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Ulysses Pinheiro
UFRJ/CNPq
1- A intuição lockeana
espontâneas, de modo não propriamente a ‘comprovar’ tais experimentos, mas pelo menos
a tentar ‘controlá-los’ através de um elemento externo às teorias sobre a identidade pessoal.
Tendo em mente essa ‘intuição lockeana’, poderemos examinar algumas das críticas
que foram dirigidas contra a teoria de Locke, e que afetam, por isso mesmo, a intuição que
lhe serve de base. Antes disso, porém, examinemos mais de perto o modo como a teoria é
formulada pelo próprio Locke. No § 9 do Capítulo 27, Locke propõe uma definição
preliminar e intuitiva de pessoa (a qual ele tratará, posteriormente, de mostrar que não é
uma definição arbitrária). Segundo essa definição inicial, uma ‘pessoa’ é
“um ser pensante inteligente, que tem razão e reflexão e que pode
considerar-se a si mesmo como si mesmo, a mesma coisa pensante em
diferentes tempos e lugares, o que ele faz apenas através daquela
consciência que é inseparável do pensamento e, ao que me parece, lhe é
essencial”.
Dessa definição inicial de pessoa, Locke conclui que a identidade pessoal, não sendo
nada além do que a identidade de um mesmo ser racional ao longo do tempo, consiste
apenas na relação de certas percepções passadas a percepções presentes, através da
memória:
“tão longe quanto essa consciência pode ser estendida para trás em
direção a qualquer ação ou pensamento, tão longe alcança a identidade
daquela pessoa”.
las com certeza a uma mesma entidade1. Ao invés de substancial, a identidade pessoal tem,
segundo Locke, um caráter relacional: ela não é nada mais do que a visada de uma
experiência passada por uma memória atual ou possível, o que é perfeitamente compatível
com a existência de mais de uma substância (pensante ou extensa) servindo como suporte
da experiência passada e da memória atual ou possível. Radicalizando o argumento: pode
ser que aqui e agora substâncias estejam se sucedendo umas às outras, cada uma delas
servindo de suporte a meus sucessivos estados de consciência, sem que tal variação
numérica implique que eu seja muitas pessoas. Eu sei que sou uma só pessoa, aquela
mesma que começou a ler esta frase há cinco segundos atrás, mesmo que uma substância
diferente esteja ligada a cada palavra sucessiva da qual tenho consciência ao longo desta
leitura. A permanência substancial não é uma condição necessária nem suficiente da
identidade pessoal.
Vemos que, apesar de seu vocabulário relativo aos conceitos de conhecimento e
certeza, a teoria de Locke não é exclusivamente (nem prioritariamente) epistemológica, ou
seja, não se trata propriamente de aferir o grau de certeza das proposições pelas quais
atribuímos identidade pessoal, mas é antes uma teoria ontológica: trata-se de expor em que
uma pessoa consiste. Pessoas não são substâncias, mas relações entre estados mentais, quer
esses estados sejam inerentes a uma ou a mais de uma substância. A referência ao
vocabulário epistêmico explica-se em grande parte pelo fato de que a definição inicial de
‘pessoa’ é, como vimos, a de um ser para quem o saber de que é idêntico a si mesmo é
constitutivo de sua própria identidade, uma vez que seu modo de ser é o de ser consciente
de si mesmo e o de ser racional.
2- A crítica de Butler
1
Este argumento pode parecer estranho para os leitores de hoje, os quais estão prontos a aceitar que nossa
mente tem partes semi-independentes e que algumas dessas partes são inconscientes, o que os faz suspeitar de
teses que supõem uma transparência perfeita da consciência a si mesma. Locke não considera nesse momento
a hipótese segundo a qual poderíamos nos enganar mesmo nesses casos de auto-atribuição consciente, ou seja,
segundo a qual nem tudo que é consciente é verdadeiro relativamente a nós mesmos. Mas não será esse o
problema da teoria lockeana que nos interessa examinar neste artigo.
5
lockeana não dá uma condição suficiente da identidade pessoal. Essa crítica foi formulada,
ainda no século XVIII, por Butler2. Ele afirma:
“A consciência da identidade pessoal pressupõe e, portanto, não pode
constituir a identidade pessoal, não mais do que o conhecimento, em
qualquer outro caso, pode constituir a verdade, a qual ele pressupõe”.
Devemos entender exatamente sobre o que incide essa crítica. O próprio Butler
afirma que a memória de eventos passados é suficiente para fundamentar uma auto-
atribuição verdadeira de identidade, mas que não é necessário que lembremos de todos os
acontecimentos de nossas vidas para sermos as mesmas pessoas ao longo do tempo.
