Documenti di Didattica
Documenti di Professioni
Documenti di Cultura
MARIA DE SOUSA
Uma singular cientista e pessoa/poeta
Des
Desapareceu, também na semana passada, um nome de primeira linha
da
d Ciência, e não só, em Portugal. Textos de Anabela Mota Ribeiro
e Onésimo Teotónio Almeida, testemunhos de Manuel Sobrinho
Simões e Alexandre Quintanilha PÁGINAS 20 A 22
2 ↗
DESTAQUE 22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT
Vinham em pequenas canoas, UMA FÓRMULA ESTRATÉGICA Unesco, de categoria 2, para a forma-
meninos e meninas, com fisionomia Em seu entender, o que é essencial ção científica nos países africanos de
índia, entraram na escola, construída nessa estratégia? LP, que temos a área do Camões do
sobre troncos e águas, sem mobiliário. Se tivesse que a organizar, teria em ensino superior, mas precisamos de
O então jovem António Sampaio da conta quatro domínios absolutamen- passar a patamares de colaboração
Nóvoa, que vinha de outro continente, te centrais, que poderia pôr numa superiores, porque evidentemente o
e tinha percorrido milhares de qui- fórmula: EC ao cubo. O “E” tem que futuro vai passar pelo conhecimento
lómetros até chegar a Belém do Pará ver com o ensino que é, para mim, a e pela ciência, tal como pela cultura.
e depois ao delta do Amazonas, tam- pedra basilar. Tudo o que se relacione As universidades têm aí um papel
bém lá estava de visita. “Sentámo-nos com o ensino do português no estran- determinante. E utilizar a presença da
todos no chão, começámos a falar geiro e com a formação de professores LP um pouco em todo o mundo para
uns com os outros e entendemo-nos é extraordinariamente importante. tentar construir uma possibilidade de
em português”, recorda. E foi esse pensar o futuro é certamente muito
“momento inesquecível” que lhe veio E quais são os três “C”? importante. E agora, pensar como
à memória quando, a 25 de novem- São aqueles em que a língua se baseia. será o mundo pós-coronavírus e de
bro de 2019,na Conferência Geral da O C da cultura e da criação, o que pas- que forma vamos fazer as transições
Unesco, foi proclamado o Dia Mundial sa pelo apoio aos escritores, editores, que há muito dizíamos serem neces-
da Língua Portuguesa a celebrar a 5 tradutores, para uma maior circulação sárias.
de maio. da LP através da dinâmica da criação,
Mensagens de escritores e artistas, do livro. E o “C”, muito importante Que transições?
JOSÉ CARLOS CARVALHO
mesas-redondas por videoconferên- para mim, até pelo lugar de onde ve- Ecológica, digital, escolar. A LP, não
cia, um concerto online com músicos nho, de conhecimento, de ciência. apenas no nosso espaço, mas no mun-
de vários países de expressão por- do, pode dar um grande contributo
tuguesa são algumas das iniciativas, No sentido de afirmar a LP como uma nessa reflexão.
coordenadas pelo Instituto Camões, língua de ciência?
que agora vão assinalar, no espaço António Sampaio da Nóvoa Com a crise que vivemos, torna-se Pensa que o mundo vai mudar depois
digital, dada a atual situação de con- nítido que é preciso haver uma ciência desta pandemia?
finamento decorrente da crise pan- aberta e de grande circulação e o por- Essa não é a minha visão. Havia mu-
démica, o primeiro Dia Mundial da tuguês tem de ser realmente também danças que já estavam em curso, esses
Língua Portuguesa (DMLP). António outra sobre a exigência de uma ciência lhar muito nesse sentido. Outra é o uma língua de ciência. Não podemos temas já estavam em cima da mesa e
Sampaio da Nóvoa, 65 anos, durante aberta e da partilha de dados e de co- reforço da Língua Portuguesa (LP) deixar esse papel apenas ao inglês. esta crise só vai acelerá-los, torná-los
dois mandatos reitor da Universidade nhecimento. Dos trabalhos em curso no conjunto do sistema das Nações mais urgentes e obrigar-nos a encon-
Clássica de Lisboa e presidente do para a elaboração de relatórios e reco- Unidas e do multilateralismo. Todos E o que pode ser feito para o trar respostas mais imediatas.
Conselho de Reitores, artífice da mendações poderão sair as diretivas reconhecemos que Portugal está, conseguir?
fusão da Clássica com a Técnica, que da organização nessas matérias, para hoje, numa condição excecional É preciso haver uma colaboração mui- Voltando à sua ‘fórmula’, o terceiro
levou à criação da Universidade de as próximas décadas. Se os docu- para desempenhar um papel de tíssimo maior entre espaço científico e “C”, qual é?
Lisboa, de que é reitor honorário, mentos forem aprovados na próxima primeiro plano, de grande destaque, espaço universitário. Claro que existe Em termos genéricos, representa
especialista de Educação de projeção Conferência Geral, no final de 2021, na cooperação internacional. Isso a Associação das Universidades de de uma forma alargada a comuni-
internacional e candidato a Presidente será, para Sampaio da Nóvoa, “uma depende muito da LP, do seu espaço e Língua Portuguesa, que há programas cação, incluindo aí a presença da
da República nas últimas eleições, grande alegria”, confessa. “Portugal afirmação. importantes que têm sido feitos, que LP no mundo digital. E uma língua
em que obteve cerca de um milhão deixará uma marca”, e a LP dará um recentemente foi criado um centro que também abre oportunidades de
de votos, embaixador de Portugal na “contributo importante para pensar Em que iniciativas concretas já estão a negócios, passando pela economia ou
Unesco desde 2018 - diz ao JL que o futuro”. trabalhar? pela diplomacia. Julgo que, de uma
mais do que as comemorações oficiais Nas relacionadas com a projeção maneira ou de outra, esses três “C”
“importa a criação de um movimento Jornal de Letras: Qual o significado internacional, com o ensino e a for- têm que estar sempre presentes numa
que vá muito além do dia 5 de maio, de que se reveste o Dia Mundial da mação de professores, em particular estratégia de promoção da LP.
que simbolicamente é apenas a data, Língua Portuguesa? nos países africanos. Algumas que
o lugar onde inscrevemos a nossa António Sampaio da Nóvoa: Trata-se pensávamos divulgar já no DMLP, mas Tratou-se de uma RENOVAÇÃO E PUJANÇA
vontade de uma promoção inter- de uma decisão muito importante infelizmente, pelas atuais circuns- A LP está, de resto, entre as cinco
nacional da Língua Portuguesa”. E tomada pela Unesco, que deste modo tâncias, foi adiado o seu anúncio. Mas decisão muito línguas mais utilizadas no espaço
tem uma fórmula para a estratégia a reconhece o português como língua posso avançar que o governo, a partir importante da Unesco digital. Isso representa um especial
seguir: EC ao cubo. Que é como quem global e de comunicação internacio- do Instituto Camões, do Ministério dos desafio?
diz: Ensino, Cultura, Conhecimento e nal. Um gesto de grande valor simbó- Negócios Estrangeiros e do Ministério (criar o DMLP), um Sem dúvida. Deve-se sobretudo ao
Comunicação. lico e que abre muitas oportunidades da Cultura, irá anunciar logo que gesto de grande valor Brasil, que avançou muito no digital,
E se o reconhecimento do Dia da para a sua projeção. possível um relançamento de uma mas essa presença da LP deve ser
Língua Portuguesa (LP) é uma das estratégia de promoção internacional
simbólico e que abre reforçada, até para projetar uma nova
marcas já visíveis da sua ação, lançou Como se traduzem na prática? da LP. Isso é muito importante e foi, muitas oportunidades fase da língua.
também duas ideias sobre as quais Desde logo, é uma oportunidade para de algum modo, uma necessidade que
a Unesco atualmente se concentra: o reforço de iniciativas conjuntas dos se abriu com a proclamação do Dia
para a projeção da Nova?
uma reflexão sobre o futuro do ensino, países da CPLP e estamos a traba- Mundial da Língua Portuguesa. nossa língua Estive a reler um texto de Rui Knopfli,
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT DESTAQUE 3 ↗
COMENTÁRIO
tes, novas expressões e verbalizações mundo não esperam por nós. Mas
até uma nova sintaxe. É uma língua tem sido uma experiência fabulosa e
que se tem renovado e que continua estou muito grato a todos pelo apoio
a renovar-se. Temos uma geração de e simpatia que têm tido em relação ao José Carlos de Vasconcelos
jovens escritores e um conjunto de meu trabalho. Tenho procurado agir,
E
editoras, algumas muito pequenas, e julgo que foi nesse sentido que o
que estão a dar vida à língua. Porque governo português fez a minha indi-
não basta haver dias mundiais e uma cação para representante de Portugal ste "comentário" tanto de facto o é, no sentido de
língua ser consagrada pelas instân- junto da Unesco, concentrando-me exprimir uma opinião ou ponto de vista sobre
cias internacionais, é preciso que nas situações mais substantivas, em temas, acontecimentos, figuras, como, várias
MARCOS BORGA
seja capaz de dizer coisas fortes às particular na educação e na ciência, vezes, assume mais a forma de uma espécie de
pessoas. Isso deve-se muito também além de outras iniciativas relativas ao diálogo com os leitores. Sobre o nosso jornal,
à circulação que o digital permite. A património, à cultura. E acho que aí em geral, ou alguma edição em particular.
Unesco acaba, de resto, por reconhe- Portugal tem dado um impulso deci- Queremos ter uma relação direta e 'transparente' com quem nos
cer esse momento de grande pujança sivo, como tem sido reconhecido pela lê e acompanha. E também por isto em diversas ocasiões entendo
e criatividade da LP e da nossa posição diretora-geral da Unesco. impor-se, ou pelo menos justificar-se, mostrar-nos por dentro,
geoestratégica no mundo. contar isto e aquilo, esclarecer porquê esta ou aquela matéria,
De que maneira? alteração, opção.
A nível das instituições, a LP tem-se As duas grandes iniciativas que a Ora, poucas vezes se me terá afigurado tão necessário fazê-
feito ouvir? As duas grandes Unesco lançou, nestas áreas, nos -lo como hoje. Por uma série de razões que já exporei, mas que
Tem havido aberturas. Vasco Graça- iniciativas que a Unesco últimos tempos, foram propostas por saltam à vista nestas duas páginas iniciais, de hábito preenchi-
Moura disse que nenhum de nós quer Portugal. das, mais a p. 4 pelo menos, com notícias, mais desenvolvidas ou
uma língua única, totalitária. Não lançou, nestas áreas, "breves", curtas conversas, pré-publicações. Hoje, como se vê,
quer dizer que o inglês não prevaleça nos últimos tempos, Apostas pessoais? apenas uma longa entrevista as preenche, de par com esta coluna
como essa espécie de língua fran- Lancei essas ideias praticamente que só a necessidade de o explicar mantém...
ca, nas instâncias internacionais,
foram propostas por quando cheguei à Unesco, há um Mas então conto tudo... Para esta edição tínhamos preparado
mas deve-se abrir espaço para uma Portugal ano e meio. Refiro-me à comissão um Tema, que me parece atual, interessante e no qual aceitaram
diversidade linguística central nos internacional para pensar o futuro da colaborar todos, de várias partes do mundo, que para o efeito
dias de hoje, podendo estabelecer educação, que está a trabalhar muito convidamos. De várias partes do mundo? Sim, porque pedimos
pontes úteis entre os diversos idiomas. Temos que ajudar os bem e já deu muitas orientações nesta a escritores portugueses ou de língua portuguesa, ou a figuras
O português é, aliás, um dos que está países africanos e acho altura da crise do coronavírus. E, por muito ligadas à nossa cultura, que numa crónica ou testemunho
mais bem situado em todos os cantos outro lado, a iniciativa Open Science, nos dessem a sua visão da situação vivida, no que se refere à
do mundo. Mas claro que não tem o que a Unesco, nos uma ciência aberta e não fechada em Covid-19, nos seus países de nacionalidade e/ou residência. E nos
número de falantes do chinês. Quando próximos anos, deve revistas a que ninguém tem acesso, contassem a sua própria experiência pessoal. Cada um desenvol-
foi proclamado o Dia Mundial da mais democrática e pública, para o vendo mais um ou outro aspeto, e abordando-o como muito bem
Língua Portuguesa, o ministro Manuel centrar-se na situação bem da humanidade. Muitos até nos entendesse.
Heitor, que representou Portugal, fez a de África perguntam por graça se já estávamos Todos (cor)responderam, repito, e os leitores já ficam a saber
sua declaração em português, porque a pensar antes no que está a aconte- qual o principal destaque da próxima edição. E porque não desta?
já é uma língua oficial da Conferência cer. Essas iniciativas, em que estamos É óbvio: em meados da semana passada morreram dois gran-
Geral da Unesco, embora ainda não muito empenhados, ganham, na des escritores, um de língua portuguesa, o brasileiro Rubem
seja no conjunto dos órgãos. Estamos vontade de uma promoção internaci- verdade, uma pertinência, um sentido Fonseca, Prémio Camões em 2003, e outro de língua espanhola,
a dar passos num caminho que é onal da LP uma língua extraordinária novo nesta altura e podem ser funda- chileno universal, ainda por cima ambos tão lidos e tão ligados a
importante também dentro das orga- também na capacidade de pensar o mentais para pensar o que será a soci- Portugal; e desapareceu ainda uma das mais prestigiosas cientis-
nizações internacionais. futuro. edade no pós-crise. Porque se inserem tas portuguesas, ao mesmo tempo uma mulher com notória in-
na dinâmica de transformação que tervenção científica e cultural, de múltiplos interesses e talentos,
A celebração, a primeira, do Dia Em que sentido? se vai acentuar depois desta bolha de inclusive como autora de livros e poeta. Assim, como podíamos
Mundial da Língua Portuguesa vai ser Vergílio Ferreira disse que não se confinamento em que estamos a viver deixar passar quase três semanas após as suas mortes para nas
no espaço digital, por força dos atuais pode pensar fora das possibilidades e que não será certamente o nosso nossas colunas falar dos três e suas obras? Dando-lhes o maior
condicionalismos. O que se pretende? da língua em que se pensa. Pela sua novo futuro. E é possível que tentemos relevo possível, dentro da nossa asfixiante falta de espaço.
Tínhamos previsto muitas inicia- história, por incorporar outras cultu- já agora uma iniciativa da Unesco.
tivas, por exemplo uma exposição ras, tradições, a LP tem possibilidades ASSIM, ADIAMOS A PUBLICAÇÃO daquele Tema - que infeliz-
de Cruzeiro Seixas, que este ano faz únicas. Se o Dia Mundial da Língua Com que objetivo? mente não perde atualidade... - e fizemos o melhor para nesta
100 anos, em Paris, cidade das suas Portuguesa for um marco e uma Reforçar o papel e o apoio aos pro- edição não "desmerecer" das figuras agora desaparecidas. Tarefa
referências, homenageando também marca da sua nova realidade, já deu fessores, sobretudo em África e nos difícil, mas que suponho conseguida, com a preciosa ajuda de vá-
de certa forma Mário de Sá-Carneiro, um contributo extraordinário para o países com mais dificuldades, uma vez rios colaboradores e amigos, autores de excelentes matérias, que
que lá viveu. Mas não foi possível, tal nosso futuro. que se estão a sentir alguns problemas muito agradecemos. Gostaria também de aqui escrever qualquer
como outras atividades que estavam nesta crise, por parte dos docentes, coisa sobre os três, mormente sobre Rubem, sua inesquecível
programadas. Vamos ter uma presen- na resposta à atual situação. Temos participação nas Correntes d'Escritas e umas nossas conversas
ça por via digital, com celebrações LANÇAR FUTURAS que ajudar esses países e acho que a três - isto é, os dois e o Eduardo Lourenço. Quanto a Maria de
virtuais, mesas-redondas por video- RECOMENDAÇÕES se alguma coisa a Unesco pode fazer Sousa, como à frente não "coube", deixo aqui um dos seus poemas
conferência, mensagens. A proclamação do Dia Mundial da pelo mundo, nos próximos anos, é inéditos, publicado na nossa edição de 9/2/2011, que intitulou
Língua Portuguesa foi um momento- centrar-se na situação de África. "Nota fúnebre para Sophia", e que a ela também de algum modo
Como tem sido a recetividade chave do seu trabalho como se aplica: "À terra o corpo/ Ao mundo o verso// Entre nós mur-
a este dia? embaixador de Portugal na Unesco. Porquê? múrios, pranto/ Calado para sempre o canto."
Impressionante. E há muitas iniciati- Como o sentiu? África é um problema imenso e não Ainda antes da Covid-19, o que tínhamos previsto como te-
vas que estão a ser tomadas também Naturalmente, com uma grande só para os africanos, mas para o mas em destaque nesta edição para o 25 de Abril e, sobretudo, a
por escolas, por diferentes pessoas que emoção, até porque estava a sala mundo inteiro E a LP está também Língua Portuguesa, por se assinalar a 5 de maio o seu Dia - que
se interessam pela língua. É a inscri- inteira a olhar para nós. Também lá aí bem situada, através de Angola, por decisão da Unesco passou a ser Mundial, e nessa qualidade
ção dessas pessoas e do que têm para estavam os embaixadores de Cabo Moçambique, Guiné, Cabo Verde. E pela primeira vez se celebra. Ora, a este propósito, nada melhor
dizer que realmente faz o Dia Mundial Verde, Angola ou Brasil e representá- dá-nos muito prazer sentirmos que do que entrevistar o embaixador de Portugal na Unesco, perso-
da Língua Portuguesa e não só as co- vamos um conjunto de pessoas e de pudemos dar o nosso contributo à nalidade relevante que os nossos leitores bem conhecem.
memorações oficiais, formais. O que culturas que se sentem reconhecidas Unesco, que tem uma matriz muito E, face à importância da entrevista, ao relevo que lhe queríamos
importa é a criação de um movimento nesta língua. E recebemos dezenas de centrada sobre o bem comum, sobre dar e à falta de espaço publicá-la nestas duas páginas. Como
que vá muito além do dia 5 de maio, mensagens de outros embaixadores, os valores humanistas, e nesse sentido fazemos. O 25 de Abril, ficou de "fora", bem assim numerosos
que simbolicamente é apenas a data, pelo que foi realmente um momento é uma organização imprescindível. J textos, desde a Estante e os Discos à crítica de livros e à coluna
o lugar onde inscrevemos a nossa muito tocante. MARIA LEONOR NUNES de André Freire. J
4 DESTAQUE
↗
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT
O 1º ANO
JL 4: de Siza
Inquérito
a Sartre Livros, discos e filmes que
marcaram os últimos 40 anos
N
o último tema, e capa, que lhe dedi- Ao longo do 40.º ano do JL. promovemos um inquérito para apurar os livros, filmes e
camos (JL 1282, de 2 de dezembro de
2019) lembrei a sua destacada presença álbuns que mais marcaram as últimas quatro décadas. Quinzenalmente, publicaremos as
nas nossas páginas, ainda ele estava listas individuais de diversas figuras com as suas 20 escolhas (dez para o cinema)
muito longe de ser o arquiteto de fama
mundial em que se tornou. Refiro-me,
claro, a Álvaro Siza Vieira - e aquela destacada presença,
com grande relevo, começou logo na nossa quarta edição DISCOS
(14/27 de abril de 1981), como as anteriores com o res- › Capitães da areia › Manuel Frias Martins › Onésimo Teotónio Almeida
petivo nº, o 4, na capa de João Abel Manta. Logo a abrir, TIAGO PEREIRA A VIAGEM DOS MATÉRIA NEGRA. DESPENTEANDO
um perfil/entrevista pelo Manuel António Pina ("Siza CAPITÃES DA AREIA UMA TEORIA DA PARÁGRAFOS –
Vieira, arquitetura, arquitetura"), depois um seu longo › Júlio Pereira A BORDO DO APOLO LITERATURA E DA POLÉMICAS SUAVES
e muito interessante diálogo de Siza com o seu também CAVAQUINHO, 70, 2015 CRÍTICA LITERÁRIA (2015)
prestigiado colega, e estudioso do ofício, Nuno Portas. 1981 (1993)
Quase cinco páginas - então, recordo de novo, maiores › Sampladélicos › Valter Hugo Mãe
que as atuais -, quase compactas... Às quais se segue um › Fausto NÃO NOS DEIXEIS › Boaventura de Sousa Santos O REMORSO DE
texto, ainda sobre o mesmo tema, de outro importante POR ESTE RIO CAIR EM TRADIÇÃO PELA MÃO DE BALTAZAR SERAPIÃO
arquiteto, dez anos mais velho, Manuel Taínha. ACIMA, 1982 ALICE. O SOCIAL E O (2006)
Outro tema, a figura e obra do filósofo e escritor que › Éme POLÍTICO NA PÓS-
nesse início dos anos 80 continuava na primeira linha
› Banda do Casaco DOMINGO À TARDE, MODERNIDADE (1995) › Afonso Cruz
da atenção, e amiúde da polémica, um pouco em todo
BANDA DO CASACO 2017 PARA ONDE VÃO OS
o mundo culto, e sobre o qual o Centro Nacional de
COM TI CHITAS, 1984 › Eduardo Lourenço GUARDA-CHUVAS (2013)
Cultura e o Instituto Francês de Lisboa iam organizar um
colóquio: Jean Paul-Sartre. E sobe ele, em mais quatro › Sei Miguel O ESPLENDOR DO
› José Afonso O CARRO DE FOGO, CAOS (1998) › António Damásio
páginas, escrevem nada
mais nada menos do COMO SE FORA 2019 A ESTRANHA ORDEM
que Eduardo Lourenço, SEU FILHO 1983 › Miguel Real DAS COISAS. A VIDA,
Eduardo Prado Coelho e › Vários GERAÇÃO DE OS SENTIMENTOS E AS
Luiz Francisco Rebello. › José Alberto Sardinha ANTOLOGIA DE 90. ROMANCE CULTURAS HUMANAS
Vinha a seguir MÚSICA ATÍPICA E SOCIEDADE (2017)
VIOLA CAMPANIÇA . NO PORTUGAL
o texto mais longo O OUTRO ALENTEJO, PORTUGUESA VOL2,
sobre literatura desta 2019 CONTEMPOR NEO
1986 (2001) FILMES
edição, "Intimismo e
intervenção literária",
de Clara Rocha, na
› Pop dell`Arte LITERATURA › Ana Paula Arnaut JOSÉ VIEIRA
qual analisa designa- FREE POP, 1987 POST-MODERNISMO MENDES
damente o romance CARLOS NO ROMANCE
Bolor, de Augusto › Ocaso Épico NOGUEIRA PORTUGUÊS › KILAS, O MAU DA FITA
Abelaira. No seu MUITO OBRIGADO, CONTEMPOR NEO de José Fonseca e Costa (1980)
"Amador de Poemas" 1988 › Arnaldo Saraiva (2002)
David Mourão-Ferreira LITERATURA › FRANCISCA
escreve sobre - e tra- › Gaiteiros de Lisboa MARGINAL/IZADA. › Onésimo Teotónio Almeida de Manoel de Oliveira (1981)
duz - Walther von der
INVASÕES NOVOS ENSAIOS DE MARX A DARWIN.
