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A reinvenção

de uma tradição
no protestantismo
brasileiro:
PAULO BARRERA RIVERA

PAULO BARRERA
RIVERA é professor da
Umesp.

a Igreja Evangélica
Brasileira entre a Bíblia
e a Palavra de Deus
Na introdução ao clássico livro A Invenção das

Tradições Eric Hobsbawm afirma que “na medida

em que há referência a um passado histórico, as

tradições ‘inventadas’ caracterizam-se por esta-

belecer com ele uma continuidade bastante arti-

ficial” (1997, p. 10). A Igreja Presbiteriana foi um

dos primeiros protestantismos a se estabelecer

no Brasil num período que viu o país transitar

do Império para a República. Logo nas primeiras

décadas de trabalho missionário entre Rio de

Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, as lideranças

dessa igreja tiveram que encarar interpretações

heterodoxas de algumas de suas principais tradi-

ções. O conflito levou ao êxodo de um grupo de

famílias identificadas com as convicções religiosas

de Miguel Vieira Ferreira, presbítero dessa igreja,

que acabou fundando uma nova tradição religiosa.

A nova igreja foi nomeada Igreja Evangélica Brasi-

leira e iniciou as suas atividades em setembro de

1879. Depois de 126 anos essa igreja apresenta

uma bem consolidada tradição religiosa. Como


toda tradição, ela é fruto de um longo proces-
so social de interpretações e reinterpretações
de suas origens, até alcançar legitimidade
e eficácia para passar de uma geração para
outra. O objetivo principal deste artigo é
analisar esse processo de invenção, constru-
ção e institucionalização da nova tradição
religiosa. Previamente, procuramos na
biografia do fundador e na sua passagem
rápida pelo protestantismo presbiteriano
elementos culturais que ajudam a entender
as principais características que essa igreja
apresenta na atualidade (1).
A Igreja Evangélica Brasileira (IEB)
tem sido objeto de pouca atenção por
parte dos pesquisadores. O prof. Émile-
Guillaume Léonard, durante seus breves
anos no Brasil (1949-51), como professor
de história moderna na Universidade de
São Paulo, visitou e observou com muita
atenção a IEB. Os líderes e membros dessa
igreja o receberam com muita atenção (2)
e admiração ao saberem que se tratava de
um professor francês. Alguns anos mais
tarde Léonard publicou as suas observa-
ções sobre a Igreja Evangélica Brasileira
como parte do ensaio L’Illuminisme dans
un Protestantisme de Constitution Récente
(Brésil) (1953). Na época em que Léonard
pesquisava no Brasil, essa igreja estava em
processo de reinterpretação de suas origens.
A posterior definição desse processo não
pôde ser percebida por Léonard. Também,
já se passou mais de meio século desde
1 Este artigo é parte de uma que Léonard observara e escrevera sobre a
pesquisa de pós-doutorado
terminada em 2002 graças ao Igreja Evangélica Brasileira. Muitas coisas
auxílio da Fapesp. A biografia
intelectual de Miguel Vieira mudaram no processo de reinvenção da
Reprodução
Ferreira, assim como as suas nova tradição e este artigo pretende abordar
relações, de aproximação e
distância, com o positivismo essa questão. fomos levados a estudar a biografia de Mi-
organizado das últimas dé-
cadas do século XIX não as guel Vieira Ferreira (MVF) anterior à sua
incluímos aqui por não serem entrada na Igreja Presbiteriana. Destacamos,
de interesse da questão central
a seguir, as características sociais e culturais
deste artigo.
2 Os líderes e membros dessa
BIOGRAFIA FAMILIAR E VISÃO da família em que nasceu MVF (3).
igreja são muito atenciosos com A mãe, Luiza Rita Vieira da Silva
as visitas. Na nossa pesquisa
de campo também fomos muito DE MUNDO NA FUNDAÇÃO DE Ferreira, era maranhense, filha do coronel
bem recebidos e atendidos, em
Luiz Antonio Vieira da Silva, de origem
todas as congregações que
visitamos. UMA RELIGIÃO portuguesa, e de dona Maria Clara de
3 Deixamos de lado, por razões Souza Vieira, brasileira e filha de outro
de espaço, a sua formação nos
centros educacionais do Rio de Na procura das razões que explicassem coronel, José Antonio Gomes de Souza,
Janeiro, onde estudou até obter o interesse, aparentemente repentino, da tio do famoso “Souzinha”, também des-
o título de doutor em Física e
Matemática. família Vieira Ferreira pelo protestantismo, cendente de portugueses, que chegou a ser

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Não encontramos informação sobre os
À esquerda,
vínculos da família da mãe de MVF com
a maçonaria (4). Jesus e São
O pai de MVF, Fernando Luiz Ferreira, João Batista
nasceu em São Luís do Maranhão, assentou
Menino, de
praça nessa cidade em setembro de 1820 e
“foi reconhecido como cadete de primeira Murillo
classe”. Foi promovido a segundo-tenente
de artilharia em março de 1821. Durante a
guerra da independência esteve destacado
em Caxias, comandando a força de artilha-
ria. Foi promovido a capitão em 1824, mas
só lhe foi confirmado em 1831. Estudou o
curso completo de ciências matemáticas e
físicas na antiga Academia Militar do Rio
de Janeiro. Na corte foi professor de dese-
nho de máquinas no Colégio de D. Pedro
II. Em 1833, passou a comandar o corpo de
artilharia no Maranhão. Durante a revolta
da Balaiada (1838) fez as fortificações no
Icatu e Alto das Carneiras. Em 1840 foi en-
carregado de fundar uma colônia indígena.
Em 1857, nomeado presidente do Conselho
Administrativo do Império, serviu por 10
anos até a extinção desses conselhos. Em
1864 foi nomeado diretor da Escola Agrí-
cola do Maranhão, e um ano depois diretor
de Obras Públicas (5). O pai de MVF tinha
uma vocação pedagógica que aplicou na
4 Ver: Vieira, 1980. Há infor-
alfabetização de seus próprios filhos. MVF mação que esse autor oferece
só foi para uma escola à idade de 14 anos, sobre a família de MVF que as
fontes nas quais ele se apóia
quando entrou no Liceu. Toda a instrução não a confirmam. Por exemplo,
prévia recebeu em casa. Na primeira metade afirma que Luiz, o irmão de
MVF, estudou na França (Vieira,
do século XIX chegavam ao Brasil novas 1980, p. 153). Essa é uma
informação sem provas. Não
correntes pedagógicas e apenas começavam há indícios desse fato. Gueiros
a cobrar forma algumas idéias a respeito Vieira imagina essa viagem na
tentativa de explicar a origem
da educação pública. MVF afirma ter sido das idéias modernas na família
de MVF. Curiosamente, esse
alfabetizado pelo pai através do “método de autor diz, na mesma página,
deputado do Parlamento Imperial entre os Jacotot”. As reflexões de Jacotot a respeito que “não se sabe desde quando
os dois irmãos nutriam idéias
anos 1857 a 1863. A mãe teve participação do método de ensino chegaram cedo a São republicanas”. Gueiros Vieira
no desenvolvimento da leitura de MVF, Luís do Maranhão. Sem entrar nos deta- imagina um período de estudos
de Luiz na França, talvez a partir
pois conta ele que entre os 6 e os 13 anos lhes do pensamento pedagógico de Jacotot de uma carta de MVF a Luiz,
na qual lhe diz: “visto como te
lia para “a mãe ouvir”. A família de Luiza basta aqui dizer que seu método partia da achas muito afastado d’aqui”.
Rita estava vinculada a importantes pessoas afirmação de que o papel do professor era A carta é de 1866, quando
Luiz se encontrava participando
da elite intelectual, política e militar. O pai acessório e que o aluno era suficientemen- da guerra com o Paraguai. Na
verdade eram três irmãos: Luiz,
de Rita, Luiz Antonio Vieira da Silva, avô te capaz de aprender pelos seus próprios Miguel e Joaquim. Houve, sim,
de MVF, foi deputado da Assembléia Pro- meios. Professor que se considerasse uma tentativa de viagem à
Europa, mas de Joaquim, e foi
vincial do Maranhão (1860-61), deputado indispensável escondia, de maneira mais frustrada (ver: Ferreira, 1966,
pelo Maranhão no Parlamento (1864-67), ou menos sutil, o convencimento de que p. 71).

senador a partir de 1871, e entre 1882 a o aluno é incapaz de aprender sem o pro- 5 Os dados sobre os pais de MVF
os tomamos de: Prado, 1974,
1889 foi membro do Conselho de Estado. fessor (Rancière, 1987). pp. 29 e segs.

