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"A Jane",
como era chamada, fica em um prédio construído em 1955. Tinha seu próprio jardim e era uma das
melhores escolas de São Paulo. Se eu, por um acaso, falasse que não tinha amigas lá para andar
comigo estaria mentindo, porque minha "amiga" Agatha, estudava comigo e na mesma sala. Mas ela
tinha seu próprio grupinho, bem privado, e aposto que as coisas são bem melhores do jeito que estão
agora, pois, eu tinha a leve impressão que ela era outra pessoa perto de mim. Essa solidão toda que
eu sentia, pode até ser que seja coisa de adolescente que não tem o que fazer. Depende do ponto
de vista.
Eu poderia dizer que eu tinha colegas na sala e que me dava bem com eles. E era verdade. Mas
nunca havia me sentido bem para estar junto à eles ou para fazer parte do mesmo grupo. Então
decidi não me importar. Mas acontece que esse orgulho todo me deixou miseravelmente sem
A primeira semana foi uma porcaria, como nos últimos dois anos. Exatamente do mesmo jeito. Dava
o sinal pro intervalo, eu corria pro meu cantinho no penúltimo box do banheiro.
Eu me confortava dizendo que havia mais pessoas iguais a mim: fechadas e/ou estranhas e com
Eu fiquei extremamente tímida e não fazia muitas interações com os outros depois da separação dos
meus pais, diversos outros problemas pessoais e da Lídia que se foi do colégio. Ela era minha
melhor amiga desde o 6° ano e andavamos junto com a Geise. Mas depois que a Geise mudou de
sala no 8° ano e a Lídia fora embora no 9°, eu passei a ficar com o Alexsandro e alguns amigos dele
mas, também, durou pouco tempo. Era como se eu pedisse pra eles irem embora da minha vida.
Porém ninguém notava que eu me sentia sozinha e muito mal com minha própria imagem. Até então.
Era Terça-feira. Eu esperava poder ficar na minha sala até o intervalo acabar. Como conheço bem
minha sorte, ela devia estar longe. Eu sobrevivi ao primeiríssimo dia de aula ontem como um soldado
que não foge da guerra. Sobrevivi à primeira semana, também, do mesmo jeito. Eu jamais contaria
meu sofrimento à minha mãe. Ela estava ocupada demais e jamais entenderia a confusão a na
minha cabeça. Acho que também não me entenderia, tampouco. Apesar de amar ela não tínhamos
os mesmos pensamentos e de forma alguma queria enchê-la com problemas meus e paranoias que
eu criava.
Eu me esforcei para não chorar na sala, acabariam me acusando de vitimismo e coisas do tipo.
Ultimamente, me esforçar para não chorar é algo comum para mim, virou rotina e eu já não me
importo mais em falhar na missão. Eu belisquei meu pulso na esperança da pequena dor me sugar
as lágrimas que ameaçavam escorrer em meu rosto. Com sucesso, impedi meu eu interior de
O maldito sinal tocou. O desespero que se instalou em mim foi estranho e imediato. Por que diabos
alguém com 15 anos tem medo de encarar esse tipo de coisa tão besta?. Eu tinha duas opções:
Ficar na sala e caso alguém me visse fingir estar pegando dinheiro ou me trancar no banheiro e não
Não sei responder o porquê de eu me obrigar a fazer isso, caso alguém algum dia me pergunte. Eu
não sei a resposta. Fobia social e medo de interação? Pode ser. Baixa autoestima e falta de apoio?
Talvez. Autojulgamento? Pode ser. Eu não conseguia evitar e nem sabia o motivo real. Mesmo que
quisesse. Eu preferia ficar na minha bolha de sofrimento sozinha pra não precisar levar mais alguém
comigo.
Sai acompanhados os outros alunos que disparavam em direção ao refeitório, peguei duas maçãs e
entrei no banheiro.
Eu agradeci a Deus por ter enviado maçãs hoje. Tem dias que não como.
Eu me tranquei no mesmo box de sempre. Encarei as paredes durante o intervalo inteiro e não
chorei. Nem poderia. Ou todos iriam ver a evidente miséria estampada na minha cara e essa era a
Eu me perguntava o que as pessoas achavam de mim. Todos os santos dias era a mesma coisa. O
ano mal começou e eu já estou exausta. Vai ser a mesma coisa até eu acabar esse maldito ano,
estou prevendo.
As aulas passaram rapidinho e eu nem vi por estar longe e querer sumir dali logo. Eu estava com
uma pequena dor nas costas por ter ficado o tempo todo olhando só pra frente com medo de ter de
Alguns professores preferidos meu pegaram minha sala esse ano e isso era bom.
- Dafine espere!- Eu ouvi me chamarem e virei imediatamente. Eu fiquei meio tonta, ao virar
bruscamente para trás. Estávamos indo embora e o sinal tocou bem alto. Todos estavam indo pra
fora, uns rindo alegres com seus parceiros amorosos e outros com seus amigos fazendo baderna. E
Débora, uma menina baixinha, com longos cabelos castanhos e enrolados, parou de caminhar em
minha direção assim que me virei. Ela tinha olhos igualmente castanhos e um rosto bonito. Sua blusa
de frio estava amarrada em sua cintura pequena deixando nosso uniforme, branco e vermelho nas
mangas, com um charme a mais. Seu estilo meio barbie me fez parecer ser meio desengonçada. Ela
- E aí Débora. Como vai? - Milagrosamente me lembro de ter sido sua amiguinha na terceira série.
Mas nos afastamos assim que minha sala foi outra no ano seguinte. Como sempre, a culpa é minha
- Você estava com quem hoje? Eu não te vi em nenhum lugar no intervalo! - perguntou curiosa.
-Eu me atrasei com a lição e comi só no fim do recreio - Tentei disfarçar essa mentira com um risinho
-Ah! Sabe....Amanhã eu vou ir pra sua sala...Eu pedi transferência pro 1°1 né? E-e-eu posso ficar
com você? É que eu acho que não vai rolar eu ficar com minhas ex-melhores amigas. Nós brigamos.-
Disse ela com a voz falhada, e eu quase me senti uma oportunista por aproveitar a briga delas pra
Isso nunca aconteceria comigo. Já estou à espera de que algo ruim aconteça no final do dia...
Eu queria gritar e senti uma vontade muito grande de me beliscar. Eu era sozinha por escolha, não
Eu agradeci à Deus milhões de vezes por segundo antes de encontrar minha voz. Eu queria falar
Fiquei triste apenas por ter a certeza que jamais seria amiga dela de novo se ela não tivesse vindo
até mim e falado comigo. Esse é um ponto que eu teria que pensar em melhorar depois, mas no
momento estava feliz demais por ter alguém que me queria por perto.