Vogelweide, o sempre atento Irineu Garcia dedica a sua
BÁRBARAS, 1995 (1980) A DESCONFIANÇA
"Zona Tórrida" a João Cabral de Melo Neto; e, ao lado, DAS IDEOLOGIAS › O LUGAR DO MORTO
Arnaldo Saraiva fala de Drummond. Enquanto, após os
› João Aguardela › José Saramago (SEGUIDO DE de António-Pedro Vasconcelos (1984)
dois grandes poetas brasileiros é de novo Gabriel Garcia LEVANTADO APÊNDICES SOBRE
MEGAFONE I, 1997
Marquez que aparece, no âmbito do nosso exclusivo DO CHÃO (1980) DARWIN NOS › DE UMA VEZ
para Portugal da revista espanhola Cambio-16. Além do AÇORES) (2009) POR TODAS
essencial "O Guarda-Livros", de que já aqui falei, outras › René Bertholo › António Lobo Antunes de Joaquim Leitão (1986)
críticas, entre elas a primeira de Manuel Frias Martins. UM ARGENTINO
EXPLICAÇÃO › Vítor Aguiar e Silva
Em matéria de "Ideias", destaque para o texto "A NO DESERTO. 2001
questão do marxismo", por José Fernandes Fafe, e para DOS PÁSSAROS (1981) AS HUMANIDADES, › MATAR SAUDADES
OS ESTUDOS de Fernando Lopes (1988)
as duas páginas sobre/com Alain Touraine: um ensaio › Jorge Lima Barreto, › Carlos Reis CULTURAIS, O ENSINO
de António Fonseca Ferreira e uma pré-publicação do Carlos Zíngaro
DA LITERATURA
seu livro L'après-socialisme. Nas artes, por exemplo, KITS 2, 2008 O DISCURSO E A POLÍTICA DA › RECORDAÇÕES
France Huser a falar de Modigliani, o cinema e o teatro IDEOLÓGICO DO LÍNGUA PORTUGUESA DA CASA AMARELA
na visão de nossos críticos já aqui referidos, a fotografia NEO-REALISMO
a justificar uma chamada especial de atenção por um
› B fachada, PORTUGUÊS (1983)
(2010) de João César Monteiro (1989)
A C E
www.incm.pt
https://www.facebook.com/ImprensaNacional/
prelo.incm.pt
editorial.apoiocliente@incm.pt
S S Í
O Essencial Sobre é uma colecção
icónica de temas da cultura
e da literatura portuguesa e
mundial, explicados de uma
forma breve e fácil, para um
público generalista e disponível
nas livrarias a um valor muito
acessível. Na certeza de que
muitos de nós estaremos nos
próximos tempos em isolamento
social, no contexto da pandemia
COVID-19, muitos dos mais
recentes títulos da coleção
estão disponíveis gratuitamente
V E L
no nosso site www.incm.pt e no
blogue editorial prelo.incm.pt,
garantindo a missão de serviço
público da Imprensa Nacional.
6 ↗
LETRAS 22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT
Autor-resumo do Brasil
A
MIGUEL SANCHES NETO
os seres invisíveis, a lógica dos
discriminados. O que era tão peri-
goso, na visão dos militares então
no poder (e tragicamente nos de
agora) era a existência enquanto
linguagem literária destes seres à
margem que a sociedade brasileira
queria e continua querendo calar
– é dentro deste contexto que se
deu o assassinato da vereadora
e ativista negra Marielle Franco
(1979-2018). A violência dos livros
de RF não tem uma função ceno-
gráfica, e era obtida pelo autor por
A trajetória literária de José meio de uma adesão ao olhar e à
Rubem Fonseca teve início em linguagem da vasta população de
meio a uma carreira executiva de excluídos sociais do Rio de Janeiro
sucesso. Depois de experiências e de suas conexões ou conflitos
na polícia, tanto no Brasil quanto com o crime organizado. É uma
nos Estados Unidos, e de estu- violência perigosa ao sistema pelo
dar administração de empresa respeito à biografia destes seres
em Nova Iorque, ele se tornou que não apareciam como sujeitos.
um alto funcionário da Light,
empresa privada de energia NOS ANOS 1960 E 1970, A LITE-
elétrica, fundada em 1905, no Rio RATURA brasileira foi dominada
de Janeiro, cidade adotada pelo pelo conto, e ser ficcionista era
autor. Foi justamente no decorrer sinónimo de ser contista. A exis-
desta ascensão profissional que tência de revistas marginais e de
publicou sua primeira coletâ- outras comerciais que publica-
nea de contos: Os prisioneiros, vam contos criou uma receção
veiculada por uma editora quase Rubem Fonseca "Colocou no centro da alta literatura a linguagem quente das ruas, os seres invisíveis, a lógica dos discriminados" prioritária a este género, para o
invisível (GRD, 1963). qual estas foram as décadas de
A obra teria passado com- ouro. Junto com Dalton Trevisan
pletamente despercebida se um (1925) e João António (1937-
crítico atento, o mais importante (2000): “Ao meu descobridor, um dos monstros (Amado Couto, 1996), RF formava o triunvirato
da nossa história, Wilson Martins com amizade e admiração”. A nascido na mesma cidade de do grande e novo conto realista
(1921-2010), não tivesse notado afirmação certeira da vocação é Rubem Fonseca: Juiz de Fora, do Brasil. Autores de primeira
a sua qualidade em um artigo que instituirá no meio literário Autor-resumo de Minas Gerais) dedicados à lite- grandeza, eles deslocaram o foco
de O Estado de S. Paulo de 1 de o autor, dividido inicialmente ratura policial em La literatura da linguagem para grupos que
fevereiro de 1964 (“Tendências”). entre uma atuação no mundo
uma era, ele foi, pelo nazi en América, o que reforçou viviam uma invisibilidade social,
Para o crítico, aquele estreante executivo e a vivência profunda vínculo com o Rio e uma ideia equivocada do autor chocando os leitores e criando
quase quarentão, ligado a outros da arte, sem deixar de meter-se pela desinibição ao se vendido ao sistema (político e um sentimento de humanismo
ramos da esfera pública, trazia a em polémicas por esta dualidade. comercial). sem sanções morais.
literatura no sangue e renovava A mais famosa delas: esteve ao apropriar de elementos A distância entre o cidadão e o Rubem Fonseca jamais aban-
o conto contemporâneo ao apre- lado dos militares na primeira estranhos ao literário, artista pode ser avaliada em sua donará o conto ou o deixará como
sentar uma nova filosofia de vida hora do golpe de 1964, pagando biografia. Se o autor namorou com uma produção secundária em
e introduzir uma tradição cine- depois o preço por este apoio, o Machado de Assis do o Poder em alguns momentos, sua trajetória de grande sucesso,
matográfica em suas narrativas. o que o afastou para sempre da Brasil de agora o escritor criou uma literatura tanto de público quanto de críti-
Foi exatamente este progra- possibilidade de aparecer em que era revolucionária por ser ca. Manteve-se contista por toda
ma que o ficcionista cumpriu ao público no Brasil, mesmo depois escrita na ótica dos marginais, dos a sua vida editorial, e foram neste
longo de uma produção extensa e de seu livro Feliz Ano Novo (1975) Criou uma literatura bandidos tanto da classe média e registo seus últimos livros, em
exitosa. Em duas dedicatórias de ter sido censurado pelo regime alta quanto dos assassinos e outros que reprisava os velhos temas,
seus livros mais recentes, Rubem militar sob a acusação de porno- revolucionária por párias sociais. Rubem Fonseca as velhas estruturas, os mes-
Fonseca (RF) repetiu as mesmas grafia e de incentivo ao palavrão escrita na ótica dos vem de uma tradição carioca que mos personagens, escrevendo,
palavras de homenagem a Wilson e ao crime. Impiedoso, o escritor começa com Lima Barreto e que tragédia dos que mantêm uma
Martins – em A Confraria dos chileno Roberto Bolaño (1953-
marginais, dos bandidos colocou no centro da alta litera- carreira longeva, à maneira de si
Espadas (1998) e O Doente Molière 2003) o elegeu como mestre de e outros párias sociais tura a linguagem quente das ruas, próprio, mas sem nunca deixar
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT LETRAS 7 RUBEM FONSECA
↗
irónico, divertido
(1983) que vem o grande sucesso ro, compreendido entre os anos
do autor. Nesta década, valo- 1980 e 2010.
res até então sagrados, como
experimentação de linguagem ELE INCORPOROU E MUITAS
e desejo de rutura com o pú- VEZES criou as principais linhas
blico, o primeiro presente nos de força do romance da agorida-
livros de contos de Rubem, dão de, na função de catalizador de
lugar a uma busca de legibilida- todas as vertentes de sucesso em IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO
de universal. Há um desejo de curso. Rubem iniciou no Brasil a
constituir um público contempo- onda do romance policial cult (A morto. Sentaram os dois num sofá e
râneo, urbano e cosmopolita para grande arte), cujos recursos usou ficaram a pensar em urubu morto, ela
a ficção brasileira, e o caminho em inúmeras outras obras, de mais do que ele.”
era o romance avesso a toda a ficção longa ou curta; passou pelo Diante daquele livro, eu que tinha
tradição regionalista ou orto- romance histórico (Agosto, 1990), 27 anos, cogitei: aqui está um cara
doxamente experimental que já que tem uma densidade de leitura que é da "nossa". "Nossa" queria
havia exportado como produtos muito alta nos públicos comuns; dizer turma, grupo, ideologia,
exóticos autores como Jorge chegou à onda de autoficção (José, filosofia, doideira. Tínhamos lido
Amado, Guimarães Rosa, Érico 2011), que no Brasil é uma tendên- Sartre, Rimbaud, Huysmans, Henry
Veríssimo e Graciliano Ramos. cia de grande representatividade; Miller, Jack Kerouac, Ginsberg,
Quem vai liderar esta mudan- e também pagou tributo à experi- Celine, Radiguet, Mário de Andrade
ça de chave de nossa ficção (do mentação estrutural (O selvagem (Macunaima). Vejam só, eu jamais
conto para o romance) é RF, am- da ópera, 1994), em um romance tinha publicado um livro, só escrevia,
pliando a conexão com o cinema que é uma homenagem ao cinema, escrevia e queria ser beat, transviado.
e dialogando com o best-seller pois emula um roteiro, código que Então apareceu Rubem quebrando
norte-americano, sem medo de o autor dominava, tendo, inclu- as regras (quebrava intuitivamente,
incorporar os seus mecanismos sive, roteirizado algumas de suas porque conhecia as regras) do bom
de fidelização de leitura, en- próprias obras. Neste caminho de comportamento em frases curtas,
tre eles a velocidade narrativa, aproveitar o material da litera- incisivas, chocantes, com sensações
a informação sobre assuntos tura de massa para a construção inusitadas, brasileiras na essência.
técnicos, o suspense, o crime, literária, RF chegou ao extremo Era a literatura urbana avançan-
a violência já como gramática de apropriar-se da estrutura mais Rubem Fonseca e Ignacio Loyolla, nos chamados “porões da ditadura”, em 1976, quando do, o Brasil estava deixando de ser
cenográfica do romance policial, linear de best-sellers em seus os seus livros foram proibidos, numa caricatura de Paulo Caruso para a revista Isto É rural, as emoções se transformavam.
últimos romances (O seminaris- Na minha cabeça, Rubem Fonseca e
ta, 2009), o que aumentou certa Nelson Rodrigues foram fundamen-
resistência por parte da crítica, tais para estabelecer essa literatura
que via nele um repetidor de seus Rubem Fonseca. Para os próximos O que me atrai nas histórias de urbana carioca/brasileira, crua,
próprios truques de magia. e os que fingiam mostrar intimida- Rubem é exatamente a “anormalida- desbocada, atrevida, realista. classe
A partir de sua morte, o autor de era Zé Rubem. Eu o tratava por de” de emoções, reações, compor- média.
começará a sofrer o julgamento Rubem. Assim foi a vida inteira. tamentos. “Como é que um corcunda Por que me vêm agora insights
Liderou a mudança das novas gerações, que não têm Li seus livros desde 1963, quando se prepara para receber uma mulher de seu jeito de escrever? Nunca
de chave de nossa o compromisso biográfico da- voltei de uma estadia em Roma e ele linda que deve ser arduamente indu- esqueço o filho ao pé do leito do pai
queles que se formaram a esperar tinha lançado por pequena editora zida”. Eu vivia cansado de escritores moribundo, que confessa ter tido
ficção (do conto para o a melhor tradução ficcional do Os Prisioneiros. Estava com 38 anos que escreviam limpinho, normal- outra mulher. O pai, quase morto, de
romance), ampliando a Brasil enquanto país essencial- e até aquele momento ninguém sa- zinho, comportadinho. Senti, e a repente, “abriu os olhos e me fitou.
mente violento. O grande mérito bia de suas existência, tinha levado maioria dos lúcidos também, que ali Na verdade, abriu um olho somente,
conexão com o cinema e estrutural de seus romances está uma vida burocrática. Chegou a estava aquele que vinha para romper. o esquerdo, que ficou como se tivesse
dialogando com o best- na capacidade de subverter os ser executivo de uma empresa de Num dos contos do primeiro livro, incorporado o diâmetro do vizinho.
códigos massificados de leitura, energia elétrica, a Light. E delegado “Curriculum Vitae” há um instante Com esse olho ciclópico me fez um
seller norte-americano trazendo para o campo da arte o de policia. Talvez desta profissão saboroso. Um casal está no quarto, se doloroso apelo, um pedido como
leitor que pertence ao entreteni- tenha vindo o cinismo, a cruelda- beijando, a temperatura cresce, ela quem diz, cumpra a sua missão; e
mento. Rubem Fonseca questio- de rascante, a ironia, o humor, o decide parar. “Estou com muita von- nesse instante, pelo canto do insólito
nou assim, pela adesão a certos desencanto com a lei, a ordem, o tade, diz ele. Eu também, diz ela, mas globo escorreu uma lágrima, uma só,
as cenas de sexo e a defesa da recursos, a possibilidade de se cepticismo absoluto que nos encan- vamos tirar isso da cabeça. Como? muito brilhante que correu rápida
leitura entre os personagens mais fazer uma literatura densa, que tou sempre. ele pergunta. E ela: Pensa em urubu pelo rosto e caiu no lençol.”
improváveis. Em meio a tudo assombrasse o leitor, numa era de Não sei porquê, ficou-me até hoje Nesta altura, todos sabiam que
isso, ele apresentava uma viagem emoções e enredos superficiais. E no conto que dá titulo ao livro, o cli- existia um escritor chamado Rubem
ao nada glamouroso submundo fez isso usando os códigos deste ente que suava só de um lado do cor- Fonseca. Não se sabia muito dele.
carioca, a um Rio do noticiário momento, sem querer afirmar po, ora do esquerdo, ora do direito. Sempre foi low profile. Até o fim da
policial e por isso destino de uma estética folhetinesca, mas Ou ao longo da carreira a maneira vida nunca deu entrevistas no Brasil.
aventuras imaginárias, uma vez a se valer dela como um meio, como definia sumariamente um Fugia da imprensa, ainda que saísse
que esta cidade é a mais turística numa busca de enganar o leitor personagem: “Não sou de levar para às ruas, fosse correr nos calçadões
do país. Há excursões por outras ingénuo. O formato pseudo a cama uma dona que encontro ao de Copacabana. O interessante é que
áreas de interesse internacional, comercial de seus últimos ro- balcão de uma loja de sucos e san- [Desde o seu primeiro naqueles anos não existiam celu-
como a Amazónia, e desloca- mances nos leva a um grau zero duíches.” E ainda: “Só não bato em livro] senti que ali lares que fotografavam (aliás nem
mentos narrativos à Europa, mas de literatura. Dali para baixo é o velho, criança, mulher e aleijado.” se imaginava um celular), portanto
o Rio foi, enquanto paisagem hu- não-literário, a terra sem lei do Outro: “As mulheres têm entranhas estava aquele que vinha ele caminhava tranquilamente por
mana e linguística, o seu habitat texto escrito ao gosto do leitor. diferentes das nossas, emitem um para romper seu bairro, o Leblon. Não era, como
literário. Mas, por outro lado, possibilita a aroma herbáceo, travesti não me nos casos de Bolso Nero e de Trump,
Desde este momento, ele cria consumidores de entretenimen- engana nem operado”. Desde aquele ódio à imprensa, culpada de tudo.
uma legião de seguidores, uma to uma aproximação da grande primeiro livro percebemos estar Quebrando as regras em Sua vida privada não era para ser
verdadeira escola, que vai ma- literatura. diante de um escritor que adorava acessada. Foi assim até o fim da vida.
pear a sociedade brasileira urba- Romancista posto nesta a singularidade.. Ele passou a vida frases curtas, incisivas, Vieram Lucia M Cartney, em 1969,
nizada velozmente pela expulsão, fronteira, autor-resumo de uma inteira a manter-se no topo dos chocantes, com plena ditadura, um best-seller. Virou
por parte das monoculturas, era, ele foi, tanto pelo vínculo autores insólitos. Mas é um insólito filme. Fenómeno curioso, o autor era
das populações rurais. Nasce com o Rio de Janeiro quanto pela que vem da realidade, transpira do
sensações inusitadas, louvado pela critica e amado pelo
com RF mais do que o romance desinibição ao se apropriar de homem comum, desses seres com brasileiras na essência. público. Raridade na vida literária.
contemporâneo, e sim o romance elementos estranhos ao literário, quem convivemos no cotidiano e Quando alguém vende muito, os
da pós-modernidade nacional. o Machado de Assis do Brasil de nem percebemos o que são suas
Era a literatura urbana críticos ficam na marcação. Com
O autor transita por géneros e agora.J mentes e paranóias. avançando Rubem isso não funcionou, sempre
8 LETRAS
↗
RUBEM FONSECA
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT
LUCÍLIA MONTEIRO
Brasil inteiro, conhecido hoje como o subindo rampas, ou galgando escadas
"Manifesto dos 1.046", de 1977, pri- de dois em dois degraus, e já estava
meiro embate forte contra as proibi- com 81 anos.
ções. Deu resultado, gradualmente as Um dia fomos cumprir um ritual
coisas começaram a afrouxar. Rubem , plantar uma árvore. Pede-se aos
e sua editora correram a fizeram uma Rubem Fonseca nas Correntes d’Escritas, tendo ao lado Hélia Correia e Eduardo Lourenço visitantes que deixem uma árvore
ação jurídica contra a proibição, que no solo seco do país. É uma uma bela
jamais foi julgada, portanto aquele cerimonia, coisa para o futuro, reflo-
livro continuou proibido. Ainda que restamento. Vida. Cada um plantou
circulando normalmente. Estávamos
(e estamos) acostumados a viver
paradoxos e absurdos.
