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Tese

de Doutorado apresentada na linha de Linguagens Visuais no Programa de


Pós-Graduação em Artes Visuais na EBA-UFRJ em outubro de 2018.

TÍTULO:
Pequeno glossário sobre o mau pintor. Busca, impossibilidade e fracasso — a
pintura como linguagem imperfeita.
Title: Small glossary about the bad painter. Search, impossibility and failure — a
painting as imperfect language.

AUTOR:
Hugo Houayek
ORIENTADOR:
Prof. Dr. Felipe Scovino

RESUMO:
O artigo abarca conceitos, tais como fracasso e impossibilidade, que se relacionam com
a posição do artista contemporâneo no mundo e de como este pode atuar criticamente.
Aproximando o campo pictórico do campo linguístico o objetivo do texto é apresentar a
atividade artística como o encontro com algo indizível.

PALAVRAS-CHAVE:
Arte contemporânea, linguagem, pintura, mau

ABSTRACT:
The article encompasses concepts such as failure and impossibility that relate to the
contemporary artist's position in the world and how he can critically act.
Approaching the pictorial field of linguistic field the purpose of the paper is to
present the artistic activity as the encounter with something unspeakable.

KEYWORDS:
Contemporary art, language, painting, bad


Rio de Janeiro
2018
Pequeno glossário sobre o mau pintor.
Busca, impossibilidade e fracasso — a pintura como linguagem imperfeita.


Do rigor na ciência.

... Naquele Império, a Arte da Cartografia logrou tal Perfeição que o mapa de uma
única Província ocupava toda uma Cidade, e o mapa do Império, toda uma Província.
Com o tempo, esses Mapas Desmedidos não satisfizeram e os Colégios de Cartógrafos
levantaram um Mapa do Império, que tinha o tamanho do Império e coincidia
pontualmente com ele. Menos Adictas ao Estudo da Cartografia, as Gerações
Seguintes entenderam que esse dilatado Mapa era Inútil e não sem Impiedade o
entregaram às Inclemências do Sol e dos Invernos. Nos desertos do Oeste perduram
despedaçadas Ruínas do Mapa, habitadas por Animais e por Mendigos; em todo o
País não há outra relíquia das Disciplinas Geográficas.

Suárez Miranda: Viajes de Varones Prudentes, livro quatro, cap. XLV, Lérida, 1658.
Jorge Luis Borges, O fazedor, 1960.


Desconfiar das palavras o suficiente para acreditar no mundo ou desconfiar do
mundo o suficiente para acreditar nas palavras. Talvez devemos isso à literatura,
que apresenta um movimento duplo de afirmação e de recusa, de crença e de
dúvida. Esta relação ambígua entre as palavras e o mundo é extensível a outras
formas de modelar a experiência enquanto representação. A imagem fotográfica,
por exemplo, supõe uma relação com o mundo que se define por uma paradoxal e
simultânea afirmação da identidade e de produção da distância — ao mesmo
tempo no mundo e fora dele, com o mundo e contra ele, uma imagem e sua
legenda. Todas as formas de modelação do mundo enquanto coisa humana supõem
esta ambiguidade: exigem a remissão da representação para a coisa, mas implicam
com a mesma força a consciência da sua intransponível dissociação. É a
incapacidade de transferência adequada das significações com seu mutismo
obstinado — o que Jaques Rancière chama de a palavra muda das coisas.i É um
segredo metafísico que nunca iremos alcançar, uma busca pelo silêncio para além
do som.

Imaginar um mapa que coincida com a realidade que representa encena aqui os
limites da representação e consequentemente da linguagem. Os limites ditados
pela incapacidade da palavra ou da imagem em apreender o mundo e transpô-lo
para os seus discursos, são os limites da própria linguagem. O sucesso absoluto da
representação significaria a sua total transparência e consequentemente o seu fim.
O fim da linguagem se daria por uma completa identificação entre a representação
e o real, o que acarretaria necessariamente à negação da sua natureza
representacional. A redução do mundo à sua própria imagem, ou às suas próprias
palavras, implicaria a supressão de toda linguagem enquanto experiência
significante. A realização da representação não traduz aqui o questionar o real,
mas o questionar da convencionalidade de sua representação. Fazer uma
transmutação direta das coisas em palavras, significa anular a distância sem a qual
a palavra não vive.

Para além da fé cênica na representação que subjaz ao texto de Borges, a narrativa
exigiria a constância do próprio mundo, isto é, o discurso só poderia cobrir em
absoluto a realidade se esta fosse perene e ininterrupta, entretanto a realidade
sempre escapa porque está em permanente transformação e instável.
Distintamente, aprendemos a desconfiar no mesmo plano das palavras e da
realidade, das coisas e dos seus correlatos representacionais. Não apenas as
palavras não são susceptíveis de coincidir com as coisas, como estas não coincidem
consigo mesmas.

Em Freud, em Schopenhauer, em Nietzsche, em Hegel, em Platão, nos pré-
socráticos, e enfim, em todo filósofo, não se acha dita, não se acha escrita, não se
acha designada a última palavra ou um significante que venha pôr um termo
definitivo à representação total. Todos os filósofos não fizeram outra coisa senão
tentar apreender um significado que só se dá, paradoxalmente, no movimento
centrifugo de sua própria nomeação, ou inscrição. Essa incompletude do simbólico,
mais exatamente, essa instabilidade do real no momento em que a falta estava para
ser preenchida, resulta ambígua na medida em que é por meio dela que o sujeito
cria e recria, constrói e destrói, une e desune. De modo que tal dinâmica já
manifesta um vínculo com a qual e pela qual a significação não cessa de resistir, de
fugir, de se subtrair e, ao mesmo tempo, de desdobrar e de superar toda e qualquer
tentativa de representação. A linguagem se desenvolve numa rede de significantes
que não cessam de terminar, porque estão sempre começando ou recomeçando. A
incessante realização da realidade é a própria impossibilidade tradução do real.

