippo, assustado: “Quem os admira?... Se disse que são assassinos.”
Mas o alemão estava implicativo.
“N ão assassinos, bravos soldados... mas traidores como tu que admiram I ngleses, kapu ”, e fazia o gesto de
cortar o pescoço.
Em suma, não gostava de uma coisa nem de outra, nunca estava satisfeito, e todos ficamos cheios de medo
porque de repente ele pareceu transtornado. D isse a S everino: “Porque não estás na frente de batalha?... N ós,
Alemães, combatemos e vocês, italianos, estão aqui... tu para a frente.”
Severino assustou-se e respondeu: “Fui licenciado... fraco do peito.”
E bateu no peito e era verdade, estivera muito doente e diziam até que tinha só um pulmão. O alemão,
porém, zangado, agarrou-o por um braço, dizendo!
“Agora vens já comigo para a frente,” Levantou-se e começou a puxá-lo.
S everino ficou branco e esforçava-se em vão por sorrir, e todos estavam consternados e eu tive tanto medo
que o coração parecia querer saltar-me do peito.
O alemão puxava pelo braço de S everino e este procurava resistir, agarrando-se a Filippo, que também
parecia assustado. Então, de repente, o alemão soltou uma risada e disse: “A migos... amigos... tu alfaiate e eu
alfaiate... tu recuperar os tecidos e ficar rico... eu ir à frente, fazer a guerra e morrer.”
E, sempre a rir, tornou a bater-lhe com a mão no ombro.
A mim esta cena causou-me uma impressão estranha, a impressão de me encontrar, não diante de um
homem, mas de um animal selvagem que ora ronrona ora mostra os dentes e não se sabe que intenções tem
nem como se há de lidar com ele. Parecia-me que S everino se iludia, tal como os que costumam dizer: “Este
animal conhece-me... a mim nunca me morde.”
E, como se provou, a sua confiança não tinha razão de ser.
D epois desta cena, o alemão tornou-se amável, bebeu mais vinho, bateu ainda não sei quantas vezes no
ombro de S everino, de tal modo que ao alfaiate lhe passou de todo o medo e, num momento em que o alemão
estava distraído, disse a Filippo: “Hoje mesmo terei as minhas fazendas... verás.”
D ali a pouco o alemão levantou se da mesa, tornou a pôr o cinturão, que tirara ao sentar-se, dizendo a rir
que tinha de alargar um furo por ter comido muito.
Depois voltou-se para Severino: “Nós ir lá abaixo e logo tu tornar aqui com os teus tecidos.”
S everino ergueu-se também, o alemão fez a saudação militar, batendo os calcanhares, e lá foi, muito
empertigado, na companhia de S everino, pelo carreiro abaixo, de socalco em socalco, a caminho do vale.
Filippo, que saíra com os outros pare os ver abalar, disse por fim, exprimindo o sentimento geral: “S everino
confia muito naquele alemão... mas eu, no seu lugar, não confiava tanto.”
Esperamos toda aquela tarde e parte da noite e S everino não voltou. N o dia seguinte fomos à casita onde ele
morava com a família e encontramos a mulher a chorar no escuro, com a filha ao colo. Estava com ela uma velha
camponesa, que fiava lã na sua roca e repetia de vez em quando, ao puxar o fio: “N ão chores, mulher... S everino
há de voltar, está descansada...”
Mas ela abanava a cabeça e respondia: “S into que ele não volta mais... senti-o logo uma hora depois de o ver
partindo”
Procuramos confortá-la, mas ela não fazia senão chorar, dizendo que era a culpada, pois o marido fizera
tudo aquilo por sua cause e por cause da filha, para terem boa vida, pare serem ricas, e ela devia tê-lo impedido
de comprar essas malditas fazendas. N ão havia nada a dizer; a verdade é que S everino não voltava e contra um
fato nada valem todas as boas palavras deste mundo. Estivemos a acompanhá-la o dia inteiro, ora dizendo uma
coisa ora outra, fazendo todas as suposições possíveis sobre o desaparecimento de S everino, mas ela
continuava a chorar e a repetir que o marido não voltaria mais. N o dia seguinte tornamos à casita, mas já não a
encontramos: de madrugada pegara na filha ao colo e descera ao vale, para saber o que tinha acontecido.
D epois, durante alguns dias não soubemos mais nada de S everino nem da mulher. Por fim, Filippo, que, a
seu modo, gostava de S everino, decidiu apurar o que se passava e mandou chamar N icola, um velho camponês
que já não trabalhava no campo e passava os dias com os garotos para cima e para baixo, nos socalcos.
disse-lhe o que queria: que fosse saber o que era feito de S everino, recomendando-lhe que devia ir ao lugar
do Uomo Morto, precisamente onde estavam instalados os fascistas que tinham roubado os tecidos. O velho, ao
princípio, não queria ir, mas Filippo prometeu-lhe trezentas liras e, como N icola, por dinheiro, era capaz até de
entrar num forno aceso, não disse mais nada e foi preparar o burro. D eclarou que voltaria no dia seguinte, que
dormiria em casa duns parentes, no campo, e pôs no alforge um pão e um bocado de queijo.
D espedimo-nos dele e o vimos partir, muito direito em cima da albarda, o chapeuzinho preto na cabeça, o
cachimbo na boca, escarranchado no burro, uma perna para cada lado, os tamancos com atilhos brancos.
Filippo recomendou-lhe que procurasse entre os fascistas um tal Tonto, que era o menos mau de todos, e o
velho disse que assim faria e lá foi.
Passou aquele dia e passou metade do dia seguinte. A o entardecer, eis que aparece no socalco o burro, que o
velho conduzia pela carreata, e, em cima da albarda, o Tonto. Chegaram e o Tonto desmontou: era um homem
de cara escura e magra, barba crescida, olhos melancólicos e encovados e nariz comprido e curvo.
Todos o rodearam logo e o Tonto parecia embaraçado, calava-se. O velho N icola, pegando na cabeçada do
burro, disse-nos então: “O alemão ficou com as fazendas e mandou o S everino trabalhar para as fortificações,
na frente de batalha, foi o que aconteceu.”
D epois de dizer isto, afastou-se e foi dar de comer ao animal. Ficamos todos varados... O Tonto estava à
parte, um pouco confundido: Filippo, irritado, disse-lhe: “E tu que vieste fazer cá acima?”
O Tonto avançou um passo e, muito humilde, volveu: “Filippo, não me julgue mal... vim cá para lhe ser
agradável. Quero contar-lhe como as coisas se passaram para não supor que fomos nós.”
Todos o olharam com antipatia, mas todos queriam saber o que sucedera; por fim, Filippo, embora de má
vontade, convidou-o a beber um copo em sua casa. O
Tonto aceitou e lá foram, e nós atrás, em procissão. N o quarto, o Tonto sentou-se em cima dum saco de
feijão e Filippo deu-lhe o vinho, ficando em pé diante dele; nós reunimo-nos na soleira da porta, também de pé.
O Tonto bebeu com calma e depois disse: “É inútil negar: fomos nós que levamos as fazendas... N estes tempos,
Filippo, cada um por si e D eus por todos... S everino julgava que tinha escondido bem as fazendas, mas éramos
muitos a saber onde estavam e então pensamos: se não formos nós, serão os alemães, uma denúncia depressa
se faz, é melhor portanto ficarmos com elas. E que mal havia nisso, Filippo?”, juntou as mãos e olhou para nós.
“Também temos família e, nos tempos que correm, todos pensamos em primeiro lugar na família e depois no
resto. N ão digo que tivéssemos feito bem, mas sim que o fizemos por necessidade. Você, Filippo, é
comerciante, S everino é alfaiate e nós... nós cá nos arranjamos... Mas S everino fez mal em recorrer aos alemães,
que não tinham nada com o assunto, Q ue diabo, Filippo, se S everino não quisesse ser malandro, podíamos
chegar a um acordo, por exemplo, vendermos as fazendas e dividirmos os lucros... ou então dávamos-lhe um
presente... entre conterrâneos, sempre se chegaria a acordo... Mas S everino quis fazer-nos mal e sucedeu o que
sucedeu. Veio aquele alemão duma figa e S everino disse-nos uma porção de ofensas e palavrões e logo o
alemão nos apontou a metralhadora, afirmando que tinha de fazer uma busca. N ós, que, em certo sentido,
dependemos dos A lemães, não pudemos opor-nos, O s tecidos apareceram e o alemão carregou-os no caminhão
em que tinham vindo ambos e lá se foi embora com S everino, que, ao partir, ainda nos gritou: ‘Há finalmente
justiça neste mundo!’ Sim, bonita justiça.
S abem o que fez o alemão? D ali a poucos quilômetros encontrou outro caminhão cheio de italianos
recrutados para irem trabalhar nas fortificações, na frente de combate. Então parou o caminhão e apontando-
lhe a metralhadora mandou descer o S everino e meteu-o no caminhão dos recrutados. E assim S everino, em vez
de recuperar as fazendas, foi mandado para frente e o alemão, que é alfaiate, vai enviar agora pouco a pouco os
tecidos para a A lemanha, onde abrirá com eles uma alfaiataria, rindo-se do S everino e de nós todos, A gora
pergunto eu, Filippo: para que meteu ele nisto os alemães? Entre dois litigantes, o terceiro é que aproveita... e
foi o que sucedeu, juro que é verdade.”
Filippo e todos nós, depois deste discurso do Tonto, ficamos silenciosos; também porque, entre tudo quanto
o Tonto dissera, havia aquele pormenor do recrutamento, de que ouvíramos falar, é certo, mas nunca tão clara e
tranquilamente, como de uma coisa normal. Por fim, Filippo ganhou coragem e perguntou o que era isso do
recrutamento. O Tonto respondeu com indiferença: “O s alemães andam por aí com um caminhão e levam
todos os homens que encontram aptos para o trabalho e mandam-nos para frente, para os lados de Cassino ou
Gaeta, a fortificar as linhas.”
“E como os tratam?”
Tonto encolheu os ombros: “Hum! Muito trabalho, barracas e pouca comida. J á se sabe como os A lemães
tratam os que não são alemães...”
Ficamos de novo em silêncio; mas Filippo insistiu: “Mas prendem os homens da planície... os refugiados que
estão nas montanhas, não os prendem, pois não?”
Tonto encolheu de novo os ombros: “E melhor não confiar muito nos A lemães... fazem como às alcachofras:
comem as folhas a uma e uma... Agora toca aos da planície, depois tocará aos da montanha.”
N inguém pensava já em S everino: todos tinham medo e cada qual pensava em si próprio. Filippo
perguntou: “Mas como sabes tu essas coisas?”
Tonto respondeu: “S ei-as porque tenho de tratar todos os dias com os alemães... O ra prestem-me atenção:
ou se alistam na Milícia, como nós, ou aconselho-os a esconderem-se bem... mas muito bem... doutro modo os
alemães apanham-nos uns a seguir aos outros.”
D epois deu algumas explicações: os alemães primeiro agiam na planície, arrebanhando todos os homens
aptos para o trabalho; em seguida passavam às montanhas e agiam da seguinte forma: de manhã cedinho,
ainda escuro, uma companhia de soldados subia ao cimo de um monte; depois, chegado o momento, por volta
do meio-dia, descia para o vale, espalhando-se em leque por toda a vertente de maneira que os que estavam,
suponhamos, a meia encosta, como nós, ficavam presos como os peixes numa grande rede.
“Eles pensam em tudo!”, observou nessa altura um, com voz apavorada.
Tonto agora estava já senhor de si e quase se tornava descarado. Tentou, por isso, a léria das recomendações
com Filippo, que sabia ser o mais endinheirado: “Mas, se chegarmos os dois a acordo, posso dar uma
palavrinha, a favor do teu filho, ao capitão alemão, que conheço muito bem...”
Talvez Filippo, deveras receoso, aceitasse discutir o caso. Mas, inesperadamente, Michele avançou para ele e
disse-lhe com dureza: “Porque esperas para te ires embora?”
Todos emudeceram, surpreendidos, tanto mais que Tonto estava armado com bombas e espingarda e
Michele não tinha qualquer arma. Mas, não sei porquê, o Tonto ficou subjugado com aquele tom. D isse,
relutante: “Bem, se é assim. arranjem-se como puderem... eu vou indo.”
D epois levantou-se e saiu. Todos o seguiram e Michele, antes de ele desaparecer, gritou-lhe do alto do
socalco: “Em vez de andares a oferecer os teus serviços, pensa em ti... os alemães qualquer dia tiram-te a
espingarda e mandam-te trabalhar, como ao Severino.”
O Tonto voltou se e fez-lhe uma figa. Nunca mais o vimos.
D epois de o Tonto se ter ido embora, fomos com Michele para o nosso casinhoto. Rose a e eu
comentávamos o caso, lamentando o pobre S everino, que perdera primeiro as fazendas e a seguir a liberdade.
Michele, com ar sombrio, estava calado, de cabeça baixa, mas de repente encolheu os ombros e disse: “Foi bem
feito!”
Protestei: “Como podes dizer uma coisa dessas? A quele pobre ficou arruinado e agora talvez deixe lá a
pele.”
Ele não respondeu logo e só passado um momento gritou: “Enquanto não perderem tudo, não
compreenderão nada... Têm de perder tudo e sofrer e chorar lágrimas de sangue... só então estarão maduros.”
Objetei: “Mas o Severino nem sequer fez aquilo por interesse, fê-lo por causa da família...”
Michele pôs-se a rir, mesmo com maldade: “A família!... A grande desculpa para todas as patifarias neste
país... Pois bem, tanto pior para a família."
Michele, já que estou a falar dele, tinha na verdade um caráter curioso. Dois dias depois do desaparecimento
definitivo de S everino, falando nós disto ou daquilo, veio a propósito eu dizer que como era inverno e anoitecia
cedo. N ão sabia o que fazer para passar o tempo. Michele lembrou então que, se quiséssemos, nos podia ler
qualquer coisa em voz alta. A ceitamos, satisfeitas, embora estivéssemos pouco habituadas a leituras, como me
parece que já o dei a entender. Mas naquela situação até os livros podiam servir para nos distrairmos. Eu,
julgando que ele pretendia ler-nos algum romance, recordo-me de lhe ter perguntado: “O que é? Uma história
de amor?”
Michele respondeu, com um sorriso: “Muito bem, acertaste, é mesmo uma história de amor.”
Ficou combinado que Michele nos leria um livro em voz alta, nessa noite, depois da ceia, que comíamos
sempre dentro da cabana, a uma hora em que não sabíamos como matar o tempo.
Lembro-me muito bem dessa noite, que ficou gravada na minha memória, não sei porquê, talvez porque
Michele revelou então uma particularidade do seu caráter que eu não conhecia. Revejo a cena, nós duas e a
família de Paride, todos sentados sobre cepos e bancos em volta do fogo meio apagado, quase no escuro, a
lamparina de azeite pendurada atrás de Michele para ele poder ler. A cabana era mesmo tenebrosa: do teto de
ramos secos pendiam farripas negras de fuligem, que balançavam ao mais leve sopro; ao fundo, quase
submersa na escuridão, estava sentada a mãe de Paride, até parecia a bruxa de Benevento, tão velha e enrugada
era, sempre a fiar lã com a roca e o fuso. Rose a e eu estávamos contentes por causa da leitura; mas Paride e a
família não tanto, pois, após um dia inteiro de trabalho, mal chegava a noite ficavam a cabecear com sono e às
vezes iam logo para a cama. As crianças dormiam já, aninhadas ao pé das mães.
Michele disse-me, antes de começar, tirando um livrinho do bolso: “Cesira, querias uma história de amor e
vou ler precisamente uma história de amor.”
Uma das mulheres, mais por cortesia do que por curiosidade, perguntou se era uma história verdadeira ou
inventada e ele então respondeu que talvez fosse inventada, mas era como se realmente tivesse acontecido.
Entretanto abria o livrinho e ajeitava os óculos no nariz. Por fim anunciou que ia ler alguns episódios da vida de
J esus, no Evangelho. Ficamos todos pouco à vontade, porque esperávamos um verdadeiro romance; além disso,
tudo o que trata de religião parece sempre aborrecido, talvez porque as coisas da religião as fazemos mais por
dever do que por prazer. Paride, interpretando o sentimento geral, observou que todos conhecíamos a vida de
J esus e por isso a leitura não nos daria novidades. Rose a não disse nada; mais tarde, porém, quando
estávamos no nosso casinhoto, sozinhas, comentou: “S e ele não acredita em J esus, porque não o deixa em
sossego?”, quase aborrecida, mas não hostil, pois simpatizava com Michele, muito embora não o
compreendesse verdadeiramente, como aliás ninguém lá em cima.
Michele, às palavras de Paride, limitou-se a responder com um sorriso: “Tens a certeza?” D epois anunciou
que ia ler o episódio de Lázaro, acrescentando: “Lembram-se quem era?”
O ra todos nós já ouvíramos falar deste Lázaro, mas à pergunta de Michele apercebemo-nos de que não
sabíamos bem quem era nem o que tinha feito. Talvez Rosetta soubesse, mas também desta vez ficou calada.
“Bem”, disse Michele com tranquilo ar de triunfo, “dizem que conhecem a vida de J esus e nem sequer
sabem quem foi Lázaro... N o entanto, este episódio está pintado, como muitos outros, nos quadros da Paixão
que há nas igrejas... até na igreja de Fondi, lá em baixo...”
Paride, pensando talvez que estas palavras envolviam para ele uma censura, observou: “Mas sabes que para
ir à igreja, lá em baixo no vale, é preciso perder um dia?... N ós temos de trabalhar e não podemos desperdiçar
um dia, nem mesmo para ir à igreja.”
Michele não lhe respondeu e começou a ler. Como estou certa de que o episódio de Lázaro é conhecido de
todos os que lerem as minhas recordações, não o transcrevo aqui, tanto mais que Michele o leu sem fazer
comentários: os que o não conhecem, podem lê-lo no Evangelho. Limitar-me-ei a observar que, à medida que a
leitura prosseguia, em volta de Michele as caras dos camponeses exprimiam, cada vez mais, se não
aborrecimento, pelo menos indiferença e desilusão. Esperavam uma bonita história de amor e, em vez disso,
ele lia-lhes a história dum milagre, no qual, ainda por cima, pelo menos assim me pareceu, não acreditavam,
como de resto não acreditava o próprio Michele. Mas havia uma certa diferença enquanto os ouvintes se
aborreciam, tanto que duas mulheres tinham começado a cochichar, rindo baixinho, uma terceira não fazia
senão bocejar e o próprio Paride, sem dúvida o mais atento, mostrava, curvado para frente, uma cara
absolutamente obtusa e insensível, Michele, por seu lado, à medida que avançava na leitura, parecia comover-se
com aquele milagre em que não acreditava. Q uando chegou à frase: “E J esus disse: eu sou a ressurreição e a
vida”, interrompeu-se um momento e todos pudemos ver que parara porque não podia continuar a ler com os
olhos rasos de lágrimas. Compreendi que ele chorava por causa do que lia, pois, como logo a seguir se tornou
claro, o relacionava de algum modo com a nossa presente situação; mas uma daquelas mulheres que se
aborreciam a ouvi-lo estava tão longe de pensar que o episódio de Lázaro lhe pudesse provocar aquelas
lágrimas que observou, solícita: “I ncomoda-te o fumo, Michele?... A qui há sempre muito fumo... Bem, já se
sabe, estamos numa cabana...”
Para compreender bem esta frase é preciso ter presente, e parece-me que já aludi a isso, que o fumo do
braseiro não saía pela abertura da chaminé, que não existia, mas sim, muito devagar, através dos ramos secos
do telhado, estagnando durante bastante tempo dentro da cabana. Por isso, muitas vezes acontecia chorarem
todos os que lá se encontravam, incluindo os dois cães, a gata e os gatinhos. A quela mulher pretendera
desculpar-se do fumo, por amabilidade, mas Michele, de repente, limpou as lágrimas e começou a gritar de
uma forma imprevista: “Q ual fumo nem qual cabana... eu não leio mais porque vocês não compreendem... e é
inútil tentar fazer compreender quem nunca o conseguirá.
Porém, lembrem-se disto: cada um de vocês é Lázaro... e eu, ao ler a história de Lázaro, li a vossa história, a
história de todos... de ti Paride, de ti Luisa, de ti Cesira, de ti Rose a e também a de mim próprio, e a de meu
pai, e a daquele patife do Tonto, e a do pobre S everino com as suas fazendas, e a dos refugiados, que estão cá
em cima, e a dos alemães e fascistas que estão no vale, em suma, a de todos...
todos estão mortos, estamos todos mortos e julgamos Ester vivos... Enquanto nos julgarmos vivos porque
temos as nossas fazendas, o nosso medo, as nossas preocupações, as nossas famílias, os nossos filhos,
estaremos mortos... S ó no dia em que nos apercebermos de que estamos mortos, mais do que mortos,
putrefatos, decompostos, cheirando a cadáver a uma légua de distância, somente então começaremos a viver...
Boa noite.”
D ito isto, levantou-se, atirando ao chão a lamparina de azeite, que se apagou, e saiu batendo com a porta,
Ficamos todos no escuro, estupefatos. Por fim, Paride, depois de muito procurar, lá conseguiu encontrar a
lamparina e acendeu-a, Mas ninguém sentiu vontade de comentar aquela fúria de Michele; Paride disse
somente, com o ar embaraçado e soma de camponês que julga saber tudo: “Michele fala bem e depressa... é
filho de burgueses, não é camponês...”
S uponho que também as mulheres pensavam o mesmo: tudo aquilo eram coisas de senhores que não cavam
nem ganham a vida com o suor do seu rosto.
Concluindo, demos as boas-noites e fomos para a cama. Michele, no dia seguinte, fingiu não se recordar já
da cena, mas nunca mais se ofereceu para nos ler em voz alta.
N essa ocasião, porém, confirmei a opinião que formara de Michele no dia em que ele nos disse que, em
rapaz, pensara a sério em ser padre. N a realidade, como então pensei, apesar de todos os seus discursos contra
a religião, Michele assemelhava-se mais aos padres do que aos homens vulgares, como Filippo e os outros
refugiados. Por exemplo, aquela sua fúria quando se deu conta, ao ler o episódio de Lázaro, de que os
camponeses não o compreendiam, não o escutavam e se aborreciam, com uma pequena troca de palavras
poderia tê-la qualquer pároco de aldeia durante a prédica do domingo, ao aperceber-se, enquanto gesticulava
no púlpito, de que os paroquianos, na igreja, estavam distraídos e não lhe prestavam atenção. Era, no fim das
contas, a fúria dum padre que considera todos os outros mortais como pecadores que é necessário instruir e
levar ao bom caminho, e não a de um homem que se julga semelhante aos outros homens.
Para terminar as minhas observações sobre o caráter de Michele, quero contar outro pequeno episódio que
confirma tudo quanto acabo de dizer. Como já mencionei, ele nunca falava de mulheres nem de amor e parecia
não ter nenhuma experiência a esse respeito. N ão apenas por falta de ocasião, mas, como se compreenderá pelo
que vou contar, principalmente por ser, neste capítulo, muito diferente dos rapazes da sua idade. O caso foi o
seguinte: Rose a adquirira o costume de todas as manhãs, mal saltava da cama, tirar a roupa e lavar-se
completamente nua. Eu ia buscar ao poço um balde cheio de água e lhe dava; ela deitava metade dessa água por
cima da cabeça, em seguida ensaboava o corpo todo e por fim despejava a outra metade. Rose a era muito
asseada e a primeira coisa que quis que eu comprasse aos camponeses, mal chegamos a S anta Eufêmia, foi o
sabão que eles faziam em casa, e continuou a lavar-se assim, mesmo no pino do inverno, quando lá em cima
fazia um frio próprio de montanha e de manhã a água do poço estava tão gelada que o balde saltava no gelo
antes de o partir e a corda quase me cortava as mãos. Esse balde cheio de água, despejado por cima da cabeça,
verifiquei-o nas poucas vezes que quis imitar Rose a, tirava-me a respiração e fazia-me estar de boca aberta um
minuto, sem falar. Pois numa dessas manhãs Rose a tinha-se lavado, como era seu costume, e estava a
esfregar-se fortemente com a toalha, perto da cama, com os pés em cima duma tabuinha para os não sujar na
lama do chão. A minha filha tinha um corpo robusto, como mal se podia imaginar pelo seu rosto meigo e
delicado, de olhos grandes, nariz um pouco comprido e boca carnuda a sobressair do queixo fugidio que a fazia
parecer uma cordeirinha. Tinha o peito não muito grande mas desenvolvido como uma mulher feita que já
tivesse sido mãe, os seios cheios e brancos, como se tivessem leite, os biquinhos escuros muito arrebitados,
como que a procurar a boca de um neném acabado de dar à luz. O ventre, ao contrário, era mesmo o duma
rapariga virgem: liso, plano quase encovado. Pelas costas, então, era verdadeiramente bela, parecia uma
estátua, daquelas de mármore branco que se veem nos jardins públicos de Roma espáduas cheias e redondas,
dorso longo e ao fundo uma pronunciada curva, como a duma égua jovem, a dar relevo às nádegas brancas,
redondas e musculosas, tão bonitas e asseadas que me dava vontade de as comer com beijos, como quando ela
tinha dois anos. S empre pensei que um homem, ao ver a minha Rose a nua, de pé, a esfregar com uma toalha,
curvados rins, fazendo tremer um pouco, a cada movimento, o lindo peito sólido e alto, devia ao menos
perturbar-se, ficar vermelho ou pálido, conforme o temperamento. E isto porque se pode ter o pensamento
noutra coisa, mas, no momento em que uma mulher se apresenta nua, todos os pensamentos voam como
passarinhos de uma árvore quando se dispara um tiro: e não fica senão a perturbação do macho diante da
fêmea. O ra Michele, não sei como, numa dessas manhãs em que Rose a estava, como disse, a limpar-se, toda
nua, a um canto do casinhoto, veio procurar-nos e, sem bater, empurrou a porta, entreabrindo-a. Eu estava
sentada logo à entrada e poderia avisá-lo, gritando-lhe: “N ão entres, Rose a está a lavar-se!” N o entanto,
confesso, quase não me desagradou que ele entrasse, assim de improviso, e isto porque uma mãe tem sempre
orgulho da filha e, nesse momento, mais forte do que a surpresa, e mesmo do que a reprovação, foi a minha
vaidade de mãe. Pensei: “Vai vê-la nua... pouco mal faz, tanto mais que não é de propósito... verá como a minha
Rosetta é bonita!”
Com este pensamento na cabeça, fiquei calada; e ele, iludido pelo meu silêncio abriu a porta de par em par e
ficou em frente de Rose a, que entretanto procurava em vão cobrir-se com a toalha. Eu observava-o: vi o um
momento indeciso, quase aborrecido por ver Rose a assim nua: depois voltou-se para mim, dizendo à pressa
que o desculpasse, talvez fosse ainda muito cedo, mas de qualquer forma queria dar-nos a grande novidade que
ouvira nesse mesmo instante a um rapaz de Pontecorvo que andava na montanha a vender tabaco: os Russos
tinham desencadeado uma grande ofensiva contra os A lemães e estes retiravam em toda a frente. A crescentou
que tinha que fazer, ver-nos-ia mais tarde e foi-se. N esse mesmo dia encontrei maneira de lhe falar a sós e
disse-lhe a sorrir: “Tu, Michele, verdadeiramente não és como os outros rapazes da tua idade...”
Ele toldou-se um pouco e perguntou: “Porquê?”
E eu: “Tiveste diante dos olhos uma bonita rapariga como Rose a, toda nua, e só pensaste nos Russos e nos
Alemães e na guerra: pode dizer-se que nem sequer a viste.”
Ele ficou de mau humor, ou, antes, quase se zangou, e disse: “Q ue tolice é essa? A dmiro-me que sejas tu, a
mãe dela, a falar dessa maneira.”
Eu volvi-lhe então: “Também o escaravelho é bonito para a mãe, não sabias, Michele? E que tem isso? Por
acaso te disse que viesses cá esta manhã e entrasses sem bater? Mas, como entraste, talvez me zangasse se
tivesses olhado Rose a com demasiada insistência, mas, no fundo, porque sou mãe, não me desagradaria de
todo. Em vez disso, nada, nem sequer a viste...”
Michele sorriu, um sorriso forçado, depois afirmou: “Para mim essas coisas não existem.”
E foi esta a primeira e a última vez que falamos em tal assunto.
CAPÍTULO V
D epois da visita do Tonto e das suas ameaçadoras previsões de recrutamentos, começou a chover. D urante
todo o mês de outubro estivera um tempo lindíssimo, céu sereno e ar fresco, limpo e sem vento. Com esse
tempo, naqueles dias sem fim que passávamos lá em cima, havia ao menos a distração dum passeio qualquer
ou, simplesmente, estar ao ar livre a contemplar o panorama de Fondi. Mas numa daquelas manhãs o tempo
mudou de repente: quando nos levantamos, fazia calor, e ao olharmos para o lado do mar, vimos tudo enevoado
e muitas nuvens enormes e negras suspensas sobre o mar cinzento como por cima duma panela a ferver. Essas
nuvens não tardaram a invadir todo o céu ainda no decorrer da manhã, empurradas por vento fraco e úmido,
soprando também do mar.
O s refugiados, entendidos em todas mudanças, pois tinham nascido para aqueles lados, disseram-nos que
essas nuvens significavam que a chuva duraria enquanto o siroco, vento que sopra do mar, não fosse
substituído pela tramontana. E de fato assim foi: por volta do meio-dia começaram a cair as primeiras gotas e
nós encafuamo-nos na casota à espera de que a chuva parasse.
S im, é o pares... Choveu todo aquele dia e toda a noite e no dia seguinte o mar estava mais sujo do que
nunca e o céu era todo ele um novelo de nuvens escuras que encarapuçavam as montanhas, e subiam do vale,
com as rajadas de vento úmido, mais nuvens prenhes de chuva. D epois de uma breve interrupção, tornou a
chover, e desde então, não sei quantos dias, talvez mais de um mês, choveu sempre dia e noite.
Para quem mora na cidade, a chuva não tem importância. S e sai, caminha no passeio ou no asfalto, debaixo
de um guarda-chuva; se está em casa, anda em pavimentos de madeira ou de mármore. Mas lá em cima em
S anta Eufêmia, no socalco e nas cabanas, a chuva era um verdadeiro castigo de D eus. Estávamos todo o dia em
case, naquela toca escura de teto inclinado, com a porta aberta porque não havia janelas, a olhar para a chuva
que caía e formava diante da porta um véu úmido e fumegante. E ali ficávamos, eu sentada na cama e Rose a
na cadeira que me dispensara Paride (pagando-lhe eu um tanto pelo aluguer, é claro), a olhar para fora,
aparvalhadas, sem dizer nada; se falávamos, era da chuva e dos seus inconvenientes. S air, nem pensar nisso. S ó
deixávamos o casinhoto em último caso, por exemplo, para ir buscar lenha ou satisfazer as necessidades
naturais e a este respeito, embora o assunto não seja muito simpático, devo dizer que quem nunca fez esta vida
e mora na cidade, onde todas as habitações têm uma retrete e até uma casa de banho, não imagina o que seja
viver num lugar onde não há nada disso. D uas ou três vezes por dia, pelo menos, as duas tínhamos de ir lá fora,
ao socalco, procurar uma sebe, atrás da qual levantávamos as saias e nos púnhamos de cócoras; assim mesmo,
como os animais. Papel higiênico não havia, naturalmente, nem sequer jornais ou coisa parecida; assim,
adquiríramos o hábito de arrancar as folhas duma figueira que ficava mesmo ao lado da casota e limpávamo-
nos com elas, Com a chuva, naturalmente, tudo isto se tornou muito mais difícil e desagradável andar no
campo, afundando os pés na lama até ao tornozelo, e depois, debaixo de chuva, levantar as saias e sentir a água
fria e incômoda bater na carne nua, e ter de se limpar em seguida a uma folha da figueira toda molhada e
viscosa, tudo isto são coisas que não desejo a ninguém, nem ao meu maior inimigo, A crescente-se que a chuva
era tão aborrecida lá fora como dentro de casa; como não havia pavimento no casinhoto, a lama era tanta que,
de manhã, ao sairmos da cama, tínhamos de saltar como rãs daqui para além, por cima dumas pedras colocadas
de propósito no chão, pois doutro modo ficaríamos com os pés emporcalhados, da cor do chocolate. Em suma, a
chuva penetrava em toda a parte, deixando uma umidade impossível de descrever: qualquer coisa que
fizéssemos, mesmo o menor movimento, descobríamos logo que estávamos salpicadas de lama, nas saias, nas
pernas e não sei onde mais.
Lama no chão e chuva no céu; Paride e a família estavam habituados e consolavam-se dizendo que essa
chuva era normal e necessária e todos os anos vinha e não havia nada a fazer senão esperar que parasse. Mas
para nós as duas era mesmo um tormento, pior do que tudo quanto tínhamos sofrido até então. Mas ainda o
maior de todos os males é que os I ngleses, devido ao mau tempo, pararam em Garigliano e já não falavam em
avançar. N aturalmente, mal os I ngleses renunciaram a avançar, os A lemães, como depois soubemos, decidiram
não retirar e entrincheiraram-se onde estavam.
N ão compreendo nada de guerras nem de batalhas; sei somente que, numa daquelas manhãs de chuva,
chegou lá acima um camponês, todo ofegante, com uma grande folha de papel impressa: era uma ordem que os
A lemães tinham afixado em todas as localidades habitadas, Michele leu a e explicou-nos o que continha: o
comando alemão decidira mandar evacuar toda a zona entre o mar e a montanha, incluindo a terra onde nos
encontrávamos e que de fato vinha mencionada no papel, Para cada localidade indicava o dia em que devia
realizar-se a mudança. N inguém podia levar consigo malas nem sacos, mas apenas alguma coisa de comer, Em
resumo, todos tinham de abandonar casas, cabanas, animais, alfaias, móveis e outros haveres, pegar nos filhos
ao colo e caminhar pelos montes, por carreiros impossíveis, debaixo de chuva, recuando sempre em direção a
Roma, E naturalmente esses safados dos A lemães, esses filhos duma cabra, ameaçavam com as penas do
costume quem não obedecesse: prisão, confiscação, deportação, fuzilamento. A nossa terreola estava indicada
para ser completamente evacuada dentro de quarenta e oito horas. D aí a quatro dias toda a região devia estar
desabitada para A lemães e I ngleses terem espaço suficiente para poderem matar-se uns aos outros mais à
vontade.
Filippo e os restantes refugiados, tal como os camponeses, tinham-se habituado já a considerar os A lemães
como a única autoridade que existia agora na I tália; assim, a sua primeira reação foi mais de desespero do que
de revolta, O s A lemães queriam qualquer coisa impossível, mas eram eles a autoridade e, como não havia
outra, tinham de obedecer, ou então... ou então não sabiam o que fazer...
O s refugiados, que já tinham abandonado as suas casas de Fondi, sabiam o que significa fugir e, ante a
perspectiva de andarem de novo pelos carreiros das montanhas, naquela estação gelada, com a chuva que não
parava de cair de manhã até à noite, com a lama que tornava impossível caminhar, não só até Roma, mas
mesmo até o fundo do socalco, sem destino, sem guia, sem lugar certo para onde ir, entregaram-se ao
desespero. A s mulheres choravam e os homens praguejavam e diziam palavrões ou ficavam abatidos e calados.
O s camponeses como Paride e as outras famílias, pelo seu lado, tudo gente que penara uma vida inteira a
construir com as próprias mãos aqueles socalcos, a cultivá-los, a erguer as casas e as cabanas, mais do que
desesperados, estavam, sim, estupefatos: quase não acreditavam. Um repetia: “E para onde vamos?” O utro
queria que lhe lessem novamente o edital, palavra por palavra. O utro dizia, depois de lho terem lido: “N ão
pode ser. É impossível!” Pobrezinhos, não compreendiam que para os A lemães o impossível não existia, tanto
mais quando se tratava do mal dos outros.
A cunhada de Paride, a A nita, cujo marido estava na Rússia e tinha três filhos pequeninos, exprimiu o
sentimento geral declarando de repente, sem ênfase, antes com calma: “Eu, em vez de me ir embora, mato
primeiro os filhos e dou cabo de mim em seguida.”
E percebi que ela não dizia aquilo por desespero, mas sim porque compreendia que andar com três filhos
pequeninos, em pleno inverno, pelos carreiros da montanha significava condená-los à morte: mais valia
portanto matá-los logo, sofriam menos.
O único que não perdeu a cabeça nessa ocasião foi Michele e creio que isso se devia ao fato de ele não
reconhecer a autoridade dos A lemães, considerando-os, como dizia muitas vezes, bandidos, malfeitores e
delinquentes, que provisoriamente eram os mais fortes porque tinham armas e se serviam delas. D epois de ler
a proclamação do comando alemão, limitou-se a dizer, com um riso sarcástico: “Q uem dizia que os I ngleses e
os Alemães são a mesma coisa e tanto valem uns como outros dê um passo em frente.”
N inguém fugiu nem mugiu, e menos ainda Filippo, o pai dele, a quem essas palavras eram dirigidas.
Estávamos todos reunidos na cabana, em volta do fogo, e Paride observou-lhe: “Tu troças de tudo, Michele, mas
para nós isto significa a morte... temos aqui as casas, os animais, as alfaias, temos aqui tudo... se nos vamos
embora, o que vai ser de tudo isto?”
Michele, como já tive ocasião de dizer, era um tipo curioso, bom e ao mesmo tempo duro, generoso, se
quisermos, mas também cruel. Pôs-se a rir de novo e disse: “Bem, perdem tudo quanto têm e depois morrem...
o que há nisso de extraordinário?... N ão perderam tudo e não morreram os Polacos, os Franceses, os
Checoslovacos, em suma, todos os que sofreram a ocupação alemã?... A gora toca-nos a nós, I talianos...
Enquanto isso sucedia aos outros, ninguém abriu o bico...
Agora toca-nos a nós... hoje a mim, amanhã a ti...”
Todos ficaram consternados ao ouvir estas palavras e Filippo mais do que nenhum outro, pois, via-se bem,
todo ele tremia de medo. D isse ao filho: “Estás sempre a brincar... mas bem vês que não é momento próprio
para brincadeiras.”
E Michele: “Mas que te importa? Não disseste que para ti Alemães e Ingleses eram a mesma coisa?”
Filippo então perguntou: “Em resumo, o que vamos fazer?”
E, pela primeira vez, vi que toda a sua sabedoria, baseada na frase “aqui ninguém é tolo”, não valia o fumo
de um cigarro, não só para nós, mas para ele também. Michele encolheu os ombros: “O s A lemães não são os
senhores? Pois vão ter com eles e perguntem-lhes o que devem fazer... Claro, eles dirão que cumpram o que
está escrito no papel.”
Paride nessa altura pronunciou uma frase mais ou menos como a de A nita sobre os filhos: “Eu agarro a
espingarda e, assim que vir o primeiro alemão, mato-o... depois, eles matam-me também, mas paciência... ao
menos não vou sozinho para o outro mundo...”
Michele riu e comentou: “Bravo, começas a raciocinar como deve ser.”
Ficamos todos indecisos, enquanto Michele continuava a troçar e os outros olhavam aparvalhados para o
fogo que se apagava. Por fim Michele pôs-se sério e disse: “Querem saber o que têm a fazer?”
Todos o olharam cheios de esperança. Michele prosseguiu: “N ão devem fazer nada, eis tudo. Façam de
conta que não viram este edital.
Fiquem onde estão, continuem a vida do costume, ignorem os A lemães e as suas proclamações e as suas
ameaças. S e eles quiserem evacuar esta região, terão de o fazer à força, e não com bocados de papel, que não
valem nada. O s I ngleses também têm força; porém, por causa do mau tempo, não podem empregá-la e
pararam. O mesmo acontece aos A lemães. S e ninguém se mexer donde está, hão de pensar duas vezes antes de
mandar os soldados cá acima, por esses carreiros fora. E, se vierem, terão de nos levar em charola. Façam-se
surdos. D epois veremos. N ão sabem que os A lemães e os fascistas põem editais por toda a parte, ameaçando
sempre com a pena de morte quem lhes não obedecer? Eu próprio estava mobilizado em 25 de J ulho e desertei;
depois eles fizeram uma proclamação ordenando, sob pena de morte, que nos apresentássemos na repartição
respectiva.
E eu, em vez de ir apresentar-me, vim para aqui. Façam pois como eu fiz, não se mexam.”
Era o mais simples, o pensamento mais justo naquela ocasião; mas a ninguém lhe passara tal ideia pela
cabeça, pois, como já disse, todos consideravam os A lemães a única autoridade e todos tinham necessidade
duma autoridade, fosse ela qual fosse; além disso, quando uma coisa está impressa no papel, ninguém se atreve
a fazer-lhe a mais pequena objeção.
Mas foram para a cama nessa noite já quase sossegados, pelo menos com mais confiança do que quando se
levantaram de manhã, e no dia seguinte, como que por milagre, não se tornou a ouvir falar dos A lemães nem
do edital. Foi como se todos tivessem passado palavra uns aos outros para não falarem no assunto, continuando
a vida como se nada tivesse acontecido. Passaram os dias e viu-se que Michele tinha razão, pois ninguém se
mexeu em Santa Eufêmia nem, segundo soubemos, nos outros lugares das proximidades; os Alemães mudaram
de ideias, renunciando à evacuação, pois não ouvimos falar mais dos editais.
Q uantos dias choveu? Eu digo que choveu pelo menos durante quarenta dias, como no dilúvio universal. E,
além da chuva, fazia também frio, pois estávamos no inverno e aquele vento, que vinha do mar em rajadas
cheias de umidade e nevoeiro, era gelado e a água que as nuvens descarregavam todos os dias na montanha
parecia uma mistura de neve e gelo e feria a cara como se a picassem com alfinetes. Para nos aquecermos no
quartinho não tínhamos senão uma braseira cheia de carvão miúdo que púnhamos ao pé dos joelhos, mas a
maior parte do tempo estávamos metidas na cama, enroscadas uma na outra, ou então na cabana, no escuro,
diante do fogo sempre aceso. Chovia toda a manhã; por volta do meio-dia havia uma aberta, mas insuficiente,
com todas aquelas nuvens franjadas e rasgadas suspensas no céu como que para tomarem fôlego e o mar mais
sujo e mais nebuloso do que nunca; à tarde continuava a chover e chovia até à noite e depois durante toda a
noite. N ós as duas estávamos sempre com Michele, ele falava e nós ouvíamos. D o que falava? D e tudo um
pouco, gostava de falar, tinha o ar de um professor ou de um pregador e muitas vezes lhe disse: “É pena que
não tenhas estudado para padre, Michele... Que lindas prédicas farias aos domingos.”
Com isto não quero dizer que fosse um palrador; dizia sempre alguma coisa que interessava, ao passo que
os palradores se tornam aborrecidos e às duas por três já ninguém os ouve; a ele dava-nos sempre vontade de o
escutar e por vezes até me sucedia suspender o trabalho de malha para ouvir melhor alguns dos seus
raciocínios. Q uando falava, não dava atenção a mais nada, nem ao tempo que passava, nem à lâmpada que se
extinguia, nem ao fato de eu e Rose a podermos querer estar sozinhas por qualquer motivo particular.
Prosseguia, entusiasmado, monótono, cheio de boa-fé, e quando o interrompia, dizendo: “Bem, são horas de
jantar”, ficava mal disposto, desconcertado, com um modo sombrio que parecia significar: “Eis para que serve
falar com mulheres ignorantes e fúteis... Só para perder tempo...”
D urante aqueles quarenta dias de chuva não sucedeu nada de notável, a não ser o caso que vou contar e diz
respeito a Filippo e ao seu meeiro Vincenzo. N uma daquelas manhãs de chuviscos em que o céu, como de
costume, era todo um novelo de nuvens escuras que subiam sem cessar do panelão do mar, eu e Rose a fomos
assistir à matança duma cabra que Filippo comprara a Paride e tencionava vender-nos a retalho, depois de ficar
com uma parte para ele. A cabra, branca e preta, estava amarrada a um pau e os refugiados, como não tinham
nada que fazer, observavam-na, calculando-lhe o peso e quanta carne ficaria depois de lhe tirarem a pele e a
limparem. Rose a, enquanto estávamos ali de pé debaixo da chuva fina, com os sapatos na lama, disse-me
baixinho: “mamãe, aquela pobre cabra faz-me pena... agora está viva, mas daqui a pouco matam-na... se
dependesse de mim, não a matariam.”
Respondi-lhe: “E que comerias depois?”
Ela volveu: “Pão e hortaliça... que necessidade há de comer carne? Eu também sou feita de carne e a minha
carne não é, no fundo, muito diferente da carne desta cabra...
Que culpa tem ela de ser um animal e não poder raciocinar nem defender-se?”
Cito por completo as palavras de Rose a sobretudo para dar uma ideia de como ela raciocinava e pensava
ainda naquele tempo, em plena guerra e com a carestia. Talvez pareçam palavras um pouco ingênuas ou tolas,
mas testemunham a perfeição a que já aludi, muito sua, na qual não se conseguia descobrir nenhum defeito, tal
qual como uma santa, e que talvez resultasse da sua inexperiência e ignorância, mas, em qualquer dos casos,
sincera e do coração. Mais tarde, como já disse, percebi que essa perfeição era frágil e quase artificial, como a de
uma flor crescida numa estufa, que, uma vez levada para o ar livre, imediatamente murcha e morre; mas
naquele momento não pude deixar de me enternecer e de pensar que tinha uma filha muito boa e sensível e
que não fizera nada para a merecer.
Entretanto, o açougueiro, um tal I gnazio, de quem se podia julgar tudo menos que tivesse aquele oficio, um
tipo melancólico e indolente, com uma madeixa de cabelos grisalhos caída para a testa, bigodes compridos e
olhos azuis encovados, tirara o casaco, ficando em mangas de camisa. N uma mesinha junto do pau onde a
cabra estava amarrada tinham-lhe posto duas facas e uma tigela, mesmo como nos hospitais quando se faz uma
operação. I gnazio pegou numa das facas, experimentou o fio na palma da mão, depois aproximou-se da cabra e
agarrou-a pelos chifres, puxando-lhe a cabeça para trás. A cabra revirava os olhos, até parecia irem-lhe sair das
órbitas, cheia de medo, dir-se-ia compreender tudo, e soltava balidos que soavam mesmo como lamentos.
Parecia dizer: “N ão me mates, tem piedade!” Mas I gnazio mordeu o lábio inferior e dum só golpe espetou-lhe a
faca nas goelas, até o cabo, continuando a agarrá-la pelos chifres. Filippo fazia de ajudante, foi rápido a pôr a
tigela debaixo das goelas do bicho; o sangue jorrou da ferida como duma fonte, negro e denso, quente, a
fumegar. A cabra estremeceu, depois semicerrou os olhos, já um pouco embaciados, como se, à medida que o
sangue escorria para a tigela, a vida lhe fugisse e, com a vida, também o olhar; por fim dobrou os joelhos e
abandonou-se, dir-se-ia que confiante ainda, nas mãos daquele que a matara.
Rose a afastara-se debaixo da chuva que continuava a cair e eu queria segui-la, mas, por outro lado,
precisava estar ali presente porque a carne era pouca e não podia perdê-la, além disso, Filippo prometera-me as
tripas, que são muito boas assadas na grelha, em fogo brando de lenha de carvão. I gnazio, entretanto, erguera a
cabra pelas patas traseiras e, arrastando-a na lama, fora pendurá-la em dois paus, pouco mais adiante, de
cabeça para baixo e as patas uma para cada lado. Todos nos juntamos em redor para o ver trabalhar.
A ntes de mais nada, I gnazio pegou numa das patas anteriores e cortou-lhe o pé, assim como se decepasse
uma das mãos pelo pulso. Em seguida pegou num pauzinho fino, mas duro, e introduziu-o entre o couro e a
carne: a pele da cabra está ligada à carne apenas por filamentos e pouco é preciso para a separar, como se fora
um papel mal colado. I ntroduzido o pauzinho, andou com ele em volta, de modo a fazer um buraco, e depois
deitou-o fora, meteu a pata na boca, à maneira duma flauta, e soprou para dentro com toda a força, até ficar
com as veias do pescoço grossas e as faces roxas. S oprando sempre, a cabra começou a inchar à medida que o
sopro de I gnazio se introduzia e circulava entre o couro e a carne. I gnazio continuou a soprar e por fim a cabra
pendia entre os dois paus, cheia como um odre, quase com o dobro do tamanho. S ó então ele abandonou a
pata, limpou a boca suja de sangue e, com a faca, cortou a pele a todo o comprimento da barriga, desde a virilha
até o pescoço. Depois, com as mãos, começou a despegar a pele da carne.
Era verdadeiramente uma coisa estranha ver como a pele saía tão facilmente, semelhante a uma luva que se
descalça da mão, conforme ele ia puxando e com a faca cortava aqui e ali os filamentos que ainda estavam
presos. Em resumo, acabou de tirar devagarinho toda a pele e deitou-a para o chão, peluda e ensanguentada,
semelhante a um vestido velho; agora a cabra estava nua, por assim dizer, muito vermelha, com algumas
manchas brancas e azuladas aqui e além. Continuava a chuviscar, mas ninguém se afastava: I gnazio pegou
novamente na faca, abriu ao comprido a barriga da cabra, meteu as mãos lá dentro e gritou, imediatamente,
para mim: “Cesira, apara nos braços.”
Eu acorri logo e ele tirou para fora o rolo das tripas, soltando-as uma por uma, com ordem, como se fosse
uma meada. D e vez em quando cortava-as e me punha nos braços; estavam ainda quentes, cheiravam mal a
valer e sujavam-me toda.
I gnazio ia repetindo, como se falasse consigo mesmo: “I sto é um prato de reis, ou, melhor, tratando-se de
mulheres, de rainhas...
Bem limpas e assadas em lume brando...”
Nesse momento ouviu-se uma voz chamar: “Filippo! Filippo!”
Voltamo-nos todos e eis que aparece no socalco, primeiro a cabeça, depois os ombros e por fim o corpo
inteiro de Vincenzo, o meeiro de Filippo, em casa do qual tínhamos morado antes de subirmos para S anta
Eufêmia. Mais do que nunca semelhante a um passarão depenado, o nariz adunco, os olhos encovados,
ofegante, sujo de lama, encharcado até os ossos, ainda antes de chegar ao socalco já vinha a gritar: “Filippo,
Filippo, aconteceu uma desgraça... aconteceu uma desgraça!...”
Filippo, que, como todos nós, estava a observar I gnazio, correu ao seu encontro, de olhos arregalados: “Q ue
aconteceu, fala, que aconteceu?”
Mas o outro, astuto, fingia ter perdido o fôlego com a subida e comprimia a mão no peito, repetindo em voz
cavernosa: “Uma grande desgraça!”
Todos tínhamos deixado I gnazio e a cabra para nos juntarmos em volta de Filippo e do meeiro: a janela da
casa de Filippo, um pouco mais acima, abriu-se entretanto e apareceram nela duas mulheres, a esposa e a filha.
O meeiro, por fim, explicou: “A conteceu que vieram os alemães e os fascistas, bateram nas paredes,
encontraram o esconderijo e deitaram abaixo o muro.”
Filippo interrompeu-o com um urro: “E roubaram as minhas coisas?”
“Claro”, respondeu o outro, encorajado não sei porque, talvez por ter dado já a notícia, “roubaram tudo, não
deixaram nada, mesmo nada...”
E disse isto em voz tão alta que a mulher e a filha de Filippo, à janela, o ouviram e começaram
imediatamente a lamuriar-se em altos gritos e a agitar os braços, debruçando-se no parapeito. Mas Filippo não
perdeu tempo com mais explicações: “N ão é verdade, não é verdade”, pôs-se a berrar. “Tu é que me roubaste,
foste tu o ladrão... Q ual alemão, qual fascista!... Foste tu e aquela bruxa da tua mulher e os malandros dos teus
filhos! Conheço-os a todos. São uma corja de ladrões, não respeitam sequer um compadre...”
Gritava como um possesso e de repente tirou de cima da mesa uma das facas de I gnazio, agarrou Vincenzo
pelo pescoço e preparava-se para o agredir. Por sorte, alguns refugiados saltaram-lhe rapidamente em cima: e,
enquanto quatro o seguravam pelos braços, ele lançava o peito e a cabeça para frente, com espuma na boca, a
gritar: “Deixem-me, que eu mato-o, deixem me, que quero matá-lo!”
Por sua vez, as duas mulheres agitavam-se à janela e gritavam: “Estamos desgraçadas! Estamos
desgraçadas!”
E a chuva caia sem parar, encharcando todos. Mas Michele, que estivera a observar a cena, podia dizer-se
quase com satisfação, como se sentisse prazer em que a irmã perdesse o enxoval e a mãe todos os haveres,
aproximou-se repentinamente de Vincenzo, que continuava a protestar: “N ão fui eu que roubei! Foram os
alemães, foram os fascistas, nós não tivemos nada com isso!”, e, como se já soubesse, meteu-lhe a mão no bolso
do casaco e tirou de lá uma caixinha, pronunciando, muito calmo: “A qui está quem roubou. Foste tu... Este anel
pertence a minha irmã.”
E, dizendo isto, abria a caixinha e mostrava, de fato, um pequeno anel com um brilhante que, como soube
depois, fora oferecido por Filippo à filha, no dia dos seus anos. Filippo, mal viu o anel, deu um grande grito e,
libertando-se com um safanão dos que o retinham, atirou-se a Vincenzo de faca em punho. Mas o meeiro foi
mais lesto ainda e, safando-se por sua vez dos que o cercavam, lançou-se pelo socalco abaixo. Filippo,
naturalmente, queria segui-lo, mas compreendeu que de nada lhe servia: era baixo e barrigudo e o meeiro
magro e alto, com pernas de avestruz. Então apanhou uma pedra do chão e atirou-a, berrando: “Ladrão,
ladrão!”
Ele não correu, mas correram outros, não porque se importassem com as coisas de Filippo, mas sim porque,
quando há uma rixa, todos aquecem e querem fazer o gosto às mãos. A ssim, vi dois ou três rapazes correrem de
socalco em socalco, quase voando atrás do velho, que corria como uma lebre. A lcançaram-no, por fim,
agarraram-no pelos braços e obrigaram no a subir novamente. Filippo, que durante todo este tempo continuara
a atirar pedras suficientemente grandes para matar um homem, agora, cansado e ansioso, esperava na beira do
socalco que lhe trouxessem o meeiro; tinha na mão a faca de I gnazio, ainda vermelha do sangue da cabra. Então
Michele aproximou-se do pai e disse-lhe calmamente: “Aconselho-te a ir para casa.”
“Mas eu mato-o!”
“Vai para casa.”
“Eu quero matá-lo, tenho de o matar!”
“Dá-me a faca e vai para casa.”
Com grande pasmo meu, vi Filippo aquietar-se diante do filho muito calmo: pousou a faca em cima da mesa
e encaminhou-se para casa, donde agora saíam gritos e gemidos como de um purgatório. A ssim, no meio do
socalco, apenas ficou, debaixo da chuva que continuava a cair, a pobre cabra aberta ao meio, suspensa nos dois
paus.
Entretanto, Vincenzo e os rapazes que o perseguiram, chegaram onde estávamos e os camponeses e os
refugiados voltaram a reunir-se em sua volta, perguntando-lhe o que tinha feito, mais por curiosidade, como
observei, do que com reprovação. Vincenzo não se fez rogado: “Eu não queria”, disse com aquela voz de orco,
“nenhum de nós queria... que diabo, somos compadres... ele batizou o meu filho, eu batizei-lhe a filha... o
sangue não é água, pois não? Teria preferido, juro-o, cortar uma das mãos a roubá-lo... que eu morra já aqui
fulminado por um raio se isto não é verdade...”
“Acreditamos, Vincenzo, acreditamos... mas então porque roubaste?”
“Uma voz... ouvi uma voz dentro de mim, dias e dias, uma voz a repetir: pega num martelo e deita abaixo a
parede... pega num martelo e deita abaixo a parede...
Uma voz que não me deixava sossegar de noite nem de dia.”
“E assim, Vincenzo, pegaste por fim num martelo e deitaste abaixo a parede... não é verdade?”
“Assim mesmo...”
Todos os refugiados e camponeses deram uma grande gargalhada e, depois de mais algumas perguntas,
deixaram-no e voltaram para junto de I gnazio e da cabra. Vincenzo, porém, não se foi logo embora. Começou a
andar por ali, de uma casa para outra, de uma cabana para outra, e em toda a parte pedia de beber e repetia a
história da voz e fazia rir toda a gente; mas ele não ria, quedava-se com ar apalermado, qual pássaro de mau
agouro, e parecia não compreender sequer a razão por que nós ríamos. Por fim, à noite, foi-se embora, de rabo
entre as pernas, como se o roubado fosse ele, e não Filippo.
