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Belo Horizonte
2016
Alexandre Dutra Gomes da Cruz
Belo Horizonte
Fevereiro, 2016
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
CDU: 301.151.56
Alexandre Dutra Gomes da Cruz
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Profª. Drª. Ilka Franco Ferrari - PUC Minas (Orientadora)
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Profª. Drª. Andréa Máris Campos Guerra - UFMG (Banca Examinadora)
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Prof. Dr. Henrique Figueiredo Carneiro - UPE (Banca Examinadora)
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Prof. Dr. Roberto Calazans - UFSJ (Banca Examinadora)
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Prof. Dr. José Ignacio Cano Gestoso – UERJ (Banca Examinadora)
À Ilka, pela orientação na justa medida e pela resoluta confiança que depositou neste trabalho.
Agradeço, inclusive, por ter-me assinalado seu elemento fundamental: o título. Não há como
desconsiderar a importância dessa nomeação.
Aos professores doutores membros da banca examinadora: Andréa Máris Campos Guerra,
Roberto Calazans, Henrique Figueiredo Carneiro e José Ignacio Cano Gestoso. Agradeço por
gentilmente se disponibilizarem a ler este trabalho, contribuindo com o seu avanço. Estendo
meus agradecimentos à professora doutora Tânia Coelho dos Santos, que participou da minha
qualificação, tendo também contribuído com importantes indicações. Agradeço também às
professoras doutoras Nádia Laguardia Lima e Cristina Moreira Marcos por aceitarem meu
convite para participar da banca examinadora como suplentes.
Aos meus pais Geraldo e Nara, por sempre terem sido um exemplo para mim e, também,
permanente fonte de inspiração. Além do incentivo ao estudo e da valorização da vida
intelectual, agradeço por me proporcionarem as condições necessárias à realização dos meus
projetos acadêmicos. Devo agradecimento adicional ao meu pai, por ter gentilmente revisado
a tradução do resumo da tese para a língua inglesa.
À Isabela e à Júlia, meus dois amores, que tiveram que lidar com minhas (muitas) ausências
ao longo do percurso do meu doutorado. Agradeço à Isabela em especial, por todo o carinho e
dedicação dispensados a mim e a nossa filha, enquanto eu me ocupava deste trabalho.
À minha irmã Renata e família, pela amizade e pelos excelentes momentos que passamos
juntos. Entre eles, destaco nossa recente viagem para Cordisburgo, onde pude revigorar-me
após um semestre cansativo, e retornar à pesquisa com ânimo redobrado.
Aos companheiros de pesquisa Marcelo Cotta e Maria Cione, pela amistosa interlocução
acadêmica e compartilhamento de livros e textos. Isso para não falar dos agradáveis
momentos passados em Recife! Agradeço também à Renata Riguini, com quem passei a
compor essa categoria de pesquisadores que, certa vez, ela intitulou de ‘exploradores do
abismo’.
The research addresses the police mega-operations carried out by the state government of Rio
de Janeiro in the slums of the Complexo do Alemão. These mega-operations have been
chosen in this study because of the symbolic representation that they assumed, as well as by
the impact they generated, leaving in its trace wide range of documentation available. From
the psychoanalysis, the sacrificial reason, articulated to the paradoxes of the Names-of the-
Father, was set as the aim of the research, situating segregation and extermination of certain
people, whose existence is considered superfluous, as paradigmatic examples of sacrificial
practice. This study thus has attempted to elucidate the function of sacrifice in contemporary
societies, marked by the degradation of the social bond’s guiding semblants, without
disregarding the devastating effects arising from it. Based on the proposed objectives, it
proceeded to a literature search on the object, along with the documentary analysis, in which
were analyzed electronic documents and videos obtained on the Internet, as well as
newspapers, books, magazines, reports, documentaries and movies. The methodology adopted
to support the research is what has been called psychoanalysis applied to the social, which is a
way to consider certain social phenomenons, such as those here addressed, while current
manifestations of the malaise in civilization. For psychoanalysis, the problem of sacrifice
finds its foundation on the paradoxes of the Names-of-the-Father, that is, in the antinomies
inherent to the guidance of social bond, located in their intricate relations with the fields of
desire and jouissance. These antinomies are expressed in the etymology of the term sacrifice -
sacer facere - act to assign something or someone sacred aura, making him transact between
the profane dimension of the abject and the sublime dimension of the sacred. Along the way,
a promising dialogue between psychoanalysis and the social sciences is carried out, as well as
an approach of the narrative of Abraham’s sacrifice, which led to the dead-lock in the
mourning for the ideal father, marked by the decline of symbolic references today.
Segregation and extermination were recognized, in this way, as desacralized manifestations of
the sacrificial reason. The investigation then proceeded towards the analysis of power
relations that take, as their object, lives that may be killed without committing crime, using
the concepts of biopolitics and bare life. The study concluded that the security policy adopted
by the Rio de Janeiro state government in the slums of Rio de Janeiro acted not only violently,
but also criminally, violating democratic principles supported by the Federal Constitution.
This policy adopted, as action strategy, several procedures typical of a state at war, such as
military interventions, systematic armed conflict, overt surveillance, isolation of marginalized
populations under military siege, torture during interrogations and executions. In the latter
case, it became clear that the Resistance to Arrest is a juridical category which may easily
serve as a cover-up for an extermination policy, authorizing the police to use lethal force in
self-defense, which means execute suspects without being legally punished for committing
murder. The research also revealed that this police intervention strategy, based on the state of
exception, is legally legitimated in the theory of Enemy Criminal Law, very popular today in
many democratic countries, such as Brazil.
LISTA DE TABELAS:
LISTA DE FIGURAS:
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................13
1– MILITARIZAÇÃO DA SEGURANÇA PÚBLICA E CRIMINALIZAÇÃO DA
POBREZA: RUMO A UMA POLÍTICA DE EXTERMÍNIO...........................................24
1.1- As megaoperações policiais como recurso ordinário de gestão da
criminalidade...........................................................................................................................26
1.2- Os autos de resistência e a produção de cadáveres.......................................................29
1.3- As ordens de ferro das milícias: uma versão obscena da lei........................................30
1.4- O discurso da mídia como arma de guerra: do sensacionalismo à incitação
sacrificial..................................................................................................................................33
1.5- Violência, preconceito e intolerância; a incitação sacrificial no discurso das
autoridades de Estado.............................................................................................................46
1.6- Os inimigos da vez: a voz dos moradores das comunidades
invadidas..................................................................................................................................50
1.7 - A construção do inimigo: acerca de sua significação expiatória e legitimação
jurídica.....................................................................................................................................60
4 – CONCLUSÃO.................................................................................................................151
REFERÊNCIAS ...................................................................................................................157
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INTRODUÇÃO
Delimitou-se, como tema desta pesquisa, a razão sacrificial, fundamento das práticas
sacrificiais que vêm assumindo formas extremas na atualidade, época marcada pela
degradação do vínculo religioso e pelo declínio dos semblantes da autoridade.
Esta questão tem sido trabalhada por importantes autores, como se pode observar na
bibliografia consultada, a exemplo de Marta Geréz-Ambertín (2009a), Éric Laurent (2007;
2012), Jacques-Alain Miller (2005b), Pierre Legendre (1974/1983), Slavoj Zizek (2012) e
Colette Soler (1998), mas para esse pesquisador, a presente pesquisa concerne a um
tratamento possível do real em jogo na aposta sacrificial, na medida em que invoca os
paradoxos dos Nomes-do-Pai com suas implicações quanto ao enlace com a palavra, com a
dádiva, com o desejo, com a filiação e com a paternidade.
Para a psicanalista argentina Marta Gerez-Ambertín (2009a, p.25), não há uma teoria
do sacrifício em Freud e Lacan, mas sim uma “teoria sobre os paradoxos inerentes aos
Nomes-do-Pai, do qual o sacrifício é somente uma de suas consequências.” Do ponto de vista
da psicanálise, os paradoxos dos Nomes-do-Pai se colocam em jogo na temática do sacrifício,
enlaçando-se às diferentes versões do pai. Aí destacam-se o pai-amor, que oferece seus dons
ao inscrevê-los na dialética do desejo, e o pai gozador, fora-da-lei, que vocifera mandatos
insensatos impossíveis de serem cumpridos, exortando o sujeito ao abismo do gozo sem
limites. Sendo assim, os paradoxos dos Nomes-do-Pai permitem diferenciar o sacrifício que,
pela via do Outro barrado, viabiliza ao sujeito encontrar um lugar em seu desejo, do sacrifício
que coloca em cena o campo inegociável do gozo. Neste a oferenda sacrificial instiga a
ferocidade do “deus obscuro” (LACAN, 1964/1988, p.259), servindo aos “propósitos ocultos
1
do castigo.” (FREUD, 1938/1976, p.130, tradução nossa).
Apesar do “progresso da espiritualidade” (FREUD, 1938/1976, p.114, tradução nossa)
2
, proporcionado pela sublimação advinda da palavra conciliadora do pai, resta sempre um
remanescente do gozo, “uma procura de sangue que, ao ser atribuída ao Deus pai, oferece o
álibi perfeito para a lógica sacrificial dos seguidores.” (AMBERTÌN, 2009a, p.27). Se, no
registro simbólico, a dívida para com o pai pode ser negociada mediante objetos inseridos na
1
“Secretos propósitos del castigo”.
2
“Progreso en la espiritualidad”.
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equação das permutas simbólicas, no registro real não há negociação possível; paga-se a
dívida com o corpo.
No contexto mais amplo das sociedades capitalistas contemporâneas, o laço religioso
vem perdendo espaço para o discurso da ciência, o que acarreta em uma modificação no
estatuto das práticas sacrificiais. Essa é uma indicação de Ambertín (2009a), ao afirmar que
essas práticas, em seu aviltamento, recolhem apenas resíduos da tradição, tornando-se
ineficazes no sentido de instituir o laço social.
Sendo assim, decorre dessa modificação no regime discursivo da nossa época uma
modificação da economia do sacrifício. A Lacan (1969-70/1992) não lhe passou despercebida
a modificação nos regimes discursivos da sua época, cujos efeitos se fazem sentir, hoje, de
forma ainda mais proeminente. Ao teorizar sobre os discursos que compõem o laço social,
Lacan não deixou de fazer referências ao discurso capitalista, que provoca uma mutação no
regime de funcionamento do discurso do mestre. O domínio de S1, significante mestre
responsável pela interdição do gozo e regulação do laço social, declina em favor da ascensão
do objeto mais de gozar (a) ao zênite social. Em tal regime de funcionamento discursivo, a
instância interditora perde sua efetividade enquanto transmissora da interdição e do desejo,
tornando-se uma instância de empuxo ao gozo.
No contexto atual da realidade social brasileira, os efeitos do declínio dos semblantes
de autoridade podem ser claramente constatados em pronunciamentos por parte de dirigentes
e autoridades, responsáveis pela aplicação da lei e, também, pela elaboração e implementação
das políticas de segurança. Diante da escalada da violência, que assola os grandes centros
urbanos do país, as autoridades recorrem à razão sacrificial para justificar suas decisões, como
se pode perceber nessa declaração por parte do governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral,
ao se referir à incursão policial realizada no dia 27 de junho de 2007, no Complexo do
Alemão: “Hoje sabemos que a ordem pública é a garantia da cidadania. Todos temos que
fazer sacrifício pela vitória contra a barbárie. Não há como fazer omelete sem quebrar os
ovos.” (FERNANDES, 2007).
15
3
“En una perspectiva psicoanalítica, cabe plantear la distinción entre la contingencia y las realidades asociadas,
y el hecho de estructura. En ese sentido, el Psicoanálisis permite progresar en el desciframiento del fenómeno en
sus formas contemporáneas, pero, en lo esencial, hace posible dar un nuevo paso, para ir del fenómeno social al
síntoma social”.
18
4
“(…) el análisis y la interpretación de los enunciados en los testimonio recogidos en fuentes secundarias”.
19
propõe um confronto desses indícios com uma hipótese explicativa da psicanálise, para então
inferir a emergência da particularidade no campo do fenômeno analisado. Trata-se, portanto,
de ‘fazer caso’ dos testemunhos recolhidos, cernindo um mesmo ponto de real no fenômeno
estudado, “(...) com a lógica do método e dos conceitos próprios à psicanálise” (RAMÍREZ,
2007a, p.19, tradução nossa) 5.
Para a consecução dos objetivos da pesquisa e a obtenção dos testemunhos dos atores
sociais implicados, elegeu-se o que na clássica metodologia se chama pesquisa bibliográfica,
aliada à análise documental. Apesar dessas duas modalidades de pesquisa serem comumente
utilizadas de modo combinado (CARVALHO, 1988), é importante distingui-las. Segundo Gil,
(1989, p.73),
Que a pesquisa de Arendt [acerca do primado da vida natural sobre a ação política]
tenha permanecido praticamente sem seguimento e que Foucault tenha podido abrir
suas escavações sobre a biopolítica sem nenhuma referência a ela, é testemunho das
dificuldades e resistências que o pensamento deveria superar nesse âmbito.
23
Destaca-se que, nessa vinheta musical, o sujeito visado pelas tropas é o ‘favelado’,
sem que haja distinção entre criminosos procurados pela justiça e moradores que estejam no
local no momento das operações. Dessa forma, Torna-se impossível distinguir entre o que
deveria ser um procedimento policial, com vistas a prender criminosos procurados pela
justiça, e um procedimento militar, com vistas a combater inimigos. A flagrante violação dos
direitos dos moradores desses locais assinala um processo de criminalização da pobreza, tal
como denunciado por vários autores da bibliografia consultada (WACQUANT, 2003;
ZAFFARONI, 2007; BATISTA, 2014). Conforme afirma o jurista argentino Eugênio Raúl
Zaffaroni, “a essência do tratamento diferenciado que se atribui ao inimigo consiste em que o
direito lhe nega sua condição de pessoa. Ele só é considerado sob o aspecto de ente perigoso
ou daninho” (ZAFFARONI, 2007, p.18), um animal selvagem, que deve ser enjaulado ou
exterminado.
25
6
“Todo eso que leemos en los policiales cada día, es un sacrificio; forma parte de la sociedad saber que una
cantidad de personas van a perder, van a morir. Es parte del juego social, el hecho de que exista la policía es
aceptar que es así”.
26
7
Declaração feita durante a operação Rio Seguro, pelo então secretário de Segurança Pública, Coronel Josias
Quintal, ao jornal “O Globo”, em 27/02/03.
27
(...) não apenas o mais grave do Brasil, como o mais grave do mundo. Só a polícia
do Rio mata mais que a polícia dos EUA inteira, que matou 375 em 2006, em uma
população de 300 milhões de pessoas. A polícia de Portugal, país com população
semelhante à do Rio, matou só uma pessoa em 2006, contra 1.063 do Rio.
(GOMIDE, 2007).
comparado às polícias de outros estados do Brasil), como também, que ele vem crescendo de
forma assustadora, ano após ano.
Ano 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010
Capital 187 278 381 615 798 676 707 673 902 688 643 485
Estado 289 454 592 900 1195 983 1098 1063 1330 1137 1049 855
Fonte: ISP-RJ/Necvu-UFRJ
Deve-se considerar, contudo, que esses números contabilizam apenas os casos em que
os policiais registraram suas ações. Ou seja, estima-se que o número efetivo de mortes é
consideravelmente superior, uma vez que não estão incluídos nessas estatísticas os casos nos
quais a ação policial resultou em morte, sem que houvesse notificação do fato. Ficam fora
dessa contabilidade, também, ações ilegais por parte de policiais que participaram de
matanças em grupos de extermínio, as milícias.
Ao comparar as estatísticas dos resultados das operações de segurança, entre os anos
de 2006 e 2007, o relatório (BRASIL, 2007) revela que o número de prisões diminuiu em
escala inversamente proporcional ao aumento do número de mortos. Fica claro, portanto, que
esses índices atestam um aumento da letalidade nas incursões da polícia aos morros e favelas
do Rio de Janeiro, revelando que “a atual política de segurança pública vem produzindo muito
mais ‘inimigos mortos’ do que orientando suas operações para a defesa da vida dos cidadãos.”
(BRASIL, 2007, p.4).
29
A análise dos laudos cadavéricos (BRASIL, 2007) revelou que mais de 60% dos
cadáveres das vítimas, recolhidos ao IML (Instituto Médico Legal), após as intervenções
policiais, apresentavam marcas de perfurações em regiões vitais, como nuca, cabeça.
Apresentavam, ainda, perfurações nas costas, indicando a impossibilidade de legítima defesa
e ausência de reação por parte da vítima. Em muitos casos as perfurações apresentavam claros
sinais de disparos efetuados à queima roupa. A presença de lesões adicionais às de arma de
fogo, em um terço dos cadáveres analisados, permitem inferir o uso de tortura e maus tratos,
antes da morte da vítima.
Esses dados, recolhidos por Ignácio Cano (1997) em uma pesquisa realizada sobre o
assunto, permitem afirmar que, durante as megaoperações levadas a cabo pela polícia, as
execuções sumárias, aliadas à prática de tortura, tornaram-se uma rotina. Isso é corroborado
pelo relatório (BRASIL, 2007) que afirma que o uso abusivo da categoria ‘autos de
resistência’ constitui um expediente burocrático forjado pelas autoridades responsáveis pelas
megaoperações, com vistas a ocultar os indícios da prática de execuções sumárias. Essa
categoria jurídica, tal como vinha sendo aplicada, permitia que casos de homicídios dolosos,
designação que lhes seria cabida em âmbito legal, não fossem reconhecidos oficialmente
como tais.
A desmontagem da cena do crime constitui outro exemplo de expediente usado pela
burocracia estatal, com vistas a dificultar, ou mesmo impossibilitar o acesso às provas de
ações de extermínio por parte de policiais. Os cadáveres eram rapidamente removidos após as
ações, dificultando ou mesmo impedindo o procedimento pericial. É possível, inclusive,
encontrar vídeos na internet (CASOS DE POLÍCIA..., 2013) mostrando cenas de policiais
fardados mudando a localização dos cadáveres, acompanhadas das transmissões de áudio que
tornam possível escutar os policiais mostrados nas filmagens falando, via rádio, em socorrer
pessoas que, na verdade, já estão mortas. Procedendo dessa forma, os policiais violam a cena
original do crime e inviabilizam o trabalho pericial. Ao negligenciar os procedimentos
técnicos recomendados pelos Princípios Internacionais de Investigação (BRASIL, 1989), as
autoridades de segurança pública sabotam a produção fidedigna das provas necessárias para
30
10
Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas.
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estatísticas (BRASIL, 2007) lhes cobraria matar pelo menos uma pessoa ao longo de sua
carreira profissional.
A cultura policial passou a ser moldada pelo ideal da “glorificação da violência”
(ARENDT, 1969/2011, p.27), corroborada através da concessão de premiações por bravura,
por parte da Secretaria de Segurança Pública do Estado, aos policiais envolvidos em
ocorrências que resultaram na morte de suspeitos. Essas premiações, popularmente
conhecidas por “premiação faroeste” (RIBEIRO; DIAS; CARVALHO, 2008), acarretavam
um aumento variável entre 50% e 150% sobre o salário original desses agentes (BRASIL,
2007). Recompensando-se policiais pelo uso de força letal, nada menos se poderia esperar,
que um aumento no número de mortes durante as intervenções policiais. Dessa forma, a
polícia, que deveria estar a serviço da lei, começou a emular as práticas criminosas,
reforçando a política de tratamento penal da miséria, que passou a ser virtualmente
criminalizada.
As premiações por bravura, no entanto, não eram o único recurso para alguns agentes
de estado conseguirem um aumento em sua renda mensal; o elevado número de policiais
mortos durante a folga (que, aliás, supera o de policiais mortos em ação) corrobora a hipótese
de que alguns deles morriam durante os ‘bicos’ que faziam, ou seja, jornada extra e irregular
de trabalho (BRASIL, 2007). Entre as atividades extraoficiais realizadas por alguns policiais,
em seu horário de folga, uma das mais controversas era o envolvimento criminoso com as
milícias.
Apresentar uma caracterização geral do fenômeno das milícias é tarefa complicada, e
mesmo impossível, por ser um fenômeno universal que acontece em escala mundial,
manifestando-se de formas diversas, conforme o contexto considerado. No contexto
específico do escopo dessa pesquisa, considera-se que as milícias se caracterizam como
quadrilhas que assumem o controle territorial de um determinado espaço urbano, exercido
sempre de forma ilegal, violenta e coativa, mediante a instalação do terror na comunidade
local. Elas são compostas por agentes do estado - policiais, ex-policiais, bombeiros e,
inclusive, membros das Forças Armadas - que após invadirem os territórios ocupados pelo
tráfico e deporem o controle exercido despoticamente por ele sobre a comunidade local,
passam a assumir suas funções de forma ainda mais severa e violenta.
