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ciência e revolução
O pensamento de M a rx continua a
p ro du zir efeitos revolucionários. O co
nhecimento que ele produziu sobre a
natureza da exploração capitalista e a
sua crítica das formas ideológicas que
recobrem a dom inação de classe bur
guesa — a liberdade e a igualdade
formais — abrem ainda hoje a possibi
lidade de uma ultrapassagem da socie
dade burguesa. Sendo um pensamento
objetivam ente com prom etido com os
interesses dos trabalhadores, ele é com
batido pelas classes dominantes e de
clarado por elas como já superado. Co
nhecer M a rx, assim, é penetrar em um
mundo de idéias subversivas que desa
fiam a ordem burguesa e permitem
vislum brar uma sociedade liberta da
exploração do trabalho.
MÁRCIO BILHARINHO NAVES
Marx
ciência e revolução
fv »
E d it o r a M o d e r n a
E D IT O R A DA
UNICAM P
M arx
ciência e revolução
U N IC A M P
Coordenador-Genil da Universidude
FER N A N D O G A L E M BECK .
Pr6-Reitor de D esenvolvimento Universitário
L U ÍS C A R L O S G U Ê D E S PINTO
Pró-Reilor de Extensão e Assuntos Comunitários
ROB E RTO T E IX E 1R A M EN DES
Pró-Reitor de Graduação
A N G E L O L U IZ C O R T E LA Z ZO
Pró-Rekor de Pesquisa
IVAN EM ÍLIO C H A M B O U L E Y R Ü N
Pró-Reilor rfc Pós-Graduação
JOSÉ CLÁUDIO GEROM H L
EDrrORA DA
UN1CAMP
Diretor E xccu iivo
L U IZ F E R N A N D O M iL A N E Z
Coordenadar-Gc iui
C A R L O S RO BERTO L A M A R I
C o n selh o Editorial
E L Z A C O T R IM S O A R E S - L U IZ F E R N A N D O M IL A N E Z
M ILTO N JO S É D E A L M E ID A - R IC A R D O A N T U N E S
S U E L I IR E N E R O D R IG U E S C O S T A
MARCIO BILHARINHO NAVES
Professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
da Universidade Estadual do Campinas
M arx
ciência e revolução
1 edição
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C O LE C A O
Lmoms
EDITORA DA „
UNiCAMP E d ito ra M o d er n a
©MÁRCíOBIlHARINHOMAV6S2000
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índices povo catálogo ststetná&o;
1. Mar*, Kafl, 1H1K-1H83 : CoilttriU* fik>Msfia»
335.4 II
2. MaraJsiw: KuiubmenMMrriostifia)* 355-411
ISBN85-16-02364-8
Ftepfvduçâopro<b]da.AR.1 04 do Código Penâie Lei 9.610 d« 19 de fevereiro de 1996.
E d it o r a M o d ern a L tda .
Riu Padft? Ackliru), 7^8 - Bdcnzinlio
Sàu Pauto - SP * iteLsti • CEI> 03303 904
Vendas e Acendimento^ Tel. (011) 6090-1500
Hax (OUXiQPCMSO]
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2000
Introdução, 9
; ; Parte L O PE
Vida e obra
Os anos iniciais, 12; Nos tempos da Gazeta fíenana, 13;
Os A nais Franco-atemães, 15; Materialismo histórico e re
volução, 16; O capital e a Internacional, 17; A Comuna e
os últimos anos, 18; Cronologia, 18
»=
■ hm Bibliografia, 142
Os livros de Marx
não são provas tipográficas,
Não são áridas
colunas de números —
Marx
pôs o operário
de pé
e o conduziu
em co/unas
mais harmoniosas que números.
V. Maiakovski'
1 Vladimir Mayakovski, Vladimir llich Lenin, poema, Moscou, Ed. Progreso, s.d.,
p. 64. A tradução foi extraída de P. Fedosseiev et al., Kart Marx, Lisboa,
Avante, 1983, p. 8, com ligeiras alterações feitas por mim, M.B.N.
ÍÉÉÉ Introdução
Que sentido pode ter, para tivas que nos aprisionam no tempo
nós, hoje, terMarx2? O “fim do co histórico da burguesia. Essas re
munismo” não teria sido o des presentações sobre a eternidade
mentido definitivo de sua concep das relações sociais burguesas
ção teórica, a prova irrefutável da não são inocentes. Foi Marx, justa
falsidade de suas teses? Por que, mente, que nos educou o olhar
então, nos ocuparmos com essa para que pudéssemos ver o pro
página virada da história? cesso contraditório que atravessa
Nos anos 60 do século XIX, essas relações e a possibilidade de
atendendo a um pedido das suas sua destruição. E foi ele também
filhas, Marx participou de uma es que nos fez ver a complexa trama
pécie de jogo, comum na Inglaterra ideológica, isto é, o conjunto de re
de então, consistente em “confes presentações imaginárias que re
sar” gostos e preferências sobre os cobrem e obscurecem as relações
mais variados assuntos, como a reais, no interior da qual se exerce
cor ou os autores mais apreciados. a dominação de classe burguesa.
Inquerido sobre o seu adágio pre Marx elaborou uma con
ferido, Marx respondeu: “De omni- cepção teórica objetivamente
bus dubitandum", duvidar de tudo. comprometida com os interesses
Não deveria suscitar também a da classe operária. Ela é, rigoro
nossa dúvida essa aproximação, samente, a expressão teórica da
demasiadamente ligeira, entre o luta de classe operária, e só pode
“fim do comunismo" e o fim do mar ser compreendida a partir desse
xismo? Na ausência de uma de vínculo essencial. É por isso que
monstração da pertinência dessa ler Marx significa perseguir essa
tese, não restaria apenas a crença extraordinária aventura intelectu
de que, a partir daí, toda ultrapas al e política na qual ele não cessa
sagem do horizonte do capitalismo jamais de criticar as representa
está absolutamente interditada? ções burguesas e pequeno-bur-
Aprendamos a desconfiar, guesas, dentro e fora do movi
portanto, dessas sentenças defini mento operário, que funcionam
9
como obstáculos para o conheci Marx opera uma transformação
mento científico das relações so na filosofia, porque introduz na fi
ciais capitalistas. Para Marx, tra losofia um objeto que lhe é estra
ta-se de conhecer as determina nho, por ela não reconhecível, um
ções do capital para que o movi objeto filosófico impossível: a luta
mento operário possa fundar uma de classes. As expressões que
estratégia de luta conseqüente Marx utiliza são reveladoras da
contra a dominação de classe necessidade de romper o cerco
burguesa, isto é, que permita aos da filosofia como condição de
trabalhadores colocar, desde já, o possibilidade para que ele pudes
objetivo do comunismo. se realizar as suas descobertas
Assim , é da resposta à científicas fundamentais. “Os filó
questão inicialm ente proposta sofos se limitaram a interpretar o
que vai depender todo o sentido mundo; o que importa é transfor
da leitura de Marx. Teremos, no má-lo”; trata-se de “ajustar contas
entanto, de acompanhar o paci com a nossa consciência filosófi
ente trabalho de elaboração con ca anterior"; a filosofia “não tem
ceituai a que ele se dedicou para história”. Essas frases não signifi
que estejamos em condições de cam uma recusa do trabalho filo
responder a ela. Desde já, no en sófico, mas sim que Marx introduz
tanto, podemos perceber que a uma nova prática da filosofia. Sua
intervenção teórica de Marx corre teoria científica só pôde ser cons
às margens da filosofia. tituída em razão do trabalho filo
Luta de classes, comunis sófico de luta contra as ideologias
mo... um estranho vocabulário filosóficas: o hegelianismo, o hu
para um discurso filosófico. Seria manismo feuerbachiano etc., que
ingênuo procurar em Marx uma fi permitiu estabelecer linhas de de
losofia “como as outras”, muito marcação entre essas formas ide
embora não tenham sido poucos ológicas e o conhecimento cientí
os marxistas que julgaram poder, fico da história.
a partir das obras de juventude de Marx percorreu um longo e
Marx, reconduzi-lo à tradição filo acidentado caminho até chegar às
sófica. Como lembra Étienne Bali- suas descobertas teóricas. Se os
bar, não há uma filosofia de Mane, caminhos da filosofia são caminhos
embora ele tenha trabalhado na fi que não levam a parte alguma, te
losofia e a sua obra tenha produ ria sido Marx capaz de encontrar
zido efeitos filosóficos. A obra de outros caminhos para a filosofia?
10
Parte
PENSAMENTO
DE
ARX
F
E l Vida e obra
Vista de Tréveris, no inicio do século XIX. A Renânia foi um simbolo da transição tardia
para o capitalismo.
12
Isso deveu-se, fundamentalmen Após o término de seus
te, ã influência ocorrida no perío estudos secundários no Liceu
do em que ela foi anexada à Fran de Tréveris, em 1835, Marx in
ça, com a adoção de uma série de gressou nesse mesmo ano na
medidas que provocaram transfor Faculdade de Direito da Univer
mações econômicas, sociais e po sidade de Bonn, transferindo-se
líticas de caráter burguês. no ano seguinte para a Univer
Com a derrota das forças de sidade de Berlim. Tendo deslo
Napoleão, a Renânia voltou a fazer cado os seus interesses para o
parte da Prússia, com o conseqüen campo da filosofia, acabou por
te bloqueio do desenvolvimento redigir uma tese, A diferença
capitalista e a consolidação da aris entre a filosofia da natureza de
tocracia rural feudal no poder. Demócrito e a d e Epicuro, afina!
apresentada à Universidade de
lena, em 1841, sendo-lhe então
conferido o título de doutor em
filosofia.
NOS TEMPOS DA
GAZETA RBNANA
13
r
14
Estado prussiano, de sua tranfor- OS ANAIS FRANCO-ALEMAES
mação em um Estado de direito.
A Gazeta fíenana foi proi Marx decidiu então transfe
bida peio governo em 1843, mas rir-se para Paris, com o plano de
Marx demitira-se da redação pou editar uma revista — os Anais
co antes de a interdição consu Franco-Alemães. No primeiro e
mar-se, em virtude da condena único número dessa revista, pu
ção, feita peta burguesia liberal blicou alguns dos seus mais im
que financiava o jornal, à linha portantes trabalhos de juventude,
editorial que ele lhe imprimira. como A questão judaica e Crítica
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Gazeta Renana. periódico de tendência liberal redigido por
jovens hegelianos. Karl Marx foi seu redator-chefe até 1843.
15
r
da filosofia do direito de Hegel — Tais pressões resultaram na ex
Introdução. Data dessa época pulsão de vários colaboradores
também a redação de um manus do jornal, inclusive de Marx, que
crito, feita pouco antes de sua então se transferiu para Bruxelas
chegada à França, intitulado Crí em 1845.
tica da filosofia de Hegel.
Em 1844, ele redigiu os MATERIALISMO HISTÓRICO E
Manuscritos econômico-fiiosófi- REVOLUÇÃO
cos, que permaneceriam inéditos
até 1932. Nessa obra, aplicou ao Foi nesse período que Marx
domínio social e econômico a deu início à sua grande amizade e
idéia de alienação, desenvolvida colaboração com Friedrich Engels
pelo filósofo alemão Ludwig Feu- (1820-1895). Juntos iriam elabo
erbach (1804-1872), que preten rar, notadamente em A ideologia
dia realizar uma crítica materialis alemã e no Manifesto do Partido
ta de Hegel. Marx estava então Comunista, a concepção materia
dominado pela influência do hu lista da história, ©m ruptura com as
manismo feuerbachiano. concepções filosóficas que até en
Esse período foi também tão sustentavam.
marcado pelo seu afastamento e Marx desenvolveu ainda
ruptura com os jovens hegelia- intensa atividade política de orga-
nos, fortemente criticados por ele
(e Engels) em A sagrada família,
de 1845. Mas foi também um pe
ríodo no qual ele estabeleceu in
tensos contatos com as correntes
comunistas e com o movimento
operário franceses.
Marx também passou a
colaborar com um jornal publica
do por imigrantes alemães de-
mocráfico-radicais, o Vorwàrts!
(Avantel), o que acabou por pro
vocar fortes pressões do gover
no prussiano junto ao governo
francês para que fossem toma
das medidas contra o periódico. Engels, aos dezenove anos.
16
nização do movimento operário e democrático-burguesas contra as
de propaganda comunista. Assim forças aristocráticas ainda pre
surgiu, em 1846, por iniciativa sua sentes nessas sociedades e no
ede Engels, o Comitê de Corres curso das quais os trabalhadores
pondência Comunista, de Bruxe desenvolveram grande atividade
las. Mais à frente, ambos aceita revolucionária.
ram integrar uma antiga organiza Expulso da Bélgica, Marx
ção operária, a Liga dos Justos, a dirige-se para Paris e a seguir re
qual, reorganizada por influência torna à Alemanha, onde passou a
de ambos, passou a ser denomi publicar um novo jornal, a Nova
nada Liga dos Comunistas, ado Gazeta Renana, ao mesmo tem
tando o lema: “Proletários de to po em que prosseguia em sua ati
dos os países: uni-vos!” Além dis vidade de dirigente comunista.
so, Marx também participou da Com a derrota das forças
fundação de uma organização progressistas e o conseqüente
operária de imigrantes alemães fortalecim ento da reação em
na Bélgica, a Sociedade Operária 1848-1849, Marx, que já houvera
Alemã, igualmente voltada para a sido expulso da Alemanha e ido
atividade de propaganda. para Paris, é de novo expulso e
No decorrer desse período, transfere-se afinal para Londres.
Marx (e Engels) travaram uma
acirrada luta contra as tendênci O CAPITAL E A
as pequeno-burguesas presentes INTERNACIONAL
no interior do movimento operá
rio, como o “socialismo verdadei A Liga dos Comunistas foi
ro”, e especialmente contra a in dissolvida e Marx dedicou-se in
fluência das idéias do anarquista tensamente, durante longos
francês Joseph Proudhon (1809- anos, ao trabalho teórico que le
1865), cuja crítica Marx realizou varia à redação de sua principal
no livro Miséria da filosofia. obra, O capital. Mas continuou a
Como resultado de suas desenvolver suas atividades de
atividades revolucionárias na Liga dirigente comunista, tendo, em
dos Comunistas, Marx e Engels 1864, participado da fundação,
redigiram, em 1848, o Manifesto em Londres, de uma organização
do Partido Comunista. Nesse operária, a Associação Internaci
mesmo ano, eclodiram, em vári onal dos Trabalhadores, a I Inter
os países da Europa, revoluções nacional. A partir de sua posição
no Conselho Central da Internaci esgotamento, segundo a visão
onal, Marx foi um dos principais de Marx, do papel cumprido pela
dirigentes do movimento operário internacional.
e das lutas de massas na Europa No dia 14 de março de
durante toda a existência dessa 1883, após o agravamento de
organização. suas condições de saúde, já de
algum tempo abaladas, Marx
A COMUNA E morre, em Londres.
OS ÚLTIMOS ANOS
CRONOLOGIA
Em 1871 eclodiu em Paris
a que viria a ser a primeira revo 1818 Nascimento de Karl Marx,
lução operária da história. Os tra em 5 de maio, em Tréveris.
balhadores parisienses tomam o 1835 Início de seus estudos de di
poder e instauram a Comuna de reito na Universidade de Bonn.
Paris, uma forma de organização 1836 Marx prossegue os seus
social e política jamais experi estudos de direito na Universi
mentada anteriormente. Não obs dade de Berlim e depois pas
tante os limites dessa experiência sa ao estudo da filosofia. Re
e a sua curta duração, ela teve dige poemas e outros textos
uma importância histórica e políti literários. Freqüenta um círcu
ca extraordinária. lo de hegelianos, o Clube dos
Na Internacional, Marx Douiores.
acompanhou e auxiliou a luta dos 1841 Obtém o título de doutor
trabalhadores parisienses e, após em filosofia na Universidade
a derrota dos revolucionários, es de lena. É publicado na revis
creveu um trabalho no qual retifi ta Athenàum seu primeiro es
cou a sua própria concepção do crito, um conjunto de poemas
Estado na transição socialista, re reunidos sob o título Cantos
colhendo os ensinamentos oriun selvagens.
dos das próprias massas. 1842 Colabora na Gazeta Rena-
Os anos que se seguiram na, da quai assume a direção
vão assistir, por um lado, ao ainda nesse ano. Escreve uma
prosseguimento da redação dos série de textos, alguns dos
livros seguintes de O capital, que quais proibidos pela censura,
só serão, afinal, publicados pos notadamente sobre a questão
tumamente, e, por outro lado, ao da censura, a situação dos vi-
18
nhateiros da Mosela, a lei con Comunistas, mas apenas En-
tra o furto de lenha e os deba geis pode comparecer. Marx
tes na Dieta Renana. passa a presidir a seção da
1843 Demite-se da redação da Liga em Bruxelas e funda com
Gazeta Renana, a qual pouco Engels a Sociedade dos Ope
depois é proibida pelo gover rários Alemães de Bruxelas.
no. Redige a Crítica da filoso Publica a Miséria da filosofia,
fia do direito de Hegel. Casa- uma crítica a Proudhon.
se com Jenny von Westphalen 1848 É publicado o Manifesto do
e, alguns meses mais tarde, Partido Comunista, escrito em
mudam-se para Paris. conjunto com Engels. Eclode
1844 É publicado o único núme a Revolução de 1848. Marx é
ro da revista Anais Franco- expulso da Bélgica e retorna a
Alemães, de que é um dos or Paris, seguindo depois, com
ganizadores. Redige os Ma Engels e outros exilados ale
nuscritos econômico-fifosófi- mães, para Colônia, na Ale
cos e colabora no Vorwärts!, manha, onde passa a desen
semanário alemão publicado volver intensa atividade políti
em Paris. Estabelece amplo ca. É criada a Nova Gazeta
contato com Friedrich Engels. Renana, da qual Marx passa
1845 Expulso de Paris, instala- a ser o redator-chefe.
se em Bruxelas, para onde 1849 Publica Trabalho assalaria
também muda-se Engels, ten do e capital, conferência que
do início a colaboração entre houvera pronunciado em 1847
os dois com a publicação de A para um público formado por
sagrada família. Escreve as operários. Transferência para
Teses sobre Feuerbach. Londres.
1846 Marx e Engels desenvol 1850 Junto com Engels desen
vem ampla atividade político- volve esforços para reorgani
ideológica através de uma zar a Liga dos Comunistas.
rede de “comitês de corres 1852 Publicação de O 18 Bru
pondência” na Europa. Ambos mário de Luís Bonaparte.
redigem A ideologia alemã, 1859 Após anos de estudos rea
trabalho que também perma lizados em Londres, que ain
necerá inédito. da prosseguirão, começa a
1847 Ocorre em Londres o Pri publicar parte do resultado de
meiro Congresso da Liga dos suas pesquisas. Aparece a
19
*
20
Antes do marxismo: caminhos do
jovem Marx
21
pria do Estado”. O Estado é, as ce critérios objetivos de avaliação
sim, essa “totalidade ética que do que pode ou não ser publica
exprime os interesses de toda a do, atribuindo essa competência
sociedade”. a um censor que vai exercê-la
Se o Estado é a encarna sob a base de um julgam ento
ção do interesse geral, todo inte subjetivo. De modo que a lei aca
resse p a rticu la r vai a pa re ce r ba por punir não uma ação devi
como “estranho à natureza do damente tipificada, mas a mera
Estado” , como Marx afirma em intenção, passível de repressão
“Observações de um cidadão re- penal conforme o entendimento
nano sobre as recentes instru do funcionário encarregado da
ções para a censura na Prússia”. censura. Ou seja, o censor pode
Sustentado nesse conceito de considerar que o autor de um de
Estado, pode então medir a dis terminado texto teve o propósito
tância que separa o Estado prus de ofender, por exemplo, a Igreja
siano de um outro fundado na ra católica; não havendo normas ob
zão e na liberdade, de um Estado jetivas que estabeleçam o que
que representa “a realização da precisamente caracteriza a ofen
razão política e jurídica”, de um sa à Igreja, o censor só pode jul
Estado que esteja “baseado so gar baseado em uma apreciação
bre a razão livre”. da intenção que o autor teria tido
Se o indivíduo, como Marx ao escrever aquele texto.
afirma, só deve obediência às leis Ora, diz Marx, uma lei so
do Estado na medida em que es bre intenções “anula a igualdade
tas correspondam às leis naturais dos cidadãos perante a lei, não é
da razão humana, então, o direito uma lei mas um privilégio”, confi
de um Estado que não esteja or gurando assim uma “sanção po
ganizado racionalmente aparece sitiva da ilegalidade”. Essa frase,
como um não-direito. E é justa “sanção positiva da ilegalidade”,
mente a partir desse critério jus- eqüivale a dizer que uma lei pode
naturalista que Marx vai julgar a ser ilegal. Seria isso contraditó
organização política e jurídica do rio? Pois bem, aqui revela-se ple
Estado prussiano. Assim, critican namente a filiação de Marx ao di
do em “Observações de um cida reito natural: uma lei, diz Marx,
dão renano...” a regulamentação não obstante respeitar todos os
governamental da censura, Marx requisitos formais para a sua vali
revela que essa lei não estabele dade, mesmo assim, pode não
22
ser considerada como lei se não ção desse programa de reformas
for o reconhecimento positivo da políticas e jurídicas reclamadas
lei natural que a antecede e da nas intervenções jornalísticas de
qual ela deve ser a expressão, ou Marx contra aqueles que se recu
seja, a lei do Estado, a lei positi sam a considerar a liberdade
va, deve ser o reconhecimento como “um dom especial da auro
(legal) de uma liberdade que pre ra universal da razão”.
existe a ela. Assim, como Marx
afirma em “Os debates sobre a li A CRÍTICA DAS ARMAS E A
berdade de imprensa...”, podem EMANCIPAÇÃO HUMANA
existir leis que não sejam verda
deiras, leis que não sejam leis re O segundo momento do
ais. Uma lei é verdadeira somen período pré-marxista de Marx é
te quando ela é a “essência posi dominado pela noção de aliena
tiva da liberdade”. Portanto, lem ção, provinda diretamente da fi
bra Marx, a censura, assim como losofia de Feuerbach, e pela
a escravidão, não podem nunca d e s c o b e rta do p ro le ta ria d o
ser legalizadas, “mesmo que te como agente da “emancipação
nham existido durante muito tem humana".
po como lei”. Para Marx, agora, não é
A liberdade, para Marx, suficiente empunhar a arma da
possui uma existência natural crítica. É necessária uma força
que independe de qualquer re material para confrontar e supe
gulamentação positiva, ela é um rar outra força material, de modo
direito natural cuja existência que a arma da crítica deve ser
perdura mesmo se uma lei pro substituída pela crítica das ar
cura negá-la. mas. Mas isso não significa que a
Um Estado que reconheça teoria não cumpra mais nenhum
a liberdade e a igualdade, que se papel; ao contrário, a teoria pode
fundamente no respeito ao princí transformar-se em força material
pio da legalidade e na indepen quando penetra nas massas, diz
dência do judiciário, que vede a Marx em Crítica da filosofia do di
existência de jurisdições especi reito de Hegel — Introdução. Afir
ais, que garanta a liberdade de mando isso, ele supõe que toda
consciência e a liberdade de ex transformação revolucionária exi
pressão do pensamento, enfim, ja um “fundamento material”, um
um Estado de direito, é a realiza elemento passivo.
23
Pois bem, que elemento ALIENAÇÃO E HUMANISMO
pode cumprir essa função revolu
cionária, que classe da socieda Com a redação dos Manus
de pode empreender a tarefa de critos econômico-filosóficos, Marx
emancipação universal, de eman volta o seu interesse para o pro
cipação humana geral? Marx vai cesso de produção capitalista e dá
descobrir essa classe no proleta o salto em direção ao comunismo.
riado, na classe operária da in Mas tanto a sua análise da condi
dústria moderna, que “não pode ção da classe operária como
emancipar-se sem emancipar-se aquela do comunismo reprodu
de todas as outras esferas da so zem as representações ideológi
ciedade e, ao mesmo tem po, cas humanistas de Feuerbach.
emancipar todas elas; que é a Desenvolvendo a crítica da
perda total do homem e que, por alienação religiosa, em A essên
tanto, só pode se recuperar a si cia do cristianism o, Feuerbach
mesma através da recuperação mostra que ela consiste em uma
total do homem”. operação na qual o homem pas
Se o proletariado é o fun sa a considerar como algo exteri
damento material da revolução, or e acima dele aquilo que na ver
cabe à filosofia armá-lo espiritual dade é o resultado de sua própria
mente, penetrando-o com o pen criação. Desse modo, Deus pode
samento. Assim, Marx pode dizer aparecer como uma representa
que “a cabeça desta emancipa ção imaginária dos predicados de
ção é a filosofia, seu coração o que o gênero humano não dis
proletariado”. põe, não tendo, portanto, nenhu
Observemos, desde já, os ma objetividade. Deus é, para
limites dessa construção teórica: Feuerbach, “uma idéia que se tor
a figura do proletariado é elabo na independente dos homens que
rada sob o modelo do homem ali a criam”.
enado de Feuerbach, sua eman Criando esse céu fantásti
cipação não ultrapassa o horizon co, depositário das perfeições
te da emancipação geral do ho que o homem não pode encontrar
mem, e o seu caráter passivo de em si mesmo, o homem acaba
instrumento da filosofia revela por não mais reconhecê-lo como
que a noção de proletariado fun obra sua; ao contrário, ele apare
ciona, a rigor, como uma catego ce aos homens como algo estra
ria filosófica. nho a eles, como algo que os do
24
mina. Como diz Feuerbach: “O feuerbachiana: “ Quanto mais
homem transforma o subjetivo, ou rico é Deus, mais pobre torna-se
seja, faz daquilo que só existe em o homem”.
seu pensamento, em sua repre
sentação, em sua imaginação, al O trabalho alienado
guma coisa que existe fora de seu
pensamento, de sua representa A alienação do trabalho
ção, de sua imaginação. Assim, consiste, portanto, em que o pro
os cristãos arrancam do corpo do duto do trabalho, os objetos pro
homem o espírito, a alma, e fa duzidos pelo trabalhador, não lhe
zem desse espírito separado, pri pertencem, aparecendo-lhe como
vado de corpo, Deus. Deduzir de algo estranho, como um poder in
Deus a natureza é como se se dependente dele e que o domina.
quisesse deduzir da imagem, da Quanto mais o trabalhador pro
cópia, o original, deduzir uma coi duz, mais vê-se privado dos obje
sa da idéia dessa coisa”. tos necessários à sua subsistên
Pois bem, o que Marx rigo cia e, na medida em que menos
rosamente faz é estender a análi objetos ele possui, mais ele cai
se da alienação religiosa de Feu sob o domínio dos produtos que
erbach ao campo econômico-so- são criados por ele, isto é, sob o
cial (trabalho alienado)1. domínio do capital.
