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O ESPÍRITO
DA MÁQUINA
Autor
KURT MAHR
Tradução
RICHARD PAUL NETO
Digitalização e Revisão
ARLINDO_SAN
Os calendários terranos registram os últimos dias do
ano 2.402. A expedição de Perry Rhodan em direção a
Andrômeda, conhecida como operação cabeça-de-ponte, não
registrou apenas sucessos. Também houve revezes.
De qualquer maneira, a expedição terrana conseguiu
uma base segura em Andro-Beta, situada no planeta Gleam, a
partir da qual poderia ser lançada a ofensiva contra a área
diretamente controlada pelos senhores da galáxia. Baar Lun,
um modular que comandava as esferas luminosas por conta
dos senhores da galáxia e acabou passando para o lado dos
terranos, confirmou que os senhores de Andrômeda não
tinham mais armas guardadas em Andro-Beta.
Os misteriosos senhores da galáxia passam a
desenvolver uma atividade terrível junto aos maahks de
Andro-Alfa, a 62.000 anos-luz da nebulosa Beta, e com isso o
palco dos acontecimentos intergalácticos muda de lugar.
Grek-1, um maahk que se aliara a Perry Rhodan, sacrifica a
própria vida para ajudar seu povo e não ter de trair os
terranos.
Os comandos de extermínio dos maahks transformados
em servos dos senhores da galáxia se concentram, e pesadas
lutas são travadas em torno do sistema Chumbo de Caça.
Reginald Bell e seus homens enfrentam uma situação
desesperadora, enquanto O Espírito da Máquina não entra
em ação e provoca uma virada decisiva...
Kantor sobressaltou-se. Ficou confuso por um instante, sem saber onde estava. Mas
logo se lembrou. Virou a cabeça e viu o retângulo da porta fortemente iluminado.
Uma figura estranha destacava-se contra a luz. Ainda meio sonolento, Kantor viu
um par de pernas grossas e curtas, um tronco redondo e desajeitado que nem um balão
cheio de ar e inúmeras excrescências, que tremiam constantemente que nem os tentáculos
de um monstro das profundezas do mar.
Foi uma visão tão horripilante que fez gelar o sangue nas veias de Kantor. Nem
sequer foi capaz de gritar. Um som estertorante saiu de sua boca. Foi só.
O desconhecido estava parado na porta aberta, e parecia absorto no exame do
recinto. Aos poucos a inteligência de Kantor voltou a funcionar. Lembrou-se de ter
fechado a porta antes de deitar. O desconhecido devia ter aberto a fechadura. Kantor não
tinha a menor idéia de como poderia ter feito isso, e nem era capaz de imaginar em que
lugar de Califa poderiam viver monstros parecidos com o que estava parado na porta. Só
sabia que tinha medo, e assim que se deu conta disso começou a lutar contra este
sentimento.
O desconhecido começou a movimentar-se. Atravessou a porta e entrou na sala
mergulhada na penumbra. Foi o que decidiu a situação. Os músculos de Kantor
começaram a funcionar de repente. Saltou do leito com um grito marcial e atravessou o
quarto, em direção ao armariozinho no qual guardara suas vestimentas antes de ir para a
cama. O desconhecido parecia um tanto surpreso. Parou e as dezenas de braços que
pendiam de seu corpo chicoteavam nervosamente o ar. Kantor abriu violentamente o
armário. A claridade que entrava pela porta não era suficiente para que visse onde estava
sua roupa de serviço. Mas teve sorte. A primeira coisa em que pôs a mão foi o coldre no
qual estava guardada a pequena pistola energética.
Arrancou a arma. O desconhecido já parecia ter tomado uma decisão. Voltou a
cabeça. Kantor viu-o atravessar novamente a porta. Levantou a arma, soltou um grito de
raiva e atirou. A luz da descarga energética deixou-o ofuscado. Quando voltou a
enxergar, o monstro tinha desaparecido. Kantor correu para a porta. O corredor, que se
estendia a centenas de metros em ambos os sentidos, passando pelos dormitórios dos
engenheiros, estava quieto e vazio. Não se via sinal do desconhecido armado com
tentáculos.
O lado direito do batente da porta estava superaquecido. O cheiro desagradável da
massa plástica enchia o ar. Kantor ligou a luz e olhou em volta. O pequeno quarto tinha o
mesmo aspecto prosaico de oito horas atrás, quando ele o vira pela primeira vez. A cama
estava encostada à parede do lado esquerdo, na parede dos fundos havia um canto
reservado com uma mesa e três poltronas, e junto à parede do lado direito via-se um
armário grande e outro menor. À direita do armário maior havia uma porta que levava ao
pequeno banheiro. As instalações do intercomunicador ficavam bem ao lado desta porta.
O chão estava coberto por um tapete simples de fibra de plástico, e a luz era fornecida por
dois tubos fluorescentes amarelos presos ao teto.
Era o pequeno reino de Steve Kantor. Restava saber o que o desconhecido esperara
encontrar ali.
Parecia que seus gritos não tinham sido ouvidos por ninguém, o que não o deixou
nem um pouco admirado. De ambos os lados do corredor dormiam pessoas que tinham
vindo da Terra há doze horas, tal qual ele. Em Califa costumava-se dar um calmante forte
aos recém-chegados que não pertencessem à classe dos astronautas profissionais. Steve
perguntou-se como conseguira acordar tão depressa.
Dirigiu-se ao intercomunicador. Levantou o fone e apertou a tecla O. A pequena
tela iluminou-se e um rosto cansado apareceu nela.
— Sala de comando. Cabo Bennington. O que posso fazer pelo senhor?
Sem querer, Steve teve de sorrir. Bennington certamente queria que ele fosse para o
inferno, mas recebera ordens para ser amável para com os novos engenheiros.
— Quero dar uma informação, cabo — disse Steve.
— Ah — fez Bennington sem demonstrar o menor abalo.
— Um desconhecido invadiu meu quarto — fez uma descrição do monstro.
Bennington balançou a cabeça. — Dei um tiro — prosseguiu Steve. — Mas antes que
voltasse a enxergar de verdade, o desconhecido desapareceu.
— Já conheço isso — resmungou o cabo. — Tinha três antenas coloridas na cabeça
e, toda vez que fazia um movimento, alguns sinos tocavam La Paloma. Senhor — de
repente sua voz assumiu um tom oficialesco. — O senhor não é o primeiro recém-
chegado que aporta a Califa, nem o primeiro que sofre alucinações. Reflita mais um
pouco sobre o que acaba de contar e se depois disso ainda quiser fazer um registro oficial,
volte a chamar. Até lá desejo-lhe uma boa noite.
Antes que Steve pudesse formular qualquer objeção, a tela apagou-se. Steve ficou
furioso, mas antes que voltasse a entrar em contato com Bennington, lembrou-se de uma
coisa.
— Tinha três antenas na cabeça...
Steve procurou lembrar como era o monstro. Naturalmente o nervosismo e o medo
tinham sido tantos que mal conseguia enxergar, mas tinha certeza quase absoluta de que o
desconhecido nem possuía cabeça.
***
Dali a cinco horas, quando o sinal de despertar arrancou os engenheiros recém-
chegados da cama, as coisas pareciam bem diferentes. Steve Kantor sentia-se calmo e
descansado. De repente não teve tanta certeza se realmente vira o monstro, ou se apenas
era um sonho. Tomou uma ducha e mudou de roupa. Enquanto fazia isso, chegou à
conclusão de que seria preferível não falar com ninguém sobre sua aventura noturna. E
fazia votos de que o cabo Bennington soubesse calar a boca.
Mas antes de sair do quarto para misturar-se à multidão que caminhava pelo
corredor, examinou o batente da porta. O tiro energético deixara uma marca bem
perceptível. Pelo menos este tinha sido real. Num gesto pensativo,
Steve enfiou o dedo na ranhura enegrecida pelo calor, que a descarga energética
abrira no batente da porta. Sacudiu a cabeça, contrariado, e saiu para o corredor. Logo
viu-se arrastado pela multidão.
Dali a alguns minutos viu-se na grande sala de refeições que ficava no fim do
corredor. Tratava-se de um recinto que tinha pelo menos cinqüenta metros de
comprimento por trinta de largura. As máquinas automáticas, nas quais as pessoas
podiam servir-se de comida à vontade, ocupavam pelo menos a quarta parte da área da
sala. As outras três quartas partes estavam cheias de mesas e banquetas. Steve pegou um
caneco de café e um sanduíche, procurou um lugar junto a uma mesa e enquanto tomava
seu lanche ficou quebrando a cabeça sobre os motivos que o fizeram parar ali.
Havia uma enorme tela embutida na parede dos fundos, que permitia uma visão dos
arredores, à maneira de uma janela. Em Califa, que era um astro pequeno, onde o
horizonte ficava a um pulo de gato, estes arredores eram formados em partes iguais pelo
chão firme e cinzento e pela escuridão do espaço cósmico. Steve passou os olhos
rapidamente sobre o conjunto de construções em forma de barraco que preenchiam o
terço inferior do campo de visão. Depois passou a contemplar a multidão cintilante
formada por centenas de milhares de fragmentos cósmicos grandes, pequenos e
minúsculos, que giravam à luz do sol geminado e faziam com que a estranha ilha situada
no nada fosse conhecida pelo nome de sistema Chumbo de Caça.
Os dois sóis dominavam o quadro. As duas bolas de fogo alaranjadas, amortecidas
por meio de filtros para que não fizessem doer os olhos, dardejavam seus raios no centro
da tela. Os dois sóis forneciam a energia para o transmissor que ligava o sistema Chumbo
de Caça com a galáxia Andrômeda. Califa era um dos nove grandes asteróides que
percorriam suas órbitas em torno do centro de gravidade do sol, juntamente com a
multidão de fragmentos de rocha. Califa tinha aproximadamente o tamanho da Lua
terrana — e a mesma densidade populacional.
Steve mal conseguia compreender como tinha sido possível transportar dentro de
pouco tempo uma quantidade tão grande de recursos humanos e materiais a este ponto
afastado do Universo. Califa ficava a mais de 1,3 milhões de anos-luz da Terra. Fazia
quase exatamente um ano terrano que pela primeira vez uma espaçonave terrana chegara
ao sistema Chumbo de Caça. Naquele momento Califa parecia antes uma concentração
de tropas. Docas e oficinas, alojamentos provisórios e usinas de força, hiper-
transmissores e laboratórios técnicos tinham brotado do chão da noite para o dia. Uma
frota formada por milhares de naves permanecia suspensa no espaço, bem perto de
Califa, girando juntamente com o asteróide em torno do sol geminado vermelho.