Michele, nessa noite, apareceu na cabana, onde eu estava a assar as tripas da cabra, na companhia de Paride
e da família, e disse à guisa de comentário: “O meu pai não é mau, mas por causa de quatro lençóis e algum
ouro, por pouco não matava um homem, ao passo que todos nós, por uma ideia, nem somos capazes de matar
um frango...”
Paride proferiu devagar, fixando o fogo: “Michele, não sabes que para os homens contam mais os haveres do
que as ideias? O lha, por exemplo, o padre: se em confissão lhe disseres que roubaste, ele, quando muito,
ordena-te que, em penitência, rezes uma oração qualquer a S . J osé e, no fim, absolve-te. Mas, se fores à casa
paroquial e lhe roubares, sei lá, um talher de prata, verás como grita... I mediatamente, em vez de te absolver,
manda chamar o chefe dos carabineiros para te prender... S e isto é assim com um padre, que é padre, pensa o
que não será conosco, que não somos padres.”
Foi só isto que aconteceu de notável durante os dias de chuva. O resto, apenas o costume: conversas sobre a
guerra e o tempo, o que faríamos quando os I ngleses chegassem, e principalmente grandes sonos, doze e
catorze horas sempre a dormir; de vez em quando acordávamos e, depois de ouvir, por alguns momentos, a
chuva crepitar nas telhas e gorgolhar no algeroz, tornávamos a dormir ainda mais profundamente, abraçadas
uma à outra, naquele leito feito de tábuas desconjuntadas e um saco cheio de palha de milho seca, que às vezes
se abria debaixo de nós e ameaçava deixar-nos cair no chão.
Para a família de Filippo e, em geral, para todos os refugiados, a grande ocupação era uma só: comer. Pode
dizer-se que não faziam outra coisa senão banquetear-se de manhã até à noite, nadando em abundancia.
A firmavam que era preciso comer, porque era a única maneira de combater a melancolia; diziam também que o
melhor era gastar as provisões, pois com a chegada dos I ngleses viria a abundância, os preços baixavam e
aquelas coisas ninguém mais as queria.
Mas eu pensava comigo própria: “Confiar é bom, mas não confiar é ainda melhor.”
Estava igualmente convencida de que os I ngleses viriam. Mas quando? Bastava que por qualquer motivo se
atrasassem um mês ou dois, e todos morreríamos de fome.
A ssim, enquanto os outros se empanzinavam, eu, na nossa casinha, fazia racionamento. Comíamos uma
única vez por dia, por volta das sete horas: uma panelinha cheia de feijões e um bocadinho de carne, as mais
das vezes de cabra, um pouco de pão, sempre a mesma quantidade, e alguns figos secos. Às vezes fazia polenta,
outros dias, em lugar de feijões, era grão-de-bico ou ervilhas e, em vez de cabra, vaca. D e manhã cortava para
mim e para Rose a uma fatia de pão e, com o pão, comíamos uma cebola crua. O u nem pão comíamos e
roíamos algumas alfarrobas, que vulgarmente se dão aos cavalos, mas que em tempo de carestia servem até
para os cristãos. Rose a queixava-se frequentemente de que tinha fome; compreende-se, era jovem, e eu então
aconselhava-a a dormir, porque, já se sabe, dormir é como comer: consome-se pouco e acumulam-se forças. Em
suma, imitava os camponeses, que, ao contrário dos refugiados, eram prudentes, ou, antes, avaros, e dir-se-iam
que pesavam a comida numa balancinha de ourives. É verdade que eles estavam habituados à escassez e
sabiam por instinto que com os A lemães ou os I ngleses nunca teriam o bastante para matar a fome, pois lhes
faltava sempre o dinheiro e a colheita nunca chegavam para todo o ano. A ssim, em certo sentido, sentia-me
mais camponesa do que refugiada e não podia deixar de experimentar até antipatia pelos refugiados, a maior
parte deles comerciantes que tinham amealhado uns cobres à custa da pele dos outros e esperavam, mal
chegassem os I ngleses, voltar a amealhar mais do mesmo modo. Q ualquer um poderá dizer que também eu era
comerciante; é verdade, mas nascera camponesa e agora, em contato com a terra e os camponeses, sentia-me
outra vez tal como nos tempos em que, ainda rapariga, abandonara a aldeia para ir casar em Roma.
A ssim se passaram uns quarenta dias; depois, lá para os fins de D ezembro, uma bela manhã levantamo-nos
como de costume e vimos que durante a noite o vento mudara. O céu estava dum azul duro, luminoso,
profundo, ainda avermelhado pela aurora, com muitas nuvenzinhas vermelhas e cinzentas afastando-se para
longe, as últimas desses dias de chuva. Lá em baixo, para os lados de Ponza, via-se brilhar o mar pela primeira
vez depois de tanto tempo, um mar azul-escuro, quase negro. A planura de Fondi, sob o manto de invernia,
mais cinzenta do que verde, fumegava na névoa da manhã, como no alvorecer dum belo dia de sol, seco e
esplendoroso. D os montes soprava a tramontana, fria, cortante, fazendo agitar e bater uns nos outros os ramos
nus da árvore que ficava perto do nosso casinhoto. A lama, quando saí, estava dura, com crosta, rangia debaixo
dos pés e brilhava aqui e além como se lhe tivessem misturado estilhaços de vidro: durante a noite geara.
Esta mudança de tempo deu novas esperanças aos refugiados, que saíram todos das suas casas, na manhã
gelada, e começaram a abraçar-se em sinal de regozijo: agora, com o bom tempo, os I ngleses fariam um grande
avanço e acabavam todos os tormentos.
O s I ngleses chegaram, de fato, pontuais, mas não como os esperavam os refugiados. N essa primeira manhã
de bom tempo, aí por volta das onze horas, quando estávamos no socalco a apanhar sol, como lagartixas
friorentas, ouvimos repentinamente um fragor longínquo que, à medida que se aproximava, se ia tornando cada
vez mais amplo e majestoso e parecia encher todo o céu. O s refugiados, passado um momento de incerteza,
compreenderam e, tal como eles, eu compreendi também, pois ouvira aquele mesmo fragor muitas vezes em
Roma, tanto de noite como de dia: “Os Ingleses, os aviões, aí estão os aviões ingleses...”
E, de fato, por trás duma montanha, no céu luminoso e limpo, apareceu o primeiro grupo de quatro aviões.
Eram brancos e lindos, cintilavam ao sol, pareciam, lá em cima, no céu, aquelas joias de filigrana de prata que
se fazem em Veneza.
Logo a seguir apareceram outros quatro, e depois mais quatro, doze ao todo.
Voavam muito certos, como se os ligasse um fio invisível, e, garanto, embora o seu fragor enchesse o céu e
me fizesse recordar muitas horas más vividas em Roma, também me exaltei ao ouvi-lo, porque nele me parecia
sentir uma voz terrível, mas boa para nós, Italianos, a intimar os fascistas e os Alemães a irem-se embora.
A ssim, foi de coração em expectativa e cheio de esperança que os vi dirigirem-se, muito confiantes, para a
cidade de Fondi, lá ao longe, no vale, mancha de casinhas brancas cercada pelo verde-escuro dos laranjais. E
depois o céu, em redor dos aviões, começou a salpicar-se de pequenos farrapos brancos e logo se ouviu o
estrondear seco e apressado da artilharia antiaérea. Eram não sei quantos canhões que disparavam de todos os
lados, lá em baixo, no vale. O s refugiados gritavam: “D isparem para aí, desgraçados, que disparam em vão...
agarram-nos amanhã...
sim, disparem, disparem, que não lhes fazem mossa.” Efetivamente, aquele canhoneiro não parecia
preocupar os aviões, que entretanto continuavam a avançar no céu. D epois, uma explosão maior e mais funda, e
vimos uma nuvem branca, não já no céu, mas em terra, no meio das casas e jardins de Fondi. O s aviões tinham
principiado a despejar as suas bombas.
O que se passou após essa primeira explosão, recordarei durante muito tempo, quando mais não seja, por
ter visto tanta gente passar da alegria à dor em poucos minutos. A s bombas agora caíam umas a seguir às
outras, dentro da cidade, sobre a qual as nuvens brancas das explosões se multiplicavam a olhos vistos.
E todos aqueles refugiados, antes tão contentes, começaram a gritar lá em cima, chorando e lamentando-se
em altos gritos, como a filha e a mulher de Filippo quando Vincenzo anunciou que os alemães lhes tinham
roubado o enxoval. Todos gritavam, correndo de um lado para outro e agitando os braços como se quisessem
deter os aviões: “A minha casa, a minha casa, assassinos! D estroem-nos as casas, pobres de nós, as nossas
casas!...” E entretanto as bombas continuavam a cair como frutos maduros duma árvore que se abana e a
artilharia antiaérea continuava a disparar, insistente e raivosa, com um barulho de ensurdecer, e não só enchia
o céu, como parecia também fazer tremer a terra. O s aviões foram até ao fundo do vale, para os lados do mar, e
lá longe, onde o mar cintilava ao sol, viraram e voltaram para trás e deitaram mais bombas, enquanto os
refugiados, que por instantes se calaram, julgando que eles se tinham ido embora, recomeçaram a gritar e a
chorar mais forte do que a primeira vez. Mas, quando a esquadrilha, inflexível e segura, se afastava já na direção
donde viera, eis que o segundo avião do último grupo lança uma grande chama vermelha, semelhante a uma
charpa ondulando no céu azul. A antiaérea ferira-o de morte e o avião ficava para trás dos outros e aquela
charpa de fogo ondulava em volta da pequena máquina branca, cada vez maior e mais vermelha. O s refugiados
agora gritavam: “Bravo, alemães, deitem abaixo esses assassinos, deitem-nos abaixo!” Rose a exclamou, de
súbito: “Olha, mamãe, que lindo, os para quedistas!”
E, de fato, enquanto o avião ferido se afastava em chamas em direção ao mar, vi abrirem-se no céu, um após
outro, os grandes guarda-chuvas brancos dos para quedas, e cada um deles trazia uma coisinha preta
pendurada em baixo e que se movia ao sabor do vento: um aviador. A briram-se sete ou oito para quedas, que
desciam lentamente; a antiaérea já não disparava; O anão atingido, cambaleando e baixando, desaparecera por
trás deu-ma colina; em seguida ouviu-se uma explosão fortíssima e, depois, mais nada. A gora havia de novo
silêncio; distinguia-se apenas um eco metálico na lonjura, para os lados onde tinha desaparecido a esquadrilha;
e lá em cima não se ouviam senão os choros e os gritos dos refugiados; os para quedistas prateados
continuavam a descer lentamente e todo o vale de Fondi estava envolto num fumo cinzento, aqui e além
avermelhado pelas chamas dos incêndios.
Foi assim que chegaram os I ngleses, mas para destruir as casas dos refugiados. Também nessa ocasião se
manifestou a estranha dureza de Michele, duma forma que eu não esperara. N a mesma noite, quando
falávamos, na cabana, dos bombardeamentos, proferiu de repente: “S abes o que diziam esses refugiados que
choram agora as suas casas destruídas, quando os jornais anunciavam que os nossos tinham bombardeado
qualquer cidade inimiga? Pois bem, diziam, que os ouvi eu com os meus ouvidos: 'S e os bombardeiam, é
porque o merecem.'“
Eu perguntei-lhe: “Mas não te faz pena que todos esses pobres fiquem sem as suas casas e sejam obrigados
a andar de terra em terra, sem nada, como ciganos?”
E ele: “S im, faz-me pena, como me fez pena os outros que perderam as suas casas antes deles. A firmo-te,
Cesira, hoje a mim, amanhã a ti... A plaudiram quando eram bombardeadas as casas dos I ngleses, Franceses,
Russos; agora chegou também a sua vez... N ão será isto justo? Tu, Rose a, que crês em D eus, não vês nisto o
dedo da providência divina?”
Rosetta não disse nada, como de costume quando ele falava de religião; e a conversa ficou por ali.
D epois daquele primeiro bombardeamento, os refugiados precipitaram-se para o vale, a ver o que sucedera
às suas casas; quase todos voltaram com a boa noticia de que a maior parte delas se tinha salvo e que, no fim de
contas, as ruínas não eram tão terríveis como se receara à primeira vista.
Havia, é verdade, alguns mortos: um velho mendigo que dormia numa casa semi arruinada da periferia e,
parece impossível, aquele fascista chamado S cimmiozzo, que nos ameaçara com a espingarda quando
morávamos em casa de Conce a. S cimmiozzo morreu como tinha vivido: nessa manhã, aproveitando o bom
tempo, fora a Fondi e arrombara a porta de uma retrosaria. Uma bomba fizera ruir a casa e ele ficou lá debaixo.
Encontraram-no no meio de fitas e botões, com o roubo nas mãos ainda fechadas. Ao saber isto, disse a Rosetta:
“Enquanto morrer gente desta espécie, abençoada seja a guerra.”
Mas ela surpreendeu-me, mostrando-me os olhos cheios de lágrimas e dizendo: “N ão digas isso, mamãe...
era também um pobre homem...”
E à noite quis rezar uma oração por sua alma, embora ele tivesse a alma mais negra do que a camisa negra
que vestia quando a bomba o levou desta para melhor.
Esquecia-me de dizer que naqueles dias houve outra morte: a de Tommasino.
S ei bem como e porque morreu, pois estava ao pé dele quando sucedeu o que lhe provocou a morte.
Tommasino, apesar da chuva, do frio e da lama, continuava sempre com o seu comércio. Comprava aos
camponeses, aos alemães, aos fascistas e vendia aos refugiados. O s gêneros eram agora poucos, mas ele lá
arranjava sal, tabaco, laranjas, ovos. Tinha aumentado os preços, naturalmente, e suponho que ganhava
bastante dinheiro. A ndava todo o dia no vale, dum lado para outro, indiferente ao perigo, não porque fosse
corajoso, mas porque queria mais ao dinheiro do que à própria pele; sempre com a barba por fazer, as calças
arregaçadas e rotas, os sapatos cheios de lama, parecia mesmo o J udeu Errante. A lojara a família, há tempos,
em casa duns camponeses que viviam ainda mais acima do que Paride; a quem lhe perguntava porque não ia
para junto da família respondia: “Tenho o negócio, quero fazer negócio até o último momento.”
Referia-se até o último momento da guerra; mal sabia ele que faria negócio, sim, mas até o último momento
da vida.
Resumindo, um dia juntei oito ovos num cestinho e desci ao vale com Rose a, na intenção de os trocar por
um pão militar aos alemães que acampavam nos laranjais. Por acaso, Tommasino estava em S anta Eufêmia, em
visita de negócios, e ofereceu-se para nos acompanhar. D escemos no quinto dia de bom tempo, após aquele
primeiro bombardeamento. Tommasino, como de costume, ia adiante, caminhando por cima das pedras e dos
buracos do carreiro, sem uma palavra, absorto nos seus cálculos, e nós o seguíamos, também sem falar. O
atalho descia em ziguezague pelo flanco do monte da esquerda, mas a certa altura, ao pé de um despenhadeiro
que nos barrava o passo, corria por um planalto e depois continuava a descer no monte da direita. Este planalto
era um lugar estranho: havia muitas rochas nuas e direitas, duma forma curiosa, semelhantes a pães de açúcar,
cinzentas como a pele dos elefantes, todas furadas por grutas e grutinhas, e entre essas rochas cresciam muitas
figueiras-da-índia, com as suas folhas verdes e carnudas, que pareciam outras tantas faces inchadas e cheias de
espinhos. O carreiro serpenteava por entre as figueiras-da-índia e as rochas, ao longo dum riachinhos que era
mesmo uma beleza ver, a água clara como cristal a correr num leito de musgo verde. O ra, quando chegamos ao
planalto, Tommasino precedia-nos aí uns trinta metros, ouvimos O fragor duma esquadrilha de aviões. N ão
fizemos caso: agora isso tinha-se tornado vulgar e a maior parte das vezes dirigiam-se às linhas da frente;
podia-se estar seguro de que não bombardeavam a montanha, pois não valia a pena gastar bombas, que
custavam bom dinheiro, nas pedras e socalcos. Limitei-me por isso a dizer a Rose a, tranquilamente: “O lha, os
aviões.”
Via, no céu luminoso, a esquadrilha branca como prata, ordenada em três filas, e, à frente, um avião que
parecia servir de guia. D epois, enquanto olhava, vi uma bandeirinha vermelha sair do avião da frente e, não sei
como, lembrei-me que Michele me dissera ser aquele o sinal do lançamento das bombas. Mal tive tempo de
pensar isto, e já as bombas começavam a chover, ou, melhor, nós não vimos as bombas, tão rápidas caíram, mas
sentimos quase imediatamente uma explosão violentíssima e muito próxima, enquanto todo o terreno em volta
bailava, como se houvesse um terremoto. N a realidade, não era o terreno que bailava, mas uma quantidade
enorme de pedras arrancadas do chão e, sobretudo, como me apercebi depois, pedaços de ferro aguçados e
torcidos, cada um do comprimento, pelo menos, do meu dedo mindinho: se um só nos tivesse entrado no
corpo, morríamos logo ali. Em volta de nós, entretanto, levantara-se uma poeirada acre que nos fazia tossir, e no
meio dessa nuvem espessa de pó, que não me deixava ver nada, possuída de um medo terrível, eu chamava por
Rose a. A poeirada dissipou-se um pouco, no chão havia uma grande quantidade daqueles pedaços de ferro e
todo um massacre de folhas de figueira-da-índia, arrancadas e despedaçadas; ouvi então a voz de Rose a:
“Estou aqui, mamãe!”
N unca acreditei em milagres, mas, confesso, ao ver todos aqueles pedaços de ferro que tinham dançado em
volta de nós, no momento da explosão, pensei, enquanto abraçava, feliz, a minha Rose a sã e salva, que era
mesmo um milagre não estarmos as duas mortas. A bracei-a, beijei-a, toquei-lhe na cara e no corpo, quase não
acreditando que ela estivesse intacta; depois procurei Tommasino, que, como disse, nos precedia uns trinta
metros. N ão o vi, nem perto nem longe, no planalto semeado de folhas de figueira-da-índia partidas e desfeitas;
mas ouvi a sua voz a lamentar-se, não sei onde: “Meu Deus, Nossa Senhora, meu Deus, Nossa Senhora...”
Pensei que estivesse ferido e senti mesmo remorsos da minha alegria por encontrar Rose a sã e salva; ele
não era nada simpático, mas, no fim de contas, era um cristão e tinha-nos ajudado, embora por interesse.
Esperava encontrá-lo estendido por terra, banhado em sangue, e dirigi-me para o lugar donde me parecia vir a
sua voz. Era uma grutinha pouco profunda, quase uma pequena cavidade na rocha, onde ele se encolhera todo
como um caracol dentro da casca, a cabeça entre as mãos e a lamentar-se, gemendo. Vi logo, porém, que não
tinha sequer um arranhão, tudo aquilo era só medo. disse-lhe: “Tommasino, já passou... que fazes aí nesse
buraco? Podemos agradecer a Deus, por estarmos salvos.”
Ele não respondeu e tornou a mugir: “Meu Deus, Nossa Senhora...”
Insisti, surpreendida: “Tommasino, mexe-te, vamos para baixo, senão faz-se tarde.”
E ele: “Não saio daqui.”
E eu: “Mas o quê, queres ficar aqui?”
E ele: “N ão vou para baixo... vou para o cimo do monte, o mais alto que puder, e meto-me numa gruta
funda, debaixo da terra, e não me mexo mais... para mim, acabou...”
“Mas, Tommasino, e o negócio?”
“Que o leve o diabo!”
A o ouvi-lo mandar para o diabo o negócio, pelo qual até então desafiara tantos perigos, compreendi que
falava a sério e era inútil insistir. disse-lhe todavia: “Mas ao menos acompanha-nos hoje lá abaixo... podes estar
certo de que os aviões não voltam.”
Respondeu-me: “Vão vocês... eu não saio daqui.”
E todo ele tremia, enquanto se encomendava a N ossa S enhora. Então, despedi-me e segui pelo carreiro, em
direção ao vale. Q uando chegamos ao vale, encontramos à beira dos laranjais um carro de assalto alemão todo
coberto com ramos de laranjeira e uma tenda mimetizada, ou seja, pintada de azul, verde e castanho, e seis ou
sete alemães que cozinhavam, enquanto outro, sentado debaixo duma árvore, tocava acordeão. Eram todos
jovens, de cabeças rapadas e faces pálidas, inchadas e cobertas de arranhões e cicatrizes: tinham estado na
Rússia antes de vir para Fondi e lá, como nos disseram, a guerra era cem vezes pior do que na I tália. Eu
conhecia-os, pois já fizera aquela troca do pão pelos ovos uma outra vez. D e longe, levantei ao alto, mostrando-
o, o cestinho dos ovos; o do acordeão parou logo de tocar, foi à tenda e saiu com um pão de forma, de um quilo
de peso.
A proximamo-nos e ele, sem nos olhar de frente, segurando bem o pão como se tivesse medo que lho
roubássemos, tirou as folhas que cobriam os ovos e contou-os em alemão de um até oito. N ão contente com
isso, pegou num e levou-o ao ouvido, abanando-o para ver se era fresco. disse-lhe então: “S ão frescos, está
descansado, não tenhas medo: arriscamos a vida para os trazer cá abaixo, hoje devias dar-nos dois pães em vez
de um.”
Ele não compreendeu e fez uma cara interrogativa; eu então indiquei-lhe o céu e depois fiz um gesto como
para aludir à queda das bombas, proferindo: “Bum!
Bum!”, a imitar a explosão. Ele compreendeu finalmente e disse uma frase em que entrava a palavra kapu ,
que eles dizem a toda a hora e que, como me explicou um dia Michele, significa em italiano qualquer coisa
como “morto, assassinado”. Percebi que falava do avião abatido e repliquei: “Por um que abatem, vem um
cento... se fosse vocês acabava com a guerra e voltava para a A lemanha... era melhor para todos, para vocês e
para nós.”
Ele desta vez não disse nada porque novamente não compreendeu, mas entregou-me o pão e pegou nos
ovos com um gesto como a dizer: “Volta e tornaremos a fazer a troca.” E assim nos despedimos e regressamos,
pelo carreiro, a Santa Eufêmia.
Tommasino, nesse mesmo dia, escapou-se mais para cima, para a localidade a seguir a S anta Eufêmia, onde
tinha a família. N a manhã seguinte mandou um camponês com duas mulas buscar à sua casa do vale tudo
quanto lá tinha, incluindo camas e colchões. Mas a casa em que se encontrava com a família não lhe pareceu
bastante segura e, alguns dias depois, mudou-se com a mulher e os filhos para uma gruta mesmo no cimo do
monte. Era uma gruta espaçosa e profunda, cuja entrada não se podia ver de fora, pois estava encoberta por
árvores e silvas. Por cima dessa gruta erguia-se uma rocha enorme, cinzenta, muito alta, em forma de pão de
açúcar, que se via bem do fundo do vale, tão grande ela era. O teto, portanto, devia ter uma espessura de
algumas dezenas de metros de pedra maciça. Ele meteu-se com a família nessa gruta, que em tempos idos
servira de refúgio aos salteadores, e era natural que se sentisse então em segurança contra as bombas e que o
medo lhe passasse. Mas não, apanhou tal medo que, por assim dizer, lhe entrou no sangue como uma febre e,
mesmo na gruta e com a rocha a protegê-lo, não fazia outra coisa senão tremer todo o dia, dos pés à cabeça,
apoiado ora aqui ora ali, muito enrolado num cobertor. E repetia constantemente: “Estou mal, estou mal...”,
numa voz fraca e lamentosa; não comia e não dormia, definhava a olhos vistos, apagando-se como uma vela,
todos os dias um pouco mais.
Visitei-o uma vez e encontrei-o tão magro e abatido que até metia dó, a tremer, apoiado à entrada da gruta,
todo embrulhado num cobertor. Lembro-me que, não notando que ele estivesse doente mesmo a sério, trocei
um pouco, dizendo-lhe: “Mas, Tommasino, de que tens medo? Esta gruta é à prova de bombas. D e que tens
medo então? D e que as bombas andem pelo bosque como serpentes e acabem por entrar aqui para virem ter
contigo à cama?”
Ele olhava para mim como se não compreendesse e só repetia: “Estou mal, estou mal...”
Passados alguns dias soubemos que tinha morrido. Morreu de medo, porque não tinha feridas nem
qualquer doença: só o susto das bombas. N ão fui ao funeral, pois ficaria triste, e tristezas já havia muitas. S ó o
acompanharam os parentes, entre eles Filippo e a família; o morto não foi metido num caixão porque não havia
tábuas nem carpinteiros, mas ataram-no a dois ramos de árvore, e o coveiro, um grandalhão louro que também
era refugiado e fazia um pouco de mercado negro nas montanhas, prendeu Tommasino à sela do seu cavalo e lá
foi, pelo carreiro abaixo, para o cemitério. D isseram-me depois que não conseguiram encontrar nenhum padre,
pois tinham fugido todos, e o pobre teve de se contentar com as orações dos parentes; que o funeral foi
interrompido três vezes por causa dos alarmes aéreos; que em cima da cova, à falta de melhor, puseram uma
cruz feita com duas tábuas arrancadas duma caixa de munições. Em seguida soube que Tommasino deixara à
mulher algum dinheiro, mas nenhumas provisões: sempre a negociar, vendera tudo, até o último quilo de
farinha e os últimos gramas de sal, e a viúva foi obrigada a comprar depois pelo dobro o que o marido vendera
por metade e creio que, no fim da guerra, de todo o dinheiro que Tommasino lhe deixou, já não tinha quase
nada, por causa da desvalorização da moeda. Querem saber o que disse Michele a respeito da morte do tio?
“Tenho pena dele porque era bom homem. Mas morreu, como podem morrer tantos outros iguais a ele que
passam a vida a correr atrás do dinheiro, imaginando que não há mais nada no mundo além do dinheiro;
depois, um dia, imprevistamente, ficam gelados de medo ao ver o que está por trás do dinheiro...”
CAPÍTULO VI

O bom tempo, além das bombas dos I ngleses, trouxe um outro flagelo: os recrutamentos dos A lemães. O
Tonto tinha-os anunciado, mas, no fundo, ninguém acreditara, e agora alguns camponeses fugidos na
montanha informavam-nos que no vale os alemães tinham feito uma rusga, prendendo todos os homens aptos
para o trabalho, metendo-os em caminhões e mandando-os não se sabia para onde, uns diziam que para as
fortificações da frente de batalha, outros afirmavam que para a A lemanha. D epois veio outra má notícia: de
noite os alemães cercaram um vale próximo do nosso, subiram ao cimo do monte e em seguida desceram,
espalhando-se pelas encostas e apanhando na sua rede, como peixes, todos os homens, os quais expediram logo
em caminhões para longe dali. O s refugiados ficaram imediatamente cheios de medo, pois havia entre eles pelo
menos quatro ou cinco rapazes que, no momento da queda do fascismo, estavam na tropa e tinham desertado, e
eram mesmo esses rapazes que os alemães procuravam, porque os consideravam traidores e queriam fazer-lhes
pagar a traição, obrigando-os a trabalhar como escravos, quem sabe onde e em que condições. O s mais astutos
eram os pais, e mais do que todos Filippo, por causa de Michele, que o estava sempre a contrariar, mas em
quem tinha muito orgulho. Em resumo, fez-se uma reunião em casa de Filippo e ficou decidido que nos
próximos dias, enquanto houvesse o perigo dos recrutamentos, todos os rapazes subiriam de madrugada a
montanha, cada um para seu lado, descendo só ao pôr-do-sol. Lá no alto, embora os alemães pudessem lá ir
também, havia muitos atalhos que conduziam a outros vales ou a outras montanhas e no fim de contas os
alemães eram homens como os outros e decerto perderiam a coragem ao ver que tinham de andar quilômetros
e quilômetros, por montes e vales, só para apanharem um homem ou dois. Michele, para dizer a verdade, não
queria fugir como os outros, não por bazófia, mas porque nunca gostava de fazer o mesmo que todos faziam.
Mas a mãe tanto lhe pediu e suplicou que ele por fim cedeu.
Rose a e eu decidimos ir com ele, não porque tivéssemos medo, não prendiam as mulheres, mas para
fazermos qualquer coisa, pois no socalco morríamos de tédio, e também para estarmos ao pé de Michele, que
era a única pessoa lá em cima a quem nos tínhamos afeiçoado. A ssim começou para nós uma vida estranha de
que me lembrarei enquanto viver.
N oite ainda, Paride, que se levantava sempre antes do romper da aurora, vinha bater à nossa porta;
vestíamo-nos à pressa, alumiados pela luz fraca de uma lamparina de azeite. S aíamos para o frio, no escuro,
com muitas sombras a correrem para cima e para baixo pelo socalco fora e as janelas das casitas a iluminarem-
se uma após outra. Por fim encontramos Michele, pequenino, todo enroupado em camisolas e camisolões, com
um pau na mão, parecia mesmo um anão das fábulas, dos que vivem nas cavernas de guarda aos tesouros. S em
trocarmos uma palavra, lá seguíamos atrás dele pela montanha acima.
Começávamos a subir no escuro, através de mato denso e alto, que nos chegava até ao peito, pelo carreiro
incrustado de gelo, não se via nada, mas Michele tinha uma lâmpada de bolso e, graças a esse foco de luz,
podíamos ver o caminho; e andávamos, andávamos, sem falar. Entretanto, enquanto subíamos, o céu começava
a clarear por trás das montanhas, tornando-se lentamente de um cinzento sujo, mas ainda com muitas estrelas
a brilharem uma última vez antes de romper o dia. A s montanhas desenhavam-se, negras, sobre esse fundo
mais claro e pontilhado de estrelas; depois também elas aclaravam, revelando a sua cor verde, aqui e além
manchada do escuro do mato e dos bosques. A gora já não havia estrelas e o céu era de um cinzento quase
branco e todo o mato surgia aos nossos olhos, seco, gelado pelo inverno, mortificado, silencioso e ainda
adormecido. Mas o céu tornava-se gradualmente rosa no horizonte e azul por cima das nossas cabeças e com os
primeiros raios do sol que despontavam atrás de um dos montes, agudos e cintilantes quais flechas de ouro,
todas as cores apareciam, o vermelho-vivo de alguns troncos, o verde brilhante do musgo, o branco creme dos
penachos das canas, o negro lustroso dos ramos apodrecidos. A seguir deixávamos o matagal para
caminharmos num bosque de carvalhos que cingia a serra até lá muito em cima. Eram carvalhos enormes,
espalhados pela encosta, a boa distância uns dos outros, que tinham crescido sem se tocarem e aqui e além
estendiam os seus ramos como braços, quase como se quisessem dar-se as mãos para se ajudarem e não caírem
devido à força do vento ou ao declive. Torcidos e espaçados, formavam um bosque esparso, permitindo que o
olhar abrangesse a encosta cheia de calhaus brancos, até o cume recortado no céu azul. O atalho era quase
plano no meio do bosque, o sol acordava os pássaros empoleirados nos ramos, que se ouviam esvoaçar e pipilar
em grande número, embora não se vissem. Michele ia à frente de nós, parecia feliz não sei porquê; andava com
desembaraço, fazendo girar o ramo de árvore que Lhe servia de bordão e assobiando uma arinha que parecia
uma marcha militar.
S ubimos um bocado e os carvalhos tornavam-se cada vez mais raros, menores e mais torcidos; por fim
cessavam de todo, ficando só o carreiro íngreme por entre pedras duma brancura que cegava; um pouco mais
acima, atingíamos o cume do monte, ou, melhor, a passagem entre dois cumes para onde nos dirigíamos.
Chegados lá, encontrávamo-nos num planalto que era mesmo uma surpresa, depois de tantas pedras, todo
atapetado de erva macia e muito verde, entre a qual, aqui e além, se erguiam, como corcovas, rochas brancas e
redondas.
N o meio desse prado cor de esmeralda havia um velho poço defendido por um parapeito de pedras soltas.
D o planalto gozava-se um panorama soberbo, e até eu, pouco dada a entusiasmar-me com as belezas naturais,
talvez porque nasci na montanha e as conheço bem, garanto que fiquei de boca aberta e cheia de admiração a
primeira vez que o contemplei. D e um lado os olhos desciam pela encosta majestosa, toda em socalcos,
semelhante a uma escadaria imensa, até o vale e, mais longe ainda, até a risca azul e cintilante do mar; do outro
não se viam senão montanhas e mais montanhas, as da Ciociaria, algumas salpicadas de neve ou
completamente brancas, outras calcinadas e cinzentas. Lá em cima fazia frio, mas não muito, porque havia um
sol puro e límpido e se estava bem ao sol e não havia vento, pelo menos durante todo o tempo em que para lá
fomos, cerca de duas semanas.
Tínhamos de passar lá o dia inteiro: estendíamos um cobertor sobre a erva e deitávamo-nos em cima dele.
Repousávamos assim algum tempo e, quando sentíamos vontade de nos mover, girávamos por aqui ou por ali.
Michele e Rose a afastavam-se, colhendo flores ou simplesmente conversando, ou, melhor, ele falando e ela
ouvindo; mas eu, a maior parte das vezes, não os acompanhava e ficava no planalto. A gradava-me estar
sozinha; em Roma podia fazê-lo quando queria, mas em S anta Eufêmia era impossível, porque de noite dormia
com Rose a e durante o dia havia refugiados em toda a parte. Estar só dava-me a ilusão de uma paragem na
vida, durante a qual podia olhar em volta; na realidade, o tempo passava, mas eu não dava por ele como quando
estava acompanhada. Havia lá em cima um grande silêncio; de um pequeno vale logo abaixo chegava às vezes o
som dos chocalhos dum rebanho, mas era o único ruído e por vezes nem parecia um verdadeiro ruído, não
chegava a perturbar, dir-se-ia antes um rumor que tornava mais calmo o lugar e mais profundo o silêncio.
A gradava-me ir de ora em quando ao pé do poço, aproximar-me do bocal e olhar para baixo, muito tempo. Era
bastante fundo, ou pelo menos assim parecia, pois a água mal se entrevia. A s avencas tão lindas, com os seus
pezinhos negros como ébano e folhas verdes e finas que nem plumas, despontavam densas por entre as pedras
e refletiam-se na água escura.
D ebruçava-me, olhava o fundo longamente e lembrava-me de que, em criança, mirar-me nos poços me
inspirava ao mesmo tempo medo e atração; imaginava que os poços comunicavam com um mundo subterrâneo
povoado de fadas e anões e quase sentia vontade de me deixar cair para esse mundo e abandonar o meu...
O lhava para baixo enquanto os olhos não se habituavam àquela obscuridade e não via distintamente a
minha cara refletida na água; então, agarrava uma pedra e deixava-a cair no meio da cara e via-a despedaçar-se
no tremor dos círculos que a queda da pedra provocava. A lém de olhar para dentro do poço, agradava-me
também passear por entre aquelas rochas brancas e redondas, tão estranhas, que se elevavam aqui e além no
meio da erva verde. N estes passeios parecia-me igualmente voltar a ser criança: quase tinha a esperança de
encontrar no meio dessa erva coisas preciosas, talvez porque a própria erva, tão verde, me parecia ali uma coisa
preciosa, ou talvez também porque em lugares como aquele, segundo os contos que ouvira em criança, podia
estar enterrado um tesouro. Mas ali só havia erva, que não vale nada e se dá aos animais. Uma vez encontrei um
trevo de quatro folhas e ofereci-o a Michele e ele, mais para me agradar do que por superstição, guardou-o na
carteira.
O tempo passava assim lentamente; o sol subia no céu e tornava-se escaldante, tanto que algumas vezes
abria a blusa e me estendia no chão, para me queimar como se estivesse na praia. À hora do almoço, Michele e
Rose a voltavam do seu passeio, e então comíamos, sentados na erva, um bocado de pão com queijo. Comi
antes e depois muitas coisas boas, mas aquele pão escuro e duro, misturado com farinha de milho, e aquele
queijo de ovelha tão rijo que era preciso um martelo para o partir parecem-me, ao lembrá-los, o melhor que
comi na vida.
Talvez o seu condimento fosse o apetite que a caminhada e o ar da montanha nos provocavam; talvez a ideia
do perigo constituísse também um molho raro; o certo, porém é que comia com um prazer estranho, como se
me apercebesse pela primeira vez na vida de que a comida, além de nos servir simplesmente para viver e
recuperar as forças, nos pode proporcionar também prazer. E devo acrescentar a propósito que lá em cima, em
S anta Eufêmia, me sucedeu o mesmo pela primeira vez com muitas outras coisas que são, é estranho dizê-lo, as
mais simples, por assim dizer, e que habitualmente se fazem mecanicamente, sem se pensar nelas. O
sono, que nunca antes me tinha parecido um apetite, cuja satisfação desse prazer e repouso; a limpeza do
corpo, que, como era difícil, se não impossível, parecia lá uma coisa quase voluptuosa; em suma, tudo quanto
diz respeito ao físico, a que na cidade se dedica pouco tempo e quase sem se dar por isso. Penso que, se
estivesse lá em cima um homem que me agradasse, também o amor teria para mim um sabor novo, mais
profundo e mais forte. Era, em suma, como se me tivesse tornado um animal, pois imagino que os animais, não
tendo que pensar senão no próprio corpo, devem experimentar os sentimentos que eu experimentava então,
obrigada pelas circunstâncias a ser somente um corpo que se alimentava, dormia se arranjava e procurava o
maior bem-estar possível.
O sol dava a volta ao céu, lentamente, descendo para o lado do mar. Q uando o mar começava a ficar mais
escuro e a avermelhar-se com os raios do poente, iniciávamos a descida para casa, não já pelo carreiro, mas a
correr pela encosta, sem querer saber do atalho, escorregando nas ervas e nas pedras. A ssim, o caminho que de
madrugada percorrêramos em duas horas, à volta não levava mais de meia hora. Chegávamos na altura da ceia,
cobertos de pó, as vestes cheias de folhas e espinhos, e íamos logo para a cabana cear. D eitávamo-nos cedo e de
madrugada estávamos de novo a pé.
N em sempre, porém, lá em cima, no planalto, tudo estava calmo e distante da guerra. N ão me refiro aos
aviões que frequentemente passavam sobre as nossas cabeças, isolados ou em esquadrilha, nem às explosões
cujo rumor nos chegava do vale, enfraquecido pela distância, e que indicavam que esses safados dos alemães
continuavam a destruir os diques, espalhando a água e a malária por toda a parte; falo, sim, dos encontros que
de vez em quando tínhamos e que tornavam para nós a guerra sempre presente. E isto porque aquela passagem
tão solitária era o caminho quase obrigatório de todos quantos, através das montanhas, trilhando sempre os
cumes altos e evitando os vales, desciam de Roma e da alta I tália, ocupadas pelos A lemães, para a I tália
meridional, onde se encontravam os I ngleses. Eram, na maioria, soldados em fuga, ou gente pobre que queria
voltar à sua aldeia, de onde a guerra a expulsara, ou ainda prisioneiros fugidos de qualquer campo de
concentração.
Lembro-me muitíssimo bem de um desses encontros. Estávamos a comer, como de costume, pão e queijo, e
eis que apareceram, de repente, por trás dumas rochas, dois homens armados de varapaus, com tal aspecto que
por pouco não os tomava por selvagens. Vinham rotos e esfarrapados, mas não foi isso que me meteu medo,
porque de farrapos andava toda a gente vestida lá em cima; mas os seus ombros, de uma largura nunca vista, e
os seus rostos, completamente diferentes dos I talianos, fizeram-me tanta impressão que nem sequer pude
mexer-me ao vê-los aproximar-se, e ali fiquei, sentada, paralisada de medo, com o pão e o queijo suspensos no
ar. Michele, que não tinha medo de nada nem de ninguém, não só por coragem, mas porque confiava em todos,
aproximou-se dos dois homens e começou a falar com eles por gestos. Tomamos ânimo e também nós duas nos
aproximamos.
A s caras de ambos eram amarelas e achatadas, sem barba, com umas rugas compridas na pele lisa ao longo
das faces; tinham cabelos negros e espessos, olhos pequenos, repuxados para cima nos ângulos, ao lado das
têmporas: narizes esmagados e bocas de mortos cheias de dentes aguçados e escuros. Michele disse-nos que
eram dois prisioneiros russos, mas de raça mongol, como quem diz chinesa; em sua opinião, tinham fugido de
qualquer campo de concentração alemão onde estavam prisioneiros. Eu não me cansava de olhar para os seus
ombros muito largos, pensando que talvez tivesse sido uma imprudência não nos termos escondido ou fugido:
aqueles dois homens eram tão fortes que, se saltassem em cima de mim ou de Rose a, decerto não poderíamos
escapar. Mas os dois mongóis comportaram-se como gente boa: sempre a falar por gestos, ficaram conosco uma
hora ou pouco mais, o tempo de descansarem. Michele ofereceu-lhes pão e queijo e eles comeram com discrição
e parece-me que agradeceram. Riam constantemente, os pobrezinhos; talvez, como não conseguiam
compreender-nos nem fazer-se compreender, quisessem dar-nos a entender, com esse riso, que as suas
intenções eram boas. Michele, sempre por gestos, explicou-lhes o caminho que deviam tomar e, passado algum
tempo, lá se foram embora, por entre as fragas; de longe pareciam mesmo dois grandes macacos a caminharem
sobre as patas traseiras, com o auxílio dos varapaus que tinham arrancado de qualquer árvore.
Uma outra vez passou um operário italiano que estivera a trabalhar nas fortificações da frente de batalha,
não me lembro onde, e tinha fugido porque lá não comiam nada, eram tratados como cães e trabalhavam como
escravos. Q uase não se tinha em pé. Era um perfeito rapaz, distinto, de rosto fino e moreno, mas magro como
um cão, os ossos a furarem-lhe a pele, os olhos encovados e tristes e todo o corpo verdadeiramente na espinha.
D isse-nos que tinha família em Puglie e esperava chegar lá, caminhando assim de montanha em montanha. Há
uma semana que andava e tinha um aspecto miserável, os sapatos rotos, as vestes em farrapos. N ão disse
grande coisa; por causa da fraqueza, falava devagar, a custo, e poucas palavras de cada vez, como se quisesse
poupar o fôlego. O uvira dizer que em Roma houvera uma revolta e que tinham morrido alguns alemães... estes,
em represália, mataram muitos italianos... mas não sabia quando, nem como, não sabia mais nada. Por fim,
sempre a falar dos A lemães, disse: “S ão uns miseráveis. S abem muito bem que já perderam a guerra, mas,
como a guerra lhes agrada e nada lhes falta, porque vivem à nossa custa, continuarão a fazê-la enquanto
tiverem um soldado. S e a guerra não acabar depressa, morreremos todos de fome e de miséria. O u acaba a
guerra ou acabamos nós.”
A ceitou, de Michele, pão, queijo e algum tabaco e, depois de descansar uma meia hora no planalto, retomou
o seu caminho, arrastando devagar as pernas.
Parecia que a cada passo iria cair ao chão para não se levantar mais.
Uma manhã, quando estávamos a apanhar sol, ouvimos inesperadamente um assobio. Escondemo-nos logo
todos os três atrás duma daquelas rochas brancas, para ver o que se passava. N unca se sabia... estávamos
sempre alerta e sempre com medo que aparecessem os alemães e nos prendessem. D ali a pouco Michele deitou
a cabeça de fora e viu, em frente, outra cabeça, que se escondia à pressa atrás duma rocha não muito distante.
Continuamos assim durante algum tempo, a espiar-nos uns aos outros, e por fim vimos que não eram alemães
e eles viram que nós éramos italianos e saíram do esconderijo. Eram dois homens da I tália meridional,
militares, um tenente e um alferes, segundo nos disseram, mas vestidos à paisana, pois também eles, como
tantos outros, fugiam através das montanhas em direção ao S ul, no intuito de passarem as linhas de combate e
atingirem a terra onde tinham as famílias. Um era moreno e alto, de pele escura, cara redonda, olhos pretos
como o carvão, dentes brancos e lábios quase de cor violeta; o outro era louro, de cara comprida, olhos azuis e o
nariz muito aguçado. O moreno chamava-se Carmelo e o louro Luigi. D e todos os encontros que tivemos no
cimo da montanha, foi talvez este o menos agradável, não porque os dois fossem verdadeiramente antipáticos:
é provável que em tempo de paz, na sua terra, eu não achasse nada que lhes censurar, mas, como adiante se
verá, a guerra exercera neles uma influência péssima, como de resto em tantos outros, pondo a descoberto o
lado mau do seu caráter, que de outra forma ficaria oculto. E a propósito quero afirmar que a guerra é uma
grande provação: para se julgar bem os homens é preciso vê-los em tempo de guerra, não em tempo de paz; não
quando há leis e respeito pelos outros e temor a D eus, mas sim quando todas essas coisas não existem e cada
um age segundo a sua natureza, sem freios de qualquer espécie.
A queles, no momento do armistício, encontravam-se num regimento aquartelado em Roma e desertaram;
primeiro estiveram escondidos, depois fugiram da capital, na esperança de chegarem às suas terras. D urante
um mês viveram em casa de um camponês, nas faldas do monte das Fadas, e fiquei logo com má impressão
deles ao ouvi-los falar desse homem, que, em suma, os hospedara, de uma maneira depreciativa, como de um
pobre tísico ignorante, que nem sabia ler e cuja casa parecia um covil. Um disse, a rir: “Mas, já se sabe,
tínhamos de nos contentar, em tempo de racionamento, pão bolorento...”
D isseram ainda que tinham abalado do monte das Fadas porque o camponês lhes dera a entender que não
podia tê-los lá mais tempo, não tinha comida para lhes dar, mas o moreno observou que não era verdade, pois,
se tivessem dinheiro, a comida decerto aparecia, todos os camponeses são interesseiros. Em conclusão, iam
para o Sul e esperavam passar a frente.
Era a hora do almoço e Michele, embora de má vontade, ofereceu-lhes o pão e o queijo do costume. O
moreno disse que aceitava o pão, mas, quanto ao queijo, tinham um inteiro, roubado ao camponês avarento
sem ele dar por isso, na altura em que o deixaram. E, dizendo isto, tirou o queijo da sacola e agitou-o no ar, a rir.
Fiquei mal impressionada com esta declaração tão franca, não tanto pelo roubo, vulgar naqueles tempos em
que todos roubavam e o furto já não se chamava furto, como pelo à vontade, que me parecia impróprio num
homem como ele, com o posto de tenente e que, pelas suas maneiras, devia pertencer à burguesia. A lém disso,
não era bonito, pensei, pagar a hospitalidade daquele pobre homem levando-lhe o pouco que tinha. Mas não
disse nada; sentamo-nos na erva e começamos a comer e, enquanto comíamos, conversávamos, ou melhor,
ouvíamos o moreno, que falava pelos cotovelos e sempre de si próprio, atribuindo-se uma grande importância,
quer como proprietário de terras na sua aldeia, quer como oficial durante a guerra. O loiro ouvia-o
semicerrando os olhos por causa do sol e de vez em quando contradizia-o maliciosamente; mas o outro não se
desconcertava e prosseguia com as suas gabarolices. D izia por exemplo o moreno: “N a minha aldeia tenho uma
herdade...”
E o louro: “Bem, digamos dois ou três campinhos do tamanho de lenços de assoar.”
“Não, uma grande herdade, e é preciso um cavalo para a percorrer.”
“Ora, ora, basta ir a pé e não é preciso dar muitos passos.”
O u então: “A rranjei uma patrulha e entrei no bosque. Estavam lá escondidos, pelo menos, uma centena de
soldados inimigos.”
“Eia, eu fui contigo e vi, não eram mais de quatro ou cinco.”
“N ão, digo-te que eram pelo menos cem... claro, quando surgiram de trás das sebes onde estavam
escondidos, não os contei, nesses momentos há mais que fazer do que contar os inimigos, mas deviam ser pelo
menos cem...”
“Vamos, diminui lá isso, faz-lhe um desconto, eram uns cinco ou seis...”
E assim por diante. O moreno dizia-as das grossas, num tom muito seguro e fanfarrão; o loiro, fraco e
indolente, não deixava passar nem uma. Por fim, o moreno contou o que fizera no dia em que fora proclamado
o armistício e o exército italiano se dispersara: “Eu estava nos serviços da intendência, um armazém militar
cheio de todos os bens que D eus criou. Q uando soube que a guerra acabara, não hesitei: mandei carregar num
caminhão tudo quanto pude, caixas de conservas, queijos, farinhas, toda a espécie de gêneros alimentícios, e
levei esse carregamento para casa, para a minha mãe.”
Riu satisfeito do seu belo feito, mostrando a fieira dos dentes brancos e perfeitos; então Michele, que até aí o
ouvira sem uma palavra, observou num tom seco: “Em resumo, você roubou.”
“Que quer dizer?...”
“Quero dizer que momentos antes era um oficial do exército italiano e momentos depois era um ladrão.”
“Meu caro senhor, não sei quem é, nem como se chama, mas podia...”
“Podia o quê?”
“Q uem lhe disse que roubei?... Fiz o que faziam todos, se eu não tivesse levado esses gêneros, outro
qualquer os levaria.”
“É possível, mas, apesar disso, foi você que os roubou...”
“Veja como fala, sou capaz...”
“De quê, vejamos de que é capaz?...”
O loiro disse então ao moreno em ar de troça: “É pena, Carmelo, mas tens de reconhecer que este senhor
chegou para ti...
Tocado!”
O moreno encolheu os ombros e disse a Michele: “Não quero perder tempo a discutir consigo.”
“Faz muito bem”, declarou Michele com autoridade, “mas sempre lhe digo porque é que se comporta como
um ladrão... N ão contente em ter roubado, ainda se gaba... supõe que foi muito esperto... se o tivesse feito e se
se envergonhasse, poderia supor-se que o fizera por necessidade... ou arrastado pelo contágio da multidão...
Mas não, gaba-se, e assim mostra que não ligou importância ao que fez e está pronto a fazê-lo de novo.”
O moreno. furioso com este tom, levantou-se, agarrou num ramo de árvore e brandiu-o contra Michele,
dizendo: “Ou está calado ou...”
Mas Michele nem teve tempo de reagir. O loiro desarmou-o imediatamente, com uma risadinha maliciosa:
“Tocado de novo!”
Carmelo então voltou a sua fúria contra o amigo: “Mas cala-te, também participaste no saque, estávamos lá
os dois...”
“Eu apenas obedecia... eras meu superior... ah! ah!” Em suma, a refeição acabou em silêncio, com o moreno
deveras sombrio e o loiro a fungar. D epois ficamos ainda mais algum tempo calados. Mas Carmelo não podia
engolir aquela do ladrão e dali a pouco disse em ar de desafio a Michele: “Você, que julga sem saber e chama
tão facilmente ladrão a quem vale mais, mas muito mais, do que você, pode saber-se quem é? Eu posso dizer
quem sou: Carmelo A li, oficial, agricultor, licenciado em direito, condecorado por mérito, cavaleiro da Coroa de
Itália. E você, quem é?”
O loiro, fungando, observou: “Esqueceste-te de dizer que és também o secretário do fascio na nossa terra.
Porque não o dizes?”
Carmelo respondeu, aborrecido: “O fascio já não existe, só por isso não o disse... mas sabes bem que, como
secretário do partido, nunca ninguém se queixou de mim.”
O loiro, a rir, corrigiu: “A não ser que te aproveitavas disso para apanhares as camponesas mais bonitas que
iam pedir-te algum favor... Sempre foste um grande D. João...”
Carmelo, lisonjeado com a acusação, sorriu, mas não a repeliu; depois voltou-se para Michele, insistindo:
“Então, meu caro senhor, diga um título, um curso, uma condecoração, qualquer coisa em suma que nos faça
compreender quem é e com que direito critica os outros.”
Michele olhava-o fixamente através das espessas lentes de míope; por fim perguntou: “Q ue lhe importa o
que sou?”
“Mas ao menos é licenciado?”
“Sim, sou licenciado... mas, mesmo que não fosse, nada mudaria.”
“Que quer dizer?”
“Q uero dizer que você e eu somos homens e aquilo que somos, somos pelo que fazemos, e não pelas honras
e cursos... e o que você fez e disse define-o como um homem pelo menos leviano e de consciência muito
elástica... eis tudo.”
“Tocado!”, exclamou outra vez o loiro, nudo.
O moreno desta feita escolheu o partido de não fazer caso. D isse de repente, pondo-se em pé: “Eu sou
estúpido em baixar-me a discutir consigo... Vamos, Luigi, que se faz tarde e ainda temos de andar muito...
Obrigado pelo pão e não duvide que, se for à minha aldeia, lho pagarei com juros.”
Michele, caprichoso, respondeu com calma: “S im, contanto que o pão não seja feito com a farinha que você
roubou ao exército italiano.”
A gora Carmelo, que já ia distante, limitou-se a encolher os ombros, dizendo: “Vá para o diabo mais o
exército italiano.”
O uvimos ainda o loiro repetir numa risada: “Tocado!” D epois viraram por trás de uma rocha e
desapareceram da nossa vista.
O utra vez vimos ao longe, num carreiro que contornava a montanha, uma quantidade de gente que
caminhava em fila indiana, como em procissão. Passaram daí a pouco junto de nós. Eram pelo menos trinta
pessoas, os homens com fatos domingueiros, a maior parte fatos pretos, as mulheres com o seu trajo regional:
saias compridas, blusas e xales. A s mulheres levavam à cabeça embrulhos e cestos e ao colo as crianças
menores; as crianças maiorzinhas iam pela mão dos homens.
Estes desgraçados, como eles próprios explicaram, eram os habitantes de uma aldeia que estava mesmo na
lha da frente. O s alemães, uma manhã, tinham-nos acordado de madrugada, quando ainda dormiam, e deram-
lhes meia hora para se vestirem e embrulharem os objetos mais necessários. D epois meteram-nos num
caminhão e transferiram-nos para um campo de concentração perto de Frosinone.
Mas, passados alguns dias, fugiram desse campo e agora tentavam regressar à sua aldeia, através das
montanhas, para voltarem às suas casas e recomeçarem a sua vida. Michele interrogou o chefe do grupo, um
perfeito homem, já velhote, de bigodes grisalhos, e este disse-lhe com ingenuidade: “S e não fosse por mais
nada, pelos animais... Se nós não pensarmos nos animais, quem há de pensar?... Os alemães?...”
Michele não teve coragem de lhes dizer que, ao chegarem à aldeia, não encontrariam casas, nem animais,
nem nada. D escansaram um momento e retomaram o seu caminho. Eu simpatizei imenso com esses
pobrezinhos, tão resignados e confiantes, naturalmente porque se assemelhavam a nós as duas, a Rose a e eu:
também tinham sido postos fora das suas casas pela guerra, também andavam fugidos nas montanhas,
abandonados, como ciganos. A lguns dias mais tarde soube que os alemães os tinham prendido e levado outra
vez para o campo de Frosinone. Depois não soube mais nada deles.
Fizemos esta vida, subir de madrugada e descer ao pôr-do-sol, durante umas duas semanas; por fim tornou-
se evidente que os alemães tinham renunciado aos recrutamentos, pelo menos naquele ponto da montanha, e
ficamos lá em baixo e recomeçamos a vida do costume. Ficou-me, porém, a saudade daqueles dias tão lindos
que passei no alto do monte, em comunhão íntima com a solidão e a natureza. Lá em cima não havia refugiados
nem camponeses a aborrecerem-me com a guerra, os ingleses, os alemães e a carestia; não tinha canseiras para
cozinhar um ruim almoço ou jantar com lenha verde numa cabana escura; nada nos lembrava a situação em
que nos encontrávamos, a não ser aqueles dois ou três encontros que já referi. Podia pensar que ia passear
todos os dias com Michele e Rosetta, e eis tudo.
A quele pequeno prado verde sobre o qual o sol de inverno se tornava tão quente que parecia mesmo
estarmos em maio, com as montanhas da Ciociaria no horizonte, coroadas de neve, e do outro lado o mar
cintilando ao fundo da planura de Fondi, parecera-me um lugar encantado, onde muito bem podia estar
escondido um tesouro, como ouvia dizer em criança. Mas esse tesouro não estava debaixo da terra, sabia-o
agora, encontrara-o em mim própria, com tanta surpresa como se o houvesse desenterrado com as minhas
mãos: era aquela calma profunda, uma completa ausência de medo e de ansiedade, uma confiança em mim e no
que, passeando sozinha, sentia crescer no meu íntimo à medida que os dias passavam.
Em tantos anos, foram talvez esses os dias mais felizes da minha vida e, é estranho dizê-lo, foram também
aqueles em que fui mais pobre, mais desprovida de tudo, tendo pão e queijo por único alimento e a erva do
prado por leito, e nem uma cabana para me acoitar, vivendo mais como um animal selvagem do que como um
ser humano.
