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RICHARD SWINBURNE

DEUS EXISTE?
Copyright @ 1996, 2010, de Richard Swinburne
Publicado originalmente em inglês sob o título
Is There a God?
pela Oxford University Press,
Great Clarendon Street, Oxford, OX2 6DP, Reino Unido.

Is There a God? was originally published in English in 2010. This translation is published
by arrangement with Oxford University Press. Editora Monergismo is solely responsible
for this translation from the original work and Oxford University Press shall have no
liability for any errors, omissions or inaccuracies or ambiguities in such translation or for
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1a edição, 2015
1000 exemplares

Tradução: Agnaldo Cuoco Portugal


Revisão: Felipe Sabino de Araújo Neto e Maurício Mota Saboya Pinheiro
Capa: Luís Henrique P. de Paula

PROIBIDA A REPRODUÇÃO POR QUAISQUER MEIOS,


SALVO EM BREVES CITAÇÕES, COM INDICAÇÃO DA FONTE.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Swinburne, Richard
Deus existe? / Richard Swinburne, tradução Agnaldo Cuoco Portugal — Brasília, DF: Academia
Monergista, 2015.
Título original: Is There a God?

1. Filosofia 2. Filosofia da religião I. Título.


CDD 201
AGRADECIMENTOS
Sou grato a várias pessoas que leram uma primeira versão de Deus
existe? e me ajudaram a exprimir minhas ideias de modo mais simples do que
o que eu teria feito; e entre elas, especialmente Basil Mitchell, Norman
Kretzmann, Tim Barton e Peter Momtchiloff da Oxford University Press, e
minha filha Caroline. Sou também muito grato a Anita Holmes pela rápida
digitação de duas versões da edição original deste livro, e a Sarah Barton por
digitar novas passagens inseridas na edição revista.
SUMÁRIO
Prefácio à edição brasileira
Introdução à edição revista
1. Deus
2. Como explicamos as coisas
3. A simplicidade de Deus
4. Como a existência de Deus explica o mundo e sua ordem
5. Como a existência de Deus explica a existência de seres humanos
6. Por que Deus permite o mal
7. Como a existência de Deus explica os milagres e a experiência religiosa
Epílogo: E daí?
Guia para leitura adicional
PREFÁCIO À EDIÇÃO
BRASILEIRA

A presente tradução de Is There a God? do filósofo inglês Richard


Swinburne está sendo lançada ao mesmo tempo que a de The Existence of
God, do mesmo autor. Trata-se de uma iniciativa da Associação Brasileira de
Filosofia da Religião, com o imprescindível apoio da Fundação John
Templeton, de tornar acessíveis textos importantes da filosofia da religião
contemporânea para a língua portuguesa. Na verdade, Is There a God? já foi
traduzido para o português por meu colega Desidério Murcho em 1998, pela
editora Gradiva, de Lisboa. No entanto, além de já estar esgotada aquela
edição (intitulada “Será que Deus existe?” e não “Deus existe?” como se
optou por traduzir o título desta vez), a presente tradução leva em conta a
edição inglesa revista de 2010 e não a original, de 1996.
Is There a God? é uma versão simplificada de The Existence of God e
se dirige ao interessado em geral, ao invés do pesquisador acadêmico
especializado. Seu objetivo é contribuir com o debate público sobre um tema
que chama a atenção de todos, mas, paradoxalmente, é pouco desenvolvido
pelos filósofos brasileiros com esse objetivo.
Não que o tema não interesse ao leitor brasileiro em geral. Prova
dessa curiosidade foi o sucesso de vendas de Deus — um delírio (2007),[1]
de Richard Dawkins, traduzido logo no ano seguinte ao de sua publicação no
original, ou a procura significativa que despertaram obras como o Tratado de
ateologia (2014, 2ª edição), de Michel Onfray,[2] ou Deus não é grande
(2007) de Christopher Hitchens.[3] Notavelmente, todos esses títulos são de
textos críticos à religião e à crença em Deus. Aparentemente, o público que
compra livros em livrarias não religiosas brasileiras tem alguma predileção
por abordagens mais críticas desse fenômeno.
O livro cuja tradução se apresenta aqui vai ao sentido contrário desses
sucessos editoriais, pois apresenta uma defesa argumentativa da racionalidade
da crença em Deus. Deus existe? começa com uma descrição do que se
entende quando se usa o termo “Deus”, tomando como base o sentido comum
às religiões monoteístas ou abraâmicas e o debate em filosofia sobre esse
assunto ao longo da tradição ocidental. Por sua precisão e clareza, esse
capítulo se tornou parte de antologias em filosofia da religião, como a de
Charles Taliaferro e Paul Griffiths (editores), traduzida para o português com
o título Filosofia das religiões.[4]
Em seguida, o autor apresenta, de modo acessível, uma concepção
geral acerca de como nós explicamos as coisas, especialmente as que
descobrimos por experiência e não por raciocínio formal, como na
matemática. Para Swinburne, há um padrão comum na explicação da
experiência, que se exemplifica no modo como um médico chega a um
diagnóstico que explica os sintomas, como um detetive chega a uma hipótese
que dá conta das pistas de um crime, e também da própria atividade científica
em ciências naturais. Esse padrão é o modo racional de chegar a conclusões
gerais sobre as coisas que acontecem.
Daí em diante, o livro aplica essa teoria do raciocínio a várias “pistas”
que estão no mundo, mas que as ciências naturais não conseguem explicar. E
não conseguem explicar por quê? Por um lado, porque são coisas que são
pressupostas pela própria ciência, ou seja, esta sequer começa a ser feita se
não houver um mundo físico a ser explicado ou se esse mundo não tiver uma
ordem que permita a explicação. Essas duas pistas (a existência de um mundo
e de ordem) são grandes demais para a ciência explicar. Por outro lado, outras
pistas são estranhas demais para a explicação científica. Elas não são
pressupostos para a ciência, mas exigiriam uma explicação complexa demais
para fazer sentido; esse é o caso da existência de seres conscientes como nós,
ou da ocorrência do que chamamos de experiência religiosa.
E aqui temos uma ideia importante em todo o livro: a noção de
simplicidade. Pode parecer estranho e até engraçado, mas simplicidade não é
um conceito simples, pois há vários modos de se dizer que uma ideia é
simples. Mesmo assim, parece que, quando duas ideias pretendem explicar
algo, tendemos a ficar com a mais simples, que parece a mais verdadeira. Por
exemplo, posso explicar que a mesa onde está o computador no qual estou
escrevendo este texto chegou até aqui porque duas pessoas a carregaram.
Pelo tamanho dela, essa seria a hipótese mais provável, mas ela poderia ter
sido carregada por três, dez, quinze pessoas, o que teria o mesmo resultado. O
fato, porém, é que tendemos a descartar essas explicações porque elas
parecem complexas sem necessidade. Segundo Swinburne, isso mostra o
quanto a simplicidade é indicativo de verdade.
Os demais capítulos do livro aplicam esses conceitos gerais ao caso
da existência de Deus. A ideia é que a tese de que Deus existe é simples e
explica as pistas que a ciência não consegue explicar. Assim, usando o
padrão de racionalidade apresentado antes, o autor defende que há razão em
acreditar que Deus existe.
O leitor, obviamente, pode discordar da conclusão. Filosofia não é
uma área do conhecimento que se caracterize pelo consenso. Na verdade, é a
discordância e o debate de ideias que distingue o trabalho do filósofo, que se
diferencia do sábio porque, ao contrário deste, não está de posse definitiva da
verdade, mas vai à busca desta. O que se aprende em Filosofia é exatamente
esse debate e, por meio dele, descobrem-se modos de pensar mais
profundamente sobre ideias gerais. Essa maior profundidade vem da abertura
para um pensamento diferente, da disponibilidade em ouvir o que tem a dizer
aquele que não pensa como eu. Pela conversa, pela troca de ideias, posso até
não me convencer da ideia do outro, mas tenho uma oportunidade de
melhorar minhas próprias noções.
Nesses tempos de intolerância, trata-se, sem dúvida de uma atitude
saudável a se cultivar. Uma crítica à religião comum dos livros citados no
início deste texto introdutório é a de que ela se baseia em credulidade ingênua
e leva a um dogmatismo violento. Talvez essa crítica tenha alguma razão de
ser, pois, infelizmente, podemos encontrar vários exemplos disso no presente
e no passado: pessoas matando e morrendo por conta de crenças religiosas.
Seria essa uma justificativa para se lutar pelo fim da religião?
Uma observação importante a ser feita sobre essa pergunta é que ela
seria impensável alguns séculos atrás. Até o século XVI, mesmo nos países
com menor proporção de pessoas que hoje se dizem religiosas, como o norte
da Europa, falar em extinguir a religião por suas consequências maléficas
seria simplesmente sem sentido. A razão é que o próprio sentido fundamental
da vida era dado pelas crenças e atividades religiosas. Na visão religiosa de
mundo, a realidade visível só adquire razão de ser quando vista como parte
de uma dimensão espiritual maior. É a essa dimensão espiritual que a pessoa
religiosa quer se ligar, especialmente por meio de ações como ritos, preces e
gestos simbólicos dos mais diversos tipos. A essa atividade toda podemos
chamar “religião”, em uma inumerável variedade de manifestações. Até
quinhentos anos atrás, no ocidente, ela era a única responsável por respostas a
questões como de onde viemos? Quem somos? Para onde vamos?[5] Assim,
até onde sabemos, a experiência de uma cultura e uma sociedade na qual a
religião não tem papel central é algo bastante novo ou, pelo menos, muito
incomum.
Em segundo lugar, se fôssemos banir tudo o que pode levar à
violência, talvez muitas outras criações humanas tivessem de desaparecer,
como a política, o esporte ou mesmo o casamento. Não custa muito pensar
em exemplos de atos cruéis realizados em nome ou por causa dessas
atividades humanas. Mas, nem por isso pensamos que o melhor é fazer
desaparecerem essas coisas, simplesmente porque a vida humana ficaria
enormemente empobrecida sem elas, e talvez fosse mesmo impossível na sua
falta (os amantes do futebol me desculpem, mas me refiro aos exemplos do
casamento e da política, é claro). A mesma coisa se pode dizer da religião.
Ela pode ser motivo alegado para guerra e crueldade, mas também inspirou a
música de Bach, a grandiosidade das catedrais góticas, e a impressionante
generosidade de Madre Teresa. Talvez um mundo sem religião não seja
assim tão certamente um mundo melhor e sim mais superficial e com menos
daquilo que normalmente comove, atrai e engrandece o espírito humano. A
associação entre atividades que podem ser tão benéficas e atos que são tão
terríveis fazem parte de um assunto interessantíssimo em filosofia da religião:
o chamado problema do mal, que é tratado no capítulo 6 deste livro.
Assim, talvez tenhamos de conviver com a religião, que parece uma
interessante resposta — para alguns, simplesmente a melhor — para o
problema do significado da existência humana e da realidade em geral. Essa
impressão parece se reforçar pelo fato de que, ao menos num sentido literal,
não se verificaram teses do final do século XIX e início do século XX, como
a de que Deus morreu (Nietzsche), de que a religião é uma ilusão sem futuro
(Freud) ou de que o desenvolvimento das forças produtivas levaria a uma
situação na qual a religião não teria mais lugar (Marx). Esses são três grandes
pensadores, cujas ideias são muito mais interessantes e profundas do que é
possível apresentar aqui. Em todo caso, se o que eles pensavam era que a
religião desapareceria em um futuro breve, então ao menos é preciso reavaliar
o que se entende por “breve”.
O leitor deste curto ensaio deve estar pensando que o raciocínio acima
pode até estar correto, mas que há algo do qual ele ainda precisa dar conta.
Em outras palavras, mesmo que não haja muitos casos de sociedades ou
culturas nas quais a religião não ocupe um papel central; mesmo que ela não
seja uma exceção entre as atividades humanas que fazem mal ao mesmo
tempo em que fazem bem, e mesmo que as profecias de que ela desapareceria
estão longe de se cumprir até nas sociedades mais secularizadas; mesmo se
aceitando tudo isso, é preciso dar uma resposta aos problemas do
dogmatismo e da intolerância. É possível que essa demanda seja irrealizável,
pois os assuntos humanos parecem ser irremediavelmente ambíguos quanto
ao bem e ao mal que podem provocar e os problemas indicados acima podem
ser inseparáveis da religião.
Em todo caso, o presente livro pode ser visto como convidando a
explorar uma solução possível para essas dificuldades. Uma das ideias
fundamentais que está por trás de Deus existe? é que religião não tem
necessariamente a ver com sentimentalismo irracional. Que a crença em Deus
não tem que ver somente com opção subjetiva injustificada. E que nossa
aceitação de que Deus existe pode incluir a admissão de esta é provável, pois
a imperfeição de nossa capacidade de conhecer não nos permite uma certeza
infalível. Se o modelo de racionalidade usado é o do médico, do detetive ou
do cientista na explicação dos dados que estes têm à mão, então há um grau
de incerteza na conclusão que Swinburne, por mais confirmada que ela seja
pelos fatos.
Dito de outro modo, talvez não precisemos jogar fora a criança com a
água suja do banho, talvez possamos manter o que a religião traz de bom e
diminuirmos bastante o seu dogmatismo e intolerância. A discussão racional,
com toda a humildade intelectual que esta pode implicar, pode ser benéfica
para a crença religiosa ao permitir neutralizar alguns de seus piores males.
E a razão não tem de estar contra a crença em Deus, pelo menos é o
que defende este livro. Ao contrário da difundida tese de que haveria um
conflito irremediável entre raciocínio científico e crença religiosa, Swinburne
mostra várias razões para pensar que esta pode ser um importante
complemento para aquela naquilo que as limitações do método científico
impedem a ciência de falar. Ciência e religião são atividades certamente
diferentes, com distintos objetivos e procedimentos – e lembrar essa relativa
independência é outra forma de contrapor a tese popular do conflito. No
entanto, elas podem colaborar também, desde que não se pretenda que as
teorias científicas sejam a única forma de entendimento aceitável sobre as
coisas — pretensão ela mesma pouco científica. Deus existe? propõe uma
integração entre as duas, não negando sua independência e combatendo
eventuais conflitos. Se Deus é inteligência e liberdade num grau infinito e a
atividade religiosa busca a união do ser humano com Deus, a ciência precisa
ser integrada e levada a sério por quem acredita na existência deste. Esse é
um convite que faz Deus existe?, agora mais acessível ao leitor brasileiro.