Quatro meses atrás, quando Steve Kantor ainda trabalhava num instituto de
pesquisas oficial situado na Terra, ouvira falar pela primeira vez nos esforços tremendos
que a humanidade vinha empreendendo para criar uma base nas imediações de uma
galáxia estranha. Sentiu-se dominado pelo entusiasmo. Passou a experimentar um
orgulho que ainda não conhecera — orgulhava-se por ser um terrano. Quando soube que
em Terrânia estavam sendo procurados técnicos em hipercampos, que estivessem
dispostos a passar dois ou três anos bem longe da Terra, num perigoso posto avançado,
compreendeu que só podia tratar-se do transmissor Chumbo de Caça. Candidatou-se ao
lugar o mais depressa que pôde.
Fora aceito. Dali em diante tudo correu muito depressa. Foram buscá-lo no mesmo
dia em que tinha sido avisado de sua aceitação. Levaram-no a um campo de treinamento
situado na costa da África Ocidental. Nas cem horas de aulas sugestivas que lhe foram
dadas aprendeu tudo que precisaria para a tarefa que estava para ser cumprida. Soubera
pela primeira vez o que acontecera no sistema Chumbo de Caça e nas áreas periféricas de
Andrômeda, desde que a nave-capitânia da frota, a Crest II, pousara em Califa no mês de
dezembro do ano de 2.401. Compreendera que os esforços até então feitos com o objetivo
de permitir o acesso da humanidade a uma nova galáxia eram muito mais gigantescos e
heróicos do que acreditara.
Isto só contribuiu para aumentar seu entusiasmo.
Quando ele e outros quinhentos engenheiros tinham aprendido bastante, todos
foram colocados numa gigantesca espaçonave. O vôo, que durou mais de dois dias,
levou-os pelas profundezas de sua galáxia. A seguir um medicamento foi aplicado aos
passageiros, e a primeira coisa que Steve soube depois disso foi que seus olhos viram na
tela de seu camarote os pontos luminosos de dois sóis no meio da escuridão absoluta.
Aliás, a escuridão não era tão completa como no início se poderia ser levado a acreditar.
A luminosidade tênue de uma grande nebulosa cobria o firmamento de lado a lado. Sua
luz era tão fraca que podia facilmente passar despercebida diante do brilho fulgurante dos
dois sóis.
Steve Kantor compreendeu que acabara de chegar ao destino. As duas bolas de fogo
vermelhas que via projetadas na tela eram os sóis que faziam parte do transmissor
Chumbo de Caça. A grande nave alcançara o destino sem contratempos. Dentro de mais
algumas horas seria destacado para algum setor, a fim de colaborar num projeto mais
fantástico do que qualquer outro já empreendido no curso da história milenar da
humanidade.
Steve lembrou-se do que pensara e sentira nessa oportunidade, enquanto consumia
seu sanduíche. O tremendo entusiasmo já tinha diminuído um pouco. A recepção que lhes
foi proporcionada em Califa poderia ter sido tudo, menos poética. Os alto-falantes
berravam ordens, e oficiais subalternos da frota, impacientes, tangiam os engenheiros
como se fossem uma manada de animais. Davam todos a impressão de que teriam
preferido que os recém-chegados tivessem ficado na Terra. No início Steve ficou
decepcionado, mas logo compreendeu que as pessoas que se encontravam em Califa
tinham muito que fazer, e por isso não tinham tempo para recepcionar um batalhão de
jovens cientistas com os braços abertos. Os recém-chegados foram obrigados a entrar em
forma que nem um bando de recrutas, no interior de um pavilhão tão grande que uma
espaçonave de porte médio teria encontrado lugar em seu interior. O entusiasmo
provocado pelo fato de pela primeira vez ver-se frente a frente do lendário Reginald Bell
e ouvir suas palavras foi abafado um pouco pela recepção pouco amistosa, mas Steve
lembrou-se de que ouvira as palavras de Bell com a maior atenção. O Marechal-de-
Estado Bell fez uma descrição ligeira dos objetivos e finalidades da base do sistema
Chumbo de Caça, e a seguir passou a tratar das tarefas dos engenheiros recém-chegados.
Fez a apresentação dos chefes de seção — que eram todos oficiais do destacamento
técnico da frota — para que cada um dos recém-chegados soubesse para quem iria
trabalhar.
Depois receberam alguma coisa para comer. Steve foi conduzido ao seu aposento
em companhia de mais de quinhentos homens. Este aposento até se parecia com o
camarote de uma espaçonave, que era exatamente o que ele esperara. Grupos de
engenheiros andaram de um lado para outro, distribuindo medicamentos. Steve tomara
um banho e fora para a cama.
E agora estava ali. Olhou para o relógio. Eram oito e dez, tempo padrão. Às oito e
trinta deveria comparecer ao local de trabalho, para que lhe fossem indicadas suas tarefas.
Seu chefe de seção era o Tenente-Coronel Koenig, sob cujas ordens trabalharia um total
de oitenta dos novos engenheiros. Steve imaginava que Koenig passaria todo o dia
distribuindo os oitenta homens em grupos menores, nomeando os subchefes e dando
oportunidade para que eles se conhecessem uns aos outros. Acreditava que naquele dia
não teria mais que uma idéia geral do trabalho que iria executar no futuro.
Steve terminou seu lanche, enfiou a bandeja de plástico na qual comera dentro do
recipiente de lixo e saiu andando em direção ao setor em que ficavam os laboratórios. O
interior de Califa era formado por uma confusão de corredores, galerias e salas,
construído com muita pressa e entusiasmo, mas quase sem método. Por isso havia setas
em todos os cruzamentos, que mostravam o caminho aos que se tinham perdido. A altura
e largura dos corredores variava bastante, conforme a finalidade, e todos possuíam um
revestimento de metal plastificado cinzento. Uma, duas ou até três fileiras de tubos de luz
fluorescente estavam presas ao teto. Os corredores maiores estavam equipados com
esteiras transportadoras, enquanto nos outros as pessoas se locomoviam a pé. A
gravitação era igual em todos os pontos. Havia um gigantesco gerador gravitacional,
instalado há pouco tempo nas profundezas do asteróide, que produzia em todos os lugares
de Califa uma gravidade igual à do planeta Terra.
Steve Kantor caminhou cerca de um quilômetro. De repente uma seta apontava para
baixo. Entrou num elevador antigravitacional e atingiu um pavimento que devia ficar
pelo menos quinhentos metros abaixo daquele do qual viera. Quando saiu do elevador,
ouviu o zumbido pesado e ininterrupto de pesadas máquinas. Deu mais alguns passos e
foi parar à frente de uma porta com a seguinte inscrição:
SALA DE CONFERÊNCIAS IP-8, SETOR C
TEN-CEL KOENIG
Entrou.
Era uma sala pequena, cheia de fumaça de cigarro. O grupo de Koenig já estava
reunido. Os homens estavam nervosos e exaltados. As cadeiras estavam todas ocupadas,
e metade das pessoas enfileirava-se junto às paredes. Steve encontrou uma brecha estreita
e entrou nela. O homem que se encontrava à sua direita era um gigante com um traço de
mal-estar nervoso no rosto. Fez um gesto como quem já sabia.
Exatamente às oito horas e trinta minutos o Tenente-Coronel Koenig entrou por
uma porta pequena que ficava na parede dos fundos. Era um homem baixo, mas robusto.
O que mais chamava a atenção nele era o cabelo desgrenhado e muito branco. Devia ser
um europeu e parecia ser um homem que sabia o que queria.
Fez um cumprimento ligeiro. Não usou microfone, mas sua voz se fez ouvir
perfeitamente em meio ao murmúrio nervoso de oitenta pessoas.
— Não pretendo deixá-los presos por muito tempo nesta jaula — prosseguiu. —
Temos muito trabalho e não podemos perder tempo. Dividi os senhores em doze
subgrupos, com base nos dados a seu respeito que me foram fornecidos, e cada um destes
subgrupos receberá uma tarefa específica. Os subgrupos não são todos do mesmo
tamanho. O chefe de cada subgrupo fica diretamente submetido a mim. Todos os chefes
já foram informados sobre suas tarefas. Assim que eu concluir, cada um dará as
necessárias instruções aos seus subordinados. Isto nos ajudará a ganhar tempo — apontou
para a parede dos fundos. — Dentro de alguns minutos um quadro luminoso surgirá nesta
parede. Este quadro mostrará a composição dos diversos grupos, o nome do chefe de cada
um deles e o setor da divisão de laboratórios em que cada um trabalhará. Aqueles cujos
nomes não aparecerem como chefes de grupo deverão ir diretamente aos respectivos
laboratórios, assim que saírem daqui. Os chefes ficarão mais alguns minutos, para receber
instruções especiais.
“Faço questão de ressaltar que Califa é uma instituição militar, e o que está sendo
feito aqui é uma operação militar. No início sentirão falta de certas comodidades que
costumavam desfrutar durante o trabalho. Mas tenho certeza de que não demorarão a
compreender que nosso objetivo justifica essa situação desagradável.
“É só. O quadro, por favor!”
Não dirigiu a última frase a ninguém em especial, mas mal acabara de proferir a
última palavra, a parede iluminou-se. Os nomes dos presentes apareceram do lado
esquerdo, em letras amarelas bem legíveis. Estavam reunidos em grupos de diversos
tamanhos. À direita de cada grupo via-se um nome, que era o do chefe, e à direita deste
via-se a designação do respectivo laboratório.
Steve procurou seu nome, mas não o encontrou na primeira leitura. Começou
novamente de cima, mas de repente alguma coisa que estava do lado despertou sua
atenção. Confuso, passou os olhos pela lista dos chefes de grupo, e realmente encontrou
as palavras S. P. Kantor na extremidade inferior do quadro. S. P. Kantor chefiaria um
grupo de três homens: Lippman, Delia Fera e Warner. O laboratório tinha sido designado
como 13-A.
Perplexo, Steve olhou em torno. Não era possível. Devia ter havido um engano. Não
poderia ser o chefe do grupo, pois não tinha a menor idéia do que este teria de fazer. Quis
protestar para apontar o erro. Mas os homens já tinham lido suas instruções e dispunham
a retirar-se. Steve ficou encostado à parede, para não ser arrastado. Quando a confusão
diminuiu um pouco, viu-se a sós com Koenig e mais onze chefes de grupo. Koenig sorriu
gostosamente.
— Muito obrigado por terem demonstrado que estão conscientes do seu dever —
disse em tom amável. — Sei que deve ter sido uma surpresa para os senhores, e
certamente a primeira coisa em que pensaram foi protestar contra minha decisão. Não foi
mesmo? — fitou os homens um após o outro. Steve fez a mesma coisa e surpreendeu-se
ao notar que, a julgar pela expressão dos rostos, seus companheiros pareciam tão
espantados quanto ele. — Fico satisfeito por não o terem feito — prosseguiu Koenig. —
Temos de evitar que haja confusão entre o pessoal. Os senhores, que são os doze chefes
de grupo, receberam um tratamento especial na Terra. Questões de sigilo, além de certos
fatores psicológicos, foram as razões determinantes disso. Na verdade, os senhores sabem
tudo que é conhecido sobre a tarefa que têm pela frente. Mas existe um bloqueio mental
que mantém esses conhecimentos afastados de sua consciência. Alguns dos senhores já
devem saber como se formam e como são afastados os bloqueios desse tipo. Aos que não
sabem peço que não acreditem que aquilo que está para vir tem algo a ver com a magia
negra. Trata-se de um processo científico. Prestem atenção!