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soldos a que tinha direito. Proibiu-lhe que
usasse as insígnias de capitão e em certa
ocasião, tendo recebido a ordem de apre-
sentar-se no quartel-general fardado com as
insígnias de segundo-tenente, respondeu:
“Sua Majestade, o Sr. D. Pedro I, pode
tudo, até mandar fuzilar-me, mas não pode
forçar-me a pôr umas dragonas que já me
honraram, mas que hoje me degradariam”
(Ferreira, 1991, p. 25).
Fatos exemplares da vida do pai inspira-
vam MVF ainda no seu trabalho pastoral à
frente da IEB. Em 1881 refere-se a seu pai
com as palavras seguintes: “Esse modelo
vivo de justiça e caridade que tive sempre
ao meu lado e diante de meus olhos; esse
caráter nobre e firme, que nunca recuou
diante de obstáculos quando se tratava da
prática da justiça e do cumprimento do de-
Miguel considerava seu pai um pa- ver” (Ferreira, 1991, p. 25) e umas páginas
triota, independentista, injustiçado pelo mais adiante:
exército:
“Nesta escola de honradez, independência e
“Fernando Luiz Ferreira, verdadeiro pa- nobreza fui educado desde minha infância.
triota e meu amado pai, é aquele que, na Sempre lhe ouvi dizer: ‘eu vivo de honra e
sua mocidade, em verdes anos, pugnou não de dinheiro’; e reprovar certa mãe que
pela independência do Brasil no Maranhão, dizia ao filho: ‘quem não rouba não tem e
naquele recanto em que se achava e que, quem não tem não é ninguém’. São inúmeros
expondo sua vida como independente e os seus atos de abnegação, honradez e pa-
contemplado rebelde perante o que era, triotismo, verdadeira justiça e real caridade
então, a legalidade, porque era militar, já na que lhe vi praticar. Com ele aprendi a não
luta que se travou pela liberdade, alcançou pôr o meu coração em coisas efêmeras e
por merecimento, as patentes de tenente e abjetas” (Ferreira, 1991, p. 26).
capitão que D. Pedro I não lhe quis depois
confirmar, porque feita a independência, os O exemplo do pai tinha em MVF forte
mais perseguidos, abandonados ou esqueci- influência. É importante notar que em 1881,
dos por esse príncipe, já imperador, foram quando já era pastor da IEB, Miguel Vieira
justamente aqueles que mais trabalharam Ferreira fazia uma leitura desse passado
pela liberdade da pátria. Muitos voltaram às exemplar vinculando-o à sua vocação pe-
divisas de sargento depois de terem subido dagógica religiosa presente. No mesmo
à patente de tenente-coronel, como aconte- texto antes mencionado Ferreira afirma
ceu com um bravo do Ceará, cujo nome me que cita esses exemplos do passado com o
escapa nesta ocasião; mas meu pai suportou objetivo seguinte:
tudo sem se dobrar” (Prado, 1974).
“Para fazer contraste com os que encon-
Fernando Luiz Ferreira teve que esperar tramos em geral no presente; e para que
sete anos para receber a confirmação da sirva de avigorar a nossa mocidade e a
patente de capitão. Para MVF foi de grande minha própria descendência, a quem desejo
inspiração o seguinte incidente. O governo e espero transmitir as virtudes de nossos
lhe recusou, a Fernando Luiz Ferreira, a maiores, e as bênçãos que de Deus tenho
confirmação do posto de capitão e até os recebido. – Cito-os para o bem meu e do

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nosso país, onde os homens parecem ter A admiração pela vida exemplar do pai
esquecido completamente os caminhos de é anterior ao trabalho religioso de MVF.
retidão e justiça tal qual se acham na Palavra Tal como se aprecia na seguinte citação.
de Deus, a Bíblia, que eles odeiam sem ter Mas parece ter se tornado mais forte com
lido, mas que em verdade, de antemão, os motivo do trabalho pastoral. Numa sorte
condena, e isso de tempos os mais remotos” de balanço sobre a vida de seu pai Miguel
(Ferreira, 1991, p. 27). Vieira Ferreira disse:

Os escritos de MVF dessa época, dé- “Vossa vida tem sido um complexo de
cada de 1880, começam a mostrar já as contínuos sofrimentos; homem de talento
marcas da predestinação calvinista que tendes sido deprimido pelos ignorantes;
herdou de sua passagem pelo presbite- homem de instrução tendes estado em um
rianismo. Voltaremos sobre essa questão esquecimento quase completo; homem de
mais adiante; por enquanto interessa as- honra tendes arrastado todas as dificulda-
sinalar a força que ainda tinha o modelo des da vida sem vos arredardes de vossos
exemplar aprendido em casa e a leitura que princípios, e até em vossa honra, sempre
MVF fazia desse passado familiar num respeitada no Maranhão, a escorea já ousou
contexto marcado pelo trabalho pastoral tocar!” (6).
à frente da Igreja Evangélica Brasileira.
Dois dados tomados de períodos dife-
rentes da vida de MVF podem ser desta-
cados das marcas socioculturais que ele
carregava consigo desde antes de sua che-
gada ao protestantismo. Um desses dados
corresponde à infância e segundo a própria
interpretação feita pelo MVF já adulto. O
outro dado biográfico é de 1861, dois anos
depois de sua formação na Escola Militar
do Rio de Janeiro.
A carta anteriormente citada revela as
qualidades de orador que MVF teve opor-
tunidade de desenvolver desde menino.
Conta Ferreira (1861) que, quando estudava
no Liceu de São Luís do Maranhão, seus
mestres, “ou por simpatia ou pelo quer
que fosse, me contemplaram como um dos
alunos mais dignos de atenção, e como tal,
me faziam dar lições perante o inspetor da
instrução pública; e, mais de uma vez, pelos
meus exames, correspondi à confiança que
em mim depositavam”.
Também o Álbum de Portugueses e
Brasileiros Eminentes (7) registra que com
motivo da publicação de seu Ensaio sobre
Philosophia Natural Miguel Vieira Ferreira
manteve uma longa audiência pública com
o imperador D. Pedro II, que se despediu 6 Carta de Miguel Vieira Ferreira
a seu pai, publicada como pre-
dele afirmando: “Continue a estudar e se fácio ao Ensaio sobre Philosofia
esforçar. O senhor é um moço de talento, de Natural ou Estudos Cosmológi-
cos (Ferreira, 1861).
quem o país tem muito a esperar; a Pátria
7 Fasc. XVII , Lisboa, 1891, p.
necessita de homens como o senhor”. 23.

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da tradição religiosa será fácil imaginar o
PRÉ-PROTESTANTISMO DE MIGUEL surgimento de conflitos com os líderes da
Igreja Presbiteriana. Há razões, pois, para
VIEIRA FERREIRA afirmar que a presença de MVF na Igreja
Presbiteriana era atípica e tinha todas as
Ferreira tinha extraordinárias qualida- condições para torná-lo forte concorrente
des como orador, que, como vimos, foram de qualquer liderança e com potencial su-
desenvolvidas desde a infância. Dois dis- ficiente para gerar nova interpretação da
cursos, que a seguir analisamos, revelam “verdade” religiosa.
eloqüência e facilidade de comunicação
com o público de ouvintes. Recursos esses
muito importantes e comuns na prática
evangelizadora inicial dos protestantes. O DISCURSO DIRIGIDO À “CLASSE
primeiro discurso é de 1868 e foi dirigido
aos maranhenses, especialmente à “classe DOS ARTISTAS”
dos artistas”, no contexto das atividades
sociais de Ferreira na sua terra natal. O O discurso é de maio de 1868. Nele
segundo discurso é de 1873, ano anterior MVF se revela como um patriota, brasileiro
à entrada de MVF no presbiterianismo. interessado no progresso de seu país e da sua
Foi proferido como motivo da inaugura- terra, o Maranhão. Destaca-se a referência
ção da “Escola do Povo”. Esses discursos a seu pai, que, como sublinha Ferreira,
revelam de maneira clara suas habilidades colocava acima de tudo o “bem comum”.
como orador e o bom uso desses recursos Miguel Vieira Ferreira tinha voltado do Rio
com propósitos docentes. Essas qualidades de Janeiro para São Luís em 1864, atacado
ajudam a explicar por que MVF teve uma de uma forte pulmonia. Em 1866 publicou
ascensão meteórica entre as lideranças da um folheto titulado Considerações sobre o
Igreja Presbiteriana. Tudo indica que a sua Progresso Material da Província do Mara-
experiência prévia como orador e maestro nhão (9), trabalho que foi muito bem recebido
facilitou um rápido reconhecimento por pelos maranhenses, de maneira especial pela
parte do grupo religioso. Mas também “classe dos artistas”, que em maio de 1868
decorre disso a facilidade para se sentir lhe dirigiram uma carta agradecendo “pela
com direito a certa autonomia a respeito da brilhante e luminosa preleção feita no dia 22
interpretação das doutrinas e das tradições do mês passado no Theatro S. Luiz – visto
religiosas. Como se sabe, Ferreira sentiu- que as idéias ali emitidas são altamente fa-
se livre para falar e ensinar a revelação voráveis à classe dos artistas”.
recebida diretamente de Deus, sem passar Ferreira se define então como “bra-
pela mediação exclusiva da Bíblia. MVF sileiro amante de meu país, maranhense
era homem de idéias, bastante racional, dedicado ao torrão que me viu nascer”. Ele
orador convincente e entusiasta militante é um intelectual disposto a colocar seus
das causas que perseguia. conhecimentos a serviço do progresso de
O missionário Blackford, pastor da sua terra. A motivação e a explicação dessa
Igreja Presbiteriana da Barreira no Rio de disposição encontram-se, como ele próprio
Janeiro, refere-se a MVF com as seguintes diz, na vida exemplar de seu pai:
palavras: “Trata-se de um homem inteligen-
te, ativo, que possui uma instrução incom- “Desde a infância educado nos princípios
parável…, incrédulo declarado que ensina de trabalho e de amor à Pátria; com esse
8 Carta do rev. Blackford à sede abertamente e a viva voz suas idéias, em mesmo fundo moral que pertence a outro
da Missão Americana (apud
Léonard, 1953, p. 21). conferências públicas oferecidas nas noites maranhense que também conheceis, meu pai
9 O conteúdo dessa publicação, numa escola da qual era o diretor” (8). Con- o tenente-coronel Fernando Luiz Ferreira,
de 108 páginas, na verdade um siderando todas essas qualidades a serviço predicados que me foram incutidos gradu-
livro (mais que um folheto), não
cabe analisar neste artigo. da hegemonia de uma nova interpretação almente por palavras e por exemplos”.