Diferentemente do que acontece em outros países, as milícias que atuam nas favelas
do Rio de Janeiro não lutam por causas ou ideais; não veiculam mensagens de protesto, nem
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defendem projeto algum de reforma social ou política. Sua principal motivação é o benefício
privado, obtido através de uma ampla gama de atividades criminosas, que incluem o
monopólio exercido de forma ilegal e extorsiva sobre uma série de serviços prestados à
comunidade: a venda de gás, água, transportes de moto e van, TV a cabo e internet (a
gatonet), e até mesmo a famigerada venda de proteção que, como se sabe, protege o pagante
da própria milícia. A taxa de proteção pode assumir também a forma de um arrego, gíria
utilizada para se referir à propina cobrada dos traficantes pelos milicianos, para que façam
vista grossa às suas atividades.
Em sua forma de funcionamento, as milícias impõem rígidos códigos de ordem, que
prevê severas penalidades para aqueles que os desobedecem. Há exemplos dessa forma de
funcionamento, que lembra as temidas diretrizes do AI-5 (Ato Institucional nº 5), pautadas na
suspensão das garantias constitucionais e dos direitos políticos dos cidadãos: os toques de
recolher, que proíbem a circulação de pessoas em certos territórios a partir de um determinado
horário, e a famigerada ‘lei do silêncio’, que pune com a morte qualquer forma de testemunho
acerca das atividades criminosas, confinando à omissão e à cumplicidade aqueles que vivem
nos territórios dominados.
Pautada em uma retórica de libertação do crime e limpeza territorial, mas aliada a um
regime de vigilância permanente, as milícias exercem seu domínio sobre a região ocupada
contando com os recursos do aparato oficial da força policial, incluindo o uso de
equipamentos militares, como armas e veículos blindados.
Desde 2002, o fenômeno das milícias vinha se expandindo de forma dramática nas
favelas do Rio de Janeiro. Isso, segundo Alves (2012, p.30), introduziu uma “estrutura de
crime organizado”, cuja extensão para o campo político tornou possível aos milicianos
estabelecer redes no interior dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário (ZALUAR,
2007). Quando a mídia se refere ao tráfico como crime organizado, ou estado paralelo,
desconsidera que esses termos se aplicariam melhor às milícias. Conforme afirmou o próprio
secretário de segurança José Mariano Beltrame, “não havia crime organizado nas favelas,
exceto o praticado pelas milícias.” (ALVES, 2012, p.30).
O fenômeno de expansão política do crime organizado é um claro indicador de que
não há como sustentar o ponto de vista de que a violência criminal é um problema localizado,
intrínseco às favelas ou à condição socioeconômica de seus habitantes; ele é parte da
33
Nessa reportagem, lê-se que “A batalha do bem contra o mal foi mais uma vez travada
no Rio de Janeiro – agora com tintas de Armagedon.” Após a batalha, foi possível a
“libertação da Vila Cruzeiro”, extirpando assim o “tumor maligno irrigado pelo populismo de
governantes irresponsáveis” que colocava em questão “capacidade do Rio de sediar com
segurança os jogos da copa do mundo de 2014 e a Olimpíada de 2016.” Essa porção maldita,
perseguida nas comunidades invadidas, era designada como a “escória” que “mancha a
magnífica paisagem carioca.” (SOARES; LIMA, 2010, p.135).
É possível perceber que, ao denunciar a fragilidade da segurança pública, a reportagem
veiculava uma mensagem que roga pelo endurecimento das medidas de segurança no
tratamento dos “criminosos perigosos”, banindo o que é qualificado pelos jornalistas como
“regalias”:
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Todo o episódio lança luz sobre as fragilidades da segurança pública brasileira. Uma
delas diz respeito ao conjunto de leis lenientes com criminosos perigosos, que lhes
garantem relaxamento da pena e ainda certas regalias como, por exemplo, visitas de
advogados e parentes sem nenhum monitoramento. Os bandidos tiram proveito
dessas situações para transmitir ordens às facções que continuam a comandar de
dentro dos presídios. (SOARES; LIMA, 2010, p.142).
Em meio aos muitos elogios feitos à referida reportagem, por parte dos leitores da
revista, constava uma resposta de Leonardo Avelino Duarte, então presidente da OAB
(Ordem dos Advogados do Brasil). Ali ele afirmava que “O direito de conversa reservada
entre o preso e seu advogado não é uma regalia”, mas “uma garantia indispensável à
manutenção do contraditório e da ampla defesa, já que nenhum cidadão vai expor seus
problemas a um advogado se não houver a garantia da confidencialidade.” Duarte lembra
ainda que o sigilo “protege o cidadão, e não o criminoso.” (LEITOR, 2010, p.42).
Em reportagem anterior, comentando o sucesso do filme “Tropa de elite” (PADILHA,
2007), a revista Veja afirmava que o mérito do filme é retratar, com fidelidade, a realidade
brasileira, “pondo pingos nos is”: “bandidos são bandidos, e não ‘vítimas da questão social’.”
(CARNEIRO, 2007). O ponto de vista veiculado pela reportagem era o de que o Brasil “é um
país de ideias fora do lugar por causa da afecção ideológica esquerdista que inverte papéis,
transformando criminosos em mocinhos e mocinhos em criminosos.” Sendo assim, no Brasil
“a ‘questão social’ é justificativa para roubos, assassinatos e toda sorte de crime e
contravenção – mesmo quando praticados por quadrilhas especializadas, compostas por
integrantes que nada têm de coitadinhos.” (CARNEIRO, 2007).
Ao que tudo indica, a revista Veja propunha retificar o que qualificava de “ideias
fora do lugar.” (CARNEIRO, 2007). Para tanto, ela evocava as condutas desonestas e
violentas por parte de alguns policiais durante as megaoperações e justificava-as, alegando
que elas poderiam ser explicadas “pelo grau de penúria e abandono que o estado lhes
reserva.” (CARNEIRO, 2007). É patente a dissimetria entre os juízos emitidos quanto às
ações criminosas, cometidas por parte de criminosos ou policiais: aparentemente, para a
revista Veja, apenas os policiais seriam abandonados à penúria por parte do estado. Ou seja,
para eles a ‘questão social’ deveria ser considerada; para o criminoso, não! Ao final dessa
reportagem, a revista Veja evocou uma fala do personagem Capitão Nascimento, vivido pelo
ator Wagner Moura no filme “Tropa de elite” (PADILHA, 2007): “o policial tem três
escolhas: ou ele se corrompe, ou se omite ou vai para a guerra”. E isso para concluir que
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(...) o Brasil só tem duas escolhas: ou derrota os criminosos ou é derrotado por eles.
Pela acolhida que o filme está recebendo, os brasileiros não têm a menor dúvida do
caminho a seguir. (CARNEIRO, 2007).
O Bope virou pop star no Rio. A gente tem um apoio muito grande da população.
Viramos comentário até na boca de criança. Para você ter idéia, para o Dia das
Crianças lançaram aqui no Rio um caveirão de brinquedo – um carrinho que imita
nosso veículo blindado - e esgotou. (MEIER; TEIXEIRA, 2010, p.122).
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Além da revista Veja, a revista Época também dedicou reportagens de capa acerca da
guerra ao tráfico no Rio de Janeiro. Uma delas, já mencionada anteriormente, foi intitulada
“Um ataque inovador” (MASSON; AZEVEDO; FERNANDES, 2008), trazendo em sua capa
a imagem do inspetor Leonardo da Silva Torres, apelidado de ‘Trovão’. Nessa imagem Torres
caminhava entre três cadáveres estendidos no chão, vestido com uniforme de guerra, portando
em uma mão um rifle, e na outra, um charuto. Na reportagem, que abordava a megaoperação
realizada no Complexo do Alemão, afirmava-se que o inspetor simbolizava a “força policial
inovadora que hoje combate nos morros.” (MASSON; AZEVEDO; FERNANDES, 2008).
11
Armas e Táticas Especiais
40
2008). Além disso, inovador se referia também a uma mudança de estratégia durante as
incursões nos morros, conforme afirmou José Mariano Beltrame: “Não fomos lá prender uma
ou duas pessoas, uma liderança do tráfico. Fomos lá desmanchar bunkers, ilhas
inexpugnáveis. Fomos lá devolver direitos aos cidadãos.” (MASSON; AZEVEDO;
FERNANDES, 2008). Além disso, a operação integrou as polícias militar civil, bem como a
Força Nacional de Segurança, e foi baseada em um trabalho prévio de inteligência, feito a
partir de informantes infiltrados nos morros e favelas.
Assim como se constatou nas reportagens da revista Veja, Época glorificava o policial
combatente, como se ele fosse o super-herói que iria, finalmente, redimir a população das
máculas do crime e da violência.
Seu uniforme de campanha e o charuto que mantém aceso mesmo em serviço deram
uma cara nova aos agentes da invasão. Mais que isso, eles fizeram de Trovão
alguém com quem a população pode se identificar. Agora, há a sensação de que a
ação da polícia é para valer. (MASSON; AZEVEDO; FERNANDES, 2008).
Mesmo que se reconheça que “o número de mortos é elevado”, e que entre eles
“houvesse inocentes”, tudo vale quando se trata de acabar com a violência que “envergonha,
amedronta e empobrece o país.” (MASSON; AZEVEDO; FERNANDES, 2008).
Na edição de 26/11/2010, a revista Época estampou na sua capa o símbolo do BOPE,
uma caveira atravessada por uma faca, com os dizeres: “Vamos vencer o tráfico.” O objeto da
matéria foi o início das incursões policiais feitas na favela da Vila Cruzeiro. Um pesado
aparato militar, incluindo seis tanques de guerra, similares aos que foram utilizados na guerra
do Iraque, foi utilizado para abrir caminho para os policiais do BOPE.
Foi assim, uma experiência incrível, ao mesmo tempo em que as pessoas em casa
estavam vendo aquelas imagens inéditas, aqueles bandidos fugindo lá pelo alto da
Vila Cruzeiro, e todo mundo olhando aquilo de boca aberta, (...) e ficou todo mundo
abismado, chocado com aquilo. Ninguém nunca tinha visto aquele tipo de imagem
na televisão ou em lugar nenhum. (OCUPAÇÃO..., 2010).
As aeronaves da Polícia Civil fizeram vôos rasantes e nos deram cobertura de fogo.
Tivemos o apoio mais a distância das aeronaves da Força Aérea, os blindados
fizeram o seu papel. A infantaria. Vencemos... vencemos. Trouxemos a liberdade
para a população do Alemão. Agora é trabalho de busca, procura, prisões e
apreensões. Menos resistência [...] Nós apenas conquistamos um terreno. O trabalho
mais cansativo vem agora. (‘VENCEMOS...’, 2010).
44
Figura 7 - Policiais hasteiam bandeiras do Brasil e do Rio de Janeiro após a ocupação do Complexo do
Alemão, em novembro de 2010.
Os moradores sabem que nós viemos para libertá-los. Os moradores sabem que nós
viemos aqui para trazer paz para a população. A população pediu isso. Nós
recebemos centenas de e-mails, centenas de pedidos de socorro. Se há casas onde
moradores dizem que a polícia não pode entrar, aí mesmo é que se torna mais
suspeita. (‘VENCEMOS...’, 2010).
liberdade abre as asas sobre todos nós!” (OCUPAÇÃO..., 2010). Ver-se-á, mais adiante, que
esse tipo de mensagem libertária não expressava apropriadamente o ponto de vista de muitos
dos moradores das comunidades invadidas. Na verdade, a voz dos moradores recebeu pouco
espaço na cobertura midiática, e só era mencionada quando estava em concordância com os
discursos autorizados.
Ao fim da invasão ao Complexo do Alemão, a PM pôde exibir diante das câmeras os
presos como um troféu, enquanto que o âncora do Jornal Nacional da Rede Globo pôde exibir
orgulhosamente o troféu Emmy-2011 sobre sua bancada de trabalho. O prêmio veio para
celebrar, justamente, a cobertura da Rede Globo sobre a ocupação do Complexo do Alemão,
tendo sido comemorada como um marco de excelência no jornalismo brasileiro.
Pode-se perceber como Cristopher Lasch (1983, p.109) estava com razão, ao afirmar
que a dimensão política não constituiu exceção à generalização do apelo midiático do
espetáculo, tendo se mesclado com este para ser convertida em uma “arte de controle de
crises”.
Michel Foucault, por sua vez, já advertia que a história não cessa de nos ensinar que
“o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas
aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar.” (FOUCAULT,
1970/1996, p.10). A manipulação da opinião pública constitui, nos dias atuais, uma poderosa
arma de guerra. Apesar de ter sido muito criticado por alguns, o tom triunfalista das
reportagens mencionadas contaram com expressiva aprovação da população, que sem uma
reflexão mais detida acerca de suas implicações, apoiou as medidas extremas adotadas pelo
Governo Federal. Conforme afirma Alves (2012, p.24), “a opinião pública aplaude a guerra da
polícia contra os bandidos do tráfico em bairros pobres, desde que o conflito não se estenda
para as regiões nobres de classe média e classe alta”.
Reportagens como as que foram aqui mencionadas permitem compreender essas
complexas relações, entre os setores hegemônicos da mídia nacional e o discurso dos agentes
do Estado, de índole sacrificial, beligerante e totalitária. Esse discurso pôde ser claramente
delineado, não apenas a partir das declarações e notas oficiais tornadas públicas, mas também,
46
a partir de pesquisas acadêmicas (ALVES, 2012; FILHO, 2010; RAMOS, 2010), que se
dedicaram exclusivamente ao estudo dessas questões. A seguir, serão abordadas algumas
dessas declarações por parte das autoridades de Estado, escolhidas em virtude de sua
pertinência ao tema da pesquisa.
(...) não é acabar com o tráfico. Isso ninguém conseguiu até hoje. O tráfico não
acabou em Paris, em Nova Iorque e nem em Estocolmo, que têm muito mais
recursos do que nós. O objetivo é chegarmos a níveis civilizatórios de criminalidade.
(FERNANDES, 2007).
Diante de tal declaração, surge a questão do que o governador entendia pelos alegados
“níveis civilizatórios de criminalidade.” Isso se torna pertinente, tendo em vista que, em
outras ocasiões, ele adotou um discurso claramente eugênico e criminalizador da pobreza,
afirmando que as favelas são fábricas de produzir marginais, verdadeiros berçários do crime.
A questão da interrupção da gravidez tem tudo a ver com a violência. (...) Você pega
o número de filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Méier e
Copacabana, é padrão sueco. Agora, pega na Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão.
48
Isso é uma fábrica de produzir marginal. Estado não dá conta. Não tem oferta da
rede pública para que essas meninas possam interromper a gravidez (FREIRE,
2007).
Nesta declaração, percebe-se que a pobreza caminha junto com a criminalidade, o que
justificaria um procedimento preventivo de limpeza social dos morros e favelas. Ao se
pronunciar dessa forma, o governador traz à tona a polêmica questão do aborto eugênico,
vinculando-a ao problema da violência pública. Ele acrescenta que essa indicação pode ser
encontrada no livro Freakonomics (2005), de autoria de Steven Levitt e Stephen J. Dubner,
que sustentam a tese de que “uma criança nascida em um ambiente familiar adverso tem
muito mais probabilidade que outras de se tornar um bandido.” (LEVITT; DUBNER, 2005,
p.18). Nessa perspectiva, o discurso eugênico-higienista aponta para uma diretriz preventiva
de controle social, propugnando atacar o problema da criminalidade em sua raiz, evitando,
assim, o nascimento de futuros marginais.
O ideal de previsão dos riscos e controle das mazelas sociais faz parte da atual lógica
gestionária de governo, que anula a dimensão política da participação social, em benefício de
uma administração burocrática baseada no controle informatizado. Um exemplo de como essa
forma de administração racional se efetiva em ato é a política de tolerância zero, adotada na
cidade de Nova Iorque com relação ao problema do aumento da criminalidade e do
terrorismo, após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. Na prática, essa política
implica em uma aplicação inflexível da lei, particularmente sobre delitos menores, uma vez
que se assume que esses são potenciais precedentes para delitos maiores. O enfoque é
basicamente preventivo, baseado no cálculo das probabilidades.
Segundo Wacquant (2004), a política de tolerância zero se tornou mais um produto do
capitalismo globalizado, que agora é exportado para outros países, a exemplo do Brasil. Tal
política é acompanhada da “retórica militar da ‘guerra’ ao crime e da ‘reconquista’ do espaço
público, que assimila os delinquentes (reais ou imaginários), sem-teto, mendigos e outros
marginais a invasores estrangeiros.” (WACQUANT, 2004, p.19).
Isso fica patente no pronunciamento proferido durante a cerimônia de posse do então
presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2007, ao afirmar que os ataques violentos que
ocorreram no Rio de Janeiro seriam tratados como atos terroristas: “Essa barbaridade que
aconteceu no Rio de Janeiro não pode ser tratada como crime comum. Isso é terrorismo e tem
que ser combatido com a política forte e mão forte do Estado brasileiro.” (SILVA, 2007, p.6).
49
Não podemos passar a mão na cabeça dos marginais, com a desculpa de que eles são
excluídos sociais. Dentro desses conceitos vagos, as pessoas navegam sem rumo.
Não fujo da discussão, mas não me apresentem discursos acadêmicos como se eles
fossem solução. A meu ver, esse é um equívoco que as ONGs [organizações não-
governamentais] cometem, pois não conseguem enxergar nada além das ciências
sociais. (SOARES, 2007).
Ainda pior foi o destino daqueles que eram imbuídos de autoridade e poder para
investigar e julgar os envolvidos nas ações criminosas: sofreram ameaças, foram perseguidos
e, eventualmente, assassinados. Um exemplo disso foi o assassinato da juíza Patrícia Acioli,
morta a tiros em 2011, na entrada da garagem de sua casa, em Niterói, por policiais
envolvidos com as milícias (ANDRADE, 2013). Acioli era conhecida pelo rigor com que
julgava esses policiais, e mesmo tendo recebido várias ameaças de morte, a magistrada não
acreditava que pudesse morrer em decorrência do seu trabalho; infelizmente, ela estava
enganada. Vale mencionar também, como exemplo, o caso do deputado estadual do PSOL-RJ
(Partido Socialismo e Liberdade - Rio de Janeiro), Marcelo Freixo, que presidiu a CPI
(Comissão Parlamentar de Inquérito) das milícias em 2008, responsável por apurar o
envolvimento de 226 agentes do estado (incluindo políticos, agentes penitenciários,
50
(...) que saiu de uma ditadura militar que durou 21 anos, e que rediscute o seu
parâmetro de segurança pública, enfim, direitos fundamentais, e você tem o exército
fazendo papel de polícia ocupando militarmente uma área, sem um debate profundo,
no qual os moradores possam ser ouvidos. (VÍDEOS DA MADRUGADA..., 2013).
No dia seguinte à invasão policial no Complexo do Alemão, Freixo foi ao local escutar
os moradores, e se disse muito impressionado com os relatos que testemunhou.
O testemunho dos moradores é fundamental para avaliar o impacto das ações policiais
sobre as comunidades invadidas. Mesmo sabendo que a maior parte dos habitantes das favelas
não tinha ligação alguma com a criminalidade ou com o narcotráfico, eles acabaram se
tornando vítimas dos confrontos armados. Através da pesquisa documental, foi possível
encontrar alguns depoimentos, prestados por moradores das comunidades invadidas.
51
Percebe-se, nesse contexto, uma perspectiva que difere daquela que foi abordada nos
tópicos anteriores. Esse confronto de pontos de vista antagônicos prolonga as linhas de força
envolvidas no conflito. De um lado, moradores se queixavam da brutalidade e truculência dos
agentes policiais, denunciando roubos, maltrato, extorsões, ameaças, torturas, execuções e
outras ações criminosas cometidas por eles. De outro lado, os agentes de estado, apoiados
pelo setor hegemônico da mídia, responderam dizendo que muitos desses depoimentos eram
falaciosos, e sua finalidade seria acobertar os verdadeiros criminosos e manchar a reputação
da força policial perante a opinião pública. Muitos moradores temiam prestar depoimentos
perante a polícia ou à imprensa, com medo de represálias, tanto por parte dos agentes do
Estado, quanto por parte dos traficantes.
