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fogo que sa
A epidemia de bexigas
estado do Maranhão (1
s no A epidemia de bexigas no
estado do Maranhão (1695)
1695)
345
Neves, T. M.
Em sua narrativa, Bettendorff trata sendo que tudo ao redor ardia” (Betten-
essa epidemia de bexigas como punição dorff 2010 [1698]:242).
divina pela expulsão dos jesuítas do
Embora fique evidente o recurso retórico
Estado do Maranhão, que ocorreu no
utilizado na crônica para reforçar a ideia
mesmo ano, 1661. De acordo com Ra-
de que aqueles que apoiassem a missão
fael Chambouleyron, “a epidemia foi
dos padres da Companhia de Jesus teriam
uma excelente oportunidade para o pa-
a proteção divina e os que se opusessem,
dre Bettendorff ressaltar os malefícios
por sua vez, sentiriam o peso do castigo
causados pela sacrílega expulsão dos
divino, não podemos negar o efeito avas-
religiosos, pouco tempo antes” (Cham-
salador dessa epidemia para a população
bouleyron et al. 2011). Tal afirmação, de
do Estado do Maranhão.
que Bettendorff utilizou esta epidemia
como argumento contra os moradores Chambouleyron, Barbosa, Bombardi e
que lhes expulsaram, pode ser con- Sousa analisam, em seu texto sobre as
firmada ao analisarmos alguns “casos epidemias que assolaram a Amazônia
dignos de memória” – para usar suas colonial, outros relatos acerca dos efei-
próprias palavras – relatados pelo jesuíta. tos deste surto epidêmico. Um deles é
de um religioso franciscano, frei Pedro
Segundo Bettendorff, ao começar
das Neves, que escreveu aos seus superi-
“essa praga pestilencial” na capitania
ores sobre as diversas dificuldades que os
do Pará, ele teria dado início a uma
frades enfrentavam no Maranhão devido
procissão para São Francisco Xavier,
à “grande mortandade que as bexigas
“para aplacar a Ira de Deus”. E mesmo
fizeram no gentio”, ficando as casas dos
tendo posto “escritinhos” pelas portas
moradores sem nenhum escravo e aldeias
das igrejas, afim de que todos viessem
desabitadas (Chambouleyron et al. 2011).
participar, não compareceram por terem
vergonha de invocar São Francisco Além disso, é possível encontrar queixas
Xavier, padre da Companhia, “para dos oficiais da câmara de São Luís
lhes valer contra as bexigas, tendo eles para o Rei, em junho de 1663, sobre
expulsado seus irmãos”, continuando “o miserável estado em que ficava esta
a morrer como antes, ficando só a casa terra e os moradores dela, sem remédio
dos jesuítas intocada pela doença por nem favor algum que V. M. fosse ser-
terem invocado seu santo padroeiro vido mandar a ele, e sobretudo a total
(Bettendorff 2010 [1698]:242). ruína de mortes que tem havido nos
índios, escravos e aldeias” (Ofic. Câm.,
Ele continua o relato tratando do caso do
24 jun. 1663). Durante a década de 60
sargento-mor Bernardino de Carvalho,
do século XVII, então, “estava o Ma-
que ao adquirir “um belo registro do
ranhão ardendo com a peste das bexi-
santo”, dado pelo próprio Bettendorff,
gas” (Bettendorff 2010 [1698]:231) e os
o colocou em sua casa, rogando-lhe
moradores enfrentavam sérias dificul-
seu favor e “foi coisa admirável que ne-
dades devido à falta de mão-de-obra.
nhum, nem de sua casa na cidade, nem
Tal cenário não seria muito diferente na
de fora dela, na roça, morreu de bexigas,
década de 90 deste mesmo século.
justas e os resgates (Alvará em forma era a salvação de vidas, não sendo intuito
de lei, 28 abr. 1688). Segundo Beatriz da Coroa incentivar o aprisionamento
Perrone-Moisés (1992:123), as causas de nativos com o único objetivo de
legítimas de guerra-justa seriam “a re- serem vendidos para as tropas de res-
cusa à conversão ou o impedimento da gate (Neves 2012: 257). Essas eram as
propagação da fé, a prática de hostili- condições impostas na letra da lei. Ob-
dades contra vassalos e aliados e a que- viamente, na prática, os resgates eram
bra de pactos celebrados”. feitos de forma bem menos “altruísta”.