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Ferreira encerra o discurso afirmando “A Dominical” (Léonard, 1953). Conclui-se
minha bússola marcar-me-á sempre o bem então que quando MVF proferiu o discurso
comum; o meu norte será a felicidade dos de inauguração da “Escola do Povo” ele
povos. Ajudai-me, supri o que me falta em já tinha dois ou três meses freqüentado
forças; e o futuro contemplará esta atuali- os cultos da Igreja Presbiteriana. Vejamos
dade”. As suas qualidades como líder são então o discurso em questão.
evidentes. Nele juntavam-se as qualidades É um discurso longo do qual nos interes-
como orador, o prestígio por causa de sua sa destacar algumas questões a respeito da
formação intelectual, e seu amor e dedicação maneira de entender a sua função docente
pela sua terra. Nessa época fundou o jornal como parte do projeto “Escola do Povo”
O Artista, que administrava junto com seu que ele, junto com os drs. Rangel Pestana,
irmão Luiz e com seu pai. Esse jornal revela Henrique Limpo de Abreu e José Telles de
que “o jovem doutor” tornou-se um confe- Meneses, fundaram no Rio de Janeiro. Já
rencista muito apreciado nessa cidade, pois nas primeiras frases destaca-se a impor-
reunia muita gente para escutá-lo no teatro tância do cumprimento do dever: “Eis aí,
da cidade (10). É nessa época que MVF se senhores, o motivo pelo qual venho agora
define como republicano e se torna fervoroso ocupar a vossa atenção; a sorte foi quem
militante pela queda da monarquia. Também me colocou neste posto de honra, e como
participou, nessa mesma época, da funda- bom soldado, eu não deveria abandonar”. O
ção do jornal O Liberal do Maranhão e do primeiro dia de aulas tocava precisamente
“Instituto Literário Maranhense”. as matérias que MVF assumiria, assim, foi
ele o encarregado dessa sorte de palestra
inaugural. Por isso repete: “Não foi uma
escolha quem aqui me colocou, foi a sorte;
DISCURSO DE INAUGURAÇÃO DA aqui me acho tão-somente para cumprir um
dever. Peço-vos, pois, que sejais indulgen-
“ESCOLA DO POVO” tes, que me concedais alguns momentos
de atenção”.
A data desse discurso é de especial No discurso MVF se esforça em subli-
interesse para estudar o pensamento pré- nhar a necessidade de distinguir a educação
protestante de MVF. Foi proferido no dia do discurso às massas, este último mais
1o de agosto de 1873. A data da conversão próprio do orador que busca apelar às pai-
de MVF, na Igreja Presbiteriana da Bar- xões. Diferentemente, o professor apela
reira no Rio de Janeiro, é 22 de abril de ao espírito:
1874 (11). Trata-se de um documento que
nos permite valiosa informação a respeito “O professor deve pressupor que fala a um
de quem era MVF poucos meses antes de auditório que precisa de sua lição, deve
sua conversão. Mas há outros dados desse imaginar que esse auditório ignora comple-
período pré-conversão que devem ser leva- tamente aquilo que vem ouvir. O que em uma
dos em consideração. Segundo o relato do conferência pública só se dá por conhecido,
missionário Blackford, então responsável é justamente o que em uma lição procura-se
pela Igreja Presbiteriana da Barreira, MVF firmar no espírito do ouvinte. Ao professor,
e seu pai visitaram essa igreja pela primei- por conseqüência, falta a eloqüência do tri-
ra vez em “maio ou junho do último ano” buno, embora ele tenha a do professorado 10 Ver Rivera, 2004.
(1873). O velho pai de Miguel, Fernando que é de gênero completamente diferente. 11 Segundo o Boletim The Foreign
Missionary of the Presbyterian
Luiz Vieira Ferreira, então aposentado do O tribuno fala especialmente às paixões, Church, de julho de 1874,
exército e com 70 anos de idade, tinha deslumbrando a inteligência, o professor vol. 33 (apud Léonard, 1953,
p. 24).
gostado do sermão (12) e desde então “o fala ao espírito, procurando não despertar
12 O rev. Blackford conta: “Quan-
pai e o filho e outras pessoas da família as paixões. O primeiro é essencialmente o do eles saíram o velho me disse:
assistiam muito regularmente às reuniões, homem de coração, o segundo é o homem Esse discurso exprimiu minha
maneira de ver” (Léonard,
enquanto as crianças freqüentavam a Escola da cabeça. Eis por que um é móvel, ardente 1953).

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e fervoroso, e o outro parece refletido, calmo no seu discurso. Destaque-se que essa é
e frio. No entanto a arte da oratória existe a primeira vez que encontramos MVF se
em ambos, ambos podem deleitar, elevar o exprimindo a respeito do papel da religião
espírito até o entusiasmo”. na sociedade. Antes disso a biografia de
Ferreira é bastante secular:
Destaca também esse discurso o al-
truísmo ou filantropia dos fundadores do “Queremos em primeiro lugar que os nossos
projeto social de educação que a “Escola discípulos aprendam a ler e escrever, que
do Povo” representava. MVF resume, nas conheçam a gramática da nossa língua,
palavras seguintes, o sentimento comum como tudo podem saber nas escolas do go-
aos quatro fundadores do projeto, todos verno mas queremos, além disso, que eles
eles assinantes do histórico manifesto re- saiam da nossa escola sabendo a geografia
publicano de 1870. de nosso território, a história da nação a
que pertencem, não uma história escrita
“Somos homens formados em diversas ad hoc, mas a história real, queremos que
ciências, que tínhamos diante de nós um eles conheçam os clássicos, prosadores e
futuro conquistado honrosamente pelo nos- poetas que falaram a língua portuguesa,
so trabalho para ganhar a subsistência, mas que formem a sua moral pela do Cristo,
que olhamos para os nossos concidadãos e estudando a história sagrada, mas quere-
queremos com eles repartir o pão de espírito mos que não saiam imbuídos do fanatismo;
que nos deram nossos mestres, e que as nos- queremos que todos se compenetrem de
sas circunstâncias permitiram que fossemos que são Cidadãos, que têm direitos a re-
buscá-lo no mercado em que atualmente clamar e deveres a cumprir na sociedade;
ainda se acham monopolizados”. que conheçam esses direitos e deveres tão
desenvolvidamente quanto é possível a uma
O patriotismo se expressa na preocu- crença” (grifos nossos).
pação pela situação do país que “achamos
quase sem vida, completamente extenuado” As disciplinas ministradas na “Escola
e pela educação da infância, considerada a do Povo” eram, segundo se percebe no
fonte da “regeneração do Brasil”. Ferreira discurso de Ferreira, as seguintes: Direito
define os fundadores da “Escola do Povo” Natural e Público, Legislação Comparada,
como “homens que nos habituamos a olhar Religião Comparada, Economia Política,
com amor filial para a nossa pátria; que Estudos Relativos à Mulher, Matemáticas
alimentamos um amor fraternal por nossos Elementares, Literatura Científica. Ao curso
concidadãos; que encaramos a infância de religião comparada Ferreira dedica mais
como a geração do futuro que convém salvar espaço, e o conteúdo reflete já não só uma
deste mau estado presente”. sólida perspectiva do lugar da religião na
Segundo o discurso esse projeto edu- sociedade, mas também indícios de clara
cativo procurava o desenvolvimento não opção cristã; o que nos leva à hipótese de que
só intelectual, mas também moral do país. esse discurso já tem influência protestante.
Ferreira considera a educação básica a fonte A seguir destacamos as principais questões
da “regeneração do Brasil”. Expressa-o nas do discurso a esse respeito.
palavras seguintes: “Somos aqueles que Quanto ao objetivo do curso de religião
reputam o desenvolvimento intelectual e comparada Ferreira destaca o seguinte:
moral como a fonte da liberdade que traz
consigo a prosperidade pública, que reputam “Nos dará a liberdade de consciência sem
a infância como a terra fértil em que brota diminuir em nós o temor de Deus” [grifos
a boa semente apenas semeada”. nossos]. Este estudo cuidadoso e desenvol-
No currículo educativo da “Escola do vido nos habilitará a melhor compreender a
Povo” havia lugar também para o ensino religião cristã, a honrá-la e divinizá-la” [gri-
religioso e MVF se refere a essa questão fos de Ferreira]. Só depois deste profundo

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estudo em consciência nos poderemos dizer
cristãos. Só pelo estudo das diferentes reli-
giões é que se fica esclarecido para rejeitar
o fanatismo, para abraçar a verdade. Quem
só tem uma idéia não pode comparar e quem
não compara idéias não pode conhecer a
verdade, não pode formar juízo”.

