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Marx

ciência e revolução
O pensamento de M a rx continua a
p ro du zir efeitos revolucionários. O co­
nhecimento que ele produziu sobre a
natureza da exploração capitalista e a
sua crítica das formas ideológicas que
recobrem a dom inação de classe bur­
guesa — a liberdade e a igualdade
formais — abrem ainda hoje a possibi­
lidade de uma ultrapassagem da socie­
dade burguesa. Sendo um pensamento
objetivam ente com prom etido com os
interesses dos trabalhadores, ele é com­
batido pelas classes dominantes e de­
clarado por elas como já superado. Co­
nhecer M a rx, assim, é penetrar em um
mundo de idéias subversivas que desa­
fiam a ordem burguesa e permitem
vislum brar uma sociedade liberta da
exploração do trabalho.
MÁRCIO BILHARINHO NAVES

Marx
ciência e revolução

fv »
E d it o r a M o d e r n a
E D IT O R A DA
UNICAM P
M arx
ciência e revolução
U N IC A M P

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS


Reitor
HERM A NO TAVARES

Coordenador-Genil da Universidude
FER N A N D O G A L E M BECK .
Pr6-Reitor de D esenvolvimento Universitário
L U ÍS C A R L O S G U Ê D E S PINTO
Pró-Reilor de Extensão e Assuntos Comunitários
ROB E RTO T E IX E 1R A M EN DES
Pró-Reitor de Graduação
A N G E L O L U IZ C O R T E LA Z ZO
Pró-Rekor de Pesquisa
IVAN EM ÍLIO C H A M B O U L E Y R Ü N
Pró-Reilor rfc Pós-Graduação
JOSÉ CLÁUDIO GEROM H L

EDrrORA DA
UN1CAMP
Diretor E xccu iivo
L U IZ F E R N A N D O M iL A N E Z
Coordenadar-Gc iui
C A R L O S RO BERTO L A M A R I

C o n selh o Editorial
E L Z A C O T R IM S O A R E S - L U IZ F E R N A N D O M IL A N E Z
M ILTO N JO S É D E A L M E ID A - R IC A R D O A N T U N E S
S U E L I IR E N E R O D R IG U E S C O S T A
MARCIO BILHARINHO NAVES
Professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
da Universidade Estadual do Campinas

M arx
ciência e revolução
1 edição
~

C O LE C A O
Lmoms

EDITORA DA „
UNiCAMP E d ito ra M o d er n a
©MÁRCíOBIlHARINHOMAV6S2000

COORDENAÇÃO EDITOftAl: Maria lú cia <ií Arruda Arunlw , V njynú A oki


EDIÇÃO DC TEXTO: Cartc* /Stnt h ctti
OfRÉNCIADA PfcEPASAÇÃO £ DA REVISÃO: jo s c Gabriel Ajtwo
PftEPARAÇÃO DO TEXTO; Morissawa Casa dc Ediçuo
ÍÉVlSÃO: Adalberto d c O íivviia. Lui/. OuíwcO
GÊSÉNCÍÀ DE PftOOUÇÃO GHÁflC* Wilson TvxloroG arch
EOtÇÃO D£ ÀRÍ£: C tiK ibcft ftu ra a tk a í*uuos
CAPA; Folo; Kari M ítx
PESQUISA tCOMOOftÂFICA: Márcio M h jirin h o Naves
KAGfiAMCÃO: C b u íto e rC ô fn xi Filho
TRAIAMíhJTO DC W A ^ 4 & Silvio Pereira
SAÍDA £>£ FILMES; liv h o 1*. d c Souza FJJio, Jxt'u A . &a Silva
C0CfcÜ€NAÇÃO DQ PCP: [xnn a ísio D a llo fX g a ti
IMPRESSÃO £ ACAÍAMCNTO: Im p n m * O fid a l do E w u b

Dados htemâcíoncHsd* Cataloga*ã* naPií&tcaçâo(ClP)


(Câmoro Brasileira do livro, SP, Brasít)
Nave?*, Hilharinlt», l‘^ 2 -
Murx : uüfneiu * iwnlttvüo i Mãivio Biltiarinlrfs
Níivcv — Silcs l^ulo : C»[»pinaA, SP: KdLt<jrü da
Universidade* üc CutTtpiiws, 2UOO. —
(ColvyíUi

I. FH ^ofht marxMu 2. Murv, Kjirf. 18IX-JNH5


3 ScicLiljNnicj I. Triuio. II. Séri«.1.

07 cnr> 3 3v íii
índices povo catálogo ststetná&o;
1. Mar*, Kafl, 1H1K-1H83 : CoilttriU* fik>Msfia»
335.4 II
2. MaraJsiw: KuiubmenMMrriostifia)* 355-411
ISBN85-16-02364-8
Ftepfvduçâopro<b]da.AR.1 04 do Código Penâie Lei 9.610 d« 19 de fevereiro de 1996.

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E d it o r a M o d ern a L tda .
Riu Padft? Ackliru), 7^8 - Bdcnzinlio
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Vendas e Acendimento^ Tel. (011) 6090-1500
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2000

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1 3 5 7 9 10 8 6 4 2
Sumário

Introdução, 9

; ; Parte L O PE

Vida e obra
Os anos iniciais, 12; Nos tempos da Gazeta fíenana, 13;
Os A nais Franco-atemães, 15; Materialismo histórico e re­
volução, 16; O capital e a Internacional, 17; A Comuna e
os últimos anos, 18; Cronologia, 18

Antes do marxismo: caminhos do jovem Marx


Liberalism o e direito natural, 21; A aurora universal da
razão, 21; A crítica das armas e a em ancipação hu­
mana, 23; Alienação e hum anism o, 24; O trabalho alie­
nado, 25

A constituição do materialismo histórico


A ilusão de Hegel, 28; Novas respostas ou novas ques­
tões?, 30; A m aterialidade do processo histórico, 31;
Forças produtivas e processo de alienação, 32; Modo
de produção e dom inância das forças produtivas, 32;
Determ inação material e superestrutura, 33; A câm ara
escura, 34; As “verdades eternas” da classe dom inan­
te, 36; Ideologia e dom inação de classe, 36; Estado e
luta de classes, 37; Alienação e com unism o, 38; Com u­
nismo e direito, 40; Uma som bra que se torna corpo,
42; T od os os hom ens são irm ãos?, 44; Teoria da
alienação ou luta de classes?, 45
História e revolução
Tudo o que é sólido desmancha no ar, 47; Demasiada
civilização..., 50; Os soldados da indústria, 50; Os covei­
ros da burguesia, 51; O grito de guerra da classe operá­
ria, 54; Revolução e “despotismo” , 57

A crítica da sociedade burguesa


O capital como relação social, 59; Um negro é um negro,
60; Solto e solteiro, 61; Esperando o curtume, 63; Proces­
so de trabalho e processo de valorização, 64; O processo
de trabalho, 65; O processo de valorização, 65; A produ­
ção de mais-valia ou le m eilleur des m ondes possibles,
67; A subsunção formai do trabalho ao capital, 68; A sub-
sunção real do trabalho ao capitai, 70; Uma imensa cole­
ção de mercadorias, 71; Forma jurídica e relações mer­
cantis, 73; A crítica da democracia burguesa, 75

A refundação do materialismo histórico


A dominância das relações de produção, 79; Modo de pro­
dução e determinação em úitima instância, 81

A ultrapassagem da sociedade burguesa: transição e


comunismo
A revolucionarização das relações de produção, 85; A re-
apropriação das condições da produção, 87; Relação ju ­
rídica e apropriação real, 88; A revolucionarização do Es­
tado, 89; O segredo da Comuna, 90; O povo armado, 91;
O controle do Estado pelas massas, 91; A “quebra” do
Estado, 92; Ditadura do proletariado e transição ao com u­
nismo, 94; A form a política enfim encontrada, 95; A liber­
dade comunista, 96; Comunismo e dialética, 96

Conclusão: A contemporaneidade de Marx, 101


Parte II. ANTOLOGIA

gffim Uma nova concepção da história, 104

Burgueses e proietários, 105

1 M I Prefácio à Contribuição à crítica da economia


política, 113

U M I Compra e venda da força de trabalho, 115

38ÊH o processo de valorização, 121

Ü É Ü A subsunção formal do trabalho ao capital, 133

B I A subsunção real do trabalho ao capital, 135

As lições da Comuna, 139

»=

Questões para reflexão, 141

■ hm Bibliografia, 142

Hffiü Sobre o autor, 144


K hhth MapKca
He n a 6 o p a rpaH K H ,
Be cyxH 6
T^H(|)p CTOJIÕipj —
Mapxc
pa6o«iero
n ocraB H ji Há H o re
H HOB&I
KOÆOHHÛJIH
CTpOHHee U H$p.

Os livros de Marx
não são provas tipográficas,
Não são áridas
colunas de números —
Marx
pôs o operário
de pé
e o conduziu
em co/unas
mais harmoniosas que números.

V. Maiakovski'

1 Vladimir Mayakovski, Vladimir llich Lenin, poema, Moscou, Ed. Progreso, s.d.,
p. 64. A tradução foi extraída de P. Fedosseiev et al., Kart Marx, Lisboa,
Avante, 1983, p. 8, com ligeiras alterações feitas por mim, M.B.N.
ÍÉÉÉ Introdução

Que sentido pode ter, para tivas que nos aprisionam no tempo
nós, hoje, terMarx2? O “fim do co­ histórico da burguesia. Essas re­
munismo” não teria sido o des­ presentações sobre a eternidade
mentido definitivo de sua concep­ das relações sociais burguesas
ção teórica, a prova irrefutável da não são inocentes. Foi Marx, justa­
falsidade de suas teses? Por que, mente, que nos educou o olhar
então, nos ocuparmos com essa para que pudéssemos ver o pro­
página virada da história? cesso contraditório que atravessa
Nos anos 60 do século XIX, essas relações e a possibilidade de
atendendo a um pedido das suas sua destruição. E foi ele também
filhas, Marx participou de uma es­ que nos fez ver a complexa trama
pécie de jogo, comum na Inglaterra ideológica, isto é, o conjunto de re­
de então, consistente em “confes­ presentações imaginárias que re­
sar” gostos e preferências sobre os cobrem e obscurecem as relações
mais variados assuntos, como a reais, no interior da qual se exerce
cor ou os autores mais apreciados. a dominação de classe burguesa.
Inquerido sobre o seu adágio pre­ Marx elaborou uma con­
ferido, Marx respondeu: “De omni- cepção teórica objetivamente
bus dubitandum", duvidar de tudo. comprometida com os interesses
Não deveria suscitar também a da classe operária. Ela é, rigoro­
nossa dúvida essa aproximação, samente, a expressão teórica da
demasiadamente ligeira, entre o luta de classe operária, e só pode
“fim do comunismo" e o fim do mar­ ser compreendida a partir desse
xismo? Na ausência de uma de­ vínculo essencial. É por isso que
monstração da pertinência dessa ler Marx significa perseguir essa
tese, não restaria apenas a crença extraordinária aventura intelectu­
de que, a partir daí, toda ultrapas­ al e política na qual ele não cessa
sagem do horizonte do capitalismo jamais de criticar as representa­
está absolutamente interditada? ções burguesas e pequeno-bur-
Aprendamos a desconfiar, guesas, dentro e fora do movi­
portanto, dessas sentenças defini­ mento operário, que funcionam

2 Por comodidade de exposição deixo de citar a autoria de Engels nas obras


comuns a ambos. Cf. Bibliografia no final do livro.

9
como obstáculos para o conheci­ Marx opera uma transformação
mento científico das relações so­ na filosofia, porque introduz na fi­
ciais capitalistas. Para Marx, tra­ losofia um objeto que lhe é estra­
ta-se de conhecer as determina­ nho, por ela não reconhecível, um
ções do capital para que o movi­ objeto filosófico impossível: a luta
mento operário possa fundar uma de classes. As expressões que
estratégia de luta conseqüente Marx utiliza são reveladoras da
contra a dominação de classe necessidade de romper o cerco
burguesa, isto é, que permita aos da filosofia como condição de
trabalhadores colocar, desde já, o possibilidade para que ele pudes­
objetivo do comunismo. se realizar as suas descobertas
Assim , é da resposta à científicas fundamentais. “Os filó­
questão inicialm ente proposta sofos se limitaram a interpretar o
que vai depender todo o sentido mundo; o que importa é transfor­
da leitura de Marx. Teremos, no má-lo”; trata-se de “ajustar contas
entanto, de acompanhar o paci­ com a nossa consciência filosófi­
ente trabalho de elaboração con­ ca anterior"; a filosofia “não tem
ceituai a que ele se dedicou para história”. Essas frases não signifi­
que estejamos em condições de cam uma recusa do trabalho filo­
responder a ela. Desde já, no en­ sófico, mas sim que Marx introduz
tanto, podemos perceber que a uma nova prática da filosofia. Sua
intervenção teórica de Marx corre teoria científica só pôde ser cons­
às margens da filosofia. tituída em razão do trabalho filo­
Luta de classes, comunis­ sófico de luta contra as ideologias
mo... um estranho vocabulário filosóficas: o hegelianismo, o hu­
para um discurso filosófico. Seria manismo feuerbachiano etc., que
ingênuo procurar em Marx uma fi­ permitiu estabelecer linhas de de­
losofia “como as outras”, muito marcação entre essas formas ide­
embora não tenham sido poucos ológicas e o conhecimento cientí­
os marxistas que julgaram poder, fico da história.
a partir das obras de juventude de Marx percorreu um longo e
Marx, reconduzi-lo à tradição filo­ acidentado caminho até chegar às
sófica. Como lembra Étienne Bali- suas descobertas teóricas. Se os
bar, não há uma filosofia de Mane, caminhos da filosofia são caminhos
embora ele tenha trabalhado na fi­ que não levam a parte alguma, te­
losofia e a sua obra tenha produ­ ria sido Marx capaz de encontrar
zido efeitos filosóficos. A obra de outros caminhos para a filosofia?

10
Parte

PENSAMENTO
DE
ARX
F

E l Vida e obra

OS ANOS INICIAIS transição tardia, se levarmos em


conta que na França e na Ingla­
Karl-Heinrich Marx nasceu terra já ocorrera uma revolução
em 5 de maio de 1818, na cidade burguesa e prosseguia a industri­
alemã de Tróveris (Trier), na re­ alização capitalista. índice da per­
gião da Renânia. Seu pai, Heinri- sistência de relações feudais era
ch Marx (1782-1838), advogado o fato de a Alemanha não ter ain­
liberal, e sua mãe, Henriette Pres- da conseguido alcançar a sua
sburg (1787-1863), eram de as­ unificação nacional, sendo com­
cendência judaica, mas converte­ posta por um grande número de
ram-se ao credo protestante Estados, dos quais a Prússia era
como forma de evitar as restri­ o mais influente.
ções que pesavam sobre os ju­ A região da Renânia era
deus na Prússia. justamente a mais desenvolvida
A Alemanha da época vivia industrialmente e a mais progres­
um processo de transição do feu­ sista do ponto de vista político
dalismo para o capitalismo, uma dentre as províncias prussianas.

Vista de Tréveris, no inicio do século XIX. A Renânia foi um simbolo da transição tardia
para o capitalismo.

12
Isso deveu-se, fundamentalmen­ Após o término de seus
te, ã influência ocorrida no perío­ estudos secundários no Liceu
do em que ela foi anexada à Fran­ de Tréveris, em 1835, Marx in­
ça, com a adoção de uma série de gressou nesse mesmo ano na
medidas que provocaram transfor­ Faculdade de Direito da Univer­
mações econômicas, sociais e po­ sidade de Bonn, transferindo-se
líticas de caráter burguês. no ano seguinte para a Univer­
Com a derrota das forças de sidade de Berlim. Tendo deslo­
Napoleão, a Renânia voltou a fazer cado os seus interesses para o
parte da Prússia, com o conseqüen­ campo da filosofia, acabou por
te bloqueio do desenvolvimento redigir uma tese, A diferença
capitalista e a consolidação da aris­ entre a filosofia da natureza de
tocracia rural feudal no poder. Demócrito e a d e Epicuro, afina!
apresentada à Universidade de
lena, em 1841, sendo-lhe então
conferido o título de doutor em
filosofia.

NOS TEMPOS DA
GAZETA RBNANA

Já nos tempos de estu­


dante em Berlim, Marx vinha fre­
qüentando os círculos dos “jo ­
vens hegelianos”. Essa corrente
constituíra-se no decorrer da dis­
puta sobre a interpretação do
pensamento do mais influente fi­
lósofo do período e um dos mai­
ores representantes do idealis­
mo alemão, Georg W. F. Hegel
(1770-1831). Após a sua morte,
os seus partidários dividiram-se
O jovem Marx, poeta e estudante de em duas tendências: uma ala
direito. (Detalhe de um desenho de conservadora, a direita hegelia-
1836, que retrata uma associação de
na, e uma ala progressista e li­
estudantes de Tréveris, na Universidade
de Bonn.) beral, a esquerda hegeiiana.

13
r

Hegeí e seus alunos. A obra A sagrada família, de 1845, representa o rompimento de


Marx e Engels com os jovens hegelianos.

A direita hegeliana inter­ Marx já houvera, então,


pretava o pensamento de Hegel abandonado os seus planos de
e o utilizava politicamente para obter uma posição na Universida­
justificar o Estado prussiano e de, fechada não só a ele, mas a
sua política de conciliação com todos os que defendiam as refor­
o atraso feudal. A esquerda he­ mas constitucionais liberais.
geliana relacionava a filosofia Foi fundado então um jor­
de Hegel com a organização “ ra­ nal de tendência liberal — a Ga­
cional” do Estado prussiano, isto zeta Renana —, financiado pelos
é, com a sua organização se­ círculos burgueses mais progres­
gundo os critérios do burocratis- sistas da Renânia e do qual parti­
mo burguês. cipavam muitos dos jovens hege-
Com a perda das esperan­ lianos de esquerda, como Marx,
ças de que o próprio monarca pu­ que depois viria a se tomar o seu
desse adotar medidas de nature­ redator-chefe.
za liberaiizaníe, a esquerda hege­ O conjunto dos textos que
liana, especialmente os seus re­ ele redigiu no período, muitos dos
presentantes mais radicais, entre quais publicados na própria Gaze­
os quais se encontrava Marx, par­ ta Renana, compunha um verda­
tiram para a luta política contra o deiro programa democrático-radi-
absolutismo prussiano. cat em sua defesa da reforma do

14
Estado prussiano, de sua tranfor- OS ANAIS FRANCO-ALEMAES
mação em um Estado de direito.
A Gazeta fíenana foi proi­ Marx decidiu então transfe­
bida peio governo em 1843, mas rir-se para Paris, com o plano de
Marx demitira-se da redação pou­ editar uma revista — os Anais
co antes de a interdição consu­ Franco-Alemães. No primeiro e
mar-se, em virtude da condena­ único número dessa revista, pu­
ção, feita peta burguesia liberal blicou alguns dos seus mais im­
que financiava o jornal, à linha portantes trabalhos de juventude,
editorial que ele lhe imprimira. como A questão judaica e Crítica

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Gazeta Renana. periódico de tendência liberal redigido por
jovens hegelianos. Karl Marx foi seu redator-chefe até 1843.

15
r
da filosofia do direito de Hegel — Tais pressões resultaram na ex­
Introdução. Data dessa época pulsão de vários colaboradores
também a redação de um manus­ do jornal, inclusive de Marx, que
crito, feita pouco antes de sua então se transferiu para Bruxelas
chegada à França, intitulado Crí­ em 1845.
tica da filosofia de Hegel.
Em 1844, ele redigiu os MATERIALISMO HISTÓRICO E
Manuscritos econômico-fiiosófi- REVOLUÇÃO
cos, que permaneceriam inéditos
até 1932. Nessa obra, aplicou ao Foi nesse período que Marx
domínio social e econômico a deu início à sua grande amizade e
idéia de alienação, desenvolvida colaboração com Friedrich Engels
pelo filósofo alemão Ludwig Feu- (1820-1895). Juntos iriam elabo­
erbach (1804-1872), que preten­ rar, notadamente em A ideologia
dia realizar uma crítica materialis­ alemã e no Manifesto do Partido
ta de Hegel. Marx estava então Comunista, a concepção materia­
dominado pela influência do hu­ lista da história, ©m ruptura com as
manismo feuerbachiano. concepções filosóficas que até en­
Esse período foi também tão sustentavam.
marcado pelo seu afastamento e Marx desenvolveu ainda
ruptura com os jovens hegelia- intensa atividade política de orga-
nos, fortemente criticados por ele
(e Engels) em A sagrada família,
de 1845. Mas foi também um pe­
ríodo no qual ele estabeleceu in­
tensos contatos com as correntes
comunistas e com o movimento
operário franceses.
Marx também passou a
colaborar com um jornal publica­
do por imigrantes alemães de-
mocráfico-radicais, o Vorwàrts!
(Avantel), o que acabou por pro­
vocar fortes pressões do gover­
no prussiano junto ao governo
francês para que fossem toma­
das medidas contra o periódico. Engels, aos dezenove anos.

16
nização do movimento operário e democrático-burguesas contra as
de propaganda comunista. Assim forças aristocráticas ainda pre­
surgiu, em 1846, por iniciativa sua sentes nessas sociedades e no
ede Engels, o Comitê de Corres­ curso das quais os trabalhadores
pondência Comunista, de Bruxe­ desenvolveram grande atividade
las. Mais à frente, ambos aceita­ revolucionária.
ram integrar uma antiga organiza­ Expulso da Bélgica, Marx
ção operária, a Liga dos Justos, a dirige-se para Paris e a seguir re­
qual, reorganizada por influência torna à Alemanha, onde passou a
de ambos, passou a ser denomi­ publicar um novo jornal, a Nova
nada Liga dos Comunistas, ado­ Gazeta Renana, ao mesmo tem­
tando o lema: “Proletários de to­ po em que prosseguia em sua ati­
dos os países: uni-vos!” Além dis­ vidade de dirigente comunista.
so, Marx também participou da Com a derrota das forças
fundação de uma organização progressistas e o conseqüente
operária de imigrantes alemães fortalecim ento da reação em
na Bélgica, a Sociedade Operária 1848-1849, Marx, que já houvera
Alemã, igualmente voltada para a sido expulso da Alemanha e ido
atividade de propaganda. para Paris, é de novo expulso e
No decorrer desse período, transfere-se afinal para Londres.
Marx (e Engels) travaram uma
acirrada luta contra as tendênci­ O CAPITAL E A
as pequeno-burguesas presentes INTERNACIONAL
no interior do movimento operá­
rio, como o “socialismo verdadei­ A Liga dos Comunistas foi
ro”, e especialmente contra a in­ dissolvida e Marx dedicou-se in­
fluência das idéias do anarquista tensamente, durante longos
francês Joseph Proudhon (1809- anos, ao trabalho teórico que le­
1865), cuja crítica Marx realizou varia à redação de sua principal
no livro Miséria da filosofia. obra, O capital. Mas continuou a
Como resultado de suas desenvolver suas atividades de
atividades revolucionárias na Liga dirigente comunista, tendo, em
dos Comunistas, Marx e Engels 1864, participado da fundação,
redigiram, em 1848, o Manifesto em Londres, de uma organização
do Partido Comunista. Nesse operária, a Associação Internaci­
mesmo ano, eclodiram, em vári­ onal dos Trabalhadores, a I Inter­
os países da Europa, revoluções nacional. A partir de sua posição
no Conselho Central da Internaci­ esgotamento, segundo a visão
onal, Marx foi um dos principais de Marx, do papel cumprido pela
dirigentes do movimento operário internacional.
e das lutas de massas na Europa No dia 14 de março de
durante toda a existência dessa 1883, após o agravamento de
organização. suas condições de saúde, já de
algum tempo abaladas, Marx
A COMUNA E morre, em Londres.
OS ÚLTIMOS ANOS
CRONOLOGIA
Em 1871 eclodiu em Paris
a que viria a ser a primeira revo­ 1818 Nascimento de Karl Marx,
lução operária da história. Os tra­ em 5 de maio, em Tréveris.
balhadores parisienses tomam o 1835 Início de seus estudos de di­
poder e instauram a Comuna de reito na Universidade de Bonn.
Paris, uma forma de organização 1836 Marx prossegue os seus
social e política jamais experi­ estudos de direito na Universi­
mentada anteriormente. Não obs­ dade de Berlim e depois pas­
tante os limites dessa experiência sa ao estudo da filosofia. Re­
e a sua curta duração, ela teve dige poemas e outros textos
uma importância histórica e políti­ literários. Freqüenta um círcu­
ca extraordinária. lo de hegelianos, o Clube dos
Na Internacional, Marx Douiores.
acompanhou e auxiliou a luta dos 1841 Obtém o título de doutor
trabalhadores parisienses e, após em filosofia na Universidade
a derrota dos revolucionários, es­ de lena. É publicado na revis­
creveu um trabalho no qual retifi­ ta Athenàum seu primeiro es­
cou a sua própria concepção do crito, um conjunto de poemas
Estado na transição socialista, re­ reunidos sob o título Cantos
colhendo os ensinamentos oriun­ selvagens.
dos das próprias massas. 1842 Colabora na Gazeta Rena-
Os anos que se seguiram na, da quai assume a direção
vão assistir, por um lado, ao ainda nesse ano. Escreve uma
prosseguimento da redação dos série de textos, alguns dos
livros seguintes de O capital, que quais proibidos pela censura,
só serão, afinal, publicados pos­ notadamente sobre a questão
tumamente, e, por outro lado, ao da censura, a situação dos vi-

18
nhateiros da Mosela, a lei con­ Comunistas, mas apenas En-
tra o furto de lenha e os deba­ geis pode comparecer. Marx
tes na Dieta Renana. passa a presidir a seção da
1843 Demite-se da redação da Liga em Bruxelas e funda com
Gazeta Renana, a qual pouco Engels a Sociedade dos Ope­
depois é proibida pelo gover­ rários Alemães de Bruxelas.
no. Redige a Crítica da filoso­ Publica a Miséria da filosofia,
fia do direito de Hegel. Casa- uma crítica a Proudhon.
se com Jenny von Westphalen 1848 É publicado o Manifesto do
e, alguns meses mais tarde, Partido Comunista, escrito em
mudam-se para Paris. conjunto com Engels. Eclode
1844 É publicado o único núme­ a Revolução de 1848. Marx é
ro da revista Anais Franco- expulso da Bélgica e retorna a
Alemães, de que é um dos or­ Paris, seguindo depois, com
ganizadores. Redige os Ma­ Engels e outros exilados ale­
nuscritos econômico-fifosófi- mães, para Colônia, na Ale­
cos e colabora no Vorwärts!, manha, onde passa a desen­
semanário alemão publicado volver intensa atividade políti­
em Paris. Estabelece amplo ca. É criada a Nova Gazeta
contato com Friedrich Engels. Renana, da qual Marx passa
1845 Expulso de Paris, instala- a ser o redator-chefe.
se em Bruxelas, para onde 1849 Publica Trabalho assalaria­
também muda-se Engels, ten­ do e capital, conferência que
do início a colaboração entre houvera pronunciado em 1847
os dois com a publicação de A para um público formado por
sagrada família. Escreve as operários. Transferência para
Teses sobre Feuerbach. Londres.
1846 Marx e Engels desenvol­ 1850 Junto com Engels desen­
vem ampla atividade político- volve esforços para reorgani­
ideológica através de uma zar a Liga dos Comunistas.
rede de “comitês de corres­ 1852 Publicação de O 18 Bru­
pondência” na Europa. Ambos mário de Luís Bonaparte.
redigem A ideologia alemã, 1859 Após anos de estudos rea­
trabalho que também perma­ lizados em Londres, que ain­
necerá inédito. da prosseguirão, começa a
1847 Ocorre em Londres o Pri­ publicar parte do resultado de
meiro Congresso da Liga dos suas pesquisas. Aparece a

19
*

Contribuição à crítica da eco­ 1871 Eclosão da Comuna de Pa­


nomia política. ris. Ampla atividade de Marx e
1864 Fundada a Associação In­ da AIT em favor dos revoluci­
ternacional dos Trabalhadores onários franceses. Publicação
(AIT), Marx é eleito para inte­ de A guerra civil na França.
grar seu Comitê Provisório e Realiza-se o Congresso da
redige para essa Associação AIT em Haia.
uma Mensagem inaugural e 1875 Redação de Crítica ao Pro­
os seus Estatutos. grama de Gotha.
1866 Publicação do Livro 1 de O 1883 Marx morre em 14 de mar­
capital. ço, em Londres.

20
Antes do marxismo: caminhos do
jovem Marx

LIBERALISMO E DIREITO grama da esquerda hegeliana é,


NATURAL em certo sentido, uma adaptação
do hegelianismo ao liberalismo.
A intervenção que Marx
opera nos anos de 1841 a 1842, A aurora universal da razão
tanto nas páginas da Gazeta Fte-
nana, como em outras publica­ Marx parte de um conceito
ções, possui um caráter ao mes­ de Estado que ele utiliza como
mo tempo teórico e político. Inte­ medida do Estado real. É assim
grado ao esforço comum da es­ que ele pode afirmar, no artigo “O
querda hegeliana, o conjunto dos editorial do nQ179 da Gazeta de
textos de Marx no período repre­ Colônia!’, que o Estado deve ser
senta um verdadeiro programa de “a realização da liberdade racio­
reforma democrática do Estado nal” ou que o Estado “é um gran­
prussiano. de organismo no qual a liberdade
Partindo de um núcleo teó­ jurídica, moral e política deve al­
rico identificado com o pensa­ cançar a própria realização, e no
mento de Hegel, Marx, assim qual o indivíduo singular, obede­
como os jovens hegeiianos, su­ cendo à lei do Estado, obedeça
põe que a crítica possa ser um só às leis naturais de sua mesma
instrumento suficiente para dis­ razão, da razão humana”.
solver os “nódulos de irracionali­ O Estado pode então apa­
dade" que impedem a transforma­ recer como o locus da universali­
ção do Estado prussiano em um dade, como uma esfera em tudo
“verdadeiro” Estado, isto é, em estranha aos interesses e fins
um Estado em conformidade com particulares, de tal sorte que ele
os ditames da razão. cumpre a sua função de “educa­
Para os jovens hegeiianos, ção pública" justamente ao trans­
o Estado racional é um Estado formar o “fim singular em fim ge­
cujas instituições devem adquirir ral”, recolocando toda “particula­
um caráter liberal, assim, o pro­ ridade na totalidade que é pró­

21
pria do Estado”. O Estado é, as­ ce critérios objetivos de avaliação
sim, essa “totalidade ética que do que pode ou não ser publica­
exprime os interesses de toda a do, atribuindo essa competência
sociedade”. a um censor que vai exercê-la
Se o Estado é a encarna­ sob a base de um julgam ento
ção do interesse geral, todo inte­ subjetivo. De modo que a lei aca­
resse p a rticu la r vai a pa re ce r ba por punir não uma ação devi­
como “estranho à natureza do damente tipificada, mas a mera
Estado” , como Marx afirma em intenção, passível de repressão
“Observações de um cidadão re- penal conforme o entendimento
nano sobre as recentes instru­ do funcionário encarregado da
ções para a censura na Prússia”. censura. Ou seja, o censor pode
Sustentado nesse conceito de considerar que o autor de um de­
Estado, pode então medir a dis­ terminado texto teve o propósito
tância que separa o Estado prus­ de ofender, por exemplo, a Igreja
siano de um outro fundado na ra­ católica; não havendo normas ob­
zão e na liberdade, de um Estado jetivas que estabeleçam o que
que representa “a realização da precisamente caracteriza a ofen­
razão política e jurídica”, de um sa à Igreja, o censor só pode jul­
Estado que esteja “baseado so­ gar baseado em uma apreciação
bre a razão livre”. da intenção que o autor teria tido
Se o indivíduo, como Marx ao escrever aquele texto.
afirma, só deve obediência às leis Ora, diz Marx, uma lei so­
do Estado na medida em que es­ bre intenções “anula a igualdade
tas correspondam às leis naturais dos cidadãos perante a lei, não é
da razão humana, então, o direito uma lei mas um privilégio”, confi­
de um Estado que não esteja or­ gurando assim uma “sanção po­
ganizado racionalmente aparece sitiva da ilegalidade”. Essa frase,
como um não-direito. E é justa­ “sanção positiva da ilegalidade”,
mente a partir desse critério jus- eqüivale a dizer que uma lei pode
naturalista que Marx vai julgar a ser ilegal. Seria isso contraditó­
organização política e jurídica do rio? Pois bem, aqui revela-se ple­
Estado prussiano. Assim, critican­ namente a filiação de Marx ao di­
do em “Observações de um cida­ reito natural: uma lei, diz Marx,
dão renano...” a regulamentação não obstante respeitar todos os
governamental da censura, Marx requisitos formais para a sua vali­
revela que essa lei não estabele­ dade, mesmo assim, pode não

22
ser considerada como lei se não ção desse programa de reformas
for o reconhecimento positivo da políticas e jurídicas reclamadas
lei natural que a antecede e da nas intervenções jornalísticas de
qual ela deve ser a expressão, ou Marx contra aqueles que se recu­
seja, a lei do Estado, a lei positi­ sam a considerar a liberdade
va, deve ser o reconhecimento como “um dom especial da auro­
(legal) de uma liberdade que pre­ ra universal da razão”.
existe a ela. Assim, como Marx
afirma em “Os debates sobre a li­ A CRÍTICA DAS ARMAS E A
berdade de imprensa...”, podem EMANCIPAÇÃO HUMANA
existir leis que não sejam verda­
deiras, leis que não sejam leis re­ O segundo momento do
ais. Uma lei é verdadeira somen­ período pré-marxista de Marx é
te quando ela é a “essência posi­ dominado pela noção de aliena­
tiva da liberdade”. Portanto, lem­ ção, provinda diretamente da fi­
bra Marx, a censura, assim como losofia de Feuerbach, e pela
a escravidão, não podem nunca d e s c o b e rta do p ro le ta ria d o
ser legalizadas, “mesmo que te­ como agente da “emancipação
nham existido durante muito tem­ humana".
po como lei”. Para Marx, agora, não é
A liberdade, para Marx, suficiente empunhar a arma da
possui uma existência natural crítica. É necessária uma força
que independe de qualquer re­ material para confrontar e supe­
gulamentação positiva, ela é um rar outra força material, de modo
direito natural cuja existência que a arma da crítica deve ser
perdura mesmo se uma lei pro­ substituída pela crítica das ar­
cura negá-la. mas. Mas isso não significa que a
Um Estado que reconheça teoria não cumpra mais nenhum
a liberdade e a igualdade, que se papel; ao contrário, a teoria pode
fundamente no respeito ao princí­ transformar-se em força material
pio da legalidade e na indepen­ quando penetra nas massas, diz
dência do judiciário, que vede a Marx em Crítica da filosofia do di­
existência de jurisdições especi­ reito de Hegel — Introdução. Afir­
ais, que garanta a liberdade de mando isso, ele supõe que toda
consciência e a liberdade de ex­ transformação revolucionária exi­
pressão do pensamento, enfim, ja um “fundamento material”, um
um Estado de direito, é a realiza­ elemento passivo.