Os resgates consistiam em uma ne- Essas eram as leis que regulamentavam
gociação na qual índios prisioneiros a obtenção e utilização da mão-de-obra
de outros índios – como resultado de indígena. Os índios livres aldeados deve-
guerras entre as populações indígenas riam ficar sob a administração espiritual
ou “presos à corda” para serem comi- e temporal dos missionários, cabendo
dos por grupos que praticavam antro- a estes fazer os descimentos – ou seja,
pofagia ritual – eram trocados por mer- trazê-los do sertão para as cercanias das
cadorias. De acordo com Nádia Farage cidades – e reparti-los para trabalhar na
(1991:28), o conceito de resgate tem casa dos moradores e nas obras públi-
precedência no comércio português na cas, mediante pagamento. Além, é claro,
África, já no século XV e, desse modo, de catequizá-los. Os índios escravos só
foi praticado desde os primeiros anos poderiam ser obtidos através de guer-
de exploração da costa brasileira. Teo- ra-justa ou adquiridos por uma tropa
ricamente, somente um índio cujo des- oficial de resgate, ou seja, a guerra e a
tino era ser devorado por seus inimigos tropa deveriam ser permitidas, respec-
poderia ser objeto de um resgate. O tivamente, pelo Rei e pela administra-
índio seria avaliado como um resgatado ção colonial para que a escravidão fosse
legítimo se fosse obtido por meios repu- considerada lícita.
tados legais pelos portugueses. Sendo
Tendo isso em mente, podemos final-
assim, a guerra entre nações indígenas
mente voltar à carta régia de 10 de ja-
deveria ser considerada justa, seguindo
neiro de 1697 enviada para os oficiais
basicamente os mesmos princípios aplica-
da câmara do Pará. Nesta, o Rei respon-
dos à guerra-justa movida por portugueses
dia a uma solicitação feita pelos oficiais
contra os índios, para que o cativeiro fosse
no ano de 1696, na qual se queixavam
julgado legal.
da situação de miséria em que a popu-
Segundo o Alvará de 1688, poderiam lação se achava devido aos efeitos da
ser resgatados “todos os que se acha- epidemia de bexigas que matou seus
rem cativos em guerras de outros índios escravos, pedindo licença para os mora-
ou sejam presos à corda para os co- dores administrarem aquelas aldeias que
merem ou cativos para os venderem”, pudessem formar a partir de descimen-
desde que não fossem “cativos para o tos realizados às suas próprias custas.
efeito das vendas somente”. Sendo as- Tal solicitação foi indeferida, com a jus-
sim, de acordo com a lei, a prioridade tificativa de que, apesar das razões apre-
sentadas pelos oficiais, ainda se deveria “FOGO QUE SALTA” DOS NAVIOS
respeitar as leis do Estado. NEGREIROS
O argumento da “miséria” é ampla- O padre jesuíta João Filipe Bettendorff
mente explorado e facilmente encon- é, novamente, a fonte que oferece mais
trado nas solicitações dos moradores do detalhes sobre o começo da epidemia
Estado do Maranhão durante o período de 1695. Segundo ele, as bexigas teriam
colonial. Conhecendo a importância chegado ao Estado do Maranhão numa
que a força de trabalho indígena assu- embarcação que trouxe escravos de An-
miu para esse Estado, não é de se es- gola. Eis seu relato:
tranhar o feito catastrófico de uma epi- “Como no navio dos tapanhunos3
demia cujos principais afetados fossem tinha vindo uma pessoa malsã de
os índios. Nesse sentido, a representação bexigas, e por isso estava proibido
feita pelos oficiais do Pará se embasa de chegar-se a ancorar no porto da
nessa necessidade. cidade, e por que o capitão e mestre
da nau negavam haver nele bexigas,
Ainda assim, o pedido é negado. Não e faziam seus protestos à Câmara
apenas este, mas também uma solicitação pelas perdas e danos, foi deixado
de mesmo teor enviada pelos oficiais da entrar, estando os moradores com
câmara do Maranhão teve resposta nega- os olhos nos tapanhunos; porém o
tiva neste mesmo dia (Carta Régia, 10 jan. que parecia ser para seu remédio,
1697). A justificativa para ambas é de se foi para sua grande ruína, porque
resguardar as leis. Na prática, isso signifi- com eles, os tapanhunos, entraram
cava que, naquele momento, a Coroa não as câmaras e febres, que mataram
permitiria que os colonos administrassem muita gente, não ficando de fora
os que tinham alguma mistura de
aldeamentos, ainda que estes fossem for-
sangue de índios e negros, e nem
mados a partir de descimentos realizados por isso parou o mal, porque se
com os cabedais dos próprios moradores. antes de partir o padre superior
Apesar da “penúria” em que se encontra- da missão e o governador do Maranhão
vam os moradores, eles deveriam continuar ia morrendo tanta gente dessas
seguindo as mesmas leis e esperar que a moléstias, entrando as bexigas, de-
demanda de mão-de-obra fosse suprida pois deles partido, morreu gente
pelos meios lícitos. Eles, é claro, continu- sem comparação muito mais.”
