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2 Le Monde Diplomatique Brasil  MAIO 2020

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A POPULAÇÃO SE TORNOU ESPECTADORA

Todos crianças
POR SERGE HALIMI*

M
ais uma vez o mundo deles deres. Médico e empregador, ele tam-
cai por terra. E não fomos bém é nosso juiz para a aplicação de
nós que o quebramos. Evo- penas, é quem decide a duração e a
camos neste momento o dureza de nosso confinamento. Por
programa econômico e social do que se surpreender com o fato de que
Conselho Nacional da Resistência, a 37 milhões de franceses, um recorde,
conquista dos direitos sindicais e as o dobro da audiência da final da Copa
grandes obras do New Deal. Mas do Mundo de futebol de 2018, tenham
muitos maquisards [membros da Re- ouvido o presidente da República em
sistência francesa na Segunda Guer- 13 de abril, quando ele falou em onze
ra Mundial] tinham conservado suas redes ao mesmo tempo? O que mais
armas e na rua um povo esperava pe- eles poderiam fazer naquela noite?
la passagem da “Resistência à revolu- A vertigem aumenta quando esse
ção”. Este inclusive era o lema de jor- poder não sabe para onde está indo.
nal clandestino da época chamado Suas decisões são ameaçadoras, mes-
Combat. De seu lado, Franklin Roo- mo quando se contradizem. As más-
sevelt soube como fazer alguns pa- caras? Elas eram inúteis, isso era cer-
trões norte-americanos entenderem to, tanto que não as tínhamos.
que as revoltas dos trabalhadores e o Tornaram-se úteis de novo – ou seja,
caos social arriscavam varrer seu potencialmente capazes de salvar vi-
adorado capitalismo. Eles então tive- das –, desde que a tenhamos. Enten-
ram de compor. de-se que o “distanciamento social” é
Hoje não há nada disso. Confina- necessário, mas a distância de segu-

an
© Iv
da, infantilizada, estupefata e ao rança aumenta em 50% quando um
.

mesmo tempo aterrorizada pelas re- francês vai para a Bélgica ou atraves-
des de informação 24 horas, a popu- sa o Reno, e dobra se ele vier a atra-
lação se tornou espectadora, passiva, vessar o Atlântico. Finalmente, em
aniquilada. Por força da situação, as breve saberemos que idade e quais
ruas ficaram vazias. Não há mais “co- características físicas nos impedem
letes amarelos” na França, nem Hirak de sair de casa. Era melhor ser velho e
na Argélia, nem manifestações em gordo outrora que “idoso” e “acima
Beirute ou em Santiago. Como uma do peso” hoje: os primeiros tinham
criança assustada com o estrondo da pelo menos domínio sobre seus pas-
tempestade, cada um espera para sa- sos. E por que as crianças em idade
ber o destino que o poder lhe reserva. escolar deixariam de ser contagiosas
Porque os hospitais são ele; as más- para os professores próximos da apo- tamos recebendo golpes sem poder *Serge Halimi é diretor do Le Monde
caras, os testes, são ele; as transfe- sentadoria, a quem sempre se reco- devolvê-los; falamos no vazio e sabe- Diplomatique.
rências de dinheiro que permitirão menda manter distância dos netos? mos disso. Daí esse clima pegajoso,
aguentar alguns dias a mais são ele;1 Um dia nos tornaremos adultos essa raiva sem emprego. Um barril de 1   
Nos Estados Unidos, o nome de Donald
o direito ou não de sair – Quem? Co- novamente. Capazes de entender e pólvora no meio de uma sala, espe- Trump aparece no cheque de cerca de US$
1.200 por pessoa que o Tesouro dos Estados
mo? Quando? Com quem? – é ele, e impor outras opções, inclusive eco- rando o fósforo. Depois da infância, a Unidos acaba de enviar para dezenas de mi-
sempre ele. O poder tem todos os po- nômicas e sociais. No momento, es- idade da rebeldia...  lhões de cidadãos.
MAIO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 3
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EDITORIAL

As milícias digitais do capitão


POR SILVIO CACCIA BAVA

N
© Claudius
ão se atreva a discordar ou fa-
zer críticas ao presidente. Você
entra na mira das milícias digi-
tais do capitão. Nem mesmo
ministros do seu próprio governo es-
capam dessa perseguição destruido-
ra de reputações. São ataques anôni-
mos que veiculam mentiras, falseiam
a realidade e seguem um método:
primeiro sua credibilidade é atacada,
depois eles te intimidam; com sua re-
putação minada, os ataques virtuais
se transformam em ameaças físicas e
aos seus familiares.
Para atacar seus desafetos, o pre-
sidente e seus filhos montaram den-
tro do Palácio do Planalto uma espé-
cie de Agência Brasileira de
Inteligência paralela, que elabora
dossiês contra adversários e oposito-
res.1 Essas informações vão para o
Gabinete do Ódio, instalado no ter-
ceiro andar do Planalto. É aí que são
produzidas as fake news e as campa-
.

nhas do ódio, segundo a relatora da


CPI das Fake News, deputada Lídice
da Mata (PSB-BA).
Numa concepção de que estão em
guerra na defesa de uma pauta de
costumes e do próprio governo, e de
que na guerra vale tudo, o importan-
te é destruir os inimigos políticos,
mesmo que para isso se utilizem de
mentiras e ataques ultrajantes.
Segundo a deputada Joice Hassel- Ainda segundo a denúncia da de- tes, e foi determinante para a própria campanha presidencial e continue
mann (PSL-SP), o Gabinete do Ódio é putada Joice Hasselmann, Jair Bolso- eleição do capitão. apoiando a ação do Gabinete do Ódio
coordenado pelos filhos Carlos e naro conta com 1,4 milhão de robôs Há indícios de que a Cambridge pela via da microssegmentação das
Eduardo, e conta com a participação que impulsionam seu Twitter, e Analytica, empresa especializada em fake news.
do assessor especial da Presidência, Eduardo, com 468 mil.4 manipular a opinião pública com ba- A instalação da Comissão Parla-
Felipe Martins, e de três assessores Pesquisa realizada pela Universi- se nos dados pessoais dos usuários mentar de Inquérito sobre as Fake
de Carlos: Tércio Arnaud Tomaz, José dade Federal do Rio de Janeiro e pela do Facebook, teve atuação na campa- News no Congresso já teve resultados
Matheus Sales Gomes e Mateus Ma- Fundação Escola de Sociologia e nha de Bolsonaro. Segundo Brittany curiosos. Segundo Dias Toffoli, presi-
tos Diniz. Conta também com a cola- Política de São Paulo analisando os Kaiser, ex-funcionária da Cambridge dente do Supremo Tribunal Federal,
boração de Olavo de Carvalho. apoiadores de Jair Bolsonaro no Analytica, a empresa chegou a nego- com a instalação do inquérito, os ata-
As informações digitais se con- Twitter no dia 15 de março, que o ciar com um candidato à Presidência ques a ministros reduziram 80%.6
verteram em armas e são usadas sem homenageavam com a expressão nas eleições de 2018. Mais uma evidência da centralização
nenhuma ética por essa extrema di- #BolsonaroDay, identificou que, das Segundo o ex-presidente da Cam- das iniciativas. 
reita. Pessoas são bombardeadas 66 mil menções favoráveis ao presi- bridge Analytica, Alexander Nix, as
com desinformação sobre os “inimi- dente, 55% eram produzidas por táticas de microssegmentação de
1   “ Bebianno acusa Carlos Bolsonaro de montar
gos do poder”. São conteúdos racis- robôs programados para viralizar anúncios podem garantir o sucesso Abin paralela para espionar opositores”, Blog
tas, sexistas, calúnias e falsas acusa- suas mensagens. Foram identifica- de uma campanha política se usadas do Ricardo Antunes, 3 mar. 2020. Reproduz
ções. E para disseminá-los usam das 1.700 contas que reproduziram a desde o início. Se o trabalho de con- declaração feita por Gustavo Bebianno, ex-
-ministro da Secretaria Geral da Presidência
contas falsas e robôs.2 mensagem #BolsonaroDay e foram vencimento começar dois anos antes, do governo Bolsonaro, no programa Roda
Desinformação é o conteúdo des- desativadas horas depois da mensa- a vitória é praticamente garantida. Viva , da TV Cultura de São Paulo.
tinado a confundir. Cibermilícias são gem emitida. As contas foram utili- Com um período de um ano a nove 2   Peter Pomerantsev, “This is not propaganda
– Adventures in the War Against Reality” [Isto
parte de campanhas mais inclusivas, zadas por robôs, bots, que emitiram meses, as chances de vitória são mui- não é propaganda – Aventuras da guerra con-
envolvendo novos websites que pare- 22 mil mensagens a favor de to boas. Mas os efeitos já se podem tra a realidade], Faber & Faber, Londres,
cem independentes, mas que se abas- Bolsonaro.5 sentir com seis meses de trabalho, e 2019.
3   Ibidem.
tecem das mesmas fontes, todos im- O Gabinete do Ódio, essa estrutu- você pode vencer o pleito. 4   “O que é o ‘gabinete do ódio’ que virou alvo da
pulsionando a mesma agenda. Um ra de manipulação da opinião públi- Steve Bannon, o mentor da Cam- CPMI das Fake News”, Gazeta do Povo, 23
exército de trolls, cyborgs e bots, que ca, não foi montado depois da elei- bridge Analytica, tem uma relação abr. 2020.
5   C onversa Afiada, 3 abr. 2020.
se fazem passar por pessoas e repli- ção. Ele foi trazido para dentro do próxima com a família Bolsonaro. É 6   “ Ministro do STF cobra explicações de Bolso-
cam as mesmas mensagens.3 Planalto, mas sua atuação vem de an- possível que ele tenha orientado a naro”, Valor, 23 mar. 2020.
4 Le Monde Diplomatique Brasil  MAIO 2020

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COVID-19: DEPOIS DA CRISE... AS CRISES

A hora do planejamento ecológico


E agora, o que fazer com o caos planetário? Continuar como antes ou romper com os dogmas neoliberais que conduziram a negligenciar as
necessidades básicas da população, começando pela saúde? A pandemia de Covid-19 convida a pensar numa sociedade que respeite os
equilíbrios ambientais e esteja à altura dos desafios climáticos (págs. 7-8 e abaixo). Ela também alerta para os perigos em termos de liberdade
individual colocados pelas políticas desenvolvidas durante o estado de emergência (págs. 20-23), situação da qual a Suécia configura uma
notável exceção (pág. 24). A pandemia exige, principalmente, nunca mais deixar o mercado agir sozinho (págs. 12-13) e, desde já, ser
imaginativo para absorver seu custo (págs. 9-11) e não poupar os mais ricos de pagar pela recuperação, como parece ser o caso do Brasil
(págs. 14-15). Por aqui, a ameaça de ruptura institucional é cada vez mais real. Adotando uma postura que parece sem sentido, o governo
Bolsonaro aposta no caos para manter mobilizadas suas bases e criar situações que justifiquem medidas de emergência para ampliar seu
poder (págs. 17-19). Em meio a isso, o presidente resiste como pode a pagar o tímido auxílio emergencial de R$ 600 para as pessoas mais
vulneráveis, conquista que poderia se configurar uma via expressa para a adoção de uma utopia, a renda básica universal (págs. 16-17)
POR CÉDRIC DURAND E RAZMIG KEUCHEYAN*

D
© Bruna Barros
esvelar o funcionamento do ca- mento da economia e a propriedade
pitalismo foi um dos maiores privada do capital. De fato, se (re)
méritos de Martin Luther King: descobrirmos que os bancos centrais
é socialismo para os ricos e livre podem, dentro dos limites das capa-
iniciativa para os pobres. Essa lógica cidades de produção de determinada
pode ser verificada em tempos nor- economia, financiar os avanços ne-
mais: nas últimas décadas, por exem- cessários à atividade, então os mer-
plo, os Estados nacionais construíram cados perdem sua posição de chanta-
um mercado de dívida pública, ofere- gistas: não há mais motivo para
cendo deliberadamente a operadores cortejar a confiança dos investidores,
privados o controle sobre o crédito de assim como não há legitimidade para
.

que eles gozavam desde o pós-guer- as políticas de austeridade.


ra.1 Mas ela é ainda mais fácil de ob- Mas não devemos nos enganar: o
servar em tempos de crise. Os planos neoliberalismo está longe do fim. Na
de apoio à economia lançados após a França, por exemplo, a timidez das
quebra de 2008 totalizaram 1,7% do medidas em favor das famílias mais
PIB global. Na crise do coronavírus, a pobres indica que o governo está
França já havia mobilizado no início mantendo um exército de reserva a
de abril o equivalente a 2,6% da rique- baixo custo, de modo a conseguir im-
za produzida a cada ano, enquanto por um ajuste salarial para baixo a
países como os Estados Unidos (10%) fim de amortizar a crise.3 Ainda as-
e o Reino Unido (8%) exibiam percen- sim, também vemos aqui fragmentos
tuais que iam muito além. Cabe lem- de uma lógica econômica diferente.
brar que esses números dizem respei- Isso é algo que costuma ocorrer em
to apenas aos primeiros esforços conjunturas de crise, como os confli-
empreendidos pelos Estados, e nin- tos armados. Durante a Primeira
guém tem dúvida de que eles serão Guerra Mundial, Paris sofreu com a
ainda maiores nos próximos meses. escassez de carvão.4 O Estado então
A essas medidas orçamentárias se encarregou de produzir e distri-
somam-se os montantes titânicos blicos. O “socialismo para os ricos” de 21 bilhões de euros o custo mensal buir o combustível. A cota alocada
mobilizados pelos bancos centrais. nunca foi tão protetor. das medidas que garantem aos traba- para cada família baseava-se em dois
Ao contrário de seus equivalentes do No entanto, a gravidade da crise e lhadores parte de sua remuneração.2 critérios: o tamanho dos apartamen-
Japão ou do Reino Unido, o Banco o fato de que ela atinge a economia tos e o número de pessoas que viviam
Central Europeu (BCE) ainda se recu- “produtiva” em vez das finanças per- FRAGMENTOS DE UMA neles, com base no que se avaliava a
sa a financiar diretamente os Esta- turbam um pouco a definição de LÓGICA ECONÔMICA DISTINTA quantidade de carvão necessária ao
dos, mas assumiu o compromisso de Martin Luther King. Nos Estados Uni- A pandemia tornou possível, mais aquecimento. O combustível deixou,
comprar 1,12 trilhão de euros em tí- dos, o Tesouro está enviando cheques, uma vez, a suspensão, da noite para o portanto, de ser distribuído com base
tulos no mercado, não apenas títulos ainda que modestos, diretamente aos dia, de dogmas neoliberais que até a na solvência das famílias: ele era dis-
públicos, mas também a dívida de cidadãos: é o princípio da moeda “he- véspera eram apresentados como sa- tribuído de acordo com a necessidade
multinacionais como BMW, Shell, To- licóptero” (do qual as cédulas seriam grados, entre eles os critérios de con- real. Passou-se de um cálculo mone-
tal, LVMH e Telefonica. Essas medi- lançadas), por meio da qual os bancos vergência da zona do euro. A ideia de tário para um cálculo em espécie.
das complementam uma série de dis- centrais subsidiam famílias e empre- que os bancos centrais podem “mo- A crise do coronavírus é certa-
posições que facilitam o acesso dos sas sem a mediação dos bancos nem netizar” as dívidas públicas, ou seja, mente menos trágica do que a Pri-
bancos à liquidez. Honrar o totem da contrapartidas. Na França, no início regular diretamente as despesas do meira Guerra Mundial. Há, porém,
estabilidade financeira significa que, de abril, um em cada cinco trabalha- Estado, é agora amplamente discuti- uma lógica similar em ação. As más-
no auge da crise do coronavírus, fun- dores estava em situação de desem- da entre as elites políticas e financei- caras de proteção e os respiradores
dos de investimentos, bancos e gran- prego parcial financiado pelo Estado, ras. A batalha promete ser dura, mas são extremamente escassos. Nin-
des empresas, incluindo as mais po- um número que deve crescer. O Ob- o atual “estado de exceção” ideológi- guém hoje ousa falar do custo desses
luentes, são os primeiros beneficiários servatório Francês da Conjuntura co é uma oportunidade histórica pa- equipamentos. A única coisa que in-
do apoio oferecido pelos poderes pú- Econômica (OFCE) estima em mais ra cortar o cordão entre o financia- teressa é: quanto podemos produzir e
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a que velocidade? As quantidades da tomada de controle político da da uniformização feita pelo mercado, no mínimo com salários-base do se-
substituíram os preços. A subordina- economia pelo governo de Franklin a articulação entre a centralização de tor público. Assim como os bancos
ção do mercado às necessidades reais Delano Roosevelt no momento da objetivos primordiais e a dinâmica centrais são credores “de último re-
também pode assumir a forma da re- Grande Depressão, na década de local de sua realização favorece a in- curso” no momento da crise finan-
quisição. Templo do neoliberalismo, 1930, o projeto propõe “descarboni- ventividade das formas de vida e as ceira, a garantia de emprego torna o
a Irlanda não hesitou em nacionali- zar” a economia em dez anos (ver ar- capacidades de adaptação das socie- Estado o financiador “de último re-
zar seus hospitais privados pelo tem- tigo nas págs. 7-8). Não estamos mais dades humanas como um todo. Ela curso” dos empregos.
po que durar a crise. A fim de acelerar em posição de realizar meias medi- também é imperativa para dar ao pla- Esse sistema criaria vagas em se-
a fabricação de respiradores artifi- das; a situação na frente ambiental nejamento uma ancoragem democrá- tores que o capitalismo considera
ciais, o próprio Donald Trump invo- está se agravando. O programa preci- tica robusta. Como a transição supõe não rentáveis, mas que normalmente
cou a Defense Production Act [Lei de sa libertar-se das regras de austerida- uma realocação de recursos em larga aportam um alto valor agregado so-
Produção de Defesa], uma lei da épo- de em razão das quais os Estados se escala e em pouco tempo, caso haja cial e ecológico: manutenção dos re-
ca da Guerra da Coreia (1950-1953) tornaram impotentes diante das discordância entre os níveis quem de- cursos naturais, atendimento a ido-
que autoriza o presidente dos Estados questões ambientais. A crise do coro- cide é a última instância de nível na- sos e crianças, conservação do
Unidos a obrigar as empresas a pro- navírus jogou essas regras pelos ares. cional. Para isso, é preciso que ela seja patrimônio etc. Apesar de seus limi-
duzir prioritariamente bens que No capitalismo neoliberal, são os legítima: melhorar a qualidade dos tes, a experiência dos “territórios com
atendam ao interesse geral. A urgên- mercados, apoiados pelos bancos e procedimentos de deliberação é uma zero desemprego de longa duração”,
cia revela a necessidade para além pelo setor financeiro desregulamen- questão ecológica por excelência. em curso desde 2016 até 2021 em uma
dos mecanismos de mercado. tado (shadow banking), que fazem as A alocação de crédito também te- dezena de territórios da França, é um
As crises levam as sociedades a bi- vezes de quartel-general onde se to- ria de levar em conta restrições do primeiro vislumbre do emprego ga-
furcações. Em geral, as rotinas ante- mam as decisões para a alocação de ecossistema. As experiências de pla- rantido.12 Esse experimento baseia-se
riores retomam o controle assim que a recursos. A escolha de investir em de- nejamento do século XX, seja na em três ideias: ninguém é inempre-
tempestade passa – foi mais ou menos terminado setor ou atividade baseia- União Soviética, na França ou em ou- gável (todo mundo tem habilidades e
o que houve após o colapso financeiro -se em critérios de rentabilidade e tros lugares, em geral focaram o cres- tem o direito ao reconhecimento so-
de 2008. Mas a crise também pode ser solvência, a não ser pela camada de cimento dos equipamentos e da in- cial destas), não falta dinheiro nem
uma oportunidade para o envolvi- verniz verde que alimenta a seção dústria, por exemplo, após as guerras. trabalho – o que falta é emprego tal
mento com outra lógica. Isso existe em “nossos valores” do site das grandes Até hoje, o planejamento foi produti- como definido pelo mercado, isto é,
estado potencial na situação que atra- companhias. Larry Fink, chefe do vista. Mas o planejamento ecológico trabalho que valoriza o capital.
vessamos: contra o mercado, priorizar fundo de investimento BlackRock, precisa organizar a redução do uso de Trata-se, portanto, de ir além do
a satisfação de necessidades reais. publicou em janeiro deste ano uma recursos naturais. Para chegar a isso, princípio de proteção contra os riscos
carta retumbante para os empresá- a primeira coisa a fazer é poder con- do mercado de trabalho, oferecendo
LIBERTAR-SE DA AUSTERIDADE rios.7 Nesse documento, ele declara tar com um sistema estatístico à altu- uma garantia de trabalho que tam-
A pandemia ligada ao novo coronaví- que deseja fazer do “investimento ra do desafio. O ato de planejar supõe bém contribua para satisfazer neces-
.

rus evidencia ainda outra exigência. A sustentável” a diretriz de seu geren- conhecer o presente e formular cená- sidades não cobertas pelo mercado.
Covid-19 tem sua origem em uma ciamento de ativos. O greenwashing rios plausíveis para o futuro.10 Porém, Pode-se imaginar que um espaço de
crescente interpenetração, favorável à [“maquiagem” ecológica] não passou o conhecimento de que dispomos a diálogo entre, de um lado, as pessoas
circulação dos vírus, entre os mundos despercebido a ninguém, vindo de respeito do impacto ambiental das disponíveis e, de outro, as comunida-
humanos e animais.5 Essa transfor- um fundo que detém participações diversas atividades econômicas ain- des locais e as organizações civis
mação resulta, em si, do colapso dos maciças no setor de petróleo e gás.8 da apresenta muitas lacunas. Não te- possa servir para identificar os em-
ecossistemas, que leva animais porta- Mesmo supondo que houvesse uma mos indicadores suficientemente ri- pregos úteis na escala de determina-
dores de doenças transmissíveis a se intenção séria, o investimento só se- cos e precisos para orientar a do território. Uma virtude adicional
estabelecerem próximo a áreas de ha- ria “sustentável” se estivesse isento deliberação e a decisão. Uma atribui- de um programa como esse seria a
bitação humana. Além de satisfazer da lógica da concorrência, que por ção clara dessa tarefa, acompanhada constituição de uma base mínima de
necessidades reais, uma lógica econô- natureza é de curto prazo. de recursos reforçados, permitiria normas sociais, em termos de condi-
mica alternativa precisa, portanto, É necessário desfazer esse poder aos institutos de estatísticas públicos ções de trabalho e remuneração,
restaurar e respeitar os equilíbrios centralizado das finanças privadas. O a produção de tais indicadores. cujos efeitos protetores se estende-
ambientais. E qual é o nome dessa ló- investimento na transição deve se su- Não adianta fechar os olhos para a riam ao conjunto dos trabalhadores.
gica? Planejamento ecológico. jeitar ao controle democrático em to- realidade: o desemprego atingiria Com o emprego garantido, o trabalho
Ele se baseia em cinco pilares. O dos os níveis de tomada de decisão. muitos trabalhadores dos setores po- deixa de ser uma mercadoria, pois
primeiro deles é o controle público François Morin, conselheiro do gover- luentes que seriam fechados. Ocorre sua existência e utilidade deixam de
do crédito e do investimento. Isso no de Pierre Mauroy na época das na- que, há décadas, o ambientalismo ser determinadas pelo mercado.
significa impor, por força de lei, o fim cionalizações de 1981-1982 e membro carrega o imaginário de uma desin- A crise do coronavírus revelou
do financiamento às atividades po- do conselho geral do Banco da Fran- dustrialização que, quando resulta uma nova hierarquia dos ofícios.13 De
luidoras e, em seguida, seu fecha- ça, propõe: “Os poderes eleitos devem das deslocalizações – e não tem ne- repente, a sobrevivência das popula-
mento. Esse movimento deve ser estar no centro da decisão de crédito nhuma preocupação ambiental –, ções depende do trabalho de cuida-
acompanhado por investimentos e, com isso, da emissão de moeda no- provoca dramas sociais. Mas o plane- doras, caixas de supermercado e
maciços em transição ecológica, va. Em cada nível, assembleias eleitas jamento ecológico baseia-se acima agentes de limpeza, profissões que,
energias renováveis e infraestrutura devem definir os critérios de alocação de tudo nas classes populares. Por- em tempos normais, são pouco valo-
limpa, principalmente por meio do de empréstimos, a natureza dos bene- tanto, trata-se de inverter a lógica, as- rizadas, tanto do ponto de vista sim-
isolamento das construções. Dados ficiários e os valores alocados [...] por sociando a produção limpa à con- bólico como financeiro. Na França,
sobre isso existem, como os da asso- categoria de atividade”.9 quista de novos direitos sociais para todas as noites, às 20 horas, esses pro-
ciação NégaWatt.6 Mas isso também os trabalhadores. fissionais são aplaudidos das varan-
significa refundar e ampliar os servi- DIMINUIR O USO Assim chegamos ao segundo pilar das. Há quem diga até que eles devem
ços públicos, sobretudo aqueles liga- DE RECURSOS NATURAIS do planejamento ecológico: o Estado desfilar no lugar dos militares no fe-
dos a educação, saúde, transportes, Essas deliberações sobre os investi- precisa garantir emprego aos traba- riado de 14 de Julho. As profissões da
água, tratamento de resíduos, ener- mentos teriam de cumprir objetivos lhadores. O new deal ecológico de transição ecológica precisam passar
gia e comunicação, sucateados ou gerais definidos em nível nacional – e Bernie Sanders e Alexandria Ocasio- por essa mesma revalorização. Assim
destruídos pela lógica do mercado. até continental ou mundial, sobretu- -Cortez inclui essa medida, que é como o mineiro de carvão, soldado
Em fevereiro de 2019, Bernie San- do no que diz respeito às questões simples, porém crucial.11 O Estado da “batalha da produção”, que após a
ders e Alexandria Ocasio-Cortez ecológicas –, mas sua autonomia ga- compromete-se a oferecer ou finan- Segunda Guerra Mundial foi erigido
apresentaram seu projeto de “new rantiria a preservação de uma forma ciar empregos a todas as pessoas que em símbolo da centralidade do mun-
deal verde”. Recorrendo ao exemplo de diversidade institucional. Longe desejem trabalhar, remunerando-as do operário, a transição também pre-
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cisa de “heróis” – heroínas neste caso. rantia mais longo.14 Produtos mais os júris de cidadãos, os orçamentos sentimento supõe colocar a justiça
Isso passa tanto pela drástica com- sólidos, substituídos com menos fre- participativos e a “assembleia do fu- no centro da transição e, para isso,
pressão da escala das remunerações quência e que precisam de menos re- turo”,19 que poderiam contribuir para impor um controle democrático so-
como pelo aumento da renda corres- paros aliviam a pressão sobre os a deliberação sobre as necessidades. bre as escolhas de produção e consu-
pondente às muitas ocupações social ecossistemas. Os movimentos em fa- A condição da eficácia de tais dispo- mo. Na França, os 10% mais ricos
e ecologicamente úteis que até hoje vor de uma maior “sobriedade” vão sitivos, que até hoje nunca foi alcan- emitem oito vezes mais gases de efei-
receberam pouca consideração. A ba- de vento em popa. Muitas vezes, eles çada, é que eles realmente influen- to estufa que os 10% mais pobres (24
talha também será cultural: não mu- são acompanhados por uma moral ciem as escolhas produtivas. Ou seja, vezes nos Estados Unidos; 46 no Bra-
daremos um imaginário coletivo individualista.15 A sobriedade só po- que façam recuar os mecanismos de sil).22 Cabe aos 10% mais ricos arcar
com um século de idade sem fazer fil- de ser coletiva, portanto é necessário mercado em benefício de uma politi- com o custo da destruição ambiental
mes, romances, canções, sem contri- estabelecer regulações que a incenti- zação da economia. causada por seu estilo de vida.
buir para elevar enfermeiras, traba- vem. Precisamos passar de uma vi- A coordenação entre a oferta e a
lhadores da reciclagem e camponeses são produtivista da atividade indus- demanda também poderia se apoiar A ECOLOGIA DELES OU A NOSSA?
ao posto que hoje ocupam no mundo trial a uma concepção orientada para em ferramentas digitais, como já A ecologia passou a figurar entre as
da ficção policiais, empresários, ad- a extensão do ciclo de vida dos obje- ocorre no capitalismo atual. Em se- principais preocupações dos euro-
vogados e cientistas da computação. tos: a manutenção, o reparo e a me- tembro de 2017, o jornal Financial Ti- peus. Mas que ecologia? O primeiro-
Como terceiro pilar, o planeja- lhoria dos objetos ao longo do tempo mes afirmava que “A revolução do big -ministro conservador austríaco, Se-
mento ecológico precisa fazer uma devem prevalecer sobre a lógica do data pode ressuscitar a economia bastian Kurz, tem sua concepção
relocalização da economia. A União descartável. É uma questão de inves- planificada”.20 Segundo um de seus dela. Em janeiro, quando formou sua
Europeia também tem seu “Pacto timento, emprego e competência, editorialistas, as possibilidades coalizão com os Verdes – a primeira
Verde pela Europa”, publicado pela mas também de garantias sociais. atuais de coleta de dados e de cálcu- do país –, ele disse que a humanidade
presidenta da Comissão Europeia, A limitação estrita da publicidade los poderiam, em um futuro próxi- enfrenta dois grandes desafios: a mi-
Ursula van der Leyen, em janeiro de é uma dessas regulações. Parece ra- mo, superar certas deficiências do gração e as mudanças climáticas. Daí
2020. No exato momento em que ela zoável que uma empresa queira in- planejamento centralizado do século o sentido de uma aliança entre con-
apresentava as linhas gerais do pla- formar seus clientes sobre os méritos XX. As informações produzidas em servadores e ecologistas. A crise do
no, a União Europeia assinava um de seus produtos. Mas a publicidade fluxo contínuo pelo conjunto dos ato- coronavírus poderia acelerar o surgi-
tratado de livre-comércio com o Viet- engoliu nossa vida cotidiana e nosso res econômicos permitem conhecer, mento de uma ecologia conservado-
nã... Assim, mais e mais mercadorias espaço para vender fantasias, em vez quase instantaneamente, as prefe- ra. A demanda por um Estado “forte”
passarão a circular pelo planeta, com de produtos. Ao longo do século XX, rências de grande número de consu- suscitada pelo medo, o hábito de fe-
grande incremento das emissões de aumentaram vertiginosamente os midores, sem passar pelo sistema de char fronteiras e “rastrear” popula-
gases de efeito estufa. Além de au- gastos com publicidade das empresas preços. Mas esses dados pertencem a ções e a consciência crescente de que
mentar as desigualdades, o livre-co- – principalmente as multinacionais.16 companhias privadas do Vale do Silí- o produtivismo gera cada vez mais
mércio gera aberrações ecológicas. Na era do capitalismo “monopolista”, cio, bem como a infraestrutura que catástrofes, tudo isso pode fazer que
.

Essa relocalização deve se basear ela é uma das principais alavancas realiza sua geração e seu processa- a Áustria seja o primeiro país, entre
em três princípios. O primeiro é a utilizadas para aumentar a participa- mento. Socializados, colocados sob outros, a passar para uma gestão au-
“desespecialização dos territórios”, ção de mercado. Sob essas condições, controle democrático e reorientados toritária da crise ambiental. Seria um
que permitiria atravessar as flutua- não há chance de formas sustentá- para a utilidade social, eles contri- engano imaginarmos que essa é uma
ções dos mercados mundiais e, as- veis de consumo surgirem. buiriam para o surgimento de alter- aliança antinatural. Na história da
sim, recuperar uma soberania sobre nativas ao mercado. ecologia sempre existiu uma sensibi-
o que eles produzem. A globalização FERRAMENTAS DIGITAIS Por fim, o quinto e último pilar do lidade conservadora.
capitalista e o alongamento das ca- O quarto pilar do planejamento eco- planejamento ecológico é a justiça A essa ecologia conservadora é
deias de valor expropriaram as popu- lógico é a democracia. As experiên- ambiental. A Covid-19 já fez muitas preciso opor outra, uma ecologia que
lações desse controle. O segundo cias de planejamento passadas não vítimas nos territórios mais pobres – ative todas as alavancas do Estado
princípio é o do “protecionismo soli- foram apenas produtivistas, mas por exemplo, na França, em Seine- para realizar a transição, mas que o
dário”: o estabelecimento de barrei- também tecnocráticas, verticais e até -Saint-Denis. As classes populares faça como uma oportunidade de de-
ras aduaneiras sociais e ambientais autoritárias.17 Na União Soviética, sofrem com uma saúde mais frágil; a mocratizar o Estado e submeter a de-
deve ser acompanhado pelo desman- por exemplo, uma burocracia de pla- falta de moradia e de recursos faz que mocracia representativa à pressão da
telamento do monopólio das grandes nejadores decidia a quantidade e a adquiram mais doenças e procurem democracia direta. Assim, a transi-
empresas em termos de conhecimen- qualidade dos bens a serem produzi- menos os serviços de saúde, ainda ção ecológica requer uma transfor-
to. A liberalização da propriedade in- dos. Esse autoritarismo levou ao pro- mais quando as regiões onde vivem mação simultânea de nossos siste-
telectual permitiria que o maior nú- blema da fraca legitimidade política parecem desertos médicos. No en- mas econômicos e políticos. A
mero possível de pessoas se não apenas desses regimes, mas tam- tanto, os profissionais na linha de ecologia deles ou a nossa:23 a grande
beneficiasse das inovações. E a troca bém do conhecimento econômico: frente da luta contra o coronavírus batalha do século XXI começou. 
de conhecimento e tecnologia pro- apartados da sociedade civil, os inte- geralmente são oriundos dessa fra-
moveria uma elevação dos direitos lectuais do planejamento sabiam ção da sociedade, portanto mais ex- *Cédric Durand  é professor de Economia
sociais e ambientais. Longe de pro- pouco sobre as necessidades e os de- postos ao vírus. As pandemias agra- da Universidade de Paris 13; Razmig Keu-
mover um fechamento de cada local sejos dos cidadãos. Isso resultou em vam as desigualdades de classe. cheyan é professor de Sociologia da Uni-
em si mesmo, o protecionismo soli- um desajustamento às vezes imenso O mesmo se aplica à crise climáti- versidade de Bordeaux, França.
dário renovaria o internacionalismo entre a oferta e a demanda, levando à ca. As classes populares sofrem mais 1   C f. Benjamin Lemoine, L’Ordre de la dette. En-
sobre bases ecológicas e de compar- escassez ou ao desperdício. do que as ricas com a poluição e os quête sur les infortunes de l’État et la prospé-
tilhamento do saber. Em terceiro lu- Essa correlação entre planeja- desastres naturais21 (ler reportagem rité du marché [A ordem da dívida. Pesquisa
sobre os infortúnios do Estado e a prosperida-
gar, a relocalização perderia seu ob- mento e autoritarismo, porém, não é nas págs. 25-27). No entanto, é sobre de do mercado], La Découverte, Paris, 2016.
jetivo se não tivesse efeito sobre o que uma fatalidade. Superá-la requer cer- elas que os governos fazem pesar o 2   “ Évaluation au 30 mars 2020 de l’impact éco-
e sobre como se produz. O capitalis- ta inventividade institucional. Nos custo da transição, como prova o ca- nomique de la pandémie de Covid-19 et des
mesures de confinement” [Avaliação de 30 de
mo tem interesse em reduzir tanto últimos trinta anos não faltaram ex- lamitoso episódio do imposto sobre o março de 2020 sobre o impacto econômico
quanto possível a vida útil dos obje- perimentações em termos de demo- carbono, que desencadeou o movi- da pandemia de Covid-19 e das medidas de
tos, forçando o consumidor a com- cracia participativa.18 Em geral elas mento dos coletes amarelos. Tal con- confinamento], Policy Brief n.65, OFCE, Pa-
ris, 30 mar. 2020.
prar sempre outros. Para isso, coloca são um dispositivo político, e as deci- duta não é apenas moralmente duvi- 3   C f. Michaël Zemmour, “Coronavirus: Le gou-
no mercado produtos de baixa quali- sões importantes são tomadas pelo dosa, mas também politicamente vernement ne se rend pas compte de l’exposi-
dade. É necessário impor aos fabri- poder executivo e pelos conselhos de fadada ao fracasso: sem o consenti- tion des ménages modestes à la crise” [Coro-
navírus: governo não se dá conta da exposição
cantes padrões de durabilidade administração. Mas há dispositivos, mento das classes populares, a tran- das famílias de baixa renda à crise], Le Mon-
acompanhados de um período de ga- como as conferências de consenso, sição não ocorrerá. Obter esse con- de, 27 mar. 2020.
MAIO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 7
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COVID-19, UM MODELO EM ESCALA REDUZIDA

4   C f. Thierry Bonzon, “Consumption and total


warfare in Paris (1914-1918)” [Consumo e
guerra total em Paris (1914-1918)]. In: Frank
Trentmann e Flemming Just (orgs.), Food and
Conflict in Europe in the Age of the Two World
Prenúncio da crise do clima
Wars [Comida e conflito na Europa na era das
duas guerras mundiais], Palgrave Macmillan, O abismo no qual um coronavírus precipitou muitos países ilustra o custo humano da
Londres, 2006.
5   Ler Sonia Shah, “Contre les pandémies, l’éco- negligência em relação a um perigo já perfeitamente identificado. Evocar o destino não
logie” [Contra as pandemias, ecologia], Le
Monde Diplomatique, mar. 2020.
pode esconder o óbvio: prevenir é melhor que remediar. Os adiamentos atuais na luta para
6   Association NégaWatt, Manifeste négaWatt.
En route pour la transition énergétique! [Mani-
mitigar o aquecimento global, porém, podem levar a fenômenos muito mais dramáticos
festo NégaWatt. Rumo à transição energéti-
ca!], Actes Sud, Arles, 2015. POR PHILIPPE DESCAMPS E THIERRY LEBEL*
7   L arry Fink, “A fundamental reshaping of finan-
ce” [Uma reformulação fundamental das fi-

E
nanças], site da BlacRock, jan. 2020. Dispo-
nível em: www.blackrock.com. m março de 2020, a crise da saú- cidade de propagação permanece in- Os cenários de crise também são
8   C f. Amélie Canonne e Maxime Combes, de relegou as notícias sobre o timamente ligada às redes de comér- conhecidos. Muito rapidamente após
“BlackRock se paie une opération de green-
washing grâce à Paris et Berlin” [BlackRock clima para longe das manche- cio marítimas e sobretudo aéreas, o aparecimento da Covid-19, vários
faz operação de greenwashing com a ajuda tes. No entanto, este mês será cujo desenvolvimento constitui pesquisadores e autoridades de saú-
de Paris e Berlim], Basta!, 24 jan. 2020. Dis- marcado como o décimo consecutivo igualmente um dos vetores crescen- de alertaram para o perigo de uma
ponível em: www.bastamag.net.
9   F  rançois Morin, Quand la gauche essayait com uma temperatura média acima tes das emissões de gases de efeito es- pandemia.3 A ironia da situação é
encore. Le récit des nationalisations de 1981 do normal na França. “Uma série de tufa. A lógica do curto prazo, do just que, em meados de abril de 2020, os
et quelques leçons que l’on peut en tirer dez meses ‘quentes’ consecutivos em in time, e a extinção das precauções países menos afetados são os vizi-
[Quando a esquerda ainda tentava. História
das nacionalizações de 1981 e algumas li- escala nacional é sem precedentes”, mostram a capacidade autodestruti- nhos mais próximos da China: Tai-
ções que elas podem nos dar], Lux, Mon- observa a Météo France, cujos dados va aos seres humanos da primazia wan, seis mortos; Cingapura, dez
treal, 2020. permitem voltar até 1900. O inverno concedida ao ganho individual, à mortos; Hong Kong, quatro mortos;
10  Cf. Alain Desrosières, “La commission et
l’équation: une comparaison des Plans fran- passado bateu todos os recordes, com vantagem comparativa e à competi- Macau, zero.4 Escaldados pelo episó-
çais et néerlandais entre 1945 et 1980” [A temperaturas 2 °C acima do normal ção. Ainda que certas populações ou dio da Sars em 2003 e conscientes do
comissão e a equação: uma comparação dos em dezembro e janeiro e 3 °C em feve- regiões se mostrem mais vulneráveis risco da epidemia, eles imediatamen-
planos francês e holandês entre 1945 e
1980], Genèses. Sciences sociales et histoi- reiro. Como forma de se tranquilizar, que outras, a pandemia afeta gra- te colocaram em prática as medidas
re, Paris, n.34, 1999. as pessoas preferiram lembrar a es- dualmente todo o planeta, assim co- necessárias para reduzi-la: controles
11  C f. Pavlina Tcherneva, The Case for a job gua- petacular melhoria na transparência mo o aquecimento global não se limi- sanitários nas entradas, testes em
rantee [Em defesa do emprego garantido],
Polity Press, Londres, 2020. atmosférica. Vislumbres de esperan- ta aos países que emitem mais CO2 . A quantidade, isolamento de pacientes
12  C f. Florence Jany-Catrice e Anne Fretel ça: o Himalaia tornou-se de novo vi- cooperação internacional se torna e quarentena para os potenciais con-
.

