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Considerações sobre o
Cinema na Teoria Crítica.
Adorno e Kluge:
um diálogo possível
CONSIDERATIONS ABOUT CINEMA IN
CRITICAL THEORY. ADORNO AND KLUGE:
A POSSIBLE DIALOGUE
Resumo Este artigo problematiza a idéia comum, e presente em trabalhos acadêmi-
cos, segundo a qual o filósofo Theodor Adorno nada entendeu de cinema e que sua
postura em face do tema restringiu-se às críticas elaboradas por ele e Max Horkhei-
mer, em Dialética do Esclarecimento. Neste estudo, constato que, precisamente quan-
to a esse livro, os autores têm como referência o cinema hollywoodiano. Desconsi-
derar esse fato é descontextualizar a crítica que elaboraram ao cinema. Adorno refletiu
sobre cinema em outras obras (“Transparencies on film” e Composing for the Films),
nas quais apontou a possibilidade de um cinema nos moldes de uma arte emancipada.
Por fim, influenciou teoricamente (e foi influenciado por) Alexander Kluge, um dos
principais cineastas e líderes do Novo Cinema Alemão. A contribuição de Adorno
para a análise do cinema é um campo ainda a ser mais bem pesquisado e requer ul-
trapassar o senso comum acadêmico hegemônico na área.
ROBSON LOUREIRO
Universidade Federal
Palavras-chave CINEMA – ESCOLA DE FRANKFURT – ADORNO – KLUGE – NOVO do Espírito Santo (UFES)
CINEMA ALEMÃO. robbsonn@uol.com.br

Abstract The article aims to question the ordinary idea present in some studies,
according to which the philosopher Theodor Adorno understood nothing about
cinema and his knowledge regarding this theme was limited to the critiques Max
Horkheimer and him made in the Dialectic of Enlightenment. In this article I verified
that as for this book in particular, the authors had the hollywoodian cinema as
reference. Disregarding this fact means taking out of context their critiques on
cinema. Adorno reflected about cinema in other works (Transparencies on film and
Composing for the films), in which he signalizes the possibility of a film production as
an emancipated art. He influenced theoretically (and was influenced by) Alexander
Kluge, one of the principal filmmakers and leaders of the New German Cinema.
Adorno’s contribution for cinema’s analysis is a field to be better researched and
requires that one overcomes the hegemonic academic thought.

Keywords CINEMA – FRANKFURT SCHOOL – ADORNO – KLUGE – NEW GERMAN


CINEMA.

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INTRODUÇÃO

L
oureiro e Della Fonte sugerem que a relação entre
educação e cinema tem sido abordada pela produção
acadêmica brasileira, em especial na área educacional,
de forma incipiente e irregular.1 Os autores também
concluem como ainda tímidas as investigações que
buscam a contribuição da tradição marxista para a aná-
lise dessa relação. Nos poucos estudos sobre educação
e cinema vinculados a essa tendência teórica, o desta-
que é para a Escola de Frankfurt. Acontece que essa
presença se faz acompanhar de uma perspectiva desistoricizada, que se
expressa na polarização entre o “otimismo” de Walter Benjamin e o “pes-
simismo” de Theodor W. Adorno em relação ao cinema.
A defesa dessa polarização não se restringe apenas a autores do
campo educacional. Em seu livro Dos Meios às Mediações: comunicação,
cultura e hegemonia, Martin-Barbero afirma que Adorno tinha o cinema
como o expoente máximo da degradação cultural.2 O autor confronta
Adorno e Benjamin, explicitando sua tendência em defesa do último, por
parecer mais “otimista” quanto ao cinema:
Adorno, como Duhamel – de quem afirmou Benjamin: “Odeia cinema e não
entendeu nada de sua importância” –, se empenha em prosseguir julgando as
novas práticas e as novas experiências culturais a partir de uma hipóstase da
arte que o impede de entender o enriquecimento perceptivo que o cinema nos
traz ao permitir-nos ver não tanto coisas novas, mas outra maneira de ver ve-
lhas coisas e até da mais sórdida cotidianidade.3

Nessa mesma direção, Adorno é analisado por Hollows.4 A autora


enfatiza que nem Adorno nem Horkheimer acreditaram na possível exis-
tência de um bom cinema e, por isso, não houve, na apreciação desen-
volvida por eles, nenhuma oportunidade de se vislumbrar uma produção
fílmica alternativa.
Essas críticas precisam ser mais bem examinadas, pois sinalizam
uma certa apropriação da tradição da Escola de Frankfurt presente em al-
guns estudos sobre cinema e/ou educação e cinema, tendendo a descon-
siderar evidências históricas e teóricas importantes. Dessa forma, o ob-
jetivo deste artigo é problematizar a idéia comum de acordo com a qual
Adorno nada entendeu de cinema e que sua postura em face do tema res-
tringiu-se inexoravelmente a críticas pessimistas. Como em geral esse
pessimismo de Adorno é depreendido das reflexões realizadas por ele e
por Horkheimer, em “Indústria cultural: o esclarecimento como mistifi-
cação das massas”,5 analiso esse texto com base na sua interlocução his-