-Mas é claro! Aproveita e me espera. Eu chego cedo e a gente entra junta que tal? - Eu disse
-Maravilhoso! Me passa seu telefone então. Ou eu posso ir na sua casa qualquer dia desse, ai você
me conta como são os nossos colegas e pra gente se conhecer melhor. - Débora pegou seu celular.
Salvamos o número uma da outra. Eu me senti uma boba por estar sorrindo tanto.
-Tá ótimo. Até amanhã.- Disse a ela empolgada até demais. Vi ela ir embora da janela do meu
mente viajava. Desde minha mais nova amiga a quem eu nem pensava mais faz um tempo, desde
que me conheço por gente: Gabriel Santone. Eu passei tanta vergonha ano passado tentando falar
pra esse garoto que eu amava ele, que até agora não me perdoei. Eu mandava texto nas redes
sociais, tentava ficar perto e manter contato visual, - depois de ter visto numa revista que isso fazia
os meninos te notarem, o que é uma grande mentira dependendo da pessoa - com aquele menino
todo dia praticamente. Eu nunca precisei ler mentes pra descobrir o que as pessoas meio que
pensavam sobre mim, e eu tenho certeza que ele me achava uma doida mal educada.
Eu deveria me conter em relação à Débora. Isso foi fácil. Até demais. Mas eu sei que tenho que fazer
de tudo para ela não se chatear comigo e que também, sou paranoica e insegura em relação a mim
mesma e que preciso melhorar, pois nem ela, ou eu, merece estar perto de alguém assim. Eu
Minha rotina de manhã foi a mesma. Não tomei café e fui fazer exercícios. Minha mãe brigou comigo
por ter usado a blusa molhada do varal. Mas não achei a outra mais novinha, e não tive escolha.
Para ajudar a secar mais rápido passei o ferro no uniforme. Acordei meus dois irmãos, Alice e
mensagem. Ela sabia demais sobre agora. Eu me senti estranha por contar sobre mim pra ela. Fazia
tempo desde minha a última vez que me abri em uma conversa saudável com algum ser vivo. Minhas
Escolhemos um banco perto de algumas árvores no pátio. Abner e uns amigos sentaram em um
banco e jogaram carta. Lídia e Viviane passaram pelos outros alunos como se fossem intocáveis, por
terem dinheiro, tratavam os outros feito verme. Eu posso até ter baixa autoestima, mas se tivesse
uma tão alta quanto a delas, jamais trataria os outros assim. Que por um lqdp parecem gostar, pois
Minha zona de conforto é onde eu tento com todo cuidado evitar sair, isso é totalmente covarde da
minha parte eu tenho consciência disso, minha personalidade está escondida em um lugar onde só
eu posso achar. Essa máscara social minha deixa a desejar minha personalidade e opinião de um
Débora, por outro lado, é do tipo de pessoa carismática, bonita e segura de si mesma, que faz
amizade super rápido e poderia falar com qualquer um sobre tudo. Eu não era nada disso mas a
gente estava se dando muito bem. Pode ser precipitado mas eu quero muito que nossa amizade não
Ficamos conversando e vendo os outros alunos passarem. Como Corais não era muito grande, e sim
uma cidade do interior com mais ou menos 11 mil pessoas, quase todo mundo se conhecia. Isso era
um problema caso você queira sair aprontando por aí ou tenha um segredo cabeludo. Eu só
conhecia os alunos da minha escola. Mas de vista. A maioria está aqui desde o sexto ano e eu tenho
o prazer, e às vezes não tão prazeroso assim, de ver eles todos os dias. E ainda assim acho essa
Tenho quase certeza de ter colecionado um pequeno número de admiradores secretos nos anos que
estudei aqui, mais bem secretos mesmo, pois nenhum nunca chegou em mim de jeito algum, e
também colecionei algumas pessoas que não gostavam de mim pelo simples fato de me acharem ser
Talvez meu jeito mais tímido e privado passasse uma imagem de gente metida pras pessoas o que é
uma pena pois eu não sou assim, mas não posso mudar opiniões pré-julgadas e acho que não
- Amanhã a gente devia ir lá embaixo, comer um lanche, já que você mora aqui a 90 anos e não
conhece nem o centro- Deb disse quando entramos na sala, eu tive que contar à ela que não poderia
- Vamos ver- Eu disse rindo, mas ela não sorriu de volta, fechou a cara e sentou na carteira. Ela
- Você tem que falar com a sua mãe sobre esse negócio de te prender sempre que ela quer. Você já
tem 15 anos. - Afirmou Deise num começo de irritação e acho que surpresa por ter alguém que ainda
Ruborizei imediatamente. Era culpa minha também, pois parte de mim agradeceu por minha mãe ser
chata. Eu não quero ir a lugar algum. Isso me faz ficar mais pior ainda. Me comparar com os outros é
inevitável.
Deb achou um absurdo quando lhe contei que minha mãe ficava me privando de fazer coisas que eu
- Eu sei. Mas o que você quer que eu faça? Eu já tentei mas ela não me escuta.- Eu não queria falar
mais sobre isso. É mais um buraco mais fundo do que parece ser.
Débora deu de ombros, como se estivesse desistido de tentar me convencer a ter atitude e alguma
vergonha na cara. Ela queria que eu fosse conversar com a minha mãe e resolvesse logo tudo isso.
Como se fosse fácil. Tomara que ela tenha desistido mesmo, pois isso eu não o faria.
Ele era um dos mais queridos, porém, os outros professores são muito bons também. A maioria dos
Não pela comida. Minha ansiedade era pra sentar no lado de fora do refeitório pela primeira vez em
muito tempo. Como uma pessoa normal, conversando com os amigo. Eu fiquei um ano inteiro
comendo no banheiro, sem um grupo. Esperava apenas que minha mais nova amiga tivesse
paciência comigo.
Não sei porque alguém iria se auto sabotar tanto assim. Não consigo explicar agora, talvez demore
Todos foram correndo comer, assim que o sinal tocou. Como sempre as filas eram enormes.
Raramente eu comia as refeições servidas lá. Em parte eu sabia que era porque eu tinha vergonha
de comer em público porque eu sei o que as pessoas acham de quem pesa o mesmo que um
adorava quando isso acontecia. Muito calor nunca foi a minha praia.
