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empo de comemoragées e re- 1 Memoria: contraposicées sordagées, tempo de histérias. Centendrio da Reptiblica no Brasil, bicentendrio da Revolu- ao Francesa e quinto do descobrimen- to. colonizagao ou invencdo da Amé- rica, Datas que nos condicionam ao vinculo com a meméria de modo po- sitivo, ptblico e intersubjetivo. Neste cendrio, organizagdes nacio- nais ¢ internacionais promovem agdes para nutrir e valorizar a meméria, so- bretudo aquela que espelha o cardter coletivo, a nagio, a identidade étnica, religiosa ou de grupo, embora suas formas diversificadas de construgio sejam tarefa de poucos especialistas que, por vezes, se situam humilde- mente como meros sistematizadores de lembrancas e apreciacdes dos nao especialistas. Assim, a meméria valorizada é a que de praxe reconhecemos como his- torica e coletiva. Sua perda, dizem- nos, ¢ negativa: relaciona-se com o A Memoria e a Formacao dos Homens Hugo Lovisolo narcisismo, com o trabalho do coloni- zador, com © desenraizamento das origens ¢ dos pertencimentos que o pensamento roméantico tanto valori- zou. A meméria histérica ou coletiva, repete-se, ¢ fundamental para o senti- mento nacional, para a consciéncia de classe, étnica ou das minorias, sendo constitutiva das lutas contra a opres- io ou a dominagdo. Valorizada, en- tao, quer por sua participagao na cons- trugdo da identidade © da comunida- de, quer pelo papel que desempenha no fortalecimento e emancipacdo dos fracos, ela nfo pode nem deveria ser esquecida, Ao mesmo tempo, a mem6- ria coletiva firma-se cada, vez mais conscientemente como leitura seletiva: ela esquece e lembra no mesmo mo- vimento. A memG6ria histérica se nos apre- senta idealmente como Ancora e pla- taforma. Enquanto ancora, possibili- ta que, diante do turbilhio da mu- danca e da modernidade, nao nos des- manchemos no ar. Enquanto plata- Nota: Dedico estas linhas a Heraldo Lovisolo, meu tio, cuja meméria e Gnimo narra- tivo tanto me encantaram na infancia e ainda tém seu efeito. Estudos Histéricos, Ro de Jane vol. 2, m. 3, 1989, p. 1628 A MEMORIA E A FORMAGAO DOS HOMENS 7 forma, permite que nos lancemos para © futuro com os pés solidamente plan- tados no passado criado, recriado ou inyentado como tradigfo. Esta, por sua vez, toma o sentido de resistén- cia e transformagao. Tais valorizagdes parecem signifi- car, prima facie, um recuo das posi- ges iluministas, pois a tradigio, que compunha com 0 preconceito e a au- toridade © triedro combatido pelos iluministas, ganha apreco ¢ destaque ainda no seio das correntes moderni- zadoras. As intuigSes roménticas tor- nam-se aparentemente livres de suas pulsdes na direcdo imitativa do pas- sado, integrando-se nas ideologias que profetizam a avenida da igualdade e liberdade, a emancipagao da autori- dade e do preconceito. Emancipagio e tradi¢do sao situadas em relagao posi- tiva. Entretanto, apesar desta valori- zacio da tradig&o na sua relagio com © romantismo, suas limitagdes conti- nuam presentes. Para Arendt, “a tra- dicdo € algumas vezes considerada como um conceito essencialmente to- mantico, porém o Romantismo nio faz mais que situar a discussdo da tradigfo na agenda do século XIX; sua glorificagio do passado apenas serviul para assinalar 0 momento em que a época moderna estava prestes a transformar © nosso mundo ¢ as circunsténcias em geral a tal ponto que uma confianga inquestionada na tradic¢ao nao fosse mais possivel”. (Arendt, 1972:53) ' Entretanto, a con- fianca inquestionada na tradigfo pa- rece haver sido substituida pela cons- ciéncia da necessidade de leituras se- letivas, de construgSes que separem a tradigio valorizada da denegada. H4, assim, leituras da tradigao que a tornam positiva para a reforma ou a revolugéio. Estas atitudes contrapdem-se as vi- gentes na Revolugao Francesa, Furet assinala que uma de suas idéias prin- cipais “é a da tabula rasa, da ruptura com o passado. E a idéia de que o povo, num determinado momento de sua histéria, pode se instalar para reinstituir radicalmente a socieda- de.” (...) “A idéia de que, a partir de um momento x da histéria, um mun- do pode ser reinstituido sobre uma histria que é pensada toda ela como corrupgio”. (Furet, 1988) A tabula rasa € sem divida radicalmente contra a memoria. A este modelo da terra arrasada contrapée-se, hd longo tem- po, a percepciio de que é na memé- ria onde devemos achar as forcas do presente e do futuro. Em outros ter- mos, mais que ruptura, tratar-se-ia de transformagao na continuidade; tra- tar-se-ia de retomar vetores da tradi- gao ou da cultura na construcao da modernidade. Os projetos de emanci- pagao, por exemplo, tentaram encon- trar na meméria dos emancipandos os vetores que funcionassem como chao ¢ linha de forga do projeto emancipa- dor, quer se tratasse do povo, quer do. grupo étnico ou religioso. Como conseqiiéncia, a histéria, determina- das formas de construcdo da histéria, em especial as que respeitariam o pon- to de vista dos vencidos, dos fracos, dos que devem ainda se emancipar, sio valorizadas quando apontam as linhas de sua forga e quando dese- nham a rede dos significados que for- mam sua prisao. O processo geral de valorizagao se- letiva da meméria coletiva coexiste ambiguamente com processos hoje j4 seculares de desvalorizagao erudita da meméria individual. Desvalorizagao que, algumas vezes, salienta a relacao perversa da meméria com os proces- sos de emancipagao enquanto nticleos