Sei sulla pagina 1di 207

História da Filosofia I

Prof. Fernando Lopes de Aquino

2013
Copyright © UNIASSELVI 2013

Elaboração:
Prof. Fernando Lopes de Aquino

Revisão, Diagramação e Produção:


Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri


UNIASSELVI – Indaial.

109

A657h Aquino, Fernando Lopes de


História da filosofia I/ Fernando Lopes de Aquino. Indaial : Uniasselvi, 2013.

197 p. : il

ISBN 978-85-7830- 718-9

1. Filosofia – História.
I. Centro Universitário Leonardo da Vinci.

Impresso por:
Apresentação
Caro(a) acadêmico(a)!

Iniciamos os estudos de História da Filosofia I. Composta por


mais de dois mil e quinhentos anos de tradição, a filosofia é uma esfera
do conhecimento humano que desperta grande fascínio, sobretudo por
atravessar a história e manter-se como um dos elementos mais importantes
de nossa cultura.

Contudo, é por conta dessa mesma fascinação que ela é repleta de


nuances, interlocutores e outros elementos que a tornam complexa. Perpassar
os seus períodos históricos, principais pensadores e os elementos que a
especificam é, portanto, uma tarefa árdua e exige muito esforço.

Ao longo desta disciplina proporcionaremos a você um conjunto


de unidades que ajudam nessa tarefa. As unidades abordarão os principais
elementos históricos e conceituais da filosofia, além de referenciais que lhe
permitam dar sequência a uma reflexão própria, pois, para além da recepção
passiva de conteúdos, a filosofia exige envolvimento e ação.

Na condição de acadêmicos(as), este deve ser o princípio norteador


de nossas investigações, e é isto que estará presente ao longo desta disciplina,
ou seja, a consciência da complexidade do pensamento filosófico, que exige a
superação de preconceitos e a análise dos fatos com máxima dedicação.

Começando por uma contextualização do mundo grego e dos


elementos culturais que possibilitaram a origem da filosofia, estudaremos o
seu período clássico, os seus principais problemas e os destaques conceituais
desse momento. A fim de problematizarmos a especificidade filosófica, a
Unidade 1 também possibilitará a você uma análise de alguns dos principais
campos de investigação filosófica.

A Unidade 2, dando sequência à análise histórica, possibilitará a você


considerar três momentos fundamentais da reflexão filosófica, a saber: o
contexto helenista, a filosofia patrística e o período medieval ou escolástico.
Nesta unidade você também terá contato com a filosofia de importantes
correntes de pensamento e com as ideias de filósofos de destaque na tradição,
como Agostinho e Tomás de Aquino, por exemplo.

Na terceira unidade, você compreenderá como a tradição foi


transformada pela modernidade e como isso se desdobrou em reflexões que
até hoje repercutem no campo da ciência e da política, por exemplo. Também

III
compreenderá a especificidade do contexto contemporâneo e as principais
críticas estabelecidas pelos filósofos e correntes filosóficas que o compõem.
Por fim, possibilitaremos a você uma análise do contexto e do modo como a
filosofia foi assimilada no Brasil.

Bons estudos!

Prof. Fernando Lopes de Aquino

NOTA

Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para
você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há
novidades em nosso material.

Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é


o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um
formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura.

O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova
diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também
contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo.

Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente,


apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade
de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador.
 
Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para
apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto
em questão.

Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas
institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa
continuar seus estudos com um material de qualidade.

Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de


Desempenho de Estudantes – ENADE.
 
Bons estudos!

IV
V
VI
Sumário
UNIDADE 1 – ORIGEM E ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA.................................................... 1

TÓPICO 1 – A PASSAGEM DO MITO À FILOSOFIA..................................................................... 3


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 3
2 CONTEXTO HISTÓRICO: O “MILAGRE GREGO”..................................................................... 4
2.1 FORMAÇÃO DO POVO GREGO.................................................................................................. 5
3 A PASSAGEM DO MITO À FILOSOFIA......................................................................................... 7
3.1 O MITO............................................................................................................................................... 9
4 OS FILÓSOFOS PRÉ-SOCRÁTICOS................................................................................................ 13
4.1 O PENSAMENTO JÔNICO............................................................................................................. 14
4.2 ANAXIMANDRO............................................................................................................................. 15
4.3 ANAXÍMENES.................................................................................................................................. 16
4.4 HERÁCLITO DE ÉFESO.................................................................................................................. 17
4.5 PITÁGORAS DE SAMOS................................................................................................................ 18
4.6 XENÓFANES..................................................................................................................................... 19
4.7 PARMÊNIDES................................................................................................................................... 19
4.8 EMPÉDOCLES.................................................................................................................................. 21
4.9 OS ATOMISTAS: LEUCIPO E DEMÓCRITO............................................................................... 22
RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 23
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 24

TÓPICO 2 – A SINGULARIDADE DO SABER FILOSÓFICO....................................................... 25


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 25
2 O QUE É A FILOSOFIA?...................................................................................................................... 25
3 A FILOSOFIA E O CONHECIMENTO CIENTÍFICO.................................................................... 29
4 A FILOSOFIA E OUTRAS FORMAS DE SABER........................................................................... 31
5 O CONHECIMENTO MÍTICO E RELIGIOSO............................................................................... 31
6 CONHECIMENTO DO SENSO COMUM OU EMPÍRICO.......................................................... 33
LEITURA COMPLEMENTAR................................................................................................................ 34
RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 35
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 36

TÓPICO 3 – OS PRINCIPAIS CAMPOS DE INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA........................... 37


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 37
2 ÉTICA, MORAL E POLÍTICA............................................................................................................ 37
2.1 ÉTICA E MORAL.............................................................................................................................. 38
2.2 POLÍTICA.......................................................................................................................................... 40
3 ESTÉTICA............................................................................................................................................... 41
4 EPISTEMOLOGIA................................................................................................................................ 44
4.1 DESCARTES E O RACIONALISMO MODERNO....................................................................... 45
4.2 HUME E O EMPIRISMO................................................................................................................. 48
5 LÓGICA E LINGUAGEM.................................................................................................................... 51
5.1 LÓGICA E LINGUAGEM EM PLATÃO E ARISTÓTELES........................................................ 52
RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 56
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 57

VII
UNIDADE 2 – DO PERÍODO CLÁSSICO À FILOSOFIA ESCOLÁSTICA................................. 59

TÓPICO 1 – O PERÍODO CLÁSSICO DA FILOSOFIA................................................................... 61


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 61
2 SÓCRATES E OS SOFISTAS: UMA MUDANÇA DE PERSPECTIVA....................................... 61
2.1 OS SOFISTAS E A SUA TÉCNICA: PANORAMA GERAL........................................................ 65
2.2 SÓCRATES......................................................................................................................................... 68
3 PLATÃO E A TEORIA DAS IDEIAS................................................................................................. 74
3.1 TEORIA DAS IDEIAS...................................................................................................................... 76
4 O SISTEMA ARISTOTÉLICO............................................................................................................ 79
RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 85
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 86

TÓPICO 2 – FILOSOFIA HELENISTA ................................................................................................ 87


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 87
2 CONTEXTO HISTÓRICO E CARACTERÍSTICAS GERAIS....................................................... 87
3 EPICURISMO......................................................................................................................................... 90
4 ESTOICISMO......................................................................................................................................... 92
5 CETICISMO............................................................................................................................................ 94
6 O NEOPLATONISMO.......................................................................................................................... 96
RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 99
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 100

TÓPICO 3 – FILOSOFIA MEDIEVAL: PATRÍSTICA E ESCOLÁSTICA.................................... 101


1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 101
2 A FILOSOFIA PATRÍSTICA.............................................................................................................. 101
2.1 JUSTINO, O MÁRTIR.................................................................................................................... 103
2.2 CLEMENTE DE ALEXANDRIA.................................................................................................. 104
2.3 ORÍGENES....................................................................................................................................... 105
2.4 TERTULIANO................................................................................................................................. 105
2.5 AGOSTINHO DE HIPONA.......................................................................................................... 107
2.6 BOÉCIO............................................................................................................................................ 109
3 O DESENVOLVIMENTO DA FILOSOFIA ESCOLÁSTICA..................................................... 110
3.1 TOMÁS DE AQUINO.................................................................................................................... 114
3.2 SABER E FÉ EM TOMÁS DE AQUINO...................................................................................... 115
3.3 AS CINCO PROVAS SOBRE A EXISTÊNCIA DE DEUS EM TOMÁS DE AQUINO.......... 116
4 O DECLÍNIO DA ESCOLÁSTICA................................................................................................... 118
LEITURA COMPLEMENTAR.............................................................................................................. 120
RESUMO DO TÓPICO 3...................................................................................................................... 122
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 123

UNIDADE 3 – FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA................................................ 125

TÓPICO 1 – FILOSOFIA MODERNA................................................................................................ 127


1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 127
2 CONTEXTO DE TRANSFORMAÇÕES E O FLORESCER DA “MODERNIDADE”........... 127
3 A EPISTEMOLOGIA MODERNA................................................................................................... 131
3.1 EPISTEMOLOGIA RACIONALISTA.......................................................................................... 131
3.2 O EMPIRISMO INGLÊS............................................................................................................... 134

VIII
4 A MODERNIDADE E A POLÍTICA............................................................................................... 136
4.1 MAQUIAVEL.................................................................................................................................. 136
4.2 HOBBES E O CONTRATO SOCIAL............................................................................................ 139
4.3 ROUSSEAU E O ESTADO DE NATUREZA............................................................................... 147
5 TRADIÇÃO ILUMINISTA................................................................................................................149
5.1 TRADIÇÃO ILUMINISTA FRANCESA......................................................................................150
5.2 TRADIÇÃO ILUMINISTA ALEMÃ.............................................................................................152
6 IDEALISMO ALEMÃO E A CRISE DA MODERNIDADE........................................................154
7 MARX E O MATERIALISMO HISTÓRICO..................................................................................159
RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................161
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................163

TÓPICO 2 – FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA...............................................................................165


1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................................165
2 FILOSOFIA ANALÍTICA...................................................................................................................165
3 FENOMENOLOGIA...........................................................................................................................166
4 EXISTENCIALISMO...........................................................................................................................169
5 A ESCOLA DE FRANKFURT............................................................................................................170
RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................173
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................174

TÓPICO 3 – FILOSOFIA NO BRASIL...............................................................................................175


1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................................175
2 FILOSOFIA NO BRASIL: HERANÇAS EUROPEIAS.................................................................175
3 FILOSOFIA LATINO-AMERICANA E A ÉTICA DA LIBERTAÇÃO......................................178
4 FILOSOFIA, POLÍTICA E EDUCAÇÃO NO BRASIL.................................................................180
LEITURA COMPLEMENTAR..............................................................................................................183
RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................187
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................188
REFERÊNCIAS........................................................................................................................................189

IX
X
UNIDADE 1

ORIGEM E ESPECIFICIDADE DA
FILOSOFIA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Esta unidade tem por objetivos:

• identificar os principais elementos históricos e culturais que possibilita-


ram o surgimento da filosofia no contexto grego;

• distinguir os temas e problemas da investigação filosófica no contexto pré-


-socrático;

• relacionar a filosofia com as outras formas de conhecimento e especificar


as suas principais características;

• analisar os principais campos de investigação filosófica.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos e em cada um deles você encontrará
atividades visando à compreensão dos conteúdos apresentados.

TÓPICO 1 – A PASSAGEM DO MITO À FILOSOFIA

TÓPICO 2 – A SINGULARIDADE DO SABER FILOSÓFICO

TÓPICO 3 – OS PRINCIPAIS CAMPOS DE INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

1
2
UNIDADE 1
TÓPICO 1

A PASSAGEM DO MITO À FILOSOFIA

1 INTRODUÇÃO
O surgimento da filosofia define uma nova relação entre o homem e o seu
meio. Há um consenso entre os historiadores de que, apesar de todos os povos
tentarem compreender os mistérios da realidade através de seus mitos, somente
os gregos foram capazes de passar da interpretação mítica para uma perspectiva
fundamentalmente racional, originando assim a filosofia.

Evidentemente, há uma série de nuances entre a passagem do mito para


a filosofia, e a delimitação precisa de onde começa um ponto e termina o outro
não é tão clara. Explicitar estes elementos é uma forma de romper com alguns
pressupostos nem sempre legítimos academicamente, além de carregados de
juízos no mínimo anacrônicos.

Considerando toda esta complexidade, o objetivo deste tópico é levar


você, caro(a) acadêmico(a), a trilhar o percurso histórico, político e econômico
que possibilitou à Grécia criar esta forma de conhecimento, caracterizando os
principais filósofos desse período e distinguindo os seus pensamentos das
interpretações que os precediam.

DICAS

Para aprofundar os seus conhecimentos sobre o contexto de formação da Grécia


e de sua cultura, leia o livro: VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. Rio
de Janeiro: DIFEL, 2004.

3
UNIDADE 1 | ORIGEM E ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA

2 CONTEXTO HISTÓRICO: O “MILAGRE GREGO”


No século III, um importante compilador dos ditos e fatos ligados aos
filósofos gregos, Diôgenes Laêrtios, defendeu com absoluta convicção que o
nascimento da filosofia havia ocorrido entre os gregos. Para ele, esta informação
não continha nada de absurdo, pois, segundo a sua interpretação, “a própria raça
humana” começou entre os helenos (LAÊRTIOS, 2008, p. 13).

O interessante é que antes de ser tão categórico sobre este ponto, Diôgenes
expõe uma série de argumentos, atribuindo aos bárbaros o registro de paternidade
sobre a filosofia. Embora ele faça isso para imediatamente rechaçar essa ideia,
ainda assim expõe alguns elementos que sinalizam para problemas inerentes
à análise histórica, como, por exemplo, a desmedida exaltação de um único
responsável pela origem da filosofia, desconsiderando o seu desenvolvimento
como algo decorrente de várias interações culturais, cuja contribuição de outros
povos, possivelmente, também fora essencial.

Para além de leituras autorreferenciadas, em que os gregos são tomados


como um gênio especial, cuja singularidade se relaciona não apenas com o
nascimento da reflexão filosófica, mas também com o da própria cultura ocidental,
essa descrição nos adverte sobre dificuldades que certamente estão incluídas na
investigação sobre a origem da filosofia.

É evidente que não podemos excluir a atribuição outorgada com pleno


direito à inteligência grega pelo papel fundamental que ela desempenhou na
aurora da filosofia, mas nos cabe, enquanto estudiosos, ponderar sobre os seus
limites e sobre os problemas que envolvem esta questão.

Supostamente, uma das alternativas mais eficazes para superarmos essa


individuação cultural tem sido considerar o contexto e os acontecimentos que
sublinharam a origem da filosofia. E neste sentido, há um aspecto particular que
parece gerar uma conformidade de opiniões curiosas, dado que nem sempre
encontramos pontos de tamanha convergência teórica entre os filósofos.

Pontualmente, a segurança desse procedimento seria pressuposta


através da ideia de que existiu um “rompimento” entre o pensamento mítico e o
pensamento racional. Para os que adotam essa perspectiva, os gregos inauguraram
uma forma de pensar que gradualmente elevou-se em relação ao saber mítico até
então predominante, transformando o modo como os homens deveriam entender
e interpretar os fenômenos da natureza e a sua relação com a realidade. Visto
dessa maneira, esse novo período pode ser concebido como algo diametralmente
distinto, permitindo-nos apontar quando e onde surgiu a filosofia.

O final do século VII a.C. e início do século VI a.C. delimitariam o


“quando”, sendo tomados como marco para essa transformação. Por sua vez,
as colônias gregas da Ásia Menor indicariam “onde” essa nova maneira de ver
o mundo começou, além de especificar um grupo de personagens e temas para
as primeiras reflexões filosóficas. Antes de especificar essas reflexões, talvez seja
importante contextualizar um pouco mais estes aspectos.
4
TÓPICO 1 | A PASSAGEM DO MITO À FILOSOFIA

DICAS

Para melhor assimilação do conteúdo sobre o contexto histórico e de formação


da Grécia, assista ao filme “Troia”.

Sinopse:
Na Grécia antiga, a paixão de um dos casais mais lendários da História, Páris, príncipe de
Troia, e Helena, rainha de Esparta, desencadeia uma guerra que irá devastar uma civilização.
Páris rouba Helena de seu marido, o rei Menelau, e este é um insulto que não pode ser
tolerado. A honra da família determina que uma afronta a Menelau seja considerada uma
afronta a seu irmão Agamenon, o poderoso rei de Micenas, que logo une todas as tribos
da Grécia para trazer Helena de volta, em defesa da honra do irmão. Na verdade, a busca
de Agamenon por honra é suplantada por sua ganância – ele precisa controlar Troia para
garantir a supremacia de seu vasto império. A cidade cercada de muralhas, comandada pelo
rei Príamo e defendida pelo poderoso príncipe Heitor, é uma fortaleza que nenhum exército
jamais conseguiu invadir. A chave da derrota ou da vitória sobre Troia é um único homem:
Aquiles, tido como o maior guerreiro vivo.

Direção: Wolfgang Petersen


País de origem: EUA
Gênero: Épico
Duração: 2h43min.
Distribuidora: Warner Bros
Ano de lançamento: 2004

FONTE: Disponível em:<http://www.cinemaemcena.com.br/plus/modulos/filme/ver.php?


cdfilme=1916>.

2.1 FORMAÇÃO DO POVO GREGO


Por volta de 2000 a 1900 anos a.C., uma série de povos indo-europeus
fixou-se na Grécia continental e, paulatinamente, passaram a colonizar a região,
até então habitada por grupos neolíticos originários ou influenciados pelo Oriente
Próximo. Entre os povos indo-europeus estavam os cretenses, habitantes da Ilha
de Creta, e os aqueus, um grupo que, ao conquistar as ilhas da Ásia Menor, deu
origem à chamada civilização micênica, marcada, sobretudo, pelo poder de sua
realeza e de seu sistema palaciano.

Para Vernant (2004, p. 25), este período ainda pode ser caracterizado pelo
intercâmbio de relações entre Ocidente e Oriente, em que parte da cultura grega
pôde se espalhar, mas também sofrer influências orientais. Igualmente importante
é o fato de ter havido, neste período, uma constituição social que nos permite
compará-la com os grandes estados orientais próximos, justamente por ser:

5
UNIDADE 1 | ORIGEM E ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA

Centralizado em torno do palácio cujo papel é ao mesmo tempo


religioso, político, militar, administrativo e econômico. Neste sistema
de economia, que se denominou palaciana, o rei concentra e unifica
em sua pessoa todos os elementos do poder, todos os aspectos da
soberania (VERNANT, 2004, p. 24).

Constituída por uma alta burocracia, centrada nos palácios e no forte


poder desempenhado pelo rei, cada aspecto da vida micênica era controlado,
desde as produções técnicas, passando pela vida rural e econômica. Tudo era
devidamente registrado pelas classes sacerdotais e pelos funcionários da corte.

Essa organização social se destitui apenas no século XII a.C., pelo ímpeto
das tribos dóricas, que mediante suas armas de ferro marcharam em direção
ao sul da Península Balcânica e arrasaram as colônias micênicas, já bastante
desenvolvidas. Ao se estabelecerem no Peloponeso, os dórios causaram um forte
terror na região e uma dispersão dos povos que ali estavam, marcando assim o
fim de uma era e o início da civilização helênica.

UNI

A civilização micênica já conhecia a escrita, possuía armas e instrumentos de


bronze e era bastante desenvolvida na agricultura, no artesanato e no comércio.

De certa forma, todo conjunto estrutural da sociedade se desfez após


essas invasões, e é a derrocada desse sistema que causará uma “reconsideração”
fundamental do universo espiritual grego, gerando uma nova estrutura social,
política e econômica. O rei e sua classe de administradores e servos, que até então
exerciam um controle rigoroso sobre uma ampla dimensão da vida, ao entrarem
em declínio, concederam margens para que novas formas sociais viessem à tona.

O período que sucede essas invasões dóricas (1100 a.C. – 800 a.C.) é
bastante obscuro, mas o certo é que as colônias reconsideraram estes fatos e
iniciaram algo que transformou radicalmente a região. Até então centrada em
uma condição histórica que se baseava fundamentalmente na economia agrária,
na centralidade do palácio e nas relações ainda tribais, os gregos viram surgir
uma nova organização, menos hierárquica e instituída por uma forma particular
de razão.

Aos poucos, a região voltou a se desenvolver economicamente, tornando


as colônias mais prósperas. Consequentemente, o desmantelamento da sociedade
agrária foi sentido com mais intensidade e a aristocracia acabou perdendo o seu
espaço para uma nova classe de comerciantes e artesãos, o que fez com que aos
poucos a estrutura urbana fosse se tornando o centro das relações.

6
TÓPICO 1 | A PASSAGEM DO MITO À FILOSOFIA

Rotas comerciais começaram a ser criadas e a navegação e o comércio, nesse


momento, transformaram-se em uma forma bastante profícua de restabelecer os
laços com o Oriente. Todavia, para além dos contratos econômicos com estes
povos, culturalmente os gregos vislumbram um pouco de seu próprio passado e
a distância em que agora se encontrava.

Em plena renovação orientalizante, o Helenismo afirma-se como tal


em face da Ásia, como se, pelo contato reatado com o Oriente, tomasse
melhor consciência de si próprio. A Grécia se reconhece numa certa
forma de vida social, num tipo de reflexão que definem aos seus
próprios olhos sua originalidade, sua superioridade sobre o mundo
bárbaro: no lugar do rei cuja onipotência se exerce sem controle, sem
limite, no recesso de seu palácio, a vida política grega pretende ser o
objeto de um debate público, em plena luz do sol na Ágora, da parte
de cidadãos definidos como iguais e de quem o Estado é a questão
comum (VERNANT, 2004, p. 6).

As novas expressões que acabaram surgindo como resultado dessas


interações também desencadearam uma verdadeira transformação cultural. Com
a falta de prestígio hereditário, os comerciantes, que também buscavam legitimar
a sua ascensão, começaram a financiar a vida intelectual na região, patrocinando
as artes e construindo uma série de monumentos.

No caso da religião e da política, um contínuo processo de laicização se


desenvolveu. As formulações míticas perderam a sua força e, consequentemente,
já não eram tão essenciais para determinar a vida pública. O discurso (logos)
racional passou a ser preponderante na organização do Estado, que também
requisitou uma reflexão moral e política. Tudo isto acabou contribuindo para o
nascimento da razão filosófica.

3 A PASSAGEM DO MITO À FILOSOFIA


Concebemos as reflexões de Tales, Anaxímenes ou Heráclito como algo
particularmente característico de uma nova forma de pensar, não apenas distinta,
mas dotada de uma racionalidade superior aos poemas de Homero, às teogonias
de Hesíodo ou, ainda, às concepções de sábios do Oriente.

Esta leitura da história, na verdade bastante corrente, tende a compreender


o nascimento da filosofia como uma forte ruptura com a tradição religiosa e mítica
ou, ainda, como uma espécie de “resposta” à incapacidade dessas expressões de
continuar sustentando certas explicações sobre a realidade.

“O problema, porém, já assinalado por alguns historiadores é que não é


tão fácil delimitar a fronteira temporal do momento em que surge o pensamento
racional e termina a interpretação mítica” (JAEGER, 2003, p. 191). Por isso, este
que parece ser um ponto não tão polêmico assim, na realidade ainda requer certos
esclarecimentos.

7
UNIDADE 1 | ORIGEM E ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA

O pensamento grego no período clássico experimentou uma série de inter-


relações envolvendo a vida política, econômica e religiosa, cujos personagens
exerceram e sofreram influências mútuas. O nascimento da filosofia, gerado
neste contexto, é fruto de uma dinâmica muito mais complexa, e se o pensamento
jônico é visto como algo “novo”, não é porque antes dele a realidade não havia
sido interrogada ou que o espanto (thambos) e a admiração diante do espetáculo
do cosmos não constavam no discurso religioso, mas, sim, porque a própria
dinâmica e transformação da sociedade requisitou uma nova perspectiva.

Um dos primeiros a consolidar uma leitura contraposta à ênfase dada à


ruptura entre o pensamento mítico e a filosofia foi o historiador Werner Jaeger.
Para ele, ao contrário de vermos a racionalidade como um elemento marcando
as distinções entre estes dois campos, devemos perceber que é justamente isto
que fornece um elo entre eles, mesmo que no interior da epopeia homérica e dos
poemas de Hesíodo seja “tão estreita a interpenetração do elemento racional e do
‘pensamento mítico’ que mal se pode separá-los” (JAEGER, 2003, p. 191).

Sob essa ótica, a filosofia não seria propriamente a origem do pensamento


racional, na medida em que este já podia ser observado nas concepções míticas,
mas a progressão dessa racionalidade.

NOTA

Paideia é o termo usado para caracterizar a educação grega, no sentido de


uma formação integral do homem, regulada por um ideal de excelência, que em grego
denomina-se areté.

Para Jaeger, (2003, p. 192) a paideia grega era constituída por uma
arquitetura unitária entre mito e filosofia, por isso podemos ver estes elementos
se interpenetrarem no período clássico:

Não é fácil definir se a ideia dos poemas homéricos, segundo a qual


o Oceano é a origem de todas as coisas, difere da concepção de Tales,
que considera a água o princípio original do mundo; seja como for, é
evidente que a representação do mar inesgotável colaborou para a sua
expressão. Em todas as partes da Teogonia de Hesíodo reina a vontade
expressa de uma compreensão construtiva e uma perfeita coerência na
ordem racional e na formulação dos problemas.

Esta é uma perspectiva bastante importante para reconsiderarmos a


história da filosofia, e certamente nos fornece uma chave de leitura contraposta
à acentuação de rupturas mais marcantes. Contudo, ainda permanece imposta a
necessidade de precisarmos melhor o que caracteriza e distingue a filosofia do

8
TÓPICO 1 | A PASSAGEM DO MITO À FILOSOFIA

mito. Em outros termos, superados os possíveis preconceitos que nos levam, do


ponto de vista de uma racionalidade, a ver no mito algo de inferior, o fundamental
seria tentar apreender o que há de inovador na reflexão filosófica.

DICAS

Para melhor assimilação do conteúdo sobre o contexto histórico da Grécia e de


seus elementos culturais e míticos, assista ao filme “A Odisseia”.

Sinopse:
A epopeia de Ulisses/Odisseu, que deixa sua terra, Ática, para ir lutar na Guerra de Troia.
Mas, por desafiar os deuses, passa anos vagando por estranhos lugares, enquanto a esposa
Penélope tenta lhe esperar fielmente.

Direção: Andrey Konchalovsky


País de origem: EUA
Gênero: Épico
Duração:176min.
Distribuidora: Warner Bros
Ano de lançamento: 1997

FONTE: Disponível em: <www.filmesraros.com.br/Detalhes.asp?CodProd=6341>.

3.1 O MITO
De modo geral, é uma característica do mito narrar o princípio das coisas,
como elas se originaram e receberam a sua ordem (cosmos). Preponderantemente,
as narrativas míticas nos mostram que tudo teria ocorrido por meio da ação de
alguma divindade ou, no caso do panteão olímpico, de várias divindades.

Na Teogonia de Hesíodo, por exemplo, lemos a seguinte gênesis do cosmos:

Sim, bem primeiro nasceu Caos, depois também Terra de amplo seio,
de todos sede irresvalável sempre, dos imortais que têm a cabeça do
Olimpo nevado, e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias,
e Eros: o mais belo entre Deuses imortais, solta-membros, dos Deuses
todos e dos homens todos ele doma no peito o espírito e a prudente
vontade.
Do Caos Érebos e Noite negra nasceram. Da noite, aliás, Éter e Dia
nasceram, gerou-os fecundada unida a Érebos em amor. Terra
primeiro pariu igual a si mesma Céu constelado, para cercá-la toda
ao redor e ser aos Deuses venturosos sede irresvalável sempre. Pariu
altas Montanhas, belos abrigos das Deusas ninfas que moram nas
montanhas frondosas. E pariu a infecunda planície impetuosa de
ondas o Mar, sem o desejoso amor. Depois pariu do coito com Céu:

9
UNIDADE 1 | ORIGEM E ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA

Oceano de fundos remoinhos e Coios e Crios e Hipérion e Jápeto e


Teia e Reia e Têmis e Memória e Febe de áurea coroa e Tétis amorosa
(HESÍODO, 1995, p. 121).

Em Hesíodo, a explicação para a origem e funcionamento da realidade


ocorre através daquilo que os gregos chamaram de cosmogonia ou teogonia, isto é,
uma genealogia de deuses que personificavam elementos como a água e a terra,
por exemplo.

Dessas mitologias, os gregos tentavam extrair explicações para uma série


de questões, e muitas respostas também advinham das relações sexuais entre os
deuses, ou ainda, por meio de suas guerras ou alianças, como no caso da guerra
de Troia.

NOTA

Segundo Homero, em A Ilíada, a guerra teria começado com uma disputa entre
as deusas Afrodite, Hera e Atena para saber quem entre elas era a mais bela. Como juiz, as
divindades estabeleceram o príncipe troiano Páris, filho do rei Príamo. Afrodite conseguiu
convencê-lo a julgar a favor dela, prometendo a ele a mulher mais bela entre os homens, a
rainha de Esparta, Helena. Depois de vencer a disputa entre as deusas, Afrodite ajudou Páris a
raptar Helena, fato que enfureceu o seu marido, o rei Menelau, que organizou um poderoso
exército para lutar contra troianos e resgatar Helena.

De modo geral, as divindades eram vistas como muito próximas da vida


cotidiana, presentes na chuva, na colheita, nos negócios, na guerra, na viagem,
no mar etc. Por esta razão, o povo acreditava que os deuses poderiam conceder
favores, retribuir os cultos a eles devotados ou se enfurecer caso alguma ordem
fosse contrariada, manifestando, assim, ira, poder e autoridade (como no caso
dos raios e trovões, materializando a fúria de Zeus).

Num contexto em que as cidades possuíam costumes tão diversos entre


si, o mito acabava consolidando-se como um fator de unidade cultural, formando
a visão de mundo do povo e explicitando o modo como se relacionavam com a
natureza, como concebiam as suas ocupações, quais os seus costumes, valores,
sentimentos e assim por diante.

Parte significativa do desenvolvimento intelectual grego foi consolidada


primordialmente por poetas que contavam esses mitos, e mesmo depois do
surgimento da filosofia, estes poemas continuaram a ser reverenciados como
parte fundamental da cultura grega.

10
TÓPICO 1 | A PASSAGEM DO MITO À FILOSOFIA

UNI

Além desse aspecto, a religião também desempenhava um papel de unificação


cultural através das Olimpíadas, celebradas em honra a Zeus a cada quatro anos, na cidade
de Olímpia.

Apesar de narrativas fantásticas, com apelo ao misterioso e ao mágico, os


gregos depositavam plenamente a sua fé nessas histórias e as viam como confiáveis,
seja porque elas eram efetuadas por poetas que diziam ter recebido autoridade
direta de alguma divindade, especialmente as deusas ligadas à memória, ou
porque se tratavam de histórias que remontavam os seus antepassados e o que
eles vivenciaram.

De todo modo, isto ajudava a legitimar os mitos e os tornavam sagrados


e inquestionáveis, orientando as ações humanas, segundo os preceitos revelados
pelos deuses.

UNI

Neste caso, a oralidade desempenhava um papel fundamental, sendo


responsável por transmitir de geração a geração as narrativas.

A força que caracterizava a aceitação do mito persistiu por séculos,


mas, devido a uma série de transformações políticas e comerciais, o seu papel
foi paulatinamente se reduzindo. Sua voz deixou de ser preponderante na
explicação e organização do mundo. E aquilo que poderia ser considerado um
aspecto especulativo e racional no próprio mito já não era mais suficiente para
responder às novas demandas que os gregos viram surgir após as migrações das
tribos dóricas.

A estrutura palaciana, por exemplo, que acabou ruindo, fez com que,
junto com ela, a classe sacerdotal fosse enfraquecida. A aristocracia perdeu
espaço e grupos de comerciantes e artesãos floresceram, fortalecendo a economia
a partir de relações estabelecidas com países bastante avançados em termos de
conhecimentos (especialmente com relação à geometria, à astronomia e à escrita).

11
UNIDADE 1 | ORIGEM E ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA

O grande número de transações econômicas por volta dos séculos VII e


VI a.C. levou as cidades a instituir algumas rotas comerciais, o que inicialmente
ocorreu com as colônias jônicas, especialmente Mileto. Assim, estas cidades se
consolidaram economicamente, e isto possibilitou à população gozar de certa
prosperidade e tempo ocioso para refletir sobre os diversos conhecimentos que
estavam adquirindo do contato com os povos de grande erudição, como os
egípcios e sua matemática, por exemplo.

Entretanto, é principalmente com o surgimento e organização das


chamadas Cidades-Estados, e com elas uma maior participação política dos
cidadãos, que a religião terá o seu papel drasticamente reduzido e o discurso
filosófico exaltado. Neste contexto, a política acaba se efetivando a partir do
direito dos cidadãos e não da determinação divina revelada pelo mito.

Com isso, a expressão pública das opiniões, sua discussão e ajuizamento,


ganharam a forma de deliberação sobre os assuntos comuns, calcada em uma
estrutura lógica e não na autoridade.

A partir das especulações de milesianos, como Tales, Anaximandro


e Anaxímenes, o século VI a.C. marca então um novo estilo de pensamento,
favorecido por essas condições históricas e pela convicção de que o próprio
homem poderia compreender e explicar a ordem e funcionamento do mundo.

Estes pensadores seguiram o mesmo mote das cosmogonias, considerando


a origem da realidade como um problema fundamental, mas tentaram fornecer
explicações sem se remeter ao mito, buscando as causas para a realidade nos
objetos e substâncias naturais que a compunham, por isso esses filósofos também
foram considerados physiólogos, isto é, teóricos da natureza (physis).

Essas explicações seguiram princípios nem sempre presentes no mito,


como, por exemplo, a formulação de um discurso lógico e coerente, regido por
um rigor conceitual bastante distinto. As formulações apresentadas não eram
revestidas de dogmatismo e nem pretendiam ser absolutas. Ao contrário, assim
como ocorria no contexto político da polis, estavam sujeitas aos debates e propostas
alternativas. Tudo isso acabou transformando a cosmogonia em cosmologia,
descaracterizando a realidade de sua forma divina e tratando-a como forças
naturais ordenadas por um princípio racional.

Compreender este princípio e como ele era capaz de se transformar


e ordenar o mundo foi o que levou os primeiros filósofos a formular algumas
hipóteses, seguindo não mais a autoridade e a tradição mitológica, mas
exclusivamente a razão (logos). E porque eles compreendiam que tanto o mundo
quanto o homem compartilhavam deste mesmo logos, postularam que a realidade
poderia ser apreendida pelo pensamento e transmitida pelo discurso. Nesse
sentido, conforme assinala Chauí (2002, p. 40), a capacidade de generalização e
abstração do pensamento também se tornou um elemento preponderante para

12
TÓPICO 1 | A PASSAGEM DO MITO À FILOSOFIA

a filosofia nascente, isto é, ajudou a fornecer “explicações de alcance geral (e


mesmo universal), percebendo, sob a variação e multiplicidade das coisas e fatos
singulares, normas e regras ou leis gerais da realidade (logos)”.

Esta dinâmica estava atrelada a dois dos principais termos da filosofia


nascente, a physis (o mundo natural, do qual deriva o nosso conceito de natureza)
e a arché (considerado o elemento primordial de todas as coisas). A physis seria
aquilo que abarca toda a realidade, sendo a sua manifestação, e por isso pode ser
percebida por nós pelos órgãos dos sentidos. Por sua vez, a arché representaria o
princípio capaz de fornecer unidade e ordem (cosmos) a esta natureza tão vasta,
e, por ser oculta aos nossos sentidos, seria apreendida apenas pelo pensamento.

4 OS FILÓSOFOS PRÉ-SOCRÁTICOS

DICAS

Para conhecer os textos dos filósofos pré-socráticos, recomendamos a leitura


fundamental da obra de G. Bornheim. Os filósofos pré-socráticos. São Paulo: Cultrix, 2003.

A designação do termo “pré-socrático” é bastante artificial e reflete apenas


a distinção entre os temas abordados por estes pensadores e os temas refletidos
por Sócrates (470-399 a.C.). Como veremos adiante, Sócrates é considerado um
marco na história da filosofia clássica por introduzir novos problemas, não mais
centrados na physis, mas no próprio homem (anthropos).

A primeira grande dificuldade envolvendo a leitura dos pensadores pré-


socráticos está no fato de que suas obras estão quase todas perdidas. O que restou
de seus pensamentos são fragmentos ou doxografias compiladas por filósofos que
viveram em períodos posteriores a eles, como Aristóteles (IV a.C.) ou Simplício
(século VI d.C.), por exemplo.

O problema tende a ser ainda maior, na medida em que estes compiladores


nem sempre descreviam literalmente o texto original, mas os interpretavam ou
os parafraseavam intencionalmente. As doxografias, na verdade, são uma síntese
com alguns comentários, algo que jamais poderia substituir as obras destes
filósofos.

Por se tratar de um resumo em época e contexto distantes, muitas vezes


estes textos tendem a expressar os interesses de quem os resumiu, ou então,
serem interpretados segundo categorias de pensamento já bastante distintas do
autor original.

13
UNIDADE 1 | ORIGEM E ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA

[Aristóteles] Era um filósofo interessado no valor filosófico de certa


tese e completamente indiferente a preocupações com a precisão e o
cuidado historiográficos. Até os fragmentos, que deveriam devolver
os ipsissima verba do autor citado, devem ser considerados com
extrema prudência, porque as supostas citações são extrapoladas de
um contexto para serem inseridas noutro, muitas vezes diferente em
medida considerável. Deste modo, eles correm o risco de perder o seu
significado originário e de assumir um significado novo (DONINI;
FERRARI, 2012, p. 14).

De modo geral, a recolha e a difusão de todo o material relativo aos escritos


dos pré-socráticos se devem a este filósofo e à sua escola, especialmente ao seu
discípulo Teofrasto, o que situa a compilação doxográfica em um período bastante
posterior ao momento de sua composição original e com todos os problemas já
assinalados. Apesar disso, este é o único material que nos permite reconstruir o
pensamento pré-socrático. Portanto, o ponto fundamental é estarmos conscientes
de todos os problemas que isso implica e da importância desse trabalho.

4.1 O PENSAMENTO JÔNICO


Tales é reconhecido pela tradição como o mais antigo dos filósofos. Sua
origem parece ser fenícia, mas viveu na cidade de Mileto, na Jônia (Ásia Menor),
no século VI a.C. Há muitos mitos e anedotas relacionados à figura de Tales, que,
conforme Diôgenes Laêrtios, foi o primeiro dos Sete Sábios da Grécia arcaica.

Apesar de ter recebido a fama de teórico absoluto em seus pensamentos,


Tales também realizou coisas muito práticas, como prever o tempo e fazer fortuna
com olivas, dividir um rio e, principalmente, atuar como político, tentando
unificar as cidades da Jônia.

Quanto ao seu pensamento filosófico, a ele se credita a hipótese de que foi


o primeiro a afirmar que tudo havia se originado de um único princípio, a arché,
embora o termo não seja efetivamente de Tales. Foi Aristóteles, em sua exposição
sobre o pensamento de Tales, que cunhou e interpretou esse termo de maneira
tão técnica:

A maior parte dos primeiros filósofos considerava que os princípios de


todas as coisas reduziam-se aos princípios materiais. A partir destes,
todas as coisas foram constituídas, o termo primeiro de sua geração
e o termo final de sua corrupção – enquanto a substância permanece,
apenas seus estados mudam – é isso que eles têm para o elemento
e o princípio das coisas: também consideram que nada se cria e que
nada se destrói, pois essa natureza é sempre conservada [...]. Para
Tales, fundador dessa concepção filosófica, este princípio é a água
(ARISTÓTELES, 2002, p. 165).

14
TÓPICO 1 | A PASSAGEM DO MITO À FILOSOFIA

O que fica sublinhado na consideração aristotélica é que originalmente


a filosofia está interessada em indagar a origem de todas as coisas, o princípio a
partir do qual todas as coisas se originaram. Tales teria sido o primeiro a explicitar
essa concepção, identificando este princípio com a água.

Há, certamente, na concepção de Tales, uma alusão ao mito homérico,


que sustentava que Oceano e Tétis eram, respectivamente, o pai e a mãe de
todas as coisas. Todavia, há também muita distinção, pois a hipótese de Tales é
sustentada pelo raciocínio (logos) e não pela imaginação mítica, como já expomos
anteriormente.

Nas palavras de Vernant (2004, p. 76), “o filósofo não se contenta em


repetir em termos de physis o que o teólogo tinha expressado em termos de
poder divino”. Há uma mudança profunda de vocabulário, agora “profano”,
que corresponde a uma nova atitude de espírito, um clima intelectual totalmente
diferente.

4.2 ANAXIMANDRO
Assim como Tales, Anaximandro também viveu em Mileto no século VI
a.C. Foi discípulo de Tales, mas, graças à liberdade e ao caráter antidogmático da
filosofia nascente, ele pôde contestar as ideias de seu mestre.

Para a tradição, Anaximandro foi o primeiro a escrever um livro de


filosofia, um tratado Sobre a Natureza, que se perdeu completamente, restando
apenas alguns fragmentos e doxografias feitas por outros filósofos.

Segundo as informações doxográficas, Anaximandro também foi o


primeiro a usar o termo arché (princípio), afirmando que este era o apeíron
(o ilimitado ou indeterminado). A privação de limites externos e internos –
quantitativa e qualitativamente – seria aquilo que torna o apeíron o princípio de
todas as coisas (limitadas quantitativa e qualitativamente), pois pode circundar e
sustentar a tudo.

Nas palavras de Laêrtios (2008, p. 47), Anaximandro “afirmou que o


princípio e o elemento eram o infinito, sem defini-lo como ar, ou água, ou qualquer
outra coisa”. Para Simplício (apud BORNHEIM, 2003, p. 25), “é evidente que
Anaximandro, ao observar a transformação recíproca dos quatro elementos, não
quis tomar um destes como substrato, mas um outro diferente”.

Isto demonstra a grande novidade do pensamento de Anaximandro,


identificando a arché como algo que não se confunde com nenhum elemento da
natureza e que só pode ser alcançado pela abstração do pensamento. De fato,
as ideias propostas por Anaximandro impressionam por sua lógica, conforme
exemplifica a doxografia a seguir:

15
UNIDADE 1 | ORIGEM E ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA

Diz ainda que, no princípio, o homem nasceu de animais de outra


espécie, porque, enquanto os outros animais logo aprendem a nutrir-
se por si mesmos, o homem necessita de um longo período de lactação;
por esta razão, não teria podido sobreviver em sua origem, tivesse sido
assim como é agora. (BORNHEIM, 2003, p. 27).

Embora se contraponha às doutrinas de seu predecessor, Anaximandro


ainda concede grande valor à água, chegando mesmo a afirmar que ela cobria
toda a terra no início e que todos os seres vivos surgiram do mar, algo bastante
avançado em termos de uma teoria evolucionista das espécies.

4.3 ANAXÍMENES
Também em Mileto, no século VI a.C., nasceu Anaxímenes. Segundo a
tradição, “ele foi discípulo de Anaximandro, atuando na segunda metade do
século VI a.C. Como seu mestre, escreveu um livro em prosa também intitulado
Sobre a Natureza, do qual conhecemos apenas um fragmento” (BORNHEIM,
2003, p. 28).

Para Simplício (apud BORNHEIM, 2003, p. 29), sua concepção sobre a


physis difere de Anaximandro nos seguintes termos: ele afirma “uma única matéria
ilimitada como substrato; não indeterminada, mas determinada, chamando-a de ar
(pneuma): diferencia-se pela rarefação ou pela condensação, segundo a substância”.

Anaxímenes segue o mesmo mote de seu mestre, pensando a arché como


infinita e ilimitada, mas, como bem notou Marilena Chauí (2002, p. 63), ele
considerava o “apeíron de Anaximandro ainda muito próximo do caos descrito
pelo mito”. Com isso, Anaxímenes compreendeu que, apesar de ilimitada,
incorruptível e imortal, a physis deveria ser concebida a partir de um princípio
melhor qualificado, no sentido de que “o pensamento só pode pensar o que
possui determinações”.

Anaxímenes (apud BORNHEIM, 2003, p. 28) concebeu o ar como origem


de todas as coisas, fazendo a seguinte analogia, descrita no único fragmento
associado a ele: “Como a nossa alma, que é ar, nos governa e sustém, assim também
o sopro e o ar abraçam todo o cosmos”. Além disso, sua doxografia o mostra
apreendendo a grande capacidade de variação do ar, mais do que qualquer outro
elemento, e, por isso, prestando-se a fazer nascerem as demais coisas.

Segundo Anaxímenes, o processo pelo qual as coisas se transformam


ocorre pela condensação e rarefação do ar: “Quando o ar se rarefaz, torna-se fogo;
e quando se condensa, vento; com maior condensação, nuvem; se for mais forte,
água; se mais forte ainda, terra; e com sua extrema condensação, transforma-se o
ar em pedra”. (ANAXÍMENES apud BORNHEIM, 2003, p. 29). Assim, é a tensão
da realidade originária que permitiria a variação de todas as coisas, e é esse
processo dinâmico dos elementos físicos que fará do pensamento de Anaxímenes
um paradigma para as gerações posteriores.
16
TÓPICO 1 | A PASSAGEM DO MITO À FILOSOFIA

4.4 HERÁCLITO DE ÉFESO


Também na Jônia, mas não mais em Mileto, viveu Heráclito. Sua cidade
de origem era Éfeso, e sua atuação ocorreu entre os séculos VI e V a.C. Sobre o seu
pensamento, dispomos de mais de cem fragmentos, máximas com um tom oracular
e difíceis de serem interpretadas (na realidade, desde a antiguidade, Heráclito
leva o título de “O obscuro”). No entanto, nem por isso estes textos deixaram de
ser bastante comentados, tanto na antiguidade quanto na modernidade.

Um dos aspectos mais valorizados por Heráclito no pensamento de seus


antecessores foi a dinâmica pela qual as coisas se transformam. A mudança de
perspectiva de Heráclito (mas também de Parmênides, como veremos) envolve,
portanto, a ideia de “movimento” (kinesis). Nas palavras de Chauí (2002, p. 48),
esta questão ganha a seguinte dimensão: “Partindo do uno (a physis), pergunta-se
como o múltiplo é possível; ou partindo do múltiplo (o cosmos), pergunta-se como
o uno é possível”.

Enquanto Tales, Anaximandro e Anaxímenes buscavam desvelar


o princípio das coisas, Heráclito refletirá sobre a dinâmica do devir e sobre o
lugar do homem no interior desse processo. É o início de uma característica que
paulatinamente irá se impor nos vários ramos da vida humana (como a ética, a
política, a linguagem, a estética e assim por diante).

A preocupação com o devir ou vir a ser levará, pouco a pouco, os


filósofos a distinguir entre a aparência do mundo (os seres percebidos
diretamente por nossos sentidos na experiência sensorial) e a
verdade ou essência do mundo (o ser, alcançado exclusivamente pelo
pensamento e, portanto, invisível como o antigo invisível dos poetas
e adivinhos, mas um invisível racional e lógico) (CHAUÍ, 2002, p. 49).

Em um de seus fragmentos, “Heráclito diz que é sábio escutá-lo não


porque ele fala por si, mas porque o logos o dirige” (BORNHEIM, 1971, p. 39),
isto é, a presença da razão no cosmos e em nós transmitiria alguns sinais da
verdade, sendo estes apreendidos pelo pensamento e pelo discurso. A principal
característica do pensamento de Heráclito será, portanto, tomar a ideia de
princípio (arché) como movimento (kinesis).

Para Heráclito, tudo se move, nada permanece fixo. É o que prescreve o seu
mais famoso fragmento: “Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio. Dispersa-
se e reúne-se; avança e se retira” (BORNHEIM, 2003, p. 41). Há uma mudança
contínua de todas as coisas (do rio, de nós mesmos, de tudo), e compreender que
o mundo é esse movimento perpétuo é apreender a verdade da realidade.

Desse princípio se desdobra outra tese fundamental, de que no devir


tudo está destinado a uma passagem de um contrário ao outro: “Tudo se faz por
contraste; da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia” (BORNHEIM, 2003,
p. 36). O que é úmido e seco, as coisas frias esquentam, o que é jovem envelhece
e o que é vivo morre.

17
UNIDADE 1 | ORIGEM E ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA

Há uma guerra perpétua entre os contrários, mas é precisamente isto que


produz a harmonia, “a harmonia invisível, mais forte que a visível” (BORNHEIM,
2003, p. 39). A verdade consistiria em captar, para além dessa contradição aparente
e que notamos através de nossos sentidos, a razão (logos) que tudo governa.

4.5 PITÁGORAS DE SAMOS


Pitágoras é uma das figuras mais populares do pensamento antigo. Viveu
no fim do séc. VI a.C. e morreu no início do século V a.C. Nascido na Jônia (em
Samos), foi obrigado a emigrar para o sul da Itália, em Crotona, depois que as
tropas persas ocuparam a sua ilha.

Pitágoras não deixou nada escrito e sua vida foi desde cedo envolta em
uma série de mitos, como, por exemplo, que era filho de Apolo e que recebeu por
revelação divina a sua filosofia.

Na cidade de Crotona, Pitágoras fundou uma comunidade cercada por


mistérios. Além de compartilhar uma perspectiva filosófica, seus membros
também adotavam as mesmas convicções religiosas. Da reunião deste grupo
surgiu o pitagorismo, conhecido por seu misticismo e por sua concepção filosófica
proeminentemente matemática. Os escritos que assinalam este fato são tardios, e
apenas nos fornecem algumas orientações sobre aquilo que Pitágoras realmente
pensou.

Para Pitágoras, a physis também foi um problema fundamental, cuja resposta


foi dada afirmando que todas as coisas seriam números. Tradicionalmente, essa
afirmação remete aos exercícios espirituais da comunidade, que eram realizados
ao som da lira órfica.

Pitágoras teria observado que a diferença entre o tom de duas notas numa
escala harmônica obedecia a princípios e regras que podiam ser expressos de
forma numérica.

Observando também as relações e leis dos números com as harmonias


musicais, parece-lhes, por outro lado, que toda a natureza modelada,
segundo os números, sendo estes os princípios da natureza, supôs
que os elementos dos números são os elementos de todas as coisas
e que todo o universo é harmonia e número (ARISTÓTELES apud
BORNHEIM, 2003, p. 50).

Com esse argumento foi possível a Pitágoras estabelecer uma analogia


entre o som, na verdade número, e toda a realidade, vista da mesma forma como
um sistema ordenado de proporções, portanto uma realidade que também seria
numérica.

18
TÓPICO 1 | A PASSAGEM DO MITO À FILOSOFIA

4.6 XENÓFANES
Xenófanes nasceu na Jônia no século VI a.C., mas se dirigiu para a Magna
Grécia, no sul da Itália, e por isso é considerado o precursor do pensamento
dos eleatas. Sua contribuição também está em ter introduzido uma concepção
do “Ser”, bastante atrelada a uma certa visão teológica e que será retomada por
Parmênides sob uma perspectiva ontológica.

Não sabemos quase nada sobre a sua vida, a não ser que atacou duramente
a visão religiosa de seu tempo e a concepção antropomórfica dos deuses. Enfatizou
que os deuses são sempre caracterizados pelos homens a partir da imagem que
eles possuem de si mesmos. Em duas sátiras atribuídas a ele, lemos que:

Os mortais imaginam que os deuses são engendrados, têm vestimentas,


voz e forma semelhantes a eles.
Tivessem os bois, os cavalos e os leões mãos, e pudessem, com elas,
pintar e produzir obras como os homens, os cavalos pintariam figuras
de deuses semelhantes a cavalos, e os bois semelhantes a bois, cada
(espécie animal) reproduzindo a sua própria forma (BORNHEIM,
2003, p. 32).

Embora tenha aceitado as ideias naturalistas dos primeiros filósofos,


Xenófanes não se preocupou em buscar respostas para o que seria essa substância
primordial que adquire tantas formas, mas, sim, o que a faz mudar. Além
disso, diante da multiplicidade do universo, concebia a unidade como um deus
(divindade única, não gerada, que a tudo governa mediante o puro pensamento).

4.7 PARMÊNIDES
Parmênides de Eleia nasceu no fim do século VI a.C. e morreu em meados
do século V a.C. Possivelmente influenciado por Xenófanes, aceitou a tese de uma
natureza absoluta da realidade, mas transformou o seu postulado religioso em
algo estritamente filosófico ou ontológico.

Parmênides foi um grande contraste em relação a Heráclito, expondo sua


principal tese a partir de dois postulados, expressos em seu mais célebre fragmento:

Vou dizer-te dos únicos caminhos de investigação concebíveis. O


primeiro (diz) que (o ser) é e que o não ser não é; este é o caminho da
convicção, pois conduz à verdade. O segundo, que não é, e que o não
ser é necessário; esta via, digo-te, é imperscrutável, pois não podes
conhecer aquilo que não é – isto é impossível –, nem expressá-lo em
palavra (BORNHEIM, 2003, p. 55).

Esta é uma clara estratégia para refutar as teses heraclitianas, cuja


concepção propunha que a existência de algo implica necessariamente a existência
de seu contrário. Por sua vez, para Parmênides, se algo existe, ele não pode ser
outra coisa, sobretudo o seu contrário.

19
UNIDADE 1 | ORIGEM E ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA

Portanto, o Não Ser não é, simplesmente não pode existir e,


consequentemente, não pode ser pensado ou conhecido. Conforme Chauí (2002,
p. 91), “pela primeira vez é afirmada a identidade entre ser, pensar e dizer, ou
entre mundo, pensamento e linguagem”.

Estas considerações colocam outro problema, também relacionado com


o que propunha Heráclito, a saber, tentar responder ao que seriam as constantes
variações e mudanças no mundo. Para Parmênides, tratam-se de ilusões, próprias
de opiniões geradas a partir dos sentidos e não da razão (logos). Não podemos
confiar nelas porque são instáveis e não fornecem um conhecimento verdadeiro
do Ser, que é, que não muda.

Se os sentidos nos enganam, se são condicionados e limitados, então, dirá


Parmênides, devemos nos afastar da aparência sensorial para apreender o que
há de essencial por detrás deles. Por conseguinte, o conhecimento da verdade se
dará apenas mediante o uso de nossa razão, que, ao contrário, é capaz de produzir
por meios lógicos e dedutivos um conhecimento verdadeiro das coisas.

Estas teses serão levadas ao extremo pelo discípulo de Parmênides,


Zenão, também de Eleia. Nota-se que, ao afastar o pensamento puro da realidade
sensorial, Parmênides obtém premissas que contrariam a própria realidade
observável. Por exemplo, apesar de vermos a mudança no mundo: sementes
se transformando em árvores, crianças crescendo, seres vivos morrendo etc.,
Parmênides dirá que pela razão podemos saber que o ser é na verdade imutável.

Questões como essas foram problematizadas ainda mais por Zenão, em


seus famosos paradoxos. Para Zenão, se aceitamos que só há um ser, único e
imóvel, o movimento é uma mera ilusão. Pensemos no movimento de uma flecha,
diz Zenão: para que ela alcance um alvo, precisaria ocupar a cada movimento um
espaço igual a si mesma, estando, consequentemente, sempre parada. A ideia de
movimento, portanto, submetida à lógica do pensamento seria um absurdo.

Temos então que, após essas reflexões, a filosofia terá que lidar com o
impasse de conciliar a ideia de um Ser, único e imóvel, com aquilo que nossos
sentidos nos fornecem.

Se é verdade que os pitagóricos foram em busca da estrutura invisível


das coisas e que Heráclito contrapôs o pensamento e a experiência
sensorial, também é verdade que somente com os eleatas a filosofia
chega à compreensão de que o pensamento não só difere da experiência
sensorial, mas possui leis próprias de operação e tem o poder para
refutar o testemunho dos sentidos (CHAUÍ, 2002, p. 101).