ariam tentando essa e outras formas para (2010 [1698]:662)
obter permissão para buscar indígenas no A partir dessa citação é possível refletir
sertão. A partir desse cenário jurídico e sobre algumas características do deslo-
social estabelecido, vamos então analisar camento transatlântico no período co-
a epidemia de 1695 e seus efeitos para a lonial. Havia uma grande circulação de
população do Estado do Maranhão, avalian- pessoas, ideias, especiarias e também
do as maneiras com que esses agentes tenta- de doenças. Não à toa Rafael Cham-
ram sanar os males causados pelas bexigas e bouleyron observa que as décadas de
localizando esse problema no contexto do surtos epidêmicos no Estado do Maranhão
império ultramarino português.
car no rio Itapecuru e, que sendo “seu de 1697, por ser inviável tal provimento
sítio infestado dos bárbaros tapuias do (Carta régia, 16 nov. 1697). E em 6 de
corso”, necessitava de muitos escravos julho de 1698, quando os camaristas do
para fabricar e se defender. E como seu Maranhão reclamavam do novo impos-
engenho tinha ficado despovoado devido to que deveria ser pago para o sustento
ao contágio das bexigas, lhe causando da infantaria, recusando-se a pagar o
grande prejuízo, requeria que lhe permi- tributo devido ao “miserável estado”
tisse comprar cento e vinte escravos, tan- em que se encontravam sem escravos
to africanos quanto indígenas, “a pagar para suas lavouras, solicitando que lhes
aos anos” (Carta régia, 16 nov. 1700). “aliviasse desse embargo”. Mais uma
vez o pedido é negado pelo Rei, em
Além desses, muitos moradores solici-
11 de dezembro de 1698 (Carta Régia,
tavam ainda licença para descer e/ou
11 dez. 1698). Este tributo continuaria
resgatar indígenas às suas próprias cus-
sendo tema controverso por mais al-
tas, ou seja, sem esperar pela tropa anual
guns anos, causando problemas na sua
financiada pela Fazenda Real. Em 20 de
arrecadação para a Fazenda Real.
novembro de 1699, o Rei responde so-
bre uma representação dos oficiais do Como podemos ver, as consequências
Maranhão que do surto epidêmico de 1695 foram in-
“por várias vezes me tem represen- tensificadas pela fome causada pela seca
tado sobre a miséria em que os mo- e pelo ataque dos “índios do corso”, na
radores desse Estado se acham com a fronteira oriental da capitania do Mara-
falta de escravos com a grande mor- nhão. Segundo Rafael Chambouleyron,
tandade que deles se tem experimen- no final do século XVII o procurador
tado [...] o que só se poderá remediar do Estado concluía que o contágio das
concedendo as entradas do sertão bexigas teria levado “entre cativos e
para os resgates de escravos. Fui ser- forros o melhor de cinco mil” (Cham-
vido resolver que os resgates se per-
bouleyron 2009:9). Tamanho impacto
mitam, fazendo-se porém a arbítrio
na população que constituía a base da
da Junta das Missões assentando-se
nela o tempo de se fazerem guar- força de trabalho da região gerou uma
dando-se infalivelmente a minha lei” série de solicitações e reclamações por
(Carta régia, 20 nov. 1699). parte dos moradores. Uma das soluções
encontrada para tentar suprir esta de-
Nesse contexto também aparecem di- manda foi recorrer à mão-de-obra es-
versos tipos de queixas e reivindicações crava africana. Outra foi buscar por
dos colonos para a Coroa portuguesa. mais índios no sertão, fosse para constituir
Como em 24 de julho de 1697, quando aldeamentos conforme o Regimento
os oficiais da Câmara do Pará pediam das Missões regulamentava, para es-
que se diminuísse o preço dos escravos cravizá-los na forma que ordenava o
africanos, “pela necessidade que tem os alvará de 28 de abril de 1688 ou mesmo
moradores desse Estado de escravos para fazer cativos de maneira ilegal.