dinfmicos de mudanga e transforma- cio. Ha, assim, contraposigées noté- veis em torno da memoria, em espe- cial no que se refere & oposigao indi- vidual — coletiva, 18. ESTUDOS HISTORICOS — 1989/3 E certo que a meméria desyaloriza- da é a que resulta da vida de cada um, da capacidade de se lembrar, de fazer presente, de trazer A tona con- tetidos. Contudo, o lembrar, o recor- dar — “yo no tengo derecho a pro- nunciar ese verbo sagrado, sdlo un hombre en la tierra tuvo derecho y ese hombre ha muerto”, diz Borges —, nem sempre foi desvalorizado na mo- dernidade. Assim como a memGéria co- letiva estaria estreitamente ligada a identidade do mesmo género, a me- méria individual se situaria como ve- tor constitutivo da identidade do eu. Entretanto, em ambos os casos, as operacées de esquecimento seriam ele- mentos produtivos da retérica da me- méria. Malhada ou desejada, carga ou auséncia, a meméria aparece como um tema recorrente na histéria do Oci- dente. Nao seria, portanto, despropositado © intento de se escrever uma histéria das idéias — ou das mentalidades, para sermos mais atuais —, tomando como fio condutor a “meméria”. Po- deriamos antecipar que tal histéria nos proporcionaria constelagdes con- traditérias de representagdes e prati- cas, de sentimentos ¢ atitudes, e de valores organizados em torno da me- méria, Esta se desdobraria em indi- vidual e coletiva, fiel ¢ infiel, objeti- ya e subjetiva, texto e monumento, oral ¢ escrita, entre outras polariza- ges, Mais ainda, verfamos suas varia- das conceituagdes entrarem em rela- ¢a0 com a mudanga e a ordem, com © habito e o entendimento, com o pri- vado e 0 ptblico, com a honra e a vergonha, com a cegueira e-a luz, para mencionar somente algumas pou- cas das categorias que semeiam nos- sas construgdes de pensamento sobre © social. Parece-nos que existe um campo do pensamento social estratégico para a realizacéio de tal empresa. Trata-se do vasto campo da reflexao sobre a for- magio — bildung, paideia — dos ho- mens. Neste campo, a pedagogia mo- derna ocupa uma posigfo de desta- que, especialmente quando nao € con- fundida com 0 conjunto de técnicas para se atingirem objetivos. Pois bem, & no campo do pensamento social ot pedagégico sabre a formacao dos ho- mens que uma histéria da meméria pareceria ter um lugar fecundo de reflexdo e experimentacéo. E isto, particularmente, quando se entende que uma das linhas constitutivas da moderna pedagogia é a da critica, sempre renovada ou reiniciada, & me- morizag&io, ao memorismo, as virtu- des da boa meméria. Critica erudita da meméria, que se opde: por um Ia- do, valorizagéo da meméria histé- rica ou coletiva; por outro, 4 valori- zacao popular da meméria, que tem como indicadores quer a longa lista dos produtos farmacéuticos criados para seu fortalecimento, quer o la- mento pelo filho desmemoriado ou pela idade que apaga suas capacida- des, quer a renovacio do apelo dos programas de perguntas ¢ respostas, cujos temas, freqiientemente sem va- lor de uso, pareceriam evocar um la- do ltidico da meméria rejeitado pelas pedagogias modernas, Apesar dos dados favoraveis i me- méria, presentes nas representacdes populares ¢ mesmo na viséo de mui- tos cientistas sobre seu papel na pré- tica produtiva, a pedagogia moderna constitui-se tendencialmente sobre sua eritica, desenvolvendo-se com um discurso contra os métodos ¢ atitudes que ajudam a memorizar, ¢ elegendo, em oposicdo & meméria, os processos, os métodos, as légicas da descoberta e da critica, a heuristica do conhe mento, a dinamica da interpretacao. Saber, bom senso, capacidade de dis- cernimento, experiéncia, separam-se da memGria. O valor concentra-se so- A MEMORIA E A FORMACGAO DOS HOMENS 19 bre as competéncias analiticas, a ca- pacidade de critica formal e empirica, além da imaginagdo criadora. A me- méria deixa de ser até um instrumento de producSo; ao contrério, torna-se um obstéculo. No proceso de forma- fo dos homens aparecem as atitudes que proclamam, com indisfargdvel orgulho, as vantagens de sermos des- memoriados. O esquecimento tornou- se virtude. Alguns historiadores con- fessam, sem sentimentos de caréncia, possuirem péssima meméria. Poucos professores sao capazes hoje de contar histérias embebidos pelo animus nar- randis, embargados pelo prazer de re- cordar as datas, os personagens, os fa- tos, as agdes. ———_—~ 2. Do desmemoriado Montaigne a “Funes el memorioso"” © Seigneur de Montaigne foi reco- nhecidamente um pensador que pre- formou a critica pedagégica moderna da meméria. Lembramos que ele foi um grande desmemoriado, um ser so- cialmente visivel que esquecia as da- tas, os nomes das pessoas, Os compro- missos. Os bons vizinhos sentiam-se magoados, ressentiam-se pelos esque- cimentos do Seigneur. Este reconhe- cia sua falta de meméria. No entanto, mais do que lamentar-se pela mesma, escolheu o caminho de sua critica e, mesmo, o de salientar as vantagens que teria por ser desmemoriado. Den- tre elas, a possibilidade de ler um li- yro j& lido como se nunca 0 tivesse sido, enfim, a vantagem de formar novas impressdes, por terem as ve- Ihas safdo da lembranca, ou entio a de esquecer as ofensas, colaborando assim para a coneérdia social, Num mundo que se Ihe mostrava desgarra- do pelas lutas religiosas e sociais, a meméria tornava-se um peso desne- cessdrio. ‘Somos tentados a realizar uma ré- pida redugio, isto é, dar conta da erf- tica de Montaigne como mera defe- sa, racionalizagio, mecanismo psico- légico