Pareceria, então, que o que essa crítica visa, na análise definicional da atribuição de
identidade pessoal, é o fato de a memória ser uma condição necessária, e não o fato de ela
ser uma condição suficiente dessa identidade. Mas, examinando melhor a questão, vemos
que é o oposto que ocorre: o que a crítica de Butler visa é o fato de a memória ser uma
condição suficiente da identidade pessoal. Só podemos afirmar que a memória de uma
experiência é uma memória verdadeira daquela experiência (contrastando-a, por exemplo,
com uma memória “implantada” por hipnose) se supusermos que se trata de uma
experiência vivida pela mesma pessoa que tem a memória <– E É APENAS NESSE
SENTIDO QUE ELA SE TORNA UMA CONDIÇÃO SUFICIENTE– e é apenas nesse
sentido que ela se torna uma condição suficiente>. O critério de Locke não nos daria uma
condição suficiente da identidade por ser circular.
Entendamos bem em que consiste a objeção de insuficiência e de circularidade.
Assim como ocorreu na formulação da intuição lockeana mais acima, a objeção de Butler
não deve ser interpretada a partir de um vocabulário prioritariamente epistêmico.
Epistemicamente, é claro que é possível supor que as memórias aparentes de experiências
passadas não estejam realmente conectadas às experiências que elas pretensamente
representam. Como ocorre com todo critério ‘fenomenológico’, formulado em primeira
pessoa do singular e que pretenda ultrapassar o domínio do que é dado imediatamente pelo
próprio fenômeno, o critério da memória pode ser enganador, por não ser possível
representar, como um dos conteúdos fenomenológicos da experiência, o nexo causal que
gerou aquele fenômeno. É possível que algumas coisas que penso lembrar sejam na verdade
2
Em The Analogy of Religion, cuja primeira edição é de 1736. Cito o texto de Butler a partir da coletânea
editada por Perry [1975], p. 100.
6
ilusões, representações falsas de experiências que nunca tive. Talvez alguns de nós
aceitássemos até mesmo que é logicamente possível que todas as nossas memórias sejam
falsas, como Descartes propõe no início de sua ‘Segunda Meditação’. A única maneira de
discriminar entre memórias falsas e verdadeiras parece ser conhecer, de modo independente
daquilo que é percebido como o conteúdo fenomenológico da memória, que as memórias
verdadeiras estão conectadas a experiências que eu realmente tive no passado. Mas essa
resposta supõe que haja um acesso cognitivo à identidade de uma pessoa que seja
independente da memória para estabelecer a verdade das atribuições de identidade pessoal
e, portanto, para distinguir a memória real da memória aparente, o que mostra que o
conteúdo fenomenológico da memória não é, por si só, uma evidência suficiente para tais
atribuições de identidade pessoal.
Mas a objeção de Butler não se limita a esse aspecto epistêmico, embora o inclua. O
que ela visa é a pressuposição ontológica de identidade pessoal para que seja possível
caracterizar uma memória como real.
3- A resposta de Locke
Porém, tanto em sua versão epistêmica quanto em sua versão ontológica, a crítica de
Butler pode, a meu ver, ser refutada usando-se apenas os elementos da teoria de Locke ou,
no máximo, de sua teoria acrescida de uma tese complementar, inteiramente compatível
com o resto da doutrina. Quanto ao fato de que a memória não é uma condição suficiente
do ponto de vista epistêmico, o próprio Locke o admite, se não nos casos positivos, nos
quais há lembranças3, pelo menos nos casos negativos, quando faltam lembranças, como
vemos neste trecho do Cap. 27 no qual alude a Paulo, Coríntios I, 14: 25, sobre o dia do
juízo final:
“Mas no grande Dia, quando os segredos de todos os corações deverão
ser revelados, é razoável pensar que ninguém deverá responder por aquilo
do qual nada sabe...”4
3
Nesses casos, a memória é, para Locke, uma condição suficiente da auto-atribuição de identidade pessoal,
pois, como vimos, a consciência fornece dados imediatamente certos e indubitáveis sobre o que se passa
‘dentro’ de nós.
4
Ensaio, Livro II, Cap. 27, § 22.
7
Ou seja, do ponto de vista de Deus há uma resposta definida sobre o que somos, o
que pode nos ser revelado um dia – no Grande Dia – pela graça divina. O conteúdo
fenomenológico da memória não é, segundo o próprio Locke, um critério epistêmico
suficiente para a negação segura de atribuição de identidade pessoal, pois é possível que
não nos lembremos do que realmente fizemos – como no exemplo em discussão no trecho
citado acima, no qual um homem bêbado comete um crime do qual depois se esquece
completamente –, de tal modo que não é legítimo inferir, da ausência de memória5, que há
condições suficientes para afirmarmos que sabemos que não fizemos aquelas coisas de que
não nos lembramos nem que sabemos que não somos a mesma pessoa que praticou tais
ações.
