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Editor
Edson Manoel de Oliveira Filho
Gerente editoriül
Gabriela Trevisan
Preparaçao
Mareio Honorio de Godoy
Revisao
Geisa Mathias de Oliveira e Liliana Cruz
Capa e projeto gra_fico
Mauricio Nisi Gonçalves I Estúdio É
Pré-impn:s�ão e impressão
Geográfica Editora
O ERJtO DE
NARCISO
LOUS
LAVELLE
APRCLN 1 t\�·Ão
ALFREDO BOSI
lR '\[)li� \1.."\
PAULO EVES
- Realizações
- Editora
I '
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'!<JT jean-Louis Víeillard-Baron . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
.. O erro de Narciso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37
: � :\. 1·entura de Narciso
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . 37
_ :\ .\"i11fi1 Eco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38
5 O Passado e a Morte . . . . . . .. . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41
:1 .\forte ou Nascimento?
• . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47
I 1 .Varciso e Pigmalião
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 47
� O segredo da intimidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51
:. Conhece-te a Ti Mesmo . . . . . . . . . . ... . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . 51
7.Conhecimento de Si e de Outrem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58
3. Ser si-mesmo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63
1. Polifonia da Consciência . . . . . . . . . .. . . . .. . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . 63
2. Cinismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 64
3. O Ator de Si Mesmo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65
4. A Impossibilidade de Enganar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . 66
2. Responsabilidade Reivindicada . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . 80
7. Ação de Presença . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86
5. Os poderes da sensibilidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93
1. O Eu "Sensível" . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ...... . . . . . . . 93
2. Um Frágil Equilíbrio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . 94
Xt--�=-::Jad e do Corpo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95
Strst!-:::.iade, Eco do Querer . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96
-
�±.'idade Unida à Inteligência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97
�r:co Sensível . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99
- A! Dmotas da Sensibilidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 100
-·.is da Dor
rr- . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101
A. w Tran�figurada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103
/.Amor-Próprio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131
2. Opinião . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 132
3. Régua de Chumbo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . 133
6.Discrição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153
3. Compensação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 179
5. Embriaguez da Alma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18 l
6.Pureza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 197
7. Purificação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ..
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 198
CONTEMPLAÇÃO DE NARCISO
12 1 O Erro de Narciso
transformar as águas especulares da fonte em águas origi
nárias e fecundas que limpem o eu e animem a vontade de
abrir-se aos outros, ao mundo, às surpresas do objeto. Veja-se
quão inadequada é a leitura puramente intimista e solipsista
que se fez às vezes da obra de Lavelle, repuxando de modo
distorcido sua inspiração espiritualista. No "eterno presente"
da consciência, vigora também a tensão da vontade, que lida
com as formas ainda virtuais do futuro, enquanto projeto.
Apresentação l 13
eparecença. Aparece enquanto fantasma; e, simultaneamente,
enquanto imagem, duplica e simula a aparência daquele a
quem semelha.
14 I O Erro de Narciso
corpo) e amasse a si mesmo com aquele amor que só é digno
desse nome quando se nutre de uma generosa benevolência
para com o próximo. Percorrendo as páginas luminosas que
Lavelle dedicou à relação do eu com o outro, lembrei-me das
felizes notações existenciais que tive o privilégio de ler há mui
tos anos em uma pequena obra-prima do filósofo, Conduite
�
à l'Egard d'Autrui [Conduta em Face do Próximo] que reco
mendo vivamente ao leitor deste Erro de Narciso.
Apresenta�o l 15
tampouco está fixado e imobilizado em si: o ser é ato eterna
mente presente e infinitamente atuante.
16 1 O Erro de Narciso
PREFÁCIO
' "L'ldéc Dialectique dans la Pensée Française au XX' Siecle". ln: PhiÍQsopher
m Français. Sob a direção de Jean-François Mattci. Paris, PUF, 2001, p. 50-51
(Coleção Quadrige).
Nossa existência é uma participação no ser; mas o ser não é
uma realidade fixa e imóvel; ele é ser espiritual; ora, o espírito
é atuante; a identidade do ser e do ato na dinâmica espiritual é
a tese metafísica mais profunda de Lavelle. Ela faz do tempo o
lugar da realização do espírito num duplo movimento de en
carnação e de eternização.
18 1 O Erro de Narciso
Nossa existência é uma participação no ser; mas o ser não é
uma realidade fixa e imóvel; ele é ser espiritual; ora, o espírito
é atuante; a identidade do ser e do ato na dinâmica espiritual é
a tese metafísica mais profunda de Lavelle. Ela faz do tempo o
lugar da realização do espírito num duplo movimento de en
carnação e de eternização.
18 I O Erro de Narciso
cume da nossa consciência' e à tomada de consciência da
'presença pura"'. 3
Prefácio l l9
mútua. Porém, uma luz superior banha estas páginas, para
além de todo esforço da vontade. É ela que dá uma unidade
muito forte a estes fragmentos agrupados em doze capítulos
que são como os doze meses do grande ano da vida espiritual.
20 1 O Erro de Narciso
as dádivas são aceitas. Mas Narciso quer receber apenas a si
mesmo corno dádiva".6
Narciso e a Imagem de Si
A história de Narciso, morto ao contemplar sua própria ima
gem, fascinado por sua própria beleza ao ponto de se afogar na
Prefácio 1 21
água que o reflete, suscitou numerosas interpretações. A mais
encantadora é sem dúvida alguma a de Ovídio nas Metamorfo
ses; a triste história resulta na transformação do herói virgem
em uma flor frágil, o narciso que brota junto às fontes. Enquan
to no mito antigo a falta de Narciso era desprezar o amor de
outrem e isolar-se no amor exclusivo de si mesmo, Ovídio traz
um elemento dramático novo, particularmente comovente, e
que contribui para dar a essa história um acento trágico. É que
Narciso, vendo por acaso seu próprio reflexo na água de uma
fonte sobre a qual se inclínou para beber, ignora, num primeiro
momento, que esse reflexo é o do seu próprio rosto. Acredita
ver alguém diferente dele e se apaixona perdidamente, não por
si mesmo, mas pela bela imagem que vê na água; é fascinado
pela beleza inapreensível que se oferece a ele ao mesmo tempo
em que se furta. É só num segundo momento, quando vê que
todos os movimentos dessa imagem-reflexo são idênticos aos
seus, que Narciso se reconhece ele mesmo. Então a dor o faz di
lacerar o peito e o rosto, e ele espera a morte, de olhos fixos nas
águas. Como lembra Pierre Hadot, Ovídio exprime o drama de
Narciso num verso dos Fastos: "Narciso, infeliz de não ter sido
diferente dele mesmo".9
9 Verso 226: lnftlix quod non alter et alter eras. Cf. Pierre Hadot, "Le Mythe
22 1 O Erro de Narciso
e poetas, como Rainer Maria Rilke ou Paul Valéry. Inspirou
também filósofos, como Plotino11 ou Louis Lavelle. Mas o que
mais contribuiu para que essa história entrasse no patrimô
nio comum da psicologia universal foi o trabalho decisivo de
Freud para introduzir o narcisismo na psicanálise. Mesmo
que Freud não seja o inventor do termo, já utilizado no final
do século XIX para designar um grande amor por si, foi ele
que lançou o que haveria de ter u{Tl sucesso considerável, a
saber, a dimensão narcísica da personalidade como tendência
a olhar para si mesma, a preocupar-se antes de tudo com sua
própria imagem. Todos sabemos hoje o que a atitude narcísi
ca designa; é comum falar-se de um escritor narcisista para
caracterizar aquele que analisa sua própria obra, debruça-se
sobre ela para mostrar-lhe as articulações, indica como ele
mesmo está presente na sua obra, como ela remete à sua pró
pria vida pessoal, etc.
11 Pierre Hadot, op. cit., p. 243-55. Esse artigo foi anteriormente publicado
Prefácio j 23
entre Q eu e a alma; a consciência e primeiramente um eu que
elà descobre com emoção, mas é também um� alma, uma es
sência espiritual, uma pura personalidade liv_re, que-c:orr_es-
onde à vocação assumida. alma não é em Lavelle o sujeito
religioso; ela está inteiramente nesse ultrapassar de si por si
que nos faz atingir a grandeza e a santidade. A alma é a parte
superior do nosso eu, a única capaz de entrar em contato com
Deus. Assim a psicanálise não seria criticável aos olhos de La
velle por ser naturalista, fundada sobre os instintos biológicos
fundamentais, ou irreligiosa e cientificista; são fundamentos
que Lavelle transfere a uma crítica geral do corpo, dizendo
que meu corpo não é eu, mas apenas está ligado ao eu como
um apoio que o eu busca constantemente superar. Seja o que
for do corpo, o defeito principal da psicanálise não está aí;
consiste em não ir além do diálogo do eu consigo mesmo. É
precisamente o que Lavelle critica nos seguintes termos: "Não
convém dar uma atenção demasiado complacente à consciên
cia que tenho de mim mesmo como de um ser único e inimitá
vel, pois ela sempre desperta o amor-próprio que busca tudo
reter e converte tudo em seu favor".13 Compreendemos bem
que, para Lavelle, o eu não é odiável. Ele não deve ser abolido
nem desprezado, mas situado em seu lugar. Narciso permane
ceu escravo da consciência que tinha de si mesmo; o caminho
verdadeiro é ultrapassar essa consciência de si encontrando a
liberdade da alma. O ser humano realizado é o que nunca se
deixa subjugar por seu próprio eu; aquilo que pertence ao eu
é só um momento que ele supera ao encontrar sua alma. Mas
a alma e o eu permanecem sempre em diálogo. A santidade é
assim o objetivo de uma consciência de si simples e serena;
então a consciência de si encontra sua alma, mesmo se nunca
pode manter-se nela em toda a quietude.
'3 Cap. 8, § l .
24 I O Erro de Narciso
"Por um maravilhoso paradoxo, é quando paro de me olhar
e olho os que me cercam que conheço a mim mesmo sem
ter pensado em fazê-lo: é quando paro de buscar meu pró
prio bem e busco o de outrem que encontro também o meu.
Todo raio de luz deve iluminar o mundo antes de voltar a
iluminar a mim mesmo".14
O Problema do Amor-Próprio
I� Cap. 9, § 4.
Prefáào l 25
Deus fez a cidade terrestre, ao passo que o amor a Deus levado
até o desprezo de si fez a cidade celeste". 15
pode imitar.
26 I O Erro de Narciso
teologizar inteiramente o amor como o faz Francisco de Sales,
que conduz o homem a um amor desinteressado, não afetivo,
amor que se arrisca a ser apenas uma pura abstração vazia.18
18
Como pensa Michel Terestchenko em seu belo livro Amour tt Désespoir de
François de Sales à Fmelon. Paris, Le Seuil, 2000, p. 61 (Coleção Poims Essais).
19
Cap. 6, § 1.
20
CEuvres (Sur k Rnumcemmt à Soi-Mmu). Edição de Jacques Lcbrun. Paris,
Gallimard, 1983, t. I, p. 613 (La Pléiadc).
Prefácio 1 27
tanto nosso desapego como quando somos assegurados por
wna privação tranquila. Somente a perda, e a perda que o
próprio Deus opera, nos desapropria verdadeiramente da
quilo que nosso amor-próprio possui".21
21
Idem (Sur !e Détachement de Soi-Même), p. 624.
22 Cap. 1 1 . § 7.
23 CEuvm, Traitéde l'Amour de Dieu. Edição de André Ravier. Paris, Gallimard,
1969, livro IX, capítulo IX, p. 785 (La Pléiade).
24 "D'un Pur Amour". Traité des Vertus. Paris, Bordas, 1947, p. 478.
28 I O Erro de Narciso
A Espiritualidade de Lavelle
A atualidade de O Erro de Narciso está na espiritualidade
que Lavelle exprime. Michel Foucault, a partir de urna reflexão
sobre os exercícios espirituais dos estoicos, propõe uma defi
nição da espiritualidade, que não,é uma atitude religiosa nem
uma atitude puramente teórica, mas um procedimento no qual
a busca do conhecimento verdadeiro passa por um trabalho
sobre si. É "a busca, a prática, a experiência pelas quais o su
jeito opera sobre si mesmo as transfórmações necessárias para
ter acesso à verdade".25 A reflexão filosófica não põe entre pa
rênteses a dimensão existencial do sujeito filosofante; Platão
falava a esse respeito de psicagogia, e a Igreja cristã de direção
de consciência. Lavelle mostra a cada um de nós como orientar
-se na existência, a partir de curtas meditações que convergem,
todas, a uma revelação, a do cimo da nossa alma.