Assim o operário, no dizer Mas a alienação ocorre
de Marx nos Manuscritos econô- também no interior da atividade
m ico-filosóficos, “torna-se tanto produtiva, pois o trabalho é exte
mais pobre quanto maior é a ri rior ao operário, não faz parte de
queza que ele produz”, do mes sua essência, de modo que o tra
mo modo que quanto mais o ho balhador se sente infeliz e mortifi
mem “põe em Deus, menos ele cado em um trabalho que não
retém em si mesmo”, todas es acarreta o seu desenvolvimento
sas fórmulas extraídas da matriz mental e físico. Assim, ele “só se
1 E nisso Marx já houvera sido precedido por Moses Hess (1812-1875), um dos
representantes da “esquerda hegeliana” e autor de um artigo, “A essência do
dinheiro” , no qual Marx se baseou para escrever parte de A questão judaica.
Neste texto, escrito antes dos Manuscritos, Marx concebe o Estado como a
projeção imaginária da vida comunitária, da vida verdadeiramente humana,
que os homens da sociedade civil, mergulhados no egoísmo e na procura da
satisfação de seus interesses particulares, nela não encontram.
25
sente em casa quando não traba não lhe pertence, mas precisa ser
lha e quando trabalha não se sen obtida por meio da coerção, per
te em casa”, pois o seu trabalho gunta Marx, a quem pertencem
lhe aparece como uma atividade esse produto e essa atividade?
forçada, tanto que, não havendo Ora, se o objeto e a ativi
coerção, ele “foge do trabalho dade de trabalho aparecem como
como de uma peste”. estranhos ao trabalhador, como
Esse trabalho não é perten um poder com o qual ele se de
cente ao próprio trabalhador, mas fronta, evidentem ente, devem
pertence a outro, e o trabalhador pertencer não ao trabalhador,
mesmo, nessa atividade, também mas a um homem que não é tra
pertence a outro. A atividade do balhador, de tal sorte que esse
trabalhador não é mais uma auto- outro homem aparece ao traba
atividade, mas, justamente porque lhador como um “homem alheio a
pertence a outro, ela significa a ele, inimigo, poderoso, indepen
perda do trabalhador de si mesmo. dente dele”, como o senhor do
O trabalho alienado, por objeto do trabalho realizado pelo
fim, aliena o homem igualmente operário, e cuja atividade apare
de seu ser genérico. O homem é ce como a atividade “a serviço de,
um ser genérico precisamente sob o domínio, a coerção e o jugo
porque a atividade produtiva que de um outro homem".
ele realiza é uma atividade cons Desse modo, o trabalho ali
ciente e livre por meio da qual a enado, ao mesmo tempo em que
natureza pode aparecer como “a provoca a perda do objeto do tra
sua obra e a sua realidade efeti balho do operário, também pro
va”. Por isso, ao separar o ho duz a dominação do capitalista,
mem do produto de sua atividade daquele “que não produz sobre a
produtiva, o trabalho alienado se produção e o produto”.
para o homem de sua própria vida A anulação do mundo da
genérica. Assim, conseqüente alienação, a constituição de uma
mente, o homem encontra-se ali sociedade comunista, é identifi
enado do próprio homem. cada com a supressão positiva
Pois bem, se o produto do da propriedade privada, que per
trabalho não pertence ao trabalha mitiria ao homem apropriar-se da
dor, se ele surge frente ao traba sua essência. Uma vez recondu
lhador como um poder alheio, se zido o predicado ao sujeito, uma
a própria atividade do trabalhador vez reunificado o homem com o
26
homem e com a natureza, a alie das, segundo ele demonstrará
nação cessaria. posteriormente, na base econômi
A leitura dos textos de ju ca material, na articulação entre as
ventude de Marx dominados pela relações de produção e as forças
antropologia filosófica de Feuer- produtivas. Só esse ponto de par
bach permite reconhecer todo um tida pode permitir a Marx realizar
conjunto de noções pertencente a crítica da representação ideoló
ao universo da ideologia burgue gica do “homem” e compreender
sa. As noções de alienação, de essa categoria como uma constru
homem, de gênero humano, de ção da ideologia jurídica burguesa
essência humana, a idéia do ptd- necessária à circulação mercantil.
letariado como elemento passivo, Mas o caminho para Marx chegar
enfim, a problemática humanista a isso, como veremos, será ainda
impede Marx de apreender as de longo e tortuoso, e nunca comple
terminações reais da sociedade tamente liberto das figuras de seu
burguesa, que devem ser busca “passado ideológico”.
27
0 A constituição do materialismo histórico
28
daí, Marx livra-se das influências É então na luta contra a “fi
de Hegel ou de Feuerbach, e pode losofia alemã” que nasce esse pri
então seguir o seu caminho solitá meiro esforço de compreensão
rio, ouvindo apenas os ecos cada materialista da sociedade. Para os
vez mais longínquos de seus pró filósofos “críticos” alemães, so
prios passos? Significa dizer que mente a supressão das represen
não encontraremos senão traços, tações imaginárias que oprimiam
vestígios da pré-história marxista os homens, desses “produtos de
que um paciente trabalho arqueo sua cabeça”, levaria à supressão
lógico permitiria identificar pelo da realidade nelas sustentada.
que são, a memória morta da ju Nisso consistiria toda a proclama
ventude deixada há muito para da natureza revolucionária dessa
trás? Se assim fosse, não sería “crítica filosófica", a que Marx vai
mos capazes de compreender o opor “as sombras da realidade”.
extraordinário esforço que Marx “Certa vez, um bravo homem ima
envida para superar a sua própria ginou”, diz Marx em A ideologia
“consciência filosófica anterior”. alemã, “que, se os homens se afo
Marx funda o conhecimento da gavam, era unicamente porque
história e da sociedade sob bases estavam possuídos pela idéia da
novas, no interior justamente da gravidade. Se retirassem da cabe
problemática com a qual ele tem ça tal representação, declarando,
de romper para que essa funda por exemplo, que se tratava de
ção seja possível. Assim, se é ver uma representação religiosa, su
dade que A ideologia alemã é o persticiosa, ficariam livres de todo
marco de uma ruptura, o é apenas perigo de afogamento. Durante
no sentido de que um novo campo toda a sua vida, lutou contra essa
conceituai começa a ser formula ilusão da gravidade, cujas conse
do e que essa nova teoria oferece qüências perniciosas todas as es
elementos para a crítica do cam tatísticas lhe mostravam, através
po ideológico no qual Marx houve de provas numerosas e repetidas.
ra permanecido até então. Isso Esse bravo homem era o protóti
significa que a presença da “ideo po dos novos filósofos revolucio
logia alemã”, notadamente de He nários alemães”.
gel, ainda perturbará profunda Assim, a objeção que Marx
mente a obra de Marx, vindo a ser endereça aos filósofos “críticos’'
um obstáculo à constituição do procura demonstrar que eles não
campo científico que ele inaugura. se libertaram do núcleo idealista
29
que supostamente é o objeto jus significado profundo é o de que a
tamente de seu trabalho “crítico”: teoria é condicionada pelo campo
partindo da concepção de que é no qual está inserida, que o con
a idéia que determina o mundo junto de problemas que a constitui
real, supunham que, para libertar determina as respostas que ela é
os homens do jugo do pensamen capaz de oferecer. Assim, se a
to e da representação, seria sufi problemática filosófica (hegeliana)
ciente a mera crítica filosófica, é “mistificada”, qualquer resposta
com a conseqüente destruição do que se der às suas questões será
mundo existente. É a essa “ilusão igualmente mistificada. É preciso,
de Hegel” que Marx procurará es então, romper com o campo da
capar, operando uma mudança ideologia filosófica, recusar as
de terreno na teoria. suas questões, e não apenas ofe
recer outras respostas igualmente
Novas respostas ou novas ideológicas, e nisso consiste a mu
questões? dança de terreno que Marx recla
ma: a passagem da “mistificação”
Os limites da ideologia críti ideológica para o conhecimento
ca alemã evidenciam-se precisa científico do real.
mente porque ela permanece no O limite da crítica filosófica
mesmo terreno da filosofia, ela não repousa na sua incapacidade de
abandona esse terreno, que é o da ir além da esfera das representa
filosofia hegeliana. Pois bem, Marx ções, das idéias, dos conceitos.
diz que uma crítica que não é ca Assim, tudo se passa como se se
paz de ultrapassar esse domínio tratasse apenas de encontrar
permanecerá estéril, ou melhor, uma outra interpretação da reali
reproduzirá as mesmas represen dade, opondo uma fraseologia a
tações que afirma combater. “Não outra, sem combater o “mundo
apenas em suas respostas, mas já real existente”.
nas próprias questões, havia uma Para Marx, trata-se então
mistificação”. Essa frase de Marx de m udar de terreno. Ao invés de
é de grande importância, pois ela oferecer respostas diversas às
aponta na direção de uma ruptura mesmas questões da ideologia fi
epistem ológica com as concep losófica — considerando, por
ções da esquerda hegeliana (e, exemplo, a religião como algo ne
portanto, com as suas próprias for gativo — , Marx recusa essas pró
mulações “de juventude”). O seu prias questões, a problemática fi
30
losófica mesma, procurando inau de subsistência e a sua vida ma
gurar um novo campo teórico. terial; distingue os vários modos
Marx, ao abandonar o ter de produção — a produção varia
reno ideológico comum do par es- de acordo com a natureza dos
pírito-matéria, pode agora come meios de subsistência; e fixa dois
çar a elaborar os conceitos teóri sentidos para o conceito de modo
cos que vão abrir para o conheci de produção: um sentido mais es
mento o domínio antes incógnito trito, que corresponde às condi
da sociedade e da história, mes ções materiais de produção, por
mo que ainda possa permanecer exemplo a instância econômica
em grande medida inserido no da sociedade burguesa, e um
campo do qual procura se livrar. sentido mais abrangente ou glo
bal, correspondendo à totalidade
A MATERIALIDADE DO dos níveis de uma formação soci
PROCESSO HISTÓRICO al, por exemplo, a sociedade bur
guesa como um todo.
Marx parte de uma base Portanto, o que os indiví
materialista ao estabelecer os duos são confunde-se com o que
seus pressupostos, ou seja, não se produzem e com o modo como
trata de elaborar uma idéia ou um produzem: “o que os indivíduos
conceito para depois procurar con são [...] depende das condições
formar a eles a realidade. O mate materiais de sua produção". Marx
rial de Mao< são os indivíduos re estabelece com essas passagens
ais, a ação que eles desenvolvem, o princípio fundamental de sua
as suas condições de vida. concepção teórica — o princípio
Os homens começam a se da determinação material da vida
distinguir dos animais quando se social — , de sorte que os proces
tornam capazes de produzir seus sos sociais e políticos passam a
“meios de vida”, e, assim fazen ter o princípio de sua inteligência
do, produzem a sua “própria vida enraizado nas condições materi
material” . É o modo como os ho ais da produção. São essas con
mens produzem essa sua vida dições materiais da produção que
material, o elemento decisivo da condicionam o conjunto dos ele
análise marxiana. mentos da estrutura social.
Marx estabelece, assim, o O critério de distinção en
conceito de produção — os ho tre os modos de produção, por
mens produzem os seus meios sua vez, é estabelecido por Marx
31
r
32
que agora examinamos, a pro o conjunto dos elementos nela
blemática das forças produtivas. não com preendidos, a esfera
Essa questão, que será objeto das idéias e representações, a
de uma retificação na obra pos ideologia, a esfera da política, do
terior de Marx, é mesmo decisi direito, da arte etc. Ele utiliza
va, pois dela dependerá não só uma figura arquitetônica para re
a compreensão do processo de presentar essa relação. De acor
constituição do capitalismo mas do com essa imagem, “o modo
também a possibilidade de sua de produção", as “relações ma
superação. teriais”, a “produção capitalista”
O que Marx fundamental constituiriam a base ou a estru
mente faz é estabelecer o prima tura sobre a qual se ergueria
do das forças produtivas sobre as uma superestrutura compreen
relações de produção. O que isso dendo todos aqueles elementos
significa? Significa que o desen de natureza “não-econômica” .
volvimento histórico dependeria As relações econômicas — o
principalm ente das inovações modo de produção, em sentido
técnicas que dão origem a meios estrito, ou seja, o conjunto das
de produção mais avançados, e relações de produção e das for
não da luta entre as classes na ças produtivas — têm um papel
produção, a qual cumpriria um determinante em relação à esfe
papel secundário. Desse modo, ra superestrutural a qual seria
por exemplo, a introdução da má subordinada a elas.
quina no processo de produção Q ue d e te rm ina çã o é
acarretaria uma mudança nas re essa? Para Marx, a base exerce
lações sociais. ria uma ação de condicionamen
to sobre a superestrutura, no
DETERMINAÇÃO MATERIAL E sentido de que esta só pode ser
SUPERESTRUTURA compreendida e explicada a par
tir da base, ou seja, o princípio
Uma vez estabelecido o de inteligência da superestrutura
princípio basilar da determinação não residiria nela mesma, mas
material pela produção, pelas re na base econômica. É isso que
lações de produção e pelas for significam estas passagens de A
ças produtivas, Marx procura ideologia alemã: “A moral, a reli
elucidar o problema da articula gião, a metafísica e qualquer ou
ção entre essa “base” material e tra ideologia, assim como as for
33
mas de consciência que a elas A CÂMARA ESCURA
correspondem, perdem toda a
aparência de autonomia. Não Uma vez estabelecida a
têm história, nem desenvolvi relação entre a base e a supe
mento”; “Não se deve esquecer restrutura, é possível medir a dis
que tanto o direito como a reli tância entre a concepção de
gião não têm história própria” . Marx e aquela do idealismo ale
Portanto, para compreendermos mão. Já havíamos observado, no
o direito ou a religião, ou qual início deste capítulo, a censura
quer outro elemento da superes que ele dirige contra as “ilusões
trutura, é preciso antes apreen de Hegel”, opondo à filosofia es
der as determinações profundas peculativa “as sombras da reali
da base econôm ica, pois são dade” . Pois bem, agora já dispo
elas que emprestam sentido ao mos de condições suficientes
movimento da superestrutura. para compreender o sentido ple
Porém , em A id e o lo g ia no dessas co nside ra çõe s de
alem ã, e nos outros trabalhos Marx. Se o domínio da superes
desse mesmo período, a deter trutura é condicionado pela base
minação da superestrutura pela econômica, se ela não possui
base econômica parece ser uma autonomia, movimento próprio,
determinação algo direta, imedi então nenhuma iniciativa que se
ata, o que se exprime nesta pas limite ao plano das idéias, por
sagem reveladora: “A produção mais “críticas" que estas venham
de idéias, de representações, da a ser, pode ter o condão de alte
consciência, está, de início, dire rar de qualquer modo a realida
tamente entrelaçada com a ativi de material. A transformação de
dade material e com o intercâm uma idéia, de uma concepção
bio material dos homens, como a teórica, de uma formação ideoló
linguagem da vida real. O repre gica não depende de uma outra
sentar, o pensar, o intercâmbio idéia, de uma outra teoria, de
espiritual dos homens, aparecem uma outra ideologia, que àquelas
aqui como emanação direta de vie sse se contrapor, mas da
seu com portam ento m aterial” . transformação das relações soci
Veremos, mais adiante, que tam ais de que elas provêm.
bém nesse aspecto o pensamen A ideologia vai aparecer
to marxiano sofrerá sensíveis então, para Marx, em A ideologia
alterações. alem ã, como um processo no
34
qual os homens e suas relações ma, que podem findar as “frases
surgem invertidos, como numa ocas" sobre a consciência e as
câm ara escura, “ do m esm o abstrações “separadas da histó
modo [...] que a inversão dos ob ria real” . E esse é também o
jetos na retina”. Assim, pode ad pressuposto do nascimento de
quirir uma existência imaginária um conhecimento científico da
todo um conjunto de idéias e re história, contraposto à ideologia,
presentações que parecem fun e cujo princípio Marx pode, ain
dar a realidade, quando elas são, da uma vez, fundar: “O fato, por
na verdade, a “emanação” de re tanto, é o seguinte: indivíduos
lações sociais determinadas. E determinados, que como produ
se os homens podem pôr, em tores atuam de um modo tam
suas representações, “a realida bém determinado, estabelecem
de de cabeça para baixo”, isso é entre si relações sociais e políti
decorrência de seu “modo de ati cas determinadas. É preciso que,
vidade material lim itado” . É a em cada caso particular, a obser
isso que Marx se refere ao dizer vação empírica coloque neces
que a sua concepção não desce sariam ente em relevo — em
do céu à terra, mas ascende da piricamente e sem qualquer es
terra ao céu, ao contrário da filo peculação ou mistificação — a
sofia alemã. Ou seja, “não se conexão entre a estrutura social
parte daquilo que os homens di e política e a produção. A estru
zem, imaginam ou representam, tura social e o Estado nascem
e tampouco dos homens pensa constantemente do processo de
dos, imaginados e representa vida de indivíduos determinados,
dos para, a partir daí, chegar aos mas não como podem aparecer
homens de carne e osso”, mas na imaginação própria ou alheia,
sim das suas condições reais de mas tal e como realmente são,
existência. É por isso que “mes isto é, tal e como atuam e produ
mo as formações nebulosas no zem materialmente e, portanto,
cérebro dos homens são subli tal e como desenvolvem suas ati
mações necessárias do seu pro vidades sob determinados limi
cesso de vida material, empirica tes, pressupostos e condições
mente constatável e ligado a materiais, independentes de sua
pressupostos materiais”. vontade”.
É somente com o fim des O “descolamento” das idéi
sa filosofia especulativa, autôno as e representações de seu solo
r
36
espirituais", acarretando assim a ses como sendo os interesses
submissão dá classe despojada comuns de toda a sociedade", o
desses meios à classe que pos que a leva necessariamente a dar
sui esses meios à sua disposi às suas idéias a “forma de univer
ção. As idéias da classe domi salidade”, apresentando-as como
nante podem então surgir pelo as únicas racionais e as “univer
que são, a “expressão ideal das salmente válidas".
relações materiais dominantes”, Pois bem, a classe que ob
relações materiais transforma jetiva tomar o poder e tornar-se
das em idéias, enfim, “as idéias dominante, não apresenta, no
de sua dominação". processo revolucionário, os seus
A dominação “espiritual", interesses particulares de classe
isto é, a dominação ideológica, como o interesse que ela própria
aparece como uma extensão da representa e defende. Ela apare
dominação exercida na esfera da ce, ao contrário, como se repre
circulação e da produção pela sentasse o conjunto das ciasses
classe que dispõe dos meios de excluídas do poder, a sociedade
produção. Do mesmo modo que como um todo frente à classe do
essa classe controla esses meios minante. Isso ocorre justamente
materiais, eia igualmente contro porque o seu interesse particular
la os meios de produção e de di ainda não pode se desenvolver
fusão das idéias. em virtude das condições existen
Mas essas idéias dominan tes e também porque ele efetiva
tes não aparecem como sendo a mente está ligado ao interesse
expressão de interesses de clas coletivo, na exata medida em que
se determinados, e sim como a vitória dessa classe interessa a
“idéias puras", provindas de pen muitos membros de outras clas
sadores desvinculados daqueles ses, que assim poderão elevar-se
interesses. à condição de membros da nova
Ademais, a base da domi classe dominante.
nação ideológica amplia-se sem
pre, isto é, as idéias dominantes ESTADO E LUTA DE CLASSES
tornam-se cada vez mais univer
sais, em cada época histórica. Com as aquisições teóri
Isso verifica-se porque a classe cas desse período, Marx pode
dominante, ao tomar o poder, fundar sobre outro terreno o con
deve "apresentar os seus interes ceito de Estado. Surgindo como
37
conseqüência das reiações de Essa representação ilusó
produção, no sentido de que a ria de que o Estado possa encar
determinadas relações de produ nar o interesse geral esconde,
ção dominantes deve correspon para Marx, a sua função especí
der uma certa forma política de fica: ao garantir a propriedade
domínio de classe, o Estado é dos meios de produção, o Esta
compreendido, agora, como a do já garante, por força desse
forma de dom ínio pela qual a ato mesmo, a posição de domí
classe dominante faz prevalecer nio da classe que é titular dessa
os seus interesses comuns de propriedade. Desse modo, o do
classe. O caráter comum desse mínio da burguesia sobre a clas
poder cumpre dois papéis: em se operária, no âmbito de cada
primeiro lugar, ele permite que o unidade produtiva, estende-se
Estado possa defender os inte imediatamente para o domínio
resses do conjunto da classe do da política, como o domínio do
minante, mesmo que tenha, em conjunto da classe burguesa so
determ inadas circu n stân cia s, bre a classe operária. O Estado,
para alcançar esse objetivo, de assim, pode ser considerado o
sacrificar o interesse particular, “resumo oficial do antagonismo
seja de alguma fração, seja de na sociedade civil”, no sentido de
algum membro da classe domi que as contradições de classe,
nante; em segundo lugar, ele ao adquirirem um caráter políti
permite que os interesses da co, exigem, devido ao caráter in
classe dominante sejam apre conciliável desses conflitos, a
sentados como sendo os interes existência do Estado. Este atua,
ses do conjunto da sociedade, portanto, no sentido de conter o
como uma comunidade de inte antagonismo de classe dentro de
resses gerais e, portanto, que limites que permitam a conserva
não adquiram um caráter priva ção da sociedade na qual domi
do, mas, ao contrário, um cará na uma determinada classe, que
ter público, isto é, o exercício do permitam, portanto, conservar
poder político pela classe domi esta dominação de classe.
nante pode aparecer como o do
mínio impessoal de uma pessoa ALIENAÇÃO E COMUNISMO
jurídica, ao qual a idéia mesma
de dominação de classe é um Já observamos anterior
impensado. mente que Marx ainda pensa a
38
sociedade burguesa sob o mode Pois bem, para que a alie
lo da noção ideológica de aliena nação possa ser cancelada e o
ção. A alienação, cuja causa se advento do comunismo seja pos
ria a divisão do trabalho, faz com sível, é necessária a ocorrência
que a “ação do homem [conver de uma condição prévia, absolu
ta-se] num poder estranho e a tamente essencial: o desenvolvi
ele oposto, que o subjuga ao in mento das forças produtivas. É
vés de ser por ele dominado” , de esse desenvolvimento das for
tal modo que o produto dessa ati ças produtivas em uma escala
vidade dos homens “consolida- elevada que vai produzir, ao
se” em um “poder objetivo supe mesmo tempo, “um mundo de ri
rior” a eles e que escapa ao seu queza” e a massa “totalmente
controle. destituída de propriedade” como
As forças produtivas que elementos contraditórios. E vai
decorrem da divisão do trabalho ainda produzir o “intercâm bio
podem aparecer aos indivíduos universal dos homens” , generali
não como o resultado de sua pró zando a condição proletária para
pria atividade, como manifesta todo o mundo e dando à supera
ção de seu “poder” , mas como ção do capitalismo um caráter
“uma força estranha situada fora universal. O comunismo, assim,
deles, cuja origem e destino igno dependeria do desenvolvimento
ram, que não podem mais domi das forças produtivas e da exis
nar e que, pelo contrário, percor tência de relações de troca gene
re agora uma série particular de ralizadas como condições pré
fases e estágios de desenvolvi vias sem as quais o passo para
mento, independentemente do além do capitalismo estaria blo
querer e do agir dos homens e queado “e toda a imundície ante
que, na verdade, dirige este que rior seria restabelecida”.
rer e este agir”. O com unism o, desse
O processo de alienação modo, é entendido por Marx
é, portanto, o processo da sepa como um modo de apropriação
ração entre as forças produtivas das forças produtivas pelo ho
e o homem, forças produtivas mem, ou seja, como a apropria
que se “destacaram”, tornando- ção do objeto pelo sujeito, inver
se forças não mais desses mes tendo-se assim a relação de alie
mos homens mas da proprieda nação, fundada no domínio do
de privada. sujeito pelo objeto. É a isso que
ele se refere nesta passagem de mens possam controlar a produ
A ideologia alem ã: “As coisas, ção e a troca.
portanto, foram tão longe que os Ora, essa concepção do
indivíduos devem apropriar-se da comunismo, fundada no desen
totalidade existente das forças volvimento das forças produtivas,
produtivas, não só para alcançar no “cancelamento” da alienação,
a auto-atividade, mas tão-somen na generalização das trocas e no
te para assegurar a sua existên direito, é submetida por Marx à
cia. Esta apropriação está condi crítica na segunda parte de A ideo
cionada, em primeiro lugar, pelo logia alemã'.
objeto a ser apropriado, isto é,
pelas forças produtivas que se COMUNISMO E DIREITO
desenvolveram até form ar uma
totalidade e que existem apenas Marx, com efeito, ao criticar
no interior de um intercâm bio uni os representantes do chamado
versal. [...] Apenas os proletários “socialismo verdadeiro” — uma
[...] estão em condições de impor tendência pequeno-burguesa do
sua auto-atividade completa e comunismo — , demonstra que a
não mais limitada, que consiste representação que eles fazem do
na apropriação de uma totalida comunismo decorre inteiramente
de de forças produtivas e no de da ideologia jurídica burguesa.
senvolvimento daí decorrente de Analisando as idéias do
uma totalidade de capacidades. anarquista alemão Max Stirner
[...] Com a apropriação das for (1806-1856) Marx constata que,
ças produtivas totais pelos indiví ao proclamar a existência de um
duos unidos, termina a proprieda único direito, o “meu” direito, o
de privada". “direito do egoísmo”, ele estabe
Essa apropriação privada lece, por meio desse confronto
dos produtos seria substituída de egoísmos que se limitam re
pela apropriação coletiva, des- ciprocam ente, um a cordo de
truindo-se desse modo a relação vontades que conduz à harmo
de alienação que se verifica en nia social.
tre os indivíduos e os seus pro S egundo M arx, S tirn e r
dutos, e permitindo que os ho concebe o comunismo como a
1 Que, no entanto, foi escrita antes da primeira, cujo com entário realizamos
até aqui.