23
Pois bem, que elemento ALIENAÇÃO E HUMANISMO
pode cumprir essa função revolu­
cionária, que classe da socieda­ Com a redação dos Manus­
de pode empreender a tarefa de critos econômico-filosóficos, Marx
emancipação universal, de eman­ volta o seu interesse para o pro­
cipação humana geral? Marx vai cesso de produção capitalista e dá
descobrir essa classe no proleta­ o salto em direção ao comunismo.
riado, na classe operária da in­ Mas tanto a sua análise da condi­
dústria moderna, que “não pode ção da classe operária como
emancipar-se sem emancipar-se aquela do comunismo reprodu­
de todas as outras esferas da so­ zem as representações ideológi­
ciedade e, ao mesmo tem po, cas humanistas de Feuerbach.
emancipar todas elas; que é a Desenvolvendo a crítica da
perda total do homem e que, por­ alienação religiosa, em A essên­
tanto, só pode se recuperar a si cia do cristianism o, Feuerbach
mesma através da recuperação mostra que ela consiste em uma
total do homem”. operação na qual o homem pas­
Se o proletariado é o fun­ sa a considerar como algo exteri­
damento material da revolução, or e acima dele aquilo que na ver­
cabe à filosofia armá-lo espiritual­ dade é o resultado de sua própria
mente, penetrando-o com o pen­ criação. Desse modo, Deus pode
samento. Assim, Marx pode dizer aparecer como uma representa­
que “a cabeça desta emancipa­ ção imaginária dos predicados de
ção é a filosofia, seu coração o que o gênero humano não dis­
proletariado”. põe, não tendo, portanto, nenhu­
Observemos, desde já, os ma objetividade. Deus é, para
limites dessa construção teórica: Feuerbach, “uma idéia que se tor­
a figura do proletariado é elabo­ na independente dos homens que
rada sob o modelo do homem ali­ a criam”.
enado de Feuerbach, sua eman­ Criando esse céu fantásti­
cipação não ultrapassa o horizon­ co, depositário das perfeições
te da emancipação geral do ho­ que o homem não pode encontrar
mem, e o seu caráter passivo de em si mesmo, o homem acaba
instrumento da filosofia revela por não mais reconhecê-lo como
que a noção de proletariado fun­ obra sua; ao contrário, ele apare­
ciona, a rigor, como uma catego­ ce aos homens como algo estra­
ria filosófica. nho a eles, como algo que os do­

24
mina. Como diz Feuerbach: “O feuerbachiana: “ Quanto mais
homem transforma o subjetivo, ou rico é Deus, mais pobre torna-se
seja, faz daquilo que só existe em o homem”.
seu pensamento, em sua repre­
sentação, em sua imaginação, al­ O trabalho alienado
guma coisa que existe fora de seu
pensamento, de sua representa­ A alienação do trabalho
ção, de sua imaginação. Assim, consiste, portanto, em que o pro­
os cristãos arrancam do corpo do duto do trabalho, os objetos pro­
homem o espírito, a alma, e fa­ duzidos pelo trabalhador, não lhe
zem desse espírito separado, pri­ pertencem, aparecendo-lhe como
vado de corpo, Deus. Deduzir de algo estranho, como um poder in­
Deus a natureza é como se se dependente dele e que o domina.
quisesse deduzir da imagem, da Quanto mais o trabalhador pro­
cópia, o original, deduzir uma coi­ duz, mais vê-se privado dos obje­
sa da idéia dessa coisa”. tos necessários à sua subsistên­
Pois bem, o que Marx rigo­ cia e, na medida em que menos
rosamente faz é estender a análi­ objetos ele possui, mais ele cai
se da alienação religiosa de Feu­ sob o domínio dos produtos que
erbach ao campo econômico-so- são criados por ele, isto é, sob o
cial (trabalho alienado)1. domínio do capital.
Assim o operário, no dizer Mas a alienação ocorre
de Marx nos Manuscritos econô- também no interior da atividade
m ico-filosóficos, “torna-se tanto produtiva, pois o trabalho é exte­
mais pobre quanto maior é a ri­ rior ao operário, não faz parte de
queza que ele produz”, do mes­ sua essência, de modo que o tra­
mo modo que quanto mais o ho­ balhador se sente infeliz e mortifi­
mem “põe em Deus, menos ele cado em um trabalho que não
retém em si mesmo”, todas es­ acarreta o seu desenvolvimento
sas fórmulas extraídas da matriz mental e físico. Assim, ele “só se

1 E nisso Marx já houvera sido precedido por Moses Hess (1812-1875), um dos
representantes da “esquerda hegeliana” e autor de um artigo, “A essência do
dinheiro” , no qual Marx se baseou para escrever parte de A questão judaica.
Neste texto, escrito antes dos Manuscritos, Marx concebe o Estado como a
projeção imaginária da vida comunitária, da vida verdadeiramente humana,
que os homens da sociedade civil, mergulhados no egoísmo e na procura da
satisfação de seus interesses particulares, nela não encontram.

25
sente em casa quando não traba­ não lhe pertence, mas precisa ser
lha e quando trabalha não se sen­ obtida por meio da coerção, per­
te em casa”, pois o seu trabalho gunta Marx, a quem pertencem
lhe aparece como uma atividade esse produto e essa atividade?
forçada, tanto que, não havendo Ora, se o objeto e a ativi­
coerção, ele “foge do trabalho dade de trabalho aparecem como
como de uma peste”. estranhos ao trabalhador, como
Esse trabalho não é perten­ um poder com o qual ele se de­
cente ao próprio trabalhador, mas fronta, evidentem ente, devem
pertence a outro, e o trabalhador pertencer não ao trabalhador,
mesmo, nessa atividade, também mas a um homem que não é tra­
pertence a outro. A atividade do balhador, de tal sorte que esse
trabalhador não é mais uma auto- outro homem aparece ao traba­
atividade, mas, justamente porque lhador como um “homem alheio a
pertence a outro, ela significa a ele, inimigo, poderoso, indepen­
perda do trabalhador de si mesmo. dente dele”, como o senhor do
O trabalho alienado, por objeto do trabalho realizado pelo
fim, aliena o homem igualmente operário, e cuja atividade apare­
de seu ser genérico. O homem é ce como a atividade “a serviço de,
um ser genérico precisamente sob o domínio, a coerção e o jugo
porque a atividade produtiva que de um outro homem".
ele realiza é uma atividade cons­ Desse modo, o trabalho ali­
ciente e livre por meio da qual a enado, ao mesmo tempo em que
natureza pode aparecer como “a provoca a perda do objeto do tra­
sua obra e a sua realidade efeti­ balho do operário, também pro­
va”. Por isso, ao separar o ho­ duz a dominação do capitalista,
mem do produto de sua atividade daquele “que não produz sobre a
produtiva, o trabalho alienado se­ produção e o produto”.
para o homem de sua própria vida A anulação do mundo da
genérica. Assim, conseqüente­ alienação, a constituição de uma
mente, o homem encontra-se ali­ sociedade comunista, é identifi­
enado do próprio homem. cada com a supressão positiva
Pois bem, se o produto do da propriedade privada, que per­
trabalho não pertence ao trabalha­ mitiria ao homem apropriar-se da
dor, se ele surge frente ao traba­ sua essência. Uma vez recondu­
lhador como um poder alheio, se zido o predicado ao sujeito, uma
a própria atividade do trabalhador vez reunificado o homem com o

26
homem e com a natureza, a alie­ das, segundo ele demonstrará
nação cessaria. posteriormente, na base econômi­
A leitura dos textos de ju­ ca material, na articulação entre as
ventude de Marx dominados pela relações de produção e as forças
antropologia filosófica de Feuer- produtivas. Só esse ponto de par­
bach permite reconhecer todo um tida pode permitir a Marx realizar
conjunto de noções pertencente a crítica da representação ideoló­
ao universo da ideologia burgue­ gica do “homem” e compreender
sa. As noções de alienação, de essa categoria como uma constru­
homem, de gênero humano, de ção da ideologia jurídica burguesa
essência humana, a idéia do ptd- necessária à circulação mercantil.
letariado como elemento passivo, Mas o caminho para Marx chegar
enfim, a problemática humanista a isso, como veremos, será ainda
impede Marx de apreender as de­ longo e tortuoso, e nunca comple­
terminações reais da sociedade tamente liberto das figuras de seu
burguesa, que devem ser busca­ “passado ideológico”.

27
0 A constituição do materialismo histórico

A 1LUSAO DE HEGEL seus princípios, a possibilidade


de um conhecimento científico do
Se os signos de uma rup­ processo histórico.
tura já podem ser vislumbrados Assim, talvez não fosse um
nas Teses sobre Feuerbach, é exagero afirmar que A ideologia
em A ideologia alemã que Marx alemã constitui um verdadeiro
— como ele próprio dirá mais tar­ ponto de não-retomo em relação
de — processa um ajuste de con­ à problemática marxiana do perío­
tas com a sua consciência filosó­ do anterior. O que significa dizer
fica anterior, estabelecendo, em isso? Significa dizer que, a partir

Manuscritos de A ideologia alemã. Escritos por Marx e Engels em 1845/1846, só foram


publicados postumamente, em 1932.

28
daí, Marx livra-se das influências É então na luta contra a “fi­
de Hegel ou de Feuerbach, e pode losofia alemã” que nasce esse pri­
então seguir o seu caminho solitá­ meiro esforço de compreensão
rio, ouvindo apenas os ecos cada materialista da sociedade. Para os
vez mais longínquos de seus pró­ filósofos “críticos” alemães, so­
prios passos? Significa dizer que mente a supressão das represen­
não encontraremos senão traços, tações imaginárias que oprimiam
vestígios da pré-história marxista os homens, desses “produtos de
que um paciente trabalho arqueo­ sua cabeça”, levaria à supressão
lógico permitiria identificar pelo da realidade nelas sustentada.
que são, a memória morta da ju­ Nisso consistiria toda a proclama­
ventude deixada há muito para da natureza revolucionária dessa
trás? Se assim fosse, não sería­ “crítica filosófica", a que Marx vai
mos capazes de compreender o opor “as sombras da realidade”.
extraordinário esforço que Marx “Certa vez, um bravo homem ima­
envida para superar a sua própria ginou”, diz Marx em A ideologia
“consciência filosófica anterior”. alemã, “que, se os homens se afo­
Marx funda o conhecimento da gavam, era unicamente porque
história e da sociedade sob bases estavam possuídos pela idéia da
novas, no interior justamente da gravidade. Se retirassem da cabe­
problemática com a qual ele tem ça tal representação, declarando,
de romper para que essa funda­ por exemplo, que se tratava de
ção seja possível. Assim, se é ver­ uma representação religiosa, su­
dade que A ideologia alemã é o persticiosa, ficariam livres de todo
marco de uma ruptura, o é apenas perigo de afogamento. Durante
no sentido de que um novo campo toda a sua vida, lutou contra essa
conceituai começa a ser formula­ ilusão da gravidade, cujas conse­
do e que essa nova teoria oferece qüências perniciosas todas as es­
elementos para a crítica do cam­ tatísticas lhe mostravam, através
po ideológico no qual Marx houve­ de provas numerosas e repetidas.
ra permanecido até então. Isso Esse bravo homem era o protóti­
significa que a presença da “ideo­ po dos novos filósofos revolucio­
logia alemã”, notadamente de He­ nários alemães”.
gel, ainda perturbará profunda­ Assim, a objeção que Marx
mente a obra de Marx, vindo a ser endereça aos filósofos “críticos’'
um obstáculo à constituição do procura demonstrar que eles não
campo científico que ele inaugura. se libertaram do núcleo idealista

29
que supostamente é o objeto jus­ significado profundo é o de que a
tamente de seu trabalho “crítico”: teoria é condicionada pelo campo
partindo da concepção de que é no qual está inserida, que o con­
a idéia que determina o mundo junto de problemas que a constitui
real, supunham que, para libertar determina as respostas que ela é
os homens do jugo do pensamen­ capaz de oferecer. Assim, se a
to e da representação, seria sufi­ problemática filosófica (hegeliana)
ciente a mera crítica filosófica, é “mistificada”, qualquer resposta
com a conseqüente destruição do que se der às suas questões será
mundo existente. É a essa “ilusão igualmente mistificada. É preciso,
de Hegel” que Marx procurará es­ então, romper com o campo da
capar, operando uma mudança ideologia filosófica, recusar as
de terreno na teoria. suas questões, e não apenas ofe­
recer outras respostas igualmente
Novas respostas ou novas ideológicas, e nisso consiste a mu­
questões? dança de terreno que Marx recla­
ma: a passagem da “mistificação”
Os limites da ideologia críti­ ideológica para o conhecimento
ca alemã evidenciam-se precisa­ científico do real.
mente porque ela permanece no O limite da crítica filosófica
mesmo terreno da filosofia, ela não repousa na sua incapacidade de
abandona esse terreno, que é o da ir além da esfera das representa­
filosofia hegeliana. Pois bem, Marx ções, das idéias, dos conceitos.
diz que uma crítica que não é ca­ Assim, tudo se passa como se se
paz de ultrapassar esse domínio tratasse apenas de encontrar
permanecerá estéril, ou melhor, uma outra interpretação da reali­
reproduzirá as mesmas represen­ dade, opondo uma fraseologia a
tações que afirma combater. “Não outra, sem combater o “mundo
apenas em suas respostas, mas já real existente”.
nas próprias questões, havia uma Para Marx, trata-se então
mistificação”. Essa frase de Marx de m udar de terreno. Ao invés de
é de grande importância, pois ela oferecer respostas diversas às
aponta na direção de uma ruptura mesmas questões da ideologia fi­
epistem ológica com as concep­ losófica — considerando, por
ções da esquerda hegeliana (e, exemplo, a religião como algo ne­
portanto, com as suas próprias for­ gativo — , Marx recusa essas pró­
mulações “de juventude”). O seu prias questões, a problemática fi­

30
losófica mesma, procurando inau­ de subsistência e a sua vida ma­
gurar um novo campo teórico. terial; distingue os vários modos
Marx, ao abandonar o ter­ de produção — a produção varia
reno ideológico comum do par es- de acordo com a natureza dos
pírito-matéria, pode agora come­ meios de subsistência; e fixa dois
çar a elaborar os conceitos teóri­ sentidos para o conceito de modo
cos que vão abrir para o conheci­ de produção: um sentido mais es­
mento o domínio antes incógnito trito, que corresponde às condi­
da sociedade e da história, mes­ ções materiais de produção, por
mo que ainda possa permanecer exemplo a instância econômica
em grande medida inserido no da sociedade burguesa, e um
campo do qual procura se livrar. sentido mais abrangente ou glo­
bal, correspondendo à totalidade
A MATERIALIDADE DO dos níveis de uma formação soci­
PROCESSO HISTÓRICO al, por exemplo, a sociedade bur­
guesa como um todo.
Marx parte de uma base Portanto, o que os indiví­
materialista ao estabelecer os duos são confunde-se com o que
seus pressupostos, ou seja, não se produzem e com o modo como
trata de elaborar uma idéia ou um produzem: “o que os indivíduos
conceito para depois procurar con­ são [...] depende das condições
formar a eles a realidade. O mate­ materiais de sua produção". Marx
rial de Mao< são os indivíduos re­ estabelece com essas passagens
ais, a ação que eles desenvolvem, o princípio fundamental de sua
as suas condições de vida. concepção teórica — o princípio
Os homens começam a se da determinação material da vida
distinguir dos animais quando se social — , de sorte que os proces­
tornam capazes de produzir seus sos sociais e políticos passam a
“meios de vida”, e, assim fazen­ ter o princípio de sua inteligência
do, produzem a sua “própria vida enraizado nas condições materi­
material” . É o modo como os ho­ ais da produção. São essas con­
mens produzem essa sua vida dições materiais da produção que
material, o elemento decisivo da condicionam o conjunto dos ele­
análise marxiana. mentos da estrutura social.
Marx estabelece, assim, o O critério de distinção en­
conceito de produção — os ho­ tre os modos de produção, por
mens produzem os seus meios sua vez, é estabelecido por Marx

31
r

quando introduz a noção de inter­ como constituído pelo indivíduo,


câmbio. A produção, diz Marx, pelo homem. Assim, pode afir­
depende do intercâmbio dos indi­ mar que “os pressupostos de
víduos entre si, de uma “forma de que partimos [...] são os indiví­
in te rc â m b io ” que vem a ser, duos reais”, quando, na verdade,
quando Marx “estabiliza" o seu o objeto da análise histórica — e
vocabulário conceituai, as rela­ essa é uma das descobertas fun­
ções de produção. Assim, para damentais de Marx — são as re­
Marx, toda produção deve ocor­ lações entre as classes, a luta de
rer, necessariamente, através de classes.
determinadas relações entre os Desse modo, malgrado os
produtores. Essas relações de avanços decisivos já obtidos,
produção, por sua vez, parecem Marx permanece em larga medi­
depender do grau de desenvolvi­ da no terreno do humanismo: a
mento das forças produtivas. produção passa a ser o resultado
da atividade dos homens, uma
FORÇAS PRODUTIVAS E criação do sujeito, e não o resul­
PROCESSO DE ALIENAÇÃO tado objetivo de um processo que
coloca duas classes sociais em
A ideologia alem ã — as­ confronto, como, por exemplo, a
sim como outros textos do perío­ burguesia e a classe operária na
do — é cortada por uma contra­ sociedade capitalista.
dição. Marx efetivamente funda o A história pode então apa­
conhecim ento dos processos recer como um processo de de­
históricos e sociais em uma base senvolvimento das forças produ­
m ateria lista, e o co nce ito de tivas, de acumulação de coisas
modo de produção, mesmo per­ que, não obstante criadas pelo
manecendo em estado prático, é homem, dele são separadas, isto
o índice mais expressivo da cien- é, alienadas, voltando-se contra o
tificid a de da teoria m arxiana, seu próprio criador.
operando uma ruptura com os
objetos empíricos ou naturais e Modo de produção e
com as diversas formas de re­ dominância das forças
presentação idealizada que até produtivas
então ocupavam o seu lugar.
No entanto, Marx ao mes­ Vejam os, então, de que
mo tem po pensa o seu objeto modo Marx elabora, no período

32
que agora examinamos, a pro­ o conjunto dos elementos nela
blemática das forças produtivas. não com preendidos, a esfera
Essa questão, que será objeto das idéias e representações, a
de uma retificação na obra pos­ ideologia, a esfera da política, do
terior de Marx, é mesmo decisi­ direito, da arte etc. Ele utiliza
va, pois dela dependerá não só uma figura arquitetônica para re­
a compreensão do processo de presentar essa relação. De acor­
constituição do capitalismo mas do com essa imagem, “o modo
também a possibilidade de sua de produção", as “relações ma­
superação. teriais”, a “produção capitalista”
O que Marx fundamental­ constituiriam a base ou a estru­
mente faz é estabelecer o prima­ tura sobre a qual se ergueria
do das forças produtivas sobre as uma superestrutura compreen­
relações de produção. O que isso dendo todos aqueles elementos
significa? Significa que o desen­ de natureza “não-econômica” .
volvimento histórico dependeria As relações econômicas — o
principalm ente das inovações modo de produção, em sentido
técnicas que dão origem a meios estrito, ou seja, o conjunto das
de produção mais avançados, e relações de produção e das for­
não da luta entre as classes na ças produtivas — têm um papel
produção, a qual cumpriria um determinante em relação à esfe­
papel secundário. Desse modo, ra superestrutural a qual seria
por exemplo, a introdução da má­ subordinada a elas.
quina no processo de produção Q ue d e te rm ina çã o é
acarretaria uma mudança nas re­ essa? Para Marx, a base exerce­
lações sociais. ria uma ação de condicionamen­
to sobre a superestrutura, no
DETERMINAÇÃO MATERIAL E sentido de que esta só pode ser
SUPERESTRUTURA compreendida e explicada a par­
tir da base, ou seja, o princípio
Uma vez estabelecido o de inteligência da superestrutura
princípio basilar da determinação não residiria nela mesma, mas
material pela produção, pelas re­ na base econômica. É isso que
lações de produção e pelas for­ significam estas passagens de A
ças produtivas, Marx procura ideologia alemã: “A moral, a reli­
elucidar o problema da articula­ gião, a metafísica e qualquer ou­
ção entre essa “base” material e tra ideologia, assim como as for­

33
mas de consciência que a elas A CÂMARA ESCURA
correspondem, perdem toda a
aparência de autonomia. Não Uma vez estabelecida a
têm história, nem desenvolvi­ relação entre a base e a supe­
mento”; “Não se deve esquecer restrutura, é possível medir a dis­
que tanto o direito como a reli­ tância entre a concepção de
gião não têm história própria” . Marx e aquela do idealismo ale­
Portanto, para compreendermos mão. Já havíamos observado, no
o direito ou a religião, ou qual­ início deste capítulo, a censura
quer outro elemento da superes­ que ele dirige contra as “ilusões
trutura, é preciso antes apreen­ de Hegel”, opondo à filosofia es­
der as determinações profundas peculativa “as sombras da reali­
da base econôm ica, pois são dade” . Pois bem, agora já dispo­
elas que emprestam sentido ao mos de condições suficientes
movimento da superestrutura. para compreender o sentido ple­
Porém , em A id e o lo g ia no dessas co nside ra çõe s de
alem ã, e nos outros trabalhos Marx. Se o domínio da superes­
desse mesmo período, a deter­ trutura é condicionado pela base
minação da superestrutura pela econômica, se ela não possui
base econômica parece ser uma autonomia, movimento próprio,
determinação algo direta, imedi­ então nenhuma iniciativa que se
ata, o que se exprime nesta pas­ limite ao plano das idéias, por
sagem reveladora: “A produção mais “críticas" que estas venham
de idéias, de representações, da a ser, pode ter o condão de alte­
consciência, está, de início, dire­ rar de qualquer modo a realida­
tamente entrelaçada com a ativi­ de material. A transformação de
dade material e com o intercâm­ uma idéia, de uma concepção
bio material dos homens, como a teórica, de uma formação ideoló­
linguagem da vida real. O repre­ gica não depende de uma outra
sentar, o pensar, o intercâmbio idéia, de uma outra teoria, de
espiritual dos homens, aparecem uma outra ideologia, que àquelas
aqui como emanação direta de vie sse se contrapor, mas da
seu com portam ento m aterial” . transformação das relações soci­
Veremos, mais adiante, que tam­ ais de que elas provêm.
bém nesse aspecto o pensamen­ A ideologia vai aparecer
to marxiano sofrerá sensíveis então, para Marx, em A ideologia
alterações. alem ã, como um processo no

34
qual os homens e suas relações ma, que podem findar as “frases
surgem invertidos, como numa ocas" sobre a consciência e as
câm ara escura, “ do m esm o abstrações “separadas da histó­
modo [...] que a inversão dos ob­ ria real” . E esse é também o
jetos na retina”. Assim, pode ad­ pressuposto do nascimento de
quirir uma existência imaginária um conhecimento científico da
todo um conjunto de idéias e re­ história, contraposto à ideologia,
presentações que parecem fun­ e cujo princípio Marx pode, ain­
dar a realidade, quando elas são, da uma vez, fundar: “O fato, por­
na verdade, a “emanação” de re­ tanto, é o seguinte: indivíduos
lações sociais determinadas. E determinados, que como produ­
se os homens podem pôr, em tores atuam de um modo tam­
suas representações, “a realida­ bém determinado, estabelecem
de de cabeça para baixo”, isso é entre si relações sociais e políti­
decorrência de seu “modo de ati­ cas determinadas. É preciso que,
vidade material lim itado” . É a em cada caso particular, a obser­
isso que Marx se refere ao dizer vação empírica coloque neces­
que a sua concepção não desce sariam ente em relevo — em­
do céu à terra, mas ascende da piricamente e sem qualquer es­
terra ao céu, ao contrário da filo­ peculação ou mistificação — a
sofia alemã. Ou seja, “não se conexão entre a estrutura social
parte daquilo que os homens di­ e política e a produção. A estru­
zem, imaginam ou representam, tura social e o Estado nascem
e tampouco dos homens pensa­ constantemente do processo de
dos, imaginados e representa­ vida de indivíduos determinados,
dos para, a partir daí, chegar aos mas não como podem aparecer
homens de carne e osso”, mas na imaginação própria ou alheia,
sim das suas condições reais de mas tal e como realmente são,
existência. É por isso que “mes­ isto é, tal e como atuam e produ­
mo as formações nebulosas no zem materialmente e, portanto,
cérebro dos homens são subli­ tal e como desenvolvem suas ati­
mações necessárias do seu pro­ vidades sob determinados limi­
cesso de vida material, empirica­ tes, pressupostos e condições
mente constatável e ligado a materiais, independentes de sua
pressupostos materiais”. vontade”.
É somente com o fim des­ O “descolamento” das idéi­
sa filosofia especulativa, autôno­ as e representações de seu solo
r

originário, a inversão de sentido te. Ou, ainda, considera certos


que essa operação implica, está institutos ou categorias como
na base do domínio ideológico da “positivos” , “bons” ou “desejá­
classe dominante. veis” por si mesmos, de modo
absoluto, como, por exemplo, a
As “verdades eternas” liberdade, obscurecendo que, na
da classe dominante sociedade burguesa, ela não é
mais que a liberdade de o capi­
A classe dom inante de tal explorar o trabalhador. Por
cada época histórica apresenta fim, a ciasse dominante justifica
as suas idéias, representações e a sua dominação dando a ela um
conceitos como verdades eter­ caráter de necessidade, como o
nas, e os seus ideólogos apre­ faz o cristianismo ao defender a
sentam as relações sociais de existência da dominação de
domínio dessa mesma classe classe como resultante da von­
como sendo relações eternas, e tade divina.
não como relações provisórias,
historicamente determinadas, o Ideologia e
que permite que elas sejam apre­ dominação de classe
sentadas como a expressão da
razão ou da natureza. Assim, os “As idéias da classe domi­
conceitos de razão e de nature­ nante são, em cada época, as
za, emprestando um caráter de idéias dominantes." Essa célebre
eternidade a relações sociais frase de Marx encerra a reafir­
transitórias, não apenas dão a mação do princípio da determi­
estas um sentido positivo, mas nação da superestrutura pela
também, e em conseqüência, as base econômica: se uma deter­
tornam imunes a qualquer intento minada classe é dominante eco­
de transformá-las ou extingui-las. nomicamente, se ela é. a “força
Do mesmo modo, a clas­ material" dominante, então ela
se dominante apresenta os seus será, necessariamente, também
interesses particulares de classe dominante no âmbito da supe­
(dominante) como sendo o inte­ restrutura, isto é, será a “força
resse do conjunto da sociedade, espiritual” dominante. Isso signi­
e as suas relações de domina­ fica que o controle dos meios de
ção como a expressão da vonta­ produção materiais implica o
de geral obtida consensualmen- controfe dos “meios de produção

36
espirituais", acarretando assim a ses como sendo os interesses
submissão dá classe despojada comuns de toda a sociedade", o
desses meios à classe que pos­ que a leva necessariamente a dar
sui esses meios à sua disposi­ às suas idéias a “forma de univer­
ção. As idéias da classe domi­ salidade”, apresentando-as como
nante podem então surgir pelo as únicas racionais e as “univer­
que são, a “expressão ideal das salmente válidas".
relações materiais dominantes”, Pois bem, a classe que ob­
relações materiais transforma­ jetiva tomar o poder e tornar-se
das em idéias, enfim, “as idéias dominante, não apresenta, no
de sua dominação". processo revolucionário, os seus
A dominação “espiritual", interesses particulares de classe
isto é, a dominação ideológica, como o interesse que ela própria
aparece como uma extensão da representa e defende. Ela apare­
dominação exercida na esfera da ce, ao contrário, como se repre­
circulação e da produção pela sentasse o conjunto das ciasses
classe que dispõe dos meios de excluídas do poder, a sociedade
produção. Do mesmo modo que como um todo frente à classe do­
essa classe controla esses meios minante. Isso ocorre justamente
materiais, eia igualmente contro­ porque o seu interesse particular
la os meios de produção e de di­ ainda não pode se desenvolver
fusão das idéias. em virtude das condições existen­
Mas essas idéias dominan­ tes e também porque ele efetiva­
tes não aparecem como sendo a mente está ligado ao interesse
expressão de interesses de clas­ coletivo, na exata medida em que
se determinados, e sim como a vitória dessa classe interessa a
“idéias puras", provindas de pen­ muitos membros de outras clas­
sadores desvinculados daqueles ses, que assim poderão elevar-se
interesses. à condição de membros da nova
Ademais, a base da domi­ classe dominante.
nação ideológica amplia-se sem­
pre, isto é, as idéias dominantes ESTADO E LUTA DE CLASSES
tornam-se cada vez mais univer­
sais, em cada época histórica. Com as aquisições teóri­
Isso verifica-se porque a classe cas desse período, Marx pode
dominante, ao tomar o poder, fundar sobre outro terreno o con­
deve "apresentar os seus interes­ ceito de Estado. Surgindo como

37
conseqüência das reiações de Essa representação ilusó­
produção, no sentido de que a ria de que o Estado possa encar­
determinadas relações de produ­ nar o interesse geral esconde,
ção dominantes deve correspon­ para Marx, a sua função especí­
der uma certa forma política de fica: ao garantir a propriedade
domínio de classe, o Estado é dos meios de produção, o Esta­
compreendido, agora, como a do já garante, por força desse
forma de dom ínio pela qual a ato mesmo, a posição de domí­
classe dominante faz prevalecer nio da classe que é titular dessa
os seus interesses comuns de propriedade. Desse modo, o do­
classe. O caráter comum desse mínio da burguesia sobre a clas­
poder cumpre dois papéis: em se operária, no âmbito de cada
primeiro lugar, ele permite que o unidade produtiva, estende-se
Estado possa defender os inte­ imediatamente para o domínio
resses do conjunto da classe do­ da política, como o domínio do
minante, mesmo que tenha, em conjunto da classe burguesa so­
determ inadas circu n stân cia s, bre a classe operária. O Estado,
para alcançar esse objetivo, de assim, pode ser considerado o
sacrificar o interesse particular, “resumo oficial do antagonismo
seja de alguma fração, seja de na sociedade civil”, no sentido de
algum membro da classe domi­ que as contradições de classe,
nante; em segundo lugar, ele ao adquirirem um caráter políti­
permite que os interesses da co, exigem, devido ao caráter in­
classe dominante sejam apre­ conciliável desses conflitos, a
sentados como sendo os interes­ existência do Estado. Este atua,
ses do conjunto da sociedade, portanto, no sentido de conter o
como uma comunidade de inte­ antagonismo de classe dentro de
resses gerais e, portanto, que limites que permitam a conserva­
não adquiram um caráter priva­ ção da sociedade na qual domi­
do, mas, ao contrário, um cará­ na uma determinada classe, que
ter público, isto é, o exercício do permitam, portanto, conservar
poder político pela classe domi­ esta dominação de classe.
nante pode aparecer como o do­
mínio impessoal de uma pessoa ALIENAÇÃO E COMUNISMO
jurídica, ao qual a idéia mesma
de dominação de classe é um Já observamos anterior­
impensado. mente que Marx ainda pensa a

38
sociedade burguesa sob o mode­ Pois bem, para que a alie­
lo da noção ideológica de aliena­ nação possa ser cancelada e o
ção. A alienação, cuja causa se­ advento do comunismo seja pos­
ria a divisão do trabalho, faz com sível, é necessária a ocorrência
que a “ação do homem [conver­ de uma condição prévia, absolu­
ta-se] num poder estranho e a tamente essencial: o desenvolvi­
ele oposto, que o subjuga ao in­ mento das forças produtivas. É
vés de ser por ele dominado” , de esse desenvolvimento das for­
tal modo que o produto dessa ati­ ças produtivas em uma escala
vidade dos homens “consolida- elevada que vai produzir, ao
se” em um “poder objetivo supe­ mesmo tempo, “um mundo de ri­
rior” a eles e que escapa ao seu queza” e a massa “totalmente
controle. destituída de propriedade” como
As forças produtivas que elementos contraditórios. E vai
decorrem da divisão do trabalho ainda produzir o “intercâm bio
podem aparecer aos indivíduos universal dos homens” , generali­
não como o resultado de sua pró­ zando a condição proletária para
pria atividade, como manifesta­ todo o mundo e dando à supera­
ção de seu “poder” , mas como ção do capitalismo um caráter
“uma força estranha situada fora universal. O comunismo, assim,
deles, cuja origem e destino igno­ dependeria do desenvolvimento
ram, que não podem mais domi­ das forças produtivas e da exis­
nar e que, pelo contrário, percor­ tência de relações de troca gene­
re agora uma série particular de ralizadas como condições pré­
fases e estágios de desenvolvi­ vias sem as quais o passo para
mento, independentemente do além do capitalismo estaria blo­
querer e do agir dos homens e queado “e toda a imundície ante­
que, na verdade, dirige este que­ rior seria restabelecida”.
rer e este agir”. O com unism o, desse
O processo de alienação modo, é entendido por Marx
é, portanto, o processo da sepa­ como um modo de apropriação
ração entre as forças produtivas das forças produtivas pelo ho­
e o homem, forças produtivas mem, ou seja, como a apropria­
que se “destacaram”, tornando- ção do objeto pelo sujeito, inver­
se forças não mais desses mes­ tendo-se assim a relação de alie­
mos homens mas da proprieda­ nação, fundada no domínio do
de privada. sujeito pelo objeto. É a isso que
ele se refere nesta passagem de mens possam controlar a produ­
A ideologia alem ã: “As coisas, ção e a troca.
portanto, foram tão longe que os Ora, essa concepção do
indivíduos devem apropriar-se da comunismo, fundada no desen­
totalidade existente das forças volvimento das forças produtivas,
produtivas, não só para alcançar no “cancelamento” da alienação,
a auto-atividade, mas tão-somen­ na generalização das trocas e no
te para assegurar a sua existên­ direito, é submetida por Marx à
cia. Esta apropriação está condi­ crítica na segunda parte de A ideo­
cionada, em primeiro lugar, pelo logia alemã'.
objeto a ser apropriado, isto é,
pelas forças produtivas que se COMUNISMO E DIREITO
desenvolveram até form ar uma
totalidade e que existem apenas Marx, com efeito, ao criticar
no interior de um intercâm bio uni­ os representantes do chamado
versal. [...] Apenas os proletários “socialismo verdadeiro” — uma
[...] estão em condições de impor tendência pequeno-burguesa do
sua auto-atividade completa e comunismo — , demonstra que a
não mais limitada, que consiste representação que eles fazem do
na apropriação de uma totalida­ comunismo decorre inteiramente
de de forças produtivas e no de­ da ideologia jurídica burguesa.
senvolvimento daí decorrente de Analisando as idéias do
uma totalidade de capacidades. anarquista alemão Max Stirner
[...] Com a apropriação das for­ (1806-1856) Marx constata que,
ças produtivas totais pelos indiví­ ao proclamar a existência de um
duos unidos, termina a proprieda­ único direito, o “meu” direito, o
de privada". “direito do egoísmo”, ele estabe­
Essa apropriação privada lece, por meio desse confronto
dos produtos seria substituída de egoísmos que se limitam re­
pela apropriação coletiva, des- ciprocam ente, um a cordo de
truindo-se desse modo a relação vontades que conduz à harmo­
de alienação que se verifica en­ nia social.
tre os indivíduos e os seus pro­ S egundo M arx, S tirn e r
dutos, e permitindo que os ho­ concebe o comunismo como a

1 Que, no entanto, foi escrita antes da primeira, cujo com entário realizamos
até aqui.

40
transferência da propriedade p ri­ pitalistas; eles fundam a igualda­
vada para a propriedade comum, de universal dos sujeitos de direi­
de todos. Uma vez que a socie­ to sob a base do valor de troca,
dade foi investida do estatuto de que torna possível a compra e
“proprietária” , o problema do co­ venda da força de trabalho, a ex­
munismo se resumiria em garan­ ploração burguesa. O humanismo
tir a igualdade, isto é, em esta­ (direitos do homem) encobre, as­
belecer uma ju s ta re p a rtiç ã o sim, a dominação de classe.
das coisas. Pois bem, essa igualdade
Marx pode então criticar de que o comunismo seria a re­
essa imagem do “comunism o” alização “prática” repousaria —
fundada na relação entre o “ho­ para os “socialistas verdadeiros”
mem” e suas “necessidades”, en­ — na essência mesma do ho­
quanto uma relação de apropria­ mem. A personalidade do ho­
ção jurídica que remete às “ne­ mem, porém, estaria separada
cessidades do burguês atual: que (“alienada”) do próprio homem,
cada um tem o direito de possuir dividida entre a sua essência
os seus bens”. atual, impedida de se realizar, e
Para Stirner, o comunismo a que ela deveria ser, a razão. É
significa, afinal, que “cada um n ece ssá rio então re c o n c ilia r
possa gozar os direitos eternos essa “essência racional huma­
do homem”. Ora, Marx demons­ na" com a sua existência, em
tra que há uma completa incom­ uma sociedade que respeite e
patibilidade entre o comunismo e realize essa “natureza humana
o direito, que “se os axiomas do interna” , isto é, em uma socie­
direito que conduzem ao comu­ dade que respeite e realize os
nismo são concebidos como axi­ direitos eternos do homem da
omas da propriedade privada, do sociedade burguesa.
mesmo modo, o direito de propri­ O comunismo, para os “so­
edade comum é concebido como cialistas verdadeiros”, seria afinal
a condição imaginária do direito essa sociedade em que o reencon­
de propriedade privada”. tro do homem com a sua essência
Por que o comunismo não alienada se exprimiria no gozo da
pode se identificar com os “direi­ “verdadeira propriedade”, uma
tos eternos do homem”? Porque propriedade “natural” e “social”.
esses direitos decorrem das rela­ Essa concepção reproduz
ções de produção e de troca ca­ no fundamental a ideologia do

41
pequeno-proprietário que, ame­ peração efetiva da sociedade
açado pelo grande capital, aspi­ burguesa.
ra nostalgicamente à liberdade O “comunismo” pequeno-
de concorrência. Como lembra burguês, fundado no igualitaris-
N icole-E dith Thévenin, “o pe­ mo, não é capaz de ir além do
queno-burguês quer, em última horizonte do capitalismo porque
instância, uma liberdade dos in­ ele reproduz ideologicamente as
divíduos, feita pelos indivíduos, condições mesmas de funciona­
para os indivíduos, em um ideal mento da sociedade que supos­
com unitário onde reinariam o tamente pretende negar.
amor, a fraternidade. Para o so­ É assim que, para Prou­
cialista verdadeiro, o comunis­ dhon, as relações sociais da so­
mo é, portanto, o retorno ao d i­ ciedade burguesa são form as
reito natural. A essência
do homem é o direito”.

