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Rio de Janeiro
2008
Simone Mendonça Delgado
Rio de Janeiro
2008
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A
CDU 159.964.2
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
dissertação.
_____________________________ ______________
Assinatura Data
Simone Mendonça Delgado
Banca Examinadora:
_________________________________________
Profº. Drº. Luciano Elia (Orientador)
Instituto de Psicologia da UERJ
__________________________________________
Profª. Drª. Dóris Rinaldi
Instituto de Psicologia da UERJ
___________________________________________
Profº. Drº. Marcus André Vieira
Instituto de Psicologia da PUC-RJ
Rio de Janeiro
2008
DEDICATÓRIA
A Luciano Elia pela aposta, pela orientação valiosa, pelo incentivo e pelo verdadeiro
acolhimento.
Aos professores do Programa de Pós-graduação em Psicanálise do curso de Mestrado
em Pesquisa e clínica em Psicanálise, especialmente a Dóris Rinaldi, Marco Antônio
Coutinho e Jorge e Ana Costa pela transmissão e aprendizado.
A Marcus André Vieira pela contribuição generosa e preciosa a este trabalho.
À querida turma de 2005, condição de possibilidade para o atravessamento deste
percurso fundamental em nossa formação, especialmente à Mariana, Heloneida, Daniela,
Maria, Josie, Ilana, Geraldo, Ângela, Renata pelo companheirismo, pela parceria e pela
amizade construída.
Aos amigos da Assessoria de Saúde Mental da Secretaria de Estado de Saúde e Defesa
Civil do Rio de Janeiro, caldeirão efervescente de desejo por uma política ética e clínica, pela
tolerância, pelo carinho, pelo apoio e estímulo, especialmente à Adriana Gaudêncio, Fernando
Sobhie, Thereza Santos, Carlos Eduardo Honorato, Leila Vianna, Cláudia Tallemberg, Luísa
Petrucci, Lísia Wheatley, Juliana Pimenta, Amélia Pinna e Marli Paixão.
Às queridas amigas-irmãs: Paula Cerqueira, Regina Senna e Salette Ferreira pela
cumplicidade e pelos caminhos e possibilidades construídos em nossos encontros que a
distância não arrefeceu.
Aos amigos da Coordenação de Saúde Mental do município do Rio de Janeiro,
especialmente a Hugo Fagundes e Madalena Libério pela oportunidade da experiência que
constituiu, e se renovava a cada vez, a base para minha formação clínica.
Aos pacientes e profissionais do CAPS Rubens Correa, campo clínico de onde parte
esta pesquisa, pelo ensinamento e pelas lições cotidianas.
A Pedro, presente nesta dissertação, pelas possibilidades abertas em nosso trabalho.
À minha família amada, condição de possibilidade para a Vida: mãe Anedyr, mãe
Aorcene, pai Fortunato, pai José, avó e madrinha Aristhea, irmãs queridas Mônica, Silvana e
Daniele, tia Judite, tia Alayde, tio Antônio, tio Chico.
À minha comadre Vanja, querida alma-gêmea, e ao meu afilhado Pedro.
A Danilo que está em outro lugar mas que sempre estará aqui.
Nascimento da palavra:
Manoel de Barros.
RESUMO
This clinical research has been constituted from questionings ensuing from the
clinical work performed in the psychosocial attention and care sphere guided by the principles
from the Brazilian Psychiatric Reform. It is remarkable the worsening of biological-organo-
behavioral approaches of psychic phenomena in the contemporaneity. We have verified that
the construction of clinical diagnosis and the direction of the treatment express in the current
context the inciting of such approaches, imposing ways of the conception of madness and of
psychic phenomena in general bounded to their phenomena and behavioral manifestations.
We have verified that the diagnosis is effect and root, at once, and of distinctive discursive-
methodological circumscribed positions, in this research, to the position of the analyst in the
psychoanalysis clinic, and to the position of the behaviorist in what we have named clinical of
behavior (configured by theories and practices in the field of medicine and behavioral
psychology). It’s worthwhile to highlight that this setting of comprehensive biological-
behavioral interpretation may bring to the subject in its relations with the social links,
disastrous consequences since the inclusion in unnecessary treatments up to a segregating and
adapting posture. The axis of knowing which the diagnosis establishes cuts across all this
work. Therefore, our subject of research is enrolled in the relation of the subject with the
knowing in the psychoanalysis and in the contemporary science of behavior, in which we
have bounded as paradigm the DSM-IV (Diagnostic and Statistical Manual of Mental
th
Disorders, 4 ed.). We have started from the symptom formation in Freud as the condition of
the knowing of the subject. We have highlighted in Lacan the knowing of the real of the
symptom in the psycho-analytical field facing the nominalistic knowing of DSM and his
empirical-pragmatic view. We have highlighted the subject of science as corollary of the
modern science founded in a context of revolution of the knowing. Lacan tells us that this
subject of science is the same subject of the unconscious. Nevertheless, this subject,
dimension of real and contingent, is forcluded by the science which establishes the relation of
the subject with the knowing by the suture mechanism. Although psychoanalysis operates
around the return of the contingent, holding the subject in his relation with the unconscious
infinite knowing. The dimension of joy and desire, names of knowing, are articulated
therefore as the real forcluded of the knowing of science. The construction of a clinical case
indicates to us to the treading which enrolls the debility in the radical impossibility of access
to knowing. We have verified the existence of correlation between the suture operation played
by the DSM science and the collage between subject and knowing built by debilities. From
such we have hypothesized the equalization between the debility of the subject and of a
certain operation of debility produced by the DSM. From a position of subjecting to the
knowing of the Other, it may be noticed as a transference and its device of access (the
supposed knowing subject) enrolled as constitutive ways to significant materiality of the
space by which the debile subject may operate detached from knowing of the Other.
INTRODUÇÃO .................................................................................................. 10
INTRODUÇÃO
1
A este propósito, no âmbito da Clínica Psicanalítica, convém verificar as discussões que estão sendo feitas a
partir da “prática entre muitos” (“pratique à plusieurs”, termo cunhado por Jacques-Alain Miller), especialmente
na clínica institucional com crianças autistas e psicóticas. Ver ELIA, Luciano. A Clínica de Pesquisa na
Psicanálise: O dispositivo psicanalítico ampliado com crianças autistas e psicóticas (mimeo) – Trabalho
derivado da pesquisa O dispositivo psicanalítico ampliado na clínica institucional do autismo e da psicose
infantil, PROCIÊNCIA, UERJ, 1999-2002; e ver LAURENT, Eric. “Psicanálise e saúde mental: a prática feita
por muitos”. In: Revista Curinga, n.14. Belo Horizonte: Abril 2000 – EBP-MG, p.164-175.
11
2
DSM –III/Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. Washington,D.C.: American Psychiatric
Association, 3 th ed., 1980.
3
Ver JASPERS,Karl. Psicopatologia Geral: psicologia compreensiva, explicativa e fenomenologia. Rio de
Janeiro: Livraria Atheneu. Vol I, 1987.
12
4
Em se tratando de classificações oriundas de tratamento estatístico, ver LAURENT, Eric. “Psicanálise e saúde
mental: a prática feita por muitos”. In: Revista Curinga, op. cit., p. 165. Neste artigo, o autor critica a compulsão
norte-americana pelas técnicas de medição que geram classificações que podem levar à exclusão: “[...] Todas
essas belas classificações psicológicas mensuradas estatisticamente conduzem, em algum momento, a novas
segregações.”
5
Sobre os princípios da Reabilitação Psicossocial e sua interface com a cidadania, ver SARACENO, Benedetto.
Libertando identidades: da reabilitação psicossocial à cidadania possível. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Te
Corá Editora/Instituto Franco Basaglia, 1999.
13
6
Esta correlação será construída no Capítulo II.
7
Estamos chamando, aqui, de clínica do comportamento especialmente o campo da psicologia e o campo
médico-psiquiátrico de orientação biológico-comportamental.
8
ELIA, Luciano. A Clínica de Pesquisa na Psicanálise: O dispositivo psicanalítico ampliado com crianças
autistas e psicóticas. (mimeo).Op. cit., p.5.
9
DSM-IV/ Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. Washington, D. C.: American Psychiatric
Association, 4 th ed., 1994.
14
10
LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1997.
15
11
Note-se que quando falamos em “fenômeno” não estamos nos referindo à Fenomenologia, com seu rigoroso
arcabouço conceitual, mas sim a uma leitura fenomênica restritiva da realidade.
12
KOYRÉ, Alexandre . Do mundo fechado ao universo infinito. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 4 ed.,
2006.
13
MILNER, Jean-Claude. “O doutrinal de ciência”. In: A obra clara: Lacan, a ciência, a filosofia. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996.
16
14
ELIA, Luciano. O conceito de sujeito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, p. 7.
18
Uma liberação da sexualidade [...] ocorre, então não apenas (1) mediante um
estímulo periférico sobre os órgãos sexuais, ou (2) mediante as excitações internas que
15
RINALDI, Dóris. Ética e Desejo: da psicanálise em intensão à psicanálise em extensão. Trabalho apresentado
na Reunião Lacanoamericana de Psicanálise da Bahia, 1997, p.36.
16
ELIA, Luciano. O conceito de sujeito. Op. cit., p.9.
19
surgem desses órgãos, mas também (3) a partir de idéias – isto é, a partir de traços
de memória – portanto, também por uma via de ação postergada. (grifos nossos).17
A hipótese de Freud, em sua primeira teoria sobre o trauma, sustenta que um efeito a
posteriori, que produz a “liberação da sexualidade”, é resultante da lembrança (“traços de
memória”) de uma cena sexual da infância, e, portanto, anterior.
A teoria do trauma, constituída em dois tempos (um anterior e outro ulterior), lança as
bases para a construção do conceito de recalque. Isto está intimamente ligado à discussão
sobre o saber. Freud, assim, situa o saber acerca do trauma: num primeiro tempo (o anterior)
há o desconhecimento, não se sabe o que aconteceu; é no segundo tempo (o ulterior), tempo
da lembrança traumática, que o saber é recalcado. Portanto, é no a posteriori que o recalque
opera – trata-se da posição de não quer saber.
O recalque é acionado e consolidado pela repugnância despertada frente à lembrança
de uma experiência sexual. Com efeito, a cena sexual traumática é recalcada a posteriori.
Vale destacar a função do afeto de “repugnância” na produção de sintomas. Freud nos
diz:
17
FREUD, Sigmund. “Extratos dos documentos dirigidos a Fliess (1950[1892-1899]) – Carta 75 (14 de
novembro de 1897)”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas psicológicas de Sigmund Freud. Rio
de Janeiro: Imago, vol. I, 1994, p. 370.
18
Ibid., p. 372.
19
Ibid., p. 372.
20
Exploraremos, mais adiante, esta relação triádica quando discutirmos acerca da Conferência XXIII Os
caminhos da formação dos sintomas.
21
FREUD, Sigmund. “As neuropsicoses de defesa” (1894). In: Edição Standard Brasileira das Obras
Completas psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. III, 1994.
20
[...] uma ocorrência de incompatibilidade em sua vida representativa – isto é, até que
seu eu se confrontou com uma experiência, uma representação ou um sentimento que
suscitaram um afeto tão aflitivo que o sujeito decidiu esquecê-lo, pois não confiava em
sua capacidade de resolver a contradição entre a representação incompatível e seu eu
por meio da atividade de pensamento.22
[...] esse afeto fica obrigado a permanecer na esfera psíquica. A representação, agora
enfraquecida, persiste ainda na consciência, separada de qualquer associação. Mas seu
afeto, tornado livre, liga-se a outras representações que não são incompatíveis em si
mesmas, e graças a essa “falsa ligação”, tais representações se transformam em
representações obsessivas. 24
Freud apontará, ainda neste texto, uma espécie de defesa muito poderosa, situando-a
como um mecanismo presente na psicose:
Cabe ressaltar que, ao final do texto, Freud destaca a função, ousamos dizer pulsional,
do que vinha chamando de “[...] carga de afeto ou soma de excitação”26, ao fazê-la incidir
sobre os traços mnêmicos das representações, sem a qual esses traços de memória
permaneceriam mortificados, ou neutralizados e, assim, não apresentariam conflito para o eu.
Freud parece vislumbrar, desta forma, o advento do desejo e da pulsão enquanto
constituintes deste motor propulsor do fluxo de energia capaz de investir os traços mnêmicos
das representações psíquicas acionando a defesa e a formação do sintoma.
22
Ibid., p. 55.
23
Ibid., p. 56.
24
Ibid., p. 58.
25
Ibid., p. 63.
26
Ibid., p. 65.
21
Esse agente é, de fato, uma lembrança relacionada à vida sexual, mas que apresenta
duas características de máxima importância. O evento do qual o sujeito reteve uma
lembrança inconsciente é uma experiência precoce de relações sexuais com
excitação real dos órgãos genitais, resultante de abuso sexual cometido por outra
pessoa; e o período da vida em que ocorre esse evento fatal é a infância [...].28
Com efeito, é notável a ênfase dada por Freud à dimensão da lembrança inconsciente
do evento ocorrido num tempo anterior. Esta lembrança é resultante de traços psíquicos que
foram preservados, apesar da passagem do tempo. Estes traços mnêmicos são despertados a
partir de um evento ocorrido a posteriori, cujo efeito é traumático:
[...] A lembrança atua como se fosse um evento contemporâneo. O que acontece é, por
assim dizer, a ação póstuma de um trauma sexual.29
Freud, até então, considerava a experiência sexual de caráter traumático como o fator
responsável pelo acionamento do recalque ou da defesa e, quando esta falha, da formação dos
sintomas nos quadros de neuroses.
No entanto, no texto “Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa”
(1896)30 ele inclui, quase trinta anos depois, uma nota de rodapé na qual ele abandona a
ênfase posta na experiência real e abre as portas para a função e operação da fantasia nos
processos psíquicos:
(Nota de rodapé acrescentada em 1924): Esta seção é dominada por um erro que desde
então tenho repetidamente reconhecido e corrigido. Naquela época, eu ainda não sabia
27
FREUD, Sigmund. “A hereditariedade e a etiologia das neuroses” (1896). In: Edição Standard Brasileira das
Obras Completas psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. III, 1994, p. 135-148 .
28
Ibid., p. 144.
29
Ibid., p.146.
30
FREUD, Sigmund. “Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa” (1896). In: Edição Standard
Brasileira das Obras Completas psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. III,1994, p. 151-
173.
22
distinguir entre as fantasias de meus pacientes sobre sua infância e suas recordações
reais. Em conseqüência disso, atribuí ao fator etiológico da sedução uma importância e
universalidade que ele não possui.31
É considerável que, durante este texto de 1896, Freud construa objeções às suas
próprias conclusões anteriores no tocante à importância determinante das experiências
vividas: “[...] não são as experiências em si que agem de modo traumático, mas antes sua
revivescência como lembrança depois que o sujeito ingressa na maturidade sexual.” 32
Portanto, segundo Freud, não basta, para o desencadeamento da neurose, que uma
experiência sexual, da ordem da sedução ou do abuso sexual, tenha se realizado. A realização
efetiva do recalque não está na natureza da experiência ou em sua realidade, já que, para
alguns, ela se torna patogênica e, para outros, não.