de ajuste diante da auséncia de uma faculdade, ou, se preferirmos, co- mo atitude estéica que, em vez de lamentar-se pela caréncia, intenta ali- nhavar as vantagens que da mesma se derivariam. ® Nao ter meméria po- de nos liberar de desagradéveis com- promissos, distanciar-nos de pessoas indesejéveis, fazer com que iludamos as convengoes sociais. Neste sentido, a memoria seria parceira da “insus- tentavel leveza do ser". Contudo, nao acreditamos que tais argumentos re- dutores e circunstanciais expliquem a critica da meméria, pois, a0 que nos consta, esta ja é uma tradicgao. Seu fio condutor estaria especialmente na relago negativa entre memGria ¢ dis- cernimento, meméria e pensamento, meméria e bom senso, meméria ¢ en- tendimento. Montaigne e Borges coin- cidem: a meméria ¢ o entendimento so antagénicos. Enfim, parece que 2 meméria seria um obstéculo para a constituicdo do individuo auténomo, independente na formulagao do juizo. Obstéculo, entdio, ao desenvolvimento do valor central da modernidade: a autonomia do individuo. ‘A metéfora da geografia da cidade impie-se aqui para ilustrar de modo mais concreto a idéia. Como o indivi- duo universal, o cidadio do mundo, poderia orientar-se na cidade, quan- do sua geografia esta presa & memé- ria? Isto é, quando devemos recordar que a rua da Fonte nfo possui ne- nhuma fonte e termina na rua das Flores, as quais, por sua vez, faz tem- po nfo exalam seu cheiro. Em contra- partida, a mobilidade do individuo auténomo exige o sistema: a biissola, um instrumento simples e de leitura racional, em lugar dos miltiplos indi- cios da meméria, pata encontrar os 20 ESTUDOS HISTORICOS — 1989/3 caminhos; 0 sistema de ruas nume- radas em ordem crescente, em vez das milhées de lembrancas necessdrias de um espaco que, freqiientemente, dis- tingue-se por elementos ja desapareci- dos. A meméria € fraca, dirfamos, diante de um mundo em crescimento quantitative e qualitativo, isto é, mui- to mais complexo. A meméria factual pareceria ser insuficiente — e até mesmo contréria — em um mundo em mudanea e diferenciacao. O siste- ma, construido com a razio, tem que Ocupar seu lugar. Entretanto, para- doxalmente, a meméria ainda é criti- cada quando se mostra implacdvel com 0 esquecimento, Borges, ao contrario de Montaigne, nao foi um desmemoriado. Todos aqueles que tiveram oportunidade de assistir a suas aulas sobre literatura inglesa, nos tempos que a luz jé aban- donava seu sentido, sabem da capa- cidade prodigiosa com a qual punha ho ar datas, nomes, circunsténcias, es- trofes, trechos de livros. Borges foi o oposto de um desmemoriado, Ele nao. se compara, contudo, com Ireneo Fu- nes, ef memorioso, a Gnico com direito a pronunciar o verbo recordar, * Funes sempre teve a capacidade curiosa de lembrar nomes ¢ de saber a hora exa- ta em qualquer momento do dia. Os vizinhos de Fray Bento, lé pela Banda Oriental, tinham-no como curiosidade que se tornou prodigio quando, apés a queda do azulejo e o desmaio sub- seqiiente, ele acordou paralitico do corpo € com um mundo de meméria que lhe permitia rememorar as nervu- ras de cada folha, todos os detalhes das crinas dos cavalos que passaram por suas maos ou olhos de trenzador, além de aprender as linguas que nao sabia existirem, nem sonhara em do- minar, entre elas, o latim. Seré o préprio narrador da histé- ria quem emprestard a Funes alguns livros em latim e um dicionério para izar a faganha de dominé-lo com tais parcos instrumentos. O Naturalis historia, de Plinio, figura entre os mesmos. A matéria do 24.° capitulo do livro sétimo, informa o narrador, € a meméria. Ai esto os casos de meméria prodigiosa registrados pela antigiiidade. Estes nao impressiona- ram a Funes, ef memorioso, que, a0 contrério, espantou-se de que fos- sem considerados _ extraordindrios. Pois, dird Funes, “més recuerdos ten- go yo solo que los que habrén tenido todos los hombres desde que el mun- do es mundo; mis suefios son como la vigilia de ustedes y, también, mi memoria, sefior, es como vaciadero de basuras”. Borges nos mostra como os projetos elaborados por tal prodigiosa virtude so intiteis, pouco praticos, curio: dades do museu da meméria. “‘Sospe- cha que Funes no era muy capaz de pensar. Pensar es olvidar diferencias, es generalizar, abstraer, En el abar- rotado mundo de Funes no habia sino detalles, casi inmediatos.” Borges re- tira-se de sua visita a Funes entorpe- cido pelo temor de multiplicar gestos intiteis que perdurariam na implaca- vel meméria de Ireneo, A meméria de Funes é, especular- mente falando, a imagem de um mapa da China em escala um: 0 real esta- ria no mapa da mesma forma que na memoria de Funes. Tais jogos pare- cem perseguir Borges. Entretanto, ¢ desse argumento apenas ldgico, desse exercicio da abstragaio, que se deduz © axioma da desvalorizacao da mem6- ria, uma vez que Funes nao era mui- to capaz de pensar. Pois pensar é abstrair. E, sim, porém, na sua forma mais elementar, é fazé-lo a partir dos registros das semelhancas e diferencas existentes, € nao meramente a partir da auséncia de registros; & fazélo a partir do chao de uma tradigao que registra scletivamente e quem diz re- A MEMORIA E A FORMACAO DOS HOMENS 21 gistro, diz meméria, Assim sendo, a critica do monstro légico nao serve para desvalorizar a meméria empirica, factual, sobretudo quando é reconhe- cido corriqueiramente que ela tam- bém seleciona os registros a serem en- tesourados, esquece para lembrar. Neste sentido, a