52
Não se deve desconsiderar, também, que depoimentos tais como os que são aqui
elencados constituem, muitas vezes, uma transgressão da famigerada lei do silêncio, que
vigora nas favelas. A partir dos depoimentos dos moradores das comunidades invadidas, é
possível perceber que eles não foram respeitados pela polícia, durante as incursões realizadas
por ela. Segundo o morador Brito de Andrade,
As coisas de valor que temos em casa, dinheiro, temos que esconder tudo, porque o
PM pode entrar e levar. Acontece muito. Fora que uma operação como essa muda
toda a rotina dos moradores, a gente ouve o barulho dos tiros e não consegue dormir
direito, fica em dúvida se vai trabalhar, se vai estudar. Pela televisão não ficamos
sabendo de nada com certeza, já que, sempre que falam do conflito, repetem cenas
antigas. Quando saímos do morro vemos vários soldados da FNS [Força Nacional de
Segurança] com fuzis apontados pra nossa cara, isso é muito ruim. Sei que há
policiais cumprindo ordens, honestos, mas em geral são muito violentos, sim. O
trabalhador é xingado, leva tapa na cara. (...) fico imaginando um morador dizer a
um policial isso que vemos nas novelas: só falo na presença do meu advogado! Se
você disser isso a um PM no mínimo vai levar muita porrada. (ABREU et al, 2014).
No dia 11 de abril [de 2007] eles invadiram a casa de um amigo meu. Comeram tudo
que tinha na geladeira, jogaram tudo no chão, sujaram tudo, quebraram muitas
coisas dele. O rapaz não estava em casa. Sorte dele porque, se estivesse, talvez nem
estivesse mais aqui para contar a história, pois eles matam mesmo. (ALVES, 2012,
p.91).
A forma de abordagem dos policiais, tal como descrita, foi flagrantemente ilegal,
desrespeitando direitos constitucionais fundamentais, como a inviolabilidade domiciliar.
Figura 10 – Exemplo de bilhete afixado pelos moradores nas portas de suas casas durante as
megaoperações no Complexo do Alemão em 2010.
É possível constatar, também, que os policiais nem sempre faziam distinção entre
cidadãos de bem e criminosos procurados pela justiça, considerando, como petição de
princípio, todos suspeitos. Embora houvesse agentes policiais qualificados como honestos
pelos moradores, havia também aqueles que os desrespeitavam, agindo de forma criminosa.
Essa oposição entre as categorias de cidadão de bem (ou trabalhador) e criminoso, que tendia
a se apagar durante as operações policiais, era correlata, no lado da polícia, à oposição entre
54
as categorias de policial honesto e policial corrupto. Sendo assim, essas categorias perderam o
seu efeito diferenciador, predominando uma zona de indistinção entre legalidade e
ilegalidade. Nesse contexto surgiam, a todo o momento, categorias marginais, nomeações que
não garantiam nenhuma possibilidade de reconhecimento do estatuto civil do sujeito em
questão: “Se você não é bandido, para eles é um desocupado, vagabundo...” (ABREU et al.,
2014).
Em uma entrevista concedida ao jornalista Marcelo Salles, Sadraque Santos, fotógrafo
e morador do Complexo do Alemão, afirmou que a presença ostensiva das forças policiais nas
favelas acarretava uma cessão do direito fundamental de ir e vir. Com isso, a população
tornou-se refém do cerco policial, impedida de sair para trabalhar, ou levar as crianças para a
escola:
Na primeira [vez], tive que dar a volta e sair por outro lado. Em outra, tentei dar a
volta, mas tava tudo fechado. Tive que esperar até onze horas da manhã para ir
trabalhar. Nosso direito de ir e vir nunca é respeitado. (SALLES, 2007).
Este ponto é corroborado a partir de alguns depoimentos colhidos por Maria Helena
Moreira Alves, que abordam não apenas sobre o cerco policial imposto aos moradores, mas
também sobre o famigerado toque de recolher:
Nós não temos mais direito de andar, de ir e vir, porque não tem mais direito não,
não tem mais nada, a qualquer momento tem tiroteio, tem Caveirão, tem confronto.
(ALVES, 2012, p.95).
A arbitrariedade das operações policiais podem ter consequências bem mais nefastas
do que a cessão do direito de ir e vir. Durante as incursões policiais, “quando o caveirão vem
na favela, mata trabalhador também. Fizeram [barricadas] na Penha, na Fazendinha e no
Complexo do Alemão. Tá morrendo muito inocente.” (SALLES, 2007). Não havia, portanto,
nenhum critério de diferenciação entre aqueles que habitavam o território invadido: todos
eram tratados como foras da lei.
55
A polícia não sabe quem é e quem não é bandido - mas trata todo mundo como se
fosse. Então, a comunidade acaba ficando contra. (ALVES, 2012, p.71).
O Estado considera que todos são marginais. Não tem distinção nenhuma. (...) As
pessoas tomam bala perdida aqui, morrem e são tidos como marginais. Outro dia
mataram um barbeiro aqui quando estava no trabalho. Falaram que era marginal.
Não era! O cara estava trabalhando, morador daqui há mais de 30 anos. (ALVES,
2012, p.61).
Desde que aplicadas aos “diferentes”, “marginais” de todos os tipos, tais práticas são
em realidade aceitas, embora não defendidas publicamente, como a pena de morte,
por exemplo. É comum ouvirmos a seguinte pergunta quando se fala de tortura e/ou
desaparecimento: “mas, o que ele fez?” Como se tais procedimentos pudessem ser
justificados por algum erro, deslize ou crime cometido pela vítima. Somente em
alguns casos - quando se trata de “pessoas inocentes” - há clamores públicos, o que
mostra que para “certos” elementos essas medidas até podem ser aceitas.
Essa lógica, confirmada pelo ditado popular ‘bandido bom é bandido morto’, é
reforçada por alguns programas do assim chamado jornalismo popular e, também por alguns
políticos como o deputado estadual Túlio Isac. Em declaração à rádio CBN Goiânia, o
deputado prometia que, caso fosse eleito à prefeitura da capital, ele “jogaria duro com
bandido”.
Bandido bom, para mim, é bandido morto. Na minha opinião, eu não teria meio
termo com eles. Não tem essa conversa de ficar achando que você tem que tratar o
bandido como trata o cidadão. (BANDIDO..., 2011).
Vale mencionar que no link do site G1, usado como fonte para a obtenção dessa
informação, foi possível encontrar mais de 50 comentários, a maioria apoiando as opiniões do
deputado, muitos deles prometendo-lhe o voto. A fala do deputado Túlio Isac é reveladora
com relação à constatação da situação de anomia jurídica que caracteriza o estatuto civil de
certos sujeitos, a quem são recusadas as prerrogativas de cidadania. Matá-los não constitui
56
crime, pois sua morte é considerada necessária no contexto da aplicação das medidas
extraordinárias de segurança, próprias de um Estado em guerra.
Conforme considera Ignácio Cano (2015), a partir de pesquisas realizadas sobre essa
questão, muitos daqueles que avalizam a máxima ‘bandido bom é bandido morto’ não
necessariamente apoiam a instituição legal da pena de morte no país. Eles “apoiam
simplesmente que a lei seja ignorada em caso de bandidos, mas quem será que vai decidir
quem é bandido e quem não é?”.
Em entrevista ao jornalista Rafael Fortes (2008), João Tancredo, ex-presidente da
Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ, afirmou que, hoje, já se assume abertamente que
a matança é autorizada, haja vista que o extermínio se tornou política de estado para lidar com
o problema das populações pobres.
O extermínio é política de Estado. Vai fazer o que com este monte de pobres? (...).
Matam, fazem o auto de resistência e dizem que foi em confronto e acabou. No
[Complexo do] Alemão isso ficou muito claro (...) os policiais se sentem autorizados
a matar estas pessoas porque as vêem como coisa, e não como cidadãos com direitos
e garantias. (FORTES, apud FILHO, 2010, p.53).
O pior é que a Polícia Militar, o Bope, pressionam os moradores, com armas na mão,
ameaçando se não disserem quem é quem, onde estão escondidos, onde tem ponto
de fumo, onde tem armas. (...) Eles falam assim: "Encosta aí na parede. Vocês
sabem onde é que fica. Sabemos que vocês sabem, não querem é falar. Vamos
arrancar isso de vocês". (ALVES, 2012, p.95).
Isso colocava os moradores em uma difícil situação, uma vez que, apesar da presença
massiva da polícia, a lei do silêncio imposta pelos traficantes ainda vigorava. Do ponto de
vista dos traficantes, a delação é considerada ofensa grave, passível de punição com a morte.
Sendo assim, o morador se via em um impasse: se delatava os criminosos, sofria as sanções
57
dos traficantes; se não cooperava com a polícia, era tratado como cúmplice do tráfico, sujeito
a ser interrogado, ameaçado e torturado por seus agentes.
A maioria dos moradores, inclusive eu, reclama da atitude da polícia, que costuma
usar de covardia com os moradores. Covardia mesmo! Coisas do arco-da-velha, se
eu contar você nem acredita. (...) Invadindo casa de morador, sacaneando morador,
mexendo com filha dos outros. Estão fazendo coisas do mesmo nível dos bandidos.
(SALLES, 2007).
Não há mais respeito. Estão agindo corno se fossem traficantes. Estão se misturando,
pra mim não tem mais diferença: policia é a mesma coisa que bandido. Até bandido
respeita mais os moradores. (ALVES, 2012, p.116).
A polícia chega aqui, sem dar a mínima importância a quem está no caminho - e
aqui são cinco escolas -, troca tiros com os bandidos e vai embora deixando um
campo de matança. (ALVES, 2012, p.64).
A polícia agora usa a escola como escudo. Eu acho um absurdo que um poder que
tem que nos proteger entre arrombando a escola, quebre coisas, e até roube
equipamentos. (ALVES, 2012, p.94).
Situada em uma área de fogo cruzado entre policiais e traficantes, a escola teve as suas
paredes crivadas por balas de fuzil, disparadas durante os confrontos. Em função do tipo de
armamento utilizado, as balas trespassavam as paredes, tendo sido necessário blindá-las, de
modo a proteger alunos e professores durante os tiroteios. Em um único dia de confronto, os
professores coletaram no pátio da escola 72 cápsulas de munição deflagrada.
No ano passado eles estouraram os transformadores e ficamos dias sem água e sem
luz. Foi um tiroteio de três dias direto. Então agora os moradores se ajudam e fazem
as manutenções eles mesmos, porque nem a Cedae [Companhia Estadual de Águas e
Esgotos], nem a companhia de luz, nem a Comlurb [Companhia Municipal de
Limpeza Urbana], para o lixo, querem vir para cá. Nem os Correios temos mais.
(ALVES, 2012, p.58).
Nos depoimentos prestados pelas pessoas que residiam nas comunidades invadidas,
transparecem o horror e o desespero diante da situação de absoluto abandono político e
jurídico. Uma vez que a própria polícia atuava de forma criminosa, não havia a quem recorrer.
Cada vez que tem um tiroteio a gente fica aqui, abandonada, vivendo horas de
horror. Porque não tem ninguém que se importe com a nossa vida, com a nossa
situação, ninguém. (ALVES, 2012, p.65).
O Bope faz coisas horríveis. No lugar onde moro eles arrombam as casas, botam
abaixo as portas e vão entrando. Se tiver homem lá dentro, matam. Graças a Deus,
nunca pegaram meu marido dentro de casa, porque se pegarem homem dentro de
casa, matam. Não querem nem saber quem é. Matam direto. Mulher e criança, eles
batem, eles xingam, eles falam palavrões, e às vezes violam e matam. Não têm
respeito nenhum. (ALVES, 2012, p.90).
Foi um desespero, porque ali na minha esquina, a polícia fica escondida de um lado
e os bandidos ficam de outro. Quem aparece leva bala. Sair de casa é morrer. (...)
Não querem nem saber se é criança ou não. Apareceu na rua, leva bala. Dos dois
lados, da policia e dos bandidos. (ALVES, 2012, p.92).
(...) não tem mais horário de tiroteio. Um dia, às oito da manhã, quando as crianças
estão na rua a caminho da escola; outro dia, na hora do recreio, quando estão no
pátio e entra o Caveirão atirando. (ALVES, 2012, p.59).
A estratégia militar adotada, por parte do Estado que buscava extrair vantagem do
elemento-surpresa, revestia a operação policial com o manto opaco da imprevisibilidade e da
arbitrariedade. Na percepção de muitos moradores, isso tornava as operações policiais ainda
mais perigosas e temidas do que os confrontos armados entre traficantes. Alguns moradores
falam do elevado índice de letalidade das invasões policiais, questionando, inclusive, as
estatísticas veiculadas pela mídia de grande circulação:
Esse ponto é corroborado pelo depoimento de Sadraque Santos, que fala do caráter
tendencioso das informações veiculadas pela mídia:
Pior é aquela declaração do comandante das operações em áreas especiais. Ele tem
falado na imprensa que traficante está dando tiro em morador para desestabilizar o
trabalho da polícia. Isso é uma covardia. Porque é uma questão lógica. Quando você
60
mora na comunidade, sabe que tem certas regras. Se isso fosse verdade, todo mundo
ia sair da favela, nem que fosse para morar na rua. O traficante sabe que nessas
ocupações da polícia o morador é importante pra ele. (SALLES, 2013).
Percebe-se, assim, que o discurso midiático vê a guerra ao tráfico com “as lentes do
Estado repressor que mata bandidos” (ALVES, 2012, p.06), agravando, dessa forma, a
situação de desamparo, anomia e vitimização à que estão submetidos os moradores das
comunidades invadidas pela polícia.
(...) este formidável avanço permite que se espalhe pelo planeta um discurso único,
de características autoritárias, antiliberais, que estimula o exercício do poder
punitivo muito mais repressivo e discriminatório, agora em escala mundial.
(ZAFFARONI, 2007, p.53).
A necessidade de defender-se, por certo não mais dos atos concretos de homicídio
em massa e indiscriminados, mas sim do nebuloso terrorismo, legitima não apenas
as guerras preventivas de intervenção unilateral como também legislações
autoritárias com poderes excepcionais. (ZAFFARONI, 2007, p.66).
12
“Every nation, in every region, now has a decision to make. Either you are with us, or you are with the
terrorists.”
63
Segundo Zaffaroni (2007, p.17), crítico da doutrina de Jakobs, quanto mais concessões
são feitas ao direito penal do inimigo, maior é o risco de minimização da política e da
negociação, acarretando soluções violentas que, invariavelmente, desembocam em catástrofe.
Dessa forma, no contexto sociopolítico atual, coloca-se para a doutrina jurídica o seguinte
dilema: ou ruma-se para a política de negociação, que reconhece e respeita os direitos
humanos, ou se adota a “solução violenta, que arrasa com os direitos humanos e, mais cedo ou
mais tarde, acaba no genocídio.” (ZAFFARONI, 2007, p.17).
No contexto aqui abordado, depoimentos por parte das autoridades de estado indicam
claramente a adoção do direito penal do inimigo como estratégia de intervenção em
comunidades pobres, sob o pretexto de exterminar bandidos e traficantes, considerados como
inimigos do Estado. Como exemplo, vale mencionar a declaração de guerra ao tráfico, por
parte do governador Sérgio Cabral:
Estamos em guerra e vamos ganhar esta guerra, não tenho a menor dúvida. O Rio
chegou a um nível de violência e ousadia do tráfico absolutamente intolerável.
Vamos acabar com essa musculatura do tráfico. Vamos continuar trabalhando, sem
show pirotécnico, sem dizer que é amanhã ou depois de amanhã. Não vai ser todo
dia que teremos boas notícias. Vamos cometer equívocos, pode haver problemas
aqui e acolá e vamos enfrentar. (AMORA, 2007).
p.41). A própria indefinição do estatuto dos inimigos perseguidos assinala que se trata de uma
“persecução de delitos mediante a guerra.” (JAKOBS, 2007, p.41).
Surge, a partir do poder de nomear o inimigo, um incessante deslizamento semântico
quando se quer fazer referência a ele. Onde falta um nome, surge uma pluralidade de outros
nomes, criados a partir da delimitação de categorias de certos indivíduos que, “por suas
características ontológicas, forjadas por representações probabilísticas, deixam virtualmente
de cometer crimes para se tornarem, elas mesmas, crimes.” (BRASIL, 2007, p.98): favelado,
marginal, pobre, detento, traficante, bandido, vagabundo, fora-da-lei e assim sucessivamente.
Tais indivíduos tornam-se a própria encarnação do mal, que ameaça irromper a qualquer
momento no espaço de convivência social. Surge daí a necessidade de medidas drásticas, com
vistas a assepsiar e imunizar o corpo social. O extermínio constitui, precisamente, exemplo
paradigmático dessas medidas de emergência.
Para nós, está bem claro que existe uma política de segurança pública de extermínio,
mas não dá pra acusar que é de extermínio mesmo porque não matam logo muita
gente. Matam cinco pessoas num lugar, quinze no outro, vinte no outro e tal. É
difícil dizer "esses caras são exterminadores, genocidas". E tem essa questão de
tentar justificar de diferentes formas: dizendo que são ações isoladas, não fruto de
uma política. No caso do Complexo do Alemão dizem que lá é lugar de gente má e
terrorista. Dizem também que barriga de mulher de favela é fábrica de bandido.
(ALVES, 2012, p.169).
do poder para nomear. “(…) são ordens para o extermínio, e não para a democracia, nem para
a convivência com a diferença. Seu princípio de funcionamento é o de uma segregação
13
radical.” (RAMÍREZ, 2007a, p.60, tradução nossa) .
Ramírez articula as ordens de ferro com a emergência de alguns fenômenos sociais que
são típicos em seu país, e que também ocorrem no Brasil. Como exemplo, ele menciona a
guerrilha urbana e as práticas de extermínio e limpeza social por parte de milícias e grupos
paramilitares, que atuam com o propósito de eliminar sujeitos indigentes que habitam as ruas.
Esses sujeitos foram circunscritos em uma categoria social forjada a partir do discurso
capitalista: descartáveis. A partir dessa nomeação, eles se tornaram alvo de implacável
perseguição por parte de seus executores.
No contexto aqui abordado, a produção dos estereótipos de bandido, marginal ou
favelado constituem exemplos paradigmáticos dessa forma de nomeação, que traça o destino
daqueles que serão doravante encarregados de polarizar a agressividade, os conflitos e as
contradições sociais, inerentes a todo e qualquer espaço de convivência humana. Conforme
abordado anteriormente, esses sujeitos foram apontados pela mídia e por algumas autoridades
de estado como elementos desarmonizadores do grupo, responsáveis pelas mazelas sociais.
A fabricação de bodes expiatórios, conforme afirma Coimbra (2001), possibilita desviar
a atenção do público dos inúmeros problemas sociais, verdadeiros geradores da criminalidade:
a corrupção dos agentes do estado, a má distribuição das riquezas, a marginalidade social, a
indigência política e as condições de precariedade a que estão sujeitos grandes contingentes
da população brasileira. Como decorrência, desconsidera-se a complexidade do problema
social colocado em jogo, mediante o uso do recurso simplista de interpretações maniqueístas e
lineares. Dessa forma, é possível perceber que a produção e legitimação do fenômeno do bode
expiatório, corolários da razão sacrificial, não acontecem sem estarem articuladas ao
problema da criminalidade e às políticas de segurança pública, adotadas por parte do Governo
Federal. Essas políticas têm origem no saldo de duas décadas de regime militar, herança que,
segundo Wacquant (2004, p.06),
(...) continua a pesar bastante tanto sobre o funcionamento do Estado como sobre as
mentalidades coletivas, o que faz com que o conjunto das classes sociais tendam a
identificar a defesa dos direitos do homem com a tolerância à bandidagem. De
maneira que, além da marginalidade urbana, a violência no Brasil encontra uma
13
“(…) son órdenes para el exterminio, no para la democracia, ni la convivencia con la diferencia. Su principio
de funcionamiento es el de una segregación radical”.
66
segunda raiz em uma cultura política que permanece profundamente marcada pelo
selo do autoritarismo.
Ao proceder dessa maneira, alimenta-se o círculo vicioso que oscila entre a violência
criminal e a violência policial, gerando um sentimento crescente de insegurança generalizada.
A angústia despertada pelo constante estado de alerta leva as autoridades a adotar medidas
cada vez mais repressivas e violentas que, eventualmente, trespassam os limites da legalidade.
A partir dessas considerações, é possível estabelecer uma aproximação inicial do
problema do sacrifício, orientada pelas indicações de Freud e Lacan. Nesse sentido, destaca-se
que as práticas sacrificiais aqui concernidas - segregação e extermínio – podem ser entendidas
como uma forma de consagração maligna, que tramita à margem dos campos religioso e
político, alçando o objeto de sacrifício a um topos anômico. Esse objeto, constituído por
segmentos cada mais amplos de indivíduos e grupos, é marcado com o estigma de vida
descartável e sem valor.
67
14
Moisés y la religión monoteísta.
15
“... a Sra. K. também não a amara por ela mesma, e sim por causa do pai. Ela a havia sacrificado sem um
momento de hesitação para que seu relacionamento com o pai de Dora não fosse perturbado. Essa ofensa talvez a
tenha tocado mais de perto e tido maior efeito patogênico do que a outra com que ela tentou encobri-la, ou seja, a
de ter sido sacrificada pelo pai (...) Dora dizia a si mesma incessantemente que seu pai a sacrificara a essa
mulher, fazia demonstrações ruidosas de que a invejava pela posse do pai e, dessa maneira, ocultava de si mesma
o oposto: que invejava o pai pelo amor da Sra. K. e que não perdoava à mulher amada a desilusão que ela lhe
causara com sua traição.” (FREUD, 1905 [1901]/1987, p.64).