UMA SOMBRA QUE SE


TORNA CORPO

A crítica ao “comu­
nismo" pequeno-burguês
prossegue nos textos de
Marx do mesmo período
de A id e o lo g ia alem ã.
Trata-se de uma luta de­
c is iv a c o n tra tod o um
conjunto de representa­
ções ideológicas de que
ele próprio não pôde se
libertar inteiramente. Ora,
essa crítica é a condição
n e c e s s á ria para que
Marx possa se colocar do
ponto de vista da classe
operária, portanto, para
que ele p o ssa a b rir a Joseph Proudhon. Em Miséria da filosofia, Marx faz a
possibilidade de uma su­ crítica das concepções teóricas de Proudhon.

42
eternas, não com preendendo, eterna, que impede às pessoas
como Marx mostra em Miséria da afirmarem seus interesses prejudi­
filosofia, que “as formas da eco­ cando outras. Para o burguês, a
nomia sob as quais os homens troca individual pode subsistir sem
produzem, consomem e fazem o antagonismo entre as classes —
suas trocas são transitórias e para ele trata-se de coisas total­
históricas” . mente desvinculadas.
É essa “eternização” das “[...] O sr. Bray [socialista
formas sociais burguesas o re­ ricardiano inglês, 1809-1895], faz
sultado da elevação da categoria da ilusão do honesto burguês o
da igualdade à condição de prin­ id e al que pretenderia realizar.
cípio fundador da “nova” socie­ Depurando a troca individual, ex-
dade. Ora, a “igualdade” remete purgando-a de todos os seus
necessariamente ao seu funda­ componentes antagónicos, ele
m ento m aterial, as trocas de acredita encontrar uma relação
mercadorias, que dependem de 'igualitária' que desejaria introdu­
um modo de produção determi­ zir na sociedade.
nado. Assim, o comunismo pe- “O sr. Bray não compreen­
queno-burguês incorre em uma de que esta relação igualitária,
dupla ilusão: a de ir além do ca­ este ideal corretivo que gostaria
pitalismo quando apenas repro­ de aplicar ao mundo, é, em si
duz o seu funcionamento; e a de mesmo, um reflexo do mundo
poder isolar a relação de troca de atual e que, conseqüentemente, é
uma estrutura de produção fun­ impossível reconstituir a socieda­
dada no antagonism o entre a de sobre uma base que não pas­
burguesia e o proletariado. Como sa de uma sombra embelezada
comenta Marx, “a troca individual de si mesma. À medida que a
corresponde, ela também, a um sombra torna-se corpo, percebe-
modo de produção determinado se que este, longe de ser a trans­
entre as classes. Não há troca figuração sonhada, é o corpo atu­
individual, pois, sem o antagonis­ al da sociedade”.
mo entre as classes. O significado mais profun­
“As consciências honestas, do dessas observações de Marx
todavia, recusam essa evidência. repousa na compreensão das
O ponto de vista burguês só pode formas ideológicas necessárias
perceber nesse antagonismo uma ao funcionamento do capitalis­
relação de harmonia e de justiça mo, no qual as relações de tro-

43
ca encobrem o processo de pro­ TODOS OS HOMENS SÃO
dução e “dissolvem” as relações IRMÃOS?
de classes — que são relações
de exploração de uma classe A luta contra a hegemonia
por outra — na relação entre do “socialismo verdadeiro” e de
possuidores “livres e iguais” de outras tendências utópicas é
mercadorias. também, ao mesmo tem po, a
A crítica que Marx realiza luta pela direção do movimento
dessa representação ideológica — operário, portanto, a luta por uma
notadamente de Proudhon — per­ organização revolucionária dos
mite que se estabeleça uma linha trabalhadores.
de demarcação inamovível entre o A revolução id e o ló g ic a
reformismo e a ação revolucionária. por que passa a Liga dos Justos
Em uma carta endereçada — ao se transform ar em Liga
a Marx, em 1846, Proudhon es­ dos Com unistas — , sob a in ­
tabelece a relação entre a “teo­ fluência de Marx e de Engels, é
ria” do igualitarismo jurídico e o reveladora da necessidade de
abandono da revolução: “[...] se rom per com a ideologia ju rí­
não devemos colocar a ação re­ dica para que a classe operária
volucionária como meio de refor­ possa, em um mesmo movimen­
ma social, porque esse pretenso to, com preender cientificam ente
meio seria, muito simplesmente, as razões de sua situação como
um apelo à força, ao arbítrio — classe dom inada e explorada
logo, uma contradição. Coloco- pelo capital e se organizar inde­
me assim o problema: reintrodu- pendentem ente da burguesia,
z ir na sociedade, p o r uma com­ para lutar pelo comunismo.
binação econômica, as riquezas É assim que, se os estatu­
que dela foram e xtra íd a s p o r tos da Liga dos Justos, de 1838,
uma outra com binação econômi­ reivindicavam a “realização dos
ca. Noutros termos: na economia princípios contidos nos Direitos
política, voltar a teoria da Propri­ do Homem e do Cidadão”, já os
edade contra a Propriedade, de estatutos da Liga dos Comunis­
modo a engendrar o que os se­ tas, de 1847, diziam que “o obje­
nhores, s o c ia lis ta s alem ães, tivo da Liga é a derrocada da
chamam com unidade e que, por burguesia, a dominação do pro­
agora, limitar-me-ei a denominar letariado, a supressão da antiga
liberdade, igualdade". sociedade burguesa fundada

44
nos antagonismos de classes e te? Por que a ruptura não se pro­
a fundação de uma nova socie­ cessa definitivamente, por que o
dade sem classes e sem propri­ corte não é irreversível?
edade privada”. Para entenderm os esse
Assim, é o próprio objetivo ponto particularmente sensível da
da ação de massas que é subver­ teoria de Marx e da história de
tido: se antes o lema dos “Justos” sua formação intelectual — e de
era “todos os homens são ir­ resto decisiva, por todos os títu­
mãos”, agora, o lema da Liga dos los — , será preciso localizar o
Comunistas pode traduzir o abis­ ponto de bloqueio que trava a ple­
mo que o separa do anterior: na superação da problemática
“Proletários de todos os países, ideológica e a sua articulação
uni-vos!” conceituai no interior da obra.
Esse ponto de bloqueio
TEORIA DA ALIENAÇÃO OU pode ser identificado no primado
LUTA DE CLASSES que Marx concede, em algumas
de suas obras, ao desenvolvi­
Vimos que, em A ideologia mento das forças produtivas so­
alemã e nas outras obras do mes­ bre as relações de produção no
mo período, a nova concepção processo histórico. Ora, o privi-
que Marx começa a elaborar é legiamento das forças produtivas
contida pela presença de elemen­ obscurece o papel da luta de
tos do campo ideológico com o classes nas formações sociais e
qual ela teve de romper. Essa implica necessariamente o refor­
presença não se extinguirá ja ­ ço da figura do homem, do sujei­
mais. Ela continuará a produzir os to, enquanto produtor de coisas,
seus efeitos para além das obras de objetos.
que marcam o fim da juventude Uma dupla condição é ne­
teórica de Marx, alcançando até cessária, portanto, para que Marx
mesmo o momento de sua maior ultrapasse esse obstáculo à cons­
elaboração científica — O capital. tituição do campo científico que
Como explicar essa vacila­ ele abre ao conhecimento: a pri­
ção teórica de Marx? Quais as ra­ meira é a reelaboração conceitu­
zões dessa persistente presença, ai da problemática das forças pro­
desse limite intransponível que, dutivas, com a demonstração de
uma vez superado, deixado para que as forças produtivas não são
trás, logo reaparece mais à fren­ “exteriores” às relações de produ­

45
ção, mas que, ao contrário, são portanto, às exigências do pro­
as relações de produção que de­ cesso de valorização.
terminam o seu desenvolvimento. Enquanto Marx persistir
A segunda, é a crítica das formas em afirmar o primado das forças
jurídicas, da noção de homem — produtivas, a superação dessas
e, em decorrência, da noção de figuras ideológicas permanecerá
alienação — com a demonstra­ como um interdito com o qual ele
ção de que essas formas estão se defrontará em toda a sua obra,
necessariamente relacionadas ao consciente ou não de sua presen­
processo de trocas mercantis, ça ou de seus efeitos.

46
G História e revolução

No M anifesto do P artido rio da sociedade feudal, a bur­


Comunista, ao analisar a constitui­ guesia. Essa abertura de novos
ção da sociedade burguesa e as mercados, decorrente das trocas
contradições no seu interior, Marx com o Oriente, o comércio com
empresta o papei dominante na as colônias e o desenvolvimento
evolução histórica ao desenvolvi­ dos meios de troca, entre o final
mento das forças produtivas. Ao do século XV e o século XVI, cria­
mesmo tempo, ele apresenta a vam necessidades novas que a
luta de classes como o motor da
história, principio de Inteligência
do processo histórico. A dominân­
cia da antiga problemática econo-
micista é, agora, “perturbada” pela
presença de um conceito — a luta
de classes — que remete para a .flomtmmijtifd;eu portei.
compreensão do movimento real
de constituição e reprodução da
sociedade burguesa.
f t f'» r r r ‘ MÍ!|r l a J i I i i i i IMS.

TUDO O QUE É SÓLIDO


DESMANCHA NO AR

Em um primeiro momento,
no Manifesto, Marx procura des­
crever a transição do feudalismo
para o capitalismo. O feudalis­
mo, diz Marx, desagrega-se e
decompõe-se em virtude do in­ Frontispício da primeira edição do
cremento das relações comerci­ Manifesto do Partido Comunista,
publicado em Londres em fevereiro
ais, que provocam o desenvolvi­ de 1843. “Proletários de todos os países:
mento do elemento revolucioná­ uni-vos!"

47
organização corporativa da eco­ pondente, culminando, no século
nomia feudal não podia atender. XIX, com a sua soberania política
Por essa razão ela teve de ser exclusiva no Estado moderno, que
substituída pela manufatura, a se constitui em um “comitê para
qual, introduzindo a cooperação gerir os negócios comuns de toda
dos trabalhos no interior da ofici­ a classe burguesa”.
na, sob o regime assalariado, A burguesia cumpriu um
permite um grande aumento da papel revolucionário na história,
produtividade e o crescimento da na medida em que, ao destruir as
produção, em um período que se relações sociais feudais, atingiu
estende até o século XVIII. as representações religiosas e
Mas o processo de expan­ todo o imaginário feudal expres­
são contínua do comércio e a ne­ so nos laços hierárquicos, no sen­
cessidade crescente de novas timentalismo, no “entusiasmo ca­
mercadorias, já não podem ser valheiresco” etc. Em seu lugar
satisfeitas pelo sistema manufa- deixou que dominasse apenas “o
tureiro. A introdução, no proces­ laço do frio interesse”, o “cálculo
so produtivo, de novas formas de egoísta” , fazendo da dignidade
energia e do sistema de máqui­ pessoal um “simples valor de tro­
nas, entre os séculos XVIII e XIX, ca” e substituindo as liberdades
acarreta uma enorme transforma­ pela liberdade única de comércio.
ção no modo de produzir, sendo Em suma, “em lugar da explora­
a manufatura substituída pela ção velada por ilusões religiosas
grande indústria. O advento da e políticas, a burguesia colocou
grande indústria permite a expan­ uma exploração aberta, cínica, di­
são do comércio, em virtude de reta e brutal” .
ter ela criado o mercado mundial, Ao contrário do modo de
e esse desenvolvimento das tro­ produção feudal, o capitalismo é
cas, por sua vez, favorece a ex­ permanentemente atravessado
pansão da indústria. A burguesia por períodos de instabilidade e
pode aparecer, assim, como o de crise, em um processo de “re­
produto dessas revoluções no volução contínua da produção”.
modo de produção e de troca. As relações sociais antigas e as
Cada um desses momen­ idéias a elas correspondentes
tos que a burguesia conheceu, em tão logo são dissolvidas e já as
sua evolução, vai ser acompanha­ relações e as idéias que as subs­
do de uma etapa política corres­ tituem parecem envelhecidas an-

48
tes mesmo de se cristalizarem: de produção, o que veio a acarre­
“tudo o que é sólido e estável se tar, em conseqüência, a centrali­
volatiza, tudo o que é sagrado é zação política. Com a superação
profanado”. da fragmentação nacional, em
O capitalismo expande-se que regiões ou províncias conser­
para todo o mundo, superando os vavam-se independentes, com in­
limites nacionais, rompendo o iso­ teresses, leis, governos e tarifas
lamento e a estreiteza de regiões aduaneiras distintos, a burguesia
e países, destruindo as indústrias pode constituir “uma só nação,
locais, criando novas necessida­ com um só governo, uma só lei,
des, produzindo para atender não um só interesse nacional de clas­
a um consumo localizado e limi­ se, uma só barreira alfandegária”.
tado, mas para atender a uma O capitalismo permitiu que
demanda mundial, estabelecen­ forças produtivas “colossais”, su­
do, assim, “um intercâmbio uni­ periores a todas aquelas dos sé­
versal, uma universal interdepen­ culos passados, despertassem
dência das nações”. do “seio do trabalho social” .
Com o desenvolvim ento O processo de constituição
das forças produtivas capitalistas, do modo de produção capitalista
que permitem a produção de mer­ pode então ser entendido assim:
cadorias a um baixo preço, a bur­ de dentro da sociedade feudal
guesia derrota as nações mais são gerados os meios de produ­
“atrasadas” , obrigando todas as ção e troca da burguesia. “Em um
nações a adotarem, “sob pena de certo grau do desenvolvimento
morte", o modo de produção ca­ desses meios de produção e tro­
pitalista, criando “um mundo à ca” , o “regime feudal de proprie­
sua imagem e semelhança”. dade” deixou de “corresponder às
Igualm ente, prossegue forças produtivas em pleno de­
Marx no Manifesto, a burguesia senvolvimento”, transformando-
subjugou o campo à cidade, em se em um obstáculo ao incremen­
um processo de intensa urbaniza­ to da produção. A remoção desse
ção, retirando grandes contingen­ obstáculo, isto é, a destruição do
tes populacionais do “embruteci­ modo de produção feudal, permi­
mento da vida rural” . Além de tiu a organização da produção e
concentrar a população, a bur­ da troca em outras bases, corres­
guesia também concentrou a pro­ pondentes ao interesse de classe
priedade e centralizou os meios da burguesia.

49
DEMASIADA CIVILIZAÇÃO... parece tão absurda e paradoxal?
Ela resulta de as forças produti­
Um processo semelhante vas, tendo se tornado muito po­
ao que acabamos de descrever é derosas, encontrarem-se obsta­
o que ocorre, pensa Marx, em re­ culizadas pelas relações de pro­
lação ao próprio capitalismo. A priedade burguesas (como diz
sociedade burguesa parece o Marx), de tal sorte que, quando
“feiticeiro que já não pode contro­ conseguem romper essas barrei­
lar as potências infernais que pôs ras, “precipitam na desordem a
em movimento com suas pala­ sociedade inteira e ameaçam a
vras mágicas”. As forças produti­ existência da propriedade bur­
vas capitalistas já se encontram, guesa”. O capitalismo não é mais
há tempos, obstaculizadas em capaz de conter as riquezas cria­
seu d ese n vo lvim e n to , de tal das dentro dele próprio e, assim,
modo que “a história da indústria para sair da crise, a burguesia vê-
e do comércio” aparece como a se constrangida a destruir as for­
“história da revolta das forças pro­ ças produtivas em grande quanti­
dutivas modernas contra as mo­ dade e a procurar novos merca­
dernas relações de produção e de dos enquanto explora mais inten­
propriedade”. samente os antigos. A conseqüên­
Uma evidência disso é a cia disso é a irrupção de crises
ocorrência periódica das crises ainda mais graves e uma maior
com erciais, destruindo não só dificuldade para evitá-las. É as­
enormes quantidades de merca­ sim que “as armas que a burgue­
dorias, mas igualmente parte das sia utilizou para abater o feudalis­
próprias forças produtivas. A “epi­ mo” agora “voltam-se contra a
demia” da superprodução conduz própria burguesia”.
a sociedade burguesa a um esta­
do de “barbárie momentânea”, OS SOLDADOS DA
com a indústria e o comércio apa­ INDÚSTRIA
rentemente destruídos. E isso
ocorre, diz Marx, justamente por­ A burguesia, no entanto,
que “a sociedade possui demasi­ não criou apenas as armas que
ada civilização, demasiados mei­ deverão destruí-la; criou igual­
os de subsistência, demasiada in­ mente aqueles que vão utilizar
dústria, demasiado com ércio” . essas armas contra ela mesma: a
Como explicar essa situação que classe operária, o proletariado.

50
O desenvolvimento do ca­ sa verdadeira organização militar,
pitalismo acarreta necessaria­ os operários são como “soldados
mente o desenvolvimento do pro­ da indústria [...] sob a vigilância de
letariado. Quem são esses operá­ uma hierarquia completa de ofici­
rios modernos? Para Marx, são ais e suboficiais”. O proletariado
aqueles indivíduos que necessi­ converte-se, assim, em “escravo”
tam “se vender peça por peça” ao da burguesia, do Estado burguês,
capitalista, como a uma mercado­ da máquina, do contramestre e do
ria qualquer, “um artigo de comér­ dono da fábrica.
cio como qualquer outro”. Ao mesmo tempo, vai ocor­
A introdução do sistema de rendo um processo de “proletari-
máquinas no processo de produ­ zação” de outras classes e fra­
ção transforma o trabalhador direto ções de classe, seja porque não
em um simples “apêndice da má­ conseguem suportar a concorrên­
quina”, isto é, dele só se exige que cia que a grande indústria opõe à
cumpra as funções manuais ele­ pequena produção, seja porque
mentares e repetitivas do processo os novos métodos de produção
de trabalho, tendo-lhe sido “expro­ não exigem mais a habilidade e o
priado” todo o conhecimento técni- conhecimento técnico investidos
co-científico do processo de fabri­ na atividade artesanal.
cação do produto. Ao aumento do
“caráter enfadonho” do trabalho OS COVEIROS DA
corresponde a degradação dos sa­ BURGUESIA
lários, em virtude da redução do
“custo do operário” quase que so­ Os operários entretém uma
mente aos meios de manutenção luta imediata e permanente con­
e reprodução de sua vida. tra a classe burguesa. Essa luta
Ademais, o maquinism o atravessa várias etapas em seu
também acarreta o incremento do desenvolvimento. Em um primei­
trabalho, seja com o prolongamen­ ro momento, a luta envolve ope­
to da jornada de trabalho, seja rários isolados, depois, operários
com o aumento da sua intensida­ de uma mesma fábrica, até envol­
de. No interior da fábrica, os tra­ ver os operários de todo um ramo
balhadores são submetidos ao industrial, de uma mesma locali­
despotismo do capitalista e de dade. Inicialmente, os trabalhado­
seus prepostos, como se estives­ res visam também destruir os pró­
sem em um quartel industrial. Nes­ prios meios de produção e as

51
mercadorias que lhes fazem con­ centração da massa proletária, ao
corrência, almejando retornar à mesmo tempo em que seu salá­
condição em que viviam como ar­ rio e suas condições de vida tor­
tesãos na sociedade feudal. nam-se cada vez mais precários.
Não constituem ainda uma A igualização do trabalho na fá­
massa concentrada, de tal sorte brica tem como conseqüência a
que, quando alcançam algum igualdade das condições de vida
grau de unidade, esta não decor­ dos trabalhadores. Cada vez
re de seus próprios esforços e ini­ mais conscientes de sua força, os
ciativa, mas é o resultado da ne­ operários passam a organizar-se
cessidade que a burguesia tem em associações, na defesa dos
de “pôr em movimento” o proleta­ seus interesses comuns mais
riado na luta que ela trava contra imediatos, notadamente na defe­
os seus próprios inimigos feudais sa de seus salários, e também
e outras frações da burguesia e para poderem enfrentar a reação
da pequena burguesia. burguesa. Muitas vezes a luta ad­
O desenvolvimento da in­ quire um caráter de motim, com a
dústria leva ao aumento e à con­ classe operária às vezes vencen-
do o enfrentamento, mas esse re­ talismo. A sua participação even­
sultado constitui-se em um triunfo tual na revolução implica o aban­
efêmero. O que importa, a rigor, é dono de sua posição originária de
que esses episódios contribuem, classe e a adoção da posição de
cada vez mais, para estabelecer classe do proletariado.
a unidade dos operários, e esta, A classe operária é a única
mesmo sendo por vezes prejudi­ classe que não é ameaçada de
cada pela concorrência entre os perecer em virtude do desenvol­
próprios trabalhadores, é sempre vimento da grande indústria, por­
reposta em um nível mais amplo, que ela é o seu “resultado mais
mais sólido, mais conseqüente. É autêntico” e suas condições de
assim que os operários podem vida já são a negação daquelas
obter determinadas conquistas le­ da sociedade burguesa.
gais, como a limitação da jornada Um traço de distinção sepa­
de trabalho, beneficiando-se das ra a luta do proletariado e o seu
divisões no interior da burguesia. objetivo final de todas as outras na
O d ese n volvim e nto da história. Ao passo que as classes
classe operária beneficia-se tam­ que anteriormente tomaram o po­
bém das lutas que a burguesia der imediatamente submeteram “a
trava, seja para consolidar o seu sociedade às suas condições de
domínio sobre a aristocracia, seja apropriação”, a classe operária só
para enfrentar outras frações bur­ pode exercer o poder e “apoderar-
guesas e as burguesias estran­ se das forças produtivas” destru­
geiras, pois ela necessita do con­ indo todas as condições de exis­
curso dos trabalhadores para le­ tência da propriedade privada dos
var a cabo esse enfrentamento e, meios de produção.
assim, “fornece aos proletários os Assim, pela primeira vez
elementos de sua própria educa­ na história, a apropriação do po­
ção política, isto é, armas contra der não se dá no curso de um
ela própria”. movimento dirigido por uma mino­
O proletariado constitui a ria e para o seu exclusivo benefí­
única classe efetivamente revolu­ cio. A revolução do proletariado
cionária. As outras classes rea­ constitui-se no “movimento inde­
gem contra a burguesia tão-so­ pendente da imensa maioria em
mente porque são ameaçadas proveito da imensa maioria”.
em sua existência enquanto clas­ É o próprio capitalismo que
se pelo desenvolvimento do capi- vai criar as condições para a re­

53
volução do proletariado. A contí­ Em um texto publicado em
nua expansão da grande indústria 1850, portanto do mesmo perío­
vai produzir a concentração e uni­ do do Manifesto, a Mensagem do
dade da classe operária, permitin­ Comitê Central à Liga dos Comu­
do que ela ultrapasse o seu isola­ nistas, Marx descreve as condi­
mento e supere a concorrência ções fundam entais da luta de
entre os próprios trabalhadores. classe operária, extraindo as li­
Assim, o capital forja, como resul­ ções das revoluções de 1848 na
tado de suas contradições, a for­ Europa.
ça política que vai destruí-lo. Observemos, inicialmente,
Como diz Marx, “o desenvolvi­ que o momento no qual Marx es­
mento da grande indústria soca­ creve é ainda marcado pela exis­
va o terreno em que a burguesia tência de relações feudais rema­
assentou o seu regime de produ­ nescentes, o que explica o papel
ção e de apropriação dos produ­ que a burguesia e a pequena bur­
tos. A burguesia produz, sobretu­ guesia jogam nos eventos revolu­
do, os seus próprios coveiros. cionários. Isso, no entanto, não
Sua queda e a vitória do proletari­ significa que a análise de Marx
ado são igualmente inevitáveis”. seja limitada por esta conjuntura
particular e historicamente condi­
O GRITO DE GUERRA DA cionada por ela. O que Marx ope­
CLASSE OPERÁRIA ra, na verdade, é a elaboração
dos conceitos que permitem pen­
O processo revolucionário sar as condições de possibilidade
objetivando a conquista do poder da revolução proletária. Desse
político pelo proletariado é pensa­ modo, mesmo se considerarmos
do por Marx como um processo vi­ que a burguesia e a pequena bur­
olento e ininterrupto. A violência, o guesia já esgotaram todas as
recurso às armas, aparece para suas potencialidades revolucio­
Marx como uma necessidade im­ nárias, em virtude da completa
posta pela violência com a qual a extinção das relações feudais,
burguesia exerce a sua domina­ ainda assim, a análise que Marx
ção. Como a burguesia dispõe de empreende conserva a sua vali­
forças armadas, a luta contra ela dade, pois ela é realizada tendo
exige que o proletariado também por base o conceito de aliança de
se arme, sem o que a iniciativa re­ classe, e não uma determinada
volucionária estaria comprometida. relação política entre a burguesia,

54
a pequena burguesia e o proleta­ A revolução, assim, para a
riado em uma determinada con­ classe operária, deve se tornar
juntura histórica. permanente, isto é, não deve se
Se o processo revolucio­ deter ante as etapas democráti­
nário implica determinadas alian­ cas do processo em curso, que se
ças com as classes não-popula- limitam a realizar reformas mais
res — notadamente certos seto­ ou menos amplas mas que con­
res da burguesia, da pequena servam a dominação do capital.
burguesia e das classes mé­ Para os operários, “não se trata
dias — , a condição absolutamen­ de reformar a propriedade priva­
te necessária para que o proleta­ da”, diz Marx, “mas de aboli-la;
riado atinja os seus objetivos, não se trata de atenuar os anta­
como diz Marx, é a de que este gonismos de classe, mas de abo­
conserve a sua independência lir as classes; não se trata de me­
de classe. A luta contra um inimi­ lhorar a sociedade existente, mas
go comum não exige “nenhuma de estabelecer uma nova”.
união especial". Isso significa Isso implica, em decorrên­
que os trabalhadores devem ali­ cia, a recusa da parte do proleta­
ar-se com outros setores na luta riado em estabelecer uma unida­
contra o mesmo inimigo, mas, de com os setores democratas
quando esses setores não-prole- que lhe tirasse toda a sua inde­
tários tentarem consolidar a nova pendência de classe, tornando-o
situação em seu benefício, a um “simples apêndice da demo­
classe operária deve voltar-se cracia burguesa oficial”. O que
contra eles. Os democratas pe- interessa aos trabalhadores é
queno-burgueses limitam a sua manter uma organização inde­
participação revolucionária à ob­ pendente e avessa à influência
tenção de vantagens em relação burguesa, razão pela qual uma
ao domínio do grande capital que tal organização deve ter uma
pesa sobre eles. Por isso que­ existência legal e também secre­
rem interromper a revolução “o ta, isto é, ilegal, fora do controle
mais rapidamente possível” , uma dos dispositivos institucionais da
vez que tenham alcançado as democracia burguesa.
suas metas, ao passo que ao Uma vez cumpridas essas
proletariado interessa prosseguir condições, a classe operária es­
a revolução até o seu final, até a tará melhor preparada para en­
supressão do domínio burguês. frentar a reação contra si, por par­

55
te de seus antigos aliados, tão A condição para que a
logo um novo governo se instale. classe operária possa enfrentar
Por isso ela deve manter a agita­ os seus antigos aliados, “cuja trai­
ção revolucionária, evitando ser ção aos operários começará des­
reprimida pelas forças burguesas. de os primeiros momentos da vi­
Deve, também, aceitar e mesmo tória”, não se limita à necessária
dirigir os atos de “vingança popu­ e fundamental independência e
lar” contra “indivíduos odiados ou centralização das organizações
contra edifícios públicos que o operárias, sob o comando de um
povo só possa relem brar com órgão dirigente central, mas en­
ódio”. As suas exigências devem volve também a organização ar­
ser apresentadas de modo inde­ mada dos trabalhadores: “Dever-
pendente e ao mesmo tempo que se-á armar, imediatamente, todo
as dos democratas burgueses, e o proletariado, com fuzis, carabi­
a estes devem ser exigidas ga­ nas, canhões e munições” , diz
rantias para os operários e, se Marx. Uma guarda proletária ar­
necessário, estas devem ser obti­ mada, militarizada — “com chefes
das pela força. Os operários ne­ e um estado-maior” — estará sob
cessitam manter uma postura de as ordens de um conselho operá­
desconfiança em relação ao novo rio revolucionário. Do mesmo
governo, constituindo desde logo modo, nas empresas estatais, os
um poder paralelo: “Ao lado dos operários deverão organizar-se
novos governos oficiais, os ope­ em unidades armadas. Em ne­
rários devem constituir imediata­ nhum caso, sob nenhuma cir­
mente governos operários revolu­ cunstância, deverá haver o desar­
cionários, seja na forma de comi­ mamento do proletariado, ao qual
tês ou de conselhos municipais, este oporá, se for necessário, a
seja na forma de clubes operá­ “força das armas”.
rios ou de comitês operários, de Assim, o segredo da vitória
tal modo que os governos demo- da revolução proletária pode ser
crático-burgueses não só percam enunciado nestas exigências fun­
imediatamente o apoio dos ope­ damentais: tomar consciência dos
rários, mas também se vejam interesses de classe proletários,
desde o primeiro momento fisca­ adotar formas de organização
lizados e ameaçados por autori­ operárias armadas e independen­
dades atrás das quais se encon­ tes da burguesia, não se deixar
tre a massa inteira dos operários”. envolver pelas ilusões democráti­
cas, e utilizar a violência armada trabalhadores devam privilegiar
contra a burguesia em um proces­ as formas de luta legais. O que
so revolucionário cujo “grito de seria o duplo poder senão a ne­
guerra” do proletariado deverá ser gação da democracia burguesa,
“a revolução permanente”. com o proletariado criando, sem
Marx descreve, portanto, a devida previsão legal, um apa­
as condições necessárias para rato de poder paralelo, armado,
que a classe operária possa con­ e exercendo a autoridade popu­
duzir a sua luta contra a domina­ lar em seus domínios?
ção burguesa, sem se deixar des­
viar do objetivo da tomada do po­ REVOLUÇÃO E
der pelo jogo político da democra­ “ DESPOTISMO”
cia burguesa. Observemos, so­
bretudo, que Marx não considera Ao tratar da revolução pro­
que a democracia burguesa seja letária e das medidas que a ela
um limite intransponível, ao con­ devem se seguir, no Manifesto,
trário, ele funda a luta de classe Marx identifica o comunismo com
proletária fora do campo da lega­ a supressão da propriedade pri­
lidade democrática burguesa, a vada, com a estatização dos mei­
luta legal constituindo-se em um os de produção e com o desen­
momento tático do enfrentamen- volvimento das forças produtivas.
to de classe. Isso transparece nas passagens
Ao mostrar que a classe em que afirma: “o que caracteriza
operária precisa organizar-se na o comunismo é a abolição da pro­
forma de um duplo poder, consti­ priedade privada”; “o proletariado
tuindo órgãos paralelos à institu- [centralizará] todos os instrumen­
cionalidade burguesa, Marx cla­ tos de produção nas mãos do Es­
ramente recusa encerrar a luta tado [...] e [aumentará] o mais ra­
proletária nos marcos da demo­ pidamente possível a massa das
cracia, ao contrário, a sua con­ forças produtivas”.
cepção implica, necessariamen­ Ora, para que isso possa
te, a violação da legalidade de­ ocorrer, é preciso operar uma “in­
mocrática, a recusa ao Estado tervenção despótica no direito de
de direito. Muito embora admita propriedade”, assim como nas re­
que a luta também possa se de­ lações de produção. A referência
senvolver no campo da legalida­ que Marx faz à intervenção nas
de, Marx não considera que os relações de produção indicaria

57
ca, cuja forma é o contrato, de­ condição de sujeito de direito que
senvolvida legalmente ou não, é ela celebra contratos. Ora, se os
uma relação de vontade, em que indivíduos relacionam-se entre si
se reflete a relação econômica.” como sujeitos de direito, isto é, se
Esse reconhecimento recí­ eles negociam na base de seu li­
proco significa o reconhecimento vre consentimento, se eles dis­
de um estatuto comum a todos os põem do que é seu, então, esses
agentes da troca, que se reves­ indivíduos devem necessariamen­
tem da figura do sujeito de direito. te ser livres e iguais uns em rela­
É em virtude desse estatuto jurí­ ção aos outros.
dico que o homem pode exercer Assim, na esfera da circula­
a sua capacidade na prática de ção de mercadorias, a compra de
atos jurídicos, como a compra e força de trabalho do operário apa­
venda, que pressupõe, como con­ rece como a realização da liberda­
dição de sua validade, a livre dis­ de e da igualdade: o trabalhador
posição da vontade das partes. não é coagido a vender a sua for­
Vimos também que a rela­ ça de trabalho, mas ele a vende
ção de capital é uma relação entre por um ato de sua livre vontade e
possuidores de mercadorias: o ca­ em condições de plena igualdade
pitalista, proprietário das condi­ face ao capitalista, ambos são pro­
ções do trabalho, e o operário, pro­ prietários que dispõem do que é
prietário de sua força de trabalho. seu, e o operário recebe, em con­
Se é assim, então, a relação de trapartida, um valor eqüivalente
capital envolve uma operação jurí­ por sua mercadoria. Marx pode,
dica de compra e venda mediante por isso, dizer que a base real da
a qual o trabalhador vende ao ca­ igualdade e da liberdade é o pro­
pitalista, por um determinado perí­ cesso do valor de troca.
odo, a utilização de sua força de Podemos concluir, portan­
trabalho. Para que uma pessoa to, que o direito constitui o ho­
possa dispor de sua própria força mem enquanto proprietário que
de trabalho como de sua merca­ leva a si mesmo — a sua força de
doria, é necessário que ela tenha trabalho — ao mercado como ob­
capacidade jurídica para celebrar jeto de troca.
esse acordo de vontades pelo qual Esse é o sentido profundo
ela transfere essa mercadoria re­ da liberdade e da igualdade bur­
cebendo, em contrapartida, um guesas que a análise de Marx
valor equivalente. É, portanto, na permite desvendar, demonstran­

74
do que essas categorias operam De fato, nesse trabalho,
para que o trabalhador seja ex­ Marx mostra que a forma de Es­
plorado no processo de produção tado monárquica corresponde ao
capitalista e que, portanto, elas interesse de uma fração da clas­
não permitem a realização efeti­ se dominante, ao passo que a
va da liberdade e da igualdade. forma de Estado constitucional-
republicana (democrática) cor­
A CRÍTICA DA DEMOCRACIA responde ao interesse do con­
BURGUESA junto da classe burguesa, poden­
do, assim, a totalidade das fra­
Nos capítulos precedentes ções em que se divide a burgue­
já apreendemos o caráter tático sia exercer em comum a sua do­
que a d e m o cra cia tem para minação de classe. Como diz
Marx. Particularmente na “Men­ Marx, “o interesse geral de clas­
sagem do Comitê Central à Liga se da burguesia pode subordinar
dos Comunistas” , nenhuma con­ tanto a pretensão de suas fra­
cessão é feita ao programa de­ ções como de todas as outras
mocrático: os trabalhadores de­ classes” . A forma democrática
vem, diz Marx, esgotar todas as republicana permite que a domi­
possibilidades de utilização da nação da burguesia apareça não
democracia ao mesmo tempo em como a expressão de um poder
que a ultrapassam, com o recur­ pessoal exercido por um rei,
so direto a medidas e iniciativas mas, ao contrário, como a ex­
ilegais, com o emprego da vio­ pressão de uma “vontade geral”
lência revolucionária. manifestada em um parlamento
Em outro texto, As lutas de eleito pelo sufrágio universal.
classes na França de 1848 a Nesse sentido, a democra­
1850, a democracia aparece es­ cia interessa aos trabalhadores
tritamente vinculada com os inte­ na medida exata em que propicia
resses da classe burguesa, não o enfrentamento mais aberto en­
sendo atribuída à dem ocracia tre as classes, favorecendo a ma­
qualquer caráter de universalida­ turação da classe operária e intro­
de nem sendo aventada a possi­ duzindo no interior da classe do­
bilidade de o movimento operário minante um elemento de inquie­
“dissolver-se” no interior de suas tação e de instabilidade.
instituições e no âmbito da legali­ Em um texto do mesmo
dade que lhe é própria. período, O 18 brumário de Luís
uma mudança de problemática, mesmo se permanece ainda su­
com a compreensão de que, mal­ bordinada, no dispositivo concei­
grado a expressão imprecisa e in­ tuai marxiano, à problemática das
suficiente (“intervenção”), o as­ forças produtivas.
pecto principal da transição é a Do mesmo modo, o silên­
transformação revolucionária das cio de Marx sobre o caráter do
relações de produção, e não a Estado na transição socialista é
expropriação da propriedade pri­ revelador do grau insuficiente de
vada? Quando Marx prossegue sua elaboração teórica. Será pre­
enumerando as medidas que cor­ ciso esperar que Marx produza a
responderiam a essa intervenção, análise científica da exploração
vemos, no entanto, que elas se capitalista, de que o Manifesto é,
referem, no fundamental, à esta- tantas vezes, a antecipação, será
tização dos meios de produção. preciso esperar as lutas da clas­
Porém, logo a seguir, Marx se operária francesa, para que
afirma a necessidade da supres­ Marx possa estabelecer, em seus
são violenta das relações de pro­ princípios, uma concepção revo­
dução como condição mesma da lucionária da transição para o co­
supressão da sociedade de clas­ munismo. Esses resultados a que
ses. Essa ambigüidade do texto Marx chegará serão expostos no-
demonstra que uma nova com­ tadamente, como veremos nos
preensão do problema da transi­ capítulos 5 e 8, em O capital e em
ção com eça a m anifestar-se, A guerra civil na França.