40
transferência da propriedade p ri pitalistas; eles fundam a igualda
vada para a propriedade comum, de universal dos sujeitos de direi
de todos. Uma vez que a socie to sob a base do valor de troca,
dade foi investida do estatuto de que torna possível a compra e
“proprietária” , o problema do co venda da força de trabalho, a ex
munismo se resumiria em garan ploração burguesa. O humanismo
tir a igualdade, isto é, em esta (direitos do homem) encobre, as
belecer uma ju s ta re p a rtiç ã o sim, a dominação de classe.
das coisas. Pois bem, essa igualdade
Marx pode então criticar de que o comunismo seria a re
essa imagem do “comunism o” alização “prática” repousaria —
fundada na relação entre o “ho para os “socialistas verdadeiros”
mem” e suas “necessidades”, en — na essência mesma do ho
quanto uma relação de apropria mem. A personalidade do ho
ção jurídica que remete às “ne mem, porém, estaria separada
cessidades do burguês atual: que (“alienada”) do próprio homem,
cada um tem o direito de possuir dividida entre a sua essência
os seus bens”. atual, impedida de se realizar, e
Para Stirner, o comunismo a que ela deveria ser, a razão. É
significa, afinal, que “cada um n ece ssá rio então re c o n c ilia r
possa gozar os direitos eternos essa “essência racional huma
do homem”. Ora, Marx demons na" com a sua existência, em
tra que há uma completa incom uma sociedade que respeite e
patibilidade entre o comunismo e realize essa “natureza humana
o direito, que “se os axiomas do interna” , isto é, em uma socie
direito que conduzem ao comu dade que respeite e realize os
nismo são concebidos como axi direitos eternos do homem da
omas da propriedade privada, do sociedade burguesa.
mesmo modo, o direito de propri O comunismo, para os “so
edade comum é concebido como cialistas verdadeiros”, seria afinal
a condição imaginária do direito essa sociedade em que o reencon
de propriedade privada”. tro do homem com a sua essência
Por que o comunismo não alienada se exprimiria no gozo da
pode se identificar com os “direi “verdadeira propriedade”, uma
tos eternos do homem”? Porque propriedade “natural” e “social”.
esses direitos decorrem das rela Essa concepção reproduz
ções de produção e de troca ca no fundamental a ideologia do
41
pequeno-proprietário que, ame peração efetiva da sociedade
açado pelo grande capital, aspi burguesa.
ra nostalgicamente à liberdade O “comunismo” pequeno-
de concorrência. Como lembra burguês, fundado no igualitaris-
N icole-E dith Thévenin, “o pe mo, não é capaz de ir além do
queno-burguês quer, em última horizonte do capitalismo porque
instância, uma liberdade dos in ele reproduz ideologicamente as
divíduos, feita pelos indivíduos, condições mesmas de funciona
para os indivíduos, em um ideal mento da sociedade que supos
com unitário onde reinariam o tamente pretende negar.
amor, a fraternidade. Para o so É assim que, para Prou
cialista verdadeiro, o comunis dhon, as relações sociais da so
mo é, portanto, o retorno ao d i ciedade burguesa são form as
reito natural. A essência
do homem é o direito”.
A crítica ao “comu
nismo" pequeno-burguês
prossegue nos textos de
Marx do mesmo período
de A id e o lo g ia alem ã.
Trata-se de uma luta de
c is iv a c o n tra tod o um
conjunto de representa
ções ideológicas de que
ele próprio não pôde se
libertar inteiramente. Ora,
essa crítica é a condição
n e c e s s á ria para que
Marx possa se colocar do
ponto de vista da classe
operária, portanto, para
que ele p o ssa a b rir a Joseph Proudhon. Em Miséria da filosofia, Marx faz a
possibilidade de uma su crítica das concepções teóricas de Proudhon.
42
eternas, não com preendendo, eterna, que impede às pessoas
como Marx mostra em Miséria da afirmarem seus interesses prejudi
filosofia, que “as formas da eco cando outras. Para o burguês, a
nomia sob as quais os homens troca individual pode subsistir sem
produzem, consomem e fazem o antagonismo entre as classes —
suas trocas são transitórias e para ele trata-se de coisas total
históricas” . mente desvinculadas.
É essa “eternização” das “[...] O sr. Bray [socialista
formas sociais burguesas o re ricardiano inglês, 1809-1895], faz
sultado da elevação da categoria da ilusão do honesto burguês o
da igualdade à condição de prin id e al que pretenderia realizar.
cípio fundador da “nova” socie Depurando a troca individual, ex-
dade. Ora, a “igualdade” remete purgando-a de todos os seus
necessariamente ao seu funda componentes antagónicos, ele
m ento m aterial, as trocas de acredita encontrar uma relação
mercadorias, que dependem de 'igualitária' que desejaria introdu
um modo de produção determi zir na sociedade.
nado. Assim, o comunismo pe- “O sr. Bray não compreen
queno-burguês incorre em uma de que esta relação igualitária,
dupla ilusão: a de ir além do ca este ideal corretivo que gostaria
pitalismo quando apenas repro de aplicar ao mundo, é, em si
duz o seu funcionamento; e a de mesmo, um reflexo do mundo
poder isolar a relação de troca de atual e que, conseqüentemente, é
uma estrutura de produção fun impossível reconstituir a socieda
dada no antagonism o entre a de sobre uma base que não pas
burguesia e o proletariado. Como sa de uma sombra embelezada
comenta Marx, “a troca individual de si mesma. À medida que a
corresponde, ela também, a um sombra torna-se corpo, percebe-
modo de produção determinado se que este, longe de ser a trans
entre as classes. Não há troca figuração sonhada, é o corpo atu
individual, pois, sem o antagonis al da sociedade”.
mo entre as classes. O significado mais profun
“As consciências honestas, do dessas observações de Marx
todavia, recusam essa evidência. repousa na compreensão das
O ponto de vista burguês só pode formas ideológicas necessárias
perceber nesse antagonismo uma ao funcionamento do capitalis
relação de harmonia e de justiça mo, no qual as relações de tro-
43
ca encobrem o processo de pro TODOS OS HOMENS SÃO
dução e “dissolvem” as relações IRMÃOS?
de classes — que são relações
de exploração de uma classe A luta contra a hegemonia
por outra — na relação entre do “socialismo verdadeiro” e de
possuidores “livres e iguais” de outras tendências utópicas é
mercadorias. também, ao mesmo tem po, a
A crítica que Marx realiza luta pela direção do movimento
dessa representação ideológica — operário, portanto, a luta por uma
notadamente de Proudhon — per organização revolucionária dos
mite que se estabeleça uma linha trabalhadores.
de demarcação inamovível entre o A revolução id e o ló g ic a
reformismo e a ação revolucionária. por que passa a Liga dos Justos
Em uma carta endereçada — ao se transform ar em Liga
a Marx, em 1846, Proudhon es dos Com unistas — , sob a in
tabelece a relação entre a “teo fluência de Marx e de Engels, é
ria” do igualitarismo jurídico e o reveladora da necessidade de
abandono da revolução: “[...] se rom per com a ideologia ju rí
não devemos colocar a ação re dica para que a classe operária
volucionária como meio de refor possa, em um mesmo movimen
ma social, porque esse pretenso to, com preender cientificam ente
meio seria, muito simplesmente, as razões de sua situação como
um apelo à força, ao arbítrio — classe dom inada e explorada
logo, uma contradição. Coloco- pelo capital e se organizar inde
me assim o problema: reintrodu- pendentem ente da burguesia,
z ir na sociedade, p o r uma com para lutar pelo comunismo.
binação econômica, as riquezas É assim que, se os estatu
que dela foram e xtra íd a s p o r tos da Liga dos Justos, de 1838,
uma outra com binação econômi reivindicavam a “realização dos
ca. Noutros termos: na economia princípios contidos nos Direitos
política, voltar a teoria da Propri do Homem e do Cidadão”, já os
edade contra a Propriedade, de estatutos da Liga dos Comunis
modo a engendrar o que os se tas, de 1847, diziam que “o obje
nhores, s o c ia lis ta s alem ães, tivo da Liga é a derrocada da
chamam com unidade e que, por burguesia, a dominação do pro
agora, limitar-me-ei a denominar letariado, a supressão da antiga
liberdade, igualdade". sociedade burguesa fundada
44
nos antagonismos de classes e te? Por que a ruptura não se pro
a fundação de uma nova socie cessa definitivamente, por que o
dade sem classes e sem propri corte não é irreversível?
edade privada”. Para entenderm os esse
Assim, é o próprio objetivo ponto particularmente sensível da
da ação de massas que é subver teoria de Marx e da história de
tido: se antes o lema dos “Justos” sua formação intelectual — e de
era “todos os homens são ir resto decisiva, por todos os títu
mãos”, agora, o lema da Liga dos los — , será preciso localizar o
Comunistas pode traduzir o abis ponto de bloqueio que trava a ple
mo que o separa do anterior: na superação da problemática
“Proletários de todos os países, ideológica e a sua articulação
uni-vos!” conceituai no interior da obra.
Esse ponto de bloqueio
TEORIA DA ALIENAÇÃO OU pode ser identificado no primado
LUTA DE CLASSES que Marx concede, em algumas
de suas obras, ao desenvolvi
Vimos que, em A ideologia mento das forças produtivas so
alemã e nas outras obras do mes bre as relações de produção no
mo período, a nova concepção processo histórico. Ora, o privi-
que Marx começa a elaborar é legiamento das forças produtivas
contida pela presença de elemen obscurece o papel da luta de
tos do campo ideológico com o classes nas formações sociais e
qual ela teve de romper. Essa implica necessariamente o refor
presença não se extinguirá ja ço da figura do homem, do sujei
mais. Ela continuará a produzir os to, enquanto produtor de coisas,
seus efeitos para além das obras de objetos.
que marcam o fim da juventude Uma dupla condição é ne
teórica de Marx, alcançando até cessária, portanto, para que Marx
mesmo o momento de sua maior ultrapasse esse obstáculo à cons
elaboração científica — O capital. tituição do campo científico que
Como explicar essa vacila ele abre ao conhecimento: a pri
ção teórica de Marx? Quais as ra meira é a reelaboração conceitu
zões dessa persistente presença, ai da problemática das forças pro
desse limite intransponível que, dutivas, com a demonstração de
uma vez superado, deixado para que as forças produtivas não são
trás, logo reaparece mais à fren “exteriores” às relações de produ
45
ção, mas que, ao contrário, são portanto, às exigências do pro
as relações de produção que de cesso de valorização.
terminam o seu desenvolvimento. Enquanto Marx persistir
A segunda, é a crítica das formas em afirmar o primado das forças
jurídicas, da noção de homem — produtivas, a superação dessas
e, em decorrência, da noção de figuras ideológicas permanecerá
alienação — com a demonstra como um interdito com o qual ele
ção de que essas formas estão se defrontará em toda a sua obra,
necessariamente relacionadas ao consciente ou não de sua presen
processo de trocas mercantis, ça ou de seus efeitos.
46
G História e revolução
Em um primeiro momento,
no Manifesto, Marx procura des
crever a transição do feudalismo
para o capitalismo. O feudalis
mo, diz Marx, desagrega-se e
decompõe-se em virtude do in Frontispício da primeira edição do
cremento das relações comerci Manifesto do Partido Comunista,
publicado em Londres em fevereiro
ais, que provocam o desenvolvi de 1843. “Proletários de todos os países:
mento do elemento revolucioná uni-vos!"
47
organização corporativa da eco pondente, culminando, no século
nomia feudal não podia atender. XIX, com a sua soberania política
Por essa razão ela teve de ser exclusiva no Estado moderno, que
substituída pela manufatura, a se constitui em um “comitê para
qual, introduzindo a cooperação gerir os negócios comuns de toda
dos trabalhos no interior da ofici a classe burguesa”.
na, sob o regime assalariado, A burguesia cumpriu um
permite um grande aumento da papel revolucionário na história,
produtividade e o crescimento da na medida em que, ao destruir as
produção, em um período que se relações sociais feudais, atingiu
estende até o século XVIII. as representações religiosas e
Mas o processo de expan todo o imaginário feudal expres
são contínua do comércio e a ne so nos laços hierárquicos, no sen
cessidade crescente de novas timentalismo, no “entusiasmo ca
mercadorias, já não podem ser valheiresco” etc. Em seu lugar
satisfeitas pelo sistema manufa- deixou que dominasse apenas “o
tureiro. A introdução, no proces laço do frio interesse”, o “cálculo
so produtivo, de novas formas de egoísta” , fazendo da dignidade
energia e do sistema de máqui pessoal um “simples valor de tro
nas, entre os séculos XVIII e XIX, ca” e substituindo as liberdades
acarreta uma enorme transforma pela liberdade única de comércio.
ção no modo de produzir, sendo Em suma, “em lugar da explora
a manufatura substituída pela ção velada por ilusões religiosas
grande indústria. O advento da e políticas, a burguesia colocou
grande indústria permite a expan uma exploração aberta, cínica, di
são do comércio, em virtude de reta e brutal” .
ter ela criado o mercado mundial, Ao contrário do modo de
e esse desenvolvimento das tro produção feudal, o capitalismo é
cas, por sua vez, favorece a ex permanentemente atravessado
pansão da indústria. A burguesia por períodos de instabilidade e
pode aparecer, assim, como o de crise, em um processo de “re
produto dessas revoluções no volução contínua da produção”.
modo de produção e de troca. As relações sociais antigas e as
Cada um desses momen idéias a elas correspondentes
tos que a burguesia conheceu, em tão logo são dissolvidas e já as
sua evolução, vai ser acompanha relações e as idéias que as subs
do de uma etapa política corres tituem parecem envelhecidas an-
48
tes mesmo de se cristalizarem: de produção, o que veio a acarre
“tudo o que é sólido e estável se tar, em conseqüência, a centrali
volatiza, tudo o que é sagrado é zação política. Com a superação
profanado”. da fragmentação nacional, em
O capitalismo expande-se que regiões ou províncias conser
para todo o mundo, superando os vavam-se independentes, com in
limites nacionais, rompendo o iso teresses, leis, governos e tarifas
lamento e a estreiteza de regiões aduaneiras distintos, a burguesia
e países, destruindo as indústrias pode constituir “uma só nação,
locais, criando novas necessida com um só governo, uma só lei,
des, produzindo para atender não um só interesse nacional de clas
a um consumo localizado e limi se, uma só barreira alfandegária”.
tado, mas para atender a uma O capitalismo permitiu que
demanda mundial, estabelecen forças produtivas “colossais”, su
do, assim, “um intercâmbio uni periores a todas aquelas dos sé
versal, uma universal interdepen culos passados, despertassem
dência das nações”. do “seio do trabalho social” .
Com o desenvolvim ento O processo de constituição
das forças produtivas capitalistas, do modo de produção capitalista
que permitem a produção de mer pode então ser entendido assim:
cadorias a um baixo preço, a bur de dentro da sociedade feudal
guesia derrota as nações mais são gerados os meios de produ
“atrasadas” , obrigando todas as ção e troca da burguesia. “Em um
nações a adotarem, “sob pena de certo grau do desenvolvimento
morte", o modo de produção ca desses meios de produção e tro
pitalista, criando “um mundo à ca” , o “regime feudal de proprie
sua imagem e semelhança”. dade” deixou de “corresponder às
Igualm ente, prossegue forças produtivas em pleno de
Marx no Manifesto, a burguesia senvolvimento”, transformando-
subjugou o campo à cidade, em se em um obstáculo ao incremen
um processo de intensa urbaniza to da produção. A remoção desse
ção, retirando grandes contingen obstáculo, isto é, a destruição do
tes populacionais do “embruteci modo de produção feudal, permi
mento da vida rural” . Além de tiu a organização da produção e
concentrar a população, a bur da troca em outras bases, corres
guesia também concentrou a pro pondentes ao interesse de classe
priedade e centralizou os meios da burguesia.
49
DEMASIADA CIVILIZAÇÃO... parece tão absurda e paradoxal?
Ela resulta de as forças produti
Um processo semelhante vas, tendo se tornado muito po
ao que acabamos de descrever é derosas, encontrarem-se obsta
o que ocorre, pensa Marx, em re culizadas pelas relações de pro
lação ao próprio capitalismo. A priedade burguesas (como diz
sociedade burguesa parece o Marx), de tal sorte que, quando
“feiticeiro que já não pode contro conseguem romper essas barrei
lar as potências infernais que pôs ras, “precipitam na desordem a
em movimento com suas pala sociedade inteira e ameaçam a
vras mágicas”. As forças produti existência da propriedade bur
vas capitalistas já se encontram, guesa”. O capitalismo não é mais
há tempos, obstaculizadas em capaz de conter as riquezas cria
seu d ese n vo lvim e n to , de tal das dentro dele próprio e, assim,
modo que “a história da indústria para sair da crise, a burguesia vê-
e do comércio” aparece como a se constrangida a destruir as for
“história da revolta das forças pro ças produtivas em grande quanti
dutivas modernas contra as mo dade e a procurar novos merca
dernas relações de produção e de dos enquanto explora mais inten
propriedade”. samente os antigos. A conseqüên
Uma evidência disso é a cia disso é a irrupção de crises
ocorrência periódica das crises ainda mais graves e uma maior
com erciais, destruindo não só dificuldade para evitá-las. É as
enormes quantidades de merca sim que “as armas que a burgue
dorias, mas igualmente parte das sia utilizou para abater o feudalis
próprias forças produtivas. A “epi mo” agora “voltam-se contra a
demia” da superprodução conduz própria burguesia”.
a sociedade burguesa a um esta
do de “barbárie momentânea”, OS SOLDADOS DA
com a indústria e o comércio apa INDÚSTRIA
rentemente destruídos. E isso
ocorre, diz Marx, justamente por A burguesia, no entanto,
que “a sociedade possui demasi não criou apenas as armas que
ada civilização, demasiados mei deverão destruí-la; criou igual
os de subsistência, demasiada in mente aqueles que vão utilizar
dústria, demasiado com ércio” . essas armas contra ela mesma: a
Como explicar essa situação que classe operária, o proletariado.
50
O desenvolvimento do ca sa verdadeira organização militar,
pitalismo acarreta necessaria os operários são como “soldados
mente o desenvolvimento do pro da indústria [...] sob a vigilância de
letariado. Quem são esses operá uma hierarquia completa de ofici
rios modernos? Para Marx, são ais e suboficiais”. O proletariado
aqueles indivíduos que necessi converte-se, assim, em “escravo”
tam “se vender peça por peça” ao da burguesia, do Estado burguês,
capitalista, como a uma mercado da máquina, do contramestre e do
ria qualquer, “um artigo de comér dono da fábrica.
cio como qualquer outro”. Ao mesmo tempo, vai ocor
A introdução do sistema de rendo um processo de “proletari-
máquinas no processo de produ zação” de outras classes e fra
ção transforma o trabalhador direto ções de classe, seja porque não
em um simples “apêndice da má conseguem suportar a concorrên
quina”, isto é, dele só se exige que cia que a grande indústria opõe à
cumpra as funções manuais ele pequena produção, seja porque
mentares e repetitivas do processo os novos métodos de produção
de trabalho, tendo-lhe sido “expro não exigem mais a habilidade e o
priado” todo o conhecimento técni- conhecimento técnico investidos
co-científico do processo de fabri na atividade artesanal.
cação do produto. Ao aumento do
“caráter enfadonho” do trabalho OS COVEIROS DA
corresponde a degradação dos sa BURGUESIA
lários, em virtude da redução do
“custo do operário” quase que so Os operários entretém uma
mente aos meios de manutenção luta imediata e permanente con
e reprodução de sua vida. tra a classe burguesa. Essa luta
Ademais, o maquinism o atravessa várias etapas em seu
também acarreta o incremento do desenvolvimento. Em um primei
trabalho, seja com o prolongamen ro momento, a luta envolve ope
to da jornada de trabalho, seja rários isolados, depois, operários
com o aumento da sua intensida de uma mesma fábrica, até envol
de. No interior da fábrica, os tra ver os operários de todo um ramo
balhadores são submetidos ao industrial, de uma mesma locali
despotismo do capitalista e de dade. Inicialmente, os trabalhado
seus prepostos, como se estives res visam também destruir os pró
sem em um quartel industrial. Nes prios meios de produção e as
51
mercadorias que lhes fazem con centração da massa proletária, ao
corrência, almejando retornar à mesmo tempo em que seu salá
condição em que viviam como ar rio e suas condições de vida tor
tesãos na sociedade feudal. nam-se cada vez mais precários.
Não constituem ainda uma A igualização do trabalho na fá
massa concentrada, de tal sorte brica tem como conseqüência a
que, quando alcançam algum igualdade das condições de vida
grau de unidade, esta não decor dos trabalhadores. Cada vez
re de seus próprios esforços e ini mais conscientes de sua força, os
ciativa, mas é o resultado da ne operários passam a organizar-se
cessidade que a burguesia tem em associações, na defesa dos
de “pôr em movimento” o proleta seus interesses comuns mais
riado na luta que ela trava contra imediatos, notadamente na defe
os seus próprios inimigos feudais sa de seus salários, e também
e outras frações da burguesia e para poderem enfrentar a reação
da pequena burguesia. burguesa. Muitas vezes a luta ad
O desenvolvimento da in quire um caráter de motim, com a
dústria leva ao aumento e à con classe operária às vezes vencen-
do o enfrentamento, mas esse re talismo. A sua participação even
sultado constitui-se em um triunfo tual na revolução implica o aban
efêmero. O que importa, a rigor, é dono de sua posição originária de
que esses episódios contribuem, classe e a adoção da posição de
cada vez mais, para estabelecer classe do proletariado.
a unidade dos operários, e esta, A classe operária é a única
mesmo sendo por vezes prejudi classe que não é ameaçada de
cada pela concorrência entre os perecer em virtude do desenvol
próprios trabalhadores, é sempre vimento da grande indústria, por
reposta em um nível mais amplo, que ela é o seu “resultado mais
mais sólido, mais conseqüente. É autêntico” e suas condições de
assim que os operários podem vida já são a negação daquelas
obter determinadas conquistas le da sociedade burguesa.
gais, como a limitação da jornada Um traço de distinção sepa
de trabalho, beneficiando-se das ra a luta do proletariado e o seu
divisões no interior da burguesia. objetivo final de todas as outras na
O d ese n volvim e nto da história. Ao passo que as classes
classe operária beneficia-se tam que anteriormente tomaram o po
bém das lutas que a burguesia der imediatamente submeteram “a
trava, seja para consolidar o seu sociedade às suas condições de
domínio sobre a aristocracia, seja apropriação”, a classe operária só
para enfrentar outras frações bur pode exercer o poder e “apoderar-
guesas e as burguesias estran se das forças produtivas” destru
geiras, pois ela necessita do con indo todas as condições de exis
curso dos trabalhadores para le tência da propriedade privada dos
var a cabo esse enfrentamento e, meios de produção.
assim, “fornece aos proletários os Assim, pela primeira vez
elementos de sua própria educa na história, a apropriação do po
ção política, isto é, armas contra der não se dá no curso de um
ela própria”. movimento dirigido por uma mino
O proletariado constitui a ria e para o seu exclusivo benefí
única classe efetivamente revolu cio. A revolução do proletariado
cionária. As outras classes rea constitui-se no “movimento inde
gem contra a burguesia tão-so pendente da imensa maioria em
mente porque são ameaçadas proveito da imensa maioria”.
em sua existência enquanto clas É o próprio capitalismo que
se pelo desenvolvimento do capi- vai criar as condições para a re
53
volução do proletariado. A contí Em um texto publicado em
nua expansão da grande indústria 1850, portanto do mesmo perío
vai produzir a concentração e uni do do Manifesto, a Mensagem do
dade da classe operária, permitin Comitê Central à Liga dos Comu
do que ela ultrapasse o seu isola nistas, Marx descreve as condi
mento e supere a concorrência ções fundam entais da luta de
entre os próprios trabalhadores. classe operária, extraindo as li
Assim, o capital forja, como resul ções das revoluções de 1848 na
tado de suas contradições, a for Europa.
ça política que vai destruí-lo. Observemos, inicialmente,
Como diz Marx, “o desenvolvi que o momento no qual Marx es
mento da grande indústria soca creve é ainda marcado pela exis
va o terreno em que a burguesia tência de relações feudais rema
assentou o seu regime de produ nescentes, o que explica o papel
ção e de apropriação dos produ que a burguesia e a pequena bur
tos. A burguesia produz, sobretu guesia jogam nos eventos revolu
do, os seus próprios coveiros. cionários. Isso, no entanto, não
Sua queda e a vitória do proletari significa que a análise de Marx
ado são igualmente inevitáveis”. seja limitada por esta conjuntura
particular e historicamente condi
O GRITO DE GUERRA DA cionada por ela. O que Marx ope
CLASSE OPERÁRIA ra, na verdade, é a elaboração
dos conceitos que permitem pen
O processo revolucionário sar as condições de possibilidade
objetivando a conquista do poder da revolução proletária. Desse
político pelo proletariado é pensa modo, mesmo se considerarmos
do por Marx como um processo vi que a burguesia e a pequena bur
olento e ininterrupto. A violência, o guesia já esgotaram todas as
recurso às armas, aparece para suas potencialidades revolucio
Marx como uma necessidade im nárias, em virtude da completa
posta pela violência com a qual a extinção das relações feudais,
burguesia exerce a sua domina ainda assim, a análise que Marx
ção. Como a burguesia dispõe de empreende conserva a sua vali
forças armadas, a luta contra ela dade, pois ela é realizada tendo
exige que o proletariado também por base o conceito de aliança de
se arme, sem o que a iniciativa re classe, e não uma determinada
volucionária estaria comprometida. relação política entre a burguesia,
54
a pequena burguesia e o proleta A revolução, assim, para a
riado em uma determinada con classe operária, deve se tornar
juntura histórica. permanente, isto é, não deve se
Se o processo revolucio deter ante as etapas democráti
nário implica determinadas alian cas do processo em curso, que se
ças com as classes não-popula- limitam a realizar reformas mais
res — notadamente certos seto ou menos amplas mas que con
res da burguesia, da pequena servam a dominação do capital.
burguesia e das classes mé Para os operários, “não se trata
dias — , a condição absolutamen de reformar a propriedade priva
te necessária para que o proleta da”, diz Marx, “mas de aboli-la;
riado atinja os seus objetivos, não se trata de atenuar os anta
como diz Marx, é a de que este gonismos de classe, mas de abo
conserve a sua independência lir as classes; não se trata de me
de classe. A luta contra um inimi lhorar a sociedade existente, mas
go comum não exige “nenhuma de estabelecer uma nova”.
união especial". Isso significa Isso implica, em decorrên
que os trabalhadores devem ali cia, a recusa da parte do proleta
ar-se com outros setores na luta riado em estabelecer uma unida
contra o mesmo inimigo, mas, de com os setores democratas
quando esses setores não-prole- que lhe tirasse toda a sua inde
tários tentarem consolidar a nova pendência de classe, tornando-o
situação em seu benefício, a um “simples apêndice da demo
classe operária deve voltar-se cracia burguesa oficial”. O que
contra eles. Os democratas pe- interessa aos trabalhadores é
queno-burgueses limitam a sua manter uma organização inde
participação revolucionária à ob pendente e avessa à influência
tenção de vantagens em relação burguesa, razão pela qual uma
ao domínio do grande capital que tal organização deve ter uma
pesa sobre eles. Por isso que existência legal e também secre
rem interromper a revolução “o ta, isto é, ilegal, fora do controle
mais rapidamente possível” , uma dos dispositivos institucionais da
vez que tenham alcançado as democracia burguesa.
suas metas, ao passo que ao Uma vez cumpridas essas
proletariado interessa prosseguir condições, a classe operária es
a revolução até o seu final, até a tará melhor preparada para en
supressão do domínio burguês. frentar a reação contra si, por par
55
te de seus antigos aliados, tão A condição para que a
logo um novo governo se instale. classe operária possa enfrentar
Por isso ela deve manter a agita os seus antigos aliados, “cuja trai
ção revolucionária, evitando ser ção aos operários começará des
reprimida pelas forças burguesas. de os primeiros momentos da vi
Deve, também, aceitar e mesmo tória”, não se limita à necessária
dirigir os atos de “vingança popu e fundamental independência e
lar” contra “indivíduos odiados ou centralização das organizações
contra edifícios públicos que o operárias, sob o comando de um
povo só possa relem brar com órgão dirigente central, mas en
ódio”. As suas exigências devem volve também a organização ar
ser apresentadas de modo inde mada dos trabalhadores: “Dever-
pendente e ao mesmo tempo que se-á armar, imediatamente, todo
as dos democratas burgueses, e o proletariado, com fuzis, carabi
a estes devem ser exigidas ga nas, canhões e munições” , diz
rantias para os operários e, se Marx. Uma guarda proletária ar
necessário, estas devem ser obti mada, militarizada — “com chefes
das pela força. Os operários ne e um estado-maior” — estará sob
cessitam manter uma postura de as ordens de um conselho operá
desconfiança em relação ao novo rio revolucionário. Do mesmo
governo, constituindo desde logo modo, nas empresas estatais, os
um poder paralelo: “Ao lado dos operários deverão organizar-se
novos governos oficiais, os ope em unidades armadas. Em ne
rários devem constituir imediata nhum caso, sob nenhuma cir
mente governos operários revolu cunstância, deverá haver o desar
cionários, seja na forma de comi mamento do proletariado, ao qual
tês ou de conselhos municipais, este oporá, se for necessário, a
seja na forma de clubes operá “força das armas”.
rios ou de comitês operários, de Assim, o segredo da vitória
tal modo que os governos demo- da revolução proletária pode ser
crático-burgueses não só percam enunciado nestas exigências fun
imediatamente o apoio dos ope damentais: tomar consciência dos
rários, mas também se vejam interesses de classe proletários,
desde o primeiro momento fisca adotar formas de organização
lizados e ameaçados por autori operárias armadas e independen
dades atrás das quais se encon tes da burguesia, não se deixar
tre a massa inteira dos operários”. envolver pelas ilusões democráti
cas, e utilizar a violência armada trabalhadores devam privilegiar
contra a burguesia em um proces as formas de luta legais. O que
so revolucionário cujo “grito de seria o duplo poder senão a ne
guerra” do proletariado deverá ser gação da democracia burguesa,
“a revolução permanente”. com o proletariado criando, sem
Marx descreve, portanto, a devida previsão legal, um apa
as condições necessárias para rato de poder paralelo, armado,
que a classe operária possa con e exercendo a autoridade popu
duzir a sua luta contra a domina lar em seus domínios?