20
TÓPICO 1 | A PASSAGEM DO MITO À FILOSOFIA

4.8 EMPÉDOCLES
Os argumentos colocados por Heráclito, Parmênides e Zenão impuseram
à filosofia ter que pensar a physis a partir de uma perspectiva metodologicamente
diferente daquela usada pelos primeiros naturalistas.

Nas palavras de Donini e Ferrari (2012, p. 39), era necessária:

Uma mudança que fosse capaz de defender a pesquisa naturalista dos


erros lógicos evidenciados pelos eleatas, garantindo ao mesmo tempo
direito de cidadania às duas características constitutivas da natureza:
a multiplicidade e o movimento.

Em outros termos, a questão agora era ter que conciliar a ideia de que o ser
é, devido à sua permanente identidade, sempre igual a si mesma, mas também a
multiplicidade da experiência e a transformação das coisas. O primeiro a tentar
realizar esta conciliação foi Empédocles.

Nascido no início do século V a.C., em Agriento, na Sicília, Empédocles


era descendente de uma família bastante influente na região. Por se envolver com
a política da cidade, foi desterrado depois que uma tirania se instalou no lugar.
Além de filósofo, atuou como poeta, dramaturgo e médico.

Seu pensamento sofreu a influência de tudo o que havia sido proposto


nos 100 anos anteriores a ele, desde o pensamento jônico até o eleatismo. Deste
último, valorizou o vínculo dado à pesquisa sobre a physis com novas exigências
lógicas. Sua concepção parte do mesmo princípio de Parmênides, vendo como
impossível a concepção do Ser e o Não Ser simultaneamente.

A vida e a morte, por exemplo, são interpretadas equivocadamente,


diria Empédocles. O que ocorre, na verdade, é um processo de composição
e dissociação daquilo que ele chamou de “raízes de todas as coisas”, quatro
substâncias eternamente iguais e indestrutíveis. Nas palavras de Aristóteles
(apud BORNHEIM, 2003, p. 82):

Empédocles admite como princípio quatro (elementos), acrescentando


(à água, ao ar e ao fogo) a terra como quarto. Estes, diz ele, são eternos
e não foram gerados, mas se unem em quantidade maior ou menor à
unidade e dela separam-se novamente.

Ao contrário dos jônios, Empédocles é mais pluralista e, portanto, não


prioriza somente um dos elementos, mas vê os quatro como um só “princípio”,
transformando-se nas demais coisas. Como força capaz de unir ou separar tais
elementos, Empédocles introduziu a ideia de Amor e Ódio, ou ainda, Amizade e
Discórdia. Quando há o predomínio do Amor, há também união, e, por sua vez,
quando prevalece o Ódio, há a separação.

21
UNIDADE 1 | ORIGEM E ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA

4.9 OS ATOMISTAS: LEUCIPO E DEMÓCRITO


O primeiro a desenvolver uma teoria atomista, última tentativa de
resolver os problemas advindos dos eleatas, foi Leucipo, no final do século V
a.C. Leucipo era provavelmente de Mileto, mas foi para a Itália e ali conheceu a
filosofia eleata. De Eleia foi para Abdera, onde fundou uma escola que, por meio
do seu discípulo mais ilustre, Demócrito, alcançou grande difusão. Demócrito
chegou a ser contemporâneo de Sócrates, vivendo no século IV a.C.

Os atomistas aceitavam parte da visão de Parmênides sobre a natureza


do Ser, afirmavam também a impossibilidade do Não Ser e viam o nascer e
morrer como Empédocles, isto é, como um agregar e um desagregar de coisas já
existentes. A isto eles acrescentaram a ideia de um número infinito de entidades,
chamadas de átomos (não divisível ou indivisível).

Estes átomos são concebidos como diferentes em tamanho e forma,


movimentando-se constantemente. Ao se chocar, eles produziriam as combinações
das quais resultariam as coisas e, como são infinitos os números de átomos,
também são infinitas as possibilidades de combinações entre eles. A ordem para
essas combinações estaria em certa relação mecânica entre os átomos, não sendo,
portanto, possível estabelecer uma ordem final para elas.

O que permitiria o movimento destes átomos é o vazio entre eles, mas, ao


mesmo tempo, este vazio é a sua negação. Assim, átomo (Ser) e vazio (Não Ser)
representariam o princípio explicativo do universo. Para além disso, só existiria a
mera opinião, pois os atomistas não aceitavam que a aparência do mundo poderia
levar o filósofo a conhecer a verdade.

Em um de seus escritos, Demócrito (apud BORNHEIM, 2003, p. 107) diz que:

Há duas formas de conhecimento, uma autêntica e a outra obscura


(inautêntica). À obscura pertencem todos os seguintes: a vista,
o ouvido, o olfato, o gosto, o tato; a outra é autêntica, daquela
completamente separada.

Para além dessas observações, o pensamento de Demócrito e Empédocles


também introduziu vários problemas relacionados à vida do homem, como
as questões em torno da técnica e suas consequências éticas. Como assinala
Chauí (2002), estes pensadores fizeram vários elogios às técnicas como aquilo
que possibilitou ao homem inventar a si mesmo, responsabilizando-se por sua
própria organização.

Abandonando as respostas míticas sobre a origem do homem e da


sociedade, eles acabaram afirmando que “no princípio, o mundo humano não
tinha ordem nem lei” (CHAUÍ, 2002, p. 127), por isso começaram a se reunir em
grupo e a construir instrumentos para sobreviver. Estes elementos fizeram destes
pensadores “filósofos de transição”, preocupados com as questões cosmológicas,
típicas dos pré-socráticos, mas também atentos às questões antropológicas que
marcaram o período socrático.
22
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico você estudou:

• O contexto histórico de formação da Grécia e as especificidades da cultura


helênica permitiram o desenvolvimento progressivo do pensamento filosófico.

• A complexidade e as inter-relações culturais, políticas e econômicas


possibilitaram ao pensamento grego a crítica filosófica e suas primeiras
investigações sobre a physis.

• A ideia de que a distinção entre mito e filosofia possui certa nuance e é difícil
de determinar com clareza os seus limites.

• A ideia de que a interpenetração entre mito e filosofia é algo considerável neste


momento histórico.

• Os filósofos pré-socráticos são caracterizados assim não porque simplesmente


viveram antes de Sócrates, mas por conta da especificidade temática de suas
investigações.

• Os filósofos pré-socráticos são aqueles que, investigando a physis, procuraram


determinar a sua arché.

• Os principais pensadores deste período são aqueles que compuseram a escola


jônica (Tales, Anaximandro, Anaxímenes, Xenófanes e Heráclito); a escola
pitagórica (cujo fundador e principal pensador foi Pitágoras de Samos); a
escola eleata (Parmênides e Zenão); e a escola atomista (Leucipo e Demócrito).

23
AUTOATIVIDADE

1 Considerando a ideia de “milagre grego”, assinale com um “X” quais


elementos históricos contribuíram para o desenvolvimento do pensamento
filosófico:

a) ( ) A derrocada da civilização micênica após as invasões dóricas e a


descentralização do poder aristocrático.
b) ( ) O florescimento comercial e o contato com povos e culturas mais
desenvolvidos.
c) ( ) A intervenção e inspiração divina sobre o desenvolvimento técnico.
d) ( ) A laicização da religião e da política.
e) ( ) A imigração de povos orientais.

2 A partir da doxografia a seguir, situe a reflexão entre os autores pré-


socráticos e explicite a distinção entre o pensamento filosófico deste período
e o conhecimento mítico:

Dizem que a água é o princípio. As aparências sensíveis os conduziram


a esta conclusão; porque aquilo que é quente necessita de umidade para viver,
e o que é morto seca, e todos os germes são úmidos, e todo alimento é cheio de
suco; ora, é natural que cada coisa se nutra daquilo de que provém; a água é o
princípio da natureza úmida, que mantém todas as coisas; e assim concluíram
que a água é o princípio de tudo e declararam que a terra repousa sobre a água.
(SIMPLICIUS apud BORNHEIM, 2003).

24
UNIDADE 1
TÓPICO 2

A SINGULARIDADE DO SABER FILOSÓFICO

1 INTRODUÇÃO
Perguntas como “O que é a filosofia?”, apesar de paradigmáticas, podem
ser respondidas de diferentes maneiras, sobretudo se olharmos para a história da
filosofia, que desde a sua origem tem gerado não uma, mas várias tradições que
ora dialogam entre si, ora se contrapõem.

A explicitação desse embate é na verdade uma forma de compreender que


as respostas dadas a perguntas como estas implicam um exercício tipicamente
filosófico, uma reflexão que seja capaz de problematizar os saberes estabelecidos
e não apenas reproduzi-los.

Além de caracterizar como alguns filósofos interpretaram a identidade


da filosofia, o objetivo deste tópico é tentar especificar os seus principiais campos
de atuação e a sua singularidade com relação a outras formas de conhecimento,
oferecendo a você, acadêmico(a), algumas chaves de leitura para pensar problemas
como este.

2 O QUE É A FILOSOFIA?
Tentar responder à questão “O que é a filosofia?” não é uma tarefa fácil,
dada a particularidade desse saber e da própria questão. Ao longo da história,
este problema foi enfrentado por vários pensadores, e por isso temos um acervo
com incontáveis alternativas. Perspectivas e modelos que variam não apenas de
uma época longínqua para outra, mas entre filósofos que foram contemporâneos
entre si, o que nos adverte desde já a não presumir que só existe uma resposta
realmente válida.

É este o papel fundamental da história da filosofia, ou seja, permitir-nos


transitar de uma perspectiva para outra e perceber que ao longo dos séculos
a própria filosofia foi compreendida de modos diferentes. Esta é também a
particularidade da pergunta, isto é, o desafio filosófico que se impõe a nós em
apreender e atualizar a história. Não se trata de tomarmos a filosofia apenas
como um conjunto de respostas, algo que pudéssemos escolher à la carte, mas de
constituir os nossos próprios caminhos, de filosofar.

25
UNIDADE 1 | ORIGEM E ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA

Há duas histórias clássicas que podemos tomar como modelo para


refletir sobre esta afirmação. A primeira história nos ajuda a caracterizar melhor
aquele que faz filosofia, o filósofo. A segunda, o sentido desse fazer.

Cícero, célebre orador do século I a.C., ao apresentar a filosofia aos


romanos, narrou um episódio bastante interessante envolvendo Pitágoras. Diz
ele que todos os que se aplicaram ao estudo contemplativo das coisas divinas e
humanas receberam o título de sábios (sophos), mas esta definição teria persistido
apenas até Pitágoras, e ele explica por quê.

Diz Cícero que, certo dia, Pitágoras dialogava com um príncipe e, em


determinado momento, admirado com os seus conhecimentos, o príncipe o teria
interrogado sobre qual ciência lhe parecia melhor. Pitágoras então afirmou que
desconhecia uma ciência nesses termos, dizendo que era apenas um amigo (philo)
da sabedoria (sophia), portanto, um filósofo (philo-sophos). A novidade do termo
teria levado o príncipe a querer saber mais sobre o que viria a ser isto, ao que
Pitágoras lhe respondeu com uma analogia:

Compare a vida do homem ao comércio que se fazia diante da Grécia


reunida durante a solenidade dos jogos públicos. Assim como uns se
vendem para brilhar nos exercícios do corpo e merecer a honra de uma
coroa, outros vão para lá somente para obter algum lucro, vendendo
ou comprando, enquanto existe uma terceira classe, e a mais nobre,
que lá não procura nem os aplausos nem o lucro, que lá comparece
somente para observar atentamente o que se faz e como as coisas se
passam; da mesma forma, nós viemos de uma outra vida, de uma
outra existência, como se vai de uma cidade a uma grande feira: uns,
para procurar a glória; outros, dinheiro; um pequeno número somente
desdenha todo o resto e aplica-se a bem estudar a natureza das coisas.
São esses os homens que chamamos amigos da sabedoria, isto é, filósofos;
e como nos jogos a posição mais nobre é a de assistir sem espírito de
lucro, da mesma forma, na vida, o estudo e o conhecimento das coisas
são preferíveis a todo o resto (CÍCERO apud DUMONT, 2004, p. 35).

Esta história nos conduz à origem da palavra “filosofia” e apresenta o seu


significado como o amor ou a amizade pela sabedoria. No entanto, ao fazer isto,
também nos fornece alguma explicação sobre a especificidade daquele que é o
amante do saber. Para Pitágoras, o filósofo é alguém que consegue se maravilhar
com as coisas e faz isso porque nem mesmo a glória entre os seus pares (atletas
olímpicos) ou a riqueza do mundo (interesses comerciais) lhe é preferível quando
comparadas com o conhecimento.

“Em outra passagem, na qual Pitágoras também é descrito como o criador


do termo, suas palavras assinalam para o fato de que a verdadeira sabedoria
só cabe aos deuses, enquanto que para o filósofo, amante desse saber, restaria
apenas desejá-la”. (LAÊRTIOS, 2008, p. 15).

Seguindo esta mesma perspectiva, a constante busca e a falta do objeto


desejado são interpretadas por Perine (2007, p. 23) da seguinte forma:

26
TÓPICO 2 | A SINGULARIDADE DO SABER FILOSÓFICO

[O filósofo maravilha-se com a realidade sob um duplo aspecto] Por


um lado, aquele que admira não sabe tudo daquilo que admira e, mais
ainda, sabe que não sabe; por outro, sabendo disso, põe-se a caminho
do saber, porque deseja a ciência. Esse é o verdadeiro sentido da
admiração como atitude originante do filosofar, que justifica a palavra
filo-sofia.

Esta contemplação de algum modo nos tornaria melhores, colocaria-nos


em uma posição mais “nobre”, mas não porque possuímos a sabedoria, já que
esta pertence aos deuses, e sim porque o filósofo reconhece o que de fato importa,
dedicando-se a perseguir este objeto de desejo, mesmo que para isso tenha que se
contrapor ao seu mundo. Infelizmente, esta imagem também tende a gerar uma
interpretação não tão positiva do filósofo, que é caracterizado como alguém distante
e absorto em seus próprios pensamentos, contemplando de longe o que se passa
na vida. Ora, este ponto nos dá margem para apresentar a nossa segunda história.

UNI

“Diríamos aristocratas, no sentido de “melhores”, “mais bravos”, “excelentes”. A


palavra aristocrático possui como raiz a palavra grega aristói, que significa exatamente o que
foi destacado acima” (CHAUÍ, 2002, p. 495).

Em Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, de Diôgenes Laêrtios, há uma


passagem no mínimo caricata a respeito de Tales, mas não menos significativa.
Conta-se que, conduzido para fora de uma casa para observar as estrelas, aquele
que é considerado um dos sete sábios gregos e o primeiro dos filósofos não
conseguiu enxergar um buraco à sua frente e nele caiu, por manter o olhar fixo
nelas. Vendo isso, uma escrava que o acompanhava disse, zombando dele: “Como
pretendes, Tales, tu, que não podes sequer ver o que está à tua frente, conhecer
tudo acerca do céu?” (LAÊRTIOS, 2008, p. 21).

A anedota também é muito próxima às críticas que geralmente são feitas


aos filósofos. Postos em seu mundo particular, eles desejam conhecer tudo o que há
de elevado, não enxergando, entretanto, os buracos à sua frente, não percebendo
a realidade que os circunda. Paradoxalmente, esses buracos são percebidos
por pessoas tidas como mais simples, incultas, ingênuas etc., representadas, na
passagem citada, pela figura de uma mulher e escrava, o que na sociedade antiga,
certamente, significava pertencer ao estrato mais baixo possível.

Não se trata, obviamente, de reduzirmos as coisas a um utilitarismo


ingênuo, expresso pela sentença “pra que serve isto?” – em nosso caso, “pra que
serve a filosofia?” –, mas de compreender que nossas reflexões devem levar em
conta o solo que as sustenta, a realidade que circunscreve o sujeito pensante e
que, de certa maneira, tensiona a sua relação com o mundo.
27
UNIDADE 1 | ORIGEM E ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA

A filosofia busca a compreensão, que diz respeito ao sentido, ao


significado, ao valor. Ela se apresenta, assim, como uma “maneira de
pensar” que tem “um conteúdo próprio: os aspectos fundamentais
da realidade e da existência humana”. Constituir o sentido (na dupla
acepção de direção e de significado) é uma tarefa fundamental a que o
ser humano não pode se recusar, sob pena de se perder a si mesmo e
ao seu mundo, pois a produção do mundo e a produção de sentido
dessa produção são uma única tarefa: o mundo não seria humano se
não tivesse o seu sentido e, por outro lado, não haveria lugar para o
sentido se não houvesse mundo humano (LORIERI; RIOS, 2008, p. 19).

Exatamente por isso não podemos deixar de constatar que a própria


filosofia, a priori identificada por muitos como sinônimo de um pensar crítico e
criativo, aberta para o novo, também está suscetível de se tornar uma formação
meramente técnica, acrítica, limitada à repetição de sua história. Essa sinceridade,
ou ao menos a tentativa dela, deve ser algo capaz de contribuir para a constituição
de um caminhar (saber) que se atém aos detalhes de seu trajeto. E não é por acaso
que o espanto com relação ao mundo foi um dos primeiros sentimentos presentes
na ação filosófica.

Podemos “concluir”, a essa altura, que se a filosofia é, por um lado, um


conjunto de formulações teóricas (tradição filosófica), por outro lado ela também
se dispõe a continuar indagando e fornecendo respostas, pois o filósofo é aquele
que ama e deseja o conhecimento, mas não o possui. Da mesma forma, embora
a filosofia seja essencialmente teórica (contemplação), isto não significa que ela
deva estar à margem da vida, distante da realidade, que muitas vezes é quem
realmente coloca os verdadeiros problemas.

Assim, a filosofia é mais do que uma postura estritamente teórica, é uma


atitude, uma ação. Por isso, podemos dizer que uma primeira resposta à pergunta
“O que é Filosofia?” seria: “A decisão de não aceitar como óbvias e evidentes
as coisas, as ideias, os fatos, as situações, os valores, os comportamentos de
nossa existência cotidiana; jamais aceitá-los sem antes havê-los investigado e
compreendido” (CHAUÍ, 2002, p. 17). Cabe agora explicitarmos o que caracteriza
essa reflexão e o que a distingue dos outros saberes.

DICAS

Para aprofundar os seus conhecimentos e ajudá-lo na investigação sobre a


especificidade da filosofia, indicamos a leitura da obra:
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. O que é a filosofia? Trad. de Bento Prado Júnior, Alberto
Munoz. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2001.

28
TÓPICO 2 | A SINGULARIDADE DO SABER FILOSÓFICO

3 A FILOSOFIA E O CONHECIMENTO CIENTÍFICO


Como vimos anteriormente, os primeiros filósofos também ficaram
conhecidos como filósofos da natureza, uma vez que buscavam compreender o
princípio de todas as coisas, observando aquilo que eles chamaram de physis, daí
o termo física ou natureza para caracterizá-los. Esses pensadores criaram as bases
para o conhecimento científico e, apesar de Sócrates ter realizado uma guinada
nos temas investigados a partir do século V a.C., a observação da realidade
continuou a ser efetuada durante séculos.

Na verdade, filosofia e ciência caminhavam juntas na antiguidade, uma


não se distinguia da outra. Aristóteles, por exemplo, escreveu um Tratado sobre o
céu a partir da observação dos astros, e foi este texto que influenciou decisivamente
o pensamento de Ptolomeu no século II, a ponto de ele fundamentar um sistema
geocêntrico que perdurou até Copérnico no século XVI. Apenas na modernidade,
com o ideal de verificação e métodos mais rigorosos, é que a ciência passou a se
distinguir da filosofia.

Enfatizando a observação dos fenômenos da natureza, as ciências naturais


foram adquirindo um caráter cada vez mais “científico”, especializando-se e
fazendo com que algumas áreas até então inerentes à filosofia ganhassem mais
autonomia, como ramos que saem de um mesmo tronco, daí a ideia de filosofia
como “mãe” de todas as ciências. Foi assim que a física do século XVII conquistou,
através de Galileu, um campo de atuação específica, isto é, uma delimitação mais
precisa de seu objeto de análise. Paulatinamente, as demais ciências também
começaram a surgir, seguindo o mesmo processo e especificando áreas, como a
química, a biologia, a psicologia, e assim por diante.

Estes recortes da realidade não são tomados pela filosofia como


pressupostos. Antes, a filosofia procura estabelecer um conhecimento do ponto
de vista da totalidade, relacionando cada uma das partes.

Se a ciência tende cada vez mais para a especialização, a filosofia, no


sentido inverso, quer superar a fragmentação do real, daí sua função
de interdisciplinaridade, buscando estabelecer o elo entre as diversas
formas do saber e do agir (ARANHA; MARTINS, 2003, p. 90).

Outra característica que distingue efetivamente o conhecimento científico


da filosofia é a questão metodológica. Para a filosofia, o método utilizado é o
conceitual, uma reflexão seguindo critérios estritamente rigorosos, fornecendo
uma fundamentação lógica e precisa. Não se trata de um discurso pautado por
opiniões (doxa), mas pela razão (logos), e é por isso que as questões filosóficas
procuram ser sistemáticas, formando um conjunto de ideias encadeadas de modo
coerente.

29
UNIDADE 1 | ORIGEM E ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA

A ciência, por sua vez, embora também siga critérios rígidos, pautando-
se pela precisão e pela lógica, difere da filosofia por não ser um conhecimento
conceitual, e sim experimental. Ao realizar certos experimentos controlados, o
cientista observa e junta evidências empíricas que em um processo de análise
cuidadoso e lógico irão lhe fornecer um conjunto de conhecimentos. Estes
conhecimentos fornecerão ao cientista a possibilidade de afirmar ou rejeitar
as suas hipóteses (suas explicações preliminares) e, se estas hipóteses forem
confirmadas, isto significa que uma regra poderá ser criada, e disso uma teoria
científica.

Assim, o conhecimento científico pode ser caracterizado também como


um conhecimento construído. Não se trata de simplesmente observar a realidade,
mas de construir por meio de artifícios técnicos uma experiência do real que
possa ser mensurada, corroborando as hipóteses levantadas, como a temperatura,
por exemplo, que deixa de ser sentida por nossos sentidos para ser lida em um
termômetro. Como desdobramento deste fato, uma das maiores preocupações da
ciência será a de separar os elementos subjetivos da objetividade da experiência,
e é também por isso que a linguagem científica tomada como modelo de precisão
é a matemática.

DICAS

Para melhor assimilação do conteúdo sobre a discussão entre ciência e filosofia,


além dos embates éticos que estão presentes na discussão, assista ao filme “Frankenstein de
Mary Shelley”.

Sinopse:
Em 1794, um explorador no Ártico, ao tentar abrir caminho através do gelo encontra Victor
Frankenstein. Logo depois, os cães decidem atacar uma criatura, que os mata rapidamente.
Assim, Victor decide contar-lhe como tudo começou, quando ele foi estudar medicina em
Ingolstadt, deixando para trás sua noiva e levando consigo uma única obsessão: vencer a
morte. Na faculdade, ao discordar de um renomado mestre, acaba chamando a atenção
de outro, que revela seus experimentos em reanimar tecidos mortos. No entanto, este
pesquisador é assassinado e o culpado pelo crime enforcado, então Victor decide colocar o
genial cérebro do mestre no vigoroso corpo do assassino, mas as consequências de tal ato
seriam inimagináveis.

Direção: Kenneth Branagh


País de origem: EUA
Gênero: Drama, Terror
Duração: 1h58min.
Distribuidora: Warner Bros
Ano de lançamento: 1994

FONTE: Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-11324/>.

30
TÓPICO 2 | A SINGULARIDADE DO SABER FILOSÓFICO

4 A FILOSOFIA E OUTRAS FORMAS DE SABER


Se é verdade que o espanto diante da realidade, como dizia Platão, é o
início da reflexão filosófica, também é verdadeiro que diante das coisas ao seu
redor o homem se presta a interpretá-las ou transformá-las, a fim de se sentir um
pouco mais seguro, ou então, significar a própria existência. Podemos caracterizar
isso de várias maneiras, mas em todas elas veremos que é próprio da capacidade
humana agir segundo esses princípios.

A espécie humana, não sendo biologicamente determinada para agir


no mundo, conta, entretanto, com a capacidade de pensar sobre a
realidade e de construir significados para a natureza, para o tempo e o
espaço, bem como para os outros seres humanos e todas as suas obras
(ARANHA; MARTINS, 2005, p. 20).

Ainda segundo as autoras, podemos chamar isto de “cultura” e dizer


que estas construções simbólicas guiam a ação humana. Desta forma, podemos
perceber estruturas de pensamento que ao longo da história vão se constituindo,
solidificando-se, morrendo ou se transformando, mas sempre mantendo a
característica de nos auxiliar diante das necessidades impostas pela realidade. A
filosofia, portanto, está cercada de esquemas de pensamento, alguns mais ligados
à razão, outros à fé, à experiência, à arte, e assim por diante. Vejamos alguns
pontos acerca dessas formas de conhecimento.

5 O CONHECIMENTO MÍTICO E RELIGIOSO


O conhecimento mítico é um modo de interpretar a realidade e os
problemas que atingem a humanidade. Como vimos anteriormente, ele estava
bastante presente na origem do pensamento filosófico e, conforme Jaeger (2003,
p.191), “às vezes chega a ser difícil saber o momento exato em que começa um e
termina o outro neste contexto”. Fundamentalmente, este tipo de conhecimento
envolve uma série de narrativas fantásticas, explicando os fenômenos naturais, a
vida e ação humana.

O mito nasce do desejo de entender o mundo para afugentar o medo e a


insegurança. O ser humano, à mercê das forças naturais, que são assustadoras,
passa a emprestar-lhes qualidades emocionais. As coisas não são mais matéria
morta nem são independentes do sujeito que as percebe. Ao contrário, estão
sempre impregnadas de qualidades e são boas ou más, amigas ou inimigas [...]
por isso, o ser humano se move dentro de um mundo que ele precisa agradar
para que haja caça abundante, para que a terra seja fértil, para que a tribo ou o
grupo seja protegido, para que as crianças nasçam e os mortos possam ir em paz
(ARANHA; MARTINS, 2005, p.125).

31
UNIDADE 1 | ORIGEM E ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA

Guardadas todas as ressalvas, podemos notar uma semelhança importante


com a filosofia, isto é, o mito já é uma fala sobre o mundo, tentando lhe atribuir
sentido e explicar a sua ordem. Ele se difere, porém, na medida em que se
fundamenta em uma verdade intuída ou revelada por algum ser sobrenatural,
sendo por essa mesma razão aceito como um dogma. Quem toma o mito como
verdadeiro necessariamente o concebe como legítimo, não requerendo provas de
sua verdade. Esta aceitação, por sua vez, dá-se por meio de um processo de fé,
o que faz com que o mito não esteja submetido às mesmas regras lógicas que a
filosofia ou a ciência seguem.

Apesar de todos os esforços filosóficos e racionais, os mitos ainda


permeiam nossa sociedade, persistindo em atribuir sentidos para a realidade a
partir de uma perspectiva fantástica.

O indivíduo moderno, tanto quanto o antigo, não é só razão, mas


também afetividade e emoção. A ciência é importante e necessária ao
entendimento do mundo, porém não oferece a única interpretação
válida do real. Ao contrário, a própria ciência pode virar um mito,
quando somos levados a acreditar que ela se constitui à margem da
sociedade e de seus interesses, que mantém total objetividade e que é
neutra (ARANHA; MARTINS, 2005, p. 126).

Da mesma forma, podemos citar uma série de exemplos sobre como os


mitos ainda estão presentes em nossa sociedade e se assemelham aos mitos e
rituais antigos. Basta lembrar nossas festas de passagens, em que celebramos o
ano novo, a formatura, a festa de debutante, o casamento, e assim por diante.

O conhecimento religioso, por sua vez, desdobra-se desses elementos,


apoiando-se, principalmente, na revelação sobrenatural (os mitos), que uma vez
transmitida a um grupo de pessoas, acaba se tornando uma tradição. A partir daí,
uma série de doutrinas, preceitos e valores vão sendo sistematizados, formando os
dogmas religiosos, compreendidos como verdades infalíveis e indiscutíveis que
determinam o comportamento coletivo. Estas verdades também não precisam ser
provadas, pois o diferencial do conhecimento religioso é o de ser corroborado por
uma atitude individual de fé.

32
TÓPICO 2 | A SINGULARIDADE DO SABER FILOSÓFICO

6 CONHECIMENTO DO SENSO COMUM OU EMPÍRICO


Outra forma de conhecimento que podemos caracterizar é o chamado
“senso comum”. Trata-se de um conhecimento acumulado ao longo da história
humana e repassado como parte de uma tradição ou costume. De modo geral,
ele nasce das necessidades enfrentadas pelo homem em seu cotidiano, sendo,
portanto, o resultado de nossas vivências e de nossas interações com o mundo.
Para Aranha e Martins (2005, p. 102), o senso comum é uma das primeiras
formas de compreensão do mundo, sendo “resultante da herança do grupo a que
pertencemos e das experiências atuais que continuam sendo efetuadas”.

Devemos notar que o senso comum é extremamente útil, servindo para


resolver diversos problemas e nos orientar no cotidiano, e é por isso que ele é
tomado de maneira imediata, sem reflexões aprofundadas. São informações
passadas de geração a geração, e, apesar de suas falhas, contêm vários aspectos
positivos, caso contrário seriam abandonadas. Marilena Chauí cita alguns
exemplos de senso comum que nos ajudam a caracterizar melhor esta forma de
conhecimento.

Quando alguém diz “onde há fumaça há fogo” ou “não sai na chuva


para não se resfriar”, afirma silenciosamente muitas crenças: acredita
que existem relações de causa e efeito entre as coisas, que onde houver
uma coisa certamente houve uma causa para a sua existência, ou que
essa coisa é causa de alguma outra (o fogo é uma causa e a fumaça
é seu efeito, a chuva é causa do resfriado ou o resfriado é efeito da
chuva). Acreditamos assim que a realidade é feita de causalidades, que
as coisas, os fatos, as situações se encadeiam em relações de causa e
efeito que podem ser conhecidas por nós e, até mesmo, ser controladas
por nós para o uso de nossa vida (CHAUÍ, 2002, p. 13).

Conforme esta mesma autora, a filosofia surge para pôr em questão as


“crenças” do senso comum, que, como indicamos anteoriormente, preocupa-se
com a praticidade de seus conhecimentos. Problematizando o que é pressuposto
com relação às crenças supra citadas, a filosofia investigará, por exemplo, a
relação de causa e efeito, mostrando que se trata apenas de uma característica de
nossa mente, forjada pelo hábito, diria Hume, e não porque as coisas possuem em
si mesmas essa capacidade.

33
UNIDADE 1 | ORIGEM E ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA

LEITURA COMPLEMENTAR

De acordo com sua capacidade de agir e reagir, o homem estabelece relações


que o auxiliam a construir um sistema de relações e também a compreender sua
existência. Dependendo da forma de como se relaciona socialmente, o homem
interpreta a si e ao mundo criando significados diversos. Há muitas formas de
representar a realidade, entre elas estão o conhecimento mítico e o conhecimento
religioso.

“Desde os tempos mais antigos, o homem buscou formas de explicar o


mundo. Os fenômenos da natureza e os acontecimentos de sua própria existência
conduziram-no a criar um conhecimento que saciasse suas dúvidas e, ao mesmo
tempo, tornasse a realidade mais clara e inteligível”.

E aí, já descobriu de que tipo de conhecimento está sendo falado? Sim, é


o Conhecimento Mítico, que é muito encontrado nas histórias dos povos gregos,
dos nórdicos e até na Bíblia, por exemplo. Por se tratar de uma tradição que
envolvia narrativa, deve ser considerado uma representação do mundo, baseado
no conhecimento de experiências humanas e não apenas contos fantasiosos.

Pois bem, quando que o Conhecimento Religioso se diferencia do


Conhecimento Mítico?

“Os crentes sabem que a verdadeira função da religião não é fazer-nos


pensar, enriquecer nosso conhecimento, acrescentar às representações que
devemos à ciência representações de uma outra origem e de um outro caráter,
mas a de fazer-nos agir, auxiliar-nos a viver.” As proposições do conhecimento
religioso são consideradas infalíveis e indiscutíveis, por terem sido reveladas
pelo sobrenatural. A aceitação a este tipo de conhecimento deve ser um ato de
fé, pois suas evidências são atos de um criador divino e não devem ser postas
em dúvida. “A religiosidade se realiza como forma de conhecimento real, como
prática que, ao mesmo tempo, reforça e se nega ao real, combina conformismo e
desejo de mudança”.

Assim, a principal diferença entre esses dois tipos de conhecimento é a


fé. Quando se acredita na representação mítica do mundo, pode ser considerada
religião. Já as formas de institucionalização das religiões, como templos,
símbolos e rituais, não garantem que necessariamente os indivíduos tenham uma
consciência religiosa.

FONTE: Disponível em: <http://blocodemoedas.wordpress.com/2012/04/01/principais-diferencas


-entre-conhecimento-mitico-e-religiao-18/>. Acesso em: 14 mar. 2013.

34
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico você estudou:

• A questão “O que é a filosofia?” implica uma análise e busca pela especificidade


desse conhecimento, podendo ser considerada um problema filosófico.

• A origem do termo “filosofia” explicita uma série de características do


pensamento filosófico, como, por exemplo, o amor pelo saber.

• A dinâmica de reflexão e crítica da filosofia envolve um trato com a sua própria


tradição, que se opõe ao simples acúmulo de conhecimentos e à passividade na
formação.

• O conhecimento filosófico se distingue do conhecimento científico, em especial


pelo recorte que a ciência faz da realidade e pelas opções metodológicas.

• A filosofia se distingue do mito e da religião, em especial por não aceitar verdades


reveladas e legitimadas, investigando os fatos por um viés profundamente
racional.

• O senso comum é uma forma de conhecimento transmitida entre as gerações e


se apoia em sua praticidade, embora nem sempre isto seja verdade. Difere da
filosofia por não problematizar a sua origem e suas reais dimensões, sobretudo
quando carrega alguns preconceitos.

35
AUTOATIVIDADE

Caro(a) acadêmico(a)! Após a leitura deste tópico, responda às questões


a seguir para aumentar a sua compreensão dos assuntos abordados. Lembre-
se de consultar e pesquisar sobre as questões.

1 Se o filosofar pressupõe uma atitude questionadora, quais elementos devem


caracterizar o pensamento filosófico?

( ) Recepção e apreensão passiva dos conteúdos presentes na história da


filosofia.
( ) Recepção crítica e problematizadora da própria tradição filosófica.
( ) Aceitação acrítica das opiniões e do senso comum.
( ) Investigação metódica e racional.
( ) Análise e crítica dos fatos e das opiniões.

2 Associe os itens, utilizando o código a seguir:

a) Conhecimento filosófico.
b) Conhecimento científico.
c) Conhecimento religioso.
d) Senso comum.

( ) Segue a tradição e os mitos.


( ) Amor pela sabedoria; discurso lógico.
( ) Segue as opiniões de outras gerações.
( ) Investigação metódica e uso de linguagens matemáticas.

3 Com base nos relatos sobre a origem do termo “Filosofia”, faça um texto no
qual você expõe a sua concepção sobre este “amor pelo saber”.

36
UNIDADE 1
TÓPICO 3

OS PRINCIPAIS CAMPOS DE INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

1 INTRODUÇÃO
Este tópico pretende oferecer a você, caro(a) acadêmico(a), um panorama
geral dos principais campos de investigação que compõem a filosofia, como a
ética e a moral, a teoria do conhecimento, a lógica e a linguagem.

A apreensão dos elementos de reflexão e crítica propostos em cada um


destes campos seguirá uma perspectiva temática e histórica. Além de situar
conceitualmente os campos de investigação, pretendemos estabelecer um recorte
através de autores e períodos representativos da História da Filosofia, como, por
exemplo, a discussão sobre ética e política no mundo antigo; o juízo estético em
Schiller, e o debate sobre lógica e linguagem em Platão e Aristóteles.

2 ÉTICA, MORAL E POLÍTICA


Como vimos anteriormente, a filosofia surge na Grécia antiga como uma
reflexão indissociável dos problemas colocados pela polis, portanto, problemas de
ordem ética, moral e política. Exatamente por isso, estes elementos acabaram se
constituindo como um campo tradicional de investigação filosófica, especialmente
consolidado por Aristóteles como “ciência da conduta”.

Há, porém, o fato de que a posição lado a lado da filosofia com estes termos
nem sempre foi pacífica, criando ao longo da história várias tensões, em que ora
os poderes políticos eram duramente criticados pelos filósofos, ora os filósofos
eram perseguidos e até mortos pelos poderes estabelecidos.

Talvez, por conta dessa tensão, seja melhor lidarmos com cada um desses
elementos a partir de sua especificidade, embora a sua separação seja um mero
artifício didático no qual nos apoiamos.

37
UNIDADE 1 | ORIGEM E ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA

2.1 ÉTICA E MORAL

DICAS

Para aprofundar os seus conhecimentos sobre o tema da ética e da moral,


sugerimos a leitura complementar da obra:
TUGENDHAT, Ernest. Lições sobre ética. Rio de Janeiro: Vozes. 1996.

Presente desde o pensamento pré-socrático, a reflexão ética se consolida


como um dos elementos mais importantes da filosofia, uma vez que trata das
relações entre os seres humanos num espaço público e, conforme Abbagnano
(2007, p. 442), “do fim para o qual a conduta dos homens deve ser orientada”.

Como vimos, na Grécia antiga o surgimento da polis foi um dos fatores mais
cruciais para o enfraquecimento da religião, sobretudo enquanto meio capaz de
“determinar” a organização social. Este modelo político se tornou completamente
distinto em relação a outros povos, que se pautavam, por exemplo, por mandamentos
ou leis promulgados de maneira sobrenatural.

Com a ausência de determinações divinamente inspiradas, surge a


necessidade de uma reflexão a respeito da melhor forma de as pessoas se
organizarem. Justamente porque a polis permitia um espaço para o debate de
opiniões e propostas (caráter político e democrático), alguns princípios para a
ação humana serão estabelecidos.

Ora, a discussão sobre cada um destes princípios, isto é, a ponderação


sobre as ações humanas em termos gerais visando ao bem comum, é o que
constituirá a reflexão ética e o trabalho filosófico neste campo.

Vaz (1999, p. 13) observa alguns traços etimológicos da palavra ética que
fazem com que o termo possua duplo significado:

Ethos (com eta inicial) designa a morada do homem (e do animal, em


geral). O homem habita sobre a terra acolhendo-se ao recesso seguro
do ethos. Este sentido de um lugar de estada permanente e habitual
[...] significa estilo de vida e ação. A metáfora da morada do abrigo
indica justamente que, a partir do ethos, o espaço do mundo torna-se
habitável para o homem.

Neste sentido, a ideia de ethos envolve o modo de ser dos indivíduos em


sua relação com a vida social, isto é, o indivíduo encontra abrigo e possibilidade
de existência, vive fundamentalmente em comunidade, que, consequentemente,
permite-lhe expressar a sua individualidade dentro de certos limites.

38
TÓPICO 3 | OS PRINCIPAIS CAMPOS DE INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

Esta perspectiva trata dos hábitos aceitos e praticados por um grupo social
que se consolida em forma de regras e se desdobra em noções de bem e mal, justo
e injusto, virtude etc.

Outra significação para o termo, porém, indica-nos que: “ethos (com


épsilon inicial) refere-se à constância do comportamento do indivíduo”, e mais
ainda, “a disposição habitual para agir de uma certa maneira” (VAZ, 1999, p. 14).
O ponto desta perspectiva envolve o modo como um indivíduo segue, mediante
juízos éticos, determinados preceitos.

Compreender o que seria cada uma das noções éticas e como alcançá-las
para que a vida em sociedade vise ao bem, o que para Aristóteles (1996, p.120)
“não é nada mais do que a felicidade, é justamente o que especifica o campo de
atuação da ética”.

Aqui já temos algumas pistas para perceber que ética e moral possuem, ao
mesmo tempo, semelhanças e dessemelhanças. Por um lado, compreendida como
ethos, a ética seria o conjunto de costumes construídos e tradicionalmente aceitos
por uma determinada sociedade, algo que implica inventividade humana para
o melhor viver. Ora, etimologicamente, este sentido possui correlações diretas
com o termo “moral”, que, do latim mores, representa os costumes e valores que
delimitam as ações individuais como boas ou más, visando à vida em sociedade.

Por outro lado, o conjunto de valores que vão sendo construídos e aceitos
por um povo ou cultura ao longo de sua história nem sempre são perceptíveis,
na medida em que podemos agir de uma determinada forma sem refletir sobre
as suas causas. Pensemos, por exemplo, no fato de que a maior parte dos nossos
costumes já estava pronta antes de nascermos. Por isso, elementos morais nem
sempre se desdobram de reflexões éticas, ou seja, nem sempre são estabelecidos
pela ética.

A ética não cria a moral. Conquanto seja certo que toda moral supõe
determinados princípios, normas ou regras de comportamento, não
é a ética que os estabelece numa determinada comunidade. A ética
depara com uma experiência histórico-social no terreno da moral. Ou
seja, com uma série de práticas morais já em vigor e, partindo delas,
procura determinar a essência da moral, a natureza e a função dos
juízos morais, os critérios de justificação destes juízos e o princípio
que rege a mudança e a sucessão de diferentes sistemas morais
(VÁSQUEZ, 1989, p. 12).

Em suma, podemos dizer que cabe à moral “estabelecer” os elementos


a serem julgados como uma ação boa ou má, justa ou injusta, certa ou errada,
e assim por diante. Por sua vez, cabe à ética definir o conceito de bem, justo,
certo etc. Embora não seja estritamente o fundamento das ações humanas, a ética
estabelece os “parâmetros” sobre os quais se desenvolvem as nossas normas de
conduta.

39
UNIDADE 1 | ORIGEM E ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA

Esses parâmetros, porém, devem ser compreendidos em um sentido


sinalizador, problemático e não em termos de uma rígida determinação, pois a
reflexão ética parte de questões morais já vividas concretamente. Neste sentido,
pensar a ética coloca-se muito mais como um reflexo daquilo que é praticado em
termos de julgamento moral.

2.2 POLÍTICA

DICAS

Para maior compreensão do tema, sugerimos a leitura da obra clássica:


ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

Para analisarmos filosoficamente o significado do termo “política”


e relacioná-lo com os elementos vistos anteriormente, talvez seja propício
delimitar um contexto específico e, neste sentido, a Grécia antiga mais uma vez
se apresenta como paradigma, pois é dos gregos e de suas cidades-estados, mais
especificamente da cidade de Atenas, que o Ocidente herdou, por exemplo, a
noção de democracia e uma série de ideais políticos.

Até meados do século VI a.C., Atenas era governada por uma tirania em
que, apesar de os cidadãos participarem de um conselho para deliberar sobre as
guerras, comércio, celebrações religiosas etc., a palavra final era determinada por
uma espécie de monarca.

Foi perto do fim do século VI a.C., com as reformas políticas de Sólon e


Clístenes, que o regime político de Atenas se tornou democrático, permitindo aos
cidadãos uma atuação mais plena com relação aos assuntos da cidade. É graças,
porém, aos pressupostos culturais que constituíam o povo grego que este regime
político pôde efetivamente se consolidar, e é por isso também que a ética e a política
foram consideradas como intrinsecamente relacionadas nesse contexto.

Fundamentalmente, o modo de vida grego era pautado por uma ideia


básica, a saber, a noção de virtude ou areté, a qual é interpretada por Chauí como:

Mérito ou qualidade nos quais alguém é o mais excelente; excelência


do corpo; excelência da alma e da inteligência. Virtude é sua tradução
costumeira porque foi traduzida para o latim por virtus, que significa,
inicialmente, força e coragem e, só depois, excelência e mérito moral
e intelectual. A areté indica um conjunto de valores (físicos, psíquicos,
morais, éticos, políticos) que forma um ideal de excelência e de valor
humano para os membros da sociedade (CHAUÍ, 2002, p. 495).

40
TÓPICO 3 | OS PRINCIPAIS CAMPOS DE INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

Como podemos notar, muitas dessas virtudes não podiam ser adquiridas
de forma hereditária, por isso acabaram se constituindo como um ideal de
formação humana a ser buscado através da educação (paideia). Com o advento da
filosofia, e mais particularmente com a filosofia socrática, este ideal se coadunou
com a ética do homem político, e a areté passou, então, a ser concebida como uma
qualidade voltada para o bem comum.

Uma vez que o espaço de deliberação política implicava considerar os


aspectos éticos e morais do povo, isto é, as suas regras de conduta, a formulação
de leis estava atrelada à virtude. Por isso, cumprir a lei significava seguir um
ideal e, consequentemente, participar da vida pública em seu sentido mais pleno,
compreendendo que o seu ethos, com sua ética e moral, constituía-se de virtudes
julgadas como uma ação política. Disso se depreende que a participação política
e a ética eram elementos indissociáveis um do outro.

Devemos, porém, ressaltar que a política é na verdade parte de um


processo histórico, por isso ela também pode ser vista sob uma perspectiva ainda
mais extensa, sobretudo em nosso contexto atual, em que as relações devem ser
pensadas não apenas entre indivíduos, mas entre grupos humanos mais amplos,
como as relações políticas entre as nações, por exemplo, o que torna o assunto
ainda mais complexo.

Sob esta perspectiva, a política passa a ser considerada como um tipo


específico de “ciência do governo”, envolvendo principalmente as relações de
poder e sua legitimidade. Algo que será o mote principal das reflexões políticas
que surgem a partir da modernidade, gerando uma série de concepções teóricas,
como as que propuseram os filósofos jusnaturalistas Hobbes, Locke e Rousseau,
por exemplo.

3 ESTÉTICA

DICAS

Sobre a relação entre a filosofia e as manifestações artísticas, sugerimos a leitura


da obra: MATOS, F. O Filósofo e o comediante: ensaios sobre literatura e filosofia na ilustração.
Belo Horizonte: UFMG, 2001.

Em filosofia, o conceito de estética significa a elaboração de uma teoria


do belo e de sua manifestação através da arte. Etimologicamente, porém, o termo
aisthetiké representa, em um sentido bastante amplo, tudo aquilo que pode ser
percebido pelos sentidos.

41
UNIDADE 1 | ORIGEM E ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA

Sua consolidação como uma disciplina específica para a análise do belo


e das manifestações artísticas ocorreu apenas no século XVIII, com o filósofo
alemão Alexander Baumgarten. Concebida como teoria do belo, a estética busca
refletir sobre um objeto específico, que é a obra de arte, a fim de apreender a
possibilidade de um conhecimento advindo não pelo uso da razão, mas através
dos sentidos.

Ora, as consequências desdobradas desse tipo específico de conhecimento


podem variar de acordo com as perspectivas adotadas na análise, o que mais uma
vez torna a multiplicidade de interpretações conceituais um desafio. Exatamente
por isso, restringiremos a nossa discussão, optando pela concepção do belo
presente na estética alemã dos séculos XVIII e XIX, e mais particularmente, na
concepção de Schiller.

Os séculos XVIII e XIX, na Alemanha, foram marcados pelo romantismo,


um movimento que estabeleceu uma contraposição ao racionalismo. Sua principal
característica talvez seja a ideia de arte como alargamento da formação e do
entendimento humano. Como consequência dessa concepção, a noção de estética
acabou se tornando um suplemento ético-político, e Schiller é, com certeza, um
dos maiores exemplos dessa perspectiva.

Friedrich Schiller (1759-1805) foi um espectador atento da história,


buscando apreender dos desdobramentos da Revolução Francesa quais elementos
poderiam contribuir para a realização do ideal iluminista de liberdade política,
social e moral. Entrementes, o filósofo logo se convenceu de que o homem ainda
não se encontrava apto para efetivar esse ideal, uma vez que todo aquele projeto
acabou por desaguar no terror da Revolução.

Se, por um lado, os homens de seu tempo estavam apreensivos, lançando


os olhares “para a cena política em que acreditam, decide-se agora o grande destino
da humanidade” (SCHILLER, 2011, p. 23). Por outro, Schiller passava a crer que o
verdadeiro caminho para se chegar à liberdade era o caminho da estética:
Resisto a essa amável tentação, deixando que a beleza preceda a
liberdade, e penso poder não apenas desculpá-los mediante minha
inclinação, mas justificá-lo mediante princípios. [...] e mostrarei que
para resolver na experiência o problema político é necessário caminhar
através do estético (SCHILLER, 2011, p. 24).

Schiller acreditava que a beleza poderia desempenhar uma função


“harmonizadora”. É neste mesmo período que ele cria a figura da “alma bela”
(REALE, 2005, p. 24), caracterizada como meio de superação da antítese kantiana
entre inclinação sensível e dever moral, isto é, uma alma capaz de harmonizar
instinto e lei moral.

Seguindo a trilha deixada por Kant, Schiller reconhece que o critério de


objetividade do belo não é algo que se encontra no domínio do ser, mas na ordem
de um imperativo, de um dever. Contudo, trata-se de um agir, evitando:

42
TÓPICO 3 | OS PRINCIPAIS CAMPOS DE INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

A unilateralidade de uma ‘moral demoníaca’ fundada exclusivamente


no imperativo categórico, no ascetismo de uma ‘vontade santa’ que
obedeceria incondicionalmente à razão. Ora, a parcialidade dessa
leitura dos chamados ‘rigorosistas éticos’ consiste justamente em
desconhecer o fato de que a natureza humana é ‘mista’, ou seja, que é
dotada não apenas de razão, mas de razão e sensibilidade (SUZUKI,
2011, p. 14).

Com uma visão mais completa do ser humano, Schiller postula à educação
estética a possibilidade de um pleno desenvolvimento intelectual e sensível, sem
que um elemento se sobreponha ao outro. Assim, completo, o homem poderia se
considerar em um verdadeiro estado de liberdade.

É mediante a cultura ou a educação estética, quando se encontra


no “estado de jogo” contemplando o belo, que o homem poderá
desenvolver-se plenamente, tanto em suas capacidades intelectuais
quanto sensíveis. Esse é, aliás, o sentido da passagem mais famosa das
cartas sobre A educação estética do homem, a qual, segundo o próprio
Schiller, “suportará o edifício inteiro da arte estética e da bem mais
dificultosa arte de viver” (SUZUKI, 2011, p. 14).

Contraposto à idolatria da utilidade moderna, ou a especialização da


técnica num sentido extremamente racionalista, Schiller pretende resgatar a
representação artística como forma de equilibrar os antagonismos presentes,
pois a força estética consistiria justamente na apreensão por parte do artista da
sensibilidade e da razão:

No “impulso lúdico”, razão e sensibilidade atuam juntas e não se pode


mais falar da tirania de uma sobre a outra. Através do belo, o homem
é como que recriado em todas as suas potencialidades e recupera
sua liberdade tanto em face de determinações do sentido quanto em
face das determinações da razão. Pode-se afirmar, então, que essa
“disposição lúdica” suscitada pelo belo é um estado de liberdade para
o homem (SUZUKI, 2011, p.14).

Da mesma forma, Schiller acompanha os acontecimentos históricos


e percebe a incapacidade humana de firmar um estado de liberdade a partir
de imperativos categóricos, aniquilando os reclames do sensível a favor do
cumprimento moral, pois essa imposição se mostrará historicamente ineficaz:

A razão pede unidade, mas a natureza quer multiplicidade, e o homem


é solicitado por ambas as legislações. [...] daí ser sempre testemunho
de uma formação cultural ainda precária se o caráter ético só se
afirma com o sacrifício do natural; e há ainda muito imperfeita uma
constituição do Estado que só seja capaz de produzir a unidade pela
supressão da multiplicidade (SCHILLER, 2011, p. 33).

Isto não quer dizer, evidentemente, que devemos considerar a razão ou


o sensível, um ou outro, como o cerne do problema. O que está em voga é muito
mais o caráter sacrificial de todas as esferas que constituem o ser humano. Como

43
UNIDADE 1 | ORIGEM E ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA

conciliar este equilíbrio? Para Schiller (2011), há uma espécie de intermediário,


um impulso ou jogo lúdico que se encontra entre o sensível e o racional, e que é
suscitado pelo belo.

Fundamentalmente, o pensamento estético de Schiller tentará explicitar


essa busca por unidade, em que toda e qualquer dualidade, seja ela entre o
sensível e o suprassensível, a matéria e a forma, a aparência e a essência, liga-se
e dissolve a oposição. Ao cultivarmos esse impulso (através de uma educação
estética), conciliamos o nosso lado racional e sensível, dando vazão àquilo que
Schiller denominou de “forma viva”.

Assim, o belo acaba se caracterizando como o verdadeiro elemento capaz


de recriar o homem, de recuperar toda a sua potencialidade e liberdade, “tanto
em face das determinações do sentido quanto em face das determinações da
razão” (SUZUKI, 2011, p. 14).

Schiller estabelece um caminho pelo qual poderíamos conduzir o homem


sensível ao pensamento, e o homem espiritual ao mundo sensível. Seguindo este
mote, a proposta de Schiller é a de tomar a estética como educação e aprimoramento
moral, ético e político da humanidade. Eis um exemplo de como a reflexão estética
no âmbito filosófico pode ser considerado como algo fundamental.

4 EPISTEMOLOGIA
A epistemologia é um campo da filosofia que adquire autonomia na
modernidade, mais especificamente a partir do século XVII. Trata-se de uma
teoria, ou estudo, cujo objetivo é problematizar o próprio conhecimento, isto é,
a possibilidade de conhecermos algo, o modo de conhecermos e os limites do
que podemos conhecer. Consequentemente, entre os elementos mais discutidos
se encontram a subjetividade humana (pois seria este o campo ou o fundamento
propriamente do conhecimento), a razão e a experiência.

Embora reflexões como essas estivessem de algum modo presentes em


outros períodos, a especificidade adquirida na modernidade é maior do que
em qualquer outro momento. John Locke (1632-1704), por exemplo, ao escrever
o seu Ensaio acerca do Entendimento Humano, resolve pontuar o valor de
fundamentação dessa investigação, descrevendo-a da seguinte forma:

Quando conhecermos a nossa própria força, saberemos melhor o que


intentar com esperanças de êxito; e quando tivermos examinado com
cuidado os poderes de nossas mentes, e feito alguma avaliação acerca do
que podemos esperar deles, não tenderemos a ficar inativos, deixando
de pôr nossos pensamentos em atividade pelo desespero de nada
conhecermos; [...] foi isso que deu, no início, nascimento a este Ensaio
acerca do Entendimento Humano. Pensei que o primeiro passo para
satisfazer a várias indagações, às quais a mente do homem estava bem

44
TÓPICO 3 | OS PRINCIPAIS CAMPOS DE INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

apta para tender, seria o de investigar nossos próprios entendimentos,


examinar nossos próprios poderes e ver para que coisas eles estão
adaptados. Até que isso fosse feito, suspeitava que começava pelo lado
errado, e em vão procurava satisfação numa tranquila e segura posse
das verdades que mais nos dizem respeito (LOCKE, 2005, p. 31-32).

É partindo destes pressupostos que os séculos XVII e XVIII se constituirão


como o cenário para a epistemologia moderna, gerando duas das maiores
correntes epistemológicas, a saber: o racionalismo e o empirismo, representados,
respectivamente e de modo particular, por René Descartes (1596-1650) e David
Hume (1711-1776).

4.1 DESCARTES E O RACIONALISMO MODERNO


Descartes é tradicionalmente considerado o fundador da modernidade
e aquele que primeiro sistematizou a filosofia, a partir de uma fundamentação
epistemológica. Enfatizando o cogito, isto é, o sujeito pensante e os problemas
relacionados à sua capacidade de conhecer, Descartes enfrentará o desafio de
estabelecer uma base “clara” e “distinta” para a construção do conhecimento.

Estes pontos estão colocados em sua obra Meditações Metafísicas, onde


o lugar de ancoragem do conhecimento é estabelecido a partir de uma discussão
sobre a filosofia primeira (metafísica). Passemos então para o exame de alguns
pontos desse livro, composto por seis meditações.

