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BERNARD LAHIRE

SUCESSO ESCOLAR
NOS MEIOS POPULARES
As razões do improvável

Traduçãu
Ramon Américo V:l.squcs
Sonia GolJ feJcr
SUMARIO

Editor
M iriam Gold(eder Prelúdios ... II

Editor~assistente
\. O PONTO DE VISTA DO CONHECIMENTO. 17
Claudcmir D. de Andrade
• A estrutura do comportamento e da personJlidade da criança 17
Preparação de texto • Os traços pertinentes da leitura sociológica 19
Maria de Fátima Mendonça Couto As formas fami li ares da cultura escrim, 20 Condições c dispo~
siçõcs econômicas, 24 A ordem moral doméstica, 25 As (ormas
R evisão de autoridade familiar 27, As formas (mniHares de in ...cstimcn~
F,hima de Carvalho M. de SOllz::t (cllord.) to pedagógico, 28
Isa ías Zilli • A pluralidade dos estilos de "sucesso" 29
• Singularidade e generalidade 31
Paginação eletrônica Contexrualizar, 32 Ext'mplos caricaturais. 34 A «ucstãn lia
G&C Associados equiva lência, 36 A estruturação de o bj etos singubrcs, 37 Por
Laura Sanae Dlli um procedimento ex perimental, 40

Capa 2. uFRACASSO" E "SUCESSO" . 47


1,,;t hl,1 C lrh:tl1p
• A população pesquisada 47
Impresso nas oficinas da 53
• A percepção escolar dos alu nos
Gráfica Palas Alhena
A orJl!m cSClllar das qualidades, 54 Sobre a autonomia e a dis-
1.9 Sl!ud/uallunard, Paris, 19Y5 ciplina,58
Título orlg-ina l: Tableaux de familles - HeuTs el malheuTS scolaires
3. PERFIS DE CONFIGURAÇÕES .. 71
cn milieux populaires
ISf\N 2 02 02>911 O • Vari<lções sobre o mesmo tema 71
ISBN 8508 06601 5 • A elucidação das palavras: à procura de indícios 74
O elo impossível 77
1997 Perfil I : A distância em relação aos universos objetivados, 79 Per-
Todos os direitos reservados pela Editora Ática fil 2: Uma prisão familiar, 88 Perfil 3: Uma ruptura radical, 97
Rua Barão de Iguape. 11 0 - CEP 01507-900 A herança difícil 104
Caixa Postal 2937 - CEP 0 1065 -970 Perfil 4: A difícil situação do filho mais novo. 106 Perfil 5: As
São Paulo - SP más condiçõcs de herança, 115 Perfil 6: Dois capitais culturais
TeL (0 11) 278-9322 - Fax: (011) 277-4146 indisponíve is, 124 Perfi l 7: Uma perturbada divisão sex ual das
[arefas d () m~s ticas . 131
Internet: http://www.atica.com.br
e-mail: editora@atica.com.br
DlI indisciplina à autodisciplina 141 A CRADECIMENTOS
Perfil 8: Recusa às coerções c "bloque io" em r.... b çãtl ~I tsc ri la, 143
Pt:rfil 9: A mo nll, a aucoridade e a escola, 155 Perfil 10: A "csc rc-
vinhadora" disciplinaJa , 164
Sentimento de inferioridade, sentimenw de superioridade 171
P.... rfil 11 : U m s.... mimtnto de "inferioridade c ulntral", 173 Per-
fi l 12: U ma rcencamação sucia l, 181 Ptrfil1 3 : Vigi lânc ia moral
e auxílio 1l1ÚCUO famil iar, 190 Pcrfil14: Um afável confinamen -
to simlx'J lico, J97 Agradeço antes de tudo às faml1ias que me confiaram uma /)arte de
Configurações familiares heterogêneas 207 sua exJ)eriência. Espero que es te trabalho, ao evocar situações sociais sem
Perfil 15: As conrraJições, 208 Perfil 16: Entre inquisiçij() c indul - nenhum sentimenlO de desprezo nem piedade, /)ossa devolver a cada uma
gê ncia, 219 Pt.:rfi I1 7: Uma relação de forç a cultural, 227
delas a dignidade que raramente lhes é atribuída.
A criança no cemro da famma 233 Meus agradecimentos dirigem-se também ao Grupo de Pesquisa so/n-e
Perfil 18: Uma situação com dupla facc, 234 Perfil 19: A c rian-
ça-rc i num rcinll mlxlesto, 244
a Socialização (URA 893, CN RS), que contribuiu para a publicação
Inves timento familiar positivo ou negativo 256 deste trabalho nas melhores condições possíveis. A Daniel Thin , que fez
Pe rfil 20: Um superinvestimento esco lar paradoxa l, 258 Perfil uma grande parte das entrevistaS comigo , a todos os que participaram
21: Os limites da . . Icspesa familiar, 268 Perfil 22: O invt~ti lll e n · da pesquisa , a Roger Chartier, Daniel Fa/n-e , Ylles Grafmeyer, Claude
LO escolar. 277 Grignon , Jean-Claude Passeron, Jacques Revel e Guy Vincent, por
Os "brilltanres" sucessos 285 suas observQ{ões, e, finalmente , a Régis Bemard e Yane Golay, que ama-
Pe rfil 23: Aqui, tudo é ordem e rcgularidaJc .. ,288 Perfil 24:
Um,1 vigi lância regular e sistemática, 296 Perfil 25: U m caso
lIelmente acompanharam a passagem da relatório de pesquisa inicial
"idea l", 303 Perfil 26: Uma mili tância f<lmiliar, 313 (Les raisons de I'improba ble. "Heurs" e "malheurs" à l'école élémen-
ta ire d'enfanrs de milie ux po pulaires - As razões do improváve l.
CONCLUSÕES .... 334 "Alegrias" e "tristezas" na escola primária de crianças de classes popu-
lares) à re~ão deste livro.
• O mito da omissão parenta I e as relações famíHas,esco la 334
• As modalid ades da transmissão 338
O h::mpo e as opurtuniJades dc socialização, 338 Tmnsm issão
ou con s(T\lçiio!, 340 U m patrimônio c ultural mo rto, 3 42 A
integração soc ial c simbúlica da experiência esco lar, 343 Capi ,
tal escolar e expe riênc ia escolar, 344 A const ituiç5o das iJt!n-
{iJaJcs ~exllab, 345 Contrad ições e instabilidades, 346
• U ma antropo logia da imerdependência 348
A inct:rJt:pcndênc ia. 348 Das estruturas objeti vas às est ruHlras
mc mais, 350 O "interior" e o "exterior", 352

BIBLIOGRAFIA . 359
P enso, :llkb, comu VOCl-!>, q uc I,) qUI! deve
sohretudo solicitar n os!>a atenção ~iio (l!'>
!-,'1l1nJc!> I'rublc ma~ do mundo c d :l cii!n c i:l.
Mas, mUll ..~ "C:;:C', de 11.Ida ~ r"c form ular
o :.imple::. proJl..'lII de ~leJ i car-.,c à 1Il\'cstlJ.!aç:io
de~ Oll d"tJude gr:lndc prohlem a. ~llS ne m
!oCm pn~ ,,<Ihemm para onde dcvem()~ (IrkntM
U~ p:l~.,(I~. É ~cmr re 1ll:11S r:lC.lmal. em um
tr:lha lhn clen tí(icl), lIll'rgull \:l r naqul1 u ql!!:
te mos J i.mle de n ú~, nus ubje to::. que sc
oferece m por ... i nW!>Il\l.l!> ~ nÜ:.:.iJ 1't'~lI Ul ~ :l .
Se o (I:ermo::. com ~crkJade . ::.clll Idé l.!:.
rrecom.. c h.J <I~ . !oC 1ll expcct<lIIV,h ex,l~('r:lll:h .
e:.c ti verm tJ!> Il....lrl c, pode acnlll eü'r que,
g mç"~ "tJ~ d t~ q llC Ilg<lm llldo a tudo.
u pequeno : 11 1 gr:tnde , il traba lho que
C\ 1Il11..~~. ,1 tl1 ( 1~ ~etll nenhum:l prctenSãtl :Ihr:!
ca rninlw :lll c~t Lldo de gr:mdell proh l t' Ill : I ~
(Sigmund Frl.!uJ, llllrudllC tlon li la
/l5)chmwl)'5i!, p. 17).

Enrl....lanlU . n o ... 11\1gdn 1..·-"'.:(,rh:g:<lJUJ onde


a frlcçãu t'~I,í :lL1loentc. c onde, portanto •
..110 CUn;..I I~~C......!> 1l:'i\1 Ide:l l~ em u m certo SC IltLJ,I,
tIl,l:>, (Imle. e m tme .. , e cau......"l disso, n:111

1l( }t,.le m ().~ ca mmh:lr. ()m, queremo..\'> " ll11mh' lr;


pre c i ~,lml)~, rnrmmo, de fricç flo. VulleUlus
,)" 1l{)1" llspcrn ! (LUJWlg Wlllt..:en~ ll'lIl,
fllt!f.mgatiom /)hllmfJphlf/H<'s, p. 164.)
PRELÚDIOS

su t.'X I ~ I t.' UIll.! fllrTlM dI.' .'0.: d wg.1 1' :lll lllll\'cr ...al:

O hSCf\'iI T (! Pi lrll t.'u l,lr, n;jn .'ulx·rflcmlmentc m,IS

mmllL I(I",tlll ...'lltc c e m lk·l:llh...·~'.

P,lr,t t.'llIl1prccndcr 1:.1,1 .Ic Inlxkl mal:> d.l1\\ pr\.'o


l:1s," mlo:..la ll ll)aqu l Cl1nlOCIU I númcl\~ r.:. I:O:l!<lan,~·
li)gJl... , l:nmtdcrm ,I:> P:trt lt.'Lll.!ri J,t... k,:. do.. . prtX ... ~·
:;0:': !l/flor IlUlb J.: /)Cltl) lllJ.Ul' t:!> l ;Í 'ICI"lIl ICl.cndo!,

Souyla está cursando a 2" série do I" grau. Seu pai, ex-operário
ua construção c ivil, não-qualificado, está aposentado. Ele e su"
mulher, dona-de-casa , são analfabetos, dominam com dificuldades a
língua francesa e têm um conhecimento bastante restrito do sistema
escolar (de seu funcionamento cotidiano, do desempenho de seus filhos,
das classes que freqüentam ... ). O casal teve onze filhos e vive na peri -
feria de uma grande cidade . Souyla está indo muito bem na escola.
Esta descriçiío sumária de uma situação soc ial e escolar, que pode-
ria ser a verbalização de algumas informações extraídas de uma das
inúmeras fichas de an~í li se de uma pesquisa estatística que tenta
"explicar" a melhor Oll pior situação escol}1r de crianças de 2i! séri e
do I Q grau, segundo um conjunto de indicadores "objetivos" (níveis
de formação, situações profissionais, lugar onde moram os pais, grau
de conhec imento do sistema escolar e acompanhamento da escola-
ridade dos filhos, número de filhos na família .. . ), não é ficção, ainda
que apresente algo de inesperado. O quau ro descriti vo, por seu aspec-
ro arípico -como , pode,se questionar. uma família que acumu la ta.n-
TaS "deficiências" poderia levar uma criança a ter "sucesso" na esco-
la' - pergunta o sociólogo, em busca de maiores explicações.
Porérn, ao procurar compreender, esse sociólogo confunde-se ainda
mais. Comparando algumas famílias a partir do conjunto dos atri-
butos ou dos recursos dos quais "objetiva mente!> dispõem, não con-
seguirá chegar a nenhuma conclusão: famílias não totalmente IIdes-
providas de recursos", sobretudo do ponto de vista do capital escolar,
possuem filhos com enormes dificuldade escolares, ao passo que
outras, cujas cclracterísticas obj etivas levariam a pensar que a eSCQ-
11
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PRElUDIOS

l. ridade dos filhos poderia ser custosa, possuem c ri anças com boa cedem assim, de cerra forma, à man eira dos soc itS logos que ma nipu~
e mesmo muito boa situação escolar. Há, portanto, para o soció l o~ Iam categorias macrossocio lõgicas. Viveríamos em lima sociedade na
go, em relação ao que conhece sobre o funcion::u nento provélvel do qua l os pais não "conve rsam mais com seus filhos", não têm "rn ais
mundo socia l a partir de dados estatísticos, como que um mistério tempo" oll"ma is vontade" por causa de suas ocupações profissionais,
a ser elucid"do. As pistas parecem, ao me nos no início, confusas, e onde os círculos familiares se torna m "cada vez ma is instáveis", com
a tentativa uc compreensão de situações atípicas, que não nos mO$# mães solteiras, famílias "implodidas" pelos divórcios, sepamções e situa-
tram aq uilo que poderíamos esperar, constitui um verdadeiro desa# ções econômicas "preCêlrias" (desemprego, salário mínimo de inser#
fio socio lógico. ç~o* ... ). Os filhos, em tais situações, "pe rd em todos os pnrâmetros",
A qucst;;o centra l que move u nossa pesquisa diz respeito à com- "não uescnvolvem sua linguage rn" e "são abandonados a si pró#
precnsiío das diferenças "secundárias" entre famílias popul ares c ujo prios". Quanto aos Pilis, estes deixam de ser "verdadeiros pa is": não
nível de renda e nível escolar são bastante próximos. Semelhantes Jescmpenham - ou não desempenham ma is - seu "papel", "omi#
por suas condiçôcs econôm icas e cu lturais - consideradas de forma rem#se" e "não cuidam mais Jos filhos".
grosseira <1 parri r da profissão do c hefe de família - , como é possí- No entanto, quando é preciso evocar esse ou aque le aluno da clas~
vel que confi gurações familiares enge ndrem, soc ia lmentc, crianças se, com suas d ificuldades e suas capacidades específicas, seu modo de
com níveis de adapt"ção escolar tão diferentes? Q uais são as dife- compnrtml1ento e se u desempenho escolar, os professores não man-
renças inrernas nos meios popu lares suscetíveis ue justificar V;:Jfli:1# têm mais o mesmo discurso. As explicaçf">es se tomam menos segmen#
ções, às vezes consideráveis, na escolaridade das criêlnçêls! O que pude radas, menos caricaturais, menos evidentes. Confrontados com algu~
esclarecer o fato de que uma pane del"s, que tem probabilidade muito mas crianças específicas, apresentam questões premenres: como faze r
grande de repetir o ano no cu rso primclrio, consegue escapar desse para modificar ou "dcsbloquear" uma situação difícil? Por que tal aluno,
risco e até mesmo, em certos casos, ocupar os melhores lugares nas que era um "perfeito vagabundo", um belo dia começa a Hfuncionar
c lassificações escolares? Essas são as questões para as quais rentare # melho r", lia intercssar#se mais", ao passo que nunca conseguimos
mos e ncon trar respostas, tcn tando compreender as posições esco# fazer n aela por aquele o utro?
lares de c ri anças da 2a séri e do 12 grau em relação ~ sua si tu ação, Os professores (sobretudo aqueles que estão menos h abituados a
~o cru za mento de configurações familiares específi cas e do espaço manipular categori as sociopolíticas) resistem na maior parte das vezes
escolar. Paro se rmos mais precisos. o objeto central de nosso traba- às explicaçcles sociológicas em termos de categorias sociais, de gru -
lho são os fenômenos de dissonâncias c de consonâncias entre COI1# pos ou de classes, de causas sociais ou determinantes soc iais. E res is-
figurações familiares (relativamente homogêneas do ponto de vista te m , sem dúvida, por algumas (boas) razões. De um lado, encontram
de SUB posição no se io do espaço social em se u conjunto) e o lIni ~ com regu laridade casos que não se encaixam nos modelos que lhes
ve rso cscolar que registramos através Jo Jesempenho e comporta~ são propostos: "desempenhos" exemplares em meios populares (às vezes
mento escolares de um a criança de cerca de 8 anos de idade. é o seu próprio caso particular), ou, inversamente, "ciltásrrofes esco#
A maneira pela qual os professores primários classificam os "fra- lares em meios hurgucses. Por outro lado, além do caráter excepcio~
l1

