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A existência

para além
do sujeito
A crise da subjetividade
moderna e suas repercussões
para a possibilidade de
uma clínica psicológica
com fundamentos
fenomenologico-existenciais

Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo

VIAVERITA
editora
tédio, assim como a ideia do caráter epocal de certos transtor-
nos existenciais. O tédio, por sua vez, é considerado por Medard
Boss como a tonalidade afetiva que abarca o homem em um
mundo onde o que predomina é o horizonte da técnica. Estas
questões foram tratadas ontologicamente por Martin Heideg-
ger e consideradas em uma aproximação com a psiquiatria, pri-
meiramente por Ludwig Binswanger e tiveram continuidade e
aprofundamento com Medard Boss. Por fim, serão apresentados
alguns elementos imprescindíveis a uma elaboração mais recente
da daseinsanálise, quais sejam: o eu como abertura, a ausência
dinâmica em jogo com o mundo e a fenomenologia hermenêu-
tica como atitude interpretativa frente ao fenómeno. Retomando DA CONSCIÊNCIA INTENCIONAL EM HUSSERL
a situação em que homem e mundo acontecem em uma coorigi- À DESCONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE
nalidade, as tonalidades afetivas serão por nós discutidas como MODERNA EM HEIDEGGER
atmosferas nas quais a existência se dá. Apresentaremos, por fim,
essa modalidade clínica, que se caracteriza por não conscienti-
zar, não orientar e não mapear caminhos, mas que, ao contrá- Husserl é sem dúvida alguma um autor que rompe com a
rio abre espaço para uma clínica que devolve ao outro a tutela ideia de um psiquismo constituído ou originário. Ao criticar o
que sempre lhe pertenceu. Assim, é preciso ter desde o princípio psicologismo, ele não apenas tece consideráveis críticas à ten-
clareza quanto ao fato de que aquilo que acontece na clínica ao tativa de posicionar o objeto da psicologia como constituído
menos auxilia na manutenção de espaços de abertura para que psicofisicamente, mas também elabora propostas para pensar
novas possibilidades apareçam. a psicologia por via da fenomenologia. Nessa elaboração, acaba
por introduzir a noção de intencionalidade e o método fenome-
nológico como modo de alcançar o fenómeno prescindindo de
qualquer teoria. Heidegger, na construção de sua ontologia fe-
nomenológica, considera de início duas posições introduzidas
por Husserl: o caráter intencional da existência e a atitude an-
tinatural como modo de investigação necessário para dar conta
do fenómeno do existir. Podemos observar, entretanto, algumas
modificações introduzidas por Heidegger no desenrolar de seu
projeto em relação a Husserl. Ele aponta primeiramente para
uma última ingenuidade de Husserl, que consiste no fato de ele
ter mantido uma perspectiva natural com relação à consciência.
Heidegger, por isso, retira a ideia de consciência, mantendo ape-

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nas a intencionalidade como o espaço onde a existência aconte- uma síntese de vivências que não possui nenhuma unidade es-
ce, Dasein.- Ofilósofodo Dasein acrescenta ainda à fenomeno- tática, mas que acompanha, ao contrário, a própria dinâmica do
logia o caráter hermenêutico de toda e qualquer interpretação, fluxo vivencial no tempo. Essa síntese em fluxo sempre acontece,
a ligação originária entre o ser do homem e o espaço existencial por sua vez, em um espaço de imanência.
no qual se dá o seu ser. Com isso, Heidegger abarca em sua feno- Mas cabe perguntar por que é preciso buscar em Husserl
menologia hermenêutica uma reflexão de fundo sobre a relação considerações acerca da psicologia? Segundo Sá (2010, p. 177):
entre existência e mundo, entre o ser-aí e o seu aí que é decisiva "as relações entre a Fenomenologia e a Psicologia aparecem no
para a psicologia. Bem, mas explicitemos um pouco mais as con- pensamento de Husserl, já desde suas primeiras críticas ao psi-
tribuições de Husserl e Heidegger para a psicologia. cologismo', nas Investigações lógicas, de 1900".

1.1. Husserl e a fenomenologia l.l.l Posição crítica em relação à Psicologia moderna


Husserl defende que o lugar onde a filosofia deve permane- Husserl, em diferentes momentos de sua produção, tece
cer é o do projeto moderno, ou seja, na vontade de se constituir consideráveis críticas à psicologia. Em A crise da humanidade
como ciência rigorosa. O projeto husserliano de uma funda- europeia e a filosofia, publicado em 1922, Husserl pretende apon-
mentação rigorosa da filosofia, que serviria de base a toda uma tar para o impasse no qual se encontram as ciências europeias,
fundamentação da ciência, segue na mesma linha do projeto para além do aparente vigor e progresso por elas apresentados.
cartesiano, no que se refere à sistemática do método. Husserl, Esse impasse diz respeito à repentina perda da capacidade da ci-
no entanto, tenta se desviar da perspectiva da subjetividade nu- ência de responder ao problema da existência. E este alerta cabe
clear e posicionadora do mundo de Descartes rumo a uma via também para a ciência psicológica. Ele volta, então, a chamar a
imanente da consciência, via essa a que ele vai referir-se como atenção para a urgência e a necessidade de que se façam refor-
intencionalidade. Ofilósofofundador propriamente dito da fe- mulações quanto aos pressupostos da psicologia moderna. Com
nomenologia vai considerar a intencionalidade o elemento mais" isto, ele se refere ao mesmo tempo ao despropósito de se pensar o
original a partir do qual tudo se dá a conhecer. A fenomenologia, psiquismo em termos de objetividade e ressalta a importância do
tal como elaborada por Husserl, propõe um método que consis- valor prático dessa ciência, embora seus conhecimentos estejam
te em, uma vez frente ao fenómeno, poder assumir uma atitude aquém daquilo que poderia ser.
analítica e reflexiva para chegar às coisas em sua dação originá- Em a Filosofia como ciência rigorosa, texto publicado pela pri-
ria. Ele pretende com seu método antinatural elucidar o sentido meira vez em 1910/11, Husserl levanta consideráveis argumentos
íntimo das coisas. Por meio do método fenomenológico, em um contrários à Psicologia em sua articulação com o método experi-
constante esforço de suspensão das pressuposições, assumindo mental. Primeiramente, ele refere-se ao equívoco que essa ciência
uma atitude de análise e reflexão, é que Husserl vai investigar a comete ao se posicionar com a pretensão de cientificidade plena.
consciência. Assim, ele acaba concluindo que o eu consiste em Em segundo lugar, aponta para a importância que a psicologia
atribuía à mensuração indireta dos fenómenos psíquicos, acredi-
2 Cf. quanto a este ponto Casanova (2009). tando que o acesso ao psíquico se dava por dedução ou inferência.
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E, em terceiro lugar, diz que a psicologia atribui ao seu objeto uma modo, perguntar sobre as suas qualidades, suas relações cau-
natureza psicofísica, com uma determinação objetivamente válida sais e numéricas, tal como aconteceu com a psicologia. Por fim,
e com leis que determinam a sua formação e transformação. Husserl apresenta o naturalismo do comportamento científico
Husserl considera que, se a filosofia tanto quanto a psico- e a desconsideração da essência dos fenómenos de consciência.
logia pretendem alcançar argumentos decisivos para a sua cons- Segundo ele, nesta perspectiva, os objetos são supostos como da-
tituição, elas deverão proceder antes de tudo com base em um dos em seu ser e permanentes na sua identidade constante, suas
comportamento metodológico precedente, originário, que seja qualidades são determinadas quantitativamente e confirmadas
capaz de suplantar as inconsistências oriundas de suas assunções ou corrigidas por novas experiências.
