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A ira de Deus e

fogo que sa
A epidemia de bexigas
estado do Maranhão (1

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eo A ira de Deus e o
alta: fogo que salta:

s no A epidemia de bexigas no
estado do Maranhão (1695)
1695)

TAMYRIS MONTEIRO NEVES


Universidade Federal do Pará, Brasil

345
Neves, T. M.

A IRA DE DEUS E O FOGO QUE SALTA: A EPIDEMIA DE


BEXIGAS NO ESTADO DO MARANHÃO (1695)
Resumo
Este artigo trata sobre a epidemia de “bexigas” de 1695, que devastou o
Estado do Maranhão e Grão-Pará, visando demonstrar qual o impacto dessa
doença nos habitantes da região e que ações foram engendradas a partir da
necessidade de mão-de-obra que se formou nesse contexto. As fontes utiliza-
das são correspondências de natureza oficial, como as cartas trocadas entre as
autoridades coloniais e a Coroa portuguesa, e a crônica do padre jesuíta João
Filipe Bettendorff. Além de se inserir nos estudos sobre a Amazônia colonial,
esta pesquisa busca dialogar também com os autores da chamada “história
ambiental”, visto que a epidemia estudada revelou uma variável ambiental
que pesou consideravelmente nas decisões tomadas acerca da colonização do
Estado do Maranhão naquele período.
Palavras-chave: epidemia, período colonial, Maranhão

THE WRATH OF GOD AND THE JUMPING FIRE: THE SMALLPOX


EPIDEMY IN THE STATE OF MARANHÃO
Abstract
This article focus on the epidemic of “bexiga” in 1695, which devastated
the state of Maranhão and Grão-Pará, aiming to demonstrate the impact
of this disease in the inhabitants of the region, and the actions the need of
workforce engendered in this context. The sources used are correspondence
of official nature, such as the letters exchanged between the colonial authori-
ties and the Portuguese Crown, and the written chronicles of the Jesuit priest
João Filipe Bettendorff. Besides being inserted in studies on the Colonial
Amazon, this research also seeks to dialogue with the authors of the so called
“environmental history” since the studied epidemic reveals one environmen-
tal variable that weighed considerably in the decisions about the colonization
of Maranhão in that period.
Keywords: epidemic, colonial period, Maranhão State

LA IRA DE DIOS Y EL FUEGO QUE SUBE: LA EPIDEMIA DE VEJIGAS


EN LA PROVINCIA DE MARANHÃO
Resumen
Este artículo dirige sobre la epidemia de las “vejigas” en el año 1695, que
devastó el estado de Maranhão y Gran Pará demostrando el impacto de esta
enfermedad en los habitantes de la región y las acciones que se han generado
a partir de la necesidad de mano de obra que se he formado en este contexto.
Las fuentes que se fueron utilizadas son las correspondencias de oficial na-

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turaleza, como las cartas intercambiadas entre las autoridades coloniales y


la corona portuguesa, y la crónica del padre jesuita João Filipe Bettendorff.
Además, se inserta en los estudios sobre la Amazonia colonial. La presente
investigación también busca el diálogo con los autores de la llamada “historia
ambiental”, ya que la epidemia dirigida reveló una variable ambiental que
pesó considerablemente en las decisiones sobre la colonización del estado de
Maranhão en ese período.
Palabras clave: epidemias, periodo colonial, Maranhão

Endereço da autora para correspondência: Conjunto Tapajós, Rua


Alasca, nº 23D, bairro Tapanã, Belém/PA.Cep 66833-330. E-mail: tamy.
monteiro@hotmail.com

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Neves, T. M.

“Vem, Virgem Maria, para a população do Estado do Maranhão.


mãe de Deus, visitar esta aldeia Todavia, os surtos epidêmicos não eram
[...] novidade para aqueles moradores; ao longo
afasta as enfermidades da colonização houve outros momentos
febres, disenterias,
de crise causados por pestes. Na segunda
as corruções e a tosse,
para que seus habitantes creiam em Deus,
metade do século XVII, há registros de duas
teu filho” grandes epidemias, a de 1661 e a de 1695.
José de Anchieta (1954) E embora o enfoque deste artigo seja esta
última, começarei tratando rapidamente da
primeira a fim de demonstrar melhor alguns
A Coroa portuguesa, durante o processo argumentos a serem desenvolvidos.
de conquista e ocupação do Maranhão
e Grão-Pará,1 encontrou uma série de
dificuldades para levar adiante seu pro- “O MARANHÃO ARDENDO COM A
jeto de colonização: contendas acerca da PESTE DAS BEXIGAS”: A EPIDEMIA
obtenção e controle da mão-de-obra in- DE 1661
dígena, escrava e livre; problemas na con-
A principal fonte para o estudo dessa epi-
solidação das missões religiosas, devido
demia é o relato feito pelo jesuíta João Filipe
ao constante conflito entre missionários
Bettendorff, através de sua “Crônica da
e moradores; algumas tentativas fracas-
missão dos padres da Companhia de Jesus
sadas de importar atividades economica-
no Estado do Maranhão” (Bettendorff 2010
mente rentáveis de outras partes do Im-
[1698]). Tendo vivido no Estado do Ma-
pério português; o assédio das fronteiras do
ranhão no período em que ocorreram
Estado por outras nações, entre outras.
três surtos epidêmicos – em 1661, 1695 e
Outros impedimentos, todavia, eram im- 1724 –, o padre é fonte recorrente nas pes-
postos por agentes não humanos: sítios quisas que tratam sobre o tema.
tomados por formigas que destruíam as
Segundo Bettendorff, a epidemia de
plantações; a floresta densa e todos os
bexigas de 1661 começou na capitania
perigos que ela era capaz de oferecer às
do Pará, na casa de Clara de Sousa, mo-
tropas que lá adentravam; rios de difícil
radora das ilhas, matando seu filho. De
navegação e doenças que se alastravam
lá, se alastrou pela cidade e demais capi-
rapidamente, matando milhares de pes-
tanias, “com tanto estrago dos índios
soas. Tratarei neste artigo de uma epi-
que acabou a maior parte deles, mor-
demia que assolou o Estado, sendo um
rendo também alguns filhos da terra
elemento de perturbação do projeto co-
que tinham alguma mistura”. Os padres
lonial português, revelando uma variável
Manuel Nunes, João Maria, Salvador do
ambiental que pesou consideravelmente
Vale e Pedro Luís Gonçalves “acudiam”
nos rumos da colonização.
o Maranhão e o padre Gaspar Misseh e
A epidemia a que me refiro foi a de o próprio Bettendorff ficaram respon-
1695, que durou cerca de quatro a cinco sáveis por socorrer os enfermos do Pará
meses, tendo resultados desastrosos (Bettendorff 2010[1698]:241).

