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J / Educação Pode-se ‘salvar’ o ano letivo?

Entrevista com o secretário de Estado, João Costa – Artigo de Paulo Pedroso

António Sampaio da Nóvoa


JORNAL
O Dia Mundial
DE LETRAS, da Língua Portuguesa
Entrevista com o embaixador
ARTES E de Portugal na UNESCO
IDEIAS PÁGINAS 2 E 3

Ano XL * Número 1293 * De 22 de abril a 5 de maio de 2020


* Portugal (Cont.) €3,30 * Quinzenário * Diretor José Carlos de Vasconcelos

Rubem Fonseca e Luis Sepúlveda


Histórias, para sempre
Morreram dois grandes escritores,
ambos muito lidos em, e ligados a, Portugal.
Um da nossa língua, Prémio Camões em
2003, sobre o qual escrevem Ignácio Loyolla
Brandão, Miguel Sanches Neto e António Mega
Ferreira. Outro, chileno universal, sobre
o qual escrevem Santiago Gamboa, Manuel
Alberto Valente, Ondjaki, Manuela Ribeiro
e L. Ricardo Duarte. De ambos, intervenções,
nunca publicadas, nas Correntes d’Escritas;
e a crónica de Valter Hugo Mãe
PÁGINAS 6 A 14 E 27

MARIA DE SOUSA
Uma singular cientista e pessoa/poeta
Des
Desapareceu, também na semana passada, um nome de primeira linha
da
d Ciência, e não só, em Portugal. Textos de Anabela Mota Ribeiro
e Onésimo Teotónio Almeida, testemunhos de Manuel Sobrinho
Simões e Alexandre Quintanilha PÁGINAS 20 A 22
2 ↗
DESTAQUE 22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT

António Sampaio da Nóvoa


“O reconhecimento do português
como língua global”
A 5 de maio celebra-se o primeiro Dia Mundial da Língua Portuguesa, proclamado pela Unesco em novembro do ano
passado. Uma celebração no espaço digital por força da atual crise pandémica, uma data que o embaixador de Portugal na
Unesco - reitor honorário da Universidade de Lisboa, reputado especialista em Educação - gostaria que fosse “uma marca e
um marco na projeção internacional” do português, como diz em entrevista ao JL, que pela sua relevância e atualidade abre
esta nossa edição, ao arrepio do habitual e também pelas razões apontadas no com. da p. 3

Vinham em pequenas canoas, UMA FÓRMULA ESTRATÉGICA Unesco, de categoria 2, para a forma-
meninos e meninas, com fisionomia Em seu entender, o que é essencial ção científica nos países africanos de
índia, entraram na escola, construída nessa estratégia? LP, que temos a área do Camões do
sobre troncos e águas, sem mobiliário. Se tivesse que a organizar, teria em ensino superior, mas precisamos de
O então jovem António Sampaio da conta quatro domínios absolutamen- passar a patamares de colaboração
Nóvoa, que vinha de outro continente, te centrais, que poderia pôr numa superiores, porque evidentemente o
e tinha percorrido milhares de qui- fórmula: EC ao cubo. O “E” tem que futuro vai passar pelo conhecimento
lómetros até chegar a Belém do Pará ver com o ensino que é, para mim, a e pela ciência, tal como pela cultura.
e depois ao delta do Amazonas, tam- pedra basilar. Tudo o que se relacione As universidades têm aí um papel
bém lá estava de visita. “Sentámo-nos com o ensino do português no estran- determinante. E utilizar a presença da
todos no chão, começámos a falar geiro e com a formação de professores LP um pouco em todo o mundo para
uns com os outros e entendemo-nos é extraordinariamente importante. tentar construir uma possibilidade de
em português”, recorda. E foi esse pensar o futuro é certamente muito
“momento inesquecível” que lhe veio E quais são os três “C”? importante. E agora, pensar como
à memória quando, a 25 de novem- São aqueles em que a língua se baseia. será o mundo pós-coronavírus e de
bro de 2019,na Conferência Geral da O C da cultura e da criação, o que pas- que forma vamos fazer as transições
Unesco, foi proclamado o Dia Mundial sa pelo apoio aos escritores, editores, que há muito dizíamos serem neces-
da Língua Portuguesa a celebrar a 5 tradutores, para uma maior circulação sárias.
de maio. da LP através da dinâmica da criação,
Mensagens de escritores e artistas, do livro. E o “C”, muito importante Que transições?
JOSÉ CARLOS CARVALHO

mesas-redondas por videoconferên- para mim, até pelo lugar de onde ve- Ecológica, digital, escolar. A LP, não
cia, um concerto online com músicos nho, de conhecimento, de ciência. apenas no nosso espaço, mas no mun-
de vários países de expressão por- do, pode dar um grande contributo
tuguesa são algumas das iniciativas, No sentido de afirmar a LP como uma nessa reflexão.
coordenadas pelo Instituto Camões, língua de ciência?
que agora vão assinalar, no espaço António Sampaio da Nóvoa Com a crise que vivemos, torna-se Pensa que o mundo vai mudar depois
digital, dada a atual situação de con- nítido que é preciso haver uma ciência desta pandemia?
finamento decorrente da crise pan- aberta e de grande circulação e o por- Essa não é a minha visão. Havia mu-
démica, o primeiro Dia Mundial da tuguês tem de ser realmente também danças que já estavam em curso, esses
Língua Portuguesa (DMLP). António outra sobre a exigência de uma ciência lhar muito nesse sentido. Outra é o uma língua de ciência. Não podemos temas já estavam em cima da mesa e
Sampaio da Nóvoa, 65 anos, durante aberta e da partilha de dados e de co- reforço da Língua Portuguesa (LP) deixar esse papel apenas ao inglês. esta crise só vai acelerá-los, torná-los
dois mandatos reitor da Universidade nhecimento. Dos trabalhos em curso no conjunto do sistema das Nações mais urgentes e obrigar-nos a encon-
Clássica de Lisboa e presidente do para a elaboração de relatórios e reco- Unidas e do multilateralismo. Todos E o que pode ser feito para o trar respostas mais imediatas.
Conselho de Reitores, artífice da mendações poderão sair as diretivas reconhecemos que Portugal está, conseguir?
fusão da Clássica com a Técnica, que da organização nessas matérias, para hoje, numa condição excecional É preciso haver uma colaboração mui- Voltando à sua ‘fórmula’, o terceiro
levou à criação da Universidade de as próximas décadas. Se os docu- para desempenhar um papel de tíssimo maior entre espaço científico e “C”, qual é?
Lisboa, de que é reitor honorário, mentos forem aprovados na próxima primeiro plano, de grande destaque, espaço universitário. Claro que existe Em termos genéricos, representa
especialista de Educação de projeção Conferência Geral, no final de 2021, na cooperação internacional. Isso a Associação das Universidades de de uma forma alargada a comuni-
internacional e candidato a Presidente será, para Sampaio da Nóvoa, “uma depende muito da LP, do seu espaço e Língua Portuguesa, que há programas cação, incluindo aí a presença da
da República nas últimas eleições, grande alegria”, confessa. “Portugal afirmação. importantes que têm sido feitos, que LP no mundo digital. E uma língua
em que obteve cerca de um milhão deixará uma marca”, e a LP dará um recentemente foi criado um centro que também abre oportunidades de
de votos, embaixador de Portugal na “contributo importante para pensar Em que iniciativas concretas já estão a negócios, passando pela economia ou
Unesco desde 2018 - diz ao JL que o futuro”. trabalhar? pela diplomacia. Julgo que, de uma
mais do que as comemorações oficiais Nas relacionadas com a projeção maneira ou de outra, esses três “C”
“importa a criação de um movimento Jornal de Letras: Qual o significado internacional, com o ensino e a for- têm que estar sempre presentes numa
que vá muito além do dia 5 de maio, de que se reveste o Dia Mundial da mação de professores, em particular estratégia de promoção da LP.
que simbolicamente é apenas a data, Língua Portuguesa? nos países africanos. Algumas que
o lugar onde inscrevemos a nossa António Sampaio da Nóvoa: Trata-se pensávamos divulgar já no DMLP, mas Tratou-se de uma RENOVAÇÃO E PUJANÇA
vontade de uma promoção inter- de uma decisão muito importante infelizmente, pelas atuais circuns- A LP está, de resto, entre as cinco
nacional da Língua Portuguesa”. E tomada pela Unesco, que deste modo tâncias, foi adiado o seu anúncio. Mas decisão muito línguas mais utilizadas no espaço
tem uma fórmula para a estratégia a reconhece o português como língua posso avançar que o governo, a partir importante da Unesco digital. Isso representa um especial
seguir: EC ao cubo. Que é como quem global e de comunicação internacio- do Instituto Camões, do Ministério dos desafio?
diz: Ensino, Cultura, Conhecimento e nal. Um gesto de grande valor simbó- Negócios Estrangeiros e do Ministério (criar o DMLP), um Sem dúvida. Deve-se sobretudo ao
Comunicação. lico e que abre muitas oportunidades da Cultura, irá anunciar logo que gesto de grande valor Brasil, que avançou muito no digital,
E se o reconhecimento do Dia da para a sua projeção. possível um relançamento de uma mas essa presença da LP deve ser
Língua Portuguesa (LP) é uma das estratégia de promoção internacional
simbólico e que abre reforçada, até para projetar uma nova
marcas já visíveis da sua ação, lançou Como se traduzem na prática? da LP. Isso é muito importante e foi, muitas oportunidades fase da língua.
também duas ideias sobre as quais Desde logo, é uma oportunidade para de algum modo, uma necessidade que
a Unesco atualmente se concentra: o reforço de iniciativas conjuntas dos se abriu com a proclamação do Dia
para a projeção da Nova?
uma reflexão sobre o futuro do ensino, países da CPLP e estamos a traba- Mundial da Língua Portuguesa. nossa língua Estive a reler um texto de Rui Knopfli,
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de 1989, em que falava da língua como


um denominador comum de vários
espaços, africanos, asiáticos, brasilei-
E em geral, como está a ser a sua
experiência na Unesco?
O funcionamento diário, os procedi-
Sobre esta edição
ros, europeus, de diferentes culturas, mentos, o peso das decisões, tudo isso
evoluindo e alargando por caminhos nem sempre é fácil. E é um combate
próprios, uma “pátria coincidente”. diário por outra agilidade, porque
De facto, incorporou falares diferen- os problemas, as desigualdades do

COMENTÁRIO
tes, novas expressões e verbalizações mundo não esperam por nós. Mas
até uma nova sintaxe. É uma língua tem sido uma experiência fabulosa e
que se tem renovado e que continua estou muito grato a todos pelo apoio
a renovar-se. Temos uma geração de e simpatia que têm tido em relação ao José Carlos de Vasconcelos
jovens escritores e um conjunto de meu trabalho. Tenho procurado agir,

E
editoras, algumas muito pequenas, e julgo que foi nesse sentido que o
que estão a dar vida à língua. Porque governo português fez a minha indi-
não basta haver dias mundiais e uma cação para representante de Portugal ste "comentário" tanto de facto o é, no sentido de
língua ser consagrada pelas instân- junto da Unesco, concentrando-me exprimir uma opinião ou ponto de vista sobre
cias internacionais, é preciso que nas situações mais substantivas, em temas, acontecimentos, figuras, como, várias

MARCOS BORGA
seja capaz de dizer coisas fortes às particular na educação e na ciência, vezes, assume mais a forma de uma espécie de
pessoas. Isso deve-se muito também além de outras iniciativas relativas ao diálogo com os leitores. Sobre o nosso jornal,
à circulação que o digital permite. A património, à cultura. E acho que aí em geral, ou alguma edição em particular.
Unesco acaba, de resto, por reconhe- Portugal tem dado um impulso deci- Queremos ter uma relação direta e 'transparente' com quem nos
cer esse momento de grande pujança sivo, como tem sido reconhecido pela lê e acompanha. E também por isto em diversas ocasiões entendo
e criatividade da LP e da nossa posição diretora-geral da Unesco. impor-se, ou pelo menos justificar-se, mostrar-nos por dentro,
geoestratégica no mundo. contar isto e aquilo, esclarecer porquê esta ou aquela matéria,
De que maneira? alteração, opção.
A nível das instituições, a LP tem-se As duas grandes iniciativas que a Ora, poucas vezes se me terá afigurado tão necessário fazê-
feito ouvir? As duas grandes Unesco lançou, nestas áreas, nos -lo como hoje. Por uma série de razões que já exporei, mas que
Tem havido aberturas. Vasco Graça- iniciativas que a Unesco últimos tempos, foram propostas por saltam à vista nestas duas páginas iniciais, de hábito preenchi-
Moura disse que nenhum de nós quer Portugal. das, mais a p. 4 pelo menos, com notícias, mais desenvolvidas ou
uma língua única, totalitária. Não lançou, nestas áreas, "breves", curtas conversas, pré-publicações. Hoje, como se vê,
quer dizer que o inglês não prevaleça nos últimos tempos, Apostas pessoais? apenas uma longa entrevista as preenche, de par com esta coluna
como essa espécie de língua fran- Lancei essas ideias praticamente que só a necessidade de o explicar mantém...
ca, nas instâncias internacionais,
foram propostas por quando cheguei à Unesco, há um Mas então conto tudo... Para esta edição tínhamos preparado
mas deve-se abrir espaço para uma Portugal ano e meio. Refiro-me à comissão um Tema, que me parece atual, interessante e no qual aceitaram
diversidade linguística central nos internacional para pensar o futuro da colaborar todos, de várias partes do mundo, que para o efeito
dias de hoje, podendo estabelecer educação, que está a trabalhar muito convidamos. De várias partes do mundo? Sim, porque pedimos
pontes úteis entre os diversos idiomas. Temos que ajudar os bem e já deu muitas orientações nesta a escritores portugueses ou de língua portuguesa, ou a figuras
O português é, aliás, um dos que está países africanos e acho altura da crise do coronavírus. E, por muito ligadas à nossa cultura, que numa crónica ou testemunho
mais bem situado em todos os cantos outro lado, a iniciativa Open Science, nos dessem a sua visão da situação vivida, no que se refere à
do mundo. Mas claro que não tem o que a Unesco, nos uma ciência aberta e não fechada em Covid-19, nos seus países de nacionalidade e/ou residência. E nos
número de falantes do chinês. Quando próximos anos, deve revistas a que ninguém tem acesso, contassem a sua própria experiência pessoal. Cada um desenvol-
foi proclamado o Dia Mundial da mais democrática e pública, para o vendo mais um ou outro aspeto, e abordando-o como muito bem
Língua Portuguesa, o ministro Manuel centrar-se na situação bem da humanidade. Muitos até nos entendesse.
Heitor, que representou Portugal, fez a de África perguntam por graça se já estávamos Todos (cor)responderam, repito, e os leitores já ficam a saber
sua declaração em português, porque a pensar antes no que está a aconte- qual o principal destaque da próxima edição. E porque não desta?
já é uma língua oficial da Conferência cer. Essas iniciativas, em que estamos É óbvio: em meados da semana passada morreram dois gran-
Geral da Unesco, embora ainda não muito empenhados, ganham, na des escritores, um de língua portuguesa, o brasileiro Rubem
seja no conjunto dos órgãos. Estamos vontade de uma promoção internaci- verdade, uma pertinência, um sentido Fonseca, Prémio Camões em 2003, e outro de língua espanhola,
a dar passos num caminho que é onal da LP uma língua extraordinária novo nesta altura e podem ser funda- chileno universal, ainda por cima ambos tão lidos e tão ligados a
importante também dentro das orga- também na capacidade de pensar o mentais para pensar o que será a soci- Portugal; e desapareceu ainda uma das mais prestigiosas cientis-
nizações internacionais. futuro. edade no pós-crise. Porque se inserem tas portuguesas, ao mesmo tempo uma mulher com notória in-
na dinâmica de transformação que tervenção científica e cultural, de múltiplos interesses e talentos,
A celebração, a primeira, do Dia Em que sentido? se vai acentuar depois desta bolha de inclusive como autora de livros e poeta. Assim, como podíamos
Mundial da Língua Portuguesa vai ser Vergílio Ferreira disse que não se confinamento em que estamos a viver deixar passar quase três semanas após as suas mortes para nas
no espaço digital, por força dos atuais pode pensar fora das possibilidades e que não será certamente o nosso nossas colunas falar dos três e suas obras? Dando-lhes o maior
condicionalismos. O que se pretende? da língua em que se pensa. Pela sua novo futuro. E é possível que tentemos relevo possível, dentro da nossa asfixiante falta de espaço.
Tínhamos previsto muitas inicia- história, por incorporar outras cultu- já agora uma iniciativa da Unesco.
tivas, por exemplo uma exposição ras, tradições, a LP tem possibilidades ASSIM, ADIAMOS A PUBLICAÇÃO daquele Tema - que infeliz-
de Cruzeiro Seixas, que este ano faz únicas. Se o Dia Mundial da Língua Com que objetivo? mente não perde atualidade... - e fizemos o melhor para nesta
100 anos, em Paris, cidade das suas Portuguesa for um marco e uma Reforçar o papel e o apoio aos pro- edição não "desmerecer" das figuras agora desaparecidas. Tarefa
referências, homenageando também marca da sua nova realidade, já deu fessores, sobretudo em África e nos difícil, mas que suponho conseguida, com a preciosa ajuda de vá-
de certa forma Mário de Sá-Carneiro, um contributo extraordinário para o países com mais dificuldades, uma vez rios colaboradores e amigos, autores de excelentes matérias, que
que lá viveu. Mas não foi possível, tal nosso futuro. que se estão a sentir alguns problemas muito agradecemos. Gostaria também de aqui escrever qualquer
como outras atividades que estavam nesta crise, por parte dos docentes, coisa sobre os três, mormente sobre Rubem, sua inesquecível
programadas. Vamos ter uma presen- na resposta à atual situação. Temos participação nas Correntes d'Escritas e umas nossas conversas
ça por via digital, com celebrações LANÇAR FUTURAS que ajudar esses países e acho que a três - isto é, os dois e o Eduardo Lourenço. Quanto a Maria de
virtuais, mesas-redondas por video- RECOMENDAÇÕES se alguma coisa a Unesco pode fazer Sousa, como à frente não "coube", deixo aqui um dos seus poemas
conferência, mensagens. A proclamação do Dia Mundial da pelo mundo, nos próximos anos, é inéditos, publicado na nossa edição de 9/2/2011, que intitulou
Língua Portuguesa foi um momento- centrar-se na situação de África. "Nota fúnebre para Sophia", e que a ela também de algum modo
Como tem sido a recetividade chave do seu trabalho como se aplica: "À terra o corpo/ Ao mundo o verso// Entre nós mur-
a este dia? embaixador de Portugal na Unesco. Porquê? múrios, pranto/ Calado para sempre o canto."
Impressionante. E há muitas iniciati- Como o sentiu? África é um problema imenso e não Ainda antes da Covid-19, o que tínhamos previsto como te-
vas que estão a ser tomadas também Naturalmente, com uma grande só para os africanos, mas para o mas em destaque nesta edição para o 25 de Abril e, sobretudo, a
por escolas, por diferentes pessoas que emoção, até porque estava a sala mundo inteiro E a LP está também Língua Portuguesa, por se assinalar a 5 de maio o seu Dia - que
se interessam pela língua. É a inscri- inteira a olhar para nós. Também lá aí bem situada, através de Angola, por decisão da Unesco passou a ser Mundial, e nessa qualidade
ção dessas pessoas e do que têm para estavam os embaixadores de Cabo Moçambique, Guiné, Cabo Verde. E pela primeira vez se celebra. Ora, a este propósito, nada melhor
dizer que realmente faz o Dia Mundial Verde, Angola ou Brasil e representá- dá-nos muito prazer sentirmos que do que entrevistar o embaixador de Portugal na Unesco, perso-
da Língua Portuguesa e não só as co- vamos um conjunto de pessoas e de pudemos dar o nosso contributo à nalidade relevante que os nossos leitores bem conhecem.
memorações oficiais, formais. O que culturas que se sentem reconhecidas Unesco, que tem uma matriz muito E, face à importância da entrevista, ao relevo que lhe queríamos
importa é a criação de um movimento nesta língua. E recebemos dezenas de centrada sobre o bem comum, sobre dar e à falta de espaço publicá-la nestas duas páginas. Como
que vá muito além do dia 5 de maio, mensagens de outros embaixadores, os valores humanistas, e nesse sentido fazemos. O 25 de Abril, ficou de "fora", bem assim numerosos
que simbolicamente é apenas a data, pelo que foi realmente um momento é uma organização imprescindível. J textos, desde a Estante e os Discos à crítica de livros e à coluna
o lugar onde inscrevemos a nossa muito tocante. MARIA LEONOR NUNES de André Freire. J
4 DESTAQUE

22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT

O 1º ANO
JL 4: de Siza
Inquérito
a Sartre Livros, discos e filmes que
marcaram os últimos 40 anos

N
o último tema, e capa, que lhe dedi- Ao longo do 40.º ano do JL. promovemos um inquérito para apurar os livros, filmes e
camos (JL 1282, de 2 de dezembro de
2019) lembrei a sua destacada presença álbuns que mais marcaram as últimas quatro décadas. Quinzenalmente, publicaremos as
nas nossas páginas, ainda ele estava listas individuais de diversas figuras com as suas 20 escolhas (dez para o cinema)
muito longe de ser o arquiteto de fama
mundial em que se tornou. Refiro-me,
claro, a Álvaro Siza Vieira - e aquela destacada presença,
com grande relevo, começou logo na nossa quarta edição DISCOS
(14/27 de abril de 1981), como as anteriores com o res- › Capitães da areia › Manuel Frias Martins › Onésimo Teotónio Almeida
petivo nº, o 4, na capa de João Abel Manta. Logo a abrir, TIAGO PEREIRA A VIAGEM DOS MATÉRIA NEGRA. DESPENTEANDO
um perfil/entrevista pelo Manuel António Pina ("Siza CAPITÃES DA AREIA UMA TEORIA DA PARÁGRAFOS –
Vieira, arquitetura, arquitetura"), depois um seu longo › Júlio Pereira A BORDO DO APOLO LITERATURA E DA POLÉMICAS SUAVES
e muito interessante diálogo de Siza com o seu também CAVAQUINHO, 70, 2015 CRÍTICA LITERÁRIA (2015)
prestigiado colega, e estudioso do ofício, Nuno Portas. 1981 (1993)
Quase cinco páginas - então, recordo de novo, maiores › Sampladélicos › Valter Hugo Mãe
que as atuais -, quase compactas... Às quais se segue um › Fausto NÃO NOS DEIXEIS › Boaventura de Sousa Santos O REMORSO DE
texto, ainda sobre o mesmo tema, de outro importante POR ESTE RIO CAIR EM TRADIÇÃO PELA MÃO DE BALTAZAR SERAPIÃO
arquiteto, dez anos mais velho, Manuel Taínha. ACIMA, 1982 ALICE. O SOCIAL E O (2006)
Outro tema, a figura e obra do filósofo e escritor que › Éme POLÍTICO NA PÓS-
nesse início dos anos 80 continuava na primeira linha
› Banda do Casaco DOMINGO À TARDE, MODERNIDADE (1995) › Afonso Cruz
da atenção, e amiúde da polémica, um pouco em todo
BANDA DO CASACO 2017 PARA ONDE VÃO OS
o mundo culto, e sobre o qual o Centro Nacional de
COM TI CHITAS, 1984 › Eduardo Lourenço GUARDA-CHUVAS (2013)
Cultura e o Instituto Francês de Lisboa iam organizar um
colóquio: Jean Paul-Sartre. E sobe ele, em mais quatro › Sei Miguel O ESPLENDOR DO
› José Afonso O CARRO DE FOGO, CAOS (1998) › António Damásio
páginas, escrevem nada
mais nada menos do COMO SE FORA 2019 A ESTRANHA ORDEM
que Eduardo Lourenço, SEU FILHO 1983 › Miguel Real DAS COISAS. A VIDA,
Eduardo Prado Coelho e › Vários GERAÇÃO DE OS SENTIMENTOS E AS
Luiz Francisco Rebello. › José Alberto Sardinha ANTOLOGIA DE 90. ROMANCE CULTURAS HUMANAS
Vinha a seguir MÚSICA ATÍPICA E SOCIEDADE (2017)
VIOLA CAMPANIÇA . NO PORTUGAL
o texto mais longo O OUTRO ALENTEJO, PORTUGUESA VOL2,
sobre literatura desta 2019 CONTEMPOR NEO
1986 (2001) FILMES
edição, "Intimismo e
intervenção literária",
de Clara Rocha, na
› Pop dell`Arte LITERATURA › Ana Paula Arnaut JOSÉ VIEIRA
qual analisa designa- FREE POP, 1987 POST-MODERNISMO MENDES
damente o romance CARLOS NO ROMANCE
Bolor, de Augusto › Ocaso Épico NOGUEIRA PORTUGUÊS › KILAS, O MAU DA FITA
Abelaira. No seu MUITO OBRIGADO, CONTEMPOR NEO de José Fonseca e Costa (1980)
"Amador de Poemas" 1988 › Arnaldo Saraiva (2002)
David Mourão-Ferreira LITERATURA › FRANCISCA
escreve sobre - e tra- › Gaiteiros de Lisboa MARGINAL/IZADA. › Onésimo Teotónio Almeida de Manoel de Oliveira (1981)
duz - Walther von der
INVASÕES NOVOS ENSAIOS DE MARX A DARWIN.
Vogelweide, o sempre atento Irineu Garcia dedica a sua
BÁRBARAS, 1995 (1980) A DESCONFIANÇA
"Zona Tórrida" a João Cabral de Melo Neto; e, ao lado, DAS IDEOLOGIAS › O LUGAR DO MORTO
Arnaldo Saraiva fala de Drummond. Enquanto, após os
› João Aguardela › José Saramago (SEGUIDO DE de António-Pedro Vasconcelos (1984)
dois grandes poetas brasileiros é de novo Gabriel Garcia LEVANTADO APÊNDICES SOBRE
MEGAFONE I, 1997
Marquez que aparece, no âmbito do nosso exclusivo DO CHÃO (1980) DARWIN NOS › DE UMA VEZ
para Portugal da revista espanhola Cambio-16. Além do AÇORES) (2009) POR TODAS
essencial "O Guarda-Livros", de que já aqui falei, outras › René Bertholo › António Lobo Antunes de Joaquim Leitão (1986)
críticas, entre elas a primeira de Manuel Frias Martins. UM ARGENTINO
EXPLICAÇÃO › Vítor Aguiar e Silva
Em matéria de "Ideias", destaque para o texto "A NO DESERTO. 2001
questão do marxismo", por José Fernandes Fafe, e para DOS PÁSSAROS (1981) AS HUMANIDADES, › MATAR SAUDADES
OS ESTUDOS de Fernando Lopes (1988)
as duas páginas sobre/com Alain Touraine: um ensaio › Jorge Lima Barreto, › Carlos Reis CULTURAIS, O ENSINO
de António Fonseca Ferreira e uma pré-publicação do Carlos Zíngaro
DA LITERATURA
seu livro L'après-socialisme. Nas artes, por exemplo, KITS 2, 2008 O DISCURSO E A POLÍTICA DA › RECORDAÇÕES
France Huser a falar de Modigliani, o cinema e o teatro IDEOLÓGICO DO LÍNGUA PORTUGUESA DA CASA AMARELA
na visão de nossos críticos já aqui referidos, a fotografia NEO-REALISMO
a justificar uma chamada especial de atenção por um
› B fachada, PORTUGUÊS (1983)
(2010) de João César Monteiro (1989)

magnífico artigo de análise de António Sena, a propósito VIOLA BRAGUESA,


2008 › Liberto Cruz › SINAIS DE FOGO
das imagens do atentado contra Ronald Reagan, com 14 › Maria de Fátima Marinho de Luís Filipe Rocha (1996)
fotos a ilustrá-lo. E a música em evidência com um arti- O SURREALISMO POESIA REUNIDA
go de Fernando Lopes-Graça sobre o centenário de Béla › Foge, foge Bandido EM PORTUGAL (1987) 1956-2011 (2012)
Bartok, além da coluna de João de Freitas Branco. O AMOR DÁ-ME › O FANTASMA
Enfim, várias matérias jornalísticas de atualidade, TESÃO, 2008
› Óscar Lopes › Viriato Soromenho-Marques de João Pedro Rodrigues (2000)
entre elas uma peça de Fernando Dacosta sobre "Lydia PORTUGAL NA QUEDA
ENTRE FIALHO
Barloff, o anti-travesti", duas páginas de "Debate- › Diabo na Cruz E NEMÉSIO. DA EUROPA (2014) › NO QUARTO
Papo", com a primeira colaboração de Mário Cláudio VIROU, 2009 DA VANDA
aqui no JL, e os cronistas permanentes da quinzena, no ESTUDOS DE
caso Maria Velho da Costa, Augusto Abelaira e Nuno LITERATURA › Miguel Real de Pedro Costa (2000)

Júdice. Na última página, "'God save the Portuguese',


› Uxu Kalhus PORTUGUESA NOVA TEORIA
com astúcias, manhas e patranhas", de Miguel Esteves TRANSUMÂNCIAS CONTEMPOR NEA DO MAL (2012) › TABU
Cardoso. J GROOVE - 2009 (2 VOLS., 1987) de Miguel Gomes (2012)
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT

5

A C E
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S S Í
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6 ↗
LETRAS 22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT

RUBEM FONSECA (1925-2020)


Um dos grandes escritores do Brasil e de Língua Portuguesa, morreu no passado dia 15, no Rio de Janeiro, a um mês de fazer 95
anos, vítima de acidente cardíaco. Começou a publicar tarde, mas deixa uma vasta e valiosa obra, consagrada designadamente
com os Prémio Camões, em 2003, Juan Rulfo, no mesmo ano, Machado de Assis, em 2015 - além de (um recorde) seis prémios
Jabuti, entre 1969 e 2014. A sua obra, e o seu percurso, aqui em textos de Miguel Sanches Neto, nosso colunista, escritor,
ensaísta, crítico, prof. - e atualmente reitor de uma Universidade do Paraná -, Ignácio Loyolla Brandão, um dos mais destacados
escritores brasileiros, e António Mega Ferreira. Destaque para o texto da p. 8, que constitui o essencial (tirado da gravação) da
intervenção do escritor nas Correntes d'Escritas de 2012, em que teve um enorme 'êxito' (também como performer...) e recebeu
o Prémio Correntes/Casino da Póvoa de Varzim. Ver ainda a crónica de Valter Hugo Mãe, na p. 27, também sobre Luis Sepúlveda

Autor-resumo do Brasil

A
MIGUEL SANCHES NETO
os seres invisíveis, a lógica dos
discriminados. O que era tão peri-
goso, na visão dos militares então
no poder (e tragicamente nos de
agora) era a existência enquanto
linguagem literária destes seres à
margem que a sociedade brasileira
queria e continua querendo calar
– é dentro deste contexto que se
deu o assassinato da vereadora
e ativista negra Marielle Franco
(1979-2018). A violência dos livros
de RF não tem uma função ceno-
gráfica, e era obtida pelo autor por
A trajetória literária de José meio de uma adesão ao olhar e à
Rubem Fonseca teve início em linguagem da vasta população de
meio a uma carreira executiva de excluídos sociais do Rio de Janeiro
sucesso. Depois de experiências e de suas conexões ou conflitos
na polícia, tanto no Brasil quanto com o crime organizado. É uma
nos Estados Unidos, e de estu- violência perigosa ao sistema pelo
dar administração de empresa respeito à biografia destes seres
em Nova Iorque, ele se tornou que não apareciam como sujeitos.
um alto funcionário da Light,
empresa privada de energia NOS ANOS 1960 E 1970, A LITE-
elétrica, fundada em 1905, no Rio RATURA brasileira foi dominada
de Janeiro, cidade adotada pelo pelo conto, e ser ficcionista era
autor. Foi justamente no decorrer sinónimo de ser contista. A exis-
desta ascensão profissional que tência de revistas marginais e de
publicou sua primeira coletâ- outras comerciais que publica-
nea de contos: Os prisioneiros, vam contos criou uma receção
veiculada por uma editora quase Rubem Fonseca "Colocou no centro da alta literatura a linguagem quente das ruas, os seres invisíveis, a lógica dos discriminados" prioritária a este género, para o
invisível (GRD, 1963). qual estas foram as décadas de
A obra teria passado com- ouro. Junto com Dalton Trevisan
pletamente despercebida se um (1925) e João António (1937-
crítico atento, o mais importante (2000): “Ao meu descobridor, um dos monstros (Amado Couto, 1996), RF formava o triunvirato
da nossa história, Wilson Martins com amizade e admiração”. A nascido na mesma cidade de do grande e novo conto realista
(1921-2010), não tivesse notado afirmação certeira da vocação é Rubem Fonseca: Juiz de Fora, do Brasil. Autores de primeira
a sua qualidade em um artigo que instituirá no meio literário Autor-resumo de Minas Gerais) dedicados à lite- grandeza, eles deslocaram o foco
de O Estado de S. Paulo de 1 de o autor, dividido inicialmente ratura policial em La literatura da linguagem para grupos que
fevereiro de 1964 (“Tendências”). entre uma atuação no mundo
uma era, ele foi, pelo nazi en América, o que reforçou viviam uma invisibilidade social,
Para o crítico, aquele estreante executivo e a vivência profunda vínculo com o Rio e uma ideia equivocada do autor chocando os leitores e criando
quase quarentão, ligado a outros da arte, sem deixar de meter-se pela desinibição ao se vendido ao sistema (político e um sentimento de humanismo
ramos da esfera pública, trazia a em polémicas por esta dualidade. comercial). sem sanções morais.
literatura no sangue e renovava A mais famosa delas: esteve ao apropriar de elementos A distância entre o cidadão e o Rubem Fonseca jamais aban-
o conto contemporâneo ao apre- lado dos militares na primeira estranhos ao literário, artista pode ser avaliada em sua donará o conto ou o deixará como
sentar uma nova filosofia de vida hora do golpe de 1964, pagando biografia. Se o autor namorou com uma produção secundária em
e introduzir uma tradição cine- depois o preço por este apoio, o Machado de Assis do o Poder em alguns momentos, sua trajetória de grande sucesso,
matográfica em suas narrativas. o que o afastou para sempre da Brasil de agora o escritor criou uma literatura tanto de público quanto de críti-
Foi exatamente este progra- possibilidade de aparecer em que era revolucionária por ser ca. Manteve-se contista por toda
ma que o ficcionista cumpriu ao público no Brasil, mesmo depois escrita na ótica dos marginais, dos a sua vida editorial, e foram neste
longo de uma produção extensa e de seu livro Feliz Ano Novo (1975) Criou uma literatura bandidos tanto da classe média e registo seus últimos livros, em
exitosa. Em duas dedicatórias de ter sido censurado pelo regime alta quanto dos assassinos e outros que reprisava os velhos temas,
seus livros mais recentes, Rubem militar sob a acusação de porno- revolucionária por párias sociais. Rubem Fonseca as velhas estruturas, os mes-
Fonseca (RF) repetiu as mesmas grafia e de incentivo ao palavrão escrita na ótica dos vem de uma tradição carioca que mos personagens, escrevendo,
palavras de homenagem a Wilson e ao crime. Impiedoso, o escritor começa com Lima Barreto e que tragédia dos que mantêm uma
Martins – em A Confraria dos chileno Roberto Bolaño (1953-
marginais, dos bandidos colocou no centro da alta litera- carreira longeva, à maneira de si
Espadas (1998) e O Doente Molière 2003) o elegeu como mestre de e outros párias sociais tura a linguagem quente das ruas, próprio, mas sem nunca deixar
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT LETRAS 7 RUBEM FONSECA