teórico-dogmáticas. Para tanto, ele indica a importância de sus- Husserl propõe que, frente ao fenómeno, possamos assumir
pendermos os posicionamentos ontológicos do mundo, ou seja, uma atitude antinatural própria à fenomenologia. Só assim seria
os argumentos e pressuposições metafísicos, sejam eles as opini- possível alcançar uma visada realmente rigorosa não comprome-
ões compartilhadas e prévias sobre os objetos, sejam eles as teses tida com a postura ingénua inconsistente, uma vez que essa sem-
científicas, passando a refletir sobre a vida da própria conscj,ên- pre se deixa levar pela opinião, já marcada por um modo de ver
cia em sua dinâmica imanente. Para esclarecer o que está aí em presente no senso comum e na ciência. Nessa atitude antinatural,
questão, ele se refere às duas visadas sobre os fenómenos que se como bem o descreve Husserl no § 3 da introdução à sua Primei-
estabelecem a partir da assunção incontornável de posições pré- ra Investigação lógica, "ao invés de imergirmos na realização de
vias. São elas a visada do senso comum e a científica. A primeira atos multiplamente construídos uns sobre os outros e, com isto,
acontece de modo confuso, ambíguo e obscuro. O senso comum de pressupormos ingenuamente como sendo os objetos visados
confunde-se aqui com o que o filósofo denominou atitude natu- em seu sentido, determinando-os ou estabelecendo-os hipote-
ral e ingénua, uma vez que tende a tomar como verdade aquilo ticamente, devemos antes 'refletir', isto é, transformar esses atos
que é visto imediatamente ou aquilo que é comprovado empiri- e o seu conteúdo imanente de sentido em objetos" (2007, p.l4),
camente. A segunda, em uma tentativa de clarificar e tornar ob- acompanhando, então, o caráter intencional de sua realização.
jetiva a visada do senso comum, pressupõe que o eu se dá como * A Fenomenologia, com seu lema fundamental "rumo às
uma substância passível de ter suas verdades confirmadas, de coisas mesmas", pretende superar todas as tendências metafísi-
modo objetivado e com propriedades, isto é, como uma substân- cas que criam teorias acerca dos entes, esquecendo-se do sentido
cia fechada em si mesma que se constitui dicotomicamente em originário do campo de génese fenomenológica do ser. A orien-
relação ao mundo. Esta dicotomia acaba se estendendo à ideia tação fenomenológica exige que se saia do campo empírico, que
de um corpo e de um psiquismo cujo encontro se dá em uma posiciona os objetos no espaço e no tempo. Com isto, ele procura
relação regulada por leis universais. Husserl aponta também necessariamente deixar o campo emergir num gesto não teori-
para as características em comum dessas duas visadas, nas quais zante. Para tanto, é preciso que, uma vez diante do fenómeno, se
permanece o dualismo corpo e mente. Corpo e mente tendem a dê um passo atrás e se retorne ao ponto de surgimento do corre-
princípio a ser concebidos como duas instâncias independentes lato cooriginário dos atos de consciência em geral.
e acessíveis de forma empírica e passível de mensuração, poden- Husserl propõe, em suma, o abandono da atitude natural e
do ser descritas nas suas determinações causais. Caberia, deste a assunção de uma atitude antinatural pautada por aquilo que ele

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|in»U'ili nic i li.iiiiaiá de epoché - a suspensão desta atitude tramos a transformação radical produzida pela fenomenologia na
liiilnriii. () >|iu' til' nos ensina é que precisamos deixar de tomar investigação em Psicologia. A proposta fenomenológica não só
ti vrnl.ulr loni referenciais e categorias hipostasiantes, como se vai permitir transformar completamente o sentido da noção de
.IS mis.IS losM-iii estruturadas naturalmente, dando a falsa ideia fenómeno psíquico, como também vai modificar a postura que
ilf iiiic se pode conhecer a verdade para além de toda e qualquer o investigador dos fenómenos psíquicos irá tomar frente a este
apari(,a() dos fenómenos. fenómeno. Bem, mas o que isto significa mais propriamente?
Assim, a Fenomenologia opõe-se frontalmente à visada te- Para Husserl (2007), a psicologia, de modo geral, em seu
órica, já que esta forma de se colocar frente ao fenómeno produz posicionamento empírico, desconsidera o caráter originário do
inexoravelmente uma hipostasia, realista ou idealista, do univer- psiquismo, uma vez que parte de uma predicação do homem, já
sal. Ijsta atitude frente ao que se apresenta é denominada por pretendendo saber aprioristicamente, antes de qualquer inves-
Husserl atitude ingénua ou natural, o que significa dizer que, tigação, aquilo que o homem é, ou seja, o fato de ele ser dotado
com essa atitude, toma-se a natureza que se pretende investigar de psiquismo. Para a fenomenologia de Husserl, o psiquismo
como simplesmente existindo com sentidos e determinações não possui nenhuma determinação prévia, nem mesmo um eu
previamente dados e acessíveis para a teoria em questão ou .até substancial. A consciência é, para estefilósofo,transcendente,
mesmo para o senso comum. E a superação da ingenuidade ou nunca se retém em si mesma, mas se vê projetada por seus pró-
da atitude natural dos teóricos ocorre quando Husserl descorti- prios atos" para o "campo dos objetos correlatos. Na medida em
na a natureza intencional dos fenómenos psíquicos. O que nos que a consciência se realiza por meio de seus atos, ela sempre
interessa nesse contexto, por sua vez, é apontar para a relevância transcende o campo de realização desses atos. E é nesta linha
dessa posição para uma psicologia com bases fenomenológica. que Husserl vai proceder a sua investigação da consciência in-
tencional. Ele se desloca da tendência para a dicotomização que
1.1.2. A consciência Intencional predominou em toda a Modernidade, na qual a consciência
ocupa um espaço dado, uma sede na interioridade (Descartes),
Husserl considera desde as suas primeiras obras o caráter na qual a consciência se constitui por aderência a uma subjeti-
intencional dos fenómenos psíquicos. Ele se refere claramente às vidade transcendental (Kant) ou, ainda, na qual se procura re-
relações imanentes da subjetividade ou da consciência pura, ou solver o problema da dicotomia, defendendo que nada há senão
seja, fenomenologicamente reduzidas, diferenciando-as, assim, a subjetividade em sua dinâmica de auto-objetivação (Hegel).
dos fenómenos materiais em jogo em uma consciência empírica, Husserl entende que a fenomenologia, embora seja uma ciên-
na qual se pressupõe que essa seja constituída por propriedades cia da consciência, não é psicologia tal como essa é entendida
e por uma essencialidade específica. em uma versão psicofísica. A esta ciência importa a consciência
Em Investigações lógicas (Husserl, 1900/2007), obra decisi- empírica, algo que existe de modo natural; já à fenomenologia
va para a fundação e compreensão do método fenomenológico, importa a consciência empiricamente reduzida, sinónimo de
I iiisscrl vai tematizar a intencionalidade a partir da superação das uma consciência fenomenológica. Ele defende que a psicologia
vertentes tradicionais e modernas, com seus pressupostos de que deveria também pensar na consciência como intencionalidade.
o psiquismo teria sentidos e determinações dadas. Aqui encon- É o que ele mesmo nos diz em uma passagem de seu escrito so-
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brc a hilosojia como ciência rigorosa: "Se assim estiver certo, re- atos intencionais; logo, se os atos intencionais fossem suspensos,
sultaria daí a psicologia estar mais chegada à filosofia por meio a universalidade desapareceria. Esse eu alcança em Husserl um
da Fenomenologia" (2007, p. 19). caráter dinâmico, que se baseia exclusivamente em suas vivên-
cias fáticas, reais. O eu vem à tona, então, em meio à imersão
em sua essência performática, como fluxo que reatualiza cons-
1.1.3. A concepção do eu , tantemente o presente, o passado e o futuro em uma síntese de
Husserl rompe com a ideia de que o eu se institui como vivências que incluem lembranças, percepções e expectativas.
uma interioridade e de que, assim, se afasta a princípio do mun- Essas vivências intencionais, por mais que nasçam com cada ato
do de modo a posicioná-lo. Assume, então, a concepção de intencional particular, possuem, contudo, conteúdo significativo
pessoa como smtese em fluxo de vivências. O seu intuito com ideal, uma vez que não são posicionadas pela subjetividade, mas
essa concepção é escapar completamente de toda e qualquer concretizam em si mesmas o sentido de uma intenção significa-
hipostasia em relação ao ser dos objetos, assim como de toda tiva. Com a noção de intencionalidade, portanto, escapa-se das
coisificação do eu que obscurecesse o seu caráter intencional. articulações metafísicas a partir da fenomenologia e encontram-
Tanto o realismo, quanto o ideaUsmo partem de uma hiposta- se possibflidades outras de se tratar o fenómeno psíquico, sem
sia em relação ao ser dos objetos e caem, exatamente por isto, perder a possibilidade de se falar em sentidos e significados psí-
em aporias incessantes. No ingenuismo dos pensadores iniciais, quicos de maneira rigorosa.