cassos" escolares, ou seja, atribuem a esses acontecirnentos um c()n~ nal de certos casos enco ntrados, a vida escohu os lev<l ~l tratar os alu~
texto interp retativo , é re lat ivamente d iferente quanuo julgam ind i#
vidua lmente os a lunos de uma classe ou quando ju lgam as "causas
* O"ll,im, IIIlnllll~l ..k· .""",n,.II) (em fr, mc':"~. r..'t\,lIl1l11l1UII1Um d'llt~'flU/I1.n R~'II ) é 4li;lIlt" g.lIlh.1
gerais" do fenômeno. Quando os professores fa lam de uma fonua muito um l.k:!>CUll'n:\.:.li.ltl UlllltJ "'ltírl(H.k"t.-'mrrq.;", (tu t:111,1c, cr.. IIltI.vidlKb tnt;llm~llIt: Ill<lr\.:lfl.lli -
genérica, as "grandes causas sociais" ton1am~se predominantes. Pro# :ad'h do ~"tt:l1l.1 dt: unh:llhtl n.1 Fran~~i.I. El~ !!Ilíl t:1II rurno Je ':;00 J,\IMt:!>. (N.T.)

12 13
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PRElUOIOS

nos caso por caso (com nome e sobrenome), nunca totalmente s imi ~ 1 iplos exemplos que possibilitaram compreender como o capital cu l-
lares entre si, apanhados em um contexto de classe particular, com tuml parenta I (ou de forma mais ampla , familiar) podia ser trans-
pais, desempenhos e um comportamento escolar si ngu lares. mitido, o u, ao contrário, não conseguia encontrar condições para
O ra, nós, aqui, aposta mos que a sociologia (por causa de seu modo ser transmitido. Ou ainda, como, na ausência de capital cultural ou
de pensar relaciona I e por ev itar a absolut ização de certos traços na ausênc ia de uma ação vo luntária de transmissão de um capital
sociais, por sua capacidade específica de distanciamento em rela~ cu ltural existente, os conhecimentos escolares podiam, apesar de
ção a realidades de interdependência, que, normalmente, provocam ruJo, ser apropriados pelas c rianças. Mas, afinal de contas, as pró-
sobretudo atitudes de engajamento ') pode ajudar a compreender casos prias noções de "capital c ultural" e de "transm issão" Oll de liheran,
específicos (não especia lmente no sentido de I'cxcepcionais") sem ça" - metáforas úteis quando come ntamos quadros que c ru za m
Jispersar as razões ou disseminar as causas ao infini to . Notemos que v(H ilíve is - deixam de ser pertinentes quando, ao mudar a escala
e ncontramos aí um belo exemp lo de elo entre sen so comu m e saber de observação, voltamo- nos para a descrição e aná lise das modali-
científico, q ue, dados os problemas epistemológicos, metodológi- dades da socia lização familiar ou escolar, no âmbi to de uma soc io-
cos e teóricos levantados pe la pesquisa, comp lica de maneira s in ~ logi" dos processos de constituição das disposições sociais, de cons-
gu iar o debate sobre o tema. trução dos esquemas mentais e comportamentais.
Q uando queremos compreender "singu laridades", ucasos parti~
c uln res " (mas não necessariamenre exemp lares), parece que somos
fatalmente obrigados a aba ndonar o plano da retlexão macrossoc io- A título de aviso ao leitor, gostaríamos de ressaltar a escolha, urll
lógica fundada nos dados estatísticos para navega r nas águas da pouco particular, de determinada escritura sociológica. Após te rmos
descri ção etnognlfica, monográfica. E, gera lmente, a questão do elo precisado o pontO de vista do conhecimen to adotado, descrevendo
o u da articulação entre estas duas perspectivas não se coloca nem em seguida a população analisada. e antes de propormos algumas con-
àqueles que, etnógrafos ou estatísticos convictos, fa lam do mundo clusões a serem extraídas da exploração sociológica feita, apresenta-
de modo diferente, mas com o mesmo sentimento de dar conta do mos uma série de "perfis familiares" que constituem o corpo principal
essenc ia l. O ra, em vez de fazer de conta que a compreensão de 0 1- deste livro. O perfil, como gênero científico livremente inspirado no
50S singulares acontece po r si só, co l ocando~ nos de imediato e in ~ gênero literário, comporta duas ex igêncirls fundamenta is: de um lado,
ge nuamente do lado daqueles para quem a questão da representa- baseado em "dados" e preocupado com a crítica dos contex tos de sua
ção ou da generalização n}'io causa nenhum problema, optamos, no produção, é a pintura, diferente portan to do discurso literário, de um
quad ro de uma antropologia da interdependência, por estudarexpli- modelo particular existente na realidade. Por outro lado, deve deixar
c itamente uma série de q uestões (singularidade/generalidade; visão transparecer claramente a maneira específica de pintar. O ponto de vista
etnográfica/v isão estatística; microssociologi:l/macrossociologia; a partir do qual o pintor observa e explicita o mundo.
estruturas cognitivas individuais/estruturas objetivas ... ) a respeito Exceto suas ambições científicas principais, a qualidade deste tra-
de um objeto singular e limitado. E, sobretudo, questionar a práti- balho, se existe, reside primeiro e antes de tudo no cuidado dispensa-
ca - muito criticada nos estatísticos - que consiste em juntar, em do a cada uma das diferentes fases pnlticas da pesquisa. Nossa amllise
uma mesma categoria, realidades consideradas diferentes, e que, log i ~ não somente apo ia~se em dados ricos e suscetíveis de serem cnlz~Klos
camente, implica sncrificar sua s ingularid ~lde. (entrevistas com 26 famílias em suas casas e notas emognificas sobre
Além disso, durante um percurso de pesquisa que acentuava as cada um dos contextos das entrevistas, fichas com infonnaçóes esco~
modalidades concretas da socia lização familiar, encontramos múl- lares, caden10s de avaliação, entrevistas nas escolas com cada uma das

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SUCESSO ESCOLAR NOS ME IOS POPULARES

27 crianças, entrevistas no começo e no final do ano escolar com os 1 O PONTO DE VISTA DO CONHECIMENTO
7 professores envolvidos, entrevistas com 4 diretores de escola), mas
cada etapa dessa pesquisa foi conduzida com a preocupação particu-
lar de se fazer uma grande reflexão sociológica em cada relatório. Às
vezes, quando estes relatórios deviam ser dados "às cegas", suas con~
seqüências sobre o trabalho eram medidas logo em seguida para com- A ESTRUTURA DO COMPORTAM ENTO
preendermos o que havia sido feito, ainda que não o soubéssemos sem- E DA PERSONALIDADE DA CR IANÇA
pre no próprio momento. O conhecimento sociológico só pode ser cria-
do através de um trabalho permanente de retorno aos protocolos
anteriores da pesquisa, a partir de aquisições progressivas, gmças aos A CHrulUnt c fi form:l du CQml'l<,rra mcnt o de um
indivfduo ,k'pcnJclll dn C,lrulllt<'1 de suas rcb-
protocolos de pesqu isa que se seguiram. Trata-se neste caso de um avan- çc1cs com os nlllms m~livídllo:;-,
ço através de um retomo reflexivo sobre os momentos passados do tnl~
balho, sendo que as diferentes etapas da pesquisa não estavam jamais
separadas, como nos esquemas hipotético-dedutivos escolares. Tudo
é válido, a qualquer momento do trabalho, para compreender melhor
o que foi feito em qualquer outro momento.
Portanto, estamos inclinados a pensar que a qualidade princi~
pa i do sociólogo não pode ser a de "intérprete" final, mas sim uma
qualidade de artesão, preocupado com os deta lhes e com o ciclo A personalidade da criança, seus "raciocínios" e seus comporta~
completo de sua produção, introduzindo sua ciência nos momen~ mentos, suas ações e reações são incompreensíveis fora das relações
tos menos "brilhantes" mas mais determinantes da pesquisa: co ns~ sociais que se tecem, inicialmente, entre ela e os ou tros membros
tituição da popu lação a ser entrev istada, construção da ficha de entre- da constelação familiar, em um universo de objetos ligados às for-
vista, qualidade da relação de entrevista, trabalho de transcrição mas de relações socia is intrafamiliares. De fato, a criança constitui
da entrevista, notas etnogr:'íficas sobre o contexto ... Em vez de refle- seus esquemas comportamentais, cognitivos e de ava liação através
tir assim que acabar a pesquisa, o sociólogo deve fazê~lo a cada ins~ das formas que assumem as relações de interdependência com as pes-
rante e, particularmente, naqueles momentos banais, aparen temen~ soas que a cercam com mais freqüência e por mais tempo, ou seja,
te anódinos, em que tudo leva a crer que não há nada a se pensar. os membros de sua família!. Ela não "reproduz", necessariamente e
de maneira direta, as formas de agir de sua família, mas encontra
sua própria modalidade de comportamento em função da configu-
ração das relações de interdependência no se io da qual está inseri-
NOTAS da. Suas ações são reações que "se apóiam" relacionalmente nas ações
dos ad ul tos que, sem sabê-lo, desenham, traçam espaços de com-
E. Durkhell11, " L1 .~ci ellcc posilivl' de la mllr:11c en AlIclll.lgrll''', in Tl'Xres . 1975, p. 333. portamentos e de representações possíveis para ela.
L. Willgcn~ (,.' m, hl1'l:sugmion., phi/oslj/,nu/ucs, 1986, ]1. 141 . Se, por um lado, temos tendência a reificar os comportamentos
N. Élra... , Engag Cnll.'1l1 1.' 1 di.Hancia/lrm .. .• 199 3.
das crianças em traços de caráter ou de persona lidade, a sociologia
deve lembrar, por outro, que esses traços não aparecem em um

16 17
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES O PONTO DE VISTA 00 CONHECIMENTO