58
A crítica da sociedade burguesa

O conhecimento científico em capital” , Marx diz que o “capi­


da sociedade burguesa aparece tal não pode [...] originar-se da
como uma exigência absoluta circulação e, tampouco, pode não
para que a classe operária possa originar-se da circulação. Deve,
fundar uma estratégia conse­ ao mesmo tempo, originar-se e
qüente para a tomada do poder não se originar dela”.
político e para que ela possa dar Como explicar esse apa­
início ao processo de superação rente enigma? O capital não seria
do capitalismo. então a riqueza acumulada, o di­
Em suas obras do período nheiro, o trabalho acumulado que
anterior, Mao< já houvera identifica­ serve para uma nova produção,
do algumas das determinações os meios de produção? Essa ri­
fundamentais da dominação de queza, que seria o capital, não
classe burguesa e apontado para surgiria do processo de trocas
a direção de sua ultrapassagem. mercantis? O capital não seria
Mas o conhecimento da “lógica” de uma coisa que, trocada por um
funcionamento do capital permane­ valor superior ao seu próprio va­
cia, em larga medida, obscura para lor, agregaria esse valor adicio­
Marx. Empreendendo o estudo da nal, valorizando-se?
especificidade da exploração bur­ Marx procura demonstrar
guesa, Man< pode então retificar as que na esfera da circulação não é
suas anteriores formulações e abrir possível que ocorra a criação de
as vias para a justa condução da um valor além do valor das mer­
luta de classe operária. cadorias trocadas. O ganho que
um possuidor de mercadorias
O CAPITAL COMO pode ter vendendo a sua merca­
RELAÇÃO SOCIAL doria, suponhamos, 10% acima
de seu valor, é compensado e
Em uma frase do capítulo neutralizado pela perda desses
IV do livro 1 de O capital, intitula­ mesmos 10% quando ele, por sua
do “Transformação do dinheiro vez, tornar-se comprador. Como

59
mos indagar sobre
a sua origem e tam­
bém sobre a sua
natureza: o capital é
riqueza acumulada,
uma som a de d i­
nheiro, o capital é
uma coisa?

Um negro é um
negro

O capital não
é uma coisa... Marx
reiteradamente re­
torna a esse ponto.
A grande sala de leitura da biblioteca do Museu Britânico, Os e con o m ista s,
em Londres, onde Marx pesquisou para redigir O capital. diz Marx, definem o
capital como meio
diz Marx: “nosso homem ganhou de produção, como trabalho acu­
10 como vendedor para perder 10 m ulado que se presta a uma
como comprador. [...] As denomi­ nova produção. Mas, diz ele, em
nações monetárias, isto é, os pre­ Trabalho assalariado e capitat. “é
ços das mercadorias, iriam inchar, tão impossível passar diretamen­
mas as suas relações de valor fi­ te do trabalho ao capital, como
cariam inalteradas... A formação passar diretamente das diversas
de mais-valia e daí a transforma­ raças humanas ao banqueiro, ou
ção de dinheiro em capital não da natureza à máquina a vapor”.
pode ser, portanto, explicada por O capital não se confunde com
venderem os vendedores as mer­ os meios de produção, com as
cadoria acima do seu valor, nem condições objetivas da produção.
por os compradores as compra­ Os meios de produção existem
rem abaixo do seu valor” . em todas as sociedades, mas
Se o capital não pode, as­ nem por isso todas elas conhe­
sim, originar-se, pura e simples­ cem o capital. “O que é um es­
mente, da circulação das merca­ cravo negro? Um homem de raça
dorias, isso significa que deve- negra. Tanto faz uma resposta

60
como a outra. Um negro é um ne­ sadas, como também seria ele
gro. Em determinadas circuns­ um elemento do qual não se po­
tâncias, se converte em escravo. deria prescindir em qualquer ou­
Uma máquina de fiar algodão é tra sociedade futura. Ora, diz
uma máquina de fiar algodão. Só Marx, o que é preciso levar em
em determinadas circunstâncias conta é a determinação formal,
se converte em capital. Separa­ “as determinações específicas
da do contexto, não é capital, tal que fazem do capital o elemento
como o ouro não é de per s i di­ de uma etapa histórica, particu­
nheiro, nem o açúcar é o preço larmente desenvolvida, da produ­
do açúcar.” ção humana” isto é, o modo de
Nessa passagem , Marx produção capitalista. De tal sorte
mostra claramente que os meios que, “se bem que todo capital é
de produção não são capital por trabalho objetivado que serve
sua natureza, que é necessário como meio para uma nova produ­
que determ inadas co ndições ção, nem todo trabalho objetiva­
ocorram para que os meios de do que serve para uma nova pro­
produção tornem-se capital. O dução é capital”.
capital não pode, assim, ser en­ O capital é uma relação
tendido como uma coisa que social, uma relação de produção
cumpre determinada função no burguesa, uma relação de produ­
processo produtivo adequada­ ção da sociedade burguesa,
mente à sua natureza de coisa. acrescenta Marx, ressaltando
Do mesmo modo que o ouro não que é precisamente “o caráter
se torna, por natureza, dinheiro, social determinado o que conver­
embora possa, sob determinadas te em capital os produtos que
condições, revestir-se dessa for­ servem para uma nova produ­
ma, assim também os meios de ção”. Se o capital é uma relação
produção não são, por natureza, social, isso significa que os mei­
capital. Se o capitai pudesse ser os de produção só se convertem
assim entendido, ele seria dota­ em capital quando são combina­
do de uma natureza eterna, ele dos com a força de trabalho as­
seria um elemento a-histórico, salariada, portanto só há capital
necessário para que toda e qual­ quando o proprietário das condi­
quer produção seja realizada, e ções materiais da produção en­
que não só teria existido, portan­ contra disponível no mercado a
to, em todas as sociedades pas­ força de trabalho e a consome no

61
processo de produção. É justa­ dução encontra no mercado, é a
mente a relação entre essas força de trabalho.
duas classes, a burguesia e o Para que a força de traba­
operariado, mediada pelos mei­ lho possa ser oferecida no merca­
os de trabalho, que constitui a do, é necessário que ocorra um
relação de capital ou capitalismo. conjunto de condições. Em primei­
ro lugar, o possuidor da força de
Solto e solteiro trabalho deve dispor livremente
dela, negociando ele próprio, no
Voltemos, então, ao nosso mercado, a mercadoria de que ele
problema. O capital, dizíamos, é o proprietário, em condições de
não pode se originar da esfera da rigorosa igualdade com o compra­
circulação mercantil ao mesmo dor de sua capacidade de traba­
tempo em que deve dela se origi­ lho. Esta, ademais, só pode ser
nar. O possuidor do dinheiro — vendida por um prazo determina­
capitalista larvar, como diz Marx do, pois se fosse vendida por tem­
em O capital — “tem de comprar po indeterminado, para sempre, o
as mercadorias por seu valor, vendedor da força de trabalho se
vendê-las por seu valor, e, mes­ converteria em um escravo. Em
mo assim, extrair, no fina! do pro­ segundo lugar, é necessário que
cesso, mais valor do que lançou o possuidor da força de trabalho
nele”. Ora, se o capital, como vi­ não possua meios de produção
mos, é uma relação social, já po­ que lhe permitam produzir e ven­
demos começar a decifrar esse der m ercadorias, pois, nesse
enigma. Para que o capital se caso, não teria ele de vender a sua
constitua é necessário que o pos­ própria capacidade de trabalho.
suidor do dinheiro encontre no Assim, como conclui Marx,
mercado uma mercadoria que se para que o dinheiro se transforme
revista de uma “qualidade” espe­ em capital, é necessário que o
cífica, de que nenhuma outra possuidor do dinheiro encontre no
mercadoria é dotada, que tivesse mercado o trabalhador livre em
a peculiaridade de o seu valor de um duplo sentido: no sentido de
uso ser fonte de valor, portanto, que ele dispõe, como pessoa li­
que o seu consumo fosse objeti- vre, de sua força de trabalho, e no
vação de trabalho, criação de va­ sentido de que ele não possui ou­
lor. Essa mercadoria o possuidor tras mercadorias para vender,
das condições objetivas da pro­ “solto e solteiro, livre de todas as

62
coisas necessárias à realização mentos que compõem a relação
de sua força de trabalho”. de capital, ela o é na medida em
Para que a relação de capi­ que, como já começamos a ver,
tal se constitua, portanto, é neces­ a sua utilização pelo capitalista
sário que se estabeleça um víncu­ permite produzir um valor supe­
lo entre, de um lado, o possuidor rior àquele por ele pago ao ad­
da riqueza material, do dinheiro, quiri-la. Examinemos, então, o
dos meios de produção e, de ou­ que vem a ser essa mercadoria,
tro, o possuidor da força de traba­ a força de trabalho.
lho. Essa relação, diz Marx, não é Como todas as outras mer­
parte da história natural nem é co­ cadorias, também a mercadoria
mum a todas as épocas históri­ força de trabalho é dotada de va­
cas. Para que surja o capitalismo lor, e o seu valor, igualmente
não é suficiente a existência de como qualquer mercadoria, é de­
uma esfera desenvolvida da circu­ terminado pelo tempo de trabalho
lação mercantil e monetária, ou necessário à sua produção, isto
seja, as “condições históricas de é, à sua manutenção e reprodu­
existência (do capital) de modo al­ ção. Isso significa que o valor da
gum estão presentes” na esfera força de trabalho vai correspon­
da circulação. O capital só surge der à soma de todos os meios
quando o possuidor do dinheiro necessários para garantir a sub­
encontra o possuidor da força de sistência do trabalhador, isto é,
trabalho, “esta é uma condição para repor a energia física e men­
histórica que encerra uma história tal gasta no processo produtivo,
mundial. O capital anuncia, por­ assim como a dos filhos desse
tanto, de antemão, uma época do trabalhador, garantindo a reposi­
processo de produção social”. E ção da força de trabalho.
Marx pode acrescentar que o que
“caracteriza” o capitalismo é jus­ Esperando o curtume
tamente que a “força de trabalho
assume, para o próprio trabalha­ Pois bem, já vimos que o
dor, a forma de uma mercadoria possuidor do dinheiro encontra no
que pertence a ele”, e que o seu mercado uma mercadoria especi­
trabalho “assume a forma de tra­ al, que tem a peculiaridade de cri­
balho assalariado”. ar um valor superior ao seu pró­
Se a mercadoria “força de prio valor, mas, esse valor de uso
trabalho” é, assim, um dos ele­ da força de trabalho que é adqui-

63
rida no mercado só se realiza determinações jurídicas da liber­
quando consumida. Ora, o consu­ dade e da igualdade permitem
mo da força de trabalho só pode que essa relação de capital apa­
se dar, como o consumo de qual­ reça como o resultado de um livre
quer mercadoria, fora da esfera acordo de vontades, celebrado
da circulação. Assim, devemos, entre pessoas livres e iguais, sob
seguindo Marx, abandonar essa a base da troca de equivalentes.
“ ruidosa esfera” da superfície, Mas, ao sair dessa “esfera
“acessível a todos os olhos”, para ruidosa”, os seus personagens já
acompanhar o possuidor de di­ se alteram, como Marx ressalta:
nheiro e o possuidor da força de “O antigo possuidor de dinheiro
trabalho ao “local oculto da pro­ marcha adiante como capitalista,
dução”. É nessa esfera da produ­ segue-o o possuidor de força de
ção que o consumo da força de trabalho como seu trabalhador;
trabalho será ao mesmo tempo um, cheio de importância, sorriso
produção de mercadorias e pro­ satisfeito e ávido por negócios; o
dução de mais-valia, em suma, outro, tímido, contrafeito, como
produção de capital. alguém que levou a sua própria
Podemos entender agora pele para o mercado e agora não
por que Marx dizia que a produ­ tem nada mais a esperar, exceto
ção de capital deveria e não de­ o — curtume”.
veria se dar na esfera da circula­
ção. É na esfera da circulação PROCESSO DE TRABALHO E
que o capitalista “virtual” encontra PROCESSO DE VALORIZAÇÃO
a força de trabalho sem a qual
não é possível que a relação de No modo de produção ca­
capital, que o capitalism o, se pitalista o processo de trabalho é
constitua. Por outro lado, a produ­ imediatamente também proces­
ção do capital, da mais-valia, não so de valorização, não é possí­
pode se dar na circulação, mas vel separá-los, distingui-los. Isso
sim na esfera da produção, onde significa que a produção de ob­
a força de trabalho é utilizada jetos em um determinado pro­
pelo capitalista. cesso de trabalho é igualmente
A e sfe ra da circu la çã o produção de mais-valia e, mais
pode então aparecer como “um importante ainda, é essa produ­
verdadeiro éden dos direitos na­ ção de mais-valia o único objeti­
turais dos homens”, no qual as vo do capitalista.

64
No entanto, para efeito de dução em sentido estrito, a tal
análise, vamos considerar, como ponto que considera que “não é
Marx o faz, em O capital, separa­ o que se faz, mas como, com
damente os dois processos, o que meios de trabalho se faz,
processo de trabalho e o proces­ [...] o que distingue as épocas
so de valorização. econômicas” . Isso nos permite
precisar seu conceito de re la ­
O processo de trabalho ções de produção capitalistas:
estas não são relações entre
O processo de trabalho é “homens” mas entre classes e
uma atividade que combina um entre estas e os meios de traba­
determinado número de elemen­ lho. Lem brem os tão-som ente
tos: atividade orientada a um que, para que a relação de capi­
fim, objeto do trabalho, meios de tal pudesse se constituir foi ne­
trabalho: cessário que o trabalhador fosse
a) a atividade orientada a desprovido dos meios de traba­
um fim é o trabalho que o produ­ lho, levando-o a vender a sua
tor direto realiza para transformar força de trabalho.
uma determinada matéria em um A ssim , acom panhando
objeto útil; Marx em O capital, podemos defi­
b) o o b je to do tra b a lh o nir o processo de trabalho como
pode ser dividido em: matéria não sendo uma atividade na qual o
trabalhada, especialmente a terra trabalhador, utilizando os meios
e matéria que já sofreu algum de trabalho, opera uma transfor­
processamento, a matéria-prima; mação do objeto de trabalho des­
c) os m eios de trabalho, de o início pretendida. O seu re­
em sentido estrito, compreendem sultado é a produção de valores
tudo aquilo que o trabalhador in­ de uso, bens que satisfazem ne­
terpõe entre ele e o objeto de tra­ cessidades determinadas.
balho, servindo-lhe como meio
para transformar este último; já os O processo de valorização
meios de trabalho em um sentido
mais amplo compreendem tam­ Quando o capitalista com­
bém todas as condições objetivas pra a força de trabalho, ele com­
que tornam possível a produção. pra a prerrogativa de utilizá-la
Marx dá uma enorme im­ durante um certo período de
portância para os meios de pro­ tempo. Utilizando essa força de

65
trabalho, o capitalista incorpora mas valor e não só valor, mas
“o próprio trabalho, como fer­ também mais-valia”.
mento vivo, aos elementos mor­ No modo de produção ca­
tos constitutivos do produto, que pitalista, assim, o processo de
lhe pertencem igualm ente” . O trabalho está imediatamente de­
processo de trabalho para o ca­ terminado pelo processo de va­
pitalista é somente essa utiliza­ lorização, ou seja, por um pro­
ção da força de trabalho, o con­ cesso cuja finalidade não é a
sumo dessa mercadoria que ele produção de valores de uso, mas
adquiriu no mercado e que ele a produção de m ais-valia. De
consome acrescentando a ela os modo que, do ponto de vista do
meios de produção. De modo processo de valorização, não é o
que “o processo de trabalho é operário quem utiliza os meios
um processo entre coisas que o de produção, mas, ao contrário,
capitalista comprou, entre coisas são os meios de produção que
que lhe pertencem”. utilizam o operário, ou seja, dado
O capitalista não fabrica que o objetivo do processo de
um produto como um fim em si trabalho é a produção de valor,
mesmo; ele não tem por objetivo de mais-valia, a força de traba­
produzir bens que possam satis­ lho aparece apenas como um
fazer as necessidades das pes­ meio pelo qual ocorre a valoriza­
soas. Valores de uso são produ­ ção de valores já existentes, dos
zidos apenas e na exata medida meios de produção, que utilizam
em que sejam “substrato materi­ essa força de trabalho para con­
al, portadores do valor de troca". servar e aumentar o valor neles
O que o capitalista pretende é fa­ contido. É, assim, justam ente
bricar um valor de uso que pos­ pela absorção do trabalho vivo,
sa ser trocado, um produto desti­ que o trabalho objetivo — os
nado à venda, uma mercadoria meios de produção — converte-
e, além disso, uma mercadoria se em valor que se valoriza, isto
cujo valor exceda o valor dos é, em capital.
meios de produção e da força de Enfim, podemos dizer que
trabalho empregados para pro- o processo de trabalho é meio,
duzi-la. Em suma, diz Marx, o ao passo que o processo de va­
capitalista “quer produzir não só lorização é fim; o processo de
um valor de uso, mas uma mer­ trabalho é um meio do processo
cadoria, não só valor de uso, de valorização.

66
A produção de mais-valia ou le paga pelo capitalista, de sorte
m eilleur des mondes possibles que este continua a consumir a
força de trabalho além do tempo
Vimos que o objetivo do de trabalho necessário à sua re­
capitalista no processo de produ­ produção. Suponhamos, então,
ção é a obtenção de um valor su­ que, alcançadas aquelas quatro
perior ao que ele investiu adqui­ horas, período de tempo corres­
rindo a força de trabalho. Vimos pondente ao valor da força de tra­
também que, para alcançar esse balho, o operário ainda trabalhe
objetivo, o capitalista necessita por mais quatro horas, perfazen­
consumir a força de trabalho que do uma jornada de trabalho de
ele comprou no mercado. Veja­ oito horas. Teríamos, assim, o
mos, agora, como se dá o proces­ seguinte resultado: as primeiras
so de extração desse valor a quatro horas de trabalho são o
mais, dessa mais-valia. tempo de trabalho necessário, o
Quando o capitalista com­ qual corresponde ao valor da for­
pra a força de trabalho, ele paga ça de trabalho; as quatro horas de
ao operário um equivalente em trabalho restantes são o tempo de
forma de salário. Assim, se qua­ trabalho excedente, o qual cor­
tro horas de trabalho são suficien­ responde ao valor produzido pelo
tes para o trabalhador reconstituir operário além do valor de sua for­
os meios necessários para a sua ça de trabalho, à mais-valia, tra­
subsistência, esse é o valor da balho não-pago que é apropriado
força de trabalho, e é esse valor pelo capitalista.
que é despendido pelo capitalis­ Nisso consiste o processo
ta. Nessa soma de dinheiro paga de valorização do capital, proces­
ao operário está objetivado um so de exploração do trabalhador
valor de quatro horas de trabalho. e único objetivo perseguido pelo
Ocorre, porém, que o capi­ capitalista ao comprar a força de
talista não compra essa quantida­ trabalho.
de de trabalho objetivada, mas Como diz Marx em O capi­
ele compra a utilização da força tal, “o valor da força de trabalho e
de trabalho durante toda uma jor­ sua valorização no processo de
nada de trabalho. Ora, a força de trabalho são, portanto, duas gran­
trabalho possui a propriedade de dezas distintas. Essa diferença
produzir mais valor do que aque­ de valor o capitalista tinha em vis­
le correspondente ao valor por ela ta quando comprou a força de tra­

67
balho. [...] o decisivo foi o valor de formação do dinheiro em capital,
uso específico dessa mercadoria se opera na esfera da circulação e
ser fonte de valor, e de mais valor não se opera nela. Por intermédio
do que ela mesma tem. Esse é o da circulação, por ser condiciona­
serviço específico que o capitalis­ do pela compra da força de traba­
ta dela espera. [...] O possuidor lho no mercado. Fora da circula­
de dinheiro pagou o valor de um ção, pois ela apenas introduz o
dia da força de trabalho; perten­ processo de valorização, que
ce-lhe, portanto, a utilização dela ocorre na esfera da produção. E
durante o dia, o trabalho de uma assim é tout pour le mieux dans le
jornada. A circunstância de que a meilleur des mondes possibles’’1.
manutenção diária da força de O capitalista transfor
trabalho só custa meia jornada de desse modo, valor, trabalho pas­
trabalho, apesar de a força de tra­ sado, objetivado, morto, em ca­
balho poder operar, trabalhar um pital, em valor que se valoriza a
dia inteiro, e por isso, o valor que si mesmo.
sua utilização cria durante um dia
é o dobro de seu próprio valor de A SUBSUNÇÃO FORMAL DO
um dia, é grande sorte para o TRABALHO AO CAPITAL
comprador, mas, de modo algum,
uma injustiça contra o vendedor”. Como vimos, para que o
Marx acrescenta que o que capitalismo se constitua, é neces­
ocorreu foi uma simples troca de sário que surja no mercado o tra­
equivalentes, portanto as leis do in­ balhador livre em um duplo senti­
tercâmbio de mercadorias não fo­ do: livre para poder dispor de si
ram absolutamente transgredidas. como de uma mercadoria e livre
Ao consumir a força de trabalho no no sentido de estar separado dos
processo de trabalho, o capitalista meios de produção. Quando o
obtém um valor maior do que aque­ capitalista adquire a força de tra­
le por ele despendido, mas ele balho e a consome no processo
paga ao operário exatamente o va­ de trabalho, uma determinada re­
lor de sua força de trabalho. lação de produção é formada, a
Assim, pode concluir Marx: relação de produção capitalista
‘Todo esse seguimento, a trans­ que une, vincula, que relaciona

1 “Tudo pelo melhor no m elhor dos mundos possíveis” (Voltaire, Candide, ou


l'optimisme).

68
r
essas duas classes, o capitalista esses trabalhadores já estejam
e o operário. Ocorre, porém, que, submetidos a relações de produ­
se essas condições são necessá­ ção capitalistas — porque estão
rias para que a relação de produ­ separados dos meios de produ­
ção capitalista possa existir, elas ção e venderam a sua força de
não são suficientes para que um trabalho para o capitalista — , as
modo de produção e specifica­ forças produtivas não sofreram
mente capitalista se constitua. modificações importantes, elas
Vejamos a razão disso. permanecem, no essencial, as
Quando se inicia o capita­ mesmas da época feudal. Assim,
lismo, o modo de produzir, isto é, os trabalhadores produzem o
a organização técnica da produ­ bem por inteiro ou, ao menos,
ção não se modifica substancial­ uma parte significativa dele; o ins­
mente. As primeiras manufaturas trumento de trabalho é um sim­
assemelham-se muito ao artesa­ ples prolongamento e potencia-
nato, delas só se distinguindo mento da mão do operário; a divi­
pela quantidade de trabalhado- são do trabalho, compreendida a
res-artesãos que são reunidos divisão do trabalho manual e inte­
em um mesmo local pelo capita­ lectual, não existe ou existe em
lista. Isso significa que, embora grau insignificante.
Marx vai denominar sub-
sunção (ou subordinação) formal
do trabalho ao capital essa situa­
ção na qual o trabalhador direto
está separado dos meios de pro­
dução, mas a organização do pro­
cesso de trabalho, do ponto de
vista técnico, permanece inaltera­
da. Ou seja, embora o processo
de trabalho seja subordinado ao
capital, as forças produtivas ain­
da não foram transformadas, de
maneira que um modo de produ­
ção especificamente capitalista
V ainda não se constituiu.
O capital controla apenas as
Karl Marx em 1867, em Hannover. fases da produção exteriores ao

69
processo produtivo, isto é, o capi­ A SUBSUNÇÃO REAL DO
tal controla os meios de produção TRABALHO AO CAPITAL
e as etapas de comercialização do
produto. O operário, no entanto, Em um segundo momen­
não necessita do capitalista no que to, ocorre uma transform ação
respeita ao processo de fabricação das forças produtivas, em parti­
do produto, porque ele detém o co­ cular dos instrumentos de produ­
nhecimento dos métodos técnicos ção. Com a introdução do siste­
de produção, sabe como fabricar o ma de máquinas no processo de
bem e pode auto-organizar-se produção, o trabalhador direto
para a sua produção. torna-se um simples apêndice da
A conseqüência disso é máquina, um mero prestador de
que o domínio que o capitalista trabalho genérico, indiferencia­
exerce sobre o trabalhador direto do, desprovido de conteúdo e
é limitado, detendo a classe ope­ que não exige qualquer habilida­
rária uma certa capacidade de re­ de específica.
sistência à exploração do capital. A força de trabalho dos
O capitalista, em razão da estrei­ operários é objetivamente iguala­
teza da base técnica da produção da, uma vez que ela é reduzida a
— ausência de uma transforma­ mera energia dispendida em um
ção capitalista das forças produti­ determinado tempo. É a isso que
vas — , só pode obter uma taxa Marx chama de subsunção (ou
mais elevada de mais-valia au­ subordinação) real do trabalho ao
mentando a jornada de trabalho, capital. O capitalista agora tem o
isto é, o tempo de trabalho exce­ poder de dispor efetivamente dos
dente, não-pago, do trabalhador. meios de produção. Ao contrário
A utilização desse método de ex­ do período anterior, quando a
tração de mais-valia, a mais-valia classe operária é limitada à exe­
absoluta, encontra dois limites in­ cução de uma tarefa elementar
transponíveis: a capacidade de do ciclo produtivo, quando ocorre
resistência operária, em virtude a separação entre o trabalho inte­
do relativo domínio que os traba­ lectual e o trabalho manual, a in­
lhadores ainda exercem no pro­ tervenção do capitalista passa a
cesso de fabricação do produto, ser necessária também no interi­
e a impossibilidade de prosseguir or do processo de produção. Ou
a extensão da jornada de traba­ seja, o trabalhador não é mais
lho além de um certo limite. capaz de combinar os elementos

70
F

do processo de trabalho indepen­ ção capitalistas só se constitu­


dentemente da direção e coorde­ em plenamente na fase da sub­
nação do capitalista. Expropriado sunção real do trabalho no capi­
do conhecimento técnico, que foi tal. É, portanto, sob a base des­
transferido para o sistema de má­ sa modificação no modo de pro­
quinas, reduzido à condição de duzir, comandada pela necessi­
energia laborativa indiferenciada, dade de o capitalista dominar a
o operário torna-se inteiramente classe operária para dela extrair
subordinado ao capitalista. mais-valia para além dos limites
Assim, a expropriação da v ig e n te s , que pode s u rg ir o
classe operária pela burguesia modo de produção especifica­
completa-se: a expropriação não mente capitalista.
é apenas uma expropriação das
condições objetivas do trabalho, UMA IMENSA COLEÇÃO DE
mas é também a expropriação MERCADORIAS
da subjetividade, das condições
intelectuais do trabalhador. O processo de produção
A essa subsunção real do ca p ita lista é um processo de
trabalho ao capital corresponde criação de valor, de “autovalori-
a forma da m ais-valia relativa, zação” . O capitalista, ao consu­
ou seja, o capitalista passa a mir a força de trabalho no pro­
extrair mais-valia por meio não cesso de trabalho, não visa pro­
da extensão da jornada de tra­ duzir bens que satisfaçam ne­
balho, mas da dim inuição do cessidades, mas ele tem exclu­
tempo de trabalho necessário sivamente o propósito de extra­
para a reprodução da força de ir mais-valia. Por isso o que ele
trabalho. Dessa forma, a jorna­ produz são m e rca d orias que
da de trabalho pode permanecer possuem um va lo r de troca e
a mesma, mas o período de tra­ são comercializadas na esfera
balho não-pago e apropriado da circulação, perm itindo ao
pelo capitalista aumenta. capitalista “realizar o valor" des­
Observemos que é só a sas mercadorias e assim obter
partir do momento em que essa o seu lucro.
subordinação real do trabalho É por isso que Marx pode
ocorre que o domínio social da começar O capital dizendo que na
classe burguesa torna-se pleno, sociedade capitalista a riqueza
ou seja, as relações de produ- aparece como uma “imensa cole­

71
1

ção de mercadorias” 2. É verdade cendo que o valor nelas contido de­


que as formações sociais pré-ca- corre de uma específica forma de
pitalistas também conheceram a organização da produção material.
mercadoria, mas o seu estatuto é É assim que “determinada relação
muito diverso na sociedade bur­ social entre os próprios homens [...]
guesa. Marx estabelece essa dife­ assume a forma fantasmagórica de
rença essencial em Contribuição à uma relação entre coisas”, como
crítica da economia política e em O diz Marx explicando o que ele de­
capital, ao mostrar que só no capi­ nomina fetichismo da mercadoria.
talismo a mercadoria é a “forma Pois bem, se o valor da mer­
fundamental elementar da riqueza” cadoria decorre do quantum de tra­
e que “a produção de mercadorias balho socialmente necessário para
só se torna a forma geral de produ­ a sua produção, é preciso que os
ção sob a base do trabalho assala­ diferentes trabalhos concretos gas­
riado”. Essas passagens revelam tos para produzi-la sejam “igualiza­
que a única sociedade na qual a dos” para que possam ter uma ex­
produção de mercadorias generali- pressão comum de valor compará­
za-se e na qual, portanto, a totali­ vel entre si. Isto é, é necessário que
dade dos produtos adquirem a for­ esse trabalho seja considerado
ma da mercadoria é aquela em que apenas como dispêndio de certa
a força de trabalho também reves­ quantidade de energia laborativa,
te-se da forma de mercadoria: a ou seja, como trabalho abstrato.
sociedade burguesa. Assim, a pro­ Ora, o trabalho só se torna
dução de mercadorias toma-se a realmente abstrato no âmbito do
forma típica da produção, como modo de organização do proces­
acentua Marx em O capital, acres­ so de trabalho capitalista no qual
centando que conseqüentemente ocorre a subsunção real do tra­
todo produto passa a ser produzi­ balho ao capital. Como vimos, é
do para a venda “e toda a riqueza só nessa específica estrutura de
produzida passa pela circulação”. produção que o trabalhador, ex­
Não obstante, as mercadori­ propriado objetiva e subjetiva­
as parecem ser dotadas de valor mente das condições de traba­
por sua própria natureza, obscure­ lho, torna-se simples dispêndio

2 Marx analisa a mercadoria como produto do capital, razão pela qual o seu
objeto é o processo de produção capitalista. Isso significa que a análise do
valor deve estar subordinada à análise do processo de valorização.