Levantou a mão. Alguém devia vê-lo, pois de repente se ouviu uma música. Era
uma melodia estranha. “Nem chega a ser propriamente uma melodia”, pensou Steve,
“pois não passa de uma seqüência de sons.” Os sons pareciam cada vez mais agudos. O
ritmo da música aumentava rapidamente. No fim um chilrear estridente que doía nos
ouvidos encheu a sala.
Steve sentiu que de repente era arrancada uma cortina atrás da qual estivera
escondida parte de sua consciência. O impacto dos conhecimentos ocultos foi tão
repentino que Steve cambaleou. A sala parecia girar em torno dele.
Finalmente recuperou o equilíbrio. Estava à frente do tenente-coronel. Koenig
sorriu para tranqüilizá-lo.
— Quem sofreu mais foi o senhor, Kantor. Tivemos de enfiar um volume maior de
informações em sua cabeça.
Deu um passo para trás e, satisfeito, contemplou os doze homens enfileirados.
— É só, minha gente. Cuidem do seu pessoal.
Steve retirou-se. Sua cabeça zumbia como se milhares de trombetas e tambores
ressoassem em seu interior. As lembranças perdidas agitavam-se em seu cérebro, cada
uma procurando seu lugar. Finalmente o encontraram, encadearam-se e um quadro
harmonioso surgiu em sua mente.
Steve já sabia exatamente o que devia fazer. Seria ajudado por três homens. Seu
grupo era o menor entre os dirigidos por Koenig. Steve perguntou-se quem neste mundo
teria tido bastante confiança nele para atribuir-lhe esta tarefa.
2
A ANBE 3 mal e mal conseguiu percorrer o trecho com suas próprias forças.
Acompanhada de mais de uma dezena de naves de salvamento, saiu do espaço linear a
duas horas-luz de Califa e percorreu a distância que faltava em velocidade reduzida.
Alguns engenheiros da equipe técnica subiram a bordo da nave cargueira depois de esta
ter entrado numa órbita estacionaria em torno do sol geminado e inspecionaram a nave,
enquanto a tripulação saía pelas eclusas. A ANBE 3 não passava de um montão de
destroços. Os geradores e propulsores tinham trabalhado muito além de seu tempo de
vida útil e não poderiam ser recuperados. Até chegava a ser um milagre técnico a nave
ainda ter chegado a Califa.
Mas havia uma coisa mais lamentável que o estado do veículo. Eram as novidades
trazidas pelo Major Hatski. Este foi recebido imediatamente por Reginald Bell, que
queria ouvir seu relatório. Allan D. Mercant estava presente quando Hatski transmitiu o
recado de Perry Rhodan.
A reação dos senhores da galáxia não fora a que se esperava!
Em vez de continuar a procurar o inimigo em Andro-Beta, onde ele lhes tinha
infligido pesadas derrotas, resolveram descobrir de que lugar ele tinha vindo. Ainda
pareciam convencidos de que devia tratar-se de maahks rebelados, de seres pertencentes à
raça que respirava metano, e que tinham conservado sua independência. Mas sabiam que
em Andro-Beta não existiam maahks. Se de repente tinham aparecido por lá, só poderiam
ter usado um transmissor, para transportar-se de sua base — fosse qual fosse o lugar em
que esta ficava — até a nebulosa anã.
Só podia haver uma conclusão, e os senhores da galáxia não deixariam de dar com
ela. Era necessário inspecionar todos os transmissores. Frotas de reconhecimento
equipadas por maahks foram preparadas para entrar nos transmissores de Andro-Alfa e
serem transportadas em todas as direções. Acreditava-se que o transmissor Chumbo de
Caça tinha sido destruído há mil anos, mas parecia não haver dúvida de que uma das
frotas dos maahks tentaria chegar a Califa, e isso num futuro próximo.
Grek-1, o maahk que se transformara num amigo e aliado fiel dos terranos, estava
morto. Foi a mais triste das notícias trazidas por Fromer Hatski. O único ser que poderia,
naqueles dias difíceis, dar um apoio eficiente aos homens que se encontravam em Califa,
porque conhecia a mentalidade do inimigo, não existia mais. Revelando uma capacidade
de sacrifício sem igual, encontrara a morte para ajudar seus amigos.
Reginald Bell deu o alarme. No mesmo instante a base de Califa e as cinco mil
unidades da frota estacionadas em torno dela entraram em estado de prontidão. Não se
sabia até onde chegaria a pressa do inimigo. O ataque poderia ser desfechado a qualquer
momento. E enquanto o sistema de regulagem de bloqueio do transmissor não fosse
encontrado e acionado, não haveria como impedir o avanço do inimigo para o sistema
Chumbo de Caça.
Mas depois que Fromer Hatski concluiu seu relatório e quando Reginald Bell já
tinha tomado as providências necessárias, houve uma sensação que fez com que todos
respirassem mais aliviados. Esta sensação era representada pelo halutense Icho Tolot, que
voltara para Califa a bordo da ANBE 3. Icho Tolot, cujo cérebro programador funcionava
com a precisão de uma calculadora positrônica, compreendeu a situação melhor que
qualquer um dos outros. Sabia que o transmissor do sistema Chumbo de Caça estaria
perdido no momento em que os senhores da galáxia tivessem a mais leve suspeita de que
o sistema do sol geminado servia de base a seres desconhecidos. Era praticamente certo
que por enquanto somente uma pequena frota maahk tentaria chegar a Califa. As cinco
mil unidades da frota do Império estacionadas nos arredores do asteróide não teriam
nenhuma dificuldade em rechaçar o primeiro ataque. As unidades dos maahks seriam
destruídas ou obrigadas a voltar para dentro do transmissor. Os controles deste já teriam
sido modificados, fazendo com que as naves fugitivas não voltassem ao ponto de origem,
mas fossem parar em outro lugar, onde nunca mais poderiam tornar-se perigosas. Os que
se encontravam em Andro-Alfa chegariam à conclusão de que o transmissor Chumbo de
caça ainda estava ligado na recepção, mas não tinha capacidade de fazer a transmissão.
Seria a explicação mais plausível para o fato de as naves empenhadas nas buscas não
terem regressado. Os maahks pediriam conselhos aos senhores da galáxia. Sabia-se pouco
a respeito destes, mas quanto a uma coisa não havia dúvida. Enviariam outra frota maahk,
maior e mais poderosa que a primeira, para ver o que estava acontecendo no sistema do
sol geminado. A segunda frota provavelmente levaria certas aparelhagens destinadas ao
reparo do velho transmissor ou à construção de um novo.
O mais tardar neste momento — e quer os defensores fossem capazes de rechaçar o
segundo ataque, quer não fossem — os senhores da galáxia se dariam conta de que havia
algo de errado no sistema Chumbo de Caça. Outras frotas seriam enviadas. Os maahks
que estavam a serviço dos senhores da galáxia e contavam com os recursos imensos de
sua tecnologia, gozavam de uma vantagem que não devia ser subestimada. Sua rota de
abastecimentos era muito curta. Dali em diante a sobrevivência da base terrana de Califa
seria somente uma questão de tempo e da quantidade de naves que os maahks pudessem
lançar na batalha.
Icho Tolot deu uma explicação muito clara de tudo Isso. Como seu cérebro
programador quase nunca cometia um erro, Reginald Bell viu nas palavras do halutense
um prognóstico seguro e afastou o reduzido otimismo que até então ainda entretivera em
sua mente.
— Isso não seria muito grave — prosseguiu Icho Tolot — se houvesse uma
possibilidade de bloquear o transmissor à vontade para a recepção.
Allan D. Mercant observou que esta possibilidade estava sendo examinada. O
halutense demonstrou certa surpresa, mas logo fez uma sugestão que parecia tão incrível
que Reginald Bell não quis acreditar no que acabara de ouvir.
Ofereceu-se a ajudar os cientistas terranos na criação de um bloqueio no sistema de
recepção do transmissor!
Só quem conhecesse as peculiaridades da raça halutense compreenderia por que a
explicação de Tolot produziu o efeito de uma bomba. Entre os historiadores galácticos
não havia dúvida de que os halutenses eram a raça mais antiga da Via Láctea. Os
conhecimentos que haviam adquirido no curso de centenas de milênios ultrapassavam
tudo que os cientistas das chamadas raças desenvolvidas — arcônidas, saltadores,
aconenses e terranos — conseguiam imaginar. Embora seu número fosse muito reduzido,
os halutenses provavelmente estariam em condições de dominar a Galáxia. Mas seu
enorme arsenal de conhecimentos formara a base de uma sabedoria que se procuraria em
vão entre os povos mais jovens. Os halutenses recolheram-se ao isolamento. Viviam
exclusivamente para si mesmos, em busca do seu prazer e do aprofundamento de seus
conhecimentos. Era a única raça de astronautas que não se dedicava à política externa,
embora houvesse halutenses isolados espalhados pelos quatro cantos da Via Láctea.
Havia uma lei segundo a qual um halutense nunca tentaria interferir na história de outros
povos, nem mesmo por meio de conselhos ou colocando seus conhecimentos superiores a
serviço de uma raça estranha.
Icho Tolot estava disposto a violar esta lei. Estava falando sério. Fez questão de
ressaltar isso com toda ênfase, ao ver a expressão de incredulidade estampada no rosto da
Reginald Bell. Não deu outras explicações. Não disse porque pretendia dar ajuda
contrariando as normas que governavam sua raça. Mas todos compreenderam que para
ele os senhores da galáxia representavam um inimigo todo especial, ao qual não se
aplicava a lei halutense.
Reginald Bell e Allan D. Mercant preferiram não fazer perguntas desnecessárias.
Icho Tolot acabara de apresentar sua oferta. Os chefes de seção foram convocados para
participar da conferência. O halutense repetiu as explicações que já tinha dado. O espanto
que os cientistas tinham manifestado no início transformou-se num entusiasmo incontido.
Aquilo parecia ser a grande virada. O sol voltara a brilhar onde antes só parecia haver
trevas e desolação.
Califa ainda não estava perdido!
***
O grupo de Steve Kantor não foi atingido pelo nervosismo geral. Steve e seus
homens não tinham nada a ver com a ativação do sistema de bloqueio de recepção do
transmissor. Sua tarefa era outra. Demorou meio dia até que Steve ficasse sabendo da
oferta sensacional do halutense.