Podemos tomar emprestada a ideia de tradução do campo linguístico: a tradução
entre dois idiomas é um duplo procedimento. Nunca se alcança uma transparência
perfeita naquilo que é resultado de uma tradução, restando sempre algo opaco e,
por conseguinte, intraduzível entre linguagens que se confrontam. A opacidade
afirma a impossibilidade de redução de uma linguagem a outra diferente. Temos a
intraduzibilidade do outro, pois a tradução é sempre truncada. Há sempre algo
intraduzível em permutas linguísticas, o que implica uma inevitável perda de
significados naquilo que é transmitido, é o momento em que os ruídos aparecem.
Qualquer linguagem só pode contar com a vagueza de seus termos e na imprecisão
de seus termos. Além disso sabemos que uma palavra isolada não comunica nada,
ela precisa sempre se relacionar com outras palavras. Talvez para almejar alcançar
o além da linguagem usando a própria linguagem precisemos apostar no excedente
de alguma poética.

O linguista brasileiro Joaquim Mattosso Camara Jr. lembra que o antropólogo
norte-americano Franz Boas, pai da linguística descritiva em seu país, chama a
atenção ao dizer que:

se toda a massa de conceitos, com todas as suas variantes, fosse expressa
nas línguas por complexos de sons inteiramente heterogêneos e não
relacionados entre si, surgiria a consequência de que ideias intimamente
relacionadas não mostrariam a sua relação pela relação correspondente
dos seus símbolos fonéticos.ii

Ou seja, é a contingência da imperfeição lógica das línguas humanas que são
conduzidas à circunstância de que em nenhum processo é levado coerentemente
às suas últimas consequências. Isto é a impossibilidade da linguagem abranger
uma totalidade, um todo. A razão estaria no princípio de uma economia
expressional intrínseco às línguas humanas. Aqui se apresenta a impossibilidade
de abranger uma totalidade, a impossibilidade de fazer um mapa que seja do
mesmo tamanho do território representado. Uma linguagem perfeita seria como
um mapa na escala 1:1 — o representado e a representação coincidiram
perfeitamente. Contudo não podemos esquecer que um mapa sempre será uma
representação incompleta de um território maior que ele. A linguagem é uma
estrutura que podemos ter uma compreensão inexata ou deficiente.

O fracasso seria a marca e condição da imperfeição inerente à linguagem A
linguagem perfeita seria uma a linguagem completa e que incluiria tudo, tal
linguagem não existe, e sempre que buscamos nos aproximar de tal linguagem
sempre fracassamos — nenhuma linguagem é totalmente transparente, toda
linguagem é incompleta. Para uma linguagem abarcar tudo, ser capaz de dizer tudo
e não ter nenhum ponto cego e indizível, esta linguagem, qualquer que seja,
precisaria ter uma estrutura de leis inquebráveis, eternamente válidas e que com
tal ordenamento tão preciso, não poderia permitir nenhum tipo de falta de
controle ou algo por acaso. Um controle total em qualquer linguagem é uma
impossibilidade. O que seria essa linguagem com seu controle total? Uma procura
por uma pureza, com a eliminação e expurgação de elementos que atrapalhem e
não permitam uma linguagem transparente, sem imperfeições e sem falhas. Essa
impossibilidade da transparência na linguagem foi entendida por Marcel Duchamp
como uma falha no ato criador. Seria uma falha que representaria a inabilidade do
artista em expressar inteiramente sua intenção. A esta diferença entre o que queria
realizar e o que na verdade realizou Duchamp chama de “coeficiente artístico”
contido na obra de arte.iii

Leis inquebráveis e eternamente válidas precisam de condições paradisíacas para
existirem. No jardim do Éden todos os dias seriam indistintos, uma semana
equivalente à outra, um mês idêntico ao outro, um ano cópia do outro. Essa é a
descrição da vida paradisíaca de Adão e Eva — uma rotina diária eterna e
monótona, que teria um passar do tempo homogêneo. Mas a humanidade perdeu
essa condição paradisíaca, fomos expulsos do Éden. Podemos entender a perfeição
como um conceito metafísico. A metafísica acredita numa realidade suprema que,
por definição, transcende toda linguagem — nenhuma figura de linguagem pode
dar conta daquilo que repousa por trás do mundo visível e físico — é o esforço do
humano mortal em apreender uma realidade divina uma

A imperfeição surge porque os movimentos da linguagem são incessantes, mas não
infinitos. O discurso humano é finito, no entanto há sempre uma infinidade de
sentidos a desenvolver e interpretar. Essa infinitude de sentidos é aquilo a que se
deve manter atenta toda escuta da palavra. O discurso se apresenta sem fim nem
origem determináveis, de uma humanidade que repete sem compreender o que
diz, é em última análise, apenas de uma sequência de repetições de citações. A
linguagem está presa na produção cotidiana do mundo e participa dela, tem a
mesma natureza que as tabelas, os números, os balanços, os mapas — palavra de
ordem, imposição, sintetização, decisão, relatório, código. Toda linguagem pode ser
entendida como um mapa imperfeito.

Objetos de arte são estruturas de linguagem e não podem ser encontrados fora
desta. Nascem a partir do discurso e modificam-se no curso de sua própria história
em contato com outros discursos, quando reinterpretados em perspectivas
diversas. A pintura não é uma linguagem pura, sua condição é estar sempre
corrompida por outras linguagens.