— Dr. Agnaldo Cuoco Portugal


Universidade de Brasília
INTRODUÇÃO À EDIÇÃO
REVISTA
Nos últimos trinta ou quarenta anos, houve a retomada de um debate
sério entre os filósofos do mundo anglofônico acerca da existência de Deus.
Meu objetivo ao escrever este livro (em 1996 e agora em 2009, com a edição
revista) foi o de apresentar para um público mais amplo uma versão curta de
uma argumentação em favor da existência de Deus; uma argumentação
defendida em maior extensão em meu livro The Existence of God (primeira
edição, 1979; segunda edição, 2004).[6] O entendimento público dos anos
recentes acerca da existência de Deus foi — compreensivelmente — muito
influenciado pelas descobertas da ciência moderna acerca dos mecanismos da
evolução biológica, o desenvolvimento de nosso universo desde o Big Bang
há treze bilhões e meio de anos, e a existência possível de outros universos.
Contudo, essas descobertas deixam aberta a questão de se existe um Deus que
causou e sustenta a existência e operação de nosso universo e de quaisquer
outros universos que possa haver de acordo com processos regulares (e que
de vez em quando intervém nesses processos) que os cientistas estão
descobrindo; ou se a existência e operação do universo não têm uma
explicação última.
A estrutura básica do meu argumento é a seguinte. Cientistas,
historiadores e detetives observam dados e, a partir disso, chegam a alguma
teoria acerca do que explica melhor a ocorrência desses dados. Podemos
analisar os critérios que eles usam ao chegarem à conclusão de que certa
teoria é mais bem sustentada pelos dados que uma teoria diferente — ou seja,
é mais provável com base nesses dados, que seja verdadeira. Ao usar aqueles
mesmos critérios, descobrimos que a visão de que Deus existe explica tudo o
que observamos, não apenas um conjunto limitado de dados. Ela explica o
fato mesmo de que existe um universo, que as leis científicas funcionam nele,
que ele contém animais e seres humanos conscientes com corpos muito
complexos e organizados de modo intrincado, que temos oportunidades
abundantes para desenvolver o mundo e a nós mesmos, bem como os dados
mais particulares de que os seres humanos relatam milagres e têm
experiências religiosas. Na medida em que as causas e leis científicas
explicam algumas dessas coisas (e em parte elas o fazem), essas mesmas
causas e leis precisam de explicação e a ação de Deus as explica. Os mesmos
critérios que os cientistas usam para chegar a suas próprias teorias nos levam
a ir para além daquelas teorias rumo a um Deus criador que sustenta tudo na
existência.
Alguns teólogos modernos objetaram que o conceito de Deus que
desenvolvi no capítulo 1 — uma pessoa essencialmente onipotente,
onisciente e perfeitamente livre — não é o conceito cristão de Deus ou talvez
nem mesmo do judaísmo ou do islamismo; e assim, dizem eles, meus
argumentos não têm relevância para essas religiões. Essa objeção tomou duas
formas. Primeiro, eles alegam que, de acordo com essas religiões, supõe-se
que Deus seja totalmente incompreensível, ao passo que estou dando
argumentos em favor da existência de um “Deus” que eu escrevo em palavras
comuns como “poderoso” e “conhecedor” de todas as coisas. Não quero
negar que algumas palavras cujo sentido nós passamos a entender a partir de
seu uso normal, quando aplicadas a seres humanos, precisam ser usadas em
sentidos analógicos ou de algum modo alargados a fim de falarem de Deus —
assim como “onda” e “partícula” têm de ser usadas em sentido algo analógico
para os físicos falarem de propriedades de elétrons. Assim é o caso para
minha afirmação (na página 21)[7] de que Deus é “em algum sentido” uma
pessoa. Porém, os sentidos podem ser apenas um tanto analógicos. Se a
tradição cristã-judaico-islâmica realmente afirmasse que Deus fosse
totalmente incompreensível, e assim que não fosse em qualquer sentido
“poderoso”, ou “conhecedor”, ou “amoroso” ou “compassivo” ou
“misericordioso”, ela não poderia ao mesmo tempo afirmar que Deus tivesse
quaisquer características que nos dessem boa razão para cultuá-lo. As pessoas
cultuam Deus, entre outras razões, porque ele é supostamente amoroso; e não
poderíamos entender essa afirmação a menos que se supusesse que o “amor”
de Deus fosse algo parecido com o amor humano. E qualquer um que olhe
para o credo e declarações doutrinais da tradição cristã dos últimos dois mil
anos vai ver que elas descrevem Deus como tendo as propriedades que eu
discuto no capítulo 1. Na tradição cristã, não se supõe que Deus seja
totalmente incompreensível. A segunda forma da objeção é que o Deus
cristão é tido como sendo não uma pessoa, mas “três pessoas de uma
substância” (a doutrina da Trindade), e assim meus argumentos não mostram
a existência daquele Deus. Meus argumentos visam mostrar a existência de
um Deus cultuado tanto por cristãos, judeus e muçulmanos, ao qual a tradição
cristã chamou “Deus Pai”. É uma afirmação adicional específica do
cristianismo que Deus Pai, em virtude de sua natureza divina, leva a efeito
“desde toda eternidade” duas outras pessoas divinas, o Filho e o Espírito
Santo, que são tão interdependentes a ponto de formar juntos um “Deus”, que
é um “ser pessoal” num sentido mais amplo. Está para além do alcance deste
livro discutir essa afirmação, mas eu a discuto num livro associado a este,
intitulado Was Jesus God? (publicado em 2008).
Esta edição revista inclui, além de muitas pequenas correções, uma
correção maior e um acréscimo grande ao texto da edição original. Ela
também inclui um “Guia para leitura adicional”. A correção está nas
passagens reescritas das páginas 46-7 e 63-70, destinadas a tornar clara a
distinção entre explicação “plena”, “completa” e “última”, ignorada na edição
anterior; e desse modo explicar melhor por que o teísmo oferece e o
materialismo não oferece uma explicação última muito simples do mundo. O
acréscimo grande é uma nova seção nas páginas 95-100 sobre a relevância de
meu argumento em favor de Deus a partir da sintonia fina de nosso universo,
da possível existência de muitos outros universos. A fim de manter o livro
com mais ou menos o mesmo tamanho, eu omiti algumas poucas passagens
da edição original que são menos centrais para o argumento.
1. DEUS
Meu tópico é a afirmação de que Deus existe, entendido do modo
como a religião ocidental (cristianismo, judaísmo e islamismo) entendeu
geralmente essa afirmação. Eu chamo essa afirmação de teísmo. Neste
capítulo, vou explicar o que essa afirmação significa e, em capítulos
posteriores, podemos prosseguir com os fundamentos para acreditar que ela é
verdadeira. Enfatizo que, neste capítulo, quando digo que Deus faz isso ou
aquilo, não estou assumindo que Deus existe, mas apenas explicando o que
significa a afirmação de que Deus existe. Não estou diretamente preocupado
em avaliar a afirmação de que Deus existe, se “Deus” é um ser entendido em
um sentido diferente, como o nome de um tipo de ser diferente do que é
cultuado na religião ocidental. Contudo, ao defender em vários pontos que o
teísmo explica bem os dados observados, vou aqui e ali observar que outras
hipóteses, inclusive as que invocam um “Deus” em outro sentido, explicam
os dados menos bem. Mesmo dentro da linha majoritária da tradição
ocidental, houve algumas discordâncias acerca do que Deus é, e vou chamar
atenção para algumas dessas diferenças neste capítulo e sugerir que algumas
dessas visões sobre Deus são preferíveis em relação a outras.
O teísmo afirma que Deus é um ser pessoal — ou seja, é uma pessoa
em algum sentido. Por uma pessoa, quero dizer um indivíduo com poderes
básicos (para agir intencionalmente), propósitos e crenças.
Uma ação intencional é aquela que uma pessoa faz e quer fazer — tal
como quando desço a escada ou digo algo que quero dizer. Uma ação básica
é aquela que uma pessoa faz intencionalmente de modo direto e não ao fazer
outra ação intencional. Ir de Oxford para Londres é uma ação não básica,
pois eu a faço por meio de várias outras ações — ir para a estação, tomar o
trem, etc. Porém, apertar minha mão, ou mover minha perna, ou mesmo dizer
“isto”, todas essas são ações básicas. Eu simplesmente as faço e não por meio
de algum outro ato intencional. É verdade que certos eventos têm de
acontecer no meu corpo — meus nervos têm de transmitir impulsos — para
que eu realize a ação básica. Mas esses não são eventos que eu provoco
intencionalmente. Eles simplesmente acontecem — eu posso nem mesmo
estar ciente deles. Com um poder básico, quero dizer um poder de realizar
uma ação básica. Nós seres humanos temos poderes básicos semelhantes.
Eles são normalmente confinados a poderes de pensamento e poderes sobre
um pequeno pedaço de matéria, que cada um de nós chama de seu próprio
corpo. Eu só posso produzir efeitos no mundo fora do meu corpo fazendo
algo intencional com meu corpo. Posso abrir uma porta ao pegar na maçaneta
e puxa-la na minha direção; ou posso conseguir que você saiba algo ao usar
minha boca para lho dizer. Quando produzo algum efeito intencionalmente
(por exemplo, abrir a porta) ao fazer outra ação (por exemplo, puxando-a na
minha direção), fazer a primeira é realizar uma ação não básica. Quando vou
a Londres, ou escrevo um livro, ou mesmo ponho um prego numa parede,
essas ações são não básicas, que faço ao realizar algumas ações básicas.
Quando realizo alguma ação intencional, procuro desse modo alcançar algum
propósito — normalmente um que está para além da mera realização da
própria ação (eu abro a porta para sair do cômodo), mas às vezes
simplesmente para realizar a própria ação (como quando eu canto
despretensiosamente).
Crenças são visões, frequentemente verdadeiras, mas às vezes falsas,
acerca de como o mundo é. Quando as crenças são verdadeiras e bem
justificadas, elas constituem conhecimento. Nosso conhecimento humano do
mundo para além de nossos corpos é formado por estímulos — de luz, som,
cheiro e coisas assim — vindos do mundo além de nossos corpos e pousando
em nossos corpos. É porque partículas de luz chegam a nossos olhos e ondas
de som (inclusive aquelas produzidas pela fala) chegam a nossos ouvidos,
que adquirimos nossa informação sobre o mundo. Deus é pensado como
sendo como nós, na medida em que tem poderes básicos, crenças e propósitos
— mas bem diferentes dos nossos. Pessoas humanas são ou do sexo
masculino ou do sexo feminino. Mas o teísta, é claro, afirma que Deus não é
nem masculino nem feminino. A língua portuguesa, infelizmente, não tem
um pronome para se referir a pessoas sem implicar referência ao seu sexo.
Assim, vou seguir o costume de me referir a Deus como “ele”, mas que fique
claro que isso não tem implicação de masculinidade.
Supõe-se que os poderes básicos de Deus são infinitos: ele pode
realizar como uma ação básica qualquer evento que ele escolher e não precisa
de ossos ou músculos para agir de certos modos a fim de realiza-lo. Ele pode
fazer objetos, inclusive os materiais, existir e mantê-los existindo de
momento a momento. Podemos nos imaginar tendo um poder básico não
apenas de mover objetos, mas de cria-los instantaneamente — por exemplo, o
poder de fazer vir à existência um coelho ou uma caneta; e de mantê-los
existindo e depois de fazê-los não existir mais. Não há contradição nessa
suposição, mas é claro que nenhum ser humano tem um poder assim. O que o
teísta afirma sobre Deus é que ele realmente tem um poder de criar, conservar
ou aniquilar qualquer coisa, grande ou pequena. Ele pode também fazer
objetos se moverem ou fazer qualquer outra coisa. Ele pode fazê-los atrair ou
repelir uns aos outros num modo que foi descoberto pelos cientistas e pode
leva-los a causar outros objetos, fazerem ou sofrerem várias coisas: ele pode
fazer os planetas se moverem do modo como Kepler descobriu que eles se
movem, ou fazer a pólvora explodir quando acendemos um fósforo nela; ou
ele pode fazer os planetas se moverem de modos bem diferentes, e as
substâncias químicas explodirem ou não explodirem em condições bem
diferentes das que agora governam seu comportamento. Deus não é limitado
pelas leis da natureza; ele as faz e pode muda-las ou suspendê-las se ele
quiser. Para usar o termo técnico, Deus é onipotente: ele pode fazer qualquer
coisa.
As crenças humanas são limitadas em seu alcance, sendo que algumas
delas são verdadeiras e algumas são falsas. Deus é supostamente onisciente
— ou seja, ele sabe tudo. Em outras palavras, tudo o que for verdadeiro, Deus
sabe que é verdadeiro. Se tiver nevado no dia 1º de janeiro de 10 milhões a.
C. no lugar onde fica hoje Nova York, Deus saberá que isso aconteceu. Se
houver uma prova da conjectura de Goldbach (algo que os matemáticos vêm
buscando nos últimos 300 anos), Deus saberá qual ela é; se não houver
nenhuma prova, Deus saberá que não há nenhuma prova. Todas as crenças de
Deus são verdadeiras e Deus acredita em tudo que é verdadeiro.
Na formação de seus propósitos, pessoas humanas são influenciadas
por seus desejos, suas inclinações interiores no sentido de fazer essa escolha e
não aquela. Nossos desejos incluem os produzidos por nossa fisiologia
corpórea — como os desejos por comida, bebida, sono e sexo — e os
formados em parte por nossa cultura — como desejos por fama e fortuna.
Nós somos, assim nos parece (acredito eu, corretamente), livres em alguma
medida para lutar contra nossos desejos e fazer alguma ação diferente da que
somos inclinados naturalmente a fazer, mas isso requer esforço. Seres
humanos têm livre arbítrio limitado. Mas não se supõe que Deus seja limitado
também. Ele é perfeitamente livre na medida em que os desejos nunca
exercem influência causal sobre ele. Sendo onipotente, não apenas ele pode
fazer o que quer que escolha, mas é perfeitamente livre para fazer suas
escolhas.
O teísmo afirma, então, que Deus é uma pessoa, onipotente,
onisciente e perfeitamente livre. Porém, devemos ser cuidadosos acerca de
como entendemos essas afirmações. Um ser onipotente pode fazer qualquer
coisa. Mas isso significa que ele pode fazer o universo existir e não existir ao
mesmo tempo, 2+2 ser igual a 5, fazer com que uma forma seja quadrada e
redonda ao mesmo tempo ou mudar o passado? A maior parte da tradição
religiosa afirmou que Deus não pode fazer essas coisas; não porque Deus seja
fraco, mas porque as palavras — por exemplo, “fazer uma forma ser
quadrada e redonda ao mesmo tempo” — não descreve nada que faça sentido.
Não há nada que faça uma forma ser ao mesmo tempo quadrada e redonda.
Parte daquilo que se afirma quando se diz que algo é quadrado implica
afirmar que esse algo não é redondo. Assim, em termos técnicos, Deus não
pode fazer o que é logicamente impossível (o que envolve autocontradição).
Deus pode fazer o universo existir e fazê-lo não existir, mas não pode fazê-lo
existir e não existir ao mesmo tempo. A razão pela qual os teístas deveriam
dizer o que acabei de dizer foi primeiramente captada de modo claro pelo
grande teólogo filosófico cristão São Tomás de Aquino, no século XIII.
Parece-me que as mesmas considerações exigem que nós entendamos
a ideia de Deus ser onisciente de modo igualmente cuidadoso. Assim como
não se pode querer que Deus faça o que é logicamente impossível fazer, não
se pode querer que Deus saiba o que é logicamente impossível saber. Parece-
me que é logicamente impossível saber (sem a possibilidade de erro) o que
alguém vai fazer livremente amanhã. Se eu sou realmente livre para escolher
amanhã se irei para Londres ou ficarei em casa, então se alguém hoje tem
alguma crença acerca do que eu farei (por exemplo, que eu vá para Londres),
está em meu poder amanhã tornar essa crença falsa (por exemplo, ficando em
casa). Assim, ninguém (nem mesmo Deus) pode saber hoje (sem a
possibilidade de erro) o que eu vou escolher fazer amanhã. Desse modo, eu
sugiro que nós entendamos o ser onisciente de Deus como o atributo de Deus
saber em qualquer tempo tudo o que é logicamente possível saber naquele
tempo. Isso não inclui o conhecimento do que pessoas humanas farão
livremente antes delas o terem feito. Uma vez que Deus é onipotente, é
apenas porque Deus permite haver pessoas livres, que haverá alguma pessoa
livre. Portanto, esse limite para a onisciência divina surge das consequências
(que Deus poderia antever) de sua própria escolha de criar agentes livres.
Tenho, porém, de alertar o leitor que esta minha visão de que Deus não sabe
(sem a possibilidade de erro) o que agentes livres vão fazer até que eles o
façam não é a visão cristã (ou judaica ou islâmica) normal. Minha visão,
porém, está apoiada, creio eu, em certas passagens bíblicas; parece-me, por
exemplo, a interpretação natural do livro de Jonas que, quando Deus disse a
Jonas para anunciar em Nínive que ela seria destruída, que ele acreditava que
provavelmente precisaria destruí-la, mas que, felizmente, uma vez que o povo
de Nínive se arrependeu, Deus não viu necessidade de realizar sua profecia.
Ao defender esse refinamento de nosso entendimento de onisciência, eu
simplesmente levo adiante o processo de esclarecimento interno do
entendimento cristão básico de Deus, o que outros filósofos cristãos, como
Tomás de Aquino, fizeram em tempos anteriores.
Tudo isso assume, é claro, que seres humanos têm alguma vontade
livre limitada, no sentido de que nenhuma causa (sejam estados cerebrais ou
Deus) determina inteiramente como eles vão escolher. Esse é o modo pelo
qual frequentemente nos parece que temos esse poder. Mesmo o mundo
inanimado, os cientistas agora se dão conta, não é inteiramente determinístico
— e o mundo do pensamento e da escolha é ainda menos obviamente um
mundo previsível. (Eu vou ter um pouco mais a dizer sobre esse assunto no
capítulo 5.)
Deus — a pessoa onipotente, onisciente e perfeitamente livre — é
eterno, de acordo com o teísmo. Mas há dois modos diferentes de entender
“eterno”. Tal como os autores bíblicos claramente o fizeram, podemos
entendê-lo como perpétuo: Deus é eterno no sentido de que ele existiu em
cada momento do passado, existe agora e vai existir em cada momento do
futuro. Alternativamente, podemos entender “eterno” como “atemporal”:
Deus é eterno no sentido de que ele existe fora do tempo. Esse último sentido
é o modo como todos os grandes teólogos filosóficos do século IV até o
século XIV d.C. (Agostinho, Boécio, São Tomás de Aquino, por exemplo)
entenderam a eternidade de Deus. Nessa visão, estritamente falando, Deus
não existe hoje, ontem ou amanhã — ele simplesmente existe. Em seu
“momento” atemporal único, ele “simultaneamente” causa os eventos de
1995 d.C. e de 587 a.C. Neste momento atemporal único ele também sabe
simultaneamente (à medida que acontece) o que está acontecendo em 1995
d.C e em 587 a.C. De minha parte, não consigo ver muito sentido nessa visão
— por várias razões. Por exemplo, não consigo ver o que possa significar
dizer que Deus sabe (enquanto eles acontecem) os eventos de 1995 d.C, a
menos que isso queria dizer que ele existe em 1995 e que sabe, em 1995, o
que está acontecendo nesse momento. E que ele não pode saber no mesmo
ato de conhecimento (enquanto eles acontecem) os eventos de 587 a.C. —
pois eles são anos diferentes. Por conseguinte, prefiro o entendimento de que
Deus é eterno como sendo perpétuo do que sendo atemporal. Ele existe em
cada momento de um tempo sem fim.
Todas as outras propriedades essenciais que o teísmo atribui a
Deus em cada momento do tempo seguem-se dessas três propriedades da
onipotência, onisciência e perfeita liberdade. Assim, supõe-se que Deus é
incorpóreo. Isso porque o fato de uma pessoa ter um corpo significa haver
um pedaço de matéria, tão somente por meio do qual ela pode agir sobre o
mundo físico e adquirir crenças verdadeiras sobre este. Contudo, sendo
onipotente, Deus pode agir sobre o mundo e saber deste sem depender disso.
Assim, ele não terá corpo; não dependerá de matéria para afetar e aprender
sobre o mundo. Ele move as estrelas, tal como nós movemos nossos braços,
diretamente — como uma ação básica. Segue-se também de sua onipotência
que Deus é onipresente (ou seja, está presente em todo lugar), no sentido de
que ele pode agir sobre coisas em todo lugar e saber o que está acontecendo
em todo lugar diretamente, sem precisar de braços ou órgãos sensórios ou da
operação normal de raios de luz a fim de fazê-lo. Porém, embora esteja
presente em todo lugar, ele não é espacialmente extenso; não toma um
volume de espaço — pois não tem um corpo. Por conseguinte, Deus
tampouco tem qualquer parte espacial: tudo dele está presente em todo lugar,
no sentido de que ele está presente em um lugar. Não é como se parte dele
estivesse na Inglaterra e outra parte nos Estados Unidos.
Sendo onipotente, Deus poderia ter evitado que o universo existisse se
o quisesse. Assim, este existe apenas porque ele permite que assim seja.
Desse modo, ou Deus causa a existência do universo, ou permite ou faz com
que outro agente o faça. Nesse sentido, portanto, ele é o criador do universo
e — pelo mesmo argumento — sendo igualmente responsável por sua
existência continuada, é o mantenedor do universo. Ele é responsável pela
existência do universo (e de todo objeto dentro deste), enquanto este existir.
Esse pode ser um tempo finito — o universo pode ter começado a existir
certo número de anos atrás; os indícios científicos atuais sugerem que o
universo começou a existir com o “Big Bang” há cerca de treze bilhões e
meio de anos atrás. Ou o universo pode ter existido sempre. O teísta como tal
não está comprometido com quaisquer dessas teses. Mas o teísta afirma que,
mesmo se o universo existir desde sempre, sua existência em cada momento
do tempo é devida à ação mantenedora de Deus naquele momento.
Supõe-se que Deus seja responsável não apenas pela existência de
todos os outros objetos, mas também por eles terem os poderes e
suscetibilidades que têm. Coisas inanimadas têm certos poderes — por
exemplo, de se moverem de certo modo, de atrair ou repelir umas às outras.
Esses não são “poderes básicos” no sentido que eu estava usado o termo
anteriormente; um poder básico é um poder de fazer algo intencionalmente,
por escolha. Os poderes de coisas inanimadas são poderes de produzirem
efeitos, mas não pela escolha ou para um propósito. Em geral, coisas
inanimadas têm de agir como o fazem, têm de exercer seus poderes em certas
circunstâncias — a pólvora tem de explodir quando você a acende na
temperatura e pressão corretas. Isso é o que quero dizer quando afirmo que
ela tem a suscetibilidade de exercer seus poderes em certas circunstâncias.
(Numa escala muito pequena, o mundo não é inteiramente determinístico —
átomos e partículas menores têm apenas uma probabilidade, uma propensão
de fazer isso ao invés daquilo. Sua suscetibilidade de exercer seus poderes é
apenas uma propensão. Mas essa aleatoriedade não é uma questão de escolha
e assim suas ações não são intencionais.) Deus, afirma o teísmo, leva as
coisas inanimadas a terem os poderes e suscetibilidades que elas têm, em
cada momento, quando elas os têm. Deus continuamente leva a pólvora a ter
o poder de explodir e a suscetibilidade de exercer o poder quando é acesa na
temperatura e pressão corretas. Do mesmo modo, o teísta afirma que Deus
leva as plantas e animais (e os corpos humanos, na medida em que eles agem
não intencionalmente — por exemplo, quando o sangue é bombeado por
nossas artérias e veias) a terem os poderes e suscetibilidades que têm. E
assim Deus é também responsável pela existência dos humanos. Ele poderia
nos levar a agir por necessidade física. Contudo, dado que temos livre arbítrio
limitado, Deus não nos leva a formar os propósitos que formamos. Isso
depende de nós. Mas Deus conserva em nós, em todos os momentos, nossos
poderes básicos de agir e assim garante que os propósitos que formamos
afetem o mundo. Deus nos permite escolher entre formar o propósito de
mover uma mão ou não; e Deus garante que (normalmente), quando
formamos aquele propósito, isso é eficaz — se tentamos mover nossa mão,
ela se move.
Quando Deus age para produzir algum efeito ao conservar objetos na
existência, e conservar seus poderes e suscetibilidades de agir, ele produz o
efeito num modo não básico. Quando Deus faz a pólvora explodir ao
conservar seu poder explosivo e sua suscetibilidade de exercer esse poder
quando acesa, ele produz a explosão de um modo não básico — assim como
quando eu levo a porta a se abrir ao puxa-la na minha direção. Deus
normalmente leva a efeito eventos históricos comuns por essas vias não
básicas — ou seja, ao fazer outros objetos levarem a efeito aqueles eventos.
Mas ele poderia levar a efeito qualquer evento por uma ação básica; e só às
vezes, o teísta normalmente afirma, Deus produz efeitos num modo básico.
Ele ocasionalmente intervém no mundo natural para produzir efeitos
diretamente — por exemplo, ao curar alguém de câncer, quando essa pessoa
não possa ficar melhor por processos normais. (Vou dizer um pouco mais a
respeito dessas ações divinas no capítulo 7.)
Supõe-se que Deus é perfeitamente bom. Sua perfeita bondade se
segue de sua perfeita liberdade e onisciência. Uma pessoa perfeitamente livre
vai inevitavelmente fazer o que ela acredita ser (no geral) a melhor ação e
nunca fazer o que ele acredita ser (no geral) uma ação má. Em qualquer
situação, formar um propósito para atingir algum objetivo, tentar atingir
algum objetivo, significa ver o objetivo, de algum modo, como uma coisa
boa. Ao tentar ir a Londres, devo ver meu estar em Londres como uma coisa
boa de algum modo — ou porque eu me sentiria bem estando lá, ou porque
desse modo eu posso evitar alguma ocasião desagradável, ou porque é meu
dever estar em Londres. Ver algum aspecto da minha estada em Londres
como bom é ter uma razão para ir a Londres. Se eu não tivesse nenhuma
razão para ir a Londres, minha ida para lá não seria uma ação intencional
(não seria algo que eu quereria fazer). As ações intencionais de uma pessoa
devem, portanto, ser racionais em parte; nelas, a pessoa deve ser guiada em
parte por considerações racionais. Contudo, tal como notamos antes, nós
humanos não somos inteiramente racionais, sendo sujeitos a desejos. (Ao
chamar os desejos de não racionais, não quero dizer que há algo de errado
com eles e que não devamos ceder a eles. Quero apenas dizer que eles são
inclinações com as quais nos encontramos e que não estão apenas sob o
controle de razões.) Contudo, uma pessoa livre de desejos, que formasse seus
propósitos apenas com base em considerações racionais, faria
inevitavelmente a ação que ela acreditasse (em geral) ser a melhor a fazer, ou
(segundo crê a pessoa, se não existe a melhor ação, mas um número de ações
igualmente boas) uma das ações igualmente boas.
Ora, se existem verdades morais — verdades sobre o que é
moralmente bom e mal — uma pessoa onisciente vai saber quais elas são. Se,
por exemplo, mentir é sempre errado, Deus saberá isso. Por outro lado, se
mentir é errado apenas em certas circunstâncias, então Deus vai saber isso
também. Apesar das dúvidas de algum cético empedernido, a maioria de nós
de fato pensa na maior parte do tempo que existem alguns atos que são
moralmente bons (e dentre estes alguns que são moralmente obrigatórios), e
alguns que são moralmente maus (e dentre esses alguns que são moralmente
errados). É moralmente bom fazer doações (ao menos algum dinheiro
algumas vezes) para os famintos, e obrigatório alimentar nossos próprios
filhos quando eles estão com fome; e é errado torturar crianças por diversão.
Quem pode seriamente negar essas coisas? O moralmente bom é o que é bom
em geral. Dizer que é moralmente bom alimentar os famintos não é dizer que
isso é bom em todos os aspectos; ao privar-nos de dinheiro, isso pode nos
retirar alguma satisfação futura e assim fazer doações não vai ser bom em
todos os aspectos. Mas é bom no aspecto mais importante que isso salva as
vidas de seres humanos e dá a eles oportunidades de mais bem-estar futuro.
Por conseguinte, esse é um ato bom em geral — ou assim o diz quem afirma
que esse é um ato moralmente bom. Deus, sendo onisciente, terá crenças
verdadeiras acerca do que é moralmente bom e, sendo perfeitamente livre,
fará o que ele acredita ser (em geral) o melhor. Assim, ele fará sempre o que
em geral é o melhor e nunca fará o que é em geral mau. Portanto, Deus será
perfeitamente bom.
Algumas afirmações são claramente verdades morais, existindo
ou não existindo um Deus: é certamente errado torturar crianças por
diversão, existindo ou não existindo um Deus. Por outro lado, se o teísmo for
verdadeiro, devemos nossa existência a cada momento à ação conservadora
de Deus; e ele nos dá este mundo maravilhoso para desfrutar. (É claro que
nem todos os aspectos deste mundo são maravilhosos e vou a considerar seus
maus aspectos no capítulo 6.) Deus é um benfeitor generoso. Uma das
obrigações humanas mais fundamentais (ou seja, deveres) é (dentro de certos
limites) agradar aos nossos maiores benfeitores — retribuir-lhes, com algum
pequeno favor que eles requeiram, as grandes coisas que eles nos deram. Se o
teísmo for verdadeiro, Deus será de longe nosso maior benfeitor, pois todos
os outros benfeitores dependem do poder sustentador de Deus para serem
capazes de nos beneficiar. Devemos muito a Deus. Portanto (dentro de
certos limites), se Deus nos diz para fazer certas coisas, torna-se nosso
dever fazê-las. Assim como (dentro de certos limites) torna-se nosso dever
fazer certas coisas se nossos pais (quando somos crianças) nos dizem para
fazê-las, ou o Estado nos diz para fazê-las, assim também (dentro de certos
limites) torna-se nosso dever fazer coisas que Deus nos diz para fazer. Por
exemplo, não seria um dever cultuar a Deus especialmente aos domingos se
ele não nos tivesse dito para fazê-lo; contudo, se Deus nos diz para cultuá-lo
nesse dia, então isso se torna nosso dever. (E se seu mandamento se refere
aos sábados ou às sextas-feiras, então é nosso dever cultuá-lo nesses dias.) E
se Deus nos diz para fazermos algo que seja nosso dever em todo caso, por
outras razões (por exemplo, para garantir que nossos filhos sejam
alimentados e educados), torna-se ainda mais nosso dever fazer isso. Deus é,
portanto, uma fonte de obrigação moral — seus mandamentos criam
obrigações morais. Contudo, Deus não pode fazer com que nossos deveres
deixem de ser nossos deveres: ele não pode fazer com que seja certo torturar
crianças por diversão. Sendo assim, segue-se de sua bondade perfeita que ele
não vai nos mandar fazer isso — pois é errado mandar fazer o que é errado.
Pode surpreender alguns leitores modernos supor que o teísta possa
admitir que algumas afirmações sejam verdades morais de modo
independente da vontade de Deus. Essa é, contudo, uma questão na qual a
tradição filosófica cristã ficou dividida bem ao meio; e eu me alinho com dois
de seus maiores representantes — São Tomás de Aquino e o filósofo escocês
do século catorze Duns Scotus —, ao manter que existem verdades morais
independentes da vontade de Deus. Deus só pode reforça-las, não alterá-las.
Contudo, se existem verdades morais como “é errado torturar crianças por
diversão”, que valem independentemente da vontade de Deus, elas serão
como “nenhuma forma será ao mesmo tempo redonda e quadrada”; elas
devem valer não importa como o mundo seja, e isso é assim porque, no
fundo, não há sentido em supor que elas não valham.
As ações de Deus são de dois tipos. Existem obrigações (ou seja,
deveres), e há boas ações além da obrigação — chamadas boas ações
superrogatórias. Nós somos censuráveis se deixamos de cumprir nossas
obrigações, mas não somos normalmente elogiáveis por cumpri-las. Por outro
lado, não somos censurados se deixamos de fazer algum ato bom
superrogatório, mas somos elogiáveis se o fazemos. Nem sempre é óbvia a
linha divisória, mas é claro que existe uma. Se eu tomo dinheiro emprestado,
tenho a obrigação de pagar. Se deixar de pagar dinheiro emprestado, sou
censurável; mas eu não mereço normalmente nenhum elogio por pagar o
dinheiro que tomei emprestado. Inversamente, não tenho obrigação nenhuma
de me jogar em cima de uma granada que está perto de explodir para salvar a
vida de um amigo que está próximo dela. Contudo, se eu o faço, mereço o
mais elevado elogio. A maior parte das obrigações vem de benefícios aceitos
voluntariamente ou de incumbências nas quais entramos por vontade própria.
Não tenho a obrigação de me casar e ter filhos; mas se eu de fato tenho filhos,
então tenho o dever de alimentá-los e educá-los. Isso sugere que Deus não
tinha obrigações antes de criar outras pessoas, embora tenha sido um ato
superrogatório dele criar muitas outras pessoas, incluindo as humanas. Se
Deus de fato as criou, ele então vai incorrer em certas obrigações em relação
a elas. Pode ser discutível quais exatamente são essas obrigações, mas a
tradição cristã tem normalmente mantido, por exemplo, que, se Deus nos faz
promessas, ele está obrigado a cumpri-las.
Deixar de cumprir suas obrigações é sempre um mau ato, mas as
obrigações são limitadas. Deus pode, e em virtude de sua bondade perfeita o
fará facilmente, cumprir todas as suas obrigações. Contudo, não há limite
para os possíveis atos de bem superrogatório que uma pessoa pode fazer, a
não ser por limites que surgem de seus poderes. Nós humanos temos poderes
limitados; e podemos fazer apenas alguns poucos bons atos superrogatórios.
Eu posso dar minha poupança para uma instituição de caridade, mas nesse
caso não vou poder dar coisa alguma para outra instituição. Se eu devotar
minha vida para cuidar de um grupo de crianças na Inglaterra, não vou poder
cuidar de outro grupo de crianças num país distante. Os poderes de Deus,
porém, são ilimitados. Mas, como vimos, mesmo Deus não pode fazer o que
é logicamente impossível e é logicamente impossível fazer todos os bons atos
superrogatórios possíveis. É bom que Deus possa criar pessoas, inclusive
pessoas humanas. Porém, não importa quantas ele crie, seria ainda melhor
que ele criasse mais (talvez de modo espaçado em um universo infinitamente
grande). Dado que a vida humana é em geral uma coisa boa, quanto mais,
melhor. Deus não pode criar o melhor dos mundos possíveis, pois não pode
existir um mundo assim — qualquer mundo pode ser melhorado pela
inclusão de mais pessoas e, sem dúvida, por várias outras maneiras. Assim, o
que significa a perfeita bondade de Deus? Não é que ele faça todos os atos
perfeitos — isso não é logicamente possível. Presumivelmente, que ele
cumpra suas obrigações, não faça atos maus e realize muitos atos bons.
Assim, a perfeita bondade de Deus coloca muito pouca restrição em
que ações ele vai fazer. A restrição de que ele não deva realizar qualquer ato
mau, e assim que deva cumprir todas as suas obrigações, pode limitar de
algum modo o que ele vai fazer com as criaturas enquanto as faz existir.
Contudo, eu sugiro, isso não o obriga a mantê-las para sempre (mesmo que
fosse bom em alguns casos que assim o fizesse), muito menos o obriga a cria-
las. Contudo, fica aberto para Deus um âmbito infinito de boas ações: um
número infinito de universos diferentes que ele poderia criar e um número
infinito de coisas diferentes que poderia fazer neles — todas expressões
possíveis de amor criativo superabundante. Contudo, embora haja um número
infinito de universos que Deus poderia criar, há talvez apenas um pequeno
número de tipos de universo que ele poderia criar. Poderia criar universos
contendo algumas pessoas de poderes limitados como os humanos, ou
universos sem pessoas assim. E o óbvio bem de ao menos um universo do
tipo anterior torna bastante provável que ele vai criar um. Contudo, não há
limite para as possibilidades de quantas pessoas esse universo poderia conter,
tampouco de que pessoas elas seriam. Deus tem de escolher qual ação
realizar dentre um número infinito de boas ações, cada uma das quais ele tem
razão para fazer. Assim, tal como nós mesmos numa situação na qual temos
uma escolha entre ações, cada uma das quais temos igual razão de realizar,
Deus deve fazer um “cara ou coroa mental”, ou seja, decidir com base em que
razão agir de um modo que não é determinado por sua natureza ou algo
parecido. Podemos entender uma operação de escolha racional não
determinada como essa, pois nós parecemos experimentar algo assim em nós
mesmos.
Assim, segue-se do fato de Deus ser perpetuamente onipotente,
onisciente e perfeitamente livre, que ele é perpetuamente incorpóreo,
onipresente, criador e mantenedor do universo, perfeitamente bom e uma
fonte de obrigação moral. Contudo, o teísmo não afirma apenas que a pessoa
de Deus tem essas propriedades de ser perpetuamente onipotente, onisciente e
perfeitamente livre. Afirma também que Deus tem essas propriedades
necessariamente — elas são propriedades essenciais de Deus. Permita-me
explicar o que isso significa. Todo objeto tem algumas propriedades
essenciais e algumas acidentais (ou seja, não essenciais). As propriedades
essenciais de um objeto são aquelas que este não poderia perder sem deixar
de existir. Uma das propriedades de minha escrivaninha, por exemplo, é a de
que ela ocupa espaço. Ela não pode deixar de ocupar espaço (tornar-se
incorpórea) e ainda continuar a existir. Em contrapartida, uma de suas
propriedades acidentais é ser marrom. Ela poderia ainda existir se fosse
pintada de vermelho e por isso não fosse marrom. Pessoas são essencialmente
objetos com potencial para ter poderes (intencionais), propósitos e crenças.
Eu posso estar temporariamente paralisado e inconsciente e assim ter perdido
temporariamente o poder de pensar e mover meus membros. Contudo, se eu
perco o potencial de ter esses poderes (se os perco para além do poder de
recuperação médica ou de outro tipo), então eu deixo de existir. Por outro
lado, meus poderes podem crescer ou diminuir e minhas crenças podem
mudar (posso esquecer coisas que eu sabia e adquirir novas áreas de
conhecimento), enquanto o mesmo eu continua a existir em meio a toda a
mudança.
De outra parte, o teísmo mantém que o ser pessoal que é Deus não
pode perder nenhum de seus poderes ou conhecimento ou se tornar sujeito à
influência do desejo. Se Deus perdesse algum de seus poderes, ele deixaria de
existir, tal como minha escrivaninha deixaria de existir se deixasse de ocupar
espaço. E o fato de a eternidade (ou seja, perpetuidade) ser também uma
propriedade essencial de Deus significa que nenhum indivíduo que começou
a existir ou pudesse deixar de existir seria Deus.
Se, conforme afirma o teísmo, existe um Deus que é essencialmente
eternamente onipotente, onisciente e perfeitamente livre, então ele será o fato
bruto último que explica tudo o mais. Deus é responsável pela existência de
tudo o mais além dele mesmo e pelo fato de tudo ter os poderes e
suscetibilidades que tem; por sua ação contínua em cada momento do tempo,
a própria existência de Deus é a única coisa cuja existência a ação de Deus
não explica. Para isso não há explicação. Nesse sentido, Deus é um ser
necessário, algo que existe por si mesmo, sem depender de nada mais.
Assim é o Deus que os teístas (cristãos, judeus e muçulmanos, entre
outros) afirmam existir. Por que deveríamos acreditar neles? A fim de
responder essa resposta, devemos ver os critérios com os quais cientistas,
historiadores e outros usam quando apresentam suas teorias acerca das causas
do que eles observam.
2. COMO EXPLICAMOS AS
COISAS
Dois tipos de explicação
O mundo consiste de objetos — ou, mais tecnicamente, como os
filósofos às vezes os chamam, substâncias. Escrivaninhas e árvores, estrelas e
galáxias, átomos e elétrons, animais e seres humanos são substâncias. (Devo
alertar o leitor que estou usando a palavra “substância” não como o nome de
um tipo de coisa — como óleo ou enxofre — mas como o nome de coisas
individuais. É esta escrivaninha ou aquela árvore que é uma substância.)
Substâncias têm propriedades: elas são quadradas ou têm esta ou aquela
massa ou carga elétrica; e elas têm relações com outras substâncias: uma
substância está a dez metros de outra substância ou à esquerda desta, existe
antes dela ou parece amarela. O fato de uma substância ter uma propriedade
(esta escrivaninha ter uma massa de 10 kg) ou relação (a escrivaninha estar
no chão), ou mudar suas propriedades (esta massa de vidro mudar de
quadrada para redonda) ou relações (distanciar-me de você) ou vir a existir ou
cessar de existir é um evento (ou fenômeno). Eventos são causados por
substâncias. A dinamite causou a explosão, a bola de bilhar causou o
movimento de outra e o atirador causou o movimento do gatilho do revólver.
Frequentemente, muitas substâncias se combinam para causar algum evento.
Vários pintores podem se combinar para pintar uma casa, e o Sol e a Terra
podem ambos exercer força sobre a lua para causar o movimento desta em
certa órbita.
Seres humanos sempre buscaram as explicações verdadeiras de todos
os eventos (todos os fenômenos) que eles conheceram, buscaram descobrir as
causas dos eventos e as razões pelas quais aquelas causas tiveram os efeitos
(20) que tiveram. Nós temos objetivos práticos com isso: se sabemos o que
causa explosões ou o crescimento das plantas, então podemos fazer essas
coisas acontecerem por nós mesmos. Contudo, os seres humanos também têm
profundos objetivos não práticos na busca das causas das coisas e das razões
pelas quais as causas produzem os efeitos que produzem — tanto as causas
das coisas particulares (o que fez o presidente ou o primeiro ministro dizerem
o que eles disseram), quanto de coisas muito gerais (o que causa as folhas
serem verdes ou os animais existirem; e como estas coisas são causadas).
Nós encontramos dois tipos diferentes de explicações de eventos,
dois modos diferentes pelos quais os objetos causam eventos. Existe a
causalidade inanimada e a causalidade intencional. Quando a dinamite causa
uma explosão particular, ela o faz porque, entre suas propriedades, há o poder
de fazê-lo e a suscetibilidade de exercer aquele poder em certas condições —
quando é acesa em certa temperatura e pressão. Ela tem de causar a explosão
naquelas condições, não tem opção e não há nada proposital em fazê-lo. Mas
a dinamite foi acesa porque, digamos, um terrorista a acendeu. O terrorista
causou o acendimento, porque ele tinha o poder de fazê-lo, a crença de que o
fazendo ele causaria a explosão e o propósito de causar uma explosão. Ele
escolheu causar a ignição e poderia ter feito de outro modo. Aqui nós temos
dois tipos de explicação. A primeira, em termos de poderes e
suscetibilidades, é uma explicação inanimada. A segunda, em termos de
poderes, crenças e propósitos, é intencional ou — como a chamarei no futuro
— uma explicação pessoal. Fenômenos diferentes são explicados de modos
diferentes: alguns eventos são levados a efeito intencionalmente por pessoas
(e animais, alguns dos quais também agem intencionalmente), e alguns
eventos são levados a efeito por coisas inanimadas.
O modelo de explicação pessoal é, tal como o inanimado, inevitável
em nosso pensamento sobre o mundo. Alguns pensadores afirmaram que
pessoas e seus propósitos não fazem realmente diferença no que acontece;
eventos no cérebro causam e são causados por outros eventos nervosos e
levam a efeito movimentos corpóreos sem que pessoas e propósitos façam
qualquer diferença. Contudo, ninguém pode pensar desse modo
consistentemente. Formar um propósito (no sentido que eu descrevi) de
mover a própria mão ou algo assim envolve tentar mover a mão. E sabemos
muito bem que, se paramos de formar propósitos e de tentar executa-los, nada
vai acontecer; nós pararíamos de comer e falar e escrever e caminhar como o
fazemos. O que tentamos realizar faz toda a diferença no que acontece.
Os cientistas refinam nossas explicações comuns dos eventos. A
Física e a Química oferecem explicações inanimadas, assim como a História,
a Psicologia, a Sociologia e o trabalho do detetive oferecem explicações
pessoais. Descobrimos que objetos inanimados de tipos semelhantes têm
poderes e suscetibilidades semelhantes para exercerem aqueles poderes em
diferentes condições. Não é só que aquecer aquele pedaço específico de cobre
vai fazê-lo se expandir, mas que todo cobre se expande quando aquecido.
Essas generalizações acerca de quando as coisas exercem seus poderes são
chamadas de leis da natureza, ou leis naturais, ou leis científicas. Psicólogos
e sociólogos não foram ainda tão bem sucedidos em encontrar generalizações
acerca do comportamento proposital humano. Porém, sem dúvida há algumas
generalizações a serem descobertas sobre que pessoas humanas têm quais
poderes e crenças, e em que circunstâncias; e, até certo ponto, sobre que
propósitos elas provavelmente formarão (embora não com certeza).
Se todo objeto no mundo tivesse poderes e suscetibilidades (de os
exercerem em certas condições) diferentes uns dos outros, o mundo seria um
lugar muito complicado e imprevisível. Contudo, é um fato afortunado, que
vou enfatizar bastante, que os objetos se encaixam em tipos cujos membros
todos se comportam de um mesmo modo. Todos os volumes de água
congelam à mesma temperatura — ou seja, eles têm o poder de congelar e a
suscetibilidade de exercer esse poder quando a temperatura cai a 0ºC. Todos
os elétrons (as partículas de carga elétrica) repelem todos os outros elétrons
com a mesma força em todas as condições, e assim por diante. E parece que
todos os objetos materiais quaisquer se conformam às mesmas leis gerais de
comportamento — por exemplo, cada um atrai o outro com uma força
gravitacional que (num alto grau de precisão) Newton codificou em sua lei da
atração gravitacional. Os cientistas estão tentando encontrar as leis mais
gerais da natureza às quais todas as leis menores se aplicam de modo muito
aproximado apenas, ou se aplicam apenas a tipos especiais de objetos (água
ou elétrons). Ao discutir as leis da natureza, o que os cientistas estão
discutindo são os poderes e suscetibilidades de agir de inúmeras substâncias
particulares, seja de todos os objetos particulares, seja de certos tipos de
objetos.
Por causa dessa ampla uniformidade no comportamento das coisas,
podemos descrever nossa explicação de um evento particular em termos das
condições iniciais que cercam a substância causadora que a levaram a agir, e
uma lei da natureza que estabeleça que poderes e suscetibilidades têm as
substâncias daquele tipo. Podemos dizer que o cobre se expandiu porque foi
aquecido, e é uma lei da natureza que o cobre se expande quando aquecido.
Contudo, é importante ter em conta que leis da natureza não são substâncias;
elas são apenas resumos humanos dos poderes e suscetibilidades das
substâncias. São os poderes e suscetibilidades de um pedaço particular de
cobre que o fazem expandir quando aquecido. Quando eu precisar voltar a
esse tema, será mais conveniente, na maior parte do restante deste capítulo,
entender a explicação inanimada simplesmente como condições iniciais
mais leis da natureza causando o evento.
É claro, explicações nas ciências físicas são normalmente muito mais
complicadas que o exemplo (excessivamente simplificado) do último
parágrafo. Elas tipicamente envolvem várias condições iniciais e várias leis
diferentes. Uma explicação para Júpiter estar onde está agora pode envolver
as posições de Júpiter e do Sol no ano passado e também as de outros
planetas, além de várias leis (tais como as três leis do movimento de Newton
e sua lei da atração gravitacional), e o processo de derivar dessas o fenômeno
a ser explicado pode ser bastante longo. A explicação será verdadeira se as
condições iniciais sugeridas ocorrerem realmente, se as leis citadas forem as
leis verdadeiras e se elas conjuntamente nos levarem a esperar que Júpiter
esteja onde está.
As leis da natureza podem ser universais (por exemplo, “toda
partícula de luz se move a uma velocidade de 300.000 km/seg.”) ou
estatísticas (“todo átomo de rádio tem a probabilidade de ½ de decair em
1.620 anos”).
Frequentemente, os próprios fatores envolvidos nas explicações
podem ser explicados. A posição de Júpiter no ano passado pode ser
explicada em termos de sua posição no ano anterior; e a operação das leis do
movimento de Newton pode ser explicada pela operação de leis mais gerais
— por exemplo, as leis de Einstein. (Ou seja, os poderes e suscetibilidades
para agir que uma substância tem, tal como descritos pelas leis de Newton,
são derivados dos que ela tem, segundo as leis de Einstein.) Tipicamente, leis
de nível baixo, voltadas para coisas imediatamente observáveis (por exemplo,
volumes de um gás num tubo de ensaio) em alguma região limitada (por
exemplo, perto da superfície da Terra), são explicadas por leis de “nível mais
alto” que se ocupam do comportamento de coisas não tão imediatamente
observáveis (as moléculas ou átomos dos gases) em uma região mais ampla.
Do mesmo modo, voltando-nos para a explicação pessoal, alguns poderes,
propósitos e crenças podem ser explicados por outros propósitos e crenças.
Eu formo o propósito de ir à dispensa porque tenho o propósito de pegar
comida e acredito que há comida na dispensa.
Por “explicação plena” de um evento, quero dizer uma explicação tal
que, dadas as substâncias e as condições nas quais estas ocorram, seus
poderes e suscetibilidades para agir (ou crenças e propósitos), que a
explicação descreve, o evento deve inevitavelmente ocorrer. Usando a
terminologia de “leis da natureza”, explicações inanimadas plenas de um
evento por leis da natureza e condições iniciais acarretam sua ocorrência. Por
“explicação parcial” de um evento, quero dizer uma explicação que torne a
ocorrência do evento apenas provável; isso pode ser devido a não mencionar
todas as substâncias e outros elementos envolvidos no processo causal, ou
porque as substâncias envolvidas têm apenas uma suscetibilidade
probabilística de produzir o evento em questão. (Por exemplo, como notei,
um átomo de rádio tem apenas uma probabilidade de ½ de decair dentro de
1.620 anos.) Por “explicação completa” de um evento, quero dizer uma
explicação plena, que descreva as causas com seus poderes e suscetibilidades
(ou crenças e propósitos) mais fundamentais. Usando a terminologia de “leis
da natureza”, explicações inanimadas completas vão invocar as leis mais
fundamentais. Se a ação das leis de Einstein é explicada pela ação das leis de
uma grande teoria unificada e esta última não tem explicação ulterior, então é
esta última que vai fazer parte de uma explicação inanimada completa. Uma
explicação pessoal completa vai invocar poderes, crenças e propósitos que
não derivam de poderes, propósitos e crenças simultâneos de nível mais alto.
Assim, se vou à dispensa porque tenho o propósito de buscar comida, e tenho
o propósito de buscar comida porque tenho o propósito de fazer refeições
regulares, mas o fato de ter esse último propósito não tem outra explicação
em termos de um propósito meu mais amplo, então é este último propósito e
não o anterior que faz parte de uma explicação completa de eu me dirigir à
dispensa.

A justificação da explicação
Falamos o bastante sobre os elementos envolvidos na explicação de
dois tipos: substâncias inanimadas e seus poderes, suscetibilidades e os
eventos que os provocam; pessoas e seus poderes, propósitos e crenças. Essas
são as causas dos eventos e as razões pelas quais as causas têm esses efeitos.
Contudo, o que justifica uma afirmação de que essa e aquela é a causa de
algum evento e que essa e aquela é a razão pela qual ela teve dito efeito?
Vamos responder essa questão primeiramente para a explicação inanimada e
vamos continuar falando temporariamente em termos de leis da natureza e
condições iniciais. Por que supomos, por exemplo, que as leis do movimento
de Newton e as posições prévias do Sol, lua e outros planetas explicam a
posição atual de Júpiter?
Uma afirmação de que uma lei proposta é realmente uma lei da
natureza é justificada (ou seja, torna-se provável, é provavelmente
verdadeira) na medida em que:
1) Ela nos leva a esperar (com precisão)
muitos e variados eventos que observamos (e não observamos
nenhum evento cuja não ocorrência ela nos leva a esperar).
2) O que é proposto é simples.
3) Ela se adapta bem a nosso conhecimento
de fundo.
4) Nós não esperaríamos de outro modo
encontrar esses eventos (ou seja, não há nenhuma lei
concorrente que nos leve a esperar esses eventos e que satisfaça
os critérios (1-3) tão bem quanto a lei proposta).
Permita-me ilustrar esses critérios em funcionamento com uma versão
um tanto simplificada de um caso histórico famoso. Considere Kepler no
século dezesseis estudando o movimento do planeta Marte. Outros
pesquisadores lhe forneceram um grande número de observações de posições
anteriores de Marte. Ele quer descobrir a lei que governa o movimento desse
planeta — ou seja, a órbita pela qual Marte se move, cujo conhecimento vai
permitir que ele preveja suas posições futuras. Ele pode marcar num mapa do
céu as posições passadas observadas e a lei que governar o movimento de
Marte deverá ser claramente representada por uma curva que passe entre
aquelas posições (de modo aproximado — pode haver pequenas inexatidões
de observação). Essa lei vai satisfazer o critério 1. O problema é que um
número infinito de curvas diferentes vai satisfazer o critério 1. Uma
possibilidade, é claro, é que Marte se mova numa elipse. Outra é que seu
movimento seja de uma espiral, que dificilmente vai divergir do elíptico
durante o período estudado até aqui, mas que vai divergir significativamente
de agora em diante. Outra é que Marte se move numa órbita que descreve
elipses cada vez mais amplas de um tipo indicado na Figura 1, coincidindo
com a elipse para as observações feitas até agora, mas divergindo
posteriormente de um modo bastante pronunciado. Como vamos fazer a
escolha? A maior parte das curvas possíveis é muito pouco simples em dois
sentidos — suas equações são altamente complexas e sua representação é
pouco suave. A equação de uma elipse é relativamente simples e a curva é
suave. Algumas outras rivais são provavelmente simples também e podemos
não conseguir decidir entre elas e a elipse até que tenhamos mais
observações, ou podemos conseguir fazê-lo por meio de outro critério.
Contudo, para a tarefa importante de eliminar quase todo o número infinito
de alternativas, o critério 2 — o critério da simplicidade — é essencial.
Primeira posição observada

Figura 1: curvas possíveis para representar o movimento de Marte


(posições de Marte marcadas por cruzes)