1 LOUREIRO, 2003; LOUREIRO & DELLA FONTE, 2003.


2 MARTIN-BARBERO, 2001.
3 Ibid., p. 87.
4 HOLLOWS, 1995.
5 ADORNO & HORKHEIMER, 1985.

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tórica com o cinema de Hollywood. Discuto, exílio norte-americano dos autores. Tendo em
também, algumas considerações adornianas so- vista o cinema de Hollywood, eles enfatizam que,
bre o cinema presentes em “Transparencies on ao ultrapassar de longe o teatro de ilusões, o ci-
film”6 e no livro Composing for the Films.7 nema oblitera a fantasia e o pensamento dos es-
Ao longo deste artigo, desenvolvo duas hi- pectadores, fazendo-os passear e divagar no qua-
póteses. Na hipótese número 1, observo que, já dro da obra fílmica, mas sem que tenham o con-
em 1947, em Composing for the Films,8 Adorno trole dos dados exatos da película. Considerando
parece apontar um campo mais amplo de possi- a maior parte da produção hollywoodiana à época
bilidades e de aliados no campo cinematográfico, (década de 1940), destacam que o cinema adestra
tendência que se mostrou mais explícita nos seus o espectador, pois este, entregue a seus filmes,
textos de 1964 a 1969. Já na hipótese número 2, neles identifica imediatamente a própria realida-
afirmo que o Novo Cinema Alemão exerceu im- de.11 Os filmes são produzidos de tal modo que
portante influência sobre a asserção de Adorno sua apreensão adequada exige certa presteza, dom
quanto à possibilidade de conceber o cinema de observação e conhecimentos específicos. Con-
como arte emancipatória. Nesse sentido, exami- tudo, é exatamente essa dinâmica que dificulta e
no como Adorno influenciou (e foi influenciado) obscurece a atividade intelectual do público, caso
teoricamente por Alexander Kluge, um dos prin- este não queira perder a efemeridade dos fatos
cipais cineastas e líderes do Novo Cinema Ale- que passam ligeiramente na tela.
mão, tendo sido incentivador e colaborador na Os autores defendem que o esforço do es-
inserção de Kluge no ambiente cinematográfico. pectador está tão fortemente inculcado, que não
ADORNO E O CINEMA: precisa ser atualizado em cada caso para realçar a
PROSSEGUINDO UMA CONVERSA imaginação. Quem se deixa absorver no universo
Em “Adorno e cinema: um início de con- do filme “pelos gestos, imagens, palavras”, a pon-
versa”, Silva afirma que Adorno não desenvolveu to de não precisar acrescentar aquilo que fez dele
uma teoria acabada sobre cinema.9 Ele lembra um universo, não precisa necessariamente estar
que, apesar de Adorno ter escrito Composing for inteiramente dominado no momento da exibição
the Films em co-autoria com o compositor pelos seus efeitos particulares. Isso ocorre, subli-
Hanns Eisler, a maior parte das reflexões sobre a nham os autores, porque o público já foi molda-
temática está diluída na sua obra. Em consonân- do e ensinado pela indústria do entretenimento a
cia com essa observação preliminar, não pretendo ter uma reação automática e a se antecipar e es-
reivindicar que os escritos de Adorno oferecem a perar os dados imagéticos veiculados na tela.12
teoria ou o método de estética do filme, e sim Adorno e Horkheimer apresentam a hipó-
mostrar que suas reflexões podem, ao menos, si- tese de que, se a maioria dos cinemas e rádios fos-
nalizar direções interessantes para se pensar uma
11 Aqui caberia uma discussão um pouco mais detida sobre o caráter
teoria ou um método de estética para o cinema. mimético dos vários meios da indústria cultural, entre eles, o cinema.
Ao analisar o julgamento de Adorno quan- Grosso modo, em Teoria Estética, Adorno salienta que a “A arte objec-
tiva o impulso mimético” (ADORNO, 1982, p. 316). No entanto, ao
to à indústria fílmica, é muito comum levar em tentar aderir e se igualar à realidade, à natureza, a arte se torna uma
conta, notadamente, o capítulo “Indústria cultu- outra realidade, ou seja, “Ao querer transformar-se num outro, seme-
lhante ao objecto, a obra de arte torna-se dele dissemelhante. Só na
ral: o esclarecimento como mistificação das mas- auto-alienação através da imitação é que o sujeito se fortifica de modo
sas”, no qual Adorno e Horkheimer realizam a sacudir o sortilégio da imitação” (Ibid, p. 137). É essa relação dialética
inerente ao impulso mimético que a maior parte da cinematografia
uma diatribe à indústria cultural.10 Não se deve hollywoodiana tende a negar. Com efeito, é nessa direção que se torna
esquecer, entretanto, que esse texto foi escrito no compreensível o sentido dado por Adorno e Horkheimer ao adestra-
mento do espectador pelo cinema hollywoodiano, pois, para eles, “A
velha experiência do espectador de cinema, que percebe a rua como um
6 ADORNO, 2004a. prolongamento do filme que acabou de ver, porque este pretende ele
7 ADORNO & EISLER, 1994. próprio reproduzir rigorosamente o mundo da percepção quotidiana,
8 Ibid. tornou-se a própria produção” (ADORNO & HORKHEIMER,
9 SILVA, 1999. 1985, p. 118).
10 ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 113-156. 12 Ibid., p. 119.