Prefácio 1 29
A verdadeira humildade é uma atitude metafísica singular
mente rara, aquele último rebaixamento do nosso ser para
a terra que exige um supremo erguimento da nossa alma
para Deus: pois ninguém poderia se aniquilar senão para
permitir que Deus ocupe o lugar vazio. E somente em Deus
podia se realizar o abismo da humildade, que é o milagre da
Encarnação voluntária.27
2� Idem, § 7.
18 Cf. Xavier Tilletce, ú Christ de la Phi/.osophit. Paris, Le Cerf, 1990, p. 175-
205.
30 1 O Erro de Narciso
a última palavra da santidade, pois "o objetivo que se quer
atingir é a retidão que reside na simplicidade".29
29 Cap. 8, § 9.
30 Op. cir., p. 170.
Prefácio 1 31
que é o fundo do nosso ser. Nesse sentido, contra as ilusões
especulativas de Husserl, Lavelle segue a inspiração profunda
de Bergson. Mas acrescenta-lhe uma concepção de Deus que
permite à alma, apesar de todas as armadilhas do amor-pró
prio, encontrar a transparência: de fato , Deus não é aquele ser
todo-poderoso e terrível que tornaria vã nossa liberdade, pois
colaboramos incessantemente na criação divina, mas é "a luz
que atravessa todas as trevas e que me revela tal corno sou,
sem que eu soubesse que era".31
32 I O Erro de Narciso
Ter uma vocação, qualquer que seja, é ser chamado a uma
tarefa da qual se é o único a poder cumprir. Lavelle emprega
aqui uma velha palavra, eleição. Quem tem consciência de ser
eleito para cumprir uma tarefa sabe perfeitamente que sua
vontade tem pouca serventia. O único papel da vontade é nos
preparar para acolher essa eleição. Lavelle soube dizer que
para além do esforço voluntário há um repouso interior que
o abandono do amor-próprio assinala. O acesso ao mundo
espiritual neutraliza toda tensão da vontade e nos reconcilia
conosco mesmos e com o Todo: "O que se trata de reencon
trar é a simplicidade e a integridade desse ato espiritual que
abole a vontade própria e que só se assemelha a um repouso
e a um abandono porque, em vez de estar abaixo do esforço,
esta acima ( ... )" .33
' •
33 De l'Acte, p. 469.
Prefácio 1 33
nos propõe; de fato, trata-se de ver o outro na luz de Deus
que é nossa origem comum.
Nada mais belo e que possa dar à vida uma significação mais
plena e mais forte do que ver nela o exercício da nossa liberda
de, pela qual nós mesmos criamos nosso destino, associados
assim constantemente à obra criadora, incapazes de sermos
forçados em nenhuma de nossas determinações e de nunca
sermos reduzidos à condição de coisas, e certos de sempre en
contrarmos no fundo de nós mesmos recursos e um sustento
que nunca nos faltarão.34
34 1 O Erro de Narciso
numa experiência metafísica. Para Lavelle, isso não é uma ex
periência excepcional, contrariamente à intuição bergsoniana
que é o fruto de um longo trabalho que culmina em apreender
a própria duração por uma coincidência passageira. A expe
riência metafísica, no pensamento de Lavelle, é a realização
da consciência de si no espaço espiritual: "Todos os seres são
chamados a abandonar o espaço material, que é o reinado da
coerção, da dor e da guerra, para aprender gradativamente a
habitar e a viver num espaço espiritual onde reinam a liber
dade, a paz e o amor: ali tudo é aéreo, móvel e transparente.35
35 Cap. 12, § 3.
36 Traité de l'Amour de Dieu, livro I, cap. XII, p. 390.
Prefácio l 35
Mas essa "ponta brilhante" só é ari=g:à _ :- =ossa a::n
dade mais pura, de tal modo que a menor poeira :7a z recair
nossa alma. A pura presença que então nos é dada é fonte de
uma emoção intensa, porém continua sendo para nós um
antegosto do mais além. Experimentamos a tranquilidade de
alma e a serenidade da sabedoria que nossas existências bus
cam; mas Lavelle não se ilude, pois nossa vida não poderia
escapar à tensão. Seria preciso completar o final de O Erro de
Narciso com o prólogo de Quatre Saints [Quatro Santos], dedi
cado à santidade, que é o perpétuo milagre da presença do es
pírito entre nós. Assim como Lavelle admite que todo homem
pode chegar à experiência metafísica do espaço espiritual, in
clusive em sua dimensão quase mística, ele também sublinha
o caráter excepcional da santidade.
36 I O Erro de Narciso
1 . Ü ERRO DE NARCISO
1. A Aventura de Narciso
A aventura de Narciso inspirou todos os poetas desde Ovídio.
2. A Ninfa Eco
Narciso pede à visão totalmente pura que o faça gozar da
sua simples essência: e o drama no qual sucumbe é que ela só
lhe pode dar sua aparência.
Ele está sem fala e não busca fazer ouvir-se. Pede apenas
para ver-se, para capturar como uma presa seu corpo belo e
mudo, ao qual as palavras dariam ainda sabe lá que perturba
dora iniciativa que lhe inquietaria o desejo e dividiria a posse.
38 I O Erro de Narciso
A punição de Narciso é ter sido amado apenas pela nin
fa Eco. Ele busca na fonte outro ser que possa amá-lo. Mas
é incapaz de encontrá-lo ali. Ele não consegue escapar de si.
O amor que tem por si não cessa de persegui-lo, embora ele
queira evitá-lo.
3. A Fonte ou a Origem
Não há fonte que possa devolver a Narciso urna imagem
fiel e já formada. A fonte onde ele se olha é uma origem na
qual ele mesmo nasce aos poucos para a vida: a água não
para de escorrer, enruga a superfície e o impede de fixar seu
trêmulo contorno. Mas suponhamos que, por um instante
inapreensível, a origem se calasse e a superfície das águas
ficasse imóvel e uniforme corno um verdadeiro espelho: po
deria ele contemplar-se enfim como que retido no gelo dessa
transparência? Também aqui ele deve perder toda esperan
ça. Pois esse espelho é tão sensível que basta seu simples
hálito para torná-lo opaco; se se aproximar ainda mais, fará
correr sobre ele, como um vento vindo de fora, milhares de
ondulações impossíveis de deter.
1 O erro de Narciso J 39
-
oferecido. Quer ser o espectador de si mesmo, ou seja, desse ato
interior pelo qual não cessa de nascer para a vida e que nunca
pode ser um espetáculo sem se aniquilar. Ele se olha em vez de
viver, o que é seu primeiro pecado. Busca sua essência e encon
tra apenas sua imagem, que não cessa de decepcioná-lo.
4. O Espelho e o Estanho
A transparência não basta ao espelho no qual Narciso se
olha. É preciso indagar também o estanho desse espelho. Ora,
Narciso descobre nele a profundidade infinita do ser e da vida.
E seu rosto se reflete no ponto em que ele para nessa descida
em si mesmo que não conhece um último termo.
40 1 O Erro deNarciso
formou. Mas o mundo que o acolhe o mantém eternamente
cativo: e nesse mundo ele não pode penetrar sem morrer.
5. O Passado e a Morte
Não posso me ver a não ser virando-me para o meu pró
prio passado, isto é, para um ser que já não sou mais. Contu
do viver é criar meu próprio ser orientando minha vontade
para um futuro no qual ainda não sou, e que só será um ob
jeto de espetáculo quando eu o tiver, não somente atingido,
mas já ultrapassado.
1 O erro de Narciso l 41
-
passos. A origem na qual Narciso se mira só deve ser visita
da ao crepúsculo. Nela, ele só pode olhar uma forma que se
esfuma, próxima do declínio, no instante em que ele mesmo
vai ser também uma sombra. Então seu ser e sua imagem se
assemelham e acabam por se confundir. Mas foi na aurora que
o jovem Narciso foi se mirar na origem; buscou olhar o que
não devia ver; e seu trágico destino o obrigou a entregar seu
próprio corpo à imagem na qual ele pretendia capturá-lo.
Agora ele não pode mais que se unir a essa estéril efígie.
Está condenado a uma morte precoce e inútil porque quis
obter, antes de tê-lo merecido, este privilégio que só a morte
pode dar ao homem: contemplar dentro dele sua própria obra
no momento em que esta se cumpriu.
42 1 O Erro de Narciso
ele possa ver como um outro o vê. É o desejo de amar-se como
um outro poderia amá-lo que o faz buscar conhecer essa apa
rência que ele oferece a um outro. Mas a essa aparência o ou
tro dá vida, enquanto Narciso a separou da vida.
1 O erro de Narciso l 43
-
Narciso tem necessidade de se assegurar da sua própria
existência. Ele duvida dela, e por isso busca vê-la. Porém terá
de se resignar, ele que vê o mundo, a não se ver. Pois como
poderia se ver, ele, o vidente, senão se transformando na coi
sa vista, da qual está ausente? Ele que abraça todas as coisas,
como poderia se abraçar? É preciso que se abandone para se
possuir; se buscar a si mesmo, ficará extenuado.
Ele que é a origem de todas as pre.senças e que comunica
a presença a tudo o que existe, como se tornaria presente
a si mesmo?
Quem possui o conhecimento não pode possuir a existên
cia daquilo que conhece. Ora, Narciso quer reunir o ser e o
conhecer no mesmo ato do seu espírito. Ele ignora que sua
própria existência só se realiza pelo conhecimento do mun
do. Ele interrompe sua vida para conhecê-la, e não pode mais
conhecer de si mesmo senão um simulacro do qual a vida se
retirou. Não passa de um recipiente vazio que apenas mostra
sua forma pelo conteúdo que o preenche.
Dessa fonte onde ele se mira, das folhagens que a protegem,
do imenso mundo em volta, Narciso nada sabe: só conhece o
frágil reflexo de si mesmo que se forma na superfície dessas
coisas e que sem elas nada seria.
Narciso treme de emoção e decepção diante do que lhe é re
velado. Nada poderia satisfazê-lo mais que a visão do universo
inteiro brotando do seu olhar como de um ato de criação e de
contemplação ao mesmo tempo. Mas, ao contrário, é o uni
verso que desaparece de repente, diante da imagem irrisória e
impotente que ele obtém de si mesmo.
Visão ímpia e atentatória à ordem das coisas na qual ele
recusa contemplar a obra do criador para contemplar-se, em
vez de criar-se e fazer de si mesmo sua própria obra.
No entanto Narciso não suporta nem ser, nem agir: está
reduzido, diz o sutil Gôngora, "a solicitar os ecos, a desde
nhar as origens". Busca o que o adula e não o que ele é. O
44 I O Erro de Narciso
corpo de Narciso é somente uma imagem, que para todos
os que o cercam é o signo da sua presença: mas o que per
segue ele na fonte, senão o signo desse signo e a imagem
dessa imagem?
8. A Complacência de Narciso
Narciso mostra um extremo pudor em relação a outrem.
Mas abandona todo pudor em relação a si mesmo: ele se com
praz nessa ausência de pudor.
Ser conhecido, ser amado por ele mesmo, nada lhe acres
centa ao seu puro poder de conhecer e de amar; é só na apa
rência que esse poder age.
1 O errode Narciso l 45
-
O crime de Narciso é preferir, no final, sua imagem a si mes
mo. A impossibilidade em que se encontra de unir-se a ela só
pode produzir nele o desespero. Narciso ama um objeto que
ele não pode possuir. Porém, assim que começou a se debruçar
para vê-lo, era a morte que ele desejava. Unir-se à própria ima
gem e confundir-se com ela significa morrer. Era também seu
duplo que buscava nas águas moventes a filha do Reno.2
Narciso não sabe que deve abandonar seu corpo para per
ceber sua imagem. Ele quis imitar Deus que, ao contemplar-se,
criou seu Verbo. E não pôde ver senão a imagem do seu corpo.
Mas nela se vê mais belo que todos os espetáculos, e essa des
coberta o faz desfalecer. Ele desaparece na fonte: pois quer que
sua imagem muito bela ocupe todo o lugar do seu ser, como
aconteceu a Lúcifer quando se tornou Satã. Narciso busca go
zar pelo espírito da própria imagem do seu corpo. Empreendi
mento ousado e criminoso que só podia precipitar seu espírito.
46 I O Errode Narciso
reflexão que lhe permite, e somente ela, reconhecer-se, mas
que supõe um ser que se reflete, pelo qual ele não mais se inte
ressa. Assim ele perde o mais que possuía e, em troca, o menos
que deseja lhe é recusado. Contudo o ato mais humilde deve ser
suficiente para livrá-lo da miséria em que caiu e devolver-lhe
o ser que perdeu. Tal é a moralidade da sua eterna aventura.