A gora estava-se no fim de D ezembro e mesmo no dia de N atal chegaram na verdade os I ngleses. N ão os
ingleses do exército de Garigliano, bem entendido, mas dois ingleses que fugiam, como tantos, pelas
montanhas e apareceram em S anta Eufêmia na manhã de 25 de D ezembro. O tempo continuava lindíssimo,
frio, seco e límpido; nessa manhã, ao chegar à porta do casinhoto, avistei no socalco uma pequena multidão.
A proximei-me e vi que os refugiados e os camponeses cercavam dois rapazes que pareciam forasteiros: um
louro e pequeno, de olhos azuis, nariz direito e fino, boca vermelha, barba loura cortada em ponta; o outro, alto
e magro, de olhos azuis e cabelos pretos. O louro falava um italiano arrastado e disse-nos que eram ingleses:
ele, oficial da marinha, o outro, simples marinheiro. Tinham desembarcado para os lados de Óstia, perto de
Roma, para fazerem ir pelos ares, com dinamite, um pouco do que restava aos pobres italianos. Uma vez a
missão concluída, voltaram à praia, mas o barco que os trouxera não tornou a aparecer e tiveram de fugir e
esconder-se como e onde puderam. O período das chuvas passaram-no em casa de uns camponeses, para os
lados de S ermoneta, mas agora, que fazia bom tempo, queriam tentar atravessar as linhas e alcançar N ápoles,
onde estava o seu comando.
Estas explicações foram seguidas de outras tantas perguntas e respostas; refugiados e camponeses queriam
saber como ia a guerra e quando acabava. Mas eles sabiam tanto como nós: viviam nas montanhas há muitos
meses, durante os quais só tinham lidado com camponeses analfabetos que não estavam a par do que se
passava. A ssim, quando os refugiados se aperceberam de que os dois não sabiam nada e, ainda por cima,
precisavam de auxilio, agora um, logo outro, afastaram-se todos, repetindo que era perigoso estar ao pé dos
ingleses, pois nunca se sabe o que pode acontecer: denunciar é fácil e se os alemães viessem a sabê-lo, era caso
para suceder alguma desgraça. Em suma, por fim ficaram os dois sozinhos no meio do socalco, ao sol, vestidos
de farrapos, as barbas compridas, olhando em volta como perdidos...
Também eu, confesso, tive medo de estar ao pé deles, e não por mim, mas por Rose a; mas Rose a fez-me
sentir vergonha desse medo, dizendo: “mamãe, eles têm o ar de quem anda perdido, os pobrezinhos... e hoje é
dia de N atal... N ão têm nada de comer e naturalmente gostariam de estar com as famílias e não podem...
Porque não os convidamos a comer conosco?”
Envergonhei-me do meu medo e pensei que Rose a tinha razão. N ão valeria a pena desprezar os refugiados
como desprezava, se no fim de contas procedia como eles. Lá conseguimos que os dois compreendessem que os
convidávamos a comer conosco o jantar de Natal. Aceitaram logo, muito felizes.
Para esse N atal eu fizera um pequeno sacrifício, sobretudo por causa de Rose a, que todos os anos, desde
que nascera, festejava aquele dia melhor do que a filha dum senhor. Comprara a Paride uma galinha e assara-a
no forno com batatas. Tinha também feito massa em casa, pouca, verdade se diga, pois restava-me pouquíssima
farinha, e arranjara uns pãezinhos com recheio. Tinha dois salpicões, que cortei em fatias finas, pare comermos
com alguns ovos cozidos. Fiz também doce: à falta de melhor, raspei umas quantas alfarrobas, misturei essa
farinha com farinha de trigo, passes de uvas, pinhões e açúcar e cozi no forno um bolo baixo e duro, mas
saboroso. Consegui ainda que um refugiado me dispensasse uma garrafa de marsala, o vinho tinha-me dado
Paride. Fruta havia com abundância: em Fondi as árvores estavam carregadas de laranjas, que custavam bem
barato, e uns dias antes comprara cinquenta quilos delas e não comia outra coisa todo o dia.
Pensei convidar também Michele e disse-lhe quando ele se dirigia à pressa para casa do pai. A ceitou logo e
penso que o fez sobretudo para não estar junto da família. A crescentou: “Cara Cesira, fizeste hoje uma boa
ação... Se não tivesses convidado esses dois homens, retirava-te toda a minha estima.”
Michele, no entanto, chamou o pai, que apareceu à janela; então disse-lhe que o tínhamos convidado para
jantar e que aceitara. Filippo, em voz baixa, pois tinha medo que os ingleses o ouvissem, começou a aconselhá-
lo: “Não vás, eles são dois fugitivos, se os alemães vêm a sabê-lo, estamos arranjados.”
Mas Michele encolheu os ombros e, sem esperar que o pai acabasse o discurso, dirigiu-se para o nosso
casebre.
Tinha posto a mesa de N atal com uma toalha de linho espesso que os camponeses me emprestaram. Rose a
colocara em volta dos pratos ramos cortados no mato, verdes com bagas vermelhas, semelhantes àqueles que se
veem nas festas em Roma. N um prato estava a galinha, que, para cinco pessoas, era pequena, nos outros os
salpicões, os ovos, o queijo, as laranjas e o doce. O pão tinha-o feito de propósito para aquele dia e estava ainda
quente do forno e cortara-o em fatias, uma para cada um. Comemos com a porta aberta, pois a casa não tinha
janelas e, se a porta estivesse fechada, ficávamos às escuras. Lá fora brilhava o sol e avistava-se o panorama de
Fondi, luminoso e lindíssimo até onde o mar cintilava ao longe. Michele, depois dos pãezinhos recheados,
começou a atacar os ingleses a respeito da guerra. D izia-lhes das boas e fortes, falando de igual para igual, e
eles pareciam um pouco admirados. Talvez por não esperarem uma conversa daquelas em tal lugar, com um
farroupilha. Michele disse-lhes que tinham cometido um grande erro em não desembarcar perto de Roma, em
vez de desembarcarem na S icília; nessa altura teriam tomado Roma com facilidade e toda a I tália meridional.
A gora, avançando a passo e passo pela I tália acima, não só destruíam o pais, como faziam sofrer horrivelmente
as populações, que se encontravam, por assim dizer, entre a bigorna, que eram eles, e o martelo, que eram os
alemães. Os ingleses respondiam que não sabiam nada de tudo isso, eram soldados e obedeciam. Michele então
atacou-os com outros argumentos: porque faziam a guerra, com que fim? O s ingleses responderam: faziam a
guerra para se defender dos A lemães, que queriam submeter o mundo inteiro. Michele respondeu: isso não era
razão suficiente, toda a gente esperava que eles, depois da guerra, criassem um mundo novo, com mais justiça,
mais liberdade e mais felicidade do que o antigo. S e não conseguissem criar esse mundo, então teriam perdido
também a guerra, embora de fato fossem os vencedores.
O oficial loiro ouvia Michele com desconfiança e respondia pouco, mas o marinheiro pareceu-me que tinha
as mesmas ideias, embora, por respeito ao oficial, seu superior, não tivesse coragem de as exprimir. Por fim, o
oficial cortou a discussão, dizendo que o essencial, agora, era vencer a guerra; para o resto, confiava no seu
governo, que tinha certamente planos para criar esse mundo novo de que Michele falava. Compreendemos
todos que não queria comprometer-se numa discussão embaraçosa, e o próprio Michele, embora contrariado,
também compreendeu e propôs que bebêssemos à saúde desse mundo novo que iria surgir depois da guerra.
Enchemos os copos de marsala e bebemos todos à saúde do mundo de amanhã. Michele estava comovido e
tinha lágrimas nos olhos e, depois desse primeiro brinde, quis beber à saúde dos A liados, incluindo os Russos,
que nessa altura, segundo constava, tinham alcançado uma grande vitória sobre os Alemães.
Estávamos todos muito contentes, mesmo como se deve estar em dia de N atal; por momentos pareceu-nos
que não havia diferenças de língua nem de educação, que éramos na verdade todos irmãos e que esse dia, que
tantos séculos antes vira nascer J esus num estábulo, assistia agora também ao nascimento de qualquer coisa
semelhante a J esus, qualquer coisa de bom e de novo que tornaria os homens melhores. N o fim do jantar
fizemos um último brinde à saúde dos dois ingleses e depois abraçamo-nos todos; eu abracei Michele, Roseta e
os dois ingleses e eles abraçaram-nos e dissemos uns aos outros: “Bom Natal e bom Ano Novo!“
Pela primeira vez desde que estava em S anta Eufêmia me senti verdadeiramente feliz. Michele, porém,
observou daí a pouco que tudo aquilo era muito bonito, mas havia um limite para o sacrifício e o altruísmo, e
explicou aos dois ingleses que nós as duas lhes podíamos oferecer hospitalidade aquela noite, o máximo; depois
era melhor partirem, porque seria verdadeiramente perigoso para eles e para nós se ficassem lá em cima: os
alemães podiam vir a sabê-lo e então ninguém nos salvaria da sua vingança. O s ingleses responderam que
compreendiam perfeitamente estas exigências e asseguraram-nos que partiriam no dia seguinte.
Ficaram conosco todo aquele dia. Falaram um pouco de tudo com Michele e eu não pude deixar de notar
que, enquanto Michele parecia muito bem informado sobre a terra deles, até quase melhor do que eles
próprios, eles, ao contrário, ignoravam tudo da I tália, na qual todavia se encontravam e faziam a guerra.
O oficial, por exemplo, disse-nos que andara na universidade, portanto era pessoa instruída. Mas Michele,
arranha que arranha, acabou por descobrir que ele não sabia quem era D ante. O ra eu não sou instruída e nunca
li o que escreveu Dante, mas conhecia-o pelo menos de nome, e Rosetta disse-me que, quando andava na escola,
não só lhe tinham ensinado quem era Dante, como também lera alguns trechos desse poeta. Michele confessou-
nos baixinho a sua admiração e, sempre em voz baixa, num momento em que os ingleses não o ouviam,
acrescentou que assim se explicavam muitas coisas, como por exemplo os bombardeamentos que tinham
destruído tantas cidades italianas. O s aviadores que deitavam as bombas não sabiam nada de nós nem dos
nossos monumentos, a ignorância tornava os tranquilos e sem piedade e a ignorância, acrescentou Michele, é
talvez a causa de todas as nossas dores e das dos outros, porque a malvadez não é senão uma forma de
ignorância e quem sabe não pode verdadeiramente fazer mal.
A quela noite dormiram os dois num palheiro e, de manhã cedo, sem se despedirem, foram-se embora.
Estávamos ambas muito cansadas, pois ficáramos a pé até tarde, o que não era habitual: todos os dias íamos
para a cama com as galinhas.
A ssim, nessa manhã, já passava do meio-dia e nós ainda dormíamos. N o melhor desse sono, eis que ouço
uma pancada terrível na porta e depois uma voz medonha que dizia não sei o quê numa língua que eu não
conhecia.
“Oh, meu Deus, mamãe!”, exclamou Rosetta, aconchegando-se a mim. “Que é isto?”
Fiquei um momento sem me mexer, quase incrédula, e logo outra pancada e outro grito incompreensível.
Então disse a Rose a que ia ver quem era, saltei da cama tal como estava, em saia de baixo, toda despenteada,
os pés descalços, e fui abrir a porta. Eram dois militares alemães; um devia ser sargento e o outro simples
soldado. O sargento era mais jovem: tinha a cabeça loura, a cara branca como papel, os olhos dum azul
deslavado, sem pestanas, sem expressão e sem luz. O
seu nariz era um pouco torto para um lado e a boca torcida para o outro; duas cicatrizes na face, longas e
pálidas, davam-lhe um aspecto curioso, como se a boca continuasse até o pescoço. O outro era um homem de
meia-idade, forte, moreno, de testa enorme, olhos tristes e encovados, de um azul-escuro, o maxilar de cão
mastim. D igo a verdade: assustei-me deveras, não por mais nada, pelos olhos do sargento, frios e inexpressivos,
de um azul tão feio que pareciam os olhos de um animal, e não dum homem. Porém, não mostrei medo e gritei-
lhe na cara com quanta força tinha: “O lá, que bicho te mordeu, desgraçado? Q ueres arrombar a porta? N ão vês
que somos duas mulheres e estamos a dormir? Nem sequer podemos dormir?”
O sargento dos olhos claros fez com a mão um gesto, dizendo em mau italiano: “Bona, bona.”
Depois, voltando-se para o soldado, fez-lhe aceno para que o seguisse e entrou na casota.
Rose a estava ainda na cama e olhava-os de olhos esbugalhados, os lençóis puxados até o queixo.
Espreitaram por toda a parte, até debaixo da cama; e o sargento, na sua fúria pesquisadora, até levantou o
lençol a Rose a, como se ela pudesse ter debaixo das roupas aquilo que procuravam. D epois saíram.
Entretanto, juntaram-se à porta muitos refugiados, e hoje, pensando nisso, digo que foi mesmo um milagre os
dois alemães não os interrogarem a respeito dos ingleses, pois decerto, quanto mais não fosse por estupidez,
algum havia de dar com a língua nos dentes, e, então, coitadinhas de nós... D e resto, o fato de os alemães irem
lá acima, logo no dia seguinte à chegada dos ingleses, fez-me pensar sempre que houve com certeza denúncia
ou, pelo menos, alguma conversa. Mas os alemães, segundo me pareceu, não queriam ter aborrecimentos, e por
isso se limitaram a fazer uma busca à pressa, sem interrogar ninguém.
Porém, os refugiados, que não estavam habituados a ver alemães lá em cima, queriam informar-se a respeito
da guerra, se terminaria ou não depressa. Um até foi chamar Michele, que sabia alguma coisa de alemão, e, no
momento em que os dois estavam para se ir embora, empurraram-no para a frente, porque ele não queria, e
gritaram-lhe: “Pergunta-lhes quando acaba a guerra.”
A Michele, via-se a uma légua de distância, não lhe agradava falar com os alemães. Mas encheu-se de
coragem e lá disse qualquer coisa. Reproduzo agora em italiano aquilo que os alemães e Michele disseram em
alemão, porque uma parte Michele traduziu-a logo ali para os refugiados e a outra parte traduziu-me depois de
os alemães partirem. Michele perguntou-lhes quando acabaria a guerra e o sargento respondeu que não
demoraria muito, com a vitória de Hitler. A crescentou que os A lemães tinham umas armas secretas e com elas
iriam deitar ao mar os I ngleses, o mais tardar na primavera. D isse ainda qualquer coisa que fez uma grande
impressão aos refugiados.
“Faremos a ofensiva e deitaremos os I ngleses ao mar. Entretanto, os comboios servirão para transportar
munições e nós viveremos do que os I talianos têm, e aos italianos que nos traírem, vamos deixá-los morrer de
fome.”
D isse assim mesmo, com ar convicto, calmo e desapiedado, como se, em vez de italianos, isto é, cristãos,
falasse de moscas ou de qualquer outro animalejo. O s refugiados calaram-se todos ao ouvir estas palavras, pois
não as esperavam; não sei porquê, supunham que os alemães tinham simpatia por eles. Michele, que tomara o
gosto de falar, perguntou ainda de onde eram. O sargento respondeu que era de Berlim e em tempo de paz
tinha uma pequena fábrica de caixas de cartão, mas agora tinham-lhe destruído, e por isso não lhe restava
senão fazer a guerra o melhor que podia. O soldado hesitou antes de responder; depois, revirando os olhos
encovados e tristes e fazendo uma cara aflita, como um cão que apanhou uma paulada, disse que também era
de Berlim e também lhe não restava mais nada senão a guerra, pois a mulher e a filha única tinham-lhe
morrido, vítimas dos bombardeamentos. Em resumo, ambos responderam mais ou menos a mesma coisa: que
tinham perdido tudo nos bombardeamentos e só pensavam agora em fazer a guerra; simplesmente, via-se bem,
era claro como a água, o sargento fazia a guerra com zelo e paixão, talvez até com malvadez, enquanto o
soldado, tão sombrio, com aquela testa enorme que parecia cheia de tristeza, fazia a guerra por qualquer outra
razão, talvez por desespero, pois sabia que ninguém já o esperava em casa. E eu pensei que aquele soldado
talvez não fosse mau; mas o fato de ter perdido a mulher e a filha poderia torná-lo ruim, e se, por exemplo,
D eus me livrasse de tal, nos tivesse prendido as duas, talvez não hesitasse em matar Rose a ao lembrar-se de
que lhe morrera uma filha da mesma idade nos bombardeamentos de Berlim. Enquanto pensava em tudo isto,
o sargento, que parecia ter algum agravo dos I talianos, perguntou de repente por que razão entre os refugiados
havia tantos rapazes com as mãos nos bolsos, enquanto todos os alemães combatiam na frente.
Michele respondeu-lhe, elevando a voz, quase aos gritos, que ele e todos os outros tinham combatido por
Hitler e pelos A lemães na Grécia, em África e na A lbânia e estavam prontos a combater de novo, até a última
gota de sangue, e todos lá em cima ansiavam pela hora em que o grande e glorioso Hitler vencesse
definitivamente a guerra e deitasse ao mar esses safados dos I ngleses e A mericanos. O sargento ficou um
pouco atrapalhado com esta tirada; olhava com ar de dúvida para Michele, media-o de alto a baixo e via-se que
não o acreditava. Mas, em suma, eram palavras que não faziam mal nenhum e contra as quais nada podia dizer,
embora não acreditasse nelas. A ssim, depois de terem entrado nas outras casotas e revistado aqui e além, mas
de má vontade e sem interesse, os dois voltaram para o vale com grande alívio de todos nós.
Eu porém fiquei impressionada com a atitude de Michele. N ão digo que devia insultar os alemães, mas
todas aquelas mentiras, assim gritadas com uma cara sem vergonha, surpreenderam-me bastante. D isse-lhe e
ele encolheu os ombros e respondeu-me: “Com os nazis tudo é lícito: mentir-lhes, traí-los, matá-los se for
possível, Q ue farias a uma serpente venenosa, um tigre ou um lobo raivoso? Procuravas, decerto, reduzi-lo à
impotência pela força ou pela astúcia. N aturalmente não lhe falavas, tentando de qualquer modo amansá-lo,
porque já sabias que isso seria inútil. É
assim com os nazis. Eles colocaram-se fora da humanidade, como animais: selvagens, e por isso, para os
combater, todos os meios são bons. Tu, como aquele oficial inglês tão instruído, nunca leste D ante. S e o
tivesses lido, saberias que Dante diz: ‘ E cortesia fu in lui esser villano’”.
Perguntei o que queria dizer aquela frase de D ante e ele então explicou-me que queria dizer precisamente
que com gente como os nazis era já muita cortesia mentir e atraiçoar. N em isso mereciam. Eu disse por dizer
que entre os nazis também podia haver bons e maus, como há em todo o lado, e portanto não se podia saber se
aqueles dois eram maus. Mas Michele pôs-se a rir: “A qui não se trata de bons e maus. Talvez sejam bons para
as mulheres e para os filhos, tal como os lobos e as serpentes são bons para as fêmeas e suas crias. Mas para a
humanidade, é isso que conta, contigo, comigo, com Rose a, com estes refugiados e camponeses, não podem
deixar de ser maus.”
“E porquê?”
“Porque”, respondeu, passado um momento de reflexão, “estão convencidos de que é o bem aquilo que nós
chamamos o mal. E fazem o mal julgando que cumprem o seu dever.”
Fiquei na dúvida, parecia-me não ter compreendido. Ele, porém, não me dava atenção e concluiu, como que
a falar consigo mesmo: “A combinação do mal e do sentido do dever, eis o que é o nazismo.”
Era curioso como Michele podia ser tão bom e ao mesmo tempo tão duro!...
Lembro-me de termos encontrado alemães noutra ocasião, em circunstâncias muito diferentes. Eu tinha já
pouca farinha e fazia o pão aproveitando não só o farelo mais fino, mas também o mais grosso. Um dia
decidimos ir ao vale a ver se encontrávamos um pouco de farinha para trocar por ovos. O s ovos comprara-os a
Paride; tinha dezesseis e esperava, em troca desses ovos e juntando-lhe algum dinheiro, arranjar uns quilos de
farinha branca. N unca mais descêramos ao vale desde o dia daquele bombardeamento que causara tanto medo
ao pobre Tommasino, e, digo-o com sinceridade, desta vez ia de má vontade. N ão sei porquê, falei nisto diante
de Michele e ele ofereceu-se para nos acompanhar. A ceitei com prazer porque, com Michele, sempre me sentia
mais segura, pois era a única pessoa lá em cima que verdadeiramente me inspirava coragem e confiança. Meti
então os ovos num cestinho com palha e pusemo-nos a caminho de manhã cedo. Estávamos nos primeiros dias
de J aneiro, em pleno inverno, em plena guerra, no momento, por assim dizer, mais negro, mais frio e mais
desesperado, daquele desespero que durava há tantos anos já. A última vez que descera ao vale, nesse dia em
que fora com Tommasino, havia ainda folhas nas árvores, embora amarelas, e erva nos prados, depois de tantas
chuvas, e nas encostas algumas flores, as últimas do O utono, como ciclames e violetas selvagens. Mas agora, à
medida que descíamos, víamos tudo seco, cinzento, árido e nu, num ar frio e sem sol, sob um céu nublado e
sem cor. Partimos bastante alegres, mas depressa nos calamos: o dia estava silencioso como são silenciosos os
dias de Inverno e esse silêncio gelava-nos e impedia-nos de falar.
Primeiro descemos pela encosta à direita do vale, depois atravessamos o planalto onde, entre figueiras-da-
índia e rochas, caíra a bomba lançada pelo avião no dia em que íamos acompanhadas por Tommasino,
passando em seguida para o lado esquerdo. Caminhamos assim sem falar ainda meia hora e por fim chegamos
à entrada do vale, onde havia a pontezinha, a encruzilhada e a casa em que Tommasino morara até o dia fatal
do bombardeamento. Lembrava-me desse lugar como de um sítio risonho, bonito e amplo, e fiquei
surpreendida, confesso, ao vê-lo triste, cinzento, nu e mesquinho. J á viram uma mulher sem cabelo? Eu já vi
uma rapariga da minha aldeia que teve o tifo: uma parte caiu-lhe, o resto rasparam à máquina zero. Parecia
outra, até tinha uma expressão diferente, fazia lembrar um ovo grande e feio, com a cabeça lisa e calva que as
mulheres nunca têm, pois uma cara privada dos cabelos fica como que esmagada por uma luz demasiado crua.
D o mesmo modo, sem a folhagem espessa e verde dos três plátanos que davam sombra à casita de Tommasino,
sem a verdura que cobria as pedras das margens do riacho, sem as plantas dos dois lados da estrada e nos
valados, que então eu não notara, mas deviam lá estar, pois agora sentia a sua falta, aquele lugar não parecia o
mesmo, perdera toda a beleza, exatamente como uma mulher a quem tivessem rapado o cabelo. E, não sei
porquê, vendo-a assim tão miserável, constrangeu-me o coração e quase me pareceu que se assemelhava um
pouco às nossas vidas naquele momento, também nuas e sem ilusões, numa guerra que não acabava mais.
S eguimos pela estrada principal e daí a pouco tivemos o primeiro encontro do dia. Um homem conduzia
pelas rédeas dois cavalos, castanhos e gordos, muito bonitos, na verdade. Eram dois cavalos alemães, mas o
homem tinha um uniforme que eu nunca vira. Q uando chegamos ao pé dele, primeiro olhou-nos, depois
saudou-nos e, como fazíamos o caminho na mesma direção, começou a conversar conosco num mau italiano.
A ssim andamos e falamos um bom bocado. Era um rapaz dos seus vinte e cinco anos, de uma beleza como
poucas vezes tenho visto na vida. A lto, de ombros largos, cintura delgada como uma mulher, elegante, pernas
altas, metidas em botas de couro amarelo. Era louro como o ouro, tinha olhos de uma cor entre o verde e o azul,
talhados em amêndoa, estranhos e sonhadores, o nariz direito, comprido e fino, a boca vermelha e bem
desenhada e, quando sorria, descobria uns dentes lindíssimos, brancos e certos, que era um prazer olhá-los.
D isse-nos que não era alemão, mas sim russo, de uma terra muito distante, cujo nome não me lembro.
Confessou tranquilamente que traíra os Russos e se pusera ao lado dos A lemães porque não gostava dos
Russos, embora também não gostasse dos A lemães. A crescentou que, juntamente com outros compatriotas
que tinham traído igualmente o seu país, estava ao serviço dos nazis; mas agora tinha a certeza de que os
A lemães perdiam a guerra, pois a sua crueldade revoltara o mundo inteiro, que se unira contra eles. O s
A lemães, concluiu, mais mês, menos mês, perdem a guerra e então, para ele, acabaria tudo, e fez nesta altura
um gesto que nos deixou gelados, levando a mão ao pescoço, como que a dizer que os Russos lhe cortariam a
cabeça. Falava com calma, como se a própria sorte lhe fosse indiferente. E sorria até, não só com a boca, mas
com aqueles olhos estranhos, cerúleos, que pareciam dois bocadinhos de mar, onde o mar é mais fundo. Via-se
que odiava os A lemães e odiava os Russos e se odiava a si mesmo e não lhe importava nada morrer. Caminhava
tranquilamente, segurando pelas rédeas os dois cavalos. N a estrada deserta e no campo cinzento e gelado não
havia senão ele e os seus cavalos e parecia inacreditável que este homem tão belo estivesse, por assim dizer, já
condenado e tivesse de morrer, talvez mesmo antes do fim do ano. N a encruzilhada onde nos separamos disse
ainda, acariciando as crinas a um dos cavalos: “Estes dois cavalos são tudo quanto me resta na vida e nem
sequer são meus...”
D epois, lá se foi em direção à cidade. Ficamos a vê-lo um momento afastar-se. E eu não pude deixar de
pensar que encontrara mais uma vitima da guerra: se não fosse a guerra, aquele rapaz tão belo teria ficado na
sua aldeia, decerto para se casar e trabalhar e ser um homem honrado, como todos os outros.
A guerra obrigara-o a sair da aldeia, obrigara-o a trair e agora a guerra matava-o e ele estava resignado a
morrer, e isso, entre tantas coisas horríveis, era talvez a pior, por ser a menos natural e a menos compreensível.
Tomamos, à esquerda, uma estrada secundária que conduzia aos laranjais.
Esperávamos trocar aí os ovos pelo pão dos alemães que tinham as suas tendas à beira do pomar, como da
outra vez. Mas não encontramos ninguém, as peças de artilharia tinham desaparecido. S ó se via o solo pisado e
sem ervas no sítio onde tinham estado as tendas e algumas árvores arrancadas e despedaçadas, era tudo...
D isse então que seria melhor continuarmos por aquela estrada, pois talvez outros grupos de alemães
estivessem acampados um pouco mais adiante.
Caminhamos ainda um quarto de hora, sempre em silêncio, e, por fim, percorrido quase um quilômetro,
encontramos uma rapariga loura que andava por ali sozinha, não como quem se dirige para um lugar
determinado, mas como quem passeia sem destino. Caminhava devagar, olhando com estranho interesse para
os campos cinzentos e nus e dando de vez em quando uma dentada num bocado de pão. Fui ao seu encontro e
perguntei-lhe: “Dize-me, sabes se há alemães para estes lados, se seguirmos pela estrada adiante?”
Ela parou ao ouvir a minha pergunta e fitou-me. Usava um lenço na cabeça, e era uma linda rapariga, sã e
robusta, de cara larga, um pouco maciça e olhos grandes, castanhos. Respondeu logo à pressa: “O s alemães...
decerto que os há... pois estão cá os alemães.”
Perguntei-lhe: “Mas onde estão?”
Ela olhava-me e agora parecia assustada, de repente, sem me responder, fez um movimento para se ir
embora. Peguei-lhe num braço e repeti a pergunta. Então baixou a voz e disse: “S e eu te disser, não vais contar
onde tenho as provisões?”
Fiquei de boca aberta ao ouvir tais palavras, que eram ao mesmo tempo adequadas às circunstancias e
completamente absurdas. Exclamei: “O que dizes? Porque me falas tu de provisões?”
E ela, abanando a cabeça: “Vêm e levam tudo... vêm e levam tudo... os alemães, claro... mas sabes o que lhes
disse a última vez que cá vieram? N ão tenho nada, não tenho farinha, não tenho feijões, não tenho banha, não
tenho nada... só tenho o leite para o meu menino... se o querem, levem-no... aqui está.”
E, olhando-me fixamente, de olhos esbugalhados, começou a desabotoar a blusa. Fiquei perplexa, tal como
Michele e Rose a. Ela olhava para nós, mexendo os lábios como se falasse consigo mesma, e entretanto abria a
blusa até a cinta e depois, com uma das mãos, os dedos abertos, como fazem as mães quando dão de mamar
aos filhos, tirou para fora o seio.
“N ão tenho senão isto... levem-no”, repetia em voz baixa, sonhadora. A gora tinha conseguido tirar para fora
da blusa todo o seio, que era lindo, redondo e cheio, com aquela transparência de pele e brancura que
habitualmente indicam que a mulher é mãe e amamenta. Mas, depois de o tirar, eis que de repente se foi
embora, cantarolando, distraída, a blusa toda aberta, um seio à mostra e outro tapado.
Fez-me impressão vê-la ir assim a mordiscar o bocado de pão, com o seio exposto ao frio do inverno, única
coisa viva e branca e luminosa e quente naquele instante sem sol e sem cor, nu e frio...
“É louca!”, disse por fim Rosetta.
Michele confirmou secamente: “Sim!”
Recomeçamos a caminhar em silêncio. Como não se viam alemães em parte alguma, Michele propôs que
fôssemos a casa de uns seus conhecidos que possivelmente viviam refugiados numa barraca no meio dos
laranjais. disse-me que eram gente honesta e talvez nos pudessem indicar onde se encontravam alemães que
nos trocassem os ovos por pão. A ssim, dali a pouco deixamos a estrada e metemos por um carreiro através do
pomar. Michele disse-nos que todas aquelas laranjeiras pertenciam à pessoa a casa de quem íamos, um
advogado solteiro, que vivia com a mãe, já velha. A ndamos talvez dez minutos e por fim desembocamos numa
pequena clareira, diante duma barraquinha insignificante, com paredes de tijolo e teto de chapa ondulada. A
barraca tinha duas janelas e uma porta. Michele aproximou-se de uma das janelas, olhou, viu que os donos
estavam em casa e bateu duas vezes. Esperamos um bocado e por fim a porta abriu-se lentamente, como que de
má vontade, e o advogado apareceu na soleira. Era um homem duns cinquenta anos, corpulento, calvo, fronte
pálida e brilhante como o marfim, circundada de cabelos pretos desgrenhados, olhos aquosos e à flor da pele,
nariz em bico, boca mole e dobrada sobre o duplo queixo. Vestia um casaco como os que se usam à noite na
cidade, de fazenda azul e gola de veludo preto. Mas, além deste casaco tão elegante, tinha um par de calças
esfarrapadas e botas de soldado, de couro, com cardas.
A o ver-nos, notei-o imediatamente, ficou pouco satisfeito; porém recompôs-se logo e deitou os braços ao
pescoço de Michele, com uma cordialidade quase excessiva.
“Michelino... bravo, bravo... que bom vento te traz por cá?”
Michele apresentou-nos e ele saudou-nos a distância, empertigado, quase com frieza. Entretanto,
continuávamos à porta e ele não nos convidava a entrar.
Michele, então, disse: “Passamos por aqui e lembramo-nos de lhe fazer uma visita.”
O advogado estremeceu: “Muito bem... íamos agora mesmo sentar-nos à mesa... venham... comem conosco.”
Hesitou e depois acrescentou: “Michele, vou avisar-te... como conheço os teus sentimentos, que, de resto, são
também os meus... Convidei o tenente alemão que comanda a bateria antiaérea instalada aqui ao lado... tinha
de o fazer... nos tempos que correm...”
A ssim, desculpando-se e suspirando, introduziu-nos na barraca. Uma mesa redonda estava posta junto da
janela e era a única coisa limpa e em ordem na sala: o resto eram apenas bugigangas, montes de farrapos,
pilhas de livros, montões de malas e caixas, À mesa estavam já sentados a mãe do advogado, uma senhora
idosa, pequena, vestida de preto, de face enrugada e apreensiva, qual macaquinha assustada, e o tenente nazi,
loiro, magro, chato como uma folha de papel na farda justa, as compridas pernas metidas em calções de montar
e polainas e estendidas sem cerimônia, uma para cada lado, debaixo da mesa. Tinha mesmo focinho de cão: só
nariz, os olhos, quase amarelos, muito próximos um do outro, sem pestanas nem sobrancelhas, com expressão
estudada e hostil, a boca grande e repuxada nos cantos. Cortês e obsequioso, levantou-se e saudou-nos, batendo
os calcanhares: mas não apertou a mão a ninguém e tornou a sentar se imediatamente, como quem diz: “N ão o
faço por vocês, mas sim porque sou uma pessoa educada.”
O advogado, entretanto, explicava que o tenente comandava uma bateria antiaérea, o que nós já sabíamos, e
que aquele almoço era um almoço de boa vizinhança.
“E esperemos”, concluiu, “que a guerra acabe depressa e o tenente possa por sua vez retribuir nos este
convite em sua casa, na Alemanha.”
O tenente não disse nada, nem sequer sorriu. e eu pensei que ele não percebia a nossa língua e não tinha
compreendido. Mas, depois, de repente, ouvi-o dizer em bom italiano à mãe do advogado, que, com voz
lamentosa, lhe oferecia um vermute: “Obrigado, não tomo aperitivos.”
E compreendi então, não sei porquê, que ele não sorria porque embirrava, por qualquer motivo, com o dono
da casa. Michele contou o encontro com a louca e o advogado disse com indiferença: “A h, sim, Lena!... Ela foi
sempre doida. N o ano passado, naquela confusão de tropas para um lado e para o outro, um soldado
surpreendeu-a enquanto vagueava nos campos, sozinha como de costume, e engravidou.”
“E onde está agora o filho?”
“Está com a família, que o cria com todo o cuidado. Mas ela, a pobre louca, imagina que lho querem tirar por
não ter leite para alimentá-lo. É curioso, porém, que o amamenta regularmente, isto é, a horas certas, a mãe
põe-lhe nos braços e ela faz o que a mãe lhe diz que faça. Mas continua com a ideia fixa de que não pode saciar-
lhe a fome.”
O advogado falava da pobre Lena como de uma coisa sem importância. A mim, pelo contrário, causara-me
uma impressão profunda, que nunca mais se apagou da minha memória. Como se aquele seio nu, que ela
oferecia a qualquer na estrada, fosse a verdadeira imagem das condições em que todos nós, I talianos, vivíamos
naquele inverno de 1944: desprovidos de tudo, como os animais que não têm senão o leite que dão aos filhos.
Entretanto, a mãe do advogado, assustada, trêmula, apreensiva, ia à cozinha e voltava, trazendo os pratos
nas duas mãos, como se fossem o S antíssimo S acramento. Pôs na mesa salame e fatias de presunto, pão de
fabrico alemão, igual àquele de que nós andávamos à procura, depois uma verdadeira sopa com os
condimentos necessários e por fim um grande frango assado com guarnição de legumes em conserva. Pôs
também na mesa uma garrafa de vinho tinto, de boa qualidade. Via-se que o advogado e a mãe faziam tudo
para agradar àquele rapazote alemão; como era agora vizinho deles, com a sua bateria, tinham todo o interesse
em amansá-lo.
Mas o tenente possuía de fato um caráter ruim, pois a primeira coisa que fez foi indicar o pão e inquirir:
“Posso perguntar-lhe, senhor advogado, como conseguiu adquirir este pão?”
O advogado, todo enrolado no capote como se tivesse febre alta, respondeu numa voz hesitante mas
zombeteira: “Bem, foi um presente, um soldado deu-nos isso e nós demos-lhe outra coisa... sabe-se, em tempo
de guerra...”
“Uma troca”, disse o outro, severo, “isso é proibido... E quem é esse soldado?”
“Ah! ah! tenente, fala-se do pecado, mas não do pecador... Prove este presunto, não é alemão, é nosso.”
O tenente não disse nada e começou a comer o presunto. D epois o tenente deixou o advogado em paz e
voltou-se para Michele. Perguntou-lhe à queima-roupa qual era a sua profissão e Michele respondeu, sem
hesitar, que era professor.
“Professor de quê?”
“De literatura italiana.”
O tenente, com grande espanto do advogado, afirmou então tranquilamente: “Conheço a vossa literatura e
até traduzi para alemão um romance italiano”.
“Qual?”
O tenente disse o nome do autor e o título, mas já não me recordo de um nem de outro e vi que Michele, que
até então não mostrara nenhum interesse pelo tenente, parecia agora interessado. O advogado, vendo que o
nazi falava a Michele quase com uma espécie de consideração, de igual para igual, também mudou de atitude:
parecia contente por sentar Michele à sua mesa; chegou a dizer ao tenente: “A h! o nosso Festa é um literato...
um literato de valor!”
E dava-lhe palmadas no ombro. Mas dir-se-ia ser ponto de honra para o tenente não ligar nenhuma ao
advogado, que era o dono da casa e o convidara. E continuou, voltado para Michele: “Vivi dois anos em Roma e
estudei a vossa língua... pessoalmente, ocupo-me de filosofia”.
O advogado procurou meter-se na conversa, dizendo a brincar: “Então deve compreender porque é que nós,
I talianos, encaramos tudo quanto nos aconteceu ultimamente com filosofia... ah! ah! é isso mesmo, com
filosofia...”
Mas mais uma vez o tenente nem sequer olhou para ele. A gora falava animadamente com Michele, citando
uma quantidade de nomes de escritores e títulos de livros; via-se que conhecia bem a literatura e percebi que
Michele, mesmo contra vontade, ia cedendo a pouco e pouco, não digo a um sentimento de estima, mas pelo
menos de curiosidade. Continuaram assim algum tempo e em seguida, não sei como, começaram a falar da
guerra e do que pode significar a guerra para um homem de letras ou um filósofo. O tenente, depois de
observar que era uma experiência importante, ou, antes, necessária, saiu-se com esta: “Mas a sensação mais
original e até a mais estética,” repito esta palavra estética, embora naquela altura não a tivesse compreendido,
porque toda a frase me ficou na memória como que gravada a fogo, “experimentei-a durante a campanha dos
Balcãs, e sabe, senhor professor, de que maneira? Limpando uma caverna cheia de soldados inimigos com o
lança-chamas...”
Q uando ele proferiu esta frase, ficamos todos quatro, Rose a, eu, o advogado e a mãe, como petrificados.
D epois pensei que talvez aquilo fosse gabarolice e quis convencer-me que não o tinha feito, que não era
verdade: ele bebera já alguns copos de vinho, tinha o rosto avermelhado e os olhos um pouco brilhantes, mas
no mesmo instante senti oprimir-me o coração e gelei completamente. O lhei para os outros. Rose a tinha os
olhos no chão; a mãe do advogado, nervosa, endireitava com as mãos trêmulas a dobra da toalha; o advogado
fez como as tartarugas, enterrou a cabeça na gola do capote. S ó Michele olhava para o tenente de olhos bem
abertos; então disse-lhe: “I nteressante, não há outra coisa a dizer, muito interessante... Mas ainda mais original
e estética, suponho, deve ser a sensação do aviador que lança bombas sobre uma aldeia e depois, ao passar, vê
que onde estavam casas não resta senão uma nuvem de pó...”
O tenente, porém, não era tão tolo que não percebesse a ironia daquela frase de Michele. Passado um
momento, declarou: “A guerra é uma experiência insubstituível, sem a qual um homem não pode chamar-se
um homem... E, a propósito, senhor professor, como é que está aqui e não na frente?”
Michele retorquiu-lhe com simplicidade: “Qual frente?”
E, por muito estranho que pareça, o tenente desta vez não disse nada, limitou-se a lançar-lhe um olhar mau
e voltou-se para o prato.
Mas não estava satisfeito, via-se a uma légua de distancia; compreendia que tinha em sua volta pessoas, se
não hostis, pelo menos desfavoráveis. A ssim, de súbito, deixou Michele em paz, talvez por não lhe parecer
bastante assustado, e atacou de novo o advogado: “Caro senhor”, disse muito empertigado, indicando a mesa,
“aqui nada-se em abundância, enquanto toda a gente das redondezas, de uma maneira geral, rebenta de fome.
O que fez para adquirir tantas coisas boas?”
O advogado e a mãe trocaram um olhar significativo, assustado e apreensivo o da mãe, tranquilizador o do
filho; depois este afirmou: “Asseguro-lhe que nos outros dias não comemos assim... fizemo-lo em sua honra.”
O tenente calou-se um momento e em seguida perguntou: ”O senhor é proprietário aqui no vale, não é
verdade?”
“Sim, de certo modo, sou.”
“De certo modo? Disseram-me que possui metade do vale...”
“O h! N ão, meu caro tenente, quem lhe disse isso foi algum mentiroso ou invejoso ou as duas coisas juntas...
possuo uns pomares... nós chamamos pomares.
a estes lindos bosques de laranjeiras.”
“Disseram-me que estes pomares rendem bom dinheiro... o senhor é um homem rico.”
“Bem, senhor tenente, rico, rico, não... vivo do que é meu.”
“E sabe como vivem os camponeses que trabalham para o senhor?”
O advogado, vendo o caminho que a conversa tomava, respondeu com dignidade: “Vivem bem... neste vale
são dos que vivem melhor...”
O tenente, que nessa altura cortava um pedaço de frango, observou sem sorrir, espetando a faca na direção
do advogado: “Se estes passam bem, imagine-se como hão-de viver os que passam mal...
Eu vejo como vivem os seus camponeses. Vivem como animais, ente ou casas que parecem chiqueiros,
comem como as bestas e vestem-se de farrapos. N enhum camponês, na A lemanha, vive assim. N ós, na
Alemanha, envergonharíamo-nos se os nossos camponeses vivessem dessa maneira”.
O advogado, para agradar à mãe, que deitava olhares suplicantes, a pedir: “N ão lhe dês corda, está calado”,
encolheu os ombros e não replicou. O tenente, porém, insistiu: “Q ue diz, meu caro advogado, a tudo isto? O
que me responde?”
O outro desta vez afirmou: “S ão eles que querem viver assim, asseguro-lhe, meu tenente. O senhor não os
conhece“.
Mas o tenente retorquiu com dureza: “N ão, vocês, os proprietários, é que querem que os camponeses vivam
dessa maneira. Tudo depende disto”, e batia na cabeça. “Vocês são a cabeça da I tália e a culpa é vossa se os
camponeses vivem como animais...”
O advogado estava mesmo assustado e via-se que engolia a comida com esforço, como os frangos quando
comem à pressa. A mãe tinha uma expressão completamente desvairada e vi-a juntar as mãos, às escondidas,
no regaço: rezava, encomendava-se a D eus. O tenente prosseguiu: “A ntigamente, eu conhecia apenas algumas
cidades da I tália, as mais belas, e dessas cidades conhecia só os monumentos. Mas agora, graças à guerra,
conheço a fundo o seu país, percorri-o todo de lés a lés. E sabe, egrégio advogado, o que lhe digo? Q ue as vossas
diferenças de classes são um escândalo!”
O advogado ficou calado; porém fez um movimento de ombros como quem diz: “E que tenho eu com isso?”
O tenente percebeu e saltou: “N ão, meu caro senhor, isso diz-lhe também respeito, como a todos os outros,
advogados, engenheiros, médicos, professores, intelectuais. A nós, A lemães, por exemplo, indignam-nos as
enormes diferenças que há entre os oficiais e os soldados italianos: os oficiais, cobertos de galões, vestem
uniformes de tecidos especiais, comem comidas especiais, têm em tudo e para tudo um tratamento especial,
privilegiado. O s soldados andam vestidos de farrapos, comem como animais, são tratados como gado... Q ue
tem a dizer, meu caro senhor, a tudo isto?”
O advogado desta vez falou: “D igo-lhe que talvez seja verdade. Eu sou o primeiro a deplorá-lo. Mas que
posso eu fazer sozinho?”
E o outro, teimoso: “N ão meu caro senhor, não deve dizer isso. A sua responsabilidade é evidente porque,
se o senhor e todos os que são como o senhor quisessem verdadeiramente que esta situação mudasse, ela
mudaria. S abe porque é que a I tália perdeu a guerra e agora nós, os A lemães, temos de desperdiçar tropas
nesta frente italiana? Por causa dessa diferença entre soldados e oficiais, entre o povo e os senhores da classe
dirigente. O s soldados italianos não combatem porque pensam que esta guerra é a vossa guerra, não a deles. E
manifestam precisamente a sua hostilidade não combatendo. Que tem a dizer a isto, egrégio advogado?”
O outro, talvez por raiva, desta vez conseguiu vencer o medo e pronunciou: “É verdade que o povo não quis
a guerra. E eu também não. Esta guerra foi-nos imposta pelo governo fascista. E o governo fascista não é o meu
governo, disto pode o senhor estar certo.”
Mas o nazi, levantando a voz: “Não, caro senhor, isso é muito cômodo. Este governo é o seu governo.”
“O meu governo? O senhor está a brincar, tenente...”
A mãe interveio nessa altura: “Francesco, por favor, por amor de Deus!”
O tenente insistiu: “Sim, o seu governo, quer a prova?”
“Mas qual prova?”
“Eu sei tudo a seu respeito, meu caro senhor, sei por exemplo que é um antifascista, um liberal. A pesar
disso, o senhor não se entende com os camponeses e os operários do vale e entende-se com o secretário do
fascio... que diz a isto?...”
O advogado encolheu mais uma vez os ombros: “Pois saiba que não sou antifascista, nem liberal, não me
ocupo de política, trato apenas das minhas coisas... E, depois, que tem isso... andei na escola com o secretário
do fascio, somos quase parentes, a minha irmã casou com um primo dele... Vocês, A lemães, não podem
compreender certas coisas... Não conhecem a Itália bem...”
“N ão, caro senhor, esta é uma prova boa e sólida... vocês, fascistas e antifascistas, estão todos unidos uns
aos outros, porque são todos da mesma classe, e este governo é o governo de todos os fascistas e antifascistas
porque é o governo da vossa classe... hem! Claro, os fatos falam por si, o resto é conversa...”
O suor molhava agora a testa do advogado, se bem que na barraca fizesse frio; a mãe, não sabendo o que
fazer, tinha se levantado, muito assustada, e dizia com voz trêmula: “Vou preparar-lhes um bom café...”
E encafuou-se em seguida na cozinha. O tenente entretanto dizia: “Eu não sou como a maior parte dos meus
compatriotas, que são tão estúpidos como vocês, I talianos... eles amam a I tália por causa dos monumentos e
porque as suas paisagens são as mais belas do mundo... ou porque encontram um italiano que fala alemão e
comovem-se ao ouvir falar a própria língua... ou porque lhes oferecem um bom jantar, como o senhor me
ofereceu hoje, e ficam amigos.
Mas eu não sou como esses alemães estúpidos e ingênuos. Vejo as coisas como elas são e digo-as de cara a
cara, meu caro senhor.”
N ão sei porquê, talvez porque aquele pobre advogado me causava dó, disse-lhe de repente, quase sem
refletir: “O senhor sabe por que razão o advogado lhe ofereceu este jantar?”
“Porquê?”
“Porque vocês, A lemães, metem medo a toda a gente... não há ninguém que não tenha medo de vocês... por
isso procurou amansá-lo, como se faz a um animal feroz, dando-lhe qualquer coisa boa a comer...”
Até custa a acreditar, mas ele mostrou por momentos uma cara quase triste e amargurada: a ninguém, nem
mesmo a um alemão, agrada ouvir dizer que mete medo e que as outras pessoas são amáveis com ele só por
terem medo. O advogado, cheio de terror, procurou remediar as coisas, intervindo: “Tenente, não dê ouvidos a
esta mulher... é uma pessoa simples, não compreende certos assuntos...”
Mas o nazi fez-lhe sinal que se calasse e perguntou: “E porque é que nós, A lemães, metemos medo? N ão
somos homens como os outros?”
Eu, agora lançada, ia responder-lhe: “N ão, um homem verdadeiramente homem, ou seja, um Cristão, não
tem prazer em limpar, como o senhor disse há pouco, uma caverna cheia de soldados vivos com um lança-
chamas...” Mas, por sorte, pois não sei o que daí poderia advir, não tive tempo; subitamente, começou no vale
um banzé de disparos desordenados e secos dos canhões antiaéreos, alternando com os estrondos mais
profundos das bombas que caíam. A o mesmo tempo, o ar enchia-se de um rumor distante, mas que se
aproximava, tornando-se cada vez mais distinto. O tenente levantou-se imediatamente, exclamando: “O s
aviões... tenho de correr para a minha bateria!”
E, deitando ao chão cadeiras e tudo quanto encontrou na passagem, saiu a correr. O primeiro a recompor-se
depois da fuga do tenente foi o advogado: “Depressa, depressa, venham... vamos para o abrigo...”
Levantou-se e saiu da barraca à nossa frente. A um canto do terreiro havia uma abertura à flor da terra,
protegida por um castelo de traves e sacos de areia. O advogado dirigiu-se para lá e começou a descer uma
escadinha de madeira, repetindo: “Depressa, que daqui a instantes estão mesmo por cima de nós”.
D e fato, sentia-se aquele rumor, entre as explosões da antiaérea, tornar-se cada vez mais intenso, como se
viesse de trás das árvores que circundavam a clareira. D epois tudo acabou e ali ficamos no escuro, num quarto
subterrâneo que parecia ter sido escavado mesmo por baixo da clareira.
“I sto naturalmente não basta para uma bomba”, disse o advogado, “mas serve pelo menos para nos abrigar
das balas das metralhadoras... por cima de nós há um metro de terra e os sacos...”
Estivemos lá em baixo não sei quanto tempo, de pé, no escuro, quase sem poder respirar: ouvia-se de
quando em quando, mas muito fraco, um tiro da antiaérea, e era tudo. Por fim o advogado abriu a portinha,
verificou que a calma era completa e saímos para o ar livre. O advogado apontou-nos alguns dos sacos de areia
rasgados e furados e apanhou um projétil de latão, do comprimento de um dedo, dizendo: “I sto, se nos
apanhava, matava-nos com certeza.”
A seguir, erguendo os olhos para o céu: “Benditos aviões, venham muitas vezes. O xalá nos libertem desse
maldito tenente, que é mesmo um animal feroz.”
A mãe repreendeu-o: “N ão digas isso, Francesco. Também é um cristão, não se deve desejar a morte a
ninguém.”
Mas o advogado respondeu: “Um cristão? Maldito seja ele, maldita a sua bateria e maldito o dia em que
chegou aqui! Q uando se for embora, hei-de dar um jantar mil vezes melhor do que o de hoje. E fica entendido,
estão todos convidados.”
E não se cansava de amaldiçoar o tenente alemão, com verdadeiro ódio.
Tornamos a entrar na barraca e bebemos o café; depois a mãe do advogado ficou com os ovos e deu-nos em
troca alguma farinha e feijões. Por fim despedimo-nos e partimos.
Fazia-se tarde e, como já tínhamos trocado os ovos, eu queria voltar depressa a S anta Eufêmia. N o vale só
tivéramos maus encontros. Primeiro o russo com os cavalos, depois a pobre louca, por fim o tenente alemão.
Michele, durante o caminho, disse: “A ouvi-lo falar, fazia-me raiva sobretudo uma coisa.”
“O quê?”
“Que tivesse razão, apesar de ser nazi.”
Eu observei: “Porquê? Os nazis também podem ter razão de vez em quando.”
E ele, de cabeça baixa: “Nunca!”
Q ueria perguntar-lhe como explicava que aquele nazi tão feroz, que sentia prazer em queimar gente com o
lança-chamas, fosse capaz ao mesmo tempo de se impressionar com a injustiça que reinava na I tália. Michele
dissera-nos sempre que só sentiam a injustiça as pessoas de bem, os melhores, os únicos que ele não
desprezava. E eis que aparecia aquele tenente, ainda por cima filósofo, que sentia e censurava a injustiça e
simultaneamente tinha prazer em matar gente. S eria possível? Então, no fim das contas, a justiça não era uma
coisa boa? Mas não tive coragem de lhe comunicar as minhas reflexões, pois via-o abatido e triste. A ssim
deixamos o vale e chegamos a Santa Eufêmia, onde já fazia escuro há pedaço.
CAPÍTULO VII

N um desses dias de J aneiro, continuava a soprar a tramontana num céu transparente e luminoso que
parecia de cristal, Rose a e eu ouvimos, ao acordar, um rumor distante e regular, vindo do fundo do horizonte,
dos lados do mar. Era primeiro um baque surdo, como se o céu tivesse recebido um murro, e depois um
segundo logo a seguir, mais forte e mais claro, que parecia o eco do primeiro. Brum, brum... Brum, brum... Era
assim, sem parar, mas este som misterioso e ameaçador parecia tornar, em contraste, o dia mais belo, o sol
mais claro e o céu mais azul.
D urante dois dias aquela barulheira não parou nem de noite nem de dia; depois, uma manhã, chegou um
pastorzinho do mato, trazendo um papel impresso que encontrara numa sebe. Era uma folha dum jornal dos
I ngleses, mas escrito em língua alemã, para os A lemães, e, como lá em cima Michele era o único que sabia
alguma coisa de alemão, levaram-lhe. Ele, depois de o ler, explicou-nos que os I ngleses tinham feito um grande
desembarque para os lados de A nzio, próximo de Roma, e que se travava agora uma grande batalha com
navios, canhões, carros blindados e soldados... O s I ngleses avançavam para Roma e, segundo parecia, estavam
já às portas de Velletri. A o saberem esta notícia, todos os refugiados caíram nos braços uns dos outros,
felicitando-se e beijando-se com alegria. N aquela noite ninguém foi para a cama cedo, como era costume, todos
andaram de casa em casa, comentando o desembarque e regozijando-se com o sucedido.
O s dias seguintes, porém, não nos trouxeram nenhuma novidade. A quele rumor surdo do canhão
continuou, é certo, a ressoar no fundo do horizonte, para os lados de Terracina; mas os A lemães, não tardamos
a sabê-lo, não se iam embora.
Passados alguns dias, chegaram-nos as primeiras noticias certas: os I ngleses, sim, tinham desembarcado,
mas os A lemães mandaram prontamente contra eles não sei quantas divisões e, após duros combates,
conseguiram detê-los. A gora os I ngleses estavam entrincheirados na praia, num espaço bastante reduzido, e os
A lemães faziam fogo para lá, com todos os seus canhões, como se se tratasse de tiro ao alvo; por aquele andar,
depressa obrigariam os I ngleses a reembarcar nos navios que continuavam ao largo, prontos a recebê-los, no
caso de o desembarque ser repelido.
D epois destas notícias, só se viam em S anta Eufêmia narizes de palmo e meio; os refugiados repetiam que
os I ngleses não sabiam fazer a guerra em terra, pois eram só marinheiros, ao passo que os A lemães a tinham
no sangue; por isso os Ingleses não levariam a melhor e os Alemães acabariam por ganhar a guerra.
Michele não falava a este respeito com os refugiados porque, segundo nos disse, não se queria irritar. Mas a
nós assegurava-nos, com calma, que era absolutamente impossível os A lemães vencerem. Q uando um dia lhe
perguntei porque pensava assim, respondeu simplesmente: “O s A lemães estavam já vencidos quando
principiaram a guerra.”
Q uero contar aqui uma história para mostrar como estávamos lá em cima sem notícias e como os
camponeses, quase todos analfabetos, deformavam até o pouco que se conseguia saber.
Visto ser difícil conseguirmos dados concretos sobre o desembarque dos I ngleses em A nzio, Filippo e outro
refugiado, negociante como ele, decidiram pagar a Paride para ir, pelos atalhos da montanha, a uma aldeia
bastante longe, na Ciociaria, onde havia um médico municipal que tinha rádio. É verdade que Paride era
analfabeto, não sabia ler nem escrever, mas tinha ouvidos e podia ouvir a rádio como toda a gente e pedir
explicações ao médico. D eram ainda a Paride algum dinheiro para tentar comprar, pelo caminho, mantimentos:
farinha, feijão, gorduras, tudo o que encontrasse. Paride amarrou o burro e partiu uma manhã ao romper da
alva. Esteve fora três dias e voltou uma tarde à noitinha. A ssim que o viram a descer o monte com o burro pela
arreata, todos os refugiados foram ao seu encontro, e entre eles Filippo e o seu amigo negociante, que lhe
tinham pago para ele ir ouvir a rádio. Paride, mal chegou ao socalco, disse que não encontrara nada ou quase
nada de comer, por toda a parte havia escassez e fome como em S anta Eufêmia, ou ainda pior. D epois dirigiu-se
para a cabana seguido de um cortejo de gente. N a cabana sentou-se num banco e em sua volta sentaram-se a
família, Michele, Filippo e outros; muitos ficaram lá fora, porque não havia lugar, mas queriam à mesma ouvir o
que Paride conseguira saber.