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Em sua narrativa, Bettendorff trata sendo que tudo ao redor ardia” (Betten-
essa epidemia de bexigas como punição dorff 2010 [1698]:242).
divina pela expulsão dos jesuítas do
Embora fique evidente o recurso retórico
Estado do Maranhão, que ocorreu no
utilizado na crônica para reforçar a ideia
mesmo ano, 1661. De acordo com Ra-
de que aqueles que apoiassem a missão
fael Chambouleyron, “a epidemia foi
dos padres da Companhia de Jesus teriam
uma excelente oportunidade para o pa-
a proteção divina e os que se opusessem,
dre Bettendorff ressaltar os malefícios
por sua vez, sentiriam o peso do castigo
causados pela sacrílega expulsão dos
divino, não podemos negar o efeito avas-
religiosos, pouco tempo antes” (Cham-
salador dessa epidemia para a população
bouleyron et al. 2011). Tal afirmação, de
do Estado do Maranhão.
que Bettendorff utilizou esta epidemia
como argumento contra os moradores Chambouleyron, Barbosa, Bombardi e
que lhes expulsaram, pode ser con- Sousa analisam, em seu texto sobre as
firmada ao analisarmos alguns “casos epidemias que assolaram a Amazônia
dignos de memória” – para usar suas colonial, outros relatos acerca dos efei-
próprias palavras – relatados pelo jesuíta. tos deste surto epidêmico. Um deles é
de um religioso franciscano, frei Pedro
Segundo Bettendorff, ao começar
das Neves, que escreveu aos seus superi-
“essa praga pestilencial” na capitania
ores sobre as diversas dificuldades que os
do Pará, ele teria dado início a uma
frades enfrentavam no Maranhão devido
procissão para São Francisco Xavier,
à “grande mortandade que as bexigas
“para aplacar a Ira de Deus”. E mesmo
fizeram no gentio”, ficando as casas dos
tendo posto “escritinhos” pelas portas
moradores sem nenhum escravo e aldeias
das igrejas, afim de que todos viessem
desabitadas (Chambouleyron et al. 2011).
participar, não compareceram por terem
vergonha de invocar São Francisco Além disso, é possível encontrar queixas
Xavier, padre da Companhia, “para dos oficiais da câmara de São Luís
lhes valer contra as bexigas, tendo eles para o Rei, em junho de 1663, sobre
expulsado seus irmãos”, continuando “o miserável estado em que ficava esta
a morrer como antes, ficando só a casa terra e os moradores dela, sem remédio
dos jesuítas intocada pela doença por nem favor algum que V. M. fosse ser-
terem invocado seu santo padroeiro vido mandar a ele, e sobretudo a total
(Bettendorff 2010 [1698]:242). ruína de mortes que tem havido nos
índios, escravos e aldeias” (Ofic. Câm.,
Ele continua o relato tratando do caso do
24 jun. 1663). Durante a década de 60
sargento-mor Bernardino de Carvalho,
do século XVII, então, “estava o Ma-
que ao adquirir “um belo registro do
ranhão ardendo com a peste das bexi-
santo”, dado pelo próprio Bettendorff,
gas” (Bettendorff 2010 [1698]:231) e os
o colocou em sua casa, rogando-lhe
moradores enfrentavam sérias dificul-
seu favor e “foi coisa admirável que ne-
dades devido à falta de mão-de-obra.
nhum, nem de sua casa na cidade, nem
Tal cenário não seria muito diferente na
de fora dela, na roça, morreu de bexigas,
década de 90 deste mesmo século.

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Neves, T. M.