ocorria a tentativa de se lançar para além da posição inicial do A Fenomenologia de Husserl, embora se proponha a pen-
eu e de encontrar o ente tal como ele é nele mesmo. Surgia, com sar em outras bases a constituição propriamente dita da psico-
isto, o problema do acesso. Como acessar o em si, sem conta- logia, ou seja, para além da consideração da psicologia como
miná-lo ao mesmo tempo com as particularidades do sujeito. uma espécie de epifenômeno da fisiologia, tal como pretendida
Nos pensadores modernos, por outro lado, a tentativa era a de pela psicofisiologia, também nos parece, porém, em última ins-
encontrar um si mesmo dos entes em meio à própria estrutura tância inviável, pois se desvia por demais na busca de uma base
da subjetividade. Não se consegue, porém, escapar da suspeita transcendental para a experiência fenomenológica. Como tal,
de que, em meio à redução de tudo às concepções do sujeito, ela mesma acaba se construindo a partir de uma intuição que
tudo não passe de ilusão. Nestas duas perspectivas, o eu se en- não faz jus ao caráter mundano do existir humano. A psicolo-
contra em um lugar onde se inicia o processo de rearticulação gia não pode prescindir do fático, da existência, enfim do lugar
com os universais. Essa posição repercute diretamente sobre o onde a vida acontece, o mundo. Por esse motivo, o nosso proje-
modelo teórico tradicional, porque toda e qualquer teoria parte to de psicologia e sua prática clínica tomam na sua constituição
de pressupostos ontológicos que jamais podem ser alcançados a hermenêutica-fenomenológica de Heidegger como horizonte
de maneira cientificamente rigorosa e porque a articulação da essencial de realização. Essa parece apontar para elementos que,
teoria com a subjetividade não representa senão uma variante como veremos à frente, possibilitam a edificação de umJHPsicolo-
específica desse problema. gia Fenomenológico-Existencial em dois aspectos fundamentais:
O eu fenomenológico, por sua vez, exige que consideremos em primeiro lugar, o eu como transcendente, fluxo temporal; em
o lato de a universalidade se constituir no interior mesmo dos segundo lugar, gjjestruição dn eu em meio à intencionalidade HP

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base ser-aí/mundo. Para elaborar uma proposta para uma clínica
psicológica que não se valha do pressuposto do psíquico trata- Para pensar esse caráter mais originário do ser-aí, vamos iniciar
remos dos fundamentos em Heidegger, considerando antes de o nosso estudo com o modo segundo o qual Heidegger, em Ser
Indo a sua inspiração em Husserl. c tempo (1988), já nos traz a possibilidade de subtrair o eu subs-
tancializado e de tomá-lo antes como pura abertura dinâmica.
Vejamos, então.
1.2. Heidegger e a desconstrução da subjetividade moderna Em Ser e tempo (1927/1988) encontramos pela primeira
Iniciaremos por esclarecer que interpretar a ontologia fun- vez um diálogo entre a Fenomenologia hermenêutica e as ciên-
damental^ H e i d ^ ^ uma filosofia da subjetividade seria cias ónticas, em meio à discussão do projeto de uma ontologia
um evidente equívoco, já que ele mesmo pretendia destruir a no- fundamental. Nesse projeto, Heidegger pretende levantar a per-
ção de subjetividade a partir da demonstração do caráter originá- gunta acerca das condições de possibilidade das ontologias, ou
rio da estrutura ser-no-mundo. O interesse de Heidegger~ÍT3o~re- seja, da própria Filosofia e, para tanto, dirige-se ao ente que pode
cai na ideia de sujeito: nem do sujeito nuclear cartesiano, nem do perguntar por algo assim como ser. Ofilósofoalemão parte da
sujeito aderente de Kant e nem tampouco do sujeito dinâmico de analítica existencial, que envolve elementos da tradição fenome-
Husserl; e isso justamente porque todas essas posições subjetívas nológica e hermenêutica, assumindo para a sua descrição uma
desconsideram a intencionalidade de base ser-no-mundo. tanto atitude antinatural. Essa atitude, tal como postulada por Husserl,
quanto a impossibilidade de pensar para além dessa intenciona- consiste em uma supressão ou superação da tendência, presente
^• lidade. Atareíja da ontologia fundamental tal como proposta por tanto na vertente tradicional como na moderna, de pressupor
^ Heidegger consiste em buscar o sentido do ser, partindo do ser-aí que os sentidos e as determinações são dados pelas próprias coi-
^ como o lugar no quãl acontece historicamente tal sentido. Esse sas - no caso em questão, o sujeito. Heidegger nos mostra, então,
lugar baseia-se, por sua vez, no aí, no mundo e na inseparabi- em que medida se deve deixar de tomar a verdade com referen-
^ lidade homem-mundo; portanto, não possui nenhuma determi- ciais e categorias, como se as coisas fossem estruturadas natu-
nação que se associe essencialmente a ele, justamente porque a ralmente. A analítica do ser-aí consiste, portanto, na descrição
sua única determinação consiste no caráter do poder-ser, sempre interpretativa das estruturas ontológicas fundamentais do existir
atravessadopdo horizonte histórico em que se encontra. humano, explicitando a historicidade do sentido da existência
O pensamento de Heidegger é uma tentativa de desobje- em sua dimensão mais originária.
tificação da existência humana. E, assim, pretende mostrar que
o saber metafísico, científico e tecnológico é derivado e ao mes- 1.2.1. A estrutura do ser-aí
mo tempo encobre o fenómeno mais originário que se encontra
na génese do ser-aí. É deste modo, então, que iremos caminhar Uma psicologia sem psiquismo requer que se tome a noção
para podermos pensar em uma psicologia sem objeto, sem subs- de ser-aí, tal como elaborada por Heidegger em Ser e tempo, em
tância, enfim sem eu e sem psiquismo. Indo além, acreditamos particular no parágrafo 9. Nesse trecho, a partir da estrutura on-
ainda que toda e qualquer formulação teórica em psicologia tológica originária do poder-ser do ser-aí, Heidegger inicia com
acaba por encobrir aquilo que é mais originário na existência. a exposição da expressão de sua singularidade máxima, qual
seja: "o ser-^ é sempre^a cada ygz meji". Ser sempre a cada vez
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meu é algo que aponta para o fato de o Dasein ser a cada vez sua •g I Icidcgger descreve o ser-aí, desde o princípio, como um $er
possil^lidade, um^wj^que pode, em seuiSfir, escolher-se e, exata- O capa/, de interrogar o ser, como o ente privilegiado tanto ôntica,
meiík- por isto, também perder-se e voltar a conquistar-se. Anteg' ^ quanto ontologicamente. Para Heidegger, somente pelo exame
de realizar uma de suas possibilidades existenciais, o serrai n^o fenomenológico deste existente poder-se-á chegar à noção do
é nada.Hle não possui determinações essenciais. Desta forma, o sentido do ser em geral, referindo-se às características constituti-
ser-aí não pode ser tema de um discurso teórico específico, não vas do ser-aí como somente modos possíveis de ser. Exatamente
pode ser explicado por determinações, não tem propriedades ge- por ser os seus modos possíveis de ser, porém, e nada além distp,
neralizáveis e não pode, por conseguinte, ser acessado porpieio o ser-aí precisa de início da base de sustentação de seu mun-
de universalização. Daí a necessidade de falarmos de uma psico- do fático sedimentado, para que ele possa receber do mundo as
logia sem psiquismo, já que abandonamos totalmente a ideia de orientações necessárias para a realização de seu poder-ser. De
uma sede ou estrutura psíquica. Passamos a falar do ser-aí, ser início e na maioria das vezes, portanto, o ser-aí se vê perdido no
que, sendo, coloca necessariamente em jogo o seu ser. mundo. Ao mesmo tempo, como o ser-aí é um ente dotado de
Heidegger, em sua obra Ser e tempo, pretende investigar o caráter de poder-ser e como não possui nenhuma determinação
sentido do ser e, para tanto, inicia tematizando o ente cujo ser essencial prévia, ele não tem como ser determinado em seu pró-
importa a si mesmo. Denomina-o ser-aí para destacar a sua du- prio senão a partir da ideia de uma modulação específica de sua
plicidade de ente e ser. No seu fundamento estrutural ontológico, relação com o seu espaço existencial. Este fato tem repercussões
o ser-aí se constitui como ser-no-mundo. Sem dúvida, a com- sobre o projeto da analítica existencial.
