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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação em Psicologia

OS PARADOXOS DOS NOMES-DO-PAI COMO FUNDAMENTO DA RAZÃO


SACRIFICIAL: SEGREGAÇÃO E EXTERMÍNIO DE VIDAS MATÁVEIS

Alexandre Dutra Gomes da Cruz

Belo Horizonte

2016
Alexandre Dutra Gomes da Cruz

OS PARADOXOS DOS NOMES-DO-PAI COMO FUNDAMENTO DA RAZÃO


SACRIFICIAL: SEGREGAÇÃO E EXTERMÍNIO DE VIDAS MATÁVEIS

Tese apresentada ao Programa de Pós-Gradução em Psicologia da Pontifícia


Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para
obtenção do título de Doutor em Psicologia.

Orientadora: Profª Drª. Ilka Franco Ferrari

Belo Horizonte

Fevereiro, 2016
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Cruz, Alexandre Dutra Gomes da


C957p Os paradoxos dos Nomes-do-Pai como fundamento da razão sacrifical:
segregação e extermínio de vidas matáveis / Alexandre Dutra Gomes da Cruz.
Belo Horizonte, 2016.
173 f. : il.

Orientadora: Ilka Franco Ferrari


Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Psicologia.

1. Operações militares. 2. Violência policial. 3. Sacrifício. 4. Homicídio. 5.


Biopolítica. 6. Segregação. 7. Simbolismo (Psicologia). 8. Metáfora. I. Ferrari,
Ilka Franco. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de
Pós-Graduação em Psicologia. III. Título.

CDU: 301.151.56
Alexandre Dutra Gomes da Cruz

OS PARADOXOS DOS NOMES-DO-PAI COMO FUNDAMENTO DA RAZÃO


SACRIFICIAL: SEGREGAÇÃO E EXTERMÍNIO DE VIDAS MATÁVEIS

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Psicologia da Pontifícia


Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para
obtenção do título de Doutor em Psicologia.

________________________________________________________
Profª. Drª. Ilka Franco Ferrari - PUC Minas (Orientadora)

________________________________________________________
Profª. Drª. Andréa Máris Campos Guerra - UFMG (Banca Examinadora)

________________________________________________________
Prof. Dr. Henrique Figueiredo Carneiro - UPE (Banca Examinadora)

________________________________________________________
Prof. Dr. Roberto Calazans - UFSJ (Banca Examinadora)

________________________________________________________
Prof. Dr. José Ignacio Cano Gestoso – UERJ (Banca Examinadora)

Belo Horizonte, 29 de Fevereiro de 2016.


À minha filha Júlia, com muito amor.
AGRADECIMENTOS:

À Ilka, pela orientação na justa medida e pela resoluta confiança que depositou neste trabalho.
Agradeço, inclusive, por ter-me assinalado seu elemento fundamental: o título. Não há como
desconsiderar a importância dessa nomeação.

Aos professores doutores membros da banca examinadora: Andréa Máris Campos Guerra,
Roberto Calazans, Henrique Figueiredo Carneiro e José Ignacio Cano Gestoso. Agradeço por
gentilmente se disponibilizarem a ler este trabalho, contribuindo com o seu avanço. Estendo
meus agradecimentos à professora doutora Tânia Coelho dos Santos, que participou da minha
qualificação, tendo também contribuído com importantes indicações. Agradeço também às
professoras doutoras Nádia Laguardia Lima e Cristina Moreira Marcos por aceitarem meu
convite para participar da banca examinadora como suplentes.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e ao Fundo de


Investimento em Pesquisa (FIP) da PUC Minas, por terem investido no desenvolvimento
desta pesquisa.

Aos professores e funcionários da Pós-Graduação em Psicologia da PUC Minas. Em


particular, agradeço à professora Jacqueline de Oliveira Moreira e aos funcionários Marcelo
Araújo e Cláudia Braga.

Aos meus pais Geraldo e Nara, por sempre terem sido um exemplo para mim e, também,
permanente fonte de inspiração. Além do incentivo ao estudo e da valorização da vida
intelectual, agradeço por me proporcionarem as condições necessárias à realização dos meus
projetos acadêmicos. Devo agradecimento adicional ao meu pai, por ter gentilmente revisado
a tradução do resumo da tese para a língua inglesa.

À Isabela e à Júlia, meus dois amores, que tiveram que lidar com minhas (muitas) ausências
ao longo do percurso do meu doutorado. Agradeço à Isabela em especial, por todo o carinho e
dedicação dispensados a mim e a nossa filha, enquanto eu me ocupava deste trabalho.

À minha irmã Renata e família, pela amizade e pelos excelentes momentos que passamos
juntos. Entre eles, destaco nossa recente viagem para Cordisburgo, onde pude revigorar-me
após um semestre cansativo, e retornar à pesquisa com ânimo redobrado.

Aos companheiros de pesquisa Marcelo Cotta e Maria Cione, pela amistosa interlocução
acadêmica e compartilhamento de livros e textos. Isso para não falar dos agradáveis
momentos passados em Recife! Agradeço também à Renata Riguini, com quem passei a
compor essa categoria de pesquisadores que, certa vez, ela intitulou de ‘exploradores do
abismo’.

À Valenir Machado, coordenadora do curso de psicologia da Faculdade de Ciências Médicas


de Minas Gerais (CMMG). Estendo o agradecimento também aos professores e alunos do
curso.

Aos amigos que me acompanharam ao longo da escrita da tese.


Aguardamos confiantes que a investigação de todos os outros casos de
proibição sagrada leve ao mesmo resultado que no caso do horror ao
incesto, a saber, que o sagrado originalmente não é outra coisa senão a
vontade continuada do pai primordial. Com isso também se lançaria uma
luz sobre a ambivalência até agora incompreensível das palavras que
expressam o conceito de sacralidade. É a ambivalência que domina de
maneira geral a relação com o pai. Sacer não significa apenas “sagrado”,
“consagrado”, mas também algo que só podemos traduzir como “infame”,
“abominável.” (FREUD, 2014/1939 [1934-38]).

Há algo de profundamente mascarado na crítica da história que temos


vivido. É, presentificando as formas mais monstruosas e pretensamente
ultrapassadas de holocausto, o drama do nazismo. Afirmo que nenhum
sentido de história, fundado nas premissas hegeliano-marxistas, é capaz de
dar conta dessa ressurgência, pela qual se verifica que a oferenda, a deuses
obscuros, de um objeto de sacrifícios, é algo a que poucos sujeitos podem
deixar de sucumbir, numa captura monstruosa. A ignorância, a indiferença,
o desvio do olhar, podem explicar sob que véu ainda resta escondido esse
mistério. Mas, para quem quer que seja capaz de dirigir, para esse
fenômeno, um olhar corajoso - e, ainda uma vez, há certamente poucos que
não sucumbam à fascinação do sacrifício em si mesmo -, o sacrifício
significa que, no objeto de nossos desejos, tentamos encontrar o testemunho
da presença do desejo desse Outro que eu chamo aqui o Deus obscuro.
(LACAN, 1964/1988).

As soluções totalitárias podem muito bem sobreviver à queda dos regimes


totalitários sob a forma de forte tentação que surgirá sempre que pareça
impossível aliviar a miséria política, social ou econômica de um modo digno
do homem. (ARENDT ,1951/1989).
RESUMO:

A pesquisa aborda as megaoperações policiais realizadas pelo governo do estado do Rio de


Janeiro no Complexo do Alemão. Essas megaoperações foram destacadas para estudo devido
à representatividade simbólica que assumiram, bem como às repercussões que geraram,
deixando em seu rastro farta documentação disponível. Como objetivo, propôs-se investigar, a
partir da psicanálise, a razão sacrificial articulada aos paradoxos dos Nomes-do-Pai, situando
a segregação e o extermínio de sujeitos cuja existência é considerada supérflua, como
exemplos paradigmáticos de prática sacrificial. Buscou-se, dessa forma, elucidar a função do
sacrifício nas sociedades contemporâneas, marcadas pelo declínio dos semblantes
ordenadores do laço social, sem desconsiderar os efeitos devastadores que daí decorrem. A
partir dos objetivos propostos, procedeu-se a uma pesquisa bibliográfica, aliada à análise
documental, na qual foram analisados documentos eletrônicos e vídeos obtidos na internet,
além de jornais, livros, revistas, relatórios, documentários e filmes. A proposta metodológica
adotada encontra sua sustentação no que hoje se convencionou chamar de psicanálise aplicada
ao social, que consiste em considerar certos fenômenos sociais, como os que aqui são
abordados, enquanto manifestações atuais do mal estar na civilização. Para a psicanálise, a
problemática do sacrifício encontra seu fundamento nos paradoxos dos Nomes-do-Pai, ou
seja, nas antinomias próprias à estruturação do laço social, situadas em suas intrincadas
articulações com os campos do desejo e do gozo. Essas antinomias se expressam na própria
etimologia do termo sacrifício - sacer facere - ato de revestir algo ou alguém de aura sagrada,
fazendo-o tramitar entre a dimensão abjeta do profano e a dimensão sublime do sagrado.
Nesse percurso, destacam-se uma promissora interlocução entre a psicanálise e as ciências
sociais, bem como uma leitura da narrativa do sacrifício de Abraão, que conduziu à
problemática do impasse no luto pelo pai ideal, assinalada pelo declínio das referências
simbólicas na atualidade. A segregação e o extermínio foram reconhecidos, dessa forma,
como manifestações dessacralizadas da razão sacrificial. A investigação prosseguiu então
rumo à análise das relações de poder que tomam por objeto vidas matáveis, recorrendo aos
conceitos de biopolítica e vida nua. O estudo concluiu que a política de segurança adotada
pelo poder público fluminense nos morros e comunidades desfavorecidas do Rio de Janeiro
atuava não apenas de forma violenta, mas também criminosa, transgredindo os princípios
democráticos sustentados pela Constituição Federal. Essa política adotou como estratégia de
ação uma série de procedimentos típicos de um estado em guerra: intervenções militares,
conflitos armados sistemáticos, vigilância ostensiva, isolamento de populações
marginalizadas sob cerco militar, prática de tortura durante interrogatórios e execuções
sumárias. Nesse último caso, evidenciou-se que o auto de resistência se constitui como um
expediente institucional encobridor de uma política de extermínio, que autoriza os policiais a
reagirem com força letal em legítima defesa, executando suspeitos sem que isso caracterize
crime passível de sanção penal. A pesquisa revelou também que essa estratégia de intervenção
policial, baseada na suspensão do Estado de Direito, encontra legitimação jurídica na doutrina
do direito penal do inimigo, disseminado hoje por vários países democráticos, a exemplo do
Brasil.

Palavras-chave: Sacrifício. Nomes-do-Pai. Extermínio. Biopolítica. Vida Nua.


ABSTRACT:

The research addresses the police mega-operations carried out by the state government of Rio
de Janeiro in the slums of the Complexo do Alemão. These mega-operations have been
chosen in this study because of the symbolic representation that they assumed, as well as by
the impact they generated, leaving in its trace wide range of documentation available. From
the psychoanalysis, the sacrificial reason, articulated to the paradoxes of the Names-of the-
Father, was set as the aim of the research, situating segregation and extermination of certain
people, whose existence is considered superfluous, as paradigmatic examples of sacrificial
practice. This study thus has attempted to elucidate the function of sacrifice in contemporary
societies, marked by the degradation of the social bond’s guiding semblants, without
disregarding the devastating effects arising from it. Based on the proposed objectives, it
proceeded to a literature search on the object, along with the documentary analysis, in which
were analyzed electronic documents and videos obtained on the Internet, as well as
newspapers, books, magazines, reports, documentaries and movies. The methodology adopted
to support the research is what has been called psychoanalysis applied to the social, which is a
way to consider certain social phenomenons, such as those here addressed, while current
manifestations of the malaise in civilization. For psychoanalysis, the problem of sacrifice
finds its foundation on the paradoxes of the Names-of-the-Father, that is, in the antinomies
inherent to the guidance of social bond, located in their intricate relations with the fields of
desire and jouissance. These antinomies are expressed in the etymology of the term sacrifice -
sacer facere - act to assign something or someone sacred aura, making him transact between
the profane dimension of the abject and the sublime dimension of the sacred. Along the way,
a promising dialogue between psychoanalysis and the social sciences is carried out, as well as
an approach of the narrative of Abraham’s sacrifice, which led to the dead-lock in the
mourning for the ideal father, marked by the decline of symbolic references today.
Segregation and extermination were recognized, in this way, as desacralized manifestations of
the sacrificial reason. The investigation then proceeded towards the analysis of power
relations that take, as their object, lives that may be killed without committing crime, using
the concepts of biopolitics and bare life. The study concluded that the security policy adopted
by the Rio de Janeiro state government in the slums of Rio de Janeiro acted not only violently,
but also criminally, violating democratic principles supported by the Federal Constitution.
This policy adopted, as action strategy, several procedures typical of a state at war, such as
military interventions, systematic armed conflict, overt surveillance, isolation of marginalized
populations under military siege, torture during interrogations and executions. In the latter
case, it became clear that the Resistance to Arrest is a juridical category which may easily
serve as a cover-up for an extermination policy, authorizing the police to use lethal force in
self-defense, which means execute suspects without being legally punished for committing
murder. The research also revealed that this police intervention strategy, based on the state of
exception, is legally legitimated in the theory of Enemy Criminal Law, very popular today in
many democratic countries, such as Brazil.

Key words: Sacrifice. Names-of-the-Father. Extermination. Biopolitics. Bare life.


ILUSTRAÇÕES:

LISTA DE TABELAS:

TABELA 1 – Frequência absoluta de autos de resistência no Rio de Janeiro, Estado e Capital


(1993 – 2011)............................................................................................................................28

LISTA DE FIGURAS:

FIGURA 1 – Militarização da segurança pública ................................................................... 26


FIGURA 2 – A guerra começa a ser vencida ...........................................................................35
FIGURA 3 – Capa da revista Veja – “O primeiro super-herói brasileiro”...............................37
FIGURA 4 – Caveirão de brinquedo........................................................................................38
FIGURA 5 – Capa da revista Época – Inspetor ‘Trovão’.........................................................39
FIGURA 6 - Capa da revista Época – Vamos vencer o tráfico.............................................41
FIGURA 7 - Policiais hasteiam bandeiras do Brasil e do Rio de Janeiro após a ocupação do
Complexo do Alemão, em novembro de
2010...........................................................................................................................................44
FIGURA 8 – Rotina de tiroteios no Complexo do Alemão......................................................51
FIGURA 9 – Oficiais do BOPE reprimem um protesto contra a morte de um morador no
Complexo do Alemão durante uma megaoperação em 2007....................................................52
FIGURA 10 – Exemplo de bilhete afixado pelos moradores nas portas de suas casas durante
as megaoperações no Complexo do Alemão em 2010..............................................................53
FIGURA 11 - O sacrifício de Isaac (Caravaggio, 1603).........................................................101
FIGURA 12 - Matema do discurso do mestre........................................................................108
FIGURA 13 – Banda de Moebius...........................................................................................109
FIGURA 14 – A torção moebiana dos discursos....................................................................110
FIGURA 15 – Os paradoxos dos Nomes-do-Pai....................................................................112
FIGURA 16 – Matema da fantasia sadiana............................................................................113
FIGURA 17 – O Cristo morto na tumba (Hans Holbein,
1521).......................................................................................................................................121
FIGURA 18 – Matema do discurso universitário...................................................................136
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS:

AI-5: Ato Institucional nº 5

BOPE: Batalhão de Operações Especiais

BPM: Batalhão da Polícia Militar

Cedae: Companhia Estadual de Águas e Esgotos

Comlurb: Companhia Municipal de Limpeza Urbana

CPI: Comissão Parlamentar de Inquérito

FNS: Força Nacional de Segurança Pública

IML: Instituto Médico Legal

OAB: Ordem dos Advogados do Brasil

ONG: Organização não governamental

PM: Polícia Militar

PSOL-RJ: Partido Socialismo e Liberdade - Rio de Janeiro

RSI – Real, Simbólico e Imaginário (registros lacanianos)

SWAT: Special Weapons and Tactics (Armas e Táticas Especiais)

UERJ - Universidade Estadual do Rio de Janeiro

UNCHR: United Nations Commission on Human Rights (Conselho de Direitos Humanos


das Nações Unidas)

UPP: Unidade de Polícia Pacificadora


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.......................................................................................................................13
1– MILITARIZAÇÃO DA SEGURANÇA PÚBLICA E CRIMINALIZAÇÃO DA
POBREZA: RUMO A UMA POLÍTICA DE EXTERMÍNIO...........................................24
1.1- As megaoperações policiais como recurso ordinário de gestão da
criminalidade...........................................................................................................................26
1.2- Os autos de resistência e a produção de cadáveres.......................................................29
1.3- As ordens de ferro das milícias: uma versão obscena da lei........................................30
1.4- O discurso da mídia como arma de guerra: do sensacionalismo à incitação
sacrificial..................................................................................................................................33
1.5- Violência, preconceito e intolerância; a incitação sacrificial no discurso das
autoridades de Estado.............................................................................................................46
1.6- Os inimigos da vez: a voz dos moradores das comunidades
invadidas..................................................................................................................................50
1.7 - A construção do inimigo: acerca de sua significação expiatória e legitimação
jurídica.....................................................................................................................................60

2- A PERTINÊNCIA DA PROBLEMÁTICA DO SACRIFÍCIO PARA A


PSICANÁLISE........................................................................................................................67
2.1-O ato sacrificial e suas expressões dessacralizadas no cotidiano..................................75
2.2 - O sacrifício e a constituição do laço social....................................................................80
2.3 - Os paradoxos do supereu...............................................................................................83
2.4- Sacrifício, dádiva e reciprocidade: uma interlocução entre Lacan e a
antropologia.............................................................................................................................88
2.5 - A Akedah de Isaac e a pluralização dos Nomes-do-Pai...............................................99
2.5.1 - Do mito paterno freudiano ao operador estrutural lacaniano..................................103
2.5.2- Sacrifício e extimidade: limiares topológicos da Akedah...........................................108
2.6 – Ritual sacrificial, trabalho de luto e separação.........................................................115

3 - SACRIFÍCIO DESSACRALIZADO, BIOPOLÍTICA E VIDA NUA: O LUTO


IMPOSSÍVEL DO PAI IDEAL...........................................................................................119
3.1 - Razão sacrificial e gestão biopolítica de populações supérfluas...............................122
3.2 – Estado de exceção permanente e a gestão de vidas matáveis...................................130
3.3 - O campo: morada anômica do homo sacer e paradigma das formas
contemporâneas de segregação............................................................................................138
3.3.1- Breve história dos campos de concentração...............................................................138
3.3.2- Os campos de concentração e a despolitização da vida..............................................140
3.3.3– A segregação como prática sacrificial na era do capitalismo
globalizado..............................................................................................................................143

4 – CONCLUSÃO.................................................................................................................151

REFERÊNCIAS ...................................................................................................................157
13

INTRODUÇÃO

Delimitou-se, como tema desta pesquisa, a razão sacrificial, fundamento das práticas
sacrificiais que vêm assumindo formas extremas na atualidade, época marcada pela
degradação do vínculo religioso e pelo declínio dos semblantes da autoridade.
Esta questão tem sido trabalhada por importantes autores, como se pode observar na
bibliografia consultada, a exemplo de Marta Geréz-Ambertín (2009a), Éric Laurent (2007;
2012), Jacques-Alain Miller (2005b), Pierre Legendre (1974/1983), Slavoj Zizek (2012) e
Colette Soler (1998), mas para esse pesquisador, a presente pesquisa concerne a um
tratamento possível do real em jogo na aposta sacrificial, na medida em que invoca os
paradoxos dos Nomes-do-Pai com suas implicações quanto ao enlace com a palavra, com a
dádiva, com o desejo, com a filiação e com a paternidade.
Para a psicanalista argentina Marta Gerez-Ambertín (2009a, p.25), não há uma teoria
do sacrifício em Freud e Lacan, mas sim uma “teoria sobre os paradoxos inerentes aos
Nomes-do-Pai, do qual o sacrifício é somente uma de suas consequências.” Do ponto de vista
da psicanálise, os paradoxos dos Nomes-do-Pai se colocam em jogo na temática do sacrifício,
enlaçando-se às diferentes versões do pai. Aí destacam-se o pai-amor, que oferece seus dons
ao inscrevê-los na dialética do desejo, e o pai gozador, fora-da-lei, que vocifera mandatos
insensatos impossíveis de serem cumpridos, exortando o sujeito ao abismo do gozo sem
limites. Sendo assim, os paradoxos dos Nomes-do-Pai permitem diferenciar o sacrifício que,
pela via do Outro barrado, viabiliza ao sujeito encontrar um lugar em seu desejo, do sacrifício
que coloca em cena o campo inegociável do gozo. Neste a oferenda sacrificial instiga a
ferocidade do “deus obscuro” (LACAN, 1964/1988, p.259), servindo aos “propósitos ocultos
1
do castigo.” (FREUD, 1938/1976, p.130, tradução nossa).
Apesar do “progresso da espiritualidade” (FREUD, 1938/1976, p.114, tradução nossa)
2
, proporcionado pela sublimação advinda da palavra conciliadora do pai, resta sempre um
remanescente do gozo, “uma procura de sangue que, ao ser atribuída ao Deus pai, oferece o
álibi perfeito para a lógica sacrificial dos seguidores.” (AMBERTÌN, 2009a, p.27). Se, no
registro simbólico, a dívida para com o pai pode ser negociada mediante objetos inseridos na

1
“Secretos propósitos del castigo”.
2
“Progreso en la espiritualidad”.
14

equação das permutas simbólicas, no registro real não há negociação possível; paga-se a
dívida com o corpo.
No contexto mais amplo das sociedades capitalistas contemporâneas, o laço religioso
vem perdendo espaço para o discurso da ciência, o que acarreta em uma modificação no
estatuto das práticas sacrificiais. Essa é uma indicação de Ambertín (2009a), ao afirmar que
essas práticas, em seu aviltamento, recolhem apenas resíduos da tradição, tornando-se
ineficazes no sentido de instituir o laço social.

Á medida que as sociedades foram se tornando mais complexas, o sacrifício foi


perdendo o nexo com a instituição religiosa e passou a ser uma oferenda, um simples
autodespojo em benefício de alguma divindade criada pelos homens segundo o
modelo de pai ideal e o seu avesso, o pai maligno. (AMBERTÍN, 2009a, p.51).

Sendo assim, decorre dessa modificação no regime discursivo da nossa época uma
modificação da economia do sacrifício. A Lacan (1969-70/1992) não lhe passou despercebida
a modificação nos regimes discursivos da sua época, cujos efeitos se fazem sentir, hoje, de
forma ainda mais proeminente. Ao teorizar sobre os discursos que compõem o laço social,
Lacan não deixou de fazer referências ao discurso capitalista, que provoca uma mutação no
regime de funcionamento do discurso do mestre. O domínio de S1, significante mestre
responsável pela interdição do gozo e regulação do laço social, declina em favor da ascensão
do objeto mais de gozar (a) ao zênite social. Em tal regime de funcionamento discursivo, a
instância interditora perde sua efetividade enquanto transmissora da interdição e do desejo,
tornando-se uma instância de empuxo ao gozo.
No contexto atual da realidade social brasileira, os efeitos do declínio dos semblantes
de autoridade podem ser claramente constatados em pronunciamentos por parte de dirigentes
e autoridades, responsáveis pela aplicação da lei e, também, pela elaboração e implementação
das políticas de segurança. Diante da escalada da violência, que assola os grandes centros
urbanos do país, as autoridades recorrem à razão sacrificial para justificar suas decisões, como
se pode perceber nessa declaração por parte do governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral,
ao se referir à incursão policial realizada no dia 27 de junho de 2007, no Complexo do
Alemão: “Hoje sabemos que a ordem pública é a garantia da cidadania. Todos temos que
fazer sacrifício pela vitória contra a barbárie. Não há como fazer omelete sem quebrar os
ovos.” (FERNANDES, 2007).
15

Nessa mesma direção argumenta José Mariano Beltrame, secretário de segurança


pública do Rio de Janeiro: “O Rio chegou a um ponto que, infelizmente, exige sacrifícios. Sei
que isso é difícil de aceitar, mas, para acabarmos com o poder de fogo dos bandidos, vidas
vão ser dizimadas. (...) É uma guerra, e numa guerra há feridos e mortos.” (SOARES, 2007).
Tais declarações pretendem justificar e legitimar uma política do enfrentamento que,
na prática, implica a disseminação de megaoperações policiais em comunidades
desfavorecidas do Rio de Janeiro. Tomando a guerra ao narcotráfico como justificativa, “tem-
se empreendido em larga escala a criminalização das populações excluídas que habitam as
favelas, identificadas como principal foco do tráfico de drogas e difusoras da violência.”
(RIBEIRO; DIAS; CARVALHO, 2008, p.08). Desta forma, associam-se, por contiguidade, as
favelas e a população pobre que nelas reside com a criminalidade e com a violência. Ao
desconsiderar “a participação ativa de policiais e de outros segmentos sociais na organização
de redes criminosas” (RIBEIRO; DIAS; CARVALHO, 2008, p.15), a política de segurança
adotada por parte do Estado assume um viés segregacionista, tornando-se cada vez mais
criminalizadora da pobreza.
Giorgio Agamben (2002) traz contribuições relevantes a essa temática, ao resgatar do
antigo direito romano o termo homo sacer, que designa em sua origem uma categoria de
sujeitos excluídos, produzida pelo ordenamento jurídico. Situados fora desse ordenamento e
da vida política da cidade, sem por isso serem consagrados ao domínio divino, tais sujeitos se
inscrevem em uma zona indiferenciada de anomia, na qual não é a lei que se aplica, mas sim
uma sanção arbitrária, que assume a sua força. Nessa zona de anomia, habitada pelo homo
sacer, Agamben (2002, p.91) situa o cerne do ordenamento jurídico e civilizador das
modernas democracias ocidentais, confirmando assim o célebre adágio de que a exceção
constitui a regra: “soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem
celebrar um sacrifício, e sacra, isto é, matável e insacrificável, é a vida que foi capturada
nessa esfera”. Cumprindo uma função de bode expiatório, esses sujeitos conferem
consistência às categorias de exclusão social, forjadas de modo a possibilitar a canalização da
angústia e da hostilidade para objetos passíveis de delimitação e nomeação.
A partir dessas considerações iniciais, levanta-se a hipótese de que a segregação e o
extermínio de sujeitos considerados descartáveis, objeto de estudo da presente pesquisa,
constituem modalidades atuais de prática sacrificial. Diante disso, formularam-se as perguntas
que orientaram o percurso traçado: Qual é o estatuto das práticas sacrificiais contemporâneas?
16

Existe alguma eficácia simbólica nessas práticas, no tocante ao estabelecimento e regulação


do laço social? Que modalidade de gozo elas realizam? Que alteridade colocam em jogo?
Para respondê-las traçou-se o objetivo geral de investigar, a partir da psicanálise, a
razão sacrificial articulada aos paradoxos dos Nomes-do-Pai, tomando a segregação e o
extermínio de sujeitos descartáveis como exemplos paradigmáticos de prática sacrificial.
Como objetivos específicos, estabeleceram-se: estudar as relações entre as práticas sacrificiais
contemporâneas e os paradoxos dos Nomes-do-Pai, buscando estabelecer um nexo entre essas
relações e o declínio dos semblantes ordenadores do laço social; analisar a função do
sacrifício na estruturação do laço social, buscando elucidar suas articulações com os campos
do desejo e do gozo; investigar, a partir dos conceitos de biopolítica e vida nua, o estatuto
sacrificial da segregação e do extermínio de sujeitos considerados descartáveis, delimitando
como foco duas megaoperações policiais realizadas pelo Estado do Rio de Janeiro no
Complexo do Alemão, a primeira em 2007 e a segunda em 2010. Essas megaoperações foram
escolhidas em virtude da representatividade simbólica que assumiram, bem como das
repercussões que geraram, deixando como rastro farta documentação disponível.
Considera-se que tal estudo é de grande relevância social, haja vista que a propalada
guerra contra a criminalidade e o tráfico de drogas se tornou palavra de ordem na política de
segurança adotada pelo Governo Federal, constituindo-se argumento central usado, por
autoridades, para legitimar ações policiais violentas, que vitimam não apenas seus alvos
designados, mas também moradores das comunidades invadidas. A morte de inocentes tem
sido considerada, por alguns, um efeito colateral inevitável, um sacrifício necessário em nome
de um bem maior. Dessa forma, a política de guerra contra a criminalidade desconsidera a
dimensão social mais ampla de um problema complexo, que envolve um longo histórico de
desigualdade social, miséria e autoritarismo.
Em uma época marcada pelo declínio dos ideais e pelo empuxo ao gozo, pensa-se que
pode ser de grande valia pesquisar, a partir da psicanálise, sobre o fundamento paradoxal da
razão sacrificial e das práticas que nela se sustentam; neste caso, a segregação e o extermínio
de sujeitos considerados descartáveis. Neste sentido, espera-se que a pesquisa possibilite
vislumbrar alternativas mais civilizadas para o gerenciamento de conflitos que possam,
eventualmente, traduzir-se em indicações e em propostas concretas de ação.
17

A partir da psicanálise, segundo Castro (2005, p.34, tradução nossa) 3, é possível


propor uma distinção entre a “contingência e as realidades associadas” e o “fato de estrutura”,
avançando no “deciframento do fenômeno em suas formas contemporâneas, mas,
fundamentalmente, possibilitando dar um novo passo, franqueando uma passagem do
fenômeno social ao sintoma social.” Isso implica, segundo a autora, uma abordagem
estrutural, que não se detém na dimensão dos fenômenos, e nem desconsidera a subjetividade
aí implicada. Nesse sentido, a psicanálise permite aportar elementos inéditos no tocante à
temática proposta, a saber, as referências ao sujeito do inconsciente e ao campo do gozo,
contribuindo para ampliar o que comumente é abordado no campo das ciências sociais, a esse
respeito. Por parte dos psicanalistas, não caberia esperar nada menos do que um
posicionamento condizente com a ética da psicanálise, no sentido de reconhecer essas novas
formas de mal estar na civilização, para além do fascínio que despertam.
Para a realização da pesquisa, seguiu-se a metodologia de pesquisa proposta pelo
psicanalista colombiano Mário Elkin Ramírez (2007a). Para ele, fenômenos sociais a exemplo
da segregação e do extermínio são passíveis de abordagem pela psicanálise. Nesse sentido,
Ramírez propõe a psicanálise aplicada ao social sem descuidar de distingui-la das análises
sociológicas, pois ela aborda os referidos fenômenos como envoltórios do sintoma social na
atualidade. Esses envoltórios variam segundo as contingências do contexto considerado, mas
seu cerne, sempre invariável, é constituído pela ação corrosiva da pulsão de morte sob as
variadas formas com que se manifesta na tessitura do laço social, analisadas criteriosamente
por Freud em “O mal estar na civilização” (1930/2010). Vale mencionar também a troca de
correspondência com Albert Einstein (1932/2010), intitulada “Por que a guerra?”, na qual
Freud aborda os problemas da guerra e da violência como manifestações, em escala global, da
pulsão de morte.
É interessante notar que apesar de recusar a tese junguiana de um inconsciente
coletivo, Freud não deixava de afirmar a existência de uma neurose cultural, ou seja, um
sintoma social próprio de uma determinada época ou cultura. Isso pode surpreender o leitor
que não está familiarizado com a complexa articulação que a psicanálise estabelece entre as
dimensões subjetiva e cultural.

3
“En una perspectiva psicoanalítica, cabe plantear la distinción entre la contingencia y las realidades asociadas,
y el hecho de estructura. En ese sentido, el Psicoanálisis permite progresar en el desciframiento del fenómeno en
sus formas contemporáneas, pero, en lo esencial, hace posible dar un nuevo paso, para ir del fenómeno social al
síntoma social”.
18

Se a evolução cultural tem tamanha similitude com a do indivíduo e trabalha com os


mesmos recursos, não seria justificado o diagnóstico de que muitas culturas — ou
épocas culturais, ou possivelmente toda a humanidade — tornaram-se “neuróticas”
por influência dos esforços culturais? A dissecação analítica dessas neuroses poderia
ser acompanhada de sugestões terapêuticas que reivindicariam muito interesse
prático. Não posso dizer que uma tentativa dessas, de transferência da
psicanálise para a comunidade cultural, não teria sentido ou estaria condenada
à esterilidade. (FREUD, 1930/2010, p.119, grifo nosso).

Apesar de reconhecer o valor da extensão da psicanálise ao campo social, Freud


recomendava prudência, advertindo o leitor quanto a duas dificuldades nesse caminho. A
primeira é de ordem epistêmica, e se refere tanto à limitação da analogia estabelecida entre
indivíduo e cultura, quanto à indevida extensão social de conceitos extraídos do campo da
clínica psicanalítica stricto sensu. A segunda dificuldade é de cunho terapêutico, pois de que
serviria um diagnóstico que não recomendasse nenhuma ação terapêutica? Essas dificuldades,
no entanto, não parecem desanimar Freud, que conclui suas reflexões sobre essa questão
assinalando a possibilidade futura de que “(...) alguém ouse empreender semelhante patologia
das comunidades culturais.” (FREUD, 1930/2010, p.120).
Com Lacan (1953/1998, p.322) o psicanalista é convocado a “alcançar, em seu
horizonte, a subjetividade de sua época”, ou seja, espera-se que ele esteja sempre em
condições de considerar os processos históricos e culturais envolvidos na produção dessa
subjetividade, sempre conflituosa e sintomática. Dessa forma, ao problematizar o sintoma
social de sua época, o psicanalista estará em condições de abordá-lo a partir dos impasses no
funcionamento de um determinado sistema de poder que, em última instância, decorrem da
impossibilidade estrutural de uma justiça distributiva do gozo para todos. (RAMÍREZ,
2007a). Nesse sentido, pautando-se pela ética da psicanálise, pode-se questionar até que ponto
a lógica do capitalismo globalizado é compatível com o ideal democrático igualitário.
Para dar conta dessas questões no contexto da pesquisa acadêmica, Ramírez (2007a,
p.11) propõe uma metodologia própria à psicanálise que, a partir dela, formula suas questões e
confronta-as com a “a análise e interpretação de enunciados tomados de testemunhos
recolhidos em fontes secundárias”, operando a partir da materialidade do material
4
significante. Nessa metodologia, busca-se abordar os fenômenos sociais pela lógica forjada
a partir da análise dos indícios da subjetividade implicada, em cada testemunho prestado pelos
atores sociais envolvidos no problema que se propõe a investigar. Para tanto, Ramírez (2007a)

4
“(…) el análisis y la interpretación de los enunciados en los testimonio recogidos en fuentes secundarias”.
19

propõe um confronto desses indícios com uma hipótese explicativa da psicanálise, para então
inferir a emergência da particularidade no campo do fenômeno analisado. Trata-se, portanto,
de ‘fazer caso’ dos testemunhos recolhidos, cernindo um mesmo ponto de real no fenômeno
estudado, “(...) com a lógica do método e dos conceitos próprios à psicanálise” (RAMÍREZ,
2007a, p.19, tradução nossa) 5.
Para a consecução dos objetivos da pesquisa e a obtenção dos testemunhos dos atores
sociais implicados, elegeu-se o que na clássica metodologia se chama pesquisa bibliográfica,
aliada à análise documental. Apesar dessas duas modalidades de pesquisa serem comumente
utilizadas de modo combinado (CARVALHO, 1988), é importante distingui-las. Segundo Gil,
(1989, p.73),

Enquanto a pesquisa bibliográfica se utiliza fundamentalmente das contribuições dos


diversos autores sobre determinado assunto, a pesquisa documental vale-se de
materiais que não receberam ainda um tratamento analítico, ou que ainda podem ser
reelaborados de acordo com os objetivos da pesquisa.

Tal é o caso de algumas das fontes documentais utilizadas para a consecução da


pesquisa, que têm por base a coleta de informações oriundas de documentos diversos, como
jornais, livros, revistas, cartas, publicações de organismos governamentais, documentos
eletrônicos obtidos na internet, documentários e filmes. Por documento, deve-se entender
“toda fonte de informações já existente”, que abarca, não apenas documentos impressos, mas
também recursos audiovisuais e digitais; enfim, toda e qualquer forma de “vestígio deixado
pelo homem” (LAVILLE, DIONNE, 1999, p.166), que possibilite uma compreensão dos
fenômenos humanos.
Ao longo dessa pesquisa, a fonte documental foi diversificada, incluindo não apenas
autores de referência, mas também relatórios, reportagens e entrevistas extraídas de jornais,
revistas, e principalmente, da Internet. No caso dessas últimas, procedeu-se a sucessivas
buscas no Google, utilizando como palavras-chave termos como megaoperação, sacrifício,
tráfico de drogas, extermínio, segregação, militarização, milícias, guerra, chacina, invasão,
caveirão, Complexo do Alemão, polícia e violência.
A escolha das fontes de informação considerou a produção acadêmica em torno do
assunto, mas no que tange aos veículos midiáticos de comunicação, o pesquisador elegeu
5
“Esto hace que lo que constituye el punto de encuentro entre el psicoanálisis aplicado y el fenómeno social, sea
el modo como, en dicho fenómeno, se cierne un mismo punto de real, con la lógica del método y de los
conceptos propios al psicoanálisis”.
20

aqueles que, sabidamente, exercem hegemonia no processo de difusão de informações e


formação de opinião no país. Sendo assim, no que tange às reportagens oriundas dos canais
abertos de televisão, a Rede Globo foi escolhida em virtude da supremacia que exerce no
setor televisivo. Com relação à mídia impressa, elegeram-se reportagens oriundas de revistas
semanais de ampla circulação, como a revista Veja e a revista Época.
Considerou-se a leitura crítica da documentação consultada, já que a experiência
ensina, e vários autores argumentam, a exemplo de Cellard, (2010), que esse é o primeiro
passo para a análise documental, o que implica sua contextualização política, econômica e
cultural. Essa contextualização permitiu ao pesquisador orientar-se quanto à pertinência dos
indícios encontrados ao longo da busca de respostas para o seu problema. Dessa forma,
buscou-se identificar a autoria do documento e compreender se seus autores falam em nome
próprio ou em nome de algum grupo ou instituição. Foi importante também verificar se o
autor é testemunha direta dos eventos que relata, bem como considerar a distância geográfica
e temporal que separa seu relato desses eventos. Além disso, foram levados em conta os
interesses (confessos ou não) do texto em questão, que exigiram, por parte do pesquisador,
“informar-se sobre a origem social, a ideologia ou os interesses do autor do documento.”
(CELLARD, 2010, p.301).
Tendo-se em vista que a perspectiva do autor de um documento é sempre parcial,
decidiu-se cercar a questão colocada a partir de diferentes pontos de vista, recorrendo a fontes
variadas de documentação, que possibilitassem uma análise mais abrangente, diversificada e
menos tendenciosa. Dessa forma, buscou-se por testemunhos prestados não apenas por
autoridades de Estado, como também por moradores das comunidades invadidas pela polícia,
bem como por políticos, jornalistas e pesquisadores que se pronunciaram a respeito das
megaoperações e da política de segurança pública adotada no estado do Rio de Janeiro.
A ordenação de objetivos proposta resultou na composição de três capítulos. O
primeiro deles reúne alguns testemunhos recolhidos pelo pesquisador, seguido de sua análise
mediante a construção de eixos temáticos que foram estabelecidos segundo o critério de
pertinência aos objetivos da pesquisa. A partir da análise da documentação, constatou-se que
as megaoperações policiais, expediente extraordinário de guerra utilizado em situações de
emergência, tornaram-se procedimentos de rotina com vistas a intervir nas comunidades
pobres do Rio de Janeiro. Sendo assim, as tropas militares, juntamente ao pesado armamento
de guerra que mobilizam, passaram a integrar o cotidiano dos moradores dessas comunidades.
21

Tendo declarado guerra ao tráfico, as autoridades propagaram na mídia de ampla circulação


discursos que incitam o preconceito e o sacrifício. Além disso, pôde-se perceber também que,
mediante a construção de um inimigo sob medida, as megaoperações contam não apenas com
elevado índice de aprovação popular, mas também, respaldo junto à mídia de ampla
circulação e às instâncias superiores. O final do capítulo 1 dedica-se a considerações a
respeito de como as megaoperações revestem-se de legitimidade jurídica a partir da doutrina
do direito penal do inimigo.
No segundo capítulo, intitulado “A pertinência do problema do sacrifício para a
psicanálise”, buscou-se estabelecer as articulações teóricas necessárias à interpretação da
informação obtida. O livro de Marta Gerez-Ambertín “Entre dívidas e culpas – Sacrifícios:
crítica da razão sacrificial” (2009a) foi fundamental para situar as balizas teóricas necessárias
que sustentam a argumentação proposta, tendo como referência central Freud e Lacan. Alguns
termos e conceitos foram então sendo delineados, segundo o critério de pertinência aos
objetivos da pesquisa: Nomes-do-Pai, Lei, sacrifício, Akedah, dádiva, supereu, trabalho de
luto, segregação e extimidade. Esses termos foram articulados a partir de uma revisão de
literatura acerca da temática do sacrifício em Freud e Lacan e, também, nos textos de alguns
comentadores.
Ao estudar a problemática do sacrifício em Freud, constatou-se que, desde as suas
primeiras publicações, ele reservava um espaço para a reflexão acerca dos atos sacrificiais,
situando-os desde suas formas mais amenas, às mais intransigentes e violentas. Lacan, por sua
vez, abordou a questão do sacrifício de Isaac durante a única lição de seu seminário
interrompido sobre os Nomes-do-Pai (1963/2005), tendo assinalado a importância dessa
temática para a psicanálise. No seminário seguinte (1964/1988), Lacan retomou a questão do
sacrifício, dessa vez articulando-a com a segregação e o extermínio dos judeus nos campos de
concentração nazistas.
Durante o estudo da questão do sacrifício nos textos de Freud e Lacan, constatou-se
que ambos recorreram aos desenvolvimentos de estudiosos do campo das ciências sociais,
mais particularmente, ao teólogo escocês William Robertson Smith e ao antropólogo britânico
Edward Burnt Tylor, no caso de Freud, e aos antropólogos franceses Marcel Mauss e Claude
Lévi-Strauss, no caso de Lacan. Dessa forma, essas referências também foram utilizadas na
pesquisa, de modo a enriquecê-la.
22

À medida que se aprofundava na análise das fontes documentais, construíam-se suas


categorias de análise, e houve a necessidade de dialogar com autores de outros campos do
conhecimento, que propõem reflexões importantes sobre algumas temáticas pertinentes à
pesquisa. Essa interlocução foi apresentada no capítulo três, trazendo novos elementos para
pensar a questão do sacrifício, em uma época marcada pela ascensão do capitalismo
globalizado e das tecnociências, bem como pelo agravo dos processos de segregação daí
decorrentes. A partir dessas diretrizes buscou-se um adensamento das reflexões em torno do
sacrifício e da segregação, tendo como referência o campo de concentração, segundo
indicação de Lacan (1964/1988). Três autores merecem destaque nesse capítulo, que versa
sobre a biopolítica, o campo de concentração e a gestão de vidas matáveis, ou seja, sujeitos
cuja existência é considerada supérflua, e mesmo perniciosa: Michel Foucault, Hannah Arendt
e Giorgio Agamben.
Entre os três autores mencionados, Agamben foi a primeira referência consultada, em
virtude da pertinência e atualidade de suas elaborações acerca da função sacrifício. No
contexto aqui considerado, destacam-se duas temáticas abordadas por ele, que viabilizaram a
construção de algumas importantes categorias de análise: a vida nua e o estado de exceção.
Com o primeiro termo, Agamben assinala a situação de desamparo e vulnerabilidade de certos
sujeitos diante do poder soberano. Com o segundo, designa um procedimento de emergência
que não invalida a vigência do ordenamento jurídico, mas suspende sua aplicabilidade,
tornando-o inoperante. Enquanto o estado de exceção vigora, os limiares entre o dentro e o
fora da lei se tornam indiscerníveis, criando uma situação de anomia jurídica na qual o
cidadão é despido de seus direitos constitucionais. Deve-se considerar ainda que, segundo a
perspectiva de Agamben, esse recurso extraordinário vem sendo cada vez mais utilizado
enquanto técnica ordinária de governo.
O caminho que conduziu às elaborações de Hannah Arendt acerca dos campos de
concentração e da despolitização da vida, bem como às de Michel Foucault sobre a
biopolítica, foram indicados por Agamben nos seguintes termos (2002, p.11):

Que a pesquisa de Arendt [acerca do primado da vida natural sobre a ação política]
tenha permanecido praticamente sem seguimento e que Foucault tenha podido abrir
suas escavações sobre a biopolítica sem nenhuma referência a ela, é testemunho das
dificuldades e resistências que o pensamento deveria superar nesse âmbito.
23

Buscou-se, a partir dessa indicação, situar o campo de concentração como um topos


que operasse como possível margem de interlocução entre os referidos autores e a psicanálise,
mais particularmente, às já referidas indicações de Lacan acerca do sacrifício, da segregação e
dos campos de concentração. Essa investigação conduziu o pesquisador a situar o estatuto
sacrificial das práticas de segregação e extermínio, a partir dos conceitos de biopolítica e vida
nua, buscando assim designar as relações de poder que tomam por alvo vidas matáveis.
A partir da psicanálise, constatou-se que o declínio da Lei, acompanhado pela perda de
eficácia simbólica dos semblantes de autoridade, deixam em seu rastro efeitos devastadores.
Lacan (1974/s.d.) considerou, entre esses efeitos, a ascensão das ordens de ferro, facilmente
reconhecíveis no contexto aqui abordado, não apenas nas medidas extrajudiciais sancionadas
por parte da política de segurança do Estado, como também, na lei do silêncio e no domínio
do terror impostos por milicianos e narcotraficantes. Viu-se, também, que as ordens de ferro e
seu poder de nomeação encontram respaldo jurídico na doutrina do direito penal do inimigo,
realizando-se em ato ao designar o inimigo a ser perseguido, hostilizado, combatido e,
eventualmente, exterminado. Para finalizar, o pesquisador apresenta algumas indicações de
Freud e Lacan acerca de um possível posicionamento por parte da psicanálise, diante da
problemática abordada.
24

1– MILITARIZAÇÃO DA SEGURANÇA PÚBLICA E CRIMINALIZAÇÃO DA


POBREZA: RUMO A UMA POLÍTICA DE EXTERMÍNIO

O pensamento fundamentador do extermínio é o de que,


eliminando-se os componentes de determinado
segmento ou etnia, promove-se o bem para a
coletividade. O sacrifício da parte em favor do todo, a
extirpação da porção maldita, faria a sociedade
encontrar seu estado ideal de normalidade, ou retornar
ao mesmo. (CRUZ-NETO; MINAYO, 1994).