Paride disse que ouvira a rádio, mas esta quase nada adiantava sobre o desembarque, a não ser que os
I ngleses e os A lemães continuavam nas suas posições e dali não se moviam. Mas falara com o médico e com
outras pessoas que tinham ouvido a rádio nos dias anteriores e assim pudera concluir porque é que o
desembarque falhara. Filippo perguntou-lhe porquê e Paride respondeu com simplicidade que fora por culpa
de uma mulher. Ficaram todos de boca aberta com tal notícia. Paride prosseguiu e contou que o almirante que
comandava o desembarque era americano, ou, melhor, na realidade alemão, mas ninguém sabia.
Este almirante tinha uma filha, linda como as estrelas, que estava noiva do filho do general que comandava
todas as tropas americanas na Europa. Mas esse filho do general não passava de um patife e fizera a afronta de
romper o noivado, restituindo à filha do almirante os presentes e o anel para ir casar com outra.
Então, o almirante, pai da noiva, que era alemão, para se vingar, informou os A lemães, secretamente, do
desembarque, e, assim quando os I ngleses apareceram diante de A nzio, encontraram já ali os alemães prontos
a recebê-los com os seus canhões. Mas a traição fora já descoberta, sabia-se de fonte segura que o almirante era
alemão, embora se fizesse passar por americano; tinham-no prendido e iam julgá-lo e com certeza seria
fuzilado. Estas notícias de Paride dividiram os ouvintes.
A lguns, os mais ignorantes e mais simples, repetiam, abanando a cabeça: “S abe-se, por trás de tudo há
sempre uma mulher... se procurarmos bem, encontramos sempre saias.” Mas muitos outros não acreditavam,
dizendo que era impossível que a rádio tivesse contado aquelas patranhas. Michele limitou-se a perguntar a
Paride: “Estás certo de que essas notícias as deu a rádio?”
Paride confirmou que o médico e outros mais lhe asseguraram que tinham ouvido isso nos comunicados da
Voz de Londres. E Michele: “Dize lá, por acaso não as terias ouvido a algum cantor na praça da aldeia?”
“Que cantor?”
“Digo isto por dizer. Parece uma nova versão da história de Gano di Maganza.
Muito interessante, não há dúvida...”
Paride não compreendeu a ironia e repetiu que eram tudo notícias dadas pela rádio; mas eu, pouco depois,
perguntei a Michele quem era esse Gano di Maganza e ele explicou-me que tinha sido um general do passado,
que há muitos séculos traíra o seu imperador numa batalha contra os Turcos. Então, observei: “Bem, como vês,
são coisas que podem acontecer... não digo que Paride tenha razão, mas não é completamente impossível...”
Ele pôs-se a rir e disse: “Oxalá as coisas se passassem ainda hoje dessa maneira!...”
Em suma, não nos restava senão esperar, visto que o desembarque tinha falhado por qualquer motivo. Mas,
como diz o provérbio, quem espera desespera, e nós lá em cima, em S anta Eufêmia, durante esse fim de J aneiro
e em todo o mês de Fevereiro não fizemos senão desesperar e morrer cada dia um pouco mais. O tempo
passava, monótono, tudo se repetia e todos os dias aconteciam as mesmas coisas que tinham acontecido nos
meses anteriores. D e manhã era preciso levantar, cortar lenha, acender o fogo na cabana, fazer a comida e
comer; e depois andar pelos socalcos para enganar o tempo até a hora da ceia. E todos os dias vinham os aviões
deitar bombas. Todos os dias se ouvia, de manhã à noite, o martelar daqueles malditos canhões de A nzio, que
disparavam continuamente e parece que nunca acertavam, pois nem os I ngleses nem os A lemães, segundo
sabíamos, avançavam um passo. Cada dia era semelhante ao anterior; mas a esperança, excitada e impaciente,
tornava-o mais tenso, exasperado, doloroso, aborrecido, interminável e enervante. E aquelas horas que, no
princípio da nossa permanência em S anta Eufêmia, parecia passarem tão rapidamente, agora nunca mais
findavam e era mesmo um desfalecimento e um desespero impossível de descrever.
Contudo, o que contribuía para tornar ainda mais exasperante aquela monotonia era ouvir sempre a mesma
conversa: comida, só comida. Falava-se de comida cada vez mais, talvez porque houvesse cada vez menos. E
nessas conversas não transparecia só a saudade de quem come mal, mas a inquietação de quem não come
bastante. A gora todos comiam uma única refeição por dia e tinham muito cuidado em não convidar os amigos.
Como dizia Filippo: “A migos até à morte, mas à mesa, nestes tempos, cada um por si.” O s que passavam
menos mal eram ainda os que tinham alguns cobres, isto é, Rose a e eu, Filippo e outro refugiado, que se
chamava Geremia; mas também nós, os “ricaços”, como se diz, sentíamos que daí a pouco o dinheiro não
serviria para nada. D e fato, os camponeses, que, ao princípio, se mostravam tão ávidos de dinheiro, pois,
coitados, em tempo de paz nunca o veem, começavam já a entender aquele latim e convenciam-se de que afinal
o dinheiro vale menos do que os gêneros. D iziam surdamente, quase com acento de vingança: “A gora chegou a
hora dos camponeses... S omos nós que mandamos porque temos as provisões... o dinheiro não se come...” Mas
eu sabia que isto eram gabarolices e só gabarolices eles também não tinham que comer. N ão passavam de
pobres camponeses da montanha, que lutam sempre com dificuldades até à altura das colheitas e, quando
chega Abril ou Maio, têm de arranjar uns patacos para comprar alguma coisa até o mês de Julho.
Q ual era a nossa alimentação? Comíamos, uma vez por dia, alguns feijões cozidos em água com uma
colherinha, das de café, de banha e um pouco de conserva de tomate, um bocado de carne de cabra e alguns
figos secos. D e manhã, como já disse, alfarrobas ou cebolas e uma fatia de pão. O pior é que não havia sal, e isto
era terrível, pois a comida sem sal não se pode tragar, assim que se mete na boca dá vontade de vomitá-la, tão
insípida é, quase doce, até parece uma coisa morta e podre. D e azeite não havia uma gota sequer, de banha
restavam-me dois dedos no fundo de um tacho de barro. D e vez em quando lá nos saía a sorte grande, como
num dia em que pude comprar dois quilos de batatas. D e outra vez sucedeu-me comprar a uns pastores um
queijo de ovelha com quatrocentos gramas, duro como pedra, mas bom e picante. Mas isto era um acaso, uma
coisa rara, com a qual não se podia contar.
O campo, quando chegamos aos primeiros dias de Março, começou a mostrar os sinais da Primavera. Uma
manhã, por exemplo, ao debruçarmo-nos no socalco, vimos por entre o nevoeiro, na encosta, o primeiro
tremular das flores brancas das amendoeiras: tinham aberto durante a noite e parecia tremerem de frio,
brancas como quimeras no nevoeiro cinzento. A nós, refugiados, essa floração pareceu um bom sinal: chegava a
Primavera, as estradas iam secar, os I ngleses recomeçariam o seu avanço. Mas os camponeses abanavam a
cabeça: Primavera quer dizer fome.
Eles sabiam por experiência própria que as suas provisões não chegavam até a nova colheita e procuravam
poupá-las o mais que podiam, tentando de todas as formas arranjar qualquer coisa que comer sem as desfalcar.
Paride, por exemplo, punha no mato ratoeiras feitas com canas para apanhar pintarroxos e cotovias: mas eram
pássaros tão pequeninos que menos de quatro não chegavam para uma refeição. O u então procurava apanhar
em armadilhas as raposas, que para aqueles lados são pequenas e vermelhas como fogo; depois tirava-lhes a
pele e deixava-as em água durante alguns dias para amaciar a carne, cozinhando-as em seguida com um molho
doce e forte, de maneira a não se sentir o seu gosto selvagem. Mas o grande recurso dessa época era a chicória,
não a planta que se come em Roma com esse nome e é sempre a mesma, mas qualquer planta boa para comer.
Eu também recorria cada dia mais à chicória e algumas vezes passava manhãs inteiras com Rose a e Michele a
colhê-las nos socalcos. S altávamos da cama cedo e, cada um com uma faquinha e um cabaz, íamos pela encosta,
ora mais para baixo, ora mais para cima das casas, colher as ervas.
N ão se faz ideia da grande quantidade de ervas boas para comer: são quase todas. J á as conhecia por tê-las
colhido em criança, mas esquecera-me quase por completo dos seus nomes e espécies. Luísa, a mulher de
Paride, acompanhou-me a primeira vez para me ensinar e bem depressa me tornei tão hábil como os
camponeses, conhecendo as várias espécies uma por uma, pelo nome e pela forma.
Lembro algumas: o mastruco, que na cidade se chama agrião, com as folhas e os pés tenros e doces, de um
verde-escuro; o dente de leão, que se encontra entre as pedras dos socalcos, de um verde quase azul, com folhas
finas, compridas e carnudas; a beldroega, que é uma erva achatada, com quatro ou cinco folhas esmagadas
contra o chão, peludas, verdes e amarelas: a autêntica chicória, com pés compridos e folhas denteadas e
pontiagudas; os poejos; a hortelã, as azedas e não sei quantas mais. A ndávamos, como disse, para cima e para
baixo, nos socalcos, e não éramos os únicos, porque todos colhiam chicória, o que dava à encosta da montanha
um aspecto estranho, toda salpicada de gente a mover-se de um lado para o outro, de cabeça baixa, em passos
miúdos, como outras tantas almas do Purgatório. Parecia que todos procuravam algum objeto perdido, quando,
ao contrário, era a fome que os fazia procurar qualquer coisa, não que tinham perdido, mas sim que esperavam
encontrar. Esta colheita de chicória durava bastante tempo, duas ou três horas, e até mais, porque para fazer
uma tigela era preciso colher um avental cheio, e também porque não havia tanta que chegasse para todos que
a procuravam; por isso, à medida que os dias passavam, era preciso ir procurá-la cada vez mais longe e durante
mais tempo. D e todo este trabalho, no fim, pouco restava; uma vez cozidas, as ervas de dois ou três aventais
cheios ficavam reduzidas a duas ou três bolas verdes, cada uma do tamanho de uma laranja. D epois de as
cozer, eu passava-as na frigideira por um pouco de banha; isto servia, se não para nos alimentar, ao menos para
nos encher a barriga e enganar a fome. Mas o trabalho de colher a chicória deixava-nos cansadíssimas para todo
o dia. E à noite, quando me deitava ao lado de Rose a na cama dura, em cima do saco cheio de palha de milho,
mal fechava os olhos, em vez de ver o escuro, só via chicória, plantas e mais plantas de chicória a dançarem na
minha frente. E bem me esforçava por dormir: durante um bocado só via a chicória a cruzar-se e a separar-se
diante de mim, até que, depois de uma longa sonolência, adormecia.
Mas, como já disse, a coisa mais aborrecida, neste período, era o fato de a escassez incitar os refugiados a
falar todo o dia de comida e mais comida. A mim também me agrada comer; reconheço, naturalmente, que
comer é uma coisa importante; se não se come, não se pode fazer nada, nem sequer procurar comida.
Mas há coisas mais importantes, como dizia Michele, para se conversar: e, além disso, falar de comida com a
barriga vazia é sofrer um duplo tormento: recorda-se ao mesmo tempo a fome e a fartura. Filippo, sobretudo,
estava sempre caído nestas conversas. A lgumas vezes, ao passar no socalco, via Filippo sentado numa pedra e
cercado de um grupo de refugiados: aproximava-me e ouvia-o dizer: “Lembram-se? A lguém telefonava para
N ápoles, fazia a marcação duma mesa num restaurante. D epois tomávamos um carro, uns quatro ou cinco,
todos bons garfos, e partíamos. S entávamo-nos à mesa à uma e só nos levantávamos às cinco. O que comíamos?
A h! espaguete de peixe, com lulas, gambás, ostras; douradas e muges assados ou cozidos com maionese: peixe-
pombo com ervilhas; postas de peixe-espada, de perca ou de atum na grelha: polvos à Luciana, que são bem
bons. Em suma, peixes de todas as qualidades e com todos os molhos, durante duas ou três horas. S entávamo-
nos à mesa em ordem, irrepreensíveis: levantávamo-nos com os coletes desabotoados, os cintos desapertados e
arrotos que faziam tremer os vidros: pesávamos, cada um, mais dois ou três quilos. E bebíamos pelo menos
uma garrafa de vinho por cabeça. Ah! Quando tornaremos a essas comezainas?”
Qualquer um dizia então: “Quando chegarem os Ingleses, volta a abundância, Filippo!”
N um desses dias em que, como de costume, falavam de comida, assisti a uma contenda entre Filippo e
Michele. Filippo dizia: “A h! Q uem me dera ter agora um bom porco para matar e fazer uns belos bifes, bem
gordos, da altura de um dedo, cada um com o peso de quinhentos gramas... sabem, quinhentos gramas de
porco é coisa de fazer ressuscitar um morto...”
Michele, que, por acaso, estava a ouvir, comentou: “Seria mesmo um caso de canibalismo.”
“Porquê?”
“Um porco a comer outro porco...”
Filippo ficou para morrer ao ouvir o filho chamar-lhe porco, fez-se vermelho e proferiu, em voz forte: “N ão
respeitas os teus pais?!”
E Michele: “Não só não os respeito, como me envergonho deles.”
Filippo ficou novamente desconcertado com esse tom tão duro e intransigente e limitou-se a observar mais
calmo: “S e não tivesses tido um pai que te pagasse os estudos, não podias agora envergonhar-te de nós... mea
culpa.”
A estas palavras, Michele ficou um momento calado e depois disse: “Tens razão... fiz mal em ouvi-los...
daqui para o futuro estarei a distância e vocês podem falar à vontade de comidas...”
Filippo volveu então, conciliador e quase comovido, pois era talvez a primeira vez, desde que estavam lá em
cima, que o filho lhe dava razão: “S e queres, falamos de outra coisa... tens razão, que necessidade há de falar em
comida?... Falemos de outra coisa...”
Mas Michele, de súbito, encheu-se de cólera e, voltando-se, como uma víbora, gritou: “Está bem, e do que
vamos falar? D o que faremos quando chegarem os I ngleses? D a abundância? D os negócios? D as coisas que o
meeiro roubou? Sim, do que vamos falar?”
D esta vez Filippo calou-se, pois eram só aqueles, ou poucos mais e semelhantes, os assuntos em que podia
falar; o filho tinha-os dito quase todos e não havia nenhum outro de que ele se lembrasse. Michele, depois de
dizer isto, afastou-se. Filippo, quando o viu pelas costas, fez um gesto vago, a significar: “É um extravagante,
temos de ter pena dele...”
E todos os refugiados procuravam consolá-lo, dando-lhe razão: “Filippo, tens um filho que sabe muitas
coisas... o dinheiro que gastaste com os seus estudos não foi mal empregado... isto é o importante, o resto não
conta...”
Michele disse-nos naquele mesmo dia, um pouco mortificado: “Meu pai tem razão, falto-lhe ao respeito. Mas
é mais forte do que eu: quando o ouço falar de comida, perco a cabeça.”
Perguntei-lhe porque o irritava tanto que o pai falasse de comida. Ele pensou um momento e depois
respondeu-me: “Se soubesses que morrias amanhã, falavas de comida?”
”Não.”
“Pois bem, nós estamos nessas condições. A manhã ou daqui a anos morreremos. D evemos, então, enquanto
esperamos a morte, falar só de tolices?”
Eu não compreendia bem e insisti: “Mas de que havemos de falar?”
Ele pensou outra vez e retorquiu: “D a situação em que nos encontramos, por exemplo, devíamos falar das
razões por que viemos aqui parar.”
“E quais são essas razões?”
Ele pôs-se a rir e respondeu: “Cada um de nós deve encontrá-las por si próprio.”
Eu então disse: “S erá, mas o teu pai fala de comida precisamente porque ela falta e somos forçados, por
assim dizer, a pensar nela à força.”
Michele concluiu: “Pode ser. A desgraça, porém, é que o meu pai fala sempre no mesmo, até quando há
fartura e não falta comida a ninguém.”
Entretanto, havia verdadeira falta de gêneros e todos agora procuravam salvar o pouco que tinham; quando
falavam uns com os outros, o seu primeiro cuidado era esforçarem-se por convencer toda a gente de que já não
tinham nada.
Filippo, por exemplo, repetia constantemente aos refugiados mais pobres: “S ó tenho farinha e feijões para
uma semana... depois, será o que Deus quiser...”
O ra isto não era verdade e todos sabiam que ele tinha ainda em casa um saco de farinha e outro menor de
feijões, mas Filippo, com medo de que o roubassem, não convidava ninguém a ir a sua casa e de dia fechava a
porta à chave e ia para os socalcos com a chave no bolso.
O s camponeses, esses, coitados, estavam na verdade quase sem nada, pois nos outros anos, por essa época,
costumavam descer a Terracina para comprarem com que viver até a altura das colheitas. Mas nesse ano havia
escassez por toda a parte e dava-se até o caso de haver mais fome em Terracina do que em S anta Eufêmia. A lém
disso, os alemães, sempre que podiam, deitavam mão ao que apanhavam, não porque fossem todos maus e
ladrões, mas simplesmente porque estavam em guerra e a guerra significa matar e roubar. Por exemplo, num
daqueles dias chegou lá acima um soldado alemão sozinho, como se fosse em passeio: estava desarmado.
Moreno, de cara redonda e boa, olhos azuis inquietos e um pouco tristes, andou muito tempo em volta das
cabanas a falar com os camponeses e os refugiados. Via-se que não tinha más intenções, até mostrava simpatia
por toda aquela pobre gente. D isse que em tempo de paz era ferreiro na sua terra, na A lemanha, e disse ainda
que era um bom tocador de harmônio. Então um dos refugiados foi buscar o seu harmônio e o alemão sentou-
se em cima de uma pedra e tocou para nós, cercado de crianças que o ouviam de boca aberta. Tocava mesmo
bem e tocou, entre outras coisas, uma cançoneta que naqueles tempos, segundo parece, era cantada por todos
os soldados alemães: Lili Marlene. Era uma cançoneta triste, quase um lamento, e ao ouvi-la pensei que, apesar
de tudo, aqueles alemães, que Michele tanto odiava e nem sequer considerava como homens, também eram
cristãos. Tinham mulher e filhos em casa e também odiavam a guerra, que os separava da família. D epois de
Lili Marlene tocou muitas outras árias, sempre tristes, que comoviam, algumas tão complicadas como músicas
de concerto. E ele, de cabeça inclinada para o harmônio, todo absorvido a considerar as teclas que percorria
com os dedos ágeis, dava a impressão de ser um homem sério que conhecia o valor das coisas e não odiava
ninguém, e, se pudesse, de boa vontade renunciaria a fazer a guerra. Bem, este alemão simpático, depois de ter
tocado aí uma hora, retirou-se, não sem primeiro acariciar a cabeça das crianças, dizendo-nos algumas palavras
de conforto, no seu italiano arrastado: “Coragem, a guerra vai acabar depressa.”
O carreiro por onde desceu passava rente a uma cabana em cuja paliçada o refugiado que lá morava pusera
a enxugar uma linda camisa aos quadrados vermelhos e brancos. O alemão parou, apalpou o tecido para ver se
era de boa qualidade, depois abanou a cabeça e seguiu o seu caminho. Mas, meia hora mais tarde, ei-lo de volta,
cansado da subida feita a correr. Vai direito à cabana, tira a camisa da paliçada, põe-na debaixo do braço e lá vai
ele de novo a correr pela encosta em direção ao vale. Compreende-se isto? Foi-se embora depois de ter tocado
harmônio e acariciado as crianças, era um bom homem, via-se bem; mas aquela camisa ficara a moê-lo e a
remoê-lo e pelo caminho, enquanto descia, só pensava nela; por fim a tentação foi mais forte do que a
consciência e voltou à pressa lá acima, pegou nela e foi-se de vez. Enquanto tocara harmônio, fora o homem que
em tempo de paz era ferreiro; quando pegou na camisa, era o soldado que não conhece o meu nem o teu e não
respeita nada nem ninguém. Em suma, como já disse, a guerra não quer dizer só matar, mas também roubar; e
aquele que em tempo de paz não mataria, nem roubaria por nenhum ouro do mundo, em tempo de guerra
encontra no fundo do coração o instinto de roubar e de matar que há em todos os homens: mas encontra-o
porque o encorajam a encontrá-lo, dizendo-lhe a todo o momento que aquele instinto é bom e deve obedecer-
lhe, de outro modo não será um verdadeiro soldado. Então ele pensa: “Estamos em guerra... tornarei a ser
aquilo que na realidade sou quando voltar a paz... por agora, deixo-me ir ao sabor da corrente...” I nfelizmente,
ninguém que tenha roubado e matado, ainda que seja na guerra, pode esperar vir a ser alguma vez o que era
antes, pelo menos em minha opinião. S eria como se, por exemplo, uma mulher virgem se deixasse deflorar na
ilusão de que podia mais tarde voltar a ser virgem, não sei por que milagre que nunca sucedeu. Ladrões e
assassinos uma vez, mesmo com farda e o peito coberto de medalhas, serão ladrões e assassinos para sempre.
O s camponeses sabiam que os alemães tinham o costume de deitar a mão a tudo e por isso arranjaram uma
espécie de serviço de alarme: vários rapazes escalonados pela encosta, desde o vale até S anta Eufêmia. Mal um
alemão aparecia no carreiro, imediatamente o primeiro gritava com quanto fôlego tinha: “Malária!”
E outro logo mais acima repetia o grito: “Malária!”
E assim duns para outros iam gritando: “Malária! Malária!”
Então, àquele grito, era um corrupio geral em S anta Eufêmia: um agarrava no saquito dos feijões, outro no
da farinha, outro no pote da banha e outro nas salsichas, e iam todos esconder esses tesouros no meio das
sebes ou dentro das grutas. A lgumas vezes o alemão chegava, era um simples soldado que se arriscara até lá
acima não se sabia porquê, andava um bocado por entre as casas e todos o seguiam em procissão e um ou outro
levava a comédia ao ponto de fazer gestos, com as mãos na boca, como a dizer que tinha fome. Mas muitas
vezes o alarme era falso e, passada uma hora, como não aparecia nenhum alemão, os refugiados davam um
suspiro de alívio e iam buscar as suas coisas aos esconderijos.
Mas a verdade é que cada vez escasseava mais a comida e, como as minhas provisões estavam quase no fim,
decidi fazer um esforço sério para arranjar mantimentos; eu tinha dinheiro e talvez em qualquer lugar menos
exposto alguém vendesse fosse o que fosse. A ssim, uma bela manhã, muito cedo, pusemo-nos a caminho,
Rosetta, Michele e eu, em direção a uma localidade da montanha chamada Sassonero, que ficava mais ou menos
a umas quatro horas de caminho.
Calculávamos chegar lá por volta do meio-dia, fazer as nossas compras, se fosse possível, comer qualquer
coisa, e pormo-nos de novo a andar, para voltarmos a S anta Eufêmia antes do anoitecer. Partimos ainda o sol se
escondia por trás dos montes, embora já fosse dia há bocado. Corria um ventinho frio que nos gelava o nariz e
as orelhas e, na realidade, quando chegamos lá acima, encontramos neve: alguns flocos brancos que se
desfaziam na erva cor de esmeralda. O sol apareceu finalmente e passamos a sentir menos frio, o panorama das
montanhas da Ciociaria, salpicadas de neve por baixo do céu luminoso, era tão lindo que paramos um
momento a contemplá-lo. Recordo que Michele disse, num suspiro, quase a custo, olhando para os montes:
“Ah! Como é bela a Itália!”
Eu observei-lhe, a rir: “Michele, dizes isso como se te desagradasse.”
E ele: “É verdade, desagrada-me um pouco, porque a beleza é uma tentação.”
N o planalto tomamos por um vago carreiro entre os rochedos, que não era mais que um rastro na erva:
porém, a pouco e pouco tornava-se bem visível, seguindo sempre a crista do monte, tendo de um lado e de
outro vertentes em precipício, uma que descia ininterruptamente até Fondi, a outra, menos funda, que ia dar a
um vale deserto, todo coberto de espesso mato, o carreiro, sempre encarrapitado lá nos píncaros, ondulava um
bocado em curvas de serpente, depois começava a descer a meia encosta para o tal vale selvagem, entre mato e
carvalheiras.
D escemos até o fundo desse vale, ou, melhor, dessa garganta deserta, e durante algum tempo caminhamos
ao longo de um riacho meio escondido nas sebes, o qual produzia, ao correr sobre as pedras, um leve e alegre
rumor naquele silêncio profundo. Logo o carreiro tornava a subir, atingindo do outro lado novo planalto, e
depois descia um pouco, para começar, noutra montanha, nova subida até um cume nu e pedregoso, com uma
cruz de madeira negra, muito velha, colocada no meio das pedras, sabe-se lá porquê. Avançando sempre pela
crista dos montes, chegamos por fim a um lugar estranho, que pudemos observar um momento lá do alto,
antes de descermos. Era um pequeno plano, liso como a palma da mão, estendido em frente duma rocha
vermelha do feitio de um pane one5, aqui e além semeado de carvalhos e rochedos. O s carvalhos eram grandes
e velhos, de ramos nus e grisalhos, emaranhados no ar, semelhantes a cabeleiras de bruxas; os rochedos, esses,
uns eram pequenos e outros grandes, mas todos do feitio do pão de açúcar, lisos e negros, como se os tivessem
passado ao torno. Entre os carvalhos e as fragas, aqui e acolá, viam-se cabanas cobertas de palha enegrecida, a
fumegarem, e, em frente das cabanas, mulheres que costuravam ao ar livre, ou estendiam roupa nas cordas, a
secar, e muitas crianças que brincavam no chão pedregoso; não se viam homens, pois era uma aldeia de
pastores e àquela hora os homens andavam com os seus rebanhos na montanha. Quando descemos até junto
5 Bolo especialmente fabricado em Milão, feito com farinha, manteiga, açúcar, ovos e passas de uvas. Tem a
forma de um cilindro abaulado no cimo das cabanas, vimos na base daquela grande rocha em forma de
pane one, de que já falei, a abertura negra duma caverna; uma das mulheres disse-nos que lá dentro havia
refugiados. Perguntei-lhe se tinha alguma comida para vender, mas ela abanou a cabeça, taciturna, em sinal
negativo; depois, num tom reticente, acrescentou que talvez os refugiados pudessem vender-nos qualquer
coisa. O que me pareceu estranho, pois habitualmente os refugiados não vendem, compram.
Contudo, dirigimo-nos para a caverna, quando mais não fosse, ao menos para pedir informações, visto que
das mulheres dos pastores, selvagens e desconfiadas, era impossível arrancar uma única palavra. O chão, à
medida que nos aproximávamos, estava juncado de grande quantidade de ossos, pequenos e grandes,
misturados com o cascalho, sem dúvida os restos das cabras e ovelhas consumidas por aqueles refugiados; mas
além dos ossos havia também lixo, caixas ferrugentas, farrapos, sapatos velhos, papéis. Parecia um desses
terrenos de Roma destinados a construções, onde se deita o lixo das casas vizinhas. A qui e além viam-se
círculos negros de fogueiras com tições apagados em volta de pequenos montes de cinza. A entrada da caverna
era bastante ampla e, em torno, toda negra e suja. D e pregos espetados na pedra, pendiam panelas, tachos de
cobre, trapos e um quarto de cabra há pouco abatida, do qual escorria ainda o sangue para o chão.
Q uando entrei, confesso, fiquei surpreendida: alta e profunda, com a abóbada enegrecida pelo fumo e o
fundo tão escuro que nem se lhe via o fim, parecia um imenso dormitório, completamente cheio de camas e
enxergões, alinhados uns ao lado dos outros, como num hospital ou numa caserna. Lá dentro reinava o mau
cheiro característico dos asilos e albergues para pobres e aquelas camas, à primeira vista, pareceram-me em
desordem, com os lençóis revolvidos, sujos de causar medo. O s refugiados estavam aqui e ali e eram muitos:
uns sentados na beira da cama, coçando a cabeça ou muito quietos sem fazer nada; outros deitados, enrolados
nos cobertores; outros ainda passeando dum lado para o outro no pequeno espaço livre. Um grupo, sentado em
duas camas, em volta de uma pequena mesa, jogava as cartas mais ou menos como os de S anta Eufêmia, com os
chapéus na cabeça e os sobretudos pelas costas. N uma das camas notei uma mulher seminua que dava o peito
a um bebê; mais além, três ou quatro crianças, encostadas umas às outras, imóveis, como mortas, estavam
talvez a dormir. O fundo da caverna, como disse, ficava no escuro, mas entreviam-se trastes amontoados, numa
grande pilha, provavelmente tudo quanto aqueles pobres refugiados tinham conseguido trazer consigo quando
fugiram.
J unto da entrada da gruta notei uma coisa insólita: um altar construído com caixas de embalagens e, a cobri-
lo, uma linda toalha bordada. Em cima da toalha, um crucifixo e duas jarras de prata, nas quais, à falta de flores,
tinham posto ramos de carvalho com toda a folhagem Por baixo do crucifixo, em vez de santos e outros objetos
do culto, vi com estranheza vários relógios, talvez uma dúzia, alinhados em boa ordem. Eram todos relógios de
tipo antigo, dos que se traziam no bolso do colete, a maior parte de metal branco, mas dois pareceram-me de
ouro. Junto do altar, num banco, vi o padre. Digo o padre porque o distingui pela tonsura, pois, quanto ao resto,
seria difícil imaginar que fosse padre. Era um homem de uns cinquenta anos, com rosto moreno, magro e grave.
N ão tinha batina, estava vestido todo de branco, camisa branca, faixa branca, calças, ou, melhor, calções à
zuavo, meias pretas e sapatos pretos. Em suma, tirara, sabe-se lá porquê, a batina, e ficara com o que trazia por
baixo. Estava imóvel, a cabeça inclinada e mãos unidas no regaço, mexendo depressa os lábios como se rezasse.
D epois levantou os olhos para mim, que, entretanto, me aproximara para observar bem o altar; e vi então que
eram uns olhos desvairados e, ao mesmo tempo, como que privados de vista. D isse, baixinho, a Rose a: “É
louco”, mas sem me admirar, porque desde há tempos que já não me admirava de nada.
Ele, entretanto, olhava para mim fixamente, com um olhar que a pouco e pouco ia tomando uma expressão
curiosa, como quem reconhece lentamente uma pessoa. D e súbito levantou-se, pegou-me num braço e disse:
“És corajosa, sempre vieste... relógios.”
Voltei-me para a caverna, um pouco confusa, tanto mais que a mão dele me apertava o braço com força
terrível, como apertam as patas dos falcões ou dos milhafres. Um dos refugiados que jogavam as cartas, o qual
tinha seguido a cena pelo canto do olho, gritou sem se voltar: “Faz-lhe a vontade, dá corda aos relógios...
coitado, destruíram-lhe a igreja e a casa e ele fugiu com os seus relógios e bem, dá corda a estes não raciocina...
mas não faz mal a ninguém... podes estar descansada.”
Um pouco mais tranquilas, Rose a e eu pegamos cada uma em seu relógio e demos-lhe corda, ou, melhor,
fingimos dar, porque todos tinham corda e trabalhavam muito bem. Ele olhava-nos como olham os padres, de
pé, as pernas abertas, as mãos atrás das costas, carrancudo, a cabeça inclinada. Q uando acabamos, disse numa
voz profunda: “A gora, que lhes deram corda, posso finalmente dizer missa... corajosas, corajosas, vieram
finalmente...”
N aquele momento aproximou-se de nós outra habitante da caverna: uma jovem freira, cuja presença me
tranquilizou imediatamente. Tinha um rosto pálido, de um oval perfeito, as sobrancelhas negras muito juntas,
formando como que um traço escuro sobre os olhos negros, brilhantes e tranquilos, semelhantes a duas
estrelas numa noite de verão. O que, porém, me fez mais impressão e na verdade me maravilhou foi o
escapulário e tudo quanto era branco no seu hábito de freira: imaculado como a neve e, inacreditável naquele
lugar, engomado na perfeição.
Como podia ela apresentar-se assim tão limpa e irrepreensível naquela caverna imunda? Com boas
maneiras e uma voz doce, voltou-se para o padre: “Vamos, D om Ma eo, venha comer conosco... Mas antes vista
qualquer coisa... não parece bem comer em ceroulas...”
D om Ma eo, de pernas abertas, um verdadeiro zuavo da cabeça aos pés, ouvia-a de boca aberta, os olhos
perdidos. Resmungou por fim: “E os relógios? Quem pensa nos relógios?”
A irmã volveu, numa voz tranquila: “D eram-lhes corda; trabalham todos à maravilha, veja, D om Ma eo,
marcam todos a mesma hora, que é precisamente a hora do almoço.”
Entretanto, tirara de um prego a batina preta do padre e ajudava-o a enfiá-la, com boas maneiras, tal como
se fora enfermeira de um louco num manicômio. D om Ma eo deixou que ela lhe vestisse a batina cheia de pó e
de nódoas; depois, passando a mão pela cabeça despenteada, lá foi com a freira, que o amparava pelo braço,
para o fundo da caverna, onde se via em cima de um tripé um grande caldeirão preto a fumegar. Ela disse
então, voltando-se para nós: “Venham também os três, a comida chega para todos.”
A ceitamos e aproximamo-nos do caldeirão, em volta do qual, neste meio tempo, se tinham reunido muitos
outros refugiados. Entre eles notei um que parecia descontente e arrogante ao mesmo tempo, um homenzinho
baixo, gordo, muito mal vestido, todo em farrapos, despenteado e com a barba comprida. Tinha um rasgão nas
calças, mesmo nos fundilhos, e por ele saía-lhe a fralda da camisa branca.
Lamuriava-se, estendendo o prato: “A mim dá-me sempre menos do que aos outros, I rmã Teresa; porque
me dá sempre menos a mim?”
A I rmã Teresa não lhe respondeu, estava atenta a encher as tigelas, dando a todos um bocado de carne e
duas conchas de caldo; mas outro refugiado, um homem de meia-idade, de bigodes pretos e cara vermelha,
disse sarcasticamente: “Ticó, porque não aplicas uma multa à irmã?... És guarda municipal, aplica-lhe uma
multa por te dar menos sopa do que aos outros.”
E depois, rindo para Michele: “N ós vivemos aqui muito bem: o padre está doido, os polícias foram
deportados para a A lemanha, o guarda anda com a fralda da camisa fora das calças e o prefeito, que sou eu, é o
mais esfomeado de todos. Não há autoridade, é um milagre que não se matem uns aos outros.”
A irmã respondeu sem levantar os olhos do caldeirão: “N ão é um milagre, é a vontade de D eus, que quer
que os homens se ajudem mutuamente.”
Ticó, no entanto, resmungava: “D om Luigi tem sempre vontade de brincar... N ão sabe que um guarda sem
uniforme é um pobretão como qualquer outro? D ê-me novamente o uniforme e poderei então manter a
ordem.”
E eu pensei que no fundo ele tinha razão. Pelo menos em certos casos o uniforme é tudo. E até aquela boa
irmã, com o seu caráter doce e a sua religião, não teria tanta autoridade se, em vez do hábito de freira, estivesse
vestida de farrapos, como eu e Rosetta.
A diante. Comemos a sopa, uma caldaça gorda em que decerto tinham cozido carne de bode, pois cheirava e
sabia a bodum; apesar da fome, quase não conseguia engoli-la. Enquanto comíamos, ouvimos as mesmas
conversas que conhecíamos em demasia: a carestia, a chegada dos I ngleses, os bombardeamentos, os
recrutamentos, a guerra. Por fim, quando me pareceu o momento propício, arrisquei-me a perguntar se alguns
deles podia vender-nos quaisquer mantimentos. Ficaram estupefatos, como já imaginava: não tinham nada; tal
como nós, também compravam aqui e além, ou acabavam por consumir o que tinham trazido da terra. Mas
aconselharam-nos a ir ter com os pastores que viviam nas cabanas, fora da caverna, dizendo-nos: “É a eles que
compramos... têm sempre um queijo ou um cabrito... vejam se lhes vendem alguma coisa.”
Eu respondi que uma mulher nos indicara a gruta, afirmando que os pastores não tinham nada para vender.
O prefeito encolheu os ombros: “Dizem isso porque não confiam em ninguém e querem manter os preços altos.
Mas têm os rebanhos e por estes lados são ainda os únicos que podem vender seja o que for.”
Em resumo, agradecemos à irmã e aos refugiados a sopa, tornamos a passar diante do altar cheio de relógios
do padre louco e saímos da caverna. N esse mesmo instante passava entre a fraga e as cabanas um pequeno
rebanho de ovelhas e cabras guiado por um homenzarrão de tamancos brancos, calças pretas, faixa na cinta,
casaco preto e chapéu preto. Uma refugiada que estava perto da entrada da caverna a mordiscar um naco de
pão e ouvira a nossa conversa indicou-me, dizendo: “O lha, aquele é um dos evangelistas... vende-te queijo se
souber que lho pagas bem.”
Corri atrás do homem e gritei-lhe: “Tens algum queijo para vender?”
Ele não me respondeu, nem sequer se voltou, continuando a andar; parecia surdo. Tornei a gritar: “S r.
Evangelista, vende-me queijo?”
Ele então disse: “Não me chamo Evangelista, chamo-me De Santis.”
E eu: “Disseram-me que te chamavas Evangelista.”
E ele: “Não, nós pertencemos à religião evangelista, assim é que é.”
Por fim, lá acabou por dizer que talvez pudesse vender-nos o queijo e o seguimos até à cabana. Primeiro
meteu as ovelhas num cortelho ao lado, uma por uma, chamando as pelo nome: “Bianchina, Paciocca, Ma a,
Celeste...”, e assim por diante; depois fechou a porta ao rebanho e conduziu-nos à sua cabana. Era semelhante
àquela em que vivia Paride, talvez um pouco maior, mas, não sei porquê, mais triste, mais vazia e mais funda;
ou talvez isto fosse apenas uma impressão causada pelo seu acolhimento pouco amável. Em volta do fogo do
costume, e sentadas em iguais bancos e cepos de madeira, estavam muitas mulheres e crianças. S entamo-nos
também e ele, em primeiro lugar, pôs-se a rezar, juntando as mãos; todos o imitaram, até as crianças. Fiquei
pasmada ao vê-lo rezar, pois os camponeses, pelo menos lá para os meus sítios, raramente rezam e só o fazem
na igreja; mas lembrei-me da resposta dele sobre a religião evangelista e compreendi que não eram como nós,
que criam em Deus de uma maneira diferente.
Michele, cheio de curiosidade, mal ele acabou a oração, perguntou lhe porque eram evangelistas, e, ao fazê-
lo, parecia conhecer o significado dessa palavra. O homenzarrão respondeu que ele e dois dos seus irmãos
tinham estado na A mérica a trabalhar e lá encontraram um pastor protestante que os convenceu, e por isso se
tinham convertido à religião evangelista. Michele perguntou-lhe com que impressão ficara da A mérica e ele
volveu: “Embarcamos em N ápoles e desembarcamos numa pequena cidade do Pacífico; depois fomos de
comboio para as florestas, porque tínhamos sido contratados como lenhadores. Por aquilo que vi, parece-me
um pais de florestas.”
“Viste alguma cidade?”
“N ão, só aquela onde desembarcamos, uma cidade pequena... Estivemos dois anos nas florestas e depois
voltamos pelo mesmo caminho para a Itália.”
Michele parecia surpreendido e também divertido, porque, disse-me mais tarde, na A mérica há cidades
enormes e eles só viram árvores e por isso pensavam que a A mérica era uma floresta imensa... Falaram da
A mérica ainda durante algum tempo; depois, como se fazia tarde, eu aludi ao queijo; o homem então remexeu
no escuro, entre a palha do teto, e tirou de lá dois queijinhos de ovelha, amarelados, dizendo com toda a
simplicidade que, se os queríamos, custavam tanto. Dei um salto, pois era um preço como nunca ouvira, mesmo
naqueles tempos de carestia, e disse: “O quê, o teu queijo é de ouro?”
Ele respondeu, gravemente: “N ão, é melhor do que o ouro, é queijo. O ouro não o podes comer, o queijo,
sim.”
Michele observou, sarcástico: “O Evangelho ensina-te a pedir esses preços?”
O homem não respondeu e eu insisti: “Eia pouco, a I rmã Teresa, ali na caverna, disse que D eus quer que os
homens se ajudem uns aos outros. É bonita a vossa maneira de ajudar os homens.”
E ele, com cara de bronze, tranquilo: “A Irmã Teresa é de outra religião, nós não somos católicos.”
“E o que julgas que é ser evangelista?”, interveio de novo Michele. “É vender pelo dobro do que vendem os
que são católicos?”
E ele, com a mesma gravidade: “Evangelista, irmão, é observar os preceitos do Evangelho. N ós observamo-
los.”
Em suma, tinha sempre uma resposta pronta e não havia nada a fazer, era mais duro do que uma pedra.
D isse-nos, por fim: “S e querem, posso vender-lhes um cordeiro... bem gordo, para a S anta Páscoa... tenho-os até
de seis quilos. Faço um preço razoável.”
Pensei que de fato a Páscoa se aproximava e que um cordeiro vinha mesmo a propósito; perguntei-lhe o
preço e dei outro salto; com esse dinheiro quase poderíamos comprar, além do cordeiro, a ovelha que o parira.
Michele proferiu de repente: “S abes o que vocês são, os Evangelistas? Boas pessoas para matarem os outros à
fome.”
E o homem: “Sossega, irmão, o Evangelho ensina os homens a amarem-se uns aos outros.”
Por fim, desesperada, disse que lhe comprava o queijo, mas ele tinha de fazer um abatimento. S abem o que
me respondeu?
“Um abatimento? É o preço mais baixo que posso fazer. É melhor que o deixes ficar, irmã, pois, se o compras
ao meu preço, ficarás a querer-me mal e, se eu o vender ao teu, ficarei a odiar-te. O ra o Evangelho ensina os
homens a amarem-se uns aos outros. Deixa-o ficar e assim continuaremos a querer-nos bem.”
N ão fiz caso desta recomendação e discuti não sei quanto tempo; mas ele era inflexível e não houve meio de
o convencer; quando o punha contra a parede, provando-lhe que era um ladrão, saía-se com uma máxima do
Evangelho, como. por exemplo: “Não te deixes dominar pela ira, irmã, a ira é um ruim pecado.”
Por fim, lá paguei esse preço exorbitante, obtendo somente que ele nos desse a mais uma fatia de requeijão,
que comemos ali com um bocado de pão.
D epois despedimo-nos e ele, à porta, se bem que nos tivéssemos separado friamente, saudou-nos assim:
“Deus seja convosco, irmãos.”
Pensei comigo, quase de mau grado: “E a ti que o diabo te leve para o Inferno.”
Esta caminhada não nos rendeu senão aquele queijo; e pensar que tínhamos andado tantos quilômetros
pelas montanhas e cada um de nós quase gastara um par de tamancos! ... Mas, como acontece às vezes nestas
situações, daí a poucos dias veio a compensação, sem esforço, como que por intervenção da Providência: o
coveiro, que andava pelas montanhas à procura de comida, no seu cavalo preto, vendeu-nos por um preço
razoável uma quantidade de feijão-frade. Tinha-o comprado a uns desterrados iugoslavos que na altura do
armistício fugiram da ilha de Ponza, escondendo-se num vale vizinho do nosso, e agora, com medo dos
A lemães, iam-se embora não sei para onde e não podiam levar com eles todas as provisões. O coveiro, um
rapaz aloirado, muito alto e vivo, deu-nos também algumas notícias da guerra, que soubera por esses
desterrados. D isse-nos que numa cidade chamada Estalingrado, na Rússia, os A lemães tinham sofrido uma
derrota terrível e que os Russos lhes aprisionaram um exército inteiro, com todos os seus generais; Hitler,
desencorajado, ordenara então a retirada. A crescentou que era agora uma questão de dias, o máximo de
semanas, e a guerra acabava.
Estas notícias encheram de alegria os refugiados, mas não os camponeses. A maior parte dos homens de
S anta Eufêmia que andavam na guerra encontravam-se mesmo em Estalingrado e até tinham escrito dessa
cidade, por isso agora muitas daquelas mulheres temiam pela vida dos maridos e dos irmãos, e com razão, pois
a seguir soube-se que nem um sequer se salvara.
Em todo o mês de Março, enquanto os dias cresciam e lentamente a montanha começava a verdejar e o ar a
tornar-se mais ameno, continuou o bombardeamento de A nzio de um lado e de Cassino do outro. Estávamos,
por assim dizer, a meio caminho entre A nzio e Cassino e todo o dia e toda a noite ouvíamos muito bem os
canhões que disparavam naqueles dois lugares, sem tréguas, como se estivessem ao desafio. Bum, bum... dizia
o canhão de A nzio, primeiro com a explosão da partida e depois com a da chegada; bum, bum... respondia o de
Cassino do outro lado. O céu parecia uma pele de tambor, que repercutia sombriamente esses estrondos, como
quando se dá um murro num bombo. Fazia impressão ouvir semelhante barulho ameaçador e lúgubre em dias
tão lindos; chegava-se a pensar que a guerra fazia agora parte da natureza, que aquele barulho estava ligado e
confundido com a luz do sol e que também a primavera sofria, como os homens, do mal da guerra. A quele
estrondo do canhão entrara já na nossa vida, como os farrapos, a carestia, os perigos, e, como nunca parava,
tornou-se, como os farrapos, a carestia e os perigos, uma coisa normal, à qual nos habituáramos, de tal modo
que, se acabasse, como de fato acabou um belo dia, ficaríamos surpreendidos. I sto serve para dizer que nos
habituamos a tudo e a guerra se pode tornar um hábito, e aquilo que nos modifica não são os fatos
extraordinários, que acontecem uma só vez, mas sim esse hábito, essa longa aceitação das coisas contra as quais
deixamos de nos revoltar.
N os primeiros dias de abril, a montanha estava mesmo bonita, toda verde e florida, e o ar tão ameno que
podíamos andar fora de casa todo o dia. Mas naquelas flores que alegravam a vista ocultava-se para nós,
refugiados, a ideia da fome, pois as flores desabrocham quando as plantas alcançam o máximo de
desenvolvimento, se tornam duras e fibrosas e não se podem já comer. Em suma, aquelas flores tão lindas
significavam que o nosso último recurso, a chicória, acabara e que, na verdade, desta vez só a chegada imediata
dos I ngleses nos poderia salvar. Também as árvores estavam em flor, os pessegueiros, as amendoeiras, as
macieiras, as pereiras, aqui e além, na encosta, dir-se-iam pequenas nuvens brancas e cor-de-rosa suspensas no
ar calmo, sem vento; mas também não podíamos olhar para essas árvores sem pensar que aquelas flores tinham
de se tornar frutos e os frutos, dos quais nos poderíamos alimentar, só estariam maduros daí a alguns meses. E
o trigo, que era ainda erva verde, baixo e tenro qual veludo, produzia-me também uma espécie de
desfalecimento: ainda se passaria muito tempo antes que, crescido e loiro, pudesse ser ceifado e trilhado, os
grãos levados ao moinho e a farinha feita em massa e metida no forno em lindos pães de quilo. A h! A beleza
pode apreciar-se com a barriga cheia; mas, com a barriga vazia, todos os pensamentos vão dar ao mesmo e a
beleza parece um engano ou, pior, uma troça.
A propósito do trigo ainda verde, lembro-me de uma coisa que nesses dias me deu a noção exata da carestia.
Uma tarde desci a Fondi, como era costume, na esperança de comprar pão; quando chegamos ao vale, ficamos
varados ao ver três cavalos do exército alemão que pastavam tranquilamente num campo de trigo. Um soldado
sem divisas, talvez um russo traidor como o que encontráramos da outra vez, estava sentado na cerca, sem fazer
nada, com uma erva entre os dentes, a guardá-los. Garanto, nunca como nesse momento compreendi tão bem o
que significa a guerra e como, em tempo de guerra, o coração deixa de ser coração e o amor do próximo não
existe e tudo é possível. Estava um lindo dia, cheio de sol e de flores, e nós os três, Michele, Rose a e eu, de pé
junto a cerca ficamos olhando para aqueles três cavalos bonitos e gordos que, coitados, sem cuidarem do mal
que os donos os obrigavam a fazer, comiam o grão de trigo duro, com o qual se fabrica o pão dos cristãos.
Lembro-me que em criança os meus pais me diziam que o pão é sagrado, que é um sacrilégio deitá-lo fora ou
estragá-lo, e até é um pecado voltá-lo.
A gora via que esse pão o davam aos animais, quando tanta gente no vale e nas montanhas morria de fome.
Michele disse, por fim, exprimindo o sentimento geral: “S e fosse crente, diria que tinha chegado o apocalipse
quando se vêem os cavalos a pastar no trigo. Como não sou, limito-me a dizer que chegaram os nazis, o que no
fundo é talvez a mesma coisa.”
N esse mesmo dia, um pouco mais tarde, tivemos a confirmação do caráter dos A lemães, tão estranho e tão
diferente do nosso, cheio talvez de grandes qualidades, mas com enormes lacunas, como se não fossem homens
completos.
Fomos outra vez a casa do advogado onde encontráramos aquele oficial ruim que gostava, como dizia, de
limpar as grutas de inimigos com o lança-chamas. D esta vez encontramos lá outro alemão, um capitão. O
advogado, porém, advertiu-nos: “Este não é como os outros, é uma pessoa educada, fala francês, viveu em Paris
e, sobre a guerra, pensa como nós.”
Entramos na barraca e o capitão, como fazem todos os alemães, levantou-se à nossa chegada e apertou-nos a
mão, batendo os calcanhares. Era na verdade um homem fino, um cavalheiro, já um pouco calvo, de olhos
cinzentos, nariz delgado e aristocrático, na boca uma expressão altiva; um belo homem, em resumo, que
pareceria quase italiano se não fosse aquele seu ar rígido que os I talianos nunca têm. Falava bem o italiano e
dirigiu-nos uma quantidade de cumprimentos sobre a I tália, dizendo que era a sua segunda pátria e que ia
todos os anos para Capri; a guerra, se não lhe servisse para mais, servia-lhe ao menos para visitar muitos
lugares bonitos da I tália que ainda não conhecia. O fereceu-nos cigarros, informou-se a respeito de Rose a e de
mim, falou por fim da família e mostrou-nos uma fotografia: a mulher, uma linda senhora de magníficos
cabelos loiros, e três meninos, também muito lindos, três anjinhos, todos loiros. D isse, voltando a pegar na
fotografia: “Neste momento, estes meninos são felizes.”
Perguntamos porquê e respondeu que tinham desejado ter um burrinho e ele, dias antes, comprara um em
Fondi e mandara-lhe de presente, para a Alemanha.
Entusiasmado, entrou em pormenores: encontrara exatamente o burrinho que procurava, de raça sarda, e,
como era ainda de manhã, mandara-o num comboio militar, com um soldado encarregado de lhe dar
continuamente leite; no comboio ia também uma vaca. E ria, satisfeito, pensando que os filhos andariam a essa
hora a cavalo no burrico, muito felizes da sua vida.
N ós, o advogado e a mãe estávamos pasmados: era tempo de carestia, não havia comida, mas ele arranjara
maneira de mandar um burrinho para a A lemanha e de o alimentar no trajeto com leite que podia ter sido dado
às crianças italianas, que tanta falta tinham dele. O nde estava o seu amor à I tália e aos I talianos se não se
apercebia duma coisa tão simples? N o entanto, pensei, não fizera isto por maldade, pois era decerto o melhor
alemão que encontrara até essa altura; fizera-o, sim, porque era alemão e os A lemães, como já disse, têm uma
maneira de ser especial, talvez com boas qualidades, mas todas pendendo só para um lado, enquanto no outro
não têm nem uma, mais ou menos como certas árvores que crescem encostadas a uma parede e têm os ramos
todos voltados para o lado oposto à parede.
Michele, agora, que faltava a comida, procurava ajudar-nos de todas as maneiras, ora abertamente, levando-
nos uma parte do seu almoço ou da sua ceia, ante os olhares de reprovação da família, ora às escondidas,
roubando para nós as provisões do pai. Por exemplo, um dia mostrei-lhe o pão que nos restava, um pão
pequeno e, ainda por cima, com dois terços de farinha de milho. Ele então disse que dali em diante nos traria
pão, pouco de cada vez, tirando-o da caixa onde a mãe o punha. E assim fez. Todos os dias nos trazia algumas
fatias de um pão ainda branco, sem mistura de farinha de milho nem de sêmeas, um pão como ninguém mais
fazia lá em cima, embora Filippo chorasse continuamente a sua miséria e dissesse para quem o queria ouvir que
ele e a família estavam na última, reduzidos a passar fome.
Um dia, não sei porquê, em vez das três ou quatro fatias de costume, Michele trouxe-nos dois pães inteiros,
tinham cozido pão nessa manhã e ele julgava que não dariam pela falta. Mas deram e Filippo fez um banzé dos
demônios, gritando que lhe tinham roubado as provisões; mas não disse que eram pães porque, se o dissesse,
desmentia-se, pois andava sempre a afirmar que já não tinha farinha. Filippo fez uma verdadeira investigação
policial, medindo a altura e a largura da janela, examinando o terreno em baixo, a ver se a erva estava calcada,
observando os umbrais para ver se acaso teria caído algum bocado de cal e por fim convenceu-se de que, dada a
pequenez e a altura da janela, devia ter sido um garoto a entrar em casa e a praticar o furto, mas que esse garoto
não poderia chegar tão alto sem a ajuda de um adulto. D e conclusão em conclusão, decidiu que o garoto era
certamente um tal Mariolino, filho dum refugiado, e que o adulto que o ajudara fora com certeza o pai. Mas
tudo teria ficado por aí se Filippo não comunicasse as suas suspeitas à mulher e à filha. O que para ele eram
apenas suposições, tornaram-se imediatamente certezas para as duas mulheres. Primeiro deixaram de
cumprimentar o refugiado e a mulher, passando na frente deles sempre caladas e sérias; depois deixaram
escapar algumas alusões: “O pão hoje estava bom?” O u: “Tenham cuidado com o Mariolino... pode quebrar a
cabeça ao subir às janelas.”
Por fim, um dia disseram-lhes de cara a cara: “O que vocês são é uma família de ladrões.”
Começou então um burburinho que dificilmente se pode descrever, com gritos e berros que chegavam até o
céu. A mulher do refugiado, mulher pequena e fraca de saúde, desgrenhada, esfarrapada, repetia numa voz
estridente: “Anda! Anda!”
Confesso que não sei o que ela queria dizer. E a mulher de Filippo, por seu lado, gritava-lhe na cara que
eram todos uns ladrões. A ssim, uma repetindo aquela única palavra: “A nda!”, e a outra berrando que eram
ladrões, continuaram por algum tempo, uma em frente da outra, num círculo de refugiados, sem se tocarem,
como duas galinhas furiosas. Entretanto, nós as duas, não sem remorsos, estávamos a trincar o pão de Filippo
nesse mesmo instante, no escuro, para não dar nas vistas, um bocado a cada grito das duas mulheres, e não
posso negar que aquele pão roubado quase me parecia mais saboroso que o nosso, precisamente porque tinha
sido roubado e porque o comíamos às escondidas. N o entanto, depois desse dia., Michele teve o cuidado de
fazer as coisas de maneira que a família não desse conta, uma fatia agora outra logo, e de fato não tornaram a
descobrir os furtos e também não houve mais cenas.
Passou abril com as suas flores e a fraqueza nos estômagos e veio maio com o calor; agora, além da fome e
do desespero, havia o tormento das moscas e das vespas. N a nossa casota havia tantas moscas que, por assim
dizer, passávamos o dia a enxotá-las e à noite, quando íamos para a cama, elas iam também dormir nas cordas
em que dependurávamos os vestidos, e eram tantas que as cordas ficavam negras. A s vespas tinham o ninho
debaixo do telhado e entravam e saíam em nuvens, e ai de quem lhes tocasse, picavam sem dó nem piedade.
Suávamos todo o dia, talvez por causa da fraqueza, e, com o calor, não sei porquê, decerto porque não podíamos
lavar-nos nem mudar de roupa, apercebemo-nos a certa altura de que parecíamos duas pedintes, daquelas que
parecem não ter idade nem sexo e pedem esmola à porta dos conventos. O s nossos vestidos estavam feitos em
farrapos e cheiravam mal; os nossos tamancos (desde há algum tempo que não tínhamos sapatos) também
causavam dó, consertados por Paride com bocados de velhos pneus de automóvel, e o quartinho tornou-se
inabitável por causa das moscas, das vespas e do calor; depois de ter sido um refúgio no inverno, era agora pior
do que uma prisão.
Rose a, apesar de toda a sua doçura e paciência, sofria com esta situação talvez mais do que eu, porque eu
nasci camponesa, mas ela nasceu na cidade.