Parece que de fato se tratava de um


estudo comparado de diferentes religiões,
mas nele tem lugar de privilégio o cristia-
nismo:

“Ele porá diante de nós sucessivamente, a


religião de todos os povos, trazendo-nos a
luz da razão, em face da própria natureza,
onde sempre se tem refletido a vontade
onipotente do Criador. Fazendo-nos conhe-
cer essas diferentes crenças e adorações,
mostrando-nos seus erros e seus acertos,
esta aula terá uma forte luz e dará força a
nossa consciência” (grifos nossos).
e “puro materialista”. Ou talvez Blackford
Ferreira já falava como “cristão”: “Porque não esperasse maiores resultados da leitura
saberemos então o valor dessa expressão, dos livros, “sobre as evidências do cristia-
poderemos ter uma crença firme e inabalável nismo”, que diz ter fornecido a Ferreira.
nos princípios estabelecidos na Escritura”. Uma coisa é evidente. Ferreira possuía,
A referência à Escritura indica, sem dúvida, antes de sua conversão, uma racionalidade
influência protestante. A questão ganha mais social e religiosa bem próxima da visão de
força nas expressões seguintes: mundo do protestantismo. Como se explica
essa afinidade?
“Só depois de termos certo fundo de ins- A prática social de Ferreira tinha uma
trução religiosa poderemos compreender articulada visão de mundo que a sustentava,
perfeitamente a Jesus Cristo e reconhecer e ela girava em torno do ideal de regene-
por toda parte em torno de nós, em nossa ração do ser humano, herdado sem dúvida
consciência, no nosso ser físico, moral e da família, especialmente do pai. Essa é
intelectual, que ele manifestando-nos a uma questão fundamental na vida de MVF,
vontade de seu Pai, que remiu os pecados importante para entender a sua aproximação
da humanidade”. ao protestantismo a partir do ano de 1874.
A análise da Imprensa Evangélica, órgão
Ferreira parece entender perfeitamente o oficial da Igreja Presbiteriana, dos anos
lugar de destaque que o protestantismo dava 1873, 1874, mostra que MVF teve uma
à instrução religiosa, que o ser cristão não entrada rápida nessa igreja, mas ela não foi
era, para o protestantismo, apenas resulta- repentina, como apresenta o estudo de Émile
do de milagrosa conversão. Reconhece-se Léonard e como os próprios protestantes a
também nas suas palavras a ausência de entenderam. A conversão de Ferreira foi
qualquer mediação eclesial, o que constituía precedida de progressiva aproximação e
uma das características do protestantismo. resultado de afinidade desenvolvida em
O diagnóstico que o rev. Blackford fazia do processo de longa duração. A aproximação
Miguel Vieira Ferreira pré-conversão não de Ferreira ao presbiterianismo foi um pro-
era muito preciso: “incrédulo declarado” cesso que começou na verdade em janeiro

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de 1874. A iniciativa foi do próprio Ferreira na escola, e depois na Escola Militar, a sua
convidando os protestantes a participar de fidelidade aos seus ideais de regeneração
seu projeto de “Escola do Povo” (Imprensa social se explicam pela influência exemplar
Evangélica, 3 de janeiro de 1874). É o MVF da sua família. Ferreira encontra, ou pensa
tentando “evangelizar” os protestantes. encontrar, no protestantismo um espaço
Estes receberam o convite e mostraram seu social para realizá-los. Para ele o ideal do
apreço pela iniciativa, mas se mantiveram progresso era uma força que estava acima de
a distância (13). Os presbiterianos só mu- tudo. Era para ele força extraordinária que
darão de atitude a respeito de Ferreira em dava sentido à sua existência e ação. Trata-
decorrência da participação dele na luta va-se, nesse sentido, de verdadeira religião.
pela separação entre a Igreja e o Estado, Nessa perspectiva se explica melhor a sua
pois Ferreira fazia parte do Comitê de luta entrada no protestantismo e a sua posterior
pelas liberdades em torno dessa causa, e as decepção para criar um novo espaço de rea-
reuniões de trabalho eram dirigidas pelo lização de seus ideais regeneradores, que
pai de Miguel, o tenente-coronel Fernando seria a Igreja Evangélica Brasileira.
Luiz Ferreira (14).
Segundo o testemunho de Blackford, a
mística conversão de MVF aconteceu no MIGUEL VIEIRA FERREIRA
domingo 22 de fevereiro de 1874, depois
de vários dias de profunda crise espiritual. PROTESTANTE:
No dia 5 de abril desse mesmo ano MVF
foi batizado. No final de março de 1874, DE RECÉM-CONVERTIDO A
especificamente no dia 29, a Igreja Pres-
biteriana inaugurava seu novo e moderno PREGADOR
templo, com capacidade para mais de 500
pessoas. Com esse motivo realizou uma No protestantismo latino-americano, via
semana de conferências (Imprensa Evangé- de regra, após a conversão o novo crente
lica, 4 de abril de 1874). No dia 7 de abril, passava logo pelo processo de instrução
a menos de dois meses de sua conversão e religiosa, catequese ou educação cristã,
a escassos dois dias de seu batismo, MVF articulada em torno da Bíblia. Da conver-
já era presidente da Sociedade Bíblica Bra- são, experiência sempre incompreensível,
sileira. No mês de maio Ferreira discursava extraordinária e fascinante, passava-se à
sobre os objetivos dessa sociedade e um educação cristã que – sem querer – se cons-
13 A Imprensa Evangélica de 3 de
janeiro de 1874 publicou a se- de seus argumentos era o seguinte: “Todas tituía em desencantadora dessa experiência.
guinte notícia: “Conferencias da
Escola do Povo: Agradecemos as razões de interesse social estão ligadas A pregação evangelizadora levava o ouvinte
ao nosso prestimoso amigo Dr. muito intimamente à leitura da Bíblia”. à crise emocional da conversão, mas logo
Miguel Vieira Ferreira, os exem-
plares com que nos obsequiou Por essa razão, segundo o próprio Ferreira, o integrava à comunidade religiosa em que
das Conferencias feitas por elle
na Escola do Povo. Divirgimos
“todos os brasileiros, religiosos ou não, tudo se explicava racionalmente a partir da
do illustre autor em não poucos deviam apoiar essa associação” (Imprensa Bíblia. O protestante é resultado, assim,
pontos tratados nestes discursos,
mas nem por isso deixamos de Evangélica, 6 de junho de 1874). No mês da catequese desencantando a conversão,
aplaudir a idéa e os esforços de outubro Ferreira já estava em campanha o ordinário apagando ou enfraquecendo
feitos pelo Dr. Ferreira e por seus
dignos collegas de introduzir evangelizadora junto com o rev. Blackford o extraordinário, o racional explicando
em nossa sociedade este tão
útil como agradável meio de na cidade de Campos. Os jornais dessa cida- o irracional, as idéias claras substituindo
instrucção. Falta-no porem tanto de destacaram que “seu eloqüente discurso as explicações mágicas. É por isso que o
o espaço como o tempo para
uma apreciação mais extensa revelou o seu não vulgar talento para com protestantismo foi sempre terreno fértil
destes discursos, por tantos
títulos recommendaveis”.
aqueles que não tinham ainda tido o prazer para religiões reencantadoras da experiên-
de ouvi-lo” (Imprensa Evangélica, 24 de cia religiosa. O protestantismo realizava a
14 A República, Rio de Janeiro, 18
de janeiro de 1874. A Imprensa outubro de 1874). formação religiosa de seus membros por
Evangélica de 7 de fevereiro de
1874 reproduz essa notícia, em Retomemos a nossa hipótese sobre a vários meios: reuniões de estudo bíblico
que o pai de Miguel Vieira Fer- entrada progressiva de Ferreira no protes- pelo menos uma vez por semana, a “Es-
reira é chamado de “respeitável
cidadão”. tantismo. A formação educativa, na família, cola Dominical”, que oferecia preparo

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direcionado às necessidades específicas religiosa esteve marcada pela experiência da
separando os recém-convertidos dos mais conversão. O seu labor evangelizador no Rio
antigos e dividindo-os também por idades. de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo estava
Outros espaços de instrução religiosa eram marcado por essa experiência primeira. A
os cultos familiares nas casas. Os institutos fé de Ferreira se articulava em torno da sua
e seminários teológicos, onde se forma- mística conversão ficando a Bíblia em lugar
vam os futuros pastores, foram surgindo de segunda importância.
conforme as igrejas se multiplicavam, mas
inicialmente os líderes, anciãos e pastores
passavam pelo processo de instrução religio- A IGREJA EVANGÉLICA
sa comum, no qual se assimilava a cultura
protestante, a visão de mundo articulada BRASILEIRA: RECONSTRUÇÃO
em torno da Bíblia.
Miguel Vieira Ferreira, como vimos, DA TRADIÇÃO FUNDADORA
chegou a ocupar a responsabilidade de
ancião da IEB em período bastante breve. A data mais importante para a IEB,
Tudo sugere que quando começou a ocupar a julgar pelas atividades organizadas em
o púlpito, pregando na comunidade de Bar- torno dela, pela insistência com que é
reira e logo nas províncias de Rio, São Paulo citada no discurso de lideranças e de fiéis
e Minas Gerais, ele não tinha assimilado e pelas expectativas em torno dela, é o 11
a catequese necessária para se conformar de setembro, data em que se comemora a
à regulação religiosa protestante. Mais fundação da IEB por Miguel Vieira Ferreira
precisamente, não tinha assimilado que no ano de 1879. Nos púlpitos os presbíteros
no protestantismo a mediação legítima é a da IEB sublinham de forma reiterada e com
mediação da Bíblia. Léonard (1953, p. 24) especial dedicação que nessa data surgiu
diz que Miguel Vieira Ferreira “tinha uma “a verdadeira igreja”, “a nova Jerusalém”
alma de apóstolo: tão logo se converteu ele – como também é chamada – e que com ela
queria trabalhar pela Igreja onde encontrou seu fundador estava realizando uma “obra
a verdade e ela o recebeu como ancião da eterna”, porém profetizada na Bíblia.
comunidade de Barreira (no Rio) onde ele Quando Émile Léonard estudou essa
tinha feito sua experiência e sido batizado”. igreja, nos primeiros anos da década de
Durante os cinco anos que Ferreira perma- 1950, a reconstrução da tradição estava em
neceu na IEB, entre 1874 e 1879, a sua vida processo. Nas décadas seguintes aparece-
ram novos títulos para o fundador, refor-
çaram-se os títulos que já havia e, o mais
inesperado, surgiu um novo texto sagrado:
O Novíssimo Testamento ou Testamento
Eterno (NTTE), doze volumes que recopi-
lam discursos e experiências do fundador e
primeiro pastor Miguel Vieira Ferreira, do
segundo pastor Luiz Vieira Ferreira, irmão
de Miguel, e do terceiro pastor, Israel Vieira
Ferreira, filho de Miguel. A constituição
dessa obra realizou-se durante o quarto
pastorado, sendo Antonio Prado o pastor,
que morreu em 1999. No momento a IEB
ainda não elegeu um novo pastor e aguarda
alguma revelação divina que mostre quem
será o próximo. Segundo informação dos
presbíteros, o novo pastor será eleito só
quando todos os membros, unanimemen-