ção burguesa, sem se deixar des
viar do objetivo da tomada do po REVOLUÇÃO E
der pelo jogo político da democra “ DESPOTISMO”
cia burguesa. Observemos, so
bretudo, que Marx não considera Ao tratar da revolução pro
que a democracia burguesa seja letária e das medidas que a ela
um limite intransponível, ao con devem se seguir, no Manifesto,
trário, ele funda a luta de classe Marx identifica o comunismo com
proletária fora do campo da lega a supressão da propriedade pri
lidade democrática burguesa, a vada, com a estatização dos mei
luta legal constituindo-se em um os de produção e com o desen
momento tático do enfrentamen- volvimento das forças produtivas.
to de classe. Isso transparece nas passagens
Ao mostrar que a classe em que afirma: “o que caracteriza
operária precisa organizar-se na o comunismo é a abolição da pro
forma de um duplo poder, consti priedade privada”; “o proletariado
tuindo órgãos paralelos à institu- [centralizará] todos os instrumen
cionalidade burguesa, Marx cla tos de produção nas mãos do Es
ramente recusa encerrar a luta tado [...] e [aumentará] o mais ra
proletária nos marcos da demo pidamente possível a massa das
cracia, ao contrário, a sua con forças produtivas”.
cepção implica, necessariamen Ora, para que isso possa
te, a violação da legalidade de ocorrer, é preciso operar uma “in
mocrática, a recusa ao Estado tervenção despótica no direito de
de direito. Muito embora admita propriedade”, assim como nas re
que a luta também possa se de lações de produção. A referência
senvolver no campo da legalida que Marx faz à intervenção nas
de, Marx não considera que os relações de produção indicaria
57
ca, cuja forma é o contrato, de condição de sujeito de direito que
senvolvida legalmente ou não, é ela celebra contratos. Ora, se os
uma relação de vontade, em que indivíduos relacionam-se entre si
se reflete a relação econômica.” como sujeitos de direito, isto é, se
Esse reconhecimento recí eles negociam na base de seu li
proco significa o reconhecimento vre consentimento, se eles dis
de um estatuto comum a todos os põem do que é seu, então, esses
agentes da troca, que se reves indivíduos devem necessariamen
tem da figura do sujeito de direito. te ser livres e iguais uns em rela
É em virtude desse estatuto jurí ção aos outros.
dico que o homem pode exercer Assim, na esfera da circula
a sua capacidade na prática de ção de mercadorias, a compra de
atos jurídicos, como a compra e força de trabalho do operário apa
venda, que pressupõe, como con rece como a realização da liberda
dição de sua validade, a livre dis de e da igualdade: o trabalhador
posição da vontade das partes. não é coagido a vender a sua for
Vimos também que a rela ça de trabalho, mas ele a vende
ção de capital é uma relação entre por um ato de sua livre vontade e
possuidores de mercadorias: o ca em condições de plena igualdade
pitalista, proprietário das condi face ao capitalista, ambos são pro
ções do trabalho, e o operário, pro prietários que dispõem do que é
prietário de sua força de trabalho. seu, e o operário recebe, em con
Se é assim, então, a relação de trapartida, um valor eqüivalente
capital envolve uma operação jurí por sua mercadoria. Marx pode,
dica de compra e venda mediante por isso, dizer que a base real da
a qual o trabalhador vende ao ca igualdade e da liberdade é o pro
pitalista, por um determinado perí cesso do valor de troca.
odo, a utilização de sua força de Podemos concluir, portan
trabalho. Para que uma pessoa to, que o direito constitui o ho
possa dispor de sua própria força mem enquanto proprietário que
de trabalho como de sua merca leva a si mesmo — a sua força de
doria, é necessário que ela tenha trabalho — ao mercado como ob
capacidade jurídica para celebrar jeto de troca.
esse acordo de vontades pelo qual Esse é o sentido profundo
ela transfere essa mercadoria re da liberdade e da igualdade bur
cebendo, em contrapartida, um guesas que a análise de Marx
valor equivalente. É, portanto, na permite desvendar, demonstran
74
do que essas categorias operam De fato, nesse trabalho,
para que o trabalhador seja ex Marx mostra que a forma de Es
plorado no processo de produção tado monárquica corresponde ao
capitalista e que, portanto, elas interesse de uma fração da clas
não permitem a realização efeti se dominante, ao passo que a
va da liberdade e da igualdade. forma de Estado constitucional-
republicana (democrática) cor
A CRÍTICA DA DEMOCRACIA responde ao interesse do con
BURGUESA junto da classe burguesa, poden
do, assim, a totalidade das fra
Nos capítulos precedentes ções em que se divide a burgue
já apreendemos o caráter tático sia exercer em comum a sua do
que a d e m o cra cia tem para minação de classe. Como diz
Marx. Particularmente na “Men Marx, “o interesse geral de clas
sagem do Comitê Central à Liga se da burguesia pode subordinar
dos Comunistas” , nenhuma con tanto a pretensão de suas fra
cessão é feita ao programa de ções como de todas as outras
mocrático: os trabalhadores de classes” . A forma democrática
vem, diz Marx, esgotar todas as republicana permite que a domi
possibilidades de utilização da nação da burguesia apareça não
democracia ao mesmo tempo em como a expressão de um poder
que a ultrapassam, com o recur pessoal exercido por um rei,
so direto a medidas e iniciativas mas, ao contrário, como a ex
ilegais, com o emprego da vio pressão de uma “vontade geral”
lência revolucionária. manifestada em um parlamento
Em outro texto, As lutas de eleito pelo sufrágio universal.
classes na França de 1848 a Nesse sentido, a democra
1850, a democracia aparece es cia interessa aos trabalhadores
tritamente vinculada com os inte na medida exata em que propicia
resses da classe burguesa, não o enfrentamento mais aberto en
sendo atribuída à dem ocracia tre as classes, favorecendo a ma
qualquer caráter de universalida turação da classe operária e intro
de nem sendo aventada a possi duzindo no interior da classe do
bilidade de o movimento operário minante um elemento de inquie
“dissolver-se” no interior de suas tação e de instabilidade.
instituições e no âmbito da legali Em um texto do mesmo
dade que lhe é própria. período, O 18 brumário de Luís
uma mudança de problemática, mesmo se permanece ainda su
com a compreensão de que, mal bordinada, no dispositivo concei
grado a expressão imprecisa e in tuai marxiano, à problemática das
suficiente (“intervenção”), o as forças produtivas.
pecto principal da transição é a Do mesmo modo, o silên
transformação revolucionária das cio de Marx sobre o caráter do
relações de produção, e não a Estado na transição socialista é
expropriação da propriedade pri revelador do grau insuficiente de
vada? Quando Marx prossegue sua elaboração teórica. Será pre
enumerando as medidas que cor ciso esperar que Marx produza a
responderiam a essa intervenção, análise científica da exploração
vemos, no entanto, que elas se capitalista, de que o Manifesto é,
referem, no fundamental, à esta- tantas vezes, a antecipação, será
tização dos meios de produção. preciso esperar as lutas da clas
Porém, logo a seguir, Marx se operária francesa, para que
afirma a necessidade da supres Marx possa estabelecer, em seus
são violenta das relações de pro princípios, uma concepção revo
dução como condição mesma da lucionária da transição para o co
supressão da sociedade de clas munismo. Esses resultados a que
ses. Essa ambigüidade do texto Marx chegará serão expostos no-
demonstra que uma nova com tadamente, como veremos nos
preensão do problema da transi capítulos 5 e 8, em O capital e em
ção com eça a m anifestar-se, A guerra civil na França.
58
A crítica da sociedade burguesa
59
mos indagar sobre
a sua origem e tam
bém sobre a sua
natureza: o capital é
riqueza acumulada,
uma som a de d i
nheiro, o capital é
uma coisa?
Um negro é um
negro
O capital não
é uma coisa... Marx
reiteradamente re
torna a esse ponto.
A grande sala de leitura da biblioteca do Museu Britânico, Os e con o m ista s,
em Londres, onde Marx pesquisou para redigir O capital. diz Marx, definem o
capital como meio
diz Marx: “nosso homem ganhou de produção, como trabalho acu
10 como vendedor para perder 10 m ulado que se presta a uma
como comprador. [...] As denomi nova produção. Mas, diz ele, em
nações monetárias, isto é, os pre Trabalho assalariado e capitat. “é
ços das mercadorias, iriam inchar, tão impossível passar diretamen
mas as suas relações de valor fi te do trabalho ao capital, como
cariam inalteradas... A formação passar diretamente das diversas
de mais-valia e daí a transforma raças humanas ao banqueiro, ou
ção de dinheiro em capital não da natureza à máquina a vapor”.
pode ser, portanto, explicada por O capital não se confunde com
venderem os vendedores as mer os meios de produção, com as
cadoria acima do seu valor, nem condições objetivas da produção.
por os compradores as compra Os meios de produção existem
rem abaixo do seu valor” . em todas as sociedades, mas
Se o capital não pode, as nem por isso todas elas conhe
sim, originar-se, pura e simples cem o capital. “O que é um es
mente, da circulação das merca cravo negro? Um homem de raça
dorias, isso significa que deve- negra. Tanto faz uma resposta
60
como a outra. Um negro é um ne sadas, como também seria ele
gro. Em determinadas circuns um elemento do qual não se po
tâncias, se converte em escravo. deria prescindir em qualquer ou
Uma máquina de fiar algodão é tra sociedade futura. Ora, diz
uma máquina de fiar algodão. Só Marx, o que é preciso levar em
em determinadas circunstâncias conta é a determinação formal,
se converte em capital. Separa “as determinações específicas
da do contexto, não é capital, tal que fazem do capital o elemento
como o ouro não é de per s i di de uma etapa histórica, particu
nheiro, nem o açúcar é o preço larmente desenvolvida, da produ
do açúcar.” ção humana” isto é, o modo de
Nessa passagem , Marx produção capitalista. De tal sorte
mostra claramente que os meios que, “se bem que todo capital é
de produção não são capital por trabalho objetivado que serve
sua natureza, que é necessário como meio para uma nova produ
que determ inadas co ndições ção, nem todo trabalho objetiva
ocorram para que os meios de do que serve para uma nova pro
produção tornem-se capital. O dução é capital”.
capital não pode, assim, ser en O capital é uma relação
tendido como uma coisa que social, uma relação de produção
cumpre determinada função no burguesa, uma relação de produ
processo produtivo adequada ção da sociedade burguesa,
mente à sua natureza de coisa. acrescenta Marx, ressaltando
Do mesmo modo que o ouro não que é precisamente “o caráter
se torna, por natureza, dinheiro, social determinado o que conver
embora possa, sob determinadas te em capital os produtos que
condições, revestir-se dessa for servem para uma nova produ
ma, assim também os meios de ção”. Se o capital é uma relação
produção não são, por natureza, social, isso significa que os mei
capital. Se o capitai pudesse ser os de produção só se convertem
assim entendido, ele seria dota em capital quando são combina
do de uma natureza eterna, ele dos com a força de trabalho as
seria um elemento a-histórico, salariada, portanto só há capital
necessário para que toda e qual quando o proprietário das condi
quer produção seja realizada, e ções materiais da produção en
que não só teria existido, portan contra disponível no mercado a
to, em todas as sociedades pas força de trabalho e a consome no
61
processo de produção. É justa dução encontra no mercado, é a
mente a relação entre essas força de trabalho.
duas classes, a burguesia e o Para que a força de traba
operariado, mediada pelos mei lho possa ser oferecida no merca
os de trabalho, que constitui a do, é necessário que ocorra um
relação de capital ou capitalismo. conjunto de condições. Em primei
ro lugar, o possuidor da força de
Solto e solteiro trabalho deve dispor livremente
dela, negociando ele próprio, no
Voltemos, então, ao nosso mercado, a mercadoria de que ele
problema. O capital, dizíamos, é o proprietário, em condições de
não pode se originar da esfera da rigorosa igualdade com o compra
circulação mercantil ao mesmo dor de sua capacidade de traba
tempo em que deve dela se origi lho. Esta, ademais, só pode ser
nar. O possuidor do dinheiro — vendida por um prazo determina
capitalista larvar, como diz Marx do, pois se fosse vendida por tem
em O capital — “tem de comprar po indeterminado, para sempre, o
as mercadorias por seu valor, vendedor da força de trabalho se
vendê-las por seu valor, e, mes converteria em um escravo. Em
mo assim, extrair, no fina! do pro segundo lugar, é necessário que
cesso, mais valor do que lançou o possuidor da força de trabalho
nele”. Ora, se o capital, como vi não possua meios de produção
mos, é uma relação social, já po que lhe permitam produzir e ven
demos começar a decifrar esse der m ercadorias, pois, nesse
enigma. Para que o capital se caso, não teria ele de vender a sua
constitua é necessário que o pos própria capacidade de trabalho.
suidor do dinheiro encontre no Assim, como conclui Marx,
mercado uma mercadoria que se para que o dinheiro se transforme
revista de uma “qualidade” espe em capital, é necessário que o
cífica, de que nenhuma outra possuidor do dinheiro encontre no
mercadoria é dotada, que tivesse mercado o trabalhador livre em
a peculiaridade de o seu valor de um duplo sentido: no sentido de
uso ser fonte de valor, portanto, que ele dispõe, como pessoa li
que o seu consumo fosse objeti- vre, de sua força de trabalho, e no
vação de trabalho, criação de va sentido de que ele não possui ou
lor. Essa mercadoria o possuidor tras mercadorias para vender,
das condições objetivas da pro “solto e solteiro, livre de todas as
62
coisas necessárias à realização mentos que compõem a relação
de sua força de trabalho”. de capital, ela o é na medida em
Para que a relação de capi que, como já começamos a ver,
tal se constitua, portanto, é neces a sua utilização pelo capitalista
sário que se estabeleça um víncu permite produzir um valor supe
lo entre, de um lado, o possuidor rior àquele por ele pago ao ad
da riqueza material, do dinheiro, quiri-la. Examinemos, então, o
dos meios de produção e, de ou que vem a ser essa mercadoria,
tro, o possuidor da força de traba a força de trabalho.
lho. Essa relação, diz Marx, não é Como todas as outras mer
parte da história natural nem é co cadorias, também a mercadoria
mum a todas as épocas históri força de trabalho é dotada de va
cas. Para que surja o capitalismo lor, e o seu valor, igualmente
não é suficiente a existência de como qualquer mercadoria, é de
uma esfera desenvolvida da circu terminado pelo tempo de trabalho
lação mercantil e monetária, ou necessário à sua produção, isto
seja, as “condições históricas de é, à sua manutenção e reprodu
existência (do capital) de modo al ção. Isso significa que o valor da
gum estão presentes” na esfera força de trabalho vai correspon
da circulação. O capital só surge der à soma de todos os meios
quando o possuidor do dinheiro necessários para garantir a sub
encontra o possuidor da força de sistência do trabalhador, isto é,
trabalho, “esta é uma condição para repor a energia física e men
histórica que encerra uma história tal gasta no processo produtivo,
mundial. O capital anuncia, por assim como a dos filhos desse
tanto, de antemão, uma época do trabalhador, garantindo a reposi
processo de produção social”. E ção da força de trabalho.
Marx pode acrescentar que o que
“caracteriza” o capitalismo é jus Esperando o curtume
tamente que a “força de trabalho
assume, para o próprio trabalha Pois bem, já vimos que o
dor, a forma de uma mercadoria possuidor do dinheiro encontra no
que pertence a ele”, e que o seu mercado uma mercadoria especi
trabalho “assume a forma de tra al, que tem a peculiaridade de cri
balho assalariado”. ar um valor superior ao seu pró
Se a mercadoria “força de prio valor, mas, esse valor de uso
trabalho” é, assim, um dos ele da força de trabalho que é adqui-
63
rida no mercado só se realiza determinações jurídicas da liber
quando consumida. Ora, o consu dade e da igualdade permitem
mo da força de trabalho só pode que essa relação de capital apa
se dar, como o consumo de qual reça como o resultado de um livre
quer mercadoria, fora da esfera acordo de vontades, celebrado
da circulação. Assim, devemos, entre pessoas livres e iguais, sob
seguindo Marx, abandonar essa a base da troca de equivalentes.
“ ruidosa esfera” da superfície, Mas, ao sair dessa “esfera
“acessível a todos os olhos”, para ruidosa”, os seus personagens já
acompanhar o possuidor de di se alteram, como Marx ressalta:
nheiro e o possuidor da força de “O antigo possuidor de dinheiro
trabalho ao “local oculto da pro marcha adiante como capitalista,
dução”. É nessa esfera da produ segue-o o possuidor de força de
ção que o consumo da força de trabalho como seu trabalhador;
trabalho será ao mesmo tempo um, cheio de importância, sorriso
produção de mercadorias e pro satisfeito e ávido por negócios; o
dução de mais-valia, em suma, outro, tímido, contrafeito, como
produção de capital. alguém que levou a sua própria
Podemos entender agora pele para o mercado e agora não
por que Marx dizia que a produ tem nada mais a esperar, exceto
ção de capital deveria e não de o — curtume”.
veria se dar na esfera da circula
ção. É na esfera da circulação PROCESSO DE TRABALHO E
que o capitalista “virtual” encontra PROCESSO DE VALORIZAÇÃO
a força de trabalho sem a qual
não é possível que a relação de No modo de produção ca
capital, que o capitalism o, se pitalista o processo de trabalho é
constitua. Por outro lado, a produ imediatamente também proces
ção do capital, da mais-valia, não so de valorização, não é possí
pode se dar na circulação, mas vel separá-los, distingui-los. Isso
sim na esfera da produção, onde significa que a produção de ob
a força de trabalho é utilizada jetos em um determinado pro
pelo capitalista. cesso de trabalho é igualmente
A e sfe ra da circu la çã o produção de mais-valia e, mais
pode então aparecer como “um importante ainda, é essa produ
verdadeiro éden dos direitos na ção de mais-valia o único objeti
turais dos homens”, no qual as vo do capitalista.
64
No entanto, para efeito de dução em sentido estrito, a tal
análise, vamos considerar, como ponto que considera que “não é
Marx o faz, em O capital, separa o que se faz, mas como, com
damente os dois processos, o que meios de trabalho se faz,
processo de trabalho e o proces [...] o que distingue as épocas
so de valorização. econômicas” . Isso nos permite
precisar seu conceito de re la
O processo de trabalho ções de produção capitalistas:
estas não são relações entre
O processo de trabalho é “homens” mas entre classes e
uma atividade que combina um entre estas e os meios de traba
determinado número de elemen lho. Lem brem os tão-som ente
tos: atividade orientada a um que, para que a relação de capi
fim, objeto do trabalho, meios de tal pudesse se constituir foi ne
trabalho: cessário que o trabalhador fosse
a) a atividade orientada a desprovido dos meios de traba
um fim é o trabalho que o produ lho, levando-o a vender a sua
tor direto realiza para transformar força de trabalho.
uma determinada matéria em um A ssim , acom panhando
objeto útil; Marx em O capital, podemos defi
b) o o b je to do tra b a lh o nir o processo de trabalho como
pode ser dividido em: matéria não sendo uma atividade na qual o
trabalhada, especialmente a terra trabalhador, utilizando os meios
e matéria que já sofreu algum de trabalho, opera uma transfor
processamento, a matéria-prima; mação do objeto de trabalho des
c) os m eios de trabalho, de o início pretendida. O seu re
em sentido estrito, compreendem sultado é a produção de valores
tudo aquilo que o trabalhador in de uso, bens que satisfazem ne
terpõe entre ele e o objeto de tra cessidades determinadas.
balho, servindo-lhe como meio
para transformar este último; já os O processo de valorização
meios de trabalho em um sentido
mais amplo compreendem tam Quando o capitalista com
bém todas as condições objetivas pra a força de trabalho, ele com
que tornam possível a produção. pra a prerrogativa de utilizá-la
Marx dá uma enorme im durante um certo período de
portância para os meios de pro tempo. Utilizando essa força de
65
trabalho, o capitalista incorpora mas valor e não só valor, mas
“o próprio trabalho, como fer também mais-valia”.
mento vivo, aos elementos mor No modo de produção ca
tos constitutivos do produto, que pitalista, assim, o processo de
lhe pertencem igualm ente” . O trabalho está imediatamente de
processo de trabalho para o ca terminado pelo processo de va
pitalista é somente essa utiliza lorização, ou seja, por um pro
ção da força de trabalho, o con cesso cuja finalidade não é a
sumo dessa mercadoria que ele produção de valores de uso, mas
adquiriu no mercado e que ele a produção de m ais-valia. De
consome acrescentando a ela os modo que, do ponto de vista do
meios de produção. De modo processo de valorização, não é o
que “o processo de trabalho é operário quem utiliza os meios
um processo entre coisas que o de produção, mas, ao contrário,
capitalista comprou, entre coisas são os meios de produção que
que lhe pertencem”. utilizam o operário, ou seja, dado
O capitalista não fabrica que o objetivo do processo de
um produto como um fim em si trabalho é a produção de valor,
mesmo; ele não tem por objetivo de mais-valia, a força de traba
produzir bens que possam satis lho aparece apenas como um
fazer as necessidades das pes meio pelo qual ocorre a valoriza
soas. Valores de uso são produ ção de valores já existentes, dos
zidos apenas e na exata medida meios de produção, que utilizam
em que sejam “substrato materi essa força de trabalho para con
al, portadores do valor de troca". servar e aumentar o valor neles
O que o capitalista pretende é fa contido. É, assim, justam ente
bricar um valor de uso que pos pela absorção do trabalho vivo,
sa ser trocado, um produto desti que o trabalho objetivo — os
nado à venda, uma mercadoria meios de produção — converte-
e, além disso, uma mercadoria se em valor que se valoriza, isto
cujo valor exceda o valor dos é, em capital.
meios de produção e da força de Enfim, podemos dizer que
trabalho empregados para pro- o processo de trabalho é meio,
duzi-la. Em suma, diz Marx, o ao passo que o processo de va
capitalista “quer produzir não só lorização é fim; o processo de
um valor de uso, mas uma mer trabalho é um meio do processo
cadoria, não só valor de uso, de valorização.