vazio de relações sociais: são. sim, o produto de lima socia lização do, afasta mo-nos de qualquer idéia de evolução cognitiva n atu ral
passada, e tambérn da forrna das re lações socüüs através das quais (' uni versal, comum ao conjunto das c riélllças de uma mesma faixa
estes traços se atw1!i zam, são mobilizados. Como explica François de idade. Com efeito, inúmeras hipóteses de trabalho e psicologia
Rousrang: "Diríamos, por exemplo, que alguém é 'dependente', 'hos- baseadas na teoria de Piage t sobre o desenvolvimento da inteligên-
til', 'Iollco' , 'me tic uloso', 'ansioso', 'ex ibicionista', etc.". N o enta n ~ cia supõem, de um lado , uma esca la única do desenvolv imento
ro , como observa Bateson, esses adje ti vos, IIque deveriam descre~ cognitivo, e , de outro , uma forma um tanto abs tra t~1 e geral de con ~
ver seu caní.ter, não são aplicáve is de fo rma alguma ao indivíduo, ccbc r os processos de construção de esquemas mentais.
masàs transações entre ele e seu meio, material e humano. N inguém A nosso ver, só podemos compreender os resultados e os co m ~
é 'esperto', ou 'dependente', ou 'fatalista' no vazio . C ada traço que portame nros escolares da criança se reconstrui rmos a rede de inte r~
atribuímos ao indivíduo não é seu, mas correspo nde mais ao que dependências famili ares através da qual ela constituiu seus esque-
acontece entre ele e alguma outra coisa {ou alguma outra pessoa )"!. mas de pe rcepção, de julgame nto, de ava liação, e a maneira peta
N o rbert Élias nos fo rnece, em sua soc io logia de Mozart, o exem~ qual estes esque mas podem "reagir" quando "funcionam" em for~
pIo de um modo de reconstrução sociológica do que pode ser um indi- mas escolares de relações sociais. De certo modo, podemos dizer que
víduo. "Para compreender um indivídllo'\ escreve, "é preciso saber oS casos de "fmcassos" escolares são casos de solidão dos alunos no
quais são os desejos predominantes que ele aspira a satisfaze r [... 1. Mas uni verso escolar: rnui to po uco daquilo que in teriori zaram através
estes desejos não estão inscri tos nele antes de q ualquer experiência. da estnltu ra de coex istência familiar lhes possibilita enfrentar as regras
Consti tuem-se a partir de sua prime ira infância sob O efeito da coe- do jogo escolar (os tipos de o rientação cogni t iva, os tipos de práti-
xistênc ia com os outros, e fi xa m ~se progressivamen te na forma que cas de linguage m, os t ipos de comportamentos ... próprios à escola),
o curso de sua vida de te rminar, no correr dos anos, ou, às vezes, ta m ~ as formas escolares de relações sociais. Realmente. e les não possuem
hém de mane ira brusca, após uma experiênc ia particularmente ma r~ as disposições, os procedimentos cognitivos e comportamenta is que
cante"4. N a verdade, o mais íntimo, o mais particular ou singular dos lhes possibili te m responder adequadamente às ex igências e injun-
traços da personalidade ou do comportamento de uma pessoa só pode ções escolares, e estão portanto sozinhos e como que alhe ios diante
ser entendido se reconstituirmos o "tecido de imbricações socia is com das exigências escolares. Quando vo ltam para casa , tra zem um pro~
os o utros"~ . E é unicamente quando não esquecemos que as condi, blema (esco lar) q ue a constelação de pessoas que os cerca não pode
ções de exis tência de um indivíduo são primeiro e ~lntes de tudo as con ~ ajudá~ l os a resolver: carregam, sozinhos, problemas inso lú veis.
dições de coexistência que podemos evitar todas as re ificações destas
condições de ex istência em forma de propriedades, de capitais, de
recursos abstraídos (abstraídos das relações sociais efetivas). Essas Os T RAÇOS PERTINENTES DA LEIT URA SOC IOLÓG ICA
propriedades, capitais ou recursos não são coisas que determinam
o indi víduo, mas rea lidades encarnadas e m seres sociais concretos Se a família e a escola podem ser consideradas como reues de inter-
que , através de seu modo de relacionamento com a criança, irão per~ depe ndência estru[uradas por formas de relações socia is específicas,
mitir, progressivame nte , que constitua uma relação com o mundo então o "fracasso" ou o "sucesso" escolares podem ser apreendidos
e com o o utro . como o resultado de uma maior ou menor contradição. do grau mais
A mane ira pela qual construímos sociologicamente nosso o bje~ Oll menos elevado de dissonância ou de consonância das formas de
to nos leva ta mbém a refl etir sobre a pluralidade das formas de vida relações soc iais de uma rede de interdependê ncia a outra. N osso tra-
social e fa nnas de pe nsamento e de comportame nto . Nesse senti ~ balho consistirá - mais do que pri vileg iar um o u out ro aspecto da

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES O PONTO DE VISTA 00 CONHECIMENTO

socializaç80 familiar e em vez de estabe lecer correlações fator por fator va lentes "em famílias onde os livros são: L) respeitados demais, arru~
- em descrever e an(llisar configurações singulares, combinações espe~ tl1;Klos assirn que oferecidos, não tendo a criança o direito de tocá,
cíficas de traços gerais. Para a descrição das configurações familia- los sozinh:lj 2) oferecidos como brinquedos que as crianças têm de
res, consideramos como pertinentes os cinco temas que seguem: as aprender a manejar sozinhas de imediato"'~ . A questão não se Iimi,
formas familiares da cu ltura escrita, as condições e disposições eco- (;1 portanto à presença ou ausência de atos de leitura em casa: quan,

nômicas, a ordem moral doméstica, as formas de autoridade fami~ do existe a experiência, é preciso sempre se perguntar se é vivid~l posi,
liar e as formas familiares de investirnento pedagógico. tiva ou negativamente, e se as modalidades s50 compatíveis com (1S
modalidades da social ização escolar do texto escrito.
As formas familiares da cultura escrita Da mesma forma, o fato de ver os pais lerem ou escreverem com
ou sem dificuldades, de ver os p3is recorrerem cotidianamente, em
A escola é um universo de cultura escrita\ e podemos nos per, sua vida familiar, a escritas de determinado tipo pode desempenhar
guntar .,e os meios populares não se distinguem entre si do ponto um papel importante do ponto de vista do sentido que a criança
de vista de sua relação com a escrita. Por detr~s da similaridade apa, vai dar ao texto escrito dentro do espaço escolar. Irá associ(l~lo a
rente das categorias socioprofissionais, talvez se escondam diferen~ uma experiência necessariamente dificultosa e até mesmo doloro,
ças, abismos sociais na relação com a escrita, diferentes freqüências sa, ou, ao contrário, a um ato natural e, às vezes, até de prazer? Fazem~
de recurso a práticas de escrita e leitura, diferentes modalidades de na participar, de algum;) forma, dos pequenos atos de comunicação
uso da escrita e da leitura, diferentes modos de representação dos escrita cotidian a? Mas as práricas domésticas com texto escrito não
atos de leitura e de escrita , diferentes sociabilidades em torno do têm somente um papel de exemplo dado às crianças. Podem ter, para
texto escrito . uma grande parte delas, através das formas de organização domés~
A fami liaridade com a leinlra, particulormente, pode conduzir a rica que tais práticas tornam possíveis e das qua is participam (con~
prátic~s voltadas para a criança, de grande importância para o "suces~ tribuinclo para constituí~ l as), um efeito indireto mas poderoso.
SO" escolar: sabemos, por exemplo, que a leitura em voz alta de nar, Por exemplo, o calendário e a agenda não têm son1ente a fun i

rativas escritas, combin~da com a discussão dessas n8rrativas com a çiio de objet ivar o tempo. Eles tornam possível uma distribuiç:io das
criança, estiei em correlação extrema com o "sucesso" escolar em lei~ atividades (individuais ou coletivas) no tempo objetivado, e com
tum 7 • Quando a criança conhece, ainda que oralmente, histórias escri~ isso um planejamento das atividades que implicam urna relação rnais
tas lidas por seus pais, ela capitaliza - na relação afetiva com seus pais reflexiva em relação ao tempo passado. presente ou futuro. Com os
-estruturas textuais que poderá reinvestir em SU<lS leituras ou nos atos lembretes, a lista de compras, a lista de coisas a fazer, a lista de coi~
de produção escrita. Assim, o texto escrito, o livro, para a criança faz
1 sas para se levar numa viagem, o livro de contas, a classificação dos
parte dos instmmentos, das ferramentas cotid ianas através das quais documentos administrativos, as receitas recopiadas (por categoria
recebe o afeto de seus pais. Isto significa que, para ela, afeto e livros de pratos), ou as fotografi,lS (em ordem cronol6gica) no álbum de
n50 são duas coisas separadas, m<lS que estão bem associadas. família, " caderneta de endereços e de telefone (em ordem alfabé-
O fato de ver os pais lendo jornais, revistas ou livros pode dar a tica), os bilhetes diários entre os membros da família, que possibi-
esses atos um aspecto "natural" para a criança, cuja identidade social litam, sobretudo, continuar a organizar a vida familiar enquanto o
poderá construir-se sobretudo através deles (ser adulto como seu pai corpo está ausente ... - esses meios de objetivação contribuem para
ou sua mãe significa, naturalmente, ler livros ... ). Inversamente, uma gestão mais racional, mais calculada e, com isso, menos ime~
podem surgir experiências com o texto impresso negativas ou 3mbi, diata, menos esponn'1nea das atividades familiares\).

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES O PONTO DE VISTA DO CONHECIMENTO

A organização das atividades graças à objetivação-planificação exaustiio. Escritas deste tipo implicam uma relação particular
em múltiplas listas, os cálculos de orçamento, o ca lendário, a agen- com a linguagem: preocupação com a forma, precisão verbal e dis,
tia - regula e estrutura o tempo (diário, semanal, mensal ou anual) c ursiva ou com a exaustão,
e as atividades dos membros da família. Uma tal sistemmização das As pníticas de escrita e gráficas introduzem uma distância
atividades peJe contribuir para uma disposição 11 regularidade, ao entre o sujeito falante e sua linguagem c lhe dão os meios de domi-
respeito a horários, Sabemos que são os executivos que, estatistica, nar simbolicamente o que até então dominava de forma prática:
mente, parecem mais inclinados, entre os assalariados, a pensar e a linguagem, o espaço e o tempo. Os meios de objetivação do
gerir a viua fmniliar cotiJiana como uma "organização" e a cu ltivar tempo, as listas de coisas a dizer e a fazer (como planos de ação
urna formn de rlscese 1l' , No entanto, se por um lado as disposições ou de pahwras futuras) e muitas vezes até as correspondê ncias escri,
racion;lis Jomésr icas são repartidas socialmente de mouo desiguO:1l 11, tas são de fato instrumentos de concret ização de nossa tempera'
por outro as linh"'1s divisórias nem sempre seguem as fronteiras das lidade (e às vezes de nossa linguagem) que constituem exceções
classes ou do~ grupos socia is, Embora tenhamos tendência a repre, cotidianas e repetidas em relação ao ajuste pré,reflexivo do sen #
sentar as classes popu lares como classes hornogêneasl!, nossas pes, tido prático a uma situação soc ial. E chega aré mesmo a existir
quisas anteriores explicitaram a diversidade das relações que tais clas- uma distância e ntre o tempo vivido "que passa" e o tempo orga,
ses podem ter com a escrita. Essa diversidade, que outorgamos com nizado graças a meios de objetivação, como exisre entre o traje,
mais faci lidade aos mais bem-dotados, também é visível para quem to espontâneo de um automobilista e o itinerário de viagem que

quiser se dar ao trabalho de reconstruí-Ia através de pesquisas empí- planifica um percurso, o prepara, o divide em etapas ... As práti-
ricas nos meios populares. 01S comuns de escrita constituem desta forma verdadeiros atos
As práticas de escrita organ iz ac i ona l,d oméstic~l permitem ca l, de ruptura em re lação ao sentido práticoi mantêm uma relação
cula r, planejar, programar, prever a atividade, orga niz<l-la por um negativa com a memó ria prática do habiLU5 e tornam possível um
período de tempo relativamente longo" . Permitem preparar Ou contro le simbólico de certas atividades, assim como sua raciona#
retardar a ação direta e suspender em parte a urgência práricêli lização. A interrogação sociológica sobre as práticas da escrita abre,
implicam, por isso, um maior controle de seus desejos, de suas pu 1- portanto, uma brecha na unidade da teoria, da prática ou do senso
sões. O cade rno de contas ou o cálculo cio orça mento, po r exem- I)rático. Se, de fato, o habitus é a experiência comum do mundo,
plo, constituem concretamente "a pOSSibi lidade de deixar de lado pré,rcf1cxiva, prática .. , então nem toda s ;.lS pnític;ls têm o habi,
algo que nos senti mos levados a fazer hic et m<nc em proveito de ws como princípio de criação 11"
uma sarisfação que só obteremos dentro de uma semana ou de um Vemos bem como os escritos domésricos ultrapassam ampla-
ano" I-I , Assim, uma gra nde parte das práticas da escrita pode con# mente seu papel cultural imediato para alcançar a o rganização
tribuir para a constituição de uma relação específica com o tempo doméstica, inclusive em sua dimensão econômica - enquanto téc,
na aprendizagem da capacidade de prorrogar (seus desejos, seus nicas comuns de gestão do cotidiano que implicam uma relação
impulsos) e de planejar. Sua ausência no universo familiar acon- com o tempo, com a linguagem e, quase sempre, uma relação com
tece, inversamente, entre os adu ltos mais hetlonisras, mais espon~ a ordem, participam de formas de organização doméstica mais
tâneos l1 , Da mesma forma, a escrita pode permitir gerir de maneira racionais nas quais a criança está sendo continuamente soc ial iza,
mais precisa e ordenada seu discurso eIl} um,l carta argume nt ari~ da l1 , Trata,sc, indiretamente, de técnicas de organização, uma
va ou em anotações antes de telefonar, quando o que se quer dizer relação rnais calculada com o tempo, uma preocupação com a ordem
não deve se r improvisado, e exige uma ordem precis;l e uma certa e a previsão, uma relação reflexiva com a linguagem que pode pro'

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SUCESSO ESCO(ÃR NOS MEIOS POPULARES O PONTO DE VISTA DO CONHECIMENTO

gressivarnente incorporar a criança que vive nesse universo fami~ I illlos,· geridos
de diferentes maneiras, e essas mé:meiras são tanro o
liar. Esses escritos familiares estão, portanto, em parte, ligados a produto da socialização familiar de origem e de trajetórias eS5'0lares
esses dois pontos que seguem: as condições e as disposições eco- c profissionais, quanto da situação econômica presente. E desta
nômicas, de um lado; a ordem moral e uoméstica, de outro. f()rma que, enquanto muitas das famílias com o mesmo nível de renda
da família Hoggart mergulham em dívidas e caminham para uma situa-
Condições e disposições econômicas ção de subproletariado, a mãe de Richard Hoggart, oriunda de um
meio social mais elevado e com tendências ascéticas (opostas ao "dei-
Se qlll-.crcm .,ohreYlvcr c n.ul .•(und:u. t ~ I'uhn:\
de vem. COmtl C:lrj,l.1 'lIp lcmcntar. Irtm1t:,1 c per-
xar fazer pam ver () que acontece" de outras famílias" gere o inge~
ycrS:1, ~enr:>cu dinhcirt), como ()~ eont,ld,)re~ (I rível. ou seja, uma situação de gmncle prcci.lricuaue econômica, para
fdTi~lm . N",b PUdl' ~l'r l dt rap; l ~s' I(.h), ,. (rous;ldtl , não uesccr mnis "brlixo" ainda.
rdas,do, nem 1l.1.' ~ 1lI t1 111ll pl1llqlllnhl,".