1 -O erro de Narciso l 47
um adolescente, um pouco inclinado para o lado, como dizem
os cronistas, arredondado sem ser gordo, com l�as pouco
marcadas, belo, calmo e um pouco amuado". Mas o sonho se
dissipa em seguida.
48 1 O Erro de Narciso
12. Adão e Eva
Deus, em sua sabedoria soberana, viu Adão buscar-se a si
mesmo como Narciso e, duplicando-o segundo seu desejo, fez
aparecer diante dele o corpo da mulher ao qual ele pôde se
unir sem se destruir. Mas Narciso, entregue às suas próprias
forças, se duplica num fantasma que imita seus gestos irrisó
rios e que, quando ele busca tocar seu �er verdadeiro, trans
forma esse ser numa ilusão que o desespera.
1 - O erro de Narciso 1 49
2. Ü SEGREDO DA INTIMIDADE
1. Conhece-te a Ti Mesmo
Narciso busca o segredo do mundo e é por isso que está
decepcionado de se ver. Esse segredo divino é mais íntimo a
ele do que ele mesmo: é a intimidade do Ser puro. Desse Ser,
não há imagem alguma. Ele não habita a fonte que se reflete
no olhar de Narciso e retorna a seu mistério tão logo esse olhar
se aboliu. Só se mostra a um olhar puramente espiritual, para
além de todas as imagens e de todos os espelhos.
Tudo o que posso imaginar de mais nobre e de mais belo
no mundo, tudo o que traz para mim a marca do valor e que
posso amar, é aquilo que é minha intimidade mais profunda,
e, ao fugir sob pretexto de que sou incapaz ou indigno dela, é
de mim mesmo que fujo. As coisas mais superficiais e mais
baixas, que me atraem ou que me retêm, são apenas um diver
timento que me distancia de mim, não propriamente porque
não posso suportar o espetáculo do que sou, mas porque não
tenho a coragem de exercer as forças de que disponho, nem de
responder às exigências que encontro em mim.
Não podemos descobrir que nosso ser reside nessa inti
midade secreta, na qual ninguém penetra a não ser nós mes
mos, sem recorrer à introspecção para conhecê-lo. Mas o eu
é só uma possibilidade que se realiza; e�t === � --=
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do, não cessa de se fazer. É por isso que ex:isie= C.::.25 ==os
pecções: uma, que é a pior, mostra em mim todos aqueles
estados momentâneos nos quais não cesso de me compra
zer; a outra, que é a melhor, me faz atento a uma atividade
que me pertence, a capacidades que desperto e que depende
de mim pôr em prática, a valores que busco reconhecer a fim
de lhes dar corpo.
52 I O Erro de Narciso
A intimidade é de fato, como geralmente se crê, o último
reduto da solidão. Mas basta que ela se descubra a nós para
que a solidão cesse. Ela nos revela um mundo que está em nós,
mas no qual todos os seres podem ser recebidos. No entanto,
pode surgir a suspeita de que ainda estamos sós e de que este
mundo não passa de uma ilha de sonho. Mas, se um outro ser
entra conosco, de repente o sonho se realiza e essa ilha é o con
tinente: então se produz a mais aguda emoção que podemos
sentir. Ela nos revela que nosso mundo mais secreto, e que jul
gávamos tão frágil, é um mundo comum a todos, o único que
não é uma aparência, um absoluto presente em nós, aberto
diante de nós, e no qual somos chamados a viver.
2 O segredo da intimidade J 53
·
produzir um eco. Pois o ponto em que cada um se fecha em si
mesmo é também o ponto em que ele se abre verdadeiramente
a outrem. E o mistério do eu, quando se torna mais profundo e
é sentido como verdadeiramente único e inexprimível, produz
aquela espécie de excesso da solidão que a faz explodir, porque
é a mesma para todos. E é somente então que tenho o direito
de empregar estas palavras admiráveis: "abrir-me a você", ou
seja, abolir em mim todo segredo, mas ao mesmo tempo aco
lher você e dar acesso em mim ao seú próprio segredo.
54 J O Erro de Narciso
Nunca se deve pôr demasiada complacência na cons
ciência de si. Ela fortalece em nós a inquietação e o desejo:
converte o ser e a vida em objetos que o amor-próprio quer
possuir e aos quais pede que lhe deem prazer. Mas isso não
é descer até a raiz mesma do ser e da vida. Nesse interesse
exclusivo que mostra por si mesmo, o eu pensa se erguer, no
entanto acaba por cair. Pois faz toda a sua existência depen
der do objeto que ele conhece e do ser que ele ama. É preciso,
pois, que ele saia de si para conhecer e pata amar, isto é, para
dar-se a si mesmo essa existência que desde o início tinha a
pretensão de possuir. Somente então ele descobre o segredo
do conhecimento e o segredo do amor.
A solidão pode às vezes ser para nós uma tentação e exi
gir muito artifício para mantê-la e defendê-la. Mas o sábio
não busca nela senão uma espécie de exercício espiritual que
deve provar seu valor e sua fecundidade naquelas relações
com o exterior que de início ela pareceu abolir. Somente en
tão aprendemos a viver como imaginávamos que era preciso
viver quando estávamos sós. Se na solidão formamos a ideia
de uma sociedade perfeita conosco mesmos, com o universo
e com todos os seres, é o retorno ao mundo que, por urna es
pécie de paradoxo, ao interromper essa solidão, a realiza e a
obriga a dar seu fruto.
6. Reciprocidade
56 1 O Erro de Narciso
outros homens com os quais gostaríamos de viver ou,
quando temos mais moderação e menos confiança, com os
quais apenas suportaríamos viver. Pois sentimos claramen
te que não há outro problema para o homem do que saber
como ele poderá se entender com os outros homens. E todas
as infelicidades da vida vêm da impossibilidade em que ele
se encontra de chegar a isso.
2 O segredo da intimidade j Sí
·
Certamente cometo um erro se me queixo do tratamento
que os outros me fazem sofrer. Pois ele é sempre um efeito e
uma imagem do tratamento que lhes inflijo. Se me entristeço
de não ser amado o bastante, é que eu mesmo não sinto bas
tante amor. É a capacidade de acolhimento em mim que faz
que os outros me acolham, e eles só me repelem se no fundo
de mim mesmo já os repeli. Ora, o homem é feito de tal forma
que essa reciprocidade lhe escapa: ele busca ser notado pelos
que lhe são indiferentes e estimado pelos que despreza. "Pois
com o julgamento com que julgais sereis julgados, e com a
medida com que medis sereis medidos."1
Não cesso de acusar os outros homens: evito-os fingindo
desprezá-los e não querer mais conhecê-los. Entretanto não
posso passar sem eles. O desprezo que sinto por eles não é se
não o sinal da necessidade que sinto de estimá-los; sinal que
me dita o dever que tenho de dar-lhes amor bastante para
fazê-los dignos da minha estima.
7. Conhecimento de Si e de Outrem
Ser é sempre mais que conhecer. Pois o conhecimento é um
espetáculo que nos oferecemos. Assim não há nada mais des
conhecido que o ser que somos; nunca conseguimos separar
nossa imagem dele. Num certo sentido, de todo homem posso
dizer que ele sabe mais de mim que eu mesmo: mas isso, para
ele, não é uma vantagem. Pois não é necessário saber exata
mente o que se é para ser inteiramente quem se é.
É natural que eu conheça os outros melhor que a mim mes
mo, que estou muito ocupado em me fazer. E é por isso que
há tanta vaidade, fingimento e perda de tempo nesse cuidado
com que me considero e que me retarda quando devo agir;
devo abandonar esse cuidado a outrem, que não tem respon
sabilidade direta pelo que serei e que, ao contrário de mim
1 Maceus 7,2.
58 I O Erro de Narciso
mesmo, se interessa mais pelo meu ser realizado do que pelo
ato que o realiza. Ele vê em mim apenas o homem manifes
tado, o que se distingue de todos os outros por seu caráter e
por suas fraquezas, e não o homem que quero ser e que busca
sempre ultrapassar sua natureza e curar suas imperfeições.
Sinto indefinidamente em mim a presença de uma força que
ainda não foi empregada, de uma esperança que ainda não foi
frustrada. O outro só observa em mim o ser que posso mos
trar, e eu, só o ser que nunca mostrarei. Inversamente do que
ele faz, tenho sempre os olhos fixos mais naquilo que não sou
do que naquilo que sou, mais no meu ideal do que no meu
estado, mais no termo dos meus desejos do que na distância
que me separa dele.
2 ·O segredo da intimidade [ 59
8. O Pintor e o Retrato
Nosso olho, diz Platão, se percebe na pupila de outro olho.
São os outros que me revelam a mim mesmo. Faço a prova
do que penso e do que sinto a partir dos pensamentos e senti
mentos que eles não cessam de me mostrar e, por assim dizer,
de me propor. E seus atos me devolvem a imagem do que sou,
ou porque repetem os meus, ou porque lhes respondem.
Inversamente, compreender alguém é descobrir em nós
todos os movimentos que observamos nele, é entregarmo
-nos a eles por um momento, de tal modo que, quando pen
samos segui-los, é a nós mesmos que seguimos. E é assim
que os antecipamos.
Os seres não podem de maneira alguma se conhecer sepa
radamente, mas somente por uma mútua comparação que
manifesta entre eles as semelhanças e as diferenças. Essa
comparação, na qual cada um se descobre e experimenta
seus próprios poderes, não é sem perigo: pois ela nos leva às
vezes a uma imitação em que nosso ser próprio, sob pretexto
de enriquecer-se, abole-se num ser de empréstimo, outras
vezes a um descrédito em que acreditamos nos elevar re
baixando tudo o que nos falta. Mas todo encontro que faze
mos, ao mesmo tempo pelas resistências que provoca, pelo
esforço que exige, pela luz que faz nascer, por uma secreta
concordância que de repente nos faz pressentir, nos mostra
o quanto o conhecimento de si e o conhecimento de outrem
se acham misturados.
É o que se percebe bem no exemplo do pintor que, ao fazer
seu próprio retrato, faz o retrato de um outro, e, quando faz o
retrato de um outro, faz também o retrato de si mesmo. Pois
ele só pode pintar o que ele não é, o que se distingue dele e o
que se opõe a ele. Assim ele se obriga, quando pinta, a desco
brir o rosto mesmo que os outros veem dele. Mas o retrato que
ele faz de um outro é uma obra que vem dele e que mostra a to
dos os olhares o que ninguém veria de outro modo, e que é sua
60 1 O Erro de Narciso
própria visão invisível do mundo. Conhecer-me é ao mesmo
tempo fazer de mim um outro e confrontar-me com um outro.
Conhecer você é penetrar em mim e redescobrir-me em você:
descubro em você o espetáculo de um ato que só apreendo em
mim no seu exercício puro.
Assim, nunca busco no outro senão um reflexo de mim
mesmo cujos traços são às vezes inversos e complementares
aos meus, alguns mais acentuados, outros mais atenuados.
Mas eles só têm sentido se sinto em mim essa 'vida à qual eles
dão uma forma. Todos os seres enviam uns aos outros sua
própria imagem, ao mesmo tempo fiel e infiel, até na solidão.
Há em cada um de nós vários personagens: um persona
gem vaidoso que se reduz ao espetáculo que procura dar, e
que para outrem só tem um olhar de desprezo e de ciúme;
um cheio de timidez e de ansiedade, embaraçado de atrair
sobre si o olhar, mas isso porque sente dentro dele outro
personagem ainda, mais profundo e verdadeiro, que sempre
parece lhe escapar, e que o personagem que ele mostra não
cessa de trair. Só há verdadeiro encontro espiritual quando
dois seres conseguem despertar um no outro esse persona
gem secreto no qual se reconhecem, mas ao mesmo tempo se
ultrapassam e se unem.
Ninguém busca em outrem, e talvez ninguém lhe perdoe,
aquelas emoções muito familiares que o confirmam em seu
próprio estado. A comunicação com outro ser só pode se
produzir mais acima, graças a um movimento pelo qual cada
um, não pensando mais em si, mas somente no próximo a
fim de ajudá-lo a alcançar uma vida superior, recebe imedia
tamente dele essa mesma vida que quer lhe dar. Dirão que,
como todos os cimos, o da consciência é tanto mais solitário
quanto mais alto for. Mas só ele, que atrai todos os olhares, é
capaz de reuni-los.