As cinco condições para ser escritor sua muda e foi pedido a Rubem que
fizesse uma fala. Ele começou: “Sou
um dendólatra...” e falou por uns 15
A partir do momento de veto cada minutos. O grupo ficou de orelha em
autor agraciado se tornava autor RUBEM FONSECA pé. O que Rubem dizia? Dendólatra?
vigiado. Tanto que quando Rubem Essa palavra existia?
ganhou um concurso nacional de A escrita é um risco total. Isso lembra-me uma frase de um escritor americano,E.L. Doctorow, “writing is a Terminada a fala, fomos até
literatura, organizado pela revista solution accepted form schizophrenia”. Ele errou. Na verdade escrever é uma forma socialmente aceite de ele, indagamos : “O que vem a ser
Status, de São Paulo, uma espécie loucura. E nesta mesa somos todos loucos. Mas, claro, de forma diferente. Leiam um texto magnífico de dendolatra? Está chutando?” E
de Playboy brasileira, com textos de Foucault, A Loucura e a Escrita Literária. Lembro-me do poeta inglês, Auden, dizer que a melhor maneira de Rubem: “É o mesmo que dendrola-
primeira categoria e mulheres nuas, criar um poeta é quando ele é criança fazer com que se torne cada vez mais neurótico. tria.” Nós: "Ah, bela explicação. E o
o conto vitorioso, "O Cobrador", foi Então, basta ser louco? Não, tem que ser alfabetizado. Só existe um caso de escritor analfabeto, ocorreu no que é dendrolatria?" Ele: “Vocês são
proibido na hora. Era de Rubem. No séc. XIV, foi Catarina de Siena. Mas ela era uma santa, pelo que foi um milagre. E como santa era louca. Mas escritores e não sabem?” E apontan-
mesmo momento, Gilbert Mansur, de resto tem que ser louco e alfabetizado. Mas isso de ser alfabetizado é como dizia o Conrad : “Fazer o leitor do em minha direção: “E você que já
editor da revista, pediu à secretária sentir e, acima de tudo, ver.” Ver para dentro para poder entender. escreveu sobre o assunto também não
que redatilografasse o texto, trocou Então, e será que precisa de ser inteligente? O Somerset Maugham dizia que conheceu centenas de sabe?” Disse que não com a cabeça.
o titulo, criou um pseudónimo e escritores e muito poucos eram inteligentes. Então, basta ser louco e alfabetizado? Não, também tem que ser Escrevi sobre dendolatria? Quando?
reenviou à censura. O conto voltou motivado. Sem motivação não faz nada, nem se descasca uma banana. Claro que cada pessoa é motivada de Na van que nos conduziu ao hotel,
aprovado. Eram tais os mecanismos. forma diferente. O jornal Libération fez um questionário a vários escritores perguntando porque escreviam. Rubem explicou: “Dendolatria quer
A partir daqueles momento, ele As respostas foram variadas. O Joseph Brodsky, poeta russo, respondeu: “Todo o escritor aspira à santidade”. dizer culto das árvores. Significa
do Rio, eu de São Paulo, passamos Queria ser santo… está bom... O Montalbán respondeu: “Tornei-me escritor para ser alto e bonito”... quem ama a natureza, o verde, o
a nos encontrar, principalmente no Então temos três características: louco. alfabetizado e motivado. Basta isso? Não, tem que ter paciência. Aquela meio ambiente.”
estrangeiro, em bienais e feiras lite- paciência que o imperador Augusto citava do poeta Cícero António: “Apressa-te devagar”. Em português há a Foi a única vez na vida que ouvi
rárias. Foi então que conheci o outro expressão “devagar se vai ao longe”. Por isso é que o Flaubert demorou cinco anos a escrever aquele livrinho esta palavra. Somente o Rubem
Rubem. Aquele que falava em públi- de 200 páginas, Madame Bovary. Ele estava à procura da palavra certa. Ele sabia que não existem sinónimos, saberia o termo. Ele era diferente.
co, respondia perguntas, saia para cada palavra tem um significado diferente. Essa coisa de sinónimos é conversa mole para boi dormindo. Viver com ele era acostumar com seu
jantar e divertia com sua prosa afiada. Ele tem que ser louco, alfabetizado (não precisa de ser muito), motivado e paciente. E acabou? Não… Tem humor, um dia irradiante, ferino,
Nunca o vi fazer fofóca ou depreciar que ser imaginativo. Como dizia o Burckhardt, “a imaginação é a mãe da prosa, da poesia e até mesmo tirador de sarro, rápido no gatilho, no
qualquer companheiro de literatura. da História”. É fundamental que o escritor invente e crie. Não é só contar a vidinha da gente. Por isso, os outro calado, introspetivo quase des-
Sentia-se sempre que ele era seguro, escritores têm que inventar. denhoso. Seja o que for, gostei sem-
mas não arrogante, ele sabia que era Portanto, os escritores têm que ser loucos, alfabetizados, motivados, pacientes e com imaginação. pre dele. Morreu sem sofrer, disse-
um dos mais importantes escritores Entenderam? Mas vocês aí não pensem que por não serem escritores não são loucos. -me Bia, sua filha. Reclamou quando
brasileiros. veio o isolamente social e as pessoas
Certa vez, fomos ao Festival de não o visitavam. Principalmente
Harbour Front, no Canadá. Era um as mulheres. Certa manhã Rubem
evento cultural de grande dimensão acordou indisposto, nada comeu.
no porto revitalizado de Toronto. simples na Rua 23, baratíssimo, fornecêssemos o papel sulfite para a Mais tarde, a cuidadora telefonou e
Havia mais de 100 escritores de 20 dólares, administrado por uma empreitada. Molhamos nossos pulsos Bia correu, ele estava mal, pegaram
variados países que subiam ao palco, ordem de freiras. À noite, ao sairmos, em uísque e selamos o pacto. Nunca um táxi, voaram para o hospital. No
liam um conto ou um poema em o porteiro indagou: “A santa missa mandamos o sulfite, Otto nunca fez caminho, ele recostou a cabeça em
inglês. Para isso ganhávamos mil amanhã começa às seis e meia. Vocês o romance. Vimos a meia-noite, era Bia. O coração parou. Então me lem-
dólares canadenses, com tudo pago. vêm?” Rubem: “Viremos, sim. uma comemoração chocha, como brei do escritor norueguês Karl Ove
Da nossa mesa no jantar sempre fazia Vamos até comungar. Sabe se terá disse Ruben, chegou a madrugada, Knausgard: “Para o coração a vida é
parte o francês Alain Robbe-Grillet, padre para nos confessarmos?” E o Era diferente. Um dia bateu a fome, não tinha nada aberto, simples: ele bate enquanto puder. E
famoso pelo nouveau roman. Ele, que porteiro: "Cheguem meia-hora antes caímos numa lanchonete de ham- então pára.” J
uma noite chegou: “Esta é a mesa que que terão confissão”. Fomos ao hotel irradiante, ferino, burger, nos vimos rodeados de todos
mais ri e parece se divertir durante em que estava Otto Lara Resende, tirador de sarro, os lados por negões que nos olhavam *Ignácio Loyola Brandão, 83 anos,
o jantar. Posso fazer parte?” Lygia também vindo de Toronto, ele era cm curiosidade. Éramos os únicos jornalista e um dos mais destacados
Fagundes Telles sorriu e mandou que funcionário considerado da Globo, rápido no gatilho, brancos. Por sorte, o hamburguer era escritores do Brasil, 46 livros publicados e
ele sentasse. “Desde que mantenha estava em um cinco estrelas. Ali, no outro calado, ótimo. importantes prémios, incluindo o Machado
o tom e não seja intelectual, erudito, tomamos algumas/muitas e antes de Ao voltarmos para o hotel, às de Assis. Seu romance mais recente, Desta
culto, chato”. Rubem acrescentou: ir para Times Square, celebrar a pas-
introspetivo quase quatro da manhã, demos com a porta Terra Nada Vai Sobrar a Não ser o Vento
“E não fale em desconstrução.” sagem, obrigamos Otto a se ajoelhar desdenhoso. trancada. Apertamos uma campai- que Sopra Sobre Ela, editado em Portugal
Na volta, Rubem e eu passa- e prometer que começaria o romance nha. Nada. Saímos a vagar por ruas pela Teodolito, foi considerado por Marcelo
mos por Nova Iorque, era réveillon. que ele tinha na cabeça há décadas e
Seja o que for, gostei geladas, era outra Nova Iorque, cinco Rebelo de Sousa um dos dez melhores do
Hospedamo-nos em um hotel vivia adiando. Ele jurou, desde que sempre dele da manhã entramos em um café que ano 2019.
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT LETRAS 9 RUBEM FONSECA
↗
A
Ano Novo (1975) ao quase experi-
mentalismo desse livro híbrido que
ltíssimo cultor é Amálgama (2013), conjunto de mi-
do esplendor da cronarrativas, curtas reflexões e, até,
nossa língua, poemas. A Grande Arte, além de ser
tronco florido da um grande título, que assenta como
frondosa árvore uma luva à sua exaltante gestão da
brasileira onde, língua literária, é, de todos os seus
afinando o olhar, vejo, lá em cima, livros, o mais citado; mas eu tenho
Machado de Assis, Guimarães Rosa, permanentemente em estante o
Sérgio Buarque de Holanda, Rubem denso e apaixonante requisitório de
Fonseca extinguiu-se no dia 15 de Agosto, de 1990, misto de investiga-
abril, aos 94 anos de idade. Num úl- ção histórica e ficção biográfica, que
timo golpe de prestidigitação digno relata o vertiginoso despenhamento
dos seus detetives/advogados/”- de Getúlio Vargas, ora presidente
tiras”, fintou o coronavírus que o eleito, ora ditador, até ao suicídio em
tinha na agenda, e morreu de morte agosto de 1954. É um dos grandes
natural, porque o coração deixou livros em língua portuguesa do final
de bater, antes que o contágio o do século passado.
tomasse como presa. Era filho de Com a sua morte, a bem dizer,
transmontanos e mineiro, de Juiz de não é possível usar o lugar-comum
Fora (onde nasceu em 1925), terra da “perda”; extinguiu-se uma vida,
de hábeis cultores das letras, como mas fica-nos, para sempre, a obra
o estupendo memorialista Pedro irresistível de um herói da nossa
Nava ou o nosso próximo Murilo língua. Por isto, somos-lhe eterna-
Mendes, mas afez-se à brisa suave Foto inédita de Jorge Barros, na Póvoa de Varzim em 2012 mente gratos. J
do Rio de Janeiro, onde viveu quase
toda a vida e onde morreu.
De formação jurídica, Rubem cinema, os golpes e contragolpes
moveu-se com à vontade no uni- dessa “comédia humana” a que
verso judiciário, que envolve juízes e
advogados e se alimenta de crimi-
meteu ombros, vai para 50 anos.
O cortejo de misérias e traições, de PRÉMIO LITERÁRIO GLÓRIA DE SANT’ANNA – 2020
nosos. Não sei se foi a prática que desastres e golpadas, de pequenos KhdKZKD>,KZ>/sZKWK^/ϭǐ/KDWKZdh'>͕W1^^Z'/O^>h^M&KE^
lhe deu um tão certeiro gosto pela delitos e de grandes conspiratas de-
caracterização desses comparsas do clina-se numa prosa elegantemente
mundo da lei e da ordem: prostitu- despojada, certeira, direita ao
tas, ladrões, assassinos, drogados, osso, como um golpe de punhal. E
Lista Final
burlões. Mas também investigado- exaltam-se-nos as papilas do gozo A depressão tem sete andares e um elevador de Isabel Sancho – PENALUX
res, polícias de giro, juristas, todos literário quando, ao virar de uma COMO NUM NAUFRÁGIO INTERIOR MORREMOS de Alberto Pereira – URUTAU
mais ou menos desacertados, como página, deparamos com parágrafos DESMATÉRIA ĚĞ^ŽĮĂ&ĞƌƌĠƐʹ Edições MACONDO
se a vida não fosse mais do que uma como este, logo na primeira página FUNDIDO A NEGRO de Teresa Ramiro – CALDEIRÓN
sucessão temporal de desajusta- de Bufo & Spallanzani (1986): Garças de Lídia Borges – POÉTICA Edições
mentos individuais e coletivos – e “Neste pesadelo Tolstoi me LEGENDAS PARA UM CORPO ĚĞDĂƌŝĂ:ŽƐĠYƵŝŶƚĞůĂʹ LABIRINTO
é disso que se faz a vida social. Esse aparece todo vestido de preto, suas Travessia ĚĞ>ŝĐşŶŝĂYƵŝƚĠƌŝŽʹ POÉTICA Edições
desconcerto desemboca, mais longas barbas brancas desalinhadas, /<s/K'/E^/K de Tiago Alves Costa – dZs^
tarde ou mais cedo, naquilo a que dizendo em russo, 'para escrever
chamamos o Mal. E o Mal está por Guerra e Paz fiz este gesto 200 mil
toda a parte, como coisa exterior vezes'; ele estende a mão descarnada Júri Maria Dovigo – Professora – Galiza
que reflete a nossa propensão mais e branca como a cera de uma vela, Jacinto Guimarães – JORNAL DE VÁLEGA – Portugal GAC – Grupo de Acção Cultural de Válega
íntima. Rubem Fonseca é o notário que não sai inteira da manga com- Eduardo Medeiros – Antropólogo – Portugal
que regista, criteriosamente, as prida do paletó, e faz o movimento Ondjaki – Escritor – Angola
razões e formas do desencanto do de molhar uma pena num tinteiro. Andrea Paes – Ourives – Portugal
viver urbano. À minha frente, sobre uma mesa,
A novidade paradoxal é que, estão um tinteiro de metal brilhante,
sendo as suas histórias, na sua uma pena comprida, provavelmente
maior parte, de ambiente policial e de ganso, e uma resma de papel.
marcadas por forte violência, elas ‘Anda, diz Tolstoi, agora é a tua vez’. O vencedor desta 8.ª edição do Prémio será anunciado no JORNAL DE LETRAS dia 20 de Maio
vêm escritas numa língua literária Perpassa por mim uma sensação
Detalhes sobre o Prémio: http://gloriadesantanna.wordpress.com/
de alta exigência estilística. Se o seu aterradora. A certeza de que não
universo literário preferencial é o conseguirei estender a mão centenas
Patrocínio:
bas-fonds, a forma como ele o trata de milhares de vezes para molhar
• Margarida Gracias
é de alto fundo linguístico e lite- aquela pena num tinteiro e encher
• Família Dias da Cruz
rário. A pena aguça-se-lhe como as páginas vazias de letras e palavras
um bisturi, ao dissecar gestos, e frases e parágrafos. Então me vem
comportamentos e atitudes; mas a convicção de que morrerei antes
também formas de falar, de dizer e de realizar esse esforço sobre-hu-
de contar. E narra, como num dra- mano. Acordo aflito e infeliz e fico
ma negro filmado a preto e branco sem dormir o resto da noite. Como
num qualquer obscuro estúdio de você sabe, não consigo escrever à
10 LETRAS↗
LUIS SEPÚLVEDA
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT
S
LUÍS RICARDO DUARTE
em casa. Vivia em Espanha, em Gijón,
com a sua mulher Carmen Yáñez, o
que facilitava a visita regular.
Essa última intervenção pública
foi numa mesa dedicada ao tema da
Liberdade, a que o escritor acres-
centou uma outra ideia: imagina-
ção. Liberdade e imaginação, duas
palavras, dois conceitos, duas lutas
que resumem o seu percurso de vida,
desde a militância comunista à escrita
de alguns dos romances mais lidos das
últimas décadas. Os amigos acrescen-
tariam facilmente a “generosidade”,
Se tivesse sido fadista, cantaria à a “disponibilidade”, o “bom humor”,
desgarrada. Músico de jazz, encantaria assim como o gosto por uma boa refei-
com os seus improvisos. Foi escritor, ção e um bom vinho. Vida, literatura e
um dos mais internacionais da língua amizade, a sua trindade perfeita.
espanhola das últimas décadas, com Recordava, da infância, um tempo fe-
leitores em todo o mundo. Por isso, liz, já em Santiago. Cresceu rodeado de
de tudo fazia uma boa história, uma livros, com forte influência, na leitura,
história bem contada. Como aquela dos avós paternos, com quem fazia "as
sobre uma das primeiras câmaras de compras do mês". Não no supermer-
filmar da história do cinema que foi cado, mas na livraria.
encontrar nos confins da Patagónia. Além da literária, dos avós recebeu
Resumida assim parece coisa irrele- LUCÍLIA MONTEIRO
ainda a educação política, com forte
vante, mera coincidência. Mas Luis cunho anarquista. A família não falta-
Sepúlveda era capaz de transformar va a uma manifestação do 1.º de maio.
o facto mais simples numa extraor- A militância comunista surgiu cedo,
dinária narração. Era a voz e o estilo, seguindo também as pegadas do pai e
a atenção aos gestos e aos pormeno- dos tios. Estudante do ensino público
res, as pessoas que encontrava pelo Luis Sepúlveda na sua casa em Gijón Uma vida de muitos livros e causas em todos os ciclos, licenciou-se em
caminho. Era também a repetição Produção Teatral, na Universidade do
nunca repetida, antes reinventada a Chile, conhecimento que viria a ser
cada regresso, a atenção às emoções e posto em prática anos depois. Porque
à dignidade humana, a constante luta aqueles foram tempos de muitas lutas,
pelos direitos humanos, o meio am-
biente e a justiça que tanto via faltar ao
nosso tempo. Morreu no passado dia
Te abrazo, L. mais fora do que dentro dos palcos
artísticos. Além da paixão pelo teatro
havia os poemas que escrevia desde
16, aos 70 anos, vítima de Covid-19. a juventude, rapidamente substituí-
O mundo literário (e não só) viu-se ONDJAKI dos pela prosa e pelo conto, só mais
forçado a uma despedida abrupta ao tarde pelo romance. Mais intensa
velho que como ninguém sabia contar sempre que parte alguém, parece que a vida desmonta um pouco de alguma nitidez, e onde ainda era a mudança que queria ver
histórias de amor e de guerra, de dor e havia abraço passa a haver dor / raras vezes voltarei, portanto, a encontrar alguém com o dom no país, a grande utopia da presidên-
de esperança, da América Latina e da (tão afiado) de contar uma estória, um olhar, uma sensação, um mito, uma lembrança alheia, um cia de Salvador Allende, de quem foi
Europa, de cada um de nós e da nossa pequeno belo exagero, uma viagem com outros, uma viagem a sós, uma viagem com carmen, apoiante desde a primeira hora. Com
experiência coletiva. uma viagem com o olhar / raras vezes poderemos voltar a ver alguém driblar o silêncio com a colaborações nos jornais, organizou
É comovente saber que o seu palavra certeira ou com o intensificar do olhar silencioso / sempre que parte alguém parece então coleções de livros de bolso para
último ato público foi em Portugal, que a vida nos alerta para a nitidez que algumas pessoas nos trazem para o caminho ou para o fazer chegar a literatura a mais leitores.
no passado mês de fevereiro, nas sonho ou para o lado que brilha - silencioso - no quotidiano das coisas simples; O sonho acabou a 11 de setembro
Correntes d’Escritas, o encontro lite- de repente senti com mais peso o peso do contar dos anos / afinal já eram alguns, entre sorri- de 1973, com o golpe de Estado lidera-
rário da Câmara Municipal da Póvoa de sos, reencontros, canduras, abraços e estórias / sempre as estórias à espera de serem reajusta- do por Augusto Pinochet. Membro das
Varzim. Dias depois ser-lhe-ia diag- das sob o olhar ‘cercano’ da carmen cruzando com o sorriso / nunca denunciando, jamais / mas Unidades Populares, encontrava-se
nosticado a infeção com coronavírus potencializando a dúbia possibilidade de tudo ter sido tão verdadeiro como contavas ou tão tudo nesse dia a defender o abastecimento
e uma pneumonia aguda. Nascido em ter sido tão possível como acabaras de contar; de água da capital, a 20 quilómetros de
1949, no Chile, em Ovalle, uma cidade sempre que parte alguém como tu, parece que o mundo se parte em dois e mil e vinte desertos Santiago. Acabou preso e torturado,
a norte de Santiago, Luis Sepúlveda sombrios / onde logo de seguida se pode semear um novo sorriso / ajustando a saudade às como muitos outros militantes. Foi na
era cidadão do mundo. Mantinha, no coisas que ficaram, ficarão, ficariam por dizer; prisão que soube, como conta num dos
entanto, uma relação especial com o mas, uma coisa sabes: que tens amigos..... / e a nitidez de um abraço vem pela dor, atravessa o seus livros, do 25 de Abril. "Hoje vocês
nosso país, sobretudo com a Póvoa e as mundo, liberta-se do peso e há-de chegar a cada um de nós, não como coisa distante mas como venceram", disse-lhe um guarda.
Correntes, onde dizia sentir-se sempre lembrança partilhada / e então gaivota, gato, velho(s) / havemos de sorrir outra e outra vez. Quando visitou Portugal primeira vez
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT LETRAS 11 LUIS SEPÚLVEDA
↗
LUIS SEPÚLVEDA
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT
Liberdade e imaginação
determinado e que terminava no justo Mas hoje, em 2020, a liberdade
momento em que punha em perigo continua sob ataque. Curiosamente, é
a dos demais. Mais onde começa a sempre a direita ou a extrema direita
Liberdade do Outro e acaba a minha? que diz que a liberdade está ameaça-
São limites também muito difíceis de da. Transformam uma reivindicação
definir. Um dos fracassos das teorias justa numa ameaça às liberdades
de esquerda tem estado precisamen- fragmentadas que inventaram. É por
LUIS SEPÚLVEDA te na ideia de que se pode ter um só isso que é fundamental preservar o
sentido, e um sentido inequívoco, de real valor das palavras.