A ordem moral doméstica


Para que uma cultura escrita familiar. ou para que uma moral da
perseverança e uo esforço possam consti tuir~se, desenvolver,se e ser Uma parte das famílias das classes populares pode outorgar uma
transmitidas, é preciso certamente condições econômicas de existên, grande importância ao "bom comportamento" e ao respeito à auto~
cia específicas. Um divórcio. uma morte ou uma situação de desem~ ridade do professor. Como não conseguem ajudar os filhos do ponto
prego que fragilizam a situação econômica famIliar podem constituir ,Ie vista escolar, tentam inculcar-lhes a capacidade de submerer-
rupturas em relação li uma economia doméstica estável. O desem- se à autoridrtdc escolar. comportando .. se corretamente, ilceit;:tndo
prego pode mudar a relação com o tempo na medida em que a pre- f"zer o que lhes é pedido, ou seja, serem relativamente dóceis,
cariedade econômica impede toda projeção realista do futuro: o dis- esclltanuo, prestando ntenção, estudando e n50 brincando ... Os pais
tanciamento das formas organizadas de trabalho e a insegurança visam, desse modo, a lima certa "respe itabilidade" familiar da qual
econômica são situações pouco favorê\veis ao desenvolvimento de uma ~eus filhos devem ser os representantes, Em caS8 podem exercer um
atitude racional em relação ao tempo" . A estabilidade profissional contro le exterior direto da escolaridade dos filhos: sancionar as notas
do chefe de família permite, claro, sa ir da gestão do cotidiano "no hrtixas e os maus comportamentos "escolares", assegurar,se de que
dia-a~dia", rnas também oferecer os fundamentos de uma reglllarida .. as tarefas tcnhntll sido feitas ... Indiretamente, também, podem
de doméstica de conjunto: regularidade das atividades e dos horários contro lar o tempo consagrado aos deveres esco lares, proibindo Oll
familiares, lirnitcs temporais estruturados e estruturantes. limitando as saídas notunlas, restringindo o tempo que passam dian,
No entanto, como bem lembra a epígrafe de Hoggart, as condi- te da televisão ... Através dos contro les dos nrnigos, do controle entre
ções econômicas imediatas, conj unturais, não determinam mecani- o tempo que levam da escola para casa (os fi lhos podem ser leva-
camente comportamentos econômicos ou disposições econômicas. dos e trazidos), os pais podem, igualmenre. controlar as situações
As condições econômicas de existência são condições necessárias, de socia lização nas quais estão colocados O!'l filho~, panl evitar que
mas seguramenre não suficientes. Sejam quais forem as condições I'não degringolem".
materiais, sem as técnicas intelectuais apropriadas (os cálculos, as Fora dessa ação socializadora, que se concentra no aspecto n\Ornl
conferências bancárias, as previsões de despesas projetadas em um uas conJuras infantis, o universo doméstico, através da ordem mate~
caderno ou num livro de contas ... ) não há c;'Í!culo racional possí- rial, afetiva e moral que reina ali a todo instante, pode desempe-
veF". O mesmo capita l, a mesma situação econômica podem se r tra ~ nhar um pnpel ill1portante na atitude Lia criança na escola. A famí~

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEros POPULARES O PONTO DE VISTA 00 CONHECIMENTO

lia pode constituir um "lugar decente"ll , um tipo de santuário de como sLlas contas, para sempre saber em que pé se encontra, mos~
o rde m, de o rdenação, relativamente fechado sobre si mesmo, para Ir~l~lhe que uma discussão é igua lme nte uma forma o rgani zada, que
evitar as influências nefastas, os possíveis "desv ios es tranhus" (reje i~ deve ser o rdenada: "Ora, reto me seu discurso sobre a economia
ção do bairro" , dos imigrantes o u dos outros im igrantes, quando a doméstica o nde paro u, e tente continuar a exposição f... ]. Então, diz
própria família o é ... ). Sllcrmcs, e se passarmos prime iro em rev ista todos os pontos sobre
Se m dú v ida, uma configuração familiar relat ivilme nre estável , os qua is estamos de acordo durante a discussão, para que, se possí~
que permita à c riança relações socia is freqüentes e duráve is com os ve l, tentemos nos pôr de acordo, do mesmo modo, sobre o que se
pnis, é uma condição necessária à produção de uma relação com o segue? De acordo, diz C ritóbulo, pois se é rea lmente agradável, quan-
mundo adequada ao "êxito" no curso primário 'l, Através de lima do temos em comum o interesse por dinhe iro, rever nossas contas
presença constante, um apoio moral ou afetivo estí:lve l a tod o ins~ para ev itar qualquer contestação, é també m agnKhlvel, numa discus-
tante, a família pode acompanhar a escola rid ade da c ria nça de algu- ~:ío conjunta, passar e m rev ista, para nos pormos de acordo , tod os
ma forma (po r exemplo , através de Ulll autoritar ismo meticuloso Ou os pontos discutidos"!'i.
uma confiança benevolente). Neste caso, a intervenção positiva das Certas expressões empregadas marcam bem o fato de que uma dis-
fa mflias, do pOntO de vista das práticas escolares, não está voltada cussão é como uma o rdenação. Reto mamos ns palavras o nde as
essencialmente ao domínio escolar, mas a do mínios periféricos. tínhamos interro mpido, dn mesma forma como (lpa nhamos um ute n~
Moral do bom comportamento, da conformidade às regras, moral síli o o nde o havíamos de ixado. Fazemos um inve ntário ("passar e m
do esfo rço, da perseverança, são esses os traços que podem preparar, rev ista") J us pontos abordados como se faz um inventário dos uten~
sem que seja consciente o u intencionalmen te v isada, no âmbito de sílios Ou das provisões pam o ano. Xenofonte nos dá assim uma das
um projeto ou de uma mobili zação de recurso, urna boa esco lar ida~ chaves de inte rpreraç~o de seu texto: não se trata somente de um
de. Inúmeras carac terísticas próprias à fo rma escolar de re lações tramdo de economia domésti ca, mas também de um tratado de eco-
sociais estão próx imas desses traços: apresentação pessoal o u apre- nomia !JSíqlH'ctL O auto r comp<l Ta explicit:'lmente o inventário de
sentação dos exercícios, trabalho ordenado, cuidado com os cadcr~ suas contas e o inventário dos esquc mns ou tcmns utili zados. Mais
nos e at itudes corretas" . O ofíc io de a lu no no curso primári o , o tipo adiante, desenvo lve a idé ia segundo a qua l quem arruma os o bj etos
de ethos, de caráter que a escola exige o bjetivamente, podem ser pare- que lhe pertencem e os passa regularmente em revista desenvolve
cidos com O ethos desenvolvido por essas famílias. U1l1a mem6 ria maior('. Gestão de um interio r e gestão inter io r são
Se a ordem moral e material em casa pode ter uma importâ nc ia ativid8dcs irmãs. O aluno que vive em um universo doméstico ma te~
na escolaridade dos filhos, é porque é, indissociavelmente, uma ordem ria I e temporalmente o rdemldo adquire, portanto, se m o perceber,
cogniti va. A regularidade das atividades, dos ho nlrios, as regras de métodos de o rganização, estruturas cognitivas o rden adas e predis-
v ida estritas e recorrentes, os o rdenamentos, as disposições o u c1as~ postas a funci o nar como estruturas de o rdcnaç:'io do mundo.
sificações domésticas produzem estruturas cognitivas o rdenadas, capa-
zes de pô r o rde m, gerir, organizar os pensamentos. Xenofonte propõe As formas de autoridade familiar
um exemplo célebre em Économique. Quando Sócrates se dirige ao
rico C ritó bulo, faz o e logio tanto da o rdem material quanto da ordem A apreensão das formas de exercício da autoridade familiar nos
cogn itiva e da memó ria. Pôr o rdem em casa é uma o utra mane ira de parece importan te, porque a esco la primária é Ulll luga r reg id o por
pôr o rdem nas suas idéias. Da mesma forma que Sócrates aconselha reg ras de disc iplina e porque certos alunos são estigmatizados Como
C rit6bulo a passar em revista seus instrumentos, seus utensílios, bem indisciplinados, desatemos o u bagunceiros. A escola desenvolve nos

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES O PONTO DE VIS TA DO CONHECIMENTO

alunos e supõe de sua parte o respeito às regras escolares de com- o que necessitam para "trabalharem" bem na escola, pais que sac ri ~
portamento. O comportamento daqueles que respeitam por si mes- fica m o tempo livre para aj udar os fi lhos nas tarefas escolares, to-
mos essiJs regras é freqüentemente classificado como "autônomo" mando as lições, lendo os mesmos livros que os fi lhos para poder dis-
(a Autonumia é considerada a capacidade de segu ir sozinho pelo cam i~ cutir com eles e verificar se compreenderam bem, pais que aumentam
nho certo e da manei ra certa), e opõe~se ao comportamento daque~ o número de exercícios da lição de casa ou que pedem aos filhos para
les a quem é preciso, incessante mente, lembrar as regras e que lhes escreverem algumas historietas, ou ler-lhes trechos de livros ... A
demonstram pouco espíri to de autodisciplina, de self-direction. escolaridade pooe tornar.. se, em alguns casos, uma obsessão familiar,
As diferentes formas de exercício da autoridade fami Iiar dão rela- e podemos estar diante de um hiperinvestimento escolar ou pedagó-
tiVcl importância ao autocontrole, à interio rizaçãodas normas de COm ~ gico: fazer mais que os outros para estarem seguros do "sucesso" esco~
portamento'7 A lém disso, as diferentes relações com a autoridade lar dos filhos, reduzidos ao estatuto de alunos. Os pais "sacrificam" a
580 indissociáveis das relações com o tempo: a sanção física ou ver.. vida pelos filhos para que cheguem aonde gostariam de ter chegado
bal brutal imediata, que se repete todas as vezes que se quer limitar Oll para que saiam da condição sociofam iliar em que vivem. Mas osacri ~
aquilo que é visto como um excesso de liberdade da criança, opõe- fício parental pode ultrapassar muito O investimento pedagógico: esta
se a todas as formas de punição que são adiadas, e que possibilitam atitude geral deverá deixar traços na organização da ordem moral
a reflexão e aumentam o período de tempo no qual a sanção é apli - doméstica e na maneira de gerir a sitmlção econô mica da família.
cada; e, mais ainda, opõe~se a todos os procedimentos verbais de racio~ O investimento pedagógico pode tomar formas mais ou menos
cínio da criança, destinauus, no presente discurso, a fazê .. la compreen .. rigorosas c sistemáticas, mas pode, sobretudo, operarise segundo moda-
der o que compreenderá sozi nha no futuro. Portanto, é importante lidades mais ou menos adequadas, para atingir o objetivo visado.
estar atento a fenômenos de dupla coerção em alguns alunos: eles Os efeitos sobre a escolaridade da criança podem variar segundo as
podem estar sendo submetidos a regimes discipl inares, familiar e esco- formas para incitar a criança a ter "sucesso" ou a estudar para ter
lar, diferentes ou opostos. "sucesso", segundo a capac idade familiar de ajudar a criança a rea-
lizar os objetivos que lhe são fixados.
As formas familiares de investimento pedagógico

Nosso trabalho construiu-se em parte contra a idéia segundo a A PLURALIDADE DOS ESTILOS DE "SUCESSO"
qual as famílias populares cuj os filhos tiveram "sucesso" na escola
se caracterizariam essencia lmente por práticas de s uperescol ar i za~ Se levannos em consideração a literatura sociológica sobre os casos
ção. Pareceu-nos~" que estávamos, na verdade, diante de um m ode~ de "sucesso" escolar e/ou social de indivíduos oriundos das camadas
lo (singular) de "sucesso" por mérito, que implica tensão e atenção populares, encontramos um leque de hipóteses, todas interessantes,
familiares inteiramente vo ltadas para a esco la , mCJis do que a chave mas que não esclarecem muito o pesquisador9. Às vezes 6 o projeto
geral de acesso ao "êx ito", A existênc ia de um "projeto" ou de uma escolar, o superinvestimentQ escolar que é posto em primeiro lugar;
"intenção familiar" inteiramente o rientados para a escola se ri a às vezes é o aspecto ('família operária milirante" que é superconside~
somente um caso entre Outros casos socia is possíveis. rado (algumas famílias, por seu militantismo religioso, sindical ou
A lguns pais podem fazer da escolaridade a finalidade essencial, e político, desenvolvem, independentemente do capital escolar inicial,
até exclusiva, da vida dos fi lhos, ou mesmo de sua própria: pais que um interesse cultural que leva em conta os livros, a palavra formal,
ace itam viver no desconforto para permitir que os filhos tenham tudo explicati va, explícita, dita às vezes em público) "'. Podemos ter varian-