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te, coincidam em votar em um mesmo por cinco anos como “ancião”. Onde estaria
candidato. Até agora isso não aconteceu. então a novidade que a IEB prega ou, melhor
Voltaremos mais adiante sobre o processo dizendo, qual a continuidade com o presbite-
de consagração que envolveu a produção rianismo que a IEB deixa de lado para fundar
social desse novo texto sagrado. uma nova tradição? Na interpretação de suas
origens a IEB deixa de lado as suas origens
presbiterianas em favor de um novo evento
PRODUÇÃO DA NOVA fundador. Visto em perspectiva sociológica,
a construção de uma nova legitimidade exige
LEGITIMIDADE FUNDADORA: “O a produção de uma nova tradição, e isso não
se faz de um dia para outro nem de um ano
GRANDE PRÍNCIPE MIGUEL” para outro. Vejamos como a IEB resolve essa
questão. Primeiro há que frisar a nova leitura
O discurso contemporâneo da IEB rei- que os fiéis fazem da experiência de conversão
tera seu caráter exclusivo e reivindica ser a de MVF à Igreja Presbiteriana. Durante o culto
única igreja verdadeira destinada a cumprir em que Ferreira se converteu permaneceu em
os propósitos de Deus na Terra. De fato se torno de 30 minutos aparentemente fora de si.
trata de um discurso com traços messiânicos, Nesse tempo ele teria subido aos céus e rece-
o que é diferente de dizer que se trata de um bido de Deus a ordem de fundar a nova igreja.
grupo religioso messiânico. Expliquemos a Voltaremos a essa questão mais adiante.
questão. Os traços messiânicos do discurso Analisando as fontes sobre a história da
não são acompanhados por mobilização mes- IEB se constata que foi nas últimas décadas
siânica do grupo. A razão desse messianismo que o fundador Miguel Vieira Ferreira ga-
truncado talvez se encontrasse, ao nosso nhou o título de “Grande Príncipe Miguel”
ver, na herança doutrinal presbiteriana. O (GPM), título que começou a circular entre
surgimento de um messias e da previsão de os fiéis e foi adicionado ao de “Doutor Mi-
datas apocalípticas é atenuado pela doutrina guel”. Este último é mais comum na boca dos
da predestinação, herança do calvinismo que fiéis, já “Grande Príncipe Miguel” é utilizado
subsiste na IEB. A doutrina da predestinação em momentos especiais, sempre nos cultos
interdita uma salvação messiânica haja vista e carregado de maior solenidade. Quando
que, segundo essa doutrina, a salvação é só alguém, presbítero, diácono, ou simples
dos predestinados. Pela mesma razão essa membro, menciona esse título coloca sempre
igreja não faz proselitismo nem atividades alguma ênfase, regra geral, eleva a voz e o
evangelizadoras. Entende-se que os esco- repete com solenidade, satisfação e sorriso
lhidos se aproximarão da igreja mais cedo nos lábios. Falar do Grande Príncipe Miguel
ou mais tarde. é falar da personagem mais importante na
A IEB determina um novo fato fundador hierarquia espiritual da IEB. Ferreira não é
a partir do dia 11 de setembro de 1879, mais apenas o fundador. As gerações poste-
data da constituição da IEB, e se remete a riores o tornaram o elo entre o céu e a terra,
essa data constantemente definindo nela o entre o mundo visível e o mundo invisível,
caminho da legitimidade do carisma. O fato entre o imanente e o transcendente, entre a
que legitima o discurso oficial é a fundação origem e a realidade atual.
da igreja e sobre essa data construiu-se uma Pela importância que o GPM tem no
nova tradição. Tradição forte, pois se con- discurso religioso pode-se dizer que a IEB
serva depois de 126 anos de existência. desenvolveu uma sorte de divinização do
Mas a biografia de Miguel Vieira Ferreira fundador. Ele é considerado continuador
mostra uma vida pouco interessada em ques- do Espírito Santo e enviado de Deus para
tões religiosas até o ano de 1873, quando cumprir uma obra eterna, ou até o próprio
começou a freqüentar a Igreja Presbiteriana Espírito Santo, como freqüentemente se
e, em abril de 1874, passou pela experiência insinua desde os púlpitos. Num documento
de conversão, permanecendo nessa igreja de 1987, publicado já no quarto pastorado e

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sendo Antonio Prado o pastor, encontramos Jesus Cristo. Vi abrir-se uma porta no Céu e
os seguintes parágrafos a respeito de Miguel o nosso Pastor Dr. Miguel é quem vinha abrir
Vieira Ferreira: a porta, para atender a quem estava clamando
ou batendo. Acordei e pensei no sonho e Deus
“Quem é Miguel me concedeu o grande privilégio de poder
conhecer que Ele, Deus pai, estava me mos-
Miguel é amor do Pai, amor do Filho, amor trando que eu visse Seu Filho Jesus Cristo em
do Espírito Santo – Jesus Cristo é a graça aquele a quem Ele tinha enviado”.
de deus, Miguel é a graça de Jesus Cristo
– Jesus Cristo veio para glorificação do Pai A exaltação do fundador torna comple-
e Miguel veio para glorificação de Jesus xas as hierarquias consideradas sagradas
Cristo” (dito a Miguel em 11 de junho de pela IEB. Essa é a razão pela qual o mesmo
1883, em Botafogo) (IEB, 1987, p. 20). documento adverte aos fiéis: “Não incidam,
entretanto, os membros da Igreja no erro
Esse parágrafo faz um entrosamento gravíssimo de confundir o Pastor – visível
entre Miguel e a trindade Pai, Filho e – com a pessoa de Cristo” (IEB, 1987, p.
Espírito Santo. Nele Miguel aparece num 33). Já em 1926, durante o pastorado de
lugar privilegiado que o coloca acima de Israel, quando se estabeleceram os “Dez
qualquer mortal. O documento continua pontos doutrinários” da IEB no artigo X
falando de Miguel: se dizia: “Que a igreja não idolatra seus
Pastores, tributa-lhes entretanto, profunda
“Fato para a humanidade memorável é sem veneração e respeito por serem os mesmos
dúvida o nascimento do Doutor Miguel Viei- Ministros de Cristo” (IEB, 1987, p. 47). De
ra Ferreira. E isso porque, na vida que em fato o respeito e a veneração pelos pastores
dia tão singular foi dada à luz, surgiu aquele são notórios tanto nos cultos quanto na
em quem, a seu tempo, cumprir-se-iam as fala dos membros. No primeiro culto a que
belíssimas predições feitas por Daniel, o assistimos, na IEB de Rio Pequeno em São
insigne profeta!… Glória, honra e louvor Paulo, observamos, no final do culto, como
sejam, pois, dados a DEUS, o Pai, e a seu todos os fiéis se dirigiam ordenadamente à
bendito FILHO pela graça e benção que parte da frente para cumprimentar o pastor,
em MIGUEL foram conferidas aos servos nesse caso o presbítero, beijando sua mão.
do Altíssimo aqui na Terra. Amém” (IEB, Essa prática acontece normalmente em
1987, pp. 20-1). todos os cultos e com a maioria dos pres-
bíteros. No entanto é claro que a veneração
Mais adiante diz o mesmo documento: pelo fundador é especial. Veneram-se com
“Miguel veio no poder do Espírito Santo sen- particular ênfase o fundador Miguel Vieira
do-lhe conferida a Capitania desse Espírito Ferreira e o filho dele, que foi o terceiro pas-
(revelado por Deus ao próprio Dr. Miguel em tor, Israel Vieira Ferreira, chamado também
24 de março de 1883) para que ele pudesse de “Filho da Promessa”. Mas o fundador
executar a grandiosa obra que lhe fora de- recebe tributo singular. Outra evidência
terminado fazer” (IEB, 1987, p. 31). Numa disso está no espaço especial destinado em
folha avulsa que circula entre os membros da cada templo para relembrar Miguel Vieira
IEB (15) se encontram algumas revelações Ferreira. Na parte da frente, imediatamente
recebidas pelo sr. Neves, um antigo membro detrás do púlpito, há três cadeiras. A cadeira
da igreja e que tinha fama de visionário. Uma do centro é sempre maior e os presbíteros
dessas revelações é muito conhecida entre nunca a usam, limitam-se a ocupar uma das
os fiéis da igreja e diz o seguinte: cadeiras dos lados.
Um dos hinos que a IEB canta com maior
“Em 9 de junho de 1882, em sonho, eu, entusiasmo é chamado “A Marcha”, cuja letra
Henrique Rodrigues Neves, pedia a Deus pai é bastante expressiva a respeito do lugar que
15 Esse documento me foi facilitado
que me mostrasse Seu Filho, nosso Senhor Miguel ocupa na hierarquia religiosa: por um dos diáconos da IEB.