“O MISERÁVEL ESTADO EM QUE SE beneficiando um ou outro dos grupos


ACHA O MARANHÃO”2 sociais envolvidos na empreitada colo-
nial, neste caso, missionários ou colonos.
No dia 10 de janeiro de 1697, o Rei D.
Pedro II enviou uma carta para os ofi- A mão-de-obra nativa foi a base da colo-
ciais da câmara do Pará, em resposta à nização portuguesa na região amazônica,
representação feita por esses oficiais no uma vez que os indígenas desempenha-
dia 16 de junho do ano anterior, na qual vam diversos tipos de trabalhos: coleta-
tratavam sobre o “miserável estado” vam drogas do sertão, eram remeiros,
em que se achava a população daquela intérpretes, amas-de-leite, trabalhavam
capitania devido à “mortandade que ti- nas plantações de açúcar, na construção
veram por causa das bexigas nos seus de obras públicas e religiosas, entre outras
escravos”, solicitando licença para os atribuições. Eram também os nativos
moradores administrarem as aldeias que que serviam de guias durante as entra-
pudessem descer às suas próprias cus- das nos “sertões” para fazer descimen-
tas, por ser esse “o remédio com que se tos; lutavam nas guerras justas contra
pode reparar tão grande dano”. O pedido nações inimigas e acompanhavam as
foi indeferido, com a justificativa de que, tropas de resgate para buscar novos
apesar das razões apresentadas, ainda se cativos. Em suma, os índios constituíam
deveria “guardar inviolavelmente” as leis para os portugueses a base produtiva do
do Estado (Carta régia, 10 jan. 1697). Maranhão e Grão-Pará.
A fonte descrita acima faz referência Por esse motivo, a disputa pelo aces-
aos efeitos da epidemia de 1695 e à so e controle da mão-de-obra nativa
constante necessidade de mão-de-obra foi considerada por Marcia Mello
indígena. Para que possamos entender “o tema mais recorrente na história
a relevância deste registro para o argu- do Grão-Pará, notadamente, a partir
mento a ser desenvolvido neste artigo, da segunda metade do século XVII,
é necessária uma explicação prévia de chegando mesmo a envolver as in-
algumas leis que estavam em vigor cipientes estruturas do poder local”
naquele momento e de alguns eventos (2009:244). Esses constantes debates
que marcaram a história do Estado do concorreram para a construção – e
Maranhão e Grão-Pará. É deste con- ao mesmo tempo são, em alguma
texto que tratarei agora. medida, provenientes – de uma pro-
fusão de leis que objetivavam regu-
Desde o século XVI, nas conquistas por-
lamentar a questão da escravidão ou
tuguesas da América, a questão da es-
liberdade indígena.
cravização dos índios foi um problema
candente. No Estado do Maranhão, A crescente demanda por força de trabalho
a Coroa legitimou formas de acesso à nativa no decorrer da colonização con-
mão-de-obra nativa, visando a garantia figurou uma barreira para a Coroa por-
de fornecimento e reprodução da força tuguesa que, pressionada tanto por colo-
de trabalho indígena, formas estas que nos e missionários quanto pela própria
acabavam, em momentos distintos, ação indígena, se viu obrigada a elaborar

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vasta legislação no intuito de resolver de uma revolta de moradores em 1684,


os problemas explicitados pelos diversos a Revolta de Beckman, que culminou na
grupos que constituíam a sociedade co- expulsão dos padres da Companhia de
lonial por meio de cartas, litígios e ações Jesus pela segunda vez.
cotidianas. A Coroa lusitana, nesse con-
Numa tentativa de dar conta desses
texto, adotou políticas diferentes quanto
problemas no abastecimento de mão-
à escravização de índios de acordo com
de-obra, em 21 de dezembro de 1686 foi
as conjunturas de determinados períodos
promulgado o Regimento das Missões.
da colonização.
Segundo Chambouleyron e Fernanda
Entre as leis que regulamentavam a Bombardi, esse regimento teve forte in-
questão da liberdade ou escravização fluência de outro jesuíta, o padre João
de indígenas estão o Regimento das Filipe Bettendorff, e “dispunha sobre a
Missões, de 1686, e o alvará de 28 de forma de administração das aldeias de
abril de 1688. No momento da epi- índios livres descidos por missionários
demia de 1695 ambas estavam em vigor e sua repartição para trabalho entre os
e constituíam a base da regulamentação moradores” (Chambouleyron & Bom-
acerca da obtenção de mão-de-obra na- bardi 2011:604). Seu objetivo, então, era
tiva. Tratarei, então, de forma um pouco regulamentar a convivência nos aldeamen-
mais detalhada sobre essas duas leis. tos para diminuir a instabilidade nas re-
lações entre missionários e colonos.
A década de 80 do século XVII foi
um período conturbado no Estado do De acordo com o Regimento das
Maranhão. Em 1680, uma série de leis Missões, metade dos índios livres al-
sobre os índios do Maranhão foram deados deveria entrar no regime de
publicadas, a mais marcante delas pro- “repartição”, durante quatro meses nos
vavelmente foi a de 1º de abril, que sertões do Maranhão e seis meses nos
proibia a escravização de índios (Lei, do Pará. Estabelecia ainda que a Com-
1º abr. 1680). Revelando alguma in- panhia de Jesus deteria não somente
fluência dos religiosos, em particular de o governo espiritual, mas também o
Antônio Vieira, esta lei determinava a político e temporal das aldeias, valendo
total e irrestrita liberdade dos indígenas da mesma forma para os padres fran-
e concedia à Companhia de Jesus a ex- ciscanos (Chambouleyron & Bombardi
clusividade para fazer descimentos e ad- 2011:605). Esse Regimento vigorou até
ministrar os aldeamentos. Não é preciso a publicação do Diretório dos Índios,
dizer que essa lei não deixou os colonos em 1757, quando os religiosos perderam
muito contentes. o controle temporal dos aldeamentos.
Além disso, um monopólio comercial O alvará de 28 de abril de 1688 revogou a
estabelecido entre a Coroa portuguesa lei de 1º de abril de 1680 e restabeleceu
e negociantes privados em 12 de janeiro a escravização de índios, após oito anos
de 1682 (Chambouleyron 2005), que de proibição. De acordo com esse al-
ficou conhecido como “estanco”, for- vará, havia duas formas lícitas de obten-
mou o cenário propício para a explosão ção de escravos indígenas: as guerras-

