Começo por dois pressupostos: o Um: não se trata de pensar o processo de adaptação de uma obra na outra e o que se perde ou se ganha com isso – até porque o processo não é linear (depois que o cinema se impôs como a mais lucrativa indústrica cultural, como dizer se os escritores já não escrevem para que suas obras sejam adaptáveis?). o Dois: justamente porque estou encarando livro e filme como dois gestos estéticos distintos, compreendendo-se gesto como o arco material pelo qual se desenvolve uma forma, ou, para citar Candido, como cada uma das formas constrói seu modelo de coerência no continuum em que nós vivemos. Nisso fica evidente, que o gesto do livro tende a ser individual, enquanto o gesto no cinema tende a ser coletivo. O gesto no livro tende a centrar-se na língua escrita, o gesto do cinema tende a centrar-se na linguagem audiovisual. O gesto no livro está mais à margem da indústria cultural, o gesto no cinema está no centro da indústria cultural – o que implica certas fissuras, artifícios, procedimentos para se lidar com a dimensão mercadológica do objeto estético. Etc. Embora eu tenha, claro, preferências em várias das adaptações – e muitas vezes prefiro resultados com tensões formais para análises do que obras que conseguiram síntese mais acabada (longo papo, que as tensões de uma obra podem pertencer a um tempo e não àquela obra [Adorno]) –, a estas perguntas costumo me sair com a anedota das traças. o Passo ao largo, portanto, de trabalhos como o da professora Anna Maria Balogh (Conjunções, disjunções, transmutações: da literatura ao cinema e à TV – que tem análises interesses sobre a adaptação de Vidas secas para o cinema e de Grande sertão: veredas para a TV) ou de George Bluestone (Novels into film), mesmo reconhecendo não só sua importância como sua urgência. Na década de 1970, um terço dos filmes produzidos por um grande estúdio estadunidense era uma adaptação de livro (o Oscar de melhor roteiro original é de 1940). Ademais, se você escolher filmar um livro ou livrar um filme, seu público certamente vai estabelecer comparações. Quero começar nossa conversa com uma citação muito conhecida de Borges, num ensaio sobre o livro: o “Dos diversos instrumentos do homem, o mais assombroso é, indubitavelmente, o livro. Os outros são extensões do seu corpo. O microscópio e o telescópio são extensões da vista; o telefone é o prolongamento da voz; seguem-se o arado e a espada, extensões do seu braço. Mas o livro é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da imaginação.” o Isso já seria expantoso o bastante, uma tecnologia que serve tanto para acumular por escrito experiências passadas, e com isso também se acumular o próprio ato de narrar experiências, quanto para projetar mundos possíveis, imaginativamente. E aqui uma primeira pedra de toque: geralmente, a literatura sugere exclusivamente ou na maioria das vezes com a palavra estes mundos passados ou possíveis. Por isso, tenho certeza de que cada leitor constrói imageticamente para si um mundo diferente. No cinema, o mundo imagético construído é o mesmo, ou mais próximos, ao menos, para os expectadores. Tá, mas não é tão simples assim. Não mesmo, em Seis propostas para o próximo milênio, escrito em 1985 por Calvino – que reclama constantemente do excesso verbal, imagético etc. (não tanto quando Lucrecia Martel reclama dos conteúdos audiovisuais feitos para produtores: “Eu faço uma brincadeira de que Netflix serve para salvar o matrimônio, porque, não fosse pelas séries, as pessoas teriam que conversar e perceberiam que a vida sexual está ruim, que não estão transando o suficiente.”) – encontramos o seguinte: o Leitura da p.99. o É bonito, mas também reduz um tanto. Não só porque estabelece padrões no cinema e na literatura, e centraliza a produção cinematográfica no diretor (o que sabemos não ser verdade), mas também coloca a mover uma roda de tipo “ovo-e-galinha” que questiona se elaboramos primeiro verbo ou imagem. (Pra dar um exemplo, de milhares, Jorge Amado andou pelo submundo soteropolitano antes de escrever Capitães da Areia (1937). Neste caso, ele foi antes documentarista, com sua objetiva interna, e depois precisou traduzir as imagens em linguagem de romance.) Segunda pedra de toque: por mais quente que seja um livro, literatura é geralmente uma arte fria (especialmente numa sociedade que se acelera). Não significa que seja inócua, vê bem, não argumentaria contra mim mesmo, mas como diria James Wood, professor de crítica literária em Harvard, sobre as ficções, mas extrapolo: a literatura ensina a ler a vida, que ensina a ler a literatura, que ensina a ler a vida... o De quantos livros vocês se lembram terem vivenciado um impacto social grande como Bacurau, Tropa de elite, Cidade de Deus? À moda de Kristeva, podem dizer que no teatro ou no cinema o diálogo entre forma e história parece mais intenso e dinâmico. Por quê? Um diretor que trabalhe a partir do livro ou um escritor que trabalhe a partir de um filme teria que esquentar ou esfriar a forma? Como se faz isso? Uma pergunta tola: por que é raríssimo se escrever um romance a partir de grandes filmes? o Para lembrar Bernadet: “Um pouco como num sonho: o que a gente vê e faz num sonho não é real, mas isso só