preensão heideggeriana do ser-aí traz como elemento inicial a Para realizar sua analítica, Heidegger jamais poderia par-
estrutura da intencionalidade tal como desenvolvida no âmbito tir do próprio, pois, desta forma, iniciaria com pressuposições
da quinta Investigação lógica (HUSSERL, 1900/2007). No entan- sobre um modo de ser dado aprioristicamente. Por isto, inicia
to, a compreensão de Heidegger toma uma redução tão radical sua análise a partir do modo impróprio de existir, tal como esse
que o ser-aí passa a ser compreendido como a própria dinâmica ' se dá na cotidianidade mediana. Em sua exposição dos traços
existencial e como nada para além disto. existenciais do ser-aí, em sintonia com o modo mediano de ser
Na primeira parte de Ser e tempo, Heidegger analisa feno- do ser-aí, Heidegger revela, então, elementos importantes, que
menologicamente a estrutura do ser-aí na sua cotidianidade mp- desempenham um papel decisivo nas perspectivas estruturado-
diana, modo em que o ser-aí se encontra de início e na maior ras de nossa pesquisa: o primado da^^ástêná^Ã^e:^e§&êp-
^) ^ parte das vezes. Na busca pelo sentido do ser, o filósofo alemão que indica que sua essência consiste em sua existência. Ser-aí
'V ^ recorre ao método fenomenológico, uma vez que não há pos- refere-se, com isto, aos modos de ser em meio aos quais alcança
Ç _y sibilidade de posicionamento conceituai, nem de demonstração as determinações que são suas a partir do movimento do existir;
(V i desse ser. Faz-se necessário, então, proceder a uma espécie de ^ o ser;:aí é &çistpj^:xa^, algo que se refere ao ser singular, uma
^ ^ mostração, na qual vamos ao encontro do ponto de génese da vez" que é marcado pelo caráter de ser sempre meu - daí a impos-
O relação intencional entre ser-aí e sentido de ser; ponto em que sibilidade de se compreender o ser-aí para além da chave singu-
^ esse ser se mostra por si mesmo e no qual o ser-aí acompanha lar e de transformá-lo em tema de uma investigação ôntica com
cooriginariamente sua mostração. vistas à sua determinação quididativa; 3) ele se encontra marcado

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pela IcSgica do Wáé S#, fundamento da responsabilidade com o der. l*ropõe investigar o Dasein como modo de ser do homem,
sen existir, ilo (alo de que, sendo, ele se relaciona com o seu ser. que, na sua duplicidade, se constitui como ser simplesmente
Ser aí i.\i\c, cm seu comportamento de base, é descerrador e abre o dado e, ao mesmo tempo, como existir, como ser-no-mundo,
o inundo como horizonte no qual os entes lhe vêm ao encontro que está sempre em jogo no devir temporal. Ele refere-se ao Da-
e requisitam determinados comportamentos. O modo como o sein ou ao ser-no-mundo como modo de ser do homem, modo
ser-aí se comporta, por sua vez, determina radicalmente o modo Ç esse determinado pelas 'meras' possibilidades de lida com aquilo
como ele é; 4) o seu caráter de poder-ser, o que caracteriza a sua '^3' que lhe vem ao encontro. E conclui esse seminário, referindo-se
incompletude ontológica. O ser-aí é um ek-sistente. Neste ter- ao Dasein corno o ente cuja essência éo^ existir.
mo, o prefixo ek diz respeito à mobilidade estrutural que retém Heidegger prossegue sua analítica, na segunda parte de Ser e
a incompletude fundamental e que já sempre projeta o ser-aí tempo, ainda tendo em mente as estruturas ontológicas do ser-aí.
para além de algo assim como uma interioridade susbstancial, u Porém, ele considera agora essas estruturas em seu sentido tempo-
enquanto o radical sistente aponta para uma dinâmica de ser. ral. Com isto, ele pressupõe que, para investigar o ser no tempo, é
Ek-sistir, neste sentido, significa literalmente ser para fora, ser preciso tomar previamente a totalidade do fenómeno ser-aí para,
para o mundo, ser-no-mundo. então, poder desvelar as possibilidades mais próprias^ desse ente
Em virtude dos traços descritos acima, o ser-aí não deve ser tematizado que, na sua estrutura fundamental, é ser-no-mundo
interpretado pela diferença de um modo determinado de exis- e cuja totalidade estrutural se determina como cuidado. Para ele,
tir. Devemos descobri-lo antes a partir do modo indeterminado é elaborando o fenómeno do cuidado que se pode vislumbrar a
^em que, de jnício e na maior parte das vezes, ele se dá: a par- constituição da existência em seu nexo originário com a factici-
tir da medianidade, ou seja, da indiferença cotidiana do existir. dade e a decadência^ do s£r-aí e revelar o tempo como o horizonte
^ ^ Heidegger acaba, assim, por chegar à estrutura fundamental do de abertura originário da compreensão de ser.
3 s ser-no-mundo, distinguindo o ser-aí dos demais entes: o caráter
3 § de abertura diferencia-o dos demais entes, cuja existência encon- ^ 1.2.2. O caráter de poder-ser do ser-aí: ser-para-a-morte
^ ? tra-se fenomenologicamente "fechada". O cuidado (Sor^ej^vem
à tona neste contexto como o ser propriamente dito do ser-aí:_o ^ O caráter de poder-ser do ser-aí aponta para as dificuldades
ser-aíé constitutivamente ;GUÍdado, porque ele é os seus modos C que sua analítica impõe, já que o ser-aí, pela sua característica
^O de—ser, e, assim, sendo, sempre de poder-ser, se mostra como um ente constantemente em jogo
£- cuida de si. Esse modo de ser; en- U^ com o seu ser, que sempre resiste a uma apreensão total; e ainda,
-jj volve, por sua vez, uma ocupação com os entes mtramundanqig' Q por sua característica de abertura, sempre não concluído, jamais
(Besorgen) e o desentranhamento de um contexto relacional. ^
. - Portanto, ele jamais vive isolado em si mesmo. Ser-aí é um ente rj 3 Para Heidegger, o mais próprio do Dasein consiste na antecipação .da
^ sempre referido a outro ente, seja sob o modo da ocupação, seja ^ morte como possibilidade certa, insuperável e irremissível.
^ sob o modo da preocupação (Fursorge). 4 /Determinação existencial do próprio Dasein e também a sua possibili-
No Seminário de 8 de setembro de 1959 , no grande audito- ^ dade, na qual o Dasein encontra-se gbsorto nas ocupações cotidianas, enco-
rio de Burgholzli da CHnica Psiquiátrica de Zurique, Heidegger tS brindo, assim, o que lhe é mais prógrio. Tendência a se perder no mundo da
impessoalidade, limitando suas possibilidades.
relere-se ao Dasein humano como um âmbito do poder-apren- ^
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alcança uma totalidade, permanecendo sempre inconcluso. Para ÒeR, pa-12-mçnfe YTO rrcAo i m p ^ o a ^ l ^ -
realizar a investigação ontológica deste fenómeno em sua tota- o ser-para-a-morte. E isto porque só ele traz à tona plenamente
lidade, 1 leidegger lança mão do que ele mesmo vai denominar a Icmporalidade originária do cuidado. O problema da morte
circularidade hermenêutica, o fato de o ser-aí já sempre compre- consiste nesse ponto final que se encontra apartado do presen-
ender ser a partir de um campo semântico sedimentado histori- te, do ser-aí, que de início e na maior parte das vezes encobre
camente a partir das decisões presentes na tradição. Assim, ele se para si mesmo o seu poder-ser, de tal modo que a morte aparece
dá o direito de partir de uma concepção prévia:' a cotidianidade como algo que não diz respeito ao ser-aí. O ser-aí nessas condi-
mediana do ser-aí entre nascimento e morte; o ser-aí como um ções existe como uma coisa, que ele é e continuará sendo até que
todo, em sua posição prévia, sempre terá uma pendência à qual um dia ele morra. Um dia, distante e vago, no qual, em última
pertence o próprio fim do ser-no-mundo. Antecipar o fim, por instância, ele não conseguirá experimentar a morte, porque a
sua vez, algo passível de se dar em meio à decisão, abre o espaço morte tomada onticamente é sempre da ordem do inexperenci-
para que o ser-aí se conquiste na totalidade do fenómeno, porque ável. No modo do impessoal, encontra-se a ideia de que a moxte
a antecipação da morte revela plenamente o ser-aí na totalidade .-^í^^enômeno do qual temos que nos desviar, esquecer, afastar.