O critério 3, contudo, também deve ser considerado — a lei proposta


tem de se adaptar bem ao nosso conhecimento de fundo. Por “conhecimento
de fundo”, quero dizer o conhecimento de como as coisas funcionam em
áreas vizinhas. Por exemplo, quando estamos considerando teorias acerca de
como um determinado gás se comporta em baixa temperatura, nós levamos
em consideração o que sabemos acerca de como outros gases se comportam
em baixa temperatura. Nosso terceiro critério é satisfeito na medida em que
uma lei proposta “se encaixa” naquele conhecimento mais amplo. Ao
desenhar sua curva para a órbita de Marte, Kepler levou em consideração seu
conhecimento de como outros planetas se comportavam. Se a lei de
movimento planetário mais bem justificada para Mercúrio, Vênus, Júpiter e
Saturno não fosse a de uma elipse, mas, digamos, de uma espiral, então,
embora a lei da espiral pudesse ser mais simples que a da elipse, Kepler teria
de ter bons fundamentos para preferir aquela ao invés da elipse como sendo a
lei que governa a órbita de Marte. De fato, é claro, Kepler descobriu que, para
outros planetas também, a lei sugerida que mais bem satisfazia os outros
critérios era a lei de que o planeta se move em uma elipse. Em cada caso não
havia outro conhecimento de fundo para se levar em conta além dos
movimentos de outros planetas e, assim, Kepler pôde defender como a lei do
movimento planetário, não apenas para Marte, mas também para todos os
planetas, que eles se moviam em elipses.
Por melhor que alguma lei proposta satisfaça os critérios 1-3, se
houver alguma lei incompatível que satisfaça esses critérios ainda melhor,
desde que ambas não possam ser leis, a primeira deve ser rejeitada. Isso é o
que diz o critério 4. Nenhuma lei rival proposta para Marte satisfez melhor os
critérios 1-3 e assim a lei da elipse satisfez o critério 4.
Leis científicas se adequam a teorias científicas. A teoria de Kepler do
movimento planetário consistia de três leis, das quais ele só teve tempo de
discutir a primeira. Porém, os mesmos critérios entram em jogo para julgar a
teoria resultante. A simplicidade de uma teoria vai incluir a boa adequação de
suas leis componentes entre si. Como notamos antes, leis e, portanto, teorias,
podem ser explicadas por teorias de nível mais alto. Os mesmos critérios
estão em jogo novamente. O funcionamento das leis de Kepler é explicado
pelo funcionamento das leis de Newton, dado que a massa do Sol é grande
em comparação com a dos planetas. As bases para acreditar que a teoria de
Newton é verdadeira são (critério 1) que podemos deriva-la de leis bem
justificadas da natureza em vários campos diversos — as leis de Kepler, a lei
da queda dos corpos de Galileu, as leis dos movimentos de luas planetárias,
de marés, de pêndulos e assim por diante — as quais (critério 4) não teríamos
outra razão para esperar que valessem. As três leis do movimento de Newton
e sua lei da atração gravitacional são simples (critério 2) — em comparação
com alternativas a esmo que poderiam ser construídas.
O critério do conhecimento de fundo (critério 3) não funciona quando
não temos conhecimento de como as coisas funcionam em alguma área de
estudo vizinha. Se não temos nenhuma medida de posições de outros
planetas, sem falar de alguma lei postulada sobre seu comportamento, não
podemos levar em conta o comportamento de outros planetas ao avaliar a
teoria acerca de Marte. Além disso, inevitavelmente, quanto mais ampla a
área de estudo, menos áreas vizinhas haverá para levar em consideração. Em
sua teoria da mecânica, Newton estava tentando explicar tanta coisa (dado
que muito pouco era conhecido no século dezessete sobre química, luz e
eletromagnetismo) que não havia área vizinha com a qual ele pudesse
comparar a sua própria. Ele justificou sua teoria com base em que ela era uma
teoria simples que o levava a esperar os fenômenos observados que não
seriam esperados de outro modo. E certamente, quando estamos ocupados
em explicar tudo (literalmente) que é observado, o critério do
conhecimento de fundo será irrelevante.
Em todo caso, o critério 3 é redutível ao critério 2. Isso porque, o
que significa uma lei “se encaixar” em outra? As leis de Kepler para o
movimento de Marte se adequavam a suas leis para o movimento de outros
planetas porque elas tinham a mesma forma. Contudo, isso significa que a
combinação das leis — “os outros planetas sempre se movem em elipse e
Marte também se move em elipse” — era preferível a “os outros planetas se
movem sempre em elipse e Marte se move sempre em espiral”. Por quê?
Porque a primeira suposição é mais simples que a segunda. Ela pode ser
descrita simplesmente como “todos os planetas se movem sempre em
elipses”. Em outras palavras, uma lei para a área mais restrita se adequa bem
a leis de uma área vizinha, na medida em que elas embasam uma lei simples
para a área toda, ao invés de uma complexa. Porque o critério de
conhecimento de fundo ao se julgar a aceitabilidade de uma lei restrita
proposta acaba caindo no critério de simplicidade para uma lei mais ampla,
eu vou poder frequentemente ignora-la no futuro. É a simplicidade o critério
chave para julgar entre as leis que dão conta dos dados observados.
Um leitor pode pensar que poderíamos eliminar essas curvas “a
esmo” que são compatíveis com as observações apenas esperando por mais
observações. A próxima observação da posição de Marte não vai eliminar
todas as curvas que eu marquei no diagrama (figura 1) exceto uma —
presumivelmente a elipse? Sim, mas ainda haverá um número infinito de
curvas (que eu não tive espaço de marcar no diagrama) que passam pelas
antigas posições, pela nova e que também vão divergir fortemente no futuro.
Sem o critério de simplicidade, não temos nenhum modo de escolher entre
um número infinito de teorias compatíveis com os dados. Alguns pensadores
afirmam que nossa preferência pela simplicidade é uma mera questão de
conveniência, que preferimos teorias mais simples porque é mais fácil
trabalhar com elas; que nossa preferência pela simplicidade não tem nada a
ver com um interesse na verdade. Isso parece falso. Frequentemente
precisamos de predições acerca do futuro; elas são cruciais para nossa
sobrevivência bem como para realizar nossos planos mais ambiciosos.
Precisamos saber se a ponte vai cair se passarmos com um caminhão por ela,
se o remédio vai curar ou matar, se a explosão nuclear vai desencadear uma
reação em cadeia que vai destruir toda a humanidade, e assim por diante.
Podemos fazer nossas predições usando a teoria mais simples que extrapole
de observações do passado; e acreditamos que as predições de uma teoria
como essa são mais provavelmente verdadeiras que as de qualquer outra
teoria. Se realmente pensássemos que as predições de todas as teorias (que
davam conta das observações feitas até agora) fossem provavelmente
verdadeiras de modo igual, nós nunca estaríamos justificados em confiar em
uma ao invés de outra. Contudo, nós confiamos de fato em uma ao invés de
outra, e pensamos que estamos justificados em fazê-lo, e isso só pode ser
assim porque consideramos a simplicidade de uma teoria como indício
crucial de sua verdade.
A “simplicidade” de uma teoria científica é uma questão de ela ter
poucas leis componentes, cada uma das quais relacionando poucas variáveis
por fórmulas matematicamente simples (cujas consequências para a
observação são deriváveis por passos matematicamente simples). Se uma
teoria postula objetos ou propriedades para além dos que podemos observar
(tais como átomos e elétrons, quarks e quasares), o critério de simplicidade
nos diz para postular poucos objetos novos, poucos novos tipos de objetos,
poucas novas propriedades e poucos novos tipos de propriedade — e quanto
menos, melhor. A regra de que você não deve postular mais objetos que os
necessários para explicar suas observações é frequentemente chamada de
“navalha de Ockham”. Contudo, o modo como você a aplica depende do que
você entende por “necessários”. É claro, é certo postular poucos objetos, se
eles dão uma explicação de muitos fenômenos. Pode parecer às vezes a não
cientistas que os cientistas propõem teorias muito pouco simples. A teoria
geral da relatividade de Einstein não parece muito simples, mas ele defendia
que ela era a mais simples das teorias que davam conta dos dados de
observação. A teoria mais simples para uma área que satisfaça o critério 1
pode não ser muito simples, mas ainda assim ela pode ser muito mais simples
que um número infinito de teorias possíveis que satisfaçam o critério 1
igualmente bem.
Retornando brevemente ao critério 1 — note que ele, como os outros
critérios, pode ser satisfeito em diferentes graus. Ele é satisfeito na medida
em que a lei ou teoria nos leva a esperar muitos eventos. Quanto mais ele
puder explicar, melhor. Quanto mais variados os eventos que ele puder
explicar, melhor. Uma teoria que puder explicar fenômenos em diferentes
áreas deve ser preferida a uma que possa explicar fenômenos em apenas uma
área. Uma teoria é melhor na medida em que puder explicar fenômenos
precisamente; ou seja, a teoria nos leva a esperar um fenômeno descrito de
certo modo e um fenômeno exatamente como o descrito é observado.
Contudo, se o que é observado não é tanto o que a teoria nos leva a esperar
— por exemplo, a teoria prediz que o planeta vai estar a um ângulo de
longitude celeste de 106º1’2” e ele é observado a um ângulo de 106º2’12” —
a teoria será imprecisa em uma medida de aproximadamente 1’. A teoria
pode ainda ser correta, pois as observações podem ser só um pouco inexatas
ou porque fatores que não conhecemos pode ter afetado o resultado, mas
quanto menos necessidade houver de postular erros assim, mais razão haverá
para acreditar que a teoria é verdadeira. E, finalmente, uma lei que nos leve a
esperar o que é observado apenas em certo grau de probabilidade é menos
justificada que uma que nos leva a esperar com certeza o que é observado.
Todos esses são aspectos do critério 1.
Até aqui não falei de leis ou teorias científicas “prevendo”
observações, mas apenas de “levando-nos a esperar observações”, pois falar
de predição (na análise do critério 1 e outros) pode sugerir que observações
dão indícios para uma teoria apenas na medida em que a teoria for primeiro
formulada, e então o cientista estabelecer o que a teoria nos leva a esperar no
futuro e, por fim, ele observar o que a teoria esperava. Contudo, não posso
ver o que tem a ver isto com o apoio dado pelas observações à teoria se,
digamos, 100 observações são feitas primeiro e a teoria for então construída
para explica-las, ou se a teoria é construída com base em cinquenta
observações e consegue predizer outras cinquenta. O apoio dado por
observações a uma teoria se refere a uma relação lógica entre observações e a
teoria, e é independente de quando as observações são feitas. Aqueles que
pensam diferentemente dizem que teorias podem sempre ser elaboradas para
se adequarem a observações, além do fato de que nem sempre elas predizem
de modo preciso; e assim a previsão precisa fornece um teste mais objetivo
para a teoria proposta. Certamente teorias podem sempre ser elaboradas para
se adequarem a observações, mas o que nem sempre podem ser forjadas são
teorias simples que dão conta de muitas observações. Elas são tão difíceis de
encontrar quanto teorias que predizem de modo preciso, e são as únicas que
as observações apoiam. Um exemplo para ilustrar a irrelevância do apoio
dado a uma teoria em relação a quando as observações são feitas é dado pela
teoria do movimento de Newton. Ela era tida por muitos (certamente de
modo correto) como sendo altamente provável, dados os indícios disponíveis
aos cientistas do começo do século dezoito, embora não fizesse, por muitos
anos, nenhuma previsão que pudesse ser testada além das que já eram feitas
pelas leis então conhecidas, as quais a teoria de Newton se propunha explicar
(por exemplo, as leis de Kepler do movimento planetário e as leis de Galileu
sobre a queda dos corpos). A alta probabilidade da teoria de Newton veio
apenas de ser uma teoria muito simples de nível mais alto, da qual aquelas
diversas leis eram dedutíveis.
Desenvolvi essa ideia um pouco mais porque é comum se dizer que o
teísmo e teorias teológicas mais completas não fazem “predições” que
possam ser prontamente testadas. (Eles fazem predições sobre a vida após a
morte, por exemplo, mas essas não podem ser prontamente testadas agora.) O
que defendi e que a história da ciência mostra é que as teorias são bem
testadas se nos levam a esperar observações, não importa se essas
observações são novas ou antigas; vou sustentar que o teísmo é uma teoria
muito simples que nos leva a esperar muitas observações antigas. Isso posto,
vou futuramente falar às vezes de teorias “prevendo” observações, querendo
dizer com isso apenas que elas nos levam a esperar observações, sem
qualquer implicação quanto as essas terem sido feitas antes ou depois da
postulação da teoria.
Assim, são esses os quatro critérios em funcionamento para avaliar a
probabilidade de uma teoria científica ser verdadeira e de contribuir para a
explicação verdadeira de um evento. As leis das teorias científicas são
simplesmente regularidades nos poderes e suscetibilidades de substâncias
em particular. Que todos os planetas se movam em elipses em volta do Sol é
apenas a regularidade de que cada planeta tem o poder de se mover em elipse
e a suscetibilidade de exercer aquele poder quando o Sol está no foco da
elipse. O que o cientista descobre por meio de seus critérios são os poderes e
suscetibilidades da ação de substâncias em particular, e ele busca a descrição
mais simples destas que vão lhe permitir fazer predições bem sucedidas.
Uma explicação verdadeira de um evento vai envolver não apenas
a teoria científica correta, mas também as condições iniciais corretamente
descritas (ou seja, quais substâncias existem em que condições). O que
explica a posição atual do planeta Urano não é apenas a teoria de Newton,
mas também as posições anteriores do Sol, de Urano e de outros planetas.
Como sabíamos quais elas eram? Nós podemos tê-las observado. Ou, caso
contrário, a hipótese de que havia planetas em tais e tais posições poderia dar
a melhor explicação para os fenômenos que nós de fato observamos. E por
“melhor explicação” quero dizer uma que satisfaça melhor nossos quatro
critérios. Podemos tentar explicar a posição atual de Urano em termos das
leis de Newton e das posições passadas do Sol e de Urano além dos outros
planetas que podemos observar. Contudo, se tudo isso não nos levar a esperar
exatamente o que observamos, podemos postular (como fez Leverrier em
1846) que existe outro planeta, Netuno, além de Urano, que não podemos
observar, tirando Urano de órbita. Se não podemos ver esse planeta, quais são
os fundamentos para supor que ele está lá? Um fundamento poderoso é de
que, do contrário, teremos de abandonar a teoria de Newton, a qual, a menos
que postulemos Netuno, não seria capaz de predizer a trajetória de Urano. Ou
seja, a descrição mais simples de um grande número de fenômenos é de que a
teoria de Newton é verdadeira e que os corpos celestes incluem Netuno.
Fundamentos adicionais para afirmar a existência de Netuno seriam dados se
a suposição de sua existência explicasse outros fenômenos inexplicáveis de
outra maneira. Ao postular entidades inobserváveis, postulamos aquelas
entidades e a teoria científica (acerca dos poderes e suscetibilidades da ação
de objetos) que mais bem satisfaçam conjuntamente nossos quatro critérios.
Tal como notei anteriormente, uma faceta da simplicidade é postular poucos
objetos. Se postular um planeta inobservável é suficiente para nos levar a
esperar as observações que fizemos, não devemos postular dois.
Os mesmos quatro critérios estão em funcionamento quando se
avaliam explicações pessoais. Ao explicar alguns fenômenos como causados
por pessoas, buscamos uma hipótese que nos leve a esperar os fenômenos que
não esperaríamos encontrar de outro modo, uma hipótese mais simples
possível, que se adeque ao conhecimento de fundo. Suponha que
encontremos entre os textos recuperados de uma biblioteca antiga três
páginas de um argumento filosófico aparentemente conexo com a mesma
caligrafia. Uma hipótese é que a mesma pessoa escreveu as três páginas.
Outra hipótese é que cada página foi escrita por um filósofo diferente em
cada tempo; que todos os três filósofos tinham a mesma caligrafia, mas que
se preservaram apenas a primeira página do texto do primeiro filósofo, a
segunda página do texto do segundo filósofo e a terceira página do texto do
terceiro filósofo. Embora os argumentos fossem diferentes entre si,
coincidentemente as três páginas se conectavam de modo a constituir um
argumento que nenhum deles estava propondo. Embora essa última hipótese
satisfaça o critério 1 (de predizer as observações) tanto quanto a hipótese
anterior, claramente ela satisfaz muito menos o critério de simplicidade —
pois postula muitas pessoas, propósitos e crenças, ao invés de uma pessoa,
um propósito e um conjunto de crenças. O conhecimento de fundo também
vai entrar na avaliação dessa hipótese — o conhecimento, por exemplo, da
frequência com a qual as pessoas têm caligrafias idênticas e com a qual
páginas diferentes de argumentos diferentes se adequam para formar um
argumento aparentemente conexo.
Ao avaliar um conjunto muito mais amplo de fenômenos em termos
de sua causalidade por pessoas humanas, construímos uma imagem dos
fenômenos tal como causados por poucas pessoas com poderes, propósitos e
crenças constantes, que mudam de maneiras regulares (por exemplo, em
resposta a vários estímulos sensórios) tal como nós o podemos. Se
conseguirmos explicar dois efeitos causados por um ser humano em termos
do mesmo propósito, não vamos invocar um propósito novo para explicar o
segundo efeito. Se pudermos explicar um efeito como tendo sido causado por
uma pessoa em virtude de poderes do mesmo tipo que outros seres humanos
têm, não vamos postular algum poder novo — não vamos postular que uma
pessoa tem um poder básico de entortar colheres à distância se pudermos
explicar o fenômeno das colheres ficarem tortas atribuindo a outra pessoa a
ação de entorta-las com suas próprias mãos. E assim por diante.
Assim como podemos precisar postular planetas e átomos
inobserváveis para explicar fenômenos, podemos precisar postular pessoas
incorpóreas se uma explicação assim dos fenômenos satisfizer melhor os
quatro critérios. Se os objetos de meu quarto começam a voar e formar
palavras, a melhor explicação pode ser em termos da ação de um poltergeist
com certos poderes básicos diferentes dos poderes, propósitos e crenças
humanos normais (poderes básicos sobre objetos dentro de certa região,
digamos). Do mesmo modo, pode nem sempre ser óbvio se um corpo é o
corpo de uma pessoa e se os movimentos de uma parte deste são causados
intencionalmente. Suponha que eu vá para um planeta distante e encontre lá
objetos moventes com membros. Esses corpos seriam pessoas ou apenas
coisas inanimadas? Nossa resposta vai depender de se podemos explicar um
grande número de seus movimentos, bem como os de seus membros pela
suposição de que eles são pessoas com certos poderes básicos (de controlar
seus membros), propósitos (constantes) e crenças (adquiridas de algum modo
regular).
Os quatro critérios estão em funcionamento para determinar qual de
nossas muitas afirmações sobre o mundo além de nossa observação é a mais
provavelmente verdadeira. Em todos os campos nós procuramos a hipótese
mais simples que nos leve a esperar os fenômenos que encontramos (e que, se
houver um conhecimento de fundo, se adeque melhor a este).
3. A SIMPLICIDADE DE DEUS
Explicação última

As causalidades inanimada e pessoal interagem. Às vezes uma


explica a existência e o funcionamento dos fatores envolvidos na outra. A
ciência física explica por que uma bola jogada de uma torre a vinte metros de
altura leva dois segundos para chegar ao chão. Contudo, podemos precisar de
uma explicação pessoal para saber por que a bola foi jogada. Poderia ser que
Galileu a jogou para testar a lei da gravidade que estava propondo. Por sua
vez, poderes, crenças e propósitos humanos são claramente afetados de modo
causal por fatores inanimados. Minhas crenças podem ser causadas pela
chegada de raios de luz em meus olhos e ondas de som em meus ouvidos. O
processo de produção de crença não envolve que os raios de luz tenham
qualquer propósito de causar minhas crenças: o processo é analisável em
termos dos poderes e suscetibilidades de objetos inanimados — ao menos
parcialmente. Do mesmo modo, meus poderes básicos de movimento
corpóreo são causados por estados de meus nervos e cérebro — ao menos
parcialmente. Posso mover meu braço quando quero apenas se meu cérebro,
nervos, músculos e assim por diante estão em certos estados. O fato de eles
estarem no estado em questão é parte da causa de eu ter o poder de mover
meu braço. O modo como eu movo meu braço intencionalmente é por meio
de (não intencionalmente) causar um estado cerebral que, por seu turno,
causa o movimento do braço. Além disso, meus propósitos são formados sob
a influência de desejos que têm sua origem no estado de meu corpo — meu
desejo de comer, por exemplo, é causado pelo vazio de meu estômago.
(Minha posição no caso dos propósitos, tal como dito antes, é de que tais
influências são apenas parciais. Uma pessoa tem o poder de resistir a essas
influências.) A causalidade inanimada e pessoal interage. Fatores inanimados
ajudam a formar nossas escolhas; nossas escolhas ajudam a formar o mundo
inanimado.
O leitor vai se lembrar que por “explicação completa” de um evento
quero significar uma explicação plena que envolve substâncias com seus
poderes e suscetibilidades, etc. descritos no modo mais fundamental. Se a
explicação completa cita pessoas, seus poderes, crenças e propósitos, então
essa é uma explicação pessoal. Se ela cita substâncias inanimadas, seus
poderes e suscetibilidades (ou, em outras palavras, leis da natureza), a
explicação completa é de tipo inanimada. Mas nós frequentemente buscamos
mais que uma explicação completa qualquer de um evento; buscamos não
uma explicação completa em termos de fatores operando na hora da
ocorrência do evento e que o produzem, mas sim uma que explique em
termos de causas anteriores por que aqueles fatores, que funcionaram na hora
da ocorrência do evento para o produzir, existiram em primeiro lugar.
Queremos saber o que, em um tempo anterior, levou-me a existir e ter os
poderes, crenças e propósitos que eu tenho; o que, num tempo anterior,
causou os raios de luz chegar aos meus olhos ou causaram o vazio de meu
estômago. Uma explicação completa de alguns eventos na qual todos os
fatores envolvidos não têm explicação ulterior, plena ou parcial, em termos
de causas anteriores constitui o que eu vou chamar explicação última do
evento.
A busca humana por explicação almeja, de modo inevitável e correto,
uma explicação última de tudo que é observável — a substância ou
substâncias das quais tudo o mais depende para sua existência e propriedades.
Nem tudo vai ter uma explicação. A pode ser explicado por B e B por C, mas
no final haverá alguma substância ou muitas com tais e tais propriedades das
quais todos os outros objetos dependem. Nós teremos de reconhecer algo
como último — a grande questão metafísica é o que ele é. Parece haver três
explicações últimas disponíveis. Uma é o materialismo. O que quero dizer
por isso é a visão de que a existência e o funcionamento de todos os fatores
envolvidos na explicação pessoal tem uma explicação inanimada completa.
Não se trata da visão extrema — e, a meu ver, obviamente falsa — de que as
pessoas, suas crenças, propósitos e assim por diante são objetos materiais e
seus estados físicos. Essa visão parece obviamente falsa — o propósito de
alguém de conquistar o mundo não é o mesmo evento que o acionamento de
um nervo no cérebro. Uma lista de eventos que ocorrem no mundo que
incluísse apenas o último, mas não o primeiro teria deixado algo de fora. Um
marciano que descobrisse tudo sobre meu cérebro ainda ia querer saber se eu
tenho propósitos ou se eu era apenas um robô inanimado. (Terei mais a dizer
sobre esse tópico no capítulo 5.) O que quero dizer aqui por materialismo é a
tese de que o pessoal e o mental, embora distintos do físico, são inteiramente
causados por ele; que a existência de pessoas e o fato de terem propósitos,
poderes e crenças tem uma explicação inanimada (em termos dos poderes e
suscetibilidades de objetos materiais como células nervosas). Pode ser que, à
medida que explicamos o estado inteiro do universo, cheguemos ao fim das
contas a um primeiro estado de coisas, a um primeiro pedaço de matéria com
o poder de produzir toda a matéria subsequente e à suscetibilidade de fazê-lo
em um tempo e não em outro. Esse primeiro estado daria por si mesmo uma
explicação última de tudo. De outro modo, a cadeia de explicação pode
retroceder para sempre; o estado do universo hoje é explicado pelo estado de
ontem e o estado de ontem pelo estado do universo de anteontem e assim por
diante para sempre. Nesse caso — na visão materialista — qualquer
explicação última do universo vai incluir, tomados como um todo, um estado
inicial do universo sem começo — todas as substâncias com seus poderes e
suscetibilidades existindo em todos os tempos iniciais.
Uma alternativa ao materialismo é uma teoria mista — que a
existência e funcionamento de fatores envolvidos na explicação pessoal não
têm uma explicação última em termos inanimados; e, por sua vez, que a
existência e funcionamento dos fatores envolvidos na explicação inanimada
não têm uma explicação última em termos pessoais. Chamemos essa teoria de
humanismo.
A terceira possibilidade é de que a existência e funcionamento dos
fatores envolvidos na explicação inanimada devem ser explicados em termos
pessoais, nos quais as pessoas incluem não apenas pessoas humanas, mas
pessoas de outros tipos. Uma teoria desse tipo, o teísmo, é a tese de que Deus
existe. Nessa visão, como vimos no capítulo 1, Deus mantém existindo os
objetos materiais de nosso universo a todo momento com seus poderes e
suscetibilidades de ação. Ele age no mundo tal como nós agimos em nossos
corpos: contudo, diferentemente de nós, ele não depende de nenhum corpo
para seu poder de agir. E assim, enquanto é verdade que o metal expande
porque foi aquecido e que tem o poder de expandir e a suscetibilidade de
exercer aquele poder quando aquecido, o metal existe porque Deus o mantém
no ser, e tem o poder de expandir e a suscetibilidade de exercer aquele poder
quando aquecido porque Deus, uma pessoa, simultaneamente sustenta nele
aquele poder e suscetibilidade em virtude de seus poderes básicos. Deus,
então, mantém as leis da natureza funcionando; e, ao manter existindo os
objetos materiais de nosso universo, ele mantém funcionando a lei da
conservação da matéria. Deus também causa, alega o teísmo, a existência de
pessoas humanas e as mantém existindo de momento a momento; e ele causa
o fato de elas terem e sustenta nelas seus poderes e crenças. Ele o faz em
parte por meios como sustentar nos genes os poderes de produzir seres
humanos e, nas moléculas que formam os cérebros, os poderes de sustentar
poderes e crenças humanos. Deus também permite os humanos formarem
seus propósitos, mas ele não os faz escolher de um modo ou de outro. Assim,
Deus dá uma explicação completa do universo e de tudo o que acontece nele,
à exceção do que ele permite aos seres humanos fazerem por escolhas livres.
Se o universo teve um começo, Deus criou os primeiros objetos materiais na
época; se o universo sempre existiu, Deus, por sua ação a cada momento do
tempo perpétuo, sustenta os objetos materiais sempre na existência. Portanto,
de um modo ou de outro, ele oferece (em virtude de sua contínua escolha de
sustentar os objetos materiais na existência) a explicação última do universo,
à exceção daquilo que ele permite aos seres humanos fazerem por livre
escolha.
Essas três teorias rivais de explicação última de todos os fenômenos
observados devem ser avaliadas pelos quatro critérios de avaliação de
explicações propostas, que eu analisei no capítulo 2. Contudo, quando
estamos considerando explicações de todos os fenômenos observados, como
vimos na ocasião, o critério 3 claramente fica de fora. Quando você está
tentando explicar tudo que é observável, não há campos vizinhos sobre os
quais você pode ter conhecimento, aos quais a sua teoria precisa se adaptar.
Assim, a aplicação dos quatro critérios se resume ao seguinte: a teoria de
explicação última mais provavelmente verdadeira é a mais simples que
prediga os fenômenos observáveis, quando não tivermos outro modo de
esperar encontra-los. A tese deste livro é que o teísmo, de longe, oferece a
explicação mais simples de todos os fenômenos. O materialismo não é uma
hipótese simples, como vou argumentar, e há um grande número de
fenômenos que ele provavelmente nunca vai ser capaz de explicar. O
humanismo é uma hipótese ainda menos simples que o materialismo.
Tal como veremos mais plenamente no tempo devido, a grande
complexidade do materialismo vem do seguinte: que ele postula que toda
explicação completa para as coisas se comportarem do modo como se
comportam é dada pelos poderes e suscetibilidades de número imenso
(provavelmente infinito) de objetos materiais. Cada um deles é feito de
átomos e os átomos são feitos de partículas fundamentais, como elétrons e
prótons; e alguns desses, por sua vez, são feitos de quarks e, pelo que
sabemos, os quarks são feitos de subquarcks. Esses objetos materiais
pertencem a tipos, que têm exatamente os mesmos poderes e suscetibilidades
uns dos outros. Todos os pedaços do cobre, como já notamos, têm
exatamente os mesmos poderes de expandir ou derreter ou conduzir
eletricidade e as suscetibilidades de exercer esses poderes nas mesmas
circunstâncias. Para cada evento, há uma explicação completa de por que ele
aconteceu, dada pelos poderes e suscetibilidades dos objetos particulares
envolvidos no acontecimento. Há uma explicação completa para esta pedra
que cai no chão em dois segundos, dada pelos poderes e suscetibilidades da
pedra e da terra (tal como codificados pelas leis de Newton ou o que quer que
explique as leis de Newton). E há uma explicação completa para este pedaço
de cobre se expandir quando aquecido nos poderes e suscetibilidades deste
pedaço de cobre.
Se o universo não teve um começo, a explicação última de como as
coisas são — segundo o materialista — está nos poderes e suscetibilidades
de inúmeras partículas fundamentais, ou das substâncias materiais, como
pedaços de matéria-energia, que fizeram as partículas fundamentais existir.
Tudo isso, sejam as partículas fundamentais sejam os pedaços de matéria-
energia — por uma enorme coincidência — têm alguns dos mesmos poderes
e suscetibilidades que os outros (por exemplo, todas obedecem a lei da
gravidade); e elas podem ser incluídas em uns poucos tipos (por exemplo,
elétrons ou prótons e seus próprios constituintes fundamentais). Todos os
membros de um mesmo tipo — por uma enorme coincidência adicional —
têm seus outros poderes e suscetibilidades iguais entre si. Se o universo teve
um começo, ele começou com substâncias materiais, provavelmente
formando um pedaço muito condensado de matéria-energia, e tudo isso
(todas as partes do pedaço condensado) manifestaria essa coincidência geral
em seus poderes e suscetibilidades.
O teísmo, conforme vou defender, pode se sair muito melhor. Neste
capítulo, vou argumentar que o teísmo é uma hipótese muito simples, muito
mais simples que a hipótese inanimada que eu venho analisando; e nos
capítulos seguintes, vou mostrar como o teísmo nos leva a esperar encontrar
as coisas que nós de fato encontramos — quando não esperaríamos encontra-
las de outro modo.