- E ae. Qual o menino mais bonito daqui? - Deb perguntou dando risadinhas e lá se vai uma longa
história.
Eu costumava pensar que o Gabriel Santone era o dono do meu coração. Ele era um pouco magro,
meio alto, tinha uma cara de bebê, usava aparelho e tinha uma pinta abaixo do queixo. Eu passei
Uma vez no aniversário dele eu tive a brilhante ideia de mandar um textinho por mensagem.
"Gabriel parabéns pelo seu aniversário. Embora eu esteja muito nervosa com a sua reação, só queria
te dizer que eu gosto muito de você. Pode contar comigo para tudo que precisar. Muitas felicidades e
um beijo"
E recebi um "muito obrigado" em resposta. Só isso. Uma vergonha atrás da outra. Eu prefiro morrer
do que mandar algo assim de novo para algum homem neste planeta.
Uma semana depois eu estava perto da quadra de esportes lendo um livro super empolgante, de uns
meninos que viviam numa casa casa mal assombrada que a vó deles havia falecido, quando o vi com
uma bola de futebol na mão. Estava Gabriel, um dos seus melhores amigos André Fornazza uns
Estava faltando alguns meninos para completar o time quando ele olha exatamente pra minha
-Ei. Quer jogar com a gente? - Ele disse. Imediatamente o André, que por um acaso também era
Não sei como ele ouviu pois minha voz saiu baixa demais. Isso acontecia só em momentos raros.
-Deixa disso, sabe sim- Disse ele rindo e seus amigos tentaram me incentivar também até que o
coordenador apareceu e tirou todos de lá. André, um garoto alto,moreno e bonitinho, saiu por último
com a bola na mão e com uma expressão amarrada por ter de deixar a quadra que eu jurei que faria
Essa foi a única vez que tive um diálogo com esse garoto, além da vergonhosas tentativas de
Contei a Deb alguns dos "momentos" que tive com ele. Na minha cabeça obviamente isso era um
Como quando estamos indo embora, quando ele passou na minha frente raspando, de propósito, no
meu ombro e depois deu um sorrisinho tão lindo que eu quase desmaiei.
Ou quando a idiota da Isadora disse que estava saindo com ele, sendo mentira, só para eu desistir
de gostar dele. Umas meninas me contaram depois que era tudo invenção dela e eu nunca mais falei
com ela.
Eu nunca vou saber por que eu gostei tanto assim dele já que nem amigos éramos. Foi tão
superficial e esquisito. Hoje em diante quero distância de qualquer espécie de homem que existe.
Esse é um grande problema que temos que enfrentar na adolescência ou qualquer outro momento
específico: somos criados para procurar amor nos outros para preenchermos um vazio deixado por,
em parte, nossos pais, e em parte, pela falta de amor próprio que arrasta uma multidão de pessoas
-Acho que todas as pessoas passam por um amor mal correspondido, mas você é um pouco boba
demais pra não arriscar ir falar com ele ...- Deb disse e fomos em direção à penúltima aula depois
A professora Marta de artes, entrou. Ela tinha o cabelo com luzes, meio curto, andava com uma
blusa estranha escrito o nome dela e alternava com saia ou calças longas, todos os dias. Parecia
- Bom dia, gente.... Sentem- se que hoje vocês farão um trabalho muito importante pra mim. - Vários
murmúrios começaram. Lá vem coisa chata. Ninguém suporta essa chata. - Semana que vem vocês
vão escolher um gênero musical, trazer o máximo de informações sobre ele possível e apresentar em
grupo. Mas hoje, vocês viram aqui falar o gênero musical preferido de vocês e cantar um trecho de
uma música para todos... - Assim que Marta terminou de falar começou uma agitação.
Eu definitivamente não vou apresentar nada. Muito menos cantar. Meu Deus que mulher maluca..
Pra quê?.
Minha timidez alertou perigo. Eu precisava agir rápido e sair dali. Pensei em pedir pra ela me deixar ir
- Dafine, aonde você vai? - Deb puxou meu braço quando eu fingi estar pegando absorvente na bolsa
e levantei.
Consegui de imediato despistar ela ao falar que estava naqueles dias. Eu precisava ser rápida.Nem
mocinha eu era... Mas tudo bem. Nem sempre vou poder usar essa desculpa fajuta...
- Marta posso ir ao banheiro? Estou...- Comecei encenando uma cólica. A sala estava uma baderna
- Dona Dafine, não posso te liberar para ir ao banheiro. Acabamos de sair do recreio, você devia ter
- Igual ontem quando saiu da sala para ver seu namoradinho? - Ela olhou pra mim. - Todos os
professores já estão em alerta sobre isso, dona pombinha branca. Ninguém te deixará sair para
- Que namoradinho? Eu nem saio da sala. E mesmo que fosse para ver um garoto, não seria da sua
Todo mundo olhou para nós. Acho que elevei demais o tom de voz. O silêncio após isso foi
ensurdecedor.
Marta deve estar me confundindo com alguém. Eu nem tenho namorado. Só ando com a Débora e
nunca matei aula na vida. Não seria com namoradinhos que eu iria fazê-lo. Eu me segurei para não
gritar com ela. Não é a primeira vez que ela tenta me tirar do sério. Desde o ano passado eu sinto
que ela não gosta nem um pingo de mim. Alguém precisa avisar à ela que eu não ligo nem um
pouco.
- Eu até deixaria você sair. Se você tivesse um pingo de educação e falasse com seus professores
direito. Agora volte para a sua carteira e se prepare pra ser a primeira a cantar a música para nós. -
Eu virei derrotada e sem acreditar nessa barbaridade que ela fez comigo.
Havia se passado algumas semanas desde que eu não me sentia mais um zero à esquerda, e sim,
Eu estava um pouco mais contente com a minha vida. Algumas coisas deixaram de me doer tanto
nos últimos dias, eu podia desabafar com as minhas amigas, isso era muito bom para mim. Era
sábado.
Consegui esquecer todo o incidente da aula de artes. Aquela mulher me odeia. Eu devo ter passado
muita vergonha cantando aquela música idiota. Aproveitando minha raiva por ela, cantei a
Ela deve ter entendido o recado, depois que todo mundo começou a rir - não sei se foi da minha cara
mais vermelha que tomate ou da cara dela de cobra asquerosa, - me pediu para parar porque " já
estava bom".
Acordei antes de todo mundo, tirei meus pijamas e coloquei as primeiras peças de roupa que vi pela
frente, uma blusa vermelha de manga longa e um short florido, e fui fazer o café.