A política de combate à criminalidade, adotada pelo governo do Rio de Janeiro,


adotou como principal estratégia de ação a disseminação das megaoperações policiais nas
favelas, os assim chamados “territórios da pobreza” (COIMBRA, 2001, p.12). Essas incursões
policiais nas favelas são conhecidas pela violência, e quando acontecem nem sempre se faz
distinção entre criminosos e moradores das regiões invadidas. Isso fica claro na letra das
músicas entoadas pelo Batalhão de Operações Especiais (BOPE), designado para as
megaoperações:

Interrogatório é muito fácil de fazer


Pega o favelado e dá porrada até doer.
Interrogatório é muito fácil de acabar,
Pega o favelado e dá porrada até matar
Homem de preto, qual é a sua missão?
É invadir favela e deixar corpo no chão.
(THEOPHILO; ARAÚJO, 2003).

Destaca-se que, nessa vinheta musical, o sujeito visado pelas tropas é o ‘favelado’,
sem que haja distinção entre criminosos procurados pela justiça e moradores que estejam no
local no momento das operações. Dessa forma, Torna-se impossível distinguir entre o que
deveria ser um procedimento policial, com vistas a prender criminosos procurados pela
justiça, e um procedimento militar, com vistas a combater inimigos. A flagrante violação dos
direitos dos moradores desses locais assinala um processo de criminalização da pobreza, tal
como denunciado por vários autores da bibliografia consultada (WACQUANT, 2003;
ZAFFARONI, 2007; BATISTA, 2014). Conforme afirma o jurista argentino Eugênio Raúl
Zaffaroni, “a essência do tratamento diferenciado que se atribui ao inimigo consiste em que o
direito lhe nega sua condição de pessoa. Ele só é considerado sob o aspecto de ente perigoso
ou daninho” (ZAFFARONI, 2007, p.18), um animal selvagem, que deve ser enjaulado ou
exterminado.
25

As implicações da criminalização da pobreza podem ser situadas, por um lado, na


ascensão de um estado policial militarizado, acompanhada por uma retórica de combate ao
inimigo e libertação da população civil; por outro, na segregação de uma parcela dessa mesma
população nos territórios da pobreza, transformados em campos de batalha. Nesses lugares,
desabonados do Estado de direito, seus habitantes se veem desamparados e acuados pela
violência. Aos sujeitos que integram essa parcela marginalizada da população, resta-lhes
cumprir a sentença formulada pelo jurista alemão Gunther Jakobs (2007): quem não pode ser
reconhecido como cidadão, deve ser combatido como inimigo.
Colocar em pauta a questão da razão sacrificial, ao discutir questões relacionadas à
gestão das políticas de segurança pública e à justiça social, implica em situar um ponto nodal
no qual o sacrifício se articula à dimensão política. É o que se pode depreender do que afirma
o psicanalista argentino Germán Garcia (1983), ao se perguntar como funciona o sacrifício em
nossas sociedades contemporâneas: “Tudo isso que lemos diariamente nas páginas policiais é
um sacrifício; faz parte do jogo social, saber que vidas serão ceifadas, que pessoas irão
morrer.” (GARCIA, p.18, 1983, tradução nossa) 6. A partir das indicações de Garcia pode-se
perceber que a razão sacrificial, mesmo desvinculada do domínio religioso, não deixa de se
inscrever no cerne da razão de estado, isso é, no modo como o Estado justifica a adoção de
medidas de segurança extraordinárias tendo em vista a presença de um perigo.
É possível refutar, dessa forma, a tese defendida por René Girard em seu livro
“Violência e o sagrado” (1998), de que o sacrifício teria se atrofiado em sociedades que
desenvolveram um sistema judiciário, uma vez que nelas este sistema se encarregaria de
conter a violência originária, inerente a qualquer agrupamento humano. Sendo assim, Girard
(1998, p.31) enfatiza a função preponderante do sacrifício nas sociedades primitivas, na
medida em que tende a subestimá-lo nas sociedades contemporâneas: “É nas sociedades
desprovidas de sistema judiciário, e por isso mesmo ameaçadas pela vingança, que o sacrifício
e o rito em geral devem desempenhar um papel essencial.” Ao contrário do que afirma Girard
(1998) pode-se constatar, no entanto, que as práticas sacrificiais não se extinguiram com a
emergência do sistema judiciário, e ainda são legitimadas por ele.

6
“Todo eso que leemos en los policiales cada día, es un sacrificio; forma parte de la sociedad saber que una
cantidad de personas van a perder, van a morir. Es parte del juego social, el hecho de que exista la policía es
aceptar que es así”.
26

1.1- As megaoperações policiais como recurso ordinário de gestão da criminalidade

Nosso bloco está na rua e, se tiver que ter conflito


armado, que tenha. Se alguém tiver que morrer por
isso, que morra. Nós vamos partir pra dentro. (LYRA
et al., 2004, p.18) 7.

Figura 1: Militarização da segurança pública

Fonte: GOMBATA, 2013.

As megaoperações policiais envolvem um complexo aparato de guerra, constituído por


numerosos agentes de segurança estadual e federal, armamentos militares (artilharia pesada,
tanques, helicópteros, veículos blindados, etc), bem como pela ampla cobertura midiática, que
busca capturar in loco as imagens dos confrontos. Apesar de serem qualificadas pelas
autoridades de ações pacificadoras (BRASIL, 2007), essas operações se traduzem, na prática,
como ações que comportam um alto índice de letalidade, instalando o terror e o pânico nos
locais onde acontecem. Conforme assegura o sociólogo Ignácio Cano (2012), coordenador do
Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ),
além do inconveniente dos altos índices de letalidade, o modelo militarizado de segurança

7
Declaração feita durante a operação Rio Seguro, pelo então secretário de Segurança Pública, Coronel Josias
Quintal, ao jornal “O Globo”, em 27/02/03.
27

pública tem se mostrado ineficaz no sentido de desarticular e impedir o domínio do território


pelos grupos criminosos.
Após uma megaoperação realizada em 2007, que vitimou 19 pessoas no Complexo de
8
favelas do Alemão, um relatório redigido em nome da sociedade civil (BRASIL, 2007) foi
encaminhado ao relator especial das Nações Unidas, Philip Alston. Nele, várias associações
representando os Direitos Humanos denunciavam que a gestão da segurança pública, nas
áreas urbanas menos favorecidas do estado do Rio de Janeiro, era feita de forma violenta e
criminosa. A violência policial, denunciada pelo relatório, não se referia apenas a ocorrências
isoladas, mas a um modelo selvagem e fraudulento de gestão da criminalidade e da miséria,
que se apresentava de forma generalizada e legitimada.
Segundo dados divulgados pelo jornal Folha de São Paulo (GOMIDE, 2007) em 16 de
julho de 2007, até o mês de abril desse mesmo ano, 10 policiais militares e um civil foram
9
mortos, contra 449 supostos criminosos, em ações registradas como “autos de resistência.”
Segundo especialistas consultados pela Folha,

(...) a proporção de um policial morto para 41 autos de resistência, no governo


Sérgio Cabral, é demonstração de uso excessivo de força e revela fortes indícios de
assassinatos pelas forças oficiais. ‘Quando passa da taxa de dez civis mortos para
um policial e, principalmente, acima de 20 para um, não há dúvidas de que há
excesso de força e execuções’, diz José Vicente da Silva Filho, coronel da reserva da
PM, ex-secretário nacional de Segurança Pública e diretor do Instituto Pró-Polícia.
(GOMIDE, 2007).

Ainda segundo a reportagem, o uso de força excessiva pela polícia do Rio é

(...) não apenas o mais grave do Brasil, como o mais grave do mundo. Só a polícia
do Rio mata mais que a polícia dos EUA inteira, que matou 375 em 2006, em uma
população de 300 milhões de pessoas. A polícia de Portugal, país com população
semelhante à do Rio, matou só uma pessoa em 2006, contra 1.063 do Rio.
(GOMIDE, 2007).

A violência excessiva empregada pela polícia do estado do Rio de Janeiro no combate


ao crime pode ser comprovada através da análise de alguns dados estatísticos. Nesse sentido,
o relatório (BRASIL, 2007) enfatiza que, não apenas o número de mortos durante as
operações é extremamente alto (tanto quando comparado a outras polícias do mundo, quando
8
Relatório da sociedade civil para o relator especial das nações unidas para execuções sumárias, arbitrárias e
extrajudiciais.
9
Esse termo designa casos em que um suspeito de envolvimento com o crime é assassinado por um policial,
durante um confronto armado.
28

comparado às polícias de outros estados do Brasil), como também, que ele vem crescendo de
forma assustadora, ano após ano.

Em nome do combate ao tráfico de drogas, o atual governo desencadeou uma série


de operações policiais em diversas comunidades e que resultaram, entre janeiro e
junho do corrente ano, em 694 civis mortos pela polícia, representando um aumento
de 33,5% (174 mortes a mais) em relação aos autos de resistência registrados no
mesmo período em 2006. (BRASIL, 2007, p.4).

A tabela apresentada a seguir (BRASIL, 2007) contabiliza, em cada ano, a partir de


1999, os totais anuais de civis mortos pela polícia, na capital, e no estado do Rio de Janeiro,
classificados como autos de resistência:

Tabela1 – Frequência absoluta de “autos de resistência” no Rio de


Janeiro, Estado e Capital (1993 – 2011).

Ano 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010
Capital 187 278 381 615 798 676 707 673 902 688 643 485
Estado 289 454 592 900 1195 983 1098 1063 1330 1137 1049 855

Fonte: ISP-RJ/Necvu-UFRJ

Deve-se considerar, contudo, que esses números contabilizam apenas os casos em que
os policiais registraram suas ações. Ou seja, estima-se que o número efetivo de mortes é
consideravelmente superior, uma vez que não estão incluídos nessas estatísticas os casos nos
quais a ação policial resultou em morte, sem que houvesse notificação do fato. Ficam fora
dessa contabilidade, também, ações ilegais por parte de policiais que participaram de
matanças em grupos de extermínio, as milícias.
Ao comparar as estatísticas dos resultados das operações de segurança, entre os anos
de 2006 e 2007, o relatório (BRASIL, 2007) revela que o número de prisões diminuiu em
escala inversamente proporcional ao aumento do número de mortos. Fica claro, portanto, que
esses índices atestam um aumento da letalidade nas incursões da polícia aos morros e favelas
do Rio de Janeiro, revelando que “a atual política de segurança pública vem produzindo muito
mais ‘inimigos mortos’ do que orientando suas operações para a defesa da vida dos cidadãos.”
(BRASIL, 2007, p.4).
29

1.2- Os autos de resistência e a produção de cadáveres

A análise dos laudos cadavéricos (BRASIL, 2007) revelou que mais de 60% dos
cadáveres das vítimas, recolhidos ao IML (Instituto Médico Legal), após as intervenções
policiais, apresentavam marcas de perfurações em regiões vitais, como nuca, cabeça.
Apresentavam, ainda, perfurações nas costas, indicando a impossibilidade de legítima defesa
e ausência de reação por parte da vítima. Em muitos casos as perfurações apresentavam claros
sinais de disparos efetuados à queima roupa. A presença de lesões adicionais às de arma de
fogo, em um terço dos cadáveres analisados, permitem inferir o uso de tortura e maus tratos,
antes da morte da vítima.
Esses dados, recolhidos por Ignácio Cano (1997) em uma pesquisa realizada sobre o
assunto, permitem afirmar que, durante as megaoperações levadas a cabo pela polícia, as
execuções sumárias, aliadas à prática de tortura, tornaram-se uma rotina. Isso é corroborado
pelo relatório (BRASIL, 2007) que afirma que o uso abusivo da categoria ‘autos de
resistência’ constitui um expediente burocrático forjado pelas autoridades responsáveis pelas
megaoperações, com vistas a ocultar os indícios da prática de execuções sumárias. Essa
categoria jurídica, tal como vinha sendo aplicada, permitia que casos de homicídios dolosos,
designação que lhes seria cabida em âmbito legal, não fossem reconhecidos oficialmente
como tais.
A desmontagem da cena do crime constitui outro exemplo de expediente usado pela
burocracia estatal, com vistas a dificultar, ou mesmo impossibilitar o acesso às provas de
ações de extermínio por parte de policiais. Os cadáveres eram rapidamente removidos após as
ações, dificultando ou mesmo impedindo o procedimento pericial. É possível, inclusive,
encontrar vídeos na internet (CASOS DE POLÍCIA..., 2013) mostrando cenas de policiais
fardados mudando a localização dos cadáveres, acompanhadas das transmissões de áudio que
tornam possível escutar os policiais mostrados nas filmagens falando, via rádio, em socorrer
pessoas que, na verdade, já estão mortas. Procedendo dessa forma, os policiais violam a cena
original do crime e inviabilizam o trabalho pericial. Ao negligenciar os procedimentos
técnicos recomendados pelos Princípios Internacionais de Investigação (BRASIL, 1989), as
autoridades de segurança pública sabotam a produção fidedigna das provas necessárias para
30

comprovação legal da ocorrência de execuções sumárias. Legitima-se, assim, a impunidade


dos agentes de segurança pública envolvidos nos confrontos seguidos de morte.
O uso do famigerado caveirão, veículo blindado usado durante as megaoperações, é
outro elemento dificultador nas investigações de policiais envolvidos com atos criminosos,
uma vez que a arquitetura desse veículo impede que os agentes que atuam de dentro dele
sejam vistos e identificados por quem esteja do lado de fora. Segundo a pesquisadora e
socióloga Maria Helena Moreira Alves (2012), o Governo do Rio modernizou os caveirões,
mas se recusou a instalar câmeras no interior desses veículos, desrespeitando as
10
recomendações do United Nations Commission on Human Rights (UNCHR). Dessa forma,
o caveirão se constitui como mais um dispositivo institucional que garante a invisibilidade e o
anonimato dos policiais envolvidos com ações violentas e criminosas, impedindo a sua
identificação e punição.
Após as megaoperações, outras irregularidades podem ser mencionadas. Além da
impunidade dos agentes de segurança envolvidos com a suspeita de execuções, as famílias das
vítimas mortas em confronto com a polícia eram privadas do direito de reivindicar e obter as
devidas indenizações. Nesses casos, sobre os quais pairam suspeitas de execuções sumárias,
havia morosidade ou mesmo ausência de investigações (BRASIL, 2007). A flagrante
ilegitimidade dos procedimentos policiais e administrativos envolvidos na política de
segurança assinala a inoperância da lei, enquanto instância reguladora do laço social e dos
conflitos que aí emergem.

1.3- As ordens de ferro das milícias: uma versão obscena da lei

A política de enfrentamento, então adotada pelo governo do Rio de Janeiro, veiculava


para seus inimigos uma mensagem inequívoca: render-se às forças policiais equivalia à morte.
Dessa forma, aqueles que eram assim declarados preferiam morrer lutando em confronto,
alimentando o ciclo vicioso de violência. Para os policiais envolvidos diretamente no combate
à criminalidade, devem-se considerar os altos níveis de estresse a que eram submetidos
durante seu exercício profissional, exercício este que, segundo previsões baseadas nas

10
Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas.
31

estatísticas (BRASIL, 2007) lhes cobraria matar pelo menos uma pessoa ao longo de sua
carreira profissional.
A cultura policial passou a ser moldada pelo ideal da “glorificação da violência”
(ARENDT, 1969/2011, p.27), corroborada através da concessão de premiações por bravura,
por parte da Secretaria de Segurança Pública do Estado, aos policiais envolvidos em
ocorrências que resultaram na morte de suspeitos. Essas premiações, popularmente
conhecidas por “premiação faroeste” (RIBEIRO; DIAS; CARVALHO, 2008), acarretavam
um aumento variável entre 50% e 150% sobre o salário original desses agentes (BRASIL,
2007). Recompensando-se policiais pelo uso de força letal, nada menos se poderia esperar,
que um aumento no número de mortes durante as intervenções policiais. Dessa forma, a
polícia, que deveria estar a serviço da lei, começou a emular as práticas criminosas,
reforçando a política de tratamento penal da miséria, que passou a ser virtualmente
criminalizada.
As premiações por bravura, no entanto, não eram o único recurso para alguns agentes
de estado conseguirem um aumento em sua renda mensal; o elevado número de policiais
mortos durante a folga (que, aliás, supera o de policiais mortos em ação) corrobora a hipótese
de que alguns deles morriam durante os ‘bicos’ que faziam, ou seja, jornada extra e irregular
de trabalho (BRASIL, 2007). Entre as atividades extraoficiais realizadas por alguns policiais,
em seu horário de folga, uma das mais controversas era o envolvimento criminoso com as
milícias.
Apresentar uma caracterização geral do fenômeno das milícias é tarefa complicada, e
mesmo impossível, por ser um fenômeno universal que acontece em escala mundial,
manifestando-se de formas diversas, conforme o contexto considerado. No contexto
específico do escopo dessa pesquisa, considera-se que as milícias se caracterizam como
quadrilhas que assumem o controle territorial de um determinado espaço urbano, exercido
sempre de forma ilegal, violenta e coativa, mediante a instalação do terror na comunidade
local. Elas são compostas por agentes do estado - policiais, ex-policiais, bombeiros e,
inclusive, membros das Forças Armadas - que após invadirem os territórios ocupados pelo
tráfico e deporem o controle exercido despoticamente por ele sobre a comunidade local,
passam a assumir suas funções de forma ainda mais severa e violenta.
Diferentemente do que acontece em outros países, as milícias que atuam nas favelas
do Rio de Janeiro não lutam por causas ou ideais; não veiculam mensagens de protesto, nem
32

defendem projeto algum de reforma social ou política. Sua principal motivação é o benefício
privado, obtido através de uma ampla gama de atividades criminosas, que incluem o
monopólio exercido de forma ilegal e extorsiva sobre uma série de serviços prestados à
comunidade: a venda de gás, água, transportes de moto e van, TV a cabo e internet (a
gatonet), e até mesmo a famigerada venda de proteção que, como se sabe, protege o pagante
da própria milícia. A taxa de proteção pode assumir também a forma de um arrego, gíria
utilizada para se referir à propina cobrada dos traficantes pelos milicianos, para que façam
vista grossa às suas atividades.
Em sua forma de funcionamento, as milícias impõem rígidos códigos de ordem, que
prevê severas penalidades para aqueles que os desobedecem. Há exemplos dessa forma de
funcionamento, que lembra as temidas diretrizes do AI-5 (Ato Institucional nº 5), pautadas na
suspensão das garantias constitucionais e dos direitos políticos dos cidadãos: os toques de
recolher, que proíbem a circulação de pessoas em certos territórios a partir de um determinado
horário, e a famigerada ‘lei do silêncio’, que pune com a morte qualquer forma de testemunho
acerca das atividades criminosas, confinando à omissão e à cumplicidade aqueles que vivem
nos territórios dominados.
Pautada em uma retórica de libertação do crime e limpeza territorial, mas aliada a um
regime de vigilância permanente, as milícias exercem seu domínio sobre a região ocupada
contando com os recursos do aparato oficial da força policial, incluindo o uso de
equipamentos militares, como armas e veículos blindados.
Desde 2002, o fenômeno das milícias vinha se expandindo de forma dramática nas
favelas do Rio de Janeiro. Isso, segundo Alves (2012, p.30), introduziu uma “estrutura de
crime organizado”, cuja extensão para o campo político tornou possível aos milicianos
estabelecer redes no interior dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário (ZALUAR,
2007). Quando a mídia se refere ao tráfico como crime organizado, ou estado paralelo,
desconsidera que esses termos se aplicariam melhor às milícias. Conforme afirmou o próprio
secretário de segurança José Mariano Beltrame, “não havia crime organizado nas favelas,
exceto o praticado pelas milícias.” (ALVES, 2012, p.30).
O fenômeno de expansão política do crime organizado é um claro indicador de que
não há como sustentar o ponto de vista de que a violência criminal é um problema localizado,
intrínseco às favelas ou à condição socioeconômica de seus habitantes; ele é parte da
33

dinâmica social e política da cidade como um todo, e é um denunciador de uma série de


contradições sociais, como a injustiça, a impunidade e a corrupção dos agentes do estado.

1.4- O discurso da mídia como arma de guerra: do sensacionalismo à incitação


sacrificial

O tráfico de drogas e armamento militar, associados ao problema do aumento


crescente da violência, serviu como leitmotiv para que o governador Sérgio Cabral decretasse,
no início de sua gestão, uma guerra ao tráfico. O ano de 2007 se iniciou, dessa forma, com
uma série de invasões às favelas consideradas focos de violência, caracterizando um
permanente estado de exceção para os moradores dessas comunidades. A estratégia adotada
pelo governo do Rio de Janeiro previa, após as invasões, a ocupação dos territórios por forças
pacificadoras.
A implantação das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), iniciada durante o ano de
2008, culminou, em novembro de 2010, com mais uma megaoperação, que envolveu as
polícias civil e militar, a Marinha, e o Exército. Assim como havia acontecido na
megaoperação de 2007, utilizaram-se aparatos militares de guerra, incluindo 2800 homens,
dois helicópteros, 37 tanques blindados, entre outros armamentos de combate, como fuzis e
metralhadoras. Vale advertir, contudo, que apesar das semelhanças, essas megaoperações
devem ser distinguidas entre si em vários aspectos, inclusive pela diminuição dos índices de
letalidade, já que a megaoperação de 2010 se pautou mais por uma “tática de ocupação e
pacificação” (MATIOLLI, 2014), que prescindia do confronto direto com os traficantes.
Apesar de terem sido apresentadas como “inovadoras” por uma revista semanal de
grande circulação nacional, a revista Época (MASSON; AZEVEDO; FERNANDES, 2008),
as megaoperações executadas durante a administração de Sérgio Cabral não constituíam
nenhuma novidade para os habitantes do Rio de Janeiro, que desde o início da década de
1990, estavam habituados a testemunhá-las, e eventualmente, apoiá-las e prestigiá-las:

(...) tais incursões esporádicas do Exército – tais como: a ECO-92; as ocupações na


Favela Roquette Pinto, em novembro de 1993; e, em setembro de 1994, a volta às
ruas por cinco dias para "resguardar" o encontro de chefes de Estado latino-
americanos - são seguidas de elogios e aplausos entusiasmados, reconhecendo a
34

competência das Forças Armadas e de seus serviços de informação. (COIMBRA,


2001, p.210).

Para legitimar o uso da violência policial, os dirigentes responsáveis pela elaboração e


implementação da política de segurança pública, amparada pela mídia e pelos meios de
comunicação em massa, recorreram ao argumento de que o Rio de Janeiro encontrava-se em
estado de guerra civil: “No plano da racionalidade governamental do Estado do Rio de Janeiro
atualmente impera o uso oficial de um discurso que prega a necessidade de proteção da
sociedade em situação de guerra.” (BRASIL, 2007, p.2).
Foi baseado nesse argumento que o estado pôde dispor de forças militares para intervir
no problema da criminalidade e do tráfico de drogas e armas nas favelas do Rio de Janeiro.
Para tanto, foi necessário uma extensa campanha propagandística da mídia, de modo a
angariar o apoio popular. O mote dessas propagandas, em cada ocasião em que aconteciam as
incursões policiais nos morros cariocas, afirmavam que haveria uma “guerra do tráfico”,
diante da qual seria necessário convocar o exército para retomar os territórios ocupados pela
“bandidagem que espalha o terror pela Zona Sul” (SOARES; LIMA, 2010, p.135) e salvar a
população, em uma cidade sitiada pelo medo e pela violência. De forma tácita, adotava-se o
princípio de que só se poderia designar de “população” aqueles que habitavam a zona sul.
Foi assim que, após uma megaoperação realizada em primeiro de dezembro de 2010,
no conjunto de favelas da Vila Cruzeiro, a revista Veja estampou a seguinte manchete: “Ao
retomar o controle de uma das principais trincheiras do tráfico no Rio de Janeiro, o estado dá
um passo decisivo para vencer a bandidagem que ganhou poder sob a complacência de
populistas.” (SOARES; LIMA, 2010, p.133).
35

Figura 2 – A guerra começa a ser vencida.

Fonte: SOARES; LIMA, 2010.

Nessa reportagem, lê-se que “A batalha do bem contra o mal foi mais uma vez travada
no Rio de Janeiro – agora com tintas de Armagedon.” Após a batalha, foi possível a
“libertação da Vila Cruzeiro”, extirpando assim o “tumor maligno irrigado pelo populismo de
governantes irresponsáveis” que colocava em questão “capacidade do Rio de sediar com
segurança os jogos da copa do mundo de 2014 e a Olimpíada de 2016.” Essa porção maldita,
perseguida nas comunidades invadidas, era designada como a “escória” que “mancha a
magnífica paisagem carioca.” (SOARES; LIMA, 2010, p.135).
É possível perceber que, ao denunciar a fragilidade da segurança pública, a reportagem
veiculava uma mensagem que roga pelo endurecimento das medidas de segurança no
tratamento dos “criminosos perigosos”, banindo o que é qualificado pelos jornalistas como
“regalias”:
36

Todo o episódio lança luz sobre as fragilidades da segurança pública brasileira. Uma
delas diz respeito ao conjunto de leis lenientes com criminosos perigosos, que lhes
garantem relaxamento da pena e ainda certas regalias como, por exemplo, visitas de
advogados e parentes sem nenhum monitoramento. Os bandidos tiram proveito
dessas situações para transmitir ordens às facções que continuam a comandar de
dentro dos presídios. (SOARES; LIMA, 2010, p.142).

Em meio aos muitos elogios feitos à referida reportagem, por parte dos leitores da
revista, constava uma resposta de Leonardo Avelino Duarte, então presidente da OAB
(Ordem dos Advogados do Brasil). Ali ele afirmava que “O direito de conversa reservada
entre o preso e seu advogado não é uma regalia”, mas “uma garantia indispensável à
manutenção do contraditório e da ampla defesa, já que nenhum cidadão vai expor seus
problemas a um advogado se não houver a garantia da confidencialidade.” Duarte lembra
ainda que o sigilo “protege o cidadão, e não o criminoso.” (LEITOR, 2010, p.42).
Em reportagem anterior, comentando o sucesso do filme “Tropa de elite” (PADILHA,
2007), a revista Veja afirmava que o mérito do filme é retratar, com fidelidade, a realidade
brasileira, “pondo pingos nos is”: “bandidos são bandidos, e não ‘vítimas da questão social’.”
(CARNEIRO, 2007). O ponto de vista veiculado pela reportagem era o de que o Brasil “é um
país de ideias fora do lugar por causa da afecção ideológica esquerdista que inverte papéis,
transformando criminosos em mocinhos e mocinhos em criminosos.” Sendo assim, no Brasil
“a ‘questão social’ é justificativa para roubos, assassinatos e toda sorte de crime e
contravenção – mesmo quando praticados por quadrilhas especializadas, compostas por
integrantes que nada têm de coitadinhos.” (CARNEIRO, 2007).
Ao que tudo indica, a revista Veja propunha retificar o que qualificava de “ideias
fora do lugar.” (CARNEIRO, 2007). Para tanto, ela evocava as condutas desonestas e
violentas por parte de alguns policiais durante as megaoperações e justificava-as, alegando
que elas poderiam ser explicadas “pelo grau de penúria e abandono que o estado lhes
reserva.” (CARNEIRO, 2007). É patente a dissimetria entre os juízos emitidos quanto às
ações criminosas, cometidas por parte de criminosos ou policiais: aparentemente, para a
revista Veja, apenas os policiais seriam abandonados à penúria por parte do estado. Ou seja,
para eles a ‘questão social’ deveria ser considerada; para o criminoso, não! Ao final dessa
reportagem, a revista Veja evocou uma fala do personagem Capitão Nascimento, vivido pelo
ator Wagner Moura no filme “Tropa de elite” (PADILHA, 2007): “o policial tem três
escolhas: ou ele se corrompe, ou se omite ou vai para a guerra”. E isso para concluir que
37

(...) o Brasil só tem duas escolhas: ou derrota os criminosos ou é derrotado por eles.
Pela acolhida que o filme está recebendo, os brasileiros não têm a menor dúvida do
caminho a seguir. (CARNEIRO, 2007).

Após o lançamento do segundo filme da franquia - “Tropa de Elite 2: o inimigo agora


é outro” (PADILHA, 2010) - a revista Veja dedicou-lhe uma reportagem de capa,
apresentando o Capitão Nascimento como “o primeiro super-herói brasileiro.”

FIGURA 3 – Capa da revista Veja – “O primeiro super-herói brasileiro”.

Fonte: MEIER; TEIXEIRA, 2010.

Segundo o comandante do BOPE, Paulo Henrique Moraes,

O Bope virou pop star no Rio. A gente tem um apoio muito grande da população.
Viramos comentário até na boca de criança. Para você ter idéia, para o Dia das
Crianças lançaram aqui no Rio um caveirão de brinquedo – um carrinho que imita
nosso veículo blindado - e esgotou. (MEIER; TEIXEIRA, 2010, p.122).
38

Figura 4 - Caveirão de brinquedo.

Fonte: DIA DAS CRIANÇAS..., 2010.

Na “tragédia brasileira” (MEIER; TEIXEIRA, 2010), encenada por bandidos


perigosos e políticos corruptos, os soldados do BOPE foram promovidos à dignidade de
“heróis populares” (SOARES; LIMA, 2010, p.137), justiceiros honrados e incorruptíveis que
fazem justiça com as próprias mãos, uma espécie de Rambo brasileiro.
No primeiro filme da franquia, os inimigos eram os traficantes e os usuários de drogas,
sendo que esses últimos eram considerados como comparsas dos primeiros. Nesse segundo
filme, o ‘super-herói’ direcionava sua fúria contra os políticos e policiais corruptos, que
lucravam com as atividades criminosas realizadas nas favelas. Em sua exibição nas salas de
cinema, os filmes dividiram a opinião dos telespectadores. Para uns, os filmes eram dignos de
elogios, indicando às autoridades do Estado o caminho a ser seguido no trato com as questões
relacionadas à segurança pública e ao tráfico de drogas. Para outros, os filmes seriam
fascistas, ao veicularem a ideia de que violência deveria sempre ser combatida com violência,
não importando os meios necessários para alcançar a paz social. De qualquer forma, não se
pode desconhecer que eles têm o mérito de colocar em pauta a discussão das questões aqui
consideradas.
39

Além da revista Veja, a revista Época também dedicou reportagens de capa acerca da
guerra ao tráfico no Rio de Janeiro. Uma delas, já mencionada anteriormente, foi intitulada
“Um ataque inovador” (MASSON; AZEVEDO; FERNANDES, 2008), trazendo em sua capa
a imagem do inspetor Leonardo da Silva Torres, apelidado de ‘Trovão’. Nessa imagem Torres
caminhava entre três cadáveres estendidos no chão, vestido com uniforme de guerra, portando
em uma mão um rifle, e na outra, um charuto. Na reportagem, que abordava a megaoperação
realizada no Complexo do Alemão, afirmava-se que o inspetor simbolizava a “força policial
inovadora que hoje combate nos morros.” (MASSON; AZEVEDO; FERNANDES, 2008).

Figura 5 – Capa da revista Época – Inspetor ‘Trovão’.

Fonte: MASSON; AZEVEDO; FERNANDES, 2008.

Diante do título da reportagem, pode-se perguntar o que haveria de inovador em


invadir favelas e ‘deixar corpos no chão’, conforme as letras do hino de guerra entoado pelo
BOPE. Lendo-a pode-se depreender que a inovação concerniria, primeiramente, ao currículo
11
de Trovão, que foi “formado pela SWAT (Special Weapons And Tactics ) americana e pelo
Centro de Inteligência da Marinha Brasileira.” (MASSON; AZEVEDO; FERNANDES,

11
Armas e Táticas Especiais
40

2008). Além disso, inovador se referia também a uma mudança de estratégia durante as
incursões nos morros, conforme afirmou José Mariano Beltrame: “Não fomos lá prender uma
ou duas pessoas, uma liderança do tráfico. Fomos lá desmanchar bunkers, ilhas
inexpugnáveis. Fomos lá devolver direitos aos cidadãos.” (MASSON; AZEVEDO;
FERNANDES, 2008). Além disso, a operação integrou as polícias militar civil, bem como a
Força Nacional de Segurança, e foi baseada em um trabalho prévio de inteligência, feito a
partir de informantes infiltrados nos morros e favelas.
Assim como se constatou nas reportagens da revista Veja, Época glorificava o policial
combatente, como se ele fosse o super-herói que iria, finalmente, redimir a população das
máculas do crime e da violência.

Seu uniforme de campanha e o charuto que mantém aceso mesmo em serviço deram
uma cara nova aos agentes da invasão. Mais que isso, eles fizeram de Trovão
alguém com quem a população pode se identificar. Agora, há a sensação de que a
ação da polícia é para valer. (MASSON; AZEVEDO; FERNANDES, 2008).

A reportagem segue, sempre tecendo elogios às ações policiais e à “transparência no


discurso” por parte das autoridades.

Tanto o secretário Beltrame quanto o governador do Rio, Sérgio Cabral, são


elogiados publicamente. É como se a população do Rio de Janeiro não se sentisse
mais órfã nem refém do tráfico (MASSON; AZEVEDO; FERNANDES, 2008).

Mesmo que se reconheça que “o número de mortos é elevado”, e que entre eles
“houvesse inocentes”, tudo vale quando se trata de acabar com a violência que “envergonha,
amedronta e empobrece o país.” (MASSON; AZEVEDO; FERNANDES, 2008).
Na edição de 26/11/2010, a revista Época estampou na sua capa o símbolo do BOPE,
uma caveira atravessada por uma faca, com os dizeres: “Vamos vencer o tráfico.” O objeto da
matéria foi o início das incursões policiais feitas na favela da Vila Cruzeiro. Um pesado
aparato militar, incluindo seis tanques de guerra, similares aos que foram utilizados na guerra
do Iraque, foi utilizado para abrir caminho para os policiais do BOPE.

Estava em jogo ali a confiança do mundo na capacidade do Rio de sediar as


Olimpíadas de 2016 e a Copa de 2014. E também o futuro da política de segurança
da cidade, em especial de um projeto que, ao menos parcialmente, devolveu nos dois
últimos anos a paz a vários pontos da cidade: as Unidades de Polícia Pacificadora,
ou UPPs. (FERNADES [et al.], 2010).
41

Figura 6 - Capa da revista Época – “Vamos vencer o tráfico”.

Fonte: FERNADES [et al.], 2010.

A reportagem da revista Época celebrava a invasão policial, priorizando os eventos


esportivos que ocorreriam na cidade, em detrimento dos futuros rumos da política de
segurança. Além disso, apontavam-se diretrizes que poderiam contribuir para a maior
eficiência da polícia. Primeiramente, dever-se-ia “reformar as polícias”, coibindo “a
competição interna e a corrupção.” Além disso, seria necessário maior investimento na
“confecção de uma base de dados nacional de criminosos” (FERNADES [et al.], 2010), bem
como a construção de mais presídios de segurança máxima. Em nenhum momento se
concebia uma diretriz para a diminuição da criminalidade que não passasse pela policialização
da segurança pública. Nessa direção, nada mais se poderia esperar que o aumento da
violência, acompanhado do endurecimento das medidas extraordinárias de segurança.
Essas reportagens, imbuídas de um viés idealista e maniqueísta, buscavam glorificar a
violência policial e massagear o braço de ferro do estado, designando heróis e vilões, em uma
batalha do bem contra o mal. O discurso expresso por elas assumia um tom belicista,
42

colocando em jogo termos como invasão, ocupação, retomada ou “reconquista de territórios”


(LOUREIRO; TORRES; LEITE, 2010), “guerra no Rio”, “guerra contra o tráfico”, fazendo
eco à declaração de guerra do governador Sérgio Cabral: “É guerra!” (ISKANDARIAN,
2010). Conforme afirma Alves (2012, p.51),

Em sua versão mais simplista, os meios de comunicação construíam uma narrativa


segundo a qual essas comunidades estariam infestadas de criminosos e dominadas
por bandidos bem armados, em contraste com o restante da sociedade, localizado na
parte de baixo da cidade do Rio, que zelaria pelas leis. Isso incentivou a opinião
pública a fazer distinções nítidas entre quem vive nos morros e as classes média e
alta, que residem nos bairros do asfalto. (ALVES, 2012, p.51).

O noticiário da TV Globo estendeu o escopo do discurso bélico, ao declarar “O Rio


contra o crime” (OCUPAÇÃO..., 2010), convocando a população de bem a lutar contra o mal
do tráfico. Conforme indica a psicóloga e presidente do Grupo Tortura Nunca Mais-RJ,
Cecília Coimbra (2001), esse tipo de discurso visa instilar na audiência uma sensação de
insegurança, de modo a angariar apoio popular para o reforço das medidas de emergência
decretadas pelo Estado. Pode-se perceber, claramente, conforme afirma Mendonça (2012),
que “a emissora assumiu a atitude de se tornar, discursivamente, parceira da ‘resposta’ das
autoridades aos criminosos.” Dessa forma, assim como boa parte da imprensa hegemônica,
ela se tornou importante aliada do Estado no apoio às ações militares.
Durante sua ampla cobertura midiática da “ocupação do Alemão” (OCUPAÇÃO...,
2010), em 2010, a TV Globo acompanhou in loco a invasão do Complexo de favelas do
Alemão, mantendo em torno de 8 horas de cobertura diária durante os dias do conflito (24 a
29 de novembro de 2010). Ao longo desse período, a emissora bombardeou os lares dos
telespectadores com a transmissão ao vivo das imagens do confronto, incluindo-as em um
discurso que fazia coro com as vozes autorizadas. Durante a cobertura, repórteres da emissora
repetiram inúmeras vezes que se tratava de um “momento histórico”, algo efetivamente
“espetacular” (OCUPAÇÃO..., 2010), jamais testemunhado antes.
O depoimento dos jornalistas que participaram da cobertura, na época do confronto, é
esclarecedor no tocante à conversão da notícia em espetáculo. Ao serem convertidas em
espetáculo, as imagens da violência despertam o fascínio sacrificial, que seduzem e cativam
não apenas a audiência a quem se destina. Uma das jornalistas da TV Globo, encarregada de
cobrir a ocupação no Complexo do Alemão, lembra que a “alta tecnologia” proporcionou uma
“cobertura espetacular”:
43

Foi assim, uma experiência incrível, ao mesmo tempo em que as pessoas em casa
estavam vendo aquelas imagens inéditas, aqueles bandidos fugindo lá pelo alto da
Vila Cruzeiro, e todo mundo olhando aquilo de boca aberta, (...) e ficou todo mundo
abismado, chocado com aquilo. Ninguém nunca tinha visto aquele tipo de imagem
na televisão ou em lugar nenhum. (OCUPAÇÃO..., 2010).

O depoimento da jornalista buscava acercar-se do excesso de um real inominável


veiculado pelas imagens, que mobilizavam aqueles que eram expostos a elas. A obsedante
captura sacrificial induziu, nesses sujeitos, um forte sentimento de comunhão, permitindo um
estreitamento momentâneo dos enlaces identificatórios. Conforme o depoimento emocionado
de outro jornalista da TV Globo, “Isso virou uma corrente, tava todo mundo falando, é uma
coisa diferente que está acontecendo, dessa vez é diferente, dessa vez está todo mundo junto.”
(OCUPAÇÃO..., 2010). A formação dessa corrente se tornou possível a partir da designação
de um inimigo, destinado a cumprir a função de bode expiatório, elemento encarregado de
polarizar a agressividade inerente a qualquer massa ou agrupamento humano. Nesse caso, os
bandidos e criminosos foram designados como a exceção que permitiria ao conjunto se
constituir como massa coesa e compacta.
Ao final da operação policial, as bandeiras do Brasil e do Rio de Janeiro foram
hasteadas no ponto mais alto do complexo de favelas do Alemão, assinalando a retomada dos
territórios estrangeiros por parte do Estado e a “libertação da comunidade” (LOUREIRO;
TORRES; LEITE, 2010), segundo afirmou o então comandante-geral da Polícia Militar do
Rio de Janeiro, coronel Mário Sérgio Duarte. Após o final das operações, ele anunciou a
vitória das forças invasoras:

As aeronaves da Polícia Civil fizeram vôos rasantes e nos deram cobertura de fogo.
Tivemos o apoio mais a distância das aeronaves da Força Aérea, os blindados
fizeram o seu papel. A infantaria. Vencemos... vencemos. Trouxemos a liberdade
para a população do Alemão. Agora é trabalho de busca, procura, prisões e
apreensões. Menos resistência [...] Nós apenas conquistamos um terreno. O trabalho
mais cansativo vem agora. (‘VENCEMOS...’, 2010).
44

Figura 7 - Policiais hasteiam bandeiras do Brasil e do Rio de Janeiro após a ocupação do Complexo do
Alemão, em novembro de 2010.

Fonte: ERTHAL; RITTO, 2011.

O discurso do comandante reverberou na mídia, constituindo um lugar comum


partilhado por outras autoridades de estado. Segundo esse discurso, os heróis da polícia
finalmente trouxeram a liberdade para uma população amedrontada e dominada pelo crime.
Por sua vez, a mídia legitimava essa fala autorizada, buscando estendê-la também aos
moradores das comunidades invadidas.

Os moradores sabem que nós viemos para libertá-los. Os moradores sabem que nós
viemos aqui para trazer paz para a população. A população pediu isso. Nós
recebemos centenas de e-mails, centenas de pedidos de socorro. Se há casas onde
moradores dizem que a polícia não pode entrar, aí mesmo é que se torna mais
suspeita. (‘VENCEMOS...’, 2010).

Como se pode perceber, esses discursos não apenas produziram a verdade do


acontecimento, como também já anunciavam medidas de emergência que se seguiriam às
invasões, buscando legitimidade para justificá-las perante a população. Dessa forma, os
discursos autorizados pretendiam falar em nome da população que residia nas comunidades
invadidas. Foi assim que, durante o encerramento da edição de 27/11/2010 do telejornal da
Rede Globo, a apresentadora leu a carta de uma moradora anônima da Vila Cruzeiro: “Aos
governantes e toda força militar, nossos guerreiros, nossos heróis: obrigada. Liberdade,
45

liberdade abre as asas sobre todos nós!” (OCUPAÇÃO..., 2010). Ver-se-á, mais adiante, que
esse tipo de mensagem libertária não expressava apropriadamente o ponto de vista de muitos
dos moradores das comunidades invadidas. Na verdade, a voz dos moradores recebeu pouco
espaço na cobertura midiática, e só era mencionada quando estava em concordância com os
discursos autorizados.
Ao fim da invasão ao Complexo do Alemão, a PM pôde exibir diante das câmeras os
presos como um troféu, enquanto que o âncora do Jornal Nacional da Rede Globo pôde exibir
orgulhosamente o troféu Emmy-2011 sobre sua bancada de trabalho. O prêmio veio para
celebrar, justamente, a cobertura da Rede Globo sobre a ocupação do Complexo do Alemão,
tendo sido comemorada como um marco de excelência no jornalismo brasileiro.
Pode-se perceber como Cristopher Lasch (1983, p.109) estava com razão, ao afirmar
que a dimensão política não constituiu exceção à generalização do apelo midiático do
espetáculo, tendo se mesclado com este para ser convertida em uma “arte de controle de
crises”.

A propaganda procura criar no público uma crônica sensação de crise, a qual,


por sua vez, justifica a expansão do poder executivo e dos segredos que o
cercam. (LASCH, 1983, p.109).

Michel Foucault, por sua vez, já advertia que a história não cessa de nos ensinar que
“o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas
aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar.” (FOUCAULT,
1970/1996, p.10). A manipulação da opinião pública constitui, nos dias atuais, uma poderosa
arma de guerra. Apesar de ter sido muito criticado por alguns, o tom triunfalista das
reportagens mencionadas contaram com expressiva aprovação da população, que sem uma
reflexão mais detida acerca de suas implicações, apoiou as medidas extremas adotadas pelo
Governo Federal. Conforme afirma Alves (2012, p.24), “a opinião pública aplaude a guerra da
polícia contra os bandidos do tráfico em bairros pobres, desde que o conflito não se estenda
para as regiões nobres de classe média e classe alta”.
Reportagens como as que foram aqui mencionadas permitem compreender essas
complexas relações, entre os setores hegemônicos da mídia nacional e o discurso dos agentes
do Estado, de índole sacrificial, beligerante e totalitária. Esse discurso pôde ser claramente
delineado, não apenas a partir das declarações e notas oficiais tornadas públicas, mas também,
46

a partir de pesquisas acadêmicas (ALVES, 2012; FILHO, 2010; RAMOS, 2010), que se
dedicaram exclusivamente ao estudo dessas questões. A seguir, serão abordadas algumas
dessas declarações por parte das autoridades de Estado, escolhidas em virtude de sua
pertinência ao tema da pesquisa.