Walter Benjamim nomeia uma língua totalmente transparente de pura língua: “A
história universal pressupõe a língua, na qual todo texto de uma língua viva ou
morta deva ser integralmente traduzido. Ou melhor, a própria história universal é
essa língua”.iv Perceber que se fosse possível escrever uma história universal
teríamos que pressupor uma língua universal — a pura língua — que poria fim à
confusão das línguas — confusão que teve origem com a construção da torre de
Babel.v A história universal formaria um todo com sua língua universal. Uma
linguagem universal que não seria escrita, mas compreendida integralmente por
todos os homens, tal como a lenda popular cristã das crianças que, por terem
nascido no domingo, tem o dom de entender os pássaros. vi

O acesso a esfera da linguagem é sempre mediado e condicionado pela história. O
homem, ao falar, não inventa os nomes, nem estes emanam dele como uma voz
animal ou gutural, pelo contrário os nomes desceriam ou cairiam através de uma
transmissão histórica. É importante perceber que a origem do nome escapa ao
homem. Giorgio Agamben aponta como é interessante entender este aspecto do
acesso humano à linguagem, que o acesso aos planos dos nomes só se dá pela
transmissão, ou seja, pela história. Uma história em que se pensava ser um “diz-se
assim” é na verdade uma história que “assim se dizia”. Agamben explica como os
nomes são transmitidos:

A razão não pode encontrar fundo nos nomes, não pode dar conta deles porque
eles lhe chegam historicamente por descendência. Essa infinita ‘descida’ dos
nomes é a história. Portanto, a linguagem antecipa sempre, quanto a seu lugar
original, o homem falante, dando um salto infinito, para além dele, em direção ao
passado e, ao mesmo tempo, em direção ao futuro de uma descendência infinita, de
modo que o pensamento não pode jamais terminar nele. E essa é a irremediável
‘sombra’ da gramática, a obscuridade que é originalmente inerente à língua e
funda — na necessária coincidência de história e gramática — a condição histórica
do homem. A história é a cifra da sombra que esconde o acesso do homem ao plano
dos nomes. Enquanto o homem não puder encontrar fundo na linguagem existirá
transmissão dos nomes e enquanto houver transmissão dos nomes haverá história
e destino.vii

Devemos perceber a impossibilidade de acesso direto aos planos dos nomes, um
plano que podemos entender como plano divino — afinal aquele que nomeia é um
demiurgo ou seja, somente quem cria é que nomeia.viii Podemos entender como um
plano paradisíaco, pois Adão nomeou todas as coisas no mundo, um plano onde
tudo se repete infinitamente e nada se altera, uma perpétua monotonia. Entretanto
a porta de acesso ao plano divino ou paradisíaco estaria selada aos homens.
Entender que a própria impossibilidade de acesso direto a esse plano dos nomes
consiste, ou mais precisamente, é a história. A história seria aquilo que esconde a
porta de acesso ao plano dos nomes.

Podemos entender que o pecado original que expulsa o homem do Paraíso, é a
queda que se dá dentro da linguagem, a queda da pura língua para uma linguagem
que conhece o indizível. A pura língua seria perfeitamente transparente e não
poderia existir o problema do indizível. O estatuto desta língua adâmica é o de uma
palavra que não comunica nada além dela mesma e, por conseguinte, a questão da
metafísica e da linguística coincidem. A pura língua visa o que permanece indizível
em toda língua, portanto ela é inacessível — não podemos retornar ao paraíso.
Uma língua universal e uma história universal seriam tarefas infinitas, e como tal
jamais realizáveis.





Buscar o impossível.


O artista é o que dá o tiro, mas a trajetória da bala lhe escapa.
Frederico de Morais, Contra a Arte Afluente: o corpo é o motor da “obra”, 1970.

Podemos entender que o desejo de Frenhofer por Catherine Lescault é uma
procura pelo milagre da pintura em metamorfosear o quadro em corpo, é uma
busca pela perfeição e consequentemente uma busca pelo impossível. Uma procura
por uma linguagem totalmente transparente, uma linguagem invisível. Com a
mesma perseverança que faz Ulisses viajar durante 10 anos para retornar à Ítaca, o
mestre pintor pinta por 10 anos mostrando sua obsessão por alcançar a perfeição
e sua recusa a aceitar a imperfeição inerente à toda obra de arte. Assim como
Riobaldo que rejeita sua paixão por Diadorim e mesmo assim quer permanecer
perto do amigo. Do mesmo modo como Moisés sabe que não chegará à terra
prometida mas continua sua peregrinação no deserto. Igualmente temos
personagens capazes de perceber a imperfeição da linguagem, de sua própria
linguagem e mesmo assim continuam sua busca. Como nomear tal pessoa?
Proponho que possamos chamá-lo de o mau pintor. Mais especificamente o mau
pintor é aquele que identifica a imperfeição da pintura e mesmo assim continua
sua busca.

Sabendo da impossibilidade de alcançar a terra prometida, sabendo que não
iremos encontrar o Santo Graal, nem a fonte da juventude. Tendo consciência de
que não encontraremos o Eldorado, não descobriremos a palavra perdida e nem
não poderemos enxergar a face de Deus, levantamos a questão: como prosseguir?
Com quem poderemos conversar sobre lutas contra moinhos, caça à baleia branca
e a procurar pelo silêncio para além do som? Com quem dialogar sobre esses
segredos metafísicos que nunca iremos alcançar?