Freud passa, então, a presumir uma suscetibilidade pré-existente ao trauma ou uma
predisposição histérica indefinida. Este efeito traumático a posteriori constituir-se-ia,
portanto, segundo certa condição:
Pode-se afirmar, com Freud, que para alguns sujeitos esta ativação era possível,
enquanto que, para outros, não. Isto nos faz pensar que Freud se desloca de uma visão
restritiva daquele que, supostamente, estaria submetido passivamente ao ato da experiência
sexual, como fator desencadeante da neurose, para uma verificação de que havia uma ação do
sujeito que poderia ou não conferir a este ato uma dimensão de trauma.
Dez anos depois, em uma de suas “Conferências Introdutórias sobre Psicanálise (1916-
1917 [1915-1917]): Os caminhos da formação dos sintomas”34, vale destacar o valor de ato,
conferido por Freud, ao estatuto do sintoma: “Os sintomas [...] são atos [...] indesejados e
causadores de desprazer ou sofrimento.” 35
Freud situa o sintoma como resultante patogênico do conflito psíquico entre as pulsões
sexuais e as pulsões do eu e, desta forma, entre o desejo e as forças que o rechaçam:
31
Ibid., p. 159.
32
Ibid., p. 156.
33
Ibid., p. 158.
34
FREUD, Sigmund. “Conferências Introdutórias sobre Psicanálise (1916-1917 [1915-1917]): Conferência
XXIII - Os caminhos da formação dos sintomas”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas
psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. XVI, 1994, p. 419-439.
35
Ibid., p. 419.
23
As tendências libidinais rechaçadas conseguem [...] abrir caminhos por algumas vias
indiretas [...]. As vias indiretas são aquelas que toma a formação dos sintomas; estes
constituem a satisfação nova ou substituta, que se tornou necessária devido ao fato
da frustração.37 (grifos nossos).
36
Ibid., p. 421.
37
Ibid., p. 409.
38
Ibid., p. 423.
24
[...] essas cenas da infância nem sempre são verdadeiras. [...] pode-se mostrar que se
está diante de uma situação em que as experiências da infância construídas ou
recordadas na análise são, às vezes, indiscutivelmente falsas e, às vezes, por igual,
certamente corretas, e na maior parte dos casos são situações compostas de verdade
e de falsificações.39 (grifos nossos).
[...] esses produtos mentais [as fantasias]. Também eles possuem determinada
realidade. Subsiste o fato de que o paciente criou essas fantasias por si mesmo, e essa
circunstância dificilmente terá, para a sua neurose, importância menor do que teria se
tivesse realmente experimentado o que contém suas fantasias. As fantasias possuem
realidade psíquica, em contraste com a realidade material, e gradualmente
aprendemos a entender que, no mundo das neuroses, a realidade psíquica é a
realidade decisiva.40 (grifos nossos).
Freud situará a origem das fantasias nas pulsões e as indicará como constituintes de
um “acervo filogenético”, este último referido à transmissão da “verdade pré-
histórica”inscrita no contexto da evolução humana.41 Conforme já mencionado por nós,
39
Ibid., p. 429.
40
Ibid., p. 430.
41
Ibid., p. 433.
25
Para teorizar um sujeito como este, Lacan fez uso de sua relação com o significante:
o sujeito é efeito do significante. O lugar do Outro é, portanto, um lugar de determinação do
sujeito. Lacan nos diz:
O Outro é o lugar em que se situa a cadeia do significante que comanda tudo que vai
poder presentificar-se do sujeito, é o campo desse vivo onde o sujeito tem que
aparecer.42
42
LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1963-1964). Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1979, p. 194.
43
Ibid.
26
44
A barra que incide no A está para todo sujeito. No entanto, o psicótico fará com esta incidência algo diverso
do neurótico. O falo que incide no A, na psicose, não é operante. Na neurose o que divide o sujeito é a castração;
na psicose, é o gozo do Outro.
45
Vale afirmar que o objeto a é o que dá ao real seu verdadeiro estatuto; é o objeto da falta e, portanto, ao
considerarmos a correlação intrínseca entre desejo e falta, trata-se do objeto causa de desejo.
46
JORGE, Marco Antonio Coutinho. “Discurso e liame social: apontamentos sobre a teoria lacaniana dos quatro
discursos”. In: RINALDI, D. e JORGE, M. A. C.(org.). Saber, verdade e gozo. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos,
2002, p. 25.
27
Desta forma, deduzimos que não há realidade anterior ao discurso, mas há discurso
anterior ao sujeito, e é esse discurso que funda a realidade.
A partir do exposto acima, podemos pensar que o sujeito é conseqüência do discurso?
Em O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise47, Lacan confere a S1 a dimensão de
interveniente, e a S2 o estatuto de campo do saber. Estes elementos constituem a estrutura
do discurso. O sujeito emerge como efeito desta intervenção do significante unário no campo
do saber. Que implicações podem resultar disso, ao considerarmos a produção discursiva na
então ciência do comportamento contemporânea?
Ao considerarmos o comportamentalismo48 (behaviorismo), efeito e ato da ciência
contemporânea, segundo o qual o comportamento é tomado como medida do sujeito, parece-
nos que este visa ao que poderíamos chamar de domesticação do Real, ao desprezar o seu
poder fundador e aspirar a um certo adestramento do sujeito. É válido esclarecer que o real
remete-se à falta originária da estrutura, à fenda constituinte do inconsciente. Conforme nos
ensina Lacan: o real é o impossível de ser simbolizado e, desta forma, ele se remete ao
trauma, ao inassimilável. Lacan, no entanto, indicar-nos-á que o real retorna incessantemente,
não cessa de não se escrever49 . Portanto, enquanto efeito de estrutura, o real ex-siste (situa-
se fora de todo campo demarcável)50. Não há adestramento possível do real! O que é possível
são operações do sujeito sobre os modos de instauração do real, reduzindo seu domínio e
tirania. Vale ressaltar que estas operações são de ordem analítica. Note-se que as formações
do inconsciente, como por exemplo, o sonho, enquanto portadoras de algo da dimensão do
Real não articulável, podem ser tomadas como indicadores do traço do sujeito na sua
alienação ao campo do Outro. Enquanto não houver trabalho de análise, esse traço
permanecerá como sendo da ordem do isso, mostração máxima da alienação ao campo do
Outro.
Segundo Lacan, o sujeito aparece num lugar como sentido (S1) para desaparecer como
nonsense (S2). É importante sublinhar que nonsense, neste contexto, é menos ausência de
sentido do que condição de possibilidade de revelação de outra dimensão do campo do
sentido. Mas é intrigante pensar sobre o por quê do sujeito se iluminar em S1, para depois se
47
LACAN, Jacques. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editos, 1992.
48
No comportamentalismo que, aqui, circunscrevemos o sujeito é fantoche do Outro e seu saber não é
considerado como intervenção possível frente à esta manipulação. Assim, suas reações e atitudes
(comportamento) ficam completamente submetidas ao jugo do Outro. O saber do médico ou psicólogo é suposto
poder ordenar a desordem (transtorno) instaurada pelo domínio do Outro.
49
LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.
50
Ibid.
28
Eu havia destacado que Freud enfatiza o seguinte: o recalcamento cai sobre algo que é
da ordem da representação, que ele denomina Vorstellungsrepräsentanz. [...] insisti
no fato de que Freud sublinha que não é de modo algum o afeto que é recalcado. [...]
Então insisti nisto, que o que é recalcado não é o representado do desejo, a
significação, mas o representante – traduzi, literalmente – da representação.54
E, por fim, alerta: “[...] O de que o sujeito tem que se libertar é do efeito afanísico do
significante binário [...].”56
A transcrição desses longos fragmentos visa fundamentar a equivalência, apontada por
Lacan, entre afânise e recalque originário. Portanto, o significante binário (S2) constitui-se
como significante afanísico, na medida em que produz a afânise do sujeito; e é neste campo, o
do significante binário, que se inscreve o recalque originário. É nesta dimensão que se
demarca a divisão do sujeito.Assim, verificamos que é a partir deste processo de
acasalamento significante original que S2 produz a barra do sujeito.
51
LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Op. cit., p.197.
52
Ibid., p. 207.
53
Ibid., p. 206,207,208.
54
Ibid., p. 206.
55
Ibid., p. 207.
56
Ibid., p. 208.
29
[...] é por sua partição que o sujeito procede a sua parturição. E isso não implica a
metáfora grotesca de que ele se dê à luz de novo.59
O que ele [sujeito] coloca aí [quando se depara com o desejo do Outro] é sua
própria falta, sob a forma da falta que produziria no Outro por seu próprio
desaparecimento. Desaparecimento que, se assim podemos dizer, ele tem nas mãos, da
parte de si mesmo que lhe cabe por sua alienação primária. Mas o que ele assim
preenche não é a falha que ele encontra no Outro, e sim, antes, a da perda constitutiva
de uma de suas partes, e pela qual ele se acha constituído em duas partes. Nisso reside
a torção através da qual a separação representa o retorno da alienação. É por ele operar
com sua própria perda, a qual o reconduz a seu começo.60
57
LACAN, Jacques. “Posição do inconsciente” (1960-1964). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1998, p.855.
58
Ibid., p. 857.
59
Ibid.
60
Ibid., p.858.
61
Ibid., p. 196.
30
Lacan parte do imperativo ético freudiano Wo Es war soll Ich werden, onde o isso
estava o eu, enquanto sujeito, deve advir, para articular a emergência do sujeito como
resposta do real ao que lhe sobrevém das determinações do Outro. E assim, seguindo Lacan,
Elia nos diz: “... um sujeito é o efeito, ativo e em ato (...), do significante sobre o ser vivo”62.
O sujeito é atravessado por uma falta estruturante – a castração. Falta que articula o
desejo e suporta o movimento desejante. É importante, neste ponto, tomar o conceito
freudiano de das Ding, a Coisa, ao qual Lacan retorna no Seminário, livro 763, para
estabelecer sua relação com o desejo. Lacan toma das Ding como causa, como o Real, a Coisa
que retorna sempre ao mesmo lugar e que causa o desejo do sujeito.
Das Ding, portanto, se constitui como o objeto perdido para sempre, expressão da
impossibilidade de retorno a uma dimensão mítica de plena satisfação do Desejo. Desta
forma, cabe destacar a íntima articulação entre desejo e lei, na medida em que a proibição
moralista, estabelecida pela Lei contra o Incesto, encobre a impossibilidade ética de
realização da satisfação absoluta e plena do desejo. Portanto, é por isto que Lacan afirma que
a moral nasce enraizada ao desejo.64
Com efeito, Lacan situará das Ding num lugar ex-timo e, portanto, no que há de mais
íntimo e exterior. Dimensão do interior excluído ao interior, vazio central do psiquismo em
torno do qual se tece a rede de significantes que comanda o movimento da repetição. Desta
forma, configura-se como presença ausente, realidade muda. Circunscreverá a Coisa como
algo de que é preciso se manter à distância, já que o gozo absoluto que ela engendra é mortal.
Essa distância em relação à Coisa é o que constitui o desejo.
Entrevemos, portanto, que o gozo do qual o sujeito se afasta não está só no Outro – o
Outro que o coloca no lugar de objeto do seu gozo – mas é do seu próprio gozo que se afasta,
enquanto excesso pulsional, gozo impossível, do qual não pode se aproximar.
62
ELIA, Luciano. O conceito de sujeito. Op. cit.,p.5.
63
LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959-1960). Op. cit.
64
Ibid.
31
Que conseqüências para a clínica pode trazer uma direção ética referida ao Real e ao
desejo, e , portanto, ao sujeito e uma clínica que não admite o inconsciente? Esta questão
permeará todo o desdobramento deste trabalho.65
Ao partirmos da proposição de Lacan, nos Escritos, em “A ciência e a verdade” : “Por
nossa posição de sujeito, sempre somos responsáveis”66, verificaremos que é da posição de
sujeito responsável que ele irá se haver com isso que o causa.
No caminho da constituição do sujeito, considerando-se o campo do qual ele é efeito,
o campo da linguagem, é a partir de seu encontro com o Outro que o sujeito advém. Elia nos
aponta: “... o sujeito é (...) um ato de resposta.”67 Resposta ao que lhe chega como “...um
conjunto de marcas materiais e simbólicas – significantes – introduzidas pelo Outro...”68. A
condição do sujeito de assujeitamento ao significante, subposto mas operante, remete-nos ao
efeito trágico de “vítima tão terrivelmente voluntária”69 do seu desejo. No entanto é, ao
contrário do herói trágico, no ponto máximo do assujeitamento que o sujeito encontrará o seu
desejo. Elia é explícito, quanto a isso:
Digamos [...] que a relação da ação com o desejo que a habita na dimensão trágica se
exerce no sentido de um triunfo da morte [...] triunfo do ser-para-a-morte [...].71
65
Especialmente no Capitulo III tomaremos as vicissitudes do corpo como condição de gozo.
66
LACAN, Jacques. “ A ciência e verdade”. (1966). In: Escritos. Op. cit., p.873.
67
ELIA, Luciano. O conceito de sujeito. Op. cit., p.41.
68
Ibid.
69
LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Op. cit.,p. 300.
70
ELIA, Luciano. O conceito de sujeito. Op. cit., p.57.
71
LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Op. cit., p.376.
32
72
LAURENT, Eric. “Psicanálise e saúde mental”. Op. cit., p. 165. É valido destacar esta dimensão de “uma certa
pragmática” intrínseca ao campo da saúde mental, já que no desdobramento desta dissertação apontaremos para
o DSM como “a pragmática do comportamento”. A elaboração de quais são as faces dessa pragmática inscrita no
campo da saúde mental, não é o objeto de nosso trabalho. Pretendemos, apenas, apontar para uma certa
correlação entre o pragmatismo da ciência contemporânea, na qual tomamos como paradigma o DSM, e algumas
práticas existentes nos CAPS.
33
Se a análise tem um sentido, o desejo nada mais é do que aquilo que suporta o tema
inconsciente, a articulação própria do que faz com que nos enraizemos num destino
particular, o qual exige com insistência que a dívida seja paga, e ele [o desejo] torna a
voltar, retorna e nos traz sempre de volta para uma certa trilha, para a trilha do que é
propriamente nosso afazer.74
73
Ver em GUYOMARD, Patrick. O gozo do Trágico: Antígona, Lacan e o desejo do analista. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1996, p.99.
74
Ver em LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Op. cit., p.383.
34
A clínica exercida nos Centros de Atenção Psicossocial tem sido objeto de pesquisa
por psicanalistas e autores orientados pela psicanálise, em nosso país, há alguns anos.