(coords.), “Une analyse de la mise en œuvre sível no horizonte de cidades do norte então essencial: frear o vírus ou as taminados, uso generalizado de más-
du programme expérimental visant à la résorp-
tion du chômage de longue durée dans le ter- da Índia, assim como o Mont Blanc emissões de gases do efeito estufa lo- cara etc.
ritoire urbain de la Métropole de Lille” [Uma nas planícies de Lyon. calmente será inútil se o vizinho não Na Europa, os governos continua-
análise da implementação do programa expe- Não há dúvida de que a interrup- fizer o mesmo. ram a administrar o que considera-
rimental para reduzir o desemprego de longa
duração na área urbana da Metrópole de Lil- ção de grande parte da produção le- Difícil fingir ignorância diante do vam suas prioridades: reforma previ-
le], relatório intermediário, 11 jun. 2019. Dis- vará a uma redução sem precedentes acúmulo de diagnósticos. A intensi- denciária na França, Brexit do outro
ponível em: https://chairess.org. nas emissões de gases de efeito estu- dade da pesquisa e do debate científi- lado do Canal da Mancha, crise polí-
13  Cf. Dominique Méda, “Nous savons au-
jourd’hui quels sont les métiers vraiment es- fa.1 Mas podemos realmente acredi- co tornou a maioria das informações tica quase perpétua na Itália... Então,
sentiels” [Hoje sabemos quais são as profis- tar que um declínio histórico vai co- acessíveis, e a precisão destas está para as semanas que estavam por vir,
sões realmente essenciais], Politis, Paris, 25 meçar? Ao revelar a vulnerabilidade sendo constantemente refinada. No eles prometeram ações ou meios que
mar. 2020.
14  Cf. “De la pacotille aux choses qui durent” de nossa civilização e as fragilidades caso da Covid-19, vários especialistas já deveriam ter aplicado meses antes!
[Das quinquilharias às coisas duráveis], Le associadas ao modelo de crescimento alertam sobre ela há anos, em parti- Esse descuido os levou a tomar medi-
Monde Diplomatique, set. 2019. econômico globalizado, por causa da cular o professor Philippe Sansonet- das muito mais drásticas que aquelas
15  C f. Jean-Baptiste Malet, “Le système Rabhi”
[O sistema Rabhi], Le Monde Diplomatique, hiperespecialização e dos fluxos in- ti, docente do Collège de France, que que poderiam ter sido suficientes no
ago. 2018. cessantes de pessoas, bens e capitais, apresenta a emergência infecciosa devido tempo, não sem maiores con-
16  C f. John Bellamy Foster et al., “The sales ef- a Covid-19 causará um eletrochoque como um grande desafio do século sequências no plano econômico, so-
fort and monopoly capitalism” [Esforço de
vendas e capitalismo monopolista], Monthly salutar? A crise econômica e finan- XXI. Não faltaram alarmes claros: ví- cial ou das liberdades públicas. Sem-
Review, v.60, n.11, Nova York, abr. 2009. ceira de 2008 também gerou uma rus da influenza como o H5N1 em pre deixando para amanhã o
17  C f. Bernard Chavance, “La planification cen- queda significativa nas emissões, 1997 e o H1N1 em 2009; coronavírus cumprimento de seus compromissos
trale et ses alternatives dans l’expérience des
économies socialistes” [Planejamento central mas em seguida elas rapidamente como o COV-1 em 2003, depois o Mers assumidos em 2015 no âmbito do
e suas alternativas na experiência das econo- voltaram a subir, quebrando novos em 2012. Da mesma forma, o relatório Acordo de Paris sobre o clima – ou ne-
mias socialistas], Actuel Marx, Paris, v.65, n.1, recordes... Charney, enviado ao Senado dos Es- gando a assinatura dele por seu país,
2019.
18  C f. Yannick Barthe, Michel Callon e Pierre Prenúncio de possíveis colapsos tados Unidos há quarenta anos, já como fez o presidente norte-ameri-
Lascoumes, Agir dans un monde incertain. mais sérios, o atual naufrágio sanitá- alertava sobre as possíveis conse- cano –, os Estados procuram ganhar
Essai sur la démocratie technique [Agir em um rio pode ser visto ao mesmo tempo quências climáticas do aumento da tempo. Na verdade, eles o estão
mundo incerto. Ensaio sobre a democracia
técnica], Seuil, Paris, 2001. como um modelo em escala e como quantidade de gases de efeito estufa perdendo!
19  C f. Dominique Bourg et al., Inventer la démo- uma experiência acelerada do caos na atmosfera. As estruturas multila-
cratie du XXIe siècle. L’Assemblée citoyenne climático que se aproxima. Antes de terais de compartilhamento de co- CAVANDO NOSSA
du futur [Inventar a democracia do século XXI.
A assembleia cidadã do futuro], Les Liens qui se tornar um problema de saúde, a nhecimento e ação conjunta existem DÍVIDA AMBIENTAL
Libèrent, Paris, 2017. multiplicação de vírus patogênicos há cerca de trinta anos, com o Painel A súbita aceleração experimentada
20  Financial Times, Londres, 4 set. 2017. remete também a uma questão eco- Intergovernamental sobre Mudanças pela propagação do vírus na Europa
21  C f. Catherine Larrère (org.), Les Inégalités en-
vironnementales [As desigualdades ambien- lógica: o efeito das atividades huma- Climáticas (IPCC) e, depois, a Con- antes do confinamento deveria dei-
tais], PUF, Paris, 2017. nas na natureza.2 A exploração inter- venção-Quadro das Nações Unidas xar uma impressão duradoura nas
22  Lucas Chancel, Insoutenables inégalités. minável de novas terras perturba o sobre a Mudança do Clima (UN- pessoas. Os sistemas naturais rara-
Pour une justice sociale et environnementale
[Desigualdades insustentáveis. Por uma justi- equilíbrio do mundo selvagem, en- FCCC). Finalmente, os cientistas não mente evoluem de maneira linear em
ça social e ambiental], Les Petits Matins, Pa- quanto a concentração de animais evitam esforços para informar os to- resposta a distúrbios significativos.
ris, 2017. nas fazendas favorece as epidemias. madores de decisão e as empresas so- Nesse tipo de situação, é preciso sa-
23  Ler André Gorz, “Leur écologie et la nôtre” [A
ecologia deles e a nossa], Le Monde Diploma- O vírus afetou primeiro os países bre a ameaça de um aquecimento ber detectar e levar em consideração
tique, abr. 2010. mais desenvolvidos, porque sua velo- que se acelera. os primeiros sinais de desequilíbrio
8 Le Monde Diplomatique Brasil  MAIO 2020

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antes de se confrontar com acelera- sa autorregulação natural e diminuir dores de decisão como pelos Com o objetivo de tranquilizar os in-
ções incontroláveis que podem levar o choque. cidadãos. Apesar da inconsistência vestidores privados, ele lhes concede
a pontos de não retorno. Quando cui- Relativamente circunscrita, a cri- do que os governos apregoam, o es- a possibilidade de processar em tri-
dadores ou funcionários de casas de se da Covid-19 pode ser comparada sencial da população rapidamente bunais arbitrais com poderes exorbi-
repouso, deixados sem proteção e em sua dinâmica aos incêndios que compreendeu as questões envolvidas tantes qualquer Estado que possa to-
sem rastreamento, tornam-se eles queimaram a floresta australiana em e a necessidade de certas medidas de mar decisões contrárias à proteção
próprios portadores do vírus, isso 2019. Há um começo e um fim, embo- precaução. A ciência representa nos de seus interesses, decidindo, por
cria focos de contaminação em am- ra este último atualmente seja muito tempos atuais um guia precioso para exemplo, sobre a interrupção do uso
bientes altamente sensíveis, que po- difícil de definir e um retorno sazo- a decisão, com a condição de não se da energia nuclear (Alemanha), a mo-
dem levar ao colapso dos sistemas de nal da epidemia não esteja descarta- tornar uma religião que foge das ne- ratória das perfurações no mar (Itá-
saúde, o que impõe um confinamen- do. As medidas adotadas para se cessidades de demonstração e de lia) e o fechamento de usinas a carvão
to generalizado. Da mesma forma, adaptar a ela são relativamente bem contradição. E a racionalidade deve (Holanda). E não se priva de sancio-
em termos de mudança climática, aceitas pela população, desde que se- mais do que nunca levar à exclusão nar os Estados por suas atitudes am-
efeitos de retardo e retroações positi- jam percebidas como temporárias. de interesses particulares. bientalmente responsáveis: no fim de
vas – efeitos de retorno que amplifi- Por outro lado, a inação em ques- março de 2020, pelo menos 129 casos
cam a causa de partida – aprofundam tões climáticas nos fará sair dos me- DECRESCIMENTO DE desse tipo foram objeto de uma “reso-
nossa dívida ambiental, como um to- canismos de regulação sistêmicos, le- PRODUTOS INSUSTENTÁVEIS lução de controvérsias”,6 um recorde
mador de empréstimo sem dinheiro vando a danos graves e irreversíveis. Todos os países dispõem de reservas em matéria de tratados de livre-co-
cujos novas contratações para pagar Podemos esperar uma sucessão de estratégicas de petróleo, mas não de mércio. Resultado: condenações para
uma dívida antiga seriam feitas a choques variados, cada vez mais for- máscaras de proteção... A crise da os Estados em um total de mais de
uma taxa cada vez mais alta. A dimi- tes e frequentes: ondas de calor, se- saúde coloca em primeiro plano a US$ 51 bilhões.7 Em dezembro passa-
nuição da cobertura de neve e o der- cas, inundações, ciclones, doenças prioridade que deve ser dada aos do, 280 sindicatos e associações pedi-
retimento das geleiras se traduzem emergentes. O gerenciamento de ca- meios de subsistência: alimentação, ram à União Europeia que se retirasse
no desaparecimento de superfícies da um desses choques se assemelha- saúde, moradia, meio ambiente, cul- desse tratado, que consideram in-
que refletem naturalmente a radia- rá ao de uma crise de saúde do tipo tura. Ela também lembra a capacida- compatível com a aplicação do Acor-
ção solar, criando condições para Covid-19, mas sua repetição nos fará de da maior parte das pessoas de en- do de Paris sobre o clima.8
uma aceleração do aumento da tem- entrar num universo no qual as tré- tender o que acontece por vezes mais Trata-se menos de um plano para
peratura nas regiões envolvidas, re- guas se tornarão insuficientes para se rapidamente que os tomadores de de- reviver a economia de ontem, da qual
sultando em um derretimento ainda recuperar. Imensas áreas com uma cisão. As primeiras máscaras casei- os países industrializados precisarão
mais reforçado que alimenta ele pró- grande parte da população mundial ras apareceram assim, quando a por- ao sair da crise da saúde, do que um
prio o aquecimento. Assim, o derreti- se tornarão inviáveis para viver ou ta-voz do governo francês, Sibeth plano de transformação em direção a
mento do permafrost do Ártico – que simplesmente não mais existirão, Ndiaye, ainda considerava seu uso uma sociedade na qual todos possam
cobre uma área duas vezes maior que pois serão invadidas pela subida do inútil... Por outro lado, parecemos viver com dignidade, sem colocar em
.

a Europa – poderia levar a emissões nível das águas. É todo o edifício de mais bem preparados para reagir a perigo os ecossistemas. A amplitude
maciças de metano, um poderoso gás nossas sociedades que está ameaça- ameaças concretas imediatas que do recurso indispensável ao dinheiro
de efeito estufa que multiplicaria por do de colapso. O acúmulo de gases de para construir estratégias que nos público – que ultrapassará tudo que
dez o aquecimento global. efeito estufa em nossa atmosfera é permitam fazer frente aos riscos mais um dia conhecemos – oferece uma
Parte crescente da população sen- ainda mais deletério pelo fato de que distantes, com efeitos ainda pouco oportunidade única de condicionar
te a urgência de agir, faz suas pró- o CO2, o mais difundido deles, só de- perceptíveis.5 Daí a importância de apoios e investimentos à sua compa-
prias máscaras, organiza ajuda para saparecerá muito lentamente, com uma organização coletiva motivada tibilidade com a mitigação da mu-
os idosos. Mas qual é o sentido de pe- 40% permanecendo presente na at- apenas pelo interesse geral e de um dança climática e a adaptação a essa
dalar, fazer compostagem ou reduzir mosfera após cem anos e 20% após planejamento que articule necessi- mudança. 
seu consumo de energia quando o mil anos. Cada dia perdido em redu- dades (ler artigo nas págs. 4-6).
uso de combustíveis fósseis ainda é zir nossa dependência de combustí- Muito mais que a Covid-19, o de- *Philippe Descamps é jornalista do Le
amplamente subsidiado e sua extra- veis fósseis torna ainda mais caras as safio climático leva a questionar nos- Monde Diplomatique; Thierry Lebel é hidro-
ção alimenta o aparato de produção e ações a serem tomadas no dia seguin- so sistema socioeconômico. Como climatologista, diretor de pesquisa do Institu-
os números do “crescimento”? Como te. Cada decisão rejeitada como “difí- tornar aceitável uma evolução tão to de Pesquisa para o Desenvolvimento
sair do repetitivo fenômeno das cri- cil” hoje levará a decisões ainda mais drástica, uma mudança ao mesmo (IRD) e do Instituto de Geociências Ambien-
ses amplificado pelo discurso políti- “difíceis” amanhã, sem esperança de tempo social e individual? Antes de tais (IGE, Grenoble, França) e colaborador
co-midiático: negligência, agitação, “cura” e sem outra escolha a não ser tudo, não confundindo a atual – e de- dos trabalhos do Painel Intergovernamental
terror e depois esquecimento? adaptar-se, seja qual for o caso, a um letéria – recessão com a redução be- sobre Mudanças Climáticas (IPCC).
Porque existem duas diferenças novo ambiente, cujo funcionamento néfica de nossa produção insustentá-
1   C f. Christian de Perthuis, “Comment le Co-
fundamentais entre a Covid-19 e as teremos dificuldade para dominar. vel: menos produtos exóticos, que vid-19 modifie les perspectives de l’action cli-
mudanças climáticas: uma diz res- Devemos afundar no desespero desperdiçam muita energia, cami- matique” [Como a Covid-19 modifica as pers-
peito às possibilidades de regular o enquanto aguardamos o apocalipse? nhões, carros, seguros; mais trens, pectivas de ação climática], Idées et Débats,
n.63, Paris-Dauphine-PSL, abr. 2020.
choque sofrido, e a outra, à nossa ca- A crise da Covid-19 ensina, pelo con- bicicletas, camponeses, enfermeiras, 2   Ler Sonia Sah, “Contre les pandémies, l’éco-
pacidade de se adaptar a ele. A autor- trário, a imperiosa utilidade da ação pesquisadores etc. As consequências logie” [Contra as pandemias, ecologia], Le
regulação das epidemias por aquisi- pública, mas também a necessária concretas desse decrescimento só se Monde Diplomatique, mar. 2020.
3   C f. Pascal Marichalar, “Savoir et prévoir, pre-
ção de imunidade coletiva não faz da ruptura com a marcha anterior. Após tornarão aceitáveis para o maior nú- mière chronologie de l’émergence du Co-
Covid-19 uma ameaça existencial uma aceleração tecnológica e finan- mero de pessoas quando recolocar- vid-19” [Conhecer e prever, primeira cronolo-
para a humanidade, que já superou a ceira predatória, esse tempo suspen- mos a justiça social entre as priorida- gia do surgimento da Covid-19], La Vie des
Idées, 25 mar. 2020.
peste, o cólera ou a gripe espanhola so se torna um momento de tomada des e promovermos a autonomia dos 4   Site da Universidade John Hopkins, 17 abr.
em condições sanitárias mais difí- de consciência coletiva e de questio- coletivos em todos os níveis. 2020. Disponível em: www.arcgis.com.
ceis. Com uma taxa de mortalidade namento de nosso modo de vida e de Um teste muito concreto e rápido 5   C f. Daniel Gilbert, “If only gay sex caused glo-
bal warming” [Se apenas o sexo gay causasse
provavelmente situada em torno de nossos sistemas de pensamento. O da capacidade dos governos de derru- o aquecimento global], Los Angeles Times, 2
1% – bem inferior a outras infecções vírus Sars-COV-2 e a molécula de CO2 bar os dogmas de ontem estará em jul. 2006.
–, a população do planeta não está são objetos nanométricos, invisíveis sua atitude em relação ao Tratado da 6   Site do Tratado da Carta da Energia: www.
energychartertreaty.org.
ameaçada de extinção. Além disso, e e inodoros para o comum dos mor- Carta da Energia. Esse acordo, que 7   “One treaty to rule them all” [Um tratado para
mesmo que tenham sido negligentes tais. No entanto, sua existência e seu entrou em vigor em 1998 e vem sendo todos governar], Corporate Europe Observatory
no início, os governos dispõem do efeito (patogênico em um caso; cria- renegociado desde novembro de 2017, e Transnational Institute, Bruxelas, jun. 2018.
8   Carta aberta sobre o Tratado da Carta da
conhecimento e das ferramentas dor do efeito estufa no outro) são am- criou um mercado internacional “li- Energia, 9 dez. 2019. Disponível em: www.
apropriadas para vir em socorro des- plamente aceitos, tanto pelos toma- vre” de energia que envolve 53 países. collectifstoptafta.org.
MAIO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 9
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O DILEMA DE SEMPRE

Quem vai pagar?


As crises são parecidas. Quando a tempestade chega, o capitão apela para a solidariedade. Assim que vem a calmaria,
a união desaparece: alguns ficam responsáveis por tirar a água do porão, outros se balançam no convés superior. Será
que vai ser de novo assim ou a pandemia vai provocar uma mudança de direção?
POR LAURENT CORDONNIER*

A
© Claudius
crise que está ocorrendo não é
de saúde, mas de natureza eco-
nômica. O bater de asas de bor-
boleta que sem dúvida ocorreu
no mercado de Wuhan caminhou se-
guindo as linhas de fragilidade do ca-
pitalismo globalizado e liberalizado,
que reimplantou há quarenta anos
suas “cadeias de valor” de acordo
com os eldorados de fachada que lhe
prometiam lucros preguiçosos: a
captação financeira, a concorrência
“livre e sem distorção” pelos custos
salariais, o just in time, a lean mana-
gement, a pilhagem dos recursos na-
turais, a obsolescência programada,
a redução do número de máscaras e
de leitos nos hospitais, a austeridade.
Estamos apenas no começo, mas
os economistas já se perguntam:
.

quem vai pagar e como? Uma profis-


são que não ganharia seu sustento
sem esse fermento que se agita com a
mera invocação dos “custos” não po-
deria perder tal oportunidade de fa-
zer a pergunta. Dessa vez, não seria
possível lhe tirar a razão. Essa é real-
mente uma das principais questões
que acompanharão a perspectiva de
um “retorno ao normal”: o que é
“normal”, o que é “retorno” e existem
novas “perspectivas” que não iriam uma queda acentuada da produção e nuíram ou se volatizaram, em risco de surgir como o custo real da
obstruir o horizonte novamente? um alto risco de deslocamento de contrapartida da produção que não crise. De fato, ela é apenas a soma da
Econômica, essa crise não se pa- seus efetivos. Entre os setores-chave, se realizou e não foi vendida. Essa é a parcela dessas restrições de produ-
rece, no entanto, com nada realmen- figuram o comércio varejista, hotéis e parte essencial daquilo que nos custa ção que os Estados suportam direta-
te conhecido na história do capitalis- restaurantes, assim como o setor ma- e nos custará combater a propagação mente, de um lado, e das realocações
mo. Nem clássica nem keynesiana, nufatureiro”. Um risco cujos resulta- do vírus dessa maneira. desse primeiro custo entre as catego-
ela não resulta de um choque de ofer- dos já podem ser estimados. A redu- No entanto, não é geralmente des- rias de agentes institucionais que as
ta, por causa de entraves institucio- ção das horas trabalhadas em todo o se ângulo que se coloca a questão do sofrem, de outro. O Estado, como as
nais, tecnológicos ou decorrentes da mundo diminuiria, segundo a OIT, custo e de seu gerenciamento. Pas- empresas e as famílias, é diretamente
disponibilidade insuficiente de fato- em 6,7% no segundo trimestre de sando rapidamente dos vasos que- afetado pelas restrições de produção
res de produção (capital, trabalho e 2020: uma perda equivalente a 195 brados aos esforços que estão sendo e tem sua parte dessas perdas na for-
recursos naturais), nem de um colap- milhões de empregos em período in- feitos ou que serão realizados um dia ma de um déficit em seus ganhos fis-
so repentino da demanda, embora o tegral. De acordo com um estudo pu- para tentar colá-los novamente, so- cais (imposto sobre as empresas e so-
regime de formação da demanda ve- blicado pelas Nações Unidas,1 essa mos de imediato transportados para bre a renda, imposto sobre valor
nha sendo estruturalmente enfra- crise vai lançar 500 milhões de pes- o pé da montanha das dívidas públi- adicionado e sobre derivados de pe-
quecido há quarenta anos. Ela decor- soas na pobreza em razão da redução cas que os Estados e os sistemas de tróleo etc.). Em todo o mundo, isen-
re essencialmente de decisões da atividade e da perda de empregos. previdência social terão contraído ao ção de impostos e gastos sociais são
soberanas (e em menor grau das me- Em relação à pergunta “quem vai também passarem por esse choque e concedidos a empresas, bem como
didas de proteção tomadas indivi- pagar?”, uma parte da resposta já es- tentarem absorver os estragos e sofri- facilidades de empréstimo ou garan-
dualmente) que levaram ao fecha- tá diante de nossos olhos e não preci- mentos causados pela queda na pro- tias para este lhes são oferecidas, en-
mento brutal de setores inteiros do sa ser conjugada no futuro: os pri- dução. E quem vai pagar por isso? quanto medidas de apoio às famílias
aparelho produtivo. A Organização meiros custos da crise estão nas são mantidas ou reforçadas por meio
Internacional do Trabalho (OIT) esti- perdas imediatas da produção de UM NOVO CRASH da concessão de rendas de substitui-
ma que, em termos globais, “1,25 bi- bens e serviços (úteis ou fúteis, tóxi- Certamente, essa não é uma pergunta ção, sob a forma de seguro-desem-
lhão de trabalhadores, representan- cos ou não), que sem dúvida não se menos interessante que a primeira, prego (total ou parcial). Amanhã, sem
do cerca de 38% da mão de obra poderá reaver. Essas perdas são su- mas, se não vimos passar a primeira dúvida, a retomada das dívidas, das
mundial, estão empregados em seto- portadas pelas categorias de traba- fatura, a segunda (as dívidas de res- recapitalizações e das nacionaliza-
res que devem enfrentar atualmente lhadores cujos rendimentos dimi- ponsabilidade dos Estados) corre o ções será necessária para salvar as
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empresas em dificuldade (enquanto amortização de seu capital empresta- cessário para salvar a zona do euro” O economista passa em revista
o aparato de produção estará sempre do, mas o montante dos juros que ele – permaneceria aberto, como ocor- quatro soluções para responder à ex-
mais ou menos em boas condições de deve pagar anualmente a seus credo- reu ao longo de toda a chamada polí- plosão da dívida pública. A primeira
funcionamento) por causa do au- res. A questão, portanto, se torna: es- tica de flexibilização quantitativa. O consiste na rejeição de parte dessas
mento previsível de seu endivida- se custo será suportável a longo prazo fato de o BCE afirmar que está pronto dívidas públicas, uma opção que Ti-
mento. Este último, que já havia atin- para a coletividade e, caso contrário, para recomprar nos mercados de role parece evocar apenas para me-
gido níveis preocupantes antes da podemos nos livrar dele (e como)? ocasião todas as dívidas soberanas lhor afastá-la: a operação é julgada
crise do coronavírus, poderia subir de Por enquanto, as taxas de juros que fossem objeto de vendas excessi- “delicada” porque mancharia de for-
forma vertiginosa, fazendo prever fa- das dívidas públicas dos principais vas (causando uma pressão de alta ma permanente a reputação dos Es-
lências retumbantes. Em um estudo países da Organização para a Coope- nas taxas de juros dessas dívidas) e tados que resolveriam seu problema
premonitório de outubro de 2019 que ração e o Desenvolvimento Econô- de essas promessas serem evidencia- por meio dela. Eles não poderiam pe-
simulava uma recessão global da or- mico (OCDE) não dispararam. Espa- das por ações convincentes talvez dir empréstimos de novo tão cedo e,
dem de 4 pontos do PIB anual (ou se- nha, Portugal, Grécia e Itália ainda pudesse ser suficiente. Mas ninguém portanto, se veriam forçados a equili-
ja, em um nível de violência de cerca conseguem contrair empréstimos pode dizer no momento o que será o brar de imediato seus orçamentos, o
de metade daquele da crise financei- por dez anos a taxas nominais entre acúmulo das dívidas públicas nem a que apenas acrescentaria um choque
ra de 2008), o FMI conjeturava que o 1% e 2%. Para Estados Unidos, Ale- partir de que montante (120%, 150%, de demanda negativa num momento
montante global das dívidas corpora- manha, França, Japão e Reino Unido, 200% do PIB?) elas despertarão uma em que a economia realmente não
tivas classificadas como de risco au- eles permanecem abaixo de 1%: da- desconfiança de tal nível que até a precisa disso. Um impasse, então, na
mentaria acentuadamente em US$ 19 da a inflação, todos esses Estados perspectiva de um comprador em úl- visão de Tirole. Esse modo de opera-
trilhões, atingindo 40% do valor dos conseguem captar empréstimos a ta- tima instância deixaria de se tran- ção, que compromete as classes ricas
empréstimos de empresas privadas xas de juros reais próximas a zero ou quilizar. Esse ponto de inflexão po- e a renda, nem sempre teve, no en-
em 2021.2 Os cálculos devem ser refei- até negativas. O custo das dívidas deria ser bastante alto, tendo em vista tanto, as desvantagens que se acredi-
tos, uma vez que as perdas de produ- públicas poderia, portanto, perma- que não restam mais muitas opções ta ter. Em algumas vezes, permitiu
ção estimadas para a atual crise já são necer muito suportável – e ninguém concorrentes e reluzentes para tran- uma rápida recuperação dos Estados
duas vezes superiores a esse cenário teria de pagá-lo – se os atores finan- quilizar o poupador. No entanto, o que recorreram a ele.5
catastrófico. Os Estados emergirão, ceiros não entrassem em pânico cenário de um novo colapso de títu- A segunda solução envolve au-
portanto, dessa crise ainda mais en- diante do aumento das dívidas pú- los obrigacionista não deve ser des- mentar os impostos e reduzir os gas-
dividados que alguns meses atrás. blicas e não começassem a exigir dos cartado. Nesse caso, será necessário tos, para deixar mais distante a ne-
Antes de ver quem vai saldar essa Estados esse salário do medo (o me- pensar em como se livrar de parte cessidade de um novo endividamento:
soma, vamos esclarecer dois pontos. do: a principal força dessas pessoas dessas dívidas públicas ou neutrali- “Os Estados cobram impostos excep-
Primeiro, o custo da dívida assumido que às vezes gostamos de retratar co- zar seu ônus. Em suma, perguntar-se cionais dos mais ricos, por exemplo,
por um Estado não corresponde ao mo “riscófilos”). “Quem vai pagar?”. sobre o patrimônio, bem como, para
futuro pagamento de seus credores O que aconteceria e o que os Esta- atender às fortes necessidades das fi-
.

(em cinco, dez ou trinta anos). O Es- dos e as autoridades monetárias po- DIRIGENTES VÃO nanças públicas, da classe média”,
tado em geral consegue “rolar sua dí- deriam fazer se o pânico tomasse MUDAR DE POSIÇÃO? explica Tirole. Uma espécie de retor-
vida” e os credores trocam papéis ve- conta dos atores financeiros (fundos Nesse nível de gravidade da crise, al- no à austeridade de antes, mas mais
lhos por novos. Assim, os credores de pensão, fundos de seguro de vida, gumas chaves estão faltando na cai- bem distribuída, de que o autor não
são reembolsados, mas não sua dívi- fundos de poupança mútua e ban- xa de ferramentas ortodoxa. Propon- diz de fato o que pensa a respeito. A
da. Em segundo lugar, é preciso tran- cos) que administram a poupança do-se a responder à pergunta em um opção por uma melhor distribuição
quilizar os que estão preocupados das pessoas e das empresas? Se hou- artigo publicado no Les Échos,4 Jean ainda não é claramente a do ministro
com a disponibilidade dos fundos vesse pânico, seria sem dúvida seleti- Tirole – um dos expoentes franceses da Economia e Finanças francês,
necessários para acompanhar a as- vo e faria novamente que se abrisse o da teoria neoclássica (a corrente Bruno le Maire, que se contenta com
censão ao topo da necessidade de en- leque das taxas de juros cobradas dos principal da economia há cinquenta austeridade “a longo prazo”: “A longo
dividamento dos Estados. Como co- vários Estados da zona do euro. O Sul anos) e vencedor em 2014 do Prêmio prazo é necessário dispor de finanças
loca elegantemente o economista certamente seria mais ameaçado que do Banco da Suécia em ciências eco- públicas sadias e reduzir a dívida”,6
Bruno Tinel: “Se se pensa que há o Norte. Nesse caso, poder-se-ia pen- nômicas em memória de Alfred Nobel sem especificar quem estaria envol-
muitas dívidas, é preciso ser coerente sar que o “guarda-chuva” aberto pelo (conhecido, erroneamente, pelo no- vido nisso.
e dizer também que há muita Banco Central Europeu (BCE) em me de Prêmio Nobel) – se vê forçado a A terceira solução? A mutualiza-
poupança”.3 2012 – quando Mario Draghi, então ultrapassar os limites de sua doutri- ção de uma parte das dívidas públi-
O custo real do endividamento presidente da instituição, anunciou na e a pedir emprestadas algumas cas na zona do euro: os famosos “tí-
para o Estado não é, portanto, a que “o BCE faria tudo que fosse ne- ferramentas de seus vizinhos. tulos corona”, rejeitados pelos países
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do Norte poucos dias após a publica-


ção do artigo de Tirole. A ideia, no en- COMO ANTES
tanto, não seria ruim na situação em
que o aumento das taxas de juros en- No Le Journal du Dimanche de 19 de abril de 2020, François Villeroy de Galhau,
volvesse um número limitado de Es- governador do Banque de France, sugere o que acontecerá quando a crise sani-
tados, os quais teriam podido se be- tária diminuir: “A França emergirá desse choque com uma dívida pública aumen-
neficiar do grau de confiança mais tada em pelo menos 15 pontos do PIB, para 115%. A longo prazo, será preciso O olhar da cidadania
elevado desfrutado pela média das reembolsar esse dinheiro. O retorno do crescimento por nosso trabalho contribui-
dívidas soberanas. Obviamente, não rá para isso. Os antecedentes da história também podem levar a isolar a dívida
seria de nenhuma valia se a descon- vinculada ao coronavírus, a fim de só reembolsá-la bem depois. Mas também te-
fiança em relação às dívidas públicas remos de, sem frear a recuperação de curto prazo, lidar com aquilo que já era
se generalizasse. nosso problema antes da crise: com um modelo social similar ao de nossos vizi-
Resta a quarta solução, que Tirole
sugere ter sua preferência: a moneti-
nhos, estamos gastando muito mais. Portanto, será preciso procurar uma gestão
mais eficiente, sobretudo pelo fato de os franceses não desejarem pagar mais
Na luta
zação das dívidas (e não apenas a dos impostos. A Alemanha pode responder maciçamente ao choque atual porque
Estados), ou seja, sua recompra pelos soube reduzir sua dívida quando as coisas estavam melhores”.
bancos centrais. Tirole salienta que a
questão do reembolso não mais seria
François Villeroy de Galhau, governador do Banque de France, Journal du Diman-
che, 19 abr. 2020 pela
colocada: “Não há prazo formal para
reembolso pelos Estados; uma su-
posta recompra temporária pode se
tornar permanente”. No momento de
seria evidente. Mas não é esse o caso,
pelo menos do ponto de vista institu-
lução para aliviar o fardo das dívidas
acumuladas, envolvendo os donos de construção
pagar sua dívida com o BCE, um Es- cional. O obstáculo que bloqueia esse capital de maneira pouca violenta,
tado poderia emitir paralelamente caminho se mostra menos econômi- mas prolongada (ao ritmo de 2% a 3%
uma nova dívida junto aos atores fi-
nanceiros (para conseguir o dinheiro
necessário), dívida imediatamente
co, técnico ou institucional que polí-
tico: os líderes atuais teriam de con-
cordar com o que sempre alegaram
de erosão monetária ao ano).
Monetizar parte das dívidas pú-
blicas para destruí-las ou criar um re-
de uma
recomprada nos mercados secundá- ser impossível. No entanto, não é ho- gime de inflação salarial branda cer-

sociedade
rios pelo BCE. Uma dívida junto ao ra de rupturas? tamente são ideias que parecem
BCE tornada permanente, como uma Resta, porém, uma última solução iconoclásticas. Mas, como dizia o
linha de crédito renovada ad aeter- que Tirole não prevê: aquilo que con- economista britânico John Maynard
nam, seria, obviamente, uma preo- sistiria em criar (ou regenerar) no Keynes a propósito de seu país, se a

mais justa,
cupação a menos para os Estados. âmbito europeu um regime de “infla- crise que estamos enfrentando devia
.