Tanto que um dia disse-me: “Tu, mamãe, falas-me sempre em comida... mas eu não me importaria de passar
fome ainda durante um ano contanto que tivesse um vestido limpo e vivesse numa casa asseada.”
O fato é que faltava também a água, porque não chovia já há meses e ela não podia lavar-se com a água do
poço, como durante o inverno, justamente quando tinha disso mais necessidade...
Em maio soube uma coisa que pode dar uma ideia do desespero a que tinham chegado os refugiados. Parece
que em casa de Filippo houve uma reunião, na qual participaram só os homens, e durante essa reunião foi
decidido que, se os I ngleses não chegassem nesse mês, os refugiados, que possuíam todos armas - um tinha um
revólver, outro uma espingarda de casa, outro uma faca - obrigariam os camponeses a pôr em comum as
provisões, a bem ou à força. Michele também participou na reunião e protestou logo, disse-nos depois,
declarando que se colocaria ao lado dos camponeses. Um dos refugiados, então respondeu-lhe: “Muito bem,
nesse caso tratar-te-emos como aos outros, considerando-te um deles.”
Em resumo, essa reunião talvez não significasse lá grande coisa, porque, apesar de tudo, os refugiados eram
boa gente e duvido que fossem capazes de fazer uso das armas; mas serve para indicar o grau de desespero a
que todos tinham chegado. O utros, soube-o mais tarde, como estava bom tempo e o solo endurecera,
preparavam-se para partir de S anta Eufêmia em direção ao S ul, atravessando as linhas de batalha, ou ao N orte,
onde se dizia que os mantimentos não faltavam. O utros falavam também em ir para Roma, a pé, porque,
diziam, no campo nos deixam morrer de fome, mas na cidade hão de ajudar-nos, têm medo da revolução. Em
suma, ao calor daquele sol ardente de maio, tudo se movia, tudo se esboroava, cada um tornava a pensar em si
mesmo e na própria pele e muitos estavam até dispostos a arriscar a vida para sair daquela situação de
imobilidade e de espera sem fim.
D e repente, um dia qualquer, eis que chegou a grande notícia: os I ngleses tinham desencadeado a ofensiva a
sério e avançavam. N ão posso descrever a alegria dos refugiados, os quais, à falta de melhor, não podendo
beber porque não havia vinho, nem comer porque não havia comida, se manifestaram abraçando-se e atirando
os chapéus ao ar. Coitados, mal sabiam eles que o avanço dos I ngleses nos traria ainda mais sofrimentos. A s
dificuldades mal tinham começado.
CAPÍTULO VIII

Q uando eu era criança, havia um negociante na minha aldeia que tinha as coleções da D omenica I llustrada
do tempo da outra guerra; muitas vezes as folheei, juntamente com os seus filhos. Tinham lindas gravuras a
cores, nas quais se viam as batalhas de 1915. Talvez por isso, eu imaginava as batalhas como as vira naquelas
ilustrações: canhões a dispararem, poeira, fumo, fogo; soldados a correrem ao assalto, de baioneta calada e
bandeira ao vento; lutas de corpo a corpo, homens que caíam mortos, outros que continuavam a correr.
Confesso, gostava dessas ilustrações e parecia-me que a guerra, no fim de contas, não era tão má como se dizia.
O u, melhor, era má, sim; mas para quem gostasse de matar, ou de mostrar coragem e dar provas de iniciativa e
de desprezo do perigo, a guerra era o elemento próprio. E pensava também que não era admissível que todos
gostassem da paz. Pelo contrário, havia muita gente que se sentia bem com a guerra, quando mais não fosse
por poder dar largas aos seus instintos violentos e sanguinários.
Pelo menos era o que eu julgava, enquanto não vi a verdadeira guerra com os meus próprios olhos.
N um daqueles dias Michele veio dizer-me que a batalha para o rompimento da frente estava quase no fim;
mas eu não o acreditei, pois, tão longe quanto os meus olhos alcançavam, não via nem sombra de um combate.
Estava um dia lindíssimo, sereno, apenas com uma ou outra nuvenzinha cor-de-rosa no horizonte, quase
aflorando o cimo das montanhas, atrás das quais ficavam I tri, Garigliano, enfim, a frente de batalha. À direita
verdejavam as montanhas, majestosas, sob a luz do sol; à esquerda, para lá da planura, cintilava o mar, dum
azul sorridente, claro, primaveril. Onde se travava a batalha?
Michele respondeu-me que a batalha estava em curso pelo menos há dois dias e se desenrolava por trás das
montanhas de I tri. Eu não queria acreditar porque, como sabem, imaginava uma batalha de maneira muito
diferente, e disse-lhe. Michele pôs-se a rir e explicou-me que essas batalhas, que eu tanto admirara nas capas da
D omenica, já não existiam: agora os canhões e os aviões limpavam o terreno de soldados até grande distância
da verdadeira frente; cada vez mais uma batalha se assemelhava à operação que uma dona de casa faz como
pulverizador, matando todas as moscas sem sujar as mãos sem sequer lhes mexer.
N a guerra moderna, afirmou Michele, não havia lugar para cargas à baioneta, assaltos, combates corpo,
corpo; o valor individual tornara-se inútil; agora vencia quem possuísse maior número de canhões, que
atirassem mais longe, aviões com maior raio de ação e mais velozes.
“A guerra tornou-se um trabalho de máquinas”, concluiu, “e os soldados pouco mais são do que bons
mecânicos.”
Bem, esta batalha que não se via durou talvez um dia ou dois, depois, uma manhã, o canhão deu um salto no
espaço e ouvimos tão próximo de nós que fazia tremer as paredes do nosso cubículo. Bum, bum, bum, parecia
que disparava mesmo atrás do lombo da montanha. Levantei-me à pressa e saí precipitadamente da choupana,
quase com o pressentimento de ir ver o corpo-a-corpo de que falei.
Mas nada: estava o mesmo dia lindíssimo, sereno e cheio de sol; a única diferença é que lá longe, no
horizonte, para além do montes que fechavam a planície, viam-se uns traços finíssimos vermelhos, como
relâmpagos, semelhantes a feridas abertas no céu que logo se dissolviam na imensidade azul. Eram, como me
explicaram, os projéteis dos canhões, cujas trajetórias, devido a momentâneas condições atmosféricas, se
podiam distinguir a olho nu. Esses traços vermelhos pareciam mesmo navalhadas no firmamento, com sangue
a jorrar um segundo das feridas, estancando logo de seguida. Víamos primeiro a navalhada; a seguir chegava
até nós o som do disparo; depois ouvíamos mesmo por cima da cabeça um miado furioso e soprado, e, quase ao
mesmo tempo, detrás da montanha vinha o estouro da explosão, fortíssimo, ressoando no céu como num
quarto vazio. D isparavam, em suma, por cima de nós, para alguém ou para qualquer coisa que estava nas
nossas costas, e isto, como nos explicou Michele, queria dizer que a batalha mudara para o N orte e o vale de
Fondi já estava livre. Perguntei-lhe para onde tinham ido os A lemães e ele respondeu-me que os A lemães,
decerto, teriam fugido para Roma e que a batalha para o rompimento da frente terminara e aqueles canhões
martelavam agora a retirada dos nazis. Em suma, nada de corpo-a-corpo, de assaltos à baioneta, de mortos e
feridos...
N aquela noite vimos, porém, que o céu, para os lados de I tri estava mais claro e de vez em quando
vermelho, como que iluminado por uma chama imprevista; entretanto, continuavam a navalhadas dos tiros dos
canhões, qual fogo de artifício no céu negro e cheio de estrelas: era uma chuva contínua de riscos muito finos
mas sem as florações que coroam os estouros dos morteiros; o barulho também era diferente, mais cavo, mais
profundo e ameaçador, e não alegre como o estralejar dos foguetes.
Ficamos a contemplar o céu durante algum tempo e depois, cansadíssimas, fomos para a cama e quase não
dormimos: estava calor e Rose a não fazia senão falar. D e manhã, muito cedo, acordamos com um estrondo
fortíssimo e muito próximo. S altamos da cama e vimos que desta feita atiravam mesmo para cima de nós. Então
compreendi pela primeira vez que os canhões são bem piores do que os aviões; estes, ao menos, veem-se e,
assim que os vemos, podemos correr e abrigar-nos ou, pelo menos, ter a satisfação de ver para onde voam; mas
aos canhões nunca os vemos, estão escondidos para lá do horizonte, e, embora não os vejamos, eles procuram-
nos e nunca sabemos onde havemos de nos esconder, porque o canhão nos segue para toda a parte como um
dedo vingador. A quele barulho, como disse, foi muito próximo, e de fato informaram-nos de que caíra um
projétil a pouca distância da casa de Filippo. Michele chegou a correr, dizendo-nos muito contente que era
agora uma questão de horas; mas eu observei-lhe que morrer podia ser uma questão de segundos; ele encolheu
os ombros e retorquiu que devíamos considerar-nos como imortais. I a responder-lhe quando ouvimos, de
súbito, mesmo por cima de nós, uma explosão horrível. Tremeram as paredes e o chão; do teto choveu caliça e
pó, e o ar escureceu um momento, de tal forma que julgamos que o projétil tinha caído mesmo em cima da
casa. Precipitamo-nos para fora e então vimos que explodira muito perto, no socalco, do qual fizera abater um
grande bocado, abrindo um enorme buraco cheio de terra revolvida e ervas arrancadas. N ão digo que Michele
ficasse assustado, mas compreendeu que eu tinha razão ao dizer que para morrer bastavam poucos segundos.
Então disse-nos que devíamos segui-lo, pois sabia para onde ir; era preciso, explicou, abrigarmo-nos num
ângulo morto. Corremos ao longo do socalco, até o outro extremo da garganta, e fomos para uma choça feita de
ramos que servia de abrigo aos animais, situada por baixo de um esporão rochoso.
“Este é um ângulo morto”, disse Michele, muito contente por mostrar o seu conhecimento da guerra,
“podemos sentar-nos na erva... os tiros nunca chegarão aqui.”
S im, bom ângulo morto. Mal acabara de falar, houve uma explosão violentíssima e ficamos todos envolvidos
em fumo e pó e, por entre o fumo e o pó vimos a cabana dobrar-se toda para um lado e depois ficar assim,
inclinada, que até parecia uma daquelas casinhas feitas pelas crianças com cartas de jogar, que nunca estão
direitas. D esta vez Michele não falou do ângulo morto. Mandou-nos deitar no chão e sem se levantar, gritava-
nos: “S igam-me até a gruta vamos para a gruta não se levantem, arrastem-se como eu.” A gruta ficava mesmo
por trás da choça, era muito pequena, com entrada baixa, e nela os camponeses tinham improvisado uma
capoeira. Rastejamos atrás dele e, sempre de rastos, entramos na gruta, por entre as galinhas, que cacarejavam
e fugiam assustadas para o fundo. A gruta era demasiado baixa para estarmos de pé, e assim ficamos mais de
uma hora estendidos ao lado uns dos outros, de maneira que sujamos os vestidos com os excrementos que
cobriam o chão, enquanto as galinhas, depois de readquirirem coragem, passeavam por cima de nós e nos
bicavam os cabelos. Entretanto ouvíamos as explosões seguirem-se umas às outras, em volta de nós. Eu disse a
Michele: “Não é nada mau este ângulo morto...”
Por fim, houve ainda uma ou outra explosão, cada vez mais raras, e depois mais nada, a não ser o
canhoneiro distante que, por assim dizer, nos cavalgava e ia martelar outra localidade por trás de S anta
Eufêmia. Michele disse então que os projéteis que tinham atingido a cabana provavelmente não eram atirados
pelos ingleses, mas sim pelos alemães, com morteiros de montanha de tiro curvo, e agora podíamos sair em
segurança, pois os alemães já não disparavam e os ingleses não atirariam contra nós. D e rastos, como tínhamos
entrado, lá saímos da gruta e voltamos para casa.
Era já uma hora e pensamos em comer qualquer coisa, um bocado de pão com queijo. Enquanto comíamos,
apareceu a correr, esbaforido, o filho de Paride, dizendo que tinham chegado os alemães. N ão compreendemos
logo, porque pensávamos, logicamente, que, depois de tantos tiros de canhão, deviam ser, sim, os ingleses a
chegar, e insisti com ele, pois era uma criança e podia ter compreendido mal: “Queres dizer os ingleses?...”
“Não, os alemães.”
”Mas os alemães fugiram.”
“E eu digo-te que chegaram.”
Mas Paride veio explicar o mistério: chegara efetivamente um grupo de alemães em fuga, que estavam
sentados na palha, à sombra de um palheiro, e ninguém entendia o que eles queriam. Eu disse a Michele: “Q ue
nos importam esses alemães?... Estamos à espera dos ingleses, não dos alemães... Eles que se amanhem como
quiserem e puderem...”
Mas Michele, infelizmente, não me deu ouvidos: os seus olhos adquiriram novo brilho ao ouvir o que
contava Paride. D ir-se-ia que odiava os alemães e era ao mesmo tempo atraído por eles; naturalmente, a ideia
de os ver agora em fuga e derrotados, depois de os ter encontrado tantas vezes soberbos e vitoriosos, excitava-o
e agradava-lhe. Disse a Paride: “Vamos lá ver esses alemães.”
E foi. Rose a e eu o seguimos. Encontramos os alemães, como Paride nos dissera, à sombra do palheiro.
Eram cinco e em toda a minha vida nunca vi gente mais fatigada e exausta. Estavam deitados na palha, um aqui,
outro além, estendidos, as pernas e os braços abertos, como mortos. Três dormiam ou, pelo menos, estavam de
olhos fechados; outro, de olhos abertos, deitado de costas, fixava o céu; o quinto, também estendido, fizera uma
almofada com um molho de feno e olhava a direito na sua frente. Fixei sobretudo este último: era quase albino,
com a pele rosada e transparente, os olhos azuis circundados de pêlos quase brancos, os cabelos de um loiro
claríssimo, finos e lisos. Tinha as faces cinzentas de pó e estriadas de sulcos, como de lágrimas que tivessem
rolado por cima do pó, deixando o rasto da sua passagem; as narinas negras de terra ou não sei de que porcaria;
os lábios gretados, e os olhos circundados de vermelho, com dois traços negros por baixo que pareciam duas
unhadas. O s A lemães, sabe-se, andam sempre com o uniforme em ordem, muito limpo e engomado como se
tivesse saído nesse momento da naftalina. Mas os uniformes destes cinco estavam rasgados e desabotoados;
parecia até que tinham mudado de cor, como se lhes tivessem atirado para cima, com violência, um jato de
poeira ou de negro de fumo. Muitos refugiados e camponeses formavam um círculo em volta, a alguma
distância, olhando os alemães em silêncio, como se olha um espetáculo inacreditável; eles permaneciam
calados e não se moviam.
Michele aproximou-se e perguntou-lhes de onde vinham. Falava em alemão, mas o albino, sem se mexer,
como se a sua nuca estivesse pregada àquela almofada de palha, respondeu devagar: “Pode falar em italiano...
conheço o italiano.”
Michele repetiu então a pergunta em italiano e o outro respondeu que vinham da frente. Michele inquiriu o
que tinha acontecido. O albino, sempre naquela posição de paralítico, separando devagar as palavras umas das
outras, num tom grave, ameaçador e abatido, disse que os cinco eram artilheiros e tinham estado dois dias e
duas noites sob um terrível bombardeamento aéreo, que não só os canhões, mas também o terreno onde se
encontravam, tinham ido pelos ares, e que, por fim, depois de terem visto morrer a maior parte dos
companheiros, foram obrigados a fugir.
“A frente”, concluiu lentamente, “já não é em Garigliano, mas mais ao norte e temos de lá chegar... mais ao
norte há outras montanhas e resistiremos.”
Mesmo reduzidos àquele estado, mais mortos do que vivos, ainda falavam em continuar a guerra e resistir!
Michele perguntou então quem tinha rompido a frente, os I ngleses ou os A mericanos? Foi uma pergunta
imprudente, pois o albino teve um sorriso de escárnio e respondeu: “Q ue lhe importa quem foi? Meu caro
senhor, deve contentar-se em saber que dentro em pouco chegam aqui os seus amigos, e é tudo.”
Michele fingiu não se aperceber do tom sarcástico e ameaçador e perguntou o que podia fazer por eles. O
albino disse: “Dê-nos alguma coisa que comer.”
Mas o fato é que estávamos todos na última; talvez a única exceção fosse Filippo; tanto refugiados como
camponeses, não creio que arranjassem maneira de cozer ainda pão. A ssim, olhamos uns para os outros,
consternados, e eu, interpretando o sentimento geral, exclamei: “Comer? Mas quem tem alguma coisa que
comer? S e os I ngleses não o trouxerem o mais depressa possível, morreremos aqui todos de fome. Esperem
também pelos Ingleses e terão que comer.”
Vi Michele fazer um gesto de desaprovação, como se me chamasse estúpida, e compreendi que tinha dito o
que não devia. O alemão entretanto fixava-me, como se quisesse guardar a minha cara na memória. D isse
lentamente: “Um ótimo conselho: esperar pelos ingleses...” Ficou quieto ainda um instante e depois,
levantando a custo um braço, começou a procurar qualquer coisa no peito, debaixo da farda. Em seguida: “J á
disse que queremos comer...” A gora apertava na mão uma enorme pistola negra e apontava-a para nós, sem se
mexer, sem mudar de posição.
Fiquei com um medo terrível, talvez não tanto pela pistola como pelo olhar dele, que parecia mesmo o de
um animal selvagem preso numa armadilha e que, no entanto, continua a ameaçar e mostrar os dentes. Michele
não se perturbou e dirigiu-se com simplicidade a Rose a: “Vai, corre, vê se encontras o meu pai e dize-lhe que
te de um pão para um grupo de alemães que precisam.”
Pronunciou estas palavras de uma maneira especial, como a sugerir a Rose a que devia explicar que os
alemães pediam o pão de pistola em punho.
Rosetta correu imediatamente a casa de Filippo.
À espera do pão, ficamos todos ali parados, fazendo círculo em volta do palheiro. O albino, passado pouco
tempo, continuou: “Não precisamos só de pão... temos necessidade de alguém que venha conosco e nos indique
os atalhos para o Norte, para nos juntarmos ao nosso exército.”
Michele respondeu: “O atalho é aquele”, e indicava-lhe o carreiro escarpado da montanha.
O albino volveu: “Também o vejo. Mas não conhecemos estas montanhas. Temos necessidade de alguém.
Por exemplo, aquela rapariga.”
“Qual rapariga?”
“Aquela que foi buscar o pão.”
Gelou-me o sangue nas veias ao ouvir tais palavras: se levassem Rose a, em plena guerra, quem sabe o que
lhe sucederia, quem sabe se a tornaria a ver?
Mas Michele disse logo, sem perder a calma: “A quela rapariga não é destes sítios. Conhece ainda menos as
montanhas do que vocês.”
“Então”, disse o albino, “virá o senhor. O senhor é destes lados, não é?”
Eu queria gritar a Michele: “Diz-lhe que és forasteiro!”, mas não tive tempo.
D emasiado honesto para mentir, ele respondia: “S ou destes sítios, mas também não as conheço. Vivi
sempre na cidade.”
O albino quase riu ao ouvir estas palavras e volveu: “A acreditá-lo, ninguém aqui conhece as montanhas.
Pois virá o senhor. Verá como descobre de repente que as conhece bem.”
Michele não respondeu, limitou-se a franzir as sobrancelhas por cima dos óculos. Entretanto Rosetta voltara,
cansada, com dois pães pequenos, que pôs no chão, em cima da palha, estendendo uma mão à frente,
exatamente como se faz com os animais selvagens em quem não se confia. O alemão notou o gesto e disse com
uma nota de desespero na voz: “Dá-me o pão na mão. Não somos cães raivosos que mordam.”
Rose a pegou nos pães e entregou-lhes. O alemão guardou a pistola, pegou nos pães e sentou-se. O s outros
também se sentaram, e viu-se que não dormiam e tinham seguido toda a conversa, embora de olhos fechados.
O albino tirou do bolso uma faca, cortou os dois pães em cinco partes iguais e distribuiu-as pelos
companheiros. Comeram devagar e nós continuamos ali em volta sem pronunciar uma só palavra. Q uando
acabaram, e demorou algum tempo, pois comiam, por assim dizer, migalha a migalha, uma camponesa trouxe-
lhes, em silêncio, uma vasilha de cobre cheia de água e eles beberam, uns duas e outros até quatro tigelas
cheias: estavam mesmo mortos de fome e de sede. Depois o albino sacou de novo da pistola.
“Então”, disse, “temos de partir, senão faz-se tarde.” D irigiu estas palavras aos companheiros, que logo
começaram a pôr-se em pé, lentamente. Em seguida voltou-se para Michele: “E o senhor vem conosco, para nos
ensinar o caminho.”
Ficamos todos aterrados, pois julgávamos que o albino, há pouco, tivesse dito aquilo por dizer, mas agora,
ao contrário, via-se bem que o tinha dito a sério.
Também Filippo ali estava e assistira em silêncio à refeição dos alemães. Mas, quando viu o albino apontar a
pistola a Michele, deu um gemido e, com uma coragem que ninguém lhe conhecia, pôs-se entre a pistola e o
filho: “Este é meu filho entendem? E meu filho!”
O albino não disse nada. Fez porém com a pistola um gesto como para enxotar uma mosca; queria dizer que
Filippo se afastasse. Mas Filippo gritou: “O meu filho não conhece as montanhas, juro-o pelo Evangelho. Ele lê,
escreve, estuda, como podia conhecer as montanhas?”
O albino volveu: “Irá conosco e acabou-se.”
Pusera-se em pé e, sem baixar a pistola, apertava o cinto com a outra mão.
Filippo olhou-o como se não tivesse compreendido bem. Vi-o engolir em seco e passar a língua pelos lábios:
devia sentir-se sufocado; não sei porquê, lembrei-me naquele momento da frase que ele repetia com tanto
gosto: “Aqui ninguém é tolo.”
Pobrezinho, agora já não era tolo nem esperto, era um pai e mais nada. D epois de se quedar um momento,
como que fulminado, gritou de novo: “Levem-me a mim! Levem-me em lugar do meu filho... Eu conheço as
montanhas. A ntes de ser comerciante fui vendedor ambulante. A ndei por todos esses montes... Posso guiá-los,
acreditem!” E voltou-se para a mulher, dizendo: “Vou eu. N ão fiquem aflitos, volto amanhã, antes do
anoitecer.”
J untando a ação às palavras, apertou o cinto das calças e, compondo na cara um sorriso, que naquele
momento me pareceu mesmo dilacerante, aproximou-se do alemão, pôs-lhe a mão no ombro e disse com um
desembaraço forçado: “Bem, vamos, temos muito caminho para andar.”
Mas o alemão não entendia as coisas da mesma maneira. Respondeu calmamente: “Você é muito velho. I rá
o seu filho, é o seu dever.”
E, afastando-o com o cano da pistola, foi até junto de Michele e fez-lhe sinal, sempre de pistola apontada,
para seguir em frente: “Vamos!”
Um, não sei quem, gritou: “Michele, foge!”
Pois sabem o que fez o alemão? Embora exausto de forças, ei-lo que se volta, rápido como um raio, para
donde tinha partido o grito e dispara. Por sorte o tiro perdeu-se nas pedras do socalco; mas o alemão conseguiu
à mesma o objetivo em vista: intimidar os camponeses e os refugiados e impedi-los de fazerem fosse o que
fosse em defesa de Michele. D e fato todos fugiram, aterrados, tornando a formar círculo um pouco mais longe,
e depois olharam em silêncio para o alemão, que se afastava, levando na frente Michele, com o cano da pistola
apontado às suas costas.
Partiram e eu conservo ainda nos olhos, como se a tivesse presente, a cena dessa partida: o alemão de braço
dobrado a apontar a pistola e Michele a caminhar na sua frente; lembro-me que tinha uma perna das calças
mais comprida, chegando-lhe quase ao salto do sapato, e outra mais curta, deixando-lhe o tornozelo à mostra.
Michele caminhava devagar como se esperasse que nós nos revoltássemos e lhe déssemos ocasião de fugir; a
maneira como arrastava as pernas deu-me a ideia de que arrastava atrás dele uma pesada corrente. A procissão
dos quatro alemães, de Michele e do A lbino desfilou por baixo de nós, no carreiro que conduzia ao vale, e
depois desapareceu lentamente no mato.
Filippo, que, como os outros, fugira ao ouvir o tiro, só parando a alguma distância, quando viu desaparecer
Michele, deu de repente um rugido e ia lançar-se atrás deles. O s camponeses e os refugiados correram e
seguraram-no, e ele continuou a rugir e a repetir o nome do filho, enquanto grossas lágrimas lhe banhavam as
faces. Tinham acorrido também a mãe e a irmã, que, não sabendo o que se passava, pediam explicações a um e
a outro; mas, logo que compreenderam, puseram-se a chorar e a gritar o nome de Michele. A irmã soluçava e
repetia, entre soluços: “E agora, que iam acabar os nossos sofrimentos... agora, que iam acabar...”
N ós não sabíamos o que dizer, pois, quando há dor verdadeira, provocada por causas verdadeiras, as
palavras não a diminuem: seria necessário anular as causas, e isso estava fora do nosso alcance, Por fim Filippo
reanimou-se e disse à mulher, segurando-a pelos ombros e ajudando-a a andar: “Verás que volta... decerto... não
pode deixar de voltar... indica o caminho e volta.”
A filha, mesmo a chorar, dava razão ao pai: “Verás, mamãe, volta antes do anoitecer.”
Mas a mãe disse o que muitas vezes dizem as mães nestes casos, e acontece acertarem quase sempre, pois o
instinto das mães é mais forte do que qualquer raciocínio: “N ão, não, não volta, tenho o pressentimento de que
não o torno a ver...”
D evo confessar que, com toda aquela barafunda do canhoneiro, da derrota dos A lemães, do rompimento da
frente e do fim da nossa estada na montanha, o que aconteceu a Michele não nos causou a impressão que devia
causar-nos.
Também julgávamos, ou, melhor, procurávamos iludir-nos e acreditar que ele voltaria sem falta, e isto talvez
por sentirmos que, se não acreditássemos no seu regresso, seríamos incapazes de participar na dor dos Festas
como devíamos: o nosso pensamento, os nossos corações estavam já noutro sítio. Possuía-nos por completo
essa novidade tão desejada e tão esperada da libertação. N em nos apercebíamos de que o desaparecimento de
Michele, que tinha sido para nós um pai e um irmão, era mais importante até do que a libertação, ou pelo
menos devia tê-la tornado amarga e dolorosa. Mas é assim mesmo: o egoísmo, que se conservara mudo
enquanto o perigo existira, agora, que ele desaparecera, tornava a fazer-se ouvir. E eu própria, ao dirigir-me
para o casinhoto depois do desaparecimento de Michele, não pude deixar de pensar que fora uma grande sorte
os alemães terem-no levado em vez de Rose a. N o fim de contas, o seu desaparecimento dizia respeito
sobretudo à família, nós estávamos em vésperas de abalar, talvez para sempre, e nunca mais os veríamos,
voltaríamos para Roma e recomeçaríamos a nossa vida, e desse tempo passado na montanha só nos
lembraríamos de longe em longe, um pouco distraidamente, dizendo uma para a outra: “Lembras-te de
Michele?... E lembras-te de Filippo, da mulher e da filha?...
Que será feito deles?”
N aquela noite dormimos as duas abraçadas, apesar do calor, talvez porque o canhão continuava a disparar e
os tiros caiam ali perto de vez em quando; parecia-nos que, se fôssemos atingidas, ao menos assim
morreríamos juntas.
D ormimos é uma maneira de dizer, dormitávamos cinco ou dez minutos e logo um tiro mais forte nos fazia
saltar e sentar na cama; ou então acordávamos, sem motivo, agitadas e nervosas.
Rose a estava preocupada com Michele, e agora compreendo que ela, ao contrário de mim, sentia que o seu
desaparecimento era muito mais grave do que eu pretendia fazer-lhe acreditar. A ssim, de vez em quando,
ouvia-a perguntar-me no escuro: “mamãe, que farão eles a Michele?” O u então: “mamãe, acreditas, na verdade,
que Michele volta?” Ou ainda: “mamãe, o que será feito daquele pobre Michele?”
Eu, por um lado, sentia que ela, no fundo, tinha razão para se preocupar, mas, por outro, quase me zangava,
pois, como já disse, parecia-me que a nossa estada em S anta Eufêmia findara e não devíamos portanto pensar
senão em nós as duas. A ssim, respondia-lhe ora uma coisa, ora outra, procurando sempre sossegá-la, e por fim,
impaciente, disse-lhe: “A gora dorme, tanto mais que não podes fazer nada por ele, mesmo que não durmas. D e
resto, estou certa de que não lhe fazem nenhum mal. A esta hora Michele já vem a caminho para junto de nós.”
Rosetta pronunciou ainda, quase a dormir: “Pobre Michele!”
E foi tudo; depois destas palavras adormeceu.
Na manhã seguinte, quando acordei, vi que Rosetta não estava ao meu lado.
Corri para fora de casa: era já tarde, o sol ia alto e apercebi-me de que o canhoneiro cessara e em toda a
parte havia grande movimento. O s refugiados andavam de um lado para o outro, uns despedindo-se dos
camponeses, outros transportando coisas, alguns seguindo já em fila indiana pelo carreiro abaixo, em direção a
Fondi. S enti de súbito um medo terrível, pensei que Rose a, por qualquer motivo que eu não sabia, tivesse
desaparecido também, como Michele, e comecei a correr e a chamá-la.
N inguém queria saber de mim, não me davam atenção; então percebi que, tal como eu procedera com
Michele, procediam agora os outros comigo. Rose a não estava ali e todos cuidavam apenas de si próprios,
ninguém queria sequer parar para me ouvir o que tinha acontecido. Por sorte, a mulher de Paride chegou a
porta da cabana e gritou-me: “Mas que queres tu de Rosetta? Ela está aqui conosco, a comer a polenta.”
Respirei de alívio e, um pouco mortificada, entrei na cabana e sentei-me com os outros em volta da mesa
onde estava a terrina da polenta. Como de costume, ninguém falava, e eu também não falei; os camponeses
pareciam, como sempre, absorvidos de todo no ato de comer, mesmo naquele dia em que tinham acontecido e
estavam para acontecer tantas novidades. S ó Paride, exprimindo um pensamento comum, disse a certa altura,
sem tristeza, como se dissesse que o tempo estava bonito ou outra frase semelhante: “Com que então, lá voltam
para a cidade a fazer vida de senhoras... e nós ficamos neste penar...”
Limpou a boca, pegou num pícaro de água, bebeu-a e saiu, como fazia todos os dias, sem se despedir
sequer. Eu disse à família de Paride que íamos preparar as nossas coisas, mas voltaríamos para nos
despedirmos. E saí com Rosetta.
A gora só tinha um desejo, grande, impaciente e jubiloso: ir-me embora dali o mais depressa possível. N o
entanto disse, não sei porquê: “É preciso ir a casa dos Festas para saber o que aconteceu a Michele.”
D isse-o contrariada, pois podia dar-se o caso de Michele não ter voltado e receava que a dor dos Festas
viesse perturbar a minha alegria. Mas Rose a respondeu tranquilamente: “O s Festas já cá não estão. Foram-se
embora esta manhã, de madrugada. E Michelle não voltou. Esperam encontrá-lo na cidade.”
S enti um grande alivio ao ouvir estas palavras, não menos egoísta da que a minha contrariedade de pouco
antes, e disse: “Bem, só nos resta fazer as malas e abalarmos o mais depressa possível.”
Rose a então acrescentou: “Eu levantei-me de madrugada, tu ainda estavas a dormir, e fui dizer adeus aos
Festas. Coitados, estavam mesmo desesperados... Para eles, este dia tão lindo é bem triste, pois Michele não
voltou...”
Calei-me um momento, pois de repente senti vergonha de mim própria; Rose a era muito melhor do que
eu: levantara-se de propósito de madrugada e fora a casa dos Festas, não tendo tido medo que a dor deles
estragasse a sua alegria.
disse-lhe, então, abraçando-a: “Rica filha, és muito melhor do que eu e fizeste aquilo que eu não tive
coragem de fazer. S entia-me tão feliz por chegar ao fim deste tormento, que quase tinha medo de ir a casa dos
Festas...”
Ela respondeu: “O h! N ão me custou nada, fui lá porque gostava de Michele. Custava-me, sim, se não tivesse
ido... Toda a noite não preguei olho, não fiz outra coisa senão pensar naquele pobre rapaz... E a mãe dele tinha
razão: não voltou...”
A gora era preciso partir. Q uando chegamos ao nosso tugúrio, tiramos para fora as duas malas de fibra que
trouxéramos de Roma e metemos nelas os poucos farrapos que ainda possuíamos: umas saias, duas camisolas
de malha feitas lá em cima com agulhas e a lã grossa dos camponeses, algumas meias e lenços. Guardei
também o que nos restava de provisões, o queijo de ovelha comprado ao evangelista, um quilo ou pouco mais
de feijão-frade e um pequeno pão escuro, o último, feito de farelo e farinha de milho. Hesitei ainda se devia
levar os dois ou três pratos e copos que comprara aos camponeses, mas decidi deixá-los e pousei-os em boa
ordem em cima do peitoril da janela. E era tudo. Fechei as malas, sentei-me um momento na cama, ao lado de
Rose a, olhando em volta para o pequeno quartinho, que já tinha o aspecto triste e vazio das casas que vão ser
abandonadas para sempre. A gora não me sentia tão alegre e impaciente; experimentava, antes, uma sensação
de angústia. Pensava que àquelas paredes sujas, àquele chão lamacento, ficavam ligados os dias mais amargos e
terríveis da minha vida, e sofria ao deixá-los, embora o desejasse. O s nove meses que passara naquele
casinhoto, vivera-os dia a dia, hora a hora e minuto a minuto com a intensidade da esperança e do desespero,
do medo e da coragem, da vontade de viver e do desejo de morrer.
Sobretudo, esperava uma coisa, a libertação, anseio ao mesmo tempo belo e justo, que possuía, além disso, o
mérito de interessar aos outros tanto como a mim.
Compreendi então que quem vive à espera de uma coisa como esta vive com mais intensidade do que os que
não esperam nada. E, aprofundando o meu pensamento, pensei que o mesmo se podia dizer de todos os que
esperavam coisas ainda mais importantes, como a volta de J esus à Terra, ou o triunfo da justiça para os pobres.
E, digo a verdade, quando saí dali para me ir embora definitivamente, pareceu-me abandonar, não digo já uma
igreja, mas um lugar quase sagrado, porque lá dentro tinha sofrido muito e, como disse, tinha esperado e
desejado não só por mim, mas também pelos outros.
Pusemos as malas à cabeça e dirigíamo-nos à cabana dos camponeses, para lhes dizer adeus, quando entre a
gente que se encontrava no socalco houve de súbito uma debandada geral. D esta vez, porém, não era o canhão
que se ouvia ao longe, como o trovão de um temporal que se afasta, mas um tique-tique regular, preciso,
furioso, que se diria vir do mato, lá de cima, do cume da montanha. Um refugiado parou um momento para nos
gritar: “As metralhadoras! Os alemães disparam as metralhadoras sobre os americanos!”
E continuou a correr. A gora todos tinham fugido para se esconder nas grutas e nos buracos e nós as duas
estávamos sozinhas no meio do socalco e aquele tique-tique não parava, antes parecia tornar-se mais insistente.
D urante um momento também eu pensei em correr para qualquer abrigo; mas depois nasceu em mim uma
revolta enorme, não queria recomeçar, exatamente quando ia descer para Fondi, a vida de medo que fizera
durante esses nove meses, e disse, raivosa, a Rose a: “A s metralhadoras... sabes o que te digo? Q ue não me
interessam nada e vou para baixo na mesma.”
Rose a não respondeu; também ela, com o tédio e a fadiga, se tornara corajosa. Renunciamos, por isso, a ir
dizer adeus aos camponeses que nos tinham hospedado durante tanto tempo e agora estavam escondidos sabe
D eus onde. E, sem fazer caso das metralhadoras, tomamos pelo carreiro que descia para o vale, andando sem
pressas. Começamos a descer, um socalco a seguir a outro, e, à medida que descíamos, notávamos que afinal
fizéramos bem em não nos escondermos; agora o tique-tique já não se ouvia e tudo parecia normal: um lindo
dia de maio como os outros, com o sol a escaldar, as sebes a cheirar a rosas bravas e a pó e as abelhas a
zumbirem nas sebes, tudo como se não houvesse guerra.
Mas a guerra existia e bem depressa vimos os seus sinais. Primeiro encontramos dois soldados que julguei
serem americanos, mais por aquilo que nos disseram do que pelos uniformes, que eu não conhecia. Eram dois
jovens baixos e morenos e vieram quase de encontro a nós, saídos do meio do mato. Um disse: “Hello!”, ou
coisa parecida; o outro pronunciou umas palavras em inglês que não compreendi. Cruzaram-se conosco e
depois, abandonando o carreiro, começaram a trepar pelo mato, curvados, a espingarda na mão, os olhos
voltados para cima, sob a sombra do capacete, em direção ao cume, de onde vinha o tique-tique das
metralhadoras. Estes foram os primeiros americanos que vimos e foi por acaso; mas toda a guerra, agora que
penso nisso, é uma série de acasos; tudo acontece sem razão; se damos um passo para a esquerda, matam-nos;
se, ao contrário, o damos para a direita, estamos salvos. Disse a Rosetta: “Viste-os? Aqueles são americanos.”
E Rosetta: “Julgava-os altos e loiros, e afinal são morenos e baixos.”
N aquele instante não soube o que havia de responder, mas mais tarde vim a saber que no exército
americano há gente de todas as raças e de todas as cores: negros e brancos, loiros e morenos, altos e baixos.
A queles dois, disseram-me depois, eram ítalo-americanos, e havia muitos, pelo menos no corpo de exército em
operações naquela região.
Continuando a descer, encontramos um posto da Cruz Vermelha, à sombra duma alfarrobeira, fora do
carreiro: um leito, um armário com medicamentos e alguns soldados. Precisamente nesse momento, outros
dois soldados traziam ao posto um companheiro ferido, estendido de costas numa maca. Paramos a olhar esses
dois maqueiros, que subiam com dificuldade em direção ao posto. O ferido tinha os olhos fechados e parecia
morto. Mas não estava morto; os que o levavam falavam-lhe, como que a dizer-lhe que tivesse paciência, que
faltava pouco para chegarem, e ele fazia um ligeiro sinal com a cabeça, como que a responder que
compreendera e não se afligissem. Mas, ao ver esta cena, naquela encosta, com o sol, o mato florido que
escondia até a cintura os dois homens que carregavam a maca, quase se pensava que não só aquele ferido não
estava ferido, mas também aqueles soldados não eram soldados e o posto da Cruz Vermelha não era um posto
da Cruz Vermelha, em suma, que tudo aquilo não era verdadeiro, mas uma cena estranha e absurda que não se
podia explicar e não significava nada. D isse a Rose a: “A quele foi ferido pelas metralhadoras... podíamos ter
sido nós...”
Creio que o disse para me convencer que as metralhadoras existiam na verdade e o perigo era real e sério.
Mas não estava muito convencida disso.
A diante no socalco chegamos lá abaixo, à encruzilhada onde ficava a casita onde outrora morava o pobre
Tommasino. A última vez que víramos esse lugar estava deserto, como todos os lugares sob o domínio dos
A lemães, os quais conseguiram, não sei porquê, fazer o deserto em sua volta: para onde eles iam, toda a gente
se escondia e desaparecia. A gora, pelo contrário, via-o apinhado de gente, camponeses e refugiados, uns a pé,
outros em burros e mulas, todos carregados de coisas e descendo, como nós, da montanha para voltarem às
suas casas.
J untamo-nos a essa multidão. I am todos alegres e falavam uns com os outros como se se conhecessem há
muito tempo. D iziam: “A cabou a guerra... acabaram os tormentos... chegaram os I ngleses... chegou a
abundancia...” e outras frases semelhantes.
Enfim, dir-se-ia terem esquecido os anos de sofrimento. A ssim caminhando, chegamos a uma encruzilhada
onde a estrada principal cortava outra estrada que se dirigia para o monte e aqui encontramos a primeira
coluna de americanos.
Marchavam em fila indiana, e desta vez, sim, vi que eram na verdade americanos, isto é, diferentes tanto dos
A lemães como dos I talianos. Tinham uma maneira de andar arrastada, indolente, quase descontente; cada qual
levava o capacete de sua maneira: um inclinado para o lado, outro para os olhos, outro para a nuca; muitos iam
em mangas de camisa e todos mastigavam pastilhas elásticas. Parecia que faziam a guerra de má vontade, no
entanto sem medo, mesmo como gente que não nasceu para fazer guerra, ao contrário dos A lemães, por
exemplo, mas que a faz porque a isso é arrastada pelos cabelos. N ão olhavam para nós; via-se a uma légua de
distância que já não tinham conta as estradas de montanha por eles percorridas, apinhadas de gente carregada
de embrulhos, em lindas manhãs como aquela, desde que desembarcaram em I tália; estavam calejados, como
se costuma dizer.
D esfilaram durante não sei quanto tempo, em direção aos cumes, lentos, muito lentos, sempre no mesmo
passo igual. Por fim passaram os últimos três ou quatro, que pareciam ainda mais cansados e aborrecidos, e nós
retomamos a estrada principal. Esta estrada levava a Monte S an Biagio, uma terra encarrapitada nas alturas que
fecham ao norte o vale de Fondi; pouco mais adiante entroncava na estrada nacional, na Via Ápia, segundo
creio. Q uando chegamos à Via Ápia, então é que ficamos de boca aberta diante do espetáculo do exército
americano em movimento. D izer que a estrada estava à cunha seria dizer muito pouco, e até não seria exato
porque não era uma multidão o que enchia a estrada, eram carros de toda a espécie, pintados de verde, com a
estrela branca de cinco pontas, a estrela da A mérica, bastante diferente da grande estrela da I tália, que, dizem,
nos dá sorte, mas somente isso, ao passo que a estrela americana dá força e poder àqueles que a seguem. D isse
carros, e não automóveis. E de fato havia ali carros de todas as formas e feitios, tão juntos que quase nem se
mexiam. Pequenos automóveis de ferro, descobertos, apinhados de soldados com a espingarda entre as pernas;
carros de assalto gigantescos, couraçados e com canhões a tocarem nos ramos dos plátanos que sombreavam a
estrada: caminhões pequenos e grandes, fechados e abertos; carros de assalto menores, quase brinquedos, mas
também com um potente canhão apontado para o alto; até vagões inteiros, enormes, blindados, com cabinas
onde se entreviam quadros cheios de botões, alavancas e fios elétricos.
Garanto que quem não viu avançar numa estrada o exército americano não faz ideia do que seja um exército.
Esse rio de carros grandes e pequenos, todos com uma estrela branca, até parecia uma obsessão, avançava
lentamente, mais devagar que o passo de um homem, parando a cada instante e retomando depois a marcha,
como os carros no Corso, em Roma, à hora de maior movimento. E por toda a parte soldados amontoados, nos
carros de assalto, nos automóveis, nos caminhões, sentados e em pé, sempre com aquele ar paciente de
indiferença, quase de aborrecimento, e sempre a mastigarem pastilhas elásticas; alguns liam uns jornaizinhos
cheios de figuras. Entre um carro e outro metiam-se as motocicletas, com um ou dois motociclistas, todos
vestidos de couro, e estes eram os únicos que andavam depressa e podiam correr e pareciam cães de pastor que
se agitassem em volta de um enorme rebanho lento e preguiçoso. A o ver esta procissão de carros tão juntos
que, se atirasse uma moeda para o meio deles, não cairia no chão, admirei-me que os A lemães não
aproveitassem aquele momento para aparecerem com os seus aviões e fazerem um massacre. E isto
principalmente fez-me compreender que os A lemães tinham perdido na realidade a guerra; já não podiam
fazer mal, tinham-lhes cortado as unhas e os dentes, que num exército são os canhões e os anões.
E foi então que compreendi o que é a guerra moderna. N ão o corpo-a-corpo que tanto admirara nas
ilustrações da guerra de 1915, mas uma luta distante e indireta: primeiro os aviões e os canhões limpam o
terreno com bombas e projéteis; depois surge o grosso das tropas, que raramente estabelece contato com o
inimigo e se limita a avançar comodamente, os soldados sentados em automóveis e caminhões, a espingarda
entre as pernas, mastigando pastilhas elásticas e lendo jornais ilustrados. A lguém me disse mais tarde que em
certos sítios estas tropas tiveram grandes baixas. N unca em luta com outras tropas, mas sim castigados pelos
canhões que contra elas atiravam, procurando detê-las.
Atravessar ou seguir por esta estrada, nem pensar nisso: seria como atravessar um rio caudaloso no seu
ponto mais fundo. A ssim, voltamos para trás, como muitos outros, e, chegados a uma estrada secundária,
tomamos a direção da cidade. Chegamos lá em dez minutos, mas também aí não vimos possibilidades de parar.
Todas as casas estavam por terra, em grandes montões de ruínas; e onde não havia ruínas havia enormes
buracos cheios de água estagnada; no pouco terreno desimpedido pululavam e cirandavam soldados
americanos, refugiados e camponeses. Era como uma feira, somente não havia nada para vender nem para
comprar, a não ser a esperança em dias melhores, e aqueles que podiam vender essa esperança, ou seja, os
americanos, pareciam indiferentes e distantes e os que a queriam comprar, os camponeses e os refugiados, dir-
se-ia que não sabiam como fazer tal aquisição. A ndavam em volta dos americanos, interrogando-os em italiano,
e eles não compreendiam e respondiam em inglês; então os camponeses e os refugiados iam-se embora,
desiludidos, para daí a pouco recomeçarem, com igual resultado.
D iante de uma casa que ficara intacta, não se sabe como, vi grande balbúrdia e aproximei-me. A lguns
americanos estavam na varanda do segundo andar e deitavam à rua, para os refugiados e camponeses,
caramelos e cigarros, e eles apressavam-se a apanhá-los, brigando uns com os outros, rojando-se no pó... Era
mesmo uma indecência. Via-se bem que no fundo não se importavam muito com esses caramelos e cigarros e,
se bulhavam com tanta fúria, era por suporem que os americanos esperavam que se comportassem assim. Em
resumo, respirava-se já naquelas primeiras horas a atmosfera que mais tarde tive ocasião de observar em Roma,
durante todo o período da ocupação aliada: os I talianos mendigavam para agradar aos A mericanos e os
A mericanos davam para agradar aos I talianos, e nem uns nem outros compreendiam que não proporcionavam
assim nenhum prazer.
Penso que certas coisas ninguém as deseja e sucedem espontaneamente, como que por acordo tácito. O s
Americanos eram os vencedores e os Italianos os vencidos. Isso explica tudo.
A proximei-me de um carro militar parado no meio daquela multidão: estavam lá sentados dois soldados,
um de cabelos ruivos, com sardas e olhos azuis, e o outro moreno, de cara amarelada, nariz aguçado e lábios
delgados. Pedi-lhes: “Digam-me, como se vai para Roma?”
O ruivo nem sequer olhou para nós, mastigava a sua pastilha elástica e estava absorvido na leitura de um
jornalzinho: mas o moreno rebuscou nos bolsos e tirou um maço de cigarros. Eu gritei: “Q ual cigarros nem
meio cigarros! Nós não fumamos! Digam-nos só se há um meio de ir para Roma.”
“Roma?”, repetiu o moreno por fim. “Não Roma.”
“E porquê?”
“Alemão em Roma.”
Entretanto revistava os bolsos e desta vez tirou caramelos. Mas eu também lhos recusei, dizendo-lhe: “S e
queres dar-nos alguma coisa, dá-nos pão. Para que queremos nós caramelos? É para nos adoçarem a boca? N ão
o conseguirás, ficará amarga ainda durante muito tempo.”
Ele não compreendeu e tirou debaixo do banco uma máquina fotográfica e fez um gesto como quem diz que
queria tirar-nos uma fotografia. D esta vez perdi a paciência e gritei-lhe: “A h! Q ueres tirar-nos o retrato assim,
rotas e sujas, que até parecemos duas selvagens? Muito obrigada, guarda a tua máquina fotográfica.”
Como ele insistisse, tirei-lhe a máquina das mãos e a pus no banco, como que a dizer: “Deixa-te disso.”
D esta vez ele compreendeu e voltou-se para o companheiro, falou-lhe em inglês, e o outro respondeu de má
vontade, sem levantar os olhos do jornal. D epois o moreno voltou-se para nós e fez-nos sinal que subíssemos:
obedecemos e o ruivo, como quem desperta, pegou no volante e pôs o carro em movimento. O automóvel
partiu como um foguete por entre a multidão, que se afastava. Entrou na cidade, galgando montes de entulho,
atravessando poças de água: via-se que era um carro militar que podia andar por toda a parte. O moreno
entretanto observava os pés de Rose a, que trazia tamancos como eu. Por fim perguntou: “S apatos?” E
inclinou-se até tocar nos tamancos. Depois, com a mão, seguindo os atilhos, foi-lhe apalpando a perna.
Eu então dei-lhe uma palmada forte, dizendo: “Eh! A mão para baixo... S ão tamancos, sim, que têm de
especial?... Mas não deves aproveitar-te para apalpar as pernas à minha filha.”
Ele ainda desta vez fingiu não compreender e, indicando os tamancos de Rose a, pegou de novo na
máquina fotográfica e inquiriu: “Fotografia?”
Respondi-lhe: “Andamos de tamancos, mas não queremos que nos tires fotografias.
N aturalmente ias dizer depois lá para a tua terra que todos nós, I talianos, usamos tamancos e não
conhecemos sapatos... Vocês têm lá peles-vermelhas; o que diriam se nós os fotografássemos e disséssemos
depois que os A mericanos andam todos com penas na cabeça, como se fossem galináceos? S ou ciociara e
orgulho-me disso; mas para ti sou italiana, romana, ou o que quiseres, mas não estejas a maçar-me com as tuas
fotografias.”
Por fim ele compreendeu que não devia insistir e pousou a máquina.
Entretanto, aos saltos, passando por cima dos escombros ou transpondo lagos de água suja, o automóvel
atravessou a cidade e chegou à praça principal. A qui estava uma grande multidão, sempre a mesma balbúrdia
de feira, e sobretudo muita gente em volta de uma casa que devia ser a sede da comuna e que por milagre não
tinha ruído: apenas um ou outro buraco e algumas fendas na fachada. O ruivo, que até aí não dissera uma só
palavra e nem sequer olhara para nós, fez-nos então um sinal para descermos; obedecemos; o moreno desceu
também, disse-nos que esperássemos e desapareceu no meio da multidão. Voltou daí a pouco com outro
americano fardado, um rapaz que parecia mesmo italiano, moreno, de olhos brilhantes e dentes brancos e
certos, que me disse logo: “Eu sei falar italiano.”
E continuou a discorrer naquilo que julgava ser italiano e era, quando muito, um dialeto napolitano dos
mais vulgares, falado pelos carregadores no porto de N ápoles. Mas, como nos entendia e se fazia entender,
disse-lhe: “N ós as duas somos de Roma e queremos voltar para lá. Explica-nos pois o que temos de fazer para ir
para Roma.”
Ele pôs-se a rir, mostrando todos os dentes branquíssimos, e respondeu: “A única maneira é vestirem-se de
soldados, subirem para um carro de assalto e virem tomar parte na batalha que vai travar-se para a conquista de
Roma.”
Não fiquei lá muito satisfeita e perguntei: “Mas vocês não a ocuparam já?”
E ele: “N ão, estão lá ainda os A lemães. E, mesmo que a tivéssemos ocupado, não poderiam ir enquanto não
chegassem ordens a esse respeito. Sem ordens, ninguém pode ir para Roma.”
S enti o sangue ferver e gritei de novo: “É esta a vossa libertação? Morrer de fome e não ter casa, como antes
ou pior do que antes?”
Ele encolheu os ombros e disse que havia razões de força maior, era a guerra. Mas acrescentou que, quanto a
morrer de fome, estava tudo previsto para que nos territórios por eles ocupados ninguém morresse de fome: e,
como prova disso, ia-me dar qualquer coisa de comer. D e fato, sempre a sorrir com aqueles dentes brilhantes,
disse-nos que o seguíssemos; assim, entramos atrás dele na sede da comuna e encontramos lá o fim do mundo,
impossível de descrever, gente que se empurrava e gritava e protestava ao fundo de um grande salão branco
onde havia uma mesa muito comprida. Atrás da mesa estavam alguns habitantes de Fondi com braçadeiras
brancas e, em cima da mesa, montes e montes de caixas de conservas americanas.
O oficial ítalo-americano guiou-nos até lá e, graças à sua autoridade, conseguimos que nos entregassem
algumas daquelas caixas. Lembro-me que nos deram seis ou sete de carne com legumes, duas de peixe e uma
grande caixa redonda, com o peso pelo menos de um quilo, de compota de ameixas. Resumindo, metemos as
caixas dentro da mala e saímos para a rua aos empurrões e encontrões. O s dois soldados do automóvel já
tinham desaparecido. O oficial fez-nos uma amável saudação militar, com um sorriso, e também desandou.
Começamos a andar por entre a multidão, sem destino, como todos os outros.
A gora, com aquelas caixas na mala, sentia-me mais tranquila, porque ter comida é o principal; e diverti-me
então a olhar o espetáculo de Fondi libertada. Pude assim notar algumas coisas que me fizeram compreender
que a situação era muito diferente do que tínhamos imaginado lá em cima em S anta Eufêmia, quando
esperávamos a chegada dos A liados. N ão havia aquela famosa abundância de que todos falavam. O s
Americanos davam cigarros e caramelos, de que parecia terem na verdade grande reserva; mas, quanto ao resto,
via-se bem, mostravam-se muito mais parcimoniosos. A lém disso, a atitude destes americanos, confesso, não
me agradava. Eram amáveis, sim, e por isso preferia-os em qualquer caso aos A lemães, que de amáveis não
tinham nada; mas a sua amabilidade era indiferente e distante, tratavam-nos como crianças terríveis que
aborrecem as pessoas crescidas e por isso é necessário mantê-las sossegadas, precisamente com os caramelos.
Mas algumas vezes nem sequer eram amáveis. Para se fazer uma ideia vou contar um incidente a que assisti.
Q uem quisesse entrar na cidade precisava de um salvo-conduto ou, pelo menos, de estar ligado aos trabalhos
que I talianos e A mericanos tinham começado já para remediar os estragos causados pelos bombardeamentos.
Por acaso encontrávamo-nos, Rose a e eu, num lugar da estrada principal onde havia um posto de guarda, com
dois soldados e um sargento.
Vimos aproximarem-se dois italianos, dois senhores, via-se pelas suas maneiras, embora ambos estivessem
também mal vestidos. Um deles, um velho de cabelos brancos, disse ao sargento: “S omos engenheiros e o
comando aliado mandou-nos apresentar hoje para os trabalhos.”
O sargento, um tipo forte, com cara rapada e rude que parecia um punho fechado, perguntou: “O nde está o
salvo-conduto?”
O s dois olharam um para o outro; o velho respondeu: “N ão temos salvo-conduto... disseram-nos só que nos
apresentássemos...”
O sargento, então com maus modos, começou a gritar: “E apresentam-se a esta hora? D eviam apresentar-se
de manhã, às sete, como todos os outros operários.”
“S ó nos disseram há pouco”, declarou o mais novo, um homem duns quarenta anos, magro e distinto,
nervosíssimo, com um tique que lhe fazia inclinar um pouco a cabeça para o lado, como se tivesse torcicolo.
“Mentira, vocês são uns mentirosos!”
“Veja como fala” disse o mais novo, ressentido.
“Este senhor e eu somos engenheiros e...”
Ia continuar, mas o sargento interrompeu-o com estas bonitas palavras: “Cala a boca, trapalhão... senão dou-
te dois bofetões que te faço já fechar o bico...”
O engenheiro mais novo, como notei, devia ser bastante nervoso e tais propósitos produziram-lhe o mesmo
efeito que se tivesse recebido as duas bofetadas. Fez-se branco como um papel e por momentos pensei que ia
atirar-se ao sargento. Por fortuna, o velho interveio, conciliador, trocaram-se mais algumas palavras e lá
acabaram por passar.
I ncidentes semelhantes vi alguns nesse dia. E devo afirmar que eram sempre provocados pelos soldados
americanos ou, melhor, ítalo-americanos. O s verdadeiros anglo-americanos, quero dizer, os altos, loiros,
magros, comportavam-se de maneira diferente: distantes, sim, mas educados e respeitosos.