memédria do Funes, absoluta, escapa & determinagéio cul- tural. ———_—__ 3. Qs vizinhos de Montaigne Os bons vizinhos apreciam 0 Seig- neur de Montaigne e seu bom senso; levam em alta consideragdo seus con- selhos, suas recomendagées, e consul- tam-no fregiientemente para obté-los. Entretanto, os bons vizinhos riem quando o Seigneur fala de sua falta de meméria para se escusar pelo es- quecimento de algum nome, de al- gum compromisso, de alguma data significativa. Riem, suspeitam ¢ ficam ressentidos. Mais ainda, atribuem a loucura de Montaigne suas desculpas marotas. Tudo isso por uma razao muito simples: os vizinhos de Montaigne acreditam que bom senso e memoria estado estreitamente relacionados, sao faculdades solidérias. Se o Seigneur de Montaigne tem tio bom senso, co- mo pode ser um desmemoriado? Mon- taigne desvia a acusagdo de loucura em diregao da diferenga: ele nao é louco, é simplesmente distinto. Numa de suas tantas antecipagGes ou influén- cias sobre Rousseau — lembremos que as famosas palavras com as quais inicia Confissdes so um apelo & ma- triz Gnica e singular que o fez dife- rente —, Montaigne reivindica o di- reito a ser distinto e, mais ainda, con- sidera sua diferenga quase uma virtu- de, dela fazendo uma alegria para vi- ver. Sendo diferente, Montaigne pode perceber aquilo que os de sua terra no percebem, em especial que, co- mumente na pritica, memGrias exce- lentes aliam-se & falta de bom senso. Desta forma ele inverte a correlagio estabelecida por seus vizinhos. Na verdade, Montaigne poderia perceber que, na prética, também jun- tam-se memérias excelentes a vigoro- sos bons sensos. Poderia concluir com justiga sobre a independéncia entre meméria e bom senso, entre memé- tia e discernimento, entre meméria e entendimento. Faculdades diferen- tes, diria, ou apenas virtudes distin- tas. Esta constatacao significaria que a construgéo do valor do discerni- mento nao estaria necessariamente amatrada a critica da meméria, como © desenvolvimento da pedagogia a partir do pensamento de Montaigne insiste em reiterar. Por certo outro francés, Alain, reagiu a esta reacdo. Para ele, a meméria e os exercicios para sua construgao constituiam uma base sobre a qual a especulagao ted- rica podia estender suas alas.* Da independéncia entre memoria e bom senso nao se deduziria implaca- velmente a possibilidade de valorizar ou desvalorizar a memGria. Nao sendo a meméria solidéria com o bom senso, apenas poderd ser criticada em si mesma, Poderiam existir boas e mas memérias. Entretanto, 0 processo apa- rentemente indiscriminado de sua des- valorizagao a converte num obstéculo para o exercicio do discernimento, do julgar por si mesmo, enfim para a autonomia do individuo. Mais ainda: cabe interrogar-nos sobre o papel fu- nesto que uma boa meméria poderia ter na construgdo do sentimento do individuo como ser diferente, original, tinico, irreproduzivel? Em outros ter- mos: serd que esta construgo da sub- jetividade tem por trabalhador a ima- ginagéo, que Montaigne encontra me- nos prolixa, porém com maior efi- cdcia simbédlica que a meméria? En- 22 ESTUDOS HISTORICOS — 1989/3 tio, seré que a valorizagdo da memé- ria guardaria uma relago antagénica com a constituigaéo dos valores atri- buidos ao individuo moderno? ‘Se arriscarmos uma resposta afir- mativa a estas perguntas, teremos que a desvalorizagao conseqiiente da me- méria parece apoiar tanto o individuo percebido como aut6nomo no julgar por si mesmo quanto o individuo per- cebido como elemento original, tinico e irreproduzivel. Assim, a desvalori- zacio da meméria factual parece ser importante, em varios sentidos, quer para uma definigdo do individuo cen- trada na razao ou no julgar, digamos, racionalista, quer para uma definicao enfatizadora das diferengas, da origi- nalidade, isto é, romantica. Nao se- tiam as Confissdes de Rousseau, cheias de “erros de meméria”, a con- cretizago do que estamos tentando perceber? Nesta linha de reflexio, se- ria o imaginério coletivo ou indivi- dual 0 responsével pela construgio da identidade, e 0 custo desta construgio residiria na critica da meméria fac- tual, do animus narrandis? Seria des- tarte a meméria apenas o nome com o qual o imagindrio se valida, isto &, a legitimagao do imagindrio como ex- periéncia? Dito em outros termos, se- ria a memoria o ato imaginério que deu certo? —_—___——__—. As associagdes da meméria Nao € suficiente para Montaigne, todavia, apresentar-nos apenas a rela- c@o negativa entre meméria ¢ bom senso; ele acumula outros argumen- tos. Faz isto especialmente no seu en- saio Os mentirosos, 0 que nao chega a ser paradoxal, pois € sabido que, para mentir, é necessério ter boa me- méria, e que nao deve meterse a mentir quem dela carece. Mentir, a seu ver, é falar contra a propria cons- ciéncia ou falar em desacordo com o que se sabe. Sigamos algumas das associages positivas e negativas com a meméria que ele nos apresenta. Montaigne nos diz considerar a am- bigdo como o maior dos males, afir- mando ainda ter-se livrado dela por ser desmemoriado — seu pequeno de- feito salvou-o. Estranha associagéio, sem divida. Contudo, “clareia-se” quando nos informa que o espago da ambigao sfo os negécios ptiblicos, & estes exigem boa meméria. Aquele que age no espaco publico deve ter boa meméria, muito boa, se quer obter éxito. Esta relagéo chega até nossos dias e torna-se patente na sai- da do politico mineiro que, ao pergun- tar por um amigo, recebe do filho deste a resposta de que est morto: “Morto para voces”, — responde o velho politico — “nao para mim que © guardo na meméria”. Embora a funcionalidade da meméria para os negécios ptiblicos e para a vida so- cial seja reconhecida, 0 que nao re- sulta tao claro é a relagdéo entre a falta de mem6ria ea falta de ambigao, nem a relagio inversa. Novamente pareceria estarmos diante de faculda- des e atitudes independentes, embora Montaigne as vincule. Mais uma yez Montaigne se sente satisfeito pela falta de meméria, pois, se tivesse boa meméria, em vez de julgar por ele mesmo, ter-se-ia ape- gado, como acontece comumente, as apreciagées alheias.