1.5- Violência, preconceito e intolerância: a incitação sacrificial no discurso das


autoridades de Estado

A militarização da segurança pública, no Rio de Janeiro, conforme afirma Cecília


Coimbra (2001), é sucedânea das operações policiais de perseguição a sujeitos considerados
subversivos pelo regime militar. No contexto atual, entretanto, o personagem perseguido não
é mais o revolucionário subversivo, mas o marginal que reside nas favelas. Ainda segundo a
autora (2001), a militarização da segurança pública encontra suas raízes, não apenas na
retórica da doutrina da Segurança Nacional, mas também no discurso higienista, que
consagrou a associação entre a miséria do povo e a disseminação de enfermidades,
concebendo a miséria como mazela social contagiosa, que deveria ser erradicada.
Podem-se perceber, em várias declarações prestadas pelos representantes públicos da
lei, traços que permitem reconhecer, de forma clara, a sustentação de um discurso eugênico e
higienista, voltado para a imunização social e a difusão do terror entre as comunidades
desfavorecidas. Marcus Jardim, coronel da Polícia Militar (PM) do Rio de Janeiro, se tornou
famoso por suas declarações irônicas, divulgadas com estardalhaço pela mídia. Ao referir-se à
atuação dos traficantes, Marcus Jardim comparou-a a uma epidemia de dengue, associando,
metaforicamente, a PM como “o melhor inseticida social.” (TOLEDO, 2008). Tal declaração
se referia às incursões da PM na favela de Vila Cruzeiro, onde nove pessoas foram mortas e
seis ficaram feridas. Pode-se perceber o tom eugênico e higienista dessa declaração que, de
forma irônica, asseverava que certos sujeitos seriam tratados como insetos daninhos, ou seja,
deveriam ser exterminados.
Em 2007, durante as incursões ao Complexo do Alemão, o coronel Marcus Jardim
declarou que aquele seria um “ano marcado pelos três ‘pês’: PAN, PAC e pau”, (TORRES,
2008), ou seja, os jogos Pan-Americanos, o Plano de Aceleração do Crescimento (então
adotado pelo Governo Federal) e a violência policial, à espreita dos moradores das
47

comunidades pobres do Rio de Janeiro. De fato, o ano de 2007 se revelou extremamente


violento para os moradores dessas comunidades, especialmente para aqueles que residiam no
Complexo do Alemão: durante o mês de julho, as incursões feitas nessa comunidade deixaram
um saldo de 19 mortos e mais de 50 feridos.
Para José Mariano Beltrame, “um tiro em Copacabana é uma coisa, um tiro na Coréia,
no Alemão, é outra” (TOSTA, 2007), deixando claro, dessa maneira, que a violência só se
torna um problema quando desce o morro, mas nas favelas, ela é tacitamente aceita, e vista
como algo banal. Em suas declarações à imprensa, o secretário aproveitou a ocasião para
afirmar que se tratava de uma guerra (SOARES, 2007), e anunciar que “vai haver um
confronto onde inocentes irão morrer.” (TORRES, 2008).
Ao comentar a megaoperação policial realizada no Complexo do Alemão, em junho de
2007, o governador Sérgio Cabral afirmou à revista Época que “não há outro caminho a ser
seguido”:

A população está convencida da necessidade desse confronto. Nos últimos anos


houve um crescimento da musculatura do tráfico que a população não suporta mais.
As pessoas estão prontas para fazer o sacrifício porque sabem que só isso vai
melhorar sua qualidade de vida. Durante muitos anos o campo progressivo, a
esquerda, associou a ordem pública à ditadura, ao autoritarismo. Hoje sabemos que a
ordem pública é a garantia da cidadania. Todos temos que fazer sacrifício pela
vitória contra a barbárie. Não há como fazer omelete sem quebrar os ovos. O próprio
presidente Lula disse que o crime não se combate com pétalas de rosa.
(FERNANDES, 2007).

Na mesma entrevista ele afirmou que o objetivo das incursões policiais

(...) não é acabar com o tráfico. Isso ninguém conseguiu até hoje. O tráfico não
acabou em Paris, em Nova Iorque e nem em Estocolmo, que têm muito mais
recursos do que nós. O objetivo é chegarmos a níveis civilizatórios de criminalidade.
(FERNANDES, 2007).

Diante de tal declaração, surge a questão do que o governador entendia pelos alegados
“níveis civilizatórios de criminalidade.” Isso se torna pertinente, tendo em vista que, em
outras ocasiões, ele adotou um discurso claramente eugênico e criminalizador da pobreza,
afirmando que as favelas são fábricas de produzir marginais, verdadeiros berçários do crime.

A questão da interrupção da gravidez tem tudo a ver com a violência. (...) Você pega
o número de filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Méier e
Copacabana, é padrão sueco. Agora, pega na Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão.
48

Isso é uma fábrica de produzir marginal. Estado não dá conta. Não tem oferta da
rede pública para que essas meninas possam interromper a gravidez (FREIRE,
2007).

Nesta declaração, percebe-se que a pobreza caminha junto com a criminalidade, o que
justificaria um procedimento preventivo de limpeza social dos morros e favelas. Ao se
pronunciar dessa forma, o governador traz à tona a polêmica questão do aborto eugênico,
vinculando-a ao problema da violência pública. Ele acrescenta que essa indicação pode ser
encontrada no livro Freakonomics (2005), de autoria de Steven Levitt e Stephen J. Dubner,
que sustentam a tese de que “uma criança nascida em um ambiente familiar adverso tem
muito mais probabilidade que outras de se tornar um bandido.” (LEVITT; DUBNER, 2005,
p.18). Nessa perspectiva, o discurso eugênico-higienista aponta para uma diretriz preventiva
de controle social, propugnando atacar o problema da criminalidade em sua raiz, evitando,
assim, o nascimento de futuros marginais.
O ideal de previsão dos riscos e controle das mazelas sociais faz parte da atual lógica
gestionária de governo, que anula a dimensão política da participação social, em benefício de
uma administração burocrática baseada no controle informatizado. Um exemplo de como essa
forma de administração racional se efetiva em ato é a política de tolerância zero, adotada na
cidade de Nova Iorque com relação ao problema do aumento da criminalidade e do
terrorismo, após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. Na prática, essa política
implica em uma aplicação inflexível da lei, particularmente sobre delitos menores, uma vez
que se assume que esses são potenciais precedentes para delitos maiores. O enfoque é
basicamente preventivo, baseado no cálculo das probabilidades.
Segundo Wacquant (2004), a política de tolerância zero se tornou mais um produto do
capitalismo globalizado, que agora é exportado para outros países, a exemplo do Brasil. Tal
política é acompanhada da “retórica militar da ‘guerra’ ao crime e da ‘reconquista’ do espaço
público, que assimila os delinquentes (reais ou imaginários), sem-teto, mendigos e outros
marginais a invasores estrangeiros.” (WACQUANT, 2004, p.19).
Isso fica patente no pronunciamento proferido durante a cerimônia de posse do então
presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2007, ao afirmar que os ataques violentos que
ocorreram no Rio de Janeiro seriam tratados como atos terroristas: “Essa barbaridade que
aconteceu no Rio de Janeiro não pode ser tratada como crime comum. Isso é terrorismo e tem
que ser combatido com a política forte e mão forte do Estado brasileiro.” (SILVA, 2007, p.6).
49

O discurso da guerra ao terror, adotado pelas autoridades, coloca em cena a figura do


terrorista, personagem encarregado de polarizar a agressividade contra o estrangeiro. A
condição sui generis do terrorista diante do ordenamento jurídico é homóloga à do homo
sacer: sua morte não constitui um crime, pois é considerada como efeito colateral necessário
de um conjunto de ações planejadas e realizadas em nome de um bem maior.
A morte desses sujeitos constitui, a partir desse ponto de vista, baixa humana em uma
guerra, que só encontra inscrição em documentos oficiais sob forma das estatísticas que
compõem o resultado de operações legais de segurança. Nesse tipo de guerra, lembra Bauman
(2005), qualquer cidadão é potencial candidato ao papel de baixa colateral, ainda que ele não
tenha declarado essa guerra, nem concordado com ela.
Qualquer forma de resistência ao discurso intolerante propagado pelas autoridades e
pelo segmento hegemônico da mídia era previamente desqualificada como simpatizante do
tráfico, o que tornava ainda mais ineficaz qualquer manifestação de repúdio pelas decisões
tomadas acerca da política de segurança. Inclusive o discurso acadêmico, que vem produzindo
inestimáveis contribuições ao trabalho de reflexão crítica em torno dessas questões, foi logo
de partida desqualificado, como fica evidenciado nessa declaração de José Mariano Beltrame:

Não podemos passar a mão na cabeça dos marginais, com a desculpa de que eles são
excluídos sociais. Dentro desses conceitos vagos, as pessoas navegam sem rumo.
Não fujo da discussão, mas não me apresentem discursos acadêmicos como se eles
fossem solução. A meu ver, esse é um equívoco que as ONGs [organizações não-
governamentais] cometem, pois não conseguem enxergar nada além das ciências
sociais. (SOARES, 2007).

Ainda pior foi o destino daqueles que eram imbuídos de autoridade e poder para
investigar e julgar os envolvidos nas ações criminosas: sofreram ameaças, foram perseguidos
e, eventualmente, assassinados. Um exemplo disso foi o assassinato da juíza Patrícia Acioli,
morta a tiros em 2011, na entrada da garagem de sua casa, em Niterói, por policiais
envolvidos com as milícias (ANDRADE, 2013). Acioli era conhecida pelo rigor com que
julgava esses policiais, e mesmo tendo recebido várias ameaças de morte, a magistrada não
acreditava que pudesse morrer em decorrência do seu trabalho; infelizmente, ela estava
enganada. Vale mencionar também, como exemplo, o caso do deputado estadual do PSOL-RJ
(Partido Socialismo e Liberdade - Rio de Janeiro), Marcelo Freixo, que presidiu a CPI
(Comissão Parlamentar de Inquérito) das milícias em 2008, responsável por apurar o
envolvimento de 226 agentes do estado (incluindo políticos, agentes penitenciários,
50

bombeiros e policiais, civis e militares) com as atividades criminosas das milícias.


Diferentemente da juíza Patrícia Acioli, Marcelo Freixo sobreviveu, apesar das ameaças de
morte.
Em entrevista ao programa “A Liga” (VÍDEOS DA MADRUGADA..., 2013), ao ser
perguntado sobre a ocupação militar no Complexo do Alemão, Marcelo Freixo disse que isso
é muito preocupante, pois “o exército não tem função de polícia”, e não se deveria
desconsiderar que essa ocupação ocorria em um país democrático,

(...) que saiu de uma ditadura militar que durou 21 anos, e que rediscute o seu
parâmetro de segurança pública, enfim, direitos fundamentais, e você tem o exército
fazendo papel de polícia ocupando militarmente uma área, sem um debate profundo,
no qual os moradores possam ser ouvidos. (VÍDEOS DA MADRUGADA..., 2013).

No dia seguinte à invasão policial no Complexo do Alemão, Freixo foi ao local escutar
os moradores, e se disse muito impressionado com os relatos que testemunhou.

1.6- Os inimigos da vez: a voz dos moradores das comunidades invadidas

Os campos de concentração e de extermínio dos


regimes totalitários servem como laboratórios onde se
demonstra a crença fundamental do totalitarismo de
que tudo é possível. (ARENDT, 1951/1989, p.488).

A gente, que mora na favela, nunca pode dizer: ‘Isso


nunca vai acontecer comigo’. Eu via casos de mortes
pela televisão e pensava que isso nunca ia acontecer
aqui, com a minha família. Podemos estar aqui
conversando hoje e amanhã eu sair na rua e tomar um
tiro. Estamos sujeitos a morrer em qualquer lugar, mas
aqui é mais perigoso. Eu me sinto mais vulnerável.
(ALVES, 2012, p.114). [Depoimento de moradora que
perdeu o filho de oito anos, morto pela polícia durante
um tiroteio].

O testemunho dos moradores é fundamental para avaliar o impacto das ações policiais
sobre as comunidades invadidas. Mesmo sabendo que a maior parte dos habitantes das favelas
não tinha ligação alguma com a criminalidade ou com o narcotráfico, eles acabaram se
tornando vítimas dos confrontos armados. Através da pesquisa documental, foi possível
encontrar alguns depoimentos, prestados por moradores das comunidades invadidas.
51

Figura 8 – Rotina de tiroteios no Complexo do Alemão

Fonte: ARAÚJO, 2015.

Percebe-se, nesse contexto, uma perspectiva que difere daquela que foi abordada nos
tópicos anteriores. Esse confronto de pontos de vista antagônicos prolonga as linhas de força
envolvidas no conflito. De um lado, moradores se queixavam da brutalidade e truculência dos
agentes policiais, denunciando roubos, maltrato, extorsões, ameaças, torturas, execuções e
outras ações criminosas cometidas por eles. De outro lado, os agentes de estado, apoiados
pelo setor hegemônico da mídia, responderam dizendo que muitos desses depoimentos eram
falaciosos, e sua finalidade seria acobertar os verdadeiros criminosos e manchar a reputação
da força policial perante a opinião pública. Muitos moradores temiam prestar depoimentos
perante a polícia ou à imprensa, com medo de represálias, tanto por parte dos agentes do
Estado, quanto por parte dos traficantes.
52

Figura 9 – Oficiais do BOPE reprimem um protesto contra a morte de um morador no Complexo


do Alemão durante uma megaoperação em 2007.

Fonte: TEIXEIRA, 2013.

Não se deve desconsiderar, também, que depoimentos tais como os que são aqui
elencados constituem, muitas vezes, uma transgressão da famigerada lei do silêncio, que
vigora nas favelas. A partir dos depoimentos dos moradores das comunidades invadidas, é
possível perceber que eles não foram respeitados pela polícia, durante as incursões realizadas
por ela. Segundo o morador Brito de Andrade,

As coisas de valor que temos em casa, dinheiro, temos que esconder tudo, porque o
PM pode entrar e levar. Acontece muito. Fora que uma operação como essa muda
toda a rotina dos moradores, a gente ouve o barulho dos tiros e não consegue dormir
direito, fica em dúvida se vai trabalhar, se vai estudar. Pela televisão não ficamos
sabendo de nada com certeza, já que, sempre que falam do conflito, repetem cenas
antigas. Quando saímos do morro vemos vários soldados da FNS [Força Nacional de
Segurança] com fuzis apontados pra nossa cara, isso é muito ruim. Sei que há
policiais cumprindo ordens, honestos, mas em geral são muito violentos, sim. O
trabalhador é xingado, leva tapa na cara. (...) fico imaginando um morador dizer a
um policial isso que vemos nas novelas: só falo na presença do meu advogado! Se
você disser isso a um PM no mínimo vai levar muita porrada. (ABREU et al, 2014).

Quando os policiais invadem o morro, alguns desses agentes aproveitam a ocasião


para tomar posse das moradias, mediante o uso da força:
53

No dia 11 de abril [de 2007] eles invadiram a casa de um amigo meu. Comeram tudo
que tinha na geladeira, jogaram tudo no chão, sujaram tudo, quebraram muitas
coisas dele. O rapaz não estava em casa. Sorte dele porque, se estivesse, talvez nem
estivesse mais aqui para contar a história, pois eles matam mesmo. (ALVES, 2012,
p.91).

A polícia estava cometendo muita arbitrariedade, agressão e violência contra


mulheres e crianças, abusos principalmente contra mulheres, idosos e crianças.
Muita agressão. Jovens baleados e feridos. Simulavam encontrar drogas com jovens,
prendiam irregularmente, entravam nas casas à força, arrombando. (ALVES, 2012,
p.158).

A forma de abordagem dos policiais, tal como descrita, foi flagrantemente ilegal,
desrespeitando direitos constitucionais fundamentais, como a inviolabilidade domiciliar.

Figura 10 – Exemplo de bilhete afixado pelos moradores nas portas de suas casas durante as
megaoperações no Complexo do Alemão em 2010.

Fonte: GRANJA, 2010.

É possível constatar, também, que os policiais nem sempre faziam distinção entre
cidadãos de bem e criminosos procurados pela justiça, considerando, como petição de
princípio, todos suspeitos. Embora houvesse agentes policiais qualificados como honestos
pelos moradores, havia também aqueles que os desrespeitavam, agindo de forma criminosa.
Essa oposição entre as categorias de cidadão de bem (ou trabalhador) e criminoso, que tendia
a se apagar durante as operações policiais, era correlata, no lado da polícia, à oposição entre
54

as categorias de policial honesto e policial corrupto. Sendo assim, essas categorias perderam o
seu efeito diferenciador, predominando uma zona de indistinção entre legalidade e
ilegalidade. Nesse contexto surgiam, a todo o momento, categorias marginais, nomeações que
não garantiam nenhuma possibilidade de reconhecimento do estatuto civil do sujeito em
questão: “Se você não é bandido, para eles é um desocupado, vagabundo...” (ABREU et al.,
2014).
Em uma entrevista concedida ao jornalista Marcelo Salles, Sadraque Santos, fotógrafo
e morador do Complexo do Alemão, afirmou que a presença ostensiva das forças policiais nas
favelas acarretava uma cessão do direito fundamental de ir e vir. Com isso, a população
tornou-se refém do cerco policial, impedida de sair para trabalhar, ou levar as crianças para a
escola:

Na primeira [vez], tive que dar a volta e sair por outro lado. Em outra, tentei dar a
volta, mas tava tudo fechado. Tive que esperar até onze horas da manhã para ir
trabalhar. Nosso direito de ir e vir nunca é respeitado. (SALLES, 2007).

Este ponto é corroborado a partir de alguns depoimentos colhidos por Maria Helena
Moreira Alves, que abordam não apenas sobre o cerco policial imposto aos moradores, mas
também sobre o famigerado toque de recolher:

Nós não temos mais direito de andar, de ir e vir, porque não tem mais direito não,
não tem mais nada, a qualquer momento tem tiroteio, tem Caveirão, tem confronto.
(ALVES, 2012, p.95).

Temos um curso de alfabetização de adultos que é para porteiros, para senhoras,


para outros adultos analfabetos. E funciona das 20h às 22h. E não podemos mais
funcionar, porque às 21h30 há o toque de recolher e não se pode subir o morro. Eles
não descem porque depois não podem subir o morro para voltar pra casa. (ALVES,
2012, p.173).

A arbitrariedade das operações policiais podem ter consequências bem mais nefastas
do que a cessão do direito de ir e vir. Durante as incursões policiais, “quando o caveirão vem
na favela, mata trabalhador também. Fizeram [barricadas] na Penha, na Fazendinha e no
Complexo do Alemão. Tá morrendo muito inocente.” (SALLES, 2007). Não havia, portanto,
nenhum critério de diferenciação entre aqueles que habitavam o território invadido: todos
eram tratados como foras da lei.
55

Desconsiderando por completo sua função investigativa, a polícia procede adotando o


princípio de que ninguém é inocente. Sem nenhum critério que permita delinear de forma
clara o alvo das operações, a atuação policial se torna violenta, arbitrária e imprevisível.

A polícia não sabe quem é e quem não é bandido - mas trata todo mundo como se
fosse. Então, a comunidade acaba ficando contra. (ALVES, 2012, p.71).

O Estado considera que todos são marginais. Não tem distinção nenhuma. (...) As
pessoas tomam bala perdida aqui, morrem e são tidos como marginais. Outro dia
mataram um barbeiro aqui quando estava no trabalho. Falaram que era marginal.
Não era! O cara estava trabalhando, morador daqui há mais de 30 anos. (ALVES,
2012, p.61).

É curioso, para aquele que se debruça sobre manchetes de jornais e depoimentos


diversos, perceber uma mensagem subliminar, veiculando sub-repticiamente que o extermínio
de inocentes deveria suscitar indignação, mas não o de criminosos. Conforme afirma Coimbra
(2001, p. 215, aspas da autora),

Desde que aplicadas aos “diferentes”, “marginais” de todos os tipos, tais práticas são
em realidade aceitas, embora não defendidas publicamente, como a pena de morte,
por exemplo. É comum ouvirmos a seguinte pergunta quando se fala de tortura e/ou
desaparecimento: “mas, o que ele fez?” Como se tais procedimentos pudessem ser
justificados por algum erro, deslize ou crime cometido pela vítima. Somente em
alguns casos - quando se trata de “pessoas inocentes” - há clamores públicos, o que
mostra que para “certos” elementos essas medidas até podem ser aceitas.

Essa lógica, confirmada pelo ditado popular ‘bandido bom é bandido morto’, é
reforçada por alguns programas do assim chamado jornalismo popular e, também por alguns
políticos como o deputado estadual Túlio Isac. Em declaração à rádio CBN Goiânia, o
deputado prometia que, caso fosse eleito à prefeitura da capital, ele “jogaria duro com
bandido”.

Bandido bom, para mim, é bandido morto. Na minha opinião, eu não teria meio
termo com eles. Não tem essa conversa de ficar achando que você tem que tratar o
bandido como trata o cidadão. (BANDIDO..., 2011).

Vale mencionar que no link do site G1, usado como fonte para a obtenção dessa
informação, foi possível encontrar mais de 50 comentários, a maioria apoiando as opiniões do
deputado, muitos deles prometendo-lhe o voto. A fala do deputado Túlio Isac é reveladora
com relação à constatação da situação de anomia jurídica que caracteriza o estatuto civil de
certos sujeitos, a quem são recusadas as prerrogativas de cidadania. Matá-los não constitui
56

crime, pois sua morte é considerada necessária no contexto da aplicação das medidas
extraordinárias de segurança, próprias de um Estado em guerra.
Conforme considera Ignácio Cano (2015), a partir de pesquisas realizadas sobre essa
questão, muitos daqueles que avalizam a máxima ‘bandido bom é bandido morto’ não
necessariamente apoiam a instituição legal da pena de morte no país. Eles “apoiam
simplesmente que a lei seja ignorada em caso de bandidos, mas quem será que vai decidir
quem é bandido e quem não é?”.
Em entrevista ao jornalista Rafael Fortes (2008), João Tancredo, ex-presidente da
Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ, afirmou que, hoje, já se assume abertamente que
a matança é autorizada, haja vista que o extermínio se tornou política de estado para lidar com
o problema das populações pobres.

O extermínio é política de Estado. Vai fazer o que com este monte de pobres? (...).
Matam, fazem o auto de resistência e dizem que foi em confronto e acabou. No
[Complexo do] Alemão isso ficou muito claro (...) os policiais se sentem autorizados
a matar estas pessoas porque as vêem como coisa, e não como cidadãos com direitos
e garantias. (FORTES, apud FILHO, 2010, p.53).

Ora, em um Estado democrático de direito, o tratamento de criminosos deveria se


pautar pela aplicação irrestrita das mesmas leis que valem para todos. Mas fica claro que não
é isso o que acontecia na realidade dos moradores das favelas cariocas, em particular, durante
as incursões policiais. O tratamento dado pelo Estado a esses sujeitos não correspondia àquele
que deveria ser legalmente conferido a criminosos, nem muito menos a cidadãos.
Além do constrangimento de serem tratados como criminosos, os moradores relatam a
forma brutal pela qual os agentes do Estado tentavam obter informações por meio da força:

O pior é que a Polícia Militar, o Bope, pressionam os moradores, com armas na mão,
ameaçando se não disserem quem é quem, onde estão escondidos, onde tem ponto
de fumo, onde tem armas. (...) Eles falam assim: "Encosta aí na parede. Vocês
sabem onde é que fica. Sabemos que vocês sabem, não querem é falar. Vamos
arrancar isso de vocês". (ALVES, 2012, p.95).

Isso colocava os moradores em uma difícil situação, uma vez que, apesar da presença
massiva da polícia, a lei do silêncio imposta pelos traficantes ainda vigorava. Do ponto de
vista dos traficantes, a delação é considerada ofensa grave, passível de punição com a morte.
Sendo assim, o morador se via em um impasse: se delatava os criminosos, sofria as sanções
57

dos traficantes; se não cooperava com a polícia, era tratado como cúmplice do tráfico, sujeito
a ser interrogado, ameaçado e torturado por seus agentes.

A maioria dos moradores, inclusive eu, reclama da atitude da polícia, que costuma
usar de covardia com os moradores. Covardia mesmo! Coisas do arco-da-velha, se
eu contar você nem acredita. (...) Invadindo casa de morador, sacaneando morador,
mexendo com filha dos outros. Estão fazendo coisas do mesmo nível dos bandidos.
(SALLES, 2007).

Não há mais respeito. Estão agindo corno se fossem traficantes. Estão se misturando,
pra mim não tem mais diferença: policia é a mesma coisa que bandido. Até bandido
respeita mais os moradores. (ALVES, 2012, p.116).

Em entrevista concedida à Alves (2012), professores que lecionavam em uma escola


próxima ao Complexo do Alemão narraram o horror que tomava conta do local durante os
confrontos. Ao ser invadida pelos policiais, a escola era transformada em base de operações;
com metralhadoras em punho, eles arrombavam as portas das salas de aula e subiam nas
mesas para poderem efetuar disparos do telhado.

A polícia chega aqui, sem dar a mínima importância a quem está no caminho - e
aqui são cinco escolas -, troca tiros com os bandidos e vai embora deixando um
campo de matança. (ALVES, 2012, p.64).

A polícia agora usa a escola como escudo. Eu acho um absurdo que um poder que
tem que nos proteger entre arrombando a escola, quebre coisas, e até roube
equipamentos. (ALVES, 2012, p.94).

Situada em uma área de fogo cruzado entre policiais e traficantes, a escola teve as suas
paredes crivadas por balas de fuzil, disparadas durante os confrontos. Em função do tipo de
armamento utilizado, as balas trespassavam as paredes, tendo sido necessário blindá-las, de
modo a proteger alunos e professores durante os tiroteios. Em um único dia de confronto, os
professores coletaram no pátio da escola 72 cápsulas de munição deflagrada.

A única forma de atuação do Estado aqui na comunidade é a guerra, o que vai


permanecer enquanto tivermos essa ideia de, como diz o governador, que o
Complexo [do Alemão] é um antro de marginais, é o ‘inimigo do Estado’. Me
parece que é uma visão bem excludente, fascista mesmo, porque os pobres são todos
inimigos e todos considerados bandidos. Então não importa se é na escola, se tem
mil crianças lá dentro, porque todos são marginais. Você vê, é uma política
completamente excludente, e a gente tem um tratamento puramente bélico, sem
respeito algum. (ALVES, 2012, p.57).
58

Conforme denunciaram os professores, o excesso da presença militarizada contrasta


com a ausência de assistência social por parte do Estado. Na comunidade em questão, não
havia posto de saúde, nem a presença de nenhum outro órgão público. Mesmo serviços
básicos, como a coleta de lixo, correios, entre muitos outros, tinham que ser interrompidos por
causa dos confrontos frequentes. Para piorar a situação, os policiais costumavam cortar a água
e a luz antes das invasões, deixando aos moradores o encargo de fazer os reparos e custear o
prejuízo.

No ano passado eles estouraram os transformadores e ficamos dias sem água e sem
luz. Foi um tiroteio de três dias direto. Então agora os moradores se ajudam e fazem
as manutenções eles mesmos, porque nem a Cedae [Companhia Estadual de Águas e
Esgotos], nem a companhia de luz, nem a Comlurb [Companhia Municipal de
Limpeza Urbana], para o lixo, querem vir para cá. Nem os Correios temos mais.
(ALVES, 2012, p.58).

Nos depoimentos prestados pelas pessoas que residiam nas comunidades invadidas,
transparecem o horror e o desespero diante da situação de absoluto abandono político e
jurídico. Uma vez que a própria polícia atuava de forma criminosa, não havia a quem recorrer.

Cada vez que tem um tiroteio a gente fica aqui, abandonada, vivendo horas de
horror. Porque não tem ninguém que se importe com a nossa vida, com a nossa
situação, ninguém. (ALVES, 2012, p.65).

O Bope faz coisas horríveis. No lugar onde moro eles arrombam as casas, botam
abaixo as portas e vão entrando. Se tiver homem lá dentro, matam. Graças a Deus,
nunca pegaram meu marido dentro de casa, porque se pegarem homem dentro de
casa, matam. Não querem nem saber quem é. Matam direto. Mulher e criança, eles
batem, eles xingam, eles falam palavrões, e às vezes violam e matam. Não têm
respeito nenhum. (ALVES, 2012, p.90).

Foi um desespero, porque ali na minha esquina, a polícia fica escondida de um lado
e os bandidos ficam de outro. Quem aparece leva bala. Sair de casa é morrer. (...)
Não querem nem saber se é criança ou não. Apareceu na rua, leva bala. Dos dois
lados, da policia e dos bandidos. (ALVES, 2012, p.92).

A arbitrariedade da atuação policial pode ser constatada também no uso do famigerado


elemento-surpresa, estratégia adotada pelo Estado no planejamento das megaoperações, com
vistas a surpreender os traficantes. Esse recurso aumentava sobremaneira os índices de
letalidade durante as invasões policiais, pois como elas não eram anunciadas, a população
local não contava com o tempo hábil para procurar abrigo e se proteger, permanecendo
acuada e desprotegida em meio ao fogo cruzado.
59

(...) não tem mais horário de tiroteio. Um dia, às oito da manhã, quando as crianças
estão na rua a caminho da escola; outro dia, na hora do recreio, quando estão no
pátio e entra o Caveirão atirando. (ALVES, 2012, p.59).

Quando é incursão policial, as pessoas são pegas de surpresa. Geralmente é de


manhã ou à tarde quando há crianças indo e voltando da escola, pessoas indo para o
trabalho. E é uma coisa muito aterrorizante. Principalmente quando há uma entrada
da polícia acompanhada do Caveirão. (...) Nunca se sabe quem foi baleado: um
menino, uma dona de casa, um estudante, um traficante, um operário. Até você ter
certeza que seus parentes e amigos estão bem, é um desespero. (SALLES, 2007).

A estratégia militar adotada, por parte do Estado que buscava extrair vantagem do
elemento-surpresa, revestia a operação policial com o manto opaco da imprevisibilidade e da
arbitrariedade. Na percepção de muitos moradores, isso tornava as operações policiais ainda
mais perigosas e temidas do que os confrontos armados entre traficantes. Alguns moradores
falam do elevado índice de letalidade das invasões policiais, questionando, inclusive, as
estatísticas veiculadas pela mídia de grande circulação:

(...) eu já perdi a conta de quantos já morreram. No meu portão mesmo já jogaram


corpos muitas vezes, a ponto de eu ter de chegar e pular por cima com as crianças,
porque ficam bem na frente do meu portão de casa. (ALVES, 2012, p.100). (...)
Quando dá no jornal que foram quatro mortos, nunca são quatro. Eles nunca dizem.
Porque uns somem. (ALVES, 2012, p.101).

De fato, depoimentos dos moradores permitem assinalar discordâncias quanto às


informações divulgadas pela mídia. Nesses depoimentos, a mídia foi qualificada de
sensacionalista e favorecedora da violência policial, ao legitimá-la e ainda extrair disso um
benefício próprio na venda de notícias.

A mídia distorce as ações dos policiais. A imprensa divulga que os policiais


limparam o morro, ou como li esses dias: passaram o rodo, usando de
sensacionalismo para vender seu peixe, mas não apura a fundo, não mostra o lado
dos moradores, como as crianças estão ficando traumatizadas, a educação
prejudicada (ABREU et al, 2014).

Esse ponto é corroborado pelo depoimento de Sadraque Santos, que fala do caráter
tendencioso das informações veiculadas pela mídia:

Pior é aquela declaração do comandante das operações em áreas especiais. Ele tem
falado na imprensa que traficante está dando tiro em morador para desestabilizar o
trabalho da polícia. Isso é uma covardia. Porque é uma questão lógica. Quando você
60

mora na comunidade, sabe que tem certas regras. Se isso fosse verdade, todo mundo
ia sair da favela, nem que fosse para morar na rua. O traficante sabe que nessas
ocupações da polícia o morador é importante pra ele. (SALLES, 2013).

Em meio a essa guerra de informações, assistiu-se a uma profusão de discursos


conflitantes. Por exemplo, o discurso oficial, veiculado pela imprensa de ampla divulgação,
noticiava que os traficantes destruíam os geradores de energia. Santos afirmou o contrário,
que a polícia era quem mandava cortar a energia elétrica, a água e as linhas telefônicas de
todos os moradores, durante as invasões.
Vê-se, dessa forma, que a alardeada ‘guerra ao tráfico’ reverberou uma guerra de
informações, peça chave das megaoperações policiais, pois antes que estas fossem colocadas
em prática, fazia-se necessário angariar o apoio popular, bem como voltar a opinião pública
contra o inimigo.

Dessa forma, é no ato de nomear - que compreende o poder de incluir ou de excluir,


de qualificar ou desqualificar, de legitimar ou não, de dar voz, de tornar público -
que se produzem as notícias sobre um real que, assim, está sendo construído.
(COIMBRA, 2001, p.71).

Percebe-se, assim, que o discurso midiático vê a guerra ao tráfico com “as lentes do
Estado repressor que mata bandidos” (ALVES, 2012, p.06), agravando, dessa forma, a
situação de desamparo, anomia e vitimização à que estão submetidos os moradores das
comunidades invadidas pela polícia.

1.7 – A construção do inimigo: acerca de sua significação expiatória e legitimação


jurídica
Esse sangue é muito bom
Já provei não tem perigo
É melhor do que café
É o sangue do inimigo. (…)
Bandido favelado
Não se varre com vassoura
Se varre com granada,
com fuzil, metralhadora.
[Canto do BOPE]
(THEOPHILO; ARAÚJO, 2003).
61

Para Eugênio Raúl Zaffaroni, os discursos de índole totalitária ganharam um novo


impulso a partir da globalização e da revolução comunicacional, proporcionada pelas
tecnologias computacionais.

(...) este formidável avanço permite que se espalhe pelo planeta um discurso único,
de características autoritárias, antiliberais, que estimula o exercício do poder
punitivo muito mais repressivo e discriminatório, agora em escala mundial.
(ZAFFARONI, 2007, p.53).

Para se referir a esta nova forma de totalitarismo, o autor cunhou a expressão


“autoritarismo cool” (ZAFFARONI, 2007, p.69), buscando indicar que, diferentemente das
formas mais tradicionais de autoritarismo, ele é assumido como uma moda que dispensa
qualquer convicção ideológica ou política mais profunda. Adere-se a esse discurso único para
não se tornar estigmatizado pela opinião pública, enfim, para fazer coro e reafirmar um
consenso popular. A argumentação de Zaffaroni acontece no contexto atual de um
interessante debate jurídico na área do Direito Penal, que gira em torno da doutrina do direito
penal do inimigo, proposta por Gunther Jakobs (2007).
O direito penal do inimigo decorre da contraposição que se estabelece em relação ao
direito penal do cidadão. Este se destina àqueles reconhecidos como cidadãos de direito, que
consentem com as leis e as respeitam, enquanto que aquele se aplica a indivíduos
considerados perigosos para a ordem pública. Não se trata, para Jakobs (2007), de advogar a
favor da referida doutrina, mas sim de reconhecê-la e esclarecê-la, de modo a delimitar seu
campo de incidência. Isso significa assumir um dever ético de dar nome ao que tem vigorado
nas entrelinhas do Estado de Direito, mesclando-se sub-repticiamente com ele, e
eventualmente, sobrepujando-o. Do ponto de vista do jurista, reconhecer, delimitar e nomear
essa modalidade selvagem de direito seria menos prejudicial do que pretender ignorá-la, como
se ela não existisse.
Apesar de considerar os entrelaçamentos e as inúmeras gradações possíveis entre as
duas modalidades de direito mencionadas, é possível distingui-las claramente: enquanto o
direito penal do cidadão mantém a vigência da norma, através da aplicação das sanções
previstas no código penal, o direito penal do inimigo combate perigos, através da suspensão
da norma e da proclamação de medidas excepcionais de segurança. No primeiro, vigora o
Estado de Direito; no segundo, o estado de exceção policial e militarizado.
62

Na prática, a doutrina do direito penal do inimigo implica no recrudescimento das


medidas extraordinárias de segurança (tais como o U.S.A. Patriot Act nos Estados Unidos),
pautadas pelo sacrifício das liberdades individuais em nome do combate ao inimigo. O
autoritarismo inerente a esse modo de operacionalização do aparato jurídico, com vistas à
fabricação de um inimigo sob medida, entra em flagrante contradição com os princípios da
tradição democrática e da Declaração dos Direitos Humanos. No caso dos Estados Unidos, os
atentados de 11 de setembro de 2001 serviram como acontecimento propício para a nomeação
do terrorista como novo inimigo, destinado a preencher o lugar deixado vazio pela “implosão
soviética.” (ZAFFARONI, 2007, p.65). Tornou-se memorável a declaração de George Bush
(2001, tradução nossa), então presidente americano, após os atentados: “Cada nação, em cada
12
região, tem agora uma decisão a tomar. Ou estão conosco, ou estão com os terroristas” . Ou
seja, o inimigo não é apenas o terrorista, mas todo aquele que se opuser à política nacional de
segurança americana. Dizendo de outra forma, opor-se a esta política passa a ser considerado
como ato de terrorismo.
Apesar de ter se mostrado funcional, no sentido de viabilizar a nomeação e
individualização de um “inimigo crível”, (ZAFFARONI, 2007, p.65), a categoria de terrorista
é juridicamente imprecisa e obscura, permitindo que se inscreva sob seu domínio condutas
com grau de periculosidade muito variado. Mesmo assim ela serviu ao propósito de decretar
um estado de emergência no território americano, acompanhado de uma guerra contra alguns
países árabes, e uma implacável perseguição aos imigrantes de etnia considerada suspeita.

A necessidade de defender-se, por certo não mais dos atos concretos de homicídio
em massa e indiscriminados, mas sim do nebuloso terrorismo, legitima não apenas
as guerras preventivas de intervenção unilateral como também legislações
autoritárias com poderes excepcionais. (ZAFFARONI, 2007, p.66).

Vê-se, assim, que o inimigo declarado é um personagem central em torno do qual


giram os princípios fundamentais dessa doutrina. Seus princípios se baseiam na competência
por parte do Estado em declarar guerra em nome da pacificação interna, ou seja, na
legitimação do poder de designar o inimigo, seja para neutralizá-lo, seja para destruí-lo. Dessa
forma, torna-se legítimo dispor da vida de algumas pessoas, declaradas como ameaça à ordem
do Estado.

12
“Every nation, in every region, now has a decision to make. Either you are with us, or you are with the
terrorists.”
63

Segundo Zaffaroni (2007, p.17), crítico da doutrina de Jakobs, quanto mais concessões
são feitas ao direito penal do inimigo, maior é o risco de minimização da política e da
negociação, acarretando soluções violentas que, invariavelmente, desembocam em catástrofe.
Dessa forma, no contexto sociopolítico atual, coloca-se para a doutrina jurídica o seguinte
dilema: ou ruma-se para a política de negociação, que reconhece e respeita os direitos
humanos, ou se adota a “solução violenta, que arrasa com os direitos humanos e, mais cedo ou
mais tarde, acaba no genocídio.” (ZAFFARONI, 2007, p.17).
No contexto aqui abordado, depoimentos por parte das autoridades de estado indicam
claramente a adoção do direito penal do inimigo como estratégia de intervenção em
comunidades pobres, sob o pretexto de exterminar bandidos e traficantes, considerados como
inimigos do Estado. Como exemplo, vale mencionar a declaração de guerra ao tráfico, por
parte do governador Sérgio Cabral:

Estamos em guerra e vamos ganhar esta guerra, não tenho a menor dúvida. O Rio
chegou a um nível de violência e ousadia do tráfico absolutamente intolerável.
Vamos acabar com essa musculatura do tráfico. Vamos continuar trabalhando, sem
show pirotécnico, sem dizer que é amanhã ou depois de amanhã. Não vai ser todo
dia que teremos boas notícias. Vamos cometer equívocos, pode haver problemas
aqui e acolá e vamos enfrentar. (AMORA, 2007).

Além da declaração de um estado de guerra, pode-se perceber que a morte de


inocentes já estava anunciada, qualificada pelo governador como “equívocos”, cota de
sacrifico necessária para assegurar a paz e a ordem. Fica claro, também, que os moradores das
comunidades invadidas não seriam avisados das intervenções policiais, que poderiam ocorrer
a qualquer momento.
Ao eleger seus inimigos internos e declarar-lhes guerra, as autoridades de estado
convocam a sociedade para escolher de que lado que ficará. Isso transparece no discurso do
Secretário de Segurança, José Mariano Beltrame: “É uma guerra, e numa guerra há feridos e
mortos. (...) Eu insisto em dizer que ela [a sociedade] tem de optar, definir de que lado está
nessa guerra.” (SOARES, 2007). Ou seja, aqueles que não estão a favor da política do Estado,
estão a favor do inimigo.
Dessa forma, o Estado recorre ao direito penal do inimigo, adotando “um
procedimento de guerra” (JAKOBS, 2007, p.41), com vistas a destruir bunkers terroristas,
eliminar suas fontes, “dominá-los, ou, melhor, matá-los diretamente, assumindo, com isso,
também o homicídio de seres humanos inocentes, chamado dano colateral.” (JAKOBS, 2007,
64

p.41). A própria indefinição do estatuto dos inimigos perseguidos assinala que se trata de uma
“persecução de delitos mediante a guerra.” (JAKOBS, 2007, p.41).
Surge, a partir do poder de nomear o inimigo, um incessante deslizamento semântico
quando se quer fazer referência a ele. Onde falta um nome, surge uma pluralidade de outros
nomes, criados a partir da delimitação de categorias de certos indivíduos que, “por suas
características ontológicas, forjadas por representações probabilísticas, deixam virtualmente
de cometer crimes para se tornarem, elas mesmas, crimes.” (BRASIL, 2007, p.98): favelado,
marginal, pobre, detento, traficante, bandido, vagabundo, fora-da-lei e assim sucessivamente.
Tais indivíduos tornam-se a própria encarnação do mal, que ameaça irromper a qualquer
momento no espaço de convivência social. Surge daí a necessidade de medidas drásticas, com
vistas a assepsiar e imunizar o corpo social. O extermínio constitui, precisamente, exemplo
paradigmático dessas medidas de emergência.

O pensamento fundamentador do extermínio é o de que, eliminando-se os


componentes de determinado segmento ou etnia, promove-se o bem para a
coletividade. O sacrifício da parte em favor do todo, a extirpação da porção maldita,
faria a sociedade encontrar seu estado ideal de normalidade, ou retornar ao mesmo.
(CRUZ-NETO; MINAYO, 1994).

Desse modo, a classe ou segmento executor do extermínio coloca-se como autêntico


detentor da justiça, em uma posição que, legitimada pelo ideal de benefício da coletividade,
confere-lhe poderes que se sustentam acima das leis e dos direitos constitucionais. Mesmo
que o termo extermínio soe como um recurso retórico imbuído de certo exagero, foi possível
encontrá-lo em várias fontes da pesquisa documental relacionadas ao tema, inclusive no
depoimento de moradores:

Para nós, está bem claro que existe uma política de segurança pública de extermínio,
mas não dá pra acusar que é de extermínio mesmo porque não matam logo muita
gente. Matam cinco pessoas num lugar, quinze no outro, vinte no outro e tal. É
difícil dizer "esses caras são exterminadores, genocidas". E tem essa questão de
tentar justificar de diferentes formas: dizendo que são ações isoladas, não fruto de
uma política. No caso do Complexo do Alemão dizem que lá é lugar de gente má e
terrorista. Dizem também que barriga de mulher de favela é fábrica de bandido.
(ALVES, 2012, p.169).