Lembremos que para Cézanne o artista deveria ter alguma coisa no estômago, algo
que o incomodasse por dentro. Existem lendas que justificam o sucesso militar do
general-imperador francês Napoleão Bonaparte por ele possuir um demônio
próprio, um gnomo vermelho que o instruía em suas conquistas. Na região ao sul
da Espanha, na província da Andaluzia existe a lenda de que certos toureiros,
cantadores e dançarinos de flamenco possuem o duendeix, uma figura popular que
explicaria certos inexplicáveis poderes de atração e de habilidade em raras
ocasiões demonstrados por esses artistas, capazes de enviar ondas de empatia e
emoção para os espectadores.

O poeta espanhol Federico García Lorcax em sua conferência Juego y teoria del
duende (1933) propõem uma interpretação desta figura, em que o duende é visto
como uma alternativa tanto aos anjos quanto às musas. Os anjos voam por cima
das cabeças humanas derramando bênçãos de graça e charme, e assim oferecem
virtuosismos de maneira que aquele que é agraciado não precisa fazer nenhum
esforço. As musas ditam e assopram a inspiração e as normas artísticas, e aqueles
que as escuta não sabem de onde elas veem. Elas fazem o artista se sentir imortal e
esquecer de sua própria condição humana, condição que as musas não podem
interferir. A musa vem de fora, o anjo vem de cima, em contraste o duende habita o
sangue. Não é uma questão de habilidade e sim de ter algo que sobe por dentro do
corpo e queima o sangue. O duende é um poder e não um fazer, é uma luta e não
um pensamento. É descendente do daemon de Sócrates, figura que era feita de
mármore e sal, e que o arranhou até ao dia em que bebeu cicuta. Também
descende do melancólico demoniozinho de Descartes, pequeno como uma
amêndoa verde, que quando estava farto de círculos e de linhas, saía pelos canais
para ouvir cantar os marinheiros bêbados. Todo artista que busca a perfeição
estaria lutando contra o duende, que o impele a encarar a imperfeição. O duende
chega quando enxerga uma possibilidade de morte. O toureiro precisa de sua ajuda
no momento final para matar o touro. Assim o artista não recebe nem é anunciado
com algo, ele precisa lutar e chegar ao seu limite. O duende fere, e é uma ferida que
nunca cura, que nunca cicatriza, é um poço onde nas bordas os limites das formas
se confundem. Além disso o duende não procura afetar apenas o artista, mas
também o espectador, criando condições de uma comunicação direta em que
facilitaria o entendimento das metáforas sem necessidade de aparatos críticos e
intelectuais. Aconteceria uma distorção do tempo, frequente em sonhos e
pesadelos, em que a racionalidade desaparece.

Em sua poesia Lorca se afasta da tradicional lógica metafórica e se aproxima de
uma figura que tenta escapar à analises racionais, numa tentativa de produzir um
mundo de imagens misteriosas sem precisar explicar suas causas e efeitos. É a esse
aspecto que Lorca denomina de duende e que possui pelo menos 4 principais
facetas: a irracionalidade; é um ser telúrico (da terra); tem uma intensa
aproximação com a morte e apresenta um traço demoníaco. É um ser paradoxal, é
um espírito demoníaco terrestre que ajuda o artista a reconhecer os limites da sua
própria inteligência, racionalidade e mortalidade. Um ser que levaria o artista ao
encontro da morte e desta maneira comunicaria algo. É um momento de rubor, o
sangue aparece para mostrar que algo está vivo; é a erupção e o estouro,
entretanto necessita de momentos de silêncio e de tremor. Estar com o duende se
assemelharia ao que Goethe dizia sobre o compositor italiano Niccolò Paganini:
“possuía um misterioso poder que todos sentem, mas nenhum filósofo consegue
explicar”.xi

Para Lorca o duende deixaria o artista e o espectador cientes de sua própria
vulnerabilidade. É uma tomada de consciência do seu desamparo, pois o duende
expulsa a musa e o anjo, de tal maneira que cria uma dor que não teria explicação.
Para o poeta a postura humana vulnerável por excelência está na figura de São
Sebastião O historiador e crítico de arte Leo Steinberg nos lembra que na
Antiguidade as estocadas de flechas passaram a simbolizar a pestilência e que a
Itália renascentista olhava para Sebastião como seu primeiro santo da peste, seu
intercessor, aquele que previne e que protege.xii

Mas fica a dúvida, onde encontrar o duende? Lorca sugere que podemos encontrá-
lo dentro de algum arco vazio onde o vento sopra sobre as cabeças dos mortos. Um
vento com cheiro do véu que cobre a cabeça da Medusa, entretanto “para buscar al
duende no hay mapa”.xiii Enfim toda pintura, em última instância, é uma tentativa
de resolver um problema, que precisa ser enfrentado e solucionado. Alguns
artistas tentam utilizar a pintura para dizer algo que não conseguem em outras
linguagens, acreditando que com a troca de linguagem fosse permitido dizer algo
que é indizível. Agora sabemos que a decisão de lidar com o indizível embarca com
a agonia da irresolução e daquilo que não pode ser solucionado.


Francisco Goya, Capricho nº 49: Duendecitos, 1799.
Gravura, 30,6 x 20,1 cm.
Fonte da imagem: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Goya_-
_Duendecitos_(Hobgoblins).jpg


Mel Bochner, Language is not transparent, 1970 (versão de 2014).
Giz sobre tinta de parede, 182 x 121 cm.
Fonte da imagem: http://www.melbochner.net/exhibitions/language-1966--2006-2011-art-
institute-of-chicago/
è 26. O mau pintor não tira férias.

Escapar às normas do estatuto geral do trabalho. Fica nítido que querem submeter
a alma ao estatuto geral do trabalho contemporâneo. O mau pintor não tira férias.
O escritor não tem férias. O ator não tem férias. O professor não tira férias.