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Neves, T. M.

justas e os resgates (Alvará em forma era a salvação de vidas, não sendo intuito
de lei, 28 abr. 1688). Segundo Beatriz da Coroa incentivar o aprisionamento
Perrone-Moisés (1992:123), as causas de nativos com o único objetivo de
legítimas de guerra-justa seriam “a re- serem vendidos para as tropas de res-
cusa à conversão ou o impedimento da gate (Neves 2012: 257). Essas eram as
propagação da fé, a prática de hostili- condições impostas na letra da lei. Ob-
dades contra vassalos e aliados e a que- viamente, na prática, os resgates eram
bra de pactos celebrados”. feitos de forma bem menos “altruísta”.
Os resgates consistiam em uma ne- Essas eram as leis que regulamentavam
gociação na qual índios prisioneiros a obtenção e utilização da mão-de-obra
de outros índios – como resultado de indígena. Os índios livres aldeados deve-
guerras entre as populações indígenas riam ficar sob a administração espiritual
ou “presos à corda” para serem comi- e temporal dos missionários, cabendo
dos por grupos que praticavam antro- a estes fazer os descimentos – ou seja,
pofagia ritual – eram trocados por mer- trazê-los do sertão para as cercanias das
cadorias. De acordo com Nádia Farage cidades – e reparti-los para trabalhar na
(1991:28), o conceito de resgate tem casa dos moradores e nas obras públi-
precedência no comércio português na cas, mediante pagamento. Além, é claro,
África, já no século XV e, desse modo, de catequizá-los. Os índios escravos só
foi praticado desde os primeiros anos poderiam ser obtidos através de guer-
de exploração da costa brasileira. Teo- ra-justa ou adquiridos por uma tropa
ricamente, somente um índio cujo des- oficial de resgate, ou seja, a guerra e a
tino era ser devorado por seus inimigos tropa deveriam ser permitidas, respec-
poderia ser objeto de um resgate. O tivamente, pelo Rei e pela administra-
índio seria avaliado como um resgatado ção colonial para que a escravidão fosse
legítimo se fosse obtido por meios repu- considerada lícita.
tados legais pelos portugueses. Sendo
Tendo isso em mente, podemos final-
assim, a guerra entre nações indígenas
mente voltar à carta régia de 10 de ja-
deveria ser considerada justa, seguindo
neiro de 1697 enviada para os oficiais
basicamente os mesmos princípios aplica-
da câmara do Pará. Nesta, o Rei respon-
dos à guerra-justa movida por portugueses
dia a uma solicitação feita pelos oficiais
contra os índios, para que o cativeiro fosse
no ano de 1696, na qual se queixavam
julgado legal.
da situação de miséria em que a popu-
Segundo o Alvará de 1688, poderiam lação se achava devido aos efeitos da
ser resgatados “todos os que se acha- epidemia de bexigas que matou seus
rem cativos em guerras de outros índios escravos, pedindo licença para os mora-
ou sejam presos à corda para os co- dores administrarem aquelas aldeias que
merem ou cativos para os venderem”, pudessem formar a partir de descimen-
desde que não fossem “cativos para o tos realizados às suas próprias custas.
efeito das vendas somente”. Sendo as- Tal solicitação foi indeferida, com a jus-
sim, de acordo com a lei, a prioridade tificativa de que, apesar das razões apre-

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A ira de Deus e o fogo que salta