Dizer ou escrever “era uma vez a Liberdade. Tudo isto complica o en- Felizmente, temos os livros, a
liberdade” é quase como iniciar um tendimento de uma palavra tão bonita. obras dos antigos e dos contem-
conto. Era uma vez um lobo bom, um Alguns poetas também tentaram porâneos, com os quais podemos
príncipe mau. Era uma vez a liberdade. uma definição, mais direta, fácil ou até aprender. A esse acumulado chama-
Mas com essa fórmula estamos a colo- militante. Em quase todos os países da -se informação. Mas também aqui
car a Liberdade num estado pretérito. América Latina, o poema Liberdade, há ameaças. Essas mesmas forças de
Velar pelo real valor das palavras talvez de Paul Éluard, tornou-se num dos direita e de extrema direita dizem que,
seja, a haver uma, a missão dos escri- símbolos da luta contra a Ditadura. quando informamos, estamos afinal
tores. E ver a Liberdade, uma palavra “Por poder de uma palavra/ recomeço a ameaçar a liberdade de informa-
tão plena de sentido, no pretérito é a minha vida/ nasci para conhecer- ção. Porquê? Porque não estamos a
duro. Uma vez houve algo chama- -te/ nomear-te// Liberdade.”. Paz, respeitar a informação como eles a
do Liberdade. Uma vez pensamos pão, trabalho, justiça: a liberdade era a concebem e praticam. Para um escri-
em qualquer coisa a que chamámos síntese perfeita de tudo o que se queria tor e jornalista é muito difícil falar de
Liberdade. Uma vez sonhámos com a conquistar e que só podia ser conquis- liberdade ou mesmo de liberdade de
Liberdade. Mas como é que ela era? tado com a sua permanência. informação quando um homem que
A Liberdade sempre esteve asso- Claro que essa “sociedade melhor” revelou documentos valiosíssimos está
ciada à glória do livre arbítrio, ao que nunca foi materializada a 100 por a ser ofendido todos os dias, empur-
podemos e merecemos fazer, mas cento. Muitos escritores e intelectuais, rado para o suicídio. Falo de Julian
também à dor. Um dos grandes filmes Nas Correntes d'Escritas com o seu amigo Daniel Mordzinski Onde se sentia sobretudo nos piores momento da Assange, réu porque nos ajudou a
de Kirk Douglas, que morreu recen- sempre em casa História, questionaram-se por que conhecer um pouco mais a fisionomia
temente, foi Spartacus. Nele há uma razão a Liberdade era tão esquiva, da Liberdade que temos e de quem a
representação brutal dessa faceta do- por que se escapava tão facilmente ameaça.
lorosa. Os centuriões não sabem quem sentação da Revolução Francesa, a Liberdade, em dividi-la, em dar- por entre os dedos da mão, por que É por isso que a Liberdade, por
é o Spartacus, que lidera uma revolta uma imagem que rapidamente se -lhes outros nomes para que não seja não deixava que lhe disséssemos vezes, começa a soar a melancolia.
de escravos contra os romanos. Por tornou coletiva: uma mulher alta, simplesmente a Liberdade. Querem “Eu amo-te, fica comigo”. Em 1996, E não há palavra mais horrível. “A
isso perguntam: quem é Spartacus? forte, altiva, com o peito descoberto e chamar-lhe liberdade de comércio, num extraordinário livro de ensai- melancolia é a felicidade de estar
Mesmo sabendo que isso pode repre- uma bandeira na mão. Uma liberda- lucro, empresarial. Assim, atrás dessa os chamado Estética da Resistência, triste”, dizia o Giuseppe Tomasi di
sentar a sua morte, alguém se levanta de condutora das massas. Mas que fragmentação, destes apelidos que Peter Weiss, um dramaturgo, poeta Lampedusa. E com a Liberdade nin-
e diz: “Sou eu”. E depois outro escra- massas são essas? O quadro, esse surgem, talvez se perca o nome, o e teórico das artes cénicas, diz-nos guém pode estar feliz com a tristeza.
vo: “Sou eu”. E depois outro. E outro. quatro que tão fortemente simboliza valor mais intrínseco, antigo e genu- que podemos ver a Liberdade, mas Como diz o poema de Manuel Alegre:
E outro. O preço da liberdade de cada a Liberdade, não mostra com clareza íno, da Liberdade. A Liberdade como rapidamente esquecemos como ela é. “É possível viver de outro modo./ É
um que disse “sou eu” é a sua morte, o quem vem atrás. Certamente que não suprema aspiração do homem. Será alta ou pequena, magra ou gorda, possível transformares em arma a tua
castigo mais atroz. são os pobres e desprotegidos, apesar É preciso reconhecer que a loira ou morena? A nossa missão será mão./ É possível o amor./ É possível
Mas a liberdade, com o tempo, de historicamente terem sido eles a Liberdade é de difícil definição. Ao garantir que quando ela regressar, o pão./ É possível viver de pé.// Não
passou a ser sinónimo de muitas apoiar as grandes mudanças. São os longo dos tempos apresentaram- quem sabe se num tempo que já não o te deixes murchar./ Não deixes que
coisas. De pátria, pátria justa, de burgueses. E esses burgueses estão -se várias. Rosa Luxemburgo, por nosso, sinta que tem condições para se te domem./ É possível viver sem
revolução. Todos recordam a repre- sempre empenhados em fragmentar exemplo, disse que era um espaço fixar e se tornar nossa. fingir que se vive./ É possível ser ›
Diferente de todos
SANTIAGO GAMBOA
A 4 de outubro de 1996, pelas 19, o a que veio somar-se a sua carismática e desde o primeiro dia começou a
Teatro Politeama de Trieste apresen- personalidade e o seu bom humor, ser lido freneticamente. Tornou-se
tava um programa extraordinário: era o que fazia com que todos os seus rapidamente o número um de vendas.
o regresso de Vittorio Gassman aos leitores quisessem não só lê-lo, como No ano seguinte, 1993, o editor italiano
palcos depois de uma longa depressão convidá-lo para um jantar em suas Luigi Brioschi publicou-o na editorial LUCÍLIA MONTEIRO
que o manteve vários anos afastado. casas, todos os dias das suas vidas. Guanda e o êxito repetiu-se, enquanto
Essa noite, na estreia, declamaria uma Em Trieste foi a apoteose total, por- a nova edição espanhola da Tusquets
dúzia de monólogos célebres, entre que, além do mais, o teatro e Gassman subia nas listas de best-seller. Seguiu-
outros um pedido especialmente por marcaram a estreia para 4 de outubro, se Portugal, com o editor Manuel
Gassman e escrito para a ocasião por para coincidir com o dia do aniversário Alberto Valente, então na ASA, e a
Luis Sepúlveda. Por esse motivo, o do Luis. Por isso, antes de começar, partir daí o resto da Europa. Estávamos Um amigo Sempre generoso
Politeama convidou-o a assistir à um foco iluminou-o e o público, em nos anos 90 e um autor proveniente
estreia com mais cinco amigos seus: pé, dedicou-lhe uma estrondosa ova- da América Latina voltava a dominar a
os escritores José Manuel Fajardo e ção e cantou-lhe o Parabéns a Você. cena literária com milhões de leitores. Rivera Letelier ou Antonio Sarabia, como o chamávamos sempre, fez um
Antonio Sarabia, o fotógrafo Daniel O seu impressionante êxito co- Nesses anos Luis viveu uma espécie entre muitos outros. Também se uniu a brinde em que afirmou que para ele a
Mordzinski, o seu editor italiano Luigi meçara em França um pouco antes, de boom latino-americano só seu, mas escritores com percursos já firmados, amizade e a literatura eram a mesma
Brioschi e eu, em quinto lugar, o mais quando a editora Anne Marie Métailie, que imediatamente quis partilhar com como Paco Ignacio Taibo II ou Leonardo coisa, as duas faces de uma mesma
jovem e inexperiente. dona da Éditions Métailie, decidiu os seus colegas e amigos. As minhas Padura, pondo sempre a sua enorme lua, e voltou a dizê-lo mais tarde no
Nesse anos, depois da publicação apostar num romance de um chileno primeiras traduções e o acesso direto celebridade ao serviço de todos. hotel, quando, ao vermos que os ba-
de O Velho Que Lia Romances de Amor, desconhecido que tinha sido distingui- aos seus editores foram provas da sua Essa noite, em Trieste, de- res de Trieste não tinham costumes
Patagónia Express, Nome de Toureiro do, em Espanha, com o Prémio Tigre oceânica generosidade. Tal como eu, pois da peça, comemorando o seu latino-americanos e fechavam cedo,
e Mundo do Fim do Mundo, Luis era o Juan, em 1988, mas que foi publicado, muitos outros romancistas viram os aniversário num jantar em que decidimos encontrarmo-nos num
escritor latino-americano mais lido na em 1990, sem grande destaque. seus livros prefaciados por ele ou em todos estávamos de smoking exceto dos quartos, depois de recolhermos
Europa, com milhões de exemplares A edição francesa de O Velho Que coleções que passou a dirigir, como é Gassman (e, por isso, parecíamos os tudo o que cada um tinha no seu
em vários idiomas, um êxito literário Lia Romances de Amor saiu em 1992 o caso de José Manuel Fajardo, Hernán seus guarda-costas), Luis, ou Lucho, minibar (ideia do embaixador do ›
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT
↗
13
14 LETRAS↗
LUIS SEPÚLVEDA
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT
ÁLVARO ISIDORO
A missão que temos pela frente de quarentena. Eu e uma grande quarto vazio. Anos a fio com esta
é gigantesca e envolve uma decisão equipa que tinha lidado direta- imagem sem sentido dentro de
muito importante. O que queremos? mente com o LS. Eu e mais umas mim. Até que um dia, já adulta,
Uma sociedade de cidadãos livres e quantas pessoas que estiveram numa das conversas com a minha
soberanos ou uma sociedade de con- perto dele: amigos, editores, mãe, resolvi o enigma. Aquele
sumidores submissos e obedientes?J jornalistas, público. Eu e o mundo Em Portugal "Foi nas Correntes que, mesmo sem o saber, deixou o seu maior primeiro vazio instalou-se den-
literário português. E não só. legado no nosso país" tro de mim com a morte do meu
Foi desta forma, de resto, que avô. Tinha eu quatro anos. Fui
Portugal ouviu falar da Covid 19 percebendo que os que se vão le-
› Chile, que veio à estreia), e conti- dentro de portas. Foi a partir deste portugueses aprenderam a contar ção poderia ser irreversível. No vam sempre algo de nós. E vamos
nuar a brindar a tantos livros lidos e caso que Portugal se preparou histórias. E sim, aprenderam com mesmo lugar onde li, só, o sms da ficando com vazios no coração.
queridos. para a pandemia. Assim a genero- os melhores: os ibero-americanos, Carmen. Por isso um dia também parti-
Foi uma época bonita, intensa sidade do Lucho para com o país brasileiros, africanos. Acho que o Todo este tempo passei-o em mos. Já só há vazios.
e jovial, na qual o Lucho animou e que em Abril de 1974, lhe enviou Rui tem razão. Olhando para trás casa da minha mãe, com ela, para Em momento algum, confesso,
promoveu uma literatura compro- sinais de esperança, num dia que consigo ver a diferença. Os escri- onde me mudei quando percebi mesmo sabendo que estava inter-
metida com as sociedades e o meio parecia igual a tantos outros na tores portugueses devem-no às que, tal como ela, sou pessoa de nado nos cuidados intensivos em
ambiente, com a alegria e a justiça, prisão em que estava, no Chile da Correntes. E as Correntes devem- risco. Optei por me isolar com ela estado grave, acreditei que aquele
com os direitos humanos, o amor e a ditadura de Pinochet. O país, tão -no ao LS. Não só pelo impulso para a proteger de visitas minhas último abraço, na manhã daquele
liberdade. Uma época de vinho e rosas longínquo, do qual chegava medo que deu ao Encontro. Não só pela e dos meus irmãos, que cuidamos domingo, dia 23 de fevereiro de
para a qual foram peças chaves os seus aos guardas prisionais e ânimo importância da sua presença em dela desde que o meu pai partiu 2020, depois da 21ª. edição das
editores de França, Itália, Portugal e renovado aos prisioneiros. “Vocês cada edição. Mas querem melhor nessa viagem sem retorno. Correntes, seria realmente o úl-
Espanha, e sobretudo a sua mulher, ganharam em Portugal!” contador de histórias que o LS? A minha vida mudou. Fiquei timo. Recuso-me ainda a acredi-
Carmen Yáñez, poeta e lutadora pelos Eram de liberdade os ventos Era a contar histórias que comu- isolada com a minha mãe. Tal tar. Os nossos abraços serão para
direitos humanos. que sopravam vindos daquele nicava. Sobre os mais variados as- sempre.
O seu livro História de uma Gaivota país distante, do outro lado do suntos. Nada era tabu e sobre tudo Abraçá-lo-ei sempre que o fizer
e do Gato que a Ensinou a Voar, que Atlântico. Como se a liberdade tinha “una anecdota” como dizem à Carmen, sua mulher e compa-
também teve milhões de leitores e começasse ali. E foi falando de os seus amigos mais próximos. nheira, também poeta. Abraçá-lo-
uma adaptação ao cinema, tem um epi- liberdade e em Portugal, nas O Lucho escrevia como quem ei sempre que encontrar os seus
sódio que, para mim, retrata de corpo Correntes d'Escritas, que o LS fez contava uma história. É assim que amigos. Muitos que conheço e são
inteiro o Lucho que conheci e que tanto a sua última (ainda me recuso a o lemos. Como se o ouvíssemos. amigos comuns. Uns que conheci
estimava: quando a pequena gaivota do acreditar, e não consigo evitar as Assim o continuaremos a fazer. O Lucho escrevia como por sua causa. Outros que conhe-
porto de Hamburgo descobre que não lágrimas) intervenção pública. O Os autores portugueses aprende- ceu na Póvoa. A todos aqueles que,
é um gato, pensa que os outros gatos tema: “Era uma vez a Liberdade”. ram, sem dúvida, com o melhor. quem contava uma tal como eu, se recusam a falar do
do porto a menosprezam por não ser O seu tema de todos os instantes. Escrevo este pequeno texto no história. É assim que Lucho no passado. Aqueles que, tal
como eles. Mas o gato chefe, o que mais Fiel a este país, foi nas Correntes mesmo lugar onde estava quando como eu, não podem aceitar que
à frente a ensinará a voar, diz-lhe: “É que, mesmo sem o saber, deixou o recebi a notícia de que ele estava o lemos. Como se o o resistente Luis Sepúlveda tenha
exatamente o contrário: é por seres seu maior legado a Portugal, so- doente. No mesmo sítio em que ouvíssemos. Assim o sido derrotado por uma merda de
diferente que nós gostamos tanto de ti”. bretudo aos escritores portugue- esperei com ansiedade inquieta, um vírus. A verdade é que não foi.
Lucho foi um escritor tocado pela ses e ao meio literário português. a cada dia, sinais de recuperação.
continuaremos a fazer. Aprendi com pessoas muito sábias
fortuna, e um amigo excecional, O Rui Zink diz-me várias vezes Na mesma casa onde, emudecida, Os autores portugueses que a morte não é uma derrota.
diferente de todos. E é talvez por isso que os autores portugueses são depreendi das palavras lentas da O Lucho será sempre um dos
que gostávamos tanto dele. Até à devedores das Correntes. Diz- Ainhoa e da mensagem inconfor-
aprenderam, sem meus imortais. Deixa um vazio cá
eternidade.J me que foi nelas que os autores mada dos amigos, que a situa- dúvida, com o melhor dentro. Deixa. J
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT LETRAS 15 LIVROS
↗
O Porto pós-moderno
FNAC de Santa Catarina ou as diversas livrarias
dos grandes centros comerciais na vizinhança
da cidade.
Num mundo justo e equilibrado,
conviveriam as antigas com as novas e
nenhuma iria à falência. Lamentavelmente, na
História, não raro o novo submerge e esmaga
o antigo, é o dualismo da cidade visível que
só floresce tornando invisível o velho. Social e
literariamente, o romance de FDM capta muito
OS DIAS DA PROSA
bem o penoso momento em que a cobra do
Porto abandona a pele antiga, substituindo-a
por uma nova. Não ainda totalmente,
Miguel Real
A
como o Porto burguês e liberal fez ao Porto
medieval e renascentista, que Germano Silva
descreve maravilhosamente nas suas crónicas
dominicais no Jornal de Notícias, mas já de
Cidade das livros raros na Biblioteca Municipal; um um modo muito avassalador. Serralves (não
Livrarias Mortas colecionador de todas as edições de A Mãe, citada no romance) é, de facto e de direito, o
é, com toda a de Gorki, só lhe falta uma edição em língua símbolo do cosmopolitismo da nova geração
evidência, o chinesa e outra em russo; um sem-abrigo, de dos portuenses.
melhor romance todos amigo, que alimenta um punhado de O autor envolve a narrativa de um manto
de Francisco gatos de rua; e uma personagem misteriosa, lírico recordando a vida ou episódios da vida
Duarte Mangas o “engenheiro”, assim tratado porque anda de antigos portuenses cultos, republicanos
(FDM). Aborda sempre com um capacete das obras na cabeça, combativos, como Sampaio Bruno, Pinheiro
a transição do que aparece recorrentemente, década a Chagas, de obra execrada pelo Estado Novo
Porto moderno, burguês e industrial, para um década, nas ruas do Porto (interpretámos e nunca ressuscitada pela democracia,
FERNANDO VELUDO
Porto ainda em construção, pós-moderno, como sendo o espírito de Nicolau Nasoni, Guilherme Braga e Gomes Leal, Antero de
cosmopolita e global, no qual os valores da arquiteto construtor da cidade moderna) e Quental em Vila do Conde, e outros; mas
cidade anterior, não desaparecendo, ora são que, no alfarrabista, escolhe os livros passando também de Gorki e de Boaventura, militante
diluídos, ora subvertidos. a mão pela fiada das lombadas até os dedos se Francisco Duarte Mangas do Partido Comunista assassinado pela PIDE
O romance decorre na Rua Mártires da tornarem sensíveis a uma - e é esse o livro que em Viana do Castelo.
Liberdade, no centro da cidade, e, ao longo de compra. Romance sobre a identidade do Porto, hoje,
duas centenas de páginas, através de diversas No entrelaçamento das personagens por via segundo Francisco Duarte Mangas, em perigo
personagens, expõe a mudança de pele do de diálogos (em cafés, nas escadas de prédios, os antigos costumes e moradores. Por via do pelas recentes turistização, erasmusização e
Porto: “uma cobra a mudar de pele” (p. 108) na rua, em lojas…), constata-se que FDM não Porto, é o novo Portugal do século XXI que é cosmopolitização da cidade, que, como motivo
e, mudando, “nasce uma cidade, queda outra quis representar figuras típicas da sociedade retratado em A Cidade das Livrarias Mortas: de reflexão, mas também de prazer estético,
invisível” (p. 99). Esta mudança não é feita do Porto, mas, sim, exprimir o ambiente geral intenso afluxo turístico, transformação merece ser lido por todos os portuenses – e por
sem dor, desaparecem as tascas, as pensões de desolação da Rua Mártires da Liberdade, de bairros históricos em locais típicos, todos os leitores que sentem suceder o mesmo
populares, levadas pela febre do alojamento em Cedofeita, atacada, nos seus fundamentos especulação imobiliária através da compra de nas suas cidades. J
local, e as livrarias, inclusive os alfarrabistas, históricos populares, pelos costumes pós- fiadas de prédios por fundos de investimento
transformados em restaurantes, bares e lojas modernos, expulsando ou tornando invisíveis internacionais, despejando os antigos
de souvenirs. inquilinos, aproveitamento dos últimos
Com exceção de Rodrigo, funcionário em moradores para aluguer de apartamentos
Lisboa do Ministério da Cultura e, de certo à Airbnb. Em síntese, transformação do
modo, personagem, não principal, mas património histórico, arquitetural e cultural
central, para a qual as restantes convergem, da cidade numa verdadeira disneylândia,
todas as outras exprimem o antigo sentir na qual a Livraria Lello faz a sua parte como
do Porto: alfarrabistas envelhecidos, falidos estabelecimento exótico.
devido ao novo preço das rendas; moradores Não contestando a necessária Tanto quanto interpretamos, o romance,
populares, que não podem dormir com o evolução do Porto, intenta não contestando a necessária evolução do
barulho do divertimento noturno das ruas; Porto, intenta denunciar esta nova situação
poetastros, alimentando ressentimentos
denunciar a sua situação urbana por via de personagens populares que
através da revista artesanal O Piolho; a dona urbana por via de personagens não se adaptam à nova “pele da cobra”. O › Francisco Duarte Mangas
de uma pensão atirada para Vila do Conde por uso da metáfora cultural “livrarias mortas” A CIDADE DAS
mudança de proprietário do imóvel, levando
populares que não se adaptam é indicativo desta denúncia. Às várias LIVRARIAS MORTAS
consigo o amante; furtador profissional de à nova pele da cobra livrarias indicadas no romance que foram Teodolito, 224 pp., 15 euros
Desaf
a par
tir d
io S fundacaodomluis.pt
Serviç e cas
o Cult
ural e
Educa
tivo d
a
o Bairro
dos Museu
s
TEATR BIBLIO
TECAV
VISITAS Oonlin IRTUA
L
VIRTU
CENTR AIS e
O CULT
Col. Pintura URAL DE CASC
Luís a e Ma Dem o
AIS
nuel P crática
Paula
CASA
DAS ed
roso d Patrocinador:
Rego:
HISTÓ
RIA e Lima
Desen S PAULA REGO
har, Encen
ar Pin
tar
16 LETRAS
↗
COLUNA
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT
40 anos, 40 personagens
Heróis românticos
e seus destinos
TRABALHO DE CASA
Carlos Reis
1
Afirmar que as personagens trazem em si o Dinis, figura em quem a conformação enigmá-
timbre do seu tempo literário parece (e de tica se acentua: com a sua “figura seca, alta e
certa forma é) coisa desnecessária. E con- um tanto curvada (…), abordoado em seu pau
tudo, importa lembrar que a figuração da perso- tosco, arrastando as suas sandálias amarelas
nagem é inevitavelmente marcada pelo devir de e tremendo-lhe na cabeça o seu chapéu alva-
transformações históricas, de sentidos ideoló- dio”, esse “austero guardião de San’ Francisco
gicos e de mudanças culturais. O que determina de Santarém” (cap. XII) encerra um segredo e
uma sua abordagem como categoria dinâmica e, vive uma culpa. Por fim, é no confronto com
por assim dizer, em constante mutação. quem se rebela em favor de um tempo novo
2
(Carlos, combatente liberal) que Frei Dinis re-
No meu trajeto até às 40 personagens vela a sua complexidade e as contradições que
que igualam os 40 anos deste jornal a acompanham. E assim, “a imagem de intre-
já falei de figuras queirosianas e de pidez do frade que dirige imprecações ao Deus
figuras camilianas. Nestas, observei que as das Vinganças, contra Carlos e os liberais, sofre
diferenças entre Simão Botelho e Calisto Elói, uma significativa mutação”; o seu conflito Caspar David Friedrich, Wanderer above the Sea of Fog, 1819
Teresa de Albuquerque e Eusébio Macário de- interior culmina precisamente “no momento
correm da diversidade de marcações semânti- de anagnórise, em que o protagonista vem
cas de ordem histórica, ideológica e cultural de a saber que o religioso é seu pai” (Marta M.