A simplicidade do teísmo
O teísmo afirma que todo objeto que existe tem como causa da sua
existência e se mantém existindo por uma única substância, Deus. E ele
afirma que toda propriedade que toda substância tem é devida a Deus causa-
la ou permitir que ela exista. É traço característico de uma explicação simples
postular poucas causas. Não poderia, nesse sentido, haver explicação mais
simples que a postulação de uma única causa. O teísmo é mais simples que
o politeísmo. E como essa única causa o teísmo postula uma pessoa e graus
infinitos dessas propriedades que são essenciais a pessoas — poder
infinito (Deus pode fazer tudo que é logicamente possível) conhecimento
infinito (Deus conhece tudo que é logicamente possível conhecer) e liberdade
infinita (nenhuma causa externa influencia os propósitos que Deus forma:
Deus age apenas quando ele vê razão para agir).
A hipótese de que há uma pessoa infinitamente poderosa,
conhecedora e livre é a hipótese de que existe uma pessoa com limite zero
(afora os da lógica) para seu poder, conhecimento e liberdade. Os cientistas
sempre viram postular graus infinitos de alguma coisa como mais simples
que postular algum grau finito muito grande daquela quantidade, e sempre
fizeram aquilo quando assim prediziam as observações igualmente bem. A
teoria da gravitação de Newton postulava que a força gravitacional se movia
com velocidade infinita ao invés de uma velocidade finita muito grande
(digamos 2.000.000.000.325 km/seg.), o que teria predito as observações
igualmente bem, dentro dos limites de precisão nos quais as predições
poderiam ser feitas. Foi apenas quando a teoria geral da relatividade de
Einstein, que se ocupava tanto da gravidade quanto do eletromagnetismo, foi
adotada como a teoria mais simples, cobrindo um grande número de dados,
que os cientistas aceitaram como consequência daquela teoria que a força
gravitacional se movia com uma velocidade finita. Do mesmo modo, na
Idade Média, as pessoas acreditavam que a luz se movia com velocidade
infinita ao invés de alguma velocidade finita muito grande igualmente
compatível com as observações. Foi só quando as observações feitas por
Römer no século dezessete se mostraram incompatíveis com a teoria da
velocidade infinita que foi aceito que a luz tinha uma velocidade finita.
Zero e infinito são opostos. Postular que a luz se move com
velocidade infinita é dizer que ela leva um tempo zero para chegar a qualquer
destino a distância finita. Semelhante a sua preferência pelo infinito, os
cientistas têm preferido teorias que postulam grau zero de alguma quantidade,
ao invés de um grau muito pequeno desta, igualmente compatível com as
observações. Eles têm preferido postular, por exemplo, que os prótons (as
partículas de luz) têm massa zero em repouso (massa zero quando
estacionárias) ao invés de uma massa em repouso muito pequena (digamos
2,62x10-1000gms), quando qualquer hipótese era igualmente compatível com
qualquer coisa que fosse observada.
Como vimos, as pessoas são objetos com poderes, propósitos e
crenças (intencionais). Para a ação de uma pessoa explicar a existência e
operação do universo, vamos precisar de uma pessoa muito poderosa. É uma
hipótese mais simples postular que seu poder é infinito ao invés de muito
grande apenas. Se disséssemos que ela possuía poder o bastante para fazer
um universo com uma tal massa, mas não o suficiente para fazer um com
massa maior, a questão que surgiria era de por que esse limite e não outro
para o seu poder. A sugestão de que o poder de Deus é infinito se adequa
naturalmente à ideia de que não pode haver influências causais sobre o modo
como ele exerce aquele poder, e assim é mais simples defender que seu poder
é infinito também. A fim de exercer o poder efetivamente, você precisa saber
as consequências de suas ações. Assim, a afirmação de que Deus é
infinitamente poderoso e livre adequa-se naturalmente à tese de que ele é
infinitamente capaz de conhecer. Para que possamos explicar os vários
fenômenos a serem descritos nos próximos capítulos pela ação proposital de
Deus, vamos precisar supor que ele entende as consequências de suas ações
numa larga escala. É mais simples supor que seu entendimento das coisas é
ilimitado. Assim, os princípios que usamos na ciência, na história e todas as
investigações humanas sobre causas nos indicam que, para explicar o mundo
em termos de explicação pessoal, precisamos postular um ser pessoal de
poder, conhecimento e liberdade infinitos.
É mais simples supor que Deus existe eternamente. Se ele passou a
existir somente num certo momento passado do tempo, teria havido algum
período anterior no qual o que aconteceu não teve nada a ver com Deus.
Outras forças teriam estado em ação e teria dependido delas se Deus veio a
existir ou não. E assim nossa hipótese que postulava explicar como o mundo
é se tornaria inevitavelmente mais complicada, ao postular outras forças e,
nesse sentido, um poder divino limitado. O mesmo se aplica se supuséssemos
que Deus deixaria de existir no futuro.
A mim parece que é mais simples postular não apenas que Deus é
eternamente e infinitamente poderoso, conhecedor e livre, mas que o é de
modo essencial. Se fôssemos dizer que é apenas um acidente que Deus é
infinitamente poderoso, etc., teríamos de admitir que ele poderia, caso
quisesse, abdicar. Ele poderia se reduzir a um ser com poder limitado,
poderia mesmo cometer suicídio. E ficaria então aberta a possibilidade de que
algum rival dele se tornasse infinitamente poderoso no seu lugar. Contudo,
nesse caso, seria apenas um acidente que nosso Deus estivesse no controle do
universo; poderia ter sido, e poderia ainda acontecer, que outro Deus
assumisse o controle (talvez com poderes menos grandiosos). Contudo, tudo
isso faria com que fosse um fato bruto muito menos fundamental que Deus é
a fonte de tudo o que existe. Precisaríamos explicar por que Deus já não
limitou seus poderes ou cometeu suicídio. E alguns outros fatores causais
estariam em ação para determinar em que condições algum rival poderia se
tornar onipotente. Nada disso precisará de explicação se supusermos que
Deus é essencialmente onipotente, onisciente, perfeitamente livre e eterno.
A motivação aqui é simplesmente a mesma que uma motivação
semelhante em física que pensa em partículas fundamentais como aquelas
que são o que são se mantiverem seus poderes. Os poderes que elas têm são
parte do que as faz os objetos que são. Um elétron só é um elétron se repelir
outros elétrons com certa força fixa. No nível explicativo mais básico, as
coisas são o que são parcialmente em virtude de seus poderes.
Uma pessoa não seria uma pessoa se tivesse grau zero de poder,
conhecimento e liberdade. Supor um limite finito para essas qualidades é
menos simples que não supor limite nenhum. E supor graus infinitos daquelas
qualidades como ligadas entre si, e ligadas à eternidade, é postular o tipo de
pessoa mais simples que poderia haver; e, como vimos no capítulo 1, todos os
outros poderes essenciais de Deus se seguem destas três propriedades:
onipotência, onisciência e perfeita liberdade. Assim, o teísmo oferece o tipo
mais simples de explicação pessoal do universo que poderia haver. Deus
escolhe por razões, ou dentre razões, e leva a efeito o universo porque é uma
das muitas coisas boas que ele poderia levar a efeito.
Sendo onipotente, Deus poderia levar a efeito qualquer coisa e assim,
mostrar que aquilo que observamos é algo que esperaríamos encontrar se
Deus existisse consiste em mostrar que aquilo que observamos pertence a um
tipo de universo que, em virtude de sua perfeita bondade, Deus tem razão de
levar a efeito. Isso não garante que ele vai fazê-lo, mas o torna bastante
provável. Vou mostrar isso para uma gama de fenômenos que encontramos a
nossa volta, ao mesmo tempo em que mostrarei a grande complexidade de
qualquer explicação materialista de alguns desses fenômenos, e a
incapacidade do materialismo sequer explicar outros fenômenos.
4. COMO A EXISTÊNCIA DE DEUS
EXPLICA O MUNDO E SUA
ORDEM
O universo e suas leis naturais
Existe um universo físico que consiste de inúmeros pedaços de
matéria de diferentes tamanhos. Nossa terra é um dentre muitos planetas que
orbitam em torno do Sol, que é uma estrela pequena, uma grande bola de
fogo. Essa estrela é uma dentre muitos milhões de estrelas em nossa galáxia,
o nosso grupo de estrelas, a Via Láctea. Nossa galáxia pertence a um
conjunto local de galáxias, e os astrônomos podem observar muitos milhares
de milhões de conjuntos assim. Embora o universo seja grandemente
uniforme, ele contém muitos “amontoados” locais. As estrelas e planetas são
de diferentes tamanhos e planetas como o nosso são distintos de vários
modos — pense na variedade de tamanhos e formas das pedras na beira do
mar.
É extraordinário que exista alguma coisa. Certamente, o estado de
coisas mais natural é simplesmente o nada: nenhum universo, nenhum Deus,
nada. Mas existe algo. E existem muitas coisas. Talvez o acaso pudesse ter
feito surgir um elétron negativo, mas tantas partículas assim! Nem tudo vai
ter uma explicação. Contudo, como vimos, todo o progresso da ciência e toda
a pesquisa intelectual além desta exige que nós postulemos o menor
número de fatos brutos. Se pudéssemos explicar os muitos pedaços do
universo com um único ser simples que os mantém na existência, nós
deveríamos fazê-lo — mesmo se inevitavelmente não pudermos explicar a
existência daquele ser simples.
Contudo, não apenas existe um enorme número de coisas, mas todas
elas se comportam em certos aspectos de modo exatamente igual. As
mesmas leis da natureza governam as mais distantes galáxias que podemos
observar por meio de nossos telescópios na terra e as mesmas leis regem os
eventos mais antigos no tempo, tal como podemos inferir a partir de como
estas funcionam hoje. Ou, tal como eu prefiro dizer, todo objeto, não importa
o quão distante de nós no tempo e no espaço, tem em certos aspectos os
mesmos poderes e as mesmas suscetibilidades de exercer aqueles poderes que
as partículas das quais nossos corpos são feitos. Se não há causa para tudo
isso, teríamos aqui a mais extraordinária das coincidências — extraordinária
demais para qualquer pessoa racional acreditar. Contudo, a ciência não pode
explicar por que todo objeto tem os mesmos poderes e suscetibilidades.
Ela pode explicar por que um objeto tem um poder em virtude de ter algum
poder mais amplo (por que esta lei local da natureza age em virtude de
alguma lei mais geral da natureza estar agindo). Porém, não se poderia pensar
que ela explica por que cada objeto tem os poderes mais gerais que de fato
possui. Suponha que as três leis do movimento de Newton e sua lei da
gravitação universal são leis fundamentais da natureza. O que isso significa é
que todo átomo, todo elétron e assim por diante atrai todo outro objeto no
universo com exatamente a mesma força de atração (ou seja, que varia com o
quadrado da distância entre eles). Ora, as leis de Newton não são leis
fundamentais da natureza; elas valem de modo muito preciso, mas não com
precisão total e apenas quando os corpos aos quais elas se referem não têm
massa grande demais e não se movem rápido demais. Todavia, na medida em
que as leis de Newton de fato valem, isso se dá porque elas se seguem das
leis da relatividade geral e da teoria quântica; e talvez essas duas sejam
consequências de uma teoria mais geral — uma grande teoria unificada. Mas,
onde quer que nós paremos, a mesma ideia geral se aplica. Suponha que nós
paremos na grande teoria unificada. Então todo átomo e todo elétron no
universo vai ter exatamente os mesmos poderes e suscetibilidades — os
descritos pela grande teoria unificada. E nisso, se você se permite apenas
explicações científicas é onde você deve parar. Isso, diz o materialista, é
simplesmente como as coisas são.
Mas esse tipo de ponto de parada é exatamente onde nenhum
investigador racional vai parar. Se todas as moedas encontradas num sítio
arqueológico têm as mesmas marcas, ou todos os documentos em uma sala
são escritos com a mesma caligrafia característica, nós procuramos por uma
explicação em termos de uma fonte comum. O que é aparentemente
coincidente clama por uma explicação.
Não é apenas que todos os objetos materiais têm entre si os mesmos
poderes e suscetibilidades muito gerais (por exemplo, comportar-se de acordo
com a grande teoria unificada); mas que eles se classificam em tipos, cujos
membros se comportam como os outros em modos mais específicos. Cada
elétron age como cada outro elétron ao repelir todos os outros elétrons com a
mesma força elétrica. Pode haver uma explicação científica de por que as
partículas de determinados tipos têm os poderes e suscetibilidades que têm
em termos de terem sido levadas a existir por partículas de algum outro tipo.
Assim, prótons geralmente vêm a existir e têm os poderes e suscetibilidades
que têm pela decomposição de nêutrons (um nêutron pode se decompor em
um próton, um elétron e um neutrino). Porém, nesse caso, uma explicação
última de um tipo inanimado ainda seria em termos de partículas (ou simples
pedaços de matéria-energia) de alguns poucos tipos que têm os mesmos
poderes e suscetibilidades. Objetos maiores se classificam em tipos também.
Carvalhos se comportam como carvalhos e tigres como outros tigres. E
muitos desses aspectos nos quais todos os objetos materiais e objetos de tipos
particulares se comportam uns como os outros (quase o tempo todo) são
também simples e facilmente detectáveis pelos seres humanos. Podia ter sido
o caso que os constituintes últimos da matéria (elétrons, prótons, fótons e
coisas assim, não importa do que sejam feitos) se comportassem dos mesmos
modos simples, mas que, quando estivessem juntos compondo objetos
materiais de tamanho médio, eles se comportassem de um modo tão
complicado que, desde um estudo meramente superficial de seu
comportamento, os humanos nunca pudessem prever o que aconteceria. Podia
ser que num dia as pedras se quebrassem e que em outro dia elas flutuassem
no ar — mas a mera observação não científica não nos levaria a ter a menor
ideia do que aconteceria e quando. Entretanto, afortunadamente, nosso
mundo não é assim.
Em nosso mundo há regularidades no comportamento de objetos
médios que podem ser facilmente detectadas e usadas pelos não cientistas —
regularidades que valem quase todo o tempo e num alto grau de aproximação.
Objetos pesados caem no chão, humanos e outros animais terrestres precisam
de ar para viver, sementes plantadas e regadas se tornam plantas, o pão
alimenta os seres humanos, mas a grama não. E assim por diante. Existem, é
claro, exceções — há casos nos quais objetos pesados não vão cair no chão
(por exemplo, se eles estiverem fortemente magnetizados, a ponto de serem
repelidos por um ímã embaixo deles); e somente um cientista pode predizer
exatamente quanto tempo um objeto vai levar para cair e exatamente quanto
pão os humanos precisam para atividades normais. As regularidades óbvias
aproximadas que os humanos podem detectar facilmente têm importantes
consequências para se vamos viver ou morrer (comer o bastante para
viver, escapar de predadores e de acidentes), sobre como podemos acasalar,
ter filhos, ficar aquecidos, viajar e assim por diante. Observando e
entendendo essas regularidades, os humanos podem então utiliza-las para
fazer diferença no mundo externo aos seus corpos e, desse modo, a suas
próprias vidas. Nós precisamos de crenças verdadeiras sobre os efeitos de
nossas ações básicas para que façamos diferença no mundo por meio delas.
Contudo, apenas se os objetos se comportarem em modos regulares
suficientemente simples para serem entendidos pelos humanos é que seremos
capazes de adquirir aquelas crenças. Ao observar que o pão alimenta,
podemos então tomar medidas para ficar vivos comendo pão. Ao observar
que as sementes (inclusive os grãos de trigo), quando plantados e regados,
tornam-se plantas, podemos agir para cultivar trigo e transforma-lo em pão. E
assim por diante. Mas se os objetos materiais se comportassem de modo
totalmente errático, nós nunca seríamos capazes de escolher controlar o
mundo ou nossas próprias vidas de nenhum modo. Assim, ao buscar uma
explicação de por que todo objeto material se classifica em uns poucos tipos
com os mesmos poderes e suscetibilidades simples que os outros, devemos
buscar aquela que explica por que esses tipos são tais que os poderes e
suscetibilidades aproximados dos objetos de tamanho médio (inclusive os de
importância para a vida humana) que se seguem daí são facilmente
identificáveis pelos seres humanos. Isso porque é uma característica
difundida de todo objeto material que seus poderes e suscetibilidades são tais
que têm essa consequência.
A hipótese simples do teísmo nos leva a esperar todos os
fenômenos que venho descrevendo com algum grau razoável de
probabilidade. Sendo onipotente, Deus pode produzir um mundo ordenado
nesses aspectos. E ele tem boa razão de escolher fazê-lo: um mundo contendo
pessoas humanas é uma coisa boa. Pessoas têm experiências e pensamentos e
podem fazer escolhas e suas escolhas podem fazer grandes diferenças para si
mesmas, para os outros e para o mundo inanimado. E os homens têm
disponíveis para eles um tipo particular de livre escolha — a liberdade de
escolher entre bem e mal — que Deus mesmo não tem e assim terá muito
fortes razões para levar a efeito. Sendo perfeitamente bom, Deus é generoso.
Com um corpo, os humanos têm um pedaço limitado de matéria em seu
controle e, se escolhemos fazê-lo, podemos aprender como o mundo funciona
e assim aprender que ações físicas vão ter efeitos mais remotos. Podemos
aprender rapidamente quando as pedras vão provavelmente cair, quando os
predadores vão atacar e as plantas vão crescer. Desse modo, Deus nos
permite partilhar sua atividade criativa de escolha. Podemos fazer escolhas
cruciais para nós mesmos — se vamos evitar pedras caindo, escapar de
predadores, plantar lavouras a fim de ter o bastante para comer, ou se não
vamos nos importar; se vamos construir casas e viver confortavelmente, ou
ficar contentes com um modo de vida mais primitivo. E podemos fazer
escolhas cruciais para outras pessoas corpóreas (e assim publicamente
acessíveis) — se vamos lhes dar comida ou deixa-las morrer de fome.
Contudo, por que as regularidades observáveis aproximadas no
comportamento de objetos de tamanho médio se devem a regularidades mais
precisas no comportamento de seus componentes de pequena escala, nós
podemos, se assim escolhermos, tentar descobrir quais são esses
componentes. Com esse conhecimento, podemos construir instrumentos que
ampliem nosso conhecimento e controle do mundo. Os humanos podem
descobrir as leis da dinâmica e da química e assim construir carros e aviões
ou — alternativamente — bombas e armas; e assim, estender o âmbito de
nosso poder para além do mero controle de nossos corpos e seu meio
ambiente local, para um controle bem mais amplo do mundo. Ter corpo em
um mundo ordenado dá a possibilidade não apenas de aprendizado rápido das
regularidades utilizáveis para a sobrevivência, mas da ciência e da tecnologia
— de descobrir, por esforço cooperativo ao longo de anos, leis profundas que
podem ser utilizadas para reconstruir nosso mundo nos modos que quisermos.
Depende de nós se vamos escolher aprender e estender o controle, e depende
de nós o quanto vamos estender o controle. Como um bom pai, um Deus
generoso tem razão para não nos impor uma medida fixa de conhecimento e
controle, mas sim de nos dar uma escolha de crescer em conhecer e controle.
É por que oferece essas oportunidades aos humanos que Deus tem
razão de criar um mundo governado por leis naturais do tipo que
encontramos. É claro que Deus tem razão de fazer muitas outras coisas e eu
hesitaria em dizer que poderíamos estar certos que ele faria um mundo assim.
Contudo, claramente é o tipo de coisa que há alguma probabilidade
significativa de que ele faria.
A adequação do mundo como um teatro para os humanos não é a
única razão para Deus fazer um mundo ordenado. Os animais superiores
também são conscientes, aprendem e planejam — e a previsibilidade de
coisas nos seus aspectos mais facilmente detectáveis os capacita a fazê-lo.
Porém, além de ser um mundo ordenado, este é um mundo belo. A beleza
consiste em padrões de ordem. O caos total é feio. Os movimentos das
estrelas de acordo com as leis naturais são uma bela dança. Os medievais
pensavam nos planetas como levados por esferas pelo céu, e seus
movimentos regulares produziam a “música das esferas”, cuja beleza os seres
humanos casualmente ignoravam, embora fosse uma das coisas mais belas
que existissem. Deus tem razão de fazer um mundo ordenado, porque a
beleza é uma coisa boa — a meu ver, de modo indiferente a se alguém a
observar ou não, mas certamente se pelo menos uma pessoa vier a observa-la.
O argumento em favor da existência de Deus a partir do mundo e sua
regularidade é, creio eu, a codificação pelos filósofos de uma reação natural e
racional profundamente entranhada na consciência humana a um mundo
ordenado. Os seres humanos veem a possibilidade de compreender o mundo
como indício de um criador que compreende. O profeta Jeremias viveu numa
época na qual a existência de um Deus criador de algum tipo era tomada por
certa. O que estava em questão era a extensão de sua bondade, conhecimento
e poder. Jeremias argumentava quanto ao tamanho do poder do criador com
base na enormidade da criação — “As estrelas do céu não podem ser
contadas, nem a areia do mar pode ser calculada” (Jr. 33.22); e ele
argumentava que o comportamento regular desta mostrava a confiabilidade
do criador, e o profeta falava da “aliança do dia e da noite” pela qual eles se
seguem um ao outro regularmente e “as leis do céu e da terra” (Jr 33.20-1 e
25-6).
O comportamento ordenado dos corpos materiais, que ele descreve
com sua tendência a se mover na direção de um fim (por exemplo, o corpo
que cai tende em direção ao chão, o ar que sai em bolhas pela água), era a
base para a quinta das “cinco vias” de Tomás de Aquino para provar a
existência de Deus:
A quinta via é baseada na orientação das coisas. Pois nós vemos que falta
consciência a certas coisas, a saber, os corpos naturais se movem para
atingir seu objetivo. Isso é evidente do fato de que sempre ou muito
frequentemente eles agem do mesmo modo e daí se segue o melhor
resultado — o que mostra que eles realmente tendem para um objetivo e
não meramente o atingem por acidente. Contudo, nada que não tem
consciência tende a um objetivo exceto sob a direção de alguém com
consciência e entendimento; a flecha, por exemplo, requer um arqueiro.
Tudo na natureza, portanto, dirige-se a um objetivo por alguém com
entendimento e a este nós chamamos de “Deus”. (Summa Theologiae Ia 2.3)
O argumento com base na existência de comportamento regular de
objetos materiais em favor de um Deus que os mantém existindo com os
mesmos poderes e suscetibilidades é um argumento que satisfaz muito bem
os critérios apresentados no capítulo 2. A hipótese do teísmo é uma hipótese
simples que nos leva a esperar esses fenômenos quando nenhuma outra
hipótese igualmente simples consegue fazê-lo. A perfeita bondade de Deus se
segue de suas três propriedades simples de ser essencialmente onipotente,
onisciente e perfeitamente livre. Segue-se de sua bondade que é provável que
Deus produza seres humanos e é necessário para nossa sobrevivência que
vivamos em um universo com o tipo de regularidade que encontramos. Na
hipótese materialista, é mera coincidência que os objetos materiais têm os
mesmos poderes entre si, e não um ponto de parada simples para a
explicação. Porque o teísmo satisfaz os critérios tão bem, a existência e
comportamento regular dos objetos materiais oferece um bom indício para a
existência de Deus.
Corpos humanos e animais
A ordenação da natureza no comportamento regular dos objetos no
tempo, codificada pelas leis naturais, não é a única faceta da ordenação do
mundo natural. Existe também a maravilhosa ordem dos corpos animais e
humanos. Eles são como máquinas muito complicadas, têm delicados órgãos
sensoriais que são sensíveis a muitos aspectos do meio ambiente, e nos levam
a ter crenças verdadeiras acerca de nosso meio. Nós aprendemos onde estão
os objetos a nossa volta, onde estão nossos amigos e nossos inimigos, onde
há comida e onde há veneno — através de nossos olhos que transformam
raios de luz e de nossos ouvidos que transformam ondas sonoras em impulsos
nervosos. E, ao usar as crenças resultantes, podemos mover a nós mesmos,
nossos braços, mãos e bocas — para subir em rochas, segurar pedras e para
falar — como ações básicas em modos que nos habilitam a alcançar todos os
tipos de objetivos diversos (inclusive os necessários para a sobrevivência). A
organização complexa e intrincada dos corpos humanos e animais, que os
tornou veículos efetivos para nós adquirirmos conhecimento e realizarmos
ações, foi algo que impressionou os anatomistas e naturalistas do século
dezoito ainda mais do que os dos séculos anteriores (parcialmente por que a
invenção do microscópio no final do século dezessete os permitiu ver o
quanto eram intrincadamente organizados aqueles corpos).
Muitos autores do século dezoito defendiam que não havia razão para
supor que o acaso iria levar ao surgimento de uma organização tão bela, ao
passo que Deus era capaz de fazê-lo e tinha abundantes razões para o fazer —
no bem da existência de animais e humanos corpóreos, ao qual eu chamei
atenção a meu modo anteriormente neste capítulo. Assim, eles argumentavam
que a existência disso era bom indício da existência de Deus. Eu acredito que
esse argumento (do modo como está apresentado) é correto pelos critérios
dados no capítulo 2. Como sustentei antes, Deus tem razão para criar pessoas
e animais corpóreos e assim para criar corpos humanos e animais. Deus é
capaz de levar a efeito a existência de corpos assim. O fato de que ele o faz,
como vimos no capítulo 3, é uma hipótese simples. Assim, há boa razão para
acreditar que Deus é o criador dos corpos humanos e animais. Sua existência
oferece outro tipo de indício (além dos fornecidos pela existência do universo
e de sua conformidade com as leis naturais) em favor da existência de Deus.
A mais conhecida apresentação desse argumento foi feita por William
Paley em seu Natural Theology (1806), que começa com esta famosa
passagem:
Ao passar por um descampado, suponha que eu batesse meu pé numa pedra
e, quando me perguntassem como a pedra chegou até ali, eu pudesse
responder que, por tudo que eu sabia, ela sempre tinha estado ali. Não seria
muito fácil, talvez, mostrar o absurdo dessa resposta. Mas suponha que eu
tivesse encontrado um relógio no chão e me perguntassem como este foi
parar naquele lugar, eu dificilmente poderia pensar na resposta que eu dei
antes — que, por tudo que eu sabia, o relógio poderia sempre ter estado lá.
Contudo, por que essa resposta não deveria servir para o relógio se serviu
para a pedra? Por que ela não é admissível no segundo caso como o foi no
primeiro? Por esta razão e por nenhuma outra: que, quando inspecionamos o
relógio, percebemos (o que não poderíamos descobrir na pedra) que suas
várias partes são estruturadas e montadas de modo a servir a um propósito,
ou seja, que elas são de tal modo formadas e ajustadas para produzir
movimento e esse movimento é de tal modo regulado para indicar as horas
do dia que, se as diferentes partes tivessem sido formadas diferentemente do
que são, tivessem um tamanho diferente do que têm ou colocadas de outra
maneira ou em outra ordem, que então a máquina simplesmente não
funcionaria ou que não serviria ao propósito que ela agora serve… A
inferência, nós achamos, é inevitável: que o relógio deve ter tido um
relojoeiro, que deve ter existido, em algum tempo, e em algum lugar ou
outro, um artífice ou artífices que o formaram para o propósito que achamos
que ele na verdade serve; e que compreendiam sua construção e planejaram
seu uso.
O resto do livro de Paley é dedicado a mostrar como são bem
construídos os animais e seres humanos em seu detalhe intrincado, de modo a
concluir que eles devem ter tido Deus como seu criador. Essa analogia dos
animais com máquinas complexas me parece correta e sua conclusão,
justificada.
Contudo, o argumento não dá nenhuma razão para supor que Deus
fez os humanos e os animais como uma ação básica e em um determinado
dia da história, ao invés de por meio de um processo gradual. E, como nós
sabemos agora, os humanos e os animais de fato chegaram a existir por meio
de um processo gradual de evolução a partir de uma sopa primitiva de
matéria que se formou assim que a terra resfriou quatro bilhões de anos atrás.
Nesse processo, a seleção natural desempenhou um papel central. A Origem
das Espécies (1859) de Darwin nos ensinou as linhas gerais da história e os
biólogos vêm acrescentando pormenores a ela desde então. A clara e simples
apresentação desta em O relojoeiro cego (1986) de Richard Dawkins é
merecidamente popular.
Porque a história é tão bem conhecida, vou resumi-la em um
parágrafo rápido e muito condensado. Moléculas da sopa primitiva se
combinaram por acaso em uma forma de vida muito simples que se
reproduzia por si mesma. Ela produziu descendentes muito semelhantes a ela,
mas cada um deles diferia um pouco em vários aspectos, por acaso. Em
virtude dessas diferenças, alguns dos descendentes eram mais bem adaptados
para sobreviver e se mantiveram; outros não tinham tão boas condições para
sobreviver e pereceram. As gerações seguintes de descendentes mostravam
em geral as características de seus pais, mas exibiram pequenas variações em
relação a eles de vários modos. Quanto mais uma característica dava
vantagem na luta pela sobrevivência, mais a evolução favorecia seu
desenvolvimento. Tudo o mais se mantendo, a complexidade da organização
era uma característica com valor de sobrevivência e então organismos mais
complexos começaram a aparecer na terra. Uma característica que deu uma
vantagem a organismos complexos foi a reprodução sexual, e assim
gradualmente os organismos masculinos e femininos evoluíram. Não importa
a característica de um animal que você indicar, há uma história acerca de
como ela veio a aparecer como uma das muitas características que eram
pequenas variações de traços dos pais e que conferiam uma vantagem na luta
pela sobrevivência sobre as outras características. Houve um tempo em que
as girafas tinham pescoços com o mesmo tamanho que outros animais de seu
tamanho. Contudo, por acaso, alguns casais de girafas produziram
descendentes com pescoços mais longos que o normal. Esses descendentes
com pescoços mais longos eram mais capazes de obter comida (por exemplo,
folhas nos topos das árvores) que os outros, e então eles prosperaram e mais
deles sobreviveram para ter mais descendentes que aqueles com pescoços
mais curtos. O descendente das girafas de pescoços mais longos tinha em
média pescoços dos mesmos tamanhos que os de seus pais, mas alguns os
tinham um pouco mais longos e outros, um pouco mais curtos. Havia uma
vantagem em ter pescoços cada vez mais longos e assim a média do pescoço
da população ficou mais longa. Contudo, as girafas com pescoços muito
longos se mostraram menos capazes de escapar de predadores — elas não
poderiam fugir por florestas ou correr tão rápido quando perseguidas por
leões. Assim, o tamanho dos pescoços das girafas estabilizou em um tamanho
ótimo — longo o bastante para as girafas comerem as folhas, mas não tão
longo a ponto de atrapalhá-las de escapar de predadores. Essa, ou algo assim
é a explicação de por que as girafas têm um pescoço longo. E há uma história
semelhante para cada característica humana e animal. Uma pequena
sensibilidade para a luz deu alguma vantagem (para muitos animais em
muitos ambientes) na luta pela sobrevivência, um pouco mais de
sensibilidade deu mais vantagem e assim o olho se desenvolveu em muitos
animais. E, acima de tudo, a complexidade do sistema nervoso em sustentar
uma variedade de órgãos sensoriais e movimentos corpóreos conferiu grande
vantagem e assim temos a complexidade na organização de animais e seres
humanos que temos hoje.
Assim, em suma, a explicação darwinista de por que existem corpos
animais e humanos que há hoje é de que houve um tempo em que havia
certas substâncias químicas na terra e, dadas as leis da evolução (por
exemplo, reprodução com pequena variação), era provável que organismos
complexos emergiriam. Essa explicação da existência de organismos
complexos é certamente uma explicação plena, mas não é uma explicação
última daquele fato. Para uma explicação última, precisamos de uma no nível
mais alto acerca de por que aquelas leis estavam agindo ao invés de qualquer
outra, e de por que havia aquelas substâncias químicas na terra. As leis da
evolução são, sem dúvida, consequências das leis da química que governam a
matéria orgânica da qual os animais são feitos. E as leis da química valem
porque valem as leis fundamentais da física. Porém, por que exatamente essas
leis fundamentais da física e não outras? Se as leis da física não tivessem a
consequência de que alguma combinação química daria origem à vida, ou de
que houvesse variações aleatórias nos descendentes a partir de características
dos pais, e assim por diante, então não haveria evolução por seleção natural.
Assim, mesmo dadas as leis naturais (ou seja, que objetos materiais têm os
mesmos poderes e suscetibilidades entre si), por que exatamente essas leis?
A pesquisa científica recente chamou atenção para o fato de que,
sendo as leis da natureza do mesmo tipo que nossas leis atuais, as constantes
dessas leis tinham de ficar dentro de limites realmente muito estreitos para
que a vida pudesse evoluir em algum lugar no universo. Se várias das
constantes tivesse um valor de uma fração de um milhão maior ou menor que
seu valor atual, nenhuma vida animal, incluindo a humana, teria evoluído.
Por “leis do mesmo tipo que nossas leis atuais” quero dizer leis das quatro
forças que os físicos têm analisado — gravidade, eletromagnetismo, força
nuclear forte e fraca. Por “constantes” de leis da natureza quero dizer aqueles
valores numéricos fixos que estabelecem como as forças são determinadas
pelas massas, cargas elétricas, distâncias, etc. relativas aos corpos. Assim a

lei da gravidade estabelece que ; isso significa que a força da


gravidade pela qual dois corpos se atraem é G vezes o produto das massas (m
e m1 respectivamente) e inversamente proporcional ao quadrado da distância
entre elas (r). (Para uma descrição simples e muito curta dessa “sintonia
fina”, ver John Leslie Universes, pp. 2-6; e para uma apresentação mais
completa e um tanto mais recente, ver Paul Davies, The Goldilocks Enigma,
capítulos 1-7, especialmente o capítulo 7.)
O materialista diz que não há explicação para o fato de que há
exatamente as leis que estão aí. O teísta afirma que Deus tem uma razão para
levar a efeito essas leis porque elas têm a consequência de que, no fim das
contas, animais e seres humanos vão evoluir.
Mesmo dado que as leis da física são tais que fazem surgir as leis da
evolução de organismos complexos a partir de certa sopa primitiva de
matéria, animais e seres humanos vão evoluir apenas se houver para começar
uma sopa primitiva com a constituição química certa. Algumas sopas com
constituição química diferente daquela com a qual a terra realmente começou
também dariam origem a animais, dadas as leis atuais da física. Mas a
maioria das sopas de elementos químicos feitas de partículas fundamentais
combinadas de modos diferentes não permitiria o surgimento de animais.
Assim, por que existiu aquela determinada sopa primitiva? Podemos retraçar
a história do mundo desde um passado ainda mais distante. A sopa primitiva
existiu porque a terra foi formada no modo como o foi; e a terra foi formada
desse modo porque a galáxia foi formada do modo como o foi, e assim por
diante... até que cheguemos até o Big Bang, a explosão com a qual o
universo aparentemente começou 13,5 bilhões de anos atrás. A matéria-
energia no momento do Big Bang tinha de ter uma densidade e uma
velocidade de recessão também dentro de limites muito estreitos, para que
pudesse dar origem à vida. Por exemplo, se o Big Bang tivesse causado que
os pedaços de matéria se afastassem uns dos outros um pouco mais
rapidamente, não teriam sido formados galáxias, estrelas e planetas ou
qualquer meio ambiente apropriado para a vida na terra ou em qualquer outro
lugar no universo. Se a recessão tivesse sido um pouco mais lenta, o universo
teria entrado em colapso antes de a vida ter podido ser formada. Se há uma
explicação científica última, esta terá de deixar como um fato bruto que o
universo começou num estado tal que tinha leis naturais que permitiam a
evolução da vida, sendo que uma diferença pequena naquelas condições
iniciais teria feito com que a vida não viesse a surgir em lugar nenhum.
É claro, o universo pode não ter tido um começo com um Big Bang, e
sim existir desde sempre. Mesmo assim, sua matéria deve ter tido certas
características gerais se em algum tempo houve um estado do universo capaz
de produzir animais e seres humanos. Seria necessário, por exemplo, haver
matéria bastante, mas não demasiada, para que as substâncias químicas
fossem constituídas em algum momento — várias partículas fundamentais
são necessárias, mas com grandes espaços entre elas. E permanece o caso que
apenas uma faixa estreita de leis permitiria que houvesse animais e seres
humanos em algum momento. Novamente, o materialista terá de deixar isso
como fato bruto último que um universo perpétuo e suas leis tivessem
aquelas características, enquanto o teísta tem uma explicação última simples
de por que as coisas são assim: que pela ação de Deus em cada momento do
tempo perpétuo ele as mantém assim. Ele tem razão de fazê-lo, entre outras a
de assegurar que os seres humanos vão evoluir em algum momento na terra
(e talvez também em outros tempos em outros planetas).
É verdade que Deus poderia ter criado os humanos sem o longo
processo de evolução. Mas isso só é uma objeção para a hipótese teísta se
você supuser que a única razão para Deus criar algo é para o bem dos seres
humanos. Repetindo minha ideia anterior, Deus também tem razão de criar
animais. Animais são seres conscientes que desfrutam muito a vida e
realizam ações intencionais, ainda que eles não escolham livremente quais
delas vão executar. É claro que Deus tem razão de dar vida a elefantes e
girafas, e tigres e caracóis. Em todo caso, a beleza da evolução do mundo
inanimado a partir do Big Bang (ou desde a eternidade) seria uma razão
suficiente para Deus o criar, mesmo se ele fosse a única pessoa que pudesse
tê-lo observado. Mas ele não é; nós mesmos podemos agora admirar estágios
cada vez mais antigos da evolução cósmica por meio de nossos telescópios.
Deus pinta com um grande pincel de uma enorme aquarela e ele não precisa
ser econômico com a tinta que usa para pintar um lindo universo.
Darwin mostrou que o universo é uma máquina de fazer animais e
seres humanos. Mas é enganoso comentar essa ideia correta no modo como o
faz Richard Dawkins: “nossa própria existência já representou o maior de
todos os mistérios, mas... não é mais um mistério... Darwin e Wallace o
resolveram” (O relojoeiro cego, p. xiii). É enganoso porque ignora a questão
interessante de se a existência e operação daquela máquina, os fatores que
Darwin (e Wallace) citou para explicar “nossa própria existência”, tinham
elas mesmas uma explicação. Tenho defendido que os princípios da
investigação racional sugerem que eles o fizeram. Darwin deu uma
explicação plena para a existência de animais e humanos, mas não uma
completa ou última, penso eu. O relógio pode ter sido feito com a ajuda de
montadores cegos (ou mesmo de uma máquina relojoeira), mas eles eram
guiados por um relojoeiro que tinha uma vista muito boa.
Um crítico poderia invocar uma forma do que é conhecido como o
princípio antrópico para dizer que, a menos que o universo mostrasse ordem
dos tipos que tenho descrito (leis simples agindo na matéria de modo a levar
à evolução de animais e seres humanos), não teria havido nenhum ser
humano vivo para comentar o fato. Assim, não há nada de surpreendente no
fato de que encontremos uma ordem que evolui — não poderíamos encontrar
outra coisa. Esse argumento, contudo, fracassa totalmente por uma razão que
pode ser mais bem mostrada por uma analogia. Suponha que um louco rapte
uma vítima e a tranque numa sala com uma máquina de embaralhar cartas. A
máquina mistura dez baralhos ao mesmo tempo e então tira uma carta de cada
baralho, exibindo simultaneamente as dez cartas. O sequestrador diz à vítima
que vai ligar a máquina e que esta vai exibir o primeiro conjunto de cartas,
mas que, a menos que o conjunto consista de um ás de copas de cada baralho,
a máquina vai automaticamente desencadear uma explosão que vai matar a
vítima, e que não poderá ver, por isso, as cartas que a máquina tirou. A
máquina entra em funcionamento e, para espanto e alívio da vítima, ela
mostra um ás de copas de cada baralho. A vítima pensa que esse fato
extraordinário precisa de explicação em termos de a máquina ter sido
direcionada de algum modo. Mas o sequestrador, que reaparece neste
momento, questiona essa sugestão: “É pouco surpreendente”, ele diz, “que a
máquina mostre apenas ases de copas. Você não poderia ver nada mais além
disso, pois não estaria aqui para ver se qualquer outra carta tivesse sido
mostrada”. Porém, é claro, a vítima está certa e o sequestrador, errado. Há
realmente algo extraordinário que precisa de explicação no fenômeno de dez
ases de copas serem mostrados. O fato de que essa ordem peculiar é uma
condição necessária para a sequência ser percebida não torna o que é
percebido menos extraordinário e que necessita de explicação. O ponto de
partida do teísta não é que nós percebemos ordem ao invés de desordem, mas
que existe ordem ao invés de desordem. Talvez somente se existir ordem é
que podemos saber o que existe, mas isso não torna o que existe menos
extraordinário e carente de explicação. É verdade que cada sequência, cada
arranjo de matéria, é igualmente improvável a priori — ou seja, se o que
determina que cartas vão ser mostradas for apenas o acaso. Contudo, se uma
pessoa estiver arrumando as coisas, ele tem razão de produzir certos arranjos
ao invés de outros (dez ases de copas, um mundo com sintonia fina para
produzir animais e seres humanos). E se nós encontramos arranjos assim, isso
é razão para supor que uma pessoa está fazendo o arranjo.
Outro crítico pode defender o que é chamada de teoria dos muitos
mundos. Ele pode dizer que se existem trilhões e trilhões de universos (o que
é chamado de um “multiverso”) que representam muitos tipos variados de
ordem e desordem, é muito provável que um desses universos será governado
por leis simples e compreensíveis que permitem a evolução da vida (humana
e animal). Entretanto, precisamos de uma razão para supor que existem
outros universos além do nosso. A única razão que poderia haver é que uma
teoria da física, que é provável segundo os indícios que observamos em nosso
universo (provável pelos critérios apresentados no capítulo 2), tem a
consequência de que universos (ou apenas um único campo magnético) “dá à
luz” a outros universos que diferem uns dos outros em suas leis e condições
iniciais (ou seja, o modo pelo qual a matéria-energia estava arranjada no seu
começo). (Para uma descrição dos tipos de universo que os físicos postularam
recentemente, ver Paul Davies, The Godilocks Enigma, capítulo 9). Disso se
seguiria que nosso universo nasceu de um universo (ou campo) mais antigo e
pode ter dado à luz a um ou mais universos mais jovens, que diferem dos
nossos em suas leis e condições iniciais. A maioria desses universos,
diferentemente do nosso, não teria leis e condições iniciais que dessem
origem a animais e seres humanos. Contudo, todo esse sistema de universos
— esse multiverso — seria ele mesmo governado por leis que teriam de ter
certas condições iniciais ou (se ele não tivesse tido um começo) outras
características gerais, que teriam tido a consequência de que, em algum
momento ou outro, ele produziria um universo que permitisse a evolução da
vida humana e animal (ou seja, produziria animais e seres humanos em um
planeta ou outro). Esse multiverso teria assim leis muito gerais que tomariam
formas mais específicas em cada universo e que, no nosso universo, teria a
forma de leis que permitem a evolução da vida. O multiverso, então, por sua
vez, permitiria a evolução da vida. Tudo isso precisaria ser mostrado pelo
defensor dos muitos mundos antes de podermos levar a sério sua sugestão.
Mas se nós realmente a levarmos a sério, o argumento a partir do
funcionamento das leis naturais vai se dar como antes. O fato de o multiverso
ser governado por leis muito gerais, simples o suficiente para nós a
compreendermos (tal como devem ser para estarmos justificados em postular
um multiverso), significa que todos os objetos materiais no universo
inteiro têm os mesmos poderes e suscetibilidades simples gerais. Nós
deveríamos tentar encontrar uma explicação para este fato altamente
surpreendente; e nós temos a mesma razão de antes para postular Deus como
aquela explicação (pelos critérios do capítulo 2).
Além disso, devemos notar que, ao invés do multiverso atual (ao qual
pertence nosso universo) poderia haver um multiverso diferente (governado
por leis de tipos muito diferentes, e tendo condições iniciais bem diferentes
ou outras características gerais), tal que ele nunca daria à luz um universo que
permitisse a evolução da vida. E inúmeros multiversos possíveis diferentes
seriam como este, ou seja, não permitiriam a evolução da vida. Assim, se
tivermos razão para supor que nosso universo realmente pertence a um
multiverso, deveríamos tentar encontrar uma explicação de por que esse
multiverso atual permite a evolução da vida; ou seja, por que suas leis muito
gerais e condições iniciais (ou outras características gerais) são tais que, em
algum momento, levaram à evolução de um universo que teria permitido
surgirem seres humanos e animais. E mais uma vez temos a mesma razão de
antes para postular que Deus causou isso. Deus é um ser simples (muito mais
simples que um multiverso), do qual se pode esperar que faça surgir a
existência de seres humanos e animais, e assim de um universo que os
contenha, e assim assegurar que se levar a efeito um multiverso, ele vai
permitir a evolução da vida; de outra maneira, não há razão para supor que
um multiverso permitiria a evolução da vida.
Multiversos possíveis têm tamanhos diferentes; alguns conteriam
apenas um universo, outros conteriam uma infinidade de universos. Eles são
também de tipos diferentes. O que eu vou chamar de universos “restritos”
conteriam apenas universos que têm um tipo semelhante de matéria que o
nosso universo, governado por leis do mesmo tipo que as nossas leis (da
gravitação, eletromagnetismo, e as outras duas forças), mas contendo
constantes diferentes. (As constantes nas leis da natureza determinam o
tamanho das forças. Assim, as forças da gravidade e do eletromagnetismo em
universos assim podem ser maiores ou menores que no nosso.) Muitos físicos
acreditam numa versão do que é chamada “teoria da inflação”, que postula
que pertencemos a um universo desse tipo. Contudo, o que vou chamar de
multiversos possíveis “amplos” conteriam universos com tipos de matéria
diferentes uns dos outros, governados por leis de formas diferentes entre si e
em relação às que valem em nosso universo. Um multiverso amplo poderia
incluir, por exemplo, um universo com leis para doze tipos diferentes de
força agindo entre os corpos, cuja força variasse com a quantidade de certas
propriedades de cada corpo, propriedades essas de tipos que não encontramos
em nosso universo (bem diferentes da massa, carga elétrica, etc. dos corpos e
que determinam a ação desses em nosso universo). Quanto mais amplo for o
multiverso (ou seja, quanto mais universos de tipos diferentes ele contiver),
mais provável será que ele inclua um universo que permita a evolução da
vida. Assim, poderia parecer que se existisse algum multiverso muito amplo,
seria bem provável que ele contivesse seres humanos. Porém, as próprias
leis gerais de um multiverso amplo assim teriam de ser enormemente
complicadas. Quaisquer leis muito gerais, pelas quais algum universo pai
produzisse universos filhos governados por leis específicas de tipos bem
diferentes das que funcionassem no universo pai, teriam de ser muito mais
complicadas do que as que apenas produzissem universos governados por leis
diferentes das leis do universo pai somente quanto às constantes que ele
contém. (Usando uma analogia, uma máquina que produz chocolates e outros
doces de tipos diferentes tem de ser mais complicada que uma que produzisse
apenas barras de chocolate do mesmo tipo, mas de tamanhos diferentes.) Isso
significa que uma teoria da física que postulasse (com base nos indícios
observáveis em nosso universo) um multiverso mais restrito, e assim mais
simples, sempre satisfaria o critério 2 (na página 48) melhor do que aquele
que postulasse um multiverso mais amplo. Assim, precisaríamos de muito
mais indícios observacionais antes de estarmos justificados em postular um
multiverso amplo (muito mais do que provavelmente encontraríamos apenas
observando nosso universo, o que é tudo que podemos fazer), indícios que
não pudessem ser explicados supondo-se que pertencemos meramente a um
multiverso restrito. E mesmo que todo multiverso amplo permitisse a
evolução da vida, ainda ficaria a questão de por que existe um multiverso
amplo e não um restrito ou mesmo por que há um universo (ao invés de
nenhum).
Contudo, se existisse um multiverso muito amplo, não é apenas
provável que ele contivesse um universo como o nosso, mas também muitos
outros universos contendo seres humanos. Entretanto, a maior parte desses
outros universos contendo humanos seria diferente do nosso em vários
aspectos. Leis que governam muitos universos assim poderiam ter apenas
consequências simples o bastante para seus poucos habitantes humanos
fazerem predições e as usarem para guiar suas ações numa pequena região.
Os seres humanos que vivessem ali poderiam não ter nenhum poder de
influenciar a si mesmos ou aos outros, para o bem ou para o mal. Eles
poderiam viver em conchas duras, incapazes de ferirem ou beneficiarem uns
aos outros. A comida poderia ser abundante e poderia não haver necessidade
de cooperação a fim de produzir alimento. Os filhos poderiam nascer de
modo assexuado, sem necessidade de cuidado paterno. Os humanos poderiam
não ter amor natural uns pelos outros e nenhum senso de moralidade. E
poderia haver tipos de sofrimento muito piores do que os existentes em nosso
universo. O fato de que nos encontramos num universo que não é assim, mas
no qual podemos viver existências muito valiosas (com as características
mencionadas nas páginas 81-2) e vir a entender como as coisas se comportam
a trilhões de quilômetros de distância, é algo esperável (pelos critérios do
capítulo 2) se Deus criou o nosso universo (possivelmente como membro de
um multiverso restrito), mas muito menos provável se ele for um vasto
multiverso não causado por Deus. Pelo critério (4), o fato de que nos
encontramos em um universo que tem as características que tem o nosso,
como acabei de mencionar, é muito mais esperável se nosso universo (ou um
multiverso ao qual ele pertence) foi criado por Deus do que se é apenas um
membro de um vasto multiverso amplo não criado por Deus. O investigador
racional deve seguir os indícios disponíveis, e mesmo se esses levarem a um
multiverso, este será mais provavelmente um multiverso relativamente
restrito, e a existência de um multiverso assim não faz diferença para o
argumento deste capítulo.
Assim, existe o nosso universo (ou multiverso). Ele é caracterizado
por uma ordem temporal vasta e altamente difundida, pela conformidade da
natureza com fórmulas registradas nas leis científicas elaboradas por seres
humanos. Ele começou de um modo tal (ou tem sido caracterizado por traços
assim pela eternidade) que levasse à evolução de animais e humanos. Esses
fenômenos eram claramente coisas “grandes demais” para a ciência
explicar. Eles são onde a ciência para, constituem a estrutura da própria
ciência. Argumentei que não é uma conclusão racional supor que a
explicação deve parar onde a ciência para, e assim deveríamos buscar uma
explicação pessoal para a existência, conformidade a leis e potencial
evolutivo do universo. O teísmo oferece uma explicação exatamente assim.
Essas são razões fortes para acreditar que ela é verdadeira — pelos critérios
que apresentei no capítulo 2. Note que não estou postulando um “Deus das
lacunas”, um deus meramente para explicar o que a ciência explica; eu não
nego que a ciência explica, mas postulo Deus para explicar por que a ciência
explica. O próprio sucesso da ciência em nos mostrar o quanto o mundo
natural é profundamente ordenado oferece fortes razões para acreditar que
existe uma causa ainda mais profunda dessa ordem.
5. COMO A EXISTÊNCIA DE DEUS
EXPLICA A EXISTÊNCIA DE
SERES HUMANOS
Ao falar rapidamente, no último capítulo, dos processos
evolucionários que causam a existência de animais e seres humanos, passei
por alto de algo muito importante. Processos evolucionários certamente
causam a existência de corpos humanos e animais em virtude de leis da
natureza descobertas pelas ciências físicas (sustentadas, afirmo eu, por Deus).
Contudo, os seres humanos são mais do que seus corpos. Seres humanos (e
animais superiores) são seres conscientes. Eles têm pensamentos e
sentimentos e átomos não os têm. Conforme defenderei, a consciência não
poder ser propriedade de um simples corpo, um objeto material. Ela deve ser
propriedade de outra coisa conectada a um corpo; e a essa outra coisa vou dar
o nome tradicional de alma. Em algum momento da história evolutiva, os
corpos de animais complexos se tornaram conectados a almas e isso,
pretendo mostrar, está muito para além do poder da ciência explicar.
Contudo, o teísmo pode explicar isso — pois Deus tem o poder e a razão de
juntar almas a corpos. Em primeiro lugar, porém, preciso descrever os
fenômenos e chamar atenção para o fato de que os seres humanos (e os
animais superiores) consistem de duas partes — um corpo, que é uma
substância material, e uma alma, que é uma substância imaterial e à qual
pertence a vida consciente de pensamento e sentimento. Vou defender minha
tese em relação aos seres humanos e então indicar brevemente que o mesmo
vale para os animais superiores.