Eu sempre cuidei da casa, não que eu concordasse ou gostasse de afazeres domésticos, mas eu
não tinha nada pra fazer e me sentia sufocada demais pra ficar parada em um lugar só.
Minha casa era de tamanho médio. Não estava acabada ainda, pois meu pai a levantou praticamente
sozinho. Apenas alguns quartos tinham a parede pintada de branco e somente o banheiro tinha forro.
Ainda sim, era aconchegante e minha parte favorita, de dia, era o quintal nos fundos com um matinho
que minha gata, Milly, amava brincar, pois, o Sol batia logo de manhã e convidava diversas
Meu bairro era um dos mais mal falado de Corais. As pessoas com um parafuso a menos vinham pra
cá. Mesmo assim, era uma cidade com pessoas hospitaleiras e a maioria se aturava. E tinha o caso
da minha mãe, a dona Raquel Eying, que era alvo de inveja, segundo ela mesma, e muitas pessoas
não gostavam.
Fui tomar um banho rápido e liguei uma música baixinha nos meus fones pra me trocar. Como
sempre olhei, de relance, no espelho meu cabelo. Eu sempre tentava fugir deles o máximo que
conseguisse.
O namorado quase-marido da minha mãe, Jorge Ogura, um cara
moreno, que parecia aqueles velhos com barriga de cachaça, levantou a bunda da cama e foi fazer
uma tentativa de corrida. Ele vinha pra minha casa quase todo final de semana. O humor dos meus
irmãos sempre mudavam nesses dias, pois nenhum dos dois gostava dele.
Eu não tinha nada contra dele, minha mãe o idolatrava e meus irmãos não suportavam nem um
pingo desse suposto futuro marido dela. Eles devem ter alguma razão, pois criança não mente.
Minha mãe mudou totalmente e um pouco mais depois de ter conhecido ele. Largou a faculdade pra
ter tempo de cuidar de duas casas. Ficou muito mais ranzinza que o normal, protegendo ele, como
se fosse uma cria no ninho, o que a fez ficar afastada dos próprios filhos, inclusive das amigas. Nada
Jorge voltou da sua tentativa de corrida, meia hora depois, e trouxe pão.
-Dafine faz o almoço e cuida dos meninos eu volto amanhã. Vou ir pra casa do Jorge dar uma
arrumada lá e ajudar ele.- Disse minha mãe, quase gritando, depois de ter me chamado umas duas
Realmente, às vezes ela era insuportável. Além de tudo, não se importava nem um pouco em
machucar os outros!
Quando meu pai morava na minha casa ela vivia falando que queria ter deixado os filhos na
maternidade enquanto teve tempo, ou num lar de adoção, e um monte besteiras absurdas. Além de
tudo, era machista e homofóbica assumida. A coisa mais insuportável e decepcionante do mundo é
uma mulher ser assim, e quando ela é a sua mãe, piora mil vezes mais.
Enfim, eu já não concordava com muita coisa que ela fazia e falava, ela ficar indo todo final de
semana, às vezes dia sim e dia não, pra casa do namorado, só aumentou a minha lista. Eu tentava
fazer de tudo pros meus irmãos não sentirem a falta dela. E funcionava.
Por um lado era bom. Nós sentíamos um pouco de paz em casa quando ela não estava. Ninguém
gritando e te xingando toda hora, te batendo como se ainda estivesse no século passado, querendo
Sempre achei meio improvável alguma mãe que realmente amasse o filho fazer algo assim. Já não
tenho mais tanta certeza disso. Não sabemos até que ponto alguém pode ir...
Fiz o almoço como ela pediu e depois fui tratar de fazer lição e meus trabalhos. Sempre que eu
acabava de fazer os deveres chatíssimos de casa, tentava fazer algo pra me distrair.
A Milly sempre era responsável por essa tarefa. Ela era uma gata preta e branca. Tinha os pelos lisos
e muito macios, para quem nem ia ao veterinário direito. O rabinho dela era tortinho na ponta e ela
Coloquei ração pra ela, o pote já estava quase acabando. Minha mãe pegava a ração na casa da
amiga dela onde ela era empregada, mas como ela saiu de lá eu tive que improvisar comida pra
minha gata. Não sei nem como ela permitiu entrada de pet na minha casa, já que ela sempre odiou
animais. Exatamente por isso, ela não comprava ração alguma pra Milly.
Eu só queria um emprego pra poder comprar eu mesma as coisinhas que minha neném precisava.
No final do ano passado teve uma prova e inscrição pra ser jovem aprendiz e eu decidi que iria fazer.
Fiz uma semana de treinamento, ficava longe pra caramba, tive que ir à pé debaixo de um Sol que
castigava sem dó. O resultado final foi desastroso. Eu me senti uma incompetente. Deve ser melhor
deixar as coisas andarem sozinhas, já que eu não controlo as rédeas da minha própria vida mais.
-Miiilyyy- Fiz uma vozinha que na hora que quando ela ouvia vinha em disparada.
Pode parecer loucura, mas eu sentia que tínhamos uma conexão paranormal. Como se ela me
respondesse inconscientemente.
-Meow - Ela chiou enquanto eu colocava um pouco do leite que era pra eu ter tomado no café. Dividir
minha comida com ela era ótimo. Já não como mais carne, porque sempre dou pra ela. Isso meio
O meu maior medo era ela ficar grávida. Por isso minha prioridade assim que eu começasse a
Já que minha mãe vivia caçando motivos pra mandar ela embora. Se isso acontecesse, eu morreria
de tédio.
Entrei pra dentro de casa, com a gata nos braços e chamei meus irmãos para assistirmos TV. A Milly
era proibida de entrar em casa, mas quando dona Raquel não estava, quem ditava as regras era eu.
Esse era o tempo que eu mais gostava já que podia dormir comigo.
O problema era quando a Milly se empolgava demais, dormindo lá dentro enquanto Raquel ficava em
casa. Minha mãe batia nela e fazia ela ficar numa gaiola por um dia inteiro, toda vez.
Essa gaiola era minha tortura. Eu nunca protestei contra essas atitudes grotescas, porque eu
Embora eu sabia que era uma covarde por não expor minha própria opinião sobre o assunto, não
havia nada que eu pudesse fazer. Eu até poderia, se quisesse dormir na rua. Eu não tinha pra onde
ir.
Quero dizer, aos olhos dos outros eu era apenas uma menininha bobona, tímida e quieta demais. Eu
Minha maior vontade era mandar todo mundo ir se fuder e parar de serem tão escrotos desse jeito.