68
os como resgate pela cegueira em que se consumou seu destino.” (LACAN, 1962-63/2005, p.
180).
A temática do sacrifício emerge também em vinhetas clínicas, ricas de ensinamentos,
com as quais Freud brinda o leitor na “Psicopatologia da vida cotidiana.” (1901/1987). Além
de preciosos ensinamentos clínicos, esse texto reserva outras surpresas para aqueles que têm
interesse em aprender sobre o sacrifício, pois nele Freud dedica uma seção inteira do livro ao
estudo dos atos sacrificiais, fazendo aí importantes indicações.
Em uma meticulosa análise etimológica do termo sacrifício, Emile Benveniste
(1969/1983) desdobra-o em um leque de termos linguísticos provenientes de diferentes raízes
etimológicas: libação, oferenda, oblação, consagração, sacerdote, sacrificante.
Etimologicamente, o sacrifício deriva do latim sacer facere, literalmente, tornar sagrado.
Tornar sagrado um ser vivo ou um objeto, implica na ação de retirá-lo de circulação do
mundo humano, e destiná-lo ao divino. Dessa forma, pretende-se “honrar o deus, solicitar seu
favor, reconhecer seu poder por meio de oblações.” (BENVENISTE, 1969/1983, p.371,
16
tradução nossa) . Derivado do ambíguo termo latino sacer, o sacrifício comporta, em sua
significação, a aporia de ser, simultaneamente, “consagrado aos deuses e carregado de uma
mancha indelével” 17, ou seja, “augusto e maldito, digno de veneração e que suscita o horror.”
(BENVENISTE, 1969/1983, p.350, tradução nossa) 18.
Em uma notável publicação sobre a abordagem psicanalítica do sacrifício, Bernard
Baas (2001) adverte o leitor sobre a polissemia do termo, que recobre uma vasta área de
pesquisa e vem ocupando estudiosos de variados campos do conhecimento, ligados à
filosofia, antropologia, sociologia e à etnografia. Tendo em vista essa advertência, deve-se
considerar a impossibilidade de estabelecer uma determinação unívoca, ou mesmo uma
coerência sistemática para o que se entende por sacrifício.
Para Baas (2001), longe de ser fortuita ou decorrente da extensão semântica do termo,
essa dificuldade é indicativa de uma ambiguidade fundamental no conceito de sacrifício. Para
adentrar em um campo marcado pelo mal entendido, pela polissemia semântica e, sobretudo,
pelo fascínio que suscita, algumas diretrizes precisam ser estabelecidas.
A fascinação sacrificial, conforme advertia Lacan (1964/1988), é encobridora, e
mesmo estudiosos respeitados não ficaram imunes a ela. Ao se referir ao holocausto nazista,
16
“Honrar al dios, solicitar su favor, reconocer su poder por medio de oblaciones”.
17
“Consagrado a los dioses y cargado de una mancilla imborrable”.
18
“Augusto y maldito, digno de veneración y que suscita el horror”.
69
Lacan (1964/1988, p.259) afirma que as suas “formas pretensamente ultrapassadas” não
cessam de ressurgir, constituindo um “mistério” velado pelas “premissas hegeliano-
marxistas”, que nada mais fazem do que obscurecê-lo:
Mais adiante, na sequência dessa passagem, Lacan reforça sua advertência com
relação ao fascínio sacrificial:
A ignorância, a indiferença, o desvio do olhar podem explicar sob que véu ainda
resta escondido esse mistério. Mas, para quem quer que seja capaz de dirigir, para
esse fenômeno, um olhar corajoso- e, ainda uma vez, há certamente poucos que não
sucumbam à fascinação do sacrifício em si mesmo -, o sacrifício significa que, no
objeto de nossos desejos, tentamos encontrar o testemunho da presença do desejo do
Outro que eu chamo aqui o ‘Deus obscuro.’ (LACAN, 1964/1988, p.259).
(...) aquele mesmo que termina no sacrifício, propriamente falando, de tudo que é
objeto de amor em sua ternura humana – digo mesmo, não somente na rejeição do
objeto patológico, mas também em seu sacrifício e em seu assassínio. É por isso que
escrevi ‘Kant com Sade.’ (LACAN, 1964/1988, p.260).
19
Acerca dessa questão, outros desenvolvimentos elaborados pelo pesquisador podem ser encontrados em:
CRUZ, Alexandre Dutra Gomes. Entre o dever da liberdade e a servidão voluntária: contribuições da psicanálise
para o pensamento ético em nossa época. In: ROSÁRIO, Ângela Buciano; MOREIRA, Jaqueline de Oliveira
(Orgs.). Culpa e laço social; possibilidades e limites. Barbacena: EdUEMG, 2013, p.47-66.
71
oferenda sacrificial seria uma forma de ajustar as contas com as deidades, em sociedades que
ainda não haviam desenvolvido o abstrato senso ético da justiça distributiva.
Mas de forma geral, assim como a doutrina animista das raças inferiores ainda não é
uma instituição ética, mas sim uma filosofia do homem e da natureza, o dualismo
selvagem ainda não é uma teoria de princípios morais abstratos. (TYLOR,
1871/1873, p.318, tradução nossa). 20
À dádiva sucedeu a homenagem em que o fiel não exprime mais qualquer esperança
de retorno. Para que daí o sacrifício se tornasse abnegação e renúncia não havia mais
que um passo; assim, a evolução fez o rito passar dos presentes do selvagem ao
sacrifício de si. (MAUSS; HUBERT, 1968 [1899] /2005, p.8).
Essa forma, supostamente mais evoluída, acabada, enfim sublimada (é o termo usado
por Mauss) do sistema sacrificial pode ser constatada claramente no cristianismo, que logrou
transportar sua eficácia simbólica “do mundo físico para o mundo moral.” (MAUSS;
HUBERT, 1968 [1899] /2005, p.99). O sacrifício do cristo, filho de Deus, assinala o fim do
sacrifício de sangue, e o início de um pacto, a aliança que enlaça a comunidade com o próprio
Deus, perpetuada no ritual da missa.
20
“But as in general the animistic doctrine of the lower races is not yet an ethical institution, but a philosophy of
man and nature, so savage dualism is not yet a theory of abstract moral principles”.
72
físico para o mundo moral. O sacrifício redentor do deus perpetua-se na missa diária.
(MAUSS; HUBERT, 1968 [1899] /2005, p.99).
21
Moisés y la religión monoteísta.
22
“The predominance assigned in ancient ritual to animal sacrifice corresponds to the predominance of the type
of sacrifice which is not a mere payment of tribute but an act of social fellowship between the deity and his
worshippers”.
73
23
1894/1927, p.224, tradução nossa) , que deveria ser compartilhado entre os homens e os
deuses.
Com o passar do tempo, no entanto, conforme afirma Robertson Smith (1894/1927), o
sacrifício entre os hebreus assumiu uma significação distinta. Se inicialmente significava de
comunhão entre o sacrificante e seu deus (Robertson Smith se refere a essa modalidade como
zèbah), após a Lei Levítica, o sacrifício assume a função de oferenda ao Deus, da qual o
sacrificante não deve tomar parte (a essa modalidade, ele nomeia minha). O repasto sacrificial
deixa de ser um momento de confraternização para se tornar uma oferenda que não deve ser
tocada ou consumida por nenhum integrante da comunidade sacrificante, exceto pelos
sacerdotes, únicos autorizados a fazê-lo. Após o ritual sacrificial, os despojos da vítima
devem ser consumidos pelos sacerdotes, e o restante deve ser queimado e oferecido em
holocausto assinalando, dessa forma, seu desaparecimento. Em suma, Robertson Smith afirma
que a significação do sacrifício, na primeira modalidade mencionada, é um ato de comunhão,
enquanto que, na segunda, assume significação de uma dívida, de um tributo a ser pago aos
deuses 24.
Para Robertson Smith (1894/1927), a comensalidade instituía o primeiro laço social,
através do qual se metaforizava a relação de parentesco, que implicava o reconhecimento de
se partilhar do mesmo sangue e da mesma carne. O sacrifício desempenha uma função crucial
nesse reconhecimento, uma vez que, mediante o consumo da vítima, ele instaura o laço de
parentesco e permite a sua regulação. Freud frisou que o banquete totêmico pode ser situado
como o primeiro festival da humanidade, que celebrava a temporária suspensão dos tabus
interditores. “O excesso faz parte da essência do festival; o sentimento festivo é produzido
pela liberdade de fazer o que via de regra é proibido.” (FREUD, 1987/1913, p.144). Nessas
ocasiões, regadas pelo excesso, a solene transgressão das proibições, codificadas nos tabus,
expressam uma liberdade paradoxal, uma vez que assumem a forma de uma obrigação. A
transgressão é, portanto, uma ordem.
A função sacrificial da comensalidade, segundo Robertson Smith, permitia a
instauração de um laço de sangue entre os membros do clã totêmico e o deus adorado. Além
do vínculo com essa figura supra-terrena, o sacrifício funcionava como argamassa do laço
23
All sacrifices laid upon the altar were taken by the ancients as being literally the food of the gods”.
24
“In short, while the zèbah turns on an act of communion between the deity and his worshippers, the minha (as
its name denotes) is simply a tribute”. (ROBERTSON SMITH, 1894/1927, p.240).
74
social, uma vez que exigia a participação e cumplicidade de todos os membros do clã. Tal
cumplicidade era necessária, uma vez que o animal devorado durante o festim era considerado
sagrado.
Como bem observa Freud (1913/1987, p.138), via de regra
(...) o sacrifício envolvia um festim e um festim não podia ser celebrado sem um
sacrifício. O festim sacrificatório era uma ocasião em que os indivíduos passavam
alegremente por cima dos seus próprios interesses e acentuavam a dependência
mútua existente entre eles e o seu deus.
destacar também que, apesar de se situarem fora do campo religioso estrito, essas práticas
sacrificiais persistem nos ecos da nostalgia pelo pai. Neste sentido, vale lembrar que os
estudos sobre práticas e atos sacrificiais levaram Freud (1901/1987) a destacar esta vertente
do sacrifício como autodespojo, que pode ser percebida sob forma de descarte de objetos ou
da própria vida. Será necessário dedicar a estas considerações uma análise mais detalhada,
uma vez que, a partir delas, torna-se possível destacar importantes considerações acerca da
elaboração da questão do sacrifício em psicanálise.
tratava de um ato sacrificial, cujo significado era de gratidão pela recuperação de um ente
querido que estivera gravemente enfermo.
Comenta ainda que a escolha pela Vênus de Médici nada mais foi do que uma “galante
homenagem à convalescente” (1901/1987, p.154), sendo digna de nota a precisão de sua
pontaria ao quebrar unicamente essa estátua, que estava em meio a muitos outros objetos
delicados.
No segundo relato, Freud conta como repreendeu de forma canhestra um amigo, a
partir da interpretação que lhe deu de alguns indícios do seu inconsciente. Sentindo-se
ofendido, este amigo lhe escreveu uma carta reprovando sua atitude e dizendo que ele deveria
reservar o tratamento psicanalítico apenas aos seus pacientes. Constrangido com o episódio,
Freud responde desculpando-se pelo mau jeito. Enquanto escrevia essa carta com o pedido de
desculpas, de forma aparentemente acidental danificou o verniz de uma figura egípcia recém-
adquirida, com a caneta que empunhava. Ao comentar esse episódio, Freud (1901/1987,
p.154) afirma que se tratava de um sacrifício propiciatório para afastar um mal: “Entendi que
havia causado essa calamidade para impedir outra maior. Por sorte, ambas as coisas - a
amizade e a figura - puderam ser cimentadas de modo a não se notar a rachadura”.
Há um terceiro relato nessa série de casos, que diferentemente dos anteriores, narra a
destruição de um objeto que já não gozava da estima do dono sendo, portanto, descartável:
uma velha bengala danificada. Ao quebrá-la durante uma brincadeira com o neto, Freud
aproveitou a ocasião para se desfazer dela. Nesse caso, trata-se de uma “execução disfarçada”
(FREUD, 1901/1987, p.154), manifesta no descarte de um objeto que perdeu o encanto.
Nesses casos, Ambertín (2009a, p.64) comenta que a libra de carne não entra em jogo,
pois um objeto contingente pode assumir seu lugar. Dessa forma, há “economia de sacrifício”,
que transita pela via do desejo e da concessão de dons. No último exemplo narrado, o objeto
não é revestido pelo encanto agalmático, e se torna simplesmente um despojo. Apesar dessa
diferença, em todos os três exemplos mencionados, a integridade corporal do sujeito é
mantida, através da interposição de um objeto intermediário como oferenda.
77
25
Não passam despercebidas as ressonâncias que essa ação sacrificial tem com a tragédia “Édipo Rei”, na qual o
herói sacrifica os próprios olhos após descobrir a significação parricida e incestuosa de suas ações. Cegar-se
pode ser interpretado simbolicamente como um ‘não querer ver’, mas ater-se apenas a essa interpretação é
desconsiderar a dimensão do gozo, que encontra satisfação expiatória/masoquista no ato sacrificial.
78
estava descarregada antes de brincar com ela, bem como seu ferimento auto-infligido, foram
psiquicamente determinados.” O disparo ocorreu no mesmo dia em que ele foi dispensado do
exército, por ter sido considerado inapto. Freud (1901/1987, p.165) concluiu que, ao ser
privado da oportunidade de entrar no exército para se esquecer de uma recente desilusão
amorosa, nada restava ao paciente senão a entrega a “uma tentativa inconsciente de suicídio”.
De modo geral, pode-se depreender dos casos relatados que o inconsciente não se diz,
mas se apresenta em uma dimensão de ato: “são atos sacrificais destinados a aplacar o
destino, afastar a desgraça, e assim por diante.” (FREUD, 1901/1987, p.158). Os atos
sacrificiais, segundo Freud (1901/1987, p.183), colocam em jogo “a oferta de um sacrifício
aos obscuros poderes do destino, cujo culto ainda hoje não se extinguiu entre nós.” E eles
podem reclamar muito mais do que objetos de posse, ao voltar seu furor violento contra o
próprio sacrificante ou mesmo outras pessoas, como ilustram bem os dois últimos exemplos
mencionados. Neles, não há objeto intermediário para assumir a fúria do destino. Imerso no
fascínio sacrificial, o sujeito é compelido a empenhar a própria carne, e a passagem ao ato é a
expressão mortífera desse impasse.
Se uma fúria contra a própria integridade e a própria vida pode assim esconder-se
por trás de uma inabilidade aparentemente acidental e de uma insuficiência motora,
não é preciso um grande passo para se transferir essa mesma concepção para os
erros que colocam em sério perigo a vida e a saúde de outras pessoas. (FREUD,
1901/1987, p.168).
tosquiadores, ele não abriu a boca.” (ISAÍAS, 53:7). Há, portanto, cumplicidade muda do
sujeito com o funesto destino que o espreita.
É digno de nota o posicionamento ético freudiano diante do reconhecimento da
implicação do sujeito no ato sacrificial. Dirigindo a essas práticas um “olhar corajoso”
(LACAN, 1964/1988, p.259) e advertido, Freud situa, não sem uma ponta de humor, a
impiedade do seu posicionamento ético, que visando à implicação do sujeito com seus atos,
recusa render-se diante do fascínio sacrificial: “Quando um membro de minha família se
queixa de ter mordido a língua, imprensado um dedo etc., não recebe de mim a compaixão
esperada, mas sim a pergunta: ‘Por que você fez isso?’” (FREUD, 1901/1987, p.162).
As elaborações freudianas aqui apresentadas abrem caminho para uma reflexão
aprofundada sobre as práticas sacrificiais na atualidade. A partir delas, torna-se possível
descortinar um vasto e promissor horizonte de pesquisa, que convida ao diálogo a psicanálise
e outros campos do saber, como a sociologia, a antropologia e a filosofia. O campo de
pesquisa que aí emerge aponta para um leque amplo de fenômenos ligados à violência:
exposição a condutas de risco, vitimização, automutilações, ferimentos autoinfligidos,
assassinatos, suicídios, entre muitos outros. Nesse momento da elaboração freudiana, no
entanto, eles ainda são entendidos como atos falhos, que ocorrem de forma aparentemente
acidental, sem contar com o reconhecimento intencional do seu autor. Ainda que haja
intencionalidade consciente implicada no ato sacrificial, Freud reafirma que a causalidade
inconsciente, sempre atuante, escapa a essa intencionalidade:
Mesmo a intenção consciente de cometer suicídio escolhe sua época, seus meios e
sua oportunidade; e é perfeitamente consonante com isso que a intenção
inconsciente aguarde uma ocasião que possa tomar a seu encargo parte da causação.
(FREUD, 1901/1987, p.163).
Ainda que se considere que, nesse momento de sua elaboração teórica Freud ainda não
tenha elaborado os conceitos de pulsão de morte e masoquismo primário, nem por isso ele
deixou de indicar a importância que eles viriam a assumir na abordagem desses fenômenos,
cuja raiz reside em uma “tendência à autopunição, que está constantemente à espreita e
comumente se expressa na autocensura.” (FREUD, 1901/1987, p.161). Nessa perspectiva, que
Freud adota no início de sua elaboração teórica, as práticas sacrificiais se inscrevem como
desfechos trágicos do conflito psíquico.
80
(...) resultado final deve ser um direito para o qual todos — ao menos todos os
capazes de viver em comunidade — contribuem com sacrifício de seus instintos, e
que não permite — de novo com a mesma exceção — que ninguém se torne vítima
da força bruta. (FREUD, 1930/2010, p.57).
Freud retoma suas reflexões acerca da conexão entre renúncia pulsional e sacrifício
26
moral no texto “Atos obsessivos e práticas religiosas” (1907/1992, tradução nossa) ,
afirmando que as religiões cumprem uma função fundamental na “sufocação de certas moções
27
pulsionais” (1907/1992, p.108, tradução nossa) , pois induzem ao sujeito a sacrificá-la à
divindade.
(…) muito daquilo a que o homem havia renunciado como ‘impiedade’ foi cedido a
Deus e ainda era permitido em nome Dele, de forma que a cessão à divindade foi o
caminho pelo qual o ser humano se libertou do império das pulsões malignas,
prejudiciais para a sociedade. (FREUD, 1907/1992, p.109, tradução nossa, grifo
nosso). 28
26
Acciones obsesivas y prácticas religiosas.
27
“Sofocación de ciertas mociones pulsionales”.
28
“(…) mucho de aquello a que el hombre había renunciado como’impiedad’ fue cedido a Dios y aun se lo
permitía en nombre de Él, de suerte que la cesión a la divinidad fue el camino por el cual el ser humano se liberó
del imperio de pulsiones malignas, perjudiciales para la sociedad”.
82
29
“Fuera de la ley”.
83
30
“Una ley siempre pude enunciarse de forma antinómica”.
85
Esses lugares podem vir a ser ocupados por diferentes elementos no campo da estrutura, e é
esse entendimento que viabiliza a justa apreciação da afirmação freudiana de que o supereu
(...) é construído não segundo o modelo dos pais, mas do super-eu dos pais;
preenche-se com o mesmo conteúdo, torna-se veículo da tradição, de todos os
constantes valores que assim se propagaram de geração a geração. (1933/2010,
p.205).
O supereu não é, portanto, o ideal (ou a lei moral), mas seu móbil, seu veículo de
transmissão, responsável pelo seu trâmite. Aqui, não há lugar para a entificação psicológica
dos pais da criança, pois Freud deixa claro que se trata de uma “instância parental”, que se
torna cada vez mais “impessoal” (FREUD, 1933/2010, p.202) com o passar do tempo. Por
isso, do ponto de vista da psicanálise, não faz diferença se os pais da criança a trataram de
forma severa ou benevolente: a herança que lhe cabe sempre traz a marca da rigidez e
severidade, a serviço da “função punitiva e proibidora.” (FREUD, 1933/2010, p.199). Daí o
sentido da afirmação de Ambertín (2009b, p.223): “o supereu da criança se edifica sobre os
pecados do pai e o saldo cruel resulta ser um desarranjo irreparável da estrutura”.
Por mais nobres que sejam os ideais, e ainda que eles estejam legitimados sob forma
de lei escrita e objetivada, nem por isso estão imunes à ação corrosiva do supereu, que incide
não sobre o campo do enunciado, mas em suas entrelinhas, no campo tácito da sua
enunciação, que quando não exorta à submissão absoluta, incita insistentemente ao desvario e
à transgressão. Se a lei, veículo da ordem e do pacto social, pode funcionar de forma insensata
e parasitária, não há como encontrar nela nenhuma garantia de apaziguamento do mal estar.