Para Mário Elkin Ramírez (2007a), fenômenos como a segregação e o extermínio


podem ser entendidos, conforme as indicações de Lacan (1974/s.d.), como decorrentes da
reconstituição do Nome-do-Pai no campo social, sob a forma de uma ordem de ferro, a partir
65

do poder para nomear. “(…) são ordens para o extermínio, e não para a democracia, nem para
a convivência com a diferença. Seu princípio de funcionamento é o de uma segregação
13
radical.” (RAMÍREZ, 2007a, p.60, tradução nossa) .
Ramírez articula as ordens de ferro com a emergência de alguns fenômenos sociais que
são típicos em seu país, e que também ocorrem no Brasil. Como exemplo, ele menciona a
guerrilha urbana e as práticas de extermínio e limpeza social por parte de milícias e grupos
paramilitares, que atuam com o propósito de eliminar sujeitos indigentes que habitam as ruas.
Esses sujeitos foram circunscritos em uma categoria social forjada a partir do discurso
capitalista: descartáveis. A partir dessa nomeação, eles se tornaram alvo de implacável
perseguição por parte de seus executores.
No contexto aqui abordado, a produção dos estereótipos de bandido, marginal ou
favelado constituem exemplos paradigmáticos dessa forma de nomeação, que traça o destino
daqueles que serão doravante encarregados de polarizar a agressividade, os conflitos e as
contradições sociais, inerentes a todo e qualquer espaço de convivência humana. Conforme
abordado anteriormente, esses sujeitos foram apontados pela mídia e por algumas autoridades
de estado como elementos desarmonizadores do grupo, responsáveis pelas mazelas sociais.
A fabricação de bodes expiatórios, conforme afirma Coimbra (2001), possibilita desviar
a atenção do público dos inúmeros problemas sociais, verdadeiros geradores da criminalidade:
a corrupção dos agentes do estado, a má distribuição das riquezas, a marginalidade social, a
indigência política e as condições de precariedade a que estão sujeitos grandes contingentes
da população brasileira. Como decorrência, desconsidera-se a complexidade do problema
social colocado em jogo, mediante o uso do recurso simplista de interpretações maniqueístas e
lineares. Dessa forma, é possível perceber que a produção e legitimação do fenômeno do bode
expiatório, corolários da razão sacrificial, não acontecem sem estarem articuladas ao
problema da criminalidade e às políticas de segurança pública, adotadas por parte do Governo
Federal. Essas políticas têm origem no saldo de duas décadas de regime militar, herança que,
segundo Wacquant (2004, p.06),

(...) continua a pesar bastante tanto sobre o funcionamento do Estado como sobre as
mentalidades coletivas, o que faz com que o conjunto das classes sociais tendam a
identificar a defesa dos direitos do homem com a tolerância à bandidagem. De
maneira que, além da marginalidade urbana, a violência no Brasil encontra uma

13
“(…) son órdenes para el exterminio, no para la democracia, ni la convivencia con la diferencia. Su principio
de funcionamiento es el de una segregación radical”.
66

segunda raiz em uma cultura política que permanece profundamente marcada pelo
selo do autoritarismo.

Tal situação, segundo o autor, é o reflexo de uma conjunção de fatores presentes na


formação do estado democrático brasileiro, que busca suprir a carência do estado econômico e
social com um superinvestimento em um estado policial e penitenciário. A ausência de uma
sólida tradição democrática, aliada à presença de uma flagrante discrepância na distribuição
de renda, gera um regime de funcionamento feroz e predatório, que resulta na produção em
massa de miseráveis, sujeitos descartáveis que não encontram oportunidades de inserção no
mercado de trabalho. Advém daí a segregação e o eventual extermínio desses sujeitos, que se
tornam alvo da violência inerente a um ordenamento político caracterizado pelo estado de
guerra permanente, pautado pela militarização da segurança pública.
Ao desconsiderar a complexidade dos múltiplos fatores sociais, políticos e econômicos
envolvidos no problema da produção em massa de sujeitos miseráveis, as soluções adotadas,
por parte das autoridades responsáveis, incidem de forma prevalente no campo policial.
Conforme afirma Wacquant (2004, p.05),

A insegurança criminal no Brasil tem a particularidade de não ser atenuada, mas


nitidamente agravada pela intervenção das forças da ordem. O uso rotineiro da
violência letal pela polícia militar e o recurso habitual à tortura por parte da polícia
civil, as execuções sumárias e os ‘desaparecimentos’ inexplicados geram um clima
de terror entre as classes populares, que são seu alvo, e banalizam a brutalidade no
seio do Estado.

Ao proceder dessa maneira, alimenta-se o círculo vicioso que oscila entre a violência
criminal e a violência policial, gerando um sentimento crescente de insegurança generalizada.
A angústia despertada pelo constante estado de alerta leva as autoridades a adotar medidas
cada vez mais repressivas e violentas que, eventualmente, trespassam os limites da legalidade.
A partir dessas considerações, é possível estabelecer uma aproximação inicial do
problema do sacrifício, orientada pelas indicações de Freud e Lacan. Nesse sentido, destaca-se
que as práticas sacrificiais aqui concernidas - segregação e extermínio – podem ser entendidas
como uma forma de consagração maligna, que tramita à margem dos campos religioso e
político, alçando o objeto de sacrifício a um topos anômico. Esse objeto, constituído por
segmentos cada mais amplos de indivíduos e grupos, é marcado com o estigma de vida
descartável e sem valor.
67

2 - A PERTINÊNCIA DA POBLEMÁTICA DO SACRIFÍCIO PARA A PSICANÁLISE

Sustentamos a hipótese de que, na psicanálise, os


paradoxos inerentes aos Nomes-do-Pai conduzem
necessariamente aos paradoxos do sacrifício. O
sacrifício está indissoluvelmente ligado aos Nomes-do-
Pai e seus paradoxos; ou seja, refere-se tanto ao desejo
como às faces do gozo do pai. (AMBERTÍN, 2009a,
p.25).

Mesmo advertindo que o sacrifício não emerge no campo psicanalítico com a


dignidade de um conceito, é importante não desconsiderar que ele marca presença, tanto na
obra freudiana como lacaniana, ao longo de momentos cruciais na elaboração teórica desses
autores. Em Freud, a temática do sacrifício emerge em momentos cruciais de suas
formalizações teóricas, particularmente naquelas que buscam estender seu alcance para o
contexto social, como “Totem e tabu” (1913/1987), “O mal estar na civilização” (1930/2010),
“Psicologia de grupo e análise do eu” (1921/2010) e “Moisés e a religião monoteísta” (1939
[1934-38], tradução nossa) 14.
Em âmbito clínico, pode ser detectado em diferentes versões, mas aqui se elege
algumas: no sacrifício heroico do Homem dos ratos no campo de batalha, pagando com a vida
sua dívida simbólica com o pai (1909/1987), e no martírio sacrificial de Daniel Paul Schreber,
oferecido em benefício de seu deus obscuro (1911/1987). Também faz uma aparição
alucinada, sob a forma de uma automutilação, no caso sobre o “Homem dos lobos” (1918
15
[1914] /2010), e na intriga histérica de Dora (1905 [1901] /1987), na qual ela se oferece
como coisa sacrificada em nome do gozo do pai, bem como no caso da jovem homossexual
(FREUD, 1987/1920), sob a forma de uma perigosa passagem ao ato. Nesse contexto, pode-se
também destacar o texto “Luto e melancolia” (1917 [1915] /2010), no qual o sacrifício
assume sua forma mais letal, na via do autoextermínio do sujeito. Por fim, vale mencionar
também a narrativa de Édipo Rei, herói trágico que “arranca seus olhos, sacrifica-os, oferece-

14
Moisés y la religión monoteísta.
15
“... a Sra. K. também não a amara por ela mesma, e sim por causa do pai. Ela a havia sacrificado sem um
momento de hesitação para que seu relacionamento com o pai de Dora não fosse perturbado. Essa ofensa talvez a
tenha tocado mais de perto e tido maior efeito patogênico do que a outra com que ela tentou encobri-la, ou seja, a
de ter sido sacrificada pelo pai (...) Dora dizia a si mesma incessantemente que seu pai a sacrificara a essa
mulher, fazia demonstrações ruidosas de que a invejava pela posse do pai e, dessa maneira, ocultava de si mesma
o oposto: que invejava o pai pelo amor da Sra. K. e que não perdoava à mulher amada a desilusão que ela lhe
causara com sua traição.” (FREUD, 1905 [1901]/1987, p.64).
68

os como resgate pela cegueira em que se consumou seu destino.” (LACAN, 1962-63/2005, p.
180).
A temática do sacrifício emerge também em vinhetas clínicas, ricas de ensinamentos,
com as quais Freud brinda o leitor na “Psicopatologia da vida cotidiana.” (1901/1987). Além
de preciosos ensinamentos clínicos, esse texto reserva outras surpresas para aqueles que têm
interesse em aprender sobre o sacrifício, pois nele Freud dedica uma seção inteira do livro ao
estudo dos atos sacrificiais, fazendo aí importantes indicações.
Em uma meticulosa análise etimológica do termo sacrifício, Emile Benveniste
(1969/1983) desdobra-o em um leque de termos linguísticos provenientes de diferentes raízes
etimológicas: libação, oferenda, oblação, consagração, sacerdote, sacrificante.
Etimologicamente, o sacrifício deriva do latim sacer facere, literalmente, tornar sagrado.
Tornar sagrado um ser vivo ou um objeto, implica na ação de retirá-lo de circulação do
mundo humano, e destiná-lo ao divino. Dessa forma, pretende-se “honrar o deus, solicitar seu
favor, reconhecer seu poder por meio de oblações.” (BENVENISTE, 1969/1983, p.371,
16
tradução nossa) . Derivado do ambíguo termo latino sacer, o sacrifício comporta, em sua
significação, a aporia de ser, simultaneamente, “consagrado aos deuses e carregado de uma
mancha indelével” 17, ou seja, “augusto e maldito, digno de veneração e que suscita o horror.”
(BENVENISTE, 1969/1983, p.350, tradução nossa) 18.
Em uma notável publicação sobre a abordagem psicanalítica do sacrifício, Bernard
Baas (2001) adverte o leitor sobre a polissemia do termo, que recobre uma vasta área de
pesquisa e vem ocupando estudiosos de variados campos do conhecimento, ligados à
filosofia, antropologia, sociologia e à etnografia. Tendo em vista essa advertência, deve-se
considerar a impossibilidade de estabelecer uma determinação unívoca, ou mesmo uma
coerência sistemática para o que se entende por sacrifício.
Para Baas (2001), longe de ser fortuita ou decorrente da extensão semântica do termo,
essa dificuldade é indicativa de uma ambiguidade fundamental no conceito de sacrifício. Para
adentrar em um campo marcado pelo mal entendido, pela polissemia semântica e, sobretudo,
pelo fascínio que suscita, algumas diretrizes precisam ser estabelecidas.
A fascinação sacrificial, conforme advertia Lacan (1964/1988), é encobridora, e
mesmo estudiosos respeitados não ficaram imunes a ela. Ao se referir ao holocausto nazista,

16
“Honrar al dios, solicitar su favor, reconocer su poder por medio de oblaciones”.
17
“Consagrado a los dioses y cargado de una mancilla imborrable”.
18
“Augusto y maldito, digno de veneración y que suscita el horror”.
69

Lacan (1964/1988, p.259) afirma que as suas “formas pretensamente ultrapassadas” não
cessam de ressurgir, constituindo um “mistério” velado pelas “premissas hegeliano-
marxistas”, que nada mais fazem do que obscurecê-lo:

Afirmo que nenhum sentido de história, fundado nas premissas hegeliano-marxistas,


é capaz de dar conta dessa ressurgência, pela qual verifica-se que a oferenda, a
deuses obscuros, de um objeto de sacrifícios, é algo a que poucos sujeitos podem
deixar de sucumbir, numa captura monstruosa. (LACAN, 1964/1988, p.259).

Mais adiante, na sequência dessa passagem, Lacan reforça sua advertência com
relação ao fascínio sacrificial:

A ignorância, a indiferença, o desvio do olhar podem explicar sob que véu ainda
resta escondido esse mistério. Mas, para quem quer que seja capaz de dirigir, para
esse fenômeno, um olhar corajoso- e, ainda uma vez, há certamente poucos que não
sucumbam à fascinação do sacrifício em si mesmo -, o sacrifício significa que, no
objeto de nossos desejos, tentamos encontrar o testemunho da presença do desejo do
Outro que eu chamo aqui o ‘Deus obscuro.’ (LACAN, 1964/1988, p.259).

Ao prosseguir em sua argumentação sobre o sacrifício, Lacan se coloca na


encruzilhada entre o Amor Intelectualis Dei (Amor intelectual a Deus), de Espinosa, e o
imperativo categórico kantiano. Sem hesitação, faz sua opção por Kant, indicando que um
exame mais detido da lei moral kantiana permite revelar o desejo em estado puro. Esse desejo,
segundo Lacan, é

(...) aquele mesmo que termina no sacrifício, propriamente falando, de tudo que é
objeto de amor em sua ternura humana – digo mesmo, não somente na rejeição do
objeto patológico, mas também em seu sacrifício e em seu assassínio. É por isso que
escrevi ‘Kant com Sade.’ (LACAN, 1964/1988, p.260).

É interessante observar como, ao abordar o sacrifício, Lacan passa da temática do


holocausto nazista para a articulação do imperativo categórico kantiano. Não se deve esquecer
que o seminário “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise” (1964/1988), no qual essa
discussão acontece, ocorre um ano depois da publicação do célebre livro de Hannah Arendt,
“Eichmann en Jerusalen.” (1963/1999). Nesse livro, Arendt expõe um de seus mais célebres
conceitos, a ‘banalidade do mal’, depois de proceder a uma análise do julgamento de Adolf
Eichmann, oficial nazista acusado pela morte de milhares de judeus em campos de
70

concentração. Na ocasião do julgamento, Eichmann evocou a ética kantiana do dever em sua


defesa, afirmando tê-la seguido à risca 19.
Há, nas passagens evocadas do referido seminário (LACAN, 1964/1988), um
deslizamento semântico do termo sacrifício: da oferenda sacrificial (sacrifício ritual ou
sacrifício de sangue) Lacan passa ao sacrifício moral, entendido como renúncia, a partir do
imperativo categórico kantiano. Na leitura proposta por Baas (2001), ao invés de se tomar a
renúncia como denominador comum das variadas formas de sacrifício, deve-se proceder de
forma inversa, tomando a própria incondicionalidade da lei moral enquanto sacrifício,
assassinato de todo e qualquer objeto patológico, seja ele ligado ao prazer, à sensibilidade, à
simpatia ou à ternura. Vale dizer que, no sentido kantiano, o caráter patológico do objeto é
sempre marcado pela contingência das inclinações afetivas e das paixões humanas, que devem
ser submetidas á estrita formalidade da lei moral expressa no dever, entendido pelo filósofo
como ato de uma vontade pura e autônoma, isenta de quaisquer móbeis empíricos ou
passionais.
A partir dessas indicações, torna-se possível afirmar que Lacan buscava alcançar uma
“significação geral do sacrifício” (BAAS, 2001, p.85), o que implica ir além da consideração
do sacrifício como fenômeno histórico, social ou antropológico. Essa significação
corresponde exatamente à unificação de dois significados que, normalmente, se encontram
separados em outras propostas de abordagem: o sacrifício moral, entendido como renúncia do
sacrificante, e o sacrifício ritual ou de sangue, que coloca em cena uma oferenda, objeto
sacrificado.
É possível demonstrar como importantes teorias sociológicas e antropológicas,
pautadas no evolucionismo, buscaram manter essa separação. Edward Burnett Tylor
(1871/1873) imprimiu o tom que seria seguido posteriormente por outros antropólogos e
sociólogos, na abordagem do sacrifício. Em seus estudos acerca das culturas primitivas e seus
sistemas religiosos, Tylor (1871/1873) concebia o animismo como uma forma menos
evoluída das religiões, na qual o sacrifício ritual representava uma função fundamental. A

19
Acerca dessa questão, outros desenvolvimentos elaborados pelo pesquisador podem ser encontrados em:
CRUZ, Alexandre Dutra Gomes. Entre o dever da liberdade e a servidão voluntária: contribuições da psicanálise
para o pensamento ético em nossa época. In: ROSÁRIO, Ângela Buciano; MOREIRA, Jaqueline de Oliveira
(Orgs.). Culpa e laço social; possibilidades e limites. Barbacena: EdUEMG, 2013, p.47-66.
71

oferenda sacrificial seria uma forma de ajustar as contas com as deidades, em sociedades que
ainda não haviam desenvolvido o abstrato senso ético da justiça distributiva.

Mas de forma geral, assim como a doutrina animista das raças inferiores ainda não é
uma instituição ética, mas sim uma filosofia do homem e da natureza, o dualismo
selvagem ainda não é uma teoria de princípios morais abstratos. (TYLOR,
1871/1873, p.318, tradução nossa). 20

O animismo, segundo Tylor, não seria propriamente imoral, mas amoral. A


moralidade seria uma conquista a ser efetivada em estágios mais avançados do
desenvolvimento ético e religioso das culturas. Nesse sentido, as religiões monoteístas,
particularmente o cristianismo, se constituiriam como formas culturais mais evoluídas, nas
quais o sacrifício ritual via oferenda cedeu lugar ao sacrifício moral via renúncia, nível
teleológico final de seu progressivo desenvolvimento.
O evolucionismo de Tylor exerceu certa influência em teorias sociológicas e
antropológicas posteriores, como a do antropólogo e sociólogo francês Marcel Mauss. Em seu
livro “Sobre o sacrifício” (MAUSS; HUBERT, 1968 [1899] /2005), escrito em parceria com o
sociólogo Henri Hubert, é possível perceber indícios do evolucionismo de Tylor:

À dádiva sucedeu a homenagem em que o fiel não exprime mais qualquer esperança
de retorno. Para que daí o sacrifício se tornasse abnegação e renúncia não havia mais
que um passo; assim, a evolução fez o rito passar dos presentes do selvagem ao
sacrifício de si. (MAUSS; HUBERT, 1968 [1899] /2005, p.8).

Essa forma, supostamente mais evoluída, acabada, enfim sublimada (é o termo usado
por Mauss) do sistema sacrificial pode ser constatada claramente no cristianismo, que logrou
transportar sua eficácia simbólica “do mundo físico para o mundo moral.” (MAUSS;
HUBERT, 1968 [1899] /2005, p.99). O sacrifício do cristo, filho de Deus, assinala o fim do
sacrifício de sangue, e o início de um pacto, a aliança que enlaça a comunidade com o próprio
Deus, perpetuada no ritual da missa.

Os retornos ofensivos do caos e do mal constantemente requerem novos sacrifícios,


criadores e redentores. Assim transformado e como que sublimado, o sacrifício se
conservou na teologia cristã. Sua eficácia foi simplesmente transportada do mundo

20
“But as in general the animistic doctrine of the lower races is not yet an ethical institution, but a philosophy of
man and nature, so savage dualism is not yet a theory of abstract moral principles”.
72

físico para o mundo moral. O sacrifício redentor do deus perpetua-se na missa diária.
(MAUSS; HUBERT, 1968 [1899] /2005, p.99).

Dessa forma, o sacrifício ao deus, intermediado pela oferenda de uma vítima


sacrificial, progressivamente cede espaço para o “sacrifício do deus” (o cristo sacrificado,
filho do próprio deus), no qual já não há a necessidade de outro intermediário. Segundo os
autores, “é no sacrifício de uma pessoa divina que a noção do sacrifício chega à sua mais alta
expressão.” (MAUSS; HUBERT, 1968 [1899] /2005, p.83). Nessas passagens, pode-se
perceber a presença de elementos do pensamento evolucionista de Tylor, que considerava o
cristianismo como uma forma religiosa mais evoluída do que o culto politeísta às “fetish-
deities” (TYLOR, 1871/1873, p.270) pagãs.
Nas teorizações freudianas, as marcas do evolucionismo de Tylor também estão
presentes, como se pode perceber nas elaborações acerca do animismo e do totemismo
apresentadas em “Totem e tabu” (1913/1987) e, também, em “Moisés e o monoteísmo”
21
(FREUD, 1939 [1934-38], tradução nossa) , texto no qual Freud afirma que o triunfo da
espiritualidade sobre a sensualidade assinala um progresso da cultura. Com efeito, Freud
interpreta esse deslocamento como uma passagem da maternidade para a paternidade, a
primeira tomada como primado da experiência sensível, e a segunda assinalada com um
índice de incerteza. Dessa forma, a passagem ao pai marca o triunfo do espírito, da dimensão
simbólica, em relação ao corpo, à sensibilidade, enfim, à dimensão que Kant (1797/2003)
qualifica de patológica.
Mas, é na obra de William Robertson Smith que Freud buscará fundamentos para
desenvolver o problema do sacrifício ritual, a partir do estudo do totemismo. Os estudos de
Robertson Smith (1894/1927) indicam que a função do sacrifício nem sempre foi a mesma.
Em suas origens, o sacrifício tinha a significação de um ato de confraternização entre a
divindade e seus seguidores: “A ênfase colocada no sacrifício animal nos antigos rituais
corresponde à ênfase em um tipo de sacrifício que não consiste meramente no pagamento de
um tributo, mas sim em um ato social de comunhão entre a divindade e seus adoradores.”
(ROBERTSON SMITH, 1894/1927, p.224, tradução nossa). 22 Sendo assim, o repasto
sacrificial não representava nada mais do que “alimento dos deuses” (ROBERTSON SMITH,

21
Moisés y la religión monoteísta.
22
“The predominance assigned in ancient ritual to animal sacrifice corresponds to the predominance of the type
of sacrifice which is not a mere payment of tribute but an act of social fellowship between the deity and his
worshippers”.
73

23
1894/1927, p.224, tradução nossa) , que deveria ser compartilhado entre os homens e os
deuses.
Com o passar do tempo, no entanto, conforme afirma Robertson Smith (1894/1927), o
sacrifício entre os hebreus assumiu uma significação distinta. Se inicialmente significava de
comunhão entre o sacrificante e seu deus (Robertson Smith se refere a essa modalidade como
zèbah), após a Lei Levítica, o sacrifício assume a função de oferenda ao Deus, da qual o
sacrificante não deve tomar parte (a essa modalidade, ele nomeia minha). O repasto sacrificial
deixa de ser um momento de confraternização para se tornar uma oferenda que não deve ser
tocada ou consumida por nenhum integrante da comunidade sacrificante, exceto pelos
sacerdotes, únicos autorizados a fazê-lo. Após o ritual sacrificial, os despojos da vítima
devem ser consumidos pelos sacerdotes, e o restante deve ser queimado e oferecido em
holocausto assinalando, dessa forma, seu desaparecimento. Em suma, Robertson Smith afirma
que a significação do sacrifício, na primeira modalidade mencionada, é um ato de comunhão,
enquanto que, na segunda, assume significação de uma dívida, de um tributo a ser pago aos
deuses 24.
Para Robertson Smith (1894/1927), a comensalidade instituía o primeiro laço social,
através do qual se metaforizava a relação de parentesco, que implicava o reconhecimento de
se partilhar do mesmo sangue e da mesma carne. O sacrifício desempenha uma função crucial
nesse reconhecimento, uma vez que, mediante o consumo da vítima, ele instaura o laço de
parentesco e permite a sua regulação. Freud frisou que o banquete totêmico pode ser situado
como o primeiro festival da humanidade, que celebrava a temporária suspensão dos tabus
interditores. “O excesso faz parte da essência do festival; o sentimento festivo é produzido
pela liberdade de fazer o que via de regra é proibido.” (FREUD, 1987/1913, p.144). Nessas
ocasiões, regadas pelo excesso, a solene transgressão das proibições, codificadas nos tabus,
expressam uma liberdade paradoxal, uma vez que assumem a forma de uma obrigação. A
transgressão é, portanto, uma ordem.
A função sacrificial da comensalidade, segundo Robertson Smith, permitia a
instauração de um laço de sangue entre os membros do clã totêmico e o deus adorado. Além
do vínculo com essa figura supra-terrena, o sacrifício funcionava como argamassa do laço

23
All sacrifices laid upon the altar were taken by the ancients as being literally the food of the gods”.
24
“In short, while the zèbah turns on an act of communion between the deity and his worshippers, the minha (as
its name denotes) is simply a tribute”. (ROBERTSON SMITH, 1894/1927, p.240).
74

social, uma vez que exigia a participação e cumplicidade de todos os membros do clã. Tal
cumplicidade era necessária, uma vez que o animal devorado durante o festim era considerado
sagrado.
Como bem observa Freud (1913/1987, p.138), via de regra

(...) o sacrifício envolvia um festim e um festim não podia ser celebrado sem um
sacrifício. O festim sacrificatório era uma ocasião em que os indivíduos passavam
alegremente por cima dos seus próprios interesses e acentuavam a dependência
mútua existente entre eles e o seu deus.

Compartilhar o mesmo alimento fortalecia a convicção entre seus comensais de que


eram feitos da mesma carne e do mesmo sangue, e deveriam partilhar cumplicidade e
obrigações sociais recíprocas. Nessa perspectiva, “o sacrifício constituía um sacramento e o
próprio animal sacrificado era membro do clã” (FREUD, 1913/1987, p.142), personificação
da própria divindade que, ao ser consumida, permitia aos integrantes a renovação da aliança
fraterna e o fortalecimento do sentimento de identidade com ela. Essa identidade, buscada
através da semelhança, é abordada no trabalho de Robertson Smith (1894/1927), ao
mencionar a existência de rituais nos quais os integrantes da comunidade sacrificante fazem
uso de trajes e fantasias, que aliados ao mimetismo expresso em dança e gestos, permitiam
que os membros de um determinado clã totêmico se assemelhassem ao máximo com o animal
sacrificado. Essa forma de identificação mimética, imaginária, evoluiria para um patamar
mais elaborado, sob forma do espírito de comunhão e renúncia, valorizado pela religião cristã.
Segundo Ambertín (2009a), as indicações de Robertson Smith quanto à ambiguidade
do termo sacer permitem situar o sacrifício em duas vertentes distintas. Na primeira delas, o
sacrifício é um ato de sociabilidade, ou seja, laço social que viabiliza tanto o fortalecimento
da ligação com a divindade, quanto a identificação dos membros entre si. Na segunda
vertente, o sacrifício pode ser situado como um autodespojo dessacralizado, “extrínseco ao
ritual religioso.” (AMBERTÍN, 2009a, p.42).
No primeiro caso, o ato de solidariedade comunal proporcionada pelo sacrifício vai
além da mera renúncia, constituindo-se como uma “ação sagrada.” (AMBERTÍN, 2009a,
p.42). Nessa vertente, há a possibilidade de laço social entre os integrantes da comunidade e
seu Deus, e também entre os membros da comunidade entre si. No segundo caso, a autora
afirma que a aposta sacrificial circula “externamente ao estrito campo religioso”
(AMBERTÍN, 2009a, p.42), inscrevendo-se na banalidade da vida cotidiana. Ela não deixa de
75

destacar também que, apesar de se situarem fora do campo religioso estrito, essas práticas
sacrificiais persistem nos ecos da nostalgia pelo pai. Neste sentido, vale lembrar que os
estudos sobre práticas e atos sacrificiais levaram Freud (1901/1987) a destacar esta vertente
do sacrifício como autodespojo, que pode ser percebida sob forma de descarte de objetos ou
da própria vida. Será necessário dedicar a estas considerações uma análise mais detalhada,
uma vez que, a partir delas, torna-se possível destacar importantes considerações acerca da
elaboração da questão do sacrifício em psicanálise.

2.1 - O ato sacrificial e suas expressões dessacralizadas no cotidiano

Articular o ato sacrificial com algumas ocorrências corriqueiras da vida cotidiana


implica aceitar a premissa de que, nesse contexto, ele não se inscreve como um acontecimento
ritualizado, delimitado em uma dimensão que lhe seria própria. Nem sempre é possível
reconhecê-lo, quando emerge em manifestações dessacralizadas e, por vezes, violentas, no dia
a dia.
Ao abordar os atos sacrificiais, Freud (1901/1987) recorre tanto a contribuições
advindas de sua clínica quanto a episódios de sua vida pessoal. Neles, um determinado objeto
serve como oferenda, cumprindo uma função específica para cada caso: gratidão ao destino,
barganha, e por fim, execução disfarçada, na qual o objeto se torna descartável, ao perder seu
brilho agalmático.
Quando menciona a oferenda de objetos como forma de aplacar a fúria do destino,
Freud (1901/1987) propõe a análise de dois episódios nos quais ele, agindo de forma
aparentemente despropositada e desajeitada, quebra ou danifica objetos de coleção pelos quais
nutria grande afeição. No primeiro relato, ele nos traz o relato da quebra de uma estátua da
Vênus de Médici, sobre a qual atira furiosamente o chinelo que calçava, em um rompante
inexplicável. Enquanto observava o precioso objeto sendo despedaçado, ele cita
impassivelmente os versos do escritor e poeta alemão, Heinrich Christian Wilhelm Busch:
“Oh! a Vênus de Medici. Catapimba! Agora a perdi!” (FREUD, 1901/1987, p.153).
Como bom observador, não escapou à Freud a estranha indiferença e impassibilidade
diante da quebra de um objeto tão valioso e estimado. Ao analisar o fato, concluiu que se
76

tratava de um ato sacrificial, cujo significado era de gratidão pela recuperação de um ente
querido que estivera gravemente enfermo.

Meu acesso de fúria destrutiva serviu, portanto, para expressar um sentimento de


gratidão ao destino, e me permitiu realizar um ‘ato sacrificial’, como se tivesse feito
uma promessa de sacrificar isto ou aquilo como uma oferenda, caso ela
recuperasse a saúde! (FREUD, 1901/1987, p. 154, grifo nosso).

Comenta ainda que a escolha pela Vênus de Médici nada mais foi do que uma “galante
homenagem à convalescente” (1901/1987, p.154), sendo digna de nota a precisão de sua
pontaria ao quebrar unicamente essa estátua, que estava em meio a muitos outros objetos
delicados.
No segundo relato, Freud conta como repreendeu de forma canhestra um amigo, a
partir da interpretação que lhe deu de alguns indícios do seu inconsciente. Sentindo-se
ofendido, este amigo lhe escreveu uma carta reprovando sua atitude e dizendo que ele deveria
reservar o tratamento psicanalítico apenas aos seus pacientes. Constrangido com o episódio,
Freud responde desculpando-se pelo mau jeito. Enquanto escrevia essa carta com o pedido de
desculpas, de forma aparentemente acidental danificou o verniz de uma figura egípcia recém-
adquirida, com a caneta que empunhava. Ao comentar esse episódio, Freud (1901/1987,
p.154) afirma que se tratava de um sacrifício propiciatório para afastar um mal: “Entendi que
havia causado essa calamidade para impedir outra maior. Por sorte, ambas as coisas - a
amizade e a figura - puderam ser cimentadas de modo a não se notar a rachadura”.
Há um terceiro relato nessa série de casos, que diferentemente dos anteriores, narra a
destruição de um objeto que já não gozava da estima do dono sendo, portanto, descartável:
uma velha bengala danificada. Ao quebrá-la durante uma brincadeira com o neto, Freud
aproveitou a ocasião para se desfazer dela. Nesse caso, trata-se de uma “execução disfarçada”
(FREUD, 1901/1987, p.154), manifesta no descarte de um objeto que perdeu o encanto.
Nesses casos, Ambertín (2009a, p.64) comenta que a libra de carne não entra em jogo,
pois um objeto contingente pode assumir seu lugar. Dessa forma, há “economia de sacrifício”,
que transita pela via do desejo e da concessão de dons. No último exemplo narrado, o objeto
não é revestido pelo encanto agalmático, e se torna simplesmente um despojo. Apesar dessa
diferença, em todos os três exemplos mencionados, a integridade corporal do sujeito é
mantida, através da interposição de um objeto intermediário como oferenda.
77

Seguindo a leitura dos desenvolvimentos freudianos na “Psicopatologia da vida


cotidiana” (1901/1987), é possível articular outros pontos importantes relativos aos atos
sacrificiais. Se nos exemplos referidos anteriormente Freud era o protagonista, nos relatos
apresentados na sequência ele recorre à sua experiência clínica, que comprova que o ato
sacrificial pode manifestar-se com extrema violência. Em dois exemplos relatados, a oferenda
sacrificial não é nada menos do que uma parte de si, a “libra de carne.” (LACAN, 1962-63/
2005, p.139). Nesses casos, nada resta ao sujeito senão oferecer o próprio corpo em sacrifício.
O primeiro caso relata acerca de uma paciente (1901/1987, p.165), que após tropeçar
na calçada bateu com o rosto no muro de uma casa. Não havendo esboçado nenhuma reação
para protegê-lo, ela acabou se machucando muito, o que a levou temer pela perda da visão.
Esse ato foi interpretado, por Freud, como um ato sacrificial que assumiu a forma de uma
autopunição por um aborto feito tempos atrás. No momento do tropeço a mulher estava indo
em direção a uma loja comprar um adorno para o quarto dos seus filhos, e tudo se passa como
se uma recriminação supereuóica, não formulada, lhe dissesse: “Mas para que você precisa de
um enfeite para o quarto das crianças, você que mandou matar seu filho? Você é uma
25
assassina! O grande castigo com certeza chegará!” . Após a consulta médica, a paciente
comenta que se sentia aliviada por saber que nada mais grave lhe sucederia como
consequência do incidente, pois acreditava que já havia sido “suficientemente punida.”
(FREUD, 1901/1987, p.166).
O segundo caso é o de um carpinteiro que consulta Freud (1901/1987, p.164) para
saber sobre a possibilidade de extração cirúrgica de um estranho objeto que passou a integrar
o seu corpo: uma bala de revólver, alojada em sua têmpora esquerda. Depois de avaliar o
caso, Freud conclui que a remoção do projétil não era indicada, pois exceto pela cicatriz do
ferimento, acompanhada de ocasionais dores de cabeça, o paciente se sentia “perfeitamente
bem”.
O curioso, nesse relato, é a análise das circunstâncias que o envolviam. O paciente
alega que se feriu acidentalmente, ao brincar com o revólver do irmão, que julgava
descarregado. Colocou-o, então, contra a própria cabeça e efetuou o disparo. Ao questioná-lo
Freud (1901/1987, p.164) se convence de que a “negligência em certificar-se de que a arma

25
Não passam despercebidas as ressonâncias que essa ação sacrificial tem com a tragédia “Édipo Rei”, na qual o
herói sacrifica os próprios olhos após descobrir a significação parricida e incestuosa de suas ações. Cegar-se
pode ser interpretado simbolicamente como um ‘não querer ver’, mas ater-se apenas a essa interpretação é
desconsiderar a dimensão do gozo, que encontra satisfação expiatória/masoquista no ato sacrificial.
78

estava descarregada antes de brincar com ela, bem como seu ferimento auto-infligido, foram
psiquicamente determinados.” O disparo ocorreu no mesmo dia em que ele foi dispensado do
exército, por ter sido considerado inapto. Freud (1901/1987, p.165) concluiu que, ao ser
privado da oportunidade de entrar no exército para se esquecer de uma recente desilusão
amorosa, nada restava ao paciente senão a entrega a “uma tentativa inconsciente de suicídio”.
De modo geral, pode-se depreender dos casos relatados que o inconsciente não se diz,
mas se apresenta em uma dimensão de ato: “são atos sacrificais destinados a aplacar o
destino, afastar a desgraça, e assim por diante.” (FREUD, 1901/1987, p.158). Os atos
sacrificiais, segundo Freud (1901/1987, p.183), colocam em jogo “a oferta de um sacrifício
aos obscuros poderes do destino, cujo culto ainda hoje não se extinguiu entre nós.” E eles
podem reclamar muito mais do que objetos de posse, ao voltar seu furor violento contra o
próprio sacrificante ou mesmo outras pessoas, como ilustram bem os dois últimos exemplos
mencionados. Neles, não há objeto intermediário para assumir a fúria do destino. Imerso no
fascínio sacrificial, o sujeito é compelido a empenhar a própria carne, e a passagem ao ato é a
expressão mortífera desse impasse.

Se uma fúria contra a própria integridade e a própria vida pode assim esconder-se
por trás de uma inabilidade aparentemente acidental e de uma insuficiência motora,
não é preciso um grande passo para se transferir essa mesma concepção para os
erros que colocam em sério perigo a vida e a saúde de outras pessoas. (FREUD,
1901/1987, p.168).

Deve-se destacar também que a indiferença, a impassibilidade, e mesmo o alívio que


sucede essas ocorrências assinalam que elas não são acidentais como aparentam, mas se
engendram a partir de uma determinação inconsciente. E é nisso que Freud vê a confirmação
do caráter sacrificial dessas ações: na “notável serenidade com que os pacientes encaram o
suposto acidente.” (FREUD, 1901/1987, p.161). Diante dele não manifestam queixa nem
indignação. Essa serenidade diante do sofrimento, advindo da ação sacrificial, evoca o
sofrimento dos heróis e mártires, referência presente em inúmeras narrativas míticas e
religiosas.
No caso do sacrifício cristão, a Bíblia metaforiza essa serenidade no martírio de
Cristo. Mesmo sendo humilhado e submetido ao suplício acompanhado de morte, “não abriu
a boca; como cordeiro foi levado ao matadouro; e, como ovelha muda perante os seus
79

tosquiadores, ele não abriu a boca.” (ISAÍAS, 53:7). Há, portanto, cumplicidade muda do
sujeito com o funesto destino que o espreita.
É digno de nota o posicionamento ético freudiano diante do reconhecimento da
implicação do sujeito no ato sacrificial. Dirigindo a essas práticas um “olhar corajoso”
(LACAN, 1964/1988, p.259) e advertido, Freud situa, não sem uma ponta de humor, a
impiedade do seu posicionamento ético, que visando à implicação do sujeito com seus atos,
recusa render-se diante do fascínio sacrificial: “Quando um membro de minha família se
queixa de ter mordido a língua, imprensado um dedo etc., não recebe de mim a compaixão
esperada, mas sim a pergunta: ‘Por que você fez isso?’” (FREUD, 1901/1987, p.162).
As elaborações freudianas aqui apresentadas abrem caminho para uma reflexão
aprofundada sobre as práticas sacrificiais na atualidade. A partir delas, torna-se possível
descortinar um vasto e promissor horizonte de pesquisa, que convida ao diálogo a psicanálise
e outros campos do saber, como a sociologia, a antropologia e a filosofia. O campo de
pesquisa que aí emerge aponta para um leque amplo de fenômenos ligados à violência:
exposição a condutas de risco, vitimização, automutilações, ferimentos autoinfligidos,
assassinatos, suicídios, entre muitos outros. Nesse momento da elaboração freudiana, no
entanto, eles ainda são entendidos como atos falhos, que ocorrem de forma aparentemente
acidental, sem contar com o reconhecimento intencional do seu autor. Ainda que haja
intencionalidade consciente implicada no ato sacrificial, Freud reafirma que a causalidade
inconsciente, sempre atuante, escapa a essa intencionalidade:

Mesmo a intenção consciente de cometer suicídio escolhe sua época, seus meios e
sua oportunidade; e é perfeitamente consonante com isso que a intenção
inconsciente aguarde uma ocasião que possa tomar a seu encargo parte da causação.
(FREUD, 1901/1987, p.163).

Ainda que se considere que, nesse momento de sua elaboração teórica Freud ainda não
tenha elaborado os conceitos de pulsão de morte e masoquismo primário, nem por isso ele
deixou de indicar a importância que eles viriam a assumir na abordagem desses fenômenos,
cuja raiz reside em uma “tendência à autopunição, que está constantemente à espreita e
comumente se expressa na autocensura.” (FREUD, 1901/1987, p.161). Nessa perspectiva, que
Freud adota no início de sua elaboração teórica, as práticas sacrificiais se inscrevem como
desfechos trágicos do conflito psíquico.
80

Em um momento posterior de sua elaboração, entretanto, será possível indicar que


essas práticas podem assumir a forma de violentas passagens ao ato, ofuscando os sujeitos aí
implicados com o fascínio mortífero que irradiam. Ambertín (2009a) afirma que elas se
diferenciam das formações do inconsciente, uma vez que não provocam enigmas que
permitiriam a incerteza subjetiva. Sendo assim, quando tomados pelo brilho agalmático que
emana dessas práticas, os sujeitos se entrincheiram na miséria de seu destino, recusando o
reconhecimento de sua implicação nelas.
Nessa vertente sacrificial pode ser situado todo tipo de ação que implique autopunição
diante de uma culpa inconfessável, induzindo seu executor ao gozo mudo da “culpa de
sangue” (AMBERTÍN, 2009a, p.50). No entanto, Ambertín (2009a) alerta que é necessário
diferenciar essa vertente mortífera do sacrifício “de outras circunstâncias nas quais a
subjetividade deve suportar situações-limite uma vez que foi capturada em emboscadas
geradas por carrascos atrozes” (AMBERTÍN, 2009a, p.57). Nesses casos, em que “se está sob
a coação de delinquentes, terroristas ou sicários do terrorismo de Estado” (AMBERTÍN,
2009a, p.58), ou em que “feitiços mórbidos impelem para a aniquilação dos povos, como se
constata nos holocaustos (genocídios) dos séculos passado e presente” (AMBERTÍN, 2009a,
p.95), o que acontece é algo muito diferente: “o carrasco toma impunemente o destino do
sujeito ou dos povos em suas mãos, sem que haja, necessariamente, cumplicidade”
(AMBERTÍN, 2009a, p.58). Mesmo nessas circunstâncias, que dispensam a cumplicidade
masoquista, pode-se situar a razão sacrificial como fundamento dessas práticas, que se
inscrevem na esfera política e colocam em jogo a vida de muitos.

2.2 - O sacrifício e a constituição do laço social

Ao leitor do texto freudiano, não é novidade que o sacrifício se constitui como um


elemento estrutural, que pode ser situado na base do processo civilizatório. Sabe-se que Freud
nunca perdeu uma chance de extrapolar as hipóteses tecidas no contexto do trabalho clínico
para o âmbito coletivo. Sendo assim, o conflito psíquico, base da constituição da
subjetividade, pode ser pensado em uma extensão sem solução de continuidade, como
constituinte do laço social.
81

Do ponto de vista freudiano, o sacrifício moral, pautado na renúncia à satisfação das


pulsões, é condição necessária e estrutural, tanto para a constituição do sujeito, como para o
ordenamento do laço social. Essa indicação, trabalhada à exaustão no livro “O mal estar na
civilização” (1930/2010), encontra seus primeiros indícios antes mesmo da fundação formal
da psicanálise, conforme o atesta o manuscrito N, anexado a uma carta redigida em 31 de
maio de 1897, e endereçada ao amigo Wilhelm Fliess. (MASSON, 1986).
Nesse manuscrito, Freud comenta que a significação de sacro (santo) “se baseia no
fato de que os seres humanos, em benefício da comunidade mais ampla, sacrificam uma parte
de sua líberdade sexual e de sua liberdade em se entregar às perversões.” (MASSON, 1986,
p.253). Dessa forma, o sacrifício de si permite a instituição do direito e o estabelecimento da
justiça distributiva, cujo

(...) resultado final deve ser um direito para o qual todos — ao menos todos os
capazes de viver em comunidade — contribuem com sacrifício de seus instintos, e
que não permite — de novo com a mesma exceção — que ninguém se torne vítima
da força bruta. (FREUD, 1930/2010, p.57).

Freud retoma suas reflexões acerca da conexão entre renúncia pulsional e sacrifício
26
moral no texto “Atos obsessivos e práticas religiosas” (1907/1992, tradução nossa) ,
afirmando que as religiões cumprem uma função fundamental na “sufocação de certas moções
27
pulsionais” (1907/1992, p.108, tradução nossa) , pois induzem ao sujeito a sacrificá-la à
divindade.

(…) muito daquilo a que o homem havia renunciado como ‘impiedade’ foi cedido a
Deus e ainda era permitido em nome Dele, de forma que a cessão à divindade foi o
caminho pelo qual o ser humano se libertou do império das pulsões malignas,
prejudiciais para a sociedade. (FREUD, 1907/1992, p.109, tradução nossa, grifo
nosso). 28

Com a instituição religiosa delimita-se um lugar sagrado no qual se dispõem os


objetos consagrados ao domínio divino, e interditados ao usufruto humano. Cada fragmento
da satisfação renunciada, sacrificada, se torna um patrimônio comum, considerado, doravante,
sagrado. Dessa forma, toda cota de gozo renunciado torna-se indisponível aos indivíduos,

26
Acciones obsesivas y prácticas religiosas.
27
“Sofocación de ciertas mociones pulsionales”.
28
“(…) mucho de aquello a que el hombre había renunciado como’impiedad’ fue cedido a Dios y aun se lo
permitía en nombre de Él, de suerte que la cesión a la divinidad fue el camino por el cual el ser humano se liberó
del imperio de pulsiones malignas, perjudiciales para la sociedad”.
82

sendo-lhes concedida em pequenos montantes, apenas em certas ocasiões especiais, para


serem fruídas em cumplicidade com o grupo.
Ainda que a renúncia de uma satisfação direta das pulsões possa ser vista como
condição para o estabelecimento do laço social, uma vez que funciona como uma barreira
contentora da agressividade e dos excessos pulsionais, eventualmente ela pode se tornar
patogênica, quando exige sacrifícios desmesurados em nome de um ordenamento moral
excessivamente rígido. E isso leva Freud a concluir, nesse momento de seu percurso teórico,
que a moral sexual civilizada constitui a base da doença nervosa moderna (FREUD,
1908/1992).
Durante sua análise da estrutura repressiva da moral sexual civilizada, Freud não
desconsidera as variáveis subjetivas, que permitem pensar, ao lado da dimensão coletiva do
laço social, o campo da implicação de cada sujeito com esse laço. A renúncia pulsional não
assume uma significação de sacrifício para todos; alguns a fazem sem maiores problemas,
chegando mesmo a fazê-lo com gosto, enquanto que outros necessitam adoecer para atendê-
las. Caso não consiga conformar-se aos imperativos morais ou legais de sua cultura, resta ao
sujeito enfrentar a sociedade como um libertino ou criminoso, um “fora da lei.” (FREUD,
1908/1992, p.168, tradução nossa). 29 Este é o último recurso para aquele que não conseguiu
estabelecer sua exceção como grande homem ou herói.
A submissão moral, acompanhada do sacrifício de si, constitui desde tempos
memoriais o sinal que permite reconhecer o indivíduo virtuoso. Este deveria saber conter suas
paixões e manter a temperança. Assimilado pelo logos cristão, o ideal grego da virtude
encontraria outras formas de expressão, como o claustro, o celibato e as práticas de jejum.
Até esse ponto Freud não traz grandes inovações, mas o sacrifício moral conduziria as
reflexões freudianas para caminhos inusitados, encontrando em seu cerne o supereu. A
renúncia pulsional imposta pela civilização se reverte, ela própria, em uma fonte primária de
gozo, expressando-se sob forma de sentimento de culpa. A renúncia não pacifica nem traz a
desejada aliança com o pai, pois ela serve de repasto ao hipermoral e insaciável supereu, que
nunca se contenta com as pequenas parcelas de gozo; almeja-o todo. Com o supereu, não há
possibilidade de regateamento; suas severas exigências extrapolam qualquer negociação que
pudesse vir em socorro do sujeito. A moralidade supereuóica se torna um pretexto encobridor
da necessidade de castigo, cuja expressão máxima, para Freud, é o sentimento de culpa. O

29
“Fuera de la ley”.
83

corolário da intromissão do supereu no campo dos trâmites que envolvem as relações do


sujeito com a civilização não é o advento do senso moral, nem o fortalecimento do laço
social, mas sim o masoquismo, alimentado por uma incessante vontade de gozo, escamoteada
na renúncia e no sentimento de culpa que a acompanha. O oferecimento sacrificial de si (ou
de uma parte de si) permite comprová-lo:

Se é preciso limitar a satisfação pulsional para escapar do gozo e obter o


reconhecimento do amor do pai, essa renúncia, degradada em sacrifício, fortalece
apenas o poder paterno que cresce em sua dimensão sanguinária e cruel e reenvia ao
gozo aquele mesmo gozo ao qual se pretendia renunciar . O sacrifício testemunha a
presença de um pai-Deus brutal e malvado, mas também busca os signos de seu
desejo para tentar pacificá-lo em troca de um pedaço do corpo ou da própria vida.
(AMBERTIN, 2009b, p.201).