Enquanto isso Lucas, Lott e Sid dedicaram-se com todo entusiasmo à tarefa de
descobrir a estrutura da energia liberada para o transmissor. Steve voltou ao seu aposento,
para examinar os dados pessoais de seus colaboradores. Descobriu que Lott Warner e
Lucas Della Fera eram especialistas em hipercampos, com um grande arsenal de
experiências acumuladas, enquanto Sid Lippman era um químico. Steve não teve a menor
idéia do que um químico poderia fazer numa pesquisa deste tipo, mas confiou no
discernimento das pessoas que tinham escolhido o contingente de cientistas que atuariam
em Califa.
A seguir Steve fez um caneco de café, acendeu um cigarro, sentou no canto e
finalmente teve tempo para refletir sobre o estranho acontecimento que se verificara na
noite anterior, e que continuava a pesar em sua alma.
Quem teria sido o estranho que tentara entrar em seu quarto de noite?
Steve sabia que no sistema Chumbo de Caça havia sobreviventes da raça dos
maahks, que há cerca de mil anos ainda habitavam o planeta gigante cujos fragmentos
formavam o anel de asteróides. Milhões de maahks tinham perecido durante a expedição
punitiva dos senhores da galáxia, que se consideravam traídos por seu povo auxiliar. Só
um punhado sobreviveu, em sua maioria porque ao tempo do ataque encontravam-se no
espaço, a bordo de naves. Voltaram assim que passou o perigo, mas no lugar em que
antes ficara seu mundo encontraram um montão de asteróides. Instalaram-se no maior
bloco de pedra, que ainda estava contaminado pela radiatividade. Os filhos gerados por
estes maahks tinham pouca semelhança com os pais. As mutações profundas eram uma
constante. Houve poucos sobreviventes, mas estes poucos representaram o início de uma
nova raça.
E agora, mil anos depois da cruel ação punitiva dos senhores da galáxia, uma raça
formada por centenas de milhares de mutantes vivia no sistema Chumbo de Caça. Era
comandada por Beukla, um monstro de duas cabeças. Beukla celebrara a paz com os
terranos, embora antes tivesse sido um inimigo encarniçado deles.
Steve Kantor perguntou-se se o ser que tinha visto na noite anterior não seria um
dos mutantes.
A resposta só poderia ser negativa, e isto por dois motivos. Primeiro, não havia
mutantes em Califa. Tratava-se de um dos nove asteróides de grandes dimensões que
gravitavam em torno do sol geminado, e que abrigava o transmissor. Assim que um
objeto estranho se aproximava, o asteróide era envolto automaticamente por um campo
defensivo esverdeado, que os mutantes não podiam atravessar. Os terranos foram os
primeiros que conseguiram remover este campo. Beukla mostrara-se disposto a continuar
a considerar Califa como tabu. O asteróide transformara-se num estabelecimento terrano
em território estranho.
Era um dos motivos. Depois que Beukla tinha celebrado um acordo com os
representantes do Império, nenhum dos seus mutantes se atreveria a descer em Califa.
O segundo motivo parecia menos concreto. Parecia simples. Nenhum mutante
maahk seria capaz de dissolver-se no nada. Mas o monstro que Steve vira de noite
possuía esta faculdade. Não havia dúvida de que entre o momento em que disparara a
arma energética e aquele em que atravessara a porta para examinar o corredor não tinham
passado mais de cinco segundos. E o desconhecido não levara mais que isso para
desaparecer. Seria ridículo acreditar que houvesse uma porta oculta no corredor. O setor
fora instalado há pouco tempo. Diante disso só podia haver uma explicação. O
desconhecido realmente se dissolvera.
Apesar das mutações profundas que tinham modificado o aspecto e o metabolismo
dos maahks, tudo indicava que não se verificara a formação de faculdades psi. Entre os
mutantes não havia telepatas, telecinetas ou seres que possuíssem outros dons
parapsicológicos. Um teleportador, por exemplo, seria capaz de desaparecer da mesma
forma que o desconhecido visitante noturno.
Havia um detalhe importante. Entre os mutantes de Beukla não havia
teleportadores. Steve Kantor teve a noção clara e desagradável de que não havia qualquer
explicação natural para os acontecimentos da última noite.
Quando suas reflexões chegaram a este ponto, o sinal de chamada do
intercomunicador se fez ouvir. Steve levantou o fone e viu o rosto gordo de Lucas Della
Fera projetado na tela.
— Análise concluída, senhor — informou Lucas.
Steve acenou com a cabeça, satisfeito.
— Excelente — elogiou. — E qual é o resultado?
Lucas olhou-o com uma expressão triste.
— Os objetos transportados são estruturas imateriais — respondeu.
Steve praticamente já contara com isso, pois um objeto material certamente teria
sido detectado pelos rastreadores instalados em Califa. Mas agora que já não havia a
menor dúvida não sabia para que poderia servir a informação que acabara de receber.
Que estrutura imaterial poderia ser esta, que usava às escondidas e em seu proveito o
transmissor Chumbo de Caça? O que vinha a ser um objeto imaterial? Uma concentração
de energia? Uma espécie de raio esférico cósmico?
Lucas tinha mais coisas a dizer.
— Fizemos a comparação dos dois registros, senhor. Como deve estar lembrado, o
transmissor entrou em funcionamento duas vezes, sem que fosse possível identificar o
objeto transportado — Steve acenou com a cabeça e Lucas prosseguiu. — Os registros
não deixam dúvida de que da primeira vez houve uma transmissão, e da segunda vez uma
recepção.
Steve ficou bastante impressionado. Era incrível quanta coisa se podia deduzir dos
simples registros automáticos. Mas Lucas Della Fera ainda não tinha concluído.
— Se quiser, veja no que vou dizer agora apenas minha opinião particular — disse
com um sorriso amável. — Só existem indícios, mas nenhuma prova, e Lott Warner não é
da mesma opinião que eu. Seja como for, acredito que das duas vezes o sistema de
regulagem retirou a mesma quantidade de energia do depósito do transmissor. As
diferenças entre a recepção e a transmissão tomam um pouco mais complicadas as coisas.
De qualquer maneira, para mim os indícios são bastante fortes para justificar a conclusão
de que das duas vezes foi transportado o mesmo objeto. Da primeira vez saiu do sistema,
da segunda vez voltou para cá.
Lucas ficou calado. Steve fitou-o prolongadamente. A teoria de Lucas poderia ser
um fator decisivo. Se fosse correta, já se saberia que o ser não identificado que tinha
utilizado o transmissor era um objeto definível, que agia com um propósito certo. Restava
saber se a gente devia confiar nas teorias de Lucas.
Lucas devia ter lido a dúvida no rosto de Steve. Fez uma careta e disse:
— Naturalmente não quererá basear-se exclusivamente em minha opinião. Mas o
senhor é entendido no assunto. Peço-lhe que examine os registros e tire sua conclusão.
Steve estava de acordo.
— Está bem. Já vou.
Dali a dez minutos entrou na sala circular em que estavam instalados os registros
automáticos. Cada aparelho controlava o funcionamento de uma das componentes do
sistema de regulagem. Só naquela sala havia mais de cem registros automáticos com
estiletes de escrita, dispostos junto à parede, e havia mais de sessenta salas iguais a esta.
O sistema de regulagem era formado por cerca de sete mil unidades, cujo funcionamento
tinha de ser controlado ininterruptamente.
Lucas e Lott estavam parados à frente de um dos aparelhos, nos fundos da sala. Lott
segurava uma fita comprida de papel no qual se via um traçado. Os dois discutiam
nervosamente. Sid Lippman estava mais ao lado e aquilo parecia cansá-lo. Lucas viu
Steve chegar e arrancou a faixa da mão de Lott. Foi ao encontro de Steve, agitando
violentamente o papel.
— Eis a prova! — disse, entusiasmado. — Até mesmo um cego seria capaz de ver.
Esticou a faixa à frente do rosto de Steve. Este viu uma confusão de linhas
coloridas, que corriam em todas as direções sobre a rede de coordenadas do papel.
— Olhe esta linha azul — exclamou Lucas. — Ela registra o consumo de energia do
sistema de regulagem. Enquanto o transmissor está fora de uso, a linha corre sobre o eixo
zero. Toda vez que o transmissor recebe um suprimento de energia, ela sofre um desvio e
afasta-se deste eixo. Forma desenhos variados, conforme a quantidade e a estrutura da
energia. Se examinarmos os desenhos com uma lente...
Baixou a faixa.
— Em outras palavras, senhor, os desenhos que representam as duas passagens pelo
transmissor coincidem com todos os detalhes, ângulo por ângulo, curva por curva.
Steve fitou Lott com uma expressão indagadora. Este acenou com a cabeça.
— É verdade, senhor — confirmou. — Quando Lucas entrou em contato com o
senhor, ainda não tínhamos tido a idéia de examinar os grupos de impulsos com uma
lente. Quando examinamos, descobrimos...
Fez um gesto embaraçado e calou-se.
Steve mordeu os lábios. Um objeto desconhecido — e o mesmo objeto — usara
duas vezes o transmissor. Da primeira vez afastara-se do sistema Chumbo de Caça,
enquanto da segunda vez regressara ao mesmo. Que objeto teria sido este? Onde estava
no momento? Quais seriam seus objetivos?
De repente o assunto já não parecia cansar Lippman.
— Que influência pode ter o fato em nosso procedimento futuro, senhor? —
perguntou. — Acho que não tem nenhuma importância que das duas vezes o
funcionamento do transmissor tenha sido provocado pelo mesmo objeto, não é mesmo?
Steve estava absorto em seus pensamentos. Lippman teve de repetir a pergunta, para
ser ouvido.
— No fundo, sim — respondeu Steve. — Acontece que só representamos uma
fração insignificante dos grandes esforços que estão sendo realizados para fazer de Califa
uma base segura. É perfeitamente possível que a descoberta de Lucas seja muito
importante para o conjunto dos trabalhos.
— Está pensando em alguma coisa em especial? — perguntou Lippman, no que não
revelou muita perspicácia.
— Naturalmente. O objeto desconhecido executa movimentos bem definidos. Quer
dizer que age sob o impulso de um mecanismo direcional existente em seu interior, ou
está sendo teleguiado. Em qualquer das duas hipóteses não podemos excluir a
possibilidade de que se trata de um espião. E não pode haver a menor dúvida de quem
sejam os seres para os quais está fazendo espionagem. Se a hipótese for verdadeira,
Califa corre um perigo enorme.
Sid ficou bastante impressionado. Steve passou a dirigir-se á Lucas e Lott.
— Fotografe a fita de registro — disse. — Mande fazer ampliações das fotos e
apresente um pequeno relatório escrito. Neste meio tempo falarei com Koenig. A
Segurança tem de ser avisada imediatamente.
***
Koenig não teve dúvida em confessar que já se esperara algo semelhante. Allan D.