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O PONTO DE VISTA DO CONHECIMENTO
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

tes desses exemplos ao evidenciam10s famílias autodidatas ou carac~ E$tcs diferentes modelos implíci tos ou explícitos de "sucesso"
terizadas por uma posição profissional um pouco mais qualificada (qlle c"Ja pesquisador, segundo sua própria trajetória social, tem
(opcrárioespccializado, aristocracia operária .. .): ainda neste caso, é atra- It.' IlJê ncia a universalizar) tendem a fazer esquecer que as com~
vés do capital cultural adquirido ou conquistado que podemos expli - hlllaçõcs entre as dimensões moral, cultural, econômica, polí[i~
car o "sucesso" escolar dos fil hos. Finalmente, um último mexlelo ~ ,I , re ligiosa podem ser múltiplas ... e que os graus de "êxito" com~
implícito ou explícito: o caso de famílias cuja intervenção se opera es- p.lr<Íve is sob o "ngulo dos desempenhos, dos resultados podem
sencialmente nas condições morais, financeiras, afetivas. Por razões l"~co nder ~\s vezes es tilos de Hsucesso" diferentes. E se podem exis~
devklas ao percurso científico, poderíamos ter tido a meslrm tentilçnO I" estilos diferenres de "êxito" é porque a esco la primária propõe
de pé:lrtir da questão da cultura e da escrita: quando nos intercs:;amos ohJetivamente, por se us múltiplos aspectos, umn relativa hetero~
por um problema , ficamos sempre inclinados a tornar abso lutas (ou gcnc idade de mo del os d e "sucesso" esco lar ("sucesso" através do
seja, descontextualizar) as verdades parciais que produzimos. "fíc io de a luno Ou de desempenhos brilh"nres, através de qual i-
Mas quando nos defrontamos com casos singu la res considerados dades literárias o u científicas, em uma fo rma "tímida" o u ((arr is~
em sua complex idade , nos damos conta da debilidade Jestas Jiver- cada", "rigorosa" ou "c riati va" .. . ).
sas hipóteses que ignoram sua interdependência. Ser militante não
garante de forma nenhuma o usucesso" escolar da criança, nflo mais
que o simples contro le moral rigoroso, que o superinvestimento esco~ SINGULAR IDADE E GENERALIDADE
lar ou que o capita l cultural adquiriJo. Mas" preciso perguntar, por
Em lugar d~ ··~Ic -.cj o lk· j:!cncr,IJ.:.Ic,:.kl". J1(lI,kn .•
exemplo, se os dife rentes casos de pais dispõem de tempo e ocasiões I ~ mdlll ~ nll· (,11M ~I l' "d c~ rr C":1l rd tl~ C,I~" ~
favoráveis para exercer, plena e sistematicamente, seu efeito de socia~ ranh.. ul"n:S"".
lização escolannenre positivo. O que dizer dos pais militantes que rara-
mente estão em casa? O que dizer das mães que lêem bastante mas O problema centra l de con strução do objeto consiste e m pas-
que trabalham c não poJem cuidar da educação escolar de seus filhos? sar de lima reflexão estat ística sobre as relações, as correlações entre
O que d ize r de pais ma is qua lificados que outros, mas que, na div isão "me io social" (na maior parte das vezes definido pela PCS" do pai)
sex ual tradicion~:d Jos papéis domésticos, não transmitem seu ca pi ~ e desempenhos escolares, a uma microscopia socio lógica dos pro-
tal c ultural aos fil hos, educados por mães menos qualificadas? O que cessos e das modalidades dos fenômenos soc iais, sem ca ir no e n tan~
di zer ainda de pais que dispõem de m uitas qualidades (do pomo de to em puras descrições monográficas Jl • Para se passar da lingua~
vista d>ls exigências escolares), mas que, perturbados por um divór- gem das variáveis" à descrição soc io logicamente construída das
cio, não conseguem organizar uma o rdem familiar estável necessária configurações sociais é necessário uma conversão consciente do
para pôr em açfio algumas práticas escolarmente rentáveis para seus olhar socio lógico. Porém, os proble mas metodológicos e teóricos
filhos? Pooeríamos multiplicar os exemplos concretos que as teses evo- que nos co locamos e que vamos expor não teriam nenhuma per;
cadas quase sempre negligenciam. tinência se não tivéssemos em mente a idéia de que a sociologia
De um certo mooo, essas diferentes hipóteses procuram centrar deve tirar proveito de todos os métodos e de todas as maneiras de
a interpretação das sicuações improváveis de Uêxito" sobre um fator construir cientificamente a rea lidade social. As questões postas e
explicativo dominante, sobre um primum mobile, enquanto as con- expostas aqui são, portanto, questões de um sociólogo que tenta,
figurações familiares efetivas deixam claras combinações sempre espe- por interesse pelo conjunto dos métodos, traduzi r, comunicar suas
cíficas de certos traços pertinentes gerais. respectivas especificidades. Se est ivéssemos intimame nte con-

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES O PONTO DE VISTA 00 CONHECIMENTO

ve ncidos da superio ridade sem contestação da monografia sobre jl'l\k'lll "rransm it ir" ou não, as suas propriedades socia is. Dessa
as pesquisas estatísticas (ou inversa mente), então essas questões IUIIIl ; I, nunca devemos esquece r q ue esta mos diante de seres
não nos seriam jamais (im )postas JS • .Ht I,li:; concretos que entram em relações de interdependência
t" pn:ífic:ls, e não "vari áve is" o u "fatores" que age m na re;;di daue
Contextualizar " I( ,.,1. Niio podemos igualmente perder de vista que as abst rações

t" ':tl í~ticas (os critérios retidos como indicadores pertinentes de


Antes de tudo, é preciso voltar aos termos soc iológicos empre- H,' ;llidadcs !'Iociais) devem sempre ser contextua lizadas. Q uando
gados correntemente: "origem social", IImeio socia l" I "grupo social". (OI nfllnos nhso luto o efeito desse o u daquele fato r (ou a co mbi ~

Esses termos, que podem ser colocados como sendo IIcausas" em mod e~ 11.'\·:1" enrre um e outro), estamos produzindo falsos problemas liga-
los gerais (estatísticos ) de explicação dos fenô menos de "sucesso" di I,' ~l excessiva imprecisão dos termos utilizados (o qu e define,
e de "fracasso" escolares, ton"lam~se inadequildos a partir do mo men~ l'lll derer minada pesqui sa, uma Uori ge m soc ia l" Ou um Ilmeio

to em que vari ;'lmos, como diz Jacques Revel a prop6sito dos mi c ro~ '11(1:11" !). Esta pesquisa procura sublinhar a importância de se leva~
historiadores italianos '!> , o foco da objetiva, ao construir vo lunta~ H'1ll em consideração situações singulares, relações efeti vas entre
riamente contextos socia is mais precisos: configurtlções fa mili í-l res t 1:-' !'il' rcs soc ia is interdependentes, formando estruturas particula~

partic ulares ". Q uando muda mos o foco da objetiva e pretendemos I'l':-' de coexistência ("uma família"), em vez de correlações entre
consiucra r as difcrcnçHs entre fam ílias que normalmente se tomam vafl ,íveis que são recomposições sociológicas de rea lidades soc iais
elluivalemes nas pesquisas estatísticas (concretamen te as encontra~ i1' vezes "forres" de mais, desestruturantes demais ou abst ratas
mos nas mesmas linhas Oll nas mesmas colunas Jas quadros c!)rê1tís~ demais para compreender certas modalidades do socia l, e com i so
ticos) por sua semelhança do pontn de vista de propriedaJcs sociais l ' L'rtos rtspccros das rcrt lidades sociais em seu conjunro \'! .
gemi!, (por exemplo, capita l escolar, capital econômico) '\ então nos Ao construir contextos mais restri tos, son"lOS logica mente l eva~
Jamos conta Je que não há nada mecâni co (como poderiam fazer d():,- se não quisermos passar ao largo daquilo que constitui a gran~

crer os mode los deterministas e causa!istas um tanto abstratos), c, de pilrre ua riqueza dos materiais que a pesquisa prouuz - a decons~
com isso, nnua simples nos processos que conduzem :1S facilidades truir as realiuades que os indicadores obj et ivos nos propõe m, a
nll flS dificuldades esco lares. Deslocando" o lhar para os casos par- hetcrogeneizar O que havia sido. forçosamente, homogene izado cm
ticulares, o u, melhor ainda, para a singularidade ev idente de q ual ~ L1m H outra construção do objeto.
quer caso a rmrtir do momento em que se consideram as co isas no Tomando emprestado um exemp lo de Ludwig Wirrgenstein,
detalhe, o .ociólogo mostra aquilo que os modelos teóricos fund a- podemos nos interrogar sobre o sentido de expressões que aparen~
dos no con hecimento estatístico e na linguagem das variáve is i gno~ temen te são de lima extrema clareza e de uma extrema precisão,
ravam Oll pre~upunham: as práticas e as formas de relaçõe sociais tais como "esperar B de 16h a 16h30 ""'. A informação que tal enun-
que conuuzem ao processo de "fracasso" Ou de "sucesso". ciado traz, segundo o contexto reconstru ído visado, pode ser um
Dado que lidamos com seres sociais e não com coisas, é !)omen~ ''<Ieta lhe fi no demais" ou uma "grosseira abstração". Se o proble-
te por metáfora que podemos estabelecer um elo entre capita is ma consiste em captar uma trajetória social ou uma história de vida,
(econômicos, cu lturais... ) Oll recursos de qua lquer Outra n ature~ ISSO pode parecer anedótico. Se, ao contrário. nos interessarmos,
za e os desempenhos ou situações escolares. Não se trata de capl~ enquanto antropôlogos ou soc iólogos da cognição, pe las modali-
tais que c ircu lam, mas de seres socia is q ue , nas relações de m te r ~ J:1des do comportamento de um indivíduo particular, podemos con -
dependência e em situações singulares, faze m circul ar ou não, siJerar que essa info rmação não diz nad a do que aco ntece u.

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES O PONTO DE VISTA DO CONHECIMENTO

Witrge nste in o bserva que esperar alguém é uma atividade de es pí- ,111 "lIlh.TO''. JO:i ua
grupos aos indivíduos. linguage m dns v~ ri ..íveis
rito um pouco a mpla que não indica de n enhuma fo rm a os "mú l# . 1 d\ ''''l ru..' ;10 c ?l interpretação dos contextos, sem mudar nossas for#
111 , 1' l k- ver;1:, realiuades sociais.
tiplos pensamentos" que vão passar pela cabeça de A.
Todo!) os que praticam a pesquisa atra vés de qucstiomí rios sabem 1\.' t'.IlO, para que tenhamos UIll sistema de Jispo:, i çõe~ mdivi #
que as info rm ações produzidas nesse â mbito s~o a mbivalentes, , 111.11 ' cocrcn te, 5;10 necessárias condições socia is b:lstante particu ..
ambíguas e às vezes bastante vagas. Os rraços, propriedades, carac# I . II~ " l(tlC nelll sempre estno reunidas. Ourkheim, que utilizava a noção
terísticas extraídos das formas de v ida socia l devem se mpre ser ,Il' li fl/, jlU.'i no !)ent ido de uma relaçHo com o munuo muito coeren #
" . l ' dur;ívcl, evocava este conceito a propósito J c duas s ituações
recon tcxtllalizados se quisermos dar um ~e l1tid o soc io lógico às cor#
relações esta tísticas. 111 'lllrica~ singulares: as "sociedades tradicionais" c o "regime de in ter#
Il.llP" , No pri rn e iro caso, Ou rkh eim escreve que "O me no r dese n#

Exemplos caricaturais \'1dVII1lCnn) das individua liLhKles, a meno r extcns~o d(l j;,Yl'upo , a Itomo#
,l!i'Ill'idade dlls circunstâncias exteriores, tudo contribui para reduzir as
E"c UPI) d\' hiu)!r,III;I, '111\' po d.:ri.llllo, JI: cr ddl' rcnça~ e as variações ao mínimo. O grupo realiza, de uma manc i#
m.",1. 11. IInu l 'C: q U\' ,h 11ItI).!f.I(I,I.' IIld l\' ldu;u )
1.1 rL'J,!ular, uma l-imfannidade intelectual e rnaral da qual encontramo,l;
,IPl' !l;\\ , <,,,'l'm p.lf:l tll1 ~1 1 ,I r .I' (, \rm." I íIH... I ~ de
" 'lIll.'llLe raros exemplos nas sociedades mais avançadas. Tudo é com um
c omp.lrl.lI11Cn h l 0 11 .II.! ..·~t , lI l1l\1 •• lp r"''>t' 1I1. 1 11IU1 -
Lb .m,t l . Il!I , I~ ú l m;\ prt'Nlpc lS! r.l(l .t: .Ir.: (,I hl , IW' 'o(.' j \ !odos".f' . No segundo caso, Durkhcim e mprega o termo "habiu.ts"
G I)I.) . ,I hl llj.,tr,lh;1 n:itl é.1 JI: 11111.1 1'0.:"":1 , mj..!lI - ,\ propó sito Ja cJucação cristã como cuucaçüo que engloba a crian#
Lu. 11\," , "n.1 J .: um mJ.d..luu 'lU\: co ni.:clllm
\-i l IIltegm lmente, cuja influênc ia é ÚOlGl e co nstante. O habiw5, em
I< 1l1.1' . ,~ l M ':llte r í,tK,I.'t de um )!fUPC '·.
I lurkheim, correspomle perfeitamente i\ situação J e inrernato. O
IIltcrn.]fO é o pe nsio nato mais fi CSCOhl, o nde o a luno fica c ncl a ll ~
Quando estamos no âmbito de modelos estatísticos que fazem
' lIrildoj é lima verdade ira ins titLJi ç~n tota l no sentido de Goffm an.
uma correlação entre propri edades soc iais (se m JúviJa um tantu
C ons! itui () "meio natural de rea liza r integra lme nte a noç;io c ristã
quanto grosse iras e a hstratas), fo ra de qualqucr rcfe rê ncia a situa#
de.: cdllcilç~()" H : "para poder ag ir com tanta força nas profundezas
çõcs particulares, somos ~s vezes conduzidos a f:lZer uma represen #
l.hl alma , é preciso evidentemente que as diferentes influênc ias às
ração um [;1I1tO falsa dos seres soc iais concretos que, níl re~lidadc
ql la is csr:í buhmetida a cri a nça nãu se disJ>ersem em sentidcis divergen ..
soci al, s:1o os "portado res", os "detentores" dcss:ls propri edades.
{(.'S , m:Js estejam, ao contnírio, energicamente concentradas em Lima
Se remos uessa fo rm a levados a encontrar casos o u exemplos cari ..
cawrais, ideai.'i, sem dll vida sa tisfató ri os prara ilustnlr o rnodelo telÍ# mesma fina lidade . Só poJemos chegar a este resultado se as crianças
\' Ivcrcm em um mesmo a mbiente mo ral, sempre presente, que as
ri co mac rossocio lógico. porém insatisfató rios parti compreender a
envolva por todos os lados, J e cuja ação, di gamos, não possa m
realidade socia l. Para exemplificar o grupo uperário, pegaremos um
c~cflpa r" I' . A educaçãu é o rgani zada. então, "de mancim él poder pro#
caso caricatural que acu mula os c ritérios estatisticamente mais re la#
~ Iu:lr o efeito l>rofundo e durável que esperávamos dela " Ih ,
cionados ao grup04!. O quc fazer, cntno, com aqueles que não reú#
A coerência das di,;;poslçôes sociais q ue cada se r soc l:l1 poJe tc r
nem todas as propried:ldes que camcterizam o gnl po em seu COI1#
inrerio rizado depende portanto da coerência dos pnncípios Je socia#
junto? O que fazer com os o perários nfio-q ualificados que lêem mais
Iizaçno :lOS qllnis foi suhme tid o. A partir J o mo me nto ell1 que um
de 50 livros po r ano ? O que fazer com ;:Klueles que, em certos aspec#
,er socia l foi colocado, simultânea o u s ll ce~ivmlle nte, no seio Je
tos, em certos do mínios, parecem mais próx imo ao perfil dos buro#
uma pluraliJauc de mundos sociais n~o# homogêneos . às vezes cem#
cratas o u das profissõcs intermedhí ri as? Passamos sempre do "macro"