Contrapondo essas reflexões, advindas das elaborações freudianas desenvolvidas em


“O mal-estar na civilização” (1930/2010), com aquelas desenvolvidas acerca das práticas
sacrificiais, em “Psicopatologia da vida cotidiana” (1901/1987), é possível constatar que o
sacrifício, seja ele moral ou ritual, sempre coloca em jogo a problemática do supereu. Em
decorrência disso, essa distinção entre sacrifício moral e ritual, cara a alguns antropólogos e
sociólogos orientados pelo evolucionismo, não faz muito sentido na perspectiva freudiana.
Dessa forma, do ponto de vista da psicanálise, pode-se dizer que o supereu é um
conceito fundamental para situar o sacrifício, considerando os paradoxos inerentes à
instauração da função paterna. Se, por um lado, essas diretrizes permitem estabelecer um
norte para a abordagem da razão sacrificial em nossa época, por outro elas tornam o problema
do sacrifício ainda mais complexo, uma vez que o conceito de supereu não recebeu uma
conceituação unívoca na obra freudiana.

2.3 - Os paradoxos do supereu

Complexidade, esse é o termo com o qual Ambertín (2009b) se refere ao conceito de


supereu na obra freudiana, pois se trata de um conceito que se inscreve em diferentes
dimensões da psicanálise: a clínica, a ética e a abordagem de fenômenos sociais. Freud
(1923/1910) estabeleceu o conceito de supereu no contexto da reformulação de sua
metapsicologia, a partir do esquema da segunda tópica, reservando-lhe um lugar de destaque
84

na estruturação psíquica. Não se pretende aqui esgotar a discussão acerca do conceito de


supereu em psicanálise, nem torná-la exaustiva, mas – no que concerne aos objetivos
propostos por esta pesquisa – extrair elementos teóricos pertinentes para a abordagem do
problema do sacrifício na atualidade e suas incidências no campo dos fenômenos sociais.
Cabe destacar, inicialmente, que “o conceito freudiano de supereu é um dos que mais
deu lugar a mal-entendido, já que não há em Freud uma teoria sistematizada sobre o mesmo.”
(FERRARI, 2012). Em vários pontos da elaboração freudiana pode-se detectar certa
indefinição no que tange à distinção entre os conceitos de ideal do eu e de supereu. É digno de
nota que ela não deixa de se manifestar, inclusive em “O eu e o id” (1923/2010), livro no qual
Freud formaliza, pela primeira vez, o conceito de supereu. Seguindo as indicações de
Ambertín (2009a, p.220), o leitor é advertido no sentido de não assepsiar “o caminho
freudiano das asperezas de seus paradoxos”, e incitado a “descobrir os espaços que esses
paradoxos inauguram.” (2009a, p.220). Não há melhor recurso para avançar nessa direção do
que retomar, resumidamente, alguns pontos fundamentais das elaborações freudianas acerca
do supereu.
Primeiramente, deve-se considerar que “o supereu não é simplesmente um resíduo das
primeiras escolhas objetais do id” (FREUD, 1923/2010, p.42), precipitados da identificação
com o pai, como também uma “enérgica formação reativa” (FREUD, 1923/2010, p.42)
erigida contra eles. Essa ambivalência marcará, inelutavelmente, qualquer forma de laço que o
sujeito estabeleça com o Outro. Em um exemplo paradigmático, Freud situa o paradoxo
inerente à constituição do supereu, articulado ao seguinte enunciado exortativo: “Assim
(como o pai) você deve ser.” (FREUD, 1923/2010, p.42). Esse enunciado supõe,
implicitamente, uma enunciação proibitiva que o contradiz: “Assim (como o pai) você não
pode ser, isto é, não pode fazer tudo o que ele faz; há coisas que continuam reservadas a ele.”
(FREUD, 1923/2010, p.43). Essa passagem permite articular o que Freud (1923/2010, p.43)
designa como “dupla face do ideal do Eu”, ou seja, o caráter fundamentalmente antinômico e
contraditório do supereu, em suas relações paradoxais com a lei moral e com os ideais sociais.
Segundo Bassols (2001, p.56, tradução nossa), o problema colocado pelo supereu
concerne à enunciação da lei, independentemente do seu enunciado: “Uma lei sempre pode
30
ser enunciada de forma antinômica.” Sendo assim, não importa o conteúdo veiculado pela
lei: em suas entrelinhas, na própria estrutura de sua enunciação, surge um forte apelo à

30
“Una ley siempre pude enunciarse de forma antinómica”.
85

transgressão, veiculado pelo supereu. Essa constatação, facilmente demonstrável no campo da


clínica psicanalítica, assinala a presença irredutível de um pathos, inerente à própria dimensão
da linguagem. Conforme afirma Ambertín, “não basta indicar que o supereu é antagônico ao
desejo, é preciso assinalar que ele é o seu avesso, o que revela a patogenia da lei, sua falha
estrutural.” (AMBERTÍN, 2009a, p. 221).
Retomando o texto freudiano, e tendo como norte essas indicações, é possível
estabelecer uma diferenciação entre o supereu e a instância dos ideais, sem desconsiderar que
elas funcionam sempre de forma articulada. Quando retoma suas reflexões acerca do tema, em
suas “Novas conferências introdutórias sobre a psicanálise” (1933/2010), Freud avança no
sentido de uma definição estrutural do estatuto do supereu, com a subsequente possibilidade
de distingui-lo dos ideais: “nossa postulação de um super-eu descreve de fato uma relação
estrutural, não personifica simplesmente uma abstração como a da consciência moral.”
(FREUD, 1933/2010, p.202, grifo nosso).
Essa relação estrutural, indicada por Freud, é retomada por Lacan quando aborda a
teoria dos quatro discursos, no seminário “O avesso da psicanálise” (1969-70/1992). Nesse
seminário, Lacan afirma que a estrutura da linguagem torna possível a existência de um
discurso sem palavras, que pode subsistir em “certas relações fundamentais” (LACAN, 1969-
70/1992, p.11):

Mediante o instrumento da linguagem, instaura-se um certo número de relações


estáveis, no interior das quais certamente pode inscrever-se algo bem mais amplo,
que vai bem mais longe do que as enunciações efetivas. (LACAN, 1969-70/1992,
p.11).

Atos e condutas, bem como a enunciação paradoxal implicada em certos “enunciados


primordiais” (LACAN, 1969-70/1992, p.11), se inscrevem em uma estrutura pré-articulada,
que desde o início, disponibiliza lugares vacantes, estabelecidos a partir da estrutura da
linguagem. Lacan (1969-70/1992, p.11) aproveita esse momento de sua argumentação para
questionar o público que assistia ao seminário: de outra forma, “o que seria do que se encontra
para nós sob o aspecto do supereu?”.
Falar de lugares vazios estabelecidos apriori pela estrutura da linguagem, implica
pensá-la em uma dimensão estritamente lógica, despida de qualquer forma de conteúdo
sensível ou personificação empírica, que permitiria conferir-lhe consistência fenomênica.
86

Esses lugares podem vir a ser ocupados por diferentes elementos no campo da estrutura, e é
esse entendimento que viabiliza a justa apreciação da afirmação freudiana de que o supereu

(...) é construído não segundo o modelo dos pais, mas do super-eu dos pais;
preenche-se com o mesmo conteúdo, torna-se veículo da tradição, de todos os
constantes valores que assim se propagaram de geração a geração. (1933/2010,
p.205).

O supereu não é, portanto, o ideal (ou a lei moral), mas seu móbil, seu veículo de
transmissão, responsável pelo seu trâmite. Aqui, não há lugar para a entificação psicológica
dos pais da criança, pois Freud deixa claro que se trata de uma “instância parental”, que se
torna cada vez mais “impessoal” (FREUD, 1933/2010, p.202) com o passar do tempo. Por
isso, do ponto de vista da psicanálise, não faz diferença se os pais da criança a trataram de
forma severa ou benevolente: a herança que lhe cabe sempre traz a marca da rigidez e
severidade, a serviço da “função punitiva e proibidora.” (FREUD, 1933/2010, p.199). Daí o
sentido da afirmação de Ambertín (2009b, p.223): “o supereu da criança se edifica sobre os
pecados do pai e o saldo cruel resulta ser um desarranjo irreparável da estrutura”.
Por mais nobres que sejam os ideais, e ainda que eles estejam legitimados sob forma
de lei escrita e objetivada, nem por isso estão imunes à ação corrosiva do supereu, que incide
não sobre o campo do enunciado, mas em suas entrelinhas, no campo tácito da sua
enunciação, que quando não exorta à submissão absoluta, incita insistentemente ao desvario e
à transgressão. Se a lei, veículo da ordem e do pacto social, pode funcionar de forma insensata
e parasitária, não há como encontrar nela nenhuma garantia de apaziguamento do mal estar.
Uma célebre passagem freudiana, comumente usada por comentadores para definir o
supereu, afirma que ele é herdeiro do complexo de Édipo: “Mas o super-eu, que dessa forma
assume o poder, a função e até os métodos da instância parental, é não apenas sucessor, mas
também legítimo herdeiro desta.” (FREUD, 1932/2010, p.199). Alguns autores depreenderam
disso que o supereu seria um representante da lei paterna e da moralidade, diante das
exigências instintuais do id. No entanto, como legítimo herdeiro da instância paterna, o
supereu veicula não apenas o enunciado proibitivo, como também a significação incestuosa e
assassina que subjaz a ele.
Freud já havia notado que, em decorrência de sua origem pulsional, o supereu pode se
tornar feroz, sempre pronto a se voltar contra o sujeito de forma sádica e cruel. Essa vertente
pulsional do supereu foi destacada por ele em seu texto “O problema econômico do
87

masoquismo” (FREUD, 1924/2010), onde afirma, claramente, que seja em função de um


masoquismo do eu, ou de um sadismo do supereu, os paradoxos decorrentes da introjeção do
pai sempre desembocam em um irredutível sentimento de culpa, expressão de uma
“necessidade que é satisfeita mediante o castigo e o sofrimento.” (FREUD, 1924/2010, p.
199). Certamente, “isto não beneficia nem a moral nem o indivíduo.” (FREUD, 1924/2010, p.
200).
Vê-se bem que a herança paterna, tramitada pelo supereu, não poderia estar a salvo
dos paradoxos impostos pela própria estrutura da linguagem. Como bem o articula Lacan
(1959-60/1988), recorrendo à Epístola de São Paulo aos romanos, é a Lei que instaura o
pecado. O legado do pai, em sua dupla face, não poderia deixar de ser paradoxal, uma vez que
a herança tramita não em apenas em seu nome, mas também naquilo que lhe escapa: “O pai, o
Nome-do-Pai, sustenta a estrutura do desejo com a da lei - mas a herança do pai é aquilo que
nos designa Kierkegaard, é seu pecado.” (LACAN, 1964/1988, p.38). O pecado do pai –
mácula que denuncia um resto que não se inscreve no cômputo da sua herança - eis o que se
busca expiar com a culpa e encobrir com o sacrifício.
Sendo assim, do ponto de vista da psicanálise, não há como corroborar as teses
antropológicas e sociológicas sobre o sacrifício, que o interpretam como uma forma de
comunicação entre o domínio profano dos homens e o domínio divino. Para a psicanálise, o
sacrifício é sempre encobridor, e a cada vez que ele ressurge, colocar-se-ão em questão os
paradoxos inerentes ao legado paterno, que se efetivam no caráter ambíguo de sua palavra.
Esta é “guardiã do gozo”, mas também “opaca tentação” (AMBERTÍN, 2009b, p.221) à
transgressão.
Com Lacan torna-se possível entender as razões que levaram Freud a enveredar por
esses caminhos. O pai só assume eficácia simbólica e interditora depois de morto, mas por
outro lado, seu assassinato acarreta um recrudescimento da Lei, que ao invés de se enlaçar à
transmissão do desejo, toma-o como uma ameaça e coloca-se contra ele. Sendo assim, o saldo
da inscrição do Nome-do-Pai não acontece sem deixar cicatrizes permanentes no sujeito, que
constituirão as raízes do supereu:

Por que Freud envereda por esse paradoxo? Para explicar que o desejo, com isso,
será apenas mais ameaçador, e, logo, a interdição mais necessária e mais dura. Deus
está morto, nada mais é permitido. O declínio do complexo de Édipo é o luto do Pai,
mas ele se conclui por uma seqüela duradoura: a identificação que se chama
88

supereu. O Pai não amado toma-se a identificação que cumulamos de críticas sobre
nós mesmos. (LACAN, 1960/2005, p.30).

A inscrição do Nome-do-Pai, portanto, é sempre sintomática, paradoxal: a regulação


do gozo, proporcionada por sua incidência simbólica, não se efetiva sem deixar como rastro
“efeitos devastadores, até mesmo maléficos.” (LACAN, 1960/2005, p.31). Esse é o termo a
que chega Lacan após sua leitura do sacrifício de Abraão. Tal leitura se fez necessária, tendo
em conta que a referência ética legada por Freud em torno “da função, do papel e da figura do
Nome-do-Pai giram em torno da tradição propriamente judaico-cristã, e nela são inteiramente
articuláveis.” (LACAN, 1960/2005, p.28). Antes de chegar a essa conclusão, no entanto,
Lacan percorreu, ao longo do seu ensino, um longo itinerário na temática do sacrifício. Nesse
percurso, ele estabeleceu importantes interlocuções com o campo da antropologia, que agora
devem ser retomadas para um exame mais atento.

2.4- Sacrifício, dádiva e reciprocidade: uma interlocução entre Lacan e a antropologia

Peço-te que me recuses o que te ofereço porque: não é


isso. (LACAN, 1971-72/2013, p.79).

Lacan abordou o tema do sacrifício ao longo de todo o seu ensino, tendo-o revisto
sucessivamente, conforme avançava rumo a uma teoria do gozo. Em “Complexos familiares”
(LACAN, 1938/2003), ele já falava do sacrifício ligado à automutilação e à complacência
somática presente na base do sintoma histérico.

É por um sacrifício mutilante que a angústia se oculta ai, e o esforço de restauração


do eu se marca, no destino da histérica, por uma reprodução repetitiva do reca1cado.
Assim, é compreensível que esses sujeitos mostrem em suas pessoas as imagens
patéticas do drama existencial do homem. (LACAN, 1938/2003, p.81).

Nesse mesmo texto já é possível encontrar uma referência do sacrifício articulado à


“mítica do sacrifício de Abraão” (LACAN, 1938/2003, p.64), e ao “progresso da
31
espiritualidade”, mencionado por Freud (1939 [1934-38], p.108, tradução nossa) . Esse

31
Moisés y la religión monoteísta.
89

progresso se dá na medida em que o capricho das “tiranias matriarcais” (LACAN, 1938/2003,


p.64) cede espaço ao domínio da Lei e da autoridade do pai:

Caso se refiram aos ritos sacrificiais com que as culturas primitivas, mesmo havendo
chegado a uma concentração social elevada, realizam com o mais cruel rigor -
vítimas humanas desmembradas ou enterradas vivas - as fantasias da relação
primordial com a mãe, eles lerão em diversos mitos que ao advento da autoridade
paterna corresponde uma moderação da repressão social primitiva. (LACAN,
1938/2003, p.64).

Nesse momento inicial da elaboração lacaniana, ainda marcada por um tom kleiniano,
pode-se perceber que o advento da autoridade paterna vem a ordenar, moderar, conter a
relação antropofágica que marca a relação primária com a mãe, assombrada pelo espectro
angustiante do corpo esfacelado. O advento do pai é ordenador, unificador e separador, uma
vez que permite o enlace do registro simbólico da Lei, barrando o excesso obsceno da relação
corpo a corpo com a mãe, característica do primado matriarcal. O sacrifício é evocado por
Lacan em um viés dilacerante, que coloca em cena o fantasma do desmembramento corporal;
no horizonte desabitado dessa experiência fronteiriça, delimita-se a sombra melancólica do
objeto, que se projeta sobre o sujeito. A teorização lacaniana indica que essa fronteira é
estabelecida a partir da castração, entendida como operação inaugural e estrutural de divisão
do sujeito. Por essa via, abre-se um amplo leque de reflexões acerca do sacrifício.
As elaborações tecidas no seminário “As relações de objeto” (LACAN, 1956-
57/1995), proferido ainda nos anos 50, marcam a primeira teorização lacaniana sobre o objeto
pulsional, ainda sob a égide do termo ‘relação’. Durante esse primeiro momento do ensino de
Lacan, a emergência da questão sacrificial se efetiva articulada ao objeto enquanto dom,
ligado ao amor e à demanda ao Outro. A demanda de amor se estrutura em torno do signo
daquilo que está ausente, que falta, no campo do Outro. Como diz Lacan, “não existe maior
dom possível, maior signo de amor que o dom daquilo que não se tem.” (LACAN, 1956-
57/1995, p.142). Sendo assim, o dom é tributário da castração, e surge no contexto da
dialética do desejo, inscrita no circuito das trocas sociais entre os sujeitos. Apesar de
apresentar uma concepção intersubjetiva de amor, pensando-o como relação entre sujeitos,
Lacan já faz intervir aí a dissimetria que perpassa essa relação.
A referência usada por Lacan para pensar o dom ofertado no sacrifício é a obra
“Ensaio sobre a dádiva” (MAUSS, 1925/2003), de Marcel Mauss. Nesse ensaio, publicado
pela primeira vez em 1925, e considerado seu mais importante trabalho, Mauss estudou as
90

relações de troca na prática do potlatch em algumas sociedades primitivas, observando que os


laços de intercâmbio que uniam os homens eram estabelecidos sob forma da dádiva de
presentes. Embora tudo se passasse como se esses presentes fossem oferecidos
espontaneamente, havia, na verdade, uma intrincada rede de obrigações mútuas, que
preconizavam tanto a obrigatoriedade de sua oferta, quanto de sua retribuição.
Esse fenômeno, aparentemente banal ao observador comum, encontra sob a atenta
abordagem de Mauss uma grande importância, não apenas para compreender as instituições
sociais das antigas civilizações, mas também das atuais. Mauss considerava-o um fato social
total, pois estaria na raiz das mais diversas instituições sociais que hoje estruturam o
complexo sistema de contratos, trocas e dádivas entre os homens: instituições religiosas,
jurídicas, morais e econômicas, funcionando enlaçadas uma à outra, sem estarem apartadas
em diferentes registros, tal como ocorre hodiernamente nas sociedades ocidentais.

Essa moral e essa economia funcionam ainda em nossas sociedades de forma


constante e, por assim dizer, subjacente, como acreditamos ter aqui encontrado uma
das rochas humanas sobre as quais são construídas nossas sociedades, poderemos
deduzir disso algumas conclusões morais sobre alguns problemas colocados pela
crise de nosso direito e de nossa economia. (MAUSS, 1925/2003, p.188/189).

Para Mauss, os fenômenos de troca e contrato, observados na prática de oferecimento


e retribuição de presentes, constituíam uma primeira forma de mercado, distinta das atuais,
mas plenamente válida e funcional. Toda dádiva ofertada implicava, para o donatário, uma
dívida de reciprocidade. Os presentes funcionavam nos intercâmbios como moeda, ou seja,
índice que permitiria auferir poder e prestígio. Mas também podiam assumir a forma de
quitação de dívida, troca de favores ou ajuste de contas.
Os fenômenos da dádiva e retribuição compulsórias foram representados de forma
sintética por Mauss no ritual do potlatch, cerimônia festiva praticada por alguns povos na qual
um suntuoso banquete era servido, seguido da doação de presentes. Essa doação expressa uma
renúncia por parte do doador, que se desfazia assim da riqueza acumulada; por outro lado, o
valor da dádiva era considerado um inequívoco sinal de prestígio do doador.
O potlatch possui uma significação paradoxal, pois significa tanto dádiva quanto
consumo, no sentido de prover, nutrir. A oferenda se passa como ato de generosidade
desinteressada, mas na verdade, implica um rígido sistema de trocas compulsórias. Qualquer
descuido na retribuição da dádiva recebida poderia desencadear uma guerra entre os clãs
91

envolvidos. “Recusar-se a dar, deixar de convidar ou recusar-se a receber equivale a declarar


guerra, é recusar a aliança e a comunhão.” (MAUSS, 1925/2003, p.58).
Mas, “que força existe na coisa dada que faz que o donatário a retribua?” (MAUSS
1925/2003, p.188). O objeto ofertado não tem valor independente de quem o oferece; ele
possui um hau, ou seja, um espírito, uma anima partilhada com seu doador. Essa aura sagrada
do objeto é chamada pelos polinésios de maná, e é ela que acarreta a necessidade de restituir a
oferenda ao seu doador. Mauss reconheceu no potlatch um sistema de prestações totais, ou
seja, não é o indivíduo isolado que oferece o presente, mas a toda a comunidade ou clã. Essa
troca se reveste de um valor simbólico, cuja importância recai não sobre os objetos trocados,
mas sobre a própria instituição universal de troca.
Não passou despercebida a Mauss a relação entre o potlatch e a prática da destruição
da oferenda, observada nos rituais de sacrifício. O sistema de trocas e contratos “arrastam em
seu turbilhão não apenas homens e coisas, mas os seres sagrados que estão mais ou menos
associados a eles.” (1925/2003, p.205). Mauss explica que esse envolvimento de seres
sagrados no sistema de trocas decorre do fato de que eles foram os primeiros contratantes com
quem os homens tiveram que negociar, pois eram os primeiros proprietários das riquezas do
mundo. Toda a prodigalidade característica do potlatch parte do princípio de que tudo o que é
ofertado foi, inicialmente, dado pelos deuses. Diante da generosidade da dádiva divina, há a
necessidade de uma retribuição, e é através do sacrifício do excesso de riqueza que o homem
poderá quitar sua dívida com os deuses. Aquele que quita sua dívida poderá esperar sua justa
compensação; já aquele que recusa sacrificar sua riqueza transgride, nesse ato, as leis de
intercâmbio, e deverá enfrentar as devidas represálias. Afinal, se por um lado “não há dádiva
gratuita que tenha força de lei” (MAUSS, 1925/2003, p.189), por outro, “ninguém é livre para
recusar um presente oferecido.” (MAUSS, 1925/2003, p.212).
Apesar da função de mediação entre os mundos sagrado e profano, cumprida pelo
sacrifício, Mauss ressalta que o caráter de dádiva na oferenda sacrificial só se efetiva
mediante a destruição do objeto ofertado. Nesse aspecto, o sacrifício é uma operação
irreversível, pois acarreta a aniquilação da vítima, sinal de uma renúncia total, por parte do
sacrificante, dos direitos sobre o objeto sacrificado.
Em sua retomada dos desenvolvimentos feitos por Mauss, Claude Lévi-Strauss
acentua que o caráter de irreversibilidade do sacrifício, representado na destruição do objeto
ofertado, encontra uma contrapartida no mundo sagrado, sob forma da “outorga da graça
92

divina” (LÉVI-STRAUSS, 1962/1989, p.251), operação igualmente irreversível. Isso significa


que a mediação entre os homens e os deuses, proporcionada pelo ritual de consagração da
vítima, encontra seu termo na ruptura, no corte desse canal de comunicação, através da
destruição dessa vítima. Em suma, um vínculo de aproximação é estabelecido, para em
seguida, ser rompido, como se essa aproximação fosse perigosa, impossível de ser sustentada
de modo permanente.
Assim como Mauss, Lévi-Strauss reforça a função mediadora do sacrifício, afirmando
que ele visa “estabelecer uma conexão desejada entre dois domínios inicialmente separados”,
fazendo com que “uma divindade distante satisfaça os votos humanos.” (1962/1989, p.251). O
oferecimento de uma vítima consagrada, durante o ritual sacrificial, pretende justamente
constituir um elemento de barganha, que aproxima as duas partes interessadas. O caráter
oblativo da oferenda é evidente, pois se trata de sacrificar algo supostamente desejado pelos
deuses. Surge daí a indicação de que o sacrifício, longe de ter a pretensão de satisfazer a
insaciável sede de sangue dos deuses, é na verdade, um engodo, uma manobra de sedução,
que pretende colocá-los a serviço dos homens.
Esses estudos antropológicos foram muito importantes para Lacan, que neles se
baseou para estruturar as relações entre o dom, o amor e o sacrifício, bem como situar o
desejo como conceito fundamental para compreender essas relações. Conforme sublinha
Ambertín (2009a, p.82), “os primeiros trabalhos de Lacan que aludem ao sacrifício giram em
torno das formulações sobre o pacto de aliança e reciprocidade que ligam ao Outro”.
Em “Função e campo da fala e da linguagem” (LACAN, 1953/1998), momento
inaugural de seu ensino, Lacan já estabelecia o “(...) vínculo da fala com o dom constitutivo
da troca primária” (LACAN, 1953/1998, p.312), indicando assim um enlace originário entre o
dom e a palavra, sendo esta última considerada como fundadora da dimensão humana,
eminentemente simbólica.
Nesse primeiro momento de sua teorização, Lacan usava a expressão “dom da fala”
(LACAN, 1953/1998, p.323), enfatizando a dimensão intersubjetiva da circulação da palavra
e a sua função reguladora, tanto na constituição do campo do sujeito, quanto do
enquadramento da realidade. Nesse momento da sua elaboração, o grande Outro comparece
como lugar da linguagem, e, portanto, como elemento constitutivo na estruturação subjetiva.
Para além do corpo-a-corpo, característico da relação de cuidado estabelecida entre a
mãe e a criança, Lacan destaca a função simbólica da palavra ligada ao dom do amor, vale
93

dizer, àquilo que falta ao Outro. A distinção entre essas dimensões fica evidente, quando se
considera que algumas mães confundem o cuidado relativo às necessidades da criança
(Ananké) com o dom de seu amor (Eros), empanturrando a criança com a “papinha
sufocante.” (LACAN, 1958/1998, p.634). A função do dom da palavra surge, no ensino
lacaniano, ligado à instância paterna, eminentemente simbólica, e à falta no campo do Outro;
o amor emerge, invariavelmente, a partir dessa falta, que a partir do complexo de Édipo,
adquire a significação de uma interdição, de um limite à desmesura do capricho materno.
O campo da dialética do desejo, que serve de esteio para a elaboração que Lacan
desenvolve a respeito do amor como dom, ancora-se no falo, que é tomado como um
elemento lógico, revestido do caráter de signo primordial, chave universal que abre diante do
sujeito o campo das permutas simbólicas:

O desejo visa ao falo na medida em que este deve ser recebido como um dom. Para
este fim, é necessário que o falo, ausente ou presente noutra parte, seja elevado ao
nível do dom. E é na medida em que ele é elevado à dignidade de objeto de dom,
que faz o sujeito entrar na dialética da troca, aquela que irá normalizar todas as
suas posições, até e inclusive as interdições essenciais que fundam o movimento
geral da troca. (LACAN, 1956-57/1995, p.144, grifo nosso).

É amparado pela dialética do desejo, estruturada a partir do declínio do complexo de


Édipo, que Lacan vincula a questão do dom ao falo, por um lado, e por outro, o sacrifício à
castração. Lacan situou o pai enquanto metáfora subjetivante, e a castração como operação
lógica, interditora e normativa, que autoriza ao sujeito assentir subjetivamente com a Lei e a
perda de gozo que ela implica. Ocupando o eixo central dessa dialética, o falo se constitui
como elemento central na série de permutas simbólicas, que autoriza a troca de dons e o
reconhecimento mútuo entre os sujeitos que aí se inscrevem. Essas trocas só se estabelecem a
partir da interdição do incesto, conforme já assinalava Freud em “Totem e tabu” (1913/1987).
A influência das pesquisas antropológicas e sociológicas sobre essas primeiras
teorizações de Lacan levaram-no a enfatizar o caráter de gratuidade da dádiva, ponto de vista
que será modificado em elaborações posteriores.

O que faz o dom é que um sujeito dá alguma coisa de uma maneira gratuita; na
medida em que, por detrás do que ele dá, existe tudo o que lhe falta, é que o sujeito
sacrifica para além daquilo que tem. O mesmo acontece, aliás, com o dom
primitivo, tal como se exerce efetivamente na origem das trocas humanas sob a
forma do potlatch. (LACAN, 1995/1956-57, p.143, grifos nossos).
94

Escamoteadas sob a forma de dádiva, as oferendas nunca são desinteressadas: elas


convocam o Outro, constituindo-se como semblantes da falta estrutural que habita este campo
[S(A/)]. Sacrifica-se não o que se dá, mas o que resta como impossível de se oferecer em toda
e qualquer forma de dádiva. Dotados de uma eficácia simbólica, os objetos circulam a partir
do reconhecimento de uma falta no campo do Outro, e isso já é antecipado nesse momento
inicial da elaboração de Lacan, quando ele comenta que, ainda que o crente professe a fé de
que a Deus nada falta, os rituais sacrificiais atestam o contrário; falta-lhe a própria existência,
que deve ser constantemente colocada à prova.

No fundo de toda crença em deus como perfeita e totalmente munificente, existe a


noção de uma coisa qualquer que lhe falta sempre, e que faz com que se possa, ainda
assim, sempre supor que ele não exista. Não há outra razão para se amar a Deus
senão que talvez ele não exista. (LACAN, 1956-57/1995, p.143).

Trata-se aqui de uma primeira versão do famoso aforismo lacaniano, formulado em


momento posterior de seu ensino, que afirma que o Outro não existe, tal como expresso no
matema S (A/). A decorrência dessa constatação implica considerar toda a série de manobras
que o sujeito lança mão, para reconstituir esse Outro no campo do seu desejo, ou melhor, no
campo da fantasia, que sustenta o seu desejo.
Em seu seminário sobre a transferência, Lacan (1960-61/1992, p.146) se referiu a
essas manobras como “cilada para os deuses”, articulando o objeto-dom ao agalma, termo
grego que designa um objeto precioso destinado a causar o desejo. “O agalma surge como
uma espécie de cilada para os deuses. Aos deuses, esses seres reais, existem truques que lhes
enchem os olhos.” (LACAN, 1960-61/1992, p.146).
Segundo os estudos antropológicos de Louis Gernet (1968/1980, p.89), a etimologia
do termo grego agalma alia a significação de objeto precioso, “riqueza nobre” (agalmata)
com a significação de ornamento, enfeite (agallein). Como objeto de alto valor, ele pode se
referir a qualquer tipo de objeto, inclusive seres humanos. Gernet (1968/1980) acrescenta que,
na época clássica, o uso do termo ficou estabelecido com o significado de oferenda aos
deuses, sobretudo na forma de oferenda que a estátua da divindade representa. Nesse sentido,
os agalmata assumem a significação de uma ostentação de luxo e “suntuosa generosidade.”
(GERNET, 1968/1980, p.90, tradução nossa) 32.

32
“Generosidad suntuosa”.
95

No contexto específico do seminário “A transferência” (LACAN, 1960-61/1992,


p.146), no qual Lacan faz uso constante do termo, agalma é situado a partir de “O Banquete”
(PLATÃO, 380 a.C./1991), o mais célebre dos diálogos platônicos. Destaca-se, nesse diálogo,
o elogio que Alcibíades lança a Sócrates, comparando-o aos silenos, pequenas estátuas que,
como invólucros, guardam em seu interior objetos preciosos, servindo como “caixinhas de
jóias, ou embalagens para oferta de presentes.” (LACAN, 1960-61/1992, p.141).
Lacan alerta que, cada vez que nos encontramos diante de agalma, devemos estar
advertidos de que, mesmo que pareça tratar-se de estátuas dos deuses, olhando mais de perto,
poderemos perceber que se trata sempre de outra coisa. “Dou-lhes a chave da questão,
dizendo-lhes que é a função fetiche do objeto que é sempre acentuada.” (LACAN, 1960-
61/1992, p.144). Situado a partir da função do fetiche, o agalma ganha consistência como
objeto escópico, que se oferece escamoteado sob a forma de imagens cativantes, que sempre
evocam o fascínio, a admiração e, até mesmo, a entrega servil do observador. Isso pode ser
percebido claramente na fala de Alcibíades:

Uma vez porém que fica sério e se abre [o sileno], não sei se alguém já viu as
estátuas[agalmata] lá dentro; eu por mim já uma vez as vi, e tão divinas me
pareceram elas, com tanto ouro, com uma beleza tão completa e tão extraordinária
que eu só tinha que fazer imediatamente o que me mandasse Sócrates. (PLATÃO,
380 a.C./1991, p.93).

Agalma é, portanto, algo que só se constitui a partir de um invólucro, de um


revestimento que, paradoxalmente, o mantém oculto. Olhar de frente para este objeto significa
enredar-se em seu encanto, cair submisso sob seu feitiço (de onde deriva, etimologicamente, o
termo fetiche).
Esse objeto, “auge da obscuridade em que o sujeito é mergulhado em sua relação com
o desejo” (LACAN, 1963/2005, p.70), conserva as características fundamentais que podem
também ser encontradas no sacrifício: ambos são fundamentalmente cativantes e enganadores,
pois se constituem como ardis sedutores, ciladas para capturar o desejo do Outro. Com a
oferta do objeto agalmático, busca-se seduzir os deuses, dobrando-os aos caprichos humanos.
Não passou despercebido a alguns psicanalistas a homologia estrutural entre o agalma,
o objeto a e a oferenda sacrificial. Antônio Quinet indica que há uma equivalência entre os
dois primeiros termos, enfatizando seu caráter metonímico e fugaz: “O objeto precioso que
passa de mão em mão, como um anel, representa esse caráter do objeto a, impossível de
96

possuir, pois escorrega das mãos, escapole, furta-se e causa metonimicamente o desejo.”
(QUINET, 2002, p.64).
Colette Soler, por sua vez, estabelece uma equivalência entre o objeto mais de gozar e
a oferenda sacrificial, ao afirmar que a posição sacrificial

(...) é menos avaliada pelos objetos que imola que pelo motor do próprio ato,
digamos, na causa do sacrifício. Os objetos a entrar nos lucros e perdas são os mais
variados, só tendo em comum um único traço: representar, para o sujeito, algum
valor de gozo. (SOLER, 2006, p.67).

Essas indicações podem ser aproximadas daquelas feitas por Lévi-Strauss, acerca do
sacrifício: “o sacrifício está, então, situado no reino da continuidade” (LÉVI-STRAUSS,
1962/1989, p.250), da “contiguidade” LÉVI-STRAUSS, (1962/1989, p.251), permitindo uma
“passagem contínua entre os seus termos.” (LÉVI-STRAUSS, 1962/1989, p.250).

(...) embora coisas distintas sejam muitas vezes destinadas preferencialmente a


certas divindades ou a certos tipos de sacrifício, o princípio fundamental é o da
substituição, na falta da coisa prescrita, qualquer outra pode substituí-la, desde
que permaneça a intenção, a única que importa, e ainda que o próprio zelo possa
variar. (LÉVI-STRAUSS, 1962/1989, p.249, grifo nosso).

Isso significa afirmar o caráter metonímico da oferenda sacrificial, ou seja, o objeto


que se oferece como dádiva é sempre contingente, e nunca atende plenamente o desejo do
Outro. É interessante destacar que as elaborações de Lacan acerca do agalma, estabelecidas
durante o seminário sobre a transferência (1960-61/1992) precedem, cronologicamente, essa
abordagem de Lévi-Strauss acerca do sacrifício, apresentada no livro “O pensamento
Selvagem”, publicado em 1962. A partir desse dado histórico, pode-se perceber como as
elaborações lacanianas já vinham revelando certa originalidade com relação às teorias
antropológicas de Mauss e Lévi-Strauss.
O objeto sacrificado, oferecido ao apetite dos deuses durante o ritual sacrificial, se
constitui a partir de uma interpretação que o sujeito faz do desejo do Outro, atribuindo a ele a
causa do seu desejo. Só então, esse objeto assume valor, uma vez que, a princípio, qualquer
coisa pode servir de oferenda. Tal é a lógica do sacrifício ritualizado, presente em inúmeras
narrativas míticas, que assinala a função de enlace, proporcionada pela religião:
97

Digamos que o religioso entrega a Deus a incumbência da causa, mas nisso corta seu
próprio acesso a verdade. Por isso ele é levado a atribuir a Deus a causa de seu
desejo, o que é propriamente o objeto do sacrifício. Sua demanda é submetida ao
desejo suposto de um Deus que, por conseguinte, é preciso seduzir. O jogo do amor
entra por aí. (LACAN, 1965-66/1998, p.887).

No sacrifício religioso, o enlace com o Outro se torna possível porque a ele falta
alguma coisa. Destinada a ser coroada pelo objeto agalmático, essa falta viabiliza o
intercâmbio com o Outro, sendo-lhe conferido o estatuto de uma dívida com Deus-pai. Aqui,
o sacrifício se inscreve sob a égide de Eros, o amor que brota do reconhecimento da falta no
campo do Outro (dar o que não se tem), viabilizando a constituição de um Outro barrado e
desejante [S (A/)].

(...) se o Outro carecesse de desejos seria impossível manter algum laço com ele.
Esta suposta dívida circula na aposta sacrificial, na qual o filho procura dar
existência a Deus e ao Pai como desejantes e para isso constrói o mito fundador no
qual Deus e o pai esperam algo dele. (AMBERTÍN, 2009a, p.77).

Na teorização lacaniana do sacrifício, nunca se pode perder de vista a função do Outro,


pretenso destinatário dele. Trata-se, em suma, de capturá-lo nas malhas do desejo, vale dizer,
seduzi-lo, por meio da oferenda sacrificial. Dessa forma, o sacrifício mantém um véu
encobridor sobre a falta do Outro que, apesar de tudo, é reconhecida; de outra forma, não teria
sentido fazer-lhe oferendas. O “jogo do amor” (LACAN, 1965-66/1998, p.887) instaura,
dessa forma, o engodo sedutor inerente ao ato sacrificial, possibilitando ao sacrificante
oferecer o que não tem, com vistas a quitar sua dívida simbólica com o pai, conferindo-lhe,
dessa forma, a almejada consistência.
No primeiro momento do ensino lacaniano, conforme já foi mencionado, o
sacrifício tramita no campo da dialética do amor e do desejo, constituindo-se como uma

(...) tentativa de restaurar o circuito dos intercâmbios simbólicos (sempre ameaçados


de ruptura), mas também uma tentativa de capturar o desejo do Outro, de seduzir o
Outro e, por este caminho, conseguir seu amparo. (AMBERTÍN, 2009a, p.78).

Na medida em que avança em seu ensino, entretanto, Lacan tende a se afastar cada vez
mais das teses antropológicas de Mauss e Lévi-Strauss (AMBERTÍN, 2009a), colocando em
questão a função pacificadora e homeostática do sacrifício. Em “Subversão do sujeito e
98

dialética do desejo no inconsciente freudiano” (1960/1998), pode-se constatar que Lacan


questiona a noção maussiana de fato social total:

(...) observemos realmente o que faz objeção a conferirmos a nosso significante


S(A/) o sentido do Mana ou de qualquer um de seus congêneres. É que não podemos
contentar-nos em articulá-lo a partir da miséria do fato social, ainda que acuado num
pretenso fato total. (LACAN, 1960/1998, p.835).

Essa passagem evidencia a impossibilidade de totalização do fato social, que se


inscreve no circuito simbólico dos dons. Se Lacan já podia afirmar que o que há de mais
essencial no dom falta, nesse momento ele enfatiza o caráter precário do fato social, que
jamais poderá ser considerado como uma totalidade. Essa constatação decorre da crescente
importância que as noções de real e gozo assumiram, ao longo do seu ensino. Como bem
assinala Ambertín (2009a, p.79), “se o fato social é miserável, não se pode esperar
reciprocidade”.
De fato, noções como reciprocidade e intersubjetividade foram caindo em desuso no
ensino de Lacan, na medida em que ele avançava cada vez mais em direção ao real. Isso o
levou, cada vez mais, a enfatizar o caráter contingente e autista do gozo, aliado à premissa que
afirma a incompletude de qualquer sistema simbólico, inclusive daquele que propõe
sistematizar as trocas e as relações sociais.
Com relação à articulação entre o dom e o sacrifício, Lacan emite o seu veredito final
no seminário “A angústia” (1962-63/2005, p.302), distanciando-se de vez da teoria maussiana
do dom: “o sacrifício não está, absolutamente, destinado à oferenda ou ao dom, que se
propagam em uma dimensão muito diferente, mas à captura do Outro como tal na rede do
desejo.” (LACAN, 1962-63/2005, p.302). Convêm considerar, contudo, que essa nova
perspectiva, inicialmente gestada no seminário sobre a transferência, não anula a anterior,
desenvolvida em suas primeiras elaborações, particularmente no já referido seminário “A
relação de objeto.” (LACAN, 1956-57/1995). Conforme indica Ambertín (2009a), colocar em
questão a reciprocidade do ato sacrificial não necessariamente implica em desconsiderar a
aliança e a circulação de dons, inscritas na lógica fálica.
Os desenvolvimentos em torno do agalma, que Lacan vinha colocando em marcha ao
longo do seminário sobre a transferência, impunham um remanejamento da concepção de
sacrifício que ele sustentava até então. Esse remanejamento se efetiva de forma drástica no
seminário sobre a angústia, no qual Lacan (1962-63/2005) formaliza o conceito de objeto a.
99

Pode-se mesmo dizer que esse seminário constitui o marco decisivo nas elaborações
lacanianas sobre o sacrifício, uma vez que inclui o que não havia sido considerado nas
abordagens anteriores - o corpo enquanto libra de carne, com a qual se busca aplacar a
ferocidade divina: “sempre há no corpo, em virtude desse engajamento na dialética
significante, algo de separado, algo de sacrificado, algo de inerte, que é a libra de carne.”
(LACAN, 1962-63/2005, p.242). Ilustra-o bem o evangelho de Mateus, que confirma esse
caráter irascível e violento da barganha sacrificial: “Portanto, se o teu olho direito te
escandalizar, arranca-o e atira-o para longe de ti; pois te é melhor que se perca um dos teus
membros do que seja todo o teu corpo lançado no inferno.” (MATEUS, 5:29).
A partir de então, surgem os primeiros contornos de uma nova perspectiva de Lacan
acerca do sacrifício, sob a forma de uma versão maligna de Deus, que não negocia débitos
33
nem respeita os pactos que ele próprio instaura. O shofar “... soa o encontro com o lado
implacável da relação com Deus, com a maldade divina em função da qual é sempre com
nossa carne que temos de saldar a dívida.” (LACAN, 1962-63/2005, p.242). Aqui, Lacan
levanta o véu que encobre o horror sagrado, suscitado pelo fascínio sacrificial: a essa altura, já
não há como sustentar que a dádiva é gratuita. Esse momento do percurso lacaniano assinala o
início de uma profunda mudança de perspectiva no tocante à sua concepção de sacrifício, que
se consumaria definitivamente, em suas elaborações posteriores.