Tampouco do ponto de vista ontológico a crítica de Butler é fatal. Como vimos, essa
crítica é a de que uma idéia da memória só pode ser caracterizada como real e verdadeira se
supusermos a permanência da mesma pessoa que tem tanto a memória quanto a experiência
à qual ela se refere. Segundo Butler, apenas a permanência de uma mesma substância
poderia garantir que as relações de memória sejam relações que pertencem a um mesmo
ente. Mas isso é simplesmente falso. Para mostrar a falsidade dessa tese, basta assinalar
dois pontos: (1)- em primeiro lugar, se houver uma relação causal entre uma experiência
passada e uma lembrança atual, de tal forma que o conteúdo da lembrança atual for
causalmente explicado pela ocorrência da experiência passada, podemos concluir daí (ou ao
menos: Deus pode conhecer) a realidade de uma mesma série de eventos mentais, formando
entre eles uma continuidade psíquica real sem que seja preciso supor a continuidade de uma
mesma substância. Caso seja objetado que a aplicação do conceito de lembrança atual e de
memória real pressupõem a atribuição de identidade, não podendo, portanto, ser usados em
uma definição de identidade pessoal, podemos responder eliminando qualquer menção à
5
Pelo menos não da ausência momentânea de memória. Mas e se houvesse uma ausência permanente da
memória? A discussão de Locke neste ponto concentra-se sobre a justiça da punição, e não sobre a questão
ontológica que nos interessa aqui. Ele poderia admitir que um indivíduo esquece completamente um certo
acontecimento sem que isso afete os juízos e o conhecimento que uma outra pessoa – no caso, Deus – faz
sobre a identidade desse indivíduo? Para decidir essa última questão, seria preciso antes saber até que ponto
deve-se aceitar a identificação entre ‘ser uma mesma pessoa’ e ‘ser consciente de si mesmo como uma mesma
pessoa’. Como vimos no início do texto, Locke parece supor que pelo menos a possibilidade da lembrança de
eventos passados é requerida para atribuições verdadeiras de identidade pessoal. Nesse caso, o esquecimento
completo implicaria a ausência de identidade, e não apenas do conhecimento, por parte do sujeito, de que há
identidade.
8
4- A crítica de Reid
6
Esses dois pontos foram desenvolvidos por Perry [1975], tanto na “Introdução” (pp. 3-30) quanto em seu
próprio artigo “Personal Identity, Memory, and the Problem of Circularity” (pp. 135-155).
7
Em seus Essays on the Intellectual Powers of Man, cuja primeira edição é de 1785.
9
resumido assim: suponha que um oficial, que realizou um ato de bravura na guerra, lembra-
se de, quando garoto, ter sido surrado por ter roubado maçãs. Mais tarde, já velho, ele é um
general que se lembra de ter realizado o ato de bravura, mas não se lembra mais de ter sido
surrado por roubar maçãs – ou melhor: ele não pode mais se lembrar de tal acontecimento,
pois, devido a sua idade avançada, perdeu parte de sua memória de fatos antigos (ou talvez
de certos fatos desagradáveis). Pela intuição lockeana, o oficial é a mesma pessoa que a
criança, e o general é a mesma pessoa que o oficial, mas o general não é a mesma pessoa
que a criança. Mas isso é absurdo; logo, a intuição lockeana está errada.
O que o contra-exemplo de Reid mostra é que a relação de identidade é transitiva,
enquanto que a relação de memória não é transitiva: embora, usando apenas o critério da
memória, devamos afirmar que o general é o oficial e que o oficial é a criança, não
podemos afirmar que o general é a criança. Mas a transitividade da identidade exige que
afirmemos tal coisa. Logo, se é logicamente possível imaginar uma situação na qual
devemos afirmar a identidade sem podermos afirmar a existência de memórias atuais ou
possíveis, a conclusão é que a memória não é uma condição necessária da identidade
pessoal, pois essa última pode ocorrer quando a primeira não ocorre.
8
Em seu artigo “The Soul”, in: The Journal of Philosophy, vol. 59, n° 15, julho de 1962.
10
pessoa se mantém como a mesma ao longo do tempo se e somente se houver uma memória
em um certo estágio temporal (3) de uma pessoa que se refira a uma experiência contida no
estágio temporal (2) de uma pessoa e, nesse mesmo estágio temporal (2), houver uma
memória de uma experiência ocorrida em um estágio temporal (1), e assim por diante.