Nossa novela tinha acabado e enrolamos um pouco até a hora de ir dormir. Coloquei meus fones de
ouvido e fui sonhar acordada em uma vida totalmente diferente. Uma em que ninguém me julgava
por ser do meu jeito, ninguém tentava me mudar, as coisas eram perfeitamente em ordem, o mundo
Seria muito bom se eu pudesse de alguma forma fugir pra esse lugar. Caso exista mesmo e não seja
apenas fantasia da minha maldita cabeça, tenho certeza que está em outra galáxia. Talvez era
melhor pensar nas coisas boas e na possibilidade de eu ir a esse paraíso desconhecido um dia. Eu
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No outro dia acordei com dor nas costas por ter dormido de mal jeito. Eu havia babado o travesseiro
Fui ver o Sol do lado de fora para depois tomar banho e arrumar a casa. Eu tinha tarefas pendentes e
minha internet anda estava funcionando, aproveitei o tempo livre pra terminar meus estudos sobre
plantas ornamentais.
Mandei mensagem pra Débora. Ela me respondeu algum tempo depois. Acho que foi pescar com a
Ela disse que estava pensando em achar mais alguém para andar com a gente ontem.Talvez
devêssemos mesmo. Faltava procurar pela pessoa certa. Levando em conta o pessoal que eu
conhecia, seria muito difícil, pois, metade da minha escola me odiava, não que eu saiba mencionar
alguem no momento, e da outra parte eu queria distância. Principalmente se o ser for menino. Essa
espécie de animal só presta para encher o saco e ocupar nosso tempo, que já não é muito.
Minha cidade deveria investir em mais entretenimento para a população. Havia uma praça pública
linda, com fonte, árvores e parques, o comércio movimentado no centro com restaurantes, aquários e
uma biblioteca. Mas parecia precisar de um toque à mais. Quero dizer, trazer arte e gente decente
pra cá seria muito bom. Colocar áreas verdes, essas coisas que ninguém da administração de uma
Enquanto estávamos vendo uma lista de possíveis pessoas para nosso time por telefone, eu sem
nem perceber, havia comido mais biscoito que um condenado, dois copos de café com leite e a
metade de um pudim de padaria. Meu bucho parecia ter se projetado para frente e dobrado de
tamanho. Me senti pesada e feia. Eu sempre faço isso com as coisas que eu sou responsável de
alguma forma: ponho meus projetos da semana embalados num saquinho e taco pro alto sem me
preocupar onde vai cair. Nesse caso caiu na minha própria cara de pau. Só de olhar essa barriga de
Talvez eu tome vergonha e pare de falar que é "só por hoje, amanhã eu começo", sendo que eu sei
que não vou começar nada nunca. Acionei a mia das profundezas do inferno e me senti menos
que estava melhor que a minha, e baixar umas músicas que faltavam da Lana Del Rey no meu
celular. As letras dela vem me ajudado muito com meu vocabulário, embora eu tenha vontade de me
matar.
Eu até tentei ir na biblioteca, minha internet estava uma droga, daria pra baixar os meus outros
álbuns, mas minha mãe não me deixa ir sozinha e nem me leva. Deixei de perguntar o porque faz
muito tempo.
Em geral,eu não faço muita coisa diariamente. Minha rotina é casa-escola-escola-casa todo dia.
Não sinto que minha mãe se preocupa se os filhos estão bem com esse monte de regras que ela
inventa, não que eu me importe mais com isso, e ainda assim não deixa a gente sair pra onde a
gente quer.
podem sair fazem tudo que "não podia" de uma vez. Diferente dos meninos que basta conhecer um
Etê, entrar no Ovni e ir pra Marte que ninguém fala nada. Incrível!
Eu nunca irei entender por que as pessoas fazem isso. E nem quero.
Sinceramente, acho que esses pais não estão preparados para educar ninguém. Isso fere os
sentimentos das meninas e fazem elas crescer acreditando que são inferiores aos homens.
Enfim, cabe à criança, no meu caso eu, decidir o que fazer com isso. Eu decidi mandar todo mundo ir
pro inferno e tentar educar um demônio de lá desse jeito e impor essas regras chulas que não
servem para porcaria alguma, só pra ver se ia estar tudo bem ainda.
Eu ri com esse pensamento. Eu estou maluca já. E mal começou a semana. Tenho tendência a
Um vento mais forte passou e levou uma bolinha que a Milly estava brincando mais cedo e levou pra
longe dela. Ela nem se moveu hipnotizada por um pássaro. Levantei e fui no meio da rua pegar pra
ela. Dobrei meu corpo pra frente e depois de pegar a bola percebi a cagada que acabara de
acontecer: eu estava com um vestido floridinho um pouco abaixo do joelho. Olhei pra trás e vi que
alguns vizinhos na casa ao lado estavam dando um churrasco e enchendo a cara de cervej, às 9 da
manhã. Me perguntei como não tinha percebido isso antes. Só tinha homem e todos olharam, e
ficaram me encarando. Nesse momento eu senti um nojo tremendo de qualquer espécie do gênero
masculino. Eles ficaram me fitando por alguns milésimos de segundo e pude ouvir alguém rindo. Eu
quis tacar aquela garrafa na cabeça do panaca mesmo não sabendo quem era.
Eu me senti enjoada e confusa! E não sou a única e nem a última garota a passar por um
constrangimento desses. Mas que droga!. Me contive para não cometer nenhum ato considerado
crime e fui pra dentro com a Milly no colo em meio aos seus protestos e arranhões.
Fiquei tentando achar maneiras de exterminar qualquer homem da face do planeta e se existia
- O que foi Déf?- Jorge me perguntou ao entrar em casa. Estava com umas sacolas na mão e com a
roupa suja de molho. Até havia me esquecido que minha mãe trouxe a mais nova criança dela pra
casa hoje.
-Nada - Eu disse grosseiramente e fui pro meu quarto ouvir as músicas que baixei. De homens quero
Lembrei de Karen Sales,por algum motivo. Ela era uma menina da minha sala que mencionou ter
sofrido algo assim em sua casab uma vez. Ela tinha cabelos pintados de um castanho-alaranjado,
era meia morena e usava lente pra não precisar carregar óculos. Na única vez que falou comigo, ela
havia me perguntado algo sobre como era a ditadura e a era vargas. Era uma questão da prova de
história no 9° ano. Eu havia tentado explicar o que sabia sobre o movimento. Decidi que talvez
devesse falar com ela depois e quem sabe até recrutá-la ao meu mais novo time. Pelo que pude ver
Fiquei curiosa em relação à sentimentos e psicologia e esse passou a ser um assunto que eu não
queria mais deixar de saber, talvez vá virar minha futura profissão. Esse não era uma coisa pra se
Vou deixar de ir na rua por um bom tempo até esse pessoal esquecer como eu me chamo.Se é que
alguém me conhece nesta cidade idiota, eu nem saio mesmo, de qualquer maneira.