2.5 - A Akedah de Isaac e a pluralização dos Nomes-do-Pai

O remanejamento lacaniano da problemática do sacrifício, efetivada no seminário “A


angústia” (1962-63/2005), desemboca, no ano seguinte, no seminário sobre os Nomes-do-Pai
(LACAN, 1963/2005), interrompido após a primeira lição. Trata-se de um momento decisivo
nas elaborações de Lacan acerca do sacrifício, pois ele o situa aí, pela primeira vez, como
modalidade de enlaçamento dos registros Real, Simbólico e Imaginário (RSI), recorrendo à
Akedah (amarração, enlace) de Isaac, tal como apresentada na narrativa bíblica do sacrifício
de Abraão. Trata-se, portanto, do esboço de uma leitura borromeana do sacrifício, que

33
O shofar é um instrumento sagrado de inestimável valor simbólico para a tradição judaica. Consiste
basicamente em um chifre de carneiro, usado para emitir sons durante os rituais que celebram certas ocasiões
significativas. Ele é revestido de uma importância especial, também, para a psicanálise; Theodor Reik, discípulo
direto de Freud, dedicou-lhe um estudo, referido por Lacan no seminário “A angústia.” (LACAN, 1962-63/2005,
p.267).
100

pretende situá-lo como enlace originário que inscreve a Lei paterna, considerando-a não mais
em sua referência ao amor e ao dom, mas em sua referência ao gozo.
Nessa leitura, Lacan confronta o sacrifício do Urvater, colocado em cena pelo mito
freudiano da horda primeva, com o sacrifício de Abraão, metaforizado na Akedah. Enquanto o
mito freudiano aborda o sacrifício na perspectiva do parricídio, o mito da Akedah de Isaac
aborda-o enquanto filicídio. Contrapondo o sacrifício do pai primevo ao sacrifício de Isaac
(que é também o sacrifício de Abraão), é possível perceber que ambas as narrativas abordam
o enlace originário que permite a articulação do desejo com a Lei. Ainda que as perspectivas
sejam inversas, a questão paterna encontra-se no cerne de ambas.
Na Akedah de Isaac, o implacável Deus de Abraão exige que Isaac seja levado para o
Monte Moriá e oferecido em holocausto. O mandato divino se abate sobre Abraão com toda a
sua carga de absurdo e arbitrariedade, pois o nascimento de Isaac era considerado uma dádiva
de Deus. Filho único de Abraão com Sara, sua mulher, o nascimento de Isaac era considerado
como um milagre; Sara já contava com uma idade avançada, e há muito já havia se passado
seu período de fertilidade.
Mesmo perplexo diante do absurdo da exigência divina, Abraão decide sustentar sua
fé, ainda que ela o conduza por caminhos inusitados. Sendo assim, ele leva Isaac para o local
indicado e o amarra, ato pleno de significação, pois metaforiza o enlace proporcionado pelo
pacto da aliança, ao mesmo tempo em que assinala a submissão incondicional à vontade de
Deus. Essas dimensões da Akedah apontam para diferentes perspectivas no tocante ao
sacrifício, em suas paradoxais relações com os Nomes-do-Pai: ele é constitutivo do enlace
com a palavra do pai, pela via do dom e do desejo, mas pode também deslizar sub-
repticiamente para a paixão pelo gozo servil, mobilizada pelo fascínio diante da onipotência
divina. Abre-se aí um obscuro caminho para aqueles que se dispõem a “experimentar não sua
demanda, mas sua vontade” (LACAN, 1960/1998, p.841), realizando-se como objeto dela.
No ápice dramático dessa narrativa mítica, Abraão aproxima o punhal contra a
garganta de Isaac, firmemente decidido a cumprir a ordem de Deus. No instante em que
estava prestes a degolar o filho, surge um anjo que detém sua mão, impedindo o seu ato. O
sacrifício deve acontecer, mas a vítima sacrificial não tem que ser Isaac; o anjo lhe aponta um
carneiro, que deveria tomar o seu lugar.
101

Figura 11 - O sacrifício de Isaac (Caravaggio, 1603).

Fonte: LACAN, 1963/2005, p.82.

Ao comentar essa narrativa, Pierre Legendre (2008a, p.26, tradução nossa) afirma que
ela expressa “(…) o fundamento último de toda filiação: que o assassinato não tem que
acontecer, pois, para o homem, a vida implica o horizonte da superação” 34. Deve-se observar,
no entanto, que a matança se consuma de fato, mas a vítima sacrificial é um substituto do
objeto inicialmente exigido por Deus. Conforme já foi abordado, o objeto que constitui a
oferenda sacrificial é metonímico, ou seja, desliza na sucessão de uma variedade
potencialmente infinita de sucedâneos. Dessa forma, Abraão sacrifica o carneiro, para não ter
que sacrificar o filho.
A substituição de Isaac pelo carneiro foi cristalizada na conhecida expressão bode
expiatório, designando metaforicamente aquele que deve se encarregar de expiar os males e
35
as culpas de um povo . A lendária figura do bode expiatório surge no contexto da tradição

34
“(…) el fondo último de toda filiación: que el asesinato no tiene que consumarse, sino que, para el hombre, la
vida implica el horizonte de la superación”.
35
Em seu livro sobre os chistes (1905/1987, p.192), Freud não perdeu a chance de dedicar uma divertida anedota
à temática do bode expiatório: “Há uma história cômica (...) de uma vila húngara onde o ferreiro fora condenado
à pena capital. O burgomestre resolveu, entretanto, que um alfaiate e não o ferreiro devia ser enforcado, pois
102

judaica, celebrada anualmente no ritual do Iom Kippur (do hebraico, dia da expiação, ou dia
do perdão). Esse ritual se encontra relatado no capítulo 16 do Levítico, um dos livros do
Antigo Testamento, também conhecido como livro dos sacrifícios. As instruções que se
seguem ao sacrifício anunciam a lei perpétua, que deverá ser observada tanto pelos nativos
quanto pelos estrangeiros que vivem entre eles:

(...) no sétimo mês, no décimo dia do mês, jejuareis e não fareis trabalho algum,
porque nesse dia se fará a expiação por vós, para que vos purifiqueis e sejais livres
de todos os vossos pecados diante do Senhor (...) (LEVÍTICO, 16; 30).

Estabelece-se assim a “instituição perpétua” (LEVÍTICO, 16; 20) do sacrifício, a se


realizar anualmente. Além do legado da Lei perpétua (S1), indicada no Levítico, há algo mais
que resta como saldo da operação sacrificial: o shofar, chifre do carneiro sacrificado, que
permanece, ainda hoje, como memorial do sacrifício de Abraão. Lacan dedicou uma longa
análise ao shofar em seu seminário “A angústia” (1962-63/2005), no contexto das
reformulações em torno do conceito de objeto a, legado da originalidade de sua contribuição
para a psicanálise. Nesse momento de seu ensino, Lacan é levado a repensar o estatuto do
objeto em psicanálise, situando-o mais além da dádiva e da reciprocidade.
Ao longo do seminário sobre a angústia, Lacan atravessa os variados semblantes
imaginários que revestem esse objeto, que em si mesmo, nada mais é do que o limiar de um
vazio, ponto de opacidade no cerne da estrutura simbólica que constitui o inconsciente. O
shofar, semblante invocante do objeto, é a voz de Deus, que permanece como um resto
inassimilável após a instauração da Lei. Tem-se aí sintetizadas, portanto, duas versões do pai:
o pai espiritualizado, que instaura e transmite o logos da lei pacificadora, e o pai irascível,
inumano, que vocifera na ausência de qualquer mensagem a ser transmitida. Nessa segunda
versão, a paternidade e a filiação são inviáveis; só há lugar para uma rivalidade infinita.
Ainda hoje, durante os rituais que marcam o encerramento do Iom Kippur, o shofar é
usado para emitir o som que faz vibrar as cordas do objeto invocante. Tomar o som do shofar
como semblante do objeto a permite incluir este último no campo da matemização da
estrutura do sujeito, pareado pela Lei perpétua (a Lei do Pai - S1) e pelo sujeito barrado ($).

havia dois alfaiates na cidade mas não havia um segundo ferreiro e o crime devia ser expiado.” Esse aparente
absurdo, com efeito de chiste, expressa o paradoxo inerente à culpa e expiação, próprio da lógica do
inconsciente: ainda que um inocente seja sacrificado, alguém deve ser designado para assumir a culpa, de modo
que o crime seja expiado.
103

Entre o sujeito $, aqui ‘Outrificado’, se posso me expressar desse modo, em sua


estrutura de ficção, e o Outro, A, não autenticável, nunca inteiramente autenticável,
o que surge é esse resto, a, é a libra de carne. (LACAN, 1962-63/2005, p.139).

Há, portanto, um resto de gozo que não é passível de reintegração no campo simbólico
do Outro. Ele está no cerne dos sistemas simbólicos com pretensão de totalização, como é o
caso das religiões monoteístas, e também, do ordenamento jurídico. O sacrifício, na medida
em que marca presença em ambos os sistemas, inscreve-se como ponto de articulação entre a
36
tessitura simbólica ritualística, cânone que ficciona o real , e o que lhe excede, involucrado
imaginariamente pela libra de carne.
Situando-se como fronteira móvel entre os registros RSI, o sacrifício não poderia
deixar de reverberar os paradoxos que decorrem da inscrição do gozo no campo do Outro. De
um lado o sacrifício moral, espiritualizado e sublimado, exigido como prerrogativa do pacto
da aliança. De outro, sua dimensão sangrenta e inegociável; a mutilação, que provoca uma
separação entre o sujeito e uma parte de si. Assim o foi para Abraão, ao ver-se confrontado
em ter que sacrificar seu próprio filho, carne de sua carne, sangue de seu sangue. Assim
também o é, para cada judeu, quando se submete ao ritual da circuncisão.

2.5.1 - Do mito paterno freudiano ao operador estrutural lacaniano

No mito freudiano, o pai intervém, da maneira mais


evidentemente mítica, como aquele cujo desejo invade,
esmaga, impõe-se a todos os outros. Não haverá nisso
uma evidente contradição com um fato obviamente
dado pela experiência - o de que, por intermédio dele, o
que se efetua é algo totalmente diverso, qual seja, a
normalização do desejo nos caminhos da lei? (LACAN,
1962-63/2005, p.365).

Para a psicanálise, a Akedah se coloca em jogo sempre quando se evoca os paradoxos


inerentes aos Nomes-do-Pai. Seguir a trilha desses paradoxos, a partir de uma desmontagem
das elaborações freudianas acerca do pai, cobraria de Lacan o preço de sua excomunhão da
comunidade analítica; a partir desse momento, ele se tornaria um dissidente, e seu ensino
assumiria uma significação herege perante ela. Não deixa de ser desprovido de significação
36
Ou seja, inscreve-o e fixa-o no registro simbólico.
104

considerar que a inflexão fundamental no tocante à leitura lacaniana do sacrifício ocorra,


precisamente, no momento em que Lacan coloca em questão o desejo de Freud, em uma única
lição do seminário interrompido, intitulado “Os Nomes do Pai.” (LACAN, 1963/2005). Ao
fazê-lo, ele inicia uma verdadeira reviravolta em seu ensino, mais particularmente, em sua
perspectiva quanto à função do pai em psicanálise.

Se Freud coloca no centro de sua doutrina o mito do pai, é claro que é em razão da
inevitabilidade da questão. Não menos claro é o fato de que, se toda a teoria e práxis
da psicanálise nos parecem atualmente em pane, é por não terem ousado, nessa
questão, ir mais longe que Freud. (LACAN, 1963/2005, p. 71).

No momento da interrupção do seu seminário sobre os Nomes-do-Pai, Lacan havia


prometido que nunca mais retomaria o tema, “vendo nisso o sinal de que esse lacre ainda não
pode ser retirado para a psicanálise.” (LACAN, 1963/2005, p.92). Esse é o lacre-do-pai, que
o próprio Freud teria se encarregado de colocar sobre a psicanálise; assim como Abraão, e
como zeloso psicanalista, Freud também sabia guardar bem o seu silêncio.
Para avançar na questão do sacrifício, que o conduziria à pluralização dos Nomes-do-
Pai, Lacan toma como referência o livro “Temor e tremor” (1843/1979), do filósofo
dinamarquês Soren Kierkegaard, no qual o filósofo apresenta quatro versões da narrativa
bíblica, cada uma apresentando um desenlace diferente. Esses desenlaces, apresentados ao
final de cada versão, são concluídos com referências pontuais ao processo de separação entre
mãe e filho, chamada metaforicamente pelo autor de desmame. O desenlace proporcionado
pelo desmame dá a tônica de cada versão, e antecipa essa verdade bem conhecida pelos
psicanalistas: para não ter que sacrificar o filho ao próprio capricho, cada mãe é confrontada
com a perspectiva de separar-se dele. Perde-o, assim, como complemento à sua falta fálica,
mas abre diante dele a possibilidade de desejar algo para além dela própria. Por este caminho,
a criança emancipa-se do primado da onipotência materna (identificação com o falo da mãe),
ao ingressar na Lei paterna.
Na primeira versão da Akedah de Isaac, apresentada por Kierkegaard, é possível
distinguir claramente as duas faces do pai. A primeira surge quando pai e filho rumavam para
o local do sacrifício: “o rosto de Abraão era o de um bom pai: o olhar doce e a voz
exortavam.” (KIERKEGAARD, 1843/1979, p.197). Ao voltar o olhar novamente para o pai,
Isaac vê sua face alterada, com “olhar feroz” e “feições aterradoras.” (KIERKEGAARD,
1843/1979, p.197). A voz também se altera, e brada: “Estúpido! Supões que sou teu pai? Sou
105

um idólatra! Crês que obedeço às ordens de Deus? Faço o que me apetece!”


(KIERKEGAARD, 1843/1979, p.127). Essa passagem ilustra brilhantemente os paradoxos
dos Nomes-do-Pai, articulando-os em torno de uma dupla hiância: o que o pai sabe, mas
esconde (seu pecado – S (A/)) e o que o filho, em sua perplexidade, não consegue
compreender. Dessa hiância, atravessada pelo absurdo advindo da lei caprichosa, emerge a
angústia, assinalando a dimensão de verdade que se transmite de pai para filho.
O Deus de Abraão se constitui como elemento terceiro, que media essa transmissão,
permeada de angústia. Angústia de Isaac que, fremente, brada: “Deus do Céu? Tem piedade
de mim! Deus de Abraão, tem piedade de mim, sê meu pai, porque já não tenho outro na
Terra!” (KIERKEGAARD, 1843/1979, p.197). E angústia de Abraão, que roga: “Deus do
Céu, dou-te graças. Vale mais que me julgue um monstro do que perca a fé em ti.”
(KIERKEGAARD, 1843/1979, p.198). Dessa forma, Abraão mantém intacta a fé em Deus,
ainda que isso o leve a ter sua imagem conspurcada diante dos olhos do filho. Preservar a
crença na existência de Deus é um propósito tão nobre que, em nome Dele, Abraão está
disposto a sacrificar tudo, inclusive o filho. Tudo, menos perder a fé, o amor ao pai. Nessa
versão, o desenlace se processa como ruptura violenta e traumática:

Quando chega o tempo do desmame, a mãe enegrece o seio, porque manter o seu
atrativo será prejudicial ao filho que o deve abandonar. (...) Feliz aquele que não
tenha de recorrer a meios ainda mais terríveis para desmamar o seu filho!
(KIERKEGAARD, 1843/1979, p.198).

Na segunda versão, Abraão leva Isaac para o local do sacrifício e chega a colocá-lo
amarrado sob a faca, mas no fim, sacrifica apenas o carneiro. Após retornar para casa, nunca
mais foi o mesmo; tornou-se incapaz de esquecer o absurdo que esteve prestes a fazer e
perdeu a alegria de viver, envelhecendo rapidamente. Nessa versão, conforme afirma Silvia
Helena Tendlarz (2005), “Kierkegaard nos apresenta o pecado do pai: o pecado de haver
tentado matar seu filho retorna como sentimento de culpa.” Quanto maior a magnitude do
sacrifício, maior é o retorno do sentimento de culpa. Aqui a tônica do desenlace é o pudor, a
vergonha diante dos olhos do filho: “Quando o menino, já crescido, tem de ser desmamado, a
mãe, pudicamente, oculta o seio e o menino já não tem mãe. Feliz o filho que não perdeu a
mãe de outro modo!” (KIERKEGAARD, 1843/1979, p.198).
A terceira versão apresenta o paradoxo que permeia as relações entre o crime, o
pecado e o castigo. A obediência incondicional ao absurdo decreto divino não apenas não
106

alivia o sentimento de culpa, como também reforça as autoacusações. Abraão está entre a cruz
e a caldeira: se não obedece a Deus, é ímpio. Se o obedece, tanto pior, pois se vê refletido nos
olhos de Isaac como um filicida criminoso. O perdão é impossível diante de tão grave ofensa,
e aqui se dispõem os insondáveis paradoxos do supereu. O desenlace reveste-se de um tom
nostálgico que, no entanto, reconhece a inevitabilidade da separação.

Quando chega o tempo do desmame, a mãe fica triste pensando que ela e o filho se
irão separar; que o menino, a princípio sob o seu coração e depois embalado no seio,
nunca mais se encontrará tão perto dela. E juntos sofrerão esta curta pena. Feliz
aquele que conservou o filho tão perto do seu coração e não teve outro motivo de
desgosto! (KIERKEGAARD, 1843/1979, p.199).

A quarta e última versão apresenta um Abraão fraco, hesitante, cuja mão “crispava de
desespero” (KIERKEGAARD, 1843/1979, p.199) diante do ato sacrificial. Ao retornar para
casa, Isaac perde a fé, e o que se segue é uma silenciosa cumplicidade entre pai e filho –
nunca mais falaram do assunto, e comportaram-se como se nada tivesse acontecido. Tudo foi
em vão, a transmissão do enlace fracassa. Bem aventurados aqueles que demonstram decidida
determinação e força de vontade para assumir a separação e, dessa forma, estreitar o “vínculo
sagrado” (KIERKEGAARD, 1843/1979, p.201) que se estabelece entre as gerações,
permitindo sua majoração e renovação. “Quando chega o tempo do desmame, recorre a mãe à
alimentação mais forte para evitar a morte do filho. Feliz aquele que dispõe de alimento
forte!” (KIERKEGAARD, 1843/1979, p.199). Infeliz é aquele que dessa força não dispõe.
As diferentes versões da narrativa do sacrifício de Isaac, propostas por Kierkegaard,
antecipa para Lacan um recurso importante para tratamento do impossível, concernido no
enigma do silêncio de Abraão: a pluralização dos Nomes-do-Pai. Esse recurso, que renuncia a
equivalência hegeliana entre a verdade e a totalização do saber, começou a ser elaborado no
seminário interrompido (LACAN, 1963/2005), mas só alcançou sua plena formalização anos
depois, sob forma da lógica do enlace borromeano.
Essa forma de aproximação do real, e da angústia suscitada por ele, tal como delineada
em “Temor e tremor” (KIERKEGAARD, 1843/1979), pode ser mais bem apreciada à luz do
impacto que a narrativa do sacrifício de Abraão exerceu sobre Kierkegaard. Segundo afirma
ele próprio, seu pensamento é rechaçado a cada vez que busca acercar-se do paradoxo de
Abraão; assim como Isaac, ele fica estupefato, não consegue compreendê-lo em meio à
perplexidade que o invade: “(...) quando me ponho a refletir sobre Abraão, sinto-me como que
107

aniquilado. Caio a cada instante no paradoxo inaudito que é a substância da sua vida.”
(KIERKEGAARD, 1843/1979, p.216).
Na lição do seminário interrompido, Lacan se refere ao punhal do sacrifício, dizendo
que o gume de sua lâmina estabelece um marco “entre o gozo de Deus e o que, nessa tradição,
presentifica-se como seu desejo. Aquilo de que se trata de provocar a queda é a origem
biológica. Aí está a chave do mistério.” (LACAN, 1963/2005, p.85). Lacan assinala, então,
que a inscrição do nome próprio vem a ocupar o lugar dessa indigência simbólica, própria da
mera existência biológica. O mito freudiano, construído em Totem e tabu, adorna essa hiância
com a figura obscena e feroz do pai primevo, que retinha todo o gozo para si e nada desejava.
Na tradição hebraica da Akedah de Isaac, o primeiro ancestral humano revela-se como o
carneiro sacrificado, promovido a “Deus de sua raça.” (LACAN, 1963/2005, p.85).
Na Akedah, a animalidade feroz do pai primevo é metaforizada pela Lei perpétua, ou
seja, há uma passagem do regime totêmico, regido pela identificação imaginária com o totem,
para o regime simbólico da Lei do pai, do Nome-do-Pai. Segundo Éric Laurent, “O totem
nomeia uma descendência mediante uma identificação com um nome, descendência sem fim,
animal, ao passo que a Akedah supõe um nome que só se sustenta na eficácia de seu dizer.”
(LAURENT, 2007, p.74). Essa eficácia na enunciação da Lei paterna é garantida, na
narrativa, pela intervenção do anjo que detém o punhal de Abraão, apontando-lhe o
verdadeiro objeto de sacrifício. Inaugura-se assim, a partir do gume do punhal de Abraão, o
primeiro corte - a castração - que assegura um enlace inédito: a paternidade e o vínculo de
filiação que ela instaura. Conforme afirma Lacan, é da castração “que provém o que é
propriamente a sucessão” (LACAN, 1969-70/1992, p.114), ou seja, aquilo que efetivamente
se transmite de pai para filho. A Lei tramitada pela barakah (do hebraico, benção) paterna
efetiva um corte com a descendência biológica do homem, para instituir o enlace com a
benção da palavra do pai. Esse é o corolário da “desconstrução lacaniana do pai freudiano”
(LAURENT, 2007, p.74), que desembocará, no final do seu ensino, na redução do Nome-do-
Pai a um puro instrumento, ferramenta que só assume seu valor a partir do uso particular que
cada sujeito, em sua diferença absoluta, faz dela.
Lacan é conduzido, dessa forma, ao paradoxo que se estabelece entre a universalidade
da função paterna, corolário da inscrição normativa do Nome-do-Pai, e a particularidade de
seu gozo, de sua ex-sistência enquanto pai real, verdadeiro agente da castração.
108

Aí reconhecemos, com efeito, para além do mito de Édipo, um operador, um


operador estrutural, aquele chamado de pai real - com a propriedade, eu diria, de
também ser ele, na qualidade de paradigma, a promoção, no coração do sistema
freudiano, do que é o pai do real, que coloca no centro da enunciação de Freud um
termo do impossível. (LACAN, 1969-70/1992, p.116).

É assim que se estabelece a passagem do pai mítico freudiano ao pai real, operador
estrutural lacaniano, que intervém separando a criança da mãe. Esta separação, instaurada a
partir da intervenção da linguagem, se enuncia, para a mãe, por um: “não reintegrarás teu
produto” (LACAN, 1957-58/1999, p.209), e para a criança: “não te deitarás com tua mãe”
(LACAN, 1957-58/1999, p.209), já que fez sua opção pelo falo.

2.5.2- Sacrifício e extimidade: limiares topológicos da Akedah

O gume do punhal de Abraão traça a borda que estabelece o marco da aliança e da


ancestralidade. Pela via do ato sacrificial, a Akedah instaura, simultaneamente, corte e enlace:
o corte da separação entre o sagrado e o profano, entre a Lei e o gozo, entre o sujeito e seu
objeto. Mas ela é também ligadura, enlace originário que permite a captura de algo do que foi
inicialmente separado.
Diferentemente de Freud, Lacan concebe a castração como efeito real da incidência da
linguagem sobre o vivente, que até este momento, reduz-se apenas a sua “estúpida e inefável
existência” (LACAN, 1998 [1957/58], p.555). O efeito dessa incidência, por si só, gera
entropia, uma perda de gozo que só se inscreve para o sujeito como um mais-de-gozar. Isso,
para Lacan, é o que opera no real, articulado enquanto impossibilidade, tal como matemizado
no discurso do mestre.

Figura 12 – Matema do discurso do mestre

Fonte: Adaptado de LACAN, 1969-70/1992, p.27.


109

O matema do discurso do mestre ilustra a operação de constituição do sujeito do


inconsciente ($), efeito de verdade que emerge mediante a intervenção de um significante
mestre (S1) em um conjunto de significantes já articulado enquanto saber (S2), no campo do
Outro. Ao final dessa operação, o objeto mais-de-gozar (a) resta como um excesso
inassimilável pela estrutura da linguagem, que o sujeito, em vão, buscará incessantemente
recuperar. A barra (//) que separa o sujeito ($) do mais-de-gozar (a) constitui um ponto de
basta, indicando que essa recuperação do gozo será sempre restrita, limitada pelas condições
impostas pela própria estrutura do discurso.
A sequência das operações de corte e enlace, apresentada metaforicamente na
narrativa do sacrifício de Abraão, é exatamente a mesma que deve ser executada para
constituir uma banda de Moebius.

Figura 13 – Banda de Moebius

Fonte: Elaborado pelo autor

Essa enigmática figura topológica subverte a noção habitual de espaço, pensada a


partir dos pares de oposição direito/avesso ou dentro/fora. A banda de Moebius é o desenho
topológico da extimidade, neologismo lacaniano destinado a denominar o que é mais íntimo
de um determinado campo, mas que, no entanto, situa-se fora dele. Trata-se de um viés que
não apenas permite colocar em questão as complexas fronteiras entre interior e exterior, em
um determinado espaço, como também situar a posição êxtima do objeto a em relação ao
campo da linguagem: “O sujeito está, se nos permitem dizê-lo, em uma exclusão interna a
seu objeto.” (LACAN, 1965-66/1998, p.875, grifo nosso).
A teoria dos quatro discursos, tal como elaborada por Lacan no seminário “O avesso
da psicanálise” (1969-70/1992), considera o axioma que afirma que o inconsciente é
110

estruturado como uma linguagem, mas introduz aí a consideração ao gozo, polarizado em


torno do objeto a. A operação de corte, efetivada com a incidência da linguagem sobre o
vivente, pode ser demonstrada topologicamente mediante o recurso à banda de Moebius, que
desenha o trajeto dos sucessivos giros que possibilitam o deslizamento entre os diferentes
discursos:

Figura 14 – A torção moebiana dos discursos

Fonte: Elaborado pelo autor

A produção do mais-de-gozar assinala que, não importa de que forma se busque


amestrar, normalizar, capturar, capitalizar ou totalizar o gozo, ele sempre faltará no campo
simbólico, apesar de estar sempre aí implicado. O sacrifício é o subterfúgio pelo qual o
sacrificante pretende recuperar o gozo perdido mediante a entrega a Deus da incumbência da
causa de seu desejo, “o que é propriamente o objeto do sacrifício.” (LACAN, 1965-66/1998,
p.887). Nesse ato, conforme indica Lacan, (1965-66/1998) ele barra (//) seu acesso à verdade.

O que é sacrificado de bem para o desejo (...) -, essa libra de carne é justamente
aquilo com o que a religião desempenha seu ofício e que se aplica em recuperar. É o
único traço comum a todas as religiões, isso se estende a toda a religião, a todo o
sentido religioso. (LACAN, 1959-60/1988, p.377).

Essas indicações abrem caminho para pensar a economia do sacrifício, ligada a uma
compulsão à recuperação do gozo perdido no campo do sentido. Econômico é o sacrifício que
faz intervir a dimensão simbólica (S1  S2), estancando a entropia da perda de gozo e
111

barrando o circuito incessante da recuperação compulsiva ($//a), produzindo efeitos de


sentido. Dispendioso é o sacrifício que denega a falta de onde provém o desejo, atribuindo a
um deus obscuro a ordem que comanda o sacrifício.
Pela superfície sem avesso da banda de Moebius, circulam sem solução de
continuidade termos paradoxais e antagônicos, que fazem convergir suas contradições para
um único nome. Este é o caso do termo sacer, cuja ambiguidade já havia sido sublinhada por
Freud, a partir da leitura de Robertson Smith, bem como unheimlich, termo alemão cuja
significação também se presta ao mesmo caráter antitético, uma vez que expressa um
estranhamento permeado por familiaridade. Mas é também o caso, no ensino de Lacan, do
termo extimidade, que expressa essa torção na qual dentro e fora se conjugam, em uma
complexa relação de exclusão interna.
Baas (2001) alerta que, se as preciosas indicações lacanianas sobre o sacrifício,
mencionadas anteriormente, forem lidas com cautela, perceber-se-á que, quando Lacan fala da
insuficiência das teorias dialéticas, baseadas nas “premissas hegeliano-marxistas” (LACAN,
1964/1988, p.259), ele tem em vista o impasse da identificação, no qual desemboca qualquer
tentativa de síntese unificadora. E não é acaso se Lacan discute essa questão justamente no
momento em que articula o problema do fim de análise, apontando os impasses das
concepções em vigor na época, que preconizavam a identificação com o analista como termo
final de uma análise. Lacan (1963/2005, p.63) chega mesmo a dizer que “a dialética hegeliana
é falsa”, por pretender integrar toda forma de existência particular em um todo completo e
unificado.
A partir do espaço topológico instaurado pela banda de Moebius, é possível situar
termos antinômicos que tensionam entre si, mergulhados em um espaço sem fronteiras
instaurado pela Akedah. Ambertín indica que o recurso à topologia pode ser utilizado para
abordar os paradoxos dos Nomes-do-Pai, sem ter que recorrer à dialética hegeliana, que visa
uma superação dos paradoxos através de uma síntese unificadora. Trata-se, portanto, não de
solucionar as aporias próprias desse campo, mas de sustentá-las, nos tênues limiares que
marcam a passagem entre o pai simbólico, espiritualizado e sublimado no corpus da Lei, e o
pai totêmico, que se faz valer como voz supereuóica: “O pai maldito e sanguinário e o pai
purificado, de bondade pura, deslizam juntos por uma borda da curva de Moebius.”
(AMBERTÍN, 2009a, p.49).
112

Figura 15 – Os paradoxos dos Nomes-do-Pai

Fonte: AMBERTÍN, 2009a, p.28.

No campo do pai simbólico, se dispõem termos como a castração, a Lei, o desejo, o


amor, a aliança, a dádiva e a dívida simbólica. Essa vertente do pai instaura uma linhagem
genealógica através da transmissão de um Nome, viabilizando um lugar de reconhecimento
que abrigará o sujeito em sua unicidade diferenciadora, inscrevendo-o no laço social. Essa
perspectiva permite conceber o sacrifício em termos de equivalência com a castração,
operação simbólica constitutiva do sujeito. Nessa vertente, o sacrifício autoriza negociação, e
o sujeito pode decidir pelo que está disposto a sacrificar em nome de seu desejo. No entanto,
ele não é livre para não decidir-se.
Em outra perspectiva, situam-se termos ligados ao real, cuja incidência é sempre
traumática: o gozo invocante do supereu, a fascinação sacrificial, a “culpa de sangue”
37
(FREUD, 1913/1991, p.155, tradução nossa) , a libra de carne e o anseio parricida,
escamoteado sob forma de renúncia ao gozo, raiz do servilismo alienante da “sede de
obediência.” (FREUD, 1921/2010, p.30). Nessa versão, o pai comparece como espectro
maligno; sua lei não interdita, mas compele o sujeito a sacrificar-se cada vez mais. Ineficaz
em garantir uma via de enlace simbólico, a Lei do pai degrada-se em um regime masoquista
de funcionamento, destinado a encobrir, compulsivamente, a falha estrutural no campo do
Outro, tal como ilustrado no matema da fantasia sadiana (LACAN, 1963/1998, p.786):

37
“Culpa de sangre.”
113

Figura 16 – Matema da fantasia sadiana

Fonte: LACAN, 1963/1998, p.786.

Nesse matema, Lacan indica que o imperativo categórico kantiano pode ser
interpelado, ao nível de sua pura enunciação, pela vontade de gozo sadiana. O desejo (d),
estruturalmente sustentado pela demarcação fantasmática ($ punção de a), desliza sub-
repticiamente para a vontade de gozo (V), operando uma inversão de lugares entre o sujeito e
o objeto de gozo (a punção de $). O sujeito sadiano se oferece masoquisticamente como
instrumento da vontade do deus obscuro (V), realizando-se como a voz de comando que
ordena o gozo (a). Obtém-se, mediante o acosso da divisão subjetiva da vítima sacrificial ($),
um sujeito bruto do prazer, que encarna o desmentido sobre a castração (S).
Essas perspectivas, articuladas à problemática do sacrifício, foram assinaladas de
forma resumida por Patrick Guyomard (GUYOMARD, 2007), em uma conferência onde ele
discute formas perversas de apropriação da lei, em uma época dominada pelo discurso da
ciência. Segundo esse autor, o sacrifício é o termo que constitui a própria fronteira entre as
vertentes do desejo e do gozo, ou seja, ele constitui o domínio próprio da relação de
extimidade, estabelecida entre o registro real e o registro simbólico. Em sua vertente
simbólica, o sacrifício liberta (GUYOMARD, 2007); em sua vertente gozoza, ele
invariavelmente supõe “uma dominação, um esmagamento ao qual o desejo se opõe.”
(GUYOMARD, 2007, p.43). Deve-se considerar ainda, conforme alerta Guyomard (2007), a
possibilidade de uma relativa indiferenciação entre essas vertentes do sacrifício, já que as
fronteiras que as demarcam podem, em certos momentos, se tornar tênues, e mesmo se
apagarem.
114

Pode-se escrever a primeira vertente do sacrifício com a notação S (/A), significante


do Outro barrado. Trata-se do significante que falta no campo do Outro, assinalando sua
incompletude.

Com efeito, não tenho nenhuma garantia que este Outro, o sistema do Outro, possa
me devolver o que lhe dei - seu ser e sua essência de verdade. Não há, eu lhes disse,
Outro do Outro. Não há no Outro nenhum significante que possa no caso responder
pelo que sou. (LACAN, 1958-59/1986, p.47).

Isso implica, para o sujeito, na impossibilidade estrutural de receber uma derradeira


nomeação que permitiria designá-lo perante o desejo do Outro. O intercâmbio dos dons é
viabilizado, ainda que sem qualquer garantia de reciprocidade. Nessa vertente, a própria vida,
enquanto “entumescência vital” (LACAN, 1958-59/1986, p.47), é capturada e mortificada
pelo logos da Lei da linguagem, assinalando que o sacrifício, no registro simbólico, é
equivalente à castração:

É a parte de vocês que foi sacrificada aí, não sacrificada fisicamente como se diz, ou
realmente, mas simbolicamente. Esta parte de vocês, que adquiriu função
significante, há só uma, é a função enigmática que chamamos o falo (...) Dito de
outra forma, tão sacrificada quanto ela esteja ao Outro, sua vida não é, ao sujeito,
devolvida pelo Outro. (LACAN, 1958-59/1986, p.47).

Trata-se, para o sujeito, de um sacrifício originário e estruturante, que condiciona a


aceitação da perda de gozo implicada na inscrição significante, pois somente assim ele
franqueará acesso à dimensão dos dons. Qualquer ganho que daí lhe advenha, será sempre
significado sobre o pano de fundo dessa perda. O dom da palavra só é oferecido àquele que se
dispõe ao sacrifício do gozo da Coisa (Das Ding), nomeando-a, barrando-a, significando-a,
em suma, mortificando-a. O próprio fato de situá-la como perda já é uma forma de atribuir-
lhe, aposteriori, uma primeira significação simbólica, pois a princípio, ela é uma falta
fundamental no campo do Outro, matriz estruturante da constituição do sujeito.

O que ocorre com o sujeito enquanto tenha sido simbolicamente castrado? Ele foi
simbolicamente castrado no nível de sua posição como sujeito falante e não no nível
de seu ser. Seu ser tem de fazer o luto do que ele ofereceu em sacrifício, em
holocausto á função do significante falante. (LACAN, 1958-59/1986, p.84).

Assim que seja significada no campo do Outro, essa perda originária convocará o
sujeito para um trabalho de luto, que implica na separação do objeto perdido. Aqui se dispõe
115

para ele uma escolha forçada, entre seu ser em falta, e a perda do objeto a, seu suposto
complemento, ao qual é mais apegado do que a si mesmo.
Lacan propõe uma perspectiva inédita no tocante ao conceito de castração em
psicanálise, ao torná-la equivalente a um sacrifício simbólico. Contrariando a tradicional
concepção de castração veiculada pelo revisionismo pós-freudiano, que a concebe como um
fato traumático cuja lembrança evocaria horror e evitação, Lacan propõe o inverso.

Mas essa castração, contrariando essa aparência, é algo a que ele se apega. O que o
neurótico não quer, o que ele recusa encarniçadamente até o fim da análise, é
sacrificar sua castração ao gozo do Outro, deixando-o servir-se dela (LACAN,
1960/1998, p.841).

Então o que está em questão no sacrifício é a própria falta, a própria castração, que até
o momento de sua negativação no campo do Outro, encontra-se velada pelo semblante fálico,
cristalizado por Freud (1937/1991) na célebre metáfora de um rochedo intransponível. A
formulação que melhor lhe corresponde seria: tudo menos isso.
Na perspectiva lacaniana, o falo é designado como significante que falta no campo do
Outro, descompletando-o e assinalando-o como desejante, introduzindo, assim, o sujeito na
metonímia do desejo. Para aceder ao ‘ter’ da dimensão desejante dos dons, é necessário que se
sacrifique o gozo de ‘ser’ o falo, objeto que preencheria a falta do Outro. Nessa perspectiva, a
castração é separadora e normativa, pois a custo de um sacrifício, ela refreia o gozo no campo
do Outro e o restitui, “na escala invertida da Lei do desejo.” (LACAN, 1960/1998, p.841).

2.6 – Ritual sacrificial, trabalho de luto e separação

O declínio do complexo de Édipo é o luto do Pai, mas


ele se conclui por uma sequela duradoura: a
identificação que se chama supereu. O Pai não amado
toma-se a identificação que cumulamos de críticas
sobre nós mesmos. (LACAN, 1960/2005, p.30).

O trabalho de luto cumpre uma função fundamental no sacrifício simbólico, e nesse


sentido, não é despropositado recorrer às teorizações freudianas contidas no texto “Luto e
melancolia.” (FREUD, 1917 [1915] /2010). Nesse texto, Freud traça uma oposição entre duas
diferentes reações, por parte do sujeito, diante da perda de um objeto ou ideal amado: o
116

trabalho de luto e a reação melancólica. O trabalho de luto é caracterizado por uma retirada
dos investimentos amorosos do objeto, acompanhada da liberação da libido nele retida,
permitindo ao sujeito separar-se dele e reinvestir a libido liberada em outro objeto. Na reação
melancólica, o sofrimento vem acompanhado de “recriminações e ofensas à própria pessoa”,
podendo chegar “a uma delirante expectativa de punição.” (FREUD, 1917 [1915] /2010
p.173). “No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio eu.”
(FREUD, 1917 [1915] /2010, p.176).
Essa distinção, situada em nível tópico por Freud, indica que na melancolia, não há um
trabalho psíquico em torno da perda; o sujeito é arrastado por ela, sem possibilidade de
restabelecer os laços que o ligam à vida. O trabalho do luto não consiste apenas em separar-se
do objeto perdido, mas também em restabelecer uma nova forma de enlace com ele, através
do remanejamento dos investimentos libidinais. Caso esse reinvestimento fracasse, a libido
retida no objeto reflui para o eu de forma devastadora, como se pode constatar no auto-
martírio melancólico. Nesse caso, a sombra do objeto recai sobre o sujeito, e as trevas da
obscura necessidade de castigo prevalecem sobre o enlace com o Outro. Ou seja, a
identificação com o objeto abandonado provoca uma irreparável hemorragia narcísica,
acompanhada do colapso da demarcação fantasmática, que se dissolve na ausência do luto
separatório.
Se no referido texto Freud (1917 [1915] /2010) indica o caráter ambivalente da
identificação, afirmando que a auto-recriminação melancólica nada mais é do que um retorno
da hostilidade dirigida originalmente ao objeto perdido, no texto “Neuroses de Transferência”
(1915/1987), ele vai mais além, destacando que o objeto em questão é o pai primevo. “O luto
pelo pai primitivo emana da identificação com ele, e tal identificação provamos ser a condição
do mecanismo da melancolia.” (FREUD, 1915/1987, p.80). Além disso, Freud acrescenta que
o ciclo entre mania e melancolia, observado em alguns casos, pode ser comparado à “(...)
sucessão semelhante de triunfo e luto que forma o conteúdo regular das festividades
religiosas. Luto pela morte de Deus; alegria triunfal na sua ressurreição.” (FREUD,
1915/1987, p.80).
Na medida em que se identifica com o pai morto, o sujeito dirige a si mesmo todo o
ódio e ressentimento que estava inicialmente voltado para ele. Não há a metaforização deste
pai morto, que permitiria reconstituí-lo na escala invertida do laço social como pai simbólico
da Lei, mas sim sua foraclusão, que encontra formas selvagens de retorno. Quinet (1997,
117

p.125) afirma que, nesse caso, não há identificação com o pai simbólico, mas sim “com o furo
deixado pelo pai morto, com este vazio. (...) Se o sujeito não consegue a incorporação
simbólica, o que lhe resta é a identificação com o vazio deixado pelo pai, com o pai ausente”.
Segundo Ambertín, o luto pode ser entendido como a “subjetivação de uma perda”
(2009a, p.115), “um trabalho de separação e, ao mesmo tempo, de enlace com o objeto
perdido.” (2009a, 118). Pode-se pensar que esse trabalho consiste em restabelecer os marcos
do enquadre fantasmático da realidade, abalado pela perda do objeto amado. Após o abalo, as
fronteiras que demarcam a separação entre o sujeito e o campo do Outro se apagam, e novas
referências precisam ser estabelecidas. Efetivar esse trabalho é tarefa dispendiosa e
necessária; àquele que a recusa, resta o funesto destino de reviver a nostalgia do pai morto, no
que ele tem de pior. Nessa via, nada mais resta ao sujeito senão o tormento permanente ligado
à culpa e à autoimolação, verdadeira incitação ao auto-sacrifício, que anula qualquer
possibilidade de diferenciação com relação ao objeto sacrificado.
Ao desvendar o mecanismo da identificação, Freud (1921/2010) abriu o caminho para
o entendimento de que o sujeito se constitui a partir de um traço tomado do campo do Outro.
O traço unário celebra o gozo que irrompe quando, “confrontado com o significante
primordial, o sujeito vem, pela primeira vez, à posição de se assujeitar a ele.” (LACAN,
1964/1988, p.260). No sacrifício, essa operação de divisão subjetiva se apresentará como uma
dualidade irredutível entre o sacrificante ($) e o objeto sacrificado (a). Os limiares que
sustentam a separação entre esses dois polos tornam-se tênues a ponto de esfumar-se,
fazendo-se necessária a intervenção dos rituais separadores.
Desde os estudos de Mauss e Hubert (1968 [1899] /2005), sabe-se que existe uma
função diferenciadora nos rituais de sacrifício, que visam estabelecer um limiar entre o
sacrificante (profano) e sua oferenda (sagrada), em uma zona demarcada. Lacan (1958-
59/1986) considerou a importância dos ritos funerários no processo de luto, assinalando que
eles fazem intervir o registro simbólico como resposta ao vazio deixado pela perda do objeto,
vivida pelo sujeito no registro narcísico:

O trabalho do luto é primeiramente uma satisfação dada ao que se produz de


desordem por causa da insuficiência dos elementos significantes para fazer frente ao
buraco criado na existência. Pois é o sistema significante no seu conjunto que é
colocado em questão pelo menor luto. (LACAN, 1958-59/1986, p.75).
118

A função do ritual é fundamental para velar e ficcionar o horror despertado diante da


traumática revelação da inconsistência no campo do Outro, bordejando-a, e permitindo assim
ao sujeito remanejar seus pontos de ancoragem. Nesse sentido, “o rito introduz uma mediação
em relação ao que o luto abre como hiância.” (LACAN, 1958-59/1986, p.77). Em suma, o rito
opera no sentido do trabalho de luto, permitindo re-vestir o objeto assim desnudado com o
manto agalmático da idealização i (a), sustentado no amor. Esse processo torna possível ao
dolente sustentar um enlace diante do desejo do Outro, quando sua única alternativa é deixar-
se cair como objeto nadificado.
A função do ritual no trabalho de luto preserva a função do desejo, e da falta que lhe é
consubstancial. Não há trabalho de luto possível se a falta no campo do Outro - S (A/) - não
for significada pelo sujeito. O que constitui a verdadeira dádiva no amor é, essencialmente,
dar aquilo que não se tem, ou seja, empenhar a própria castração: “Só nos enlutamos por
alguém de quem possamos dizer a nós mesmos: eu era sua falta.” (LACAN, 1962-63/2005,
p.156). Dessa forma, o enlutado pode consentir com essa falta, com a perda do amado, mas
sem ter que renunciar ao seu amor. Renunciá-lo, adverte-o bem Freud (1917 [1915] /2010),
significa cedê-lo ao ressentimento por suas falhas e às recriminações supereuóicas, que
acabam se voltando violentamente contra o enlutado.
119

3 – SACRIFÍCIO DESSACRALIZADO, BIOPOLÍTICA E VIDA NUA: O LUTO


IMPOSSÍVEL DO PAI IDEAL

Atualmente os seres humanos atingiram um tal controle


das forças da natureza, que não lhes é difícil
recorrerem a elas para se exterminarem até o último
homem. Eles sabem disso; daí, em boa parte, o seu
atual desassossego, sua infelicidade, seu medo.
(FREUD, 1930/2010, p.122).

O trabalho de luto pode ser situado no tocante à dimensão econômica das duas
vertentes do sacrifício, mencionadas anteriormente: aquele que estabelece a aliança e aquele
que a dissolve. Considerá-lo no contexto histórico da época atual, marcada pela ascensão do
discurso capitalista, aparelhado pela tecnociência, constitui ocasião oportuna para aprofundar
a pesquisa em direção à referida segunda vertente do sacrifício. Qual é o impacto desse
discurso de índole totalitária e segregacionista sobre o sacrifício, entendido como limiar
êxtimo entre o desejo e o gozo?
Primeiramente, deve-se considerar, conforme já advertia Lacan (1962-63/2005,
p.301) em sua época, que o fato de termos perdido nossos deuses “na grande feira
civilizadora” não deve nos fazer esquecer que, durante um longo período da história, sua
presença se impunha a ponto de suscitar desavenças com os homens.

A questão toda era saber se esses deuses desejavam alguma coisa. O sacrifício
consistia em agir como se eles desejassem como nós, e se desejavam como nós, o a
teria a mesma estrutura. Isso não quer dizer que eles engulam o que lhes
sacrificamos, nem tampouco que isso possa lhes servir para alguma coisa; o
importante é que o desejem e, direi ainda, que isso não os angustie. (LACAN, 1962-
63/2005, p.302).