66
A produção de mais-valia ou le paga pelo capitalista, de sorte
m eilleur des mondes possibles que este continua a consumir a
força de trabalho além do tempo
Vimos que o objetivo do de trabalho necessário à sua re
capitalista no processo de produ produção. Suponhamos, então,
ção é a obtenção de um valor su que, alcançadas aquelas quatro
perior ao que ele investiu adqui horas, período de tempo corres
rindo a força de trabalho. Vimos pondente ao valor da força de tra
também que, para alcançar esse balho, o operário ainda trabalhe
objetivo, o capitalista necessita por mais quatro horas, perfazen
consumir a força de trabalho que do uma jornada de trabalho de
ele comprou no mercado. Veja oito horas. Teríamos, assim, o
mos, agora, como se dá o proces seguinte resultado: as primeiras
so de extração desse valor a quatro horas de trabalho são o
mais, dessa mais-valia. tempo de trabalho necessário, o
Quando o capitalista com qual corresponde ao valor da for
pra a força de trabalho, ele paga ça de trabalho; as quatro horas de
ao operário um equivalente em trabalho restantes são o tempo de
forma de salário. Assim, se qua trabalho excedente, o qual cor
tro horas de trabalho são suficien responde ao valor produzido pelo
tes para o trabalhador reconstituir operário além do valor de sua for
os meios necessários para a sua ça de trabalho, à mais-valia, tra
subsistência, esse é o valor da balho não-pago que é apropriado
força de trabalho, e é esse valor pelo capitalista.
que é despendido pelo capitalis Nisso consiste o processo
ta. Nessa soma de dinheiro paga de valorização do capital, proces
ao operário está objetivado um so de exploração do trabalhador
valor de quatro horas de trabalho. e único objetivo perseguido pelo
Ocorre, porém, que o capi capitalista ao comprar a força de
talista não compra essa quantida trabalho.
de de trabalho objetivada, mas Como diz Marx em O capi
ele compra a utilização da força tal, “o valor da força de trabalho e
de trabalho durante toda uma jor sua valorização no processo de
nada de trabalho. Ora, a força de trabalho são, portanto, duas gran
trabalho possui a propriedade de dezas distintas. Essa diferença
produzir mais valor do que aque de valor o capitalista tinha em vis
le correspondente ao valor por ela ta quando comprou a força de tra
67
balho. [...] o decisivo foi o valor de formação do dinheiro em capital,
uso específico dessa mercadoria se opera na esfera da circulação e
ser fonte de valor, e de mais valor não se opera nela. Por intermédio
do que ela mesma tem. Esse é o da circulação, por ser condiciona
serviço específico que o capitalis do pela compra da força de traba
ta dela espera. [...] O possuidor lho no mercado. Fora da circula
de dinheiro pagou o valor de um ção, pois ela apenas introduz o
dia da força de trabalho; perten processo de valorização, que
ce-lhe, portanto, a utilização dela ocorre na esfera da produção. E
durante o dia, o trabalho de uma assim é tout pour le mieux dans le
jornada. A circunstância de que a meilleur des mondes possibles’’1.
manutenção diária da força de O capitalista transfor
trabalho só custa meia jornada de desse modo, valor, trabalho pas
trabalho, apesar de a força de tra sado, objetivado, morto, em ca
balho poder operar, trabalhar um pital, em valor que se valoriza a
dia inteiro, e por isso, o valor que si mesmo.
sua utilização cria durante um dia
é o dobro de seu próprio valor de A SUBSUNÇÃO FORMAL DO
um dia, é grande sorte para o TRABALHO AO CAPITAL
comprador, mas, de modo algum,
uma injustiça contra o vendedor”. Como vimos, para que o
Marx acrescenta que o que capitalismo se constitua, é neces
ocorreu foi uma simples troca de sário que surja no mercado o tra
equivalentes, portanto as leis do in balhador livre em um duplo senti
tercâmbio de mercadorias não fo do: livre para poder dispor de si
ram absolutamente transgredidas. como de uma mercadoria e livre
Ao consumir a força de trabalho no no sentido de estar separado dos
processo de trabalho, o capitalista meios de produção. Quando o
obtém um valor maior do que aque capitalista adquire a força de tra
le por ele despendido, mas ele balho e a consome no processo
paga ao operário exatamente o va de trabalho, uma determinada re
lor de sua força de trabalho. lação de produção é formada, a
Assim, pode concluir Marx: relação de produção capitalista
‘Todo esse seguimento, a trans que une, vincula, que relaciona
68
r
essas duas classes, o capitalista esses trabalhadores já estejam
e o operário. Ocorre, porém, que, submetidos a relações de produ
se essas condições são necessá ção capitalistas — porque estão
rias para que a relação de produ separados dos meios de produ
ção capitalista possa existir, elas ção e venderam a sua força de
não são suficientes para que um trabalho para o capitalista — , as
modo de produção e specifica forças produtivas não sofreram
mente capitalista se constitua. modificações importantes, elas
Vejamos a razão disso. permanecem, no essencial, as
Quando se inicia o capita mesmas da época feudal. Assim,
lismo, o modo de produzir, isto é, os trabalhadores produzem o
a organização técnica da produ bem por inteiro ou, ao menos,
ção não se modifica substancial uma parte significativa dele; o ins
mente. As primeiras manufaturas trumento de trabalho é um sim
assemelham-se muito ao artesa ples prolongamento e potencia-
nato, delas só se distinguindo mento da mão do operário; a divi
pela quantidade de trabalhado- são do trabalho, compreendida a
res-artesãos que são reunidos divisão do trabalho manual e inte
em um mesmo local pelo capita lectual, não existe ou existe em
lista. Isso significa que, embora grau insignificante.
Marx vai denominar sub-
sunção (ou subordinação) formal
do trabalho ao capital essa situa
ção na qual o trabalhador direto
está separado dos meios de pro
dução, mas a organização do pro
cesso de trabalho, do ponto de
vista técnico, permanece inaltera
da. Ou seja, embora o processo
de trabalho seja subordinado ao
capital, as forças produtivas ain
da não foram transformadas, de
maneira que um modo de produ
ção especificamente capitalista
V ainda não se constituiu.
O capital controla apenas as
Karl Marx em 1867, em Hannover. fases da produção exteriores ao
69
processo produtivo, isto é, o capi A SUBSUNÇÃO REAL DO
tal controla os meios de produção TRABALHO AO CAPITAL
e as etapas de comercialização do
produto. O operário, no entanto, Em um segundo momen
não necessita do capitalista no que to, ocorre uma transform ação
respeita ao processo de fabricação das forças produtivas, em parti
do produto, porque ele detém o co cular dos instrumentos de produ
nhecimento dos métodos técnicos ção. Com a introdução do siste
de produção, sabe como fabricar o ma de máquinas no processo de
bem e pode auto-organizar-se produção, o trabalhador direto
para a sua produção. torna-se um simples apêndice da
A conseqüência disso é máquina, um mero prestador de
que o domínio que o capitalista trabalho genérico, indiferencia
exerce sobre o trabalhador direto do, desprovido de conteúdo e
é limitado, detendo a classe ope que não exige qualquer habilida
rária uma certa capacidade de re de específica.
sistência à exploração do capital. A força de trabalho dos
O capitalista, em razão da estrei operários é objetivamente iguala
teza da base técnica da produção da, uma vez que ela é reduzida a
— ausência de uma transforma mera energia dispendida em um
ção capitalista das forças produti determinado tempo. É a isso que
vas — , só pode obter uma taxa Marx chama de subsunção (ou
mais elevada de mais-valia au subordinação) real do trabalho ao
mentando a jornada de trabalho, capital. O capitalista agora tem o
isto é, o tempo de trabalho exce poder de dispor efetivamente dos
dente, não-pago, do trabalhador. meios de produção. Ao contrário
A utilização desse método de ex do período anterior, quando a
tração de mais-valia, a mais-valia classe operária é limitada à exe
absoluta, encontra dois limites in cução de uma tarefa elementar
transponíveis: a capacidade de do ciclo produtivo, quando ocorre
resistência operária, em virtude a separação entre o trabalho inte
do relativo domínio que os traba lectual e o trabalho manual, a in
lhadores ainda exercem no pro tervenção do capitalista passa a
cesso de fabricação do produto, ser necessária também no interi
e a impossibilidade de prosseguir or do processo de produção. Ou
a extensão da jornada de traba seja, o trabalhador não é mais
lho além de um certo limite. capaz de combinar os elementos
70
F
71
1
2 Marx analisa a mercadoria como produto do capital, razão pela qual o seu
objeto é o processo de produção capitalista. Isso significa que a análise do
valor deve estar subordinada à análise do processo de valorização.
72
r
73
Bonaparte, Marx analisa a possi guesa, assim como no período da
bilidade de a burguesia abando transição socialista.
nar a forma democrática de exer Ora, é em O capital {e nos
cício do poder e abdicar de exer estudos preparatórios a essa
cê-lo diretamente, para desviar obra) que Marx vai demonstrar
de si o centro da luta social, trans essa tese.
ferindo o poder para um déspota A existência de uma esfera
que se apresenta como acima da de circulação de mercadorias —
luta de classes e dos interesses e, em particular, da mercadoria
de classe. Marx demonstra que força de trabalho — , que funcio
essa transferência do poder re na sob a base da equivalência e
veste-se apenas de uma aparên que, portanto, respeita as deter
cia de eqüidistância e indepen minações da liberdade e da igual
dência em relação à luta de cias dade, surge como a condição ne
ses, constituindo uma forma de cessária para que se constitua
Estado — o “bonapartismo” — uma forma de poder que não apa
que prossegue em sua função de reça como a representação do in
assegurar o domínio da burgue teresse de uma classe. De fato,
sia e a reprodução do capital. se na esfera do mercado os agen
Todas essas considera tes da troca devem se relacionar
ções de Marx, embora justas em de modo livre e em condições de
seu princípio, são no entanto in igualdade mútua, a coerção esta
suficientes em razão de não esta tal em favor de uma das partes
belecerem a relação entre a for anularia o fundamento mesmo da
ma da democracia e a forma do sociedade mercantil-capitalista,
valor, ou seja, ao não estabelece que pressupõe a existência de
rem a relação entre a democracia sujeitos-proprietários que se rela
e a circulação mercantii-capitalis- cionam voluntariamente, sem a
ta. Uma vez estabelecida essa interferência de uma autoridade
relação, a democracia adquire um coercitiva externa.
caráter particular, enquanto forma É justamente isso que se
política específica do Estado bur verifica quando o trabalhador ven
guês, e, portanto, uma forma que de a sua força de trabalho. O con
não pode ser utilizada pela clas trato é celebrado entre dois sujei
se operária — a não ser de modo tos em condição de estrita recipro
limitado, taticamente — no curso cidade, por um ato livre da vontade
da luta contra a dominação bur do trabalhador, sem qualquer for
76
ma de coerção estatal obrigando-o É desse modo que a parti
a reafizar essa operação. O poder cipação na esfera do Estado, a
do Estado pode então aparecer form ação da “vontade geral” ,
como estando acima das partes pode ser construída como uma
contratantes, como uma autorida passagem da sociedade civil
de pública que apenas vela pela para o Estado, ou seja, como
observância da ordem pública, isto uma passagem da determinação
é, das condições de funcionamen particular da esfera privada para
to normal do mercado3. a determinação universal da es
Assim, pode-se construir fera pública.
uma representação do Estado Pois bem, é o sistema de
como esfera do bem comum, da representação política da demo
vontade geral, do interesse geral, cracia que permite operar essa
separado de uma sociedade civil passagem. Através do sufrágio
identificada como sendo a esfera universal, a condição de classe é
dos interesses particulares confli negada pela atomização dos indi
tuosos. Essa representação vai víduos enquanto cidadãos, des
tornar o Estado uma região insus providos de quaisquer vínculos
cetível de acolher e defender in com outros em sua irredutível
teresses particulares de classe, subjetividade. Quando vota, o in
posto que a sua natureza publica divíduo alça-se à condição de ci
o impossibilita de cumprir essa dadão, despojando-se de sua
função. Conseqüentemente, o vontade particular egoísta.
acesso ao Estado está interdita Essa participação dos ci
do a toda representação de clas dadãos no Estado é um processo
se, pois, por definição, o Estado de circulação das vontades políti
não pode admitir representar uma cas cuja existência depende do
classe em particular — porque surgimento de uma esfera de tro
isso seria reconhecer que o Esta cas mercantis generalizada. A
do não mais mantém o seu cará equivalência política dos sujeitos-
ter público — , sendo esse acesso cidadãos só pode ser construída
franqueado apenas aos indivídu sob a base da equivalência mer
os qualificados politicamente en cantil que iguala os possuidores
quanto cidadãos. de mercadorias.
77
O princípio da iguaidade, o poder de classe da burguesia, a
princípio básico da democracia, e sua dominação sobre os trabalha
em torno do qual ela se organiza, dores. Ora, a política, nós já o sa
encontra, assim, o seu fundamen bemos, é a esfera exclusiva de
to no processo do valor de troca, manifestação dos cidadãos no
que, como diz Marx na Contribui Estado por meio das eleições; no
ção à crítica da economia p olíti âmbito da sociedade civil — onde
ca, não apenas respeita a igual se situa a fábrica — só se admi
dade mas também a cria. tem as manifestações de nature
A conseqüência política de za privada, as reivindicações pro
todo esse processo consiste na fissionais. Portanto, se os traba
neutralização da luta de classe lhadores quiserem se manifestar
operária. Quando o Estado só ad politicamente, deverão se despo
mite a política concentrada “de di jar de sua condição de classe e
reito" na sua esfera de competên participar do processo político
cia, toda luta que ultrapasse os como cidadãos.
marcos da reivindicação profissi A crítica da democracia, a
onal, e consista em uma ameaça partir dos desenvolvimentos de O
ao processo de valorização do capital, permite revelar a sua na
capital, é interditada e considera tureza irremediavelmente burgue
da ilegal. Assim, a greve ou a sa e a sua função como elemento
ocupação de fábrica que desor que encerra a luta de classe ope
ganize a produção torna-se uma rária nos marcos da legalidade e
greve “política”, porque questiona da institucionalidade burguesas.
78
A refundação do materialismo histórico
79
Ora, essa análise de Marx plena constituição das relações
modifica os termos do problema. de produção capitalistas só ocor
As relações de produção surgi re quando essas forças produti
das antes da transformação das vas novas surgem, porque são
forças produtivas, embora já se elas que vão constituir a base téc-
jam relações de produção capi nico-m aterial da expropriação
talistas — porque o trabalhador “subjetiva” da classe operária no
direto está separado das condi processo de trabalho.
ções materiais do trabalho e pre Isso significa que não há
cisa vender a sua força de traba uma relação de exterioridade en
lho para o capitalista — , são re tre as relações de produção e as
lações de produção que não ga forças produtivas, mas que as for
rantem o com pleto dom ínio do ças produtivas estão dentro das
capitalista sobre o trabalhador relações de produção, isto é, as
direto, portanto são relações de relações de produção são a for
produção capitalistas “imperfei ma de desenvolvimento das for
tas” ou incompletas. Isto é, elas ças produtivas.
permitem apenas um controle Disso decorrem duas con
formal sobre o processo de tra seqüências de importância funda
balho; são, assim, relações de mental. Em primeiro lugar, a his
produção apenas form alm ente tória não aparece mais como uma
capitalistas. Para que as rela sucessão linear de modos de pro
ções de produção plenamente dução cujo movimento interno é
capitalistas se constituam, per dirigido pelo nível de desenvolvi
mitindo o total controle e domínio mento das forças produtivas, mas
sobre a classe operária no pro depende da luta de classes. Em
cesso de produção, é necessário segundo lugar, não mais subsiste
que ocorra a transformação das a concepção de que as forças
fo rça s p ro d u tiv a s e xiste n te s, produtivas têm um caráter neutro,
com o surgim ento de novas for ficando estabelecida a sua deter
ças produtivas, de caráter espe minação de classe.
cificam ente capitalista. Marx desautoriza, assim, a
São as relações de produ idéia de que as forças produtivas
ção, portanto, que comandam as da sociedade comunista consti-
transformações das forças produ tuam-se no interior do capitalismo,
tivas, como uma exigência do que elas possam ser as mesmas
processo de valorização. Mas a forças produtivas do capitalismo,
80
que, por força das contradições modo complexo e não mecânico,
inerentes a esse modo de produ de tal sorte que pode afirmar que
ção, vão se tornando cada vez elementos não-econômicos che
mais socializadas, cabendo à so gam a jogar o papel dominante na
ciedade comunista tão-somente reprodução das relações sociais
receber essas forças produtivas em determinados modos de produ
completamente adequadas a ela, ção. É o que Marx afirma, por
e as quais, libertadas das relações exemplo, nesta passagem: “Deve
de propriedade (capitalistas) que ser claro que a Idade Média não
as entravavam, podem agora ex podia viver do catolicismo nem o
pandir-se livremente. Ao contrário mundo antigo, da política. A forma
dessa concepção mecanicista e e o modo como eles ganhavam a
evolucionista do processo históri vida explica, ao contrário, por que
co, as análises de Marx permitem lá a política, aqui o catolicismo, de
apreender que as forças produti sempenhava o papel principal”.
vas dependem sempre da luta de Assim também, em uma
classes, que elas nunca se desen passagem importante do capítulo
volvem independentemente das sobre a “Gênese da renda fundiá
relações de produção. ria capitalista”, do livro 3 de O ca
p ital, Marx afirma: “Está claro,
MODO DE PRODUÇÃO E além disso, que em todas as for
DETERMINAÇÃO EM ÚLTIMA mas em que o trabalhador direto
INSTÂNCIA continua a ser ‘dono’ dos meios
de produção e das condições de
Do mesmo modo, a análise trabalho para a produção de seus
que Marx desenvolve em O capi próprios meios de subsistência, a
tal e em outras obras do período relação de propriedades tem de
permite elaborar uma concepção aparecer, ao mesmo tem po,
do modo de produção no qual a como relação direta de domina
determinação econômica pode ser ção e servidão, e, portanto, o pro
pensada como uma determinação dutor direto como alguém não li
em última instância, e não como vre. [...] Sob essas condições, o
uma determinação direta e imedi mais-trabalho só pode ser arran
ata da superestrutura pela base. cado deles pelo proprietário nomi
Algumas passagens de O nal da terra mediante coerção ex-
capital mostram claramente que tra-econômica, qualquer que seja
Marx concebe a estrutura social de a forma que esta assuma”.
81
Pois bem, o que essas balho. Portanto, o servo só repro
passagens nos dizem? Inicial duz essa relação, isto é, entrega
mente, que elementos não-eco- ao senhor o resultado do seu tra
nômicos, como a política, a reli balho, em virtude da interferência
gião, elementos, portanto, da su de fatores não-econômicos. As
perestrutura, podem ser dom i sim, é necessário o emprego da
nantes em uma determinada so coerção física através da força
ciedade. Em segundo lugar, que m ilitar dos senhores para que
é o modo de produção (em senti essa relação social se reproduza.
do estrito) que permite explicar Além disso, a ideologia religiosa
por que esses elementos podem cristã secreta uma representação
justamente cumprir essa função. imaginária de mundo na qual se
Em terceiro lugar, que reside na justifica, como expressão da von
combinação entre o agente direto tade divina, a relação de explora
da produção e os meios de traba ção do servo pelo senhor.
lho a possibilidade de se compre Desse modo, a reprodução
ender a “lógica” de funcionamen das relações de produção feudais
to da estrutura social. Vejamos é garantida pela intervenção da
tudo isso mais de perto. instância política (a relação de
No modo de produção feu força) e da instância ideológica (o
dal a relação de produção envol catolicismo) da estrutura social.
ve dois agentes: o senhor feudal, Porém o que permite explicar a
proprietário das condições mate necessidade da interferência des
riais da produção, e o servo, que ses elementos superestruturais
mantém a posse dessas mesmas para que a reprodução das rela
condições. Essa relação implica ções sociais feudais possa ocor
que o servo trabalhe para o se rer é uma combinação específica
nhor, entregando-lhe parte da de elementos da base econômi
produção por ele realizada. Ora, ca. De fato, é a existência, na
o que leva à reprodução dessa base econômica do modo de pro
relação? Observemos, de imedi dução feudal, da não-separação
ato, que não existe nenhuma ne entre o produtor direto e os meios
cessidade de ordem econômica de produção, o que explica por
para o servo assim agir, já que ele que a reprodução das relações
está na posse das condições ma sociais feudais tem necessaria
teriais da produção e mantém o mente de ser garantida pela coer
controle sobre o processo de tra ção e pela ideologia. Se o senhor
82
feudal não dispõe do controle efe so de produção capitalista, é no in
tivo dos meios de produção, não terior do processo de produção de
pode haver um modo de ele ob mercadorias que a extração da
ter, a partir do próprio processo mais-valia ocorre, sem que o tra
de produção, o sobreproduto do balhador tenha qualquer controle
servo. Ele precisa “arrancar” do desse processo. A mais-valia é
produtor direto, mediante a com “encoberta” e desaparece subsu
binação da força militar e da ideo mida no princípio da troca de equi
logia religiosa, o produto do seu valentes que preside a compra e
trabalho. A exploração resulta, venda da força de trabalho. No
assim, do emprego de uma coer capitalismo não há um sobrepro
ção exterior ao processo de tra duto, mas somente uma mais-va
balho e da ideologia católica que lia, ou seja, o sobreproduto não é
a recobre e justifica. “visível” , ele só existe sob a forma
Já no modo de produção do valor.
capitalista, a reprodução das rela A exploração capitalista,
ções de produção ocorre de forma portanto, é intrínseca ao processo
diversa. Nessa sociedade, como de trabalho. Sendo assim, a repro
sabemos, a relação de produção dução das relações de produção
envolve dois agentes: de um lado, capitalistas é garantida, no funda
o capitalista, proprietário das con mental, por um movimento estrita
dições materiais da produção e, mente econômico. No fundamen
de outro lado, o operário, possui tal, porque também interferem
dor apenas de sua força de traba nesse processo tanto o direito e a
lho. Essa relação implica a venda ideologia jurídica, que jogam um
da força de trabalho pelo operário papel importante ao possibilitar,
ao capitalista, que a utiliza no pro através da constituição das cate
cesso de produção obtendo um gorias do contrato e do sujeito de
valor além do valor da própria for direito, a compra e venda da força
ça de trabalho, uma mais-valia de trabalho, como o Estado, por
que é apropriada por ele. Ora, o meio do seu aparato repressivo
que leva o operário a ceder essa (como as forças armadas) e ideo
parte do seu trabalho que não é lógico (como a escola).
paga ao capitalista, o que o leva a Pois bem, o que permite
reproduzir essa relação de produ explicar por que a reprodução
ção? Essa relação se reproduz por dessas relações é assegurada,
força do funcionamento do proces no fundamental, pela instância
83
econômica é uma combinação term inar quai dos níveis deve
específica dos elementos do nível cumprir tal função.
econômico. Assim, no feudalismo, é a
Ao contrário do que ocorre unidade entre o produtor direto e
no modo de produção feudal, no os meios de produção — elemen
capitalismo não há uma unidade to econômico — que vai exigir a
mas justamente uma separação interferência da instância política e
entre o trabalhador e os meios de da ideológica para que as relações
produção. Separado dos meios sociais feudais se reproduzam. No
de produção, o produtor direto capitalismo, é a separação entre o
depende do capitalista para pro produtor direto e os meios de pro
duzir, e não tem qualquer possi dução — elemento econômico —
bilidade de controlar o processo e que vai permitir que, já no próprio
o resultado de seu trabalho. processo de produção — instância
Assim sendo, é suficiente econômica — , a reprodução das
que o capitalista exerça o seu do relações sociais capitalistas este
mínio sobre o trabalhador no pro ja, no fundamental, assegurada.
cesso de produção para que a re Há aqui, portanto, uma coincidên
produção das relações sociais ca cia entre o elemento dominante e
pitalistas esteja fundamentalmen o elemento determinante, que é
te garantida. sempre o econômico.
Podemos então concluir A determinação em Marx
disso tudo que o modo de produ pode então aparecer como um pro
ção aparece agora para Marx cesso não apenas mais complexo
como uma estrutura social com mas sobretudo como estranho a
posta de níveis, no qual um nível, qualquer mecanicismo que tornaria
ou uma combinação deles, cum a superestrutura mero epifenôme-
pre uma função dominante, e o no da base econômica, não respei
nível econômico.cumpre sempre tando a autonomia relativa das ins
a função de determinação em úl tâncias que a compõem. Remeten
tima instância na reprodução das do a superestrutura ao seu tugar
relações de produção. Isso signi pertinente e explicando o seu mo
fica que um dos níveis ou uma vimento, a concepção marxista
combinação deies vai assegurar com preende a superestrutura
que as relações de produção se como um conjunto de relações cuja
reproduzam, mas é sempre o ní existência é necessária para a re
vel econômico aquele que vai de produção da totalidade social.
84
A ultrapassagem da sociedade burguesa:
transição e comunismo
86
jetiva das condições materiais da pelo capital, o socialismo deve
produção vem juntar-se a expro implicar um processo de reapro-
priação subjetiva da potência priação das condições objetivas
mental do operário. Essas novas e su bjetiva s da produção por
forças produtivas, especificamen parte dos trabalhadores.
te capitalistas, são agora plena É necessário, no entanto,
mente adequadas às relações de precisar que há uma diferença
produção capitalistas, de que são essencial entre a análise da
a base material necessária para transição para o comunismo e a
que a dominação de classe se análise empreendida por Marx
exerça plenamente no interior do para pensar a transição para o
processo de trabalho. capitalismo. Ao contrário desta
Em que essas observa última, na transição para o co
ções, pertinentes ao processo de munismo não é possível que se
produção capitalista, podem se esta b eleça m , pre viam en te à
mostrar adequadas para a análi transformação do processo de
se da problemática da transição trabalho capitalista, relações de
socialista em Marx? produção de natureza comunis
ta. Ou seja, no socialismo, as
A REAPROPRIAÇÃO DAS relações de produção remanes
CONDIÇÕES DA PRODUÇÃO cem capitalistas por um longo
período, no qual os trabalhado
Se as relações de produ res lutam para transformar es
ção capitalistas repousam na sas relações, objetivando exer
constituição desse “núcleo duro” cer o seu controle sobre o pro
de existência do capital — a or cesso de produção.
ganização do processo de tra A ú nica co n se q ü ê n cia
balho sob a base técnica das im ediata da tom ada do poder
forças produtivas e s p e c ific a pela classe operária é que ela
mente capitalistas — , o socialis passa a exercer algum controle
mo deve necessariamente ser o sobre as condições externas do
período no qual essas relações processo de produção, em virtu
de produção são d e stru íd a s. de da estatização dos meios de
Como o processo capitalista de produção e da introdução do
trabalho é organizado de modo planejamento econômico. Em
a possibilitar a expropriação ob bora a propriedade estatal e a
je tiva e subjetiva do operário intervenção sobretudo na esfe
87
ra da circulação e da distribui dominação e exploração dos tra
ção imponham algum condicio balhadores pelo capital.
namento (externo) à atuação da Ora, o socialismo, enquan
iei da valorização, elas não po to etapa de transição, deve impli
dem de modo algum modificar a car, então, a substituição dessa
organização capitalista do pro base técnica do capital, as forças
cesso de trabalho. produtivas do capital, por novas
Assim, a transição para o forças produtivas, de caráter co
comunismo é, imediatamente, um munista, permitindo que a classe
processo de reapropriação real operária possa apropriar-se das
das condições da produção, sem condições materiais da produ
o que as relações de produção ção, dominar o processo de tra
comunistas não se constituirão. balho e extinguir o processo de
A possibilidade de uma valorização.
transformação revolucionária das Assim, a constituição de
relações de produção capitalistas novas relações de produção, de
reside necessariamente no “ata natureza comunista, é um proces
que” à organização capitalista do so que exige simultaneamente a
processo de trabalho, pois é jus criação dessa base técnica revo-
tamente o modo como o proces iucionarizada, adequada para
so de trabalho se organiza sob as possibilitar que se supere a sepa
relações de produção capitalistas ração entre os meios de produção
o que permite o prosseguimento e os trabalhadores diretos.
do processo de valorização.
Recordemos que a exis RELAÇÃO JURÍDICA E
tência do modo de produção es APROPRIAÇÃO REAL
pecificamente capitalista depen
de da constituição de uma "base Temos, agora, os elemen
técnica", que são as forças pro tos para perceber que a transição
dutivas novas, de natureza capi para o comunismo, em Marx, não
talista, que surgem por exigência pode se limitar a uma operação
do processo de valorização do jurídica de transferência da titula
capital, isto é, sob o “comando" ridade dos meios de produção.
das relações de produção. Essas Como já observamos, a mera es-
novas forças produtivas — basi tatização dos meios de produção
camente o sistema de máquinas não é suficiente para extinguir o
— vão assim possibilitar a plena processo de produção capitalista.