que as personagens não são, evidentemente, Duarte em Dicionário de Personagens da Ficção varam Vitorino Nemésio a falar num “complexo Mendonça foi pioneiro, entre nós, do ideário
conscientes, mas a que não escapa quem as Portuguesa; http://dp.uc.pt/conteudos/en- de Eurico”, traduzido em fenómenos de emula- socialista), o protagonista de Memórias de um
concebeu. O facto de Camilo ter atravessado tradas-do-dicionario/item/377-frei-dinis ) ção projetados na sensibilidade doentia da nossa Doido é parente próximo de figuras balzaquia-
4
uma vida literária longa, dos anos 50 aos anos segunda geração romântica e que se prolonga- nas (o Eugène Rastignac, de Le père Goriot, por
80 do século XIX, potenciou, naturalmente, Não há como negar: o enfrentamento ram (num outro registo, claro está) até ao nosso exemplo) e afastado do Julien Sorel stendha-
aquela dinâmica de transformações. entre Carlos e Frei Dinis resolve-se tempo: em 2011, o Teatro Nacional D. Maria liano. Também por força desse parentesco,
3
num tom de excesso que o próprio II produziu a dramatização A Paixão Segundo ele configura-se como estereótipo do jovem
A representação da personagem nas Garrett criticou, quando, também nas Viagens, Eurico (“dossiê pedagógico” em https://www. individualista em conflito com o mundo social
Viagens na Minha Terra (1846) prolonga satirizou o “destempero original de um drama tndm.pt/fotos/escolas/paixao-segundo-euri- que o não tolera. Pela via da vivência amorosa
e reitera as tensões que atravessam este plusquam romântico” (cap. XXXVIII). Um co_1774757204f7d730959081.pdf). e da instabilidade emocional que lhe está asso-
livro “inclassificável” (Garrett dixit), no qua- destempero a que não escapou o desenlace do Na geração de Eça, as coisas mudam e ciada, Maurício é “prisioneiro da sua sensibi-
dro de uma dialética histórica que foi subli- Frei Luís de Sousa (1843-44). Eurico já cansa: Guerra Junqueiro satirizou-o lidade exacerbada”; como tal, “não consegue
nhada por diversos estudiosos, com Augusto Tem muito daquele excesso – mas também no soneto d’A Velhice do Padre Eterno (1885), ultrapassar a incompreensão da sociedade,
da Costa Dias à cabeça. É justamente naquele da energia vital própria do herói romântico – o em que aconselha a “pálida figura” a “contrair nem o abismo das diferenças sociais, tornan-
regime dialético que Carlos emparelha não Eurico que Alexandre Herculano compôs, no civilmente o matrimónio” com Hermengarda; do-se uma vítima dessa sociedade” (Maria João
tanto com Joaninha, mas com Frei Dinis. romance homónimo (de 1844). Nessa com- e Carlos da Maia, estudante em Coimbra, sofre Simões, em Dicionário de Personagens da Ficção
A figuração do primeiro traz em si todas as posição, o que se destaca é a persistente busca a troça dos amigos por causa: quando se sabe Portuguesa, http://dp.uc.pt/conteudos/entra-
evidências do retrato do herói romântico, com de ideais por uma personagem que almeja um da sua relação amorosa com uma rapariga das-do-dicionario/item/261-mauricio).
6
o vigor e com a autenticidade que ele implica. Absoluto afinal sempre frustrado. No amor por que “tinha o nome bárbaro de Hermengarda
Quando aparece, no capítulo XX, Carlos não é Hermengarda, na religião a que se consagra (…), chamavam-lhe já Eurico o presbítero, Por fim, este herói inserido numa deri-
desde logo identificado pelo nome, mas antes como presbítero, na pátria degradada pela dirigiam para Celas missivas pelo correio com va social do romantismo pode ser lido,
tratado com aquele toque de mistério que traição dos homens, Eurico vive sucessivos este nome odioso” (Os Maias, cap. IV, cit. pela pelo menos quanto à determinação do
tanto convinha ao ethos romântico: “O oficial fracassos; a saída (ou a fuga) para o falhanço só edição crítica da Imprensa Nacional, 2017). seu trajeto, como precursor de personagens
5
era moço, talvez não tinha trinta anos; posto pode ser o suicídio, ato final em se misturam de- que hão de vir depois. Pela sua idiossincra-
que o trato das armas, o rigor das estações, e o sistência e coragem. Assim acontece com outros A lenda do presbítero de Carteia ainda sia e pelo excesso amoroso que o atormenta,
selo visível dos cuidados que trazia estampado heróis românticos, mesmo quando o suicídio é assombrava os corações dos leitores e Maurício está condenado a ser proscrito; mas
no rosto, acentuassem já mais fortemente, em moral, como no caso do Carlos das Viagens. das leitoras portuguesas, quando um Lopes de Mendonça divide-se, quando ques-
feições de homem feito, as que ainda devia A sobrevida de Eurico no imaginário cultural jovem com pouco mais de 20 anos publicou um tiona o destino da personagem e aquilo que
arredondar a juventude.” E mais adiante: “Os português foi intensa; as reações que gerou le- romance (a que depois chamou “um esboço”) o condiciona: esse destino depende “de um
olhos pardos e não muito grandes, mas de uma com o título Memórias de um Doido. O jovem acaso, de um capricho, de um acontecimento
luz e viveza imensa, denunciavam o talento, a era António Pedro Lopes de Mendonça, o insignificante, de um movimento indetermi-
mobilidade do espírito — talvez a irreflexão... mesmo (ou já outro) que, dez aos depois, em nado do espírito”. Entretanto, noutro passo, o
mas também a nobre singeleza de um caráter 1859, reescreveu a história protagonizada por autor pergunta “se a desgraça que persegue os
franco, leal e generoso, fácil na ira, fácil no Maurício. passos de um homem” não será “um fenóme-
perdão, incapaz de se ofender de leve, mas Na galeria das personagens da literatura no da sua organização” e uma “consequên-
impossível de esquecer uma injúria verdadei- Tem muito de excesso, mas portuguesa de oitocentos, Maurício não é cer- cia das imperfeições sociais” (introdução a
ra” (edição crítica de Ofélia Paiva Monteiro; também da energia vital tamente uma figura com o destaque do Carlos Memórias de um Doido, edição crítica por José
Imprensa Nacional, 2010). das Viagens, do caricato Calisto Elói ou da per- Augusto-França; Imprensa Nacional-Casa
O estigma da antinomia e a síndrome da
própria do herói romântico, versa Juliana. Mas, de certa forma, a sua com- da Moeda, 1982). Vem aí Simão Botelho e o
instabilidade perseguem a personagem, na o Eurico que Alexandre posição incute à personagem romântica uma “movimento indeterminado do espírito” que
sua relação com os outros e com a sociedade tonalidade própria: situado no contemporâneo o leva à perdição pelo amor; mas está para
em geral, seja no plano amoroso, seja no plano
Herculano compôs no do autor e motivado por visíveis preocupações chegar igualmente um Eusébio Macário que só
político. É neste que emerge a tensão com Frei romance homónimo sociais (ainda em meados do século, Lopes de as “imperfeições sociais” podem explicar. J
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT
ARTES 17 ↗
Cristina Branco
A outra que era ela
Chama-se Eva, tem biografia, diário, descrição física e agora também um conjunto de canções.
Eva é o novo disco da cantora ribatejana, feito a partir de uma personagem (alter-ego) que inventou
há 14 anos numa residência artística na Dinamarca. O JL entrevista-a e revela algumas páginas
do diário da sua amiga imaginária
A
MANUEL HALPERN
faz por intermédia pessoa?
Tudo podia ter acontecido. Pedi
a muitos, a cerca de 15 pessoas.
Dessa grande amostra, de 23 te-
mas, acabei por escolher apenas
dez. Todos os autores rece-
beram um briefing, que seria
para falar sobre uma mulher.
Mas para aqueles que me eram
mais próximos tornei a coisa
mais direcionada, receberam a
biografia da Eva e excertos do
meu diário de 2018 e 2019. Para
a história que eu queria contar
A última vez que falámos foi bastavam estes 10 temas, não
em Paris. Na altura Cristina, 46 quer dizer que os outros não
anos, apresentava o seu mais re- tivessem qualidade.
cente trabalho, o álbum Branco.
Assolada por um forte nevão, E é difícil esse trabalho de
que abalou os transportes e as exclusão?
comunicações, a capital francesa Difícil humanamente, porque
estava branca e quase deserta. não gosto de deixar ninguém de
Mas ainda assim, o Théâtre de la fora…. Mas as pessoas nem sempre
Ville (Châtelet) encheu a plateia são obrigadas a perceber exata-
com um público, essencialmente mente o que quero. Isso pode ser
francês, adepto e conhecedor do muito ingrato. Havia até histórias
seu trabalho. muito interessantes em comum,
Não imaginamos que, um ano mas não aconteceu desta vez…
JOANA LINDA
ENTREVISTA
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT
Página do diário de Eva Cristina Branco deu vida a este seu alter ego numa residência na Dinamarca, em 2006
DANÇA
frente, somos todos exploradores
de um mundo novo. Admirável?
“Não há direção prevista - diz Ana
Daniel Tércio Cardoso Oliveira; - infelizmente na
nossa cultura judaico cristã pensa-
mos com frequência que o castigo, a
penitência e o confinamento trazem
Amanhã, quinta-feira, 23, a -se. Será que o confinamento a que conquistas; mas não aprendemos só
Culturgest emite em live streaming coletivamente estamos sujeitos pode através do sofrimento, não cresce-
a conversa “Direito à tristeza”, resultar em algo diferente de uma mos só porque estamos triste; a ale-
com Sónia Baptista e Ana Cardoso tremenda e paralisadora sensação de gria, os afetos positivos, o interesse,
Oliveira Ela produziu haikus impotência? Pode ser exatamente o Triste in English from Spanish Coreografia de Sónia Baptista a inteligência, trazem a criatividade
dançados. Expôs-se em raposas contrário, diz Ana Cardoso Oliveira: à superfície como alavanca para o
transfiguradas, coreografando “A tristeza é uma reação saudável de processo de mudança.”
fábulas e histórias íntimas. Revelou uma perda ou luto, pode ser partilha- Onde fica a dança neste processo?
A falha de onde a luz e deu-nos da, pode ser reconhecida e empatiza- discussão extraordinária entre o ser torturado por dores indizíveis “A tristeza deve-se dançar até
conferências-performance. Há da, pode ser única porque incom- líder alfa, Mustafá Mond, e John, de toda a espécie. a fúria libertar a ação”, aconselha
pouco mais de um ano mostrou- preensível para outros, mas em geral o selvagem, acerca da questão da No princípio de Triste in English Sónia Baptista. Ela que começou
nos que a tristeza é potencialmente os que gostam de nós conseguem felicidade. Perante o programa from Spanish, Sónia Baptista afirma- com os haikus japoneses, ela que
transformadora com a peça Triste perceber, compreender e aceitar político de tornar todos felizes, o va-se só feeling. A coreografia, or- visitou o Japão e acompanhou
in English from Spanish. Nessa esta tristeza. Há também tristezas e selvagem reclama o direito de ser ganizada com e sobre o fluxo da voz, mulheres numa vila na Península
altura, a Culturgest (onde a peça lutos coletivos perante uma situação infeliz. Qualquer coisa como (e convocava palavras que sobrevoa- de Ise-Shima, diz agora: “Eu vivo
foi apresentada) organizou um dramática, ou algo que em conjunto sigo livremente o texto de Hu- vam a pele, entravam nas entranhas, na borda, que para mim é abismo,
debate a propósito do sentimento de estamos empenhados, como país, xley): o direito de ficar velho, feio nos gestos, nos olhos e se abatiam e essa angústia, da queda que, se-
tristeza, com a própria coreógrafa como aldeia como comunidade.” e impotente; o direito de ter sífilis em lágrimas ou se desdobravam em guramente, virá, dá-me ganas para
Sónia Baptista e a psicóloga Ana E a felicidade, comprimida e câncer; o direito de não ter quase risos. Quantas vezes choras por dia, criar, quando tenho sorte e não fico
Cardoso Oliveira. O tema do debate pelos sentimentos de tristeza, fica nada para comer; o direito de ter quantas vezes te ris por dia? petrificada a ver a morte chegar. O
repete-se hoje com as mesmas suspensa? piolhos; o direito de viver com a Qual é o feeling hoje, pergun- que eu tento é viver mais rápida do
participantes e com quem quiser Folheio o Admirável Mundo apreensão constante do que poderá to a Sónia? “Parece que todos os que a vinda dela e ao mesmo tempo
ligar-se em live streaming. Novo de Aldous Huxley. No final acontecer amanhã; o direito de feelings convergiram e se torna- percecionar o mundo com a lentidão
Mais do que nunca, o tema impõe- deste romance distópico, há uma contrair a febre tifoide; o direito de ram só um” – responde ela. “Uma das árvores.” J
A Música
© gulbenkian música – pedro pina
continua!
Para quem
#FicaEmCasa
Concertos, vídeos
e playlists online
GULBENKIAN.PT
20 ↗
IDEIAS 22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT
E
ANABELA MOTA RIBEIRO
O poema de despedida
“Carta de amor numa pandemia vírica/
Gaitas-de-fole tocadas na Escócia/ Tenores
cantam das varandas em Itália/ Os mortos
não os ouvirão/ E os vivos querem chorar os
seus mortos em silêncio/ Quem pretendem
animar?/ As crianças?/ Mas as crianças
também estão a morrer// Na minha
circunstância/ Posso morrer/ Perguntando-
me se vos irei ver de novo/ Mas antes de
morrer/ Quero que saibam/ O quanto gosto
de vós/ O quanto me preocupo convosco/
Escrevo a ouvir Dido e Eneias, de O quanto recordo os momentos partilhados
Purcell. Maria assistiu à sua repre- e/ queridos/ Momentos então/ Eternidades
sentação, todas as noites, presa à voz agora/ Poesia/ Riso/ O sol-pôr/ no mar/
de Janet Baker. Foi na Escócia, há A pena que a gaivota levou à nossa mesa/
muitos anos. Pequeno-almoço/ Botões de punho de oiro/
Escrevo uma love letter para A magnólia/ O hospital/ Meias pijamas e
Maria, uma carta de amor num outras coisas acauteladas/ Tudo momentos
quadro de pandemia vírica que a então/ Eternidades agora/ Porque posso
LUCÍLIA MONTEIRO
levou. Maria morreu na madrugada morrer e vós tereis de viver/ Na vossa vida a
de 14. Sabia da probabilidade da esperança da minha duração
morte iminente, sabia como o corpo
ia capitular (ou simplesmente dizer: Maria de Sousa Maria de Sousa
não posso mais), sabia como uma
médica e cientista sabe, depois de
ter a confirmação de que havia casos
de infeção na clínica onde fazia As galinhas são as mesmas, numa é legado, o fulgor de Maria, o privilégio é, para si, um exercício essencial: “Os [...] As do timo iam para o território
hemodiálise três vezes por semana. Inverno e há neve, na outra é Verão. de tê-la conhecido. Porque é que ela momentos muito importantes não a que chamámos ‘área dependente
Poucos dias antes, já com sintomas, A paisagem é simples: árvores, uma fazia tanta diferença. se podem escoar. Tem de se pôr uma do timo’ e que hoje é conhecida por
escreveu um poema que é uma des- cerca, um casinhoto. As imagens — E agora, Cláudio, quando rolha no rio. Tem de se fazer parar o Área T. E achei esse fenómeno de as
pedida — e que é, sobretudo, uma revelam os ciclos da natureza, a quisermos perguntar o que fazer, rio, senão aquilo vai tudo. Não temos células saberem para onde vão tão
exortação à vida. De uma pessoa que rotina de quem vê todos os dias perguntamos a quem? uma memória infinita e a pessoa não importante que lhe dei um nome:
encontra nos dias uma nitidez, um as mesmas ramagens ao fundo, o — À memória da Maria. E da- se vai lembrar dos pormenores todos, ecotaxis.”
brilho, uma alegria infantil. Que tem andar sem tino das galinhas (que mo-nos descomposturas, para ter a é impossível. A sensação que tenho
uma fome de vida. comem e mais o quê?), o tempo que certeza de que ela está viva. é que escrevo, e sobretudo escrevo Maria soube sempre para onde
Começo pela Escócia e pela músi- pesa de outra maneira quando o Dar descomposturas (a toda, mas nalguns momentos, para procurar ia. Depois do Reino Unido, foi para
ca, começo pelo poema que revela a vemos à distância de 50 anos. Como mesmo toda a gente — e daí vem uma fazer parar o momento”. Nova Iorque. O seu contributo para a
sua coragem e sabedoria, núcleos da escreveu nos seus últimos versos: fama de ser feroz) era uma forma de Imagem poética e estranhamente ciência foi notável, fez escola, deixou
vida de Maria. gritar: “Não prestes atenção ao que exata: pôr uma rolha no rio. Estancar discípulos. Tenho a impressão de que
Esteve para ser pianista. No meio Momentos então não merece atenção. Observa, inter- o fluir, parar a vida, criar cápsulas, isso era, para ela, o mais importante:
de curso de Medicina impôs-se a Eternidades agora roga, escolhe”. Dito com frontalidade ver no microscópio. Senão aquilo vai a relação com os alunos, a procura do
escolha, e preteriu o conservató- e amor. Estando absolutamente na- tudo, na enxurrada. saber, interrogar o que não se sabe.
rio. “Prevaleceu a importância de A vida visível daquela janela dá- quele instante e com aquela pessoa, Compreender o movimento, o de- Menos a glória pública, que também
dar prazer aos outros.” Uma forma -nos o tempo cronológico da Maria, e sem dispersões. vir, o sentido que as coisas têm esteve teve. Era imensamente discreta.
elegante de falar do sentido de dever, tem agora a espessura do tempo his- (A mim dizia-me: “A impressão na origem da sua célebre descoberta, Tinha, por isso, uma relação ambígua
daquele Portugal em que uma mulher tórico, da eternidade. Porque é que que me faz que ande aí num virote. em 1966. Resumiu-o na primeira com o livro Um mundo imaginado, de
estuda Medicina. Esteve anos sem to- Maria quis incluir aquelas fotogra- Para quê? Sente-se a escrever”.) entrevista que lhe fiz, em 2014: “As que foi protagonista e que inspirou
car. Em Glasgow, jovem investigado- fias?, o que é que nos estava a dizer? minhas observações demonstravam gerações de jovens cientistas em todo
ra, ouve Janet Baker, uma aparição, Neste tempo cronológico em Maria de Sousa nasceu em que os animais timectomizados à o mundo. A autora, June Goodfield,
outras vozes, e olha pela janela do que estou e escrevo, dia 16 de Abril, Outubro de 1939. Pouco antes, o pai, nascença ainda tinham linfócitos. E acompanhou durante anos Anna
laboratório. sinto dificuldade em elaborar um que era piloto da barra, escreveu mais, os espaços vazios de linfócitos Brito (a Maria Ângela Brito de Sousa),
Vejo devagar essa janela, em mapa preciso da sua vida. Isto não é no diário: “Hoje começou a guerra. eram distintos dos espaços onde ha- e registou o processo de investigação,
duas fotografias, reproduzidas no um obituário, é uma carta de amor. Stop”. A escrita diarística, poética, via linfócitos, o que significava que as a dedicação absoluta, a dinâmica das
livro de Maria Meu dito, meu escrito. Mas preciso partilhar com outros o científica, a escrita de cartas, emails, células pareciam saber para onde ir. equipas — aquele estar no mundo. ›
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT IDEIAS 21 MARIA DE SOUSA
↗
T
Onésimo Teotónio Almeida
MARIA DE SOUSA
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT
Por uma estratégia para Portugal das grandes multinacionais que desenharam,
movidas apenas pela maximização dos seus lu-
cros, a atual desordem internacional, onde países
desenvolvidos nem sequer máscaras de proteção
ECOLOGIA
Europeia, mas não deve ficar à espera dela, pois,
na verdade, tal pode nunca vir a acontecer.