Seguro, sedutor, difícil,


de interessar a seus leitores (ver expedientes tidos como comer-
meu texto aqui no JL de 1266, 10 ciais, sem valor, e os dota de uma
de abril de 2019). força literária que determinará o
É a partir de A grande arte novo boom do romance brasilei-

irónico, divertido
(1983) que vem o grande sucesso ro, compreendido entre os anos
do autor. Nesta década, valo- 1980 e 2010.
res até então sagrados, como
experimentação de linguagem ELE INCORPOROU E MUITAS
e desejo de rutura com o pú- VEZES criou as principais linhas
blico, o primeiro presente nos de força do romance da agorida-
livros de contos de Rubem, dão de, na função de catalizador de
lugar a uma busca de legibilida- todas as vertentes de sucesso em IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO
de universal. Há um desejo de curso. Rubem iniciou no Brasil a
constituir um público contempo- onda do romance policial cult (A morto. Sentaram os dois num sofá e
râneo, urbano e cosmopolita para grande arte), cujos recursos usou ficaram a pensar em urubu morto, ela
a ficção brasileira, e o caminho em inúmeras outras obras, de mais do que ele.”
era o romance avesso a toda a ficção longa ou curta; passou pelo Diante daquele livro, eu que tinha
tradição regionalista ou orto- romance histórico (Agosto, 1990), 27 anos, cogitei: aqui está um cara
doxamente experimental que já que tem uma densidade de leitura que é da "nossa". "Nossa" queria
havia exportado como produtos muito alta nos públicos comuns; dizer turma, grupo, ideologia,
exóticos autores como Jorge chegou à onda de autoficção (José, filosofia, doideira. Tínhamos lido
Amado, Guimarães Rosa, Érico 2011), que no Brasil é uma tendên- Sartre, Rimbaud, Huysmans, Henry
Veríssimo e Graciliano Ramos. cia de grande representatividade; Miller, Jack Kerouac, Ginsberg,
Quem vai liderar esta mudan- e também pagou tributo à experi- Celine, Radiguet, Mário de Andrade
ça de chave de nossa ficção (do mentação estrutural (O selvagem (Macunaima). Vejam só, eu jamais
conto para o romance) é RF, am- da ópera, 1994), em um romance tinha publicado um livro, só escrevia,
pliando a conexão com o cinema que é uma homenagem ao cinema, escrevia e queria ser beat, transviado.
e dialogando com o best-seller pois emula um roteiro, código que Então apareceu Rubem quebrando
norte-americano, sem medo de o autor dominava, tendo, inclu- as regras (quebrava intuitivamente,
incorporar os seus mecanismos sive, roteirizado algumas de suas porque conhecia as regras) do bom
de fidelização de leitura, en- próprias obras. Neste caminho de comportamento em frases curtas,
tre eles a velocidade narrativa, aproveitar o material da litera- incisivas, chocantes, com sensações
a informação sobre assuntos tura de massa para a construção inusitadas, brasileiras na essência.
técnicos, o suspense, o crime, literária, RF chegou ao extremo Era a literatura urbana avançan-
a violência já como gramática de apropriar-se da estrutura mais Rubem Fonseca e Ignacio Loyolla, nos chamados “porões da ditadura”, em 1976, quando do, o Brasil estava deixando de ser
cenográfica do romance policial, linear de best-sellers em seus os seus livros foram proibidos, numa caricatura de Paulo Caruso para a revista Isto É rural, as emoções se transformavam.
últimos romances (O seminaris- Na minha cabeça, Rubem Fonseca e
ta, 2009), o que aumentou certa Nelson Rodrigues foram fundamen-
resistência por parte da crítica, tais para estabelecer essa literatura
que via nele um repetidor de seus Rubem Fonseca. Para os próximos O que me atrai nas histórias de urbana carioca/brasileira, crua,
próprios truques de magia. e os que fingiam mostrar intimida- Rubem é exatamente a “anormalida- desbocada, atrevida, realista. classe
A partir de sua morte, o autor de era Zé Rubem. Eu o tratava por de” de emoções, reações, compor- média.
começará a sofrer o julgamento Rubem. Assim foi a vida inteira. tamentos. “Como é que um corcunda Por que me vêm agora insights
Liderou a mudança das novas gerações, que não têm Li seus livros desde 1963, quando se prepara para receber uma mulher de seu jeito de escrever? Nunca
de chave de nossa o compromisso biográfico da- voltei de uma estadia em Roma e ele linda que deve ser arduamente indu- esqueço o filho ao pé do leito do pai
queles que se formaram a esperar tinha lançado por pequena editora zida”. Eu vivia cansado de escritores moribundo, que confessa ter tido
ficção (do conto para o a melhor tradução ficcional do Os Prisioneiros. Estava com 38 anos que escreviam limpinho, normal- outra mulher. O pai, quase morto, de
romance), ampliando a Brasil enquanto país essencial- e até aquele momento ninguém sa- zinho, comportadinho. Senti, e a repente, “abriu os olhos e me fitou.
mente violento. O grande mérito bia de suas existência, tinha levado maioria dos lúcidos também, que ali Na verdade, abriu um olho somente,
conexão com o cinema e estrutural de seus romances está uma vida burocrática. Chegou a estava aquele que vinha para romper. o esquerdo, que ficou como se tivesse
dialogando com o best- na capacidade de subverter os ser executivo de uma empresa de Num dos contos do primeiro livro, incorporado o diâmetro do vizinho.
códigos massificados de leitura, energia elétrica, a Light. E delegado “Curriculum Vitae” há um instante Com esse olho ciclópico me fez um
seller norte-americano trazendo para o campo da arte o de policia. Talvez desta profissão saboroso. Um casal está no quarto, se doloroso apelo, um pedido como
leitor que pertence ao entreteni- tenha vindo o cinismo, a cruelda- beijando, a temperatura cresce, ela quem diz, cumpra a sua missão; e
mento. Rubem Fonseca questio- de rascante, a ironia, o humor, o decide parar. “Estou com muita von- nesse instante, pelo canto do insólito
nou assim, pela adesão a certos desencanto com a lei, a ordem, o tade, diz ele. Eu também, diz ela, mas globo escorreu uma lágrima, uma só,
as cenas de sexo e a defesa da recursos, a possibilidade de se cepticismo absoluto que nos encan- vamos tirar isso da cabeça. Como? muito brilhante que correu rápida
leitura entre os personagens mais fazer uma literatura densa, que tou sempre. ele pergunta. E ela: Pensa em urubu pelo rosto e caiu no lençol.”
improváveis. Em meio a tudo assombrasse o leitor, numa era de Não sei porquê, ficou-me até hoje Nesta altura, todos sabiam que
isso, ele apresentava uma viagem emoções e enredos superficiais. E no conto que dá titulo ao livro, o cli- existia um escritor chamado Rubem
ao nada glamouroso submundo fez isso usando os códigos deste ente que suava só de um lado do cor- Fonseca. Não se sabia muito dele.
carioca, a um Rio do noticiário momento, sem querer afirmar po, ora do esquerdo, ora do direito. Sempre foi low profile. Até o fim da
policial e por isso destino de uma estética folhetinesca, mas Ou ao longo da carreira a maneira vida nunca deu entrevistas no Brasil.
aventuras imaginárias, uma vez a se valer dela como um meio, como definia sumariamente um Fugia da imprensa, ainda que saísse
que esta cidade é a mais turística numa busca de enganar o leitor personagem: “Não sou de levar para às ruas, fosse correr nos calçadões
do país. Há excursões por outras ingénuo. O formato pseudo a cama uma dona que encontro ao de Copacabana. O interessante é que
áreas de interesse internacional, comercial de seus últimos ro- balcão de uma loja de sucos e san- [Desde o seu primeiro naqueles anos não existiam celu-
como a Amazónia, e desloca- mances nos leva a um grau zero duíches.” E ainda: “Só não bato em livro] senti que ali lares que fotografavam (aliás nem
mentos narrativos à Europa, mas de literatura. Dali para baixo é o velho, criança, mulher e aleijado.” se imaginava um celular), portanto
o Rio foi, enquanto paisagem hu- não-literário, a terra sem lei do Outro: “As mulheres têm entranhas estava aquele que vinha ele caminhava tranquilamente por
mana e linguística, o seu habitat texto escrito ao gosto do leitor. diferentes das nossas, emitem um para romper seu bairro, o Leblon. Não era, como
literário. Mas, por outro lado, possibilita a aroma herbáceo, travesti não me nos casos de Bolso Nero e de Trump,
Desde este momento, ele cria consumidores de entretenimen- engana nem operado”. Desde aquele ódio à imprensa, culpada de tudo.
uma legião de seguidores, uma to uma aproximação da grande primeiro livro percebemos estar Quebrando as regras em Sua vida privada não era para ser
verdadeira escola, que vai ma- literatura. diante de um escritor que adorava acessada. Foi assim até o fim da vida.
pear a sociedade brasileira urba- Romancista posto nesta a singularidade.. Ele passou a vida frases curtas, incisivas, Vieram Lucia M Cartney, em 1969,
nizada velozmente pela expulsão, fronteira, autor-resumo de uma inteira a manter-se no topo dos chocantes, com plena ditadura, um best-seller. Virou
por parte das monoculturas, era, ele foi, tanto pelo vínculo autores insólitos. Mas é um insólito filme. Fenómeno curioso, o autor era
das populações rurais. Nasce com o Rio de Janeiro quanto pela que vem da realidade, transpira do
sensações inusitadas, louvado pela critica e amado pelo
com RF mais do que o romance desinibição ao se apropriar de homem comum, desses seres com brasileiras na essência. público. Raridade na vida literária.
contemporâneo, e sim o romance elementos estranhos ao literário, quem convivemos no cotidiano e Quando alguém vende muito, os
da pós-modernidade nacional. o Machado de Assis do Brasil de nem percebemos o que são suas
Era a literatura urbana críticos ficam na marcação. Com
O autor transita por géneros e agora.J mentes e paranóias. avançando Rubem isso não funcionou, sempre
8 LETRAS

RUBEM FONSECA
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT

foi tido como um marco na literatura, estava abrindo e comemos delicada


um ponto de virada. Um livro atrás omelete com salmão. Na volta não
do outro, de Agosto a Romance Negro, fomos à missa, estávamos congelados.
A Grande Arte, O Caso Morel e outros. Rubem, um homem sedutor, diziam
Nos vimos frente a frente em 1976. amigas minhas, muitas delas escri-
Era – e sempre foi – um homem ma- toras. Ele deixava sempre uma aura
gro, que gostava de cuidar do físico. de mistério ao redor e parece que isso
Naquele ano, foram proibidos pela atraia, provocava. Grande performer,
censura da ditadura militar (essa que dominava o palco (sempre fóra do
o atual regime do Brasil afirma que Brasil), provocava inveja em alguns
jamais existiu) , três livros: Feliz Ano colegas. Veio à Correntes d’Escritas,
Novo, do Rubem, Araceli, Meu Amor, à Póvoa, e encantou. Era impos-
de José Louzeiro e o meu Zero. Só que sível brigar com ele. Tinha quem
no final daquele ano, percebendo que falava mal, acusava: “Ele se acha”.
o torniquete apertava mais e mais, Expressão brasileira que não sei tradu-
um grupo de intelectuais se uniu e zir para o português daqui Exibia sua
redigiu um documento de repúdio forma física. Em Israel, 14 anos atrás,
à censura, assinado por gente do testemunhamos Rubem correndo,

LUCÍLIA MONTEIRO
Brasil inteiro, conhecido hoje como o subindo rampas, ou galgando escadas
"Manifesto dos 1.046", de 1977, pri- de dois em dois degraus, e já estava
meiro embate forte contra as proibi- com 81 anos.
ções. Deu resultado, gradualmente as Um dia fomos cumprir um ritual
coisas começaram a afrouxar. Rubem , plantar uma árvore. Pede-se aos
e sua editora correram a fizeram uma Rubem Fonseca nas Correntes d’Escritas, tendo ao lado Hélia Correia e Eduardo Lourenço visitantes que deixem uma árvore
ação jurídica contra a proibição, que no solo seco do país. É uma uma bela
jamais foi julgada, portanto aquele cerimonia, coisa para o futuro, reflo-
livro continuou proibido. Ainda que restamento. Vida. Cada um plantou
circulando normalmente. Estávamos
(e estamos) acostumados a viver
paradoxos e absurdos.
As cinco condições para ser escritor sua muda e foi pedido a Rubem que
fizesse uma fala. Ele começou: “Sou
um dendólatra...” e falou por uns 15
A partir do momento de veto cada minutos. O grupo ficou de orelha em
autor agraciado se tornava autor RUBEM FONSECA pé. O que Rubem dizia? Dendólatra?
vigiado. Tanto que quando Rubem Essa palavra existia?
ganhou um concurso nacional de A escrita é um risco total. Isso lembra-me uma frase de um escritor americano,E.L. Doctorow, “writing is a Terminada a fala, fomos até
literatura, organizado pela revista solution accepted form schizophrenia”. Ele errou. Na verdade escrever é uma forma socialmente aceite de ele, indagamos : “O que vem a ser
Status, de São Paulo, uma espécie loucura. E nesta mesa somos todos loucos. Mas, claro, de forma diferente. Leiam um texto magnífico de dendolatra? Está chutando?” E
de Playboy brasileira, com textos de Foucault, A Loucura e a Escrita Literária. Lembro-me do poeta inglês, Auden, dizer que a melhor maneira de Rubem: “É o mesmo que dendrola-
primeira categoria e mulheres nuas, criar um poeta é quando ele é criança fazer com que se torne cada vez mais neurótico. tria.” Nós: "Ah, bela explicação. E o
o conto vitorioso, "O Cobrador", foi Então, basta ser louco? Não, tem que ser alfabetizado. Só existe um caso de escritor analfabeto, ocorreu no que é dendrolatria?" Ele: “Vocês são
proibido na hora. Era de Rubem. No séc. XIV, foi Catarina de Siena. Mas ela era uma santa, pelo que foi um milagre. E como santa era louca. Mas escritores e não sabem?” E apontan-
mesmo momento, Gilbert Mansur, de resto tem que ser louco e alfabetizado. Mas isso de ser alfabetizado é como dizia o Conrad : “Fazer o leitor do em minha direção: “E você que já
editor da revista, pediu à secretária sentir e, acima de tudo, ver.” Ver para dentro para poder entender. escreveu sobre o assunto também não
que redatilografasse o texto, trocou Então, e será que precisa de ser inteligente? O Somerset Maugham dizia que conheceu centenas de sabe?” Disse que não com a cabeça.
o titulo, criou um pseudónimo e escritores e muito poucos eram inteligentes. Então, basta ser louco e alfabetizado? Não, também tem que ser Escrevi sobre dendolatria? Quando?
reenviou à censura. O conto voltou motivado. Sem motivação não faz nada, nem se descasca uma banana. Claro que cada pessoa é motivada de Na van que nos conduziu ao hotel,
aprovado. Eram tais os mecanismos. forma diferente. O jornal Libération fez um questionário a vários escritores perguntando porque escreviam. Rubem explicou: “Dendolatria quer
A partir daqueles momento, ele As respostas foram variadas. O Joseph Brodsky, poeta russo, respondeu: “Todo o escritor aspira à santidade”. dizer culto das árvores. Significa
do Rio, eu de São Paulo, passamos Queria ser santo… está bom... O Montalbán respondeu: “Tornei-me escritor para ser alto e bonito”... quem ama a natureza, o verde, o
a nos encontrar, principalmente no Então temos três características: louco. alfabetizado e motivado. Basta isso? Não, tem que ter paciência. Aquela meio ambiente.”
estrangeiro, em bienais e feiras lite- paciência que o imperador Augusto citava do poeta Cícero António: “Apressa-te devagar”. Em português há a Foi a única vez na vida que ouvi
rárias. Foi então que conheci o outro expressão “devagar se vai ao longe”. Por isso é que o Flaubert demorou cinco anos a escrever aquele livrinho esta palavra. Somente o Rubem
Rubem. Aquele que falava em públi- de 200 páginas, Madame Bovary. Ele estava à procura da palavra certa. Ele sabia que não existem sinónimos, saberia o termo. Ele era diferente.
co, respondia perguntas, saia para cada palavra tem um significado diferente. Essa coisa de sinónimos é conversa mole para boi dormindo. Viver com ele era acostumar com seu
jantar e divertia com sua prosa afiada. Ele tem que ser louco, alfabetizado (não precisa de ser muito), motivado e paciente. E acabou? Não… Tem humor, um dia irradiante, ferino,
Nunca o vi fazer fofóca ou depreciar que ser imaginativo. Como dizia o Burckhardt, “a imaginação é a mãe da prosa, da poesia e até mesmo tirador de sarro, rápido no gatilho, no
qualquer companheiro de literatura. da História”. É fundamental que o escritor invente e crie. Não é só contar a vidinha da gente. Por isso, os outro calado, introspetivo quase des-
Sentia-se sempre que ele era seguro, escritores têm que inventar. denhoso. Seja o que for, gostei sem-
mas não arrogante, ele sabia que era Portanto, os escritores têm que ser loucos, alfabetizados, motivados, pacientes e com imaginação. pre dele. Morreu sem sofrer, disse-
um dos mais importantes escritores Entenderam? Mas vocês aí não pensem que por não serem escritores não são loucos. -me Bia, sua filha. Reclamou quando
brasileiros. veio o isolamente social e as pessoas
Certa vez, fomos ao Festival de não o visitavam. Principalmente
Harbour Front, no Canadá. Era um as mulheres. Certa manhã Rubem
evento cultural de grande dimensão acordou indisposto, nada comeu.
no porto revitalizado de Toronto. simples na Rua 23, baratíssimo, fornecêssemos o papel sulfite para a Mais tarde, a cuidadora telefonou e
Havia mais de 100 escritores de 20 dólares, administrado por uma empreitada. Molhamos nossos pulsos Bia correu, ele estava mal, pegaram
variados países que subiam ao palco, ordem de freiras. À noite, ao sairmos, em uísque e selamos o pacto. Nunca um táxi, voaram para o hospital. No
liam um conto ou um poema em o porteiro indagou: “A santa missa mandamos o sulfite, Otto nunca fez caminho, ele recostou a cabeça em
inglês. Para isso ganhávamos mil amanhã começa às seis e meia. Vocês o romance. Vimos a meia-noite, era Bia. O coração parou. Então me lem-
dólares canadenses, com tudo pago. vêm?” Rubem: “Viremos, sim. uma comemoração chocha, como brei do escritor norueguês Karl Ove
Da nossa mesa no jantar sempre fazia Vamos até comungar. Sabe se terá disse Ruben, chegou a madrugada, Knausgard: “Para o coração a vida é
parte o francês Alain Robbe-Grillet, padre para nos confessarmos?” E o Era diferente. Um dia bateu a fome, não tinha nada aberto, simples: ele bate enquanto puder. E
famoso pelo nouveau roman. Ele, que porteiro: "Cheguem meia-hora antes caímos numa lanchonete de ham- então pára.” J
uma noite chegou: “Esta é a mesa que que terão confissão”. Fomos ao hotel irradiante, ferino, burger, nos vimos rodeados de todos
mais ri e parece se divertir durante em que estava Otto Lara Resende, tirador de sarro, os lados por negões que nos olhavam *Ignácio Loyola Brandão, 83 anos,
o jantar. Posso fazer parte?” Lygia também vindo de Toronto, ele era cm curiosidade. Éramos os únicos jornalista e um dos mais destacados
Fagundes Telles sorriu e mandou que funcionário considerado da Globo, rápido no gatilho, brancos. Por sorte, o hamburguer era escritores do Brasil, 46 livros publicados e
ele sentasse. “Desde que mantenha estava em um cinco estrelas. Ali, no outro calado, ótimo. importantes prémios, incluindo o Machado
o tom e não seja intelectual, erudito, tomamos algumas/muitas e antes de Ao voltarmos para o hotel, às de Assis. Seu romance mais recente, Desta
culto, chato”. Rubem acrescentou: ir para Times Square, celebrar a pas-
introspetivo quase quatro da manhã, demos com a porta Terra Nada Vai Sobrar a Não ser o Vento
“E não fale em desconstrução.” sagem, obrigamos Otto a se ajoelhar desdenhoso. trancada. Apertamos uma campai- que Sopra Sobre Ela, editado em Portugal
Na volta, Rubem e eu passa- e prometer que começaria o romance nha. Nada. Saímos a vagar por ruas pela Teodolito, foi considerado por Marcelo
mos por Nova Iorque, era réveillon. que ele tinha na cabeça há décadas e
Seja o que for, gostei geladas, era outra Nova Iorque, cinco Rebelo de Sousa um dos dez melhores do
Hospedamo-nos em um hotel vivia adiando. Ele jurou, desde que sempre dele da manhã entramos em um café que ano 2019.
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT LETRAS 9 RUBEM FONSECA

Um herói da nossa língua


mão, como deveriam escrever todos
os escritores, segundo o idiota do
Nabokov.”
Desde o seu primeiro romance,
O caso Morel, publicado em 1973, a
sua obra foi marcada por um humor
negro feroz, por vezes disfarçado
de autoironia, que convive com o
seu universo próprio de (múltiplas)

ANTES QUE O MÊS ACABE


BE
referências literárias, patente em
obras como A Grande Arte (1983)
e Bufo & Spallanzani (1986), até O
António Mega Ferreira Seminarista (2009). É, além disto
tudo, um contista magistral, de Feliz

A
Ano Novo (1975) ao quase experi-
mentalismo desse livro híbrido que
ltíssimo cultor é Amálgama (2013), conjunto de mi-
do esplendor da cronarrativas, curtas reflexões e, até,
nossa língua, poemas. A Grande Arte, além de ser
tronco florido da um grande título, que assenta como
frondosa árvore uma luva à sua exaltante gestão da
brasileira onde, língua literária, é, de todos os seus
afinando o olhar, vejo, lá em cima, livros, o mais citado; mas eu tenho
Machado de Assis, Guimarães Rosa, permanentemente em estante o
Sérgio Buarque de Holanda, Rubem denso e apaixonante requisitório de
Fonseca extinguiu-se no dia 15 de Agosto, de 1990, misto de investiga-
abril, aos 94 anos de idade. Num úl- ção histórica e ficção biográfica, que
timo golpe de prestidigitação digno relata o vertiginoso despenhamento
dos seus detetives/advogados/”- de Getúlio Vargas, ora presidente
tiras”, fintou o coronavírus que o eleito, ora ditador, até ao suicídio em
tinha na agenda, e morreu de morte agosto de 1954. É um dos grandes
natural, porque o coração deixou livros em língua portuguesa do final
de bater, antes que o contágio o do século passado.
tomasse como presa. Era filho de Com a sua morte, a bem dizer,
transmontanos e mineiro, de Juiz de não é possível usar o lugar-comum
Fora (onde nasceu em 1925), terra da “perda”; extinguiu-se uma vida,
de hábeis cultores das letras, como mas fica-nos, para sempre, a obra
o estupendo memorialista Pedro irresistível de um herói da nossa
Nava ou o nosso próximo Murilo língua. Por isto, somos-lhe eterna-
Mendes, mas afez-se à brisa suave Foto inédita de Jorge Barros, na Póvoa de Varzim em 2012 mente gratos. J
do Rio de Janeiro, onde viveu quase
toda a vida e onde morreu.
De formação jurídica, Rubem cinema, os golpes e contragolpes
moveu-se com à vontade no uni- dessa “comédia humana” a que
verso judiciário, que envolve juízes e
advogados e se alimenta de crimi-
meteu ombros, vai para 50 anos.
O cortejo de misérias e traições, de PRÉMIO LITERÁRIO GLÓRIA DE SANT’ANNA – 2020
nosos. Não sei se foi a prática que desastres e golpadas, de pequenos KhdKZKD>,KZ>/sZKWK^/ϭǐ/KDWKZdh'>͕W1^^Z'/O^>h^M&KE^
lhe deu um tão certeiro gosto pela delitos e de grandes conspiratas de-
caracterização desses comparsas do clina-se numa prosa elegantemente
mundo da lei e da ordem: prostitu- despojada, certeira, direita ao
tas, ladrões, assassinos, drogados, osso, como um golpe de punhal. E
Lista Final
burlões. Mas também investigado- exaltam-se-nos as papilas do gozo A depressão tem sete andares e um elevador de Isabel Sancho – PENALUX
res, polícias de giro, juristas, todos literário quando, ao virar de uma COMO NUM NAUFRÁGIO INTERIOR MORREMOS de Alberto Pereira – URUTAU
mais ou menos desacertados, como página, deparamos com parágrafos DESMATÉRIA ĚĞ^ŽĮĂ&ĞƌƌĠƐʹ Edições MACONDO
se a vida não fosse mais do que uma como este, logo na primeira página FUNDIDO A NEGRO de Teresa Ramiro – CALDEIRÓN
sucessão temporal de desajusta- de Bufo & Spallanzani (1986): Garças de Lídia Borges – POÉTICA Edições
mentos individuais e coletivos – e “Neste pesadelo Tolstoi me LEGENDAS PARA UM CORPO ĚĞDĂƌŝĂ:ŽƐĠYƵŝŶƚĞůĂʹ LABIRINTO
é disso que se faz a vida social. Esse aparece todo vestido de preto, suas Travessia ĚĞ>ŝĐşŶŝĂYƵŝƚĠƌŝŽʹ POÉTICA Edições
desconcerto desemboca, mais longas barbas brancas desalinhadas, /<s/K'/E^/K de Tiago Alves Costa – dZs^
tarde ou mais cedo, naquilo a que dizendo em russo, 'para escrever
chamamos o Mal. E o Mal está por Guerra e Paz fiz este gesto 200 mil
toda a parte, como coisa exterior vezes'; ele estende a mão descarnada Júri Maria Dovigo – Professora – Galiza
que reflete a nossa propensão mais e branca como a cera de uma vela, Jacinto Guimarães – JORNAL DE VÁLEGA – Portugal GAC – Grupo de Acção Cultural de Válega
íntima. Rubem Fonseca é o notário que não sai inteira da manga com- Eduardo Medeiros – Antropólogo – Portugal
que regista, criteriosamente, as prida do paletó, e faz o movimento Ondjaki – Escritor – Angola
razões e formas do desencanto do de molhar uma pena num tinteiro. Andrea Paes – Ourives – Portugal
viver urbano. À minha frente, sobre uma mesa,
A novidade paradoxal é que, estão um tinteiro de metal brilhante,
sendo as suas histórias, na sua uma pena comprida, provavelmente
maior parte, de ambiente policial e de ganso, e uma resma de papel.
marcadas por forte violência, elas ‘Anda, diz Tolstoi, agora é a tua vez’. O vencedor desta 8.ª edição do Prémio será anunciado no JORNAL DE LETRAS dia 20 de Maio
vêm escritas numa língua literária Perpassa por mim uma sensação
Detalhes sobre o Prémio: http://gloriadesantanna.wordpress.com/
de alta exigência estilística. Se o seu aterradora. A certeza de que não
universo literário preferencial é o conseguirei estender a mão centenas
Patrocínio:
bas-fonds, a forma como ele o trata de milhares de vezes para molhar
• Margarida Gracias
é de alto fundo linguístico e lite- aquela pena num tinteiro e encher
• Família Dias da Cruz
rário. A pena aguça-se-lhe como as páginas vazias de letras e palavras
um bisturi, ao dissecar gestos, e frases e parágrafos. Então me vem
comportamentos e atitudes; mas a convicção de que morrerei antes
também formas de falar, de dizer e de realizar esse esforço sobre-hu-
de contar. E narra, como num dra- mano. Acordo aflito e infeliz e fico
ma negro filmado a preto e branco sem dormir o resto da noite. Como
num qualquer obscuro estúdio de você sabe, não consigo escrever à
10 LETRAS↗

LUIS SEPÚLVEDA
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT

LUIS SEPÚLVEDA (1949-2020)


Com milhões de leitores em todo o mundo, era dos autores latino-americano mais lidos das últimas décadas. Ao seu
extraordinário dom para contar uma história associava uma prodigiosa imaginação, que tocava a todos. Morreu no passado
dia 16, em Gijon, vítima de Covid-19. Sobre a sua figura e obra escrevem quatro amigos: o escritor angolano Ondjaki, o seu
editor português, Manuel Alberto Valente, que lhe dedica um poema (também inspirado numa fotografia inédita de Daniel
Mordzinski, que publicamos), o escritor colombiano Santiago Gamboa, e Manuela Ribeiro, diretora do festival Correntes
d'Escritas, onde o escritor fez a sua última intervenção, a 20 de fevereiro - que na p. 12 'revelamos', a partir da gravação

Efabulador do seu tempo

S
LUÍS RICARDO DUARTE
em casa. Vivia em Espanha, em Gijón,
com a sua mulher Carmen Yáñez, o
que facilitava a visita regular.
Essa última intervenção pública
foi numa mesa dedicada ao tema da
Liberdade, a que o escritor acres-
centou uma outra ideia: imagina-
ção. Liberdade e imaginação, duas
palavras, dois conceitos, duas lutas
que resumem o seu percurso de vida,
desde a militância comunista à escrita
de alguns dos romances mais lidos das
últimas décadas. Os amigos acrescen-
tariam facilmente a “generosidade”,
Se tivesse sido fadista, cantaria à a “disponibilidade”, o “bom humor”,
desgarrada. Músico de jazz, encantaria assim como o gosto por uma boa refei-
com os seus improvisos. Foi escritor, ção e um bom vinho. Vida, literatura e
um dos mais internacionais da língua amizade, a sua trindade perfeita.
espanhola das últimas décadas, com Recordava, da infância, um tempo fe-
leitores em todo o mundo. Por isso, liz, já em Santiago. Cresceu rodeado de
de tudo fazia uma boa história, uma livros, com forte influência, na leitura,
história bem contada. Como aquela dos avós paternos, com quem fazia "as
sobre uma das primeiras câmaras de compras do mês". Não no supermer-
filmar da história do cinema que foi cado, mas na livraria.
encontrar nos confins da Patagónia. Além da literária, dos avós recebeu
Resumida assim parece coisa irrele- LUCÍLIA MONTEIRO
ainda a educação política, com forte
vante, mera coincidência. Mas Luis cunho anarquista. A família não falta-
Sepúlveda era capaz de transformar va a uma manifestação do 1.º de maio.
o facto mais simples numa extraor- A militância comunista surgiu cedo,
dinária narração. Era a voz e o estilo, seguindo também as pegadas do pai e
a atenção aos gestos e aos pormeno- dos tios. Estudante do ensino público
res, as pessoas que encontrava pelo Luis Sepúlveda na sua casa em Gijón Uma vida de muitos livros e causas em todos os ciclos, licenciou-se em
caminho. Era também a repetição Produção Teatral, na Universidade do
nunca repetida, antes reinventada a Chile, conhecimento que viria a ser
cada regresso, a atenção às emoções e posto em prática anos depois. Porque
à dignidade humana, a constante luta aqueles foram tempos de muitas lutas,
pelos direitos humanos, o meio am-
biente e a justiça que tanto via faltar ao
nosso tempo. Morreu no passado dia
Te abrazo, L. mais fora do que dentro dos palcos
artísticos. Além da paixão pelo teatro
havia os poemas que escrevia desde
16, aos 70 anos, vítima de Covid-19. a juventude, rapidamente substituí-
O mundo literário (e não só) viu-se ONDJAKI dos pela prosa e pelo conto, só mais
forçado a uma despedida abrupta ao tarde pelo romance. Mais intensa
velho que como ninguém sabia contar sempre que parte alguém, parece que a vida desmonta um pouco de alguma nitidez, e onde ainda era a mudança que queria ver
histórias de amor e de guerra, de dor e havia abraço passa a haver dor / raras vezes voltarei, portanto, a encontrar alguém com o dom no país, a grande utopia da presidên-
de esperança, da América Latina e da (tão afiado) de contar uma estória, um olhar, uma sensação, um mito, uma lembrança alheia, um cia de Salvador Allende, de quem foi
Europa, de cada um de nós e da nossa pequeno belo exagero, uma viagem com outros, uma viagem a sós, uma viagem com carmen, apoiante desde a primeira hora. Com
experiência coletiva. uma viagem com o olhar / raras vezes poderemos voltar a ver alguém driblar o silêncio com a colaborações nos jornais, organizou
É comovente saber que o seu palavra certeira ou com o intensificar do olhar silencioso / sempre que parte alguém parece então coleções de livros de bolso para
último ato público foi em Portugal, que a vida nos alerta para a nitidez que algumas pessoas nos trazem para o caminho ou para o fazer chegar a literatura a mais leitores.
no passado mês de fevereiro, nas sonho ou para o lado que brilha - silencioso - no quotidiano das coisas simples; O sonho acabou a 11 de setembro
Correntes d’Escritas, o encontro lite- de repente senti com mais peso o peso do contar dos anos / afinal já eram alguns, entre sorri- de 1973, com o golpe de Estado lidera-
rário da Câmara Municipal da Póvoa de sos, reencontros, canduras, abraços e estórias / sempre as estórias à espera de serem reajusta- do por Augusto Pinochet. Membro das
Varzim. Dias depois ser-lhe-ia diag- das sob o olhar ‘cercano’ da carmen cruzando com o sorriso / nunca denunciando, jamais / mas Unidades Populares, encontrava-se
nosticado a infeção com coronavírus potencializando a dúbia possibilidade de tudo ter sido tão verdadeiro como contavas ou tão tudo nesse dia a defender o abastecimento
e uma pneumonia aguda. Nascido em ter sido tão possível como acabaras de contar; de água da capital, a 20 quilómetros de
1949, no Chile, em Ovalle, uma cidade sempre que parte alguém como tu, parece que o mundo se parte em dois e mil e vinte desertos Santiago. Acabou preso e torturado,
a norte de Santiago, Luis Sepúlveda sombrios / onde logo de seguida se pode semear um novo sorriso / ajustando a saudade às como muitos outros militantes. Foi na
era cidadão do mundo. Mantinha, no coisas que ficaram, ficarão, ficariam por dizer; prisão que soube, como conta num dos
entanto, uma relação especial com o mas, uma coisa sabes: que tens amigos..... / e a nitidez de um abraço vem pela dor, atravessa o seus livros, do 25 de Abril. "Hoje vocês
nosso país, sobretudo com a Póvoa e as mundo, liberta-se do peso e há-de chegar a cada um de nós, não como coisa distante mas como venceram", disse-lhe um guarda.
Correntes, onde dizia sentir-se sempre lembrança partilhada / e então gaivota, gato, velho(s) / havemos de sorrir outra e outra vez. Quando visitou Portugal primeira vez
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT LETRAS 11 LUIS SEPÚLVEDA

fez questão de passar por Grândola,


em homenagem à canção que também
para ele representava a revolução
portuguesa.
Com a intervenção da filial alemã
da Amnistia Internacional conseguiu
sair da prisão passados dois anos e
meio, iniciando um longo exílio. Ao
JL chegou a confessar, numa das
muitas entrevistas que nos concedeu,
que nunca pensou regressar ao Chile
porque seria iniciar um novo exílio.
Já tinha raízes, família e afetos na
Europa. Também o seu país já era ou-
tro, distante do que levara na cabeça.
Viveu em vários países sul-america-
nos, numa existência clandestina, para
não voltar a ser apanhado. Foi nessa
clandestinidade que fundou um grupo
de teatro. Sempre cultivou a "estética
da resistência", de que falou, aliás,
nas Correntes. Nunca foi de baixar os
braços.
Depois de passagens pelo Brasil,
Equador, Nicarágua, Paraguai e
Peru, seguiu-se a Alemanha, onde
se afirmou como jornalista. Levava
na bagagem um livro, Crónicas de
Pedro Ninguém, publicado em 1969
e distinguido no ano seguinte com o
Prémio Casa das Américas. Mas nesse
tempo talvez estivesse muito longe
de imaginar o sucesso que haveria de
conquistar. Foto inédita de Daniel Mordzinski
"Sou um cronista do meu tempo. E
calhou-me viver uma época privile-
giada", dizia muitas vezes. A descrição
que fazia de si e da sua escrita não
Lucho
enganava. Muitos dos seus contos Para Carmen Yáñez e Daniel Mordzinski Porque em ti as duas coisas se confundem
e romances, mais de duas dezenas,
têm a marca do que viu e viveu. Em - literatura e vida –
alguns romances, como A Sombra do Têm sido dias difíceis e nunca se sabe onde uma começa e outra acaba.
que Fomos, de 2009, fazia questão de
homenagear quem lutou e nunca foi
estes dias.
recordado pelo seu empenhamento. Não gosto de apagar contactos no telemóvel É por isso que não tenho a certeza
"Se é verdade que a história oficial é e cada vez mais o meu telemóvel de que tenhas morrido – pode ser
escrita pelos vencedores, aos escritores
cabe escrever a dos perdedores", está cheio de mortos. mais uma das tuas invenções,
defendeu com convicção no JL, subli- das tuas histórias falsas,
nhando a "razão poética muito grande
dos injustamente derrotados" (ver O teu contacto dizia “Lucho” dos teus delírios de criador de fábulas.
1020, de 11/04/09). e, entre outros dados, tinha um número E, se assim for, que lição tiraremos
Talvez o seu segredo tenha sido
o nunca se ter deixado derrotar.
que quase nunca atendias. desta súbita ausência e do silêncio
Abraçou causas, nomeadamente as Talvez porque nesses momentos estivesses que caiu de repente sobre nós?
ecológicas e ambientalistas, que deram à conversa com o tal velho que lia romances
origem a muitos livros. Aliás, na sua
última entrevista, dada ao JL (ver 1289, que só eram de amor porque tu os escrevias. Lembras-te do dia em que Letelier escondeu uma peça
de 26/02/20), denunciava a morte de do xadrez de Sarabia na piscina do Altis?
ativistas na Amazónica. E dizia: "Todos
os silêncios são cúmplices e têm uma
Ou voasses com aquela gaivota, que Zorbas Tu se calhar encontraste finalmente essa peça
quota parte de responsabilidade". ensinou a voar, e foste devolvê-la ao Antonio,
Nunca procurou a fama e, quando sobre o porto de Hamburgo onde há muito esteja ele onde estiver, como diria o Negro,
a teve, partilhou-a com os seus
amigos, divulgando-os, empres- foste feliz sem o saber. e por lá ficaram à conversa,
tando-lhes o brilho que irradiava. entre dois copos de vinho e um assado
Imaginativo, será sempre recordado
pelas suas fábulas, nomeadamente
Ou estivesses na Patagónia, na Amazónia, que não resististe a fazer.
História de uma Gaivota e do Gato que a nas muitas geografias onde o coração
Ensinou a Voar, e pelas suas persona- se perdeu e o sonho ganhou asas. O meu telefone está cheio de mortos.
gens simples em situações extraordi-
nárias. Publicado discretamente em Porque o mundo foi sempre a tua casa Onde diz “Lucho” vou pôr “Mentiroso”.
Espanha, em 1990, O Velho Que Lia mesmo quando, em Gijón, frente ao mar, E continuarei a telefonar para esse número
Romances de Amor, seguramente o
seu livro mais famoso, teve de esperar
passeavas os cães e acreditavas que nunca atendes, que nunca atenderás,
pela tradução francesa para se revelar que a palavra honra era invencível. simplesmente porque estás a escrever
um dos maiores best-sellers das o fim da história.
últimas décadas. À ironia do destino
humano, que por si fala, Sepúlveda A história dirá um dia das histórias Manuel Alberto Valente
apenas acrescentava um sorriso e o que inventavas,
começo de uma história que, contada * Há no poema três referências que talvez devam ser explicitadas: aos romancistas Hernán Ri-
por ele, qualquer que fosse, valia
que todos sabíamos serem falsas, vera Letelier (chileno), Antonio Sarabia (mexicano, já falecido) e Mario Delgado Aparaín (que
sempre a pena ser ouvida.J ou melhor, literatura em vida. entre os amigos é referido carinhosamente por El Negro, embora seja branco e uruguaio).
12 LETRAS↗