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES o PONTO DE VISTA 00 CONHECIMENTO

traditórios, OU no interior de universos sociais relativamente coe~ (v, u lIbcqüentemente, as analogias superficiais) - quando sa be~
rentes que apresentam, porém, sob certos aspectos, algumas con~ IIH I ... Illlliro bem que, em certos contextos, certas informações têm

tradições, podemos então nos defrontar com uma relação com o 1t1t ' 1)ClS va lor, menos pertinência (exemplo: avós que s6 estão pre~

mundo incoerente, não~unificada, que origina variações de práti~ "'~' llIl'''' na forma de esquemas de percepção que "transmitiram" aos
cas segundo a situação social na qual ele é levado a "funcionar". Existe 1'. 11 ' d" criança) - , é preferível privilegiar as equivalências efeti-
sempre, em cada ser social, em qualquer grau, competências, manei~ \'~ I '" l'ntTe as práticas contextualizadas (e, conseqüentemente, as
ras de ser, saber e habilidades, ou esboços de disposições, delinea- ,lll,ll, 19ias profundas e escondidas, que só a aná lise sociológica deta~
das porém nfla 8tua!izadas em algum momento da ação, ou, de II,ada rode fazer emergir).
maneira mais ampla, em algum momento da vida, que podem se r Normalmente , quando tratamos uma série limitada de entrevis~
_ . .... ~i

postas em açao em outros momentos, em outras ClTcunstanCIaS . 1.1 .... . rendemos, espontaneamente, a continuar a utilizar um raciocí~
lHO cstarístico. Por exemplo, em cerca de 30 entrevistas, podemos
A questão da equivalência ""contrm 3 casos patentes do papel importante desempenhado pelo
:Ivtl mélterno. Ora, lima ausência do papel desempenhado pelo avô
Na linguagem das variáveis, dois avós paternos com grande capi- 1ll :lterno em todos os outros casos vai nos impedir de compreender
tal escolar são considerados equivalentes na análise. Dois avós :1 k)gica dos 3 primeiros casos. A linguagem das variáveis nos leva~

paternos, que têm, por exemplo, nível universitário mínimo serão 1'iÍ:1 abandonar coisas de maior importância, e impedir::l. de levarmos
colocados na mesma cCltegoriaj na lógica ela descrição contextuali~ elll cons ideração 3 situações particulares que colocam em cena os
zada, empregada com mais freqliência por etnólogos ou historiado- ,IVl'S maternos, porque elas não se repetem formalmente, E, para o
res, um avô com importante capital escolar, que vê regul(lrmente Ct .njunto dos critérios utilizados, acontecerá a mesma coisa. Portanto,
seus netos e lhes "transmite", através de situações singu lares, as for~ é útil alternar o mais freqlientemente possível abordagens estatísti~
mas de ver, de apreciar, de avaliar o mundo, 111-10 é equivalente a C ·1S, m8is ~hstratas, e abord~lgens que fixam e in terligam as variáveis,
um avô corn importante capital escolar morto ou que não vê nunca ()$ fatores em tecidos sociais específicos, em configurações sociais sin~

seus netos porque não mora na mesma região ou país. Essa obser~ gll lares+~. Visamos, portanto, à alqu imia das relações concretas entre
vação pretende destaca r o fato de que as estatísticas são produções r raças pertinentes contextual izados.

de dados a maior parte das vezes muito abstratas, ou seja, abstraí~


das de seus contextos. A estruturação de objetos singulares
Muitas vezes a ação efet iva de um avô sobre as disposições do
neto, em um caso, encontrará seu equivalente na ação de um irmão Quem diz descrição de conrextos não diz ausência de qualquer
mais velho em um segundo caso, de um professor em um terceiro, problemática teórica, de qua lquer construção do objeto. Diante
de lima série de pessoas em um quarto caso, .. As pri:hicas podem, Jü que Jean-Claude Passeron chama de "radicalismo das formas"
em duas situações, ser idênticas ou parecidas no ângulo de suas moda~ - que "só pretende conhecer uma realidade, a dos traços perti-
lidades, mas distribuídas entre indivíduos sociais particulares de nentes e dos sistemas de relações que os constituem: realismo das
maneiras muito diferentes. Devemos, portanto, privilegiar as prá~ posições e das opos ições, leis de transformação ou de reprodução,
ticas e suas modalidades em relação à equivalênCia de indicadores para quem os futuros individuais, deixando de ser convites à des~
abstmtos. Em vez de adotar a linguagem das variáveis privilegian- crição daquilo que, em uma singu laridade, se presta à intelecção
do as equivalências fonnais entre traços abstraídos de seus contextos de generalidades, não podem mais ser vistos como 'portadores da

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SUCESSO ESCOLAR NOS M EIOS POPULARES O PONTO DE VISTA 00 CONHECIMENTO

estrutura', ocupantes de um lsistema' o u de um 'cnmpo', cnfim, agre ~ N.II' dl've mo::., porranto} trabalhar como se estivés:.;emos diante
gaçôcs de propriedades sinc rô ni cas".f<,l - , o pesqu isador não é oh ri~ t I~ ,1 .1, 1, ,., c~1 atí~ticos sobre uma população mais considenlvel. Os per~
g;'lllo . 1 c~lir n a a rm adilha da hermen êuti ca sem m étodo. E, louco ' ' ' ' I Ir ~ u n (Igll raçõe::. socia is são primo rdiais, e é preciso não perd er

por c~crcvcr histó rias, acaba por esquece r q ualquer exigência Je I 1U1I~l.ld\., de cada configuração. Isso não significa que as tais con ,
"estrururaçfio dos o hje tos de pesqu isa" e a qucstHo dos rr;.lços pe r~ III!III.I,tll'."" não devam ser comparadas, aproxi madas por seu paren#
rinentes da dcscriç~o . 11' ,t t) h Ig lCO, sua afinidad e global ou parcia l. Não estamos, porém,
As 26 configufllç<ies sociais que reconstruímos não são pums id eo~ 11.1 I, IglC:I ,Ie compa ração segundo variáve is, lógica que decompõe/
grafias fecllHJHs e m si mesmas e sem contato entre si. ~ses perfis It'l 4 ,lllpl-le os Contextos sociais a partir de uma fi cha de critérios obje ~
de configura ções cl1 mllnic~lIn~se entre si pe la problemática comum 11\'11'. A comparação é feita entre perfiS de configurações.
qu e as info rm a, m"s també m pelo tnlb"l ho Je escrita/reescrira que N:I linguagem musical, podemos d izer que assist imos a uma séri e
possibilita vo ltar ~ construção de uma configuraçfío após a escrita dl' v: m:lçõcs so bre temas mais o u me nos comu ns: mllsicas farn ili a~
de o utra , para que e lementos omitidos uu neglige nc iados durante Il''' ," lllgu lares, sínteses inéd itas, produto dess3 o u daquela combi~
a prime ira escrim despontem me lho r. Colocando em ação esq u e~ 11,1\.10 especial de traços pertinentes. Atentos à estruturação de
mas inte rpretat ivos idênticos, podemos ev ita r as armauilh3s da Illt)lllnto dns configurações} não esquecemos, no e ntanto , as sin~
mo nografia mo n auo lógica'·. Podemos ass im escapar à aroria de ,!III,,,,da,les, as particularidades. Colocando-nos no nível <Ias red es
inümeros trabalhos sobre o "fracasso" e o "sucesso" ('scolmes que, ten~ \Il' lllterJ cpcndênc ia entre seres sociais etmcretos, entre estruturas
ranuo compreentler os processos} acaba ram provocantlo um esface~ tIL· (Ilex lstência e formas que assumem as relações entre se res sociais
lamento dos objetos. "'lIlgLllarc:" percebemos de uma man eira mais precis:l aquilo que as
C ruzamos as informações sobre as olanças (forneciuas pelos rro - gLl ndc~ pesquis'lS estatísticas traçam em linhas gerais'l. Além J o mais,
fessores, rei as famílias, relos relatórios escolares, pelas ficha, esco- t' IlIICrOSC{lpio sociológico possibi lita descobrir (I re lativa heteroge,
Imcs que reSllmem os resultados de i-lval jrlção, pelas própri as e ntre~ Ill:iJ:IJC dflquil< ) que imaginamos ser ho mogêl'lco (tt um meio sociíl l",
vistas), sobre as família,') (obtidi-ls pe li-l ~ entrev istas com ~lS famílias, " 11m:! fn mília") , a instabilidade relativa desta red e de interdepen,
com os professores, com as c rianças) e sobre a vicla dll classe (entre~ dê ncia c H existência de e lementos contradit6rios, principalmente
vi sta.') com os professores, com ::I S c rianças). C uiJamos de não 11;1 forma de prin cíp ios de socia lização concorrcn tes.
se parar rlS info nnaçôcs (trar:lndo~:l s , por exemplo, como corpu-s sepa~ Finalmente, ueve mos precisar q ue o conceito de configu raçHo
rtlllos: as cn trevistas Jas criclnças, as entrev istas tias frlm íI ias .. . ). O u "'(lC icd, que estaremos sempre reto mando, é um conce ito aherto,
seja, tratamos tlc nfio privilegiar as va ritíve is e m re (;.lçHo à~ co nfi ~ maio" vo ltado pi1f<l designar um processo lentrll11ente consrruíd o no
gurações ~ocia i s. Podemos considerar que o interesse de tal estud o deco rrer das pesquisas e mpíricas do que para estabelecer uma d efi ~
é o d e realizar perfis J e configurações sociais com p lexas que m os~ niç~o estabilizada. A nosso ver, ele está fundmnent a lmente li ga~
trem cri anças no ponto ue c ruza mento de configurações fam ili a~ do a uma antro po loghl da interdepenuê nc ia humana" , que con #
res e do universo escolar, com a finalidade de compreender como ... idera os indivíuuos, a ntes de tudo, como se res sociais qu e vivem
resultados e comportamentos escola res singula res 56 se expliGl m em re lações de interdependência, ocupando luga res em redes de
se levn rmos em consideração uma situação J e conjunto como relações ue interuependênc ia e, com isso, possuindo cap itais o u
interaçiio de reJes <Ie interdepe ndênc ia (familiares e escola res), rec ursos ligaJ os a esses lugares, bem como à sua socia lização a nte #
t mmndas po r formas de re lações sociais ma is o u menos hnrmonio, rio r no se io de Outras configurações socia is;' . Definiremos, portan~
sas Ou contr:::lditó ri as. to, provisoriamente, uma configuração social como o conjunto dos

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES O PONTO DE VISTA DO CONHECIMENTO

elos que const ituem uma "parte" (mais ou menos grande) da rea~ "I",,,,ente rara explicitar o nde a construção particul<1r do objeto
lidade socia l concebida como uma rede de relações de interdepen- '!"l' l· ... llIdnmos aqui afasta~se dela, e, "lO mesmo tempo, para fazer
dê nc ia humana. A separação dessa parte de uma rede contínua ,,"" que a espec ific idade transpareça me lhor.
depe nde do ponto de vista do conh ecimento adorado" . Como um 1:111 vez de proceder, como de h áb ito, a uma defesa do caráter
pesquisador não pode nunca reconstruir rudo, e le ~s vezes so me n ~ 11I11\'L'r~f1 lm enre fecundo de nossa construção do objero, preferimos
te evoca de forma ge ra l o que será descrito em deta lhes por o utros" . dl'lL'lldcr o caráter experimental de nosso procedimento, que coni
Dessa forma podemos dizer que as configurações de relações de inter- ,,,"'" consc ie nte dos limites de validade , do campo de pertinênc ia
depenoência recorrentes que construímos com i:1 aj uu ;] de nossos ~ I() modelo utilizado. Sucintamente falando, acred icamos que seja
pcrf;, nno passa m de "trec hos escolhidos" de configura ções mais Ill·ccss ..ír io afirmar o caráter universa l do pode r eurístico desse ou
amplas. Por exemplo, os próprios pais são ligados por múltiplos daLl " e le método, dessa ou daquela maneira de construir o objeto o u
elos in visív e is a seus próprios pais, seus irmãos e irmãs, seus c() le~ ,bs" (l U daquele texto sociológico para ga rantir-lhes leg itimidade
gas de trnbalho , seus amigos, vizinhos ... Esses elos são presentes e 11U debate científico. Estamos mesmo convencidos de que é illl Só~
também passados: esses adultos const iruíram~se através das rela~ " I> acreditar que os conceitos ou os métodos socio lógicos são ou pode-
ções de interdependência que s6 compreendemos através de seus 1'1,1111 torna r~se ferramentas universais.