intransferível, intransponível e inexorável de seu sendo. No falatório do impessoal, fala-se: "morre-se". Quando é assim
Heidegger conclui que as estruturas ontológicas do ser-aí, que compreendemos a finitude, temer a morte significa pensar
agora, devem ser investigadas em sua temporalidade, já que a a morte como algo que vêm ao nosso encontro em um futuro •
cotidianidade em seu cuidado se desentranha como modo da longínquo, jamais determinável previamente com exatidão e que fls
temporalidade. Se a temporalidade constitui-se no sentido onto- causa um dano irreparável na coisa que eu sou. Trata-se, ao con- (/)
lógico originário do ser-aí, então cuidado deve precisar de tem- trário, no âmbito da conquista plena de si por parte do ser-aí, da O i
po e, assim, contar com o tempo. Diz Heidegger (1988, p.l4): antecipação da morte que se dá constantemente. Morrer é aqui o ""O ^
"o projeto*" de um sentido de ser em geral só pode se reaUzar no evento que revela o çarájtjer própriQ 4" s^er-aí CMuapto cuidado, Q
horizonte do tempo". Segue-se, então, a tarefa hermenêutica na uma vez que ele só é propriamente cuidado se morre sempre, y ^ g - ç
investigação do ser-no-mundo, apreendendo-o em sua totalida- conquista a sua finitude, se é, quando é, quem ele efetivamente ^ (
de, tendo por horizonte de abertura o tempo. Com isso, torna- é. Na decisão antecipadora, ao escutarmos o clamor da angus- Q ^
se imprescindível tematizar o poder-ser mais próprio do ser-aí: tia como tonalidade afetiva fundamental que, não dizendo nada, ^
confronta o ser-aí com o seu ser mais próprio, surge para o ser-aí
a possibilidade de conquistar o seu modo de ser mais próprio.
5 É interessante perceber como essa temática será abordada por Hans- E é no horizonte finito desse ser, abrindo a necessidade de pen-
Georg Gadamer em seu Verdade e método, no capítulo sobre a redenção dos
pressupostos. O que Gadamer nos mostra é que suspender os pressupostos não sar a partir da própria rearticulação do seu existir, que se abre a
apenas não é possível, mas, se fosse possível, não seria desejável, uma vez que possibilidade de singularização do ser-aí. O anúncio da finitude
os pressupostos são para nós operativos. Cf. Hans-Georg Gadamer, Verdade e é um dos modos possíveis de estruturação da existência singular.
método, p. 456. É em última instância a angústia característica do ser-para-a-
6 Projeto = sentido temporal da projeção do ser-aí. A vida é um projeto, já morte que, na maioria das vezes, se mantém obscurecida pela
que se parte de um estar lançado, projetando-nos para algumas possibilidades tendência cotidiana de fugir de si mesmo. Por fim, a convocação
c excluindo outras. No entanto, sempre desvelando possibilidades.
do ser-para-a-morte consiste na abertura do horizonte de reaU-
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/tiSlUt ilii fxislir. que aponta para a finitude de todas as possibili- cia, enquanto contínuo prolongar-se, impõe-lhe a estrutura do
diiilfs de ser tio ser-aí. "acontecer", de que se deriva a historicidade em que seu próprio
ser se constitui como extensão. O ser-aí é sempre articulando
Prosseguir nesta investigação consiste em iniciar por bus- o seu cuidado temporalmente. Bem, mas qual a consequência
car como se dá o ser-para-a-morte na cotidianidade mediana, na disto para a psicologia?
qual o ser-aí não ouve o chamado de seu ser-para-a-morte, por se Heidegger, além de apresentar uma outra possibilidade de
ilislrair com os zunidos constantes e ambíguos do^gltetétjo. Para se pensar a existência, também traz consigo um discurso que
não ouvir o anúncio da sua própria finitude, o ser-aí preenche o contraria francamente o discurso clássico da Psicologia. O vo-
seu existir com ocupações de todo o tipo, tratando de preencher cabulário psicologizante apresenta termos como: consciência,
o seu tempo. Assim, não ouve o clamor da consciência que se pro- reflexão, meditação, análise de si mesmo. Tais termos apresen-
nuncia na angústia, anunciando a condição finita de todo ser-aí. tam-se sob a tutela de um horizonte cientificista, no qual reinam
e, por conseguinte, o seu caráter inexoráveljcomo cuida4o. o ideal de verdade, transparência e método. Romper com essa
Para desvelar as possibilidades mais próprias e autênticas tutela é o objetivo mais essencial de nosso projeto, para assim
desse ente que, sendo, sempre coloca em jogo o seu ser, faz-se ne- lançar as bases de uma Psicologia Fenomenológico-Existencial
cessário que esse se desvencilhe dos chamados da impessoalidade, voltada para a clínica. Nesse caso, embasando-nos na Fenome-
que encobre o cuidado que ele sempre é. Assim, desentranhar a nologia e na Filosofia da Existência, procuraremos investigar
possibilidade de antecipar o seu ser-para-a-morte é decisivo para as repercussões da virada fenomenológica para a clínica em es-
superar até certo ponto a absorção inicial no mundo. Para tanto, pecífico e para a psicologia em geral. Sá (2010, p.l79) refere-se
é preciso descrever fenomenologicamente, isto é, acompanhar às contribuições de Heidegger para a clinica psicológica de um
em seu acontecimento, a sua possibilidade mais própria: seguir a modo absolutamente esclarecedor: "A influência mais importan-
antecipação de seu ser-para-a-morte; ouvir a voz da consciência, te do pensamento de Heidegger sobre a Psicologia tem sido a
que interpela o ser-aí para evidenciar o seu estar em débito, cla- analítica da existência, elaborada em Ser e tempo. Tal fato for-
mando pelo poder-ser mais próprio. A tonalidade fundamental taleceu a ideia de que o papel essencial da Fenomenologia com
da angústia, ao se pronunciar, sem que sua voz seja abafada, acaba relação à Psicologia é a de lhe fornecer um método mais ade-
por suspender as prescrições do mundo, conclamando o ser-aí a quado, concedendo-lhe, assim, um estatuto de rigor científico,
apropriar-se da sua existência mais própria. Na maioria das ve- sem sacrifício da especificidade se seu objeto". Acrescentamos a
zes, acontece uma surdez, um fechamento para a possibilidade esse esclarecimento as importantes contribuições de Heidegger,
de se apropriar do fato de estar-jogado. O ser-aí, então, retoma a a partir da década de 30, naquilo que chamamos de "viragem".