-Mais que merda! -Disse à minha gata- É tudo culpa sua!- Ela me olhou como se dissesse "o que eu
fiz sua louca cracuda?" virou com o nariz, empinando seu pequeno traseiro e foi beber água.
Escrevi o fato ocorrido no meu diário, que eu escrevia em outras línguas, caso alguém achasse não
saberia ler pois era um quase que idiomas próprio com erros gramaticais gritantes. Eu entendendo é
-Olha aí quem tá no banheiro pra não deixar bagunçado.- Minha mãe disse gritando do quarto dela.
-É o Pouldi. Se estiver tudo sujo é culpa dele - Minha irmã falou com a boca toda cheia de comida
-"Cala boca!"-Alice disse imitando a voz dele e cuspindo comida no tapete- Garoto besta.
-Olha o tapete cheio de comida. Sua porca! Sai daqui- Eu disse à ela que me mostrou a língua e
Eles podiam ir aonde bem entendesse. Cantavam alegremente ao amanhecer o dia e não tinham que
se preocupar com nada : nem com sua mãe controladora, nem com fato de se sentir infeliz o tempo
todo e não saber como lidar com isso. Eles nem tinham consciência. Fica aí no ar se isso é bom ou
ruim..
Voltamos às aulas na terça e Deb estava me esperando na porta da escola como de costume.
-O que acha de falarmos com a Karen hoje? Ela parece ser legal- falei ao sentarmos em nosso
-Acho vantajoso.Precisamos de mais uma integrante no nosso grupo arrasador. E ela é nerd. -Ela
- Arrasada estou eu. Hoje vamos ter prova de começo de semestre.- Lembrei que nem tinha
estudado.
-Mas pelo menos semana que vem temos um evento aqui. Aquele de talentos.- Deb disse animada.
Esse evento era novo pra nós. Vai tomar todas as aulas do dia e o pessoal adorou.
- Você vai cantar Deb?- Disse eu rindo. Ela era um desastre. Cantou numa chamada de vídeo que
- É claro que não. Já pensou a vergonha? Meu futuro namorado iria fugir de mim.- Disse ela. E eu
- É essa a ideia.-Eu disse. Passamos pelo corredor para entrar na sala. Muitos alunos ficavam
enfileirados do lado de fora até o sinal tocar ou professor entrar pra aula. Quando se é tímida isso é
ruim demais.
Minhas bochechas ruborizaram e eu tratei de abaixar a cabeça pra ninguém perceber nada. Eu tenho
-Você vai querer recrutar a Karen agora ou quer que a gente deixe isso depois?- Eu perguntei á Deb
claro das paredes estavam se desbotando aos poucos e muitos alunos ajudavam na tarefa
-Eu vou lá - Deb disse sabendo que eu não iria de jeito algum.
Ainda bem que ela não me pediu pra fazer isso. A garota fugiria se lhe dissesse um oi.
-Karen, me empresta um lápis....-Eu a ouvi falando e conseguiu puxar assunto a partir disso.
Eu vi de relance que Deb se sentou na frente dela e falou alguma coisa que as duas olharam na
minha direção. Eu fingi estar ocupada e agachei pra pegar a borracha que caiu.
-Nossa a Dafine tem banha!- Disse Altair Souza. Todo mundo olhou!.
E eu abaixei um pouco o uniforme, branco e azul com vermelho, que havia subido sem querer,
imediatamente.
Eu fiquei horrorizada e olhei pra frente tentando manter um ponto fixo e não desmaiar, quando a
Altair é moreno e tem um físico de atleta. É meu amigo desde o ano passado. Eu tenho um
sentimento estranho por ele, de amor e ódio. Às vezes ele me tira do sério, pois é criança e
desnecessário. Mas,ao mesmo tempo, ele me faz companhia e me entende em certas coisas,
quando não está com os amigos dele, o que deixa claro que ele tem vergonha de mim.
Eu olhei pra trás onde ele sentava. Acho que ele pôde perceber o fogo que saia dos meus olhos pois,
no momento em que olhou pra mim, abaixou a cabeça e eu pude o ver ruborescendo do pescoço à
Ele só queria atenção, e conseguiu fazendo babaquice com a única pessoa que ainda ajudava ele.
-Maria desça da carteira antes que eu faça uma anotação sua..- Jandira gritou. E logo a sala foi
Deb sentou no lugar dela e fez positivo com uma das mãos. Olhei pra Karina, que me deu um longo
Eu acordei.
No primeiro instante parecia que eu estava flutuando nas nuvens. A lua nova estava forte e parecia
diferente. Estava um silêncio muito sinistro. Meio estranho e ventando. Eu não me lembrava de ter
Decidi levantar e sair da onde eu estava, mas meu corpo estava duro parecendo petrificado. O
máximo que eu consegui foi parar de olhar pro céu, que estava totalmente descoberto, e olhar pra
frente batendo meus braços na água. Água. Tentei assimilar tudo o que estava acontecendo.
É por isso que o usual forro com ursinhos brilhantes colados, do meu quarto, não foi a primeira coisa
Foi aí que eu percebi que eu estava afundando. Num lago. Eu bati meus braços e pernas tentando
sincronizar alguma coisa. Mas a água, conforme meus pulmões pediam por ar, foi entrando cada vez
mais pelas entranhas, que eu nem sabia que existiam, me sufocando e eu senti que minhas forças
estavam se esgotando. Eu nem sabia nadar. Meus braços foram batendo, cada vez mais
desengonçados, tentando lutar contra a pressão que a água fazia para me afundar. Era inútil e meu
única coisa que eu ouvi foi o barulho rápido das batidas que meu coração estava fazendo. Eu fechei
De repente uma luz atingiu meus olhos que estavam encharcados de lágrimas. Estava no meu
quarto. Deitada na minha cama. O teto com figurinhas coladas ainda estava lá.
Meu transe durou alguns minutos até eu perceber que era um sonho.