88
r
Na ausência de uma revo- funcionam ento o processo de
lucionarização das relações de trabalho e em dispor do produto
produção capitalistas, sem que de seu trabalho. Aos agentes do
tenham se constituído forças capital fica reservada a direção
p ro d u tiv a s co m u n ista s, uma do processo de produção, ao
nova burguesia pode surgir em passo que os operários devem
virtude da permanência do pro se limitar a executar as ordens
cesso de valorização durante o daqueles.
período de transição. Portanto é justamente ao
A iuta pela transformação “atacar” esses dois elementos fun
revolucionária da sociedade bur damentais para a dominação bur
guesa, cujo aspecto principal é a guesa que a classe operária pode
apropriação pelos trabalhadores iniciar o processo de constituição
das condições materiais da pro de novas relações de produção e
dução, deve ser dirigida contra forças produtivas comunistas.
dois aspectos fundamentais da
organização capitalista do pro A REVOLUCIONARIZAÇÃO
cesso de trabalho: a divisão entre DO ESTADO
o trabalho manual e o intelectual
e a divisão entre as tarefas de di O outro aspecto decisivo
reção e execução. para compreender-se o problema
A divisão entre o trabalho da transição em Marx é aquele
manual e o intelectual no interi referente às transformações ope
or do processo de trabalho re radas no Estado após a tomada
produz as condições de expro do poder peia classe operária.
priação da “potência mental" do No M anifesto do P artido
operário, retira dele a possibili Comunista, Marx não faz men
dade de exercer algum controle ção à necessidade de ocorrer
sobre os meios de trabalho, que, essa transformação. Nesse tex
assim , passam a dom iná -lo, to ele limita-se a constatar que a
transformando o trabalhador em conquista do poder pelo proleta
sim ples dispêndio de energia riado possibilitará a este o exer
lavorativa. cício de sua dominação de clas
A divisão entre as tarefas se, mas nada diz sobre uma
de execução e as tarefas de di questão decisiva: a de se saber
reção reproduz a perda da capa se o Estado burguês herdado
cidade do trabalhador de pôr em petos trabalhadores pode servir
89
te decisivo para se pensar a tran
sição socialista: a necessidade de
destruição do Estado burguês e a
sua substituição por um outro Es
tado, de natureza completamente
diversa.
Qual o significado dessa re
tificação? Por que ela desempenha
um papel tão importante? O que,
afinal, Marx aprendeu com os ope
rários revolucionários de Paris?
O segredo da Comuna
O que os trabalhadores
franceses demonstraram na revo
Karl Marx em 1875, aos 57 anos. lução foi que o Estado burguês, tal
como ele é “recebido” pelos traba
para a organização de uma ou lhadores após a tomada do poder,
tra forma de sociedade. não é adequado para servir aos
É o episódio da Comuna propósitos da revolução. Ou seja,
de Paris que propicia a Marx os o Estado burguês é estruturado
elementos de resposta para esse para funcionar exclusivamente no
silêncio teórico e político. Reco interesse da classe dominante
lhendo os “ensinamentos" dos burguesa e, permanecendo sem
operários revolucionários france sofrer qualquer modificação, ele
ses, ele pode então expressa vai continuar reproduzindo, em úl
mente enunciar uma retificação tima instância, as formas sociais
no Manifesto, ao dizer, no prefá da sociedade capitalista. Esse Es
cio à edição alemã de 1872 des tado vai se transformar, assim, em
sa obra, que “a Comuna demons um obstáculo à transformação
trou especialmente ‘que a ciasse das relações sociais capitalistas,
operária não pode apenas tomar um obstáculo à apropriação das
posse da máquina de Estado já condições materiais da produção
pronta e fazê-la funcionar para os e do poder político pelas massas.
seus próprios fins’ Marx introduz É a isso que se refere Marx ao di
então um elemento absolutamen zer, em A guerra civil na França,
90
r
que o instrumento político da su vém mesmo nos conflitos oriundos
jeição do proletariado, isto ó, o de reivindicações meramente eco
Estado burguês, não pode ser uti nômicas. Esse aparato de violên
lizado como instrumento político cia de classe dirigido contra os tra
de sua emancipação. balhadores constitui-se no obstá
Se, então, para Marx, o Es culo mais difícil a ser vencido.
tado burguês deve ser destruído, Mesmo após a revolução, se o
o que, precisamente, deve ser ob aparelho militar-policial mantém-
jeto dessa destruição e, ademais, se como um corpo especial, sepa
de que Estado o proletariado ne rado das massas, ele se converte
cessita para exercer o poder e em um obstáculo para a transfor
transíormar as relações sociais mação social, impedindo que a
capitalistas? classe operária possa apropriar-se
diretamente do poder político e ini
O povo armado ciar a revolucionarização das rela
ções de produção.
Analisando as medidas to É por isso que a supressão
madas pela Comuna, Marx obser do aparelho de repressão do Es
va que o primeiro decreto por ela tado deve implicar a absorção pe
expedido visou suprimir o exérci tas massas do uso da violência,
to permanente, substituindo-o com as próprias massas transfor
pelo “povo armado” . Do mesmo mando-se em força armada per
modo, a polícia perde a sua fun manente. Essa não-separação en
ção política, convertendo-se em tre o povo e a força armada é uma
um instrumento da Comuna — a condição para que o processo de
ponto de Marx também conside transição possa ocorrer e uma das
rá-la “suprimida”. Essas iniciati formas que toma o processo de
vas atingem o cerne do Estado extinção do Estado que a transi
burguês, o seu aspecto principal, ção para o comunismo implica.
o aparelho repressivo.
É o aparelho repressivo do O controle do Estado peias
Estado burguês que garante os in massas
teresses da classe dominante, não
apenas face a uma insurreição ar Outra medida decisiva to
mada, isto é, em um caso limite de mada pelos operários franceses
confronto direto de classe, mas a foi a concentração dos poderes
força armada da burguesia inter executivo e legislativo em um úni
91
Proclamação da Comuna de Paris, a 28 de março de 1871.
92
mental, de tal sorte que o Estado tado, de um Estado que traz em si
operário constitui-se, forçosamen- os elementos de sua própria extin-
te, “em qualquer coisa que já não ção, isto é, de um Estado cujo cen-
é, para falar propriamente, Esta- tro já foi deslocado para as mas-
do”, como diz Lenin, comentando sas, que já deu início ao processo
A guerra civil na França em seu de sua destruição enquanto Esta-
trabalha O Estado e a revolução. do, enquanto instância política se-
A quebra, a amputação, a parada e acima das massas. Esse
supressão, a destruição, o caráter é o segredo da Comuna, como diz
supérfluo do Estado, todas essas Marx: “Eis o seu verdadeiro segre-
expressões de Marx traduzem a do: A Comuna era, essencialmen-
necessidade de desde já, desde o te, um govemo da classe operária,
início do processo de transição, a fruto da luta da classe produtora
classe operária apropriar-se das contra a classe apropriadora, a for-
funções essenciais do Estado, ma política afinal descoberta para
através de um aparato que, de levar a cabo a emancipação eco-
certo modo, já não é mais um Es- nômica do trabalho". Forma políti-
A repressão à Comuna.
93
ca constituída com o objetivo de dura exercida pela maioria, pelos
emancipar os trabalhadores, ou trabalhadores, contra a antiga
seja, Marx relaciona a destruição classe dominante.
das relações de produção capita O conceito de ditadura do
listas com a destruição do Estado proletariado ocupa um lugar cen
burguês, de tal sorte que, sem a tral na concepção marxiana da
criação de um Estado que já não transição. Já em 1852, em uma
é mais um Estado em sentido pró carta a Joseph Weidemeyer, refe
prio, a revolucionarização das re rindo-se ao que sua teoria havia
lações de produção capitalistas e trazido de novo, Marx dizia ter de
a constituição de novas forças pro monstrado que “a luta de classes
dutivas não seriam possíveis. conduz necessariamente à ditadu
ra do proletariado” e que “essa di
DITADURA DO PROLETARIADO tadura ela própria não é mais que
E TRANSIÇÃO AO COMUNISMO a transição para a supressão de
todas as classes e para uma soci
O Estado que a classe edade sem classes”.
operária constitui após a tomada Dois ensinamentos funda
do poder é, para Marx, uma dita mentais podem ser extraídos des
dura, a ditadura do proletariado. sa passagem. Em primeiro lugar,
Não nos enganemos quanto aos quando Marx afirma que a luta de
termos: ele entende que todo Es classes leva à ditadura do proleta
tado é uma ditadura, na medida riado, ele não apenas está dizen
em que ele é a forma política de do que o antagonismo irreconciliá
dominação de uma classe. As vel de classes deve acarretar a
sim, um Estado pode ser “demo dominação “despótica" da classe
crático”, isto é, ele pode admitir operária, como uma conseqüência
um certo grau de liberdades pú desse antagonismo, mas, do que
blicas, o parlamento e o sufrágio ele diz, pode-se inferir sobretudo
universal, e nem por isso deixar uma outra tese, absolutamente
de ser uma ditadura, porque o decisiva, a de que a luta de clas
poder político continua a ser exer ses prossegue após a tomada do
cido pela classe dominante. Ao poder pelo proletariado, e é por
contrário da ditadura burguesa — isso que uma ditadura é necessá
que é a ditadura de uma minoria, ria, porque, senão, em caso con
em favor dessa minoria — , a dita trário, se o momento do triunfo re
dura do proletariado é uma dita volucionário da classe operária
94
acarretasse o fim da luta de clas a ditadura do proletariado, deve se
ses, a ditadura dessa classe se estender até que “se destrua a
tornaria desnecessária e ociosa. É base econômica sobre a qual des
por isso que Marx afirma a seguir cansa a existência de classe”.
que a ditadura do proletariado
confunde-se com a própria transi A forma política enfim
ção para a sociedade comunista encontrada
(para a sociedade sem classes).
Portanto a luta de classes prosse A ditadura do proletariado,
gue durante a transição para o co para Marx, deve ter as caracterís
munismo e a ditadura do proletari ticas da Comuna de Paris, que,
ado prolonga-se até que essa como vimos, funda-se no povo em
transição se complete. armas, na superação das formas
Também na Crítica do Pro burguesas de representação polí
grama de Gotha, ele se refere à tica e no desmantelamento do
ditadura do proletariado como aparelho repressivo. Essa “forma
uma fase de transição: “ Entre a política enfim encontrada” para
sociedade capitalista e a socieda possibilitar a “emancipação eco
de comunista se põe o período de nômica do trabalho" é a forma po
transformação revolucionária da lítica específica para que possa
primeira na segunda. Ao qual cor ocorrer o processo de transforma
responde um período de transição ção revolucionária das relações
política na qual o Estado só pode sociais no decorrer do período de
ser a ditadura revolucionária do transição. Essa forma não se defi
proletariadd’. A ditadura do prole ne do ponto de vista jurídico, não
tariado deve então ser entendida é um modelo institucionalizado,
como um período longo, que com as suas regras e a sua legali
acompanha a transformação das dade estabilizando e fixando as
relações de produção e das forças relações sociais, mas define-se,
produtivas, sem as quais, como como diz Étienne Balibar, “por sua
vimos, não é possível organizar a própria capacidade de autotrans-
sociedade comunista. Marx não formação”, isto é, pela contradição
deixa dúvida quanto a esse ponto, que a atravessa na medida em
ao dizer expressamente, em seu que ela é um Estado que ao mes
trabalho Anotações ao livro de mo tempo deve ser um não-Esta-
Bakunin “O Estado e a anarquia”, do, um Estado “organizador de
que a dominação de classe, isto é, seu próprio desaparecimento”.
95
A LIBERDADE COMUNISTA advento de novas forças produti
vas — vai então tornar possível o
O período de transição — surgimento de uma forma de li
que se dá sob a ditadura do prole berdade jamais conhecida, uma
tariado — é o que Marx vai deno liberdade efetiva, e não apenas
minar fase inferior da sociedade formal, jurídica. A sociedade co
comunista, ou seja, o socialismo. munista, ao assegurar o controle
Ele caracteriza-se, fundamental de sua própria organização so
mente, por ser uma sociedade que cial, oferece enormes possibilida
“não se desenvolveu sobre sua des de desenvolvimento, em to
própria base”, uma sociedade nas dos os domínios. Uma perspecti
cida da sociedade capitalista e va como essa não é fruto de uma
que, portanto, “sob todos os as projeção intelectual nem muito
pectos”, conserva o sinal da velha menos um voto piedoso; ela pode
sociedade burguesa. ser aberta a partir — e só a partir
É um período, assim, em — do desvendamento feito por
que esse sinal da velha socieda Marx da “lógica” de funcionamen
de deve ser transformado em seu to do capital, permitindo à classe
contrário, isto é, as relações de trabalhadora formular a estraté
produção e as forças produtivas gia de ataque e “desmontagem”
capitalistas devem ser revolucio- das relações sociais burguesas.
narizadas para que possam sur É por isso que Marx, ao recusar
gir novas relações de produção e o desenho fantástico de um mun
novas forças produtivas, de natu do novo, ao deixar apenas o re
reza comunista. gistro vago do comunismo, para
Uma vez percorrida essa doxalmente abre para nós, para
etapa, a sociedade comunista os que o quisermos verdadeira
poderá se constituir, fundada em mente ler, o princípio de seu en
relações de produção associa tendimento e a possibilidade de
das, isto é, fundadas no trabalho seu devir.
livre e na cooperação entre os in
divíduos, libertos das formas de COMUNISMO E DIALÉTICA
exploração da força de trabalho.
A supressão das classes sociais, Toda a imensa crítica do
do Estado e do direito — em con modo de produção capitalista que
seqüência da instauração dessas Marx realizou teve por objetivo for
novas relações de produção e do necer à classe operária o conheci-
96
mento objetivo de suas condições destruição e substituição por no
de existência e os meios para su- vas relações sociais.
primi-las. Portanto o método de Pois bem, essa demonstra
Marx só pode ser compreendido a ção de Marx permite que perce
partir da negação do capitalismo, bamos alguns aspectos funda
ou seja, a dialética, em Marx, é in mentais de seu método dialético.
separável do comunismo. A dialética, diz Marx, é um “incô
A análise que Marx faz do modo” e um “horror” para a bur
capital é uma crítica da pretensão guesia exatamente porque ele
burguesa de transformá-lo em não permite apenas a compreen
uma coisa natural e eterna. Ao di são da estrutura social capitalista
zerem que o capital são os meios mas também o “entendimento de
de produção, os ideólogos da sua desaparição inevitável”. Isso
classe dominante fazem do capi porque a dialética, ao apreender
tal uma condição necessária de as formas sociais em seu movi
toda a produção, já que todo pro m ento co n tra d itó rio , tam bém
cesso de trabalho exige a utiliza apreende o seu caráter transitó
ção de meios de produção. Expul rio, não se deixando “impressio
sando a determinação histórica nar por nada”. Por essas razões,
do capital, este passa a ser dota a dialética em Marx é “crítica e
do de uma natureza eterna. revolucionária".
Do mesmo modo, a burgue A dialética em Marx, por
sia apresenta as suas relações tanto, é o estudo das contradi
sociais como sendo a expressão ções da sociedade burguesa, da
da razão e, portanto, como “positi luta de classes que a corta de
vas” em si mesmas. Ora, se o ca modo irreconciliável. É o estudo
pitalismo é racional e é um valor também, conseqüentemente, das
absoluto, é absurdo pretender ex condições de possibilidade da re
tingui-lo: assim, ainda aqui a eter solução dessa contradição, do
nidade das relações de produção processo revolucionário que os
capitalistas é reafirmada. trabalhadores conduzem em dire
Contra essa pretensa eter ção ao comunismo.
nidade das relações sociais capi A análise empreendida por
talistas, Marx demonstrou o seu Marx ao “dissolver” as formas apa
caráter contraditório e transitório, rentes das relações sociais capita
a sua especificidade social e his listas, as sucessivas camadas ide
tórica, e a possibilidade de sua ológicas que as recobrem, permitiu
97
revelar o seu núcleo fundamental ma, é também o seu contrário, e
estruturante: a luta de classes. é isso que torna necessária a
Ao colocar a luta de classes passagem de uma determinação
no centro de sua análise, Marx a outra: a contradição é o motor
abre a via para uma compreensão do movimento das coisas. Assim,
materialista da contradição e para o momento mesmo em que uma
a sua resolução efetiva. coisa se afirma enquanto tal já é
Se a teoria de Marx, cujos o momento em que se desenvol
aspectos centrais examinamos, ve o elemento de negatividade
não é apenas a compreensão ci nela contido: é o momento da ne
entífica do capitalismo mas tam gação. Finalmente, esses dois
bém a compreensão dos meios momentos são dissolvidos um no
de sua destruição como modo de outro em um terceiro, momento
produção, o método de Marx não que os contém e os supera (ne
poderia ser a dialética especulati gação da negação). Essa supera
va1, fundada na categoria da “ne ção significa a supressão da inde
gação da negação”, tal como He- pendência recíproca que os mo
gel a desenvolveu. mentos anteriores contêm, a con
A dialética em Hegel con servação dos elementos próprios,
siste em um processo no qual se irredutíveis, de cada um e a reso
sucedem o momento da afirma lução da contradição por meio da
ção, o da negação e o da nega conciliação dos contrários.
ção da negação. O desenvolvi O próprio Hegel ilu stra
mento de uma coisa decorre da esse m ovim ento por meio do
contradição interna que todas as exemplo do botão, da flor e do fru
coisas trazem em si. Dizer que to. O botão (momento da afirma
uma coisa é contraditória signifi ção) é negado pela flor, quando
ca dizer que, ao mesmo tempo ocorre o florescimento (momento
em que ela é idêntica a si mes da negação), e esta, por sua vez,
1 Isso não significa que Marx tenha podido rom per definitivam ente com a dia
lética hegeliana. Mesmo em O capital, particularmente nas primeiras seções,
essa presença é claramente identificável. Porém, no mesmo O capital, em
seu núcleo teórico fundam ental — a análise do modo de produção especifi
camente capitalista — , essa dialética está ausente. Ora, como procuram os
dem onstrar no curso da exposição, o processo do valor de troca está subor
dinado ao processo de produção imediato, de tal sorte que os efeitos da pre
sença da dialética hegeliana em O capital são limitados.
98
é negada (momento da negação de negação da negação, é a pró
da negação) pelo fruto, que é a pria negação que é negada.
supressão das formas anteriores, A rigor, na dialética espe
mas igualmente a sua “verdade”, culativa, não há propriamente
porque essas formas repelem-se luta, mas tão-somente uma divi
mutuamente mas todas elas são são da unidade originária em dois
necessárias enquanto momentos opostos simétricos, à espera do
da unidade da “vida do todo”. momento de sua reconciliação
A “negação da negação” em uma síntese superior, ao pas
implica, portanto, um procedimen so que a dialética marxista exclui
to pelo qual se nega a negação a conciliação, ela é fundada no
conservando o que fora negado. antagonism o irreco n ciliá ve l de
Isso significa a permanência, a seus opostos em luta.
continuidade do elemento inicial
mente negado: ele não é extinto
nesse processo de superação,
mas elevado a um nível superior.
Ora, a dialética marxista, ao
contrário dessa dialética teleológi-
Kritik der jmlitischen Oekonomie.
ca da conservação, da síntese, é
uma dialética da destruição2. Ela
implica a extinção do que é nega K a r l Marx.
do e a sua substituição por algo
novo, que não existe no elemento
E rste r II an <4.
negado e, portanto, não pode ser Bk * I ; i«»
conservado ou recuperado.
A dialética idealista acaba
por “esterilizar" a negação, anulan
do os seus efeitos ao recuperar o Ilariil>urc
99
Se retomarmos as análises perm ite pensar a transformação
de Marx em O capital, veremos revolucionária do capitalismo, ela
que, na passagem do feudalismo não é capaz de “suportar” o con
para o capitalismo, as relações de ceito de luta de classes. Assim,
produção e as forças produtivas essa concepção da dialética pode
feudais são completamente subs funcionar como um elemento de
tituídas por novas relações de conservação do existente, isto é,
produção e forças produtivas, das relações sociais burguesas,
nunca conhecidas na história. O como a “garantia” metafísica de
modo de produção capitalista não sua eternidade.
conserva as relações sociais e as A presença da dialética
in s titu iç õ e s fe u d a is, mesmo e s p e c u la tiv a h e g e lia n a em
transformadas; ele as destrói. Do Marx, e especialmente em O ca
mesmo modo, a sociedade comu pital, é o índice mais expressivo
nista deverá implicar a destruição dos obstáculos que ele teve de
das formas de exploração do tra enfrentar para romper com a for
balho e da forma-Estado burgue midável presença da ideologia
sa: se o processo de valorização burguesa no interior mesmo de
prosseguir, o Estado mantiver-se sua elaboração teórica. Mesmo
como um aparelho separado e que os resultados desse rompi
acima das massas, voltado para mento tenham sido desiguais, e
a sua dominação, e as relações m uitas dificuldades rem anes
mercantis continuarem a reprodu çam, há um núcleo duro de seu
zir-se, não será possível a ultra pensamento, o momento de ela
passagem do capitalismo. Essa boração conceituai mais rigoro
ultrapassagem exige a “quebra” so que ele pode alcançar, que
das formas sociais que permitem permite estabelecer uma linha
a valorização do capital. Nenhu de demarcação com a dialética
ma conservação, nenhuma conci e spe cu la tiva. Sem isso, sem
liação aqui é possível. essa condição essencial, Marx
A categoria da “negação não teria podido jamais consti
da negação”, ao contrário, não tuir uma ciência revolucionária.
100
8 Conclusão: a contemporaneidade
de Marx
101
minantes, porque ela possibilita movimento operário é um efeito
aos trabalhadores a compreensão da luta de classe burguesa. A
dos mecanismos de sua explora análise de Marx permite ver, sob
ção e lhes dá os meios para lutar a aparência de uma racionalida
contra ela; a teoria de Marx é in de técnica, o processo de reestru
dissociável da luta da classe ope turação produtiva do capital es
rária pelo comunismo. conder a necessidade da classe
Marx conseguiu rom per dominante de recompor as condi
com as concepções ideológicas, ções da acumulação, isto é, a ne
com as filosofias da história, que cessidade de quebrar as resistên
até então ocupavam o lugar da cias dos trabalhadores à extração
ciência da história, devido ao de mais-valia.
seu d eslocam ento para p osi Ao situarmos o pensamen
ções de classe proletárias. Esse to de Marx no interior da luta de
rompimento é definitivo porque classes, podemos compreender
é inaugurado um campo concei que o seu “esquecimento” é o ín
tuai incompatível com as ideolo dice de que o marxismo continua
gias da história e capaz de pro a ser capaz de produzir efeitos teó
duzir o conhecim ento das for ricos e políticos revolucionários.
mações sociais. Marx não anunciou um mun
Ora, o p en sa m e nto de do novo. Não foi o profeta ilumina
Marx continua a produzir o conhe do da redenção da humanidade.
cimento das formas de domínio e Marx apenas demonstrou que o ca
de exploração dos trabalhadores pitalismo não é eterno. É essa pe
na sociedade burguesa, é ele que quena demonstração dialética que
nos permite compreender que a mantém aberta, ainda hoje, a pos
debilidade e desarticulação do sibilidade do comunismo.
102
[UMA NOVA CONCEPÇÃO DA HISTÓ RIA]1
104
BURGUESES E PROLETÁRIOS2
2 Por burguesia entende-se a classe dos capitalistas modernos, que são pro
prietários dos meios de produção social e empregam trabalho assalariado.
Por proletariado, a classe dos trabalhadores assalariados modernos, que,
não tendo meios de produção próprios, são obrigados a vender sua força de
trabalho para sobreviver. (Nota de Engels à edição inglesa de 1888.)
3 Isto é, toda a história escrita. A pré-história, a organização social anterior à
história escrita, era quase desconhecida em 1847. Mais tarde, Haxthausen
descobriu a propriedade com um da terra na Rússia, M aurer mostrou ter
sido essa a base social da qual as tribos teutônicas derivaram historica
mente e, pouco a pouco, verificou-se que a com unidade rural era a form a
prim itiva da sociedade, da índia à Irlanda. A organização interna dessa so
ciedade com unista prim itiva foi desvendada, em sua form a típica, pela des
coberta decisiva de Morgan, que revelou a verdadeira natureza da gense a
sua relação com a tribo. Com a dissolução dessas com unidades primitivas,
a sociedade começou a se dividir em classes diferentes e finalm ente anta
gônicas. Procurei retratar esse processo de dissolução na obra D er Urs-
prung der Familie, des Privateigentums und des Staats (A origem da famí
lia, da propriedade privada e do estado), 2. ed. Stuttgart, 1886. (Nota de
Engels à edição inglesa de 1888.)
August Haxthausen (1792-1868), barão prussiano e conselheiro governa
mental, autor de numerosos livros de economia; Georg Ludwig von Maurer
(1790-1872), historiador alemão, investigador do regime social da Alemanha
antiga e medieval; Lewis Henry Morgan (1818-1881), etnógrafo, arqueólo
e
go historiador norte-americano, autor de importantes estudos sobre o de
senvolvimento da gens como forma principal da comunidade primitiva. (Nota
da edição da Vozes, com informações da edição alemã.)
4 Zunfbürger (guild-mastei): isto é, membro de uma corporação com todos os
direitos, mestre da mesma, e não seu dirigente. (Nota de Engels à edição
inglesa de 1888.)
105
desenvolvimento ao comércio, à navegação, às comunicações por terra.
Esse desenvolvimento, por sua vez, reagiu sobre a extensão da indústria;
e na proporção em que a indústria, o comércio, a navegação, as ferrovias
se estendiam, a burguesia também se desenvolvia, aumentava seus capi
tais e colocava num plano secundário todas as classes legadas pela Idade
Média. [...]
Cada uma dessas etapas de desenvolvimento da burguesia foi
acompanhada por um progresso político correspondente. Estamento
(Stand) oprimido sob o domínio dos senhores feudais, associações arma
das e autônomas na comuna5, aqui república urbana independente, ali ter
ceiro estado tributário da monarquia, depois, no período manufatureiro,
contrapeso da nobreza na monarquia corporativa (ständischen) ou abso
luta e, em geral, principal fundamento das grandes monarquias, a burgue
sia, com o estabelecimento da grande indústria e do mercado mundial,
conquistou finalmente o domínio político exclusivo no Estado represen
tativo moderno. O poder político do Estado moderno nada mais é do que
um comitê (Ausschuss) para administrar os negócios comuns de toda a
classe burguesa.
A burguesia desempenhou na história um papel extremamente revo
lucionário. [...]