3. SER SI-MESMO
1. Polifonia da Consciência
O drama da consciência é que, para se formar, ela precisa
romper a unidade do eu. Ela se esforça a seguir por reconquis
tá-la, mas não poderia consegui-lo sem se abolir.
A consciência, que é um diálogo com os outros seres e
com o mundo, começa, portanto, por ser um diálogo con
sigo. Precisamos de dois olhos para ver e de dois ouvidos
para ouvir, como se nada pudéssemos perceber a não ser
por um jogo de duas imagens semelhantes e, no entan
to, diferentes. Mais ainda: nem a visão, nem a audição se
exercem sozinhas, mas referindo-se uma à outra, ou en
tão a qualquer outro sentido que elas despertam e que lhes
acrescenta. Assim se forma uma espécie de polifonia na
qual todas as vozes da alma respondem a todas as vozes
da natureza.
E há mais: a percepção nunca está só; ela sempre suscita
uma ideia, uma lembrança, uma emoção, uma intenção que
repercutem por sua vez sobre ela e estabelecem em nós novos
diálogos entre o presente e o passado, entre o passado e o fu
turo, entre o universo e o espírito, entre o que pensamos e o
que sentimos, entre o que sentimos e o que queremos. Enfim,
a consciência cria sempre um intervalo entre o que somos e o
que temos, entre o que temos e o que desejamos: e ela busca
sempre preencher esse intervalo sem nunca conseguir. Quan
do interrogo minha sinceridade, seu objeto é demasiado mó
vel para que ela possa me satisfazer; é demasiado complexo
para que ela possa exprimi-lo sem o alterar e o mutilar.
A dificuldade de ser sincero é a dificuldade de estar presen
te ao que se diz, ao que se faz, com a totalidade de si mesmo,
que sempre se divide e só nos mostra alguns de seus aspectos,
nenhum deles verdadeiro. Mas a consciência mais correta, no
momento em que opta por um partido, nunca esquece os ou
tros: não os rejeita no nada e, sem se consumir por eles em
lamentações estéreis, gostaria ainda de introduzir, no partido
que ela mesma assume, a essência positiva e o sabor original
dos outros partidos.
A lógica e a moral nos habituaram a pensar e a agir segundo
alternativas, como se fosse preciso sempre dizer sim ou não,
como se nunca houvesse um terceiro partido. Mas esse méto
do só convém a almas um pouco rígidas e que não sabem que
o terceiro partido não se encontra entre o sim e o não, mas
num sim mais alto que sempre compõe, um com o outro, o
sim e o não da alternativa.
2. Cinismo
Cada um de nós é para si mesmo um objeto de escândalo
quando pensa, ao fazer a comparação cínica entre o que ele
é e o que ele mostra, que não há homem no mundo a quem
ousaríamos revelar todos os sentimentos que atravessam
nossa consciência, nem que fosse como um clarão fugaz.
Parece-nos inclusive que ele não poderia considerá-los bem
de perto sem corar.
É que há o homem inteiro em cada homem, com o me
lhor e o pior. Mas a verdadeira sinceridade não é considerar
como coisas reais, e que assim nos pertencem, todos esses
64 1 O Erro de Narciso
impulsos obscuros, todas essas veleidades incertas, todas es
sas tentações indecisas que se esboçam em cada um de nós,
antes mesmo que tenhamos começado a sentir-lhes o peso e a
dar-lhes alguma consistência; é atravessá-los para descer até o
fundo de nós mesmos, a fim de ali buscar o que queremos ser.
Ora, há uma aparente sinceridade que descobre com terror o
que acreditamos ser, e que é apenas o que poderíamos ser se
nossa vigilância de repente se interrompesse.
É que a consciência contém a ambiguidade dos possíveis:
ela será o princípio de todos os desencorajamentos e de to
dos os fracassos se buscarmos nela uma realidade já formada
e não o poder mesmo que a forma. Portanto, não é ser sincero
contentar-se em exprimir todos os sentimentos nascentes e
dar-lhes corpo pela palavra, antes de ter efetuado o ato inte
rior que é o único capaz de torná-los nossos. E é somente com
o consentimento que lhes damos que importa julgar-nos.
Assim a sinceridade aparece muitas vezes como uma
conversão na qual, ao reconhecermos que nossa vida é ruim,
já começamos a mostrar que ela é boa. É o que explica por
que, como já foi dito, aquele que faz uma confissão que o
modifica supera a vergonha da confissão. Se a luz com que
envolvemos nosso passado, ao purificá-lo, nos reconcilia a
ele, é que ela obriga a ação mesma que efetuamos a evocar
uma força da qual queremos fazer um uso melhor daí por
diante. E não é surpreendente que o homem pelo qual senti
mos o interesse mais vivo e mais apaixonado seja, não aque
le liberado de todos os vícios, mas aquele que, continuando
sempre a sentir-lhes o aguilhão, aguça por esse aguilhão sua
vida espiritual inteira.
3. O Ator de Si Mesmo
É o homem que mais tem espírito que mais facilmen
te se arrisca a ser o ator de si mesmo. Ele nunca se conten
ta com o que encontra dentro de si. Não cessa de alterá-lo,
3 Sersi-mesmo j 65
-
repensando-o. Seu ser verdadeiro está sempre aquém ou além
do seu ser presente; nunca consegue distinguir o que imagina
do que sente. Encontra dentro de si milhares de personagens.
Concebe milhares de possibilidades que ultrapassam por to
dos os lados a realidade tal como lhe é dada. Tem necessidade
de um esforço para se voltar a ela, para fixar nela seu olhar
e estreitá-la bem de perto, quando muitas vezes bastaria um
pouco de simplicidade e um pouco de amor para obter isso
sem tê-lo desejado.
É que, quando me olho a mim mesmo, um outro está lá,
que é o espectador a quem me mostro, sempre semelhante a
um espectador estranho junto ao qual não faço outra coisa se
não aparecer: não sou mais um ser, mas uma coisa, uma apa
rência que componho.
O diálogo de Narciso não pode existir sem uma duplici
dade: ser duplo é a própria consciência. E a distância entre
o que sou e o que mostro é o produto da reflexão e do es
forço que faço para ser sincero. De tal maneira que nun
ca tenho a impressão de conseguir. Assim, a sinceridade
é sempre um problema e ninguém pode julgar nem a de
outrem, nem a sua.
4. A Impossibilidade de Enganar
Nas relações dos homens entre si, um ser aparente se for
ma que substitui sempre o ser real. Isso supõe uma abdi
cação de si e uma humilhação de si raramente percebidas,
porque um indigno subterfúgio as mascara; é que o nosso
ser real quer ainda tirar vantagem da opinião feita sobre
nosso ser aparente.
Mas posso verdadeiramente esperar que tomem a aparên
cia que mostro como a realidade que sou? Em cada uma das
minhas palavras, em cada um dos meus gestos, há sempre
ou uma marca de amor-próprio que não engana ninguém,
embora possam fingir acreditar, ou uma confissão esperada,
66 1 O Erro de Narciso
r
3 ·Ser si-mesmo l 67
mergulhe. A consciência dessa discordância pode mesmo
lhes proporcionar um gozo cruel.
5. O Anel de Giges
Mas como é possível, dirão, não ser sincero se o que sou
coincide com o que faço ainda mais do que com o que penso?
E, se não há intervalo entre o que faço e o que mostro, que
intervalo poderia haver entre o que mostro e o que sou?
Deixemos de lado essa insinceridade, que não é senão uma
vontade de dar o troco: ela só engana outrem se ele não for
bastante perspicaz, mas ela nunca engana a mim mesmo. Ela
é apenas um meio momentâneo que utilizo para obter certo
efeito; mas a vontade de produzi-lo imprime em mim uma
marca da qual não me separo mais.
Os homens sabem muito bem que nada podem esconder
daquilo que são. E, se dispusessem do anel de Giges, todos lhe
pediriam o poder de dissimulação. Pois o anel dissimula nos
so corpo, permitindo-nos realizar, no mundo das coisas visí
veis, um efeito cuja causa permanece invisível e não pertence
mais a este mundo: o que é certamente um primeiro milagre.
Contudo o milagre só se completaria se o anel, ao nos tornar
invisíveis aos outros, nos tornasse perfeitamente interiores e
transparentes a nós mesmos, isto é, se ele fizesse do mito de
Narciso na fonte uma realidade.
Felizmente esse anel não nos é dado. Seria para nós a su
prema provação. A angústia da existência, o segredo da res
ponsabilidade residem precisamente em convertermos numa
ação que todos podem ver, e que deixa no mundo seu traço
inapagável, uma possibilidade que inicialmente só tinha exis
tência para nós. Mas, como não dispõem do anel, os homens
se esforçam, por suas palavras, por seu silêncio e pelas obras
que realizam, em produzir uma imagem de si mesmos em
conformidade, não ao que eles são, nem mesmo ao que dese
jam ser, mas ao que desejam que acreditem que eles são.
68 I O Erro de Narciso
6. Sim ut sum aut non sim1
3- Sersi-mesmo l 69
mesmo tempo. É o ato pelo qual dá testemunho a si mesmo e
aceita contribuir, segundo suas forças, à obra da criação.
70 1 O Erro de Narciso
teu coração."2 O que basta para explicar por que a sincerida
de sempre traz infinitamente i;nais riqueza que as mentiras
mais triunfais.
2 Mateus 6,21.
3-Sersi-mesmo l 71
poderia mais se contentar com a aparência, que quase sem
pre basta para alimentá-la: ela mesma deveria se aniquilar
na infinidade da sua própria exigência e não encontrar outra
satisfação senão aquela que uma sinceridade perfeita pode
ria lhe dar. É próprio de uma vaidade ainda fraca e miserável
aceitar que a aparência possa ir mais além do ser; o que lhe
cabe é ultrapassar-se constantemente e mesmo inverter-se
no seu contrário, isto é, recusar precisamente que o ser nun
ca possa ser igual à aparência.
Há duas espécies de homens: os que só dão ouvidos ao
amor-próprio e só pensam na imagem que oferecem de si
mesmos, e os que não suspeitam que exista tal imagem, nem
que ela possa diferir do que eles são.
n 1 O Erro de Narciso
nada além de um fato sobre o qual nem você nem eu podemos
agir. A sinceridade que espero, a única que necessito, que me
faz atento a um destino que nos é pessoal e não obstante co
mum a nós dois, é aquela em que vejo seu ser, não se descrever
como uma coisa, mas se buscar, se afirmar e já se envolver,
tentando penetrar até a essência do real em que estamos am
bos enraizados, a fim de reconhecer ali as marcas do que lhe é
exigido, de uma tarefa a cumprir e na qual esse ser já se lança.
1 O. Verdade e Sinceridade
É comum acreditar-se que nada no mundo é mais fácil que
ser sincero e que, para isso, basta não alterar, mesmo imper
ceptivelmente, a realidade tal como nos é dada. Mentir, dissi
mular, é intervir, é fazer agir a própria vontade, é substituir o
ser por uma imagem com a qual ele não coincide. Ser sincero
não seria contentar-se em deixar as coisas serem o que são?
Mas o problema é mais difícil. Tão logo começo a falar e a
agir, tão logo meu olhar se abre à luz, acrescento algo ao real e
o modifico. E essa modificação é a criação mesma do espetá·
culo sem o qual, para mim, o real não existiria. Assim olho o
mundo que nasce diante de mim como um espetáculo ondula
do pela perspectiva e pelos infinitos jogos de luz e sombra. No
entanto ninguém admite que o real seja criado por mim no ato
mesmo que o apreende; ele possui certas características que
se impõem independentemente da minha vontade e para as
quais chamo os outros homens em testemunho. Desse modo
consigo distinguir a verdade do erro.
Contudo a sinceridade não é a verdade. Assim a arte do
pintor traduz com maior ou menor sinceridade a visão mui
to pessoal que ele tem do universo. E somente desta se pode
dizer que ela é verdadeira. Ninguém aceitará que ser sincero
é reproduzir, tal como é, minha própria visão das coisas, ao
passo que ser verdadeiro seria reproduzir, nessa própria visão,
as coisas tais como são. Pois é na qualidade dessa visão que a
3 Ser si-mesmo l 73
-
minha sinceridade reside. Ela é o esforço que faço para torná-la
sempre mais delicada, mais penetrante e mais profunda.
A verdade invoca uma luz que envolve tudo o que é e que
me ilumina se eu abro os olhos. Pode-se muito bem dizer que
a sinceridade não é senão o simples consentimento à luz, mas
com a condição de acrescentar que a verdade em questão é
aqui a verdade mesma do que sou, e que para mim não basta
contemplá-la: trata-se primeiramente de pro.duzi-la.