* De fato, 0 me- morioso poderia se vingar, argumen- tando que 0 que Montaigne toma co- mo produto de seu proprio discerni- mento so apreciagdes alheias que es- queceu quando e onde colheu. Em ‘outros termos, diria que Montaigne pensa que tem opiniGes préprias ape- nas por ser desmemoriado. Na verdade, Montaigne esta interes- sado sobretudo em como chegou a de- terminadas apreciagSes, ¢ nao mera- ‘A MEMORIA E A FORMAGAO mente no contetido das mesmas; o verdadeiramente significativo é chegar as verdades por si mesmo, pela pré- pria consciéncia. Com isto, reinsere as bases da pedagagia moderna, mais Ppreocupada em entender, ¢ expender, © como o aluno aprende ou gera suas apreciagGes do que com o contetido das mesmas. O que importa é 0 pro- cesso de aprendizagem baseado no pensar por si mesmo, ¢ nao seus re- sultados. O que importa é a forma- G40 do individuo auténomo, para o que a memiria deverd ser convertida num obstéculo, devera se tornar vicio, deixando de ser motivo de admiragao ou virtude. A nova atitude ser a de valorizar a resposta produzida pelo exercicio do entendimento, perdendo significagdo a resposta gerada pela meméria. Os homens poderao se van- gloriar por sua falta e ficardo conten- tes na procura da verdade por si mes- mos. A autonomia contrapde seu pré- prio prazer ao animus narrandis. No ensaio Da educagdo das crian- gas, Montainge insiste na critica 4 me- miéria e & memorizac&io. Os precepto- res devem exercer suas fungdes de ma- neira nova: abandonar o trabalho can- sativo de repetir ¢, ao corrigir este erro, comegar a indicar as criangas os caminhos, levando-as a escolher ¢ dis- cernir por si mesmas. Em lugar da repetigao e da autoridade, Montaigne propée o didlogo que leve em dire- go ao discernimento; em vez de pe- dir apenas as palavras da licdo, o pre- ceptor deverd solicitar das criancas os seus sentidos, suas substfincias, jul- gando o proveito nao pelo testemunho da meméria, e sim pelo da vida. A autoridade ¢ o crédito devem desapa- recer. No seu lugar, a atividade de exame, de escolha, de discernimento da crianga, far-se-4 presente. Saber de cor nao é saber: € conservar o que se entregou & meméria para guardar. * HOMENS 23 O que importa é que o que guarda- mos de outrem seja por nés transfor- mado e misturado, para fazermos obra propria. Isto é, sermos auténo- mos e diferentes. O significativo é o exercicio da independéncia da inteli- géncia, que nao passa pelos métodos de memorizagao, porém pelos exerci- cios com a vida, sendo mais importan- te apreciar os fatos do que meramente registré-los, Montaigne nao se manifesta contra a existéncia de registros; ao contré- rio, louvardé 0 costume de seu pai de levar consigo um livro no qual regis- traya todos os acontecimentos e ocor- réncias da vida cotidiana da casa e da vizinhanga. Declara, no ensaio Dos livros, que os historiadores consti- tuem seu passatempo predileto, en- contrando em suas obras o homem que procura penetrar e conhecer. Afirma ainda preferir os historiadores que se atém menos as ocorréncias do que as causas e que ponderam mais os méveis a que obedecem os homens do que o que lhes acontece.? Isto é, opta pelos historiadores que sabem esquecer e nao ficam como Funes, com um “vaciadero de basuras en la cabeza”. Eis por que, sob todos os pontos de vista, Plutarco é seu autor predileto. Montaigne no despreza, todavia, o registro dos fatos, reconhecendo o mérito, por certo que menor, de tal tarefa, Faz isto distinguindo os his- toriadores em simples e excelentes. Aprecia os autores que, por serem simples e nio podendo acrescentar al- go de seu ao que contam, recolhem com cuidado e exatidao tudo o que chega a seu conhecimento, registran- do tudo de boa-fé, sem selecionar, sem nada fazer que possa influir no jul- gamento dos leitores. Seria a histéria ou a etnografia que Ireneo Funes po: deria realizar? O registro fiel ¢, assim, valorizado. Montaigne, porém, gosta 24 ESTUDOS HISTORICOS — 1989/3 ainda mais dos excelentes, as historia- dores perfeitos, que tém a inteligéncia necessaria para discernir o que mv: rece passar a eternidade. Sao os que distinguem entre dois relatos o mais verossimil, induzem os méveis, cons- tituindo uma raridade. Assim, nos simples, talvez a etndgrafo sonhado pelo etnélogo, Montaigne admira que deixem nossa capacidade de julga- mento sem influéncias estranhas. Nos excelentes, admira o exercicio da ca- pacidade de julgamento, a inteligén- cia, que, para exercitar-se, pareceria demandar como condicao © esqueci- mento. Os simples nao interferem com nossa independéncia, com nossa auto- nomia, e os excelentes fazem eles mesmos um exercicio de independén- cia e autonomia. De fato, os registros do pai de Montaigne situar-se-iam na etnografia dos simples; as reflexdes do filho, na etnologia dos excelentes. Chegado a este ponto, a vontade