Eu juro, nunca havia ficado tão feliz em poder ver um teto de novo em toda minha vida. Que merda
Eu tentei me esconder de qualquer reflexo que eu pudesse aparecer naquela tarde. Não só porque
me faria lembrar de todo aquele sonho maluco, mas também porque eu não me sentia bonita e
Eu sempre fui magrinha. Minha mãe me chamava de "perna de mosquito e bundinha de grilo"
sempre que queria me dar uma bronca. Nenhum sinal de seios apareceu até os 14 anos, ao contrário
das outras meninas que já tinham um corpo lindo e formado com a minha idade. Eu nunca liguei pra
Falar sobre meu corpo ou ouvir falarem sobre ele, me deixava desconfortável, culpada e insegura.
Meu problema agora é com o excesso de bunda, peito e barriga. E não mais com a falta deles.
Esse excesso de energia negativa traz problemas para a saúde de qualquer pessoa.
Eu não estava feliz com a minha situação social e meu corpo não me agradava muito também.
Comecei a ver alguns blogs nessas redes sociais sobre planos de exercício, que eu já fazia toda
manhã em jejum, e algumas dietas. Talvez funcione. Se eu controlar a ansiedade, vai funcionar...
Minha mãe me colocou pra fazer pão junto com o Jorge à tarde.
Eu adorava cozinhar. Passou a ser um hobby desde quando minha casa ficou entediante e monótona
demais. Eu inventava comidas malucas para a Milly que era minha vítima nessas experiências.
-No pote dentro do armário.-Ela responde me olhando firme, nem tentando disfarçar o mau humor.
A receita era meia chata, precisava sovar a massa e meu braço começou a doer depois de um
tempo.
-Se for para fazer as coisas de má vontade é melhor sair daqui.- Raquel disse me olhando torto,
-Quem disse que estou fazendo com mal vontade?- Respondi incrédula. Ela tem o dom de me tirar
do sério.
-Eu estou falando. Tá fazendo tudo errado e parecendo a sua cara.- Eu parei e olhei pra ela. Qual o
problema dela? Quando ficava de mal humor era um inferno ter que aturar ela o dia inteiro.
-Então deve estar linda, pra estar igual a minha cara.- Eu disse rindo.
-Vem com essas graça que eu faço esse pano voar na tua cara- Raquel disse parando de secar as
-Você só reclama, Raquel. Se seus filhos fazem ou não tá sempre errado...-Jorge disse.
-Fica na tua e não se intromete. A Dafine é preguiçosa e não faz nada nessa casa, além de se
-Mentira, é humanamente impossível alguém viver em condições assim - Tentei me defender dessa
Jorge foi chamar meus irmãos pra entrarem para dentro de casa. Eles ficaram a tarde toda andando
no parque de bicicleta. Ele tem me irritado nesses últimos dias. Porque ele não arranca essa mulher
daqui e leva pra ele? Já que ela mesma disse que iria fazer isso um milhão de vezes, porque não vai
logo?
Nós comemos um, e eu guardei os outros três pães que ficaram milagrosamente bons.
Lembrei que teria que acordar cedo amanhã, e já me senti derrotada. Eu estava ansiosa para saber
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anterior pairava pela cozinha. Eu ainda estava em jejum, então teria que comer meu almoço só
Na mesa estava a metade do pão da noite anterior e os outros três, que tinham recheio de goiaba,
embrulhados num papel manteiga, ainda na forma quadrada. O cheiro estava muito bom. Eu
Repeti em voz baixa, até que na primeira embrulhada no estômago eu estava atacando o pão.
Tinha uma caixa de leite na geladeira e requeijão recém abertos. Eu me senti no próprio céu..
Coloquei um pouco de Nescau, que raptei do armário com muito esforço e pus no copo junto com o
leite.
O pão derreteu na minha boca de uma forma tão boa, que eu tive que lembrar de usar meus dentes
Coloquei um fone. Ainda bem que ninguém acordou, eles dormem feito pedra.
enfiei toda no meu cú, porque eu olhei para onde estava e não tinha nem sombra. Só os pães
Eu caí na realidade quando comecei a me sentir um pouco cheia demais.Foi ai que paguei por todos
A culpa continuou me rondando, até eu ter que me arrumar para ir pro ponto de ônibus.
Minha mãe nunca levanta de manhã.Nem quando o Ogura dorme na minha casa.Mas dessa maldita
"Estou frita.Vão me pegar.Ela vai perceber." Pensei. Passou 19 minutos. E nada."Besteira sua!
Ninguém vai saber se você for logo pro ponto".E para o meu azar, não estava certa:
- Não acredito! Eu falei pro Patrick guardar o pão e ele enfiou tudo no rabo dele..- Raquel disse
quando fui pegar o meu tênis - Ou foi você?É a sua cara fazer isso!
-Eu não... Não comi nada..- Menti. Muito mal. "Sua miserável.Eu avisei ".
-E o que é esse nescau no canto da tua boca? Foi você! Eu te conheço! Toma vergonha na cara e
para de mentir.Vou ter que cortar o outro pão porque voce comeu esse sozinha. - Essa fala dela me
pareceu mais como : " porque você é gorda e não tem controle sobre a própria boca sua inútia."
Tratei de fugir dali pra não ter que ver ela contando, pra casa e vizinhança toda, a merda que eu
adiantar de nada de qualquer forma. Agora estou me sentindo estufada, parecendo um balão. Eu
Fiquei com medo de alguém notar que eu comi feito uma porca nojenta.
Alguém devia me trazer um oscar por fazer papel de trouxa incrivelmente bem.
Eu devo ter engolido o café da manhã da escola inteira!Que horror! Que ódio!
Karen e Deb estavam me esperando. Eu estava meio irritada por que elas não precisavam encolher
a barriga pra caber na calça igual eu estava tendo que fazer, e me senti um lixo por desejar que
alguém precisasse fazer isso. Ninguém merece passar por isso! Ninguém! Nunca!
-Oii- Fingi animação. Ao menos isso eu sei fazer. Sou uma ótima atriz. Elas deram um sorriso pra
Lembrei do diário da barbie, quando a própria Barbie diz que queria se misturar com a paisagem e
Ah se eu pudesse....
Eu fiquei a semana toda, e além, ouvindo a mesma história imbecil:
"A Dafine não quer saber se a gente vai morrer de fome ela come tudo e não deixa nada pra gente.
Todo mundo tentando mandar em mim, falando coisa que não sabe e acreditando na minha mãe que
-Tá explicado porque está tão gorda- A fofoqueira da minha vizinha, que odeia gatos e é
macumbeira, rosnou.
Ela é conhecida por usar gatos na seita dela. Deve ser por isso que ninguém passa perto da casa
dela.