Considera-se quase sempre a verdade como a coinci
dência do pensamento e do real. Mas como seria possí
vel tal coincidência, quando o real é outro que não eu? Ao
contrário, se a sinceridade é a coincidência de nós conosco
mesmos, perguntarão como é possível não obtê-la. Mas é o
amor-próprio que intervém aqui. E o próprio da sinceridade
é vencê-lo. Pode-se dizer que, por oposição à verdade que
busca conformar o ato da minha consciência ao espetáculo
das coisas, a sinceridade tenta conformar ao ato da minha
consciência o espetáculo que mostro.
Portanto, parece que somente ela pode superar a dualida
de do objeto e do sujeito que os filósofos transformaram em
lei suprema de todo conhecimento. Se Narciso se perdeu, é
que ele quis introduzir tal dualidade no centro de si mesmo.
Ele achou que podia ver-se e usufruir de si, antes de agir e de
fazer-se. Ele não teve a coragem desse incomparável empreen
dimento no qual a operação antecede o ser e o determina,
desse procedimento criador cujo modelo as matemáticas já
empregam no conhecimento puro, e do qual a sinceridade
interior nos oferece uma aplicação dramática a nós mesmos.
74 1 O Erro de Narciso
em falar de si com verdade. Mas como falar com verdade de
um ser que nunca está realizado, do qual cada palavra, cada
ação acrescenta algo ao que ele é? Como falar com verdade de
si sem um tremor, sem um rubor que altera tanto a verdade
quanto a si mesmo?
A sinceridade deve atingir, para além de todas as pala
vras, uma intimidade invisível que as palavras sempre se
arriscam a trair, e da qual desenham apenas a s9mbra. A
sinceridade só aparece quando essa intimidade começa a se
encarnar, isto é, em atos que determinam nosso ser e com
prometem seu destino.
É que a sinceridade não consiste em reproduzir num retra
to parecido uma realidade preexistente. Ela própria é criado
ra. É uma virtude da ação e não apenas da expressão. Nosso
eu não é mais que um feixe de virtualidades: cabe-nos realizá
-las. É numa realização que reside a sinceridade verdadeira.
E compreende-se muito bem que se possa não realizá-la, seja
por preguiça, seja por temor, seja porque se acha mais fácil ou
mais útil ceder à opinião e desistir, cedendo à inclinação para
onde o meio nos leva.
A sinceridade não distingue mais o ato pelo qual nos situa
mos do ato pelo qual nos fazemos. Ela é ao mesmo tempo a
atenção que desperta nossas potencialidades e a coragem que
lhes dá um corpo, sem o qual elas nada seriam. A potencia
lidade é o chamado que está em nós; a coragem é a resposta
a esse chamado. A sinceridade não se contenta, corno creem,
em examinar com implacável lucidez as intenções mais ocul
tas; ela obriga o indivíduo a transpor suas próprias fronteiras,
a assumir um lugar no mundo e mostrar o que ele é.
3 -Ser si-mesmo 1 75
começam a agir sobre ela, num movimento que me arrasta e
que não sei se padeço ou se produzo. Mas a sinceridade recu
sa todas essas solicitações que me pressionam, e obriga-me a
descer até o centro de mim mesmo. Ela é sempre um retorno à
origem. Faz de mim um ser que perpetuamente nasce.
Ela nos livra de toda preocupação com a opinião alheia ou
o efeito. Traz-nos de volta à origem e nos revela a nossos pró
prios olhos tal como saímos das mãos do cria�or, no primeiro
jato da vida, antes que as aparências exteriores nos seduzam e
tenhamos inventado qualquer artifício.
Ela nos mostra tal como somos, e não num retrato que seria
ainda exterior a nós mesmos. Não tem necessidade de garan
tia nem de juramento. É aquela perfeita claridade do olhar que
não põe sombra alguma entre mim e você, nem a sombra de
uma lembrança, nem a sombra de um desejo, aquela perfeita
retidão do querer que impede haver entre nós qualquer des
vio, qualquer subterfúgio, qualquer segunda intenção.
Ela é, enfim, uma perfeita nobreza interior. Pois o homem
sincero quer viver sob o céu livre. Ele é o único com bastante
orgulho para nada dissimular de si, para nada esperar senão
a verdade, para não se contentar em parecer, para se estabe
lecer tão intimamente no ser que ele não se distingue mais,
para si, do parecer.
76 I O Erro de Narciso
atravessa todas as trevas e que me revela tal como sou, sem
que eu soubesse que era. O amor-próprio que me ocultava de
mim mesmo é uma roupa que cai de repente. Um outro amor
me envolve, tornando minha alma transparente.
Enquanto a vida persiste em nós, conservamos ainda a es
perança de mudar o que somos ou de dissimulá-lo. Mas quan
do nossa vida é ameaçada ou está perto de acabar, somente o
que somos importa. Só diante da morte somos perfei�amente
sinceros, porque a morte é irrevogável e dá à nossa existência,
completando-a, o caráter do absoluto. É o que exprimimos ao
imaginar o olhar de um juiz a quem nada escapa e que, logo
após a morte, vê a verdade da nossa alma até nos seus mean
dros mais remotos. E o que significa esse olhar senão a im
possibilidade em que estamos de acrescentarmos algo ao que
fizemos, de nos evadirmos num novo futuro, de distinguirmos
ainda nosso ser real do nosso ser manifesto e, no momento em
que a vontade se torna impotente, de não abarcarmos num
ato de contemplação pura esse ser agora realizado, ele que até
então era apenas um esboço sempre sujeito a retoques?
Não basta à sinceridade evocar Deus como testemunha, ela
deve evocá-lo também como modelo. Pois a sinceridade não é
somente ver-se em sua luz, mas realizar-se conforme sua von
tade. Que sou eu, senão o que ele me pede para ser? Mas uma
distância infinita logo se revela a mim entre o que faço e esse
poder que está em mim e que meu único desejo é exercer: é
que não cesso de faltar a ele e, na medida mesma em que falto,
não sou mais para mim e para outrem senão uma aparência
que um sopro dissipa e que a morte abolirá.
Tal é o verdadeiro sentido que devemos dar a estas pala
vras: "Todo aquele, portanto, que se declarar por mim dian
te dos homens, também eu me declararei por ele diante de
meu Pai que está nos Céus. Aquele, porém, que me renegar
diante dos homens, também o renegarei diante de meu Pai
que está nos Céus".3
3 Mateus 10,32-33.
3 Ser si-mesmo l 77
-
4. A AÇÃO VISÍVEL E A AÇÃO INVISÍVEL
1. fogo da Responsabilidade
Toda ação nos traduz e nos trai ao mesmo tempo. Ela é
a expressão e a aparência do nosso ser mais profundo. Mas
ela é também sua prova. E só nos tornamos inteiramen
te nós mesmos quando saímos de nós mesmos para agir,
quando deixamos o domínio da virtualidade para ocupar
um lugar no mundo e reivindicar uma responsabilidade.
Já somos responsáveis por nossos pensamentos. Pois,
assim como há um intervalo entre a intenção e a ação, há
também um intervalo entre a intenção e o pensamento do
qual ela procede, de tal modo que a responsabilidade pode
sempre ser reportada mais acima. Ela tem sua origem
mais profunda no ponto em que a consciência começa a se
formar, e se acentua cada vez mais a cada uma das etapas
do progresso ininterrupto pelo qual ela se serve dos meios
que a realizam e adquire um corpo que a faz manifesta a
todos os olhos. Ora, uma vez que o próprio da responsa
bilidade é separar-me do mundo a fim de me obrigar a
assumir seu encargo, de certa maneira sou também res
ponsável pelo que os outros pensam e fazem, e assim a
responsabilidade se torna sempre mais sutil e nenhum
limite lhe pode jamais ser atribuído.
Não há ato frívolo ou insignificante, isto é, que não envolva
nossa responsabilidade e a ordem inteira do universo espiri
tual. Não devemos nos surpreender, portanto, que essa res
ponsabilidade encontre sempre resistências, sem as quais ela
não poderia nascer e não permitiria à nossa ação pertencer
-nos, isto é, separar-se da espontaneidade e do instinto. Mas
essas resistências, é em nós mesmos que as encontramos, e
não apenas no universo exterior a nós. Elas assinalam, atra
vés das dificuldades que todo indivíduo enfrenta para fazer as
coisas dóceis, as dificuldades mais profundas que ele enfrenta
para se criar ele próprio, quer dizer, para se encontrar.
2. Responsabilidade Reivindicada
Os homens mais fracos sempre buscam se esquivar da res
ponsabilidade antes de agir e rechaçá-la após ter agido. Eles
fazem mais esforço para se desculpar do que para evitar ter de
fazê-lo. Esperam que lhes peçam explicações quando comete
ram alguma falta; mas só estão dispostos a se explicar quando
os acontecimentos lhes parecem dar razão. Não querem que
sua responsabilidade esteja comprometida de antemão no
destino do universo, e só aceitam que os acusem quando o
universo já se pronunciou a favor deles.
Os mais fortes, ao contrário, antes ou depois do aconteci
mento, aceitam sempre esse fardo. Fazem questão de reivin
dicá-lo e de aumentá-lo. No momento de agir, parece sempre
que a ação depende apenas deles. Depois de agir, sempre se
recriminam de não terem feito o bastante. Com uma espécie
de orgulho descomedido, atribuem-se como uma onipotência
que pensam nunca empregar suficientemente bem. Sentem
demasiada indiferença ou desprezo pelos outros para lhes re
servar a menor parte de influência no resultado do empreen
dimento. O sucesso deve ser natural e mal retém sua atenção.
Mas seu fracasso, ou mesmo o fracasso dos outros, se é a cari
dade que os guia, os faz descontentes, ansiosos, atormentados
80 1 O Erro de Naràso
e inconsoláveis. Pouco importa a distância em que se encon
tram. É pelo mundo inteiro que se julgam responsáveis: que
rem carregar o peso de todo o mal que descobrem no mundo,
sem consentir compartilhá-lo nem com Deus, nem com seus
semelhantes; pois seu olhar tem tanta sinceridade, penetração
e profundidade que logo discernem neles próprios infinitos
3. Louvor do Trabalho
Os antigos diziam que os deuses se vingaram de Pro
meteu porque ele ensinou os homens a trabalhar, isto é, a
transformar a matéria com suas mãos imprimindo-lhe a
marca do seu espírito: eles temiam então que os homens se
afastassem deles e deixassem de adorá-los. Assim o trabalho
era visto como uma rebelião contra Deus, antes de ser visto
como uma punição de Deus.
Mas pode-se considerar as coisas de outro modo. O traba
lho, diz Proudhon, é a manifestação visível da atividade moral:
é manifestação do ato criador e continuação da obra de Deus.
82 I O Erro de Narciso
O espaço é o caminho de todas as suas aquisições, po
rém não é nele que o espírito faz sua morada. É porque
nossa atividade deixa uma esteira no mundo do espaço que
o mundo pode lhe ser submetido. Mas essa vitória do espí
rito corre sempre o risco de se converter em derrota. Pois
ela o inclina a pensar que sua função é dominar a matéria,
como vemos na indústria. Ele sente então um contenta
mento em medir, em produzir e em fazer aumentar sempre
mais os efeitos visíveis que dependem somente dele. Só
que, ao subjugar as coisas, ele é subjugado por elas. Ele se
alegra com a facilidade, a segurança e a certeza que obtém
ao agir sobre elas segundo regras implacáveis que sempre
dão bons resultados. Uma atividade que dispõe de um me
canismo tão eficaz para agir sobre as coisas, que se com
praz e só pensa em melhorá-lo, acaba por se escravizar. É
uma atividade morta.
6. A Ação Invisível
84 1 O Erro de Narciso
por uma irradiação imperceptível. Parece não ter contato com
o corpo, embora o transfigure. Sua perfeição é não produzir
senão outras ações que pareçam nascer espontaneamente e se
bastar, é fazer esquecer a origem que as fez surgir.
É belo que a atividade verdadeira seja sempre invisível. É
belo que o segredo de nós mesmos nunca possa ser violado,
que a origem primeira de tudo o que fazemos se subtraia a to
dos os olhares, que não possa ser perturbada nem map.chada,
e que, no momento em que começamos a intervir na obra da
criação, seja de maneira tão discreta que ninguém possa pen
sar que ela acaba de ser alterada e reconheça ali nossa mão.