sentadas pelos oficiais, ainda se deveria “FOGO QUE SALTA” DOS NAVIOS
respeitar as leis do Estado. NEGREIROS
O argumento da “miséria” é ampla- O padre jesuíta João Filipe Bettendorff
mente explorado e facilmente encon- é, novamente, a fonte que oferece mais
trado nas solicitações dos moradores do detalhes sobre o começo da epidemia
Estado do Maranhão durante o período de 1695. Segundo ele, as bexigas teriam
colonial. Conhecendo a importância chegado ao Estado do Maranhão numa
que a força de trabalho indígena assu- embarcação que trouxe escravos de An-
miu para esse Estado, não é de se es- gola. Eis seu relato:
tranhar o feito catastrófico de uma epi- “Como no navio dos tapanhunos3
demia cujos principais afetados fossem tinha vindo uma pessoa malsã de
os índios. Nesse sentido, a representação bexigas, e por isso estava proibido
feita pelos oficiais do Pará se embasa de chegar-se a ancorar no porto da
nessa necessidade. cidade, e por que o capitão e mestre
da nau negavam haver nele bexigas,
Ainda assim, o pedido é negado. Não e faziam seus protestos à Câmara
apenas este, mas também uma solicitação pelas perdas e danos, foi deixado
de mesmo teor enviada pelos oficiais da entrar, estando os moradores com
câmara do Maranhão teve resposta nega- os olhos nos tapanhunos; porém o
tiva neste mesmo dia (Carta Régia, 10 jan. que parecia ser para seu remédio,
1697). A justificativa para ambas é de se foi para sua grande ruína, porque
resguardar as leis. Na prática, isso signifi- com eles, os tapanhunos, entraram
cava que, naquele momento, a Coroa não as câmaras e febres, que mataram
permitiria que os colonos administrassem muita gente, não ficando de fora
os que tinham alguma mistura de
aldeamentos, ainda que estes fossem for-
sangue de índios e negros, e nem
mados a partir de descimentos realizados por isso parou o mal, porque se
com os cabedais dos próprios moradores. antes de partir o padre superior
Apesar da “penúria” em que se encontra- da missão e o governador do Maranhão
vam os moradores, eles deveriam continuar ia morrendo tanta gente dessas
seguindo as mesmas leis e esperar que a moléstias, entrando as bexigas, de-
demanda de mão-de-obra fosse suprida pois deles partido, morreu gente
pelos meios lícitos. Eles, é claro, continu- sem comparação muito mais.”
ariam tentando essa e outras formas para (2010 [1698]:662)
obter permissão para buscar indígenas no A partir dessa citação é possível refletir
sertão. A partir desse cenário jurídico e sobre algumas características do deslo-
social estabelecido, vamos então analisar camento transatlântico no período co-
a epidemia de 1695 e seus efeitos para a lonial. Havia uma grande circulação de
população do Estado do Maranhão, avalian- pessoas, ideias, especiarias e também
do as maneiras com que esses agentes tenta- de doenças. Não à toa Rafael Cham-
ram sanar os males causados pelas bexigas e bouleyron observa que as décadas de
localizando esse problema no contexto do surtos epidêmicos no Estado do Maranhão
império ultramarino português.

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Neves, T. M.

“coincidiram com irrupções da ca à invasão de células patogênicas. In-


mesma doença no Estado do Brasil vasão esta resultante do processo de
e com situações de seca e fome em conquista do Novo Mundo por parte
partes do continente africano. Isso dos povos europeus, levado a cabo a
seguramente reforça a importância
partir das chamadas “grandes navega-
do tráfico negreiro na transmissão
de algumas doenças que grassaram
ções”, culminando na ocupação da
entre os indígenas da Amazônia América e completando esse processo
e da América de um modo geral” de “unificação microbiana do mundo”.
(Chambouleyron et al. 2011: 989) Ainda segundo Alencastro (2000), além
Nesse sentido, Luiz Felipe de Alencas- do isolamento genético, outros fatores
tro (2000:127) analisa essa “vulnerabi- contribuíram para aumentar o choque
lidade dos índios ao choque epidemi- microbiano na América portuguesa, tais
ológico” – como resultado do que ele como os aldeamentos que transferiam
chama de “unificação microbiana do comunidades, reagrupando-as na proximi-
mundo” – como um fator que restrin- dade de portos e de um novo campo pa-
giu a extensão do cativeiro indígena e, togênico formado por europeus e africanos;
inversamente, facilitou o incremento da a má alimentação; a derrubada das ma-
escravidão negra. Vale ressaltar que sua tas, facilitando a proliferação dos mos-
análise é voltada, de modo geral, para quitos e das febres, entre outros.
o Estado do Brasil e que no Estado do Alencastro enumera as diversas enfermi-
Maranhão, embora as epidemias tenham dades que invadiram a América portu-
implicado maior comercialização de guesa, veiculadas pelos europeus e pelos
escravos africanos, elas também impul- africanos. Segundo o autor,
sionaram maior número de buscas por
“as doenças mais mortíferas – aqui
indígenas no sertão.4 Apesar disso, o
como em toda a América pós-co-
argumento central deste artigo depende lombiana – foram as ‘bexigas’. Isto
bastante do seu conceito de “unificação é, a varicela, a rubéola e, sobretudo,
microbiana do mundo”, porque acredito a varíola. Banal nos dias de hoje, a
que este explica satisfatoriamente o fenô- varicela se manifestava com grande
meno ocorrido na epidemia em questão. virulência, em especial em crianças
indígenas, levando os tupis a lhe da-
De acordo com Alencastro, em vir- rem um nome cujo efeito assustador
tude do “fracionamento demográfico, se perdeu na desmemoria da língua
da dispersão territorial e da ausência brasileira: ‘fogo que salta’, catapora”
de animais domesticados (suscetíveis (2000:129).
de transmitir zoonoses), os povos pré-
cabralinos permaneciam ao abrigo Essa foi a peste que saltou das embar-
das pandemias que açoitavam o Velho cações do tráfico negreiro, em 1695, e
Mundo” (2000:127). Sendo assim, a re- devastou boa parte da população do Es-
duzida diversidade genética dos indígenas tado do Maranhão. A partir da “desco-
da América do Sul, pode ter concorrido berta do Novo Mundo”, os europeus
para criar menor resistência imunológi- expandiram seus domínios territoriais e