Múltiplas influências teórico-clínicas, desde a Psicoterapia Institucional Francesa e seu
principal expoente Jean Oury75, aos estudos institucionalistas que afirmam a potência da
transdiciplinaridade76,como forma diferenciada de intervenção no coletivo, foram
desenhando estes dispositivos clínicos ao longo dos últimos 20 anos. E o que a Psicanálise
tem a ver com essa “clínica”?
É a partir do ensinamento de Lacan acerca da descoberta freudiana que
construímos essa experiência, buscando respostas a essa questão.
A pratica institucional é necessariamente coletiva. Alguns autores apontam o coletivo
como estratégia de resposta frente a situações de impasse clínico. Zenoni nos indica: “[...] a
75
Ver em VERZTMAN, Júlio Sérgio e GUTMAN, Guilherme. “A clínica dos espaços coletivos e as psicoses”.
In: VENÂNCIO, A T. e CAVALCANTI, M. T.(orgs) Saúde Mental – Campos, Saberes e Discursos. Rio de
Janeiro: Edições IPUB/CUCA, 2001, p. 39-72.
76
Ver em VASCONCELOS, Eduardo Mourão. “Desinstitucionalização e Interdisciplinaridade em Saúde
Mental”. In: Cadernos do IPUB/IPUFRJ, n. 7. Rio de Janeiro, 1997.
35
clínica, às vezes, exige uma estrutura coletiva de resposta. É a clínica que exige respostas que
não podem ser dadas por um só.”77
O dispositivo que, em especial, queremos tomar em análise recebeu, ao longo do
tempo, mandatos sócio-terapêuticos pré-determinados: de início foi-lhe direcionada a função
de ser um “grupo de família”. Esta determinação institucional foi, processualmente,
desconstruída, na medida em que a demanda endereçada aos agentes analíticos indicava a
construção de um espaço coletivo de referência que não se restringisse a marcadores
temáticos como, por exemplo, a relação familiar. Consideramos que este seria um espaço de
acolhimento às famílias, incluindo os psicóticos e os demais pacientes com sofrimentos
psíquicos de outras magnitudes. Partimos, portanto, do acolhimento da demanda que pudesse
ser endereçada ao Outro, sem que, necessariamente, tivéssemos que lhes dar respostas.
Estamos atentos, desta forma, ao que Soler nos adverte:
A demanda supõe o Outro. Ela o procura como bom entendedor e como lugar
suposto de solução [...]. O clínico quando cede à sugestão-sedução da demanda, reduz-
se à função do terapeuta.78
Entende-se por terapeuta aquele que não trabalha com o pressuposto do sujeito do
inconsciente e é formado pelas diretrizes das ciências psicológicas.
Seguindo a descrição histórica do dispositivo, num outro momento do percurso
institucional tornou-se imperiosa a reformulação quanto à atenção medicamentosa, visto que
a ela se atrelava a entrada do paciente nos projetos clínicos do CAPS e, muitas vezes, a ela se
reduziam os referidos projetos. Portanto, ao antigo “grupo de família” adicionou-se esta,
também, pré-função: a de acompanhar os efeitos medicamentosos naqueles que faziam uso de
anti-psicóticos, anti-depressivos, anti-convulsivantes, benzodiazepínicos, etc. Tornar-se-ia,
então, um “grupo de medicação”? Veremos como o discurso sobre a medicação entra como
uma dimensão que se oferece à incidência da intervenção analítica.
Partindo da direção ética norteada pela Psicanálise, pudemos operar também sobre esta
encomenda institucional constituindo esse ancoradouro para além das demandas (família,
medicação). Espaço-tempo proposto, portanto, para delinear a construção de referências de
ancoragem no campo do Outro, em que nós, agentes analíticos, apesar de estarmos orientados,
77
Ver em ZENONI, Alfredo. Psicanálise e Instituição – A segunda clínica de Lacan. Belo Horizonte:
Abrecampos, 2000, p.17.
78
Ver em SOLER, Colette. “O Intratável”. In: Psicanálise ou Psicoterapia. São Paulo: Papirus, 1997, p.110.
36
rigorosamente, por uma mesma diretriz estratégica, permitíamo-nos uma certa “liberdade
tática”79 no manejo deste trabalho.
Descreveremos, a seguir, alguns fragmentos de situações clínicas que denotam a
sustentabilidade da posição analítica, neste espaço coletivo de intervenção, enquanto
operadora de efeitos para além do terapêutico: efeitos analíticos e, portanto, da ordem do
desejo.
79
Ver em BAIO, Virgínio. “O ato a partir de muitos”. In: Revista Curinga, n. 13, 1999, p.67.
37
Essa posição de um sujeito suposto não saber [já que não encarnado num só analista,
mas diluído no âmbito institucional] é uma posição favorável para encontrar um
sujeito que sabe o que acontece com ele, que é ele mesmo a significação do que lhe é
endereçado enigmaticamente [resposta possível do sujeito psicótico].80
80
Ver em ZENONI, Alfredo. Psicanálise e Instituição: A segunda clínica de Lacan. Op. cit., p.11 e 20.
81
Fragmento do discurso de um sujeito psicótico frente à tentativa de um profissional da equipe técnica em
construir, junto com ele, um projeto de tratamento.
82
Ver em BERENGER, Enric e outros. “Ética e terapia em psicanálise”. In: Psicanálise ou Psicoterapia. Op.
cit., p.49.
38
É a partir do um a um, do caso a caso, que a direção de trabalho deve ser tomada. As
estratégias de “reinserção social” se não forem articuladas a partir da direção apontada pelo
sujeito, podem tornar-se mecanismos adaptadores e empobrecedores do sujeito e de seus
enigmas. Neste contexto, lembramos uma psicótica que passou vinte e sete anos ininterruptos
de sua vida internada num grande manicômio. Chega ao CAPS depauperada, com o corpo e
seu ser marcados pelas cicatrizes do abandono. Sua aparência expressa os longos anos de
institucionalização: orelha parcialmente decepada, desdentada, marcha comprometida, fala
desarticulada. Pôde, no seu próprio tempo, e antes de qualquer atitude intervencionista da
equipe clínica, formular seu desejo de “colocar dentes”, pois havia se enamorado de um
cliente do CAPS, e passou a se preocupar com sua “ imagem” (sic).
Em outros extratos clínicos é a demanda de intervenção de uma lei de ordenamento e
regulação do gozo que se apresenta: o Outro não barrado pela lei simbólica ordenadora pode
compelir o sujeito psicótico eroticamente em sua relação com o laço social. Em outros
momentos pode produzir atitudes hostis no psicótico, numa tentativa de defesa frente a esse
Outro gozador e invasivo. A posição do analista, portanto, é a de não responder como Outro
do saber e, assim, não assumir uma posição prescritiva, mas possibilitar a emergência de
respostas singulares construídas pelo sujeito.
Podemos afirmar, portanto, a partir da experiência de tratamento psicanalítico nesse
espaço de referência, que amarrações significantes podem se constituir a partir do discurso e
posição do sujeito, construindo bússolas que poderão, mesmo que provisoriamente, fornecer
algum norte em seu percurso de errância.
A posição de “saber não saber”, resultante do movimento clínico que aponta para a
impossibilidade do analista saber de antemão, indica que “cabe ao sujeito psicótico construir
seu próprio saber”83.
Ao considerarmos uma certa estruturação da rede intrainstitucional, constitutiva dos
CAPS, prenhe de saberes especializados, formações e discursos diversos, há um importante
desafio a ser enfrentado: os profissionais e cuidadores pertencentes à equipe clínica devem
sustentar a coletividade deste trabalho a partir da elaboração de um saber fazer que não se
sabe a priori e que, portanto, não é suposto! Vale sublinhar que este saber não suposto pelos
clínicos se edifica na contratualidade de estratégias acionadas pela equipe, na medida em
que são, permanentemente, revistas e reinventadas a partir da originalidade de cada caso.
83
Ver em BAIO, Virgínio. “O ato a partir de muitos”. Op. cit., p.67.
39
É ao abrir espaço para o que insiste no real do sintoma e, portanto, de real no sujeito
que o analista opera. É a ética do desejo, desejo de obter a diferença absoluta84 que, assim,
norteia o trabalho do analista num dispositivo institucional como o CAPS. Afirmar a
Psicanálise como um modo de operação na Clínica da Atenção Psicossocial só é possível a
partir da posição do analista segundo a qual a dimensão do sujeito não se reduz a
enquadramentos de condutas e comportamentos que devem se adequar à ordem socializadora
e aos ditames da cidadania. Vale destacar, quanto ao desejo do analista, o que Souza nos
indica:
[...] para que o analista venha a saber o que tem que saber é preciso fazer uma escolha:
escolha de esvaziar-se do saber referencial, desapegar-se do saber dos livros e da
experiência, e assim criar lugar para o saber textual, saber inconsciente, a ser recolhido
na língua particular de cada analisante. Esta escolha cujo nome próprio é desejo do
analista é um ponto vazio de saber e de imagens, avesso a identificações, propício à
emergência da diferença, ponto de ancoragem a partir de onde o analisante se lança
em sua busca. [...] Assim, o essencial do sujeito suposto saber, esse constituinte
ternário que não pertence nem ao analisante nem ao analista, se amarra entre um e
outro a partir desse elemento comum – a aposta no saber inconsciente – que move o
sujeito em sua busca e define o desejo do analista em sua função85.
84
A esse respeito ver LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
Op. cit.
85
SOUZA, Neuza Santos. A propósito do sujeito suposto saber (mimeo), p. 119 e 120. A discussão que
interconecta o desejo do analista ao sujeito suposto saber, como fundamento da transferência, iremos articulá-la
ao final do Capítulo III no contexto da construção do caso clínico.
40
86
DSM-IV - Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. Washington, D. C.: American Psychiatric
Association, op. cit..
41
87
KAMMERER, Théophile e WARTEL, Roger.”Diálogo sobre os diagnósticos”. In : LACAN, Jacques e outros,
A Querela dos Diagnósticos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1989, p. 28.
88
LACAN, Jacques e outros. A Querela dos Diagnósticos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1989.
89
Chamamos de fisicalista a posição conceitual edificada sob a égide da concepção de que as doenças mentais,
e os demais fenômenos psíquicos, são causados por alterações orgânicas.
90
RUSSO, J. A e HENNING, M.F. “O sujeito da psiquiatria biológica e a concepção moderna de pessoa”. In:
Antropolítica. Niterói:Universidade Federal Fluminense, 1999, p. 39.
42
Cabe destacar que, guiados por este suposto não compromisso com qualquer teoria
psicopatológica, os autores do DSM, a partir da terceira edição, e da CID 1095 suprimem as
categorias diagnósticas de histeria e neurose de seus manuais. Este fato merece, ao nosso ver,
um exame mais aproximado de seus efeitos. Para isso, consideramos necessário situar,
brevemente, o percurso histórico que circunscreverá o surgimento da categoria histeria até
seu suposto “desaparecimento”.
91
Ibid., p. 44.
92
Cabe ressaltar que o que nomeamos como ciência do comportamento refere-se aos procedimentos terapêuticos
aplicados pelo campo da psiquiatria e da psicologia de orientação biológica-comportamental.
93
RUSSO, J. A e HENNING, M.F. “O sujeito da psiquiatria biológica e a concepção moderna de pessoa”. In:
Antropolítica. Op. cit., p. 48.
94
ZARIFIAN, Édouard.”Um diagnóstico em psiquiatria: para quê?”. In:LACAN, Jacques e outros. A Querela
dos Diagnósticos, op. cit., p. 49.
95
CID 10/ ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE – Classificação de transtornos Mentais e de
Comportamento da Classificação Internacional de Doenças. 10a ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.
43
A autora considera que a terceira e quarta edições do DSM, com a pretensão de serem
ateóricos, surgem como a salvação da clínica imersa no caos produzido pela “babilônia
conceitual” instaurada no campo da medicina mental. Segundo esta psiquiatra, as modernas
classificações americanas podem ser entendidas como uma reação ao que chamou de:
[...]influência da psicologia freudiana, que supunha uma causa dinâmica para a doença
mental, [e] pela dúvida que alguns psiquiatras levantaram à existência da doença
mental[...]100. [Esta última referência é dirigida ao movimento intitulado de anti-
psiquiatria].
96
TANNOUS, Leila.A clínica e as classificações diagnósticas em Psiquiatria. Dissertação de Mestrado:
IPUB/UFRJ, 1996.
97
Ibid., p. 111, 112.
98
Ibid., p. 113.
99
Ibid., p.vi;2.
100
Ibid., p.5.
44
Outros autores ratificam que a supressão do termo nosográfico “histeria” dos manuais
classificatórios atuais não determinou o seu desaparecimento, pelo contrário:
101
KAMMERER, Théophile e WARTEL, Roger. “Diálogo sobre os diagnósticos”, op. cit, p. 40.
102
FREUD, Sigmund. “Sobre a teoria dos ataques histéricos” (1892). In: Edição Standard Brasileira das Obras
Completas psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1994. Vol.I,p.219.
103
Ibid.
104
Esta articulação foi feita no início do Capítulo I.
105
Ibid., p.219 e 220.
106
FREUD, Sigmund. “A etiologia da histeria” (1896).In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas
psicológicas de Sigmund Freud. Op. cit, Vol III, p. 195.
45
[...] A histérica vem para requerer o inconsciente: ela tampouco sabe qual é o objeto
de seu desejo, mas sabe, inconscientemente, que ele não está ali onde o sujeito da
consciência o percebe, ou seja, em sua demanda .107
107
ELIA, Luciano. A Psicanálise e o Social – Tese apresentada ao Departamento de Psicologia Clínica do
IP/UERJ, 1999, p. 93.
108
TANNOUS, Leila. A clínica e as classificações diagnósticas em Psiquiatria, op. cit., 1996.p.128.
109
VIEIRA, Marcus André. “Dando nome aos bois: sobre o diagnóstico na psicanálise”. In: FIGUEIREDO, A.
C. (org.) Psicanálise – Pesquisa e Clínica. Rio de janeiro: Edições IPUB/CUCA, 2001, p.172.
46
Esta terceira versão sofreu, em 1987, uma revisão, resultando no chamado DSM-III-R.
110
DSM- IV/Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. Op. cit.
111
Ibid., p. xvii.
47
E ainda nos chama a atenção para a interpretação feita por outro autor acerca da
influência de outro viés conceitual-teórico presente no DSM-III:
[...] Quanto a Singer [...] acredita que é antes a psiquiatria biológica que ordena
implicitamente este sistema nosográfico.113 (grifo nosso).
112
PEREIRA, Mário Eduardo Costa. Contribuição à psicopatologia dos ataques de pânico. São Paulo: Lemos
Editorial,1997, p. 214.
113
Ibid., p.214.
114
DSM- IV/Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. Op. cit., p. xxi.
115
PEREIRA, Mário Eduardo Costa. Contribuição à psicopatologia dos ataques de pânico. Op. Cit., p. 208.
Ibid., p. 208.