Os olhos do corpo captam apenas acontecimentos, isto é,
movimentos; não atingem sua significação, isto é, o motivo
e a intenção que os produzem. É preciso que toda ação possa
ter a mesma aparência, seja ela efetuada por egoísmo ou por
amor. Nenhum sinal exterior deve distinguir os sacrifícios
mais puros das atitudes mais comuns: pois somente o olhar
do espírito pode tornar a matéria transparente e reconhe
cer por trás a verdade espiritual que ela exprime, mas que
dissimula. Entre os que fazem os mesmos atos, e aparente
mente se alimentam dos mesmos pensamentos, uns são do
minados pelas preocupações do interesse e do amor-próprio,
enquanto outros não cessam de tudo dar. Os rostos, as pa
lavras, as atitudes, os gestos habituais podem se assemelhar
para quem observa apenas os corpos. Assim as árvores vivas
não se distinguem, durante o inverno, das árvores mortas.
No entanto há certas marcas que indicam nelas a presença
da vida; só pode percebê-las quem traz a vida dentro de si
e, fora de si, está muito atento nela. Mas pode acontecer que
as árvores que têm mais seiva e que, na época prescrita, se
enchem de folhas, flores e frutos, enganem mesmo assim a
experiência mais vigilante e a mais atenta.
A perfeição só é obtida quando se abole a diferença entre a
atividade material e a atividade espiritual, ou quando, contra
riamente à ordem natural, a atividade material torna-se invi
sível e a outra visível.
8. A Peifeita Simplicidade
A verdadeira simplicidade é invisível. Ela é toda pureza,
toda transparência. Somente ela abole a diferença entre o ser
e o parecer. Graças a ela, as coisas mais difíceis se tornam
as mais naturais. A maior parte dos homens pensa apenas
em deixar no mundo uma marca ou um testemunho êz
86 I O Erro de Narciso
passagem. Mas todas as aparências perecem: e aquele que,
preocupado em dar-se em espetáculo a outrem, pensa apenas
em agir sobre elas, perece também com elas. A simplicidade
só conhece um mundo completamente interior, nunca olha
para fora. O mais belo, segundo o Tao, é não fazer grandes
coisas, nem dar uma grande imagem de si, mas, ao contrário,
não deixar traço algum no mundo das aparências, o que se
pode interpretar dizendo que é não fazer mais sombra alguma
e conservar a integridade do seu ser puro.
9. O Silêncio e as Palavras
O silêncio é um efeito da prudência pela qual evitamos
ser julgados ou nos comprometer. É também um efeito do
88 1 O Erro de Narciso
No entanto subsiste uma distância infinita entre o que sou
no meu próprio silêncio e o que posso exprimir ou traduzir.
Há uma força misteriosa do silêncio que é a força do que sou,
sempre maior que a força do que digo. Esse silêncio interior,
essa ausência de olhar voltado ao espetáculo que ele pode pro
duzir, devolve cada indivíduo a si mesmo e o impede de hesi
tar ou de fingir.
É assim que muitas vezes estou mais próximo de você por ·
1 O. Rosto do Sono
Nossa força de alma só se mantém pelos atos que produz:
caso contrário ela cede e se aniquila. Assim há muita vaidade
em pensar que é preciso conservar essa força no estado puro,
como se seu próprio movimento devesse consumi-la, corrom
pê-la ou dissipá-la. Se parar de se exercer, ela nada mais é.
O que é uma disposição interior que nenhum ato testemunha?
Nesse sentido, sou o que faço e não o que posso, que é muitas
vezes o que acredito que posso.
Dirão que, durante o sono, minha consciência ador
mece, tornando-se de repente pesada e preguiçosa? E o
90 1 O Erro de Narciso
11. Nossa Essência Fixa
Que farei da existência neste longo intervalo de tempo que,
penso sempre, ainda me separa da morte, no qual tudo de
pende do que poderá me ser dado e, mais ainda, da maneira
como vou acolher o que me for dado? Há uma regra principal
que devo sempre manter sob os olhos: é que todo ato da mi
nha vida, todo pensamento do meu espírito, todo mgvimento
do meu corpo devem ser como um compromisso e uma cria
ção do meu ser, e testemunhar o partido que tomo e a minha
vontade de ser assim. É preciso que isso ocorra em toda frase
que pronuncio ou escrevo, e que muitas vezes se contenta em
descrever uma lembrança ou em designar um objeto.
Pois todo homem inventa a si mesmo. E é uma invenção
cujo termo ele não conhece: assim que para, o homem se con
verte em coisa. E então começa a se repetir.
Mas há muitas diferenças na maneira de se repetir. Uns
se repetem porque encontraram aquela unidade espiritual
e sempre renascente da qual todos os seus atos dependem:
estabeleceram-se numa eternidade onde aparentemente
nada muda, mas que em realidade é sempre nova. Pois não
há outra novidade senão a descoberta, em cada instante do
tempo, da eternidade que nos liberta dele. Outros se conten
tam em recomeçar alguns gestos que aprenderam a fazer,
precisamente por não terem encontrado aquela fonte inte
rior de inspiração que gera, por sua repetição mesma, uma
constante ressurreição espiritual.
Se passamos a vida descobrindo nossa própria essência e
fazendo-a, parece haver um momento em que ela se revela e
se fixa. Então vemos o indivíduo ora tornar-se prisioneiro de
alguns sentimentos que aprendeu a experimentar, de algumas
ações que aprendeu a fazer e das quais continua prisioneiro
até a morte, ora libertar-se e desenvolver-se percorrendo em
todos os sentidos a infinidade do mundo espiritual onde ele
penetra e agora habita.
92 j O Erro de Narciso
5. ÜS PODERES DA SENSIBILIDADE
1. O Eu "Sensível"
Rebaixa-se às vezes o valor da palavra sensível, achando
que ela indica apenas certo desfalecimento do corpo diante
de tudo que o surpreende e ameaça rompê-lo, uma falta de
coragem que abole o domínio de si. E poderia se mostrar que
quem é sensível nem sempre é delicado ou terno, e que muitas
vezes há na sensibilidade mais fraqueza que humanidade, e
mais amor-próprio que amor.
2. Um Frágil Equilíbrio
A sensibilidade abole a separação, mas não a distinção entre
o indivíduo e o Todo. Ela é o testemunho da presença mútua
dos dois e produz entre eles as mais sutis comunicações. De um
lado e de outro, ela suscita um jogo de chamados e de respostas
que não se esgotam nunca, no qual hábito algum prevalece e
que liga nossa vida ao real por laços tão estreitos e fortes que
o conhecimento, em comparação, parece abstrato e sem graça.
94 \ O Erro de Narciso
pareciam pressentir, na sua consciência nascente, que a vida
do corpo era apenas o prelúdio da vida do espírito, que devia
ser o suporte desta e que um dia lhe seria sacrificada.
3. A Sensibilidade do Corpo
A sensibilidade supõe uma delicadeza do corpo que lhe
permite ser excitado pelas ações exteriores mais ·sutis e mais
longínquas, discernir seus mais finos matizes, vendo assim
seu delicado equilíbrio a toda hora rompido e restabelecido,
deixando-se invadir às vezes por um tumulto que a consciên
cia não consegue mais dominar. Por ela o mundo inteiro cessa
de nos ser indiferente e alheio: ele adquire conosco uma espé
cie de consubstancialidade; nosso corpo prende-se a ele por
fibras tão secretas que nenhuma pode ser atingida sem que
sejamos afetados por inteiro.
É uma coisa admirável que, na sensibilidade, o próprio cor
po seja penetrado por nós, que ele participe da consciência que
temos de nós mesmos, que pareça exprimir com tanta exatidão
a concordância ou o conflito que reina entre o universo e nós. A
sensibilidade é o estado de um corpo que se revela como nosso
e que já se espiritualiza; nela, a revelação que ele obtém de si
mesmo é tão aguda que é o sinal mesmo de um começo de desa
parecimento, como acontece de fato nos momentos de excesso
quando a sensibilidade está prestes a desfalecer.
Que a sensibilidade dependa tão estreitamente do corpo
e de todos os movimentos que o agitam é, para ela, ao mes
mo tempo uma exigência, pois só através do corpo ela pode
nos ligar ao universo, e uma contradição, pois ela é a essên
cia mesma da nossa intimidade, daquilo que em nós nunca
pode vir a ser um espetáculo, como o corpo. Mas pode-se
sonhar com uma sensibilidade pura na qual a alma, cessan
do de sofrer a ação do corpo, o tornaria dócil à sua ação. Isso
nos permitiria perceber seus comportamentos mais ocultos,
sem ser ele mesmo percebido. E a distinção entre a alma e
5 Os poderes da sensibilidade l 95
-
o corpo se aboliria: não que o próprio corpo desaparecesse,
mas ele seria reduzido à sua função mais perfeita, que é ser
para a alma uma invisível testemunha.
A sensibilidade ocupa todos os degraus na escada da alma,
desde os mais humildes, em que ela ainda está retida no chão,
até os mais sublimes, em que se perde de vista. Aliás, é preci
so que ela nunca cesse de uni-los: caso contrário sucumbirá
à complacência dos sentidos em que seu impulso interior se
dissipa e aniquila, ou se deixará consúmir por um ardor es
piritual que é incapaz de se alimentar. São as alegrias da terra
que ela .deve unificar, espiritualizar e levar até o céu.
96 J O Erro de Narciso
Mas há um estado de certo modo constante da sensibili
dade que, muito mais que as alternâncias às quais está sub
metida, confere à minha vida sua qualidade e a atmosfera
mesma na qual se banha. Ele está sempre relacionado a uma
opção profunda que não cesso de fazer, à minha atitude es
sencial frente ao universo. Porém essa relação é muito sutil;
meu amor-próprio não cessa de colocá-la em dúvida; e para
acreditar nela é preciso um ato de fé de uma simplicidade e de
uma pureza extremamente raras. Mas só então a sensibilidade
adquire sua significação verdadeira, nos estabelece num mun
do espiritual no qual descobrimos o valor de todos os atos que
podemos fazer, e nos obriga a pensar que não há outro inferno
ou outro paraíso senão aquele que somos capazes de nos dar.
Dizem que é nos movimentos da sensibilidade que resi
de nossa intimidade mais secreta: entretanto há em nós um
reduto ainda mais profundo, que é aquele onde se forma o
querer. No querer vamos mais além do que somos: e a sensi
bilidade deve ser o eco do que queremos naquilo que somos.
E a sensibilidade já traduz com extrema fidelidade todas
as inflexões da intenção e do desejo. Se ela parece com fre
quência surpreendida por golpes inesperados, é que nossos
propósitos não governam a ordem do mundo. Os empreendi
mentos nunca são mais que ensaios. Há sempre uma distância
intransponível entre o que eu obtenho e o que eu esperava,
que mede a separação entre minha vontade e a realidade sobre
a qual ela age. A direção da minha vontade depende de mim;
mas eu mesmo produzo minha felicidade e minha infelicida
de, sem tê-lo desejado e por urna espécie de retorno, no qual
se observa o efeito de uma necessidade que ultrapassa todos
os recursos de que disponho.
5 Os poderes da sensibilidade l 97
-
são suficientes às vezes para colocar um espírito crítico fora
do ser e da vida. É a sensibilidade que faz nascer a atenção: ela
acompanha todos os seus movimentos.
É ela que distingue no mundo indiferente que nos cerca, e
ao qual o sol distribui igualmente seus raios, zonas de inte
resse que solicitam nosso olhar antes que ele comece a pene
trá-las. O mundo só se torna um espetáculo para nós porque
buscamos nele o desabrochar dos nossos desejos. Assim,
não deveríamos pensar que, para atmgir a realidade em si
mesma, é preciso abolir em nós a sensibilidade. O contrário
é que é verdade: é preciso levar seu exercício até o extremo,
de modo a torná-la capaz de acolher nela, se podemos dizer,
a totalidade do real.
O real começa sempre por nos tocar, e o que nos toca é o
que já adere ao nosso corpo. Mas ser tocado não é ainda com
preender, e a inteligência se volta sempre para além de todos
os contatos. Ela abraça precisamente o que está mais além.
Sua função própria é recuar sempre mais nosso horizonte e
dar campo livre ao nosso poder de pensar e de agir, para além
dos limites do nosso corpo. Contudo ela nunca o abandona
completamente. Pode-se dizer que, de todo objeto ao qual
se aplica, a inteligência nos faz sentir a presença por um tato
mais sutil: mas caberia acrescentar que sentir, para ela, ainda
não é senão pressentir.