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se fechada, os consumidores provavelmente não produção fílmica. Inicia o texto observando que
sentiriam sua falta.13 Entendem que o cinema já “Os Oberhauseners atacaram o lixo produzido
não mais conduz ao sonho, tampouco à fantasia. nos últimos sessenta anos pela indústria fílmica
Porém, afirmam que o silenciar dos cinemas e rá- sob o epíteto de cinema de papai”.18 Ainda de for-
dios não se confundiria com um reacionário “as- ma bem ácida, destaca o caráter infantil e a regres-
salto às máquinas”. Haveria, talvez, a queixa de são industrialmente promovida por esse tipo de
uma dúzia de desiludidos, alguns poucos fanáti- cinema.
cos e as donas-de-casa que se refugiavam nos fil-
É inegável que o cinema de papai corresponde real-
mes que visavam integrá-las. mente ao que os consumidores querem, ou, talvez,
Mas haveria, para Adorno, alguma possibi- mais propriamente que ele lhes proporciona uma
lidade de o cinema tornar-se uma arte autêntica? regra inconsciente daquilo que eles não querem,
Considerando-se o texto “Indústria cultural: o isto é, algo diferente do que os têm satisfeito neste
esclarecimento como mistificação das massas”, instante. Caso contrário, a indústria cultural não
os autores oferecem evidências de que, se no âm- poderia ter se tornado uma cultura de massa.19
bito da atual sociedade administrada prevalece o Após uma breve consideração sobre os tra-
domínio dos artefatos da indústria cultural, difi- balhos de Charles Chaplin e Michelangelo Anto-
cultando a capacidade de entendimento e recru- nioni, Adorno afirma que, “Sem considerar a ori-
descendo os aspectos instrumentais da razão e da
gem tecnológica do cinema, a estética do filme
sensibilidade, dificilmente poderíamos encontrar
fará melhor, fundamentando-se em um modo
uma produção fílmica que fosse considerada arte
subjetivo de experiência ao qual o filme se asse-
e, nesse sentido, pudesse contribuir para estreme-
melha e que constitui sua característica artísti-
cer e entusiasmar as massas em direção a um es-
ca”.20 Com base nesses indícios, Silva escreve que
tranhamento do mundo administrado. Arte e en-
os escritos de 1964 a 1969
tretenimento seriam incompatíveis, pois, na soci-
edade administrada, “A diversão favorece a resig- parecem acusar uma inflexão nas posições de Ador-
nação que nela quer se esquecer”.14 no em relação ao cinema. Ao contrário do que
Todavia, em “Tranparencies on film”, de 1966, ocorria na grande maioria das passagens acerca do
cinema nos textos anteriores, as referências ao ci-
Adorno admite a possibilidade de o cinema vir a ser
nema parecem agora apontar para um campo de
arte emancipada.15 Para ele, “O filme emancipado
possibilidades e de aliados. As referências ao cinema
teria que retirar o seu caráter a priori coletivo do deixam de ser exclusivamente depreciativas e seu
contexto de atuação inconsciente e irracional, colo- vínculo com a indústria cultural deixa de ser um tó-
cando-o a serviço de intenções emancipatórias”.16 pico obsedante.21
Esse texto destaca as criativas experiências estéticas
de cineastas como Charles Chaplin, Michelangelo Tal posição é compartilhada também por
Antonioni e Volker Schlöndorff – um dos princi- outros autores. Mesmo levando-se em conta que
pais representantes da segunda geração pós-movi- Adorno e Horkheimer conceberam os filmes
mento de Oberhausen, de 1962. Adorno dosa suas como maus per se, Hollows observa que “Pela
críticas a Hollywood, à indústria cultural e ao metade dos anos de 1960, Adorno modifica sua
Heimatfilm17 com instigantes insights sobre a posição para sugerir que os filmes de baixa tec-
nologia que deliberadamente cortejaram a imper-
13 Ibid., p. 130. feição foram os que mais provavelmente tiveram
14 Ibid., p. 133.
15 ADORNO, 2004a.
méritos estéticos”.22
16 Ibid., p. 183-184.
17 Heimat pode ser traduzido como manifestação cultural ou folcló- 18 ADORNO, 2004a, p. 178.
rica de uma determinada região ou mesmo da pátria alemã. Durante o 19 Ibid., p. 184.
período nazi-fascista, os alemães enalteciam e celebravam, de maneira 20 Ibid., p. 180.
exacerbada, tudo o que fosse considerado Heimat (música, cinema, 21 SILVA, 1999.
arte em geral) como superior a qualquer outra manifestação. 22 HOLLOWS, 1995, p. 22-23.

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Para ser considerado arte, observa Adorno, Considerando as pistas apontadas, gostaria de
o filme deve apresentar-se na forma de uma re- sugerir e defender duas hipóteses. Na tensão com
creação objetiva de uma experiência em direção ao os argumentos de Silva e Hollows, formulo a hipó-
sujeito. Ele esclarece que, nas circunstâncias pre- tese número 1, de acordo com a qual, já em 1945,
sentes, quanto menos os filmes aparecem como Adorno apontava novas possibilidades estéticas do
arte, mais eles se tornam obra de arte.23 Essa pro- cinema, perspectiva que se mostrou mais explícita
posição pode relacionar-se à concepção adorniana nos seus textos de 1964 a 1969. A hipótese número
de potência negativa da obra de arte. Mesmo em 2 é de que o Novo Cinema Alemão exerceu impor-
um mundo governado pelas mercadorias e regido tante influência sobre a asserção de Adorno quanto
pelo uso pragmático instrumental da razão, alguns à possibilidade de o cinema ser uma arte emancipa-
indícios de negatividade podem emergir, sobretu- tória. Nesse sentido, preciso complementar meu ar-
do das obras de arte que deslocam a compreensão gumento e defender que Adorno influenciou o
e a sensibilidade do ordinário para o extraordinário Novo Cinema Alemão, especialmente a filmografia
da existência. Não obstante essa observação, do cineasta Alexander Kluge, tanto quanto foi in-
Adorno alerta que a potência negativa da obra de fluenciado por esse movimento.
arte por si só não leva ao estranhamento da socie-
Quanto ao tencionamento das assertivas de
dade administrada que tudo coisifica. Isso torna
Silva e Hollows, fundamento-me em Wigger-
necessária a mediação constante da auto-reflexão
shaus26 e Hansen27 para corroborar minha hipóte-
filosófica, pois, de acordo com ele, o pensamento
se número 1. Wiggershaus afirma que, no prefácio
filosófico ocorre em intervalos e precisa ser aco-
que compõe o livro Dialética do Esclarecimento:
metido por aquilo que o pensamento não é.24 A ri-
gor, resistir ao que foi previamente pensado e não fragmentos filosóficos, em sua versão impressa de
nadar a favor da corrente representam, para esse 1947, seus autores abstraem uma informação im-
autor, a força impulsionadora da filosofia. portante que constava da edição mimeografada de
1944, qual seja: “Grandes partes realizadas há mui-
Todavia, Adorno sustenta que, nas delimita-
to tempo só estão esperando a última redação. Elas
ções do mundo administrado, a técnica passa a do-
permitirão que se apresentem, também, os aspec-
minar o ser humano e a razão se instrumentaliza,
tos positivos da cultura de massa”.28 Wiggershaus
enaltecendo tudo o que se refere aos meios pelos
quais é possível a obtenção de lucro, em detrimento esclarece que “Essa noção de aspectos positivos da
de uma preocupação com a finalidade da ciência e cultura de massa e de desenvolvimento das formas
dos aparatos tecnológicos. O grande desafio, pois, positivas da cultura de massa achava-se, também,
é considerar até que ponto é possível afrontar a ten- em Komposition für den Film (Composição para o
são constitutiva entre o filme concebido como Filme), que Adorno redigiu em colaboração com
obra de arte e como uma das mercadorias da indús- Hanns Eisler, entre 1942 e 1945”.29
tria cultural, sem cair na armadilha fácil que consi- Hansen, por sua vez, também sugere que
dera possível despolitizar a obra de arte e estetizar Adorno realmente reconsiderou aquelas várias
a política. Como lembra Silva, seria mais interes- posições e críticas sobre cinema e as arranjou em
sante analisar a relação entre um possível cinema uma constelação diversa.30 Para ela, isso pode ser
concebido como “arte autônoma e a indústria cul- claramente observado na republicação, em 1969,
tural não como uma exclusão recíproca, mas como de Composing for the Films, texto que, como afir-
uma tensão constitutiva. O melhor cinema nunca ma, contradiz qualquer visão do clichê de Adorno
deixa de fazer parte da indústria cultural, mas nunca
deixa de tencioná-la e de forçar os seus limites”.25 26
27
WIGGERSHAUS, 2002.
HANSEN, 1981-1982.
28 ADORNO & HORKHEIMER apud WIGGERSHAUS, 2002, p.
23 ADORNO, 2004a. 352.
24 Idem, 1995, p. 21. 29 Ibid., p. 352.
25 SILVA, 1999, p. 126. 30 HANSEN, 1981-1982.