C
e económicos que daí decorrerão só será possível
com a mobilização da sociedade portuguesa, lide-
rada pelo Estado e as políticas públicas. O mercado
ontinuamos sem saber e as empresas terão um papel importante, mas su-
como iremos sair do bordinado. Os parceiros sociais deverão, certamen-
choque histórico que te, contribuir para o delinear das medidas, mas só o
está a ser infligido pela Estado e os seus poderes legítimos estão autoriza-
pandemia COVID-19. dos a vincular o país a um rumo estratégico
Não sabem as famílias,
não sabem as nações, 2. A “economia verde” não pode ser encarada
nem a própria multidão como um sector paralelo e concorrente ao da
assimétrica e desorgani- economia, dita “normal”. Pelo contrário, a grande
zada de grandes atores institucionais e empresa- oportunidade deste momento de rutura é a de
riais que formam o atual sistema internacional, operar uma verdadeira “destruição criadora”
há muito tempo mergulhado numa entropia ecologicamente orientada, para usar um conceito
caótica. Contudo, só os mal-intencionados ou de 1942 do economista Joseph Schumpeter. Trata-
os profundamente ignorantes podem alegar que se de desenhar e conduzir uma viragem inovadora
esta pandemia veio sem aviso prévio. Bem pelo absolutamente sincronizada e articulada com os
contrário, ela faz parte de uma espécie de guião critérios de uma transição para uma economia
catastrófico que tem vindo a ser concretizado há sustentável, fiel ao primado da justiça social e da
décadas, e que tem sido antecipado por milhares conservação e recuperação da vertente ambiental,
de cientistas – que até agora têm desempenhado incluindo a produtividade dos serviços ecológicos
o papel de Cassandras – nos mais diversos domí- vitais prestados pelos ecossistemas naturais.
nios da crise global do ambiente, onde se incluem
fenómenos de rutura acelerada como a extinção 3. O Estado português está a mobilizar recursos
da biodiversidade e as alterações climáticas, financeiros sem paralelo para enfrentar esta ca-
agora já em fase emergencial. tástrofe. Isso implicará um aumento gigantesco da
dívida pública, em condições de grande incerteza
CAUSAS PRÓXIMAS E ESTRUTURAIS DA quanto ao futuro da UE e das regras absurdas que
PANDEMIA têm amarrado os Estados da zona euro a uma
Ao longo das últimas décadas, a disseminação das Imagem de satélite da diminuição da poluição mundial durante o surto de coronavírus austeridade perpétua, que se traduziu no enfra-
doenças, quer as conhecidas quer as novas, tem quecimento, por exemplo, dos serviços públicos de
tido raiz principal ou nas alterações climáticas saúde. É imperativo mobilizar recursos financeiros
(como é o caso da migração para Norte de doen- europeus, tanto através do ainda não explorado
ças transportadas por vetores, ou as altamente ria dos países ditos desenvolvidos. O persistente financiamento de emergência direto do BCE, como
prováveis pandemias do futuro, resultantes fracasso da diplomacia ambiental e climática, também da emissão de “eurobonds”, que é indis-
da “reanimação” de vírus e bactérias durante antecipa que Portugal se deve preparar para pensável para a sobrevivência da UE. É imperioso,
milhares de anos congelados e neutralizados na enfrentar os impactos da emergência climática, também, que as garantias bancárias públicas dadas
criosfera), ou na extinção maciça de espécies, que Esta é a grande oportunidade provavelmente contando apenas com as suas à banca para financiamento às empresas, sejam
provoca fenómenos de zoonose, o “salto” de vírus de operar uma verdadeira forças. Mesmo que, desejavelmente, a situação acompanhadas por critérios de sustentabilidade
de animais para os humanos (atualmente, 75% internacional se inverta num sentido positivo, estrita na seleção desses apoios. O que significa,
das novas doenças têm esta origem). A combi- “destruição criadora” Portugal deve preparar-se, desde já, para as duplamente, proteção dos postos de trabalho e res-
nação das duas causas não pode ser excluída. No ecologicamente orientada e profundas, perigosas e destrutivas consequências peito de regras ambientais cada vez mais exigentes.
caso da presente pandemia de CODIV-19 trata-se da mudança climática sobre a saúde pública, a
claramente de uma consequência da segunda
recuperar o controlo sobre biodiversidade, o litoral, o regime hidrológico e 4. O Estado não deve nem pode apoiar incon-
causa: a destruição dos habitats e a captura ou sectores importantes como a as reservas hídricas, a produtividade dos solos, o dicionalmente empresas com uma gigantesca
reprodução em cativeiro de espécies em vias de aumento de calamidades causadas pelos eventos pegada ecológica, e que agora querem ser salvas
extinção, comercializadas vivas, em mercados
TAP e a ANA extremos (como ocorreu no Verão de 2017), etc., a todo o custo pelo dinheiro público. Esta crise
(wet markets) asiáticos (sobretudo na China) e só para mencionar as que aparecem como mais contém uma oportunidade para o Estado portu-
africanos. A epidemia SARS (2003) teve a mesma evidentes pela sua inevitabilidade. guês recuperar o pleno controlo sobre sectores
origem. Avisos foram feitos. Por virologistas, por Com ou sem esta pandemia, a humanidade importantes da economia, que foram alienados
Bill Gates, por Obama. Mas não foram escutados. caminha para novos e terríveis impactos diretos na última década. A recuperação plena da TAP e
Como é que demorámos tanto tempo a reagir, da crise ambiental e climática. A saída da catás- da ANA, permitirá um redimensionar realista da
e de forma tão descoordenada? Como foi possível em função da manutenção em funcionamento trofe do CODIV-19 deve capacitar-nos – através componente aérea de uma política de mobilidade
“o salve-se quem puder” europeu, e as oscilações de uma máquina económica que tudo sacrifica de um vasto consenso nacional e se possível eu- e transportes, afastando em definitivo a constru-
na resposta de tantos países, que estão a aumentar à demanda distópica da reprodução desmedida, ropeu - para estarmos prontos para as próximas ção de novas infraestruturas, como o anunciado
o número de vítimas e a colocar, mesmo Estados potencialmente infinita, do capital. crises que nos colocarão à prova nas próximas aeroporto no Montijo. O transporte aéreo já
com razoáveis sistema de saúde, à beira, ou mes- Foi o Papa Francisco quem melhor sintetizou décadas e gerações. atingiu o seu pico, em Portugal e no mundo, caso
mo para além, da sua exaustão, como já ocorreu a presente situação, ao afirmar que o modelo de a humanidade queira evitar um processo des-
em Itália e Espanha? Para que a nossa resposta atividade produtiva no mundo está subordinado LINHAS-DE-FORÇA PARA UMA controlado de alterações climáticas. Do mesmo
possa ser útil, temos de ir ao fundo da questão. A a uma “economia que mata”. Todos os indicado- ESTRATÉGIA NACIONAL DE modo, a chantagem do sector automóvel, com
verdade é que o atual sistema económico-políti- res da sustentabilidade global do Sistema-Terra SUSTENTABILIDADE E RESILIÊNCIA eventual exceção para os segmentos da mobili-
co não está organizado em função da defesa das têm-se agravado num ritmo sem precedente, Mudar, sublinho-o, significa reconhecer o fra- dade elétrica, deve ser enfrentada e recusada. O
sociedades - seja a sua saúde, seja a sustentabili- colocando até em causa alguns sucesso na me- casso do modelo da total rendição da sociedade regime dos vistos gold, um disfarce para a lava-
dade do ambiente de que dependemos - mas sim, lhoria da qualidade ambiental regional na maio- e das respetivas políticas públicas aos interesses gem de dinheiro com impacte especulativo no
24 IDEIAS ↗
CRÓNICA
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT
E
período agudo da pandemia. No período poste-
rior, esse apoio a essas empresas deve ser voltado
para todas as áreas que aumentem a capacidade
do mercado interno em todos os domínios, da
produção agrícola ao sector secundário, sempre m tempos de confinamento, a leitura é facto desse silêncio contaminar irremediavelmente a atitude filosófi-
na escrupulosa atenção aos critérios da produção sem dúvida o melhor remédio, desde que ca. Afinal, a principal tarefa dos que se dedicam ao ofício de pensar é
sustentável. Portugal deve aumentar a capacida- temperada por algum sol e por contacto com a de fazer luz sobre os crimes que se cometeram no passado e manter
de de alimentar a sua população. Temos de estar os amigos através dos meios técnicos que desperta a consciência sobre eles? Lembrar para que não voltem a
preparados para a eventualidade de uma inter- o progresso permite. Os livros e a música acontecer, mas evitando o ressentimento e a vingança. Heidegger evi-
rupção das cadeias de abastecimento no caso, são preciosos companheiros, que permitem taria a polémica e responderia que a sua preocupação tinha a ver com
infelizmente não improvável, de uma quebra no abrirmos outras janelas, para além das reais, a relação entre o homem e a técnica. Mas Habermas contraporia que a
comércio intra-europeu em caso de colapso da que nos levam a usufruir a luz irregular que sua crítica não tinha a ver com o envolvimento político com o nacio-
zona euro. Nesse sentido, não só devem as leis de tem caracterizado a meteorologia nestes dias. nal-socialismo em 1933, mas com a teimosa negativa em reconhecer
proteção dos solos agrícolas serem rigorosamente Mas vou ao que hoje me traz. Acaba de ser publicada em Espanha, o seu erro a partir de 1945. No fundo, “a discussão sobre o comporta-
implementadas, como deverá ser lançada uma pela Editorial Trotta, Jürgen Habermas, Una Biografia, da autoria de mento político de Martin Heidegger não poderia nem deveria servir
nova política de colonização interna, voltada para Stefan Müller-Doohm, obra dada à estampa em Berlim em 2014, na propósitos de difamação e desprezo sumários. Como nascidos depois,
a diminuição drástica das monoculturas desorde- qual encontramos o percurso intelectual e cívico de quem é indiscu- não podemos saber como nos teríamos comportado nessa situação de
nadas de eucalipto e pinheiro bravo, responsáveis tivelmente uma das consciências morais da Europa contemporânea. E ditadura”.
pela vergonhosa e repetida posição de Portugal neste momento de tantas incertezas, em que os egoísmos e a cegueira
como campeão europeu de incêndios florestais. do curto prazo tendem a prevalecer, é importante recordarmos alguém POUCO DEPOIS, HABERMAS CHAMARIA a atenção de Theodor
que representa a necessidade de reflexão e do espírito da Ilustração, W. Adorno com um texto publicado na revista Merkur, “A dialética
6. Devido à procrastinação de uma estratégia não numa lógica fechada e positivista, mas numa perspetiva aberta à da racionalização”, no qual analisava a alienação gerada tanto pelo
de transição para a sustentabilidade, o esforço diversidade e capaz de ligar as ideias e os acontecimentos, a razão e os trabalho numa cadeia de montagem, como no consumo sem limites.
de Portugal, da Europa e do mundo será agora sentimentos. “Babelia”, o suplemento literário de El Pais, reservou a E premonitoriamente avisava: «da produção ao transporte, passando
e doravante muito mais penoso e difícil. Mas, sua capa a este pensador, que nos seus noventa pela comunicação ou pelo ócio, a “cultura das
baixar os braços não é alternativa. O Estado deve anos se mantém ativo, de um modo persistente, máquinas” terminará por dominar as nossas
reinventar-se, para cumprir o seu papel de líder na compreensão da importância do tempo, da vidas. Cada dia, estaremos mais longe da na-
do interesse comum. A reorganização das pastas decisão e da reflexão na vida democrática. tureza e do resto dos seres humanos». Apesar
no executivo devem ter em consideração a neces- O tema da democracia está na ordem do dia. da resistência de M. Horkheimer, pelo pendor
sidade premente de aproximar a política pública Há nuvens negras no horizonte e temos de estar pacifista de Habermas na altura, este ingressou,
de ambiente, das áreas da administração interna despertos para os perigos que espreitam. Nada em 1956, no célebre Instituto de Investigação
e da defesa nacional. As áreas protegidas podem e há de mais sério. E se hoje há urgência na pre- Social, centro da chamada Escola de Frankfurt,
devem ser defendidas com a intervenção mais di- venção e na ação, para que a saúde pública não o dito Café Marx, que Lukács designava depre-
reta de unidades especiais das forças de segurança contrarie a democracia e possa estar associada ciativamente como “Grande Hotel Abismo”…
militares, como já ocorre com a GNR. à retoma na economia e na sociedade, é im- Adorno admirava o pensador, e para sua mu-
Urge também que as Forças Armadas assu- portante falar do “patriotismo constitucional” lher Gretel ele fazia lembrar Walter Benjamin,
mam o desafio da crise ambiental e climática, e da “democracia deliberativa”, de que trata o grande amigo, que se suicidara em Port Bou,
seguindo o modelo espanhol de constituição Habermas, não apenas nas democracias nacio- em 1940, perseguido pela Gestapo…
de uma unidade polivalente de alta eficácia e nais, mas também na vida supranacional, em Ao longo de 650 páginas, a biografia acom-
prontidão, a Unidade Militar de Emergências. especial europeia. Num momento em que há panha um percurso extraordinário, em que,
Mais do que isso, importa que as Forças Armadas sinais preocupantes, em que a dúvida se con- além de Adorno e Gadamer, encontramos os
integrem novas missões e novos equipamentos. funde com a descrença, e em que o desalento grandes dilemas do pós-guerra, num contexto
Isso implicará reformar o Conceito Estratégico de alimenta a desistência, importa não esquecer o de complexidade, diversidade e incerteza.
Defesa Nacional (RCM 19/2013) e alterar a Lei de que nos diz o filósofo: “A verdade não existe no E fica claro que a reflexão filosófica e o compro-
Programação Militar (Lei 2/2019, 17 de Junho). singular”, pelo que a legitimidade democrática misso social são faces de uma mesma moeda
Jürgen Habermas
O parlamento deverá discutir, com seriedade, deve ligar-se à mediação das instituições e ao – a necessidade da Ilustração… E é esse sentido
a necessidade de reintroduzir o Serviço Militar envolvimento dos cidadãos. de responsabilidade crítica que marcará a
Obrigatório, tendo em vista a mobilização com- No debate europeu, infelizmente, há sinais decisiva importância do pensador na atualida-
petente de recursos humanos para fazer face à de recusa de uma elementar solidariedade que contrarie a fragmenta- de – designadamente no tocante à defesa de uma Europa como fator
multiplicação de riscos e eventos extremos. ção e a lógica do salve-se quem puder. E Habermas lembra as origens de paz, de desenvolvimento e de diversidade cultural. Daí a necessi-
da União Europeia, como construção de paz e desenvolvimento, capaz dade de domesticar o capitalismo com a democracia garantida por um
7. Também as metas de reconstrução sustentável de integrar as diferenças, sem esquecer a memória histórica, não Estado de direito com “rosto social”, com superação do “pessimismo
da economia e do tecido social devem orientar as numa perspetiva de culpa (se lembrarmos o Holocausto), mas sim de antropológico” que caracterizou a primeira fase da Escola de Frankfurt.
políticas de educação, ensino superior e investiga- responsabilidade. E a tarefa do intelectual tem de ser a de melhorar Os conceitos de conhecimento, liberdade e progresso constituem valo-
ção científica. Isso implica, claramente, uma discri- o lamentável nível do discurso das confrontações, evitando a todo o res de uma razão ilustrada, no contexto de uma “modernidade”, como
minação positiva dos financiamentos para projetos custo o cinismo. Um filósofo intelectual é contemporâneo dos nos- “projeto inacabado”, por contraponto à “condição pós-moderna” de
nas áreas da sustentabilidade. Também aí, Portugal sos contemporâneos – e daí a sua necessária inserção numa ética de Jean-François Lyotard…
deve desenvolver uma “economia do cuidado”, na responsabilidade. É esse o papel que Habermas assume, com todas as Lembrando ainda a democracia quando há sinais da sua fragilidade
feliz formulação do economista José Reis. limitações e virtualidades – lembrando tantas vezes aos seus alunos: em tempos de peste, recordo outro livro, Penser la Justice, constitu-
“Nunca te compares com um génio, mas trata sempre de criticar a obra ído por entrevistas a Michael Walzer por Astrid von Busekist, (Albin
8. A UE, em particular a sua coluna vertebral de um génio”. Michel, 2020). Para o filósofo norte-americano, democracia e justiça
que é a zona euro, está a entrar numa encruzi- Nesta perspetiva, ainda têm de estar ligadas. Aos grandes sistemas, Walzer prefere as “peque-
lhada que ditará ou a fragmentação do projeto jovem, o filósofo ousou afrontar nas teorias”, acreditando num Estado social, no qual as nações e as
europeu, que é totalmente contrária ao interesse Heidegger, em 1953, num fronteiras sejam garantes da liberdade das pessoas. E, em seu abono,
nacional, ou a sua evolução para uma dimensão texto publicado no Frankfurter lembra o Profeta Amos, para quem não bastava condenar a injustiça e
federal, que, embora sendo a única compatível Allgemeine Zeitung com o título O percurso intelectual a idolatria, sendo necessário construir em concreto a sociedade mais
com o interesse português e a luta planetária pela significativo “Pensando com humana. Tanto Walzer como Habermas insistem numa consciência
sustentabilidade, não depende apenas de nós. Heidegger contra Heidegger”,
e cívico de quem é crítica capaz de entender a sociedade em mudança, em conflito e em
O país deve estar na linha da frente da luta pela menos pelo desprezo que o uma das consciências diálogo, num contexto plural. E nessa perspetiva se explica a anedota
salvação do projeto europeu numa refundação velho pensador tinha pela morais da Europa que corre nos meios intelectuais: um professor norte-americano aterra
federal, mas deve preparar-se também para o igualdade democrática, e mais na Alemanha, toma um táxi e diz: “Leve-me à Escola de Frankfurt!”.
pior cenário da sua fragmentação.J pela recusa da autocrítica e pelo contemporânea E o taxista surpreendido responde: “A qual delas?” J
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT DEBATE-PAPO 25 ↗
Itacoatiara A Mentalidade
na Quarentena
LAURA PEDROSA
RUMOR DE FUNDO Agora, finalmente confrontados com a realidade
da solidão obrigatória (ou pelo menos incutida pela
Marco Lucchesi sociedade), muitos confrontam o real propósito
das horas fixas que estabelecem a rotina dos dias.
Talvez, no início, tenham expressado alegria pe-
rante a momentânea falta de responsabilidades e as
horas de sono recuperadas. Mas, após os primeiros
dias, desenvolveu-se o receio – que hei-de fazer eu
com as semanas livres? Não as defino como férias,
já que não posso ir para a praia de Carcavelos nem
levar os miúdos ao cinema. Aqui começou o con-
fronto entre tentar entorpecer a cabeça com a sele-
ção de filmes de ação do Netflix e, enfim, enfrentar
o que está há anos enterrado no seu íntimo – quer
saibam ou não lidar com o assunto.
Muitos conseguirão repudiar tais noções,
ajudados pelo tempo que esmoreceu a mente de
modo a conseguir levar a cabo a repressão neces-
sária a uma vida produtiva. Outros hão-de beber
vinho tinto, ligar a familiares, e reconsiderar
os antidepressivos que, tal como um amigo co-
mentou, «haviam de te fazer bem.» Entretanto,
restam aqueles que já vivem numa espécie de
quarentena intrínseca – os que já consideraram os
antidepressivos –, e que se dividem também em
dois grupos distintos.
O primeiro grupo entrou em pânico ao saber
do estado atual do país perante o coronavírus
porque, apesar de indiferente à gravidade do vírus
em si, compreende a carência de distrações e
tenta já, no seu dia-a-dia saudável, aproveitá-las
de modo a apaziguar a consciência com um misto
de devaneios e aprovação externa. Este grupo
esforça-se para utilizar o tempo de maneira pro-
P
“Lembro-me de Jorge de Lima: ‘Há sempre um copo de mar para um homem navegar’” dutiva, para ler livros e ver filmes, de modo a que
possa sentir que retirará daqui algo gerador dessa
cobiçada exaltação interior e social, após os ínti-
mos meses da pandemia. Com sorte, conseguirá
arte de minha juventude floresceu cromatismo da mata atlântica, aqui, na serra da Tiririca, onde tecer algo que será, mais tarde, valorizado por
nesta pequena praia de Niterói. Em tu- me entrego ao ócio das manhãs, subindo e tornando a descer a outrem, enquanto o seu valor real, o da supressão
pi-guarani, Itacoatiara significa pedra pedra do Costão. recôndita, permanece menosprezado.
riscada. Nem ferida, nem magoada. Tornei-me adicto da maresia. Preciso de iodo e sal. Não pos- O segundo grupo, por outro lado, ri-se ao ver
Riscada, apenas. Sigo o mesmo destino so viver sem o mar, sem as ondas que se agitam. os textos nas redes sociais sobre a «saúde mental
das pedras. Morder o mundo e abocanhá-lo, a partir dessa fronteira, durante o isolamento.» Acham piada a estas
Herdei um azul feroz e contundente: sonho e matéria, aqui, onde transito e onde me perco, entre preocupações, já que a sua quarentena diária não
no céu onde se esconde o Sagitário; no antúrios e magnólias. Talvez entre Florbela e Sophia, Al Berto e é dissimulada pelo véu da sociedade capitalista e,
além do mar oceano, e com saudades Pascoaes, Helder e Jorge, Fernando e Camões. ao verem o seu superpoder a emergir no mar da
de África. É tanto azul que já não sei o que faço. Distribui-lo “Tranquei o mundo lá fora”, disse um poeta brasileiro. Pois ansiedade alheia, concretizam assim o louvor de
entre Rafael Sanzio, Raul Brandão e a mesquita de Isfahan. cada qual se reinventa, ao medir forças com a pandemia. Um que prescindem. Este grupo é formado pelos que
Repousam no jardim, onde me ponho a escrever, os ossos de mundo vasto que se desbasta. consideramos «disfuncionais» – os amigos que
Carina, minha saudosa pastora alemã, e uma funda geologia da A realidade virtual, a ideia mística e técnica, empresta cará- nos preocupam por dormirem de dia e viverem
memória. Guardada a sete chaves, talvez impronunciável, com ter relativo ao que está próximo ou distante. Cresce o desejo de de noite, os primos que desmaiam no aniversário
antigas falhas sísmicas. estarmos juntos e a revisão geral da biopolítica. dos avôs. Os que estão fartos de ouvir, «sim, ele
Poderia invocar mil Assim, quando cai a noite, brilham os olhos de Ana, como não tem estado muito bem. Pronto, já sabes como
vezes outras potências do dois gatos. O que virá depois? A fome nas favelas, a dança ma- é que ele é.»
azul, o mesmo azul que cabra no cárcere, o jogo de xadrez da morte e Antonius Block? Este último grupo é composto pelos que
me deixa em estado de Sinais do Dia do Juízo, como apregoam os corneteiros do fim aceitaram a quarentena, tal como a sua respon-
sítio e põe o mundo entre do mundo. Igrejas abertas, durante a pandemia, para aque- sável epidemia, com um aceno e algum interesse
parênteses, quando me cer a venda de promissórias e salvo-condutos para depois do desprovido de medo. O medo, afinal, é para quem
deito, como substância Apocalipse. ainda não o tem. Para quem não o vive habitual-
pensante, a olhar o céu. A política do vírus A política do vírus e o vírus da política perversa, a pandemia mente como um imperativo impassível. Quando
Cultivo a biblioteca e o vírus da política e o pandemônio, produzem fortes dissonâncias. Mas a socieda- regressarmos a Portugal* e à rotina após estes
polifônica, as mãos que de civil compreende a gravidade e não abre mão do isolamen- meses de interrupção, há algo a recordar antes de
me precederam ao piano perversa, a pandemia to. As comunidades mais pobres oferecem as respostas mais voltarmos à toca do recalque produtivo: a ideia
e o vigoroso telescópio, e o pandemónio, solidárias e criativas. de que talvez o isolamento nos ajude a perceber
que me leva a contem- Morre-me um parente na Toscana. As janelas da Itália o outro, o modo como ele existe num mundo
plar a noite fria, como produzem fortes perdem um cantor. Ana escreve um diário subtil, a tradução do reservado e distinto. A ideia de que esse estado de
os românticos alemães. dissonâncias. As mundo, em haicais e iluminuras. Indaga para onde caminhamos medo, mais do próprio que do vírus no corrimão
Itacoatiara deu-me, e até quando haverá mundo? das escadas, nem sempre é passageiro. A ideia
desde cedo, uma pro- comunidades mais Não o mesmo, talvez. Sairemos diversos, mesmo de de que todos temos amigos que continuam em
ximidade com estrelas, pobres oferecem Itacoatira. E terá de ser forçosamente outra civilização, voltada quarentena.J
nebulosas e parcelas de para a humanidade e a Mãe-Terra.
infinito.
as respostas mais Lembro-me de Jorge de Lima: “Há sempre um copo de mar *A autora do texto é uma jovem recém-licenciada em Cinema
Darwin adentrou o solidárias e criativas para um homem navegar”. J pelo King’s College de Londres
26 DEBATE-PAPO
↗
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT
J
PUBLISHER: Mafalda Anjos
PARALAXE JORNAL
Afonso Cruz DE LETRAS,
ARTES E
IDEIAS
Q
DIRETOR: José Carlos de Vasconcelos
mais pequenos, invisíveis a olho nu, correm para o PAGINAÇÃO: Patrícia Pereira
pódio. É irónico que os seres vivos mais perigosos sejam SECRETÁRIA: Teresa Rodrigues
números, serão eles, em A frivolidade não é seres humanos durante a peste, mas a determinada
largo número, a rir por altura interroga-se sobre o que poderia acontecer
último. tão imponente como à moda depois de a epidemia passar, uma vez que
Por curiosidade, a crueldade, mas, muitas perucas haviam sido fabricadas com cabelos de
o surto de peste de cadáveres infetados.