sabemos depois, quando acordamos. Enquanto dura o sonho, pensamos que é verdade. Essa ilusão de verdade, que se chama impressão de realidade, foi provavelmente a base do grande sucesso do cinema.” Posso estar enganado, mas a “impressão de realidade” da literatura é de outra natureza, nunca perdemos a consciência de que se trata de gente de papel, e não gente de carne e osso – o que, aliás, é usado como recurso por escritores. Queria já deixar essa questão cintilando: quais são os recursos disponíveis em cada uma das formas? Quais recursos tendem a funcionar? Quais não? Por quê? Voltaremos a isso. Numa imagem de que gosto muito, em “Ontologia da imagem fotográfica”, Bazin diz que o sarcófago teria sido a primeira câmera cinematográfica, ao reconstituir uma linha de preservação da imagem humana diante ante os efeitos do tempo. No cinema, em que a imagem em perspectiva e diacrônica pode ser preservada, esse processo estaria acabado. (Manutenção que se conquista e se perde, que a preservação integral pode implicar na prescindibilidade do material preservado. Esse fio da lâmina podemos sentir em Terra deu, terra come (2010), por exemplo, ou, de maneira mais perversa, em Theodorico, o imperador do sertão (1978). o Bonito, bonito, mas o próprio Bazin reconhece, no desfecho do ensaio: “Por outro lado, o cinema é uma linguagem”. Sim, este esforço mimético, esta batalha perdida contra o tempo, marca indelevelmente a forma fílmica – o que Bazin diria da imagem com 44 mil anos encontrada em dezembro de uma anoa em batalha com guerreiros numa caverna em leang bulu’sipong? –, mas há também um espaço não de mimesis, mas de poesis, de expressão, de criação, de delírio. Me lembro de imediato de uma entrevista de Glauber ao Fantástico, sobre A idade da Terra (1980): "O filme é um poema, não é um teatro nem um romance, então não conta uma história do jeito que se conhece. É pra ver e ouvir. Não dá pra contar, porque não tem o que contar. Cinema é pra ver e é pra ouvir". Glauber está evocando o direito de o cinema não ser narrativo, de o cinema tomar para si, radicalmente, os recursos de sua linguagem – antípoda de um ensaio de Bazin em defesa do “cinema impuro”, que se abasteça de romances, peças, livros, contos, poemas. Se está claro que tanto a literatura quanto o cinema podem ser épicos, líricos e dramáticos (para resumir um pouco, a partir dos gêneros aristotélicos), com enorme ganho, não caminhamos até aqui para tirar o coelho da linguagem da cartola “é tudo linguagem”, que nos deixaria exatamente no porto de que partimos. o Se preciso, falar um pouco sobre os três gêneros para adiantar a conversa mais adiante. Em primeiro lugar, pra mim é impossível pensar as formas estéticas longe de sua relação com a sociedade. Seja de maneira mais geral, seja de maneira mais específica, a partir de alguns teóricos e autores que já construíram trabalhos a respeito. o De maneira mais geral, por exemplo, podemos comparar, historicamente, como o cinema e a literatura se relacionam em diferentes países. O índice de analfabetismo no Brasil em 1950 era o mesmo da França do final do século XVIII. Assim, é bem provável que, massivamente, os franceses tenham sido educados para a narrativa longa pelo livro e não pela linguagem audiovisual, ao passo que no Brasil, por outro lado, cuja indústria do livro só funciona a todo vapor no final do século XX, é muito provável que a população tenha se educado às narrativas longas pela telenovela. Não é bom ou ruim isso, claro, mas a questão é sobre quais modelos de narrativa estão disponibilizados no tesouro comum. Diante desse quadro, se pergunta: o que um francês comum espera quando vai ao cinema? O que um brasileiro comum espera quando vai ao cinema? Lá, a literatura antecede o cinema. Aqui, a literatura é contemporânea ao cinema. o De maneira mais específica, podemos pensar em formas tomadas por estranhas no centro, mas que são grandes superações de combinação de matéria-forma local e formas estrangeiras. Refiro-me a Machado de Assis, tal como lido Roberto Schwarz, em cotejo com o romance realista, e a Glauber Rocha, tal como lido por Ismael Xavier, em cotejo com a Nouvelle Vague. Poderíamos também, mergulhando um pouco mais, visitar a forma dialética de pensamentos como o de Paulo Emilio Salles Gomes, em Cinema: trajetória no subdesenvolvimento, que lê assim as chanchadas:
Ou Glauber, em “Uma estética da fome”: Do Cinema
Novo: uma estética da violência antes de ser primitiva é revolucionária, eis o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado: somente conscientizada sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode compreender, pelo o horror, a força da cultura que ele explora. Enquanto não ergue as armas, o colonizado é um escravo: foi preciso um primeiro policial morto para que o francês percebesse um argelino.” Ao avançar na compreensão da maneira como as formas se apresentam no centro e na periferia, quer no cinema, quer na literatura. Mas como temos também uma motivação prática, analítica, voltemos à forma, e abordemos dois aspectos sensíveis de tensão na articulação entre forma literária e forma fílmica. o Narrador Brás Cubas. Forrest Gump. Terra em transe. o Figuras de linguagem Cus de judas Deus e o diabo.