Segundo essa reformulação da intuição lockeana, a memória direta de experiências
passadas, quer ela seja atual ou meramente possível, não é uma condição necessária para a
atribuição de identidade pessoal. Essa condição seria muito forte e restritiva, pois as
pessoas às vezes se esquecem, de forma irreversível, de coisas que lhes aconteceram, sem
que deixem, por isso, de ser as mesmas pessoas. (Deve-se notar que essa última tese não se
baseia em uma intuição pré-filosófica sobre a natureza das pessoas, o que não seria um
argumento válido contra Locke, que justamente pretendia reformar essas intuições do senso
comum, mas se baseia, antes, no Paradoxo do Oficial Corajoso). Sendo assim, para sermos
a mesma pessoa; bastaria que nossos estados mentais estivessem conectados por relações
sucessivas de lembranças, sem que houvesse nenhuma lembrança que devesse percorrer
toda a série.
Mas esse critério de identidade pessoal também enuncia uma condição necessária
muito forte. Isso fica claro quando examinamos uma variação do Paradoxo do Oficial
Corajoso proposta por Perry9, denominada por ele de Paradoxo do General Senil. Os
personagens são os mesmos da história anterior, mas a situação mudou: suponha que agora
nosso general lembra-se de ter sido surrado por roubar maçãs quando criança, e que o
oficial lembra-se desse mesmo fato de sua juventude, mas que o general senil não se lembra
de seus atos de bravura quando oficial, e, de fato, não se lembra de nada que lhe ocorreu
desde que se tornou oficial. Pela relação de ‘ser um ancestral da memória’, o general é a
criança e o oficial é a criança, mas o general não é o oficial, o que é absurdo, pois dois não
pode<M> ser um, ou seja, a relação de transitividade da identidade novamente não é
respeitada por essa reformulação das condições necessárias da identidade pessoal.
Na época da publicação do artigo de Quinton citado acima, Grice 10 já havia proposto
uma reformulação da intuição lockeana, de modo a enfraquecer ainda mais a enunciação
dessas condições necessárias. Segundo ele, ao invés da relação de ‘ser um ancestral de
memória’, que é, pelo menos tal como formulada por Quinton, um critério ainda muito
9
Cf. Perry [1975], p. 19.
11
restritivo, podemos elaborar um critério mais amplo, que poderia ser enunciado assim:
considere o estado temporal total de uma pessoa em um certo momento do tempo. Um
estado temporal total é um conjunto de eventos mentais que contém a totalidade do que se
passa na mente de uma pessoa em um dado estágio temporal de pessoa. Cito aqui a
reformulação proposta por Grice a partir do modo como ela é descrita por Perry11, pois esse
último a apresenta uma forma mais clara:
“Há uma seqüência de estágios de pessoas (não necessariamente na
ordem em que eles ocorrem no tempo, e sem excluir repetições), [....] tal
que cada estágio de pessoa na seqüência ou bem (i) contém, ou poderia
conter, uma memória de uma experiência contida na [seqüência] seguinte,
ou bem (ii) contém uma experiência da qual o próximo estágio de pessoa
contém uma memória, ou poderia conter uma memória”.
Vemos, assim, que Grice pode reconstruir a sucessão de eventos mentais que
constituem uma mesma pessoa usando a relação de ‘ser um ancestral de memória’ sem os
problemas da versão de Quinton, pois Grice pode reconstruir a série em um plano
puramente lógico, fora do tempo, de tal forma que, mesmo diante do Paradoxo do General
Senil, sua teoria pode dar conta da transitividade da identidade, construindo a série:
[criança –oficial – criança – general]. O termo ‘criança’ aparece duas vezes, e sua segunda
aparição não se dá na ordem cronológica dos eventos, mas a série é apenas uma construção
lógica que nos mostra como eliminar o Paradoxo do General Senil.
Descrevendo de forma mais intuitiva e menos técnica a tese de Grice, eu diria que
basta, para que uma pessoa seja considerada a mesma ao longo do tempo, que cada estágio
temporal esteja conectado com algum outro estágio pela memória. Dito de outra forma, não
é preciso que a relação ‘ser um ancestral de memória’ ocorra na ordem temporal em que os
eventos efetivamente se desenvolveram, como uma cadeia de memórias retroativas, mas
basta que, entre os estados mentais, alguma relação de memória os una a todos em uma
mesma série. Mesmo quando retiramos a seqüência de estados temporais totais da ordem
lógica (na qual a seqüência aparece como [criança – oficial – criança – general]) e a
colocamos na ordem temporal em que os acontecimentos efetivamente se sucederam (na
qual a seqüência é [criança – oficial – general]), a conexão de memórias se mantém. O
general é a mesma pessoa que o oficial porque, tomando os termos ‘general’ e ‘oficial’
10
Cf. Grice, “Personal Identity”, in: Mind, vol. 50, outubro de 1941.