72
r

de energia laborativa indiferenci­ técnica do trabalho (que opera no


ada, desprovida de qualquer âmbito do processo de trabalho)
qualidade ou habilidade. O traba­ que determina a divisão social do
lho, então, pode ser abstraído de trabalho (que opera no âmbito da
todas as suas “particularidades” sociedade).
e representado como forma de
valor na mercadoria. FORMA JURÍDICA E
Mas a existência da merca­ RELAÇÕES MERCANTIS
doria decorre ainda de que, no
capitalismo, as unidades produti­ Vimos como, a partir de
vas são independentes e separa­ uma específica estruturação do
das umas das outras (as fábricas processo de produção capitalista,
de diversos proprietários), de tal se organiza uma esfera de trocas
sorte que os produtos dessas uni­ de mercadorias. Pois bem, para
dades isoladas precisam ser tro­ que as trocas se realizem é ne­
cados para que realizem o valor cessária a intervenção dos pos­
neles contidos. suidores dessas mercadorias.
Essa divisão social do traba­ Sem essa mediação nenhuma
lho depende igualmente da estru­ troca é possível, porque a realiza­
tura do processo de produção ca­ ção do valor das mercadorias exi­
pitalista, mais especificamente, da ge a prática de atos voluntários
divisão técnica do trabalho no inte­ por parte de indivíduos que “se
rior desse processo. A divisão téc­ reconheçam reciprocam ente
nica do trabalho produz uma cres­ como proprietários privados”. É o
cente fragmentação e parcializa- que diz Marx em O capital, ao
ção das tarefas e procedimentos mostrar que, como as mercadori­
na unidade produtiva, que acabam as “não podem por si mesmas ir
por se separar e se especializar, ao mercado e se trocar” , é neces­
transformando-se em tantos outros sário que os seus possuidores re­
processos de produção autônomos. alizem o ato de troca. Para que
Portanto é o processo de isso ocorra é preciso que eles se
produção imediato em sua orga­ relacionem entre si sob a base da
nização capitalista específica que livre expressão de suas respecti­
condiciona a “fragmentação” do vas vontades. “Eles devem por­
capital em unidades separadas e tanto”, diz Marx, “reconhecer-se
reciprocamente independentes. reciprocamente como proprietári­
Em outras palavras, é a divisão os privados. Essa relação jurídi-

73
Bonaparte, Marx analisa a possi­ guesa, assim como no período da
bilidade de a burguesia abando­ transição socialista.
nar a forma democrática de exer­ Ora, é em O capital {e nos
cício do poder e abdicar de exer­ estudos preparatórios a essa
cê-lo diretamente, para desviar obra) que Marx vai demonstrar
de si o centro da luta social, trans­ essa tese.
ferindo o poder para um déspota A existência de uma esfera
que se apresenta como acima da de circulação de mercadorias —
luta de classes e dos interesses e, em particular, da mercadoria
de classe. Marx demonstra que força de trabalho — , que funcio­
essa transferência do poder re­ na sob a base da equivalência e
veste-se apenas de uma aparên­ que, portanto, respeita as deter­
cia de eqüidistância e indepen­ minações da liberdade e da igual­
dência em relação à luta de cias­ dade, surge como a condição ne­
ses, constituindo uma forma de cessária para que se constitua
Estado — o “bonapartismo” — uma forma de poder que não apa­
que prossegue em sua função de reça como a representação do in­
assegurar o domínio da burgue­ teresse de uma classe. De fato,
sia e a reprodução do capital. se na esfera do mercado os agen­
Todas essas considera­ tes da troca devem se relacionar
ções de Marx, embora justas em de modo livre e em condições de
seu princípio, são no entanto in­ igualdade mútua, a coerção esta­
suficientes em razão de não esta­ tal em favor de uma das partes
belecerem a relação entre a for­ anularia o fundamento mesmo da
ma da democracia e a forma do sociedade mercantil-capitalista,
valor, ou seja, ao não estabelece­ que pressupõe a existência de
rem a relação entre a democracia sujeitos-proprietários que se rela­
e a circulação mercantii-capitalis- cionam voluntariamente, sem a
ta. Uma vez estabelecida essa interferência de uma autoridade
relação, a democracia adquire um coercitiva externa.
caráter particular, enquanto forma É justamente isso que se
política específica do Estado bur­ verifica quando o trabalhador ven­
guês, e, portanto, uma forma que de a sua força de trabalho. O con­
não pode ser utilizada pela clas­ trato é celebrado entre dois sujei­
se operária — a não ser de modo tos em condição de estrita recipro­
limitado, taticamente — no curso cidade, por um ato livre da vontade
da luta contra a dominação bur­ do trabalhador, sem qualquer for­

76
ma de coerção estatal obrigando-o É desse modo que a parti­
a reafizar essa operação. O poder cipação na esfera do Estado, a
do Estado pode então aparecer form ação da “vontade geral” ,
como estando acima das partes pode ser construída como uma
contratantes, como uma autorida­ passagem da sociedade civil
de pública que apenas vela pela para o Estado, ou seja, como
observância da ordem pública, isto uma passagem da determinação
é, das condições de funcionamen­ particular da esfera privada para
to normal do mercado3. a determinação universal da es­
Assim, pode-se construir fera pública.
uma representação do Estado Pois bem, é o sistema de
como esfera do bem comum, da representação política da demo­
vontade geral, do interesse geral, cracia que permite operar essa
separado de uma sociedade civil passagem. Através do sufrágio
identificada como sendo a esfera universal, a condição de classe é
dos interesses particulares confli­ negada pela atomização dos indi­
tuosos. Essa representação vai víduos enquanto cidadãos, des­
tornar o Estado uma região insus­ providos de quaisquer vínculos
cetível de acolher e defender in­ com outros em sua irredutível
teresses particulares de classe, subjetividade. Quando vota, o in­
posto que a sua natureza publica divíduo alça-se à condição de ci­
o impossibilita de cumprir essa dadão, despojando-se de sua
função. Conseqüentemente, o vontade particular egoísta.
acesso ao Estado está interdita­ Essa participação dos ci­
do a toda representação de clas­ dadãos no Estado é um processo
se, pois, por definição, o Estado de circulação das vontades políti­
não pode admitir representar uma cas cuja existência depende do
classe em particular — porque surgimento de uma esfera de tro­
isso seria reconhecer que o Esta­ cas mercantis generalizada. A
do não mais mantém o seu cará­ equivalência política dos sujeitos-
ter público — , sendo esse acesso cidadãos só pode ser construída
franqueado apenas aos indivídu­ sob a base da equivalência mer­
os qualificados politicamente en­ cantil que iguala os possuidores
quanto cidadãos. de mercadorias.

3 Cf. Evgeni Pachukanis, A teoria geral do direito e o marxismo, Rio de Janei­


ro, Renovar, 1989.

77
O princípio da iguaidade, o poder de classe da burguesia, a
princípio básico da democracia, e sua dominação sobre os trabalha­
em torno do qual ela se organiza, dores. Ora, a política, nós já o sa­
encontra, assim, o seu fundamen­ bemos, é a esfera exclusiva de
to no processo do valor de troca, manifestação dos cidadãos no
que, como diz Marx na Contribui­ Estado por meio das eleições; no
ção à crítica da economia p olíti­ âmbito da sociedade civil — onde
ca, não apenas respeita a igual­ se situa a fábrica — só se admi­
dade mas também a cria. tem as manifestações de nature­
A conseqüência política de za privada, as reivindicações pro­
todo esse processo consiste na fissionais. Portanto, se os traba­
neutralização da luta de classe lhadores quiserem se manifestar
operária. Quando o Estado só ad­ politicamente, deverão se despo­
mite a política concentrada “de di­ jar de sua condição de classe e
reito" na sua esfera de competên­ participar do processo político
cia, toda luta que ultrapasse os como cidadãos.
marcos da reivindicação profissi­ A crítica da democracia, a
onal, e consista em uma ameaça partir dos desenvolvimentos de O
ao processo de valorização do capital, permite revelar a sua na­
capital, é interditada e considera­ tureza irremediavelmente burgue­
da ilegal. Assim, a greve ou a sa e a sua função como elemento
ocupação de fábrica que desor­ que encerra a luta de classe ope­
ganize a produção torna-se uma rária nos marcos da legalidade e
greve “política”, porque questiona da institucionalidade burguesas.

78
A refundação do materialismo histórico

Como já tínhamos observa­ real do trabalho ao capital, Marx


do no capítulo 3, no período de A demonstra que a constituição das
ideologia alemã Marx estabelece o relações de produção capitalistas
princípio de determinação imedia­ precede a constituição de forças
ta entre a base econômica e a su­ produtivas capitalistas, ou seja,
perestrutura, resultando disso que primeiro surge uma reiação soci­
esta última aparece como uma al determinada, aquela que vincu­
“emanação direta” das relações la o possuidor das condições ma­
econômicas. Ele estabelece tam­ teriais da produção ao possuidor
bém o princípio do primado das for­ da força de trabalho, mas a base
ças produtivas sobre as relações material da produção, as forças
de produção, segundo o qual são produtivas, permanecem as mes­
as forças produtivas que “coman­ mas da sociedade feudal. Grada-
dam” o desenvolvimento histórico. tivamente, em virtude da necessi­
Pois bem, essas teses não dade de exercer um dom ínio
encontram sustentação quando completo sobre a classe operária,
Marx realiza a análise científica do para poder extrair mais-valia para
modo de produção capitalista. além dos limites impostos pela
Embora a antiga concepção sub­ não-transformação da base técni­
sista e continue a atravessar a tra­ ca da produção, e em virtude tam­
ma científica que Marx tece, é jus­ bém da necessidade imposta
to considerar que uma retificação pela concorrência dos demais ca­
em sua concepção do materialis­ pitalistas, a burguesia opera uma
mo histórico está se operando — revolucionarização das forças
particularmente em O capital. produtivas, introduzindo a máqui­
na e o sistem a de máquinas.
A DOMINÂNCIA DAS Essa transformação vai permitir
RELAÇÕES DE PRODUÇÃO que o capitalista domine comple­
tamente o processo de trabalho
Como vimos, ao analisar a com a expropriação objetiva e
subsunção formal e a subsunção subjetiva do trabalhador.

79
Ora, essa análise de Marx plena constituição das relações
modifica os termos do problema. de produção capitalistas só ocor­
As relações de produção surgi­ re quando essas forças produti­
das antes da transformação das vas novas surgem, porque são
forças produtivas, embora já se­ elas que vão constituir a base téc-
jam relações de produção capi­ nico-m aterial da expropriação
talistas — porque o trabalhador “subjetiva” da classe operária no
direto está separado das condi­ processo de trabalho.
ções materiais do trabalho e pre­ Isso significa que não há
cisa vender a sua força de traba­ uma relação de exterioridade en­
lho para o capitalista — , são re­ tre as relações de produção e as
lações de produção que não ga­ forças produtivas, mas que as for­
rantem o com pleto dom ínio do ças produtivas estão dentro das
capitalista sobre o trabalhador relações de produção, isto é, as
direto, portanto são relações de relações de produção são a for­
produção capitalistas “imperfei­ ma de desenvolvimento das for­
tas” ou incompletas. Isto é, elas ças produtivas.
permitem apenas um controle Disso decorrem duas con­
formal sobre o processo de tra­ seqüências de importância funda­
balho; são, assim, relações de mental. Em primeiro lugar, a his­
produção apenas form alm ente tória não aparece mais como uma
capitalistas. Para que as rela­ sucessão linear de modos de pro­
ções de produção plenamente dução cujo movimento interno é
capitalistas se constituam, per­ dirigido pelo nível de desenvolvi­
mitindo o total controle e domínio mento das forças produtivas, mas
sobre a classe operária no pro­ depende da luta de classes. Em
cesso de produção, é necessário segundo lugar, não mais subsiste
que ocorra a transformação das a concepção de que as forças
fo rça s p ro d u tiv a s e xiste n te s, produtivas têm um caráter neutro,
com o surgim ento de novas for­ ficando estabelecida a sua deter­
ças produtivas, de caráter espe­ minação de classe.
cificam ente capitalista. Marx desautoriza, assim, a
São as relações de produ­ idéia de que as forças produtivas
ção, portanto, que comandam as da sociedade comunista consti-
transformações das forças produ­ tuam-se no interior do capitalismo,
tivas, como uma exigência do que elas possam ser as mesmas
processo de valorização. Mas a forças produtivas do capitalismo,

80
que, por força das contradições modo complexo e não mecânico,
inerentes a esse modo de produ­ de tal sorte que pode afirmar que
ção, vão se tornando cada vez elementos não-econômicos che­
mais socializadas, cabendo à so­ gam a jogar o papel dominante na
ciedade comunista tão-somente reprodução das relações sociais
receber essas forças produtivas em determinados modos de produ­
completamente adequadas a ela, ção. É o que Marx afirma, por
e as quais, libertadas das relações exemplo, nesta passagem: “Deve
de propriedade (capitalistas) que ser claro que a Idade Média não
as entravavam, podem agora ex­ podia viver do catolicismo nem o
pandir-se livremente. Ao contrário mundo antigo, da política. A forma
dessa concepção mecanicista e e o modo como eles ganhavam a
evolucionista do processo históri­ vida explica, ao contrário, por que
co, as análises de Marx permitem lá a política, aqui o catolicismo, de­
apreender que as forças produti­ sempenhava o papel principal”.
vas dependem sempre da luta de Assim também, em uma
classes, que elas nunca se desen­ passagem importante do capítulo
volvem independentemente das sobre a “Gênese da renda fundiá­
relações de produção. ria capitalista”, do livro 3 de O ca­
p ital, Marx afirma: “Está claro,
MODO DE PRODUÇÃO E além disso, que em todas as for­
DETERMINAÇÃO EM ÚLTIMA mas em que o trabalhador direto
INSTÂNCIA continua a ser ‘dono’ dos meios
de produção e das condições de
Do mesmo modo, a análise trabalho para a produção de seus
que Marx desenvolve em O capi­ próprios meios de subsistência, a
tal e em outras obras do período relação de propriedades tem de
permite elaborar uma concepção aparecer, ao mesmo tem po,
do modo de produção no qual a como relação direta de domina­
determinação econômica pode ser ção e servidão, e, portanto, o pro­
pensada como uma determinação dutor direto como alguém não li­
em última instância, e não como vre. [...] Sob essas condições, o
uma determinação direta e imedi­ mais-trabalho só pode ser arran­
ata da superestrutura pela base. cado deles pelo proprietário nomi­
Algumas passagens de O nal da terra mediante coerção ex-
capital mostram claramente que tra-econômica, qualquer que seja
Marx concebe a estrutura social de a forma que esta assuma”.

81
Pois bem, o que essas balho. Portanto, o servo só repro­
passagens nos dizem? Inicial­ duz essa relação, isto é, entrega
mente, que elementos não-eco- ao senhor o resultado do seu tra­
nômicos, como a política, a reli­ balho, em virtude da interferência
gião, elementos, portanto, da su­ de fatores não-econômicos. As­
perestrutura, podem ser dom i­ sim, é necessário o emprego da
nantes em uma determinada so­ coerção física através da força
ciedade. Em segundo lugar, que m ilitar dos senhores para que
é o modo de produção (em senti­ essa relação social se reproduza.
do estrito) que permite explicar Além disso, a ideologia religiosa
por que esses elementos podem cristã secreta uma representação
justamente cumprir essa função. imaginária de mundo na qual se
Em terceiro lugar, que reside na justifica, como expressão da von­
combinação entre o agente direto tade divina, a relação de explora­
da produção e os meios de traba­ ção do servo pelo senhor.
lho a possibilidade de se compre­ Desse modo, a reprodução
ender a “lógica” de funcionamen­ das relações de produção feudais
to da estrutura social. Vejamos é garantida pela intervenção da
tudo isso mais de perto. instância política (a relação de
No modo de produção feu­ força) e da instância ideológica (o
dal a relação de produção envol­ catolicismo) da estrutura social.
ve dois agentes: o senhor feudal, Porém o que permite explicar a
proprietário das condições mate­ necessidade da interferência des­
riais da produção, e o servo, que ses elementos superestruturais
mantém a posse dessas mesmas para que a reprodução das rela­
condições. Essa relação implica ções sociais feudais possa ocor­
que o servo trabalhe para o se­ rer é uma combinação específica
nhor, entregando-lhe parte da de elementos da base econômi­
produção por ele realizada. Ora, ca. De fato, é a existência, na
o que leva à reprodução dessa base econômica do modo de pro­
relação? Observemos, de imedi­ dução feudal, da não-separação
ato, que não existe nenhuma ne­ entre o produtor direto e os meios
cessidade de ordem econômica de produção, o que explica por
para o servo assim agir, já que ele que a reprodução das relações
está na posse das condições ma­ sociais feudais tem necessaria­
teriais da produção e mantém o mente de ser garantida pela coer­
controle sobre o processo de tra­ ção e pela ideologia. Se o senhor

82
feudal não dispõe do controle efe­ so de produção capitalista, é no in­
tivo dos meios de produção, não terior do processo de produção de
pode haver um modo de ele ob­ mercadorias que a extração da
ter, a partir do próprio processo mais-valia ocorre, sem que o tra­
de produção, o sobreproduto do balhador tenha qualquer controle
servo. Ele precisa “arrancar” do desse processo. A mais-valia é
produtor direto, mediante a com­ “encoberta” e desaparece subsu­
binação da força militar e da ideo­ mida no princípio da troca de equi­
logia religiosa, o produto do seu valentes que preside a compra e
trabalho. A exploração resulta, venda da força de trabalho. No
assim, do emprego de uma coer­ capitalismo não há um sobrepro­
ção exterior ao processo de tra­ duto, mas somente uma mais-va­
balho e da ideologia católica que lia, ou seja, o sobreproduto não é
a recobre e justifica. “visível” , ele só existe sob a forma
Já no modo de produção do valor.
capitalista, a reprodução das rela­ A exploração capitalista,
ções de produção ocorre de forma portanto, é intrínseca ao processo
diversa. Nessa sociedade, como de trabalho. Sendo assim, a repro­
sabemos, a relação de produção dução das relações de produção
envolve dois agentes: de um lado, capitalistas é garantida, no funda­
o capitalista, proprietário das con­ mental, por um movimento estrita­
dições materiais da produção e, mente econômico. No fundamen­
de outro lado, o operário, possui­ tal, porque também interferem
dor apenas de sua força de traba­ nesse processo tanto o direito e a
lho. Essa relação implica a venda ideologia jurídica, que jogam um
da força de trabalho pelo operário papel importante ao possibilitar,
ao capitalista, que a utiliza no pro­ através da constituição das cate­
cesso de produção obtendo um gorias do contrato e do sujeito de
valor além do valor da própria for­ direito, a compra e venda da força
ça de trabalho, uma mais-valia de trabalho, como o Estado, por
que é apropriada por ele. Ora, o meio do seu aparato repressivo
que leva o operário a ceder essa (como as forças armadas) e ideo­
parte do seu trabalho que não é lógico (como a escola).
paga ao capitalista, o que o leva a Pois bem, o que permite
reproduzir essa relação de produ­ explicar por que a reprodução
ção? Essa relação se reproduz por dessas relações é assegurada,
força do funcionamento do proces­ no fundamental, pela instância

83
econômica é uma combinação term inar quai dos níveis deve
específica dos elementos do nível cumprir tal função.
econômico. Assim, no feudalismo, é a
Ao contrário do que ocorre unidade entre o produtor direto e
no modo de produção feudal, no os meios de produção — elemen­
capitalismo não há uma unidade to econômico — que vai exigir a
mas justamente uma separação interferência da instância política e
entre o trabalhador e os meios de da ideológica para que as relações
produção. Separado dos meios sociais feudais se reproduzam. No
de produção, o produtor direto capitalismo, é a separação entre o
depende do capitalista para pro­ produtor direto e os meios de pro­
duzir, e não tem qualquer possi­ dução — elemento econômico —
bilidade de controlar o processo e que vai permitir que, já no próprio
o resultado de seu trabalho. processo de produção — instância
Assim sendo, é suficiente econômica — , a reprodução das
que o capitalista exerça o seu do­ relações sociais capitalistas este­
mínio sobre o trabalhador no pro­ ja, no fundamental, assegurada.
cesso de produção para que a re­ Há aqui, portanto, uma coincidên­
produção das relações sociais ca­ cia entre o elemento dominante e
pitalistas esteja fundamentalmen­ o elemento determinante, que é
te garantida. sempre o econômico.
Podemos então concluir A determinação em Marx
disso tudo que o modo de produ­ pode então aparecer como um pro­
ção aparece agora para Marx cesso não apenas mais complexo
como uma estrutura social com­ mas sobretudo como estranho a
posta de níveis, no qual um nível, qualquer mecanicismo que tornaria
ou uma combinação deles, cum­ a superestrutura mero epifenôme-
pre uma função dominante, e o no da base econômica, não respei­
nível econômico.cumpre sempre tando a autonomia relativa das ins­
a função de determinação em úl­ tâncias que a compõem. Remeten­
tima instância na reprodução das do a superestrutura ao seu tugar
relações de produção. Isso signi­ pertinente e explicando o seu mo­
fica que um dos níveis ou uma vimento, a concepção marxista
combinação deies vai assegurar com preende a superestrutura
que as relações de produção se como um conjunto de relações cuja
reproduzam, mas é sempre o ní­ existência é necessária para a re­
vel econômico aquele que vai de­ produção da totalidade social.

84
A ultrapassagem da sociedade burguesa:
transição e comunismo

A compreensão que Marx blemática introduzida pela análise


tem do problema da transição so­ da transição para o capitalismo,
cialista — até então fortemente que se encontra em O capital, e
condicionada pelo primado con­ está intimamente relacionada com
cedido às forças produtivas — o abandono da tese do primado
não permanece a mesma após as das forças produtivas que analisa­
análises de O capitale após a ex­ mos no capítulo precedente.
periência da Comuna de Paris— A segunda dessas retifica­
recolhida por Marx em A guerra ções, expressamente formulada
civil na França. por Marx no prefácio à edição ale­
O conhecimento científico mã de 1872 do Manifesto do Par­
do modo de produção capitalista tido Comunista, permite introduzir
e a experiência revolucionária um elemento decisivo para que a
dos operários franceses durante transição possa ser teoricamente
a Comuna de Paris vão possibili­ formulada: a destruição do apare­
tar a Marx operar duas retifica­ lho de Estado burguês.
ções em sua concepção. Estas É a partir do exame dessas
retificações são relativas à ques­ duas questões — a “revoiuciona-
tão da transformação das rela­ rização" das relações de produ­
ções de produção e à questão da ção e a “revolucionarização” do
transformação do Estado na tran­ Estado — , e só a partir delas, que
sição socialista. se pode apreender a concepção
A primeira dessas retifica­ marxiana do comunismo.
ções permite reformular a posição
dominante que Marx houvera em­ A REVOLUCIONARIZAÇÃO
prestado à supressão da proprie­ DAS RELAÇÕES DE
dade privada para pensar o socia­ PRODUÇÃO
lismo. Essa retificação não é, no
entanto, expressamente formula­ No Manifesto do Partido
da pelo próprio Marx, mas ela é Comunista vimos que Marx, em­
autorizada pela mudança de pro­ bora identifique a supressão da
propriedade privada com o socia­ Recordemos os termos do
lismo, já sugere a necessidade de problema.
se operar uma dupla supressão: a Marx identifica dois mo­
supressão da propriedade privada mentos na passagem do modo de
e a supressão das relações de produção feudal para o modo de
produção capitalistas, de modo produção capitalista. O primeiro
que Marx já parece não confundir momento — a subsunção formal
esses dois níveis, mesmo que ele do trabalho no capital — é aquele
continue a conceder mais relevân­ no qual já estão constituídas as
cia à supressão da propriedade. relações de produção capitalistas
A análise contida em O ca­ — embora formalmente — e, por­
pital permite que se compreenda tanto, a força de trabalho operá­
que a simples transferência da ria está submetida à lei de valori­
propriedade para o Estado não zação. No entanto, o processo de
transforma, ipso facto, a natureza trabalho enquanto tal, isto é, do
das relações de produção. Tal ponto de vista técnico, ainda não
transferência, que se opera intei­ sofreu nenhuma transformação,
ramente dentro do direito, é uma restando o mesmo do período an­
condição necessária mas não su­ terior. Isso significa que as forças
ficiente para que o modo de pro­ produtivas não sofreram uma al­
dução capitalista seja suprimido. teração substancial que as tor­
Para que isso venha a ocorrer, é nasse adequadas às relações de
preciso que as relações de produ­ produção capitalistas, o que eqüi­
ção capitalistas— que não se con­ vale a dizer que as forças produti­
fundem com as relações de pro­ vas especificamente capitalistas
priedade — sejam efetivamente ainda não se constituíram.
transformadas, o que implica um Em um segundo momento,
esforço para se “desmontar'’ o pro­ o processo de trabalho é revolu-
cesso de trabalho capitalista. cionarizado com a introdução da
Pois bem, é justam ente maquinaria, o operário perde o
nesse passo que a análise de O controle que ainda detinha do
capital sobre a subsunção formal processo de fabricação do produ­
e a subsunção real do trabalho no to e é transformado em simples
capital pode se revelar como a “apêndice” da máquina, conver­
chave para se compreender o tendo-se, assim, a força de traba­
sentido da transformação socia­ lho em mero dispêndio de ener­
lista em Marx. gia laborativa. À expropriação ob-

86
jetiva das condições materiais da pelo capital, o socialismo deve
produção vem juntar-se a expro­ implicar um processo de reapro-
priação subjetiva da potência priação das condições objetivas
mental do operário. Essas novas e su bjetiva s da produção por
forças produtivas, especificamen­ parte dos trabalhadores.
te capitalistas, são agora plena­ É necessário, no entanto,
mente adequadas às relações de precisar que há uma diferença
produção capitalistas, de que são essencial entre a análise da
a base material necessária para transição para o comunismo e a
que a dominação de classe se análise empreendida por Marx
exerça plenamente no interior do para pensar a transição para o
processo de trabalho. capitalismo. Ao contrário desta
Em que essas observa­ última, na transição para o co­
ções, pertinentes ao processo de munismo não é possível que se
produção capitalista, podem se esta b eleça m , pre viam en te à
mostrar adequadas para a análi­ transformação do processo de
se da problemática da transição trabalho capitalista, relações de
socialista em Marx? produção de natureza comunis­
ta. Ou seja, no socialismo, as
A REAPROPRIAÇÃO DAS relações de produção remanes­
CONDIÇÕES DA PRODUÇÃO cem capitalistas por um longo
período, no qual os trabalhado­
Se as relações de produ­ res lutam para transformar es­
ção capitalistas repousam na sas relações, objetivando exer­
constituição desse “núcleo duro” cer o seu controle sobre o pro­
de existência do capital — a or­ cesso de produção.
ganização do processo de tra­ A ú nica co n se q ü ê n cia
balho sob a base técnica das im ediata da tom ada do poder
forças produtivas e s p e c ific a ­ pela classe operária é que ela
mente capitalistas — , o socialis­ passa a exercer algum controle
mo deve necessariamente ser o sobre as condições externas do
período no qual essas relações processo de produção, em virtu­
de produção são d e stru íd a s. de da estatização dos meios de
Como o processo capitalista de produção e da introdução do
trabalho é organizado de modo planejamento econômico. Em­
a possibilitar a expropriação ob­ bora a propriedade estatal e a
je tiva e subjetiva do operário intervenção sobretudo na esfe­

87
ra da circulação e da distribui­ dominação e exploração dos tra­
ção imponham algum condicio­ balhadores pelo capital.
namento (externo) à atuação da Ora, o socialismo, enquan­
iei da valorização, elas não po­ to etapa de transição, deve impli­
dem de modo algum modificar a car, então, a substituição dessa
organização capitalista do pro­ base técnica do capital, as forças
cesso de trabalho. produtivas do capital, por novas
Assim, a transição para o forças produtivas, de caráter co­
comunismo é, imediatamente, um munista, permitindo que a classe
processo de reapropriação real operária possa apropriar-se das
das condições da produção, sem condições materiais da produ­
o que as relações de produção ção, dominar o processo de tra­
comunistas não se constituirão. balho e extinguir o processo de
A possibilidade de uma valorização.
transformação revolucionária das Assim, a constituição de
relações de produção capitalistas novas relações de produção, de
reside necessariamente no “ata­ natureza comunista, é um proces­
que” à organização capitalista do so que exige simultaneamente a
processo de trabalho, pois é jus­ criação dessa base técnica revo-
tamente o modo como o proces­ iucionarizada, adequada para
so de trabalho se organiza sob as possibilitar que se supere a sepa­
relações de produção capitalistas ração entre os meios de produção
o que permite o prosseguimento e os trabalhadores diretos.
do processo de valorização.
Recordemos que a exis­ RELAÇÃO JURÍDICA E
tência do modo de produção es­ APROPRIAÇÃO REAL
pecificamente capitalista depen­
de da constituição de uma "base Temos, agora, os elemen­
técnica", que são as forças pro­ tos para perceber que a transição
dutivas novas, de natureza capi­ para o comunismo, em Marx, não
talista, que surgem por exigência pode se limitar a uma operação
do processo de valorização do jurídica de transferência da titula­
capital, isto é, sob o “comando" ridade dos meios de produção.
das relações de produção. Essas Como já observamos, a mera es-
novas forças produtivas — basi­ tatização dos meios de produção
camente o sistema de máquinas não é suficiente para extinguir o
— vão assim possibilitar a plena processo de produção capitalista.

88
r
Na ausência de uma revo- funcionam ento o processo de
lucionarização das relações de trabalho e em dispor do produto
produção capitalistas, sem que de seu trabalho. Aos agentes do
tenham se constituído forças capital fica reservada a direção
p ro d u tiv a s co m u n ista s, uma do processo de produção, ao
nova burguesia pode surgir em passo que os operários devem
virtude da permanência do pro­ se limitar a executar as ordens
cesso de valorização durante o daqueles.
período de transição. Portanto é justamente ao
A iuta pela transformação “atacar” esses dois elementos fun­
revolucionária da sociedade bur­ damentais para a dominação bur­
guesa, cujo aspecto principal é a guesa que a classe operária pode
apropriação pelos trabalhadores iniciar o processo de constituição
das condições materiais da pro­ de novas relações de produção e
dução, deve ser dirigida contra forças produtivas comunistas.
dois aspectos fundamentais da
organização capitalista do pro­ A REVOLUCIONARIZAÇÃO
cesso de trabalho: a divisão entre DO ESTADO
o trabalho manual e o intelectual
e a divisão entre as tarefas de di­ O outro aspecto decisivo
reção e execução. para compreender-se o problema
A divisão entre o trabalho da transição em Marx é aquele
manual e o intelectual no interi­ referente às transformações ope­
or do processo de trabalho re­ radas no Estado após a tomada
produz as condições de expro­ do poder peia classe operária.
priação da “potência mental" do No M anifesto do P artido
operário, retira dele a possibili­ Comunista, Marx não faz men­
dade de exercer algum controle ção à necessidade de ocorrer
sobre os meios de trabalho, que, essa transformação. Nesse tex­
assim , passam a dom iná -lo, to ele limita-se a constatar que a
transformando o trabalhador em conquista do poder pelo proleta­
sim ples dispêndio de energia riado possibilitará a este o exer­
lavorativa. cício de sua dominação de clas­
A divisão entre as tarefas se, mas nada diz sobre uma
de execução e as tarefas de di­ questão decisiva: a de se saber
reção reproduz a perda da capa­ se o Estado burguês herdado
cidade do trabalhador de pôr em petos trabalhadores pode servir

89
te decisivo para se pensar a tran­
sição socialista: a necessidade de
destruição do Estado burguês e a
sua substituição por um outro Es­
tado, de natureza completamente
diversa.
Qual o significado dessa re­
tificação? Por que ela desempenha
um papel tão importante? O que,
afinal, Marx aprendeu com os ope­
rários revolucionários de Paris?

O segredo da Comuna

O que os trabalhadores
franceses demonstraram na revo­
Karl Marx em 1875, aos 57 anos. lução foi que o Estado burguês, tal
como ele é “recebido” pelos traba­
para a organização de uma ou­ lhadores após a tomada do poder,
tra forma de sociedade. não é adequado para servir aos
É o episódio da Comuna propósitos da revolução. Ou seja,
de Paris que propicia a Marx os o Estado burguês é estruturado
elementos de resposta para esse para funcionar exclusivamente no
silêncio teórico e político. Reco­ interesse da classe dominante
lhendo os “ensinamentos" dos burguesa e, permanecendo sem
operários revolucionários france­ sofrer qualquer modificação, ele
ses, ele pode então expressa­ vai continuar reproduzindo, em úl­
mente enunciar uma retificação tima instância, as formas sociais
no Manifesto, ao dizer, no prefá­ da sociedade capitalista. Esse Es­
cio à edição alemã de 1872 des­ tado vai se transformar, assim, em
sa obra, que “a Comuna demons­ um obstáculo à transformação
trou especialmente ‘que a ciasse das relações sociais capitalistas,
operária não pode apenas tomar um obstáculo à apropriação das
posse da máquina de Estado já condições materiais da produção
pronta e fazê-la funcionar para os e do poder político pelas massas.
seus próprios fins’ Marx introduz É a isso que se refere Marx ao di­
então um elemento absolutamen­ zer, em A guerra civil na França,

90
r
que o instrumento político da su­ vém mesmo nos conflitos oriundos
jeição do proletariado, isto ó, o de reivindicações meramente eco­
Estado burguês, não pode ser uti­ nômicas. Esse aparato de violên­
lizado como instrumento político cia de classe dirigido contra os tra­
de sua emancipação. balhadores constitui-se no obstá­
Se, então, para Marx, o Es­ culo mais difícil a ser vencido.
tado burguês deve ser destruído, Mesmo após a revolução, se o
o que, precisamente, deve ser ob­ aparelho militar-policial mantém-
jeto dessa destruição e, ademais, se como um corpo especial, sepa­
de que Estado o proletariado ne­ rado das massas, ele se converte
cessita para exercer o poder e em um obstáculo para a transfor­
transíormar as relações sociais mação social, impedindo que a
capitalistas? classe operária possa apropriar-se
diretamente do poder político e ini­
O povo armado ciar a revolucionarização das rela­
ções de produção.
Analisando as medidas to­ É por isso que a supressão
madas pela Comuna, Marx obser­ do aparelho de repressão do Es­
va que o primeiro decreto por ela tado deve implicar a absorção pe­
expedido visou suprimir o exérci­ tas massas do uso da violência,
to permanente, substituindo-o com as próprias massas transfor­
pelo “povo armado” . Do mesmo mando-se em força armada per­
modo, a polícia perde a sua fun­ manente. Essa não-separação en­
ção política, convertendo-se em tre o povo e a força armada é uma
um instrumento da Comuna — a condição para que o processo de
ponto de Marx também conside­ transição possa ocorrer e uma das
rá-la “suprimida”. Essas iniciati­ formas que toma o processo de
vas atingem o cerne do Estado extinção do Estado que a transi­
burguês, o seu aspecto principal, ção para o comunismo implica.
o aparelho repressivo.
É o aparelho repressivo do O controle do Estado peias
Estado burguês que garante os in­ massas
teresses da classe dominante, não
apenas face a uma insurreição ar­ Outra medida decisiva to­
mada, isto é, em um caso limite de mada pelos operários franceses
confronto direto de classe, mas a foi a concentração dos poderes
força armada da burguesia inter­ executivo e legislativo em um úni­

91
Proclamação da Comuna de Paris, a 28 de março de 1871.

co órgão — a Comuna — , conver­ massas. Todos recebendo, ade­


tida em uma corporação de traba­ mais, salários de operários. O al­
lho. Assim, superava-se a sepa­ cance dessas medidas é de ex­
ração dos poderes, típica do Es­ traordinária importância. Elas vi­
tado burguês, que implica a pos­ sam possibilitar o controle da má­
sibilidade de expressão dos inte­ quina do Estado pela classe ope­
resses das distintas ciasses e fra­ rária e impedir o estabelecimento
ções de classe dominantes. de distinções entre os trabalhado­
A Comuna era composta res e os agentes políticos, apon­
de conselheiros eleitos, respon­ tando, tendencialmente, para a
sáveis e substituíveis a qualquer superação da separação entre as
momento. Os funcionários do massas e o poder político.
conjunto da administração, inclu­
sive a magistratura, também es­ A “quebra” do Estado
tavam sujeitos a esses mesmos
princípios, possibilitando o con­ O Estado burguês é, assim,
trole de suas atividades pelas “quebrado” em seu aspecto funda-

92
mental, de tal sorte que o Estado tado, de um Estado que traz em si
operário constitui-se, forçosamen- os elementos de sua própria extin-
te, “em qualquer coisa que já não ção, isto é, de um Estado cujo cen-
é, para falar propriamente, Esta- tro já foi deslocado para as mas-
do”, como diz Lenin, comentando sas, que já deu início ao processo
A guerra civil na França em seu de sua destruição enquanto Esta-
trabalha O Estado e a revolução. do, enquanto instância política se-
A quebra, a amputação, a parada e acima das massas. Esse
supressão, a destruição, o caráter é o segredo da Comuna, como diz
supérfluo do Estado, todas essas Marx: “Eis o seu verdadeiro segre-
expressões de Marx traduzem a do: A Comuna era, essencialmen-
necessidade de desde já, desde o te, um govemo da classe operária,
início do processo de transição, a fruto da luta da classe produtora
classe operária apropriar-se das contra a classe apropriadora, a for-
funções essenciais do Estado, ma política afinal descoberta para
através de um aparato que, de levar a cabo a emancipação eco-
certo modo, já não é mais um Es- nômica do trabalho". Forma políti-

A repressão à Comuna.