1665-1666, segundo nos tal como um simples A frivolidade não é tão imponente como a crueldade,
diz Daniel Defoe, em espirro, pode matar mas, tal como um simples espirro, pode matar. J
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT DEBATE-PAPO 27 ↗
HOMEM DO LEME
Andam a morrer Manuel Halpern
AUTOBIOGRAFIA IMAGINÁRIA A
s declarações eram intoleráveis, cho-
cantes e inadmissíveis. Descobrira-se
finalmente a cura para o maléfico
Valter Hugo Mãe
D
vírus. Doravante, as pessoas podiam sair à rua,
abraçar-se, beijar-se e até fazer amor umas
com as outras (havendo mutuo consentimento,
claro) sem que a coisa se pegasse. Contudo, e
eu-me para cuidar das coisas os olhos ao mar como se imaginassem os peixes perplexos, isto ficou subentendido das palavras do presi-
como se houvesse de morrer. impunes à fome dos pescadores. Apresso o cão porque me dente, ninguém se livrava da morte. Apesar do
Sou dado a algumas bravuras assustam as conversas alcoviteiras de quem está ou não maléfico vírus ter os dias contados, estavam
práticas, detestaria deixar afazeres está muito mal. Quando chegámos às Caxinas, em 1980, a todos, mais cedo ou mais tarde, sujeitos a mor-
complexos nas mãos dos outros, primeira coisa que notei nas gentes foi a falta de ar. A asma é rer de outra maleita qualquer: um outro vírus,
sempre concebi o amor como tão caxineira quanto são os charamanecos. Um velhote dizia uma bactéria, cancro, avc, enfarte, pneumonia,
apaziguamento e pouco fardo, que não era um vírus pequeno a deitar abaixo as pessoas de malformação, febre, doença rara, diabetes...
abdiquei de contar com ajudas aqui. Para levar um pescador é preciso uma onda gigante para não falar de homicídios, atropelamentos
demasiadas. Dependo de mim como as dos filmes da Páscoa. e acidentes variados. Em pleno século XXI,
como se existisse ao abandono, é minha forma de me Há um senhor que espreita à janela e me cumprimenta: após milénios de ciência ainda era possível e até
entender e garantir que, se me agredir por algum amor ou boa tarde, escritor. Respondo, estou sempre muito bem inevitável o homem finar-se. Ora isto represen-
traição, parto sem tragédia. comportado com os saquinhos para apanhar as porcarias do tava um atestado de incompetência a milhares
Frequento assiduamente um cão. O senhor repete muito que de médicos e cientistas ao longo da História.
café onde se fuma há 24 anos. deviam todos ser como eu. No O máximo que estes conseguiram foi adiar ou
Em algumas noites, nem os dia 16, morreu o Luis Sepúlveda, mitigar a morte, mas jamais suprimi-la, dando
fumadores aguentam a neblina a televisão mostrou imagens assim espaço a que proliferassem religiões cren-
cerrada queimando os olhos. Ouvi onde apareço a cumprimentá- tes numa segunda vida, essa sim para sempre.
sermões longos sobre os perigos lo. O senhor disse: mais vale O Professor Z não estava pelos ajustes.
de ser fumador passivo. Sei bem que ande sozinho com o cão, E, no dia em que foram decretados beijos e
que esta porcaria de vírus que que agora os escritores trazem abraços, fechou-se no seu laboratório impro-
calhou ao mundo se alambuza vírus das viagens, e os escritores visado – uma adaptação da antiga garagem –
com moços como eu, ali pelos começaram a morrer. Olhei-o entre compêndios e fórmulas, que cruzavam
50 anos de idade, nada dados a sem saber se suportaria não tempos e modos, artes e ciências, desde o lí-
NUNO BOTELHO
desportos, com refeições feitas à chorar. E ele disse: houve um quido do Santo Graal à palete de tintas de Van
pressa, muito stress e os pulmões brasileiro também. Mas foi Gogh, de Einstein a Dalai Lama. O Professor
à sorte. A possibilidade de penar Luis Sepúlveda de outra coisa. Umas coisas Z, físico, químico, biólogo, imunologista,
com gravidade, em caso de testar empurram as outras. filósofo e metafísico autodidata, espectador
positivo, é muito considerável. O Rubem Fonseca e o Luis atento, homem de pouco sono e muito lavor,
Como sou avesso à dor, dá-me Sepúlveda devem estar no fraco de aparência mas fino de trato, entrega-
medo e prefiro sempre viver território ainda surpreso da ra-se a si próprio uma missão. Se laboratórios
desenganado. morte a discutir revelações do mundo inteiro, com infindos recursos, se
Agora andam a morrer os maravilhosas. Somos nós quem esquivavam do maior propósito, fixando-se
melhores escritores. Iludimo- segue no desconhecido. A na lateralidade das questões, ele próprio se
nos com a história de que os vontade que tive de me sentar encarregaria de chegar à essência. Seria ele,
escritores morrem menos, mas no nosso muro da marginal foi pois, o professor Z, o anão nos ombros do
LUCÍLIA MONTEIRO
sobram corpos grandes que a tremenda. Pusera-se um sol gigante, que encontraria o famoso elixir, co-
terra devora de qualquer jeito e quente e havia menos pessoas biçado desde os tempos remotos nas arábias e
não lhes poderemos voltar a dizer a correr do que o costume. O outros orientes, mas que os cientistas moder-
obrigado e a abraçar. Porque me Rubem Fonseca Crisóstomo, o cão, está maduro nos desdenhavam fechando-o no capítulo das
eduquei com livros, e sobretudo e sossegado, já sabe meditar um lenda. Z, que tinha tanto de Fleming como de
porque com livros confirmei a pouco também, e eu sempre usei Merlin, chegaria mais cedo ou mais tarde ao
transcendência em a praia como ponto de arremesso. objeto desejado.
que acredito, a morte Espio o horizonte no modo mais ingénuo, espero que me Passou cem dias na escuridão do labora-
dos escritores vai em coloque à distância daquilo que penso, daquilo que sinto. tório, sem comer e sem dormir. A busca da
procissão por meus Espero que leve o que não sei mais suportar e me devolva à eternidade quase o matava. Mas sobreviveu.
caminhos interiores. Há areia aliviado para algum recomeço. Ao fim de cem madrugadas tinha nas mãos
um cemitério ao centro De todo o modo, não podemos sentar no muro. A um intragável líquido viscoso, que bebeu
do peito. Levantam- Estes dias levaram dois polícia passa a vociferar contra os relaxados. Subitamente, sem pensar nas consequência e, com tal
se das veias pequenos entendi que me notavam. Virou talvez um horror haver um avidez e emoção, que nem sequer anotou a
vulcões de sangue que homens que a sorte escritor em Vila do Conde. Cumprimentar o Sepúlveda, fórmula. Ficou depois à espera a ver o que
iluminam as tristezas me deu o privilégio de em Bragança, no ano de 2016, era subitamente escancarar lhe acontecia. E, como de esperado, nada lhe
que comporto. Minhas a ferida. Meu cemitério ao centro do peito esconde suas aconteceu. Um dia e outro dia e nada de nada.
lápides em movimento. conhecer. Os seus livros erupções na profunda solidão. Continuava vivo, o que era sinal que presumi-
Escuto as conversas e a generosidade com Quantas vezes me disseram que os grandes escritores velmente o elixir estava a fazer efeito.
dos que ficam pela rua estavam mortos. É uma verdade que aumenta. Estes dias O Professor Z era a única cobaia e prova
quando levo o cão. Há que me receberam é o levaram dois homens que a sorte me deu o privilégio de da sua magnânima experiência. A sua vida
aflitos pela vizinhança, sentido da vida. Devem conhecer. Os seus livros e a generosidade com que me fazia-se de intangíveis dicotomias. Sabia que,
nas casas mais adiante. receberam é o sentido da vida. Que não se duvide da por mais anos que vivesse, os outros descon-
Ouço como se espera que estar no território ainda validade de existir, se temos de existir num mundo onde os fiariam do seu feito e diriam que ele havia
o Senhor dos Navegantes surpreso da morte a podemos ler. Mais ainda se os tivermos podido abraçar. De de morrer um dia. Sabia também que, caso
acuda. A praia segue algum modo, sei bem, regressei da fugaz vista do horizonte morresse, não testemunharia o fracasso da
limpa, diria, límpida,
discutir revelações como queria, devolvido a um recomeço. O que me encoraja a sua experiência. Como todos o outros, resta-
e alguns velhos deitam maravilhosas ter sempre tudo pronto para o melhor fim possível. J va-lhe viver. J
28 ↗
J 22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT
DIÁRIO
Manuela ou a ousada Gonçalo M. Tavaress
S
e eu estou bem? Claro que eu estou bem, não eu aqui com estes… Acreditas que o que eu tenho mais são médicos e
te preocupes comigo que estou ótima, a tra- enfermeiros de quarentena? E isto ainda nem começou a doer? Então não
balhar que nem uma mula como toda a vida é que com a Organização Mundial de Saúde a anunciar uma pandemia,
trabalhei que eu não sou menina de me refor- os meninos foram todos de férias no carnaval para Miami e para estâncias Ernst Jünger
mar mais cedo. Então eu não fiz medicina lá de ski e sei lá mais o quê? Tudo meninos de classe média como tu que
na União Soviética e não passei por Chernobyl querem ser ricos e marcam com sete meses de antecedência viagens que
e depois ainda estive na Jugoslávia? Ó filha,
isto é o que é, é o meu trabalho. Eu estou é
pagam a prestações para Miami, para as Caraíbas, querem ir fazer ski para
estâncias de luxo e resorts não sei o quê, parece que agora está muito na
Acidente, lentidão
preocupada contigo e com a tua filha, estão
juntas? E o pai da criança? E os teus pais andam a sair de casa? Deixa lá
moda fazer ski aqui no Alentejo. Agora voltaram de férias, e claro! Tive
de os pôr de quarentena, mas o que é que queriam? As pessoas foram
e velocidade
T
o teu pai ir comprar os jornais todos que quer, se não o homem dá em educadas assim, e isto tem de mudar. As pessoas até estão informadas,
maluco sem as suas notícias, ao menos lê jornais, não lê outras porcarias mas também sabem que vão perder o dinheiro das viagens e então vão, odos a vaguear entre saúde e doença
na net! Olha, eu cá não tenho tempo para ler nada, é uma miséria, mas porque acham que a elas não lhes acontece nada, então não ouviste falar - e cada leve sobressalto assusta-
também não te esqueças que eu já não tenho de aturar ninguém. Estou daquele casal estrangeiro que chegou de Milão e foi fazer o teste da Covid, -nos. A temperatura fiscalizada como
divorciada, a Catrian e o João já estão crescidos e lá nas suas famílias, e enquanto esperava pelos resultados meteu-se num autocarro para ir se fosse uma doida que pode fazer algo de
estão todos de boa saúde, e eu vivo para trabalhar, o meu trabalho é passar uns dias de férias à casa de verão que têm no Algarve? Mas então terrível a qualquer momento, uma entidade
mesmo assim, 18 horas por dia, mas quando chego a casa ninguém me esta não era a altura de ficar quietinho em vez de andar por aí a contami- autónoma. E a mais leve tosse acende tam-
chateia, é uma paz de alma. Aqueço uma sopa, ligo a rádio na Antena 3 nar toda a gente? Vai ter é de se rever muito bem isto tudo dos numerus bém o alarme; alarme tenso demais para ser
para ouvir a minha música clássica, ponho o alarme para daí a quatro clausus nas faculdades de Medicina. útil. Dá sinal a cada segundo; um obsessivo a
horas e durmo que é um consolo, acordo fresca que nem uma alface, dizer constantemente: atenção, atenção!
não faço mais nada em casa, qu’isso d’ouvir telejornais já desisti, já NOUTRO DIA ENTROU-ME AQUI UMA MÉDICA com ataques de Imagino um saudável a acordar a cada
não tenho idade para tanta parvoíce, não abro a televisão desde que vi pânico, a chorar e a dizer que tinha filhos, que tinha de ir para casa. E meia hora, a meio da noite, para confirmar se
aquele estafermo no telejornal dizer que os médicos andavam praí a nós aqui, com mais 30 anos do que vocês, a bulir 20 horas por dia sem ainda está saudável. Eis o processo de fazer
decidir quem é que morria e quem é que não, o parvalhão! Isso é o que nos queixarmos, então nós também não temos filhos? E os pacientes? loucos; eis o método sem falhas de fazer de
os médicos fazem toda a vida! Isto sempre foi duro! Também não? Eu até já tenho netos, e até estão muito lindos, tu já não um saudável, um doente. Se estiveres atento
Andamos aqui, a dar o nosso melhor, mas quando temos só um vens cá a casa há tanto tempo, tens de o ver que o puto mais velhos está demais à tua saúde ficarás enfermo, síntese.
ventilador, e à nossa frente um jovem de com muita graça. Vá, miúda, não te pre-
20 anos com família e filhos pequenos de ocupes comigo, está tudo nos conformes, Ernst Jünger em O Coração Aventuroso: a
um lado, e um idoso de 90 anos do outro, quem sabe se sobrevivermos a isto não “abundância de sintomas separa-nos dos doen-
o que é que fazes? Só se dizem dispa- ficamos melhor gente e com mais respeito tes como uma floresta inexpugnável: sabemos
rates. Os jornalistas deviam mas é ter uns pelos outros. Agora vou à padaria e muito pouco da saúde e demais das doenças.”
juízo, este bicho é um sacana, esta coisa é uma festa, tudo ali de luvinhas, sem Curioso que no sítio onde estamos não
é contagiosa com’ó raio, ainda ontem me aquelas porcarias daquelas pinças no- tem sido exatamente assim: uma doença
entrou aí um jovem dos seus 50 anos pelo jentas que tocavam em tudo, assim é que nova é isto: ao início, uma floresta que é
seu próprio pé no hospital a queixar-se é, digo eu à dona Marisa, sim, senhora, necessário rapidamente desbastar; fazer
que lhe doía a garganta, uma coisa leve. estou a gostar desta pandemia, e ela até se clareiras. Montar tendas provisórias e depois
Hoje está nos cuidados intensivos! Isto atira a mim e diz-me, ó doutora, como é casas lá no meio. A doença ser uma novida-
não é bonito. Sabes o que me apoquenta, que pode estar a dizer uma coisa destas? de, eis o que é estranho. Estamos habituados
Patrícia? É que a tua geração é muito mal Mas se a gente não se ri, morre de medo a doenças antigas, doenças velhas.
formada, desculpa dizer-te. Entraram e isto ainda acaba por nos limpar a todas
todos com dezoitos e dezanoves para a da face da Terra que há muito andamos Mas sim, há também uma ignorância em
universidade e sem um pingo de respeito a praticar o excesso. Andámos por aí a relação à saúde.
pelo juramento de Hipócrates! acharmos que éramos imortais e nisso, E, de facto, é o estado mais passageiro
também te digo, é verdade, nós, médicos, contribuímos muito para isso. possível, mais efémero: num segundo, a saú-
TENHO PARA AÍ NO PESSOAL UMA JUVENTUDE entre os 30 e os 50, Lidamos todos mal com a morte, é o que é. Queremos viver sem parar, de desaparece – se pensarmos, por exemplo,
altamente educados, estudiosos, bons profissionais e agora entram-me com pilhas no coração para ele continuar a bater, a tomar anticoagulantes na ocorrência de um acidente. Acidente
em histeria nos corredores e acham que não têm de estar aqui! Ainda para proteger os orgãos dos comprimidos que nos põem outras partes do como doença súbita, doença que ocupa um
ontem pedi para uns quantos irem fazer uns testes lá na pneumologia, corpo a funcionar. Não é por nada, mas não achas graça que a nossa últi- corpo num segundo; faz um assalto. Por isso
sim, porque nós temos pacientes que entraram aqui antes disto tudo ma grande discussão no parlamento tenha sido sobre a eutanásia? É que se fala de acidentes vasculares, de acidentes
e não foram testados, pedi-lhes para fazer lá a zaragatoa, que é o teste o vírus agora não dá direito de escolha a ninguém, chegou aqui e disse: cardíacos. Não há aproximações, não se vê
que nós fazemos à garganta e ao nariz para ver se apanhamos o bicho quem escolhe agora sou eu! a doença chegar vinda de longe. Quando
antes dele entrar pelo organismos a dentro, e então não é que uma das Vá filha, bebe muita águinha quente e descalça os sapatos antes de chega está tão perto que já está dentro.
médicas mais novinha desatou aos gritos a dizer “ela está contamina- entrares em casa, não andes para aí a querer salvar o mundo com isto Depois de chegar, a doença não se evapora
da, ela está contaminada, eu tenho filhos eu não tenho de estar aqui”? e com aquilo, que o mundo quer é paz e sossego. E mudar de ciclo. E de um momento para o outro. Para pena nossa,
Ó, Patrícia, são poucos os casos, certo, a maioria da malta sabe ao que avançar. não há um acidente invertido, um acidente
vem, fomos treinados para isto, mas há estafermos da tua idade que só Isso do Jacques ter morrido por causa do Covid é uma merda, mas é o bom, um milagre. O acidente é súbito, a doen-
de pistola na nuca veem trabalhar! Já sabes como eu sou, não é? Eu falo que é, vai-nos chegar a todos, obrigada por me teres telefonado a dizer. ça vai aparecendo aos poucos e a cura tem pelo
assim, que eu não tenho tempo para falinhas mansas, isso é lá para os Era um homem bom, esteve os últimos dez anos da sua vida a cuidar da menos a lentidão da doença lenta. J
políticos que ainda não perceberam que o vírus não está cá a contar com Laura que tinha esclerose múltipla para agora morrer sozinho, louco de
as sondagens para as suas eleições. desgosto com a morte da mulher, e num puto de um lar. Quando isto
Lembro-me muitas vezes da tua irmã, que tentou entrar quatro acabar, que não vai acabar nunca, vens passar um fim de semana cá a
vezes para Medicina e faltava-lhe sempre uma décima, agora fazia ela cá casa, sim? Tu também levas uma vida louca e qualquer dia dás cabo do
falta, em vez de estar para lá no Cacém a dar aulas de hidroginástica, o teu fígado também. Vá, descansa, prometo que no primeiro minuto livre
que também é ótimo, mas não é o que ela queria. E enquanto isso fiquei te volto a telefonar. J
Nº 280 * 22 de abril a 5 de maio de 2020
Suplemento da edição nº 1293, ano XL,
do JL, Jornal de Letras, Ar tes e Ideias
com a colaboração do Camões, I.P.