A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os ins
trumentos de produção e, por conseguinte, as relações de produção, portan
to todo o conjunto das relações sociais. A conservação inalterada do antigo
modo de produção era, ao contrário, a primeira condição de existência de
todas as classes industriais anteriores. O contínuo revolucionamento
(Umwälzung) da produção, o abalo constante de todas as condições sociais,
a incerteza e a agitação eternas distinguem a época burguesa de todas as
106
precedentes. Todas as relações fixas e cristalizadas, com seu séquito de
crenças e opiniões tornadas veneráveis pelo tempo, são dissolvidas, e as
novas envelhecem antes mesmo de se consolidarem. Tudo o que é sólido e
estável se volatiliza, tudo o que é sagrado é profanado, e os homens são
finalmente obrigados a encarar com sobriedade e sem ilusões sua posição
na vida, suas relações recíprocas.
A necessidade de mercados cada vez mais extensos para seus pro
dutos impele a burguesia para todo o globo terrestre. Ela deve estabele-
cer-se em toda parte, instalar-se em toda parte, criar vínculos em toda
parte.
Através da exploração do mercado mundial, a burguesia deu um
caráter cosmopolita à produção e ao consumo de todos os países. Para
grande pesar dos reacionários, retirou debaixo dos pés da indústria o ter
reno nacional. As antigas indústrias nacionais foram destruídas e conti
nuam a ser destruídas a cada dia. São suplantadas por novas indústrias,
cuja introdução se torna uma questão de vida ou morte para todas as na
ções civilizadas — indústrias que não mais empregam matérias-primas
locais, mas matérias-primas provenientes das mais remotas regiões, e cu
jos produtos são consumidos não somente no próprio país, mas em todas
as partes do mundo. Em lugar das velhas necessidades, satisfeitas pela
produção nacional, surgem necessidades novas, que para serem satisfei
tas exigem os produtos das terras e dos climas mais distantes. Em lugar
da antiga auto-suficiência e do antigo isolamento local e nacional, desen
volve-se em todas as direções um intercâmbio universal, uma universal
interdependência das nações. E isso tanto na produção material quanto na
intelectual. Os produtos intelectuais (clie geistigen Erzeugnisse) de cada
nação tornam-se patrimônio comum. A unilateralidade e a estreiteza na
cionais tornam-se cada vez mais impossíveis, e das numerosas literaturas
nacionais e locais forma-se uma literatura mundial.
Com o rápido aperfeiçoamento de todos os instrumentos de produ
ção, com as comunicações imensamente facilitadas, a burguesia arrasta para
a civilização todas as nações, até mesmo as mais bárbaras. Os baixos pre
ços de suas mercadorias são a artilharia pesada com que derruba todas as
muralhas chinesas, com que força à capitulação o mais obstinado ódio dos
bárbaros aos estrangeiros. Obriga todas as nações, sob pena de extinção, a
adotarem o modo de produção da burguesia; obriga-as a ingressarem no
107
que ela chama de civilização, isto é, a se tomarem burguesas. Numa pala
vra, cria um mundo à sua imagem e semelhança. [...]
Em seu domínio de classe de apenas cem anos, a burguesia criou
forças produtivas mais poderosas e colossais do que todas as gerações pas
sadas em conjunto. Subjugação das forças da natureza, maquinaria, aplica
ção da química na indústria e na agricultura, navegação a vapor, ferrovias,
telégrafo elétrico, arroteamento de continentes inteiros, navegabilidade dos
rios, populações inteiras brotadas do solo como que por encanto — qual
século anterior poderia suspeitar que semelhantes forças produtivas esti
vessem adormecidas no seio do trabalho social?
Vimos, portanto, que os meios de produção e de troca à base dos
quais veio se constituindo a burguesia foram produzidos no interior da so
ciedade feudal. Num certo estágio de desenvolvimento desses meios de pro
dução e de troca, as condições nas quais a sociedade feudal produzia e tro
cava, quer dizer, a organização feudal da agricultura e da manufatura, numa
palavra, as relações feudais de propriedade, deixaram de corresponder às
forças produtivas já desenvolvidas. Travavam a produção ao invés de im
pulsioná-la. Transformaram-se em outras tantas cadeias. Precisavam ser
despedaçadas e foram despedaçadas.
Em seu lugar implantou-se a livre concorrência, com uma constitui
ção política e social apropriada, com o domínio econômico e político da
classe burguesa.
Assistimos hoje a um movimento análogo. As relações burguesas
de produção e de troca, as relações burguesas de propriedade, a moderna
sociedade burguesa, que fez surgir como que por encanto possantes mei
os de produção e de troca, assemelha-se ao feiticeiro (Hexenmeister) que
já não pode controlar as potências infernais por ele postas em movimen
to. Há mais de uma década a história da indústria e do comércio não é
senão a história da revolta das forças produtivas modernas contra as mo
dernas relações de produção, contra as relações de propriedade que são a
condição de existência da burguesia e de seu domínio. Basta mencionar
as crises comerciais que, com seu periódico retomo, põem em questão e
ameaçam cada vez mais a existência de toda a sociedade burguesa. Nas
crises comerciais é destruída regularmente uma grande parte não só dos
produtos fabricados, como também das forças produtivas já criadas. Nes
sas crises, irrompe uma epidemia social que em épocas precedentes teria
108
parecido um absurdo — a epidemia da superprodução. A sociedade vê-se
repentinamente reconduzida a um estado de barbárie momentânea; é
como se uma situação de miséria (eine Hungersnot) ou uma guerra geral
de extermínio houvessem suprimido todos os meios de subsistência; o
comércio e a indústria parecem aniquilados, e por quê? Porque a socieda
de possui demasiada civilização, demasiados meios de subsistência, de
masiada indústria, demasiado comércio. As forças produtivas disponíveis
já não favorecem mais o desenvolvimento da civilização burguesa e das
relações burguesas de propriedade; ao contrário, tomaram-se poderosas
demais para essas relações e passam a ser por elas travadas; e assim que
vencem esse obstáculo, desarranjam toda a sociedade, põem em perigo a
existência da propriedade burguesa. As relações burguesas tornaram-se
estreitas demais para conter a riqueza por elas mesmas criada. E de que
modo a burguesia vence tais crises? De um lado, através da destruição
forçada de uma massa de forças produtivas; de outro, através da conquis
ta de novos mercados e da exploração mais intensa dos antigos. De que
modo, portanto? Mediante a preparação de crises mais gerais e mais vio
lentas c a diminuição dos meios de evitá-las.
As armas de que se serviu a burguesia para abater o feudalismo vol
tam-se agora contra a própria burguesia.
Mas a burguesia não forjou apenas as armas que lhe trarão a morte;
produziu também os homens que empunharão essas armas — os operários
modernos, os proletários.
Na mesma proporção em que se desenvolve a burguesia, ou seja, o
capital, desenvolve-se também o proletariado, a classe dos operários mo
dernos, que vivem apenas na medida em que encontram trabalho e que só
encontram trabalho na medida em que o seu trabalho aumente o capital.
Tais operários, obrigados a se vender peça por peça, são uma mercadoria
como qualquer outro artigo de comércio e estão, portanto, expostos a todas
as vicissitudes da concorrência, a todas as flutuações do mercado.
O desenvolvimento da maquinaria e a divisão do trabalho levam o
trabalho dos proletários a perder todo caráter independente e com isso
qualquer atrativo para o operário. Esse se toma um simples acessório da
máquina, do qual só se requer a operação mais simples, mais monótona,
mais fácil de aprender. Em decorrência, as despesas causadas pelo operá
rio reduzem-se quase exclusivamente aos meios de subsistência de que
109
necessita para sua manutenção e para a reprodução de sua espécie (Race).
Mas o preço de uma mercadoria e, portanto, o do trabalho6, é igual ao seu
custo de produção. Logo, à medida que aumenta o tédio (die Widerwärtig
keit) do trabalho, diminui o salário. Mais ainda: à medida que crescem a
maquinaria e a divisão do trabalho, cresce também a massa de trabalho,
seja através do aumento das horas de trabalho, seja através do aumento
do trabalho exigido num certo tempo, seja através da aceleração da velo
cidade das máquinas, etc.
A indústria moderna transformou a pequena oficina do mestre-
artesão patriarcal na grande fábrica do capitalista industrial. Massas de
operários, aglomeradas nas fábricas, são organizadas militarmente.
Como simples soldados da indústria, são postos sob a vigilância de uma
completa hierarquia de suboficiais e oficiais. Não são apenas servos da
classe burguesa, do Estado burguês, mas são também, a cada dia e a
cada hora, escravizados pela máquina, pelo capataz e sobretudo pelo
singular burguês fabricante em pessoa. Tal despotismo é tão mais mes
quinho, odioso e exasperador quanto mais abertamente proclama ser o
lucro seu objetivo último.
Quanto menos habilidade e força exige o trabalho manual, quer
dizer, quanto mais a indústria moderna se desenvolve, mais o trabalho
dos homens é suplantado pelo das mulheres e crianças7. As diferenças
de sexo e de idade não têm mais valor social para a classe operária.
Ficam apenas instrumentos de trabalho, cujo custo varia conforme a ida
de e o sexo. [...]
Porém, com o desenvolvimento da indústria, o proletariado não ape
nas se multiplica; concentra-se em massas cada vez maiores, sua força au
menta e ele sente mais tudo isso. Os interesses, as condições de existência
6 Mais tarde, como se sabe, no lugar das expressões “valor do trabalho” e “preço
do trabalho” , Marx e Engels empregaram conceitos mais precisos: “valor da
força de trabalho" e “preço da força de trabalho” . Ver a “Introdução” de Engels
(1891) à obra de Marx, Trabalho assalariado e capital (1847) (ed. bras. Marx e
Engels, Obras escolhidas, São Paulo, Alfa-Omega, s.d., v. 1, p. 52-82.)
7 A partir da segunda im pressão do Manifesto, a menção às crianças desapa
rece. É evidente, porém, que a alusão às diferenças de sexo e idade feita
nas linhas subseqüentes só ganha sentido se as crianças estiverem previa
mente mencionadas. Tal omissão foi corrigida por Karl Kautsky na edição
alemã de 1912. (Nota da edição da Vozes.)
110
no interior do proletariado igualam-se cada vez mais à medida que a ma
quinaria elimina todas as distinções de trabalho e reduz, quase por toda
parte, os salários a um mesmo nível baixo. A crescente concorrência dos
burgueses entre si e as crises comerciais que disso resultam tornam os salá
rios dos operários cada vez mais instáveis; o aperfeiçoamento constante e
cada vez mais rápido das máquinas torna as condições de vida do operário
cada vez mais precárias; as colisões entre o operário singular e o burguês
singular assumem cada vez mais o caráter de colisões entre duas classes.
Os operários começam a formar coalizões contra os burgueses; reúnem-se
para defender seus salários. Chegam até mesmo a fundar associações per
manentes para estarem precavidos no caso de eventuais sublevações. Aqui
e ali a luta explode em revoltas.
De tempos em tempos os operários triunfam, mas é um triunfo
efêmero. O verdadeiro resultado de suas lutas não é o êxito imediato,
mas a união cada vez mais ampla dos operários. Tal união é facilitada
pelo crescimento dos meios de comunicação que são criados pela gran
de indústria e que colocam em contato os operários de diferentes locali
dades. E basta esse contato para centralizar as numerosas lutas locais,
todas do mesmo caráter, numa luta nacional, numa luta de classes. Mas
toda luta de classes é uma luta política. E a união que os habitantes das
cidades da Idade Média, com seus caminhos vicinais, levaram séculos
para alcançar, é hoje, com as ferrovias, realizada em poucos anos pelos
proletários modernos.
Essa organização dos proletários em classe e, com isso, em partido
político, é incessantemente abalada pela concorrência entre os próprios ope
rários. Mas renasce sempre, cada vez mais forte, mais firme, mais podero
sa. Aproveita-se das divisões internas da burguesia para forçá-la a reconhe
cer, sob a forma de lei, certos interesses particulares dos operários. Foi as
sim, por exemplo, com a lei das dez horas de trabalho na Inglaterra8. [...]
De todas as classes que hoje se opõem à burguesia, apenas o proleta
riado é uma classe verdadeiramente revolucionária. As demais classes vão-
se arruinando (verkommen) e por fim desaparecem com a grande indústria;
o proletariado é o seu produto mais autêntico. [...]
111
As condições de existência da velha sociedade já estão anuladas nas
condições de existência do proletariado. O proletário é sem propriedade;
suas relações com a mulher e os filhos nada têm de comum com as relações
familiares burguesas; o moderno trabalho industrial, a moderna subjugação
ao capital — idêntica na Inglaterra e na França, na América e na Alemanha
— , despojou-o de todo caráter nacional. As leis, a moral, a religião, são
para ele meros preconceitos burgueses, por detrás dos quais se ocultam ou
tros tantos interesses burgueses.
Todas as classes que no passado conquistaram o poder procuraram
consolidar a posição já adquirida submetendo toda a sociedade às suas con
dições de apropriação. Os proletários não podem se apoderar das forças
produtivas sociais a não ser suprimindo o modo de apropriação a elas cor
respondente e, com isso, todo modo de apropriação existente até hoje. Os
proletários nada têm de seu para salvaguardar; têm para destruir toda a se
gurança privada e todas as garantias privadas até aqui existentes.
Todos os movimentos precedentes foram movimentos de minorias
ou no interesse de minorias. O movimento proletário é o movimento inde
pendente da imensa maioria no interesse da imensa maioria. O proletaria
do, estrato (Schicht) inferior da atual sociedade, não pode erguer-se, pôr-se
de pé, sem que salte pelos ares toda a superestrutura (Überbau) dos estratos
que constituem a sociedade oficial.
Não por seu conteúdo mas por sua forma, a luta do proletariado
contra a burguesia é num primeiro tempo uma luta nacional. O proletari
ado de cada país deve evidentemente acabar antes de mais nada com sua
própria burguesia.
Esboçando as fases mais gerais do desenvolvimento do proletaria
do, seguimos a guerra civil (Bürgerkrieg) mais ou menos oculta dentro
da sociedade atual, até o momento em que ela explode numa revolução
aberta e o proletariado funda sua dominação com a derrubada violenta da
burguesia.
Toda sociedade até aqui existente repousou, como vimos, no anta
gonismo entre classes de opressores e classes de oprimidos. Mas, para que
uma classe possa ser oprimida, é preciso que lhe sejam asseguradas condi
ções nas quais possa ao menos dar continuidade à sua existência servil
(Knechtische Existenz). O servo, durante a servidão, conseguiu tomar-se
membro da comuna, assim como o burguês embrionário (Kleinbürger), sob
112
o jugo do absolutismo feudal, conseguiu tomar-se burguês (Bourgeois). O
operário moderno, ao contrário, ao invés de se elevar com o progresso da
indústria, desce cada vez mais, caindo inclusive abaixo das condições de
existência de sua própria classe. O operário torna-se um pobre (Pauper) e o
pauperismo cresce ainda mais rapidamente do que a população e a riqueza.
Fica assim evidente que a burguesia é incapaz de continuar por muito mais
tempo sendo a classe dominante da sociedade e de impor à sociedade, como
lei reguladora, as condições de existência de sua própria classe. É incapaz
de dominar porque é incapaz de assegurar a existência de seu escravo (Skla-
ven) em sua escravidão, porque é obrigada a deixá-lo cair numa situação
em que deve alimentá-lo ao invés de ser por ele alimentada. A sociedade
não pode mais existir sob sua dominação, quer dizer, a existência da bur
guesia não é mais compatível com a sociedade.
A condição mais essencial para a existência e a dominação da classe
burguesa é a acumulação da riqueza nas mãos de particulares, a formação e
o aumento do capital; a condição do capital é o trabalho assalariado. O
trabalho assalariado baseia-se exclusivamente na concorrência dos operári
os entre si. O progresso da indústria, cujo agente involuntário e passivo é a
própria burguesia, substitui o isolamento dos operários, resultante da con
corrência, por sua união revolucionária resultante da associação. Assim, o
desenvolvimento da grande indústria abala sob os pés da burguesia a pró
pria base sobre a qual ela produz e se apropria dos produtos. A burguesia
produz, acima de tudo, seus próprios coveiros. Seu declínio e a vitória do
proletariado são igualmente inevitáveis.
9 “Na form a de dinheiro [...] o capital não gera lucro.” (David Ricardo, On the
Principles of Political Economy and Taxation, Londres, 1821, p. 267.)
115
Para que, no entanto, o possuidor de dinheiro encontre à disposi
ção no mercado a força do trabalho como mercadoria, diversas condições
precisam ser preenchidas. O intercâmbio de mercadorias não inclui em si
e para si outras relações de dependência que não as originadas de sua
própria natureza. Sob esse pressuposto, a força de trabalho como merca
doria só pode aparecer no mercado à medida que e porque ela é oferecida
à venda ou é vendida como mercadoria por seu próprio possuidor, pela
pessoa da qual ela é a força de trabalho. Para que seu possuidor venda-a
como mercadoria, ele deve poder dispor dela, ser, portanto, livre proprie
tário de sua capacidade de trabalho, de sua pessoa10. Ele e o possuidor de
dinheiro se encontram no mercado e entram em relação um com o outro
como possuidores de mercadorias iguais por origem, só se diferenciando
por um ser comprador e o outro, vendedor, sendo portanto ambos pessoas
juridicamente iguais. O prosseguimento dessa relação exige que o propri
etário da força de trabalho só a venda por determinado tempo, pois, se a
vende em bloco, de uma vez por todas, então ele vende a si mesmo, trans
forma-se de homem livre em um escravo, de possuidor de mercadoria em
uma mercadoria. Como pessoa, ele tem de se relacionar com sua força de
trabalho como sua propriedade e, portanto, sua própria mercadoria, e isso
ele só pode na medida em que ele a coloca à disposição do comprador
apenas provisoriamente, por um prazo de tempo determinado, deixando-
a ao consumo, portanto, sem renunciar à sua propriedade sobre ela por
meio de sua alienação.
A segunda condição essencial para que o possuidor de dinheiro en
contre no mercado a força de trabalho como mercadoria é que seu possui
dor, em lugar de poder vender mercadorias em que seu trabalho se tenha
objetivado, precisa, muito mais, oferecer à venda como mercadoria sua pró
pria força de trabalho, que só existe em sua corporalidade viva. [...]
Para transformar dinheiro em capital, o possuidor de dinheiro preci
sa encontrar, portanto, o trabalhador livre no mercado de mercadorias, livre
116
no duplo sentido de que ele dispõe, como pessoa livre, de sua força de
trabalho como sua mercadoria, e de que ele, por outro lado, não tem outras
mercadorias para vender, solto e solteiro, livre de todas as coisas necessá
rias àrealização de sua força de trabalho. [...]
Essa mercadoria peculiar, a força de trabalho, tem de ser agora exa
minada mais de perto. Como todas as outras mercadorias, ela tem um va
lor". Como ele é determinado?
O valor da força de trabalho, como o de toda outra mercadoria, é
determinado pelo tempo de trabalho necessário à produção, portanto tam
bém reprodução, desse artigo específico. Enquanto valor, a própria força
de trabalho representa apenas determinado quantum de trabalho social mé
dio nela objetivado. A força de trabalho só existe como disposição do indi
víduo vivo. Sua produção pressupõe, portanto, a existência dele. Dada a
existência do indivíduo, a produção da força de trabalho consiste em sua
própria reprodução ou manutenção. Para sua manutenção, o indivíduo vivo
precisa de certa soma de meios de subsistência. O tempo de trabalho neces
sário à produção da força de trabalho corresponde, portanto, ao tempo de
trabalho necessário à produção desses meios de subsistência ou o valor da
força de trabalho é o valor dos meios de subsistência necessários à manu
tenção do seu possuidor. A força de trabalho só se realiza, no entanto, me
diante sua exteriorização, ela só se aciona no trabalho. Por meio de sua
ativação, o trabalho, é gasto, porém, determinado quantum de músculo,
nervo, cérebro etc. humanos que precisa ser reposto. Esse gasto acrescido
condiciona uma receita acrescida12. Se o proprietário da força de trabalho
trabalhou hoje, ele deve poder repetir o mesmo processo amanhã, sob as
mesmas condições de força e saúde. A soma dos meios de subsistência
deve, pois, ser suficiente para manter o indivíduo trabalhador como indiví
duo trabalhador em seu estado de vida normal. As próprias necessidades
117
naturais, como alimentação, roupa, aquecimento, moradia, etc., são dife
rentes de acordo com o clima e outras peculiaridades naturais de um país.
Por outro lado, o âmbito das assim chamadas necessidades básicas, assim
como o modo de sua satisfação, é ele mesmo um produto histórico e depen
de, por isso, grandemente do nível cultural de um país, entre outras coisas
também essencialmente sob que condições, e, portanto, com que hábitos e
aspirações de vida, se constituiu a classe dos trabalhadores livres13. Em an
títese às outras mercadorias a determinação do valor da força de trabalho
contém, por conseguinte, um elemento histórico e moral. No entanto, para
determinado país, em determinado período, o âmbito médio dos meios de
subsistência básicos é dado.
O proprietário da força de trabalho é mortal. Se, portanto, sua apa
rição no mercado é para ser contínua, como pressupõe a contínua trans
formação de dinheiro em capital, então o vendedor da força de trabalho
precisa perpetuar-se “como todo indivíduo se perpetua pela procriação”14.
As forças de trabalho subtraídas do mercado pelo desgaste e morte preci
sam ser continuamente substituídas ao menos por um número igual de
novas forças de trabalho. A soma dos meios de subsistência necessários à
produção da força de trabalho inclui, portanto, os meios de subsistência
dos substitutos, isto é, dos filhos dos trabalhadores, de modo que essa
race15 de peculiares possuidores de mercadorias se perpetue no mercado
de mercadorias.
Para modificar a natureza humana geral de tal modo que ela alcance
habilidade e destreza em determinado ramo de trabalho, tornando-se força
de trabalho desenvolvida e específica, é preciso determinada formação ou
educação, que, por sua vez, custa uma soma maior ou menor de equivalen
tes mercantis. Conforme o caráter mais ou menos mediato da força de tra
balho, os seus custos de formação são diferentes. Esses custos de aprendi
zagem, ínfimos para a força de trabalho comum, entram portanto no âmbito
dos valores gastos para a sua produção. [...]
A natureza peculiar dessa mercadoria específica, a força de traba
lho, faz com que, com a conclusão do contrato entre comprador e vende-
120
importância, sorriso satisfeito e ávido por negócios; o outro, tímido, con
trafeito, como alguém que levou a sua própria pele para o mercado e agora
não tem mais nada a esperar, exceto o — curtume.
O PROCESSO DE VALORIZAÇÃO
121
trabalho. De início, tem-se portanto de calcular o trabalho materializa
do nesse produto.
Seja, por exemplo, fio.
Para a fabricação do fio precisa-se, em primeiro lugar, de sua maté-
ria-prima, por exemplo, 10 libras de algodão. Não é necessário investigar o
valor do algodão pois o capitalista o comprou no mercado pelo seu valor,
por exemplo, 10 xelins. No preço do algodão já está representado o traba
lho exigido para sua produção, como trabalho geral social. Suponhamos
ainda que a massa de fusos desgastada no processamento do algodão, que
representa, para nós, todos os outros meios de trabalho empregados, tenha
um valor de 2 xelins. Se uma massa de ouro de 12 xelins é o produto de 24
horas ou 2 dias de trabalho, segue-se, de início, que no fio estão objetiva
dos 2 dias de trabalho.
Não nos deve desconcertar a circunstância de que o algodão mu
dou sua forma e a massa de fusos consumida desapareceu totalmente.
Segundo a lei geral do valor, 10 libras de fio, por exemplo, são um equi
valente de 10 libras de algodão mais 1/4 de fuso, desde que o valor de 40
libras de fio seja = o valor de 40 libras de algodão + o valor de um fuso
inteiro, isto é, que o mesmo tempo de trabalho seja exigido para produzir
o que está em cada um dos lados dessa equação. Nesse caso, o mesmo
tempo de trabalho representa-se uma vez no valor de uso fio, e a outra
vez nos valores de uso algodão e fuso. Ao valor é indiferente se aparece
em fio, fuso ou algodão. O fato de que fuso e algodão, em vez de ficarem
parados, um ao lado do outro, se unem no processo de fiação, que modifi
ca suas formas de uso transformando-se em fio, afeta tão pouco o seu
valor quanto se fossem realizados, mediante simples intercâmbio, contra
um equivalente de fio.
O tempo de trabalho exigido para a produção do algodão é parte do
tempo de trabalho exigido para a produção do fio, ao qual serve de matéria-
prima, e por isso está contido no fio. O mesmo vale para o tempo de traba
lho exigido para produzir a massa de fusos, sem cuja depreciação ou consu
mo o algodão não poderia ser fiado19.
19 “No valor das mercadorias não influi apenas o trabalho nelas diretam ente
aplicado, mas também o trabalho aplicado nos instrumentos, ferram entas e
edifícios que apóiam o trabalho diretam ente despendido.” (David Ricardo,
o p. c/f., p. 16.)
122
Na medida em que, portanto, o valor do fio, o tempo de trabalho
exigido para sua produção, é considerado, os diferentes processos parti
culares de trabalho separados no tempo e no espaço, que têm que ser per
corridos para produzir o próprio algodão e a massa de fusos desgastada e
para fazer, finalmente, de algodão e fuso fio, podem ser considerados
como diversas fases sucessivas do mesmo processo de trabalho. Todo o
trabalho contido no fio é trabalho passado. Que o tempo de trabalho exi
gido para a produção dos elementos constitutivos do fio tenha passado
antes, estando no mais-que-perfeito, enquanto o trabalho empregado di
retamente no processo final, a fiação, encontra-se mais perto do presente,
no pretérito perfeito, é uma circunstância absolutamente indiferente. Se
determinada quantidade de trabalho, 30 dias de trabalho por exemplo, é
necessária para construir uma casa, não se altera nada no quantum total
do tempo de trabalho incorporado à casa pelo fato de que o trigésimo dia
de trabalho entrou na produção 29 dias depois do primeiro dia de traba
lho. E assim pode considerar-se o tempo de trabalho contido no material
de trabalho e nos meios de trabalho como se tivesse sido despendido numa
fase anterior do processo de fiação, antes do trabalho finalmente acres
centado, sob a forma de fiação.
Os valores dos meios de produção, do algodão e do fuso, expressos
no preço de 12 xelins, formam, portanto, partes integrantes do valor do fio
ou do valor do produto.
Só duas condições têm de ser preenchidas. Primeiro, algodão e fuso
devem ter servido realmente à produção de um valor de uso. Devem ter-
se tornado em nosso caso fio. Que valor de uso o porta é indiferente ao
valor, mas um valor de uso tem de portá-lo. Segundo, pressupõe-se que
somente o tempo de trabalho necessário, sob dadas condições sociais de
produção, foi aplicado. Se, portanto, apenas 1 libra de algodão fosse ne
cessária para fiar I libra de fio, então deve-se consumir apenas 1 libra de
algodão na fabricação de 1 libra de fio. O mesmo vale para o fuso. Ainda
que o capitalista tivesse a fantasia de empregar fusos de ouro em vez de
fusos de ferro, no valor do fio só conta, todavia, o trabalho socialmente
necessário, isto é, o tempo de trabalho necessário para a produção de fu
sos de ferro.