● Primeira meditação: a primeira meditação estabelece aquilo que ficou conhecido


como “dúvida hiperbólica”, isto é, uma dúvida radical cujo propósito é por
tudo à prova e ver se o que resta ainda pode ser considerado seguro. Assim,
seguindo um método rigoroso, Descartes estabelece uma dúvida universal,
radical e provisória.

A dúvida é universal porque nada poderia ser deixado de lado; radical


porque qualquer resquício de dúvida é suficiente para que tudo seja rejeitado; e,
por fim, provisória, pois o objetivo final é encontrar algo sólido capaz de se tornar
a base para a construção do conhecimento.

Assim, o empreendimento tem o seu início e Descartes ataca primeiro os


conhecimentos obtidos através das impressões. Seguindo uma lógica bastante
simples, o filósofo dirá que já foi enganado algumas vezes pelos sentidos e que,
por isso, é difícil confiar novamente em sua eficácia com relação ao conhecimento.

Apesar disto, Descartes dirá que há situações em que se torna complicado


duvidarmos radicalmente dos sentidos, e cita um exemplo:

45
UNIDADE 1 | ORIGEM E ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA

No que diz respeito às coisas pouco sensíveis e muito distantes,


encontramos talvez muitas outras, das quais não se pode sensatamente
duvidar, apesar de conhecermos por meio deles: por exemplo, que eu
me encontre aqui, sentado perto do fogo, trajando um robe, tendo este
papel nas mãos e outras coisas deste tipo. E como eu poderia negar
que estas mãos e este corpo sejam meus? (DESCARTES, 1990, p. 250).

Feito isso, o segundo passo dado em sua investigação consiste em elaborar


um argumento baseado no sonho. Se, por um lado, não podemos duvidar de
coisas como as que ele acabou de citar como exemplo, por outro sabemos que
já sonhamos várias vezes com situações em que nos encontrávamos fazendo
exatamente estas mesmas coisas. Sonhos que nos pareciam bastante reais, embora
estivéssemos dormindo. Ora, a conclusão de Descartes é que:

Não existem quaisquer indícios categóricos, nem sinais bastante


seguros por meio dos quais se possa fazer uma nítida distinção entre
a vigília e o sono, que me sinto completamente assombrado: e meu
assombro é tanto que quase me convence de que estou dormindo
(DESCARTES, 1990, p. 251).

O argumento de fato universaliza a dúvida, mas, segundo a sequência


do próprio texto, não pode ir tão longe. Descartes mostra que, mesmo estando
sonhando, existem imagens sendo reproduzidas e, da mesma forma que um
pintor que utiliza de uma imagem verdadeira como exemplo para reproduzir a
sua imagem representativa, estas coisas que nos aparecem nos sonhos também
devem possuir algum modelo. Com relação à realidade exterior, há algo que
permanece diante da dúvida, embora não possamos dizer o que é isto.

Na sequência, esse limite do argumento do sonho apresenta a matemática


como algo indiferente, pois, sonhando ou não, não há como duvidar de que 2+2
= 4. Ao contrário do mundo físico, a matemática não representa nada, não há
um objeto no mundo ao qual o número se refere. O problema que resulta desses
pontos é que, para além do mundo subjetivo, a matemática não está garantida.

Para duvidar da matemática em sua aplicação e, portanto, chegar à


universalização da dúvida, Descartes tem de criar um argumento baseado na
imagem de um gênio maligno, ou um Deus enganador, que se empenha em nos
enganar sempre que realizamos uma operação matemática.

Ao fazer isso, Descartes radicaliza a sua dúvida, mas chega, porém, a um


limite. O gênio enganador pode realmente ser muito astuto e poderoso, a ponto
de nada ser verdadeiro, até mesmo a matemática. Ainda assim, dirá Descartes,
existe a liberdade de não acreditar em nada disso, ou seja:

Ao menos está em meu alcance suspender meu juízo. Eis por que
cuidarei zelosamente de não receber em minha crença nenhuma
falsidade, e prepararei tão bem meu espírito contra todas as artimanhas
desse grande enganador que, por poderoso e enganador que seja,
jamais poderá impor-me alguma coisa (DESCARTES, 1990, p. 255).

46
TÓPICO 3 | OS PRINCIPAIS CAMPOS DE INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

Descartes descobre com isso o eu, e um novo campo no qual pode


continuar refletindo. Com isso, o filósofo termina a sua primeira meditação.
Passemos agora à segunda meditação.

● Segunda meditação: depois de desconstruir a possibilidade de um


conhecimento, a partir do mundo exterior, Descartes chega à conclusão de
que a verdade se circunscreve ao âmbito da subjetividade. Quando se trata
da exterioridade, o gênio maligno pode nos enganar de todas as formas, até
mesmo com relação à aplicação de verdades matemáticas, mas na medida em
que podemos suspender nossos juízos, resguardamos um lugar fundamental.

Ao nos contrapormos ao gênio, afirmamos o eu e podemos,


consequentemente, afirmar que enquanto houver a possibilidade de duvidarmos,
poderemos dizer que existimos, por isso: “Penso, logo existo”.

Esta é a primeira certeza a que chega Descartes, isto é, o cogito implica


existência, apesar de não se saber o que existe exatamente. Até o momento, o que
se pode afirmar é que o eu é uma substância pensante (res cogitans), presa a um
corpo (res extensa). Isto possibilita a Descartes perceber o mundo exterior como
algo mecânico, apreendido pelo pensamento, daí a precedência da razão sobre a
realidade.

Embora tenha adquirido algumas verdades seguras (o eu existe; pensa;


e não possui uma natureza corpórea), Descartes permanece preso ao mundo
interior, está confinado ao seu próprio “eu”. Para que o conhecimento científico
tenha algum valor objetivo é preciso romper com esta individualidade.

● Terceira meditação: com este problema Descartes chega à terceira meditação.


Apesar de encontrar alguns fundamentos, não consegue romper com a
interioridade e, exatamente por isso, tem que continuar a sua análise apenas
por meio do pensamento, por meio de ideias, sem recorrer a nada fora de si.
Descartes fará uso, então, daquilo que ele denomina de ideias inatas.

Diferente das ideias que adquirimos através dos sentidos, ou daquelas


que formulamos por meio de nossa imaginação, as ideias inatas são a priori, estão
conosco porque constituem o nosso próprio ser, sendo a marca de que refletimos
a imagem e semelhança daquele que nos criou.

Por isso, na terceira meditação, Descartes se empenhará em provar a


existência de Deus. Fazendo isto, ele pressupõe poder provar que ideias inatas,
que são verdadeiras, essenciais e imutáveis, podem servir de fundamento para
todo o conhecimento posterior.

A prova da existência de Deus permite a Descartes concluir que, se Deus


é perfeito e causa do eu, ele consequentemente garante a existência de todas as
demais coisas exteriores que concebe como claras e distintas. Se há erro, suas

47
UNIDADE 1 | ORIGEM E ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA

causas estão na incapacidade humana. O porquê de haver tantos erros é o objeto


de análise da quarta meditação. Na quinta meditação, Descartes explicita melhor
a prova que ele formula sobre a existência de Deus e, por fim, na sexta meditação
ele reabilita o mundo sensível.

Chegamos então a algumas conclusões sobre o argumento racionalista


de Descartes. Em primeiro lugar, o cogito, o eu penso, é quem desencadeia a
possibilidade de um conhecimento seguro, pois apesar de Deus reabilitar o mundo
sensível e, consequentemente, toda a ciência, a ideia de Deus se fundamenta no eu.

Com Descartes, portanto, temos o surgimento de uma concepção que é


própria da modernidade, a saber: a interioridade, o eu. Da mesma forma, temos
realçada a importância de garantirmos uma base segura para a relação entre
as ideias e o mundo exterior, que consequentemente garante o conhecimento
científico.

DICAS

Para maior aprofundamento da filosofia e do método cartesiano, sugerimos a


leitura da obra. DESCARTES. Regras para a orientação do espírito. São Paulo: Martin Claret,
2003.

4.2 HUME E O EMPIRISMO


Ao contrário do racionalismo cartesiano, o empirismo se constituiu a
partir da valorização do papel da experiência na aquisição do conhecimento. É
assim que John Locke, um dos expoentes da tradição empirista inglesa, resume
esta ideia:

Suponhamos, pois, que a mente é, como dissemos, um papel em branco,


desprovida de todos os caracteres, sem nenhuma ideia; como ela será
suprida? De onde lhe provém este vasto estoque, que a ativa e ilimitada
fantasia do homem pintou nela com uma variedade quase infinita? De
onde apreende todos os materiais da razão e do conhecimento? A isso
respondo, numa palavra: da experiência. Todo o nosso conhecimento
está nela fundado, e dela deriva fundamentalmente o próprio
conhecimento (LOCKE, 2005, p. 57).

A perspectiva de Locke segue um caminho “psicológico”, isto é, concebe


que a sensação externa, recebida pelos sentidos, causa na mente humana uma
ideia, um processo de reflexão, por isso o conhecimento ocorre não a partir de
ideias inatas, como queria Descartes, mas pela experiência sensível.

48
TÓPICO 3 | OS PRINCIPAIS CAMPOS DE INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

David Hume avança nesta mesma trilha, mas especifica alguns aspectos
do empirismo que vale a pena acompanharmos mais detidamente. Com apenas
26 anos, Hume já havia escrito uma obra monumental, o seu livro Tratado da
natureza humana, que por algumas razões ligadas ao estilo da obra, não alcançou
notoriedade na época, chegando a ser visto por Hume como um livro que “nasceu
morto” da gráfica.

Por conta dessas dificuldades, Hume resolveu reformular a exposição de


suas ideias em um texto mais curto e acessível, conhecido como Investigação
sobre o entendimento humano. A partir de sua publicação, ele então conseguiu
um pouco do sucesso esperado.

As ideias de Hume, desenvolvidas em suas Investigações, partem de uma


divisão do conhecimento em dois campos, a saber: as relações de ideias e as
questões de fato. Conforme sua explicação, o primeiro campo envolve o domínio
da matemática, em que “toda afirmação é intuitiva ou demonstrativamente certa”
(HUME, 2004, p. 53). A relação de ideias, para Hume, não é alterada por nenhum
fato, isto é, depende apenas da operação do pensamento. Já no que se refere às
questões de fato, estas não possuem demonstrações matemáticas e o seu contrário
não implica contradição, pois são sempre possíveis.

O contrário de toda questão de fato permanece sendo possível,


porque não pode jamais implicar contradição, e a mente o concebe
com a mesma facilidade e clareza, como algo perfeitamente ajustável
à realidade. Que o sol não nascerá amanhã não é menos inteligível nem
implica mais contradição que a afirmação de que ele nascerá; e seria vão,
portanto, tentar demonstrar sua falsidade (HUME, 2004, p. 54).

Mesmo nos parecendo absurdo dizer que o sol não nascerá amanhã,
isto é algo perfeitamente possível, diferente de quando se trata de uma relação
entre ideias, em que dizer “círculo quadrado” se constitui como uma inegável
contradição.

Sobre a aquisição de ideias, antes de qualquer coisa, Hume rejeitará


que possam existir ideias inatas. Para ele, todo conteúdo da mente decorre da
sensação, do uso da memória e da imaginação. A diferença é que a imaginação e
a memória imitam as percepções e, portanto, quando há uma percepção, a dor de
um calor excessivo, por exemplo, mesmo que a imaginação ou a memória tragam
de volta essa sensação, ela jamais poderá ser comparada à força e vivacidade da
própria experiência.

A imaginação entra em cena fazendo uso do que essas sensações criaram


em nossa mente. Disso se desdobram dois argumentos importantes. Teríamos
ideias simples e ideias complexas, as primeiras seriam os resultados diretos
causados por uma impressão; as segundas, uma composição decorrente dessas
ideias simples, regidas, sobretudo, pela memória e pela imaginação.

49
UNIDADE 1 | ORIGEM E ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA

As ideias complexas sempre podem ser reduzidas a ideias simples, como,


por exemplo: “Quando pensamos em uma montanha de ouro, estamos apenas
juntando duas ideias consistentes, ouro e montanha, com as quais estávamos
anteriormente familiarizados” (HUME, 2004, p. 35).

No tocante às questões de fato, Hume buscará compreender como ocorre


o conhecimento em torno dessas questões e porque ele nos parece tão evidente,
apesar de não estar baseado no raciocínio entre ideias. Para o filósofo, as questões
de fato repousam fundamentalmente em uma relação de causa e efeito, decorrente
de nossas experiências e não dos próprios objetos.

Apresente-se um objeto a um homem dotado das mais poderosas


capacidades naturais de raciocínio e percepção – se esse objeto for algo
inteiramente novo para ele, mesmo o exame mais minucioso de suas
qualidades sensíveis não lhe permitirá descobrir quaisquer de suas
causas e efeitos. Adão, ainda que supuséssemos que suas faculdades
racionais fossem inteiramente perfeitas desde o início, não poderia ter
inferido da fluidez e transparências da água que ela o sufocaria, nem
da luminosidade e calor do fogo que este poderia consumi-lo (HUME,
2004, p. 56).

Para Hume, só podemos articular a relação de causa e efeito a partir da


experiência, sem ela tudo pode ser pressuposto e arbitrário. Se nunca vimos um
jogo de bilhar, por exemplo, é razoável pensar que, quando uma bola se aproxima
de outra ela irá parar, direcionar-se para o lado contrário, explodir ou qualquer
outra coisa. Nada nos garante, sem a experiência, que ela necessariamente
transferirá o seu movimento para a outra bola.

Avançando ainda mais, Hume dirá que isto só não é mais evidente por
causa da força do hábito, algo que ele considera ter um papel fundamental
em relação às questões de fato, pois é justamente o hábito que nos permite
operacionalizar a experiência e inferir certas coisas.

Uma vez depositada a confiança na experiência passada, podemos torná-


la o modelo dos julgamentos futuros. Assim, sabemos que o pão que alimentou
pela manhã poderá alimentar em outro momento, pois “de causas que aparecem
como semelhantes, esperamos efeitos semelhantes; essa é a súmula de todas as
nossas conclusões experimentais” (HUME, 2004, p. 66).

Entretanto, este papel fundamental desempenhado pelo hábito refere-


se apenas a um princípio de nossa natureza, trata-se de algo que nos induz a
agir, crendo que a experiência futura será a mesma. Sendo assim, por meio de
experiências causais e do hábito podemos orientar a vida, incluindo a possibilidade
do conhecimento – que nestes termos se revela como provável, mas de modo
algum necessário e, portanto, capaz de nos fornecer plena certeza.

50
TÓPICO 3 | OS PRINCIPAIS CAMPOS DE INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

A aquisição do conhecimento, segundo Hume (2004), é tão somente o


desenvolvimento de ideias ou expectativas com relação ao comportamento das
coisas, afirmadas pela experiência e pelas impressões que recebemos delas.

5 LÓGICA E LINGUAGEM
Se nos dispusermos a realizar um discurso, visando a expor ou a defender
algo, veremos que será indispensável estabelecer a nossa argumentação seguindo
certos princípios, isto é, instrumentos que nos permitem organizar as ideias de
maneira coerente e sem tirar conclusões inadequadas de certas premissas.

Antes de tudo, é exatamente disso que se trata a lógica, definida por Salmon
(1971, p. 13), como um conjunto de “técnicas para a análise de argumentos, que
procura examinar as relações existentes entre uma conclusão e a evidência que
lhe serve de apoio”.

Originalmente, o termo “lógica” vem da palavra grega logos, que,


como vimos, possui vários significados, entre os quais: “discurso”, “razão” e
“pensamento”. Por isso, está diretamente ligado à origem da filosofia, e mais
ainda àquilo que pressupomos ser o elemento distintivo desse saber, uma vez
que em seu contexto de origem a filosofia tem como característica a sustentação
da verdade exclusivamente por meio do discurso (logos), isto é, uma forma de
argumentação que não recorra aos mitos, mas à sua própria necessidade lógica.

É o que vemos, por exemplo, em Parmênides, em que, uma vez especificados


ou delimitados os conceitos de Ser e Não Ser, afirmar que o Ser Não É ou que o
Não Ser É implica necessariamente contradição. Para Parmênides, pensar e dizer
só são possíveis no âmbito da permanência, e não em um fluxo de contrariedades,
como queria Heráclito. E porque o Ser é permanente, podemos pensá-lo e dizê-lo,
podemos concebê-lo como um logos verdadeiro.

A filosofia clássica se debruçará radicalmente sobre este problema, mas


em nenhum outro momento teremos uma sistematização tão clara desses pontos
quanto em Platão e Aristóteles, que, ao estabelecerem uma contraposição ao
discurso sofista (para quem a contradição não era um problema), consolidam a
lógica ocidental.

Por um lado, as concepções platônicas desenvolvem a base da lógica,


recusando certa concepção de linguagem proposta pelos sofistas, mas, por outro,
é Aristóteles quem sintetiza, quem leva adiante essas concepções e constitui
a lógica como um verdadeiro instrumento do pensamento e da linguagem.
Consideremos agora alguns aspectos de ambos os pensadores.

51
UNIDADE 1 | ORIGEM E ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA

5.1 LÓGICA E LINGUAGEM EM PLATÃO E ARISTÓTELES


Podemos definir no pensamento de Platão o papel central que o discurso
(logos) desempenha na reflexão filosófica, assim como a tentativa de resolução do
problema herdado de Heráclito e Parmênides acerca da identidade e mudança do
Ser. Platão chega a considerar e afirmar a posição de Heráclito sobre a mudança
do mundo material, mas faz isso ressaltando que ele é um mundo de aparências,
uma sombra do mundo verdadeiro, que é composto por essências e que não
comporta a mudança ou a contradição.

Consequentemente, ao fazer esta afirmação, Platão está afirmando também


a posição de Parmênides, para quem o mundo verdadeiro, o Ser, é imutável.
O percurso trilhado por Platão para elaborar esta concepção também pode ser
acompanhado em suas reflexões sobre a linguagem, mais especificamente em
seus diálogos Crátilo e Sofista.

Nestes textos, a posição platônica se desenrola como contraposição ao


discurso dos sofistas, partidários da visão heraclitiana, que se apropriam da
concepção de Parmênides sobre o Ser para formular o problema da impossibilidade
do discurso falso, ou seja, dizer o que não é.

Para Parmênides, o não ser não pode ser expresso, e isto implicará,
segundo os sofistas, o fato de que o discurso falso é impossível, pois, ou dizemos
algo verdadeiro, ou não dizemos absolutamente nada. Platão será obrigado a
rever estas concepções e com isso estabelecerá as bases para a lógica clássica,
posteriormente sistematizada por seu discípulo Aristóteles.

Suas considerações são vistas a partir do estabelecimento da relação entre


o discurso (logos) e o Ser, ao qual se aplicará os conceitos de verdade e falsidade.
Primeiramente, estas reflexões surgem no diálogo Crátilo, cujo mote central é
saber se o “nome” é natural ou convencional e, consequentemente, que relação um
nome tem com aquilo que ele nomeia. Em seu diálogo posterior, Sofista, algumas
dessas considerações serão revistas, mas o núcleo do debate já está presente no
Crátilo, e por isso iremos nos deter especificamente neste diálogo.

Os principais personagens do diálogo são Hermógenes, para quem os


nomes são convencionais; Crátilo, considerando que os nomes são naturais, e
Sócrates, que é chamado para intervir no debate a favor de Hermógenes, mas que
acaba mostrando a inadequação dessas duas concepções. Vejamos com um pouco
mais de detalhe cada uma dessas posições.

Hermógenes tem a sua tese sustentada pelo relativismo dos sofistas. Para
ele, os nomes são convencionados, e este convencionalismo é feito de duas formas:
ou é um acordo do indivíduo, ou um acordo estabelecido pela cidade. O problema
de concebermos esse tipo de convencionalismo é que teríamos a impossibilidade
de nomes falsos e, consequentemente, de todos os discursos falsos. Qualquer

52
TÓPICO 3 | OS PRINCIPAIS CAMPOS DE INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

nome seria sempre verdadeiro, pois a verdade é estabelecida segundo o indivíduo


ou um grupo de pessoas. Se quisermos conceber o discurso como algo passível de
verdadeiro ou falso, teremos que limitar este caráter convencional.

Ora, diante de nossas experiências, sabemos que existe certo


convencionalismo, basta pensar, por exemplo, no fato de que em diferentes
línguas os nomes dados para os mesmos objetos são completamente diferentes.
A primeira característica da contraposição de Sócrates a este tipo de relativismo
é a de que devemos supor certas essências independentes dos nomes, algo que
permaneça estável, independente desse tipo de variação.

Ao conceber algo estável, visto como a essência do que é nomeado,


Sócrates estabelece algo ao qual o nome corresponderá. É neste sentido que o
discurso falso se mantém como possível, pois se trataria de uma referência errada,
como chamar Crátilo de Hermógenes, por exemplo. Neste caso, a identidade de
Crátilo permanece idêntica a si, apesar da nomeação equivocada. Disso decorre
que Platão caracterizará o “nome” como o resultado de uma interpretação de
essências, que pode ser certa ou errada.

Uma vez estabelecida a relação entre o nome e o objeto nomeado – uma


interpretação feita por aqueles que Platão chama de legislador (PLATÃO, 1996
[Crátilo 388e]) –, os nomes serão apresentados como um instrumento através dos
quais podemos chegar às verdadeiras essências. Os nomes, então, não são postos
à revelia de qualquer convenção, antes devem seguir “certa justeza” (PLATÃO,
1996 [Crátilo 391b]). O legislador precisa saber formar com os sons e as sílabas
o nome por natureza apropriado para cada objeto, compondo todos os objetos e
aplicando-os com os olhos sempre fixos no que é o nome em si, caso queira ser
tido na conta de verdadeiro criador de nomes (PLATÃO, 1996 [Crátilo 389d]).

Platão forja, neste momento, uma característica fundamental de sua


filosofia, que é passar de uma análise da linguagem para uma ontologia e teoria do
conhecimento. O verdadeiro nome nos remeteria diretamente à essência daquilo
que é nomeado, “imita” a natureza verdadeira das coisas (PLATÃO, 1996 [Crátilo
423e]), e para julgar se um nome é verdadeiro ou falso, o filósofo deve lançar mão
de um método, a dialética.

Na definição de Chauí, a dialética pode ser entendida como:

Habilidade para discutir e argumentar por meio de perguntas e


respostas; por extensão: método ou arte de argumentar que opera com
opiniões contrárias. Para Platão, a dialética é o diálogo como método
para separar, distinguir e escolher os elementos que constituem a
definição verdadeira de uma coisa (sua essência ou ideia); partindo
de opiniões contrárias, a dialética vai separando opinião (doxa) e
conhecimento (epistéme) para permitir a intuição de uma ideia ou a
definição de uma essência (CHAUÍ, 2002, p. 498).

53
UNIDADE 1 | ORIGEM E ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA

A conclusão de Sócrates leva-nos a perceber que: “O nome é um instrumento


para informar a respeito das coisas e para separá-las, tal como a lançadeira separa
os fios da teia” (PLATÃO, 1996 [Crátilo, 388b-c]). Separar o que é aparente do que
é essencial, o que se presta ao mundo sensível (em fluxo contínuo, sua mudança)
daquilo que é verdadeiro, permanente, imutável e inteligível através do logos. É esta
a função da análise do nome (e do discurso) feita pelo filósofo através da dialética.

Estas considerações, porém, não devem ser interpretadas como que


corroborando as teses de Crátilo, para quem os nomes são “naturais”. A
tarefa de Sócrates neste momento do diálogo passa a ser a de se contrapor ao
naturalismo de Crátilo, e faz isso através de uma especificação da diferença
entre linguagem e ser.

Caso Crátilo esteja certo, a mesma dificuldade com relação ao discurso


falso permaneceria, pois sua concepção envolve aceitar que, para que um nome
seja realmente um nome, ele deve manter a mais perfeita identidade com o objeto
nomeado, excluindo a possibilidade de um nome aproximadamente justo ao
objeto. Assim, ou o nome é um nome verdadeiro, ou não diz absolutamente nada,
não passa de um ruído.

Sócrates mostra então que é fundamental distinguirmos o nome do


objeto nomeado, concebendo a nossa linguagem como representação, isto é, uma
imagem que nos apresenta a verdade das coisas. Esta imagem pode ser boa ou
não, depende do legislador (o responsável por estabelecê-la), mas é justamente
isto que salvaguarda a possibilidade do discurso ser verdadeiro ou falso.

Portanto, para que a verdade seja uma relação adequada de correspondência


entre nome e objeto, possibilitando também o discurso falso, é preciso haver uma
posição intermediária entre convencionalismo e naturalismo.

Estes pontos serão bastante revisados no diálogo posterior de Platão, o


Sofista, mas o núcleo do problema é mantido, estabelecendo a base pela qual
Aristóteles sistematizará a sua lógica. Para Aristóteles, o que é capaz de explicitar
o verdadeiro ou falso na linguagem deixa de ser o nome, como no Crátilo, e passa
a ser a proposição, entendida como uma sentença que afirma ou nega o predicado
de um sujeito. Assim, a forma geral de qualquer discurso declarativo (chamado
por Aristóteles de discurso apofântico) é a estrutura sujeito–predicado.

Para Aristóteles, qualquer discurso significativo sobre o mundo deveria


conter esta forma, atribuir um predicado a um sujeito: “S é P”. A isto Aristóteles
apenas acrescentará a quantificação e a negação:

Todo S é P
Algum S é P
Algum S não é P
Nenhum S é P

54
TÓPICO 3 | OS PRINCIPAIS CAMPOS DE INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA

A investigação feita por Aristóteles sobre estes elementos o levará a


sistematizar os procedimentos através dos quais nós poderíamos derivar uma
proposição a partir de outras, originando a lógica tal qual nós a conhecemos.

Se afirmarmos, por exemplo, que é verdade que todo homem é mortal


(todo S é P), então será falso que algum homem não é mortal (algum S não é P)
e que nenhum homem é mortal (nenhum S é P), mas também será verdadeiro
que algum homem é mortal (algum S é P).

FONTE: Adaptado de: <www.matematiques.com.br/arquivos/doc_logica__543936671.ppt>.


Acesso em: 17 abr. 2013.

No período da filosofia medieval, o pensador Boécio estruturou essas


reflexões com o que ficou conhecido como “quadrado lógico”. Desse quadro,
Aristóteles, e posteriormente toda filosofia que o segue, estabelecerá novas relações
formais entre os termos, ou ainda, criar novas inferências, como o silogismo, no
qual será possível derivar uma proposição verdadeira ou falsa a partir de outras.
Assim, a lógica acabará se constituindo como uma ferramenta preponderante
na construção do conhecimento, permanecendo praticamente com esta mesma
estrutura até o século XIX.

55
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico você estudou que:

• Especificamos a ética e a moral dentro do contexto da filosofia aristotélica,


a partir do qual podemos entender essas reflexões como ciência da conduta
humana.

• A definição de ética e moral envolve um duplo significado a partir da palavra


grega Ethos.

• A primeira distinção da palavra ethos em grego envolve o modo como os


indivíduos se relacionam socialmente e segundo um conjunto de valores
compartilhados. Desta definição se origina o termo “moral” e sua relação com
os costumes.

• A segunda distinção envolve o modo como o indivíduo é capaz de refletir e


julgar esses valores, posicionando-se como sujeito ético.

• A reflexão política é inerente à filosofia e esteve presente desde a sua origem na


Grécia. De modo geral, implica uma reflexão sobre como um governo é capaz
de estabelecer e proporcionar uma vida justa aos seus cidadãos.

• A reflexão estética significa uma elaboração teórica sobre o belo e sua


manifestação através das obras de arte.

• A epistemologia é um campo da filosofia que ganhou certa autonomia na


modernidade. Envolve uma reflexão sobre a possibilidade e limites do próprio
conhecimento humano.

• A lógica é um conjunto de técnicas a serviço da linguagem. Esta relação


possibilita o estabelecimento de uma argumentação coerente e adequada.

56
AUTOATIVIDADE

Caro(a) acadêmico(a)! Após a leitura deste tópico, responda às questões


a seguir para aumentar a sua compreensão dos assuntos abordados. Lembre-
se de consultar e pesquisar sobre as questões.

1 Elabore um texto no qual você explicita os dois significados que a palavra


Ethos adquire nas discussões sobre ética.

2 Qual o valor destinado à educação estética na concepção de Schiller?

3 No campo da epistemologia moderna, Descartes e Hume se destacam.


Ambos são representantes de quais correntes filosóficas?

a) ( ) Racionalismo e empirismo.
b) ( ) Subjetivismo e pragmatismo.
c) ( ) Idealismo platônico e realismo aristotélico.
d) ( ) Romantismo e positivismo.

4 Quais destes filósofos clássicos refletiram e fundamentaram a linguagem


sobre bases lógicas?

a) ( ) Sócrates e Platão.
b) ( ) Heráclito e Parmênides.
c) ( ) Platão e Aristóteles.
d) ( ) Sócrates e Protágoras.

5 Servindo como um instrumento para a linguagem, a lógica pode ser


entendida como:

a) ( ) A possibilidade de estabelecermos um discurso coerente com a ideia de


verdade, segundo um conjunto de técnicas.
b) ( ) A possibilidade de fundamentarmos o discurso sofista e superarmos a
tradição socrática.
c) ( ) A relativização da linguagem, segundo um conjunto de técnicas
matemáticas.
d) ( ) A fundamentação dos limites da linguagem falsa.

57
58
UNIDADE 2

DO PERÍODO CLÁSSICO À FILOSOFIA


ESCOLÁSTICA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir desta unidade você será capaz de:

• conhecer desde o período clássico da filosofia, passando pela filosofia hele-


nista até a filosofia medieval, com destaque para a patrística e a escolástica;

• entender as características e diferenças de pensamento dos grandes pensa-


dores da filosofia, principalmente Sócrates, Platão e Aristóteles;

• estudar a importância da patrística e da escolástica para o desenvolvimen-


to da filosofia, bem como os pensadores de maior expressão deste período:
Agostinho e Tomás de Aquino.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No final de cada um deles, você
encontrará atividades que o(a) ajudarão a fixar os conhecimentos adquiridos.

TÓPICO 1 - O PERÍODO CLÁSSICO DA FILOSOFIA

TÓPICO 2 - FILOSOFIA HELENISTA

TÓPICO 3 - FILOSOFIA MEDIEVAL: PATRÍSTICA E ESCOLÁSTICA

59
60
UNIDADE 2
TÓPICO 1

O PERÍODO CLÁSSICO DA FILOSOFIA

1 INTRODUÇÃO
Este tópico propõe-se a apresentar a você, prezado(a) acadêmico(a), os
principais aspectos da filosofia clássica, o que implica determos não apenas no
pensamento de autores como Platão e Aristóteles, mas também na análise do
contexto particular de Atenas do século V e de alguns personagens centrais deste
período.

Ao situarmos a filosofia socrática, por exemplo, perceberemos que ela se


desenvolve a partir de um embate particular com os sofistas e com aquilo que eles
representam na nova condição política ateniense. Constituindo, sobretudo, uma
técnica, ou um conjunto de conhecimentos que serão usados, fundamentalmente,
no contexto dos debates públicos da cidade.

Em todo caso, tanto Sócrates quanto os sofistas já explicitam a preocupação


ética e política deste período, como algo distinto do contexto pré-socrático que
os antecede. Sendo este marcado, fundamentalmente, pela investigação sobre a
origem da realidade física.

Esta mudança de perspectiva da reflexão filosófica também permitirá


o desenvolvimento do pensamento platônico e aristotélico, considerados, em
grande medida, herdeiros da filosofia socrática. Em relação a estes dois autores,
serão abordados, respectivamente, os principais elementos que caracterizam suas
investigações filosóficas.

2 SÓCRATES E OS SOFISTAS: UMA MUDANÇA DE PERSPECTIVA


No final do século VI, Sólon e Clístenes desenvolveram algumas reformas
políticas em Atenas que culminaram na instauração definitiva do regime
democrático. Estas reformas tiveram grande impacto sobre a vida pública
da cidade, que passou a ser guiada não mais pela imposição de uma classe
aristocrática, mas pela liberdade e participação política outorgada aos cidadãos.

61
UNIDADE 2 | DO PERÍODO CLÁSSICO À FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

UNI

Segundo Chauí: “démoi, os cidadãos; krátos, o poder: o poder dos cidadãos”


(CHAUÍ, 2011, p. 133).

E
IMPORTANT

Apesar de ser um espaço de discussões políticas sem precedentes na história


antiga, a democracia ateniense é na verdade bastante problemática, pois se constitui a partir da
centralidade da figura masculina, de certa superioridade classista e de um modelo econômico
escravagista. Sobre este último aspecto, “apesar da inexistência de dados numéricos exatos a
respeito da antiguidade, calcula-se que, por exemplo, durante o século IV a.C., os atenienses
(homens, mulheres e crianças livres) eram cerca de 100 mil, os estrangeiros eram cerca de
30 mil, e os escravos atingiam aproximadamente a espantosa soma de 400 mil indivíduos!”
(BENOIT, 1996, p. 20).

Graças a estas reformas e à sua efetivação com o governo de Péricles, já no


século V, o poder político deixou de se centrar nas mãos de grupos aristocratas e
se distribuiu entre a assembleia do povo (ecclesia). Os membros dessa assembleia,
os cidadãos, ao contrário do uso da força ou da autoridade legada pelos deuses,
tornaram-se responsáveis por discutir e votar as próprias leis.

Assim, a remediação de problemas de interesse comum passou a ser tema


de debates públicos, concebidos como o único espaço capaz de legitimar a prática
política.

Segundo Benoit (1996, p. 19), isto trouxe como implicação o fato de que:

Inseparável das práticas da democracia surgiu a valorização da


linguagem. Os homens, para resolver os seus problemas, cada vez
mais começaram a utilizar a palavra em vez da violência. Surgiram
assim os grandes oradores, a retórica, os professores da técnica da
palavra e a sofística.

De fato, uma das implicações imediatas deste sistema político era a


multiplicidade de interesses que passava a ser posta à cidade. Assim, o governo
e as decisões requeriam uma discussão pública sobre quais destes postulados
visavam ao bem comum.

62
TÓPICO 1 | O PERÍODO CLÁSSICO DA FILOSOFIA

O século V foi o auge desse modelo político e de todo o florescimento


cultural e econômico que se vinculava a ele. Tais elementos tornaram Atenas o
centro da civilização helênica e um local para onde se dirigiram quase todos os
grandes pensadores e artistas.

UNI

É a partir deste período que a filosofia migra das regiões circunvizinhas e se


estabelece no centro do mundo grego, alcançando junto com a cidade o seu ápice.

Economicamente, Atenas se tornou próspera graças a uma série de


fatores, entre os quais, dois se destacam. Em primeiro lugar, Atenas alcançou uma
forte hegemonia diante das demais cidades marítimas, e isto lhe proporcionou o
desenvolvimento do comércio de maneira extraordinária. Segundo Chauí (2002,
p. 134), o seu porto, o Pireu, passou a ser considerado “um porto cosmopolita, ao
qual chegavam e do qual partiam todos os produtos do mundo conhecido. Era
um centro urbano e um poder naval sem precedentes”.

Em segundo lugar, e igualmente importante para o desenvolvimento


econômico de Atenas, foi a arrecadação de tributos e o poder exercido sobre
outras cidades-estados, algo que se sucedeu depois que estas cidades haviam se
organizado como uma federação para se fortalecer e se defender das invasões
persas, a chamada liga de Delos. Com a vitória dos gregos sobre os persas, Atenas
continuou pressionando as demais cidades para que continuassem unidas,
exercendo papel de liderança sobre elas e arrecadando tributos e impostos que
foram usados para financiar boa parte de seu próprio desenvolvimento cultural.

Sua cultura e sua arte se tornaram o modelo de liberdade intelectual e


estético da antiguidade, produzindo obras primorosas, como a própria Acrópole
da cidade, o Partenon e o Propileu. Além das incontáveis esculturas criadas neste
período, este foi o momento áureo das poesias trágicas, exaltando as virtudes
morais e políticas do povo ateniense, escritas principalmente por Ésquilo, Sófocles
e Eurípides.

Este cenário de liberdade e condições concretas para a expressão do


gênio grego, por conseguinte, também levou a investigação filosófica a adquirir
uma nova perspectiva. A partir disso, foi mudando a posição central de temas
relacionados à natureza para os problemas humanos, éticos e políticos, justamente
porque este contexto exigia uma nova reflexão ou saber.

63
UNIDADE 2 | DO PERÍODO CLÁSSICO À FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

Uma vez que todos os cidadãos agora tinham o direito de falar na


assembleia, a mediação política passou a exigir novas habilidades. Isto também
fez com que a isegoría, termo relacionado à possibilidade concreta de um cidadão
dizer livremente o que quiser, seja considerada no momento de decisão coletiva,
tornando-se um termo preponderante.

NOTA

Isegoría - Segundo Chauí (2002, p. 503), esta palavra é composta de dois


elementos: “ise – que vem de isos (igual, igual em número e em força, igualmente repartido,
ter parte igual; justo, equitável, equilibrado, nivelado), e goría, derivada do verbo agoreúo
(falar em público, falar numa assembleia, discursar em público)”.

Ora, para que isso realmente se efetivasse, era necessário que os homens
dominassem uma nova técnica em seus discursos e, conforme Giovanni Casertano
(2010, p. 17):

Os sofistas se apresentam, então, em primeiro lugar, como os “novos


mestres”, aqueles que satisfazem a essa nova exigência do “saber falar”,
que não é uma exigência puramente retórica, mas tem um claro valor
político e social: expressar-se de modo convincente, obter consenso,
fazer valer as próprias razões; significa libertar-se de um complexo
de inferioridade em relação às classes aristocráticas tradicionalmente
detentoras do poder e do consenso.

Vale lembrar que o predomínio da economia agrícola havia se transformado


em uma economia preponderantemente marítima e comercial, dando às novas
classes sociais a possibilidade de se tornarem abastadas financeiramente, como,
por exemplo, os mercadores, artesãos e marinheiros.

Paulatinamente, estes grupos passaram a se contrapor à antiga aristocracia


e a formar uma nova assembleia popular. Isto se estabeleceu efetivamente, através
de uma cultura política mais refinada, capaz de fazê-los sobrepor seus discursos e
interesses nas assembleias e tribunais.

Por isso, conforme Voegelin (2009, p. 350):

O domínio de situações e argumentos típicos do debate público, um


cabedal de conhecimento completo sobre os assuntos públicos da
polis nas relações domésticas e imperiais, uma inteligência vívida,
uma boa memória aprimorada pelo treino, um intelecto disciplinado
pronto para apreender a substância de uma questão, a habilidade
treinada para ordenar argumentos de improviso, um acervo de
anedotas, paradigmata e palavras extraídas dos poetas para ilustrar
argumentos, perfeição oratória geral, habilidade para estorvar um

64
TÓPICO 1 | O PERÍODO CLÁSSICO DA FILOSOFIA

oponente de modo mais ou menos polido no debate, uma boa dose de


conhecimento psicológico para lidar com as pessoas, boa aparência e
bom porte, elegância natural e exercitada na arte da conversação, tudo
isto era necessário para ter sucesso no competitivo jogo da polis. Nessa
nova forma de política, alguém que pudesse treinar a mente para
chegar a decisões sensatas e impô-las aos outros por meio do debate,
do discurso, da argumentação e da persuasão seria sempre acolhido.

Os sofistas são aqueles que primeiro se apresentam como mestres, neste


tipo de habilidade. São professores profissionais e itinerantes que, em certo
sentido, se tornaram os encarregados pela educação dos jovens e emergentes
ricos da cidade. Portanto, responsáveis por uma Paideia diretamente ligada à vida
política.

Atenas era uma das cidades-estados que mais demandava este tipo de
ensino, e como esse conteúdo estava voltado para um público extremamente rico,
era este tipo de audiência e remuneração a que os sofistas, enquanto profissionais,
visavam.

Ora, é exatamente este aspecto que irá ser tomado por seus inimigos
para depreciá-los. Algo que se consolidou ao longo da tradição e que só muito
recentemente passou a ser reconsiderado pelos historiadores como uma
perspectiva problemática ou inadequada.

Convém, então, assinalarmos quais aspectos de sua filosofia são originais,


fruto das relações com o seu contexto político e, portanto, uma reflexão que se
desdobra de problemas reais e não de interesses econômicos e individuais, como
quiseram mostrar Platão e Aristóteles.

2.1 OS SOFISTAS E A SUA TÉCNICA: PANORAMA GERAL

DICAS

Para aprofundar seus conhecimentos sobre os sofistas, sugere-se a leitura da


seguinte obra: GUTHRIE, W.K.C. Os Sofistas. Trad. João Rezende Costa. São Paulo: Paulus,
1995.

De modo geral, o termo “sofista” carrega uma carga bastante negativa,


ele sequer foi traduzido em nossa língua e passou a designar o indivíduo astuto
em seu discurso, capaz de sustentar uma tese e, logo em seguida, afirmar outra
totalmente contrária à primeira.

65
UNIDADE 2 | DO PERÍODO CLÁSSICO À FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

Neste sentido, seria alguém que:

“Adultera” os discursos com excessivas sutilezas, que se agarra


teimosa e pedantemente a toda palavra ou conceito expressos por
seu interlocutor e sobre cada um deles tem o que falar, pelo simples
gosto de contradizer; homem fraudulento, que recorre a todos os
truques da linguagem para prevalecer na discussão, ou simplesmente
para ser aplaudido pelo público, enfim, um homem aborrecedor, que
não tem nada a dizer e que, todavia, não faz outra coisa senão falar
(CASERTANO, 2010, p. 9).

Mas, se averiguarmos um pouco mais de perto o próprio termo, veremos


que “sofista” (sophistés, sinônimo de sophós = sábio) era, primeiro, uma designação
bastante ampla, alcançando quase todos os filósofos clássicos, além de poetas,
sábios ou até mesmo algum perito em uma arte específica, como fabricar um
navio, por exemplo.

Posteriormente, no século V e, sobretudo em Atenas, o termo adquiriu as


qualidades técnicas de um profissional encarregado de ensinar certas habilidades
argumentativas aos jovens ricos da cidade. Segundo Marcondes (2010, p. 42):

Os sofistas surgem exatamente no momento de passagem da tirania


e da oligarquia para a democracia. São mestres de retórica e oratória,
muitas vezes mestres itinerantes, que percorrem as cidades-estados
fornecendo seus ensinamentos, sua técnica, suas habilidades aos
governantes e aos políticos em geral.

É, por fim, por volta do século IV que a palavra adquire o caráter pejorativo
que até hoje pode ser encontrado em nossa linguagem, graças, principalmente, às
críticas de Platão e Aristóteles.

Ora, convém entendermos e distinguir quais aspectos históricos fazem


jus aos sofistas e quais elementos são mais condizentes com os interesses de seus
críticos. Em outros termos, “compreender em que sentido os sofistas representam
uma ‘novidade’ no quadro cultural da Grécia do século V” (CASERTANO, 2010,
p. 12).

A perspectiva filosófica que sobreveio com os sofistas a partir do século


V, embora distinta, mantém algumas relações com o período pré-socrático. O
desenvolvimento dessas primeiras reflexões filosóficas trouxe também alguns
problemas insolúveis, como, por exemplo, a oposição entre o ser e o devir,
representadas principalmente por Parmênides e Heráclito.

Este tipo de carga histórica não poderia ser desconsiderado, por isso
alguns aspectos dessa tradição estarão presentes tanto entre os sofistas quanto
em seus opositores, especialmente em Sócrates.

66
TÓPICO 1 | O PERÍODO CLÁSSICO DA FILOSOFIA

No caso dos sofistas, o elemento dinâmico que se destacava na perspectiva


de Heráclito, com a valorização da ideia de devir, levou estes pensadores a certa
desconfiança em relação às regras gerais e permanentes. Soma-se a isto o fato
de que, com as transações econômicas com outros povos, foi possível observar
diferentes modos de vida. Assim, os comportamentos tomados como absolutos
e instaurados pelos deuses gregos eram relativizados através do contato com
outras culturas.

O historiador Heródoto, no século V, é a marca dessa transformação. Ao


relatar as diferentes perspectivas com que os povos orientais viam um mesmo
assunto, reforçou ainda mais a ideia de que não era possível tomar a cultura
grega como um valor absoluto.

Tais aspectos culminaram em um relativismo moral, cuja ênfase estava


voltada às questões práticas do homem. A vida, sob esta ótica, era fruto de uma
série de inter-relações entre grupos sociais, baseada em acordos políticos que
tentavam promover e manter as condições de sobrevivência desses grupos – seja
em relação às forças da natureza ou em relação à força de outros indivíduos. Os
sofistas, por isso, afirmavam que os costumes e leis eram, na verdade, fruto das
convenções humanas.

Esta característica levou à antítese entre phýsis e nómos, entre a ideia de leis
e costumes imutáveis e instaurados independente da ação humana (a phýsis), e a
concepção de que estas mesmas leis e costumes eram na verdade convencionados,
de acordo com as necessidades (nómos) de grupos sociais.

Em Atenas, coexistiam como dois “partidos” antagônicos, um


aristocrata e outro democrata. O antagonismo se manifestava
de inúmeras maneiras e uma delas aparece numa pergunta
incessantemente repetida (na tragédia, na ágora, na filosofia): a lei é
por natureza ou por convenção? Se for por natureza, não depende da
decisão humana e é inviolável, se for por convenção, pode ser alterada
e mesmo transgredida (CHAUÍ, 2002, p. 166).

Ora, uma vez que os sofistas tomavam partido em favor do nómos,


também explicitavam que tudo, política e eticamente, poderia ser ensinado e
apreendido, inclusive certas virtudes, habilidades ou leis. E mais do que isto,
também demonstravam uma atitude perante a tradição muito mais ousada, pois
entendiam que a sabedoria consistia em transformar a tradição de acordo com a
época, com o costume, enfim, segundo o fluxo contínuo da vida, e não absorver
passivamente o que dela provinha.

Um dos sofistas mais importantes e que mais exaltou essa característica foi
Protágoras de Abdera. Protágoras viveu no século V, e apesar de não termos acesso
completo à sua obra, pois restaram apenas alguns fragmentos e o testemunho de
pessoas que não eram tão favoráveis ao seu pensamento, podemos assegurar que
o mérito de sua filosofia foi o de corroborar a relatividade dos valores. Isto pode
ser observado mediante a sua célebre frase: “O homem é a medida de todas as
coisas” (PLATÃO, 1996, p. 152).

67
UNIDADE 2 | DO PERÍODO CLÁSSICO À FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

Segundo Casertano (2010, p. 51), esta expressão significa que:

A verdade não é algo que possa ser revelado por sábios ou profetas,
nem pode consistir nas tradições míticas transmitidas de geração em
geração; ela consiste, pelo contrário, numa relação dialética com os
fatos, com a realidade, que cada homem em particular instaura vez
por vez, segundo sua idade, suas disposições, sua situação histórica.

É este o sentido do humanismo trazido pelos sofistas e é também o que há


de mais revolucionário entre eles, responsabilizando os homens por seus próprios
atos, juízos e, principalmente, por sua organização política.

No âmbito desta nova Paideia, os sofistas se tornaram os responsáveis por


preparar os homens individualmente, para atuarem no Estado de um modo mais
adequado, isto é, em consonância com os preceitos de liberdade e democracia
daquele período.

2.2 SÓCRATES

DICAS

Para aprofundar seus conhecimentos, sugere-se a leitura da seguinte obra:


PLATÃO. Apologia de Sócrates. Tradução de Enrico Corvisieri, Mirtes Coscodai. São Paulo:
Nova Cultural, 1999, p. 287 (Os Pensadores).

Sócrates é considerado um dos maiores filósofos, não só entre os gregos,


mas de tradição filosófica. Marcou tanto a filosofia clássica que este período
passou a ser subdividido em dois, antes (os pré-socráticos) e depois de Sócrates.
A principal característica de sua filosofia, e da mudança de perspectiva que ela
traz, está ligada ao fato de Sócrates não apenas ter valorizado a reflexão moral
em detrimento dos problemas sobre a physis, mas, segundo Dorion (2006, p. 9),
também, “Porque ele continua sendo para nós o primeiro exemplo de um filósofo
que se dedicou inteiramente à busca sem compromisso e sem concessão dos
princípios e fundamentos da ‘vida boa’”.

De fato, tanto a vida quanto a morte de Sócrates, tal como narram os seus
contemporâneos, não se contradizem com o que ele propagou como filosofia.
Nascido em Atenas em 470 a.C., e condenado à morte em 399 a.C., Sócrates
desenvolveu a sua atividade filosófica durante o século V, testemunhando,
portanto, o apogeu e esplendor ateniense na economia, política, arte e filosofia.

68
TÓPICO 1 | O PERÍODO CLÁSSICO DA FILOSOFIA

NOTA

O filósofo não deixou nada escrito, não há nenhuma obra atribuída a ele. Tudo
o que sabemos a seu respeito ou foi escrito por seus discípulos ou por seus adversários.
O que temos, portanto, são os relatos sobre os principais feitos de Sócrates escritos por
seus contemporâneos, dois deles testemunhando a favor, Platão e Xenofonte, e um que o
ridiculariza e o vê como um sofista charlatão, Aristófanes.

Sobretudo em relação aos sofistas, que, como vimos, desempenharam um


papel proeminente neste contexto, Sócrates foi um crítico severo, estabelecendo
uma interlocução bastante depreciativa, atrelando a eles, inclusive, uma vida
inautêntica, desvirtuada e corrompida.

Sócrates era membro de uma família bastante modesta, cujo pai, Sofronisco,
era um escultor, e a mãe, Fainarete, uma parteira. Era orgulhoso de sua origem
e manteve uma vida simples até a morte. Apesar dos modestos recursos que a
sua família dispunha, pôde adquirir a educação que tradicionalmente era dada
aos jovens atenienses, consistindo, fundamentalmente, de música, ginástica e
gramática.

Não existem muitos relatos sobre a sua iniciação em filosofia, o que a


tradição nos mostra é que foi um dos discípulos de Anaxágoras, embora este fato
seja um pouco controverso. O que é relativamente aceito é que ele abandonou
muito cedo os problemas relacionados à physis, passando a se preocupar mais
com os problemas ligados à vida do homem.

Esta mudança de perspectiva não foi criada exclusivamente por Sócrates,


pois, como vimos anteriormente, os sofistas já haviam transformado a abordagem
filosófica relacionando-a com as necessidades políticas. Porém, diferentemente
dos sofistas, a preocupação de Sócrates não era a de aprimorar a eloquência dos
jovens atenienses ávidos por participar da vida pública, muito menos encontrar
fama ou bens materiais através dessa habilidade.

Sua perspectiva em relação aos seus concidadãos, exposta


fundamentalmente na Apologia escrita por Platão, é descrita da seguinte forma:

Eu vos respeito e vos amo, mas obedecerei aos deuses em vez de


obedecer a vós, e enquanto eu respirar e estiver na posse de minhas
faculdades, não deixarei de filosofar e de vos exortar ou de instruir
cada um, quem quer que seja que vier à minha presença, dizendo-
lhe, como é meu costume: - Ótimo homem, tu que és cidadão de
Atenas, da cidade maior e mais famosa pelo saber e pelo poder, não te
envergonhas de fazer caso das riquezas, para guardares quanto mais
puderes e da glória e das honrarias, e, depois, não fazer caso e nada
te importares da sabedoria, da verdade e da alma, para tê-la cada vez
melhor? (PLATÃO, 1999, p. 65).

69
UNIDADE 2 | DO PERÍODO CLÁSSICO À FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

Aqui já podemos notar em que sentido a filosofia socrática se distingue dos


sofistas. Partindo de pressupostos como a “busca pela sabedoria” e o “aprimoramento
da alma”, Sócrates saía às ruas e à praça pública, a Ágora, interrogando a todos os
cidadãos, confrontando e exortando as pessoas para que buscassem não as riquezas
materiais, mas isto que era visto como o verdadeiro bem.

NOTA

A Apologia de Sócrates é a obra em que Sócrates mais explicita a sua concepção


filosófica e como esta se atrelava ao seu estilo de vida. Narra porque ele começou a interrogar
as pessoas e quais as consequências que isto lhe trouxe. Escrita por Platão em 424 a.C.,
mostra os últimos dias de vida de Sócrates, logo após a condenação à morte dada pelo
tribunal ateniense. Enquanto esperava sua execução por ingestão de cicuta, ele manteve
alguns diálogos com seus discípulos mais próximos e expôs sua defesa diante das acusações
que lhe foram feitas.

Essa atitude estava diretamente ligada à sua própria experiência de


autoexame e de busca pela verdade, cuja frase mais célebre é capaz de resumir
esta característica, que tanto o motivou e se encontrava no pórtico do Oráculo de
Delfos, a saber: “Conhece-te a ti mesmo”. Isto teria levado Sócrates a entender
como o homem deveria viver, explicitando, igualmente, a sua concepção filosófica
e como ela se atrelava à vida.

Na Apologia, Sócrates relata que certa vez um amigo, chamado


Querofonte, interrogou o Oráculo de Delfos, questionando se haveria alguém
mais sábio do que Sócrates, ao que este lhe respondeu, através da pitonisa, que
não. Uma vez que ele não se considerava sábio, mas sabendo que não cabia aos
deuses mentir, passou a conceber o oráculo como um enigma e a pensar sobre o
que ele significaria.

Ao tentar decifrar o oráculo, Sócrates passou a interrogar todos aqueles


que se portavam como sábios e, assim, segundo a sua própria narração:

Fui a um daqueles detentores da sabedoria, com a intenção de refutar,


por meio deles, sem dúvida, o oráculo, e, com tais provas, opor-lhe a
minha resposta. Este é mais sábio que eu, enquanto tu dizias que sou
eu o mais sábio. Examinando esse tal e falando com ele, afigurou-se-
me que esse homem parecia sábio a muitos outros e principalmente a
si mesmo, mas não era sábio. Procurei demonstrar-lhe que ele parecia
sábio sem o ser (PLATÃO, 1999, p. 42).

Sócrates percorreu Atenas interrogando a todos os que se consideravam


detentores de algum saber, como: os políticos, poetas, artífices etc., e o que
encontrou, segundo ele, foram pessoas que apenas pareciam ter, mas que na
verdade não possuíam nenhuma sabedoria.
70
TÓPICO 1 | O PERÍODO CLÁSSICO DA FILOSOFIA

Com isso, Sócrates entendeu que foi considerado sábio pelo oráculo
porque era o único que de fato reconhecia a própria ignorância, e não achava que
a opinião que possuía de algo fosse realmente a verdade.

Para Chauí (2002, p. 187), “Sócrates compreende, enfim, que nenhum


homem sabe verdadeiramente nada, mas o sábio é aquele que reconhece isso. O
início da sabedoria é, pois, ‘sei que nada sei’”.

Assim, Sócrates tomou por princípio que o seu dever enquanto filósofo
era o de demonstrar às pessoas o quanto elas desconheciam aquilo que julgavam
saber, levando-as a conhecerem a si mesmas, a superar os seus preconceitos e a
encontrar a verdade.

E, se algum de vós protestar e prometer cuidar disso, não deixarei já,


nem irei embora, mas o interrogarei e o examinarei e o convencerei,
e, em qualquer momento que me pareça que não possui virtude,
convencido de que a possuo, o reprovarei, porque faz pouquíssimo
caso das coisas de grandíssima importância e grande caso das
parvoíces. (PLATÃO, 1999, p. 65).

Da mesma forma, Sócrates também questionava aqueles que se


preocupavam mais com as riquezas e honras ao invés de cuidarem da virtude de
suas almas. Por isso, ele tentava persuadir a todos a buscar o que é essencial para
o aprimoramento moral, dizendo que “a virtude não nasce da riqueza, mas da
virtude vêm, aos homens, as riquezas e todos os outros bens, tanto públicos como
privados” (PLATÃO, 1999, p. 65).

É neste sentido, também, que a filosofia socrática se apresentava como


crítica aos sofistas. Sócrates se contrapunha a eles, defendendo não os próprios
interesses ou o que poderia ganhar por meio da eloquência, mas buscando a
verdade, independente de qualquer desejo ou critério individual (a ponto de
muitas vezes dizer que sentia prazer tanto em refutar quanto em ser refutado).