LUIS SEPÚLVEDA
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT

Liberdade e imaginação
determinado e que terminava no justo Mas hoje, em 2020, a liberdade
momento em que punha em perigo continua sob ataque. Curiosamente, é
a dos demais. Mais onde começa a sempre a direita ou a extrema direita
Liberdade do Outro e acaba a minha? que diz que a liberdade está ameaça-
São limites também muito difíceis de da. Transformam uma reivindicação
definir. Um dos fracassos das teorias justa numa ameaça às liberdades
de esquerda tem estado precisamen- fragmentadas que inventaram. É por
LUIS SEPÚLVEDA te na ideia de que se pode ter um só isso que é fundamental preservar o
sentido, e um sentido inequívoco, de real valor das palavras.
Dizer ou escrever “era uma vez a Liberdade. Tudo isto complica o en- Felizmente, temos os livros, a
liberdade” é quase como iniciar um tendimento de uma palavra tão bonita. obras dos antigos e dos contem-
conto. Era uma vez um lobo bom, um Alguns poetas também tentaram porâneos, com os quais podemos
príncipe mau. Era uma vez a liberdade. uma definição, mais direta, fácil ou até aprender. A esse acumulado chama-
Mas com essa fórmula estamos a colo- militante. Em quase todos os países da -se informação. Mas também aqui
car a Liberdade num estado pretérito. América Latina, o poema Liberdade, há ameaças. Essas mesmas forças de
Velar pelo real valor das palavras talvez de Paul Éluard, tornou-se num dos direita e de extrema direita dizem que,
seja, a haver uma, a missão dos escri- símbolos da luta contra a Ditadura. quando informamos, estamos afinal
tores. E ver a Liberdade, uma palavra “Por poder de uma palavra/ recomeço a ameaçar a liberdade de informa-
tão plena de sentido, no pretérito é a minha vida/ nasci para conhecer- ção. Porquê? Porque não estamos a
duro. Uma vez houve algo chama- -te/ nomear-te// Liberdade.”. Paz, respeitar a informação como eles a
do Liberdade. Uma vez pensamos pão, trabalho, justiça: a liberdade era a concebem e praticam. Para um escri-
em qualquer coisa a que chamámos síntese perfeita de tudo o que se queria tor e jornalista é muito difícil falar de
Liberdade. Uma vez sonhámos com a conquistar e que só podia ser conquis- liberdade ou mesmo de liberdade de
Liberdade. Mas como é que ela era? tado com a sua permanência. informação quando um homem que
A Liberdade sempre esteve asso- Claro que essa “sociedade melhor” revelou documentos valiosíssimos está
ciada à glória do livre arbítrio, ao que nunca foi materializada a 100 por a ser ofendido todos os dias, empur-
podemos e merecemos fazer, mas cento. Muitos escritores e intelectuais, rado para o suicídio. Falo de Julian
também à dor. Um dos grandes filmes Nas Correntes d'Escritas com o seu amigo Daniel Mordzinski Onde se sentia sobretudo nos piores momento da Assange, réu porque nos ajudou a
de Kirk Douglas, que morreu recen- sempre em casa História, questionaram-se por que conhecer um pouco mais a fisionomia
temente, foi Spartacus. Nele há uma razão a Liberdade era tão esquiva, da Liberdade que temos e de quem a
representação brutal dessa faceta do- por que se escapava tão facilmente ameaça.
lorosa. Os centuriões não sabem quem sentação da Revolução Francesa, a Liberdade, em dividi-la, em dar- por entre os dedos da mão, por que É por isso que a Liberdade, por
é o Spartacus, que lidera uma revolta uma imagem que rapidamente se -lhes outros nomes para que não seja não deixava que lhe disséssemos vezes, começa a soar a melancolia.
de escravos contra os romanos. Por tornou coletiva: uma mulher alta, simplesmente a Liberdade. Querem “Eu amo-te, fica comigo”. Em 1996, E não há palavra mais horrível. “A
isso perguntam: quem é Spartacus? forte, altiva, com o peito descoberto e chamar-lhe liberdade de comércio, num extraordinário livro de ensai- melancolia é a felicidade de estar
Mesmo sabendo que isso pode repre- uma bandeira na mão. Uma liberda- lucro, empresarial. Assim, atrás dessa os chamado Estética da Resistência, triste”, dizia o Giuseppe Tomasi di
sentar a sua morte, alguém se levanta de condutora das massas. Mas que fragmentação, destes apelidos que Peter Weiss, um dramaturgo, poeta Lampedusa. E com a Liberdade nin-
e diz: “Sou eu”. E depois outro escra- massas são essas? O quadro, esse surgem, talvez se perca o nome, o e teórico das artes cénicas, diz-nos guém pode estar feliz com a tristeza.
vo: “Sou eu”. E depois outro. E outro. quatro que tão fortemente simboliza valor mais intrínseco, antigo e genu- que podemos ver a Liberdade, mas Como diz o poema de Manuel Alegre:
E outro. O preço da liberdade de cada a Liberdade, não mostra com clareza íno, da Liberdade. A Liberdade como rapidamente esquecemos como ela é. “É possível viver de outro modo./ É
um que disse “sou eu” é a sua morte, o quem vem atrás. Certamente que não suprema aspiração do homem. Será alta ou pequena, magra ou gorda, possível transformares em arma a tua
castigo mais atroz. são os pobres e desprotegidos, apesar É preciso reconhecer que a loira ou morena? A nossa missão será mão./ É possível o amor./ É possível
Mas a liberdade, com o tempo, de historicamente terem sido eles a Liberdade é de difícil definição. Ao garantir que quando ela regressar, o pão./ É possível viver de pé.// Não
passou a ser sinónimo de muitas apoiar as grandes mudanças. São os longo dos tempos apresentaram- quem sabe se num tempo que já não o te deixes murchar./ Não deixes que
coisas. De pátria, pátria justa, de burgueses. E esses burgueses estão -se várias. Rosa Luxemburgo, por nosso, sinta que tem condições para se te domem./ É possível viver sem
revolução. Todos recordam a repre- sempre empenhados em fragmentar exemplo, disse que era um espaço fixar e se tornar nossa. fingir que se vive./ É possível ser ›

Diferente de todos
SANTIAGO GAMBOA
A 4 de outubro de 1996, pelas 19, o a que veio somar-se a sua carismática e desde o primeiro dia começou a
Teatro Politeama de Trieste apresen- personalidade e o seu bom humor, ser lido freneticamente. Tornou-se
tava um programa extraordinário: era o que fazia com que todos os seus rapidamente o número um de vendas.
o regresso de Vittorio Gassman aos leitores quisessem não só lê-lo, como No ano seguinte, 1993, o editor italiano
palcos depois de uma longa depressão convidá-lo para um jantar em suas Luigi Brioschi publicou-o na editorial LUCÍLIA MONTEIRO

que o manteve vários anos afastado. casas, todos os dias das suas vidas. Guanda e o êxito repetiu-se, enquanto
Essa noite, na estreia, declamaria uma Em Trieste foi a apoteose total, por- a nova edição espanhola da Tusquets
dúzia de monólogos célebres, entre que, além do mais, o teatro e Gassman subia nas listas de best-seller. Seguiu-
outros um pedido especialmente por marcaram a estreia para 4 de outubro, se Portugal, com o editor Manuel
Gassman e escrito para a ocasião por para coincidir com o dia do aniversário Alberto Valente, então na ASA, e a
Luis Sepúlveda. Por esse motivo, o do Luis. Por isso, antes de começar, partir daí o resto da Europa. Estávamos Um amigo Sempre generoso
Politeama convidou-o a assistir à um foco iluminou-o e o público, em nos anos 90 e um autor proveniente
estreia com mais cinco amigos seus: pé, dedicou-lhe uma estrondosa ova- da América Latina voltava a dominar a
os escritores José Manuel Fajardo e ção e cantou-lhe o Parabéns a Você. cena literária com milhões de leitores. Rivera Letelier ou Antonio Sarabia, como o chamávamos sempre, fez um
Antonio Sarabia, o fotógrafo Daniel O seu impressionante êxito co- Nesses anos Luis viveu uma espécie entre muitos outros. Também se uniu a brinde em que afirmou que para ele a
Mordzinski, o seu editor italiano Luigi meçara em França um pouco antes, de boom latino-americano só seu, mas escritores com percursos já firmados, amizade e a literatura eram a mesma
Brioschi e eu, em quinto lugar, o mais quando a editora Anne Marie Métailie, que imediatamente quis partilhar com como Paco Ignacio Taibo II ou Leonardo coisa, as duas faces de uma mesma
jovem e inexperiente. dona da Éditions Métailie, decidiu os seus colegas e amigos. As minhas Padura, pondo sempre a sua enorme lua, e voltou a dizê-lo mais tarde no
Nesse anos, depois da publicação apostar num romance de um chileno primeiras traduções e o acesso direto celebridade ao serviço de todos. hotel, quando, ao vermos que os ba-
de O Velho Que Lia Romances de Amor, desconhecido que tinha sido distingui- aos seus editores foram provas da sua Essa noite, em Trieste, de- res de Trieste não tinham costumes
Patagónia Express, Nome de Toureiro do, em Espanha, com o Prémio Tigre oceânica generosidade. Tal como eu, pois da peça, comemorando o seu latino-americanos e fechavam cedo,
e Mundo do Fim do Mundo, Luis era o Juan, em 1988, mas que foi publicado, muitos outros romancistas viram os aniversário num jantar em que decidimos encontrarmo-nos num
escritor latino-americano mais lido na em 1990, sem grande destaque. seus livros prefaciados por ele ou em todos estávamos de smoking exceto dos quartos, depois de recolhermos
Europa, com milhões de exemplares A edição francesa de O Velho Que coleções que passou a dirigir, como é Gassman (e, por isso, parecíamos os tudo o que cada um tinha no seu
em vários idiomas, um êxito literário Lia Romances de Amor saiu em 1992 o caso de José Manuel Fajardo, Hernán seus guarda-costas), Luis, ou Lucho, minibar (ideia do embaixador do ›
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LUIS SEPÚLVEDA
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT

› homem./ É possível ser livre livre


livre.”
Mas a liberdade também tem a ver
com a imaginação. Porque imaginar
não é só cair no mundo da fantasia ou
Um dos meus imortais
dos ideais. É também conceber o que
se pode ter e conquistar. Nos últimos
meses, desde outubro a fevereiro, MANUELA RIBEIRO
morreram inúmeros ambientalistas
e ecologistas do México ao Brasil. E Muito mudou na minha vida e na como o resto do mundo. Isolei-me
quem fala nisso na Europa, nos meios de muitos outros, desde que soube de quase tudo. Cansada, triste,
de comunicação sociais europeus, que o Luis Sepúlveda (LS) estava dececionada com a vida e com
alguns detidos por sócios ou donos internado, em Oviedo, com Covid as pessoas… a querer ficar longe.
de grandes multinacionais? Poucos e 19. Recebi a notícia naquele fatídi- Quieta. Sem noticias… mas era
escassamente. Alguns foram assas- co 29 de fevereiro. Estava em casa impossível não ficar atenta ao
sinados por milícias evangélicas, o da minha mãe. Tinha ficado uns estado de saúde do Lucho.
novo perigo das sociedades latino- tempos sem estar com ela, antes Só isso me fez continuar ligada.
-americanas. Mas como se combate e durante as Correntes e, embora Só isso e alguns amigos. A muitos
o fundamentalismo religioso? A cansada, como fico todos os anos outros devo desculpas pelo silên-
resposta implica um enorme exercício depois do Encontro, a precisar de cio. Mas precisava – preciso ainda
de imaginação, que é também uma ressacar e sem vontade de ver ou – de me curar de pessoas tóxicas
defesa da liberdade. falar com ninguém, decidi passar que matam por dentro.
No Chile, onde nasci, começaram o fim de semana com a Maria. Não sei se consegui, mas ou-
há vários meses protestos que ainda Instalei-me em casa dela e aí tros valores mais altos se levan-
continuam. Já morreram 40 pessoas fiquei, no fim de semana. tam. Ainda não quero enlou-
e muitas mulheres foram violadas. Estava em casa da minha mãe quecer. Não quero! Ainda ė tudo
Há gente torturada e desaparecida. de 84 anos e com problemas gra- muito complicado. Ainda sinto
Ao falsear ou esconder o que está ves de saúde. Não entrei em pâni- que não consigo encontrar as pa-
a acontecer, a comunicação social co mas entrei em pânico. Não por lavras certas. Se ė que há palavras
obriga-nos a um enorme exercício mim. Sim pela minha mãe. Porque certas.
de imaginação para podermos contar eu tinha estado com o Lucho. Perdi o meu irmão mais novo
o que verdadeiramente se passa no Porque nos tínhamos despedido, em 2014 e não estava prepara-
mundo de uma forma convincente. como sempre fazíamos, com abra- da para isso. Perdi o meu pai
É agradável pensar que já se inven- ços. No plural. Tinha abraçado o em 2017 e não o quis aceitar.
taram todas as palavras para salvar o Lucho e tinha abraçado a minha Impossível ficar igual. Tudo muda
mundo, só falta salvar o mundo. No mãe. E estava com ela… fiquei com quando começam a partir os
entanto, continuo a achar que faltam medo de poder, estando infetada, que amamos. Durante anos vivi
palavras, que é preciso inventá-las, ter-lhe transmitido o maldito com um silêncio no coração que
tal como é urgente usar a imaginação vírus. não consegui explicar. A ima-
para as reinterpretar. A partir do dia seguinte fiquei gem de uma cama vazia, num

ÁLVARO ISIDORO
A missão que temos pela frente de quarentena. Eu e uma grande quarto vazio. Anos a fio com esta
é gigantesca e envolve uma decisão equipa que tinha lidado direta- imagem sem sentido dentro de
muito importante. O que queremos? mente com o LS. Eu e mais umas mim. Até que um dia, já adulta,
Uma sociedade de cidadãos livres e quantas pessoas que estiveram numa das conversas com a minha
soberanos ou uma sociedade de con- perto dele: amigos, editores, mãe, resolvi o enigma. Aquele
sumidores submissos e obedientes?J jornalistas, público. Eu e o mundo Em Portugal "Foi nas Correntes que, mesmo sem o saber, deixou o seu maior primeiro vazio instalou-se den-
literário português. E não só. legado no nosso país" tro de mim com a morte do meu
Foi desta forma, de resto, que avô. Tinha eu quatro anos. Fui
Portugal ouviu falar da Covid 19 percebendo que os que se vão le-
› Chile, que veio à estreia), e conti- dentro de portas. Foi a partir deste portugueses aprenderam a contar ção poderia ser irreversível. No vam sempre algo de nós. E vamos
nuar a brindar a tantos livros lidos e caso que Portugal se preparou histórias. E sim, aprenderam com mesmo lugar onde li, só, o sms da ficando com vazios no coração.
queridos. para a pandemia. Assim a genero- os melhores: os ibero-americanos, Carmen. Por isso um dia também parti-
Foi uma época bonita, intensa sidade do Lucho para com o país brasileiros, africanos. Acho que o Todo este tempo passei-o em mos. Já só há vazios.
e jovial, na qual o Lucho animou e que em Abril de 1974, lhe enviou Rui tem razão. Olhando para trás casa da minha mãe, com ela, para Em momento algum, confesso,
promoveu uma literatura compro- sinais de esperança, num dia que consigo ver a diferença. Os escri- onde me mudei quando percebi mesmo sabendo que estava inter-
metida com as sociedades e o meio parecia igual a tantos outros na tores portugueses devem-no às que, tal como ela, sou pessoa de nado nos cuidados intensivos em
ambiente, com a alegria e a justiça, prisão em que estava, no Chile da Correntes. E as Correntes devem- risco. Optei por me isolar com ela estado grave, acreditei que aquele
com os direitos humanos, o amor e a ditadura de Pinochet. O país, tão -no ao LS. Não só pelo impulso para a proteger de visitas minhas último abraço, na manhã daquele
liberdade. Uma época de vinho e rosas longínquo, do qual chegava medo que deu ao Encontro. Não só pela e dos meus irmãos, que cuidamos domingo, dia 23 de fevereiro de
para a qual foram peças chaves os seus aos guardas prisionais e ânimo importância da sua presença em dela desde que o meu pai partiu 2020, depois da 21ª. edição das
editores de França, Itália, Portugal e renovado aos prisioneiros. “Vocês cada edição. Mas querem melhor nessa viagem sem retorno. Correntes, seria realmente o úl-
Espanha, e sobretudo a sua mulher, ganharam em Portugal!” contador de histórias que o LS? A minha vida mudou. Fiquei timo. Recuso-me ainda a acredi-
Carmen Yáñez, poeta e lutadora pelos Eram de liberdade os ventos Era a contar histórias que comu- isolada com a minha mãe. Tal tar. Os nossos abraços serão para
direitos humanos. que sopravam vindos daquele nicava. Sobre os mais variados as- sempre.
O seu livro História de uma Gaivota país distante, do outro lado do suntos. Nada era tabu e sobre tudo Abraçá-lo-ei sempre que o fizer
e do Gato que a Ensinou a Voar, que Atlântico. Como se a liberdade tinha “una anecdota” como dizem à Carmen, sua mulher e compa-
também teve milhões de leitores e começasse ali. E foi falando de os seus amigos mais próximos. nheira, também poeta. Abraçá-lo-
uma adaptação ao cinema, tem um epi- liberdade e em Portugal, nas O Lucho escrevia como quem ei sempre que encontrar os seus
sódio que, para mim, retrata de corpo Correntes d'Escritas, que o LS fez contava uma história. É assim que amigos. Muitos que conheço e são
inteiro o Lucho que conheci e que tanto a sua última (ainda me recuso a o lemos. Como se o ouvíssemos. amigos comuns. Uns que conheci
estimava: quando a pequena gaivota do acreditar, e não consigo evitar as Assim o continuaremos a fazer. O Lucho escrevia como por sua causa. Outros que conhe-
porto de Hamburgo descobre que não lágrimas) intervenção pública. O Os autores portugueses aprende- ceu na Póvoa. A todos aqueles que,
é um gato, pensa que os outros gatos tema: “Era uma vez a Liberdade”. ram, sem dúvida, com o melhor. quem contava uma tal como eu, se recusam a falar do
do porto a menosprezam por não ser O seu tema de todos os instantes. Escrevo este pequeno texto no história. É assim que Lucho no passado. Aqueles que, tal
como eles. Mas o gato chefe, o que mais Fiel a este país, foi nas Correntes mesmo lugar onde estava quando como eu, não podem aceitar que
à frente a ensinará a voar, diz-lhe: “É que, mesmo sem o saber, deixou o recebi a notícia de que ele estava o lemos. Como se o o resistente Luis Sepúlveda tenha
exatamente o contrário: é por seres seu maior legado a Portugal, so- doente. No mesmo sítio em que ouvíssemos. Assim o sido derrotado por uma merda de
diferente que nós gostamos tanto de ti”. bretudo aos escritores portugue- esperei com ansiedade inquieta, um vírus. A verdade é que não foi.
Lucho foi um escritor tocado pela ses e ao meio literário português. a cada dia, sinais de recuperação.
continuaremos a fazer. Aprendi com pessoas muito sábias
fortuna, e um amigo excecional, O Rui Zink diz-me várias vezes Na mesma casa onde, emudecida, Os autores portugueses que a morte não é uma derrota.
diferente de todos. E é talvez por isso que os autores portugueses são depreendi das palavras lentas da O Lucho será sempre um dos
que gostávamos tanto dele. Até à devedores das Correntes. Diz- Ainhoa e da mensagem inconfor-
aprenderam, sem meus imortais. Deixa um vazio cá
eternidade.J me que foi nelas que os autores mada dos amigos, que a situa- dúvida, com o melhor dentro. Deixa. J
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT LETRAS 15 LIVROS

Francisco Duarte Mangas


desaparecendo, inclusive alfarrabistas, é
oposta “a fila cosmopolita” (p. 14) da Livraria
Lello, como podia ser citada, para um sector
jovem e uma classe média culta do Porto, a

O Porto pós-moderno
FNAC de Santa Catarina ou as diversas livrarias
dos grandes centros comerciais na vizinhança
da cidade.
Num mundo justo e equilibrado,
conviveriam as antigas com as novas e
nenhuma iria à falência. Lamentavelmente, na
História, não raro o novo submerge e esmaga
o antigo, é o dualismo da cidade visível que
só floresce tornando invisível o velho. Social e
literariamente, o romance de FDM capta muito

OS DIAS DA PROSA
bem o penoso momento em que a cobra do
Porto abandona a pele antiga, substituindo-a
por uma nova. Não ainda totalmente,
Miguel Real

A
como o Porto burguês e liberal fez ao Porto
medieval e renascentista, que Germano Silva
descreve maravilhosamente nas suas crónicas
dominicais no Jornal de Notícias, mas já de
Cidade das livros raros na Biblioteca Municipal; um um modo muito avassalador. Serralves (não
Livrarias Mortas colecionador de todas as edições de A Mãe, citada no romance) é, de facto e de direito, o
é, com toda a de Gorki, só lhe falta uma edição em língua símbolo do cosmopolitismo da nova geração
evidência, o chinesa e outra em russo; um sem-abrigo, de dos portuenses.
melhor romance todos amigo, que alimenta um punhado de O autor envolve a narrativa de um manto
de Francisco gatos de rua; e uma personagem misteriosa, lírico recordando a vida ou episódios da vida
Duarte Mangas o “engenheiro”, assim tratado porque anda de antigos portuenses cultos, republicanos
(FDM). Aborda sempre com um capacete das obras na cabeça, combativos, como Sampaio Bruno, Pinheiro
a transição do que aparece recorrentemente, década a Chagas, de obra execrada pelo Estado Novo
Porto moderno, burguês e industrial, para um década, nas ruas do Porto (interpretámos e nunca ressuscitada pela democracia,

FERNANDO VELUDO
Porto ainda em construção, pós-moderno, como sendo o espírito de Nicolau Nasoni, Guilherme Braga e Gomes Leal, Antero de
cosmopolita e global, no qual os valores da arquiteto construtor da cidade moderna) e Quental em Vila do Conde, e outros; mas
cidade anterior, não desaparecendo, ora são que, no alfarrabista, escolhe os livros passando também de Gorki e de Boaventura, militante
diluídos, ora subvertidos. a mão pela fiada das lombadas até os dedos se Francisco Duarte Mangas do Partido Comunista assassinado pela PIDE
O romance decorre na Rua Mártires da tornarem sensíveis a uma - e é esse o livro que em Viana do Castelo.
Liberdade, no centro da cidade, e, ao longo de compra. Romance sobre a identidade do Porto, hoje,
duas centenas de páginas, através de diversas No entrelaçamento das personagens por via segundo Francisco Duarte Mangas, em perigo
personagens, expõe a mudança de pele do de diálogos (em cafés, nas escadas de prédios, os antigos costumes e moradores. Por via do pelas recentes turistização, erasmusização e
Porto: “uma cobra a mudar de pele” (p. 108) na rua, em lojas…), constata-se que FDM não Porto, é o novo Portugal do século XXI que é cosmopolitização da cidade, que, como motivo
e, mudando, “nasce uma cidade, queda outra quis representar figuras típicas da sociedade retratado em A Cidade das Livrarias Mortas: de reflexão, mas também de prazer estético,
invisível” (p. 99). Esta mudança não é feita do Porto, mas, sim, exprimir o ambiente geral intenso afluxo turístico, transformação merece ser lido por todos os portuenses – e por
sem dor, desaparecem as tascas, as pensões de desolação da Rua Mártires da Liberdade, de bairros históricos em locais típicos, todos os leitores que sentem suceder o mesmo
populares, levadas pela febre do alojamento em Cedofeita, atacada, nos seus fundamentos especulação imobiliária através da compra de nas suas cidades. J
local, e as livrarias, inclusive os alfarrabistas, históricos populares, pelos costumes pós- fiadas de prédios por fundos de investimento
transformados em restaurantes, bares e lojas modernos, expulsando ou tornando invisíveis internacionais, despejando os antigos
de souvenirs. inquilinos, aproveitamento dos últimos
Com exceção de Rodrigo, funcionário em moradores para aluguer de apartamentos
Lisboa do Ministério da Cultura e, de certo à Airbnb. Em síntese, transformação do
modo, personagem, não principal, mas património histórico, arquitetural e cultural
central, para a qual as restantes convergem, da cidade numa verdadeira disneylândia,
todas as outras exprimem o antigo sentir na qual a Livraria Lello faz a sua parte como
do Porto: alfarrabistas envelhecidos, falidos estabelecimento exótico.
devido ao novo preço das rendas; moradores Não contestando a necessária Tanto quanto interpretamos, o romance,
populares, que não podem dormir com o evolução do Porto, intenta não contestando a necessária evolução do
barulho do divertimento noturno das ruas; Porto, intenta denunciar esta nova situação
poetastros, alimentando ressentimentos
denunciar a sua situação urbana por via de personagens populares que
através da revista artesanal O Piolho; a dona urbana por via de personagens não se adaptam à nova “pele da cobra”. O › Francisco Duarte Mangas
de uma pensão atirada para Vila do Conde por uso da metáfora cultural “livrarias mortas” A CIDADE DAS
mudança de proprietário do imóvel, levando
populares que não se adaptam é indicativo desta denúncia. Às várias LIVRARIAS MORTAS
consigo o amante; furtador profissional de à nova pele da cobra livrarias indicadas no romance que foram Teodolito, 224 pp., 15 euros

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16 LETRAS

COLUNA
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT

40 anos, 40 personagens
Heróis românticos
e seus destinos
TRABALHO DE CASA
Carlos Reis

1
Afirmar que as personagens trazem em si o Dinis, figura em quem a conformação enigmá-
timbre do seu tempo literário parece (e de tica se acentua: com a sua “figura seca, alta e
certa forma é) coisa desnecessária. E con- um tanto curvada (…), abordoado em seu pau
tudo, importa lembrar que a figuração da perso- tosco, arrastando as suas sandálias amarelas
nagem é inevitavelmente marcada pelo devir de e tremendo-lhe na cabeça o seu chapéu alva-
transformações históricas, de sentidos ideoló- dio”, esse “austero guardião de San’ Francisco
gicos e de mudanças culturais. O que determina de Santarém” (cap. XII) encerra um segredo e
uma sua abordagem como categoria dinâmica e, vive uma culpa. Por fim, é no confronto com
por assim dizer, em constante mutação. quem se rebela em favor de um tempo novo

2
(Carlos, combatente liberal) que Frei Dinis re-
No meu trajeto até às 40 personagens vela a sua complexidade e as contradições que
que igualam os 40 anos deste jornal a acompanham. E assim, “a imagem de intre-
já falei de figuras queirosianas e de pidez do frade que dirige imprecações ao Deus
figuras camilianas. Nestas, observei que as das Vinganças, contra Carlos e os liberais, sofre
diferenças entre Simão Botelho e Calisto Elói, uma significativa mutação”; o seu conflito Caspar David Friedrich, Wanderer above the Sea of Fog, 1819
Teresa de Albuquerque e Eusébio Macário de- interior culmina precisamente “no momento
correm da diversidade de marcações semânti- de anagnórise, em que o protagonista vem
cas de ordem histórica, ideológica e cultural de a saber que o religioso é seu pai” (Marta M.
que as personagens não são, evidentemente, Duarte em Dicionário de Personagens da Ficção varam Vitorino Nemésio a falar num “complexo Mendonça foi pioneiro, entre nós, do ideário
conscientes, mas a que não escapa quem as Portuguesa; http://dp.uc.pt/conteudos/en- de Eurico”, traduzido em fenómenos de emula- socialista), o protagonista de Memórias de um
concebeu. O facto de Camilo ter atravessado tradas-do-dicionario/item/377-frei-dinis ) ção projetados na sensibilidade doentia da nossa Doido é parente próximo de figuras balzaquia-

4
uma vida literária longa, dos anos 50 aos anos segunda geração romântica e que se prolonga- nas (o Eugène Rastignac, de Le père Goriot, por
80 do século XIX, potenciou, naturalmente, Não há como negar: o enfrentamento ram (num outro registo, claro está) até ao nosso exemplo) e afastado do Julien Sorel stendha-
aquela dinâmica de transformações. entre Carlos e Frei Dinis resolve-se tempo: em 2011, o Teatro Nacional D. Maria liano. Também por força desse parentesco,

3
num tom de excesso que o próprio II produziu a dramatização A Paixão Segundo ele configura-se como estereótipo do jovem
A representação da personagem nas Garrett criticou, quando, também nas Viagens, Eurico (“dossiê pedagógico” em https://www. individualista em conflito com o mundo social
Viagens na Minha Terra (1846) prolonga satirizou o “destempero original de um drama tndm.pt/fotos/escolas/paixao-segundo-euri- que o não tolera. Pela via da vivência amorosa
e reitera as tensões que atravessam este plusquam romântico” (cap. XXXVIII). Um co_1774757204f7d730959081.pdf). e da instabilidade emocional que lhe está asso-
livro “inclassificável” (Garrett dixit), no qua- destempero a que não escapou o desenlace do Na geração de Eça, as coisas mudam e ciada, Maurício é “prisioneiro da sua sensibi-
dro de uma dialética histórica que foi subli- Frei Luís de Sousa (1843-44). Eurico já cansa: Guerra Junqueiro satirizou-o lidade exacerbada”; como tal, “não consegue
nhada por diversos estudiosos, com Augusto Tem muito daquele excesso – mas também no soneto d’A Velhice do Padre Eterno (1885), ultrapassar a incompreensão da sociedade,
da Costa Dias à cabeça. É justamente naquele da energia vital própria do herói romântico – o em que aconselha a “pálida figura” a “contrair nem o abismo das diferenças sociais, tornan-
regime dialético que Carlos emparelha não Eurico que Alexandre Herculano compôs, no civilmente o matrimónio” com Hermengarda; do-se uma vítima dessa sociedade” (Maria João
tanto com Joaninha, mas com Frei Dinis. romance homónimo (de 1844). Nessa com- e Carlos da Maia, estudante em Coimbra, sofre Simões, em Dicionário de Personagens da Ficção
A figuração do primeiro traz em si todas as posição, o que se destaca é a persistente busca a troça dos amigos por causa: quando se sabe Portuguesa, http://dp.uc.pt/conteudos/entra-
evidências do retrato do herói romântico, com de ideais por uma personagem que almeja um da sua relação amorosa com uma rapariga das-do-dicionario/item/261-mauricio).

6
o vigor e com a autenticidade que ele implica. Absoluto afinal sempre frustrado. No amor por que “tinha o nome bárbaro de Hermengarda
Quando aparece, no capítulo XX, Carlos não é Hermengarda, na religião a que se consagra (…), chamavam-lhe já Eurico o presbítero, Por fim, este herói inserido numa deri-
desde logo identificado pelo nome, mas antes como presbítero, na pátria degradada pela dirigiam para Celas missivas pelo correio com va social do romantismo pode ser lido,
tratado com aquele toque de mistério que traição dos homens, Eurico vive sucessivos este nome odioso” (Os Maias, cap. IV, cit. pela pelo menos quanto à determinação do
tanto convinha ao ethos romântico: “O oficial fracassos; a saída (ou a fuga) para o falhanço só edição crítica da Imprensa Nacional, 2017). seu trajeto, como precursor de personagens

5
era moço, talvez não tinha trinta anos; posto pode ser o suicídio, ato final em se misturam de- que hão de vir depois. Pela sua idiossincra-
que o trato das armas, o rigor das estações, e o sistência e coragem. Assim acontece com outros A lenda do presbítero de Carteia ainda sia e pelo excesso amoroso que o atormenta,
selo visível dos cuidados que trazia estampado heróis românticos, mesmo quando o suicídio é assombrava os corações dos leitores e Maurício está condenado a ser proscrito; mas
no rosto, acentuassem já mais fortemente, em moral, como no caso do Carlos das Viagens. das leitoras portuguesas, quando um Lopes de Mendonça divide-se, quando ques-
feições de homem feito, as que ainda devia A sobrevida de Eurico no imaginário cultural jovem com pouco mais de 20 anos publicou um tiona o destino da personagem e aquilo que
arredondar a juventude.” E mais adiante: “Os português foi intensa; as reações que gerou le- romance (a que depois chamou “um esboço”) o condiciona: esse destino depende “de um
olhos pardos e não muito grandes, mas de uma com o título Memórias de um Doido. O jovem acaso, de um capricho, de um acontecimento
luz e viveza imensa, denunciavam o talento, a era António Pedro Lopes de Mendonça, o insignificante, de um movimento indetermi-
mobilidade do espírito — talvez a irreflexão... mesmo (ou já outro) que, dez aos depois, em nado do espírito”. Entretanto, noutro passo, o
mas também a nobre singeleza de um caráter 1859, reescreveu a história protagonizada por autor pergunta “se a desgraça que persegue os
franco, leal e generoso, fácil na ira, fácil no Maurício. passos de um homem” não será “um fenóme-
perdão, incapaz de se ofender de leve, mas Na galeria das personagens da literatura no da sua organização” e uma “consequên-
impossível de esquecer uma injúria verdadei- Tem muito de excesso, mas portuguesa de oitocentos, Maurício não é cer- cia das imperfeições sociais” (introdução a
ra” (edição crítica de Ofélia Paiva Monteiro; também da energia vital tamente uma figura com o destaque do Carlos Memórias de um Doido, edição crítica por José
Imprensa Nacional, 2010). das Viagens, do caricato Calisto Elói ou da per- Augusto-França; Imprensa Nacional-Casa
O estigma da antinomia e a síndrome da
própria do herói romântico, versa Juliana. Mas, de certa forma, a sua com- da Moeda, 1982). Vem aí Simão Botelho e o
instabilidade perseguem a personagem, na o Eurico que Alexandre posição incute à personagem romântica uma “movimento indeterminado do espírito” que
sua relação com os outros e com a sociedade tonalidade própria: situado no contemporâneo o leva à perdição pelo amor; mas está para
em geral, seja no plano amoroso, seja no plano
Herculano compôs no do autor e motivado por visíveis preocupações chegar igualmente um Eusébio Macário que só
político. É neste que emerge a tensão com Frei romance homónimo sociais (ainda em meados do século, Lopes de as “imperfeições sociais” podem explicar. J
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT

ARTES 17 ↗

Cristina Branco
A outra que era ela
Chama-se Eva, tem biografia, diário, descrição física e agora também um conjunto de canções.
Eva é o novo disco da cantora ribatejana, feito a partir de uma personagem (alter-ego) que inventou
há 14 anos numa residência artística na Dinamarca. O JL entrevista-a e revela algumas páginas
do diário da sua amiga imaginária