Mas estes ítalo-americanos eram uma desgraça, com eles nunca se sabia o que se havia de fazer. Talvez, por
se sentirem muito semelhantes aos I talianos, quisessem convencer-se de que eram diferentes e melhores e,
para se distinguirem, nos tratassem mal; ou por terem rancor à I tália, donde tinham ido para a A mérica, nus e
vagabundos: ou então, como na A mérica não eram muito considerados, talvez quisessem fazer-se valer ao
menos uma vez na vida: em suma, o caso é que eram os mais grosseiros ou, se se prefere, os menos amáveis.
Todas as vezes que tive de pedir alguma coisa aos A mericanos, roguei sempre a D eus que me aparecesse
qualquer um, nem que fosse um negro, mas não um ítalo-americano. A lém disso, gabavam-se de saber falar o
italiano e falavam todos uns dialetos da baixa I tália, como o calabrês, o siciliano, ou o napolitano, e custava a
compreendê-los.
Conhecendo-os melhor, descobria-se que eram, no fim das contas, boa gente. Mas o primeiro contato era
sempre desagradável.
Bem, mas adiante. A ndamos ainda algum tempo entre os escombros, no meio da multidão de italianos e de
soldados, e depois tomamos pela estrada principal, onde havia ainda algumas casas intactas, pois os
bombardeamentos tinham atingido principalmente a cidade. N o sítio onde a montanha lançava na planície
uma espécie de espigão e a estrada fazia uma curva em sua volta vimos uma casinha. A porta estava aberta e eu
disse a Rosetta: “Vamos ver se esta noite podemos ficar ali.”
S ubimos três degraus e encontramos uma única divisão completamente vazia. Talvez noutros tempos as
paredes tivessem sido brancas; mas agora estavam mais sujas do que as de um estábulo. Entre as manchas de
fuligem, as gretas e os buracos havia muitos desenhos feitos a carvão: mulheres nuas, caras de mulher e outras
coisas que não digo: as indecências que os soldados costumam desenhar nas paredes. A um canto, no chão, um
montão de cinzas e muitos tições apagados e negros indicavam que tinham acendido ali o lume. N as duas
janelas não havia vidros e só restava uma persiana; lembrei-me que aqueles tições talvez fossem os restos da
outra. Em resumo, disse a Rose a que, por duas ou três noites, nos convinha acomodar-nos ali; vira, da janela,
um palheiro, no terreno ao lado; iríamos lá buscar um bragado de palha e, bem ou mal, faríamos com ela uma
cama. Lençóis e cobertas não tínhamos, mas estava o tempo quente e podíamos dormir vestidas.
D ito e feito: fizemos como pudemos uma limpeza ao quarto, tirando a maior porcaria, e depois fomos ao
campo e trouxemos uma porção de palha, a suficiente para fazer uma cama. Disse a Rosetta.
“É estranho que ninguém tivesse pensado ainda em instalar-se aqui.”
A explicação do fato tivemos daí a pouco, quando saímos para a estrada que contornava a montanha. A
curta distância da casa havia uma espécie de largo e um grupo de árvores. Pois bem, descobrimos que os
Americanos tinham colocado aí três canhões tão grandes como durante toda a guerra nunca vi outros iguais.
Estavam apontados para o céu e tinham canos enormes, largos na base como grossos troncos de árvores,
adelgaçando cada vez mais para o cimo, pintados de verde-garrafa e tão compridos que desapareciam entre a
folhagem dos grandes plátanos, sob os quais se ocultavam.
Montados sobre rodas e lagartas, possuíam quadrantes cheios de rodelas, botões e alavancas, que faziam
pensar que devia ser complicadíssimo o seu manejo; à volta estavam não sei quantos caminhões e carros
blindados, nos quais, como nos disseram uns camponeses, que também estavam ali a ver, se guardavam os
projéteis, que, a avaliar pelos canos, deviam ser também enormes. D os soldados que guarneciam a bateria, uns
estavam deitados na erva, de barriga para o ar, outros empoleirados nos canhões, todos em mangas de camisa,
todos jovens e despreocupados, como se estivessem ali num piquenique, e não na guerra: uns fumavam, outros
mastigavam pastilhas elásticas, outros liam jornais. E um dos camponeses disse-nos que os soldados tinham
avisado todos os habitantes das proximidades que, se ficassem em suas casas, corriam sérios riscos, pois podia
dar-se o caso de os A lemães contra-atacarem com algum bombardeamento aéreo e, se atingissem os canhões,
todas aquelas munições podiam ir pelos ares, matando os que se encontrassem num raio de uma centena de
metros. Compreendi então porque é que aquela casota estava desabitada, apesar da falta de casas que havia em
Fondi, e disse: “Parece-me que saltamos da frigideira para cima das brasas, como se costuma dizer. Estamos
aqui em perigo de ir pelos ares juntamente com estes rapazes.”
Mas havia sol, aquela calma dos soldados em mangas de camisa, deitados na relva, havia todo aquele verde e
aquele ar ameno dum lindo dia e parecia mesmo impossível que se pudesse morrer, e então acrescentei: “Bem,
não importa... não morremos até agora, também não morreremos desta vez. Ficamos na casinha.”
Rose a fazia sempre o que eu queria e disse que por ela não se importava: N ossa S enhora tinha-nos
protegido até aí e havia de continuar a proteger-nos. E
assim prosseguimos tranquilamente o nosso passeio. Era como se fosse domingo e houvesse feira e todos
quisessem saborear em santa paz um lindo dia de festa. A estrada estava cheia de camponeses e soldados e
todos fumavam cigarros e comiam caramelos americanos e gozavam o sol e a liberdade como se as duas coisas
fossem uma só, e o sol sem liberdade não desse luz nem calor, e a liberdade não existisse enquanto durava o
inverno e o sol estava escondido pelas nuvens.
Tudo era natural, em resumo, como se o que acontecera antes tivesse sido contra a natureza e finalmente,
passado tanto tempo, a natureza recuperasse os seus direitos. Conversamos com muita gente e todos diziam
que os A mericanos tinham distribuído mantimentos e já falavam em reconstruir Fondi e fazer dela uma cidade
muito mais bonita do que era; agora todos os males tinham passado, não havia nada a temer...
Rose a atormentava-me para saber notícias de Michele, pois ficara-lhe esse espinho cravado no coração,
apesar de tantas alegrias. Perguntei por ele a várias pessoas, mas não consegui saber nada. A gora, que os
A lemães tinham partido, ninguém queria pensar em coisas tristes. Também eu, quando abandonei S anta
Eufêmia, tive medo de ir despedir-me de Filippo, que, de todos, era o único que não podia estar alegre. A s
pessoas diziam: “Filippo? D eve andar a organizar o mercado negro.” Mas do filho ninguém sabia, chamavam-
lhe “o estudante”, e compreendi que o consideravam um mandrião e um original.
N esse dia comemos o recheio de uma daquelas caixas de conservas com um bocado de pão que nos deu um
camponês, e depois, como apertava o calor, não tínhamos nada que fazer e estávamos cansadíssimas, fomos
para a casota, fechamos a porta e deitamo-nos na palha a dormir. A cordamos em sobressalto, a meio da tarde,
com uma explosão fortíssima: as paredes tremiam como se não fossem de tijolo, mas de papel. Fiquei primeiro
na dúvida sobre a origem da explosão, mas, passados uns cinco minutos, ouvi outra, não menos violenta, e
então compreendi: os canhões americanos, a cinquenta passos de nós, entravam em ação. S e bem que já
tivéssemos dormido algumas horas, estávamos ainda bastante cansadas e ali ficamos estendidas ao canto do
quarto, abraçadas em cima da palha, entontecidas, incapazes até de falar. O canhão continuou a disparar toda a
tarde.
D epois da primeira surpresa, comecei a dormitar e, não obstante a violência terrível das explosões, ouvia-as
muito longe, numa sonolência, e os tiros misturavam-se estranhamente às minhas reflexões, e estas, por assim
dizer, seguiam o ritmo dos tiros. O troar do canhão era regular e os meus pensamentos adaptaram-se depressa
a essa regularidade e o barulho não os perturbava. Primeiro uma explosão violentíssima, profunda, rouca e
dilacerante, como se a própria terra vomitasse o projétil; todas as paredes tremiam e caíam do teto, em cima de
nós, bocadinhos de caliça. D epois, tudo ficava em silêncio, mas por pouco tempo; de repente, outra explosão
fazia tremer de novo as paredes e cair a caliça do teto. Rose a não dizia nada, apertava-se contra mim, mas eu
pensava e não podia deixar de pensar, embora fossem pensamentos carregados de sono e estivesse de olhos
fechados.
Confesso, aquelas explosões enchiam-me de alegria e a minha alegria aumentava a cada explosão. Pensava
que aqueles canhões disparavam contra os A lemães e os fascistas e compreendi então pela primeira vez que
odiava os A lemães e os fascistas. A quelas explosões não me pareciam de canhões, mas sim de qualquer força
natural, como o trovão ou o alude. A queles tiros tão regulares, tão monótonos, tão obstinados, refletia, punham
em fuga o inverno e os sofrimentos e os perigos e a guerra e a carestia e a fome e todas as coisas más que os
A lemães e os fascistas tinham feito chover sobre as nossas cabeças durante anos e anos. Pensava: “Q ueridos
canhões... abençoados canhões... canhões de ouro”, e acolhia cada explosão com uma sensação de alegria que
me fazia estremecer o corpo todo; e notava cada silêncio quase com medo, receando que os canhões não
disparassem mais...
D e olhos fechados, parecia-me ver um salão enorme, o mesmo que vira muitas vezes reproduzido nos
jornais, um salão com muitas e belas colunas e numerosas pinturas, cheio de fascistas de camisa negra e de
nazis de camisa castanha, todos na posição de sentido, como diziam os J ornais. E atrás duma mesa enorme
estava Mussolini, com aquela carantonha larga, aqueles olhos grandes, aqueles lábios grossos, o peito coberto
de medalhas, um penacho branco na cabeça e ao lado dele esse outro alma do D iabo, o seu amigo Hitler, com a
sua cara de feiticeiro, bigodinho negro, que parecia mesmo uma escova de dentes, olhos de peixe podre e nariz
aguçado e aquela madeixa de valentão das dúzias caída para a testa. Via esse salão como o vi sempre nas
fotografias, e podia distinguir todos os pormenores como se lá estivesse: os dois atrás da mesa, muito direitos,
em pé, e, de um lado e outro, fascistas e nazis, à direita os fascistas, todos de negro, os desgraçados, sempre de
negro, com uma caveira branca nos barretes pretos; à esquerda os nazis, como os vi em Roma, de camisas
castanhas, a braçadeira vermelha com aquela cruz negra que parecia um bicharoco a correr com as quatro patas,
as caras gordas sombreadas pela pala do boné, as barrigas ensacadas dentro das calças de montar. Eu olhava,
olhava e divertiam-me aquelas caras de safados impunes, de almas do D iabo, e depois, de súbito, voltava em
pensamento para junto dos canhões que estavam ao lado da casinha, ocultos nos plátanos, e via então um
soldado americano, não em posição de sentido, sem cruzes penduradas, sem camisa preta ou castanha, nem
caveira no boné, nem punhal enfiado no cinto, nem polainas brilhantes, nem sodas as outras coisas com que se
ornamentavam os A lemães e os fascistas, mas simplesmente vestido e, como fazia calor, com as mangas da
camisa arregaçadas. E esse rapaz americano, calmamente, a mastigar uma pastilha elástica, pegava sem pressa
num projétil enorme, enfiava-o na culatra do canhão, manobrava as alavancas dos comandos e o canhão
disparava, rugindo e dando um salto para trás, e então no sonho entrava o ruído do canhão verdadeiro, que
disparava realmente, e o sonho não era sonho, mas realidade. E eu seguia em pensamento aquele projétil que,
assobiando e miando, fendia o ar e depois via-o cair de repente no salão, fazendo ir pelos ares fascistas e nazis,
Hitler e Mussolini, com sodas as suas caveiras e penachos, as suas cruzes, os seus punhais e as suas polainas. E
esta explosão dava-me uma alegria profunda e eu compreendia que uma tal alegria não era boa porque era a
alegria do ódio, mas não podia deixar de a sentir, via-se bem que eu odiara sempre os fascistas e os nazis sem o
saber, e agora, que o canhão disparava contra eles, estava contente. A ssim, de uma explosão pare outra, ia e
vinha, em pensamento, do salão ao canhão e deste ao salão novamente, e todas as vezes voltava a ver as caras
de Mussolini e de Hitler e dos fascistas e dos nazis e depois a do artilheiro americano, e todas as vezes também
experimentava a mesma alegria, mas nunca ficava saciada. Mais tarde ouvi falar muito de libertação e
compreendi o sentido dessa palavra porque nesse dia a senti no próprio sangue, uma sensação física de bem-
estar semelhante à que alguém sente ao ser desamarrado, depois de estar amarrado muito tempo; ou a
sensação de se ver livre quando se esteve fechado à chave num quarto e de repente se abrem as portas. E aquele
canhão que disparava contra os nazis, embora fosse em tudo semelhante aos canhões que os nazis usavam para
disparar contra os A mericanos, representava para mim a libertação: qualquer coisa que tinha uma força bendita
mais forte de que a força maldita dos outros, qualquer coisa que lhes fazia medo depois de eles terem causado
tanto medo a todos, qualquer coisa que os destruía depois de eles terem destruído tanta gente e tantas cidades.
A quele canhão disparava contra os nazis e os fascistas e cada tiro seu atingia essa prisão de mentiras e de medo
que eles tinham construído durante anos e anos e era grande como o céu e agora desabava de todos os lados
com os tiros daquele canhão, e todos podiam já respirar, até os fascistas e nazis, que em breve não seriam
obrigados a ser fascistas e nazis e voltariam a ser homens como os demais.
S im, naquela tarde senti deste modo a libertação e, embora depois essa libertação tenha significado muitas
outras coisas menos belas, até por vezes bastante feias, lembrar-me-ei sempre, enquanto viver, daquela tarde e
daquele canhão e de como me senti deveras livre e senti a libertação como uma felicidade que até me fez
regozijar com a morte que o canhão espalhava e odiar pela primeira e única vez na vida. Mau grado meu,
alegrava-me a destruição dos outros com o mesmo sentimento de júbilo com que se acolhe a chegada da
primavera e das flores e do bom tempo.
A ssim passei essa tarde dormindo, ou, melhor, dormitando, embalada pela tremenda cantilena do canhão,
tão doce aos meus ouvidos como a que me cantava minha mãe para me adormecer quando era criança. A casa
tremia a cada explosão, a caliça caía aos bocados em cima da minha cabeça e do meu corpo, a palha picava e o
chão por baixo da palha era duro; mas, apesar de tudo, essas foram as mais belas horas da minha vida, posso
dizê-lo hoje com plena consciência. D e vez em quando, se abria os olhos e olhava para a janela sem vidros, via a
folhagem verde de um plátano iluminada pela bela luz de maio; depois essa luz esmoreceu, a folhagem tornou-
se mais escura e menos luminosa, mas o canhão continuou a disparar e eu abraçava-me a Rose a e sentia-me
feliz... Era tal o cansaço e o entontecimento que, apesar do canhoneiro, dormi pelo menos uma hora, num sono
pesado e profundo; depois acordei e de novo ouvi o canhão ribombar lá fora e compreendi que durante aquela
hora o canhão não deixara de disparar. Por fim, ao entardecer, quando o quarto estava quase mergulhado no
escuro, o canhão calou-se repentinamente.
S ucedeu-lhe um silêncio que parecia entorpecido por todos os tiros disparados, um silêncio feito, dos
rumores normais da vida: um sino de igreja que tocava algures, vozes, gente que passava na estrada, um cão a
ladrar, um boi a, mugir. Ficamos ainda uma meia hora abraçadas, meio adormecidas, e depois levantamo-nos e
saímos.
Era já noite, o céu estava constelado de estrelas e no ar calmo e sem vento havia um cheiro forte a erva
cortada. Mas da Via Ápia, pouco distante, continuava a chegar um fragor de ferros e motores: a ofensiva
prosseguia. Comemos mais uma caixinha de conserva e um bocado de pão e depois estendemo-nos novamente
na palha e recomeçamos logo a dormir, estreitamente abraçadas, desta vez sem o barulho do canhão. N ão sei
quanto tempo dormimos, talvez umas quatro ou cinco horas, talvez mais. S ó sei que de repente dei um salto e
me sentei, aterrada: o quarto estava todo iluminado por uma luz verde, intensíssima, vibrante: tudo era verde,
as paredes, o teto, a palha, a cara de Rose a, a porta, o pavimento. Esta luz parecia tornar-se cada vez mais
intensa, como certas dores físicas que se tornam cada vez mais agudas, embora se julgue impossível que
possam aumentar, tão fortes e intoleráveis são. D epois, subitamente, a luz apagou-se e, no escuro, ouvi aquele
maldito uivo da sereia de alarme que não ouvia desde os tempos de Roma e compreendi que era um
bombardeamento aéreo. Foi um segundo, gritei a Rosetta: “Depressa, fujamos daqui!”
E ao mesmo tempo ouvi as explosões das bombas, violentíssimas, que caíam perto, e, por entre as explosões,
o fragor enfurecido dos aviões e os disparos secos da artilharia anti aérea.
Peguei na mão de Rose a e precipitei-me para fora de casa. Era noite, mas parecia dia por causa de uma luz
vermelha que iluminava a casa, as árvores e o céu. D epois houve um estrondo espantoso: caíra uma bomba
atrás da casa e a deslocação do ar que senti na saia, como se uma boca enorme a tivesse soprado, colando-a às
minhas pernas, fez-me pensar que estava ferida ou talvez já morta, Mas corria, arrastando Rose a pela mão,
através dum campo de trigo; a seguir tropecei e senti que andava com água até o joelho. Era uma poça, cheia até
cima, e o frio da água acalmou-me um pouco; fiquei ali parada, a água chegava-me agora à barriga, apertando
Rose a contra o peito, enquanto em redor de nós dançava aquela luz vermelha, que nos permitia ver as casas
de Fondi em ruínas, com todas as suas cores e contornos, como se fosse dia, e no campo em volta continuavam
os disparos próximos e distantes. O céu, por cima de nós, era todo ele uma floração de flocos brancos: os tiros
da antiaérea; e, no meio desse terror de fim do mundo, continuava a barulheira furiosa dos aviões voando baixo
e lançando bombas. Por fim houve uma última explosão, mais forte do que todas, como se alguém batesse à
porta do céu com mais força antes de se ir embora; logo o clarão vermelho se extinguiu quase por completo,
menos num canto do horizonte, onde naturalmente havia um incêndio; a barulheira dos aviões também se foi
distanciando até se perder ao longe e a antiaérea deu ainda alguns tiros e depois mais nada...

Eu disse a Rosetta, mal a noite se tornou negra e silenciosa e as estrelas apareceram de novo no céu por cima
das nossas cabeças: “N ão nos convém voltar para a casita... pode dar-se o caso de esses filhos da mãe
recomeçarem a lançar bombas, e desta vez não escapamos...”
A ssim, saímos da água e deitamo-nos no meio do trigo, ao lado da poça. N ão dormimos, dormitamos
apenas, mas já não tão felizes como dentro de casa enquanto o canhão troava. A noite estava cheia de rumores,
ouviam-se gritos distantes, berros, o ronronar dos motores, o tropear dos pés e não sei quantos outros sons
estranhos. A noite estava inquieta e pensei que cheia de mortos e feridos por causa das bombas lançadas pelos
A lemães; agora os A mericanos corriam de um lado para outro a recolher esses mortos e feridos. Finalmente,
adormecemos; acordamos com a luz cinzenta da madrugada e vimo-nos deitadas no meio de uma seara de
trigo; em nossa volta, espigas atas e amarelas e por entre as espigas, algumas papoulas dum vermelho muito
bonito, e o céu, lá em cima, branco e frio, com algumas estrelas de ouro brilhando ainda. O lhei para Rose a,
estendida ao meu lado: dormia, tinha a cara toda manchada de lama negra e seca e as pernas e a saia pretas até
muito acima; as minhas pernas e a minha saia estavam na mesma.
S entia-me porém repousada, pois não tinha feito senão dormir, desde as primeiras horas da tarde do dia
anterior até aquele instante. Disse a Rosetta: “Vamos embora?”
Mas ela murmurou qualquer coisa que não compreendi, voltou-se e pôs a cabeça no meu regaço, enlaçando-
me com os dois braços. Então estendi-me de novo, embora já não tivesse sono, e fiquei ali, com o trigo alto em
volta de nós, de olhos fechados, esperando que ela deixasse de dormir.
A cordou finalmente, já dia alto. Levantamo-nos a custo da nossa cama de trigo e, quando chegamos à beira
do campo, olhamos na direção da casita onde nos abrigáramos; mas, por mais que olhássemos, não houve
maneira de a descobrirmos. Por fim, à força de olhar, vi um montículo de escombros no sítio onde me lembrava
muito bem que estava a casa. Disse a Rosetta: “Vês, se tivéssemos lá ficado tínhamos morrido.”
Ela respondeu com uma voz calma, sem se mover: “Talvez fosse melhor, mamãe...”
O lhei para ela, vi que tinha uma expressão desesperada e disse-lhe, com súbita decisão: “Hoje mesmo
abalamos daqui, de qualquer maneira.”
Ela perguntou: “E como?”
E eu: “Temos de ir e iremos.”
Entretanto fomos ver a casita e notamos que a bomba rebentara mesmo ao lado, empurrando-a para a
estrada, que, de fato, estava entulhada de escombros em quase toda a largura. A bomba abrira um grande
buraco superficial e esbeiçado, em volta do qual a terra escura e fresca se misturava com ervas arrancadas; no
fundo havia já uma poça de água amarelada. A ssim, estávamos agora sem casa e, o que era pior, também as
nossas malas, com o pouco que possuíamos, tinham ficado debaixo dos escombros, senti-me de repente
desesperada e, não sabendo o que fazer, sentei-me no meio das ruínas, a olhar em frente. A estrada, como no
dia anterior, fervilhava de soldados e refugiados, mas todos seguiam a direito, sem olhar para nós nem para as
ruínas: coisa tão normal que nem já se fazia caso. D epois um camponês parou e saudou-nos: era de Fondi e eu
conhecera-o quando descia de S anta Eufêmia à procura de mantimentos. D isse-nos que aquele
bombardeamento, durante a noite, obra dos A lemães, provocara uns cinquenta mortos, trinta soldados e uns
vinte italianos. Contou-nos que uma família de refugiados que passara quase um ano na montanha, como nós, e
de lá descera também quando os A liados chegaram, estava numa casita à beira da estrada a pouca distância da
nossa: uma bomba atingiu-a em cheio e matou todos, mulher, marido e quatro filhos, O uvi isto sem dizer nada.
Rose a também não abriu a boca. N outros tempos teria exclamado: “Mas como? Porquê? Coitadinhos! Vejam
lá que desgraça!”, mas agora não tinha vontade de dizer nada. N a realidade, as nossas desgraças tornam-nos
indiferentes às desgraças alheias. Em seguida pensei que isto é certamente um dos piores efeitos da guerra:
torna-nos insensíveis, endurece o coração, mata a piedade.
Passamos a manhã sentadas nos escombros da casa, apatetadas, incapazes de pensar fosse o que fosse.
Estávamos tão tontas e de uma maneira tão estupefata e dolorosa que nem sequer tínhamos forças para
responder aos numerosos soldados e camponeses que se nos dirigiam quando passavam diante de nós.
Lembro-me que um soldado americano, ao ver Rose a sentada nas pedras, imóvel e atônita, parou a falar-
lhe. Ela não respondia e olhava-o; o soldado falou-lhe primeiro em inglês, depois em italiano; por fim tirou do
bolso um cigarro, meteu-lhe na boca e foi-se. E Rose a ficou como estava, a cara manchada de lama negra e
seca e aquele cigarro na boca, pendente dos lábios: seria uma imagem cômica se não fosse imensamente triste.
D epois chegou o meio-dia, e então, num esforço supremo, decidi que tínhamos de fazer qualquer coisa, quando
mais não fosse, arranjar comida, pois precisávamos de comer. D isse a Rose a que íamos voltar a Fondi e
procurar aquele oficial americano que falava napolitano e parecia ter simpatizado conosco, D evagar,
caminhando sem vontade, voltamos à cidade. Lá encontramos a mesma feira, entre montes de caliça, poças de
água, caminhões e carros blindados; os polícias americanos, nos cruzamentos, esbracejavam para dar uma
direção a toda aquela gente ociosa e desordenada. Chegamos à praça e dirigi-me à sede da comuna, onde como
no dia anterior, havia a mesma multidão em tumulto e a mesma distribuição de mantimentos. D esta vez notei
um pouco de ordem: os policiais tinham alinhado todo aquele povo em três filas, e em frente de cada uma via-
se um americano muito direito, atrás da mesa onde estavam amontoadas as caixas; ao lado de cada americano,
um italiano com braçadeira branca, funcionários da comuna encarregados de ajudar à distribuição. Vi, por
entre os outros, atrás da mesa, o oficial americano que procurava e disse a Rose a que nos puséssemos naquela
fila, pois assim conseguiríamos falar-lhe. Esperamos um grande bocado e finalmente chegou a nossa vez. O
oficial reconheceu-nos e sorriu com aqueles seus dentes muito brilhantes: “Como está, não foi ainda para
Roma?”
disse-lhe, indicando o meu vestido e o de Rosetta: “Olha o estado em que estamos...”
Ele olhou-nos e compreendeu logo: “O bombardeamento desta noite?”
“S im, e agora não temos nada. A s bombas destruíram a casa para onde fomos e as nossas malas ficaram
debaixo dos escombros, juntamente com as caixas que nos deste”.
Ele deixou de sorrir. Sobretudo Rosetta, com o seu lindo rosto sujo de lama, tirava a vontade de sorrir.
“Posso dar-lhes mantimentos, como ontem”, disse, “e até algumas roupas.
Mas não posso fazer mais nada.”
“Ajuda-nos a voltar para Roma”, supliquei-lhe, “temos lá casa, roupas, tudo...”
Mas ele respondeu, como no dia anterior: “Ainda não chegamos a Roma, como podes ir tu para lá?”
D esta vez calei-me, não tinha mais nada a dizer. Ele tirou do monte algumas caixas, deu-me e depois
mandou um daqueles italianos de braçadeira branca acompanhar-nos a outro sítio onde distribuíam roupa. D e
repente, quando o ia deixar para seguir o italiano, disse-lhe, nem sei porquê: “Tenho os meus pais numa aldeia
perto de Vallecorsa... ou, melhor, tinha, pois agora não sei onde param. Lá conheço toda a gente e, mesmo que
não encontre os meus pais, sempre arranjarei forma de ir vivendo.”
Ele olhou-me e respondeu, amável, mas firme: “N ão posso mandá-las nos transportes do exército. É
proibido. Só os italianos que trabalham para o exército americano se servem dos nossos meios de transporte em
serviço. Tenho muita pena, mas não posso fazer nada por vocês.”
D ito isto, voltou-se para as outras duas mulheres que se seguiam e compreendi que não tinha mais nada a
acrescentar; segui o italiano da braçadeira.
Q uando chegamos à rua, o italiano, que ouvira a nossa conversa, disse: “A inda ontem levaram dois
refugiados, mulher e marido, à aldeia deles, num automóvel do exército. Mas esses puderam demonstrar que
tinham dado hospitalidade durante o inverno a um prisioneiro inglês. Para os recompensar, abriram uma
exceção à regra e lá os levaram. S e vocês tivessem feito alguma coisa parecida, talvez não fosse muito difícil
irem para Vallecorsa.”
Rose a, que até aí não dissera nada, exclamou de súbito: “mamãe, lembras-te dos dois ingleses? Podemos
dizer que os hospedamos.”
O ra, por acaso, aqueles ingleses, antes de nos deixarem, tinham-me dado um bilhetinho escrito na sua
língua e assinado por ambos, que eu pusera no saco onde guardava o dinheiro. A gora dinheiro já havia pouco,
mas o bilhete devia lá estar.
Tinha-o esquecido, mas, àquelas palavras de Rose a, apressei-me a procurá-lo e de fato encontrei-o. O s dois
ingleses tinham-me pedido que, mal chegassem as tropas aliadas, entregasse o bilhete a um oficial. Exclamei
com alegria: “Então estamos salvas!”
E contei ao italiano a história dos dois ingleses e que nós as duas fomos as únicas a dar-lhes hospitalidade
no dia de N atal, pois todos os refugiados tiveram medo de os ajudar, e que no dia seguinte tinham partido e
nessa mesma manhã apareceram lá em cima os alemães a procurá-los. O italiano disse: “Venham agora comigo
buscar as roupas. Depois vamos ao comando e verás que consegues tudo quanto desejas.”
Resumindo, fomos a outra casa, onde faziam a distribuição das roupas, e ali deram-nos um par de sapatos
de homem, com solas de borracha, meias verdes pelo meio da perna, uma saia e uma blusa da mesma cor para
cada uma. Era o que vestiam as mulheres do exército americano e ficamos muito contentes por poder vestir
aquilo, pois os nossos vestidos já estavam reduzidos mesmo a farrapos e todos sujos de lama. Recebemos
também um bocado de sabão e aproveitamos a ocasião para lavar a cara e as mãos; eu penteei-me e Rose a
penteou-se também; ficamos assim quase apresentáveis e o italiano então disse-nos: “Bom, agora já parecem
duas pessoas civilizadas... há bocado pareciam mesmo duas selvagens... Venham daí comigo ao comando.”
O comando era noutra casa. S ubimos uma escada, e por toda a parte havia polícias do exército, que
perguntavam onde íamos e se informavam de tudo. Um lanço a seguir a outro, por entre o vaivém de soldados e
italianos, chegamos ao último andar. A qui, o italiano foi falar com um soldado que estava de guarda diante de
uma porta e depois veio ter conosco e disse: “N ão só se interessam pelo caso, mas recebem-nas imediatamente,
Sentem-se neste banco e esperem.”
Esperamos pouco. Passados cinco minutos, o soldado que fora lá dentro veio chamar-nos e introduziu-nos
numa sala. Esta sala estava completamente vazia, apenas tinha uma escrivaninha, atrás da qual se sentava um
homem loiro, de meia idade, com bigode ruço à laia de escova, olhos azuis e cara sardenta, corpulento e jovial.
Vestia uniforme com divisas, mas eu não conhecia os postos deles; soube depois que era major. Havia duas
cadeiras em frente da escrivaninha; quando entramos, ele levantou-se delicadamente; convidou-nos a sentar e
sentou-se depois.
“Fuma?”, perguntou em bom italiano, oferecendo-nos o maço dos cigarros.
Recusei e começou logo: “Disseram-me que têm um bilhete para mim.”
Respondi: “Está aqui...” E entreguei-lhe. Ele pegou no bilhete, leu-o duas ou três vezes com atenção e em
seguida, de cara muito séria, olhando-me fixamente, pronunciou: “Este bilhete é muito importante e vocês
deram-me informações preciosas.
Estávamos sem notícias destes dois militares há algum tempo e ficamos muito gratos pelo que fizeram por
eles. Digam-me agora como eram?”
D escrevi-lhes o melhor que pude: “Um loiro, baixo, com a barba em ponta. O outro era alto e magro,
moreno, de olhos azuis.”
“Que traziam vestido?”
“Casacos largos, parece-me que de oleado preto, e calças compridas.”
“Tinham boné?”
“Sim, uma espécie de boné militar.”
“Estavam armados?”
“Tinham pistolas. Mostraram-me.”
“E que tencionavam fazer quando as deixaram?”
“Q ueriam ir, pelas montanhas, até à frente de batalha, atravessá-la e alcançar N ápoles. Estiveram todo o
inverno escondidos em casa de um camponês, no Monte das Fadas, e esperavam poder atravessar as linhas da
frente. Mas parece-me que não o conseguiram, toda a gente dizia que era impossível por causa das patrulhas
alemãs e do fogo das metralhadoras e canhões.”
“D e fato”, concordou o oficial, “não passaram, pois nunca chegaram a N ápoles... Em que data estiveram
convosco?”
disse-lhe a data e ele prosseguiu, passado um momento: “E quanto tempo os hospedaram?”
“S ó um dia e uma noite, pois iam com pressa e tinham medo de serem apanhados. D e fato, logo que se
foram embora, apareceram os A lemães. Mas passaram conosco o dia de N atal, comemos juntos uma galinha e
bebemos algum vinho.”
O oficial sorriu e comentou: “Esse vinho e essa galinha que dividiram com eles representam apenas uma
pequena parte da dívida que temos para convosco. Agora digam-me o que podemos fazer por vocês.”
Então disse-lhe tudo: não tínhamos que comer; em Fondi não nos agradava ficar; não tínhamos casa, o
bombardeamento destruíra-a nessa noite; queríamos ir para a minha aldeia, perto de Vallecorsa, onde viviam
os meus pais e onde, quanto mais não fosse, tinha a minha casa. Ele ouviu-me, muito sério, e depois afirmou:
“O que me pedem é proibido. Mas sob o domínio dos A lemães também era proibido dar hospitalidade aos
fugitivos ingleses, não é assim?”
S orriu e eu sorri também. Ele continuou: “Faremos assim: direi que vão de automóvel, com um oficial nosso,
colher informações nas montanhas sobre esses dois oficiais perdidos. D e resto, em qualquer dos casos, temos
de fazer um inquérito, embora não seja muito provável que eles passassem pela vossa aldeia. Q uer dizer, o
oficial acompanha-as primeiro a Vallecorsa e depois irá fazer a sua investigação.”
Eu agradeci-lhe muito e ele respondeu: “S omos nós que agradecemos. Entretanto, deem-me os vossos
nomes.”
disse-lhe como nos chamávamos, ele escreveu tudo com cuidado e depois levantou-se, cumprimentou-nos e
levou a sua amabilidade ao ponto de nos acompanhar até a porta para nos confiar ao soldado da guarda, ao
qual disse qualquer coisa em inglês. O soldado tornou-se imediatamente também muito amável e convidou-nos
a segui-lo.
Fomos com o soldado até o fundo de um corredor branco e nu e ele introduziu-nos numa sala vazia, mas
limpa, onde havia duas camas de campanha; disse-nos que nessa noite dormiríamos ali e no dia seguinte,
conforme as ordens do major, iríamos para outro lado.
D eixou-nos, fechando a porta, e nós sentamo-nos nas camas, com um suspiro de satisfação. A gora sentíamo-
nos muito melhor do que nos sentíramos até então. Possuíamos roupas limpas, estávamos lavadas e tínhamos
conservas para comer, duas camas de campanha para dormir, um teto para nos proteger e, mais do que tudo
isso, a esperança em melhores dias. Em suma, tudo mudara e essa mudança devíamos ao major e às suas boas
palavras. Eu pensava muitas vezes que um homem deve ser tratado como um homem, e não como animal, e
tratar assim um homem quer dizer dar-lhe os meios de estar limpo, numa casa asseada, mostrar por ele
simpatia e consideração e, sobretudo, dar-lhe esperanças no futuro.
S e tal não sucede, o homem, que é capaz de tudo, não tardará a tornar-se um animal selvagem e a
comportar-se como tal, e é inútil pedir-lhe que se conduza como homem, uma vez que foi tratado como animal.
Bem, adiante. A braçamo-nos e eu beijei Rose a e disse-lhe: “Verás que tudo se compõe, desta vez a sério.
Vamos passar alguns dias na aldeia, lá comemos bem, descansamos e depois regressamos a Roma e tudo
voltará a ser como antes.”
A pobre Rosetta respondeu-me: “Sim, mamãe...”
A ssim mesmo, como um cordeirinho que é conduzido ao matadouro sem saber e lambe a mão que o arrasta
para o cutelo. E, ainda por cima, essa mão era a minha e eu não sabia que, por minha iniciativa, a levava para o
açougue, como se verá a seguir.
N aquele dia, depois de termos comido conservas, ficamos toda a tarde estendidas nas camas, a dormitar.
Não nos agradava andar nas ruas de Fondi, era muito triste ver toda aquela multidão de farroupilhas e soldados
e todos aqueles escombros que a cada passo nos lembravam a guerra. Por outro lado, estávamos ainda bastante
cansadas: tínhamos passado uma noite inteira ao ar livre e, depois de tantos sustos e emoções, sentíamos os
ossos partidos. A ssim, dormimos; de vez em quando acordávamos e depois tornávamos a adormecer. A minha
cama ficava em frente da janela, uma janela sem persiana, através da qual se via o céu azul. D e cada vez que
acordava, notava que a luz diminuía de intensidade à medida que o sol se movia no horizonte, do nascente para
o poente. Também naquele dia me senti feliz como no dia anterior ao ouvir o canhão, mas desta vez sentia-me
feliz por ver Rose a a dormir na cama ao lado, sã e salva depois de tantas peripécias e de tantos perigos
passados. Pensava que, no fim de tudo, tivera sorte e conseguira atravessar a tempestade da guerra e pôr-me a
salvo, tanto eu como a minha filha.
Rose a estava bem, eu estava bem, não nos acontecera nada de verdadeiramente grave e bem depressa
voltaríamos a Roma, para a nossa case, e eu tornaria a abrir a loja e tudo recomeçaria como antes. Até melhor
do que antes, pois o noivo de Rose a decerto se salvara também e voltaria da I ugoslávia para casar com ela. N o
meio da sonolência, detinha-me com grande satisfação e profundo júbilo no casamento de Rosetta. Via-a sair do
portal branco, com flores de laranjeira na cabeça, pelo braço do marido, e, atrás dela, eu e todos os parentes e
amigos, sorridentes e felizes. Depois já não me bastava vê-los no portal da igreja, dava um salto atrás, queria vê-
los ajoelhados diante do altar, enquanto o padre os casava e fazia a sua prédica sobre os deveres e obrigações
do santo matrimônio. Mas isto ainda não me bastava, e dava mais outro salto, desta vez para a frente, e via
Rose a com o seu primeiro nenê: estávamos à mesa, eu, ela e o marido: e a criança começava; de repente a
chorar no quarto ao lado, Rose a levantava-se, ia buscá-la e tornava a sentar-se, desabotoava a blusa e oferecia
o seio ao filho, que o agarrava logo com a boca e as duas mãozinhas, enquanto ela se inclinava para a frente
para tomar uma colher de sopa; e assim já não estávamos só três a comer à mesa, mas sim quatro: o marido de
Rose a, Rose a, o nenê e eu. Contemplando no meu sonho este quadro, pensava que era avó e não me
desagradava sê-lo, pois já não desejava o amor, queria tornar-me uma mulher velha e viver muitos anos como
avó, ao lado de Rose a e dos seus filhos. Entretanto, enquanto sonhava, via às vezes Rose a estendida no leito
de campanha e dava-me prazer vê-la ali como que a demonstrar-me que os meus sonhos não eram apenas
sonhos, que depressa se tornariam realidade, quando voltássemos a Roma e refizéssemos a antiga existência.
Veio a noite, levantei-me e, no escuro, olhei em minha volta: Rose a dormia ainda, tirara a saia e a blusa, na
penumbra entrevi-lhe os ombros e os braços nus, brancos e roliços, de rapariga nova e sadia; a combinação
subira, pois tinha a perna dobrada, com o joelho quase à altura da boca; também as coxas eram brancas e fortes,
como os ombros e os braços. Perguntei-lhe se queria comer, e ela, daí a pouco, sem se voltar, abanou a cabeça e
disse qualquer coisa que era uma recusa.
Perguntei-lhe ainda se queria levantar-se e descer às ruas de Fondi: novo gesto, nova negação. Então tornei a
deitar-me e desta vez adormeci a valer; na realidade estávamos ambas exaustas com tantas emoções e aquele
nosso sono era um pouco como a corda que se dá a um relógio parado há muito tempo, que se gira e torna a
girar e não se acaba mais porque o relógio está sem corda nenhuma, sem forças para andar.
CAPÍTULO IX

D e madrugada fomos acordadas por alguém que batia à porta com pancadas tão fortes como se a quisesse
arrombar. Era o soldado que nos auxiliara na véspera.
Q uando abrimos, avisou-nos de que o automóvel que nos levaria a Vallecorsa já estava lá em baixo e nos
devíamos despachar. Vestimo-nos à pressa e, ao vestir-me, notei que me sentia mais forte do que nunca;
aquelas horas de sono tinham-me restaurado por completo. Compreendi que Rose a também se sentia forte,
pela maneira enérgica como se lavou e vestiu. S ó uma mãe pode perceber estas coisas; lembrava-me de Rose a,
no dia anterior, apatetada pelo sono e pelas emoções, a cara suja de lama seca, os olhos distraídos e tristes; e
agora dava-me prazer olhá-la ao sentar-se na cama, as pernas pendentes, a espreguiçar-se, levantando os dois
braços e enchendo de ar o lindo peito branco, que parecia ir saltar fora da combinação; e depois dirigir-se ao
lavatório, situado a um canto, deitar a água fria do jarro na bacia, lavar-se com força, não só a cara, mas também
o pescoço e os ombros, e, de olhos fechados, pegar às apalpadelas na toalha e esfregar-se bem até ficar
vermelha, pegando em seguida na saia e enfiando-a pela cabeça, no meio do quarto. Eram tudo gestos normais
que lhe vi fazer não sei quantas vezes. Mas sentia neles a sua juventude e a sua força restaurada, como se sente
a juventude e a força de uma bela árvore banhada de sol, quando todas as suas folhas mexem ao mais leve
sopro do vento da primavera.
Bem, adiante. Vestimo-nos e descemos a correr as escadas ainda desertas daquela casa vazia. Em frente da
porta estava um desses pequenos automóveis descobertos do exército aliado, bastante sólidos e com assentos
de ferro. A o volante, um oficial inglês, loiro, de faces vermelhas e expressão embaraçada ou talvez aborrecida.
I ndicou-nos os assentos de trás e disse-nos em mau italiano que tinha ordem para nos levar a Vallecorsa. N ão
parecia muito amável, sem dúvida mais por timidez do que por antipatizar conosco. N o automóvel estavam
também duas enormes caixas de papelão cheias até acima de conservas; o oficial inglês disse-nos, sempre com o
seu ar embaraçado, que o major nos mandava aquelas caixas com os seus cumprimentos e desejos de boa
viagem, desculpando-se de não poder despedir-se de nós, mas estava muito ocupado. Enquanto duraram estes
preparativos, vários refugiados que, provavelmente, tinham passado a noite ao relento cercaram o automóvel,
olhando-nos em silêncio, com a inveja claramente estampada no rosto. A percebi-me de que nos invejavam
porque arranjáramos maneira de sair de Fondi e também por termos todas aquelas conservas; confesso, nesse
momento quase experimentei um sentimento de vaidade, embora aliado a certo remorso. Mal sabia eu quanto a
nossa sorte era pouco para invejar!...
O oficial pôs o motor a trabalhar e o automóvel partiu, rápido, por cima de poças e escombros, em direção
às montanhas. Tomou por uma estrada secundária e bem depressa, sempre a grande velocidade, começou a
subir, entre dois montes, um vale estreito e profundo, onde corria um riacho. N ós íamos caladas e o oficial
também, nós porque, no fim de contas, nos enfastiava falar por gestos e ganidos, como surdas mudas, e ele
talvez por timidez ou por não gostar de ser motorista. D e resto, que podíamos nós dizer àquele oficial? Q ue
estávamos satisfeitas por deixar Fondi? Q ue estava um lindo dia de maio, com o céu azul, sem nuvens, e o sol
resplandecente a inundar os campos verdes e viçosos? Q ue íamos para a aldeia onde eu nascera? Tudo coisas
que não lhe interessavam... E ele teria razão se respondesse que não queria saber disso para nada, que ia ali
apenas a cumprir o seu dever, o de nos conduzir a determinada terra, conforme as ordens recebidas, e portanto
era melhor irmos caladas, pois tinha de guiar e não podia distrair-se.
Porém, ainda que pareça estranho, embora eu pensasse assim, senti, em todo o tempo, o desejo aflitivo de
falar àquele oficial, de saber quem era, onde tinha a família, o que fazia em tempo de paz, se estava noivo, e
assim por diante. N a realidade, compreendo-o agora, passado o perigo eu tornava a experimentar os
sentimentos normais dos tempos normais, isto é, retomava interesse pelas pessoas e pelas coisas alheias a
mim, para além da minha segurança e da de Rose a. Em resumo, recomeçava a viver, ou, melhor, a fazer
muitas coisas sem razão, por simpatia, por simples capricho, por impulso, ou até por brincadeira. E aquele
oficial despertava a minha curiosidade, como, depois de uma longa doença, ao entrar-se na convalescença,
desperta curiosidade tudo quanto vemos por acaso, ainda que seja insignificante. O lhava para ele e via que
tinha cabelos loiros verdadeiramente magníficos, da cor do ouro, com muitas madeixas lisas e brilhantes que se
acamavam e entrançavam como as fibras de um lindo cesto e depois formavam, na nuca, franjas caprichosas.
Estes cabelos de ouro davam-me quase a tentação de estender a mão e acariciá-los: não porque aquele jovem me
agradasse ou atraísse de uma maneira especial, mas só porque a vida me dava de novo prazer e aqueles cabelos
eram mesmo vivos. E, de fato, experimentava igual sensação pelas árvores de folhagem nova que corriam ao
nosso encontro na estrada, e pelo paredão de pedras polidas e bem talhadas que sustentava o terrapleno do
outro lado do fosso, e pelo céu azul e o claro sol de maio. Tudo isto me agradava, tudo despertava em mim
apetite, como depois de um longo jejum que por muito tempo me tivesse tirado o gosto de comer.
A estrada secundária, depois de ladear durante algum tempo o riacho, no vale estreito e alto, foi dar
finalmente à estrada nacional e o riacho a um ribeiro largo e transparente que corria num vale um pouco mais
amplo. A s montanhas agora não estavam mesmo em cima da estrada, desciam para ela em suaves encostas e
não eram verdes, mas sim pedregosas e nuas. Toda a paisagem se tornava, a cada passo, mais nua, mais deserta
e mais severa. Era a paisagem onde eu crescera e me fizera mulher, reconhecia-a cada vez melhor, e a sensação
desencorajante, quase assustadora, da sua selvajaria e solidão era em parte mitigada pela alegria de me
encontrar num local familiar. Era mesmo uma paisagem de salteadores e nem o sol de maio a tornava mais
agradável e acolhedora; não havia senão pedras e rochas e encostas cobertas de pedras e rochas e quase
nenhuma verdura; e aquela estrada negra, lisa e brilhante que corria por entre aqueles pedregulhos dir-se-ia
uma serpente acordada pelos primeiros passos da primavera. N ão se via uma casa, um palheiro, uma barraca,
uma cabana; não se via um único ser vivo, homem ou animal. Eu sabia que aquele vale continuava assim nu,
silencioso e deserto durante quilômetros e quilômetros e a única aldeia que aí se encontrava era a minha terra,
um grupo de casas alinhadas ao longo da estrada e em volta de uma praça onde se erguia a igreja.
Corremos assim um bocado, em silêncio, e depois, de repente, numa volta do caminho, eis que surge, a
alguma distância, a minha aldeia. Tudo continuava como eu me lembrava ainda: dos dois lados da estrada, o
povoado começava com duas casas que eu conhecia muito bem, velhas casas de campo construídas com pedras
daqueles montes, sem cal, escuras e modestas, com as telhas verdes do musgo.
S enti de súbito não sei que timidez em relação àquele oficial inglês, que parecia tão aborrecido de nos servir
de motorista: e impulsivamente bati-lhe no ombro e disse-lhe que podíamos parar ali: tínhamos chegado. Ele
travou no mesmo instante e eu, já vagamente arrependida do meu gesto, avisei Rose a de que chegáramos ao
nosso destino e devíamos descer. A peamo-nos no meio da estrada e o oficial ajudou-nos a descarregar as duas
grandes caixas com provisões, que pusemos à cabeça. D epois pronunciou, em italiano, de maneira quase
afetuosa e com um sorriso: “Boa sorte!”
Logo deu meia volta rapidíssima e partiu como um foguete. Passados uns segundos, já tinha desaparecido
na curva da estrada e nós as duas estávamos sós...
Foi então que notei o profundo silêncio e completa solidão do lugar. N ão se via ninguém, não se ouvia
nenhum rumor, a não ser o do vento da Primavera, doce e leve, que corria no vale. A o olhar para as duas casas à
entrada da aldeia, descobri qualquer coisa em que não reparara no primeiro instante: tinham as janelas
cerradas, as madeiras igualmente fechadas e na porta do rés-do-chão duas tábuas pregadas em cruz. A aldeia
fora evacuada... E pela primeira vez admiti que talvez tivesse feito mal em deixar Fondi: ali havia, é verdade, o
perigo dos bombardeamentos, mas havia também muita gente e não se estava só... S enti constranger-me o
coração e, para ganhar coragem, disse a Rose a: “Talvez na aldeia não esteja ninguém, talvez se tenham
refugiado em qualquer parte. N esse caso não paramos aqui, seguimos até Vallecorsa, que fica a poucos
quilômetros. O u então pedimos a qualquer condutor de caminhão que nos leve, esta estrada é muito
frequentada, há de passar alguém...”
Q uase no mesmo instante, como a confirmar as minhas palavras, eis que aparece na curva uma longa fila de
carros militares. Esta aparição reconfortou-nos: eram aliados, por isso amigos; em caso de apuros, podíamos
recorrer a eles, como em Fondi. Pus-me na beira da estrada, ao lado de Rose a, para ver desfilar a coluna diante
de nós. À frente vinha um pequeno automóvel descoberto, semelhante àquele que nos trouxera; lá dentro iam
três oficiais e por cima do motor levava espetada uma bandeirinha. Era uma bandeira azul, branca e vermelha,
a bandeira francesa, como soube depois, e os oficiais eram oficiais franceses, com o quepe do feitio de uma
panela redonda e a pala dura por cima dos olhos. Atrás deste automóvel vinham muitos caminhões, todos
iguais, a abarrotar de tropas, mas não eram soldados semelhantes aos que vira até então, eram homens de pele
escura, com caras de turcos, tanto quanto deixavam adivinhar os turbantes vermelhos que lhes envolviam as
cabeças, e cobertos por lençóis brancos, tendo por cima um capote de cor escura. S ó mais tarde soube a origem
destes soldados: eram de Marrocos, portanto marroquinos, e Marrocos, segundo penso, é um país distante, que
fica em África, e, se não fosse a guerra, estes marroquinos nunca teriam vindo à I tália. A coluna não era muito
comprida; fechava-a um automóvel semelhante àquele que ia na frente; a estrada então voltou a ficar deserta e
silenciosa. Disse a Rosetta: “São aliados, decerto, mas não sei a que raça pertencem. Nunca vi gente assim “
Em seguida dirigi-me para o povoado. Pouco antes da aldeia, a montanha encurvava para a estrada um
grande rochedo, por baixo do qual havia uma espécie de gruta com uma nascente. D isse a Rose a, enquanto
caminhava com a caixa à cabeça: “A quilo é uma gruta com uma nascente. Vamos lá, pois tenho sede e quero
beber.”
Foi isto o que disse, mas, na realidade, queria era tornar a vê-la, pois em criança e mais tarde, já rapariga, ia
àquela gruta buscar água todos os dias várias vezes, com o cântaro de cobre à cabeça, e ficava lá a conversar dez
minutos ou mais, conforme os casos, com outras mulheres que também ali iam por igual razão; às vezes até
encontrava gente das aldeias vizinhas com barris amarrados à albarda dos burros, porque a água daquela fonte
tinha fama e era a única nas redondezas que durante o verão não secava e continuava a correr, sempre gelada e
abundante.
Gostava daquela gruta e lembrava-me que, em criança, me parecia um lugar estranho e misterioso, que me
metia medo e ao mesmo tempo me atraía; muitas vezes me debruçava, o busto todo dobrado para a frente, na
beira do tanque que lá existia, para me ver espelhada na água negra, e olhava durante muito tempo as avencas
densas que ocultavam a nascente. Gostava de contemplar a minha imagem voltada ao contrário, tão clara e
colorida; gostava de olhar para as avencas tão lindas, com as folhinhas verdes e as hastes negras como ébano;
gostava de ver o musgo aveludado, com gotas brilhantes como pérolas e constelado de florinhas vermelhas que
cobria a rocha. Mas sentia-me atraída sobretudo pela gruta porque na aldeia alguém me contara uma lenda
segundo a qual quem se atirasse com decisão à água, nadando sempre para o fundo, chegaria a um mundo
subterrâneo muito mais belo do que o nosso cá em cima, com cavernas cheias de tesouros e anões e lindas
fadas.
Esta história causara-me grande impressão e mesmo mais tarde, quando já era rapariga e não acreditava
nisso, pois sabia ser apenas uma lenda, nunca cheguei à gruta sem me lembrar dela e experimentar uma
sensação de dúvida e incerteza, como se aquilo não fosse uma lenda, mas sim uma coisa verdadeira e eu
pudesse dar ainda aquele mergulho, se quisesse ir lá abaixo visitar as tais cavernas encantadas. Fomos até a
gruta, pus no chão a caixa, subi os dois ou três degraus e debrucei-me, esmagando o peito na beira do tanque,
por baixo das estalactites revestidas de musgo verde e brilhante que, tal como outrora, pingavam gota a gota.
Também Rose a se aproximou e eu olhei um momento as nossas duas caras refletidas na água negra imóvel
e suspirei, pensando no sem-número de coisas, nem sempre boas, que tinham sucedido desde o tempo em que,
criança ainda, me debruçava para aquela água e nela me via como num espelho. Por baixo das avencas densas,
no fundo do tanque, via-se, como então, o leve borbulhar produzido pela nascente e pensei que aquela nascente
continuaria a brotar assim por toda a eternidade, doce e tranquila, quando eu e Rose a e todos os outros
fôssemos embora deste mundo e desta guerra tão terrível restasse apenas a recordação. Porque tudo acaba,
considerei; eu estava ali e já não era criança e tinha uma filha crescida, mas a fonte continuava a deitar água,
como sempre...
I nclinei-me e bebi; creio que uma lágrima me caiu dos olhos para o tanque; Rose a, ao meu lado, bebia
também e não se apercebeu. D epois limpamos a boca, tornamos a pôr as caixas à cabeça e dirigimo-nos para a
aldeia.
Tal como imaginava, a aldeia estava deserta. N ão fora bombardeada nem devastada, apenas abandonada.
Todas as casas, umas casas pobres, de pedra em bruto, sem rebocos, encostadas umas às outras ao longo da
estrada, estavam intactas, mas de janelas fechadas e portas pregadas. Caminhamos um bocado entre duas filas
de habitações mortas que me davam quase uma sensação de medo, como quando se caminha num cemitério e
se pensa na gente que está por baixo das lápides; passamos diante da casa de meus pais, também fechada e
pregada; renunciei a bater e, sem dizer nada a Rose a, apressei o passo; por fim chegamos a um largo em
declive, com degraus, no cimo do qual se erguia a igreja, uma igrejinha mesmo de aldeia, de velhas pedras
enegrecidas, rústica e antiga, sem floreios nem ornamentos. O largo continuava tal qual como eu me lembrava
dele: os degraus calcetados de pedra negra com listras brancas; quatro ou cinco árvores plantadas
irregularmente, que, como sempre na primavera, se apresentavam carregadas de folhas novas, e a um lado um
velho poço com o parapeito da mesma pedra negra da igreja e o cabrestante de ferro todo enferrujado. N otei
que, sob o pórtico, sustentado por duas colunas, a porta da igreja estava semi aberta e disse a Rose a: “S abes o
que vamos fazer? A igreja está aberta, vamos sentar-nos lá dentro um bocado, a descansar, e depois seguimos a
pé para Vallecorsa.”
Rose a não respondeu e seguiu-me. Entramos e imediatamente percebi, por vários indícios, de que a igreja
fora, se não devastada de propósito, pelo menos habitada por soldados e reduzida ao estado de estrebaria. A
nave era comprida e estreita, caiada, com grandes traves negras no teto e ao fundo o altar, este último
sobrepujado por um quadro representando N ossa S enhora com o Menino. O altar estava agora nu, sem
paramentos nem nada; o quadro continuava lá, mas de banda, como se um terremoto o houvesse deslocado, e
os bancos, que outrora se alinhavam em duas filas até junto do altar, tinham desaparecido todos, menos dois,
dispostos no sentido do comprimento. Entre eles, no chão, havia muitas cinzas e alguns tições pretos, sinal de
que se acendera ali lume. A igreja recebia luz de um grande vitral por cima da entrada, que noutro tempo fora
brilhante e colorido. A gora, desses vidros não restavam senão alguns fragmentos aguçados e na igreja era dia
claro. Encostei-me a um dos bancos sobreviventes, endireitei-o, de modo a ficar de frente para o altar, pousei lá
a caixa e disse a Rosetta: “Eis o que é a guerra: nem as igrejas respeitam...”