Como vimos, no século V a.C., a democracia já havia sido fundada,


consolidada, e os cidadãos a exerciam mediante algumas técnicas aprendidas
fundamentalmente com os sofistas. Sócrates, porém, seguia outra perspectiva.
Para Chauí (2002, p. 188):

Diferentemente dos sofistas, Sócrates não se apresenta como professor.


Pergunta, não responde, indaga, não ensina. Não faz preleções, mas
introduz o diálogo como forma da busca da verdade. [...] mantém a
separação entre opinião e verdade, entre aparência e realidade, entre
percepção sensorial e pensamento.

Neste sentido, a busca pela verdade empreendida por Sócrates contrariava


todos os pressupostos sofistas, para quem o relativismo moral e a multiplicidade
de opiniões e costumes não eram considerados como um problema. É também por
esse viés que podemos perceber o método socrático de investigação da verdade e
aquilo que ele estabelece como parâmetro para alcançá-la.
71
UNIDADE 2 | DO PERÍODO CLÁSSICO À FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

Sócrates sai à procura de alguém que se considera um sábio e em praça


pública o põe à prova com uma série de questões ou refutações (élenkhos). O
diálogo começa então a se configurar através de um método específico, a dialética,
que é, no entender de Sócrates e Platão:

O diálogo como método para separar, distinguir e escolher os


elementos que constituem a definição verdadeira de uma coisa (sua
essência ou ideia); partindo de opiniões contrárias, a dialética vai
separando opinião (doxa) e conhecimento ou ciência (epistéme) para
permitir a intuição intelectual de uma ideia ou a definição de uma
essência. (CHAUÍ, 2002, p. 498).

Assim, é a partir das opiniões (doxa), do preconceito e daquilo que as


pessoas julgavam saber, que Sócrates passa a questionar e a oferecer premissas
que, se aceitas, levam o interlocutor a perceber, caso esteja equivocado, que o que
ele acreditava ser na verdade não passa de um falso saber, de mera aparência.

A partir daí, o interlocutor pode se conscientizar de sua ignorância,


purificar sua alma e empreender uma caminhada em busca da virtude. É neste
sentido que Sócrates podia comparar sua atividade com o trabalho da sua mãe,
mas, neste caso, com a grande ressalva de que Sócrates agia como um parteiro de
almas (a maiêutica socrática):
A minha arte obstétrica tem atribuições iguais às das parteiras, com a
diferença de eu não partejar mulher, porém homens, e de acompanhar
as almas, não os corpos, em seu trabalho de parto. Porém, a grande
superioridade da minha arte consiste na faculdade de conhecer de
pronto se o que a alma dos jovens está na iminência de conceber é
alguma quimera e falsidade ou fruto legítimo e verdadeiro (PLATÃO,
1996, p. 150).

Vemos, portanto, que é praticamente nula a separação entre o método do


conhecimento socrático e o aperfeiçoamento moral. E, uma vez que Sócrates se
contrapõe aos pressupostos sofistas, a virtude, tal como é considerada por ele,
deve ser concebida de maneira universal, válida para todos.

Ora, fundamentalmente, é isso que visa a sua investigação filosófica, não os


casos singulares de virtude, mas a sua essência, aquilo que determina o particular,
“é por sabermos o que é a virtude (por termos sua ideia) que poderemos determinar
se a coragem, a amizade, a prudência, a piedade, a justiça, a temperança são ou não
virtudes” (CHAUÍ, 2002, p.191). E assim também se procede com outros temas,
como a coragem, a justiça, o conhecimento, o amor etc.

No caso específico de seu contexto político, o que Sócrates buscava


era superar os conflitos procurando um bem universal. Um parâmetro único
e verdadeiro capaz de direcionar o governo e organizar o Estado. Os líderes
atenienses não apenas não compreenderam sua proposta, como o condenaram à
morte por isso. Neste sentido: “A condenação de Sócrates atestou tragicamente
a confusão e a incoerência na qual tinha caído a democracia grega” (ROBINET,
2004, p. 28).

72
TÓPICO 1 | O PERÍODO CLÁSSICO DA FILOSOFIA

DICAS

Para melhor assimilação do conteúdo sobre a filosofia socrática, assista ao filme


“Sócrates”.

Sinopse: Rossellini mostra o final da vida de Sócrates, em especial seu julgamento e sua
condenação à morte, com destaque para os célebres diálogos socráticos: “Apologia”, discurso
de defesa do filósofo; “Críton”, em que um dos seus discípulos tenta convencê-lo a fugir da
prisão; e “Fédon”, com seus últimos ensinamentos antes de tomar a cicuta.

Direção: Roberto Rosselini


País de origem: Espanha/Itália
Gênero: Drama
Duração: 120 min.
Distribuidora: Versátil
Ano de lançamento: 1971

FONTE: Disponível em:<www.joseferreira.com.br › Blogs › Filosofia › 2013 › Março>. Acesso


em: 14 mar. 2013.

Como dissemos no início deste tópico, um dos aspectos mais


característicos da filosofia socrática é o fato de ela se harmonizar plenamente com
o modo como ele viveu. Isto foi levado às últimas consequências pelo filósofo,
que mesmo diante da morte se manteve firme em sua postura, filosofando como
quem cumpria um dever sagrado:

Atenienses, tenho por vós consideração e afeto, mas antes quero


obedecer ao deus do que a vós, e, enquanto tiver um sopro de vida,
enquanto me restar um pouco de energia, não deixarei de filosofar
e de vos advertir e aconselhar, a qualquer de vós que eu encontre.
(PLATÃO, 1999, p. 65).

Como nos narra a Apologia, Sócrates havia interrogado pessoas


importantes política e economicamente a partir deste preceito, que inclusive era
visto como sagrado. Estas mesmas pessoas se sentiram envergonhadas diante
das refutações socráticas e da constatação de que os seus saberes eram apenas
aparentes. Ainda segundo a narrativa, foram estes que acusaram Sócrates de
não crer nos deuses da cidade, de introduzir novas divindades e de corromper a
juventude.

Apesar de a denúncia terminar em sentença de morte, Sócrates manteve-se


como um modelo de virtude, cumprindo com a lei mesmo nestas circunstâncias.
Quando um de seus discípulos quis arquitetar um plano para subornar o
carcereiro e fugir, Sócrates simplesmente recusou a proposta, explicando que se
fosse executado cumpriria com as leis da cidade, mas, se, ao contrário, fugisse,
estaria ele próprio infringindo as leis.

73
UNIDADE 2 | DO PERÍODO CLÁSSICO À FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

Segundo Platão (2008, p. 51), assim lançaram “a mais injusta acusação,


que se aplicava menos do que tudo a ele (Sócrates)”. O filósofo foi executado
em 399 a.C., cerca de um mês após a sua sentença, sendo obrigado a beber um
poderoso veneno, a cicuta.

3 PLATÃO E A TEORIA DAS IDEIAS


Considerado um dos mais brilhantes discípulos de Sócrates, Platão foi
profundamente marcado pela morte de seu mestre. Depois de um período de
viagens após a prisão e execução de Sócrates, ele retornou a Atenas, fundou a
Academia e passou a escrever os seus primeiros diálogos, caracterizado justamente
como uma defesa do caráter e da filosofia de seu mentor.

Diferentemente de Sócrates, que dava pouca importância à escrita e


valorizava o debate público, Platão explicitou os seus ensinamentos através de
textos, aliás, recusou discutir publicamente com qualquer um justamente porque
tinha na memória o que havia ocorrido com o seu mestre.

Escreveu com um estilo literário refinado, capaz de refletir ao mesmo


tempo as suas considerações filosóficas e o seu método dialético. Para Chauí
(2002, p. 227), “os diálogos são um modo de expressão filosófica inventada por
Platão, sem modelos anteriores senão a conversa socrática”.

Platão descendia de uma família aristocrática de Atenas, seu nascimento


remonta à 88ª olimpíada, cerca de 427 a.C., e sua morte a 347 a.C. Ainda muito
jovem, com aproximadamente 20 anos, encontrou-se com Sócrates e se tornou seu
discípulo. Seus primeiros textos, conhecidos também como diálogos socráticos,
estão diretamente vinculados ao que ele teria ouvido durante os ensinamentos
de Sócrates neste período.

Os textos e seus temas nesta fase são:

Apologia de Sócrates (processo de Sócrates), Críton (a obediência às leis),


Hípias menor (a mentira), Laques (a coragem) Cármides (a sabedoria),
Lísis ((a amizade), Eutifron (a piedade), Protágoras (a virtude pode ser
ensinada?). (ROGUE, 2005, p. 17).

Estes escritos retomam o método socrático de investigação, a dialética, e


procuram encontrar sob a variedade das coisas presentes na realidade e de sua
mudança constante, aquilo que poderia ser considerado essencial e verdadeiro,
inclusive em relação aos problemas morais, como a coragem no diálogo Laques ou
a piedade no Eutífron, por exemplo.

Para alguns pesquisadores, esta perspectiva levou Platão a rapidamente


supor uma realidade objetiva para estes conceitos, chamados de Ideias ou Formas.

74
TÓPICO 1 | O PERÍODO CLÁSSICO DA FILOSOFIA

Segundo Rogue (2005, p. 12), “a questão que se coloca, quando, ao definir um


objeto, se reduz uma multiplicidade de coisas a uma unidade, é a questão da
existência autônoma desta unidade pura”.

Sobre este aspecto, precisamos notar que nos diálogos socráticos a


definição clara dos termos apresentados, como a coragem, o conhecimento, a
virtude etc., para além dos casos particulares em que eles ocorrem, requer algo
fundamental, que é a sua essência. O pressuposto da filosofia platônica é o de
que este mote socrático nos levará a uma realidade, onde o universal determina
os casos particulares, onde o Belo em si mesmo é o critério para sabermos se algo
participa ou não deste conceito ou ideia.

O exemplo específico do Belo nos mostra que:

A definição do Belo alcança um grau de universalidade tal que


nenhum exemplo individual pode dar conta. O esforço de definição,
de reaplicação da linguagem ao ser, que Platão empreende seguindo a
Sócrates, vai levá-lo a esse momento fundamental que é a constituição
do dualismo ontológico, a saber, a ideia de que há dois níveis distintos de
realidade, o sensível e o inteligível. O que se definiu antes como unidade
de uma multiplicidade sensível acabará reconhecendo uma existência
própria, separada; serão as Ideias, das quais se considera que o sensível
tira, por participação, toda a sua realidade. (ROGUE, 2005, p. 13).

Esta já é uma ideia tipicamente platônica, um pouco distante do que


Sócrates havia ensinado. Trata-se, portanto, de conceitos criados após os
primeiros escritos, onde Platão começa a usar a figura de Sócrates mais como um
personagem, propondo através dele o que ele próprio refletia filosoficamente.

Neste período, já temos os textos chamados de intermediários, onde a


filosofia platônica amadurece, ganha autonomia e desenvolve as suas principais
características, como a Teoria das Ideias ou Formas, o conhecimento como
reminiscência, a transmigração da alma, a utopia política etc. Os diálogos e
temas deste período são: “Górgias (a retórica), Mênon (a virtude), Eutidemos
(os procedimentos erísticos), Crátilo (a linguagem), República (sobre a Justiça)
Menexenas (elogio de Atenas), Ion (a rapsódia)”. (ROGUE, 2005, p. 17).

Basicamente, Platão fundamenta, neste período, a sua ontologia e


epistemologia, explicitando com estes diálogos o mundo das Ideias, ou Formas,
como o substrato real que nos permite compreender a ordem para além da
realidade contingente. É a partir do mundo das formas que encontramos o
conhecimento verdadeiro sobre o Ser.

Para Platão, este mundo, cuja apreensão ocorre através dos sentidos, é
uma cópia imperfeita do mundo ideal. Ele se desgasta por tentar reproduzir
um brilho que em última instância só pode ser mantido indefinidamente pelas
formas eternas e imutáveis. Como veremos, estes elementos são continuamente
explorados nos diálogos platônicos, que através de metáforas ou analogias
comunica-nos toda a sua filosofia.
75
UNIDADE 2 | DO PERÍODO CLÁSSICO À FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

Por fim, podemos caracterizar ainda um terceiro momento dos diálogos


em que o filósofo reconsidera alguns elementos de sua própria filosofia. São
textos mais críticos em relação ao que ele havia postulado, sobretudo no tocante
à ontologia, e menos dialogado. Estes diálogos e seus temas são: “Teeteto (a
ciência), Parmênides (o Um), Sofista (o não ser), Político (o governante ideal), Filebo
(o prazer), Timeu (cosmologia), Crítias (a Atenas arcaica e a Atlântida, inacabado)
e Leis (realização terrestre da cidade ideal, inacabado)” (ROGUE, 2005, p. 17).

3.1 TEORIA DAS IDEIAS

DICAS

Para aprofundar mais os seus conhecimentos sobre a teoria das Ideias de Platão,
recomenda-se a leitura do Livro VII da República. PLATÃO. República. São Paulo: Nova
Cultural, 2004 (Coleção Os Pensadores).

Paulatinamente, Platão distanciou-se da filosofia socrática, especialmente


quando estabeleceu um passo além, na investigação sobre a essência dos conceitos
analisados por Sócrates, como: a Justiça, o Belo, a Virtude etc., concebendo-os
como ideias eternas, unas e imutáveis, uma realidade autônoma da qual o nosso
mundo participaria.

Na verdade, é esta ontologia, segundo Platão, que possibilitará a ordem


das coisas em uma realidade em contínua mudança – problema que desde os
pré-socráticos, em especial Heráclito e Parmênides, era refletido pelos filósofos.
As considerações platônicas surgirão como resposta a isto e o levarão, como
consequência, a uma teoria do conhecimento em que estas entidades ideais são a
origem do conhecimento verdadeiro e a realidade física apenas aparência.
De uma só vez, a separação do material e do espiritual é consumada.
Não mais se trata de encontrar para a mudança das coisas sensíveis um
suporte corporal, uma substância, por primordial que a suponhamos.
Toda a ordem natural é desacreditada em bloco. A matéria é despojada
de realidade e de razão, não apenas nas suas manifestações de superfície,
mas até nos seus últimos redutos. A realidade passa inteiramente para
as formas inteligíveis. (GOLDSCHMIDT, 1970, p. 20)

Este “modelo” verdadeiro, contrário às sensações que nos mostra um


mundo em constante devir, é algo apreendido não pelos sentidos, vale frisar,
mas pelo puro pensamento.

76
TÓPICO 1 | O PERÍODO CLÁSSICO DA FILOSOFIA

Chauí (2002, p. 239) resume este aspecto explicitando que:

Se conhecer o que aparece é ter ciência, então a sensação é ciência.


Mas o que aparece na sensação? A mudança incessante, a mobilidade
perene de todas as coisas, de tal maneira que nunca se poderá dizer
de alguma coisa que ela é efetivamente, mesmo porque, em termos
rigorosos, nem sequer podemos dizer que ela “é”, mas apenas que ela
“se torna” isso ou aquilo, sem cessar.

Como herdeiro de uma tradição que remonta desde as cosmologias


pré-socráticas, Platão terá como tarefa buscar fundamentar a sua teoria do
conhecimento pensando em certa estabilidade ontológica. Portanto, postula que
o mundo marcado pelo devir é na verdade um mundo contingente, que captamos
pelos sentidos e que tende a nos enganar sobre a verdade das coisas. Por isso
mesmo, a partir dele só podemos adquirir opiniões (doxa), jamais a verdade.

A verdadeira realidade está para além das mudanças, é aquilo que sempre
permanece o mesmo, são as essências ou ideias, inteligíveis apenas através do
pensamento e não pelos sentidos.

Nenhuma matéria faz ou desfaz as coisas, mas unicamente as Formas,


na medida em que se deixam imitar ou participar. A única causalidade
inteligível, isto é, compreensível, não reside na matéria nem mesmo em
qualquer força motora, mas somente nas Formas, que são, ao mesmo
tempo, modelos e causas de todo devir (GOLDSCHMIDT, 1970, p. 20).

Esta perspectiva teórica, e a distinção entre a opinião e a verdade, se


apresentam em toda a sua força em um dos diálogos mais conhecidos de Platão,
a República, e na famosa alegoria da caverna, escrita no Livro VII.

Sócrates é o personagem principal, é ele quem narra a alegoria da


caverna como uma tentativa de esclarecer, ao jovem Glauco, como se dá o
verdadeiro conhecimento. O passo inicial é o de explicitar a realidade sensível,
e metaforicamente Sócrates descreve uma cena onde alguns homens vivem em
uma espécie de caverna subterrânea.

Estes homens se encontram acorrentados pelas pernas e pelos pescoços,


de modo que só conseguem enxergar o que está à frente. Atrás deles há uma luz
que vem de uma fogueira, e entre ela e os prisioneiros há um caminho que leva
à entrada da caverna. Há também um muro e ao longo dele caminham pessoas
carregando uma série de objetos maiores que o muro, as sombras dessas pessoas
e objetos são projetadas na parede, na frente dos prisioneiros, formando uma
espécie de teatro de sombras ou marionetes.

Uma vez pintado este quadro, Sócrates pondera que os prisioneiros creem
que as sombras projetadas são como seres reais, e que se em algum momento as
pessoas que atravessam o muro falam, lhes parece que são as sombras que estão
conversando. Em suma, acreditam que elas constituem a verdadeira realidade.

77
UNIDADE 2 | DO PERÍODO CLÁSSICO À FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

Esses prisioneiros, como o próprio texto explicita, somos nós,


ou seja, o homem comum, prisioneiro dos hábitos, preconceitos,
costumes, práticas, que adquirimos desde a infância e que constituem
“correntes” ou condicionamentos que os fazem ver as coisas de uma
determinada maneira, parcial, limitada, incompleta, distorcida, como
“sombras”. As sombras não são falsas ou irreais, mas ilusórias, por
serem realidades parciais, o mínimo que o prisioneiro enxerga da
realidade (MARCONDES, 2010, p. 65).

O grande problema, portanto, é tomar as sombras como a única e verdadeira


realidade, quando há, para além dos hábitos e dos condicionantes, algo mais. Mas
notemos, os prisioneiros ignoram isso, eles são incapazes de perceber que estão
passando a vida toda crendo em algo fictício. O segundo passo da alegoria será,
justamente, o de como demonstrar isto.

Sócrates continua expondo que, se imaginarmos que um destes


prisioneiros pudesse sair da caverna, veríamos que, ao caminhar em direção à
luz, ele primeiro iria se sentir desconfortável, seus olhos iriam doer, desconfiaria
da realidade que começa a observar – pois se sente muito mais seguro em relação
àquilo que acreditou ser verdadeiro durante a vida toda, as sombras. Mas, se
fosse forçado a subir a caverna, chegar do lado de fora e contemplar todas as
coisas, gradativamente iria distinguir as sombras da realidade, de suas imagens
reais, e passaria então a ter um conhecimento completo e verdadeiro.

Concluindo o texto, Sócrates explica que este prisioneiro pode ser


comparado ao filósofo, aquele que percorre o duro caminho em direção ao
conhecimento real, que distingue as sombras da realidade, a opinião e os
preconceitos do verdadeiro conhecimento.

Esta parte final também nos mostra o que Platão entende como “missão”
político-pedagógica do filósofo. Expõe que há um movimento descendente a ser
considerado. Quando o prisioneiro se lembra do seu lugar de origem e de seus
companheiros, embora ele não deseje, pois está vivendo a partir de agora uma
vida verdadeira, ele deve voltar até a caverna para tentar libertá-los e mostrar a
distinção entre o que eles acreditam e a verdade.

Provavelmente, eles relutariam em acreditar e até o matariam por isso


(lembrando o que fizeram com Sócrates em seu julgamento), mas ainda assim,
essa seria uma implicação ética para o filósofo, e ele deve cumprir. Pois um
Estado justo não é aquele em que apenas uns se deleitam com a verdade, mas
uma organização onde cada um oferece o que tem de melhor (o que, no caso do
filósofo, não é nada mais do que a visão do Bem).

Segundo Chauí (2002, p. 261), a caverna representa o modo como o


conhecimento verdadeiro das coisas requer certa dialética em direção à “luz das
ideias”, e embora seja um árduo caminho a ser percorrido, composto de um grau
a outro, da opinião (doxa) à Ideia, e repleto de contradições, ainda assim seria
imprescindível à alma virtuosa, que sabe que a ignorância é o pior dos males.

78
TÓPICO 1 | O PERÍODO CLÁSSICO DA FILOSOFIA

Nestes termos, a dialética seria “um trabalho para concretizar um fim, forçando
um ser a realizar sua própria natureza” (CHAUÍ, 2002, p. 262).

DICAS

Para melhor assimilação do conteúdo filosófico da Alegoria da Caverna, assista


ao filme “Matrix”.

Sinopse: Em um futuro próximo, Thomas Anderson (Keanu Reeves), um jovem programador


de computador que mora em um cubículo escuro, é atormentado por estranhos pesadelos
nos quais se encontra conectado por cabos e contra sua vontade, em um imenso sistema
de computadores do futuro. Em todas essas ocasiões, acorda gritando no exato momento
em que os eletrodos estão para penetrar em seu cérebro. À medida que o sonho se repete,
Anderson começa a ter dúvidas sobre a realidade. Por meio do encontro com os misteriosos
Morpheus (Laurence Fishburne) e Trinity (Carrie-Anne Moss), Thomas descobre que é, assim
como outras pessoas, vítima do Matrix, um sistema inteligente e artificial que manipula a
mente das pessoas, criando a ilusão de um mundo real enquanto usa os cérebros e corpos
dos indivíduos para produzir energia. Morpheus, entretanto, está convencido de que Thomas
é Neo, o aguardado messias capaz de enfrentar o Matrix e conduzir as pessoas de volta à
realidade e à liberdade.

Direção: Lana Wachowsky, Andy Wachowsky


País de origem: EUA
Gênero: Ação
Duração: 2h16 min.
Distribuidora: Warner Bros.
Ano de lançamento: 21 maio de 1999.

FONTE: Disponível em: <www.filosofia.com.br/vi_filme.php?id=28>.

4 O SISTEMA ARISTOTÉLICO

DICAS

Para aprofundar mais os seus conhecimentos sobre a filosofia de Aristóteles,


recomenda-se a leitura da Metafísica I, V. II. ARISTÓTELES. Metafísica: texto grego com
tradução ao lado. Tradução de Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 2002.

79
UNIDADE 2 | DO PERÍODO CLÁSSICO À FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

Aristóteles (384-322 a.C.) foi aluno de Platão na Academia, por cerca de 19


anos. Desde cedo, se destacou entre os demais discípulos e várias vezes embolsou
elogios de seu mestre, que por conta de sua grande erudição o chamava de “a
inteligência” (MESQUITA, 2005, p. 75).

Nascido em Estagira, na Macedônia, Aristóteles era filho de um médico


da corte do rei Amintas III, predecessor de Filipe II e de Alexandre Magno.
Tendo relativas condições financeiras para estudar, mudou-se bastante jovem
para Atenas e passou a frequentar a Academia. Com a morte de Platão, deixou a
cidade por alguns anos e passou a atuar como preceptor de Alexandre, o futuro
imperador.

Quando retornou para Atenas, por volta de 335 a.C., passou a seguir o seu
próprio caminho como filósofo, fundando uma escola, o Liceu, um local pouco
formal, onde os ensinamentos eram dados durante simples caminhadas. Ali,
Aristóteles começou a se contrapor a alguns dos elementos mais importantes da
filosofia platônica, sobretudo em relação à teoria das ideias.

Para Aristóteles, a física e o mundo sensível não deveriam ser tão


desprezados como o foram no dualismo platônico, e é exatamente este o ponto
que mais caracteriza a ciência aristotélica, voltada para os processos de análise,
experiência e classificação – fatores que vão, inclusive, servir de paradigma para
todo o desenvolvimento científico posterior.

Necessariamente, devemos fazer a ressalva de que este “empirismo


aristotélico” não quer dizer que ele deixa de lado toda transcendência para o
ideal, mas apenas que se contrapõe ao mundo platônico das ideias, tentando
trazê-la para a natureza e para as relações entre os homens.

Aristóteles, em relação a Platão, é um realista e, mesmo, um empirista.


É claro que, ao lhe atribuirmos o último epíteto, estamos entendendo
afirmar que Aristóteles, sem abdicar da fé racionalista do pensamento
grego, canaliza-a, com certa teimosia de paixão, para a análise do
indivíduo e do concreto. Aristóteles não é um empirista ou positivista
moderno. Está ligado àquela visão da realidade, que não é fruto de
uma delimitação metodológica do pensar ao fato, na sua faticidade,
mas que se prende à concepção de que o fato transcende à própria
faticidade e se explica e se realiza, numa estrutura de ser bem mais
abrangente e complexa (LARA, 1989, p. 130).

No que diz respeito ao caso específico da classificação, tanto em relação


aos seres vivos, minerais ou mesmo no âmbito das faculdades intelectuais, há
sob este processo a tentativa de apreensão de leis que determinam tais casos.
Mais uma vez a questão primordial é a de estabelecer a unidade, ou a ordem em
detrimento da transformação, da mudança.

80
TÓPICO 1 | O PERÍODO CLÁSSICO DA FILOSOFIA

Entre o Ser-Uno de Parmênides e a pluralidade do rio heraclítico,


entre os absolutos de Platão e o relativismo dos sofistas, por assim
dizer entre dois escolhos opostos, sem nunca propor uma síntese
unificadora, Aristóteles não cessou de navegar à procura de uma
via média, nas direções múltiplas de um incessante questionamento
(STIRN, 2006, p. 23).

Diferentemente de Platão, para quem a realidade era um domínio de


aparências, indutora do erro, Aristóteles concebeu que por meio da análise e dos
processos que constituem a realidade seria possível passar do domínio da doxa
para o âmbito da verdade, e fez isto sem aceitar a necessidade de um domínio
constituído por Ideias ou Formas.

Mais uma vez cabe notar que não se trata de excluir da filosofia aristotélica
os elementos metafísicos, muito pelo contrário, pois apesar de Aristóteles conceber
a análise empírica da realidade como primordial, postulou uma ciência primeira
em busca do universal.

As outras ciências estudam uma parte das coisas, segundo um acidente


determinado: por exemplo, a botânica estuda as plantas enquanto
organismos vegetais; a matemática, as figuras e os números do ponto
de vista da medida. A metafísica, em contrapartida, tem como objeto
a totalidade das coisas, mas enquanto são, o ente enquanto ente
(MARÍAS, 2004, p. 70).

No que diz respeito às suas análises, ou ciências, particulares, elas


consistiam em tentar unificar o conhecimento de maneira ordenada e sistemática,
dividindo-o em três partes fundamentais: ciências teoréticas, da ação e da
produção. Sobre esta última forma, Jonathan Barnes (2005, p. 44) afirma que “a
Retórica e a Poética são seus únicos exercícios sobreviventes”.

Estes textos, fundamentalmente, tratam de uma investigação sobre a


criação artística, em especial, podemos citar a tragédia. Para Aristóteles, toda obra
de arte é concebida como mimesis, isto é, imitação da natureza humana. Mas não
se trata de simples cópia ou reprodução, e no caso da tragédia especificamente, a
imitação envolve a transformação:

É, pois, a tragédia imitação de uma ação de caráter elevado, completa


e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com as várias
espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes [do drama],
[imitação que se efetua] não por narrativa, mas mediante atores,
e que, suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificação.
(ARISTÓTELES, 2003, 24).

Trata-se, neste sentido, de alcançar por meio da representação trágica a


catharsis ou a purificação daquilo que é tomado como doloroso ou traumático,
transformando este sentimento em algo prazeroso e capaz de “restaurar uma
integridade ameaçada” (STIRN, 2006, p. 67).

81
UNIDADE 2 | DO PERÍODO CLÁSSICO À FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

No âmbito da ciência da ação, os problemas fundamentais são aqueles


ligados à ética e à política, isto é, ao modo como os homens deveriam agir. As
principais obras que contribuem para esta discussão são: Ética a Nicômaco, Ética
a Eudemo e Política.

O termo “prático” aqui e a sua relação com estas obras significa que o seu
intuito é efetivar-se e transformar as ações humanas no sentido ético e político,
a partir de um bem superior, embora não no sentido platônico e relacionado às
realizações humanas. Para Barnes (2005, p.124):

Cada um de nós deseja se realizar ou se sair bem, e todas as nossas


ações, na medida em que sejam racionais, estão dirigidas para essa
meta última. A questão primordial da filosofia prática é, portanto:
como atingir a eudaimonia? Em que consiste o realizar-se? O que é ser
um ser humano bem-sucedido?

É a partir desse pressuposto, portanto, que tais obras, ou ciências práticas


e da ação, se efetivam, analisando filosoficamente tal princípio ou objetivo, que
é a busca pela “felicidade”, um bem visto por todos os homens como o melhor.

Quanto às ciências teoréticas, este conhecimento visa à verdade ou ao


conhecimento humano como um todo. Para Stirn (2006, p. 25), trata-se de um
conhecimento arquitetônico que:

Não é a mera soma das ciências, mas um conhecimento que engloba os


múltiplos, os compreende em si mesma, porque ela é o conhecimento,
metafísico, “dos primeiros princípios e das primeiras causas, enquanto
as outras ciências só chegam a princípios segundos e derivados”.

Inclui nas ciências teoréticas: a matemática, a ciência natural (botânica,


zoologia, física etc.) e aquela que é considerada a ciência primeira, a metafísica,
composta de substâncias imutáveis e que por isso precede a ciência da natureza.

Para além dessas divisões é a metafísica aristotélica, enquanto filosofia


primeira, que consideraria a totalidade das coisas, permitindo-nos, assim,
apreender uma verdade universal. Ela parte de um postulado um pouco mais
crítico em relação a Platão, em especial no que diz respeito ao fato de concebermos
como reais as ideias gerais, as formas.

Do ponto de vista platônico, aquilo que se constitui como um caso


particular, individual, seria apenas derivado dessas ideias gerais. Aristóteles,
porém, compreende que o geral, tomado por Platão como uma realidade
autônoma, na verdade é dependente das coisas individuais que “existem no
tempo e no espaço” (STÖRIG, 2009, p. 151).

82
TÓPICO 1 | O PERÍODO CLÁSSICO DA FILOSOFIA

Disso se desdobra que:

Esse novo ponto de partida consistirá, para Aristóteles, em uma


concepção de realidade, segundo a qual o que existe é a substância
individual, que podemos considerar aqui como o indivíduo material
concreto (synolon). Este seria o constituinte último da realidade, o que
evitaria o dualismo, a realidade sendo composta de um conjunto de
indivíduos materiais concretos (MARCONDES, 2010, p. 72).

O verdadeiro ser, para Aristóteles, é de fato a substância “primeira” ou


“individual”. Nela, podemos encontrar o seguinte binômio: primeiro, devemos
considerar que tais “indivíduos” são constituídos de matéria e forma. A ideia é a
de que podemos identificar na matéria uma série de transitoriedades e aparências
individuais, enquanto que, em relação à forma, esta seria imutável e presente
em todos os elementos individuais, como se “as árvores pudessem perecer, ao
passo que o conceito geral de ‘árvores’ continua intocado pela mudança das
aparências”. (STÖRIG, 2009, p. 151).

Segundo Marcondes (2010, p. 72), “é como se Aristóteles concebesse o


mesmo dualismo platônico, mas agora no interior da substância individual”. Ainda
assim, Aristóteles tenta salvaguardar a unidade, mostrando que matéria e forma
são indissociáveis, e que uma só existe em relação à outra, algo completamente
distinto do mundo das ideias de Platão.

Se há esta abstração entre os dois elementos, forma e matéria, isto ocorre


apenas porque o nosso intelecto realizou esta separação, e não porque existe um
mundo inteligível e independente do mundo individual, onde a ideia de homem é
independente dos sujeitos individuais que observamos.

Dentro desta mesma perspectiva, Aristóteles segue distinguindo três


elementos da substância individual que irão formar a sua ontologia. O primeiro é
a distinção entre essência e acidente; o segundo, necessidade e contingência; e,
por fim, a ideia de ato e potência.

No tocante à essência e ao acidente, Aristóteles declara que a essência é o


que permite a unidade, aquilo que permanece independente das variações, o “ser
per se” (MARÍAS, 2004, p. 74). Se atribuirmos ao homem o predicado de músico,
ser músico seria apenas um acidente e não algo que faz parte da ideia de homem,
“o ser per se se diz essencialmente; o homem é um ser vivo, por exemplo, não
acidentalmente, mas por sua essência” (MARÍAS, 2004, p. 74).

Neste sentido, são os acidentes que permitem a mudança na realidade, o


devir. Aristóteles responde ao problema da mudança, preservando a necessidade
de algo estável, mas sem recorrer às formas platônicas. Apenas caracteriza
conceitualmente uma natureza essencial, apesar de seus acidentes.

83
UNIDADE 2 | DO PERÍODO CLÁSSICO À FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

Correlacionado a isto, temos a ideia de necessidade e contingência. Segundo


Marcondes (2010, p. 73), “as características essenciais são necessárias, ou seja, a coisa
não pode deixar de tê-las, caso contrário deixaria de ser o que é, ao passo que as
contingentes são variáveis e mutáveis”.

Por fim, a substância individual pode ainda ser dividida entre ato e
potência. Um ente pode permanecer apenas como algo potencial, ou então
efetivar-se, ser atual. Uma semente, por exemplo, contém apenas a possibilidade
de ser uma árvore, enquanto esta última já seria uma árvore em ato.

84
RESUMO DO TÓPICO 1
De acordo com o que foi estudado neste tópico, segue o resumo dos
assuntos abordados, para fixação dos conteúdos:

• Foram apresentados, neste tópico, os principais elementos históricos do


período clássico e seus maiores representantes: a corrente sofística, Sócrates,
Platão e Aristóteles.

• Diferentemente dos pré-socráticos e suas investigações sobre a physis, a


perspectiva sofista e a socrática inauguram uma nova abordagem filosófica,
voltada para as questões antropológicas, éticas e políticas.

• Sócrates é o grande nome da filosofia clássica, influenciando o pensamento de


Platão e Aristóteles, a partir da busca pela essência em detrimento dos casos
particulares.

• Platão, em seus diálogos, dá um passo além de seu mestre e postula as essências


como parte de um mundo autônomo em relação à realidade física, concebida
como simples sombras e aparência do mundo das Formas ou Ideias.

• Aristóteles, discípulo de Platão, contrapõe-se ao seu mestre valorizando a


realidade física e a investigação empírica, a partir do qual pretende encontrar
os universais.

85
AUTOATIVIDADE

Após a leitura deste tópico, responda às questões a seguir. Lembre-se


de consultar os textos, pesquisar e refletir sobre os temas.

1 A partir da frase de Protágoras, “O homem é a medida de todas as coisas”,


reflita sobre o surgimento da democracia e o papel desempenhado pela
filosofia sofística neste contexto.

2 Quais elementos filosóficos e fatos históricos contribuíram para uma


perspectiva relativista no contexto do século V? Classifique V para as
sentenças verdadeiras e F para as falsas:

( ) A dinâmica do devir, atribuída ao pensamento de Heráclito.


( ) Os relatos históricos de Heródoto sobre os diferentes costumes de povos
orientais.
( ) A corrente filosófica eleata e o postulado da imobilidade do ser.
( ) O fim do poder político ligado às descendências divinas e o surgimento de
uma nova classe com poderes econômicos.
( ) O contato comercial com outros povos e culturas.

3 Como podemos entender a importância do discurso e da argumentação no


contexto ateniense do século V e em quais aspectos a sofística contribuiu
para isso?

4 Qual é a principal distinção entre a filosofia socrática e os sofistas?

5 Por que Sócrates interrogava os que julgavam possuir alguma sabedoria e


como isso se relacionava com o sentido de dever filosófico, que ele atribuía
a si mesmo?

6 Como relacionar a filosofia platônica com o que Sócrates propunha em suas


investigações sobre a verdade?

7 Quais são os paralelos entre a alegoria da caverna e teoria platônica das


Ideias?

8 Qual é a principal distinção entre a filosofia aristotélica e a platônica?

86
UNIDADE 2 TÓPICO 2

FILOSOFIA HELENISTA

1 INTRODUÇÃO
Este tópico pretende situar a influência da cultura grega após o reinado
de Alexandre Magno, e como o seu projeto imperialista foi capaz de marcar a
transição entre o período clássico da filosofia e o surgimento do helenismo. Este,
no âmbito filosófico, teve como consequência algumas mudanças extraordinárias,
em especial no que diz respeito ao objetivo da reflexão.

Ao tentar dar uma resposta ao novo contexto político e social gerado


pelo projeto imperial de Alexandre, a filosofia helenista se caracterizou como
um movimento bastante próprio. Buscaremos, com este tópico, apresentar a
você, caro(a) acadêmico(a), uma abordagem das principais correntes e escolas
filosóficas desse período, especificando os seus representantes e os aspectos mais
importantes de cada uma das reflexões que se constituíram no interior dessas
escolas.

2 CONTEXTO HISTÓRICO E CARACTERÍSTICAS GERAIS


O helenismo foi uma espécie de “projeto” particularmente arquitetado
e executado pelo imperador Alexandre Magno (356-323 a.C.). Caracterizou-se
como um período em que a cultura grega exerceu grande influência sobre os
povos conquistados pelo Império Macedônico, se espalhando pelas regiões do
Mediterrâneo e do Oriente Próximo.

Se o império político de Alexandre teve a sua glória e declínio, a cultura


que ele propagou, porém, permaneceu difusa apesar da sucessão de reinos e
impérios durante os séculos posteriores.

Alexandre teve como mestre nada menos do que o filósofo Aristóteles, e o


fato singular desta relação é que, segundo Corbisier (1991), da mesma forma que
Aristóteles tentou apreender a totalidade da realidade mediante o pensamento,
unificando-a porque partia do pressuposto de que tudo possuía uma essência
comum, e, por isso, pensável, Alexandre também “procurou unificar o mundo
conhecido, quer dizer, procurou reduzir a diversidade das raças, das línguas,
das culturas, das religiões, dos costumes, das instituições etc., à hegemonia, à
unidade da cultura grega (CORBISIER, 1991, p. 278)”.

87
UNIDADE 2 | DO PERÍODO CLÁSSICO À FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

Para muitos historiadores, “uma das primeiras consequências desse


projeto foi o estabelecimento do fim de uma era e o início de outra radicalmente
diferente”. (REALE, 2005, p. 227). Um exemplo notável disso é a maneira como as
cidades-estados perderam a sua centralidade política.

Devido à concentração de poder nas mãos do imperador, que regia não só


as cidades, mas países, raças e culturas inteiras, o ideal de liberdade e autonomia
política idealizada pelos gregos no interior da polis se reduziu, drasticamente,
diante da nova realidade criada por Alexandre.

Encontravam-se assim destruídos aqueles valores fundamentais


da vida espiritual da Grécia clássica que constituíram o ponto de
referência do agir moral e que Platão, na sua República, e Aristóteles,
na sua Política, não só teorizaram, mas também sublimaram e
hipostasiaram, fazendo da Polis não apenas uma forma histórica, mas
inclusive a forma ideal do Estado perfeito. (REALE, 2005, p. 228).

Mas não é só este aspecto político que se desdobrou do imperialismo


macedônico. É importante ressaltar que, com o declínio da cidade, houve também
o declínio da vida pública, do compartilhar dos aspectos que são inerentes
e fundamentais para toda a comunidade, os seus ideais e as suas virtudes.
Consequentemente, “deixando de haver vida pública, há apenas a vida comum”
(CORBISIER, 1991, p. 281), e isto traz uma série de implicações para os filósofos.

Este processo perdurou até as conquistas romanas nos anos 30 a.C.,


que tendia a adotar uma política imperial bem mais flexível em relação àqueles
que eram conquistados, por isso, a partir dos romanos houve um intercâmbio
maior entre as culturas. Não se tratava mais de uma cultura se sobrepondo,
forçosamente, à outra, mas de influências mútuas, e a filosofia é um bom exemplo
de como ocorreu esta interação.

Se, por um lado, as questões militares, territoriais, econômicas etc., mais


uma vez se transformaram com as conquistas romanas, por outro, culturalmente,
a filosofia foi bastante assimilada ou ressignificada, à luz desta nova realidade.

Segundo Marcondes (2010, p. 84), no que diz respeito às datas que


circunscrevem o helenismo, isto nos leva a ter que admitir que: ‘‘Do ponto de
vista filosófico, a periodização é talvez menos precisa, podendo ser estendida do
império alexandrino até o início da filosofia medieval com Santo Agostinho (354-
430) e Boécio (480-524)’’.

Este amplo contexto, que vai do século IV a.C. ao século VI, além do contato
com diversas culturas e tradições, fará com que a filosofia clássica inevitavelmente
se transforme e o helenismo seja a explicitação desta tensão.

Geograficamente, Atenas, que era considerada a capital da filosofia, foi


substituída por Alexandria, cidade fundada por Alexandre em 333 a.C., e local
para onde o conhecimento científico se desenvolveu, especificando novas formas
de conhecimento, como a história, matemática, astronomia, medicina etc.
88
TÓPICO 2 | FILOSOFIA HELENISTA

NOTA

Alexandria tornou-se a principal cidade deste período e um centro cultural


extraordinário. Sua famosa biblioteca, com mais de setecentos mil volumes, era sem
precedentes. Apesar disto, ela foi incendiada duas vezes, em 47 a.C., com a invasão de César,
e então reconstruída, e depois em 390.

O centro das discussões travadas pelos pensadores deste período,


retomando a tradição socrática e a perspectiva de que a filosofia deveria dar
ao homem certos parâmetros para uma vida feliz, era preponderantemente os
problemas éticos e morais que surgiam com a insegurança da nova realidade
criada por Alexandre – com o detalhe já mencionado acima, em que o fim da vida
pública tende a explicitar problemas muito mais privados.

Assim, conforme Reale (2005, p. 230):

Propondo os grandes problemas da vida e algumas soluções para eles,


os filósofos criaram algo de verdadeiramente grandioso e excepcional,
o cinismo, o epicurismo e o estoicismo, propondo modelos de vida nos
quais os homens continuaram a se inspirar durante outro meio milênio.

Mais do que uma discussão política, os representantes da filosofia helenista


irão desenvolver gradualmente, cada um com sua especificidade, um refluxo para
a vida privada, concebendo o sábio como aquele que se torna capaz de adquirir
certa serenidade de espírito ou imperturbabilidade, em grego, a ataraxia.

Com o surgimento e consolidação oficial do cristianismo, estes pensamentos


também mesclarão parte da tradição judaico-cristã, caracterizando, assim, os
principais elementos culturais que até hoje constituem a cultura ocidental.

DICAS

Para entender melhor as características do contexto helenista, o filme Alexandria


(Ágora) é uma excelente escolha como complementação dos estudos.

Sinopse: Século IV. No Egito, sob o poder do Império Romano, violentos confrontos sociais
e religiosos invadem as ruas de Alexandria… Presa entre paredes, sem poder sair da lendária
livraria da cidade, a brilhante astrônoma, Hypatia, com a ajuda dos seus discípulos, faz tudo
para salvar os documentos da sabedoria do Antigo Mundo… Entre os discípulos encontram-
se dois homens que disputam o seu coração: o inteligente e privilegiado Orestes e o jovem
Davus, escravo de Hypatia, dividido entre o amor secreto que nutre por ela e a liberdade que
poderá ter ao juntar-se à imparável vaga de cristãos.

89
UNIDADE 2 | DO PERÍODO CLÁSSICO À FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

Direção: Alejandro Amenábar


País de origem: Espanha
Gênero: Aventura, Romance
Duração: 130 min.
Distribuidora: Imagem Filmes
Ano de lançamento: 2011

FONTE: Disponível em: <www.foradecena.com/page/25/ -  Portugal>.

3 EPICURISMO
O epicurismo também floresceu em Atenas, no início do século III, e teve
origem com o filósofo Epicuro. Nascido em 341 a.C., na própria Atenas, Epicuro
mudou-se para Samos ainda quando criança. Retornou a Atenas com cerca de 18
anos e passou a dedicar-se à filosofia.

Epicuro passou a reunir alguns discípulos em torno de si em um jardim


que havia comprado, vivendo todos juntos de modo bastante simples. Este
aspecto era algo que deveria ser equacionado com o cerne da filosofia epicurista,
entendida como a valorização do prazer.

Epicuro ensinava que o principal bem e fonte de uma vida feliz é o prazer
e a ausência de dor e perturbação. Este prazer, todavia, deveria ser dosado
racionalmente. Práticas requintadas de alimentação ou vestuário, por exemplo,
iriam na contramão deste pressuposto, por isso a tradição nos mostra que:

O próprio Epicuro diz em suas cartas que se contentava apenas com


água e um simples pão, e diz: “Manda-me um pequeno pote de queijo,
para que eu possa banquetear-me quando tiver vontade”. (LAÊRTIOS,
2008, p. 285).

Os pressupostos epicuristas voltavam-se, portanto, para uma dimensão


material ou física. Resumindo sua filosofia, Marcondes (2010, p. 93) dirá que
“em certo sentido, os epicuristas foram os grandes defensores de uma física
materialista”. Neste ponto, também podemos observar como consequência uma
teoria do conhecimento, valorizando as sensações e partindo da experiência
imediata como caminho.

A veracidade das sensações é garantida pela existência efetiva das


percepções imediatas, ver e ouvir são tão reais quanto sentir a dor; logo,
é necessário que nossas inferências sobre aquilo que não cai no âmbito
dos sentidos provenham do mundo dos fenômenos. Realmente, todas
as nossas noções derivam das sensações, seja por incidência, ou por
analogia, ou por semelhança, ou por união, com uma certa colaboração
também do raciocínio. (LAÊRTIOS, 2008, p. 290).

90
TÓPICO 2 | FILOSOFIA HELENISTA

Este aspecto filosófico, porém, não é ponto principal dos epicuristas, que
dividiam a sua filosofia com a clássica tripartição: “lógica”, “física” e “ética”. Em
linhas gerais, a lógica buscava fundamentar os modos de reconhecimento da
verdade; a física, compreendida como uma visão total da realidade e a busca por
seus princípios, retomava, sobretudo, a filosofia pré-socrática dos atomistas; por
fim, teríamos a ética, um corolário de todos os pontos anteriores.

Se a essência do homem é material, também necessariamente será


material o seu bem específico, aquele bem que, concretizado e realizado,
torna o homem feliz. E que bem seja este é a natureza, considerada na
sua imediaticidade, que nos diz sem meias palavras, como já vimos: o
bem é o prazer (REALE, 2005, p. 246).

É importante notar que os epicuristas compreendiam o “bem” como um


estado de felicidade resultante da ataraxia (imperturbabilidade). Neste sentido,
o prazer que eles postulavam era racionalmente determinado, a fim de que, além
da ausência de dor corporal, sua alma não sofresse nenhuma perturbação.

Segundo o próprio Epicuro (apud LAÊRTIOS, 2008, p. 313):

Então, quando dizemos que o prazer é a realização suprema da


felicidade, não pretendemos relacioná-lo com a voluptuosidade dos
dissolutos e com os gozos sensuais, como querem algumas pessoas
por ignorância [...] por prazer entendemos a ausência de sofrimento
no corpo e a ausência de perturbação na alma. Não é uma sucessão
ininterrupta de banquetes e festas, nem o prazer sexual com meninos
e mulheres, nem a degustação de peixes e outras iguarias oferecidas
por uma mesa suntuosa que proporciona uma vida agradável, e sim
um cálculo sóbrio que investigue as causas de toda escolha e de toda
rejeição e elimine as opiniões vãs por obra das quais um intenso
tumulto se apossa das almas.

Epicuro morreu em 270 a.C., e enquanto pôde ensinar no “Jardim”, tentou


assegurar que sua doutrina fosse vivida por seus discípulos. Por isso mesmo,
não houve tantas transformações no pensamento dos epicuristas como houve
em outras escolas helenistas. Embora não tenha causado a mesma influência que
outros pensamentos criados durante o helenismo, o epicurismo é uma das escolas
mais importantes deste período.

DICAS

Para aprofundar seus conhecimentos sobre o epicurismo, recomenda-se a


seguinte leitura: Antologia de Textos: Epicuro. Da natureza/Tito Lucrécio Caro. Da República/
Marco Túlio Cícero. Consolação à minha mãe Hélvia; Da tranquilidade da Alma; Medeia/
Lúcio Aneu Sêneca. Meditações/Marco Aurélio; São Paulo: Abril Cultural, 1985.

91
UNIDADE 2 | DO PERÍODO CLÁSSICO À FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

4 ESTOICISMO
O estoicismo foi fundado em Atenas em 300 a.C., por Zenão de Cítio (344-
262 a.C.). Zenão costumava ensinar aos seus discípulos andando de um lado para
outro no pórtico da cidade, por isso o termo “estoico”, que deriva da palavra stoa
poikile, “pórtico das pinturas”. A escola logo obteve grande aceitação do público,
sobretudo por promover algumas reflexões morais e exortar os jovens da cidade
a buscarem o bem viver.

Zenão compreendia que o progresso moral deve ser visto a partir da vida
em conformidade com a natureza, no sentido de que as riquezas ou prazeres
corporais não são vantajosos em si, antes, tendem a nos escravizar. Não se
importar com estes bens e viver apenas com o que é naturalmente necessário para
a sobrevivência é o que possibilitaria a felicidade e o bem viver.

“Zenão foi o primeiro, em sua obra Da natureza do homem, a definir


o bem supremo como viver de acordo com a natureza, ou seja, viver segundo
a excelência, porque a excelência é o fim para o qual a natureza nos guia”
(LAÊRTIOS, 2008, p. 201).

Ainda sobre este aspecto, os sucessores de Zenão irão afirmar uma estreita
relação entre as nossas ações individuais com a própria natureza universal, no
sentido de que, “para ter uma conduta ética que assegure sua felicidade, suas
ações devem estar de acordo com os princípios naturais, com a harmonia do
cosmo, que dá equilíbrio a todo o universo, inclusive ao homem” (MARCONDES,
2010, p. 91).

Os principais difusores da doutrina estoica foram os discípulos de Zenão,


Cleantes (330-232 a.C.) e Crisipo (280-206 a.C.). Ambos escreveram numerosas
obras, mas todas elas se perderam com o tempo. No período de trabalho destes
dois discípulos, o estoicismo também enfrentou algumas interlocuções mais
duras com os epicuristas e, principalmente, com alguns céticos.

A partir do século I, o estoicismo é acolhido no seio do Império Romano,


dando início a uma nova versão desta doutrina. É o momento do chamado
estoicismo romano ou imperial, com características mais práticas, apáticas
(em relação às emoções) e de autocontrole. Seus maiores representantes foram
o filósofo Sêneca (4a.C.–138), Epiteto (60-138) e o imperador Marco Aurélio
(121-180). Destes pensadores foram preservados alguns textos, o que ajuda na
caracterização da filosofia estoica do período.

De modo geral, é também este o momento do estoicismo que mais


influenciará a moral cristã, e em especial aquilo que a doutrina estoica compreendia
pelo título de “física” e “ética”. Segundo a tradição, desde o início da filosofia
estoica eles dividiam os seus ensinamentos em lógica, ética e física.

92
TÓPICO 2 | FILOSOFIA HELENISTA

Laêrtios (2008, p. 190) narra que estes três elementos são ilustrados com
várias metáforas:
Os estoicos comparam a filosofia a um ser vivo, onde os ossos e os
nervos correspondem à lógica, as partes carnosas à ética e a alma
à física. Ou então comparam-na a um ovo: a casca a lógica, a parte
seguinte (a clara) à ética, e a parte central (a gema) à física. Ou
comparam ainda a um campo fértil: a cerca externa a lógica, os frutos
são a ética, e o solo ou as árvores são a física.

De modo geral, a caracterização da ética tal qual indicada logo acima


nos leva a supor que esta é sempre um desdobramento, um fruto das reflexões
anteriores, sobretudo da lógica, vista como uma correção dos termos na linguagem.
Contrapondo-se, por exemplo, à teoria das Formas, os estoicos ensinavam que os
seres individuais, como “Sócrates”, de fato eram reais, já a ideia de “humanidade”
não passa de uma construção mental. Assim, “Dois campos distintos de indagação
estão na verdade subordinados à lógica: um sobre a verdadeira essência do ser, e
outro sobre a terminologia dos conceitos. Esse é o conteúdo da lógica dos estoicos
(LAÊRTIOS, 2008, p. 201)”.

Em relação à física, devemos ressaltar que para os estoicos ela abrangia


tudo o que existe na realidade, incluindo princípios como a ideia de Deus ou alma,
por exemplo. É por este motivo também que o cristianismo será influenciado por
estas ideias.

Sob a perspectiva estoica, o mundo é um processo de mudança contínua,


tal como em Heráclito, mas este mundo também possui um princípio racional
que o rege, e este princípio, de certa forma, seria simultaneamente dependente da
matéria, uma vez que ela se põe como recipiente para a razão.

Os estoicos caracterizaram estes elementos como o ativo e o passivo, “o


princípio passivo é a essência sem a qualidade – a matéria –; o princípio ativo é
a razão na matéria, ou seja, Deus” (LAÊRTIOS, 2008, p. 212). Este ponto acabou
acarretando certo determinismo, pois, uma vez que a realidade seria governada
por um princípio racional, não seria conveniente tentar mudá-lo. A ética estoica,
assim compreendida, impunha aos homens ter que aceitar o caminho que a vida
coloca, mesmo que isto não seja algo bom e agradável.

DICAS

Para aprofundar seus conhecimentos sobre o estoicismo, recomenda-se a


seguinte leitura: SEDLEY, David. A escola, de Zenon a Ário Didimo. In: INWOOD, Brad (Org.).
Os estoicos. São Paulo: Odysseus Editora, 2006.

93
UNIDADE 2 | DO PERÍODO CLÁSSICO À FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

5 CETICISMO
De modo geral, o termo “cético” passou a se referir à dúvida em seu sentido
mais extremo. Na antiguidade, este aspecto certamente esteve presente desde os
primeiros filósofos clássicos, porém, durante o helenismo e enquanto filosofia,
o ceticismo alcançou novas dimensões, constituindo-se como uma tradição de
grande relevo para a história.

Sua aparente unidade, no entanto, é mera ficção, pois existiram várias


concepções céticas. Duas delas, entretanto, se sobressaem, o ceticismo pirrônico
e o ceticismo acadêmico.

Fundado por Pirro, o ceticismo pirrônico ocupa uma posição central na


história do ceticismo. Pirro de Elis nasceu em 365 a.C., e é visto pelos historiadores
como o primeiro a tomar como eixo central da atividade filosófica uma atitude
cética.

Membro do exército de Alexandre, Pirro viajou pelo mundo e conheceu


vários países orientais. Novas culturas o colocaram em contato com novas
formas de sabedoria, sobretudo os ginosofistas hindus (sábios nus). A partir
dessas experiências, Pirro começou a se contrapor a aquilo que aparentemente
era tomado como universal, a cultura grega. Como relata a tradição exposta em
Laêrtios (2008), tal experiência certamente o influenciou a adotar uma postura
mais relativista em relação a determinados pontos e opiniões.

Em um contexto em que os valores tradicionais e a conduta ética e moral


eram dilacerados por uma nova ordem política e imperial, a arte de viver também
se tornou o problema capital para o ceticismo, porém, adotado a partir de uma
posição relativista.

Esta foi, justamente, a maior característica do ceticismo neste contexto,


com a ressalva de que a impossibilidade de apreensão da verdade não era vista
como um empecilho para a vida, ou seja, não era algo paralisante.

Pirro não fundou uma escola propriamente, e também não deixou nada
escrito. O que conhecemos de seu pensamento provém dos relatos de um seguidor,
Timon (325-235 a.C.), que se juntou a ele mais como um admirador, buscando um
modelo de vida para se espelhar. Além dos fragmentos de Timon, temos os textos
de Sexto Empírico, mas estes são textos posteriores, escritos no século II d.C., que
refletem a última fase do ceticismo antigo.