de realizar uma interpretagao de cunho iluminista nos invade. De fato, nada mais facil que associarmos a critica da meméria com a critica da tradigio ¢ de seus derivados: a auto- ridade e o preconceito. Para mudar o mundo faz-se necessirio esquecer a tradigao, quer por meio do esqueci- mento “afetivo” que nos permite dela distanciar-nos e criticd-la, quer pelo esquecimento mesmo de suas interpre- tagdes ¢ mandamentos. Parece por de- mais evidente que a critica & memé- ria realizada por Montaigne se enten- de no esforgo de formagao do indivi. duo moderno, aut6nomo e indepen- dente. Seu discurso retrabalha contet- dos do Renascimento na percepgao do individuo dinémico ¢ auténomo (Hel- ler, 1982), antecipando elaboragies liberais que continuarao suas linhas de reflexio — em especial pela im- portancia concedida & educagio como caminho de transformacao na forma- io de homens novos. Entretanto, es- tas consideragdes sobre Montaigne nao. parecem constituir uma constelagao cverente, pois ele nio é nem um “re- yoluciondrio” nem um “reformista’’.* Ao contririo, o relativismo o leva a afirmar o real pela desvalorizagao das utopias ou dos possiveis. Meméria: 0 privado e o publico Montaigne nao foi um “revolucio- nario”, ou seja, jamais pensou em substituir uma ordem por outra. Isto, entretanto, ndo o impediu de ctiticar os costumes da sociedade do seu tem- po com categorias — hiprocrisia, por exemplo — que seriam retomadas por Rousseau, antecipando-se na utiliza- gao da relativizacao cultural. Lembre- mos, por exemplo, quando coloca na boca de um canibal a apreciagado de que o rei deveria ser um dos robustos guardides suicos, e ndo a criancinha da qual eles tomavam conta. Ou quan+ do ironiza sobre o recato em se falar dos genitais, quando, no mesmo ato, estes sao realgados pelo tipo de calga entao em moda. Entretanto, e apesar das criticas, propugnou o respeito a lei, sustentando ser melhor a lei exis: tente do que nenhuma. Cita Grotius, quando este afirma: “E belo obedecer as leis de seu pais.” Para Montaigne, os usos e costumes de um povo sao como um edificio construido por diversas pecas de tal maneira dispostas que é impossivel abalar uma sem que o abalo se co- munique ao conjunto (antecipagéo do configuracionismo estrutural e do fun- cionalismo). Entretanto, tal ediffcio, nao resulta de um ato de vontade dos homens, nem é produto da razio, mas resulta de agGes que se tecem nas cos- tas dos homens, invengGes sem inven- tores (antecipagdo que pressupde a desvalorizacao da diacronia, da géne- ‘A MEMORIA E A FORMAGAO DOS HOMENS 25 se da instituigéo: ou norma). Quando se intenta modificar uma lei por todos acatada, corre-se o sério risco de que as vantagens derivadas da mudanga sejam menores que o mal resultante da mesma, sobretudo quando a ima- gem da sociedade € a do edificio des- tilado sem 0 uso da razao — o que nao significa que seja irracional —, guardando suas partes uma estreita in- terrelagéo (antecipagéo que ¢ uma re- comendagéo pratica e politica). As- sim, a mudanga de um aspecto ou pega pode acarretar mudangas nao desejadas (Montaigne se antecipa as elaboragdes sobre os efeitos perver- sos). Tentar a reforma ou a revolugéo a partir destes pressupostos seria, por certo, um ato de inconseqiiéncia ou de confusdéo muito maior do que aquele que Pascal atribui a Montaigne. A légica que se deriva é a politica da reserva, da protecao para que as coi- sas mudem apenas em fungdo de sua propria natureza complexa. Diante da complexidade do mundo, nosso saber nao é muito, diré Mon- taigne. E ainda, quanto mais viva ¢ perspicaz ¢ a sabedoria, mais fraca ¢, pois tem razes para desconfiar de si mesma. Por tais razées, é tao bom con- tar com a sorte! Mas, pelas mesmas razdes, € duyidoso que se possa mu- dar o mundo orientado pela sabedo- ria (neste sentido, Montaigne anteci- pa-se a Burke), Assim, respeito a lei e tolerfncia sio fundamentais. A grande prova é a Reforma ¢ as guer- ras e calamidades dela derivadas, Fe- chando © circulo conservador, Mon- taigne manifesta toda a sua repugnan- cia diante da novidade. Os costumes sao de fato relativos, nao comportando nenhuma verdade intrinseca ou absoluta. Contudo, eles se tornam verdadeiros e absolutos pelo “principal efeito da forga do habito [que] reside em que se apodera de nés a tal ponto que ji quase nio esté em nés recuperarmo-nos e refletirmos sobre os atos a que nos impele (.. .) e imaginamos que as idéias aceitas em tomo de nés, ¢ infundidas em nés por nossos pais, siio absolutas e ditadas pela natureza. Dai pensarmos que o que est4 fora dos costumes esta fora da razdo’*. Os costumes podem ser ri- diculos, Entretanto, Montaigne reco- menda que as considerag6es criticas “nao devem desyiar um homem sensa- to do estilo comum, (. . .) O sébio pre- cisa concentrar-se ¢ deixar a seu es- pirito toda liberdade e¢ faculdade de julgar as coisas com serenidade, mas, quanto ao aspecto exterior delas, cabe- Ihe conformar-se sem discrepincias com as maneiras geralmente aceitas. A opinido publica nada tem a ver com © nosso pensamento, mas 0 resto, nos- sas agGes, nosso trabalho, nossa fortu- na © nossa prdpria vida, cumpre-nos colocé-lo a servigo da coletividade e submetélo & sua aprovagao”’. As contradigdes parecem desapare- cer quando aceitamos a existéncia de dois mundos: 0 piblico e o privado. No primeiro dominam os costumes, as leis, consubstanciados como habitos. Pouco importa que sejam relativos, ri- diculos ¢ falsos. Devemos