D epois sentei-me e Rose a sentou-se ao meu lado. Experimentava uma sensação estranha, como a de quem
se encontra num lugar sagrado, e no entanto não tinha vontade de rezar. Voltei os olhos para o quadro de
N ossa S enhora, todo torcido, com o rosto da Virgem já negro de fumo, e não a olhar para baixo, para os bancos,
como antigamente, mas sim para o teto, de revés; pensei que, se quisesse rezar, teria, antes de tudo, de
endireitar aquela imagem. Mas talvez nem mesmo assim fosse capaz de rezar; estava como que inteiriçada e
não sentia nada, a não ser uma espécie de atordoamento. Esperava encontrar a aldeia onde nascera e a gente no
meio da qual tinha crescido e, se D eus quisesse, também os meus pais; mas, ao contrário, encontrara apenas
uma casa vazia... Todos tinham abalado, não se sabia para onde, e talvez também N ossa S enhora, desgostosa
por terem ofendido a sua imagem, deixando-a para ali à banda. O lhei para Rose a, ao meu lado, e vi que ela
rezava de mãos postas e cabeça inclinada, mal movendo os lábios. disse-lhe então, em voz baixa: “Fazes bem
em rezar... reza também por mim... eu não tenho coragem...”
N aquele instante ouvi não sei que barulho de passos e de vozes do lado da entrada, voltei-me e, como um
relâmpago, vi chegar à porta qualquer coisa branca que imediatamente desapareceu. Pareceu-me reconhecer,
porém, um daqueles estranhos soldados que viramos passar pouco antes na estrada dentro de caminhões.
Tomada de súbita inquietação, levantei-me e disse a Rosetta: “Vamos... é melhor ir andando...”
Ela levantou-se logo, benzendo-se; ajudei-a a pôr a caixa à cabeça, pus também a minha e depois dirigimo-
nos para a entrada. Empurrei a porta, que estava fechada, e encontrei-me cara a cara com um soldado que
parecia turco, tão escuro e bexigoso era, com um carapuço vermelho enterrado até os olhos, pretos e brilhantes,
e o corpo embrulhado naquele capote escuro por cima do lençol branco.
Ele pôs-me as mãos no peito, empurrando-me para trás e dizendo-me qualquer coisa que não entendi; atrás
dele vi outros, não sei quantos, pois o bruto agarrou-me com força um, braço e puxou-me logo para dentro da
igreja, enquanto os outros, todos de lençol branco e carapuço vermelho, entravam de roldão. Então gritei: “Mais
devagar, que querem de nós? Somos refugiadas!”
A o mesmo tempo, a caixa que trazia à cabeça caiu e senti as conservas rolarem no chão. Comecei a debater-
me. O turco agarrava-me pela cintura, apertava-me contra ele, a cara escura e feroz perto da minha. D e súbito
ouvi um berro, agudo, dilacerante, era Rose a; então procurei libertar-me com quantas forças tinha, para correr
em seu auxílio, mas ele apertava-me desalmadamente e, embora lhe fincasse a mão no queixo, empurrando-lhe
a cara para trás, senti que ele conseguia arrastar-me para um canto, na penumbra da igreja, à direita da entrada.
Então gritei também, um berro ainda mais agudo que o de Rose a, e creio que pus nele todo o meu
desespero, não só por aquilo que me estava a acontecer nesse instante, como por tudo quanto me sucedera
desde o dia em que saí de Roma.
Seguiu-se uma breve luta e por fim desmaiei...
Voltei a mim passado não sei quanto tempo; estava estendida a um canto, na penumbra da igreja, os
soldados tinham-se ido embora e reinava um grande silêncio. D oía-me a cabeça, mas só atrás, na nuca; não
tinha outras dores e compreendi que aquele homem terrível não conseguira os seus intentos; eu defendi-me,
dando-lhe vigoroso apertão no sítio onde os homens não toleram que os apertem, e ele, raivoso, agarrou-me
pelos cabelos e bateu-me com a cabeça no pavimento; por isso desmaiei e, já se sabe, é difícil fazer seja o que
for a uma mulher desmaiada. Mas também não me fizera nada porque, como refleti a seguir, os companheiros
o chamaram, para segurar Rose a e ele deixou-me e foi saciar-se, como todos os outros, na minha pobre filha.
I nfelizmente, Rose a não desmaiou e tudo quanto lhe sucedeu viu-o com os olhos e sentiu-o com os sentidos.
Eu estava para ali estendida, quase incapaz de me mexer; depois experimentei levantar-me e senti subitamente
uma dor aguda na nuca. Porém, reagi, pus-me de pé e olhei em volta. Primeiro não vi senão o pavimento da
igreja semeado de caixas de conservas que tinham rolado pelo chão no momento em que fomos assaltadas;
depois ergui os olhos e vi Rose a. Tinham-na arrastado, ou então perseguido, até junto do altar; estava
estendida de costas, o vestido levantado e a cobrir-lhe a cabeça, nua dos pés até à cintura.
A proximei-me e chamei-a, em voz baixa: “Rose a!”. Mas não esperava que ela me respondesse, e ela, de
fato, não me respondeu, nem se mexeu e convenci-me de que estava morta. I nclinei-me e afastei-lhe as roupas
de cima da cara. Vi então que ela me olhava de olhos arregalados, sem pronunciar uma palavra, sem se mover,
com um olhar que nunca lhe vi, como um animal preso numa armadilha, sem poder mexer-se, à espera que o
caçador lhe dê o golpe de misericórdia. S entei-me então junto dela, debaixo do altar, passei-lhe o braço pela
cintura, levantei-a, apertei-a contra mim e disse: “Meu tesouro!...”
Mas não consegui dizer mais nada, comecei a chorar e as lágrimas saltavam-me dos olhos e eu bebia-as e
sentia que eram amargas, com toda a amargura concentrada que eu recolhera na minha vida. Entretanto,
esforçava-me por compô-la; antes de tudo, tirei o lenço do bolso e limpei-lhe o sangue ainda fresco das coxas,
baixei-lhe a combinação e a saia e depois, sempre a chorar perdidamente, meti-lhe dentro do colete o seio que
aqueles bárbaros tinham tirado para fora e abotoei-lhe a blusa. Por fim peguei num pequeno pente que me
tinham dado os ingleses e penteei-lhe cuidadosamente os cabelos desgrenhados. Ela deixava-me fazer tudo,
estava quieta e não falava. Eu agora já não chorava e entristecia-me por não poder chorar, nem gritar, nem me
desesperar. disse-lhe: “Podes sair daqui?”
Respondeu que sim, numa voz muito baixa. Ajudei-a a levantar-se; ela vacilava, estava muito pálida, mas por
fim lá deu alguns passos, sempre amparada a mim. A meio da igreja, quando chegamos junto dos dois bancos,
disse-lhe: “Temos de apanhar estas coisas e metê-las nas caixas. Não devemos deixá-las aqui. Podes?”
N ovamente respondeu que sim; enchi as duas caixas com as conservas que estavam espalhadas no chão,
pus-lhe uma à cabeça e fiquei com a outra; por fim saímos. Continuava a doer-me a nuca de uma maneira que
não sei explicar, e ao sairmos da igreja até se me enevoou a vista; mas reagi, com o pensamento em Rose a, que
devia sofrer bastante naquele momento. D escemos devagar os degraus resvaladiços do largo; o sol já ia alto e
iluminava com a sua bela luz as paredes escuras. Marroquinos não havia nem um; depois de terem feito o que
fizeram, foram-se embora, graças a D eus, talvez para irem fazer o mesmo em qualquer outra terra próxima.
Atravessamos toda a aldeia por entre duas filas de casas fechadas e silenciosas, logo tomamos a estrada
principal, cheia de sol, limpa, clara, batida pelo vento da Primavera, que me soprava docemente aos ouvidos e
parecia dizer-me que não me desesperasse, pois tudo continuava como dantes, como sempre. A ndamos talvez
um quilômetro, lentamente, sem falar; mas eu sentia-me cada vez pior da nuca e compreendi que também
Rosetta não podia mais.
disse-lhe: “Agora, na primeira quinta que encontrarmos, paramos até amanhã, para descansar.”
Ela não disse nada, começava assim aquele silêncio em que se fechou depois de os marroquinos a violarem e
que havia de durar muito e muito tempo. Em suma, demos ainda mais uns cem passos e vi vir ao nosso
encontro um pequeno automóvel descoberto, em tudo semelhante àquele que nos trouxera, com dois oficiais
dentro, dois oficiais franceses, reconheci-os logo pelo quepe em forma de panela. Então senti não sei que
impulso e pus-me no meio da estrada, fazendo sinais com o único braço livre, e eles pararam. A proximei-me e
gritei-lhes com fúria: “S abem o que fizeram os turcos que vocês comandam? S abem o que tiveram a coragem de
fazer num lugar sagrado, na igreja, sob os olhares de Nossa Senhora? Digam, sabem o que eles fizeram?”
N ão me compreendiam e olhavam-me espantados: um era moreno, de bigode preto e cara vermelha, cheia
de saúde; o outro era loiro, delgado, pálido, de olhos azuis e vesgos. Gritei outra vez: “D esgraçaram a minha
filha, sim, desgraçaram-na para sempre, uma filha que era um anjo e agora está pior do que se tivesse morrido.
Mas não sabem o que eles fizeram?”
Então o moreno levantou a mão e fez um sinal como a dizer “basta” e depois repetiu, em italiano, mas com
acento francês: “Pace, pace”, que quer dizer “paz”.
Gritei: “Sim, paz, linda paz, esta é a vossa paz, filhos de um corno?!”
O louro não sei o que disse ao moreno, naturalmente que eu era doida, pois levou um dedo à testa e sorriu.
Então perdi por completo a cabeça: “Não sou doida, não, olhem!”
E, atirando a caixa ao chão, corri para Rose a, que ficara mais atrás, no meio da estrada, com a caixa à
cabeça, imóvel, e levantei-lhe as saias para lhes mostrar aquelas belas pernas ensanguentadas, N o mesmo
momento ouvi o automóvel passar ao meu lado a grande velocidade e, quando me voltei, vi-o desaparecer lá
adiante na curva.
Rose a continuava parada, semelhante a uma estátua, com a caixa à cabeça, o braço levantado para a
segurar, as pernas unidas, e eu de repente tive medo que ela tivesse enlouquecido e, baixando-lhe o vestido,
pronunciei: “Minha filha, porque não falas? O que tens?... Fala à tua mamãe.”
Então ela respondeu, numa voz tranquila: “Não é nada, mamãe. E uma coisa natural, já está a passar.”
Respirei fundo, pois tive verdadeiramente medo que ela, com o abalo, ficasse tola; perguntei-lhe, já um
pouco mais animada: “Então podes andar ainda um bocado?”
Respondeu: “Sim, mamãe.”
Pus a caixa à cabeça e continuamos a palmilhar a estrada principal. A ndamos ainda mais outro quilômetro e
eu sentia-me cada vez pior da nuca; de vez em quando quase desfalecia e toda a paisagem ficava negra, como se
o sol se encobrisse de repente. Por fim, numa curva, vimos um morro abrigado por montanhas mais altas,
redondo e coberto de mato. N o cimo, entre o mato, havia uma cabana como as que em S anta Eufêmia os
camponeses construíam para meter os animais. D isse a Rose a: “N ão posso mais e tu também deves estar
cansada. Vamos para aquela cabana; se tiver gente, devem ser cristãos e hão de deixar-nos passar lá a noite. S e
não houver ninguém, tanto melhor. ficamos hoje e amanhã e, logo que nos sentirmos bem, retomaremos o
caminho.”
Rose a não disse nada, como de costume; mas desta vez fiquei menos inquieta, pois já sabia que não tinha
enlouquecido, estava somente perturbada, e isso compreendia-se, depois do que sucedera. N o entanto, sentia
que ela nunca mais seria a mesma e que qualquer coisa mudara, não só no seu corpo, mas também na sua alma.
E, embora fosse sua mãe, não tinha o direito de lhe perguntar o que pensava, pois a única maneira de lhe
demonstrar todo o meu afeto era deixá-la em paz.
S eguimos por uma vereda que serpenteava no meio do mato, em direção à cabana, e por fim, após longa
subida, chegamos lá. Como imaginava, era uma choupana de pastores, com paredes de pedra solta, o telhado
de palha, descendo quase até ao chão, e a porta de madeira. Pousamos as caixas e tentamos abrir a porta. Mas
esta tinha uma barra de ferro com um grande soquete e era feita de tábuas muito grossas: não podíamos pensar
em abri-la, nem um homem a conseguiria arrombar. Enquanto abanávamos a porta, ouvimos primeiro um
balido muito fraco e depois outro e outro; pareciam de cabras, mas não fortes e irritados como são os balidos
das cabras quando estão no escuro e querem sair, mas fracos e lamentosos. Então disse a Rose a: “Fecharam
aqui dentro os animais e fugiram... é preciso arranjar maneira de os pôr cá fora.”
A ssim, fui para o lado da cabana e comecei a tirar a palha do telhado. Tarefa difícil, pois a palha estava
bastante comprimida e emaranhada devido à chuva e ao fumo e por ter sido acamada ali há muito tempo; além
disso, cada feixe estava preso com vimes aos troncos de esteio. Porém, arrancando aqui e além, ora
despedaçando os vimes, ora desatando-os, consegui tirar alguns feixes de palha e fazer um buraco bastante
grande à altura da parede, e, logo que o alarguei, uma cabra branca e preta aproximou a cabeça, pondo as patas
na parede e olhando para mim com olhos lamentosos e balindo. disse-lhe: “Anda, linda, salta, salta!”
Mas vi que ela, a pobrezinha, embora procurasse erguer-se, não tinha forças, e compreendi que aquelas
cabras estavam enfraquecidas pela fome e era preciso tirá-las de lá. A larguei mais o buraco, enquanto a cabra
continuava com as patas apoiadas à parede, olhando-me e balindo baixinho; depois agarrei-a pela cabeça e pelo
pescoço, puxei-a e ela fez um esforço e saltou. Logo a seguir outra cabra apareceu no buraco e de novo me
esforcei por tirá-la para fora, e depois uma terceira e uma quarta. Por fim não apareceu mais nenhuma, mas
sentia-se ainda balir na cabana; alarguei de novo o buraco e saltei lá para dentro. Vi logo dois cabritos que
estavam mesmo debaixo da abertura, incapazes de saltar porque eram muito pequenos. A um canto distingui
um vulto e aproximei-me: era uma cabra branca, estendida no chão, de lado, imóvel. Um cabrito estava junto
dela, agachado, com as patas dobradas debaixo da barriga e o pescoço estendido, a mamar. A inda pensei que a
cabra estivesse assim imóvel para dar de mamar ao cabrito, mas, quando me aproximei, vi que estava morta.
Compreendi-o logo pelo abandono da cabeça, pela boca semi aberta e pelas moscas pousadas aos cantos da
boca e dos olhos. A cabra morrera de fome e os três cabritos viviam ainda porque tinham podido mamar até o
último suspiro da mãe. Peguei nos cabritos, um por um, e, inclinando-me para fora, pousei-os no chão, ao pé da
parede. A s outras quatro cabras que libertara devoravam já o mato com uma avidez furiosa, cegas de fome; os
cabritos alcançaram-nas e bem depressa cabras e cabritos deixaram de se ver, embrenhados no meio dos
arbustos. Mas ouviam-se os seus balidos, cada vez mais claros e fortes, como se a cada bocado a sua voz se
fortalecesse e quisessem assim dar-me a entender que estavam melhor e me agradeciam tê-los salvo da morte.
Em conclusão, tirei para fora da cabana, com grande custo, o cadáver da cabra e arrastei-o para tão longe
quanto pude, para não nos incomodar com o mau cheiro. D epois peguei naquela palha toda que arrancara do
telhado, juntamente com outra que consegui: alargando mais o buraco, e coloquei-a num canto da cabana,
fazendo na sombra uma espécie de cama. D isse a Rose a: “Vou estender-me nesta palha, quero dormir um
bocado. Porque não fazes o mesmo?”
Ela respondeu: “Eu fico aqui fora, ao sol.”
N ão insisti e fui deitar-me. Estava na sombra, mas pelo buraco aberto no telhado via um pedaço de céu azul;
o sol alongava os seus raios no chão da cabana, semeado das caganitas negras das cabras, brilhantes como
bagas de louro; respirava-se ali um bom cheiro a estábulo. S entia os ossos quebrados e compreendi que era
incapaz, devido ao cansaço, de me amargurar verdadeiramente com o que sucedera a Rose a: o acontecido
ficara na minha memória como qualquer coisa incompreensível e absurda; via em pensamento as suas lindas
pernas brancas, as coxas apertadas e os músculos em relevo, e ela de pé, imóvel, no meio da estrada, e o sangue
a escorrer até aos joelhos, muito vivo e vermelho, brilhando ao sol.
Quanto mais rememorava essa cena, menos a compreendia. Finalmente adormeci...
D ormi pouco, talvez só meia hora; de repente acordei, em sobressalto, e chamei logo por Rose a, aos gritos,
quase com ansiedade. N inguém respondeu, havia um silêncio profundo, não se ouviam sequer as cabras, e
sabe-se lá para onde teriam ido. Chamei outra vez, e depois, inquieta, levantei-me, saltei para fora, pelo buraco:
Rose a não estava ali. D ei a volta à cabana, vi as duas grandes caixas de conservas encostadas à parede, mas
dela nem sombra.
Fui tomada de um medo louco, pensei que tivesse fugido, cheia de vergonha e desespero, que tivesse ido
para a estrada para se meter debaixo de algum automóvel e acabar assim num momento de desanimo. Faltou-
me o ar e senti o coração bater mais apressado no peito; comecei a chamar por Rose a, parada diante da porta,
mas em todas as direções. N inguém respondia, talvez porque não gritasse muito alto; com a perturbação
faltava-me a voz. Então abandonei a cabana e caminhei ao acaso pelo meio do mato. S egui a vereda, que ora se
alargava, clara e poeirenta, ora não era mais do que um traço incerto entre os arbustos altos.
I mprevistamente, cheguei junto duma rocha que descia a pique para a estrada principal. Havia ali uma
árvore e a rocha estava talhada em forma de banco. donde se podia ver uma boa parte da estrada que
serpenteava no vale estreito e, lá mais abaixo, o leito da torrente, semeado de seixos brancos, com dois ou três
braços de água transparente, correndo e cintilando ao sol entre os seixos e os tufos de verdura. Q uando me
sentei na rocha e me inclinei para olhar, vi Rosetta ao longe.
Compreendi então que não me tivesse ouvido, pois estava muito mais abaixo do que a estrada, no meio do
riacho pedregoso, e caminhava sem pressas, com prudência, saltando de uma pedra para outra, evitando
molhar os pés; pela sua maneira de andar, vi que não fora por desespero ou por perturbação de ânimo que ali
descera.
D epois vi-a parar no sítio onde a corrente era mais estreita e mais funda, ajoelhar-se e inclinar-se até tocar
com o rosto na água para beber. Q uando acabou, ergueu-se, olhou em volta um momento e em seguida
levantou as saias, descobrindo as pernas, e, embora eu tivesse bastante longe, pareceu-me ver um risco escuro
de sangue seco que lhe chegava até o joelho. A gachou-se, de pernas abertas, apanhando a água na concha da
mão e levando-a ao ventre: compreendi que se lavava. Tinha a cabeça inclinada para um lado e lavava-se sem
pressa, com método, assim me pareceu, não se importando de expor ao sol e ao ar as suas vergonhas. Todas as
minhas terríveis suposições caíram por terra: Rose a afastara-se da cabana, descera à ribeira, unicamente para
se lavar...
D evo confessá-lo, experimentei uma sensação de dolorosa desilusão. Claro, eu não queria que ela se
matasse; no entanto, temia-o: mas vê-la agir de uma maneira tão diferente da que imaginava inspirava-me uma
decepção profunda e quase medo do futuro. Parecia-me que se vergara já ao novo destino, que começara para
ela na igreja, ao perder a virgindade por obra daqueles bárbaros, e que o seu obstinado silêncio era mais de
resignação do que de furor. E pensei mais tarde, quando esta impressão, infelizmente, se confirmou, que,
nesses poucos instantes de tormento, a minha pobre Rose a se tornara bruscamente mulher, tanto no corpo
como na alma, mulher endurecida, experimentada, amarga, sem ilusões nem esperanças.
Fiquei a olhá-la durante muito tempo, lá de cima, do rochedo. D epois de se limpar o melhor que pôde, e
sempre com o mesmo impudor quase animal, tornou a atravessar a corrente e subiu de novo para a estrada. Em
seguida atravessou-a e eu então levantei-me da rocha e voltei para a cabana: não queria que ela pensasse que a
tinha estado a espiar. D e fato, vi-a chegar daí a poucos minutos, com uma cara não de todo sossegada e calma,
mas sem qualquer expressão: eu, fingindo uma fome que não tinha, disse-lhe: “Estou com apetite, queres comer
alguma coisa?”
Respondeu-me numa voz indiferente: “Se quiseres...”
S entamo-nos ambas em frente da cabana, numas pedras, e abri duas caixas de conservas, e de novo fiquei
surpreendida, de uma maneira obscuramente dolorosa, ao ver que ela comia com apetite, ou, melhor,
vorazmente. Também desta vez não esperava, decerto, que não comesse, pelo contrário; no entanto, vê-la atirar-
se à comida com tal sofreguidão surpreendeu-me, pois pensava que, pelo menos, depois de tudo quanto
sucedera, a comida lhe repugnasse. N ão sabia o que dizer, estava para ali apalermada, a vê-la tirar com os
dedos, das caixas abertas, os bocados de carne em conserva, um a seguir a outro, e metê-los na boca e mastigá-
los com fúria, de olhos arregalados. Por fim disse-lhe: “Minha rica filha, não deves pensar mais no que sucedeu
na igreja... não penses e verás...”
E ela, interrompendo-me, pronunciou secamente: “S e não queres que eu pense, começa por não me falares
mais nisso.”
Fiquei surpreendida, até o tom da sua voz já era outro: quase irritado e, ao mesmo tempo, frio, impassível.
Em suma passamos lá em cima quatro dias e quatro noites, sempre a fazer as mesmas coisas, isto é,
dormindo de noite na cabana, em que entrávamos pelo buraco do telhado, levantando-nos com o sol, comendo
as conservas do major inglês, matando a sede na água da corrente e quase não falando, a não ser quando era
mesmo necessário. D urante o dia andávamos no mato, sem destino: às vezes dormíamos também à tarde, no
chão, debaixo duma árvore. A s cabras, depois de pastarem todo o dia, voltavam para a cabana e nós ajudávamo-
las a saltar para dentro e depois dormiam conosco, acaçapadas umas contra as outras, a um canto, juntamente
com os cabritos, que tinham começado a mamar ora numa ora noutra e já nem se lembravam da mãe morta,
Rose a estava sempre com o mesmo humor apático, indiferente, distante: como me pedira, não lhe falei mais
no que sucedeu na igreja; e desde então não toquei em tal assunto uma única vez, e a dor que experimentei
ficou dentro de mim, como um espinho, e nunca mais me abandonará porque nunca encontrará expressão. A
propósito daqueles quatro dias, não sei porquê, estou convencida de que foi nessa altura que Rose a mudou
verdadeiramente de caráter, ou à força de pensar, de uma maneira muito especial, em tudo quanto lhe sucedeu,
ou transformando-se sem querer e sem dar por isso, pela própria força do ultraje sofrido, numa pessoa
diferente da que fora até aí. E devo dizer que ao princípio até eu me surpreendi com a sua mudança tão
completa e tão radical, passando do branco para o preto: mas depois, pensando melhor, pareceu-me que, dado
o seu temperamento, não podia ser de outra forma. J á aqui afirmei que ela era levada pela sua natureza para
uma estranha perfeição; se era qualquer coisa, tinha de o ser a fundo e completamente, sem incertezas nem
contradições, e de tal forma que sempre estive convencida de que a minha filha era uma espécie de santa. O ra
essa perfeição de santa, feita, como disse, sobretudo de inexperiência e ignorância da vida, fora ferida de morte
pelo que sucedeu na igreja; então mudou bruscamente para a perfeição oposta, sem essas meias-medidas,
moderação e prudência próprias das pessoas normais, imperfeitas e espertas.
Tinha-a visto até aí toda devoção e bondade, pureza e doçura; devia esperar, de futuro, que ela se voltasse
para o excesso oposto, com a mesma ausência de dúvidas e de hesitações, a mesma inexperiência e o mesmo
sentido absoluto.
Muitas vezes, em conclusão das minhas reflexões sobre este doloroso assunto, disse a mim própria que a
pureza é uma coisa que não se pode receber à nascença como dom da natureza, por assim dizer; mas que se
encontra com as provações da vida e quem a recebeu ao nascer perde-a cedo ou tarde e tanto mais facilmente
quanto mais confiava possuí-la: em suma, vale mais nascer imperfeito e tornar-se, a pouco e pouco, se não
perfeito, pelo menos melhor, do que nascer perfeito e depois ser obrigado a abandonar aquela primeira
efêmera perfeição pela imperfeição da experiência e da vida.
CAPÍTULO X

Entretanto, as conservas do major inglês iam desaparecendo a olhos vistos, tanto mais que Rose a parecia
ter agora uma fome de lobo; assim, decidi que precisávamos de sair o mais depressa possível daquele pouso.
N ão tinha coragem de me dirigir a Vallecorsa ou a qualquer outra terra da região, pois receava encontrar
novamente os marroquinos, que, segundo me parecia, estavam espalhados por toda a Ciociaria. Por fim disse a
Rose a: “O melhor é voltarmos a Fondi. Lá encontraremos decerto maneira de regressar a Roma, se os A liados
já lá tiverem chegado, De qualquer modo, mais vale suportar os bombardeamentos do que os marroquinos...”
Rose a ouviu e ficou calada um momento, depois saiu-se com uma frase que me soou mal: “N ão, por mim
prefiro os marroquinos aos bombardeamentos. O s marroquinos já não podem fazer-me pior do que me
fizeram, enquanto os bombardeamentos... eu não quero morrer...”
D iscutimos ainda um pouco e por fim convencia de que era aconselhável voltar para Fondi: os
bombardeamentos já deviam ter acabado, pois o exército aliado avançava para o N orte. E uma manhã deixamos
a cabana e descemos à estrada. Tivemos muita sorte, posso afirmá-lo, porque, depois de termos deixado passar
alguns caminhões militares, que, já sabia, não transportavam civis, vimos de súbito aparecer um caminhão
completamente vazio que descia, por assim dizer, alegremente e a toda a velocidade os ziguezagues da estrada
deserta. Pus-me no meio do caminho e agitei os braços. O caminhão parou e vi ao volante um rapaz loiro, de
olhos azuis, vestido com uma linda camisola vermelha. Ele olhou para mim e eu gritei-lhe: “S omos duas
refugiadas, podes levar-nos a Fondi?”
Ele soltou um assobio e respondeu: “Estás com sorte, é mesmo para Fondi que vou. S ão duas refugiadas;
então a outra, onde está?”
“Vem já aí.”
Fiz o sinal combinado a Rose a, a quem ordenara, receando algum mau encontro, que ficasse um pouco
mais acima, atrás de uma moita. Ela desceu e caminhou ao nosso encontro, pelo meio da estrada inundada de
sol, trazendo à cabeça a única caixa que possuíamos, na qual guardávamos as conservas que nos restavam.
A gora podia ver melhor o rapaz do caminhão e não me pareceu lá muito simpático: havia um não sei quê de
arrebatado, vulgar e violento nos seus olhos azuis e na sua boca demasiado vermelha. Essa impressão
desfavorável confirmei-a logo a seguir: quando Rose a se aproximou, ele não lhe olhou para a cara, mas sim
para o peito, que, como ela trazia os braços levantados, a segurar a caixa, estava puxado para cima e sobressaía
debaixo do tecido fino da blusa. O rapaz exclamou então, com uma risada tola: “A tua mãe disse-me que eras
refugiada, mas não acrescentou que eras uma linda rapariga.”
D epois desceu e ajudou-a a subir para o seu lado, colocando-me do lado oposto. Reparei que não protestara
ao ouvir aquela frase pouco respeitosa, quando alguns dias antes o teria feito asperamente e talvez renunciasse
até a seguir no caminhão; e pensei que também eu já não era a mesma, pelo menos em relação a Rose a.
Entretanto, o rapaz pôs de novo o motor a trabalhar e o caminhão partiu.
D urante algum tempo não falamos; depois, como acontece sempre nestes casos, começou a troca de
informações. A nosso respeito, disse pouco; mas ele, que parecia bastante conversador, contou muito da sua
vida. D isse que nascera naqueles sítios; era soldado na altura do armistício e desertou; depois de andar a monte
algum tempo, foi preso pelos A lemães; mas um capitão nazi simpatizou com ele e, em vez de o mandar para as
fortificações, pusera-o nas cozinhas, onde trabalhou todo esse tempo; nunca na sua vida tinha comido mais e
melhor; enfim, como a escassez era geral, a abundância de provisões de que dispunha permitira-lhe conseguir
das mulheres tudo quanto queria: “Muitas raparigas bonitas vinham pedir-me qualquer coisa de comer. E eu
dava, mas, bem entendido, sob condições. Talvez não acreditem, mas nunca encontrei nenhuma que recusasse.
Ah! A fome é boa conselheira, torna razoáveis até as mais soberbas...”
Para mudar de conversa, perguntei-lhe o que fazia agora e ele respondeu que se associara a uns amigos e
naquele carro levavam para aqui e para além os refugiados que voltavam às suas terras; claro, faziam-se pagar
bem.
“A vocês não levo nada”, acrescentou nessa altura, deitando uma olhadela de soslaio a Rosetta.
Tinha a voz grossa e rouca; no pescoço forte caiam-lhe tantos anéis de cabelos loiros que a sua cabeça
parecia a de um bode, e na verdade tinha qualquer coisa de bode na maneira como olhava Rose a, ou, melhor,
todas as vezes que podia lhe atirava os olhos ao seio. D isse ainda que se chamava Clorindo e perguntou o nome
de Rose a. Ela disse-lhe e então comentou: “É pena, é uma pena que a carestia acabe. Mas mesmo assim
havemos de chegar a acordo. Gostas de meias de seda? O u de um bonito corte de fazenda para um vestido? O u
de um lindo par de sapatos de pelica?”
Rosetta, com grande espanto meu, retorquiu, passado um instante: “Quem não gosta de coisas dessas?”
Ele riu e repetiu: “Havemos de nos emendar, havemos de nos emendar...”
Toda eu tremia e não pude deixar de exclamar: “Vê lá como falas... A quem julgas que estás a falar?...”
Ele olhou-me de esguelha e disse: “Uh! Como és má! A quem julgo que estou a falar? A duas pobres
refugiadas que precisam do meu auxílio...”
Em resumo, um tipo alegre, embora vulgar, brutal e profundamente imoral.
D epois desta conversa, quando chegamos à altura em que a estrada desce para o mar, começou a guiar o
caminhão como um louco, lançando-o numa morreria vertiginosa, com o motor desligado, fazendo e desfaze
curvas a seguir umas às outras e cantando a plenos pulmões uma canção brejeira. N a verdade, dava vontade de
cantar, pois estava um lindo dia e respirava-se no ar a liberdade reconquistada após tantos meses de escravidão.
E não posso negar que até ele, de certa maneira, nos fazia sentir, com a sua conduta desordenada, que essa
liberdade era já um fato; simplesmente, a sua era a liberdade do valdevinos que não quer respeitar nada nem
ninguém; enquanto a nossa, a minha e a de Rose a, era só a liberdade de voltar para Roma e de recomeçar a
vida de outros tempos. N uma curva, um solavanco do caminhão atirou-me contra ele, e então vi que guiava só
com uma das mãos, enquanto com a outra apertava a mão de Rose a em cima do assento. E uma vez mais me
admirei de ver aquilo e não protestar, como sem dúvida o teria feito alguns dias antes. Era esta a liberdade dele,
pensei; e veio-me à ideia que não podia fazer nada... N ossa S enhora também não fizera o milagre de impedir
que os marroquinos realizassem a sua obra nefasta mesmo junto do seu altar, assim eu agora, muito mais fraca
do que Nossa Senhora, não podia impedir Clorindo de segurar a mão de Rosetta...
Entretanto descíamos em correria a encosta e daí a pouco rodávamos na estrada, que eu conhecia bem,
ladeada de um lado pela montanha e do outro pelos laranjais. Lembrava-me de a ter visto, a última vez,
apinhada de soldados, de refugiados, de automóveis, de carros de assalto, e fiquei impressionada com o
silencio e a solidão que tinham sucedido àquela espécie de feira. S e não fosse o sol e as árvores verdejantes que
se inclinavam para a estrada, por cima das sebes em flor, podia pensar-se que se estava ainda no I nverno, no
pior momento da ocupação alemã, quando O terror obrigava toda a gente a esconder-se como coelhos nas suas
tocas. N ão passava ninguém ou quase ninguém, a não ser um ou outro camponês levando à frente o seu burro;
não se ouvia nenhum rumor, nem próximo nem distante. Percorremos a grande velocidade a estrada principal e
entramos em Fondi.
Também aqui reinava o deserto e o silêncio, mas muito pior, com todas aquelas casas arruinadas, aqueles
montes de entulho, aquelas poças cheias de água estagnada. A gente que andava nas ruas cheias de buracos,
ruínas e poças parecia miserável e esfomeada, nem mais nem menos do que um mês antes sob a ocupação
alemã. O bservei isto a Clorindo e ele respondeu alegremente: “Eh! D iziam que os I ngleses traziam a
abundância. S im, trouxeram-na, mas só nos dois ou três dias que pararam aqui. N esses dois ou três dias
distribuíram caramelos, cigarros, farinha, roupas. D epois foram-se embora e a abundância acabou e toda a
gente ficou como antes, ou pior do que antes, pois já não têm mais nada a esperar, nem a chegada dos
Ingleses... “
Vi que ele tinha razão; era assim mesmo: os A liados paravam um momento com o seu exército nos lugares
conquistados aos A lemães e, durante um dia ou dois, o exército dava um pouco de vida às terras devastadas.
D epois iam-se embora e tudo voltava à mesma desolação. D isse a Clorindo: “E que vamos nós as duas fazer
agora? Não podemos ficar aqui neste ermo.
Já não possuímos nada... Temos de voltar para Roma.”
Ele, continuando a guiar por entre os destroços, respondeu: “Roma não foi ainda libertada. É melhor por
enquanto ficarem aqui.”
“Mas o que fazemos?”
Clorindo retorquiu então num tom reticente: “De vocês as duas trato eu...”
Pareceu-me um tom estranho, mas não disse nada. Clorindo guiava o carro para fora de Fondi e em seguida
meteu por uma estrada secundária entre os laranjais.
“A qui, no meio destes pomares, mora uma família que eu conheço”, disse, num tom despreocupado,
“podem lá ficar enquanto Roma não for libertada. Logo que seja possível, eu mesmo as levo a Roma neste carro.

Mais uma vez não disse nada; ele fez o caminhão dar meia volta, parou-o, depois desceu, explicando que
tínhamos de ir a pé até casa dos seus amigos.
S eguimos por um atalho entre laranjeiras. Parecia-me conhecer aquele lugar; é verdade que só se viam
laranjeiras e o atalho era igual a tantos outros; todavia, por alguns indícios, iria jurar que já percorrera aquele
atalho, no meio daquelas laranjeiras. Caminhamos ainda uns dez minutos e depois, repentinamente,
desembocamos numa clareira; então compreendi: diante de mim estava a casa cor-de-rosa de Conce a, a
mulher junto de quem tínhamos estado nos primeiros dias que passamos em Fondi. D isse, resoluta: “Eu aqui
não quero ficar.”
“E porquê?”
“Porque já aqui estivemos há meses e fugimos; é uma família de ladrões e esta Conce a queria que Rose a
andasse metida com os fascistas, como uma prostituta.”
Ele soltou uma grande risada: “Águas passadas não movem moinhos... hoje já não há fascistas... os filhos de
Concetta não são ladrões, são meus sócios, e podes estar tranquila que te tratam bem... águas passadas...”
Q uis ainda insistir e afirmar de novo que não ficaria em casa de Conce a por nada deste mundo; mas não
tive tempo. N o mesmo instante, Conce a saiu de casa e correu ao nosso encontro, atravessando a clareira,
jubilosa, exuberante e exaltada como antigamente: “Bem-vindas sejam, bem-vindas sejam! Q uem é vivo sempre
aparece! A h! vocês fugiram, foram-se embora e nem sequer disseram para onde, nem nos pagaram o que
deviam... Mas fizeram bem em fugir para a montanha; daí a pouco tempo os meus filhos também tiveram de ir
para o monte por causa dos recrutamentos desses malditos A lemães. Fizeram bem, tiveram mais juízo do que
nós, que ficamos aqui e passamos o bom e o bonito. S ejam bem-vindas, sejam bem-vindas, dá-me muito prazer
vê-las de boa saúde. A h! Q uando há saúde, há tudo... Venham, venham, Vincenzo e os meus filhos hão de
gostar de as ver. E, além disso, vêm com Clorindo, é como se viessem com um filho meu. Clorindo agora faz
parte da família... Estejam à vontade, não façam cerimônia.”
Em resumo, era a mesma Conce a, e senti apertar-me o coração por estar ali de novo, em piores
circunstâncias do que antes, pois tínhamos fugido da casa de Conce a justamente para evitar o perigo em que
caíramos depois, sem remédio, ao chegarmos à minha aldeia. Mas não disse nada e deixei-me beijar e abraçar
por aquela mulher odiosa, o mesmo fazendo Rose a, que parecia agora quase um boneco, tão apática e
indiferente se mostrava. Entretanto, também Vincenzo saíra de casa, mais pássaro de mau agouro do que
nunca, magro de meter medo, o nariz mais adunco, as sobrancelhas mais salientes e os olhos mais cintilantes
do que a última vez que o vira. E Conce a teve a coragem de dizer, enquanto ele, resmungando qualquer coisa
incompreensível, me apertava a mão: “Vincenzo disse-me que vocês estavam lá em cima com os Festas, que as
tinha visto em Santa Eufêmia. Ah! Também para os Festas foi um mau inverno.
Primeiro não conseguimos resistir à tentação daqueles tesouros escondidos na parede, depois o filho, o
Michele... Pobrezinhos... as coisas que lhes tiramos, as restituímos todas, menos naturalmente as que já tinham
sido vendidas, porque somos honestos e o que pertence aos outros para nós é sagrado. Mas o filho ninguém lho
restituirá, coitados...”
Confesso, ao ouvir estas palavras tão estouvadas e tão cruéis, senti o coração desfalecer, toda eu gelei e pus-
me pálida, pálida como morta. Perguntei, num murmúrio: “Porquê, sucedeu alguma coisa a Michele?”
E ela, entusiasmada, como se nos desse uma grande e bela notícia: “Mas, não sabiam? O s A lemães
mataram-no!”
Estávamos no meio da eira e senti que me faltavam as forças; compreendi pela primeira vez que gostava de
Michele como de um filho; sentei-me numa cadeira ao pé da porta e tapei a cara com as mãos. Conce a,
entretanto, continuava, excitada: “S im, os alemães mataram-no quando fugiam. Parece que o tinham levado
para lhes servir de guia... A ssim, de montanha em montanha, chegaram a um lugarejo isolado onde vivia uma
família de camponeses e, como Michele não estava bem certo de qual era o melhor caminho, os alemães
perguntaram a esses camponeses por onde andavam os inimigos. Q ueriam dizer os I ngleses, que, para eles, de
fato, eram os inimigos. Mas os camponeses, pobrezinhos, convencidos, como todos nós, I talianos, que os
inimigos eram os A lemães, responderam que tinham fugido para Frosinone. O s alemães, ao serem tratados
como inimigos, ficaram furiosos - compreende-se, ninguém gosta de ser considerado inimigo - e apontaram as
armas contra os camponeses. Michele meteu-se de permeio, gritando: ‘N ão disparem, são inocentes!’ Morreu
ali mesmo, juntamente com todos os outros...
Uma família inteira massacrada... ah! sabe-se, é a guerra, uma verdadeira carnificina, homens, mulheres e
crianças, e Michele em cima do monte, com muitas balas no peito, pois dispararam quando ele, coitado, se
meteu de permeio...
S oube-se tudo isto porque uma garota se escondeu atrás de um palheiro e se salvou; depois veio cá abaixo e
contou tudo... Mas então não sabiam? Toda a gente em Fondi fala disto. Ah! Sabe-se, a guerra é a guerra...”
Michele tinha morrido... e eu estava para ali sentada, a cara entre as mãos.
D epois senti que chorava porque tinha os olhos molhados e dei um suspiro profundo e comecei a soluçar
baixinho. Parecia-me que chorava por todos, por Michele principalmente, a quem queria como a um filho, e
também por Rose a, que talvez fosse melhor ter morrido como Michele, e por mim mesma, que já não tinha
quaisquer esperanças, depois de ter esperado tanto durante um ano inteiro...
Entretanto ouvia Conce a dizer: “Chora, chora, faz-te bem. Também eu, quando os meus filhos fugiram
para a montanha, chorei não sei quanto tempo e depois senti-me melhor. Chora, chora, tens bom coração e faz
bem chorar... Michele, coitadinho, era mesmo um santo e tão instruído que, se não o matassem, ainda um dia
havia de ser ministro. É a guerra, sabe-se, e nesta guerra todos perdemos qualquer coisa. Mas os Festas mais do
que todos. A queles que perderam a fortuna refazem-na, mas um filho não se refaz... ah!... não, não se refaz...
Chora, chora que te faz bem...”
Em suma, chorei um bom bocado; entretanto, ouvia os outros em volta a falar dos seus assuntos; por fim
levantei a cabeça e vi Conce a, Vincenzo e Clorindo a discutirem a um canto da eira, não sei que porção de
farinha, e Rosetta, um pouco afastada, à espera, de pé, que eu acabasse de chorar. Olhei para ela e mais uma vez
fiquei assustada com a sua expressão, absolutamente apática e indiferente, de olhos secos, como se não tivesse
sentido nada, como se o nome de Michele não lhe dissesse coisa alguma. Pensei que ela se tornara insensível,
como quem sofre uma queimadura na mão e depois de cicatrizada a pode pôr mesmo em cima das brasas que
não sente nada. A o vê-la assim iria e apática, voltou-me de novo a dor pela morte de Michele, pois sabia que ele
a estimava muito e era talvez a única pessoa neste mundo que poderia fazê-la voltar ao seu estado normal; mas
Michele tinha morrido e não havia mais nada a esperar...
D igo a verdade: naquele momento, quase mais do que a morte de Michele, amargurou-me sobretudo a
maneira como Rose a acolheu tal notícia. Conce a tinha razão, era a guerra e agora também nós fazíamos
parte da guerra e nos comportávamos como se a guerra, e não a paz, fosse a condição normal do homem.
Por fim levantei-me e Clorindo disse: “Vamos então ver como ficam aqui instaladas.”
S eguimos Conce a até a barraca do feno já nossa conhecida. D esta vez, porém, não havia feno lá dentro,
mas sim três camas com colchões e cobertores.
Conce a explicou: “S ão as camas daquele desgraçado da estalagem de Fondi. Pobre homem, levaram-lhe
tudo, a estalagem ficou vazia, não há lá nada dentro, até os vasos de noite lhe tiraram... N ós, com estas camas,
ainda fazemos algum dinheiro durante o inverno. Refugiados que iam e vinham, sem nada, como ciganos,
pobre gente, pagavam um tanto por noite e assim arranjamos uns cobres... O s proprietários não estão cá,
fugiram; uns dizem que foram para Roma, outros, que estão em Nápoles.
Quando voltarem, damos-lhes as camas, claro, somos pessoas honestas...
entretanto, vamos fazendo algum dinheiro... Ah! Sabe-se, a guerra é a guerra...”
Clorindo disse nessa altura: “Mas estas duas senhoras não pagam nada.”
E ela, entusiasmada: “Pois, certamente, quem lhes ia pedir dinheiro? Somos todos uma família...”
Clorindo acrescentou: “E dá-lhes também de comer, depois fazemos contas.”
E ela: “De comer, pois decerto, coisas simples, comida do campo...”
Em suma, daí a pouco foram-se embora e eu fechei a porta da barraca e, quase no escuro, sentei-me numa
das camas, ao lado de Rose a. Estivemos caladas algum tempo; depois explodi com violência: “Mas que tens
tu? Pode saber-se? Não tens pena que Michele tenha morrido, dize, não tens pena? No entanto gostavas dele.”
N ão podia ver-lhe o rosto, porque ela tinha a cabeça inclinada e também porque estávamos quase às
escuras. Ouvi-a responder: “Sim, tenho pena.”
“E dizes isso com esse modo?”
“Como hei de dizê-lo?”
“Mas que se passa contigo, fala, nem sequer deitaste uma lágrima por aquele pobrezinho, que morreu para
defender gente pobre como nós. Que morreu mesmo como um santo...”
Ela não respondeu; eu, então, tomada não sei de que frenesi, sacudia por um braço, repetindo: “Mas o que
tens, pode saber-se o que tens?”
Ela libertou-se sem pressa e disse, lentamente, lacônica: “mamãe, deixa-me tranquila.”
D esta vez não lhe disse mais nada e fiquei um momento imóvel, de olhos arregalados, olhando na minha
frente. Ela, então, levantou-se, foi para a sua cama e deitou-se, voltando-me as costas. D eitei-me também e
adormeci.
Quando acordei, era noite fechada e Rosetta não estava na cama ao lado.
D urante um bocado fiquei imóvel, estendida de costas, incapaz de me levantar e de fazer fosse o que fosse,
não tanto por cansaço, mas por falta de vontade. D epois, através das paredes da barraca, ouvi Conce a, que
falava com alguém na eira; arranjei coragem, levantei-me e saí. Conce a tinha posto a mesa ao ar livre, perto da
porta, e já lá estava o marido, mas Rose a e Clorindo não os vi. A proximei me e perguntei: “O nde está Rose a?
Viram-na?”
Concetta respondeu: “Julgava que soubesses, saiu com Clorindo...”
“O que dizes?!...”
E ela: “S im, Clorindo foi com o carro levar uns refugiados a Lenola. E levou Rose a para não fazer sozinho a
viagem do regresso. Devem estar de volta amanhã à tarde.”
Eu fiquei para morrer. Rose a nunca teria feito coisa semelhante noutros tempos: ir-se embora assim, sem
me dizer nada, e ainda por cima acompanhada por esse Clorindo... I nsisti, quase incrédula: “Mas não deixou
nenhum recado?”
“N ada. D isse apenas que te avisasse. N ão quis acordar-te, é boa filha... Edepois, claro, a juventude, está na
idade, gosta de Clorindo e quer estar sozinha com ele. N ós, as mães, a partir de certa altura, somos um estorvo
para os filhos.
Também os meus saem de casa para estar sozinhos com as raparigas. E Clorindo é um rapaz bem parecido,
ele e Rosetta fazem um lindo par.”
Não me contive: “Se certas coisas não tivessem sucedido, ela não olhava para esse Clorindo.”
Mal pronunciei estas palavras, logo me arrependi de as ter dito, mas já era demasiado tarde, porque aquela
bruxa me saltou em cima, perguntando: ”Mas o que sucedeu? A chei estranho que Rose a fosse com ele, assim,
sem pensar, mas não fiz caso, claro, a juventude... Mas, dize-me, o que sucedeu?”
N ão sei porque, um pouco devido à raiva que me causava o procedimento de Rose a, um pouco para
desabafar o meu desgosto com alguém, fosse quem fosse, até mesmo com Conce a, não resisti e contei tudo: a
igreja, os marroquinos e o que nos tinham feito às duas. Conce a ia servindo a sopa e repetia: “Pobrezinha...
pobre Rosetta... como me entristece...”
D epois sentou-se e, quando acabei, comentou: “S abe-se, é a guerra... E os marroquinos, no fim de contas,
também são rapazes e, ao verem a tua filha tão nova e tão bonita, não resistiram, cederam à tentação... S abe-se,
é...”
Mas não a deixei acabar, de repente, saltei como uma fúria, com uma faca na mão, e gritei: “N ão sabes o que
tudo isto significou para Rose a! Tu és uma cabra e filha de outra que tal e queres que todas as mulheres sejam
como tu. Mas se tornas a falar de Rosetta dessa maneira, mato-te, palavra, tão certo como Deus existir!”
Ela, ao ver-me assim enfurecida, deu um salto para trás e depois, juntando as mãos: “J esus, porque te
zangas tanto? Q ue disse eu, no fim de contas? Q ue a guerra é a guerra e a juventude é a juventude, os
marroquinos também são rapazes... Mas não te zangues, Clorindo agora olhará por Rose a, e enquanto ele
olhar por ela verás que não lhe falta nada... Clorindo negocia no mercado negro, tem tudo o que quer, comida e
vestidos, meias, sapatos, está tranquila... Com ele Rosetta não tem nada a recear.”
Compreendi que era tempo perdido zangar-me com aquela mulher. Pousei a faca e comi um pouco de sopa
sem dizer palavra. Mas naquela noite a comida parecia me veneno: Rose a não me saia do pensamento, como
ela era antigamente e no que se tornara agora. Fora com Clorindo, como qualquer prostituta vai com o primeiro
homem que lhe aparece, e nem sequer me avisara e talvez mesmo nem quisesse mais viver comigo. A ceia
acabou em silêncio, depois retirei-me para a barraca e estendi-me na cama, mas sem poder dormir: e ali fiquei
de olhos arregalados, o ouvido à escuta e todo o corpo crispado não sei por que fúria.
N o dia seguinte Rose a não voltou e todo ele o passei impaciente, andando pelos laranjais e aproximando-
me de vez em quando da estrada principal a ver se ela chegava. Comi com Vincenzo e a mulher, que procurava
confortar-me, sempre no mesmo tom exaltado e estúpido, repetindo que, com Clorindo, Rose a estava bem e
daí em diante não lhe faltaria nada. Eu não respondia, sabia que não merecia a pena e, além disso, nem vontade
tinha de me zangar. Depois da ceia fui fechar-me na barraca e por fim adormeci.
Por volta da meia-noite senti a porta abrir-se devagarinho: abri os olhos e à luz do luar vi Rose a, que
entrava em bicos de pés. Caminhou às escuras até a mesinha de cabeceira que ficava entre as nossas duas
camas e, dai a pouco, acendeu a vela: fechei os olhos, fingindo que dormia. D epois entreabri-os. Rose a estava
de pé diante de mim e, à luz da vela, pude vê-la toda vestida de novo, como Conce a previra. Trazia um fato de
saia e casaco, de tecido fino, vermelho, uma blusa branca, sapatos pretos, brilhantes, de salto alto, e também
meias. D espiu primeiro o casaco e, depois de lhe lançar um longo olhar, pô-lo em cima da cadeira, aos pés da
cama. Em seguida tirou a saia, que pôs ao lado do casaco. Ficou em combinação, uma combinação preta, de
renda, daquelas que deixam ver aqui e além, pelos buracos, a carne branca: depois sentou-se e tirou os sapatos,
que olhou demoradamente, mirando-os bem à luz da vela antes de os pôr, ao lado um do outro, debaixo da
cama. A seguir tirou a combinação, despindo-a pela cabeça. E então, enquanto se esforçava por tirá-la, de pé,
contorcendo o tronco e as pernas, vi que trazia também uma cinta preta que lhe apertava as ancas, com várias
fitas a segurarem as meias. Rose a nunca usara cinta para prender as meias, nem preta nem de outra cor:
habitualmente usava ligas um pouco acima dos joelhos, e aquela cinta transformava-a por completo: o seu
corpo não parecia já o mesmo, parecia outro. A ntes era um corpo são e jovem, forte e limpo, próprio da
rapariga inocente que era: agora, ao contrário, por causa daquela cinta muito justa e preta, tinha um não sei quê
de provocante e vicioso: as coxas pareciam demasiado brancas, as nádegas demasiado redondas, o ventre
demasiado saliente. N ão era, em suma, o corpo da Rose a que fora até aí a minha filha: era, sim, o corpo da
Rose a que andava com o Clorindo. Levantei os olhos para o rosto e vi que também este mudara. A luz da vela
batia-lhe em cheio e Rose a, de repente, fez-me pensar, pela expressão ávida, absorta e matreira, numa mulher
de má vida que, depois de andar horas e horas nas ruas e nos quartos de aluguel, volta a casa, noite alta, e faz
contas aos ganhos do dia. Desta vez não me contive e exclamei, com voz forte: “Rosetta!”
Ela ergueu logo os olhos para mim, depois pronunciou lentamente e quase de má vontade: “mamãe?”
disse-lhe então: “Onde foste? Estive em cuidados durante três dias. Porque não me avisaste?”
“Onde estiveste?” Ela olhava para mim e por fim respondeu: “Fui com o Clorindo, mas voltei...”
Eu tinha me sentado na cama e insisti: “Mas, Rosetta, o que te aconteceu? Já não és a mesma...”
Ela retorquiu, baixinho: “E no entanto sou a mesma... porque havia de ter mudado?...”
Pronunciei, amargurada: “Mas, minha filha, esse Clorindo, quem o conhece? O que andas a fazer com ele?”
D esta vez não me respondeu. Estava sentada, de olhos baixos, mas por ela falava o corpo, agora nu, só com o
pára seios e a cinta, tão diferente do que era outrora.
Então perdi a paciência, levantei-me da cama, agarrei-a pelos ombros e sacudia, gritando: “Mas tu queres
fazer-me perder a cabeça com o teu silêncio?! S ei que não me respondes porque te portas como uma mulher
perdida e és amante do Clorindo... não dizes nada porque já não te importas com a tua mãe e queres continuar
a mesma vida quando te parecer.”
Ela não rugia nem mugia e eu continuava a sacudi-la; então perdi de todo a cabeça e berrei: “Mas, ao menos,
vais tirar isto!”
E tentei arrancar-lhe a cinta. Ela ainda desta vez não se mexeu nem protestou, continuou imóvel, de cabeça
baixa, quase enroscada a mim: e puxei-lhe a cinta, mas não fui capaz de lha tirar, era muito forte: então
empurrei a para cima da cama, ela caiu de bruços, a cara sobre a coberta, e dei-lhe duas grandes palmadas nas
nádegas: depois atirei-me para a minha cama, arfando, e gritei: “Mas não percebes que te tornaste uma reles
prostituta?”
Esperava, nem sei porquê, que ela desta vez protestasse. Mas não protestou, levantou-se da cama e dir-se-ia
preocupada somente com as meias, que eu, ao tentar arrancar-lhe a cinta, esticara demasiado. D e fato, a uma
delas tinham caído algumas malhas, de cima até ao joelho: vi-a meter um dedo na boca, molhá-lo de saliva,
inclinar-se e umedecer as malhas para não se romperem mais. D epois disse-me num tom razoável: “Porque não
dormes mamãe?... Já é muito tarde.”
Compreendi que não havia nada a fazer e, num ímpeto, estendi-me na cama e voltei-lhe as costas. S enti-a
mexer-se ainda durante algum tempo e podia ver a sua sombra que a luz da vela projetava na parede na minha
frente, mas não me voltei. Por fim ela apagou a luz, ficamos às escuras e ouvi a sua cama ranger, ao aninhar-se,
procurando a melhor posição para dormir.
A gora queria dizer-lhe muitas coisas que, enquanto havia luz e a podia ver, não fora capaz de dizer, tal a
raiva que me inspirava vê-la assim mudada. Q ueria dizer-lhe que a compreendia: compreendia que, depois
daquilo que sucedera com os marroquinos, ela não fosse já a mesma e quisesse ter um homem para se sentir
mulher e apagar assim a recordação do que lhe tinham feito; compreendia também que depois de ter sofrido o
que sofreu, mesmo à vista de N ossa S enhora, sem que ela fizesse fosse o que fosse para o impedir, já não
acreditasse em nada, nem mesmo na religião. Q ueria dizer-lhe tudo isto e talvez tomá-la nos braços e beijá-la e
acarinhá-la e chorar com ela. Mas, ao mesmo tempo, sentia que já não era capaz de lhe falar e de ser sincera,
porque ela tinha mudado e, ao mudar, mudara-me a mim também, e assim entre nós as duas tudo mudara...
Em suma, depois de ter pensado muitas vezes em levantar-me e ir deitar-me ao seu lado para a abraçar muito e
muito, renunciou e acabei por adormecer.
No dia seguinte e nos outros foi sempre a mesma música. Rosetta quase não me falava, não porque estivesse
ofendida, mas porque não tinha nada a dizer-me.
Clorindo estava sempre ao pé dela e não se envergonhava de a apalpar na minha frente prendendo-a pela
cintura ou acariciando-lhe a face, e Rose a consentia tudo, com ar de submissão complacente, quase
reconhecida. Conce a exclamava constantemente, juntando as mãos, que faziam na verdade um lindo par, e eu,
cá por dentro, me moia cheia de raiva e desespero, mas não podia fazer nem dizer nada, não era capaz.