11
Cf. Perry [1975], ibidem.
12
como nomes de estados temporais totais, há memórias e experiências que são retomadas em
todos os diferentes estágios que compõem aquela pessoa, o que inclui o estado temporal
total que serve de mediação entre eles, denominado de ‘criança’, ainda que não haja nada
em comum entre os estágios ‘oficial’ e ‘general’.
Há críticas que podem ser feitas a essa nova reformulação da intuição lockeana, tal
como a de Perry12, segundo a qual a atribuição de variações contrafactuais aos estados
temporais totais, necessária para se dar conta da idéia de uma ‘memória possível’, é
incompatível com a individuação da série como um conjunto determinado de eventos
mentais (crítica essa que não atinge a teoria de Locke, mas que é fatal para a de Grice). Mas
não vou considerar essas críticas aqui, pois elas deixam de capturar o que considero ser um
problema específico da tese de que a identidade pessoal consiste em conexões de estados
mentais.
Para examinar esse problema, que atinge a reformulação de Grice independentemente
de outras críticas adicionais que possam ser feitas a ela, peço que consideremos mais uma
vez os nossos personagens: a criança, o oficial e o general. O que vou propor aqui é um
novo paradoxo, que denominarei de ‘Paradoxo do Oficial Ferido’. Até onde conheço a
literatura sobre o tema, não <SEI DE> ninguém que tenha considerado a variação que
proponho, embora ela seja bastante simples e até mesmo óbvia. Imaginemos a seguinte
situação: nosso oficial corajoso, logo após realizar seu feito heróico, foi ferido gravemente
e, hospitalizado, perdeu todas as suas memórias, inclusive aquelas relativas à sua infância,
dentre as quais a de ter sido surrado por roubar uma maçã. Durante um certo tempo, ele não
só não se lembrou de ter sido surrado, como não poderia se lembrar de ter sido surrado.
Depois de meses no hospital, ele foi lentamente recobrando suas memórias do passado, até
que, um belo dia, já aposentado como general, um incidente qualquer o faz lembrar-se da
ocasião em que foi espancado por roubar maçãs quando criança. À primeira vista, poder-se-
12
Cf. Perry [1975], “Personal Identity, Memory, and the Problem of Circularity”, pp. 140-141. Perry também
critica a própria idéia de uma ‘construção lógica’ pressuposta na teoria de Grice.
13
ia pensar que essa nova situação, na qual a ‘lacuna de memória’ se encontra entre os dois
primeiros estágios de pessoa (a criança e o oficial), não apresenta diferenças lógicas
interessantes relativamente à situação descrita pelo Paradoxo do General Senil, na qual a
‘lacuna de memória’ se encontra entre os dois últimos estágios de pessoa (o oficial e o
general). Creio que é essa falsa aparência que fez com que este novo paradoxo que
proponho aqui não tenha sido até então considerado13. Veremos que, contrariamente às
aparências, a situação muda completamente quando considerada desse novo ponto de vista,
pois nesse caso nem a solução de Grice, nem a intuição lockeana, nem qualquer outra
teoria que apresente critérios de identidade pessoal ligados a conexões de estados
psicológicos (quer sejam eles memórias ou outros estados, tais como desejos, intenções,
etc.) consegue eliminar o Paradoxo do Oficial Ferido. Vejamos por que.