Almas humanas
O mundo, conforme indiquei no capítulo 2, consiste de substâncias.
As mesas e cadeiras, pessoas, células nervosos e ossos são todos substâncias.
Estas têm propriedades como a de ser marrom ou quadrado, e relações com
outras substâncias como de estar à distância de dez metros de outra
escrivaninha ou vir a existir depois desta. Uma substância determinada que
tem certa propriedade ou uma relação num certo tempo é um evento — por
exemplo, o fato de minha gravata ser verde às oito da manhã no dia 1º de
janeiro de 1995, ou de certo neurônio disparar (ou seja, descarregar
eletricidade rapidamente) às duas da tarde no dia dois de janeiro de 1994.
Algo é uma substância se pode causar um evento ou se algo pode causar uma
mudança nele. Assim, do mesmo modo que substâncias materiais, que
ocupam volumes de espaço, pode haver imateriais também que não ocupam
espaço. Estou defendendo neste livro que existe um Deus que é uma
substância imaterial desse tipo; e, se existem fantasmas e poltergeists, eles
também são substâncias imateriais. Vou defender neste capítulo que a parte
essencial de cada um de nós é uma alma que é uma substância imaterial.
A história do mundo é simplesmente a sequência de todos os
eventos que aconteceram. Se você conhecesse todos os eventos que se
deram (que substâncias existiram, que propriedades e relações elas tiveram
com outras substâncias e quando), saberia tudo o que aconteceu no mundo.
Propriedades e eventos podem ser físicos ou mentais. Vou entender
por evento físico aquele no qual nenhuma pessoa está em melhor posição que
qualquer outra para saber o que aconteceu. Eventos físicos são públicos; não
há acesso privilegiado a eles. Assim, o fato de minha escrivaninha ser
quadrada é um evento físico porque, ainda que eu possa ser a única pessoa
que a tenha observado, qualquer um pode conferir isso tão bem quanto eu.
Dentre os eventos físicos estão os eventos cerebrais. O fato de um neurônio
ter disparado em um determinado momento é algo que poderia ser observado
igualmente bem por muitos observadores diferentes e assim esse disparo é
também um evento físico. Eventos mentais, por outro lado, são aqueles que
apenas uma pessoa tem um modo especial de descobrir — ao de fato
experimenta-lo. A pessoa na qual esses eventos acontecem tem acesso
privilegiado a eles, um meio de conhecê-los que ninguém mais pode
partilhar.
Evidentemente — mais evidentemente que qualquer coisa — existem
realmente eventos mentais, conforme sabemos por experiência própria. Eles
incluem padrões de cor em nosso campo visual, dores e calafrios, crenças,
pensamentos e sentimentos. Eles também incluem os propósitos que eu tento
realizar por meio de meu corpo de um modo ou de outro, que discuti no
capítulo 2. Os fatos de eu sentir dor ao meio-dia ontem ou ter uma imagem de
vermelho no meu campo visual ou de pensar em almoço ou de formar o
propósito de ir a Londres, são tais que se outros pudessem descobri-los por
algum método, eu poderia fazê-lo da mesma maneira. Outros podem vir a
conhecer minhas dores e meus pensamentos estudando meu comportamento e
talvez também estudando meu cérebro. Contudo, eu também poderia estudar
meu pensamento: poderia assistir a um filme sobre mim mesmo; poderia
estudar meu cérebro por um sistema de espelhos e microscópios — tal como
qualquer outra pessoa. Porém, é claro, eu tenho um modo de conhecer minhas
dores, pensamentos e coisas assim de outras maneiras além das disponíveis
aos melhores pesquisadores acerca do meu comportamento ou cérebro: eu de
fato tenho experiência própria deles. Consequentemente, eles devem ser
distintos de eventos cerebrais ou quaisquer outros eventos corpóreos. Um
neurofisiologista não pode observar a qualidade da cor em meu campo visual
ou a pungência do cheiro de rosbife que eu sinto. Um marciano que viesse à
terra, capturasse um ser humano, e que inspecionasse seu cérebro poderia
descobrir tudo o que estava acontecendo naquele cérebro, mas ainda se
perguntaria “Esse ser humano realmente sente algo quando eu piso no seu
dedão do pé?”. É um fato a mais além da ocorrência de eventos cerebrais que
haja dores e imagens consecutivas, pensamentos e intenções. Do mesmo
modo, esses eventos devem ser distintos de comportamentos aos quais eles
tipicamente dão origem. As pessoas têm sensações que não expressam —
dores que elas escondem ou sensações de sonhos que elas não contam para
ninguém — e se as sensações dão origem a comportamentos, o agente fica
consciente da sensação como um evento separado do comportamento ao qual
ele deu origem.
Enfatizo minha definição de mental como aquilo ao que o sujeito tem
acesso privilegiado. Há muitas propriedades que nós atribuímos a pessoas, às
quais nós podemos às vezes chamar de “mentais”, mas que não são mentais
no meu sentido, mas sim meramente propriedades de comportamento
público. Quando dizemos que alguém é generoso, ou irritável, ou uma fonte
útil de informação, pode ser o caso de que estamos dizendo apenas algo sobre
o modo que ele se comporta em público, não algo sobre a vida de pensamento
e sentimento que está por trás desse comportamento. Podemos naturalmente
descrever ser irritável como uma propriedade mental, mas não o é no meu
sentido. Minha preocupação é afirmar que há eventos mentais no meu
sentido, distintos de eventos cerebrais. Um evento no meu cérebro (causado
por um evento no meu dente) causou minha dor de dente; e outro evento em
meu cérebro (causado pelo galho do lado de fora da janela estar se movendo)
causou minha crença de que o galho se moveu. Mas a ideia é que, assim
como a ignição da gasolina é diferente da explosão que ela causa
subsequentemente, o evento cerebral é distinto da dor e de tudo o mais que
ele causa. Além disso, é claro, há causalidade na outra direção também: meus
propósitos causam (não intencionalmente) os eventos cerebrais que, por sua
vez, causam o movimento (proposital) de meus membros.
Os seres humanos, diferentemente das coisas inanimadas, têm
propriedades mentais; eles têm uma vida mental. Existe mais nos seres
humanos que apenas ter uma vida mental conectada a um corpo. Essa própria
vida mental, eu defendo agora, é o estado de uma substância imaterial, a
alma, que está conectada a um corpo. Que os seres humanos consistem de
duas substâncias conectadas — corpo e alma — é a visão conhecida como
dualismo de substância. A alternativa é dizer que os seres humanos são
apenas corpos (eu sou a mesma coisa que aquilo que chamamos frouxamente
de meu corpo). Nesse caso, minhas propriedades mentais, tais como sentir
dor ou ter uma imagem consecutiva, seriam propriedades de meu corpo.
Chamemos essa visão acerca dos seres humanos de monismo de substância
— a visão de há apenas substâncias de um tipo, substâncias materiais. Se o
monismo fosse correto, então não haveria nada na história do mundo além da
sucessão dos eventos que envolvem substâncias materiais: seu surgimento e
desaparição, suas propriedades e relações (físicas ou mentais). Contudo,
como vou mostrar, se você soubesse tudo isso, você ainda não saberia uma
das mais importantes coisas de todas — se você ou qualquer outro ser
humano continuava a ter uma vida consciente ao longo do tempo.
Permita-me ilustrar isso com o exemplo dos transplantes de cérebro.
O cérebro consiste de dois hemisférios e um tronco cerebral. Há bons indícios
de que os seres humanos podem sobreviver e se comportar como seres
conscientes se muito de um dos hemisférios for destruído. Agora imagine
meu cérebro (hemisférios mais tronco cerebral) dividido em dois e cada
metade dele tirado de meu cérebro e transplantado em um crânio vazio de um
corpo do qual um cérebro acabou de ser removido; e que há também outras
duas metades de outro cérebro (por exemplo, de meu gêmeo idêntico) e
quaisquer outras partes (por exemplo, mais troncos cerebrais) que forem
necessárias para que o transplante aconteça e haja duas pessoas vivas com
experiências conscientes. É claro que sei muito bem que uma operação dessa
delicadeza não é possível de ser feita em termos práticos atualmente e talvez
nunca o será para simples cientistas humanos com meros recursos humanos;
mas não posso ver que haja qualquer dificuldade teórica insuperável que
impossibilite uma operação assim. (Na verdade, dizer isso é muito pouco —
eu realmente espero que ela seja feita um dia.) Podemos, então, perguntar a
questão seguinte — se essa operação fosse feita e nós então tivéssemos duas
pessoas vivas, ambas com vidas de experiências conscientes, qual delas seria
eu? Provavelmente ambas, em alguma medida, se comportariam como eu e
alegariam ser eu e lembrar ter feito o que eu fiz; isso porque comportamento
e fala dependem, em grande parte, de estados cerebrais e há muitas
sobreposições consideráveis entre a “informação” levada pelos dois
hemisférios que dão origem a comportamento e fala. Contudo, ambas as
pessoas não seriam eu. Isso porque, se ambas fossem idênticas a mim, elas
seriam a mesma pessoa (se a é o mesmo que b, e b é o mesmo que c, então a
é o mesmo que c) e elas não são. Elas agora têm experiências diferentes e têm
vidas distintas. Ficam, então, três outras possibilidades: que a pessoa com
meu lado direito do cérebro sou eu, ou que a pessoa com meu lado esquerdo
do cérebro sou eu, ou que nenhuma delas sou eu. Mas não podemos ter
certeza de qual é mesmo o caso. Segue-se que o simples conhecimento do
que acontece a cérebros ou corpos ou qualquer outra coisa material não nos
diz o que acontece a pessoas.
É tentador dizer que é uma questão de definição arbitrária qual das
três possibilidades é a correta. Contudo, é uma tentação à qual se deve
resistir. Há um problema factual crucial aqui, que pode ser mostrado se
imaginarmos que fui capturado por um cirurgião maluco que está para fazer a
operação de divisão do cérebro em mim. Ele me diz (e eu tenho toda razão do
mundo para acreditar nele) que a pessoa que vai ser formada a partir do meu
lado esquerdo do cérebro vai ter uma vida agradável e que terá meu lado
direito terá uma vida torturante. Se minha vida será feliz ou muito penosa, ou
mesmo se vou sobreviver uma operação, são questões claramente factuais.
(Apenas alguém sujeito a dogmas filosóficos muito fortes negaria isso.)
Contudo, ao mesmo tempo em que eu espero o transplante e sei exatamente o
que vai acontecer com meu cérebro, não estou em posição de responder a
questão acerca do que vai acontecer comigo. Talvez nenhuma das pessoas
futuras seja eu — pode ser que cortar o tronco cerebral destrua a pessoa
original de uma vez por todas e que, embora reconstituir o tronco danificado
crie duas novas pessoas, nenhuma delas seja eu. Talvez eu seja a pessoa da
metade esquerda do cérebro, ou talvez seja a pessoa do lado direito. Mesmo
que uma pessoa subsequente se pareça com meu eu original em caráter e
relatos de memória mais do que a outra, ela pode não ser eu. Pode ser que eu
sobreviva a operação, mas mude de caráter e perca muito de minha memória
em consequência disso, o que significa que a outra pessoa subsequente vai
parecer o meu eu original mais em seu comportamento público do que eu.
Refletir sobre esse experimento mental mostra que, não importa o
quanto saibamos acerca do que aconteceu com meu cérebro — podemos
saber exatamente o que aconteceu com cada átomo dele — e com todas as
outras partes materiais de mim, nós não necessariamente sabemos o que
aconteceu comigo. Disso se segue que deve haver mais de mim que a
matéria da qual meu corpo e cérebro são feitos. Além dela, uma parte
imaterial essencial, cuja existência continuada torna o cérebro (e assim o
corpo) ao qual ela está conectada o meu cérebro (e meu corpo). A esse algo,
dou o nome tradicional de “alma”. Eu sou minha alma mais qualquer cérebro
(e corpo) que esteja conectada a ela. Normalmente, minha alma vai aonde vai
meu cérebro, mas em circunstâncias não usuais (tais como quando meu
cérebro é dividido), não é certo para onde ela vai.
Considere um exemplo um pouco diferente. Eu morro de hemorragia
cerebral, que os médicos hoje não podem curar, mas meus parentes pegam
meu corpo e o colocam em congelamento profundo na Califórnia. Pouco
depois disso, acontece um terremoto, em consequência do qual meu cérebro
congelado é fragmentado em muitas partes, das quais umas poucas se
perdem. Contudo, cinquenta anos depois, quando a tecnologia médica já
avançou, meus descendentes juntam os pedaços de meu corpo fragmentado,
aquecem-nos e os conectam, substituindo as partes perdidas por outras. O
corpo passa a pertencer a uma pessoa viva, que se comporta mais ou menos
como eu e parece se lembrar de muito de minha vida passada. Voltei a viver
de novo ou não? Talvez sim, talvez não. Novamente, há uma verdade aqui,
relativa a eu ter sobrevivido à hemorragia, tal como eu queria e, contudo, essa
não é uma verdade da qual podemos estar certos, por mais que saibamos
acerca da história do meu cérebro. Portanto, minha sobrevivência consiste na
continuidade de outra coisa, que eu chamo de alma, ligada ao meu corpo
anterior; e eu só sobrevivo neste novo corpo se e somente se essa alma está
conectada nele. E note que a verdade adicional não é acerca de que tipo de
vida mental está conectada ao cérebro. Não é sobre propriedades mentais,
sobre que pensamentos, sentimentos e propósitos tem a pessoa que reviveu.
Ao invés disso, a verdade adicional, quanto a seu eu sobrevivi ou não, é
uma verdade acerca de quem — ou seja, que substância — é a instância
na qual se dão essas propriedades. E uma vez que o simples conhecimento
do que aconteceu a cada substância material não me diz isso, deve se tratar de
uma verdade acerca de uma substância imaterial. Na medida em que eu
continuo a ter pensamentos, sentimentos e propósitos, eu sobrevivi à
operação — não importa o que tenha acontecido a quaisquer partes materiais
de mim. Assim, minha alma é a parte essencial de mim — sua sobrevivência
é a minha sobrevivência; e pensamentos, sentimentos e assim por diante
pertencem a mim em virtude de pertencerem a minha alma. A alma é a parte
essencial da pessoa humana.
O dualismo não é uma tese filosófica popular hoje, mas eu acho
inescapáveis esses argumentos (de um tipo inteiramente não teológico) em
seu favor. Você deixa algo muito importante de fora da história do mundo se
conta apenas a história de quais eventos físicos foram sucedidos por quais
outros eventos físicos. O modo como as pessoas pensaram e sentiram é muito
importante. E igualmente importante é quem teve esses pensamentos e
sentimentos — quando uma pessoa deixou de existir e outra veio a existir.
Ora, certamente, como já disse, nós normalmente sabemos as
respostas a essas questões. Eu não quero questionar nenhum dos juízos de
senso comum acerca de quando alguém está consciente e quem é essa pessoa.
Nossa observação dos corpos normalmente nos diz quando as pessoas são as
mesmas e o que elas sentem. É claro, se um bebê grita quando perfurado com
uma agulha, é porque ele sente dor. Mas não é tão óbvio se esse é também o
caso, quando um organismo aparentemente humano feito em uma fábrica ou
uma criatura de outro planeta emite um som quando perfurado com uma
agulha. E, é claro, a pessoa com este corpo hoje que não foi sujeita a uma
operação de cérebro e partilha dos mesmos padrões de comportamento da
pessoa com esse corpo ontem é a mesma pessoa que a anterior. Contudo, ao
falar de seres humanos depois de passarem por operações cerebrais de
grandes proporções de e criaturas de algum planeta distante, não é claro se
estamos lidando com a mesma pessoa de antes. O que esses exemplos trazem
é que o fato de uma pessoa sentir dor é diferente do fato dela ser perfurada
por uma agulha, e o fato dessa pessoa ser a mesma que outra é diferente deste
corpo ser o mesmo que aquele outro corpo; mesmo que normalmente um
evento deste último tipo aconteça junto com um evento do primeiro tipo.
Uma história completa do mundo vai contar a história dos sentimentos
além da história dos eventos cerebrais, e das pessoas (e, portanto, de suas
partes imateriais, as almas), além da história dos corpos.
Esses argumentos, que mostram que os seres humanos têm duas
partes — corpo e alma — vão mostrar que toda criatura que tiver uma
vida mental vai também ter duas partes. Os mesmos problemas vão surgir
para um chimpanzé ou um gato tanto quanto para um humano. Se um gato
sofrer uma grande operação cerebral, a questão que fica é se ele tem razão de
temer as más experiências e ansiar pelas boas que o gato pós-operação vai ter.
Essa questão não pode necessariamente ser respondida apenas sabendo o que
aconteceu com cada molécula do cérebro do gato. Assim, devemos postular
uma alma do gato que é a parte essencial deste, e cuja continuação permite a
continuidade do próprio animal. Apenas quando falamos de animais sem
pensamento ou sentimento é que essa questão não aparece e nesse caso não
há necessidade de postular uma parte imaterial desses seres. Certamente a
alma humana tem capacidades diferentes das almas de animais superiores (ela
pode ter tipos de pensamento — acerca de moralidade ou lógica — que estas
não podem ter; e formar tipos de propósito — por exemplo, de resolver uma
equação — que estas não podem). Contudo, o que meu argumento mostra é
que animais que têm pensamento e sentimento têm como sua parte essencial
uma alma imaterial.
Tanto como não quero negar que eventos cerebrais causem eventos
mentais (ou seja, eventos na alma, desde que esta exista) e vice-versa, não
desejo negar necessariamente que eventos no cérebro desempenhem um
papel em causar a existência de almas. Em algum estágio da evolução
animal, um cérebro se tornou tão complexo que causou a existência de uma
alma conectada a este, e o contínuo desenvolvimento e funcionamento
daquele cérebro deu sustentação à existência da alma. Além disso, à medida
que a evolução prosseguiu, complexidades semelhantes causaram almas
semelhantes. A conexão entre uma alma e um cérebro que se estabelece é
causal. São eventos neste determinado cérebro que causam eventos nesta
alma em particular, e eventos nesta determinada alma que causam eventos
neste cérebro em particular; isso é o que significa a conexão entre este
cérebro e esta alma.
Em qual estágio do processo evolutivo os animais começaram a ter
almas e, portanto, uma vida mental? Nós não sabemos. Mas muito claramente
seu comportamento mostra que os mamíferos têm de fato uma vida mental.
Minha tese é que todos os vertebrados têm uma vida mental, porque todos
eles têm um cérebro semelhante ao cérebro humano, o qual, nós sabemos,
causa uma vida mental em nós e também seu comportamento é mais bem
explicado em termos de eles terem sentimentos e crenças. Cães, pássaros e
peixes, todos sentem dor. Contudo, não há qualquer razão para atribuir vida
mental a vírus e bactérias, nem tampouco a formigas e besouros. Eles não
têm o tipo de cérebro que temos, nem precisamos atribuir sentimentos e
pensamentos a eles a fim de explicar seus comportamentos. Segue-se disso
que, em algum momento particular da história evolutiva, apareceu algo
inteiramente novo — a consciência, uma vida mental, que deve ser analisada
em termos de almas tendo propriedades mentais.
A relutância de tantos filósofos e cientistas em admitir que, em
determinado momento da história evolutiva, passaram a existir, conectadas a
corpos animais, almas com propriedades mentais, parece-me ser devida em
parte ao fato de que, se uma coisa assim acontecesse, eles estariam
inteiramente sem saber explicar como isso se deu. Porém, é altamente
irracional dizer que algo não existe apenas porque você não pode explicar por
que ele surgiu. Deveríamos aceitar o fato evidente; e se não podemos explica-
lo, devemos ser humildes e reconhecer que não somos oniscientes. Contudo,
vou sugerir que, embora, não possa haver uma explicação inanimada, do tipo
característico das ciências naturais, o teísta tem uma explicação para a
ocorrência de almas e sua vida mental.

Não há explicação científica


Uma vez que eventos cerebrais causam eventos mentais e eventos
mentais causam eventos cerebrais, os cientistas poderiam em todo caso
talvez fazer uma longa lista dessas conexões causais nos seres humanos.
Essa lista poderia dizer que eventos cerebrais de certo tipo causam imagens
azuis e que de outro tipo causam imagens vermelhas; que eventos cerebrais
de um tipo causam a crença de que 36x2=72, e que de outro tipo causam um
forte desejo de tomar chá; e que um propósito de comer bolo junto com a
crença de que o bolo está no armário causa os eventos cerebrais que causam
os movimentos das pernas na direção do armário. E assim por diante. Do
mesmo modo, seria possível que os cientistas listassem quais cérebros
primitivos dão origem à consciência — ou seja, às almas. A razão pela qual
eu disse “seria possível” é que nossas únicas razões para crer que algum outro
organismo — seja um animal cujo corpo foi formado por processos sexuais
normais na terra, seja alguma criatura de outro planeta, seja alguma máquina
feita numa fábrica — é consciente são dadas pela semelhança de seu
comportamento e organização cerebral com a nossa. Nós não temos como
conferir de modo independente se ele é consciente. Mas deixemos de lado as
dificuldades acerca de como poderíamos decidir essas coisas e suponhamos
que temos listas de conexões causais entre eventos cerebrais e eventos
mentais, e listas de que tipos de cérebros primitivos dão origem à consciência
— ou seja, a almas — nas quais eventos cerebrais subsequentes causam
eventos mentais subsequentes e eventos mentais causam eventos cerebrais.
Assim, aí estão os fenômenos. O problema é explica-los. Por que a
formação de um cérebro com a complexidade equivalente ou maior que a de
um animal (talvez um vertebrado primitivo) dá origem à consciência — ou
seja, a uma alma com estados mentais? E por que um evento cerebral desse
tipo causa uma imagem azul e um daquele tipo causa uma imagem vermelha,
e não vice-versa? Por que comer chocolate causa os eventos mentais que
causam o gosto que chamamos de achocolatado a invés de gosto de abacaxi?
Uma mera lista de correlações seria como uma lista de frases de uma língua
estrangeira que traduz frases de português sem qualquer gramática ou
dicionário lexical para explicar por que aquelas são as traduções corretas. E,
na ausência de uma gramática e de um dicionário, você não tem condições de
traduzir nenhuma frase nova.
Para dar uma explicação inanimada desses fenômenos, nós
precisaríamos de uma teoria científica de corpo-alma que satisfizesse os
critérios descritos no capítulo 2. Ela conteria algumas poucas leis simples das
quais se seguiria que este nervo ou computador ou conexão material daria
origem a uma alma, e que aquele outro, não; que esse evento cerebral
causaria uma imagem vermelha, e que aquele outro faria surgir uma azul; e
que este evento cerebral causaria o pensamento de que a Rússia é um país
grande, e aquele outro causaria o pensamento de que todo ser humano tem
sua vocação. E assim por diante. A teoria então nos permitiria prever que
eventos cerebrais de um novo tipo dariam origem a que eventos mentais
novos, e que novos tipos de máquina teriam sentimentos e quais tipos, não.
Ora, o que faz uma teoria da mecânica poder explicar um conjunto
diverso de fenômenos mecânicos é que as leis da mecânica todas lidam com o
mesmo tipo de coisa — objetos materiais, sua massa, forma, tamanho,
posição e respectivas mudanças. E objetos materiais diferem uns dos outros
quanto a essas propriedades em formas mensuráveis (um tem duas vezes a
massa do outro, ou é três vezes mais longo que outro). Porque as
propriedades são mensuráveis, podemos ter leis gerais que relacionam duas
ou mais quantidades mensuráveis em todos os corpos por uma fórmula
matemática. Nós não precisamos meramente dizer que, quando um objeto
desta massa e desta velocidade colide com um objeto dessa massa e dessa
velocidade, o resultado é esse e aquele, e assim por diante para inúmeros
objetos diferentes. Podemos ter uma fórmula geral, uma lei que diz que, para
cada par de objetos materiais em colisão, a quantidade da soma da massa do
primeiro multiplicada por sua velocidade mais a massa do segundo
multiplicada por sua velocidade é sempre conservada. Mas isso só vale se a
massa puder ser medida numa escala — por exemplo, em gramas ou libras; e
do mesmo modo com a velocidade.
Mas uma teoria corpo-alma lidaria com tipos muito diferentes de
coisa. A massa e a velocidade, as propriedades elétricas e outras, dos objetos
materiais são totalmente diferentes das propriedades mentais (privadas) de
pensamento e sentimento, que pertencem às almas. As propriedades físicas
são mensuráveis. Assim, eventos cerebrais diferem uns dos outros quanto aos
elementos químicos envolvidos neles (os quais, por sua vez, diferem uns dos
outros em modos mensuráveis) e quanto à velocidade e direção de
transmissão da carga elétrica. Contudo, pensamentos não diferem uns dos
outros em escalas mensuráveis. Um pensamento não tem duas vezes mais de
algum tipo de sentido de outro. Assim, não poderia haver uma fórmula
geral mostrando os efeitos de variações nas propriedades de eventos
cerebrais em eventos mentais, pois os primeiros diferem em aspectos
mensuráveis, enquanto estes últimos, não. E o que acontece com
pensamentos, acontece com eventos mentais de outros tipos. Um desejo por
rosbife não se distingue de um desejo por chocolate pelo fato de ter duas
vezes mais de alguma coisa. (É claro que as causas subjacentes de um podem
ter duas vezes mais de algo que as de outro — mas isso é outra coisa.) Assim,
não poderia haver uma fórmula geral que mostrasse de que modo certas
variações no cérebro produziram mudanças de desejos; mas apenas uma lista
de que variações no cérebro causaram que mudanças de desejo e, uma vez
que sensações, pensamentos e coisas assim não diferem de outras sensações e
pensamentos de modos mensuráveis, muito mais obviamente sensações não
diferem de pensamentos, ou propósitos não diferem de crenças em modos
mensuráveis. Desse modo, não pode haver uma explicação derivada de
alguma fórmula geral acerca de por que esse evento cerebral foi causado por
um propósito e aquele outro causou uma crença, e outro causou um gosto de
chocolate. Não apenas são muito diferentes os tipos de propriedades
possuídas por objetos materiais de tempos em tempos, mas, ainda mais
obviamente, objetos materiais são tipos de coisas totalmente diferentes de
almas. Almas não diferem umas das outras ou de qualquer outra coisa pelo
fato de serem feitas de mais ou menos alguma quantidade de algo. Assim,
novamente, não poderia haver uma fórmula geral que correlacionasse o
crescimento da complexidade do cérebro com a ocorrência de uma alma.
Redes neurais podem se tornar mais e mais complicadas, mas não poderia
haver uma fórmula da qual fosse consequência que um grau de complexidade
daria origem à ocorrência de uma alma, enquanto um grau um pouco menor,
não. Ter uma alma é questão de tudo ou nada (uma criatura ou tem algum
sentimento e consciência e, portanto, uma alma, ou não tem nada disso e,
portanto, não tem alma); isso não pode ser medido. Por essas razões, não
poderia haver uma explicação da correlação alma-cérebro, uma ciência da
alma-cérebro; mas apenas uma longa lista de conexões causais inexplicáveis.
Contudo, a ciência não nos surpreende sempre com novas
descobertas? A história da ciência é pontuada de muitas “reduções”, de
todo um ramo da ciência a outro, aparentemente totalmente diferente, ou de
“integrações” de ciências aparentemente muito distintas em uma
superciência. A termodinâmica, que lida com o calor, foi reduzida à mecânica
estatística que lida com velocidades de grandes grupos de partículas de
matéria e as colisões entre elas; a temperatura do gás mostrou ser a energia
cinética média de suas moléculas. A ótica foi reduzida ao eletromagnetismo;
a luz mostrou ser uma onda eletromagnética. E as ciências separadas da
eletricidade e do magnetismo se juntaram para formar uma superciência do
eletromagnetismo. Como essas grandes integrações podem ser conseguidas se
meu argumento é correto de que não pode haver uma superciência que
explique tanto eventos mentais quanto cerebrais?
Existe uma diferença crucial entre esses casos. Toda integração
anterior em uma superciência, de ciências que lidam com entidades e
propriedades aparentemente muito distintas no aspecto qualitativo, foi
conseguida ao se dizer que na verdade algumas dessas entidades e
propriedades não eram como pareciam ser. Uma distinção foi feita entre
entidades materiais e propriedades físicas subjacentes (não imediatamente
observáveis) por um lado, e as propriedades sensoriais às quais elas deram
origem. A termodinâmica se ocupou originalmente com as leis da troca de
temperatura; e se supunha que a temperatura era uma propriedade inerente a
um objeto, que você sentia quando o tocava. O calor sentido de um corpo
quente é de fato qualitativamente distinto das colisões e velocidades das
partículas. A redução à mecânica estatística foi conseguida ao se distinguir
entre a causa subjacente do calor (o movimento das moléculas) e as
sensações que o movimento das moléculas causa nos observadores, e ao se
dizer que na verdade a temperatura era o primeiro e que as segundas eram
apenas o efeito daquele em observadores como nós. Isso feito, a temperatura
se enquadra naturalmente no âmbito da mecânica estatística — pois
moléculas são partículas; as entidades e propriedades não são mais agora de
tipos distintos. Uma vez que duas ciências agora lidam com entidades e
propriedades do mesmo tipo (mensuráveis), a redução de uma a outra se torna
agora uma perspectiva prática. Mas a redução foi obtida ao preço de separar o
calor sentido de suas causas e explicar apenas estas últimas.
Todas as outras “reduções” de uma ciência a outra e as “integrações”
de ciências separadas que lidam com propriedades aparentemente muito
distintas foram conseguidas por essa estratégia de negar que as propriedades
aparentes (como as “qualidades secundárias” de cor, calor, som e gosto), com
as quais uma ciência lidava, pertenciam ao próprio mundo físico. Isso as
excluiu do mundo do mental. Contudo, quando se tem de enfrentar o
problema dos próprios eventos mentais, não se pode fazer isso. Se você for
explicar os eventos mentais mesmos, não poderá distinguir entre eles e suas
causas subjacentes e explicar apenas estas últimas. De fato, o enorme sucesso
em produzir uma físico-química integrada foi obtido à custa de separar do
mundo físico as cores, os cheiros e os gostos, e encara-los como fenômenos
sensoriais puramente privados. O que os indícios da história da ciência
mostram é que o modo pelo qual se consegue a integração das ciências é
ignorando o mental. O mundo físico é governado por leis simples (ou seja,
objetos materiais têm os mesmos poderes e suscetibilidades simples); o modo
de descobrir essas leis é ignorando o mental. O próprio sucesso da ciência em
alcançar suas amplas integrações em física e química é exatamente aquilo que
aparentemente impossibilitou qualquer sucesso final na integração do mundo
da mente com o mundo da física.
Como vimos no capítulo 4, a teoria darwinista da evolução por
seleção natural é capaz de dar uma explicação completa do desenvolvimento
de corpos humanos e animais, embora não seja uma explicação completa ou
última, como defendi. Contudo, a explicação darwinista explicaria
igualmente bem a evolução de robôs inanimados. O darwinismo não
poderia nos dizer algo sobre como os corpos vieram a se conectar com a
consciência — ou seja, com as almas? A seleção natural é uma teoria de
eliminação; ela explica por que tantas das variações surgidas com a evolução
foram eliminadas — elas não eram adequadas para a sobrevivência. Porém,
isso não explica por que elas surgiram em primeiro lugar. No caso das
variantes físicas (como o tamanho do pescoço da girafa), não há dúvida de
que existe uma explicação adequada em termos de mutação (uma mudança
química aleatória) que produz um novo gene com propriedades que causam o
surgimento da nova variante de acordo com as leis básicas da química. No
entanto, nosso problema é explicar por que algum estado físico causou o
surgimento de almas com propriedades mentais como crenças, desejos,
propósitos, pensamentos e sensações. O darwinismo não ajuda a resolver esse
problema.
A teoria darwinista poderia, contudo, ser útil para resolver um
problema diferente e certamente pode ajudar a solucionar um terceiro; mas
nenhum deles pode ser confundido com o original. O primeiro desses
problemas adicionais é por que, tendo aparecido inicialmente na história
evolutiva, os animais conscientes sobreviveram. A teoria darwinista poderia
mostrar que organismos conscientes tiveram alguma vantagem na luta pela
sobrevivência com organismos não conscientes programados para reagir ao
meio de modos semelhantes. É difícil ver como isso seria, mas pode ser que
haja uma vantagem.
Para o segundo problema adicional, o darwinismo pode dar uma
resposta clara e, a meu ver, obviamente correta. Este é o problema. Dada a
existência de conexões entre mente e cérebro, e dado que organismos com
uma vida mental serão favorecidos na luta pela sobrevivência, por que os
eventos cerebrais, que causam e são causados por eventos mentais, estão
conectados com outros eventos corpóreos e extracorpóreos no modo como de
fato são? Considere as crenças. Um evento cerebral causa a crença de que há
uma mesa presente. Esse evento cerebral é causado por um impulso nervoso
ao longo de um nervo ótico a partir do olho, quando a imagem da mesa é
formada no olho pelos raios de luz que chegam desta. Contudo, um animal
poderia ter evoluído de modo que o evento cerebral que causou a crença da
mesa fosse causado por eventos bem diferentes no mundo externo. Por que
essas conexões determinadas entre o cérebro e o mundo externo? A resposta
é evidente: animais com crenças têm mais probabilidade de sobreviver se
suas crenças são majoritariamente verdadeiras. Crenças falsas — por
exemplo, acerca da localização de alimento ou de predadores — vão levar à
rápida eliminação na luta em relação a esses fatores. Se você acredita que não
há uma mesa aqui, quando na verdade há uma, você vai se chocar contra ela e
assim por diante. Vão ter mais probabilidade de sobreviver os seres nos quais
os estados cerebrais que dão origem a crenças estão conectados por cadeias
causais ao mundo externo. Ou seja, de um modo tal que a cadeia causal é
normalmente ativada apenas por um estado de coisas que provoca o estado
cerebral, e que, por sua vez, causa a crença de que o estado de coisa acontece.
Esses seres vão normalmente ter crenças verdadeiras sobre o mundo. De
modo semelhante, dado que vou ter desejos causados por eventos cerebrais,
há vantagens evolutivas em ter alguns deles em algumas circunstâncias, ao
invés de outros em outras circunstâncias — por exemplo, o desejo por
comida quando estou com fome, em vez de quando estou saciado. O mesmo
tipo de explicação pode ser dado para por que eventos cerebrais produzidos
por propósitos dão origem aos movimentos de um corpo. Se, quando tento
mover meu pé, o que se move é minha mão, os predadores vão rapidamente
me alcançar. Contudo, essa explicação correta de por que (dado que eventos
cerebrais causam eventos mentais) o cérebro está conectado por nervos ao
resto do corpo no modo como de fato está não explica por que eventos
cerebrais causam eventos mentais, o que é um problema bem diferente. E, de
modo semelhante, por que eventos mentais causam eventos cerebrais.
Assim, em suma, a evolução da vida mental dos animais (ou seja, de
animais que têm almas com certos eventos mentais) envolve:
(a) Existirem certas conexões físico-mentais
(certos eventos físicos que causam a existência de almas com
certas propriedades mentais e vice-versa);
(b) Existirem animais com cérebros cujos
estados dão origem a almas e isso ser uma vantagem na luta pela
sobrevivência;
(c) A evolução selecionar animais cujos
cérebros estão “ligados” aos seus corpos de certas maneiras.
Os mecanismos darwinistas podem explicar (c), e possivelmente
(b), mas nem o darwinismo ou qualquer outra ciência tem muita
perspectiva de explicar (a). A origem das características mais novas e
surpreendentes dos animais (sua vida consciente de sentimento, escolha e
razão) parece estar fundamentalmente fora do alcance da ciência.
Entretanto, há conexões causais entre alma e cérebro que não parecem
surgir dos poderes e suscetibilidades de objetos materiais do tipo que a
ciência pode explicar. Há conexões causais entre tipos particulares de evento
cerebral e mental; e conexões causais entre eventos cerebrais e a própria
existência de almas.
Contudo, eu preciso qualificar mesmo essa última afirmação. Pode
bem ser que certos estados cerebrais primitivos causaram a existência de
almas — tal como o cérebro fetal chega a certo estado de seu
desenvolvimento que dá origem a uma alma conectada a ele. Contudo, o que
ele não poderia causar é que alma está conectada com ele. Não poderiam
ser os poderes desse cérebro, das moléculas desse feto que surgem desses
genes, o que levam a ser o caso que minha alma esteja conectada a este
cérebro e a sua a esse outro, e não o contrário. Poderia ser igualmente
compatível com todas as regularidades entre tipos de evento (esse tipo de
organização cerebral e existência de um tipo de coisa — uma alma) que a
ciência nunca pudesse descobrir que você e eu estivéssemos conectados a
cérebros do modo contrário ao que de fato estamos. Simplesmente não há
descoberta científica possível que alguém pudesse sequer imaginar e que
explicasse por que isso aconteceu assim e não da outra maneira. Uma vez que
a conexão é feita, nós nos tornamos adaptados àquele cérebro; conectado a
um cérebro masculino, eu começo a ter pensamentos masculinos. Mas isso
não tem qualquer relevância para a questão acerca de por que o “eu” de uma
personalidade não formada foi adaptado a um cérebro masculino ao invés de
um feminino. Aqui a ciência simplesmente para.