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como um mero elitista, um simples crítico teórico tria cultural. O cinema padrão de Hollywood do
da cultura de massas. período era marcado por uma “pretensão de ime-
Composing for the Films, cuja primeira edição diaticidade”, que mascarava as contradições ine-
foi publicada nos Estados Unidos em 1947, está di- rentes ao meio (sua natureza tecnológica e seu dis-
vidido em sete capítulos, todos dedicados à com- tanciamento administrativo). Eles sublinham que a
posição musical para o cinema. Nesse livro, seus au- música para o cinema serviu para ressaltar a ilusão
tores consideram que o cinema não pode ser enten- de imediaticidade e de vidas expostas, presentes
dido como um fenômeno isolado, uma específica nos filmes hollywoodianos, trazendo “a cena para
forma de arte. Sublinham que o filme pode somen- perto do público, tal como a cena traz, ela própria,
te ser compreendido como o meio de comunicação para perto por meio do close-up; a música trabalha
mais típico da indústria cultural contemporânea, ao para ‘interpor um revestimento humano entre o
utilizar a técnica de reprodução mecânica. Obser-
desenrolar da cena e os espectadores”.33
vam que os produtos populares da indústria cultu-
ral não podem ser concebidos como uma arte ori- Para esses autores, o uso da música no ci-
ginalmente criada para as massas, haja vista que esse nema deveria ser inspirado por considerações ob-
tipo de arte não mais existiria. Mesmo as ruínas da- jetivas, pelas exigências do trabalho. Asseguram
quela espontânea arte popular desapareceram nos que a relação entre as exigências objetivas e os
países industrializados. Aquele tipo de arte popular efeitos sobre os espectadores não é uma simples
espontânea, no melhor dos casos, sobrevive em al- oposição. Mesmo sobre o regime da indústria, o
gumas regiões agrárias subdesenvolvidas. Na era in- público não é apenas um registrador de fatos e
dustrial avançada, “as massas são compelidas a pro- personagens; por trás da concha de comporta-
curar por relaxamento e descanso a fim de repor o mentos convencionalizados como padrões, resis-
processo de trabalho; e essa necessidade das massas tência e espontaneidade ainda sobrevivem. Supor
é o ingrediente básico da cultura de massas. Sobre que a demanda do público é sempre “má” e o
ela desenvolveu-se uma poderosa indústria da di-
versão, que constantemente produz, satisfaz e re- 32 Vale lembrar que, à mesma época em que Adorno e Eisler trabalha-
vam em Composing for the Films, Horkheimer e Adorno estavam
produz novas necessidades”.31 envolvidos na produção da Dialética do Esclarecimento. No que tange
Não obstante essas impressões gerais, os au- à questão da técnica, no âmbito da indústria cultural, Adorno e
Horkheimer afirmam que “o terreno no qual a técnica conquista seu
tores explicam que aqueles insights críticos em di- poder sobre a sociedade é o poder que os economicamente mais fortes
reção às características da cultura industrializada exercem sobre a sociedade. A racionalidade técnica hoje é a racionali-
dade da própria dominação. Ela é o caráter compulsivo da sociedade
não poderiam ser mal compreendidos como uma alienada de si mesma. Os automóveis, as bombas e o cinema mantêm
sentimental glorificação do passado. Para eles, não coeso o todo e chega o momento em que seu elemento nivelador mos-
há nenhum acidente no fato de que a indústria cul- tra sua força na própria injustiça à qual servia. Por enquanto, a técnica
da indústria cultural levou apenas à padronização e à produção em
tural prosperou parasiticamente sobre as mercado- série, sacrificando o que fazia a diferença entre a lógica da obra e a do
rias da velha era individualista. A rigor, argumen- sistema social” (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 114). Já em
sua obra póstuma, Teoria Estética, quando Adorno escreve sobre a rela-
tam que a tecnologia, por si só, não pode ser res- ção entre técnica e obra de arte, argumenta que “A técnica não surgiu
ponsabilizada pelo barbarismo da indústria cultu- de nenhum modo como tapa-buracos a partir de fora, embora a histó-
ria da arte conheça momentos que se assemelham à revoluções
ral. No entanto, os desenvolvimentos técnicos, técnicas da produção material. Com a crescente subjectivação das
triunfo dessa indústria, não podem ser aceitos sob obras de arte, a livre disposição a seu respeito aumentou nos procedi-
mentos tradicionais. A tecnificação impõe a disponibilidade como
todas as circunstâncias, pois, segundo os autores, princípio. Para se legitimar, pode apelar para o facto de que as grandes
numa obra de arte, por exemplo, seriam determi- obras de arte tradicionais, que desde Palladio apenas intermitente-
mente estavam ligadas ao conhecimento dos processos técnicos, rece-
nados pelas exigências intrínsecas a ela própria.32 bem no entanto a sua autenticidade do critério da sua perfeição
Adorno e Eisler argumentam que o cinema técnica, até que a tecnologia faça explodir os processos tradicionais. É
retrospectivamente que a técnica se deve reconhecer como constitu-
não pode ser entendido isoladamente, mas so- inte da arte, mesmo para o passado, de um modo incomparavelmente
mente como o mais característico meio da indús- mais agudo do que o admite a ideologia cultural que, segundo ela
afirma, imagina a era técnica da arte como posteridade e declínio do
que outrora foi espontaneamente humano” (ADORNO, 1982, p. 75).
31 ADORNO & EISLER, 1994, p. LI. 33 ADORNO & EISLER, 1994, p. 58.