48
A escolha deste termo não é questionada pelos autores do DSM-IV (1994). Eles se
preocupam, no entanto, em justificar o uso do adjetivo “mental” considerando a imprecisão
deste vocábulo e uma certa significação retrógrada evocada por ele, no engendramento de um
anacrônico dualismo mente/corpo. Sua definição de “transtorno mental” é, assim, indicada:
Este enunciado nos remete a uma análise que pudesse indicar os fatores provocadores
do que consideramos um mal-estar produzido pela expressão “mental”. O que é colocado em
questão não é o termo/significante “transtorno” mas o adjetivo “mental” que, ao ser tomado
como um “problema”, parece-nos incomodar por sua imprecisão e inconsistência. O
vocábulo “mental”, desta forma, não corresponderia à pretensão de saber que o Manual
engendra por não conter, em sua significação, a possibilidade de uma “evidência empírica”.
Isto nos leva a indagar o que há no “mental” que, por sua inconsistência e não-
concretude, escapa às evidências.
Considerando a expectativa de substituição da categoria “mental”, pelos precursores
do DSM IV, pode-se hipotetizar que um substituto adjetivo ideal fosse o de “cerebral”,
constituindo a expressão transtorno cerebral. Desta forma, teríamos de um lado o
transtorno que é a codificação comportamental, e do outro lado, o cerebral que é a
suposição de que cada um deles tem um lugar no cérebro. Assim, sua expressão significante
equivalente seria a de transtorno comportamental.
Cabe ressaltar, desta forma, que à perspectiva psicobiológica orientadora das primeiras
versões do manual acrescentou-se, no DSM-IV, esta marcada ênfase na dimensão cérebro-
comportamental. Esta posição metodológica e, supostamente, neutra que subsidia o que
estamos chamando de uma pragmática do comportamento, marcada pela desimplicação com a
etiologia e, portanto, com a causa, dá relevo à manifestação observável do sintoma, em
detrimento da produção de saber comprometido com a verdade como causa – sendo esta
última, a posição ético-metodológica da clínica psicanalítica.
116
DSM- IV/Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. Op. cit.,p. xx.
49
Que conseqüências podem ser produzidas com a exclusão do sujeito e de seu sintoma
enquanto verdade que o causa? A clínica reduz-se à dimensão fenomênica do comportamento,
tendo como função utilitarista apreendê-lo, adaptá-lo e encaixá-lo em padrões sociais
aceitáveis. Vale ressaltar que o sintoma enquanto função, invenção e solução do sujeito é
tamponado, sendo suas forças domadas para o alcance do bem-estar social.
O manual é enfático ao afirmar que seu propósito não é o de classificar pessoas, mas
sim os transtornos que essas pessoas apresentam. As pessoas são, portanto, veículos
portadores destas classificações. Expressões como “um esquizofrênico”, “um alcoólico” são
evitadas e, em seu lugar, sentenças consideradas mais adequadas a este propósito são
proferidas, tais como: “um indivíduo com esquizofrenia” ou “um indivíduo com dependência
alcoólica”.
Cabe ressaltar, portanto, que a operação classificatória do manual incide sobre A
doença como entidade adicional e independente do indivíduo que a porta, forcluindo, assim, o
sujeito como autor que encarna o sintoma e presentifica a doença.
Vieira, a respeito do DSM-IV, comenta:
[...] Busca-se assim circunscrever a essência das doenças através de uma lista de seus
nomes e significações. Através da constituição deste inventário, se visa a essência
da patologia, do adoecer esquizofrênico no ato do diagnóstico e não o sujeito,
prescindindo-se do indivíduo doente. Esta evacuação do sujeito, um outro nome para
sua forclusão, por si só, situa o ideal científico desta classificação.117 (grifos nossos).
É importante sublinhar que tomamos o ideal da ciência, conforme indica Lacan, como
apagamento da verdade como causa e pela costura da verdade ao saber.118
Vale destacar, no entanto, que hoje o edifício do DSM sofre abalos importantes a
partir de críticas oriundas do próprio campo médico. A principal crítica atualmente feita ao
manual americano centra-se no questionamento da validade do DSM como método
científico. Este debate ancora-se na discussão acerca das conseqüências da exclusão da
Psicopatologia, enquanto sustentação conceitual teórico-clínica, dos sistemas de classificação
diagnóstica.
Pereira nos adverte:
117
VIEIRA, Marcus André. “O catálogo e a chave: sujeito da ciência e sujeito do inconsciente”. In: Opção
lacaniana- Revista brasileira internacional de psicanálise. São Paulo: Edições Eólia, vol. 21, 1997, p.85.
118
Trataremos, no Capítulo III, desta questão articulando-a ao texto de Lacan “A ciência e a verdade”.Veremos
como a “evacuação do sujeito” se inscreve no ideal cientificista da contemporaneidade.
50
119
PEREIRA, Mário Eduardo Costa. Contribuição à psicopatologia dos ataques de pânico. Op.cit., p. 213.
120
Ibid., p.216.
121
Ibid., p. 217.
122
LAURENT, Éric. “A extensão do sintoma hoje”. In: Revista Opção Lacaniana, São Paulo, Edições Eólia,
vol. 23, 1998, p. 18.
123
Ibid., p.18.
124
Ibid., p.18.
51
125
Trata-se de um campo conceitual pertencente às ciências do comportamento. Seu objeto é o funcionamento
das atividades mentais (processos de percepção, memória, atenção,etc.).
126
ANDREASEN, Nancy C. “DSM and the Death of Phenomenology in America: An Example of Unintended
Consequences”. Schizophrenia Bulletin. Maryland Psychiatric Research Center: Oxford University Press,dec.
2006, p. 12.
52
127
Ibid. p. 19.
53
No campo da Psicanálise sustentamos que o DSM não tem validade como método
científico por não lidar com o real, na medida em que reduz seus instrumentos de aferição aos
aspectos manifestos do sintoma. Sobre a relação entre o real e a Ciência, Lacan nos afirma:
Que os tipos clínicos decorrem da estrutura, eis o que já se pode escrever, ainda que
não sem hesitação. Isso só é certo e transmissível pelo discurso histérico. É nele,
inclusive, que se manifesta um real próximo do discurso científico. Convém notar
que falei do real, e não da natureza.129 (grifos nossos).
128
BANZATO, Cláudio E. M. “ Editorial: Sistemas de classificação diagnóstica passam por moratória:
tendências de avaliação e pesquisa em psiquiatria”. In: Revista Latinoamericana de Psicopatologia
Fundamental, vol. iv, n. 3, Setembro de 2001, p.9.
129
LACAN, Jacques. “Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos” (1973). In: Outros
Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 554.
130
LACAN, Jacques. “ O lugar da psicanálise na medicina” ( 1966). In: Revista Opção Lacaniana, n. 32, São
Paulo, Eólia, 2001, p. 8-14.
131
VILTARD, Mayette. Verbete GOZO. In: KAUFIMANN, P. (org) Dicionário Enciclopédico de Psicanálise O
Legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro:Jorge Zahar, 1996, p.221.
54
[...] uma classificação poderia ser entendida como sendo o resultado do emprego
da análise e da comparação por seriação, para facilitar e promover o conhecimento.
132
Veremos esta articulação, de forma mais detalhada, no Capítulo III.
133
Posição conceitual na qual a linguagem não tem relação com o real.
55
Também por isso uma classificação implica sempre em uma nomenclatura, que é
o conjunto de termos particulares a uma arte ou ciência, o que na medicina se
refere ao que se chama de nosologia, que é o estudo das doenças, e à nosografia que é
a descrição delas.134 (grifos nossos).
[...] [para a ] tradição médica [...], nomear é apenas classificar. [...] Todo diagnóstico
comporta o percurso que vai do signo à classe. Nomear uma classe ou um tipo clínico
é fabricar uma inferência indutiva, na qual se passa de dados incompletos para um
todo, para um sistema geral. 135
[...] Sob essa ótica, admite-se que a utilização dos nomes nesse sistema
classificatório representa o que se denomina um “nominalismo pragmático”, uma
vez que o nome, nesse contexto, é apenas um artifício para interferir na causalidade
neurofisiológica do cérebro136. (grifo nosso).
134
LEITE, Márcio Peter de Souza. “A psicanálise como diagnóstico da psiquiatria”. In: Revista Opção
Lacaniana, vol. 23, op. cit., p. 22.
135
SANTIAGO, Jésus. “A querela atual do sintoma: o realismo lógico da psicanálise em face do nominalismo
contemporâneo”. In: Revista Curinga, n. 24, Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas,
2007, p. 16.
136
Ibid., p. 17.
56
[...] o sintoma como tipo abriga uma lógica inteiramente própria que recai sobre o
fato de que, para a psicanálise, a sua estrutura é um equivalente do real.137 (grifos
nossos).
[...] “há um saber no real”. Isso quer dizer que se pode tratar um tipo de sintoma não
por intermédio de um realismo universalista, mas sim por um realismo que incorpora o
valor lógico da estrutura.138
É difícil não ver introduzida, desde antes da psicanálise, uma dimensão que
poderíamos dizer do sintoma, que se articula por representar o retorno da verdade
como tal na falha de um saber.
[...].
Diferentemente do signo, da fumaça que não existe sem fogo, fogo que ela indica com
o apelo, eventualmente, de que seja extinto, o sintoma só é interpretado na ordem do
significante. O significante só tem sentido por sua relação com outro significante. É
nessa articulação que reside a verdade do sintoma. O sintoma tinha um ar impreciso
de representar alguma irrupção da verdade. A rigor, ele é verdade, por ser talhado na
mesma madeira de que ela é feita, se afirmarmos materialisticamente que a verdade é
139
aquilo que se instaura a partir da cadeia significante. (grifos nossos).
137
Ibid., p. 16.
138
Ibid., p. 18.
139
LACAN, Jacques. “Do sujeito enfim em questão” (1966). In: Escritos. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor,
1998, p. 234,235.
57
[...] Nossas classes não têm um fundamento nem na natureza, nem na observação.
Nem a psicose, nem a neurose são espécies naturais.140
Quine evidencia que utilizamos termos gerais, tais como substantivos comuns,
verbos, adjetivos. Podemos agrupar “homem”, “mesa”, “peixe” em função de
certas semelhanças entre seus elementos, porém, se a espécie natural é um
conjunto, no sentido da teoria dos conjuntos, duas coisa, quaisquer que sejam,
poderiam ser tomadas como elementos de uma espécie mais extensa. Por
exemplo, há o conjunto dos “animais”, dos “humanos” e das “plantas”, mas
se construímos o conjunto dos “seres vivos”, aqueles conjuntos se juntam
neste novo conjunto, de tal maneira que sempre é possível transbordar
qualquer espécie formando um conjunto mais estendido.141 (grifos nossos).
140
MILLER, Jacques-Alain. “O rouxinol de Lacan: a arte do diagnóstico” (1998).In: Revista Curinga , n. 23.
Belo Horizonte: E.B.P.- Seção Minas,2006, p. 8.
141
Ibid., p.8.
58
Do nosso ponto de vista, há sujeito toda vez que o indivíduo se afasta seja da espécie,
do gênero, do geral ou do universal. É algo que é preciso recordar na clínica quando
utilizamos nossas categorias e classes – não para descartá-las, mas para manejá-las
tendo ciência do seu caráter pragmático e artificial. Trata-se de não esmagar o sujeito
com as classes que utilizamos.143
Com o que indico que o que decorre da mesma estrutura não tem forçosamente o
mesmo sentido. É por isso que só existe análise do particular: não é de um sentido
único, em absoluto, que provém uma mesma estrutura, sobretudo não quando ela
atinge o discurso.144 (grifos nossos).
Desta forma, um obsessivo pode não ver sentido no discurso de outro obsessivo.
Assim como o que identifica os sujeitos histéricos não é o sentido, mas a estrutura, na medida
em que ela incide sobre o desejo de uma falta, e não sobre a causa supostamente encontrável
para a falta.
É, portanto, de um realismo lógico que se trata quando sustentamos a lógica do
sujeito, efeito do significante, cujo sentido precário e deficiente não permite definir
completamente uma classe.
Ao tratarmos do diagnóstico, convém considerar a dimensão do julgamento
intrínseca a esta prática. Dimensão de mediação necessária entre a aplicação da teoria e a
prática. Miller retoma Kant quando afirma o ato de julgar como um momento lógico, não
dependente, exclusivamente, do conhecimento e da teoria mas eivado de arte. Arte que não
142
Ibid.,p. 9.
143
Ibid., p.9.
144
LACAN, Jacques . “Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos” (1973). In: Outros
Escritos. Op. cit., p. 554.
59
[...] Julgar, isto é, utilizar categorias universais num caso particular, não é o mesmo
que aplicar uma regra, mas é decidir se uma regra se aplica. E esta decisão, este ato,
não é capaz de ser automatizado.147 (grifos nossos).
Frente a uma clínica volúvel, cujas categorias diagnósticas são instáveis e dependentes
da descoberta de novas moléculas e neurotransmissores, conseqüência do reducionismo
pragmático do DSM, o ato do julgamento e da decisão, enquanto posição lógica que
considera a dimensão contingente do sujeito, fundamentam a perenidade da clínica e da
prática do diagnóstico no campo da psicanálise.
145
Ibid., p.12.
146
DSM-IV//Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. Op. cit., p. xxii.
147
MILLER, Jacques-Alain. “O rouxinol de Lacan: a arte do diagnóstico” (1998). Op. cit.,p. 13.
60
Nesse contexto vale, também, destacar com Miller: “[...] O sujeito sempre se constitui
como exceção à regra e seu sintoma é sua invenção ou re-invenção da regra que lhe falta.”148
Esta constituição não depende de descobertas biológicas mas das vicissitudes determinadas
pelo encontro do sujeito com a linguagem.
A perspectiva nominalista contemporânea crê no realismo universalista, na medida em
que opera a descontextualização e a generalização do sintoma.
A estrutura, enquanto função e intervenção do Outro, constitui um realismo lógico da
ordem do real. É o estatuto do real que se edifica como matriz lógica constituindo-se como
bússola orientadora da posição do sujeito, no sintoma, frente ao Outro.
Cabe lembrar que o conceito de estrutura variou ao longo do ensino de Lacan, de um
saber articulado na cadeia significante, lugar de inscrição da verdade até a dimensão de
corpo como condição de gozo.149
Serge Cottet, partindo do platonismo e do aristotelismo, presentes em autores da Idade
Média e tomando o livro de Alain de Libera150 , interroga esta querela, enfocada desde a Idade
Média e desdobrada em variados modos, até hoje, entre nominalismo e realismo, acentuando
neste debate “[...] as relações das palavras às coisas, e de sua ordem de determinação, de sua
causalidade.”151 (grifos nossos).
Cottet aponta, a partir de Abelardo (um autor medieval, citado no livro de Libera),
para uma crítica ao universal distinguindo coisa e causa:
148
Ibid., p. 14.
149
No Capítulo III, a partir de Lacan, faremos esta articulação do corpo como condição de gozo.
150
LIBERA, Alain de. La querelle des universaux, de Platon à la fin du Moyen-Age.Paris: Seuil, 1996.