para suas lavouras”, tendo sua petição
indeferida pelo Rei, em 16 de novembro
Certamente, as atitudes dos índios frente pera, Cabo Norte e Xingu. A sede de seu
às doenças constituem elementos im- governo era a cidade de São Luís. Foi ex-
portantes para a compreensão das tinto em 1652 e restabelecido em 1654, pas-
epidemias, bem como dos processos sando a ter o nome de Estado do Maranhão
e Grão-Pará. Sobre o assunto ver também
de depopulação e genocídio que atin-
Chamboleyron 2010.
giram as populações locais. Definições
como a de “fogo que salta”, utilizada
2
Carta régia, 10 jan. 1697.
para definir a catapora, são, portanto, 3
Termo utilizado no período para se referir
fundamentais para a compreensão das aos escravos africanos.
categorias nativas nesse processo. Afi- 4
Durante o período colonial, o termo sertões
nal, conforme Adam e Herzlich (2001: era normalmente usado para designar a sel-
8), “a doença tem, certamente, uma va amazônica, demarcando o mundo bran-
nota de universalidade, mas ela tam- co, português, colonial, em relação àquele
bém é modelada pelo contexto cultural outro ainda pertencente ao domínio da na-
e social no qual ela ocorre”. Uma abor- tureza, dos nativos, mas que deveria vir a ser
dagem que considere as ações políticas incorporado ao controle lusitano.
pari passu às modelações culturais e a 5
A capitania do Caeté era uma capitania
ação dos fatores ambientais muito pode privada, ou seja, foi concedida a um particu-
revelar nesse sentido. lar a fim de que este promovesse sua ocu-
pação e desenvolvimento. Esta se estendia
do rio Caeté (no atual Pará) até o rio Tu-
AGRADECIMENTOS riaçu (no atual Maranhão), incluindo o rio
Gurupi (atual fronteira entre os estados do
Este artigo foi concebido a partir das Pará e Maranhão). Foi doada a Gaspar de
discussões e leituras feitas na disciplina Semi- Sousa, em 1622, e confirmada para seu filho
nários da Linha de Pesquisa História Álvaro de Sousa, em 1634. Sobre o assunto
e Natureza, que ocorreu durante o se- ver Chambouleyron 2005.
gundo semestre de 2012, ministrada
pelo Prof. Dr. Márcio Couto Henrique, 6
A capitania de Joanes, localizada na Ilha do
a quem agradeço imensamente pela aten- Marajó, também era uma capitania privada. Foi
ciosa leitura e pelos comentários críti- doada a Antônio de Sousa de Macedo, em 23 de
cos. Agradeço à CAPES pela concessão dezembro de 1665. Annaes da Biblioteca e Arquivo
da bolsa de Mestrado no Programa de Público do Estado do Pará, vol. I, pp 46-56.
Pós-Graduação em História Social da
Amazônia/UFPA.
REFERÊNCIAS
Adam, P. e C. Herzlich. 2001. Sociologia da
NOTAS
Doença e da Medicina. Tradução de Laureano
1
Criado como unidade administrativa dis- Pelegrin. Bauru: EDUSC.
tinta do Estado do Brasil em 1621, o Estado
do Maranhão passou a vigorar a partir de Alencastro, L. F. de. 2000. O trato dos viventes:
1626, agregando capitanias reais – Maranhão, formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo:
Grão-Pará, Gurupá e Ceará – e capitanias Companhia das Letras.
privadas – Caeté, Cametá, Marajó, Tapuita-
Recebido em 20/04/2013.
Aprovado em 20/07/2013.