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A ira de Deus e o fogo que salta

seus lucros com a exploração de maté- lixa, e as bexigas sarampadas e outras


ria-prima e de pessoas dos outros con- desta casta, as quais fizeram tanto es-
tinentes. Com isso, além de promover trago nos índios, assim forros como
o deslocamento de mercadorias e de escravos, e mais nos tapanhunos, que
é uma dor de coração somente referi-
escravos também transportaram muitos
lo, e caíram e foram morrendo tantos,
agentes patológicos. que às vezes não havia quem acudisse
Um autor que trata sobre a expansão aos vivos e enterrasse aos mortos”
europeia para os outros continentes, (2010 [1698]:663).
partindo de uma perspectiva biológica O que o jesuíta chamou de “bexigas
é Alfred Crosby (1993). Ele traz para a brancas”, provavelmente, referia-se à
discussão sobre o imperialismo europeu varicela, ou catapora, e “bexigas pretas”,
novo componente: o ecológico. Crosby era a forma vulgar de nomenclatura
trata sobre as ervas, os animais e as para a varíola hemorrágica, com pústu-
doenças que atravessaram o Atlântico las de cor escura. Segundo Bettendorff,
junto com os europeus, que ele chamou à doença somou-se uma “grande fome
“biota portátil”, que seria “uma desig- pela falta do comércio de farinha, em
nação coletiva para os europeus e todos razão das grandes secas que tinha havido
os organismos que eles carregaram con- naquele ano”, além do ataque feito por
sigo” (1993:238). O objetivo do autor é índios nos rios Mearim e Itapecuru, que
confirmar como esses elementos foram arrasou os currais, ocasionando também
de importância crucial para o avanço dificuldade no abastecimento de carne no
europeu no Novo Mundo. Este artigo, Maranhão (Chambouleyron et al. 2011).
talvez por tratar de uma área bem es-
pecífica e não contemplada no estudo Depois de devastar o Maranhão, as bexi-
de Crosby – a Amazônia –, aponta em gas teriam atingido a vila de Tapuitapera,
outro sentido: busca demonstrar como causando “as mesmas mortandades”,
o trânsito dessa “biota portátil”, algu- chegando à capitania do Caeté,5 “onde
mas vezes escapou do controle metro- o capitão-mor e moradores, que dantes
politano, funcionando como elemento tinham perseguido o padre João Carlos,
de caos, de perturbação do projeto co- não acharam outro remédio de seus
lonial português. corpos e almas senão ele, cuja muita
caridade e experiência de curar lhes
valeu, para não morrerem tantos como
O SURTO EPIDÊMICO DE 1695 nas mais partes” (Bettendorff 2010
[1698]:663). Percebe-se aqui que o dis-
Trazida pelos navios negreiros para a
curso do jesuíta é marcado, mais uma
capitania do Maranhão, as bexigas rapida-
vez, por sua tentativa de demonstrar a im-
mente se espalharam por todo o Estado
portância e a benevolência dos padres
no ano de 1695. Bettendorff relata que
da Companhia para com os moradores,
“Começou o mal pelas bexigas bran- mesmo após outra expulsão. O mesmo
cas de várias castas, e logo seguiram acontece no trecho em que relata:
as pretas, que chamam de pele de

Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 5 (2): 344-361, 2013 355


Neves, T. M.

“Neste tempo das bexigas no Pará Maranhão, em 17 de janeiro de 1697, o


morreu afogado em seu sangue, e Rei cita o fato de “não haver nesse Es-
sem confissão, José de Souza, um dos tado índios, e ficarem as aldeias quase
que no ano de 1662 me prenderam despovoadas com as bexigas” (Carta ré-
no Gurupá, e foram apontados de-
gia, 17 jan. 1697). Em 28 de novembro
pois por levantarem as mãos contra
o ouvidor-geral do Estado, Diogo
do mesmo ano, o Rei respondia a uma
de Sousa de Meneses; e também representação do ouvidor geral do Ma-
faleceu Guilherme Rodrigues Bravo, ranhão, na qual este relatava que tendo
provedor-mor do mesmo Estado, o mandado reunir os índios prisioneiros
qual foi enterrado em nossa igreja, na guerra justa movida em Itapecuru,
tendo-o muito pouco merecido, pois para serem remetidos para Joanes, en-
ele foi quem mais se opôs, quando se contravam-se apenas alguns capazes,
tratou na Junta, e nos não havia de pois o restante faleceu devido ao contá-
conceder os chãos que pedia o padre gio das bexigas. E como os que restaram
reitor Manuel Nunes, para alargar a
“eram tão poucos e se achavam tão bem
nossa cerca; não quis o padre supe-
rior senão mostrar como, conforme
tratados” com pessoas que tinham as-
a doutrina de Cristo Senhor Nosso, sinados termos para entrega-los como
fazemos bem aos que nos fizeram forros sempre que solicitado, pedia que
mal” (Bettendorff 2010 [1698]:666) estes ficassem onde estavam (Carta ré-
gia, 28 nov. 1697).
A epidemia e a fome também alcan-
çaram o Grão-Pará, varrendo a aldeia Havia ainda colonos que tinham per-
de Joanes,6 “de tal sorte que morreram dido todos os escravos que trabalhavam
quase todos os índios, que mal se achava nas suas terras e solicitavam ao Rei que
quem acudisse ao pesqueiro e remasse lhes concedesse novos escravos. Esse é
a canoa das tainhas, único remédio da o caso de Francisco do Amaral Soares,
cidade do Pará”. Da ilha de Joanes, os o qual relatou que, tendo recebido para
padres de Santo Antônio teriam leva- a fábrica do anil os 12 casais que o Rei
do para o seu convento, em Belém, ordenou, morreram a maior parte das
duas pessoas que tinham tido bexigas, doenças que havia no Estado, ficando
bastando isso para levar a pestilência impossibilitado de continuar com a dita
para a cidade, transmitindo o mal para fábrica, com grande prejuízo por perder
várias aldeias de índios e chegando à muita erva por falta de quem colhesse
capitania de Cametá (Bettendorff 2010 a tempo. Solicitava, então, que lhe fos-
[1698]:664). Segundo Bettendorff, esta sem dados os vinte e quatro índios que
epidemia de 1695 durou cerca de quatro lhe eram necessários para a lavoura e
meses, começando no fim de agosto ou que caso falecessem fosse restituído o
princípio de setembro. número, de modo que sempre ficas-
sem os vinte e quatro trabalhadores ne-
Além do relato do padre jesuíta, tam- cessários (Carta régia, 27 jan. 1698).
bém temos outros registros do efeito
devastador dessa epidemia. Em uma Do mesmo modo, o capitão Pedro Paulo
carta para o governador do Estado do da Silva que tinha um engenho de açú-