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ponto de vista dos especialistas é sempre “bom” vidades Anti-Americanas). Nesse fórum, em 1947,
é favorecer uma perigosa supersimplificação.34 o então representante Richard Nixon alegou a par-
O último capítulo é mesclado com uma ticipação de Eisler como agente comunista infiltra-
conclusão e sugestões para o trabalho nessa área. do nos círculos artísticos de Hollywood. Eisler foi
Embora analisem um tema específico para a in- o primeiro a entrar para a famosa lista vermelha de
dústria cinematográfica, Adorno e Eisler parecem Hollywood e, até a sua deportação para a Alema-
vislumbrar a possibilidade de uma estética fílmica nha, em 1948, não mais conseguiu trabalho como
contrária35 à predominante no contexto em que compositor nos Estados Unidos.39
estão escrevendo. Apesar da cáustica crítica à Para corroborar a hipótese número 2, recorro
maioria dos filmes de Hollywood, eles são bas- ao texto “Introduction to Adorno”, em que Han-
tante cautelosos e apresentam caminhos para sen explica que “A estética e a política de filme de
uma estética do cinema que supere a estética do Kluge foram elas próprias, de forma significativa,
clichê dos clássicos filmes produzidos nos estú- formadas por sua amizade com Adorno”.40 A au-
dios californianos, em especial no campo da com- tora contextualiza que o conceito de cinema de
posição musical. Vale lembrar, também, que am- Kluge advém de seu vínculo com a literatura, em es-
bos eram não apenas amigos, mas também admi- pecial do paradigma de discurso modernista dela.
ravam o trabalho de cineastas hollywoodianos Também chama a atenção para a inflexão atenta e o
como Charles Chaplin e Fritz Lang.36 reolhar de Adorno em direção ao cinema: “Pode ter
De fato, minha hipótese número 1 se for- sido desse detour ou, antes, da apropriação de uma
talece quando Adorno e Eisler, paradoxalmente, forma de arte tradicional para a estética do filme,
sustentam que a tecnologia poderia abrir infinitas além da fundamentação de Kluge na Teoria Crítica,
possibilidades para a obra de arte, numa época fu- que fez com que Adorno abandonasse sua crítica ao
tura. No entanto, “o mesmo princípio que per- filme como mass media e considerasse a possibili-
mitiu essas oportunidades também as vincula ao dade de uma prática cinematográfica alternativa”.41
grande negócio. A discussão da cultura industri- Hansen fundamenta-se em uma carta de Hei-
alizada deve mostrar a interação desses dois fato- de Schlüpmann, na qual esta autora escreve que “Se
res: o potencial estético da arte de massas no fu- Kluge foi influenciado por Adorno, também, por
turo, e seu caráter ideológico no presente”.37 sua vez, os últimos escritos de Adorno sobre filme
Vale sublinhar que, na primeira publicação de são tributários da sua amizade com Kluge, sem a qual
Composing for the Films, não consta o nome de eles não poderiam ter sido escritos”.42 Quanto ao li-
Adorno, temeroso com o tormento pré-macarthis- vro Composing for the Films, Hansen destaca: “Vinte
ta que já aterrorizava Hollywood, em especial com anos após a publicação na Alemanha Ocidental, em
a perseguição a Gehart, irmão de Hanns Eisler, e a 1949, Adorno autorizou uma versão alemã reconsti-
outros tantos amigos.38 O próprio Eisler foi vítima da tuída com um prefácio expressando sua esperança de
perseguição perpetrada pela House Un-American continuar o estudo e a teoria de música para o filme
Activities Committee (Comitê da Câmara de Ati- em cooperação com Alexander Kluge”.43
34
Após essas considerações, na próxima seção
Ibid., p. 121.
35 Essa estética já se manifestava, de modo incipiente, e contraditoria- apresento um panorama sobre o trabalho do inte-
mente, em produções fílmicas hollywoodianas. O leitmotiv estava asso- lectual, escritor, cineasta e produtor de televisão
ciado ao rompimento com a forma e o conteúdo daquelas produções
cujas narrativas conduziam o espectador a um eterno retorno do sempre Alexander Kluge, um dos responsáveis pela inova-
mesmo, impossibilitando maneiras criativas e emancipatórias de intera- ção do cinema alemão.
ção com a obra fílmica. As respostas prontas dos filmes mais dificulta-
vam a imaginação e a fantasia do que potencializavam o público a manter
um contato crítico com a película e a realidade na qual estava inserida. 39 LANG, 2004; e McCANN, G. “New introduction”, in:
36 Cf. ADORNO, 2004b; e McCANN, G. “New introduction”, in: ADORNO & EISLER, 1994.
ADORNO & EISLER, 1994. 40 HANSEN, 1981-1982, p. 194.
37 ADORNO & EISLER, 1994, p. LII-LIII. 41 Ibid., p. 194.
38 Cf. HANSEN, 1981-1982; McCANN, G. “New introduction”, in: 42 Ibid.
ADORNO & EISLER, 1994; e LANG, 2004. 43 Ibid., p. 194.