Mercant deixara claro que em sua opinião o ser não identificado que usara o transmissor
era um espião dos maahks. Nem tentou explicar que espécie de espião seria este, como
agia e que tipo de informações transmitia aos seres para os quais trabalhava. Cabia ao
grupo de Steve Kantor descobrir isto. Mercant fez questão de mencionar que a presença
de um espião — caso o objeto não identificado realmente fosse um — representaria um
perigo gravíssimo para a base e seus ocupantes. Era necessário pôr as mãos no
desconhecido e deixá-lo fora de ação.
Depois da conversa mantida com Koenig, Steve ficou um tanto indeciso sobre o que
deveria fazer em seguida. Mas quanto a uma coisa não havia dúvida. Era necessário
procurar e encontrar o desconhecido.
Steve já estava pensando de forma diferente. Aquilo que há pouco ainda fora um
objeto não identificado passara a ser o desconhecido, pois acreditava que se tratava de um
ser pensante que agia por sua própria vontade. Embora não tivesse um motivo palpável
para pensar assim, estava cada vez mais convencido de que o misterioso desconhecido
não era outro senão o estranho monstro que vira na noite anterior. No início a idéia lhe
parecera ridícula, pois o que vira fora um corpo estranho, mas que não deixava de ser
material. Mas logo teve suas dúvidas. Não vira propriamente o desconhecido, mas apenas
seus contornos que se destacavam contra a claridade que entrava pela porta. Se fosse uma
entidade puramente energética, bastaria que seu índice de refração diferisse do do ar
circundante, para que ela se tornasse visível. E uma entidade energética que refletisse ou
absorvesse a luz fatalmente produziria sobre o olho humano o mesmo efeito da matéria
sólida.
Quanto mais Steve tentava pôr em ordem os pensamentos, mais confuso ficava.
Constatou que suas meditações o tinham levado a entrar num corredor errado. Olhou em
torno e encontrou uma placa segundo a qual as salas que abrigavam os registros
automáticos ficavam doze andares abaixo dele, e a sala do sistema de regulagem ficava
logo depois do primeiro cruzamento de corredores. Steve virou a cabeça e quis voltar ao
elevador antigravitacional mais próximo, quando se lembrou de que talvez seria útil dar
uma olhada no sistema de regulagem. Afinal, deste sistema tinha partido a primeira
indicação sobre a presença de um desconhecido. Fez meia-volta e prosseguiu pelo mesmo
corredor.
Koenig lhe contara sobre os acontecimentos dramáticos ligados à viagem de
regresso da ANBE 3. Esperava que, em virtude da oferta surpreendente de Icho Tolot, a
sala em que ficava o sistema de regulagem estivesse atulhada de cientistas e técnicos
muito ocupados. Surpreendeu-se ao ver que a sala estava completamente vazia.
Ficou impressionado com o mecanismo de regulagem. Tratava-se de uma figura
circular, revestida de metal plastificado, com cerca de dez metros de diâmetro e três de
altura. Uma grade protetora baixa cercava o colosso que emitia um zumbido constante. A
sala tinha vinte e cinco metros de comprimento e aproximadamente dezoito de largura.
Suas instalações consistiam unicamente em três enormes quadros de comando, presos à
parede que ficava à esquerda da entrada.
Steve deu um passo para a frente, e a porta fechou-se automaticamente atrás dele.
Aproximou-se da grade numa atitude que quase chegava a ser devota e fitou a figura que
zumbia e era capaz de manipular sem a menor dificuldade as energias estranhas que
permitiam que os homens se deslocassem instantaneamente pelas profundezas do
cosmos.
Por enquanto os cientistas terranos não compreendiam mais de dez por cento do
funcionamento do transmissor.
Ao constatar a penetração de um objeto capaz de ser transportado, o campo do
transmissor enviava um impulso ao sistema de regulagem, que por sua vez abria as
comportas do reservatório de energia representado pelos dois sóis. O fluxo imenso de
energia saído deste reservatório criava um campo que envolvia o objeto a ser
transportado, retirando-o do espaço einsteiniano. A estrutura da energia e, portanto, do
campo envolvente, mudava conforme a natureza do objeto transportado. A quantidade de
energia utilizada variava de acordo com a distância a ser percorrida. As decisões sobre a
estrutura e a quantidade da energia a ser utilizada eram tomadas pelo mecanismo de
regulagem, com base no impulso recebido dos sensores do campo de transmissão. Uma
vez envolto no campo transportador, o objeto percorria quase instantaneamente as
profundezas misteriosas do superespaço, para aparecer no ponto de destino, onde havia
um receptor que retirava o envoltório energético, fazendo com que o objeto transportado
retornasse ao espaço einsteiniano.
A solução dos segredos ainda não desvendados de uma tecnologia altamente
desenvolvida devia estar escondida no interior do conjunto de regulagem. Steve, que
estava de olho no envoltório cinzento do aparelho enorme, entrou numa espécie de transe.
Teve a impressão de enxergar o interior do aparelho atrás das placas de metal
plastificado. O mundo que o cercava desapareceu. Só via diante dos olhos o produto
misterioso de uma técnica estranha, que o deixou cada vez mais encantado.
Ouviu um ruído, mas não lhe deu atenção. Não vinha do conjunto de regulagem.
Sentiu uma dormência estranha na pele. Era como se tivesse entrado num campo de
eletricidade estática. Sentiu um cheiro estranho, que queria desviar sua atenção do
conjunto. Ficou nervoso e preocupado.
De repente o sentimento do perigo que o ameaçava tornou-se tão nítido que o
arrancou das suas reflexões. Endireitou abruptamente o corpo e virou a cabeça. O cheiro
era mais forte. Cheirava a ozônio. A dormência da pele tomara-se mais perceptível. A
atmosfera parecia carregada de eletricidade estática. Os ruídos vinham de trás do
conjunto de regulagem. Era um arranhar e arrastar, dando a impressão de que alguma
coisa se enfiava à força no interior do aparelho, abrindo passagem entre espulas e bancos
energéticos.
Steve recuou. Foi-se deslocando para a porta, passo a passo, sempre de olho no
conjunto de regulagem. Viu uma espécie de nuvem de fumaça levantar-se atrás do
aparelho. O arranhar e arrastar tornaram-se mais fortes, e o medo ameaçou sufocá-lo.
Ninguém sabia o que aconteceria se as energias imensas controladas pelo aparelho
fossem liberadas numa explosão. Era necessário alertar a guarnição da base. Lá fora, no
corredor, havia chaves do sistema de alarme, que faziam soar as sirenes. Era necessário
alcançar uma delas, senão...
Virou-se abruptamente e saiu correndo em direção à porta. A pesada escotilha
deslizou devagar demais. Steve enfiou-se pela abertura que começara a formar-se.
Quando já se encontrava no corredor, o ruído cessou. Steve parou e olhou de volta para
dentro da sala de regulagem.
O quadro que se descortinou diante de seus olhos fez gelar o sangue em suas veias.
Aquilo que acreditara ser uma nuvem de fumaça cercava o aparelho cilíndrico que nem
uma frente de neblina. Mal e mal se distinguiam os contornos do conjunto de regulagem.
O aparelho brilhava num vermelho estranho, dando a impressão de que entrara em
incandescência de dentro para fora. A névoa não tinha contornos rígidos. Algumas
nuvens agitavam-se fortemente. Parecia que mergulhavam no revestimento do conjunto
de regulagem, para voltar a aparecer em outro lugar.
Incapaz de fazer qualquer movimento, Steve pôs-se a observar o estranho
espetáculo. De repente a névoa parecia tomar conhecimento de sua presença. Parecia uma
impressão absurda, mas Steve teve a sensação de que ela se impunha à sua mente. Até
parecia que a névoa se dera conta de que havia um observador desconhecido, que a
surpreendera em sua atividade. Encolheu-se subitamente, formando uma bola opaca,
passou por cima do conjunto de regulagem e desapareceu atrás do cilindro.
Antes que Steve se recuperasse do espanto, o nevoeiro voltou a aparecer. Como
estava mudado! Já não era a concentração de neblina confusa, sem contornos definidos,
que vira segundos atrás. Era uma figura opaca de traços bem definidos, que seguia em
sua direção como se fosse feita de matéria sólida.
Steve foi sacudido pelo pânico ao reconhecer o monstro com o qual se encontrara
na noite anterior. Algum fenômeno desconhecido transformara a névoa numa figura que
caminhava sobre duas pernas muito grossas e agitava fortemente os milhares de
tentáculos presos ao seu corpo.
Steve não se enganara. O monstro não tinha cabeça.
Steve começou a gritar. Já não sabia o que estava fazendo. Só restava o sentimento
angustiante do perigo mortal — e o desejo ardente de sobreviver. Os músculos não
obedeciam mais, os pés não queriam desprender-se do chão. Steve ficou imóvel,
enquanto o monstro se aproximava com movimentos desajeitados.
O ruído de botas pisando o chão fez-se ouvir, vindo de longe. Steve ainda estava
gritando. O desconhecido ainda estava a três ou quatro metros de distância. Dentro de
mais alguns segundos chegaria onde estava Steve. Seria o fim.
O ruído das botas tornou-se mais forte. Steve ouviu vozes humanas. Alguém estava
chamando. Parecia que o monstro não estava ouvindo nada. Aproximou-se
ininterruptamente, com a obstinação de uma máquina.
O chiado de uma arma energética quase rompeu os tímpanos de Steve, mas para
este foi o ruído mais agradável que jamais tinha ouvido. Viu tudo como numa câmara
lenta. O feixe energético ficou suspenso no ar e o terrível ser estranho cambaleou sob o
impacto. Mais um tiro passou sobre o ombro de Steve, que sentiu a lufada de ar quente
passar por seu rosto. A segunda salva também acertou o alvo. As energias tremendas
disparadas pela arma energética pareciam desaparecer no corpo do monstro, mas este
cambaleou, dando a impressão de que perdera o equilíbrio. Um terceiro tiro se fez ouvir,
e desta vez o monstro foi arrancado de cima das pernas grossas e feias. Caiu lentamente,
que nem um balão cheio de ar. O corpo de Steve descontraiu-se. Soltou um grito de
triunfo.
Mas de repente aconteceu uma coisa estranha.
Antes que o corpo do monstro tocasse o chão, ele começou a dissolver-se. Nuvens
de névoa branquicenta subiram para o alto e espalharam-se. O monstro foi encolhendo.
Uma última nuvem de fumaça branco-acinzentada levantou-se — e o monstro
desapareceu. A névoa que enchia o ar desmanchou-se rapidamente. Dali a alguns
segundos o conjunto de regulagem e seus arredores tinham exatamente o aspecto que
todo mundo guardava na lembrança.
Steve virou a cabeça. Havia três homens que usavam o uniforme da frota espacial
atrás dele. Segurando as armas energéticas nas mãos, fitavam a sala de regulagem com
uma expressão de incredulidade.
— Fico-lhes muito grato — disse Steve com a voz apagada. — Se não tivessem
chegado logo...
A simples idéia fez com que sacudisse o corpo.