Explicação teísta
Contudo, o teísmo pode dar uma explicação dessas coisas. Deus,
sendo onipotente, é capaz de juntar almas a corpos. Ele pode fazer com que
haja as conexões entre eventos cerebrais e eventos mentais que de fato
existem. Ele pode fazer isso levando as moléculas, quando formadas nos
cérebros, a terem poderes de produzir eventos mentais nas almas às quais elas
estão conectadas, e as suscetibilidades de executar os propósitos dessas almas
conectadas (novos poderes e suscetibilidades que não derivam daqueles
comuns que a química analisa). E ele pode, antes de tudo, criar as almas e
escolher a que cérebro (e, portanto, a que corpo) cada alma deve estar
conectada, quando os eventos do cérebro fetal exigirem uma alma ser
conectada ao cérebro.
Ele tem boas razões para causar a existência de almas e junta-las
a corpos, para o bem da existência de animais e seres humanos corpóreos,
que podem ter sensações agradáveis, satisfazer seus desejos, ter crenças sobre
como o mundo é e formar seus próprios propósitos à luz dessas crenças que
façam diferença no mundo. Isso envolve a existência de conexões causais
regulares entre eventos mentais e cerebrais. Nós não podemos fazer diferença
no mundo se, a cada hora que tentamos mover nossa perna, um efeito
diferente é causado no cérebro e, por este, no corpo — numa hora se move o
braço, noutra hora espirramos, e assim por diante. Do mesmo modo, para
podermos discriminar entre um objeto e outro, eles devem parecer (cheirar,
etc.) de modo diferente, e, portanto, deve haver uma conexão causal regular
entre eventos cerebrais causados por objetos de cada tipo e as impressões
visuais mentais destes. Além disso, para termos o incrível poder de
reprodução, deve haver conexões regulares entre nossos atos sexuais, o feto
ao qual eles dão origem e uma alma ou outra que se ligue a esse feto. Deus
tem razão de estabelecer todas essas conexões. Ele pode também ter razão de
juntar esta alma a este corpo em particular, mas, se não há razão para juntar
uma alma a um corpo ao invés de a outro, ele tem razão de, por um “sorteio
mental” fazer uma ou outra conexão — ou seja, de tornar uma questão de
sorte qual das conexões se estabelece.
Um Deus perfeitamente bom vai amar suas criaturas com suas
naturezas variadas — incluindo criaturas com âmbitos limitados de
propósitos e crenças, tais como ratos e cães. Mas ele tem uma razão especial
para criar seres humanos. Seres humanos diferem dos animais superiores
nos tipos de crenças e propósitos que têm. Por exemplo, temos crenças
morais, acerca da origem de nossa existência ou sobre teorias fundamentais
da matemática. Podemos tirar conclusões de premissas, e nossas crenças são
conscientemente baseadas em outras crenças (podemos chegar a ter uma
crença determinada acerca dos romanos porque acreditamos que algo em
particular foi encontrado em Chichester). E nossos propósitos não são apenas
imediatos, de obter alimento ou bebida, mas de criar máquinas complicadas,
construir belos prédios e de modificar a nós mesmos e aos outros — de
formar nossos caracteres de modo a que sejamos naturalmente inclinados a
fazer este tipo particular de ação e não aquele.
Além disso, os seres humanos, creio eu, e o sugeri no capítulo 1,
têm livre arbítrio — ou seja, nossos propósitos não são inteiramente
determinados por nossos estados cerebrais ou outra coisa. Realmente nos
parece que, à medida que fazemos escolhas, depende de nós o modo como
escolhemos. Eu deveria, nesse momento, dizer brevemente algo sobre uma
objeção a isso, que deve ocorrer ao leitor. O cérebro não é um objeto material
comum no qual as leis científicas normais funcionam? Como, então, um ser
humano pode livremente escolher mover seu braço ou se comportar
publicamente de algum modo, sem violar as leis científicas? Isso porque o
modo pelo qual um ser humano move seu braço ou faz algo público se dá por
causar um evento cerebral (não intencionalmente) e, desse modo, causar
intencionalmente o movimento constatável publicamente. Assim, se os seres
humanos têm livre arbítrio, não poderiam eles impedir que as leis científicas
normais funcionassem no cérebro? Uma resposta a isso é que, muito
obviamente, o cérebro não é um objeto material comum, uma vez que —
diferentemente dos que são comuns — ele dá origem a almas e suas vidas
mentais. Assim, nós não esperaríamos necessariamente que ele fosse
totalmente governado pelas leis normais da física que regem os objetos
materiais ordinários. Contudo, uma segunda resposta é que, mesmo que o
cérebro seja governado pelas mesmas leis que regulam outros objetos
materiais, isso ainda seria compatível com os seres humanos terem livre
arbítrio. Isso é assim porque uma das duas grandes teorias da física moderna,
a Física Quântica, mostra que o mundo físico em escala pequena não é
inteiramente determinístico. Um elemento de imprevisibilidade está por trás
do comportamento dos átomos e dos componentes ainda menores da matéria
como elétrons, prótons e fótons, além de outras partículas fundamentais, das
quais são feitos os átomos. Essa imprevisibilidade não é apenas um limite
para âmbito no qual os objetos materiais têm efeitos precisos, um limite para
o quanto o mundo físico é determinístico. É imprevisível exatamente o
quanto um elétron ou próton vai se mover, embora nós possamos
frequentemente dizer que é mais provável que ele o faça por um caminho e
não por outro. Do mesmo modo, átomos de um tipo normalmente “decaem”,
tornando-se átomos de outro tipo. Tudo o que a teoria quântica pode nos
dizer é o grau de probabilidade com que um átomo, digamos, de rádio, vai
decair em dado tempo, mas não exatamente quando isso acontecerá. Porém,
enquanto essa imprevisibilidade no nível atômico não der normalmente
origem a nenhuma imprevisibilidade significativa na larga escala, ela pode
fazê-lo. Nós podemos construir uma máquina que assegure que, se um átomo
decaísse em certo momento, uma bomba nuclear explodiria, mas que não o
faria em outra circunstância. Assim, não poderíamos prever se a bomba
explodiria ou não. Ora, o cérebro é uma máquina intrincada que também
amplia pequenas mudanças, e isso pode ser do seguinte modo: que as
pequenas mudanças imprevisíveis no cérebro são as que causam nosso
pensamento e comportamento observável. Nesse caso, quando os seres
humanos formam seus propósitos de pensar isso ou aquilo ou de se comportar
desta ou daquela maneira, eles causam dessa maneira aquelas pequenas
mudanças imprevisíveis pela ciência que, por sua vez, causam o pensamento
e o comportamento. Desse modo, os seres humanos podem exercer seu livre
arbítrio sem que isso envolva nenhuma violação das leis físicas que
governam o cérebro. Essas duas respostas sugerem que não há razão física
para supor que as coisas não são como pareceriam ser com respeito à escolha
humana livre.
Assim, nós humanos temos grandes possibilidades de adquirir crenças
verdadeiras e profundas acerca do mundo e que moldem não apenas nosso
meio ambiente em larga escala num nível complexo, mas também nós
mesmos. Em muitos modos diferentes, podemos escolher entre o bem e o
mal, e nossas escolhas fazem uma grande diferença. Um Deus generoso tem
razão de criar seres assim.
O indício analisado neste capítulo sugere que a existência de almas e
suas conexões com corpos não são devidas a processos físicos codificados em
leis naturais. Alguns poderes novos foram dados a cérebros fetais e às almas
as quais eles estão ligados, poderes que não têm uma explicação científica. A
existência de Deus, uma hipótese simples que nos leva, com alguma
probabilidade, a esperar os fenômenos discutidos no capítulo anterior,
também nos leva a esperar esses fenômenos. Assim, eles constituem indícios
adicionais em favor de sua existência. Embora os poderes do cérebro e sua
suscetibilidade de exercê-los quando recebe certos impulsos nervosos do olho
deem uma explicação completa do fato de eu ter uma imagem azul, esses
poderes são criados e conservados por Deus, e assim sua ação é a explicação
última da ocorrência da imagem azul. A ação de Deus também dá a
explicação última para haver uma alma ligada a este corpo (e ao fato de ser a
minha alma e não a sua). Tem sido uma doutrina cristã comum (embora não
universal) a tese de que, ao passo que Deus age por meio de “causas
secundárias” (ou seja, processos naturais) para fazer várias outras coisas no
mundo, ele intervém diretamente para criar almas humanas e liga-las a
corpos. Eu fui além disso para sugerir que o mesmo é verdadeiro para as
almas de animais superiores.
6. POR QUE DEUS PERMITE O
MAL
Este mundo é claramente providencial no sentido de que nós humanos
podemos ter uma grande influência em nosso destino, bem como no destino
do mundo e seus habitantes; e é muito bom para nós que seja assim. E, no
entanto, animais e seres humanos sofrem (por processos naturais de doença e
acidente) e causam sofrimento uns aos outros (nós nos ferimos, mutilamos e
fazemos passar fome). Ou seja, o mundo contém muito mal. Um Deus
onipotente poderia ter impedido esse mal, e certamente um Deus
perfeitamente bom e onipotente teria feito isso. Então, por que existe esse
mal? A sua ocorrência não é um forte indício contra a existência de Deus?
Ela seria caso nós não pudéssemos construir o que é conhecido como uma
teodiceia, uma explicação de por que Deus permitiria que ocorresse um mal
assim. Eu acredito que isso pode ser feito e eu vou delinear uma teodiceia
neste capítulo. Eu enfatizo que neste capítulo, tal como no capítulo 1, ao
dizer que Deus faria isso ou aquilo, não estou tomando por dada a existência
de Deus, mas apenas afirmando que, se Deus existe, é esperável que faça
certas coisas, inclusive permitir a ocorrência de certos males; e assim, estou
alegando que sua ocorrência não é indício contra sua existência.
É inevitável que qualquer tentativa, seja por mim seja por qualquer
outra pessoa, de construir uma teodiceia soaria insensível, totalmente
indiferente ao sofrimento humano. Muitos teístas, bem como ateístas,
sentiram que qualquer tentativa de construir uma teodiceia manifesta uma
abordagem imoral do sofrimento. Eu só posso pedir ao leitor que acredite que
não sou totalmente insensível ao sofrimento humano, e que eu de fato me
importo com a agonia do envenenamento, o abuso de crianças, o luto, a
prisão solitária e a infidelidade conjugal, tanto quanto qualquer outra pessoa.
É verdade, na maioria dos casos, eu não recomendaria que um pastor desse
este capítulo a vítimas de infortúnio súbito em seu pior momento, para que
lessem como consolo. Mas isso não é porque os argumentos não sejam
fundados; é simplesmente porque a maior parte das pessoas em situações
assim precisa de conforto, não de argumento. Contudo, há um problema
quanto a por que Deus permite o mal e, se o teísta não tem (num momento
tranquilo) uma resposta satisfatória para isso, então sua crença em Deus é
menos que racional e não há razão pela qual o ateísta deveria partilha-la. Para
avaliar o argumento deste capítulo, cada um de nós precisa se afastar um
pouco da situação particular de nossas vidas e de nossos amigos ou parentes
próximos (que muito facilmente podem parecer a única coisa importante no
mundo), e perguntar muito geralmente que coisas boas um Deus generoso e
eterno daria para seres humanos no decurso de suas curtas vidas na terra. É
claro que sensações de prazer e períodos de contentamento são coisas boas e
— tudo o mais sendo igual — Deus certamente buscaria oferecer muito disso.
Porém, um Deus generoso procuraria dar coisas boas mais profundas do que
essas. Ele almejaria nos dar grande responsabilidade por nós mesmos, pelos
outros e pelo mundo, e desse modo partilhar em sua própria atividade criativa
de determinar que tipo de mundo este deva ser. E ele vai buscar tornar nossas
vidas valiosas, de grande utilidade para nós mesmos e para os outros. O
problema é que Deus não pode nos dar esses bens em medida completa
sem permitir muito mal ao mesmo tempo.
O problema do mal não é o da falta de vários estados bons. Notamos
no capítulo 1 que, por mais que Deus crie muito bem, ele poderia criar mais;
e ele não tem em geral qualquer obrigação de criar. É por isso que a morte
não é por si um mal; a morte é apenas o fim de um estado bom, a vida (e, em
todo caso, um dos quais Deus pode decidir nos dar mais — dando-nos uma
vida após a morte). A morte pode ser um mal se chega prematuramente, ou
causa grande pesar em outrem; mas em si mesma ela não é um mal. Contudo,
há muitos males, estados ruins reais, que Deus poderia decidir remover, se ele
assim o escolhesse. Eu divido esses males em morais e naturais. Entendo por
“mal natural” todo mal que não é produzido deliberadamente por seres
humanos e que não é permitido por seres humanos como resultado de sua
negligência. O mal natural inclui tanto o sofrimento físico quanto o mental,
seja de animais, seja de seres humanos; todo o rastro de sofrimento trazido
por doença, desastres naturais e acidentes não previsíveis pelos seres
humanos. Por “mal moral” eu entendo aquele que inclui todo mal causado
deliberadamente por seres humanos que fazem o que eles não deveriam fazer
(ou que seres humanos permitem que aconteça porque deixam
negligentemente de fazer o que eles deveriam fazer) e também o mal
constituído por essas ações deliberadas ou falhas negligentes. Isso inclui a
dor sensorial do tapa dado pelo mau pai em seu filho, a dor mental provocada
pelo pai que não dá amor ao filho, a fome que se permite acontecer na África
por causa da negligência de membros de governos estrangeiros que permitem
isso acontecer e poderiam tê-la impedido, além do mal do pai ou do político
que deliberadamente provoca dor e não tenta impedir a fome.