Um dia experimentei lembrar-lhe o noivo, que estava na I ugoslávia: sabem o que me respondeu? “O ra,
também ele encontrou com certeza alguma eslava e de resto não vou esperá-lo toda a vida.” A liás, pouco tempo
parava na casa cor-de-rosa. Clorindo levava-a sempre no caminhão, que se tornara, por assim dizer, a verdadeira
casa deles. E era ver como ela obedecia e corria ao seu encontro.
Bastava que Clorindo chegasse ao terreiro e a chamasse, para deixar tudo imediatamente e ir ter com ele. E
não a chamava com a voz, mas com um assobio, como se faz aos cães, e parece que ela gostava de ser tratada
como um cão: via-se a uma légua de distância que era atraída para ele por algo que ela nunca antes
experimentara, essa novidade de que já não podia prescindir, como um bêbado não pode passar sem vinho e
um fumador sem cigarros. S im, tomara o gosto àquilo que os marroquinos lhe tinham imposto pela força; e era
esse talvez o aspecto mais triste da sua mudança, ao qual eu não podia resignar-me: que a sua revolta contra a
força que a violentara se exprimisse em aceitar e procurar essa força, e não em repeli-la e recusá-la.
Ela e Clorindo iam no caminhão a Fondi e às aldeias em redor de Fondi, e algumas vezes até Frosinone ou
Terracina ou mesmo até N ápoles, e então ficavam fora de noite; quando voltava, parecia-me ainda mais ligada a
Clorindo, e aos meus olhos, que lhe notavam a mínima mudança, ainda mais prostituta. N aturalmente não se
falava já em ir para Roma, onde de resto os Aliados ainda não tinham chegado.
Clorindo, entretanto, dava a entender que, mesmo depois de os A liados tomarem Roma, isso não significava
que abandonássemos logo Fondi: Roma não seria acessível durante muito tempo, seria declarada zona militar, e
para entrar lá iam ser necessárias não sei quantas licenças e quem sabe como e quando se poderiam obter. Em
suma, aquele futuro que no momento da libertação me parecia tão claro e luminoso, agora, devido ao
procedimento de Rose a, por um lado, e à presença de Clorindo, por outro, obscurecera-se de tal maneira que
eu própria já não sabia verdadeiramente se desejava voltar a Roma e retomar a nossa antiga vida, que estava
certa, não seria a mesma, uma vez que nós também deixáramos de ser como éramos. A queles dias que passei
na casita cor-de-rosa, no meio dos laranjais, foram os mais tristes de todo aquele período, pois Rose a andava
sempre enrolada com Clorindo; o que eles faziam, não o adivinhava somente, via-o com os meus próprios
olhos, pois faziam-no por assim dizer na minha frente. Às vezes, por exemplo, estávamos já na cama e eis que
ouvia, no terreiro, o assobio do costume; Rosetta levantava-se imediatamente, enquanto eu, furiosa, perguntava:
“Mas onde vais a esta hora, pode saber-se?...”
Ela nem sequer me respondia, vestia-se à pressa e saía a correr, sempre com a mesma expressão tensa, ávida
e absorta que lhe vi a primeira vez quando regressou de Lenola e me fizera compreender definitivamente que já
não era a mesma de outro tempo. Uma noite, julgo que Clorindo até esteve na barraca, pelo menos estou quase
certa disso, porque fui acordada pelo ranger da cama de Rose a e um leve cochichar; sentei-me no leito, à
escuta, de ouvido atento, e perguntei a Rose a, no escuro, se dormia: ela, numa voz aborrecida, respondeu:
“Claro que estou a dormir, que querias que estivesse a fazer? Agora acordaste-me...”
D eitei-me pouco convencida e creio que eles ficaram quietos e mudos até se persuadirem de que eu
adormecera novamente; depois Clorindo saiu, sorrateiramente, um pouco antes da alvorada. Mas dessa vez não
quis acender a vela: no fundo, preferia não os ver juntos na cama; e, quando ele saiu, aos primeiros alvores da
manhã, como disse, embora não estivesse a dormir, fingi que estava e conservei os olhos tão fechados que só o
senti pelo leve ranger da porta ao abrir-se e depois fechar-se. A maior parte das vezes, porém, iam os dois sabe-
se lá para onde, partindo na caminhoneta logo depois da ceia e voltando para casa alta noite.
I sto acontecia quase todos os dias; era um amor puramente físico, que nunca se saciava; ele andava sempre
com grandes olheiras negras e até parecia mais magro; Rose a, por seu turno, tornava-se, visivelmente, cada
dia mais mulher, com aquele não sei quê de lânguido e satisfeito que têm as mulheres quando andam bem
fartas e regaladas com o homem que lhes agrada e a quem agradam.
D epois de um mês desta vida, comecei a procurar conforto na ideia de que, apesar de tudo, Clorindo era um
belo rapaz, ganhava bem com a sua caminhoneta e o mercado negro e, enfim, podia casar com Rose a e tudo
ficaria em ordem. Esta ideia não me agradava muito, pois não simpatizava com Clorindo, mas, em suma, como
se costuma dizer, tinha de fazer boa cara à má fortuna; além disso, não era eu que casava com ele, mas sim
Rose a; e se ele lhe agradava, não havia nada a fazer. Pensava que casariam, iriam viver para Frosinone, onde
Clorindo tinha a família, teriam filhos, e talvez Rose a fosse feliz. Esta perspectiva confortou-me um pouco;
mas continuava inquieta porque Clorindo não falava de matrimônio, nem mesmo Rose a. A ssim, uma noite,
depois da ceia, na barraca, enchi-me de coragem e disse-lhe: “Bem, não sei nem quero saber o que vocês fazem
ou não fazem quando estão juntos, mas quero pelo menos saber se ele tem intenções sérias a teu respeito e, se
as tem, como espero, quando pensa casar contigo.”
Ela estava sentada na cama, diante de mim, atenta a tirar os sapatos.
Levantou-se, olhou-me e depois disse simplesmente: “Mas, mamãe, Clorindo já é casado, tem mulher e dois
filhos em Frosinone... “
Confesso que, ao ouvir esta resposta, me subiu o sangue à cabeça; apesar de tudo, sou da Ciociaria e nós, os
desses sítios, temos o sangue quente e por pouca coisa somos até capazes de dar uma facada. Então, sem sequer
me aperceber do que fazia, saltei da cama, fui-me a ela, agarrei-a pelo pescoço, atirei-a para cima do colchão e
comecei a esbofeteá-la. Ela procurava proteger-se como podia e eu continuava a bater-lhe e berrava: “Eu mato-
te!... Tu queres ser puta, mas eu mato-te!...”
Com os braços, Rose a procurava defender-se das minhas pancadas, mas não protestava nem reagia de
maneira nenhuma; por fim faltou-me o fôlego e deixei-a: ela não se mexeu, ficou como estava, enrodilhada em
cima da cama, o rosto enterrado na almofada, e não se sabia se chorava, se pensava, ou o que fazia.
Eu olhava-a fixamente, sentada na minha cama, ainda ofegante, sentindo dentro de mim um desespero
indescritível: compreendi que podia até matá-la, mas não serviria de nada; agora era impotente, já não tinha
nenhuma autoridade sobre ela...
fugira-me para sempre... Por fim disse, cheia de raiva: “Vou falar com esse patife do Clorindo. S empre quero
ver o seu descaramento e o que vai responder-me.”
A estas palavras, Rose a levantou-se e vi-lhe os olhos enxutos e o rosto, como de costume, apático e
indiferente. disse-me tranquilamente: “N ão verás Clorindo porque voltou para a família. N ão tinha mais nada a
fazer em Fondi. Foi para Frosinone e despedimo-nos esta noite. N ão o tornarei a ver, o sogro ameaçou-o de lhe
tirar a filha e, como é a mulher que tem os cobres, não teve outro remédio senão obedecer...”
Fiquei mais uma vez sem fôlego, pois, confesso, não esperava tal. S obretudo não esperava que ela me
anunciasse com tamanha indiferença que se tinha separado de Clorindo, como se o caso não lhe dissesse
respeito. N o fim de contas, fora esse o primeiro homem que passara na sua vida: cá bem no íntimo, sempre
supus que se amassem realmente; no entanto, não era verdade, tinham andado um com o outro como um
homem anda com uma prostituta qualquer: ele paga, ela recebe o dinheiro, e não têm mais nada a dizer e
separam-se sem saudades, como se nunca se tivessem visto nem conhecido, A h! N a verdade, Rose a mudara
mesmo, não pude deixar de repeti-lo a mim própria, mais uma vez, mas eu, habituada a considerá-la a minha
Rose a de outros tempos, nunca chegaria a compreender até que ponto ela estava mudada! Estupefata,
comentei: “Então foste sua amante e ele agora deixa-te e vai se embora e dizes-me isso dessa maneira!”
Ela respondeu: “Como querias que o dissesse?”
Fiz um movimento de raiva e ela teve um gesto de medo, como se receasse que eu lhe batesse novamente; e
também isso me amargurou, porque uma mãe não gosta de ser temida, mas sim amada. disse-lhe: “Está
tranquila, não te tocarei mais... mas parte-se me o coração por te ver chegar ao que chegaste.”
Ela desta vez não respondeu e continuou a despir-se. Então, de súbito, gritei, numa voz exasperada: “E agora
quem nos leva para Roma? Clorindo dizia que nos levava quando Roma fosse libertada pelos A liados, Roma foi
libertada, Clorindo desapareceu, e agora quem nos leva para lá? A manhã, seja como for, volto para Roma, nem
que vá a pé.”
Ela respondeu calmamente: “Para Roma não se pode ir por estes dias, mas, de qualquer modo, um dos
filhos de Conce a leva-nos para Roma, logo que lá se possa entrar. N ão aqui amanhã à noite, pois foram
acompanhar Clorindo a Frosinone: a sociedade desfez-se e eles ficaram com o caminhão. Está tranquila que
voltaremos para Roma.”
Esta notícia também não me deu prazer, Até então não pusera ainda a vista nos filhos de Conce a,
empenhados, ao que supunha, nos negócios do mercado negro em N ápoles: mas lembrava-me muito bem
deles, mais antipáticos ainda do que Clorindo, se era possível, e a ideia de fazer a viagem para Roma na sua
companhia não me agradava. Disse: “A ti já nada te importa, não é assim?”
Ela olhou-me, depois perguntou: “mamãe, porque me atormentas tanto?”
Havia na sua voz como que um reflexo do antigo afeto. Volvi-lhe, comovida: “Q uerida filha, tenho a
impressão de que mudaste e não sentes nada por ninguém, nem mesmo por mim.”
E ela: “Estarei mudada, não o nego, mas para ti sou sempre a mesma.”
Assim ela reconhecia que estava mudada, mas ao mesmo tempo tranquilizava-me, dando-me a entender que
me queria bem como antes. S em saber se devia entristecer-me ou consolar-me, fiquei calada, e a discussão
acabou ali. N o dia seguinte, como Rose a me anunciara, chegou o caminhão de Frosinone, mas só com um dos
filhos de Conce a, Rosário: o outro prosseguiria nos negócios em N ápoles. D os dois, ambos antipáticos, como
já disse, Rosário era aquele que me desagradava mais. N ão muito alto, atarracado e forte, com cara de bruto,
quadrada e escura, testa baixa, os cabelos chegando-lhe quase até os olhos, o nariz curto e o maxilar saliente,
era mesmo aquilo que em Roma se chama um labrego, ou seja, um homem rústico, um vadio do campo, que
ainda por cima não era bom nem inteligente. À mesa, no mesmo dia em que chegou, ele, que nunca dizia nada,
tornou-se quase loquaz.
Disse a Rosetta: “Trago-te cumprimentos do Clorindo: irá ver-te a Roma, quando lá estiveres.”
Rosetta respondeu, secamente, sem levantar os olhos: “Dize-lhe que não vá, não o quero ver mais.”
Compreendi então pela primeira vez que toda aquela indiferença de Rose a era fingida: ela sentira e talvez
sentisse ainda qualquer coisa por Clorindo. É estranho, mas o fato de ela sofrer por causa daquele homem tão
desprezível aborreceu me ainda mais do que a ideia de não querer saber dele para nada.
Rosário perguntou: “Porquê? Que mal te fez ele? Já não te agrada?”
Eu irritava-me por ver Rosário falar a Rose a sem respeito nem amabilidade, como quem fala a uma
prostituta, que não tem o direito de protestar nem de se indignar: e irritei me ainda mais quando Rose a
respondeu: “Clorindo fez-me uma coisa que não devia ter feito. N unca me disse que era casado,.S ó o soube
ontem, quando decidimos separar-nos. Enquanto lhe fez jeito, ocultou-o: logo que lhe conveio dizê-lo, disse-o.”
A gora era sina minha não compreender nenhuma das reações de Rose a e fiquei uma vez mais apalermada,
dolorosamente confundida; assim, ela soubera só no último momento que Clorindo tinha mulher e filhos e
falava naquele tom, como de um despeito sem importância, próprio de uma prostituta sem orgulho nem
dignidade que sabe que não pode fazer-se valer perante o homem que ama. Fiquei sem fôlego: entretanto
Rosário, com um risinho zombeteiro, observou: “E porque havia de dizer-lhe? N aturalmente vocês iam casar,
não?”
Rose a baixou a cabeça para o prato e não respondeu. Mas aquela bruxa da Conce a saltou logo: “I deias de
outros tempos... Com a guerra, sabe-se, tudo mudou, os rapazes fazem a corte às raparigas sem lhes dizerem se
são casados ou não e as raparigas andam com os rapazes sem lhes pedirem que casem com elas. I deias de
outros tempos... tudo mudou... que importa que se seja casado ou não, que se tenham filhos e mulher ou não?
I deias de outros tempos... O importante é quererem-se bem e Clorindo gostava de Rose a... bastava ver como a
trazia vestida: antes de se encontrarem parecia uma cigana e agora parece uma senhora.”
Com estas palavras, Conce a, sempre pronta a defender os malandros, pois no fundo era igual a eles, dizia
uma grande verdade: a guerra mudara tudo e eu tinha a prova disso diante dos meus olhos, na minha própria
filha, que sempre fora anjo de pureza e bondade e agora se tornara uma prostituta insensível e sem vergonha.
Tudo isto eu sabia que era verdade; no entanto, o que via e ouvia confrangia-me da mesma forma o coração; por
isso saltei contra Conce a: “Tudo mudou, uma gaita! Vocês é que estavam todos à espera da guerra, tu e os
teus filhos, e esse malvado do Clorindo. Esses assassinos dos marroquinos, em suma, todos quantos queriam
dar largas aos seus instintos e fazer o que em tempos normais nunca teriam a coragem de fazer. Mas eu digo-te
que isto não durará muito tempo e um dia tudo volta a entrar nos eixos, e então tu e os teus filhos e esse
Clorindo hão de ficar em maus lençóis, muito maus mesmo, ao perceberem que ainda há moral, religião e leis e
que as pessoas honestas valem mais do que os canalhas.”
A o ouvir-me falar assim, Vincenzo, meio palerma, ele que tinha roubado os Festas, abanou a cabeça,
dizendo: “Palavras de ouro!”
Mas Concetta encolheu os ombros e disse: “Porque te zangas tanto? O que é preciso é viver e deixar viver...”
Rosário, esse, pôs-se a rir e comentou: “Tu, Cesira, és uma mulher de antes da guerra, e nós, meu irmão, eu,
Rose a, minha mãe e Clorindo, somos gente do pós-guerra. Por exemplo, olha: fui a N ápoles com um
carregamento de conservas americanas e peúgas de militares, vendi logo tudo, tornei a carregar o caminhão
com coisas para vender na Ciociaria e eis o resultado...”
Dizendo isto, tirou um maço de notas de banco e abanou-o diante do meu nariz.
“Ganhei mais num dia do que o meu pai nos últimos cinco anos. Tudo mudou, agora já não estamos no
tempo em que Berta fiava, deves convencer-te disso! E, depois, porque te ralas tanto com Rose a? Ela também
compreendeu que a linguagem que se falava antes da guerra não é a mesma de hoje e pôs-se em dia, aprendeu
a viver. A ti talvez nunca te tenha agradado muito o amor, e ensinaram-te que, sem o padre a abençoá-lo, o
amor não é amor, ou, antes, não se pode amar.
Mas Rosetta, essa, sabe que, com padre ou sem padre, o amor é sempre amor...
Não é verdade, Rosetta?... Vá, dize à tua mãe o que sabes.”
Eu estava pasmada. Mas Rose a continuava calma e serena, quase parecia gostar daquela maneira de falar
de Rosário, que continuou: “Por exemplo, há tempos estivemos em N ápoles todos juntos, Rose a, Clorindo,
meu irmão e eu, como amigos, sem ciúmes e sem complicações. E, embora entre nós estivesse Rose a e Rose a
agradasse a todos, Clorindo, meu irmão e eu ficamos amigos como antes. E divertimo-nos os quatro, não é
verdade, Rosetta, que nos divertimos?”
Toda eu tremia como varas verdes, porque compreendia agora que Rose a não só fora amante de Clorindo,
o que já era mau, mas também servira para distrair todo o bando, e talvez se tivesse entregado não só a
Clorindo, como já sabia, e a Rosário, como ficara agora a saber, mas também ao outro filho de Conce a e talvez
até a qualquer meliante napolitano, desses que vivem à custa de mulheres e as trocam entre si como
mercadorias. Rose a passara a ser uma pobre desgraçada a quem os homens faziam o que queriam, porque, no
momento em que fora violada pelos marroquinos, a sua vontade se estilhaçara e, ao mesmo tempo, qualquer
coisa que ela até então ignorara-lhe tinha entrado na carne, como um fogo que a queimava, fazendo-a desejar
ser tratada por todos os homens que encontrava da mesma maneira como a tinham tratado os marroquinos.
Rosário, entretanto, como a ceia terminara, levantou-se e, apertando o cinto, disse: “Bem, vou dar uma volta
no caminhão. Rosetta, queres vir comigo?”
Vi Rose a fazer um aceno de concordância, pousar o guardanapo na mesa e preparar-se para se levantar,
com aquela cara ávida e concupiscente que lhe notara à luz da vela, no primeiro dia em que se escapara com
Clorindo. Movida não sei por que impulso, ordenei: “Proíbo-te que te levantes, não sais daqui!”
Houve um momento de silêncio, Rosário olhava-me com fingida admiração, como se dissesse: “Mas o que se
passa? O mundo está às avessas?” Depois, dirigindo-se a Rosetta, ordenou: “Então, vamos, despacha-te!”
Eu disse ainda, não já em tom de mando, mas de pedido: “Rosetta, não vás.”
Mas ela já se tinha levantado e respondeu-me: “mamãe, até logo...”
Em seguida, sem se voltar, juntou-se a Rosário, que se afastava muito senhor de si, enfiou-lhe a mão no
braço e desapareceu com ele nos laranjais. A ssim, Rose a obedecera a Rosário de olhos fechados, como antes
obedecia a Clorindo, e ele levava-a para qualquer prado e eu não podia fazer nada. Conce a exclamou: “S abe-
se, as mães têm o direito de proibir o que quiserem às filhas... Porque não haviam de ter?... Mas também as
filhas têm o direito de andar com o homem que lhes agrada, porque não?... Claro, as mães nunca estão de
acordo com os homens que agradam às filhas, mas a juventude tem os seus direitos e nós, as mães, temos de
compreender e perdoar e compreender...”
Eu desta vez não disse nada, fiquei de cabeça baixa, como uma flor murcha, o rosto banhado pela luz do
acetilene, em volta do qual as borboletas voavam e de vez em quando caíam mortas, queimadas pela chama. E
pensava que a minha pobre Rose a era mesmo parecida com essas borboletinhas: a chama da guerra queimara-
a e ela estava morta, pelo menos para mim...
N aquela noite Rose a voltou muito tarde e eu nem sequer a senti quando entrou. Mas, antes de adormecer,
pensara nela durante muito tempo e no que lhe acontecera e no que se tornara: depois, é estranho dizê-lo, o
meu pensamento fixou-se em Michele, e em todo o resto da vigília não pensei senão nele. N ão tinha tido ainda
coragem de ir fazer uma visita aos Festas para lhes dizer quanto me amargurara a morte do filho, tanto que era
como se me tivesse morrido um filho, nascido do meu ventre. Mas, da mesma forma, em todo esse tempo, a sua
morte, tão cruel e injusta, ficara-me cravada no coração como um espinho, Era a guerra, dizia Conce a... E a
guerra atinge justamente os melhores, porque são os mais corajosos, os mais altruístas, os mais honestos: uns
morrem como o pobre Michele, outros ficam estropiados para toda a vida como a minha Rose a. E, ao
contrário, os piores, os que não tem coragem, nem fé, nem religião, nem orgulho, os que roubam e matam e
pensam só em si e tratam apenas dos seus interesses, esses salvam-se e prosperam e tornam-se ainda mais
descarados e canalhas do que eram antes.
S e Michele não tivesse morrido, pensava, decerto me daria algum bom conselho e eu não teria saído de
Fondi para a minha aldeia e não teríamos encontrado os marroquinos e Rose a continuaria a ser o anjo de
bondade e pureza que sempre fora. E dizia de mim para mim que a sua morte fora mesmo uma desgraça,
porque ele fora tudo para nós as duas, um pai, um marido, um irmão e um filho e, embora fosse bom como um
santo, quando era necessário sabia ser duro e sem piedade para os patifes do gênero do Rosário e Clorindo. E
possuía uma força que a mim me faltava, pois era não só bom, como também instruído, e sabia muitas coisas e
julgava do alto os fatos da vida, e não terra a terra como eu, que era uma pobre ignorante que mal sabia ler e
escrever e até agora tinha vivido sempre só para o negócio, entre a casa e a loja, sem querer saber de mais nada.
D e repente, não sei como nasceu em mim um desespero e um frenesi indescritível; e de súbito decidi que
não queria viver mais num mundo como este, no qual os homens bons e as mulheres honestas não contam e os
tratantes é que dão leis; pensei que para mim, com Rosetta naquele estado, a vida já não tinha sentido, e mesmo
em Roma, com a casa e a loja, não tornaria a ser eu nem teria gosto de continuar a viver. A ssim, valia mais
morrer... E saltei da cama e, com as mãos a tremer de impaciência, acendi a vela e fui ao fundo do quarto buscar
uma corda que estava lá pendurada num prego e de que Conce a se servia para estender a roupa a enxugar,
depois da barrela. N aquele canto da barraca havia uma cadeira de palha: pus-me em cima dela, com a corda na
mão, resolvida a prendê-la em qualquer prego ou trave do teto e depois atá-la ao pescoço, dar um pontapé na
cadeira e deixar-me cair, acabando de vez. Mas, quando, já com a corda na mão, levantei os olhos para o teto em
busca de uma trave onde a prendesse, eis que sinto, atrás de mim, a porta abrir-se devagarinho. Voltei-me e vi
Michele na soleira, ele em pessoa.
Estava tal qual como o vira a última vez, quando os nazis o levaram, e notei que, como então, tinha uma
perna das calças mais comprida, a roçar no sapato, e a outra mais curta, chegando-lhe apenas ao artelho. Trazia
óculos, como sempre, e para me ver melhor, baixou a cabeça e olhou-me por cima dos óculos, como fazia em
vida.
A o ver-me assim de pé em cima de uma cadeira, com uma corda na mão, fez imediatamente um gesto, como
se dissesse: “Não, não faças isso, não deve; fazê-lo.”
Eu perguntei: “E porque não devo fazê-lo?”
Michele abriu a boca e disse qualquer coisa que não entendi: depois continuou a falar e eu procurava ouvi-
lo, mas não ouvia nada, era mesmo como quando se quer ouvir o que nos diz uma pessoa que está por trás de
um vidro e se vê que ela mexe os lábios, mas, por causa do vidro, não se ouve o que diz, Gritei-lhe: “Fala mais
alto, que não ouço!”
E nesse instante acordei, alagada em suor. Compreendi então que tudo tinha sido um sonho: a tentativa de
suicídio, a interferência de Michele e as suas palavras que não consegui ouvir. Ficou-me, porém, o desgosto
angustioso, amargo, violento, de não ter ouvido o que ele me dizia; durante algum tempo voltei-me e tornei a
voltar-me na cama, perguntando a mim própria o que poderia ser: decerto Michele me dissera por que motivo
não devia matar-me e valia a pena viver, por que razão a vida, em qualquer caso, era melhor do que a morte.
S im, ele com certeza me explicou, em poucas palavras, o sentido da vida, que nós, vivos, não percebemos, mas
que os mortos, ao contrário, compreendem, clara e limpidamente. E, para maior desgraça minha, nem pudera
ouvir o que ele me dizia, embora aquele sonho tivesse sido verdadeiramente uma espécie de milagre, e os
milagres, sabe-se, são milagres precisamente porque tudo pode acontecer, até as coisas mais incríveis e mais
raras.
O milagre dera-se, mas fora apenas meio milagre: Michele aparecera-me e não deixara que eu me suicidasse,
é verdade, mas eu, por culpa minha, decerto, porque não era digna disso, não fiquei sabendo porque não devia
fazê-lo. A ssim tinha de continuar a viver, mas como antes, como sempre, sem saber por que razão a vida é
preferível à morte.
CAPÍTULO XI

E assim chegou o grande dia do regresso a Roma. Mas como foi diferente do que eu imaginara nos meus
sonhos, durante os nove meses vividos em S anta Eufêmia!... S onhara um regresso alegre e feliz, num desses
caminhões militares repletos de rapagões loiros, ingleses ou americanos, contentes, simpáticos, cheios de vida,
e Rose a ao meu lado, doce e tranquila como um anjo; e talvez Michele fosse também conosco, igualmente
muito feliz. E eu numa grande ansiedade por ver aparecer no horizonte a cúpula de S ão Pedro, que é a primeira
coisa que se vê de Roma, e o coração repleto de esperança, e a cabeça a zunir, cheia de projetos em relação a
Rosetta e ao seu casamento e à loja e à casa.
Pode dizer-se que naqueles nove meses estudei todos os pormenores desse regresso e até cada pormenor
desses pormenores. E tinha imaginado também a nossa chegada a casa, com Giovanni a acolher-nos, calmo e
sorridente, o charuto apagado ao canto da boca, e os vizinhos que se juntavam em volta de nós e que nós
abraçávamos a sorrir e a dizer: ”Bem, já cá estamos, depois contaremos tudo o que nos sucedeu.”
Tinha pensado em todas estas coisas e em muitas outras, e lembro-me que, ao pensar nelas, me surpreendia
às vezes a sorrir com antecipada alegria, mas nunca, mesmo nunca, me passou pela mente que as coisas não
sucedessem tal qual como eu as imaginava. Em suma, não previ que, como dizia Conce a, a guerra é a guerra,
isto é, que, mesmo quando já está prestes a extinguir-se, ainda é a guerra e, qual fera moribunda que continua a
querer fazer mal, pode ainda dar-nos uma patada. O ra a guerra dera-nos patadas bem fortes mesmo nas
vésperas de acabar: os marroquinos violaram Rose a, os nazis mataram Michele e nós as duas tínhamos agora
de ir para Roma no caminhão daquele malandro do Rosário, e eu, em vez de tantas coisas alegres que imaginara
saborear, tinha a alma cheia de tristeza, de desilusão e de desespero.
Era uma manhã de junho, já com o calor e a luz de verão no céu afogueado e na terra seca e poeirenta.
Rose a e eu, dentro da barraca, acabávamos de nos vestir pois o caminhão de Rosário esperava-nos na estrada
principal. Rose a passara parte da noite fora, e eu, que o sabia e a vira entrar sorrateiramente, continuava a
experimentar aquele sentimento de impotência de que já falei: minha alma transbordava de palavras que queria
dizer, mas minha boca não sabia exprimi-las. Todavia, por fim, consegui pronunciar, enquanto ela se lavava a
um canto, de pé diante da bacia: “Posso saber onde estiveste esta noite?”
Esperava novo silêncio ou qualquer resposta breve; mas desta vez não foi assim, não sei porquê. Rose a
acabou de se limpar, depois voltou-se para mim e disse-me numa voz clara e firme: “Estive com Rosário. E não
me perguntes mais o que faço, para onde vou e com quem estou, porque ficas a sabê-lo agora: faço amor, onde
posso e com quem posso. E quero também dizer-te que isso me agrada, ou, melhor, que não posso nem quero
deixar de o fazer...”
Exclamei: “Mas com Rosário, minha filha, não vês quem é Rosário...”
E ela: “Com ele ou com outro, para mim é igual. J á te disse, é a única coisa que me agrada e me apetece
fazer. E daqui por diante será sempre assim, por isso não me faças mais perguntas, pois não poderei responder-
te de outra maneira.”
Ela nunca falara tão claro, ou, antes, era a primeira vez que me falava assim; compreendi que, enquanto não
lhe passasse aquele frenesi, devia proceder como ela me dizia: não lhe perguntar nada, calar-me. E foi o que fiz:
acabei de vestir-me em silêncio, enquanto ela, do outro lado do leito, fazia o mesmo.
S aímos, por fim, da barraca e encontramos Rosário, sentado à mesa com a mãe, a comer uma salada de
cebolas com pão. Conce a veio logo ao nosso encontro e começou a fazer-nos os discursos do costume,
desconexos e exaltados, que tanto me irritavam ao princípio de a conhecer, quanto mais agora.
“Então, sempre se vão embora, voltam para Roma, abençoadas sejam, suas felizardas... Vão-se embora e
deixam-nos, a nós, pobres camponeses, aqui neste deserto, onde não há mais nada senão fome e todas as casas
estão em ruínas e toda a gente anda rota e nua como os Ciganos... S uas felizardas, vão fazer vida de senhoras
em Roma, onde há abundancia... O que os I ngleses deram aqui só durante três dias darão lá o ano inteiro... Mas
fico contente, porque gosto de vocês e dá-nos sempre prazer que as pessoas de quem gostamos sejam felizes e
estejam bem.”
Para me furtar a tais efusões. repliquei: “S im, somos umas felizardas... E tivemos muita sorte, não haja
dúvida...
Sobretudo por termos encontrado uma família como a vossa.”
Mas ela não compreendeu a ironia e continuou: “Podes dizê-lo bem alto, que somos uma boa família.
Estiveram aqui como em vossa casa, foram tratadas como irmã e filha, comeram, beberam, dormiram e
estiveram à vontade. Ah! Famílias como a nossa não há muitas!...”
“Felizmente!”, ia eu responder, mas detive-me, pois agora tinha pressa de partir, mesmo com aquele
Rosário que me era tão odioso, contanto que não estivesse mais tempo naquela clareira fechada, entre aqueles
laranjais tão espessos que me pareciam uma prisão. D espedimo-nos de Vincenzo, que nos disse, com o seu ar
meio aparvalhado: “J á nos deixam? Mas há tão pouco tempo que chegaram! Porque não ficam ao menos para as
festas de agosto?”
Conce a quis abraçar-nos e beijar-nos nas duas faces, com uns beijos sonoros, que soavam tão falsos como
as suas palavras. Por fim, lá seguimos pelo carreiro, voltando para sempre as costas àquela maldita casa cor-de-
rosa. Na estrada principal estava o caminhão. Subimos, Rosetta ao lado de Rosário e eu ao lado de Rosetta.
Rosário ligou o motor engrenou e pôs o carro em movimento, gritando “Partida para Roma!” O caminhão
rolou velozmente em direção à estrada nacional.
Era já manhã alta; um sol de junho, ardente, seco, cheio de força, alegre e jovem, iluminava a estrada branca
de pó e as sebes também esbranquiçadas pela poeira; quando o caminhão abrandava, ouviam-se, em cima das
poucas árvores que ladeavam a estrada, as cigarras cantar, escondidas entre a folhagem. A o ouvir esse canto, ao
ver aquele pó tão branco na estrada e nas sebes e as cotovias que desciam para debicar os excrementos das
mulas e depois levantavam de novo voo no céu luminoso, vieram-me de repente as lágrimas aos olhos. S im,
este era o campo, o meu querido campo, onde foi criada, onde cresci e onde me refugiei no período da carestia e
da guerra, como quem se acolhe junto de uma mãe muito velha que já viveu e viu muito e, não obstante,
continua boa e sabe tudo e tudo perdoa. Mas o campo tinha-me traído; tudo se conjugara para acabar mal;
agora eu estava mudada e o campo continuava a ser o mesmo de sempre: o seu sol aquecia todas as coisas
menos o meu coração gelado; as cigarras cantavam, belo canto que dá prazer ouvir quando se é novo e se gosta
de viver, mas que me parecia fastidioso agora, que nada mais esperava da vida: e o cheiro do pó quente, que
inebria os sentidos ainda virgens e não satisfeitos, sufocava-me como se me tapassem o nariz e a boca. O campo
tinha-me traído e eu voltava para Roma sem esperanças, ou, pior, desesperada. Chorava baixinho e bebia as
lágrimas amargas que me desciam dos olhos, procurando no entanto voltar a cabeça para o lado da estrada,
para evitar que Rosário e Rose a me vissem chorar. Mas Rose a percebeu e perguntou: “Porque choras,
mamãe?”, numa voz tão doce que me fez quase pensar que se tornara de novo, por um milagre do céu, a minha
Rosetta de outros tempos.
I a responder-lhe quando, voltando-me, vi a sua mão pousada na coxa de Rosário, muito em cima, e lembrei-
me de repente que eles iam calados há alguns minutos, nem sequer se mexiam... Compreendi o significado
daquele silêncio e daquela imobilidade... Mesmo diante dos meus olhos!... A quela doçura da voz de Rose a não
era a doçura da inocência, mas a do prazer... E acariciavam-se sem pudor e sem vergonha, enquanto ele guiava,
logo de manhã cedo, como os animais no cio, que fazem aquilo a todas as horas e em qualquer sítio. D isse
então: “Choro de vergonha, é por isso que choro...”
A estas palavras, Rose a teve um movimento como que para retirar a mão; mas o odioso Rosário agarrou-
lhe e tornou a pô-la em cima da coxa. Ela resistiu um momento, ou, pelo menos, assim me pareceu; depois ele
deixou-lhe a mão e ela não a retirou; compreendi uma vez mais que, para ela, o que fazia era mais forte do que a
minha vergonha e até do que a sua, embora, apesar de tudo, fosse capaz de senti-la.
Entretanto rodávamos na Via Ápia; os grandes plátanos que desfilavam dos dois lados da estrada juntavam
a folhagem nova e espessa por cima das nossas cabeças. Parecia que corríamos no interior de uma galeria verde;
o sol, rompendo aqui e além por entre as folhas, alongava de quando em quando os seus raios na estrada e dir-
se-ia então que até o asfalto, tão opaco, se tornava matéria luminosa e palpitante, semelhante ao lombo de um
animal, quente de sangue e de vida. Eu ia com a cabeça virada para a estrada, para não ver o que Rose a e
Rosário faziam; para me distrair dos meus tristes pensamentos, comecei a observar a paisagem. Vi as
inundações provocadas pelos A lemães quando fizeram saltar os diques, com as suas águas azuis encrespadas
pelo vento, de onde emergiam aqui e além uns tufos de árvores e ruínas, onde outrora havia campos cultivados
e quintas. D epois de S an Biagio, a estrada seguia à beira-mar. O mar estava calmo, varrido por uma brisa ligeira
e fresca que fazia correr de través inúmeras ondas azuis; e cada onda mostrava um reflexo de luz a cintilar e
todo o mar parecia sorrir ao sol. A gora, Terracina. Fez-me ainda mais impressão do que Fondi, uma verdadeira
desolação, as casas todas esfoladas pelo fogo das metralhadoras e furadas por buracos grandes e pequenos, e as
janelas negras como os olhos dos cegos, ou, pior ainda, azuis, porque só restava a fachada e montões de
escombros poeirentos e fossos cheios de água amarela em toda a parte e por elas se via o céu. N ão havia
ninguém em Terracina, pelo menos assim me pareceu, nem na praça principal, onde a fonte tinha a taça cheia
de caliça até acima, nem nas ruas compridas e direitas, marginadas por ruínas, que iam em direção ao mar.
Pensei que em Terracina devia ter acontecido o mesmo que em Fondi: o primeiro dia fora uma feira, uma
grande multidão, soldados, camponeses e refugiados, distribuições de mantimentos e roupas, alegria e alarido,
em resumo, vida, depois o exército avançara para Roma e, repentinamente, a vida cessara, ficando apenas um
deserto de ruínas e silêncio.
Passada Terracina, continuamos a correr loucamente pela estrada que vai em direção a Cisterna, tendo de
um lado o canal denso e verde do saneamento e do outro uma vasta planície, aqui e além alagada, estendendo-
se até o sopé das montanhas azuis que limitavam o horizonte. D e vez em quando, à beira da estrada via-se, nos
fossos, a carcaça de um carro militar, de rodas para cima, já enferrujado e irreconhecível, como se a guerra
tivesse passado ali há muitos anos; de tempos a tempos, também, num campo de trigo, avistava-se, imóvel,
apontando para o céu, o canhão alongado de um carro de assalto e, quando nos aproximávamos, víamos o carro
inteiro afundado entre as espigas altas, imóvel e ressequido como um animal ferido de morte e depois
abandonado.
Rosário guiava agora a grande velocidade, só com uma das mãos, enquanto com a outra apertava a de
Rose a no regaço dela. Eu não podia suportar aquele espetáculo, um indício mais da mudança que se operara
na minha filha, e de repente, nem sei porquê, lembrei-me que ela sabia cantar bem e tinha uma bonita voz,
doce e musical, e, quando estava em casa, ocupada na lida doméstica, costumava cantar para fazer companhia a
si própria, e eu, no quarto ao lado, muitas vezes me encantava a ouvi-la, porque naquela voz que se elevava,
tranquila e alegre, e parecia nunca se cansar nem perder o fio da canção, estava todo o seu caráter, como era
então e agora deixara já de ser. Lembrei-me do seu canto nessa estrada entre Terracina e Cisterna e
experimentei como que o impulso de ressuscitar, nem que fosse por um momento só, a ilusão da Rose a de
outro tempo.
D isse: “Rose a, porque não cantas qualquer coisa? S abias cantar tão bem... Vá, canta uma canção bonita...
de outro modo, com este sol e esta estrada tão reta, acabamos por adormecer...”
Ela respondeu: “O que queres que eu cante?”
D isse, ao acaso, o nome de uma canção que estivera em voga alguns anos antes e ela começou a cantar, com
toda a força, imóvel, sempre com a mão de Rosário no seu regaço. Mas vi que já não era a mesma voz; parecia
menos decidida e menos melodiosa; também errava a música; ela apercebeu-se disso, pois repentinamente
interrompeu-se e disse: “Tenho medo de já não saber cantar, mamãe, sinto-me sem vontade.”
D eu-me ganas de lhe gritar: “Te sentes sem vontade e já não sabes cantar porque tens essa mão no regaço e
já não és tu, nem tem o sentimento de outro tempo, que te enchia o peito e te fazia cantar como um
passarinho!”, mas não tive coragem de falar. Rosário disse então: “Bem, se querem, canto eu.”
E começou, em voz rude, a entoar uma canção vulgar e brejeira. Eu agora sofria ainda mais do que antes:
pelo fato de Rose a não poder cantar - até nisso estava mudada! - e também por ouvir cantar Rosário.
Entretanto, o carro seguia a uma velocidade louca e bem depressa chegamos a Cisterna. Também aqui, como
em Terracina, era completa a desolação. Lembro-me, sobretudo, da fonte da praça, um semicírculo de casas
esburacadas ou destruídas: a taça estava cheia de destroços, no meio da taça via-se um pedestal com uma
estátua; esta estátua, porém, não tinha cabeça, mas sim um gancho de ferro negro no seu lugar, e conservava
apenas um braço e a este braço faltava a mão. Parecia uma pessoa viva, precisamente porque lhe faltavam a
mão e a cabeça. Também aqui não passava nem um cão; as pessoas ou estavam ainda nas montanhas ou
escondidas entre os escombros. D epois de Cisterna, a estrada atravessava uns bosques pouco densos de
sobreiros e não se via uma casa nem um cristão, mas somente, a perder de vista, chão verde e troncos torcidos e
vermelhos, que até pareciam esfolados.
A gora o dia não se mostrava tão bonito: dos lados do mar surgira um negrume, primeiro um pequeno leque
de nuvenzinhas cinzentas, depois esse leque foi-se abrindo e tornara-se imenso, com o cabo voltado para o mar
e as varetas, feitas de nuvens cinzentas e juntas, espalhadas por todo o céu.
O sol encobrira-se e o campo, com aqueles sobreiros torcidos e vermelhos, que dir-se-ia sofrerem por
estarem assim torcidos e vermelhos, ficara de uma só cor, desmaiada e opaca, sem luz. Havia uma solidão
completa; e, embora o ruído do motor não parasse um único instante, adivinhava-se que reinava um grande
silêncio, sem cantos de cigarras nem de pássaros.
Rose a dormitava; Rosário fumava, mesmo a guiar; e eu ora seguia com os olhos os marcos brancos dos
quilômetros, ora afundava o olhar por entre os sobreiros, sem ver nada nem ninguém. Depois a estrada fez uma
curva e eu, que continuava a olhar para os sobreiros, fui de súbito projetada para a frente, batendo com a
cabeça no vidro do para-brisas. Q uando retomei a minha posição, vi que a estrada estava cortada por um poste
telegráfico derrubado: ao mesmo tempo, três homens saíam do sobreiral e avançavam para nós, agitando as
mãos para mandarem parar o caminhão. Rosetta disse, acordando: “O que é?”
Mas ninguém lhe respondeu: eu não compreendia nada do que se passava e Rosário já tinha descido e
dirigia-se com decisão ao encontro dos três homens.
Estes, lembro-me muitíssimo bem, e ainda hoje era capaz de os reconhecer entre mil, estavam vestidos de
farrapos, como toda a gente naqueles dias; um era pequeno, loiro, de ombros largos e o fato de veludo
castanho; o segundo era alto, de meia idade, escanzelado, a cara tensa e magra, os olhos encovados e os cabelos
grisalhos em desordem; o terceiro era um rapaz do tipo comum, moreno, a cara larga, os cabelos negros, não
muito diferente de Rosário. Este, ao descer do caminhão, teve um gesto que não me passou despercebido: tirou
rapidamente do bolso um embrulho e escondeu-o no tablier. Eu compreendi que aquele embrulho tinha
dinheiro e compreendi também, repentinamente, que aqueles três homens eram ladrões. D epois tudo
aconteceu num relâmpago, enquanto Rose a e eu olhávamos, imóveis e paralisadas de assombro, através do
para-brisas, sujo de insetos esmagados, de pó e de sulcos de chuva que parecia acrescentar, à luz mortiça do céu
enevoado, não sei que melancolia e incerteza. Através desse vidro, vimos Rosário ir ao encontro dos três, com ar
decidido, pois era corajoso, e os outros afrontarem-no ameaçadores. Via Rosário de costas, mas via muito bem a
cara do loiro com quem ele falava: tinha a boca vermelha, um pouco torcida, com qualquer coisa como uma
erupção ou espinhas nos cantos.
Em resumo, o loiro falou e Rosário respondeu; o loiro falou outra vez e, à segunda resposta de Rosário, de
repente levantou a mão e agarrou-lhe a gola do casaco mesmo por baixo do pescoço. Rosário fez um movimento
com os ombros, primeiro para a direita, depois para a esquerda, libertando-se, e ao mesmo tempo vi-o, com
clareza, levar a mão ao bolso de trás das calças. Em seguida ouvi um tiro, depois outros dois, e julguei que fosse
Rosário a disparar. Entretanto ele voltou-se, como se se dirigisse para o caminhão, de cabeça baixa,
estranhamente incerto, e depois, de súbito, caiu de joelhos, mantendo-se nessa posição, com as mãos
estendidas para o chão; esteve um momento assim de cabeça baixa, como que a refletir, e por fim atirou-se de
lado. O s três, sem se importarem mais com ele, caminharam para o caminhão. O loirinho, agora com uma
pistola na mão, pendurou-se na portinhola e meteu a cabeça na cabina, dizendo-nos, arquejante: “Vocês as duas
desçam imediatamente, desçam!”
A o mesmo tempo agitava a pistola, não tanto para nos ameaçar, como talvez para nos dar a entender que
devíamos descer. Entretanto, os outros dois tiravam o poste da estrada. Vi que tínhamos de obedecer e disse a
Rosetta: “Bem, desçamos.”
E ia abrir a porta. Mas nesse instante o loirinho, já quase todo enfiado na cabina, inclinou-se para fora, a
olhar a estrada, e vi que os outros dois lhe faziam sinais, como que a adverti-lo de qualquer coisa de novo que
estava a acontecer.
Proferiu uma blasfêmia, saltou do caminhão, correu para os dois companheiros e vi-os fugir, todos três,
desesperadamente, por entre os sobreiros, onde bem depressa desapareceram, a correr aos ziguezagues.
D urante momentos não houve mais nada nem ninguém, a não ser o poste telegráfico afastado para um lado e o
corpo de Rosário imóvel no meio da estrada.
Disse então a Rosetta: “E, agora, o que fazemos?”
Mas quase ao mesmo tempo surgiu ao pé de nós um pequeno automóvel descoberto com dois oficiais
ingleses e um soldado a conduzir. O automóvel abrandou a marcha, pois o corpo de Rosário barrava o caminho,
mas não tanto que, andando ao rés da beira, não se pudesse passar; os dois oficiais voltaram-se, olharam para o
corpo e depois para nós as duas; vi um deles fazer um gesto ao condutor, como que a dizer: “Q uem morre está
morto, vamos para diante”, e o automóvel partiu logo, passou quase rente ao corpo de Rosário, retomou a
corrida e bem depressa desapareceu ao longe na estrada, numa curva. Então, não sei como, lembrei-me do
dinheiro que Rosário escondera no tablier; estendi a mão, peguei no embrulho e escondi-o no seio. Rose a viu-
me fazer o gesto e deitou-me um olhar que me pareceu quase de desaprovação. S ubitamente sentiu-se uma
chiadeira forte de freios e um caminhão parou ao mesmo tempo junto do nosso.
D esta vez era um italiano, um homem pequeno, de cabeça grande e calva, a cara pálida e toda suada, os
olhos redondos à flor da pele e suíças compridas descendo até ao meio do rosto. Tinha uma expressão
espantada e descontente, mas não má, como a de quem faz por dever um ato de coragem e ao mesmo tempo
amaldiçoa a sorte que o torna corajoso contra vontade. Perguntou à pressa: “Mas que sucedeu?”, sem sair do
caminhão, a mão na alavanca das mudanças.
disse-lhe: “Mandaram-nos parar e mataram aquele rapaz e depois fugiram. Q ueriam roubar. E agora nós,
que somos duas refugiadas...”
Ele interrompeu-me: “Para onde fugiram?”
I ndiquei o sobreiral; ele voltou para lá os olhos espantados e disse depois: “Por amor de D eus, depressa,
subam para o meu caminhão, se querem ir para Roma, mas depressa, andem depressa, por amor de Deus...”
Compreendi que, se hesitasse um momento, ele partiria, e apressei-me a descer, puxando Rose a pela mão.
Ele, então, gritou, com voz aflita: “Afastem esse corpo, afastem-no, senão não posso passar.”
O lhei e vi que, de fato, o caminhão dele, muito mais largo do que o pequeno automóvel dos oficiais ingleses,
não tinha espaço suficiente para passar entre a beira e o corpo de Rosário.
“A ndem depressa, pelo amor de D eus...”, recomendou outra vez, com aquela voz lamentosa; eu então
recuperei ânimo e disse a Rosetta: “Ajuda-me.”
Caminhei para o corpo de Rosário, estendido de lado, com um braço levantado por cima da cabeça, como
que para se agarrar a qualquer coisa que não tivera tempo de apanhar. I nclinei-me e peguei-lhe num pé, Rose a
inclinou-se e pegou-lhe no outro, e, assim, a custo, porque ainda pesava bastante, arrastamo-lo para um lado,
para a beira da estrada, as costas e a cabeça no chão e os braços estendidos ao comprido, sem vida, de rastos no
asfalto. Rose a foi a primeira a deixar cair o pé e eu logo a seguir fiz como ela; mas depois inclinei-me à pressa
para o morto, num gesto instintivo, quase com receio de descobrir que ainda estivesse vivo: na realidade, tinha
o embrulho do seu dinheiro no seio e convinha-me conservá-lo, porque nas nossas condições me fazia muito
jeito e queria ter bem a certeza de que ele estava na realidade morto. E estava mesmo morto, compreendi-o
pelos olhos, que tinham ficado abertos e olhavam não sei para onde, imóveis.
Confesso, naquele instante comportei-me como uma pessoa interesseira e vil, tal qual como se teria
comportado Conce a, em conformidade com a sua convicção de que a “guerra é a guerra”. Guardara o dinheiro
do morto; e, por causa do dinheiro, receava que o morto não estivesse morto, mas sim vivo; como verifiquei que
estava na verdade morto, quis compensar aquele meu abjeto receio com um ato de fé que não custava nada:
rapidamente, enquanto o homem do caminhão me gritava, impaciente: “Está descansada, já está morto, não há
nada a fazer...”, inclinei-me e fiz o sinal da Cruz com o indicador e o médio no peito de Rosário, no sítio onde o
casaco preto estava manchado com uma larga nódoa escura.
S enti, ao fazer esse gesto, os meus dedos aflorarem o tecido do casaco, que estava úmido; e depois,
enquanto corria juntamente com Rose a para o caminhão, olhei furtivamente os dedos com que fizera o sinal
da Cruz e vi-os vermelhos de sangue vivo, acabado de jorrar. Experimentei repentinamente, à vista daquele
sangue, um remorso obscuro, quase horror de mim mesma, por ter feito aquele gesto hipócrita no corpo do
homem que, momentos antes, tinha roubado, e esperei que Rose a não tivesse percebido. Mas, quando limpei
os dedos à saia, vi-a olhar para mim e compreendi que ela tinha visto tudo. Entretanto, subimos ambas para
junto do motorista. O caminhão partiu.
A quele homem guiava curvado para o volante, que segurava com ambas as mãos, como quem se agarra a
um destroço, os olhos esbugalhados, o rosto pálido, ofegante, cheio de medo; eu ia preocupada com o maço das
notas de banco que levava no seio e Rose a olhava em frente, a cara imóvel e apática, em que seria impossível
encontrar o reflexo de qualquer sentimento. Veio-me à ideia que nenhum dos três, cada qual pelos seus
motivos, tínhamos demonstrado piedade por Rosário, morto como um cão e abandonado na estrada; o homem,
amedrontado, nem sequer descera para ver se estava morto ou vivo; eu preocupara-me sobretudo em verificar
se na verdade estava morto por causa do dinheiro que lhe tirara, e Rose a limitara-se a arrastá-lo por um pé
para a valeta, como se fosse o cadáver malcheiroso e incômodo de um animal qualquer...
N ão havia piedade, nem emoção, nem simpatia humana: um homem morria e os outros não faziam caso,
cada um pensando só em si próprio. Era a guerra, como dizia Conce a, e eu temia que esta guerra se
prolongasse nas nossas almas por muito tempo, depois de a verdadeira guerra ter acabado. Mas o caso de
Rose a era ainda o pior dos três: meia hora antes acariciava Rosário; acordara nele o desejo e satisfizera-lhe;
dera e recebera prazer; e agora ia ali sentada de olhos enxutos, imóvel, indiferente, apática, sem sombra de
pena no rosto. Pensava nisto e dizia a mim própria que tudo estava ao contrário do que devia estar, que a vida
se tornara absurda, sem pés nem cabeça e as coisas importantes já não eram importantes e as que não tinham
importância é que se tornavam importantes. D epois, de repente, aconteceu um fato estranho que não tinha
previsto: Rose a, que até então, como disse, não manifestara nenhum sentimento, começou a cantar. Primeiro
com uma voz hesitante, como que estrangulada, depois aclarando-a e alterando-a, cada vez mais segura,
começou a cantar a mesma canção que eu lhe pedira para cantar pouco antes e ela, sentindo-se incapaz,
interrompera à primeira estrofe. Era uma cançoneta em voga anos atrás e Rose a costumava cantá-la, como já
disse ao cuidar da lida doméstica; não era grande coisa, antes um pouco sentimental e tola, e pareceu-me
primeiro estranho que ela a cantasse naquele momento, depois da morte de Rosário: mais uma prova da sua
insensibilidade e indiferença. Mas a seguir lembrei-me que, quando lhe pedi para cantar, ela me respondera
que não era capaz, que se sentia sem vontade, e recordei-me que pensara então que ela tinha mudado por
completo e não podia cantar porque já não era a mesma de outros tempos; por isso disse de mim para mim que
talvez, recomeçando a cantar, ela quisesse dar-me a entender que não era verdade, que não estava mudada, que
ainda era a mesma Rose a de outros tempos, boa, doce e inocente como um anjo. D e fato, enquanto pensava
assim, olhei para ela e vi que tinha os olhos cheios de lágrimas, e estas lágrimas saltavam-lhe dos olhos
arregalados e corriam-lhe pelas faces; de repente, a confiança voltou-me; Rose a não tinha mudado tanto como
eu temia; chorava por Rosário, primeiro que tudo, que fora morto sem piedade, como um cão, e depois por ela e
por mim e por todos quantos a guerra atingira, massacrara e arruinara. E isto queria dizer que ela, no fundo,
não estava mudada, e eu também não, embora tivesse roubado o dinheiro de Rosário, nem os outros que a
guerra, em todo o tempo que durara, tinha tornado semelhantes a nós. S ubitamente senti-me confortada, e
deste conforto brotou, espontâneo, o pensamento: “Logo que chegue a Roma, mando este dinheiro à mãe de
Rosário.”
Sem dizer nada, passei um braço por cima do braço de Rosetta e apertei a sua mão na minha...
Ela cantou ainda várias vezes aquela canção enquanto o caminhão corria para a curva de Velletri; e depois,
quando as lágrimas deixaram de lhe correr dos olhos, parou de cantar. A quele homem do caminhão não era
mau, estava somente apavorado. Talvez tivesse compreendido qualquer coisa, porque de repente perguntou: “O
que era a vocês aquele rapaz que mataram?”
A pressei-me a responder: “N ão nos era nada, apenas um conhecido, um do mercado negro que se ofereceu
para nos trazer a Roma...”
Mas ele, tomado outra vez de medo, acrescentou à pressa: “N ão digas nada, não quero saber de nada, não
sei nada e não vi nada; em Roma deixo-as e será como se nunca nos tivéssemos visto nem conhecido...”
Eu respondi: “Tu é que perguntaste...”
E ele: “Sim, tens razão, mas dou o dito por não dito.”
Finalmente, surgiu ao fundo da planície extensa e verde uma longa risca de cor incerta, entre branco e
amarelo: os subúrbios de Roma. E por trás, sobrepujando-a, simples sombra, cinzenta no fundo cinzento do
céu, muito distante, mas nítida, a cúpula de S ão Pedro! S ó D eus sabe quanto eu ansiara durante todo esse ano
tornar a ver, no horizonte, aquela querida cúpula, tão pequena e assim mesmo tempo tão grande que podia ser
confundida com um acidente do terreno, uma colina ou uma montanha; tão sólida, embora não mais do que
uma sombra; tão tranquilizadora e familiar, mil vezes vista e observada. A quela cúpula, para mim, não era só
Roma, mas a minha vida de Roma, a serenidade dos dias que se vivem em paz conosco e com os outros. Lá ao
longe, no fundo do horizonte, aquela cúpula dizia-me que podia agora voltar confiante a casa, que a antiga vida
retomaria o seu curso, apesar de todas as mudanças e tragédias. Mas também me dizia que essa minha nova
confiança a devia a Rose a e ao seu canto e às suas lágrimas. E que, sem essa dor de Rose a, Roma não teria
tornado a ver as duas mulheres inocentes que um ano antes dali tinham partido e entretanto se tornaram, com
a guerra e por causa da guerra, uma ladra e outra prostituta.
A dor... Voltou-me ao pensamento Michele, que não estava ali conosco nesse momento tão suspirado do
regresso e nunca mais estaria ao pé de nós, e lembrei-me daquela noite em que nos leu em voz alta, na cabana
de S anta Eufêmia, a passagem do Evangelho sobre Lázaro, zangando-se porque os camponeses não tinham
compreendido nada e gritando que estávamos todos mortos à espera da ressurreição, como Lázaro. Então, essas
palavras de Michele tinham-me deixado na dúvida; agora, sim, compreendia que Michele tinha razão e que
durante algum tempo também Rosetta e eu estivéramos mortas, mortas para a piedade que se deve aos outros e
a nós próprios. Mas a dor viera salvar-nos no último momento; e, assim, de certa maneira, a história de Lázaro
aplicava-se também a nós: graças à dor conseguíramos por fim sair da guerra, que nos encerrava no seu túmulo
de indiferença, crueldade e maus sentimentos, para retomarmos o curso da nossa vida, que talvez seja uma
pobre vida cheia de escuridão e de erros mas a única que devemos viver, como sem dúvida nos diria Michele se
estivesse ali conosco...

FIM

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