A
MANUEL HALPERN
faz por intermédia pessoa?
Tudo podia ter acontecido. Pedi
a muitos, a cerca de 15 pessoas.
Dessa grande amostra, de 23 te-
mas, acabei por escolher apenas
dez. Todos os autores rece-
beram um briefing, que seria
para falar sobre uma mulher.
Mas para aqueles que me eram
mais próximos tornei a coisa
mais direcionada, receberam a
biografia da Eva e excertos do
meu diário de 2018 e 2019. Para
a história que eu queria contar
A última vez que falámos foi bastavam estes 10 temas, não
em Paris. Na altura Cristina, 46 quer dizer que os outros não
anos, apresentava o seu mais re- tivessem qualidade.
cente trabalho, o álbum Branco.
Assolada por um forte nevão, E é difícil esse trabalho de
que abalou os transportes e as exclusão?
comunicações, a capital francesa Difícil humanamente, porque
estava branca e quase deserta. não gosto de deixar ninguém de
Mas ainda assim, o Théâtre de la fora…. Mas as pessoas nem sempre
Ville (Châtelet) encheu a plateia são obrigadas a perceber exata-
com um público, essencialmente mente o que quero. Isso pode ser
francês, adepto e conhecedor do muito ingrato. Havia até histórias
seu trabalho. muito interessantes em comum,
Não imaginamos que, um ano mas não aconteceu desta vez…
JOANA LINDA

depois, as ruas do mundo estariam Espero que venha a acontecer


ainda mais desertas, os concertos mais tarde.
adiados e nós conversaríamos, ine-
vitavelmente, à distância, sobre um Cristina Branco Com Eva fecha uma trilogia iniciada com o álbum Menina Há uma grande ligação com
novo disco que, para já, não pode os últimos dois álbuns, és
ser celebrado em palco. Contudo, acompanhada pelos mesmos
merece ser ouvido, em CD ou nas músicos, repetem-se alguns
plataformas de streaming, revelan- momento difícil, de mudança, a Porque recuperaste agora a Eva? compositores e letristas...
do dez novos temas, à volta de Eva, estabelecer prioridades e a tentar Passei recentemente por um Criou-se uma unidade entre mim
alter-ego que a cantora criou numa encontrar-me a mim própria, processo muito semelhante ao e os três músicos. Essa comunhão
residência na Dinamarca. fui escrevendo... Nesse processo que vivi naquela altura. A mi- que temos no palco e na vida re-
Em Eva, disco que fecha uma surgiu a Eva, juntamente com uma nha vida pessoal deu uma nova Não concebo a ideia do flete-se na música. Não é apenas
trilogia iniciada com Menina, série de premissas. Questões como: volta e tive que repensar uma por serem grandes músicos, é
Cristina mantém o mesmo trio, "O que é para mim a verdadeira li- série de coisas. Achei que seria artista com os músicos porque isso se transfere para o
liderado por Bernardo Moreira, e berdade? "Como posso sobreviver a a altura, quase numa catarse, em fundo. Gosto de nosso trabalho. Criámos este som
volta a chamar diferentes compo- ser mãe e cantar mantendo alguma de voltar a pegar nesta Eva e em cima do palco. Foram eles a
sitores. Nomes como Pedro Silva sanidade mental?" dar-lhe alguma vida, brincar
sentir que estamos em produzir os dois últimos discos.
Martins, Márcia, Filipe Sambado, com a personagem, que no pé de igualdade. Eles Porque pedir a alguém de fora
Francisco Cortesão ou André Funciona como uma amiga fundo sou eu. Aliás, os últimos seria como deixar que um estra-
Henriques. imaginária? três discos têm muito de mim.
não trabalham para nho entrasse na nossa família.
Na altura, sim. Hoje é outra coisa. Funciona como se fosse um mim, trabalham comigo O registo é mais próximo do ao
JL: Quem é esta Eva que dá nome Tem algumas características de tríptico. vivo do que do disco de estúdio.
ao disco? que gosto e também fiz algumas Gravámos os quatro juntos em
Cristina Branco: É uma fotógrafa brincadeiras com os seus atri- Sempre gostaste de discos com direto (ou num falso direto). Tudo
dinamarquesa que nasceu quando butos físicos. Ela ficou na minha conceito. Esta também é uma barato do que um psicólogo ou o que se ouve são primeiros takes.
eu fiz uma residência artística vida porque, de repente, transfor- forma de dar um tema ao disco? psiquiatra. Enfim, foi uma ma-
Louisiana. Criei-a enquanto esta- mou-se no meu email, no perfil Sim, achei que era importan- neira de dar a volta por cima. Ao longo do tempo, tiveste
va à procura de mim própria. Isto do facebook, nas contas associa- te pegar em tudo aquilo que várias vidas musicais, às vezes
aconteceu há cerca de 14 anos. É das ao meu cartão multibanco. me está a acontecer agora em Aparentemente tal conceito mais próximas do fado, outras
um alter-ego. termos pessoais e transformar aplica-se mais a autores ou investindo por caminhos
É então como o heterónimo? em pasto artístico. Neste tipo de cantautores, mas tu contas como o do jazz... Estes últimos
Mas manténs o diário da Eva? Chegaste a fazer-lhe o horóscopo? momentos difíceis encontra-se essencialmente com músicas e anos serviram para definir e
Tudo o que escrevi sobre ela foi [Risos] Não, não é assim tão re- muito material para converter letras de outros. Como é que esse estabilizar uma sonoridade?
nessa residência. Como estava num buscado… em música, e sai muito mais processo criativo e catártico se Os discos têm uma linguagem
18 ARTES ↗

ENTREVISTA
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT

Página do diário de Eva Cristina Branco deu vida a este seu alter ego numa residência na Dinamarca, em 2006

mais madura, estamos mais cien- uma aproximação no registo


tes daquilo que queremos. Tudo o vocal. Nunca fui uma cantora

Tudo sobre Eva


que está em cima do palco acon- convencional de fados. Isso é
tece em disco. Podemos juntar algo que me caracteriza. Sempre
mais instrumentos, mas têm que vivi numa linha invisível entre o
ser usados por nós os quatros, sem fado e aquilo que eu sou.
a introdução de nenhum elemen- Olhando para o seu longo, percurso, desde os primórdios em que era mais conhecida na
to novo. Mesmo as percussões, Holanda do que em Portugal e trabalhava essencialmente com Custódio Castelo, na altura O álbum saiu em plena
assobios, sons de passarinhos, são seu marido, guitarrista e compositor, nota-se que nunca foi do género de acumular canções quarentena, numa altura em
feitas por nós. para fazer um disco. Por mais fora de moda que esteja a ideia (a era do streaming privilegia os que muitas editoras optaram por
singles), Cristina Branco sempre procurou fechar os álbuns num conceito. Nessa primeira fase, adiar lançamentos. O que vos
No fundo, tens uma banda… uma das mais belas obras que saiu bem definida foi Cristina Branco Canta Slauerhoff - uma levou a avançar?
[Risos] Sempre foi assim. Não visita musical a um poeta holandês contemporâneo de Pessoa. Mais à frente outros conceitos Quando isto estalou, o disco já es-
concebo a ideia do artista com se criaram, desde Abril, álbum em que arriscou o jazz a propósito de Zeca Afonso, a Kronos, tava no armazém, não havia como
os músicos em fundo. Gosto de aquele em que chamou vários compositores. recuar. Apesar de se venderem
sentir que estamos em pé de Nos últimos três álbuns Cristina encontrou um conceito forte e amadurecido, com duas menos discos em loja, o objeto
igualdade. Eles não trabalham vertentes essenciais. Por um lado, pediu temas a compositores da música pop (e não do fado), físico continua a ser importante
para mim, trabalham comigo. E alguns deles bastante jovens e quase desconhecidos; por outro, estabeleceu uma banda de para fim, porque se vendem mui-
vice-versa. formação original, com implicações na própria estrutura e sonoridade, com Bernardo Moreira tos discos nos concertos.
(contrabaixo), Bernardo Couto (guitarra portuguesa) e Luís Figueiredo (piano), dando aos
Há compositores que quando próprios músicos, nos últimos dois discos, os arranjos e a produção dos temas. Como estás a passar a
trabalharam pela primeira vez Assim, na sua essência, Eva é acima de tudo um disco de continuação (ou conclusão), muito quarentena?
contigo eram pouco conhecidos, próxima dos anteriores Menina e Branco, com um som cada vez mais consistente, em que a Como todos os outros. Há
mas entretanto ganharam originalidade das canções está acima de tudo dependente do trabalho dos compositores. Um solicitações para tudo e mais
reconhecimento. Que sensação caminho feliz, mas que a cantora entende, e talvez bem, que tenha chegado a uma conclusão, alguma coisa. Acabei de gravar
isso te traz? porque depois disto há um maior risco de redundância. um gingle para não sei o quê, há
Todos eles já tinham as suas Sobre este conceito geral, comum à trilogia, Cristina resgatou um outro para este terceiro uma short story feita em skype,
carreiras… Eu vou ouvindo ‘episódio’. Evocou uma personagem, que na verdade é um alter-ego, de nome Eva Haussman, com vários atores, em que eu
novos músicos e, de repente, que a própria criou numa residência na Dinamarca, há uns anos. Esta personagem serve canto… Enfim, há milhares de
aparece um em que tudo faz de motivo criativo, não só para a cantora, como para os músicos com quem trabalha e coisas, e é tudo muito novo,
sentido, dá para perceber que compositores a quem pediu os temas. com o lado interessante de me
há características daquele autor Posto isto, vamos às canções. Apesar da presença marcante da guitarra portuguesa de fazer aprender muitas coisas.
que se adequam à minha músi- Bernardo Couto, é um disco em que o fado apenas se vê por um canudo. Não obstante, tem Contudo, continua a ser preciso
ca. Funciona tudo por tentativa grandes temas de bons compositores, que ligam muito bem com a cantora. É o caso de dar comida aos filhos e pagar as
e erro. Nestas 15 pessoas que “Prova de Esforço”, dos irmãos Luís e Pedro da Silva Martins; “Conta-me dos Vivos”, de André contas. O problema é comum a
participam há algumas que são Henriques; ou “Leva”, de Márcia. muita gente.
pouco conhecidas. Há um autor
de que poucos ouviram falar, o Falaste várias vezes em conclusão.
Churky. E é uma música mesmo Com este disco termina uma
muito acertada. Quando ouvi etapa? Vai acontecer alguma
fiquei mesmo surpreendida e para o campo audiovisual E nestes últimos discos, onde rutura?
feliz. pode ser interessante desde mora o fado? Depois deste tríptico não sei para
que se mantenha esse senti- Nos concertos está lá sempre. onde vou. Talvez faça um disco
Há outra componente, que não do, desde que haja a mesma Nunca fui uma cantora Não concebo passar uma hora mais próximo do fado tradicio-
está diretamente ligada à música, subtileza e o mesmo silêncio. e meia sem cantar um fado nal… Mas ainda não sei…
que é o trabalho com a fotógrafa Ela fez um exercício de estilo convencional de fados. tradicional. Nos discos, ape-
Joana Linda. Como surgiu esta de forma bastante intensa. Isso é algo que me sar de achar que há um certo De qualquer forma, esta fase está
cumplicidade? Acompanhou todo o nosso distanciamento do fado, há concluída?
Já tinha acontecido no Branco. processo nas residências ar- caracteriza. Sempre vivi sempre quem ache que é uma Sim, fechou-se com Eva. Já fiz
Gosto do trabalho dela e do tísticas que fizemos em Loulé numa linha invisível nova roupagem para o fado. aquilo que queria. Tive vontade
facto de não ser invasivo. e na Dinamarca. Explorar Outra coisa importante é que de experimentar coisas, conse-
Fazer um trabalho artístico a intimidade dessa forma é
entre o fado e aquilo se perceba. Nunca tive nenhum gui concretizá-las e agora há que
em que se passa da música muito interessante. que eu sou disco de fado tradicional, apenas seguir novos rumos . J
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT ARTES 19 ESPETÁCULOS

Uma nuvem nuvem em forma de donut à volta


da cabeça, à altura dos olhos, que
ali está e ali fica, todos os dias,
mesmo quando nos distraímos e

em forma de Donut nos rimos; mal caem os cantos da


boca a nuvem intensifica o abraço,
o aperto.”
Estamos todos a tentar descobrir
o que podemos fazer daqui para a

DANÇA
frente, somos todos exploradores
de um mundo novo. Admirável?
“Não há direção prevista - diz Ana
Daniel Tércio Cardoso Oliveira; - infelizmente na
nossa cultura judaico cristã pensa-
mos com frequência que o castigo, a
penitência e o confinamento trazem
Amanhã, quinta-feira, 23, a -se. Será que o confinamento a que conquistas; mas não aprendemos só
Culturgest emite em live streaming coletivamente estamos sujeitos pode através do sofrimento, não cresce-
a conversa “Direito à tristeza”, resultar em algo diferente de uma mos só porque estamos triste; a ale-
com Sónia Baptista e Ana Cardoso tremenda e paralisadora sensação de gria, os afetos positivos, o interesse,
Oliveira Ela produziu haikus impotência? Pode ser exatamente o Triste in English from Spanish Coreografia de Sónia Baptista a inteligência, trazem a criatividade
dançados. Expôs-se em raposas contrário, diz Ana Cardoso Oliveira: à superfície como alavanca para o
transfiguradas, coreografando “A tristeza é uma reação saudável de processo de mudança.”
fábulas e histórias íntimas. Revelou uma perda ou luto, pode ser partilha- Onde fica a dança neste processo?
A falha de onde a luz e deu-nos da, pode ser reconhecida e empatiza- discussão extraordinária entre o ser torturado por dores indizíveis “A tristeza deve-se dançar até
conferências-performance. Há da, pode ser única porque incom- líder alfa, Mustafá Mond, e John, de toda a espécie. a fúria libertar a ação”, aconselha
pouco mais de um ano mostrou- preensível para outros, mas em geral o selvagem, acerca da questão da No princípio de Triste in English Sónia Baptista. Ela que começou
nos que a tristeza é potencialmente os que gostam de nós conseguem felicidade. Perante o programa from Spanish, Sónia Baptista afirma- com os haikus japoneses, ela que
transformadora com a peça Triste perceber, compreender e aceitar político de tornar todos felizes, o va-se só feeling. A coreografia, or- visitou o Japão e acompanhou
in English from Spanish. Nessa esta tristeza. Há também tristezas e selvagem reclama o direito de ser ganizada com e sobre o fluxo da voz, mulheres numa vila na Península
altura, a Culturgest (onde a peça lutos coletivos perante uma situação infeliz. Qualquer coisa como (e convocava palavras que sobrevoa- de Ise-Shima, diz agora: “Eu vivo
foi apresentada) organizou um dramática, ou algo que em conjunto sigo livremente o texto de Hu- vam a pele, entravam nas entranhas, na borda, que para mim é abismo,
debate a propósito do sentimento de estamos empenhados, como país, xley): o direito de ficar velho, feio nos gestos, nos olhos e se abatiam e essa angústia, da queda que, se-
tristeza, com a própria coreógrafa como aldeia como comunidade.” e impotente; o direito de ter sífilis em lágrimas ou se desdobravam em guramente, virá, dá-me ganas para
Sónia Baptista e a psicóloga Ana E a felicidade, comprimida e câncer; o direito de não ter quase risos. Quantas vezes choras por dia, criar, quando tenho sorte e não fico
Cardoso Oliveira. O tema do debate pelos sentimentos de tristeza, fica nada para comer; o direito de ter quantas vezes te ris por dia? petrificada a ver a morte chegar. O
repete-se hoje com as mesmas suspensa? piolhos; o direito de viver com a Qual é o feeling hoje, pergun- que eu tento é viver mais rápida do
participantes e com quem quiser Folheio o Admirável Mundo apreensão constante do que poderá to a Sónia? “Parece que todos os que a vinda dela e ao mesmo tempo
ligar-se em live streaming. Novo de Aldous Huxley. No final acontecer amanhã; o direito de feelings convergiram e se torna- percecionar o mundo com a lentidão
Mais do que nunca, o tema impõe- deste romance distópico, há uma contrair a febre tifoide; o direito de ram só um” – responde ela. “Uma das árvores.” J

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IDEIAS 22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT

MARIA DE SOUSA (1939-2020)


A grande arte da ciência, poder-se-ia dizer a propósito da cientista. professora, poeta, mulher singular que morreu no
passado dia 14, vítima da Covid-19, aos 80 anos. “A melhor ciência é aquela que se aproxima da poesia”, dizia-nos (JL 1053,
de 9 de fevereiro de 2011) numa entrevista em que afirmava a sua “coragem de seguir as suas ideias e perguntas”. A sua
obra, vida e personalidade aqui em textos de Anabela Mota Ribeiro, sua amiga, jornalista e autora de um livro com e sobre
ela, e do nosso colunista Onésimo Teotónio Almeida, e nos testemunhos dos cientistas Alexandre Quintanilha e Sobrinho
Simões. Entre as distinções que recebeu contam-se o Prémio da Universidade de Coimbra e o Bial Merit Award in Medical
Sciences, e escreveu para o JL (885, de 1 de setembro de 2004) a sua Autobiografia, que pode ser lida no nosso site

Love letter para a Maria

E
ANABELA MOTA RIBEIRO

O poema de despedida
“Carta de amor numa pandemia vírica/
Gaitas-de-fole tocadas na Escócia/ Tenores
cantam das varandas em Itália/ Os mortos
não os ouvirão/ E os vivos querem chorar os
seus mortos em silêncio/ Quem pretendem
animar?/ As crianças?/ Mas as crianças
também estão a morrer// Na minha
circunstância/ Posso morrer/ Perguntando-
me se vos irei ver de novo/ Mas antes de
morrer/ Quero que saibam/ O quanto gosto
de vós/ O quanto me preocupo convosco/
Escrevo a ouvir Dido e Eneias, de O quanto recordo os momentos partilhados
Purcell. Maria assistiu à sua repre- e/ queridos/ Momentos então/ Eternidades
sentação, todas as noites, presa à voz agora/ Poesia/ Riso/ O sol-pôr/ no mar/
de Janet Baker. Foi na Escócia, há A pena que a gaivota levou à nossa mesa/
muitos anos. Pequeno-almoço/ Botões de punho de oiro/
Escrevo uma love letter para A magnólia/ O hospital/ Meias pijamas e
Maria, uma carta de amor num outras coisas acauteladas/ Tudo momentos
quadro de pandemia vírica que a então/ Eternidades agora/ Porque posso
LUCÍLIA MONTEIRO

levou. Maria morreu na madrugada morrer e vós tereis de viver/ Na vossa vida a
de 14. Sabia da probabilidade da esperança da minha duração
morte iminente, sabia como o corpo
ia capitular (ou simplesmente dizer: Maria de Sousa Maria de Sousa
não posso mais), sabia como uma
médica e cientista sabe, depois de
ter a confirmação de que havia casos
de infeção na clínica onde fazia As galinhas são as mesmas, numa é legado, o fulgor de Maria, o privilégio é, para si, um exercício essencial: “Os [...] As do timo iam para o território
hemodiálise três vezes por semana. Inverno e há neve, na outra é Verão. de tê-la conhecido. Porque é que ela momentos muito importantes não a que chamámos ‘área dependente
Poucos dias antes, já com sintomas, A paisagem é simples: árvores, uma fazia tanta diferença. se podem escoar. Tem de se pôr uma do timo’ e que hoje é conhecida por
escreveu um poema que é uma des- cerca, um casinhoto. As imagens — E agora, Cláudio, quando rolha no rio. Tem de se fazer parar o Área T. E achei esse fenómeno de as
pedida — e que é, sobretudo, uma revelam os ciclos da natureza, a quisermos perguntar o que fazer, rio, senão aquilo vai tudo. Não temos células saberem para onde vão tão
exortação à vida. De uma pessoa que rotina de quem vê todos os dias perguntamos a quem? uma memória infinita e a pessoa não importante que lhe dei um nome:
encontra nos dias uma nitidez, um as mesmas ramagens ao fundo, o — À memória da Maria. E da- se vai lembrar dos pormenores todos, ecotaxis.”
brilho, uma alegria infantil. Que tem andar sem tino das galinhas (que mo-nos descomposturas, para ter a é impossível. A sensação que tenho
uma fome de vida. comem e mais o quê?), o tempo que certeza de que ela está viva. é que escrevo, e sobretudo escrevo Maria soube sempre para onde
Começo pela Escócia e pela músi- pesa de outra maneira quando o Dar descomposturas (a toda, mas nalguns momentos, para procurar ia. Depois do Reino Unido, foi para
ca, começo pelo poema que revela a vemos à distância de 50 anos. Como mesmo toda a gente — e daí vem uma fazer parar o momento”. Nova Iorque. O seu contributo para a
sua coragem e sabedoria, núcleos da escreveu nos seus últimos versos: fama de ser feroz) era uma forma de Imagem poética e estranhamente ciência foi notável, fez escola, deixou
vida de Maria. gritar: “Não prestes atenção ao que exata: pôr uma rolha no rio. Estancar discípulos. Tenho a impressão de que
Esteve para ser pianista. No meio Momentos então não merece atenção. Observa, inter- o fluir, parar a vida, criar cápsulas, isso era, para ela, o mais importante:
de curso de Medicina impôs-se a Eternidades agora roga, escolhe”. Dito com frontalidade ver no microscópio. Senão aquilo vai a relação com os alunos, a procura do
escolha, e preteriu o conservató- e amor. Estando absolutamente na- tudo, na enxurrada. saber, interrogar o que não se sabe.
rio. “Prevaleceu a importância de A vida visível daquela janela dá- quele instante e com aquela pessoa, Compreender o movimento, o de- Menos a glória pública, que também
dar prazer aos outros.” Uma forma -nos o tempo cronológico da Maria, e sem dispersões. vir, o sentido que as coisas têm esteve teve. Era imensamente discreta.
elegante de falar do sentido de dever, tem agora a espessura do tempo his- (A mim dizia-me: “A impressão na origem da sua célebre descoberta, Tinha, por isso, uma relação ambígua
daquele Portugal em que uma mulher tórico, da eternidade. Porque é que que me faz que ande aí num virote. em 1966. Resumiu-o na primeira com o livro Um mundo imaginado, de
estuda Medicina. Esteve anos sem to- Maria quis incluir aquelas fotogra- Para quê? Sente-se a escrever”.) entrevista que lhe fiz, em 2014: “As que foi protagonista e que inspirou
car. Em Glasgow, jovem investigado- fias?, o que é que nos estava a dizer? minhas observações demonstravam gerações de jovens cientistas em todo
ra, ouve Janet Baker, uma aparição, Neste tempo cronológico em Maria de Sousa nasceu em que os animais timectomizados à o mundo. A autora, June Goodfield,
outras vozes, e olha pela janela do que estou e escrevo, dia 16 de Abril, Outubro de 1939. Pouco antes, o pai, nascença ainda tinham linfócitos. E acompanhou durante anos Anna
laboratório. sinto dificuldade em elaborar um que era piloto da barra, escreveu mais, os espaços vazios de linfócitos Brito (a Maria Ângela Brito de Sousa),
Vejo devagar essa janela, em mapa preciso da sua vida. Isto não é no diário: “Hoje começou a guerra. eram distintos dos espaços onde ha- e registou o processo de investigação,
duas fotografias, reproduzidas no um obituário, é uma carta de amor. Stop”. A escrita diarística, poética, via linfócitos, o que significava que as a dedicação absoluta, a dinâmica das
livro de Maria Meu dito, meu escrito. Mas preciso partilhar com outros o científica, a escrita de cartas, emails, células pareciam saber para onde ir. equipas — aquele estar no mundo. ›
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT IDEIAS 21 MARIA DE SOUSA

› Quando regressou a Portugal, os


amigos achavam que estava maluca,
porque ia trocar Nova Iorque pelo
Os últimos anos e dias como teriam sobrevivido à intem-
périe da noite passada. Tão des-
protegidas. Maria lembrou que têm
Porto. Durante quatro anos, preparou Os últimos dois anos e meio de Maria de Sousa foram uma Primavera inesperada. Foi mesmo um espinhos, pétalas, que ferem e des-
a transição, e assistiu ao florescer florescimento, quando podia ser um definhar árido e doloroso. Uma insuficiência renal obrigou-a, a partir lumbram. E juntas compreendemos
faseado das flores: mais cedo no de dezembro de 2017, a fazer hemodiálise três vezes por semana. Nos restantes quatro dias, continuou que o aroma da rosa não se vê numa
Porto, mais tarde em Boston e em a trabalhar, a estudar, a acompanhar alunos e investigadores. Manteve-se igual a si própria: lúcida, TAC, não se isola no microscópio.
Nova Iorque. corajosa, combativa. Com alegria na vida. Apesar do enorme esforço físico que isso representava. Não quer dizer que não exista, que
Nos últimos meses, voltou a escrever poesia, em inglês, uma outra língua materna. O poema-despedida não se sinta, que não opere milagres.
Maria amava as flores. não é uma peça isolada. Foi escrito no dia 3 de abril, antes mesmo de fazer o teste que confirmaria que O riso de Maria, expressão daquele
— Flores por perto. Keep blossom. estava infetada com Covid 19. O teste foi feito no dia 6, no dia 7 à noite foi internada no Hospital Curry gozo de estar viva e fazer coisas, não
Wear your tribulation like a rose: Cabral, e depois transferida para os cuidados intensivos do São José, onde morreu na madrugada de 14. aparecia numa TAC. Mas aparece
verso-essência de Auden, o poeta Os dias anteriores ao teste foram de enorme apreensão: tinha sintomas. E exasperava-se com o agora cada vez mais. É aquilo que
preferido. Veste a tua tribulação funcionamento da clínica NephroCare no Restelo, onde era paciente. Numa das muitas conversas nós, amigos da Maria, cúmplices
como uma rosa. Talvez isto quei- telefónicas que tivemos já em isolamento, repetiu-me as palavras que usou para manifestar a de uma viagem, pessoas que foram
ra dizer: a poesia e a ciência como discordância (e mesmo indignação) pela não-observância de alguns cuidados: “Falo consigo [diretora da tocadas pela sua presença, mais
formas de procura, tentativa de des- clínica] não como utente, mas como sua colega, como médica e cientista. Isto não faz sentido”. E queixou- ouvimos. Ouviremos o riso, teremos
cortinar as regras do desconhecido, se-me do frio. Disse o mesmo ao médico e amigo Hélder Filipe, e a outros amigos. a lembrança, saberemos que é isso
com delicadeza e urgência. A poesia Esteve desde sempre consciente do perigo. “Se alguém na clínica estiver infetado, vamos todos num que no-la devolve à esfera da vida. A
como aquele lugar onde as palavras instante.” Foram duas semanas, no seu caso, entre o início da sintomatologia e o fim. Um bombeiro sua presença está nisto. Escreveu-o
parecem saber para onde ir. Como as confirmou-lhe que havia várias pessoas infetadas. A sua cuidadora, Aurora, passou a dormir em sua num último poema, em inglês, que
células do timo. casa. Feito o teste no mesmo dia, o resultado foi negativo. Vi numa notícia da RTP que a clínica abriu um era uma outra língua materna, e que
inquérito para apurar responsabilidades. Aguardo, aguardamos. teve tradução do poeta e médico, e
Na conversa de uma semana A notícia da morte de Maria deixou muitos, muitos numa tristeza profunda. Na impossibilidade de nos aluno da Maria, João Luís Barreto
que resultou no livro Este ser e não despedirmos dela, fizemos (cerca de 150) um velório por zoom. Deixou-nos mais apaziguados, porque foi Guimarães:
ser — cinco conversas com Maria de uma forma de velar e chorar a nossa amiga. Espero não perder o que Maria de Sousa me ensinou. Entre
Sousa (feito para assinalar os 50 anos essas coisas, está a faculdade e a disponibilidade para encontrar a beleza; por exemplo, nem há um mês, Porque posso morrer e vós tereis
da sua descoberta e distribuído na numa das sessões de hemodiálise, ouviu um programa de Martim Sousa Tavares na Antena 2 e ficou a de viver
comunidade científica), começámos pensar na pergunta que aí era feita: porque é que a voz humana não chega?, como é que se passa para os Na vossa vida a esperança da
por falar das rosas do jardim: de outros instrumentos? minha duração. J

Um mundo imaginado… tornado real


TIMES & TEMPOS

T
Onésimo Teotónio Almeida

ambém eu fui toca- Goodfield, An Imagined World – a Story of


do pela magnética Scientific Discovery (1981), sobre uma cientista
personalidade de portuguesa de nome Anna Brito.
Maria de Sousa Não me recordo exatamente em que momento
(MS). Travei com MS me revelou ser ela mesma essa Anna Brito,
ela conhecimen- mas foi nesse ano em que a conheci pessoalmen-
to graças a José te. Eu fundara uma revista dedicada à presença
Rodrigues Miguéis portuguesa nos EUA, a Gávea-Brown, e decidi
que, na segunda dedicar um dossier a Anna Brito/Maria de Sousa
metade da década de 70 do século passado, (Vol. II, nº 2, 1981). Pedi comentários a um filó-
por várias vezes tentámos trazer à Brown. sofo (o meu orientador), a um bioquímico (Frank
Respondia invariavelmente que sim mas, dias Rothman, também da Brown) e ainda a uma
antes da visita, cancelava. Um dia chegou- socióloga inglesa (Frances Cook Macgregor), esta Maria de Sousa, à dtª, com Camila Miguéis, David Mourão-Ferreira e a fadista Natércia da Conceição,
-me de Nova Iorque um telefonema. Era MS. última por sugestão da própria MS. O dossier, de em Providence, em 1981, aquando do colóquio na Brown sobre Miguéis referido no texto
Apresentou-se-me como amiga de Miguéis e 122 páginas, inclui também uma longa entrevista
assegurava que o escritor cumpriria finalmente por mim conduzida; uma nota (auto)biográfica
a promessa de nos vir falar. Hipocondríaco de Anna Brito escrita por Vieira do Canto Maia deste ano, ao tomar conhecimento da mi- E deu gargalhada quando lha recontei.
como era – explicou-me - receava o embate (outro pseudónimo de Maria de Sousa), autora de nha história com o teste que procurei fazer e Passados alguns dias disse para comigo:
da viagem. Mas confiava nela, que se dispusera poemas em inglês e em português; além de uma me negaram no Departamento de Saúde do hoje sou eu a telefonar-lhe. Contudo, anteci-
desta vez a acompanhá-lo. carta de Agostinho da Silva. Estado de Rhode Island (tinha sido informado pou-se-me a Anabela Mota Ribeiro com um
Nem assim, contudo. Na antevéspera do Em 1985, republiquei aqui no JL essa minha de que o escritor Luís Sepúlveda, com quem SMS a informar-me do internamento da nossa
evento, MS telefonou, muito pesarosa, a cancelar. entrevista com Anna Brito, porque a Gávea- estivera, testara positivo), telefonou-me muito comum amiga por infeção com o Covid-19.
O nosso encontro em pessoa só viria pois a Brown tinha uma circulação quase limitada aos preocupada a indagar sobre.o meu estado Estava a receber oxigénio e só podia aceitar
acontecer em 1981, no ano seguinte à morte de EUA. Quando, alguns anos depois, Guilherme de saúde. Mais tarde, quando começaram a mensagens. Disparei imediatamente uma,
Miguéis, quando na Brown organizámos um Valente me pediu para lhe enviar livros em in- surgir reportagens sobre o alastrar-se do vírus evocando o nosso José Rodrigues Miguéis: "O
colóquio sobre o escritor, no qual participaram glês que eu julgasse de interesse para o público em Boston, voltou a ligar-me recomendando Miguéis resistiu à morte com meia-cara e a
Eduardo Lourenço, David-Mourão Ferreira e Joel português, o de June Goodfield foi uma das cuidado máximo. As notícias dos EUA pioraram Maria de Sousa tem de resistir com a cara intei-
Serrão, entre outros. minhas primeiras recomendações, juntamente e ela telefonou ainda mais uma vez a insistir ra." (O livro de Miguéis Um homem sorri à morte
Fresco do meu doutoramento em Filosofia, com Surely you’re joking, Mr. Feynman, que na cautela. Por sinal, na sua última chamada, - com meia-cara é o relato da sua experiência
interessava-me muito por questões da Filosofia prefaciei na tradução portuguesa. A Gradiva o motivo imediato era outro: tinha ouvido na de proximidade com a morte num hospital de
da Ciência e Sociologia do Conhecimento (o publicou os dois em 1988. Antena 2 um programa do Luís Caetano em Nova Iorque.)
meu orientador, Philip L. Quinn, lecionava que era eu o entrevistado e queria dizer-me de Maria de Sousa não pôde afinal resistir.
Filosofia das Ciências), e devorava tudo o que O ESPAÇO RESERVADO A ESTA NOTA obriga- se ter rido muito com as piadas que contei; no Todavia, grande senhora, extraordinária mu-
aparecia nesses anos de florescimento dessas -me a saltar para os nossos últimos contactos. entanto não se lembrava já bem de como era lher, cientista de gabarito, tocou e influenciou
áreas do saber. Através de uma recensão lida Maria de Sousa preocupava-se com os amigos. aquela do “Américo Tomás menino-prodígio”. tanta gente que terá vida garantida por muitos
já não sei onde, deparara com o livro de June Após o meu regresso das Correntes d'Escritas MS sorria a rodos, mas também ria com prazer. mais anos ainda.J
22 IDEIAS↗

MARIA DE SOUSA
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT

Uma estrangeirada virtuosa


MANUEL SOBRINHO SIMÕES
A primeira vez que ouvi falar nhecemos. Em 1987, participámos teve gosto em juntar e fazer uma
dela foi em 1978, quando fiz o meu numa reunião em Lisboa para a comunidade.
doutoramento. Nessa altura, além primeira avaliação da ciência em Já depois de reformados,
da tese, fazia-se uma prova com- Portugal. À Maria de Sousa coube ajudei-a também a promover
plementar, que era muito livre. presidir à avaliação da investiga- uma ideia que tinha, a de fazer
Chamei-lhe a doença de Hodgkin ção em saúde, com quatro vogais um talhão dos cientistas, no
e teve muita graça, porque o prof. na comissão: Fernando Lopes da Porto, junto do prof. Corino de
Cortez Pimentel, de Lisboa, a Silva, Cayolla da Mota, Cunha Andrade. Falou primeiro com
quem tinha pedido para acompa- Vaz e eu. Tivemos uma enorme o arqº Eduardo Souto de Moura
nhar essa prova – o prof. Trincão, cumplicidade, sendo ela de uma para projetar o mausoléu e depois
de Coimbra, acompanhou a tese, inteligência fora de série, de uma almoçámos com o presidente da
além dos catedráticos do Porto – grande lucidez, por vezes uma Câmara, Rui Moreira. E tinha
tinha sido o orientador de estágio certa rispidez, sempre muito ar- uma determinação extraordiná-
de uma tal Maria de Sousa (MS), guta, independente e sem nunca ria, a vontade de deixar qualquer
que na altura estava na Escócia. fazer jeitos. coisa para além da fragilidade
O prof. disse-me que ela sabia Maria de Sousa e José Mariano humana.
muito sobre o assunto e que toma- Gago foram, aliás, os mais Nos últimos tempos, ainda es-
va a liberdade de lhe mandar a importantes impulsionadores tive com ela, nas homenagens que
minha prova para que fizesse a da revolução da investigação lhe fizeram na Academia Nacional
avaliação, ficando ele como uma científica em Portugal. Ela criou Maria de Sousa com Sobrinho Simões e o presidente da Câmara do Porto de Medicina e na Cooperativa
espécie de comunicador oficioso. uma escola, da Universidade do (a empurrar a cadeira de rodas) à saída da reunião a que se alude no texto Árvore, que fica em frente à
MS foi muito simpática, as provas Porto, e foi crucial para fa- sua casa, no Porto. Já estava em
correram muito bem, mas não zermos o IPATIMUP e, depois, cadeira de rodas e a fazer diálise,
a conheci pessoalmente. Nessa quando juntámos quatro mes- capacidade para selecionar as Conto tudo isto, para dizer mas nunca deixava de estar pre-
altura, MS estava quase a publicar trados, o dela em Imunologia, pessoas. Sempre achou que a que aprendi muito com Maria de sente. Sempre com uma grande
os seus artigos absolutamente o meu de Oncobiologia, o de ciência é internacional e colabo- Sousa. Às vezes, ficava irritado categoria. Foi tudo isso que me
fundamentais, um dos quais sobre António Amorim, de Ciências, rativa e nunca foi em burocracias com ela, por vezes ela ficava marcou ao longo dos últimos
o seu conceito de ecotaxis. e o de Conceição Magalhães de e tiranias métricas. De alguma irritadíssima comigo. Mas havia 40 anos em Maria de Sousa, que
Entretanto, eu fui para a Fisiologia e Etiologia, e fizemos maneira, era uma estrangeirada uma grande confiança entre teve uma trajetória espantosa na
Noruega, voltei ao Porto em 1980 o GABBA, um programa douto- virtuosa. Conservou caracterís- nós. Ela não mentia e era de Ciência em Portugal. J
e a MS também regressou uns ral que foi uma coisa única. MS ticas inglesas, pensava e escrevia uma segurança em relação às
anos depois. Foi aí que nos co- era exemplar, com uma enorme em inglês suas amizades notável. E sempre (Testemunho recolhido oralmente)

O que dela “guardo”


ideia do i3S. Sempre a caminhar
na construção de massas críticas
interdisciplinares, mais robus-
tas e mais inovadoras.
Não menos importante, foi
a criação do GABBA (Graduate
ALEXANDRE QUINTANILHA Program in Areas of Basic and
Applied Biology): ideia pio-
Foi em 1987 que, no apertado O desafio, na altura, era o da neira em Portugal, na qual
gabinete do Corino de Andrade no constituição de massas críticas eram os alunos a escolher os
Instituto de Ciências Biomédicas em diferentes áreas do conheci- orientadores das suas teses de
Abel Salazar (ICBAS), conhe- mento. Juntar pessoas de várias mestrado e de doutoramento. É
ci a Maria. Ela tinha chegado a origens institucionais, estimular justo também lembrar a lucidez
Portugal há pouco tempo e eu colaborações e fazer crescer a e inteligência dos diferentes
ainda estava em Berkeley. Nessa confiança em si próprios. Fazer ministros, reitores e diretores de
altura ela tinha a noção clara de isso através de projetos, avaliados escolas e de instituições que fre-
que o que estava por fazer em externamente de forma exigen- quentemente nos encorajaram.
Portugal era gigantesco. Três te. E na convicção que seriam Entre todos eles, deixem-me
séculos duma Inquisição devas- muitas destas novas instituições salientar Mariano Gago, Valente
tadora, seguidos de quase cinco que garantiriam o sucesso deste de Oliveira, Alberto Amaral e
décadas de “limpeza” sistemática desígnio. Nuno Grande.
daqueles que eram considerados No fim dessa década de 90, Gostava de pensar que até ao
demasiado inovadores, con- surge o novo desafio da criação fim, estes sonhos da Maria, se
duziam a uma enorme vontade de Laboratórios Associados. tenham vindo a concretizar com
LUCÍLIA MONTEIRO

de consolidar uma democracia Novamente a Maria defende o empenho e a dedicação de todos


baseada no conhecimento. Eu fortemente o “casamento” com aqueles que a acompanharam na
conhecia mal o tecido científico a Engenharia Biomédica. As sua luta. Ela será sempre a que nos
português, mas sabia da existên- colaborações entre investi- reorientava quando era neces-
cia de uma nova geração de cien- gadores do IBMC e do INEB já sário, nos questionava quando
tistas que no Porto, em Coimbra Maria de Sousa a falar na Universidade do Porto estavam no terreno há vários achava oportuno e que genero-
e em Lisboa estavam a dinamizar anos. Era natural uma propos- samente nos dava a mão quando
instituições emergentes no domí- ta conjunta IBMC-INEB que sentia algum desalento.
nio das ciências da vida. O ICBAS veio a ser um dos primeiros A memória que me deixa é
era uma delas. sempre perturbadoras do status proposta da criação do IBMC. Foi Laboratórios Associados no de alguém que nunca deixou de
A partir do início dos anos quo. Logo a seguir na concre- nessa tarefa que me apercebi da país. O outro seria o IPATIMUP, acreditar no papel fundamental
90, a minha interação com a tização do Instituto de Biologia sua inteligência, fina, incisiva e ambos com uma fortíssima do conhecimento. Imagino que
Maria passou a ser mais regular. Molecular e Celular (IBMC). de uma sabedoria que só muitos ligação à Universidade do Porto. esta luta nunca tenha sido fácil,
Primeiro no conselho científico Lembro-me das longas noites anos de experiência ajudam a Não admira que, das crescentes mas o que nos deixa é aquele
do ICBAS, com ideias desa- em que a Maria ajudava a aper- construir. E também da impor- colaborações entre estas insti- sorriso acolhedor e cúmplice que
fiantes, para não dizer quase feiçoar aquilo que viria a ser a tância de a ter como aliada. tuições, surja naturalmente a a iluminava. J
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT IDEIAS 23 CRÓNICA

Por uma estratégia para Portugal das grandes multinacionais que desenharam,
movidas apenas pela maximização dos seus lu-
cros, a atual desordem internacional, onde países
desenvolvidos nem sequer máscaras de proteção

Vencer a guerra pelo futuro


têm para os seus médicos e enfermeiros. Países
que se atropelam, abertamente e sem vergonha,
para serem os primeiros a receber ventiladores
importados da China, país que essa mesma sede
irrestrita de lucro transformou na principal fábri-
ca do mundo, em detrimento dos mais elemen-
tares critérios de segurança pública e nacional.
Eis os princípios que, na minha perspetiva,
devem informar uma estratégica nacional, que
deseja e reclama uma ação coordenada da União

ECOLOGIA
Europeia, mas não deve ficar à espera dela, pois,
na verdade, tal pode nunca vir a acontecer.