Este último período do ceticismo surge 200 anos após o predomínio do


ceticismo acadêmico, caracterizado fundamentalmente por seu dogmatismo.
Neste sentido, a vida de Pirro voltou a inspirar novos adeptos, originando o que
de fato ficou conhecido como ceticismo pirrônico, porque conforme assinala Sexto
Empírico, isto representava uma volta a um ceticismo mais legítimo.

94
TÓPICO 2 | FILOSOFIA HELENISTA

Enquanto os acadêmicos afirmam ser impossível encontrar a verdade, os


céticos, por assim dizer “autênticos”, seguem buscando. Aliás, o termo
skepsis significa literalmente “investigação”, “indagação”. Ou seja, a
afirmação de que a verdade seria inapreensível já não caracterizaria
mais uma posição cética, e sim uma forma de dogmatismo negativo. A
posição cética, ao contrário, caracterizar-se-ia pela suspensão de juízo
(époche) quanto à possibilidade ou não de algo ser verdadeiro ou falso
(MARCONDES, 2010, p. 96).

Em relação à filosofia proposta pelo ceticismo, Pirro compreendia que


os sentidos e a razão não poderiam ser tomados como instrumentos adequados
para o conhecimento do que é verdadeiro ou falso. A realidade deveria ser
compreendida como um conjunto de fenômenos que nos aparece e nenhuma
opinião ou juízo absolutos poderiam ser formados para além destes fenômenos.

Se para os epicuristas e estoicos a filosofia possibilitaria um conhecimento


a partir do qual poderíamos estabelecer certos princípios para a vida, para
o cético a investigação (sképsis) radical mostraria a inconsistência de qualquer
conhecimento. Ao refutar todos estes conhecimentos, o que restaria seria uma
atitude de indiferença em relação ao saber especulativo.

Este aspecto mostra que, abstendo-se de qualquer juízo, o cético encontra


a ataraxia, um estado de imperturbabilidade, de indiferença em relação a qualquer
fato, pois ao renunciar à necessidade de atribuir algum juízo, o cético elimina,
por contrapartida, ter que solucionar os problemas que as impressões sobre um
fenômeno suscitam. Aqui já temos, portanto, a grande distinção entre o ceticismo
acadêmico e o pirrônico.

Depois da morte de Pirro em 270 a.C., Timon passou a ser a grande


referência cética, fundamentando alguns argumentos com mais refinamento
intelectual. Ao mesmo tempo, Arcesilau (315-240 a.C.), que também era membro
da Academia (fundada por Platão e agora denominada de Nova Academia),
passou a liderá-la e a introduzir algumas concepções céticas.

O ceticismo acadêmico se dá neste contexto e, fundamentalmente, os


filósofos acadêmicos assumiam uma postura mais dogmática em relação ao
conhecimento, asseverando que de fato não era possível conhecer a verdade ou
falsidade de nada. Neste sentido, a suspensão do juízo é deixada em detrimento
da simples negação da possibilidade de conhecermos algo, por isso o dogmatismo.

Esta perspectiva manteve-se até o fim do século I e II d.C., que, como já


indicamos, retomam as ênfases pirrônicas e a suspensão do juízo, vendo como
critério para a ação efetiva os fenômenos e o que podemos tirar deles de útil, e
não de verdadeiro ou falso.

95
UNIDADE 2 | DO PERÍODO CLÁSSICO À FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

DICAS

Para aprofundar seus conhecimentos sobre o ceticismo, recomenda-se a


seguinte leitura: SMITH, Plínio. O que é ceticismo. São Paulo: Brasiliense, 1992. 82 p. (Coleção
Primeiros Passos).

6 O NEOPLATONISMO
O neoplatonismo pode ser caracterizado a partir da perspectiva de vários
pensadores que, a partir do século III, desenvolveram suas reflexões dialogando,
fundamentalmente, com a filosofia platônica. No neoplatonismo temos
abordagens que vão desde pensadores cristãos, cujo foco foi tentar transformar
a filosofia “pagã” em filosofia cristã, até o sistema filosófico de Plotino, que sem
dúvida é o maior expoente desta tradição, influenciando praticamente todos os
demais.

Atribui-se a Amônio Sacas, que viveu na passagem do século II para o


século III, o papel de precursor do neoplatonismo. Ele teria nascido numa família
cristã, mas, ao conhecer a filosofia grega, deixou de professar a fé no cristianismo
e passou a ver os filósofos gregos como uma versão mais refinada e erudita dos
preceitos teológicos cristãos.

Amônio não deixou nada escrito e exerceu sua filosofia compreendendo-a


mais como um exercício espiritual. Apesar disso, certamente foi visto como
uma mente extraordinária, e o próprio fato de Plotino permanecer 11 anos em
sua companhia como discípulo comprova isto. Plotino entrou em contato com
Amônio com cerca de 28 anos, e já na primeira vez que ouviu o mestre, exclamou:
“Este é o homem que procurava!” (Vida de Plotino, 3. apud REALE, 2008, p. 6).

Nascido no Egito em 205, Plotino conheceu a filosofia em Alexandria.


Além disso, viajou por vários lugares, conhecendo um pouco da cultura hindu
e persa. Por volta de 244 se estabeleceu em Roma e ali ficou até a sua morte, em
270. Os relatos sobre a sua vida e obra foram escritos por um de seus discípulos,
Porfírio, no livro A vida de Plotino.

Em Roma, Plotino fundou uma escola e escreveu uma série de tratados


que compõem a sua obra Enéadas. Bastante influenciado pela cultura grega,
nesta obra Plotino desenvolve uma série de posições filosóficas e místicas que
aglutinam concepções pitagóricas, estoicas, mas fundamentalmente as ideias
metafísicas de Platão e Aristóteles. O que é próprio do seu pensamento é acentuar
as características religiosas e místicas nestas tradições.

96
TÓPICO 2 | FILOSOFIA HELENISTA

Sua filosofia é vista pelos historiadores como o último grande sistema da


antiguidade e propõe, retomando a tradição, uma estrutura para a realidade que
é resumida da seguinte forma: “Do Uno procede a Inteligência, da qual procede
a Alma do mundo, da qual procedem as almas particulares de todos os seres que
constituem o universo. Pois tudo está cheio de alma” (CORBISIER, 1991, p. 409).
Os elementos que constituem este processo são chamados de hipóstases.

Podemos perceber na filosofia de Plotino a formação de um sistema, cujo


ponto central é o que ele chama de Uno, que é o princípio, causa e origem de
todas as coisas.

Todos os seres são seres em virtude do Uno, tanto os que são seres
num sentido originário como aqueles dos quais se diz que num sentido
qualquer são contados entre os seres. Com efeito, o que poderia existir
se não houvesse unidade? (Enéadas VI, 9, 1. In: REALE, 2008, p. 42).

Todas as coisas provêm do Uno e devem retornar a ele, que é o grau máximo
de perfeição e antecede a toda multiplicidade. Uma metáfora bastante utilizada
por Plotino para explicar as suas ideias é a imagem do Sol e da luz. Segundo
Marcondes (2010, p.90), “os raios emanam do Sol, se irradiam, sem perda da fonte
de energia: trata-se de uma emanação difusa a partir de um centro intenso, de
uma fonte imóvel, e o enfraquecimento progressivo dessa luminosidade gera a
matéria que é o limite da emanação”.

Desse sistema se desdobram dois movimentos, um centrífugo e outro


centrípeto. Seguindo certos aspectos da tradição, Plotino observa que as coisas
estão individualizadas e divididas, portanto contrapõem-se umas às outras.
Assim, quanto mais próxima do Uno forem estas coisas, mais próximas da
perfeição elas estarão, e isto também vale para o inverso.

No processo centrífugo, do Uno surge a primeira dualidade, o intelecto;


dele surge a alma, e da alma, a matéria. Paralelo a este processo também ocorre o
inverso, pois há uma força natural atraindo o múltiplo, que depende do Uno, daí
o movimento centrípeto e de volta ao Uno.

Este Uno “é todas as coisas e nenhuma. É todas as coisas porque é princípio


de tudo e, por isso mesmo, não pode ser nada em particular” (BEZERRA, 2006, p.
68). Como consequência desta afirmação, Plotino estabelece que a transcendência
do Uno nos impede de estabelecer qualquer predicado a ele, portanto ele é inefável.

Daqui que, entre outras coisas, ele é inefável no verdadeiro sentido da


palavra. Visto que com qualquer palavra que venhas a pronunciar,
sempre exprimirás “alguma coisa”. No entanto, a expressão “além do
todo” ou essa outra “além do Espírito sumamente venerável” são as
únicas que não são denominações que sejam alguma coisa de diferente
daquilo que Ele é, e nem sabemos dizer nada a seu respeito, mas somente
tentamos, como melhor nos suceda, dar alguma indicação acerca Dele,
entre nós e para nosso uso (Enéadas V, 3, 13. REALE, 2008, p.47).

97
UNIDADE 2 | DO PERÍODO CLÁSSICO À FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

Este aspecto irá influenciar profundamente a teologia cristã posterior


a Plotino, sobretudo em relação à possibilidade de conhecimento ou definição
do Uno, respondida por Plotino por uma via negativa, isto é, metaforicamente,
dizendo o que o Uno não é. O nome “Uno” é algo simplesmente convencionado,
pois “não se pode atribuir nada ao Uno, dado que qualquer atributo, inclusive
que “é” ou que “é algo”, privaria de ser o Uno” (BEZERRA, 2006, p. 69).

DICAS

Para aumentar seus conhecimentos sobre a obra de Plotino, recomenda-se a


leitura do seguinte texto: BARACAT JÚNIOR, José Carlos. Enéada III. 8 [30]: Sobre a natureza,
a contemplação e o Uno. Introdução, tradução e comentário da obra de Plotino, Enéada III. 8
[30]. 2000. 245 f. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Universidade Estadual de Campinas,
Campinas, 2002. Disponível em: <http://cutter.unicamp.br/document/?code=vtls000252291>.

98
RESUMO DO TÓPICO 2
De acordo com o que foi estudado neste tópico, segue o resumo dos
principais assuntos abordados:

• O helenismo foi, sobretudo, um projeto político e imperialista que demarcou o


fim do período clássico da filosofia e o início de uma nova reflexão.

• O que caracteriza o helenismo é o fato de a cultura grega se difundir entre os


povos conquistados por Alexandre, o Grande.

• Entre os desdobramentos do imperialismo macedônico estava o fim da


autonomia política das cidades-estado e uma valorização das discussões sobre
a vida privada e como alcançar a ataraxia.

• As principais correntes filosóficas do helenismo são o Epicurismo, o Estoicismo,


o Ceticismo e o Neoplatonismo.

• O conceito de ataraxia é visto de maneira diferente entre estas correntes, mas


tem como cerne pensar o que caracteriza uma vida em estado de felicidade ou
imperturbabilidade.

• O neoplatonismo encontra em Plotino o seu maior representante, que reformula


as concepções platônicas a partir de uma visão bastante mística.

99
AUTOATIVIDADE

Caro acadêmico(a)! Após a leitura deste tópico, responda as questões


abaixo. Lembre-se de consultar os textos, pesquisar e refletir sobre os temas.

1 Descreva o que é o “helenismo” e como ele surgiu.

2 Como podemos caracterizar a filosofia helenista e o seu contexto?

a) ( ) Como uma filosofia que retoma a preocupação socrática de debate


público e de interesse político.
b) ( ) Como uma filosofia que pretende se contrapor ao imperialismo e à
fragmentação cultural através de um pensamento único e sistematizado.
c) ( ) Como uma filosofia que, apesar de diversa, reflete a fragmentação da
polis e da vida pública como uma consequência do imperialismo macedônico
e que, portanto, se atém às questões privadas e de busca da ataraxia.
d) ( ) Como um retorno ao problema pré-socrático, traçando um paralelo
entre as diversas conquistas de Alexandre e seu projeto unificador dos povos
e culturas.

3 Correlacione corretamente o conceito de ataraxia entre as seguintes


interpretações filosóficas:

a) Epicuristas. ( ) Prazer e ausência de dor.


b) Céticos. ( ) Viver segundo a natureza.
c) Estoicos. ( ) Suspensão dos juízos.

4 Descreva como Plotino concebia a realidade em sua obra Enéadas.

100
UNIDADE 2 TÓPICO 3

FILOSOFIA MEDIEVAL: PATRÍSTICA E ESCOLÁSTICA

1 INTRODUÇÃO
A filosofia medieval, às vezes, é cercada por elementos e preconcepções
que a tornam obscura e pouco inovadora em relação às produções anteriores.
Porém, caracterizá-la dessa maneira talvez não seja o mais adequado, pois se
trata de um período importante, com figuras representativas e que ajudaram a
constituir aquilo que chamamos de cultura ocidental.

Seu contexto particular, marcado sobretudo pela religião cristã e pela


estrutura feudal, também ajudou a constituir a filosofia medieval segundo
elementos completamente distintos, e é por isso que ela deve ser avaliada a partir
de tais especificidades.

O objetivo deste tópico é levar você, prezado(a) acadêmico(a), a


compreender quais são essas características particulares, tendo uma abordagem
geral do contexto e da filosofia que se constitui a partir do fim do helenismo e do
início, desenvolvimento e consolidação da religião cristã.

Tentaremos compreender quais os principais elementos que caracterizaram


a reflexão medieval e quais pensadores se destacaram, investigando os temas e
os autores que vão desde a filosofia patrística até o desenvolvimento, ápice e
declínio da escolástica.

2 A FILOSOFIA PATRÍSTICA
A patrística é composta pelos chamados “Pais da Igreja”, daí o termo
patrística, do latim, pater, que significa “pai”. O número de pensadores que a
compõem é bastante vasto, indo desde os primeiros apóstolos cristãos, como
Paulo, por exemplo, até os primeiros escolásticos do século VIII.

Em sua origem podemos considerar o mote do pensamento patrístico


ligado a uma série de fatores, como os de interesses internos à religião cristã – que
ainda vivia os dilemas de sua organização após a morte de Jesus e dos apóstolos
–, e fatores externos, voltados para a relação com o contexto histórico e político
da época.

101
UNIDADE 2 | DO PERÍODO CLÁSSICO À FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

Sobre este segundo ponto, podemos perceber algumas características


importantes, como, por exemplo, o fato de o pensamento patrístico estar
diretamente ligado à tentativa dos pensadores cristãos dos séculos II e III de
explicitar certos elementos da fé. Além do significado da vida e morte de Jesus, a
partir de uma reflexão filosófica ou teológica, o que estabelecia um diálogo com
a cultura da época.

Alguns pontos podem ser destacados em relação a isso, tais como:


determinar quais escritos, dentre aqueles que surgiam nas diversas comunidades
espalhadas pelo império, de fato expunham relatos fidedignos e coerentes com o
testemunho dos apóstolos ou das próprias palavras de Jesus; compreender a vida
e a obra de Jesus a partir da tradição judaica; determinar qual a natureza de Jesus;
e compreender a sua dimensão divina, entre outros.

Enfim, havia uma série de paradigmas sendo estabelecidos que ainda


precisavam ser discutidos, e foram estas reflexões que formaram posteriormente
os primeiros dogmas e os primeiros relatos apologéticos do cristianismo.

Atrelada a isso, a dimensão apologética que surgiu a partir destes


pensamentos ligava-se ao confronto com os elementos externos à fé, isto é, uma
posição de defesa diante das acusações advindas de outras religiões ou do próprio
Império Romano, que via no crescimento e difusão do cristianismo um sinal de
perigo.

Nem sempre fundamentadas, algumas dessas acusações acabaram se


tornando verdadeiras caricaturas sobre as primeiras práticas cristãs.

NOTA

Estas acusações se baseavam nos relatos cristãos de que na eucaristia eles


comiam do pão e bebiam do vinho que representavam o corpo e o sangue de Jesus, e que
se diziam irmãos e irmãs.

Em relação às acusações mais formais, postas principalmente pelos


cidadãos romanos, convém notar que se tratavam de argumentos postos por
pessoas educadas sob a perspectiva da cultura greco-romana. Neste sentido,
respondê-las à altura implicava um refinamento intelectual, pois somente assim
a interlocução poderia de fato ser efetiva.

O termo “apologista”, que significa literalmente “defensor”, é criado


dentro desta perspectiva. Peterson (1981, p. 42) explica que se tratava de pessoas
interessadas em explicitar três elementos fundamentais:

102
TÓPICO 3 | FILOSOFIA MEDIEVAL: PATRÍSTICA E ESCOLÁSTICA

Primeiro, demonstrar definitivamente a inocência dos seguidores de


Jesus de qualquer crime; segundo, obter para os cristãos a tolerância
de autoridades políticas e militares, em vista de não serem criminosos;
terceiro, comprovar perante o mundo não cristão o valor incalculável
do cristianismo, a fim de granjear-lhe novos discípulos.

No âmbito da vasta literatura que surge durante este período, a defesa


da fé cristã implicava um diálogo com a filosofia clássica. Isto porque alguns de
seus convertidos haviam se relacionado com a cultura grega ou porque buscavam
mostrar quão superior era a verdade revelada pelo cristianismo em relação à
filosofia.

Em determinados textos os pensadores clássicos eram usados apenas


para servir ou corroborar os dogmas cristãos, como o faz Justino, o Mártir, por
exemplo. Em uma de suas declarações, ele relata que se esforçou para que os
outros reconhecessem nele um cristão:

Não porque as doutrinas de Platão sejam contrárias às doutrinas


de Cristo, mas porque não são, em todos os seus aspectos, como as
doutrinas de Cristo. E assim acontece com os ensinamentos dos demais
estoicos, poetas e prosadores. Em todos que corretamente discursaram
percebemos que os pontos que se harmonizam com o cristianismo se
devem à participação de suas mentes com a razão seminal de Deus
(...) tudo quanto, por algum homem, em algum lugar, foi opinado
acertadamente, pertence a nós, cristãos (Justino, Apologia I.XLVI. In
BETTENSON, 2001, p. 32).

De todo modo, estes pensadores se esforçaram para difundir o conteúdo


da fé cristã, seja se contrapondo ao preconceito criado em torno dos cristãos
ou respondendo às acusações mais intelectualizadas dos romanos. Entre os
principais apologistas deste período estão: Justino, o Mártir (?-165); Clemente de
Alexandria (150-215) e Orígenes (184-253), os três de origem ou de tradição grega;
no contexto latino, o grande expoente é Agostinho, mas no âmbito específico da
apologética temos Tertuliano (169-230).

2.1 JUSTINO, O MÁRTIR


Justino foi um profundo conhecedor da filosofia grega, em especial do
platonismo. Apesar disto, rapidamente se desiludiu quanto à possibilidade
da filosofia lhe proporcionar a verdadeira felicidade. Em um de seus textos
apologéticos percebemos como a intrepidez dos mártires e a firmeza destes diante
da morte lhe tocaram:

Quando ainda era discípulo de Platão, eu ouvia as acusações dirigidas


contra os cristãos. Mas vendo-os intrépidos diante da morte e diante
daquilo que os homens mais temem, compreendi que era impossível
que eles vivessem no mal (JUSTINO, Apologia. In: REALE, 2005, p. 408).

103
UNIDADE 2 | DO PERÍODO CLÁSSICO À FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

Impactado por esses testemunhos e sedento pela verdade, Justino se


tornou um cristão fervoroso. Por volta do ano 165, sofreu o martírio na cidade de
Roma, igualando-se àqueles que ele havia admirado no início de sua conversão.

Suas obras refletem a tentativa de reinterpretar o conhecimento filosófico


a partir das revelações do cristianismo, originando, assim, o que ele considerava
uma “verdadeira filosofia”. Em certa medida, Justino tentou preservar a filosofia
grega como uma reflexão relevante, que, embora limitada, participava de verdades
que só se efetivaram plenamente com a revelação de Cristo.

Os filósofos antigos participaram, segundo Justino, do logos, que para os


cristãos deveria ser atrelado apenas a Jesus Cristo e, portanto, poderíamos chamá-
los de filósofos “cristãos anteriores a Cristo”. Neste sentido, é como se Justino
tivesse criado o primeiro esboço de uma “filosofia da história” e do “humanismo
cristão” (BOEHNER; GILSON, 2003, p. 30).

2.2 CLEMENTE DE ALEXANDRIA


Clemente era grego e não descendia de uma família cristã. Nasceu
provavelmente no ano de 150 em Atenas, cidade onde também se converteu ao
cristianismo. Dedicou-se aos estudos e por volta do ano 200 se tornou professor
em uma escola de Alexandria.

Suas obras contêm diferentes aspectos, mas quanto ao que nos interessa
neste tópico, também procurou estabelecer algumas críticas à filosofia grega,
refinando o seu teor e subscrevendo-a aos dogmas cristãos que começavam a se
formar naquele período.

O mote de sua reflexão, mais do que um combate às falsas doutrinas, era


tentar conciliar a razão com a fé superando as respostas místicas dadas pelas
correntes gnósticas.

É a concordância da fé (pistis) com o conhecimento (gnosis) que


faz o perfeito cristão e o verdadeiro gnóstico. A fé é o princípio e o
fundamento da filosofia. Esta, por seu turno, é da máxima importância
para o cristão desejoso de aprofundar o conteúdo de sua fé por meio
da razão. Acrescida à fé, a filosofia não torna a verdade mais forte, em
si mesma, mas torna impotentes os ataques dos inimigos da verdade,
constituindo, portanto, válido baluarte de defesa (REALE, 2003, p. 411).

104
TÓPICO 3 | FILOSOFIA MEDIEVAL: PATRÍSTICA E ESCOLÁSTICA

NOTA

Ainda segundo Reale (2003, p. 405), por gnose entende-se “literalmente


“conhecimento”, mas tecnicamente, tornou-se indicador daquela particular forma de
conhecimento mítico própria de algumas correntes religioso-filosóficas do tardio paganismo,
sobretudo de algumas seitas heréticas inspiradas no cristianismo”.

Ainda segundo esta perspectiva, temos em Clemente o mesmo pressuposto


de Justino, o de que o logos, consubstanciado em Cristo, inspirou tanto os profetas
da tradição judaica, quanto os filósofos gregos.

2.3 ORÍGENES
Nascido por volta de 185, em Alexandria, Orígenes era filho de cristãos
– o próprio pai havia sido morto testemunhando a fé. Em Alexandria chegou a
frequentar os cursos do precursor do neoplatonismo, Amônio Sacas, além de se
tornar professor em uma escola. Também foi discípulo de Clementes e bastante
influenciado por ele.

Foi obrigado a abandonar a cidade de Alexandria e passou a desenvolver


as suas atividades em Cesareia. Morreu em 253, após ser duramente torturado
pelos romanos.

Seu pensamento gerou uma síntese entre a filosofia e a fé cristã, mas,


diferentemente de Clemente, concebia Deus e a Trindade como foco de suas
reflexões, e não o logos.

Um dos aspectos mais importantes de sua reflexão é postular pela primeira


vez, no âmbito da especulação racional, a doutrina da criação a partir do nada, como um
ato da vontade de Deus. Para Marías (2004, p. 121), “assim a criação se opõe claramente
a qualquer geração ou emanação, e dessa forma marca-se de modo nítido a separação
entre o pensamento cristão e o mundo grego”.

2.4 TERTULIANO
Os apologistas anteriores constituíram a chamada patrística grega, e isso
explica as suas interlocuções mais diretas com a filosofia clássica ou helenista.
De modo geral, a patrística latina não segue o mesmo mote, ao menos não até
Agostinho, o grande expoente patrístico.

105
UNIDADE 2 | DO PERÍODO CLÁSSICO À FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

Entre os pensadores latinos anteriores a Agostinho, temos o nome de


Tertuliano como destaque. Tertuliano nasceu na segunda metade do século II, na
cidade de Cartago. Sua obra mais influente é o Apologético, onde contrapõe filosofia
e cristianismo de maneira bastante crítica.
Em seu conjunto, que semelhança pode-se perceber entre o filósofo e o
cristão, entre o discípulo da Grécia e o candidato ao céu, entre o traficante
de fama terrena e aquele que faz questão de vida, entre o vendedor de
palavras e o realizador de obras, entre o que constrói sobre a rocha e o
que destrói, entre quem altera e quem tutela a verdade, entre o ladrão e
o custódio da verdade? (...) O cristão extrai seus ensinamentos do Pórtico
de Salomão, que ensina a procurar o Senhor com simplicidade de coração
(TERTULIANO apud REALE, 2003, p. 425).

Em suma, Tertuliano é contrário às relações entre os dois mundos, o


cristianismo e a filosofia, rejeitando o diálogo e postulando a fé em Cristo como a
verdadeira sabedoria. Diante da vida e obra do messias, sua morte e ressurreição,
Tertuliano expõe que a fé e a sabedoria humana são incompatíveis, dando origem
à expressão atribuída a ele e que se tornou bastante difundida: credo quia absurdum,
creio porque é absurdo.

Este período de reflexão por parte dos primeiros padres da Igreja se estende
até a consolidação do cristianismo como religião oficial do Império Romano, sob
o favorecimento de Constantino em 313. No ano de 325, com o chamado Concílio
de Niceia, as principais doutrinas do cristianismo são estabelecidas, fixando como
dogmas grande parte do que foi refletido durante as discussões apologéticas.

Este período foi o ponto máximo da apologética patrística. A Igreja então


já havia se espalhado pelo mundo, a perseguição cessada e os pensadores tiveram
a oportunidade de sistematizar as reflexões teológicas e filosóficas anteriores.
Apesar de conter inúmeros pensadores, entretanto, seu maior representante é
Agostinho, que segundo Störig (2009, p. 189), “é o primeiro grande talento
filosófico desde a época clássica da filosofia grega”.

DICAS

Para aumentar seus conhecimentos sobre o contexto patrístico e os principais


textos e documentos escritos nesse período, sugerimos a seguinte leitura: BETTENSON,
Henry. Documentos da Igreja Cristã. Tradução de Helmut Alfred Simon. 4. ed. São Paulo:
ASTE - Associação de Seminários Teológicos Evangélicos, 2001. 452p.

106
TÓPICO 3 | FILOSOFIA MEDIEVAL: PATRÍSTICA E ESCOLÁSTICA

2.5 AGOSTINHO DE HIPONA


Nascido em 354, numa província africana da Numídia, Aurélio Agostinho
foi educado segundo a tradição romana, e isto ocorreu não porque tinha condições
econômicas, mas graças ao financiamento de um amigo de seu pai. Teve contato
desde a juventude com a filosofia latina, em especial os textos de Cícero e os
estudos de retórica, do qual se tornou professor posteriormente.

Se, por um lado, seu pai, de nome Patrício, era um homem que se deliciava
com os prazeres da vida de maneira frívola, por outro, sua mãe, Mônica, era uma
devota da fé cristã, nutrindo grandes expectativas em relação ao filho. De certa
forma, sua biografia nos mostra justamente a tensão entre essas duas influências.
De um lado, Agostinho era um jovem buscando saciar os seus desejos e, de outro,
aspirava desde muito cedo uma verdade que lhe fosse superior e pudesse lhe dar
sentido para a vida.

Agostinho se dedicou em especial à literatura latina – em suas Confissões


ele revela que neste período se recusava a aprender grego. Teve contato com um
texto de Cícero sobre a filosofia, Hortensius, do qual nos restaram apenas algumas
citações. Esta obra inflamou seu espírito a buscar avidamente uma verdade que
pudesse ser tomada como absoluta, algo que o acompanhou durante toda a vida.

Primeiramente, julgou ter encontrado esta verdade nas reflexões


maniqueístas, convertendo-se a esta que era uma das doutrinas religiosas mais
difundidas naquele período. Os maniqueístas postulavam um dualismo absoluto
entre matéria e espírito, bem e mal, luz e trevas, Deus e Satanás. Um conhecimento
da relação entre estes dois reinos era algo que se apresentava apenas a um
grupo de “eleitos”, e isto, certamente, “era o tipo de pensamento que apelava à
arrogância intelectual do jovem Agostinho” (PETERSON, 1981, p. 60).

Agostinho permaneceu fiel ao maniqueísmo durante nove anos, mas na


medida em que começou a trabalhar como professor de retórica em Milão, foi
obrigado a se aprofundar nos textos clássicos dos gregos, e a partir daí conheceu
o neoplatonismo, passando a rejeitar as ideias maniqueístas. Fundamentalmente,
percebeu que a dualidade não representava a verdadeira realidade, apenas Deus
poderia ser visto assim, concebendo-o como a fonte de todas as coisas, e o mal
apenas a sua ausência.

Estas considerações possibilitaram a Agostinho unir as suas inquietações


de cunho mais racional com a fé cristã. Em 386 ele se converteu ao cristianismo sob
a influência dos sermões do bispo Ambrósio. Batizou-se em 387 e decidiu viver
uma vida reclusa. Em 391, ao visitar a cidade de Hipona, tornou-se sacerdote, e
em 395, bispo. Faleceu em 430, durante as invasões bárbaras.

107
UNIDADE 2 | DO PERÍODO CLÁSSICO À FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

Os primeiros movimentos de Agostinho após a sua conversão foram o de


atacar aquilo que ele havia aceitado anteriormente, seja em relação à religião ou
ao ceticismo de algumas perspectivas filosóficas. Como resultado deste processo,
surgiram as suas obras estritamente filosóficas, entre as quais a de maior destaque,
sem dúvida, é o livro Confissões, escrito entre os anos de 397-401.

Sua filosofia é tida como um caminho para uma vida feliz, chamada
também de beatitude, mas parte do pressuposto de que a fé e a razão devem se
conciliar, pois a felicidade de fato está apenas em Deus.
O núcleo em torno do qual gravitam todas as suas ideias é o conceito
de beatitude. O problema da felicidade constitui, para Agostinho, toda
a motivação do pensar filosófico. Uma das últimas obras que redigiu,
a Cidade de Deus, afirma que “o homem não tem razão para filosofar,
exceto para atingir a felicidade” (PESSANHA, 2004, p. 12).

Nesse sentido, a filosofia pode ser vista como um instrumento, voltada


para a busca de algo maior e mais sublime do que o conhecimento em si mesmo,
o que para Agostinho é algo proporcionado por Deus e presente nas Escrituras
Sagradas. Segundo Costa (2008, p. 120), “sua filosofia/teologia tem um caráter
essencialmente teleológico transcendental, cuja preocupação primeira e última é
elevar o homem a Deus”.

A influência da filosofia de Agostinho no Ocidente é vista pelos


historiadores como algo grandioso, a ponto de demarcar o fim do pensamento
antigo e o início de uma nova reflexão filosófica. Segundo Störig (2009, p. 171):

Nos pensamentos de sua obra, a nova cultura cristã ascendente


encontra, pela primeira vez, sua mais elevada expressão filosófica. Sua
influência se impõe nos séculos V e VI em todo o Ocidente cristão e se
tornou a herança intelectual decisiva de toda a Idade Média.

A influência de Agostinho para a escolástica será determinante, impondo


a este pensamento certos parâmetros alicerçados em um tipo de platonismo
cristianizado. Além de fundamentar filosoficamente os dogmas cristãos, estes
pensamentos também suscitaram uma série de especulações, algo que será
sentido até as críticas de Tomás de Aquino.

DICAS

Para aprofundar seus conhecimentos sobre Agostinho indicamos a obra:


AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Abril Cultural, 2004. (Coleção Os Pensadores).

108
TÓPICO 3 | FILOSOFIA MEDIEVAL: PATRÍSTICA E ESCOLÁSTICA

2.6 BOÉCIO
Marcando o fim do período filosófico sob os ares de Roma e o início da
escolástica, Boécio (480-524) foi um pensador ligado à corte de Teodorico, um
rei bárbaro que ocupou o território da Itália. Boécio chegou a exercer funções
importantes politicamente – toda a sua formação o havia levado àquela posição.
Sua sorte, porém, logo mudou.

Por conta de algumas intrigas políticas no interior do palácio, Boécio foi


acusado de alta traição, preso e executado em 524. Durante o período em que
esteve preso escreveu a sua obra mais famosa, A consolação da filosofia.

O texto narra a visita de uma dama em sua cela na prisão, uma figura que
é reconhecida por ele como a própria filosofia, e que lhe ensina como a Fortuna
acaba afastando as pessoas do verdadeiro bem, que é Deus, ao conceder a elas
fama, glória ou prazeres.

DICAS

Fortuna era a deusa romana da sorte, fosse ela boa ou má. Era representada com
os olhos vendados (pois distribuía a sua sorte aleatoriamente) e com um timão nas mãos,
indicando que a sorte é uma roda que quando girada eleva os que estão em baixo (com má
sorte) e os coloca em boa posição (boa sorte).

Segundo os ensinamentos da dama, que personifica a filosofia e vem até


o pensador para consolá-lo, na medida em que cremos na Providência Divina
podemos nos assegurar de que a vida possui um sentido maior, indiferente do
que nos ocorre, seja isto justo ou injusto, bom ou mal. A felicidade, portanto, deve
ser buscada no interior do homem e não nos acontecimentos externos, que são
transitórios.

De fato, Boécio não é visto pelos estudiosos como um pensador original,


mas sua contribuição para o pensamento ocidental não foi pouca. Tinha planos
de traduzir para o latim todos os textos de Platão e Aristóteles, conseguiu deixar-
nos apenas a tradução dos textos de lógica do estagirita. Colocando, assim, pela
primeira vez para o pensamento medieval, o problema dos universais, resumido
por ele mesmo, em seu comentário ao texto de Porfírio, da seguinte forma:
Se os gêneros e as espécies subsistem ou estão somente nos intelectos
puros; se são subsistências corpóreas ou incorpóreas; e (neste último
caso) se estão separadas dos sensíveis ou colocadas neles, é questão
que passo por alto. Trata-se de um tema dificílimo, necessitando de
maior investigação (Boécio. In: SARANYANA, 2006, p. 112).

109
UNIDADE 2 | DO PERÍODO CLÁSSICO À FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

O problema colocado e debatido por Boécio sobre os universais será um


dos grandes motes para as reflexões medievais, ora tendendo a ser respondido
pelo ponto de vista platônico, ora aristotélico. O próprio Boécio o respondeu
seguindo ambas as perspectivas, decidindo-se apenas no final da vida pelo
caminho platônico (SARANYANA, 2006).

3 O DESENVOLVIMENTO DA FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

DICAS

Para entender melhor o contexto medieval, o filme “O nome da rosa” é uma


excelente escolha.
Em 1327, William de Baskerville (Sean Connery), um monge franciscano, e Adso von Melk
(Christian Slater), um noviço que o acompanha, chegam a um remoto mosteiro no norte da
Itália. William de Baskerville pretende participar de um conclave para decidir se a Igreja deve
doar parte de suas riquezas, mas a atenção é desviada por vários assassinatos que acontecem
no mosteiro. William de Baskerville começa a investigar o caso, que se mostra bastante
intrincado, além dos mais religiosos acreditarem que é obra do Demônio. William de Baskerville
não partilha desta opinião, mas antes que ele conclua as investigações, Bernardo Gui (F. Murray
Abraham), o Grão-Inquisidor, chega ao local e está pronto para torturar qualquer suspeito de
heresia que tenha cometido assassinatos em nome do Diabo. Considerando que ele não gosta
de Baskerville, é inclinado a colocá-lo no topo da lista dos que são diabolicamente influenciados.
Esta batalha, junto com uma guerra ideológica entre franciscanos e dominicanos, é travada
enquanto o motivo dos assassinatos é lentamente solucionado.

Direção: Jean-Jacques Annaud


País de origem: França/Itália
Gênero: Drama/Suspense
Duração: 130 min.
Distribuição: 20th Century Fox Film Corporation
Ano de lançamento: 1986.

FONTE: Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-2402/>.

A filosofia escolástica começa a se desenvolver em um contexto marcado


pela fragmentação política, dadas as invasões bárbaras e o fim do Império Romano
do Ocidente. O sistema político e econômico do período é o sistema feudal, que
na verdade não inspirava nenhuma estabilidade política, econômica ou cultural.

Além deste fato, a filosofia não era tomada como objeto de interesse
para os povos bárbaros e, portanto, a sua produção por parte destes povos foi
praticamente nula. A Igreja foi o único lugar neste contexto onde a cultura clássica
ainda podia ser preservada, embora selecionada a partir dos dogmas cristãos.
Com o desenvolvimento dos mosteiros, por exemplo, os trabalhos dos copistas
desempenharam um papel fundamental e quase que exclusivo de preservação
dos textos clássicos.

110
TÓPICO 3 | FILOSOFIA MEDIEVAL: PATRÍSTICA E ESCOLÁSTICA

Foi somente com o coroamento de Carlos Magno como imperador do


Sacro Império Romano-Germânico no século IX que o Ocidente pôde gozar de
certa estabilidade política e cultural. Carlos Magno foi buscar na antiguidade
greco-romana os elementos culturais para identificar o seu império e o unificou a
partir da cultura clássica, o que consequentemente fez com que a filosofia voltasse
a desempenhar um papel central. Segundo Peterson (1981, p. 79):

Ao assumir o governo da Cristandade ocidental, Carlos Magno


compreendeu a necessidade proeminente de dar unidade interna
a seu novo império. Para tal, um dos seus empreendimentos mais
importantes foi o estabelecimento de uma rede de escolas que tinham
três propósitos específicos: a formação de clérigos cultos, que pudessem
servir de mestres adequados nas escolas; a educação da massa popular;
e a preparação de uma classe dirigente para a sociedade.

A escolástica se desenvolveu exatamente a partir deste contexto. O


termo “escolástico” deriva da palavra latina scholasticus, que significa “aquele
que pertence a uma escola”. Este termo era usado para representar o professor
do sistema de ensino idealizado por Carlos Magno. Posteriormente, com o
florescimento das universidades, também foi usado para designar a figura do
professor universitário.

Influenciados pela patrística, sobretudo por Agostinho, os escolásticos


tendiam a valorizar neste período os aspectos filosóficos de cunho platônico.
Apenas com a conquista dos povos árabes é que o Ocidente novamente entrou
em contato com a filosofia aristotélica. Isso mudou radicalmente a perspectiva
pela qual os escolásticos passaram a interpretar os problemas por eles refletidos.

Por volta do século VI, os árabes tentaram converter o mundo ao


Islamismo, conquistando o Oriente e, na Síria, que havia sido helenizada
através de Alexandre, tiveram contato com a filosofia helenista, em especial com
Aristóteles. Segundo Marcondes (2010, p. 123):

Os árabes entraram então em contato com os núcleos de cultura de


origem grega e cristã estabelecidos nessas regiões, e souberam valorizar
seus ensinamentos, absorvendo essa cultura e desenvolvendo-a nas
várias áreas da ciência e da filosofia. Foi grande a contribuição árabe
nos campos da matemática, da química, da medicina, da agronomia
e da filosofia, traduzindo e comentando obras de Platão e Aristóteles.

Na medida em que iam avançando com o projeto de conversão dos


europeus ao Islamismo, também iam difundindo o seu pensamento e, com ele,
o que haviam absorvido das obras de Aristóteles, que era indiscutivelmente
superior ao conhecimento que os europeus detinham.

Este contato inicial se fortaleceu ainda mais nos séculos XI e XII, em


especial, por conta dos comentários à obra de Aristóteles escrita por Avicena e
Averróis. Tais textos foram vistos com grande cautela pela Igreja do período,
chegando a ser condenados durante o século XIII.

111
UNIDADE 2 | DO PERÍODO CLÁSSICO À FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

Paulatinamente, este temor se esmoreceu e Aristóteles se tornou um dos


grandes referenciais teóricos para as reflexões escolásticas. Com as meditações
de Tomás de Aquino e o modo como ele “compatibilizou o aristotelismo com o
cristianismo” (MARCONDES, 2010, p. 125), o pensamento de Aristóteles pouco a
pouco passou a definir o restante da reflexão teológica.

Essa evolução do pensamento, que tem o seu ápice com a filosofia de


Tomás, se insere em um contexto relativamente mais propício para a reflexão em
relação aos séculos anteriores. Isto, por vários motivos, pois o império de Carlos
Magno havia contribuído decisivamente para retirar o Ocidente da idade das
trevas. Segundo Störig (2009, p. 200), “Na “renascença carolíngia” os elementos
dispersados das tradições clássicas e patrísticas foram reunidos e revigorados
como o fundamento da nova cultura”.

Já por volta dos séculos XI e XII a estrutura feudal começava a indicar os


primeiros sinais de declínio, marcando um florescimento de núcleos urbanos e de
classes de comerciantes e artesãos. Estes ganhavam novos espaços e procuravam
legitimar a sua mobilidade social a partir da aquisição de conhecimentos,
investindo assim nas artes e ajudando em sua propagação de maneira vigorosa.

No caso específico da Itália, berço da Renascença, temos pela primeira


vez o surgimento de uma nova estrutura política, que rompe com a rigidez e
hierarquia da estrutura feudal:

As relações sociais são de um novo tipo, em que a atividade artesanal e


comercial permite o enriquecimento, a mobilidade social, instaurando
uma nova ordem política e econômica. Os artesãos se organizam em
ligas – as corporações de ofício – para regulamentar as suas práticas e
proteger os seus interesses (MARCONDES, 2010, p. 126).

Paulatinamente, este modelo acabou influenciando outras regiões,


desencadeando as grandes transformações políticas e econômicas que ocorreram
a partir dos séculos XV e XVI, já no início da modernidade.

Entretanto, estes elementos ajudaram a instituir uma unidade na identidade


europeia, e isto também podia ser percebido nos campos das artes, ciências e
filosofia. Os dois últimos campos, por exemplo, eram expressos exclusivamente
através do latim, língua usada por todos os intelectuais do período.

Estes estudiosos eram em sua grande maioria parte do clero, e desenvolveram


suas principais atividades em consonância com os propósitos religiosos, em especial
porque estudavam em escolas e mosteiros criados pela Igreja:

Em 1070 a “reforma gregoriana”, decretada pelo papa Gregório


VII, estabeleceu que cada abadia e catedral tivesse uma escola onde
ensinavam os elementos básicos da cultura da época, o trivium, ou três
vias, constituindo de uma introdução à gramática, lógica e retórica, e o
quadrivium, ou quatro vias, composto de música, geometria, aritmética
e física (MARCONDES, 2010, p. 118).

112
TÓPICO 3 | FILOSOFIA MEDIEVAL: PATRÍSTICA E ESCOLÁSTICA

São estas escolas que posteriormente se tornarão as “universidades” do


período áureo da escolástica, principalmente em Paris, Oxford, Bolonha e Pádua,
e as grandes propulsoras da filosofia e das ciências da Idade Média.

Outra característica que faz com que o conhecimento deste período seja
tutelado pela Igreja é o fato de se desenvolverem a partir dos interesses teológicos.
Pois a escolástica tratava fundamentalmente de uma questão de método, isto é,
a verdade já estava definida, já havia sido revelada pelas Escrituras Sagradas,
restava apenas justificar, através da razão, as verdades da fé.

O método, neste sentido, refletia o modo como o conhecimento


intelectual do período se desenvolveu. Num primeiro momento, o saber se dava
essencialmente pela leitura e comentário, a lectio, tanto do texto bíblico, quanto
dos autores clássicos da filosofia e da patrística, selecionados por sua reconhecida
autoridade.

A partir dos séculos XII e XIII, os textos clássicos de Platão e Aristóteles não
são apenas lidos e comentados, em um sentido reprodutivista, mas ousadamente
criticados. Sobretudo, a antiguidade passa a ser confrontada com a doutrina cristã,
mas até mesmo em relação à Bíblia começa a haver um tipo de “afastamento”
por parte destes intelectuais que se apoiam na chamada tradição. É o período da
chamada quaestiones, que paulatinamente se transformou em quaestio disputata.

Por isso mesmo, o método lógico da filosofia aristotélica passou a ser


mais valorizado e a razão acabou desempenhando um papel central. Isto criou
uma série de interpretações ou respostas, que eram confrontadas entre si. Os
professores saíam em público discutindo suas posições e os vencedores eram
considerados como “doutores”, aptos para ensinar.

NOTA

É deste modelo que herdamos a tradição de defesas públicas em nossas


universidades.

Resumindo este percurso histórico do método escolástico, Zilles (1996, p.


67), pontua que:
A disputatio era a discussão de acordo com regras determinadas e com
uma técnica rigorosa em torno de problemas (quaestiones) discutidos
em todos os seus aspectos de pró e contra e resolvidos de maneira
racionalmente fundamentada. Enquanto na lectio só falava o mestre, a
disputatio realizava-se em dissertação.

113
UNIDADE 2 | DO PERÍODO CLÁSSICO À FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

Ainda segundo Zilles (1996), são estes os elementos que caracterizaram


a evolução do saber escolástico, assim como sua forma de apresentação. Por
exemplo, os doutores passaram a reunir suas teses em forma de sumas, isto é,
sínteses doutrinárias que apresentavam as suas reflexões, o que acabou se
tornando o gênero literário mais importante do período. Dessas sumas e desse
contexto, Tomás de Aquino é considerado o autor mais expoente.

3.1 TOMÁS DE AQUINO


Tomás nasceu em 1224, próximo a Nápoles. Descendia de uma família
nobre e desde criança passou a ser educado segundo os preceitos cristãos, mais
especificamente, sob a tutela de padres beneditinos. Com apenas 17 anos entrou
em contato com a ordem dos Dominicanos, e desde este período manteve a firme
convicção de que deveria seguir uma vida devotada à fé e aos estudos.

Por volta de 1243 seu pai faleceu e, em 1244, quando decidiu se ordenar,
encontrou forte resistência de sua família, em especial da mãe. Quando ele foi
mandado pelos dominicanos para se aperfeiçoar nos estudos em Paris, a mãe
enviou seus irmãos para capturá-lo.

Tomás permaneceu “preso” em casa por cerca de um ano, período no


qual a família tentou convencê-lo de todas as formas a desistir da vida religiosa.
Segundo Nascimento (1992, p. 13), a família havia usado “até mesmo o recurso à
sedução de uma mulher – que foi posta em fuga pelo jovem noviço dominicano
com um tição tirado da lareira”.

Tendo se libertado do cativeiro doméstico, Tomás foi conduzido para


Paris e passou a estudar sob as orientações do famoso dominicano Alberto de
Lauingen, também conhecido como Alberto, o Grande. Sobre a fama de Alberto na
época, Nascimento nos diz que (1992, p. 14): “Seu nome era de tal magnitude que
era citado com peso igual ao de Aristóteles (tido como o filósofo por excelência),
de Avicena (o grande filósofo e médico árabe) e de Averróis (o comentador por
excelência de Aristóteles)”.

Alberto, preceptor de Tomás e famoso por seus conhecimentos, não


deixou de notar, desde o início, os dotes intelectuais do aluno, prevendo que no
futuro seria um grande mestre.

Por volta de 1252, portanto com 28 anos, Tomás se tornou professor em


Paris, dedicando-se exclusivamente a esta função. Alguns anos depois, retornou
à Itália e se tornou teólogo oficial da corte papal. Neste período, conheceu um
famoso tradutor da época, Guilherme de Moerbeke, que havia traduzido para o
latim algumas obras de Aristóteles, até então em árabe.

114
TÓPICO 3 | FILOSOFIA MEDIEVAL: PATRÍSTICA E ESCOLÁSTICA

A partir deste contato mais próximo com a filosofia aristotélica, em latim


e não em árabe, Tomás se aprofundou nos estudos, e isto o influenciou por toda a
vida. Seu conhecimento se tornou superior ao do mestre Alberto, principalmente
porque possuía um latim mais refinado, e o italiano como língua materna
contribuiu para isto, e por comentar os textos com uma perspicácia muito mais
apurada.

Tomás morreu muito precocemente em 1274, no auge de suas reflexões


teológicas, um período em que era consultado para resolver todas as questões
e controvérsias nos debates públicos. Sua morte se deu quando fora convocado
pelo papa para participar do II Concílio de Lyon, falecendo durante a viagem.

De fato, Tomás se tornou uma autoridade para a Igreja Católica e ainda


hoje o tomismo influencia as perspectivas teológicas da Igreja, como exemplifica
Störig (2009, p. 224):

Em 1931, mediante a nova ordem para as aulas de instituições eclesiásticas


no ensino superior, disposta por decreto papal, foi novamente prescrito
que filosofia e teologia especulativa seriam praticadas de acordo com os
ensinamentos e princípios de Tomás de Aquino.

Sua filosofia é bastante ampla, mas podemos especificar pelo menos dois
elementos que são muito importantes em seu pensamento. O primeiro se volta
para uma conciliação entre saber e fé; e o segundo reflete de que maneira a razão
poderia estabelecer certos princípios sobre a existência de Deus.

3.2 SABER E FÉ EM TOMÁS DE AQUINO


Para Tomás, o conhecimento está principalmente nas coisas e não somente
no intelecto. Em seu primeiro artigo sobre a questão da verdade, ele diz:

Com efeito, Agostinho, nos Solilóquios, rejeita esta definição de verdade:


“o verdadeiro é o que se vê”; porque, nesse sentido, as pedras que se
encontram nas profundezas da terra não seriam pedras de verdade,
porque não são vistas (TOMÁS DE AQUINO, 2006, I 16 I, p. 358).

Mas, complementando essa afirmação, Tomás mostra que a razão,


ainda que possa descobrir a verdade, é insuficiente por si só, pois, para além do
conhecimento especulativo da filosofia, há um reino de verdades sobrenaturais.
Segundo Störig (2009, p. 217), para Tomás:
Não é possível penetrar também nesse reino mediante um simples
esforço da força natural do pensamento. Aqui Tomás se separa dos
mestres da escolástica primitiva como Erígena e Anselmo, os quais
haviam se esforçado em tornar clara e compreensível, de forma lógica,
toda a área da dogmática cristã.

115
UNIDADE 2 | DO PERÍODO CLÁSSICO À FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

Fora do âmbito do pensamento, isto é, daquilo que pode ser apreendido


pelo pensamento de forma lógica e compreensível, estão os principais elementos
da fé cristã e, consequentemente, as verdades sobrenaturais, como, por exemplo,
a trindade, a encarnação de Cristo e a ressurreição.

Tais elementos não estariam, segundo Tomás, circunscritos à razão


humana, por isso não são desvelados por qualquer investigação e só podem ser
aceitos a partir de uma decisão de fé.

Isto não quer dizer, porém, que ambas as instâncias, razão e fé, estejam em
desacordo ou se contradigam. Tomás postula um argumento que é resumido por
Störig (2008, p. 218) da seguinte forma:
A verdade cristã é, por certo, suprarracional, mas não irracional.
A verdade só pode ser uma, pois ela remonta a Deus. Argumentos
levantados do ponto de vista racional contra a crença cristã
contradizem, obrigatoriamente, os mais elevados princípios de
pensamento da própria razão.

Somado a isto, Tomás explicita claramente que há algumas verdades


que, por serem racionalmente estabelecidas, podem se tornar a base para esta
harmonia entre fé e razão, como, por exemplo, a verdade sobre a existência de
Deus, que pode, segundo Tomás, ser apreendida pela razão.

3.3 AS CINCO PROVAS SOBRE A EXISTÊNCIA DE DEUS


EM TOMÁS DE AQUINO
Os argumentos de Tomás sobre a existência de Deus estão postos de
maneira sistemática em sua Suma teológica. Configura-se a partir de três artigos,
cujo terceiro contém as célebres “cinco vias” ou “provas” da existência de Deus.

Estes argumentos estão todos diretamente relacionados, além de racional


e meticulosamente estabelecidos. Mais uma vez temos aqui explicitado como
razão e fé procuravam caminhar juntas no pensamento tomista. Marcondes (2010,
p. 130) caracteriza o texto de Tomás e a sua organização da seguinte forma:

Talvez a obra mais famosa e influente de toda a filosofia medieval,


estrutura-se de forma sistemática em torno de três grandes tratados
(o terceiro permanecendo incompleto). Esses tratados se subdividem
em questões, que analisam os principais aspectos de seus temas. As
questões, por sua vez, se desdobram em artigos em que São Tomás
examina as várias posições acerca desses temas, formula objeções a
elas e, seguindo o pensamento aristotélico, elabora suas próprias
soluções e respostas.

116
TÓPICO 3 | FILOSOFIA MEDIEVAL: PATRÍSTICA E ESCOLÁSTICA

O terceiro artigo, sobre o qual vamos nos deter neste momento, traz as
cinco vias que se relacionam e estabelecem certos elementos racionais e lógicos
para corroborar a prova da existência de Deus.

1) Primeira via: baseando-se em Aristóteles e em seu argumento sobre o


movimento, Tomás explica que a passagem da potência ao ato implica que
tudo o que se move é movido por outro elemento.
Nada se move que não esteja em potência em relação ao termo de seu
movimento; ao contrário, o que move o faz enquanto se encontra em
ato. Mover nada mais é, portanto, do que levar algo da potência ao ato,
e nada pode ser levado ao ato senão por um ente em ato (TOMÁS DE
AQUINO, 2006, I II, artigo 3).

Assim, Tomás mostra que é ilógico regredir ao infinito. Em algum


momento a regressão mostrará que tudo o que se move é movido por algo
anterior ao movimento, entendido como o primeiro motor, “é então necessário
chegar a um primeiro motor, não movido por nenhum outro, e um tal ser, todos
entendem: é Deus” (TOMÁS DE AQUINO, 2006, I II, artigo 3).

2) A segunda via segue os mesmos postulados aristotélicos, agora sob a perspectiva


da causa eficiente. Uma vez que nada pode ser a causa eficiente de si próprio, pois
precederia a si mesmo, é necessário postular que existe uma causa primordial
de todas as coisas: “é necessário afirmar uma causa eficiente primeira, a que
todos chamam Deus” (TOMÁS DE AQUINO, 2006, I II, artigo 3).

3) Partindo da ideia de necessidade e contingência, a terceira via estabelece que a


existência pode ser ou não ser, que encontramos coisas que nascem e perecem,
e que portanto tudo está destinado a não ser e que em algum momento nada
havia.

“(...) o que não é só passa a ser por intermédio de algo que já é”;
somente o que já existe é necessário e, “portanto, é necessário afirmar
a existência de algo necessário por si mesmo, que não encontra alhures
a causa de sua necessidade, mas que é causa da necessidade para os
outros: o que todos chamam Deus” (TOMÁS DE AQUINO, 2006, I II,
artigo 3).

4) A quarta via parte da progressão que encontramos em todo ser, na medida


em que são “algo mais ou menos bom, mais ou menos verdadeiro, mais ou
menos nobre etc. Ora mais ou menos se dizem de coisas diversas conforme
elas se aproximam diferentemente daquilo que é em si o máximo” (TOMÁS
DE AQUINO, 2006, I II, artigo 3).

Em outros termos, as coisas possuem um parâmetro superior, e o parâmetro


máximo de perfeição é Deus, pois todos os seus atributos ou qualidades estão
plenamente realizados.

117
UNIDADE 2 | DO PERÍODO CLÁSSICO À FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

5) Por fim, a quinta via trata de um argumento teleológico ou da causa final das
coisas da natureza. Todas as coisas, segundo Tomás, seriam governadas por
uma ordem que as conduz para um fim que é bom. Isto não ocorre ao acaso,
mas em virtude de uma intenção, “ora, aquilo que não tem conhecimento não
tende a um fim, a não ser dirigido por algo que conhece e que é inteligente,
como a flecha pelo arqueiro” (TOMÁS DE AQUINO, 2006, I II, artigo 3).

Com isso, Tomás mostra que deve haver uma inteligência por trás das
coisas que as guia, estabelece um propósito para a natureza e faz com que o
universo tenda a um mesmo fim, “logo, existe algo inteligente pelo qual todas as
coisas naturais são ordenadas ao fim, e a isso nós chamamos Deus” (TOMÁS DE
AQUINO, 2006, I II, artigo 3).

De fato, todas estas teses ou vias foram duramente questionadas


posteriormente, mas são, junto com os demais argumentos de Tomás, excepcionais
e inovadoras em seu contexto.

Fruto de uma genialidade que trouxe ao pensamento medieval o


seu momento mais áureo, elas procuram conciliar razão e fé, mostrando a
compatibilidade destes dois campos. Além disso, corrobora uma nova perspectiva,
a de que o conhecimento de Deus passa pelo conhecimento da realidade sensível,
o que “abre caminho para uma revalorização, no espírito do aristotelismo, do
mundo natural como objeto do conhecimento” (MARCONDES, 2010, p. 132).