Com a oferenda sacrificial, busca-se responder a esse enigma do desejo do Outro e


pacificar a angústia que ele suscita, revestindo objetos mundanos (pessoas, animais, etc) com
o manto agalmático e fazendo-os circularem no campo da demanda do Outro. Enquanto esse
circuito da troca de dádivas opera, há uma economia de sacrifício; quando ele sofre ruptura,
emerge a angústia.
Situado como instituição, em sua vertente simbólica, o ritual sacrificial se pauta pelo
princípio necessário que rege qualquer forma de laço social: “refrear o gozo.” (LACAN,
1967/2003b, p.362). Essa função, conforme já mencionado, opera a expensas da captura e
domesticação dos deuses nas redes do desejo, vale dizer, nas malhas do significante. Nesse
120

sentido, o sacrifício se institui como discurso, e está sujeito às mesmas diretrizes que regulam,
de maneira geral, as diferentes modalidades de laço social: “A referência de um discurso é
aquilo que ele confessa querer dominar, querer amestrar. Isto basta para catalogá-lo em
parentesco com o discurso do mestre.” (LACAN, 1969-70/1992, p.65). A domesticação dos
Deuses, empreendida no ato sacrificial, pode ser entendida como forma de refrear e amestrar
o gozo no campo do Outro, buscando apaziguá-lo. Quando esse propósito fracassa, o enlace
simbólico com o Outro se rompe, emergindo daí a angústia, diante do objeto despido de seu
semblante agalmático.
Conforme indica Ambertín (2009a), as práticas sacrificiais assumem um caráter
universal no mundo humano. Sua origem pode ser remontada às mais antigas narrativas e
costumes, e elas nunca deixaram de marcar presença na vida dos povos. Em povos antigos,
essas práticas buscavam angariar favores junto às divindades, como por exemplo, garantir que
o sol renasceria no horizonte a cada dia, em troca de um derramamento de sangue.
Em sua história, os seres humanos sempre mantiveram o hábito de atribuir suas
venturas e desgraças a uma instância superior e transcendente: Deus, a Providência ou o
Destino. Na atualidade, no contexto das sociedades secularizadas, dominadas pelo mercado e
administradas pelas modernas tecnologias de gestão, a economia do sacrifício se modificou,
bem como a significação que a ele se atribui. Se as práticas sacrificiais se mantêm vivas e
atuantes - ainda que tenham mudado seu estatuto – isso se deve à persistência das ameaças
advindas de “uma potência colérica” (AMBERTÍN, 2009a, p.34), de caráter maléfico,
denominadas por Freud de “império das pulsões malignas” (FREUD, 1907/1991, p.109,
38
tradução nossa) , e por Lacan de “deuses obscuros.” (LACAN, 1964/1988, p.259). “Nós as
especificamos como espreita do real.” (AMBERTÍN, 2009a, p.34).
Freud sabia muito bem que as eclosões do real, acompanhadas do seu potencial
dessubjetivante, nunca cessam, por mais que a civilização tecnocientífica tenha possibilitado
ao próprio homem se constituir como um “deus protético.” (FREUD, 2010/1930, p.52).
Mesmo paramentado pelo arsenal tecnológico proporcionado pelo avanço da ciência, o
homem contemporâneo não está imune ao mal estar de sua época. Freud também não
desconhecia que, no fundamento de quaisquer das instâncias superiores reconhecidas pelos
homens, residia um inelutável apelo a um “pai grandiosamente elevado.” (FREUD,
1930/2010, p.27). No fundo de sua alegada descrença, o homem desencantado e desamparado

38
“Imperio de pulsiones malignas”.
121

da civilização tecnocientífica acredita poder “salvar o Deus da religião, substituindo-o por um


princípio impessoal, espectralmente abstrato.” (FREUD, 1930/2010, p.27). Reside aí o
fundamento da aposta sacrificial, que a cada dia se renova em busca de uma solução para o
desamparo humano. Mesmo sendo cada vez mais degradada e desprovida dos rituais
separadores, essa aposta continua a exercer seu fascínio mortífero, na busca pela consagração
do pai ideal.
O quadro “O Cristo morto na tumba”, pintado em 1521 por Hans Holbein, retrata uma
imagem que permite vislumbrar os efeitos corrosivos e desagregadores que o declínio das
referências ordenadoras provocou no laço social. No quadro, o cadáver do Cristo repousa
inerte em sua tumba, deixando à mostra as feridas e os estigmas que lhe foram impostos
durante seu martírio. O realismo da imagem é assustador, exibindo impudicamente cada
detalhe das marcas do castigo.

Figura 17 – O Cristo morto na tumba (Hans Holbein, 1521).

Fonte: WIKIPEDIA, 2015.

Como se sabe, o quadro de Holbein exerceu grande impacto no escritor russo Fiodor
Dostoiévski, servindo-lhe como fonte de inspiração para a escrita do romance “O idiota”
(DOSTOIÉVSKI, 1869/2002), um de seus livros mais aclamados. Ao deparar-se pela
primeira vez com esse quadro, no Museu de Basiléia, o escritor ficou estupefato,
permanecendo diante dele em um transe que durou por longos minutos. Esse efeito de
sideração foi transferido a um dos protagonistas do romance, o príncipe Míchkin, que em
122

determinado momento exclama: “Este quadro!... Este quadro! Mas sabes que ao olhá-lo, um
crente pode perder a fé.” (DOSTOIÉVSKI apud KRISTEVA, 1989, p.103).
Em uma publicação sobre “O Cristo morto na tumba”, Julia Kristeva (1989) comenta
que a tradição da iconografia italiana enaltece o semblante de Cristo em suas representações,
sempre adotando o cuidado de cercar o seu corpo com a presença de outros personagens, com
os quais o observador possa se identificar. Trata-se de um recurso iconográfico que sugere a
atitude que nós próprios deveríamos adotar diante da paixão de Cristo: reverência pelo
sofrimento do mártir e regozijo pela sua ressurreição.
No quadro de Holbein, contudo, o Cristo é deixado absolutamente só, abandonado sem
nenhuma mediação que se interponha entre o espectador e a melancólica nudez de sua morte.
A solidão do cadáver se conjuga, na imagem, com o realismo cru da pedra tumular; ela fecha,
claustrofobicamente, qualquer possibilidade de transcendência para um além: “esse cadáver
não se levantará mais.” (KRISTEVA, 1989, p.105).
Completamente abandonado pelo pai, o Cristo morto de Holbein não oferece nenhuma
perspectiva ao espectador; o sepulcro é talhado na mesma medida que o cadáver ali exposto,
sem nenhum ponto de fuga que permita vislumbrar a saída da tumba. Percebe-se assim que o
sacrifício falhou em sua eficácia espiritual e simbólica, comprometendo o trâmite entre a
esfera profana e a divina. Nesse sentido, o Cristo morto de Holbein é o homo sacer, matável e
insacrificável em seu abandono. Sua herança é o desamparo irremediável, consagrado pela
violência e mera matabilidade, sem nenhuma eficácia sagrada. Em suma, o quadro de Holbein
representa muito bem o desamparo do homem moderno, para quem Deus está morto. Estará
esse homem à altura da exigência do trabalho de luto, implicada nessa perda?

3.1 - Razão sacrificial e gestão biopolítica de populações supérfluas

Pois é perfeitamente concebível, e mesmo dentro das


possibilidades políticas práticas, que, um belo dia, uma
humanidade altamente organizada e mecanizada
chegue, de maneira democrática- isto é, por decisão da
maioria- à conclusão de que, para a humanidade como
um todo, convém liquidar certas partes de si mesma.
(ARENDT, 1951/1989, p.332).
123

O declínio da referência simbólica, nos dias atuais, responde pela desagregação do


laço social e pela eclosão de fenômenos sociais como a violência e a criminalidade. Os
discursos da ordem operam com a finalidade manifesta de conter e moderar o gozo excessivo
que reverbera no laço social. Percebe-se, no entanto, que ao assumir uma conformação
biopolítica, eles acabam potencializando o ódio e a violência que visam combater. Conforme
indica Henrique Carneiro (2010), “a violência guarda relação direta com a ineficácia dos
discursos normativos”. O autor explica como o desgaste dos mitos estruturantes desencadeiam
efeitos perversos nas subjetividades que aí se engendram, entre eles o rechaço de qualquer
possibilidade de responsabilização ou assentimento subjetivo com relação às passagens ao ato
criminosas. “A outra consequência destacável é que implode o lugar da alteridade como um
lugar de referência a um mito”, instaurando o “império do thanático por excelência”.
(CARNEIRO, 2010).
Nas modernas sociedades industriais e capitalistas, que “perderam seus Deuses na
grande feira civilizadora” (LACAN, 1962-63/2005, p.301), as práticas sacrificiais continuam
a ocorrer, com toda a sua carga de fascínio e violência, mas sem estarem submetidas à
limitação imposta pelos rituais e pelo ordenamento pautado no discurso religioso.

À medida que as sociedades foram se tornando mais complexas, o sacrifício foi


perdendo o nexo com a instituição religiosa e passou a ser uma oferenda, um simples
autodespojo em benefício de alguma divindade criada pelos homens segundo o
modelo de pai ideal e o seu avesso, o pai maligno. (AMBERTÍN, 2009a, p. 51).

Referindo-se às sociedades de consumo contemporâneas, Legendre (2008a, p.24)


comenta que em tais sociedades se fala de problemas sociais, mas não de sacrifícios e
sacrificados, indicando que, para elas, “o sacrifício humano de massas adquiriu o estatuto de
39
uma simples prática gestionária.” Dessa forma, a segregação e o que ele nomeia como
“sacrifícios ultramodernos” (LEGENDRE, 2008a, p.27) são escamoteados, camuflados sob a
ideia da inevitabilidade de efeitos colaterais, inerentes ao progresso social. Por essa via, as
sociedades capitalistas reproduzem em seus mecanismos homogeneizadores novas formas de
intolerância, cada vez mais selvagens.

39
“El sacrificio humano de masas adquirió estatus de simple práctica gestionaría”.
124

Em nossas sociedades industrialistas são necessários os holocaustos ou exploração


de grupos, reduzidos por vezes a um estado de sub-humanidade, para que a questão
sacrificial volte a aflorar no discurso. (LEGENDRE, 1996, p.61). 40

Dessa forma, a modificação na economia do sacrifício na atualidade pode ser pensada


dentro de um contexto mais amplo, na “era do governo tecnocientífico” (LEGENDRE, 1996,
41
p.12, tradução nossa) , que submete o domínio da lei ao primado da norma, regida pelos
42
princípios da “gestão ultramoderna.” (LEGENDRE, 1996, p.12, tradução nossa) . Nesse
contexto, o discurso científico cumpre uma função fundamental, no sentido de instaurar novas
formas de submissão, através da instituição de normas de regulação social.
Na perspectiva adotada por Jacques Derrida (2000), a gestão tecnocrática da vida
prolonga a agonia do sacrifício de Isaac até os dias de hoje, despertando o furor sacrificial não
apenas entre os povos do Livro, como também “no restante do mundo faminto, entre a imensa
43
maioria dos homens.” (DERRIDA, 2000, p.72, tradução nossa) . No contexto das
sociedades contemporâneas, as práticas sacrificiais extrapolaram o campo religioso, tendo se
tornado um fator fundamental na gestão tecnocrática das populações.

Uma sociedade como essa não apenas participa deste sacrifício incalculável, como
também o organiza. O bom funcionamento de sua ordem econômica, política,
jurídica, o bom funcionamento de seu discurso moral e de sua boa consciência
supõem a operação permanente deste sacrifício. (DERRIDA, 2000, p.85, tradução
nossa) 44.

Tanto pior, afirma Derrida (2000), que essas modalidades dessacralizadas e


perdulárias de gestão do sacrifício, que ceifam tantas vidas, tenham por corolário a cessão de
responsabilidade, ou seja, não há ninguém que possa realmente responder por elas.
Transformado em espetáculo pelas emissoras de televisão, o fascínio sacrificial é amplamente
disseminado, ascendendo ao zênite social em sua potência absoluta, com imagens de horror e
violência.

40
“En nuestras sociedades industrialistas son necesarios los holocaustos o la explotación de grupos reducidos a
veces al estado de subhumanidad para que la cuestión sacrificial vuelva a aflorar en el discurso”.
41
“Era del gobierno tecno-científico.”
42
“Gestión ultramoderna.”
43
“El resto del mundo hambriento, la inmensa mayoría de hombres.”
44
“Una sociedad así no sólo participa de este sacrificio incalculable, sino que lo organiza. El buen
funcionamiento de su orden económico, político, jurídico, el buen funcionamiento de su discurso moral y de su
buena conciencia suponen la operación permanente de este sacrificio”.
125

Lacan (1974/s.d.) considerou que, na conjuntura histórica da época, era possível


constatar um declínio do Nome-do-Pai, que havia sido substituído por um poder de “nomear
para.” (LACAN, 1974/s.d. tradução nossa). Este poder, conforme assevera Lacan, se constitui
como uma ordem de ferro, que não deve ser confundida com a Lei, uma vez que ela nada
mais é do que o retorno selvagem do Nome-do-Pai foracluído. Diferentemente da Lei do pai,
que nomeia assegurando reconhecimento e filiação, a ordem de ferro é anônima e anômica, se
aproximando mais dos arbitrários mandatos do supereu. A primeira reconhece a interdição,
mas a segunda não; por isso, Lacan fala de foraclusão e retorno no real, cujo corolário é signo
45
de uma “degeneração catastrófica” (LACAN, 1974/s.d., tradução nossa) , que pôde ser
testemunhada a partir da ascensão dos regimes totalitários, durante o século XX. Tais
movimentos assinalam uma degradação do espaço político contemporâneo, que assume a
conformação de uma tecnocracia biopolítica.
Essas elaborações podem ser articuladas à indicação lacaniana (LACAN, 1967/2003a,
p.263) de que os campos de concentração se constituem como efeito do remanejamento dos
grupos sociais orquestrados pela ciência, pela via da segregação. Segundo Lucíola Macêdo
(2014), “este é um modo de dizer da biopolítica, ainda que tal noção só tenha sido formulada
por Foucault nos anos setenta”. A autora acrescenta que, tendo em vista o contexto da
atualidade, marcada pela globalização, vivemos em uma época na qual a biopolítica e a
política se sobrepõem, constituindo “os terrenos privilegiados sob os quais o real é tocado
pela técnica.” (MACÊDO, 2014).
Em seu livro “As origens do totalitarismo”, Hannah Arendt (1951/1989) soube antever
a crise do espaço político de sua época, e não deixou de assinalar a importância que a
burocracia assumiria no funcionamento político das sociedades contemporâneas. O automaton
burocrático das instituições políticas ameaça aniquilar o espaço democrático da liberdade, e
com ele, a dimensão ética da responsabilidade. As reflexões estabelecidas pela autora, nessa
época, já apontavam que a burocratização da esfera política se constituía como fator sine qua
non para o estabelecimento dos regimes totalitários.
As implicações acerca da burocratização generalizada da vida política conduziram
Arendt (1969/2011), alguns anos depois, a vincular o problema do primado da violência sobre
a ação política ao declínio da autoridade. Aonde quer que o poder político fraqueje, surge a
violência, entendida como expressão radical da impotência e do fracasso do vínculo

45
“Degeneración catastrófica”.
126

proporcionado por ele. Sendo assim, na medida em que o poder político se aproxima do pacto
simbólico, estabelecido em torno da autoridade, a violência é um sintoma que indica a
degradação desse pacto. O fracasso do enlace político não é prerrogativa dos regimes
francamente autoritários; ele pode muito bem ocorrer em regimes democráticos, que também
não estão a salvo das mazelas da violência, a exemplo do Brasil, conforme se viu na pesquisa
documental apresentada no primeiro capítulo.
Tal como hoje se pode constatar, o campo da decisão política é subsumido sob o
primado do “poder anônimo dos administradores.” (ARENDT, 1969/2011, p.103). A figura
do soberano, do líder carismático, cede lugar para as modernas tecnologias de gestão
automatizada, que assumem o ar de uma “tirania sem tirano.” (ARENDT, 1969/2011, p.101).
A burocratização das instituições políticas é uma consequência da complexificação da vida
em sociedades de massa, que criam novas necessidades e demandam dispositivos de controle
cada vez mais sofisticados. “Quanto maior torna-se um país em termos populacionais, de
objetos e posses, tanto maior será a necessidade de administração, e com ela, o poder anônimo
dos administradores.” (ARENDT, 1969/2011, p.103). Conforme já se disse, a implicação
desse modo automatizado de gestão é a cessão de responsabilidade. Afinal, quando não há
quem decida, ninguém se responsabiliza.
Alguns anos após essas reflexões, estabelecidas por Hannah Arendt, Michel Foucault
(1999) cunhou o termo biopolítica, para se referir ás técnicas emergentes de gestão
tecnocrática das populações, constituídas a partir da segunda metade do século XVIII.
Segundo Foucault, o auxílio do conhecimento produzido pelas ciências emergentes forneceu
subsídios para que a biopolítica se exercesse positivamente sobre a vida, promovendo a sua
gestão, manutenção, majoração e multiplicação, assegurada pelo mote fazer viver e deixar
morrer. Difere-se, portanto, do poder soberano, que pauta-se pela divisa fazer morrer e
“deixar viver.” (FOUCAULT, 1999, p.130).
O ponto de ancoragem do aparato normativo biopolítico é o indivíduo tomado como
membro de uma espécie, despojado de toda forma de determinação simbólica ou política.
Esse desnudamento do sujeito político tornou-se crescente em decorrência dos avanços do
discurso científico, que estendeu ramificações em direção à formulação de tecnologias de
gestão das populações.
Foucault alertava que o surgimento da biopolítica teria provocado uma mudança
radical no modo de funcionamento do sistema jurídico. Essa mudança, assegura ele, é a “a
127

importância crescente assumida pela atuação da norma, a expensas do sistema jurídico da lei.”
(1999, p.135). Isso não quer dizer que a lei, e o aparato jurídico que a sustenta tende a
desaparecer, mas sim que

(...) a lei funciona cada vez mais como norma, e que a instituição judiciária se
integra cada vez mais num contínuo de aparelhos (médicos, administrativos etc.)
cujas funções são sobretudo reguladoras. Uma sociedade normalizadora é o efeito
histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida. (FOUCAULT, 1999, p.135).

Na medida em que o aparato biopolítico de regulação social conquista hegemonia, a


instância interditora da lei perde sua eficácia de enlace simbólico. No campo político assim
transformado, surge uma nova forma de existência, condicionada por uma administração
burocrática pautada no racismo estatal biologizante e no “ordenamento eugênico da
sociedade” (FOUCAULT, 1999, p.140), imbuídos da “preocupação mítica de proteger o
sangue e purificar a raça.” (FOUCAULT, 1999, p.140). Esses princípios encontraram forma
máxima de expressão no genocídio sistemático dos judeus, entre outras populações
consideradas supérfluas, durante o domínio do regime nazista.
Foi a partir do ideal eugênico de purificação da raça humana que o nazismo lançou as
bases de sua ideologia, que implicava, por princípio, a segregação de indivíduos considerados
racialmente degenerados. Temia-se que tal degeneração se propagasse, contaminando e
corrompendo os segmentos sadios da população, caso nada fosse feito para contê-la. Tais
regimes, que exercem o poder baseados no princípio de que a sociedade deve constituir uma
unidade pura, seja ela racial ou nacional, têm como decorrência necessária a segregação e o
sacrifício de alguns segmentos populacionais considerados decadentes e corrompidos, em
benefício de um todo saudável, regrado e harmônico. Nesses regimes, a lei cede lugar a um
colossal aparato normativo, cujo campo de incidência não é mais o sujeito político, o cidadão,
mas sim o vivente, reduzido a sua mera existência biológica.
Situar a raça como princípio organizador da estrutura política não constitui
propriamente um evento inédito, e a história é pródiga de lições que o confirmam. Antes que
este expediente fosse largamente utilizado pelo regime nazista, ele já estava presente no
zeitgeist do século XIX, conforme afirma Arendt.

No fim do século XIX, escritores tratavam de assuntos políticos em termos de


biologia e zoologia, e zoólogos escreviam “Observações biológicas sobre nossa
128

política externa”, como se houvessem descoberto um guia infalível para os


estadistas. (ARENDT, 1951/1989, p.210).

A autora destaca que, apesar de ter estado sempre presente na vida política dos povos,
o racismo nunca havia chegado a produzir “novas categorias de pensamento político.”
(1951/1989, p.214). A partir do século XIX, o racismo é promovido como ideologia oficial de
Estado, servindo como princípio da segregação de populações indesejadas. Tornava-se, dessa
forma, elemento fundamental nas propagandas veiculadas pelo Estado, que encontrava nele
meio para angariar apoio popular e força para a adoção de políticas cada vez mais sectárias e
segregacionistas. O que se seguiu às elaborações de Arendt (1951/1989) foi uma escalada,
sem precedentes, do processo de biologização da dimensão política, confirmando, dessa
forma, as teses sustentadas pela autora.
Tendo ultrapassado o “limiar de modernidade biológica” (FOUCAULT, 1999, p.134),
as atuais democracias ocidentais complexificaram seus dispositivos de gestão das populações,
ocasionando uma profunda modificação na economia do poder. Contando com um
aparelhamento tecnocientífico cada vez mais sofisticado, o poder passa a incidir cada vez
mais na dimensão biológica, em detrimento da dimensão política. Seu corolário é a
degradação do espaço político ás custas da animalização do homem. Se ao longo de dois
milênios o homem permaneceu o que era para Aristóteles – “um animal vivo e, além disso,
capaz de existência política - o homem moderno é um animal, em cuja política, sua vida de
ser vivo está em questão.” (FOUCAULT, 1999, p.134).
Esses apontamentos de Foucault vão de encontro às teses desenvolvidas por Hannah
Arendt, em seu livro “A condição humana.” (1958/2007). Segundo ela, o bios politikos
aristotélico

(...) denotava explicitamente somente a esfera dos assuntos humanos, com ênfase na
ação, praxis, necessária para estabelecê-la e mantê-la. Nem o labor nem o trabalho
eram tidos como suficientemente dignos para constituir um bios, um modo de vida
autônomo e autenticamente humano; uma vez que serviam e produziam o que era
necessário e útil, não podiam ser livres e independentes das necessidades e privações
humanas. (ARENDT, 1958/2007, p.21).

Pode-se considerar então que a vida de ser vivo (zoe), referida por Foucault (1999), é
justamente aquela que os gregos limitavam à esfera doméstica do lar (oikos), sendo a ela
correspondentes formas apolíticas de existência: o labor escravo à custa do suor da testa, e o
labor do parto das mulheres, que, como se sabe, também não estavam incluídas no seleto
129

grupo de cidadãos da polis. No labor escravo, entrava em jogo o trabalho como produção dos
meios de subsistência biológica do homem; no labor da mulher, o que estava em jogo era a
reprodução dos meios de subsistência biológica da espécie. Ora, nenhuma dessas duas formas
de labor era considerada pelos gregos como dignas o suficiente para serem qualificadas de
políticas. Tratavam-se, para eles, de formas fúteis de existência, na medida em que
aprisionavam os sujeitos nelas envolvidos aos grilhões da necessidade, a imperiosa ananké,
urgência da vida com vistas à sobrevivência.
O campo político só poderia ser efetivado por sujeitos que estivessem liberados da
urgência imperiosa das necessidades naturais. Somente esses estariam aptos a exercer sua
liberdade, verdadeiro corolário da ação política.

(...) a ação é a única que não pode sequer ser imaginada fora da sociedade dos
homens. A atividade do labor não requer a presença de outros, mas um ser que
‘laborasse’ em completa solidão não seria humano, e sim um animal laborans no
sentido mais literal da expressão. (ARENDT, 1958/2007, p.31).

Apesar de se constituir como um poder que se encarrega da administração da vida,


visando sua expansão e melhoramento, o biopoder tem ampla incidência no campo das
decisões que envolvem a necessidade de “matar para poder viver.” (FOUCAULT, 1999,
p.129). Tal é o caso dos holocaustos em massa presenciados ao longo do século XX,
nomeadamente a Shoá e o holocausto atômico no Japão, ambos possibilitados pelo avanço
tecnocientífico. Essas formas genocidas de extermínio, que ceifam a vida de populações
inteiras, não encontram inscrição nas categorias jurídicas tradicionais, extrapolando os limites
do direito de matar, prerrogativa do poder soberano. Também não são passíveis de inscrição
religiosa nos ritos sacrificiais tradicionais, que supõem um intercâmbio com alguma
divindade transcendente.
À primeira vista, há aí uma contradição. Como pode o biopoder ter um alcance tão
vasto de letalidade, se sua função primordial é gerir e majorar a vida? Foucault responde:
“São mortos legitimamente aqueles que constituem uma espécie de perigo biológico para os
outros.” (1999, p.130). Deve-se considerar, então, que a gestão tecnocrática e calculista da
vida nada mais faz do que recobrir “a velha potência da morte em que se simbolizava o poder
soberano.” (FOUCAULT, 1999, p.131).
Percebe-se, assim, que uma mudança na economia dos poderes que se encarregam da
vida implica, também, uma modificação na forma de administrar a morte: esta é
130

desqualificada, despida de dramatização e dos rituais fúnebres que tradicionalmente a


acompanhavam. Ilustra-o bem a famigerada afirmação atribuída ao ditador Josef Stalin, de
que uma única morte é uma tragédia, mas que um milhão de mortes é uma estatística.
A morte aos milhares, em escala industrial, é uma produção do biopoder, reverso
encobridor de uma tanatopolítica. Conforme afirma Foucault, “as guerras já não são travadas
em nome do soberano a ser defendido” (1999, p.129), mas em nome da sobrevivência de
todos:

(...) populações inteiras são levadas à destruição mútua em nome da necessidade


de viver. Os massacres se tornaram vitais. Foi como gestores da vida e da
sobrevivência dos corpos e da raça que tantos regimes puderam travar tantas
guerras, causando a morte de tantos homens. (FOUCAULT, 1999, p.129).

Para alcançar sua efetividade em nível populacional, a tanatopolítica demanda a


elaboração de complexos dispositivos tecnocientíficos, de modo a proporcionar uma máxima
eficácia em termos de letalidade. Não há como deixar de evocar aqui todo o laborioso projeto
genocida nazista, que contou com o suporte dos mais destacados cientistas, que contribuíram
na elaboração das propagandas do regime, das teorias científicas necessárias para legitimar as
decisões políticas, para não falar da complexa logística envolvida na segregação, no
transporte e no extermínio de populações inteiras.
Em seu alcance mais amplo, a tanatopolítica invariavelmente supõe que vidas indignas
de serem vividas devem ser sacrificadas em nome da preservação de outras vidas,
consideradas valiosas, dignas de serem protegidas e defendidas. A indignidade de algumas
vidas remonta a uma série de contingências, dependendo do contexto histórico e geográfico
considerado: a raça, a periculosidade, a degeneração (doenças, contágio) ou a condição
econômica. A partir do momento em que o ordenamento político/social é compreendido como
um gigantesco organismo, cuja saúde deve ser garantida, surge a necessidade de defendê-lo e
imunizá-lo, mediante a execução de medidas profiláticas.

3.2 – Estado de exceção permanente e a gestão de vidas matáveis

Coube a Giorgio Agamben (2002) o mérito de retomar o fio das reflexões de Hannah
Arendt sobre o totalitarismo, aliadas aos desenvolvimentos foucaultianos em torno da
131

biopolítica. Agamben (2002) afirma que, entre esses autores, há um ponto de conexão
encoberto, denunciador das dificuldades suscitadas por esse tema. E é desse ponto que parte
Agamben para formular sua teoria política, cuja lógica não desconsidera a razão sacrificial.
Ao retomar as análises foucaultianas, Agamben reconsidera o conceito de soberania,
que Foucault havia deixado em segundo plano ao estabelecer sua analítica do poder. Dessa
forma, em sua análise, busca-se circunscrever a zona de “intersecção entre o modelo jurídico-
institucional e o modelo biopolítico do poder.” (AGAMBEN, 2002, p.14). Desse ponto de
vista, a biopolítica não pode ser pensada separadamente da soberania, uma vez que ambas
colocam em jogo o paradigma da exceção como fundamento do poder.
Diferentemente de Foucault, que considerava a biopolítica como uma produção
moderna, que viria paulatinamente ocupar o lugar do poder soberano, Agamben considera que
há uma estreita vinculação entre eles, presente desde sua gênese. Trata-se, portanto, de um
vínculo originário que enlaça a exceção soberana àquilo que o filósofo nomeia como vida nua
(AGAMBEN, 2002).
Com o termo vida nua Agamben (2002) se refere a formas marginalizadas e indignas
de existência, que não são revestidas pelo manto protetor do ordenamento jurídico. Trata-se
de sujeitos que vivem em condições de absoluto abandono por parte do Estado de Direito, e
enfrentam uma das mais paradoxais facetas do desamparo, sendo despidos da condição de
cidadania e de quaisquer direitos constitucionais que, supostamente, deveriam ser universais.
Conforme já foi mencionado, Agamben (2002) resgatou do antigo direito romano o termo
homo sacer para se referir a essas categorias de marginalização jurídica, sem clara
delimitação simbólica.
O homo sacer é o nome das vidas indignas de serem vividas, sendo por isso matável e
insacrificável, ou seja, seu extermínio não constitui crime nem sacrifício, mas rebotalho,
despojo que pode, em todo caso, ser contabilizado como estatística pelo sistema normativo.
Destaca-se aí a “especificidade do homo sacer: a impunidade de sua morte e o veto de
sacrifício.” (AGAMBEN, 2002, p.81). Nem criminoso perante as leis do Estado, nem vítima
sacrificial perante a lei divina, essa figura que habita as margens do ordenamento jurídico não
está à altura de se constituir como oferenda sacrificial pacificadora. O interesse de situar o
lugar desse obscuro personagem, para Agamben, reside no fato de que, apesar de estar à
margem do referido ordenamento, ele habita o seu cerne. Dessa forma, ele pode ser
132

considerado como paradigma originário do espaço político do ocidente, constituído


topologicamente a partir de uma dupla exclusão.
Para reconstituir essa topologia, Agamben recorre ao filósofo político Carl Schmitt,
que afirmava que “soberano é aquele que decide sobre o estado de exceção.” (1922/2009,
46
p.13, tradução nossa) . Tal decisão implica não a anulação, mas a suspensão do
ordenamento jurídico diante de uma situação emergencial que o ameaça. A possibilidade de
decidir acerca da suspensão da lei situa o soberano, paradoxalmente, à margem dela, assim
como acontece com o homo sacer. Agamben (2007a, p.39) esclarece que, para dar conta deste
paradoxo, faz-se necessário passar da simplicidade da “oposição topográfica” à complexidade
da “relação topológica.” Com o recurso à topologia, torna-se possível interrogar categorias
clássicas do pensamento filosófico, como o dentro e o fora, ou o interno e o externo. Sem esse
recurso, não há como explicar o paradoxo colocado em jogo pelo estado de exceção.

Na verdade, o estado de exceção não é nem exterior nem interior ao ordenamento


jurídico e o problema de sua definição diz respeito a um patamar, ou a uma zona de
indiferença, em que dentro e fora não se excluem, mas se indeterminam. A
suspensão da norma não significa sua abolição e a zona de anomia por ela instaurada
não é (ou, pelo menos, não pretende ser) destituída de relação com a ordem jurídica.
(AGAMBEN, 2007a, p.39).

O paradoxo do estado de exceção implica em se estar “legalmente fora da lei”


(AGAMBEN, 2002, p.23), para quem o decreta. Ou então, dito de outra forma, implica que
não há fora da lei, mas que esta nada garante, quando está suspensa. Excetuar não é excluir;
ex-capere, origem etimológica do termo exceção, implica em ser capturado fora, implicando
que, com referência à vida nua, a norma só se aplica “desaplicando-se, retirando-se desta.”
(AGAMBEN, 2002, p.25). Ao contrário do que se pensava, a partir da tradição do
pensamento político inaugurada com Thomas Hobbes, o estado de exceção definitivamente
não é o estado de natureza, a temida guerra de todos contra todos. Muito ao contrário, há uma
lógica do estado de exceção, que nada tem em comum com o caos ou a anarquia. Conforme
afirma Schmitt (1922/2009), há uma ordem no estado de exceção, ainda que ela não seja uma
ordem jurídica.
O estado de exceção, campo da decisão soberana, desliza com o homo sacer sobre um
espaço topológico homólogo á banda de Moebius. Direito e avesso, lei e anomia deixam de se

46
“Soberano es quien decide sobre el estado de excepción.”
133

constituir como francas oposições para mergulhar na indistinção. Nessa zona cinzenta, “terra
de ninguém” (AGAMBEN, 2007a, p.12), constitui-se a ambiguidade fundamental do campo
do direito, desnudada na atualidade: de um lado, a normalização generalizada proporcionada
pela engrenagem biopolítica e, de outro, a anômica encarnação da lei na figura do soberano.
No primeiro pólo, constitui-se a vida nua, insacrificável e inominável do homo sacer; no
segundo, a decisão soberana, que ao suspender a lei, assume sua força.
Que o estado de exceção tenha se tornado regra, ou seja, estratégia ordinária e
permanente de gestão biopolítica na atualidade, não constitui novidade para aqueles que
conhecem os desenvolvimentos agambeanos, bem como as teses de Walter Benjamin sobre o
47
conceito de história. Retomando a oitava tese desse manuscrito , Agamben (2007a) afirma
que a exceção e a regra se tornaram indiscerníveis na atualidade, impossibilitando pensá-las
como pares de opostos. Essa indiscernibilidade torna ainda mais tênue o véu que encobria a
proximidade estrutural do poder soberano com a vida nua.
Para corroborar esta tese, não é necessário limitar-se apenas ao exemplo paradigmático
48
dos lager nazistas, marco histórico do paroxismo da generalização do estado de exceção.
No contexto atual, vale mencionar a Military order (UNITED STATES OF AMERICA,
49
2001) , promulgada pelo presidente americano George Bush, após os atentados de 11 de
setembro de 2001, que autoriza e legitima a detenção, por tempo indeterminado, de suspeitos
de envolvimento com atividades terroristas. A partir dessa ordem, esses sujeitos tornam-se
juridicamente inomináveis e inclassificáveis: não são reconhecidos como criminosos
(protegidos pelos direitos civis), nem como prisioneiros de guerra (protegidos pela Convenção
de Genebra). São denominados como terroristas pelo poder soberano, que lhes designa um
lugar que não deixa de evocar uma sinistra homologia com sua condição política: a prisão de
Guantánamo, considerada extensão do território americano, mas localizada fora dele. Trata-se
de um campo de detenção localizado em Cuba, e que a partir de 2002, tornou-se destino dos
suspeitos de envolvimento com atividades terroristas.
No contexto histórico da realidade brasileira, há exemplos paradigmáticos da
generalização do lugar de exceção referida por Agamben, como é o caso dos porões da

47
“A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral.
Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade” (BENJAMIN, 1940/1987, p.226,
aspas do autor).
48
Campos de concentração e/ou extermínio
49
Ordem militar de 13/11/2001. Detenção, tratamento e julgamento de certos não-cidadãos na guerra contra o
terrorismo.
134

ditadura militar, estabelecidos a partir do Ato Institucional nº 5. Nesses locais, situados à


margem do ordenamento jurídico, suspeitos de envolvimento com atividades subversivas
eram torturados e mortos, sem que houvesse julgamento ou sanção penal. Os desaparecidos
políticos, vítimas do autoritarismo da ditadura militar brasileira, constituem um exemplo de
homo sacer, pois suas vidas eram consideradas não apenas matáveis, como também
insacrificáveis, ou seja, despidas de qualquer formalidade institucional, seja a que acompanha
os ritos jurídicos, seja a que acompanha os ritos fúnebres. Muitos desses sujeitos permanecem
desaparecidos até hoje, e a interminável busca por seus corpos constitui um verdadeiro
martírio para suas famílias.
Apesar do fim do período da ditadura militar, e do subsequente advento da democracia
no Brasil, acompanhada da promulgação da assim chamada Constituição Cidadã, em 1988, os
campos continuam a se proliferar em larga escala, espalhados por todo o território nacional.
Como bem o observa Agamben, as periferias das grandes metrópoles industriais se
assemelham muito aos campos, locais onde qualquer distinção entre vida nua e a vida política
se apagam em uma “zona de absoluta indeterminação.” (AGAMBEN, 2015, p.45) 50.
Na perspectiva adotada por Agamben, a evocação das variadas formas de campo de
concentração, em diferentes contextos históricos e sociais, não desconsidera que estas nada
mais são do que referências conjunturais; no entanto, há algo de estrutural em sua
constituição, que pode ser abordado topologicamente. Nessa perspectiva, as favelas,
territórios da pobreza no contexto da realidade sócio-histórica brasileira, constituem exemplo
dessa matriz paradigmática, que Agamben nomeia de campo. Conforme já abordado pela
pesquisa documental, foi possível perceber que esses locais apresentam as mesmas
características estruturais que um campo submetido a um estado de exceção, quando se
tornam alvo das incursões policiais e militares.
Nesse ponto, faz-se necessário certo rigor para a apreciação cuidadosa dessas
elaborações sustentadas por Agamben (2002; 2015), que foram alvos de muitas críticas, em
particular, o axioma no qual ele afirma que o campo de concentração constitui a matriz oculta
do espaço político democrático do ocidente. Ou seja, para Agamben, do ponto de vista da
racionalidade governamental regida pela tecnocracia e pelo capitalismo globalizado, todo

50
“Mas também certas periferias das grandes cidades pós-industriais e as gated communities estadunidenses
começam, hoje, a assemelhar-se, nesse sentido, aos campos, nos quais vida nua e vida política entram, ao menos
em determinados momentos, numa zona de absoluta indeterminação”.
135

cidadão é potencialmente vida nua, passível de captura pelos dispositivos biopolíticos que
operam à margem da lei. Nesse sentido, os propalados ideais democráticos de igualdade,
liberdade e dignidade da vida humana são encobridores de uma “fratura biopolítica
fundamental” (AGAMBEN, 2015, p.37) que cinde o espaço político entre a pátria e o campo
e, também, o habitante da polis entre o cidadão e a vida nua.
Ernesto Laclau (2008), filósofo político argentino, foi um dos teóricos que se opôs a
essa tese, alegando que ela fecha o horizonte de qualquer possibilidade real de ação política
emancipatória, desembocando no niilismo político. Não se pretende, nesta ocasião, estender o
debate que Laclau propôs em torno de uma série de elementos das proposições de Agamben,
mas apenas destacar que as elaborações deste último não são imunes a críticas; antes pelo
contrário, receberam várias delas. Vale a pena conferir, acerca disso, o excelente artigo “O
futuro anterior: Giorgio Agamben e o método paradigmático” (FAVARETTO, 2014),
ricamente documentado com vasta bibliografia sobre o assunto.
A retomada da discussão em torno das críticas suscitadas pela publicação de “Homo
Sacer – O poder soberano e a vida nua” (2002) constituiu, para Agamben, uma oportunidade
para esclarecer melhor seus critérios metodológicos. Em seu livro “Signatura rerum” (2009),
o autor esclarece que, para chegar à consideração do campo de concentração como paradigma
biopolítico na atualidade, utilizou um método paradigmático similar ao procedimento
metodológico adotado por Foucault (1975/1999) no estudo do panóptico. Trata-se de elevar
um determinado modelo de organização do espaço político (o panóptico, por exemplo) à
condição de paradigma demonstrativo, com potencial para elucidar as relações de poder em
contextos e épocas diversos, trazendo à tona certos elementos que, de outro modo,
permaneceriam ocultos.
Dessa forma, assim como Foucault (1975/1999) elevou o panóptico à dignidade de
paradigma da configuração do espaço político das emergentes sociedades liberais, pautadas
pela incidência generalizada de dispositivos disciplinares, Agamben (2002) situou o campo
como paradigma de configuração das democracias contemporâneas, atravessadas pela
generalização do estado de exceção.
Do ponto de vista da psicanálise, é possível estabelecer uma leitura das propostas de
ambos os autores, procurando delimitar os fundamentos da biopolítica a partir dos elementos
mínimos situados por Lacan (1969-70/1992) em sua teoria dos quatro discursos. Isso é o que
assegura o filósofo esloveno Slavoj Zizek (2004, tradução nossa) em um artigo intitulado “O
136

51
Homo sacer como objeto do discurso da universidade” . Segundo Zizek (2004), desde sua
primeira delimitação em Foucault até os desenvolvimentos posteriores propostos por
Agamben em torno da vida nua, a biopolítica pode ser situada a partir da estrutura do discurso
universitário, tal como matemizado por Lacan (1969-70/1992). O discurso universitário
esclarece o funcionamento do automaton burocrático, o ‘saber sem sujeito’ agenciado pelas
modernas tecnologias científicas de gestão.

Figura 18 – Matema do discurso universitário

Fonte: Adaptado de LACAN, 1969-70/1992, p.27.

No piso superior do matema desse discurso, o saber referencial da ciência (S2) se


dirige a uma alteridade reduzida a objeto (a), ou seja, indivíduos reduzidos à mera condição
de vida nua, sujeitos à intervenção por parte do sistema normativo técnico-científico. Como
decorrência disso, há um impasse com relação ao reconhecimento do estatuto simbólico dessa
alteridade, ou seja, sua condição de cidadania não é sancionada pelo sistema. Por isso, Zizek
adverte que o sujeito ($) assim produzido é, na verdade, um resto não integrável nas redes de
poder-saber, homólogo a um corpo estranho que não é passível de captura pelas malhas do
sistema normativo. Como exemplo dessa nova forma de (sub) existência, que hoje prolifera ao
redor do mundo, pode-se destacar os habitantes das favelas brasileiras, segundo as indicações
do autor (ZIZEK, 2004).
Ao analisar o piso inferior do matema, Zizek (2004) assinala ainda que a normatização
biopolítica preconizada pelos gestores e especialistas encontra sua verdade em uma crise de
investidura, marcada pela impossibilidade em assentir subjetivamente com o mandato
simbólico expresso em S1. À luz dos desenvolvimentos precedentes nesta pesquisa, essa crise
pode ser entendida como o declínio dos semblantes de autoridade que, ao se tornarem

51
El Homo sacer como objeto del discurso de la universidad.
137

inoperantes, cederam espaço às medidas draconianas, próprias do estado de exceção. Dessa


forma, a dimensão política é subsumida à técnica da administração especializada, que Zizek
(2004, p.36) ironicamente nomeia como “política sem política”.
A própria guerra, recurso supremo do mestre em suas atribuições de exercer seu
soberano poder, encontra-se totalmente subsumida e integrada à maquinaria biopolítica do
52
discurso universitário. É conhecido o famoso aforismo de Clausewitz que considera a guerra
como a continuação da política por outros meios. Esse aforismo destaca a guerra como
prolongamento da política, e dessa forma, ela pode ser entendida como uma atribuição própria
da autoridade colocada em jogo pelo discurso do mestre. Em regimes biopolíticos, agenciados
pela tecnocracia, o paradoxo da política sem política instaura uma inusitada continuidade
entre a guerra e a ajuda humanitária. Para ilustrá-lo, Zizek (2004, p.47) recorre ao exemplo da
guerra ao terror, indicando como os ataques aliados agenciados pelos Estados Unidos no
Afeganistão passaram a ser justificados pela necessidade de garantir a distribuição da ajuda
53
humanitária aos necessitados, em condições de segurança . Trata-se daquilo que Lacan
(1973/1993, p.58) designou, em certa ocasião, de “humanitarismo sentimentalóide de
encomenda”, destinado a encobrir as atrocidades aí perpetradas.
No contexto aqui abordado, as megaoperações policiais nas favelas do Rio de Janeiro
serviriam como um exemplo na medida dessas indicações. Nesse caso, a guerra ao tráfico se
justificaria a partir de argumentos já mencionados nesta pesquisa, como a libertação da
população civil que vive oprimida nas favelas, ou então, garantir a segurança dos cidadãos de
bem, acuados pelo medo, pela criminalidade e pela violência. A imagem do homo sacer que
aqui se poderia delinear, parodiando o exemplo de Zizek, é a do morador da favela atônito
diante de uma incursão policial, impossibilitado de saber ao certo se ela veio de fato para
libertá-lo da opressão imposta pelo narcotráfico, prendendo criminosos e fazendo valer a lei,
ou emular as ações criminosas, impondo o terror e a violência à comunidade sitiada.

52
Carl Phillip Gottlieb von Clausewitz, general e estrategista militar prussiano.
53
“La imagen última del tratamiento a las ‘poblaciones locales’ como homo sacer es quizás la de un avión de
guerra norteamericano sobrevolando Afganistán y del que nunca se está seguro de lo que va. a soltar: bombas o
paquetes de comida . . . Así pues, podemos decir efectivamente que, con la actual " guerra contra el terror", la
guerra misma -ese último dominio del discurso, del Amo- ha sido integrada finalmente en el discurso de la
Universidad”. (ZIZEK, 2004, p.47).
138

3.3 - O campo: morada anômica do homo sacer e paradigma das formas


contemporâneas de segregação

“(...) o problema do campo de concentração, bem como


de sua função nesta época de nossa história, de fato tem
sido integralmente mal examinado até aqui,
completamente mascarado pela era de moralização
cretinizante que se seguiu imediatamente à saída da
guerra, e pela ideia absurda de que se poderia acabar
com ele com toda essa rapidez - continuo a falar dos
campos de concentração”. (LACAN, 1962-63/2005,
p.163).