— Ouvimos seus gritos — respondeu um dos homens. — Viemos o mais depressa
que pudemos. O que foi aquilo lá dentro?
Steve deu de ombros. Não tinha vontade de levar três soldados espaciais a
acreditarem na existência de um ser energético.
— Não faço idéia — disse. — Alguma coisa saiu de repente de trás do conjunto de
regulagem e veio para cima de mim. Não posso afirmar que tenha assumido uma atitude
hostil, mas tive de contar com um ataque. Foi o que me levou a gritar por socorro.
O mais velho dos três, que era um sargento, coçou o queixo.
— Serei obrigado a apresentar um relatório do incidente. O senhor provavelmente
também. O senhor tem conhecimento de alguma coisa que possa fazer com que pareça...
bem, quero dizer...
Parou, embaraçado. De repente Steve conseguiu rir de novo.
— ...com que pareça mais fácil de acreditar? — completou. — Receio que não.
Tenho certeza de que seu relatório e o meu darão a impressão de terem saído de uma
imaginação doentia. Mas cada um de nós poderá testemunhar a favor do outro. Terá que
dar certo.
O sargento confirmou com um aceno de cabeça.
— Naturalmente — respondeu, embaraçado.
De repente Steve teve uma idéia.
— Onde fica o vídeo mais próximo? — perguntou. Um dos homens apontou com o
braço para dentro do corredor.
— A poucos metros daqui. Está vendo aquela caixa vermelha?
Steve estava vendo. Entrou em contato com a sala de registros automáticos. Sid
Lippman estava no aparelho.
— Finalmente sei o que fazer com o senhor — principiou sem embaraço. —
Arranje um aparelho capaz de detectar a presença de ozônio e suba à sala de regulagem.
***
O olfato de Steve não o enganara. A atmosfera em torno do sistema de regulagem
apresentava uma porcentagem muito elevada de ozônio. A explicação era simples. O
oxigênio do ar entrava em reação com a superfície da figura energética que Steve acabara
de observar. As moléculas de oxigênio eram divididas nos respectivos átomos. O
oxigênio em estado atômico é um gás que entra em reação com uma facilidade tremenda.
A maior parte dos átomos voltava a ligar-se para formar oxigênio molecular. Mas uma
pequena fração do gás em estado atômico entrava em contato com o oxigênio molecular
antes existente, para formar ozônio. A molécula de ozônio, formada por três átomos de
oxigênio, é um conjunto extremamente instável. O fato de Sid Lippman ainda detectar
quantidades consideráveis de ozônio, quando o desconhecido já tinha desaparecido, era a
melhor prova de que durante a presença do monstro a atmosfera da sala de regulagem
ficara literalmente carregada de ozônio.
A aventura extraordinária de Steve Kantor produziu duas conseqüências imediatas.
Todos os recintos críticos da base foram equipados com monitores de ozônio, que
emitiam um sinal assim que a porcentagem de ozônio em suas proximidades
ultrapassasse certo limite. Só assim podia-se ter certeza de que o monstro energético não
poderia andar nas proximidades de aparelhagens importantes sem ser percebido.
Além disso os engenheiros e cientistas recém-chegados receberam ordem para
andar sempre armados. Steve Kantor provavelmente não teria precisado de auxílio, se
estivesse com sua arma. Apesar de sua estrutura puramente energética, o monstro parecia
não suportar muito bem o impacto dos disparos energéticos.
Uma vez tomadas estas providências, um discreto otimismo espalhou-se em Califa.
Até que enfim se encontrara uma pista. Seria apenas uma questão de horas que o monstro
estranho fosse encontrado e posto fora de ação. Centenas de tripulantes e suboficiais,
informados às pressas sobre a existência do estranho ser, estavam de prontidão em toda
parte, para entrar em ação e prender o monstro assim que os monitores de ozônio dessem
o sinal de alerta.
A febre do caçador apossara-se dos homens espalhados pelos corredores e salas de
Califa. Os homens conversavam em voz abafada, dando a impressão de não ouvir os
apitos dos monitores.
Mas o que ouviram não foi nenhum apito. As sirenes de alarme fizeram ouvir seus
altos e baixos. O sinal não fora dado pelos monitores, mas pelo sistema de alerta
automático dos rastreadores instalados na superfície do asteróide.
4
Cinco horas depois da batalha ligeira na qual foram destruídas cento e onze naves
maahks, o campo do transmissor situado entre os dois sóis gigantes voltou a iluminar-se.
As sereias de alarme soaram. As descargas gigantescas do transmissor, projetadas nas
telas de imagem que mostravam os arredores do asteróide, pareciam antes as línguas de
fogo do apocalipse. As naves inimigas foram saindo uma após a outra do campo do
transmissor e precipitaram-se sobre o planetóide.
Reginald Bell mudara de tática. A maior parte da frota de vigilância continuava nos
esconderijos, no interior do anel de asteróides, à espera do momento mais apropriado
para o ataque. Mas uma frota de oitocentas unidades pesadas, que se achava estacionada
oblíqua mente acima da rota dos maahks, avançou assim que surgiram as primeiras naves
inimigas. O transmissor funcionava com uma rapidez surpreendente, expelindo dez ou
mais naves inimigas por segundo. Foram atacadas pelas oitocentas naves antes que
tivessem tempo para orientar-se.
Foi o lance decisivo. A batalha de Califa teria sido perdida para os terranos, se o
grupo de oitocentas naves não tivesse destruído inúmeras unidades antes que o inimigo
pudesse entrar em formação de combate.
A confusão estabeleceu-se entre os maahks. Sua ordem de batalha desmanchou-se.
Não havia dúvida de que os comandantes das diversas naves tinham recebido instruções
para assumir determinada posição assim que saíssem do transmissor, e esperar que toda a
frota se reunisse. Mas não lhes deram tempo para isso. Cada veículo teve de confrontar-se
com um inimigo que atirava desesperadamente, mal tinha saído do campo do transmissor.
Quando o transmissor encerrou sua atividade, quatrocentas naves maahks vagavam
pelo anel de asteróides, transformadas em destroços ou nuvens de gases fumegantes.
Outras cem unidades, levadas pelo choque do ataque de surpresa, voaram de volta para o
campo de condensação situado entre os dois sóis, para serem transportadas ao sistema de
Gêmeos pelo transmissor que tivera a polarização invertida.
O restante da frota, que ainda era um grupo imponente de seis mil naves, da classe
mais pesada que um terrano já tinha visto, avançou para Califa. Cada veículo estava
cercado por um campo defensivo verde, cuja estrutura os cientistas terranos só tinham
determinado há pouco tempo. As cinco mil naves da frota primitiva de Califa estavam
equipadas com armamentos capazes de romper os campos defensivos dos maahks. As
demais naves da frota, que Reginald Bell só convocara há dois dias, ainda não tinham
sido equipadas com estes armamentos. Cinco das dez mil unidades terranas estavam em
situação de evidente inferioridade diante dos maahks, além das pequenas unidades de
Beukla, que sem sua incrível mobilidade não teriam a menor chance de vez por outra
desferir um golpe de surpresa.
Surgiu outro problema. Por enquanto os terranos estavam perfeitamente em
condições de medir-se com o inimigo — ou até gozavam de uma boa superioridade sobre
o mesmo, graças ao moral, resultante da certeza de que o destino da Terra estava em
jogo. Mas para aproveitar essa superioridade precisariam de espaço para operar. A
distância entre a saída do transmissor dos dois sóis e o asteróide Califa não era superior a
cinqüenta milhões de quilômetros. As naves inimigas eram expelidas pelo transmissor a
uma velocidade que por vezes chegava a vinte mil quilômetros por segundo. O poder de
combate da frota de guerra teria de ser muito superior, para deter um inimigo
praticamente igual em forças a uma distância tão reduzida e até obrigá-lo a bater em
retirada.
A frota de vigilância fez tudo que estava ao seu alcance. Sem preocupar-se com a
própria sorte, as unidades terranas precipitaram-se sobre a frota inimiga, isoladamente ou
em grupos. Cada avanço transformava dezenas de naves inimigas em bolas de fogo
reluzentes. Centenas de naves maahks sofreram avarias tão graves que se viram obrigadas
a separar-se dos grupos a que pertenciam, transformando-se em vítimas fáceis das naves
que ainda não tinham seu equipamento mudado.
Mas apesar do heroísmo das tripulações terranas não foi possível deter os maahks
antes que fosse tarde. Avançavam obstinadamente em direção a Califa, sem dar atenção
às tremendas perdas que sofriam. Seu número ficara reduzido a menos de metade quando
as naves estavam a menos de um quilômetro de Califa e pela primeira vez ficaram
expostas ao fogo dos fortes instalados na superfície do asteróide.
Por um instante teve-se a impressão de que o fogo fulminante despejado pelos fortes
de Califa, que destruía duas unidades por segundo, finalmente seria capaz de quebrar a
obstinação dos maahks. O avanço interrompeu-se por dois minutos, nos quais perderam
cerca de trezentas unidades. Mas logo se espalharam para os lados, dividiram-se em
grupos menores e passaram a avançar de várias direções para o asteróide que servia de
base aos terranos.
Foi quando Bell reconheceu que a batalha estava perdida. A frota de vigilância e os
fortes juntos talvez fossem capazes de destruir mais mil, ou até mil e quinhentas unidades
inimigas, antes que se encontrassem bem em cima de Califa. Restariam pelo menos
quinhentas naves inimigas, que abririam fogo cruzado sobre o planetóide.
Furioso, Reginald Bell mordeu os lábios e tentou conformar-se com a idéia de que
não lhe restava mais muito tempo de vida.
***
Steve flutuava numa nuvem de irrealidade. Esquecera as coisas que o cercavam.
Continuou com os olhos fechados, para não distrair a atenção. Mantinha contato
telepático com uma máquina — ou, o que era pior, com o espírito de uma máquina. Fez
um esforço para não pensar nisso. A idéia o deixava confuso.
Apesar de tudo, teve suas dúvidas do que estava ouvindo. Uma vez superado o
choque causado pela surpresa sem limites, começou a fazer perguntas. Queria saber de
que forma o sistema de regulagem tinha criado sua própria inteligência.
A máquina não soube informar nada sobre isto. Não tinha conhecimento sobre o
começo de seu ser, da mesma forma que os primeiros anos de vida são desconhecidos ao
ser humano.
— No início fiquei desorientado — ouviu Steve quando o ser desconhecido
começou a relatar o que havia acontecido numa época que mal e mal era alcançada por
sua memória. — Estava preso no interior de um objeto metálico. Era capaz de pensar,
tomar decisões e cumprir estas decisões através de mecanismos de controle pertencentes
ao objeto metálico. Mas estava preso.
“Comecei a aprender. Recolhi informações, fazendo experiências. Descobri certas
informações que sempre possuía, sem conhecer seu significado. E comecei a usar as
energias tremendas que atravessavam minha prisão metálica para criar um corpo. Até
então não passava de um pensamento, e o pensamento sempre continua no lugar em que
é gerado. Se possuísse um corpo, seria capaz de abandonar minha jaula metálica.