Tomemos a versão mais fraca da tese de que a memória é uma condição necessária da
identidade pessoal, a saber, a tese de Grice. Como vimos, ela não requer que construamos
<NO TEMPO> a série que é uma pessoa, mas apenas em um plano lógico. Uma maneira de
descrever a tese de Grice é dizer, usando o vocabulário de Parfit 14, que, uma vez que
recoloquemos a série lógica no tempo, o que descrevemos são “cadeias superpostas de
conexões psicológicas fortes” (voltarei a esse ponto mais adiante): a relação [general –
criança] sobrepõe-se à relação [oficial – general], de tal modo que o segmento mais amplo
engloba o segmento mais curto, e o abarca na relação de identidade: graças à sobreposição,
podemos dizer que há uma relação [oficial – criança]. Essas ‘cadeias superpostas de
13
Talvez se pudesse suspeitar que esse novo Paradoxo nunca foi formulado antes porque ele supõe uma
situação impossível, contrariamente ao que ocorre com os outros Paradoxos (os quais tratam justamente de
propor situações contrafactuais logicamente possíveis de tal modo a discriminar o necessário do acidental nos
critérios de identidade pessoal). Para examinar essa objeção, comparemos o Paradoxo do Oficial Ferido
(P.O.F.) com o Paradoxo do General Senil (P.G.S.) (no restante desta nota, indicarei pelas letras ‘C’, ‘O’ e
‘G’ respectivamente os estágios de pessoa ‘criança’, ‘oficial’ e ‘general’). No caso do P.G.S., a lacuna de
memória encontra-se entre O-G; nada do que ocorreu a O é uma lembrança possível para G, e, portanto, não é
preciso supor que haja qualquer traço da lembrança de O no cérebro de G. Já no caso do P.O.F., G lembra-se
de C mas O não pode lembrar-se de C; como isso é possível? Parece à primeira vista que, se G lembra-se de
C, então O, de algum modo, tem de poder se lembrar de C (a memória de C tem de alguma forma estar no
cérebro de O para que ela seja ‘transmitida’ a G). De que outra forma, senão por uma espécie de milagre, G
pôde adquirir a capacidade de lembrar-se de C?
Mas creio que é possível responder a essa objeção. De fato, é razoável supor que, embora o cérebro de O
esteja ‘armazenando’ a lembrança de C que será transmitida a G, O de fato não pode lembrar-se de C. Há
circunstâncias (como a situação descrita pelo P.O.F.) em que é correto dizer que uma pessoa não tem a
capacidade de lembrar-se de certas coisas. Ora, segundo a intuição lockeana, para que uma pessoa se
mantenha como a mesma, essa capacidade tem de estar presente sempre. Logo, não podemos dizer, nesse
contexto teórico, que O é C.
14
Cf. Parfit [1984], Cap. 10.
14
conexões de memória’ formariam como que uma ‘corda’ entrelaçada, na qual nenhum fio
perpassa toda a extensão, mas que mantém sua coesão e unidade pela sobreposição de seus
elementos. A continuidade psicológica assim obtida tem claramente a propriedade de
estabelecer uma relação transitiva entre seus membros, preservando desse modo a
transitividade da relação de identidade.
No entanto, o Paradoxo do Oficial Ferido atinge até mesmo essa formulação mais
fraca de condição necessária. E o Paradoxo se mantém nesse caso justamente porque há
sobreposição de estados psicológicos. Durante o tempo em que está ferido em sua cama no
hospital, nosso oficial heróico não pode ser dito a mesma pessoa que a criança, pois não há
nenhuma relação de memória entre eles. É apenas quando consideramos o estágio
denominado de ‘general’ que essas conexões são restabelecidas, pois então, segundo a
teoria de Grice, podemos construir no espaço lógico uma série que estabeleça as conexões
sobrepostas de memórias. Assim, enquanto o Paradoxo do General Senil era eliminado
construindo-se a série [criança –oficial – criança – general], na qual o termo ‘criança’
aparecia duas vezes, o Paradoxo do Oficial Ferido poderia, aparentemente, ser eliminado
construindo-se a série [criança – general – oficial – general], na qual o termo ‘general’
aparece duas vezes. A repetição dos termos, em cada série, preenche a ‘lacuna de memória’
de cada série e, que seja este ou aquele o termo a ser repetido, depende do local onde
ocorreu tal lacuna (é preciso repetir ‘criança’ na primeira série e ‘general’ na segunda).
Mas a construção da série [criança – general – oficial – general] não elimina, contra
as primeiras aparências, o Paradoxo do Oficial Ferido. Para entender por que, pensemos em
uma variação de nossa situação inicial: nosso oficial corajoso, gravemente ferido em sua
cama de hospital, não se lembra de nada relativo a sua infância, inclusive do fato de ter sido
surrado por roubar maçãs. Mas ele não resiste aos ferimentos e morre dias depois. Nesse
caso, pelo critério de Grice, ele não seria a mesma pessoa que a criança, pois não haveria
entre eles nenhuma conexão psicológica em termos de memória. Isso, por si só, não
constitui nenhum problema, muito menos um paradoxo: trata-se apenas de derivar
consistentemente as conseqüências de uma certa teoria acerca da identidade pessoal que
pode ser verdadeira ou falsa, mas que não é, enquanto tal, absurda.