Mas, e quanto ao pagamento dos ju- ção branda”, coordenando nossas po- continuar ou piorar, ela poderia levar
ros? Jean Tirole não diz nada sobre is- líticas salariais, de modo que ela pro- “os estadistas e gestores a limitar as
so. No entanto, talvez venha a ser ne- picie um novo dinamismo aos consequências mais graves dos erros
cessário inovar nesse caminho, sem aumentos de salários nominais (ou da educação que os formou, fazendo
o que o ônus real da dívida pública
permaneceria inteiramente.
seja, sem levar em conta a inflação).
Ao nos coordenar (governos, sindica-
coisas que são quase inconsequentes
diante de seus próprios princípios, na
solidária e
O mais simples seria com certeza tos, BCE), pelo menos no âmbito da prática nem ortodoxas nem heréticas,
considerar como perdas e lucros as zona do euro, esse regime de inflação algo já atestado por certos sinais”.7
dívidas recompradas pelo Banco
Central: uma forma combinada de
de origem salarial poderia permane-
cer sob controle. Essa poderia ser a
Entre estes, sem dúvida, deve-se in-
cluir o passo para o lado executado sustentável.
rejeição das dívidas públicas. Uma oportunidade para calibrar os ritmos por Jean Tirole, que exige, sem o afir-
solução desse tipo teria o mérito de de aumento dos salários nominais de mar, muitos outros sinais das insti-
não trapacear com nenhum agente maneira diferenciada, seguindo os tuições europeias, de seus líderes... e
privado (os quais teriam concordado países-membros (para reequilibrar “da educação que os formou”. 
com a recompra de seus títulos pelo as diferenças nas taxas de câmbio
BCE, desde que ele tenha pago o pre- reais acumuladas tendo em vista que *Laurent Cordonnier,  economista, é pro-
ço) e de não estimular a inflação, as desvalorizações não são mais pos- fessor da Universidade de Lille, França. Quartas, às 17h,
uma vez que a liquidez fornecida pe- síveis para eles). E isso a fim de res- Rádio USP (São Paulo: 93,7 FM
los agentes privados para resgatar taurar as “competitividades de cus- Ribeirão Preto: 107,9 FM)
seus empréstimos com os Estados tos” relativas e reabsorver os 1   A ndy Sumner, Chris Hoy e Eduardo Ortiz-Jua-
não aumenta sua riqueza nem cria desequilíbrios comerciais que são a rez, “Estimates of the impact of covid-19 on
rendas fictícias (não se trata de “di- consequência delas. global poverty” [Estimativas do impacto da
Covid-19 na pobreza global], documento de
Quartas, à meia-noite
nheiro de helicóptero”, de acordo Esse regime de inflação branda trabalho, Universidade das Nações Unidas, TV Aberta SP, canais 9 da NET, 8 da
com a imagem usada por Milton aliviaria o peso das dívidas públicas, Helsinque, 8 abr. 2020.
Vivo Fibra e 186 da Vivo.
2   R elatório Global de Estabilidade Financeira ,
Friedman para descrever o dinheiro em detrimento dos credores mais ri-
FMI, Washington, out. 2019.
que um Estado distribuiria à popula- cos. É sempre assim que se faz depois 3   B runo Tinel, Dette publique: sortir du catas-
ção na esperança de que, gastando-o, de uma guerra – não estamos em trophisme [Dívida pública: sair do catastrofis-
mo], Raisons d’agir, Paris, 2016.
ela dê novo impulso à economia). guerra? Os governos inicialmente fi-
4   “Jean Tirole: quatre scénarios pour payer la
Uma tal operação de rejeição combi- nanciam as despesas de armamentos facture de la crise” [Jean Tirole: quatro cená-
nada das dívidas públicas, realizada pedindo aos donos do capital que rios para pagar a conta da crise], Les Échos,
Paris, 4 abr. 2020.
em larga escala, teria obviamente o adiantem o dinheiro e lhes devolvem
5   Ler Renaud Lambert, “Dette publique, un siè- observatorio3setor
efeito de infligir perdas de ativos co- esse dinheiro alguns anos ou décadas cle de bras de fer” [Dívida pública, um século
lossais ao BCE, cujos fundos próprios depois... em uma moeda cujo poder de queda de braço], Le Monde Diplomatique,
2015.
se tornariam negativos, a um ponto de compra foi corroído. Não há medo
6   “Gérald Darmanin et Bruno Le Maire: ‘Le plan observatorio3setor
igualmente vertiginoso. Talvez che- de enganar os pobres nesse mesmo d’urgence révisé à 100 milliards d’euros’” [O
gue o dia em que todos terão de se movimento: eles não têm dinheiro. A plano de emergência revisado em 100 bilhões
de euros], Les Échos, Paris, 9 abr. 2020.
perguntar: isso realmente significa geração de uma inflação salarial
7   J ohn Maynard Keynes, La Pauvreté dans www. observatorio3setor.org.br
um problema? Se os Estados fossem branda, coordenada e diferenciada l’abondance [A pobreza em abundância], Gal-
forçados a resgatar o BCE, o impasse na zona do euro poderia ser uma so- limard, Paris, 2002.
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Oportunidade de acabar do Financial Times, os missais dos


evangelistas do mercado.
Segunda fonte de esperança: as

com o livre-comércio
fronteiras que delimitavam a “estru-
tura da razão” explodiram. Não há
mais nenhum plano do governo para
explicar: “Desculpe, não podemos to-
mar as medidas necessárias, porque
elas são contrárias às regras das
grandes organizações do comércio
Nos círculos liberais há apenas uma palavra de ordem: assim que a internacional”. As respostas que a
pandemia passar, tudo deve voltar a ser como era antes. E se, pelo contrário, ameaça da Covid-19 exige estão le-
vando os governos a jogar no tritura-
a crise oferecesse a oportunidade de romper com o modelo que favoreceu dor os grandes princípios que haviam
o aparecimento do coronavírus e sua propagação? embasado a globalização liberal. É
difícil imaginar um rápido retorno à
POR LORI M. WALLACH* situação inicial, até por causa do no-
vo papel que a pandemia está forçan-
do os governos a assumir.

A
pandemia da Covid-19 poderia faltando não conseguiriam se abaste- suas exportações, rapidamente surge
acabar com a era do livre-co- cer de matérias-primas, componen- a escassez de bens essenciais. MERCADO NÃO PODE
mércio frenético, esse regime tes e insumos. Um exemplo: a maio- Isso significa que muitas pessoas SER DEIXADO SÓ
econômico feito sob medida ria das cem peças que entram na agora estão descobrindo o desastre Muitos Estados estão pagando o pre-
para o setor privado que há anos fabricação de um respirador artificial que milhões de trabalhadores, pe- ço pelo que até então constituíra o
acarreta custos consideráveis para as não é produzida nos países onde os quenos agricultores e comunidades cerne de sua política: o não cumpri-
populações e o planeta. Interesses aparelhos são montados. Noventa por abandonadas já conheciam na beira mento de seu dever de proteger suas
poderosos se oporão a isso: eles vão cento das substâncias ativas dos pro- da estrada da globalização. populações. Em vez de deixar o setor
implorar pelo surgimento do “capita- dutos farmacêuticos são produzidas O sapo mergulhado em uma pa- privado ditar seu roteiro, alguns fi-
lismo de crise” para garantir que tu- em apenas dois países. nela não percebe que a temperatura nalmente decidiram fazer o que seus
do, amanhã, seja retomado como era A devoção ao “deus da eficiência” da água aumenta. Apenas uma catás- eleitores esperam deles: colocar as
antes. Muitos líderes políticos se que reina no topo do Olimpo do livre- trofe repentina foi capaz de despertar necessidades da população acima do
mostram desprovidos da coragem ou -comércio levou a uma busca por ca- todos aqueles que, até agora, podiam resto e intervir onde eles são
da imaginação necessárias para tra- pacidades não utilizadas. Sob essas considerar a ameaça distante. Mes- necessários.
.

balhar por essa transformação – condições, toda a cadeia é interrom- mo aqueles que se especializaram Há alguns meses teria sido difícil
quando não se colocam diretamente pida se uma de suas centenas de elos em falar sobre os benefícios da globa- imaginar uma epifania assim formu-
a serviço dos patrões. E, no entanto, é – uma empresa, em algum lugar do lização para defender acordos de li- lada por Sabine Weyand, diretora-ge-
possível identificar quatro razões pe- planeta – não tiver condições de fun- vre-comércio agora admitem que as ral de comércio da Comissão Euro-
las quais a crise da Covid-19 poderia cionar. Quando, num país, os traba- coisas sem dúvida foram longe de- peia. Foi o caso, durante um
oferecer uma oportunidade sem pre- lhadores adoecem, quando são ado- mais e que um modelo de produção seminário organizado pela Associa-
cedentes. Afinal, talvez seja chegado tadas medidas de distanciamento mais local ofereceria muitas vanta- ção Internacional de Comércio de
o momento para uma versão positiva social para limitar o contágio de um gens. Já não dá para contar os artigos Washington (Wita), em 9 de abril de
da “estratégia de choque”, esse meca- vírus, quando os governos colocam que advogam uma reversão desse ti- 2020: “Precisamos reconhecer que,
nismo descrito por Naomi Klein que as necessidades de seu povo acima de po nas colunas da The Economist ou no olho da tempestade, não podemos
muitas vezes permitiu aos dominan-
tes se aproveitar das crises para reor-

© SMax Böhme/Unsplash
ganizar o mundo ao seu gosto.
Primeira fonte de esperança: a
pandemia forçou a maioria das pes-
soas nos países desenvolvidos a ex-
perimentar, na carne, a dor e a an-
gústia que a globalização liberal gera.
Em um mundo moldado para atender
às multinacionais, mesmo os países
mais ricos não têm condições de pro-
duzir ou obter os respiradores, as
máscaras e os recursos médicos ne-
cessários para tratar os doentes. A in-
terrupção da produção em um país
causou uma reação em cadeia que
colocou os sistemas médicos e eco-
nômicos do mundo inteiro de joe-
lhos, agravando ainda mais os danos
causados pelo coronavírus.
Muitos bens essenciais são agora
produzidos em um, às vezes dois paí-
ses. Uma proporção considerável vem
da China e é extremamente difícil au-
mentar a produção em outros luga-
res. Com a organização de cadeias
produtivas globalizadas e extrema-
mente tensas, as empresas que qui-
sessem começar a produzir o que está Alguns Estados decidiram colocar as necessidades da população acima do mercado
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deixar o mercado gerenciar sozinho a dades públicas de atender às necessi- anunciar um programa de US$ 2 bi- para sobreviver. Os Estados, portanto,
alocação de recursos escassos. Te- dades de suas populações. lhões para ajudar suas multinacio- exigiram uma margem de manobra
mos de aceitar a ideia de que deve- Terceira fonte de esperança: a cri- nais a deixar a China.1 Antes da pan- que lhes permitisse determinar como
mos encaminhá-los para o setor da se abalou as linhas de divisões políti- demia, muitos países procuravam garantir o abastecimento de suas po-
saúde, em vez de permitir que os es- cas sobre a questão do livre-comér- uma maneira de aumentar suas ca- pulações, inclusive constituindo es-
peculadores tomem conta de tudo o cio, particularmente nos Estados pacidades de pesquisa e produção toques ou subsidiando determinadas
que podem”. Unidos. Em vez de uma divisão es- para contrariar a agenda da China produções. A lógica ainda é válida e
Weyand, porém, pede um retorno querda/direita, a pandemia revela 2025, o plano elaborado por Pequim deveria ser estendida a outros seto-
ao business as usual o mais rápido outra: populistas versus lobistas do para dominar as indústrias do futuro res-chave, como medicamentos e
possível. O comissário de comércio setor privado. Bernie Sanders e Eliza- (inteligência artificial, veículos ver- equipamentos médicos, em que as la-
Phil Hogan é mais ousado: propõe beth Warren são populistas de es- des, aeroespacial, tecnologias médi- cunas em termos de produção nacio-
iniciar negociações para remover to- querda. Eles pleiteiam o fim dessa cas etc.). A crescente preocupação nal e regional expõem alguns países a
das as restrições ao comércio de globalização calibrado de acordo com os esforços de Pequim para pro- uma extrema vulnerabilidade.
equipamentos médicos “de maneira com as preferências dos patrões. mover uma forma de autoritarismo Conhecemos bem o conteúdo da
a garantir que as cadeias de produção high-tech, sua prática do que alguns caixa de ferramentas das políticas in-
global possam operar livremente” comentaristas chamam de “mercan- dustriais nacionais, que parece ter
(discurso de 16 de abril de 2020). Ho- Muitas pessoas agora tilismo da inovação”2 e o desenvolvi- uma má fama em todos os lugares,
gan e os fanáticos da globalização se entenderam que, mento de suas capacidades militares exceto na China, onde demonstrou
opõem a qualquer esforço para relo- financiado por um enorme superávit seu sucesso. Ali encontramos: medi-
calizar a produção, que caricaturam
no regime de livre- comercial abalaram as posições da das tributárias que recompensam a
como uma busca fútil de “autarquia”. comércio, seu país não elite política e das autoridades de se- produção nacional e as indústrias
Mas a questão não é escolher entre estava em condição gurança nacional de muitos países verdes, por meio das deslocalizações;
globalização e autossuficiência. A de protegê-las em termos de política externa. medidas de regulamentação finan-
questão é que muitas pessoas agora Esses quatro motivos sugerem ceira que estimulam os investimen-
entenderam que, no regime de livre- que a crise da Covid-19 pode reali- tos produtivos, não a especulação;
-comércio, seu país não estava em No entanto, tal visão de mundo nhar as dinâmicas que estruturam os uma proteção dos conteúdos nacio-
condições de protegê-las. Elas não agora encontra eco entre os populis- debates em torno da organização da nais e regionais em vários setores;
vão esquecer isso. tas de direita: “Essa pandemia expôs economia mundial, e neste momento editais para incentivar o desenvolvi-
uma fenda do tamanho do Grand em que interessar-se por quem pro- mento de cadeias produtivas locais;
UMA FALHA DO TAMANHO Canyon em nossas cadeias de supri- duz o que, onde e como se torna uma regulamentos de propriedade inte-
DO GRAND CANYON mentos. Não fabricamos mais certos questão de vida ou morte. lectual que permitem o acesso a me-
Da mesma forma, os alegres discur- produtos essenciais em solo norte-a- Se conseguirmos fazer que a crise dicamentos e tecnologias baratas, es-
sos que divulgam os méritos do just mericano. Isso representa uma conduza a mudanças positivas, pode- timulando a inovação; promoção de
.

in time e da “eficiência máxima”, pois ameaça para nossa saúde, nossa se- remos reconstruir economias locais, pesquisas, treinamento de trabalha-
“todos se beneficiam”, agora soam gurança nacional e nossa economia. nacionais e regionais mais fortes, dores, aprendizes etc. A concretiza-
vazios: todos percebem que esse sis- Os norte-americanos não descobrem projetadas para operar com uma va- ção ou não dessas políticas não de-
tema visa, acima de tudo, maximizar esse problema, mas Washington o riedade de atores capazes de produzir penderá da falta de ideias, mas da
os lucros à custa da saúde, da retidão faz. Wall Street, por sua vez, esperava os bens e serviços necessários a pre- determinação política. 
e até da segurança nacional. que não fosse pega com a boca na bo- ços acessíveis, criar empregos decen-
Como sinal de que algo mudou, os tija”. Essas afirmações não foram fei- tes, apoiar a agricultura em pequena *Lori M. Wallach  é diretor do Public Citi-
ministros do Comércio dos países do tas por Sanders ou Warren, mas pelo escala e proteger o meio ambiente. zen’s Global Trade Watch, Washington, DC.
G20 publicaram em 30 de março de senador republicano Josh Hawley em Não é de surpreender que a crise cli-
2020 uma declaração explicando que 3 de abril de 2020. mática exija as mesmas mudanças. 1   K
 enneth Rapoza, “Japan ditches China in mul-
ti-billion dollar coronavirus shakeout” [O Japão
as medidas necessárias para comba- Quarta fonte de esperança: a ace- descarta a China em um abalo de bilhões de
ter a pandemia poderiam ser consi- leração de uma reavaliação generali- LIÇÕES QUE VÊM DA CHINA dólares em coronavírus], Forbes, Nova York, 9
deradas exceções legítimas às regras zada – pelos governos, mas também Lembremo-nos de que, até meados da abr. 2020. Disponível em: www.forbes.com.
2   Robert D. Atkinson, “The case for a national
da Organização Mundial do Comér- pela população – dos mitos que cer- década de 1990, as regras do comércio industrial strategy to counter China’s techno-
cio (OMC). O fato de tantas disposi- cam a organização econômica do internacional consideravam que os logical rise” [O argumento de uma estratégia
ções violarem os grilhões da institui- mundo e do papel atribuído à China alimentos não eram uma mercadoria industrial nacional para combater a ascensão
tecnológica da China], site da Information Te-
ção, em última análise, sublinha como oficina do planeta. Ilustração como qualquer outra. Por quê? Por- chnology & Innovation Foundation, 13 abr.
como esta última impede as autori- dessa reviravolta: Tóquio acaba de que todo mundo precisa de comida 2020. Disponível em: www.itif.org.
14 Le Monde Diplomatique Brasil  MAIO 2020

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EFEITOS TRÁGICOS PARA A VIDA E A ECONOMIA

Aos trancos e barrancos, nistro da Saúde e sua equipe técnica


vestidos todos com colete do SUS, is-
so que estavam atacando na véspera,

o Brasil diante da crise


dá bem a ideia do que é mais impor-
tante no momento em que a ameaça
chega em grande escala.
A priorização e a ordem do que
tem de ser feito são hoje bastante
claras, em particular observando os
Em termos de governo, o Brasil se caracteriza por uma balbúrdia total em relação erros e acertos de países atingidos
à capacidade organizada de enfrentar a pandemia. Precisamos de uma liderança forte pela pandemia antes de nós. O isola-
mento é a necessidade imediata,
e clara, unificadora da nação, já que trata de nosso desafio comum. O que temos, pois reduz o ritmo de propagação do
porém, é evidentemente um vazio de poder, brigas de egos e encaminhamentos e vírus. Com menos gente transmitin-
recomendações contraditórios do, reduz-se o crescimento expo-
nencial. Com o fechamento de mui-
POR LADISLAU DOWBOR* tas lojas e atividades econômicas em
geral, é preciso assegurar o básico
para as pessoas atravessarem a fase

U
m dos elementos mais signifi- vem em condições precárias, é as- das pessoas representam um custo crítica. Ou seja, dinheiro para as fa-
cativos desta crise é a imprevi- sustador. É o caso de bilhões no forte, mas limitado no tempo. No ca- mílias. A segunda prioridade ime-
sibilidade. Simplesmente não mundo, e estamos na fase inicial de so norte-americano, o atraso em to- diata é reforçar a capacidade de ação
sabemos qual é a profundidade espraiamento na África e em outros mar as medidas de isolamento, mes- dos serviços de saúde, sobretudo do
do poço. Até agora o vírus está se es- países com baixas condições de pre- mo com travamento econômico, SUS, tanto com financiamento
praiando a partir do andar de cima venção e tratamento. levou a uma generalização da conta- quanto com reconversão produtiva
da sociedade, de pessoas que têm co- É fato também que em nenhum minação e consequentemente a um para assegurar máscaras e equipa-
mo se isolar e se proteger, e está se lugar o vírus parou de se manifestar. travamento econômico muito mais mentos de proteção individual em
alastrando de maneira ainda conti- O que se conseguiu na Alemanha, por amplo. Assim terminamos não resol- geral. Como os custos são crescen-
da. Mas, ainda que seja de letalidade exemplo, foi baixar o índice de conta- vendo nem o problema da saúde nem tes, todo atraso em garantir esses re-
relativamente baixa, se espraia de minação para 0,8, ou seja, em vez de o da economia. cursos significa maiores sacrifícios
maneira extremamente fácil, e o po- uma pessoa contaminar três, conta- O caos político teria menos im- na frente. Passar semanas discutin-
tencial é dramático. À medida que o mina em média menos de uma, per- pacto se pelos menos deixasse fun- do se e quanto dinheiro se destinará,
número de atingidos aumenta e a mitindo uma situação de relativo cionar um comando nos próprios de que forma e beneficiando quem
.

contaminação penetra em zonas ha- equilíbrio entre as novas manifesta- serviços de saúde. Como o coronaví- leva a que o vírus se espraie. A inép-
bitacionais onde as pessoas têm pou- ções e os meios disponíveis para tes- rus não tem cura nem vacina, em cia do comando no nível superior da
ca possibilidade de se proteger, seu tar as pessoas e eventualmente tratá- grande parte as medidas são de orga- nação tem efeitos trágicos em ter-
controle fica muito mais difícil. Em -las nos hospitais. A capacidade nização social, portanto preventivas, mos de vidas e de economia.
média, uma pessoa contamina ou- econômica, de infraestruturas e de freando o ritmo das contaminações Em paralelo, é preciso sustentar a
tras três. O processo é exponencial. organização da Alemanha é relativa- para que fiquem dentro de uma di- economia. As lojas fecham, e em con-
A China, a Coreia do Sul e a Ale- mente excepcional. O mundo, desse mensão passível de gestão pelo siste- sequência as pessoas não compram,
manha conseguiram conter o es- ponto de vista, não é como a China ma existente de saúde. A troca de mi- as empresas não recebem encomen-
praiamento, mas com medidas de nem como a Alemanha. nistros e a intervenção politiqueira das do comércio e os fluxos salariais
isolamento e de identificação preco- Neste final de abril de 2020 – e os permanente aumentam radicalmen- se interrompem. É preciso lembrar
ce dos contaminados muito fortes. artigos que escrevemos no caso pre- te a vulnerabilidade do país. O presi- que já antes do isolamento as empre-
Os Estados Unidos, a Itália, a Grã- sente precisam ser datados –, em ter- dente chamando a população a reto- sas no Brasil estavam trabalhando a
-Bretanha e outros estão patinando, mos de governo, o Brasil se caracteri- mar as atividades, como se ele menos de 70% da capacidade, fruto
pois começaram a tomar medidas sé- za por uma balbúrdia total em relação estivesse a favor da economia e os do dreno da renda da massa da popu-
rias quando a contaminação já esta- à capacidade organizada de enfren- que combatem o vírus não, é uma ati- lação em proveito das elites. Conhe-
va se generalizando. O Brasil, que ti- tar a pandemia. Seria o momento em tude de baixo nível: sabendo que cemos o “conjunto da obra”: juros as-
nha a vantagem de já conhecer seus que precisamos de uma liderança muita gente no andar de baixo não tronômicos, teto de gastos, reforma
impactos e as medidas que funcio- forte e clara, unificadora da nação, já tem como se isolar e precisa ganhar da Previdência, perda de direitos tra-
nam em diversos países, pela entrada que trata de nosso desafio comum. O seu pão, ele aparece como estando do balhistas, desarticulação dos sindi-
mais tardia do vírus, podia ter se con- que temos, porém, é evidentemente seu lado. É de uma demagogia revol- catos, quebra das finanças estaduais
centrado em medidas drásticas nos um vazio de poder, brigas de egos e tante; não busca ajudar o país e tenta e municipais, e assim por diante.
focos iniciais, mantendo o espraia- em particular encaminhamentos e ficar bem na foto com sua turma. O desemprego tinha subido de
mento sob controle enquanto estava recomendações contraditórios, se- O trunfo que o Brasil tem para se cerca de 5% na fase distributiva de
limitado a algumas cidades. Eviden- gundo setores do governo e inclusive proteger é o SUS. Como é universal e Lula-Dilma para mais de 12% depois
temente não foi o que aconteceu. segundo posições políticas. gratuito, com capilaridade organiza- que os banqueiros assumiram. Mas o
A massa da população no andar Montou-se assim um confronto cional, cobrindo todo o país, está aju- drama é muito maior: além dos 13
de baixo não tem como deixar de tra- absurdo entre proteger as pessoas ou dando muito na detecção dos casos e milhões de desempregados, temos 40
balhar e de ter contatos, isso sem fa- a economia. Na gritaria política fica em seu encaminhamento, aconse- milhões de pessoas no setor infor-
lar de milhões que não têm acesso a abafada a voz dos únicos que enten- lhamento das famílias e resgate da mal, onde a renda em média é a meta-
água corrente. O mundo carcerário é dem como combater uma pandemia, coerência de ações na base, em con- de do que assegura o emprego for-
muito ameaçado, e se trata no caso que são os médicos e os serviços de traste profundo com os bate-bocas mal. Somando o desemprego e a
brasileiro de quase 1 milhão de pes- saúde em geral, especialmente o do nível político. Depois de tanto di- informalidade, são 53 milhões de
soas. As estatísticas do que está SUS. Aqui o Brasil reproduz com zerem que o SUS é ineficiente, de ti- pessoas em situações precárias, para
acontecendo na Europa e nos Esta- atraso os erros dos Estados Unidos. A rarem R$ 20 bilhões de seu orçamen- uma força de trabalho de 105 mi-
dos Unidos mostram a elevadíssima lógica é simples: na fase inicial, to em 2019 e de entupirem as lhões, praticamente a metade. O Bra-
letalidade entre idosos. Como se es- quando a contaminação se manifes- televisões de propaganda dos planos sil já sofre há tempos de uma imensa
praiará o vírus, com que impactos ta apenas em alguns pontos, o fecha- privados de saúde, a ordem agora se subutilização de sua força de traba-
sistêmicos, uma vez que atinja os mento drástico e generalizado de ati- inverteu. Ver numa conferência de lho, e, para as dezenas de milhões de
mais de 100 milhões que no Brasil vi- vidades econômicas e o isolamento imprensa um temporariamente mi- pessoas que literalmente “se viram”
MAIO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 15
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© Vitor Flynn
para sobreviver, quando se acrescen- ceiros. Em 2019, esse fluxo nos custou
ta o choque econômico do vírus, a si- R$ 310 bilhões, equivalentes a dez ve-
tuação fica dramática. zes o Bolsa Família. A PEC 10/2020
Assim, além de uma renda ime- desvincula uma série de gastos que o
diata para as famílias e do financia- governo queira fazer dos limites or-
mento ampliado para os serviços de çamentários, “exceto os recursos vin-
saúde, é necessário assegurar um culados ao pagamento da dívida pú-
fluxo de caixa para as empresas, em blica” (parágrafo 6). Não se toca na
especial milhões de pequenas e mé- imensa mama que desde 1996 sus-
dias empresas (PMEs) – e entre elas a tenta o rentismo improdutivo no Bra-
agricultura familiar, que produz o es- sil. Introduziram um “teto de gastos”,
sencial de nossos alimentos –, para em vez do teto de juros.
que possam funcionar, ainda que em Os trilhões de dólares para as
ritmo reduzido. Aqui é necessário as- corporações nos Estados Unidos di-
segurar a gestão de como e para namizaram a Bolsa, e é muito im-
quem se deve priorizar os recursos. pressionante ver a economia afun-
Os US$ 350 bilhões disponibilizados dando enquanto os dividendos para
pelo governo norte-americano para acionistas sobem. 2 As pessoas em ge-
as PMEs se esgotaram em poucos ral pensam que a Bolsa sobe quando
dias, e as tensões continuam. a economia vai melhor. Mas, quando
O que algumas pesquisas recentes o rentismo aumenta, há menos di-
mostram, no plano internacional, é a nheiro para investimentos produti-
mudança do perfil de consumo da vos. O modesto trilhão de reais dis-
população. De repente já não é tão es- ponibilizado essencialmente para
sencial comprar a bolsa Louis Vuitton “os mercados” no Brasil tem um efei-
ou a caneta Montblanc, sem falar de to semelhante. Esse mundo não se
outras superficialidades. As pessoas interessa nem pela saúde nem pela
estão começando a pensar, afinal, economia: interessa-se pelo rendi-
nas coisas de que realmente preci- mento financeiro.
sam. Esse choque relativo ao consu- A carta branca que a PEC deve en-
mismo surrealista é uma mudança tregar ao governo preocupa: temos
cultural significativa, e, em termos de um banqueiro na economia, outro no
amenizar o choque da pandemia, é sários para reativar a economia. De- tos complementares, prática que, Banco Central, num sistema de go-
.

importante dar suporte às empresas viam melhorar as condições de mi- junto aos crediários das grandes lojas verno já há seis anos controlado por
que produzem aquilo de que as pes- lhões de famílias que estavam – cobrando em média 75% ao ano –, banqueiros, paralisando o país. Não
soas realmente necessitam. perdendo a casa por causa das formas leva a que tivéssemos, na véspera da esperaram a pandemia. Michael
O pacote de R$ 1,2 trilhão que o irresponsáveis de concessão de crédi- crise atual, 64 milhões de adultos Hudson, ao analisar o sistema em
governo apresenta é profundamente to. Evidentemente, o dinheiro não “negativados”, ou seja, incapazes de boa parte semelhante instalado nos
desequilibrado. Para cerca de 50 mi- saiu dos bancos, permitindo aumen- pagar seus débitos. Se acrescentar- Estados Unidos, chamou sua obra de
lhões de pessoas que deverão receber tar os bônus e os dividendos, com al- mos as crianças, trata-se de algo co- Killing the Host, literalmente “matan-
R$ 600 durante três meses, é sem dú- gumas demissões devidamente sua- mo 40% da população brasileira. Co- do o hospedeiro”, referência a bacté-
vida positivo, mas isso representa vizadas com os “paraquedas de ouro”, mo ordem de grandeza, na véspera da rias irresponsáveis que matam quem
apenas uma parte daqueles que ne- como foram chamados. Em nosso ca- crise, o que o sistema bancário ex- infectam. Em muitos aspectos, as
cessitam de ajuda. Trata-se, na pro- so não há menção de contrapartidas traía das empresas e das famílias, bactérias e os vírus têm efeitos seme-
posta, de cerca de R$ 100 bilhões, me- em relação a centenas de bilhões de portanto sobre dívidas do setor pri- lhantes. Teremos de tratar de ambos,
nos de 10% do pacote. É ridículo reais repassados aos bancos. vado, sob forma de juros, representa- se possível simultaneamente. 
diante do montante geral. Grande O segundo problema é que os va 15% do PIB.
parte do restante não é dinheiro bancos perderam no Brasil a cultura Esse mecanismo, que tira uma *Ladislau Dowbor é professor da Pós-
aportado pelo governo, e sim suspen- de prestação de serviços financeiros massa imensa de recursos das famí- -Graduação em Economia Política da PUC-
são de pagamento de taxas, tributos e tanto a pessoas jurídicas como a pes- lias e das empresas e os transforma -SP e autor de mais de quarenta livros so-
outras contribuições que as empre- soas físicas. Os gerentes de crédito, em lucros financeiros, paralisou a bre desenvolvimento econômico e social.
sas não teriam como honrar. que em outras épocas se apoiavam economia, que, só para lembrar, está Seu último livro, A era do capital improduti-
Causa maior preocupação o fato em economistas para analisar as estagnada desde 2013/2014, quando vo, está disponível online gratuitamente, in-
de a massa de dinheiro ser repassada reais necessidades ou viabilidade dos começou a guerra. Quando se tira di- clusive em curtos vídeos, em http://do-
para os bancos, com a esperança de pedidos de financiamento, hoje ape- nheiro das famílias, reduz-se a de- wbor.org. Além disso, a obra foi tema do
que eles, por sua vez, repassem para nas drenam o máximo possível. Em- manda, o que trava as empresas, que episódio #06 do Guilhotina, o podcast do
as empresas e as famílias. É dinheiro purram até mesmo seguros e outras já estavam sendo enforcadas pelos Le Monde Diplomatique Brasil. Contato:
público, em grande parte transferido “reciprocidades”. Faz parte do que altos juros sobre pessoa jurídica. É ldowbor@gmail.com.
para bancos por meio da compra dos Marjorie Kelly chama de “capitalis- forte o comentário de um empresário
chamados “títulos podres”, papéis mo extrativo”. A Associação Nacional de que “realmente está mais barato
como dívidas de difícil recuperação dos Executivos de Finanças, Admi- eu contratar, mas para que vou con- 1   A nefac, Pesquisa de Juros, mar. 2020. A pes-
quisa aponta juros médios nos bancos de
que passarão para as mãos do gover- nistração e Contabilidade (Anefac) tratar se não tenho para quem ven- 96,49% ao ano para pessoa física e 45,43%
no, enquanto o dinheiro ficará com apresenta os juros efetivamente pra- der?”. O empresário produtivo não para pessoa jurídica, nos dois casos “a maior
os bancos. Magicamente, o dinheiro ticados para empresas nas agências precisa de discursos ideológicos, mas taxa de juros desde dezembro de 2013”. Nos-
sa mídia comercial só repete que os juros fo-
aqui passa a se chamar “liquidez”, e a bancárias: em fevereiro 2020, uma de pessoas com dinheiro para ter pa- ram reduzidos. Disponível em: https://bit.ly/
capacidade de controle de seu uso é média de 45%. Quem pode tocar um ra quem vender e de crédito barato Anefac-mar_2020.
muito baixa. São nossos impostos. negócio pagando juros desse porte? para poder investir. No Brasil, ele não 2   Como explica Dean Baker, economista sênior
do Centro de Pesquisa Econômica e Política
É essencial a questão das contra- Na Europa, esses juros se situam en- tem nem uma coisa nem outra. em Washington: “A alta recente significa que
partidas. Os trilhões de dólares que o tre 2% e 5% ao ano.1 Do lado da dívida pública, a partir os investidores estão apostando que o Con-
governo norte-americano repassou Pessoas físicas no Brasil pagam de 2015 explodiu o volume de recur- gresso e Trump lhes deram muito dinheiro”. Jon
Schwarz, “Coronavírus: nos Estados Unidos,
para os bancos durante a crise de 96% ao ano. Os gerentes de crédito sos do Estado transferidos para os mercado de ações dispara enquanto america-
2008 foram justificados como neces- são estimulados a empurrar produ- bancos e grandes aplicadores finan- nos morrem”, Intercept Brasil, 15 abr. 2020.
16 Le Monde Diplomatique Brasil  MAIO 2020

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O AUXÍLIO EMERGENCIAL

Uma via expressa para a capaz de abranger toda a população


brasileira, mas que pode ter na crise
atual uma janela de oportunidade

renda básica universal?


para alcançar ganhos relevantes. Tal
como no caso da renda básica, o au-
xílio emergencial é pago em dinhei-
ro, individualmente e de forma regu-
lar pelos meses da pandemia, para
maiores de 18 anos, e é totalmente in-
Apesar do desmonte de políticas sociais dos últimos anos, os R$ 600 destinados condicional depois que a pessoa é
aos trabalhadores informais desempregados durante a pandemia reforçam a prevalência considerada elegível. A política não é
universal, mas não se pode negar que
das transferências de renda como meio versátil para alcançar diferentes dimensões o fato de alcançar mais de 50 milhões
das necessidades humanas de pessoas, assim como o Bolsa Fa-
mília faz, a coloca na direção da ex-
POR LEANDRO TEODORO FERREIRA* pansão das políticas de proteção so-
cial em sentido universalista.
Em que pesem suas evidentes li-

E
© Tania Rego/Agência Brasil
m setembro de 2018, António mitações, é possível afirmar, portan-
Guterres proferiu seu primeiro to, que se trata de uma renda básica
discurso como secretário-geral emergencial e parcial com semelhan-
da ONU para a Assembleia das ças em relação à renda básica. Não te-
Nações. Ao falar das mudanças no ria sido assim se dependesse apenas
mundo do trabalho no século XXI, do governo de Jair Bolsonaro, que
afirmou que será importante que os propôs um benefício por família de
governos ao redor do mundo fortale- R$ 200 por três meses. Uma coalizão
çam sua rede de proteção social, le- ampla, encabeçada pela Rede Brasi-
vando em conta a possibilidade de leira de Renda Básica, Coalizão Negra
adotarem para isso uma renda básica por Direitos, Nossas, Instituto Ethos
universal. No ano 2000, Philippe van e Inesc, mobilizou a sociedade e rea-
Parijs, filósofo belga tido como gran- lizou uma campanha pela aprovação
de pensador do tema, apresentou do benefício emergencial.2 Ainda que
uma contribuição intitulada “Renda Bolsonaro e sua equipe tenham difi-
.