respeitd-los, pois o edificio ¢ muito frdgil, e, quan- do o respeito acaba, a guerra comega. Devemos, por isto, ser tolerantes até com a falsidade e o ridiculo. Mon- taigne considera infquo querer subor- dinar as instituig6es e os costumes pti- blicos, que sao fixos, as opinides va- ridveis de cada um de nds. Pareceria entdo que & liberdade ganha na esfera privada — do discernimento e dos costumes — corresponde a obediéncia no plano ptblico; a dispersio das opinides privadas deve corresponder a subordinagdo as instituigdes e costu- mes ptiblicos. Os homens, assim, dei- xam de habitar apenas num mundo; toca-lhes, em diante, fazé-lo em dois. 26 ESTUDOS HISTORICOS — 1989/3 Submetidos & lei de um universo fe- chado, no qual © ganho préprio re- sulta do prejuizo alheio, como Mon- taigne tenta demonstrar em De como 0 que beneficia um prejudica outro, é de se pensar que A liberdade ganha no mundo privado, A autonomia pri- vada, corresponde a perda de inter- vencao no plano piblico. Podemos derivar como colordrio ge- ral que a meméria que entra na cons- tituigao do habito que fundamenta a aceitacdo de instituigdes e costumes & positiva. Os habitos que se conside- ram bons devem assim ser inculcados nas criangas. Contudo, 0 modo de in- culcagao deve ser ativo, isto é, 0 res- peito ao hébito deve ser produto do discernimento da consciéncia de cada um; a adesio ao habito deve aparecer como resultado do julgar do sujeito, apesar da relatividade do habito. Em paralelo, a critica 4 meméria e A me- morizagao é fundamental para o dis- cernimento da vida privada, para a construgio e distingao do individuo auténomo, no jufzo e no sentimento do seu eu. As possiveis contradicdes apenas deixam de sé-lo quando consi- deramos a vigéncia de dois mundos: 0 privado e o piiblico. E na aceitagao de dois mundos e de duas formas de orientagdo que podemos conviver com as Mesmas, sempre e quando esque- gamos a vontade de transformar o mundo © nos concentremos somente na transformagio dos individuos, ——_—. 6. As contradi¢des pedagégicas A paideia moderma enfrenta um dié- plo desafio: a formagao do cidaddo ¢ a realizacao do eu, do si mesmo, num mundo caracterizado pela pluralidade as cisdes. Este duplo desafio a situa numa posicio paradoxal, dilemitica, A imagem, em Danton e a revolugao, de Robespierre batendo na crianca para forg4-la a memorizar a declara- a0 dos direitos humanos é paradig- matica da condigao pedagdégica — que deve conciliar contradigdes —, reto- mando a vontade rousseauniana de obrigar os homens a serem livres ain- da contra a sua vontade, A formagio do cidadao € trabalha- da pela pedagogia moderna na forma- gio da consciéncia histérica e civica. Os modelos explicativos, os simbalos, as vidas exemplares, os rituais cfvicos, entram na formacao do cidadio. Ha um ser nacional, um ser de classe, um ‘ser regional ou étnico, que deve ser valorizado. H4 nodes e valores de or- dem, de lei e de justiga que devem ser respeitados. Ha processos dos quais somos resultado. Apesar de to- dos os discursos, a meméria, a capa- cidade de se lembrar, continua tendo um papel fundamental para se alcan- gar a formagiio do cidadao. Na pritica da sala de aula, alunos e professores sabem que a capacidade de memori- zar € fundamental, ¢ muitos gostariam de ser como Funes, De outro lado, a pedagogia deve favorecer o desenvolvimento da criati- vidade, da imaginagdo, da capacidade de questionamento, da critica ¢ do dis- cernimento como caminhos do desen- volvimento do eu, do si mesmo, do in- dividuo e da mudanga do mundo. Aqui se apela & imaginagdo, a capaci- dade de raciocinar, as experiéncias de vida das criangas. Aqui o jogo peda- gégico manda prestar aten¢ao aos in- dicadores dessas capacidades. A per- gunta deve ser valorizada sobre a res- posta, bem como a solugio da equagao em termos algébricos sobre a solugdo numérica e 0 processo de pesquisa so- bre seus resultados, que podem ser corriqueiros ou j4 conhecidos. De mo- do geral se valoriza o como aluno faz as coisas sobre 0 produto. Em outros termos, é mais importante avaliar os processos do que os resultados. O pro- A MEMORIA E A FORMACAO DOS HOMENS 27 cesso de construgio do discernimento sobrepuja objeto discernido. Temos assim constitufda uma do- bradica, uma dupla referéncia, cujo eixo articulador é a autonomia. Uma das asas da dobradica se encaixa no suporte do “romantismo”: a autono- mia individual ou coletiva resulta valorizagdo da meméria, da prépria meméria, como identidade, como cu, como grupo, nacgio ou comunidade. Porém, a memaria se nos aparece cada vez mais como resultado de um ato imagindrio — isto é, de um conjunto de operacGes seletivas, de uma reté- rica — que relaciona provisoriamente co mundo dos “desejos” ¢ dos referen- ciais “empiricos”. Sob a outra asa te- mos © suporte do “iluminismo”: a autonomia resulta do uso da razio, da capacidade de discernimento, da uti- lizagdo da légica e dos processos de pesquisa. Aqui a meméria é um em- pecilho, tanto por sua prépria seleti- vidade, quanto pelo trabalho de incul- cagio e de formagao do hébito. A meméria nos impediria antecipar a quebra do dogma, dobrar o paradigma para gerar a revolugio, a novidade, ‘A imagem da dobradica é, na ver- dade, uma hipétese de trabalho.