“Levei muito tempo, mas finalmente consegui. Pude movimentar-me. Pela primeira
vez pude explorar o mundo no qual me encontrava. Meu corpo não era formado por
metal ou qualquer das substâncias que se encontravam em volta de mim. Sua estrutura
era exatamente igual à da estrutura que fluía através de minha pressão.
“Receei que o ataque que por pouco não me destruíra fosse repetido. Realizei
pesquisas para detectar a presença de outros seres pensantes, mas por mais que
procurasse, não encontrei nenhum.
“Finalmente vocês chegaram. Tive certeza de que tinham vindo para concluir a
obra que fora começada. É bem verdade que não compreendi o que estavam fazendo. No
início não fizeram nada que pudesse representar um perigo para mim.
“Meu medo foi passando. Comecei a admitir a possibilidade de que pudessem
existir três espécies de seres — eu, o inimigo e vocês. Tentei entrar em contato com
vocês. Eram diferentes de mim. Se quisesse comunicar-me com vocês, teria de assumir
seu aspecto. A forma de minha substância física pode ser facilmente modificada. Imitei o
corpo de vocês. Dirigi-me a um lugar em que muitos de vocês ficam deitados em certos
períodos em recintos pequenos.”
O desconhecido sentiu a surpresa que atravessou a mente de Steve e hesitou.
— Foi de mim que você tentou aproximar-se — afirmou. — Pensei que fosse um
monstro. A imitação não foi muito bem-feita.
— Foi o que notei. Não consegui estabelecer contato. Tentei atingi-lo com meus
pensamentos, mas você estava tão nervoso que não consegui penetrar em sua mente.
“Finalmente vocês começaram a trabalhar com a figura metálica que já tinha sido
minha prisão. O metal não significava nada para mim, mas vocês passaram a mexer nos
mecanismos que antigamente dirigiam meus pensamentos e aos quais retornava para
descansar por algum tempo. Não podia permitir que danificassem estes mecanismos.
Expulsei-os. Sabia que voltariam para prosseguir no trabalho. Estavam interessados em
determinado aparelho. Apliquei nele um tratamento que faria com que, caso voltassem a
mexer nele, toda a figura metálica seria destruída.
“Depois vocês passaram a caçar-me. Senti o círculo fechar-se cada vez mais em
tomo de mim. Vocês quiseram colocar-me fora de ação, mas subestimaram minhas
forças. Não me poderiam fazer nada, pois sou mais forte que vocês.”
Os pensamentos estranhos silenciaram. Steve demorou algum tempo para
responder.
— Você é forte e pode destruir-nos. Mas há muita coisa que nós sabemos e você
não sabe. Mexemos na figura metálica para evitar a chegada daqueles que querem matá-
lo.
A pergunta cheia de surpresa penetrou violentamente em seu consciente:
— Como pretendem fazer isso?
— Sabe para onde correm as energias encerradas em sua jaula metálica?
— Já as segui e fui parar num mundo desconhecido. Tive medo e voltei.
— Pelo mesmo caminho que você voltou seus inimigos podem chegar aqui. Sua
substância é diferente, mas o meio de transporte é o mesmo. É impossível impedir sua
chegada, a não ser que a gente ponha em atividade o aparelho de que você acaba de falar.
Sabe como funciona?
— Sei tudo — respondeu o ser. — O aparelho exerce sua influência sobre o fluxo
de energia com as quais em outros tempos criei meu corpo.
— Isso mesmo! — apressou-se Steve em dizer. — O fluxo de energia, por sua vez,
exerce sua influência sobre o processo de transporte que o levou a um mundo
desconhecido e o trouxe de volta. Seus inimigos, que também são nossos inimigos,
podem chegar aqui pelo mesmo caminho usado por você. Tentamos proteger-nos contra
eles, regulando o fluxo de energia de tal forma que o transporte é impedido.
Estava muito exaltado. Os pensamentos vieram tão depressa que não conseguiu
articulá-los. Não tinha certeza de que o ser desconhecido o tinha compreendido. Dera a
entender que acreditava em suas palavras. Era bastante inteligente para saber que os
pensamentos não mentem. Será que continuaria a confiar nele? Estaria disposto a
acreditar que seus inimigos também eram inimigos dos terranos? Chegara mesmo a
compreender o que ele tentara explicar?
Steve sentiu-se dominado por um nervosismo dilacerante. Onde estava a resposta?
***
Um lance imaginado durante a batalha pelo comandante da terceira frota de
vigilância trouxe a virada decisiva na luta. Com o consentimento de Reginald Bell, a
terceira frota reuniu todas as naves sem equipamento e o grupo de naves de Beukla e
realizou um avanço fulminante, que lhe custou mais de trezentas naves, sobre um dos
grupos em que se dividira a frota dos maahks.
Isso aconteceu num setor espacial que estava fora do alcance dos cinco grupos
restantes de naves maahks.
A terceira frota prosseguiu em direção a Califa, conforme tentara fazer o grupo de
naves inimigas que acabavam de ser destruídas. Quando o círculo se fechou em torno do
asteróide, a frota terrana apareceu nas telas das naves maahks que restavam. Mas os
comandantes destas não tinham motivo para acreditar que se tratasse de unidades
inimigas. A distância era tão grande que os ecos projetados nas telas não permitiam que
se reconhecesse o formato das espaçonaves.
O grande momento da terceira frota chegou quando os maahks deram início ao
ataque concentrado a Califa. Que nem lobos que acabavam de tirar as peles de cordeiro,
as quatrocentas unidades penetraram entre os grupos compactos do inimigo, que seguiam
em direção ao asteróide, seguros da vitória. Enquanto o resto da frota de vigilância
mantinha o inimigo plenamente ocupado na periferia do anel formado em torno de Califa,
a terceira frota começou a fazer a limpeza de dentro para fora.
O choque da surpresa causada pelo fato de ver o inimigo surgir bem no meio de
suas fileiras acabou de vez com o moral dos maahks. Não se tinham esquecido das perdas
tremendas que já haviam sofrido. Quando a terceira frota passou a desenvolver sua ação
fulminante em suas próprias fileiras, perderam a esperança de vez.
Ainda se defenderam. Se ainda possuíssem as naves destruídas nos primeiros doze
minutos pelo destacamento avançado dos terranos, a terceira frota provavelmente teria
sido dizimada.
Mas na situação em que se encontravam os maahks preferiram fugir. Precipitaram-
se numa confusão completa sobre o transmissor, e mal foram capazes de oferecer
qualquer resistência às unidades da frota de vigilância que se precipitavam sobre elas que
nem gaviões. Perderam mais quinhentas unidades, antes que o transmissor os acolhesse e
os transportasse para Gêmeos, de onde jamais poderiam escapar.
***
Fazia dez horas que Reginald Bell não saía do lugar que ocupava atrás do console
de comando. Quando a última nave maahk entrou no transmissor e desapareceu, sentiu de
repente o cansaço que pesava sobre seu corpo.
Tomou um medicamento para espantar o cansaço. Dentro de duas horas no máximo
apareceria o próximo grupo de naves maahks. O último grupo, retificou em pensamento,
pois a frota de vigilância fortemente dizimada não seria capaz de repelir mais um ataque.
A batalha em tomo de Califa já custara mil e duzentas unidades a Reginald Bell.
Um terço delas era formado por naves especialmente equipadas, cujos canhões eram
capazes de romper os campos defensivos verdes dos maahks. As perdas de Beukla
certamente tinham sido bem maiores. Os mutantes tinham entrado na luta que nem um
bando de vespas enfurecidas e foram dizimados às centenas.
A frota de vigilância reagrupou-se e voltou aos antigos esconderijos. O sistema
Chumbo de Caça continuava de prontidão. Os minutos de pausa que lhes restavam antes
do grande ataque foram tiquetaqueando preguiçosamente. Reginald Bell pôde dar-se ao
luxo de tomar algumas xícaras de café e um lanche preparado às pressas. Não saiu do
lugar. Um ordenança lhe trouxe tudo numa bandeja.
Ainda não ingerira o primeiro bocado, quando alguém quis falar com ele no
intercomunicador. O rosto do Tenente-Coronel Koenig apareceu na tela. Parecia confuso
e preocupado.
— Senhor, há alguns minutos as áreas adjacentes à sala de regulagem foram
bloqueadas por um campo energético — principiou, indo diretamente ao assunto. — Os
homens pertencentes ao batalhão de guardas perceberam de repente que uma força
desconhecida os empurrava. A força só deixou de atuar quando cada um dos homens se
encontrava a pelo menos cem metros do aparelho de regulagem. Os homens tentaram
avançar de novo, mas esbarraram no campo energético, que é completamente
impenetrável e não é afetado pelas armas.
Se a notícia surpreendeu Reginald Bell, ele não o mostrou. Enfiou calmamente um
pedaço de sanduíche na boca e pôs-se a mastigar. Olhava ininterruptamente para Koenig,
que começou a ficar nervoso. Bell tomou um gole de café e pigarreou.
— Isso já não importa, Koenig — disse, calmo. — Os maahks voltarão dentro de
uma hora e meia, com quinze a vinte mil unidades, pelos meus cálculos, e o fato de o
sistema de regulagem ser ou não cercado por uma barreira energética não pode exercer
nenhuma influência sobre o resultado da batalha.
Koenig não estava preparado para esta reação. Deixou cair o queixo.
— Mas...
— Já sei — disse Bell com um gesto calmo. — Seria interessante saber como o
campo energético foi aparecer nesse lugar. Provavelmente foi criado pelo ser energético
que não conhecemos. Gostaríamos de saber quais são suas intenções. Mas não temos
tempo para isso, Koenig. Procure compreender.
Koenig parecia deprimido.
— Compreendo, sim senhor.
A tela escureceu. Reginald Bell voltou a cuidar do seu lanche. Comeu com o apetite
de um homem que aprendera numa experiência de mais de quatrocentos e cinqüenta anos
que a calma nos ajuda mais que o nervosismo a suportar um destino que não podemos
evitar.
***
— Terminou — ouviu Steve Kantor. — A obra foi concluída.
As últimas horas pareciam um sonho. O ser estranho prometera seu auxílio. Levou
Steve e seus companheiros diretamente à sala de regulagem, atravessando canais que
passavam pela matéria sólida e se fechavam assim que tinham passado. Sid Lippman
recuperara os sentidos. Depois de um ataque de histeria, mergulhara num estado de
letargia total. O ser desconhecido, que flutuava sobre o sistema de regulagem que nem
um véu delgado, obrigara as tropas de vigilância a afastar-se das áreas adjacentes da sala
de regulagem. Depois pusera-se a trabalhar. As peças deformadas, semiderretidas da
periferia do aparelho voltaram a assumir sua forma primitiva. Enquanto a névoa fina que
o estranho ser passara a formar penetrava lentamente no interior do gigantesco aparelho,
várias peças se desprenderam inexplicavelmente e desceram ao chão. Uma força invisível
manipulava estas peças, desmontava-as, voltava a montá-las e as ligava entre si.