básica: renda mínima garantida para cultado a negociação e a efetivação


o século XXI?”1 a um seminário da Transferências de renda são um meio para alcançar as necessidades humanas dessa política, o resultado pode ser
União Europeia destinado a levantar celebrado pelos defensores de uma
alternativas de combate à pobreza. formas de controle, como a obriga- básica universal faz questão de lem- renda básica como uma vitória há
Naquele ano, Guterres era o chefe do ção de adotar comportamentos rela- brar que essa não é uma ideia nova. muito aguardada diante de um go-
governo português, então na presi- cionados ao mercado de trabalho, Pelo contrário: a produção de teóri- verno que removeu mais de 1,2 mi-
dência da UE, e o texto de Van Parijs como procurar emprego ou ser força- cos, filósofos e economistas remonta lhão de famílias do Bolsa Família en-
assentou as bases conceituais para a do a aceitar alternativas pouco a séculos de acúmulo sobre as formas tre maio de 2019 e março de 2020.
proposta que há anos se desenvolve. atraentes. A melhor expressão disso de prover por meio do dinheiro con- Apesar do desmonte de políticas
A renda básica atrai atenção e con- está no filme Eu, Daniel Blake, de dições mínimas de sobrevivência à sociais dos últimos anos, os R$ 600
centra embates acalorados em fun- Ken Loach (2016), que demonstra o população em geral. destinados aos trabalhadores infor-
ção de seus atributos mais conheci- drama do personagem principal na Já há alguns anos a renda básica mais desempregados durante a pan-
dos, de se propor universal e de ser tentativa de receber benefícios so- passou a ocupar a agenda sobre me- demia reforçam a prevalência das
paga de forma incondicional. A uni- ciais do governo. didas que possam garantir seguran- transferências de renda como meio
versalidade responde ao direito de Há outras características funda- ça econômica diante da crescente au- versátil para alcançar diferentes di-
participação na riqueza socialmente mentais no debate clássico sobre a tomação dos processos produtivos, mensões das necessidades humanas.
produzida, acumulada por alguns em renda básica. Trata-se de um paga- que elimina empregos e precariza É impensável considerar que isso se-
detrimento da sociedade em função mento realizado em dinheiro. trabalhadores. A crise atual pode ser ria possível sem os instrumentos de
de arranjos como o da propriedade Cupons, vouchers e vales são meios um ensaio para uma necessidade que identificação da pobreza como o Ca-
privada. Há também razões práticas de pagamento limitados a um núme- se aproxima. Resgatar as referências dastro Único, o alcance do Sistema
que a justifiquem como a melhor for- ro reduzido de atores do mercado ou conceituais em torno do tema será Único de Assistência Social e a pre-
ma de superar o estigma da pobreza e destinados à aquisição de bens pre- fundamental para avaliar se progra- servação de bancos públicos, como a
a ineficiência gerados por esquemas definidos. Cestas básicas seguem o mas emergenciais, como o aprovado Caixa Econômica Federal. Conside-
tradicionais de garantia de renda. mesmo raciocínio. O dinheiro permi- pelo Congresso Nacional brasileiro rar, portanto, que o auxílio emergen-
A incondicionalidade, por sua te maior autonomia e fortalece as es- para combater os efeitos econômicos cial é um passo a mais na direção da
vez, garante que o acesso à renda seja colhas individuais. A renda básica impostos pelo coronavírus, nos apro- renda básica reforça, ao mesmo tem-
livre de obrigações e sanções, muitas tem também regularidade e periodi- ximam daquilo que uma economia po, o raciocínio de expansão perma-
vezes marcadas por arbitrariedades cidade preestabelecida, o que garan- política que atravessa escolas de pen- nente do Bolsa Família nesse sentido
na relação do Estado com o cidadão. te que seus beneficiários tenham pre- samentos tem trabalhado ao longo por meio de sua lógica de adicionar
Naturalmente, fazemos a associação visibilidade e horizonte de futuro dos anos. cada vez mais beneficiários.
de que as condicionalidades equiva- sobre recursos disponíveis para sua A proposta de auxílio emergencial Na prática, os programas voltados
lem às regras do Programa Bolsa Fa- existência. Por fim, seu pagamento se oferece a chance de um salto no aper- aos miseráveis, e ainda incapazes de
mília relacionadas à frequência em dá de forma individual, o que signifi- feiçoamento das políticas de transfe- solucionar as desigualdades do país,
serviços como educação e saúde, ca que a categoria e o valor recebido rência de renda tal como elas exis- alinham-se à agenda de proteção so-
que, em verdade, deveriam ser um não variam em função da condição tem. Aproximar essa proposta de cial do Brasil estabelecida há quase
direito de todos, e não uma sujeição a familiar, seja de renda, seja de víncu- uma renda básica passa por com- duas décadas, quando o país ganhou
verificação permanente e penalida- lo profissional. preender qual é a melhor forma de in- uma lei para instituir uma Renda Bá-
des. Os sistemas de proteção social Ao redor do mundo, mesmo antes cidir na transformação de um siste- sica de Cidadania, de autoria de
avançados são marcados por outras da Covid-19, o debate sobre a renda ma de proteção social que nunca foi Eduardo Suplicy, hoje celebrado de
MAIO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 17
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POR QUE BOLSONARO ADOTOU A LÓGICA DE NEGAR A PANDEMIA

forma quase incontestável em rela-


ção à sua luta pela garantia de renda
no país. A Lei n. 10.835, sancionada O arsenal bolsonarista:
conflito e caos como
por Lula em 2004, determina que a
universalidade será alcançada por
etapas, começando pelos mais po-
bres, abrindo margem para afirmar

métodos da ação política


que é isso que faz o Bolsa Família e,
agora, o auxílio emergencial.
Uma das formas de resolver essa
questão será a avaliação que a popu-
lação beneficiária da política do tem-
po de crise fará de sua importância.
Uma das questões fundamentais pa- A natureza e a estratégia das ações bolsonaristas envolvem criar fatos, medidas e
ra o movimento por uma renda bási- declarações que aparentam confrontar normas e poderes estabelecidos. É por meio
ca, que precisa ampliar seu alcance e
estruturar-se junto aos milhões atin- do confronto e do caos, portanto, que o bolsonarismo mobiliza, responde às suas bases
gidos pela primeira vez por algo des- e ganha espaço e poder na sociedade. Assim, situações de caos e de desmanche
sa natureza, será se a marcha pela institucional podem alargar a influência e o poder do presidente
renda básica ganhou impulsos que a
tornem irrefreável. É certo que a pró- POR VINICIUS DO VALLE*
pria mudança do mundo do trabalho
e crises disruptivas, como o colapso

U
ambiental, que há anos já se anuncia, m dos poucos consensos na in- da nomeação de Joaquim Levy ini- escândalos de corrupção da direita
podem moldar a proteção social ne- terpretação do período político ciou um forte ajuste fiscal recessivo, tradicional e que sua interpretação
cessária no século XXI. atual é a avaliação de que o go- entendido por muitos setores pro- de que haveria uma hegemonia es-
Os liberais, que por anos defende- verno Bolsonaro corresponde a gressistas como um estelionato elei- querdista do mundo podia ser vista
ram medidas de focalização, mas que um momento particular na história toral; (ii) a forte crise econômica que como uma crítica a todo o sistema
corretamente não deixaram de se so- brasileira. Tanto em leituras de aca- assolou o país, gerando milhões de político e às instituições da socieda-
mar à defesa da renda básica para o dêmicos como na dos atores políti- desempregados; e (iii) a Operação La- de civil brasileira. Ela, então, influen-
período de crise, precisarão com- cos, da esquerda à extrema direita, a va Jato, que, com métodos pouco or- ciou o nascimento de novos grupos,
preender que a estabilidade econô- constatação dessa singularidade está todoxos, trouxe à tona um gigantesco movimentos e atores políticos, entre
mica que tanto almejam para a eco- presente. Por conta desse ineditismo escândalo de corrupção, associado eles o bolsonarismo, que até 2018 era
.

nomia não deve servir apenas aos de escolhas e práticas pouco usuais, principalmente às gestões petistas apenas a versão radical e tosca do an-
investidores, em especial do mercado que contrariam a lógica dos incenti- no governo federal. tipetismo, do pensamento antissiste-
financeiro. Reduzir a incerteza para vos institucionais e econômicos, Bol- Com a base social lulista abalada ma e do autoritarismo sempre pre-
pessoas que lidam todos os dias com sonaro muitas vezes é interpretado em meio a uma crise econômica bru- sente em nossa história política. As
as dificuldades e aflições da vida real como sendo irracional e suicida, e já tal que acabou sendo associada e vis- eleições presidenciais daquele ano
também é um mérito da renda básica teve até mesmo sua sanidade mental ta como consequência da corrupção marcaram o momento de aglutina-
que deve ser expandido. questionada. que a Lava Jato revelara, o lulismo vi- ção de todos esses movimentos em
O coronavírus tornou a humani- O presidente, no entanto, não é venciou uma tempestade perfeita, torno de Bolsonaro, que acabou se
dade testemunha de mudanças ime- louco, ainda que manifeste caracte- coroada com a retirada do poder da tornando a única opção viável eleito-
diatas que poucas gerações presen- rísticas associadas à psicopatia e que, ex-presidenta Dilma, em um proces- ralmente do campo conservador.
ciaram. Para a renda básica, que ultimamente, segundo informações so de impeachment até hoje contro-
pertencia ao rol de utopias que sem- de bastidores, esteja apresentando verso. Mas, em meio a esse processo, LÓGICA ANTISSISTEMA
pre precisaram se defender contra a crises de insônia, cansaço e pânico. não foi só o PT que ganhou rejeição e E EMBATE CONSTANTE
acusação de se tratarem de uma ex- Não é com base na loucura e em atri- ódio de uma grande camada de bra- Caso Bolsonaro normalizasse seu
centricidade, foi aberta uma via ex- butos morais que podemos entender sileiros, e sim todo o sistema político comportamento ao chegar à Presi-
pressa para avançar sem que esteja as ações do governo Bolsonaro, e sim e partidário, inclusive os partidos de dência da República, adequando-se
certo o destino final dessa jornada. O com base em seus interesses e méto- oposição, compostos por forças tra- às normas, ao decoro do cargo, à ne-
tensionamento político no qual esta- dos políticos. E, sim, as ações do pre- dicionais da política brasileira que, gociação política e ao discurso amplo
mos imersos mantém em aberto o fu- sidente e do movimento que encam- além de nunca terem despertado pai- e politicamente correto, ele seria vis-
turo da proteção social. O que temos pa possuem método e lógica, ainda xões, estavam também denunciadas to como traidor por sua base social –
como certo é que esse futuro deve que singulares. em peso por corrupção. como se tivesse se convertido em
deixar para trás o estado de normali- Para entender o bolsonarismo é Nesse contexto, novos atores parte do “sistema”. A antropóloga
dade anterior.3 Uma renda básica, preciso analisá-lo a partir do contex- emergiram e ganharam força no ce- Isabela Kalil nos mostra, com base
universal, incondicional e perma- to em que ele emergiu: um momento nário político. Vale lembrar que a em suas pesquisas com militantes de
nente pode estar no horizonte de de forte polarização ideológica, em cientista política Camila Rocha nos extrema direita, que, em momentos
quem se preocupa com a cidadania, a que o antipetismo radical e a rejeição mostra que, ainda nos anos Lula, na de ensaio de normalização e negocia-
dignidade e a liberdade humana.  ao sistema político vigente se torna- segunda metade da década de 2000, ção política, Bolsonaro costuma ser
ram características centrais do am- uma nova direita já vinha germinan- criticado por setores de sua base que
*Leandro Teodoro Ferreira  é mestre em biente político brasileiro. As manifes- do no cenário nacional. Esse novo esperam do presidente mais radica-
Políticas Públicas pela UFABC e presiden- tações de junho de 2013, iniciadas movimento se diferenciava da direita lismo e enfrentamento. Em meio a
te da Rede Brasileira de Renda Básica. pela esquerda e, posteriormente, am- tradicional e tinha como principal esse jogo, Bolsonaro procura manter
pliadas com a entrada de atores à di- característica a junção do ideário do sua imagem de político diferenciado,
reita, marcaram o início desse perío- ultraliberalismo econômico com a em guerra contra um sistema pode-
1   P hilippe van Parijs, “Renda básica: renda mí- do. Em seguida, o conjunto de três avaliação de que existia uma hege- roso que, conforme nos mostra o filó-
nima garantida para o século XXI?”, Estudos
Avançados, v.14, n.40, 2000. elementos criaram a tempestade per- monia cultural de esquerda no país, sofo Marcos Nobre, passa a ser enca-
2   Ver: www.rendabasica.org.br. feita para a desorganização da políti- que precisaria ser combatida. Essa rado como toda a esfera institucional
3   Tatiana Roque e Leandro Ferreira, “Renda bá- ca e do tecido social de então: (i) o ca- nova direita encontrou terreno fértil da democracia brasileira e a maioria
sica, antes folclórica, vira medida essencial
para enfrentar crise do coronavírus”, Folha de valo de pau na política econômica do para crescer no contexto do pós-2013, dos políticos que a representa. O con-
S.Paulo, 30 mar. 2020. governo Dilma Rousseff, que a partir já que ela não podia ser associada aos flito constante é parte do DNA bolso-
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narista e, por esse motivo, conforme desse fenômeno de deterioração. tão, como sendo tanto uma parte do ções e a grupos considerados inimi-
argumentei em artigo online no Le Diante desse quadro, pensam que a “sistema” quanto elementos da “he- gos, em meio a uma narrativa criada
Monde Diplomatique Brasil (2 abr. solução deveria ser a aproximação gemonia esquerdista mundial” que em que sempre há uma grande cons-
2020), situações de caos favorecem e dos evangélicos com a política insti- precisaria ser derrotada. É importan- piração que necessita ser desmonta-
alimentam o bolsonarismo. tucional e o fortalecimento de figuras te um olhar atento para a composição da pelo capitão e suas forças patrióti-
Não por acaso, os grupos sociais fortes de direita que romperiam a he- dessa base: ela abarca setores tanto cas. Tão importante quanto
em que o bolsonarismo é forte têm gemonia “esquerdista e imoral”, tais do pico quanto da base da pirâmide identificar esses instrumentos é en-
em comum o descontentamento com como Bolsonaro. Além disso, confor- social brasileira. Esse é, aliás, um as- tender que eles são utilizados em ca-
normas estabelecidas, quando não me argumenta o antropólogo Ronal- pecto que nenhuma análise sobre o deia de movimentos, em que as ações
com a sociedade em geral. Em minha do Almeida, a teologia da prosperida- bolsonarismo pode deixar escapar: e versões mudam de forma rápida
interpretação, destaco os seguintes de, que advoga a fé para obter ele possui uma base real, inclusive conforme os ventos do dia, forçando
grupos: prosperidade econômica de forma entre setores populares. que a conjuntura esteja permanente-
– Camadas do alto empresariado individual, sem o questionamento mente em movimento. Desse modo,
que, preocupadas em amplificar seus das estruturas sociais e sem ajuda do GUERRA DE MOVIMENTO Bolsonaro sempre age com rapidez
lucros, veem na regulação econômi- Estado, possui afinidades com o libe- A natureza e a estratégia das ações suficiente para estar no ataque e vá-
ca e nos direitos trabalhistas entra- ralismo e a ideologia do empreende- bolsonaristas envolvem criar fatos, rios passos à frente dos adversários
ves para seus negócios. dor individual, categoria também medidas e declarações que aparen- políticos, ainda que por vezes lance
– Pequenos comerciantes locais próxima ao bolsonarismo, conforme tam confrontar normas e poderes es- mão de ações aparentemente
que, afetados pela crise econômica, citamos anteriormente. tabelecidos. É por meio do confronto contraditórias.
converteram-se ao antipetismo radi- e do caos, portanto, que o bolsonaris- Peguemos o exemplo da cadeia de
cal. Há entre eles também a ideia de mo mobiliza, responde às suas bases movimentos de Bolsonaro na crise
que os impostos e direitos trabalhis- Caso Bolsonaro e ganha espaço e poder na sociedade. sanitária do coronavírus: (1) Bolso-
tas são a causa de sua situação normalizasse seu Assim, situações de caos e de des- naro diz que o coronavírus é uma
econômica. manche institucional podem alargar “gripezinha” que não vai atingir o
– Grupos ruralistas, madeireiros e
comportamento ao a influência e o poder do presidente. Brasil e sua economia. (2) Assim que
mineradores que veem nas leis am- chegar à Presidência Vale lembrar que o caos pode servir o vírus chega ao país, contrariando o
bientais, na demarcação de terras in- da República, ele seria como justificativa para a implanta- postulado pelo presidente, um de
dígenas e quilombolas e na legislação visto como traidor por ção de operações de Garantia da Lei e seus filhos diz que a culpa do vírus é
que classifica o trabalho em condi- da Ordem e para a decretação do es- da “ditadura comunista da China”,
ções análogas à escravidão entraves
sua base social tado de sítio – ambas situações que tensionando ideologicamente a pan-
para seus negócios. aumentam o poder presidencial. Em demia. (3) Pouco tempo depois, o mi-
– Grupos de policiais, guardas e – Um grupo que, na falta de nome versões mais amenas, podem tam- nistro da Saúde Luiz Henrique Man-
profissionais de segurança privada melhor, chamaremos de conservado- bém facilitar decisões judiciais atípi- detta passa a atuar de forma a levar a
.

que consideram o ideário de direitos res populares. Entre esses há os pre- cas a favor do presidente, embasadas sério o vírus, atraindo a sociedade
humanos um entrave às políticas de dominantemente antifeministas, an- na extraordinariedade do momento. para o trabalho concreto que o gover-
combate à criminalidade. Ironica- ti-LGBT ou contra os direitos Em versões mais fortes, a dinâmica no estaria fazendo. (4) Mas, dado que
mente, há também um grupo de poli- humanos, de forma geral. Há tam- de conflito e caos pode servir como o enfrentamento ao vírus geraria um
ciais criminosos próximo a Bolsona- bém um perfil mais genérico, muito pretexto para um golpe militar. Não grande impacto econômico, Bolso-
ro por causa das relações do clã com comum nos interiores e no “Brasil menos importante, o estado de de- naro rapidamente vai à TV e condena
as milícias. profundo”, mas não restrito a esses sorganização social constrói terrenos o fechamento do comércio, colocan-
– Frações de autônomos e “em- espaços, composto por pessoas que férteis para a criação, a ampliação e o do-se como protetor da atividade
preendedores” individuais, grupo manifestam desagrado com a com- fortalecimento de milícias que, por econômica e dos empregos, jogando
que agrega uma vasta gama de traba- plexidade do mundo, seja ela mani- meio ilegal, oferecem segurança e aos governadores e prefeitos o ônus
lhadores precarizados, desde profis- festada no campo social, cultural, in- controle de produtos específicos e do das medidas de isolamento, e nova-
sionais uberizados até autônomos telectual, urbano ou econômico. tráfico de drogas em territórios de- mente questionando a gravidade dos
tradicionais. Nesse grupo há a ideo- Essas pessoas veem no autoritarismo sassistidos pelo Estado. Em outras fatos. (5) Ao mesmo tempo, os filhos
logia do mérito decorrente unica- e na defesa de uma ordem social clara palavras, a milicianização da socie- do presidente produzem e replicam
mente do esforço próprio, individual, e simples, que remete a um passado dade parece ser uma política de go- postagens, afirmando que as aglome-
sem relação com ações coletivas ou seguro (porém, inexistente), uma verno, ao mesmo tempo que as milí- rações do Carnaval foram as respon-
auxílios estatais. Além disso, entre proteção e uma salvaguarda diante cias constituem parte de sua base de sáveis pela transmissão do vírus e
eles é comum os argumentos liberais da complexidade desse mundo que sustentação. culpando artistas, prefeitos e gover-
contra a regulação estatal, os direitos não entendem bem. Essas pessoas O bolsonarismo, mais do que in- nadores que promoveram as festas,
trabalhistas e os impostos. também veem na intelectualidade, centivar o caos e o conflito social, faz mais uma vez tensionando ideologi-
Além desses grupos ligados a seto- no pensamento complexo e abstrato isso de forma planejada. Em seu mé- camente a crise. (6) O ministro da
res econômicos e interesses mate- e na existência de culturas e formas todo de disputa política, o clã Bolso- Saúde volta a endossar a política de
riais identificáveis, há pelo menos de vida distintas uma hegemonia de naro se utiliza de estratégias do cam- isolamento e a ressaltar a seriedade
outros dois próximos ao bolsonaris- esquerda e do “politicamente corre- po militar. Tenho proposto a do quadro sanitário do país. (7) Con-
mo cuja identificação é puramente to”, a qual deve ser combatida em categoria da guerra de movimento forme o número de mortos aumenta,
ideológica, e não ligada a fatores de prol de uma ordem simplista e co- para entender suas ações, em uma re- Bolsonaro passa a desacreditar os da-
classe ou ocupação. São eles: nhecida do mundo. cuperação atualizada do conceito dos oficiais, insinuando que médicos
– Setores evangélicos pentecos- Todos esses grupos, de diferentes homônimo gramsciano. Assim, na estariam mentindo sobre as estatísti-
tais: minhas pesquisas com evangé- formas, possuem demandas contra guerra de movimento bolsonarista, a cas para prejudicar o governo. (8)
licos pentecostais mostram que entre normas estabelecidas, sejam elas de luta política é estabelecida de forma Bolsonaro sai às ruas de Brasília para
eles é comum a interpretação de que leis trabalhistas e ambientais, nor- múltipla, sobrecarregando o debate cumprimentar comerciantes, con-
o mundo vem passando por uma de- mas de trânsito, regulações econô- político com várias pautas, utilizan- trariando as medidas de isolamento
terioração moral, que se manifestaria micas, regulações sobre uso de ar- do-se em massa de redes sociais, de defendidas por seu próprio ministro
na violência, no uso de drogas, na po- mas, demarcações de terras convocações de atos de rua, pronun- e diz que tentará liberar a volta à nor-
breza, nos desvios da sexualidade he- indígenas, políticas de direitos hu- ciamentos públicos, ações para con- malidade por meio de um decreto. (9)
teronormativa, nos conflitos familia- manos, de igualdade de gênero, de fundir a imprensa e uso da caneta Em meio a uma onda de críticas e a
res etc. Para eles, a esquerda e os combate à LGBTfobia e de respeito à presidencial para decisões políticas uma crise estabelecida com seu mi-
movimentos feministas e LGBT são diversidade. Todas essas normas são controversas. Em cada ação, discurso nistro da Saúde, que ganha populari-
vistos como consequência e parte entendidas, por cada grupo em ques- ou canetada, há o ataque às institui- dade com as ações de combate à pan-
MAIO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 19
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demia, Bolsonaro volta à TV em novo Em outras palavras, a corda vai sendo perto de si”; “Era antipetista, não an- com a instalação de um regime de ex-
pronunciamento nacional, aparente- esticada e, com isso, vai se amplian- ticomunista”; “Ele se foi e a luta con- ceção. No atual momento, suas ações
mente recuando de suas posições an- do a gama de ações e discursos acei- tra o comunismo deve continuar”. também atingem a saúde pública e
teriores, atestando a realidade do ví- tos na disputa política. Durante essa Possivelmente, o episódio signifi- colocam vidas em risco, dado que o
rus, a ausência de tratamento tensão pode haver recuos, mas sem- que alguma redução na base bolso- boicote do presidente às medidas de
cientificamente comprovado e a ne- pre os atos posteriores mostram que narista, mas a tática presidencial de isolamento social e às políticas públi-
cessidade de compatibilizar o com- se tratava de mais um movimento es- estar sempre em movimento e para cas sanitárias pode gerar um adicio-
bate à pandemia e a preservação dos tratégico, para uma nova cadeia de frente cria mobilização e pauta os nal de milhares de mortos em meio à
empregos. (10) Bolsonaro atrasa a ações que vêm na sequência. termos do debate, direcionando o pandemia.
sanção do projeto aprovado pelo O mais recente episódio de confli- que se fala na sociedade e, conse- O enfrentamento ao bolsonaris-
Congresso de ajuda emergencial aos to no governo, envolvendo o presi- quentemente, o que não se fala tanto mo torna-se, dessa forma, necessário
comerciantes, autônomos e vulnerá- dente e o ex-ministro Sérgio Moro, assim. Nesse processo, conforme já para qualquer força responsável e
veis, postergando o trâmite de socor- pode ser visto como mais um capítu- assinalado, a base do presidente vai democrática do país. No entanto, es-
ro estatal aos mais necessitados. (11) lo da guerra de movimento bolsona- se tornando cada vez mais radical, à se enfrentamento precisa ser feito de
Em mais um episódio de crise com rista. O controle da Polícia Federal sua imagem e semelhança, ainda que forma estratégica. Do contrário,
seu ministro da Saúde, Bolsonaro para Bolsonaro tem uma finalidade quantitativamente ela possa se redu- qualquer investida só servirá para
tenta demiti-lo, mas não encontra dupla, servindo tanto para estancar zir. Vale dizer que, um dia depois da alimentar a lógica de conflito e caos,
apoio para tal, transparecendo um as investigações que envolvem a si e saída do ex-juiz da Lava Jato, Bolso- amplificando os ânimos bolsonaris-
possível isolamento no cargo. (12) seus familiares, como para minar as naro já havia reabsorvido uma parte tas. Diante da estratégia do conflito e
Bolsonaro passa a defender o uso da instituições de controle do Estado de dos seus apoiadores que, inicialmen- do caos em movimento, que invaria-
cloroquina para o tratamento do ví- direito – ou seja, do “sistema”. Moro, te, haviam feito postagens criticando velmente resulta em conflitos inter-
rus e a apoiar atos contra o isolamen- por sua vez, não poderia aceitar a in- o presidente. Caso esse movimento nos, como mostram os episódios
to social, participando de alguns de- terferência presidencial sem perder de reabsorção se confirme, o que pa- com Luiz Henrique Mandetta e Sér-
les por videoconferência e tornando sua imagem entre os setores do Judi- recia à primeira vista um tiro em seu gio Moro, é preciso aproveitar as
suas saídas para cumprimentar pes- ciário, do alto escalão da PF e da so- próprio pé terá servido para consoli- oportunidades e minimizar as mar-
soas nas ruas um hábito, tensionan- ciedade que lhe dão suporte, ainda dar uma base mais radical e que vê gens de ação e movimentação do
do a permanência do titular do Mi- mais depois que as investigações exclusivamente em Bolsonaro a refe- bolsonarismo, fragmentando sua ba-
nistério da Saúde, que acaba chegassem à imprensa, o que já esta- rência política. se institucional e social e encurra-
manifestando em uma entrevista seu va prestes a ocorrer. Como o ex-juiz Por todas essas características, lando-o com outros movimentos rá-
desagrado com a situação. (13) Con- da Lava Jato tem pretensões políticas, por vezes, as ações do presidente pa- pidos e certeiros. Em outras palavras,
siderando a entrevista do ministro da ele resolveu ir para o confronto para recem irracionais, mas não são. O é preciso aproveitar os breves inter-
Saúde um ato de insubordinação e disputar com o presidente a proemi- modus operandi do bolsonarismo valos de vulnerabilidade para enfra-
quebra de hierarquia, consegue de- nência sobre a base de direita e extre- cria ações que rompem a lógica regu- quecer o apoio do presidente e pro-
.

miti-lo, em plena pandemia. (14) ma direita do Brasil. lar da política, dificultando sua com- mover uma situação em que
Imediatamente após a substituição preensão e, por consequência, o en- Bolsonaro tenha pouca margem de
na pasta da Saúde, Bolsonaro dá uma frentamento ao governo. Maquiavel, manobra, de modo que possa ser ti-
entrevista dizendo que o presidente Em versões mais fortes, no século XVI, mostrou ao mundo rado do poder com poucas ações e
da Câmara dos Deputados, Rodrigo a dinâmica de conflito que a moral do governante é distinta em curto espaço de tempo. Para isso,
Maia, estaria boicotando seu governo da moral do homem comum. Recu- no plano institucional, independen-
e lutando para retirá-lo do poder. (15)
e caos pode servir como perando o pensador florentino, Max temente do método adotado – im-
Dias depois, o presidente apoia atos pretexto para um Weber, no início do século XX, pro- peachment, acusação de crime co-
em frente a quartéis do Exército ao golpe militar põe o princípio da ética da responsa- mum, afastamento por incapacidade
redor de todo o país, os quais pedem bilidade para pensar as ações de ou renúncia –, será preciso encurtar
o fim do isolamento social, o fecha- quem está em posição de poder, sen- prazos e agir coordenadamente.
mento do Congresso e do STF e a ins- Com a deserção de Moro, Bolsona- do representante de um Estado ou de Mais do que nunca, faz-se necessária
talação de um novo AI-5. Ele vai pes- ro voltou contra ele sua máquina de um grupo. Para Weber, a ética da res- a coordenação política entre as for-
soalmente ao ato de Brasília, em guerra. No primeiro pronunciamento ponsabilidade nortearia ações dos ças democráticas, de forma mais am-
frente ao Quartel General do Exérci- presidencial, horas depois da saída do governantes, que avaliariam os re- pla possível, desde a oposição conso-
to, onde discursa e cumprimenta ex-ministro, Bolsonaro já acusou Mo- sultados e os melhores meios para lidada até ex-bolsonaristas que
apoiadores. ro de usar a disputa em torno da dire- atingi-los, de forma desprendida das abandonaram – e continuam a aban-
Nos fatos citados, cada passo é da- ção da PF para barganhar uma vaga convicções pessoais e da moralidade donar – a tropa do capitão. Já no pla-
do de forma rápida, em questão de no STF. Imediatamente, as redes vir- privada. O bolsonarismo, a princípio, no social, é preciso entender os an-
dias ou horas, alternando entre estra- tuais bolsonaristas começaram a tra- subverte as noções de meios e fins, seios materiais da base popular
tégias discursivas e ações concretas. balhar: levantaram hashtags a favor tornando os meios os próprios fins bolsonarista para oferecer diálogo e
A cada movimento, reforça-se a nar- do presidente, condenaram a aproxi- em si. Dessa forma, o conflito e o caos respostas concretas às demandas de
rativa de que Bolsonaro e seu gover- mação do ex-aliado com a arqui-ini- viram tanto o método de ação quanto pelo menos parte delas, e que sejam
no estão lutando contra um inimigo miga Rede Globo e chamaram-no de o resultado esperado, num ciclo veloz melhores e mais reais das que o bol-
que precisa ser derrotado para o bem traidor. O plano não é diferente das e constante, que garante a existência sonarismo oferece. Nesse sentido,
do país. Isso faz que seus apoiadores demais frentes de combate bolsona- de seu movimento político e sua atenuar os efeitos devastadores do
estejam constantemente mobiliza- rista: envolve criar diferentes enredos competitividade eleitoral. Nessa re- capitalismo pode ser o melhor remé-
dos e em estado de guerra, enquanto para construção da narrativa em que petição também é possível vislum- dio para que não tenhamos mais bol-
a oposição não consegue responder a Bolsonaro estaria lutando contra um brar uma conclusão derradeira, que sonaros na vida pública brasileira. 
todas as frentes de ataque em bloco e “sistema poderoso”, contra o “esquer- seria a ruptura do Estado democráti-
à altura. Mais do que isso, em cada dismo e o comunismo”, luta que Moro co de direito e a instalação de um ul- *Vinicius do Valle é doutor em Ciência
radicalização do capitão, seus segui- teria abandonado para se juntar aos traliberalismo autoritário – este, sim, Política pela Universidade de São Paulo e
dores vão se tornando também mais “inimigos da nação”. Iniciaram os o fim último do bolsonarismo. professor da Faculdade Santa Marcelina. É
radicais e coesos, num processo em discursos: “O sistema persegue Bol- autor de Entre a religião e o lulismo: um es-
que a experiência comum vai mol- sonaro e Moro está se juntando justa- O COMBATE AO BOLSONARISMO tudo com pentecostais em São Paulo, pu-
dando o grupo, à imagem e sob certo mente a esses inimigos do establish- As ações de Bolsonaro representam blicado pela editora Recriar (2019). Vini-
controle do líder. Em meio a esse mo- ment”; “Moro nunca foi tão de direita hoje uma grande ameaça ao país, cius fala sobre essa obra no episódio #19
vimento, a radicalização também vai assim”; “Ele não era tão armamentis- atingindo a democracia, destruindo do podcast Guilhotina (https://diplomati-
normalizando práticas e discursos. ta, trouxe pessoas abortistas para as instituições por dentro e flertando que.org.br/guilhotina-19-vinicius-valle/).
20 Le Monde Diplomatique Brasil  MAIO 2020

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DIREITOS SUSPENSOS

E o governo decidiu confinar


também as liberdades...
A contínua erosão das liberdades individuais observada desde o 11 de Setembro de 2001 conheceu, na França,
uma aceleração brutal com o confinamento da população e o estado de emergência sanitária. Na ausência de
contrapoderes, os direitos fundamentais sucumbirão diante de um vírus?
POR RAPHAËL KEMPF*

“Q
uero ser absolutamente 1º): “As regras do processo criminal governos e autoridades competentes tra os riscos de uma pandemia”,
claro: os arranjos que fo- são adaptadas [...] para permitir a a trabalharem rapidamente para re- quando todos os dados científicos
ram feitos são temporá- continuidade da atividade das juris- duzir o número de pessoas detidas”.4 mostram o contrário. Em 23 de mar-
rios”, disse a ministra da dições criminais essenciais para a Na França, foram tomadas medi- ço, em Bordeaux, a promotoria acu-
Justiça francesa, Nicole Belloubet. manutenção da ordem pública”. A re- das para libertar prisioneiros conde- sou a ordem dos advogados local, em
Ela acrescentou ainda que a lei de 23 ferência à ordem pública é surpreen- nados já no fim de sua sentença, em greve desde o início de 2020, assim
de março para lidar com a epidemia dente: familiar aos especialistas em particular aqueles que têm menos de como a maioria dos defensores na
de Covid-19 “não autoriza a promul- direito público ou administrativo, es- dois meses de pena. Mas a medida de França, de ter contribuído para a su-
gação de regras e decisões duradou- se conceito é relativamente pouco co- Belloubet procura manter encarcera- perlotação das prisões pela multipli-
ras além do que a emergência justifi- nhecido no direito penal (à exceção, dos presos preventivos ou em julga- cação de adiamentos de audiências.
ca”.1 O texto cria, por um lado, um discutível, de detenção preventiva mento – pessoas consideradas ino- A portaria de 25 de março tam-
regime jurídico de exceção – o estado em matéria criminal). E, de fato, o centes até segunda ordem, pois ainda bém estendeu os prazos máximos
de emergência sanitária – e, por ou- processo penal não se destina a man- não foram julgadas, e as mesmas que para prisão preventiva. A publicação
tro, concede ao governo o direito de ter a ordem pública, mas a procurar ocupam os estabelecimentos mais no Diário Oficial foi seguida de uma
legislar por meio de portarias nas os infratores e punir os culpados de superlotados. Como escreveu o advo- circular do procurador-geral e de um
mais variadas áreas – do direito tra- acordo com certo número de princí- gado Sylvain Cormier, “para conde- e-mail da diretora para assuntos cri-
.

balhista ao direito empresarial. No pios (justiça, direito de defesa, pro- nados, libertação antecipada por di- minais e de indultos informando que
entanto, o projeto original não previa porcionalidade de medidas coerciti- reito; para pessoas presumidamente a duração da detenção deveria ser au-
nenhum prazo de encerramento para vas, individualização da pena etc.). A inocentes, o confinamento se esten- tomaticamente prorrogada, sem que
as disposições adotadas em questões Constituição prevê ainda que o Judi- de automaticamente. Soltamos de o detido e seu advogado possam
como, por exemplo, o processo penal. ciário é “o guardião da liberdade in- um lado e travamos do outro”.5 apresentar qualquer argumento, es-
A crise permanente
Pouco depois – talvez respondendo a
inúmeras críticas –, a portaria de 25
dividual”: a ordem pública não é
constitucionalmente sua função. Para o suíçotiva
Se os juízes ganharam a prerroga-
Marccontingente
Chesney, o de liberar prisionei-
crito ou oral. Muitos juízes de liber-
dade e detenção decidiram imediata-
atual crescimento econômico é
de março corrigiu essa prerrogativa. Muitos médicos e cientistas con- ros condenados em fim de sentença,
artificial, baseado mente seguir as instruções do
Há uma disposição da procuradoria- cordam que os prisioneiros devem principalmente na explosão da
as reações iniciais do Judiciário aos governo, ignorando o princípio da se-
-geral afirmando que essas medidas ser libertados porque os locais dedívida
de- global. Neste livro, ele
inúmeros pedidos de libertação fei- paração de poderes. Em 27 de março
apresenta um inventário
não entrarão no direito comum ao fi- tenção favorecem a rápida dissemi-objetivo datos para
situação supostos prisioneiros ino-
mundial, de 2020 foram emitidas as primeiras
nal do estado de emergência; no en- com a financeirização
nação do novo coronavírus. De fato, da
centes estiveram – em grande parte – “ordens que estabelecem a extensão
economia, o papel dos grandes
tanto, essa medida contradiz o histó- de acordo com um artigo publicado em uníssono
bancos e fundos de investimento com o governo. Um automática da prisão provisória”.6 O
rico das leis de emergência: elas na revista científica The Lancet,neste
“asprocesso magistrado
e o declínio deparisiense, provavelmen- presidente da ordem dos advogados
acabam se normalizando. uma civilização
prisões são um epicentro de doenças te um que confunde o
especialista em doenças infec- no Conselho de Estado e no Tribunal
ser com o ter e o aparecer.
No que diz respeito à justiça e às infecciosas”. Michelle Bachelet, alta ciosas, argumentou que era “pura-
3
de Cassação, Louis Boré, deduziu que
prisões, a portaria 2 começa com um comissária das Nações Unidas para mente impreciso dizer que o “é a primeira vez desde a lei dos sus-
desenvolvimento estranho (artigo os Direitos Humanos, “clamou aos ambiente prisional não protege con- peitos de 1793 que se ordena que as

A coleção Pequenos Frascos enseja um


desses raros encontros entre o prazer da
leitura e o de manusear um objeto
refinado. A feliz comunhão de estilo
fluido e reflexão consistente está
presente nos vários títulos da série, que
conta com mestres do pensamento como
Benjamin Franklin, Jean-Jacques
Produzir conteúdo
Rousseau, Ibn Tufayl, Conde de
Compartilhar conhecimento.
Chesterfield, entre outros. Desde 1987.
www.editoraunesp.com.br
MAIO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 21
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pessoas permaneçam na prisão sem é no “país dos direitos humanos” que


a intervenção de um juiz”.7 A história a polícia repreende pessoas porque
VIGILÂNCIA
lembrará que a França, por circular e saíram às compras a mais de 1 quilô-
por e-mail, suprimiu o direito de de- metro de sua casa,10 enquanto esse li- “A epidemia de Covid-19 questiona como nunca antes na era moderna as liberda-
fesa e o direito a um advogado e deci- mite se aplica apenas ao exercício fí- des civis e o direito à privacidade. E, no entanto, ninguém se coloca essa pergun-
diu manter milhares de prisioneiros sico; que um jornalista freelancer foi ta. À medida que o autoritarismo se espalha, que as leis de emergência proliferam
em detenção por simples decisão multado porque escreveu a data de e que sacrificamos nossos direitos, também sacrificamos nossa capacidade de
administrativa. seu certificado de circulação a lápis;11 interromper a mudança para um mundo menos liberal e menos livre. Você real-
O confinamento parece ser tam- que as pessoas que terminaram as mente acredita que, quando a primeira onda, a segunda onda, a 16ª onda de co-
bém outra forma de detenção. Du- compras e voltam para casa são mul- ronavírus forem uma memória há muito esquecida, esses meios de vigilância não
rante os debates parlamentares que tadas porque não guardaram a serão mantidos? Que esses conjuntos de dados não serão armazenados? Qual-
levaram à adoção da lei de emergên- notinha. quer que seja seu uso, estamos construindo a arquitetura da opressão.”
cia de 23 de março de 2020, o governo Edward Snowden, entrevista ao site Vice.com, 10 abr. 2020
quis criar uma multa para aqueles LEI ORGÂNICA INCONSTITUCIONAL
que deixassem suas casas sem um É VALIDADA

© Marta Favro/Flickr
motivo justificável dentro das nor- Obviamente, ainda é possível contes-
mas. Mas não só: tentou tornar a re- tar essas advertências abusivas – no
incidência dessa transgressão um sentido de que elas vão muito além
delito passível de seis meses de pri- da estrutura legal e regulatória –, mas
são. Esse tempo de seis meses – em com um risco significativo de, no fim
vez de três, por exemplo – foi defini- das contas, pagar uma multa ainda
do por razões puramente proces- mais alta por desacato à autoridade,
suais: permitir o julgamento rápido tornando-se essa a contravenção. Se-
por flagrante. ria equivocado interpretar esses
A contravenção pune o fato de sair “abusos” como desvio individual de
de casa se não for pelos motivos pre- alguns agentes: eles provêm de textos
vistos em lei – definidos pelo famoso promulgados pelo governo, que to-
atestado de deslocamento publicado mou a decisão política de dar liberda-
pelo Ministério do Interior. O direito de quase total à polícia. O ministro
penal torna-se, assim, vetor de nor- do Interior reconheceu implicita-
malização de um modelo de família, mente essa questão ao afirmar pe-
resultado de um confinamento que, rante a Comissão de Direito do Sena-
como escreve o filósofo Geoffroy de do, em 16 de abril, que ele poderia
.