151
COTTET, Serge. “Lacan medieval”. In: Correio: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, n.58, 2007,
p.53.
152
Ibid., p.55.
153
Ibid., p.55.
61
154
SERPA JÚNIOR, Octavio Domont. “‘Culture-bound syndromes’ e a ‘natureza’ das classificações
psiquiátricas”. In: Jornal Brasileiro de Psiquiatria, vol. 43, n. 9, 1994, p. 490.
62
[...] Ora, classificar é um entre outros jogos de linguagem e como dissociar os jogos
de linguagem e o uso das palavras que nele se fazem das formas de vida em que se
inscrevem?[...]155 (grifo nosso).
O efeito de linguagem é a causa introduzida no sujeito. Por esse efeito, ele não é
causa dele mesmo, mas traz em si o germe da causa que o cinde. Pois sua causa é o
significante sem o qual não haveria nenhum sujeito no real.157 (grifos nossos).
155
Ibid., p. 486.
156
Tomamos o conceito de ex-sistência para o sujeito como contraponto ao sentido de existência. Na ex-sistência
não há consistência, há contingência. Tal condição de insistir de fora de todo campo demarcável está para o
sujeito, assim como para o real, na dimensão mesma de “não cessar de não se escrever”. Desta forma esta
dimensão real do sujeito é a sua face de nonsense, de impossível de ser apreendido e simbolizado. A
contingência é o que estrutura o discurso do sujeito, não afeito a modelações das “ciências” contemporâneas.
157
LACAN, Jacques. “Posição do Inconsciente” (1964). In: Escritos. Op. cit.,p. 849.
63
[...] “uma coleção de signos e sintomas (excluindo noções de causa) a qual é restrita
a um limitado número de culturas, primariamente em função de alguns dos seus
aspectos psicossociais”. É evidente que o intruso indesejável tão logo é expulso
desta festa retorna pela porta dos fundos na maior sem cerimônia, ou, como explicar
que se recomende excluir noções de causa, por um lado, para em seguida atribuir a
restrição da síndrome a determinada cultura como decorrente de aspectos
psicossociais peculiares a esta cultura, por outro?158 (grifos nossos).
Este intruso indesejável nos fez pensar no sujeito do real: expulso da festa do saber
científico, retorna pela porta dos fundos sem cerimônia. O sujeito do real como causa, a
verdade, portanto, como causa, assim afirmado por Lacan, está excluído das classificações
que se limitam aos tipos/espécies clínicas.
Cabe, aqui, uma distinção entre a verdade supostamente apreendida pelas
“evidências”, baseadas em fatos da natureza e a verdade como causa do sujeito. Para tanto,
partiremos da crítica feita por Serpa Júnior à concepção essencialista da verdade,
esta que se propõe a reproduzir com fidelidade a realidade tal como ela é, e de sua afirmação
da concepção pragmática da verdade:
[...] Assim a verdade pode se dessencializar e deixar de ter um uso explicativo para
ser usada como “aprovação”, de maneira que uma teoria, ou no nosso caso, uma
nosografia, não é boa porque é verdadeira – a verdade no ponto de partida,
preexistindo à teoria – mas é verdadeira porque é boa – a verdade como ponto de
chegada (aprovação), em função da utilidade da teoria com relação aos nossos
propósitos.159
158
SERPA JÚNIOR, Octavio Domont “‘Culture-bound syndromes’ e a ‘natureza’ das classificações
psiquiátricas”. In: Jornal Brasileiro de Psiquiatria. Op. cit., p. 487.
159
Ibid., p. 491.
64
incidência da verdade enquanto “ponto de partida”, portanto, enquanto causa. Veremos como
a direção da psicanálise sustenta um contraponto a este modelo.160
É válido ressaltar que a crítica ao viés essencialista, feita pelo autor, encontra
correlatos em Lacan. Os fragmentos a seguir demonstram esta correlação. Serpa Júnior alerta:
160
No Capítulo III trataremos deste contraponto mais detidamente.
161
Ibid., p. 486.
65
[Na psicanálise] é preciso que sejamos, por um lado, nominalistas: o sujeito chega,
nós liberamos nossas prateleiras de todas as classificações [...] acolhemos o sujeito no
seu frescor inaugural. Quer dizer que todas as classificações não passam de
semblantes? Ah! É aí que somos estruturalistas. Ser estruturalista quer dizer:
existem espécies subjetivas, a estrutura existe.164 (grifos nossos).
Disto decorre que em nosso afazer clínico, trabalhamos com o real da estrutura
enquanto verdade do sujeito. Portanto, nosso objeto de intervenção não é a conduta, o
comportamento manifesto do sujeito. Nas palavras de Lacan:
A análise [...] se desenvolve numa busca que vai além da realidade da conduta –
nominalmente, para a verdade que aí se constitui.165 (grifos nossos).
Ressaltamos que Miller nos chama a atenção para o nominalismo pragmático indutor
de instabilidade nas classificações da psiquiatria contemporânea ao tomar o nome das coisas
como puro artifício, entidades abstratas sem relação ao real. Esta direção que se aproxima da
idéia, por nós já indicada, de uma clínica volúvel, cujas categorias diagnósticas portam prazos
de validade circunstanciados a mudanças que podem advir da descoberta de novos eventos
162
LAURENT, Éric. “O relato de caso, crise e solução”. In: Almanaque de Psicanálise e Saúde Mental. Belo
Horizonte: Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, ano 6, n.9, 2003, p. 70.
163
Ibid., p. 4.
164
MILLER, Jacques-Alain. Os casos raros ou inclassificáveis da clínica psicanalítica. A conversação de
Arcachon. São Paulo: Biblioteca Freudiana Brasileira, 1998, p. 267-268.
165
LACAN, Jacques. “Premissas a todo desenvolvimento possível da criminologia” (1950). In: Outros escritos.
Op. cit., p. 127.
66
Se não há espécie natural em nosso campo, mas efeitos de discurso, a questão que
nos importa é a discussão acerca da posição ética do ato do diagnóstico frente à classificação
dos efeitos do discurso sobre os corpos.
Orientados pelos marcadores conceituais do ensino de Lacan que circunscreve o gozo
e o desejo como condição de emergência do sujeito em seu saber, situaremos a prática da
ciência médica ordenada pela resposta à demanda. Indicaremos, a partir de Lacan, as
conseqüências de seu alheamento àquilo que escapa a essa suposta ordenação.
Traçaremos o percurso que inscreve o surgimento da ciência moderna num contexto
de revolução de todo o saber, cujo corolário é o sujeito da ciência. Veremos, com Lacan e
Milner, que este sujeito da ciência é o mesmo sujeito do inconsciente.
Um breve extrato clínico nos indicará como o ato do diagnóstico, orientado pelo
modelo pragmático da ciência do comportamento, pode reduzir o sujeito ao sintoma como
espécie natural, neurológica e comportamental.
Ao final do capítulo, tencionamos verificar os possíveis efeitos, operados pelo DSM,
na direção de uma certa debilização do sujeito. Para tanto, partiremos de um caso clínico de
melancolia debilizada e trilharemos o trajeto realizado por este melancólico em análise.
Frente ao que consideramos constituir uma operação de debilização, efetivada num contexto
em que, enquanto a mãe recalca o saber sobre a verdade de sua origem filial, o filho (o
melancólico em questão) forclui esse saber. Neste cenário, o saber do DSM intervém para
reconhecê-lo como débil. Circunscreveremos o movimento construído pelo sujeito em análise
que possibilitou descolamentos da posição submetida à verdade imperiosa do Outro a partir da
transferência analítica. A debilidade, enquanto saber deficiente, revela-se como eixo de
anteparo através do qual o sujeito toma posição frente ao Outro.
166
VIEIRA, Marcus André. “O lugar da psicanálise na medicina-introdução à uma conferência de Jacques
Lacan”. In: Cadernos do IPUB (Ciência e saber no campo da saúde mental), vol. VIII, n. 21, ago/set 2002,
p.114-115.
68
medicina”167, frente às suas proposições quanto ao real com que trabalham os médicos.
Vieira destaca que a formulação central desta conferência é a afirmação de Lacan de
que:
[...] o corpo é feito de gozo e que o corpo goza [...] [isto] indica que algo ali está em
ruptura com a idéia de um corpo harmonioso concebido para a vida. [...] O corpo-
superfície, o corpo unidade, esta “idéia de corpo” [...] é fruto de uma operação sobre o
gozo, de uma “nova operação psíquica”, de uma construção que organiza o caos
pulsional.168
167
LACAN, Jacques. “O lugar da psicanálise na medicina”(1966). Op. cit.
168
VIEIRA, Marcus André. “O lugar da psicanálise na medicina-introdução à uma conferência de Jacques
Lacan”. Op. cit., p. 115.
169
Ibid., p. 115.
170
Ibid., p. 116.
69
ciência médica que oblitera e solda os furos do discurso sobre o corpo do sujeito, mas pode
reorientar seus destinos na existência.
Ao interrogar seus auditores, situando a significação da demanda na prática médica,
Lacan, nesta conferência, circunscreverá, como equivalente a esta hiância supracitada, uma
falha existente entre a demanda e o desejo:
[...] parece que não é necessário ser psicanalista, nem mesmo médico, para saber que,
no momento em que qualquer um, seja macho ou fêmea, pede-nos, demanda alguma
coisa, isto não é absolutamente idêntico e mesmo por vezes é diametralmente oposto
àquilo que ele deseja171.
Esta posição nos remete à idéia de que se ‘o que a ciência quer ela é incapaz de saber’,
isto se dá à medida em que sua operação fundacional erigiu e excluiu, a um só tempo, o
desejo e, portanto, o sujeito do desejo.
Dito de outra forma, somos tentados a fazer um trocadilho que poderia concluir a
sentença de Lacan assim: ‘ ... a ciência é capaz de saber o que pode, mas não pode saber do
que é capaz, na medida em que forclui o saber do gozo e do desejo’.
171
LACAN, Jacques. “O lugar da psicanálise na medicina”(1966). Op. cit., p.10.
172
Ibid., p.11.
173
Ibid., p.11.
174
Ibid., p.11.
70
Neste ponto, cabe assinalar a intrínseca relação feita por Lacan entre desejo e gozo.
Desejo é a marca do inconsciente, é o que escapa ao sujeito em sua estrutura e seus efeitos.
Com Lacan verificamos que “[...] no campo em que se localizam os excessos de linguagem
dos quais o sujeito porta uma marca que escapa ao seu próprio domínio [...]”175 (grifos
nossos), é que se faz a articulação com que Lacan chamou de pólo de gozo. Ele situará o
desejo num certo “ponto de compromisso”176, numa trilha de escalonamento que considera o
prazer enquanto excitação mínima, manejo necessário que detém o sujeito a uma distância
respeitosa do gozo (excesso de tensão). Logo, o desejo possibilita estender o nível da barreira
do prazer guardando uma distância cautelosa em relação ao gozo. O prazer, desta forma,
opera como barreira ao gozo.
Este trilhamento feito por Lacan nos aponta para a dupla forma de instauração da
relação do sujeito com o saber. Esta se constitui na hiância entre o desejo de saber e a
demanda de saber. Veremos, na seção seguinte, como que nesta fenda se inscreve a topologia
do sujeito.
175
Ibid., p.12.
176
Ibid., p.12.
177
LACAN, Jacques. “A ciência e a verdade” (1966). In: Escritos. Op. cit.
71
[...] o que foi inaugurado por Descartes e que é chamado cogito. Este correlato, como
momento, é o desfilamento de um rechaço de todo saber, mas por isso pretende
fundar para o sujeito um certo ancoramento no ser, o qual sustentamos constituir o
sujeito da ciência em sua definição [...].178
178
Ibid., p. 870.
179
Ibid., p. 878.
180
Ibid., p. 878.
181
Ibid., p. 873.
72
Koyré nos indica que a cisão com o mundo Antigo, provocada pelas marcantes
transformações engendradas pela ciência e filosofia modernas, produziu uma reestruturação
radical na relação do homem com o universo:
182
MOTTA, Manoel Barros da. Apresentação. In: KOYRÉ, Alexandre . Do mundo fechado ao universo infinito.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 4 ed., 2006, p. X.
183
Ibid., p. X e XI.
184
KOYRÉ, Alexandre . Do mundo fechado ao universo infinito. Op. cit., p. 1.
73
Koyré identifica, portanto, os séculos XVI e XVII como um período no qual “[...] o
espírito humano [...] sofreu uma revolução profunda, que alterou o próprio quadro e padrões
de nosso pensamento, e da qual a ciência e a filosofia modernas são, a um só tempo, raiz e
fruto.”185 (grifo nosso).
Logo, esta revolução da qual a ciência e filosofia modernas são, ao mesmo tempo,
princípio e efeito, representou uma transformação radical no sistema de pensamento.
O mundo é desestabilizado, as certezas são colocadas em xeque. O real do mundo
emerge como em permanente mutação e inconsistência.
Copérnico em 1576, com seu Diagrama do universo infinito186 revoluciona quando
propõe deslocar a Terra do centro do mundo e atribui ao Sol este lugar. Koyré ressalta que:
“[...] o efeito imediato da revolução copernicana foi o de espalhar o ceticismo e a
perplexidade[...]”187(grifo nosso).
Há um poema de John Donne, de 1611, citado por Koyré, cujos versos expressam
esses efeitos:
185
Ibid., p. 1.
186
Ibid., p. 36.
187
Ibid., p. 29.
188
Ibid., p. 29.
189
Ibid., p. 43.
74
“[...] rejeita a concepção de um centro do universo, onde a Terra, ou o sol, estaria colocada, ‘o
centro do universo que não sabemos onde localizar ou se existe mesmo”. 190
Koyré confere merecidas honras a cada um destes filósofos e cientistas (Copérnico,
Bruno, Galileu), mas sublinha que foi “[...] Descartes quem clara e distintamente formulou os
princípios da nova ciência[...]”.191
Assim, afirma:
190
Ibid., p. 87.
191
Ibid., p. 89.
192
Ibid., p. 91.
193
Ibid., p. 94.
194
MILNER, Jean-Claude. “O doutrinal de ciência”. In: A obra clara: Lacan, a ciência, a filosofia. Rio de
janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996,p. 33.
195
Ibid., p. 33.
75
196
MOTTA, Manoel Barros da. Apresentação. In: KOYRÉ, Alexandre . Do mundo fechado ao universo infinito.
Op. cit., p. XII.
197
MILNER, Jean-Claude. “O doutrinal de ciência”. In: A obra clara: Lacan, a ciência, a filosofia. Op. cit, p.28.
198
Ibid., p. 29.