Mal moral
O núcleo central de qualquer teodiceia deve ser, creio eu, a “defesa do
livre arbítrio”, que lida — para começar — com o mal moral, mas que pode
ser estendida para tratar de muito do mal natural também. A defesa do livre
arbítrio afirma que é um grande bem que os seres humanos tenham certo
tipo de livre arbítrio, que eu vou chamar de escolha livre e responsável, mas
que, se isso acontecer, então necessariamente haverá a possibilidade natural
de mal moral. (Por “possibilidade natural” quero dizer que não vai ser
determinado de antemão se o mal vai ou não ocorrer.) Um Deus que dá aos
humanos um livre arbítrio assim necessariamente vai trazer essa possibilidade
e pôr de lado seu próprio controle acerca de se esse mal vai ou não acontecer.
Não é logicamente possível — ou seja, seria autocontraditório supor — que
Deus poderia nos dar esse livre arbítrio e ainda garantir que nós sempre o
usássemos da maneira certa.
Escolha livre e responsável não é apenas livre arbítrio no sentido
estreito de ser capaz de escolher entre ações alternativas, sem que nossa
escolha seja causalmente necessária por algum fator anterior. Eu defendi,
pelas razões dadas no último capítulo, que os seres humanos de fato têm esse
livre arbítrio. Contudo, os humanos poderiam ter esse tipo de livre arbítrio
apenas em virtude de poderem escolher entre alternativas igualmente boas e
desimportantes.
Ao invés disso, escolha livre e responsável é o livre arbítrio (do tipo
discutido) de fazer escolhas significativas entre bem e mal, que fazem uma
grande diferença para o agente, para os outros e para o mundo.
Dado que temos livre arbítrio, nós certamente temos escolha livre
e responsável. Lembremo-nos da diferença que os seres humanos podem
fazer a si mesmos, aos outros e ao mundo. Os humanos têm oportunidades de
dar sensações prazerosas a si mesmos e aos outros, e de realizar atividades
valiosas — jogar tênis, tocar piano, adquirir conhecimento de história, ciência
e filosofia, além ajudar outros nessas atividades e, dessa maneira, constituir
relações pessoais profundas baseadas nessas sensações e atividades. E os
seres humanos são feitos de tal maneira que eles podem formar seu
caráter. Segundo uma observação famosa de Aristóteles, “nós nos tornamos
justos ao fazer ações justas, prudentes ao praticar atos prudentes e corajosos
ao realizar feitos corajosos”. Ou seja, ao fazer um ato justo quando é difícil
fazê-lo — quando vai contra nossas inclinações naturais (que é o que eu
entendo por desejos) — nós tornamos mais fácil fazê-lo na próxima vez.
Podemos gradativamente mudar nossos desejos, de modo que — por exemplo
— realizar atos justos se torne natural. Desse modo, podemos nos livrar do
poder de desejos menos bons ao qual estamos sujeitos. E ao escolher adquirir
conhecimento e usá-lo para construir máquinas de vários tipos, os humanos
podem estender o âmbito das diferenças que eles podem fazer no mundo —
eles podem constituir universidades que vão durar séculos ou poupar energia
para a próxima geração; e por esforço cooperativo, ao longo de muitas
décadas, eles podem eliminar a pobreza. As possibilidades da escolha livre e
responsável são enormes.
É bom que as escolhas livres dos seres humanos incluam a
responsabilidade genuína por outros humanos e que envolva a
oportunidade de beneficia-los ou prejudica-los. Deus tem o poder de fazer
bem ou mal aos seres humanos. Para que outros agentes possam partilhar de
seu trabalho criativo, é bom que eles tenham esse poder também (embora em
um grau menor talvez). Um mundo no qual os agentes possam fazer bem uns
aos outros, mas não possam se prejudicar contém apenas responsabilidade
muito limitada de uns pelos outros. Se minha responsabilidade por você é
limitada a se eu posso ou não dar a você uma câmera de vídeo, mas eu não
posso lhe causar dor, bloquear seu crescimento ou limitar sua educação, então
eu não tenho muita responsabilidade por você. Um Deus que desse aos
agentes apenas uma responsabilidade tão limitada pelos outros não teria dado
muito. Deus teria reservado para si mesmo a escolha mais importante acerca
do tipo de mundo que este seria, ao passo que permitiria aos humanos apenas
a escolha menor de preencher os pormenores. Ele seria como o pai que pede
para o filho mais velho tomar conta do mais novo, mas dizendo que ficaria de
olho em todos os movimentos do filho mais velho, e que interviria toda hora
que este fizesse algo errado. O filho mais velho poderia muito bem replicar
que, embora ele tivesse prazer em partilhar o trabalho de seu pai, ele só o
poderia fazer se pudesse fazer seus próprios juízos acerca de como agir
dentro de um âmbito significativo de opções disponíveis ao pai. Um Deus
bom, como um bom pai, vai delegar responsabilidade. A fim de permitir que
criaturas tomem parte na criação, ele vai permitir que elas decidam ferir e
mutilar, que frustrem o plano divino. Em nosso mundo, as criaturas têm
exatamente essa responsabilidade profunda umas pelas outras. Eu não posso
só beneficiar meus filhos, mas prejudica-los. Um modo de fazer-lhes mal é
lhes causar dor física. Contudo, há coisas muito mais danosas que eu posso
fazer a eles. Acima de tudo, posso impedir que eles cresçam para se tornarem
criaturas com conhecimento, poder e liberdade significativos; posso
determinar se eles vão ter o tipo de escolha livre e responsável que eu tenho.
A possibilidade de os seres humanos causarem mal significativo é uma
consequência lógica de eles terem essa escolha livre e responsável. Nem
mesmo Deus poderia nos dar essa escolha sem a possibilidade de mal
resultante.
Como vimos no capítulo 1, uma ação não seria intencional a menos
que fosse feita por uma razão — ou seja, vista como sendo uma coisa boa de
algum modo (ou por si mesma ou por suas consequências). E se apenas as
razões influenciam as ações, aquela que for considerada pelo sujeito como a
mais importante vai determinar o que é feito; um agente influenciado
somente pela razão vai inevitavelmente fazer a ação que ele considera como a
melhor como um todo. Se um agente não realiza aquilo que ele considera o
melhor, ele deve ter permitido que outros fatores além da razão tenham
exercido influência nele. Em outras palavras, ele deve ter permitido que
desejos pelo que ele considera como bom apenas em certo aspecto, mas não
como um todo, tenham influenciado sua ação. Em outros termos, ele deve ter
permitido que desejos pelo que ele considera bom apenas em certo sentido,
mas não como um todo, tenham influenciado sua conduta. Assim, a fim de
ter uma escolha entre bem e mal, os agentes já precisam de certa
depravação, no sentido de um sistema de desejos por aquilo que eles
corretamente acreditam ser mal. Eu preciso querer comer em excesso, ter
mais do que minha parte justa de dinheiro e poder, dar vazão a meus apetites
sexuais mesmo enganando meu cônjuge ou parceiro, querer machucar você, a
fim de que eu possa ter escolha entre bem e mal. Essa depravação é por si um
mal, que é a condição necessária do bem maior. Ela torna possível uma
escolha feita de modo sério e deliberado, porque feita em vista de uma
alternativa genuína. Eu enfatizo que, de acordo com a defesa do livre arbítrio,
é a possibilidade natural do mal moral que é a condição necessária do grande
bem, não o próprio mal real. O fato de este ocorrer está (graças à escolha de
Deus) fora do controle deste e depende de nós.
É crucial notar, além disso, que, se eu sofro em consequência de você
escolher livremente agir mal, isso não é de modo algum um puro prejuízo
para mim. Em certo sentido, é um bem para mim. Meu sofrimento seria um
puro prejuízo para mim se a única coisa boa na vida fosse o prazer sensorial e
a única coisa má, a dor; e é porque o mundo moderno tende a pensar nesses
termos que o problema do mal parece tão agudo. Se essas fossem as únicas
coisas boas e más, a ocorrência de sofrimento seria realmente uma objeção
conclusiva contra a existência de Deus. Contudo, nós já notamos o grande
bem de escolher livremente e influenciar nosso futuro, dos outros e do
mundo. E agora note outro grande bem — o bem de nossa vida servir a um
propósito, de ser útil para nós mesmos e os outros. Lembre as palavras de
Cristo: “é mais abençoado dar do que receber” (tal como citado por São
Paulo (Atos 20: 35)). Tendemos a pensar, quando o mendigo aparece em
nossa porta e nós nos sentimos obrigados a lhe dar algo e de fato o fazemos,
que foi uma sorte para ele, mas não para nós, que estivéssemos em casa. Isso
não é o que dizem as palavras de Cristo. Elas dizem que nós é que tivemos
sorte, não apenas porque temos muito, a partir do que podemos dar um
pouco, mas porque somos privilegiados em contribuir com a felicidade do
mendigo — e esse privilégio vale muito mais que dinheiro. E assim como é
um grande bem escolher livremente fazer o que é bom, também é bom ser útil
a alguém para um propósito de valor (quer dizer, desde que ele ou ela tenham
o direito e a autoridade de nos usarem desse modo). Poder sofrer para
tornar possível um bem é um privilégio, mesmo que o privilégio seja
forçado contra você. Aqueles que podem morrer por seu país e deste modo
salva-lo da opressão externa, são privilegiados. Culturas menos obcecadas
que a nossa com o mal da dor puramente física sempre têm reconhecido isso.
E eles têm reconhecido que ainda é um prazer, mesmo que aquele que morreu
tenha sido convocado a lutar.
E mesmo o homem do século vinte e um pode começar a ver isso, às
vezes, quando ele procura ajudar prisioneiros, não ao lhes dar prisões mais
confortáveis, mas ao permitir que eles ajudem os necessitados; ou quando ele
tem pena ao invés de inveja da “pobre menina rica” que tem tudo, mas não
faz nada por ninguém. E um fenômeno prevalecente no começo do século
vinte e um no Reino Unido nos traz isso especialmente à atenção — o mal do
desemprego. Devido ao nosso sistema de segurança social, o desempregado,
no fim das contas, tem dinheiro o bastante para viver sem muito desconforto;
certamente eles estão bem melhor do que estão muitos empregados na África,
na Ásia ou no Reino Unido dos tempos vitorianos. O que é mal no
desemprego não é tanto a pobreza que dela resulta, mas a inutilidade do
desempregado. Eles frequentemente relatam se sentir desvalorizados pela
sociedade, inúteis, “na pilha dos descartáveis”. Eles corretamente pensam que
seria bom para eles contribuir; mas não podem. Muitos deles aprovariam um
sistema no qual eles fossem obrigados a fazer trabalho útil ao invés desse no
qual a sociedade não vê neles utilidade.
Segue-se desse fato que ser útil é um benefício para aquele que está
nessa condição, que aqueles que sofrem nas mãos dos outros e desse modo
tornam possível o bem dos outros que têm escolha livre e responsável, são
beneficiados nesse respeito. Eu sou afortunado se a possibilidade natural de
meu sofrimento, se você decidir me ferir, é o veículo que torna sua escolha
ser significativa. Minha vulnerabilidade, minha abertura ao sofrimento (que
necessariamente envolve que eu sofra realmente se você fizer a escolha
errada), significa que você não é apenas como um piloto no simulador,
quando não faz diferença se algum erro é cometido. O fato de que nossas
escolhas façam diferença tremendamente, que possamos fazer grande
diferença nas coisas, para bem ou para mal, é uma das maiores graças que um
criador pode nos dar. E se meu sofrimento é o meio pelo qual ele pode dar a
você essa escolha, eu também sou afortunado a esse respeito. Embora seja
óbvio que sofrer em si mesmo seja uma coisa ruim, minha felicidade é que o
sofrimento não é aleatório e sem sentido. Ele é consequência de minha
vulnerabilidade que me torna útil.
Alguém pode objetar que a única coisa boa não é ser útil (morrer pela
pátria ou ser vulnerável ao sofrimento em sua mão), mas acreditar ser útil —
acreditar que se está morrendo pela pátria e que isso é útil; a experiência de
“bem-estar”. Mas isso não pode estar certo. Ter crenças confortadoras só é
uma coisa boa se elas forem verdadeiras. Não é bom acreditar que as coisas
estão indo bem, quando elas não estão, ou que sua vida é útil quando ela não
é. Ter prazer com uma falsidade confortadora é uma trapaça. Mas se eu tenho
prazer de uma crença verdadeira, deve ser porque eu considero ser uma coisa
boa o estado de coisas que eu creio acontecer. Se tenho prazer da crença
verdadeira de que minha filha está indo bem na escola, isso deve ser porque
eu vejo essa situação como uma coisa boa (não importa se eu acredite que ela
está indo bem). Se eu não acredito nisso, não teria nenhum prazer em crer
que ela está indo bem. Do mesmo modo, a crença de que sou vulnerável ao
sofrimento em suas mãos e que isso é uma coisa boa, só pode ser uma coisa
boa se ser vulnerável ao sofrimento em suas mãos é em si mesmo uma
coisa boa (independentemente de se eu creio nisso ou não). Certamente,
quando minha vida é útil e isso é bom para mim, é muito melhor que eu
acredite nisso e obtenha conforto daí; mas isso só pode ser ainda melhor se
essa situação já for uma coisa boa para mim em geral, não importa se eu creio
nisso ou não, no caso particular.
Contudo, embora o sofrimento possa desses modos servir a bons
propósitos, será que Deus tem o direito de deixar que eu sofra para o seu
benefício, sem me pedir permissão? Isso porque, vai dizer um crítico,
certamente ninguém tem o direito de deixar uma pessoa A sofrer pelo
benefício de uma pessoa B sem o consentimento de A. Nós julgamos que
estão fazendo algo errado os médicos que usam pacientes como objetos
involuntários de experimentação, na esperança de que isso vai produzir
resultados que possam ser usados para o benefício de outrem. Afinal, se estão
corretos meus argumentos acerca da utilidade do sofrimento, não deveríamos
todos causar sofrimento aos outros para que estes possam ter a oportunidade
de reagir do modo certo?
Há, contudo, diferenças cruciais entre Deus e os médicos. A primeira
é que Deus, como autor de nosso ser, tem certos direitos, certa autoridade
sobre nós, que outros seres humanos não têm. Ele é a causa de nossa
existência a cada momento desta e sustenta as leis da natureza que nos dão
tudo o que temos e somos. Para deixar que alguém sofra por seu próprio bem
ou dos outros, é preciso ter algum tipo de relação parental com o sofredor. Eu
não tenho o direito de deixar sofrer alguém estranho a mim, quando eu puder
facilmente impedir isso, mas tenho algum direito desse tipo sobre meus
próprios filhos. Eu posso deixar que o filho mais novo sofra um pouco por
seu próprio bem ou o de seu irmão. Tenho esse direito porque, em pequena
medida, sou responsável pela existência do meu filho mais novo, pelo início e
continuação desta. Eu o gerei, alimentei e eduquei, e tenho alguns direitos
limitados sobre ele em troca; em uma medida muito limitada, posso usa-lo
para um propósito valioso. Se isso está correto, então um Deus, que é muito
mais o autor de nosso ser que nossos pais, tem muito mais poder sobre nós a
esse respeito. Contudo, os médicos não têm sobre seus pacientes nem mesmo
os direitos limitados que os pais têm sobre seus filhos.
Porém, em segundo lugar e ainda mais importante, os médicos
poderiam ter pedido permissão aos pacientes; e os pacientes, sendo agentes
livres com algum poder e conhecimento, poderiam ter feito uma escolha
ciente quanto a aceitar ou não ser usados. Diferentemente, a escolha de Deus
não é acerca de como usar agentes já existentes, mas acerca do tipo de
agentes a serem criados e o tipo de mundo no qual coloca-los. Na situação
de Deus, os agentes não existem para ser consultados. Estou defendendo que
é bom que um agente A deva ter profunda responsabilidade por outro B (que,
por sua vez, poderia ter profunda responsabilidade por um terceiro agente C).
Não é logicamente possível para Deus ter consultado B se ele queria as coisas
assim, pois, para que A fosse responsável pelo crescimento de B em
liberdade, conhecimento e poder, não haveria um B com liberdade e
conhecimento para fazer nenhuma escolha, antes de Deus ter de escolher se
vai ou não dar a A responsabilidade por ele. Não se pode perguntar a um
bebê em que tipo de mundo ele quer nascer. O criador tem de fazer a escolha
independentemente de suas criaturas. Ele vai procurar, no fim das contas,
beneficia-los — todos eles. E, ao lhes dar o dom da vida — com qualquer
sofrimento que o acompanhe — isso já é um benefício substancial. Contudo,
quando se sofre em mãos de outrem, é frequente talvez que não seja benefício
suficiente compensar o sofrimento. Aqui é o momento de lembrar que é um
benefício adicional para o sofredor que seu sofrimento é o meio pelo qual
aquele que o faz sofrer teve a oportunidade de fazer uma escolha significativa
entre bem e mal que, de outro modo, ele não teria tido.
Embora por essas razões, como tenho dito, Deus tenha o direito de
permitir que seres humanos causem sofrimento uns aos outros, deve haver
um limite para a quantidade de sofrimento que ele tem o direito de deixar
alguém padecer por causa de um bem maior. Um pai pode permitir que um
filho mais velho tenha o poder de fazer algum mal a um filho mais novo em
vista da responsabilidade dada àquele; mas existem limites. E há limites
inclusive para o direito moral de Deus, nosso criador e mantenedor, de usar
seres sensíveis livres como peões em um jogo maior. Porém, se esses limites
fossem estreitos demais, Deus não teria condições de dar aos seres humanos
muita responsabilidade real; ele só poderia permitir que estes participassem
de uma brincadeira infantil. Entretanto, deve haver limites para os direitos de
Deus em deixar que os humanos machuquem uns aos outros; e existem esses
limites no mundo, dados, acima de tudo, pelo curto e finito tempo de vida que
os seres humanos e as outras criaturas vivem — um humano só pode ferir
outro por não mais que oitenta anos mais ou menos. E existem vários
mecanismos de segurança embutidos em nossa fisiologia e psicologia,
limitando a quantidade de dor que podemos sofrer. Contudo, o limite de
segurança básico é dado pelo pouco tempo de nossa vida finita. Sofrimento
não escolhido e interminável seria, a meu ver, um argumento muito forte
contra a existência de Deus. Mas essa não é a situação humana.
Assim, sem perguntar aos seres humanos, Deus tem de escolher por
eles entre os tipos de mundo no qual eles podem viver — basicamente ou um
mundo no qual haja muito pouca oportunidade dos seres humanos
beneficiarem ou ferirem uns aos outros, ou um mundo no qual existe
oportunidade considerável. Como ele deverá escolher? Há claramente razões
para ambas as escolhas. Porém, parece-me (na média apenas) que sua escolha
de criar o mundo no qual temos oportunidade considerável de beneficiar ou
prejudicar uns aos outros deve causar um bem ao menos equivalente ao mal
que ele vai permitir acontecer desse modo. É claro que o sofrimento que ele
permite é uma coisa ruim; e que, outras coisas sendo iguais, ele deve ser
evitado. Contudo, ter a possibilidade natural de causar sofrimento torna
possível um bem maior. Deus, ao criar seres humanos que (por necessidade
lógica) não podem escolher por si mesmos o tipo de mundo para o qual eles
vão vir, exibe plausivelmente sua bondade ao fazer por eles a escolha heroica
de que eles venham para um mundo arriscado, no qual eles podem ter de
sofrer pelo bem dos outros.
Mal natural
O mal natural não deve ser explicado do mesmo modo que o mal
moral. Ao invés disso, seu principal papel, eu sugiro, é o de tornar possível
aos seres humanos ter o tipo de escolha que a defesa de livre arbítrio enaltece,
e disponibilizar aos seres humanos tipos de escolha especialmente valiosos.
Há dois modos pelos quais o mal natural funciona para dar aos
humanos essa escolha. Primeiramente, o funcionamento das leis naturais ao
produzir males dá conhecimento aos homens de como fazer os próprios
males (se eles decidirem por isso). Observar você contrair uma doença por
processos naturais me dá o poder seja de usar esses processos para transmitir
essa doença a outras pessoas, seja de deixar que outros a peguem por
negligência, ou mesmo de tomar medidas para impedir que outros adoeçam.
O estudo de mecanismos da natureza que produzem vários males (e bens)
abre aos seres humanos um amplo espectro de escolha. Esse é o modo pelo
qual nós de fato aprendemos a fazer (bem e) mal. Mas será que Deus não
poderia nos dar o conhecimento necessário sobre (como causar o bem ou o
mal) que precisamos para ter escolha livre e responsável por um meio menos
custoso? Ele não poderia simplesmente cochichar nos nossos ouvidos de
tempos em tempos quais são as diferentes consequências de nossas diferentes
ações? Sim. Contudo, alguém que cresse que sua ação teria algum efeito
porque acreditava que Deus lhe tinha dito isso veria todas as suas ações como
sendo feitas sob o olhar de um Deus que tudo vigia. Ele não apenas
acreditaria fortemente que Deus existia, mas saberia isso com certeza real.
Esse conhecimento iria inibir fortemente sua liberdade de escolha, e tornaria
muito difícil para ele escolher fazer o mal. É por isso que todos nós temos a
inclinação natural de desejar que os outros pensem bem de nós e,
principalmente, por um Deus todo bondoso; o fato de que tenhamos uma
inclinação assim é uma característica muito boa dos seres humanos, sem a
qual nós seríamos muito menos humanos. Além disso, se estivéssemos
diretamente informados das consequências de nossos atos, estaríamos
privados da escolha de buscar descobrir as consequências por meio da
experiência e do trabalho cooperativo. O conhecimento estaria disponível
muito facilmente. Apenas os processos naturais dão aos homens o
conhecimento dos efeitos de suas ações sem inibir sua liberdade e para que o
mal seja uma oportunidade para eles, eles precisam saber como deixar que
aquele ocorra.
O outro modo pelo qual o mal natural funciona para dar aos homens
sua liberdade é que ele torna possíveis certos tipos de ação na direção
deste, entre as quais os agentes podem escolher. Isso aumenta o âmbito de
escolha significativa. Um mal natural particular, tal como a dor física, dá ao
sofredor uma escolha — ou de aguenta-la com paciência ou de ficar se
lamentando. Seu amigo pode escolher se vai mostrar compaixão para com o
sofredor, ou se vai ficar insensível. A dor torna possíveis essas escolhas, que
não existiriam de outro modo. Não há garantia de que nossas ações em
resposta à dor vão ser boas, mas esta nos dá a oportunidade de fazer boas
ações. As boas e más ações que fazemos em vista do mal natural, por sua vez,
dão-nos oportunidades de mais escolha — de bons ou maus posicionamentos
em vista de ações anteriores. Se eu for paciente com meu sofrimento, você
pode escolher incentivar ou ridicularizar minha paciência; se eu reclamar
demais, você pode me ensinar com palavras e exemplos o quanto a paciência
é boa. Se você for compassivo, eu terei então a oportunidade de mostrar
gratidão pela compaixão; ou ficar tão voltado para mim mesmo que eu a
ignore. E se você for insensível, posso escolher ignorar isso ou ficar
ressentido pelo resto da vida. E assim por diante. Eu não acho que pode haver
muita dúvida de que o mal natural, como a dor física, torne possíveis esses
tipos de escolha. As ações que o mal natural torna possíveis são as que
permitem você dar o melhor de si e interagir com os outros no nível mais
profundo.
Pode-se sugerir, entretanto, que a oportunidade adequada para essas
grandes ações seja seria dada pela ocorrência de mal moral sem a necessidade
de sofrimento causado por processos naturais. Você pode mostrar coragem
seja quando o que o ameaça é alguém armado, seja quando é o câncer; e
mostrar compaixão tanto por aqueles que podem morrer por atiradores,
quanto pelos que podem morrer de câncer. Porém, imagine por um segundo
todo o sofrimento de mente e corpo causado por doença, terremoto e
acidentes não evitáveis por seres humanos sendo removido de uma vez de
nossa sociedade. Nada de doença, nada de luto em consequência da morte
prematura de um jovem. Muitos de nós teríamos uma vida tão fácil que
simplesmente não teríamos muita oportunidade de demonstrar coragem ou
mesmo manifestar muito bem grandioso de modo nenhum. Nós precisamos
desses processos insidiosos de decadência e dissolução que o dinheiro e a
força não podem evitar por muito tempo a fim de termos oportunidades, tão
facilmente evitáveis em outras circunstâncias, de nos tornarmos heróis.
Deus tem o direito de permitir que ocorram males naturais (pelas
mesmas razões que ele tem de permitir que males morais ocorram) — até
certo limite. Seria certamente loucura se Deus multiplicasse os males mais e
mais a fim de dar intermináveis oportunidades de heroísmo, mas ter alguma
oportunidade significativa de heroísmo real e sua consequente formação de
caráter é um benefício para a pessoa à qual ela é dada. Os males naturais nos
dão o conhecimento de fazer uma gama de escolhas entre bem e mal, e a
oportunidade de realizar ações de tipos especialmente valiosos.
Entretanto, não há razão para pensar que animais tenham livre
arbítrio. Assim, o que dizer do sofrimento destes? Os animais vêm sofrendo
há muito tempo antes do aparecimento dos seres humanos neste planeta — a
quantidade de tempo depende de que animais são seres conscientes. A
primeira coisa a levar em conta aqui é que, embora os animais superiores, ou
ao menos os vertebrados, sofram, é muito improvável que eles sofram na
mesma proporção que nós. Dado que o sofrimento depende diretamente de
eventos cerebrais (por sua vez causados por eventos em outras partes do
corpo), então, na medida em que animais inferiores não sofrem de modo
algum e os humanos sofrem muito, então animais de complexidade
intermediária (é razoável supor) sofrem apenas em quantidade moderada.
Desse modo, embora seja necessária uma teodiceia para explicar por que
Deus permite que os animais sofram, esta não precisa ser tão poderosa quanto
a que é necessária para explicar o sofrimento humano. Só são necessárias
razões adequadas para Deus permitir uma quantidade de sofrimento muito
menor que a dos seres humanos. Dito isso, creio que partes da teodiceia que
delineei acima para os seres humanos se prestam também para os animais.
O bem dos animais, tal como dos seres humanos, não consiste apenas
de sensações de prazer. Para os animais também há coisas mais valiosas e
particularmente ações intencionais e dentre essas algumas sérias e
significativas. A vida dos animais envolve muitas ações significativas sérias.
Eles procuram parceiros, mesmo quando estão cansados e não conseguem
encontra-los. Têm enorme trabalho em construir ninhos e alimentar seus
filhotes, em explorar o meio e se livrar de predadores. Mas tudo isso
inevitavelmente envolve dor (continuar apesar de estar cansado) e perigo. Um
animal não pode evitar incêndios florestais intencionalmente, ou se dar ao
trabalho de resgatar seus filhotes desses incêndios, a menos que exista um
sério perigo de cair numa situação dessas. A ação de resgatar apesar do
perigo simplesmente não pode ser feita, a menos que o perigo exista — e o
perigo não vai existir a menos que haja uma probabilidade natural
significativa de se ver pego em um incêndio. Os animais não escolhem
livremente fazer ações como essa, mas elas são valorosas assim mesmo. É
muito bom que os animais alimentem seus filhotes, não apenas eles mesmos;
que os animais explorem o ambiente, mesmo sabendo que é perigoso; que se
salvem uns aos outros de predadores, e assim por diante. Essas são coisas que
dão valor às vidas dos animais. Contudo isso também envolve
frequentemente algum sofrimento para algumas criaturas.
Retornando ao caso central dos seres humanos — o leitor vai
concordar comigo na medida em que der valor à responsabilidade, à escolha
livre e a ser útil, mais que a ter sensações de prazer ou de ausência de dor.
Não há outra forma de colocar os males deste mundo na perspectiva correta, a
não ser refletindo profundamente com base em experimentos mentais
numerosos e pormenorizados (além das experiências de vida reais) nos quais
postulamos muitos tipos de mundo diferentes do nosso e então nos
perguntarmos se a perfeita bondade de Deus o levaria a criar um desses (ou
mesmo mundo nenhum) ao invés do nosso. Mas eu concluo com um
experimento mental bem pequeno, que pode ajudar a começar esse
processo. Suponha que você tenha existido em outro mundo antes de nascer
neste. Disseram-lhe que você teria apenas uma vida curta, talvez de somente
alguns minutos, embora fosse uma vida adulta, no sentido de que você teria a
riqueza de sensações e crenças característica da vida adulta. Você tinha a
possibilidade de escolher o tipo de vida que teria. Você podia ter uns poucos
minutos de prazer muito considerável, do tipo produzido por alguma droga
como a heroína, que você experimentaria sozinho e que não teria nenhum
efeito no mundo (por exemplo, ninguém saberia disso); ou você poderia ter
alguns minutos de dor considerável, tal como a dor do parto, que teria (sem
que você soubesse na hora da dor) importantes efeitos bons nos outros ao
longo de alguns anos. Disseram a você que, se você não fizesse a segunda
escolha, essas outras pessoas nunca existiriam — e que, por isso, você não
tinha nenhuma obrigação moral de fazer essa segunda escolha. Mas você
procuraria fazer a escolha que fizesse a sua própria vida a melhor que você
poderia ter. Qual você escolheria? A decisão, espero, é óbvia. Você deveria
ficar com a segunda opção.
Para aquele que não se convenceu com minhas afirmações acerca da
força relativa de bens e males envolvidos — defendendo que, ainda que os
bens sejam bons, eles não justificam os males que acarretam — existe uma
posição defensiva. Meus argumentos podem ter convencido você da grandeza
dos bens envolvidos o suficiente para concordar que um Deus perfeitamente
bom estaria justificado em causar os males por causa do bem que eles tornam
possível, se e somente se Deus também desse compensação na forma de
felicidade após a morte para as vítimas cujos sofrimentos tornaram
possíveis os bens. Alguém cuja teodiceia exigir suporte desse tipo vai
precisar de razão independente para acreditar que Deus realmente dá essa
vida após a morte para que esteja justificado em defender sua teodiceia, e eu
vou brevemente mencionar no próximo capítulo o tipo de razão que essa
poderia ser. Embora acredite que Deus de fato dá essa vida após a morte para
muitos seres humanos ao menos, venho expondo uma teodiceia sem me fiar
nesse pressuposto. Mas eu posso entender alguém que pense que esse
pressuposto é necessário, especialmente quando consideramos os piores
males. (Essa vida pós-morte não precisa necessariamente ser a vida eterna do
Céu.)
Permanece o argumento, contudo, de que mal é mal, e que há um
preço substancial pelos bens de nosso mundo que ele torna possível. Deus
não seria menos que perfeitamente bom se ele criasse, ao invés disso, um
mundo sem dor nem sofrimento e, portanto, sem os bens particulares que
esses males tornam possíveis. As tradições cristã, islâmica e muito da judaica
afirmam que Deus criou mundos dos dois tipos — nosso mundo e o Céu dos
abençoados. Este último é um mundo maravilhoso com uma vasta gama de
profundos bens possíveis, mas no qual faltam uns poucos bens que nosso
mundo contém, incluindo o bem de poder rejeitar o bem. Um Deus generoso
poderia muito bem escolher dar a alguns de nós a escolha de rejeitar o bem
em um mundo como o nosso antes de dar, àqueles que o acolhem, um mundo
maravilhoso no qual aquela possibilidade não existe mais.
7. COMO A EXISTÊNCIA DE DEUS
EXPLICA OS MILAGRES E A
EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
Milagres
Tenho defendido até aqui que a afirmação de que Deus criou e
mantém nosso universo é a hipótese que mais bem explica a estrutura geral
deste — sua própria existência, sua conformidade a leis naturais, o fato de ter
sintonia fina para evoluírem animais e humanos, e o fato de que esses são
seres conscientes com sensações, pensamentos, crenças, desejos e propósitos
que podem fazer grande diferença a si mesmos e ao mundo em modos
profundamente significativos. Tenho defendido também que a existência do
mal do tipo que encontramos no mundo não conta contra aquela afirmação.
Os indícios considerados até agora, portanto, dão um grau significativo de
probabilidade em favor desta tese — de que Deus existe. Contudo, se Deus
existe, e sendo perfeitamente bom, se ele ama suas criaturas, seria de
esperar que Deus interagisse conosco ocasionalmente de modo mais
direto em termos pessoais, ao invés de apenas por meio da ordem natural do
mundo que ele constantemente sustenta — a fim de responder nossas preces e
atender nossas necessidades. Ele não irá, contudo, intervir na ordem
natural muito frequentemente, pois, se o fizesse, nós não teríamos como
prever as consequências de nossas ações e, assim, perderíamos controle sobre
o mundo e nós mesmos. Se Deus respondesse a maioria das preces para um
parente se recuperar do câncer, então isso não seria mais um problema para
os seres humanos resolverem. Os homens não veriam mais o câncer como um
problema a ser solucionado pela pesquisa científica — a prece seria o método
óbvio de curar o câncer. Deus teria, então, tirado de nós uma escolha séria
quanto a investir dinheiro e energia em encontrar uma cura para o câncer ou
não se importar; e quanto a se dar ao trabalho de evitar o câncer (por
exemplo, não fumando) ou não fazer nada a respeito. As leis naturais, que
determinam que certos eventos vão causar efeitos bons e outros vão causar
maus resultados, permitem-nos descobrir as causas e efeitos das coisas e usar
isso por nós mesmos. As leis naturais são como regras, instituídas pelos pais,
escolas ou governos, estabelecendo que estas ações serão punidas e aquelas,
recompensadas. Uma vez que descobrimos essas regras, adquirimos controle
sobre as consequências de nossas ações — podemos, então, decidir se vamos
ser recompensados ou punidos. Contudo, pais amorosos vão, corretamente e
ocasionalmente, quebrar suas próprias regras e atender a algum pedido
especial — pois eles são pessoas em interação e não apenas sistemas de
regras. E por razões semelhantes, pode-se esperar ocasionalmente que Deus
vá quebrar suas próprias regras e intervir na história.
Pode-se esperar que Deus vá de vez em quando responder a preces
quando for por uma boa causa — tal como o alívio do sofrimento, a
restauração da saúde da mente ou do corpo, e para adquirir ciência de si
mesmo e de verdades espirituais importantes. E se pode também esperar que
ele vá intervir aqui e ali sem esperar por sua prece — a fim de nos ajudar a
fazer o mundo melhor de vários modos quando tivermos usado mal nossa
liberdade. Uma intervenção divina vai consistir seja de Deus agindo em áreas
nas quais as leis naturais não determinam o que acontecer (talvez nossa vida
mental não seja inteiramente determinada pelas leis naturais), seja do fato de
Deus suspender temporariamente as leis naturais. Chamemos as intervenções
deste último tipo de milagres e do tipo anterior de não miraculosas. Um
milagre é uma violação ou suspensão de leis naturais, levada a efeito por
Deus. Será que a história humana contém eventos de um tipo que se esperaria
que Deus, se ele existe, fizesse e que, contudo, não aconteceriam como
resultado do funcionamento das leis naturais? Ela certamente contém um
grande número de eventos do tipo que se esperaria que Deus realizasse, mas
dos quais não temos ideia de se eles aconteceram como resultado do
funcionamento das leis naturais ou não. Eu rezo para que meu amigo melhore
de um câncer e ele melhora. Uma vez que nós normalmente não sabemos em
pormenores o estado exato do corpo quanto este tem câncer, nem
conhecemos muito as leis naturais que regem o desenvolvimento dessa
doença, não podemos dizer se a recuperação ocorre como resultado dessas
leis ou não. O crente piedoso acredita que Deus interveio, o ateu pragmático
acredita que apenas as leis naturais estavam agindo. A história humana
também tem relatos de muitos eventos que, se tivessem ocorrido como
apresentados, claramente não teriam ocorrido como resultado de leis naturais,
e também são eventos do tipo que se poderia esperar que Deus os realizou. O
Segundo Livro dos Reis traz o relato de que o Rei Ezequias, quando doente e
em dúvida, buscou um sinal de encorajamento de Deus de que ele, Ezequias,
se recuperaria e que Deus salvaria Jerusalém dos assírios. Em resposta à
prece do profeta Isaías para que Deus desse a Ezequias um sinal, a sombra
deste feita pelo sol teria “recuado dez passos” (2 Reis 20.11). Esse
acontecimento só poderia ter acontecido se as leis da mecânica (que regem a
rotação da terra em seu eixo e, portanto, a direção do sol desde Jerusalém), ou
as leis da luz (que governam como a luz do sol forma sombras na região do
palácio de Ezequias), tivessem sido suspensas. (Ao dar esse exemplo de
evento que, se ocorreu como descrito teria sido um milagre, não estou
assumindo que o evento ocorreu ou não.)
Eu sugiro que, na medida em que temos outra razão para acreditar que
Deus existe, temos por que acreditar que Deus intervém na história em alguns
casos assim (nós podemos não saber quais) e, portanto, que alguns dos
eventos aconteceram como descritos, embora não por causa de leis naturais
necessariamente. Seria estranho supor que Deus, preocupado com nosso bem-
estar em geral, confinasse suas intervenções àquelas áreas (se é que há
alguma) nas quais as leis naturais deixam indeterminado o que vai acontecer
— por exemplo, confinasse suas intervenções à influência na vida mental dos
seres humanos. Se ele tem razão de interagir conosco, também tem, muito
ocasionalmente, de intervir para suspender aquelas leis naturais pelas quais
nossa vida mental é controlada; e, em particular, uma vez que os processos
corpóreos que determinam nossa saúde são muito evidentemente sujeitos a
leis naturais em grande medida deterministas, ele tem razão de intervir nestas,
de vez em quando. Do contrário, dado que tenhamos razão para acreditar que
Deus não existe, temos por que pensar que processos naturais são os
determinantes de nível mais alto do que acontece e, assim, que nenhum
evento acontece contra as leis da natureza. Em outras palavras, o
conhecimento de fundo (nossas outras razões para a crença geral acerca de
como o mundo funciona — por exemplo, nossas razões para acreditar que
Deus existe, ou que Deus não existe) é corretamente um fator muito
importante na avaliação do que aconteceu em ocasiões particulares (embora
não seja um fator importante para apreciar o valor de grandes teorias
científicas ou religiosas — ver capítulo 2).
Contudo, embora o conhecimento de fundo deva ser um fator
poderoso para determinar o que é razoável acreditar sobre o que aconteceu
em ocasiões particulares, ele não é, obviamente, o único fator. Nós temos os
indícios históricos pormenorizados daquilo que os observadores parecem
lembrar ter acontecido, o que as testemunhas afirmam ter observado, e os
traços físicos dos eventos passados (documentos, ruínas arqueológicas, e
assim por diante).
O fato de que o conhecimento de fundo deva pesar fortemente em
comparação com os indícios históricos pormenorizados na avaliação de
alegações particulares sobre o passado pode ser visto em inúmeros exemplos
não religiosos. Se uma teoria científica bem estabelecida leva você a esperar
que estrelas vão às vezes explodir, então algum estilhaço no céu de um tipo
que poderia ter sido causado por uma estrela que explodiu, mas que (ainda
que improvavelmente) pudesse ter alguma outra causa, pode ser
razoavelmente interpretado como estilhaço deixado por uma estrela que
explodiu. Contudo, se uma teoria bem estabelecida diz que estrelas não
podem explodir, você vai precisar de indícios muito fortes de que os
estilhaços não poderiam ter outra causa antes de interpreta-los como restos de
uma estrela que explodiu. No entanto, no caso de alegadas intervenções
miraculosas, o conhecimento de fundo é de dois tipos. Ele vai incluir o
conhecimento científico de quais são as leis da natureza relevantes — por
exemplo, as leis da luz e as leis que regem a rotação da terra, as quais (uma
vez que as leis da natureza agem quase o tempo todo) nos levam a esperar
que, naquela ocasião particular, a sombra de Ezequias não se moveu para
trás. Mas isso também inclui o outro indício de que existe um Deus capaz e
tendo razão às vezes (mas não necessariamente em uma ocasião determinada)
de intervir para suspender a ação das leis naturais. Em vista desses grupos
conflitantes de conhecimento de fundo, precisaríamos de um pouco de indício
histórico para mostrar que, em uma dada ocasião, Deus interveio de modo
miraculoso. O indício histórico poderia ser sustentado pelo argumento de que
Deus tinha forte razão para realizar aquele suposto milagre em particular.
Comparar indícios históricos pormenorizados com conhecimento de
fundo de ambos os tipos a fim de determinar o que aconteceu em alguma
ocasião em particular é uma questão difícil, acerca da qual é muito raro que
nós cheguemos a um veredito claro. Contudo, os indícios históricos
pormenorizados sobre o que aconteceu poderiam ser, em princípio,
substanciais. Tomemos um exemplo imaginário simples e sem significado
religioso especial: parece-nos que vimos por nós mesmos alguém levitar (ou
seja, subir no ar sem a ajuda de fios, ímãs ou qualquer outra força conhecida
que tenhamos conferido). Muitas testemunhas, que se mostraram totalmente
confiáveis em outras ocasiões, nas quais elas não teriam tido razão para
mentir, afirmam ter observado a mesma coisa. Pode haver inclusive traços na
forma de efeitos físicos que esse evento teria causado — por exemplo,
marcas no teto, que teriam sido causadas por um corpo levitando que o
atingiu. Porém, contra tudo isso, ainda haverá o conhecimento de fundo das
leis da natureza, nesse caso, as leis da gravidade; e todos os indícios em favor
de que essas são as leis da natureza serão indícios de que elas agiram na hora
em questão, de modo que nenhuma levitação ocorreu.
Note que qualquer indício histórico pormenorizado de que a levitação
ocorreu será, enquanto tal, indício contra as leis da gravidade serem as leis da
natureza — assim como indícios de que um pedaço de metal não expandiu
quando aquecido seria indício de que não é uma lei da natureza de que todo
metal se expande quando aquecido. Contudo, se, ainda que tentemos muito,
não conseguimos encontrar exceções adicionais para nossa alegada lei — por
exemplo, não podemos mostrar outras levitações recriando as circunstâncias
nas quais a primeira alegadamente ocorreu — isso será base para acreditar
que, se ela aconteceu, não era um evento de acordo com alguma lei natural
não descoberta até aqui, mas antes uma violação ou suspensão de uma lei.
Em casos assim, seria altamente improvável que nós tivéssemos
indícios históricos pormenorizados de que o evento ocorreu para superar o
conhecimento de fundo científico de que tais acontecimentos não podem se
dar, a menos que nós também tivéssemos conhecimento de fundo religioso
substancial que mostrasse não apenas que Deus existe, mas que ele tinha
muito boa razão nessa ocasião particular de realizar esse determinado
milagre. No caso de uma alegada levitação, duvido que jamais viéssemos a
ter esses indícios. Isso não é o mesmo, é claro, que dizer que levitações não
ocorrem, mas simplesmente que muito provavelmente não vamos ter razão
suficiente para acreditar que aconteceu algo assim em alguma ocasião em
particular. Note que, em todos os casos assim, o que estamos fazendo é
buscar a teoria mais simples do que aconteceu no passado e que nos leve a
explicar os dados (o que chamei aqui de indício histórico pormenorizado), e
que se adequa melhor ao nosso conhecimento de fundo, no modo descrito no
capítulo 2.
Contudo, estou inclinado a pensar que nós de fato temos indícios
históricos suficientes de eventos que ocorreram contrários às leis naturais,
dos quais Deus teria razão de realizar para mostrar que provavelmente alguns
deles (não sabemos quais) são milagres genuínos. Há muitos relatos de
supostos milagres, antigos e modernos, alguns dos quais muito bem
documentados. (Ver, por exemplo, a cura do câncer do homem de Glasgow,
descrita em D. Hickey e G. Smith, Miracle (1978) ou alguns dos casos
discutidos em Rex Gardiner, Healing Miracles (1986). Por outro lado, para
um relato mais cético de alguns supostos milagres de Lourdes, ver D. J. West,
Eleven Lourdes Miracles (1957)). Ou, ao invés disso, temos indícios
históricos detalhados suficientes em alguns casos assim, dado que temos certa
quantidade de conhecimento de fundo para fundamentar a tese de que Deus
existe, e que ele é capaz e está interessado em intervir na história. Contudo, é
claro, o leitor deve considerar os indícios nesses casos por si mesmo. A
ocorrência desses indícios históricos pormenorizados é ela mesma indício
adicional da existência de Deus (junto com os indícios discutidos nos
capítulos 4 e 5), pois nós esperaríamos tê-los se Deus existisse, mas não o
contrário — pois se as leis naturais são os determinantes de mais alto nível do
que acontece, há toda a razão do mundo para esperar que elas não vão ser
suspensas.
É muito comum se dizer nesses casos que “podemos estar errados”.
Novos indícios científicos podem mostrar que o evento relatado não era
contrário às leis naturais — nós simplesmente não entendemos bem quais
eram as leis naturais. Talvez nós tenhamos entendido mal como o câncer se
desenvolve; um paciente às vezes se recupera “espontaneamente” por
processos puramente naturais. Ou, se muitas pessoas alegam ter observado
alguém levitar, pode ser que todos tenham sofrido de alucinação. Talvez.
Porém, o investigador racional nesses assuntos, como em todos os temas, tem
de continuar trabalhando com os indícios disponíveis. Se esses indícios
mostram que as leis da natureza são assim e assado, que se o evento
aconteceu tal como descrito, isso era contrário a elas, que os novos indícios
não tinham tendência a mostrar que as supostas leis não eram verdadeiras
(pois em todos os casos semelhantes elas foram seguidas), que há indícios
históricos muito fortes (testemunhas e assim por diante) de que o evento
aconteceu, então é racional acreditar que um milagre ocorreu. Nós somos
racionais em crer nisso, embora abrindo a possibilidade de que os indícios
possam depois mostrar que estávamos errados. “Podemos estar errados” é
uma faca de dois gumes — podemos estar errados em acreditar que um
evento não é uma intervenção divina quando ele realmente é, e o oposto
também é possível.
Os historiadores afirmam que, quando estão pesquisando acerca de
alguma afirmação particular sobre eventos passados importantes para
tradições religiosas — por exemplo, sobre o que Jesus fez e o que aconteceu
a ele — eles o fazem sem assumir nenhum pressuposto religioso ou
antirreligioso. Na prática, a maioria deles não é fiel a esse propósito. Ou eles
desconsideram fortemente as afirmações bíblicas de que Jesus curou o cego,
baseados na ideia de que essas coisas não acontecem; ou (mais comumente
nos últimos séculos), eles automaticamente aceitam o testemunho acerca do
que Jesus fez, com base na tese de que as testemunhas bíblicas eram
especialmente confiáveis. Mas o que precisa ser avaliado é que os indícios de
fundo devem influenciar o pesquisador — tal como o faz em todas as outras
áreas de pesquisa. Não permitir que isso aconteça é irracional.
A existência de indícios históricos pormenorizados em favor da
ocorrência de violações das leis naturais de um tipo que Deus, se ele existe,
teria tido razão para realizar é em si mesma indício em favor da existência
de Deus. Embora não chegue de modo algum a ser suficiente em si mesma,
ela dá sua contribuição e, junto com outros indícios (por exemplo, o do tipo
considerado nos capítulos 4 e 5), isso poderia ser suficiente para mostrar a
existência de Deus. Considere, por analogia, um detetive investigando um
crime e avaliando a hipótese de que Jones cometeu o crime. Algumas de suas
pistas serão indícios para a ocorrência de algo que, se tivesse ocorrido, seria
indicador, por sua vez, da hipótese de que Jones cometeu o crime. O anterior
poderia, por exemplo, ser o indício de testemunhas que afirmam ter visto
Jones perto da cena do crime, o que é, por sua vez e em si mesmo um
indicador muito fraco de que ele cometeu o crime. Muito mais provas são
necessárias. Contudo, porque o relato de testemunhas é indício para Jones ter
estado perto da cena do crime, e o fato de Jones ter estado perto da cena do
crime é um indício de que ele o cometeu, o relato de testemunhas é indício
(indireto) de ele ter cometido o crime. Do mesmo modo, o indício de
testemunhas que afirmam ter observado uma violação das leis naturais é
indício indireto em favor da existência de Deus, pois a ocorrência dessas
violações seria por si mesma um indício mais direto em favor da existência
de Deus. Se a totalidade dos indícios se tornar forte o bastante, então ela vai
justificar a afirmação de que Deus existe e, portanto, de que o evento em
questão não era só uma violação, mas foi realizado por Deus e era, portanto,
um milagre.

Revelação
Uma razão que Deus pode ter para intervir na história é nos dar a
conhecer certas coisas, revelar verdades a nós. Sem ajuda, nossa razão pode,
tal como estou defendendo neste livro, ser capaz de chegar à conclusão de
que provavelmente Deus existe; e ela também pode ser capaz de assentar
algumas verdades morais muito gerais (por exemplo, de que é bom alimentar
os que passam fome, não importa que eles sejam). Contudo, seres humanos
são criaturas com inteligência limitada e notoriamente suscetíveis a
esconderem de si mesmos conclusões que parecem estar na cara deles,
quando essas conclusões não são bem-vindas. Conclusões acerca de assuntos
morais e religiosos estão entre as que estamos tão obviamente suscetíveis à
visão enviesada, porque todas elas (sejam religiosas ou ateias) têm
consequências para o tipo de vida que vale a pena viver; e podemos estar
relutantes em aceita-las, caso elas se choquem contra nosso estilo de vida
atual. Os seres humanos precisam de ajuda — ajuda para ver quais são
nossas obrigações e em que consiste nosso bem último, e apoio e
encorajamento para buscar esse bem. Em todo caso, um Deus que quer
interagir conosco também vai querer nos mostrar coisas sobre si mesmo tão
somente para que possamos conhecê-lo melhor. As grandes religiões
ocidentais todas afirmam que Deus interveio na história a fim de revelar
verdades aos seres humanos; e elas normalmente acrescentam que ele montou
um mecanismo que, em algum grau ou de algum modo vai garantir a
preservação dessas verdades entre os homens. Os judeus afirmam que Deus
interveio na história com Abraão e Moisés, e que revelou verdades
preservadas posteriormente pelo povo judeu nas Escrituras Hebraicas (o
Antigo Testamento cristão). Os cristãos aceitam isso, mas acrescentam que a
principal intervenção divina foi a de Jesus Cristo, que nos revelou coisas
preservadas pela igreja cristã em sua Bíblia (o Novo Testamento e o Antigo
Testamento entendido à luz do novo). O islamismo também reconhece em
algum grau afirmações judaicas e mesmo cristãs, mas proclama Maomé como
o último profeta, no qual a revelação atingiu sua culminação, uma revelação
que foi registrada no Corão e preservada pelas comunidades islâmicas.
Como devemos julgar entre si essas afirmações rivais? De dois
modos. Em primeiro lugar, com vistas à plausibilidade daquilo que elas
afirmam serem as doutrinas reveladas centrais, avaliada em relação a outras
bases. Uma religião que defende pilhagem e estupro em larga escala por
divertimento não pode ser uma religião verdadeira. Contudo, embora
possamos avaliar de modo definitivo a favor ou contra alguma alegação de
revelação, com base em que isso coincide ou contradiz o que podemos ver
que é verdadeiro em outros termos, não podemos fazer isso de modo
generalizado. As afirmações de supostas revelações acerca do que é Deus e
do que ele fez não vão ser normalmente tais que possamos ter razão forte e
independente para acreditar que são verdadeiras ou falsas. O sentido da
revelação é dizer coisas que são profundas demais para nossa razão descobrir
sem ajuda. O que precisamos também é alguma garantia de tipo diferente de
que aquilo que se alega ser revelado realmente vem de Deus. Fazendo uma
analogia, não cientistas não podem testar por si mesmos o que os físicos lhes
dizem acerca da constituição do átomo. Tudo que eles podem pedir é alguma
garantia de que o que lhes dizem vem de alguém em posição de saber. No
caso de uma alegada revelação de Deus, essa garantia tem de assumir a forma
de uma violação de leis naturais que culmina e propaga a proclamação da
suposta revelação. Uma violação assim só pode ser levada a efeito por aquele
que mantém as leis naturais funcionando, ou seja, que preserva nos objetos
seus poderes e suscetibilidades de agir — em outras palavras, Deus. Assim,
as violações vão ser um milagre. Apenas aquele que preserva os poderes das
coisas pode suspendê-los; e se sua suspensão culmina e propaga a
proclamação da alegada revelação, isso é a assinatura de Deus na revelação.