cadência do mundo, na decadência, escapando da possibilidade Ofilósoforadicaliza de forma tal a noção de ser-aí, que acaba
de assumir a sua propriedade, o seu caráter de poder-ser. Caracte- por abandonar a ideia de que a historicidade do aí estaria enrai-
rizamos esse escapar como a fuga da estranheza, estranheza essa zada completamente no ser-aí humano e passa a buscaf pensar o
que^iwfundo, determina a singularidade do ser-no-mundo. Essa pféprio acontecimento do »i. Esse segundo momento heidegge-
singularidade envolve uma mudança de temporalidade. riano traz significativas contribuições à clínica psicológica para
O ser-aí nunca preenche as fases de um trajeto, mas trans- que possamos compreender que os transtornos que a psiquiatria
cende, prolonga-se a si mesmo. Esse movimento de sua existên-
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|)sic()l()gia Iriulicional normalmente interpretam como se- diversas aberturas de seu acontecimento. De acordo com Heideg-
mieias de uma interioridade, possam ser interpretados como se ger, são as tonalidades afetivas fundamentais que tornam possível
lonstiliiiiulo a partir da atmosfera mesma de uma determinada a conquista da experiência de algo que o mundo, com seus mil
época. A.ssim, Heidegger retira-se por completo de uma filosofia sentidos e significados sedimentados, tende a encobrir. Nessa fal-
da subjetividade e passa a pensar a existência em termos deum ta de apoio, no esvaziamento por completo dos sentidos do mun-
compartilhamento que, porfim,se encontra no âmbito do ser- do, é que o ser-aí se vê confrontado com uma indiferença radical
com. Por esse motivo é que passamos agora a discutir as questões e que ele pode se deixar apropriar pelo mundo. È na indiferença
tratadas pelofilósofoem sua fase tardia. fenomenológica, em que todo e qualquer foco desaparece, é na
total experiência do nada de sentido, que se abre a possibilida-
de de uma escuta à articulação de sentido que nasce da aparição
1.2.3 As tonalidades afetivas fundamentais da negatividade.
Podemos encontrar naquilo que muitos denominam "se- Ocorre, no entanto, que, na cotidianidade mediana, tende-
gundo Heidegger" ou Heidegger "tardio" um deslocamento da se de início e na maioria das vezes a assumir as orientações se-
discussão do ser-aí para um total mergulho nas considerações dimentadas do impessoal. Assim sendo, predomina nesse modo
que o própriofilósofovai denominar de epocais, respaldadas no de ser impessoal a tentativa de escapar do nada, do estranho,
acontecimento mesmo do aí. Em algumas das obras deste mo- da indeterminação, pronunciados pelas tonalidades afetivas
mento heideggeriano, encontramos apresentações acerca das fundamentais. Ao obscurecer essas condições da existência, no
tonalidades afetivas fundamentais. São elas: angústia (já ampla- impessoal, tendemos a assumir uma identidade, a tomarmo-nos
mente tematizada em Ser e tempo), tédio profundo, êxtase, terror, com sentidos e determinações tais que surgem do modo como
horror, retenção, pudor e admiração. Em um primeiro momento, lidamos com os entes que nos vêm ao encontro. Esta situação
podemos até pensar que as tonalidades afetivas, por esvaziarem acirra-se em nosso horizonte histórico. O tédio, como tonalida-
sentidos e tempo, vão de encontro à existência, tornando-a invi- de afetiva fundamental em nosso horizonte histórico, no qual
ável. Ocorre, entretanto, o contrário. São as tonalidades, coma si- predomina as referências da técnica, surge do fato de o homem
tuações-limite que abrem mundo, horizontes, de modo a lançar a ter se tornado totalmente desinteressante para si mesmo. Trata-
existência em um espaço de possibilidade, já que o mundo só en- se aqui de uma tendência acirrada pela própria história da filo-
contra o seu descerramento próprio a partir de tais afinações que sofia enquanto história do ser, a tendência de se realizar a partir
atravessam a totalidade do ente, sem serem localizáveis em lugar do total esquecimento do ser. O ser, na tradição ocidental de
algum em particular. As tonalidades afetivas fundamentais carac- pensamento, é obscurecido, na medida em que buscamos todos
terizam-se, portanto, por conta da crise radical a que elas dão voz. os tipos de ocupações e distrações, tão estimuladas pelo mundo
Essa crise que, na linguagem de Ser e tempo, ao esvaziar por com- da técnica. Enfim, "matamos" o tempo e, assim, não desperta-
pleto os sentidos prescritos pelo mundo, confronta o ser-aí com o mos para a diferença ontológica, para a impossibilidade de re-
caráter de poder-ser que é o seu, passa a ser pensada como crise duzir o ser ao ente ou a uma construção ôntica. Já na tonalidade
dos próprios horizontes epocais. As tonalidades afetivas funda- afetiva fundamental do temor, na tentativa de obscurecer o cará-
mentais expressam agora a mobilidade histórica do próprio ser, as ter de vulnerabilidade, de ameaça e de perigo em que a existência

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«cniprc Nc ciiKtiiliii. tendemos a restringir aquilo de que temos
medo. li, nessa restrição, passamos a acreditar que, retendo-nos indeterminação da existência. Logo, a angústia constitui, para o
(rcnlf i^qiiilo i|iie ameaça a nossa existência, poderemos nos pro- filósofo dinamarquês, o possível da liberdade. A experiência adá-
tegei ilessa iminência. Assim, nessas situações, o que fazemos é mica, descrita no pecado original, consiste em um salto qualita-
escapar da nadidade, da negatividade e do desamparo em que tivo que unifica todos os homens. Adão, na inocência, vive a paz
sempre nos encontramos. Por esse motivo, todas as tentativas de e a tranquilidade. Todavia, seu espírito encontra-se adormecido,
superar a vulnerabilidade e a instabilidade falham. E, assim, essa como aquele que pode despertar; e, por isso, encontra-se sempre
situação de obscurecimento encontra-se sempre em risco, abrin- presente algo, que não é especificamente inquietude. Pergunta
do espaço para uma atmosfera em que as tonalidades afetivas Kierkegaard: "O que há então"? Responde: "Nada". E é justamen-
fundamentais possam mobilizar aquilo que é o mais próprio da te com esse nada que a existência se depara. É o nada que per-
existência humana, o seu caráter de indeterminação e o seu, con- turba a paz no paraíso. Mas que efeito tem o nada? Ele gera a
sequente, poder-ser. angústia. Logo a situação anterior ao pecado original é o nada.
Para o filósofo alemão, o despertar das tonalidades afetivas A angústia provém do nada que é constitutivo das ações huma-
consiste na tarefa da filosofia. Tarefa árdua, mesmo porque o que nas. E é esta situação que deve, segundo ofilósofo,ser investiga-
acontece na maioria das vezes é que, ao ocorrer a situação limi- da pela psicologia: a angústia frente à possibilidade do pecado.
te, tendemos a retomar o ritmo cotidiano, retornando a seguir às A situação de Adão trata de um passado que continua presente,
determinações do mundo fático sedimentado. Acreditamos que, já que abre a experiência da angústia à humanidade.
acompanhando aquilo que o filósofo considera como tarefa cja fi- Kierkegaard, sob o pseudónimo de Virgilius Haufiniensis,
losofia, nós psicólogos, em nossa clínica, frente à inseparabilidade conclui que a angústia consiste no nada que abre o possível, ca-
do singular e do plural, possamos também despertar, ou pelo gie- racterizando a situação de liberdade. O homem que é livre é livre
nos, não facilitar, o adormecimento das tonalidades afetivas fun- para o pecado. A angústia surge frente ao real estabelecido e ao
damentais^ Por esse motivo é que iremos trazer à discussão algu- possível. Tanto o pecado quanto a liberdade não se dão a partir
mas das tonalidades afetivas fundamentais, para assim podermos de nenhuma premissa. A liberdade é infinita e provém do nada e
tentar£sclarecer de que modo elas podem mobilizar o despertar o pecado não se dá num processo contínuo e quantitativo como
das_possibilidades que se encontram obscurecidas na cotidiani- necessidade. Ela ocorre antes em um salto qualitativo com a es-
dade mediana. Escolhemos desenvolver três das tonalidades afe- trutura do possível. Em Sartre (1943/1997, p. 89), encontramos
tivas: angústia, tédio e temor por serem essas as que aparecem nas uma expressão mais clara dessa situação, ele diz "É na angústia
análises dos discursos clínicos que aqui serão apresentados. que o homem toma consciência de sua liberdade, ou^angústia é
o modo de ser da liberdade como consciência de ser; é na angús-
tia que a liberdade em seu ser coloca-se a si mesmo em questão".