produtos cristalizauos, n a forma de disposições específicas de se Podemos até duvidar da pretensão 11 universalidade de a lgu ns
componar, sen tir, agir, pensar. Da mesma forma. as crianças estão 111",lclos teó ri cos o u de alguns dispositivos metodol6gicos (sua pre-
relacionadas com Outros seres soc iais que nem sempre pertencem tl:n~ilo de compreender todos os fenômenos sociais, tcxlas as dimen~
à consre lação familiar"ib. '1les do social, todas as formas de vida socia l). Podemos procurar
Podemos falar de configu ração socia l" respeito de uma intera- ...:omprecnue r seus limites de validade c, ao mesmo tempo, desco~
ç50 face a face, de uma sala de aula, de uma reue de vizinhança, de hrir seu poder ex plicativo específico. A partir de uma tal atitude
uma família, de um time esportivo, de um vilarejo, uma cidade, ctc. n . ru.:: ntíficil, niío devemos mais nos eSpi:lntar ao constatar que mode~
Po ré m, ao contrário de uma interação face a face, uma confi gura~ I()~ teôricos, fecundos para explicitar ce rtos fenômenos socia is,
ção soc inl não implica necessariamente que os ~c res socia is estejam enfraq uece m ~se, de repente, quando se afastam de seu Cilmpo de per~
jJrese nre.s no mesmo espaço e no mesmo lllomentn<;'~ . Além disso) é t inência. Tentam então, a maior parte das vezes desesperadamente,
possível imnginar a construção de configuf:.lções que n~o têm obri ~ trazer para si coisas que lhes escapam. A lém disso, a lição episte~
gatoriamente um nome na linguagem dos seres sociais: [) rccnrtc soc io~ rnolôgica que deco rre de tudo i sso~'1 consiste e m pensar que o tra~
lóg ico niio segue forçosamente os recortes socia is endógenos (admi- b" lho c rítico pode proceder desta maneira: "Esse conceito (ou esse
nistrativos, jurídicos, econômicos, políticos, re ligiosos, Illonl is .. . ). método), que vocês acredita m ser geral. unive rsal, só se ap lica de
mane ira pertinente a algumas categorias de faros, a alguns tipos de
Por um procedimento experimental pn.íticas ... ". E compreende remos aqui que os conceitos, o método e
a escrita sociológica usados neste trabalho niio escapam a esta regra.
Nosso propósito não é nem fazer uma c rítica uas estatísticas, Conseqüente mente, longe de nós a idéia de que a compreensão
nem uma defesa das descrições etnográficas/ideográficas, mas si m Je configurações sociais singulares que propomos permitiria aprox i-
uma tentativa de ueterminação, a partir de um problema panicu i mar-nos da complexidade do real. Por querer dizer tudo e considerar
lar, d e campos de pertinênc ia das duas abordagens. Se nos mos- tudo como significante, os soc iólogos às vezes perdem qualquer
tramos mais Jisrantes em relação às abordagens estatísticas, é s im ~ noção de estruturaçiio de seus objetos de pesquisa. Em relação à visão

40 41
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES O PONTO DE VISTA DO CONHECIMENTO

estatísrica que permite aceder a uma ordem es/>ecífica de complexi-


dnde, nosso texto insiste na ordem da complexidade à qual a recons- 1\ 1 ~ ' 11,lrll~' r, C. <. : k·,~c e J. II t:hr: lrd, Llrl' -2'crire . .., 1'-)1.) 1. ]1 . 46-7.
trução de configurações socia is singulares permite ter 8cesso. Mas
I' 1'-. '11 11 h\'1I el" .d ., Tral'm l ec crat'aillt!ur,1 cn AJg.?T1t!, 1963, p. } 16: "Em Ih):i~:h ~ 'K ic":Idl"~
trata-se de um nível de análise de um ponto de vista particular sobre I I ,I 1.11.. 11'11,11,:,11"::\,, ~l' e~ ren Je pouco <l pi)\lcn :lté:1 CCt11l0!1l1:l d"m ~snca ..
a realidade.
1< 1' ,1" llk'I, L',:Cilh' e~l-eJlI..' rL'llwbh'? 1 1987. p. 2 12.
Poderíamos, finfllmente, nos perguntar se não estaríamos suc um~
11 1\. l..Ih irl' , "L:I di v i ~ iiln ~cxtJdlc du Ir:1V:li l l!'é..:r1IUfl". ,", 19l},d,
bindo ao mito do mílpa tão grtmde quanto o território. Se acred i ta~
mos escapar a essa crítica, é porque nossa única ambição é mostrar
que é possível, de mzmeira totalmente experimenta l, e com um I' I 1 , 1"I ~h' lllI:·'IIt.:(l d,J agenda ( 'U d u c.llcnd:ínu t':.t.i hgadll .lo :,UlllclllU dll e:.paçudc tcmpu
número pequeno de G1S0S, pensar sociologicamente casos particLl~ ,I '" I l ' lIlI Tlll.l, h) e ~ cl)lllplcx idade Ja~ :lI ,\'kbdt!.~ qm: de vem ~l'r ~l·rid: I ~ 11.I~ ~'K:il·dade~
lares, em sua ordem de complexidade específica. Não visamos, por~ "lhIL' .1 hlllnCr.l1 i:aç,i'l .. :l nq::::1m:açfín da.~ ,U iVldaJe ~ :.'.1Cb l ~ ~ lIp t'icm a geH:i11 de h' n glls
I'rl i"d (l~ , Ie tempo, dur.mle os quais 5:10 1,I:m ej:ldns cncnn lW:i, reuni0cs, e\'Cn1(l~ ...
tanto, ao território, e não refaremos o mesmo procedimento em
relação a 300, 3000 ou 30000 casos : neste caso, seria bem melhor
trabalhar com a aj uda de ferramentas estatísticas. lI. 1,lllir..:, l..ll mi.lm! ele.. [!lu~ faihle., .. , 1993h.

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11Il'~1H11 , de IlIn d(lI11i lll U de ~ I e/uu Je Ufll<l dl~I"lU:'lÇdU c~I~lk. , llllC Plxlem rc\cbr-:.e ren-
1, I \'el~ 11(\ pl:ml) c:...:d,lr: lhJrlu~ ínlll\'U~, Ix 't'm.I:', dllltlhiug r,lfIOl" COlllt'n t;i.rin:. prolu lil t:-
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ç;io d:ls :l1i"kh.l~'~ (rq.~r,t:. e norma:. e xplfc it:1S versus regulariLbdl" pr:1[1I.:,1 do~ IwhiruI). I E~se , ah:", é um prt's~tjIXlst'l da I't'sqllba. Prclt'mk'lIIo~ ü'lllp.H<lr ,llgUIII,lS ~( lnfigllr, l ç':'l"
A e~":(lb, lugM eSIX'dfi c(I sl':pm:tdo da" (}ulrrlS pr:'iticl:> :.nc i:li:., esrá 1t[:::Id,1 ,1 l'xi,ti.'n..: ia (,ulli li <ircs: p(lr~ m, as CTlanças pudcm e~t'<tr lempllnniaml'lllc ((lr,llb C~lrutur;t familiar
de " dhe re~ (lhjellvadu";,, "pe&lgogl:,\çfíu" da:. rd.l\-tl e~ ~L)ci:lb lk ,lprendi z,lge1l\ é in~h~­ l l ,h~ICól c intern,l~ t:m ce nl n).~ Ilndt' q\l .... m [,lm,1 Clll1t.1 dl·I:I~ ,..;i" ,,, edul',lll'lre,' . Nó"uI é
." x:i:í\'el ~b c,m~ I 1[1l1 Ç,10 J c ~rllx: re~ bcnlOS (,)rm"llzados, s;:)lx: re~ ()hjc I iv"d() ~, dc limt[ .I· pu!' : ,<.:a~o que e~n~ n l;m~" a~ .... ~l.1C1 sempre em ~iltJ,u•.Jo de dili<':lIk1:\dl" <.: s..:ol;lr.
.! <),~, c"d ifi c;klos, que di:clll rc ~pcitn tanr,1 :,0 que é emin:,dCl quanto i't maneira de en ~i ­
n ar: W!1l0 ,1S pni ticl~ dos alllnll:' ljU<tntll tl dos pro(es~orcs. A fortml <.:s<:u lm J e aprendi- ~'I c. B,lLIJd01 l" R. E.,rahkr, AJI~'~ l.:s fi/In!. 1992. p. 150.
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42 43
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES o PONTO DE VISTA DO CONHECIMENTO

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~lle :. II\tU,I,I" em . " II r,1 1·.,C:I la. E h, ~ ~Ó ~;;u c lltll lll:!l1 V. I ~ 'c lev; Ire tn
cm c<tn'ldo.:: r.lç:lll n(v~· tS 1ll.1tlCIr:l de gen r M:tl ,lrç; ltI1ellltl, sell tt' mpo 01 1'-C li Ull"1"), 'oCl l ll~l) d ;l llll gl l agclll c ,,\l.I.~ e'IL(l·
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C,lrlllur.l i ~ (!::n'J"l'. lIl;b l'.Il>, e~l rll lur:b ... ) (IIn. L... I,), ..nhrc C~... IS c.tI('j.!o n:aç....c.. c ~ I c íl...ulu
c " ...omr..i· l.l.. JlIrantL· n.)'o,....l pbqll t~) , ma.~g,\',t,lríarn;.l~ Je rc-,.:.alt.lfu f.tt lllk: llue !l('!ll Io..b~
de méJI,I.' J"lrc;.tcj.,... m;t~. PC~lIm,I m ("Lcs d cc \arattum prulc'<:>lu nellcl>....., IIJ93); "Pllr ~l uc ,I... , 1l1l.I\tlC .. 'oC e llC. l!xal1\ nc" c m'IUt: I".
c comu. ,I partir ~Ic Ut1l u hJell.l q uc " l'rc~ llI n ti1fill;l' c dln:lInlCa~ ulmrlcx.I::<. d lt'g, III1\1"; ' 111 j..C. P.b:.cron. Lc Y(li.\(lllll('IIlt'JII snclo/ogiql/': .. • 1'.87
rc rrcsenl. lçi'c.. em Icnn,,, do.:: c,lruluras comp;\ct. l.. c \'.ma,f'e, Ilt.u}!in .mt'.
4'1 Ihld .. p. 188.
W C ioR. Lth lrc . "Fttrmc, '-t)C I••k·~ 1," 1 ' InlClure, nhtl'C 11VCl'> ... ... S.lhemo"lJuc (" C.,I.ttí:.llú"
1
lêm lendéncia:t "ml-dir oque h,i dc m:lIs m Clhur.h'c1" (F. Hér.m. "L·.I.....~I:>C '1,1I1~1 1~llt' dtO il IIml.. p. 80.
I.I l'>ou oll>gte". 1984) n.I \ td,1 "" l.I:lI, e nãué p..lr .Il,t:.Oqllc (" lfll ~ no .. dc nÍ\d dl' rl·m !. .
il l InM de n~):o.'.l:> rcferêlll t,':> tt'u nC;Jl> cnC{'llIr...~~· em N. ÉI••I~. M()~ltrt
e de Jlplu m.t ...i~) (rcq llcnt~'mclllc 1II1h:<tJtl:. !l1)) C:"luJO:' '>I.k.'IPlúgll.ll:>. M.I' é prel.l~ll.lIn·
l'lêm ;I~ \'o.:::l.'~ ir pnw.ur,tr.lulrn:-. ": riI ~ntl' tncllul>ubjCII\'.ldl l.' (c drftulmclllc 'lhj (, l ld\'CI~) ,~ E:. lIu\"io de IIllCfSU hjcl1\' I.ladc t)ll t:ll tnO Mo.::rle:lu-Ponty ,I 1l1l1htli::t ('!li ,tlJ.!un .. dc .....·u,
p,lrol cumI'Io.::~·mk·r lcrll )', (enilrnC n li:. ...uCI;\I~. t e X1\l~.

44 45
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

E ~SUCESSOH
H
SJ l\lrI!1ll 'Ú" 1"" .... Ie:Ill,h nU IH.,1 d l ~lX. I.tr lI:' C lpll ,li, (lU rCLI I N.~ d.l;', rc l.lç,-lC., do: Inter,lep<.'II - ') ' FRACASSO
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rt:' C)( l l'n(lrl'~ ;l l,I'-;1 ()l. ltl4). J..w \ll.!nJfK;I l.jIlC.1 lulU prccn ...·'o de ":l'r h h , 1~f'cU u-. d ,~ A 1'( lI'L Li\ÇÃO PESQUISADA
l,lJ\figUl,I, iil'~ '>111. 1, 11'1 (um J:;\.'),d, 1111\<1 (;1111111,1, .. ) 1'........ 1 pel.1 rccnn_~tnh~"il) ,lo: u !Ilfigur.l'
çiie_' dt: rcl.lçi'II,::' de intl'rdcpl'ndênc lOI 111:11' ,unpl,l', 11 wmti tuiç;;o da população entrevistada (dos 139 alunos da 2"
~~ n.':»,1 (lmll'., \,' llIIW~Sl)" perfi", qll:IIl~l l} tÜO poJ c m,,~ d":~tn.:"..: r, [l.lr t'Xt'llIJlhl, dct:tlhe~ "'1'" '0
do grau aos 27 alunos se lecionados) foi um lo ngo proces-
..1,1., n:1.!~')~·' l'nt r~ u:. P,lI' da ( rI ,lIl ça l' !>I: LI !> :1\'("', rl:l(lIll , I1l W.~ a 111l)!llolgl:lIl d.!, \'arüÍ\'!:Is .,c I, dl' 1t.:rminante para a continuidade da pesquisa, que implicou um
l!lIl' ltllbl' t l' l'lI) 11Idll .lr" rr'lfi~ .. Jo J (,I:' :lVÚ~, 1.1:111 \,(11110 :.cu '- nívCI' dI: lIl ~ tru ~J " , p.lr,1
\ lllllllnt() de: escolhas teoricamente construídas concernentes aos cri~
d ,lr \iml' le_'llll'ntc 1I11l:1 11l1,lg1:1Il ,u lll,íri~1 d~1' Unl\'CrMI:, "-(~I,II' d e n r l~en1.
11'lln~ de ~c1eç?io das crianças e suas famílias, Nessa fase partimos
l

'tO ~nhrO:fllJu '>1.:11\ c" l ~'~. I~ dt: d .....'C ..:um q Ul' m , \'~n.: ml l" 1'''lI.lelll ç~ttlr em re b, :1I1 de 1..0111· \ 11' c.(ll:ltr<) grupos escolares situados em zonas de educação prioritá~
I"ctI .. .in. t
11.1" na pe riferia cJe Lyon •