Uma célebre passagem freudiana, comumente usada por comentadores para definir o
supereu, afirma que ele é herdeiro do complexo de Édipo: “Mas o super-eu, que dessa forma
assume o poder, a função e até os métodos da instância parental, é não apenas sucessor, mas
também legítimo herdeiro desta.” (FREUD, 1932/2010, p.199). Alguns autores depreenderam
disso que o supereu seria um representante da lei paterna e da moralidade, diante das
exigências instintuais do id. No entanto, como legítimo herdeiro da instância paterna, o
supereu veicula não apenas o enunciado proibitivo, como também a significação incestuosa e
assassina que subjaz a ele.
Freud já havia notado que, em decorrência de sua origem pulsional, o supereu pode se
tornar feroz, sempre pronto a se voltar contra o sujeito de forma sádica e cruel. Essa vertente
pulsional do supereu foi destacada por ele em seu texto “O problema econômico do
87
Por que Freud envereda por esse paradoxo? Para explicar que o desejo, com isso,
será apenas mais ameaçador, e, logo, a interdição mais necessária e mais dura. Deus
está morto, nada mais é permitido. O declínio do complexo de Édipo é o luto do Pai,
mas ele se conclui por uma seqüela duradoura: a identificação que se chama
88
supereu. O Pai não amado toma-se a identificação que cumulamos de críticas sobre
nós mesmos. (LACAN, 1960/2005, p.30).
Lacan abordou o tema do sacrifício ao longo de todo o seu ensino, tendo-o revisto
sucessivamente, conforme avançava rumo a uma teoria do gozo. Em “Complexos familiares”
(LACAN, 1938/2003), ele já falava do sacrifício ligado à automutilação e à complacência
somática presente na base do sintoma histérico.
31
Moisés y la religión monoteísta.
89
Caso se refiram aos ritos sacrificiais com que as culturas primitivas, mesmo havendo
chegado a uma concentração social elevada, realizam com o mais cruel rigor -
vítimas humanas desmembradas ou enterradas vivas - as fantasias da relação
primordial com a mãe, eles lerão em diversos mitos que ao advento da autoridade
paterna corresponde uma moderação da repressão social primitiva. (LACAN,
1938/2003, p.64).
Nesse momento inicial da elaboração lacaniana, ainda marcada por um tom kleiniano,
pode-se perceber que o advento da autoridade paterna vem a ordenar, moderar, conter a
relação antropofágica que marca a relação primária com a mãe, assombrada pelo espectro
angustiante do corpo esfacelado. O advento do pai é ordenador, unificador e separador, uma
vez que permite o enlace do registro simbólico da Lei, barrando o excesso obsceno da relação
corpo a corpo com a mãe, característica do primado matriarcal. O sacrifício é evocado por
Lacan em um viés dilacerante, que coloca em cena o fantasma do desmembramento corporal;
no horizonte desabitado dessa experiência fronteiriça, delimita-se a sombra melancólica do
objeto, que se projeta sobre o sujeito. A teorização lacaniana indica que essa fronteira é
estabelecida a partir da castração, entendida como operação inaugural e estrutural de divisão
do sujeito. Por essa via, abre-se um amplo leque de reflexões acerca do sacrifício.
As elaborações tecidas no seminário “As relações de objeto” (LACAN, 1956-
57/1995), proferido ainda nos anos 50, marcam a primeira teorização lacaniana sobre o objeto
pulsional, ainda sob a égide do termo ‘relação’. Durante esse primeiro momento do ensino de
Lacan, a emergência da questão sacrificial se efetiva articulada ao objeto enquanto dom,
ligado ao amor e à demanda ao Outro. A demanda de amor se estrutura em torno do signo
daquilo que está ausente, que falta, no campo do Outro. Como diz Lacan, “não existe maior
dom possível, maior signo de amor que o dom daquilo que não se tem.” (LACAN, 1956-
57/1995, p.142). Sendo assim, o dom é tributário da castração, e surge no contexto da
dialética do desejo, inscrita no circuito das trocas sociais entre os sujeitos. Apesar de
apresentar uma concepção intersubjetiva de amor, pensando-o como relação entre sujeitos,
Lacan já faz intervir aí a dissimetria que perpassa essa relação.
A referência usada por Lacan para pensar o dom ofertado no sacrifício é a obra
“Ensaio sobre a dádiva” (MAUSS, 1925/2003), de Marcel Mauss. Nesse ensaio, publicado
pela primeira vez em 1925, e considerado seu mais importante trabalho, Mauss estudou as
90
dizer, àquilo que falta ao Outro. A distinção entre essas dimensões fica evidente, quando se
considera que algumas mães confundem o cuidado relativo às necessidades da criança
(Ananké) com o dom de seu amor (Eros), empanturrando a criança com a “papinha
sufocante.” (LACAN, 1958/1998, p.634). A função do dom da palavra surge, no ensino
lacaniano, ligado à instância paterna, eminentemente simbólica, e à falta no campo do Outro;
o amor emerge, invariavelmente, a partir dessa falta, que a partir do complexo de Édipo,
adquire a significação de uma interdição, de um limite à desmesura do capricho materno.
O campo da dialética do desejo, que serve de esteio para a elaboração que Lacan
desenvolve a respeito do amor como dom, ancora-se no falo, que é tomado como um
elemento lógico, revestido do caráter de signo primordial, chave universal que abre diante do
sujeito o campo das permutas simbólicas:
O desejo visa ao falo na medida em que este deve ser recebido como um dom. Para
este fim, é necessário que o falo, ausente ou presente noutra parte, seja elevado ao
nível do dom. E é na medida em que ele é elevado à dignidade de objeto de dom,
que faz o sujeito entrar na dialética da troca, aquela que irá normalizar todas as
suas posições, até e inclusive as interdições essenciais que fundam o movimento
geral da troca. (LACAN, 1956-57/1995, p.144, grifo nosso).
O que faz o dom é que um sujeito dá alguma coisa de uma maneira gratuita; na
medida em que, por detrás do que ele dá, existe tudo o que lhe falta, é que o sujeito
sacrifica para além daquilo que tem. O mesmo acontece, aliás, com o dom
primitivo, tal como se exerce efetivamente na origem das trocas humanas sob a
forma do potlatch. (LACAN, 1995/1956-57, p.143, grifos nossos).
94
32
“Generosidad suntuosa”.
95
Uma vez porém que fica sério e se abre [o sileno], não sei se alguém já viu as
estátuas[agalmata] lá dentro; eu por mim já uma vez as vi, e tão divinas me
pareceram elas, com tanto ouro, com uma beleza tão completa e tão extraordinária
que eu só tinha que fazer imediatamente o que me mandasse Sócrates. (PLATÃO,
380 a.C./1991, p.93).
possuir, pois escorrega das mãos, escapole, furta-se e causa metonimicamente o desejo.”
(QUINET, 2002, p.64).
Colette Soler, por sua vez, estabelece uma equivalência entre o objeto mais de gozar e
a oferenda sacrificial, ao afirmar que a posição sacrificial
(...) é menos avaliada pelos objetos que imola que pelo motor do próprio ato,
digamos, na causa do sacrifício. Os objetos a entrar nos lucros e perdas são os mais
variados, só tendo em comum um único traço: representar, para o sujeito, algum
valor de gozo. (SOLER, 2006, p.67).
Essas indicações podem ser aproximadas daquelas feitas por Lévi-Strauss, acerca do
sacrifício: “o sacrifício está, então, situado no reino da continuidade” (LÉVI-STRAUSS,
1962/1989, p.250), da “contiguidade” LÉVI-STRAUSS, (1962/1989, p.251), permitindo uma
“passagem contínua entre os seus termos.” (LÉVI-STRAUSS, 1962/1989, p.250).
Digamos que o religioso entrega a Deus a incumbência da causa, mas nisso corta seu
próprio acesso a verdade. Por isso ele é levado a atribuir a Deus a causa de seu
desejo, o que é propriamente o objeto do sacrifício. Sua demanda é submetida ao
desejo suposto de um Deus que, por conseguinte, é preciso seduzir. O jogo do amor
entra por aí. (LACAN, 1965-66/1998, p.887).
No sacrifício religioso, o enlace com o Outro se torna possível porque a ele falta
alguma coisa. Destinada a ser coroada pelo objeto agalmático, essa falta viabiliza o
intercâmbio com o Outro, sendo-lhe conferido o estatuto de uma dívida com Deus-pai. Aqui,
o sacrifício se inscreve sob a égide de Eros, o amor que brota do reconhecimento da falta no
campo do Outro (dar o que não se tem), viabilizando a constituição de um Outro barrado e
desejante [S (A/)].
(...) se o Outro carecesse de desejos seria impossível manter algum laço com ele.
Esta suposta dívida circula na aposta sacrificial, na qual o filho procura dar
existência a Deus e ao Pai como desejantes e para isso constrói o mito fundador no
qual Deus e o pai esperam algo dele. (AMBERTÍN, 2009a, p.77).
Na medida em que avança em seu ensino, entretanto, Lacan tende a se afastar cada vez
mais das teses antropológicas de Mauss e Lévi-Strauss (AMBERTÍN, 2009a), colocando em
questão a função pacificadora e homeostática do sacrifício. Em “Subversão do sujeito e
98
Pode-se mesmo dizer que esse seminário constitui o marco decisivo nas elaborações
lacanianas sobre o sacrifício, uma vez que inclui o que não havia sido considerado nas
abordagens anteriores - o corpo enquanto libra de carne, com a qual se busca aplacar a
ferocidade divina: “sempre há no corpo, em virtude desse engajamento na dialética
significante, algo de separado, algo de sacrificado, algo de inerte, que é a libra de carne.”
(LACAN, 1962-63/2005, p.242). Ilustra-o bem o evangelho de Mateus, que confirma esse
caráter irascível e violento da barganha sacrificial: “Portanto, se o teu olho direito te
escandalizar, arranca-o e atira-o para longe de ti; pois te é melhor que se perca um dos teus
membros do que seja todo o teu corpo lançado no inferno.” (MATEUS, 5:29).
A partir de então, surgem os primeiros contornos de uma nova perspectiva de Lacan
acerca do sacrifício, sob a forma de uma versão maligna de Deus, que não negocia débitos
33
nem respeita os pactos que ele próprio instaura. O shofar “... soa o encontro com o lado
implacável da relação com Deus, com a maldade divina em função da qual é sempre com
nossa carne que temos de saldar a dívida.” (LACAN, 1962-63/2005, p.242). Aqui, Lacan
levanta o véu que encobre o horror sagrado, suscitado pelo fascínio sacrificial: a essa altura, já
não há como sustentar que a dádiva é gratuita. Esse momento do percurso lacaniano assinala o
início de uma profunda mudança de perspectiva no tocante à sua concepção de sacrifício, que
se consumaria definitivamente, em suas elaborações posteriores.
33
O shofar é um instrumento sagrado de inestimável valor simbólico para a tradição judaica. Consiste
basicamente em um chifre de carneiro, usado para emitir sons durante os rituais que celebram certas ocasiões
significativas. Ele é revestido de uma importância especial, também, para a psicanálise; Theodor Reik, discípulo
direto de Freud, dedicou-lhe um estudo, referido por Lacan no seminário “A angústia.” (LACAN, 1962-63/2005,
p.267).
100
pretende situá-lo como enlace originário que inscreve a Lei paterna, considerando-a não mais
em sua referência ao amor e ao dom, mas em sua referência ao gozo.
Nessa leitura, Lacan confronta o sacrifício do Urvater, colocado em cena pelo mito
freudiano da horda primeva, com o sacrifício de Abraão, metaforizado na Akedah. Enquanto o
mito freudiano aborda o sacrifício na perspectiva do parricídio, o mito da Akedah de Isaac
aborda-o enquanto filicídio. Contrapondo o sacrifício do pai primevo ao sacrifício de Isaac
(que é também o sacrifício de Abraão), é possível perceber que ambas as narrativas abordam
o enlace originário que permite a articulação do desejo com a Lei. Ainda que as perspectivas
sejam inversas, a questão paterna encontra-se no cerne de ambas.
Na Akedah de Isaac, o implacável Deus de Abraão exige que Isaac seja levado para o
Monte Moriá e oferecido em holocausto. O mandato divino se abate sobre Abraão com toda a
sua carga de absurdo e arbitrariedade, pois o nascimento de Isaac era considerado uma dádiva
de Deus. Filho único de Abraão com Sara, sua mulher, o nascimento de Isaac era considerado
como um milagre; Sara já contava com uma idade avançada, e há muito já havia se passado
seu período de fertilidade.
Mesmo perplexo diante do absurdo da exigência divina, Abraão decide sustentar sua
fé, ainda que ela o conduza por caminhos inusitados. Sendo assim, ele leva Isaac para o local
indicado e o amarra, ato pleno de significação, pois metaforiza o enlace proporcionado pelo
pacto da aliança, ao mesmo tempo em que assinala a submissão incondicional à vontade de
Deus. Essas dimensões da Akedah apontam para diferentes perspectivas no tocante ao
sacrifício, em suas paradoxais relações com os Nomes-do-Pai: ele é constitutivo do enlace
com a palavra do pai, pela via do dom e do desejo, mas pode também deslizar sub-
repticiamente para a paixão pelo gozo servil, mobilizada pelo fascínio diante da onipotência
divina. Abre-se aí um obscuro caminho para aqueles que se dispõem a “experimentar não sua
demanda, mas sua vontade” (LACAN, 1960/1998, p.841), realizando-se como objeto dela.
No ápice dramático dessa narrativa mítica, Abraão aproxima o punhal contra a
garganta de Isaac, firmemente decidido a cumprir a ordem de Deus. No instante em que
estava prestes a degolar o filho, surge um anjo que detém sua mão, impedindo o seu ato. O
sacrifício deve acontecer, mas a vítima sacrificial não tem que ser Isaac; o anjo lhe aponta um
carneiro, que deveria tomar o seu lugar.
101
Ao comentar essa narrativa, Pierre Legendre (2008a, p.26, tradução nossa) afirma que
ela expressa “(…) o fundamento último de toda filiação: que o assassinato não tem que
acontecer, pois, para o homem, a vida implica o horizonte da superação” 34. Deve-se observar,
no entanto, que a matança se consuma de fato, mas a vítima sacrificial é um substituto do
objeto inicialmente exigido por Deus. Conforme já foi abordado, o objeto que constitui a
oferenda sacrificial é metonímico, ou seja, desliza na sucessão de uma variedade
potencialmente infinita de sucedâneos. Dessa forma, Abraão sacrifica o carneiro, para não ter
que sacrificar o filho.
A substituição de Isaac pelo carneiro foi cristalizada na conhecida expressão bode
expiatório, designando metaforicamente aquele que deve se encarregar de expiar os males e
35
as culpas de um povo . A lendária figura do bode expiatório surge no contexto da tradição
34
“(…) el fondo último de toda filiación: que el asesinato no tiene que consumarse, sino que, para el hombre, la
vida implica el horizonte de la superación”.
35
Em seu livro sobre os chistes (1905/1987, p.192), Freud não perdeu a chance de dedicar uma divertida anedota
à temática do bode expiatório: “Há uma história cômica (...) de uma vila húngara onde o ferreiro fora condenado
à pena capital. O burgomestre resolveu, entretanto, que um alfaiate e não o ferreiro devia ser enforcado, pois
102
judaica, celebrada anualmente no ritual do Iom Kippur (do hebraico, dia da expiação, ou dia
do perdão). Esse ritual se encontra relatado no capítulo 16 do Levítico, um dos livros do
Antigo Testamento, também conhecido como livro dos sacrifícios. As instruções que se
seguem ao sacrifício anunciam a lei perpétua, que deverá ser observada tanto pelos nativos
quanto pelos estrangeiros que vivem entre eles:
(...) no sétimo mês, no décimo dia do mês, jejuareis e não fareis trabalho algum,
porque nesse dia se fará a expiação por vós, para que vos purifiqueis e sejais livres
de todos os vossos pecados diante do Senhor (...) (LEVÍTICO, 16; 30).
havia dois alfaiates na cidade mas não havia um segundo ferreiro e o crime devia ser expiado.” Esse aparente
absurdo, com efeito de chiste, expressa o paradoxo inerente à culpa e expiação, próprio da lógica do
inconsciente: ainda que um inocente seja sacrificado, alguém deve ser designado para assumir a culpa, de modo
que o crime seja expiado.
103
Há, portanto, um resto de gozo que não é passível de reintegração no campo simbólico
do Outro. Ele está no cerne dos sistemas simbólicos com pretensão de totalização, como é o
caso das religiões monoteístas, e também, do ordenamento jurídico. O sacrifício, na medida
em que marca presença em ambos os sistemas, inscreve-se como ponto de articulação entre a
36
tessitura simbólica ritualística, cânone que ficciona o real , e o que lhe excede, involucrado
imaginariamente pela libra de carne.
Situando-se como fronteira móvel entre os registros RSI, o sacrifício não poderia
deixar de reverberar os paradoxos que decorrem da inscrição do gozo no campo do Outro. De
um lado o sacrifício moral, espiritualizado e sublimado, exigido como prerrogativa do pacto
da aliança. De outro, sua dimensão sangrenta e inegociável; a mutilação, que provoca uma
separação entre o sujeito e uma parte de si. Assim o foi para Abraão, ao ver-se confrontado
em ter que sacrificar seu próprio filho, carne de sua carne, sangue de seu sangue. Assim
também o é, para cada judeu, quando se submete ao ritual da circuncisão.
Se Freud coloca no centro de sua doutrina o mito do pai, é claro que é em razão da
inevitabilidade da questão. Não menos claro é o fato de que, se toda a teoria e práxis
da psicanálise nos parecem atualmente em pane, é por não terem ousado, nessa
questão, ir mais longe que Freud. (LACAN, 1963/2005, p. 71).
Quando chega o tempo do desmame, a mãe enegrece o seio, porque manter o seu
atrativo será prejudicial ao filho que o deve abandonar. (...) Feliz aquele que não
tenha de recorrer a meios ainda mais terríveis para desmamar o seu filho!
(KIERKEGAARD, 1843/1979, p.198).
Na segunda versão, Abraão leva Isaac para o local do sacrifício e chega a colocá-lo
amarrado sob a faca, mas no fim, sacrifica apenas o carneiro. Após retornar para casa, nunca
mais foi o mesmo; tornou-se incapaz de esquecer o absurdo que esteve prestes a fazer e
perdeu a alegria de viver, envelhecendo rapidamente. Nessa versão, conforme afirma Silvia
Helena Tendlarz (2005), “Kierkegaard nos apresenta o pecado do pai: o pecado de haver
tentado matar seu filho retorna como sentimento de culpa.” Quanto maior a magnitude do
sacrifício, maior é o retorno do sentimento de culpa. Aqui a tônica do desenlace é o pudor, a
vergonha diante dos olhos do filho: “Quando o menino, já crescido, tem de ser desmamado, a
mãe, pudicamente, oculta o seio e o menino já não tem mãe. Feliz o filho que não perdeu a
mãe de outro modo!” (KIERKEGAARD, 1843/1979, p.198).
A terceira versão apresenta o paradoxo que permeia as relações entre o crime, o
pecado e o castigo. A obediência incondicional ao absurdo decreto divino não apenas não
106
alivia o sentimento de culpa, como também reforça as autoacusações. Abraão está entre a cruz
e a caldeira: se não obedece a Deus, é ímpio. Se o obedece, tanto pior, pois se vê refletido nos
olhos de Isaac como um filicida criminoso. O perdão é impossível diante de tão grave ofensa,
e aqui se dispõem os insondáveis paradoxos do supereu. O desenlace reveste-se de um tom
nostálgico que, no entanto, reconhece a inevitabilidade da separação.
Quando chega o tempo do desmame, a mãe fica triste pensando que ela e o filho se
irão separar; que o menino, a princípio sob o seu coração e depois embalado no seio,
nunca mais se encontrará tão perto dela. E juntos sofrerão esta curta pena. Feliz
aquele que conservou o filho tão perto do seu coração e não teve outro motivo de
desgosto! (KIERKEGAARD, 1843/1979, p.199).
A quarta e última versão apresenta um Abraão fraco, hesitante, cuja mão “crispava de
desespero” (KIERKEGAARD, 1843/1979, p.199) diante do ato sacrificial. Ao retornar para
casa, Isaac perde a fé, e o que se segue é uma silenciosa cumplicidade entre pai e filho –
nunca mais falaram do assunto, e comportaram-se como se nada tivesse acontecido. Tudo foi
em vão, a transmissão do enlace fracassa. Bem aventurados aqueles que demonstram decidida
determinação e força de vontade para assumir a separação e, dessa forma, estreitar o “vínculo
sagrado” (KIERKEGAARD, 1843/1979, p.201) que se estabelece entre as gerações,
permitindo sua majoração e renovação. “Quando chega o tempo do desmame, recorre a mãe à
alimentação mais forte para evitar a morte do filho. Feliz aquele que dispõe de alimento
forte!” (KIERKEGAARD, 1843/1979, p.199). Infeliz é aquele que dessa força não dispõe.