No entanto, a situação muda completamente se supusermos que o oficial sobrevive
aos ferimentos, e, já um velho general aposentado, lembra-se de ter sido surrado quando
15
criança e de ter sido ferido na guerra. Nesse caso, estranhamente, o oficial é a mesma
pessoa que a criança. A ‘estranheza’ dessa situação ocorre porque um fato extrínseco às
relações que definem a identidade daquela pessoa desempenha um papel central na
atribuição de identidade ou de não-identidade entre o oficial e a criança. O fato extrínseco
em questão é se ele morre ou não. (Pode parecer igualmente estranho afirmar que a morte
de um indivíduo é um fato ‘extrínseco’ à sua identidade, mas devemos entender que, no
caso em questão, ela é um fato extrínseco relativamente a descrições alternativas propostas
acerca de certos eventos que já aconteceram no passado – a saber, se o oficial é ou não é a
mesma pessoa que a criança). Se ele morre, o oficial não é a criança; se ele não morre, o
oficial é a criança. Ora, a relação de identidade deve ser, além de transitiva, uma
característica intrínseca dos objetos. Voltarei a essa exigência de ‘intrinsicalidade’ mais
adiante.
Podemos descrever a situação de forma ainda mais paradoxal: o oficial ‘transforma-
se’ na mesma pessoa que a criança ao se tornar general. Mas dois não podem ser um15.
Logo, a continuidade psíquica não é uma condição necessária da identidade pessoal, pois
ela é um critério que, quando aplicado, gera paradoxos insolúveis.
Parfit considerou restrições extrínsecas a seus critérios de identidade pessoal. Assim,
nos famosos experimentos de pensamento do teletransporte, a existência de uma réplica
simultânea a mim leva, segundo <ELE>16, a considerarmos a resposta à questão ‘sou o
mesmo indivíduo que era antes da duplicação?’ uma pergunta sem resposta definida. Por
um lado, dois não podem ser um, de modo que não posso dizer que eu e minha réplica
sejamos a mesma pessoa que existia antes da duplicação, apesar de haver continuidade
psicológica entre a série que existia antes da divisão e cada uma das novas séries. Nem
posso dizer que não sobrevivi à divisão, pois se não houvesse um fator extrínseco (a
existência da réplica), nada me impediria de dizer que sobrevivi. Tampouco posso dizer que
sobrevivi como uma das duas séries que emergiram da divisão, pois elas são inicialmente
idênticas em tudo e contínuas com a pessoa que existia antes da duplicação, de modo que
não há um ‘melhor candidato’ que possa ser escolhido de forma não-arbitrária nesse caso.
15
Essa descrição da situação não é totalmente exata, mas podemos aceitá-la por ora como uma primeira
aproximação dos problemas envolvidos no Paradoxo. Para uma precisão dessa discussão, ver mais abaixo,
nota (19).
16
Cf. Parfit, “Personal Identity”, in: Perry [1975], pp. 199-223.
16
17
Ou pelo menos indesejável para a maioria de nós; não para Parfit, e não para aqueles que aceitam as teses
17
20
Cf. nota (18) acima: o navio reconstruído com as novas peças seria, para muitos, a ‘continuação mais
próxima’ do navio original – mais próxima até mesmo do que o navio reconstruído com as peças originais, se
supusermos que esse último só foi reconstruído anos depois, a partir das peças armazenadas em algum lugar,
enquanto que o navio com as novas peças se manteve em atividade contínua. Quanto a este ponto, porém, as
intuições que cada um alega ter variam, de modo que não há uma descrição inequívoca da situação.
19
do Paradoxo do General Senil, mas não no caso do Paradoxo do Oficial Ferido. A tese de
Grice permite evitar os problemas ligados à fissão-fusão de séries psicológicas ao reduzir a
bifurcação a uma única série, mas tal redução é impossível no caso do Paradoxo do Oficial
Ferido. Certamente, é possível imaginar séries se bifurcando de várias formas, mas, se uma
certa relação entre os elementos das séries em questão é proposta como uma explicação da
identidade do indivíduo constituído pela série unificada, então deve ser possível eliminar as
bifurcações graças a alguma característica própria das relações que vigem entre os
elementos da série. Ora, a tese de Grice, como vimos, não elimina a fusão que é figurada no
Paradoxo do Oficial Ferido. Logo, a relação entre os estágios de pessoas propostas por essa
tese não é adequada para caracterizar a identidade pessoal. Sendo assim, o sucesso da
solução de Grice no primeiro caso e seu fracasso no último caso mostram que o problema
que apresentamos não se resume em haver ramificação (o que está presente em ambos os
casos), mas é de fato um problema derivado da adoção da continuidade psicológica como
critério da identidade pessoal.