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ALEXANDER KLUGE: UM CINEASTA nha Ocidental. O manifesto de Oberhausen pro-


NA TRADIÇÃO DA TEORIA CRÍTICA clamou a morte do antigo cinema alemão, tornan-
É mentira que os mortos estejam mortos. do possível o surgimento de um novo gênero de
ALEXANDER KLUGE filmes e de um cinema liberado das convenções
tradicionais. Os signatários do manifesto de
Antes de comentar o trabalho de Kluge, é Oberhausen compreenderam a necessidade de se
mister tecer um rápido panorama do cinema ale- unir contra os grandes monopólios de cinema da
mão do pós-Segunda Guerra Mundial. Em linhas Alemanha Ocidental. Tinham, como parte de seus
gerais, Hake afirma que os mais recentes estudos objetivos, a intenção de promover um cinema des-
sobre a filmografia alemã, no período de 1945 a vinculado da lógica do mercado, guiado e inspira-
1961, destacam que os filmes dessa época repro- do pelas idéias, imaginação e concepção estética
duziram a mesma estrutura lógica daqueles pro- dos seus criadores (cinema de autor), mas, em cer-
duzidos sob o Terceiro Reich.44 Ela sublinha que ta medida, conectado às expectativas do público.
a maioria dos filmes era conservadora, senão re- Os oberhauseners tentaram lançar as bases legal e
acionária, no que se refere a valores sociais e cren- organizacional de um livre trabalho criativo.
ças políticas. Quanto ao público alemão, a autora Grosso modo, no que se refere ao novo ci-
observa que, nesses estudos, os espectadores são nema alemão, podem-se destacar as seguintes ca-
freqüentemente descritos com base numa neces- racterísticas básicas: baixo custo das produções;
sidade psicológica de esquecer os danos do pas- recusa das formas estéticas do cinema tradicional,
sado e ignorar os problemas do presente. com sua narrativa linear e sínteses fáceis; uso do
Em 1961, a partir de uma proclamação ofi- preto e do branco recorrente, na tentativa de não
cial do governo, assistiu-se a falência do cinema tornar o filme um retrato fiel da realidade; fusão
artístico da Alemanha Ocidental. Não houve, na- entre documentário e ficção (cinema-verdade, ci-
quele ano, nenhuma premiação, pois o Ministério nema direto); preocupação com a tematização de
do Interior entendeu que não havia obra digna de questões históricas e sociais.48 Entre os 26 cine-
tal honra. A mensagem poderia ser lida como astas signatários do Manifesto de Oberhausen,
Rentschler45 e Sandford46 sugerem, quando lem- destaca-se Alexander Kluge,49 podendo-se afir-
bram que o governo alegava que os velhos cine- mar que os esforços de Kluge formam uma ex-
astas haviam fracassado na entrega das mercado- pressiva constelação que contribui para a compo-
rias. Porém, os dois autores observam que uma sição dos estudos sobre cinema. Como recorda o
nova geração estava surgindo, convencida de que cineasta Volker Schlöndorff, “Numa época em
poderia realizar um trabalho diferente daquele que a onda do cinema erótico a tudo submergia,
dos antigos cineastas. Essa nova geração estava o cinema se aproximou da literatura quando Ale-
realizando especialmente curta-metragens. xander Kluge lançou as bases de uma nova arte
Nesse contexto, em fevereiro de 1962, 26 jo- (um pouco no espírito da nouvelle vague francesa
vens cineastas publicaram um manifesto, durante
o VIII Festival de Cinema de Oberhausen,47 em 48 Cf. HAKE, 2002; RENTSCHLER, 1988; e SANDFORD, 1980.
que eram exibidos os curta-metragens na Alema- 49 Alexander Kluge nasceu na Alemanha, em 14 de fevereiro de 1932,
na cidade de Halberstadt. Seus estudos secundários foram na sua
cidade natal e em Berlin-Charlottenburg. Depois, estudou direito, his-
44 HAKE, 2002. tória e música sacra, nas universidades de Marbug e Frankfurt am
45 RENTSCHLER, 1990. Main. Em 1956, doutourou-se em direito, com a tese “A auto-gestão
46 SANDFORD, 1980. da universidade”. Logo em seguida, começou suas atividades profissio-
47 O festival de cinema de Oberhausen foi lançado em 1954. A partir nais em Frankfurt am Main, em especial como assistente jurídico do
de 1958, despontou como um dos mais dinâmicos festivais de curta- Instituto para Pesquisas Sociais. Na época, começou a escrever suas
metragem da Europa. Nesse ano, Hilmar Hoffmann, então organiza- primeiras estórias ficcionais e, durante um curto período, foi professor
dor do evento, cunhou o lema passagem para os vizinhos, permitindo no departamento de cinema, na Hochschule für Gestaltung, e também
que cineastas do Leste Europeu pudessem exibir suas produções na professor honorário na Universidade de Frankfurt. Kluge é reconheci-
então Alemanha Ocidental. Vários detratores anticomunistas e políti- damente um dos principais representantes do movimento do Novo
cos conservadores em Bonn, que temiam o influxo da cultura socialista Cinema Alemão. Foi o primeiro cineasta alemão do pós-Segunda
na República Federativa Alemã, apelidaram o festival de Oberhausen Guerra Mundial a ganhar um prêmio no Festival de Cinema de
Vermelho (FEHRENBACH, 1995). Veneza, em 1966.