As diferentes versões da narrativa do sacrifício de Isaac, propostas por Kierkegaard,
antecipa para Lacan um recurso importante para tratamento do impossível, concernido no
enigma do silêncio de Abraão: a pluralização dos Nomes-do-Pai. Esse recurso, que renuncia a
equivalência hegeliana entre a verdade e a totalização do saber, começou a ser elaborado no
seminário interrompido (LACAN, 1963/2005), mas só alcançou sua plena formalização anos
depois, sob forma da lógica do enlace borromeano.
Essa forma de aproximação do real, e da angústia suscitada por ele, tal como delineada
em “Temor e tremor” (KIERKEGAARD, 1843/1979), pode ser mais bem apreciada à luz do
impacto que a narrativa do sacrifício de Abraão exerceu sobre Kierkegaard. Segundo afirma
ele próprio, seu pensamento é rechaçado a cada vez que busca acercar-se do paradoxo de
Abraão; assim como Isaac, ele fica estupefato, não consegue compreendê-lo em meio à
perplexidade que o invade: “(...) quando me ponho a refletir sobre Abraão, sinto-me como que
107
aniquilado. Caio a cada instante no paradoxo inaudito que é a substância da sua vida.”
(KIERKEGAARD, 1843/1979, p.216).
Na lição do seminário interrompido, Lacan se refere ao punhal do sacrifício, dizendo
que o gume de sua lâmina estabelece um marco “entre o gozo de Deus e o que, nessa tradição,
presentifica-se como seu desejo. Aquilo de que se trata de provocar a queda é a origem
biológica. Aí está a chave do mistério.” (LACAN, 1963/2005, p.85). Lacan assinala, então,
que a inscrição do nome próprio vem a ocupar o lugar dessa indigência simbólica, própria da
mera existência biológica. O mito freudiano, construído em Totem e tabu, adorna essa hiância
com a figura obscena e feroz do pai primevo, que retinha todo o gozo para si e nada desejava.
Na tradição hebraica da Akedah de Isaac, o primeiro ancestral humano revela-se como o
carneiro sacrificado, promovido a “Deus de sua raça.” (LACAN, 1963/2005, p.85).
Na Akedah, a animalidade feroz do pai primevo é metaforizada pela Lei perpétua, ou
seja, há uma passagem do regime totêmico, regido pela identificação imaginária com o totem,
para o regime simbólico da Lei do pai, do Nome-do-Pai. Segundo Éric Laurent, “O totem
nomeia uma descendência mediante uma identificação com um nome, descendência sem fim,
animal, ao passo que a Akedah supõe um nome que só se sustenta na eficácia de seu dizer.”
(LAURENT, 2007, p.74). Essa eficácia na enunciação da Lei paterna é garantida, na
narrativa, pela intervenção do anjo que detém o punhal de Abraão, apontando-lhe o
verdadeiro objeto de sacrifício. Inaugura-se assim, a partir do gume do punhal de Abraão, o
primeiro corte - a castração - que assegura um enlace inédito: a paternidade e o vínculo de
filiação que ela instaura. Conforme afirma Lacan, é da castração “que provém o que é
propriamente a sucessão” (LACAN, 1969-70/1992, p.114), ou seja, aquilo que efetivamente
se transmite de pai para filho. A Lei tramitada pela barakah (do hebraico, benção) paterna
efetiva um corte com a descendência biológica do homem, para instituir o enlace com a
benção da palavra do pai. Esse é o corolário da “desconstrução lacaniana do pai freudiano”
(LAURENT, 2007, p.74), que desembocará, no final do seu ensino, na redução do Nome-do-
Pai a um puro instrumento, ferramenta que só assume seu valor a partir do uso particular que
cada sujeito, em sua diferença absoluta, faz dela.
Lacan é conduzido, dessa forma, ao paradoxo que se estabelece entre a universalidade
da função paterna, corolário da inscrição normativa do Nome-do-Pai, e a particularidade de
seu gozo, de sua ex-sistência enquanto pai real, verdadeiro agente da castração.
108
É assim que se estabelece a passagem do pai mítico freudiano ao pai real, operador
estrutural lacaniano, que intervém separando a criança da mãe. Esta separação, instaurada a
partir da intervenção da linguagem, se enuncia, para a mãe, por um: “não reintegrarás teu
produto” (LACAN, 1957-58/1999, p.209), e para a criança: “não te deitarás com tua mãe”
(LACAN, 1957-58/1999, p.209), já que fez sua opção pelo falo.
O que é sacrificado de bem para o desejo (...) -, essa libra de carne é justamente
aquilo com o que a religião desempenha seu ofício e que se aplica em recuperar. É o
único traço comum a todas as religiões, isso se estende a toda a religião, a todo o
sentido religioso. (LACAN, 1959-60/1988, p.377).
Essas indicações abrem caminho para pensar a economia do sacrifício, ligada a uma
compulsão à recuperação do gozo perdido no campo do sentido. Econômico é o sacrifício que
faz intervir a dimensão simbólica (S1 S2), estancando a entropia da perda de gozo e
111
37
“Culpa de sangre.”
113
Nesse matema, Lacan indica que o imperativo categórico kantiano pode ser
interpelado, ao nível de sua pura enunciação, pela vontade de gozo sadiana. O desejo (d),
estruturalmente sustentado pela demarcação fantasmática ($ punção de a), desliza sub-
repticiamente para a vontade de gozo (V), operando uma inversão de lugares entre o sujeito e
o objeto de gozo (a punção de $). O sujeito sadiano se oferece masoquisticamente como
instrumento da vontade do deus obscuro (V), realizando-se como a voz de comando que
ordena o gozo (a). Obtém-se, mediante o acosso da divisão subjetiva da vítima sacrificial ($),
um sujeito bruto do prazer, que encarna o desmentido sobre a castração (S).
Essas perspectivas, articuladas à problemática do sacrifício, foram assinaladas de
forma resumida por Patrick Guyomard (GUYOMARD, 2007), em uma conferência onde ele
discute formas perversas de apropriação da lei, em uma época dominada pelo discurso da
ciência. Segundo esse autor, o sacrifício é o termo que constitui a própria fronteira entre as
vertentes do desejo e do gozo, ou seja, ele constitui o domínio próprio da relação de
extimidade, estabelecida entre o registro real e o registro simbólico. Em sua vertente
simbólica, o sacrifício liberta (GUYOMARD, 2007); em sua vertente gozoza, ele
invariavelmente supõe “uma dominação, um esmagamento ao qual o desejo se opõe.”
(GUYOMARD, 2007, p.43). Deve-se considerar ainda, conforme alerta Guyomard (2007), a
possibilidade de uma relativa indiferenciação entre essas vertentes do sacrifício, já que as
fronteiras que as demarcam podem, em certos momentos, se tornar tênues, e mesmo se
apagarem.
114
Com efeito, não tenho nenhuma garantia que este Outro, o sistema do Outro, possa
me devolver o que lhe dei - seu ser e sua essência de verdade. Não há, eu lhes disse,
Outro do Outro. Não há no Outro nenhum significante que possa no caso responder
pelo que sou. (LACAN, 1958-59/1986, p.47).
É a parte de vocês que foi sacrificada aí, não sacrificada fisicamente como se diz, ou
realmente, mas simbolicamente. Esta parte de vocês, que adquiriu função
significante, há só uma, é a função enigmática que chamamos o falo (...) Dito de
outra forma, tão sacrificada quanto ela esteja ao Outro, sua vida não é, ao sujeito,
devolvida pelo Outro. (LACAN, 1958-59/1986, p.47).
O que ocorre com o sujeito enquanto tenha sido simbolicamente castrado? Ele foi
simbolicamente castrado no nível de sua posição como sujeito falante e não no nível
de seu ser. Seu ser tem de fazer o luto do que ele ofereceu em sacrifício, em
holocausto á função do significante falante. (LACAN, 1958-59/1986, p.84).
Assim que seja significada no campo do Outro, essa perda originária convocará o
sujeito para um trabalho de luto, que implica na separação do objeto perdido. Aqui se dispõe
115
para ele uma escolha forçada, entre seu ser em falta, e a perda do objeto a, seu suposto
complemento, ao qual é mais apegado do que a si mesmo.
Lacan propõe uma perspectiva inédita no tocante ao conceito de castração em
psicanálise, ao torná-la equivalente a um sacrifício simbólico. Contrariando a tradicional
concepção de castração veiculada pelo revisionismo pós-freudiano, que a concebe como um
fato traumático cuja lembrança evocaria horror e evitação, Lacan propõe o inverso.
Mas essa castração, contrariando essa aparência, é algo a que ele se apega. O que o
neurótico não quer, o que ele recusa encarniçadamente até o fim da análise, é
sacrificar sua castração ao gozo do Outro, deixando-o servir-se dela (LACAN,
1960/1998, p.841).
Então o que está em questão no sacrifício é a própria falta, a própria castração, que até
o momento de sua negativação no campo do Outro, encontra-se velada pelo semblante fálico,
cristalizado por Freud (1937/1991) na célebre metáfora de um rochedo intransponível. A
formulação que melhor lhe corresponde seria: tudo menos isso.
Na perspectiva lacaniana, o falo é designado como significante que falta no campo do
Outro, descompletando-o e assinalando-o como desejante, introduzindo, assim, o sujeito na
metonímia do desejo. Para aceder ao ‘ter’ da dimensão desejante dos dons, é necessário que se
sacrifique o gozo de ‘ser’ o falo, objeto que preencheria a falta do Outro. Nessa perspectiva, a
castração é separadora e normativa, pois a custo de um sacrifício, ela refreia o gozo no campo
do Outro e o restitui, “na escala invertida da Lei do desejo.” (LACAN, 1960/1998, p.841).
trabalho de luto e a reação melancólica. O trabalho de luto é caracterizado por uma retirada
dos investimentos amorosos do objeto, acompanhada da liberação da libido nele retida,
permitindo ao sujeito separar-se dele e reinvestir a libido liberada em outro objeto. Na reação
melancólica, o sofrimento vem acompanhado de “recriminações e ofensas à própria pessoa”,
podendo chegar “a uma delirante expectativa de punição.” (FREUD, 1917 [1915] /2010
p.173). “No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio eu.”
(FREUD, 1917 [1915] /2010, p.176).
Essa distinção, situada em nível tópico por Freud, indica que na melancolia, não há um
trabalho psíquico em torno da perda; o sujeito é arrastado por ela, sem possibilidade de
restabelecer os laços que o ligam à vida. O trabalho do luto não consiste apenas em separar-se
do objeto perdido, mas também em restabelecer uma nova forma de enlace com ele, através
do remanejamento dos investimentos libidinais. Caso esse reinvestimento fracasse, a libido
retida no objeto reflui para o eu de forma devastadora, como se pode constatar no auto-
martírio melancólico. Nesse caso, a sombra do objeto recai sobre o sujeito, e as trevas da
obscura necessidade de castigo prevalecem sobre o enlace com o Outro. Ou seja, a
identificação com o objeto abandonado provoca uma irreparável hemorragia narcísica,
acompanhada do colapso da demarcação fantasmática, que se dissolve na ausência do luto
separatório.
Se no referido texto Freud (1917 [1915] /2010) indica o caráter ambivalente da
identificação, afirmando que a auto-recriminação melancólica nada mais é do que um retorno
da hostilidade dirigida originalmente ao objeto perdido, no texto “Neuroses de Transferência”
(1915/1987), ele vai mais além, destacando que o objeto em questão é o pai primevo. “O luto
pelo pai primitivo emana da identificação com ele, e tal identificação provamos ser a condição
do mecanismo da melancolia.” (FREUD, 1915/1987, p.80). Além disso, Freud acrescenta que
o ciclo entre mania e melancolia, observado em alguns casos, pode ser comparado à “(...)
sucessão semelhante de triunfo e luto que forma o conteúdo regular das festividades
religiosas. Luto pela morte de Deus; alegria triunfal na sua ressurreição.” (FREUD,
1915/1987, p.80).
Na medida em que se identifica com o pai morto, o sujeito dirige a si mesmo todo o
ódio e ressentimento que estava inicialmente voltado para ele. Não há a metaforização deste
pai morto, que permitiria reconstituí-lo na escala invertida do laço social como pai simbólico
da Lei, mas sim sua foraclusão, que encontra formas selvagens de retorno. Quinet (1997,
117
p.125) afirma que, nesse caso, não há identificação com o pai simbólico, mas sim “com o furo
deixado pelo pai morto, com este vazio. (...) Se o sujeito não consegue a incorporação
simbólica, o que lhe resta é a identificação com o vazio deixado pelo pai, com o pai ausente”.
Segundo Ambertín, o luto pode ser entendido como a “subjetivação de uma perda”
(2009a, p.115), “um trabalho de separação e, ao mesmo tempo, de enlace com o objeto
perdido.” (2009a, 118). Pode-se pensar que esse trabalho consiste em restabelecer os marcos
do enquadre fantasmático da realidade, abalado pela perda do objeto amado. Após o abalo, as
fronteiras que demarcam a separação entre o sujeito e o campo do Outro se apagam, e novas
referências precisam ser estabelecidas. Efetivar esse trabalho é tarefa dispendiosa e
necessária; àquele que a recusa, resta o funesto destino de reviver a nostalgia do pai morto, no
que ele tem de pior. Nessa via, nada mais resta ao sujeito senão o tormento permanente ligado
à culpa e à autoimolação, verdadeira incitação ao auto-sacrifício, que anula qualquer
possibilidade de diferenciação com relação ao objeto sacrificado.
Ao desvendar o mecanismo da identificação, Freud (1921/2010) abriu o caminho para
o entendimento de que o sujeito se constitui a partir de um traço tomado do campo do Outro.
O traço unário celebra o gozo que irrompe quando, “confrontado com o significante
primordial, o sujeito vem, pela primeira vez, à posição de se assujeitar a ele.” (LACAN,
1964/1988, p.260). No sacrifício, essa operação de divisão subjetiva se apresentará como uma
dualidade irredutível entre o sacrificante ($) e o objeto sacrificado (a). Os limiares que
sustentam a separação entre esses dois polos tornam-se tênues a ponto de esfumar-se,
fazendo-se necessária a intervenção dos rituais separadores.
Desde os estudos de Mauss e Hubert (1968 [1899] /2005), sabe-se que existe uma
função diferenciadora nos rituais de sacrifício, que visam estabelecer um limiar entre o
sacrificante (profano) e sua oferenda (sagrada), em uma zona demarcada. Lacan (1958-
59/1986) considerou a importância dos ritos funerários no processo de luto, assinalando que
eles fazem intervir o registro simbólico como resposta ao vazio deixado pela perda do objeto,
vivida pelo sujeito no registro narcísico:
O trabalho de luto pode ser situado no tocante à dimensão econômica das duas
vertentes do sacrifício, mencionadas anteriormente: aquele que estabelece a aliança e aquele
que a dissolve. Considerá-lo no contexto histórico da época atual, marcada pela ascensão do
discurso capitalista, aparelhado pela tecnociência, constitui ocasião oportuna para aprofundar
a pesquisa em direção à referida segunda vertente do sacrifício. Qual é o impacto desse
discurso de índole totalitária e segregacionista sobre o sacrifício, entendido como limiar
êxtimo entre o desejo e o gozo?
Primeiramente, deve-se considerar, conforme já advertia Lacan (1962-63/2005,
p.301) em sua época, que o fato de termos perdido nossos deuses “na grande feira
civilizadora” não deve nos fazer esquecer que, durante um longo período da história, sua
presença se impunha a ponto de suscitar desavenças com os homens.
A questão toda era saber se esses deuses desejavam alguma coisa. O sacrifício
consistia em agir como se eles desejassem como nós, e se desejavam como nós, o a
teria a mesma estrutura. Isso não quer dizer que eles engulam o que lhes
sacrificamos, nem tampouco que isso possa lhes servir para alguma coisa; o
importante é que o desejem e, direi ainda, que isso não os angustie. (LACAN, 1962-
63/2005, p.302).
sentido, o sacrifício se institui como discurso, e está sujeito às mesmas diretrizes que regulam,
de maneira geral, as diferentes modalidades de laço social: “A referência de um discurso é
aquilo que ele confessa querer dominar, querer amestrar. Isto basta para catalogá-lo em
parentesco com o discurso do mestre.” (LACAN, 1969-70/1992, p.65). A domesticação dos
Deuses, empreendida no ato sacrificial, pode ser entendida como forma de refrear e amestrar
o gozo no campo do Outro, buscando apaziguá-lo. Quando esse propósito fracassa, o enlace
simbólico com o Outro se rompe, emergindo daí a angústia, diante do objeto despido de seu
semblante agalmático.
Conforme indica Ambertín (2009a), as práticas sacrificiais assumem um caráter
universal no mundo humano. Sua origem pode ser remontada às mais antigas narrativas e
costumes, e elas nunca deixaram de marcar presença na vida dos povos. Em povos antigos,
essas práticas buscavam angariar favores junto às divindades, como por exemplo, garantir que
o sol renasceria no horizonte a cada dia, em troca de um derramamento de sangue.
Em sua história, os seres humanos sempre mantiveram o hábito de atribuir suas
venturas e desgraças a uma instância superior e transcendente: Deus, a Providência ou o
Destino. Na atualidade, no contexto das sociedades secularizadas, dominadas pelo mercado e
administradas pelas modernas tecnologias de gestão, a economia do sacrifício se modificou,
bem como a significação que a ele se atribui. Se as práticas sacrificiais se mantêm vivas e
atuantes - ainda que tenham mudado seu estatuto – isso se deve à persistência das ameaças
advindas de “uma potência colérica” (AMBERTÍN, 2009a, p.34), de caráter maléfico,
denominadas por Freud de “império das pulsões malignas” (FREUD, 1907/1991, p.109,
38
tradução nossa) , e por Lacan de “deuses obscuros.” (LACAN, 1964/1988, p.259). “Nós as
especificamos como espreita do real.” (AMBERTÍN, 2009a, p.34).
Freud sabia muito bem que as eclosões do real, acompanhadas do seu potencial
dessubjetivante, nunca cessam, por mais que a civilização tecnocientífica tenha possibilitado
ao próprio homem se constituir como um “deus protético.” (FREUD, 2010/1930, p.52).
Mesmo paramentado pelo arsenal tecnológico proporcionado pelo avanço da ciência, o
homem contemporâneo não está imune ao mal estar de sua época. Freud também não
desconhecia que, no fundamento de quaisquer das instâncias superiores reconhecidas pelos
homens, residia um inelutável apelo a um “pai grandiosamente elevado.” (FREUD,
1930/2010, p.27). No fundo de sua alegada descrença, o homem desencantado e desamparado
38
“Imperio de pulsiones malignas”.
121
Como se sabe, o quadro de Holbein exerceu grande impacto no escritor russo Fiodor
Dostoiévski, servindo-lhe como fonte de inspiração para a escrita do romance “O idiota”
(DOSTOIÉVSKI, 1869/2002), um de seus livros mais aclamados. Ao deparar-se pela
primeira vez com esse quadro, no Museu de Basiléia, o escritor ficou estupefato,
permanecendo diante dele em um transe que durou por longos minutos. Esse efeito de
sideração foi transferido a um dos protagonistas do romance, o príncipe Míchkin, que em
122
determinado momento exclama: “Este quadro!... Este quadro! Mas sabes que ao olhá-lo, um
crente pode perder a fé.” (DOSTOIÉVSKI apud KRISTEVA, 1989, p.103).
Em uma publicação sobre “O Cristo morto na tumba”, Julia Kristeva (1989) comenta
que a tradição da iconografia italiana enaltece o semblante de Cristo em suas representações,
sempre adotando o cuidado de cercar o seu corpo com a presença de outros personagens, com
os quais o observador possa se identificar. Trata-se de um recurso iconográfico que sugere a
atitude que nós próprios deveríamos adotar diante da paixão de Cristo: reverência pelo
sofrimento do mártir e regozijo pela sua ressurreição.
No quadro de Holbein, contudo, o Cristo é deixado absolutamente só, abandonado sem
nenhuma mediação que se interponha entre o espectador e a melancólica nudez de sua morte.
A solidão do cadáver se conjuga, na imagem, com o realismo cru da pedra tumular; ela fecha,
claustrofobicamente, qualquer possibilidade de transcendência para um além: “esse cadáver
não se levantará mais.” (KRISTEVA, 1989, p.105).