76
-Teoremas de Koyré:
a)‘entre a episteme antiga e a ciência moderna existe um corte;
b)‘a ciência moderna é a ciência galileana, cujo tipo é a física matematizada’;
c)‘matematizando seu objeto, a ciência galileana o despoja de suas qualidades
sensíveis’.199
O corte, destacado por Milner a partir da leitura de Koyré, entre o saber antigo e a
ciência moderna está intimamente ligado ao despojamento das qualidades sensíveis dos
objetos da ciência. Trata-se de um corte discursivo: para responder a um universo cujas
qualidades dos existentes foram eliminadas, é necessário uma teoria do sujeito em que este
seja despojado de toda qualidade – este é o sujeito da ciência. Logo, a este sujeito não lhe
cabem as marcas qualitativas da individualidade empírica. Vejamos o que Milner nos diz:
É justamente esse o existente que o Cogito faz emergir [...]. Correlato sem qualidades
suposto num pensamento sem qualidades, vemos em quê esse existente – chamado de
sujeito por Lacan, não por Descartes – responde ao gesto da ciência moderna.200
Milner, desta forma, afirma que o pensamento sem qualidades assume, para Lacan, o
estatuto de matéria constituinte do inconsciente: “[..] Ora, o pensamento sem qualidades
não é apropriado apenas à ciência moderna. Lacan demonstra que ele também é necessário
para fundar o inconsciente freudiano.”201 (grifos nossos).
De que forma este processo se inscreve?
Ao partirmos da teoria de Freud sobre os sonhos, veremos construir-se uma evidência
teórica e clínica: há pensamento no sonho, há pensamento no inconsciente. Por conseguinte, a
consciência de Si não é o determinante exclusivo do pensamento. Portanto, é a suposição de
que a consciência de Si não é essencial para fundar o pensamento que faz desse sujeito da
ciência, a um só tempo, sujeito cartesiano e sujeito freudiano, na medida em que em todas
estas esferas o pensamento se constitui disjunto de toda qualidade.
199
Ibid., p. 32.
200
Ibid., p. 33.
201
Ibid., p. 34.
77
A episteme se vê realizada apenas no instante em que ela expôs a razão pela qual um
objeto não pode, em toda sua necessidade e em toda sua eternidade, ser diferente do
que de fato é. Mais precisamente ainda, o que há de episteme num discurso é somente
a reunião daquilo que esse discurso apreende de eterno e de necessário em seu objeto.
[...] Daí decorre também que no homem a ciência só pode se apoiar no que aparenta o
homem ao eterno e ao necessário; existe um nome para isso: é a alma. Ela se distingue
do corpo, instância no homem do que o aparenta com o passageiro e com o
contingente.202
[...] o empírico no que tem de diverso não cessa de vir a ser ou de cessar de ser, sendo,
por conseguinte, incessantemente outro do que ele é.203
Portanto, o empírico não cessando de ser outro diferente do que ele é, conduz-nos ao
estatuto do significante. Se o sujeito é efeito do significante, conforme postulou Lacan, ao
aproximarmos aqui o empírico do significante, pode-se propor que o sujeito seja efeito do
empírico.
Contudo, cabe salientar que como o corte é discursivo, o poder das teses da episteme
antiga não se apagou. É possível verificar discursos contemporâneos que se utilizam de
recursos epistemológicos cujos princípios são baseados nas fontes gregas, aristotélicas: o
princípio da evidência, o princípio da unicidade do objeto e da homogeneidade do campo, por
exemplo.
Vale ressaltar, conforme nos indica MIlner, que o discurso do Eu, para o qual a
consciência de Si é suposta ser essencial é um traço distintivo da episteme antiga. Correlato,
202
Ibid., p. 39.
203
Ibid., p. 40.
78
204
Ibid., p. 47.
205
Ibid., p. 50.
206
Ibid., p. 50.
207
Ibid., p. 52.
208
Ibid., p. 52.
79
[...] [Para a ciência] assim que a letra se fixou, só a necessidade permanece e impõe o
esquecimento da contingência que a autorizou. A inoportunidade desse retorno do
contingente é o que Lacan chama de sutura. A radicalidade do esquecimento é o que
Lacan chama de forclusão.209
Portanto, na ciência quando a letra fixa o ponto de cada proposição, não permite o
retorno do momento anterior, o retorno do contingente. Lacan chama esse mecanismo de
sutura:
[...] Durante um ínfimo momento [...] cada proposição da ciência surge como podendo
ser infinitamente outro que é, numa infinidade de pontos de vista; no momento ulterior
a letra o fixou como ele é e como não podendo ser outro que é, a não ser mudando de
letra, isto é, [no caso do lançamento dos dados] mudando de partida.210
Vimos como no século XVII a Ciência, que nasce moderna, instaura a matematização
de seu objeto despojando-o de suas qualidades – é a ciência física matematizada de Galileu
Galilei. Este gesto inaugural da ciência moderna tem como correlato o sujeito da ciência que o
cogito cartesiano faz emergir.
209
Ibid., p. 52.
210
Ibid., p. 52.
211
ELIA, Luciano. “A Transferência na Pesquisa em Psicanálise: Lugar ou Excesso?” In: Psicologia: Reflexão e
Crítica. V.1, n.1/2(1986). Porto Alegre: CPG Psicologia/UFRGS, 1986, p.779
80
212
MILNER, Jean-Claude. “O doutrinal de ciência”. In: A obra clara: Lacan, a ciência, a filosofia.Op. cit.
213
É importante lembrar que a transferência se desdobra, para além da dimensão real, pelos registros do
simbólico e do imaginário: a dimensão da transferência simbólica aponta para a condição do sujeito de
assujeitamento ao significante; e a transferência imaginária está “[...] voltada à identificação e ao amor ao Pai, à
demanda desmedida de reconhecimento pelo Outro [...]” – ELIA, Luciano. “A Transferência na Pesquisa em
Psicanálise: Lugar ou Excesso?” In: Psicologia: Reflexão e Crítica. Op. cit., p. 786.
214
Ibid., p.780.
81
[...] só pela via da transferência que o sujeito acede ao saber do inconsciente, é só por
meio dela que o sujeito pode vir a saber a que elementos significantes ele se encontra
assujeitado215.
Por que foi que fiz intervir, em tempo antigo, o nó borromeano? Era para traduzir a
fórmula eu te peço – o quê? – que recuses – o quê? – o que te ofereço – por quê? –
porque não é isso – isso, vocês sabem o que é, é o objeto a. O objeto a não é nenhum
ser. O objeto a é aquilo que supõe de vazio um pedido, o qual, só situando-o pela
metonímia, quer dizer, pela pura continuidade garantida do começo ao fim da frase,
215
Ibid., p.784.
216
Desenvolveremos mais adiante o conceito de transferência como condição sine qua non para a discussão
sobre diagnóstico. Para isto tomaremos como base O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise, em sua lição XVIII “Do Sujeito Suposto Saber, da Díade Primeira e do Bem”.
217
LEITE, Márcio Peter de Souza. “ Diagnóstico, psicopatologia e psicanálise de orientação lacaniana”.In:
Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, n. 2, vol IV, junho 2001, p. 29.
218
Ibid. A respeito da introdução, no ensino de Lacan, da figura topológica do nó borromeano, ver LACAN,
Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda (1972-1973). Op. cit.
82
podemos imaginar o que pode ser de um desejo que nenhum ser suporta. Um desejo
sem outra substância que não a que se garante pelos próprios nós. [...]
Dito de outro modo, o importante não é que haja três dimensões no espaço. O
importante, é o nó borromeano, e o por quê de acedermos ao real que ele representa
para nós.219
Cabe-nos registrar que não iremos detidamente tratar, no âmbito deste trabalho, dessas
operações clínicas. Apenas destacaremos alguns de seus pressupostos fundamentais para
situarmos suas indicações ao objeto deste estudo.
Na clínica estrutural, a aposta neurótica é de que há um sujeito suposto saber lidar com
a demanda do Outro. É numa relação de dívida com o Outro que o sujeito neurótico se
constitui e obtém uma significação. Este processo se contrapõe à “escolha psicótica”,
moldada na referência a um saber de defesa radical frente ao real impossível. É notável que a
significação do falo, indissociável da carência constitutiva do significante que é, antes de
tudo, significante da falta do Outro é, portanto, indissociável da castração. Por conseguinte,
na psicose a significação fálica não opera como na neurose. Verifica-se que na psicose outro
mecanismo pode funcionar como metáfora ao construir alguma significação. Neste sentido,
Calligaris nos aponta:
[...] o essencial da diferença entre psicose e neurose... [é] o fato de que a metáfora
neurótica é paterna e a problemática ‘metáfora psicótica’ seria sem agente [sujeito]
suposto.220
[...] Um delírio é isso: o trabalho de construir uma metáfora paterna, então uma
filiação e a sua relativa significação, lidando com uma função paterna não simbolizada
[forcluida], mas sim no Real.221
No entanto, quando o sujeito neurótico, numa injunção da função paterna, evoca este
significante traumático, não simbolizado, pode acontecer deste significante voltar no Real.
Mas não se trata de forclusão.
Calligaris nos adverte:
219
LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda (1972-1973). Op. cit., p. 170,180.
220
CALLIGARIS, Contardo. Introdução a uma clínica diferencial das psicoses. Porto Alegre: Artes Médica,
1989, p. 22.
221
Ibid.
83
Logo, no que tange à paciente do Dr. Tausk, Freud chama-nos à atenção para a sua
relação com o órgão corporal (o olho) que toma para si “[...]a representação de todo o
conteúdo [dos pensamentos dela]”226. É importante observar que, neste caso, não houve
modificação no real do corpo. O que há é a experiência delirante-alucinatória desta
transformação. Portanto, a sensação de “inervação do corpo”227 domina toda a estruturação
do pensamento delirante. Freud nos adverte, eliminando a hipótese de histeria para este caso e
situando-o no campo da esquizofrenia:
[...] uma histérica teria, de fato, entortado convulsivamente os olhos, [...] em vez de ter
[...] a sensação de agir dessa forma; [...] ela [não] teria tido quaisquer pensamentos
222
Ibid., p. 49.
223
FREUD, Sigmund. “O Inconsciente” (1915). In Edição Standard Brasileira das Obras Completas
psicológicas de S. Freud. Op. cit., vol. XIV, p.226.
224
Ibid., p.226
225
Ibid., p.226.
226
Ibid., p.227.
227
Ibid. p.226.
84
228
Ibid. p.227.
229
Ibid. p.226.
230
MAIA, Ana Martha Wilson. A Loucura Histérica- Uma afinidade especial entre a Mulher e a loucura – Tese
de Doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ/IP,2000, p.1.
231
Ibid., p. 2.
232
A esse respeito ver VELOSO, Helena Cosma da Graça Fonseca. A Psicose de Freud a Lacan. Dissertação de
Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ/IP, 1997.
85
devastação subjetiva produzida na vida desses pacientes indica que a resposta possível, muitas
vezes, dar-se-á no real do próprio corpo.
Este recorte clínico refere-se a uma moça homossexual que chega ao CAPS referindo
conflitos com a mãe. A paciente estava apaixonada por uma outra mulher com quem morava.
A mãe não admitia tal situação. Após algumas entrevistas, optamos por encaminhar a paciente
a um dispositivo ambulatorial de Saúde Mental. Para isto, consideramos o seu grau de
autonomia e o contexto da demanda que apresentava, naquele momento, indicando-nos a
possibilidade de se beneficiar de um tratamento clínico analítico em uma estrutura menos
complexa do que o CAPS.
Pouco mais de um ano se passou e a paciente retornou ao CAPS. Estava
irreconhecível: apresentava intensa salivação, sua fala estava completamente desarticulada e
comprometida por uma contratura na região ao redor da boca. Esta contratura provocava a
abertura permanente da boca que só se fechava comprimindo o queixo com a palma da mão
num movimento ascendente. O discurso da paciente, neste momento, é enigmático e aponta
para a dimensão metafórica intrínseca ao sintoma. Relata que, em função de brigas constantes
com a mãe, a companheira foi-se embora e a abandonou. No percurso da elaboração de seu
sintoma, ela nos diz: “Meu queixo caiu!”
O trilhamento no qual o sintoma se inscreve localizado no corpo, mais precisamente
na boca aberta, é marcado pelo circuito pulsional que permeia a oralidade. No período de
seu adoecimento esta paciente fica à mercê dos cuidados maternos. O nível dos cuidados
ofertados pela mãe é similar àquele destinado a um bebê. A mãe nos afirma, sem delongas:
“ é o meu bebê!”, enquanto enxuga a saliva que escorre pelo canto da boca com uma pequena
toalha. Ressalta, também, que passou a alimentá-la à boca com fartas colheradas de comida
(sic).
Esta paciente foi diagnosticada como portadora de comprometimento neurológico não
especificado. A hipótese médico-psiquiátrica apontava para um quadro epiléptico subjacente,
com crises convulsivas e ausências. Esta concepção diagnóstica psiquiátrica, no âmbito deste
caso, no entanto, fez-nos recorrer à pesquisa da categoria intitulada crise não epiléptica
histérica. Esta categoria foi estabelecida no ano de 1995 e é assim definida numa pesquisa
feita por Fiszman:
233
FISZMAN, Adriana. Histeria e epilepsia: relações descritivas e fisiopatológicas. Dissertação de Mestrado.
UFRJ/IPUB, 1997, p. 1.
234
Ibid., p.1
235
LACAN, Jacques. “Intervenção sobre a transferência”. In: Escritos . Op. cit., p.220.
87
[Em Dora] Para ter acesso a esse reconhecimento de sua feminilidade, ser-lhe-ia
preciso realizar a assunção de seu próprio corpo, sem o que ela continua exposta ao
despedaçamento funcional, [...] que constitui os sintomas de conversão236.
definida, em certo ponto de sua análise: “a raiva é de mim mesmo!”. Esta afirmação é
corroborada pela culpa frente à morte do Outro pai – ocasião em que o pai adotivo morre - e
por sua “deficiência”.
Segundo Lacan apud Miranda o “[...] débil se situa como ‘suporte do desejo da mãe
em um termo obscuro”237. Miranda continua:
[...] Interpretamos ‘o desejo em um termo obscuro’ como aquele que, podendo ter uma
referência fálica, esta se apresenta turva, de modo que não é possível ao Outro situar o
falo alhures como falta238.
Cabe-nos, portanto, questionar: qual é o lugar que a debilidade de Pedro pode ocupar
no processo da economia psíquico-parental? Que verdade porta o Outro materno, cujo corpo
supostamente deficiente, incapaz de gerar, impõe ao sujeito a posição de objeto que responde
fazendo Um com o corpo da mãe? Ao considerarmos a indicação de Lacan apud Miranda,
“[...] [que situa] a debilidade como ocultação da impotência”239, pode-se interrogar: até que
ponto a debilidade de Pedro oculta a impotência da mãe?
É importante destacar que, decorrido algum tempo do tratamento analítico, Pedro
ingressou numa escola formal, não especializada, para cursar o supletivo no período noturno.