Logo que lhe é outorgado um atributo social — e as férias são um atributo bastante
agradável — o artista regressa rapidamente ao firmamento em que coabita com os
profissionais de vocação. Dar férias ao artista é uma contradição sublime. É dar um
estatuto prestigioso, dentro de uma sociedade burguesa, e é concedido
liberalmente aos seus intelectuais, desde que sejam inofensivos. Dar férias é
entender a produção artística como uma espécie de secreção involuntária, visto
que escapa aos determinismos humanos. Ou seja, mais pomposamente, o artista
estaria possuído por um deus interior tirano, que falaria o tempo todo, a musa está
desperta e produz ininterruptamente.

A imagem do artista de férias pode ser entendida como uma mistificação que a
sociedade faz para melhor poder controlar seus indivíduos. Se alguém tem férias é
sinal de que esse mesmo alguém só pode ser um bom trabalhador, ou um bom
pintor?


è 31. O mau pintor se sente prisioneiro em seu próprio corpo.



10. O corpo também é uma prisão para a alma. Ela expia nele uma pena
cuja natureza não é fácil de discernir, mas que foi bem grave. É por isso que
o corpo é tão pesado e tão incômodo para a alma. Precisa digerir, dormir,
excretar, suar, sujar-se, ferir-se, adoecer.
Jean-Luc Nancy, 58 indícios sobre o corpo, 2006.

O estado geral de meus sentimentos era, contudo, um torpor que
fazia com que uma prisão equivalesse, como moradia, à mais bela
paisagem da natureza.
Mary Shelley, Frankenstein ou o Prometeu moderno, 1831.

A razão pela qual tenho uma grande aflição é o de ter um corpo.
Lao Tzu, século VI a.C



Soma semaxiv, o corpo como prisão.

A ideia de aprisionamento é um tema comum em alguns dos textos do dramaturgo
e escritor irlandês Samuel Beckett. O corpo como redoma, uma masmorra de
marfim destinada ao confinamento da alma. No corpo em que, na cabeça
identificada como “manicômio do crânio”, se processa a criação literária. Dentro da
mente, o narrador luta com as palavras, com as imagens e com seus próprios
sentidos, a capacidade de ver e ouvir o mundo.


Beckett apresenta em seus textos um questionamento angustiado de um autor que
reflete sobre como continuar escrevendo, com que voz, quais palavras, quais
histórias. Nesse espaço de transição, em que não se pode parar, mas também não
se sabe como prosseguir. E quando escritor não encontra respostas, transforma
sua busca no próprio centro da obra. Apesar do impasse, nunca desiste, nunca se
cala. De maneira que seus textos se desenvolvem no embate entre a dificuldade de
narrar e o imperativo de seguir adiante.

A ideia da falha é recorrente no universo beckettiano e relaciona-se com a
impotência sentida pelo narrador. Se ele não se satisfaz, novamente transforma
suas dificuldade em matéria literária. A ideia por trás desse objetivo é nunca
desistir da tentativa de narrar, acolher as falhas da empreitada e seguir adiante.

Apesar de todas as desconfianças em relação à linguagem e questionamentos sobre
o ato de narrar, contar histórias continua sendo essencial para o homem
beckettiano.

Desde que o homem primitivo começou a pensar, as palavras de nossos ancestrais
e dos deuses, apoiadas pelas ações e pelo espírito de nossos antepassados, têm
constantemente impresso em nós que a vida, não a morte, é a calamidade para o
homem. A morte libera nossas almas e as deixa partir para seu próprio lar, onde
desconhecem qualquer calamidade; mas enquanto elas estão confinadas em um
corpo mortal e partilham de suas misérias, na verdade estão mortas. Certamente,
mesmo aprisionada ao corpo, a alma pode fazer muito: faz do corpo seu próprio
órgão dos sentidos, movendo-o invisivelmente e impelindo-o em suas ações além
de poder atingir a natureza mortal. Mas quando liberada do peso que a arrasta à
terra e suspensa acima dele, a alma retorna ao próprio lugar, e então em verdade,
partilha de um poder abençoado tão invisível aos olhos humanos quanto aos olhos
do próprio Deus. Nem mesmo quando ela está no corpo pode ser vista; ela entra
incógnita e parte desapercebida, possuindo ela própria uma natureza indestrutível,
mas causando mudança no corpo; pois o que quer que a alma toque, reviva,
desabrocha, e o que quer que ela desperte, fenece e morre, tal a superabundância
que ela tem de imortalidade.


è 33. O mau pintor é garimpeiro.


Acho que uma das preocupações essenciais da arte corresponde à sina do garimpeiro, que se define
como alguém que vive procurando algo que não perdeu.
Cildo Meireles, 1977.

Por isso é a nossa espécie empedernida, sofrendo dor e aflição.
Provando que nossos corpos de pétrea natureza são.
Walter Raleigh.

O mau pintor se assemelha ao garimpeiro, vive de procurar algo que não perdeu.
Ambos vivem de procurar pedras, entretanto existem vários tipos delas: há pedras
que se encontram no interior da terra, há pedras que se encontram saindo do solo
e há pedras que se encontram na superfície há muito tempo expostas ao sol.
Também existem pedras que vagam no espaço sideral, percorrendo caminhos
elípticos e produzindo música. Alguns acreditam que estas pedras influenciam o
comportamento dos seres que vivem neste mundo sublunar. Os meteoros sempre
foram considerados sinais do favorecimento divino e consagrados como uma
evidência do pacto entre os deuses e a comunidade em que caíram.