Viriato Soromenho-Marques 1. A saída da pandemia e dos sofrimentos sociais

C
e económicos que daí decorrerão só será possível
com a mobilização da sociedade portuguesa, lide-
rada pelo Estado e as políticas públicas. O mercado
ontinuamos sem saber e as empresas terão um papel importante, mas su-
como iremos sair do bordinado. Os parceiros sociais deverão, certamen-
choque histórico que te, contribuir para o delinear das medidas, mas só o
está a ser infligido pela Estado e os seus poderes legítimos estão autoriza-
pandemia COVID-19. dos a vincular o país a um rumo estratégico
Não sabem as famílias,
não sabem as nações, 2. A “economia verde” não pode ser encarada
nem a própria multidão como um sector paralelo e concorrente ao da
assimétrica e desorgani- economia, dita “normal”. Pelo contrário, a grande
zada de grandes atores institucionais e empresa- oportunidade deste momento de rutura é a de
riais que formam o atual sistema internacional, operar uma verdadeira “destruição criadora”
há muito tempo mergulhado numa entropia ecologicamente orientada, para usar um conceito
caótica. Contudo, só os mal-intencionados ou de 1942 do economista Joseph Schumpeter. Trata-
os profundamente ignorantes podem alegar que se de desenhar e conduzir uma viragem inovadora
esta pandemia veio sem aviso prévio. Bem pelo absolutamente sincronizada e articulada com os
contrário, ela faz parte de uma espécie de guião critérios de uma transição para uma economia
catastrófico que tem vindo a ser concretizado há sustentável, fiel ao primado da justiça social e da
décadas, e que tem sido antecipado por milhares conservação e recuperação da vertente ambiental,
de cientistas – que até agora têm desempenhado incluindo a produtividade dos serviços ecológicos
o papel de Cassandras – nos mais diversos domí- vitais prestados pelos ecossistemas naturais.
nios da crise global do ambiente, onde se incluem
fenómenos de rutura acelerada como a extinção 3. O Estado português está a mobilizar recursos
da biodiversidade e as alterações climáticas, financeiros sem paralelo para enfrentar esta ca-
agora já em fase emergencial. tástrofe. Isso implicará um aumento gigantesco da
dívida pública, em condições de grande incerteza
CAUSAS PRÓXIMAS E ESTRUTURAIS DA quanto ao futuro da UE e das regras absurdas que
PANDEMIA têm amarrado os Estados da zona euro a uma
Ao longo das últimas décadas, a disseminação das Imagem de satélite da diminuição da poluição mundial durante o surto de coronavírus austeridade perpétua, que se traduziu no enfra-
doenças, quer as conhecidas quer as novas, tem quecimento, por exemplo, dos serviços públicos de
tido raiz principal ou nas alterações climáticas saúde. É imperativo mobilizar recursos financeiros
(como é o caso da migração para Norte de doen- europeus, tanto através do ainda não explorado
ças transportadas por vetores, ou as altamente ria dos países ditos desenvolvidos. O persistente financiamento de emergência direto do BCE, como
prováveis pandemias do futuro, resultantes fracasso da diplomacia ambiental e climática, também da emissão de “eurobonds”, que é indis-
da “reanimação” de vírus e bactérias durante antecipa que Portugal se deve preparar para pensável para a sobrevivência da UE. É imperioso,
milhares de anos congelados e neutralizados na enfrentar os impactos da emergência climática, também, que as garantias bancárias públicas dadas
criosfera), ou na extinção maciça de espécies, que Esta é a grande oportunidade provavelmente contando apenas com as suas à banca para financiamento às empresas, sejam
provoca fenómenos de zoonose, o “salto” de vírus de operar uma verdadeira forças. Mesmo que, desejavelmente, a situação acompanhadas por critérios de sustentabilidade
de animais para os humanos (atualmente, 75% internacional se inverta num sentido positivo, estrita na seleção desses apoios. O que significa,
das novas doenças têm esta origem). A combi- “destruição criadora” Portugal deve preparar-se, desde já, para as duplamente, proteção dos postos de trabalho e res-
nação das duas causas não pode ser excluída. No ecologicamente orientada e profundas, perigosas e destrutivas consequências peito de regras ambientais cada vez mais exigentes.
caso da presente pandemia de CODIV-19 trata-se da mudança climática sobre a saúde pública, a
claramente de uma consequência da segunda
recuperar o controlo sobre biodiversidade, o litoral, o regime hidrológico e 4. O Estado não deve nem pode apoiar incon-
causa: a destruição dos habitats e a captura ou sectores importantes como a as reservas hídricas, a produtividade dos solos, o dicionalmente empresas com uma gigantesca
reprodução em cativeiro de espécies em vias de aumento de calamidades causadas pelos eventos pegada ecológica, e que agora querem ser salvas
extinção, comercializadas vivas, em mercados
TAP e a ANA extremos (como ocorreu no Verão de 2017), etc., a todo o custo pelo dinheiro público. Esta crise
(wet markets) asiáticos (sobretudo na China) e só para mencionar as que aparecem como mais contém uma oportunidade para o Estado portu-
africanos. A epidemia SARS (2003) teve a mesma evidentes pela sua inevitabilidade. guês recuperar o pleno controlo sobre sectores
origem. Avisos foram feitos. Por virologistas, por Com ou sem esta pandemia, a humanidade importantes da economia, que foram alienados
Bill Gates, por Obama. Mas não foram escutados. caminha para novos e terríveis impactos diretos na última década. A recuperação plena da TAP e
Como é que demorámos tanto tempo a reagir, da crise ambiental e climática. A saída da catás- da ANA, permitirá um redimensionar realista da
e de forma tão descoordenada? Como foi possível em função da manutenção em funcionamento trofe do CODIV-19 deve capacitar-nos – através componente aérea de uma política de mobilidade
“o salve-se quem puder” europeu, e as oscilações de uma máquina económica que tudo sacrifica de um vasto consenso nacional e se possível eu- e transportes, afastando em definitivo a constru-
na resposta de tantos países, que estão a aumentar à demanda distópica da reprodução desmedida, ropeu - para estarmos prontos para as próximas ção de novas infraestruturas, como o anunciado
o número de vítimas e a colocar, mesmo Estados potencialmente infinita, do capital. crises que nos colocarão à prova nas próximas aeroporto no Montijo. O transporte aéreo já
com razoáveis sistema de saúde, à beira, ou mes- Foi o Papa Francisco quem melhor sintetizou décadas e gerações. atingiu o seu pico, em Portugal e no mundo, caso
mo para além, da sua exaustão, como já ocorreu a presente situação, ao afirmar que o modelo de a humanidade queira evitar um processo des-
em Itália e Espanha? Para que a nossa resposta atividade produtiva no mundo está subordinado LINHAS-DE-FORÇA PARA UMA controlado de alterações climáticas. Do mesmo
possa ser útil, temos de ir ao fundo da questão. A a uma “economia que mata”. Todos os indicado- ESTRATÉGIA NACIONAL DE modo, a chantagem do sector automóvel, com
verdade é que o atual sistema económico-políti- res da sustentabilidade global do Sistema-Terra SUSTENTABILIDADE E RESILIÊNCIA eventual exceção para os segmentos da mobili-
co não está organizado em função da defesa das têm-se agravado num ritmo sem precedente, Mudar, sublinho-o, significa reconhecer o fra- dade elétrica, deve ser enfrentada e recusada. O
sociedades - seja a sua saúde, seja a sustentabili- colocando até em causa alguns sucesso na me- casso do modelo da total rendição da sociedade regime dos vistos gold, um disfarce para a lava-
dade do ambiente de que dependemos - mas sim, lhoria da qualidade ambiental regional na maio- e das respetivas políticas públicas aos interesses gem de dinheiro com impacte especulativo no
24 IDEIAS ↗

CRÓNICA
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT

território, e o privilégio fiscal dos combustíveis


fósseis, que só na Europa corresponde, anual-
mente, a quase duas vezes o orçamento da União
Europeia (UE) deve ser de imediato cancelado, no
Livros no confinamento…
que estiver em nosso poder.

5. A prioridade deverá consistir em conceder


o maior apoio possível, desejavelmente direto,

A PAIXÃO DAS IDEIAS


ao rendimento dos assalariados e suas famílias
(incluindo os trabalhadores “a recibos verdes”),
bem como às micro-empresas e PME, durante o
Guilherme d’Oliveira Martins

E
período agudo da pandemia. No período poste-
rior, esse apoio a essas empresas deve ser voltado
para todas as áreas que aumentem a capacidade
do mercado interno em todos os domínios, da
produção agrícola ao sector secundário, sempre m tempos de confinamento, a leitura é facto desse silêncio contaminar irremediavelmente a atitude filosófi-
na escrupulosa atenção aos critérios da produção sem dúvida o melhor remédio, desde que ca. Afinal, a principal tarefa dos que se dedicam ao ofício de pensar é
sustentável. Portugal deve aumentar a capacida- temperada por algum sol e por contacto com a de fazer luz sobre os crimes que se cometeram no passado e manter
de de alimentar a sua população. Temos de estar os amigos através dos meios técnicos que desperta a consciência sobre eles? Lembrar para que não voltem a
preparados para a eventualidade de uma inter- o progresso permite. Os livros e a música acontecer, mas evitando o ressentimento e a vingança. Heidegger evi-
rupção das cadeias de abastecimento no caso, são preciosos companheiros, que permitem taria a polémica e responderia que a sua preocupação tinha a ver com
infelizmente não improvável, de uma quebra no abrirmos outras janelas, para além das reais, a relação entre o homem e a técnica. Mas Habermas contraporia que a
comércio intra-europeu em caso de colapso da que nos levam a usufruir a luz irregular que sua crítica não tinha a ver com o envolvimento político com o nacio-
zona euro. Nesse sentido, não só devem as leis de tem caracterizado a meteorologia nestes dias. nal-socialismo em 1933, mas com a teimosa negativa em reconhecer
proteção dos solos agrícolas serem rigorosamente Mas vou ao que hoje me traz. Acaba de ser publicada em Espanha, o seu erro a partir de 1945. No fundo, “a discussão sobre o comporta-
implementadas, como deverá ser lançada uma pela Editorial Trotta, Jürgen Habermas, Una Biografia, da autoria de mento político de Martin Heidegger não poderia nem deveria servir
nova política de colonização interna, voltada para Stefan Müller-Doohm, obra dada à estampa em Berlim em 2014, na propósitos de difamação e desprezo sumários. Como nascidos depois,
a diminuição drástica das monoculturas desorde- qual encontramos o percurso intelectual e cívico de quem é indiscu- não podemos saber como nos teríamos comportado nessa situação de
nadas de eucalipto e pinheiro bravo, responsáveis tivelmente uma das consciências morais da Europa contemporânea. E ditadura”.
pela vergonhosa e repetida posição de Portugal neste momento de tantas incertezas, em que os egoísmos e a cegueira
como campeão europeu de incêndios florestais. do curto prazo tendem a prevalecer, é importante recordarmos alguém POUCO DEPOIS, HABERMAS CHAMARIA a atenção de Theodor
que representa a necessidade de reflexão e do espírito da Ilustração, W. Adorno com um texto publicado na revista Merkur, “A dialética
6. Devido à procrastinação de uma estratégia não numa lógica fechada e positivista, mas numa perspetiva aberta à da racionalização”, no qual analisava a alienação gerada tanto pelo
de transição para a sustentabilidade, o esforço diversidade e capaz de ligar as ideias e os acontecimentos, a razão e os trabalho numa cadeia de montagem, como no consumo sem limites.
de Portugal, da Europa e do mundo será agora sentimentos. “Babelia”, o suplemento literário de El Pais, reservou a E premonitoriamente avisava: «da produção ao transporte, passando
e doravante muito mais penoso e difícil. Mas, sua capa a este pensador, que nos seus noventa pela comunicação ou pelo ócio, a “cultura das
baixar os braços não é alternativa. O Estado deve anos se mantém ativo, de um modo persistente, máquinas” terminará por dominar as nossas
reinventar-se, para cumprir o seu papel de líder na compreensão da importância do tempo, da vidas. Cada dia, estaremos mais longe da na-
do interesse comum. A reorganização das pastas decisão e da reflexão na vida democrática. tureza e do resto dos seres humanos». Apesar
no executivo devem ter em consideração a neces- O tema da democracia está na ordem do dia. da resistência de M. Horkheimer, pelo pendor
sidade premente de aproximar a política pública Há nuvens negras no horizonte e temos de estar pacifista de Habermas na altura, este ingressou,
de ambiente, das áreas da administração interna despertos para os perigos que espreitam. Nada em 1956, no célebre Instituto de Investigação
e da defesa nacional. As áreas protegidas podem e há de mais sério. E se hoje há urgência na pre- Social, centro da chamada Escola de Frankfurt,
devem ser defendidas com a intervenção mais di- venção e na ação, para que a saúde pública não o dito Café Marx, que Lukács designava depre-
reta de unidades especiais das forças de segurança contrarie a democracia e possa estar associada ciativamente como “Grande Hotel Abismo”…
militares, como já ocorre com a GNR. à retoma na economia e na sociedade, é im- Adorno admirava o pensador, e para sua mu-
Urge também que as Forças Armadas assu- portante falar do “patriotismo constitucional” lher Gretel ele fazia lembrar Walter Benjamin,
mam o desafio da crise ambiental e climática, e da “democracia deliberativa”, de que trata o grande amigo, que se suicidara em Port Bou,
seguindo o modelo espanhol de constituição Habermas, não apenas nas democracias nacio- em 1940, perseguido pela Gestapo…
de uma unidade polivalente de alta eficácia e nais, mas também na vida supranacional, em Ao longo de 650 páginas, a biografia acom-
prontidão, a Unidade Militar de Emergências. especial europeia. Num momento em que há panha um percurso extraordinário, em que,
Mais do que isso, importa que as Forças Armadas sinais preocupantes, em que a dúvida se con- além de Adorno e Gadamer, encontramos os
integrem novas missões e novos equipamentos. funde com a descrença, e em que o desalento grandes dilemas do pós-guerra, num contexto
Isso implicará reformar o Conceito Estratégico de alimenta a desistência, importa não esquecer o de complexidade, diversidade e incerteza.
Defesa Nacional (RCM 19/2013) e alterar a Lei de que nos diz o filósofo: “A verdade não existe no E fica claro que a reflexão filosófica e o compro-
Programação Militar (Lei 2/2019, 17 de Junho). singular”, pelo que a legitimidade democrática misso social são faces de uma mesma moeda
Jürgen Habermas
O parlamento deverá discutir, com seriedade, deve ligar-se à mediação das instituições e ao – a necessidade da Ilustração… E é esse sentido
a necessidade de reintroduzir o Serviço Militar envolvimento dos cidadãos. de responsabilidade crítica que marcará a
Obrigatório, tendo em vista a mobilização com- No debate europeu, infelizmente, há sinais decisiva importância do pensador na atualida-
petente de recursos humanos para fazer face à de recusa de uma elementar solidariedade que contrarie a fragmenta- de – designadamente no tocante à defesa de uma Europa como fator
multiplicação de riscos e eventos extremos. ção e a lógica do salve-se quem puder. E Habermas lembra as origens de paz, de desenvolvimento e de diversidade cultural. Daí a necessi-
da União Europeia, como construção de paz e desenvolvimento, capaz dade de domesticar o capitalismo com a democracia garantida por um
7. Também as metas de reconstrução sustentável de integrar as diferenças, sem esquecer a memória histórica, não Estado de direito com “rosto social”, com superação do “pessimismo
da economia e do tecido social devem orientar as numa perspetiva de culpa (se lembrarmos o Holocausto), mas sim de antropológico” que caracterizou a primeira fase da Escola de Frankfurt.
políticas de educação, ensino superior e investiga- responsabilidade. E a tarefa do intelectual tem de ser a de melhorar Os conceitos de conhecimento, liberdade e progresso constituem valo-
ção científica. Isso implica, claramente, uma discri- o lamentável nível do discurso das confrontações, evitando a todo o res de uma razão ilustrada, no contexto de uma “modernidade”, como
minação positiva dos financiamentos para projetos custo o cinismo. Um filósofo intelectual é contemporâneo dos nos- “projeto inacabado”, por contraponto à “condição pós-moderna” de
nas áreas da sustentabilidade. Também aí, Portugal sos contemporâneos – e daí a sua necessária inserção numa ética de Jean-François Lyotard…
deve desenvolver uma “economia do cuidado”, na responsabilidade. É esse o papel que Habermas assume, com todas as Lembrando ainda a democracia quando há sinais da sua fragilidade
feliz formulação do economista José Reis. limitações e virtualidades – lembrando tantas vezes aos seus alunos: em tempos de peste, recordo outro livro, Penser la Justice, constitu-
“Nunca te compares com um génio, mas trata sempre de criticar a obra ído por entrevistas a Michael Walzer por Astrid von Busekist, (Albin
8. A UE, em particular a sua coluna vertebral de um génio”. Michel, 2020). Para o filósofo norte-americano, democracia e justiça
que é a zona euro, está a entrar numa encruzi- Nesta perspetiva, ainda têm de estar ligadas. Aos grandes sistemas, Walzer prefere as “peque-
lhada que ditará ou a fragmentação do projeto jovem, o filósofo ousou afrontar nas teorias”, acreditando num Estado social, no qual as nações e as
europeu, que é totalmente contrária ao interesse Heidegger, em 1953, num fronteiras sejam garantes da liberdade das pessoas. E, em seu abono,
nacional, ou a sua evolução para uma dimensão texto publicado no Frankfurter lembra o Profeta Amos, para quem não bastava condenar a injustiça e
federal, que, embora sendo a única compatível Allgemeine Zeitung com o título O percurso intelectual a idolatria, sendo necessário construir em concreto a sociedade mais
com o interesse português e a luta planetária pela significativo “Pensando com humana. Tanto Walzer como Habermas insistem numa consciência
sustentabilidade, não depende apenas de nós. Heidegger contra Heidegger”,
e cívico de quem é crítica capaz de entender a sociedade em mudança, em conflito e em
O país deve estar na linha da frente da luta pela menos pelo desprezo que o uma das consciências diálogo, num contexto plural. E nessa perspetiva se explica a anedota
salvação do projeto europeu numa refundação velho pensador tinha pela morais da Europa que corre nos meios intelectuais: um professor norte-americano aterra
federal, mas deve preparar-se também para o igualdade democrática, e mais na Alemanha, toma um táxi e diz: “Leve-me à Escola de Frankfurt!”.
pior cenário da sua fragmentação.J pela recusa da autocrítica e pelo contemporânea E o taxista surpreendido responde: “A qual delas?” J
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT DEBATE-PAPO 25 ↗

Itacoatiara A Mentalidade
na Quarentena
LAURA PEDROSA
RUMOR DE FUNDO Agora, finalmente confrontados com a realidade
da solidão obrigatória (ou pelo menos incutida pela
Marco Lucchesi sociedade), muitos confrontam o real propósito
das horas fixas que estabelecem a rotina dos dias.
Talvez, no início, tenham expressado alegria pe-
rante a momentânea falta de responsabilidades e as
horas de sono recuperadas. Mas, após os primeiros
dias, desenvolveu-se o receio – que hei-de fazer eu
com as semanas livres? Não as defino como férias,
já que não posso ir para a praia de Carcavelos nem
levar os miúdos ao cinema. Aqui começou o con-
fronto entre tentar entorpecer a cabeça com a sele-
ção de filmes de ação do Netflix e, enfim, enfrentar
o que está há anos enterrado no seu íntimo – quer
saibam ou não lidar com o assunto.
Muitos conseguirão repudiar tais noções,
ajudados pelo tempo que esmoreceu a mente de
modo a conseguir levar a cabo a repressão neces-
sária a uma vida produtiva. Outros hão-de beber
vinho tinto, ligar a familiares, e reconsiderar
os antidepressivos que, tal como um amigo co-
mentou, «haviam de te fazer bem.» Entretanto,
restam aqueles que já vivem numa espécie de
quarentena intrínseca – os que já consideraram os
antidepressivos –, e que se dividem também em
dois grupos distintos.
O primeiro grupo entrou em pânico ao saber
do estado atual do país perante o coronavírus
porque, apesar de indiferente à gravidade do vírus
em si, compreende a carência de distrações e
tenta já, no seu dia-a-dia saudável, aproveitá-las
de modo a apaziguar a consciência com um misto
de devaneios e aprovação externa. Este grupo
esforça-se para utilizar o tempo de maneira pro-

P
“Lembro-me de Jorge de Lima: ‘Há sempre um copo de mar para um homem navegar’” dutiva, para ler livros e ver filmes, de modo a que
possa sentir que retirará daqui algo gerador dessa
cobiçada exaltação interior e social, após os ínti-
mos meses da pandemia. Com sorte, conseguirá
arte de minha juventude floresceu cromatismo da mata atlântica, aqui, na serra da Tiririca, onde tecer algo que será, mais tarde, valorizado por
nesta pequena praia de Niterói. Em tu- me entrego ao ócio das manhãs, subindo e tornando a descer a outrem, enquanto o seu valor real, o da supressão
pi-guarani, Itacoatiara significa pedra pedra do Costão. recôndita, permanece menosprezado.
riscada. Nem ferida, nem magoada. Tornei-me adicto da maresia. Preciso de iodo e sal. Não pos- O segundo grupo, por outro lado, ri-se ao ver
Riscada, apenas. Sigo o mesmo destino so viver sem o mar, sem as ondas que se agitam. os textos nas redes sociais sobre a «saúde mental
das pedras. Morder o mundo e abocanhá-lo, a partir dessa fronteira, durante o isolamento.» Acham piada a estas
Herdei um azul feroz e contundente: sonho e matéria, aqui, onde transito e onde me perco, entre preocupações, já que a sua quarentena diária não
no céu onde se esconde o Sagitário; no antúrios e magnólias. Talvez entre Florbela e Sophia, Al Berto e é dissimulada pelo véu da sociedade capitalista e,
além do mar oceano, e com saudades Pascoaes, Helder e Jorge, Fernando e Camões. ao verem o seu superpoder a emergir no mar da
de África. É tanto azul que já não sei o que faço. Distribui-lo “Tranquei o mundo lá fora”, disse um poeta brasileiro. Pois ansiedade alheia, concretizam assim o louvor de
entre Rafael Sanzio, Raul Brandão e a mesquita de Isfahan. cada qual se reinventa, ao medir forças com a pandemia. Um que prescindem. Este grupo é formado pelos que
Repousam no jardim, onde me ponho a escrever, os ossos de mundo vasto que se desbasta. consideramos «disfuncionais» – os amigos que
Carina, minha saudosa pastora alemã, e uma funda geologia da A realidade virtual, a ideia mística e técnica, empresta cará- nos preocupam por dormirem de dia e viverem
memória. Guardada a sete chaves, talvez impronunciável, com ter relativo ao que está próximo ou distante. Cresce o desejo de de noite, os primos que desmaiam no aniversário
antigas falhas sísmicas. estarmos juntos e a revisão geral da biopolítica. dos avôs. Os que estão fartos de ouvir, «sim, ele
Poderia invocar mil Assim, quando cai a noite, brilham os olhos de Ana, como não tem estado muito bem. Pronto, já sabes como
vezes outras potências do dois gatos. O que virá depois? A fome nas favelas, a dança ma- é que ele é.»
azul, o mesmo azul que cabra no cárcere, o jogo de xadrez da morte e Antonius Block? Este último grupo é composto pelos que
me deixa em estado de Sinais do Dia do Juízo, como apregoam os corneteiros do fim aceitaram a quarentena, tal como a sua respon-
sítio e põe o mundo entre do mundo. Igrejas abertas, durante a pandemia, para aque- sável epidemia, com um aceno e algum interesse
parênteses, quando me cer a venda de promissórias e salvo-condutos para depois do desprovido de medo. O medo, afinal, é para quem
deito, como substância Apocalipse. ainda não o tem. Para quem não o vive habitual-
pensante, a olhar o céu. A política do vírus A política do vírus e o vírus da política perversa, a pandemia mente como um imperativo impassível. Quando
Cultivo a biblioteca e o vírus da política e o pandemônio, produzem fortes dissonâncias. Mas a socieda- regressarmos a Portugal* e à rotina após estes
polifônica, as mãos que de civil compreende a gravidade e não abre mão do isolamen- meses de interrupção, há algo a recordar antes de
me precederam ao piano perversa, a pandemia to. As comunidades mais pobres oferecem as respostas mais voltarmos à toca do recalque produtivo: a ideia
e o vigoroso telescópio, e o pandemónio, solidárias e criativas. de que talvez o isolamento nos ajude a perceber
que me leva a contem- Morre-me um parente na Toscana. As janelas da Itália o outro, o modo como ele existe num mundo
plar a noite fria, como produzem fortes perdem um cantor. Ana escreve um diário subtil, a tradução do reservado e distinto. A ideia de que esse estado de
os românticos alemães. dissonâncias. As mundo, em haicais e iluminuras. Indaga para onde caminhamos medo, mais do próprio que do vírus no corrimão
Itacoatiara deu-me, e até quando haverá mundo? das escadas, nem sempre é passageiro. A ideia
desde cedo, uma pro- comunidades mais Não o mesmo, talvez. Sairemos diversos, mesmo de de que todos temos amigos que continuam em
ximidade com estrelas, pobres oferecem Itacoatira. E terá de ser forçosamente outra civilização, voltada quarentena.J
nebulosas e parcelas de para a humanidade e a Mãe-Terra.
infinito.
as respostas mais Lembro-me de Jorge de Lima: “Há sempre um copo de mar *A autora do texto é uma jovem recém-licenciada em Cinema
Darwin adentrou o solidárias e criativas para um homem navegar”. J pelo King’s College de Londres
26 DEBATE-PAPO

22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT

Grande e pequenos PROPRIETÁRIA/EDITORA: TRUST IN NEWS, UNIPESSOAL LDA.


SEDE: Rua da Fonte da Caspolima – Quinta da Fonte,
Edifício Fernão de Magalhães, nº8, 2770-190 Paço de Arcos
NIPC: 514674520
GERÊNCIA DA TRUST IN NEWS: Luís Delgado,
Filipe Passadouro e Cláudia Serra Campos.
COMPOSIÇÃO DO CAPITAL DA ENTIDADE
PROPRIETÁRIA: 10.000,00 euros
PRINCIPAL ACIONISTA: Luís Delgado (100%)

J
PUBLISHER: Mafalda Anjos

PARALAXE JORNAL
Afonso Cruz DE LETRAS,
ARTES E
IDEIAS

Q
DIRETOR: José Carlos de Vasconcelos

REDATORES E COLABORADORES PERMANENTES: Maria Leonor Nunes,


uando, no século XVI, D. Manuel Manuel Halpern, Luís Ricardo Duarte, Afonso Cruz, Agripina Carriço
I decidiu oferecer um rinoceronte Vieira, André Freire, André Pinto, António Carlos Cortez, António
Mega Ferreira, Boaventura de Sousa Santos, Bruno Bénard-Guedes,
ao Papa, fê-lo devido à imponência Carlos Reis, Daniel Tércio, Eduardo Lourenço, Eugénio Lisboa, Fernando
Guimarães, Guilherme d’Oliveira Martins, Gonçalo M. Tavares, Helder
do animal, uma espécie de Macedo, Helena Simões, Jacinto Rego de Almeida, João Ramalho Santos,
Beemot bíblico. O assombro que o Lídia Jorge, Manuela Paraíso, Maria Alzira Seixo, Maria Emília Brederode
Santos, Maria José Rau, Maria João Fernandes, Maria Augusta Gonçalves,
sobredimensionamento provoca, Miguel Real, Miguel Sanches Neto, Onésimo Teotónio de Almeida,
seja a abóbada celeste, seja uma Paulo Guinote, Patrícia Portela, Tiago Patrício, Valter Hugo Mãe
e Viriato Soromenho-Marques
sequoia, seja uma baleia, está OUTROS COLABORADORES: A. Campos Matos, Álvaro Laborinho Lúcio,
bem presente nas nossas vidas. As André Pinto, António Cândido Franco, António Pedro Pita, Arnaldo
Saraiva, Carlos Fiolhais, Fernando J. B. Martinho, Gastão Cruz, Graça
crianças quando visitam um jardim zoológico querem Morais, Hélia Correia, Inês Pedrosa, Irene Ramalho Santos, João Abel
Manta, João Caraça, João Medina, José Augusto Cardoso Bernardes,
ver os ursos, os leões, os crocodilos, as anacondas, mais José-Augusto França, José Luís Peixoto, José Gomes André, José Manuel
do que coelhos ou gamos, pela dimensão, claro está, mas Castanheira, José Manuel Mendes, Laura Castro, Leonor Xavier, Luís Reis
Torgal, Manuel Alegre, Marcello Duarte Mathias, Margarida Fonseca
também pela letalidade que vislumbram nesses animais. Santos, Maria Fernanda Abreu, Maria Helena Serôdio, Miguel Carvalho,
Porém, aquele que é, de longe, o mais mortífero não Mário Avelar, Mário Cláudio, Mário de Carvalho, Miguel Carvalho, Nélida
Piñon, Nuno Júdice, Ondjaki, Pilar del Rio, Ramón Villares, Ricardo Araújo
tem dimensões proporcionais ao perigo que representa. Pereira, Rocha de Sousa, Rogério Miguel Puga, Sérgio Rodrigues, Sofia
O mais letal dos animais é o mosquito. Outros, ainda Soromenho, Teolinda Gersão, Teresa Toldy

mais pequenos, invisíveis a olho nu, correm para o PAGINAÇÃO: Patrícia Pereira

pódio. É irónico que os seres vivos mais perigosos sejam SECRETÁRIA: Teresa Rodrigues

minúsculos e alguns morram com sabão. H. G. Wells, em CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO: Gesco

REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E SERVIÇOS COMERCIAIS: Rua da Fonte da


A Guerra dos Mundos, fez com os invasores marcianos Caspolima – Quinta da Fonte, Edifício Fernão de Magalhães, 8
fossem derrotados por bactérias. 2770-190 Paço de Arcos - Tel.: 218 705 000 Fax: 218 705 001
email: jl@jornaldeletras.pt. Delegação Norte: Rua Roberto Ivens, 288
Jim Holt, no livro When Einstein Walked with Gödel: 4450-247 Matosinhos - Tel.:220 993 810
Excursions to the Edge of Thought, refere que chimpanzés MARKETING: Marta Silva Carvalho (diretora) - mscarvalho@trustinnews.
e orangotangos riem. Também fazem contas elementares pt e Marta Pessanha (Gestora de Marca) - mpessanha@trustinnews.pt
PUBLICIDADE: Vânia Delgado (Diretora Comercial) vdelgado@
(assim como outros animais, como corvos ou golfinhos). trustinnews.pt; Maria João Costa (Diretora Coordenadora de
O riso deve ter aparecido há pelo menos cinco ou sete Publicidade) mjcosta@trustinnews.pt; Elsa Tomé (Gestora de Marca)
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milhões de anos, e a capacidade de contar será ainda mjesus@trustinnews.pt; Daniela Pereira (Gestora de Marcas)
mais antiga. É expectável, segundo o princípio de dpereira@trustinnews.pt; Carolina Alcoforado (Gestora de Marcas)
calcoforado@trustinnews.pt; Mónica Ferreira (Gestor de Marcas)
Copérnico, que ainda cá estejam daqui a um milhão mferreira@trustinnews.pt; Elisabete Anacleto (Assistente Comercial)
de anos: “Tomemos a analogia das Sete Maravilhas eanacleto@visao.pt; Florbela Figueiras (Assistente Comercial)
ffigueiras@visao.pt; DELEGAÇÃO PORTO: Margarida Vasconcelos
da Antiguidade. Quando a lista foi criada a maravilha (Gestora marca) mvasconcelos@trustinnews.pt; Rita Gencsi
mais antiga era de longe a Grande Pirâmide, que foi (Assistente Comercial) rgencsi@trustinnews.pt PARCERIAS E NOVOS
NEGÓCIOS: Pedro Oliveira (Diretor) poliveira@trustinnews.pt
construída cerca de 2500 a.C. As outras seis maravilhas BRANDED CONTENT: Rita Ibérico Nogueira (Directora)
rnogueira@trustinnews.pt
— os Jardins Suspensos da Babilónia, o templo de TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO: João Mendes (Diretor)
Ártemis em Éfeso, A estátua de Zeus em Olímpia, o Telf Lisboa – 21 870 5000
mausoléu de Halicarnasso, o Colosso de Rodes e o Telf. Porto – 22 099 0052
farol de Alexandria — eram quase dois milénios mais PRODUÇÃO, CIRCULAÇÃO E ASSINATURAS: Vasco Fernandez (Diretor),
Pedro Guilhermino (Coordenador de Produção), Nuno Carvalho, Nuno
novas. Qual das sete ainda existe no presente? A Grande Gonçalves e Paulo Duarte (Produtores), Isabel Anton (Coordenadora
Pirâmide. Todas as outras desapareceram, pela ação do de Circulação), Helena Matoso (Coordenadora de Assinaturas)
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pirâmides na sua esperança de vida”. Ilustração de Afonso Cruz IMPRESSÃO: Lisgráfica – Casal de Sta. Leopoldina – 2745 Queluz de
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de Rodes ou qualquer outra maravilha monumental. The Journal of the Plague Year, terá chegado a Portugal
Registo na ERC com o nº 107 766
Não pretendo dizer com isto que as coisas de pouca em barcos ingleses: “I heard likewise that the plague Depósito Legal nº 127961/98 – ISSN nº 0872-3540
imponência sejam necessariamente mais duráveis was carried into those countries by some of our ships, Estatuto editorial disponível em www.visao.sapo.pt/informacaopermanente
ou perigosas do que as outras, as impressionantes and particularly to the port of Faro in the kingdom A Trust in News não é responsável pelo conteúdo dos anúncios
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e assombrosas, mas será sempre importante ter em of Algarve, belonging to the King of Portugal, and e/ou bens anunciados. A respetiva veracidade e conformidade com a
consideração que uma that several persons died of it there; but it was not realidade, são da integral e exclusiva responsabilidade dos anunciantes
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hecatombe pode ser confirmed.” Mais uma vez, nada de muito extravagante parcial de textos, fotografias ou ilustrações sob qualquer
provocada por seres ou anunciado, sem trombetas, sem assombro. As meios, e para quaisquer fins, inclusive comerciais.
PORTE PAGO

microscópicos que epidemias são tragédias em câmara lenta perpetradas


sucumbem à água com por seres que não se veem a olho nu. Samuel Pepys,
sabão. Como surgiram no seu diário sobre o surto antes citado, com alguma Ligue já 21 870 5050
muito antes do riso e dos frequência critica a crueldade manifestada entre Assine o
Dias úteis: 9h às 19h

números, serão eles, em A frivolidade não é seres humanos durante a peste, mas a determinada
largo número, a rir por altura interroga-se sobre o que poderia acontecer
último. tão imponente como à moda depois de a epidemia passar, uma vez que
Por curiosidade, a crueldade, mas, muitas perucas haviam sido fabricadas com cabelos de
o surto de peste de cadáveres infetados.
1665-1666, segundo nos tal como um simples A frivolidade não é tão imponente como a crueldade,
diz Daniel Defoe, em espirro, pode matar mas, tal como um simples espirro, pode matar. J
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT DEBATE-PAPO 27 ↗