Desejava freqüentar uma “escola para normais”, e referia seu incômodo com a deficiência dos
colegas da escola especializada. Sua mãe não o apoiou, por não acreditar que esta
empreitada pudesse dar certo. Pedro suportou a descrença da mãe e se sustentou nesta nova
escola por dois anos. Referia, neste processo, piadas dos colegas dirigidas a ele como “o
maluco, bobão...”, e uma certa atitude segregativa da turma em relação a ele. Após uma
tentativa de passagem ao ato, em que ameaçava jogar-se do topo da escada da escola, jamais
retornou. Anos depois, por iniciativa de sua mãe, reingressou numa nova escola
especializada para deficientes. Não tardou em sair desta por não suportar, agora, a deficiência
do Outro. Parece experimentar, permanentemente, o dilema de não suportar a própria
falha/falta e a falha/falta do Outro, encarnada no significante “deficiência”.
São muitos os momentos de “depressão”, assim nomeados por Pedro. Apresenta-se
como morto frente ao desejo: não tem vontade para nada, não consegue sustentar um projeto
iniciado. Desta forma, abandona os objetos de desejo e se abandona ao desejo do Outro
materno. Fusionado, portanto, a esta dimensão do desejo do Outro materno, não deseja por
237
MIRANDA, Elizabeth Rocha. Debilidade Mental e Estrutura Clínica. 2002. Dissertação de Mestrado –
Instituto de Psicologia, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, p. 33.
238
Ibid., p. 34.
239
Ibid., p. 70.
92
si mesmo. Assim, responde pelo Outro a um outro. Como indicação disso, observamos que
Pedro reagia fortemente às atitudes do pai, segundo as quais este se apresentava como
sedutor, fazendo agrados freqüentes às mulheres que estavam a sua volta. Pedro demonstrava
atitudes reativas de ciúmes em relação ao pai. Vale notar que a mãe, nesses momentos,
mantinha-se incólume, como se tal fato não a afetasse. Pedro, de certa forma, reagia por ela.
A posição débil de Pedro, por conseguinte, oscila entre um saber sem poder saber da
castração do Outro – dimensão da estrutura neurótica velada pela debilidade-, e uma sujeição
objetal ao desejo do Outro, também velando os efeitos de estrutura – dimensão da debilidade
psicótica240. Diante disto, uma questão central se coloca: O horror de saber sobre a castração
materna, posição subjetiva do sujeito débil, aqui esbarra no “não querer saber da própria
castração”, ou na submissão objetal a um Outro absoluto avassalador e invasivo?
Cabe-nos, neste ponto, apresentar as modulações do discurso de Pedro e sua posição
na transferência para pensarmos o diagnóstico estrutural. Para tanto, trilharemos algumas
construções conceituais para situarmos este intento. Pedro nos diz: “a lua cheia mexe muito
comigo[...] a minha mãe disse isso[...]; a lua cheia [toca] na minha fraqueza (qual é?,
pergunto) o desânimo[...] a depressão[...]” (sic). Partiremos do apontamento feito por Alberti
acerca do sujeito melancólico:
[...] [o] delírio de negação [...] condena o sujeito [...], condenação frente à qual o
sujeito assume a posição de máxima humilhação, concordando, desde sempre, com a
culpa que lhe é imposta. Fora disso, o sujeito pode se manter num semblante no qual
tenta nos convencer da franca fraqueza, da franqueza que ocasiona seu apelo.
Demanda de amor enorme com a qual nos acostumamos na clínica com neuróticos241.
Por ocasião da morte do pai, o luto vivido por Pedro intensificou sua posição de auto-
recriminação e auto-culpabilização: “[...] eu não devia ter quebrado a pedra dele do santo
(referência a um patuá do candomblé que o pai guardava como proteção), [...] ele disse que se
eu quebrasse, eu iria matar ele[...] sou culpado[...]” (sic). A intensidade na experimentação
da culpa pela morte do pai faz emergir uma posição melancólica em Pedro. Conforme nos
afirma Quinet :
240
Ibid., p. 77.
241
ALBERTI, Sonia. “Os quadros nosológicos: depressão, melancolia e neurose obsessiva”. In: ALMEIDA, C.P.
e MOURA, J.M. (orgs). A dor de existir e suas formas clínicas: tristeza, depressão, melancolia/ Kalimeros. Rio
de Janeiro: Contra Capa Livraria. 1997, p. 221-222.
93
[Freud] dirá na Segunda tópica que Eros se retirou e que a melancolia é a pura cultura
da pulsão de morte. Isso nos permite apontar que, na melancolia, diferentemente da
paranóia, há a foraclusão do amor, e o que resta é esse puro ódio, que o sujeito vai
voltar contra ele mesmo243.
242
QUINET, Antonio. “A clínica do sujeito na depressão: Freud e a melancolia.” In: ALMEIDA, C.P. e
MOURA, J.M. (orgs). A dor de existir e suas formas clínicas: tristeza, depressão, melancolia/Kalimeros.Op.
cit., p. 125.
243
Ibid.
94
[...] Se há algo que identifica a melancolia à neurose obsessiva, é essa pulsão sádica
dirigida ao próprio eu. Só que na melancolia ela assume a característica de pulsão de
destruição-não só dirigida ao eu mas ao mundo inteiro- enquanto na neurose obsessiva
trata-se da pulsão de dominação[...]245.
Após um longo percurso em análise, Pedro desloca-se de uma posição, na qual havia
se fixado por muito tempo, em que identificava suas atitudes ao estatuto de “coisa do mal”.
Afirma, então, que quando bate com a cabeça no armário – ato freqüente, entre outros de
auto-flagelo – “não é coisa do mal”. Pergunto, então, o que é, e ele responde girando o dedo
indicador em torno de uma das orelhas: “é coisa de maluco!”(sic). Nessa esteira do
deslizamento significante, Pedro confere à “coisa do mal” a dimensão de “máscara”. Ele faz
referência ao momento de “cair essa máscara [...] esse Pedro espírito do mal [...]” (sic).
Paulatinamente Pedro passa a indicar a possibilidade de vir a construir um certo lugar
de desejo para si próprio, desprendendo-se das teias avassaladoras do desejo do Outro.
Comete, em determinada sessão, um ato falho revelador de sua questão: “[...] aprendi a
conviver com a indiferença: respeitar quem gosta e quem não gosta de mim; quem aceita e
quem não me aceita!” (sic). O que nos remete à idéia de um rechaço radical à diferença e,
portanto, à castração como posição do sujeito, neste caso.
Ao tomarmos como hipótese que a melancolia debilizada de Pedro encobre a estrutura
psicótica, afirmamos com Miranda que este processo de mascaramento vinha “[...] impedindo
a invasão de gozo, e o recurso utilizado pelo sujeito seria a alienação petrificada à demanda
do Outro”246. Os reposicionamentos, feitos em análise, produziram uma certa desestabilização
no par de gozo mortífero mãe-filho. Pedro, então, não suporta e interrompe o tratamento, após
244
RIBEIRO, Maria Anita Carneiro. A neurose obsessiva. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. Passo-a-passo;
v. 23, p. 29.
245
ALBERTI, Sonia. “Os quadros nosológicos: depressão, melancolia e neurose obsessiva”, op. cit., p. 225.
246
MIRANDA, Elizabeth Rocha. Debilidade Mental e Estrutura Clínica.Op. cit., p. 94.
95
anunciar: “entrei pa APAE[...] agora vou recuperar minha fase mental[...]” (sic). O
significante “pa apae”, sonoramente correlato a papai, circunscreve o pai como aquele que
testemunha sua deficiência247. E diz ainda: “voltei pra APAE[...] você e meu pai me tiraram
de lá; a minha mãe quer o melhor pra mim[...]; ela me comanda; [ela quer que eu volte pra
APAE][...]; [ela sabe o que é melhor pra mim]; quero encerrar por aqui o nosso trabalho[...]”
(sic) .
Frente à desestabilização provocada por sua análise que aponta para um processo de
desvelamento da verdade do sujeito que a debilidade encobria, Pedro interrompe o tratamento
e se vê cooptado a retornar ao lugar petrificado, e fixado ao significante “deficiente”, na
alienação à demanda do Outro.
Vale destacar a dimensão da transferência que regeu o tratamento e viabilizou a saída
possível do sujeito pela psicose encoberta pela debilidade, neste caso. Entretanto é no ato de
interrupção de sua análise que a transferência assume o lugar de impedimento do trabalho.
Cabe lembrar, com Freud: “[...] a transferência surge como a resistência mais poderosa ao
tratamento [...]”248. O analista é identificado ao pai que entra como barra na relação de gozo
mãe-filho. Os efeitos desta intervenção são sustentados pelo analisante durante um tempo
importante do processo analítico. No entanto, após a morte do pai o paciente reflui à posição
radical de objeto submetido ao desejo do Outro materno. Desta forma, a condição de débil é
reafirmada como resposta alienante ao Outro.
III.5.1- Uma operação de debilização do sujeito e uma saída possível pelo sujeito suposto
saber
247
Vale lembrar que APAE (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais) é uma instituição que assiste
deficientes de toda ordem (físicos e mentais).
248
FREUD, Sigmund. “A dinâmica da transferência” (1912). In: Edição Standard Brasileira das Obras
Completas psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1994. Vol.XII, p. 135.
249
BRUNO, Pierre. “Á côté de la plaque”. In: Ornicar? Paris: Navarin, n.37, 1986, p. 35.
96
250
Ibid., p.35.
251
LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1963-1964). Op.
cit.
252
MIRANDA, Elizabeth da Rocha. “Debilidade mental: um transtorno em relação ao saber à verdade.” In:
Saber, verdade e gozo-Leituras de O Seminário, livro 17 de Jacques Lacan. (Org.) RINALDI, Doris e JORGE,
Marcos Antonio Coutinho. Rio de janeiro: Rios Ambiciosos, 2002, p. 185.
253
Ibid., p.188.
97
Falta explicar ainda porque, ao nível dos fenômenos clínicos, o débil produz essa
impressão de não poder se separar dos significantes do Outro, como se o sujeito se
fundasse no Outro do significante, interditando-se de interrogar sobre sua vontade. [...]
o débil se auto-interdita de saber... para não transformar em negação de saber o
grão (ponto) de verdade.254 (grifo nosso).
Verificamos, a partir da teoria e clínica lacanianas, que o sujeito débil ao não dizer a
meia verdade da fantasia neurótica e do delírio psicótico, ele se cala e colaba no Outro.
Retomemos o caso clínico construído na seção anterior. Verificamos que houve uma
rendição ao Outro em sua verdade e saber. O sujeito interrompe o tratamento analítico
afirmando sua identidade de débil, ao circunscrever o seu “lugar” numa instituição de
assistência a deficientes.
Lacan nos chama a atenção para a conceitualização de saber: “Ocorreu-me no ano
passado chamar de saber o gozo do Outro.”255 No entanto, nesta mesma lição de O seminário,
livro 17 nos indicará que o saber é o que faz barreira ao gozo: “O saber, isto é o que faz com
que a vida se detenha em um certo limite em direção ao gozo”.256
Vale destacar que Lacan dará a S2 , nesta primeira lição, o estatuto de campo do
saber, bateria de significantes que se repetem a partir do recalque.
Neste ponto incluímos a questão de Miranda:
Se [...] o saber inconsciente é produzido pela repetição que visa ao gozo perdido desde
sempre, podemos nos perguntar: qual é o destino desse saber na debilidade mental?257
O débil em sua relação com o Outro, lugar da verdade irrefutável, fecha-se num “não é
permitido saber” que se alterna com um, segundo Bruno: “[...] não querer saber do saber,
diante [desta incisão] ele monta uma guarda raramente falha.”258
Note-se que a cena clínica do caso aponta para os seguintes lugares: no plano da mãe,
a relação do sujeito com o saber se dá pela via do recalque, da castração. A mãe não quer
revelar que o filho não é seu filho legítimo. Algo da castração da mãe faz com que ela negue
254
BRUNO, Pierre. “Á côté de la plaque”. Op. cit., p.37.
255
LACAN, Jacques. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969-70). Op. cit.,,p. 17.
256
Ibid., p.17.
257
MIRANDA, Elizabeth da Rocha. “Debilidade mental: um transtorno em relação ao saber à verdade.” Op. cit.,
p. 178.
258
BRUNO, Pierre. “Á côté de la plaque”. Op. cit., p.34.
98
que esse filho não seja dela , portanto, ela denega o filho. Este lugar de denegação do filho,
assumido pela mãe, parece ser o resultante de uma certa relação desta mãe com o saber. No
plano do filho, o sujeito débil, há uma espécie de aplastamento entre o sujeito e o saber. No
plano da ciência do comportamento, esta constrói uma relação com o saber propondo um
diagnóstico para ele.
Se consideramos que a operação da ciência se dá pelo mecanismo da sutura do retorno
do real, pode-se verificar que na ciência do DSM esta operação da sutura é correlata àquela de
colagem entre o sujeito e o saber construída pela debilidade. Donde podemos hipotetizar
haver equiparação entre a debilidade do sujeito e uma certa debilização produzida pelo DSM.
Pode-se verificar que há uma ação de moldagem do saber realizada pelo DSM, por
não permitir o retorno do contingente, ao tentar impedir o real de emergir. Constituindo-se
como matéria modelar, e de modelagem, o DSM supõe esvaziar o sujeito de desejo e gozo,
logo de saber, operando, desta forma, sua debilização.
Portanto, temos que o saber da ciência do DSM forclui o sujeito. O saber da mãe,
neste caso, recalca o sujeito. O saber do filho forclui o sujeito. Nesta operação de debilização
do sujeito estas engrenagens têm lugares e funções determinantes: a mãe recusa o saber da
castração e o DSM também recusa o saber da castração. Temos, portanto, como efeito desta
operação o sujeito débil.
Mas qual é o lugar-função do sujeito débil nesta operação?
Segundo a construção do caso clínico, vimos que durante um grande percurso do
tratamento o sujeito acionou recursos que lhe abriram possibilidades de descolamento do
Outro. Cabe-nos interrogar: como se construiu esse espaço entre o sujeito débil e o saber,
permitindo-lhe sair, por algum tempo, da posição de aplastamento radical pelo saber da
debilidade? Como ele se apropriou dessa relação com o saber? Como ele criou esse espaço de
sujeito, entre o DSM e a mãe com a entrada do analista?
É neste ponto que evocaremos a transferência e seu dispositivo de acesso (o sujeito
suposto saber) como vias que constituem a materialidade significante desse espaço pelo qual o
sujeito pôde operar descolamentos do saber do Outro.
Bruno faz uma aproximação entre a operação de separação e a transferência no campo
do discurso analítico.259 Seguindo esta indicação, afirmamos que no percurso de Pedro, em
análise, a transferência operou como eixo sustentador e separador das investidas discursivas
259
BRUNO, Pierre. “Á côté de la plaque”. Op. cit., p.34.
99
Enquanto o analista é suposto saber, ele é suposto saber também partir ao encontro do
desejo inconsciente. É por isso que eu digo [...] que o desejo é o eixo, o pivô, o cabo,
o martelo, graças ao qual se aplica o elemento-força, a inércia, que há por trás do
que se formula primeiro, no discurso do paciente, como demanda, isto é, a
transferência. O eixo, o ponto comum desse duplo machado, é o desejo do
analista, que eu designo aqui como uma função essencial.260
260
LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1963-1964). Op.
cit., p. 222.