Completamente abandonado pelo pai, o Cristo morto de Holbein não oferece nenhuma
perspectiva ao espectador; o sepulcro é talhado na mesma medida que o cadáver ali exposto,
sem nenhum ponto de fuga que permita vislumbrar a saída da tumba. Percebe-se assim que o
sacrifício falhou em sua eficácia espiritual e simbólica, comprometendo o trâmite entre a
esfera profana e a divina. Nesse sentido, o Cristo morto de Holbein é o homo sacer, matável e
insacrificável em seu abandono. Sua herança é o desamparo irremediável, consagrado pela
violência e mera matabilidade, sem nenhuma eficácia sagrada. Em suma, o quadro de Holbein
representa muito bem o desamparo do homem moderno, para quem Deus está morto. Estará
esse homem à altura da exigência do trabalho de luto, implicada nessa perda?
39
“El sacrificio humano de masas adquirió estatus de simple práctica gestionaría”.
124
Uma sociedade como essa não apenas participa deste sacrifício incalculável, como
também o organiza. O bom funcionamento de sua ordem econômica, política,
jurídica, o bom funcionamento de seu discurso moral e de sua boa consciência
supõem a operação permanente deste sacrifício. (DERRIDA, 2000, p.85, tradução
nossa) 44.
40
“En nuestras sociedades industrialistas son necesarios los holocaustos o la explotación de grupos reducidos a
veces al estado de subhumanidad para que la cuestión sacrificial vuelva a aflorar en el discurso”.
41
“Era del gobierno tecno-científico.”
42
“Gestión ultramoderna.”
43
“El resto del mundo hambriento, la inmensa mayoría de hombres.”
44
“Una sociedad así no sólo participa de este sacrificio incalculable, sino que lo organiza. El buen
funcionamiento de su orden económico, político, jurídico, el buen funcionamiento de su discurso moral y de su
buena conciencia suponen la operación permanente de este sacrificio”.
125
45
“Degeneración catastrófica”.
126
proporcionado por ele. Sendo assim, na medida em que o poder político se aproxima do pacto
simbólico, estabelecido em torno da autoridade, a violência é um sintoma que indica a
degradação desse pacto. O fracasso do enlace político não é prerrogativa dos regimes
francamente autoritários; ele pode muito bem ocorrer em regimes democráticos, que também
não estão a salvo das mazelas da violência, a exemplo do Brasil, conforme se viu na pesquisa
documental apresentada no primeiro capítulo.
Tal como hoje se pode constatar, o campo da decisão política é subsumido sob o
primado do “poder anônimo dos administradores.” (ARENDT, 1969/2011, p.103). A figura
do soberano, do líder carismático, cede lugar para as modernas tecnologias de gestão
automatizada, que assumem o ar de uma “tirania sem tirano.” (ARENDT, 1969/2011, p.101).
A burocratização das instituições políticas é uma consequência da complexificação da vida
em sociedades de massa, que criam novas necessidades e demandam dispositivos de controle
cada vez mais sofisticados. “Quanto maior torna-se um país em termos populacionais, de
objetos e posses, tanto maior será a necessidade de administração, e com ela, o poder anônimo
dos administradores.” (ARENDT, 1969/2011, p.103). Conforme já se disse, a implicação
desse modo automatizado de gestão é a cessão de responsabilidade. Afinal, quando não há
quem decida, ninguém se responsabiliza.
Alguns anos após essas reflexões, estabelecidas por Hannah Arendt, Michel Foucault
(1999) cunhou o termo biopolítica, para se referir ás técnicas emergentes de gestão
tecnocrática das populações, constituídas a partir da segunda metade do século XVIII.
Segundo Foucault, o auxílio do conhecimento produzido pelas ciências emergentes forneceu
subsídios para que a biopolítica se exercesse positivamente sobre a vida, promovendo a sua
gestão, manutenção, majoração e multiplicação, assegurada pelo mote fazer viver e deixar
morrer. Difere-se, portanto, do poder soberano, que pauta-se pela divisa fazer morrer e
“deixar viver.” (FOUCAULT, 1999, p.130).
O ponto de ancoragem do aparato normativo biopolítico é o indivíduo tomado como
membro de uma espécie, despojado de toda forma de determinação simbólica ou política.
Esse desnudamento do sujeito político tornou-se crescente em decorrência dos avanços do
discurso científico, que estendeu ramificações em direção à formulação de tecnologias de
gestão das populações.
Foucault alertava que o surgimento da biopolítica teria provocado uma mudança
radical no modo de funcionamento do sistema jurídico. Essa mudança, assegura ele, é a “a
127
importância crescente assumida pela atuação da norma, a expensas do sistema jurídico da lei.”
(1999, p.135). Isso não quer dizer que a lei, e o aparato jurídico que a sustenta tende a
desaparecer, mas sim que
(...) a lei funciona cada vez mais como norma, e que a instituição judiciária se
integra cada vez mais num contínuo de aparelhos (médicos, administrativos etc.)
cujas funções são sobretudo reguladoras. Uma sociedade normalizadora é o efeito
histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida. (FOUCAULT, 1999, p.135).
A autora destaca que, apesar de ter estado sempre presente na vida política dos povos,
o racismo nunca havia chegado a produzir “novas categorias de pensamento político.”
(1951/1989, p.214). A partir do século XIX, o racismo é promovido como ideologia oficial de
Estado, servindo como princípio da segregação de populações indesejadas. Tornava-se, dessa
forma, elemento fundamental nas propagandas veiculadas pelo Estado, que encontrava nele
meio para angariar apoio popular e força para a adoção de políticas cada vez mais sectárias e
segregacionistas. O que se seguiu às elaborações de Arendt (1951/1989) foi uma escalada,
sem precedentes, do processo de biologização da dimensão política, confirmando, dessa
forma, as teses sustentadas pela autora.
Tendo ultrapassado o “limiar de modernidade biológica” (FOUCAULT, 1999, p.134),
as atuais democracias ocidentais complexificaram seus dispositivos de gestão das populações,
ocasionando uma profunda modificação na economia do poder. Contando com um
aparelhamento tecnocientífico cada vez mais sofisticado, o poder passa a incidir cada vez
mais na dimensão biológica, em detrimento da dimensão política. Seu corolário é a
degradação do espaço político ás custas da animalização do homem. Se ao longo de dois
milênios o homem permaneceu o que era para Aristóteles – “um animal vivo e, além disso,
capaz de existência política - o homem moderno é um animal, em cuja política, sua vida de
ser vivo está em questão.” (FOUCAULT, 1999, p.134).
Esses apontamentos de Foucault vão de encontro às teses desenvolvidas por Hannah
Arendt, em seu livro “A condição humana.” (1958/2007). Segundo ela, o bios politikos
aristotélico
(...) denotava explicitamente somente a esfera dos assuntos humanos, com ênfase na
ação, praxis, necessária para estabelecê-la e mantê-la. Nem o labor nem o trabalho
eram tidos como suficientemente dignos para constituir um bios, um modo de vida
autônomo e autenticamente humano; uma vez que serviam e produziam o que era
necessário e útil, não podiam ser livres e independentes das necessidades e privações
humanas. (ARENDT, 1958/2007, p.21).
Pode-se considerar então que a vida de ser vivo (zoe), referida por Foucault (1999), é
justamente aquela que os gregos limitavam à esfera doméstica do lar (oikos), sendo a ela
correspondentes formas apolíticas de existência: o labor escravo à custa do suor da testa, e o
labor do parto das mulheres, que, como se sabe, também não estavam incluídas no seleto
129
grupo de cidadãos da polis. No labor escravo, entrava em jogo o trabalho como produção dos
meios de subsistência biológica do homem; no labor da mulher, o que estava em jogo era a
reprodução dos meios de subsistência biológica da espécie. Ora, nenhuma dessas duas formas
de labor era considerada pelos gregos como dignas o suficiente para serem qualificadas de
políticas. Tratavam-se, para eles, de formas fúteis de existência, na medida em que
aprisionavam os sujeitos nelas envolvidos aos grilhões da necessidade, a imperiosa ananké,
urgência da vida com vistas à sobrevivência.
O campo político só poderia ser efetivado por sujeitos que estivessem liberados da
urgência imperiosa das necessidades naturais. Somente esses estariam aptos a exercer sua
liberdade, verdadeiro corolário da ação política.
(...) a ação é a única que não pode sequer ser imaginada fora da sociedade dos
homens. A atividade do labor não requer a presença de outros, mas um ser que
‘laborasse’ em completa solidão não seria humano, e sim um animal laborans no
sentido mais literal da expressão. (ARENDT, 1958/2007, p.31).
Coube a Giorgio Agamben (2002) o mérito de retomar o fio das reflexões de Hannah
Arendt sobre o totalitarismo, aliadas aos desenvolvimentos foucaultianos em torno da
131
biopolítica. Agamben (2002) afirma que, entre esses autores, há um ponto de conexão
encoberto, denunciador das dificuldades suscitadas por esse tema. E é desse ponto que parte
Agamben para formular sua teoria política, cuja lógica não desconsidera a razão sacrificial.
Ao retomar as análises foucaultianas, Agamben reconsidera o conceito de soberania,
que Foucault havia deixado em segundo plano ao estabelecer sua analítica do poder. Dessa
forma, em sua análise, busca-se circunscrever a zona de “intersecção entre o modelo jurídico-
institucional e o modelo biopolítico do poder.” (AGAMBEN, 2002, p.14). Desse ponto de
vista, a biopolítica não pode ser pensada separadamente da soberania, uma vez que ambas
colocam em jogo o paradigma da exceção como fundamento do poder.
Diferentemente de Foucault, que considerava a biopolítica como uma produção
moderna, que viria paulatinamente ocupar o lugar do poder soberano, Agamben considera que
há uma estreita vinculação entre eles, presente desde sua gênese. Trata-se, portanto, de um
vínculo originário que enlaça a exceção soberana àquilo que o filósofo nomeia como vida nua
(AGAMBEN, 2002).
Com o termo vida nua Agamben (2002) se refere a formas marginalizadas e indignas
de existência, que não são revestidas pelo manto protetor do ordenamento jurídico. Trata-se
de sujeitos que vivem em condições de absoluto abandono por parte do Estado de Direito, e
enfrentam uma das mais paradoxais facetas do desamparo, sendo despidos da condição de
cidadania e de quaisquer direitos constitucionais que, supostamente, deveriam ser universais.
Conforme já foi mencionado, Agamben (2002) resgatou do antigo direito romano o termo
homo sacer para se referir a essas categorias de marginalização jurídica, sem clara
delimitação simbólica.
O homo sacer é o nome das vidas indignas de serem vividas, sendo por isso matável e
insacrificável, ou seja, seu extermínio não constitui crime nem sacrifício, mas rebotalho,
despojo que pode, em todo caso, ser contabilizado como estatística pelo sistema normativo.
Destaca-se aí a “especificidade do homo sacer: a impunidade de sua morte e o veto de
sacrifício.” (AGAMBEN, 2002, p.81). Nem criminoso perante as leis do Estado, nem vítima
sacrificial perante a lei divina, essa figura que habita as margens do ordenamento jurídico não
está à altura de se constituir como oferenda sacrificial pacificadora. O interesse de situar o
lugar desse obscuro personagem, para Agamben, reside no fato de que, apesar de estar à
margem do referido ordenamento, ele habita o seu cerne. Dessa forma, ele pode ser
132
46
“Soberano es quien decide sobre el estado de excepción.”
133
constituir como francas oposições para mergulhar na indistinção. Nessa zona cinzenta, “terra
de ninguém” (AGAMBEN, 2007a, p.12), constitui-se a ambiguidade fundamental do campo
do direito, desnudada na atualidade: de um lado, a normalização generalizada proporcionada
pela engrenagem biopolítica e, de outro, a anômica encarnação da lei na figura do soberano.
No primeiro pólo, constitui-se a vida nua, insacrificável e inominável do homo sacer; no
segundo, a decisão soberana, que ao suspender a lei, assume sua força.
Que o estado de exceção tenha se tornado regra, ou seja, estratégia ordinária e
permanente de gestão biopolítica na atualidade, não constitui novidade para aqueles que
conhecem os desenvolvimentos agambeanos, bem como as teses de Walter Benjamin sobre o
47
conceito de história. Retomando a oitava tese desse manuscrito , Agamben (2007a) afirma
que a exceção e a regra se tornaram indiscerníveis na atualidade, impossibilitando pensá-las
como pares de opostos. Essa indiscernibilidade torna ainda mais tênue o véu que encobria a
proximidade estrutural do poder soberano com a vida nua.
Para corroborar esta tese, não é necessário limitar-se apenas ao exemplo paradigmático
48
dos lager nazistas, marco histórico do paroxismo da generalização do estado de exceção.
No contexto atual, vale mencionar a Military order (UNITED STATES OF AMERICA,
49
2001) , promulgada pelo presidente americano George Bush, após os atentados de 11 de
setembro de 2001, que autoriza e legitima a detenção, por tempo indeterminado, de suspeitos
de envolvimento com atividades terroristas. A partir dessa ordem, esses sujeitos tornam-se
juridicamente inomináveis e inclassificáveis: não são reconhecidos como criminosos
(protegidos pelos direitos civis), nem como prisioneiros de guerra (protegidos pela Convenção
de Genebra). São denominados como terroristas pelo poder soberano, que lhes designa um
lugar que não deixa de evocar uma sinistra homologia com sua condição política: a prisão de
Guantánamo, considerada extensão do território americano, mas localizada fora dele. Trata-se
de um campo de detenção localizado em Cuba, e que a partir de 2002, tornou-se destino dos
suspeitos de envolvimento com atividades terroristas.
No contexto histórico da realidade brasileira, há exemplos paradigmáticos da
generalização do lugar de exceção referida por Agamben, como é o caso dos porões da
47
“A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral.
Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade” (BENJAMIN, 1940/1987, p.226,
aspas do autor).
48
Campos de concentração e/ou extermínio
49
Ordem militar de 13/11/2001. Detenção, tratamento e julgamento de certos não-cidadãos na guerra contra o
terrorismo.
134
50
“Mas também certas periferias das grandes cidades pós-industriais e as gated communities estadunidenses
começam, hoje, a assemelhar-se, nesse sentido, aos campos, nos quais vida nua e vida política entram, ao menos
em determinados momentos, numa zona de absoluta indeterminação”.
135
cidadão é potencialmente vida nua, passível de captura pelos dispositivos biopolíticos que
operam à margem da lei. Nesse sentido, os propalados ideais democráticos de igualdade,
liberdade e dignidade da vida humana são encobridores de uma “fratura biopolítica
fundamental” (AGAMBEN, 2015, p.37) que cinde o espaço político entre a pátria e o campo
e, também, o habitante da polis entre o cidadão e a vida nua.
Ernesto Laclau (2008), filósofo político argentino, foi um dos teóricos que se opôs a
essa tese, alegando que ela fecha o horizonte de qualquer possibilidade real de ação política
emancipatória, desembocando no niilismo político. Não se pretende, nesta ocasião, estender o
debate que Laclau propôs em torno de uma série de elementos das proposições de Agamben,
mas apenas destacar que as elaborações deste último não são imunes a críticas; antes pelo
contrário, receberam várias delas. Vale a pena conferir, acerca disso, o excelente artigo “O
futuro anterior: Giorgio Agamben e o método paradigmático” (FAVARETTO, 2014),
ricamente documentado com vasta bibliografia sobre o assunto.
A retomada da discussão em torno das críticas suscitadas pela publicação de “Homo
Sacer – O poder soberano e a vida nua” (2002) constituiu, para Agamben, uma oportunidade
para esclarecer melhor seus critérios metodológicos. Em seu livro “Signatura rerum” (2009),
o autor esclarece que, para chegar à consideração do campo de concentração como paradigma
biopolítico na atualidade, utilizou um método paradigmático similar ao procedimento
metodológico adotado por Foucault (1975/1999) no estudo do panóptico. Trata-se de elevar
um determinado modelo de organização do espaço político (o panóptico, por exemplo) à
condição de paradigma demonstrativo, com potencial para elucidar as relações de poder em
contextos e épocas diversos, trazendo à tona certos elementos que, de outro modo,
permaneceriam ocultos.
Dessa forma, assim como Foucault (1975/1999) elevou o panóptico à dignidade de
paradigma da configuração do espaço político das emergentes sociedades liberais, pautadas
pela incidência generalizada de dispositivos disciplinares, Agamben (2002) situou o campo
como paradigma de configuração das democracias contemporâneas, atravessadas pela
generalização do estado de exceção.
Do ponto de vista da psicanálise, é possível estabelecer uma leitura das propostas de
ambos os autores, procurando delimitar os fundamentos da biopolítica a partir dos elementos
mínimos situados por Lacan (1969-70/1992) em sua teoria dos quatro discursos. Isso é o que
assegura o filósofo esloveno Slavoj Zizek (2004, tradução nossa) em um artigo intitulado “O
136
51
Homo sacer como objeto do discurso da universidade” . Segundo Zizek (2004), desde sua
primeira delimitação em Foucault até os desenvolvimentos posteriores propostos por
Agamben em torno da vida nua, a biopolítica pode ser situada a partir da estrutura do discurso
universitário, tal como matemizado por Lacan (1969-70/1992). O discurso universitário
esclarece o funcionamento do automaton burocrático, o ‘saber sem sujeito’ agenciado pelas
modernas tecnologias científicas de gestão.
51
El Homo sacer como objeto del discurso de la universidad.
137
52
Carl Phillip Gottlieb von Clausewitz, general e estrategista militar prussiano.
53
“La imagen última del tratamiento a las ‘poblaciones locales’ como homo sacer es quizás la de un avión de
guerra norteamericano sobrevolando Afganistán y del que nunca se está seguro de lo que va. a soltar: bombas o
paquetes de comida . . . Así pues, podemos decir efectivamente que, con la actual " guerra contra el terror", la
guerra misma -ese último dominio del discurso, del Amo- ha sido integrada finalmente en el discurso de la
Universidad”. (ZIZEK, 2004, p.47).
138
Durante o século XX, o surgimento dos campos de concentração no seio dos grandes
estados unificados assinala o início de uma mudança crucial no estatuto da decisão soberana,
no contexto da biopolítica moderna: soberano, então, torna-se “aquele que decide sobre o
valor ou sobre o desvalor da vida enquanto tal” (AGAMBEN, 2002, p.149). Essa mudança
advém a partir de uma profunda crise no sistema de inscrição da vida no espaço político,
pautado pelo nexo entre cidadania e território. Os desdobramentos dessa crise podem ser
constatados na atualidade, em cujo contexto a política se converte em biopolítica (ou
tanatopolítica) e o cidadão é reduzido à sua vida nua, na condição de homo sacer.
54
Não escapou a Michel Foucault o nexo estrutural trans-histórico entre a segregação e os campos de
concentração: “Os campos de concentração, que foram conhecidos em todos esses países, foram para o século
139
Nesse sentido, os campos devem ser distinguidos das penitenciárias, uma vez que
seus habitantes não são considerados infratores de quaisquer leis vigentes em um determinado
Estado. “Em hipótese alguma deve o campo de concentração transformar-se em castigo
previsível para um crime definido” (ARENDT, 1951/1989, p.499), ou seja, o campo funciona
à margem do ordenamento jurídico-penal, e a condição dos sujeitos aí capturados deve ser
diferenciada daquela do criminoso comum, que responde por uma determinada infração
referida a esse ordenamento.
Inclusive no contexto da história do Brasil, foi possível encontrar referências
relativas à existência de campos de concentração no estado do Ceará, conhecidos como
“currais do governo” (ROCHA, 2008). Esses campos serviam como espaços de confinamento
de flagelados da seca de 1932, e tinham por finalidade resguardar as cidades de saques e
invasões. Os sujeitos ali confinados eram mantidos em uma condição sub-humana, vindo
eventualmente a morrer de fome, ou por conta de alguma moléstia.
De acordo com um levantamento bibliográfico feito a respeito dos campos de
concentração, pôde-se constatar que eles foram criados para funcionar em diferentes
contextos, de acordo com as conjunturas específicas do contexto geográfico e histórico
considerado. Foi somente a partir do surgimento dos regimes totalitários, contudo, que os
campos deixaram de ser uma medida de caráter extraordinário, aplicada em situação de
guerra; tornaram-se então uma prática comum, aplicada de forma sistemática nos gulags 55 da
Rússia revolucionária, e na Alemanha nazista, a partir da década de 1930. Doravante, os
campos deixaram de ser um recurso provisório de emergência para se tornar “uma solução de
rotina para o problema domiciliar dos refugiados e deslocados de guerra.” (ARENDT,
1951/1989, p.312). O que é inédito, a partir desse momento, é o surgimento de populações
inteiras nessa condição de anomia jurídica.
XX o que as famosas vilas operárias, o que os famosos pardieiros operários, o que a famosa mortalidade operária
foram para os contemporâneos de Marx.” (FOUCAULT, 1977/2006, p.225).