Eu queria sair para fora e mandar ela ir se ferrar. Já que a cara de capivara atropelada dela não era
tão bonita também, muito menos melhor que a minha, ela tinha que ficar quieta. Mas aí vi que ela
meio que tinha razão e fingi que não ligava. Apenas bati o portão como se eu estivesse dando um
A desgraça foi tanta, que eu não pisei na rua mais. Tentei sair do ônibus e ir correndo para a minha
casa. Ela é uma das últimas, toda coberta de árvores e um semi espaço para gado ficava no final da
rua fechada. Meu bairro é pobre, mas só tem gente que se acha superior aos outros. Bando de
cretinos!
Era Segunda.Tive que sair correndo e de chinelo por que quase perdi o ônibus. Dei graças aos céus
por não ter que ficar em casa. Hoje eu estava revoltada com todo mundo. A ponto de querer tacar um
percebo.
-Nossa, que cara é essa? Não dormiu?- Karen me perguntou quando entramos no portão da escola.
-Eu fiquei terminando o trabalho ontem, do Carlos de química, até tarde- Menti. Eu não ia falar que
fiquei chorando a noite toda por que me recusei a comer qualquer coisa, por protesto contra minha
mãe.
- Nem precisava! A gente vai ter show de talentos hoje. Esqueceu? - Débora disse animada. Ela
odeia segunda.
-Não! - Rimos - Agora estou ofendida. Eu canto tão mal assim?-Deb perguntou.
-Não sei. Vamos marcar uma festa do pijama e ver isso.- Karen sugeriu.
-Eca. Pra que isso?- Perguntei rindo. Minha mãe não deixaria, na verdade.
-Pra gente.Duh. Aprende a viver Dafe. Você não é mais criança!- disse Karen.
-Sua mãe é muito chata mesmo.
- Mas ela só tá falando isso porque a mãe dela não deixa ela cruzar a esquina.- Karen disse -Até
parece que ela gosta de você.- Eu forcei uma risada e olhei feio para ela.
-Quer parar?! Ninguém precisa saber disso! E você sabe muito bem como é minha relação com a
-Tá bom... Desculpa... A gente vai dar um jeito nisso depois.- Saímos do nosso banco e fomos
Todas as salas estavam ocupando o refeitório e o pátio. O espaço era grande. Havia um palco, com
uma pintura de Wyspiański quase desbotada, no fundo, que servia para apresentar peças de teatro.
As mesas e assentos ocupavam a frente do palco. Eram brancas e alternavam com outro tipo de
mesa azul, todas enfileiradas e com capacidade para quatro pessoas ou seis. A direção vivia
trocando algumas que quebravam, porém, foram necessários punições mais severas para os
o pessoal foi entrando e se espalhando pelo local. Alguns nem ligaram para o evento em si, foram
Deb se juntou a nós, com três latinhas de guaraná e pacotes de biscoito. Eu nem tinha visto ela sair,
agora vou ter que quebrar meu jejum nada sem querer.
- Negresco e refri. - Karen arrancou o pacote de bolacha, abriu e enfiou uns três na boca de uma vez.
- Não sei. Ontem eu comi um prato enorme de macarronada com repolho, que meu pai trouxe- Karen
disse com a boca cheia. Umas garotas viram a cena e olharam debochando.- Vão se ferrar!- Karen
- Vai assustar todo mundo desse jeito, Kah.- Deb disse. Karen deu de ombros - Olha só. O
casalzinho. Devem ser do 9° ano.- Viramos pra olhar aonde Deb apontava. Havia um gordinho, meio
e uma menina mais alta que ele, morena e tinha um par de tênis,
que todo mundo passou a usar de repente. Devem ter vindo da tarde, eu não os conhecia.
- Quem são? - Perguntei
- O casal 2017. Vejam só como os pombinhos se olham. Com muito fogo nos olhos. Eles estão tão
apaixonados. Ou foi a mágica do sapo preto.- Karen disse, num tom maldoso. Eu entendi a
referência.
- Tá maluca? Eles não fariam isso. Quem quer se casar com 14 ou 15 anos ?- Falei mesmo sabendo
- Porquê não? A gente não sabe Karen disse - Olha lá. Parece que tão implorando para alguém ir
- Você é má! - Deb disse e rimos insanamente.- Casal 2017 é a nossa descoberta...- Deb fez uma
careta bem esquisita e olhou pra eles. Pareceu que eles sabiam que estávamos falando deles, pois
os dois viraram na hora e encararam ela. Deb desviou o olhar imediatamente e ficou mais vermelha
que um tomate.
palco. Ela sempre andava com os cabelos louro-avermelhado num coque, e vestia um blazer pra
cada dia. - Hoje, iniciaremos um evento cultural na Jane e estamos felizes com a participação de
vocês...
Uma mini banda, com violão, alguns aparelhos de som e microfones foram sendo montadas no
palco enquanto o coordenador Luís, um dos melhores professores de sociologia e bem zueiro,
- Eu acho isso legal. Mas nem tanto. Tem gente que só quer chamar a atenção.- Deb disse
Uma menina da começou a cantar uma música música religiosa. Um pouco desafinada, ela terminou
a música, desconhecida para mim, depois de alguns minutos. Os aplausos foram bem tímidos. Eu
Eu estava tentando disfarçar meu desânimo com a conversa sobre namorados que as duas estavam
tendo, apenas concordando com a cabeça, pois essa era uma área bem distante do meu
conhecimento.
- Teve uma vez que eu dei um toco em um menino. Acho que foi ano passado. - Karen disse rindo -
Ele era um mala. Só porque era bonitinho ficou achando eu que eu ia cair no papo amador de
- E quanto a você Dafine?... Nos conte em quem você já deu um toco... - brincou Deb.
- É mais fácil falar de quem eu levei um toco - Ri em desespero, porque era verdade.
- Fala sério - Karen deu uma gargalhada imitando um porco. Foi tão esquisita que todas nós rimos
- Olha quem fala dona oink- Débora soltou e minha barriga já estava doendo de tanto rir. Nem me
lembro a última vez que ri tanto. Talvez nunca me ocorreu, se eu me lembro bem.
Lá longe notei algo que me prendeu o olhar durante alguns minutos. Enquanto riamos pude perceber
que três garotos estavam parados, um pouco distante da onde estávamos sentadas.
Mais precisamente, dois estavam conversando e o outro olhava diretamente para mim.
Mesmo de longe pude notar que talvez tenha nos observado desde o começo do evento. Ele me
Eu os conhecia de vista. Eram todos do último ano. Douglas e Abner estavam empolgados com um