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lançada pelos ‘Cahieurs du Cinéma’), dando as diários como Theodor Wissengrund Adorno. En-
costas às pesquisas puramente formais em favor tão, resolvi abordá-lo diretamente: “O senhor é
da descrição e análise da sociedade alemã”.50 Theodor Wissengrund Adorno?”. Tornamo-nos a
partir de então amigos. Por motivos que não vêm
Tendo sido o principal jovem cineasta ale-
ao caso, me tornei depois conselheiro jurídico do
mão a lutar por uma efetiva mudança nas leis de
próprio Instituto de Pesquisa Social, mas não fui
cinema da Alemanha, especialmente quanto aos aluno e sim um amigo.53
subsídios, Alexander Kluge, em parceria com Pe-
ter Glotz, parlamentar e membro do Partido So- Segundo Langford, em razão de discussões
cial Democrata Alemão, trabalhou e apresentou com Adorno, Kluge reforçou seu interesse pelo
ao parlamento um projeto com novas leis relati- cinema e, em 1958, foi apresentado por aquele ao
vas ao subsídio de filmes com méritos artísticos, cineasta Fritz Lang.54 Em entrevista concedida a
em detrimento dos blockbusters da época.51 Liebman, Kluge diz que: “[Adorno] me enviou
Em 1962, Kluge, Edgar Reitz e Detlev para Fritz Lang a fim de me proteger de algo pior,
Schleiermacher fundaram o Ulm Institut für Fil- para que eu não tivesse a idéia de escrever quais-
mgestaltung (Instituto para Pesquisa de Filme). quer livros. Se eu fosse rejeitado, então, no final
Em entrevista concedida a Stuart Liebman, em das contas, eu faria algo mais valioso, que era
1986, Kluge afirma que esse instituto ficou conhe- continuar a ser assistente legal do Instituto”.55
cido como o departamento teórico do Novo Ci- Com efeito, a Escola de Frankfurt pode ser
nema Alemão e modelado a partir dos mesmos vista como a principal base teórica a fundamentar
preceitos do Instituto para Pesquisa Social (Escola o trabalho de Kluge, não apenas como cineasta,
de Frankfurt).52 Somente em 1969, o Ulm Institut mas também como escritor. Bowie menciona
für Filmgestaltung aceitou a participação de estu- que, na Alemanha, Kluge é considerado uma das
dantes. No entanto, durante as revoltas dos anos principais figuras literárias e também um teórico
1960, muitos estudantes que criticaram o trabalho da tradição da escola de Frankfurt.56 Do mesmo
de Kluge, denominando seus filmes de elitistas, pe- modo, Liebman afirma que Kluge é um leitor
garam seus equipamentos e abandonaram o insti- atento, mas, ao mesmo tempo, crítico de Marx e
tuto. Adorno, assumindo a considerável responsabili-
É bastante curiosa a forma como Kluge ini- dade de refletir sobre a complexa herança do Es-
ciou sua carreira como cineasta, no final da déca- clarecimento.57 Como o próprio Kluge menciona,
da de 1950. Na Universidade de Frankfurt, tor- a respeito de seu trabalho com o sociólogo Oscar
nou-se não apenas aluno, mas também amigo de Negt, “Acreditamos que nosso trabalho tem a ver
Theodor Adorno. Seu primeiro contato com a com a Teoria Crítica. Sustentamos que é ortodo-
produção cinematográfica deu-se pela mediação xo. Mas esse é um problema de disputa entre nós
de Adorno. Como Kluge atesta em outra entre- e Adorno e Horkheimer”.58 No entanto, Kluge
vista, o primeiro encontro com Adorno foi numa também considera que “A teoria crítica não se
aula inaugural de um curso de filologia sobre o preocupa com o filme, e sim com os meios ex-
historiador Tácito. pressivos possíveis e com circunstâncias reais”.59
De acordo com Liebman, o livro de Adorno
Diante de mim sentava-se um senhor com olhos e Eisler, Composing for the Films, foi uma das bases
castanhos belíssimos e de grande intensidade, quase teóricas de Kluge. Esse livro poderia sugerir – a um
inteiramente calvo. Quando eu o olhava, ele me re- leitor como Kluge – novas possibilidades para a
tribuía o olhar num misto de irritação e interesse.
Fiquei me perguntando se aquele homem seria jus- 53 Idem, 2001.
54 LANGFORD, 2003.
tamente quem Thomas Mann descrevera em seus 55 LIEBMAN, 1988, p. 36.
56 BOWIE, 1986.
50 SCHLÖNDORFF, 2002, p. 3. 57 LIEBMAN, 1988, p. 7.
51 BOWIE, 1986. 58 KLUGE, 1988, p. 39.
52 KLUGE, 1988. 59 Ibid., p. 48.

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construção cinemática e, “Apesar de aparecerem completamente diferente das “estratégias de edi-