Isto será ainda mais explicitado nos anos seguintes, fundamentando as


investigações científicas, que não apenas estavam em sintonia com a curiosidade
da época, mas que começavam a se tornar indispensáveis, dadas as grandes
transformações históricas que a Europa começava a vivenciar a partir daquele
momento.

4 O DECLÍNIO DA ESCOLÁSTICA
Se por um lado Tomás é visto como o auge da escolástica, por outro, a
partir dele o pensamento filosófico e teológico deste período começa a entrar em
profundo declínio.

Há também uma série de elementos históricos que contribuíram para isto,


como, por exemplo, a luta entre França e Inglaterra na Guerra dos Cem Anos,
algumas epidemias, como a Peste Bubônica, e uma série de transformações
políticas e econômicas.

Para além destes aspectos externos, o tomismo também passou a ser


duramente criticado no âmbito religioso, em especial pelos franciscanos,
que desenvolviam os seus pensamentos na Universidade de Oxford, onde o
platonismo e a teologia agostiniana eram mais proeminentes.

118
TÓPICO 3 | FILOSOFIA MEDIEVAL: PATRÍSTICA E ESCOLÁSTICA

Neste período, as chamadas “escolas filosóficas” iniciaram um processo


interminável de rixas e discussões, rivalizando-se entre si em busca de maior
prestígio. A Suma teológica passou a ser criticada pelos franciscanos, e até proibida;
por sua vez, os dominicanos e seguidores do tomismo rebateram essas críticas e
corroboram as teses de Tomás. E assim estas escolas prosseguiram, até que novos
pensadores começaram a introduzir elementos mais originais ao debate.

As características que de fato foram apreciadas no tomismo e em sua


influência aristotélica, neste contexto, atrelavam-se muito mais à valorização
do mundo natural como objeto do conhecimento. Como comenta Marcondes
(2010, p. 132), Tomás não apenas possibilitou, mas legitimou, “do ponto de vista
teológico, o interesse pela investigação científica do mundo natural”.

Junto a isso, dada a própria localização da Inglaterra e de sua principal


instituição de ensino, o controle papal, que era bem mais escasso, possibilitou ao
desenvolvimento intelectual seguir interesses menos regrados pela fé cristã. Isto
também contribuiu para que as pesquisas se ativessem às ciências naturais.

A filosofia aristotélica que se desenvolveu na Inglaterra estava muito mais


ligada a um espírito de praticidade. Um dos primeiros a seguir um ponto de vista
mais sintonizado com este preceito foi o inglês Roger Bacon (1214-1294).

Para Bacon, teologia e conhecimento científico deveriam ser vistos como


indissociáveis. Mesclava-se a isto um forte interesse sistemático, total e absoluto, que
ele estabeleceu como verdadeira característica do método experimental. Segundo
Marrone (apud MCGRADE, 2008, p. 53), tratava-se neste contexto de uma:

Adoção ostensiva das prescrições de Aristóteles para o conhecimento


do tipo mais superior: “epistème” em grego, “scientia” em latim. Para
cada campo de investigação, o objetivo tornara-se a identificação de
princípios básicos que definissem “de modo evidente” a natureza
essencial do assunto e então a dedução rigorosa, a partir desses
princípios, de um corpo sistemático de verdades concernentes às
propriedades do assunto.

Suas investigações, portanto, partem do pressuposto de que a observação


direta da realidade é o complemento dos raciocínios, e com isso preconiza o que
os modernos irão chamar de “ciência”, em seu sentido mais estrito.

De modo geral, o ponto de vista voltado mais para problemas concretos


acabou por se sobrepor às especulações escolásticas. Apesar destas não deixarem
de existir e manterem suas reflexões com alguns representantes até os séculos
XVI-XVII, a partir do século XVIII ganham novas dimensões.

Atrelado aos elementos contextuais de ordem política e econômica,


o pensamento escolástico passou a dar lugar às investigações de cunho mais
científico. A célebre tentativa de unificar razão e fé em um sistema capaz de
responder a todas as questões já não era mais visto como um projeto possível por
todos os pensadores, que começaram a defender uma divisão entre estes campos.

119
UNIDADE 2 | DO PERÍODO CLÁSSICO À FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

LEITURA COMPLEMENTAR

DEUS EXISTE?

José Renato Salatiel

[...] Um exemplo de como o tomismo emprega a razão a serviço da fé cristã


é o conjunto de argumentos, todos de cunho empírico, isto é, que se demonstram
por via da experiência, que provam a existência de Deus. Eles ficaram conhecidos
como as Cinco Vias que levam a Deus. São elas:

1) MOVIMENTO

Este primeiro argumento parte da constatação de que as coisas se movem.


Galáxias, planetas, rios, nuvens, homens, moléculas, tudo na natureza está em
constante movimento e transformação.

E se existe o movimento, existe também aquilo que provoca o movimento.


Como um jogador que chuta uma bola, um raio que incendeia uma árvore ou a
força gravitacional que mantém corpos celestes em órbita.

Constata-se, portanto, que este agente do movimento é externo, ou seja,


nada pode mover a si próprio, ou ser, ao mesmo tempo, motor e movido: nenhum
carro se locomove sem algum tipo de combustível.

Mas este raciocínio conduz a um absurdo lógico: se todo movido possui


um motor, há uma sucessão infinita e, não havendo um primeiro motor, também
não haveria um segundo e assim por diante. Em resumo, o movimento seria
impossível!

A única forma de explicar o movimento é conceber Deus como causa


motora primeira, que não é movida por nenhuma outra.

2) CAUSALIDADE

A segunda via é parecida com a primeira. Observa-se na natureza uma


ordem segundo uma relação de causa e efeito. O homem com o taco de bilhar é a
causa; a bola que entra na caçapa, o efeito.

É impossível algo ser causa e efeito ao mesmo tempo: a bola de bilhar


não entra sozinha na caçapa. Contudo, se toda causa tem um efeito, haveria,
novamente, uma sequência infinita, a menos que admitamos uma causa primeira
no universo, que é Deus.

120
TÓPICO 3 | FILOSOFIA MEDIEVAL: PATRÍSTICA E ESCOLÁSTICA

3) POSSÍVEL E NECESSÁRIO

As coisas podem ser e não ser. Todas as pessoas que conhecemos e nós
mesmos não existimos para sempre. As coisas nascem, se transformam e morrem.
Em outras palavras, somos seres contingentes.

Porém, isso nos leva a pensar que houve um momento em que nada
existia, um instante de puro nada, que os astrônomos, atualmente, localizam
antes do “Big Bang”, que deu origem a tudo que há no universo.

Para que o universo saísse da mera possibilidade para a existência, é


preciso imaginar que algo tenha provocado isso, caso contrário o nada persistiria
como nada.

Consequentemente, entre todos os seres possíveis (que podem ser e não


ser), é razoável acreditar que haja um que seja necessário, isto é, não contingente.
Como a necessidade precisa ser causada, retorna-se ao absurdo das cadeias
causais infinitas do segundo e primeiro argumentos, a menos que Deus exista
como necessário por si mesmo.

4) GRAUS DE PERFEIÇÃO

O quarto argumento é mais fácil de entender. Diz Tomás de Aquino:


“Encontram-se nas coisas algo mais ou menos bom, mais ou menos verdadeiro, mais
ou menos nobre etc.” Por exemplo, fulano é mais legal que beltrano, o banco A é
mais confiável que o banco B etc. “Ora, mais ou menos se dizem de coisas diversas
conforme elas se aproximam diferentemente daquilo que é em si o máximo”. Quer
dizer, para afirmar que uma coisa é mais ou menos em graus de perfeição, é preciso
ter algo como parâmetro comparativo, dotado de perfeição absoluta, como um quente
absoluto que permite dizer que esta água está muito quente e aquela, apenas morna.

Conclui Tomás de Aquino: “Existe algo que é, para todos os outros entes,
causa de ser, de bondade e de toda a perfeição: nós o chamamos Deus”.

5) FINALIDADE

A quinta e última via trata dos seres que se movem em uma direção,
que possuem uma finalidade, o que é facilmente verificável na vida na Terra,
que progride rumo a maiores níveis de organização, desde simples bactérias até
modernas sociedades humanas.

Tomás de Aquino usa como exemplo o arqueiro: a flecha só parte em


direção ao alvo porque existe o arqueiro que mira e dispara, isto é, porque há uma
inteligência guiando a flecha. O “arqueiro” do universo, por assim dizer, é Deus.
FONTE: Disponível em: <http://educacao.uol.com.br/disciplinas/filosofia/santo-tomas-de-aquino
razao-a-servico-da-fe.htm>. Acesso em: 23 abr. 2013.

121
RESUMO DO TÓPICO 3
De acordo com o que foi estudado neste tópico, segue um resumo dos
assuntos abordados:

• A patrística reflete o pensamento dos primeiros pais da Igreja cristã, que


tiveram de enfrentar oposições e preconceitos e por isso criaram uma série de
escritos apologéticos.

• O pensamento clássico foi visto pela patrística de duas formas distintas: para
alguns ele era proveitoso e já explicitava algumas verdades que vieram a
se efetivar com a vida e obra de Cristo; para outros, a filosofia e a fé eram
incompatíveis.

• Agostinho é o grande nome do contexto patrístico e início do período medieval.


Sua obra reflete uma perspectiva filosófica tomada como instrumento para
se alcançar a beatitude, fato que se efetiva com as revelações das Escrituras
Sagradas, por isso a união entre razão e fé em seu pensamento.

• O desenvolvimento da escolástica ocorreu em um contexto de dificuldades


políticas e sociais do feudalismo. Ainda assim, a partir da Alta Idade Média,
desenvolveu um pensamento sólido, cujo maior expoente foi Tomás de Aquino.

• O tomismo é o ápice da escolástica e tem como principal objetivo harmonizar


razão e fé.

122
AUTOATIVIDADE

Após a leitura deste tópico, responda às questões a seguir. Lembre-se


de consultar os textos, pesquisar e refletir sobre os temas.

1 Qual é o significado do termo “apologista” e que tipo de relações podemos


estabelecer com o contexto em que ele se desenvolve?

2 Em que sentido a filosofia era vista por Agostinho como um instrumento e


qual a relação deste preceito com a sua teologia?

3 Qual é a concepção de felicidade em Boécio?

4 Assinale qual é o sentido correto do termo “escolástico” e como ele se


relaciona com o contexto medieval em que surge.

a) ( ) Representa a fundação de escolas e seu objetivo era educar os bárbaros,


vistos como selvagens e uma ameaça para a ordem imperial.
b) ( ) Representa a fundação de bibliotecas e o seu objetivo foi idealizado
por Carlos Magno, que pretendia formar uma classe de servos cultos para
dialogar sobre assuntos mais nobres.
c) ( ) Significa “aquele que pertence a uma escola” e se relaciona com o
projeto do imperador Carlos Magno de unificar o império através da
revalorização da cultura clássica. Para isso, ele criou um sistema de ensino,
a fim de preparar os súditos para as diversas funções administrativas.
d) ( ) Era um termo usado para caracterizar uma perspectiva teológica, assim
como tomismo, por exemplo. Relaciona-se apenas com o contexto cultural
da época.

5 Quais foram os dois nomes de destaque da filosofia árabe durante a Idade


Média?

a) ( ) Averróis e Avicena.
b) ( ) Boécio e Agostinho.
c) ( ) Agostinho e Tomás de Aquino.
d) ( ) Duns Escoto e Guilherme de Ocham.

6 Qual o mote da filosofia tomista?

a) ( ) Conciliar razão e fé.


b) ( ) Misticismo.
c) ( ) Sobrepor a razão em detrimento da fé.
d) ( ) Demonstrar a incapacidade da razão de contribuir para a fé.

123
124
UNIDADE 3

FILOSOFIA MODERNA E
CONTEMPORÂNEA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir desta unidade você será capaz de:

• entender a dinâmica da filosofia moderna e contemporânea, sua evolução


e sua influência no mundo;

• diferenciar os períodos de atuação da filosofia e os diferentes pensares;

• compreender a importância da filosofia na vida das pessoas como realização


de todo ser humano, de modo especial no Brasil.

PLANO DE ESTUDOS
A Unidade 3 está dividida em três tópicos e você terá a oportunidade de
fixar seus conhecimentos realizando as atividades disponibilizadas no final
de cada um deles.

TÓPICO 1 – FILOSOFIA MODERNA

TÓPICO 2 – FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA

TÓPICO 3 – FILOSOFIA NO BRASIL

125
126
UNIDADE 3
TÓPICO 1

FILOSOFIA MODERNA

1 INTRODUÇÃO
São inúmeros os elementos históricos e sociais que marcaram o fim
da Idade Média e o início da Modernidade, porém, alguns tópicos podem ser
explorados a fim de se distinguir os períodos e introduzir a perspectiva filosófica
que se inicia a partir dos séculos XVI e XVII.

Neste tópico analisaremos a filosofia moderna, apresentando os principais


autores e correntes de pensamento desse período, como a tradição racionalista
e o empirismo, as novas perspectivas políticas e uma série de concepções que
caracterizam este momento histórico da filosofia.

Em seguida serão apresentados a você, caro(a) acadêmico(a), alguns


aspectos da tradição iluminista, seu ápice e sua contribuição não só para o
pensamento, mas também para algumas das maiores transformações sociais.
Por fim, serão indicados alguns elementos que podem ser vistos como crítica
da modernidade e ruptura com o aspecto racionalista que marcou esse período,
como a possibilidade de outras relações entre o homem e a realidade sem a
preponderância da razão.

2 CONTEXTO DE TRANSFORMAÇÕES E O FLORESCER DA


“MODERNIDADE”
O fim da escolástica também prefigurou uma abertura para um tipo
específico de conhecimento e que, fundamentalmente, passava a valorizar sua
aplicação. Era o início de uma nova era: o Renascimento. Desde o século XIII, este
aspecto paulatinamente vinha se desenvolvendo, como é o caso, por exemplo,
da escolástica inglesa, que além da teologia e filosofia tradicionais, cultivava um
grande apreço pelas ciências naturais.

Um dos pensadores que passou a refletir esse tipo de mentalidade, ainda


no contexto escolástico, foi Roger Bacon, que de maneira incisiva não só criou
inventos de uso prático, mas também se dedicou às ciências até então conhecidas,
imputando a elas um forte rigor matemático. Bacon foi um dos primeiros a
descrever, por exemplo, um método científico baseado em observações constantes,
levantamento de hipóteses e experimentos.

127
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA

Tais desenvolvimentos se acentuaram ainda mais e, dadas as transformações


sociais, culturais, econômicas e políticas desse período, ganharam autonomia e
transformaram os paradigmas. Estes legitimavam a autoridade teológica, a ponto
de o conhecimento científico romper com a tutela da teologia e se transformar no
grande motor da modernidade.

A influência do pensamento aristotélico, até então aceito exclusivamente


pelo viés tomista, passou a receber contribuições de pensadores que fizeram com
que o equilíbrio entre razão e fé dominante em Tomás de Aquino gradualmente
se rompesse. Os mistérios divinos passaram, então, a ser concebidos como
inacessíveis, criando uma espécie de cisão para o homem medieval, que se viu
ainda mais amedrontado e em busca de algo que lhe trouxesse segurança.

Com as críticas de pensadores como Duns Escolto e Guilherme de Ockham,


por exemplo, postulou-se uma distância entre a essência divina e o conhecimento
dela por parte do homem. Para Marías (2004, p. 194), é essa “perda de Deus”
que caracterizará a época moderna, e é também o que definirá as ciências que
começam a surgir a partir desse contexto.

Ainda em relação a essas mudanças, Ockham se colocava em relação à


“querela dos universais” a partir de uma perspectiva nominalista. Isto, no sentido
de que os universais, como “humanidade”, por exemplo, não deveriam ser
concebidos como uma entidade geral enquanto tal, mas simplesmente como
um termo usado para nos referirmos a um número de elementos particulares
reunidos sob certas semelhanças.

O critério determinado por Ockham será, conceitualmente, um dos


elementos mais influentes nos séculos subsequentes, sobretudo por inserir o
princípio de supressão das entidades metafísicas, postuladas, segundo ele,
desnecessariamente pela linguagem. A chamada “navalha de Ockham” foi um
contraponto fundamental para o desenvolvimento das ciências, valorizando a
experiência e a matemática não segundo as especulações a priori e contemplativas
da tradição, mas como uma ciência ativa.

A ciência ativa moderna rompe com a separação antiga entre a


ciência (episteme), o saber teórico, e a técnica (téchne), o saber aplicado,
integrando ciência e técnica e fazendo com que problemas práticos no
campo da técnica levem a desenvolvimentos científicos, bem como
com que hipóteses teóricas sejam testadas na prática, a partir de sua
aplicação na técnica (MARCONDES, 2010, p. 156).

Um caso pontual, mas extremamente significativo para a transformação


do pensamento moderno, foi explicitado pela astronomia e seus desdobramentos
na chamada “revolução científica”. Seguindo, até então, um paradigma milenar,
cujo eixo do universo era a Terra circundada por estrelas e planetas, a astronomia
se viu diante de uma revolução quando o polonês Nicolau Copérnico (1473-1543)
postulou o Sol como centro.

128
TÓPICO 1 | FILOSOFIA MODERNA

Embora fosse fundamentalmente determinado pelo que prescrevia


a Bíblia, o período medieval também havia sustentado alguns pressupostos
clássicos sobre a representação do universo. Entre estes pressupostos estavam
duas concepções cosmológicas principais: a de Aristóteles, que fazia uma clara
distinção entre as leis físicas da Terra e as das esferas celestes, e a cosmologia
de Ptolomeu (século II d.C), que promoveu uma sistematização dos modelos
propostos por filósofos clássicos, dispostos todos com a mesma base geocêntrica.

Com sua obra Sobre as revoluções das esferas celestes, Copérnico principiou
uma verdadeira revolução ao descentralizar a Terra e colocá-la em movimento.
Além disso, propôs um sistema, cujo centro era o Sol (heliocentrismo). Como
consequência, o homem perdia a sua centralidade na criação e deixava de ser
privilegiado. Tornou-se necessário repensar o seu lugar no universo, além de
repensar a ideia aristotélica que distinguia as leis físicas do céu e as da Terra (lei
supralunar perfeita e lei sublunar corruptível).

Este foi um dos pontos mais controversos criados pela perspectiva


científica que nascia neste contexto. De fato, foram necessários alguns anos
até que ela pudesse se impor, sobretudo porque contrastava com a autoridade
religiosa e seus modelos ainda determinantes, representados não apenas pela
Igreja Católica, mas também pela tradição protestante que se consolidava neste
período. Sobre o reformador Lutero, por exemplo, Reale (1990, p. 259) expõe que
em 1539 ele havia dito que:

As pessoas deram ouvidos a um astrólogo de dois vinténs, que


procurou demonstrar que é a Terra que gira e não os céus e o
firmamento, e o Sol, e a Lua [...] Esse insensato pretende subverter
toda a ciência astronômica. Mas as Sagradas Escrituras nos dizem que
Josué ordenou ao Sol – e não à Terra – que se detivesse.

Ainda no âmbito protestante, Reale (1990, p. 259) cita as críticas de Calvino,


mencionando que “No seu comentário do Gênesis, Calvino cita o versículo inicial
do Salmo 93, que diz “Sim, o mundo está firme, jamais tremerá”. E se pergunta:
Quem terá a ousadia de antepor a autoridade de Copérnico à do Espírito Santo?”

Tratava-se muito mais de uma tentativa de salvaguardar a autoridade


religiosa do que estabelecer a verdade, pois as implicações dessas revoluções
levavam a uma crítica que se estendia para além da astrologia. Assim, “toda
ordem estabelecida estava ameaçada, até mesmo a própria ideia de autoridade”
(MAGEE, 2001, p. 65).

As ideias de Copérnico, porém, ainda eram problemáticas e não


respondiam a todas as questões dos astrônomos. Johannes Kepler (1571-1630), por
exemplo, foi o primeiro a criticar os movimentos circulares dos corpos celestes,
propondo um movimento elíptico e variável entre eles.

129
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA

Depois de Kepler, outros avançaram nessas investigações. Este legado,


porém, ganhou sua verdadeira dimensão por meio de Galileu Galilei (1564-
1642), não porque era o representante áureo dessas transformações, mas porque
“sintetiza, sistematiza, elabora e desenvolve a contribuição desses diferentes
pensadores em uma obra genial que terá grande influência em seu tempo e no
desenvolvimento da física” (MARCONDES, 2010, p. 158).

No tocante a essa explicitação de método, Francis Bacon (1561-1626) foi,


também, um dos personagens mais influentes da ciência nascente. Consolidou
alguns elementos conceituais determinantes, em especial, a ideia de que conhecer
é dominar, é adquirir poder sobre a realidade.

Em sua obra Novum Organum, cujo título já é uma clara contraposição a


Aristóteles, que via a lógica como o instrumento primordial da ciência, Bacon
rompe com a representação da realidade através da lógica da linguagem a favor
dos seguintes elementos:

Praticar a indução no sentido moderno, ou seja, a depreensão


progressiva de identidades e de diferenças reais, graças à observação
e à comparação repetida das observações; praticar a experiência no
sentido de experimentação, ou seja, de interações ativas com a natureza,
para provocá-la “a entregar seus segredos”; não se contentar em
observar passivamente; utilizar instrumentos e técnicas; verificar, fazer
triagem, confirmar e corrigir incansavelmente, a fim de distinguir
entre as causas eficientes verdadeiras e os fatores marginais, as
circunstâncias acidentais de um fenômeno (HOTTOIS, 2008, p. 66).

São estes os principais aspectos de sua nova perspectiva metodológica e


que redirecionaram o desenvolvimento científico até meados do século XX, em
especial porque junto com o método havia uma postura extremamente nova em
relação à ciência e seu valor diante da natureza. Bacon propõe uma intervenção
e alteração na natureza, extraindo dela a força, as respostas para os problemas
impostos por quem a investiga.

Como consequência, estabelece-se uma visão da natureza como


manipulável e sujeita à reconstrução por parte do homem, portanto, previsível
e capaz de nos fornecer futuramente as condições ideais de “progresso e
prosperidade humana” (MAGEE, 2001, p. 77).

Todas estas transformações levaram a Europa a uma nova visão de mundo,


chegando ao ápice do Renascimento cultural e penetrando definitivamente na
modernidade. Estas transformações, na verdade, extrapolaram o campo científico.
Há, por exemplo, transformações políticas profundas, embates e fragmentação
religiosa, transformações artísticas, descobertas de novas terras e povos, contatos
com outras culturas etc. Tudo isso também determinou uma mudança radical na
perspectiva da época e isso teve reflexo para a filosofia.

130
TÓPICO 1 | FILOSOFIA MODERNA

Do ponto de vista científico e político, a filosofia passou a estabelecer uma


série de novas considerações, entre as quais podemos considerar, a seguir:

• A epistemologia racionalista e empirista.


• A perspectiva política na filosofia moderna.

3 A EPISTEMOLOGIA MODERNA
Nesta seção abordaremos os temas referentes à Epistemologia Moderna e
ao Empirismo Inglês.

3.1 EPISTEMOLOGIA RACIONALISTA


Já tratamos anteriormente do racionalismo e do empirismo através de
dois de seus maiores representantes, a saber, Descartes e Hume, respectivamente.
Porém, convém salientar que estas tradições filosóficas contêm outras perspectivas e
considerações, portanto, além de caracterizarmos um pouco mais ambas as dimensões
epistemológicas, é importante analisarmos outros personagens desse período.

Descartes certamente é o nome de maior assimilação ao racionalismo


moderno. É com ele que a ideia de um método rigoroso, capaz de servir de
parâmetro para a ciência, ganha um status permanente. Além do mais, com
Descartes, segundo Magee (2001, p. 88), surgiu uma filosofia que “se baseia na
crença de que nosso conhecimento do mundo é adquirido pelo uso da razão, e
que os dados dos sentidos são inerentemente duvidosos, mais uma fonte de erro
do que de conhecimento”.

Obviamente, a crítica aos sentidos como fonte do conhecimento verdadeiro


já havia sido posta por outros filósofos, como Platão, por exemplo. Mas, com
Descartes, o conceito de razão ganha nova característica, e isto se contrapõe
radicalmente à Teoria das Formas na visão platônica.

Em Platão, o conhecimento verdadeiro é algo que só se torna possível


graças à luz que emana do sumo Bem. Na alegoria da caverna, por exemplo, o
filósofo só é capaz de discernir as sombras depois de ter caminhado em direção
à luz do Sol, e é neste momento que ele percebe que é o Sol que possibilita a
existência de tudo. Acerca desta metáfora, Lebrun (2006, p. 402) comenta que:

A “visão” platônica não me faz adquirir uma certeza que eu teria


merecido pelo exercício de minha “perspicácia”. Ela não me assegura
de que eu seja detentor, quanto a um ponto determinado, do
conhecimento mais perfeito a que possa chegar um ser humano. Ela me
expõe a uma luz que transfigura toda a minha paisagem intelectual, da
qual eu sequer fazia ideia quando vivia nas “trevas”. Ela não me torna
proprietário de um saber como o intuitus cartesiano: faz-me ver a que
ponto era vão aquilo que eu tomava, até então, como o saber.

131
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA

Com isso podemos compreender melhor a distinção entre a perspectiva


clássica de razão e aquela trazida por Descartes no contexto moderno. Em Descartes,
é a razão que, mediante o método, postula sobre o objeto, o conhecimento.

De um modo bastante particular, é a ideia de razão que fundamentará


o racionalismo, o que significa que o racionalismo postula a possibilidade do
conhecimento verdadeiro como algo destinado a ser descoberto pela razão
humana. Esta, concebida como uma capacidade de transcender o mundo empírico
por meio de categorias da própria mente e, portanto, a priori.

É neste sentido também que a tradição racionalista tomará como base a


filosofia cartesiana, pois tais elementos são os fundamentos de suas reflexões.
Toda ciência que se erige a partir dele pretende ser estabelecida a partir desses
pressupostos.

Posterior a Descartes e sua filosofia, outros filósofos desenvolveram


algumas reflexões seguindo este mesmo mote, entre os quais Spinoza (1632-1677)
e Leibniz (1646-1716).

Spinoza alcançou grande destaque no século XVII, dada a sua grande


originalidade de pensamento e, sobretudo, por ser, dentre os racionalistas, aquele
que mais sistematizou essa expressão. Spinoza era descendente de uma família
judia e sua formação inicial teve esta tradição como uma de suas primeiras fontes.

Essa tradição, desde muito cedo, foi criticada por ele, a ponto disto
se tornar motivo para acusações de heresias e de culminar em sua expulsão
da comunidade judaica. Além disso, Spinoza também sofreu influências da
escolástica e, principalmente, do sistema cartesiano, o qual desenvolveu um
comentário em uma de suas primeiras obras, “Os princípios da filosofia cartesiana
demonstrados segundo o método geométrico” (1663).

Essa obra revela seu débito inicial em relação ao pensamento de


Descartes e a tradição racionalista, sua preocupação com a atitude
crítica da filosofia e com a questão da fundamentação do “edifício
do conhecimento”, bem como o recurso, de inspiração cartesiana,
ao “método geométrico”, a dedução como procedimento racional de
demonstração por excelência (MARCONDES, 2010, p. 195).

Suas primeiras críticas à tradição cartesiana são estabelecidas já neste


texto, mas é sobretudo em sua obra mais importante, Ética, que suas reflexões vão
seguir de maneira mais autônoma. Esta obra foi publicada postumamente, mas
segundo os estudiosos do pensamento de Spinoza, as primeiras datas de redação
remetem ao período de 1661.

Apesar de criticar alguns elementos da filosofia cartesiana, o rigor


racionalista no texto é parte central, estruturando a obra segundo os princípios
das definições geométricas. O texto primeiro postula alguns axiomas, tomados
como conhecimentos claros e indubitáveis, dos quais se definem alguns elementos

132
TÓPICO 1 | FILOSOFIA MODERNA

e surgem algumas proposições. O autor explicita que estas proposições serão


provadas de acordo com os primeiros axiomas, corroborando assim sua validade.

Citado já no começo do livro, o problema principal da Ética envolve a


questão do ser, ou ainda, da natureza da realidade e que pode se relacionar com a
ideia de Deus, embora, como veremos, contém algumas distinções fundamentais
do que tradicionalmente se entende por “Deus”.

Uma vez que Descartes havia postulado uma cisão entre matéria e mente,
Spinoza irá se questionar sobre a possibilidade restante para estas duas instâncias
se relacionarem. Além disso, como compreender a ideia de uma “realidade total”,
ou de uma substância, cuja existência dependa apenas de si mesmo (ideia de
Natureza, Deus etc.)?

Spinoza propõe uma solução para esses problemas que começa pela
negação da premissa cartesiana de que existe uma distinção entre matéria e
mente. É desdobrando esta premissa que ele irá postular o seu teísmo, isto é, uma
compreensão estritamente filosófica de Deus, visto como um princípio metafísico.

Sabemos, dizia ele, pelas razões dadas por Descartes, que Deus existe
e é um ser infinito e perfeito. Mas, se é infinito, Deus não pode ter
fronteiras, não pode ter limites, pois se os tivesse seria finito. Assim,
não pode haver nada que Deus não seja. Não é possível, por exemplo,
acontecer de Deus ser uma entidade e o mundo outra bem diferente,
pois isso seria impor limites ao ser de Deus. Assim, Deus deve ser
coextensivo com tudo o que há (MAGEE, 2001, p. 92).

Diante disso, a ideia de Deus, na perspectiva de Spinoza, coexiste e


coequivale a tudo, e, portanto, é o centro de suas reflexões, mas com uma
perspectiva totalmente diferente. O contexto imediato de Spinoza, por exemplo,
recebeu estas considerações como a expressão de um ateu que visava caracterizar
a divindade como um ser impessoal e imanente à realidade natural.

Assim sendo, Spinoza estabelece uma nova interpretação sobre a metafísica


tradicional. Acerca de sua crítica à interpretação cartesiana, por exemplo, Spinoza
estabelece que este se equivocou ao postular uma distinção entre a res extensa e a
res cogitans, pois a verdadeira substância deve ser entendida como uma realidade
suprema que não remete a nada e que é causa de si.
Aquilo que, para Descartes, eram substâncias em sentido secundário
e derivado, ou seja, res cogitans e res extensa em geral, tornam-se
para Spinoza dois dos “atributos” infinitos da substância, ao passo
que os simples pensamentos, as simples coisas extensas e todas as
manifestações empíricas tornam-se sensações da substância, “modos”,
ou seja, coisas que estão na substância e que só podem ser concebidas por
meio da substância (REALE; ANTISERI, 2003, p. 414).

Segundo Spinoza, apenas Deus, compreendido desta maneira, constitui


a verdadeira substância existente, no qual estabelece como uma necessidade
absoluta a ideia de ser. Como consequência, da necessidade do ser procedem

133
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA

infinitos atributos que irão, por sua vez, constituir o mundo e participar dessa
substância, “as coisas derivam necessariamente da essência de Deus, assim como
os teoremas procedem necessariamente da essência das figuras geométricas”
(REALE; ANTISERI, 2003, p. 415).

3.2 O EMPIRISMO INGLÊS


Em outra perspectiva filosófica, as reflexões que se desenvolveram a partir
dos séculos XVII e XVIII encontraram nas ideias de personagens britânicos seu
grande exponencial. Mais uma vez cabe salientar que o empirismo já fora tratado
anteriormente através das ideias postuladas por Hume, mais especificamente,
sobre a sua epistemologia.

A especificidade com que tratamos as ideias de Hume indica que o


empirismo pode ser abordado por diferentes vieses. Em Bacon, por exemplo, já
há uma tradição empirista e nela também encontramos uma dimensão ligada à
ciência. Em Hobbes, por sua vez, o problema é dimensionado a partir de uma
reflexão materialista, em especial sobre a política.

Por conta disso, é possível enfatizar novos problemas, percebendo como


o empirismo possui dimensões mais amplas, alcançando instâncias como a da
política, por exemplo. Até mesmo em relação a Locke (1632-1704) este fator é
bastante explícito.
Foram três os interesses principais de Locke: a) o gnosiológico, do qual
brotou o Ensaio sobre o entendimento humano; b) o ético-político, que
encontrou expressão (além de sua própria militância política prática)
nos escritos dedicados a esse tema; c) o religioso, campo no qual a
atenção do filósofo se concentrou, sobretudo nos últimos anos de sua
vida (REALE; ANTISERI, 2003, p. 503).

Obviamente, cabe salientar que há um movimento de delimitação e


precisão do método, e esta precisão tem de fato o seu ápice em autores como
Locke e Hume. Com Locke se estabelece efetivamente uma crítica aos limites do
conhecimento, suas possibilidades e condições a serem seguidas para alcançá-lo.

A obra mais difundida de Locke é o Ensaio sobre o entendimento humano, de


1671. Neste texto, pela primeira vez se estabelece uma tentativa de delimitar os
limites da mente humana, além de se tentar precisar quais investigações podem
ter êxito e quais são fadadas ao fracasso.

A grande ênfase dessa investigação, além de criticar o racionalismo e seu


otimismo em relação à possibilidade e limites do conhecimento humano, está
em determinar a experiência sensorial como base para o saber. Neste sentido,
também é estabelecida uma crítica ao racionalismo e seus pressupostos em torno
das ideias inatas.

134
TÓPICO 1 | FILOSOFIA MODERNA

A maneira pela qual adquirimos qualquer conhecimento constitui


suficiente prova de que não é inato. Consiste numa opinião estabelecida
entre alguns homens que o entendimento comporta certos princípios
inatos, certas noções primárias, caracteres, os quais estariam estampados
na mente dos homens, cuja alma os recebera em seu ser primordial e
os transportara consigo ao mundo. Seria suficiente para convencer os
leitores sem preconceito de falsidade desta hipótese se pudesse apenas
mostrar como os homens, simplesmente pelo uso de suas faculdades
naturais, podem adquirir todo o conhecimento que possuem sem a
ajuda de impressões inatas e podem alcançar a certeza sem nenhuma
destas noções ou princípios originais (LOCKE, 2005, p. 37).

Assim, ao criticar as ideias inatas, Locke (2005) expõe que a mente é como
uma folha em branco, sendo gradualmente preenchida ao longo do tempo e
através da experiência. A estes conteúdos concede o nome de ideias, entendidas
como uma representação do objeto pensado através da mente humana. Com isso,
fundamenta a tese de que a experiência é a única fonte para o conhecimento.

Tais aspectos serão analisados e elevados no âmbito empirista por


David Hume, que, como vimos, se torna o grande expoente dessa tradição.
Como explicitado no início deste tópico, o empirismo extrapola as dimensões
epistemológicas e pode ser visto por meio de outros campos também, como é o
caso da política.

No âmbito político, Locke assume uma postura que de certa forma advém
como uma consequência de suas reflexões epistemológicas.

Por não acreditar, como Descartes, que nosso conhecimento


científico do mundo é derivado, pela lógica dedutiva, de premissas
indubitáveis, Locke não acreditava que tal conhecimento possuísse a
mesma certeza que a matemática. Sua concepção, bastante diferente,
de que lentamente construímos esse conhecimento sobre as bases
fornecidas pelos dados dos sentidos, deixava margem para o erro.
Nós generalizamos a partir da experiência – um processo conhecido
como indução e não dedução –, mas às vezes nossas generalizações
são errôneas, e precisamos permitir isso (MAGEE, 2001, p. 106).

Portanto, segundo Magee (2001), este é um ponto fundamental da teoria


de Locke, ou seja, essa margem de erro é basicamente a constatação de que nossos
conhecimentos são apenas prováveis, e que de acordo com as provas explicitadas,
devemos ser maleáveis o suficiente para mudarmos de opinião.

No âmbito político isto será de grande relevância. Para Locke, seguindo


uma tradição que começa a se estabelecer a partir das reflexões políticas
modernas, o homem a princípio vivia em um “estado natural”, feito à imagem e
semelhança de Deus. Contrapondo-se às teses de Hobbes, que analisaremos mais
adiante, Locke postula que os homens viviam em paz, mas apesar de gozar dessa
liberdade, eles voluntariamente estabeleceram um pacto e criaram a sociedade.

135
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA

Este contrato é firmado por pessoas livres, que na tentativa de estabelecer


certas regras que os protejam e garantam o direito de viver, ter certa liberdade
e, principalmente, preservar a propriedade privada, instituem um governo. Em
última instância, porém, o direito e a liberdade permanecem com o povo:

Se começa a violar esses direitos (isto é, torna-se tirânico) ou


pára de defendê-los efetivamente (isto é, torna-se ineficaz), os
governados detêm o direito moral – depois de tentar uma reforma
por procedimentos normais e não conseguir obtê-la – de derrubar o
governo e substituí-lo por outro que faça bem o seu trabalho (MAGEE,
2001, p. 107).

Essa transformação política e histórica também é legítima na concepção de


Locke, pois, segundo o que dissemos acerca de sua epistemologia, é impossível
para nós dispormos de um conhecimento plenamente certo, restando-nos apenas
a probabilidade. Assim, qualquer imposição política ou religiosa que se pretenda
colocar como a verdade absoluta seria moralmente um equívoco.

4 A MODERNIDADE E A POLÍTICA
Caro(a) acadêmico(a)! Nesta seção abordaremos os seguintes temas:
Maquiavel, Hobbes e o contrato social e Rousseau e o estado de natureza.

4.1 MAQUIAVEL
Ao considerarmos as influências do empirismo inglês sobre a política,
deixamos de considerar como surge a nova perspectiva pela qual o homem passa
a pensá-la. De algum modo, as reflexões que se seguem ao longo da modernidade
têm o seu ancoradouro em Maquiavel (1469-1527).

Maquiavel foi um dos primeiros a considerar toda a transformação que


começava a surgir neste período e a explicitar, sobretudo em O Príncipe, um
Estado e uma política que se alicerça em relações causais, nos fatos concretos
da política real e nas leis. Tal postura era completamente distinta do contexto
anterior, onde se aspirava à descrição de um Estado ideal e justo, que pudesse
servir de espelho para os governantes, mas que por isso mesmo também estava
descolado do mundo real.

Maquiavel percebeu que era necessário, dado o enfraquecimento político


do papado, as transformações econômicas e as aspirações dos indivíduos, que
os governantes voltem as suas preocupações para os próprios súditos, ou pelo
menos deveriam ser orientados para isso. Assim, marcava uma consideração
política pautada muito mais pela objetividade do governo e do Estado.

136
TÓPICO 1 | FILOSOFIA MODERNA

Com grande argúcia e veracidade, ele descreveu as coisas que os


homens fazem para conquistar o poder e mantê-lo – e também os
vários modos como o perdem (...) O Príncipe foi chamado de bíblia
da Realpolitik (termo alemão usado em muitas línguas para designar
a política “real”, inflexível). O que ele oferece é uma descrição
agudamente observada e soberbamente escrita do que realmente
acontece (MAGEE, 2001, p. 72).

Ora, como consequência imediata, concluiu Maquiavel, em política


não há espaço para ideais morais – pelo menos não enquanto há conflitos de
interesses. Ao considerar a realidade concreta, e portanto o cenário conturbado
onde se desenvolvia a política, Maquiavel percebeu algumas características que
evidenciavam a natureza humana como má.

Como demonstram todos aqueles que discorreram sobre o viver civil e


todos os exemplos de que está cheia toda a história, quem dispõe uma
república e ordena suas leis precisa pressupor que todos os homens
são maus e usarão a malignidade de seu ânimo sempre que para tanto
tiverem ocasião (MAQUIAVEL, 2007, I, III, 2).

Para Maquiavel, os homens tendem a seguir os seus próprios interesses e


paixões, o que representa o desejo pelo prazer, a cobiça e a preguiça. Assim, ele
raramente elogia a capacidade humana de se voltar para o bem naturalmente, e
tampouco faz digressões em seus estudos sobre a origem desse mau, simplesmente
o concebe como um fato.

Nesse sentido, as interpretações políticas que baseiam a constituição do


Estado como fruto da concórdia social são um equívoco, justamente por não
considerarem que o homem é naturalmente mau. Isso acaba escamoteando o
verdadeiro fundamento político e a possibilidade de um governo estar sempre
ciente dos conflitos como algo iminente, o que pode levá-lo à ruína.

Assim, para Maquiavel, a forma mais eficaz de se contrapor a corrupção


do homem é o Estado, pois é ele quem tem o poder para organizar os aparatos
que condicionam os indivíduos e os grupos a submeterem suas paixões às leis.
Portanto, ao Estado cabe a força e a coerção, impondo-se independente dos
valores que suprime.

Visto dessa forma, tanto o governo, quanto as leis criadas por este, são
historicamente datados. A lei surge como imposição para sanar os conflitos
inerentes a quaisquer grupos sociais, visto que os homens agem segundo seus
interesses e que disso resultam dois aspectos fundamentais entre os grupos. “Pois
em todas as cidades há estas duas conotações diferentes e disso nasce que o povo
não quer ser nem comandado nem oprimido pelos nobres, e os nobres querem
comandar e oprimir o povo” (MAQUIAVEL, 2007, p. 49).

É em meio a essa discórdia que o poder político intervém, impondo-


se e decidindo, entre os discordantes, a melhor forma de organizá-los. O bom

137
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA

governante, que dispõe de virtude para essa função, é aquele que vê nos conflitos
a possibilidade de agir e determinar os rumos de seu governo. Além disso, caso
este venha a falhar, a guerra civil será inevitável, o que implica em ruína da cidade
ou do Estado.

Partindo desse pressuposto, Maquiavel estabelece como alicerce do Estado


as leis e o exército. “As fundações principais para todos os Estados, sejam novos,
velhos ou mistos, são as boas leis e um bom exército” (MAQUIAVEL, 2007, p. 61).
São estes dois aspectos que garantiriam ao Príncipe desenvolver a sua atividade
política, segundo sua própria concepção e virtude.

Para ele, porém, boas leis só podem ser estabelecidas a partir de um bom
exército, “não pode haver boas leis onde não há um bom exército” (MAQUIAVEL,
2007, p. 61). Isto porque o exército é o meio pelo qual o Príncipe coage os seus
súditos a obedecerem às leis e a viverem sob a ordem imposta por ele. O exército,
ou a força, portanto, é um fator político essencial, permitindo ao governante as
bases concretas para agir politicamente, isto é, estabelecendo as regras, leis e
interesses de seu governo.

Ora, este fato é corroborado pela precisão de suas análises históricas,


expondo uma série de personagens que souberam determinar as suas ações
políticas a partir da força militar, fazendo com que os povos cumprissem as leis
que impunham, independente de concordar ou não com elas, mas por temor.
Esta já é, portanto, a explicitação de algo fundamental nestes governantes, a
virtu, compreendida como a virtude para conquistar e manter um governo. “E
examinando as ações e as vidas deles, vê-se que da sorte só receberam a ocasião.
Deu a eles a matéria para darem a forma que quisessem. Sem esta ocasião, o valor
deles seria perdido. Sem tal valor, a ocasião teria sido em vão” (MAQUIAVEL,
2004, p. 32).

Não se trata, portanto, de valores morais e individuais, mas de uma


capacidade política para primeiro conquistar o poder, e depois organizá-lo. Em
última instância, é em relação ao Estado que isto se efetiva, e como vimos, o Estado
é composto por conflitos, o que implica no fato de que às vezes é necessário usar
de meios não tão “virtuosos” para saná-los.

Neste sentido, há uma clara flexibilização desse conceito, sobretudo com


relação aos aspectos morais, pois se trata de ter a conduta determinada pelas
circunstâncias do Estado, em que certos momentos irão exigir do governante o uso
de meios considerados iníquos, mas que serão eficazes com relação ao seu objetivo.
Nas palavras de Skinner, “deste modo, 'virtù' passa a denotar precisamente a
qualidade da flexibilidade moral que se requer de um príncipe: ‘ele deve ter a
mente pronta a se voltar em qualquer direção, conforme os ventos da ‘fortuna’ e a
variabilidade dos negócios assim o exijam” (SKINNER, 1996, p. 65).

138
TÓPICO 1 | FILOSOFIA MODERNA

4.2 HOBBES E O CONTRATO SOCIAL


Thomas Hobbes nasceu em abril de 1588, numa pequena cidade próxima
a Londres. Graduado em Oxford segundo a tradição escolástica, trabalhou
como tutor e secretário de uma das grandes famílias da Inglaterra. Nesta função
viajou por muitos países, conhecendo e se incorporando ao ideal de ciência que
começava a florescer na Europa dos séculos XVI e XVII. Nesse contexto, contribuiu
consideravelmente como um dos precursores da teoria moral e política, disciplina
científica e metódica.

Conforme afirma na Epístola Dedicatória de Elementes of law, com a


adoção do modo de demonstração matemático, tornou-se possível
reduzir a moral e a política “às regras e à infalibilidade da razão”.
Isto significa que, a exemplo das matemáticas, a doutrina civil também
é passível de cientificidade, desde que adote termos de significado
unívoco, conectados claramente em definições, isto é, proposições de
caráter universal (OSTRENSKY, 2008, p. 192).

Em sua obra De Cive, Hobbes estabelece como um de seus propósitos


esclarecer o significado da soberania, opondo-se à concepção aristotélica acerca
da pólis e da sociabilidade humana como algo natural. No escopo de seu projeto de
criar um sistema filosófico, o autor segue a mesma reorientação metodológica e os
ideais de exatidão das ciências matemáticas, elementos típicos da racionalidade
moderna.

Seu ideal é o de tornar a ciência política um instrumento capaz de


compreender as causas da guerra e da paz, de maneira tão exata quanto as
ciências matemáticas, fato que as doutrinas até então em voga não davam conta de
compreender. O Leviatã é justamente a tentativa de demolição dessas doutrinas,
que, segundo sua concepção, não são confiáveis o bastante. Pragmaticamente,
Hobbes se porta como aquele que vê a atividade filosófica implicada no mundo.
Sua investigação visa, no caso da política, evitar as guerras civis, os seus massacres
e misérias. Sob sua ótica, isto poderia ser evitado se os homens “dispusessem de
uma ciência que os ensinasse o justo e o injusto, o bem e o mal” (OSTRENSKY,
2008, p. 192).

Assim sendo, o trabalho de Hobbes pode ser compreendido como um


conjunto teórico de proposições que visam certa intervenção nas estruturas da
sociedade de sua época, ou seja, pretende mostrar aos seus contemporâneos como
a instituição do Estado civil, mais especificamente o Estado soberano, é necessária
para se firmar uma ordem e condições para a sobrevivência dos indivíduos.

Como contratualista, Hobbes concebeu a instituição social através de um


pacto social. Delimitaremos essas divergências através de dois conceitos, a noção
de liberdade natural e a discórdia que dela resulta, especificando também como,
para Hobbes, se torna legítima a permuta de liberdade por segurança no Estado
civil.

139
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA

Teoricamente, Hobbes buscou legitimar o Estado absolutista.


Consequentemente, um dos pontos principais de sua teoria é a oposição aos
inimigos do Estado soberano, os quais buscavam nas teses de Aristóteles e outros
clássicos uma forma de corroborar suas ideias.

Há vários pormenores que compõem a disputa teórica travada entre


Hobbes e outros pensadores políticos. Lembremos que o pensamento liberal
começa a ganhar força nesse contexto e, para estes, o homem deixa de ser
concebido como naturalmente passível de sujeição, isto é, como simples “súdito”,
pois a própria soberania, sobretudo a questão do direito divino, é profundamente
questionada.

A racionalidade moderna, em seu mais novo alvorecer, concede aos


homens contornos de uma determinada “autossuficiência”, capaz, portanto,
de tornar os indivíduos hábeis o suficiente para distinguir o justo do injusto, o
moralmente bom ou mau e, assim, os eleva à condição de magistrados, aptos para
tomar partido nas decisões relativas a si mesmos e à cidade.

Trata-se, evidentemente, de elementos liberais que começam a florescer,


contudo, a grande oposição feita por Hobbes advém propriamente da constatação
de que na prática essa “aptidão” para gerenciar as coisas do Estado e da vida
revela a manipulação dos elementos que constituem estas esferas. Isso acontece
segundo os interesses individuais – algo muito próximo ao que Hobbes reconhecia
como elementos do estado de natureza, ou seja, uma condição de guerra e tensão
entre forças que se enfrentam continuamente.

Em outras palavras, a anarquia da guerra civil explicita para o autor a


fundamentação equivocada de seus adversários. Portanto, Hobbes analisa como
é o homem em estado de natureza para demonstrar a sua falta de sociabilidade
natural, bem como a necessidade de um poder que de fato o regulamente. Hobbes
considerava que seus livros “ofereciam a única base para fundar um Estado que
desse aos homens não apenas a sobrevivência, mas a melhor condição material –
paz e conforto” (RIBEIRO, 1993, p. 76).

Para Hobbes, os homens não são naturalmente políticos e sociáveis como


queriam seus inimigos, baseado, acima de tudo, em Aristóteles e sua definição do
homem como zoon politikon (animal social ou político). O filósofo inglês diverge
dessa perspectiva e a considera como falsa, como um atributo não natural, pois,
ao contrário da harmonia social, o que impera entre os homens é uma constante
tensão. A boa coexistência é simplesmente um acidente e não uma tendência
necessária:

A maior parte dos autores que escreveram sobre a república parte do


pressuposto ou do postulado de que o homem é um animal que já
nasce apto para a sociedade [...] entretanto este axioma, embora aceito
por muitos, é falso; seu erro originou-se de uma visão demasiado
superficial da natureza humana. Pois, para quem quiser ver mais

140
TÓPICO 1 | FILOSOFIA MODERNA

de perto as causas que fazem os homens se juntarem e quererem a


companhia uns dos outros, aparecerá com clareza que isso acontece
não porque não possa ser de outro modo naturalmente, mas sim de
modo acidental (HOBBES, 1993, p. 51).

Assim, o convívio social, que segundo a tradição era compreendido


como natural, torna-se apenas um desvio, não havendo nenhuma aptidão para
a concórdia entre os homens. Se a concórdia acontece, é pura e simplesmente
porque as interações cooperativas entre os homens contribuem para o sucesso
dos objetivos particulares.

Já a partir dessa proposição é possível apreender alguns aspectos da


concepção de Hobbes a respeito do estado natural dos homens, e a forma como a
liberdade e a discórdia são compreendidas neste estágio. Em O Leviatã é explícita
a constatação de que estariam todos em igualdade de condições, tanto no que diz
respeito às suas capacidades, quanto aos seus direitos.

A natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do


corpo e do espírito, que, embora por vezes se encontre um homem
manifestamente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do
que outro, mesmo assim, a diferença entre um e outro homem não é
suficientemente considerável (HOBBES, 1979, p. 43).

Ribeiro (1993, p. 55) analisa, entretanto, que a grande sutileza do


argumento é que essa igualdade nunca é absoluta, “mas que são ‘tão iguais
que [...]’” Ou seja, embora “iguais”, há o domínio de uns sobre os outros, mas
nunca de uma maneira total e definitiva, por isso mesmo a tensão está sempre
presente, por isso sempre se espera o ataque do inimigo, continuamente se
desconfia do outro.

Exatamente por causa da antinomia “igualdade” e “disparidade” é que


a discórdia existe, “portanto, se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo
tempo que é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos”
(HOBBES, 1979, p. 74). Se algo pode ser desejado por todos (todos possuem esse
direito), entretanto a efetivação desse desejo não o é, assim, o provável é que
todos os esforços sejam empregados para subjugação ou destruição do outro,
a fim de que os desejos particulares sejam satisfeitos, pois nesse contexto não
há limites para as ações, ou ainda, uma força capaz de fazer cumprir possíveis
regulamentações.

Acontece que esta mesma percepção nasce em todos os que estão


envolvidos na disputa, e a antecipação do ataque se torna algo racionalmente
legítimo. Seja para vencer ou simplesmente evitar um ataque, no estado de
natureza essa atitude é sempre a mais racional. Segundo Ribeiro (1993, p. 55),
“todo homem é opaco aos olhos de seu semelhante”, isto é, diante da incerteza
quanto ao que o outro deseja ou maquina fazer, o mais razoável para cada um é
atacar. Através dessa desconfiança se inicia uma guerra generalizada.

141
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA

Há neste ponto, também, certa concepção antropológica de Hobbes,


na medida em que demonstra que os homens são regidos por certos instintos,
explicitando que, seja pela competição, pela desconfiança ou pela glória, sem a
presença de um poder que os regulamentem, a condição que se apresenta é a de
guerra e discórdia entre eles. Em O Leviatã estes três elementos são postos como
causas da discórdia entre os homens. A “competição” gera o ataque visando o
lucro; a “desconfiança” gera o ataque visando à segurança; e, por fim, a “glória”
gera o ataque visando à reputação.

Generalizando, advém disso a célebre afirmação de que o homem deve


ser concebido como o seu próprio lobo (homo homini lúpus) e mesmo as possíveis
regras criadas racionalmente não dão conta de se impor, devido, sobretudo, à
força das paixões e desejos humanos. Num Estado como este, os homens não
convivem em paz uns com os outros, consequentemente sentem o desprazer da
companhia do próximo. Não havendo poder algum capaz de regulamentá-los,
sofrem com as consequências do medo do convívio. A constante discórdia e
desconfiança imperam.

DICAS

Convém assinalar um importante argumento de Ribeiro (1979) a respeito disso.


Para Hobbes, o “homem lobo do homem” não é um anormal. Como vimos anteriormente,
o ataque é a maneira mais racional de se preservar no estado de natureza. Segundo Hobbes
(1979, p. 74), “nenhuma maneira de se garantir é tão razoável como a antecipação”, a fim de
que “não veja qualquer outro poder suficientemente grande para ameaçá-lo”.

Para Hobbes, são três as principais causas da discórdia, já citadas acima: I)


a competição, que é o constante desejo dos homens em possuir as coisas, mesmo
que pertençam a outro; II) a desconfiança, na tentativa de se defender e viver
bem, o homem desconfia dos outros e antecipa o seu ataque; III) a glória, que se
refere à reputação adquirida.

A busca pela preservação e felicidade (poder) reduz o homem a uma


competição desenfreada. Esta mesma competição o leva a fazer de tudo para obter
o que deseja: lutar, matar, roubar etc., em todo caso, o que faz é sempre repelir
o outro. Trata-se precisamente da releitura de Hobbes da ética clássica. Segundo
ele, o bom nada mais é que o objeto de nosso desejo, enquanto o mal é o objeto
de nossa aversão e, o indigno, objeto de desprezo. Estas seriam as categorias de
nossas paixões. São elas que determinam as qualidades do objeto e não o inverso.
De fato, Hobbes faz uma inversão surpreendente da ética tradicional. Para Faria
(2007, p. 9), “Solapa assim a própria base da ética aristotélica, que procurava
analisar o comportamento do homem enquanto este se orientava sempre a um
fim, visto como bom, e postulava a existência objetiva do bem como causa do
desejo e motor dos atos humanos”.
142
TÓPICO 1 | FILOSOFIA MODERNA

NOTA

O indivíduo hobbesiano não se pauta pelo individualismo burguês circunscrito,


sobretudo à esfera econômica, “seu maior interesse não está em produzir riquezas, nem
mesmo em pilhá-las. O mais importante para ele é ter os sinais de honra, entre os quais se
inclui a própria riqueza” (RIBEIRO, 1993, p.59). Os bens materiais são apenas uma forma de
obter esse fim, isto é, o desejo por ser honrado pelos outros.

Portanto, Hobbes reduz a felicidade à obtenção ou não do objeto desejado.


Contudo, por ser o desejo algo sempre insatisfeito, obriga os homens a buscarem
continuamente um novo objeto desejado. De maneira um pouco esdrúxula, mas
ilustrativa, é como uma criança que, pouco depois de se alegrar com um brinquedo
novo, espera ansiosamente pelo próximo. Segundo Hobbes, “assinalo assim, em
primeiro lugar, como tendência geral de todos os homens, um perpétuo e irrequieto
desejo de poder que cessa apenas com a morte” (HOBBES, 1979, p. 76).