Dia Mundial da
Língua Portuguesa
Pág. 3
Plano de Incentivo
à Leitura da rede EPE
MICHELLE ALVES DE LIMA
Pág. 4
2 CAMÕES
↗
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT
em Maputo, e na 1.ª edição da residência para 1.071 bibliotecas do PIL para a rede EPE e 2018); e 1.887 participações de professores, FAX. 351+213 143 987
escritores, jornalistas e críticos em Língua pontualmente para outros destinos. registando-se um aumento de 17,5% em www.instituto-camoes.pt
Portuguesa Talent Press Rio, em 2016, no Brasil. Foi Quanto às atividades, as Coordenações de relação ao ano anterior (1.606 participações jlencarte@camoes.mne.pt
coprodutora do Festival Internacional de Poesia e Ensino Português no Estrangeiro registaram de docentes em 2017-2018 e 2018). PRESIDENTE Luís Faro Ramos
Artes Performativas Poetas d’Alma, realizado em 1.110, observando-se um aumento de 5,1% Já o número de visitas de escritores à COORDENAÇÃO Vera Sousa
2019, em Maputo. em relação ao ano anterior (foram 1.056 rede EPE desceu ligeiramente: em 2018- COLABORAÇÃO Carolina Freitas
Paulo Pedroso Rui Pacheco
Para a emergência de saúde Uma Escola Virtual
não se tornar uma crise educativa p. 3 a 5 para 700 mil alunos p. 6
J educação
Nº 1293 * Ano XL * 22 de abril a 5 de maio de 2020 * Diretor José Carlos de Vasconcelos
João Costa
Combater as desigualdades
envolvendo todos os responsáveis
“Há dois princípios de que não abdicamos: manter a sinalização e acompanhamento dos casos de crianças
em abandono ou em risco de abandono e manter ativas as medidas de apoio que as escolas tinham
(para combater as desigualdades)”, diz o secretário de Estado Adjunto e da Educação, em entrevista
ao JL/Educação, a propósito das decisões e medidas tomadas pelo Governo nessa área na sequência
e em consequência da Covid-19, que levou designadamente, na parte final do 2º período, a acabar
com as aulas presenciais nos vários graus de ensino
D
Desde o início do primeiro governo
de António Costa que é secretário
de Estado da Educação, integrando
Esta foi uma mudança
radical e, por isso, deve
haver colaboração
com a escola e os
professores, em vez
de um constante
lamentar pelo que
não está a correr bem.
Perguntemo-nos: o
a equipa do ministro Tiago Brandão
que posso eu fazer para
Rodrigues. Isso quer dizer que João correr melhor?
Costa, 47 anos, vai para cinco que
tem responsabilidades importantes
naquele ministério, considerando
designadamente o seu percurso de fazer provas de ingresso para o
PEDRO PINA
ENTREVISTA
recebido orientações para garantir os alunos, segundo as condições a construir instrumentos de apoio
que o contacto não se perde e têm económicas e sociais das famílias? para as escolas.
vindo a estabelecer parcerias com as Como disse, e repito, esse é o
mais variadas entidades para garantir principal foco de preocupação e no Por que motivo se avança com a
esse contacto e o melhor acom- qual concentramos agora a nossa possibilidade de aulas presenciais
panhamento possível do terceiro ação em conjunto com outras áreas para alunos do 11.º e 12.º e apenas
período. Esta é uma área que precisa do Governo. Tínhamos a decor- para eles?
de mobilizar todos. rer vários programas que visavam Porque, como referi, eses alunos
combater os efeitos do contexto estão em processo de conclusão
Que balanço faz da curta experiência socioeconómico das famílias, como e têm o acesso ao ensino superior
de ensino à distância durante o final o Apoio Tutorial Específico, o reforço dependente da realização das provas
do segundo período? O que deve e de psicólogos escolares, muitas das de ingresso.
pode ser melhorado? medidas desenvolvidas no âmbito do
Antes de tudo, devemos dar uma Programa Nacional para a Promoção Até que ponto será possível 'mitigar'
palavra de agradecimento e louvor do Sucesso Escolar, a estratégia para a ausência de aulas presenciais?
à atuação dos professores. Poucos as comunidades ciganas, apenas Eu não acredito em sistemas edu-
sistemas responderam tão agilmente para dar alguns exemplos. cativos exclusivamente remotos,
como o nosso. Na generalidade dos A proximidade é crítica nestes sobretudo nas idades entre os 3 e
casos, passados dois dias do encer- programas, porque a escola e a socia- os 18 anos. Podem apresentar-se
PEDRO PINA
ramento das escolas, já tínhamos lização que promove são chaves para novos conteúdos, explorar novas
alunos a trabalhar remotamente com a integração e a inclusão. Sabemos potencialidades, mas a essência
a maioria dos professores. Foi uma que vários alunos só vêm à escola do ato educativo é a relação que se
resposta rápida, com esforço enorme porque há pressão sobre as famílias, “Estudo em Casa, aulas à distância no canal da RTP Memória” estabelece entre pares, entre profes-
dos professores. O que estamos por exemplo, para a manutenção sores e alunos. A boa aprendizagem
a pedir-lhes compara-se ao que de vários apoios sociais. Há dois requer relação e empatia. Nenhuma
seria recuar uns anos e pedir a um princípios de que não abdicamos: máquina substitui isto. Por isso,
tipógrafo que em dois dias come- manter, através das CPCJ, a sinali- das desigualdades em todos os seto- programas que funcionam sequenci- nunca concordo com os que veem
çasse a usar métodos sofisticados zação e acompanhamento dos casos res, sendo algumas muito invisíveis. almente e de modo autónomo e que este momento como a possibilidade
de impressão sem ter tempo para de crianças em abandono ou em Por isso, é preciso um grande com- constituem recursos pedagógicos de pensar o que pode ser a educação
se preparar. Por ser rápida e ágil, risco de abandono e manter ativas promisso de toda a sociedade para complementares ao trabalho que os no futuro. Para bem do desenvol-
manteve a ligação, mas como em as medidas de apoio que as escolas que elejamos o combate às desigual- professores fazem com os alunos. vimento integral dos jovens, espero
tudo há sempre aspetos a melhorar. tinham, tendo nós convidado as dades como prioridade. Estes recursos do #EstudoEmCasa que estejam profundamente errados.
A concentração numa só plataforma, Equipas Multidiscplinares de Apoio à são disponibilizados diariamente
a variedade de atividades propostas, Educação Inclusiva a desenvolverem Foi possível preparar professores e e foram produzidos por sabermos Prevê-se alguma forma de
a capacidade de centrar muito do estratégias específicas de manuten- escolas para esta nova realidade? que há alunos que não têm forma compensar possíveis lacunas de
trabalho no aumento da autonomia ção dos apoios existentes. A dimen- Nenhum sistema educativo estava de aceder via internet. Mas não aprendizagem - e como avaliá-
dos alunos, a reorganização dos tem- são comunitária é aqui essencial. preparado para esta mudança funcionam por si só. Por isso, as las?... - durante o próximo ano?
pos de trabalho. Tudo isto são aspetos abrupta. As escolas e os professores escolas integram-nos no seu plano Sim. Conforme anunciado pelo
em que temos vindo a dar apoio às A dimensão comunitária? estão a dar o seu melhor e nós, com de educação à distância e, de forma primeiro-ministro, todas as soluções
escolas. Também sabemos de casos O aumento das desigualdades será muitos parceiros e especialistas em muito particular, no trabalho que deste ano têm impacto no próximo
em que nada aconteceu ou em que o tanto mais combatido e minorado educação a distância, a disponibili- fazem na área dos planos específicos ano letivo, que preverá medidas de
trabalho se limitou ao envio de fichas quanto houver um envolvimento de zar recursos e formação. Mas, como para trabalharem com os alunos que recuperação das aprendizagens.
por email. Mas devemos sempre todos os responsáveis: autarquias, é evidente, esta adaptação requer têm conectividade reduzida.
ter bem presente que esta foi uma segurança social e todas as estrutu- tempo, porque os métodos são A Comissão Nacional de Protecção
mudança radical e, por isso, deve ras que, localmente, prestam apoio diferentes, o papel dos professores, Porque não abrange o Ensino de Dados alertou para possíveis
haver colaboração com a escola e os aos alunos e estruturas de suporte dos alunos e dos encarregados de Secundário, as aulas são mistas e de perigos do ensino à distância para a
professores, em vez de um constante às famílias. Vale a pena ler o artigo educação altera-se. Por isso, a nós, apenas 30 minutos? privacidade de alunos e professores.
lamentar pelo que não está a correr “Máquinas de Desigualdade” que o no Ministério da Educação, compete Privilegiou-se o Ensino Básico, por Entende que existem e, caso
bem. Perguntemo-nos: o que posso Rui Pena Pires publicou há dias. O dar recursos e formação, mas tem de duas razões: o número de alunos positivo, há forma de os anular ou
eu fazer para correr melhor? confinamento tem faces no aumento haver muita interajuda e intercom- sem equipamento e conectividade é minorar?
preensão face a esta mudança tão muito inferior no Ensino Secundário Trabalhamos em conjunto, nas
Como tentará o Ministério da brusca. Vale a pena lembrar que há face ao Básico e também porque o últimas semanas, com a Comissão
Educação minorar a impossível formação em ensino à distância há número de disciplinas do Ensino e com o Centro Nacional de
universalidade do ensino em cerca de 30 anos, por isso temos Secundário, consideradas todas as Cibersegurança, tendo sido possível
condições mínimas, atendendo à muitos professores capacitados e vias e cursos, nunca conseguiria enviar às escolas recomendações e
percentagem de alunos que não têm formados, que assumem um papel ser construída numa grelha única. orientações para diferentes plata-
acesso a um computador e/ou à Há dois princípios de muito importante nas suas escolas. Falamos de centenas de disciplinas e formas e meios de comunicação que
internet - e alguns, se calhar, nem à que não abdicamos: opções. A forma de organização que anulam e minoram esses riscos.
própria televisão? Então que medidas tomou ou vai concebemos assenta numa lógica
O Governo tem, no seu programa,
manter, através das tomar o ME para que a qualidade de gestão do currículo por ciclos. A Será que a situação que se vive no
um plano de transição digital com um CPCJ, a sinalização e do ensino à distância não esteja duração segue as recomendações país e na educação poderá/deverá
foco grande na educação. Este pro- só dependente da capacidade do que são tempos de atenção em suscitar alguns pontos de reflexão
grama estava em marcha e continua.
acompanhamento dos tecnológica da escolas e professores, ensino remoto. e contribuir para a construção, no
Neste momento, demos prioridade a casos de crianças em ou de cada escola e professor? futuro, de uma escola melhor?
alunos com deficiência, mas contamos abandono ou em risco Para além do reforço de formação, Como serão feitas as avaliações do Em todas as áreas, tiraremos lições.
com inúmeros parceiros que estão a temos em curso um sistema de alunos? Haverá testes? No caso concreto da educação, há
fornecer e a fomentar o empréstimo e de abandono e manter monitorização do trabalho realizado As metodologias e instrumentos de aspetos fundamentais que já se
recondicionamento de equipamentos. ativas as medidas de pelas escolas, para que consigamos, avaliação em sistemas remotos são sentem. Espero que as famílias valo-
As escolas também disponibilizaram em conjunto com as direções, ir sempre distintos dos instrumentos rizem cada vez mais os professores.
equipamentos que neste momento apoio que as escolas respondendo às necessidades iden- presenciais. Um teste “clássico” é Espero que os alunos percebem que
não estão a ser utilizados. As operado- tinham (para combater tificadas. um instrumento que pressupõe uma é melhor ir à escola do que ficar so-
ras têm vindo a aumentar os pacotes forma de organização presencial. zinho. Isto mostra-nos a importân-
de dados disponíveis. Há muitas as desigualdades) Qual é, e em que se distingue do Felizmente, as escolas já têm uma cia fundamental das competências
equipas concentradas neste traba- antigo, o modelo da nova telescola? prática muito consolidada, tendo até sociais e emocionais na educação.
lho, mas é preciso entender que uma Funciona em regime obrigatório ou acelerado desde a implementação da Obviamente temos um acelerar de
aquisição desta monta não se faz em É preciso um grande cabe a cada professor definir a sua autonomia e flexibilidade curricular, métodos de ensino através de meios
semanas, até porque há, atualmente, compromisso de toda estratégia de ensino? de construção de instrumentos de digitais e de diversificação de formas
roturas de stocks e dificuldades de A telescolas dos anos 60 aos 90 foi avaliação mais diversificados. A pro- de estudo. Sobretudo, o horrível
abastecimento.
a sociedade para que um recurso importante, mas não dução textual, a apresentação oral, acelerar das desigualdades deve tor-
elejamos o combate às funcionou num regime de confina- as práticas simuladas, o debate em nar-nos ainda mais conscientes de
E o que poderá ser feito para minorar mento. Os alunos reuniam-se em plataformas, entre muitos outros, que não há educação se o principal
também o inelutável aumento das
desigualdades como grupo, com um professor monitor. constituem instrumentos fiáveis de foco dos sistemas educativos não for
desigualdades já existentes entre prioridade O que temos agora é um conjunto de avaliação. Também aqui estamos a inclusão. J
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT EDUCAÇÃO 3 ↗
PERSPETIVAS
Educação em período
acesso ao ensino superior e não ne-
gando que há um problema de acesso
dos alunos aos conteúdos pelos meios
de difusão online em que se apostou na
de confinamento
resposta imediata.
Podemos apontar o dedo à década
perdida por se ter acabado com o Plano
Tecnológico para a Educação ou ir
mais longe e interrogarmo-nos porque
deixámos silenciosamente definhar
nos serviços centrais do Ministério da
Para que uma emergência de saúde ção para o acesso básico aos conteú-
dos foi realista. A opção por difundir
momentos de apoio ao estudo, pela
PERSPETIVAS
PERSPETIVAS
ENTREVISTA
Rui Pacheco
como tal, as soluções que desenvol-
vemos, os recursos que criamos, a
forma como nos articulamos, decorre
do feedback da comunidade esco-
COLUNA
PEDRO PINA
Os dias em que o horário de
trabalho praticamente duplicou Sucederam-se algumas intervenções
foram a regra, assim como o ritmo da tutela que indiciaram que, afinal,
e intensidade em que decorreram, um rumo estaria em preparação Estudo em Casa Imagem dos bastidores da nova Telescola
na tentativa de colocar em funcio- e que algumas das preocupações
namento em poucos dias o que o em presença poderiam estar a ser
Estado não conseguiu fazer durante consideradas para minorar as desi-
anos. Recorrendo aos seus equipa- gualdades e não deixar uma parte possível verificar que opções tinham anos. A lacuna mais inesperada é duas décadas, é a não diferenciação
mentos domésticos, professores e significativa dos alunos para trás. sido tomadas na elaboração desta a não inclusão de qualquer seg- de tempos específicos para a área das
alunos fizeram os impossíveis por Surgiram algumas que dificilmente variante de currículo digital para mento destinado às Tecnologias de Expressões, nomeadamente para a
erguer uma rede público-privada poderiam ser tomadas a sério, outras os novos tempos. E até que ponto a Informação e Comunicação quando Educação Musical, a Educação Visual
de ensino à distância, enquanto os com algum potencial, como o re- razoável pompa de algumas declara- o que está em causa é exatamente ou a Educação Tecnológica. Embora
decisores políticos demoravam a curso a um canal televisivo em sinal ções de intenções. um modelo que se pretende basear um dos pilares do Perfil dos Alunos
discutir o que fazer, o que recomen- aberto para atingir o maior público Quero deixar bem claro que con- nelas. E quando se vai constatando à Saída da Escolaridade Obrigatória
dar, colocando em linha num site de possível, complementando as “aulas sidero que esta tarefa está longe de que os alunos, muito funcionais seja o da “Sensibilidade Estética e
“apoio às escolas” de forma pouco não-presenciais” desenvolvidas ser fácil e que é um esforço meritório em ambientes digitais lúdicos e/ou Artística” o que se encontra neste
crítica uma série de recomendações pelos professores com os alunos por parte de todos os que vão asse- sociais, revelam muitas dificulda- novo currículo digital são dois seg-
de ferramentas digitais, raramente com recursos para as acompanhar. gurar o seu funcionamento, muito des quando é necessário irem além mentos semanais comuns a todos os
desconhecidas pela generalidade dos Em comum a insistência de que a em especial quem aceitou gravar o disso. Os primeiros dias foram ocu- alunos do 1º ao 9º ano.
docentes. Ao mesmo tempo surgiam solução vai permitir avançar com que serão estas “aulas” para consu- pados, horas seguidas, a esclarecer A forma como a área artística das
as mais diversas sugestões de pla- novas aprendizagens e que o tra- mo público. Mas também não quero dúvidas sobre como gerir palavras- Expressões volta a ser menorizada é
taformas, programas e aplicações balho dos alunos no 3º período será deixar de sublinhar que esta é uma -passe em segurança, escrever de coerente com o modo como o currí-
para a operacionalização do ensino necessariamente avaliado. O que é espécie de exame ao que muitos não forma adequada endereços de mail, culo, que se afirma pretender que os
à distância, sem que se conhecesse altamente questionável, porque a hesitaram apresentar como o futuro entrar em plataformas com códigos alunos desenvolvam competências
verdadeiramente um rumo a seguir. equidade está longe de ser garantida, inevitável de uma “nova Educação”, que deveriam estar guardados ou estéticas e humanistas, tem mal-
Foram dias de alguma autono- mesmo que o novo modelo funcione pois foram muitas as declarações na memorizados ou a fazer a distinção tratado em todas as mais recentes
mia, mas nem sempre de grande de forma satisfatória. comunicação social quanto ao facto entre um hífen e um underscore. reformas as disciplinas ligadas às
coerência. Foram umas duas ou três Após alguma expectativa, co- da pandemia ter sido o “empurrão” Quem cometeu o erro de usar Artes e Humanidades, como se
semanas em que, por uma vez, se nheceu-se a programação do que foi necessário ou indispensável para que grupos do WhatsApp para estabele- fossem uma espécie de resquício de
assistiu a uma descentralização efe- apresentado na comunicação social se saísse da “escola do século XX” cer uma linha imediata e rápida de um passado arcaico, sem interesse
tiva das soluções locais para manter como sendo a “nova telescola”, para uma nova lógica no ensino por- comunicação com os alunos, viu-se para o futuro digital e cibernético.
a Educação em funcionamento. E transmitida na RTP Memória a partir tuguês e para novas metodologias de obrigado a desativar o som das A Filosofia foi truncada no Ensino
em que se foram identificando os de 20 de abril. Em paralelo, foram trabalho. notificações ao fim de pouco tempo, Secundário, a História e a Geografia
principais problemas de uma solução criados canais no Youtube com aulas E esse exame deve ser feito, em ao perceber que os “horários” para passaram a ser servidas, por quem
digital que entusiasmou muito os pré-gravadas e destinadas a discipli- meu entender, pelo menos em duas enviar dúvidas ou comentários, assim entende, em fatias semes-
promotores de uma “Educação nas dos vários níveis de ensino. E foi vertentes: a da conceção geral do nem sempre muito propositados, trais no 3º ciclo do Ensino Básico. A
para o século XXI”, mas que num currículo e da sua concretização não respeitam nenhuma parte do Educação Musical está reduzida a
país como o nosso, com fortíssimas prática nas tais aulas guiadas por dia ou noite. Para quem fez isso com dois tempos semanais e restrita ao 2º
assimetrias económicas, conduz de novas metodologias do trabalho duas ou mais três turmas começou ciclo do Ensino Básico e quem a qui-
forma quase inevitável ao agrava- pedagógico. Enquanto se conhece a amaldiçoar o momento em que ser explorar terá de recorrer a insti-
mento das desigualdades no acesso uma amostra ainda muito reduzida comprou o smartphone. Pelo que tuições exteriores ao ensino público,
a uma Educação de acesso universal de “aulas” (colocadas no Youtube, uma das prioridades deveria ter sido A Educação Visual e Tecnológica foi
em igualdade de oportunidades. Têm maltratado as inicialmente quase só a partir de a da inclusão de aulas para desen- desmembrada no 2º ciclo e agora as
Ao mesmo tempo, foi-se alertan- disciplinas ligadas às recursos da Khan Academy) que volver as competências dos alunos suas componentes desaparecem,
do para o perigo da utilização pouco pouco se distinguem do modelo em ambientes ditais de tipo educati- enquanto disciplinas autónomas, da
informada de plataformas ou apli- Artes e Humanidades, presencial, já se conhece a grelha vo, não chegando aceder à primeira versão televisiva/digital do currículo
cações de uso simples, mas muito como se fossem da programação semanal da RTP página do doutor google ou à página do Ensino Básico.
frágeis em termos de cibersegurança Memória do oficialmente designado da doutora wikipédia. Se estes são sinais do que será
e de proteção dos dados dos utiliza-
resquício de um #EstudoEmCasa. Uma segunda lacuna, que acho um futuro currículo para os tempos
dores. Porque nem toda a emer- passado arcaico, sem E são notórias as lacunas, umas igualmente grave, mas está em linha digitais, são péssimos sinais para
gência justifica que se prescinda do inesperadas, outras em linha com a com a erosão do papel das Artes todos os que querem uma verda-
direito à privacidade ou se corram
interesse para o futuro forma como o currículo para o sécu- e Humanidades no currículo do deira Educação Integral das novas
perigos desnecessários e as notícias digital e cibernético lo XXI tem sido tratado nos últimos Ensino Básico ao longo das últimas gerações. J
8 EDUCAÇÃO
↗
22 de abril a 5 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT
N
› AU TO R R E T R ATO DE PROFESSORA‹ zação de uma ação, a ação final do
projeto, pretendeu-se que os alunos
compreendessem mais facilmente o
funcionamento da democracia e do
Estado.
Dos alunos ficam as seguintes re-
flexões que serviram para me indicar
o caminho certo. O único caminho.
Que Escola? Para que sociedade?
Queremos uma escola que dê voz aos