Lagasnerie, “produziu uma explosão “ser mal interpretado” e que, portan-


e uma deslegitimação de todas as for- to, havia mudado sua “doutrina”. O
mas de vida não institucionais e fa- estado de emergência confere, assim,
miliares”. A contravenção – cuja rein- força de lei à doutrina do ministro do
cidência pela quarta vez se torna Interior, Christophe Castaner? Após o confinamento, França alterou regras nas liberdades individuais no país
delito – torna passível de multa ou Após quatro advertências, o infra-
prisão a reunião ilegal de dois aman- tor se torna um delinquente passível Ao estabelecer esse regime de
5   S
 ylvain Cormier, “La France malade de la dé-
tes: “Um policial é colocado entre de custódia policial e de prisão por emergência, o governo acreditava es- tention provisoire” [França é louca pela prisão
eles”.8 Assim, o decreto autoriza a saí- flagrante. Assim, o tribunal de Tou- tar se livrando de quaisquer freios e preventiva], Dalloz-actualité, Paris, 10 abr.
da por “razão familiar convincente”, louse impôs um mês de prisão a um contrapesos. Parece ter conseguido, 2020. Disponível em: www.dalloz-actualite.fr.
6   H annelore Cayre, “Qui es-tu Nicole Bellou-
cuja interpretação é questionável, jovem de 18 anos sem antecedentes aproveitando-se de um controle par- bet, pour t’asseoir à ce point sur les libertés
para não dizer arbitrária: uma mãe, criminais, trabalhador informal e lamentar quase inexistente,15 da sub- publiques?” [Quem é você, Nicole Bellou-
por exemplo, não pôde entrar no tri- usuário de maconha, porque havia missão do Conselho de Estado às exi- bet, para se sentar neste momento sobre as
liberdades públicas?], Libération, 31 mar.
bunal onde seu filho detido estava saído para comprar sua cota de con- gências do Executivo16 e até do 2020.
sendo julgado, pois o fato de vê-lo – sumo sem atestado.12 Em Cusset (Vi- Conselho Constitucional, que vali- 7   Le Monde, 4 abr. 2020.
ainda que confinado em um quadra- chy), os juízes condenaram um mo- dou a lei orgânica de 23 de março de 8   Les Inrockuptibles, Paris, 1º abr. 2020.
9   Aline Daillère, “La justice dans la rue – Du
do – não era considerado suficiente- rador de rua a três meses de prisão 2020, claramente contrária à Consti- pouvoir contraventionnel des policiers” [Justi-
mente “necessário” em um momento por repetidas falhas em atestar sua tuição.17 No entanto, a resistência de ça na rua – Do poder contraventor da polícia],
em que as salas de visitas das prisões permanência na rua. Outros tribu- alguns tribunais do país nos lembra tese de mestrado, sob a supervisão de Fabien
Jobard, Universidade de Versalhes Saint-
estavam fechadas para as famílias. nais absolveram moradores de rua que alguns ainda permanecem ape- -Quentin-en-Yvelines, nov. 2019.
Portanto, é a polícia no local que em situações semelhantes ou julga- gados à Declaração dos Direitos.  10   L e Télégramme, Brest, 28 mar. 2020.
decide, verbalizando ou não, que es- ram que multas de trânsito usadas de 11   Twitter, conta @raslaplume, coletivo de jorna-
listas freelancers, 31 mar. 2020.
se deslocamento é legal ou não. Em maneira puramente oportunista pa- *Raphaël Kempf, advogado, é autor de 12   L a Dépêche, 5 abr. 2020.
outras palavras, a polícia faz a lei. E, ra identificar crimes de confinamen- Ennemis d’État: les lois scélérates, des 13   Despacho de 14 de abril de 2020 alterando o
de certa forma, também faz justiça. to eram ilegais – o que o governo re- “anarchistes” aux “terroristes” [Inimigos de despacho de 13 de outubro de 2004, que es-
tabelece o sistema de controle automatizado.
Como a pesquisadora Aline Daillère conheceu prontamente e emitiu na Estado: as leis canalhas, dos “anarquistas” 14   O autor destas linhas está na origem de uma
mostrou sobre práticas policiais de sequência uma portaria ratificadora aos “terroristas”], La Fabrique, Paris, 2019. dessas questões prioritárias de constitucio-
multas em bairros da classe traba- para validar uma prática policial a nalidade.
1   N icole Belloubet, “L’État de droit n’est pas mis 15  M anon Altwegg-Boussac, “La fin des appa-
lhadora, a multa global – o nome téc- posteriori contrária à lei.13 en quarantaine” [O Estado de direito não está rences” [O fim das aparências], La Revue
nico da multa – “é uma sanção penal Por fim, os tribunais de Bobigny, em quarentena], Le Monde, 1º abr. 2020. des droits de l’homme, Actualités Droits-Li-
imposta sem julgamento”.9 Poitiers e Paris questionaram o Tri- 2   Portaria n. 2020-303, de 25 de março de bertés, 12 abr. 2020.
2020, que adapta as regras do processo pe- 16   William Bourdon e Vincent Brengarth, “Le
O dispositivo escolhido pelo go- bunal de Cassação sobre uma ques- nal com base na Lei de Emergência n. 2020- Conseil d’Etat se dévitalise alors qu’il devrait
verno para aplicar o confinamento e tão prioritária de constitucionalida- 290, de 23 de março de 2020, para lidar com être l’ultime bastion des libertés” [O Conse-
punir sua violação dá lugar, assim, a de: o sistema de punição da violação a epidemia de Covid-19. lho de Estado é deslegitimado quando deve-
3   Stuart A. Kinner et al., “Prisons and custodial ria ser o último bastião das liberdades], Le
abusos policiais, que serão incorpo- do confinamento vai de encontro settings are part of a comprehensive respon- Monde, 12 abr. 2020.
rados à lista dos colecionadores de com a Declaração dos Direitos do Ho- se to Covid-19” [Prisões e configurações de 17   Véronique Champeil-Desplats, “Le Conseil
delírios burocráticos, geralmente mem e do Cidadão de 1789, em parti- custódia fazem parte de uma resposta abran- constitutionnel face à lui-même” [O Conselho
gente à Covid-19], The Lancet Public Health, Constitucional diante de si mesmo], La Revue
mais atentos às pérolas dos arquivos cular no que se refere ao princípio da 17 mar. 2020. des droits de l’homme, Actualités Droits-Li-
do antigo Bloco do Leste. No entanto, presunção de inocência.14 4   C
 omunicado da ONU, 25 mar. 2020. bertés, 13 abr. 2020.
22 Le Monde Diplomatique Brasil  MAIO 2020

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EMERGÊNCIA SANITÁRIA, RESPOSTA SECURITÁRIA

Da crise de saúde à tats, da agricultura industrial e da


aceleração cada vez mais forte dos
fluxos internacionais – na dissemi-

panaceia de segurança
nação de agentes patógenos.1 Preocu-
pados em combater o ressurgimento
do risco epidêmico observado desde
os anos 1990, atores como a Organi-
zação Mundial da Saúde e a fundação
do bilionário Bill Gates apostaram
Sem serem capazes de tratar a Covid-19, as autoridades públicas de muitos países em algoritmos e big data.2 A análise
passam a considerar os potenciais portadores do vírus, ou seja, qualquer pessoa, como dos dados de massa encerrava a pro-
messa de detecção mais precoce das
uma ameaça. A era do controle digital da população está aberta – um trunfo inesperado doenças, o que permitiria às autori-
para a indústria de vigilância e o complexo de tecno-segurança dades antecipar sua resposta e evitar
crises.3
POR FÉLIX TRÉGUER*
“É PARA O SEU BEM...”
Infelizmente, essas tecnologias não
ajudaram de forma alguma na pre-
venção da catástrofe pandêmica da
Covid-19. Surpreendidos pela crise,
os Estados foram então reduzidos a
impor restrições draconianas de li-
berdade que remontam a vários sé-
culos, como as medidas de confina-
mento e outras quarentenas que,
segundo o historiador e demógrafo
Patrice Bourdelais, “no século XIX fo-
ram sinônimo de regimes totalitá-
rios. A Inglaterra liberal propôs então
um novo sistema de proteção, basea-
do no exame médico na chegada dos
barcos, na hospitalização dos doen-
.

tes em hospitais dedicados ao proble-


ma e no acompanhamento por algu-
mas semanas dos passageiros que
pareciam estar em boa saúde. Foi
nessa época que a responsabilidade
individual do doente que frequenta-
va lugares ou transportes públicos foi
exigida; isso poderia levá-lo a ter de
pagar uma multa ou a cumprir al-
guns dias de prisão”.4
O casamento da saúde pública e
da razão de Estado não começou on-
tem. Mas, na era da globalização, os
ataques à liberdade de movimento
não se aplicam mais apenas na escala
de cidades, regiões ou ao longo de ro-
tas comerciais, mas a todo o planeta.
© Lila Cruz Pegos de surpresa, os líderes se entre-
gam a uma escalada tecnológica e de
segurança, retomando por sua conta

N
a Austrália Ocidental, o gover- capacete, eles permitem identificar acabam elegendo a própria popula- as estratégias testadas pelas autori-
nador agora tem autoridade pessoas com febre na multidão. Por ção como ameaça – para protegê-la de dades chinesas desde fevereiro. Quer
para impor tornozeleiras ele- meio de um aplicativo de celular, os si mesma. Mas o paradoxo é apenas se trate de modelar a propagação da
trônicas a pessoas potencial- poloneses em quarentena devem se aparente. Porque, ao longo dos sécu- epidemia e os deslocamentos da po-
mente infectadas com o coronavírus autenticar na polícia enviando regu- los, as epidemias marcam episódios pulação, quer de localizar indivíduos
e colocadas em isolamento. Na Chi- larmente uma selfie tirada dentro de privilegiados na transformação e na ou rastrear suas interações sociais
na, a temperatura corporal dos entre- casa. Na Nova Zelândia, a polícia lan- ampliação do poder estatal e na gene- para detectar novos contágios, os Es-
gadores de refeições prontas aparece çou uma plataforma digital de dela- ralização de novas práticas policiais, tados e seus parceiros privados legiti-
ao mesmo tempo que sua localização ção, convidando os cidadãos a de- como o fichamento da população. mam dispositivos até aqui reserva-
geográfica no smartphone dos desti- nunciar violações das medidas de Em nosso imaginário, a gestão de dos ao controle social e à identificação
natários, os quais são igualmente contenção que testemunham. segurança da saúde pública soa, no dos que se desviam de um comporta-
rastreados para avaliar seu risco de À primeira vista, há um paradoxo entanto, como arcaica. De fato, o de- mento. Como resume Chen Weiyu,
contágio e deduzir disso um código aqui: a principal resposta dos Estados senvolvimento da medicina fazia jovem moradora de Xangai, antes do
de cores que condiciona o acesso aos a uma crise de saúde tem a ver com prever um recuo contínuo das gran- coronavírus “a vigilância já estava
locais de trabalho, aos transportes ou segurança. Incapazes no momento des epidemias e dos distúrbios políti- em todo lugar”; a epidemia apenas
a áreas residenciais. Os policiais chi- de oferecer um tratamento contra o cos que lhes eram associados. Isso se conseguiu torná-la “ainda mais
neses também dispõem de óculos de vírus e mal equipados no que se refere dava sem que se levasse em conta o contundente”.5
realidade aumentada. Conectados a a leitos de UTI, testes de triagem e papel desempenhado pelo capitalis- Se ocorrer de esse estado de emer-
câmeras térmicas colocadas em seu máscaras protetoras, os governos mo – por meio da destruição de hábi- gência ser um dia suspenso, os histo-
MAIO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 23
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riadores que forem examinar o pe- dos recursos hospitalares, constante- paços naturais, permitindo que pa- espionagem cibernética e envolvida
ríodo atual poderão ficar admirados mente diminuídos em razão de cortes trulhas em terra prendam os tran- em vários escândalos de espionagem
ao ver que os governos pensaram em orçamentários. O fenômeno está ago- seuntes infratores. O Ministério do de ativistas de direitos humanos e
obrigar – ou encorajar, no caso da ra amplamente documentado: por Interior aproveitou a situação para jornalistas,14 fornece suas ferramen-
França – o conjunto da população a meio de sonegação de impostos, o big lançar em abril uma licitação para a tas para analisar metadados e corres-
usar o equivalente à tornozeleira ele- data contribui para o enfraquecimen- compra de 650 aparelhos.9 pondências capturados em redes de
trônica, por meio de smartphones e to dos serviços públicos e se alimenta A polícia também pode contar telecomunicações. Ao combinar to-
de um aplicativo de rastreamento da austeridade. Em 28 de março, o com uma infinidade de empresas es- das essas informações, a NSO atribui
(backtracking) capaz de guardar o Serviço Nacional de Saúde Britânico pecializadas no crescente mercado a cada pessoa uma “pontuação de
histórico dos contatos físicos de cada (NHS) anunciou o lançamento de um de controle de segurança das “cida- contágio” que varia de 1 a 10. Uma
indivíduo. A sofisticação totalitária consórcio do Google, da Amazon e da des inteligentes”.10 Na França, a start- dúzia de outros países também esta-
de tal processo teria feito empalide- Microsoft. O conjunto será supervi- -up Two-I propõe às autoridades poli- ria testando esse sistema. É fácil ima-
cer de inveja os regimes mais para- sionado pela Palantir, empresa cali- ciais testar gratuitamente seus ginar como, com o fim da crise da
noicos do século XX; ninguém até forniana especializada em análise de algoritmos dedicados à análise em saúde, tal infraestrutura seria con-
então ousara impor isso. O argumen- dados e conhecida por seus vínculos tempo real dos gigantescos fluxos de vertida para propósitos menos con-
to dos líderes atuais evoca a eterna com a CIA ou ainda por sua colabora- dados oriundos dos parques de vigi- fessáveis de vigilância política. Crise
justificativa dos déspotas: “É para o ção com os serviços de imigração nor- lância por vídeo. Isso envolve, em após crise, à sombra da razão de Esta-
seu bem”. No entanto, a real eficácia te-americanos na repressão a imi- particular, a detecção de violações do e das parcerias público-privadas,
dessas medidas destinadas a alertar grantes sem documentos. Apesar do das regras do distanciamento social: a sociedade de segurança prospera e
os usuários sobre o risco de infecção repentino retorno às boas graças do “Nossa tecnologia é capaz de identifi- instala novos entraves às tentativas
e rastrear as cadeias de contamina- Estado e das promessas de financia- car ajuntamentos, o que permite em de transformação social. 
ção não está de forma alguma defini- mento dos sistemas de saúde, a epide- seguida que as forças da ordem fa-
da, especialmente se elas forem ape- mia poderia aprofundar as lógicas ge- çam o trabalho de prevenção”, expli- *Félix Tréguer  é pesquisador, membro de
nas opcionais. Tendo em vista os renciais e a terceirização de atividades ca seu cofundador Guillaume Caze- La Quadrature du Net e autor de L’Utopie
estudos relacionados a esses proje- de importância primordial para as in- nave, que deixa para os policiais o déchue. Une contre-histoire d’Internet,
tos, os governos serão tentados a tor- dústrias digitais. cuidado de transpor o limite que se- XVe-XXIe siècle [A utopia decaída. Uma
ná-los obrigatórios e a identificar in- As grandes operadoras de teleco- para a prevenção da repressão.11 contra-história de internet, séculos XV-
divíduos em risco para colocá-los em municações também estão receben- A imagem desse ataque às liberda- -XXI], Fayard, Paris, 2019.
quarentena.6 Além disso, como ob- do sua parte do bolo. Além dos paco- des públicas apoiado pelo computa-
servou Susan Erikson, professora de tes vendidos a preço de ouro para dor seria incompleta sem uma tecno- 1   L er Sonia Sah, “Contre les pandémies, l’éco-
Ciências da Saúde em Vancouver, clientes em áreas mal atendidas, a logia que, alguns meses atrás, logie” [Contra as pandemias, ecologia], Le
Monde Diplomatique, mar. 2020.
“existe o risco de que a abordagem emergência de saúde oferece uma simbolizava a sociedade de vigilân- 2   C f. Effy Vayena et al., “Policy implications of
tecnológica leve a um desvio das es- publicidade espetacular para suas cia chinesa: o reconhecimento facial. big data in the health sector” [Implicações po-
.

tratégias mais fundamentais e es- ferramentas de análise dos dados de No início da epidemia, o secretário líticas do big data no setor da saúde], Boletim
da Organização Mundial da Saúde, Genebra,
senciais na gestão de crises em saú- geolocalização dos telefones celula- de Estado para Assuntos Digitais da v.96, n.1, jan. 2018.
de”.7 Segundo ela, esse “solucionismo res – ferramentas de legalidade ques- França, Cédric O, grande defensor 3   C f. Tim Eckmanns, Henning Füller e Stephen
tecnológico” levou à perda de um tionável que eles vêm tentando há dessa ferramenta, acreditava que era Roberts, “Digital epidemiology and global
health security: An interdisciplinary conversa-
tempo precioso durante a epidemia anos comercializar junto a comuni- provável que ela viesse a “trazer certo tion” [Epidemiologia digital e segurança glo-
do vírus Ebola que atingiu a África dades locais como parte de projetos número de benefícios, tanto para a bal da saúde: uma conversa interdisciplinar],
ocidental em 2014.8 de “cidades inteligentes”. Desde o iní- ordem pública como para o gerencia- Life Sciences, Society and Policy, v.15, n.1,
mar. 2019.
Essa corrida frenética por dados cio da epidemia, os operadores publi- mento de doenças”.12 Em Moscou, on- 4   Patrice Bourdelais, “Le retour des dispositifs
representa, em contrapartida, um cavam medidas agregadas, que per- de 100 mil câmeras estão constante- de protection anciens dans la gestion politi-
benefício para as grandes multina- mitem representar os deslocamentos mente escaneando o espaço público, que des épidémies” [O retorno de antigos
dispositivos de proteção na gestão política de
cionais do digital. No fim de março, da população, em especial dos pari- ela é usada para identificar pessoas epidemias], Extrême-Orient Extrême-Occi-
nos Estados Unidos, o governo Trump sienses, para suas segundas residên- que violam a obrigação de ficar em dent, n.37, set. 2014.
iniciou diálogos com o Google, o Fa- cias. Na França, as autoridades e a quarentena. Já a polícia de fronteira 5   Citado por The Guardian, Londres, 9 mar.
2020.
cebook e vários de seus concorrentes, mídia usaram essas estatísticas para de Nova York considera que um con- 6   Luca Ferretti et al., “Quantifying SARS-CoV-2
a fim de mobilizar seus vastos esto- denunciar o não cumprimento do texto de epidemia justifica totalmen- transmission suggests epidemic control with
ques de dados para a luta contra o ví- confinamento no domicílio principal te o uso dessa solução “sem contato” digital contact tracing” [A quantificação da
transmissão de Sars-CoV-2 sugere controle
rus. Expostas há vários anos a uma e apontar o dedo para ovelhas negras e, portanto, mais “higiênica” que os epidêmico com rastreamento de contato digi-
onda crescente de críticas, as pontas que não estariam respeitando sua passaportes tradicionais para identi- tal], Science, Washington, mar. 2020.
de lança do capitalismo de vigilância obrigação de ficar em casa. Acompa- ficar os viajantes. Entende-se o caso: 7   Susan L. Erikson, “Cell phones ≠ self and
other problems with big data detection and
encontraram na crise uma oportuni- nhadas de imagens de estações lota- a proliferação da vigilância biométri- containment during epidemics” [Telefones ce-
dade de legitimar seus modelos eco- das, elas também contribuíram para ca agora se alimentará de considera- lulares ≠ problemas pessoais e outros com
nômicos tóxicos, ao mesmo tempo legitimar um emprego sem prece- ções relativas à saúde. detecção e contenção de big data durante
epidemias], Medical Anthropology Quarterly,
que se reposicionavam como parcei- dentes de forças policiais, a que se E como “estamos em guerra”, para v.32, n.3, set. 2018.
ros naturais dos Estados na gestão da pode juntar centenas de milhares de retomar as palavras do presidente 8   Ler Evgeny Morozov, “Covid-19, le solutionnis-
saúde pública. O Google e a Apple, autuações, numerosos casos de vio- Emmanuel Macron durante seu dis- me n’est pas la solution” [Covid-19, o solucio-
nismo não é a solução], blogs de Le Monde
que gerenciam os sistemas operacio- lência e um recurso assumido a no- curso televisionado em 16 de março, Diplomatique, 5 abr. 2020.
nais de quase todos os smartphones vas tecnologias de controle. Assim, o não seria sensato mobilizar os recur- 9   P arecer n. 20-51423, Bulletin officiel des an-
em circulação, anunciaram, por uso de drones, que está em voga há sos do antiterrorismo contra o coro- nonces des marchés publics, Paris, 15 abr.
2020.
exemplo, que trabalharão com as au- alguns anos para a vigilância de ma- navírus? Em 14 de março, o primeiro- 10  Ler “La ‘ville sûre’ ou la gouvernance par les
toridades para desenvolver soluções nifestações, mas que até agora tem -ministro israelense, Benjamin algorithmes” [A “cidade segura” ou a gover-
de rastreamento. sido relativamente limitado, está se Netanyahu, autorizou os serviços de nança por algoritmos] Le Monde Diplomati-
que, jun. 2019.
espalhando em favor da crise em inteligência interna a usar um dispo- 11 Le Journal des entreprises, Nantes, 25 mar.
PUBLICIDADE ÚNICA uma total imprecisão jurídica. Con- sitivo até então clandestino de com- 2020.
Esse episódio também lhes oferece a troladas de forma remota e equipa- bate aos atentados suicidas com o ob-  itado por Liberation.fr, 13 mar. 2020.
12  C
13  Times of Israël (versão francesa), Jerusalém,
oportunidade de selar novas parce- das com alto-falantes e câmeras, em jetivo de lutar contra a epidemia. “Até 15 mar. 2020. Disponível em: www.fr.timeso-
rias com instituições de saúde, com o geral alugadas a um preço alto de em- agora”, justificou-se, “evitei usar es- fisrael.com.
objetivo de desenvolver ferramentas presas privadas, essas aeronaves sas medidas contra a população civil, 14  “ WhatsApp attaque en justice une entreprise
israélienne pour espionnage” [WhatsApp pro-
para o processamento de dados de zumbidoras transmitem mensagens mas não temos mais escolha.”13 A em- cessa empresa israelense por espionagem],
massa e gerenciar melhor a alocação preventivas ou monitoram ruas e es- presa NSO Group, especializada em Capital, 30 out. 2019.
24 Le Monde Diplomatique Brasil  MAIO 2020

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LIBERDADE E RESPONSABILIDADE

Suécia evita estado de emergência


Ao contrário da maioria dos países europeus, a Suécia escolheu um método não coercitivo para conter a pandemia de
Covid-19. O governo defende restrições de movimento ou contato, mas não impõe confinamento total
POR VIOLETTE GOARANT*

“S
aia e aproveite seus par- para o “tudo digital”, o que facilita a bitantes) é muito maior que o da lândia. No entanto, esse índice
ques públicos.” O cartaz transmissão de recomendações e até França, permanece menor que nos permanecia duas vezes menor que o
municipal que anuncia a o monitoramento de dados anôni- outros países nórdicos, em particular da França ou três vezes menor que o
primavera nas ruas de Es- mos sobre movimentos da popula- na Islândia, onde mais de um habi- da Espanha. Além disso, desde 10 de
tocolmo poderia passar por uma pro- ção pela Agência de Saúde Pública.1 tante em cada dez havia sido testado abril, o número de novos casos caía
vocação em relação aos 4 bilhões de Do lazer aos procedimentos admi- em meados de abril. Ao longo das se- significativamente, assim como o de
pessoas confinadas em outras partes nistrativos on-line, incluindo entre- manas, finos painéis de acrílico sur- novos pacientes admitidos em tera-
do mundo. É certo que, no fim de mar- gas em domicílio, a internet favorece giram diante das caixas de lojas, e os pia intensiva.5
ço, a estação de metrô Abrahamsberg o cada um por si. O que soa deletério espaços das filas foram marcados no “Não, a estratégia da Suécia não é
estava deserta na hora do rush. O uso em tempos normais parece benéfico chão e nas prateleiras. Também hou- a imunidade coletiva.” Na conferên-
dos transportes públicos teria caído nos últimos dias. ve escassez de álcool em gel, papel hi- cia de imprensa da Agência de Saúde
em dois terços em um mês, enquanto giênico, arroz e fermento. Eventos Pública da Suécia, em 4 de abril, o
tudo ou quase tudo estava funcionan- GARANTIA PARA SE DESLOCAR culturais foram cancelados para vez epidemiologista-chefe, Anders Teg-
do. O painel de luzes vermelhas que Confiantes em suas instituições, os ou outra aparecerem na web. Num nell, era pressionado com perguntas
anuncia o próximo metrô emenda suecos apoiam essa estratégia. O passeio ao redor de um lago, uma sobre a diferença de resultados com
com a mensagem do momento: “Viaje confinamento total não ocorrerá, única tossida e cabeças se viram. Ge- os países vizinhos, que ele apresen-
apenas se for necessário”. Em frente, pois seria contrário à Constituição, ralmente no sábado à noite que se se- tou essencialmente como resultado
um ônibus chega. Equipado com lu- que garante a todos os suecos “a li- gue ao pagamento mensal, os mora- de uma diferença de tempo. No en-
vas de plástico azuis, o motorista indi- berdade de se deslocar dentro do Es- dores de Estocolmo ficam em casa. tanto, ele disse a um jornalista de TV
ca para subir pela porta de trás. Pelo tado ou de deixá-lo”. “É importante finlandês: “Acho que todos os países
retrovisor, seu olhar examina os pas- pensar no amanhã, quando olhare- CULTURA DO CONSENSO esperam uma imunidade coletiva,
.

sageiros, que se tornaram mais raros, mos pelo retrovisor para ver se ao Desde o início de março, cerca de 60 porque é somente quando houver
isolados por um cordão sanitário que longo do tempo conseguimos respei- mil pessoas foram despedidas e 100 muitas pessoas imunizadas que a ta-
neutraliza a fila atrás dele. tar nossas liberdades e os direitos mil passaram a enfrentar um desem- xa de propagação diminuirá de forma
A capital sueca diminuía lenta e fundamentais que tanto prezamos”, prego técnico. Tal aumento em tão duradoura”.6
suavemente seu ritmo para retardar a destaca Titti Mattsson, professor de pouco tempo não era observado des- A cultura do consenso é testada
progressão do coronavírus, seguindo Direito Público da Universidade de de 1992. O governo estima que a taxa por essa maratona. Fato histórico, o
as recomendações da Agência de Lund.2 Ao contrário de seus vizinhos de desemprego possa passar de 6,8% governo da minoria – que reúne so-
Saúde Pública. Desde 29 de março, do norte, que fecharam suas escolas e para 9%, ou até para 13% este ano.3 ciais-democratas e ambientalistas
reuniões de mais de cinquenta pes- fronteiras, a Suécia não possui um A Suécia não é um país de exce- com o apoio sem participação do
soas haviam sido proibidas. Trabalho quadro de exceção que permita esta- ção, onde tudo seria só ordem e bele- Partido da Esquerda – obteve poderes
e estudos a distância para escolas se- belecer um estado de emergência em za. “O país está mal preparado”, ob- aumentados por três meses. Desde 18
cundárias e universidades foram “in- tempo de paz. serva Stefan Löfven. “Suas reservas de abril, tem sido capaz de agir por
centivados”. No entanto, os estabele- Isso não impediu as autoridades estratégicas vêm gradualmente se es- meio de regulamentos para gerenciar
cimentos abertos ao público de agir a partir de fevereiro. Desde gotando desde a Guerra Fria.” O siste- a cada dia a crise da Covid-19, tendo o
permaneceram funcionando: esco- que os cientistas confirmaram na ma de saúde sueco também está pa- Parlamento apenas um controle a
las, bibliotecas, pavilhões esportivos. revista Science que se tratava de uma gando o preço de trinta anos de posteriori. Esse modo de governo por
Bares e restaurantes deviam fornecer pandemia, médicos especializados privatização desenfreada e cortes no decreto, no entanto, não significa
espaço adequado e um lugar sentado em segurança civil ou em serviços orçamento, com 2,2 leitos hospitala- onipotência: “Não é possível legislar
para cada cliente. Nas piscinas, a ha- sociais se expressam quase diaria- res por mil habitantes,4 ou seja, qua- contra um vírus”, proclama Stefan
bitual ausência de salva-vidas ilustra mente no púlpito da Agência de tro vezes menos que na Alemanha e Löfven, “que continua a apelar ao
a regra geral: todos assumem a res- Saúde Pública. A eles se junta regu- seis vezes menos que no Japão. Hos- ‘bom senso’ da população. A crise vai
ponsabilidade tanto para evitar se larmente o primeiro-ministro social- pitais, centros médicos e lares de ido- durar bastante e será difícil”. Desde o
afogar como no que se refere a trans- -democrata, Stefan Löfven, à escuta sos sofrem com a escassez de equipa- início de abril, o famoso cartaz “Saia
mitir ou pegar o vírus. dos cientistas ao mesmo tempo que mentos e de equipe de enfermagem e aproveite seus parques públicos”
Em 1º de abril, o Ministro da Saú- busca um entendimento com os treinada. Como em outras partes da desapareceu das ruas. 
de e Assuntos Sociais recordou a ins- vários líderes dos partidos. Pessoas Europa, a estratégia consiste em não
trução oficial: “Mantenham distân- consideradas de risco, como idosos entupir os estabelecimentos de saú- *Violette Goarant  é jornalista em
cia entre vocês e assumam sua com mais de 70 anos ou com proble- de, enquanto o Exército e a reserva ci- Estocolmo.
responsabilidade pessoal”. Normal- mas respiratórios, são incentivadas a vil instalam hospitais de campanha
mente, esse princípio já está tão ar- limitar seus contatos sociais e a – ainda não utilizados em meados de 1   “Folkhälsomyndigheten tar hjälp av mobilda-
raigado na sociedade que um sim- caminhar em espaços ventilados. O abril, em Estocolmo. ta”, site da Agência de Saúde Pública da Sué-
cia, 8 abr. 2020. Disponível em: www.folkhal-
ples resfriado leva por educação a apoio às compras é organizado por Embora em minoria, várias vozes somyndigheten.se.
cancelar um jantar ou a trabalhar em voluntários. É proibido visitar paren- se levantaram para pedir o confina- 2   “ Därför kan Sverige inte utfärda utegångsför-
home-office. Os suecos têm o hábito tes em estabelecimentos de cuidados mento, com base nos resultados de bud”, SVT Nyheter, Estocolmo, 2 abr. 2020.
Disponível em: www.svt.se.
de manter distância nos transportes a idosos. outros países nórdicos. Em relação ao 3   S venska Dagbladet, Estocolmo, 15 abr. 2020.
ou locais públicos. O trabalho a dis- No início de março, foi formado o número de habitantes, as mortes na 4   D ados da OCDE para 2018.
tância faz parte dos hábitos. Com Grupo Nacional de Luta contra a Pan- Suécia eram, em 20 de abril, duas ve- 5   Estatísticas oficiais da Agência de Saúde Pú-
blica da Suécia.
90% de usuários diários da internet, demia, e os testes começaram. Se o zes mais numerosas que na Dina- 6   Yle, Helsinque, 4 abr. 2020. Disponível em:
a Suécia lidera uma corrida frenética número de testes (75 para 10 mil ha- marca e dez vezes mais que na Fin- https://svenska.yle.fi.
MAIO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 25
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RESILIÊNCIA E GENTRIFICAÇÃO CLIMÁTICA EM MIAMI

Na Flórida, ricos não poderão mais


viver com o pezinho na água
As águas sobem em Miami. Assim como os preços dos condomínios de luxo construídos para resistir aos furacões e os
dos imóveis populares, mais ao alto, para os quais correm os ricos. Gentrificação clássica ou tomada de consciência do
aquecimento? Não importa! “Daqui a cem anos”, prevê um construtor, “toda a cidade estará debaixo d’água!”
POR LAURA RAIM*

N
as lojas de souvenirs de Miami esgotos, mantendo submersas por quanto tempo poderemos ficar ali. E de gerenciamento de patrimônio
Beach, canecas ilustradas dias e dias as vias e os estacionamen- não somos tão ricos para morar à bei- Mark Singer convida seus clientes a
com um mapa-múndi se des- tos subterrâneos. Em 2016, a foto de ra-mar! Meu vizinho planeja elevar a “reduzir sua exposição”. Antes, expli-
tacam nas prateleiras: se você um polvo encalhado em um estacio- casa, mas isso é muito caro, custa pe- ca, “ser dono de sua casa era o investi-
colocar água quente dentro delas, a namento em Miami Beach causou lo menos US$ 100 mil. Daí o dilema: mento mais seguro. Mas isso acabou.
Flórida desaparece do mapa. Aqui a impacto. Esse novo fenômeno foi ba- investindo para proteger sua casa, O aquecimento global não é cíclico
era do negacionismo ficou para trás. tizado de sunny day flooding [en- você aumenta o valor do bem exposto como o mercado de ações, a menos
Os ônibus que atravessam Miami chente de tempo bom], pois ocorre a condições climáticas mais severas, que possamos esperar até a próxima
ajudam a espalhar a mensagem: “A mesmo em dias sem chuva. Em algu- que inevitavelmente acabarão che- era glacial”. Ele lembra muito bem da
mudança climática é real”. O assun- mas ilhas de Florida Keys, arquipéla- gando. Mais cedo ou mais tarde, tere- primeira vez em que viu água saindo
to é amplamente tratado pela im- go que se estende ao sul de Miami, as mos de ir embora.” dos esgotos quando não estava cho-
prensa local, e o jornal The Miami inundações duraram, em 2019, no- Philip Stoddard, prefeito de South vendo. “Os construtores imobiliários
Herald chegou a criar, já faz dois venta dias consecutivos, um recorde. Miami, um dos 34 municípios do que constroem à beira-mar têm um
anos, uma editoria específica para o condado de Miami, é uma das raras horizonte de três a quatro anos, mas
tema. Outrora cético a respeito das “CEDO OU TARDE, autoridades eleitas a pronunciar o eu tenho um relacionamento de lon-
mudanças climáticas, o governador TEREMOS DE IR EMBORA” termo “saída voluntária”. “Poucos lí- go prazo com meus clientes, que es-
.