Ainda segundo este preceito, Hobbes explicita as mais importantes


paixões capazes de mover os homens: o desejo pelo poder, o medo e a vanglória.
Configuram-se assim as motivações que permitem compreender o comportamento
humano. O conflito se configura mediante o desejo e a busca pelo poder. Este
desejo o motiva a agir e, nesta ação, entra em conflito com o outro, também
circunscrito nesta mesma dinâmica.

Nestes termos, vemos que a liberdade natural da qual fala Hobbes é


justamente o que gera o conflito entre os homens, pois se trata de um estado em
que todos são igualmente capazes, iguais em direitos, e a liberdade para usufruir
dessa capacidade e direito não encontra oposição. Os homens podem usar de todas
as formas e maneiras para preservar a vida (conservação) ou satisfazer algum
desejo (honra e glória), e de fato o fazem. Trata-se de um estado de liberdade
natural sem precedentes, mas também de um estado de guerra generalizada.

O surgimento do Estado civil se apresenta como a única possibilidade


de sociabilidade humana, aliás, só há sociedade, para Hobbes, com a instituição
da sociedade civil. Os homens criam e preservam essa ordem estatal para sua
própria conservação. Em detrimento do medo que as discórdias suscitam e de
modo a evitar o pior dos males, a morte, o homem cria uma instituição que esteja
acima de seus interesses particulares e que seja capaz de fazê-lo cumprir com os
pactos que selou.

Para Hobbes, o estado natural do homem era um estado de guerra de


todos contra todos (...). Os homens veem-se, então, obrigados a firmar
um pacto social pelo qual abdicam da liberdade em favor da própria
sobrevivência, e delegam, irrevogavelmente, ao Estado o direito de
governá-los ou de ser-lhes o patrão absoluto. O Estado é, assim, a fonte
da moral, do direito e da religião. Estabelece-se, em consequência, a
paz (LARA, 1993. p. 47-48).

143
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA

NOTA

“No tempo em que se impera a guerra generalizada entre os homens, tudo é


incerto, a não ser o temor e perigo da morte violenta sempre iminente. A vida do homem é
solitária, pobre, embrutecida e curta, não há sociedade” (HOBBES, 1979, p. 76).

Neste caso, os homens celebram entre si um contrato e escolhem um


dentre eles que possa se portar acima do pacto. A este se dá o nome de soberano,
concebido como um homem ou uma assembleia de homens. Transferem para
este, ou estes, sua liberdade natural e o direito de os governarem sem ressalvas.

NOTA

Os homens não se obrigam diante da figura do soberano, eles se obrigaram


sozinhos entre si mesmos.

Para Hobbes, esta seria a única maneira de impor e garantir o


cumprimento de todos os pactos, contratos, leis etc., realizados entre os homens
consecutivamente. Gera-se o “Leviatã”, com poder absoluto, forte o suficiente
para fazer cumprir o que pactuaram, pois carrega consigo tanto o poder para
legislar como a espada para executar a lei. O uso da força lhe é legítimo e a
submissão dos outros a isso é um dever. Em nada está obrigado, a não ser a
finalidade para a qual ele foi instituído: manter a paz.

NOTA

Hobbes utiliza-se de uma figura mítica para representar a soberania do Estado. O


Leviatã é um deus terreno, mortal, criado por meio do contrato, abaixo apenas da grandeza
do Deus imortal.

144
TÓPICO 1 | FILOSOFIA MODERNA

A perda da liberdade natural visa à obtenção de uma estabilidade que


permite a própria vida e por isso se torna legítima. Mais uma vez se trata de
elementos racionais que são postos, pois, como expõe Hobbes, “a razão sugere
adequadas normas de paz, em torno das quais os homens podem chegar a
acordo” (HOBBES, 1979, p. 77). Assim, uma multidão de homens pactuou entre
si que alguém, ou uma assembleia, os representarão, autorizando todos os atos e
decisões deste homem ou assembleia de homens como se fossem eles mesmos a
agir. Mediante esse consentimento, o soberano possui legitimamente total direito
sobre os seus súditos.

O medo e a instabilidade, como elementos próprios do estado de guerra,


criam um desejo por segurança e paz como forma de autoconservação humana
no contexto inóspito do estado natural. Por isso, a razão “sugere” a criação do
Estado civil, isto é, a criação de um poder capaz de obrigá-los a cumprir os pactos
selados entre eles, garantindo assim a segurança, “a fim de viverem em paz uns
com os outros e serem protegidos dos restantes homens” (HOBBES, 1979, p. 107).

Portanto, o conceito de liberdade em Hobbes (1979) pode ser visto sob


dois pontos de vistas: i) no âmbito do estado natural e, ii) no âmbito do estado
civil. O primeiro se revela como algo ilimitado e de direito de todos, mas por
isso mesmo é inviável, pois é uma liberdade que gera conflitos, guerra e medo.
Abdicar dessa forma de liberdade é também necessariamente restringi-la. Assim,
resta-nos a outra perspectiva, a da liberdade no âmbito do estado civil.

Para Hobbes, no estado civil os homens devem submissão total ao


soberano, pois abriram mão de sua liberdade incondicional e submeteram-se
ao soberano sem restrições. Segundo Hobbes, compreender essas restrições é
compreender qual a liberdade que a nós mesmos negamos (HOBBES, 1979). De
fato, a liberdade dos súditos é realmente restrita, já que é próprio desse contexto
(Estado civil) se opor ao estado natural, sobretudo no que é licito ou não fazer em
relação aos demais homens.

Mas tal como os homens, tendo em vista conseguir a paz, e através


disso sua própria conservação, criaram um homem artificial, ao
qual chamamos Estado, assim também criaram cadeias artificiais,
chamadas Leis civis, as quais eles mesmos, mediante pactos mútuos,
prenderam numa das pontas à boca daquele homem ou assembleia a
quem confiaram o poder soberano, e na outra ponta a seus próprios
ouvidos (HOBBES, 1979, p. 131).

A criação desse Estado implica necessariamente também na criação de leis


civis e, sendo assim, uma restrição às ações dos homens. Mas, perguntaríamos,
não é isso a própria antítese da liberdade?

Ribeiro (1993, p. 66) analisa que a liberdade enquanto um valor é vista


por Hobbes apenas como um sofisma: “Ora, o que Hobbes faz é justamente
desmontar o valor retórico que atribuímos à palavra”. Em sua concepção

145
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA

de liberdade, Hobbes expõe que se trata de um conceito cabível às criaturas


racionais, irracionais, inanimadas ou não. Ou seja, em seu sentido próprio é
apenas ausência de oposição. Sendo assim, “Conformemente a este significado
próprio e geralmente aceito da palavra, um homem livre é aquele que, naquelas
coisas que graças à sua força e engenho é capaz de fazer, não é impedido de
fazer o que tem vontade de fazer” (HOBBES, 1979, p. 130).

Hobbes faz, portanto, uma redução da liberdade a uma determinação


física, aplicável a tudo e a todos. O capítulo XXI de O Leviatã gira em torno
dessa máxima e, contra a retórica dos autores clássicos, Hobbes visa, através
de sua noção de liberdade, demonstrar que as restrições das leis civis impostas
pelo soberano são legitimas e fazer isso é a única forma de se evitar os tumultos
insuflados por “pseudo” valores como “liberdade” e “igualdade”.

NOTA

Como vimos anteriormente, a igualdade entre os homens é o que no estado de


natureza gera os conflitos e nos leva à guerra de todos contra todos.

Convém agora explicitar o que exatamente Hobbes compreende por


liberdade, isto é, os pontos que ainda cabem após o pacto e estabelecimento
do soberano. Existe sim um caso em que a liberdade para romper o contrato é
legítima. No momento em que as leis civis ou as ações do soberano intentam
contra a vida do súdito, neste momento é justo que ele rompa o contrato, pois foi
justamente para fugir da morte que ele o firmou.

Entende-se que a obrigação dos súditos para com o soberano dura


enquanto, e apenas enquanto, dura também o poder mediante o
qual ele é capaz de protegê-los. Porque o direito que por natureza os
homens têm de defender-se a si mesmos não pode ser abandonado
através de pacto algum (HOBBES, 1979, p. 135).

Para Hobbes, o direito de defender-se, a autopreservação, permanece


durante o contrato, e se o soberano age contra a vida, está cedendo ao súdito um
espaço para que ele aja como melhor lhe aprouver. Com o contrato, os súditos
resignaram-se totalmente e deram ao soberano plenos direitos, mas nunca o
direito de lhes tirar a vida, isto não foi transferido pelo pacto. Sendo assim, no
Estado civil os homens continuam livres para preservar a vida.

Também são livres em relação às coisas que não estão claramente


explicitadas nas formas da lei, ou seja, aquilo que se encontra à margem da lei,
pois é impossível regular todas as ações através de leis. Assim, “em todas as

146
TÓPICO 1 | FILOSOFIA MODERNA

espécies de ações não previstas pelas leis os homens têm a liberdade de fazer o
que a razão de cada um sugerir como o mais razoável a seus interesses” (HOBBES,
1979, p. 130).

Outro ponto é que são livres quanto ao que o soberano permitiu realizarem,
ou seja, em relação à compra e venda (todos os contratos são legitimados apenas
pelo Estado), o lugar de habitação, a profissão, os afazeres, a educação etc., no
sentido de que a liberdade que resta aos súditos é a liberdade determinada pelo
Estado, único capaz de limitá-los.

Como vimos acerca do estado de natureza, segundo Hobbes, é necessário


que seja assim, pois a autoridade do soberano para ditar o que é e o que não é
permitido aos súditos impede que estes voltem a possuir a liberdade sem restrições
de outrora e, por conseguinte, retornem à condição de guerra. A “transposição” de
uma liberdade ilimitada para um Estado de maior segurança, mais que legítima,
é racionalmente concebida e, portanto, o contrato assim firmado é a forma de
concretização de um novo Estado de paz e possibilidade de vida.

4.3 ROUSSEAU E O ESTADO DE NATUREZA


Com Rousseau as discussões políticas vão alcançar novas dimensões.
Rousseau é antes de tudo um filósofo que já respira um pouco dos ares do
Iluminismo francês, defendendo ideais como o de liberdade e razão próprios
deste período. Além disso, é um crítico ferrenho da civilização e do estado em
que ela se encontra. Isto certamente se reflete em seu pensamento político.

Nascido em 1712, em Genebra, Rousseau não obteve muita educação


formal, na verdade isto já explicita um pouco de sua contraposição à característica
conceitual e metódica do pensamento moderno, tendendo ele para uma espécie
de “sentimento espontâneo” (MAGEE, 2001, p. 126).

Como assinalam seus historiadores, Rousseau teve como momento


decisivo para sua vida o primeiro concurso literário de que participou, o qual,
apesar de não vencer, estabeleceu as bases de muitas de suas ideias e o direcionou
para o campo das letras. O concurso foi promovido pela Academia de Dijon e
propunha o seguinte problema para ser refletido: o progresso das ciências e das
artes contribuiu para corromper ou apurar os costumes?

É preciso notar que no contexto do século XVIII, a Europa ainda se


maravilhava com os avanços da modernidade e tudo o que a razão já produzia.
Como consequência, a população:

Vivia em função da descoberta da razão iluminista, da libertação


do homem de um mundo teocentrista e o inaugurar de um mundo
antropocentrista, de uma nova concepção de homem, agora não
apenas a criatura e objeto de Deus, mas propriamente um criador ou
recriador do mundo (POMPEU, 2006, p. 120).

147
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA

Ainda segundo Pompeu (2006), uma das consequências da modernidade é


o fato de a moral não mais se fundamentar em valores absolutos e transcendentes,
como Deus, por exemplo, mas em uma natureza humana, compreendida
essencialmente como racional. As sociedades e os governos, portanto, “não são
uma produção divina e sim humana” (POMPEU, 2006, p.120).

As considerações políticas de Rousseau, portanto, nascem desse


pressuposto básico que é o da tradição em torno da ideia de homem em estado
de natureza. Porém, diferentemente de Hobbes, ou mesmo Locke, para Rousseau
o homem não apenas nasce livre, mas é gradativamente corrompido, tornando-
se prisioneiro da sociedade que o distancia de seu estado natural (ROUSSEAU,
1991, p. 21).

A resposta à pergunta da Academia de Dijon dada por Rousseau é,


portanto, de que todo o saber acumulado e toda forma de arte não contribuíram
para a felicidade humana, quiçá para o seu aperfeiçoamento. Pelo contrário, estes
“refinamentos” culturais apenas afastam-nos da possibilidade de realmente nos
tornarmos felizes, pois nos esvaziam de nossa natureza.

Se o homem é bom por natureza, num estado natural basta apenas seguir
os seus instintos, por isso a liberdade é o maior valor neste momento, e não o
conhecimento ou a arte. A sociedade, portanto, com suas normas de conduta,
tolhe a liberdade natural do homem, priva-o do seu maior bem.

Assim, ao pensar a ideia de um contrato social, Rousseau caracteriza duas


formas de liberdade. A primeira ligada ao estado natural, onde exploramos uma
inocência própria de nossa natureza; a segunda, uma liberdade que nasce após o
contrato, que é fruto de convenções, dado que para vivermos bem em sociedade
deixamos de ser indivíduos para nos colocarmos no lugar de cidadãos submissos
a certas normas.

Desse ponto advém a ideia de “governo”, e mais importante, aquilo que


irá nortear as reflexões de sua obra mais importante, O contrato social, a saber,
distinguir quais são as bases legítimas de um governo. “O homem nasce livre, e
por toda parte encontra-se a ferros. O que se crê senhor dos demais não deixa de
ser mais escravo do que eles. Como adveio tal mudança? Ignoro-a. Que poderá
legitimá-la? Creio poder resolver esta questão” (ROUSSEAU, 1991, p. 22).

Entre as formas de governo, às vezes, podem se fundar modelos tirânicos,


os quais, segundo Rousseau (1991), jamais poderiam ser justificados, já que são
tomados à força. O mais forte nunca é suficientemente forte para ser sempre o
senhor, senão transformando sua força em direito e a obediência em dever. “Daí
o direito do mais forte – direito aparentemente tomado com ironia e na realidade
estabelecido como princípio [...] a força é um poder físico; não imagino que
moralidade possa resultar de seus efeitos” (ROUSSEAU, 1991, p. 59).

148
TÓPICO 1 | FILOSOFIA MODERNA

Dentro desta perspectiva, Rousseau desqualifica este poder do “mais


forte” como um “pretenso direito”; diferencia com isso o direito tomado à força,
que cerceia a liberdade social, e um governo de direito, que estabelece “na ordem
civil alguma regra de administração legítima e segura, tomando os homens como
são e as leis como podem ser” (ROUSSEAU, 1991, p. 51).

Esta forma de governo que se postula como válida só pode ser estabelecida
mediante o consenso, através do contrato. Assim, a base para o governo de direito
está no contrato social e são as convenções que fundamentam uma autoridade
legítima (ROUSSEAU, 1991, p. 61).

Ora, cabe ainda a questão: por que estabelecer o governo? Por que
submeter? Rousseau não vê no consenso um meio para fundamentar uma
autoridade por si mesmo, mas como único meio para garantir que a vida em
sociedade seja possível.

Os obstáculos prejudiciais à conservação no estado de natureza


sobrepujam, pela sua resistência, as forças de que cada indivíduo
dispõe para manter-se neste estado. Então, esse estado primitivo já
não pode subsistir, e o gênero humano, se não mudasse de modo de
vida, pereceria (ROUSSEAU, 1991. p. 69).

Estas seriam, portanto, as bases do contrato social em Rousseau, que,


uma vez organizado racionalmente, não privaria a liberdade, mas substituiria
a liberdade individual por uma convencionada, em que a força está na soma de
todos os indivíduos que se alienam em prol do bem comum.

5 TRADIÇÃO ILUMINISTA
Como vimos, Rousseau já está com um pé à porta do Iluminismo e reflete
em seus pensamentos muitas das características desse novo período, que, mais
do que um sistema filosófico, ganhou tamanha dimensão cultural que se tornou
um movimento espiritual do século XVIII. Segundo Marcondes (2010, p. 206), o
Iluminismo, ou século das luzes:

Abrange não só o pensamento filosófico, mas também as artes,


sobretudo a literatura, as ciências, a teoria política e a doutrina jurídica.
Trata-se, portanto, de um movimento cultural amplo, que reflete
todo um determinado contexto político e social da época, embora
adquira características próprias em países e momentos diferentes, não
consistindo, assim, em uma doutrina filosófica ou teoria específica,
mas sim em um conjunto de diferentes formas de expressão nas
ciências, nas letras e nas artes.

Seu mote principal era a crença nos poderes ilimitados da razão, a qual
os pensadores iluministas acreditavam ser o elemento capaz de fazer com que as
trevas da ignorância e das limitações humanas desaparecessem definitivamente.
Para eles, se há algo capaz de fazer a humanidade realizar-se plenamente, este
elemento é a razão.

149
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA

Com isso, gera-se um sentimento de otimismo incomensurável em todos


os campos da cultura, nas ciências, na economia, na política, na arte etc. A partir
desse otimismo temos também uma das palavras-chave do Iluminismo, a noção
de progresso.

Há vários elementos que refletem esta ideia, como, por exemplo, a


noção de que com o desenvolvimento científico e econômico tudo o que causa a
infelicidade humana encontrará um fim. De que a miséria econômica, as doenças,
a ignorância, tudo isso será vencido com o progresso da humanidade, que é como
um farol iluminando nossas trevas.

A própria noção de Iluminismo, Ilustração, ou ainda Esclarecimento,


como o termo é por vezes traduzido, indica, através da metáfora da luz
e da claridade, uma oposição às trevas, ao obscurantismo, à ignorância,
à superstição, ou seja, a existência de algo oculto, enfatizando, ao
contrário, a necessidade de o real, em todos os seus aspectos, tornar-se
transparente à razão (MARCONDES, 2010, p. 207).

De maneira geral, este otimismo alcançou toda a Europa, mas podemos


delimitar nossas análises em dois contextos precisos: a França e a Alemanha.

5.1 TRADIÇÃO ILUMINISTA FRANCESA


Talvez em nenhum outro país o Iluminismo tenha se tornado um
movimento tão amplo e penetrante nas camadas culturais quanto na França. Ali
ele se tornou um fenômeno que atravessou todas as classes e todas as instâncias
da cultura. Suas consequências e desdobramentos também foram imensuráveis
no contexto francês, em especial, a sua ligação com os eventos da Revolução
Francesa (1789). Segundo Marcondes, o Iluminismo tinha três pontos de destaque:

1) a liberdade, exemplificada pela defesa da livre-iniciativa no


comércio, segundo o pensamento liberal e opondo-se ao absolutismo
(ainda vigente no final do século XVIII em várias monarquias
europeias, como França, Prússia, Áustria e Espanha, mas não mais
na Inglaterra); 2) o individualismo, que se baseia na existência do
indivíduo livre e autônomo, consciente e capaz de se autodeterminar;
3) a igualdade jurídica, que visa garantir a liberdade do indivíduo
contra os privilégios (MARCONDES, 2010, p. 208).

Ainda segundo este autor, podemos compreender a Revolução Francesa


como uma tentativa de concretizar estes ideais. Não somente esse, mas outros
movimentos políticos também partiram desses pressupostos, como a Declaração
de Independência dos Estados Unidos (1776).

Há alguns elementos que concorrem para a difusão desses e de outros


ideais iluministas, entre eles, um idealizado por filósofos que pretendiam
difundir o conhecimento adquirido pela humanidade a todas as pessoas através

150
TÓPICO 1 | FILOSOFIA MODERNA

das Enciclopédias. Tratava-se de um projeto monumental, publicado entre os


anos de 1751 e 1772, com mais de 30 volumes. A princípio, o trabalho “começara
modestamente, como um projeto estritamente comercial de traduzir a Cyclopedia
de Chambers de 1728, do inglês para o francês. Mas o projeto cresceu até perder
toda ligação com suas intenções originais” (MAGEE, 2001, p. 124).

NOTA

A Cyclopedia de Chambers ou Dicionário universal das artes e das ciências,


escrita pelo inglês Epharim Chambers, foi uma das primeiras enciclopédias escritas na
Inglaterra e se tornou bastante difundida no século XVIII.

O principal filósofo que assumiu a tarefa de supervisionar todo o


trabalho da Enciclopédia foi Denis Diderot (1713-1784). Para ele, era essencial
permitir ao maior número de indivíduos o acesso ao tipo de conhecimento que se
desenvolvia rapidamente durante o Iluminismo, isto é, era importante sintetizar
o racionalismo deste período e permitir o seu acesso irrestrito. Neste sentido,
“simplesmente não havia nada que se comparasse a ela em qualquer país, e seu
impacto na vida intelectual da Europa foi incalculável” (MAGEE, 2001, p. 125).

Assim, estes se propuseram a realizar a audaciosa tarefa de divulgar as


experiências científicas, as críticas à religião e à tradição, o valor da tolerância e da
liberdade, o otimismo utópico e tudo o mais que estivesse atrelado ao movimento
iluminista, tudo feito de maneira ordenada e sistematizada.

Muitos dos pensadores que se tornaram célebres expoentes do Iluminismo


francês contribuíram para a Enciclopédia com alguns verbetes, entre os quais, o
próprio Rousseau, Montesquieu e Voltaire.

Montesquieu (1689-1755) foi um pensador típico do Iluminismo e um


profundo conhecedor das artes e saberes da época, isto é, refletia o espírito da
Enciclopédia, com um conhecimento bastante abrangente sobre diversos assuntos.
Suas reflexões produziram uma obra extensa, debatendo questões importantes
para o período, como, por exemplo, a relação entre as instituições religiosas e o
Estado, bem como a importância da tolerância.

Sua principal obra, porém, é destinada a uma aguçada análise política.


Sob o título de O espírito das leis, escrita em 1748, o texto procura investigar e
descobrir leis que poderiam ser consideradas como “naturais” para a vida
social, entendendo essa concepção como algo próprio das relações empíricas da
sociedade.

151
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA

Não se trata, portanto, de uma análise visando estabelecer o substrato


para a construção de um edifício moral e que se funda, em última instância, na
razão, mas de uma análise experimental e científica. Neste sentido, Montesquieu
prenuncia a ciência naturalista da sociedade, que terá o seu ápice com Augusto
Comte.

O primeiro elemento tratado pelo autor envolve uma determinação dos


vários tipos de organização política. A partir de então, passa a investigar os
elementos naturais dessas associações e dos fatores psicológicos que as tornam
sustentáveis. Entre os principais regimes políticos e as leis que os constituem, a
análise de Montesquieu destaca: a democracia, a monarquia e o despotismo.

Sobre Voltaire (1694-1778), muito do que o caracteriza está ligado à


energia como desfere as suas críticas, às vezes de maneira maldosa, zombeteira.
Intelectual sagaz, Voltaire provinha de uma família que financeiramente lhe
permitiu estar entre a alta classe social do período, até mesmo na corte.

Sua formação sofre desta influência, e desde cedo pode gozar da presença
de escritores e filósofos do período. Ao alcançar grande erudição, foi reconhecido
por estes mesmos pensadores como digno de nota. Sua produção intelectual foi
bastante ampla também, passando do romance à ciência, da religião à política.

Em se tratando de críticas, não poupou muitas pessoas. Ao refletir sobre


o racionalismo cartesiano, considerava-o ainda deficiente se comparado com a
teoria de Newton. Sobretudo, critica em Descartes a fragilidade com que expunha
suas ideias e demonstrações.

Politicamente, embora seja um iluminista, Voltaire tendia a preferir


o regime monárquico, desde que consideremos não o absolutismo, mas uma
monarquia constitucional. Parte de sua obra sobre o assunto ainda reflete o
modelo de literatura medieval dos “Espelhos de Príncipes”, e pretende, portanto,
seguir um viés educativo ou de orientação. Para Voltaire, o rei ideal é também um
filósofo, isto é, alguém esclarecido.

5.2 TRADIÇÃO ILUMINISTA ALEMÃ


Na Alemanha, o Iluminismo alcançou o seu ápice com a filosofia de
Immanuel Kant (1724-1804). A obra de Kant é de tamanha inspiração que de
fato extrapola os limites do Iluminismo, devendo ser considerada um marco na
própria tradição moderna que iniciara com Descartes. Segundo Cacciola (2006, p.
135), “É um marco na história da filosofia, tendo realizado a grande revolução no
pensamento, inaugurando um novo caminho na reflexão filosófica que até os dias
de hoje, mesmo que por desvios, é ainda trilhado”.

152
TÓPICO 1 | FILOSOFIA MODERNA

Seu trabalho é dividido em duas fases: a pré-crítica e a crítica. Na primeira


fase ele foi profundamente influenciado pelo chamado racionalismo dogmático,
sobretudo a partir de Leibniz e Spinoza. Após ter contato com o ceticismo de
Hume, o próprio Kant declara ter despertado do “sonho dogmático”.

A partir de então, Kant começa a estabelecer uma filosofia crítica,


suspendendo todo trabalho filosófico que não explicite as suas condições de
saber. “Nada pode ser aceito se não passar pelo crivo crítico, pela denúncia dos
pressupostos de seus próprios procedimentos metodológicos” (CACCIOLA,
2006, p. 136).

Como cerne dessa crítica, estava a tentativa de superação da dicotomia


criada pelas correntes racionalista e empirista. De um lado, os racionalistas
afirmavam que todo o conhecimento seguro e verdadeiro poderia se desdobrar
de ideias inatas da razão. Neste sentido, além da razão ser a única fonte para o
conhecimento, a filosofia deveria se ater apenas à análise dessas ideias, pois são
elas que fundamentam a verdade. Por outro lado, os empiristas propunham que
a única fonte do conhecimento é a experiência, e que a razão, ao seu turno, não
possuía nenhum valor. Por mais forte que ela fosse, ainda assim era incapaz de
produzir, por si mesma, algum conhecimento que não estivesse ligado aos dados
sensíveis. Dito isso, Marcondes (2010, p. 212) explica que “Um dos objetivos
fundamentais da filosofia na Crítica da razão pura é, precisamente, estabelecer os
critérios de demarcação entre o que podemos legitimamente conhecer e as falsas
pretensões ao conhecimento, que nunca se realizam”.

Logo, o sentido de crítica que aqui aparece é o de se contrapor ao


conhecimento que se desdobra de conceitos sem se questionar de que modo eles
foram obtidos. “Dogmatismo é, portanto, o procedimento dogmático da razão
sem uma crítica precedente de seu próprio poder” (MARCONDES, 2010, p. 212).

Há, neste sentido, a pretensão de estabelecer os limites da razão


e legitimidade do conhecimento a partir de uma reconsideração tanto do
racionalismo, quanto do empirismo. Mas há também uma postura que define,
na concepção de Kant, a ideia de Iluminismo, ou então, para usar o termo mais
associado a ele, o esclarecimento.

Para o espírito iluminista, é essencial a ideia de indivíduo, mas, mais


que isso, este indivíduo deve ser um sujeito autônomo, consciente do papel que
desempenha e, no caso do conhecimento, um sujeito com capacidades próprias
para conhecer o real, não se sujeitando a nenhuma autoridade. O que Kant na
verdade faz com o seu projeto filosófico é efetivar este pressuposto crítico, não
aceitando nada que não tenha passado por este crivo.

Em um texto famoso, sob o título de Resposta à pergunta: o que é o


esclarecimento?, escrito em 1783, Kant irá explicitar estes elementos considerando
a ideia básica do esclarecimento. Para o autor, trata-se da saída do homem de
um estado de menoridade, ou seja, de uma condição em que não se serve de sua
própria capacidade e autonomia, mas se submete à tutela do outro.

153
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA

A dimensão do texto é bastante ampla, e implica um estado de menoridade


em áreas como a política, conhecimento, ética etc. Considera como alternativa
para isso o direito e a liberdade do indivíduo, mas também considera por esse
mesmo viés que o responsável pela condição de jugo dos homens é o próprio
homem, que não se vale e não faz jus a esse direito.

Assim, as principais causas impedindo o esclarecimento são a falta


de coragem por parte dos homens de se fazer valer dos conhecimentos à sua
disposição; de manter-se preguiçosamente em seu estado de jugo, pois se libertar
exige esforço. Nas palavras de Kant, é preciso ousar saber. “Tenha a coragem de
te servir de teu próprio entendimento, tal é, portanto, a divisa do Esclarecimento”
(KANT, s.d.).

Mas é importante salientar que não se trata de superestimar a capacidade


individual em detrimento da dimensão coletiva para se atingir o esclarecimento,
pois Kant é explícito ao mostrar que há certos mecanismos sociais que impedem
a libertação do indivíduo. A libertação, portanto, depende também do espaço
público.

Neste sentido, moralmente, a crítica estabelecida por aqueles que superam


a menoridade deve alcançar uma dimensão pública, ou seja, deve servir de
benefício para todos e não apenas para o indivíduo. Este é o verdadeiro sentido
do esclarecido, daquele que visa um bem-estar da sociedade.

Feitas essas ressalvas, Kant se pergunta se o seu próprio contexto


havia alcançado o esclarecimento, chegando à conclusão de que não. Convém
salientar que a Alemanha neste período é ainda a periferia da Europa e que estas
considerações estão situadas depois dos grandes pensadores iluministas e de
suas influências sobre as transformações políticas.

A filosofia que Kant pensa, portanto, é uma filosofia que pensa o seu
próprio tempo, seu rumo e sua história. Conclui que a Alemanha está em via de
esclarecer-se, em processo, e por isso é necessário estabelecer estas considerações
e evitar certos erros.

6 IDEALISMO ALEMÃO E A CRISE DA MODERNIDADE


Como dissemos anteriormente, Kant explicita em seu pensamento alguns
elementos fundamentais do movimento iluminista do contexto alemão, porém,
supera os limites do Iluminismo e marca uma ruptura na história do pensamento
filosófico.

Após Kant, a Alemanha entra definitivamente no cenário filosófico,


com uma série de pensadores, muitos dos quais irão transformar o pensamento
moderno e estabelecer as bases para as críticas contemporâneas, em especial por
criticar a tradição racionalista inaugurada com Descartes.

154
TÓPICO 1 | FILOSOFIA MODERNA

A centralidade da razão, a valorização do conhecimento, a ênfase na


problemática do método e da fundamentação da ciência, o recurso
à lógica, a preocupação com a crítica vão ser considerados, por
muitos desses filósofos do século XIX, fatores limitadores e mesmo
aprisionantes, não dando conta da totalidade da experiência humana
e não sendo a melhor forma de entender a relação do homem com
o real e de considerar o desenvolvimento da sociedade e da cultura
(MARCONDES, 2010, p. 242).

O grande nome a ser destacado após Kant é sem dúvida o de Hegel.


Antes de expormos o seu pensamento, porém, é importante ressaltarmos
o movimento do idealismo pós-kantiano e o romantismo, que também se
circunscrevem neste período.

O idealismo tem como principais representantes Fichte (1762-1814) e


Schelling (1775-1854). O termo explicita uma filosofia, ou perspectiva conceitual,
que pretende reconsiderar o pensamento de Kant. Segundo Marcondes (2010,
p. 243), “trata-se, em grande parte para estes filósofos, de evitar o caráter
excessivamente crítico da filosofia kantiana”.

Para eles, a razão, vista sob a perspectiva do kantismo, pende apenas para
o seu lado crítico, negativo, mas ela é muito mais do que isso. A crítica seria apenas
um caminho preparatório, é necessário estabelecer um saber, construir algo.

Há duas saídas principais que encontramos no desenvolvimento desse


idealismo: 1) a saída sistemática, que se opõe à crítica, dos filósofos que
ainda creem na onipotência da razão, como Fichte, levando assim a
um ressurgimento da metafísica especulativa, questionada por Kant; e
2) a saída que podemos chamar de irracional, adotada pelos românticos
e que tem sua inspiração em Schelling (MARCONDES, 2010, p. 243).

Para Fichte, torna-se fundamental estabelecer uma superação da dicotomia


moderna entre sujeito e objeto, unificando o mundo sensível com o mundo
inteligível. Apenas dessa forma, dirá ele, seria possível alcançar um conhecimento
absoluto, que, por sua vez, é apreendido mediante a intuição intelectual, fator
essencial do idealismo e que pode ser caracterizado como “um ato de vontade,
anterior ao saber e ao próprio pensamento”.

Schelling busca igualmente romper com a mesma dicotomia, mas tenta


superar Fichte através de um pensamento transcendental, que culmina em “um
sistema centrado na religião e na arte” (MARCONDES, 2010 p. 243). Exatamente
por conta deste aspecto, Schelling foi um dos nomes influentes do romantismo
alemão.

De todo modo, apesar de suas distinções, ambos os filósofos opõem-


se a uma fundamentação do conhecimento apenas sobre os pressupostos do
racionalismo moderno. Procuram “construir uma visão ampla e abrangente do real
que rompa com os limites estritos que as preocupações críticas e metodológicas do
racionalismo, e mesmo do empirismo, impunham à consideração da experiência
humana” (MARCONDES, 2010 p. 243).
155
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA

Esta contraposição básica também será o mote para o movimento


romântico alemão. Pensamento romântico ou Romantismo pretendeu afirmar
uma atitude e uma forma de pensamento ao se opor às doutrinas filosóficas.

Sua obra possui uma determinada forma de expressão estética que


valoriza as emoções e sentimentos, tendo como ponto de partida
a experiência individual de uma relação intuitiva com a realidade,
sobretudo com a natureza, que recorre ao mito e à tradição religiosa,
inclusive pagã, para formular suas metáforas e imagens poéticas
(MARCONDES, 2010 p. 245).

É neste sentido que o ponto de destaque do romantismo é uma construção


“crítica” a partir da estética, ou melhor, de uma filosofia estética como o verdadeiro
caminho para compreendermos a relação e a experiência humana com a realidade,
tal como faz Schiller em suas Cartas sobre a educação estética do homem.

NOTA

Podemos compreender a obra de Schiller e seu pensamento estético como


caminho educativo para o aperfeiçoamento humano. Veja mais detalhes na Unidade 1.

Hegel se insere neste contexto, é também um crítico da filosofia e da tradição


que o antecede. Apesar de ter influenciado o idealismo alemão e compartilhado
com alguns pontos, logo passou a desenvolver uma filosofia própria, incluindo
também uma linguagem bastante peculiar para lidar com certos conceitos que
adquirem um sentido específico apenas no interior de sua filosofia.

A principal característica de seu pensamento e apontada por todos os


comentadores é o seu caráter sistemático. Helfer (2008, apud PECORARO, 2009,
p. 61), ao comentar o pensamento de Hegel, diz que “era crença forte de Hegel que
a verdade na filosofia somente se manifestava no conjunto das filosofias”. Além
disso, caracteriza este como um dos elementos a dificultar a interpretação do
filósofo, pois significa ter que compreender uma diversidade enorme de sistemas
para então perceber como Hegel dialoga com eles e estabelece o seu próprio.

Sob esta perspectiva, Hegel pretende integrar em seu sistema todas as


filosofias da tradição e todos os temas nela discutidos. Isto torna absolutamente
problemática sua compreensão, pois, “é como se, para entender uma obra ou até
mesmo um conceito, exigisse que se entendesse todo o sistema” (MARCONDES,
2010, p. 221).

Toda essa compreensão sistemática, porém, tem como objetivo


compreender sob o viés da história o tempo e a realidade presente. Em outros
termos, de acompanhar o desenvolvimento histórico e apreender o seu sentido.
156
TÓPICO 1 | FILOSOFIA MODERNA

Dessa forma, a ideia de realidade passa a adquirir algumas características


próprias em Hegel. Antes de tudo, significa que ela se transmuta ao longo do
tempo. Cabe ao filósofo, portanto, avaliar quais conceitos abrange essa dinâmica
e quais se solidificam em seus respectivos períodos.

O cerne desse problema é saber avaliar o processo de mudanças através


de categorias conceituais que se harmonizam com ela, percebendo o processo
de mobilidade do real e as suas concatenações. Segundo Abrão, “compreender a
realidade significa entender o modo como esse processo transcorre e, se possível,
as leis que o regem” (ABRAÃO, 1999, p. 348).

Especificar o sentido do processo em que a realidade está inserida é, para


Hegel, algo fundamentalmente ligado à conscientização do espírito que consegue
apreender a dinâmica do devir (tomada em Hegel como dialética), que faz parte
desse processo e que ao mesmo tempo se encontra diante dele. Para que isso se
efetive é necessário um trajeto de “tomada de consciência”, isto é, uma tarefa de
compreensão do mundo e de si próprio. Este é um dos elementos centrais do
pensamento de Hegel e tem implicações com sua análise da história. “A realidade
é um processo histórico, que, portanto, só pode ser entendido em termos de como
vem a ser o que é, e também de como, neste exato momento, está se tornando
algo diferente – em outras palavras, só pode ser entendido nas categorias da
explicação histórica” (MAGEE, 2001, p. 162).

O texto em que Hegel expõe estas ideias, e que talvez seja a sua obra
mais importante, é a Fenomenologia do espírito, escrita em 1807. Neste texto o seu
sistema está todo delineado e traz como objetivo principal compreender as etapas
pelas quais estas transformações históricas se dão e como elas se entrelaçam com
a trajetória da consciência que apreende a si mesma e que irá se reencontrar na
totalidade, algo que abarca tanto o sujeito como o objeto. Sobre este ponto da
Fenomenologia, Marcondes (2010, p. 224) dirá que este trabalho:
Mostra como a consciência é formada igualmente pelo modo como
o homem interage com a natureza e a considera como objeto do
qual pode extrair os meios de sua subsistência. A linguagem, i.e.,
os sistemas de representação, as relações simbólicas, revela como a
síntese do múltiplo de nossa experiência sensível depende do emprego
de símbolos que nós próprios produzimos. Assim, a identidade da
consciência que nomeia e dessa forma identifica os objetos não pode
ser anterior ao processo de conhecimento, como, segundo Hegel,
pensava Kant.

Com isso, também chegamos a um ponto fundamental de seu pensamento,


que é a ideia de absoluto, objetivo de todo o seu sistema. O absoluto é o momento
em que o espírito de fato se insere conscientemente na totalidade:

A consciência, ao se afirmar como distinta daquilo de que


originalmente fazia parte, e após percorrer um trajeto marcado por
todas as contingências históricas concretas, reencontra-se novamente
nesse todo, mas agora de modo consciente: da indistinção anterior

157
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA

em relação à totalidade, a consciência passa para a ciência da própria


totalidade. Resolve-se então a oposição que resultava da primeira
afirmação da consciência ante a totalidade (ABRÃO, 1999, p. 349).

Ocorre que para Hegel esta reflexão é algo que se dá após as ações efetivas
do espírito ao longo da história, depois que todo o trajeto do espírito é trilhado
é que podemos considerar teoricamente a sua jornada. Por isso a Fenomenologia é
uma obra retrospectiva, que lança seu olhar para a realidade histórica, a apreender
o seu sentido.

Estas filosofias, idealismo, romantismo e projeto hegeliano, marcam uma


ruptura com a tradição racionalista. Outros filósofos irão seguir este pressuposto
e, definitivamente, por abaixo esta tradição. Com Nietzsche, por exemplo, não
apenas o racionalismo moderno se despedaça a “marteladas”, mas quase toda
tradição, incluindo seus contemporâneos ou pensadores mais próximos, como
Hegel e outros membros do romantismo.

Nascido em 1844, Nietzsche teve sua formação em filologia na Universidade


de Leipzig. Lecionou por cerca de oito anos na Universidade de Basileia, mas por
motivos de saúde teve que se afastar. A partir de então, passou a viajar por vários
países, até que, ao sofrer uma crise, foi internado em um hospital psiquiátrico.

Sua filosofia é bastante vigorosa aos valores tradicionais, em especial,


vinculados a certas concepções filosóficas. Por isso, como comenta Marcondes
(2010, p. 248), estabelece “uma discussão do próprio momento de surgimento da
filosofia na Grécia clássica”. Sob este viés, Nietzsche considera que na passagem
do período arcaico, com sua mitologia, tragédia, música etc., para a filosofia
socrático-platônica, houve uma perda essencial.

A partir de Sócrates e Platão, o que irá predominar será a racionalidade


argumentativa, um conhecimento calcado na demonstração. Neste sentido, aquilo
que o homem tinha de mais essencial, segundo Nietzsche, que era a proximidade
com a natureza e suas forças vitais, vem abaixo. Trata-se de uma contraposição
entre dois espíritos: o Apolíneo e o Dionisíaco.

Dionísio é a imagem da força instintiva e da saúde, é embriaguez criativa


e paixão sensual, é símbolo de uma humanidade em plena harmonia
com a natureza. Ao do dionisíaco, diz Nietzsche, o desenvolvimento
da arte grega também está ligado ao apolíneo, que é a tentativa de
expressar o sentido das coisas na medida e na moderação, explicitando-
se em figuras equilibradas e límpidas (REALE, 2006, p. 7).

Para Nietzsche, o surgimento da filosofia significou o predomínio do


espírito apolíneo, com sua racionalização, medida e ordem em todas as dimensões
do pensamento. Este momento, ao contrário do dionisíaco, que tende para a
embriaguez e o desequilíbrio, é metodicamente racional.

158
TÓPICO 1 | FILOSOFIA MODERNA

O grande pesar das considerações do filósofo é que no espírito dionisíaco


é que se ancoravam as nossas forças vitais, a partir do qual afirmávamos a vida.
Percorrer a tradição ocidental é, portanto, perceber “a história do triunfo do
espírito apolíneo em detrimento do dionisíaco” (MARCONDES, 2010, p. 249).

Disso se postula o sentido da filosofia de Nietzsche, a saber, revelar


esse processo e tentar estabelecer novos valores, não mais aprisionados pela
perspectiva socrático-platônica, origem de todos os desdobramentos racionais
que ele critica, mas algo o mais próximo possível daquilo que era primitivo antes
da filosofia.

7 MARX E O MATERIALISMO HISTÓRICO


Seguindo a perspectiva hegeliana de uma análise da história, Karl Marx
(1818-1883) é um dos filósofos que mais destilou críticas à sociedade moderna,
em especial, pelo viés econômico. Sua obra e análise da história visam, antes de
uma simples reflexão teórica, serem tomadas como instrumento de revolução.

Marx, na Alemanha, teve formação em direito, filosofia e história. Viveu


algum tempo na França, Bruxelas, mas terminou seus dias na Inglaterra. Sua
obra-prima recebeu o título de O Capital. É nesta obra que Marx expõe suas
principais teses, cuja fonte é a filosofia hegeliana. Alguns elementos principais do
hegelianismo presente em Marx, segundo Magee (2001, p. 165), são:
1) a realidade não é um estado de coisas, mas um processo histórico
permanente; 2) por causa disso, a chave para entender a realidade
é entender a natureza da mudança; 3) a mudança histórica não
é aleatória, mas obedece uma lei discernível; 4) a lei discernível da
mudança é a dialética, com seu movimento triádico repetido de tese,
antítese e síntese; o processo não está no controle dos seres humanos,
mas é levado adiante por suas próprias leis internas, e os seres
humanos são arrastados por ele.

Feitas todas estas considerações sobre as semelhanças entre Hegel e Marx,


torna-se necessário explicitar qual a grande diferença entre ambos. Independente
do que possa consistir a realidade, ela não é, como queria Hegel, algo espiritual,
mas sim, material (MAGEE, 2001).

O próprio Marx diz que seu objetivo é inverter o homem de Hegel, que
tem os pés na terra e a cabeça nas nuvens, mostrando que sua cabeça,
i.e., que suas ideias são determinadas pela “terra”, ou seja, pelas
condições materiais de sua vida. A consciência que é considerada livre
e autodeterminada passa a ser vista como condicionada pelo trabalho
(MARCONDES, 2010, p. 233).

Todo o processo histórico analisado por Marx é visto como um embate


entre forças materiais que compõem o mundo. Daí advém o termo associado à
sua filosofia, a saber, o “materialismo histórico”, termo usado para analisar todos
os processos envolvendo questões humanas (MAGEE, 2001).

159
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA

Em suas análises sobre este processo histórico, Marx postulava uma


dialética que se depreendia do fato de que todos os homens precisam de meios
para sobreviver, ou seja, meios para se alimentar, vestir, se proteger etc. Assim,
acabam produzindo uma série de coisas para atender isto. O grande problema é
que, sanadas essas necessidades, eles acabam se especializando nessa produção.
Com isso:

A produção dos meios de vida torna-se uma atividade social e já


não é uma tarefa individual. Dentro dessa dependência mútua, que
obviamente é a sociedade mesma, a característica definidora de cada
indivíduo é sua relação com os meios de produção (MAGEE, 2001,
p. 166).

Com isso também se criam as primeiras classes socioeconômicas, e junto


delas um conflito de interesses. Como os meios de produção vão se alterando e
se aperfeiçoando, as mudanças nas relações e os conflitos entre as classes também
seguem essas mudanças.

Suas considerações buscam, portanto, estabelecer uma análise dessas


transformações, identificando os diferentes estágios em que, “através da noção
de ‘relações de produção’, levaram a humanidade, desde a sociedade primitiva,
passando pela sociedade escravocrata e pela sociedade feudal, até a sociedade
burguesa de sua época” (MARCONDES, 2010, p. 234).

160
RESUMO DO TÓPICO 1

De acordo com o que foi estudado neste tópico, segue o resumo dos
assuntos abordados para fixação dos conteúdos:

• O contexto de surgimento da modernidade é marcado por transformações no


campo das ciências, política, economia e filosofia.

• No contexto científico a ênfase recai sobre o fim do antropocentrismo e sobre a


valorização do método matemático.

• Há também a centralidade da razão, pelo viés do racionalismo, e a valorização


da experiência mediante a corrente empirista.

• Na política, Maquiavel é o grande precursor de uma reflexão crítica sobre as


instâncias políticas, que mais tarde continuaram a ser desenvolvidas pelos
contratualistas, em especial, Hobbes, Locke e Rousseau.

• Com Hobbes temos o surgimento da ideia de um pacto social, momento no


qual a sociedade civil se estabelece para garantir a ordem, pois o homem em
estado de natureza vive em constante conflito.

• Entre os contratualistas, o significado do pacto social irá divergir, mas a ideia


de “contrato” permanece como central nestas reflexões políticas.

• Com Rousseau surge uma concepção do homem em estado de natureza como


perfeita e positiva. Para ele, é a sociedade que aos poucos vai corrompendo e
afastando o homem desse estágio.

• O Iluminismo foi um movimento cultural que a partir do século XVIII passou a


defender a ideia de um progresso da humanidade através do desenvolvimento
da razão.

• Seu lema principal era difundir o conhecimento, ou ainda, as luzes da razão,


até que a humanidade alcançasse a sua plena realização.

• Kant estabelece uma crítica ao racionalismo e ao empirismo, marcando um


novo período do desenvolvimento filosófico e postulando sua concepção
idealista.

161
• Com Hegel a filosofia da história passa a ter preponderância nas reflexões. É
um dos mais influentes críticos da tradição, incluindo Kant.

• Após Hegel, Marx e Nietzsche serão os grandes críticos da modernidade,


colocando em suspeita todo o racionalismo.

162
AUTOATIVIDADE

Caro(a) acadêmico(a)! Após a leitura deste tópico, responda às questões


a seguir. Lembre-se de consultar os textos, pesquisar e refletir sobre os temas.

1 Explicite com um breve texto quais elementos foram fundamentais para a


transformação do pensamento moderno:

2 No campo da epistemologia moderna, o racionalismo se caracteriza


principalmente:

( ) Pelo método experimental.


( ) Pela valorização dos argumentos retóricos.
( ) Pelo racionalismo e sua concepção de ideias inatas.
( ) Pela crítica ao saber escolástico e ao dogma da Igreja.

3 Sobre o empirismo inglês é correto afirmar que:

( ) Locke é um dos principais representantes do empirismo e toma o


conhecimento a partir das ideias inatas como ponto central de suas ideias.
( ) Em Locke, a mente é como uma folha em branco, sendo preenchida por
nossas experiências sensíveis.
( ) O empirismo valoriza a experiência, mas concebe as ideias inatas como
relacionadas apenas aos assuntos religiosos, como a ideia de Deus, por
exemplo.
( ) No empirismo não há nenhuma indicação de que só a experiência e os
dados dos sentidos fornecem o conhecimento científico.

4 O principal elemento da filosofia política que atravessa a concepção de


todos os contratualistas é:

( ) O pacto social e ideia de homem em estado de natureza.


( ) O pacto social como um contrato que se estabelece depois da sociedade
civil.
( ) O estado de natureza como um fato histórico confirma os mitos bíblicos.
( ) O Estado Absolutista é legítimo porque representa a vontade de Deus.

5 Quais são os nomes dos principais críticos da modernidade?

( ) Rousseau e Kant.
( ) Marx e Nietzsche.
( ) Hegel e Spinoza.
( ) Descartes e Spinoza.

163
164
UNIDADE 3
TÓPICO 2

FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA

1 INTRODUÇÃO
Com todas as considerações propostas pelo idealismo, romantismo, Hegel,
Marx e Nietzsche, a modernidade e seu espírito racionalista entram em profunda
crise. Estes elementos terão grande destaque nas filosofias contemporâneas
também, cada qual à sua maneira.

O objetivo desse tópico é abordar as filosofias que procedem dessa


ruptura, especificando as suas principais características e desdobramentos, o que,
por sinal, dará ao pensamento contemporâneo uma série de temas e problemas
para serem refletidos.

A seguir pretende-se apresentar a você, acadêmico(a), alguns dos


movimentos filosóficos que irão se desenvolver ao longo do século XX, entre
os quais: a Filosofia Analítica, a Fenomenologia, o Existencialismo e a chamada
Escola de Frankfurt. Nosso objetivo é explorar cada uma dessas correntes
filosóficas analisando sua abordagem e seus principais representantes.

2 FILOSOFIA ANALÍTICA
A filosofia analítica se desenvolveu no início do século XX, em especial na
Inglaterra. Ganhou notoriedade com o filósofo Bertrand Russell, que apesar de
tratar de temas ligados à lógica e à matemática, expunha suas ideias de maneira
acessível ao grande público.

Trata-se de uma reflexão que tem como origem os problemas da lógica


matemática no fim do século XIX. De certa forma, é também uma reação ao
subjetivismo no campo das ciências e uma tentativa de superar os limites da
linguagem, em especial, recorrendo à matemática como modelo de precisão.
Assim, ao contrário do que a tradição postulava sobre o conhecimento, Russell
considerou que o tratamento e a solução de problemas filosóficos devem se dar por
meio da análise lógica da linguagem. Segundo Marcondes (2010, p. 265), “Não se
trata evidentemente da língua empírica, mas da linguagem com estrutura lógica
subjacente a todas as formas de representação linguísticas e mentais”.

165
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA

O grande ponto aqui é tentar fundamentar o conhecimento, e para isso,


segundo os analíticos que seguiam a mesma perspectiva de Russell, era necessário
apreendermos a forma lógica de nossas proposições, analisando se nossos juízos
estabeleciam de fato uma relação entre a “sua forma lógica e a realidade que
representa” (MARCONDES, 2010, p. 265).

Entre os primeiros filósofos a comporem esta fase da filosofia analítica


existe uma ideia compartilhada, a de que a forma lógica da linguagem e a realidade
compartilham de uma mesma estrutura, são, assim, isomórficas e se espelham. Por
isso, “é a estrutura do juízo que permite que este se relacione com a realidade, já
que os fatos no real se estruturam de forma semelhante” (MARCONDES, 2010,
p. 266).

3 FENOMENOLOGIA
A fenomenologia é melhor definida como um “método”, mas também
alcançou a dimensão de movimento filosófico durante o século XX, em especial
na França. Foi inaugurada pelo filósofo moraviano Edmund Husserl (1859-1938),
professor na universidade alemã de Freiburg entre 1916-1928.

Husserl concebia a fenomenologia como um método capaz de explicitar


“as estruturas implícitas da experiência humana do real, revelando o sentido
dessa experiência através de uma análise da consciência em sua relação com o
real” (MARCONDES, 2010, p. 261).

O lema básico da fenomenologia que se desdobra a partir de Husserl, mas


que também terá forte impacto entre os seus seguidores, é o de “retornarmos às
coisas mesmas”, ou seja, suplantar as voltas teóricas e seus sistemas racionais
através de dados indubitáveis a partir dos quais poderíamos então construir um
novo edifício filosófico.

É preciso suspender os juízos sobre tudo o que não é apodítico


nem objeto de controvérsia até se conseguir encontrar aqueles
“dados” que resistem aos reiterados assaltos da epoché. E os
fenomenólogos encontram esse ponto de aproximação da epoché, o
resíduo fenomenológico na consciência: a existência da consciência é
imediatamente evidente (REALE, 2006, p. 176).

Trata-se de descrever os fenômenos tal como eles se apresentam à


consciência, e principalmente, o fenômeno em si mesmo. Para tanto, é necessário
realizar a epoché, ou seja, suspender todos os nossos juízos sobre o objeto, colocar
“entre parênteses as nossas persuasões filosóficas, os resultados das ciências e
as convicções que nos impõe a crença na existência de um mundo de coisas”
(REALE, 2006, p. 176).

166
TÓPICO 2 | FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA

Na análise consequente a esta suspensão, o fenomenólogo passa então a


descrever as coisas e os fatos como eles se apresentam à consciência, buscando
assim definir a sua essência, chamada em fenomenologia de eidéticas. No caso,
por exemplo, de uma análise do fenômeno religioso, não se trata de investigar os
ritos particulares de uma tendência ou de suas características particulares, mas
de buscar saber o que é a religiosidade propriamente.

Tais essências se tornam objeto de estudo se o pesquisador,


estabelecendo-se na atitude de espectador desinteressado, libertar-se das
opiniões preconcebidas e, sem se deixar envolver pela banalidade e
pelo óbvio, saiba “ver” e consiga intuir (e descrever) aquele universal
pelo qual um fato é aquilo e não outra coisa (REALE, 2006, p. 176).

Assim, a fenomenologia passa a ser concebida em Husserl como ciência


voltada para a descrição de essências, das unidades mais básicas de significação
e que dão sentido às nossas experiências. Merleau-Ponty, filósofo francês, foi o
discípulo de Husserl que mais levou adiante estes pressupostos.

Maurice Merleau-Ponty nasceu em 14 de março de 1908. Estudou na Ecóle


Normale Supérieure, em Paris, graduando-se em filosofia em 1931. Neste período
conviveu com vários pensadores, dentre os quais Sartre, Levi-Strauss, Simone de
Beauvoir, entre outros.

A frequência em inúmeros cursos ministrados naquele período já


o despertava para uma crítica ao modelo de filosofia que se ensinava nas
universidades e liceus, isto é, uma abordagem “restrita” somente a Kant. Embora
reconhecesse a importância do filósofo alemão, acreditava no valor de novas
reflexões advindas de outras disciplinas, de novas descobertas e, sobretudo, dos
problemas da época, como a guerra e os movimentos de resistência.

Merleau-Ponty iniciou sua carreira acadêmica com a publicação de uma


tese denominada A Estrutura do Comportamento, em 1938. Nela reflete sobre o corpo
e a consciência confrontando as posições behavioristas e gestaltistas em psicologia.
Em 1939 foi convocado para o serviço militar, onde permaneceu por 12 meses
como oficial do 5° Regimento de Infantaria. Em 1945 publicou a tese de doutorado,
Fenomenologia da Percepção, tornando-se professor da Universidade de Lyon.

Em 1949 transferiu-se para a Sorbonne, nomeado para a cadeira de


Psicologia e Pedagogia da Criança. Em 1952 assumiu a cátedra de filosofia do
Collège de France e, de 1945 a 1952 foi coeditor com Jean-Paul Sartre da revista Les
Temps Modernes, uma das leituras mais influentes da França na época. A revista
tratava de novos temas, sobretudo o político.

Merleau-Ponty acabou falecendo prematuramente, vítima de trombose


coronária em 1961, aos 53 anos e enquanto esboçava aquela que viria a se tornar
a sua última obra, O visível e o invisível. O livro permaneceu inacabado, contudo
foi lançado posteriormente por seus seguidores. Seu legado teórico tornou-se
incrivelmente vasto.