“O campo é o próprio paradigma do espaço político no


ponto em que a política se torna biopolítica e o homo
sacer se confunde virtualmente com o cidadão”.
(AGAMBEN, 2015, p.44).

Durante o século XX, o surgimento dos campos de concentração no seio dos grandes
estados unificados assinala o início de uma mudança crucial no estatuto da decisão soberana,
no contexto da biopolítica moderna: soberano, então, torna-se “aquele que decide sobre o
valor ou sobre o desvalor da vida enquanto tal” (AGAMBEN, 2002, p.149). Essa mudança
advém a partir de uma profunda crise no sistema de inscrição da vida no espaço político,
pautado pelo nexo entre cidadania e território. Os desdobramentos dessa crise podem ser
constatados na atualidade, em cujo contexto a política se converte em biopolítica (ou
tanatopolítica) e o cidadão é reduzido à sua vida nua, na condição de homo sacer.

3.3.1- Breve história dos campos de concentração

Não foram os nazistas que inventaram os campos de concentração; antes da ascensão


do Terceiro Reich, tal experimento já havia sido colocado em prática pelos ingleses, durante a
Guerra dos Bôeres, no início do século XX. E mesmo antes disso, em 1896, os espanhóis
também já haviam criado em Cuba, durante a Guerra da Independência, um dispositivo
semelhante, com a finalidade de segregar uma parcela da população civil suspeita de apoiar a
rebelião 54.

54
Não escapou a Michel Foucault o nexo estrutural trans-histórico entre a segregação e os campos de
concentração: “Os campos de concentração, que foram conhecidos em todos esses países, foram para o século
139

Esses campos correspondem, em muitos detalhes, aos campos de concentração do


começo do regime totalitário; eram usados para ‘suspeitos’ cujas ofensas não se
podiam provar, e que não podiam ser condenados pelo processo legal comum. Tudo
isso aponta claramente na direção dos métodos totalitários. (ARENDT, 1951/1989,
p.491).

Nesse sentido, os campos devem ser distinguidos das penitenciárias, uma vez que
seus habitantes não são considerados infratores de quaisquer leis vigentes em um determinado
Estado. “Em hipótese alguma deve o campo de concentração transformar-se em castigo
previsível para um crime definido” (ARENDT, 1951/1989, p.499), ou seja, o campo funciona
à margem do ordenamento jurídico-penal, e a condição dos sujeitos aí capturados deve ser
diferenciada daquela do criminoso comum, que responde por uma determinada infração
referida a esse ordenamento.
Inclusive no contexto da história do Brasil, foi possível encontrar referências
relativas à existência de campos de concentração no estado do Ceará, conhecidos como
“currais do governo” (ROCHA, 2008). Esses campos serviam como espaços de confinamento
de flagelados da seca de 1932, e tinham por finalidade resguardar as cidades de saques e
invasões. Os sujeitos ali confinados eram mantidos em uma condição sub-humana, vindo
eventualmente a morrer de fome, ou por conta de alguma moléstia.
De acordo com um levantamento bibliográfico feito a respeito dos campos de
concentração, pôde-se constatar que eles foram criados para funcionar em diferentes
contextos, de acordo com as conjunturas específicas do contexto geográfico e histórico
considerado. Foi somente a partir do surgimento dos regimes totalitários, contudo, que os
campos deixaram de ser uma medida de caráter extraordinário, aplicada em situação de
guerra; tornaram-se então uma prática comum, aplicada de forma sistemática nos gulags 55 da
Rússia revolucionária, e na Alemanha nazista, a partir da década de 1930. Doravante, os
campos deixaram de ser um recurso provisório de emergência para se tornar “uma solução de
rotina para o problema domiciliar dos refugiados e deslocados de guerra.” (ARENDT,
1951/1989, p.312). O que é inédito, a partir desse momento, é o surgimento de populações
inteiras nessa condição de anomia jurídica.

XX o que as famosas vilas operárias, o que os famosos pardieiros operários, o que a famosa mortalidade operária
foram para os contemporâneos de Marx.” (FOUCAULT, 1977/2006, p.225).
55
Campos de trabalhos forçados.
140

O drama dos campos de concentração, além de trágico, é revelador de muitas


contradições que até então não haviam sido detidamente consideradas pelos estudiosos do
tema. A possibilidade de ser deserdado pela pátria, desnacionalizado, é escandalosa para
aqueles que acreditavam na existência de direitos naturais e inalienáveis do homem.
Paradoxal é o fato de que tenha sido necessário o surgimento de uma legião de pessoas em
uma condição de absoluta privação de direitos para que fosse possível reconhecer que, mesmo
os direitos mais fundamentais não são naturais, ou seja, não emanam espontaneamente do fato
biológico do nascimento, enfim, não constituem uma realidade prévia à dimensão política.

(...) o homem sem Estado - um fora-da-lei por definição - era uma ‘anomalia para a
qual não existia posição apropriada na estrutura da lei geral’, ficava completamente
à mercê da polícia, que, por sua vez, não hesitava muito em cometer atos ilegais para
diminuir a carga de indésirables no país. Em outras palavras, o Estado, insistindo em
seu soberano direito de expulsão, era forçado, pela natureza ilegal da condição de
apátrida, a cometer atos confessadamente ilegais. (ARENDT, 1951/1989, p.317).

De exceção à regra, os campos de concentração se constituíram como “único


substituto prático de uma pátria. De fato, desde os anos 30 esse era o único território que o
mundo tinha a oferecer aos apátridas.” (ARENDT, 1951/1989, p.317). Então, antes de serem
considerados como problema, os campos se constituíram, apesar de toda a precariedade e
desumanização que lhe são próprias, como soluções totalitárias para conter, dominar,
controlar e, eventualmente, exterminar sujeitos despidos da condição de cidadania,
desamparados pela pátria, enfim, sem direito a ter direitos.

3.3.2- Os campos de concentração e a despolitização da vida

Hannah Arendt (1951/1989, p.489) costumava sublinhar que o estudo dos campos de
concentração era fundamental para se entender o que realmente estava em jogo para o regime
totalitário, pois eles estão longe de ser mera margem, ou periferia da estrutura política;
constituem “a verdadeira instituição central do poder organizacional totalitário”.
A zona anômica estabelecida no habitat dos campos não é causa, mas consequência
do processo de despolitização da vida, provocada pelo avanço das estratégias biopolíticas de
controle absoluto. Antes que se pudesse estabelecer esse controle, tornou-se necessário “matar
a pessoa jurídica do homem” (ARENDT, 1951/1989, 498), ou seja, privá-lo de seus direitos e
141

garantias constitucionais, assegurados por lei. Criou-se, dessa forma, uma categoria
inominável de sujeitos que excedia o sistema jurídico. Em seguida, delimitou-se um território
destinado a abrigar e conter esses sujeitos, à margem da legislação penal em vigor.
Esse processo de despolitização da vida tornou-se evidente na estratégia adotada pelo
regime nazista: antes de enviar os judeus para os campos, adotou-se uma série de
procedimentos prévios, como despojá-los de sua cidadania e segregá-los em guetos, à margem
das cidades. Após esses procedimentos iniciais, transportou-se essa população para os campos
de concentração, que foram posteriormente transformados em campos de extermínio. Dessa
forma, antes de exterminar esses indivíduos, pôde-se certificar que eles não eram
reivindicados por ninguém.
A condição de absoluto desamparo político e jurídico de certas categorias de sujeitos,
imposta pelo estado de exceção permanente decretado pela Alemanha nazista, possibilitou ao
mundo testemunhar os efeitos devastadores dos laboratórios tanatopolíticos, erigidos para um
novo tipo de experimento: “fabricar algo que não existe, isto é, um tipo de espécie humana
que se assemelhe a outras espécies animais” (ARENDT, 1951/1998, p.488). Para cumprir esse
encargo sinistro, criou-se um espaço onde vigora um “domínio total”, que não se deixa
seduzir nem por “motivos utilitários” (ARENDT, 1951/1989, p.488), nem pelo pathos das
inclinações pessoais. Enfim, um lugar onde “tudo é possível” (ARENDT, 1951/1989, p.488),
pois apesar da presença de massivos mecanismos de controle, reina uma absoluta ausência de
lei.
O campo alia as formas mais selvagens de segregação com a degradação de qualquer
vestígio de dignidade humana, ocasionando o aniquilamento de qualquer rastro de
singularidade ou espontaneidade, enfim, apagando toda diferenciação subjetiva que permita
distinguir um indivíduo do outro. No campo, todos os internos têm o mesmo estatuto: vida
nua, marcada pela indigência jurídica e pelo anonimato. O estatuto desses sujeitos é
politicamente indefinido, ou seja, eles não gozam de nenhum reconhecimento civil por parte
do Estado a que pertencem. Sem a investidura simbólica que lhes proporcionaria inscrição no
ordenamento político-jurídico, eles assumem, assim, a condição de vida indigna e descartável,
excedentes indesejáveis e perigosos.
Segundo Agamben (2002), o campo é o espaço que se instaura quando o estado de
exceção torna-se regra. Nessas condições, o lugar da exceção deixa de existir como tal. A
partir das contribuições da psicanálise, sabe-se que essa exceção é normativa, pois ela
142

constitui o próprio fundamento do enlace da Lei com o desejo. A exceção é o lugar que deve
permanecer hiante, de modo que o ordenamento significante possa se articular em torno do
primado fálico da Lei. Torná-la regra, tal como acontece nos regimes biopolíticos da
atualidade, é anulá-la. Qualquer consistência que se queira conferir a este lugar da exceção,
destinado a permanecer vazio, acarreta o pior: “Quando nosso tempo procurou dar uma
localização visível permanente a este ilocalizável, o resultado foi o campo de concentração”
(AGAMBEN, 2002, p.27). O campo surge, portanto, como símbolo da incurável paixão de
nossa época: buscar, a todo custo, complementar o Outro, pacificá-lo, conferir-lhe a
derradeira consistência. Tais são os princípios da aposta sacrificial, que se prolonga nos dias
de hoje.
Do ponto de vista da psicanálise, pode-se dizer que, durante o estado de exceção,
vigora a Lei de Talião, em Freud (1913/1987), ou as ordens de ferro, em Lacan (1974/s.d.);
trata-se de versões rebaixadas e degradadas do Nome-do-Pai, que reduzem a pátria ao campo,
zona de exceção permanente, na qual se coloca em jogo a “consistência última do poder
soberano” (AGAMBEN, 2002, p.149). Tal consistência pode ser remetida, na terminologia
aqui adotada, aos paradoxos dos Nomes-do-Pai. Hannah Arendt (1951/1989, p.312) mostrou-
se sensível a esses paradoxos, abordando-os à sua maneira ao indicar que o campo de
concentração não constituiu um problema, mas sim uma solução:

Nenhum paradoxo da política contemporânea é tão dolorosamente irônico como a


discrepância entre os esforços de idealistas bem-intencionados, que persistiam
teimosamente em considerar ‘inalienáveis’ os direitos desfrutados pelos cidadãos
dos países civilizados, e a situação de seres humanos sem direito algum. Essa
situação deteriorou-se, até que o campo de internamento - que, antes da Segunda
Guerra Mundial, era exceção e não regra para os grupos apátridas - tomou-se uma
solução de rotina (...).

O pensamento de Arendt revela-se tragicamente atual, quando atualmente se


testemunha um número crescente de refugiados oriundos de países em situação de guerra civil
afluir, desordenadamente, para territórios europeus. A jornada desses sujeitos é marcada pela
dor, pelo desamparo e, eventualmente, pela morte. Mesmo nessa situação, eles não perdem a
esperança de reconstruírem suas vidas em outro país. Esses acontecimentos servem para
confirmar que o processo de despolitização da vida ocorre hoje em larga escala, e isso é ainda
mais expressivo quando se considera a forma com que os países de tradição democrática vêm
lidando com essa situação; os novos campos de refugiados atestam-no.
143

3.3.3 – A segregação como prática sacrificial na era do capitalismo globalizado

Com Lacan (1964/1988, p.259), é possível afirmar que as práticas sacrificiais


contemporâneas são formas aviltantes de reviver a nostalgia do pai, no que ela tem de pior.
Esta se coloca em jogo na aposta sacrificial, que nada mais faz do que buscar “o testemunho
da presença do desejo desse Outro”, o deus obscuro. Para indicá-lo, Lacan se referiu aos
campos de concentração nazistas, modalidade extrema de sacrifício, pautada no mecanismo
da segregação. Mesmo sendo cada vez mais degradadas e desprovidas dos rituais separadores,
as práticas sacrificiais continuam a exercer seu fascínio mortífero, na apaixonada busca pela
consagração do pai ideal.
Ainda segundo as indicações de Lacan (1964/1988, p.259), abordar a questão dos
campos de concentração significa tocar no que há de mais mascarado pela “crítica da história
que temos vivido”: a ofuscante e fascinadora dimensão sacrificial do “drama do nazismo”,
materializado não apenas no horror dos campos de concentração, mas também, no arbítrio de
uma ordem de ferro, que não vale mais como Lei, mas como força, encarnação do desejo
obscuro do Fuhrer. Pensar o estatuto dos novos campos de concentração, a partir da
psicanálise, implica retomar as indicações feitas por Lacan acerca do recrudescimento dos
processos de segregação em nossa época, não sem considerá-las à luz da teorização freudiana
do laço social.
O termo segregação deriva de uma etimologia latina, segregare; o prefixo se que
significa afastar, separar, isolar, apartar, enquanto gregário provém de grex, que significa grei,
rebanho. Portanto, segregar significa, etimologicamente, separar do rebanho, vale dizer, do
conjunto de indivíduos de uma mesma espécie. Conforme afirma Ferrari (2007, p.245), a
partir do século XIV “o termo passou a ser aplicado a fenômenos humanos, em diferentes
situações culturais.” Segregar não é sinônimo de exclusão ou banimento; trata-se de um
processo que coloca em jogo uma exclusão interna, ou seja, o elemento segregado vive em um
espaço territorial demarcado e nomeado, mantendo-se sempre próximo.
Leitor atento do texto freudiano, Lacan estava bem advertido de que os agrupamentos
sociais não se estabelecem sem a ancoragem proporcionada pelos ideais de massa. Esses
ideais, Freud (1921/2010) já indicava, funcionam como verdadeiros diques canalizadores da
144

libido grupal, fazendo-a confluir para um ponto convergente, mediante o empréstimo de um


traço, insígnia que proporciona aos membros do grupo uma identificação coletivizadora.
Quando imerso nos ideais do grupo, o sujeito comunga um sentimento oceânico de
transbordamento narcísico, que faz vacilar os limiares que separam o eu do mundo externo.
Não se trata apenas de um sentimento de comunhão com o grupo, pela via do amor, mas
também, de um excesso de gozo que não é passível de inscrição nas insígnias dos ideais.
Nesse sentido, Freud já alertava para os efeitos nefastos que decorrem da formação de
massas compactas, pautadas no fascínio servil: a agressividade, a impulsividade e a alienação,
reunidas por ele sob a égide da “miséria psicológica da massa.” (FREUD, 1930/2010, p. 83).
Freud destacou também o “narcisismo das pequenas diferenças”, termo cunhado por ele para
se referir a essas paixões grupais, mais particularmente, à intolerância e à rivalidade que
marcam o cotidiano da vida dos grupos, em relação aquilo que destoa de seus ideais. “Sempre
é possível ligar um grande número de pessoas pelo amor, desde que restem outras para que se
exteriorize a agressividade. Dei a isso o nome de narcisismo das pequenas diferenças.”
(FREUD, 1930/2010, p. 81).
Dessa forma, pode-se perceber que o fortalecimento do laço grupal só se efetiva a
expensas da exteriorização da cota de agressividade amalgamada nas identificações que o
estruturam. A matriz narcísica, que rege o funcionamento dos grupos, fica assim bem
evidenciada: o fascínio desmesurado pelo ideal, eventualmente encarnado na figura de um
líder, se faz acompanhar pelo horror à diferença, que sempre emerge como ameaça à coesão e
à homogeneidade do grupo.
Nesse aspecto, Lacan não apenas retoma as indicações freudianas, como as relança,
propondo uma abordagem da escalada dos processos de segregação e racismo, intensificados
na atualidade a partir do empuxo à homogeneização, imposto pelo capitalismo globalizado,
aliado ao avanço das tecnociências. Assim como Freud, Lacan não desconsiderou a
importância do contexto histórico de sua época, indicando que este contexto está diretamente
relacionado aos invólucros com que as novas formas de mal estar se apresentam. A partir
disso, advertiu que a universalização resultante da parceria estabelecida entre o discurso
capitalista e as tecnociências acarretaria um agravo nos processos de segregação, ao
estabelecer o mercado como denominador comum dos intercâmbios sociais: “Nunca se
terminou completamente com a segregação. Posso dizer a vocês que ela vai sempre reaparecer
145

com mais força”, na medida em que “ela é efeito da linguagem.” (LACAN, 1969-70/1992,
p.170).
Por outro lado, Lacan nunca deixou de enfatizar que a segregação é estrutural, haja
vista que ela integra a lógica que está no próprio fundamento do laço social. Sendo ela
inerente à incidência da linguagem na estruturação do laço social, cabe afirmar que não há
ordenamento simbólico que não opere por meio da segregação. Segregar também significa
discriminar, diferenciar, separar, organizar e categorizar, princípios que estão no fundamento
dos diversos discursos que estruturam a racionalidade ocidental: a ciência, o direito e a
filosofia.
Como a noção de segregação não é desenvolvida de forma sistemática por Lacan em
seu ensino, convém atentar para os diferentes sentidos que ela assume em psicanálise. Ao
proceder dessa forma, evita-se incorrer em banalizações que a diluam em uma compreensão
estritamente sociológica, tornando-a equivalente à marginalização ou exclusão social.
Vale dizer, nesse sentido, que a segregação não é um termo que se aplica
exclusivamente às populações desfavorecidas e marginalizadas; ela pode ser também referida
às elites, como no exemplo dos esportes de inverno, mencionado com certa ironia por Lacan
(1962-63/2005, p.163), no qual se refere a um “campo de concentração da velhice abastada”.
Tratar-se-ia, nesse caso, de uma solução para o problema do crescente envelhecimento
populacional. A partir disso, deve-se advertir, conforme as indicações de Sidi Askofaré
(2009), que a problemática da segregação emerge na teoria lacaniana articulada sob duas
perspectivas diversas, que não são equivalentes entre si.
Primeiramente, a segregação pode ser entendida como um efeito reverso da
homogeneização e massificação orquestrada pelo discurso capitalista na civilização
tecnocientífica. Nessa perspectiva, ela pode ser entendida como uma prática imanente ao
zeitgeist da época 56. Porém, ao introduzir a temática do “Para além do complexo de Édipo”
em uma lição do seminário “O avesso da psicanálise”, Lacan (1969-70/1992) situa a
segregação como a contrapartida necessária à fraternidade requerida para a estruturação do
laço social. Nesse sentido, a segregação é estrutural, operando a partir das incidências do
significante mestre - princípio ordenador do laço social nos quatro discursos - não sendo mais
considerada apenas como um efeito exclusivo do discurso capitalista e/ou tecnocientífico.

56
A este propósito ver CRUZ, Alexandre Dutra Gomes; FERRARI, Ilka Franco. Práticas sacrificiais na
atualidade: o paradigmático exemplo da segregação. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 65, n. 2, p. 165-180,
2013.
146

Sendo assim, apesar de enfatizar a dimensão estrutural da linguagem na tessitura dos


diversos discursos que circulam na civilização, a psicanálise não desconsidera as lições da
história; a partir delas, adverte que regimes de índole totalitária e unificadora operam
segregando e excluindo a diferença.
No que concerne ao contexto da problemática aqui abordada, a segregação é evocada
como uma modalidade de prática sacrificial, própria do laço concentracionário evocado por
Lacan (1949/1998), predominante nas sociedades contemporâneas. Com a globalização da
ordem capitalista, o consumo é elevado à dignidade de ideal unificador, homogeneizando os
sujeitos que integram essa categoria ao custo da segregação daqueles que dela destoam.
Quanto mais avança o discurso capitalista em seu afã globalizador, maior se torna a margem
de excluídos, confirmando aquilo que Lacan já previra em sua época: que “nosso futuro de
mercados comuns encontrará seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos
processos de segregação.” (LACAN, 1967/2003a, p.263).
O mercado, entendido como uma nova versão do grande Outro, assume, então, os
contornos de um deus obscuro, que exige o sacrifício daqueles que são considerados
supérfluos à lógica do consumo. Segundo Delgado (2001, p.16), na época do capitalismo
globalizado, o triunfo neoliberal se afirma mediante o sacrifício dos sujeitos considerados
57
supérfluos, criando “novos campos de concentração e extermínio” , verdadeiras vilas da
miséria. Do ponto de vista da psicanálise, o regime de funcionamento homogeneizador e
massificador imposto pela nova ordem mundial nada mais faz do que recrudescer os
processos de segregação, que avançam em escala proporcionalmente inversa ao empuxo em
direção ao global, ao universal.
Enquanto discurso globalizante, o capitalismo assume uma índole totalitária, que
segrega contingentes populacionais cada vez mais numerosos, considerados supérfluos. Como
forma de fundamentalismo econômico, ele cultua a produção, sacraliza o consumo e sacrifica
aqueles que aí não encontram lugar. O que resulta daí é o aumento na extensão da margem de
excluídos, que hoje compõem uma população supérflua, excedente que constitui, segundo
Bauman, (2005, p.13) uma vasta “linha de produção de refugo humano ou de pessoas
refugadas.” O índice crescente de populações nessas precárias condições “exige políticas
segregacionistas mais estritas e medidas de segurança extraordinárias para que a ‘saúde da
sociedade’ e o ‘funcionamento normal’ do sistema social não sejam ameaçados.” (BAUMAN,

57
“(...) nuevos campos de concentración y exterminio”.
147

2005, p.107). Surge, dessa forma, a necessidade de imunizar o corpo social, mediante a
segregação e eventual expurgo de seus segmentos corrompidos pela miséria.
No Brasil, o fenômeno da segregação urbana e residencial é revelador dos
antagonismos típicos de uma sociedade marcada pela injustiça social: a elite abastada se isola
em condomínios de luxo, enquanto a ralé se amontoa nos guetos e favelas densamente
povoados. A segregação, que opera na demarcação de territórios no espaço urbano, incide
primeiramente no campo da linguagem, constituindo os assim chamados muros invisíveis do
racismo. Os estigmas criados a partir daí constituem exemplos das nomeações da ordem de
ferro.
Um exemplo disso, típico da realidade social brasileira, é a percepção banal de que os
problemas da violência e da criminalidade são efeitos diretos da situação de pobreza que
marca a vida de parte da população, particularmente nos grandes centros urbanos e em suas
imediações. Tal percepção não é exclusividade da mídia sensacionalista, que noticia as
megaoperações nas favelas; essa nada mais faz do que reverberar esse ponto de vista, que já é
dominante entre aqueles que moram no ‘asfalto’, ou seja, do outro lado do muro.
Alba Zaluar (1994), antropóloga brasileira que há muitos anos vem desenvolvendo
reflexões sobre a violência, a criminalidade e o racismo, assinala que os estigmas sociais
reforçam a hostilidade dirigida contra as classes desfavorecidas. Seus integrantes, constituídos
predominantemente por pessoas negras e pobres, são considerados cidadãos de segunda
classe, elementos sempre suspeitos durante as operações policiais. Para todos os efeitos, eles
são considerados perigosos até que provem a idoneidade de seu caráter. Ou seja, que são
trabalhadores, e não vagabundos ou bandidos.
Zaluar (1994) comenta que o estigma de periculosidade imposto a esses sujeitos
acabam muitas vezes por se confirmar, tornando-se profecias autocumpridas. Dessa forma, ao
se referir à escolha pela vida criminosa por parte de jovens residentes nas favelas, a
antropóloga considera que

Os membros das classes populares deixam de tornar-se trabalhadores porque sua


própria condição de pobres ameaça e amedronta os que lhes poderiam fornecer
emprego. Em outras palavras, eles são perigosos antes de efetivamente o serem ao
optar pela vida criminosa. (ZALUAR, 1994, p.17).
148

Na perspectiva de muitos desses jovens, o trabalho torna-se associado à submissão,


exploração e humilhação, visão reforçada pela observação da labuta diária dos seus pais, que
trabalham muito para ganhar pouco, submetendo-se a atividades subalternas. Por outro lado, a
vida no tráfico acena não apenas com a possibilidade de ganhar muito dinheiro em pouco
tempo, mas também, prestígio: andar armado, ocupar postos de comando e, assim, conquistar
belas mulheres. Estes são elementos que conferem uma aura especial à vida no crime, na
perspectiva de muitos dos jovens residentes em favelas. Essas considerações são importantes
do ponto de vista da psicanálise, por não deixar de levar em conta a perspectiva do sujeito
confrontado com as escolhas que constituirão as coordenadas do seu destino.
Ao se aproximar desses jovens, Zaluar (1994, p.16) escutou inúmeras vezes por parte
deles: “Quem faz o bandido é a polícia”. Em pesquisa de campo desenvolvida pela
pesquisadora, ela afirma que pôde testemunhar por si própria como ocorre o processo que leva
o jovem a decidir-se pela vida no crime. Em seu relato, ela menciona uma festa em um morro
carioca, na qual estava presente um destacamento inteiro da PM, acompanhado de cães
farejadores. Nesse ínterim, os policiais incitavam os cães em direção aos jovens que
consideravam suspeitos, de modo que, quando encontravam alguma droga, eles eram
imobilizados entre os dentes dos animais até a chegada dos agentes. Conforme comenta
Zaluar (1994, p.16), “A lição tinha endereço certo e isso ficava patente nos olhares
amedrontados dos jovens que assistiam à exibição”. Como se isso não bastasse, era de amplo
conhecimento entre esses jovens que o posto policial local agia arbitrariamente, prendendo e
torturando suspeitos, ainda que seu envolvimento com a criminalidade não fosse comprovado.
Reside aí uma articulação de ordem ética, muito difundida entre os moradores dos morros e
favelas: “Embora tanto o bandido quanto o policial tenham imagens carregadas de
ambiguidades, é a polícia que aparece quase sempre caracterizada pela completa ausência de
moral” (ZALUAR, 1994, p.19).
Dessa forma, a opção pela vida no crime não deixa de evocar a escolha forçada,
evocada por Lacan (1964/1988) para indicar que qualquer margem de liberdade possível, no
campo do sujeito, não se dá sem um forçamento, um confronto com um ponto limite que se
situa para além da ética dos bens. O franqueamento desse ponto conduzirá o jovem à sua
58
“travessia do Rubicão” (1967-68/s.d.), ou seja, à passagem ao ato que marcará o início de

58
Trata-se de uma referência ao estadista romano Júlio César, utilizada por Lacan no seminário inédito “Ato
psicanalítico” (1967-68/s.d.) como uma metáfora para se referir ao caráter transgressor e irreversível do ato de
149

uma nova vida: a vida no crime. Zaluar (1994, p.22) articula o processo que conduz o jovem
às veredas do “condomínio do diabo”, ou seja, à opção pela vida no crime, ao trinômio
“repressão-medo-revolta” (ZALUAR, 1994, p.16). Destinatário das cenas de opressão,
arbitrariedade e violência protagonizadas pelos agentes policiais, esse jovem, acossado pelo
medo e pela impotência, prefere revoltar-se a submeter-se passivamente aos caprichos dessa
figura obcena do grande Outro. “A bolsa ou a vida!”, já dizia Lacan (1964/1988, p.201). É
matar ou morrer, diz o jovem.
Por outro lado, na perspectiva do opressor, incluindo aí não apenas os policiais
diretamente envolvidos em ações violentas, mas também as autoridades que as ordenam, a
mídia sensacionalista que as alardeia e o cidadão que as prestigia, “a associação entre pobreza
e criminalidade não é uma hipótese passível de discussão.” (ZALUAR, 1994, p.46); eles
próprios se encarregam de sancioná-la definitivamente, mediante suas ações.
É interessante perceber que o espectro do autoritarismo paira não apenas sobre a visão
das autoridades e agentes do estado; ele encontra-se amplamente difundido na sociedade,
entre os cidadãos de classe média e alta, que não apenas aprovam a violência policial, como
clamam por mais rigor nos castigos. É o que constata Zaluar (1994, p.46), depois de analisar
2000 questionários de uma pesquisa sobre a criminalidade no Rio de Janeiro:

(...) tive a impressão de percorrer alfarrábios sobre os suplícios medievais contados


numa linguagem moderna da punição. Entre as sugestões oferecidas pela população
da Zona Sul, Tijuca e Grajaú onde se concentram as classes de rendas mais altas,
figuravam as de transformar o Maracanã e a Praça da Apoteose em locais de
execução pública de bandidos. Aos ladrões (crianças e jovens), senhoras distintas e
educadas propunham cortar os dedos, as mãos etc.

Vê-se assim que, no país do carnaval, nem mesmo a punição de criminosos deveria
constituir exceção ao massivo apelo do espetáculo. Os ritos de suplício e execução de
criminosos, conforme já assinalava Foucault (1975/1999), deveriam ser tão ou mais violentos
do que o próprio crime cometido por eles, assinalando a gloriosa vingança do soberano contra
o malfeitor e a catarse coletiva, proporcionada pela expiação do mal. Dessa forma, segundo os
elementos de análise trazidos pela pesquisadora, e a partir das contribuições de Foucault,
pode-se afirmar que o clamor popular pelo endurecimento das medidas punitivas implica em

atravessar o Rio Rubicão. Nas coordenadas geopolíticas da época, isso configurava um ato de guerra, a partir do
qual o líder militar se convertia em um inimigo da República.
150

um retrocesso na lógica do castigo do criminoso: da economia dos direitos suspensos, própria


da reclusão prisional no Estado de Direito, ao dispêndio sanguinário de violência, próprio do
poder soberano de supliciar e matar.
No tocante à problemática aqui discutida, pode-se acrescentar que a psicanálise não
desconsidera a responsabilidade do sujeito diante de suas decisões e de seus atos. Contudo,
ela tem algo mais a ensinar, na medida em que pressupõe que o que se passa no campo do
sujeito jamais se esgota em plano individual. Para a psicanálise, a problemática do sujeito
sempre implica as escolhas subjetivas de cada um, mas isso não significa desconsiderar a
ubiquidade do mal estar na civilização, que em suas manifestações diversas, concerne tanto à
constituição das subjetividades contemporâneas quanto ao laço social.
151

4 – CONCLUSÃO

“No descaminho de nosso gozo só há o Outro para


situá-lo, mas é na medida em que dele estamos
separados. (...) Deixar a esse Outro seu modo de gozo,
eis o que só se poderia fazer não impondo o nosso, não
o considerando como um subdesenvolvido.” (LACAN,
1973/1993, p.58).

Desde as primeiras publicações de Freud, até as importantes contribuições de Lacan,


a razão sacrificial percorre um longo caminho no corpus teórico da psicanálise, como se pode
vislumbrar no que foi aqui abordado. Nesta tese foi possível acompanhar os intrincados
paradoxos que se articulam na problemática do sacrifício, tanto na trama do saber textual da
psicanálise, decantado a partir da experiência clínica, quanto em uma leitura atualizada do mal
estar na civilização, que constituiu a principal diretriz desta pesquisa.
Para o pesquisador, situar a segregação e o extermínio de sujeitos descartáveis como
expressões dessacralizadas da razão sacrificial, nos dias atuais, não foi uma articulação
evidente. Para chegar até ela foi necessário, primeiramente, buscar um entendimento mais
aprofundado do significado do sacrifício em psicanálise, sem desconsiderar os estudos
antropológicos e sociológicos que constituíram referências fundamentais para as elaborações
propostas por Freud e Lacan.
Dessa forma, a eficácia simbólica do sacrifício foi abordada mantendo como norte da
pesquisa a articulação entre a razão sacrificial e os paradoxos dos Nomes-do-Pai. Concluiu-se
que esses paradoxos decorrem das antinomias entre o desejo (ou a Lei, seu equivalente estrito)
e o gozo, o que já estava antecipado, inscrito na própria etimologia do termo sacrifício: ato de
tornar algo ou alguém sagrado. Como se viu, Freud já atentava para o caráter antitético do
termo sacer, que designa tanto o sagrado e o sublime, quanto o profano e o abjeto.
A partir daí, procedeu-se uma diferenciação entre duas vertentes do sacrifício: a
primeira, que é orientada pelo desejo, viabiliza a separação entre o sujeito e o Outro, sendo
bem sucedida em estabelecer um enlace entre eles. O luto pelo declínio do pai ideal possibilita
que o sujeito se aproprie, sem culpa ou ressentimento, da herança paterna que se dispõe sob a
forma de dom simbólico. Nesse sentido, o Nome-do-Pai é o dom-do-pai por excelência. A
segunda vertente foi situada no campo inegociável do gozo, retornando como feroz exigência
de sacrifício. Na ausência de qualquer dom simbólico que possibilite estabelecer o
152

reconhecimento de filiação e pertença, o sujeito cai como resto, libra de carne sacrificada aos
mandatos supereuóicos do Outro. Essas diferentes vertentes do sacrifício nada mais fazem do
que repercutir os paradoxos dos Nomes-do-Pai, que estão em sua raiz. Ao desembocarem no
campo político, eles se reverberam nas múltiplas versões do pai que aí emergem: a Lei, a
pátria, a autoridade, o herói e assim sucessivamente.
Freud já advertia que governar, juntamente a educar e psicanalisar, constituem três
ofícios impossíveis. Dizer que são impossíveis significa que essas tarefas jamais são
conduzidas com êxito pleno: por estarem vinculadas ao amestramento do gozo, elas sempre
deixam um resto, marca da incompletude que lhes é inerente. A observação freudiana assume
seu devido valor quando se considera que a política é um dos Nomes-do-Pai, exercendo uma
função de regulação do gozo a partir do agenciamento do significante mestre (S1). Lacan
(1966-67/2008, p.350) já o assinalava, ao afirmar que “O inconsciente é a política”,
designando assim o enlace moebiano que articula o que há de mais íntimo e singular em cada
um à tessitura do laço social.
Conforme afirma Francisco Pereña (1996), o pacto democrático constitui uma pré-
condição para a psicanálise, pois ele reconhece a diversidade e não denega a verdade da
castração. Ainda segundo o autor, a democracia que se deseja não é apenas aquela que
reivindica os direitos do cidadão, tão em voga hoje em dia, mas poder-se-ia dizer também,
aquela que consente com a inconsistência do Outro, possibilitando assim o luto pelo declínio
do pai ideal. Conforme já ensinava Freud (1913/1987), o pai vale metaforicamente como Lei
apenas depois de morto e pranteado. A elaboração desse luto é vital, no sentido de viabilizar o
consentimento com a dívida simbólica, instaurada pela herança paterna. Essa indicação está
presente na célebre passagem de Goethe, que Freud (1913/1987, p.160) tanto apreciava:
“Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu”.
Em uma publicação que hoje já se tornou referência para os psicanalistas de
orientação lacaniana, Éric Laurent (2007) delineia os contornos do analista cidadão,
assinalando a importância do engajamento do desejo daquele que sustenta a prática analítica
com o enlace político proporcionado pela democracia. Se for verdade que quem quer os fins,
quer também suas condições, pode-se dizer que não há como desconsiderar a comunidade de
interesses que enlaça a psicanálise e a democracia. Essas indicações poderiam facilmente
levar o leitor desavisado a pensar que os psicanalistas engrossariam as fileiras dos entusiastas
da democracia. Nesse ponto Laurent (2004) recomenda cautela, ao considerar que, na
153

atualidade, vive-se em um mundo regido pelo capitalismo globalizado, no qual o pacto


democrático é cada vez mais subsumido em uma burocracia biopolítica de caráter disciplinar.
O autor adverte ainda que o declínio do pacto democrático nos dias de hoje se faz acompanhar
da expansão, sem limites, do estado de exceção. Como consequência disso, as “(...) ‘novas
autoridades’ declaram voluntariamente a suspensão dos direitos humanos em sua comunidade
discursiva” (LAURENT, 2004, p.71, tradução nossa 59), decretando guerra aos seus inimigos
internos e despolitizando a vida de um contingente cada vez mais numeroso de cidadãos.
Ainda segundo o autor, diante do desafio político colocado em jogo pela incidência patológica
da nostalgia pelo pai ideal, caberia ao psicanalista colocar a seguinte questão: “Como suportar
a inconsistência do Outro sem ceder ao imperativo de gozo do supereu?” (LAURENT, 2004,
p.72, tradução nossa 60).
Fazer valer a lei e os limites instaurados por ela é, reconhecidamente, uma das mais
relevantes conquistas democráticas. Em uma publicação conjunta com Jacques-Alain Miller,
o linguista Jean-Claude Milner (2006, p.6) observa que nas modernas democracias, o contrato
tomou o lugar do pacto social. Diferentemente da eficácia jurídica proporcionada pelo pacto
social, “a força da forma contratual está em poder ser multiplicada de maneira ilimitada”. A
partir desse momento, a democracia entrou na era do ilimitado, ou dizendo de outra maneira,
na era do totalitarismo biopolítico, pautado pelo famoso sintagma foucaultiano “Temos de
defender a sociedade.” (FOUCAULT, 1975-76/2005, p.73).
No contexto abordado pela pesquisa, ou seja, as megaoperações policiais realizadas no
Complexo do Alemão, concluiu-se que a política de segurança pública adotada pelo governo
do Rio de Janeiro não ficou indene à criminalidade e à violência que propôs combater, antes
pelo contrário; reforçou-as e legitimou-as. A flagrante ilegalidade dos procedimentos policiais
e administrativos, envolvidos nessa política, evidencia o declínio dos semblantes de
autoridade e a inoperância da Lei, enquanto instância reguladora do laço social e dos conflitos
que aí se apresentam. Tornou-se claro, ainda, que essa política agenciou práticas francamente
autoritárias e segregacionistas, incompatíveis com a democracia e o Estado de Direito, a
exemplo dos extermínios acobertados sob a insígnia ‘auto de resistência’.
Constatou-se também, a partir da pesquisa documental, que o discurso autoritário e
intolerante veiculado pelas autoridades, bem como pela mídia de ampla circulação, encontrou

59
“(...) ‘nuevas autoridades’ declaran de buen grado la suspensión de los derechos humanos en su comunidad
discursiva”.
60
“¿Cómo soportar la inconsistencia del Otro sin ceder al imperativo de goce del superyó?”
154

expressivo apoio popular. Não é difícil reconhecê-lo, quando propõe falar em nome do povo,
silenciando e desqualificando as vozes discordantes. Nesse contexto, as ordens de ferro e seu
poder para nomear, indicados por Lacan (1974/s.d.), se realizam na legitimação do ato de
designar o inimigo a ser perseguido, combatido e, eventualmente, exterminado. Isso ficou
evidente, como se viu, à luz da doutrina do direito penal do inimigo, que confere legitimidade
jurídica às medidas preventivas de segurança, com vistas a neutralizar indivíduos
considerados perigosos. Na verdade, quando o direito penal do cidadão é suspenso, o que vem
em seu lugar não pode ser mais ser chamado de direito, pois ele implica, segundo Agamben
(2007a, p.61), uma pura vigência sem aplicabilidade: a “força-de-lei”. Ao se generalizar, o
estado de exceção, enquanto topos anômico situado à margem do Estado de Direito, assinala
não apenas o declínio, mas a pulverização da exceção fundadora, que a psicanálise ensina a
reconhecer como tributária do Nome-do-Pai. A questão passa a ser referida, portanto, ao que
veio ocupar o seu lugar.
O avanço da investigação, rumo à biopolítica e à gestão de vidas matáveis, viabilizou a
articulação entre a problemática da segregação e o paradigma do campo de concentração, tal
como abordado por Arendt (1951/1989) e Agamben (2002; 2007a). Seguindo as indicações
desses autores, viu-se que os campos de concentração não constituem apenas uma margem,
mas o próprio cerne do universo concentracionário. Vale lembrar, nesse sentido, que o
predomínio da regência democrática, sob os auspícios do Estado de Direito, de forma alguma
significou a derrocada do espectro do totalitarismo, e muito menos, o fim dos campos de
concentração. Arendt (1951/1989, 511) já advertia que “as soluções totalitárias podem muito
bem sobreviver à queda dos regimes totalitários sob a forma de forte tentação que surgirá
sempre que pareça impossível aliviar a miséria política, social ou econômica de um modo
digno do homem”. Agamben (2007a, p.13), por sua vez, alerta que, na atualidade, vigora um
totalitarismo moderno a partir da declaração de uma “guerra civil legal” que autoriza “a
eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de
cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político.” Esse tipo de
guerra constitui, hoje, prática gestionária comum nos estados democráticos contemporâneos,
que oscilam em “um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo.”
(AGAMBEN, 2007a, p.13).
Essas indicações foram fundamentais, no sentido de esclarecer que a contrapartida da
generalização do estado de exceção, típica dos dias atuais, é a proliferação dos campos de
155

concentração, bem como a produção em larga escala de vidas matáveis. Além disso, a partir
da leitura proposta por Michel Foucault (1999), pôde-se perceber que o reverso do declínio da
Lei é a ascensão do aparato normativo biopolítico, que incide sobre os corpos e as vidas dos
cidadãos, despolitizando-os. Entre as diretrizes desse colossal aparato normativo, destacam-se
a multiplicação de expedientes burocráticos e medidas extrajudiciais de ocasião, que nunca se
exercem sem opressão e violência.
Assim como os Nomes-do-Pai, a biopolítica também é atravessada por paradoxos.
Talvez o principal deles seja considerar que um regime calcado na gestão burocrática e
calculista da vida, com vistas ao seu prolongamento e majoração, se revele uma máquina letal,
com o potencial para segregar e massacrar populações inteiras. A partir dessas reflexões,
concluiu-se que a biopolítica generaliza o lugar da exceção, destituindo o sujeito do seu estofo
simbólico ao promover uma gestão integral da vida - vida nua, supérflua e indigna - e por
isso, matável e insacrificável.
Lacan (1970/2003), em sua época, não havia deixado de indicar que a ascensão do
objeto a ao zênite social constituía corolário da extensão sem limites do discurso capitalista,
devidamente paramentado pelas tecnociências. Não se contentando em profetizar a escalada
do racismo e dos processos de segregação daí decorrentes, ele propôs, ao longo do seu ensino,
diversas indicações acerca do posicionamento da psicanálise diante dessas questões. Em uma
delas, pertinente ao contexto que aqui se aborda, ele recomenda que, diante da foraclusão da
verdade da castração, agenciada pelo discurso da ciência, a psicanálise reintroduza o Nome-
do-Pai na consideração científica (LACAN, 1965-66/1998), e porque não dizê-lo também, na
consideração política.
Para uma justa apreciação dessa indicação, concernente ao posicionamento do
psicanalista confrontado com o despudor obsceno do gozo sacrificial, não é demais evocar um
trecho da entrevista concedida por Freud ao jornalista americano George Sylvester Viereck,
em 1926. Nessa entrevista, o jornalista assume diante de Freud uma posição de interlocutor
ingênuo, incitando-lhe com perguntas provocadoras. Em determinado momento da entrevista,
ele comenta que tem a impressão de que a psicanálise desperta em seus praticantes o espírito
da caridade cristã. Isso, segundo ele, porque ela seria capaz de elucidar os aspectos mais
torpes e sombrios da existência humana. Para concluir seu raciocínio, Viereck (1926, tradução
61
nossa) evoca o célebre provérbio francês: “tudo compreender é tudo perdoar”. Freud
61
“Tout comprendre, c'est tout pardonner”.
156

contesta energicamente o comentário infeliz do seu interlocutor, respondendo-lhe


severamente: “Compreender tudo não é perdoar tudo. A tolerância para com o mal não é de
maneira alguma um corolário do conhecimento.” (VIERECK, 1926).
Vê-se assim que a “ética do Bem-dizer” (LACAN, 1973/1993, p.72), própria da
psicanálise, não deve permanecer restrita ao gabinete de trabalho do psicanalista, no trato
pessoal com seus pacientes; ela vale também quando ele se defronta com o mal estar na
civilização de sua época. E, justamente ao contrário do que supunha Viereck, o que essa ética
recomenda ao psicanalista é que esteja advertido dos “contragolpes agressivos da caridade”,
sabendo que eles nada mais são do que reações aos “impulsos agressivos ocultos sob todas as
chamadas atividades filantrópicas.” (LACAN, 1998/1948, p.110). Por parte do psicanalista,
dever-se-ia esperar cautela quanto às insondáveis paixões humanas, particularmente aquelas
regidas pela razão sacrificial, como o anseio messiânico de salvar o Outro.
Diante disso, suscitar a vergonha (LAURENT, 2012) talvez seja o derradeiro recurso
para dissociar o sujeito dos significantes mestres que o enfeitiçam, ou melhor, en-fetichizam,
capturam e comandam, revelando assim sua inconsistência. Para tanto, ali onde isso era, ou
seja, a ostentação obscena da razão sacrificial sancionada pelo mestre moderno, o psicanalista
deve advir, tomando a palavra e reconstituindo a cena simbólica degradada, mediante um
dizer na justa medida do real colocado em jogo. Nesse sentido, ele opera como uma versão do
pai no circuito simbólico dos dons: não o que dá o nome, ou mesmo o perdão - sobretudo
quando perdoar significa esquecer -, mas sim aquele que dá a vergonha. Afinal, quando se
trata do pai imaginário, o “manto de Noé” (LACAN, 1973/1993, p.40) é o que melhor lhe
convém.
157

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