republicano da Flórida, Ron DeSan- Outra desvantagem geológica: com- deres políticos estão prontos para tão começando a ficar preocupados
tis, contratou, em 2019, cientistas e posto por lodo poroso, o subsolo da contar a verdade às pessoas”, explica. com a elevação das águas. Mais cedo
consultores de “resiliência” dedica- região é uma verdadeira esponja – “A renda anual média em Miami é de ou mais tarde, as seguradoras au-
dos a preparar a península para os uma grande diferença em relação a US$ 50 mil. Não temos recursos para mentarão drasticamente as tarifas, os
“impactos das mudanças climáti- outras cidades costeiras, como New financiar a infraestrutura necessária bancos não farão mais financiamen-
cas”. O nível do mar subiu 7 centíme- Orleans e Nova York. Essa composi- para adaptar a área ao aumento do tos de trinta anos, e eles não conse-
tros desde 1992, mas a dinâmica se ção permite que a extensão do ocea- nível do mar nas próximas décadas. A guirão mais revender suas casas.”
acelerou nos últimos quinze anos. no penetre nas reservas de água doce Agência Federal de Gerenciamento Nessas condições, não escapou
Até 2060, a água pode subir 86 centí- dos aquíferos e das fossas sépticas da de Emergências (Fema) tem um orça- aos observadores bem informados o
metros. E, como isso não é algo que cidade. Contra isso, os diques cada mento nacional de US$ 125 milhões. fato de que alguns bairros a poucos
se vê todo dia, os milionários, insta- vez mais altos construídos pelo mu- Só em meu pequeno município de 13 quilômetros do mar estão situados
lados em suas belas casas à beira- nicípio não têm poder algum. Em mil habitantes, seriam necessários um pouco mais ao alto. Longe do fre-
-mar, seja em Miami Beach ou próxi- Hallandale Beach, a água salgada já US$ 75 milhões para substituir as nesi turístico de Miami Beach, está
mo a Fisher Islands, Star Islands ou contaminou cinco poços de água do- fossas sépticas com problema por um West Coconut Grove. Esse antigo
Indian Creek, não sairão ilesos. En- ce. Em outros lugares, ameaça matar sistema de esgoto municipal! Temos bairro residencial, originalmente
tre os potenciais refugiados climáti- a vegetação intolerante ao sal, sobre- de dizer às pessoas que é hora de ocupado por imigrantes das Baha-
cos de luxo está o próprio presidente tudo as palmeiras, que fornecem pensar em deixar a região, enquanto mas, está a uma altitude que chega a
dos Estados Unidos, cujo clube pri- uma sombra preciosa. Ou seja, os ainda há tempo para se organizar 3 metros. Três pequenos metros que
vado de Lago-a-Mar deve, até 2050, moradores podem acabar morrendo com calma.” fazem toda a diferença, especialmen-
passar 210 dias por ano debaixo de de sede antes de morrerem afogados. Alguns não tiveram tempo de se te se comparado com Miami Beach,
30 centímetros de água.1 Já os furacões, que de tempos em preparar. No arquipélago de Keys, a onde a maior parte das construções
Em Miami, a mudança climática tempos varrem essa região tropical, destruição causada pelo furacão Ir- se assenta em uma altitude de 60 a
não é vista apenas como um risco fu- estão mais violentos e longos por ma forçou centenas de pessoas a ir 120 centímetros. Típicas das constru-
turo: suas consequências já são parte causa do aquecimento da superfície embora. Teoricamente, a Fema pro- ções antilhanas, as casinhas de ma-
da vida cotidiana. A Flórida, um anti- do oceano. A devastação material pôs a compra de algumas casas nas deira conhecidas como shotgun, re-
go pântano ligeiramente acima do deixada pelo furacão Irma em 2017 áreas vulneráveis, de modo a poder tangulares e estreitas, podem não ter
nível do Atlântico, é o estado do país atesta isso. declarar esses terrenos como não dis- vista para o mar, mas também nunca
mais vulnerável às inundações, cada “A curto prazo, nosso medo é a poníveis para a construção, colocan- ficam inundadas. O reverendo Na-
vez mais frequentes. O mar tem subi- combinação de furacão e maré alta, do fim ao ciclo infernal de destrui- thaniel Robinson, que atua na igreja
do mais depressa nesse estado do que como aconteceu com o furacão San- ção-reconstrução. Mas o processo africana metodista episcopal do
nos outros, e as marés, mais fortes do dy em 2012”, explica David Letson, administrativo é longo, com uma du- bairro, elogia a robustez dessas casas
que antes, revelam-se particular- economista que estuda os comporta- ração média de cinco anos. Acima de térreas capazes de resistir aos fura-
mente destrutivas durante a estação mentos de evacuação, ele próprio tudo, “a Fema simplesmente não tem cões. Ele explica: “Basta abrir as por-
das king tides, as gigantescas marés morador da vila de Key Biscayne, dinheiro para comprar as casas de tas e as janelas e a casa respira, o ven-
de outono. As saídas das tubulações uma ilha ao sul de Miami Beach. “Faz todas pessoas que deveriam sair”, to atravessa a casa, não a derruba.
de evacuação ficaram abaixo do nível 25 anos que eu e minha mulher vive- destaca Stoddard. Esta aqui conseguiu sobreviver até ao
da água, o que faz a água salgada en- mos em nossa casa”, continua, “e O prefeito de South Miami não é o [furacão] Andrew, em 1992” – orgu-
trar no sistema de drenagem e refluir, agora começamos a nos preocupar único a defender a saída. Em termos lha-se, mostrando uma modesta casa
junto com as águas residuais, pelos com o valor dela e a nos perguntar mais discretos e técnicos, o consultor branca marcada pelo tempo.
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No entanto, será ela capaz de so- do município em 2019. Apenas em de aburguesamento: o Dunkin Donut há 25 anos, não esconde seu aborre-
breviver aos investidores imobiliá- um ponto eles foram obrigados a ce- é o único restaurante do bairro, e tem cimento quando falamos da questão
rios? “Os corretores ligam e mandam der: o projeto propunha mudar o no- vidro à prova de bala em frente aos climática: “Estamos investindo ali
cartas toda semana querendo que eu me do local para Little River – nome caixas. A rede especializada em ros- porque é um dos poucos bairros onde
venda”, exalta-se Thaddeusq Scott, do bairro antes da chegada dos hai- quinhas a preços acessíveis não tem os preços dos terrenos ainda são bai-
um jardineiro “semiaposentado” de tianos –, mas tiveram de concordar como público-alvo a mesma clientela xos. Os 3 metros de altitude de dife-
63 anos que mora no bairro desde a em manter Little Haiti. Um prêmio de que um café Starbucks, por exemplo. rença são ridículos: daqui a cem anos
infância. Há dez anos, ele comprou consolação bem minguado. No entanto, Quaterman já considera não fará diferença, toda a cidade es-
uma casa por US$ 130 mil, com um fi- Marleine Bastien, diretora do Fa- isso um lamentável sinal de aburgue- tará debaixo d’água!”. O professor
nanciamento de trinta anos. Ele ficou mily Action Network Movement [Mo- samento: “Antes, era um KFC [uma Jesse Keenan, autor de um estudo que
bem, mas se sente cada vez mais soli- vimento de Rede de Ação Familiar], popular rede que vende frango frito]. destaca a ligação entre a altitude e o
tário à medida que os investidores um grupo de apoio às famílias haitia- Estamos ferrados!”. aquecimento do setor imobiliário, re-
compram e derrubam as casas ao re- nas, não se cansa de dizer aos pro- conhece que, “em um bairro como
dor da sua a fim de erguer imponen- prietários para não vender. “Os pro- Little Haiti, provavelmente estamos
tes residências brancas e quadradas motores estão oferecendo entre US$ “Faz 25 anos que vive- lidando com a gentrificação clássica”.
de estilo refinado. Ele descreve o sur- 150 mil e US$ 200 mil por casas que mos em nossa casa e E detalha: “Frequentemente, quem
gimento de uma centena desses lu- foram compradas no início dos anos sai de Miami Beach para fugir das in-
xuosos “torrões de açúcar” com vista 2000 por US$ 40 mil. Eles acham que
agora começamos a nos tempéries não fica em Miami, mas
para as casinhas antilhanas como é um ótimo negócio, mas depois que preocupar com o valor vai para cidades como Orlando e
uma “ameaça”: “Essas casas novas vendem acabam descobrindo que dela e a nos perguntar Atlanta. Meu melhor amigo, por
custam US$ 2 milhões. Elas não são com esse dinheiro não se compra quanto tempo podere- exemplo, acaba de vender sua casa
para gente como nós”. mais nada em Miami.” Alguns vão em Miami Beach e ir para Denver”.
Ricos se afastando do litoral inun- morar mais distante no condado, em
mos ficar ali” Portanto, não basta observar o fe-
dável e indo viver nas partes altas, em North Miami Beach, Homestead ou nômeno em escala local. Segundo
detrimento dos habitantes originais? Miami Gardens; outros vão mais lon- Seja em West Coconut Grove, Li- um estudo do demógrafo Mathew
Para descrever esse fenômeno, Scott ge ainda, até Fort Lauderdale, no con- berty City ou Little Haiti, todos enfa- Hauer, da Universidade da Geórgia,5
não hesita em falar em “gentrificação dado vizinho de Broward, ou até no tizam amargamente a ironia históri- 6 milhões de moradores da Flórida
climática”. O termo tem ganhado for- estado vizinho da Geórgia. ca da situação: “Durante a segregação, devem se mudar para áreas mais
ça na imprensa local no último ano e Com a subida do nível do mar, a depois com as políticas que proibiam afastadas do litoral até o final do sé-
aparece em vários estudos publica- prefeitura de Miami considera lógico empréstimos hipotecários a negros culo se a água subir 1,8 metro. Saben-
dos. Segundo Jesse Keenan, professor desenvolver essas áreas que são não fora de certas áreas até meados da dé- do que aglomerações como Dallas e
de Harvard e oriundo de Miami, o va- apenas mais altas, mas também aten- cada de 1960, nós não podíamos mo- Houston poderiam absorver grande
lor das casas individuais aumentou didas por uma das raras linhas de rar no litoral. Agora a água está subin- parte desse contingente populacio-
.

mais rapidamente entre 1971 e 2017 trem. “Miami se desenvolveu inicial- do e eles querem vir morar em nossos nal, é em escala nacional que pode-
nos bairros mais altos do que nos mente como um destino de férias de bairros e nos expulsar”, resume Caro- mos medir os efeitos da gentrificação
mais baixos.2 Um relatório da consul- inverno; depois, em grande parte line Lewis. Essa é a originalidade de climática. Em todo o país, 13 milhões
toria McKinsey também estima que graças à difusão do ar-condicionado Miami, em comparação com uma ci- de pessoas podem ter de sair de cida-
as casas na zona inundável da Flórida na década de 1960,4 tornou-se uma ci- dade como New Orleans, onde as co- des costeiras, principalmente de
devem perder de 15% a 35% de seu dade de residência permanente”, ex- munidades negras vivem em áreas Long Island, em Nova York, de New
valor até 2050.3 plica o diretor de planejamento urba- baixas e propensas a inundações. Orleans, na Louisiana,6 de Charles-
no da prefeitura, Francisco Garcia. A hipótese de uma gentrificação ton, na Carolina do Sul, e de San Ma-
“ELEVAÇÃO” DO BAIRRO “Mas a organização urbanística de puramente climática, no entanto, teo, na Califórnia. Embora as Nações
Em Little Haiti, um grupo de militan- então, baseada em casas individuais, não é consenso, pois a especulação Unidas costumem alertar para a si-
tes está bastante mobilizado em tor- não é mais viável: é absolutamente imobiliária começou em 2005, bem tuação de pequenas nações insula-
no desse tema. Conhecido por seu necessário adensar a cidade.” antes de passarem a falar tanto sobre res, como as da Polinésia, as Maldi-
mercado caribenho e suas botanicas Os moradores de Liberty City – mudanças climáticas. Essa especula- vas e as cerca de 7 mil ilhas das
(lojas de vodu), esse bairro popular que fica a 2,6 metros “de altitude” – ção afetou todos os bairros, inclusive Filipinas, o problema emerge com
onde se estabeleceram na década de estão convencidos de que são os pró- os menos elevados, em um contexto gravidade nos Estados Unidos, onde
1970 os refugiados haitianos que es- ximos na lista de compras da de explosão demográfica. Em quinze poderia provocar um movimento po-
capavam da ditadura de Jean-Claude gentrificação climática. Nesse bairro anos, Miami passou do status de es- pulacional de magnitude comparável
Duvalier está entre 2 e 4 metros aci- de população negra no qual metade tação balneária e paraíso fiscal para à Grande Migração de Afro-America-
ma do nível do mar. “Para Miami, são dos habitantes ganha menos de US$ aposentados que gostam de golfe ao nos do Sul para o Norte do país ao
as Montanhas Rochosas!”, ri Caroline 20 mil por ano, o preço médio do me- de metrópole global, cultural e mo- longo do século XX.
Lewis, fundadora da Cleo, uma asso- tro quadrado cresceu 26% em 2018. derna para jovens executivos dos se-
ciação especializada em educação Em parceria com grupos privados, a tores de tecnologias e finanças, inte- ELES NÃO LIGAM SE SUA
sobre as questões climáticas. Aqui, o cidade começou a reformar em 2017 ressados em arte contemporânea. RESIDÊNCIA SERÁ INUNDADA
estandarte da gentrificação climática os conjuntos habitacionais construí- Desde 2010, a população do condado Jesse Keenan também admite pron-
se chama Magic City Innovation Dis- dos na década de 1930 nos nove blo- de Miami cresceu em 300 mil, para tamente que não são os bilionários
trict. O megaprojeto de US$ 1 bilhão cos que formam Liberty Square. As atingir agora 2,8 milhões de habitan- que estão abandonando suas man-
prevê a construção, em quinze anos, construtoras logo começaram a com- tes. Os preços dos imóveis subiram, sões em Miami Beach para ir morar
de vinte edifícios combinando escri- prar as casas dos arredores. “Abriram inflados por uma forte demanda ex- em Little Haiti ou Liberty. “Eles não
tórios, lojas, apartamentos, galerias, uma clínica veterinária aqui”, diz terna. Arranha-céus de luxo brota- estão nem aí se uma de suas casas de
cafés e restaurantes, distribuídos em com ar irônico Samantha Quater- ram como cogumelos. Nessas condi- verão de US$ 15 milhões for inunda-
um “calçadão” de 7 hectares. O site man, diretora de uma escola do bair- ções, muitos bairros logo se da.” Se houver um furacão, eles esta-
oficial desse projeto de “revitaliza- ro. “Quando você vê pessoas brancas aburguesaram, tanto Downtown co- rão longe de Miami, em uma de suas
ção” (sic) fala explicitamente da van- passeando pela rua com seus cães, mo Wynwood ou Design District. En- muitas residências. “Em compensa-
tagem da “elevação” do bairro diante sabe que está muito lascado. Eu não tre 2011 e 2017, os aluguéis subiram ção, as classes médias estão cada vez
dos “impactos das mudanças climá- conheço ninguém que tenha um ca- 24% no condado. Porém, os salários e mais irritadas com as inundações ca-
ticas” e das “ondas de tempestades”. chorrinho aqui...” Tristemente famo- a construção de moradias sociais não da vez mais frequentes, que destroem
Apesar de três anos de incansável lu- sa por causa das rebeliões raciais de acompanharam esse movimento. seus carros, aumentam o preço de
ta dos moradores haitianos, os pro- 1979, das gangues e do crack, Liberty Mallory Kauderer, empreendedor suas apólices de seguro e deixam in-
motores conseguiram a autorização City ainda parece longe desse estágio imobiliário que atua em Little Haiti transitáveis as estradas que elas
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usam para ir de casa ao trabalho.” da psicologia, para explicar a capaci- cidade. “É aqui que chegamos ao ab- normal, exceto por um cheiro podre
Assim, os mais ricos não apenas dade apresentada por algumas pes- surdo do sistema: como o município que sobe o tempo todo dos esgotos.”
não estão preocupados em se mudar, soas para superar traumas. Adotada é totalmente dependente do mercado Quanto às bombas, elas não foram
como ainda há alguns vindo se insta- por economistas, urbanistas e espe- imobiliário e do turismo, ele incenti- projetadas para filtrar a água que
lar à beira-mar, onde os “condomí- cialistas em desenvolvimento, na úl- va a construção de apartamentos e descarregam na Baía de Biscayne –
nios” de luxo projetados por arquite- tima década o termo virou a palavra- hotéis de luxo para obter as receitas isso fez a baía atingir um nível tão
tos famosos continuam sendo -chave que cabe em todas as políticas fiscais necessárias ao financiamento elevado de presença de bactérias fe-
construídos e vendidos a preços insa- públicas, sejam elas ligadas a mudan- da infraestrutura que protegerá essas cais que cartazes desaconselhando
nos. Os compradores assinam seus ças climáticas, desastres naturais, mesmas construções.” A dependên- formalmente o banho foram instala-
cheques com ainda mais serenidade terrorismo, crises financeiras ou epi- cia em relação ao turismo também dos em várias praias.
por saber que precisam assumir ape- demias. Com a chegada da Covid-19, o explica, em parte, o fato de o gover- “De qualquer forma, tudo isso ser-
nas parte dos riscos. Nos Estados presidente francês Emmanuel Ma- nador DeSantis ter demorado tanto ve apenas para tranquilizar as com-
Unidos, há um sistema público de se- cron criou uma operação de guerra, para pedir o confinamento diante da panhias de seguros e as construtoras,
guro contra inundações, o National lançada no dia 25 de março, para pandemia do novo coronavírus, dei- mas não nos dá mais do que uns trin-
Flood Insurance Program (NFIP), combater o vírus – e a batizou de “Re- xando tranquilamente dezenas de ta anos”, avalia a geógrafa Stephanie
criado em 1968 e cujas taxas não re- siliência”. “É um termo pernicioso, o milhares de estudantes de férias Wakefield. “A longo prazo, há enge-
fletem os riscos reais. “Eu sou de es- qual sugere que não podemos mudar amontoados até abril nas praias da nheiros imaginando que teremos
querda, não sou fã dos mercados, os sistemas econômicos existentes Flórida, para depois irem embora le- cinco arranha-céus de luxo conecta-
mas no caso dos seguros eu gostaria nem impedir os desastres que eles vando o vírus para o resto do país.8 dos por pontes e chamaremos isso de
muito que a mão invisível de Adam causam”, prossegue Stephanie Wake- ‘ilhas do sul da Flórida’. Outros proje-
Smith viesse aumentar os preços!”, field. “Seríamos todos naturalmente tam ilhas flutuantes.”
brinca Mario Ariza, jornalista do Sun vulneráveis e seria inevitável convi- “Essas casas novas É nesse sentido que a Arkup ven-
Sentinel e autor de um livro no prelo ver com isso. As tecnologias de resi- custam US$ 2 milhões. de, desde 2018, habitações flutuantes
sobre os efeitos do “desastre climáti- liência que gerenciam as mudanças de 400 metros quadrados, um meio-
co” em Miami. “Atualmente, estamos climáticas coexistem perfeitamente
Elas não são para -termo entre iate e casa. “Uma alter-
socializando o risco, e isso sabendo com as tecnologias que causam essas gente como nós” nativa verde, responsável e resilien-
que dois terços das casas cobertas mudanças. O mais perturbador é que te”, podemos ler no site da start-up
por esse seguro público são residên- parte da esquerda e dos militantes francesa. Com fornecimento de ener-
cias de veraneio de gente rica.” acabou adotando esse vocabulário e ALGUNS VISLUMBRAM gia garantido por painéis solares, a
O nível do mar está subindo? Pou- essa visão de mundo.” ILHAS FLUTUANTES Arkup também é autossuficiente em
co importa: as novas construções são O tema “resiliência” deve muito de Ainda mais que a cidade de Miami, é abastecimento hídrico, graças a um
concebidas para resistir a isso. É o ca- seu sucesso como resposta aos desa- Miami Beach, o município vizinho sistema de coleta e purificação de
so do Monad Terrace: projetado pelo fios climáticos à Fundação Rockefel- menor e mais rico, que revela seu vo- água da chuva. Projetado para resistir
.

arquiteto francês Jean Nouvel, o pré- ler, cuja presidenta, Judith Rodin, es- luntarismo audacioso em matéria de a um furacão de categoria 4, o con-
dio de 59 apartamentos foi construí- creveu um livro de título muito “resiliência urbana”. Em 2015, Miami junto se assenta sobre quatro pilares
do para suportar um furacão de cate- sugestivo: Le dividende de la résilien- Beach anunciou um plano de US$ hidráulicos. Em vez de lutar contra a
goria 5 (nível máximo). O edifício, ce. Être fort dans un monde où les cho- 400 milhões, cujo nome épico, Rising elevação do nível do mar, por que não
com vista para a Baía de Biscayne, se- ses peuvent mal tourner [O dividendo Above [Elevando-se ao alto], descre- viver em simbiose com ela? A resiliên-
rá elevado em 3,5 metros e terá gara- da resiliência. Ser forte em um mundo ve adequadamente a ambição do en- cia é possível, mas tem um preço: US$
gem no térreo, não no subsolo. Em onde tudo pode dar errado].7 Desde tão prefeito Philip Levine de literal- 5 milhões, para sermos precisos. 
caso de inundação, o excesso de água 2013, a fundação criou e financiou po- mente “elevar” a cidade acima do
será direcionado para a lagoa locali- sições de chief resilience officers [exe- mar. Declarando estado de emergên- *Laura Raim  é jornalista.
zada no centro do complexo, pelo cutivos de resiliência] em uma cente- cia climática, ele não hesitou em ig-
mais gracioso dos efeitos. Os emprei- na de metrópoles ao redor do globo. norar os procedimentos usuais para
teiros não se cansam de falar na “re- Jane Gilbert é a primeira a ocupar se lançar a trabalhos titânicos e er- 1   A dam Gabbatt, “How hurricanes and sea-level
siliência” do futuro edifício, que deve esse cargo em Miami. Ela detalha pa- guer uma dúzia de estradas, instalar rise threaten Trump’s Florida resorts” [Como
os furacões e o aumento do nível do mar
ser concluído até o fim do ano. É claro ra nós as medidas que a cidade está bombas gigantes (principalmente na ameaçam os resorts de Trump na Flórida],
que eles se esquecem de contar que a adotando para obrigar (ou mais fre- Alton Road, onde possui imóveis) e The Guardian, Londres, 9 set. 2017.
concretização do projeto exige a quentemente encorajar) proprietá- elevar os diques. 2   “Climate gentrification: from theory to empiri-
cism in Miami-Dade County, Florida” [Gentrifi-
compra de um prédio e a expulsão de rios e construtores a elevar o piso tér- Os resultados não ficaram à altu- cação climática: da teoria à experiência empí-
seus inquilinos, que, a menos que reo, aumentar os diques ou instalar ra das promessas. Construídos às rica no condado de Miami-Dade, Flórida],
possam pagar entre US$ 1,7 milhão e painéis solares. Não se trata, porém, pressas e sem licença, os diques in- Environmental Research Letters, v.13, n.5,
IOP, Bristol, 23 abr. 2018.
US$ 14 milhões, dependendo do de pensar em ir embora. “As pessoas fringiram as regras de proteção da 3   C limate risk and response: Physical hazards
apartamento, não poderão contar vêm morar aqui pela beleza do mar, flora e da fauna selvagens, e as obras and socioeconomic impacts [Risco climático
com os milagres dessa “resiliência”. não vamos ficar longe dele”, justifica. tiveram de ser interrompidas. A ele- e suas consequências: riscos físicos e impac-
tos socioeconômicos], McKinsey Global Insti-
Resiliência é a palavra mágica. Em vez de relocation, como quer o eu- vação das estradas agravou a inun- tute, Nova York, jan. 2020.
“Antes, promotores imobiliários e po- femismo da moda, adaptação. Em dação dos edifícios alicerçados um 4   Ler Benoît Bréville, “L’air conditionné à l’as-
deres públicos negavam as mudanças 2017, a prefeitura conseguiu a aprova- nível abaixo. A gerente do restauran- saut de la planète” [O ar-condicionado domi-
na o planeta], Le Monde Diplomatique, ago.
climáticas”, analisa Stephanie Wake- ção, pelos habitantes, de um plano de te Sardinia Enoteca relata suas des- 2017.
field, geógrafa da Universidade Inter- US$ 400 milhões, com um nome oti- venturas durante a última tempesta- 5   “ Millions projected to be at risk from sea-level
nacional da Flórida. “A ‘resiliência’ foi mista, “Miami Forever”, que prevê in- de: “As bombas gigantes instaladas rise in the continental United States” [Proje-
tam-se milhões de pessoas em risco, no terri-
a forma que eles encontraram de falar vestimentos em infraestrutura e mo- para drenar a água não estavam fun- tório continental dos Estados Unidos, com o
sobre o assunto, pois agora podem radias do futuro. E de onde virá o cionando por causa do corte de ener- aumento do nível do mar], Nature Climate
fingir que acharam as soluções para dinheiro? Em muitos aspectos, o es- gia. A seguradora se recusou a cobrir Change, n.6, Londres, 2016.
6   Ler Elizabeth Rush, “En Louisiane, l’avenir au
enfrentar esse problema.” Surgido no tado da Flórida é considerado um pa- os danos. Por causa da elevação das ras de l’eau” [Na Louisiana, o futuro à beira da
campo da física para designar a resis- raíso fiscal, pois não cobra imposto estradas, passamos a ser considera- água], Le Monde Diplomatique, out. 2015.
tência de um material a choques, o de renda. “Uma parte enorme do or- dos subsolo!”. A prefeitura acabou 7   J udith Rodin, The resilience dividend. Being
strong in a world where things go wrong [O
conceito tem uma bela carreira: im- çamento de Miami, cerca de 40%, adicionando geradores elétricos nas dividendo da resiliência. Ser forte em um mun-
portado na década de 1970 pelas ciên- provém de imposto fundiário”, expli- proximidades para compensar os do onde tudo pode dar errado], PublicAffairs,
cias da ecologia para analisar a evolu- ca Frances Colón, ex-membro do Co- cortes de energia e negociar com as Nova York, 2014.
“A shadow over the Sunshine State” [Uma
8   
ção e a adaptação dos ecossistemas, mitê de Resiliência Climática, res- companhias de seguros. “As coisas sombra cobre o Sunshine State], The Econo-
ele explodiu nos anos 1980 no campo ponsável por fazer recomendações à estão pouco a pouco voltando ao mist, Londres, 2 abr. 2020.
28 Le Monde Diplomatique Brasil  MAIO 2020

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COMO WASHINGTON CONTROLA SEU QUINTAL

OEA, o ministério das


colônias norte-americanas
A reeleição do secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), Luis Almagro, em 20 de março, sugere a
extensão do clima de guerra fria que se instalou na América Latina nos últimos anos. Desde que assumiu o cargo em 2015,
o ex-ministro das Relações Exteriores do Uruguai trabalhou para reconstruir a hegemonia norte-americana na região
POR GUILLAUME LONG*

C
riada em 1948 no centro do Tratado Interamericano de Assistên- da OEA ao marxismo-leninismo é in- durante a Guerra das Malvinas em
confronto entre os Estados Uni- cia Mútua (também conhecido como compatível com o sistema interame- 1982 ou ainda na ocasião da invasão
dos e a União Soviética, a Orga- Tratado do Rio), de 1947. Este último ricano”.2 Por outro lado, nenhuma di- norte-americana no Panamá em
nização dos Estados America- constituía uma mensagem à União tadura militar latino-americana foi 1989-1990. Nesses casos, Washington
nos (OEA) constitui um dos Soviética: um ataque contra um Esta- excluída da organização, apesar das ignorou as resoluções dos Estados-
instrumentos da projeção geopolítica do do continente seria considerado denúncias bem documentadas na -membros e agiu unilateralmente.
de Washington na América Latina e um ataque contra todos os países Comissão Interamericana de Direitos O fim da Guerra Fria mergulhou a
no Caribe, cujos países ingressaram signatários. Humanos (CIDH) em relação às atro- OEA em uma crise existencial. A onda
na organização, um após o outro, à Pouco a pouco, porém, a priorida- cidades cometidas por vários gover- de democratização na década de 1980
medida que conquistavam sua inde- de passou a ser o desdobramento do nos na década de 1970. libertou a organização do silêncio
pendência entre as décadas de 1960 e “multilateralismo interamericano”. No entanto, em algumas ocasiões, que a tutela norte-americana lhe im-
1980. O Canadá é membro da OEA O momento era de demonstrar ao os países da América Latina e Caribe pusera diante das ditaduras. Quando
desde 1991 e se limita a representar mundo o consenso entre Washington se uniram como maioria no Conse- o bloco soviético entrou em colapso,
.

uma versão moderada da linha de- e as elites latino-americanas em sua lho Permanente para se rebelar con- ela se dedicou a defender os padrões
fendida pela Casa Branca. rejeição comum ao comunismo. tra posicionamentos dos Estados e valores da democracia liberal. A
Se, como Fidel Castro, a esquerda Cuba foi expulsa da OEA em 1962 por Unidos – como durante os conflitos OEA se reinventou, concentrando-se,
vê a organização como “o ministério meio de uma resolução que afirmava marítimos entre Estados Unidos, Pe- entre outras coisas, na observação de
das colônias dos Estados Unidos”,1 as que “a adesão de qualquer membro ru e Equador no fim dos anos 1960, processos eleitorais para garantir sua
elites têm por ela uma deferência que
beira o sagrado. Um embaixador da

© Juan Manuel Herrera/OEA


América Latina ou do Caribe na OEA
é um dos diplomatas mais importan-
tes de seu país. Quanto ao secretário-
-geral, ele pesa bastante nos debates
políticos dos países-membros, exceto
nos Estados Unidos, onde a organiza-
ção e seu secretário-geral são ampla-
mente desconhecidos, mesmo entre
as elites políticas.
No entanto, é em um imponente
edifício de mármore – dado à União
Pan-Americana (antecessora da
OEA) por Andrew Carnegie, o grande
barão da indústria siderúrgica –, a
poucas centenas de metros da Casa
Branca, que se reúne o Conselho Per-
manente da OEA. No fim da década
de 1940, os Estados Unidos redese-
nharam o sistema multilateral glo-
bal: as Nações Unidas estariam em
Nova York, e a OEA, em Washington.
Os Estados Unidos querem sugerir
uma hegemonia difusa, mas não a
ponto de sediar qualquer desses dois
organismos em um país periférico.

“NÃO SEJAM IMBECIS”


A OEA desempenhava um papel se-
cundário, à margem de instituições
focadas em segurança pura e crua,
como a Organização Interamericana
de Defesa (OID), criada em 1942, e o Luis Almagro (à direita) foi reeleito secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA)
MAIO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 29
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credibilidade. Essa missão, iniciada tre os progressistas latino-america- Almagro rapidamente se interes- relação ao candidato que ficou em se-
na Costa Rica em 1962, se tornaria nos, conscientes de que as mudanças sou pela Venezuela. Em apoio mili- gundo lugar, ela é eleita no primeiro
um dos pilares da nova instituição. na balança de poder no Conselho tante à oposição, contrapôs-se a turno. Mas a Missão de Observação
Mas esse caminho não foi suficiente Permanente não alteravam a estrutu- qualquer tentativa de negociação. Ao Eleitoral da OEA causou problemas
para colocar a OEA no centro da ce- ra fundamental da organização ou ex-presidente espanhol José Luis Ro- quando os primeiros resultados fo-
na. Na época, Washington preocupa- sua submissão a Washington. Finan- dríguez Zapatero, que defendia um ram anunciados, citando uma “mu-
va-se principalmente com a constru- ciada principalmente pelos Estados movimento político negociado na Ve- dança inexplicável de tendência” na
ção de consenso e com os programas Unidos (de onde vem até 60% de seu nezuela, retrucou: “Não sejam imbe- contagem dos votos (comunicado à
de ajuste estrutural resultantes. Nes- orçamento anual, e 100% no caso de cis”.3 O uruguaio – como Washington imprensa de 21 de outubro de 2019).
sa área, o FMI, o Banco Mundial e o certos órgãos), a OEA possui uma bu- – decidiu que o único resultado pos- Como vários estudos estatísticos de-
Banco Interamericano de Desenvol- rocracia predominantemente latino- sível envolvia mudança de regime e monstraram desde então, essa “mu-
vimento (BID) solaparam a atenção -americana, mas que reside em aplaudiu as medidas econômicas dança de tendência” é de fato o resul-
dos latino-americanos. Washington e demonstra uma leal- coercitivas dos Estados Unidos. tado de uma contagem tardia de
A OEA também não conseguiu es- dade descarada à instituição – re- Quando o governo Trump declarou certas áreas geográficas muito favo-
tabelecer-se como árbitra de disputas compensada com alto prestígio que “todas as cartas estavam sobre a ráveis a Evo Morales. Já não importa:
entre os países da região, particular- profissional. mesa”, sugerindo a possibilidade de a grande mídia estava acusando o
mente em torno das rivalidades resi- Os governos de esquerda decidi- uma ação militar, Almagro endossou pleito de fraude; a oposição se radica-
duais nas fronteiras pós-coloniais. A ram, assim, fomentar um novo regio- a ameaça e o argumento para a inter- lizou; Morales teve de se exilar, amea-
voz da OEA não contou durante a re- nalismo. Esse momento único favo- venção humanitária, o que assustou çado pelos militares. A OEA nunca
solução do conflito de Beagle entre o receu a criação da União das Nações vários governos latino-americanos poderá fundamentar suas acusações
Chile e a Argentina em 1984 nem du- Sul-Americanas (Unasul), em 2008. A até do Grupo Lima, uma aliança de fraude, conforme revelado, entre
rante a paz assinada entre o Equador Unasul é uma aposta ambiciosa. In- construída com o objetivo de isolar o outras coisas, em um longo relatório
e o Peru em 1998. clui integração política, econômica, governo de Nicolás Maduro. do Centro de Pesquisa em Política
Com os anos 2000 e a chegada ao de defesa, entre outras, indo além dos O entusiasmo do secretário-geral Econômica (CEPR), com sede em
poder da onda esquerdista na Améri- objetivos entendidos por outros me- pela defesa da “democracia” não se Washington.5 Poucas semanas após
ca Latina, o controle dos Estados Uni- canismos de integração sul-america- estendeu ao Brasil. A destituição da os eventos, o governo de facto de Jea-
dos sobre o sistema interamericano nos e excedendo o mandato da OEA, presidenta Dilma Rousseff e a prisão nine Áñez anunciou seu apoio à ree-
diminuiu um pouco. Em 2005, pela acima de tudo – mas não somente – sem provas do ex-presidente Luiz leição de Almagro, um homem que,
primeira vez na história da organiza- no que diz respeito aos aspectos eco- Inácio Lula da Silva – impedindo-o de segundo a nova ministra das Rela-
ção, um secretário-geral foi eleito – e nômicos e de desenvolvimento dos participar da campanha presidencial ções Exteriores, Karen Longaric, “de-
reeleito em 2010 – sem o apoio de membros. A Unasul interveio nota- de 2018 – não o sensibilizaram. O ho- sempenhou um papel fundamental
Washington. Em 2009, uma resolu- velmente nas crises políticas domés- mem comprometido com o governo na defesa da democracia na região”.6
ção da Assembleia Geral de Ministros ticas em 2008 na Bolívia, em 2010 no de Jovenel Moïse no Haiti, no contex- A reeleição de Almagro marca um
.

das Relações Exteriores declarou inó- Equador e em 2012 no Paraguai, mas to dos protestos de 2018 e 2019, não retorno inequívoco a uma OEA favo-
cua a exclusão de Cuba. Havana reco- também em conflitos internacionais, provocava mais reação. Quando Al- rável aos Estados Unidos. Se a organi-
nheceu o gesto, mas recusou qual- como em 2010, entre Venezuela e Co- magro visitou o Equador no fim de zação procurou se reinventar e ga-
quer possibilidade de retorno à lômbia. Em todas essas mediações e outubro de 2019, após os maiores pro- nhar legitimidade como defensora da
organização. intervenções, a OEA foi excluída. testos da história contemporânea do democracia, sua aposta fracassou.
No mesmo ano, o golpe de Estado Em 2010, nasceu a Comunidade país e uma onda incomum de repres- Sob a liderança de Almagro, a organi-
contra o presidente Manuel Zelaya de Estados Latino-Americanos e Ca- são, parabenizou o presidente Lenín zação voltou a ser sinônimo de “mon-
em Honduras foi punido com a sus- ribenhos (Celac), composta pelos Moreno pela maneira como adminis- roísmo” – em referência à doutrina do
pensão de Honduras da OEA – algo países do hemisfério ocidental, mas trou a crise, ignorando que a repres- presidente James Monroe, no início
inédito na organização. Somente um incluindo Cuba e excluindo os Esta- são deixou vários mortos. Para ele, o do século XIX, de que a América Lati-
acordo para devolver o ex-presidente dos Unidos e o Canadá. Esse espaço presidente chileno Sebastián Piñera na constitui um “quintal” onde
Zelaya a Tegucigalpa em 2011 permi- se formalizou para criar um fórum – também arquiteto de uma violenta Washington não tolerará nenhuma
tiu que Honduras retornasse à orga- menos institucionalizado que a Una- repressão contra movimentos sociais interferência estrangeira. Em janeiro
nização. Os governos progressistas sul e sem um tratado constituinte, – “defendeu efetivamente a ordem de 2020, o fato foi celebrado pelo se-
da América Latina aproveitaram sua dedicado à articulação política entre pública, tomando medidas especiais cretário de Estado dos Estados Uni-
relativa coesão para se libertar de os Estados da região e às discussões para garantir os direitos humanos”.4 dos, Mike Pompeo, como um “retor-
certos aspectos do sistema interame- internacionais. A Celac realizou di- Quanto à Colômbia, Almagro não no ao espírito da OEA nas décadas de
ricano. Depois do México, em 2001, versas reuniões de articulação inter- disse nada sobre o desaparecimento 1950 e 1960”.7 
seguiram-se, entre 2012 e 2014, as de- nacional com União Europeia, Chi- diário de sindicalistas ou o abandono
núncias do Tratado do Rio por Nica- na, Rússia, Índia etc. do processo de paz pelo governo. Por *Guillaume Long, ex-ministro das Rela-
rágua, Bolívia, Venezuela e Equador. Em 2015, Luis Almagro – próximo outro lado, disse estar alarmado com ções Exteriores do Equador, é analista sênior
Preocupada em evitar que a OEA ao então presidente uruguaio e figu- a violência dos manifestantes que re- de política do Centro de Pesquisa Econômi-
continuasse como ferramenta de ra da esquerda latino-americana Pe- jeitam as políticas neoliberais do pre- ca e Política (CEPR), em Washington, DC.
Washington em sua luta contra go- pe Mujica – foi eleito para o cargo de sidente Iván Duque.
vernos com vocação anti-imperialis- secretário-geral da OEA. Apresenta- 1   D iscurso de Fidel Castro em 4 de fevereiro de
1962.
ta, a esquerda regional apostou na do por Mujica e apoiado pelos gover- RETORNO AOS ANOS 1950 2   Resolução VI da Oitava Reunião de Consulta
articulação com o Caribe – como, nos de esquerda da região, o ex-mi- É na Bolívia, porém, que Almagro dá dos Ministros das Relações Exteriores da
por exemplo, o apoio da Venezuela a nistro das Relações Exteriores do seu golpe de mestre. Em outubro de OEA em Punta del Este, Uruguai, de 22 a 31
de janeiro de 1962.
todos esses pequenos países durante Uruguai prometeu continuar o ca- 2019 foram realizadas eleições gerais. 3   E FE, Washington, 21 set. 2018.
a alta do petróleo, fornecendo-o a minho da independência traçado O então presidente, Evo Morales, 4   E FE, Santiago do Chile, 9 jan. 2020.
baixo custo para a região. A maioria por seu antecessor, José Miguel In- candidato à reeleição, venceu a vota- 5   Jake Johnston e David Rosnick, “Observing
the Observers: The OAS in the 2019 Bolivian
dos catorze votos dos países da Co- sulza. Mas a onda progressiva estava ção no primeiro turno, com 47,08% Elections” [Observando os observadores: a
munidade do Caribe (Caricom) na se esvaindo e Almagro se adaptou: dos votos, contra seu principal rival, OEA nas eleições bolivianas de 2019], Cen-
OEA ajudou a combater os ataques rapidamente se aliou à direita em re- Carlos Mesa, atrás dele por mais de 10 ter for Economic and Policy Research,
Washington, 10 mar. 2020.
dos Estados Unidos à Venezuela e composição e orquestrou o retorno pontos percentuais (36,51%). Segun- 6   Alejandra Arredondo, “Bolivia apoya reelec-
outros governos de esquerda da OEA firmemente sob a égide dos do a Constituição boliviana, quando ción de Almagro en la OEA” [Bolívia apoia
latino-americanos. Estados Unidos – que em breve pas- uma pessoa obtém mais de 40% dos reeleição de Almagro na OEA], 23 jan. 2020.
Disponível em: voanoticias.com.
Apesar desses avanços, a suspeita sariam a ser liderados por um certo votos no primeiro turno com uma di- 7   Discurso ao Conselho Permanente da OEA
sobre a OEA permaneceu latente en- Donald Trump. ferença de pelo menos 10 pontos em em 17 de janeiro de 2020.
30 Le Monde Diplomatique Brasil  MAIO 2020

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O QUE PIERRE ROSANVALLON NÃO COMPREENDE

Controvérsia
sobre o populismo
de esquerda
A crise sanitária reabriu a caça aos “populistas”. Como
suas caricaturas – Donald Trump e Jair Bolsonaro –,
eles desprezariam a ciência, a separação de poderes,
a complexidade, o estado de direito. Defensor de uma
democracia tranquila, consensual, Pierre Rosanvallon
retoma certas críticas, arbitrárias, do populismo.
Chantal Mouffe, teórica dessa corrente, responde a ele
POR CHANTAL MOUFFE*

Bolsonaro e Trump desprezariam a ciência e o estado de direito


.