93
ca constituída com o objetivo de dura exercida pela maioria, pelos
emancipar os trabalhadores, ou trabalhadores, contra a antiga
seja, Marx relaciona a destruição classe dominante.
das relações de produção capita­ O conceito de ditadura do
listas com a destruição do Estado proletariado ocupa um lugar cen­
burguês, de tal sorte que, sem a tral na concepção marxiana da
criação de um Estado que já não transição. Já em 1852, em uma
é mais um Estado em sentido pró­ carta a Joseph Weidemeyer, refe­
prio, a revolucionarização das re­ rindo-se ao que sua teoria havia
lações de produção capitalistas e trazido de novo, Marx dizia ter de­
a constituição de novas forças pro­ monstrado que “a luta de classes
dutivas não seriam possíveis. conduz necessariamente à ditadu­
ra do proletariado” e que “essa di­
DITADURA DO PROLETARIADO tadura ela própria não é mais que
E TRANSIÇÃO AO COMUNISMO a transição para a supressão de
todas as classes e para uma soci­
O Estado que a classe edade sem classes”.
operária constitui após a tomada Dois ensinamentos funda­
do poder é, para Marx, uma dita­ mentais podem ser extraídos des­
dura, a ditadura do proletariado. sa passagem. Em primeiro lugar,
Não nos enganemos quanto aos quando Marx afirma que a luta de
termos: ele entende que todo Es­ classes leva à ditadura do proleta­
tado é uma ditadura, na medida riado, ele não apenas está dizen­
em que ele é a forma política de do que o antagonismo irreconciliá­
dominação de uma classe. As­ vel de classes deve acarretar a
sim, um Estado pode ser “demo­ dominação “despótica" da classe
crático”, isto é, ele pode admitir operária, como uma conseqüência
um certo grau de liberdades pú­ desse antagonismo, mas, do que
blicas, o parlamento e o sufrágio ele diz, pode-se inferir sobretudo
universal, e nem por isso deixar uma outra tese, absolutamente
de ser uma ditadura, porque o decisiva, a de que a luta de clas­
poder político continua a ser exer­ ses prossegue após a tomada do
cido pela classe dominante. Ao poder pelo proletariado, e é por
contrário da ditadura burguesa — isso que uma ditadura é necessá­
que é a ditadura de uma minoria, ria, porque, senão, em caso con­
em favor dessa minoria — , a dita­ trário, se o momento do triunfo re­
dura do proletariado é uma dita­ volucionário da classe operária

94
acarretasse o fim da luta de clas­ a ditadura do proletariado, deve se
ses, a ditadura dessa classe se estender até que “se destrua a
tornaria desnecessária e ociosa. É base econômica sobre a qual des­
por isso que Marx afirma a seguir cansa a existência de classe”.
que a ditadura do proletariado
confunde-se com a própria transi­ A forma política enfim
ção para a sociedade comunista encontrada
(para a sociedade sem classes).
Portanto a luta de classes prosse­ A ditadura do proletariado,
gue durante a transição para o co­ para Marx, deve ter as caracterís­
munismo e a ditadura do proletari­ ticas da Comuna de Paris, que,
ado prolonga-se até que essa como vimos, funda-se no povo em
transição se complete. armas, na superação das formas
Também na Crítica do Pro­ burguesas de representação polí­
grama de Gotha, ele se refere à tica e no desmantelamento do
ditadura do proletariado como aparelho repressivo. Essa “forma
uma fase de transição: “ Entre a política enfim encontrada” para
sociedade capitalista e a socieda­ possibilitar a “emancipação eco­
de comunista se põe o período de nômica do trabalho" é a forma po­
transformação revolucionária da lítica específica para que possa
primeira na segunda. Ao qual cor­ ocorrer o processo de transforma­
responde um período de transição ção revolucionária das relações
política na qual o Estado só pode sociais no decorrer do período de
ser a ditadura revolucionária do transição. Essa forma não se defi­
proletariadd’. A ditadura do prole­ ne do ponto de vista jurídico, não
tariado deve então ser entendida é um modelo institucionalizado,
como um período longo, que com as suas regras e a sua legali­
acompanha a transformação das dade estabilizando e fixando as
relações de produção e das forças relações sociais, mas define-se,
produtivas, sem as quais, como como diz Étienne Balibar, “por sua
vimos, não é possível organizar a própria capacidade de autotrans-
sociedade comunista. Marx não formação”, isto é, pela contradição
deixa dúvida quanto a esse ponto, que a atravessa na medida em
ao dizer expressamente, em seu que ela é um Estado que ao mes­
trabalho Anotações ao livro de mo tempo deve ser um não-Esta-
Bakunin “O Estado e a anarquia”, do, um Estado “organizador de
que a dominação de classe, isto é, seu próprio desaparecimento”.

95
A LIBERDADE COMUNISTA advento de novas forças produti­
vas — vai então tornar possível o
O período de transição — surgimento de uma forma de li­
que se dá sob a ditadura do prole­ berdade jamais conhecida, uma
tariado — é o que Marx vai deno­ liberdade efetiva, e não apenas
minar fase inferior da sociedade formal, jurídica. A sociedade co­
comunista, ou seja, o socialismo. munista, ao assegurar o controle
Ele caracteriza-se, fundamental­ de sua própria organização so­
mente, por ser uma sociedade que cial, oferece enormes possibilida­
“não se desenvolveu sobre sua des de desenvolvimento, em to­
própria base”, uma sociedade nas­ dos os domínios. Uma perspecti­
cida da sociedade capitalista e va como essa não é fruto de uma
que, portanto, “sob todos os as­ projeção intelectual nem muito
pectos”, conserva o sinal da velha menos um voto piedoso; ela pode
sociedade burguesa. ser aberta a partir — e só a partir
É um período, assim, em — do desvendamento feito por
que esse sinal da velha socieda­ Marx da “lógica” de funcionamen­
de deve ser transformado em seu to do capital, permitindo à classe
contrário, isto é, as relações de trabalhadora formular a estraté­
produção e as forças produtivas gia de ataque e “desmontagem”
capitalistas devem ser revolucio- das relações sociais burguesas.
narizadas para que possam sur­ É por isso que Marx, ao recusar
gir novas relações de produção e o desenho fantástico de um mun­
novas forças produtivas, de natu­ do novo, ao deixar apenas o re­
reza comunista. gistro vago do comunismo, para­
Uma vez percorrida essa doxalmente abre para nós, para
etapa, a sociedade comunista os que o quisermos verdadeira­
poderá se constituir, fundada em mente ler, o princípio de seu en­
relações de produção associa­ tendimento e a possibilidade de
das, isto é, fundadas no trabalho seu devir.
livre e na cooperação entre os in­
divíduos, libertos das formas de COMUNISMO E DIALÉTICA
exploração da força de trabalho.
A supressão das classes sociais, Toda a imensa crítica do
do Estado e do direito — em con­ modo de produção capitalista que
seqüência da instauração dessas Marx realizou teve por objetivo for­
novas relações de produção e do necer à classe operária o conheci-

96
mento objetivo de suas condições destruição e substituição por no­
de existência e os meios para su- vas relações sociais.
primi-las. Portanto o método de Pois bem, essa demonstra­
Marx só pode ser compreendido a ção de Marx permite que perce­
partir da negação do capitalismo, bamos alguns aspectos funda­
ou seja, a dialética, em Marx, é in­ mentais de seu método dialético.
separável do comunismo. A dialética, diz Marx, é um “incô­
A análise que Marx faz do modo” e um “horror” para a bur­
capital é uma crítica da pretensão guesia exatamente porque ele
burguesa de transformá-lo em não permite apenas a compreen­
uma coisa natural e eterna. Ao di­ são da estrutura social capitalista
zerem que o capital são os meios mas também o “entendimento de
de produção, os ideólogos da sua desaparição inevitável”. Isso
classe dominante fazem do capi­ porque a dialética, ao apreender
tal uma condição necessária de as formas sociais em seu movi­
toda a produção, já que todo pro­ m ento co n tra d itó rio , tam bém
cesso de trabalho exige a utiliza­ apreende o seu caráter transitó­
ção de meios de produção. Expul­ rio, não se deixando “impressio­
sando a determinação histórica nar por nada”. Por essas razões,
do capital, este passa a ser dota­ a dialética em Marx é “crítica e
do de uma natureza eterna. revolucionária".
Do mesmo modo, a burgue­ A dialética em Marx, por­
sia apresenta as suas relações tanto, é o estudo das contradi­
sociais como sendo a expressão ções da sociedade burguesa, da
da razão e, portanto, como “positi­ luta de classes que a corta de
vas” em si mesmas. Ora, se o ca­ modo irreconciliável. É o estudo
pitalismo é racional e é um valor também, conseqüentemente, das
absoluto, é absurdo pretender ex­ condições de possibilidade da re­
tingui-lo: assim, ainda aqui a eter­ solução dessa contradição, do
nidade das relações de produção processo revolucionário que os
capitalistas é reafirmada. trabalhadores conduzem em dire­
Contra essa pretensa eter­ ção ao comunismo.
nidade das relações sociais capi­ A análise empreendida por
talistas, Marx demonstrou o seu Marx ao “dissolver” as formas apa­
caráter contraditório e transitório, rentes das relações sociais capita­
a sua especificidade social e his­ listas, as sucessivas camadas ide­
tórica, e a possibilidade de sua ológicas que as recobrem, permitiu

97
revelar o seu núcleo fundamental ma, é também o seu contrário, e
estruturante: a luta de classes. é isso que torna necessária a
Ao colocar a luta de classes passagem de uma determinação
no centro de sua análise, Marx a outra: a contradição é o motor
abre a via para uma compreensão do movimento das coisas. Assim,
materialista da contradição e para o momento mesmo em que uma
a sua resolução efetiva. coisa se afirma enquanto tal já é
Se a teoria de Marx, cujos o momento em que se desenvol­
aspectos centrais examinamos, ve o elemento de negatividade
não é apenas a compreensão ci­ nela contido: é o momento da ne­
entífica do capitalismo mas tam­ gação. Finalmente, esses dois
bém a compreensão dos meios momentos são dissolvidos um no
de sua destruição como modo de outro em um terceiro, momento
produção, o método de Marx não que os contém e os supera (ne­
poderia ser a dialética especulati­ gação da negação). Essa supera­
va1, fundada na categoria da “ne­ ção significa a supressão da inde­
gação da negação”, tal como He- pendência recíproca que os mo­
gel a desenvolveu. mentos anteriores contêm, a con­
A dialética em Hegel con­ servação dos elementos próprios,
siste em um processo no qual se irredutíveis, de cada um e a reso­
sucedem o momento da afirma­ lução da contradição por meio da
ção, o da negação e o da nega­ conciliação dos contrários.
ção da negação. O desenvolvi­ O próprio Hegel ilu stra
mento de uma coisa decorre da esse m ovim ento por meio do
contradição interna que todas as exemplo do botão, da flor e do fru­
coisas trazem em si. Dizer que to. O botão (momento da afirma­
uma coisa é contraditória signifi­ ção) é negado pela flor, quando
ca dizer que, ao mesmo tempo ocorre o florescimento (momento
em que ela é idêntica a si mes­ da negação), e esta, por sua vez,

1 Isso não significa que Marx tenha podido rom per definitivam ente com a dia­
lética hegeliana. Mesmo em O capital, particularmente nas primeiras seções,
essa presença é claramente identificável. Porém, no mesmo O capital, em
seu núcleo teórico fundam ental — a análise do modo de produção especifi­
camente capitalista — , essa dialética está ausente. Ora, como procuram os
dem onstrar no curso da exposição, o processo do valor de troca está subor­
dinado ao processo de produção imediato, de tal sorte que os efeitos da pre­
sença da dialética hegeliana em O capital são limitados.

98
é negada (momento da negação de negação da negação, é a pró­
da negação) pelo fruto, que é a pria negação que é negada.
supressão das formas anteriores, A rigor, na dialética espe­
mas igualmente a sua “verdade”, culativa, não há propriamente
porque essas formas repelem-se luta, mas tão-somente uma divi­
mutuamente mas todas elas são são da unidade originária em dois
necessárias enquanto momentos opostos simétricos, à espera do
da unidade da “vida do todo”. momento de sua reconciliação
A “negação da negação” em uma síntese superior, ao pas­
implica, portanto, um procedimen­ so que a dialética marxista exclui
to pelo qual se nega a negação a conciliação, ela é fundada no
conservando o que fora negado. antagonism o irreco n ciliá ve l de
Isso significa a permanência, a seus opostos em luta.
continuidade do elemento inicial­
mente negado: ele não é extinto
nesse processo de superação,
mas elevado a um nível superior.
Ora, a dialética marxista, ao
contrário dessa dialética teleológi-
Kritik der jmlitischen Oekonomie.
ca da conservação, da síntese, é
uma dialética da destruição2. Ela
implica a extinção do que é nega­ K a r l Marx.
do e a sua substituição por algo
novo, que não existe no elemento
E rste r II an <4.
negado e, portanto, não pode ser Bk * I ; i«»

conservado ou recuperado.
A dialética idealista acaba
por “esterilizar" a negação, anulan­
do os seus efeitos ao recuperar o Ilariil>urc

que foi negado. Ela constitui-se, Wt I:«» vi>ii «»no Mi'i«iMf.

desse modo, como lembra Bette-


Iheim, em uma falsa negação, na
medida em que, nesse processo Frontispício de 0 capital, de Karl Marx.

2 Cf. Charles Bettelheim, “ Uma carta sobre ‘O marxismo de Mao’” , em Cader­


nos D. Quixote, n. 42, 1971; e Mao tsé-tung, “Talk on questions of philoso­
phy”, em Mao Tse-tung unrehearsed, Londres, Penguin, 1974.

99
Se retomarmos as análises perm ite pensar a transformação
de Marx em O capital, veremos revolucionária do capitalismo, ela
que, na passagem do feudalismo não é capaz de “suportar” o con­
para o capitalismo, as relações de ceito de luta de classes. Assim,
produção e as forças produtivas essa concepção da dialética pode
feudais são completamente subs­ funcionar como um elemento de
tituídas por novas relações de conservação do existente, isto é,
produção e forças produtivas, das relações sociais burguesas,
nunca conhecidas na história. O como a “garantia” metafísica de
modo de produção capitalista não sua eternidade.
conserva as relações sociais e as A presença da dialética
in s titu iç õ e s fe u d a is, mesmo e s p e c u la tiv a h e g e lia n a em
transformadas; ele as destrói. Do Marx, e especialmente em O ca­
mesmo modo, a sociedade comu­ pital, é o índice mais expressivo
nista deverá implicar a destruição dos obstáculos que ele teve de
das formas de exploração do tra­ enfrentar para romper com a for­
balho e da forma-Estado burgue­ midável presença da ideologia
sa: se o processo de valorização burguesa no interior mesmo de
prosseguir, o Estado mantiver-se sua elaboração teórica. Mesmo
como um aparelho separado e que os resultados desse rompi­
acima das massas, voltado para mento tenham sido desiguais, e
a sua dominação, e as relações m uitas dificuldades rem anes­
mercantis continuarem a reprodu­ çam, há um núcleo duro de seu
zir-se, não será possível a ultra­ pensamento, o momento de ela­
passagem do capitalismo. Essa boração conceituai mais rigoro­
ultrapassagem exige a “quebra” so que ele pode alcançar, que
das formas sociais que permitem permite estabelecer uma linha
a valorização do capital. Nenhu­ de demarcação com a dialética
ma conservação, nenhuma conci­ e spe cu la tiva. Sem isso, sem
liação aqui é possível. essa condição essencial, Marx
A categoria da “negação não teria podido jamais consti­
da negação”, ao contrário, não tuir uma ciência revolucionária.

100
8 Conclusão: a contemporaneidade
de Marx

Agora que fizemos o per­ onária das relações de produção,


curso da obra de Marx, voltemos permitindo aos trabalhadores a
à questão inicial, que deixamos apropriação real das condições
suspensa pela dúvida suscitada da produção, assim como exercer
por nós: com o fim do “comunis­ plenamente o domínio político.
mo”, Marx seria uma página vira­ Em segundo lugar, porque são
da da história? justamente as análises de Marx
O pensam ento de Marx que permitem compreender a na­
não poderia estar comprometido tureza dessas sociedades “socia­
ou mesmo ter sido afetado pelo listas” e, assim, dissolver a formi­
fim do “comunismo” por duas ra­ dável trama ideológica que enco­
zões básicas: primeiro, porque as bre o problema do comunismo.
revoluções do século XIX jamais A intervenção teórica de
ultrapassaram os marcos do ca­ Marx teve a conseqüência irrever­
pitalismo. Nessas sociedades sível de produzir o conhecimento
“socialistas” continuaram a se re­ científico da história. Rompendo
produzir as relações de produção com as representações ideológi­
capitalistas e o domínio político cas de natureza moral, religiosa
nunca foi exercido efetivamente ou jurídica que obstaculizavam a
pelos trabalhadores. Como vimos compreensão do processo históri­
em nossa exposição, para Marx a co, Marx soube identificar na luta
transição não é uma mera opera­ de classes o princípio de sua inte­
ção jurídica de transferência da ligência. Essas representações
propriedade privada para o Esta­ funcionavam, a seu modo, para a
do, que conservaria as relações reprodução das relações de pro­
de produção e as forças produti­ dução capitalistas, que são rela­
vas capitalistas e permitiria o sur­ ções de exploração e de domina­
gimento e consolidação de uma ção de classe. Por isso, como lem­
nova burguesia de Estado. Marx bra Althusser, a teoria de Mao< foi,
pensa a transição como um pro­ desde a sua fundação, objeto de
cesso de transformação revoluci­ um duro combate das classes do­

101
minantes, porque ela possibilita movimento operário é um efeito
aos trabalhadores a compreensão da luta de classe burguesa. A
dos mecanismos de sua explora­ análise de Marx permite ver, sob
ção e lhes dá os meios para lutar a aparência de uma racionalida­
contra ela; a teoria de Marx é in­ de técnica, o processo de reestru­
dissociável da luta da classe ope­ turação produtiva do capital es­
rária pelo comunismo. conder a necessidade da classe
Marx conseguiu rom per dominante de recompor as condi­
com as concepções ideológicas, ções da acumulação, isto é, a ne­
com as filosofias da história, que cessidade de quebrar as resistên­
até então ocupavam o lugar da cias dos trabalhadores à extração
ciência da história, devido ao de mais-valia.
seu d eslocam ento para p osi­ Ao situarmos o pensamen­
ções de classe proletárias. Esse to de Marx no interior da luta de
rompimento é definitivo porque classes, podemos compreender
é inaugurado um campo concei­ que o seu “esquecimento” é o ín­
tuai incompatível com as ideolo­ dice de que o marxismo continua
gias da história e capaz de pro­ a ser capaz de produzir efeitos teó­
duzir o conhecim ento das for­ ricos e políticos revolucionários.
mações sociais. Marx não anunciou um mun­
Ora, o p en sa m e nto de do novo. Não foi o profeta ilumina­
Marx continua a produzir o conhe­ do da redenção da humanidade.
cimento das formas de domínio e Marx apenas demonstrou que o ca­
de exploração dos trabalhadores pitalismo não é eterno. É essa pe­
na sociedade burguesa, é ele que quena demonstração dialética que
nos permite compreender que a mantém aberta, ainda hoje, a pos­
debilidade e desarticulação do sibilidade do comunismo.

102
[UMA NOVA CONCEPÇÃO DA HISTÓ RIA]1

Marx e Engels, A ideologia alemã, p.107 a 109.


Finalmente, da concepção de história que acabamos de expor obtemos
os seguintes resultados: Ia) No desenvolvimento das forças produtivas chega-
se a uma fase onde surgem forças produtivas e meios de intercâmbio que, no
quadro das relações existentes, apenas causam estragos e não são mais forças
produtivas, mas forças destrutivas (maquinaria e dinheiro); e, ligada a isto, sur­
ge uma classe que tem de suportar todos os encargos da sociedade sem usufruir
de suas vantagens; que, expulsa da sociedade, é forçada à mais decidida oposi­
ção a todas as outras classes — uma classe que engloba a maioria dos membros
da sociedade e da qual emana a consciência da necessidade de uma revolução
radical, a consciência comunista, que pode se formar, naturalmente, também
entre as outras classes, graças à percepção da situação dessa classe; 2°) As con­
dições sob as quais determinadas forças produtivas podem ser utilizadas são as
condições de dominação de determinada classe da sociedade, cujo poder social,
decorrente de sua riqueza, encontra sua expressão praí/co-idealista na forma do
Estado imperante em cada caso; eis por que toda luta revolucionária é dirigida
contra uma classe, que até agora dominou; 3S) Em todas as revoluções anterio­
res o modo de atividade permanecia intacto, e tratava-se apenas de conseguir
uma outra forma de distribuição dessa atividade, uma nova distribuição do tra­
balho entre outras pessoas, enquanto que a revolução comunista é dirigida con­
tra o modo anterior de atividade, suprime o trabalho e supera a dominação de
todas as classes ao superar as próprias classes, porque esta revolução é feita
pela classe que não é mais considerada como uma classe na sociedade, não é
mais reconhecida como tal, e que já é em si mesma a expressão da dissolução
de todas as classes, de todas as nacionalidades etc., no interior da sociedade
atual; 4a) A transformação em larga escala dos homens toma-se necessária para
a criação em massa desta consciência comunista, como também para o sucesso
da própria causa. Ora, tal transformação só se pode operar por um movimento
prático, por uma revolução; esta revolução é necessária, entretanto, não só por
ser o único meio de derrubar a classe dominante, mas também porque apenas
uma revolução permitirá à classe que derruba a outra varrer toda a podridão do
velho sistema e tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novas.
1 Os títulos entre colchetes não pertencem ao texto original.

104
BURGUESES E PROLETÁRIOS2

Marx e Engels, Manifesto do Partido Comunista,


Petrópolis, Vozes, 1997, p. 66 a 78.

A história de toda sociedade até hoje-1é a história de lutas de classes.


Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestres4 e
companheiros, numa palavra, opressores e oprimidos, sempre estiveram em
constante oposição uns aos outros, envolvidos numa luta ininterrupta, ora
disfarçada, ora aberta, que terminou sempre ou com uma transformação
(Ungestaltung) revolucionária de toda a sociedade, ou com o declínio co­
mum das classes em luta. [...]
A grande indústria criou o mercado mundial, para o qual a desco­
berta da América preparou o terreno. O mercado mundial deu um imenso

2 Por burguesia entende-se a classe dos capitalistas modernos, que são pro­
prietários dos meios de produção social e empregam trabalho assalariado.
Por proletariado, a classe dos trabalhadores assalariados modernos, que,
não tendo meios de produção próprios, são obrigados a vender sua força de
trabalho para sobreviver. (Nota de Engels à edição inglesa de 1888.)
3 Isto é, toda a história escrita. A pré-história, a organização social anterior à
história escrita, era quase desconhecida em 1847. Mais tarde, Haxthausen
descobriu a propriedade com um da terra na Rússia, M aurer mostrou ter
sido essa a base social da qual as tribos teutônicas derivaram historica­
mente e, pouco a pouco, verificou-se que a com unidade rural era a form a
prim itiva da sociedade, da índia à Irlanda. A organização interna dessa so­
ciedade com unista prim itiva foi desvendada, em sua form a típica, pela des­
coberta decisiva de Morgan, que revelou a verdadeira natureza da gense a
sua relação com a tribo. Com a dissolução dessas com unidades primitivas,
a sociedade começou a se dividir em classes diferentes e finalm ente anta­
gônicas. Procurei retratar esse processo de dissolução na obra D er Urs-
prung der Familie, des Privateigentums und des Staats (A origem da famí­
lia, da propriedade privada e do estado), 2. ed. Stuttgart, 1886. (Nota de
Engels à edição inglesa de 1888.)
August Haxthausen (1792-1868), barão prussiano e conselheiro governa­
mental, autor de numerosos livros de economia; Georg Ludwig von Maurer
(1790-1872), historiador alemão, investigador do regime social da Alemanha
antiga e medieval; Lewis Henry Morgan (1818-1881), etnógrafo, arqueólo­
e
go historiador norte-americano, autor de importantes estudos sobre o de­
senvolvimento da gens como forma principal da comunidade primitiva. (Nota
da edição da Vozes, com informações da edição alemã.)
4 Zunfbürger (guild-mastei): isto é, membro de uma corporação com todos os
direitos, mestre da mesma, e não seu dirigente. (Nota de Engels à edição
inglesa de 1888.)

105
desenvolvimento ao comércio, à navegação, às comunicações por terra.
Esse desenvolvimento, por sua vez, reagiu sobre a extensão da indústria;
e na proporção em que a indústria, o comércio, a navegação, as ferrovias
se estendiam, a burguesia também se desenvolvia, aumentava seus capi­
tais e colocava num plano secundário todas as classes legadas pela Idade
Média. [...]
Cada uma dessas etapas de desenvolvimento da burguesia foi
acompanhada por um progresso político correspondente. Estamento
(Stand) oprimido sob o domínio dos senhores feudais, associações arma­
das e autônomas na comuna5, aqui república urbana independente, ali ter­
ceiro estado tributário da monarquia, depois, no período manufatureiro,
contrapeso da nobreza na monarquia corporativa (ständischen) ou abso­
luta e, em geral, principal fundamento das grandes monarquias, a burgue­
sia, com o estabelecimento da grande indústria e do mercado mundial,
conquistou finalmente o domínio político exclusivo no Estado represen­
tativo moderno. O poder político do Estado moderno nada mais é do que
um comitê (Ausschuss) para administrar os negócios comuns de toda a
classe burguesa.
A burguesia desempenhou na história um papel extremamente revo­
lucionário. [...]
A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os ins­
trumentos de produção e, por conseguinte, as relações de produção, portan­
to todo o conjunto das relações sociais. A conservação inalterada do antigo
modo de produção era, ao contrário, a primeira condição de existência de
todas as classes industriais anteriores. O contínuo revolucionamento
(Umwälzung) da produção, o abalo constante de todas as condições sociais,
a incerteza e a agitação eternas distinguem a época burguesa de todas as

5 Comunas cham avam -se as cidades nascentes na França, antes mesm o de


terem arrancados de seus amos e senhores feudais a autonom ia local e os
direitos políticos com o “terceiro estado". De modo geral, tom ou-se aqui a In­
glaterra com o país típico do desenvolvimento econômico da burguesia, e a
França com o país típico de seu desenvolvimento político. (Nota de Engels à
edição inglesa de 1888.)
Esse era o nome dado pelos habitantes das cidades da Itália e da França às
suas com unidades urbanas, após terem comprado ou arrancado de seus
senhores feudais os primeiros direitos a uma administração autônom a. (Nota
de Engels à edição alem ã de 1890.)

106
precedentes. Todas as relações fixas e cristalizadas, com seu séquito de
crenças e opiniões tornadas veneráveis pelo tempo, são dissolvidas, e as
novas envelhecem antes mesmo de se consolidarem. Tudo o que é sólido e
estável se volatiliza, tudo o que é sagrado é profanado, e os homens são
finalmente obrigados a encarar com sobriedade e sem ilusões sua posição
na vida, suas relações recíprocas.
A necessidade de mercados cada vez mais extensos para seus pro­
dutos impele a burguesia para todo o globo terrestre. Ela deve estabele-
cer-se em toda parte, instalar-se em toda parte, criar vínculos em toda
parte.
Através da exploração do mercado mundial, a burguesia deu um
caráter cosmopolita à produção e ao consumo de todos os países. Para
grande pesar dos reacionários, retirou debaixo dos pés da indústria o ter­
reno nacional. As antigas indústrias nacionais foram destruídas e conti­
nuam a ser destruídas a cada dia. São suplantadas por novas indústrias,
cuja introdução se torna uma questão de vida ou morte para todas as na­
ções civilizadas — indústrias que não mais empregam matérias-primas
locais, mas matérias-primas provenientes das mais remotas regiões, e cu­
jos produtos são consumidos não somente no próprio país, mas em todas
as partes do mundo. Em lugar das velhas necessidades, satisfeitas pela
produção nacional, surgem necessidades novas, que para serem satisfei­
tas exigem os produtos das terras e dos climas mais distantes. Em lugar
da antiga auto-suficiência e do antigo isolamento local e nacional, desen­
volve-se em todas as direções um intercâmbio universal, uma universal
interdependência das nações. E isso tanto na produção material quanto na
intelectual. Os produtos intelectuais (clie geistigen Erzeugnisse) de cada
nação tornam-se patrimônio comum. A unilateralidade e a estreiteza na­
cionais tornam-se cada vez mais impossíveis, e das numerosas literaturas
nacionais e locais forma-se uma literatura mundial.
Com o rápido aperfeiçoamento de todos os instrumentos de produ­
ção, com as comunicações imensamente facilitadas, a burguesia arrasta para
a civilização todas as nações, até mesmo as mais bárbaras. Os baixos pre­
ços de suas mercadorias são a artilharia pesada com que derruba todas as
muralhas chinesas, com que força à capitulação o mais obstinado ódio dos
bárbaros aos estrangeiros. Obriga todas as nações, sob pena de extinção, a
adotarem o modo de produção da burguesia; obriga-as a ingressarem no
107
que ela chama de civilização, isto é, a se tomarem burguesas. Numa pala­
vra, cria um mundo à sua imagem e semelhança. [...]
Em seu domínio de classe de apenas cem anos, a burguesia criou
forças produtivas mais poderosas e colossais do que todas as gerações pas­
sadas em conjunto. Subjugação das forças da natureza, maquinaria, aplica­
ção da química na indústria e na agricultura, navegação a vapor, ferrovias,
telégrafo elétrico, arroteamento de continentes inteiros, navegabilidade dos
rios, populações inteiras brotadas do solo como que por encanto — qual
século anterior poderia suspeitar que semelhantes forças produtivas esti­
vessem adormecidas no seio do trabalho social?
Vimos, portanto, que os meios de produção e de troca à base dos
quais veio se constituindo a burguesia foram produzidos no interior da so­
ciedade feudal. Num certo estágio de desenvolvimento desses meios de pro­
dução e de troca, as condições nas quais a sociedade feudal produzia e tro­
cava, quer dizer, a organização feudal da agricultura e da manufatura, numa
palavra, as relações feudais de propriedade, deixaram de corresponder às
forças produtivas já desenvolvidas. Travavam a produção ao invés de im­
pulsioná-la. Transformaram-se em outras tantas cadeias. Precisavam ser
despedaçadas e foram despedaçadas.
Em seu lugar implantou-se a livre concorrência, com uma constitui­
ção política e social apropriada, com o domínio econômico e político da
classe burguesa.
Assistimos hoje a um movimento análogo. As relações burguesas
de produção e de troca, as relações burguesas de propriedade, a moderna
sociedade burguesa, que fez surgir como que por encanto possantes mei­
os de produção e de troca, assemelha-se ao feiticeiro (Hexenmeister) que
já não pode controlar as potências infernais por ele postas em movimen­
to. Há mais de uma década a história da indústria e do comércio não é
senão a história da revolta das forças produtivas modernas contra as mo­
dernas relações de produção, contra as relações de propriedade que são a
condição de existência da burguesia e de seu domínio. Basta mencionar
as crises comerciais que, com seu periódico retomo, põem em questão e
ameaçam cada vez mais a existência de toda a sociedade burguesa. Nas
crises comerciais é destruída regularmente uma grande parte não só dos
produtos fabricados, como também das forças produtivas já criadas. Nes­
sas crises, irrompe uma epidemia social que em épocas precedentes teria
108
parecido um absurdo — a epidemia da superprodução. A sociedade vê-se
repentinamente reconduzida a um estado de barbárie momentânea; é
como se uma situação de miséria (eine Hungersnot) ou uma guerra geral
de extermínio houvessem suprimido todos os meios de subsistência; o
comércio e a indústria parecem aniquilados, e por quê? Porque a socieda­
de possui demasiada civilização, demasiados meios de subsistência, de­
masiada indústria, demasiado comércio. As forças produtivas disponíveis
já não favorecem mais o desenvolvimento da civilização burguesa e das
relações burguesas de propriedade; ao contrário, tomaram-se poderosas
demais para essas relações e passam a ser por elas travadas; e assim que
vencem esse obstáculo, desarranjam toda a sociedade, põem em perigo a
existência da propriedade burguesa. As relações burguesas tornaram-se
estreitas demais para conter a riqueza por elas mesmas criada. E de que
modo a burguesia vence tais crises? De um lado, através da destruição
forçada de uma massa de forças produtivas; de outro, através da conquis­
ta de novos mercados e da exploração mais intensa dos antigos. De que
modo, portanto? Mediante a preparação de crises mais gerais e mais vio­
lentas c a diminuição dos meios de evitá-las.
As armas de que se serviu a burguesia para abater o feudalismo vol­
tam-se agora contra a própria burguesia.
Mas a burguesia não forjou apenas as armas que lhe trarão a morte;
produziu também os homens que empunharão essas armas — os operários
modernos, os proletários.
Na mesma proporção em que se desenvolve a burguesia, ou seja, o
capital, desenvolve-se também o proletariado, a classe dos operários mo­
dernos, que vivem apenas na medida em que encontram trabalho e que só
encontram trabalho na medida em que o seu trabalho aumente o capital.
Tais operários, obrigados a se vender peça por peça, são uma mercadoria
como qualquer outro artigo de comércio e estão, portanto, expostos a todas
as vicissitudes da concorrência, a todas as flutuações do mercado.
O desenvolvimento da maquinaria e a divisão do trabalho levam o
trabalho dos proletários a perder todo caráter independente e com isso
qualquer atrativo para o operário. Esse se toma um simples acessório da
máquina, do qual só se requer a operação mais simples, mais monótona,
mais fácil de aprender. Em decorrência, as despesas causadas pelo operá­
rio reduzem-se quase exclusivamente aos meios de subsistência de que
109
necessita para sua manutenção e para a reprodução de sua espécie (Race).
Mas o preço de uma mercadoria e, portanto, o do trabalho6, é igual ao seu
custo de produção. Logo, à medida que aumenta o tédio (die Widerwärtig­
keit) do trabalho, diminui o salário. Mais ainda: à medida que crescem a
maquinaria e a divisão do trabalho, cresce também a massa de trabalho,
seja através do aumento das horas de trabalho, seja através do aumento
do trabalho exigido num certo tempo, seja através da aceleração da velo­
cidade das máquinas, etc.
A indústria moderna transformou a pequena oficina do mestre-
artesão patriarcal na grande fábrica do capitalista industrial. Massas de
operários, aglomeradas nas fábricas, são organizadas militarmente.
Como simples soldados da indústria, são postos sob a vigilância de uma
completa hierarquia de suboficiais e oficiais. Não são apenas servos da
classe burguesa, do Estado burguês, mas são também, a cada dia e a
cada hora, escravizados pela máquina, pelo capataz e sobretudo pelo
singular burguês fabricante em pessoa. Tal despotismo é tão mais mes­
quinho, odioso e exasperador quanto mais abertamente proclama ser o
lucro seu objetivo último.
Quanto menos habilidade e força exige o trabalho manual, quer
dizer, quanto mais a indústria moderna se desenvolve, mais o trabalho
dos homens é suplantado pelo das mulheres e crianças7. As diferenças
de sexo e de idade não têm mais valor social para a classe operária.
Ficam apenas instrumentos de trabalho, cujo custo varia conforme a ida­
de e o sexo. [...]
Porém, com o desenvolvimento da indústria, o proletariado não ape­
nas se multiplica; concentra-se em massas cada vez maiores, sua força au­
menta e ele sente mais tudo isso. Os interesses, as condições de existência

6 Mais tarde, como se sabe, no lugar das expressões “valor do trabalho” e “preço
do trabalho” , Marx e Engels empregaram conceitos mais precisos: “valor da
força de trabalho" e “preço da força de trabalho” . Ver a “Introdução” de Engels
(1891) à obra de Marx, Trabalho assalariado e capital (1847) (ed. bras. Marx e
Engels, Obras escolhidas, São Paulo, Alfa-Omega, s.d., v. 1, p. 52-82.)
7 A partir da segunda im pressão do Manifesto, a menção às crianças desapa­
rece. É evidente, porém, que a alusão às diferenças de sexo e idade feita
nas linhas subseqüentes só ganha sentido se as crianças estiverem previa­
mente mencionadas. Tal omissão foi corrigida por Karl Kautsky na edição
alemã de 1912. (Nota da edição da Vozes.)

110
no interior do proletariado igualam-se cada vez mais à medida que a ma­
quinaria elimina todas as distinções de trabalho e reduz, quase por toda
parte, os salários a um mesmo nível baixo. A crescente concorrência dos
burgueses entre si e as crises comerciais que disso resultam tornam os salá­
rios dos operários cada vez mais instáveis; o aperfeiçoamento constante e
cada vez mais rápido das máquinas torna as condições de vida do operário
cada vez mais precárias; as colisões entre o operário singular e o burguês
singular assumem cada vez mais o caráter de colisões entre duas classes.
Os operários começam a formar coalizões contra os burgueses; reúnem-se
para defender seus salários. Chegam até mesmo a fundar associações per­
manentes para estarem precavidos no caso de eventuais sublevações. Aqui
e ali a luta explode em revoltas.
De tempos em tempos os operários triunfam, mas é um triunfo
efêmero. O verdadeiro resultado de suas lutas não é o êxito imediato,
mas a união cada vez mais ampla dos operários. Tal união é facilitada
pelo crescimento dos meios de comunicação que são criados pela gran­
de indústria e que colocam em contato os operários de diferentes locali­
dades. E basta esse contato para centralizar as numerosas lutas locais,
todas do mesmo caráter, numa luta nacional, numa luta de classes. Mas
toda luta de classes é uma luta política. E a união que os habitantes das
cidades da Idade Média, com seus caminhos vicinais, levaram séculos
para alcançar, é hoje, com as ferrovias, realizada em poucos anos pelos
proletários modernos.
Essa organização dos proletários em classe e, com isso, em partido
político, é incessantemente abalada pela concorrência entre os próprios ope­
rários. Mas renasce sempre, cada vez mais forte, mais firme, mais podero­
sa. Aproveita-se das divisões internas da burguesia para forçá-la a reconhe­
cer, sob a forma de lei, certos interesses particulares dos operários. Foi as­
sim, por exemplo, com a lei das dez horas de trabalho na Inglaterra8. [...]
De todas as classes que hoje se opõem à burguesia, apenas o proleta­
riado é uma classe verdadeiramente revolucionária. As demais classes vão-
se arruinando (verkommen) e por fim desaparecem com a grande indústria;
o proletariado é o seu produto mais autêntico. [...]