100
UM RESTO A CONCLUIR
Ao tomarmos como objeto desta pesquisa clínica a correlação do sujeito com o saber
na psicanálise e na ciência contemporânea do comportamento, circunscrita pela ciência do
DSM, tencionamos demonstrar os efeitos das posições discursivo-metodológicas do analista e
do comportamentalista ao admitir um paciente em tratamento. A construção do diagnóstico e
da direção do tratamento não são sem conseqüências para aquele que ingressa neste processo.
Deparamo-nos, no decorrer da pesquisa, com a chamada tendência nominalista
pragmática na contemporaneidade. O saber que o nominalismo instaura é fruto da ausência de
relação do nome com a coisa, portanto, com o real. Este saber nominalista, prenhe de
sentidos, tal como é traçado na ciência do DSM, diverge do saber do real do sintoma que
não sabe nada, do nonsense que a psicanálise edifica. O gozo e o desejo, nomes do saber,
são, na perspectiva analítica, articulados como o real forcluído do saber da clínica médica. A
clínica psicanalítica os inclui em seu campo operatório situando-os no lugar de causa.
Partimos, portanto, de Freud com sua Teoria do Trauma buscando as referências
fundacionais da construção freudiana no que concerne ao saber. Evidencia-se, neste fio
condutor, a relação entre saber, recalque e sintoma. Freud circunscreve o sintoma enquanto
dimensão de ato. Sustenta, neste contexto, que há uma ação do sujeito que pode ou não
conferir ao ato da experiência sexual o estatuto de trauma.
Vale destacar que, com Lacan, apreendemos que frente à questão fundamental ‘o que
quer o Outro de mim?’, não há resposta do Outro já que nele está inscrito o significante da
falta. Portanto, o sujeito inventa uma resposta para velar a impossibilidade, a castração, a falta
do Outro. Esta resposta é a fantasia. Desta forma, a fantasia fundamenta o sintoma que se
configura como o saber atribuído ao mal-estar frente à castração do Outro.
Seguimos, com Lacan, o percurso acerca da teorização do sujeito a partir de sua
relação com o significante. O sujeito é efeito do significante e, portanto, o lugar do Outro é
um lugar de determinação do sujeito. No entanto, a posição do sujeito não é de passividade.
Verificamos, a partir de Lacan, que é de uma posição de responsabilidade que o sujeito se
situa frente ao desejo que o causa.
Salientamos a experiência de uma prática clínica coletiva extraída do campo
institucional da atenção psicossocial enquanto afirmadora da operação do sujeito, a partir da
função do analista. Esta função é norteada pelo desejo ligado a um vazio de saber, a um não
saber, e se distancia de um mero apaziguamento do sintoma, visando, assim, o sujeito em seu
desejo. O analista opera ao abrir espaço para o que insiste no real do sintoma. O seu
101
compromisso é com a ética do desejo, desejo de obter a diferença absoluta. Para tanto, a
dimensão do sujeito não é reduzível a enquadramentos de condutas e comportamentos
adequáveis à ordem socializadora e à cidadania.
Constatamos, no entanto, que determinadas práticas terapêuticas (médicas e
psicológicas) são indicadoras de uma certa concepção do sujeito marcada por uma outra
relação com o saber. Vimos, assim, como o saber nominalista do DSM define uma posição
conceitual na qual a linguagem não tem relação com o real. Enquanto que, para a
psicanálise, a conjunção entre o real e a linguagem é condição sine qua non.
A partir do DSM-III verifica-se, o que pode ser considerado como um movimento
contra-analítico, a indução à diluição do nome do sujeito freudiano, a histeria, nos manuais
classificatórios diagnósticos americanos (os DSM) que se seguiram. Vimos como este
processo constitui-se enquanto efeito do acordo pragmático que não se compromete com
teorias psicopatológicas estruturadas e se alicerça num inventário de sintomas forjados através
dos comportamentos observáveis.
Pode-se considerar que há algo do real do sujeito que escapa à pretensão do DSM,
qual seja a de agenciar enquadramentos farmacológicos e psicoterapêuticos, supostamente
ordenadores dos sinais e sintomas regulados por freqüência estatística. A incidência da
forclusão do real, a despeito de seus modos de instalação, vigora na contemporânea ciência
do comportamento, por nós circunscrita, nesta pesquisa, ao DSM. O real inscreve-se, e é
operante, na clínica psicanalítica pelo retorno incessante do contingente, pela via do sintoma,
suturado pela ciência.
Vale ressaltar, portanto, que o DSM-III representou uma ruptura evidente com o
fundamento psicopatológico e se constituiu numa perspectiva empírico-pragmática,
apresentando-se, desta forma, como um sistema de classificação “operacional”, “ateórico” e
unívoco. Em sua edição seguinte, o DSM-IV afirma o transtorno mental como síndrome
enquanto correlata à manifestação da disfunção do padrão comportamental, biológico
ou psicológico do indivíduo. A discussão sobre a causa é forcluída. É notável a ênfase
marcante posta na dimensão comportamental subsidiando o que estamos chamando de uma
pragmática do comportamento. O saber suposto sobre o sujeito é construído segundo a
observação da manifestação do sintoma e do comportamento. Não há compromisso
psicopatológico com o saber sobre a causa.
No entanto, na atualidade pode-se afirmar que pairam preocupações, no âmbito
científico, quanto aos destinos do modelo DSM. A Associação Americana de Psiquiatria
no Congresso Europeu da Associação Mundial de Psiquiatria em 2001 apontou para o
102
cuidado que se deve tomar com a perda de credibilidade e a ausência de uma sólida
base científica nas categorias diagnósticas que passam por sucessivas mudanças de
nomenclaturas. A comunidade científica, por conseguinte, questiona a validade do DSM
como método científico, na medida em que os critérios diagnósticos são exclusivamente
empíricos. Desta forma, confere às especificidades um valor secundário e exclui qualquer
sustentação conceitual teórico-clínica. A clínica é decomposta em síndromes fragmentadas.
Os manuais classificatórios americanos constituem-se, portanto, em catálogos de diagnósticos
descritivos, operacionais e empiricamente observáveis.
Esta finalidade operacional-pragmática sem alicerce psicopatológico produz
diagnósticos suscetíveis a mudanças contínuas variáveis segundo as descobertas de novos
neurotransmissores e moléculas. A conseqüência disto aponta para aquilo que alguns autores
vêm considerando como a falta de validade destas categorias diagnósticas e sua perda de
utilidade para a pesquisa científica. As Associações Mundial e Americana de Psiquiatria
sustentam fazer-se necessário o empreendimento de esforços na direção de construção de uma
classificação baseada em etiologia e a abertura do campo psiquiátrico ao ressurgimento da
psicopatologia.
No campo da Psicanálise sustentamos que o DSM não tem validade como método
científico por não lidar com o real. Este modelo compromete, desta forma, o manejo com os
modos de instalação do real, numa tentativa ideológico-nominalista-pragmática de capturá-
lo, enquadrando-o num padrão modelar: para cada síndrome um nome, para cada nome um
correlato organo-cerebral. Por conseguinte, o nominalismo pragmático presente nos
sistemas operacionais de classificação diagnóstica, do tipo DSM, é produto e indutor, a um só
tempo, da disjunção entre o real da coisa/sintoma e os nomes que o determinam. Para a
psicanálise, a conjunção metodológica entre o real e a Linguagem indica-nos que o real é
tratável pelo simbólico. Isto supõe considerar que o ato de nomear não é sem efeitos para o
real do sintoma.
Portanto, pudemos verificar que no campo das práticas médicas atuais a relação entre
as palavras e as coisas, sua ordem de determinação e sua causalidade se dão de forma
automática, sem mediação, baseadas em evidências fenomênicas e em padrões
estandardizados de reação. No entanto, no campo clínico da prática psicanalítica, trata-se o
real da coisa pelo simbólico, pela linguagem. Desta forma, as palavras podem modificar a
coisa. A concepção de diagnóstico na clínica psicanalítica, assim, fundamenta-se na matriz
lógica de estrutura, opondo-se aos diagnósticos de conduta automatizados.
103
261
VIEIRA, Marcus André. “O lugar da psicanálise na medicina-introdução à uma conferência de Jacques
Lacan”. Op. cit.
262
LACAN, Jacques. “O lugar da psicanálise na medicina”(1966). Op. cit.
104
Depreendemos com Koyré e Milner, este último em seu “doutrinal de ciência”, que a
proposta cartesiana de “indefinição” do mundo, ou “indefinição” do que chamou de “a
totalidade da substância corporal” indica-nos a sustentabilidade real de um corpo-matéria
correlato ao espaço como “indefinidamente extenso”. Seguindo esta lógica cartesiana
correlacional espaço-substância corporal , pode-se considerar que os limites do corpo, por sua
inexorável indefinição, são constituídos pela ordem do real. Milner nos demonstrou, a partir
do “cartesianismo radical de Lacan”263 que o sujeito freudiano não poderia ser outro senão o
sujeito cartesiano. Como verificamos, Milner partiu, no “doutrinal de ciência”, da equação
dos sujeitos formulada por Lacan, em A ciência e a verdade, qual seja: “[...] o sujeito sobre
quem operamos em psicanálise só pode ser o sujeito da ciência[...]”264.
Com efeito, a ciência é a condição de possibilidade para a emergência do sujeito.
Seguindo este percurso com Milner, vimos que, a partir da teoria de Freud sobre os
sonhos, constrói-se uma evidência teórica e clínica: há pensamento no sonho, há pensamento
no inconsciente. Portanto, conclui-se que a consciência de Si não é o determinante exclusivo
do pensamento. Desta forma, é a suposição de que a consciência de Si não é essencial para
fundar o pensamento que faz desse sujeito da ciência, a um só tempo, sujeito cartesiano e
sujeito freudiano.
Destacamos que o discurso do Eu, para o qual a consciência de Si é suposta ser
essencial, é um traço distintivo da episteme/ saber antigo. Milner nos recorda que o Eu é o
nome da função do imaginário. E nos alerta: “[...] A estrutura da ciência moderna [dissolve o
imaginário e] repousa inteiramente na contingência.”265 Donde decorre que o discurso do
sujeito é correlato do contingente, e é a afirmação da ciência moderna.
Vimos, no entanto, como a ciência moderna literalizada/matematizada ao fixar a letra
no ponto de cada proposição, não permite o retorno ao momento anterior, o retorno, portanto,
do contingente. Lacan chamou este mecanismo de sutura. Nas palavras de Milner:
263
MILNER, Jean-Claude. “O doutrinal de ciência”. Op. cit., p.33.
264
LACAN, Jacques. “A ciência e a verdade” (1966). In: Escritos. Op. cit., p. 873.
265
MILNER, Jean-Claude. “O doutrinal de ciência”. Op. cit., p.52.
266
Ibid., p.52.
105
Disto decorre que o mecanismo da sutura, pelo qual o retorno do contingente não é
oportuno, é o determinante da operação da ciência na relação do sujeito com o saber.
Portanto, a ciência opera esta relação pela sutura.
Para a psicanálise, o sujeito, em sua face real, forcluído, retorna, apesar da
radicalidade do esquecimento. A psicanálise, portanto, opera sobre o retorno do
contingente, afirmando o sujeito em sua relação com o saber infinito do inconsciente.
Desta forma, a posição discursiva da psicanálise opera com a causa excluída do campo
operatório da ciência. Porquanto o analista opera com o real, efeito sujeito, do inconsciente.
Ao final da pesquisa vimos, com a construção do caso clínico de um sujeito débil e
melancólico, como a transferência, único modo de acesso ao sujeito, ao saber do
inconsciente, este sim “[...] capaz de esclarecer o real do sintoma”, conforme nos indicou
Elia267, determinou uma saída possível, mesmo que por um tempo, frente ao aplastamento do
saber determinante do Outro.
Donde concluímos que a transferência é condição exigível para o sujeito do
inconsciente e é o determinante no diagnóstico clínico.
O percurso deste sujeito débil em análise levou-nos a considerar que, por sua posição
subjetiva, ocupou o lugar de tamponamento da castração materna. Em seu processo analítico
construiu possibilidades e se rendeu às impossibilidades de descolamento da posição de
assujeitamento ao saber do Outro.
Pudemos verificar que, desde o início do tratamento, sua debilidade inscreveu-se na
impossibilidade radical de acesso ao saber. Esta impossibilidade se articulava tanto à
inacessibilidade ao saber da verdade sobre sua origem filial, quanto ao saber do
conhecimento. Este paciente não conseguia aprender – esta incapacidade marcava sua
deficiência intelectual.
O tratamento analítico possibilitou a emergência do processo pelo qual o sujeito pôde
se apropriar dessa impossibilidade de acesso ao saber de sua verdade sentenciada pelo Outro.
Consideramos que o discurso deste analisante em seu processo de análise inscrevia a
deficiência num marco significante traçado por sua suposta incapacidade de ser amado pelo
Outro. A debilidade como posição subjetiva, expressa na inaptidão para aprender,
correlacionava-se, desta forma, a esta impossibilidade de saber, saber sobre sua origem.
267
ELIA, Luciano. “A Transferência na Pesquisa em Psicanálise: Lugar ou Excesso?” In: Psicologia: Reflexão e
Crítica. Op. cit., p. 780.
106
Verificamos que frente à desestabilização provocada por sua análise que apontou para
um processo de desvelamento da verdade do sujeito que a debilidade encobria, este analisante
interrompe o tratamento e se vê cooptado a retornar ao lugar petrificado, e fixado ao
significante “deficiente”, na alienação à demanda do Outro.
Ao considerarmos que a operação da ciência se dá pelo mecanismo da sutura do
retorno do real, pode-se ponderar que na ciência do DSM esta operação da sutura esteja
próxima daquela de colagem entre o sujeito e o saber construída pela debilidade. Donde
hipotetizamos haver um certo nível de equiparação entre a debilidade do sujeito e uma certa
debilização produzida pelo DSM. Se, por um lado, o mal-estar quanto ao saber é constitutivo
da dimensão débil do sujeito, por outro, pode-se verificar que a ação de moldagem do saber
realizada pelo DSM não permite o retorno do contingente e, portanto, tenta impedir o real de
emergir. Ao constituir-se como matéria modelar, o DSM supõe esvaziar o sujeito de desejo e
gozo, logo de saber, operando, desta forma, sua debilização.
O sujeito débil, apresentado nesta pesquisa, no entanto, ensinou-nos que a
transferência e seu dispositivo de acesso, o sujeito suposto saber, edificam-se como vias
constituintes da materialidade significante do espaço pelo qual este sujeito pôde operar
descolamentos do saber do Outro. A construção, em análise, desse espaço de sujeito, a partir
da transferência, permitiu-lhe sair, por algum tempo, da posição de aplastamento radical pelo
saber débil aprisionado às determinações do Outro.
107
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