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“A MARCHA seus dias na terra, como todos os mortais,
não abalou o processo de reconstrução da
Naquele tempo, profetiza Daniel tradição. O fato incontestável da morte de
Se levantará o grande príncipe Miguel, MVF tornou impossível uma divinização
O protetor de teu Povo completa do fundador, mas as reinterpre-
Condutor dos filhos de Deus tações religiosas da vida dele se estendem
E sendo filho de mulher até a biografia anterior à fundação da IEB
e anterior também à sua conversão. São
Exultemos meus irmãos, reinterpretações marcadas pela doutrina da
Aceitemos o grande príncipe Miguel, predestinação. Miguel Vieira Ferreira, que
Que vencer vem ao dragão inicialmente era reconhecido pelo título de
Pela promessa que Deus fez à mulher, doutor, passou aos poucos a ser chamado
Vem com a justiça de Cristo também de Grande Príncipe Miguel porque
No poder do Espírito Santo, sendo a ponte entre o céu e a terra não podia
E com o nome de Miguel simplesmente ser o fundador da igreja, o
intelectual, o engenheiro ou menos ainda
Acordando multidões o ex-ancião de Igreja Presbiteriana.
Que dormem na noite escura O título Grande Príncipe Miguel hoje
Abrindo selos da Bíblia já está consagrado. Mas continua sendo
Revelando sua formosura comum o uso de “Doutor Miguel”. Não
Nos mandando ao Senhor Jesus obstante, como mencionamos, o título de
Receber d’Ele a própria luz, “Doutor Miguel” não exige maior solenida-
E aceitarmos sua cruz de, ou porque já é um título consolidado e
corriqueiro ou porque ele aparece como um
Jesus Cristo o enviou título menos religioso. Um título acadêmico
Por sua fidelidade apresenta déficit de sentido para legitimar
Revestindo-o do poder uma personagem religiosa. As vantagens
Para fazer sua vontade, de “Grande Príncipe Miguel” são evidentes
Mandou Ele e mais ninguém, e, como veremos logo, com um respaldo na
Seu irmão que Ele quer bem. Bíblia. Durante os cultos, com relativa fre-
E os Anjos digam: – Amém”. qüência algum irmão ou irmã pede licença
para contar alguma revelação, visão ou sonho
José Alves Moreno é o autor desse hino. na qual aparece sempre o Grande Príncipe
Ele esteve com MVF desde a fundação da Miguel legitimando a experiência extraordi-
IEB e, segundo informação dos próprios fi- nária compartilhada. Nos corredores, fora do
éis, esse hino se cantava quando MVF ainda espaço e do tempo do culto, as pessoas, tanto
estava vivo. Segundo a acertada opinião de os simples membros quanto os líderes, prefe-
Émile Léonard, esse é o “hino oficial da” rem utilizar “Doutor Miguel”. Os presbíteros
IEB (1953, p. 51). Hoje esse hino ainda se também recorrem com freqüência ao título
canta, de memória, com singular entusiasmo de “Mestre” ou “Divino Mestre” para falar
e sempre em pé, o que nem sempre acontece de MVF, mas também utilizam esse título
com os outros hinos. para se referir a Jesus Cristo, eliminando
O balanço dos dados leva a afirmar que, ou reduzindo entre eles qualquer diferença
na perspectiva da transmissão da tradição de nível na hierarquia religiosa. Esses da-
fundadora, MVF passou a se constituir na dos permitem dizer que a IEB operou uma
referência principal da reconstrução da reconstrução da tradição religiosa em torno
tradição, ficando os elementos clássicos de um novo fato fundador.
do protestantismo relativizados. A IEB A Igreja Evangélica Brasileira mi-
constrói e legitima a sua tradição em tor- nimiza a importância dos antecedentes
no da pessoa de Miguel Vieira Ferreira. presbiterianos do fundador e o remete
O fato de o fundador da IEB ter acabado diretamente à Bíblia, especificamente ao

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Antigo Testamento. Segundo um relato dos homens, todos os atos que celebrar no
do Livro de Daniel, esse profeta recebeu exercício deste seu Ministério e pastorado”.
de Deus uma revelação que dizia que “a Esse documento merece uma análise mais
seu tempo Deus levantaria um grande profunda, no entanto interessa destacar que
príncipe Miguel”. Na opinião da IEB, isso se trata de uma constância escrita da legi-
não é mera coincidência. Miguel Vieira timidade que o grupo de origem outorga a
Ferreira era o Miguel da profecia regis- seu fundador. Por sua vez essa declaração
trada no Livro de Daniel; assim, Miguel de legitimidade se apóia no extraordinário,
já era predestinado. Em 1874, na data da pois Miguel, segundo o próprio texto, foi
conversão de Miguel, ele teria subido aos “chamado e ordenado” por Jesus Cristo. A
céus e recebido o mandado de fundar a nova igreja estava interessada em ganhar
IEB, para o qual retornou à terra. Eis aí a reconhecimento perante as outras igrejas
razão por que MVF acaba sendo uma sorte da época e de maneira particular perante
de continuidade ou substituto do Espírito a Igreja Presbiteriana. Essa procura de
Santo ou o próprio Espírito Santo. Tudo legitimidade alcançou depois dimensões
isso se pode inferir do discurso dessa igreja. maiores, provavelmente não imaginadas
Não se trata apenas de uma reprodução da pelo fundador.
tradição protestante e sim de produção de No ministério dos pastores posteriores
nova tradição. A nova tradição gerou, e não a MVF, a legitimidade do fundador passou
poderia ser diferente, mudança estrutural a ser explicada por uma ordem recebida
importante no sistema religioso, que se foi diretamente de Deus, isto é, não por re-
consolidando no decorrer dos 126 anos de velação, senão que Miguel teria estado no
existência dessa igreja. céu na data de sua conversão para receber a
Trata-se de uma nova forma de cristianis- ordem divina. Mas esse dado está orientado
mo ou de protestantismo? As classificações a legitimar a própria IEB. Os presbíteros
têm sempre seus limites. Há necessidade dividem a história da IEB segundo os pe-
de ficar ciente dessa limitação para não ríodos dos pastores: Primeiro Pastorado,
simplificar a complexa história que envolve Segundo Pastorado, Terceiro Pastorado e
sempre a produção de uma nova tradição Quarto Pastorado. Foi no terceiro e quarto
religiosa. A IEB reconstruiu a sua tradição pastorado que o processo de reconstrução
protestante deslocando elementos centrais da tradição ganhou força.
do sistema religioso protestante e recolocan-
do outros no seu lugar: o mediador principal
aqui, na prática e no discurso religioso, é
Miguel Vieira Ferreira. Antes de analisar CONSOLIDAÇÃO DA NOVA
outro elemento desse mesmo processo de
substituição vejamos a constituição de MVF TRADIÇÃO FUNDADORA:
como primeiro pastor da IEB. A questão é
muito interessante se analisada na perspec- O “FILHO DA PROMESSA”
tiva da transmissão do carisma.
Miguel foi cortado da Igreja Presbite- Quando o fundador da IEB, Miguel
riana e precisava construir uma outra legiti- Vieira Ferreira, morreu, em setembro de
midade. Na certidão do termo de fundação 1895, seu filho, Israel Vieira Ferreira, tinha
da IEB se diz que no dia 11 de setembro de apenas 12 anos de idade. Três anos depois,
1879 os “abaixo-assinados congregados em em janeiro de 1898, Luiz Vieira Ferreira,
nome de Nosso Senhor e Salvador Jesus- irmão do fundador, foi aclamado pastor,
Christo” elegeram como pastor o doutor posto que ocupou até sua morte em janeiro
Miguel Vieira Ferreira que “reconhecemos de 1908. Nesse período do segundo pastor
ser Ministro de Jesus-Christo por ele cha- aconteceram muitos problemas, que aqui
mado e ordenado; e declaramos reconhecer não há como abordar. Limitamo-nos a
como válidos e legítimos, diante de deus e apresentar uma síntese.

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Começa a publicação da revista O constituir parte dos livros sagrados. Já na
Trabalho, que circulou por um período de data da ordenação de Israel como pastor se
aproximadamente dez anos, a filha do pastor compôs um hino, conhecido como a “Mar-
Luiz Vieira Ferreira foi ordenada “virgem”, cha a Israel”, que é hoje um dos hinos que
título estranho à tradição protestante. Arti- se cantam com mais entusiasmo e fervor
gos publicados na revista O Trabalho cau- nos cultos. A letra diz o seguinte:
saram polêmica entre os membros, alguns
irmãos não aceitavam o pastorado de Israel “MARCHA A ISRAEL

e seguiam a filha de Luiz, a “virgem” Sara.


Houve divisão e um grupo saiu da igreja. Ó povo de Israel congregai-vos
Desacordos e controvérsias são normais Vossa bandeira já desfraldai!
e freqüentes na história das religiões, es- Dizei sempre ‘Quem é como Deus’
pecialmente em períodos de sucessão do Soldados fiéis de Jesus avançai!
carisma. O dilema era quem seria o próximo
pastor. Mas o particular do caso é que se Israel é o nosso Comandante
projetava como forte liderança uma mulher, Assim Deus nos falou em visão
jovem e, provavelmente o fator de maior Avante, soldado, sempre avante!
complicação, filha do segundo pastor. Conosco vai o Cristo Capitão
Esse período é considerado hoje pelos
fiéis da IEB como marcado por desvio do Então houve no Céu uma batalha
projeto original do fundador. Desvio que no Miguel e seus anjos contra o dragão
seu pastorado Israel viria corrigir. A entrada Este com os seus bens pelejaram
de Israel Vieira Ferreira para ocupar o pas- Mas viram logo a sua destruição
torado, como o terceiro pastor, aconteceu
nesse contexto de conflito e de crise da Buscai ao Senhor sem demora
igreja para retornar às verdades originais. Dai-lhe honra e poder
A pesquisa de campo nos permitiu entender Seu juízo se vem manifestar
a leitura que as próximas gerações fizeram Sua justificação vinde receber
desse período difícil da história da IEB. O
fundador Miguel Vieira Ferreira, dizem os Agora cristão alegrai-vos
atuais presbíteros, recebeu de Deus uma Com a vinda do príncipe Miguel!
revelação dizendo que lhe daria um filho A promessa de Deus se cumpriu
que continuasse a sua obra. Israel é reco- Somos o povo santo de Israel”
nhecido hoje como o “Filho da Promessa”
e seu pastorado durou 47 anos: (Letra: Manoel Pereira Lopes
Música: Antonio Fazendeiro).
“A 24 de setembro de 1911 cumpre-se
integralmente a promessa que Deus fizera O pastor Israel e a IEB aceitaram o hino
ao Doutor Miguel Vieira Ferreira ainda nos e ele começou a ser cantado desde os pri-
primórdios do Estabelecimento da Obra do meiros anos do pastorado do próprio Israel.
Senhor aqui na Terra. É reconhecido pelo Respeito, admiração e veneração. Tudo
Povo do Senhor como eleito e Ordenado por muito próximo de adoração. Possivelmente
Cristo Pastor da Igreja Evangélica Brasi- tudo isso junto é o que manifesta a IEB pelo
leira – o Dr. Israel Vieira Ferreira – o Filho chamado “Filho da Promessa”, que é sempre
da Promessa” (Prado, 1974, p. 140). lembrado com muito carinho. Eloqüente é
já o fato de que esse hino se cantava quan-
O “Filho da Promessa” ocupa um lugar do ainda ele estava vivo. A diferença entre
também superior, embora detrás do funda- profundo respeito, sublime amor e grande
dor. Não obstante, ele precisa estar em um veneração, com o que seria “adoração”,
lugar destacado na hierarquia, pois seus torna-se relativa quando se pensa na impor-
escritos, como veremos logo, passaram a tância e nos efeitos práticos das “verdades”