55
Campos de trabalhos forçados.
140
(...) o homem sem Estado - um fora-da-lei por definição - era uma ‘anomalia para a
qual não existia posição apropriada na estrutura da lei geral’, ficava completamente
à mercê da polícia, que, por sua vez, não hesitava muito em cometer atos ilegais para
diminuir a carga de indésirables no país. Em outras palavras, o Estado, insistindo em
seu soberano direito de expulsão, era forçado, pela natureza ilegal da condição de
apátrida, a cometer atos confessadamente ilegais. (ARENDT, 1951/1989, p.317).
Hannah Arendt (1951/1989, p.489) costumava sublinhar que o estudo dos campos de
concentração era fundamental para se entender o que realmente estava em jogo para o regime
totalitário, pois eles estão longe de ser mera margem, ou periferia da estrutura política;
constituem “a verdadeira instituição central do poder organizacional totalitário”.
A zona anômica estabelecida no habitat dos campos não é causa, mas consequência
do processo de despolitização da vida, provocada pelo avanço das estratégias biopolíticas de
controle absoluto. Antes que se pudesse estabelecer esse controle, tornou-se necessário “matar
a pessoa jurídica do homem” (ARENDT, 1951/1989, 498), ou seja, privá-lo de seus direitos e
141
garantias constitucionais, assegurados por lei. Criou-se, dessa forma, uma categoria
inominável de sujeitos que excedia o sistema jurídico. Em seguida, delimitou-se um território
destinado a abrigar e conter esses sujeitos, à margem da legislação penal em vigor.
Esse processo de despolitização da vida tornou-se evidente na estratégia adotada pelo
regime nazista: antes de enviar os judeus para os campos, adotou-se uma série de
procedimentos prévios, como despojá-los de sua cidadania e segregá-los em guetos, à margem
das cidades. Após esses procedimentos iniciais, transportou-se essa população para os campos
de concentração, que foram posteriormente transformados em campos de extermínio. Dessa
forma, antes de exterminar esses indivíduos, pôde-se certificar que eles não eram
reivindicados por ninguém.
A condição de absoluto desamparo político e jurídico de certas categorias de sujeitos,
imposta pelo estado de exceção permanente decretado pela Alemanha nazista, possibilitou ao
mundo testemunhar os efeitos devastadores dos laboratórios tanatopolíticos, erigidos para um
novo tipo de experimento: “fabricar algo que não existe, isto é, um tipo de espécie humana
que se assemelhe a outras espécies animais” (ARENDT, 1951/1998, p.488). Para cumprir esse
encargo sinistro, criou-se um espaço onde vigora um “domínio total”, que não se deixa
seduzir nem por “motivos utilitários” (ARENDT, 1951/1989, p.488), nem pelo pathos das
inclinações pessoais. Enfim, um lugar onde “tudo é possível” (ARENDT, 1951/1989, p.488),
pois apesar da presença de massivos mecanismos de controle, reina uma absoluta ausência de
lei.
O campo alia as formas mais selvagens de segregação com a degradação de qualquer
vestígio de dignidade humana, ocasionando o aniquilamento de qualquer rastro de
singularidade ou espontaneidade, enfim, apagando toda diferenciação subjetiva que permita
distinguir um indivíduo do outro. No campo, todos os internos têm o mesmo estatuto: vida
nua, marcada pela indigência jurídica e pelo anonimato. O estatuto desses sujeitos é
politicamente indefinido, ou seja, eles não gozam de nenhum reconhecimento civil por parte
do Estado a que pertencem. Sem a investidura simbólica que lhes proporcionaria inscrição no
ordenamento político-jurídico, eles assumem, assim, a condição de vida indigna e descartável,
excedentes indesejáveis e perigosos.
Segundo Agamben (2002), o campo é o espaço que se instaura quando o estado de
exceção torna-se regra. Nessas condições, o lugar da exceção deixa de existir como tal. A
partir das contribuições da psicanálise, sabe-se que essa exceção é normativa, pois ela
142
constitui o próprio fundamento do enlace da Lei com o desejo. A exceção é o lugar que deve
permanecer hiante, de modo que o ordenamento significante possa se articular em torno do
primado fálico da Lei. Torná-la regra, tal como acontece nos regimes biopolíticos da
atualidade, é anulá-la. Qualquer consistência que se queira conferir a este lugar da exceção,
destinado a permanecer vazio, acarreta o pior: “Quando nosso tempo procurou dar uma
localização visível permanente a este ilocalizável, o resultado foi o campo de concentração”
(AGAMBEN, 2002, p.27). O campo surge, portanto, como símbolo da incurável paixão de
nossa época: buscar, a todo custo, complementar o Outro, pacificá-lo, conferir-lhe a
derradeira consistência. Tais são os princípios da aposta sacrificial, que se prolonga nos dias
de hoje.
Do ponto de vista da psicanálise, pode-se dizer que, durante o estado de exceção,
vigora a Lei de Talião, em Freud (1913/1987), ou as ordens de ferro, em Lacan (1974/s.d.);
trata-se de versões rebaixadas e degradadas do Nome-do-Pai, que reduzem a pátria ao campo,
zona de exceção permanente, na qual se coloca em jogo a “consistência última do poder
soberano” (AGAMBEN, 2002, p.149). Tal consistência pode ser remetida, na terminologia
aqui adotada, aos paradoxos dos Nomes-do-Pai. Hannah Arendt (1951/1989, p.312) mostrou-
se sensível a esses paradoxos, abordando-os à sua maneira ao indicar que o campo de
concentração não constituiu um problema, mas sim uma solução:
com mais força”, na medida em que “ela é efeito da linguagem.” (LACAN, 1969-70/1992,
p.170).
Por outro lado, Lacan nunca deixou de enfatizar que a segregação é estrutural, haja
vista que ela integra a lógica que está no próprio fundamento do laço social. Sendo ela
inerente à incidência da linguagem na estruturação do laço social, cabe afirmar que não há
ordenamento simbólico que não opere por meio da segregação. Segregar também significa
discriminar, diferenciar, separar, organizar e categorizar, princípios que estão no fundamento
dos diversos discursos que estruturam a racionalidade ocidental: a ciência, o direito e a
filosofia.
Como a noção de segregação não é desenvolvida de forma sistemática por Lacan em
seu ensino, convém atentar para os diferentes sentidos que ela assume em psicanálise. Ao
proceder dessa forma, evita-se incorrer em banalizações que a diluam em uma compreensão
estritamente sociológica, tornando-a equivalente à marginalização ou exclusão social.
Vale dizer, nesse sentido, que a segregação não é um termo que se aplica
exclusivamente às populações desfavorecidas e marginalizadas; ela pode ser também referida
às elites, como no exemplo dos esportes de inverno, mencionado com certa ironia por Lacan
(1962-63/2005, p.163), no qual se refere a um “campo de concentração da velhice abastada”.
Tratar-se-ia, nesse caso, de uma solução para o problema do crescente envelhecimento
populacional. A partir disso, deve-se advertir, conforme as indicações de Sidi Askofaré
(2009), que a problemática da segregação emerge na teoria lacaniana articulada sob duas
perspectivas diversas, que não são equivalentes entre si.
Primeiramente, a segregação pode ser entendida como um efeito reverso da
homogeneização e massificação orquestrada pelo discurso capitalista na civilização
tecnocientífica. Nessa perspectiva, ela pode ser entendida como uma prática imanente ao
zeitgeist da época 56. Porém, ao introduzir a temática do “Para além do complexo de Édipo”
em uma lição do seminário “O avesso da psicanálise”, Lacan (1969-70/1992) situa a
segregação como a contrapartida necessária à fraternidade requerida para a estruturação do
laço social. Nesse sentido, a segregação é estrutural, operando a partir das incidências do
significante mestre - princípio ordenador do laço social nos quatro discursos - não sendo mais
considerada apenas como um efeito exclusivo do discurso capitalista e/ou tecnocientífico.
56
A este propósito ver CRUZ, Alexandre Dutra Gomes; FERRARI, Ilka Franco. Práticas sacrificiais na
atualidade: o paradigmático exemplo da segregação. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 65, n. 2, p. 165-180,
2013.
146
57
“(...) nuevos campos de concentración y exterminio”.
147
2005, p.107). Surge, dessa forma, a necessidade de imunizar o corpo social, mediante a
segregação e eventual expurgo de seus segmentos corrompidos pela miséria.
No Brasil, o fenômeno da segregação urbana e residencial é revelador dos
antagonismos típicos de uma sociedade marcada pela injustiça social: a elite abastada se isola
em condomínios de luxo, enquanto a ralé se amontoa nos guetos e favelas densamente
povoados. A segregação, que opera na demarcação de territórios no espaço urbano, incide
primeiramente no campo da linguagem, constituindo os assim chamados muros invisíveis do
racismo. Os estigmas criados a partir daí constituem exemplos das nomeações da ordem de
ferro.
Um exemplo disso, típico da realidade social brasileira, é a percepção banal de que os
problemas da violência e da criminalidade são efeitos diretos da situação de pobreza que
marca a vida de parte da população, particularmente nos grandes centros urbanos e em suas
imediações. Tal percepção não é exclusividade da mídia sensacionalista, que noticia as
megaoperações nas favelas; essa nada mais faz do que reverberar esse ponto de vista, que já é
dominante entre aqueles que moram no ‘asfalto’, ou seja, do outro lado do muro.
Alba Zaluar (1994), antropóloga brasileira que há muitos anos vem desenvolvendo
reflexões sobre a violência, a criminalidade e o racismo, assinala que os estigmas sociais
reforçam a hostilidade dirigida contra as classes desfavorecidas. Seus integrantes, constituídos
predominantemente por pessoas negras e pobres, são considerados cidadãos de segunda
classe, elementos sempre suspeitos durante as operações policiais. Para todos os efeitos, eles
são considerados perigosos até que provem a idoneidade de seu caráter. Ou seja, que são
trabalhadores, e não vagabundos ou bandidos.
Zaluar (1994) comenta que o estigma de periculosidade imposto a esses sujeitos
acabam muitas vezes por se confirmar, tornando-se profecias autocumpridas. Dessa forma, ao
se referir à escolha pela vida criminosa por parte de jovens residentes nas favelas, a
antropóloga considera que
58
Trata-se de uma referência ao estadista romano Júlio César, utilizada por Lacan no seminário inédito “Ato
psicanalítico” (1967-68/s.d.) como uma metáfora para se referir ao caráter transgressor e irreversível do ato de
149
uma nova vida: a vida no crime. Zaluar (1994, p.22) articula o processo que conduz o jovem
às veredas do “condomínio do diabo”, ou seja, à opção pela vida no crime, ao trinômio
“repressão-medo-revolta” (ZALUAR, 1994, p.16). Destinatário das cenas de opressão,
arbitrariedade e violência protagonizadas pelos agentes policiais, esse jovem, acossado pelo
medo e pela impotência, prefere revoltar-se a submeter-se passivamente aos caprichos dessa
figura obcena do grande Outro. “A bolsa ou a vida!”, já dizia Lacan (1964/1988, p.201). É
matar ou morrer, diz o jovem.
Por outro lado, na perspectiva do opressor, incluindo aí não apenas os policiais
diretamente envolvidos em ações violentas, mas também as autoridades que as ordenam, a
mídia sensacionalista que as alardeia e o cidadão que as prestigia, “a associação entre pobreza
e criminalidade não é uma hipótese passível de discussão.” (ZALUAR, 1994, p.46); eles
próprios se encarregam de sancioná-la definitivamente, mediante suas ações.
É interessante perceber que o espectro do autoritarismo paira não apenas sobre a visão
das autoridades e agentes do estado; ele encontra-se amplamente difundido na sociedade,
entre os cidadãos de classe média e alta, que não apenas aprovam a violência policial, como
clamam por mais rigor nos castigos. É o que constata Zaluar (1994, p.46), depois de analisar
2000 questionários de uma pesquisa sobre a criminalidade no Rio de Janeiro:
Vê-se assim que, no país do carnaval, nem mesmo a punição de criminosos deveria
constituir exceção ao massivo apelo do espetáculo. Os ritos de suplício e execução de
criminosos, conforme já assinalava Foucault (1975/1999), deveriam ser tão ou mais violentos
do que o próprio crime cometido por eles, assinalando a gloriosa vingança do soberano contra
o malfeitor e a catarse coletiva, proporcionada pela expiação do mal. Dessa forma, segundo os
elementos de análise trazidos pela pesquisadora, e a partir das contribuições de Foucault,
pode-se afirmar que o clamor popular pelo endurecimento das medidas punitivas implica em
atravessar o Rio Rubicão. Nas coordenadas geopolíticas da época, isso configurava um ato de guerra, a partir do
qual o líder militar se convertia em um inimigo da República.
150
4 – CONCLUSÃO
reconhecimento de filiação e pertença, o sujeito cai como resto, libra de carne sacrificada aos
mandatos supereuóicos do Outro. Essas diferentes vertentes do sacrifício nada mais fazem do
que repercutir os paradoxos dos Nomes-do-Pai, que estão em sua raiz. Ao desembocarem no
campo político, eles se reverberam nas múltiplas versões do pai que aí emergem: a Lei, a
pátria, a autoridade, o herói e assim sucessivamente.
Freud já advertia que governar, juntamente a educar e psicanalisar, constituem três
ofícios impossíveis. Dizer que são impossíveis significa que essas tarefas jamais são
conduzidas com êxito pleno: por estarem vinculadas ao amestramento do gozo, elas sempre
deixam um resto, marca da incompletude que lhes é inerente. A observação freudiana assume
seu devido valor quando se considera que a política é um dos Nomes-do-Pai, exercendo uma
função de regulação do gozo a partir do agenciamento do significante mestre (S1). Lacan
(1966-67/2008, p.350) já o assinalava, ao afirmar que “O inconsciente é a política”,
designando assim o enlace moebiano que articula o que há de mais íntimo e singular em cada
um à tessitura do laço social.
Conforme afirma Francisco Pereña (1996), o pacto democrático constitui uma pré-
condição para a psicanálise, pois ele reconhece a diversidade e não denega a verdade da
castração. Ainda segundo o autor, a democracia que se deseja não é apenas aquela que
reivindica os direitos do cidadão, tão em voga hoje em dia, mas poder-se-ia dizer também,
aquela que consente com a inconsistência do Outro, possibilitando assim o luto pelo declínio
do pai ideal. Conforme já ensinava Freud (1913/1987), o pai vale metaforicamente como Lei
apenas depois de morto e pranteado. A elaboração desse luto é vital, no sentido de viabilizar o
consentimento com a dívida simbólica, instaurada pela herança paterna. Essa indicação está
presente na célebre passagem de Goethe, que Freud (1913/1987, p.160) tanto apreciava:
“Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu”.
Em uma publicação que hoje já se tornou referência para os psicanalistas de
orientação lacaniana, Éric Laurent (2007) delineia os contornos do analista cidadão,
assinalando a importância do engajamento do desejo daquele que sustenta a prática analítica
com o enlace político proporcionado pela democracia. Se for verdade que quem quer os fins,
quer também suas condições, pode-se dizer que não há como desconsiderar a comunidade de
interesses que enlaça a psicanálise e a democracia. Essas indicações poderiam facilmente
levar o leitor desavisado a pensar que os psicanalistas engrossariam as fileiras dos entusiastas
da democracia. Nesse ponto Laurent (2004) recomenda cautela, ao considerar que, na
153
59
“(...) ‘nuevas autoridades’ declaran de buen grado la suspensión de los derechos humanos en su comunidad
discursiva”.
60
“¿Cómo soportar la inconsistencia del Otro sin ceder al imperativo de goce del superyó?”
154
expressivo apoio popular. Não é difícil reconhecê-lo, quando propõe falar em nome do povo,
silenciando e desqualificando as vozes discordantes. Nesse contexto, as ordens de ferro e seu
poder para nomear, indicados por Lacan (1974/s.d.), se realizam na legitimação do ato de
designar o inimigo a ser perseguido, combatido e, eventualmente, exterminado. Isso ficou
evidente, como se viu, à luz da doutrina do direito penal do inimigo, que confere legitimidade
jurídica às medidas preventivas de segurança, com vistas a neutralizar indivíduos
considerados perigosos. Na verdade, quando o direito penal do cidadão é suspenso, o que vem
em seu lugar não pode ser mais ser chamado de direito, pois ele implica, segundo Agamben
(2007a, p.61), uma pura vigência sem aplicabilidade: a “força-de-lei”. Ao se generalizar, o
estado de exceção, enquanto topos anômico situado à margem do Estado de Direito, assinala
não apenas o declínio, mas a pulverização da exceção fundadora, que a psicanálise ensina a
reconhecer como tributária do Nome-do-Pai. A questão passa a ser referida, portanto, ao que
veio ocupar o seu lugar.
O avanço da investigação, rumo à biopolítica e à gestão de vidas matáveis, viabilizou a
articulação entre a problemática da segregação e o paradigma do campo de concentração, tal
como abordado por Arendt (1951/1989) e Agamben (2002; 2007a). Seguindo as indicações
desses autores, viu-se que os campos de concentração não constituem apenas uma margem,
mas o próprio cerne do universo concentracionário. Vale lembrar, nesse sentido, que o
predomínio da regência democrática, sob os auspícios do Estado de Direito, de forma alguma
significou a derrocada do espectro do totalitarismo, e muito menos, o fim dos campos de
concentração. Arendt (1951/1989, 511) já advertia que “as soluções totalitárias podem muito
bem sobreviver à queda dos regimes totalitários sob a forma de forte tentação que surgirá
sempre que pareça impossível aliviar a miséria política, social ou econômica de um modo
digno do homem”. Agamben (2007a, p.13), por sua vez, alerta que, na atualidade, vigora um
totalitarismo moderno a partir da declaração de uma “guerra civil legal” que autoriza “a
eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de
cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político.” Esse tipo de
guerra constitui, hoje, prática gestionária comum nos estados democráticos contemporâneos,
que oscilam em “um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo.”
(AGAMBEN, 2007a, p.13).
Essas indicações foram fundamentais, no sentido de esclarecer que a contrapartida da
generalização do estado de exceção, típica dos dias atuais, é a proliferação dos campos de
155
concentração, bem como a produção em larga escala de vidas matáveis. Além disso, a partir
da leitura proposta por Michel Foucault (1999), pôde-se perceber que o reverso do declínio da
Lei é a ascensão do aparato normativo biopolítico, que incide sobre os corpos e as vidas dos
cidadãos, despolitizando-os. Entre as diretrizes desse colossal aparato normativo, destacam-se
a multiplicação de expedientes burocráticos e medidas extrajudiciais de ocasião, que nunca se
exercem sem opressão e violência.
Assim como os Nomes-do-Pai, a biopolítica também é atravessada por paradoxos.
Talvez o principal deles seja considerar que um regime calcado na gestão burocrática e
calculista da vida, com vistas ao seu prolongamento e majoração, se revele uma máquina letal,
com o potencial para segregar e massacrar populações inteiras. A partir dessas reflexões,
concluiu-se que a biopolítica generaliza o lugar da exceção, destituindo o sujeito do seu estofo
simbólico ao promover uma gestão integral da vida - vida nua, supérflua e indigna - e por
isso, matável e insacrificável.
Lacan (1970/2003), em sua época, não havia deixado de indicar que a ascensão do
objeto a ao zênite social constituía corolário da extensão sem limites do discurso capitalista,
devidamente paramentado pelas tecnociências. Não se contentando em profetizar a escalada
do racismo e dos processos de segregação daí decorrentes, ele propôs, ao longo do seu ensino,
diversas indicações acerca do posicionamento da psicanálise diante dessas questões. Em uma
delas, pertinente ao contexto que aqui se aborda, ele recomenda que, diante da foraclusão da
verdade da castração, agenciada pelo discurso da ciência, a psicanálise reintroduza o Nome-
do-Pai na consideração científica (LACAN, 1965-66/1998), e porque não dizê-lo também, na
consideração política.
Para uma justa apreciação dessa indicação, concernente ao posicionamento do
psicanalista confrontado com o despudor obsceno do gozo sacrificial, não é demais evocar um
trecho da entrevista concedida por Freud ao jornalista americano George Sylvester Viereck,
em 1926. Nessa entrevista, o jornalista assume diante de Freud uma posição de interlocutor
ingênuo, incitando-lhe com perguntas provocadoras. Em determinado momento da entrevista,
ele comenta que tem a impressão de que a psicanálise desperta em seus praticantes o espírito
da caridade cristã. Isso, segundo ele, porque ela seria capaz de elucidar os aspectos mais
torpes e sombrios da existência humana. Para concluir seu raciocínio, Viereck (1926, tradução
61
nossa) evoca o célebre provérbio francês: “tudo compreender é tudo perdoar”. Freud
61
“Tout comprendre, c'est tout pardonner”.
156
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