HOMEM DO LEME
Andam a morrer Manuel Halpern

os melhores escritores A essência e


outras essências

AUTOBIOGRAFIA IMAGINÁRIA A
s declarações eram intoleráveis, cho-
cantes e inadmissíveis. Descobrira-se
finalmente a cura para o maléfico
Valter Hugo Mãe

D
vírus. Doravante, as pessoas podiam sair à rua,
abraçar-se, beijar-se e até fazer amor umas
com as outras (havendo mutuo consentimento,
claro) sem que a coisa se pegasse. Contudo, e
eu-me para cuidar das coisas os olhos ao mar como se imaginassem os peixes perplexos, isto ficou subentendido das palavras do presi-
como se houvesse de morrer. impunes à fome dos pescadores. Apresso o cão porque me dente, ninguém se livrava da morte. Apesar do
Sou dado a algumas bravuras assustam as conversas alcoviteiras de quem está ou não maléfico vírus ter os dias contados, estavam
práticas, detestaria deixar afazeres está muito mal. Quando chegámos às Caxinas, em 1980, a todos, mais cedo ou mais tarde, sujeitos a mor-
complexos nas mãos dos outros, primeira coisa que notei nas gentes foi a falta de ar. A asma é rer de outra maleita qualquer: um outro vírus,
sempre concebi o amor como tão caxineira quanto são os charamanecos. Um velhote dizia uma bactéria, cancro, avc, enfarte, pneumonia,
apaziguamento e pouco fardo, que não era um vírus pequeno a deitar abaixo as pessoas de malformação, febre, doença rara, diabetes...
abdiquei de contar com ajudas aqui. Para levar um pescador é preciso uma onda gigante para não falar de homicídios, atropelamentos
demasiadas. Dependo de mim como as dos filmes da Páscoa. e acidentes variados. Em pleno século XXI,
como se existisse ao abandono, é minha forma de me Há um senhor que espreita à janela e me cumprimenta: após milénios de ciência ainda era possível e até
entender e garantir que, se me agredir por algum amor ou boa tarde, escritor. Respondo, estou sempre muito bem inevitável o homem finar-se. Ora isto represen-
traição, parto sem tragédia. comportado com os saquinhos para apanhar as porcarias do tava um atestado de incompetência a milhares
Frequento assiduamente um cão. O senhor repete muito que de médicos e cientistas ao longo da História.
café onde se fuma há 24 anos. deviam todos ser como eu. No O máximo que estes conseguiram foi adiar ou
Em algumas noites, nem os dia 16, morreu o Luis Sepúlveda, mitigar a morte, mas jamais suprimi-la, dando
fumadores aguentam a neblina a televisão mostrou imagens assim espaço a que proliferassem religiões cren-
cerrada queimando os olhos. Ouvi onde apareço a cumprimentá- tes numa segunda vida, essa sim para sempre.
sermões longos sobre os perigos lo. O senhor disse: mais vale O Professor Z não estava pelos ajustes.
de ser fumador passivo. Sei bem que ande sozinho com o cão, E, no dia em que foram decretados beijos e
que esta porcaria de vírus que que agora os escritores trazem abraços, fechou-se no seu laboratório impro-
calhou ao mundo se alambuza vírus das viagens, e os escritores visado – uma adaptação da antiga garagem –
com moços como eu, ali pelos começaram a morrer. Olhei-o entre compêndios e fórmulas, que cruzavam
50 anos de idade, nada dados a sem saber se suportaria não tempos e modos, artes e ciências, desde o lí-
NUNO BOTELHO

desportos, com refeições feitas à chorar. E ele disse: houve um quido do Santo Graal à palete de tintas de Van
pressa, muito stress e os pulmões brasileiro também. Mas foi Gogh, de Einstein a Dalai Lama. O Professor
à sorte. A possibilidade de penar Luis Sepúlveda de outra coisa. Umas coisas Z, físico, químico, biólogo, imunologista,
com gravidade, em caso de testar empurram as outras. filósofo e metafísico autodidata, espectador
positivo, é muito considerável. O Rubem Fonseca e o Luis atento, homem de pouco sono e muito lavor,
Como sou avesso à dor, dá-me Sepúlveda devem estar no fraco de aparência mas fino de trato, entrega-
medo e prefiro sempre viver território ainda surpreso da ra-se a si próprio uma missão. Se laboratórios
desenganado. morte a discutir revelações do mundo inteiro, com infindos recursos, se
Agora andam a morrer os maravilhosas. Somos nós quem esquivavam do maior propósito, fixando-se
melhores escritores. Iludimo- segue no desconhecido. A na lateralidade das questões, ele próprio se
nos com a história de que os vontade que tive de me sentar encarregaria de chegar à essência. Seria ele,
escritores morrem menos, mas no nosso muro da marginal foi pois, o professor Z, o anão nos ombros do
LUCÍLIA MONTEIRO

sobram corpos grandes que a tremenda. Pusera-se um sol gigante, que encontraria o famoso elixir, co-
terra devora de qualquer jeito e quente e havia menos pessoas biçado desde os tempos remotos nas arábias e
não lhes poderemos voltar a dizer a correr do que o costume. O outros orientes, mas que os cientistas moder-
obrigado e a abraçar. Porque me Rubem Fonseca Crisóstomo, o cão, está maduro nos desdenhavam fechando-o no capítulo das
eduquei com livros, e sobretudo e sossegado, já sabe meditar um lenda. Z, que tinha tanto de Fleming como de
porque com livros confirmei a pouco também, e eu sempre usei Merlin, chegaria mais cedo ou mais tarde ao
transcendência em a praia como ponto de arremesso. objeto desejado.
que acredito, a morte Espio o horizonte no modo mais ingénuo, espero que me Passou cem dias na escuridão do labora-
dos escritores vai em coloque à distância daquilo que penso, daquilo que sinto. tório, sem comer e sem dormir. A busca da
procissão por meus Espero que leve o que não sei mais suportar e me devolva à eternidade quase o matava. Mas sobreviveu.
caminhos interiores. Há areia aliviado para algum recomeço. Ao fim de cem madrugadas tinha nas mãos
um cemitério ao centro De todo o modo, não podemos sentar no muro. A um intragável líquido viscoso, que bebeu
do peito. Levantam- Estes dias levaram dois polícia passa a vociferar contra os relaxados. Subitamente, sem pensar nas consequência e, com tal
se das veias pequenos entendi que me notavam. Virou talvez um horror haver um avidez e emoção, que nem sequer anotou a
vulcões de sangue que homens que a sorte escritor em Vila do Conde. Cumprimentar o Sepúlveda, fórmula. Ficou depois à espera a ver o que
iluminam as tristezas me deu o privilégio de em Bragança, no ano de 2016, era subitamente escancarar lhe acontecia. E, como de esperado, nada lhe
que comporto. Minhas a ferida. Meu cemitério ao centro do peito esconde suas aconteceu. Um dia e outro dia e nada de nada.
lápides em movimento. conhecer. Os seus livros erupções na profunda solidão. Continuava vivo, o que era sinal que presumi-
Escuto as conversas e a generosidade com Quantas vezes me disseram que os grandes escritores velmente o elixir estava a fazer efeito.
dos que ficam pela rua estavam mortos. É uma verdade que aumenta. Estes dias O Professor Z era a única cobaia e prova
quando levo o cão. Há que me receberam é o levaram dois homens que a sorte me deu o privilégio de da sua magnânima experiência. A sua vida
aflitos pela vizinhança, sentido da vida. Devem conhecer. Os seus livros e a generosidade com que me fazia-se de intangíveis dicotomias. Sabia que,
nas casas mais adiante. receberam é o sentido da vida. Que não se duvide da por mais anos que vivesse, os outros descon-
Ouço como se espera que estar no território ainda validade de existir, se temos de existir num mundo onde os fiariam do seu feito e diriam que ele havia
o Senhor dos Navegantes surpreso da morte a podemos ler. Mais ainda se os tivermos podido abraçar. De de morrer um dia. Sabia também que, caso
acuda. A praia segue algum modo, sei bem, regressei da fugaz vista do horizonte morresse, não testemunharia o fracasso da
limpa, diria, límpida,
discutir revelações como queria, devolvido a um recomeço. O que me encoraja a sua experiência. Como todos o outros, resta-
e alguns velhos deitam maravilhosas ter sempre tudo pronto para o melhor fim possível. J va-lhe viver. J
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J 22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT

DIÁRIO
Manuela ou a ousada Gonçalo M. Tavaress

honradez dos médicos


NA HORA DE COMER O TREINADOR
Patrícia Portela

S
e eu estou bem? Claro que eu estou bem, não eu aqui com estes… Acreditas que o que eu tenho mais são médicos e
te preocupes comigo que estou ótima, a tra- enfermeiros de quarentena? E isto ainda nem começou a doer? Então não
balhar que nem uma mula como toda a vida é que com a Organização Mundial de Saúde a anunciar uma pandemia,
trabalhei que eu não sou menina de me refor- os meninos foram todos de férias no carnaval para Miami e para estâncias Ernst Jünger
mar mais cedo. Então eu não fiz medicina lá de ski e sei lá mais o quê? Tudo meninos de classe média como tu que
na União Soviética e não passei por Chernobyl querem ser ricos e marcam com sete meses de antecedência viagens que
e depois ainda estive na Jugoslávia? Ó filha,
isto é o que é, é o meu trabalho. Eu estou é
pagam a prestações para Miami, para as Caraíbas, querem ir fazer ski para
estâncias de luxo e resorts não sei o quê, parece que agora está muito na
Acidente, lentidão
preocupada contigo e com a tua filha, estão
juntas? E o pai da criança? E os teus pais andam a sair de casa? Deixa lá
moda fazer ski aqui no Alentejo. Agora voltaram de férias, e claro! Tive
de os pôr de quarentena, mas o que é que queriam? As pessoas foram
e velocidade

T
o teu pai ir comprar os jornais todos que quer, se não o homem dá em educadas assim, e isto tem de mudar. As pessoas até estão informadas,
maluco sem as suas notícias, ao menos lê jornais, não lê outras porcarias mas também sabem que vão perder o dinheiro das viagens e então vão, odos a vaguear entre saúde e doença
na net! Olha, eu cá não tenho tempo para ler nada, é uma miséria, mas porque acham que a elas não lhes acontece nada, então não ouviste falar - e cada leve sobressalto assusta-
também não te esqueças que eu já não tenho de aturar ninguém. Estou daquele casal estrangeiro que chegou de Milão e foi fazer o teste da Covid, -nos. A temperatura fiscalizada como
divorciada, a Catrian e o João já estão crescidos e lá nas suas famílias, e enquanto esperava pelos resultados meteu-se num autocarro para ir se fosse uma doida que pode fazer algo de
estão todos de boa saúde, e eu vivo para trabalhar, o meu trabalho é passar uns dias de férias à casa de verão que têm no Algarve? Mas então terrível a qualquer momento, uma entidade
mesmo assim, 18 horas por dia, mas quando chego a casa ninguém me esta não era a altura de ficar quietinho em vez de andar por aí a contami- autónoma. E a mais leve tosse acende tam-
chateia, é uma paz de alma. Aqueço uma sopa, ligo a rádio na Antena 3 nar toda a gente? Vai ter é de se rever muito bem isto tudo dos numerus bém o alarme; alarme tenso demais para ser
para ouvir a minha música clássica, ponho o alarme para daí a quatro clausus nas faculdades de Medicina. útil. Dá sinal a cada segundo; um obsessivo a
horas e durmo que é um consolo, acordo fresca que nem uma alface, dizer constantemente: atenção, atenção!
não faço mais nada em casa, qu’isso d’ouvir telejornais já desisti, já NOUTRO DIA ENTROU-ME AQUI UMA MÉDICA com ataques de Imagino um saudável a acordar a cada
não tenho idade para tanta parvoíce, não abro a televisão desde que vi pânico, a chorar e a dizer que tinha filhos, que tinha de ir para casa. E meia hora, a meio da noite, para confirmar se
aquele estafermo no telejornal dizer que os médicos andavam praí a nós aqui, com mais 30 anos do que vocês, a bulir 20 horas por dia sem ainda está saudável. Eis o processo de fazer
decidir quem é que morria e quem é que não, o parvalhão! Isso é o que nos queixarmos, então nós também não temos filhos? E os pacientes? loucos; eis o método sem falhas de fazer de
os médicos fazem toda a vida! Isto sempre foi duro! Também não? Eu até já tenho netos, e até estão muito lindos, tu já não um saudável, um doente. Se estiveres atento
Andamos aqui, a dar o nosso melhor, mas quando temos só um vens cá a casa há tanto tempo, tens de o ver que o puto mais velhos está demais à tua saúde ficarás enfermo, síntese.
ventilador, e à nossa frente um jovem de com muita graça. Vá, miúda, não te pre-
20 anos com família e filhos pequenos de ocupes comigo, está tudo nos conformes, Ernst Jünger em O Coração Aventuroso: a
um lado, e um idoso de 90 anos do outro, quem sabe se sobrevivermos a isto não “abundância de sintomas separa-nos dos doen-
o que é que fazes? Só se dizem dispa- ficamos melhor gente e com mais respeito tes como uma floresta inexpugnável: sabemos
rates. Os jornalistas deviam mas é ter uns pelos outros. Agora vou à padaria e muito pouco da saúde e demais das doenças.”
juízo, este bicho é um sacana, esta coisa é uma festa, tudo ali de luvinhas, sem Curioso que no sítio onde estamos não
é contagiosa com’ó raio, ainda ontem me aquelas porcarias daquelas pinças no- tem sido exatamente assim: uma doença
entrou aí um jovem dos seus 50 anos pelo jentas que tocavam em tudo, assim é que nova é isto: ao início, uma floresta que é
seu próprio pé no hospital a queixar-se é, digo eu à dona Marisa, sim, senhora, necessário rapidamente desbastar; fazer
que lhe doía a garganta, uma coisa leve. estou a gostar desta pandemia, e ela até se clareiras. Montar tendas provisórias e depois
Hoje está nos cuidados intensivos! Isto atira a mim e diz-me, ó doutora, como é casas lá no meio. A doença ser uma novida-
não é bonito. Sabes o que me apoquenta, que pode estar a dizer uma coisa destas? de, eis o que é estranho. Estamos habituados
Patrícia? É que a tua geração é muito mal Mas se a gente não se ri, morre de medo a doenças antigas, doenças velhas.
formada, desculpa dizer-te. Entraram e isto ainda acaba por nos limpar a todas
todos com dezoitos e dezanoves para a da face da Terra que há muito andamos Mas sim, há também uma ignorância em
universidade e sem um pingo de respeito a praticar o excesso. Andámos por aí a relação à saúde.
pelo juramento de Hipócrates! acharmos que éramos imortais e nisso, E, de facto, é o estado mais passageiro
também te digo, é verdade, nós, médicos, contribuímos muito para isso. possível, mais efémero: num segundo, a saú-
TENHO PARA AÍ NO PESSOAL UMA JUVENTUDE entre os 30 e os 50, Lidamos todos mal com a morte, é o que é. Queremos viver sem parar, de desaparece – se pensarmos, por exemplo,
altamente educados, estudiosos, bons profissionais e agora entram-me com pilhas no coração para ele continuar a bater, a tomar anticoagulantes na ocorrência de um acidente. Acidente
em histeria nos corredores e acham que não têm de estar aqui! Ainda para proteger os orgãos dos comprimidos que nos põem outras partes do como doença súbita, doença que ocupa um
ontem pedi para uns quantos irem fazer uns testes lá na pneumologia, corpo a funcionar. Não é por nada, mas não achas graça que a nossa últi- corpo num segundo; faz um assalto. Por isso
sim, porque nós temos pacientes que entraram aqui antes disto tudo ma grande discussão no parlamento tenha sido sobre a eutanásia? É que se fala de acidentes vasculares, de acidentes
e não foram testados, pedi-lhes para fazer lá a zaragatoa, que é o teste o vírus agora não dá direito de escolha a ninguém, chegou aqui e disse: cardíacos. Não há aproximações, não se vê
que nós fazemos à garganta e ao nariz para ver se apanhamos o bicho quem escolhe agora sou eu! a doença chegar vinda de longe. Quando
antes dele entrar pelo organismos a dentro, e então não é que uma das Vá filha, bebe muita águinha quente e descalça os sapatos antes de chega está tão perto que já está dentro.
médicas mais novinha desatou aos gritos a dizer “ela está contamina- entrares em casa, não andes para aí a querer salvar o mundo com isto Depois de chegar, a doença não se evapora
da, ela está contaminada, eu tenho filhos eu não tenho de estar aqui”? e com aquilo, que o mundo quer é paz e sossego. E mudar de ciclo. E de um momento para o outro. Para pena nossa,
Ó, Patrícia, são poucos os casos, certo, a maioria da malta sabe ao que avançar. não há um acidente invertido, um acidente
vem, fomos treinados para isto, mas há estafermos da tua idade que só Isso do Jacques ter morrido por causa do Covid é uma merda, mas é o bom, um milagre. O acidente é súbito, a doen-
de pistola na nuca veem trabalhar! Já sabes como eu sou, não é? Eu falo que é, vai-nos chegar a todos, obrigada por me teres telefonado a dizer. ça vai aparecendo aos poucos e a cura tem pelo
assim, que eu não tenho tempo para falinhas mansas, isso é lá para os Era um homem bom, esteve os últimos dez anos da sua vida a cuidar da menos a lentidão da doença lenta. J
políticos que ainda não perceberam que o vírus não está cá a contar com Laura que tinha esclerose múltipla para agora morrer sozinho, louco de
as sondagens para as suas eleições. desgosto com a morte da mulher, e num puto de um lar. Quando isto
Lembro-me muitas vezes da tua irmã, que tentou entrar quatro acabar, que não vai acabar nunca, vens passar um fim de semana cá a
vezes para Medicina e faltava-lhe sempre uma décima, agora fazia ela cá casa, sim? Tu também levas uma vida louca e qualquer dia dás cabo do
falta, em vez de estar para lá no Cacém a dar aulas de hidroginástica, o teu fígado também. Vá, descansa, prometo que no primeiro minuto livre
que também é ótimo, mas não é o que ela queria. E enquanto isso fiquei te volto a telefonar. J
Nº 280 * 22 de abril a 5 de maio de 2020
Suplemento da edição nº 1293, ano XL,
do JL, Jornal de Letras, Ar tes e Ideias
com a colaboração do Camões, I.P.

Relatório do Desenvolvimento Humano 2019


Pedro Conceição:
“Está a surgir uma nova geração
de desigualdades”
Pág. 2/3

Dia Mundial da
Língua Portuguesa
Pág. 3

Plano de Incentivo
à Leitura da rede EPE
MICHELLE ALVES DE LIMA

Pág. 4
2 CAMÕES

22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT

Relatório do Desenvolvimento Humano 2019


Pedro Conceição: “Está a surgir uma
nova geração de desigualdades”
“Além do rendimento, além reduzam o desempenho de uma
das médias, além do presen- economia a uma taxa de crescimento
te: Desigualdades no desen- agregada da atividade económica
volvimento humano no século como o crescimento do PIB.
XXI” é o título do Relatório do
Desenvolvimento Humano de 2019, Por fim: “Podemos corrigir as desi-
recentemente divulgado. Produzido gualdades se agirmos já, antes que os
pelo Gabinete do Relatório do desequilíbrios no poder económico
Desenvolvimento Humano, para o se consolidem politicamente” é a
Programa das Nações Unidas para quinta “mensagem principal”.
o Desenvolvimento, o documen- É através de políticas públicas e
to está também disponível numa das ações dos decisores políticos
versão portuguesa, patrocinada pelo que é possível tomar medidas que
Camões I.P., que pode ser consultada reduzam as desigualdades, mas se
no site do Instituto. essas decisões são condicionadas por
Pedro Conceição, diretor e aqueles que querem manter as suas
redator principal do Gabinete do posições privilegiadas, para si e para
Relatório do Desenvolvimento os seus, isso torna-se mais difícil.
Humano, foi um dos convidados Haver oportunidades mais equitati-
do Seminário do Camões I.P. sobre vas não é só uma questão de justiça –
Cooperação, Cultura e Língua, é também uma questão de eficiência
realizado em janeiro deste ano, na económica, já que não é provável
Fundação Calouste Gulbenkian, em que os filhos dos mais privilegiados
Lisboa. Ao jornal do Camões I.P., fala sejam também aqueles mais bem
agora sobre as principais conclu- preparados para ocupações bem re-
sões do estudo que aponta para a muneradas. Imaginemos se a forma
ascensão de “uma nova geração de de selecionar os jogadores de futebol
desigualdades”. para a seleção nacional fosse feita de
acordo com o facto de os pais terem
Comecemos pelo título do relatório. Pedro Conceição Diretor e redator principal do Gabinete do Relatório do Desenvolvimento Humano para o Programa também sido selecionados. Não só
Qual o significado da formulação das Nações Unidas para o Desenvolvimento isso seria uma grande injustiça, mas
“além do rendimento, além das a seleção não seria grande coisa. Mas
médias, além do presente” para a é assim que muitas sociedades hoje
compreensão das “desigualdades no em dia funcionam…
desenvolvimento humano no século para além de indicadores sintéticos trás, por isso é importante salientar do, com frequência, desequilíbrios
XXI”? e agregados. Por fim, pareceu-nos que, apesar do progresso, há grandes profundos de poder”. O relatório chama, também, a
Quando começámos a trabalhar no que o desconforto relativamente às desigualdades que persistem. De facto, as desigualdades come- atenção para duas “novas desigual-
relatório, confrontámo-nos com desigualdades – neste sentido mais çam até antes do nascimento, com dades”: as alterações climáticas e
um debate centrado no aumento abrangente – tinha menos a ver com A segunda “mensagem principal” o desenvolvimento das pessoas ao as transformações tecnológicas.
da desigualdade na distribuição do tentar perceber as causas (o que afirma que: “Está a surgir uma nova longo da vida influenciado não só De que forma, tanto uma como a
rendimento que parecia dominado domina o debate académico) e estava geração de desigualdades, com a pelas decisões que os pais fazem outra, contribuem para uma maior
pela realidade do que se passava nal- mais relacionado com a forma como divergência nas capacidades avan- relativamente à educação e saúde desigualdade?
guns países desenvolvidos – onde, de as pessoas percebiam as oportunida- çadas, apesar da convergência nas dos seus filhos, mas também pelas O impacto das alterações climá-
facto, se tem verificado uma grande des que tinham olhando para o futu- capacidades básicas”. oportunidades e redes sociais a que ticas afeta mais rapidamente e de
concentração na distribuição do ro, num mundo em grande mudança. Essa é talvez a mensagem mais as famílias têm acesso. E aqueles que forma mais profunda aqueles que já
rendimento. Mas, em muitos outros importante do relatório. Embora haja têm as melhores condições têm mais estão mais vulneráveis e têm menos
países, a realidade parecia diferente. Que ‘retrato’ faz o relatório das desi- desigualdades que persistem em to- poder económico e político, e ten- recursos – por exemplo, quando a
De acordo com o Banco Mundial, a gualdades no desenvolvimento huma- dos os domínios de desenvolvimento dem a preservar esse poder para eles agricultura se torna mais difícil ou
desigualdade medida através de indi- no no século XXI? Caminhamos para humano, estas têm-se reduzido em mesmos e para as suas famílias. há um desastre natural. Por isso,
cadores como o coeficiente de Gini – uma menor ou maior desigualdade? aspetos que designamos por “capa- tenderá a aumentar as desigual-
que se pode considerar um indicador Há aspetos em que as desigualdades cidades básicas”. Por outro lado, em A quarta “mensagem principal” dades. Por outro lado, o facto de
que dá uma perspetiva agregada, têm diminuído, mas outros em que capacidades que designamos como aborda a questão, já aqui referida, da haver desigualdades pode tornar a
ou “média” sobre a distribuição do têm aumentado: há convergência, “avançadas” as desigualdades estão a necessidade de recorrer a outro tipo resposta mais difícil – por exemplo,
rendimento – decresceu em 2 em mas também divergência. aumentar. Por exemplo, no domínio de indicadores de desigualdade. Cito: a redução de subsídios aos combus-
cada 3 países em desenvolvimento da educação, uma capacidade básica “A avaliação e a resposta às desigual- tíveis, que tem gerado tantas mani-
nos últimos anos. Ao mesmo tempo, Isso leva-nos à primeira das “cinco seria a taxa de escolaridade na edu- dades no desenvolvimento humano festações por esse mundo fora. E o
informação vinda de sondagens de mensagens principais” enunciadas cação primária, em que as diferenças exige uma revolução nas métricas”. mesmo se pode passar com as novas
opinião indicava-nos que, em todo no relatório, que diz que: “As dispa- têm caído rapidamente, mas na Sim. Como disse anteriormente, tecnologias, que têm o potencial de
o mundo, a proporção da população ridades no desenvolvimento humano escolaridade terciária há divergên- olhar para indicadores agregados automatizar muitas das tarefas que
que dizia ser importante diminuir a permanecem generalizadas, apesar cias tanto entre países como dentro sobre a evolução da desigualdade são atualmente feitas por pessoas
desigualdade vinha aumentando. Este dos progressos na redução das priva- de países – com os mais afluentes a não reflete a forma como as pessoas – com as tarefas susceptíveis de
aparente paradoxo, entre o que as ções extremas”. atingir níveis de educação superior são afetadas ao longo da distribuição automação incidindo mais sobre
pessoas diziam e aquilo que os dados Precisamente. Tem havido grande que estão cada vez menos acessíveis do rendimento. Muitas vezes, estas alguns segmentos da população que
sobre a distribuição do rendimento progresso em muitos indicadores de aos menos afluentes. medidas agregadas não mostram a já têm menos recursos. Embora não
– baseados em “médias” – mostra- desenvolvimento – a pobreza extre- acumulação do rendimento no topo todos. Há atividades com remune-
vam, levou-nos a explorar outras ma tem vindo a cair, a mortalidade Já a terceira “mensagem principal” da distribuição, por exemplo – para rações baixas que não podem ser
dimensões para além do rendimento, infantil também –, mas há segmentos lembra que: “As desigualdades acu- isso, é preciso investir em ter mais automatizadas, como, por exemplo,
e através de informação que fosse da população que estão a ficar para mulam-se ao longo da vida, refletin- informação e medidas que não os serviços de limpeza.
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT CAMÕES 3 ↗

“Por toda a parte, as disparidades de


género estão entre as formas mais
uma metodologia de análise e um
enquadramento para um conjunto de Dia Mundial da Língua Portuguesa
enraizadas de desigualdade. Uma ações que, dependendo do contexto,
vez que estas desvantagens afetam podem ser consideradas. O que é
metade do mundo, a desigualdade de importante salientar é que não se
género é uma das maiores barreiras deve circunscrever o domínio de No próximo dia 5 de Maio celebra- aprovou uma decisão que reco- pessoas, a língua portuguesa é a mais
ao desenvolvimento humano”, lê-se intervenção a questões fiscais, de -se, pela primeira vez, o Dia Mundial mendava à Conferência Geral da falada no hemisfério sul e a quarta
no relatório. Quais as principais con- distribuição de rendimento através da Língua Portuguesa, depois de UNESCO a adoção de uma resolução mais falada do mundo. O português
clusões nesta matéria? de impostos mais ou menos progres- a Organização das Nações Unidas proclamando o 5 de Maio como Dia está, assim, entre as cinco línguas
A contribuição mais importante sivos, ou transferências de rendi- para a Educação, Ciência e Cultura Mundial da Língua Portuguesa. A mais faladas, atualmente, em todo o
é a quantificação de preconceitos mento – embora estes aspetos sejam (UNESCO) o ter oficializado no pas- proposta foi submetida ao Conselho mundo, e também entre as cinco mais
contra a igualdade de género, através importantes. É crucial olhar também sado dia 25 de novembro de 2019. Na Executivo pelos nove países da CPLP, usadas pelos utilizadores da Internet.
da introdução de um novo índice. para a forma como as desigualdades sequência da pandemia de Covid-19, tendo contado com o copatrocínio de As projeções para o final do século
O índice é construído através de podem evoluir ao longo da vida das o evento comemorativo do Dia mais vinte e quatro países de todos os apontam que será no continente
respostas a inquéritos de opinião pessoas, mesmo antes de nascerem, Mundial da Língua Portuguesa, que continentes e regiões do mundo, e, africano que se registará o maior
a perguntas como: “Um homem é e também olhar para a forma como tem a CPLP - Comunidade dos Países por fim, com o endosso dos cin- aumento do número de falantes,
um melhor líder político que uma os mercados funcionam – por exem- de Língua Portuguesa, a UNESCO e a quenta e oito membros do Conselho estimando-se que, em 2100, haja
mulher?” Se a resposta for “sim”, plo, a política de concorrência pode ONU News como parceiros, terá um Executivo. A deliberação final acon- mais de 487 milhões de falantes, dos
o índice codifica a resposta como ser importante não só do ponto de formato digital e será transmitido on- teceu a 25 de novembro de 2019, na quais mais de 276 milhões estarão em
indicando um preconceito contra vista da eficiência económica, mas line no próprio dia através das redes 40.ª Conferência Geral da UNESCO. África.
a igualdade de género. Há pergun- também tem grandes implicações na sociais do Camões I.P. Falada por cerca de 260 milhões de Além de ser língua oficial dos 9
tas não só no domínio da política, distribuição do rendimento. A iniciativa portuguesa para países-membros da CPLP, o portu-
mas também economia e outros. E celebrar o Dia Mundial da Língua guês é também língua oficial e/ou de
verificamos que 90% das pessoas em Na sua perspetiva, que impacto terá a Portuguesa divide-se em dois mo- trabalho em organizações inter-
todo o mundo tem, pelo menos, um pandemia de Covid-19 nas questões mentos: um primeiro momento com nacionais como a União Europeia,
destes preconceitos. Estas “normas da desigualdade? mensagens e testemunhos de figuras UNESCO, Organização Mundial da
sociais” condicionam muito o papel Ainda não sabemos, mas a curto institucionais, do plano nacional e Saúde, Organização dos Estados
das mulheres nas nossas sociedades. prazo parece evidente que os mais internacional, bem como de artistas, Comemorado, desde Americanos, Mercosul, Comunidade
vulneráveis e com menos recursos escritores, cientistas ou desportis- de Estados Latino-Americanos e
“Não há nada de inevitável em serão mais afetados. Não só porque tas; e um concerto, intitulado “A 2009, nos países da Caribenhos, Organização dos Estados
muitas das desigualdades mais muitas das atividades económicas Delegação”, que juntará músicos do CPLP, o dia 5 de Maio Ibero-Americanos para a Educação,
perniciosas ao nível do desenvolvi- em que estão ativos são afetadas, espaço lusófono. a Ciência e a Cultura, União Africana,
mento humano”. Esta é, segundo o mas também porque não terão as tais Comemorado, desde 2009, nos será celebrado como Zona de Paz e Cooperação do
relatório, uma das suas mensagens “capacidades avançadas” que per- países da CPLP, o dia 5 de Maio será o Dia Mundial da Atlântico Sul, entre muitas outras.
mais importantes. Que propostas são mitem a tantos responder à crise. Por celebrado como o Dia Mundial da Segundo o Fundo Monetário
apresentadas no sentido da redução exemplo, a educação remota através Língua Portuguesa pela primeira
Língua Portuguesa pela Internacional (FMI), as 9 economias
das desigualdades? da Internet presume acesso a um vez desde a sua oficialização pela primeira vez desde a da CPLP, em conjunto, valem cerca
É difícil para um relatório glo- computador e a redes relativamente UNESCO. A 17 de outubro de 2019, de 2.700 milhões de euros, o que faria
bal fazer recomendações muito rápidas, o que não está disponível na sede da UNESCO em Paris, o
sua oficialização pela deste grupo a sexta maior economia do
específicas. O que apresentamos é para muita gente. J Conselho Executivo da organização UNESCO mundo, se se tratasse de um país. J
4 CAMÕES

22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT

Ensino Português no Estrangeiro


Camões I.P. disponibiliza curso
“Do presencial ao online
Na língua de Camões: Cátedras pelo mundo
– guia de apoio à rede EPE” Brasil: Cátedra Jaime Cortesão
Tendo em conta os desafios que o contexto atual
coloca ao exercício da atividade dos docentes da
rede de Ensino Português no Estrangeiro (EPE), VERA FERLINI
decorrentes da pandemia de Covid-19, o Camões
I.P. disponibilizou, na sua plataforma de elearning, A Cátedra Jaime Cortesão da
o curso “Do presencial ao online – guia de apoio à Universidade de São Paulo (USP) é a mais
rede EPE”. antiga Cátedra do Camões, I.P., criada
Na rede desde o passado dia 24 de março, em 1991, pela Comissão Nacional para
o curso tem como primeiros destinatários os a Comemoração dos Descobrimentos
professores do EPE, mas está também disponível Portugueses e incorporada no Instituto
para docentes em geral, fornecendo um apoio à
em 1994. Esteve vinculada ao Instituto
adaptação para a modalidade de ensino online em
de Estudos Avançados da USP até 1998,
que primordialmente se desenvolve, no momento,
a sua ação. quando passou para a Faculdade de
O curso, de frequência gratuita e certificado Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
como Ação de Formação de Curta Duração (6 associando os Departamentos de História
horas de trabalho), foi desenvolvido pela Doutora e de Letras Clássicas e Vernáculas.
Adelina Moura, em articulação com o Camões O patronato de Jaime Cortesão define
I.P., encontrando-se estruturado em três módulos sua vocação, voltada para o estudo, pes-
assíncronos, para acesso com maior facilidade: quisa e divulgação da História de Portugal
Implicações didáticas na passagem ao ensino online e do mundo de língua e colonização Cátedra Jaime Cortesão Vera Ferlini, diretora da Cátedra Jaime Cortesão da Universidade de São Paulo
(2 horas); Ferramentas web síncronas e assíncronas portuguesas, valorizando o debate que
(2 horas); e Ferramentas mobile (2 horas). permite reconsideração crítica e aber-
Para mais informação e inscrições, aceda à app ta dos processos comuns e das trajetórias Portugal e Brasil foram ainda mais incenti- de investigação, docência e divulgação. Em
Camões eLearning ou à plataforma de elearning do específicas. vados com Joaquim Barradas de Carvalho 2019, foram realizados 5 encontros interna-
Camões I.P., no site do Instituto. Desde sua fundação, em 1934, a USP (1964-1970), estimulando pesquisas sobre a cionais, 108 oficinas de trabalho, minis-
esteve ligada aos estudos portugueses com época dos Descobrimentos. tradas 4 disciplinas de graduação para 300
Moçambique Rebelo Gonçalves, Canuto Soares e Fidelino Essa linhagem inspirou, em 1991, a cria- alunos e 15 cursos de atualização e difusão,
Eliana N’Zualo vence 2.ª edição de Figueiredo. Essas raízes são evidenciadas ção desta Cátedra, permitindo o incremento publicados 6 livros e 24 artigos em revistas
da Residência Literária na cidade quando Eduardo d’Oliveira França apresen- dos estudos de História Ibérica. O convênio científicas.
de Lisboa tou a tese de doutoramento O Poder Real em com Universidades portuguesas possibilitou A Plataforma Cátedra Digital, em
Portugal e as Origens do Absolutismo (1946) a realização de pesquisas conjuntas, com finalização, disponibilizará os catálogos
A escritora e a sua tese de Cátedra Portugal na Época da o acolhimento de 132 bolsistas brasileiros, das bibliotecas da Cátedra e da Casa de
Eliana N’Zualo é a Restauração (1951). A cadeira de História financiados com as verbas do Camões, I.P.. Portugal na base Bibliolusitana, além de
vencedora da 2.ª Moderna inaugurou uma linhagem de estu- Esse apoio corresponde a cerca de 33% do dados sobre a estrutura fundiária colonial, a
edição da Residência dos sobre Portugal e História Luso-Brasileira orçamento e constitui um poderoso aval na Rede Internacional de História do Açúcar e
Literária, a realizar- com, entre outros: Manuel Nunes Dias O ca- demanda às financiadoras brasileiras para a conteúdo audiovisual.
se em setembro/ pitalismo monárquico português 1415 – 1549; consecução de eventos, oficinas e cursos. Espaço privilegiado de pesquisas e di-
outubro de 2020, Carlos Guilherme Mota A idéia de revolução A Cátedra agrega mais de 100 pesqui- vulgação da História e da Cultura lusófona,
em Lisboa. Criado ao no Brasil 1789-1801; Fernando Antonio sadores, em 11 projetos e laboratórios de a Cátedra busca continuamente aprimorar
abrigo do Protocolo
Novais Portugal e Brasil na crise do Antigo pesquisa, dedicados aos estudos da história e atualizar suas ações, no diálogo com as
de Cooperação
Sistema Colonial 1777-1808. Os estudos sobre e da cultura lusófona, com intensa atividade comunidades acadêmicas e a sociedade. J
celebrado entre
Eliana N’Zualo o Camões –
Centro Cultural
Português em
Maputo e a Câmara Municipal de Lisboa (CML), o
programa destina-se a escritores de nacionalidade Plano de Incentivo à Leitura da rede EPE: Um balanço positivo
moçambicana com obra publicada, com residência
oficial em Moçambique ou que se encontrem a viver,
estudar e/ou trabalhar no país e que pretendam Mais bibliotecas, mais atividades de pro- 2019 e 2019 realizaram-se 34 visitas, sendo
desenvolver um projeto de criação literária, moção de leitura e uma maior participação que no ano anterior fizeram-se 35. Entre as
coerente com o seu percurso e pertinente na de alunos e professores nessas iniciativas. Eis atividades decorridas, as que se realizaram
proposta de relação com a cidade de Lisboa. o ‘balanço’ positivo do Plano de Incentivo à em maior número foram “Leitura Orientada”
O júri constituído por Clara Riso (Casa Fernando Leitura (PIL) referente a 2018-2019 e 2019, que (233), “Consigo, Ler” (113), “Biblioteca de
Pessoa, convidada), Manuel Veiga (CML) e João dá conta da “consolidação e boa execução” do Turma (95), “Celebrações do Dia da Língua
Pignatelli (Camões – Centro Cultural Português em
projeto que pretende contribuir para a difusão Portuguesa” (65) e “Leva, Lê, Troca” (50).
Maputo) decidiu, por unanimidade, selecionar o
da língua, da cultura e da literatura de expres- Destaque-se ainda, em 2018-2019,
projeto de trabalho de Eliana N’Zualo.
A viver em Maputo, Eliana N’Zualo considera-se são portuguesa junto das crianças e jovens a realização da 6.ª edição do Concurso
uma storyteller. Através do blogue “Escreve Eliana, do ensino básico e secundário dos cursos de Internacional de Leitura, uma iniciativa do
Escreve” e do podcast “O Nome Disso É África”, língua e cultura portuguesas da rede de Ensino PIL em articulação com o Plano Nacional de
explora temas como Mulher, África, História e Português no Estrangeiro (EPE) do Camões I.P. Leitura 2027. A edição deste ano foi cancelada
Política. É fundadora e membro do coletivo “Mata- Implementado no ano letivo de 2012- devido à pandemia de Covid-19. J
bicho Feminista”, que pretende ser um espaço de 2013, o PIL tem vindo a afirmar a sua Plano de Incentivo à Leitura
debate e reinvenção do feminismo em Moçambique. importância na rede EPE, contribuindo
Em 2017, foi oradora no TEDxMaputo e, em 2018, para a promoção da criação de hábitos de
facilitadora da residência artística Colab Now leitura e para a divulgação de autores e obras
Now, realizada no âmbito do Festival Maputo Fast de literatura de expressão portuguesa. Os atividades em 2017-2018 e 2018).
Forward, em Maputo. dados de 2018-2019, que agora divulgamos, Também cresceu o número de alunos e de
Em 2019, publicou o livro infantojuvenil O superam os bons resultados do ano anterior professores que participaram nas ativi-
Elefante Tendai e os Primos Hipopótamos, com a em praticamente todos os indicadores. Camões, I.P.
dades do PIL: foram 61.279 participações
chancela da editora Fundza, sediada na cidade
Foram enviadas 42 bibliotecas para a rede de alunos, verificando-se um aumento de Av. da Liberdade, n.º 270
da Beira, em Moçambique. A autora participou
EPE e 12 para Centros de Língua Portuguesa. 6,4% em relação ao ano anterior (57.617 1250-149 Lisboa
também na 1.ª edição da Residência UpCycles
(dedicada aos arquivos audiovisuais), em 2019, No total, entre 2013 e 2019, foram enviadas participações de alunos em 2017-2018 e TEL. 351+213 109 100

em Maputo, e na 1.ª edição da residência para 1.071 bibliotecas do PIL para a rede EPE e 2018); e 1.887 participações de professores, FAX. 351+213 143 987

escritores, jornalistas e críticos em Língua pontualmente para outros destinos. registando-se um aumento de 17,5% em www.instituto-camoes.pt
Portuguesa Talent Press Rio, em 2016, no Brasil. Foi Quanto às atividades, as Coordenações de relação ao ano anterior (1.606 participações jlencarte@camoes.mne.pt
coprodutora do Festival Internacional de Poesia e Ensino Português no Estrangeiro registaram de docentes em 2017-2018 e 2018). PRESIDENTE Luís Faro Ramos
Artes Performativas Poetas d’Alma, realizado em 1.110, observando-se um aumento de 5,1% Já o número de visitas de escritores à COORDENAÇÃO Vera Sousa
2019, em Maputo. em relação ao ano anterior (foram 1.056 rede EPE desceu ligeiramente: em 2018- COLABORAÇÃO Carolina Freitas
Paulo Pedroso Rui Pacheco
Para a emergência de saúde Uma Escola Virtual
não se tornar uma crise educativa p. 3 a 5 para 700 mil alunos p. 6