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religiosas na vida dos fiéis. Basta lembrar verifica-se processo contrário. No lugar de
que ditos e fatos de Israel Vieira Ferreira produzir novos textos sagrados acontece
passaram a constituir parte importante do uma perda de importância da Bíblia. Isso
novo texto sagrado da IEB. num contexto mais amplo de generalizada
redução do discurso nos cultos (16).
A preocupação por escrever o NTTE
A PRODUÇÃO SOCIAL DO LIVRO surge no pastorado de Israel Vieira Ferreira,
filho do fundador e sobrinho de Luiz, o se-
SAGRADO: O “NOVÍSSIMO gundo pastor. Israel não teve filhos, só teve
filhas. Ele morreu em 1959, vítima de uma
TESTAMENTO OU TESTAMENTO parada cardíaca, mas essa doença começou a
manifestar-se já desde 1950 (Prado, 1974, p.
ETERNO” 171). Nessas circunstâncias, sem um sucessor
à vista, entende-se melhor o surgimento da
Nos cultos da IEB a leitura do Novíssimo preocupação por garantir a tradição fechan-
Testamento ou Testamento Eterno (NTTE) é do-a num texto. A primeira referência que
de primeira importância, isto considerando encontramos ao NTTE é de 1955, durante
ainda a própria Bíblia, que também é lida nos o terceiro pastorado, isto é, quando Israel
cultos. O NTTE consta de 12 volumes com Vieira Ferreira era o pastor da IEB.
conteúdo que pode se classificar da seguinte Um texto de autoria, sem dúvida, de
maneira: pregações e discursos do fundador Israel diz o seguinte:
Miguel Vieira Ferreira, revelações recebidas
pelo fundador e relatos das experiências “A missão confiada por Deus a seu servo
místicas nas quais recebia ditas revelações, Miguel foi a de erigir na Terra o monumento
pregações e revelações do segundo pastor da fé, criando na igreja dos últimos tempos
Luiz Vieira Ferreira, pregações e revelações o elemento que abriu e terá de escrever
do terceiro pastor Israel Vieira Ferreira, e o Novíssimo Testamento ou Testamento
também revelações especiais recebidas por Eterno. Em sã consciência, portanto, nin-
alguns irmãos destacados. guém poderá supor que, sem atributos e
É muito interessante analisar a produ- graças extraordinariamente grandiosos,
ção social desse novo texto sagrado. Se sobrenaturais, pudesse Miguel lançar os
levarmos em consideração que se trata de alicerces requeridos a obra de tal enverga-
uma igreja de raízes protestantes, a questão dura. Todos os dons do Céu , sem reserva,
do surgimento de um outro livro sagrado é lhe foram para isso conferidos, a par da
muito provavelmente inédita na América Capitania do próprio Espírito Santo” (IEB,
Latina. Porque o protestantismo não é só 1955, pp. 10-1).
“religião de livro”, para utilizar a expressão
de Weber, senão também religião de livro Não encontramos nenhum documento
sagrado exclusivo. A exclusividade do livro anterior que mostre que o interesse de
sagrado tem dois sentidos, primeiro que não escrever o NTTE já estava no fundador
admite outros livros fora dele e, segundo, Miguel Vieira Ferreira ou no segundo pas-
que a autoridade da verdade religiosa se tor Luiz Vieira Ferreira. Tudo indica que a
determina exclusivamente pelos conteúdos empresa surge no terceiro pastorado e ante
desse livro. Aqui temos uma herdeira de um a evidência de uma incerta continuidade
dos protestantismos mais antigos na América da tradição. Israel morreu em 1959 sem
Latina com 12 volumes a mais, fato incomum conseguir escrever o NTTE.
entre os protestantismos e talvez exclusivo É claro que a produção desses 12 volu-
no protestantismo latino-americano, com mes exigiu muito trabalho. Não só trabalho
semelhanças só com os adventistas do sétimo editorial, mas também de recopilação,
dia e com os mórmons. Nos pentecostalis- seleção e correção, além do trabalho de 16 Analisamos essa questão em
Tradição, Transmissão e Emo-
mos latino-americanos das últimas décadas constituição dos textos sagrados e a deter- ção Religiosa (2001).

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minação das verdades religiosas legítimas leva a Bíblia. Os membros manifestam ter
que esses textos pretendem conservar. A em casa o NTTE e a IEB se preocupa em
questão de fundo, aqui, não é outra que a que cada família tenha os 12 volumes. Não
canonização dos textos sagrados. Vamos tivemos ocasião de entrar no espaço familiar
resumir a informação que conseguimos so- dos membros dessa igreja, mas tudo indica
bre esse longo processo de quase cem anos, que a leitura do NTTE é prática familiar.
desde a fundação da IEB até a publicação Jovens e crianças são capazes de repetir de
dos primeiros volumes do NTTE em 1967. cor parágrafos inteiros do NTTE.
Miguel Vieira Ferreira costumava escrever as Qualquer teólogo protestante ficaria
revelações que recebia, o segundo pastor Luiz arrepiado de saber dessa sorte de ampliação
Vieira Ferreira escrevia menos, mas nesse da sola Scriptura. O surgimento desse novo
período a IEB publicava a revista O Trabalho, texto sagrado se explica dentro do proces-
que permitiu conservar bastante informação so de reconstrução da tradição religiosa.
sobre revelações e sermões. Já no período do O NTTE não podia ser um substituto da
pastorado de Israel Vieira Ferreira ele con- Bíblia, pois a IEB legitima seu fundador e
tava com a assistência de pelo menos duas a fundação da própria igreja em textos da
secretárias voluntárias: dona Elena e dona Bíblia, do Antigo Testamento e do Novo
Dulze. Essas irmãs escreviam em taquigrafia Testamento (18). A IEB considera o NTTE
as pregações do pastor, a datilografavam a uma continuidade da Bíblia. Num culto
máquina e a passavam ao pastor para serem dominical o presbítero explicou assim a
corrigidas para logo datilografar a versão relação entre a Bíblia e o NTTE: “Vejamos
final. Nas últimas páginas do volume 12 do o que disse o Divino Mestre – o Presbítero
NTTE há textos incompletos de pregações está lendo um texto de Israel, o terceiro
do pastor Israel cuja revisão foi interrompida pastor da IEB – sobre as Sagradas Escri-
por sua morte (17). A IEB é uma sociedade turas: a Bíblia ainda não está completa,
religiosa de longa memória e muitos de seus já temos dois de seus volumes o Velho e
membros realizam tarefas voluntárias de o Novo Testamento. Está sendo escrito o
conservação, pesquisa de registro dos fatos Novíssimo Testamento com 12 volumes.
de seus fundadores. Ali está contida toda a doutrina da nossa
O quarto pastor, Antonio Prado, fez a amada igreja” (19).
recopilação e mandou imprimir o NTTE. A Parágrafos inteiros do NTTE são lidos
primeira edição já está esgotada e a segunda nos cultos, regra geral, fazendo efemérides
estava em preparo nos primeiros meses do do acontecido na mesma data em que se
ano 2001. Em todos os templos da IEB que realiza o culto. A leitura da Bíblia nos cultos
visitamos sempre encontramos o NTTE ocupa sempre menos tempo e atenção que
numa pequena oficina à disposição das a do NTTE. As pregações são, regra geral,
lideranças. Os volumes são de cor verde e comentários de parágrafos do NTTE. Na
em capa dura. A aparência física em nada Escola Dominical também o NTTE é o
17 A IEB conserva alguns textos, se assemelha às Bíblias que os protestantes texto de consulta e de estudo por parte dos
datilografados, com as corre-
ções feitas em vermelho pelo
costumam levar: o papel é rústico com par- mestres encarregados do ensino.
pastor Israel Vieira Ferreira, tes já amarelas apesar de não serem muito Com o NTTE a IEB aumentou o caráter
que não chegaram a entrar
no volume 12. antigos, o formato também é maior (24 x 17 discursivo de seus cultos. O culto da IEB
18 Léonard (1953, p. 54) cita um cm aprox.). Tudo isso mostra que se trata de apareceria aos olhos de um pentecostal,
documento oficial da igreja em uma produção editorial amadora. Por infor- ou de pesquisador do pentecostalismo,
que se diz: “Nós sublinhamos a
maneira pela qual é designado mação de um dos diáconos sabemos que a sumamente frio, abstrato, simples e sem
o Pastor da igreja: Doutor
(Deuteronômio 33, 21; Isaías
publicação foi feita numa antiga imprensa dinamismo. Os sermões são sempre co-
30,20; Joel 2, 23) Miguel da IEB no Rio de Janeiro e logo em São mentários sobre os textos lidos. O caráter
(Daniel 10,13, 21; 12,1;
Judas 9; Apocalipse 12,7)”. Paulo, pelos próprios irmãos da IEB. Pelo discursivo do culto se percebe também nos
19 Notas de pesquisa de campo. formato e pelo número de volumes é evidente cantos e nas orações. O repertório de cantos
Culto da IEB, Rua Behring, São a dificuldade de portá-lo. Ninguém vai ao é enorme, possuem até três hinários com
Paulo, 2/7/2000, domingo,
10 horas. culto levando o NTTE, mas também não se 300 ou 400 hinos cada um. É uma igreja que