diferenças na força dialética da formulação teórica ção invisíveis de Hollywood e a prática do filme
da sua experiência prática, Kluge aceita a maior comercial, e da montagem dialética tal como te-
parte das premissas de Adorno e Eisler”.60 Não orizada e praticada por Sergei Eisenstein e a Es-
obstante, a abordagem de Kluge em direção à te- cola Soviética de cineastas”.64 A caótica, fragmen-
oria crítica não pode ser reduzida ao trabalho teó- tária e, até mesmo, ilógica conexão entre as ima-
rico de Adorno. Entre os outros integrantes da Es- gens dispostas nos trabalhos de Kluge autoriza e
cola de Frankfurt, Kluge inspirou-se também nos motiva o público a ser co-produtor de seus fil-
trabalhos de Horkheimer, Benjamin, Löwenthal e mes. O que, no entanto, não significa que o ci-
Marcuse. Com efeito, autores como Kant, Freud, neasta não exponha sua própria montagem.
Siegfried Kracauer e Bertolt Brecht também foram Na concepção de Kluge, fazer cinema deve
referências importantes para o seu trabalho. divergir do imperialismo da consciência. Com
Kluge explica que, no começo de sua car- esse termo, mostra como o público, ao deparar-se
reira, não tinha familiaridade com o estudo de te- com filmes de padrão eminentemente comercial,
orias fílmicas. Suas primeiras influências foram os atua na maioria dos casos como robô, com seus
filmes que assistiu em uma retrospectiva, em Ber- papéis predeterminados; a indústria cultural tor-
lin Oriental, em 1958 e 1959. Ele declara que o na esses filmes o modelo estético comum a ser
primeiro livro de teoria do filme que leu foi Der referenciado pelo espectador de cinema. Por con-
Kampf um den Film, de autoria de Hans Richter. seguinte, também explica que “a ameaça da guer-
Apesar de ter ficado entusiasmado, Kluge escla- ra, a industrialização da consciência e a repressão
rece que isso não se relacionou com detalhes do por meio do consumo, do entretenimento, são os
livro, pois, naquele momento, não estava buscan- meios pelos quais a dominação é expressa”65 e
do uma digressão profunda e detalhada sobre a que todas essas questões são sempre colocadas
estética do cinema. Depois disso, jornalistas pela teoria crítica.
como Wilhelm Roth, Ulrich Gregor e também Quanto à história, Kluge preocupa-se com
Enno Patalas foram referências no aprendizado “aqueles elementos na sociedade contemporânea
teórico sobre a história do filme. Vale lembrar, que minam a memória histórica e procuram per-
também, os dois volumes sobre roteiros de filme petuar um estado constante de diversão, um pre-
escritos por Bertolt Brecht e que influenciaram a sente voraz que engole e anula o passado”.66
formação de Kluge como cineasta.61 Grosso modo, história e filosofia estão sempre
De maneira geral, no que se refere à conce- presentes nos filmes de Kluge. Mas como Kluge
pção teórico-fílmica, Kluge opera com conceitos concebe a história? Para ele, história significa
variados, como enigma, montagem, fantasia e his- Trauerarbeit (trabalho de luto) e a sua elucidação
tória. Para ele, enigma em arte não é realmente é uma das mais importantes questões apresenta-
um enigma, mas uma espécie de realidade escon- das na atuação política das suas personagens na
dida. Ele destaca que, na obra de arte, não há se- busca de elaborar não apenas suas vidas particu-
quer um simples sobrepujar,62 o que nos lembra lares, mas o passado e a memória coletiva. Isso
Adorno, ao afirmar que “Todas as obras de arte, porque o devido Trauerarbeit ainda não foi reali-
e a arte em geral, são enigmas; isso desde sempre zado e, como lembra Kluge, “Auschwitz não é
irritou a teoria da arte”.63 um fantasma, mas uma realidade histórica”.67
Langford observa que Kluge não somente Quando as personagens de Kluge escavam
teoriza sobre o cinema, mas também o pratica a os fatos enterrados com o passar do tempo, o es-
partir de uma nova concepção de montagem pectador é levado a perceber que o passado está

60 LIEBMAN, 1988, p. 10-12. 64 LANGFORD, 2004.


61 Cf. RENTSCHLER, 1990. 65 KLUGE, 1988, p. 41.
62 KLUGE, 1988. 66 RENTSCHLER, 1990, p. 40.
63 ADORNO, 1982, p. 140. 67 KLUGE, 2001, p. 7.

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meio-morto e que há um comportamento ético a “parecem condenar a natureza do cinema tout court,
impulsionar no sentido da produção de outras quando na verdade não fazem mais do que reagir
formas de afetos e pensamentos na contempora- energicamente contra o cinema de Hollywood”.69
neidade. Isso, forçosamente, nos remete ao texto O livro publicado em co-autoria com
“O que significa elaborar o passado”, no qual Hanns Eisler, em 1947, prolonga a crítica de
Adorno chama a atenção para a necessidade de o Adorno a Hollywood, mas, ao mesmo tempo,
povo alemão iniciar um processo de elaboração anuncia os germens de uma análise das possibili-
de seu passado mais recente, haja vista que, já na dades contraditórias do cinema. Tal perspectiva é
década de 1950, diversos grupos neonazistas co- mais explícita em seus escritos da década de 1960,
meçavam a surgir na Alemanha.68 De certo mo- nos quais Adorno registra sua admiração por ci-
do, para Adorno, esse fenômeno estaria vincula- neastas vinculados ao próprio universo ho-
do ao processo de recalcamento das atrocidades llywoodiano, assim como pelos jovens cineastas
cometidas ao longo do período nazi-fascista, no do Novo Cinema Alemão. Nesse contexto, me-
qual o Estado teve o apoio significativo da massa rece destaque especial a interlocução de Adorno
que compunha o tecido social alemão. O fato de com Alexander Kluge, cineasta e escritor cujo pa-
lembrar, retirar das cinzas do inconsciente, todo pel foi fundamental para a retomada do cinema
o mal cometido naquele período poderia signifi- alemão. A partir do Manifesto de Oberhausen,
car a possibilidade de elaborar o passado com vis- Kluge intensificou a produção de obras fílmicas
tas não à reparação do mal, mas à sua não recor- que questionavam a apatia histórica da sociedade
rência na história da Alemanha. alemã em relação aos eventos ocorridos no perío-
CONSIDERAÇÕES FINAIS do nazi-fascista. Pode-se afirmar que a maior par-
Partindo dos argumentos apresentados, in- te dos cineastas contemporâneos e continuadores
fere-se que as teses que criticam as considerações do espírito crítico iniciado em Oberhausen colo-
adornianas sobre o cinema abstraem o fato de que cou em xeque a maioria da cinematografia reali-
Adorno, em co-autoria com Horkheimer, no livro zada na Alemanha, entre 1933 e 1961.
Dialética do Esclarecimento, especialmente no clás- Assim, com base nas evidências apresenta-
sico texto “Indústria Cultural: o esclarecimento das, conclui-se que a contribuição de Theodor
como mistificação das massas”, teve como referên- Adorno para a análise do cinema é um campo
cia o cinema hollywoodiano. Desconsiderar esse ainda a ser mais bem pesquisado e requer, acima
fato é descontextualizar as críticas que ele e de tudo, ultrapassar o senso comum acadêmico
Horkheimer tecem ao cinema, pois, como lembra predominante sobre as posições desse filósofo
Silva, referindo-se ao texto em questão, os autores frankfurtiano em relação ao tema em questão.

68 ADORNO, 2003. 69 SILVA, 1999, p. 118.

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Dados do autor
Professor assistente do departamento de
fundamentos da educação e orientação educacional
do Centro de Educação da UFES desde 1997.
Mestre em filosofia da educação. Doutorando do
Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal de Santa Catarina, na linha
de pesquisa educação, história e política.
Recebimento artigo: 31/ago./04
Consultoria: 10/set./04 a 14/out./04
Aprovado: 24/fev./05

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