8 Lei de 8 de junho de 1847, que limitava a jornada de trabalho em dez horas a


partir de 1® de maio de 1848. (Nota da edição da Vozes.)

111
As condições de existência da velha sociedade já estão anuladas nas
condições de existência do proletariado. O proletário é sem propriedade;
suas relações com a mulher e os filhos nada têm de comum com as relações
familiares burguesas; o moderno trabalho industrial, a moderna subjugação
ao capital — idêntica na Inglaterra e na França, na América e na Alemanha
— , despojou-o de todo caráter nacional. As leis, a moral, a religião, são
para ele meros preconceitos burgueses, por detrás dos quais se ocultam ou­
tros tantos interesses burgueses.
Todas as classes que no passado conquistaram o poder procuraram
consolidar a posição já adquirida submetendo toda a sociedade às suas con­
dições de apropriação. Os proletários não podem se apoderar das forças
produtivas sociais a não ser suprimindo o modo de apropriação a elas cor­
respondente e, com isso, todo modo de apropriação existente até hoje. Os
proletários nada têm de seu para salvaguardar; têm para destruir toda a se­
gurança privada e todas as garantias privadas até aqui existentes.
Todos os movimentos precedentes foram movimentos de minorias
ou no interesse de minorias. O movimento proletário é o movimento inde­
pendente da imensa maioria no interesse da imensa maioria. O proletaria­
do, estrato (Schicht) inferior da atual sociedade, não pode erguer-se, pôr-se
de pé, sem que salte pelos ares toda a superestrutura (Überbau) dos estratos
que constituem a sociedade oficial.
Não por seu conteúdo mas por sua forma, a luta do proletariado
contra a burguesia é num primeiro tempo uma luta nacional. O proletari­
ado de cada país deve evidentemente acabar antes de mais nada com sua
própria burguesia.
Esboçando as fases mais gerais do desenvolvimento do proletaria­
do, seguimos a guerra civil (Bürgerkrieg) mais ou menos oculta dentro
da sociedade atual, até o momento em que ela explode numa revolução
aberta e o proletariado funda sua dominação com a derrubada violenta da
burguesia.
Toda sociedade até aqui existente repousou, como vimos, no anta­
gonismo entre classes de opressores e classes de oprimidos. Mas, para que
uma classe possa ser oprimida, é preciso que lhe sejam asseguradas condi­
ções nas quais possa ao menos dar continuidade à sua existência servil
(Knechtische Existenz). O servo, durante a servidão, conseguiu tomar-se
membro da comuna, assim como o burguês embrionário (Kleinbürger), sob
112
o jugo do absolutismo feudal, conseguiu tomar-se burguês (Bourgeois). O
operário moderno, ao contrário, ao invés de se elevar com o progresso da
indústria, desce cada vez mais, caindo inclusive abaixo das condições de
existência de sua própria classe. O operário torna-se um pobre (Pauper) e o
pauperismo cresce ainda mais rapidamente do que a população e a riqueza.
Fica assim evidente que a burguesia é incapaz de continuar por muito mais
tempo sendo a classe dominante da sociedade e de impor à sociedade, como
lei reguladora, as condições de existência de sua própria classe. É incapaz
de dominar porque é incapaz de assegurar a existência de seu escravo (Skla-
ven) em sua escravidão, porque é obrigada a deixá-lo cair numa situação
em que deve alimentá-lo ao invés de ser por ele alimentada. A sociedade
não pode mais existir sob sua dominação, quer dizer, a existência da bur­
guesia não é mais compatível com a sociedade.
A condição mais essencial para a existência e a dominação da classe
burguesa é a acumulação da riqueza nas mãos de particulares, a formação e
o aumento do capital; a condição do capital é o trabalho assalariado. O
trabalho assalariado baseia-se exclusivamente na concorrência dos operári­
os entre si. O progresso da indústria, cujo agente involuntário e passivo é a
própria burguesia, substitui o isolamento dos operários, resultante da con­
corrência, por sua união revolucionária resultante da associação. Assim, o
desenvolvimento da grande indústria abala sob os pés da burguesia a pró­
pria base sobre a qual ela produz e se apropria dos produtos. A burguesia
produz, acima de tudo, seus próprios coveiros. Seu declínio e a vitória do
proletariado são igualmente inevitáveis.

PREFÁCIO À CO NTRIBUIÇÃO À CRÍTICA DA


ECONOMIA POLÍTICA

Marx e Engels, Obras escolhidas, São Paulo,


Alfa-Omega, s.d., v. 1, p. 301 e 302.

O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu de


fio condutor aos meus estudos, pode resumir-se assim: na produção soci­
al da sua vida, os homens contraem determinadas relações necessárias e
independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a
uma determinada fase de desenvolvimento das suas forças produtivas
113
materiais. O conjunto dessas relações de produção forma a estrutura eco­
nômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta a superestrutura
jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consci­
ência social. O modo de produção da vida material condiciona o processo
da vida social, política e espiritual em geral. Não é a consciência do ho­
mem que determina o seu ser, mas, pelo contrário, o seu ser social é que
determina a sua consciência. Ao chegar a uma determinada fase de de­
senvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade se chocam
com as relações de produção existentes, ou, o que não é senão a sua ex­
pressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das quais se de­
senvolveram até ali. De formas de desenvolvimento das forças produti­
vas, estas relações se convertem em obstáculos a elas. E se abre, assim,
uma época de revolução social. Ao mudar a base econômica, revolucio­
na-se, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura erigida
sobre ela. Quando se estudam essas revoluções, é preciso distinguir sem­
pre entre as mudanças materiais ocorridas nas condições econômicas de
produção e que podem ser apreciadas com a exatidão própria das ciências
naturais, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosófi­
cas, numa palavra, as formas ideológicas em que os homens adquirem
consciência desse conflito e lutam para resolvê-lo. E do mesmo modo
que não podemos julgar um indivíduo pelo que ele pensa de si mesmo,
não podemos tampouco julgar estas épocas de revolução pela sua consci­
ência, mas, pelo contrário, é necessário explicar esta consciência pelas
contradições da vida material, pelo conflito existente entre as forças pro­
dutivas sociais e as relações de produção. Nenhuma formação social de­
saparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela con­
tém, e jamais aparecem relações de produção novas e mais altas antes de
amadurecerem no seio da própria sociedade antiga as condições materi­
ais para a sua existência. Por isso, a humanidade se propõe sempre ape­
nas os objetivos que pode alcançar, pois, bem vistas as coisas, vemos
sempre que esses objetivos só brotam quando já existem ou, pelo menos,
estão em gestação as condições materiais para a sua realização. A gran­
des traços podemos designar como outras tantas épocas de progresso, na
formação econômica da sociedade, o modo de produção asiático, o anti­
go, o feudal e o moderno burguês. As relações burguesas de produção são
a última forma antagônica do processo social de produção; antagônica,
114
não no sentido de um antagonismo individual, mas de um antagonismo que
provém das condições sociais de vida dos indivíduos. As forças produtivas,
porém, que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam ao mesmo
tempo, as condições materiais para a solução desse antagonismo. Com esta
formação social se encerra, portanto, a pré-história da sociedade humana.

COMPRA E VENDA DA FORÇA DE TRABALHO

Marx, O capital, São Paulo, Nova Cultural,


1996,1, 1,p. 285 a 293.

A modificação do valor de dinheiro, que deve transformar-se em


capital, não pode ocorrer neste mesmo dinheiro, pois como meio de com­
pra e como meio de pagamento ele só realiza o preço da mercadoria que ele
compra ou paga, enquanto, persistindo em sua própria forma, petrifica-se
numa grandeza de valor permanentemente igual9. Tampouco pode a modi­
ficação originar-se do segundo ato de circulação, a revenda da mercadoria,
pois esse ato apenas retransforma a mercadoria da forma natural na forma
dinheiro. A modificação precisa ocorrer, portanto, com a mercadoria com­
prada no primeiro ato D—M, mas não com o seu valor, pois são trocados
equivalentes, a mercadoria é paga por seu valor. A modificação só pode
originar-se, portanto, do seu valor de uso enquanto tal, isto é, do seu consu­
mo. Para extrair valor do consumo de uma mercadoria, nosso possuidor de
dinheiro precisaria ter a sorte de descobrir dentro da esfera da circulação,
no mercado, uma mercadoria cujo próprio valor de uso tivesse a caracterís­
tica peculiar de ser fonte de valor, portanto, cujo verdadeiro consumo fosse
em si objetivação de trabalho, por conseguinte, criação de valor. E o pos­
suidor de dinheiro encontra no mercado tal mercadoria específica — a ca­
pacidade de trabalho ou a força de trabalho.
Por força de trabalho ou capacidade de trabalho entendemos o con­
junto das faculdades físicas e espirituais que existem na corporalidade, na
personalidade viva de um homem e que ele põe em movimento toda vez
que produz valores de uso de qualquer espécie.

9 “Na form a de dinheiro [...] o capital não gera lucro.” (David Ricardo, On the
Principles of Political Economy and Taxation, Londres, 1821, p. 267.)

115
Para que, no entanto, o possuidor de dinheiro encontre à disposi­
ção no mercado a força do trabalho como mercadoria, diversas condições
precisam ser preenchidas. O intercâmbio de mercadorias não inclui em si
e para si outras relações de dependência que não as originadas de sua
própria natureza. Sob esse pressuposto, a força de trabalho como merca­
doria só pode aparecer no mercado à medida que e porque ela é oferecida
à venda ou é vendida como mercadoria por seu próprio possuidor, pela
pessoa da qual ela é a força de trabalho. Para que seu possuidor venda-a
como mercadoria, ele deve poder dispor dela, ser, portanto, livre proprie­
tário de sua capacidade de trabalho, de sua pessoa10. Ele e o possuidor de
dinheiro se encontram no mercado e entram em relação um com o outro
como possuidores de mercadorias iguais por origem, só se diferenciando
por um ser comprador e o outro, vendedor, sendo portanto ambos pessoas
juridicamente iguais. O prosseguimento dessa relação exige que o propri­
etário da força de trabalho só a venda por determinado tempo, pois, se a
vende em bloco, de uma vez por todas, então ele vende a si mesmo, trans­
forma-se de homem livre em um escravo, de possuidor de mercadoria em
uma mercadoria. Como pessoa, ele tem de se relacionar com sua força de
trabalho como sua propriedade e, portanto, sua própria mercadoria, e isso
ele só pode na medida em que ele a coloca à disposição do comprador
apenas provisoriamente, por um prazo de tempo determinado, deixando-
a ao consumo, portanto, sem renunciar à sua propriedade sobre ela por
meio de sua alienação.
A segunda condição essencial para que o possuidor de dinheiro en­
contre no mercado a força de trabalho como mercadoria é que seu possui­
dor, em lugar de poder vender mercadorias em que seu trabalho se tenha
objetivado, precisa, muito mais, oferecer à venda como mercadoria sua pró­
pria força de trabalho, que só existe em sua corporalidade viva. [...]
Para transformar dinheiro em capital, o possuidor de dinheiro preci­
sa encontrar, portanto, o trabalhador livre no mercado de mercadorias, livre

10 Nas e n ciclo p é d ia s sobre a antigüidade clássica, pode-se ler o disparate


de que no m undo antigo o capital estava plenam ente desenvolvido “e x ­
ceto que faltavam o tra b a lh a d o r livre e o sistem a de crédito” . Tam bém o
sr. M om m sen, em sua História Romana, pratica um qüiproqüó d epois do
outro.

116
no duplo sentido de que ele dispõe, como pessoa livre, de sua força de
trabalho como sua mercadoria, e de que ele, por outro lado, não tem outras
mercadorias para vender, solto e solteiro, livre de todas as coisas necessá­
rias àrealização de sua força de trabalho. [...]
Essa mercadoria peculiar, a força de trabalho, tem de ser agora exa­
minada mais de perto. Como todas as outras mercadorias, ela tem um va­
lor". Como ele é determinado?
O valor da força de trabalho, como o de toda outra mercadoria, é
determinado pelo tempo de trabalho necessário à produção, portanto tam­
bém reprodução, desse artigo específico. Enquanto valor, a própria força
de trabalho representa apenas determinado quantum de trabalho social mé­
dio nela objetivado. A força de trabalho só existe como disposição do indi­
víduo vivo. Sua produção pressupõe, portanto, a existência dele. Dada a
existência do indivíduo, a produção da força de trabalho consiste em sua
própria reprodução ou manutenção. Para sua manutenção, o indivíduo vivo
precisa de certa soma de meios de subsistência. O tempo de trabalho neces­
sário à produção da força de trabalho corresponde, portanto, ao tempo de
trabalho necessário à produção desses meios de subsistência ou o valor da
força de trabalho é o valor dos meios de subsistência necessários à manu­
tenção do seu possuidor. A força de trabalho só se realiza, no entanto, me­
diante sua exteriorização, ela só se aciona no trabalho. Por meio de sua
ativação, o trabalho, é gasto, porém, determinado quantum de músculo,
nervo, cérebro etc. humanos que precisa ser reposto. Esse gasto acrescido
condiciona uma receita acrescida12. Se o proprietário da força de trabalho
trabalhou hoje, ele deve poder repetir o mesmo processo amanhã, sob as
mesmas condições de força e saúde. A soma dos meios de subsistência
deve, pois, ser suficiente para manter o indivíduo trabalhador como indiví­
duo trabalhador em seu estado de vida normal. As próprias necessidades

11 “O valor de um homem é, com o o de todas as outras coisas, igual ao seu


preço: isso quer dizer tanto quanto é pago para o uso de sua fo rça .” (Tho­
mas Hobbes, Leviathan. In: Works. Londres, Molesworth, 1839-1844, v.
III, p. 76.)
12 o villicus da Roma Antiga, com o feitor de escravos nos trabalhos agrícolas,
recebia, “por ter trabalho mais leve que o dos escravos, uma ração menor
do que estes” . (T. Mom msen, Römische Geschichte [História Romana],
1867, p. 810.)

117
naturais, como alimentação, roupa, aquecimento, moradia, etc., são dife­
rentes de acordo com o clima e outras peculiaridades naturais de um país.
Por outro lado, o âmbito das assim chamadas necessidades básicas, assim
como o modo de sua satisfação, é ele mesmo um produto histórico e depen­
de, por isso, grandemente do nível cultural de um país, entre outras coisas
também essencialmente sob que condições, e, portanto, com que hábitos e
aspirações de vida, se constituiu a classe dos trabalhadores livres13. Em an­
títese às outras mercadorias a determinação do valor da força de trabalho
contém, por conseguinte, um elemento histórico e moral. No entanto, para
determinado país, em determinado período, o âmbito médio dos meios de
subsistência básicos é dado.
O proprietário da força de trabalho é mortal. Se, portanto, sua apa­
rição no mercado é para ser contínua, como pressupõe a contínua trans­
formação de dinheiro em capital, então o vendedor da força de trabalho
precisa perpetuar-se “como todo indivíduo se perpetua pela procriação”14.
As forças de trabalho subtraídas do mercado pelo desgaste e morte preci­
sam ser continuamente substituídas ao menos por um número igual de
novas forças de trabalho. A soma dos meios de subsistência necessários à
produção da força de trabalho inclui, portanto, os meios de subsistência
dos substitutos, isto é, dos filhos dos trabalhadores, de modo que essa
race15 de peculiares possuidores de mercadorias se perpetue no mercado
de mercadorias.
Para modificar a natureza humana geral de tal modo que ela alcance
habilidade e destreza em determinado ramo de trabalho, tornando-se força
de trabalho desenvolvida e específica, é preciso determinada formação ou
educação, que, por sua vez, custa uma soma maior ou menor de equivalen­
tes mercantis. Conforme o caráter mais ou menos mediato da força de tra­
balho, os seus custos de formação são diferentes. Esses custos de aprendi­
zagem, ínfimos para a força de trabalho comum, entram portanto no âmbito
dos valores gastos para a sua produção. [...]
A natureza peculiar dessa mercadoria específica, a força de traba­
lho, faz com que, com a conclusão do contrato entre comprador e vende-

13 Cf. W. T. Thornton, Over-Population and its Remedy, Londres, 1846.


14 William Petty, The Political Anatomy of Ireland, Londres, 1691.
15 Raça. (N. dos T.)
118
dor, seu valor de uso ainda não se tenha verdadeiramente transferido para
as mãos do comprador. O seu valor, como o de qualquer outra mercado­
ria, estava determinado antes de ela entrar em circulação, pois determi­
nado quantum de trabalho social havia sido gasto para a produção da
força de trabalho, mas o seu valor de uso consiste na exteriorização pos­
terior dessa força. Por isso, a alienação da força e a sua verdadeira exte­
riorização, ou seja, a sua existência como valor de uso, se separam no
tempo. No caso de mercadorias, porém, em que a alienação formal do
valor de uso mediante a venda e sua verdadeira entrega ao comprador se
separam no tempo, o dinheiro do comprador funciona geralmente como
meio de pagamento. Em todos os países com modo de produção capita­
lista, a força de trabalho só é paga depois de ter funcionado durante o
prazo previsto no contrato de compra, por exemplo, no final de cada se­
mana. Por toda parte, portanto, o trabalhador adianta ao capitalista o va­
lor de uso da força de trabalho; ele deixa consumi-la pelo comprador,
antes de receber o pagamento de seu preço; por toda parte, portanto, o
trabalhador fornece crédito ao capitalista. Que esse fornecimento de cré­
dito não é nenhuma fantasia vã, mostra-o não só a perda ocasional do
salário creditado quando ocorre bancarrota do capitalista, mas também
uma série de efeitos mais duradouros. No entanto, nada muda na nature­
za do próprio intercâmbio de mercadorias se o dinheiro funciona como
meio de compra ou como meio de pagamento. O preço da força de traba­
lho está fixado contratualmente, ainda que ele só venha a ser realizado
depois, como o preço do aluguel de uma casa. A força de trabalho está
vendida, ainda que ela só seja paga posteriormente. Para a concepção
pura da relação é, no entanto, útil pressupor, por enquanto, que o possui­
dor da força de trabalho recebe com sua venda cada vez e também pron­
tamente o preço estipulado contratualmente.
Conhecemos agora a maneira pela qual é determinado o valor,
que é pago ao possuidor dessa mercadoria peculiar, a força de trabalho,
pelo possuidor de dinheiro. O valor de uso, que este último recebe por
sua vez na troca, só se mostra na utilização real, no processo de consu­
mo da força de trabalho. Todas as coisas necessárias a esse processo,
como matéria-prima etc., o possuidor de dinheiro compra no mercado e
paga seu preço integral. O processo de consumo da força de trabalho é,
simultaneamente, o processo de produção de mercadoria e de mais-va-
119
lia. O consumo da força de trabalho, como o consumo de qualquer outra
mercadoria, ocorre fora do mercado ou da esfera de circulação. Aban­
donemos então, junto com o possuidor de dinheiro e o possuidor da for­
ça de trabalho, essa esfera ruidosa, existente na superfície e acessível a
todos os olhos, para seguir os dois ao local oculto da produção, em cujo
limiar se pode ler: No admittance except on business'6. Aqui há de se
mostrar não só como o capital produz, mas também como ele mesmo é
produzido, o capital. O segredo da fabricação de mais-valia há de se
finalmente desvendar.
A esfera da circulação ou do intercâmbio de mercadorias, dentro
de cujos limites se movimentam compra e venda de força de trabalho,
era de fato um verdadeiro éden dos direitos naturais do homem. O que
aqui reina é unicamente Liberdade, Igualdade, Propriedade e Bentham.
Liberdade! Pois comprador e vendedor de uma mercadoria, por exem­
plo, da força de trabalho, são determinados apenas por sua livre-vonta-
de. Contratam como pessoas livres, juridicamente iguais. O contrato é o
resultado final, no qual suas vontades se dão uma expressão jurídica em
comum. Igualdade! Pois eles se relacionam um com o outro apenas
como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalen­
te. Propriedade! Pois cada um dispõe apenas sobre o seu. Bentham! Pois
cada um dos dois só cuida de si mesmo. O único poder que os junta e
leva a um relacionamento é o proveito próprio, a vantagem particular,
os seus interesses privados. E justamente porque cada um só cuida de si
e nenhum do outro, realizam todos, em decorrência de uma harmonia
preestabelecida das coisas ou sob os auspícios de uma previdência toda
esperta, tão-somente a obra de sua vantagem mútua, do bem comum, do
interesse geral.
Ao sair dessa esfera da circulação simples ou da troca de mercado­
rias, da qual o livre-cambista vulgaris extrai concepções, conceitos e crité­
rios para seu juízo sobre a sociedade do capital e do trabalho assalariado, já
se transforma, assim parece, em algo a fisionomia de nossa dramatis perso­
nae'1. O antigo possuidor de dinheiro marcha adiante como capitalista, se­
gue-o o possuidor de força de trabalho como seu trabalhador; um, cheio de

16 Não se permite a entrada a não ser a negócio. (N. dos T.)


17 Personagens do drama. (N. dos T.)

120
importância, sorriso satisfeito e ávido por negócios; o outro, tímido, con­
trafeito, como alguém que levou a sua própria pele para o mercado e agora
não tem mais nada a esperar, exceto o — curtume.

O PROCESSO DE VALORIZAÇÃO

Marx, O capital, São Paulo, Nova Cultural,


1996, I, 1, p. 305 a 315.

O produto — a propriedade do capitalista — é um valor de uso, fio,


botas etc. Mas, embora as botas, por exemplo, constituam de certo modo a
base do progresso social e nosso capitalista seja um decidido progressista,
não fabrica as botas por causa delas mesmas. O valor de uso não é, de modo
algum, a coisa qu’on aime pour lui-mêmel8. Produzem-se aqui valores de
uso somente porque e na medida em que sejam substrato material, portado­
res do valor de troca. E para nosso capitalista, trata-se de duas coisas. Pri­
meiro, ele quer produzir um valor de uso que tenha um valor de troca, um
artigo destinado à venda, uma mercadoria: Segundo, ele quer produzir uma
mercadoria cujo valor seja mais alto que a soma dos valores das mercado­
rias exigidas para produzi-la, os meios de produção e a força de trabalho,
para as quais adiantou seu bom dinheiro no mercado. Quer produzir não só
um valor de uso, mas uma mercadoria, não só valor de uso, mas valor e não
só valor, mas também mais-valia.
De fato, tratando-se aqui de produção de mercadorias, considera­
mos, até agora, evidentemente apenas um lado do processo. Como a pró­
pria mercadoria é unidade de valor de uso e valor, seu processo de produ­
ção tem de ser unidade de processo de trabalho e processo de formação
de valor.
Consideremos o processo de produção agora também como proces­
so de formação de valor.
Sabemos que o valor de toda mercadoria é determinado pelo
quantum de trabalho materializado em seu valor de uso, pelo tempo de
trabalho socialmente necessário à sua produção. Isso vale também para
o produto que nosso capitalista obteve como resultado do processo de

Que se ama por si mesma. (N. dos T.)

121
trabalho. De início, tem-se portanto de calcular o trabalho materializa­
do nesse produto.
Seja, por exemplo, fio.
Para a fabricação do fio precisa-se, em primeiro lugar, de sua maté-
ria-prima, por exemplo, 10 libras de algodão. Não é necessário investigar o
valor do algodão pois o capitalista o comprou no mercado pelo seu valor,
por exemplo, 10 xelins. No preço do algodão já está representado o traba­
lho exigido para sua produção, como trabalho geral social. Suponhamos
ainda que a massa de fusos desgastada no processamento do algodão, que
representa, para nós, todos os outros meios de trabalho empregados, tenha
um valor de 2 xelins. Se uma massa de ouro de 12 xelins é o produto de 24
horas ou 2 dias de trabalho, segue-se, de início, que no fio estão objetiva­
dos 2 dias de trabalho.
Não nos deve desconcertar a circunstância de que o algodão mu­
dou sua forma e a massa de fusos consumida desapareceu totalmente.
Segundo a lei geral do valor, 10 libras de fio, por exemplo, são um equi­
valente de 10 libras de algodão mais 1/4 de fuso, desde que o valor de 40
libras de fio seja = o valor de 40 libras de algodão + o valor de um fuso
inteiro, isto é, que o mesmo tempo de trabalho seja exigido para produzir
o que está em cada um dos lados dessa equação. Nesse caso, o mesmo
tempo de trabalho representa-se uma vez no valor de uso fio, e a outra
vez nos valores de uso algodão e fuso. Ao valor é indiferente se aparece
em fio, fuso ou algodão. O fato de que fuso e algodão, em vez de ficarem
parados, um ao lado do outro, se unem no processo de fiação, que modifi­
ca suas formas de uso transformando-se em fio, afeta tão pouco o seu
valor quanto se fossem realizados, mediante simples intercâmbio, contra
um equivalente de fio.
O tempo de trabalho exigido para a produção do algodão é parte do
tempo de trabalho exigido para a produção do fio, ao qual serve de matéria-
prima, e por isso está contido no fio. O mesmo vale para o tempo de traba­
lho exigido para produzir a massa de fusos, sem cuja depreciação ou consu­
mo o algodão não poderia ser fiado19.
19 “No valor das mercadorias não influi apenas o trabalho nelas diretam ente
aplicado, mas também o trabalho aplicado nos instrumentos, ferram entas e
edifícios que apóiam o trabalho diretam ente despendido.” (David Ricardo,
o p. c/f., p. 16.)

122
Na medida em que, portanto, o valor do fio, o tempo de trabalho
exigido para sua produção, é considerado, os diferentes processos parti­
culares de trabalho separados no tempo e no espaço, que têm que ser per­
corridos para produzir o próprio algodão e a massa de fusos desgastada e
para fazer, finalmente, de algodão e fuso fio, podem ser considerados
como diversas fases sucessivas do mesmo processo de trabalho. Todo o
trabalho contido no fio é trabalho passado. Que o tempo de trabalho exi­
gido para a produção dos elementos constitutivos do fio tenha passado
antes, estando no mais-que-perfeito, enquanto o trabalho empregado di­
retamente no processo final, a fiação, encontra-se mais perto do presente,
no pretérito perfeito, é uma circunstância absolutamente indiferente. Se
determinada quantidade de trabalho, 30 dias de trabalho por exemplo, é
necessária para construir uma casa, não se altera nada no quantum total
do tempo de trabalho incorporado à casa pelo fato de que o trigésimo dia
de trabalho entrou na produção 29 dias depois do primeiro dia de traba­
lho. E assim pode considerar-se o tempo de trabalho contido no material
de trabalho e nos meios de trabalho como se tivesse sido despendido numa
fase anterior do processo de fiação, antes do trabalho finalmente acres­
centado, sob a forma de fiação.
Os valores dos meios de produção, do algodão e do fuso, expressos
no preço de 12 xelins, formam, portanto, partes integrantes do valor do fio
ou do valor do produto.
Só duas condições têm de ser preenchidas. Primeiro, algodão e fuso
devem ter servido realmente à produção de um valor de uso. Devem ter-
se tornado em nosso caso fio. Que valor de uso o porta é indiferente ao
valor, mas um valor de uso tem de portá-lo. Segundo, pressupõe-se que
somente o tempo de trabalho necessário, sob dadas condições sociais de
produção, foi aplicado. Se, portanto, apenas 1 libra de algodão fosse ne­
cessária para fiar I libra de fio, então deve-se consumir apenas 1 libra de
algodão na fabricação de 1 libra de fio. O mesmo vale para o fuso. Ainda
que o capitalista tivesse a fantasia de empregar fusos de ouro em vez de
fusos de ferro, no valor do fio só conta, todavia, o trabalho socialmente
necessário, isto é, o tempo de trabalho necessário para a produção de fu­
sos de ferro.
Sabemos agora qual parte do valor do fio forma os meios de produ­
ção, algodão e fuso. É igual a 12 xelins, ou à materialização de 2 dias de
123
trabalho. Trata-se agora daquela parte de valor que o trabalho do próprio
fiandeiro acrescenta ao algodão.
Agora temos de observar esse trabalho sob um aspecto totalmen­
te diverso daquele sob o qual o consideramos durante o processo de
trabalho. Lá, tratava-se da atividade orientada ao fim de transformar
algodão em fio. Quanto mais adequado o trabalho a esse, tanto melhor o
fio, supondo-se inalteradas todas as demais circunstâncias. O trabalho
do fiandeiro era especificamente diferente de outros trabalhos produti­
vos, e a diversidade manifestava-se subjetiva e objetivamente no fim
particular da fiação, em seu modo particular de operar, na natureza par­
ticular de seus meios de produção, no valor de uso particular de seu
produto. Algodão e fuso servem de meios de subsistência do trabalho
de fiar, mas não se pode com eles fazer canhões raiados. Na medida em
que o trabalho do fiandeiro é, pelo contrário, formador de valor, isto é,
fonte de valor, não se distingue em nada do trabalho do perfurador de
canhões, ou, que está aqui mais próximo, dos trabalhos do plantador de
algodão e do produtor de fusos, realizados nos meios de produção do
fio. É apenas por causa dessa identidade que plantar algodão, fazer fu­
sos e fiar podem formar partes apenas quantitativamente diferentes do
mesmo valor total, do valor do fio. Aqui já não se trata da qualidade, da
natureza e do conteúdo do trabalho, mas apenas de sua quantidade. É
fácil calculá-la. Pressupomos que o trabalho de fiar é trabalho simples,
trabalho social médio. Ver-se-á depois que o pressuposto contrário não
altera nada na coisa.
Durante o processo de trabalho, o trabalho se transpõe continuamen­
te da forma de agitação para a de ser, da forma de movimento para a de
objetividade. Ao fim de 1 hora, o movimento de fiar está representado em
determinado quantum de fio, portanto determinado quantum de trabalho, 1
hora de trabalho, está objetivado no algodão. Dizemos hora de trabalho,
isto é, o dispêndio da força vital do fiandeiro durante I hora, pois o trabalho
de fiar apenas vale aqui enquanto dispêndio de força de trabalho e não en­
quanto trabalho específico de fiação.
Agora é de importância decisiva que durante o processo, isto é,
durante a transformação do algodão em fio, somente o tempo de traba­
lho socialmente necessário seja consumido. Se sob condições sociais de
produção normais, isto é, médias, A libras de algodão têm de ser trans­
124
formadas, durante 1 hora de trabalho, em B libras de fio, então somente
vale como jornada de trabalho de 12 horas aquela jornada de trabalho
que transforma 12 x A libras de algodão em 12 x B libras de fio. Pois
apenas o tempo de trabalho socialmente necessário conta como forman­
do valor.
Como o próprio trabalho, assim a matéria-prima e o produto apare­
cem aqui sob uma luz totalmente diferente da projetada pelo ponto de
vista do processo de trabalho propriamente dito. A matéria-prima funcio­
nou aqui apenas como algo que absorve determinado quantum de traba­
lho. Por meio dessa absorção transforma-se, de fato, em fio, porque a
força de trabalho foi despendida e lhe foi acrescentada sob a forma de
fiação. Mas o produto, o fio, é agora apenas uma escala graduada que
mede o trabalho absorvido pelo algodão. Se em 1 hora 1 2/3 libra de algo­
dão é fiada ou transformada em 1 2/3 libra de fio, então 10 libras de fio
indicam 6 horas de trabalho absorvidas. Quantidades de produto determi­
nadas, verificadas pela experiência, representam agora nada mais que de­
terminadas quantidades de trabalho, determinada massa de tempo de tra­
balho solidificado. São apenas a materialização de 1 hora, de 2 horas, de
1 dia de trabalho social.
Que o trabalho seja precisamente trabalho de fiar, seu material o al­
godão e seu produto o fio interessa aqui tão pouco quanto o objeto do traba­
lho, por sua vez, ser já produto, portanto, matéria-prima. Se o trabalhador,
em vez de fiar, estivesse ocupado numa mina de carvão, o objeto de traba­
lho, o carvão, seria preexistente por natureza. Apesar disso, determinado
quantum de carvão arrancado da rocha, 1 quintal por exemplo, representa­
ria determinado quantum de trabalho absorvido.
Ao tratar da venda da força de trabalho, foi suposto que seu valor
diário = 3 xelins e que nestes últimos estão incorporadas 6 horas de traba­
lho, sendo, portanto, exigido esse quantum de trabalho para produzir a soma
média dos meios diários de subsistência do trabalhador. Se nosso fiandeiro,
durante 1 hora de trabalho, transforma 1 2/3 libra de algodão em 1 2/3 libra
de fio20, então transformará, em 6 horas, 10 libras de algodão em 10 libras
de fio. Durante o processo da fiação o algodão absorve, portanto, 6 horas
de trabalho. O mesmo tempo de trabalho representa-se num quantum de
20 Esses números são totalm ente arbitrários.

125
ouro de 3 xelins. Mediante a própria fiação acrescenta-se, pois, ao algodão
um valor de 3 xelins.
Vejamos agora o valor total do produto, das 10 libras de fio. Nelas
se objetivam 2 1/2 dias de trabalho, sendo 2 dias contidos no algodão e na
massa de fusos, e 1/2 dia absorvido durante o processo da fiação. O mesmo
tempo de trabalho representa-se numa massa de ouro de 15 xelins. O preço
adequado ao valor das 10 libras de fio é, portanto, 15 xelins, o preço de 1
libra de fio, 1 xelim e 6 pence.
Nosso capitalista fica perplexo. O valor do produto é igual ao valor
do capital adiantado. O valor adiantado não se valorizou, não produziu
mais-valia, o dinheiro não se transformou pois em capital. O preço das 10
libras de fio é 15 xelins, e 15 xelins foram despendidos no mercado pelos
elementos constitutivos do produto ou, o que é o mesmo, para os fatores do
processo de trabalho: 10 xelins para o algodão, 2 xelins para a massa de
fusos consumida e 3 xelins para a força de trabalho. O valor inchado do fio
em nada ajuda, pois seu valor é apenas a soma dos valores que antes se
distribuíram entre algodão, fuso e força de trabalho, e de tal adição simples
de valores preexistentes não pode agora e jamais surgir uma mais-valia21.
Esses valores estão concentrados agora numa só coisa, mas já o estavam na
soma de dinheiro de 15 xelins antes que esta se fragmentasse por meio de
três compras de mercadorias.
Em si para si, esse resultado não tem nada de estranho. O valor de 1
libra de fio é 1 xelim e 6 pence, e por 10 libras de fio nosso capitalista teria
de pagar no mercado, portanto. 15 xelins. Tanto faz que compre no merca­
do sua casa particular já pronta, ou que a mande construir, nenhuma dessas
operações aumentará o dinheiro gasto na aquisição da casa.
21 Essa é a proposição fundam ental em que se baseia a doutrina fisiocrática
da improdutividade de todo trabalho não-agrícola, e ela é irrefutável para o
economista — de profissão. “ Essa maneira de im putar a um único objeto os
valores de vários outros” (por exemplo, ao linho a subsistência do tecelão),
“de acumular, por assim dizer, diversos valores em cam adas sobre um úni­
co, faz com que este cresça na mesma proporção. [...] A palavra adição
designa muito bem o m odo como se form a o preço das manufaturas; este
preço é apenas a som a total de vários valores consum idos e adicionados;
mas adicionar não é m ultiplicar.” (Mercier de la Rivière, op. cit., p. 599.) (M er­
cier de la Rivière, L'ordre naturel et essentiel des sociétés politiques, T. 1. 2,
Londres, 1767, in E. Daire (org.), Physiocrates..., Paris, 1846 - nota da edi­
ção alemã.)