J educação
Nº 1293 * Ano XL * 22 de abril a 5 de maio de 2020 * Diretor José Carlos de Vasconcelos

João Costa
Combater as desigualdades
envolvendo todos os responsáveis
“Há dois princípios de que não abdicamos: manter a sinalização e acompanhamento dos casos de crianças
em abandono ou em risco de abandono e manter ativas as medidas de apoio que as escolas tinham
(para combater as desigualdades)”, diz o secretário de Estado Adjunto e da Educação, em entrevista
ao JL/Educação, a propósito das decisões e medidas tomadas pelo Governo nessa área na sequência
e em consequência da Covid-19, que levou designadamente, na parte final do 2º período, a acabar
com as aulas presenciais nos vários graus de ensino

D
Desde o início do primeiro governo
de António Costa que é secretário
de Estado da Educação, integrando
Esta foi uma mudança
radical e, por isso, deve
haver colaboração
com a escola e os
professores, em vez
de um constante
lamentar pelo que
não está a correr bem.
Perguntemo-nos: o
a equipa do ministro Tiago Brandão
que posso eu fazer para
Rodrigues. Isso quer dizer que João correr melhor?
Costa, 47 anos, vai para cinco que
tem responsabilidades importantes
naquele ministério, considerando
designadamente o seu percurso de fazer provas de ingresso para o
PEDRO PINA

e a sua preparação. Recorde-se ensino superior, dado que são mais


que, doutorado em Linguística na velhos, conseguindo maior disci-
Universidade de Leiden, na Holanda, plina no cumprimento das regras de
e tendo sido investigador visitante O secretário de Estado João Costa (à esq.ª), com o primeiro-ministro António Costa e o ministro da Educação Tiago Brandão segurança e porque, em anos ter-
do MIT, João Costa é prof. catedrá- Rodrigues, na inauguração da nova Telescola Não há educação se o principal foco dos sistemas educativos não for a inclusão minais, a possibilidade de recuperar
tico de Linguística na Faculdade aprendizagens é menor.
de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa, de que Consultivo do Instituto Camões. João Costa: Em primeiro lugar, por- no arranque do terceiro período. No que respeita ao ensino não
aliás era diretor quando em novem- Ouvimo-lo sobre as questões mais que o que estamos a gerir são as con- Outra opção principal foi apoiar as presencial...
bro do 2015 passou a integrar o XXI candentes que neste momento se sequências e impactos de um surto escolas na implementação dos seus A nossa maior fonte de preocupa-
Governo Constitucional. De referir coloca(ra)m em relação às escolas e epidemiológico, importa seguir as planos de ensino à distância, com ção tem sido – e deve continuar a
ainda que foi também prof. convi- ao ensino não superior. instruções das autoridades de saúde. a disponibilização de formação, de ser – a mitigação de desigualdades.
dado em várias universidades es- O funcionamento do terceiro perío- informação sobre plataformas, de Esta crise torna mais acentuadas as
trangeiras, presidente da Associação JL/Educação: Quais foram as do, a eventual retoma de atividades normas de segurança, de recursos desigualdades que já existiam no
Portuguesa de Linguística e membro opções estratégicas, ou linhas gerais presenciais, depende sempre em educativos digitais e transmitidos sistema educativo. As crianças mais
do Conselho Científico do Plano de orientação, do Ministério da primeiro lugar das condições que nos pela televisão. Na eventual retoma vulneráveis estão mais isoladas,
Nacional de Leitura, da Comissão Educação e do Governo, para as asseguram que continuamos a prote- das atividades, optou-se por um mais expostas a situações de risco e
Nacional do Instituto Internacional decisões tomadas em relação ao ger-nos do vírus. Por isso mesmo, as recomeço parcial, com um apoio menos acompanhadas no processo
de Língua Portuguesa e do Conselho terceiro período deste ano letivo? aulas presenciais não são retomadas presencial aos alunos que precisam de aprendizagem. As escolas têm
2 EDUCAÇÃO

22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT

ENTREVISTA

recebido orientações para garantir os alunos, segundo as condições a construir instrumentos de apoio
que o contacto não se perde e têm económicas e sociais das famílias? para as escolas.
vindo a estabelecer parcerias com as Como disse, e repito, esse é o
mais variadas entidades para garantir principal foco de preocupação e no Por que motivo se avança com a
esse contacto e o melhor acom- qual concentramos agora a nossa possibilidade de aulas presenciais
panhamento possível do terceiro ação em conjunto com outras áreas para alunos do 11.º e 12.º e apenas
período. Esta é uma área que precisa do Governo. Tínhamos a decor- para eles?
de mobilizar todos. rer vários programas que visavam Porque, como referi, eses alunos
combater os efeitos do contexto estão em processo de conclusão
Que balanço faz da curta experiência socioeconómico das famílias, como e têm o acesso ao ensino superior
de ensino à distância durante o final o Apoio Tutorial Específico, o reforço dependente da realização das provas
do segundo período? O que deve e de psicólogos escolares, muitas das de ingresso.
pode ser melhorado? medidas desenvolvidas no âmbito do
Antes de tudo, devemos dar uma Programa Nacional para a Promoção Até que ponto será possível 'mitigar'
palavra de agradecimento e louvor do Sucesso Escolar, a estratégia para a ausência de aulas presenciais?
à atuação dos professores. Poucos as comunidades ciganas, apenas Eu não acredito em sistemas edu-
sistemas responderam tão agilmente para dar alguns exemplos. cativos exclusivamente remotos,
como o nosso. Na generalidade dos A proximidade é crítica nestes sobretudo nas idades entre os 3 e
casos, passados dois dias do encer- programas, porque a escola e a socia- os 18 anos. Podem apresentar-se

PEDRO PINA
ramento das escolas, já tínhamos lização que promove são chaves para novos conteúdos, explorar novas
alunos a trabalhar remotamente com a integração e a inclusão. Sabemos potencialidades, mas a essência
a maioria dos professores. Foi uma que vários alunos só vêm à escola do ato educativo é a relação que se
resposta rápida, com esforço enorme porque há pressão sobre as famílias, “Estudo em Casa, aulas à distância no canal da RTP Memória” estabelece entre pares, entre profes-
dos professores. O que estamos por exemplo, para a manutenção sores e alunos. A boa aprendizagem
a pedir-lhes compara-se ao que de vários apoios sociais. Há dois requer relação e empatia. Nenhuma
seria recuar uns anos e pedir a um princípios de que não abdicamos: máquina substitui isto. Por isso,
tipógrafo que em dois dias come- manter, através das CPCJ, a sinali- das desigualdades em todos os seto- programas que funcionam sequenci- nunca concordo com os que veem
çasse a usar métodos sofisticados zação e acompanhamento dos casos res, sendo algumas muito invisíveis. almente e de modo autónomo e que este momento como a possibilidade
de impressão sem ter tempo para de crianças em abandono ou em Por isso, é preciso um grande com- constituem recursos pedagógicos de pensar o que pode ser a educação
se preparar. Por ser rápida e ágil, risco de abandono e manter ativas promisso de toda a sociedade para complementares ao trabalho que os no futuro. Para bem do desenvol-
manteve a ligação, mas como em as medidas de apoio que as escolas que elejamos o combate às desigual- professores fazem com os alunos. vimento integral dos jovens, espero
tudo há sempre aspetos a melhorar. tinham, tendo nós convidado as dades como prioridade. Estes recursos do #EstudoEmCasa que estejam profundamente errados.
A concentração numa só plataforma, Equipas Multidiscplinares de Apoio à são disponibilizados diariamente
a variedade de atividades propostas, Educação Inclusiva a desenvolverem Foi possível preparar professores e e foram produzidos por sabermos Prevê-se alguma forma de
a capacidade de centrar muito do estratégias específicas de manuten- escolas para esta nova realidade? que há alunos que não têm forma compensar possíveis lacunas de
trabalho no aumento da autonomia ção dos apoios existentes. A dimen- Nenhum sistema educativo estava de aceder via internet. Mas não aprendizagem - e como avaliá-
dos alunos, a reorganização dos tem- são comunitária é aqui essencial. preparado para esta mudança funcionam por si só. Por isso, as las?... - durante o próximo ano?
pos de trabalho. Tudo isto são aspetos abrupta. As escolas e os professores escolas integram-nos no seu plano Sim. Conforme anunciado pelo
em que temos vindo a dar apoio às A dimensão comunitária? estão a dar o seu melhor e nós, com de educação à distância e, de forma primeiro-ministro, todas as soluções
escolas. Também sabemos de casos O aumento das desigualdades será muitos parceiros e especialistas em muito particular, no trabalho que deste ano têm impacto no próximo
em que nada aconteceu ou em que o tanto mais combatido e minorado educação a distância, a disponibili- fazem na área dos planos específicos ano letivo, que preverá medidas de
trabalho se limitou ao envio de fichas quanto houver um envolvimento de zar recursos e formação. Mas, como para trabalharem com os alunos que recuperação das aprendizagens.
por email. Mas devemos sempre todos os responsáveis: autarquias, é evidente, esta adaptação requer têm conectividade reduzida.
ter bem presente que esta foi uma segurança social e todas as estrutu- tempo, porque os métodos são A Comissão Nacional de Protecção
mudança radical e, por isso, deve ras que, localmente, prestam apoio diferentes, o papel dos professores, Porque não abrange o Ensino de Dados alertou para possíveis
haver colaboração com a escola e os aos alunos e estruturas de suporte dos alunos e dos encarregados de Secundário, as aulas são mistas e de perigos do ensino à distância para a
professores, em vez de um constante às famílias. Vale a pena ler o artigo educação altera-se. Por isso, a nós, apenas 30 minutos? privacidade de alunos e professores.
lamentar pelo que não está a correr “Máquinas de Desigualdade” que o no Ministério da Educação, compete Privilegiou-se o Ensino Básico, por Entende que existem e, caso
bem. Perguntemo-nos: o que posso Rui Pena Pires publicou há dias. O dar recursos e formação, mas tem de duas razões: o número de alunos positivo, há forma de os anular ou
eu fazer para correr melhor? confinamento tem faces no aumento haver muita interajuda e intercom- sem equipamento e conectividade é minorar?
preensão face a esta mudança tão muito inferior no Ensino Secundário Trabalhamos em conjunto, nas
Como tentará o Ministério da brusca. Vale a pena lembrar que há face ao Básico e também porque o últimas semanas, com a Comissão
Educação minorar a impossível formação em ensino à distância há número de disciplinas do Ensino e com o Centro Nacional de
universalidade do ensino em cerca de 30 anos, por isso temos Secundário, consideradas todas as Cibersegurança, tendo sido possível
condições mínimas, atendendo à muitos professores capacitados e vias e cursos, nunca conseguiria enviar às escolas recomendações e
percentagem de alunos que não têm formados, que assumem um papel ser construída numa grelha única. orientações para diferentes plata-
acesso a um computador e/ou à Há dois princípios de muito importante nas suas escolas. Falamos de centenas de disciplinas e formas e meios de comunicação que
internet - e alguns, se calhar, nem à que não abdicamos: opções. A forma de organização que anulam e minoram esses riscos.
própria televisão? Então que medidas tomou ou vai concebemos assenta numa lógica
O Governo tem, no seu programa,
manter, através das tomar o ME para que a qualidade de gestão do currículo por ciclos. A Será que a situação que se vive no
um plano de transição digital com um CPCJ, a sinalização e do ensino à distância não esteja duração segue as recomendações país e na educação poderá/deverá
foco grande na educação. Este pro- só dependente da capacidade do que são tempos de atenção em suscitar alguns pontos de reflexão
grama estava em marcha e continua.
acompanhamento dos tecnológica da escolas e professores, ensino remoto. e contribuir para a construção, no
Neste momento, demos prioridade a casos de crianças em ou de cada escola e professor? futuro, de uma escola melhor?
alunos com deficiência, mas contamos abandono ou em risco Para além do reforço de formação, Como serão feitas as avaliações do Em todas as áreas, tiraremos lições.
com inúmeros parceiros que estão a temos em curso um sistema de alunos? Haverá testes? No caso concreto da educação, há
fornecer e a fomentar o empréstimo e de abandono e manter monitorização do trabalho realizado As metodologias e instrumentos de aspetos fundamentais que já se
recondicionamento de equipamentos. ativas as medidas de pelas escolas, para que consigamos, avaliação em sistemas remotos são sentem. Espero que as famílias valo-
As escolas também disponibilizaram em conjunto com as direções, ir sempre distintos dos instrumentos rizem cada vez mais os professores.
equipamentos que neste momento apoio que as escolas respondendo às necessidades iden- presenciais. Um teste “clássico” é Espero que os alunos percebem que
não estão a ser utilizados. As operado- tinham (para combater tificadas. um instrumento que pressupõe uma é melhor ir à escola do que ficar so-
ras têm vindo a aumentar os pacotes forma de organização presencial. zinho. Isto mostra-nos a importân-
de dados disponíveis. Há muitas as desigualdades) Qual é, e em que se distingue do Felizmente, as escolas já têm uma cia fundamental das competências
equipas concentradas neste traba- antigo, o modelo da nova telescola? prática muito consolidada, tendo até sociais e emocionais na educação.
lho, mas é preciso entender que uma Funciona em regime obrigatório ou acelerado desde a implementação da Obviamente temos um acelerar de
aquisição desta monta não se faz em É preciso um grande cabe a cada professor definir a sua autonomia e flexibilidade curricular, métodos de ensino através de meios
semanas, até porque há, atualmente, compromisso de toda estratégia de ensino? de construção de instrumentos de digitais e de diversificação de formas
roturas de stocks e dificuldades de A telescolas dos anos 60 aos 90 foi avaliação mais diversificados. A pro- de estudo. Sobretudo, o horrível
abastecimento.
a sociedade para que um recurso importante, mas não dução textual, a apresentação oral, acelerar das desigualdades deve tor-
elejamos o combate às funcionou num regime de confina- as práticas simuladas, o debate em nar-nos ainda mais conscientes de
E o que poderá ser feito para minorar mento. Os alunos reuniam-se em plataformas, entre muitos outros, que não há educação se o principal
também o inelutável aumento das
desigualdades como grupo, com um professor monitor. constituem instrumentos fiáveis de foco dos sistemas educativos não for
desigualdades já existentes entre prioridade O que temos agora é um conjunto de avaliação. Também aqui estamos a inclusão. J
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT EDUCAÇÃO 3 ↗

PERSPETIVAS

Educação em período
acesso ao ensino superior e não ne-
gando que há um problema de acesso
dos alunos aos conteúdos pelos meios
de difusão online em que se apostou na

de confinamento
resposta imediata.
Podemos apontar o dedo à década
perdida por se ter acabado com o Plano
Tecnológico para a Educação ou ir
mais longe e interrogarmo-nos porque
deixámos silenciosamente definhar
nos serviços centrais do Ministério da

INQUIETAÇÕES Educação as competências de apoio à


inovação educativa de que agora tanto

PEDAGÓGICAS necessitaríamos. Mas esse exercício


não nos ajudaria a encontrar uma
resposta na crise e a autocrítica foi, na
prática, feita de imediato pelo primei-
ro-ministro quando veio, em cima dos
Vivemos momentos de grande exigência para Houve uma imensa rutura na comunicação te mudança, importa conhecer o que foi já acontecimentos, anunciar uma nova
todos quanto estão envolvidos na educação, professor-alunos, dimensão essencial das realizado, como reagiram as escolas, quais ambição, comprometendo-se agora
professores, escolas, alunos, pais. No espaço aprendizagens. E apesar de estarmos, como as respostas políticas e algumas recomen- com um salto em frente em acesso a
de um mês tudo ou quase tudo mudou. noutras áreas das nossas vidas, em constan- dações. tecnologias para fins educativos que
pode tornar-se num dos efeitos laterais
positivos desta situação tão negativa.
A resposta do Ministério da Educa-

Para que uma emergência de saúde ção para o acesso básico aos conteú-
dos foi realista. A opção por difundir
momentos de apoio ao estudo, pela

não se torne numa crise educativa televisão, da responsabilidade de esco-


las, num canal que está disponível por
todos os meios possíveis – TDT, cabo,
internet – e a promessa de procurar
chegar a todos os alunos, mobili-
PAULO PEDROSO zando até os CTT, expressam uma real
preocupação com a abrangência do
A necessidade de fechar as escolas que, onde uns e outras funcionaram, acesso a material relevante para que os
por razões de saúde pública trouxe chegaram à generalidade dos alunos. alunos possam continuar a desenvolver
um enorme desafio ao sistema educa- Não devemos, porém, ser seve- atividades significativas e a extrair o
tivo, ao qual os países têm procurador ros com a capacidade de resposta máximo de benefícios possível supe-
responder de diversas formas. Entre em situação excecional. O que se fez rando até onde é razoável esperar que
as linhas de clivagem principais que foi muito bom e cumpriu o objetivo se consiga os constrangimentos que
encontramos nas respostas encon- essencial de dizer que a escola não vivemos.
tradas surgem principalmente duas, pararia. Temos, contudo, que olhar de
uma em torno de como usar de modo modo diferente para o que resta deste MAS É ILUSÓRIO PENSAR que,
útil este tempo de parêntesis na vida ano letivo e para o modo como vai ser tendo de suspender por exemplo o
social normal, outras em torno de lançado o próximo. trabalho que havia nas escolas de
quanto afastar as soluções a encon- O GOVERNO PREPAROU E APRE- prevenção e combate ao insucesso
trar para o uso desse tempo útil da SENTOU perto do fim das férias educativo, recorrendo aos pais como
pretensão de prosseguir o ano letivo da Páscoa o seu plano. Um plano educadores auxiliares, conhecendo
“como se” estivéssemos numa situa- sensato, prudente e participado. No as profundas assimetrias escolares e
ção normal. imediato recebeu a concordância ge- sociais destes, permitirá que os novos
Em particular nos ensinos básico neralizada de representantes de pro- conteúdos curriculares a lecionar
e secundário, o paradigma educa- fessores, direções de escolas e pais. neste terceiro período cheguem aos
tivo sobre o qual se trabalha em todo Não é sucesso pequeno para quem alunos com uma desigualdade de
o mundo é o da copresença na sala agiu em pouco tempo, sob pressão e oportunidades (que sempre existiu,
de aula. Sobre essa matriz estrutu- com grandes níveis de incerteza sobre já sabemos) minimamente mitigada.
rante existe uma multiplicidade de o que viria a seguir. Uma escola básica sem sala de aulas
estratégias pedagógicas, até agora Assumiu-se com coragem a situa- e parcialmente devolvida às famílias
complementares, que vão das mais ção de exceção em diversos domínios, é ainda mais socialmente injusta que
conservadoras, como os tradicionais eliminando provas cujo sentido estava sempre foi.
trabalhos de casa que pressupõem posto em causa neste contexto, to- Em torno deste ponto, muitos
forte supervisão parental até às mais mando decisões como a de desconectar pedagogos pensam – e eu acompa-
inovadoras, de promoção do trabalho a conclusão do ensino secundário do nho-os – que é irrealista apostar em
autónomo dos alunos, de pesquisa e usar este tempo para lecionar novos
descoberta, de atenção ao mundo, desenvolveram práticas pedagógicas Mas este foi também o tempo de conteúdos, ou pelo menos, acreditar
tendo pelo meio as que a industria de inovadoras e se responsabilizaram por identificar os limites com que se depa- que esses novos conteúdos podem ser
conteúdos educativos foi desenvol- conseguir chegar da melhor forma ram essas práticas e que vão do facto considerados como lecionados. Esses
vendo e que, entre nós, tendem a estar possível a todos os seus alunos. de que há alunos sem acesso à Net, a pedagogos – e, de novo, acompanho-
mais perto do modelo conservador, computadores ou mesmo a telefones -os – preferem que usemos este tempo
apenas em novos suportes. NA EMERGÊNCIA EM QUE SE com ligações de dados, vivendo em A resposta do ME para para desenvolver atividades dotadas
Em outros artigos deste dossier dá- FECHOU o segundo período de famílias que não conseguem dar- o acesso básico aos de sentido, que podem incluir novos
-se conta de como escolas e professores aulas parece consensual dizer que -lhes apoio ou tendo professores que conteúdos, mas estejam centradas em
têm construído práticas e situações predominou a capacidade localizada eles próprios não conseguiram, por conteúdos foi realista. E consolidar aprendizagens, estimular o
inovadoras, mesmo que partindo de de iniciativa e que onde ela não existiu razões tecnológicas ou de formação, ou a promessa de procurar trabalho autónomo e o sentido crítico,
uma situação de escasso acompanha- escassearam as respostas que chegas- ambas, desenvencilhar-se o suficiente refletir sobre o mundo. Não é neces-
mento e quase nula orientação para sem aos alunos. Alunos houve – não para tentar chegar aos seus alunos ou chegar a todos os sário que se adote uma aproximação
esse esforço. Essas boas práticas não disponho de dados que me permitam conseguir fazê-lo de modo eficaz. Seria alunos expressam uma a esta tensão a preto e branco. Uma
surpreendem quem esteja minima- fazer quantificações – que tiveram irrealista pensar que as boas práticas boa mistura das duas dimensões pode
mente familiarizado com o trabalho de acesso a atividades bem estruturadas que devemos sublinhar são o retrato real preocupação com conseguir responder às ansiedades de
muitos professores em muitas escolas que lhes permitiram continuar a tra- universal do sistema e de que as escolas que possam continuar a famílias e professores obcecados com
que, muitas vezes remando contra a balhar e conseguiu evitar-se a ideia que conseguiram organizar-se para os conteúdos e responder também às
maré das próprias políticas educati- de que se tinha entrado num período apoiar os seus alunos tendem a cobrir
desenvolver atividades necessidades dos alunos, crianças e
vas e das pressões exteriores, sempre de férias por tempo indeterminado. todo o universo das escolas ou ainda significativas jovens confinados em casa por algo que
4 EDUCAÇÃO

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PERSPETIVAS

não percebem completamente e pode


infundir perceções sobre o mundo que
importa prevenir e combater.
E como estamos?
Seria perverso se acabássemos
a viver uma ilusão de normalidade
que não foi completamente fechada ADELINO CALADO
pelos anúncios já feitos pelo governo.
Nomeadamente seria absurdo que se Cada momento das nossas existên- termos de tecnologias, por parte de
facilitasse a retenção de alunos que não cias revela-se como uma oportuni- grande fatia de docentes (mais de um
terão acesso adequado aos meios e con- dade, tantas vezes desperdiçado, mas terço em cada escola);
dições de estudo nos meses que faltam muitas vezes tempo de aprendizagem - Desconhecimento profundo do
para a conclusão do ano letivo. Se os determinante. Este é um tempo, antes trabalho on-line à distância;
alunos do ensino básico não vão voltar de mais, de reflexão, mas que nos obri- - Excesso de TPCs (trabalho para casa),
à sala de aula nem beneficiar daquilo ga a ações imediatas, com a consciên- enviado aos alunos, com ausência
que ao longo de década já tínhamos cia de que nem tudo o que assumimos quase total de feedbacks;
adquirido para combater o risco de é o mais correto, embora nos pareça - Da parte dos alunos, cerca de 10%
insucesso, seria cruel que a escola ser o mais adequado. em cada escola não responde sequer ao
aceitasse penalizá-los e, para além de Procurámos perceber, um pouco contacto;
não mitigar desigualdades, fosse agora melhor, recolhendo opiniões, aus- - Grande falta de tecnologia, compu-
um agente ativo de exclusão. cultando as dificuldades que sentem, tador ou tablet, e de acesso à net. Cerca
Escolas e professores, neste afastamento de 30 a 40% em média por escola; SURGEM NECESSIDADES QUE SÃO tido de perceber as dificuldades, ou a
DIRÃO ALGUNS QUE ESTA POSI- das salas de aula tradicionais e quais - Enorme dificuldade em gerir tempos COLMATADAS COM: inexistência de resposta às solicitações
ÇÃO resvala para o tão fácil de atacar os constrangimentos, bem como as de trabalho de pais, em teletrabalho, e - Elaboração de planos de trabalho, dos professores;
“facilitismo” de que os neoelitistas propostas que estão a desenvolver para tarefas a desenvolver. com conselhos e instruções globais, a - Recursos a todos os meios, inclusi-
tanto gostam. Mas não é verda- colmatar os problemas que se levantam. seguir por cada um; vamente o correio, ou a entrega porta
de. Esta posição, obriga isso sim a Conversámos com várias Escolas do As dificuldades não são, nem mais - Diminuição das tarefas propostas a porta de propostas de trabalho para
desenvolver agora o que ainda está país, de norte a sul, tentando perceber nem menos do que na realidade todos com limitações determinadas, quer desenvolver e consolidar aprendiza-
indefinido e que é, julgo, o fulcro da o que está a acontecer, como está a sabíamos existirem, só que agora elas em tempo on-line, quer em tarefas a gens.
verdadeira resposta que necessitamos ser realizado o trabalho, e como está a sobressaíram com a naturalidade que solicitar semanalmente;
do governo para que a emergência de resultar. impele todos para um ajustamento, - Organização de momentos on-line de É, de facto, um tempo diferente que
saúde pública não se torne numa crise apressado, difícil, mas que está a ser reuniões de coordenação do trabalho abruptamente veio colocar novos
educativa – a adaptação necessária no AS PRINCIPAIS DIFICULDADES, PO- executado por todos com a dedicação (Conselhos Pedagógicos, Conselhos desafios a todos! Esperemos que
lançamento do próximo ano letivo. DEREMOS SINTETIZÁ-LAS ASSIM: e profissionalismo. E as respostas têm de Turma; Conselhos de Grupo se consigam retirar as ilações mais
O Governo já anunciou - e deve ser - Inexistência de experiência de correspondido, muito mais trabalho Disciplinar); importantes, para repensar a escola,
aplaudido por isso – que está a traba- trabalho digital, on-line, planificado, colaborativo entre docentes e Escolas. - Criação de horários para distribui- e como estamos a querer construir o
lhar na adaptação do início do próximo internamente dentro de cada Escola; Uma compreensão da fundamental ção de tarefas aos alunos, através de futuro dos nossos jovens. São momen-
ano letivo às condições precárias em - Enorme trabalho desenvolvido por relação com as famílias e constatar que alguma das aplicações, da miríade das tos que por assustadores, exigem uma
que este será concluído. O sucesso docentes. Tentativas de aprendiza- as tecnologias, que muitos afastaram existentes no mundo digital; abordagem consciente, que permita
dessa operação é vital e é no seu dese- gem rápida de utilização dos vários durante tanto tempo, podem e são - Criação de momentos e espaços para repensar a Educação. J
nho, sem improviso e com sentido de aparelhos (telemóveis, tabletes, ferramentas que permitem, e quantas fornecer feedbacks, ou tirar dúvidas a
inclusão social, que reside a esperança computadores) e aplicações existentes vezes facilitam, as tarefas de apren- cada um dos alunos; *Adelino Calado, ex-diretor do Agrupamento de
em que não seja a saúde pública um no mercado; dizagem e consolidação de aprendi- - Um contacto mais acentuado entre Escolas de Carcavelos, na qual pôs em prática
fator brutal de agravamento dos efeitos - Falta de conhecimentos básicos em zagens. diretores de Turma e famílias, no sen- assinaláveis medidas inovadoras
escolares da desigualdade social.
Nesta reflexão deixei à margem
a questão que provavelmente mais
“mexe” com o governo e a opinião pú-
blica que é a das condições de ingresso
no ensino superior. Não é o momento
Educar para o essencial é um ato dialógico e plural. Numa
comunidade de aprendizagem,
todos possuem saberes que devem
de reavaliar esse sistema, mas é o ponto ser partilhados. Nas aulas síncronas,
em que a resposta do governo parece a prioridade passa por escutar os
mais frágil, dada a incapacidade de JOANA FILIPE alunos, as suas partilhas de pes-
o adaptar à situação excecional que quisas e experiências, de leituras e
vivemos, a tentação de fazer meros Em setembro de 2018, quando fui o de continuarmos a refletir. Chegou virtuais. Cada professor com o seu filmes, debater temas da atualidade,
ajustamentos de pormenor a provas colocada numa escola de Ensino a o momento em que temos de: grupo de alunos deve decidir o que resolver desafios em conjunto, con-
que estavam feitas em janeiro, como se Distância, estava longe de imaginar é essencial na sua disciplina. Com a tar histórias… O plano individual de
não tivéssemos atravessado um furacão que um ano e meio depois a expe- 1. Procurar o essencial nos progra- consciência clara de que a quantida- trabalho, concertado com os alunos,
desde então. Parece que tudo se resolve riência repetir-se-ia na minha vida mas oficiais. Mesmo com o esforço de não é reveladora da qualidade das é um instrumento importante para
com pequenos deslizes de calendário e profissional, com a agravante de das Aprendizagens Essenciais ainda aprendizagens. A criação emerge o planeamento, registo e regulação
provavelmente um simulacro de aulas que, agora, alguns dos meus alunos há muito que poderá certamente ser dos espaços vazios e dos tempos de das atividades realizadas durante a
presenciais que agora parece ade- não têm acesso à internet ou não relegado para segundo plano. É im- silêncio. semana/quinzena.
quado, mas quando chegar a hora será possuem computador ou, em alguns possível trabalhar todos os conteú-
fortemente contestado no seu sentido casos, telemóvel. A situação reve- dos à distância. Centremo-nos nas 2. Resistir ao ruído tentador dos 4. Desenvolver a arte da afeição à
e utilidade. lou-se, portanto, mais desafiante e competências e em valores humanos materiais didáticos que nos invadem distância. Este será o maior desafio…
Oxalá me engane, mas mais uma obrigou-me a repensar os aspetos assentes na justiça, na reciprocidade os aparelhos. Muitas vezes são docu- Não há ato educativo sem afeição e
vez se demonstra que o ensino secun- que são primordiais na educação. e na solidariedade. É preciso educar mentos que só implementam rotinas as ferramentas tecnológicas por mais
dário está concebido como máquina de Privados do ensino presencial, também para a humanidade. E essa de repetição, anotação, síntese e co- inovadoras não chegam a tanto.
exclusão – repare-se que não há nada confrontamo-nos com a consciên- educação não se faz com a pressão mentário, não promovendo a ima- Precisamos de nos reinventar e esti-
de substancial anunciado para o apoio cia mais aguda de que não somos do ensino de conteúdos testados em ginação criadora. Os instrumentos mular a cooperação e o cuidado com
a estes alunos – e que o ingresso no en- todos iguais, não temos todos os provas ou com o despejo de fichas e técnicas só produzem significado o outro para que a afeição continue a
sino superior é apenas um filtro social, mesmos recursos e, por isso, é difícil nas caixas de correio físicas ou se estiverem intimamente ligados a ser a força motriz.
baseado na ilusão napoleónica do nive- continuarmos a pensar numa escola um sentido social, que levem a uma
lamento pelos exames. Mas o sistema que ensina o mesmo a todos como se descoberta do sujeito em diálogo 5. Cooperar. Partilhemos práticas
está tão injustamente concebido que fosse um só. É um momento crítico com os outros, com o mundo. Não em pequenas reuniões à distância.
se percebe a impotência do governo. que exige de nós um novo olhar e se trata de uma lógica de consumo Sozinhos será tudo mais difícil.
Creio que nem um terramoto faria os constitui uma oportunidade para de conhecimento, mas de produção Não é o tempo para burocracias e
guardiões do templo do ensino superior repensar outro paradigma de escola, Chegou o tempor de cooperada de conhecimento. obsessões com monitorização de
abrir-se â pluralidade da educação mais emancipatória, mais criativa, parâmetros. É o tempo para outro
contemporânea. J mais aberta à pluralidade, mais valorizar os saberes 3. Valorizar os saberes de cada tipo de reuniões, mais fecundas,
humana, que tem sido tão difícil de de cada aluno e aluno. Estudos recentes revelam mais humanas. J
*Paulo Pedroso é prof. no ISCTE e investigador implementar. Aqui ficam alguns que os professores ocupam 2/3 do
do CIES-IUL. Foi ministro do Trabalho e da apontamentos telegráficos que não desenvolver a arte da tempo de aula e que os alunos são *Professora 3ºciclo do ensino básico e do
Slidariedade nun governo de António Guterres servirão outro propósito que não seja afeição à distância “demasiado ouvintes”. A pedagogia ensino superior
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PERSPETIVAS