Há duas dificuldades de sentido oposto, uma que é poder
ocupar com a sensibilidade todas as regiões da nossa inteli
gência: sem isso, a inteligência permanece abstrata, o que é
seu caráter mais comum. A outra é entregar-se aos movimen
tos da sensibilidade sem conseguir que a inteligência os ilu
mine: então a inteligência permanece corporal, o que muitas
vezes lhe parece ser suficiente. É somente no ponto em que
elas coincidem que a ideia se encarna e se realiza, e obtemos a
consciência e a posse do que somos; e o mesmo fluxo da vida
que nos cega e arrasta, se experimentado sem ser conhecido,
nos seria indiferente e alheio, se pudesse ser conhecido sem
ser experimentado.
98 1 O Erro deNarciso
6. Um Balanço Sensível
Assim como o calor e a luz podem ser separados e como se
fala de um calor obscuro e de uma luz fria, assim também a
inteligência e a sensibilidade podem agir isoladamente. Mas,
nas coisas espirituais, elas se exercem sempre ao mesmo tem
po; elas se casam e se fundem de maneira tão íntima e perfei
ta que não se distinguem mais. E, por um curiqso paradoxo,
cada uma delas dá à outra a penetração que lhe faltaria se se
exercesse sozinha.
5 Os poderes da sensibilidade l 99
-
É um fato digno de nota, e muito rico em informações, que
haja apenas um fio de cabelo separando a sensibilidade mais
doce e requintada da sensibilidade mais cega e turbulenta. So
mente a inteligência a transfigura, a envolve de luz, dando-lhe
a perfeição de um equilibrio que, tão logo perturbado, a faz re
cair numa espécie de delírio. Se o sentimento é que sustenta e
anima a inteligência, é a inteligência, por sua vez, que ilumina
e apazigua o sentimento.
7. As Derrotas da Sensibilidade
A sensibilidade é antes de tudo dolorosa, e falamos de
um ponto sensível para dizer que o menor contato que a
atinge nos é doloroso. Compreende-se então que ela pareça
aumentar com nossa aptidão a sofrer. Como seria de outro
modo, já que ela é em nós a marca da passividade e já que
o ser que nasce à vida, e experimenta sua força, deve sen
tir como uma derrota todo estado que é obrigado a sofrer?
Assim, toda limitação da atividade humilha a consciência e
lhe provoca gemidos.
8. Agruras da Dor
A dor é a marca do nosso ser finito. Mas seria um grave erro
ver nela apenas pura negação, como o querem alguns otimis
tas que, expulsando-a, pensam nos erguer e nos engrandecer.
Não é sequer suficiente dizer, segundo uma distinção que os
filósofos tornaram clássica, que ela é uma privação e não sim
plesmente uma negação, privação de um bem que desejamos
e que às vezes conhecemos. Sabemos bem que ela é um estado
positivo, em geral mais positivo que o prazer quase sempre
frívolo, cuja presença é ambígua e passível de ser contestada,
que flutua sempre como a opinião e que, mesmo onde é mais
intenso, nunca deixa de nos divertir. A dor, ao contrário, se
agarra ao nosso ser real de uma maneira mais estreita e tenaz:
atravessa todas as aparências que o recobrem até atingir os
5 - Os poderes da sensibilidade l 10 l
recônditos mais profundos nos quais se abriga o eu vivo, que
se retrai nas trevas para lhe escapar.
9. A Dor Transfigurada
Os homens cometem certamente um erro ao considerar
a dor como sendo o pior dos males e ao pensar apenas em
aboli-la. Ela nos faz sensíveis ao mal, em vez de ser ela pró
pria um mal. E por essa mesma sensibilidade nos faz parti
cipar ainda do ser e do bem.
Assim cabe dizer que a dor não deve apenas ser sofrida ou
mesmo aceita, mas também desejada; uma consciência que
quisesse tirar-lhe o gume, tiraria seu próprio gume. E não
basta dizer que é preciso querer a dor, assim como queremos
1. As Duas Indiferenças
É conhecida esta frase de Voltaire que parece ser a pró
pria definição da indiferença radical: "Tudo é igual ao fim do
dia e tudo é ainda igual ao fun de todos os dias". Mas cabe
perguntar: tudo é igual para o universo ou tudo é igual para
nós? E quem ousaria invocar sua própria existência para di
zer que tudo é igual para ele? E, se quiserem que tudo seja
igual para o universo, também é verdade que essa igualdade
do universo pode ser para nós tanto um objeto de admiração
quanto um objeto de desespero.
2. Indiferença e Delicadeza
A indiferença pode vir ou de um excesso de moleza que
faz que nenhum traço possa ser gravado na alma, ou de um
excesso de dureza que a impede de ser talhada, e que toma
mos geralmente por força. Mas ela pode ser também o efeito
de uma extrema delicadeza, de um pudor atento e arisco que
teme tanto internamente romper seu próprio segredo, quanto
externamente faltar à discrição. Assim, quem não se enterne
ce, ou mesmo luta contra todo enternecimento, vai às vezes
mais além de todos os sentimentos aos quais os outros não se
envergonham de ceder e cuja falta lhe reprovam.
O que chamam de indiferença não é às vezes senão certo ar
dor do amor, mas que tem demasiado pudor de baixar os olhos
a estados que pertencem apenas ao indivíduo, no momento
em que esse amor mesmo lhe imprime como que o sinal da
nossa origem divina: ela é a contrapartida do movimento puro
que sempre leva o amor até o centro da alma onde se realiza
seu destino espiritual. As marcas de uma ternura muito direta
quase não o retêm: ele logo as esquece. São apenas comoções
passageiras às quais ele se reprova de ser demasiado sensível,
porque lhe revelam uma forma de união na qual não quer se
comprazer e que só tem valor se for ultrapassada.
4. Indiferença e Desapego
Há uma aliança notável entre o desapego e a indiferença.
Pois o homem desapegado deixa de se interessar p"ür si nas
coisas, mas considera em cada uma delas o peso que lhe é
próprio e, por assim dizer, seu valor no absoluto. De tal modo
que, sendo indiferente a si, conhece as diferenças de todas as
coisas ou, ainda, pode usufruir de tudo porque nunca pensa
em usufruir de si mesmo.
2. O Gênio Próprio
Todos os homens têm gênio, se forem capazes de desco
brir seu gênio próprio. Mas o difícil está aí: quase sempre não
fazemos outra coisa senão invejar outrem, imitá-lo e buscar
ultrapassá-lo, em vez de explorar nosso próprio âmago. E não
se pode esquecer que, toda vez que somos fiéis a nós mesmos,
sentimos um ardor lúcido que ultrapassa todos os outros pra
zeres, retira-lhes todo o sabor e daí por diante os torna inúteis.
Mas como descobrir esse gênio pessoal que nos foge quan
do o buscamos, que a maioria das criaturas não consegue
3. Do Caráter à Vocação
O indivíduo é o caráter, no sentido mais comum da palavra,
mas também no sentido mais forte e mais nobre. A vontade
está sempre em combate com ele: mas é sempre o caráter que
aparece, seja quando ela cede, seja quando ela triunfa.
5. Discernimento da Vocação
Há em nós um fluxo que nos leva, mas do qual só temos a
impressão segura de o acompanharmos se nós mesmos o fa
zemos jorrar. Assim a vocação é uma resposta ao apelo mais
íntimo do meu ser secreto, sem que nada o substitua, vindo
da minha vontade própria ou das solicitações que recebo de
fora. Ela é primeiro apenas uma capacidade que me é ofereci
da; o caráter original da minha vida espiritual é consentir em
fazê-la minha. Ela se torna então minha essência verdadeira.
6. A Escolha Inevitável
Cada um de nós tem a ambição de abarcar pelo pensamen
to a totalidade do universo. Mas só pode fazer isso numa pers
pectiva que lhe é própria. É um grande erro querer abolir essa
perspectiva para atingir as coisas tais como elas são. Pois en
tão as coisas nos escapam e deixam de se relacionar com nossa
vida: tornam-se elas mesmas sem vida. Não é separando-nos
do real onde estamos colocados que podemos esperar melhor
apreendê-lo: é penetrando nele com todas as capacidades e to
dos os recursos de que dispomos. A presença do ser universal
coincide para nós com a realização do nosso ser individual,
em vez de ultrapassá-lo e de excluí-lo.
7. Fidelidade
É mais difícil do que se pensa perm(\Ilecer fiel a si. A
preguiça nos desvia, entregando-nos às causas exteriores,
e também o amor-próprio que, ao nos elevar acima do que
somos, nos torna estranhos a nós mesmos. A verdadeira co
ragem consiste em reconhecer nossa vocação, que é única no
mundo, e em permanecer fiel a ela em meio a todos os obs
táculos que encontramos, sem nunca nos permitirmos ceder
diante deles. Pois são esses obstáculos que a fazem irromper
e a obrigam a se realizar. E as próprias tentações não são
senão provas, mas que nos julgam.
8. Destino e Vocação
Explica-se quase sempre o desenvolvimento da planta pela
natureza da semente e pela ação do meio. Se o mesmo acon
tecesse conosco, estaríamos encerrados na rede da fatalidade.
Teríamos um destino sem ter vocação. A vocação supõe um
consentimento da liberdade, um uso dos dons que recebe
mos e das condições que a vida nos impôs. É precisamente
no intervalo que separa o que somos da natureza das circuns
tâncias nas quais vivemos, que a liberdade se insinua; é entre
esses dois determinismos, o de dentro e o de fora, é graças ao
encontro deles que ela exerce seu jogo. Pois é ela que os coloca
em relação, que pede a cada um deles armas contra o outro. É
pela ação dos acontecimentos que ela age sobre as forças da
natureza e as disciplina; é pela ação dessas forças que ela toma
posse dos acontecimentos ou os suscita.
9. Os Acontecimentos e o Acaso
O destino não é constituído, como se pensa com muita
frequência, pela série dos acontecimentos que preenchem
nossa duração. Os acontecimentos mais consideráveis podem
produzir em nossa alma uma emoção que a agita: mas essa
emoção é somente um eco do corpo. Nosso espírito pode ser
ofuscado por ela, sem que se possa dizer que participe dela.
\
E só penetra em nosso destino quando se torna para nós um
chamado ou uma resposta que o mundo nos dirige, um milagre
pessoal que só tem sentido para nós e em relação a nós.
1 O. O Destino Único
Podemos nos surpreender com o fato de que haja destinos
que falharam. Mas nosso destino só aparece quando se com
pletou; e dizemos que ele falhou quando nos parece que não
coincidiu com nossa vocação.
1. Amor-Próprio
O amor-próprio se compraz tanto em si que se demora até
no sentimento da sua própria miséria. De tal modo que ele se
intensifica mesmo quando busca se curar.
2. Opinião
A opinião é a coisa mais desvalorizada do mundo: "isso não
passa de uma opinião". E a opomos sempre, com Platão, ao
conhecimento. No entanto ela é também a coisa do mundo a
que mais nos apegamos, simplesmente porque é a nossa, por
que ela exprime, parece, ao mesmo tempo uma preferência da
nossa natureza e um ato da nossa liberdade. Reivindicamos a
liberdade de opinião. Assim cada um se apega à opinião como
à expressão mais preciosa do seu ser individual.
3. Régua de Chumbo
Todo julgamento verdadeiro exprime uma preferência e
supõe sempre uma comparação entre valores. Mas os homens
não medem com a mesma regra a perfeição nem o mérito.
Uma boa regra deveria, dizem, possuir tanta flexibilidade
quanto aquela régua de chumbo da qual se serviam os arquite
tos e que podia se adaptar a todas as sinuosidades do real. Mas
toda regra é mais ou menos rígida. Ela se afasta mais ou me
nos do real, precisamente por ser uma regra. E cada um de nós
aplica uma regra diferente conforme o ideal que ele mesmo
4. ódio à Diferença
Não devemos nos indignar com a hostilidade que amea
ça toda existência individual, tanto maior quanto essa exis
tência tem mais originalidade e grandeza. Essa não é apenas
uma lei da sociedade humana, mas uma lei profunda do Ser.
5. Crítica da Grandeza
Embora toda grandeza seja relativa, há homens que não
têm outro meio de se engrandecer senão rebaixando os que
estão à sua volta. Seus ataques se dirigem aos maiores. Uma
constante negação pela qual pensam se colocar acima do
que negam, críticas renovadas que mostram as exigências
do seu espírito e sua fertilidade, fazem às vezes tomar por
um edifício esse monte de ruínas. Mas eles não se elevam
acima do que destruíram. A alma desses homens é vazia e
se infla apenas de vento. Pois nada poderia enchê-la, nem
engrandecê-la, senão as descobertas que outros fizeram e
das quais ela não é capaz. Eles preferem jogá-las no nada a
parecerem obrigados a se alimentar delas.