Finalmente elas voltaram para o interior do sistema de regulagem.
Sid Lippman estava agachado perto da porta, sem tomar conhecimento do que
estava acontecendo. Steve, Lott e Lucas estavam parados junto ao revestimento do
conjunto de regulagem, acompanhando os acontecimentos com olhos que lacrimejavam
de tanta incredulidade diante do que viam.
Finalmente Steve captou um impulso mental que lhe dizia que a obra fora
concluída.
— Quer ir conosco? — perguntou Steve.
— Não — respondeu o ser. — Vocês e eu... nós pertencemos a espécies diferentes.
Voltarei ao meu esconderijo.
— Não precisa esconder-se mais — insistiu Steve. — Somos amigos, se é que você
entende o que significa isto.
Houve um silêncio completo. Steve sentiu alguma coisa remexer levemente em seus
pensamentos, como se o ser desconhecido quisesse descobrir o que estes significavam.
— Você pode aprender alguma coisa conosco — prosseguiu Steve. — E nós
podemos aprender com você. Você não sabe nada a respeito do mundo...
Seus pensamentos foram interrompidos por um impulso estranho.
— Irei com vocês.
***
Faltavam dez minutos para que o prazo de duas horas, previsto por Reginald Bell,
chegasse ao fim, quando a concentração de energia que se estendia entre os dois sóis
emitiu uma luminosidade bruxuleante. Bell ficou estarrecido atrás de seu console. O
momento decisivo chegara. Era uma sensação estranha poder calcular com a precisão de
um minuto quanto tempo de vida restava à gente.
Foi quando aconteceu o milagre. O espaço que se estendia à frente dos dois sóis
continuou vazio. O transmissor chamejava sob o impacto constante de inúmeros impulsos
de transporte, mas nem uma única nave inimiga penetrou no sistema Chumbo de Caça.
Até mesmo Reginald Bell levou alguns segundos para acreditar no que seus olhos viam.
O receptor do transmissor fora bloqueado! A passagem para Califa tinha sido
fechada ao inimigo. Suas naves eram arremessadas de volta para o ponto de partida. Bell
tentou imaginar como seriam quando chegassem lá. Talvez estivessem semidestroçadas,
com os tripulantes mortos ou inconscientes por causa da descontrolada transição em
sentido inverso.
Aos poucos a idéia de que isso representava a vitória foi-se espalhando. Os maahks
nunca mais se atreveriam a usar um transmissor bloqueado. A base estava salva. O
Império saíra vitorioso da batalha de Califa!
Reginald Bell sabia pensar com lógica. Apesar do entusiasmo que sentia, gostaria
de saber quem bloqueara o transmissor.
Finalmente o bruxulear do campo de energia condensada parou. O rastreamento
registrara um total de dezoito mil impulsos. Teria sido o fim de Califa, se o bloqueio não
tivesse funcionado.
Ainda não fazia cinco minutos que o transmissor se iluminara pela primeira vez,
quando um ordenança se aproximou de Reginald Bell e em meio ao entusiasmo
generalizado gritou que havia cinco homens que queriam falar com ele. Bell deu ordem
para que fossem trazidos à sua presença.
Reconheceu Steve Kantor, o chefe do grupo incumbido de procurar o ser
energético. Os outros deviam ser membros do mesmo grupo. Mas Bell lembrava-se
perfeitamente de que o grupo, incluindo Kantor, não era formado por mais de quatro
homens. Examinou os homens um por um e constatou, surpreso, que um deles tinha uma
semelhança extraordinária com Steve Kantor.
— Quem é este? — perguntou sem rebuços, apontando para o sósia de Kantor.
Steve Kantor sorriu. Em torno dele os oficiais da sala de comando dançavam de
alegria. Teve de fazer um grande esforço para comunicar-se.
Reginald Bell acreditou que o barulho o fizera ouvir errado.
— Este é o sistema de regulagem!
Epílogo
Se havia alguém capaz de encontrar uma explicação para o incrível fenômeno, este
alguém era Arno Kalup, o homem que tinha aperfeiçoado o sistema de propulsão linear.
Reginald Bell pediu que o cientista comparecesse à sua presença. Arno Kalup já fora
informado sobre as declarações prestadas pelo ser energético.
— Na verdade — principiou — o desenvolvimento de um ser independente a partir
de uma máquina não é uma coisa tão estranha como pode parecer à primeira vista. O
sistema de regulagem é um conjunto muito complicado, feito especialmente para
influenciar as energias tremendas do transmissor e direcioná-las, tudo isso sem qualquer
controle humano. Quer dizer que o conjunto dispõe de um sistema de computação que
não fica nada a dever, em capacidade de armazenamento e potencialidade lógica, aos
nossos sistemas de computação positrônica. Mas além do sistema de processamento
positrônico o conjunto de regulagem dispunha de um comando protetor, que lhe permitia
identificar as situações de perigo e conduzir os fluxos energéticos pelos canais
adequados. Foi uma medida necessária à proteção da preciosa aparelhagem.
“Dali só se pode concluir que a inteligência do ser energético se formou a partir do
mecanismo de proteção. A base do pensamento independente achava-se presente no
mesmo. O mecanismo estava em condições de observar o ambiente que o cercava e
formar um juízo lógico sobre se havia uma situação perigosa ou não. Quando os senhores
da galáxia mandaram destruir o antigo planeta gigante, este dispositivo teve pela primeira
vez a oportunidade de usar plenamente sua capacidade. Evitou que o sistema de
regulagem fosse destruído. A lembrança destes acontecimentos ficou gravada em seu
pensamento. Esforçou-se para descobrir meios de fazer com que, caso houvesse outro
incidente deste tipo, a defesa fosse ainda mais eficiente.
“O espírito do sistema de regulagem nasceu da necessidade de auto-proteção. No
curso dos séculos durante os quais não tinha nada a fazer, porque o transmissor não
estava sendo utilizado, o mecanismo de proteção apoderou-se de todo o conjunto de
processamento do sistema de regulagem, e foi aprendendo aos poucos a conceber
pensamentos diferentes daqueles ligados à proteção contra as desgraças. Atravessou o
fosso que separa o pensamento puramente finalista da verdadeira inteligência.
“Havia conhecimentos sobre a estrutura da energia que usava guardados em sua
memória. A passagem do estado de inteligência imaterial para a condição de um ser
corporal, capaz de deslocar-se livremente, deve ter sido bem mais fácil que a formação de
uma capacidade intelectual autônoma — embora seja justamente este passo que nos deixa
mais espantados.
“Dali em diante o ser energético ampliou cada vez mais seus conhecimentos. Pelos
meus cálculos, o volume de recordações de que dispõe hoje consiste em somente vinte ou
trinta por cento das informações originariamente introduzidas em sua programação. O
resto foi adquirido por experiência própria. Pelo que diz Mr. Kantor, até chegou a fazer
uma viagem ao transmissor mais próximo — o que é um feito notável, se considerarmos
que ele mesmo teve de controlar a liberação da energia necessária ao processo de
transmissão. O mundo em que foi parar deixou-o assustado. Voltou o mais depressa que
pôde.
“Um ser tecnológico é uma coisa formidável, embora seja altamente especializado.
Acho que dele podemos aprender muito mais sobre o funcionamento dos transmissores
do que do próprio Icho Tolot. Mas em outras áreas seus conhecimentos não devem
exceder os de uma criança de seis anos. Tem medo dos ambientes que não conhece. E
mostra-se desconfiado diante de qualquer ser estranho.
“É aqui que começa nossa tarefa. Temos diante de nós um espírito completamente
formado. O fato de ter-se originado de uma máquina não nos deve fazer esquecer que
merece nossa atenção tanto quanto um ser feito de carne e sangue.”
***
Ainda faltava desvendar muitos mistérios, mas isso seria uma tarefa para o futuro.
Havia coisas mais urgentes para fazer. O ser energético, que na presença de outras
pessoas gostava de assumir a figura de Steve Kantor, mostrou-se disposto a continuar a
colaborar com os terranos. Steve Kantor e Icho Tolot ajudaram-no a elaborar um
esquema que removia o bloqueio a intervalos previamente estabelecidos, tomando
possível a entrada de naves no sistema Chumbo de Caça. Reginald Bell enviara uma
nave-correio à Via Láctea e mandara que o horário de funcionamento do transmissor
fosse entregue ao comandante da frota metropolitana. Os dados foram armazenados nos
computadores positrônicos das naves. Com este lance Califa transformou-se numa
fortaleza inexpugnável, à qual somente as naves terranas tinham acesso. A probabilidade
de uma nave estranha atingir o transmissor num dos breves intervalos de funcionamento,
distribuídos segundo uma seqüência estatística, era praticamente igual a zero.
Desta forma o Império Solar dispunha de uma base bem segura nas imediações da
galáxia inimiga. A operação cabeça-de-ponte, que no ano anterior assumira várias vezes o
aspecto de uma ação desesperada, transformara-se num êxito total, que representava um
excelente ponto de partida das novas operações dirigidas contra os senhores da galáxia e
seus povos auxiliares.
***
Sid Lippman tomou a primeira nave em que havia lugar para sair de Califa. Sua
despedida de Steve, Lott e Lucas, que resolveram continuar na base, foi muito breve.
Suas últimas palavras foram as seguintes:
— Vocês são sujeitos formidáveis, mas para dizer a verdade devo reconhecer que
não gosto nem um pouco do trabalho que é feito por aqui. Não nasci para ficar no espaço.
Os que ficaram estavam reunidos numa sala, observando a decolagem da nave que
levaria Sid Lippman de volta para a Terra. A grande tela ofereceu uma representação fiel
do jogo de cores do transmissor, quando o veículo desapareceu em seu centro de
condensação energética.
Reggie, o ser energético, flutuava embaixo do teto como uma nuvem de fumaça de
cigarro. Enquanto não houvesse ninguém além dos três amigos, não se julgava obrigado a
assumir formas humanas.
Lucas Della Fera levantou os olhos para ele, e disse com um suspiro:
— Imaginem só — grasnou — se Reggie tivesse ativado o mecanismo de bloqueio
e se recusasse a subir conosco.
— Neste caso o transmissor ainda estaria bloqueado — resmungou Lott. —
Nenhuma nave poderia chegar a Califa.
Lucas sacudiu a cabeça como quem não estava gostando.
— Não foi o que eu quis dizer. Estou pensando em nós. Vocês acreditam que, se
não fosse Reggie, teríamos sido capazes de explicar a alguém o que tinha acontecido?
Fariam pouco de nós — bateu com o dedo na testa. — Se Reggie não tivesse vindo
conosco, todos acreditariam que não estávamos muito bons da cuca...
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