Sabemos agora qual parte do valor do fio forma os meios de produ
ção, algodão e fuso. É igual a 12 xelins, ou à materialização de 2 dias de
123
trabalho. Trata-se agora daquela parte de valor que o trabalho do próprio
fiandeiro acrescenta ao algodão.
Agora temos de observar esse trabalho sob um aspecto totalmen
te diverso daquele sob o qual o consideramos durante o processo de
trabalho. Lá, tratava-se da atividade orientada ao fim de transformar
algodão em fio. Quanto mais adequado o trabalho a esse, tanto melhor o
fio, supondo-se inalteradas todas as demais circunstâncias. O trabalho
do fiandeiro era especificamente diferente de outros trabalhos produti
vos, e a diversidade manifestava-se subjetiva e objetivamente no fim
particular da fiação, em seu modo particular de operar, na natureza par
ticular de seus meios de produção, no valor de uso particular de seu
produto. Algodão e fuso servem de meios de subsistência do trabalho
de fiar, mas não se pode com eles fazer canhões raiados. Na medida em
que o trabalho do fiandeiro é, pelo contrário, formador de valor, isto é,
fonte de valor, não se distingue em nada do trabalho do perfurador de
canhões, ou, que está aqui mais próximo, dos trabalhos do plantador de
algodão e do produtor de fusos, realizados nos meios de produção do
fio. É apenas por causa dessa identidade que plantar algodão, fazer fu
sos e fiar podem formar partes apenas quantitativamente diferentes do
mesmo valor total, do valor do fio. Aqui já não se trata da qualidade, da
natureza e do conteúdo do trabalho, mas apenas de sua quantidade. É
fácil calculá-la. Pressupomos que o trabalho de fiar é trabalho simples,
trabalho social médio. Ver-se-á depois que o pressuposto contrário não
altera nada na coisa.
Durante o processo de trabalho, o trabalho se transpõe continuamen
te da forma de agitação para a de ser, da forma de movimento para a de
objetividade. Ao fim de 1 hora, o movimento de fiar está representado em
determinado quantum de fio, portanto determinado quantum de trabalho, 1
hora de trabalho, está objetivado no algodão. Dizemos hora de trabalho,
isto é, o dispêndio da força vital do fiandeiro durante I hora, pois o trabalho
de fiar apenas vale aqui enquanto dispêndio de força de trabalho e não en
quanto trabalho específico de fiação.
Agora é de importância decisiva que durante o processo, isto é,
durante a transformação do algodão em fio, somente o tempo de traba
lho socialmente necessário seja consumido. Se sob condições sociais de
produção normais, isto é, médias, A libras de algodão têm de ser trans
124
formadas, durante 1 hora de trabalho, em B libras de fio, então somente
vale como jornada de trabalho de 12 horas aquela jornada de trabalho
que transforma 12 x A libras de algodão em 12 x B libras de fio. Pois
apenas o tempo de trabalho socialmente necessário conta como forman
do valor.
Como o próprio trabalho, assim a matéria-prima e o produto apare
cem aqui sob uma luz totalmente diferente da projetada pelo ponto de
vista do processo de trabalho propriamente dito. A matéria-prima funcio
nou aqui apenas como algo que absorve determinado quantum de traba
lho. Por meio dessa absorção transforma-se, de fato, em fio, porque a
força de trabalho foi despendida e lhe foi acrescentada sob a forma de
fiação. Mas o produto, o fio, é agora apenas uma escala graduada que
mede o trabalho absorvido pelo algodão. Se em 1 hora 1 2/3 libra de algo
dão é fiada ou transformada em 1 2/3 libra de fio, então 10 libras de fio
indicam 6 horas de trabalho absorvidas. Quantidades de produto determi
nadas, verificadas pela experiência, representam agora nada mais que de
terminadas quantidades de trabalho, determinada massa de tempo de tra
balho solidificado. São apenas a materialização de 1 hora, de 2 horas, de
1 dia de trabalho social.
Que o trabalho seja precisamente trabalho de fiar, seu material o al
godão e seu produto o fio interessa aqui tão pouco quanto o objeto do traba
lho, por sua vez, ser já produto, portanto, matéria-prima. Se o trabalhador,
em vez de fiar, estivesse ocupado numa mina de carvão, o objeto de traba
lho, o carvão, seria preexistente por natureza. Apesar disso, determinado
quantum de carvão arrancado da rocha, 1 quintal por exemplo, representa
ria determinado quantum de trabalho absorvido.
Ao tratar da venda da força de trabalho, foi suposto que seu valor
diário = 3 xelins e que nestes últimos estão incorporadas 6 horas de traba
lho, sendo, portanto, exigido esse quantum de trabalho para produzir a soma
média dos meios diários de subsistência do trabalhador. Se nosso fiandeiro,
durante 1 hora de trabalho, transforma 1 2/3 libra de algodão em 1 2/3 libra
de fio20, então transformará, em 6 horas, 10 libras de algodão em 10 libras
de fio. Durante o processo da fiação o algodão absorve, portanto, 6 horas
de trabalho. O mesmo tempo de trabalho representa-se num quantum de
20 Esses números são totalm ente arbitrários.
125
ouro de 3 xelins. Mediante a própria fiação acrescenta-se, pois, ao algodão
um valor de 3 xelins.
Vejamos agora o valor total do produto, das 10 libras de fio. Nelas
se objetivam 2 1/2 dias de trabalho, sendo 2 dias contidos no algodão e na
massa de fusos, e 1/2 dia absorvido durante o processo da fiação. O mesmo
tempo de trabalho representa-se numa massa de ouro de 15 xelins. O preço
adequado ao valor das 10 libras de fio é, portanto, 15 xelins, o preço de 1
libra de fio, 1 xelim e 6 pence.
Nosso capitalista fica perplexo. O valor do produto é igual ao valor
do capital adiantado. O valor adiantado não se valorizou, não produziu
mais-valia, o dinheiro não se transformou pois em capital. O preço das 10
libras de fio é 15 xelins, e 15 xelins foram despendidos no mercado pelos
elementos constitutivos do produto ou, o que é o mesmo, para os fatores do
processo de trabalho: 10 xelins para o algodão, 2 xelins para a massa de
fusos consumida e 3 xelins para a força de trabalho. O valor inchado do fio
em nada ajuda, pois seu valor é apenas a soma dos valores que antes se
distribuíram entre algodão, fuso e força de trabalho, e de tal adição simples
de valores preexistentes não pode agora e jamais surgir uma mais-valia21.
Esses valores estão concentrados agora numa só coisa, mas já o estavam na
soma de dinheiro de 15 xelins antes que esta se fragmentasse por meio de
três compras de mercadorias.
Em si para si, esse resultado não tem nada de estranho. O valor de 1
libra de fio é 1 xelim e 6 pence, e por 10 libras de fio nosso capitalista teria
de pagar no mercado, portanto. 15 xelins. Tanto faz que compre no merca
do sua casa particular já pronta, ou que a mande construir, nenhuma dessas
operações aumentará o dinheiro gasto na aquisição da casa.
21 Essa é a proposição fundam ental em que se baseia a doutrina fisiocrática
da improdutividade de todo trabalho não-agrícola, e ela é irrefutável para o
economista — de profissão. “ Essa maneira de im putar a um único objeto os
valores de vários outros” (por exemplo, ao linho a subsistência do tecelão),
“de acumular, por assim dizer, diversos valores em cam adas sobre um úni
co, faz com que este cresça na mesma proporção. [...] A palavra adição
designa muito bem o m odo como se form a o preço das manufaturas; este
preço é apenas a som a total de vários valores consum idos e adicionados;
mas adicionar não é m ultiplicar.” (Mercier de la Rivière, op. cit., p. 599.) (M er
cier de la Rivière, L'ordre naturel et essentiel des sociétés politiques, T. 1. 2,
Londres, 1767, in E. Daire (org.), Physiocrates..., Paris, 1846 - nota da edi
ção alemã.)
126
O capitalista, familiarizado com a economia vulgar, dirá talvez
que adiantou seu dinheiro com a intenção de, com isso, fazer mais di
nheiro. Mas o caminho ao inferno está calçado de boas intenções e ele
poderia, do mesmo modo, ter a intenção de fazer dinheiro sem produzir
nada22. Ameaça. Não o apanharão de novo. Futuramente, comprará a
mercadoria pronta no mercado em vez de fabricá-la. Mas se todos os
seus irmãos capitalistas fizerem o mesmo, onde deverá ele encontrar
mercadorias prontas? E dinheiro ele não pode comer. Ele faz um ser
mão. Deve-se levar em consideração sua abstinência. Poderia esbanjar
seus 15 xelins. Em lugar disso, os consumiu produtivamente e os trans
formou em fio. Mas, graças a isso, ele tem fio em vez de remorsos. Ele
não deve, de modo algum, recair no papel do entesourador que já nos
mostrou o que se obtém do ascetismo. Além disso, onde nada existe, o
imperador perdeu seu direito. Qualquer que seja o mérito de sua renún
cia, não existe nada para pagá-lo adicionalmente, uma vez que o valor
do produto que resulta do processo é apenas igual à soma dos valores
das mercadorias lançadas nele. Tem de consolar-se com a idéia de a
virtude ser a recompensa da virtude. Mas, em vez disso, ele se torna
importuno. O fio não lhe serve de nada. Ele o produziu para a venda.
Assim que ele o venda ou, melhor ainda, que produza no futuro apenas
coisas para seu próprio uso, receita que seu médico da família, Mac-
Culloch, já prescrevera como remédio comprovado contra a epidemia
da superprodução. Ele se torna teimoso. Deveria o trabalhador, com seus
próprios membros, criar no éter Figurações de trabalho, produzir merca
dorias? Não lhe deu ele a matéria, com a qual e na qual pode dar corpo
a seu trabalho? Sendo a maior parte da sociedade constituída dos que
nada têm não prestou ele um serviço inestimável à sociedade com seus
meios de produção, seu algodão e seus fusos, e também ao próprio tra
balhador, ao qual forneceu ainda meios de subsistência? Não deve ele
apresentar a conta por tal serviço? Mas não prestou-lhe o trabalhador
em contrapartida o serviço de transformar algodão e fuso em fio? Além
22 Assim, por exemplo, ele retirou de 1844 a 1847 parte de seu capital do ne
gócio produtivo para perdê-la na especulação com ações ferroviárias. As
sim, ao tempo da Guerra de Secessão americana, fechou a fábrica e lançou
o operário na rua, para jogar na Bolsa de algodão de Liverpool.
127
disso, não se trata aqui de serviços23. Um serviço é nada mais que o
efeito útil de um valor de uso, seja da mercadoria, seja do trabalho24.
Mas aqui trata-se do valor de troca. O capitalista pagou ao trabalhador o
valor de 3 xelins. O trabalhador devolveu-lhe um equivalente exato, no
valor de 3 xelins, acrescido ao algodão. Valor contra valor. Nosso ami
go, até há pouco capitalisticamente arrogante, assume subitamente a ati
tude modesta de seu próprio trabalhador. Não trabalhou ele mesmo? Não
executou o trabalho de vigilância e superintendência sobre o fiandeiro?
Não cria valor também esse seu trabalho? Mas seu próprio overlooker25
e seu gerente encolhem os ombros. Entrementes, já recobrou com um
sorriso alegre sua fisionomia anterior. Ele troçou de nós com toda essa
ladainha. Não daria um centavo por ela. Ele deixa esses e semelhantes
subterfúgios e petas vazias aos professores de Economia Política, ex
pressamente pagos para isso. Ele mesmo é um homem prático que nem
sempre pensa no que diz fora do negócio, mas sempre sabe o que faz
dentro dele.
Examinemos a coisa mais de perto. O valor de um dia da força de
trabalho importava em 3 xelins, porque nela mesma está objetivada meia
jornada de trabalho, isto é, porque os meios de subsistência necessários
para produzir diariamente a força de trabalho custam meia jornada de tra
balho. Mas o trabalho passado que a força de trabalho contém, e o trabalho
23 “Deixe que se exaltem, se adornem e se enfeitem. (...] Mas que toma mais ou
algo melhor” (do que dá) “pratica usura e não presta serviço, mas causa preju
ízo a seu próximo, como se furtasse ou roubasse. Nem tudo que se chama de
serviço e benefício ao próximo é serviço e benefício. Pois um adúltero e uma
adúltera se prestam mutuamente grande sen/iço e prazer. Um cavaleiro pres
ta grande serviço ao incendiário e assassino, ajudando-o a roubar nas estra
das, a fazer guerra a terras e gentes. Os papistas prestam aos nossos grande
serviço, ao não afogarem, queimarem, assassinarem ou fazerem apodrecer a
todos nas prisões, mas deixam alguns viverem, desterrando-os ou despojan
do-os de seus haveres. O próprio diabo presta a seus servidores grande e
inestimável serviço [...] Em resumo, o mundo está cheio de grandes e exce
lentes serviços e benefícios diários." (Martin Luther, An die Pfarrherm, wider
den Wucherzu Predigen, etc. Wittenberg, 1540.)
24 Em Zur Krítik derpolitischen CEkonomie, Berlim, 1859, p. 14, observo sobre
isso, entre outras coisas: “Compreende-se qual ‘serviço’ a categoria ‘servi
ço ’ (Service) deve prestar a um a espécie de economistas com o J.-B. Say e
F. Bastiat”.
25 Fiscal. (N. dos T.)
128
vivo que ela pode prestar, seus custos diários de manutenção e seu dispên
dio diário, são duas grandezas inteiramente diferentes. A primeira determi
na seu valor de troca, a outra forma seu valor de uso. O fato de que meia
jornada seja necessária para mantê-lo vivo durante 24 horas não impede o
trabalhador, de modo algum, de trabalhar uma jornada inteira. O valor da
força de trabalho e sua valorização no processo de trabalho são, portanto,
duas grandezas distintas. Essa diferença de valor o capitalista tinha em vis
ta quando comprou a força de trabalho. Sua propriedade útil, de poder fazer
fio ou botas, era apenas uma conditio sine qua non26, pois o trabalho para
criar valor tem de ser despendido em forma útil. Mas o decisivo foi o valor
de uso específico dessa mercadoria ser fonte de valor, e de mais valor do
que ela mesma tem. Esse é o serviço específico que o capitalista dela espe
ra. E ele procede, no caso, segundo as leis eternas do intercâmbio de mer
cadorias. Na verdade, o vendedor da força de trabalho, como o vendedor de
qualquer outra mercadoria, realiza seu valor de troca e aliena seu valor de
uso. Ele não pode obter um, sem desfazer-se do outro. O valor de uso da
força de trabalho, o próprio trabalho, pertence tão pouco ao seu vendedor,
quanto o valor de uso do óleo vendido, ao comerciante que o vendeu. O
possuidor de dinheiro pagou o valor de um dia da força de trabalho; perten
ce-lhe, portanto, a utilização dela durante o dia, o trabalho de uma jornada.
A circunstância de que a manutenção diária da força de trabalho só custa
meia jornada de trabalho, apesar de a força de trabalho poder operar, traba
lhar um dia inteiro, e por isso, o valor que sua utilização cria durante um
dia é o dobro de seu próprio valor de um dia, é grande sorte para o compra
dor, mas, de modo algum, uma injustiça contra o vendedor.
Nosso capitalista previu o caso que o faz sorrir27. O trabalhador en
contra, por isso, na oficina, os meios de produção necessários não para um
processo de trabalho de 6 horas, mas de 12. Se 10 libras de algodão absor
viam 6 horas de trabalho e transformavam-se em 10 libras de fio, então 20
libras de algodão absorverão 12 horas de trabalho e se transformarão em 20
libras de fio. Consideremos o produto do processo prolongado de trabalho.
Nas 20 libras de fio estão objetivadas agora 5 jornadas de trabalho: 4 na
129
massa consumida de algodão e fusos, I absorvida pelo algodão durante o
processo de fiação. Mas a expressão em ouro de 5 jornadas de trabalho é 30
xelins ou 1 libra esterlina e 10 xelins. Esse é, portanto, o preço das 20 libras
de fio. Uma libra de fio custa, depois como antes, 1 xelim e 6 pence. Mas a
soma dos valores das mercadorias lançadas no processo importou em 27
xelins. O valor do fio é de 30 xelins. O valor do produto ultrapassou de 1/9
o valor adiantado para sua produção. Dessa maneira, transformaram-se 27
xelins em 30. Deram uma mais-valia de 3 xelins. Finalmente a artimanha
deu certo. Dinheiro se transformou em capital.
Todas as condições do problema foram resolvidas e, de modo algum,
as leis do intercâmbio de mercadorias foram violadas. Trocou-se equivalente
por equivalente. O capitalista pagou, como comprador, toda mercadoria por
seu valor, algodão, massa de fusos, força de trabalho. Depois fez o que faz
qualquer outro comprador de mercadorias. Consumiu seu valor de uso. Do
processo de consumo da força de trabalho, ao mesmo tempo processo de
produção da mercadoria, resultou um produto de 20 libras de fio com um
valor de 30 xelins. O capitalista volta agora ao mercado e vende mercadoria,
depois de ter comprado mercadoria. Vende a libra de fio por 1 xelim e 6
pence, nenhum centavo acima ou abaixo de seu valor. E, não obstante, tira da
circulação 3 xelins mais do que nela lançou. Todo esse seguimento, a trans
formação de seu dinheiro em capital, se opera na esfera da circulação e não
se opera nela. Por intermédio da circulação, por ser condicionado pela com
pra da força de trabalho no mercado. Fora da circulação, pois ela apenas in
troduz o processo de valorização, que ocorre na esfera da produção. E assim
é tout pour le mieux dans le meilleur des mondes possibles28.
O capitalista, ao transformar dinheiro em mercadorias, que servem
de matérias constituintes de um novo produto ou de fatores do processo de
trabalho, ao incorporar força de trabalho viva à sua objetividade morta,
transforma valor, trabalho passado, objetivado, morto em capital, em valor
que se valoriza a si mesmo, um monstro animado que começa a “trabalhar”
como se tivesse amor no corpo29.
132
trabalho, que é em um caso o processo da produção de fios, em outro, o
processo da produção de jóias.
Por outro lado, em todo processo de formação de valor, o trabalho
superior sempre tem de ser reduzido a trabalho social médio, por exemplo,
uma jornada de trabalho superior a x jornadas de trabalho simples. Evita-
se, portanto, uma operação supérflua e simplifica-se a análise, por meio da
suposição de que o trabalhador empregado pelo capital executa trabalho
social médio simples.
136
a conquistar todos os ramos industriais dos que até então não se apode
rara, e nos quais ainda [se dáj apenas a subsunção formal. Tão logo se
apodera da agricultura, da indústria de mineração, da manufatura das
principais matérias têxteis etc., invade os outros setores onde unica
mente [se encontram] artesãos formalmente independentes ou ainda in
dependentes [de fato], Na análise da maquinaria havíamos assinalado
como a introdução desta em um ramo provoca o mesmo fenômeno em
outros ramos, e ao mesmo tempo em outros setores do mesmo ramo. A
fiação mecanizada leva à mecanização da tecelagem; a fiação mecani
zada na indústria algodoeira, a fiação mecanizada da lã, do linho, da
seda etc. O emprego intensivo de maquinaria nas minas de carvão, nas
manufaturas de algodão etc., tornou necessária a introdução do modo
de produção em grande escala na construção das próprias máquinas.
Abstraindo da ampliação dos meios de transporte, exigida por esse
modo de produção em grande escala, temos, por outro lado, que é so
mente devido à introdução da maquinaria na construção das próprias
máquinas — sobretudo de geradores de energia (prime motors) cíclicos
— que se tornou possível a introdução dos barcos a vapor e das ferrovi
as, e se revolucionou, integralmente, a construção naval. A grande in
dústria lança tal massa humana nos ramos ainda não dominados por
ela, ou neles produz tal superpopulação relativa quanto o necessário
para transformar o artesanato ou a pequena empresa, formalmente capi
talista, em grande indústria. [...]
O resultado material da produção capitalista, além do desenvolvi
mento das forças produtivas sociais do trabalho, está constituído pelo au
mento do volume de produção, e acréscimo e diversificação das esferas
produtivas e de suas ramificações. Só depois disso se desenvolve, corres
pondentemente, o valor de troca dos produtos: a esfera em que operam ou
se realizam como valor de troca.
“A produção pela produção" — a produção como fim em si mesma
— já entra em cena, certamente, com a subsunção formal do trabalho ao
capital, tão logo o fim imediato da produção chegue a ser produzir mais-
valia maior e a mais abundante possível, tão logo o valor de troca do pro
duto chegue a ser o fim decisivo. Contudo, essa tendência imanente da re
lação capitalista não se realiza de maneira adequada — e não se converte
em condição necessária, inclusive do ângulo tecnológico — enquanto não
137
se tenha desenvolvido o modo de produção especificamente capitalista e,
com ele, a subsunção real do trabalho ao capital.
Antes, analisáramos, em pormenor, esse último ponto, conforme o
assunto exige, razão por que, aqui, podemos ser breves. É uma produção
que não está ligada a limitações predeterminadas e predeterminantes das
necessidades. (Seu caráter antagônico implica barreiras à produção que
ela, incessantemente, procura superar. Daí, as crises, a superprodução
etc.). Esse é um dos aspectos que a distinguem do modo de produção
precedente; se desejais (ifyou like), o aspecto positivo. Temos, por outro
lado, o aspecto negativo, o caráter contraditório; produção contraposta
aos produtores, e que faz destes caso omisso. O produtor real como sim
ples meio de produção; a riqueza material como fim em si mesmo. E,
portanto, o desenvolvimento dessa riqueza material em contradição com
o indivíduo humano e a expensas deste. Produtividade do trabalho, em
suma = máximo de produtos com mínimo de trabalho', daí, o maior bara
teamento possível das mercadorias. Independentemente da vontade de tais
ou quais capitalistas, isso se converte em lei no modo de produção capita
lista. E essa lei se realiza somente implicando outra, ou seja a de que não
são as necessidades existentes que determinam a escala da produção, mas,
pelo contrário, é a escala da produção — sempre crescente e imposta, por
sua vez, pelo próprio modo de produção — que determina o volume do
produto. Seu objetivo [é] que cada produto etc., contenha o máximo pos
sível de trabalho não-pago, e isso só se alcança mediante a produção
pela própria produção. Isso se apresenta, por um lado, como lei, por
quanto o capitalista que produz em pequena escala incorporaria no pro
duto um quantum de trabalho maior do que o socialmente necessário.
Apresenta-se, pois, como aplicação adequada da lei do valor, que não se
desenvolve plenamente senão à base do modo de produção capitalista.
Mas; surge, por outro lado, como impulso do capitalista individual, que
para violar essa lei ou para utilizá-la astutamente em seu benefício pro
cura reduzir o valor individual de sua mercadoria abaixo de seu valor
socialmente determinado.
Em sua totalidade, essas formas de produção (da mais-valia relati
va), [têm] em comum, além do mínimo crescente de capital necessário à
produção, o fato de que as condições coletivas para o trabalho de numero
sos operários que cooperam diretamente entre si permitem economizar, em
138
contraste com a dispersão dessas condições na produção em pequena esca
la, posto que a eficácia dessas condições de produção comuns não impli
cam crescimento proporcionalmente igual em seu volume e valor. Seu uso
comum e simultâneo faz com que seu valor relativo (em relação ao produ
to) decresça, por mais que aumente o volume absoluto de valor.
140
fàSBBi Questões para reflexão
141
IH Bibliografia
PRINCIPAIS OBRAS DE MARX1
A diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e ade Epicuro (1841)
“Observações de um cidadão renano sobre as recentes instruções acerca da
censura na Prússia" (1842)
“Os debates sobre a liberdade de im prensa e sobre a publicação das discus
sões na Dieta” (1842)
“Os debates sobre a lei contra o furto de lenha" (1842)
“Justificação do correspondente da Mosela” (1843)
Crítica da filosofia do direito de Hegel (1843)
A questão judaica (1844)
“Para a crítica da filosofia do direito de Hegel. Introdução” (1844)
Manuscritos econômico-filosóficos de 1844
“Glosas críticas à margem do artigo ‘O rei da Prússia e a reform a social’ ”
(1844)
A sagrada família (1845)*
“Teses sobre Feuerbach” (1845)
A ideologia alemã (1846)*
Miséria da filosofia (1847)
Manifesto do Partido Comunista (1848)*
Trabalho assalariado e capital (1849)
As lutas de classes na França de 1848 a 1850 (1850)
Mensagem do Comitê Central à Liga dos Comunistas (1850)
O 18 brumário de Luís Bonaparte (1852)
Fundamentos da crítica da economia política (Grundrísse) (1857-58)
Contribuição à crítica da economia política (1859)
Manuscritos econômicos de 1861-63
Manuscritos econômicos de 1863-67
Salário, preço e lucro (1865)
O capital, livro 1 (1867)
A guerra civil na França (1871)
Crítica ao Programa de Gotha (1875)
O capital, livro 2 (1885)
O capital, livro 3 (1894)
Teorias da mais-valia (livro 4 de O capital) (1905)
142
EDIÇÕES DAS OBRAS COMPLETAS EM ALEMÃO
Werke. Berlim, Dietz Vertag.
Gesamtausgabe (Mega2). Berlim, Dietz Verlag.
EDIÇÕES EM PORTUGUÊS
Obras escolhidas (de K. Marx e F. Engels). São Paulo, Alfa-Omega, s.d.
Crítica da filosofia do direito de Hegel. Lisboa, Presença, s.d.
A questão judaica. São Paulo, Moraes, 1991.
A sagrada família. São Paulo, Moraes, 1987.
A ideologia alemã. São Paulo, Hucitec, 1993.
A miséria da filosofia. São Paulo, Global, 1989.
Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis, Vozes, 1997.
O 18 brumário e Cartas a Kugelmann. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1969.
Contribuição à crítica da economia política. Lisboa, Estampa, 1971.
Formações econômicas pré-capitalistas. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985.
O capital. São Paulo, Nova Cultural, 1996.
Capítulo VI inédito de “O capitar. Trad. Eduardo Sucupira Filho. São Paulo,
Livr. Ed. Ciências Humanas, 1978.
Teorias da mais-valia. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980.
I43
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Sobre o autor
Márcio Bilharinho Naves nasceu em Uberaba, Minas Gerais,
em 1952. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Univer
sidade de São Paulo, doutorou-se em Filosofia pela Universidade
Estadual de Campinas. É autor do livro Marxismo e direito: um estu
do sobre Pachukanis (Editora Boitempo, 2000). Foi diretor da revista
Crítica do Direito. Leciona no Instituto de Filosofia e Ciências Huma
nas da Universidade Estadual de Campinas.
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