A revelação cristã
Embora os argumentos deste livro antes e depois desta seção se
destinem a convencer o leitor da existência do Deus reconhecido igualmente
por judeus, muçulmanos e cristãos, e não fazer qualquer juízo acerca das
afirmações rivais que eles fazem sobre ele, devo acrescentar que, a meu ver,
apenas uma das grandes religiões do mundo pode fazer uma alegação séria,
com base em indícios históricos pormenorizados, de ser fundada em um
milagre, e esta é a religião cristã. As religiões orientais (por exemplo, o
hinduísmo) às vezes alegam intervenções divinas, mas não em períodos
históricos para as quais elas possam mostrar muitas testemunhas ou autores
que tenham falado com as testemunhas. Do mesmo modo, embora o judaísmo
afirme ter havido intervenções divinas, especialmente ligadas a Moisés e ao
êxodo do Egito, nossa informação sobre isso foi escrita bem depois dos
eventos. (E, em todo caso, se esses eventos ocorreram conforme descritos, é
duvidoso que eles teriam sido milagres. Causas naturais poderiam facilmente
explicar o vento do leste que causou a separação do Mar Vermelho relatada
em Êxodo 14:21.) E os muçulmanos não afirmam que o islamismo foi
fundado em nenhum milagre, a não ser a escrita do Corão; e, por mais
grandioso que seja esse livro, não parece de modo nenhum que escrever um
grande livro precise de uma intervenção divina especial.
A religião cristã, ao contrário, foi fundada no alegado milagre da
ressurreição de Jesus. Se esse evento aconteceu de algum modo como os
livros do Novo Testamento registram, como o voltar à vida de um homem
morto por crucifixão trinta e seis horas antes, ele claramente envolveu a
suspensão de leis naturais e, portanto, se Deus existe, foi realizado por este, e
foi, portanto, um milagre. A maior parte dos livros do Novo Testamento foi
escrita durante a vida de muitos dos que estiveram envolvidos na vida e
morte de Jesus. Esses livros foram escritos por vários autores que afirmaram
que Maria Madalena, outras mulheres e os apóstolos viram o túmulo vazio; e
que eles e muitos outros viram, conversaram e comeram com o Jesus
ressuscitado. O corpo de Jesus nunca foi mostrado. Temos aqui uma séria
alegação histórica de um grande milagre para o qual há indícios substanciais.
A força relativa exata desses indícios é um assunto sobre o qual inúmeros
livros foram escritos em mais de dois milênios e os leitores devem
acompanhar essas questões por si mesmos em alguns desses livros. Contudo,
ao fazê-lo, é muito importante ter em mente as ideias de que falei nas páginas
anteriores.
A primeira é de que é um sinal de racionalidade levar em conta o
conhecimento de fundo — outros indícios acerca de se existe um Deus
capaz e disposto a intervir na história.
A segunda é que, Deus tem de fato razão de intervir na história, em
parte a fim de revelar verdades sobre si mesmo. Assim, indícios em favor
da verdade da ressurreição devem incluir a plausibilidade, ou pelo menos
alguns dos elementos claramente ensinados como doutrinas centrais por Jesus
e pela igreja fundada com base na suposta ressurreição. É claro, como disse
anteriormente, que não teremos em geral razões conclusivas independentes
para crer que essas doutrinas centrais são verdadeiras ou falsas — o sentido
da revelação é nos dizer coisas que não podemos descobrir por nós mesmos.
Mas podemos ter algumas razões fracas, não adequadas em si mesmas, para
acreditar que, se Deus existe, é verdadeira uma dada doutrina sobre quem ele
é ou fez ou sobre como temos que nos comportar. Se nós temos essas razões,
nesse sentido, aquelas doutrinas são plausíveis. No caso das doutrinas cristãs
centrais, eu acredito que nós temos de fato essas razões, tais como o
ensinamento do Sermão da Montanha em sua exposição do que consiste a
bondade, a doutrina da trindade e as doutrinas sobre Jesus — de que ele era
Deus encarnado (Deus que tinha se tornado também um ser humano), e que
sua vida e morte foram de algum modo uma expiação de nossos pecados.
Discutir essas razões adequadamente requereria outro livro. O tipo de razão
que tenho em mente pode ser ilustrado muito brevemente com o caso da
encarnação. Vimos no capítulo 6 que Deus tem razão de permitir que
padeçamos muito sofrimento de vários modos por causa de bens maiores. Se
um pai sujeita um filho a sofrimento sério por causa de bens maiores para
outros, então se chega a um ponto no qual não é apenas bom, mas obrigatório
que o pai mostre solidariedade com o sofredor. Suponha que meu país foi
injustamente atacado e que o governo resolveu fazer um alistamento
obrigatório a fim de constituir um exército para a defesa. Todos os jovens
entre 18 e 30 anos são “convocados” para servir nas forças armadas; homens
com menos de 50 anos podem servir como voluntários. O governo, contudo,
permite que os pais dos que têm entre 18 e 21 vetem a convocação de seus
filhos. Suponha que eu tenha um filho de 19 anos; e que, embora a maioria
dos pais vete o alistamento de seus filhos nessas condições, eu me recuse a
fazê-lo devido à gravidade da ameaça à independência do país. Suponha
também que eu tenha 45 anos e que, por isso, não tenha nenhuma obrigação
legal de servir. Plausivelmente, uma vez que estou forçando meu filho a
padecer a dureza e o perigo do serviço militar, tenho obrigação moral em
relação a ele de me apresentar como voluntário. Assim, deve-se esperar que
um Deus que nos impõe muito sofrimento por causa de grandes bens se
encarne, a fim de partilhar o sofrimento que ele impôs a nós. Essa é a razão
pela qual uma intervenção divina deveria ter a forma, não apenas de um
milagre, mas de Deus mesmo vivendo uma vida humana. Assim, se uma
alegada revelação ensina que ele o fez, essa é alguma razão para crer que ela
é verdadeira. Uma vez que a igreja cristã ensina que Deus viveu e sofreu
como um ser humano na pessoa de Jesus (e há muitos indícios independentes
de que Jesus sofreu muito), essa é uma pequena razão para acreditar que suas
doutrinas são autenticadas por Deus e, assim, que Deus ressurgiu dos mortos.
No sentido contrário, se o leitor acredita que ele tem razão em supor que, se
Deus existe, essas não seriam doutrinas verdadeiras sobre ele, isso seria razão
para supor que elas não foram reveladas por Deus e, portanto, que não teria
acontecido um evento que se alegasse ser uma autenticação disso.
Em terceiro lugar, as alegações da revelação cristã devem ser
comparadas com as de outras religiões. Se há razão (com plausibilidade
intrínseca ou indício histórico para um milagre fundador) para supor que
Deus revelou coisas contrárias no contexto de outra religião, isso novamente
é razão para supor que a revelação cristã não é verdadeira e, portanto, que seu
evento fundador não ocorreu. O conhecimento é uma grande rede —
observações em um campo podem afetar o que é razoável acreditar em
campos que podem a princípio parecer muito diferentes. Minha própria visão
— como disse antes — é a de que nenhuma das grandes religiões, a não ser a
cristã, pode fazer uma alegação séria em favor da verdade de suas supostas
revelações com base em indícios históricos particulares. Contudo, é claro, se
sua dita revelação fosse implausível em outras bases, nós ainda teríamos de
rejeita-la e procurar em outro lugar.
Eu concluo que, se o leitor aceita minha tese de que há indícios
históricos sérios em favor do milagre fundador do cristianismo — a
ressurreição — e aceita que há alguma plausibilidade (ainda que fraca) em
seu ensinamento, então — uma vez que uma violação assim das leis naturais
é esperada se Deus existe — os indícios em favor daquele milagre também se
constituem em bases adicionais em favor de sua existência. Essa conclusão se
mantém não importa se você pensa ou não que indícios históricos sérios
seriam suficientes para fundamentar a ocorrência do milagre, sem
conhecimento de fundo substancial. Eu apresento minha avaliação dos
indícios em favor da ressurreição de Jesus e da plausibilidade do ensinamento
cristão mais geralmente na sequência deste livro, Was Jesus God?
Um elemento da suposta revelação comum às religiões ocidentais
(embora não ensinado por todos os ramos do judaísmo) é a doutrina da vida
após a morte. (Essa doutrina é também ensinada por religiões orientais,
embora muitas delas não sustentem que Deus seria uma parte importante
daquela vida.) Nós humanos vamos viver de novo, o tipo de vida que vamos
ter vai depender de como vivemos neste mundo. Se buscarmos ser boas
pessoas e conhecer a Deus, então seremos o tipo de pessoa naturalmente
preparada para a visão dele no mundo que virá; e Deus vai nos dar essa visão.
Porém, se escolhemos não buscar a bondade e Deus, então Deus também vai
respeitar nossa escolha e nos dar uma vida sem Deus. Essa doutrina me
parece intrinsicamente plausível — seria esperável que um Deus
perfeitamente bom terminasse por respeitar nossa escolha quanto ao tipo de
pessoa que escolhemos ser e o tipo de vida que escolhemos levar. E, embora
haja vida muito boa na terra, seria estranho se Deus não planejasse algo
melhor e mais duradouro para os seres humanos que o quisessem. Assim, o
fato de que essa doutrina seja ensinada por parte de cada uma das religiões
ocidentais parece ser um indício em favor de cada uma delas e, portanto, de
seu conteúdo comum.

Experiência religiosa
Um criador onipotente e perfeitamente bom vai buscar interagir com
suas criaturas e em particular com pessoas humanas capazes de conhecê-lo.
Como vimos, ele tem razão de interagir no mundo público — fazendo
diferença neste em resposta a nossas preces por necessidades particulares de
vez em quando. Ele tem razão também de intervir para autenticar uma
revelação da qual precisamos muito. Ele tem razão de tornar isso um assunto
público, de fazer uma revelação a uma comunidade, a fim de que esta possa
escolher trabalhar suas consequências (e aparar inconsistências menores
aparentes) por meio de discussão pública e propaga-la por meio de esforço
comunitário. Cooperação na busca do bem é um bem adicional. Contudo,
Deus também vai amar cada um de nós como criaturas individuais e assim
tem razão de intervir (talvez não numa forma miraculosa, sem violar
nenhuma lei natural), simplesmente ao se mostrar a determinados indivíduos
e lhes dizer coisas direcionadas a eles de forma personalizada (por exemplo,
oferecendo-lhes uma vocação). Seria de esperar que houvesse experiências
religiosas no sentido de experiências aparentemente de Deus —
experiências que parecem ao sujeito serem experiências de Deus. (A frase
“experiência religiosa” tem sido usada para descrever uma ampla gama de
experiências. Para os presentes propósitos, estou confinando-a a esse
sentido.)
Nós podemos descrever nossas experiências (percepções) de coisas
em termos do seu objeto; ou — sendo cuidadosos caso possamos estar
errados — em termos do que objeto de referência que elas parecem (a palavra
geral) mostrar, ou aparentam em termos visuais, táteis, de gosto e de cheiro
(expressões que especificam o sentido envolvido) indicar. Posso dizer que
percebo uma escrivaninha ou apenas que pareço percebê-la, ou que parece
(ou, desde que o sentido envolvido seja a visão — que aparenta em termos
visuais) a mim haver uma escrivaninha aqui. Note dois sentidos muito
diferentes de verbos como “aparentar”, “parecer” e “assemelhar”. Quando
olho para uma moeda redonda de certo ângulo, posso dizer que ela
“assemelha ser redonda” ou posso dizer que “ela assemelha ser elíptica”, mas
quero dizer coisas muito diferentes por “assemelha” nos dois casos. Por
“assemelha ser redonda” nesse contexto quero dizer que — com base no que
parece — estou inclinado a acreditar que ela é redonda. Por “ela assemelha
ser elíptica” nesse contexto quero dizer que ela se parece do modo que as
coisas elípticas normalmente parecem (ou seja, quando vistas de cima). O
sentido anterior, na terminologia filosófica, é o sentido epistêmico; o último é
o sentido comparativo. O sentido epistêmico desses verbos descreve como
estamos inclinados a acreditar que as coisas são; o sentido comparativo
descreve como as coisas parecem ao compara-las com o modo que elas
normalmente aparentam ser. “Parece-me que é azul” no sentido epistêmico
quer dizer que estou inclinado — com base no modo como aparenta — a
acreditar que é azul; a mesma frase no sentido comparativo significa que
parece a mim ser do modo como as coisas azuis normalmente aparentam (ou
seja, à luz normal).
Uma experiência aparente (no sentido epistêmico) é real (uma
percepção aparente é genuína) se for causada por aquilo do qual ela pretende
ser uma experiência. Minha percepção aparente da escrivaninha é uma
percepção real se a escrivaninha causa (ao refleti-los) os raios de luz atingir
meus olhos e desse modo me levar a ter a percepção aparente.
Ora, é evidente que, certo ou errado, pareceu (no sentido epistêmico)
a milhões e milhões de seres humanos que, ao menos uma ou duas vezes em
suas vidas, eles se sentiram conscientes de Deus e sua orientação. Pesquisas
mostram que isso acontece com milhões e milhões de pessoas hoje, sem
contar nas épocas passadas. (Sobre a difusão da experiência religiosa, ver
David Hay, Religious Experience Today (1990), capítulos 5, 6 e apêndice.)
Eles podem estar enganados, mas esse é o modo que lhes parecia ser. É um
princípio básico da racionalidade, que eu chamo de princípio de
credulidade, de que nós devemos acreditar que as coisas são do modo
como elas nos parecem ser (no sentido epistêmico), a menos e até que
tenhamos indícios de que estamos enganados. (Eu não discuti esse
princípio no capítulo 2, porque estava tratando ali apenas com a passagem
dos eventos publicamente observados consensuais para outras coisas além da
observação. Aqui estou lidando com o modo pelo qual devemos avaliar
nossas experiências privadas.) Se me parece que estou vendo uma mesa ou
ouvindo a voz de meu amigo, devo acreditar nisso até que apareçam indícios
de que estava enganado. Se você disser o contrário — nunca confie nas
aparências até que elas provem que são confiáveis — você nunca terá
nenhuma crença. Isso porque o que mostraria que as aparências são
confiáveis a não ser mais aparências? E se você não pode confiar nas
aparências enquanto tais, você não pode confiar nessas novas tampouco.
Assim como você deve confiar nos seus cinco sentidos comuns, é igualmente
racional que você confie no seu sentido religioso.
Um oponente pode dizer que você confia nos seus sentidos comuns
(por exemplo, seu sentido da visão) por que eles concordam com os sentidos
de outras pessoas — o que você alega ver, elas também alegam. Contudo, seu
sentido religioso não concorda com os sentidos de outras pessoas (elas nem
sempre têm experiências religiosas, ou do mesmo tipo que você). Contudo, é
importante se dar conta de que a pessoa racional aplica o princípio de
credulidade antes de saber o que as outras pessoas experimentam. Você
corretamente confia em seus sentidos mesmo que não haja ninguém para
conferi-los. E, se houver outro observador que relate que ele parece ver
aquilo que você aparenta ver, você terá de lembrar daí em diante que ele
relatou isso e isso significa confiar em sua própria memória (ou seja, naquilo
que você parece lembrar tê-lo ouvido dizer) sem colaboração presente. Em
todo caso, as experiências religiosas frequentemente coincidem com as de
muitos outros quanto à consciência geral de um poder que está além dos
nossos sentidos guiando nossas vidas (embora não tanto quanto a uma
consciência mais minuciosa da natureza exata de Deus e de seus propósitos
particulares). Se algumas pessoas não têm essas experiências, isso sugere que
elas são cegas para realidades religiosas — tanto quanto a incapacidade de
alguém de ver cores não mostra que muitos de nós que alegamos vê-las
estejamos enganados, mas apenas que ela é cega para cores. Além disso, o
fato de que um grupo de viajantes não pode ver um objeto que eles não
conseguem alcançar não significa que, se muitos do grupo afirmam vê-lo,
eles estão errados. A crença mais racional — na falta de indícios adicionais
sobre os poderes visuais dos diferentes viajantes — é que os primeiros não
tinham uma vista boa o suficiente. Se três testemunhas num tribunal afirmam
(independentemente) ter visto o suspeito em alguma rua a certa hora e três
outras que estavam na rua naquela hora afirmam não o terem visto, então —
outras coisas sendo igual — o tribunal vai certamente em geral assumir a tese
de que o suspeito estava lá, e que as últimas três testemunhas simplesmente
não o notaram. É básico para o conhecimento humano do mundo que nós
acreditemos nas coisas como estas parecem ser, na ausência de indícios
positivos no sentido contrário. Alguém que parece ter uma experiência de
Deus deveria acreditar que ela a teve, a menos que se possam mostrar
indícios de que ela está enganada. E é outro princípio básico da
racionalidade, que eu chamo de princípio do testemunho, que aqueles
que não têm uma experiência de certo tipo devem acreditar nos outros
quando eles dizem que a tiveram — novamente, na ausência de indícios de
fraude ou ilusão. Se não pudéssemos acreditar em geral no que os outros
dizem acerca de suas experiências sem conferirmos isso de algum modo,
nosso conhecimento de história, geografia ou ciência seria quase não
existente. Em virtude do princípio de testemunho, ficam disponíveis os
relatos dos que tiveram experiências religiosas para aqueles que não as
tiveram e àqueles podemos aplicar o princípio de credulidade. Na falta de
indício contrário, devemos acreditar que as coisas são como parecem ser para
outras pessoas e nós, é claro, normalmente fazemos isso mesmo. Confiamos
nos relatos dos outros acerca do que eles veem, a menos que tenhamos razão
para supor que elas estão mentindo, ou se enganando ou simplesmente
observando errado. Deveríamos fazer o mesmo com seus relatos de
experiência religiosa.
O princípio de credulidade afirma que deveríamos acreditar que as
coisas são como parecem a menos e até que tenhamos indícios de que
estamos errados. Há três tipos de indício assim. Em primeiro lugar,
podemos ter indícios de que a percepção aparente foi feita em condições para
as quais temos indícios positivos de que as percepções foram inconfiáveis. Se
eu afirmo ter lido uma página de um livro a uma distância de quase cem
metros, você corretamente não vai acreditar em mim — porque sabemos por
experiência que seres humanos que afirmam ser capazes de ler a essa
distância de fato não podem relatar corretamente o que está escrito (como
quando podemos conferir o que estava escrito ao ler a página a uma distância
de trinta centímetros e os relatos de muitos concordam uns com os outros).
Do mesmo modo, percepções aparentes de pessoas sob a influência de drogas
como o LSD são corretamente descontadas, pois descobrimos que elas são
inconfiáveis (pelas observações de muitos outros, que não estavam sob essa
influência). A maior parte das experiências religiosas não sucumbe a esse
teste. Elas não são feitas sob a influência de drogas ou em condições nas
quais temos indícios positivos de que aquele tipo de experiência é
inconfiável.
Em segundo lugar, podemos ter indícios nos casos particulares de as
coisas não são como parecem ser. Posso pensar que vejo um homem
carregando sua cabeça embaixo do braço. Uma vez que todo meu
conhecimento das capacidades humanas sugere que humanos não podem
fazer isso, eu corretamente penso que estou tendo uma alucinação. Esse é o
conhecimento de fundo de como o mundo funciona, que já vimos em
operação antes neste capítulo na avaliação de afirmações acerca de eventos
públicos particulares. Semelhantemente, experiências aparentes de Deus
devem ser descontadas se temos indícios fortes de que Deus não existe; e eu
enfatizo “fortes”. Nós ficaríamos sempre prisioneiros do que acreditávamos
inicialmente se não pudéssemos crer em nossos sentidos quando eles parecem
nos mostrar que não era assim aquilo no qual, de outro modo, feito um
balanço de probabilidade, tínhamos razão para aceitar. Se um balanço dos
meus indícios sugere que você está em Londres hoje (ou seja, você me disse
ontem que provavelmente iria para lá hoje) e se eu pareço claramente ver
você em Oxford, devo acreditar nos meus sentidos, acreditar que você está
em Oxford hoje (e assim acreditar que você mudou sua ideia acerca de ir para
Londres). Somente se eu vir você embarcando no trem e este partindo, e
então ouço você me ligando de Westminster com o Big Ben soando ao fundo
é que devo duvidar meus sentidos de que pareço ver você em Oxford. Do
mesmo modo com as experiências religiosas: se temos fortes razões para
supor que Deus não existe, devemos desconsiderar nossas experiências
religiosas como alucinatórias. Contudo, na medida em que outros indícios são
ambíguos ou contam contra, mas não fortemente contra, a existência de Deus,
nossa experiência (própria ou de muitos outros) deveria fazer a balança
pender em favor de que Deus existe.
Em terceiro lugar, pode haver indícios de que a experiência aparente
não foi causada — direta ou indiretamente — pelo objeto alegadamente
experimentado. Se eu penso ter visto John sozinho na arcada a certa hora e
então se mostra que seu irmão gêmeo estava na arcada naquela hora, isso
torna bastante provável que eram raios de luz emanando de seu irmão gêmeo
o que me causaram ter a experiência. Assim, se você pudesse mostrar que
alguma experiência religiosa não tinha Deus entre suas causas, isso mostraria
que ela não era uma experiência genuína de Deus. Contudo, o único modo de
mostrar isso seria mostrar que Deus não existe; pois, se Deus existe, ele
sustenta todos os mecanismos causais que produzem todas as nossas
experiências. Talvez algumas experiências religiosas ocorram quando as
pessoas jejuem por um período. Contudo, isso não mostra que Deus não
estava envolvido em causar a experiência religiosa naqueles que estão
jejuando; pois, se Deus existe, é ele que faz com que a disciplina de jejuar
leve à experiência. O mero fato de que algum processo tenha um papel causal
no fato de eu ter uma experiência não tende a mostrar nem que a experiência
é ilusória nem que ela é genuína. Uma droga posta no meu olho pode ter me
levado a ver o que não estava lá, ou a abrir meus olhos para ver o que está lá.
E, se Deus existe, esses são os modos pelos quais funcionam as práticas de
jejuar ou o que quer que seja que leva as experiências a funcionar.
Assim, em suma, no caso das experiências religiosas, como no caso
de todas as experiências, é do cético o ônus de dar razões para não acreditar
no que parece ser o caso. O único modo de anular as afirmações de uma
experiência religiosa será mostrar que o balanço final dos indícios indica
fortemente que Deus não existe. Na ausência desse forte balanço, a
experiência religiosa dá significativos indícios adicionais de que Deus existe.
Poder-se-ia dizer que apenas os religiosos têm experiências
religiosas. Mas nem sempre isso é assim; contudo, é verdade que, quase
invariavelmente, são os que tiveram primeiro algum contato prévio com uma
tradição religiosa os que têm experiências religiosas — para alguns a
experiência é o meio pelo qual a tradição se torna viva para eles de novo.
Porém, isso dificilmente é uma objeção: para qualquer coisa, a menos que
conheçamos essa coisa, é improvável que tenhamos uma experiência que nos
pareça ser dela. Somente alguém que soubesse o que era um telefone poderia
aparentar ver um telefone. Você poderia aprender o que é um telefone ou por
meio de alguém mostrando um para você e então o reconhecendo na próxima
vez que você o vir; ou por meio de alguém dando a você uma descrição de
um e então você estará em posição de reconhecê-lo quando você vir um. Com
uma experiência religiosa (no sentido de uma na qual parece ao sujeito ser
uma experiência de Deus), o modo pelo qual aprendemos que uma
experiência de Deus seria de certo modo é pela tradição religiosa nos dando
um entendimento acerca de quem Deus é. Meu capítulo 1 oferece uma
descrição formal de quem é Deus, mas a tradição com suas histórias daqueles
que supostamente encontraram Deus preenchem essa descrição formal com
mais minúcias. Desse modo, começamos a entender o que seria uma
experiência de Deus se tivemos uma; e tudo que precisamos é um
entendimento suficiente para reconhecer uma experiência quando a temos —
não poderíamos dar uma descrição de uma experiência assim
antecipadamente, ou mesmo após a experiência. (Para uma famosa história de
alguém que não podia reconhecer uma experiência de Deus antes que lhe
dissessem algo sobre este, ver a história do menino Samuel no Templo (1Sm
3)).
Para coletâneas de descrições de algumas experiências religiosas
modernas, ver alguns dos estudos feitos pela Unidade de Pesquisa de
Experiência Religiosa, denominada agora Centro de Pesquisa Alister Hardy
(por exemplo, Timothy Beardsmore (ed.), A Sense of Presence (1977); (note
que muitas, mas não todas, das experiências descritas nesse volume são
experiências religiosas no meu sentido)). Algumas experiências religiosas são
tidas por meio de outra, de tipo sensorial. Assim como fico ciente da presença
de alguém ao ouvir sua voz, ou de que a porta abriu ao sentir a corrente de ar,
é também o caso de algumas pessoas estarem aparentemente cientes de Deus
ao ouvirem uma voz ou terem um sentimento estranho, ou mesmo apenas ao
olhar para o céu à noite. Contudo, ocasionalmente, as percepções não
envolvem nenhum elemento sensorial (nenhum padrão de campo visual,
barulhos, cheiros, e assim por diante); e simplesmente tomam consciência de
que algo é assim. Os cegos podem ter consciência da presença da mobília,
embora não tenham o sentido por meio do qual se tornem cientes disso; ou
podemos saber se nossa mão atrás de nós está virada para cima ou para baixo,
embora não haja um “sentido” que nos mostre isso — nós simplesmente
sabemos. De modo análogo, algumas experiências religiosas são tais que
parece ao sujeito que Deus está presente, embora não haja sensação pela qual
a experiência seja mediada.
Na percepção comum, tal como normalmente, quando as sensações
(visuais, auditivas e assim por diante) estão envolvidas, nós não inferimos o
objeto que parecemos ver a partir das sensações que acompanham a
consciência. Eu reconheço minha filha diretamente, e não por observar
algum padrão de cor no meu campo visual e raciocinar que este deve ser
causado por ela. De fato, posso ser incapaz de descrever o padrão
característico de cor em meu campo visual quando a vejo. Assim, o mesmo se
dá com a experiência de Deus. Pode ser que se saiba muito mais claramente o
que esta é do que o que são as sensações com as quais essa experiência é
acompanhada.
Eu sugiro que o testemunho avassalador de muitos milhões de
pessoas de experiências ocasionais de Deus deve, na ausência de indícios
contrários do tipo analisado, ser tomado como fazendo pender a balança
dos indícios decisivamente em favor da existência de Deus. Contudo,
aqueles que têm essas experiências concordam apenas quanto àquilo do que
eles são conscientes. Alguns deles alegam que suas experiências lhes deram
mais informações sobre a natureza de Deus, ou que ele lhes disse para fazer
certas coisas. E, assim como a afirmação de que Deus existe de fato precisa
ter certo grau de probabilidade inicial (com base nos indícios analisados em
capítulos anteriores) a fim de que a experiência religiosa possa ser tomada
como genuína, muito mais precisa qualquer alegação acerca de quem ele é ou
do que ele fez. Alguém que afirma que Deus lhe disse para cometer um
estupro tem de estar errado, pois sabemos por outras bases, que o estupro é
errado e, portanto, que Deus não mandaria fazer algo assim.
A conclusão deste livro é de que a existência, ordem e a sintonia fina
do mundo; a existência de seres humanos conscientes neste mundo que
contém oportunidades providenciais para moldarem eles próprios, os outros e
o mundo; algum indício histórico de milagres em conexão com as
necessidades humanas e suas preces, particularmente em conexão com a
fundação do cristianismo, reforçada finalmente pela aparente experiência de
milhões de sua presença, tudo isso torna significativamente mais provável
que não de que Deus existe.
EPÍLOGO: E DAÍ?
Chego ao final deste livro com alguma insatisfação. Estou bem ciente
das objeções além das que eu discuti e que podem ser feitas a quase cada uma
das frases que escrevi. Algumas dessas objeções têm sido feitas há muitos
séculos; mas para um livro moderno, que se dirigiu em parte a um livro maior
escrito por mim e no qual este é baseado, veja J. L. Mackie The Miracle of
Theism (1982). Sei também das respostas às objeções que podem ser feitas,
por sua vez, contra cada uma das objeções às minhas teses; e tenho
consciência da necessidade de qualificação e amplificação da maioria das
afirmações deste livro.
Argumento e contra-argumento, qualificação e amplificação podem
continuar para sempre. E religião não é exceção nesse aspecto. Com respeito
a qualquer assunto, a discussão pode seguir indefinidamente. Novos
experimentos podem sempre ser feitos para se testar a teoria quântica, novas
interpretações de história ou teorias de política. Contudo, a vida é curta e
temos de agir com base no que os indícios que tivemos tempo para investigar
mostram ser provavelmente verdadeiro no fim das contas. Temos de votar em
eleições sem ter tido tempo de considerar os méritos dos programas políticos
mesmo dos principais candidatos com respeito a uma ou duas plataformas de
suas propostas. E temos de construir pontes e mandar foguetes para o espaço
antes de examinar todos os argumentos contra e a favor se nossa construção é
segura — e nem se fala se estamos absolutamente certos de que ela é. E na
religião também devemos agir (embora admitindo que, mais tarde na vida,
possamos examinar de novo os argumentos).
A conclusão deste livro foi que, num balanço significativo de
probabilidade, Deus existe. Se você a aceita, segue-se que você tem certos
deveres. Deus nos deu vida e todas as coisas boas que ela contém, incluindo,
acima de tudo, as oportunidades de moldar nossos caracteres e ajudar os
outros. Grande gratidão a Deus é abundantemente apropriado. Deveríamos
expressá-la no culto e na ajuda a propagar seus propósitos — o que envolve,
como passo preliminar, fazer algum esforço de descobrir o que elas são. Mas
os deveres são de extensão limitada (como vimos no capítulo 1); uma
quantidade moderada de culto e obediência pode satisfazê-los. Nós
poderíamos deixar assim. Contudo, se temos algum senso e algum idealismo,
isso não pode ficar assim. Deus, em sua perfeita bondade, vai querer fazer o
melhor de nós: tornar-nos santos e nos usar para os outros se tornarem santos
também (não por sua causa, é claro, mas para o nosso bem e dos outros); dar-
nos profundo entendimento de si mesmo (a fonte inteiramente bondosa de
todo ser) e nos ajudar a interagir com ele. Tudo isso envolve um
compromisso ilimitado. Porém, Deus nos respeita; ele não vai forçar essas
coisas em nós — podemos escolher entre buscá-lo ou não. Se de fato o
buscamos, há óbvios obstáculos neste mundo contra se atingirem esses
objetivos (alguns dos quais eu discuti no capítulo 6). Os obstáculos são
necessários, parcialmente para garantir que nosso compromisso seja genuíno.
Mas Deus tem toda razão para, no tempo devido, remover aqueles obstáculos
— para permitir que nos tornemos as boas pessoas que buscamos ser, para
nos dar a visão dele mesmo — para sempre.
GUIA PARA LEITURA
ADICIONAL
A filosofia da religião é o exame do sentido e a justificação das
afirmações religiosas centrais (do cristianismo e de outras religiões). Deus
existe? buscou oferecer o que acredito ser a verdadeira resposta para a
questão central da filosofia da religião. Há a seguir algumas sugestões de
leitura adicional para os que queiram explorar essa questão mais
inteiramente, além de outros assuntos estreitamente conectados com ela. Dois
livros recentes argumentando contra a existência de Deus:
Nicholas Everitt, The Non-Existence of God, Routledge, 2004.
J. L. Mackie, The Miracle of Theism, Oxford University Press, 1982.
Duas introduções ao modo filosófico moderno de tratar as principais
questões de filosofia da religião:
Michael J. Murray e Michael Rea, An Introduction to the Philosophy of
Religion, Cambridge University Press, 2008.
Charles Taliaferro, Contemporary Philosophy of Religion, Blackwell
Publishers, 1998.
Há muitas antologias boas de filosofia da religião que têm extratos de
escritos de muitos autores diferentes, tanto clássicos quanto modernos, com
diferentes visões sobre os principais tópicos. Três apropriadas são:
Louis P. Pojman e Michael Rea, Philosophy of Religion: An
Anthology, 5ª ed., Wadsworth Publishing, 2008.
William Lane Craig, Philosophy of Religion: A Reader and Guide,
Edinburgh University Press, 2002.
Chad Meister, The Philosophy of Religion Reader, Routledge, 2008.
Para a descrição das últimas descobertas e especulações da física
moderna que são relevantes para os argumentos do capítulo 4, veja:
Paul Davies, The Goldilocks Enigma, Penguin, 2008.
Os tópicos discutidos em Deus existe? são todos sobre os quais eu
escrevi de modo mais completo em outras obras. Quanto ao tópico como um
todo, veja The Existence of God (Oxford University Press, 2ª ed., 2004).[8]
Sobre a natureza de Deus (assunto dos capítulos 1 e 3) veja The Coherence of
Theism (Oxford University Press, edição revista, 1993) e The Christian God
(Oxford University Press, 1994). Acerca da questão geral sobre o que é
indício para o quê (o tema do capítulo 2), veja Epistemic Justification
(Oxford University Press, 2001). Sobre a natureza dos seres humanos (que
eles consistem de corpo e alma) veja The Evolution of the Soul (Oxford
University Press, edição revista, 1997). Quanto ao problema do mal (o tópico
do capítulo 6), veja Providence and the Problem of Evil (Oxford University
Press, 1998). Acerca do problema da relevância de argumentos sobre a
existência de Deus para a fé e prática religiosas, veja Faith and Reason
(Oxford University Press, 2ª edição, 2005).

[1] DAWKINS, Richard. Deus — Um delírio. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
[2] ONFRAY, Michel. Tratado de ateologia. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
[3] HITCHENS, Christopher. Deus não é grande. São Paulo: Ediouro, 2007.
[4] TALIAFFERRO, Charles e GRIFFITHS, Paul (eds.) Filosofia das religiões — Uma
antologia. Lisboa: Instituto Piaget, 2003.
[5] Ao leitor que se interessar por um estudo profundo (e bastante longo!) desse processo
de perda de espaço da religião na cultura ocidental, sugiro o livro do filósofo canadense
Charles Taylor, Uma era secular (Porto Alegre: Ed. UNISINOS, 2010).
[6] Em português, publicado pela Academia Monergista com o título “A existência de
Deus” (2015). [N. do T.]
[7] As referências de páginas correspondem à versão impressa em português. [N. do E.]
[8] Em português, publicado pela Academia Monergista com o título “A existência de
Deus” (2015). [N. do T.]

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