1.2.3.1. A angústia U A angústia, tal como a liberdade, surge num contexto de ausên-
cia de qualquer conteúdo ou fundamento na consciência, nada
Em O Conceito de Angústia (1842/2010), Kierkegaard re- que justifique uma ação ou motivo, havendo somente uma total
fere-se à angústia como condição que antecede toda e qualquer liberdade (indeterminação) de agir, proporcionando que, com o
escolha, na medida em que a angústia aponta para o caráter de nada da existência, surja o sentido. J
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.47
I'iiia Kic-rkcgaard e para Sartre, o homem tenta, por meio ao nada. E o ser-aí, quando na escuta da voz silenciosa, rom-
tie tlilerenles subterfúgios, escapar da angústia. A essa tentati- pe a estrutura de significados mundanos, remetendo o homem
va de luga. Kierkegaard vai denominarj?osições psicológicas de para o seu poder-ser mais próprio, sua finitude, colocando-o,
nAo libcrdade'e Sartre dejná-fé^modo pelo qual o homem tenta assim, frente a frente com a sua possibilidade de e_scolher^ em
negar o nada que ele é. a imensidão originária do possível. Sartre sua singularidade.
diz que a angústia, tal como tomada por Heidegger, embora im- A angústia, tonalidade afetiva fundamental, ao descerrar
plicada pela concepção encontrada em Kierkegaard, difere desta: mundo, rompe com as sedimentações do mundo fático, lançan-
"Kierkegaard, descrevendo a angústia diante da culpa, caracteri- do o horizonte de sentido, o mundo fático sedimentado, em uma
za-a como angústia frente à liberdade. Mas Heidegger, que como insignificância radical. Deste modo, tudo cai em uma total indife-
se sabe sofreu profundamente uma influência de Kierkegaard, rença e em um radical esvaziamento. A angústia, ao apontar para
considera a angústia, ao contrário, como captação do nada" a negatividade originária da existência, coloca em jogo a compre-
(SARTRE, 1997, p.72). Vejamos, então, como Heidegger discorre ensão da finitude que abre o caráter de nada da existência, do ente
acerca dessa tonalidade afetiva fundamental. ontologicamente incompleto e indeterminado, desvelando o po-
Heidegger, na mesma linha da discussão de Kierkegaard, re- der do mundo sobre nós. E é nesta situação limite, com o romper
fere-se em Ser e tempo à tonalidade afetiva da angústia da seguin- das prescrições do mundo, que pode ocorrer um despertar para o
te forma: "A angústia da fenomenologia existencial representa o espaço de realização dg ser-aí, ou seja, que se abre o seu caráter de
estado de ânimo fundamental do ser-aí em fuga de si mesmo, poder-ser. Vemos, portanto, que Heidegger, ao pensar a angú.stia
precisamente por ter que formar-se a si mesmo e ao mesmo tem- rprpoHptjpprtar muito se aproxima de Kierkegaard. Este se refere a
po saber que está jogado e é um projeto finito." (1993, p.lOO). Adão como espírito adormecido, que desperta pela e na condição
Logo. a angústia consiste em uma atmosfera do ser-no-mundo de sua indeterminação, logo, como angústia (KIERKEGAARD,
como tal. ao mesmo tempo em que remete o homem para o seu 2010). Ainda ao descrever as posições psicológicas de não-liberda-
poder-ser, abrindo-lhe o mundo como campo de possibilidades. de, ofilósofodinamarquês aponta para os modos em que o homem
Portanto, a fuga de si mesmo, por meio de identificações deter- tenta escapar de sua situação de liberdade. No entanto, parece que
minantes, se dá juntamente com a procura de uma via de escape Heidegger, em um segundo momento, vai tratar a angústia como
definitiva para a sua indeterminação originária; a responsabiU- atmosfera, portanto, fora do âmbito no qual se anuncie qualquer
dade pelo ter de ser e pela escolha implicada no seu poder-ser, indício de que a angústia esteja em uma subjetividade tal como
assim como a necessidade de assumir por si mesmo o estar lan- um sentimento.
çado no mundo e de decidir antecipativamente o ser-para-mor-
te, tudo isso, enfim, constitui o pano de fundo da angústia.
Para Heidegger, a angústia provém da própria situaçãojje 1.2.3.2. O tédio
indeterminação da existência. Situação que, a todo o momento, Kierkegaard (1843/ 2006), referindo-se ao tédio, diz que os
o^er-aí tenta obscurecer na sua cotidianidade. No entanto, em deuses se entediaram e criaram os homens. Adão se entediou
seu clamor silencioso, a angústia anuncia o estado de ânimo e, por isso, foi criada Eva. Com isso, ele aponta para a tentativa
fundamental do ser-aí em fuga de si mesmo, em fuga frente do homem de distrair-se, inventando tarefas para assim evitar

48 49
o tédio. Adiante, Kierkegaard questiona até que ponto o tédio é do entretenimento; 3- Na terceira situação, temos finalmente o
pernicioso para o homem. E, então, responde resumidamente: "tédio profundo" - situação em que, não podendo mais encobrir
"O tédio é a raiz de todos os males". Continua: "É muito curioso o tédio, seja considerando-o como externo, seja se entregando a
distrações, o ser-aí se vê radicalmente confrontado com a origem
que o tédio que reflete tanto sossego e placidez disponha de uma temporal da experiência do tédio e com a nadidade que ele des-
força tão intensa para impor movimento. O tédio é mágico e seu cortina. Assim, sem mais obscurecê-lo, somos obrigados a ouvi-
efeito não é atrativo e sim repulsivo". (2006, p.295). lo, a acompanhar seu acontecimento e a total impossibilidade de
Heidegger (1929/2006) procura pensar a experiência con- seguir existindo no ritmo do tempo cotidiano.
tida no tédio a partir do que está originariamente contido na O tédio profundo, tonalidade afetiva que nasce do fato de
própria palavra alemã para tédio. Lan^eweAle (tédio) sipnifíca nos confrontarmos radicalmente como o nosso caráter de desin-
literalmente tempo longo. Na descrição heideggeriana trata-se teressante para nós mesmos, não é algo externo. Ele não chega
do momento que se alonga e do qual comumente queremos nos para nós de fora, mas, vindo do fundo de nossa própria negativi-
ver livres por meio dos passa-tempos. Portanto, o aparecimen- dade, nos aprisiona em um mundo no qual não há tempo algum
to do tédio revela sempre um modo de nos colocarmos diante para nós. A rotina e a repetição trazem consigo a ausência de
do tempo, um modo no qual o presente, o passado e o futuro sentido e, ao sentirmos que nada tem sentido, o tédio alerta para
encontram uma modulação particular. Heidegger descreve três o insuportável do cotidiano, do familiar, do ser obrigado a viver.