Vários relatos registram a existência de pedras que, quando golpeadas, emitem um
som e que todos os que ouviram tal som entram em estado de êxtase. Há também
relatos de pedras que produzem as harmonias mais doces. Os Gregos e os
Romanos reconhecendo a santidade das pedras, colocavam suas mãos em colunas
consagradas ao prestar juramento. Pedras eram usadas para emitir veredictos em
julgamentos pagãos. Pedras também são usadas na adivinhação — há quem diga
que Helena teria previsto a destruição de Tróia num oráculo com pedras. Ainda
existe a lenda com a pedra em que Jacó dormiu e sonhou com Iahweh — seria uma
pedra negra que teria sido usada para construir o trono de coroação na Abadia de
Westminster, na Inglaterra. Encontramos na Biblioteca do Congresso Americano,
em Washington, o tratado O desabrochar das reflexões sobre as pedras [Azhār al-
Afkār fī Jawāhir al-Ahjār], do autor árabe Al-Tīfāšī escrito por volta de 1184–1253,
que relata rumores sobre uma antiga raça de gigantes que se alimentava somente
de pedras.

Diz a mitologia grega que após o dilúvio que um dia exterminou os humanos,
sobraram apenas Deucalião e Pirra. Estes povoaram o mundo atirando pedras por
sobre os ombros, sem ver onde elas caíam. Isso por causa de uma obediência cega
a um oráculo da deusa Têmis que os esclareceu sobre a maneira de agir naquela
situação: “saiam do templo com a cabeça coberta e as vestes desatadas e atirai para
trás os ossos de vossa mãe” — respondeu o oráculo. Deucalião chegou à conclusão
de que se a Terra era a mãe comum de todos, as pedras seriam os seus ossos. Os
dois velaram o rosto, afrouxaram as vestes, apanharam as pedras e atiraram-nas
para trás. As pedras amoleceram e começaram a tomar forma humana. As pedras
atiradas pelas mãos do homem, tornaram-se homens; as pedras atiradas pelas
mãos da mulher, tornaram-se mulheres.

Alguns acreditam que as nações possuem uma ambição insana de perpetuar a
própria memória pela quantidade de pedra malhada que deixam. Entretanto a
maior parte das pedras de uma nação se destina apenas ao cemitério e as tumbas.

è 34. O mau pintor tenta ser invisível.


A fatalidade nos faz invisíveis.
Gabriel García Márquez, Crônica de uma morte anunciada,1987.


Existe um boato de que, em algumas instituições e corporações, é proibido
qualquer tipo de atividade artística por se acreditar que tais exercícios possuem
efeitos subversivos nas pessoas e que os levariam a desenvolverem poderes
mágicos ilegais. Para corroborar com tal boato existe a lenda que afirma ter havido
um tempo em que o homem possuía uma palavra mágica que, ao pronunciar-se,
adquiria o poder de realizar fenômenos maravilhosos, tais como fazer-se invisível,
obter um tapete mágico para transportar-se a lugares longínquos, dar saúde,
multiplicar suas forças, conhecer o oculto e o manifestado, e obter tudo que o
coração desejasse. Porém, com o tempo, o homem esqueceu a maneira de
pronunciar essa palavra, tornando se uma palavra perdida.

O mau pintor busca a invisibilidade e para isso treina sua capacidade de ficar
transparente. A invisibilidade seria a habilidade de possuir diferentes níveis de
transparências através da variação de densidade. Quanto mais denso, menor a
transparência e menor a capacidade de invisibilidade. E inversamente, quanto
menos denso, maior a transparência e maior a capacidade de invisibilidade,
chegando ao seu máximo, que consiste na menor densidade, ou seja, a
invisibilidade total. Em épocas remotas acreditava-se que uma pedra totalmente
negra simbolizava a invisibilidade da essência divina.

A invisibilidade é uma característica desenvolvida conforme a capacidade do mau
pintor de não ser reconhecido por seus amigos, pelos bons pintores, pelo mercado,
pelo meio artístico, pela academia, etc. Uma das possibilidades da invisibilidade é
realizar escapes aos circuitos e sistemas de vigilâncias e com essa possibilidade,
escapar das rotas de fugas já dadas de antemão.

è 36. O mau pintor planeja fugas dentro dos planos fugas.




The spice must flow!
Duna, 1984.


Fugir daqui, fugir hoje mesmo, senão vou ficar louco!
Anton Tchekhov, O professor de letras, 1894.


Porque as rosas buscam em frente
uma dura paisagem de osso
e as mãos do homem não têm mais sentido
que imitar as raízes sob a terra.
Frederico García Lorca, Da fuga, 1931-5.


... não obstrua o caminho de uma tropa que volta para casa, deixe
uma saída para um exército sitiado, não pressiono um inimigo
encurralado: essas são as regras elementares a respeito da
utilização dos exércitos.
Sun Tzu, A arte da guerra, séc. IV a.C.