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A ira de Deus e o fogo que salta

car no rio Itapecuru e, que sendo “seu de 1697, por ser inviável tal provimento
sítio infestado dos bárbaros tapuias do (Carta régia, 16 nov. 1697). E em 6 de
corso”, necessitava de muitos escravos julho de 1698, quando os camaristas do
para fabricar e se defender. E como seu Maranhão reclamavam do novo impos-
engenho tinha ficado despovoado devido to que deveria ser pago para o sustento
ao contágio das bexigas, lhe causando da infantaria, recusando-se a pagar o
grande prejuízo, requeria que lhe permi- tributo devido ao “miserável estado”
tisse comprar cento e vinte escravos, tan- em que se encontravam sem escravos
to africanos quanto indígenas, “a pagar para suas lavouras, solicitando que lhes
aos anos” (Carta régia, 16 nov. 1700). “aliviasse desse embargo”. Mais uma
vez o pedido é negado pelo Rei, em
Além desses, muitos moradores solici-
11 de dezembro de 1698 (Carta Régia,
tavam ainda licença para descer e/ou
11 dez. 1698). Este tributo continuaria
resgatar indígenas às suas próprias cus-
sendo tema controverso por mais al-
tas, ou seja, sem esperar pela tropa anual
guns anos, causando problemas na sua
financiada pela Fazenda Real. Em 20 de
arrecadação para a Fazenda Real.
novembro de 1699, o Rei responde so-
bre uma representação dos oficiais do Como podemos ver, as consequências
Maranhão que do surto epidêmico de 1695 foram in-
“por várias vezes me tem represen- tensificadas pela fome causada pela seca
tado sobre a miséria em que os mo- e pelo ataque dos “índios do corso”, na
radores desse Estado se acham com a fronteira oriental da capitania do Mara-
falta de escravos com a grande mor- nhão. Segundo Rafael Chambouleyron,
tandade que deles se tem experimen- no final do século XVII o procurador
tado [...] o que só se poderá remediar do Estado concluía que o contágio das
concedendo as entradas do sertão bexigas teria levado “entre cativos e
para os resgates de escravos. Fui ser- forros o melhor de cinco mil” (Cham-
vido resolver que os resgates se per-
bouleyron 2009:9). Tamanho impacto
mitam, fazendo-se porém a arbítrio
na população que constituía a base da
da Junta das Missões assentando-se
nela o tempo de se fazerem guar- força de trabalho da região gerou uma
dando-se infalivelmente a minha lei” série de solicitações e reclamações por
(Carta régia, 20 nov. 1699). parte dos moradores. Uma das soluções
encontrada para tentar suprir esta de-
Nesse contexto também aparecem di- manda foi recorrer à mão-de-obra es-
versos tipos de queixas e reivindicações crava africana. Outra foi buscar por
dos colonos para a Coroa portuguesa. mais índios no sertão, fosse para constituir
Como em 24 de julho de 1697, quando aldeamentos conforme o Regimento
os oficiais da Câmara do Pará pediam das Missões regulamentava, para es-
que se diminuísse o preço dos escravos cravizá-los na forma que ordenava o
africanos, “pela necessidade que tem os alvará de 28 de abril de 1688 ou mesmo
moradores desse Estado de escravos para fazer cativos de maneira ilegal.
para suas lavouras”, tendo sua petição
indeferida pelo Rei, em 16 de novembro

Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 5 (2): 344-361, 2013 357


Neves, T. M.