formas de determinação do tédio: 1- Na primeira situação, nós Tudo é aqui igual, tudo é o mesmo, tudo é o nada, porque o ser-aí
nos entediamos porque algo nos obriga a interromper o ritmo do se acha banido da estrutura temporal na totalidade: temos aqui
tempo cotidiano. Ele tem em vista neste caso a situação específi- a absoluta supressão da possibilidade de encontrar um ritmo
ca de uma longa espera não programada. Dizemos, então, que a existencial próprio. O tédio enquanto tonalidade afetiva funda-
longa espera é o que nos deixa entediados. Aqui, otédio chega de mental denuncia, então, a totalidade inabarcável que nos assalta
fora para nós e dizemos, por isto, que somos entediados por algo. e nos afunda. E, no horizonte dessa lenta demora, não consigo
O tédio pode ser neste caso abafado, na medida em que encontra- encontrar nada que me permita ser de maneira plenamente do-
mos um passa-tempo, algo que faz com que o tempo passe mais tada de sentido. E é esse nada que se apossa de tudo: assim, desis-
rápido. Com isto, porém, não escutamos a origem propriamente te-se. Em Heidegger, o tédio profundo mobiliza duas situações:
dita dessa tonalidade afetiva; 2- Na segunda situação, somos nós um despertar para um sentido e, ao mesmo tempo, a tentativa de
que nos entediamos junto a algo. Trata-se aqui de uma situação não deixar que desperte. Segundo Heidegger (2006, p.233): "No
intermediária, na qual o tédio não chega completamente de fora tédio, propicia-se o inabarcado apelo do ser". Na tonalidade afe-
para nós, mas conta antes com o anúncio de nosso si mesmo tiva fundamental do tédio transparece o que há de mais próprio
tomar parte no que acontece. Esta segunda figura do tédio, que ao ser-aí, o ser-para-a-morte. Na disposição do tédio acede sem-
Heidegger pensa por meio do exemplo da festa, revela o tédio pre a transparência da situação do homem, que em última estân-
como o princípio operativo de nosso existir, princípio esse que cia é finita e transitória. Casanova (2010, p.34) refere-se ao tédio
desencadeia de antemão estruturas de ocupação com o tempo, como a atmosfera em que, "desvinculado de sua ligação originá-
que abre, por exemplo, algo assim como o mundo da diversão e ria com o ser, o ser-aí também se aparta simultaneamente de si

50 51
piopi lo loino o ente que já sempre se movimenta no interior de Em As concepções fundamentais da metafísica de Aristóte
uma tal ligav"ão". Em suas palavras: "é exatamente dessa perda de (1989), Heidegger retoma de Aristóteles a concepção do temor
si próprio que emerge (...) a tonalidade afetiva do tédio". como um páthos, concepção que remonta à Retórica. O temo
O tédio, também tonalidade afetiva fundamental, e, portan- assim compreendido, tem um papel determinante na própria
to, descerradora de mundo, desperta em nós uma total suspen- construção da vida cotidiana. Em primeiro lugar, o temor como
são do horizonte do existir, um esvaziamento radical do tempo páthos nos fala sobre a possibilidade de que se perca a compostu-
que ao suprimir-se, nenhuma possibilidade aparece como tal. ra, o prumo, possibilidade essa que pressupõe uma medida, um
Abate-se sobre a existência uma radical indiferença, um verda- métron para as ações cotidianas. Em segundo lugar, ele se refere
deiro "tanto faz", como descrito por Hermann Merwille em Bar- ao medo como crença: uma situação na qual a convenção se mos-
toblit,(1853/2008) com a sua repetição incessante de um "pre- tra como o elemento central para que o medo aconteça. Aristóteles
firo não fazer". E nessa ausência de determinações de sentidos, (citado por Heidegger, 1989) fala do medo que se constitui como
articulados no círculo hermenêutico em que nos encontramos, experiência comum, cujo papel é o de lançar os esteios da vida em
é que podem acabar por se abrir outras possibilidades. E, assim, conjunto. Logo, o medo assim construído acaba por se tornar um
abre-se um espaço para que a saída singular possa acontecer. temor em relação a algo que é por nós compartilhado. A partir
desse entendimento, Heidegger, então, apresenta o temor em sua
relação com o modo como os cristãos temem a Deus. Trata-se do
1.2.3.3. O temor temor diante da imensidão, diante daquilo que transcende toda e
Em Ser e tempo. Heidegger apresenta o temor como uma qualquer compreensão. Sartre em As moscas (1947/2005) apresen-
tonalidade afetiva que nasce da absorção na lógica cotidiangjjia ta o modo como a retórica do Rei de Arcos, Egisto, a partir de um
totalidade conformativa em que um utensílio vem à tona mais pacto com Júpiter, vai infundindo a atmosfera do medo, do temor
claramente. O temor nos torna mais sensíveis à totalidade refe- em todos os membros daquela comunidade. Nesta peça teatral,
rencial que atravessa os utensílios, de modo que as possibilidades Sartre deixa evidente que todos os indícios daquilo que se deve
de fuga de algo se apresentam também mais claramente. O tensor temer são constantemente lembrados por meio da retórica do Rei
e a angústia são apresentados em Ser e tempo como tonalidades (Egisto) e das artimanhas dos deuses (Júpiter). O páthos produzi-
muito próximas. Diz Heidegger que, para se chegar à situação do é decisivo. E o medo como crença, no mito de Orestes, da re-
originária, temos que partir de duas disposições fundamentais volta dos mortos e da culpa dos vivos, constitui-se como elemento
que derivam da negatividade: angústia e o tédio. Afirma este filó- central. O povo de Arcos fica convencido de que deve prestar luto,
sofo que, por meio de três perguntas, poderemos chegar à estru- com bastante sofrimento e autopunição. Egisto instituiu um dia,
tura da situação de abertura em que nos encontramos em meio t o dia dos mortos, para que o ritual de autoflagelo se cumpra. E é
ao temor; são elas: de que temos medo? O que é ter medo? Pelo esse ritual que deve, por ordem do rei, se repetir todos os anos. As-
que temos medo? Heidegger afirma o seguinte (1988, p. 197): sim, o temor sedimenta o comportamento de autoflagelo a que o
"Todas as modificações do temor, enquanto possibilidades de povo se submete pela crença, instituída pela experiência comum,
disposição, apontam para o fato de que o ser-aí, como ser-no- naquilo pelo que se deve temer. Sem dúvida, a constituição da
mundo, é temeroso". atmosfera dp temor é decisiva para que a crença se estabeleça.

52 53
I Icidcggcr, é importante ressaltar o quanto essas at-
mosferas globalizantes são decisivas para que o temor se esta- mostrava como uma condição humana por excelência: a liberda-
beleça. C) temor traz desconforto, transtorno, enfim, desestru- de. Kierkegaard retrata a situação do temor corajoso em Temor e
turação da convivência cotidiana. Heidegger (1988) refere-se ao tremor (1843/1947), na qual Abraão, em sua coragem, no páthos
medo como uma disposição que é colocada diante de uma possi- do temor, supera o medo e entrega seu filho, Isaac, em sacrifício.
bilidade que nos diz respeito, que vem ao nosso encontro, que se Abraão vive de maneira corajosa e confiante apesar do medo. No
anuncia e que, na verdade, se aproxima por meio desse anúncio. temor experienciado de modo transtornado, acontece o contrá-
No temor, portanto, há sempre algo que se anuncia. Esse anúncio rio: aquele que se encontra na situação de temor, na ausência de
diz respeito a algo ameaçador, à destruição que traz em si uma coragem, não enfrenta aquilo que teme. Ele, atemorizado, tende
possibilidade de aniquilamento daquilo que se é. a reduzir todos os medos a um só. Assim, tenta sair do medo
A tonalidade afetiva da angústia, por outro lado, anuncia o pelo controle e não pela coragem.
caráter de indeterminação da existência. Assim, pela escuta à voz Concluímos, em sintonia com o que foi dito acima, que
silenciosa da angústia, duas possibilidades podem se abrir: a pos- uma questão proposta por Heidegger em Os conceitos fundamen-
sibilidade de dar ouvidos ao clamor e, com isto, suspendendo-se tais da metafísica (1929/2006) merece ser pensada no interior de
as prescrições do impessoal, poder se abrir um espaço para que uma perspectiva daseinsanalítica. Trata-se do que fazer frente
o singular se pronuncie como possível; e a de ensurdecer frente mobilização incitada pelo tédio, pela angústia e pelo temor em
ao clamor da angústia, retomando, assim, o ritmo do impessoal, sua relação com a antecipação da finitude e a possibilidade de
no qual as possibilidades se restringem em um movimento de destruição daquilo que se é. Heidegger aposta na supressão da re-
ilusão frente à retomada da determinação e do controle. Trata-se sistência seja por meio da tentativa de estabelecer uma determi-
do que medianamente denominamos de comportamento neuró- nação ou identidade, seja pela distração ou pelo exacerbamento
tico. Na tonalidade afetiva do temor, o que ocorre é o anúncio do de ocupações, seja restringindo aquilo que ameaça a existência.
caráter da fragilidade e vulnerabilidade frente àquilo que ameaça E, assim, deixando que as tonalidades afetivas fundamentais da
a existência. Ao temer, então, tememos pela nossa integridade angústia, do tédio e do temor venham à tona em sua relação in-
física. Frente à situação que se abre pela tonalidade afetiva do tencional com o existir. Diz ofilósofocom relação ao tédio que
temor, duas possibilidades se abrem: retomar a obediência às aqui ousamos abarcar nas outras tonalidades: "Mas como deve-
crenças e rituais que de alguma forma prometem prevenção e mos abrir espaço para esse tédio inicialmente inessencial e ina-
controle ou assumir uma atitude corajosa. O temor é a condição preensível? Somente através do fato de não estarmos contra ele,
de possibilidade da coragem. Em As moscas (1947/2005), essas mas de nos aproximarmos dele e de deixarmos que ele nos diga
duas posições aparecem claramente. Enquanto Electra, frente o que quer afinal, o que se passa com ele afinal." (HEIDEGGER.
à atmosfera do temor, retorna para o respeito e obediência às 2006, p.99). Trata-se justamente da postura qn^ o ap^j^yta em um
crenças, seu irmão Orestes, na mesma situação, em um ato de diálogo clínico precisa tomar frente à inquietação daquele que.
coragem com que enfrenta os deuses, diz: "deus pode me matar na angústia, no temor e no tédio, o procura.
a qualquer momento, mas o fato é que ele não me mata". E era
isso que Júpiter, temia aquilo que ele sabia desde sempre que se

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