Existe o mito grego de uma prisão perfeita em que o controle sobre os prisioneiros
seria feito através do som. O presídio seria uma enorme gruta em formato
espiralado, semelhante a uma orelha, e seria construído de tal maneira que
qualquer ruído seria ampliado de forma que todo movimento seria percebido pelo
único guarda, que ficaria de prontidão na única saída. Grades não seriam
necessárias e todo plano de fuga seria frustrado por qualquer ruído emitido pelos
prisioneiros.
Podemos interpretar o mito como uma prisão com seu plano de fuga já elaborado
de antemão. A única rota de fuga já foi pensada e projetada, como se um mapa
fosse entregue aos presidiários pelo único guarda de plantão. Este procedimento é
uma conhecida estratégia de guerra. Em seu livro A arte da guerraxv o general e
filósofo chinês Sun Tzu recomenda sempre deixar uma rota de fuga para o inimigo,
pois um exército encurralado, sem escapatória, irá lutar mais ferozmente para
sobreviver. Encurralados, os soldados lutam com a energia do desespero, por isso
podem virar a situação a seu favor. Ou seja, apresentar uma rota de fuga ao inimigo
o tornaria mais dócil — acreditando que existe uma escapatória, o encurralado
prefere fugir para viver a lutar e ter a possibilidade de morrer.xvi

Quando o general Han Xin, na batalha de Julu (204 a.C) posicionou
propositadamente seus 30 mil homens entre um rio caudaloso e o exército inimigo
de 200 mil homens, disse aos seus soldados: “Temos agora apenas duas hipóteses:
ou lutamos, e talvez consigamos vencer; ou tentamos fugir e, então, morreremos
com toda a certeza, ou afogados nas águas geladas deste rio, ou chacinados por
aquele inimigo que nos odeia”. Os soldados de Han Xin, encurralados e com a
morte perto, viram-se forçados a lutar pelas suas vidas. Rezam as crônicas que,
lutando, os soldados lembravam tigres saltando sobre suas presas. Ao final da
batalha, o exército inimigo estava destroçado, seu general morto e seu
acampamento ocupado pelos soldados vitoriosos de Han Xin.

Outro exemplo: no ano 317 a.C., o grego Agátoclesxvii preparou uma frota, cruzou o
Mediterrâneo e atacou Cartago, antiga cidade do norte da África e inimiga histórica
dos habitantes de Siracusa. Logo que desembarcou em Cartago, ordenou aos seus
soldados que queimassem os navios. Desta forma, colocou um fim a qualquer
intenção de resistência aos seus planos estratégicos, o que deixou apenas uma
alternativa para os seus soldados, que deveriam lutar e vencer ou morrer sem a
possibilidade de retornar para casa. Agátocles pôs seus soldados numa posição
sem saída, o que fez que todos os homens dessem o seu melhor para sair dessa
posição desvantajosa. Também era costume no exército romano quebrar as
panelas de barro antes das batalhas, de maneira que os soldados não poderiam
retornar aquele acampamento para se alimentarem novamente — o que
significada que seria uma batalha sem retorno.

Não precisamos voltar tanto no tempo para exemplificar a questão, um exemplo
mais atual: o filósofo, sociólogo, teórico crítico e cientista social esloveno Slavoj
Žižek em seu filme O guia perverso do cinema (2006), nos explica a estratégia da
empresa de café Starbucks. A empresa criou um sistema de compensação da culpa
para aumentar as vendas, uma estratégia para escapar da culpa do consumismo e
do sistema capitalista. Toda compra na cafeteria teria uma pequena porcentagem
de 1% revertida para uma causa humanitária no continente africano, ou seja,
podemos comprar café de 30 dólares e nos redimirmos da culpa do consumo ao
saber que um mínimo valor seria utilizado para a caridade. Zizek deixa claro que
quando achamos que estamos saindo da ideologia é neste momento que estamos
nos aprofundando mais nela. Uma rota de fuga já é apresentada de antemão para o
consumidor. Aqui, poderíamos incluir a reciclagem, o pensamento politicamente
correto e o ecologicamente correto como fazendo parte dessa estratégia de fuga
planejada pelo sistema de consumo. Grandes empresas que geram enormes
quantidades de poluição criam programas de reciclagem para melhorar sua
imagem perante o consumir, de maneira a aumentar as vendas de seus produtos,
que seriam a própria origem de mais lixo, formando um ciclo vicioso de consumo e
fuga.

A lógica da subordinação deixa sempre uma alternativa, uma rota de fuga, ou seja,
a apresentação e a própria existência desta alternativa, desta rota de fuga faz parte
da lógica subordinante. Entretanto, esta rota de fuga é apenas um engodo, ela é
elaborada de forma a manter o fugitivo dentro do sistema que este tenta burlar.
Essa rota de fuga já foi planejada e tem como principal função fazer acreditar que
exista uma maneira possível e fácil de escape. Lembremos que apresentar uma
rota de fuga sempre fez parte da estratégia da guerra.

Ao mau pintor cabe elaborar planos de fuga para os planos de fuga já apresentados
e deixados de propósito como soluções para o escape. O propósito do mau pintor é
escapar aos planos de fuga planejados pela ideologia. Procurar uma outra fuga.

Para o filósofo francês Gilles Deleuzexviii toda a literatura anglo-americana, se
caracterizaria pela fuga, pela evasão e pela partida. E partir, evadir e fugir é sempre
traçar uma linha de fuga. A linha de fuga é uma desterritorialização. Sendo que
fugir não é renunciar às ações, pelo contrário, não existe nada mais ativo do que
uma fuga. A fuga desencadeia os fluxos, os fluxos de ideias, fluxos de pessoas, de
maneira que para conter essa fuga e o fluxo inventou-se o aparelho burocrático,
capaz de bloquear e contabilizar qualquer movimentação. As instituições
burocráticas distribuem fluxos, as instituições foram criadas para produzirem
protocolos e formulários. O mau pintor trabalha com o desvio na finalidade dos
protocolos das instituições, ou seja, fazer desvios táticos dos protocolos das
instituições. Escapa aos projetos pensados pelas instituições e também contraria
as expectativas ao produzir objetos inconsumíveis. Produzir ideias que não
encarnam completamente no objeto, revelando a incapacidade de comunicar
completamente uma ideia em um projeto. O mau pintor trabalha com a
imaterialidade dos trajetos, dos fluxos.