7. Orgulho e Humildade
A maior fonte de humildade para os espíritos mais profun
dos é a presença do corpo, que para os espíritos mais superfi.
ciais é a fonte de todas as vaidades. Esse convívio com o corpo,
do qual se deve dizer que é nosso mas que a maioria dos ho
mens diz que é nós, a necessidade que temos de atender suas
necessidades, de suportar suas misérias, de aceitar que ele nos
revele e nos mostre, submetendo-nos, por assim dizer, a uma
contínua indiscrição pública, eis o que mais nos obriga a nos
humilharmos. Mas a verdadeira humildade é uma atitude me
tafísica singularmente rara, aquele último rebaixamento do
nosso ser para a terra que exige um supremo erguimento da
nossa alma para Deus: pois ninguém poderia se aniquilar se
não para permitir que Deus ocupe o lugar vazio. E somente em
Deus podia se realizar o abismo da humildade, que é o milagre
da Encarnação voluntária.
6. Discrição
Só temos ação sobre outro indivíduo se não quisermos tê-la.
Pois a intenção que sinto em você de conquistar meu assenti
mento me põe na defensiva e me impede de dá-lo. Ela altera e
corrompe seu próprio pensamento que não vale mais por si,
mas apenas pelo sucesso que busca obter. A ação vale pelo que
é, não pelo que ela visa. Se busco me insinuar numa outra cons
ciência a fim de reduzi-la, é por um propósito do amor-próprio
que altera nela a pureza do seu olhar espiritual. O desejo tempo
ral do êxito acaba sendo um obstáculo, às vezes é um apelo pa
tético que produz apenas espanto, resistência ou frieza, cegando
em vez de iluminar. É corromper nosso próprio pensamento
querer que ele triunfe, em vez de buscar apenas dar-lhe a forma
mais perfeita e despojada. Seu único triunfo reside aí.
9. Receber e Dar
Dizem que ninguém nunca pode receber senão o que ele
mesmo pode dar e que, para ser capaz de receber uma dádiva,
deve ser capaz de fazê-la.
Ora, o maior bem que fazemos aos outros homens não é lhes
comunicar nossa riqueza, mas fazer que descubram a deles. É
que ninguém recebe algo como um bem que lhe seja alheio. As
sim ele só pode receber a si mesmo como dádiva..Toda dádiva
recebida é a descoberta dentro de si de um poder que se pos
suía sem suspeitar. Mas, quando revelada, ela nos parece mais
íntima a nós mesmos que tudo o que pensávamos ter.
1 O. Grandeza Reconhecida
Certamente homem nenhum é capaz de formar ele mesmo
seu próprio gênio: basta que o saiba discernir e lhe permane
cer fiel. Mesmo assim ele não consegue isso sozinho: os maiores
sempre necessitam se assegurar a si próprios pela resposta ou
pela simpatia secreta que encontram em pessoas muito simples
que o destino colocou perto deles, e que lhes bastam para conso
lá-los da ignorância e do desprezo da maioria em relação a eles.
Não há nada mais raro que essa troca; na maioria das ve
zes, ela só se produz por relâmpagos, seja com pessoas que
vimos só uma vez, seja com aquelas que nos são mais fami
liares. Quase sempre é mais pressentida que experimentada: é
impossível ou fixá-la, ou fazê-la renascer quando quisermos.
Pois ela nos faz escapar do mundo material e a vontade não
consegue pegá-la, nem aprisioná-la. É um paraíso espiritual,
mas que nunca faz mais do que se entreabrir.
1. A Paz da Alma
A tranquilidade interior se alia sempre com a solidão e com
a liberdade do espírito. Ela exclui o zelo indiscreto pelo qual
nos metemos sempre na tarefa do vizinho, impedindo-a de
realizar-se e esquecendo a nossa. E ela se perde quando co
meço a me comparar a outrem e, abandonando meu domínio
pelo dele, não penso mais senão em imitá-lo ou em vencê-lo.
2. Sem Pressa
Há um ponto de perfeição no qual todas as oscilações da
emoção e da paixão se resolvem num equilibrio supremo, no
qual as alternativas mais extremas da sensibilidade, em vez de
se abolirem, conseguem se unir e se fundir numa posse calma e
singela, que é um mesmo e único ato de inteligência e de amor.
5. Virtude Cotidiana
Há muita força na expressão "o próximo" que o Evange
lho utiliza, nos mandando amar o próximo e limitar a esse
6. Evitar as Disputas
É preciso evitar a atitude insuportável dos que estão sem
pre em disputa consigo mesmos e com outrem.
IO-Tranquilidadedaalma j 171
8. Doçura e Firmeza
De todas as virtudes da alma, a doçura é a mais sutil e a
mais rara, sobretudo em nosso tempo; e em todo momento
ela é a mais difícil de manter e de praticar. Pode acontecer que
a confundam com a facilidade, com a indolência ou com a in
sipidez. Quando nela a menor vontade se insinua, ela é falsa
e nos causa horror. A verdadeira doçura. é sempre tão aten
ta, tão delicada e tão ativa que sempre nos surpreendemos,
quando a encontramos, de poder ser tão benfazeja sem pare
cer nada nos dar.
A doçura não é, como se pensa às vezes, o contrário da fir
meza, e sim seu polimento. A firmeza não deve rejeitar nossa
mão, mas sustentá-la, e o contorno mais doce tem geralmente
uma nitidez que modera o desejo e lhe serve de guia. A união
da doçura e da firmeza é às vezes tão perfeita que não mais as
discernimos: não se deixam reconhecer nem por aquele que
as possui e que, ao agir, cede a uma necessidade e a uma graça
natural, nem por aquele que as recebe e que encontra nelas
um chamado e uma sustentação.
A doçura está tão distante da fraqueza que somente ela,
ao contrário, possui uma força verdadeira. Ela dissolve
todas as resistências que lhe são opostas. O homem mais
forte não é o que resiste à paixão - dele ou de outrem - pela
violência de um esforço, mas pela doçura da razão. Toda
vontade se enrijece quando se quer vencê-la ou dobrá-la,
mas a doçura a persuade. Só ela pode triunfar sem combate
e transformar o adversário em amigo. Existe uma falsa do
çura que logo incita à violência, e uma verdadeira doçura,
mais poderosa que a violência, que a torna inútil e a ani
quila. Pois a doçura não é, como muitos pensam, uma falta
de impulso, mas um impulso contido e apaziguado. Não
é uma vontade fraca, mas uma vontade ultrapassada, que
não tem mais necessidade de esforço: ela imita a natureza
mas a transfigura, pois a natureza não conhece a doçura,
apenas a indolência ou o furor.
1 O. A Paciência e a Dor
A paciência é submeter-se e esperar, o que é mais difícil
que agir e resolver. É a virtude do tempo. E é preciso paciên
cia para suportar viver no tempo. Logo se busca preenchê-lo
quando ele parece vazio. E não pode haver melhor meio para
nós do que a paciência, que é uma espécie de doçura para com
o tempo, que não pensamos nem em violentar, nem em abolir.
Essa paciência positiva faz com que a alma conserve sua ati
vidade e mesmo sua alegria na adversidade. Ela suporta todas
as contradições sem ceder aos movimentos do amor-próprio ou
da cólera. Converte em doçura nossas primeiras agitações.
1. Dupla Natureza
Quanto mais a árvore mergulha suas raízes nas trevas da ter
ra, mais alto sobe sua folhagem, mais ela estremece com delica
deza nos cimos da luz. E sua imóvel majestade não é senão um
móvel equilibrio em que todas as forças da natureza atuam e
se contrariam, mas também se correspondem e se contêm com
uma certeza interior mais bela que todos os abandonos.
2. Reunir os Extremos
A medida não é de modo algum mediocridade ou falta de
força; é uma espécie de plenitude interior e de justa proporção
com o universo que deve permitir a cada indivíduo ser ele mes
mo e mestre de si, isto é, manter nas mãos os extremos, em vez
de ou evitá-los, ou ceder a eles. Pois a medida tem necessidade
dos extremos e os traz, por assim dizer, em si, sem rejeitá-los
nem aboli-los. Longe de ser o justo meio-termo e de ficar a
igual distância de um e de outro, ela preenche todo o intervalo
que os separa de modo a uni-los. Tempera cada um deles, não
3. Compensação
Cada um de nós é um ser misto cuja essência se realiza sem
pre por um equilíbrio mantido entre dois extremos, e por isso
nem o que há em nós de mais belo, nem o que há em nós de
mais feio nos parece inteiramente nosso. Há em nós o que se
chama a consciência e que é ao mesmo tempo um olhar, um
mandamento e um desejo: essa é a nossa parte divina. Mas há
também em nós o ser ao qual esse olhar se aplica, que é rebelde
ao mandamento e infiel ao desejo: é a nossa parte que pertence
5. Embriaguez da Alma
A alma é como um fogo que nos foi confiado e que nos cabe
alimentar: é nosso dever fornecer-lhe apenas os materiais
mais puros. Não basta dizer que, como o fogo, ela purifica
7. A Paixão e o Absoluto
Não se deve desprezar a paixão que nos descobre o sentido
do nosso destino, que suscita, exalta, unifica todas as forças do
nosso ser e que, em cada acontecimento da nossa vida, intro
duz a presença do absoluto e do infinito. Os que a desprezam
são também os que são incapazes de senti-la. Ela assusta sua
prudência e desconcerta sua timidez. Quase sempre a paixão
exige mais ser alimentada do que ser retida.
9. Virtude da Paixão
Sempre se fala da paixão dizendo que ela é um furor que se
apodera de nós, que desorganiza nossa vida e destrói nossa
liberdade. Mas cada um busca uma paixão de outra espécie
que supere a oposição entre os movimentos do instinto e os
da vontade, que dê à nossa consciência uma perfeita unidade,
que reúna todas as forças em torno do mesmo ponto e libe
re nossa iniciativa, em vez de subjugá-la. A própria palavra
paixão é admirável, pois designa a atividade mais intensa que
podemos exercer, embora seja inteiramente recebida, uma
atividade tão plena que exclui o esforço, nunca empregado
1. Virtudes do Conhecimento
O conhecimento é o que caracteriza o homem, é o que o
diviniza. Coloca-o em relação com aquilo que o ultrapassa. Ao
arrancá-lo de si mesmo, não cessa de enriquecê-lo. Eleva-o da
existência momentânea, que é a do corpo, à existência eterna,
que é a das ideias.
l� 1 O Erro de Narciso
abrem diante de nós e que solicitam nossos passos, a infini
dade das demandas que não cessam de nos assaltar e que já
são para nós respostas.
4. As Duas Luzes
Dizem que não há nada mais belo, mais nobre e mais puro
no mundo que a luz. Tudo o que ela envolve, e mesmo tudo o
que ela toca, é imediatamente embelezado, enobrecido, puri
ficado. Ela faz ver todos os horrores que enchem a natureza,
mas não é maculada por eles.
1 Mateus 6,22.
6. Pureza
A pureza do olhar que exprime todo o ser sem necessida
de de recorrer a nenhum movimento, gesto, sinal, a nenhuma
palavra que, destruindo sua unidade, substituiria sua essência
eterna por seu estado ou sua vontade de um momento, essa
pureza nos torna sensível, sem imagem ou reserva alguma, à
comunicação recíproca e sem objeto que se estabelece entre os
diferentes indivíduos na participação de uma mesma vida e na
contemplação do mesmo universo.
7. Pur�cação
A pureza é um ato de presença a si mesmo e ao mundo. E
não há ato que seja mais difícil de efetuar: todo desvio que
rompe a unidade do nosso ser é impuro. É uma inclinação
da alma para o que lhe é alheio, para o que é perecível, e já
uma fuga em direção ao nada: inclinação que nunca rece
be de nós um verdadeiro consentimento. Ninguém se en
trega ao desvio com uma perfeita liberdade interior e uma
A pureza é tão perfeita e tão unida que não tem como ser
atacada. Ela não se divide para se conhecer. Transparece
apenas nos acontecimentos mais comuns, nas palavras mais
simples, nos pensamentos mais naturais. Reduz tudo o que
acontece a proporções tão claras que parece apagar o que
no mundo cria obstáculo ou saliência. Transforma-o num
espelho límpido onde todos os desejos do espírito ganham
corpo e se realizam.
Ela mesma nada nos traz. Permite que tudo nos seja trazi
do. Receia introduzir no real o menor hálito que o enrugue. É
muda e interrogativa.