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canta bastante, e canta sempre regida pelo A conversão de Ferreira foi singular pelo
acompanhamento de órgão ou piano. Para fato de ter experimentado um tipo de êxtase
cantar, regra geral, todo mundo permanece que o manteve ensimesmado por vários
sentado, o que mostra as dificuldades para minutos para logo acordar dizendo que
externar maior expressividade no que se Deus tinha lhe mostrado a verdade. A Igreja
canta. Presta-se muito cuidado à música. Há Presbiteriana, que na época (1874) estava
um trabalho bem articulado para que cada iniciando seu trabalho missionário e preci-
congregação tenha sempre um regente nos sava de missionários, logo o recebeu como
cultos e as igrejas ensaiam semanalmente de “ancião”, outorgando-lhe responsabilidades
maneira que a igreja toda se constitui em um na pregação. É evidente que a razão dessa
coral que interpreta os hinos com jogo de rápida ascensão foi a excelente instrução que
vozes (20). É uma questão artística, e como tinha Ferreira, sendo intelectual, engenheiro
interpretada em grupo segue regras estabe- e militar de carreira, e também a convicção
lecidas, em conseqüência não deixa maior manifesta de ter encontrado a salvação
espaço para qualquer espontaneidade. nessa igreja. Na sua tarefa como pregador,
As orações são também verdadeiros como seria lógico, Ferreira colocava a
discursos. A oração parece estar reservada ênfase na experiência da conversão como
para pessoas com maior prestígio. Os que revelação direta de Deus. A IPB, herdeira
oram são sempre os presbíteros ou algum do presbiterianismo reformado, entendia
irmão a pedido do presbítero. Não temos que a revelação estava contida e fechada na
visto nunca oração feita por mulher nem Bíblia, o que gerou um conflito que acabou
por pessoa jovem. Sempre são homens e colocando Ferreira fora da igreja.
adultos. Num “culto de propaganda”, a que Em 1879, Ferreira funda a IEB e ensina
assistimos em São Bernardo do Campo a seus seguidores que Deus continua se re-
oração final foi feita por um diácono a pedido velando aos homens tal e como ele o tinha
da pessoa que dirigia, e este último não era experimentado. Segundo a interpretação
presbítero. A oração é sempre longa e com dos fiéis das gerações seguintes, Ferreira
argumentos lógicos. É raro uma oração que continuou tendo revelações sobre o que
não faça referência às origens, ao dr. Miguel chegaria a ser a IEB, os lugares de pregação,
ou ao “Filho da Promessa” Israel. Há, assim, o filho que o sucederia e assim por diante.
interesse, que não implica necessariamente Também há dados que comprovam que ele
intencionalidade consciente, em legitimar a não era o único que recebia essas revelações.
oração apelando à tradição fundadora. Há documentos que contam que diferentes
No final de cada culto há sempre oportu- irmãos recebiam revelações diretas de Deus
nidade para que os membros expressem seus sem a mediação de Ferreira. O curioso do
pedidos de oração e isso é sempre feito por posterior desenvolvimento do culto da IEB,
escrito. Na entrada dos templos há pequenos tal e como hoje o encontramos, é que as
papéis em branco, disponibilizados para revelações, embora aconteçam, não são a
que as pessoas escrevam seus pedidos de característica do culto e menos ainda o ca-
oração. No final do culto um diácono entrega minho legítimo para determinar a verdade
os papéis ao presbítero que dirige o culto, religiosa. Então cabe a pergunta seguinte:
que então os lê para a congregação. o que aconteceu com essa marca registrada
da revelação direta com a qual e pela qual
Ferreira surgiu como líder do novo grupo
religioso? Já se passaram 126 anos e a IEB
A REVELAÇÃO INTERDITADA continua falando na revelação direta, mas ela
é pouco freqüente e parece ter ficado apenas 20 A informação me foi fornecida
por Israel Menezes, irmão do
Na origem da IEB está a discrepância a como uma marca de suas origens. presbítero Miguel Menezes.
Israel é mestre em música e
respeito da revelação. Miguel Vieira Ferrei- As revelações que temos escutado contar é ele que coordena a parte
ra passou por uma experiência de conversão em alguns cultos têm o elemento comum de musical. Entrevista feita no Rio
de Janeiro em 2 de julho de
num culto dominical da Igreja Presbiteriana. fazer sempre referência às origens. O funda- 2000.

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dor ou o Filho da Promessa sempre aparece
nas visões que os irmãos ou irmãs dizem ter
CONCLUSÃO: A TRANSMISSÃO
experimentado. Percebemos, assim, que a
revelação, quando acontece, está sempre a
RELIGIOSA DE LONGA DURAÇÃO
serviço da tradição já estabelecida.
O processo de construção da nova tra- A transmissão da tradição, articulada
dição foi longo e não acabou nem com o em torno do fundador e dos textos sagra-
primeiro nem com o segundo pastor. É no dos, acontece na Escola Dominical e nas
terceiro pastorado que a tradição começa a famílias. Na Escola Dominical crianças e
se definir, e no quarto pastorado se deram jovens recebem instrução sobre as origens,
os passos decisivos para fechar a tradição. discursos e experiências de Miguel Vieira
Já discutimos o surgimento do NTTE, mas Ferreira. Esses ensinos são logo apresen-
resgatamos ainda a idéia de que o discur- tados a toda a congregação pelos alunos da
so dos fundadores e pastores passou, ao Escola Dominical por meio de parágrafos
longo de quase 70 anos, a se constituir na que se repetem de memória. São os “reci-
referência para sancionar ou determinar tativos”, que nunca faltam em cada culto
as verdades religiosas da IEB. Uma vez de domingo pela manhã. A transmissão da
que esses discursos se colocam no texto tradição acontece também nas famílias. A
sagrado, sem querer nem pensar nisso, a totalidade dos membros da IEB com os quais
liderança estava definindo a interdição de conversei manifesta ter “nascido na Igreja”.
qualquer outra revelação de importância. O conjunto de membros é composto assim
A revelação acaba, assim, interditada pela de avôs, pais, filhos e netos. As gerações
tradição. Tradição que, por sua vez, funda- vão sucedendo-se e a tradição religiosa vai
se numa revelação. passando de uma geração para outra com
Não temos informação suficiente para enorme eficácia. O crescimento da igreja
dizer se os fundadores continuaram enfa- não é por novos convertidos e sim pela
tizando e incentivando a revelação direta transmissão da tradição de uma geração para
e sem a mediação dos especialistas, mas a seguinte. O crescimento por conversão,
os discursos do fundador e do sucessor comum entre os pentecostalismos, é mais
mostram que o culto da IEB desde seus rápido e demanda menos trabalho educativo
primórdios já era bastante desencantado. para a instituição religiosa. A IEB constitui
É fato conhecido como o discurso protes- um sistema religioso que se reproduz não
tante contribuiu para desencantar o culto. pelo caminho da conversão e sim pelo cami-
O aspecto misterioso do culto cristão se nho da educação, processo mais vagaroso,
escondia precisamente naquilo que parecia de resultados a médio e longo prazo, muito
mais conhecido: os ritos. Os ritos constituí- diferente de uma religião de emoção que,
am o lado mágico do culto, porque ficavam regra geral, se reproduz pelo caminho das
sempre sem explicação, ou melhor, não conversões e com resultados instantâneos.
precisavam dela. Nesse sentido, os ritos Para uma religião de discurso, orientada
contribuem para manter o lado misterio- a desenvolver identidades religiosas pro-
so, encantador do culto. Diferentemente, fundas, temos que avaliar a eficácia de seu
ou melhor, divergentemente – porque se sistema de transmissão longe dos números,
separa progressivamente do rito –, o dis- a não ser que se leve em consideração o
curso conduz ao desencantamento do culto, número de anos que indivíduos e famílias
contribuindo para o enfraquecimento de permanecem na igreja.
seu lado misterioso e inexplicável. Tudo A rígida ordem do culto, característica do
indica que a revelação que marcou o início protestantismo, é desnecessária quando, no
da experiência religiosa de Ferreira nunca lugar do orador, temos, no centro do culto,
conseguiu hegemonia, precisamente por um animador das emoções, um provocador
causa das exigências da nova tradição em dos êxtases coletivos, como acontece nos
construção. pentecostalismos. É graças ao rigor dis-

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cursivo e suas conseqüências que o culto gação serviam como reforço da identidade
protestante se constituiu em espaço eficaz religiosa que ia passando de geração para
de propagação de idéias religiosas forma- geração. Dessa maneira, o protestantismo
doras de identidade religiosa duradoura. O conseguia minimizar o efeito da liberdade
culto era um verdadeiro espaço de instrução do discurso interpretado. A Igreja Evan-
religiosa que tinha seus complementos no gélica Brasileira é uma fiel herdeira desse
estudo bíblico, na Escola Dominical, no sistema de transmissão religiosa. Depois
culto familiar e na leitura pessoal da Bíblia. de 126 anos ainda conserva e tira proveito
Também as redes de família e o comuni- desse sistema conseguindo passar as suas
tarismo entre os membros de cada congre- verdades de uma geração para outra.

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