Fugir não seria, necessariamente, empreender uma viagem, nem se faz necessário
se mexer. Pode-se fazer fugas permanecendo no mesmo lugar, em uma viagem
imóvel. Uma fuga é uma espécie de delírio e delirar é sair de alguma cavidade.

Há sempre uma traição numa linha de fuga. A fuga é sobretudo uma traição a si
mesmo, uma deriva, um devir, um salto demoníaco. O motivo da traição foi
definido pelo duplo desvio: o homem desvia seu rosto de Deus, que por sua vez,
desvia seu rosto do homem. Afinal o traidor é o personagem primordial do
romance, o seu herói, pois é o traidor da ordem estabelecida e do mundo das
significações dominantes, aquele que luta por outro mundo.

O que é que nos diz que, numa linha de fuga, não vamos reencontrar tudo aquilo de
que fugimos? Como fazer de modo a que a linha de fuga não se confunda com um
simples e direto movimento de autodestruição?

Jan Mlčoch, The classic escape, 1977.
Fonte da imagem: https://an-overwhelming-question.tumblr.com/post/65466662558



i RANCIÈRE, Jacques. O destino das imagens. Rio de Janeiro, Contraponto, 2012, p.22.
ii CÂMARA JR., Joaquim Mattoso. Estrutura da língua portuguesa. Rio de Janeiro, Editora Vozes,
1970, p.24.
iii DUCHAMP, Marcel. O ato criador, 1967. In: BATTCOCK, G. (Org.). A nova arte. São Paulo,

Perspectiva, 1986, p.71-74.


iv BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.

Obras escolhidas 1. São Paulo, Editora Brasiliense, 2014, p.241.


v A história da construção da torre de Babel é uma narrativa encontrada nos versículos 1 ao 9 do

capítulo 11 do livro de Genesis da Bíblia.


vi Aqui Walter Benjamin se refere a antiga lenda popular cristã sobre os poderes sobrenaturais das

crianças nascidas aos domingos, as Sonntagskinder, que possuiriam o poder de compreender a


língua dos pássaros.
viiAGAMBEN, Giorgio. A potência do pensamento. Belo Horizonte, Ed. Autêntica, 2015, p.36.
viii Para os filósofos franceses Deleuze e Guatarri é apenas no ponto mais elevado da

despersonalização exercida pelo amor que alguém pode ser nomeado. Assim o nome próprio é a
apreensão instantânea de uma multiplicidade. De tal forma que nome próprio seria o conjunto de
infinitos compreendidos como tal num campo de intenções. Não existiria enunciado individual,
nunca houve, todo enunciado seria produto de um agenciamento maquínico, isto é, uma designação
de agentes coletivos que atravessam de lado a lado qualquer indivíduo. DELEUZE, Gilles;
GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. São Paulo, Editora 34, 1995., p.51.
ix Duendes são personagens da mitologia europeia, particularmente na Península Ibérica,

semelhantes a fadas e goblins. A etimologia de seu nome vem da expressão “dueño de casa” (dono
da casa), pelo seu caráter intrometido de encantar e se aproveitar da morada dos outros.
x Federico García Lorca (1898-1936) foi poeta e dramaturgo espanhol com maior influência e

popularidade na literatura espanhola no séc. XX. Foi assassinado em 1936, no alvorecer da Guerra
Civil de Espanha, num barranco ermo do município de Víznar, um pequeno povoado nos arredores
de Granada. Seu corpo nunca foi encontrado.
xi LORCA, Frederico García. Obras completas. Madri, Aguilar, 1969, p. 110. Tradução do autor.
xii STEINBERG, Leo. Outros critérios. São Paulo, Ed. Cosac Naify, 2008.
xiii LORCA, Frederico García. Obras completas. Madri, Aguilar, 1969, p.112
xiv Doutrina filosófica mantida por Pitágoras que influenciará Platão. Do grego soma/sema significa

literalmente corpo/prisão.
xv Considerada uma das primeiras obras entres os “clássicos marciais” o livro A arte da guerra foi

escrito por Sun Tzu no século IV a.C e só entrou em contato com o mundo ocidental em 1772,
quando foi traduzida e publicada pelo padre jesuíta Joseph-Marie Amiot em Paris. Dizem que
Napoleão Bonaparte teria lido esta tradução e que teria sofrido profunda influência. Sun Tzu
também foi fonte das teorias estratégicas de Mao Tsé-tung e da doutrina tática dos exércitos
chineses. O Departamento do Exército dos Estados Unidos, através do seu órgão máximo de
decisão, ordenou a todas as unidades que tivessem nas bibliotecas das suas sedes vários
exemplares do livro para estudo do seu pessoal. A obra de Sun Tzu está incluída nas leituras
obrigatórias na formação de soldados americanos Marines. Durante a Guerra do Golfo na década de
90, ambos os generais Norman Schwarzkopf e Colin Powell puseram em prática alguns princípios
encontrados no livro de Sun Tzu. Hoje em dia encontramos o livro à venda nas livrarias na seção de
livros de administração e gestão de empresas.
xvi “Podemos ter diversas razões para combater com furor, mas a mais forte será aquela que nos

obriga a vencer ou morrer”. MAQUIAVEL, Nicolau. Da arte da guerra. Rio de Janeiro, Martin Claret,
2015.
xvii Agátocles de Siracusa (Hímera, 361 a.C. - Siracusa, 289 a.C.) (em grego: Αγαθοκλής (Agathokles):

derivado de αγαθός (agathos) bom e κλέος (kleos) glória) foi um tirano de Siracusa (317-289 a.C.)
e foi rei da Sicília (304-289 a.C.).
xviii DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Dialógos. Lisboa, Editora Relógio D’Água, 1996, p.51.

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