® Ela nos diz que a formagdo dos homens na modernidade esté presa a referén- cias contrapostas que nfo podem ser articuladas de modo ldgico e sistema- tico. Apenas podem ser conciliadas temporariamente, pois geram um dis- curso carregado de contradigGes, para- doxos, dilemas e, por vezes, meras aporias ou caminhos sem safdas, que, afinal, so postos & luz. Seria injusto atribuir a Montaigne parcela de responsabilidade maior da- quela que Ihe corresponde. Muito mais injusto aceitar o veredito de Pascal de ser Montaigne um pensador confu- so, pois o proprio Pascal parece en- contrar em si mesmo as oposicSes pre- sentes em Montaigne, (Pascal, 1979)'” Contudo, parece ser mais ou menos reconhecfvel que Montaigne antecipa as duas asas da dobradiga. Esta, tal- vez, seja a “causa” de sua presenca em Rousseau, nos dois Rousseaus, nos varios Rousseaus. Lembremos, entre- tanto, que Whithead caracterizou o século XIX como o dos pensadores confusos, embora potentes e criativos, entre os quais listou liberais e marxis- tas que até hoje agem como plata- forma da reflexio sobre a formacZo dos homens. (Whithead, 1945) Lem- bremios também que cle apontou, como tantos outros, a contradigao en- tre idéias. A isto agregariamos senti- mentos ¢ atitudes como constitutivos da modernidade. Notas 1. Conferir, com vistas ac nuangamento nas origens da relagdo entre iluminismo © romantismo, Berlin, 1987. Ver também as reflexes de Ricoeur, 1978. 2. “La observacién general de Hegel cuando dice que el escepticismo y el estoi- cismo guardan entre si una necesaria rela- cién y se condicionan mutuamente encuen- tra su confirmacién histérica caracteristica ‘en Montaigne.” (Cassirer, 1955: 205) 3. O conto de Borges “Funes él memo- rigso” pertence & sua obra Artificios, edi- tada em 1944, 4. As contribuigdes no sisteméticas de Alain no campo da formagao dos homens esto contidas no seu Propos sobre a edu- cagio. Uma visio geral de sua marca na ida em Memérias, de Aron, 5. “EL escepticismo no constituye un aditamento externo ni un resultado aceso- rio y fortuito de la trayectoria total de! pensamiento, sino que, por el contrario, aciiia en su misma entrafia, como cl re- sorte interior de su desarrollo.” (Cassirer, 1953; 195) “El escepticismo precave al indi- viduo contra el imperio de las pautas mo- rales impuestas desde afuera y, enfrentin- dose a todas Jas convenciones morales arbi- ies, le asegura Ta libertad discursiva de to se destruye donde quiera que se elimine la independencia y la autonomia del yo. 28 ESTUDOS HISTéRICOS — 1989/3 ‘Trabajamos solamente para Ienar el archivo de la memoria, dejando vacios el entendi- miento y Ia conciencia.” (Cassirer, 1953: 207) 7, Segundo Cassirer, Montaigne preco- niza as duas tendéncias que aparecem uni- das 0. eoneelto. moderna de historia: por um lado, a histéria remete as concer naturais de toda ocorréncia histérica, terminagio pelo “meio”; por outro, “i gb pre a natureza geral e unitdria do homem que se manifesta e se revela em Montaigne, através das mudangas dos acontecimentos © por baixo de toda variedade ¢ contradi- ges aparentes. (Cassirer, 1953: 209) Sob outro ponto de vista, poderse-ia pensar que em Montaigne existe tanto a valorizacio da conceituagao cléssica de histéria quanto da moderna. Na elaboracio de Araijo, 1988, @ conceituagio clissica caracterizarse-ia “como histéria que, antes de se fundar no tempo, como a moderna, estabelece um es- paco de experigncias onde podem ser reu- nidos exemplos, histérias excepcionais (...) em suma, capazes de fornecer orientagao € sabedoria a todos os que dele venham a se aproximar”, (Araujo, 1988; 29) Nesse mode- Jo de histéria, a exceléncia do historiador estaria na capacidade de separar 0 “joio do trigo”. (Araijjo, 1988: 30) Tais opera entretanto, agiriam num eixo ético, ao invés do factual que caracterizaré as operagies de anjlise do conceito moderno de histé- ria € passagem de um exame critico rela- tivo da tradigéo a um absoluto, caracte zado pela constituigio da figura do espe- cialista em histéria, 8. De fato, no tempo de Montaigne, o termo revolusio ainda nfo tinha desenvol- vido 0 sentido de substituigéo, para alguns violenta, € por isso pontual, dé uma ordem Por outra que viria a ter quase dois séculos mais tarde. Domenach, 1988, amarra um conjunto de questdes que esto submersas neste texto. 9. Apliquei esta hipétese de trabalho em A construgdo da modesnidade: romantismo ¢ iluminismo na educagio popular. 10. Ver especialmente o art. 11 dos pard- grafos 62 a 65. a "F Bibliografia ARAUJO, Ricardo Benzaquen de. 1988, “Ronda noturna: narrativa, critica e ver- dade em Capistrano de Abreu”, em Estu- dos Histéricos, (1): 28-54. ARENDT, Hannah. 1972. Entre o passado eo futuro. Sio Paulo, Ed. Perspectiva. BERLIN, Isaias. 1982. Vico e Herder. Bra- silia, Ed. UnB. BORGES, Jorge Luis. 1974. Obras comple- fas, 1923-1972, Buenos Aires, Emecé Edi- tores. CASSIRER, Ernst. 1986. El problema del conocimiento. México, Fondo de Cultura Econdmica. Vol, I. DOMENACH, Jean-Marie, 1988, “Révolu- tion et modernité”, em Esprit, (139): 25- -36, juin. HELLER, Agnes, 1982. O homem do Renas- cimento. Lisboa, Ed. Presenga, LOVISOLO, Hugo. 1987. A construgdo da modernidade: Romantismo ¢ iluminismo na educagdo popular. Rio de Janeiro, PPGAS/UFRJ. mimeo. MONTAIGNE, Michel de. 1987. Ensaios. Sio Paulo, Nova Cultural. Colegio Os Pensadores. PASCAL, Blaise. 1979. Pensamentos. Sio Paulo, Abril Cultural. Colegio Os Pensa- dores. WHITHEAD, Alfred Norbert. 1951. A ciéncia no mundo moderno. $80 Paulo, Editora Brasiliense. Hugo Lovisolo é doutor em antropologia social pela UFRJ ¢ pesquisador do Cpdoc.

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