Outro ponto importante a ser notado é que a formulação do Paradoxo é perfeitamente
geral, e constitui um problema para qualquer conexão psicológica, mesmo que não seja a
memória. Muitos filósofos, como Parfit, consideram que o critério psicológico é válido
mesmo quando não há lembrança de eventos passados, mas estão presentes outros estados
psicológicos. Consideremos, por exemplo, não uma relação com o passado, mas com o
futuro, a saber, a relação entre uma intenção e a ação que se segue dela. Também nesse
caso, haveria o mesmo problema de dois se transformarem em um (caso descrevamos o
Paradoxo em termos de fusão), ou, mais precisamente, o problema de um fator extrínseco
interpor-se na formulação de uma relação que deveria ser intrínseca.
O que concluir a partir desse novo paradoxo? Uma conclusão possível seria a de que
o oficial e a criança sempre foram uma só e mesma pessoa, mesmo que temporariamente as
conexões psicológicas entre eles tenham sido interrompidas. Mas então o que garantiria a
identidade? Há três respostas disponíveis: ambos os estágios são estágios de uma mesma
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pessoa porque (a)- o mesmo corpo permanece; (b)- o mesmo corpo permanece
conjuntamente com conexões psicológicas, (c)- a mesma substância imaterial permanece.
Suponhamos por hipótese que temos diante de nós estágios de pessoas que
constituam uma mesma pessoa.
Nesse caso, (a) não pode ser verdadeiro porque contraria um elemento inquestionável
da intuição lockeana (deve-se notar que, mesmo tendo criticado a intuição lockeana,
algumas das teses que se derivam dela parecem imunes a essas críticas), a saber, que a
memória real é uma condição suficiente da identidade pessoal: é possível imaginar um
mesmo corpo habitado por duas pessoas, ou uma mesma pessoa com dois corpos.
(b) não pode ser verdadeiro, em primeiro lugar, pela mesma razão por que (a) não
pode ser verdadeiro: se o corpo fosse um dos elementos de uma conjunção que enunciaria
as condições necessárias e suficientes da identidade pessoal, não seria possível imaginar
que um mesmo corpo fosse habitado por duas pessoas, ou que uma mesma pessoa tivesse
dois corpos. Além disso, em segundo lugar, porque, admitindo a descontinuidade psíquica
imaginada pelo Paradoxo do Oficial Ferido, não há continuidade psicológica entre alguns
dos estágios de pessoas que (por hipótese) constituem a mesma pessoa – logo, a conjunção
(corpo e conexão psicológica) não explica esse caso, mas apenas a continuidade do mesmo
corpo, o que não é nem necessário nem suficiente, pois o critério enunciado em (a) não é
nem necessário nem suficiente.
(c) não pode ser verdadeiro pela mesma intuição lockeana.
Uma solução seria talvez adotar algum modelo de tese perdurantista não-
substancialista, afirmando que a totalidade de uma pessoa deve estar presente em todos os
seus estágios temporais. Ou seja, talvez fosse uma solução abandonar as teses
substancialistas e reformular as teses relacionais da identidade pessoal, levando em conta
um tipo de presença não-substancial do todo em cada estágio de pessoa. Mas prefiro
concluir dizendo que não sei o que faz uma pessoa permanecer a mesma ao longo do tempo
e, ipso facto, não sei o que é uma pessoa.
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Bibliografia:
BUTLER, Joseph - The Analogy of Religion, 1736. Seleção do primeiro Apêndice, in: Perry
[1975], pp. 99-105.
LOCKE, John – An Essay concerning Human Understanding. Ed. por Peter H. Nidditch.
Oxford, New York: Oxford University Press, 1979.
PARFIT, Derek - Reasons and Persons. Oxford: Oxford University Press, 1984.
PERRY, John - Personal Identity. Berkeley, Los Angeles, London: University of California
Press, 1975.
QUINTON, Anthony - “The Soul”, in: The Journal of Philosophy, vol. 59, n° 15, julho de
1962.
REID, Thomas - Essays on the Intellectual Powers of Man, 1785. Seleção do Capítulo 6
(‘Of Mr. Locke’s Account of Our Personal Identity’) do terceiro ensaio (‘Of
Memory’), in: Perry [1975], pp. 113-118.
RESUMO:
ABSTRACT:
This paper examines some classical criticisms of the concept of a person and of the
criteria of personal identity formulated by Locke. I argue that such criticisms, and the
positive doctrines that follows from them, in attempting to solve the paradoxes involved in
Locke`s theory, give rise to new problems and paradoxes. I present a general argument
intending to show that any psychological criterion of personal identity has to fail. Finally, I
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argue briefly that any other available criterion of personal identity also has problems. The
conclusion will be the formulation of a skeptical problem regarding the criteria of personal
identity.