126
O capitalista, familiarizado com a economia vulgar, dirá talvez
que adiantou seu dinheiro com a intenção de, com isso, fazer mais di­
nheiro. Mas o caminho ao inferno está calçado de boas intenções e ele
poderia, do mesmo modo, ter a intenção de fazer dinheiro sem produzir
nada22. Ameaça. Não o apanharão de novo. Futuramente, comprará a
mercadoria pronta no mercado em vez de fabricá-la. Mas se todos os
seus irmãos capitalistas fizerem o mesmo, onde deverá ele encontrar
mercadorias prontas? E dinheiro ele não pode comer. Ele faz um ser­
mão. Deve-se levar em consideração sua abstinência. Poderia esbanjar
seus 15 xelins. Em lugar disso, os consumiu produtivamente e os trans­
formou em fio. Mas, graças a isso, ele tem fio em vez de remorsos. Ele
não deve, de modo algum, recair no papel do entesourador que já nos
mostrou o que se obtém do ascetismo. Além disso, onde nada existe, o
imperador perdeu seu direito. Qualquer que seja o mérito de sua renún­
cia, não existe nada para pagá-lo adicionalmente, uma vez que o valor
do produto que resulta do processo é apenas igual à soma dos valores
das mercadorias lançadas nele. Tem de consolar-se com a idéia de a
virtude ser a recompensa da virtude. Mas, em vez disso, ele se torna
importuno. O fio não lhe serve de nada. Ele o produziu para a venda.
Assim que ele o venda ou, melhor ainda, que produza no futuro apenas
coisas para seu próprio uso, receita que seu médico da família, Mac-
Culloch, já prescrevera como remédio comprovado contra a epidemia
da superprodução. Ele se torna teimoso. Deveria o trabalhador, com seus
próprios membros, criar no éter Figurações de trabalho, produzir merca­
dorias? Não lhe deu ele a matéria, com a qual e na qual pode dar corpo
a seu trabalho? Sendo a maior parte da sociedade constituída dos que
nada têm não prestou ele um serviço inestimável à sociedade com seus
meios de produção, seu algodão e seus fusos, e também ao próprio tra­
balhador, ao qual forneceu ainda meios de subsistência? Não deve ele
apresentar a conta por tal serviço? Mas não prestou-lhe o trabalhador
em contrapartida o serviço de transformar algodão e fuso em fio? Além

22 Assim, por exemplo, ele retirou de 1844 a 1847 parte de seu capital do ne­
gócio produtivo para perdê-la na especulação com ações ferroviárias. As­
sim, ao tempo da Guerra de Secessão americana, fechou a fábrica e lançou
o operário na rua, para jogar na Bolsa de algodão de Liverpool.

127
disso, não se trata aqui de serviços23. Um serviço é nada mais que o
efeito útil de um valor de uso, seja da mercadoria, seja do trabalho24.
Mas aqui trata-se do valor de troca. O capitalista pagou ao trabalhador o
valor de 3 xelins. O trabalhador devolveu-lhe um equivalente exato, no
valor de 3 xelins, acrescido ao algodão. Valor contra valor. Nosso ami­
go, até há pouco capitalisticamente arrogante, assume subitamente a ati­
tude modesta de seu próprio trabalhador. Não trabalhou ele mesmo? Não
executou o trabalho de vigilância e superintendência sobre o fiandeiro?
Não cria valor também esse seu trabalho? Mas seu próprio overlooker25
e seu gerente encolhem os ombros. Entrementes, já recobrou com um
sorriso alegre sua fisionomia anterior. Ele troçou de nós com toda essa
ladainha. Não daria um centavo por ela. Ele deixa esses e semelhantes
subterfúgios e petas vazias aos professores de Economia Política, ex­
pressamente pagos para isso. Ele mesmo é um homem prático que nem
sempre pensa no que diz fora do negócio, mas sempre sabe o que faz
dentro dele.
Examinemos a coisa mais de perto. O valor de um dia da força de
trabalho importava em 3 xelins, porque nela mesma está objetivada meia
jornada de trabalho, isto é, porque os meios de subsistência necessários
para produzir diariamente a força de trabalho custam meia jornada de tra­
balho. Mas o trabalho passado que a força de trabalho contém, e o trabalho

23 “Deixe que se exaltem, se adornem e se enfeitem. (...] Mas que toma mais ou
algo melhor” (do que dá) “pratica usura e não presta serviço, mas causa preju­
ízo a seu próximo, como se furtasse ou roubasse. Nem tudo que se chama de
serviço e benefício ao próximo é serviço e benefício. Pois um adúltero e uma
adúltera se prestam mutuamente grande sen/iço e prazer. Um cavaleiro pres­
ta grande serviço ao incendiário e assassino, ajudando-o a roubar nas estra­
das, a fazer guerra a terras e gentes. Os papistas prestam aos nossos grande
serviço, ao não afogarem, queimarem, assassinarem ou fazerem apodrecer a
todos nas prisões, mas deixam alguns viverem, desterrando-os ou despojan­
do-os de seus haveres. O próprio diabo presta a seus servidores grande e
inestimável serviço [...] Em resumo, o mundo está cheio de grandes e exce­
lentes serviços e benefícios diários." (Martin Luther, An die Pfarrherm, wider
den Wucherzu Predigen, etc. Wittenberg, 1540.)
24 Em Zur Krítik derpolitischen CEkonomie, Berlim, 1859, p. 14, observo sobre
isso, entre outras coisas: “Compreende-se qual ‘serviço’ a categoria ‘servi­
ço ’ (Service) deve prestar a um a espécie de economistas com o J.-B. Say e
F. Bastiat”.
25 Fiscal. (N. dos T.)

128
vivo que ela pode prestar, seus custos diários de manutenção e seu dispên­
dio diário, são duas grandezas inteiramente diferentes. A primeira determi­
na seu valor de troca, a outra forma seu valor de uso. O fato de que meia
jornada seja necessária para mantê-lo vivo durante 24 horas não impede o
trabalhador, de modo algum, de trabalhar uma jornada inteira. O valor da
força de trabalho e sua valorização no processo de trabalho são, portanto,
duas grandezas distintas. Essa diferença de valor o capitalista tinha em vis­
ta quando comprou a força de trabalho. Sua propriedade útil, de poder fazer
fio ou botas, era apenas uma conditio sine qua non26, pois o trabalho para
criar valor tem de ser despendido em forma útil. Mas o decisivo foi o valor
de uso específico dessa mercadoria ser fonte de valor, e de mais valor do
que ela mesma tem. Esse é o serviço específico que o capitalista dela espe­
ra. E ele procede, no caso, segundo as leis eternas do intercâmbio de mer­
cadorias. Na verdade, o vendedor da força de trabalho, como o vendedor de
qualquer outra mercadoria, realiza seu valor de troca e aliena seu valor de
uso. Ele não pode obter um, sem desfazer-se do outro. O valor de uso da
força de trabalho, o próprio trabalho, pertence tão pouco ao seu vendedor,
quanto o valor de uso do óleo vendido, ao comerciante que o vendeu. O
possuidor de dinheiro pagou o valor de um dia da força de trabalho; perten­
ce-lhe, portanto, a utilização dela durante o dia, o trabalho de uma jornada.
A circunstância de que a manutenção diária da força de trabalho só custa
meia jornada de trabalho, apesar de a força de trabalho poder operar, traba­
lhar um dia inteiro, e por isso, o valor que sua utilização cria durante um
dia é o dobro de seu próprio valor de um dia, é grande sorte para o compra­
dor, mas, de modo algum, uma injustiça contra o vendedor.
Nosso capitalista previu o caso que o faz sorrir27. O trabalhador en­
contra, por isso, na oficina, os meios de produção necessários não para um
processo de trabalho de 6 horas, mas de 12. Se 10 libras de algodão absor­
viam 6 horas de trabalho e transformavam-se em 10 libras de fio, então 20
libras de algodão absorverão 12 horas de trabalho e se transformarão em 20
libras de fio. Consideremos o produto do processo prolongado de trabalho.
Nas 20 libras de fio estão objetivadas agora 5 jornadas de trabalho: 4 na

26 Condição indispensável. (N. dos T.)


27 “Kasus, der ihn lachen macht” , citação modificada de Goethe, Fausto. Parte
Primeira, “Quarto de Estudante” . (Nota da edição alemã.)

129
massa consumida de algodão e fusos, I absorvida pelo algodão durante o
processo de fiação. Mas a expressão em ouro de 5 jornadas de trabalho é 30
xelins ou 1 libra esterlina e 10 xelins. Esse é, portanto, o preço das 20 libras
de fio. Uma libra de fio custa, depois como antes, 1 xelim e 6 pence. Mas a
soma dos valores das mercadorias lançadas no processo importou em 27
xelins. O valor do fio é de 30 xelins. O valor do produto ultrapassou de 1/9
o valor adiantado para sua produção. Dessa maneira, transformaram-se 27
xelins em 30. Deram uma mais-valia de 3 xelins. Finalmente a artimanha
deu certo. Dinheiro se transformou em capital.
Todas as condições do problema foram resolvidas e, de modo algum,
as leis do intercâmbio de mercadorias foram violadas. Trocou-se equivalente
por equivalente. O capitalista pagou, como comprador, toda mercadoria por
seu valor, algodão, massa de fusos, força de trabalho. Depois fez o que faz
qualquer outro comprador de mercadorias. Consumiu seu valor de uso. Do
processo de consumo da força de trabalho, ao mesmo tempo processo de
produção da mercadoria, resultou um produto de 20 libras de fio com um
valor de 30 xelins. O capitalista volta agora ao mercado e vende mercadoria,
depois de ter comprado mercadoria. Vende a libra de fio por 1 xelim e 6
pence, nenhum centavo acima ou abaixo de seu valor. E, não obstante, tira da
circulação 3 xelins mais do que nela lançou. Todo esse seguimento, a trans­
formação de seu dinheiro em capital, se opera na esfera da circulação e não
se opera nela. Por intermédio da circulação, por ser condicionado pela com­
pra da força de trabalho no mercado. Fora da circulação, pois ela apenas in­
troduz o processo de valorização, que ocorre na esfera da produção. E assim
é tout pour le mieux dans le meilleur des mondes possibles28.
O capitalista, ao transformar dinheiro em mercadorias, que servem
de matérias constituintes de um novo produto ou de fatores do processo de
trabalho, ao incorporar força de trabalho viva à sua objetividade morta,
transforma valor, trabalho passado, objetivado, morto em capital, em valor
que se valoriza a si mesmo, um monstro animado que começa a “trabalhar”
como se tivesse amor no corpo29.

28 “Tudo pelo melhor no melhor dos mundos possíveis." Aforismo do romance


satírico de Voltaire, Candide, ou l’optimisme. (Nota da edição alemã.)
29 “Como se tivesse amor no corpo” — a/s haett'es Lieb im Leibe — citação
modificada de Goethe, Fausto, Parte Primeira, “Adega de Auerbach, em Lei­
pzig”. (Nota da edição alemã.)
130
Se comparamos o processo de formação de valor com o processo
de valorização, vemos que o processo de valorização não é nada mais que
um processo de formação de valor prolongado além de certo ponto. Se
este apenas dura até o ponto em que o valor da força de trabalho pago
pelo capital é substituído por um novo equivalente, então é um processo
simples de formação de valor. Se ultrapassa esse ponto, torna-se processo
de valorização.
Se comparamos, além disso, o processo de formação de valor com
o processo de trabalho, vemos que este consiste no trabalho útil que pro­
duz valores de uso. O movimento é considerado aqui qualitativamente,
em seu modo e maneira particular, segundo seu objetivo e conteúdo. O
mesmo processo de trabalho apresenta-se no processo de formação de
valor somente em seu aspecto quantitativo. Trata-se aqui apenas do tem­
po que o trabalho precisa para sua operação ou da duração na qual a força
de trabalho é despendida de forma útil. Também as mercadorias que en­
tram no processo de trabalho aqui já não valem como fatores materiais,
determinados funcionalmente, da força de trabalho atuando orientada-
mente para um fim. Apenas contam com determinadas quantidades de
trabalho objetivado. O trabalho, seja contido nos meios de produção, seja
acrescido a eles pela força de trabalho, somente conta por sua duração.
Representa tantas horas, dias etc.
Mas conta somente na medida em que o tempo gasto na produção
do valor de uso é socialmente necessário. Isso envolve vários fatores. A
força de trabalho tem de funcionar em condições normais. Se a máquina
de fiar é o instrumento de trabalho socialmente dominante para a fia­
ção, então não se deve pôr uma roda de fiar nas mãos do trabalhador.
Ele não deve receber, em vez de algodão de qualidade normal, um refu­
go que rasga a todo instante. Em ambos os casos, ele precisaria de mais
do que o tempo socialmente necessário para a produção de 1 libra de
fio, mas esse tempo excedente não geraria valor em dinheiro. O caráter
normal dos fatores materiais de trabalho não depende, porém, do traba­
lhador, mas do capitalista. Outra condição é o caráter normal da própria
força de trabalho. No ramo que se aplica deve possuir o grau médio de
habilidade, destreza e rapidez. Mas nosso capitalista comprou no mer­
cado força de trabalho de qualidade normal. Essa força tem de ser des­
pendida no grau médio habitual de esforço, com o grau de intensidade
131
socialmente usual. Sobre isso o capitalista exerce vigilância com o mes­
mo temor que manifesta de que nenhum tempo seja desperdiçado, sem
trabalho. Comprou a força de trabalho por prazo determinado. Insiste
em ter o que é seu. Não quer ser roubado. Finalmente — e para isso tem
ele seu próprio code pénaP0 — não deve ocorrer nenhum consumo des­
necessário de matéria-prima e meios de trabalho, porque material e mei­
os de trabalho desperdiçados representam quantidades despendidas em
excesso de trabalho objetivado, que, portanto, não contam nem entram
no produto da formação de valor.
Vê-se: a diferença obtida anteriormente da análise da mercadoria,
entre o trabalho enquanto criador de valor de uso e o mesmo trabalho en­
quanto criador de valor, apresenta-se agora como diferenciação dos dife­
rentes aspectos do processo de produção.
Como unidade do processo de trabalho e processo de formação
de valor, o processo de produção é processo de produção de mercado­
rias; como unidade do processo de trabalho e processo de valorização, é
ele processo de produção capitalista, forma capitalista da produção de
mercadorias.
Observamos anteriormente que para o processo de valorização é
totalmente indiferente se o trabalho apropriado pelo capitalista é trabalho
simples, trabalho social médio ou trabalho mais complexo, trabalho de
peso específico superior. O trabalho que vale como trabalho superior,
mais complexo em face do trabalho social médio, é a exteriorização de
uma força de trabalho na qual entram custos mais altos de formação, cuja
produção custa mais tempo de trabalho e que, por isso, tem valor mais
elevado que a força de trabalho simples. Se o valor dessa força é superior,
ela se exterioriza, por conseguinte, em trabalho superior e se objetiva nos
mesmos períodos de tempo, em valores proporcionalmente mais altos.
Qualquer que seja, porém, a diferença de grau entre o trabalho do fiandei­
ro e o do joalheiro, a porção de trabalho com que o joalheiro apenas repõe
o valor de sua própria força de trabalho não se distingue qualitativamen­
te, de modo algum, da porção de trabalho adicional, com que gera mais-
valia. Depois como antes, a mais-valia resulta somente de um excesso
quantitativo de trabalho, da duração prolongada do mesmo processo de
30 Código penal. (N. dos T.)

132
trabalho, que é em um caso o processo da produção de fios, em outro, o
processo da produção de jóias.
Por outro lado, em todo processo de formação de valor, o trabalho
superior sempre tem de ser reduzido a trabalho social médio, por exemplo,
uma jornada de trabalho superior a x jornadas de trabalho simples. Evita-
se, portanto, uma operação supérflua e simplifica-se a análise, por meio da
suposição de que o trabalhador empregado pelo capital executa trabalho
social médio simples.

A SUBSUNÇÃO FORMAL DO TRABALHO AO CAPITAL

Marx, Capítulo VI inédito de “O capitai',


São Paulo, Livr. Ed. Ciências Humanas, 1978, p. 56 a 58.

Denomino subsunção formal do trabalho ao capital à forma que


se funda no sobre valor absoluto, posto que só se diferencia formalmente
dos modos de produção anteriores, sobre cuja base surge (ou é introduzi­
da) diretamente, seja porque o produtor (producer) atue como emprega­
dor de si mesmo (self-employing) seja porque o produtor direto deva pro­
porcionar trabalho excedente a outros. A coerção que se exerce, o méto­
do pelo qual se espolia o trabalho excedente é de outra índole. O essen­
cial na subsunção formal é o seguinte: 1) a relação puramente monetária
entre o que se apropria do trabalho excedente e o que o fornece; na medi­
da em que surge a subordinação, esta deriva do conteúdo determinado da
venda, não de uma subordinação, precedente à mesma, por força da qual
o produtor — devido a circunstâncias políticas etc., — estivesse situado
em outra relação do que a monetária (relação entre possuidor de merca­
doria e possuidor de mercadoria) em relação ao explorador de seu traba­
lho. É somente na condição de possuidor das condições de trabalho que,
nesse caso, o comprador faz com que o vendedor caia sob sua dependên­
cia econômica-, não existe qualquer relação política, fixada socialmente,
de superioridade e subordinação; 2) o que é inerente à primeira relação
— pois caso contrário o operário não teria que vender sua capacidade de
trabalho — é que suas condições objetivas de trabalho (meios de produ­
ção) e condições subjetivas de trabalho (meios de subsistência) se lhe
defrontam como capital, monopolizadas pelo comprador de sua capaci-
133
dade de trabalho. Quanto mais plenamente se lhe defrontam tais condi­
ções de trabalho como propriedade alheia, tanto mais plenamente se es­
tabelece como formal a relação entre o capital e o trabalho assalariado,
o que vale dizer: dá-se a subsunção formal do trabalho ao capital, condi­
ção e premissa da subsunção real.
No próprio modo de produção não se observa ainda qualquer dife­
rença nessa etapa. O processo de trabalho, do ponto de vista tecnológico se
faz exatamente como antes, só que agora no sentido de processo de traba­
lho subordinado ao capital. Não obstante, no próprio processo de produ­
ção, tal como se expôs antes, se desenvolvem: 1) uma relação econômica
de superioridade e subordinação, posto que é o capitalista quem consome a
capacidade de trabalho, e, portanto, vigia e dirige; 2) grande continuidade e
intensidade de trabalho e uma economia maior no uso das condições de
trabalho, pois tudo é feito para que o produto represente apenas o tempo de
trabalho socialmente necessário (ou melhor [rather], ainda menos), e isso
tanto no que se refere ao trabalho vivo utilizado para sua produção, como
ao trabalho objetivado, que, como valor dos meios de produção utilizados,
entra no produto formando valor.
Na subsunção formal do trabalho ao capital, a coerção para a pro­
dução de trabalho excedente — e desse modo, por um lado, para a forma­
ção de necessidades e de meios para satisfazer essas necessidades, e [por
outro] a produção em massa acima do nível das necessidades tradicionais
dos operários — e para a obtenção de tempo livre para o desenvolvimen­
to, independentemente da produção material, essa coerção, dizíamos, re­
cebe unicamente uma forma diferente da que possuía nos modos de pro­
dução anteriores; mas uma forma que eleva a continuidade e intensidade
do trabalho, aumenta a produção, é mais propícia ao desenvolvimento
das variações na capacidade de trabalho, e com isso, à diferenciação dos
modos de trabalho e de aquisição^ e finalmente reduz a relação entre o
possuidor das condições de trabalho e o próprio operário a uma simples
relação de compra e venda ou relação monetária, eliminando da relação
de exploração todos os enredamentos patriarcais e políticos, ou mesmo
religiosos. Sem dúvida, a própria relação de produção gera nova relação
de superioridade e subordinação (que por sua vez produz também suas
próprias expressões políticas etc.). Quanto menos a produção capitalista
consegue liberar-se da relação formal, tanto menos se desenvolve tam­
134
bém aquela relação, posto que só pressupõe pequenos capitalistas, que no
tocante ao modo de formação e ocupações, pouco se diferenciam dos pró­
prios operários.
A diferença, quanto ao tipo de relação de superioridade e subordi­
nação — omitindo-se, por ora, o próprio modo de produção — revela-se,
sobretudo, onde os trabalhos complementares rurais e domésticos, limita­
dos a satisfazer as necessidades familiares, transformam-se em ramos de
trabalho capitalista autônomos.
A diferença entre o trabalho formalmente subsumido ao capital e o
modo precedente de utilização do trabalho revela-se com tanto mais cla­
reza quanto mais aumenta o volume do capital empregado pelo capitalis­
ta individual, e portanto a quantidade de operários que este emprega si­
multaneamente. Uma vez alcançado um mínimo de capital, o capitalista
deixa de ser trabalhador e [começa] a ocupar-se unicamente da direção
do processo de trabalho e da comercialização das mercadorias produzi­
das. Contudo, a subsunção real do trabalho ao capital — o modo de pro­
dução capitalista propriamente dito — não entra em cena enquanto capi­
tais de certa magnitude não se tenham apoderado da produção, seja por­
que o comerciante se transforma em capitalista industrial, seja porque à
base da subsunção formal se tenham constituído capitalistas industriais
de maior porte.

A SUBSUNÇÃO REAL DO TRABALHO AO CAPITAL

Marx, C apítulo VI inédito de “ O c a p ita l” ,


São Paulo, Livr. Ed. Ciências Humanas, 1978, p. 66-70.

A característica geral da subsunção formal continua sendo a direta


subordinação do processo de trabalho — qualquer que seja, tecnologica­
mente falando, a forma em que se efetue — ao capital. Nessa base, entre­
tanto, se ergue um modo de produção tecnologicamente específico que
metamorfoseia a natureza real do processo de trabalho e suas condições
reais: o modo capitalista de produção. Somente quando este entra em cena,
se dá a subsunção real do trabalho ao capital. [...]
A subsunção real do trabalho ao capital se desenvolve em todas as
formas que produzem mais-valia relativa, diferentemente da absoluta.
135
Com a subsunção real do trabalho ao capital, dá-se uma revolu­
ção total (que prossegue e se repete continuamente)31 no próprio modo
de produção, na produtividade do trabalho e na relação entre o capita­
lista e o operário.
Na subsunção real do trabalho ao capital fazem sua aparição no
processo de trabalho todas as modificações (changes) que analisáramos
anteriormente. Desenvolvem-se as forças produtivas sociais do trabalho,
e, por força do trabalho em grande escala, chega-se à aplicação da ciência
e da maquinaria à produção imediata. Por um lado, o modo capitalista de
produção, que agora se estrutura como um modo de produção “sui gene-
ris'\ dá origem a uma figura modificada da produção material. Por outro
lado, essa modificação da figura material constitui a base para o desen­
volvimento da relação capitalista, cuja figura adequada corresponde, em
conseqüência, a determinado grau de desenvolvimento das forças produ­
tivas do trabalho.
Vimos como um mínimo determinado e sempre crescente de ca­
pital em mãos dos capitalistas individuais é, por um lado, premissa ne­
cessária, e, por outro, resultado permanente do modo de produção es­
pecificamente capitalista. O capitalista deve ser proprietário ou possui­
dor de meios de produção em escala social, em um montante de valor
que tenha perdido toda relação com a produção possível do indivíduo
ou de sua família. O mínimo de capital é tanto maior em um ramo da
indústria quanto mais se o explora de maneira capitalista, quanto mais
desenvolvida está nele a produtividade social do trabalho. Na mesma
proporção, deve o capital aumentar em grandeza de valor, e adotar di­
mensões sociais, isto é, despojar-se de todo caráter individual. Precisa­
mente, a produtividade do trabalho, o volume de produção, o volume
de população e o volume da superpopulação, desenvolvidos por tal
modo de produção, suscitam, incessantemente — com o capital e o tra­
balho agora disponíveis — novos ramos produtivos, nos quais o capital
pode trabalhar novamente em pequena escala e percorrer, novamente,
as diversas fases de desenvolvimento, até que esses novos ramos de
atividade também começam a ser explorados em escala social. [É] esse
um processo contínuo. Simultaneamente, a produção capitalista tende
31 Manifest der Kommunistischen Partei (1848).

136
a conquistar todos os ramos industriais dos que até então não se apode­
rara, e nos quais ainda [se dáj apenas a subsunção formal. Tão logo se
apodera da agricultura, da indústria de mineração, da manufatura das
principais matérias têxteis etc., invade os outros setores onde unica­
mente [se encontram] artesãos formalmente independentes ou ainda in­
dependentes [de fato], Na análise da maquinaria havíamos assinalado
como a introdução desta em um ramo provoca o mesmo fenômeno em
outros ramos, e ao mesmo tempo em outros setores do mesmo ramo. A
fiação mecanizada leva à mecanização da tecelagem; a fiação mecani­
zada na indústria algodoeira, a fiação mecanizada da lã, do linho, da
seda etc. O emprego intensivo de maquinaria nas minas de carvão, nas
manufaturas de algodão etc., tornou necessária a introdução do modo
de produção em grande escala na construção das próprias máquinas.
Abstraindo da ampliação dos meios de transporte, exigida por esse
modo de produção em grande escala, temos, por outro lado, que é so­
mente devido à introdução da maquinaria na construção das próprias
máquinas — sobretudo de geradores de energia (prime motors) cíclicos
— que se tornou possível a introdução dos barcos a vapor e das ferrovi­
as, e se revolucionou, integralmente, a construção naval. A grande in­
dústria lança tal massa humana nos ramos ainda não dominados por
ela, ou neles produz tal superpopulação relativa quanto o necessário
para transformar o artesanato ou a pequena empresa, formalmente capi­
talista, em grande indústria. [...]
O resultado material da produção capitalista, além do desenvolvi­
mento das forças produtivas sociais do trabalho, está constituído pelo au­
mento do volume de produção, e acréscimo e diversificação das esferas
produtivas e de suas ramificações. Só depois disso se desenvolve, corres­
pondentemente, o valor de troca dos produtos: a esfera em que operam ou
se realizam como valor de troca.
“A produção pela produção" — a produção como fim em si mesma
— já entra em cena, certamente, com a subsunção formal do trabalho ao
capital, tão logo o fim imediato da produção chegue a ser produzir mais-
valia maior e a mais abundante possível, tão logo o valor de troca do pro­
duto chegue a ser o fim decisivo. Contudo, essa tendência imanente da re­
lação capitalista não se realiza de maneira adequada — e não se converte
em condição necessária, inclusive do ângulo tecnológico — enquanto não
137
se tenha desenvolvido o modo de produção especificamente capitalista e,
com ele, a subsunção real do trabalho ao capital.
Antes, analisáramos, em pormenor, esse último ponto, conforme o
assunto exige, razão por que, aqui, podemos ser breves. É uma produção
que não está ligada a limitações predeterminadas e predeterminantes das
necessidades. (Seu caráter antagônico implica barreiras à produção que
ela, incessantemente, procura superar. Daí, as crises, a superprodução
etc.). Esse é um dos aspectos que a distinguem do modo de produção
precedente; se desejais (ifyou like), o aspecto positivo. Temos, por outro
lado, o aspecto negativo, o caráter contraditório; produção contraposta
aos produtores, e que faz destes caso omisso. O produtor real como sim­
ples meio de produção; a riqueza material como fim em si mesmo. E,
portanto, o desenvolvimento dessa riqueza material em contradição com
o indivíduo humano e a expensas deste. Produtividade do trabalho, em
suma = máximo de produtos com mínimo de trabalho', daí, o maior bara­
teamento possível das mercadorias. Independentemente da vontade de tais
ou quais capitalistas, isso se converte em lei no modo de produção capita­
lista. E essa lei se realiza somente implicando outra, ou seja a de que não
são as necessidades existentes que determinam a escala da produção, mas,
pelo contrário, é a escala da produção — sempre crescente e imposta, por
sua vez, pelo próprio modo de produção — que determina o volume do
produto. Seu objetivo [é] que cada produto etc., contenha o máximo pos­
sível de trabalho não-pago, e isso só se alcança mediante a produção
pela própria produção. Isso se apresenta, por um lado, como lei, por­
quanto o capitalista que produz em pequena escala incorporaria no pro­
duto um quantum de trabalho maior do que o socialmente necessário.
Apresenta-se, pois, como aplicação adequada da lei do valor, que não se
desenvolve plenamente senão à base do modo de produção capitalista.
Mas; surge, por outro lado, como impulso do capitalista individual, que
para violar essa lei ou para utilizá-la astutamente em seu benefício pro­
cura reduzir o valor individual de sua mercadoria abaixo de seu valor
socialmente determinado.
Em sua totalidade, essas formas de produção (da mais-valia relati­
va), [têm] em comum, além do mínimo crescente de capital necessário à
produção, o fato de que as condições coletivas para o trabalho de numero­
sos operários que cooperam diretamente entre si permitem economizar, em
138
contraste com a dispersão dessas condições na produção em pequena esca­
la, posto que a eficácia dessas condições de produção comuns não impli­
cam crescimento proporcionalmente igual em seu volume e valor. Seu uso
comum e simultâneo faz com que seu valor relativo (em relação ao produ­
to) decresça, por mais que aumente o volume absoluto de valor.

[AS LIÇÕES DA COMUNA]

Marx, A guerra civil na França, em Marx e Engels, Obras escolhidas,


São Paulo, Alfa-Omega, s.d., v. 2, p. 80 e 81.

Antítese direta do Império era a Comuna. O brado de “República


social”, com que a Revolução de Fevereiro foi anunciada pelo proletariado
de Paris, não expressava mais que o vago desejo de uma República que não
acabasse com a forma monárquica da dominação de classe, mas com a pró­
pria dominação de classe. A Comuna era a forma positiva dessa República.
Paris, sede central do velho poder governamental e, ao mesmo tem­
po, baluarte social da classe operária da França, levantara-se em armas con­
tra a tentativa de Thiers e dos “rurais” de restaurar e perpetuar aquele velho
poder que lhes havia sido legado pelo Império. E se Paris pôde resistir foi
unicamente porque, em conseqüência do assédio, desfizera o exército, subs-
tituindo-o por uma Guarda Nacional, cujo principal contingente era forma­
do pelos operários. Trata-se agora de transformar esse fato numa institui­
ção duradoura. Por isso, o primeiro decreto da Comuna foi no sentido de
suprimir o exército permanente e substituí-lo pelo povo armado.
A Comuna era composta de conselheiros municipais eleitos por su­
frágio universal nos diversos distritos da cidade. Eram responsáveis e subs­
tituíveis a qualquer momento. A Comuna devia ser, não um órgão parla­
mentar, mas uma corporação de trabalho, executiva e legislativa ao mesmo
tempo. Em vez de continuar sendo um instrumento do governo central, a
polícia foi imediatamente despojada de suas atribuições políticas e conver­
tida num instrumento da Comuna, responsável perante ela e demissível a
qualquer momento. O mesmo foi feito em relação aos funcionários dos de­
mais ramos da administração. A partir dos membros da Comuna, todos que
desempenhavam cargos públicos deviam receber salários de operários. Os
interesses criados e as despesas de representação dos altos dignitários do
139
Estado desapareceram com os próprios altos signatários. Os cargos públi­
cos deixaram de ser propriedade privada dos testas-de-ferro do governo
central. Nas mãos da Comuna concentrou-se não só a administração muni­
cipal, mas toda iniciativa exercida até então pelo Estado.
Uma vez suprimidos o exército permanente e a polícia, que eram os
elementos da força física do antigo governo, a Comuna estava impaciente
por destruir a força espiritual de repressão, o “poder dos padres”, decretan­
do a separação da Igreja do Estado e a expropriação de todas as Igrejas
como corporações possuidoras. Os padres foram devolvidos ao retiro da
vida privada, a viver dos óbulos dos fiéis, como seus antecessores, os após­
tolos. Todas as instituições de ensino foram abertas gratuitamente ao povo
e ao mesmo tempo emancipadas de toda intromissão da Igreja e do Estado.
Assim, não somente se punha o ensino ao alcance de todos, mas a própria
ciência se redimia dos entraves criados pelos preconceitos de classe e o
poder do governo.
Os funcionários judiciais deviam perder aquela fingida independên­
cia que só servira para disfarçar sua abjeta submissão aos sucessivos gover­
nos, aos quais iam prestando sucessivamente, e violando também sucessi­
vamente, o juramento de fidelidade. Assim como os demais funcionários
públicos, os magistrados e juizes deviam ser funcionários eletivos, respon­
sáveis e demissíveis.

140
fàSBBi Questões para reflexão

1. Que categorias dominam o pensamento do “jovem Marx”?

2. O que significa a frase: “As idéias da classe dominante são as idéi­


as dominantes”?

3. Explique como se dá o processo de constituição do modo de produ­


ção especificamente capitalista.

4. Qual a relação entre as formas mercantis e as formas jurídicas?

5. Compare os dois conceitos de modo de produção que Marx formula.

6. Marx sustenta a tese do primado das forças produtivas sobre as


relações de produção em O ca p ita l?

7. Analise o problema da transição socialista em Marx.

141
IH Bibliografia
PRINCIPAIS OBRAS DE MARX1
A diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e ade Epicuro (1841)
“Observações de um cidadão renano sobre as recentes instruções acerca da
censura na Prússia" (1842)
“Os debates sobre a liberdade de im prensa e sobre a publicação das discus­
sões na Dieta” (1842)
“Os debates sobre a lei contra o furto de lenha" (1842)
“Justificação do correspondente da Mosela” (1843)
Crítica da filosofia do direito de Hegel (1843)
A questão judaica (1844)
“Para a crítica da filosofia do direito de Hegel. Introdução” (1844)
Manuscritos econômico-filosóficos de 1844
“Glosas críticas à margem do artigo ‘O rei da Prússia e a reform a social’ ”
(1844)
A sagrada família (1845)*
“Teses sobre Feuerbach” (1845)
A ideologia alemã (1846)*
Miséria da filosofia (1847)
Manifesto do Partido Comunista (1848)*
Trabalho assalariado e capital (1849)
As lutas de classes na França de 1848 a 1850 (1850)
Mensagem do Comitê Central à Liga dos Comunistas (1850)
O 18 brumário de Luís Bonaparte (1852)
Fundamentos da crítica da economia política (Grundrísse) (1857-58)
Contribuição à crítica da economia política (1859)
Manuscritos econômicos de 1861-63
Manuscritos econômicos de 1863-67
Salário, preço e lucro (1865)
O capital, livro 1 (1867)
A guerra civil na França (1871)
Crítica ao Programa de Gotha (1875)
O capital, livro 2 (1885)
O capital, livro 3 (1894)
Teorias da mais-valia (livro 4 de O capital) (1905)

1 As obras assinaladas com um asterisco são também de autoria de Engels.

142
EDIÇÕES DAS OBRAS COMPLETAS EM ALEMÃO
Werke. Berlim, Dietz Vertag.
Gesamtausgabe (Mega2). Berlim, Dietz Verlag.

EDIÇÕES EM PORTUGUÊS
Obras escolhidas (de K. Marx e F. Engels). São Paulo, Alfa-Omega, s.d.
Crítica da filosofia do direito de Hegel. Lisboa, Presença, s.d.
A questão judaica. São Paulo, Moraes, 1991.
A sagrada família. São Paulo, Moraes, 1987.
A ideologia alemã. São Paulo, Hucitec, 1993.
A miséria da filosofia. São Paulo, Global, 1989.
Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis, Vozes, 1997.
O 18 brumário e Cartas a Kugelmann. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1969.
Contribuição à crítica da economia política. Lisboa, Estampa, 1971.
Formações econômicas pré-capitalistas. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985.
O capital. São Paulo, Nova Cultural, 1996.
Capítulo VI inédito de “O capitar. Trad. Eduardo Sucupira Filho. São Paulo,
Livr. Ed. Ciências Humanas, 1978.
Teorias da mais-valia. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980.

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Sobre o autor
Márcio Bilharinho Naves nasceu em Uberaba, Minas Gerais,
em 1952. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Univer­
sidade de São Paulo, doutorou-se em Filosofia pela Universidade
Estadual de Campinas. É autor do livro Marxismo e direito: um estu­
do sobre Pachukanis (Editora Boitempo, 2000). Foi diretor da revista
Crítica do Direito. Leciona no Instituto de Filosofia e Ciências Huma­
nas da Universidade Estadual de Campinas.

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