E
m sua recente obra, Le siècle du uma má-fé metodologicamente duvi- Mais do que procurar definir os democracia”, que consiste em conde-
populisme,1 Pierre Rosanvallon dosa. Ele afirma, por exemplo, que eu princípios do populismo, é preciso nar a natureza liberal e representati-
se surpreende com o fato de que, rejeito a democracia liberal represen- analisar a lógica política posta em va das democracias existentes. E isso
ao contrário de outras ideolo- tativa, enquanto minha obra Pour un prática pelos diferentes movimentos opondo-lhes uma alternativa basea-
gias da modernidade, como o libera- populisme de gauche salienta a im- chamados de “populistas”. Seguindo da em três características: uma de-
lismo, o comunismo e o anarquismo, portância de inscrever essa estraté- esse caminho, Ernesto Laclau mostra mocracia direta, um projeto de de-
o populismo não está associado a ne- gia no quadro da democracia plura- em La raison populiste4 que se trata mocracia polarizada e uma
nhuma obra de envergadura. No en- lista e de não renunciar aos princípios de uma estratégia de construção da concepção imediata e espontânea da
tanto, segundo ele, trata-se de uma do liberalismo político. Ao contrário fronteira política, estabelecida com expressão popular.
proposição política dotada de uma do que pretende Rosanvallon, sus- base em uma oposição entre as ca- A essa suposta doutrina populis-
coerência e de uma força positiva, tento em Le paradoxe démocratique 3 madas inferiores e as superiores, en- ta, o ex-secretário da Fundação Sain-
mas que não foi formalizada nem de- que a democracia liberal resulta da tre os dominantes e os dominados. t-Simon contrapõe sua própria con-
senvolvida. Em seu livro, Rosanval- articulação de duas lógicas, em últi- Os movimentos que adotam essa es- cepção desenvolvida em suas obras
lon se propõe a definir a doutrina po- ma instância incompatíveis, mas tratégia surgem sempre no contexto anteriores. No plano filosófico, nelas
pulista e a criticá-la. que, quando a tensão entre a igualda- de uma crise do modelo hegemônico. se encontra uma versão sofisticada
Ele construiu essa doutrina de de e a liberdade se manifesta de mo- Visto dessa maneira, o populismo da doutrina dominante dos partidos
maneira arbitrária, com base em ele- do “agonístico”, sob a forma de uma não aparece nem como uma ideolo- social-democratas sob hegemonia
mentos provenientes de fontes muito luta entre adversários, garante a exis- gia, nem como um regime, nem como neoliberal. Essa doutrina foi elabo-
heterogêneas e retomando os clichês tência do pluralismo. Da mesma ma- um conteúdo programático específi- rada nos anos 1980 e 1990 pelos teó-
já apresentados na maior parte das neira, segundo ele, eu defenderia a co. Tudo depende da maneira como ricos da “terceira via”, como Anthony
críticas feitas ao populismo. Sua defi- unanimidade como horizonte regu- se constrói a oposição nós/eles, as- Giddens no Reino Unido e Ulrich
nição não acrescenta nada à tese, re- lador da expressão democrática, em- sim como dos contextos históricos e Beck na Alemanha, e sua tese é: en-
tomada por um grande número de bora o tema da divisão social e da im- das estruturas socioeconômicas nos tramos em uma “segunda moderni-
autores, segundo a qual o populismo possibilidade de um consenso quais ele se desenvolve. Apreender os dade”, em que o modelo antagônico
consiste em opor um “povo íntegro” a inclusivo se encontre no centro de diferentes populismos exige partir da política se tornou obsoleto por
uma “elite corrompida” e a conceber minhas reflexões. das conjunturas específicas de sua falta de adversários sociais. As iden-
a política como a expressão imediata No entanto, se essa obra, que visa emergência em vez de, como faz Ro- tidades coletivas, como as classes,
da “vontade geral” do povo.2 Com al- elaborar a teoria do populismo, não sanvallon, reduzi-los a manifesta- perderam sua pertinência, e as cate-
gumas variações, essa visão se en- contribui para uma melhor com- ções de uma mesma ideologia. gorias direita e esquerda perderam a
contra em Le siècle du populisme. preensão do fenômeno, isso se deve, validade. Subsistem diferenças de
Quando ele se refere a autores que antes de tudo, à vaidade de sua ambi- “REPÚBLICA DO CENTRO” opinião potencialmente conflitan-
defendem outra posição, ele o faz de- ção: o populismo não existe enquanto Em vez de esclarecer seu objeto, Ro- tes, mas que se reduzem e se apazi-
turpando as ideias desses autores pa- entidade da qual seria possível elabo- sanvallon revela em seu estudo do guam reconciliando a diversidade de
ra conformá-las à tese que defende. rar a teoria ou produzir o conceito. O populismo a natureza e os limites de demandas individuais. Consequen-
Vários trabalhos meus são, assim, tão que existe são simplesmente diversos sua própria concepção da democra- temente, uma “política da vida”, liga-
caricaturados que seria o caso de populismos, o que, aliás, explica por cia. A teoria democrática que estru- da às preocupações ambientais e fa-
perguntar se esse historiador, apesar que a noção dá margem a tantas inter- tura a ideologia populista demanda, miliares e às identidades pessoais e
de reputado, os leu ou se dá prova de pretações e definições contraditórias. segundo ele, uma “forma-limite da culturais, seria acompanhada, se-
MAIO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 31
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© Alan Santos/PR
especialistas e a redução da política a o poder público para reconstruir a
questões de ordem técnica. Eles se economia e restaurar o poder do ca-
valem de uma visão sectária e apon- pital. Ele poderia assumir formas
tam as falhas da abordagem consen- mais ou menos autoritárias de acor-
sual. Enfim, eles recusam a pós-polí- do com as forças políticas que o diri-
tica e exigem a possibilidade de os girem. Esse cenário significaria ou a
cidadãos participarem das decisões vitória das forças populistas de direi-
concernentes às questões públicas, e ta ou o último sobressalto dos defen-
não só de controlar sua prática. Al- sores do neoliberalismo para garan-
guns experimentam suas reivindica- tir a sobrevivência de seu modelo.
ções sob a forma de um populismo Todavia, uma estratégia populista de
“de direita”, tipo “imunitário” e xenó- esquerda, visando construir uma
fobo, com o desejo de restringir a de- vontade coletiva em torno de um
mocracia a quem nasceu no país; ou- “new deal verde”, pode também
tros o fazem sob a forma de um aproveitar essa crise para democrati-
populismo “de esquerda”, visando zar profundamente a ordem socioe-
estender a democracia a um grande conômica vigente e criar as condi-
número de áreas e a aprofundá-la. ções de uma verdadeira transição
Para atingir esse objetivo, a estra- ecológica.
tégia populista de esquerda propõe Ao exacerbar as desigualdades, a
uma ruptura com a ordem neoliberal crise do coronavírus confirma o es-
e com o capitalismo financeiro que, gotamento do modelo neoliberal. Ao
como mostrou o sociólogo Wolfgang recriar fronteiras políticas e confir-
Streeck,9 se revelam incompatíveis mar a existência de antagonismos,
com a democracia. Ela visa estabele- ela assinala uma “volta do político” e
cer uma nova formação hegemônica dá uma nova dimensão ao momento
capaz de assumir a centralidade dos populista. Conforme as forças sociais
valores de igualdade e justiça social. que se apropriarem dela e a maneira
Um projeto como esse não implica a como elas construírem a oposição
rejeição, mas, ao contrário, a recon- eles/nós, essa pandemia pode desen-
quista das instituições constitutivas cadear soluções autoritárias ou levar
do pluralismo democrático. Para pôr a uma radicalização dos valores de-
em prática essa ruptura, a estratégia mocráticos. Uma coisa é certa: ao
.

do populismo de esquerda pretende contrário do que afirma Pierre Ro-


gundo Giddens, da “política de establishment. Quinze anos depois, o reunir as lutas democráticas de mo- sanvallon, longe de ameaçar a demo-
emancipação”.5 panorama político europeu confirma do a criar uma vontade coletiva, um cracia, o populismo de esquerda re-
A adoção de uma concepção como essa hipótese. “nós” suscetível de transformar as presenta, hoje, a melhor estratégia
essa pelos partidos social-democra- Rosanvallon não se dá conta de relações de poder e instaurar um no- para orientar num sentido igualitário
tas esteve na origem do social-libera- que o modelo consensual de uma po- vo modelo econômico-social por as resistências à ordem pós-demo-
lismo que domina a Europa ocidental lítica sem fronteiras está na origem meio do que Gramsci chamou de crática neoliberal.  
desde o fim dos anos 1980. Na França, da escalada extraordinária do popu- uma “guerra de posição”. O enfrenta-
esse projeto de uma “república de lismo. Para ele, a única forma de in- mento entre esse “nós”, que articula *Chantal Mouffe  é filósofa. Autora de Pour
centro” encontrou seus mais fervoro- terrompê-la é a elaboração de uma as diferentes demandas ligadas a un populisme de gauche [Por um populismo
sos adeptos em torno de Pierre Ro- alternativa forte, uma “segunda revo- condições de exploração, de domina- de esquerda], Paris, Albin Michel, 2018.
sanvallon e de intelectuais do Centro lução democrática”, que implica re- ção e de discriminação, e seu adver-
de Estudos Sociológicos e Políticos pensar tanto a atividade quanto as sário, esse “eles”, constituído pelos
1   P ierre Rosanvallon, Le Siècle du populisme:
Raymon Aron, da Escola de Altos Es- instituições democráticas. Ele for- poderes neoliberais e seus aliados, é Histoire, théorie, critique [O século do popu-
tudos em Ciências Sociais (Ehess).6 mula então uma série de proposições, a forma pela qual se expressa, hoje, o lismo: história, teoria, crítica], Seuil, Paris,
Essa corrente privilegia a dimensão que não deixam de ser interessantes, que a tradição marxista chama de 2020.
2   C f. Cas Mudde e Cristobal Rovira Kaltwasser,
liberal da democracia e enfatiza a de- visando diversificar e multiplicar as “luta de classes”. Portanto, não é de Brève introduction au populisme [Breve intro-
fesa dos aspectos constitucionais em instituições democráticas e ampliar espantar que Rosanvallon lhe seja dução ao populismo], Editions de l’Aube, La
detrimento da participação do povo. o alcance da atividade cidadã. À “de- hostil. Prisioneiro de seu modelo Tour-d’Aigues, 2018.
3   C hantal Mouffe, Le paradoxe démocratique
Essa predominância do liberalismo mocracia de autorização”, que pelas centrista, ele vê qualquer forma de [O paradoxo democrático], Beaux-Arts de Pa-
sobre a soberania popular leva a um eleições entrega o poder de governar, populismo como uma ameaça à ris, Paris, 2016.
impasse na divisão social, nas rela- deveria, por exemplo, se acrescentar democracia. 4   Ernesto Laclau, La Raison populiste [A razão
populista], Seuil, 2008.
ções de poder e nas formas de luta an- uma “democracia de exercício”, que 5   A nthony Giddens, Modernity and Self-Identity.
tagônicas relacionadas à noção de lu- submete o exercício do poder a crité- EXAUSTÃO DO MODELO NEOLIBERAL Self and Society in the Late Modern Age [Mo-
ta de classes. rios democráticos. Mas, como essas A estratégia populista de esquerda dernidade e autoconsciência. Ego e socieda-
de no final da Idade Moderna], Polity Press,
Esse tipo de visão “pós-política”, proposições participam da concep- parece particularmente pertinente Cambridge, 1991.
centrada na ausência de alternativa à ção pós-política, ignoram os antago- na perspectiva de uma saída da crise 6   François Furet, Pierre Rosanvallon e Jacques
globalização neoliberal, longe de nismos que estruturam a sociedade e da Covid-19 que anteciparia a cons- Julliard, La République du centre. La fin de
l’exception française [A república do centro.
construir um progresso para a demo- não colocam em questão o modelo trução de um novo contrato social. O fim da exceção francesa], Calmann-Lévy,
cracia, designa ao sistema político a neoliberal, é difícil ver como a “se- Desta vez, ao contrário da crise de Paris, 1988.
tarefa de “governar o vazio”, como gunda revolução democrática” con- 2008, poderia se abrir um espaço de 7   P eter Mair, Ruling the Void. The Hollowing-out
of Western Democracy [Governar o vazio. A
mostrou Peter Mair.7 Em 2005, eu sus- tribuiria para fazer as forças populis- enfrentamento entre projetos opos- escavação da democracia ocidental], Verso,
tentava que a ausência de luta entre tas recuarem. tos. Voltar-se pura e simplesmente Londres, 2013.
projetos de sociedade opostos priva Conceber o populismo como uma para as questões atuais parece pouco 8   C hantal Mouffe, L’illusion du consensus [A ilu-
são do consenso], Albin Michel, Paris, 2016
as eleições de seu sentido e fornece estratégia de construção da fronteira possível e, provavelmente, o Estado (primeira publicação em inglês em 2005).
um terreno favorável ao desenvolvi- política torna compreensível o “mo- desempenhará um papel crucial e, 9   Wolfgang Streeck, Du temps acheté. La crise
mento de partidos populistas de di- mento populista”, o que a perspectiva ao mesmo tempo, maior. Talvez a sans cesse ajournée du capitalisme démocra-
tique [O tempo comprado. A crise ininterrup-
reita8 que podem, assim, querer resti- de Rosanvallon não permite. Esses gente assista ao aparecimento de um tamente prorrogada do capitalismo democrá-
tuir ao povo o poder confiscado pelo movimentos rejeitam o governo de “capitalismo estatizado” que utilize tico], Gallimard, Paris, 2014.
32 Le Monde Diplomatique Brasil  MAIO 2020

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NA ESTEIRA DAS GRANDES MANIFESTAÇÕES POPULARES

Na Irlanda, o nacionalismo radias caras, trajetos muito longos


para ir ao trabalho, sistemas de saúde
e de educação em dificuldades: tudo

insuflado pela crise social


isso degrada a atratividade da Irlanda
como local de vida, trabalho e
investimento”.7
Na imprensa internacional, o re-
sultado das eleições de fevereiro de
2020 muitas vezes foi analisado como
Em fevereiro, o partido nacionalista Sinn Féin venceu as eleições legislativas na Irlanda. uma consequência do Brexit, levando
Inédito, esse avanço de uma formação favorável à reunificação com a Irlanda do Norte foi a Ilha Esmeralda para a reunificação.
Mas as pesquisas de boca de urna
interpretado como uma reação ao Brexit. Contudo, os irlandeses votaram a favor do contradizem esse relato. Para 58% da
Sinn Féin ou contra as duas formações que até então dominavam o país? população, os dois principais moti-
vos de preocupação eram de nature-
POR JULIEN MERCILLE* za social. O Brexit só foi mencionado
por 1% dos eleitores.8 Um retorno da
questão social no país do neolibera-
lismo desordenado? É o que sugere
uma análise cuidadosa dos resulta-

A
pós a crise de 2008, os dirigen- atingiu 15,5% em 2012, e o índice de micílio fixo (SDF), uma cifra jamais dos de uma eleição baseada no prin-
tes europeus optaram pela aus- privação material – que designa, para atingida.3 O orçamento para reforma cípio do “voto único transferível”.
teridade, a pedido – às vezes de a Comissão Europeia, “a incapacida- e construção de moradias sociais, A Irlanda é dividida em 39 cir-
forma autoritária – da Comis- de de conseguir certos bens e servi- que chegava a 1,4 bilhão de euros em cunscrições. Cada uma envia de três a
são Europeia e do FMI. Essa escolha ços considerados pela maioria dos in- 2008, caiu para 167 milhões em 2014. cinco eleitos ao Parlamento Nacional,
não tardou a provocar uma onda de divíduos como desejáveis, até mesmo Resultado: as construções de mora- o qual conta com 170 membros. Cada
protestos populares, seguida da necessários, para ter um nível de vida dias sociais despencaram, passando circunscrição dispõe de suas próprias
emergência de personalidades e de aceitável” – passou de 13,7% (2008) de 5.300 apartamentos em 2009 para cédulas de voto, que listam todos os
formações opostas à ortodoxia orça- para 30,5% (2013).2 1.000 em 2012 e apenas 476 em 2015. candidatos que estão disputando –
mentária – do Podemos na Espanha Em 2016, quando o FG (então no O número de famílias inscritas nas em geral uma dúzia. Os eleitores es-
ao Syriza na Grécia, passando por Je- poder) assinou um acordo de “apoio listas de espera para obter uma mora- crevem “1” diante do nome de seu
remy Corbyn no Reino Unido, Jean- sem participação no governo” com o dia subiu de 43 mil em 2005 para 86 candidato preferido, depois classifi-
-Luc Mélenchon na França e pelo blo- FF, os eleitores compreenderam que mil em 2017.4 A construir novas mora- cam os outros por ordem de preferên-
.

co de esquerda em Portugal. não era possível contestar a política dias, o governo preferiu ajudar os lo- cia. Em cada circunscrição, calcula-
A Irlanda ficou de fora desse mo- de um dando seus votos ao outro. catários do setor privado, agravando -se o número de votos necessário para
vimento. Aluna-modelo das prefe- Portanto, era necessário voltar-se pa- a crise ao dobrar a demanda sem esti- ser eleito. Uma vez que um candidato
rências de Bruxelas, destacou-se por ra outro partido. O Sinn Féin apare- mular a oferta. atinge o patamar necessário, os votos
sua capacidade de suportar uma vio- ceu como o candidato ideal. Alguns excedentes que ele obteve são reparti-
lenta política de austeridade sem he- de seus membros tiveram o mérito de IMPULSO ÀS FORMAÇÕES dos mecanicamente entre os candi-
sitar.1 Até que nas eleições legislati- reorientar a formação para temáticas DE ESQUERDA datos de segunda escolha, assinala-
vas de fevereiro de 2020, com 24,5% sociais, mais próximas das preocu- Na Irlanda, como em outros países dos com o número 2. Nas últimas
dos votos, o Sinn Féin (SF) chegou à pações da população do que a ques- da Europa, o setor imobiliário foi eleições, os candidatos do Sinn Féin
frente, um resultado que surpreen- tão nacional, a começar pela moradia aberto à voracidade dos investidores obtiveram um grande contingente de
deu a todos, a começar pelos dirigen- e pela saúde. institucionais em busca de rendi- votos de primeira escolha em muitas
tes do partido nacionalista de Os 45% da população que pos- mentos mais vantajosos em uma circunscrições e atingiram facilmen-
esquerda. suem um seguro-saúde privado po- economia que não oferecia mais isso te as cotas fixadas. Esses votos se tra-
Há quase um século, a Irlanda é dem evitar as filas de espera; os ou- em nenhum outro lugar.5 O governo duziram também na emergência de
governada por dois partidos de cen- tros devem se armar de paciência. Às irlandês facilitou particularmente o uma confortável reserva de votos ex-
tro-direita: Fianna Fáil (FF) e Fine vésperas da eleição, em uma popula- resgate de ações e de empréstimos cedentes, que foi em grande parte pa-
Gael (FG), com programas políticos ção de 4,9 milhões de pessoas, tóxicos pelos “fundos abutres” por ra outros candidatos de esquerda ou
siameses. Em 2007, o FG e o FF ha- 556.770 estavam na lista de espera meio da adoção, em 2013, de uma po- de extrema esquerda, permitindo a
viam angariado 68,9% dos votos, para conseguir uma consulta com lítica de vantagens fiscais para os tí- muitos deles serem eleitos.9 A título
mas começaram pouco a pouco a ce- um especialista e, entre estas, 107.040 tulos fiduciários – uma medida que de ilustração, na circunscrição do su-
der terreno: 53,6% em 2011, 49,8% em esperavam havia mais de dezoito me- encorajava a criação desse tipo de doeste de Dublin, Paul Murphy, can-
2016 e finalmente 43,1% em 2020, ses. A lista para tratamentos em hos- fundo com intuito de investir seu ca- didato da aliança de esquerda do Soli-
contra um total de 41,9% para o con- pitais contava com 67.303 pessoas na pital no setor imobiliário.6 Uma das dariedade – Pessoas Antes do Lucro,
junto dos partidos de esquerda e de fila. Diante dos cortes orçamentá- maneiras de atuação desses fundos foi conduzido com base nesse tipo de
centro-esquerda nas últimas rios, o sistema de saúde carece de consiste em pegar os bens imóveis, transferência, após a vitória de Séan
eleições. meios: em fevereiro de 2020, 110 mil cujos títulos adquiriram, a fim de Crowe, candidato do SF.
Histórica, essa virada marca o re- pacientes foram instalados em macas desenvolvê-los, reformá-los e colo- Mesmo tendo surpreendido por
púdio popular a um status quo neoli- por falta de leitos, e a epidemia da Co- cá-los novamente no mercado sob sua amplitude, a virada de fevereiro
beral reforçado pela crise de 2008. vid-19 ainda não havia atingido a forma de moradias de luxo ou de de 2020 não veio do nada: ela coroa
Em vez de reconhecer o fracasso de Irlanda. imóveis de vocação comercial. Ou- muitos anos de mobilizações popula-
sua política de desregulamentação e Quanto à moradia, Dublin apare- tros acumulam terrenos (às vezes res caracterizadas com combativida-
financeirização depois do crash, os ce à frente das capitais europeias públicos, cedidos abaixo do preço de de crescente. A grande onda de mani-
dirigentes irlandeses optaram pela mais caras para alugar um imóvel, mercado), deixando-os desocupados festações contra o fim da gratuidade
austeridade: entre 2008 e 2014, cortes com um aumento de 70% desde 2012. a fim de diminuir a oferta e fazer su- da água10 que sacudiu o país entre
orçamentários de 30 bilhões de euros Entre 2015 e 2018, o número de sem- bir os preços. 2014 e 2015 galvanizou os militantes e
foram anunciados, ou seja, quase -teto praticamente dobrou entre os Às vésperas das eleições de feve- os partidos de esquerda, entre os
20% do PIB, mesmo correndo o risco adultos (alta de 95%) e mais que tri- reiro, o quadro geral mostrava-se tão quais o SF, semeando os grãos da re-
de causar grandes danos sociais. O plicou entre as crianças (228%). O sombrio que até o empresariado, pro- sistência aos políticos governamen-
índice de desemprego triplicou e país chegou a 10.500 pessoas sem do- tegido por Dublin, alarmou-se: “Mo- tais. Em 2015, um referendo nacional
MAIO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 33
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minação nesse contexto], Alto Comissariado


sobre a legalização do casamento en- violência na Irlanda do Norte, assi- *Julien Mercille é pesquisador do Geary das Nações Unidas para os Direitos Huma-
tre pessoas do mesmo sexo resultou nado em abril de 1998, abre caminho Institute for Public Policy e da School of nos, 22 mar. 2019.
em uma aprovação da medida (com para uma possível unificação, desde Geography, da University College de 5   L er Marion Deniau, “Irlande, des bulles dans
le béton” [Irlanda, bolhas no concreto], Le
62% de votos em seu favor), num con- que seja aceita pelos habitantes dos Dublin. Monde Diplomatique, abr. 2018.
texto de descrédito da Igreja Católica, dois lados da fronteira. O texto obri- 6   C f. Michael Byrne, From Puerto Rico to the
envolvida em sonoros escândalos de ga o Reino Unido a organizar um re- 1   L
 er Renaud Lambert, “Les quatre vies du mo- Dublin Docklands. Vulture Funds and Debt in
dèle irlandais” [As quatro vidas do modelo ir- Ireland and the Global South [De Porto Rico
abuso sexual. Em 2018, um plebiscito ferendo e respeitar o resultado, “caso landês], Le Monde Diplomatique, out. 2010. aos portos de Dublin. Fundos abutres e dívi-
sobre a descriminalização do aborto venha a aparecer como provável” a 2   J ulien Mercille e Enda Murphy, Deepening da na Irlanda e no Sul global], Debt and De-
– uma vitória histórica após uma am- tendência da maioria dos eleitores de Neoliberalism, Austerity, and Crisis: Euro- velopment Coalition Ireland (DDCI), 2017.
pe’s Treasure Ireland [Aprofundando o neoli- 7   D avid Chance, “‘Start acting like a rich coun-
pla campanha conduzida por ativis- votar a favor da unidade. No entanto, beralismo, a austeridade e a crise: a Irlanda try’: Ibec and EU call for infrastructure” [“Co-
tas que faziam muitas vezes sua pri- essa formulação está sujeita a inter- do tesouro da Europa], Palgrave Macmillan, mece a agir como um país rico”: Ibec e União
meira incursão no terreno político. pretações. Sugere particularmente Londres, 2015; e Emma Heffernan, John Europeia chamando para a infraestrutura],
McHale e Niamh Moore-Cherry (dirs.), Deba- The Irish Independent, 27 fev. 2020.
O SF continuava sendo um parti- que se poderiam levar em conta ou- ting Austerity in Ireland: Crisis, Experience 8   Stephen Collins, “Detailed election 2020 exit
do mais direitista que a maioria dos tros elementos, como as pesquisas and Recovery [Debatendo a austeridade na poll results: How voters answered 15 ques-
porta-estandartes da luta contra a de opinião ou as maiorias naciona- Irlanda: crise, experiência e recuperação], tions” [Resultados detalhados da boca de
Royal Irish Academy, Dublin, 2017. urna das eleições de 2020: como eleitores
austeridade na Europa. Ele conse- listas provenientes das consultas 3   “ The Daft.ie rental price report. An analysis of responderam a quinze questões], The Irish
guiu surfar sobre a cólera popular li- eleitorais. recent trends in the Irish rental market 2018 Times , 9 fev. 2020.
gada à crise de 2008, efetuando uma No final de março, visando à for- Q1” [O relatório do preço do aluguel do Daft. 9   M ary Regan, “How the Sinn Féin surplus will
ie. Uma análise das tendências recentes do shape the next Dáil” [Como o excedente do
virada para a esquerda. Alguns de mação de um governo, a coalizão FF- mercado de aluguéis irlandês no primeiro tri- Sinn Féin vai moldar o novo Parlamento],
seus membros, como Eoin Ó Broin, -FG parecia a mais provável, visto mestre de 2018], Daft.ie, 2018. RTÉ, 11 fev. 2020.
fizeram há muito tempo do tema da que os partidos de centro-esquerda, 4   S urya Deva e Leilani Farha, “Mandates of the 10  L er Renaud Lambert, “La goutte d’eau irlan-
Working group on the issue of human rights daise” [A gota d’água irlandesa], Le Monde
moradia e dos sem-teto sua priorida- incluindo o SF, não tinham eleitos and transnational corporations and other bu- Diplomatique, maio 2015.
de, retransmitindo as reivindicações suficientes para fazê-lo. Tal coalizão siness enterprises and the special rappor- 11  Eoin Ó Broin, Home. Why Public Housing is
de grande parte da população. Ele explicitaria que os dois partidos do- teur on adequate housing as a component of the Answer [Lar. Como a habitação pública é
the right to an adequate standard of living, a resposta], Irish Academic Press, Dublin,
chegou a publicar um livro sobre o te- minantes são praticamente idênti- and on the right to non-discrimination in this 2019.
ma alguns meses antes do cos e faria do SF o grande vencedor context” [Mandatos dos grupos de trabalho 12  S imon Carswell, Brian Hutton e Freya Mc-
escrutínio.11 das próximas eleições caso estes não para direitos humanos e corporações e ou- Clements, “More than half of voters want
tras companhias transnacionais e o relator Border polls north and south” [Mais de meta-
O partido também aproveitou a respondam às reivindicações popu- especial sobre moradia adequada como um de dos votantes do norte e do sul querem
ausência de concorrentes sérios de lares, que pedem um sistema mais componente para o direito a padrões ade- referendo da reunificação], The Irish Times ,
esquerda. O Partido Trabalhista fi- voltado para o social.  quados de habitação e o direito à não discri- 9 fev. 2020.

cou desacreditado ao formar uma


coalisão com o FG, que impôs ao

© Divulgação/Sinn Féin
país uma severa política de austeri-
.

dade entre 2011 e 2016. O pequeno


Partido Verde ganha corpo à medida
que a tomada de consciência mun-
dial em torno das mudanças climáti-
cas avança, mas permanece muito
moderado e associado às classes in-
telectuais supereducadas das cida-
des. Por seu lado, a aliança trotskista
Solidariedade – Pessoas Antes do Lu-
cro não ultrapassou os 3%.
Colocado à frente da cena pela cri-
se social, o SF – historicamente ligado
ao Exército Republicano Irlandês
(IRA) – permanece um partido nacio-
nalista que busca construir um mo-
vimento popular voltado para a reu-
nificação da Irlanda. Embora não
constitua uma prioridade aos olhos
da população, a ideia ganha terreno
desde o referendo sobre o Brexit, em
2016. Se 52% da população do Reino
Unido votou a favor da saída da União
Europeia, 56% dos eleitores da Irlan-
da do Norte se pronunciaram a favor
da permanência – o que justificaria a
reunificação do país. A partir de en-
tão, as pesquisas de opinião revelam
um apoio crescente ao projeto de
unificação: na Irlanda, um pouco
mais da metade dos eleitores deseja-
ria um referendo sobre a questão e,
segundo algumas pesquisas, aqueles
que apoiam a unificação são pratica-
mente equivalentes aos que se opõem
a ela na Irlanda do Norte.12
Porém, saber se o objetivo é atin-
gível a curto ou médio prazo é outra
história. Certamente o acordo da
Sexta-Feira Santa marcando o fim da Mary Lou McDonald do partido de esquerda Sinn Féin, que venceu as eleições legislativas na Irlanda
34 Le Monde Diplomatique Brasil  MAIO 2020

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“NO DIA EM QUE NÃO HOUVER MAIS LADRÕES, DESAPARECEMOS”

Milícias espalham-se
por Burkina Faso
Em videoconferência no dia 15 de abril, os ministros das Relações Exteriores do G5
Sahel – Mauritânia, Chade, Mali, Burkina Faso e Níger – designaram o Sars-CoV-2 como
“inimigo número 1”. Entretanto, eles não abandonam a luta contra os grupos terroristas,
que multiplicam os atentados. E a ascensão das milícias eleva a insegurança,
principalmente em Burkina Faso
POR RÉMI CARAYOL* , ENVIADO ESPECIAL

N
a penumbra de seu escritório ca. “Alguns querem lutar contra os dozos se envolveram nos conflitos as veleidades guerreiras de alguns
de janelas fechadas para man- peuls, que acusam de ser cúmplices armados que ensanguentam a sub- dos 17 mil dozos vindos de todas as
ter o frescor, Ali Konaté apro- dos jihadistas.” -região. Durante a guerra civil que comunidades do oeste burquinense.
veita um momento de descan- Os dozos (ou donsos) vivem em destruiu a Costa do Marfim nos anos Por muito tempo, os peuls e os dozos
so depois do almoço. Deitado no sofá, diversos países da África ocidental, 2000, eles tomaram o partido de Alas- viveram “como dois dedos da mesma
ele procura as palavras, parecendo principalmente em Burkina Faso, sane Ouattara, originário, como eles, mão”. Mas a desconfiança se instalou
hesitar entre o abatimento e o deses- Costa do Marfim e Mali. Eles formam do norte do país. Os dozos teriam em um país que por muito tempo foi
pero. Há algum tempo, os dias estão uma confraria à qual se atribuem po- matado 228 pessoas entre março de louvado por sua tranquilidade. Gru-
mais longos e as noites se tornam agi- deres mágicos e só se pode integrar 2009 e maio de 2013, segundo a Ope- pos comunitários e religiões coexis-
tadas para esse homem que exerce após uma longa iniciação. Há sécu- ração das Nações Unidas na Costa do tiam de maneira pacífica: mossi, bo-
duas funções: chefe de uma empresa los, eles garantem a proteção dos vi- Marfim (Onuci). Mais recentemente, bo, diúla, peul, gourmanché, senufo,
.

de obras públicas em Bobo-Dioulas- larejos, regulam a prática da caça pa- alguns deles formaram milícias no bissa, tuaregue etc. Segundo o censo
so, a capital econômica de Burkina ra preservar a fauna e praticam a Mali, onde, com a cumplicidade dos de 2006, o país conta com 60,5% de
Faso, e presidente da União Nacional medicina tradicional. Vestidos com dirigentes políticos e militares, mas- muçulmanos, 19% de católicos,
dos Dozos, uma das associações de roupas de tecido cor de terra e ador- sacraram os peuls.1 15,3% de animistas e 4,2% de protes-
caçadores tradicionais mais impor- nados com amuletos, eles utilizam Nada do tipo aconteceu em Burki- tantes. Os casamentos mistos são nu-
tantes do seu país. “Eu tenho de acal- velhos fuzis reconhecíveis pelo longo na Faso. Por enquanto... Konaté con- merosos, e as famílias são multicon-
mar meus homens sem parar”, expli- cano. Mas, nestes últimos anos, os fessa gastar muita energia contendo fessionais. É frequente que um
indivíduo mude de religião sem que
isso escandalize seus conhecidos.2
© Luc Gnago/Reuters