Inovar em situação Ensino a distância


de emergência
ANA MARIA BETTENCOURT CARLOS PINHEIRO
Somos devedores de um elogio aos ção dos alunos que não tenham conse- estratégia da escola deverá contemplar
professore pelo imenso esforço que guido ter aproveitamento até ao regresso diferentes canais de comunicação,
estão a realizar num momento dramáti- ao sistema presencial. Com as limitações síncronos (videoconferência e chat) e
co da vida no nosso país. Nunca como atuais, reter alunos no ensino básico, assíncronos (email e fóruns). A comu-
agora as escolas se viram tão confronta- sem lhes proporcionar uma segunda nicação síncrona deve ser usada mode-
das com a urgência de mudar. Perante oportunidade seria uma injustiça. radamente (no máximo 45 min., uma
uma situação histórica de grave rutura ou duas vezes por semana), não para
da relação presencial dos professores GESTÃO DAS EMOÇÕES “dar aulas” (se necessárias, não exceder
com os seus alunos, e de um grande va- Face à insegurança e angústia vividas os 10-15 min.), mas preferencialmen-
zio comunicacional houve criatividade, pelas nossas crianças e jovens é impor- te para esclarecimento de dúvidas ou
esforço e reinvenção de estratégias. tante organizar tempos de comunica- apresentação de trabalhos de alunos.
O ensino à distância tornou mais ção e escuta. Deve-se privilegiar a comunicação
visíveis desigualdades que ultrapassam “O que está a acontecer no mundo é multidirecional (por exemplo, fóruns na
a escola e os professores, designada- assustador, os professores deviam falar plataforma LMS) e reservar a por email
mente problemas de acesso a suportes connosco sobre isso para nos ajuda- para casos excecionais ou quando não
de trabalho e a apoios proporcionados rem...Quando a preocupação é dar, dar estejam disponíveis outros canais.
pelas famílias. É de assinalar também matéria ficamos tristes e a pensar que o Quanto aos recursos e atividades, os
a dificuldade resultante da existência mundo vai acabar . .”..(Maria, 12 anos) A LeYa Educação tem promovido tivos de acesso à rede) e optar por uma docentes terão de adaptá-los ao contex-
de um número muito significativo de O desenvolvimento da compreensão uma seminários virtuais sobre ensino à plataforma de aprendizagem (LMS) ou to de EaD e tirar partido dos ambientes
alunos que se encontram fora do radar do nosso tempo bem como a gestão das distância, dedicados a professores e pais, por meios alternativos de comunicação online, pesquisando e disponibilizando
das escolas com maior incidência no emoções deve ser uma preocupação. com uma adesão notável de mais de 10 e distribuição de conteúdos/tarefas materiais multimédia e inovadores,
primeiro ciclo do ensino básico. Como escrevem Dubois, Geffard, e mil participantes por sessão. O orienta- (email, programa de gestão de alunos, adaptados à leitura e interação em ecrã e
Os professores estão colocados pe- Schlemminger1) não se compreen- dor destes seminários, Carlos Pinheiro, correio tradicional…). Será também im- que possibilitem a participação de todos
rante novos desafios e a necessidade de, deria que a escola (em confinamento) professor bibliotecário e coordenador portante articular com parceiros locais os alunos. Atividades colaborativas (tra-
em conjunto e à distância, encontrarem estivesse desligada da realidade e da ex- interconcelhio da Rede de Bibliotecas (autarquias, centros de formação, asso- balho de grupo) e interdisciplinares e a
soluções para novos problemas desde periência vivida, sendo essencial que se Escolares, especializado em Ciências da ciações…) a melhor maneira de garantir adoção de metodologias como trabalho
logo os relativos ao domínio dos meios proporcione aos alunos “ a possibilidade Comunicação, explica neste texto escrito que o ensino chega a todos e constituir de projeto, resolução de problemas ou
tecnológicos de comunicação. de pensar o que se vive e o que se sente”. para o JL, os principais desafios e preo- uma equipa para apoiar os docentes (e pesquisa guiada contribuirão para man-
As reuniões da turma com o seu cupações que os professores devem ter eventualmente os pais) na utilização dos ter os alunos motivados e proporcionar
ULTRAPASSAR UM DILEMA QUE diretor ou com o professor titular, ou perante esta nova (e velha) realidade. meios tecnológicos adotados. Ainda na ajuda aos que têm mais dificuldades.
ATORMENTA outros espaços de palavra são da maior fase de planificação, cabe à escola defi- Um plano semanal articulado em con-
Tenho encontrado com frequência importância. O ensino a distância (EaD) tornou-se nir as linhas gerais do seu plano de EaD, selho de turma será essencial para evitar
professores que, em projetos visan- A intervenção de outros profissio- nas últimas semanas o principal tema de contemplando formação de docentes, a sobrecarga de trabalho e a multipli-
do combater o insucesso escolar, nais, designadamente de psicólogos, debate pedagógico nos países que pro- horário semanal dos alunos, ajustes na cação de ferramentas e ambientes de
vivem atormentados com o mal-estar no apoio aos professores e aos conselhos cederam ao encerramento das escolas gestão curricular, articulação com os aprendizagem.
resultante do dilema: fazer com que de turma, ou diretamente aos alunos, perante a pandemia de Covid-19. Visto conteúdos televisivos, (re)definição de O feedback é fundamental para
todos os alunos aprendam e adquiram deveria ser considerada. durante muito tempo, erradamente, critérios, tipologias e instrumentos de manter o aluno interessado e para a
competências essenciais, versus cum- como uma modalidade mais “pobre” avaliação, prevenção do abandono e do autorregulação da aprendizagem, sendo
primento de todo o programa e deixar A FORMAÇÃO EM CONTEXTO E O de educação, o EaD ganhou agora ines- isolamento e monitorização e avaliação portanto um elemento-chave do EaD.
uma parte dos alunos para trás. Apesar TRABALHO COLABORATIVO perada relevância e uma oportunidade do próprio plano. Pode ser interacional (no âmbito da
da aprovação das Aprendizagens Estamos perante situações de grande para rever preconceitos e estereótipos. comunicação) ou cognitivo (avaliati-
Essenciais, o dilema é persistente, complexidade em que a incerteza exige Embora as suas origens remon- TRABALHO DOCENTE O trabalho vo), mas sempre rápido e constante.
situação que exigirá coragem e habi- apoio e reforço das competências dos tem ao séc. XVIII, com os cursos por docente assentará sobretudo em três Em EaD deve privilegiar-se a avaliação
lidade para alcançar consensos para professores. Estão a ser organizadas correspondência, foi apenas no final eixos: gestão da comunicação, conceção formativa e contínua, usando diferentes
uma reforma urgente dos programas. iniciativas de trabalho colaborativo, do séc. XX, com a Internet, que o EaD de recursos/atividades e feedback. instrumentos (diários de aprendizagem,
É importante que os professores façam reflexão comum, entreajuda e promo- ganhou duas características funda- O sucesso do EaD depende da e-portefólios, trabalhos de pesquisa,
uma gestão dos programas que pro- ção de uma cultura de aprendizagem mentais, outrora exclusivas do ensino interação professor/alunos, pelo que a testes de correção automática e aplica-
mova o desenvolvimento de compe- que poderão ser decisivos. presencial: comunicação multidirecio- ção síncrona) que minimizem a fraude.
tências, que não devem continuar a ser nal e síncrona e possibilidade de criação Além dos produtos, devem avaliar-se
“esmagadas” pelos conteúdos. UM ENVOLVIMENTO DA SOCIEDADE de comunidades de aprendizagem, os processos e as interações. Usar
COMO NUNCA EXISTIU potenciando o trabalho colaborativo e sistemas de classificação baseados em
DAR PRIORIDADE À CONSOLIDAÇÃO O interesse com que a sociedade, a socialização. Expressões como ensino rubricas claras e detalhadas e incen-
DE APRENDIZAGENS E AO DESEN- alunos, professores e as famílias estão online e e-learning passam a ser usadas tivar autoavaliação e a avaliação pelos
VOLVIMENTO DE COMPETÊNCIAS a acompanhar as mudanças em curso, para designar este ensino a distância pares contribuirá para a transparência e
Nestes tempos mais próximos é preciso bem como a comunicação em torno mediado por TIC. autenticidade da avaliação.
assumir que, se queremos que todos os deste processo poderão ser determinan- O desenvolvimento de um sistema Entre 7 e 9 de abril, durante a pausa
alunos e em especial os mais vulnerá- tes para o seu sucesso. Oxalá se produza de EaD assenta num modelo sistemático letiva, dinamizei, a convite da LeYa
veis possam acompanhar o processo e organize informação que poderá vir multietapas cuja implementação dura Carlos Pinheiro Educação, três webinares sobre EaD,
de educação à distância, a prioridade a ser muito útil num futuro que todos entre seis a nove meses. Daí que muitos cada um deles, na emissão em direto,
tem de ser consolidar aprendizagens, esperamos venha a ser bem diferente. J prefiram designar este sistema de com a participação entre 10 e 15 mil do-
e desenvolver competências designa- e-learning que as escolas estão a adotar centes. O feedback recebido, o interesse
damente de autonomia no estudo, tão 1)Mediapart 13/4/2020 em muito menos tempo como ensino demonstrado pelos docentes e o relato
decisiva neste momento. *Ana Maria Bettencourt é profª e investigadora. remoto de emergência e não como EaD. do trabalho já desenvolvido e planifica-
Com uma parte dos alunos ausente Foi presidente do Conselho Nacional de Educação Nomenclaturas à parte, a verdade é que É expectável que o EaD do para este 3.º período deixa adivinhar
e outros a seguirem com grandes difi- e assessora do Presidente Jorge Sampaio modelo de EaD oferece uma sustentação ou e-learning ganhe o que os professores estarão à altura deste
culdades o processo, e na inexistência teórica e metodológica para que se possa enorme desafio e que a escola sairá va-
e apoios da família ou de explicações, planear com segurança uma estratégia merecido reconhecimento lorizada quando tudo isto passar. É tam-
será desumano avançar com novos LINKS DAS INQUIETAÇÕES PEDAGÓGICAS
de ensino para o que resta do presente como alternativa que bém expectável que o EaD ou e-learning
conteúdos. ano letivo. ganhe o merecido reconhecimento, não
A avaliação dos alunos é porventura
pedagogicasinquietacoes@gmail.com permite expandir o apenas como solução em caso de emer-
inquietacoespedagogicasii.blogspot.pt
a dimensão de maior complexidade no
www.facebook.com/InquietacoesPedagogicas
COMO COMEÇAR O primeiro passo alcance da educação e gência, mas como uma alternativa que
contexto atual que exigirá a organização, será identificar as condições materiais permite expandir o alcance da educação
quando as circunstâncias o permitirem, www.youtube.com/user/inquietPedagogicas de alunos e docentes (existência ou
potenciar a aprendizagem e potenciar a aprendizagem ao longo da
de programas presenciais de recupera- não de ligação à Internet e de disposi- ao longo da vida vida. J
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ENTREVISTA

Rui Pacheco
como tal, as soluções que desenvol-
vemos, os recursos que criamos, a
forma como nos articulamos, decorre
do feedback da comunidade esco-

Uma escola para 700 mil alunos


lar. A generalidade dos professores
portugueses conhecia bem a EV como
recurso de suporte à sua atividade em
contexto de sala de aula mas a maioria
não teria um conhecimento tão apro-
A Escola Virtual, da Porto Editora, triplicou o número de utilizadores desde o início fundado das ferramentas de gestão da
do confinamento. O JL falou com o responsável desta plataforma que pretende ser aprendizagem e avaliação que dispo-
nibilizamos. Por esse motivo, temos
um meio auxiliar de professores e alunos, mas nunca substituir a escola feito um esforço muito particular na
formação e esclarecimento dos do-
centes, tendo criado através da nossa
solução de formação – a Academia.
pt – um curso gratuito sobre a
A Escola Virtual (EV), plataforma utilização Escola Virtual e produzido
criada pela Porto Editora, disponibili- um “Roteiro para a Implementação
zou gratuitamente os seus conteúdos da Escola Virtual” que está inclusive
durante o período de quarentena. disponível no site “Apoio às Escolas”
Uma ferramenta que tem sido usada da Direção-Geral da Educação.
por cada vez mais escolas, professores
e alunos para o ensino à distância. O Houve alguma adaptação do modelo
JL falou com Rui Pacheco, um dos da EV às atuais circunstâncias?
seus responsáveis, para conhecer Os maiores desafios ditados pelas
melhor este software com 15 anos de atuais circunstâncias têm sido os que
existência, que conta atualmente com divulgar adequadamente o potencial
mais de 750 mil utilizadores. da nossa oferta educativa, esclarecer
e apoiar as escolas, os professores, os
JL: Qual o conceito geral da EV? pais e os alunos. A EV é uma solu-
Rui Pacheco: A EV é uma solução glo- ção com 15 anos de existência, com
bal de educação para os ensinos Básico uma evolução constante ao nível dos
e Secundário, com três dimensões conteúdos e funcionalidades, e as
diferentes: a de autoestudo (aluno), exigências do contexto não ditaram
a de suporte à atividade docente quaisquer alterações de fundo nos
(professor) e a de de gestão global de modelos de funcionamento da pla-
aprendizagem (escola). Escola Virtual Uma plataforma concebida para ajudar professores, alunos e escolas taforma. A diferença reside na forma
A dimensão de Aluno (sem ligação como pretendemos que os nossos
a nenhuma instituição) é um tipo de utilizadores tirem partido da EV,
acesso para autoestudo, com a gestão mente para a aprendizagem e ensino lado com os nossos clientes instituci- privilegiando a dimensão relacional e
da aprendizagem a ser mediada por não presencial, pelo que são todas úteis onais e o segundo é o que, dentro do global da solução. É por isso que es-
um motor de sugestões de percursos no atual contexto. Face à necessidade atual enquadramento de emergência tamos a ajudar professores e alunos a
de aprendizagem, onde o trabalho re- de criar comunidades de aprendiza- Dar resposta a esta permite uma maior flexibilidade e é o articularem-se na criação de grupos/
alizado e as atividades desenvolvidas gem e monitorizar o desempenho dos avalanche implicou que está a ser seguido no último mês. turmas, que estamos ajudar as escolas
permitem criar um perfil cognitivo alunos remotamente, julgamos que na definição dos moldes em que pode-
do aluno muito preciso e mapear as funcionalidades como a partilha de
mobilizar todos os A EV teve um acréscimo enorme de rão desenvolver o seu trabalho.
principais aquisições e dificuldades. recursos com os alunos sob a forma de nossos meios técnicos utilizadores durante este período
A de professor serve de suporte tarefas e as propostas de autoavaliação de confinamento, com as escolas O que esta experiência massiva pode
autónomo da atividade docente, por e aconselhamento de percursos de
e humanos, bem encerradas. Até que ponto a EV pode trazer à EV? Quais são os vossos
exemplo, na preparação dos recursos aprendizagem serão as mais úteis no como investimentos substituir a própria escola? próximos desafios?
a partilhar na sala de aula; os profes- atual contexto. De qualquer modo, a suplementares ao nível da Efetivamente, se a EV já era a solução O primeiro dado fundamental que ex-
sores têm acesso em função do projeto EV coloca ao dispor dos professores e n.º1 em Portugal para o ensino básico traímos deste momento é a perceção
de manual escolar adotado, uma vez dos alunos um conjunto de ferramen- arquitetura das soluções, e para o ensino secundário antes desta de que somos responsáveis por asse-
que todos os recursos complementa- tas que viabiliza múltiplas aborda- das infraestruturas crise, essa importância acentuou- gurar a continuidade dos processos de
res e, obviamente, as versões interati- gens pedagógicas e permite que cada -se com a oportunidade que estamos ensino e aprendizagem da esmagadora
vas dos manuais, são disponibilizadas professor defina aquilo que considera tecnológicas e das a proporcionar a todos, alunos, maioria dos professores e alunos por-
por esta via. mais ajustado a cada tema, a cada telecomunicações professores e escolas, de usufruírem tugueses. Sabíamos, enquanto em-
Finalmente, a dimensão Escola, em momento. É esta versatilidade, em dos nossos serviços e conteúdos. Seja presa que sempre deu um contributo
que todos os professores e alunos estão conjugação com o facto de dar acesso como for, o objetivo não é nem nunca decisivo para a Educação em Portugal,
ligados de acordo com a estrutura de a conteúdos fiáveis, credíveis, quer ao foi “substituir” a instituição Escola que éramos muito relevantes, mas ter
turmas, é uma solução abrangente, nível para estudo quer para avaliação, os e, por exemplo, o maior projeto tal como a conhecemos. O propósi- mais de 700 mil utilizadores a usar os
em que se coloca todos os conteúdos que constitui a maior vantagem sobre de digitalização integral do ensino to, como dissemos anteriormente, nossos serviços para seguirem cami-
e funcionalidades úteis para cada um qualquer outra solução alternativa. público em Portugal, que está a ser tem três dimensões. Exceto no caso nho é uma responsabilidade acrescida.
dos papéis, mas também a possibili- desenvolvido na Região Autónoma do estudo autónomo, por inerência E como a adesão não para de aumen-
dade de atribuir tarefas, monitorizar Até ao confinamento, a maioria dos da Madeira, tem como peça central a das suas características, nos outros tar, a responsabilidade é cada vez
a realização das mesmas, recolher utilizadores eram particulares. Agora Escola Virtual na sua vertente global. cenários a EV é acima de tudo uma maior. Dar resposta a esta avalanche
dados de desempenho e comunicar passou a ser adaptado por escolas e As turmas da EV podem ser criadas de solução que ajuda professores e alunos implicou mobilizar todos os nossos
– é esta a dimensão “relacional” que turmas. O que isto significa? Como duas formas: ou as escolas nos forne- a desenvolverem o seu trabalho não meios técnicos e humanos, bem como
melhor serve os interesses de toda a funcionam as turmas na EV? cem os dados estruturados das turmas presencialmente, o que obviamente investimentos suplementares muito
comunidade escolar. A ideia de que a maioria dos utili- e suas relações com os professores, no se ajusta na perfeição ao contexto em significativos ao nível da arquitetura
Toda esta dinâmica e funcionalida- zadores da EV são particulares não âmbito de um acordo de regulação da que estamos a viver. das soluções, das infraestruturas tec-
des estão alicerçados na maior base de corresponde à realidade – a vertente proteção de dados pessoais, ficando a nológicas e das telecomunicações. A
recursos educativos digitais desen- institucional tinha, no momento em nosso cargo criar as contas de acesso e Tem havido uma articulação entre médio e longo prazo, dando continu-
volvidos de acordo com os currículos que abrimos a possibilidade de acesos reproduzir essa estrutura na platafor- a Porto Editora e os agrupamentos idade ao plano de desenvolvimentos
em vigor, entre os quais cerca de 60% gratuito, muitos mais utilizadores do ma; ou quer professores quer alunos escolares especialmente neste tempo que temos delineado, prevemos ob-
dos manuais escolares adotados nas que a vertente de auto subscrição do criam as suas contas autonomamente, de confinamento? E que progressos viamente alargar ainda mais o nosso
escolas portuguesas. aluno, ou seja, a maioria dos 250 mil ficando o professor com a incum- têm sido feitos? leque de conteúdos e funcionalidades,
utilizadores, antes de 13 de março era bência de “criar” uma turma/grupo A relação da Porto Editora com as dado que com uma crescente literacia
Que ferramentas destaca e considera proveniente de clientes institucionais. na plataforma e fornecer aos alunos escolas tem sido desde sempre uma digital e experiência da população
especialmente úteis da EV? A EV está presente há mais de uma o código da mesma para que eles se relação de estreita colaboração – as docente no domínio destas ferramen-
A generalidade das ferramentas que dezena de anos como solução global possam associar. O primeiro processo escolas, os professores e os alunos são tas serão criadas novas necessidades e
desenvolvemos foram criadas exata- em centenas de colégios, municípi- é aquele que habitualmente é articu- os destinatários do nosso trabalho e, maiores exigências. J
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COLUNA

É esta a escola do século XXI?


EDUCAÇÃO E MEMÓRIA
Paulo Guinote

À medida que avançaram as sema- sobre o roubo de dados pessoais de


nas em teletrabalho, desde as finais centenas de milhares de utilizadores
do 2º período até às do arranque do nos Estados Unidos por essa via ou
3º, passando muito em particular mesmo de gravação não autorizada
pelas da pausa pascal, foi possível de comunicações entre professores
perceber que as rotinas para além e alunos. Chegaram tarde (segunda
de alteradas tinham passado a ter semana de abril) as recomendações
um ritmo e uma intensidade muito da Comissão Nacional da Proteção
superiores às do trabalho presencial. de Dados e do Centro Nacional de
Tudo isto enquanto se ouviam e liam Cibersegurança. Quando já tinha
comentadores mediáticos ou mesmo sido decretado o fim das aulas
alguns colegas professores sempre presenciais para todo o Ensino
prontos para assumirem o papel de Básico e remetido para data incerta
falsa consciência ética da “classe” o recomeço das aulas presenciais no
a avisar de que ninguém estava em Ensino Secundário para as discipli-
“férias”. nas com exame nacional.

PEDRO PINA
Os dias em que o horário de
trabalho praticamente duplicou Sucederam-se algumas intervenções
foram a regra, assim como o ritmo da tutela que indiciaram que, afinal,
e intensidade em que decorreram, um rumo estaria em preparação Estudo em Casa Imagem dos bastidores da nova Telescola
na tentativa de colocar em funcio- e que algumas das preocupações
namento em poucos dias o que o em presença poderiam estar a ser
Estado não conseguiu fazer durante consideradas para minorar as desi-
anos. Recorrendo aos seus equipa- gualdades e não deixar uma parte possível verificar que opções tinham anos. A lacuna mais inesperada é duas décadas, é a não diferenciação
mentos domésticos, professores e significativa dos alunos para trás. sido tomadas na elaboração desta a não inclusão de qualquer seg- de tempos específicos para a área das
alunos fizeram os impossíveis por Surgiram algumas que dificilmente variante de currículo digital para mento destinado às Tecnologias de Expressões, nomeadamente para a
erguer uma rede público-privada poderiam ser tomadas a sério, outras os novos tempos. E até que ponto a Informação e Comunicação quando Educação Musical, a Educação Visual
de ensino à distância, enquanto os com algum potencial, como o re- razoável pompa de algumas declara- o que está em causa é exatamente ou a Educação Tecnológica. Embora
decisores políticos demoravam a curso a um canal televisivo em sinal ções de intenções. um modelo que se pretende basear um dos pilares do Perfil dos Alunos
discutir o que fazer, o que recomen- aberto para atingir o maior público Quero deixar bem claro que con- nelas. E quando se vai constatando à Saída da Escolaridade Obrigatória
dar, colocando em linha num site de possível, complementando as “aulas sidero que esta tarefa está longe de que os alunos, muito funcionais seja o da “Sensibilidade Estética e
“apoio às escolas” de forma pouco não-presenciais” desenvolvidas ser fácil e que é um esforço meritório em ambientes digitais lúdicos e/ou Artística” o que se encontra neste
crítica uma série de recomendações pelos professores com os alunos por parte de todos os que vão asse- sociais, revelam muitas dificulda- novo currículo digital são dois seg-
de ferramentas digitais, raramente com recursos para as acompanhar. gurar o seu funcionamento, muito des quando é necessário irem além mentos semanais comuns a todos os
desconhecidas pela generalidade dos Em comum a insistência de que a em especial quem aceitou gravar o disso. Os primeiros dias foram ocu- alunos do 1º ao 9º ano.
docentes. Ao mesmo tempo surgiam solução vai permitir avançar com que serão estas “aulas” para consu- pados, horas seguidas, a esclarecer A forma como a área artística das
as mais diversas sugestões de pla- novas aprendizagens e que o tra- mo público. Mas também não quero dúvidas sobre como gerir palavras- Expressões volta a ser menorizada é
taformas, programas e aplicações balho dos alunos no 3º período será deixar de sublinhar que esta é uma -passe em segurança, escrever de coerente com o modo como o currí-
para a operacionalização do ensino necessariamente avaliado. O que é espécie de exame ao que muitos não forma adequada endereços de mail, culo, que se afirma pretender que os
à distância, sem que se conhecesse altamente questionável, porque a hesitaram apresentar como o futuro entrar em plataformas com códigos alunos desenvolvam competências
verdadeiramente um rumo a seguir. equidade está longe de ser garantida, inevitável de uma “nova Educação”, que deveriam estar guardados ou estéticas e humanistas, tem mal-
Foram dias de alguma autono- mesmo que o novo modelo funcione pois foram muitas as declarações na memorizados ou a fazer a distinção tratado em todas as mais recentes
mia, mas nem sempre de grande de forma satisfatória. comunicação social quanto ao facto entre um hífen e um underscore. reformas as disciplinas ligadas às
coerência. Foram umas duas ou três Após alguma expectativa, co- da pandemia ter sido o “empurrão” Quem cometeu o erro de usar Artes e Humanidades, como se
semanas em que, por uma vez, se nheceu-se a programação do que foi necessário ou indispensável para que grupos do WhatsApp para estabele- fossem uma espécie de resquício de
assistiu a uma descentralização efe- apresentado na comunicação social se saísse da “escola do século XX” cer uma linha imediata e rápida de um passado arcaico, sem interesse
tiva das soluções locais para manter como sendo a “nova telescola”, para uma nova lógica no ensino por- comunicação com os alunos, viu-se para o futuro digital e cibernético.
a Educação em funcionamento. E transmitida na RTP Memória a partir tuguês e para novas metodologias de obrigado a desativar o som das A Filosofia foi truncada no Ensino
em que se foram identificando os de 20 de abril. Em paralelo, foram trabalho. notificações ao fim de pouco tempo, Secundário, a História e a Geografia
principais problemas de uma solução criados canais no Youtube com aulas E esse exame deve ser feito, em ao perceber que os “horários” para passaram a ser servidas, por quem
digital que entusiasmou muito os pré-gravadas e destinadas a discipli- meu entender, pelo menos em duas enviar dúvidas ou comentários, assim entende, em fatias semes-
promotores de uma “Educação nas dos vários níveis de ensino. E foi vertentes: a da conceção geral do nem sempre muito propositados, trais no 3º ciclo do Ensino Básico. A
para o século XXI”, mas que num currículo e da sua concretização não respeitam nenhuma parte do Educação Musical está reduzida a
país como o nosso, com fortíssimas prática nas tais aulas guiadas por dia ou noite. Para quem fez isso com dois tempos semanais e restrita ao 2º
assimetrias económicas, conduz de novas metodologias do trabalho duas ou mais três turmas começou ciclo do Ensino Básico e quem a qui-
forma quase inevitável ao agrava- pedagógico. Enquanto se conhece a amaldiçoar o momento em que ser explorar terá de recorrer a insti-
mento das desigualdades no acesso uma amostra ainda muito reduzida comprou o smartphone. Pelo que tuições exteriores ao ensino público,
a uma Educação de acesso universal de “aulas” (colocadas no Youtube, uma das prioridades deveria ter sido A Educação Visual e Tecnológica foi
em igualdade de oportunidades. Têm maltratado as inicialmente quase só a partir de a da inclusão de aulas para desen- desmembrada no 2º ciclo e agora as
Ao mesmo tempo, foi-se alertan- disciplinas ligadas às recursos da Khan Academy) que volver as competências dos alunos suas componentes desaparecem,
do para o perigo da utilização pouco pouco se distinguem do modelo em ambientes ditais de tipo educati- enquanto disciplinas autónomas, da
informada de plataformas ou apli- Artes e Humanidades, presencial, já se conhece a grelha vo, não chegando aceder à primeira versão televisiva/digital do currículo
cações de uso simples, mas muito como se fossem da programação semanal da RTP página do doutor google ou à página do Ensino Básico.
frágeis em termos de cibersegurança Memória do oficialmente designado da doutora wikipédia. Se estes são sinais do que será
e de proteção dos dados dos utiliza-
resquício de um #EstudoEmCasa. Uma segunda lacuna, que acho um futuro currículo para os tempos
dores. Porque nem toda a emer- passado arcaico, sem E são notórias as lacunas, umas igualmente grave, mas está em linha digitais, são péssimos sinais para
gência justifica que se prescinda do inesperadas, outras em linha com a com a erosão do papel das Artes todos os que querem uma verda-
direito à privacidade ou se corram
interesse para o futuro forma como o currículo para o sécu- e Humanidades no currículo do deira Educação Integral das novas
perigos desnecessários e as notícias digital e cibernético lo XXI tem sido tratado nos últimos Ensino Básico ao longo das últimas gerações. J
8 EDUCAÇÃO

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N
› AU TO R R E T R ATO DE PROFESSORA‹ zação de uma ação, a ação final do
projeto, pretendeu-se que os alunos
compreendessem mais facilmente o
funcionamento da democracia e do
Estado.
Dos alunos ficam as seguintes re-
flexões que serviram para me indicar
o caminho certo. O único caminho.
Que Escola? Para que sociedade?
Queremos uma escola que dê voz aos

Ariana Furtado alunos; Que garanta igualdade na


aprendizagem para todos; Uma es-
cola que os trate como crianças; Uma
escola que garanta conhecimento.
Nasci cabo-verdiana. Sou portugue-
sa. Tornei-me de vários mundos.
Cresci numa família africana, casa
cheia de histórias. Histórias da
Com a mala na mão Este trabalho tem como princí-
pio inerente, o desenvolvimento
de consciência e conhecimento.
Consciência do ambiente, do
ditadura e histórias da vida em Cabo
Verde e em Angola daqueles tempos
e que, desde que me lembro, ouvi
sempre com tanta curiosidade.
contra a discriminação impacto que nele temos, como
começar a atuar de forma a dimi-
nuir esse impacto, como sermos
melhor parte dele. É complemen-
Lembro-me de me sentar na sala e tado com elementos como as artes
de ficar simplesmente a ouvi-las. visuais, criação artística, trabalhos
Cresci rodeada de professores durante uma década por várias se supõe avançada e a forma como com materiais reciclados, contos
muito especiais, professores filhos da escolas do primeiro ciclo em Lisboa. trabalhamos em sala de aula, como e livros, música e movimento, e
Revolução, que ambicionavam um Turmas heterogéneas, alunos da vemos e lidamos com as diferentes antropologia. Tudo isto, com o am-
mundo novo e o acesso à igualdade cidade e de cidades vizinhas. Alunos manifestações do saber presentes biente como elemento unificador.
por via da educação. Professores que recém chegados a Portugal e alunos em qualquer sala de aula. Desen- Quanto mais a criança vai conhe-
sempre acreditaram no potencial ma- quase de partida. Alunos com sede volver uma prática que promova cendo sobre estas áreas, mais de si,
ravilhoso de todos os alunos. Cresci de aprender. Alunos a sobreviver. a indissociabilidade entre forma e também vai conhecendo. O traba-
curiosa, atenta aos outros e muito Curiosamente quase todas as turmas conteúdo. lhar, investigar, fazer, ouvir, mexer,
ligada à infância. Não sei se sempre foram de iniciação (primeiro ano de O Teatro libertou-me. E o que mover-se, ajuda a desenvolver não
quis ser professora mas gosto muito escolaridade). oprime o professor? Oh tanta coisa… só, capacidades cognitivas, perce-
de acreditar que sim. Paralelamente, começo a lecionar tanto papel… tanta grelha, tanta tivas, fisiológicas, como também de
Em junho de 1998, formei-me no ensino recorrente a adultos estatística, tantas hierarquias. Tantas identidade. O conhecimento ali-
na Escola Superior de Educação de (alfabetização). Cruzo a cidade de decisões tomadas por quem não menta a consciência, e a consciência,
Setúbal. Escola à qual devo esta ma- manhã à noite. Aproveito todas as conhece os alunos, a Escola. Todos os inevitavelmente, leva-nos à procura
ravilhosa capacidade de acreditar que horas para adaptar materiais peda- dias surge na Escola uma visão ino- de mais conhecimento. Ambas as
uma aula com um professor apaixo- gógicos, abordagens. Paulo Freire vadora, um projeto que vai resolver coisas, têm um ponto comum: o
nado pelo que faz, exigente e rigoroso diz em A Pedagogia do Oprimido: todos os problemas da Escola. E, a impulso de partilhar. Partilhar com
no que faz, é o ato mais transfor- “... o educador já não é o que apenas Escola que eu conheço, só precisa de quem está perto de nós, partilhar
mador da humanidade. Aprendi educa, mas o que enquanto educa é tempo. Tempo para os alunos. Tempo com quem, eventualmente, nos
durante esses quatro anos muito educado em diálogo com o educando para os professores. Tempo para ensi- cruzamos. As crianças da escola do
sobre sensibilidade, curiosidade, que, ao ser educado também educa. nar e tempo para aprender. Castelo, pela própria característica
minuciosidade, unicidade, currículo, Ambos, assim, se tornam sujeitos do Subo ao Castelo em 2009. Não mais da escola, fazem-no, todos, entre
articulação, flexibilidade, exigência e processo em que crescem juntos e em desci. Esta Escola tem tudo o que não si. Quando falamos numa Escola
responsabilidade. que os argumentos de autoridade já me assusta: a diversidade e a plu- Inclusiva é disso que se trata: todos
Saio da Escola com 21 anos não valem”. Foram anos de cresci- ralidade que o mundo é. Connosco os alunos a viverem e partilharem
diretamente para a cidade de Lyon mento com as histórias individuais estudam alunos com ascendência e/ experiências.
(França), através de um programa de todos os adultos a quem ensinei a ou nascimento em mais de cator- Num mundo cada vez mais pola-
de assistentes de português. Um ler e escrever. Guardo-os todos com ze países espalhados pelo mundo. rizado, desigual, tecnologicamente
ato revolucionário para uma miúda grande emoção. Passar certificados É preciso estimular e preservar a acelerado e com uma humanidade
afrodescendente da margem sul. nunca foi a minha última finalidade. dignidade humana e o respeito pelo (ainda) em construção, precisamos
Quando todos os meus jovens colegas Os adultos analfabetos procuram a outro desde a infância. E no Castelo de tempo e espaços para refletir.
professores procuravam a rápida con- escola, porque querem aprender. tenho conseguido criar oportunida- Pela mão da pedagogia da educação
tratação e vinculação ao Ministério Cruzo-me com um professor des para o exercício desta cidadania. popular, entendendo e exercendo a
da Educação. Eu procurava aprender. transformador. Daqueles que Da observação com preocupação educação como prática de liberdade
Aprender mais sobre como ensinar o nos desafiam continuamente a da persistência na Escola de casos (nas palavras de Paulo Freire) e
que tencionava ensinar. Como trans- experimentar, explorar, desafiar. Ariana Helena de racismo, discriminação e de in- recorrendo a métodos experienciais,
formar a sala de aula num espaço Desafia-me para começar a atuar. Varela Furtado - tolerância nasceu a vontade de fazer participativos, lúdicos, centra-
de aprendizagem para todos? Como No Teatro comecei por encontrar algo específico pensado para abordar dos na pessoa, esta oficina quer
auxiliar com rigor e clareza todos os toda uma linguagem de rigor na
Professora do 1.º Ciclo assuntos urgentes, polémicos, mas ser um momento de valorização e
alunos? Encontrei na Martine Rouyre dicção e de liberdade no corpo. e Coordenadora da também vitais, como colonialismo, exploração dos direitos humanos
(professora com quem trabalhei) Começo com muito medo de falhar. eurocentrismo, escravatura, discri- enquanto ferramentas de consciên-
muitas respostas, mas acima de tudo Todas as atuações foram precedi-
Escola do Castelo, minação, racismo. Acredito que uma cia crítica, de pensamento político,
o exemplo a seguir. É nela que penso das de nervosismo e inquietação. Lisboa, com formação das maiores forças desta proposta de empoderamento e transformação
quando me perguntam se conheço Em cena tudo desaparecia dando em Português- Francês, foi a comunhão entre os valores e individual e social. Um espaço e um
um professor que faça milagres. Aju- lugar a um profundo envolvimento normas dos Direitos Humanos e momento para parar e pensar o eu e
dou-me a rir-me das minhas inse- e mistura com as personagens. O variante ensino, pela a Educação Antirracista, baseada o nós; a identidade e a coexistência
guranças e a usá-las para estabelecer teatro é antes de tudo um diálogo, a Escola Superior de também nos princípios orientadores num planeta partilhado.
uma canal de comunicação com os oposição de duas convicções. A ação da Década Internacional dos Afro- Tenho colaborado com todas
alunos. Foi um ano de muitas viagens nasce desta oposição. Deste movi- Educação de Setúbal e descendentes. Entendo o racismo as associações que me convidam,
interiores e exteriores à procura de mento de afirmação e de negação pela Universidade de não só como uma discriminação porque considero o associativismo
metodologias e materiais que me per- que é o próprio movimento da vida, estrutural, mas também como um a melhor forma de fazer política.
mitissem falar da cultura portuguesa e que só a morte faz parar dentro de Rennes II (França) obstáculo ao pleno gozo e realização O associativismo é a democracia
e das culturas de Cabo-Verde, Brasil, nós. Ao teatro devo a construção dos Direitos Humanos. E olho para a a funcionar, quando um grupo de
Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, da minha própria filosofia para a Educação como a maior ferramenta pessoas se junta e procura alterna-
Timor Leste... educação. Não basta termos uma de transformação social. Nada mais tivas. Continuo a crescer enquanto
Volto para Portugal um ano depois conceção de educação e de ensino consciente e transformador do que professora. Continuo a emocionar-
para uma escola do primeiro ciclo. avançados do ponto de vista teórico, as crianças falarem e serem escu- -me com o brilho nos olhos de uma
Volto com a mesma ingenuidade com é fundamental que busquemos uma tadas, lidas e apreciadas, na e pela criança quando aprende algo novo.
que saí. Volto entusiasmada. Circulo coerência entre essa conceção que sua própria cidade. Com a reali- Ainda não desisti. J

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