167
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA

Ao trilhar sua carreira sob a égide daquilo que definiu como filosofia,
isto é, o anseio constante em reaprender a ver o mundo, a recusa em aceitar
as cristalizações de sistemas filosóficos como instâncias intocáveis, não apenas
concedeu ao ambiente filosófico novo vigor, mas também ajudou a distinguir
com a própria vida de Ponty as qualidades essenciais para o exercício filosófico.

O esclarecedor prefácio à Fenomenologia da Percepção, além de retomar


o caminho trilhado por Husserl, também expõe claramente as concepções da
filosofia realizada por Merleau-Ponty, sobretudo o significado da fenomenologia,
sua busca, seu valor e, principalmente, a articulação imprescindível entre
fenomenologia e existência. Conforme Chauí, ao tentar demonstrar a encarnação
na vida do sujeito, Merleau-Ponty procura uma “razão alargada” distinta da
redução subjetiva ou empirista. Para Chauí,

Diante das operações da ciência e da filosofia cabe indagar: por que


nossa existência é convertida em objeto de conhecimento, nosso
corpo, em coisa qualquer, a percepção, em pensamento de perceber,
a palavra, em pura significação, instrumento a serviço do mutismo do
intelecto? Por que nossa inerência ao mundo, à história e à linguagem
é dissimulada? Recusa do imprevisível, o pensamento de sobrevoo
é um "projeto de posse intelectual do mundo domesticado pelas
representações construídas pelo sujeito do conhecimento". A crítica
desse pensamento possessivo é, simultaneamente, afirmação de que
a filosofia e a ciência não são a fonte do sentido e que não há um
ponto de partida absoluto (Deus, o homem, a Natureza), mas um solo
originário e uma inerência ao mundo que merecem ser interrogados
(CHAUÍ, 2008).

Merleau-Ponty procurou tratar a fenomenologia como um movimento


interrogativo dos fenômenos cotidianos, integrando o homem em sua existência.
Para ele, a fenomenologia é um método capaz de nos conduzir a uma nova visão,
para além das causalidades e explicações cientificistas, oportunizando assim uma
compreensão genuína do humano e de suas construções.

Com Merleau-Ponty a fenomenologia e o existencialismo também


estabelecem um diálogo profundo. Para ele, a existência é uma maneira de “ser-
no-mundo”, um modo de enfrentá-lo. Em sua concepção de liberdade, dirá que,
embora o homem seja livre, ele passa a ser condicionado pelo mundo ao seu
redor e por sua história.

Assim, “a realidade é que nós escolhemos nosso mundo e o mundo nos


escolhe” (REALE, 2006, p. 234). Ainda Segundo Reale “nossa liberdade, portanto,
não destrói a situação, mas nela se insere. E é por essa razão que as situações
permanecem abertas, já que a inserção do homem nelas poderá configurá-las de
um ou de outro modo” (2006, p. 234).

168
TÓPICO 2 | FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA

4 EXISTENCIALISMO
O existencialismo se expressa de várias formas, em especial na literatura
e na filosofia. Sobre a literatura, Albert Camus (1913-1960) é talvez o seu maior
nome. Diante de uma realidade que ele julgava sem propósitos, e diante do fato
de os homens insistirem que a vida tenha um sentido, Camus cunhou o conceito
de “absurdo” para descrever esta situação.

Sob sua ótica, exigir algo assim é esperar o improvável. Como consequência,
desdobra-se um problema fundamental das reflexões existenciais: de que vale
viver?

As palavras de abertura de seu ensaio O mito de Sísifo (1942) ficaram


famosas por isso: “só existe um problema filosófico realmente sério: o
suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder
à questão fundamental da filosofia”. Camus conclui que alguém
destruir a si mesmo é um tipo de capitulação (MAGEE, 2001, p. 217).

Essa característica também estará presente na reflexão filosófica, em


especial, por considerar o homem “jogado no mundo”, diante de situações
limites em que se questiona sobre o absurdo da existência, como era o caso do
cotidiano europeu após as duas guerras mundiais. Neste sentido, podemos
entender o existencialismo como uma verdadeira reflexão sobre a existência e
sobre a situação de crise em que passa a humanidade.

Enquanto corrente filosófica, o existencialismo tem como um de seus


maiores representantes o filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980). Sartre
também foi um escritor famoso, chegou a ser indicado ao Prêmio Nobel de
Literatura. Também foi amigo de Camus, e talvez seja lembrado mais por esses
aspectos do que por sua filosofia. Mas é com suas reflexões filosóficas e militância
política que o existencialismo de fato se torna uma inspiração importante do
pensamento contemporâneo.

Sua obra filosófica mais importante é O Ser e o Nada, escrita em 1943, logo
depois de ser solto pelo exército alemão que ocupava Paris naquele período.
Com uma conferência intitulada Existencialismo e humanismo, a perspectiva
existencialista se tornou uma das mais importantes do pós-guerra.

Como inicialmente Sartre desenvolveu seus trabalhos em filosofia


como discípulo da fenomenologia, Marcondes (2010, p. 263) considera que o
existencialismo:

Tem origem na própria análise fenomenológica da consciência


intencional [...] valorizando uma reflexão a partir da experiência
humana concreta, da discussão de questões morais e atribuindo à
filosofia o dever de ter consequências práticas, i.é., nos ensinar algo
sobre nossas próprias vidas.

169
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA

No cerne de suas reflexões, em especial no ensaio O existencialismo é


um humanismo (1946), Sartre identifica o homem com a sua liberdade. Essa
identificação é tamanha que o filósofo irá declarar que o homem está condenado a
ser livre. Como desdobramento, o essencial do ser humano é algo que ele mesmo
projeta. Não há determinismo e, tampouco, uma essência que o anteceda. “Se,
na realidade, a existência precede a essência, nunca será possível explicá-la em
referência a uma natureza humana dada e não modificável, em outras palavras,
não há determinismo; o homem é livre, o homem é liberdade” (SARTRE, apud
REALE, 2006, p. 230).

Concluindo esta mesma lógica, Sartre também mostra que se Deus não
existe, não temos valores absolutos capazes de legitimar nossas condutas. Assim,

Nem atrás nem diante de nós, em um domínio luminoso de valores,


temos justificações ou desculpas. Estamos sós, sem desculpas. É isso
o que eu expresso com a afirmação de que o homem está condenado
a ser livre. Condenado porque não se criou a si mesmo e, no entanto,
livre, porque, uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo
aquilo que faz (SARTRE, apud REALE, 2006, p. 230).

Isto resume um aspecto central do existencialismo sartreano, em que a


liberdade é defendida ferrenhamente, e em que a responsabilidade que disso
resulta implica o homem ter que criar-se continuamente.

5 A ESCOLA DE FRANKFURT
A escola de Frankfurt desenvolveu o que ficou conhecido em filosofia
como Teoria Crítica da Sociedade. Nasceu entre as investigações do Instituto de
pesquisa social, fundado em Frankfurt no início da década de 1920. Seus principais
representantes foram Adorno, Horkheimer e Benjamin.

Bastante influenciados pelo pensamento de Marx, os frankfurtianos


analisaram a sociedade capitalista e seu contexto sociocultural, tentando adaptar
as críticas marxistas ao avanço do capitalismo.

Especificamente, uma das críticas da escola de Frankfurt estava ligada


à ciência desenvolvida a partir da estrutura econômica capitalista, uma ciência
altamente racionalista e funcional, voltada para a instrumentalização da razão e
a serviço das classes dominantes. Para Marcondes (2010, p. 269), segundo estes
pensadores:

A concepção da ciência natural e da técnica, visando ao controle


dos processos naturais, levaria ao desenvolvimento de um saber
instrumental em que o controle e a dominação – não só de processos
naturais, mas também sociais – são os objetivos fundamentais,
voltando-se para resultados práticos.

170
TÓPICO 2 | FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA

Por sua vez, caberia às ciências sociais apreender o todo deste processo,
interpretá-lo de maneira crítica e postular uma compreensão da sociedade,
visando a sua emancipação dessas estruturas, “possibilitando a libertação
do homem da dominação técnica e sua realização enquanto ser social”
(MARCONDES, 2010, p. 269).

Esta visão destoava do campo das pesquisas sociais da época,


desenvolvidas sobretudo nos Estados Unidos, onde as ciências sociais eram
usadas para pesquisas de mercado. Para os frankfurtianos, ao contrário, a
sociologia deveria ser um meio para apreendermos uma teoria social como um
todo. Além disso, deve ser crítica “enquanto dela emergem as contradições da
sociedade industrializada moderna e particularmente da sociedade capitalista”
(REALE, 2006, p. 470).

Um exemplo notável de como estes pensadores de fato implementaram esse


tipo de análise é dado pela obra conjunta entre Adorno (1903-1969) e Horkheimer
(1895-1973) sob o título de Dialética do Esclarecimento (1949). O principal objeto de
análise desse trabalho é precisamente a sociedade tecnológica contemporânea.

A primeira ressalva a ser feita é sobre o próprio título. Não se trata de uma
análise circunscrita ao movimento das luzes que entusiasmou toda a Europa, mas
de um processo muito mais amplo de racionalização do mundo e de controle
sobre ele, como os autores assinalam já no começo da obra:

No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento


tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de
investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida
resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 17).

Ao longo dessas análises, os autores vão demonstrando que o conhecimento


se tornou apenas um meio, um instrumento para dominação, não apenas da
natureza e de suas forças, mas também do próprio homem. Já não importa mais
o saber, mas os meios, a funcionalidade do conhecimento. Em suma, a razão
também perdeu todo direito de orientar a vida, pois o que importa é apenas a sua
capacidade instrumental.

Partindo dessas premissas, as análises do desenrolar histórico da


razão, feitas por Adorno e Horkheimer, estabelecem o modo contraditório
do esclarecimento se processar, caracterizado especialmente pelo progresso
e pela regressão. Embora os avanços técnicos de nossa sociedade (e com eles a
possibilidade de sanar senão todos, ao menos a maioria de nossos problemas
sociais) seja um fato, o aspecto regressivo que acompanha esses avanços impede
que alcancemos uma vida digna para todos.

171
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA

Não alimentamos dúvida nenhuma – e nisto consiste nossa petitio


principi – de que a liberdade na sociedade é inseparável do pensamento
esclarecedor. Contudo, acreditamos ter reconhecido com a mesma
clareza que o próprio conceito deste pensamento, tanto quanto as
formas históricas concretas, as instituições da sociedade com as quais
está entrelaçado, contêm o germe para a regressão que hoje tem lugar
por toda parte. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 13).

Se por um lado é impossível prescindir dos avanços técnicos ao


pensarmos em progresso para a humanidade, por outro, a regressão que o
acompanha também é brutal. Dessa forma, é necessário estabelecer uma crítica
ao direcionamento desses avanços. Ora, quem orienta os fins na sociedade
capitalista, segundo os autores, é o próprio sistema, que usa a racionalidade
para se aperfeiçoar cada vez mais.

Desse fato se depreende a ideia de uma sociedade administrada, que se


volta apenas para o próprio sistema, tolhendo toda liberdade e expressividade
dos indivíduos. Para tanto, usa-se uma série de meios, dentre os quais, o mais
destacado pelos frankfurtianos, é a Indústria cultural.

A indústria cultural é composta pela mídia em geral. É usada para


estabelecer certos padrões de comportamento, alguns valores e, principalmente,
criar uma série de necessidades ligadas ao próprio modelo econômico a que serve.
Atinge a grande massa e pretende mantê-los como tal. Neste sentido, a cultura
que se gera a partir desses meios de modo algum é vista como um elemento
emancipador. “Nem emancipam, nem estimulam a criatividade; pelo contrário,
bloqueiam-na, porque habituam a receber passivamente as mensagens” (REALE,
2006, p. 474).

172
RESUMO DO TÓPICO 2

De acordo com o que foi estudado neste tópico, segue o resumo dos
assuntos abordados, para fixação dos conteúdos:

• É principalmente com as críticas de Marx e Nietzsche que os principais ideais da


modernidade começam a entrar em declínio, em especial sua fundamentação
racional.

• A filosofia analítica ganhou notoriedade no começo do século XX com o


projeto de crítica epistemológica a partir da preponderância da linguagem.
Assim, estabeleceu como caminho para o conhecimento uma fundação lógica e
matemática.

• A fenomenologia teve como fundador o filósofo Husserl. Seu lema era “voltar
às coisas mesmas” através de uma redução fenomenológica que suspendia
todas as pré-concepções sobre o objeto analisado.

• O existencialismo foi um movimento intelectual que ganhou notoriedade após


a Segunda Guerra, em especial na França. Refletiu sobre a existência humana
diante do absurdo e da falta de sentido da mesma. Filosoficamente, o seu
grande expoente foi Sartre.

• A escola de Frankfurt tornou-se célebre por revisitar a teoria marxista e


fundamentar uma análise da sociedade e da cultura capitalista sob um viés
estritamente crítico, capaz de explicitar as contradições desse sistema.

173
AUTOATIVIDADE

Caro(a) acadêmico(a)! Após a leitura deste tópico, responda às questões


a seguir. Lembre-se de consultar os textos, pesquisar e refletir sobre os temas.

1 Assinale qual destas correntes do pensamento filosófico correspondem ao


contexto contemporâneo:

( ) Idealismo e realismo.
( ) Racionalismo e empirismo.
( ) Filosofia analítica e fenomenologia.

2 Qual é o lema da fenomenologia e seu sentido?

3 Quais destes elementos caracterizam as críticas da chamada escola de


Frankfurt?

( ) A análise social deve voltar para o mercado.


( ) A análise social deve ser crítica em relação às estruturas capitalistas.
( ) A mídia de massas contribui para a difusão do conhecimento e crítica ao
capitalismo.
( ) O capitalismo cumpriu com o ideal iluminista de progresso e não está
ligado aos elementos de dominação da razão sobre o próprio homem.

174
UNIDADE 3
TÓPICO 3

FILOSOFIA NO BRASIL

1 INTRODUÇÃO
Esperamos com este tópico conduzir você, caro(a) acadêmico(a), a uma
visão contextualizada da influência do pensamento jesuíta e do positivismo sobre
o desenvolvimento filosófico brasileiro, explicitando as tensões de um processo
histórico e social bastante conturbado, que culminou na assimilação da filosofia
moderna a partir do século XIX.

Outro elemento pretendido com este tópico é situar a reflexão no âmbito


do pensamento latino-americano, sobretudo a filosofia da libertação e sua
crítica à tutela do pensamento europeu. Por fim, espera-se ainda expor o debate
contemporâneo envolvendo a filosofia no Brasil e sua relação com um projeto
político e pedagógico mais abrangente.

2 FILOSOFIA NO BRASIL: HERANÇAS EUROPEIAS


A filosofia chega ao Brasil ainda no período colonial, através dos jesuítas
e de sua missão catequética, uma companhia religiosa, mas que também se
encontrava sob o governo de Portugal. Já no final do século XVI, nos colégios
jesuítas, foram introduzidas as primeiras ideias filosóficas em terras brasileiras.
Posteriormente, no século XVII, este ensino foi levado ao nível superior.

Neste período, o pensamento filosófico que se difundia continha algumas


especificidades. O ensino era basicamente inspirado na chamada “Segunda
Escolástica”, mais especificamente naquela de origem portuguesa, que segundo
Paim (1967, p. 24), devemos “distinguir da grandiosa sistematização empreendida
por Tomás de Aquino no século XIII, sem lhe atribuir a condição de simples
prolongamento da chamada escolástica decadente dos séculos XIV e XV”.

Vale lembrar que o ensino difundido pela Companhia de Jesus estava


diretamente ligado aos valores cristãos que pretendiam apregoar, e que o
seu trabalho em terras brasileiras também era um reflexo do movimento de
Contrarreforma da Igreja Católica.

175
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA

Assim sendo, a filosofia que neste momento se expande traz uma


perspectiva dogmática, cujo principal ponto de confluência é a defesa da ortodoxia
católica. Para organizar as atividades da Companhia, a estrutura católica seguiu
as diretrizes estipuladas pela Ratio Studiorum, um sistema que foi aprovado de
forma definitiva

Nos começos do século XVII e que sintetiza a experiência pedagógica


dos jesuítas, regulando cursos, programas, métodos e disciplina das
escolas da Companhia. A Ratio Studiorum fixa as normas tanto para
os chamados estudos inferiores como para os de nível universitário
(PAIM, 1967, p. 28).

Conforme a citação, a Ratio Studiorum não era apenas um elemento


administrativo, mas também definidor da prática pedagógica que, mais uma
vez é preciso lembrar, se relacionava com o espírito da Contrarreforma católica.
Portanto, trazia como pressuposto o espírito escolástico de valorização da
repetição de princípios, e não o questionamento, a investigação livre e a tentativa
de superação dos dogmas.

Como a livre investigação era na verdade aquilo que começava a se tornar


a grande característica da modernidade, isto também trazia algumas implicações
para os avanços filosóficos de Portugal. Em meados do século XVI os jesuítas
simplesmente:

Conquistaram autêntico monopólio do ensino médio em Portugal e


subordinavam-se, à Companhia, a Universidade de Évora e o Colégio
de Artes de Coimbra. Na longa luta por eles travada para estender
seu domínio à Universidade de Coimbra, lograram finalmente uma
posição vital, desde que, por suas mãos, passavam todos os estudantes
que ali ingressavam (PAIM, 1967, p. 27).

Assim sendo, não apenas em Portugal, mas também aqui, se difundia que
o conhecimento era algo cerceado pela Teologia e pelo dogma católico, visando
muito mais a difusão de certas doutrinas.

O sistema de ensino do Brasil foi gradativamente aumentando na medida


em que a colonização criava alguns centros urbanos. Isto de fato aumentou por
volta do século XVIII, e neste período os jesuítas dispunham de um pouco mais
de 20 instituições de ensino. Nelas se ensinava basicamente conhecimentos das
gramáticas latina e grega, escrita e oratória.

Apenas nos colégios da Bahia e do Rio de Janeiro ministrava-se o


curso de artes, intermediário entre o de humanidades e os superiores.
Para as carreiras eclesiásticas, entretanto, existiam cursos superiores
de teologia e ciências sagradas. Para os que não se destinavam ao
sacerdócio, só restava o caminho das universidades europeias (PAIM,
1967, p. 32).

176
TÓPICO 3 | FILOSOFIA NO BRASIL

Esse modelo educacional só começa a ruir próximo do fim do século XVIII,


ligado muito mais às relações políticas do que às transformações do pensamento,
mesmo porque este era completamente limitado pela religião. Neste período,
toma posse da diplomacia portuguesa o Marquês de Pombal. Com ele, Portugal
passa a se aproximar um pouco mais das transformações culturais vividas pelo
restante da Europa.

No bojo de sua política estava a intenção de fortalecer a monarquia e


submeter a própria Igreja ao governo. Com a perda de poder político, a própria
administração pedagógica dos jesuítas também veio abaixo, sobretudo porque
Pombal também difundiu uma nova perspectiva, contrária à escolástica e seu
modelo de saber e a favor de um conhecimento científico aplicável.

As críticas à nova escolástica jesuítica ancoravam-se no que ficou


conhecido como “empirismo mitigado”. Essa contraposição significou também
uma reforma no sistema educacional português, que passava a voltar-se para a
modernização do Estado através de ciência aplicada.

Já no começo do século XIX, a corte portuguesa muda para o Brasil, e


com ela uma lista de homens públicos educados sob a influência das reformas de
Pombal. Estes passaram a assumir a administração do ensino brasileiro, em especial
o ensino superior, caracterizando-o com o cientificismo de raiz portuguesa.

A vinda da corte portuguesa para o Brasil amplia e melhora as condições


para o desenvolvimento de uma cultura apoiada na mentalidade
científica e com um espírito iluminista, sobretudo em função da criação
de institutos de ensino superior (escolas de medicina, engenharia e de
direito), de implantação paulatina da imprensa (SEVERINO, 1997, p. 60).

No final do século XIX, o pensamento intelectual e filosófico no Brasil


ainda sofria a influência dessa reconstrução, e passou então a tender, entre tantas
perspectivas filosóficas, para a corrente positivista, privilegiando a ciência e uma
educação técnica.

Particularmente, essa assimilação ao positivismo comteano também


tinha ligações políticas. Em 1889 houve a instauração da República e a grande
preocupação da elite intelectual do período era a de estabelecer uma sociedade
organizada seguindo os critérios da razão.

Dito dessa forma, essa transformação parece-nos bastante positiva,


porém, estes intelectuais deixaram de perceber o que havia de mais retrógrado
no pensamento comteano sobre a política, em especial quanto à reforma social:

Enquanto o pensamento moderno associa ao regime republicano as


teses e ideias que ganharam forma na Declaração dos Direitos do
Homem, de 1789, as quais se realizaram nas revoluções americana
e francesa, o republicanismo comteano é de índole medieval (PAIM,
1967, p. 181).

177
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA

O que Paim (1967) pretende explicitar é que perdia-se de vista o


fundamental das transformações políticas modernas, a igualdade política e social
de todos os cidadãos, o respeito às opiniões e crenças, a liberdade da palavra. Tudo
isso porque, para Comte, o Estado é visto como um sistema político medieval, o
que de fato correspondia aos regimes totalitários que vieram a se implantar no
país no século XX.

Entre os elementos que contribuíram para a elevação de Vargas ao


poder, destaca-se a preponderância do positivismo na formação
de nossa elite militar. Essa, embora unanimemente reconhecida e
proclamada, é tida e havida como circunscrita ao período inicial da
República (PAIM, 1967, p. 185).

Para além destes aspectos políticos e doutrinários do positivismo, a


filosofia, nos sistemas de ensino deste período, também seguiu um viés positivista.
De modo geral, todo o sistema de ensino tendia a seguir o cientificismo proposto
por esta corrente. Ora, este elemento é fundamental e até hoje é possível perceber
alguns de seus traços, presentes não só no pensamento filosófico, mas na cultura
brasileira de um modo geral.

Situando um pouco melhor a passagem do século XIX para o século XX,


Severino (1997) nos mostra que até 1922 não existiam universidades no Brasil, e
que, por conta disso, o pensamento aqui difundido ainda era bastante atrelado a
um certo “colonialismo”. Os diferentes modelos filosóficos até chegavam ao país,
mas sempre como ideias prontas. As mudanças só começam a aparecer após a
década de 1930, também influenciadas pelas transformações econômicas.

A partir deste período o país começa a ver a necessidade de se modernizar


e se industrializar. Assim, “essas transformações exigem novos recursos nos
planos científico, técnico, educacional e cultural, que vão impor ao Estado sua
adequação político-administrativa com vistas ao atendimento dessas demandas”
(SEVERINO, 1997, p. 61).

3 FILOSOFIA LATINO-AMERICANA E A ÉTICA DA LIBERTAÇÃO


No contexto mais amplo, o Brasil se insere na América-Latina, e há
um movimento filosófico específico neste contexto, chamado de “filosofia da
libertação”, que reflete alguns dos principais desafios da intelectualidade neste
ambiente particular.

A filosofia da libertação surge como correspondente da Teologia da


Libertação, movimento cristão que passou a se desenvolver na América Latina
a partir da década de 1960, reivindicando a centralidade do sujeito pobre nas
relações religiosas e de fé. Estas reflexões brotavam de um profundo sentimento

178
TÓPICO 3 | FILOSOFIA NO BRASIL

de solidariedade em relação aos excluídos da sociedade, aos discriminados e


injustiçados, e também, de uma crítica radical ao sistema econômico capitalista,
usado por países dominantes economicamente para explorar os chamados “países
subdesenvolvidos”.

Filosoficamente, uma série de pensadores latino-americanos passou a


interpretar a situação do continente e os aspectos ideológicos e materiais que
faziam com que a exclusão social fosse tão grande neste contexto geográfico. Além
disso, passaram a refletir sobre como todo este sistema se refletia na produção
intelectual e filosófica.

Entre os pensadores de destaque neste período estão Leopoldo Zea e


Henrique Dussel. A obra de Dussel, em particular, é extremamente importante
para compreendermos o sentido da filosofia da libertação, não apenas pela
interlocução que ela abre, mas pelo teor de suas teses.

Henrique Dussel é um filósofo argentino, nasceu em 1934, em La Paz.


Estudou no sistema público do país e se formou em filosofia. Desde o período
universitário militou politicamente. Realizou estudos de doutoramento na
Espanha, determinado pelo sistema filosófico que, segundo ele, o impelia a
ter que estudar os pensadores europeus. Este é um dos pontos centrais de seu
pensamento e contraposição.

Para Dussel, o mundo tem como configuração um centro e várias periferias.


A Europa é tomada como centro e a América Latina como sua parte periférica.
Esta geografia vale para todas as instâncias, ou seja, a América Latina é periferia
na política, na religião, na economia e, também, na filosofia. Acontece que esta
divisão não é natural, mas construída historicamente.

Uma das características da filosofia da libertação é desmistificar a


naturalidade com que tomamos a Europa e sua cultura como naturalmente
central. Para tanto, faz-se uma longa análise histórica, desvelando seus processos
e explicitando em que medida isto foi alcançado graças à exploração do outro, em
especial, da América Latina (colonizada, explorada e violentada em sua política,
economia e cultura).

O segundo elemento fundamental da filosofia da libertação, além de


revelar esta estrutura, é tentar libertar os sujeitos que pensam de acordo com o
contexto desse tipo de europocentrismo, impedindo que este modelo continue a
se perpetuar de maneira tão acrítica.

Há, assim, uma ligação entre a reflexão e a política. Revelando a estrutura


por traz da hegemonia cultural, busca-se alcançar a autonomia na organização
de nossa própria vida; busca-se construir uma nova ética, pautada não pelos
pressupostos teóricos europeus, mas por uma reflexão construída a partir de
nossas especificidades latino-americanas.

179
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA

4 FILOSOFIA, POLÍTICA E EDUCAÇÃO NO BRASIL


As considerações propostas pela filosofia da libertação, entre os vários
aspectos positivos que ela gerou, trouxeram como consequência a necessidade do
pensamento filosófico, em particular o brasileiro, de refletir sobre a autonomia de
nossas práticas e cultura.

Este processo acaba se configurando como parte inerente das ponderações


propostas pela filosofia e pela educação, pois o próprio cotidiano do nosso
sistema educacional e cultural explicita como se processa a heteronomia de nosso
pensamento. A título de exemplo, temos a maneira banal como parte significativa
da população estudantil se resigna do direito e dever de atuar como sujeitos
críticos da própria sociedade em que vivem. Fato que por si só deveria caracterizar
uma crise à expectativa de termos uma formação voltada para a emancipação e
para a prática cidadã.

Mas, reforçando ainda o estado da questão, encontra-se também o


desprezo pela cultura, a subserviência aos modismos e à mídia de massas, bem
como a carência de um pensamento autêntico em relação às questões de nosso dia
a dia. Algo que Dussel, por exemplo, já vinha criticando desde a década de 1960,
como vimos anteriormente.

Socialmente o problema persiste, e nossa sociedade, nos seus variados


segmentos, acaba se pautando mais pelo individualismo e pelos desejos incitados
pela economia capitalista, como o consumismo extravagante, do que com a prática
política responsável. A indiferença frente às mazelas de nosso sistema econômico
torna-se um hábito cada vez mais suportável e o silêncio político um modo de
ser de nossa sociedade, como bem explorou Caniato (1995), em sua tese sobre a
Violência e Cidadania, sob um enfoque psicopolítico.

Com grande propriedade, esta autora considerou os efeitos da ditadura


militar no modo passivo e submisso da população brasileira agir, bem como
alguns apontamentos sobre a violência social e a fraca atuação cidadã. Segundo a
autora, trata-se de uma censura oficial subjetivada e internalizada:

A realidade política do regime autoritário da ditadura militar de 1964


no Brasil foi delineando uma psicopolítica da subjetividade em que o
sinistro, a tendência ao silêncio, ao esquecimento do ocorrido e a falta
de memória social são alguns dos elementos constituintes do processo
psicossocial de individuação. Por outro lado, a impunidade que
vem se intensificando no âmbito das diferentes instituições oficiais
traz, dentre outras implicações psicossociais, a intensificação das
violações dos direitos humanos em geral e a fragilização da cidadania.
(CANIATO, 1995, p. 15)

A mentalidade massificada e manipulável produz um modo de pensar e


agir homogeneizado e, acima de tudo, irracional e desumano. Segundo as análises

180
TÓPICO 3 | FILOSOFIA NO BRASIL

dos filósofos latino-americanos, os pressupostos disso, conscientes ou não, estão


alicerçados no próprio desenvolvimento da modernidade, em sua racionalidade
instrumental e no sistema econômico que a subsidiou, caracterizando-se como
uma sociedade de massas, cujas superestruturas tendem a reforçar os alicerces
do sistema econômico vigente e de toda rede de relações estabelecidas a partir
desse modelo.

Boa parte da educação neste contexto sofre a querela de assumir um papel


de mecanismo perpetuador da heteronomia. Consequentemente, estes modelos
educacionais, geralmente criados a partir do tecnicismo e instrumentalismo,
tendem a ser reducionistas enquanto “formação para a cidadania”. Com efeito,
tanto a sociedade quanto o sistema educacional produzem um ser humano
incapaz de formular juízos próprios e autônomos.

As obras de Paulo Freire, por exemplo, servem-nos para demonstrar que


as superestruturas erguidas a partir de modelos socioeconômicos como estes, que
historicamente foram modelos de colonização e exploração, tendem a gerar uma
pobreza cultural, cujo déficit é simplesmente nefasto.

Tal fato é a razão para tamanha limitação na formação e na prática cidadã,


incapacitando os indivíduos de serem autônomos e capazes de atuarem como
sujeitos históricos. Tornam-se previsíveis e determinados pelo “outro”, cujo
interesse pauta-se pelo sistema econômico gerador dessa mesma massa, ou seja,
o capitalismo.

As reflexões do filósofo e educador Paulo Freire revelam algumas


características importantes sobre estes elementos. Acima de tudo, elas têm como
centralidade a libertação, sobretudo a libertação dos países, cuja cultura é formada
segundo o modelo de colonização de seus territórios e de sua força de trabalho,
fazendo-os perderem sua subjetividade, como é o caso do Brasil, por exemplo.

Para Freire, é necessária uma proposta educacional que procure transpor


o educando de sua realidade histórica, onde o mesmo passe de objeto da
educação para a posição de sujeito autônomo, cujas implicações envolvem a
sua promoção a um novo estado de responsabilidade e prática de vida. Neste
processo de libertação, a tomada de consciência sobre a sua própria condição
é imprescindível para uma reflexão segundo a ideia de emancipação e não de
subserviência passiva.

As considerações de Paulo Freire, bem como as do filósofo argentino


Enrique Dussel e dos demais pensadores latinos, partem justamente do “lugar
vivencial” das mazelas da educação; do contexto econômico, social e cultural
que constituem um objeto de estudo próprio e requer uma reflexão que não
seja circunscrita ao problema. Como comenta Dussel (2000, p. 321), “é preciso
lembrar que o tema propriamente ético não se inicia tanto na positividade da vida
humana, mas em sua negatividade: no não poder viver”.

181
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA

Com isso estes filósofos querem expressar que estamos inseridos no


contexto latino-americano e que devemos considerar esta sociedade, história,
desafios, horizontes e, sobretudo, este momento atual.

Em outras palavras, trata-se de inserirmo-nos na imanência do problema;


fato que a filosofia da libertação se propõe a fazer partindo das discussões sobre
as concepções e conceitos da tradição ocidental da qual somos “herdeiros”. Estas
são considerações fundamentais para repensarmos uma educação voltada para a
alteridade, para o respeito e coexistência entre os diferentes, fator crucial para a
superação de um estado de heteronomia.

Com Paulo Freire também é possível compreender como a educação faz


parte de um processo relacional, cuja própria dinâmica é imprescindível para a
superação dos males sociais. Deste modo, é possível demonstrar que o pensamento
de Freire visa à “reinvenção” do mundo e do próprio sujeito. Em última instância,
se trata de uma descoberta de si, do mundo e das obras constituídas pelo ethos
que nos circunscreve.

Segundo as análises de Freire, os modelos educacionais criados a partir


do tecnicismo tendem a ser reducionistas sobre estes aspectos, isto é, enquanto
formação para a cidadania. Tanto a sociedade quanto o sistema educacional
produziriam um ser humano incapaz de formular juízos próprios e autônomos.
A viabilização do projeto de Freire é, acima de tudo, oriunda de uma leitura
crítica desse ethos social, algo que emerge de uma estrutura distorcida das reais
necessidades humanas e se legitima através de seus aparelhos e instituições
ideológicos. Estes mesmos aparelhos e instituições são os responsáveis por
cooptar aquilo que há de mais essencial para a constituição do sujeito autônomo,
isto é, sua condição de autor da própria vida e do mundo em que se insere.

Podemos depreender da conceituação freireana que a educação é um


elemento formativo e não estanque, onde o sujeito se constitui como principal
personagem e não um subordinado, que passivamente aceita os mecanismos de
exploração. Com sua teoria abrem-se novas possibilidades para a edificação de
estruturas sociais concomitantes a outro modelo ético, diferente do vigente.

A oposição feita por Freire, assim como a de Dussel, envolve uma gama de
relações temáticas, como: a opressão socioeconômica, a história de colonialismo,
a cultura de massa e destituição de uma cultura autêntica, a ética segundo o
mercado e a “coisificação” do outro, o autoritarismo, a falta de diálogo, a teoria
e a prática bancária de ensino e o neoliberalismo; elementos que requerem cada
vez mais uma sólida reflexão a fim de construirmos uma proposta de educação
autônoma.

182
TÓPICO 3 | FILOSOFIA NO BRASIL

LEITURA COMPLEMENTAR

FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA

Estamos mergulhados num mundo que não cessa de colocar novas


questões para a filosofia. Por isso mesmo, não é fácil reconhecer o que é a filosofia
contemporânea. Estamos perto demais. Percebemos a filosofia do passado com
mais clareza e mais coesão do que percebemos a filosofia atual.

A filosofia contemporânea fundamenta-se em alguns conceitos que foram


elaborados no século XIX. Um desses conceitos é o conceito de história.

Consideramos como contemporânea a filosofia que se estende, dentro


da imprecisão cronológica própria das produções culturais, ao longo da
segunda metade do século XIX e da primeira metade do século XX. A filosofia
contemporânea, nas suas linhas mais fundamentais e características, só pode ser
adequadamente compreendida em relação com a obra de Hegel. Com efeito, a
filosofia contemporânea constitui em grande medida uma reação contra o sistema
hegeliano, ao mesmo tempo que retoma poucas das suas análises e interrogações.

A mais notável e radical reação contra o sistema de Hegel é feita por Marx,
pelo marxismo. O marxismo, entroncado originalmente na esquerda hegeliana,
distingue e separa o sistema hegeliano (idealista) do método dialético. Aceitando
e transformando este último, a filosofia marxista “inverte” o sistema de Hegel,
propondo uma visão dialética-materialista da consciência, da sociedade e da
história.

Outra reação contra o hegelianismo - reação estreitamente vinculada à


situação econômica, social e intelectual resultante da revolução industrial - é
representada pelo positivismo, especialmente o de Comte. Neste caso, reage-
se contra o “racionalismo” hegeliano naquilo que possa ter de menosprezo da
experiência, com a pretensão de instaurar um saber positivo, capaz de fundamentar
uma organização político-social nova. Como Marx, Comte conserva, no entanto,
embora o transformando, um momento importante do hegelianismo: a ideia de
“espírito objetivo”.

O positivismo (tomado, em geral, como uma atitude renitente à especulação


filosófica e propenso a considerar a ciência como forma de conhecimento, não
só modelar, mas exclusiva) constitui, além disso, uma constante na história
do pensamento. Apesar das suas notáveis diferenças na maneira de pôr os
problemas, é possível reconhecer esta linha no empirismo do século XVIII,
no positivismo do século XIX e no positivismo lógico ou empirismo lógico do
século XX. O empirismo lógico ou positivismo lógico do século XX constitui um
dos movimentos (juntamente com o “atomismo lógico” e a filosofia analítica)

183
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA

integrantes da corrente analítica dos nossos dias, cuja máxima originalidade


consiste em haver transformado o próprio conceito de filosofia: para a corrente
analítica, a filosofia não tem por objeto a realidade, mas a análise da linguagem
acerca da realidade quer se trate da linguagem ordinária ou comum, ou da
linguagem científica acerca da realidade.

Outras correntes da filosofia contemporânea tomaram como objeto


principal de consideração o fenômeno da história, da vida e da irredutibilidade
da existência pessoal: as filosofias historicistas, vitalistas, existencialistas e
personalistas. O existencialismo constitui, originalmente, uma reação contra
o hegelianismo e em favor da individualidade, colocando em primeiro plano
a categoria de singularidade, preferida pelo “sistema dialético” de Hegel
(Kierkegaard). No seu desenvolvimento no século XX (Heidegger, Sartre), a par
da reação anti-hegeliana já apontada, o existencialismo depende diretamente da
fenomenologia de Husserl, no tocante às suas análises da existência humana.
Quanto ao vitalismo de Nietzsche, representa uma reação não apenas contra
Hegel, mas contra toda a tradição intelectualista-religiosa que se opôs à vida e aos
valores vitais, desde que se verificou a aliança do platonismo com o cristianismo.

Mesmo quando as correntes filosóficas que mencionamos remetem


direta ou indiretamente para Hegel, seria errado deduzir dele, por oposição ou
continuação (ou por ambas as coisas), todo o pensamento contemporâneo. O
descrédito geral da especulação filosófica subsequente ao hegelianismo conduziu
a atitudes relativistas e cépticas contra as quais se levantou também a filosofia.
Este enfrentamento com o relativismo e o cepticismo tornou-se patente a partir
de diferentes posições, tanto na fenomenologia de Husserl (intento de fazer da
filosofia uma ciência de rigor), como nas investigações acerca da vida e da história
levadas a cabo por Dilthey e Ortega y Gasset. Estes dois filósofos pretendem
compreender a vida e a história com base em categorias específicas rigorosas.

Talvez a característica externa mais saliente da filosofia contemporânea


seja a disparidade de enfoques, sistemas e escolas, face ao desenvolvimento,
de certo modo mais uniforme e linear, da filosofia moderna (racionalismo,
empirismo, Kant, idealismo hegeliano). Para esta proliferação de pontos de vista e
de escolas, contribuíram, em grande medida, fatores socioculturais, como: a crise
contemporânea dos sistemas políticos, o avanço espetacular das ciências naturais
e lógico-formais e o desenvolvimento das ciências humanas, cujos métodos e
resultados tiveram repercussões e consequências de interesse no campo e nos
problemas da filosofia (psicanálise, estruturalismo).

PROGRESSO DESCONTÍNUO

A ideia de que a história fosse um movimento contínuo e progressivo em


direção ao aperfeiçoamento sofreu duras restrições durante o século XX.

184
TÓPICO 3 | FILOSOFIA NO BRASIL

No século XX, porém, formou-se a noção de que o progresso é descontínuo,


isto é, não se faz por etapas sucessivas. Desse modo, a história universal não é um
conjunto de várias civilizações em etapas diferentes de desenvolvimento. Cada
sociedade tem sua própria história. Cada cultura tem seus próprios valores.

Essa visão de mundo possibilitou o desenvolvimento de várias ciências


como a etnologia, a antropologia e as ciências sociais.

CIÊNCIA E TÉCNICA

A confiança no saber científico foi outra das atitudes filosóficas que se


desenvolveram no século XIX. Essa atitude implica que a natureza pode ser
controlada pela ciência e pela técnica. Mas não apenas isso, o desenvolvimento
da ciência e da técnica passa a ser capaz de levar ao progresso vários aspectos da
vida humana. Surgiram disciplinas como a psicologia, a sociologia e a pedagogia.

No século XX, a filosofia passou a colocar em cheque o alcance desses


conhecimentos. Essas ciências podem não conseguir abranger a totalidade dos
fenômenos que estudam. E também muitas vezes não conseguem fundamentar e
validar suas próprias descobertas.

TRIUNFO DA RAZÃO

A ideia de que a razão, ciência e o conhecimento são capazes de dar conta


de todos os aspectos da vida humana também foi pensada criticamente por dois
grandes filósofos: Karl Marx e Sigmund Freud.

No campo político, Marx tornou relativa a ideia de uma razão livre e


autônoma ao formular a noção de ideologia - o poder social e invisível que nos
faz pensar como pensamos e agir como agimos.

No campo da psique, Freud abalou o edifício das ciências psicológicas


ao descobrir a noção de inconsciente - como poder que atua sem o controle da
consciência.

TEORIA CRÍTICA

A ideia de progresso humano como percurso racional sofreu um duro


golpe com a ascensão dos regimes totalitários, como o nazismo, o fascismo e o
stalinismo. O desencanto tomou o lugar da confiança que existia anteriormente
na ideia de uma razão triunfante.

185
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA

Para fazer face à essa realidade, um grupo de intelectuais alemães elaborou


uma teoria que ficou conhecida como teoria crítica. Um dos principais filósofos
desse grupo é Max Horkheimer. Ele pensou que as transformações na sociedade,
na política e na cultura só podem se processar se tiverem como fim a emancipação
do homem e não o domínio técnico e científico sobre a natureza e a sociedade.

Esse pensamento distingue a razão instrumental da razão crítica. O que


seria a razão instrumental? Aquela que transforma as ciências e as técnicas num
meio de intimidação do homem, e não de libertação. E a razão crítica? É a que
estuda os limites e os riscos da aplicação da razão instrumental.

EXISTENCIALISMO

O filósofo Jean-Paul Sartre também pensou as questões do homem


frente à liberdade e ao seu compromisso com a história. Utilizando também as
contribuições do marxismo e da psicanálise, o filósofo elaborou um pensamento
sistemático que põe em relevo a noção de existência em lugar da essência.

FENOMENOLOGIA

O estudo da linguagem científica, dos fundamentos e dos métodos das


ciências tornou-se um foco de atenção importante para a filosofia contemporânea.
O filósofo Edmund Husserl propôs à filosofia a tarefa de estudar as possibilidades
e os limites do próprio conhecimento. Husserl desenvolveu uma teoria chamada
fenomenologia.

FILOSOFIA ANALÍTICA

As formas e os modos de funcionamento da linguagem foram estudados


pelo filósofo Ludwig Wittgenstein. A filosofia analítica é uma disciplina que
se vale da análise lógica como método e entende a linguagem como objeto da
filosofia. Bertrand Russel e Quine também estudaram os problemas lógicos das
ciências, a partir da linguagem científica.

Embora tenha se desdobrado em disciplinas especializadas, a filosofia


ainda é - como sempre foi - uma atitude filosófica.

FONTE: Disponível em: <http://cult.nucleo.inf.br/index.php?option=com_content&view=article&


id=742&Itemid=491>. Acesso em: 6 maio 2013.

186
RESUMO DO TÓPICO 3

De acordo com o que foi estudado neste tópico, segue o resumo dos
assuntos abordados, para fixação dos conteúdos:

• A filosofia chegou ao Brasil no período colonial, sob as diretrizes do trabalho


missionário dos jesuítas.

• Fundamentalmente, a filosofia neste contexto estava ligada ao movimento


de Contrarreforma da Igreja Católica e se limitava a difundir e legitimar os
dogmas da Igreja.

• Os jesuítas organizaram toda sua perspectiva pedagógica segundo a Ratio


Studiorum, pautados pela ideia de “segunda escolástica”. Estes elementos
representavam um ensino de repetição de princípios consolidados e não a livre
investigação e crítica.

• A hegemonia dos jesuítas começa a se perder com as reformas no Estado


português com o Marquês de Pombal. Isso se reflete com uma política educativa
voltada para o cientificismo.

• Com a vinda da corte portuguesa para o Brasil, as elites formadas sob a


influência do cientificismo e positivismo começam a assumir a administração
educativa do país.

• Este tipo de cientificismo faz com que a perspectiva crítica da filosofia perca
lugar para a reprodução técnica.

• No contexto latino-americano surge a filosofia da libertação e suas críticas ao


colonialismo econômico e cultural.

• Estas críticas se refletem no Brasil, o que pode ser exemplificado com a proposta
pedagógica de Paulo Freire.

• Para Freire e sua concepção de educação, o educando deve se tornar sujeito de


sua própria transformação.

• Há uma forte característica crítica nestas propostas, que indica a necessidade


de uma relação essencial entre a filosofia, política e educação.

187
AUTOATIVIDADE

1 Assinale qual a principal característica do modelo pedagógico jesuíta:

( ) A Ratio Studiorum e sua liberdade para a investigação e explicitação das


verdades encontradas.
( ) A Ratio Studiorum e a reprodução do conhecimento legitimado pelos
dogmas da Igreja Católica.
( ) Um modelo de ensino marcado pelo empirismo inglês, também conhecido
como empirismo mitigado.
( ) Um modelo de ensino marcado pelas teses da chamada segunda
escolástica, cujo elemento principal era a crítica aos dogmas tradicionais.

2 Qual foi o grande evento político que marcou a descentralização do poder


sobre as esferas pedagógicas e que refletiu no contexto brasileiro?

3 Disserte sobre a filosofia no Brasil e o seu papel na emancipação política e


cultural do país.

188
REFERÊNCIAS
ABRÃO, Bernadette Siqueira. História da filosofia. São Paulo: Nova Cultural,
1999. (Col. Os Pensadores).

ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento:


fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Abril Cultural. 2004. (Coleção Os


Pensadores)

ARISTÓTELES. Metafisica: texto grego com tradução ao lado. Tradução de


Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 2002.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Abril Cultural, 1996. (Os pensadores).

ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Sousa. 7. ed. S.l.p.: Imprensa


Nacional - Casa da Moeda, 2003.

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes,


2007.

AQUINO, Fernando Lopes. História da filosofia. Indaial: Grupo UNIASSELVI,


2013.

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando:


introdução à filosofia. 3.ed. São Paulo: Moderna, 2003.

_______. Temas de filosofia. 3. ed. São Paulo: Moderna, 2005.

BARNES, Jonathan. Aristóteles. Tradução de Adail Ubirajara Sobral, Maria Stela


Gonçalves. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2005.

BENOIT, Hector. Sócrates: o nascimento da razão negativa. São Paulo: Moderna,


1996.

BETTENSON.Henry. Documentos da igreja cristã. Tradução de Helmut Alfred


Simon; 4. ed. São Paulo: ASTE - Associação de Seminários Teológicos Evangélicos,
2001.

BEZERRA, Cícero Cunha. Compreender Plotino e Proclo. Petrópolis: Vozes,


2006.

189
BOEHNER, Philotheus; GILSON, Étienne. História da filosofia cristã: desde as
origens até Nicolau de Cusa. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2003.

BORNHEIM, Gerd A. (Org.). Os filósofos pré-socráticos. São Paulo: Cultrix, 2003.

CACCIOLA. Os pensadores, um curso. São Paulo: Casa do Saber. 2006.

CANIATO, Ângela M. P. A história negada: violência e cidadania de um


ponto de vista psicopolítico. 1995. Tese (Doutorado em Psicologia Escolar e
do Desenvolvimento Humano) - Universidade de São Paulo, Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, 1995.

CASERTANO, Giovanni. Sofista. Tradução de José Bortolini. São Paulo: Paulus,


2010.

CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. 13. ed. São Paulo: Ática, 2011.

______. Introdução à historia da filosofia: dos pre-socraticos a Aristóteles. 2. ed.


São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

______. Merleau-Ponty: a obra fecunda: a filosofia como interrogação interminável.


Disponível em: <http://revistacult.uol.com.br>. Acesso em 02 jun. 2008

CORBISIER, Roland. Introdução à filosofia: filosofia grega. 2. ed. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 1991.

COSTA. “Santo Agostinho” In. PECORARO, Rossano. Filosofia da história. São


Paulo: Zahar, 2009.

COTRIN, Gilberto. Filosofia temática. São Paulo: Saraiva, 2008.

DESCARTES. Meditações metafísicas. São Paulo: Abril Cultural (Os pensadores).


1990.

DONINI, Pierluigi; FERRARI, Franco. O exercício da razão no mundo clássico:


perfil de filosofia antiga. Trad. Maria das Graças Gomes de Pina. São Paulo:
Annablume. 2012.

DORION, Louis-André. Compreender Sócrates. Tradução de Lucia Mathilde


Endlich Orth. Petrópolis: Vozes, 2006.

DUMONT, Jean-Paul. Elementos de história da filosofia antiga. Tradução de


Georgete M. Rodrigues. Brasília: UnB, 2004.

FARIA, Maria do Carmo B. de, Direito e ética: Aristóteles, Hobbes e Kant. São
Paulo: Paulus, 2007.

190
GHIARDELLI, Junior Paulo. História da filosofia. São Paulo: Contexto, 2008.

GOLDSCHIMIDT, Victor. A religião de Platão. São Paulo: Difusão europeia.


1970.

HELFERICH, Christoph. História da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

HESÍODO. Teogonia: A origem dos deuses. Trad. Jaa Torrano. 3.ed. São Paulo:
Iluminuras. 1995.

HOBBES, Thomas. De Civie. Elementos filosóficos a respeito do cidadão.


Petrópolis: Vozes, 1993.

HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico


e civil. Col. Os Pensadores. Trad.: João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da
Silva. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

HOTTOIS, Gilbert. Do renascimento à pós-modernidade: uma história da


filosofia moderna e contemporânea. São Paulo: Ideias e letras, 2008.

HUME, David. Investigações sobre o entendimento humano. São Paulo: Unesp.


2004.

JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. Tradução de Artur M.


Parreira. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

JOHNSTON, Derek. Histórica concisa da filosofia – de Sócrates a Derida. São


Paulo: Rosari, 2011.

KANT. Resposta a pergunta: o que é esclarecimento?. Disponível em: <http://


ensinarfilosofia.com.br/__pdfs/e_livors/47.pdf>. Acesso em: 26 abr. 2013.

LAÊRTIOS, Diôgenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Tradução de


Mario da Gama Kury. 2. ed. Brasília: UnB, 2008.

LARA, Tiago Adão. A filosofia nas suas origens gregas. 4. ed. Petrópolis-RJ:
Vozes, 1989.

______. Caminhos da Razão no Ocidente: A Filosofia Ocidental do Renascimento aos


nossos dias. 5ª ed. Petrópolis: Vozes. 1993.

LEBRUN, Gerard. A filosofia e sua história. São Paulo: Cosac & Naify, 2006.

LOCKE, John. Ensaio acerca do entendimento humano. São Paulo: Abril Cultural
(Os pensadores). 2005.

191
LORIERI, Marcos Antonio; RIOS, Terezinha Azerêdo. Filosofia na escola: o prazer
da reflexão. São Paulo: Moderna, 2008.

MAGEE, Bryan. História da filosofia. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2001

MAQUIAVEL. N. Discurso sobre a primeira década de Tito Lívio. São Paulo:


Martins Fontes. 2007.

______. O Príncipe. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004.

MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia dos pré-socráticos a


Wittgenstein. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

MARIAS, Julian; BERLINER, Claudia. História da filosofia. São Paulo: Martins,


2004.

MCGRADE, A. S. (Org.). Filosofia medieval. Tradução de André Oídes.


Aparecida: Ideias & Letras, 2008.

MESQUITA, António Pedro. Aristóteles: introdução geral. Lisboa: Imprensa


Nacional - Casa da Moeda, 2005.

NASCIMENTO, Carlos Arthur R. Santo Tomás de Aquino: o boi mudo da Sicilia.


2. ed. São Paulo: EDUC, 1992.

OSTRENSKY, Eunice. Hobbes. In: PECORARO, Rossano (org.). Os filósofos:


clássicos da filosofia, v. I de Sócrates a Rousseau. Petrópolis, RJ: Vozes; Rio de
Janeiro: PUC-Rio, 2008.

PAIM, Antonio. História das ideias filosóficas no Brasil. São Paulo: Grijalbo,
1967.

PECORARO, Rossano. Filosofia da história. São Paulo: Zahar, 2009.

PERINE, Marcelo. Ensaio de iniciação ao filosofar. São Paulo: Loyola, 2007.

PESSANHA, José Américo Motta. “Agostinho: Vida e Obra”. In AGOSTINHO.


Confissões. São Paulo: Abril Cultural. 2004. (Coleção Os Pensadores)
PETERSON, Mariana Allen. Introdução à filosofia medieval. Fortaleza, CE:
Proedi, 1981.

PLATÃO. Teeteto - Crátilo. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: UFP. 1996.

______. Apologia de Sócrates. Tradução de Enrico Corvisieri, Mirtes Coscodai.


São Paulo: Nova Cultural, 1999.

192
______. Carta VII. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2008.

POMPEU. J. César. In. Os pensadores, um curso. São Paulo: Casa do Saber. 2006.

REALE, Giovanni. Plotino e o neoplatonismo. Tradução de Henrique Claudio de


Lima Vaz, Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 2008.

______. História da filosofia. São Paulo: Paulus, 2006.

______; ANTISERI, Dario; STORNIOLO, Ivo. História da filosofia. São Paulo:


Paulus, 2005

______; ANTISERI, Dario. Historia da filosofia: do humanismo a Kant. 6. ed. São


Paulo: Paulus, 2003.

______. História da filosofia antiga: das origens a Sócrates. São Paulo: Loyola,
1990.
RIBEIRO, Renato Janine. Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra seu
tempo. São Paulo: Brasiliense. 1984.

_____. “Hobbes: O medo e a esperança.” In: WEFFORT, Francisco C. (org.) Os


clássicos da política 1. 4ª edição. São Paulo: Ática. 1993.

ROBINET, Jean-François. O tempo do pensamento. São Paulo: Paulus, 2004.

ROGUE, Christophe. Compreender Platão. Tradução de Jaime A. Clasen.


Petrópolis: Vozes, 2005.

ROUSSEAU, Jean Jacques. Do contrato social. 5. ed. São Paulo: Nova Cultural,
1991

SALMON, Wesley C. Lógica. Tradução de Leonidas Hegenberg, Octanny Silveira


da Mota. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1971.

SARANYANA, Josep Ignasi. A filosofia medieval: das origens partrísticas à


escolástica barroca. Tradução de Fernando Salles. São Paulo: Instituto Brasileiro
de Filosofia e Ciencia Raminundo Lulio (Ramos Llull), 2006.

SEVERINO, Antonio Joaquim. A filosofia contemporânea no Brasil: conhecimento,


política e educação. Petrópolis: Vozes, 1997.

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario; STORNIOLO, Ivo. História da filosofia. São


Paulo: Paulus, 2001.

SCHILLER, Friedrich. A educação estética do homem: numa série de cartas.


Tradução Roberto Schwarz e Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 2011.

193
SCHNEEWIND, J. B. A invenção da autonomia: uma história da filosofia moral
moderna. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2001.

SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. Tradução


de Renato Janine Ribeiro e Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996.

STIRN, François. Compreender Aristóteles. Tradução de Ephraim F. Alves.


Petrópolis: Vozes, 2006.

STORIG, Hans Joachim. História geral da filosofia. Petrópolis: Vozes, 2009.

SUZUKI, Márcio. “O belo como imperative. pp. 9 – 17”. In SCHILLER, Friedrich.


A educação estética do homem: numa série de cartas. Tradução Roberto Schwarz
e Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 2011.

TOMAS DE AQUINO. Suma teológica. I parte - questões 1-59. São Paulo: Loyola,
2006.

VASQUEZ, Adolfo S. Ética. 20. ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1989.

VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de filosofia: introdução à ética filosófica. São


Paulo: Loyola, 1999..

VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. Tradução de Isis


Borges B. da Fonseca. 12. ed. São Paulo; Rio de Janeiro: DIFEL, 2004.

VOEGELIN, Eric. O mundo da pólis. Tradução de Luciana Pudenzi. São Paulo:


Loyola, 2009.

ZILLES, Urbano. Fé e razão no pensamento medieval. 2. ed. Porto Alegre:


EDIPUCRS, 1996.

194
ANOTAÇÕES

____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________

195
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
196
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
197

Potrebbero piacerti anche