Em quatro anos, no entanto, com


as agressões dos grupos jihadistas, o
país mergulhou na violência como o
vizinho Mali.3 Tudo aconteceu muito
rápido a partir da queda, em outubro
de 2014, de Blaise Compaoré, no po-
der por 27 anos. O Estado, que pensa-
va ser forte, se desmantelou rapida-
mente. Os partidários do
ex-presidente, exilado na Costa do
Marfim, destilam a ilusão de que es-
ses dramas teriam sido evitados se
seu líder tivesse permanecido no co-
mando. Porém, há muito tempo o po-
der público já era apenas um castelo
de cartas, e os grupos afiliados à Or-
ganização do Estado Islâmico (OEI)
ou à Al-Qaeda, que dirigem o norte e
o leste, prosperam, como no Mali,
sob a debilidade da administração, a
injustiça e a miséria. Mais de 40% dos
burquinenses vivem abaixo da linha
de pobreza, grande parte no campo.
As milícias jihadistas ganham terre-
no no oeste também e agora amea-
çam o sul. Desde outubro de 2015
(primeiro atentado reivindicado pe-
las milícias), cerca de seiscentos ata-
ques foram repertoriados no país, vi-
Soldados de Birkina Faso patrulham a vila Gorgadji sando representantes do Estado
MAIO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 35
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(principalmente os militares), mas apresenta como um criador de gado sar de recrutarem em todas as comu- dias, têm por missão “contribuir, se
também civis. cujo rebanho tinha sido roubado em nidades, os koglweogo são essencial- necessário pela força das armas, para
Milhares de mortos, homens, mu- menos de dois anos: 36 carneiros, 28 mente compostos por mossis. No a proteção das pessoas e dos bens do
lheres e crianças, devem ser lamen- bois e 50 cabras. “Se eu pego em ar- leste, no norte ou no oeste, onde estes [seu] vilarejo”.
tados, assim como centenas de mi- mas, é para garantir nossa seguran- não são considerados “nativos”, sua
lhares de pessoas deslocadas.4 Em ça”, afirmava, e também para reme- atuação suscitou tensões. Denuncia- RISCO CRESCENTE DE ETNIZAÇÃO
nome da luta antiterrorista, as forças diar “a passividade” das autoridades. -se até mesmo seu “expansionismo”. Mas como cidadãos malformados
de segurança também se tornaram Muitos roubos, muita impunidade, A questão do território atiça os poderiam lutar contra homens que
culpadas pelos abusos. A multiplica- segundo ele. E acrescentava amaldi- conflitos, pois o crescimento demo- derrotam regularmente as forças de
ção dos grupos de autodefesa au- çoando: a polícia e a guarda civil não gráfico, assim como uma lei favore- segurança? Como prevenir as agres-
menta a insegurança. Em 2019, duas fazem nada, a justiça libera os crimi- cendo a cessão individual das terras sões contra os civis? Sob que base re-
matanças chocaram particularmen- nosos, as vítimas nunca são indeni- adotada em 2009, suscitou uma corri- crutar? Como garantir sua lealdade
te os burquinenses. A primeira, em zadas. “Os ladrões precisam saber da desenfreada à propriedade. As co- ao Estado? Apesar do processo ainda
Yirgou, no dia 1º de janeiro, fez ofi- que vão pagar um alto preço por seus munidades ditas “nativas” se irritam não ter começado, os “voluntários” já
cialmente 49 vítimas, em sua maioria crimes”, insistia, ao mesmo tempo ao ver os mossis reivindicarem par- passaram à ação no norte do país,
peuls, mas organizações da socieda- que tirava do bolso uma fotocópia celas que tinham sido alocadas pro- depois de um treinamento de apenas
de civil apresentam o número de 210 dobrada em quatro, na qual estavam visoriamente segundo o direito cos- alguns dias. Segundo uma fonte da
vítimas. O massacre aconteceu após escritas as penas que correspondem tumeiro. No oeste, os dozos, que segurança, “alguns entre eles rece-
o assassinato de seis pessoas, entre aos diferentes crimes (multa, castigo garantem a segurança das zonas ru- beram uma arma (uma kalachnikov)
as quais um chefe de vilarejo mossi, corporal) estabelecidas pela milícia. rais há séculos, veem com descon- por parte das autoridades”. Sua
por parte dos jihadistas. A segunda “A gente só está se defendendo, é tu- fiança a concorrência dos koglweogo. maioria é de fato composta por kogl-
matança foi nos vilarejos de Barga, do. No dia em que não houver mais Em Karangasso-Vigué, em setembro weogo. Para muitos observadores, a
Dinguila-Peul e Ramdolla-Peul, em 8 ladrões, a gente desaparece”, de 2018, um enfrentamento fez três lei visaria na verdade legalizar a mi-
de março. Um grupo de autodefesa concluía. mortos depois que os dozos exigiram lícia e permitir que ela continue suas
local abriu fogo indiscriminadamen- o desmantelamento de uma milícia. operações na maior impunidade. De
te em um vilarejo cujas moradias fo- “Por que querer criar um novo grupo fato, no oeste, os dozos não foram
ram incendiadas. Pelo menos 43 pes- Os grupos afiliados à armado, sendo que aceitamos todo solicitados.
soas teriam perdido a vida.5 Organização do Estado mundo nos dozos?”, questiona um Os membros das minorias étnicas
Esses massacres são atribuídos dos chefes da confraria nessa região. acusados de apoiar os grupos isla-
aos koglweogo, expressão que signifi-
Islâmico (OEI) ou à Al- No leste e no norte, onde os peuls mistas armados correm o risco de ser
ca, na língua dos mossis, “os guar- -Qaeda, que dirigem o são numerosos e os conflitos entre os excluídos dos “voluntários”. Essa lei
diões do mato”. Surgidas nos anos norte e o leste, prospe- agricultores e os criadores de gado poderia, assim, acelerar a etnização
1990, essas milícias, autônomas ram, como no Mali são recorrentes, o surgimento dos ko- das milícias, preocupa-se Jonathan
.

umas das outras, reúnem voluntários glweogo e as operações que eles reali- Pedneault, pesquisador da Human
para lutar contra a insegurança coti- zam principalmente contra os cria- Rights Watch, que teme que ela “ob-
diana nos vilarejos: os pequenos fur- Impotente diante da multiplica- dores de gado peuls levaram estes a tenha os mesmos resultados que no
tos nos mercados, o roubo de gado, os ção desses grupos que desafiam sua se armar. Alguns se juntaram a gru- Mali, onde as etnias bambara e do-
assaltos. Eles se multiplicaram de- autoridade, o Estado improvisa. pos jihadistas. Outros criaram seus gon mataram centenas de civis peuls
pois da queda de Compaoré em 2014. “Existem 8.900 vilarejos no país. As próprios grupos de autodefesa. em dezenas de massacres no centro
“Em alguns meses, esses grupos pro- forças da ordem não podem estar em Não contentes em rastrear os la- do país”.9 
liferaram a uma velocidade vertigi- todos os lugares. Precisamos da aju- drões, os koglweogo se meteram na
nosa”, constata Chryzogne Zoug- da das milícias”, admitia em privado luta contra os terroristas sem que o *Rémi Carayol  é jornalista.
moré, presidente do Movimento Simon Compaoré, ministro da Segu- Estado se opusesse a isso. Mas suas
Burquinense de Direitos Humanos e rança Interna do novo regime em intervenções se parecem mais com
dos Povos (MBDHP). No centro, no 2015. Com falta de recursos humanos acertos de contas que culminam em 1   “ Avant, nous étions des frères. Exactions com-
leste e no sul, centenas de milícias lo- e materiais, e desorganizadas, as For- massacres – como os de Yirgou e mises par des groupes d’autodéfense armés”
[Antes éramos irmãos. Abusos cometidos por
cais surgiram espontaneamente. ças Armadas estão completamente Barga – do que com a defesa coletiva grupos de autodefesa armados], Human
ausentes de 30% do território nacio- dos cidadãos. Na região centro-nor- Rights Watch, 7 dez. 2018. Disponível em:
AS FORÇAS DA ORDEM NÃO PODEM nal. Um decreto adotado em 2016, vi- te, o ativismo dos koglweogo teve pa- www.hrw.org.
2   “ Burkina Faso: préserver l’équilibre religieux”
ESTAR EM TODOS OS LUGARES sando integrar os koglweogo como pel central no aumento da violência [Burkina Faso: preservar o equilíbrio religio-
Essa onda de segurança seria uma uma nova polícia de proximidade, e perturbou os equilíbrios comuni- so], relatório África n.240, International Crisis
reação ao abandono dos campos nas nunca foi aplicado. Até mesmo as or- tários. “Luta antiterrorista e acertos Group, Nova York, set. 2016.
3   Ler “Au Mali, la guerre n’a rien réglé” [No Mali,
últimas décadas. “A insurreição [de ganizações de defesa dos direitos hu- de contas pessoais e, por extensão, a guerra não resolveu nada ], Le Monde Diplo-
outubro de 2014] liberou as frustra- manos não sabem como tratar o as- comunitárias se tornaram indisso- matique, jul. 2018.
ções contra o Estado”, constata a sunto. “É preciso entender por que ciáveis”, constata o International 4   Armed conflict location event database [Base
de dados sobre o local e o andamento dos
ONG International Crisis Group, que chegamos até aqui”, nos explicava na Crisis Group.8 conflitos armados]. Disponível em: https://
lembra que 71% dos burquinenses época Chryzogone Zougmoré. “É o Em vez de iniciar uma guerra que acleddata.com.
vivem na zona rural.6 Em março de resultado de três fenômenos: o au- não teria meios de vencer, o Estado 5   “Burkina Faso. Les récits de témoins confir-
ment que le massacre de Barga a été perpétré
2016, em Sapouy, uma pequena cida- mento da falta de segurança nos últi- tenta enquadrar os grupos de autode- par un groupe armé” [Burkina Faso. Testemu-
de não muito distante da fronteira de mos vinte anos; a ausência total do fesa, cada vez mais influentes. Em nhos confirmam que o massacre de Barga foi
Gana, os koglweogo eram a manchete Estado na questão; e por fim uma fal- novembro de 2019, depois de um no- perpetrado por um grupo armado], Amnesty
International, Londres, mar. 2020.
da atualidade nacional: um homem ta de confiança nas instituições da vo ataque jihadista contra um com- 6   “ Burkina Faso: sortir de la spirale des violen-
acusado de ter roubado um boi não República. Enquanto não tivermos boio mineiro no leste do país (39 ces” [Burkina Faso: sair da espiral de violên-
tinha sobrevivido a um interrogató- acertado esses problemas, proibir as mortos), o presidente Roch Christian cia], relatório África n.287, International Crisis
Group, Londres, fev. 2020.
rio de três dias feito pela milícia. Seu milícias será em vão.” Hoje, o país Kaboré surpreendeu a população ao 7   C f. Romane da Cunha Dupuy e Tanguy Qui-
chefe, Saïdou Zongo, nos recebe ro- contaria com cerca de 4.500 grupos convocar uma mobilização das boas delleur, “Mouvement d’autodéfense au Burki-
deado por seus “pequenos” – todos de koglweogo mobilizando entre 20 vontades para lutar contra os “terro- na Faso: Diffusion et structuration des grou-
pes Koglweogo” [Movimento de autodefesa
homens, muitos jovens, armados mil e 45 mil membros. Ainda que sus- ristas”. Dois meses depois, uma lei em Burkina Faso: difusão e estruturação dos
com velhos fuzis calibre 12 e muni- citem medo, as populações de algu- criou os Voluntários pela Defesa da grupos koglweogo], Noria, Paris, nov. 2018.
dos de uma carteirinha de membro mas regiões creditam a eles a dimi- Pátria (VDP), auxiliares das forças de 8   “ Burkina Faso: sortir de la spirale des violen-
ces”, op. cit.
“oficial” do grupo. Vestido elegante- nuição da insegurança.7 Não é o caso, defesa e segurança que, depois de 9   Le Monde Afrique, 17 mar. 2020. Disponível
mente com um bubu azul, Zongo se no entanto, em todo o território: ape- uma formação de apenas catorze em: www.lemonde.fr.
36 Le Monde Diplomatique Brasil  MAIO 2020

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AS AMBIGUIDADES DA AJUDA HUMANITÁRIA

Tomar o mundo
sem mudar o poder
Essencial para a sobrevivência de milhões de pessoas no mundo – refugiados, deslocados, famintos, doentes etc. –,
a ajuda humanitária mobiliza bilhões de dólares por ano. Para Estados, entidades civis e indivíduos, ela constitui com
frequência um poder de fato, capaz de impor escolhas e normas. Os assistidos, porém, nem sempre saem em vantagem
POR FRÉDÉRIC THOMAS*

E
m dez anos, o montante gasto doadores. Nos últimos anos, no en- ca em parte pelos resultados da pes- mo tempo) confirmariam a necessi-
em ajuda humanitária em todo tanto, Turquia, Arábia Saudita e Emi- quisa citada anteriormente, realizada dade de ação no exterior. O desen-
o mundo aumentou cinco vezes, rados Árabes Unidos se tornaram entre maio de 2014 e fevereiro de 2015 canto político e a certeza de pertencer
atingindo US$ 28,9 bilhões em também doadores significativos, jun- em cinco países do Oriente Médio e ao lado do bem confirmariam essa
2019.1 Esse crescimento financeiro é tando-se à lista dos vinte principais norte da África com 1.231 pessoas legitimidade – em detrimento de ou-
acompanhado de uma proliferação fornecedores de recursos. Isso se de- “beneficiárias” de ajuda humanitária tros tipos de análise. Longe de fica-
de estruturas, desde a associação lo- ve à estratégia de reposicionar esses internacional.7 Eles foram convida- rem calados, os assistidos são muitas
cal criada por alguns voluntários até países no cenário regional e interna- dos a classificar suas opiniões em vezes silenciados por seus próprios
a ONG internacional, passando por cional, em um contexto marcado pe- uma escala de 1 a 10; a média das res- Estados, pela pretensão do setor de se
agências e programas das Nações las guerras da Síria e do Iêmen. postas foi inferior a 3. Essa avaliação autorregular e pela multiplicação de
Unidas e pelo Movimento Internacio- parece confirmar outra pesquisa rea- relatórios internacionais. A história
nal da Cruz Vermelha e do Crescente O MITO DA VÍTIMA DESAMPARADA lizada em 2018 com cerca de 5 mil oficial da ajuda humanitária pode ser
Vermelho. No entanto, a diferença Ajuda humanitária é construída de pessoas em sete países: mais de 80% resumida como uma inocência cons-
entre os fundos disponíveis e as ne- cima para baixo, de seus financiado- dos inquiridos no Iraque e no Líbano tantemente equivocada, mas sempre
cessidades continua a aumentar, em res e doadores, a quem é preciso pres- não consideravam que o apoio obtido reabilitada em nome da pureza de
.

especial por causa do surgimento de tar contas e que decidem, na prática, lhes permitia autonomia, e a maioria suas intenções e, acima de tudo, da
crises: conflitos armados, desastres as prioridades e os locais de interven- deles achou que sua opinião era pou- salvaguarda necessária de sua inde-
relacionados às mudanças climáticas ção.5 O próprio curso da intervenção co ou nada considerada.8 pendência. Essa narrativa obscurece
e urbanização acelerada afetam mais – dominado pela urgência, o uso do outras relações de poder em jogo em
pessoas, por mais tempo. O número inglês, a convergência dos perfis so- operações de socorro.
de vítimas de desastres em 2018 foi ciológicos e códigos culturais de sua Mais de 80% dos O primeiro exercício desse tipo foi
estimado em 206 milhões. equipe “sem fronteiras” – reforça essa inquiridos no Iraque a avaliação conjunta da ajuda de
A diferença se deve também às dinâmica, que floresce à custa de ato- emergência levada a Ruanda durante
disfunções específicas da ajuda in- res locais e, por meio deles, de assisti-
e no Líbano não o genocídio de tútsis em 1994: a ação
ternacional, que a impedem de al- dos. Dos US$ 2,4 bilhões arrecadados consideravam que sublinhou como os trabalhadores
cançar seus objetivos: falta de coor- pelas Nações Unidas após o terremo- o apoio obtido lhes humanitários estrangeiros e os jor-
denação, desconhecimento em to de 2010, as ONGs haitianas e o go- permitia autonomia nalistas recém-desembarcados, con-
relação às áreas de intervenção, não verno local receberam diretamente fundindo visibilidade e eficiência,
proximidade com atores locais. Essas apenas uma pequena fração: respec- construíram conjuntamente uma lei-
anomalias, embora conhecidas e tivamente 0,4% e 1%. Assim, eles se Esses resultados revelam o lado tura “salva-vidas” para os aconteci-
identificadas há muito tempo,2 são limitaram ao papel de meros subcon- impensado da ajuda humanitária: a mentos, imediatamente compreensí-
repetidas sistematicamente, opera- tratados de uma reconstrução guiada figura da vítima. As vítimas são per- veis pelos espectadores do Norte,
ção após operação. As justificativas remotamente em nível mundial. É cebidas, contra todas as evidências, mas obscurecendo as lógicas militar,
habituais – a obrigação de agir com um caso extremo, mas não isolado, como impotentes e passivas, embora diplomática e política em jogo por
urgência, a rápida renovação da equi- de Estados do Norte financiando seus sejam elas mesmas que, nas primei- trás dos fluxos de refugiados, bem
pe, a ausência de memória institucio- próprios projetos por meio de suas ras 24 horas, salvam o máximo de vi- como a falta de antecipação e coorde-
nal – mascaram causas estruturais, próprias ONGs. As capacidades lo- das à sua volta, antes da chegada de nação dos atores internacionais.10 A
entre as quais a principal é a assime- cais, consideradas insuficientes em organismos externos (e da mídia). Há intervenção humanitária serviu de
tria na relação entre os atores. vista dos requisitos contábeis e buro- tempos, em 2004, o então secretário- cobertura para a cegueira e paralisia
De fato, em 2017, dois terços do fi- cráticos impostos pelas instituições -geral da Cruz Vermelha Internacio- ocidentais, enquanto o problema de-
nanciamento humanitário global fo- de países ricos, são depreciadas, se nal, Markku Niskala, clamava que a veria ser abordado em outra linha e
ram alocados em apenas doze ONGs não desprezadas.6 Elas recebem ape- ajuda humanitária deveria “dissipar exigia uma solução política. No fim
(entre elas Save the Children, Comitê nas 3% da ajuda direta. o mito da vítima desamparada e da das contas, a grande maioria das víti-
Internacional de Resgate [IRC], Mé- Percebendo essa assimetria, os ajuda internacional infalível e colo- mas não morreu por falta de ajuda, e
dicos Sem Fronteiras, Oxfam e Visão principais doadores e organizações, car as pessoas afetadas por catástro- sim porque foi massacrada.
Mundial) e instituições da ONU,3 ou reunidos em Istambul para a Primei- fes, bem como suas lideranças, no Vinte e cinco anos depois, per-
seja, 22 vezes mais que os recursos ra Cúpula Humanitária Internacio- centro do nosso trabalho”.9 Se, quin- manece o mesmo sistema narrativo,
direcionados a operadores nacionais nal, em 23 e 24 de maio de 2016, com- ze anos depois, o mito persiste, é por- que recodifica situações de injustiça
e locais.4 Assim, certas organizações prometeram-se a reservar um quarto que esse é o cerne da representação e desigualdade – fruto de escolhas
internacionais capturam o maná do financiamento para estruturas lo- dominante que o setor faz de si mes- políticas – como tendo causas natu-
concentrado no hemisfério norte – cais e nacionais, às quais os subsídios mo – e que lhe convém. rais, quando não atribuídas a maldi-
sendo os Estados Unidos, a União Eu- seriam pagos “o mais diretamente Imagens do caos, vítimas apáticas ções. Em janeiro de 2006, um estudo
ropeia e alguns Estados do Velho possível” (princípio da “localiza- e estados do Sul incapazes, corruptos sobre o processamento de informa-
Continente, de longe, os principais ção”), até 2020. Essa decisão se expli- ou totalitários (ou tudo isso ao mes- ção por cerca de sessenta jornais e
MAIO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 37
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Em dez anos, o montante gasto em ajuda humanitária em todo o mundo atingiu US$ 28,9 bilhões em 2019

periódicos em nove países ociden- eles em situações de urgência, por vale da imagem de impotência públi- Alimentos (PMA), Fundo das Nações Unidas
para a Infância (Unicef).
tais concluiu que não havia ligação mais rápida que sejam essas respos- ca do outro? Em paralelo, a ajuda hu- 4   B en Parker, “Six aid policy priorities to watch
entre a escala de um desastre e sua tas. Em 2015, a ONG norte-americana manitária tende a se tornar o nome in 2019” [Seis prioridades para a política de
.

cobertura da mídia, esta última vin- Mercy Corps enviou uma pequena oculto do que na verdade é a política: ajuda humanitária a serem observadas em
2019], The New Humanitarian, 3 jan. 2019.
culada a considerações econômicas equipe para avaliar as necessidades a política institucional não diz mais Disponível em: www.thenewhumanitarian.
e estratégicas dos Estados do Norte.11 após o furacão Pam, que atingiu Va- seu nome e segue esse caminho para org.
Assim, em 2004, o impacto do tsuna- nuatu. E teve a valentia de desistir da compensar sua inação – a Palestina é 5   Ler Léon Koungou, “Désoccidentaliser l’aide”
[Desocidentalizar a ajuda], suplemento
mi no Oceano Índico na indústria do intervenção quando descobriu que o um caso emblemático – ou, pelo con- “Quelle solidarité internationale?” [Qual soli-
turismo ocupou um lugar despro- governo e as agências locais eram su- trário, para catalisar sua ação. Para- dariedade internacional?], Le Monde Diplo-
porcional na mídia. Inversamente, ficientemente abastados e organiza- fraseando o geógrafo David Harvey, matique, maio 2013.
6   Ler “Haïti, l’imposture humanitaire” [Haiti, a
quanto mais cobertura da mídia so- dos. Sem a mesma lucidez, durante o poderia se falar em privatização por imposição humanitária], Le Monde Diplomati-
bre um desastre, mais organizações terremoto de 2015 no Nepal, os países meios humanitários. Nos países em que, nov. 2016.
são atraídas e mais elas se lançam europeus despacharam para Kat- questão, não estamos testemunhan- 7   “ Preparatory stakeholder analysis. World Hu-
manitarian Summit regional consultation for
em uma corrida por visibilidade que mandu, sem nenhuma coordenação, do uma “ONGização” de serviços so- the Middle East and North Africa” [Análise
coloca em risco qualquer esforço de quinze equipes de ajuda humanitá- ciais? A ajuda internacional, portan- preparatória das partes interessadas. Consul-
coordenação entre elas. Ir para o ria que desafiaram as realidades re- to, tende a substituir os sistemas ta Regional da Cúpula Humanitária Internacio-
nal para o Oriente Médio e o Norte da África],
campo é tornar-se visível (credibili- gionais: mais perto do cenário do de- públicos de saúde, que continuam Primeira Cúpula Humanitária Internacional,
dade), garantir financiamento (via- sastre, China, Índia e Paquistão já sendo os meios mais eficazes de sal- Nova York, 2015.
bilidade) e reforçar a natureza impe- estavam lá. O resultado: um fardo de var vidas. O oposto da política não é o 8   “Grand Bargain: field perspectives 2018”
[Grandes somas: perspectivas de campo
rativa de sua ação (legitimidade). A logística e coordenação, e um aero- humanitário: é outra política.  2018], Ground Truth Solutions, Vienne, maio
pertinência da ação tem pouca im- porto saturado, que atrasou a chega- 2019. Disponível em: www.groundtruthsolu-
portância diante da oportunidade de da de aviões franceses, belgas e neo- *Frédéric Thomas é cientista político, tions.org.
9   “ World Disasters Report 2004” [Relatório de
mercado que se tornou. zelandeses em vários dias, tornando pesquisador do Centro Tricontinental (Ce- Desastres Global], Federação Internacional
O acesso privilegiado a subsídios, a ação inútil. tri) e professor da Faculdade de Ciências das Sociedades da Cruz Vermelha e do Cres-
mídia e tomadores de decisão permi- Esses descalabros podem explicar Sociais da Universidade de Liège, Bélgica. cente Vermelho, Genebra, 2004.
10  “The joint evaluation of emergency assistance
te que os humanitários exerçam um por que, após o terremoto em novem- to Rwanda, Study III. Principal findings and
poder cujas consequências são pro- bro de 2018, o governo indonésio ca- 1   T odos os números são provenientes do “The recommendations” [Avaliação conjunta da as-
porcionais ao não reconhecimento nalizou e limitou a atuação de atores Global Humanitarian Assistance Report sistência de emergência em Ruanda, Estudo
2019” [Relatório Global de Assistência Hu- III. Principais conclusões e recomendações],
desse processo.12 O princípio da loca- estrangeiros. A auto-organização dos manitária 2019], Development Initiative [Ini- Relief and Rehabilitation Network – Overseas
lização do auxílio, adotado pela cú- “beneficiários” é ainda mais estimu- ciativa Desenvolvimento], 30 set. 2019. Dis- Development Institute, Londres, jun. 1996.
pula de Istambul, não será eficaz se lante: “Se quisermos resolver nossos ponível em: http://devinit.org. 11  “ Western media coverage of humanitarian di-
2   “Rapport sur le bilan des actions huit mois sasters” [Cobertura da mídia ocidental de de-
estiver “descolado das questões de problemas, devemos fazer isso sozi- après Mitch” [Relatório sobre o balanço das sastres humanitários], Carma International,
injustiça, desigualdade e assimetria nhos. As organizações internacionais ações oito meses após Mitch], grupo Urgen- Londres, jan. 2006.
de poder”, diz Regina Salvador-Ante- são apenas coadjuvantes”,14 disse ce Réhabilitation Développement (URD), Plai- 12  Michael Barnett, Empire of Humanity: A His-
sians (França), 9 jan. 2000; Rebecca Barber, tory of Humanitarianism [Império da humani-
quisa, diretora da Ecosystems Work Mohib Ullah, anfitrião de uma greve “One size doesn’t fit all. Tailoring the interna- dade: uma história do humanitarismo], Cornell
for Essential Benefits Inc. (Ecoweb), de associações locais nos campos de tional response to the national need following University Press, Nova York, 2011.
uma ONG filipina.13 refugiados rohingyas em Banglade- Vanuatu’s cyclone Pam” [Tamanho único não 13  “Roundtable: Going local” [Mesa redonda:
serve para todos. Ajustando a resposta inter- tornar-se local], The New Humanitarian, 9 abr.
O dinheiro e o tempo investidos sh, em novembro de 2018. nacional às necessidades nacionais depois 2019.
na construção de infraestrutura, pro- Como convocar tomadores de de- do ciclone de Vanuatu], Save the Children – 14  Kaamil Ahmed, “In Bangladesh, a Rohingya
teção civil, serviços públicos e prepa- cisão quando, ao mesmo tempo, isso Care – Oxfam – World Vision, Victoria (Aus- strike highlights growing refugee activism”
trália), jun. 2015. [Em Bangladesh, uma greve rohingya destaca
ração para desastres estão provando ajuda a despolitizar as relações so- 3   Alto Comissariado das Nações Unidas para crescente ativismo de refugiados], The New
ser mais eficazes do que responder a ciais e promove uma eficiência que se os Refugiados (Acnur), Programa Mundial de Humanitarian, 27 nov. 2018.
38 Le Monde Diplomatique Brasil  MAIO 2020

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MISCELÂNEA

livros internet
Raphael detecta as permanências e as rupturas des- NOVAS NARRATIVAS DA WEB
sa retórica na erudição brasileira por meio do exame dos
discursos pronunciados no Instituto Histórico e Geográ- Sites e projetos que merecem seu tempo
fico Brasileiro (IHGB) entre 1838 e 1870. Também en-
volvidos em uma trama política decisiva que determina- 101 ANOS DE ROSA LUXEMBURGO
ria os destinos da monarquia tropical, homens públicos,
dublês de literatos, investiram em um enorme arsenal Em 15 de janeiro de 1919, Rosa Luxem-
HERDEIROS retórico herdado de tempos coloniais e atualizado pelos burgo foi assassinada em Berlim, na
DA FACÚNDIA padrões da modernidade europeia para a construção de Alemanha. Em 2019, centenário da mor-
Raphael Silva Fagundes, uma nação una e indivisa, ao modelo francês. te da revolucionária, a Fundação Rosa
Multifoco Os discursos proferidos nas cerimônias de aniversá- Luxemburgo preparou um site especial
rio do IHGB, assim como os necrológios de sócios e os com conteúdos inéditos e materiais que
relatórios dos trabalhos anuais da casa, lidos na pre- mostram muito além da figura militante

O livro é tributário da tese de doutoramento homô-


nima, defendida por Raphael Silva Fagundes na
Universidade do Estado do Rio de Janeiro em 2018. O
sença de D. Pedro II e de outros personagens dos altos
escalões do Estado monárquico, são as fontes anali-
sadas pelo historiador para mergulhar na atmosfera
e revolucionária, comprovando toda a in-
quietude intelectual da polonesa.
<http://100anos.rosalux.org.br>
autor utiliza a retórica como chave de leitura para com- simbólica e política que impulsionava aqueles oradores.
preender os discursos políticos de figuras importantes A atuação dos membros do IHGB tanto na política
do mundo luso-brasileiro. quanto no âmbito intelectual contribuiu para produzir
Nesse sentido, os Sermões, do padre Antônio Vieira, expressivas peças de retórica, nas quais emoções, ra- GUIA GLOBAL DE SAÚDE PÚBLICA
são aqui abordados como ponto de partida da inves- ciocínio lógico, engodos, paradigmas e outras estra-
tigação, percebidos como atos de fala em meio a um tégias argumentativas eram mobilizadas na defesa do Uma comparação entre 195 países mos-
cenário político marcado pela Guerra de Restauração projeto político da monarquia centralizada sob a lide- tra o poder de reação a pandemias de
(1640-1668), no qual o jesuíta seiscentista se envol- rança do imperador. acordo com critérios como prevenção,
veu de forma ativa para a consolidação do reino de D. detecção, capacidade do sistema público
João IV. A eloquência barroca de Vieira deixaria mar- [Lucia Maria Paschoal Guimarães] de saúde, normas publicadas a respeito
cas profundas na retórica política brasileira. Professora de História da Uerj. de pandemias e outros. Brasil estava em
.

2019 em 22º, algo próximo à Espanha


(15º) e melhor que a Itália (30º). Os Es-
tados Unidos estavam em primeiro lugar.
O site acabou se tornando um exemplo
e jornalísticos. Ao contrário, a importância da ênfase de que mesmo modelos bem preparados
dada por Marx a essas questões fundamenta seus não estão imunes aos seus políticos. Pro-
textos críticos à economia política, como O Capital e duzido pela Nuclear Threat Initiative (NTI)
os Grundrisse. e pelo Johns Hopkins Center for Health
MARX NAS MARGENS: Anderson também oferece argumentos para uma Security (JHU).
NACIONALISMO, ETNIA importante discussão da tradição marxista. Se por um <www.ghsindex.org>
E SOCIEDADES NÃO lado alguns intérpretes acreditam que o pensamento
OCIDENTAIS de Marx reduz o operariado inglês da grande indústria
Kevin B. Anderson, ao protótipo de “missionário da revolução”, Anderson
Boitempo abre aspas para um Marx que falou em “classes traba- APP NYTIMES
lhadoras” em seus escritos sobre a França, que sugeriu

O livro oferece ao público uma investigação cuidado-


sa, rigorosa e de fôlego. A obra concretiza longos
anos de trabalho de Kevin B. Anderson, professor da
uma “revolução escrava” em seus artigos jornalísticos
sobre a Guerra Civil Americana e que vislumbrou nas
comunas rurais russas a capacidade de contribuir não
Há alguns meses o New York Times
colocou em seu aplicativo para celula-
res algumas interações em realidade
University of California, acerca da posição de Karl Marx só para uma revolução naquele país como também ser aumentada e realidade virtual (apenas
em relação a experiências distantes do mainstream do o “ponto de partida” para o movimento revolucionário versões IOS, ou seja, iPhones). É possí-
marxismo tradicional: foge dos contextos europeus da em toda a Europa. Posição condizente com o sécu- vel, por exemplo, ver a poluição ao nosso
“grande indústria” e refugia-se nas passagens sobre lo XX, que presenciou diversas revoluções em países redor com base em nossa geolocaliza-
as formas sociais não ocidentais e/ou que precede- da periferia do sistema capitalista, como Vietnã, Cuba, ção e dados reais, ou ver um arco ao seu
ram o modo de produção capitalista. Rússia, China e Moçambique. redor pela tela do celular que mostra a
A causa é justificável: extinguir de vez a noção de A exposição de Marx nas margens é um convite a distância recomendada para não pegar
que Marx seria um autor “eurocêntrico” ou “evolucio- uma leitura agradável. A todo momento o leitor é bem nenhum vírus por aí com tosses e es-
nista”. Para tanto, Marx nas margens não se opõe me- situado ao texto, localiza-se pelas temáticas cuidado- pirros dos outros (a saber: espirros che-
ramente às críticas conservadoras a Marx, polarizando samente organizadas, aprofunda-se em temas de seu gam a voar quase 8 metros).
também com autores como Edward Said e Michel Fou- interesse pelas notas de rodapé e, o principal, acom- <https://app.nytimes.com>
cault, caros às tradições contemporâneas de pensa- panha o aperfeiçoamento teórico e crítico do pen-
mento crítico. A esse propósito, Anderson convence. samento de Marx durante o desenvolvimento de sua
Centra-se nas “margens”, mas não sem perder de obra. Anderson nos convida a um retorno a Marx, em
vista o “centro”. Alguns leitores poderiam argumen- um momento tão propício e urgente, que é bom não [Andre Deak] Sócio do Liquid Media
tar que Marx nas margens é um livro que apresenta recusarmos. Lab, professor de Jornalismo e Cinema da
um Marx deslocado de sua crítica máxima. Todavia, ESPM, mestre em Teoria da Comunicação
Anderson demonstra que Marx não relega as socie- [Lucas Parreira Álvares] pela ECA-USP e doutorando em Design
dades não ocidentais apenas a seus textos políticos Doutorando em Antropologia Social pela UFMG. na FAU-USP.
MAIO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 39
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CANAL DIRETO SUMÁRIO
LE MONDE

diplomatique
BRASIL

Edição Especial Coronavírus


Ano 14 – Número 154 – Maio 2020
www.diplomatique.org.br
Como retornar às aulas presenciais sem novos
protocolos sanitários condizentes com a realidade
– da primeira e demais ondas – da pandemia de DIRETORIA
Diretor da edição brasileira e editor-chefe
Covid-19? Se não houvesse paralisado o sistema, Silvio Caccia Bava
em torno de 70% de docentes e discentes estariam 02 A população se tornou espectadora
Todos crianças
Diretores
Anna Luiza Salles Souto, Maria Elizabeth Grimberg e
infectados. Como voltar a trabalhar em campi Por Serge Halimi Rubens Naves
com estruturas sanitárias e saneamento precários?
Editor
Vamos adoecer na segunda onda da pandemia?
03 Editorial Luís Brasilino
O que os reitores estão fazendo para que se evite As milícias digitais do capitão Editora-web
essa tragédia anunciada? Por Silvio Caccia Bava Bianca Pyl
Alexandre F. Correa, via Facebook
Editor de Arte

Eu sempre compro a revista nas bancas, mas, 04 Covid-19: depois da crise... as crises
A hora do planejamento ecológico
Cesar Habert Paciornik

Estagiária
como estou no isolamento, não poderia fazê-lo. Por Cédric Durand e Razmig Keucheyan Gabriela Bonin
Grata pela liberação do conteúdo. A capa já diz Prenúncio da crise climática Revisão
tudo! Infelizmente, o povo brasileiro não aprende Por Philippe Descamps e Thierry Lebel Lara Milani e Maitê Ribeiro
com o passado e fez a pior escolha ao alçar à Presi-
Gestão Administrativa e Financeira
dência um homem desprezível e perverso. Quem vai pagar?
Arlete Martins
Por Laurent Cordonnier
Sueli Riviera, via Facebook
Assinaturas
Oportunidade de acabar assinaturas@diplomatique.org.br
Sou assinante e apoio a decisão de vocês. com o livre-comércio
Tradutores desta edição
Muito obrigada pelo trabalho. Por Lori M. Wallach Carolina M. de Paula, Frank de Oliveira,
Ana Barbosa de Andrade, via Instagram Lívia Chede Almendary, Rita Grillo e Wanda Brant
Aos trancos e barrancos,
o Brasil diante da crise Conselho Editorial
Deixar de imprimir as edições durante a quarente- Adauto Novaes, Amâncio Friaça, Anna Luiza Salles
Por Ladislau Dowbor Souto, Ariovaldo Ramos, Betty Mindlin, Claudius
na foi a decisão mais acertada que vocês poderiam Ceccon, Eduardo Fagnani, Heródoto Barbeiro, Igor
Uma via expressa para a Fuser, Ivan Giannini, Jacques Pena, Jorge Eduardo S.
tomar. Irei assinar para fortalecer vocês. Conti- renda básica universal? Durão, Jorge Romano, José Luis Goldfarb, Ladislau
nuem com esse trabalho incrível e necessário. Por Leandro Teodoro Ferreira Dowbor, Maria Elizabeth Grimberg, Nabil Bonduki,
Augusto Soares, via Instagram Raquel Rolnik, Ricardo Musse, Rubens Naves, Sebastião
O arsenal bolsonarista: conflito Salgado, Tania Bacelar de Araújo e Vera da Silva Telles.

e caos como métodos da ação política Assessoria Jurídica


Essa capa é a cara do Brasil.
.

Por Vinicius Do Valle Rubens Naves, Santos Jr. Advogados


Ana Jovanovicc, via Instagram
E o governo decidiu confinar Escritório Comercial Brasília
Marketing 10:José Hevaldo Rabello Mendes Junior
Vozes da floresta – YouTube também as liberdades... Tel.: 61. 3326-0110 / 3964-2110 – jh@marketing10.com.br
Por Raphaël Kempf
Le Monde Diplomatique Brasil é uma publicação
É um privilégio escutar a sabedoria através das Da crise de saúde à panaceia de segurança da associação Palavra Livre, em parceria com o
palavras do Ailton Krenak! Instituto Pólis.
Por Félix Tréguer
Arthur Rodrigues Rua Araújo, 124 2º andar – Vila Buarque
Suécia evita estado de emergência São Paulo/SP – 01220-020 – Brasil – Tel.: 55 11 2174-2005
Por Violette Goarant diplomatique@diplomatique.org.br
Ailton Krenak certamente é referência para a www.diplomatique.org.br
história dos povos indígenas e para a história do
Brasil – narrativa mal contada e falseada. Sua voz 25 Resiliência e gentrificação climática em Miami
Na Flórida, ricos não poderão mais viver com o
Assinaturas: Leila Alves
assinaturas@diplomatique.org.br
mostra bem essa “outra” versão. Tel.: 55 11 2174-2015
pezinho na água
Maria Leonia Chaves de Resende Por Laura Raim Impressão
Plural Indústria Gráfica Ltda.
Av. Marcos Penteado de Ulhôa
Vim tomar meu copo de lucidez e realidade nesta
28 Como Washington controla seu quintal Rodrigues, 700 – Santana de Parnaíba/SP – 06543-001
manhã assistindo a este vídeo do Krenak. OEA, o ministério das MISTO
Helio Torres colônias norte-americanas
Por Guillaume Long
Ótimo conteúdo! Parabéns pela iniciativa, Le Mon-
de Diplomatique Brasil!
Benjamin Jr. 30 O que Pierre Rosanvallon não compreende
Controvérsia sobre o populismo de esquerda
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32 Na esteira das grandes manifestações populares


Na Irlanda, o nacionalismo
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34 “No dia em que não houver mais
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Por Rémi Carayol, enviado especial
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vista de seus autores. E não, necessariamen- 36 As ambiguidades da ajuda humanitária
Tomar o mundo sem mudar o poder
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te, a opinião da coordenação do periódico.
Por Frédéric Thomas Em julho de 2015, o Le Monde diplomatique contava
com 37 edições internacionais em 20 línguas:
32 edições impressas e 5 eletrônicas.

38 Miscelânea
ISSN: 1981-7525
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Já está no ar o Observatório de
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