CONSIDERAÇÕES FINAIS do” estabelecida através das rotas de


navegação. Longe de querer esgotar o
As bexigas que atravessaram o Atlântico e
assunto, este artigo apenas propõe uma
aportaram no Estado do Maranhão consti-
análise possível para esse tema que ex-
tuíram terrível flagelo para os habitantes daquela
trapola as fronteiras nacionais dentro
área. Chegando três décadas depois da
das quais normalmente se concentram
última epidemia na região, juntando-se
nossas pesquisas. O que nos leva ao úl-
à fome causada pela seca e pelos ataques
timo ponto.
feitos por indígenas aos currais de gado
localizados nas proximidades do rio Trata-se da possibilidade de expandir os
Mearim e do Itapecuru, o ambiente tornou- estudos sobre o mundo do trabalho e
se propício para a situação de calamidade suas transformações, de modo que se
que se instalou. Sobre a análise desse mo- considerem também o papel desem-
mento da história do Maranhão e Grão- penhado por agentes não humanos nos
Pará, três questões merecem destaque. processos históricos. Muito se tem feito
nessa área, buscando as relações entre
A primeira delas é que, embora seja im-
homem e natureza, tal como demonstrou
possível calcular exatamente o núme-
Donald Worster (1991:198-215), Re-
ro de mortos nesse surto epidêmico,
gina Horta Duarte (2005) e José Au-
houve um impacto demográfico de
gusto Drummond (1991:177-197). Este
caráter ambíguo naquela região, visto
artigo objetivou apenas incluir uma
que, apesar de morrerem milhares de
“variável ambiental” na história colonial
pessoas (sendo a população indígena
da Amazônia, analisando ações, reclama-
a mais afetada), esse contingente foi
ções e modificações ensejadas por uma
reposto com novas levas de escravos
epidemia que devastou grande parte da
africanos e de trabalhadores indígenas,
população do Estado do Maranhão.
escravos ou livres, além de terem sido
trazidos recrutados da ilha da Madeira, A conquista dos povos indígenas não se
como já demonstrou Chambouleyron deu apenas a partir do suposto poderio
et al. (2011). Sendo assim, apesar desta bélico europeu. Nesse sentido, também
epidemia causar colapso na população contribuíram fatores não-humanos como
do Estado, houve também uma série de as doenças transplantadas para a América,
ações, reclamações e forte mobilização as quais atingiram as populações indígenas
por parte da Coroa, das autoridades co- tanto física quanto simbolicamente. Com
loniais e dos moradores, no sentido de isso, não se quer negar a importância das
suprir a falta de mão-de-obra ocasionada ações humanas, dos projetos políticos con-
pelas bexigas. cretos que ensejavam a exposição dos índios
às doenças. Afinal, os índios eram reunidos
A segunda diz respeito ao “caráter
compulsoriamente nos aldeamentos, espa-
transatlântico” da epidemia de 1695,
ços de tentativa de homogeneização que
sendo resultado do constante desloca-
significava maior exposição às doenças, di-
mento de pessoas, especiarias, ideias e
ante das quais os índios construíram formas
doenças, naquilo que Alencastro chamou
próprias de interpretação.
de “unificação microbiana do mun-

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A ira de Deus e o fogo que salta

Certamente, as atitudes dos índios frente pera, Cabo Norte e Xingu. A sede de seu
às doenças constituem elementos im- governo era a cidade de São Luís. Foi ex-
portantes para a compreensão das tinto em 1652 e restabelecido em 1654, pas-
epidemias, bem como dos processos sando a ter o nome de Estado do Maranhão
e Grão-Pará. Sobre o assunto ver também
de depopulação e genocídio que atin-
Chamboleyron 2010.
giram as populações locais. Definições
como a de “fogo que salta”, utilizada
2
Carta régia, 10 jan. 1697.
para definir a catapora, são, portanto, 3
Termo utilizado no período para se referir
fundamentais para a compreensão das aos escravos africanos.
categorias nativas nesse processo. Afi- 4
Durante o período colonial, o termo sertões
nal, conforme Adam e Herzlich (2001: era normalmente usado para designar a sel-
8), “a doença tem, certamente, uma va amazônica, demarcando o mundo bran-
nota de universalidade, mas ela tam- co, português, colonial, em relação àquele
bém é modelada pelo contexto cultural outro ainda pertencente ao domínio da na-
e social no qual ela ocorre”. Uma abor- tureza, dos nativos, mas que deveria vir a ser
dagem que considere as ações políticas incorporado ao controle lusitano.
pari passu às modelações culturais e a 5
A capitania do Caeté era uma capitania
ação dos fatores ambientais muito pode privada, ou seja, foi concedida a um particu-
revelar nesse sentido. lar a fim de que este promovesse sua ocu-
pação e desenvolvimento. Esta se estendia
do rio Caeté (no atual Pará) até o rio Tu-
AGRADECIMENTOS riaçu (no atual Maranhão), incluindo o rio
Gurupi (atual fronteira entre os estados do
Este artigo foi concebido a partir das Pará e Maranhão). Foi doada a Gaspar de
discussões e leituras feitas na disciplina Semi- Sousa, em 1622, e confirmada para seu filho
nários da Linha de Pesquisa História Álvaro de Sousa, em 1634. Sobre o assunto
e Natureza, que ocorreu durante o se- ver Chambouleyron 2005.
gundo semestre de 2012, ministrada
pelo Prof. Dr. Márcio Couto Henrique, 6
A capitania de Joanes, localizada na Ilha do
a quem agradeço imensamente pela aten- Marajó, também era uma capitania privada. Foi
ciosa leitura e pelos comentários críti- doada a Antônio de Sousa de Macedo, em 23 de
cos. Agradeço à CAPES pela concessão dezembro de 1665. Annaes da Biblioteca e Arquivo
da bolsa de Mestrado no Programa de Público do Estado do Pará, vol. I, pp 46-56.
Pós-Graduação em História Social da
Amazônia/UFPA.
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Annaes da Biblioteca e Arquivo Público do


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‘Doação da capitania de Joanes a Antônio
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Estado do Pará, vol. I, pp 46-56.

Recebido em 20/04/2013.
Aprovado em 20/07/2013.

Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 5 (2): 344-361, 2013 361

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