~i <.1 lun..:elUl d,' t:unfl~lIr, l ç.ill ";)P" l.I·~e t ,mll) , ll\~ J,:ru l'l(', rt:!,II IIi,Hlh: !ltl' rl::.t rl tnl1 ~I l),lmll Niio era de espantar que desta população inicial, que mora em
:1:. 'l"'ll,,-I.l\.lo:~ l'lrm;ld ,ll1 ("I.r Ill I lharl':'> llU mllhõc.. rJe :.cre' Inll'rd ClX'mk' llll.":'>", ":<.Cft:"C Nm· h, urro::. popuhues, 770ft) dos pais fossern operários ou empregados
!ler! ÉII: I~, (Ju "" '~"-' t /l ll' ta SOi.IIJ{('!.'1"'!, 1961, p, 150.
11.11 I-qua lific"dos (ativos ou aposentados). Só uma mino ria dos che-

S!I E:l~M11l 4"C En'm g ('jO((III. 11l ..:t1nl..l'!x: :.t'u' uhJl.'tc I', Oqut: in( \" re...' ;I ;lO;)uh ' r "i,HI\ "l.'nl..~'I\~ Iv, de família era constitu ída de empregados qua lificados, profissões
tn) .. !oC!Cl;lI'" . )\1 "r('lIll1ix', quI.' I\t"Ct'~It, lln d,) "l'rl''C n ~. 1 ll'njunt;t" t'
H " uned l,II ,I" dI.' I'l'l1' 1I1Icrmediárias, artesãos, comerciantes, pequenos chefes de cmpre~
"'l;I~ 'lU\.! "'>(' encnm r:un m lltll,l lIlcntl! ,I••• 1!c'lnCl' d'l tllh.lr t' du ulI\' iJ,)", e m I mlllt" fi'l
UI:> r.: b u\';l ltll'nt \.! rl'~tr ill1' ,
"" c executivos. A maioria das mulheres (66%) era dona-de-casa.
A() analisarmos a situação familiar, constatamos que cm 68% dos casos

tl,' pais eram casados ou viviam mariwlmente, com um número

médio de 3,3 filhos por família; notamos ainda o efe ito da grande
predom inância de famílias popu lares em nossa popu laçiio (40%
delas têm 4 ou mais filhos). Enfim outra característica era o faro de
l

J!r;mde número de chefes de família (na maioria o pai) serem estran-


I!ciros. As famílias magrebinas eram majoritárias (44%), seguidas das
1r<lI1ccsas (29%) e das famílias cambojanas e vietnamitas (" %) .
Os resultados da avaliação nacional da 2" série do '2 grau, da
qual e.tes alunos participaram em se tembro de L99 L, mostravam
que as notas méui:ls em francês e matemática situavam ..se em tomo
de 5,5'. Isso indi ca claramente que nossa população, essencial-
mente por sua composição social, situa-se de forma global abaixo
da média nacio nal. Os bairros populares urbanos agrupam famílias
cujas características sociais (econômicas, culturais, familiares., .) não
pred ispõem a grandes desempenhos escolares.

46 47
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES ~ FRACASSO- E " SUCESSO ~

Para c hegar às 26 famílias da pesquisa (e às 27 crianças, sendo \ 11111:1 c.: ao nível gera l do microcosmo partic ular que uma classe
2 dentre elas irmãs) , seguimos diferentes e tapas. A primeira con- \ \'Jl _'1 titu i a cada ano . Não são tão seve ros ao darem no tas a uma
sistiu em se lec ionar, entre a populaçiio ini cial, o subgrupo das famí- \ 1.1 ...... C co mposta e m sua maiori a de alunos com pequenas o u gran,
li as que se caracterizavam por ter um chefe com capiral escolar fr3co .1.-, dificuldades escolares e a uma classe composta por alunos
e por uma si tuação econômica modesta (exemplo: pai operário qua, IIl"lhores. A avaliação dos professores é re lat iva à co nfiguração
lifi cado ou não-qualificado, empregado do setor de serviços, empre- dI I /.:rupo,c!asse, e cada no ta só tem se ntido se relacionada com
gado não-qualificado, dese mpregado ou apose ntado destas catego- \) conjunto das o utras n otas da mesma classe. Segu ndo as classes,
rias). Esses c ritérios culturais e econômicos basearam,se na leitura . l~ nutClS obtidas são reavaliadas ou não, compensadas por outras
das profissões declaradas nas fi chas esco lares dos alunos o u nos lwtas ou não, proJuzidas em condições de auxílio durante a prova
questionários feitos antes da pesquisa. (lI] n1-1o, etc. Todas estas mane iras de man ifestar uma adaptação

Em uma segunda etapa constituímos, no inte rior deste sub, ; 1 lima classe particu lar que podem, se nos colocamos do ponto

grupo, duas grandes categori ;:Js de alunos: aque les que tinham "ido" de vista de lima estrita igualdade formal, ser consideradas como
relativamente mal na avaliação naciona l da 2" série (méd ia geral trapaças inst itucionais ("Eu os faço recomeçar várias vezes, se vejo
em francês e matemática estri tamente inferior a 4,5) e aqueles que que não está bo m, mantenho aquela nota, mas dOLl , lhes outra.
tiveram "êx ito" na ava li ação (média geral em francês e matem;hi, Para que não digam que estou trapaceando, faço a média das
ca estritamente superior a 6). duas notas, e o resultado vai parecer bem me lhor. Vai dar 5,5, 6,
Comparando as ava liações escolares comuns, constatmnos uma pur exe mplo, em lugar de 3. É por isso também que meus a lunos
grande va riação dos julgamentos das notas bem como dos valores têm notas boas") não passam de uma antecipação, mais ou menos
atr ibuídos à mesma nota por um professor,corretor ou por um outro l . consc iente, por parte dos professores, do efe ito "desmoralizador"
Basta imagimlr classes com níveis médios re lativamente altos pam sohre os alunos, segundo a expressão de um professor. Q ue pode-
compreender que as notas dependem particularmente de um con, ria ter, em contex tos de aval iação controlados, notas cod ificadas
texto. Inúmeros alunos passam pela experiência de serem os primei, de dese mpenho esco lar, desprov idas de qua lquer função simbó-
TOS de uma classe "de níve l méd io" e de se encontrarem entre os "mé, lica de e ncorajamento , mas vo ltadas exclusivamente para a ava~
dias" de uma classe que tem um melhor desempenho escolar como li ação objetiva das competênc ias ("Senão, alguns alunos seri am
um tooo. Na escola sempre existen"l os primeiros e os ültimos, e, segun, constantemente pena li zados").
do o níve l médio de cada classe, os primeiros e os últimos conside, Apenas na avaliação nacional é que as notas foram construí~
rados não são equivalentes no plano das competênc ias escolares. das em situações codificadas. Todos os alunos da 2" série de todo
O aspecto quantitativo da ava liação não significa que duas notas o terr itório nacional deviam fazer os mesmos exercícios, em co n~
idênticas, produzidas em contextos difere ntes (de um a classe para dições de tempo e desenvolvimento fixad as pelos que conceberam
o utra, de uma escola para outra) , têm exata mente o mesmo se n~ a ava liação. O modo de correção se pretendia também extrema -
tido. Seri a o caso se todas as provas fossem, independentemen te mente preciso. Os professores foram, no caso, apenas intermediá,
da classe considerada, estritamente cod ificad as do ponto de vista rios de uma organização já pensada, organizada. Ainda que exis-
dos exercíc ios propostos, das cond ições de aplicação desses exer- tissem margens de manobra - mesmo neste caso bem particular
cícios e dos julgamentos escolares e mitidos e m relação ao desem, em que a parcela de var iação contextual estava muito lim itada
penho dos alunos. Mas não é esse o caso . Os professores, conscien; (comentários sobre as palavras o u indicações julgadas difíceis,
te ou inconscientemente, adap tam~ se de fo rma ho meostática ao tempo permitido aumentado e às vezes nem controlado .. . ) - , a

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES "FRACASSO· E · SUCESSO-

ava liação permitiu-nos, do pom o de vista do dese mpe nho escolar, " " \l ll':-'SO " ,rive mos fi n almente di fi culdades em e ncon trar a lunos
selec io na r as c ri anças com a maio r segurança possível. A escolha , '111 ." ltll:1ção de en orme «fracasso". As c h il nces de se s<l ir muito mal
de a lunos da 2u série está ligada à existência desta avali ação. 1101 i lval i élç~o da za
série são portanto pequenas, incl usive nos me ios
É impo rtan te destaca r ta mbé m q ue as no tas da avaliação nacio- I'\ )!lularcs. A ma io ria dos a lunos teve notas médias, provando que
na l são construções soc ia is. Se considerarmos o valo r rela tivo ou Il,UI l'~r5o tota lmente despreparados d iante dos exerc íc ios escola-
() peso re lati vo dos dife re ntes ti pos de exerc ício propostos e m fra n - Il ':-, que lhes são propostos. Isso exige uma refl exão sobre a re lação

cê!i e e m m<1 te mática durante a avaliação da li! série do 12 grau e m , , ''" a esco larid ade nos me ios populares . O próprio fato de te rm os
199 1, nos damos conta de que e la registra - ao mesmo te mpo que IHI,) dific uldades em encontrar n otas mui to ba ixas ent re as c rian -
contribui para criar e manter - uma situação das práticas peda - ,.IS proveni entes dos me ios populares (apen as um qua rto dos a lu-
gógicas. O uConhecimento do códi go" (ortografia, vocabulário, gra- IIIIS te m n utas estritamente inferiores a 4,5) e que o grupo dos a lu-
mMica , conjugação ) representa 53 pontos, e nqua n to a "Lei tura- Ih)S "médios" seja o ma ior (com 40% deles com notas e ntre 4,5 e
compreensão" equi va le a 29 pontos e a "Produç ão do tex to", 18 ()) não é um acaso sociológico e histórico. São rnros os alunos radi -
pontos. Dél mesma forma e m ma te mática, os "Exe rcícios geomé- l'.dmente a lheios ao unive rso dos prime iros anos de escolarização:
tr icos" va lem 13 po n tos, as "Med idas", 19 po ntos, os "Exe rcícios :-.: uas fa mílias, em graus diversos, já interi oriza ram hábi tos menta is,
numéricos", 34 pon tos e a "Resolução dos pro blemas com dados Idhitos de vida, as tecno logias intelectuais da vida quotidian a q ue
numéricos", 15 pontos. Os exercíc ios têm , portanto , um peso maio r tê m relação com as práticas escola res.
ou me no r na con stru ção fina l da no ta. Isso confirma, e m relação A::. situações de "sucesso" escolar no c urso primário estão longe
à língua fra ncesa , que o conhec imento do cód igo é, hoje, centra l de ser im prováveis em m.eios populares. De fa to, quando cons idera~
no e nsino do c urso primá rio-+ . Mas tra ta~se . n este caso, de práticas mo, os índices de escolaridade norma l (sem repetênc ia) segundo a
em constantes transformações, e sabemos q ue certos e xe rcícios de categoria socioprofi ssiona l do pai, nos damos conta de que, mesmo
produ ção tex tua l ou de le itura-co mpreensão, po r exem plo, tendem nos me ios populares, que são os mais atingiuos pe la seleção m 1S pri -
a assurnir uma importâ ncia cada vez maior. O ra. os alunos norm a l ~ me iras séries do 12 grau, a probabilidade de aceder à 5i! séri e no prazo
men te têm - os professores e os resultados d a avali ação são tes- normal é maior que a poss ibilidade de se aceder com atraso. A ssim
temunhas disso - ma is dificuldade n estes do is do mínios do que sendo . ao nos referirmos a uma amostra de alunos de Si!. série o u em
e m g ra m ~'i ti ca . Pode mos , portanto, imaginar que se produ zirão classes de educação especializada (SES )*, no início do ano escolar
novas dife ren ças escolares assim que o peso da produção escrita e J e 1989, nos damos conta de que as escolaridades ditas "nonnais" repre-
da leitum -compreensão nas ava liações escolares forem ma iores. O sentam cerca de 60% das escolaridades de alunos oriundos de meios
mesmo acontece com a resolução de problemas de matemática. His- populares. É claro que as diferenças socia is são im portantes, po is, ao
toricamen te, as dife renças entre alunos não se operam sempre a par- mesmo tempo, 3 proporção é de cerca de 76% pa ra as posições socia is
tir dos mesmos do mínios e dos mesmos tipos d e exercício, e pode- "méd ias" e cerca de 88% para as posições ma is "favorecidas"' . Mas,
mos muito bem ter um sistema de difere nças e n t re a lunos que se hOje, para os prime iros anos de escolarização", a probabilidade de
mantém pe la simples mudan ça dos c ritéri os de ava liação.
O n osso temor inicial de não en con trar "bo ns" a lunos revelou- SES - Scct lo n d'EnscLgncmcnI S pécLa ll'ié (Seç;in de Ed uc:lçiin Espcc1:l1i:ad,I). (N.T.)
se infundado. Levando-se em conta que , com n otas abai xo de 4,5 ,
·... Na Fr,1I\ça, \, COlll"l> P répdI":lluirc (C P ), q ue C{l m.'~ I"m,J t.: ,1\. n'\:'>>'(' I' r\o-pnm:íriu, é ohnj!.I-
as crian ças eram con sideradas em situação de "fracasso" escolar, que lô do, ,,1(:11">\-,. ': :1 o a l, lllo e perm itc :l p:l"s;l~em p:\ r:l n q ue cor rc~ l'(}n\lcri a ;lI) n",,,,, CIIN)
entre 4 ,5 e 6 eram "méd ias" e , acima de 6, estava m em situação de pnrn;'i n o c que começa com (l CEI , Cour\ Élémc n r:l lrl.' I . (N.T.)

50 51
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES ~ fRACASSO~ E uSUCESSO~

incidênc ia de repetência é menor nas classes populares. A improba- lltll ll íni o do COlnporta n1 ento, da participação ora l, da "boa von;
bilidade estatística diz respeito muito mais às situações de grandes difi- I.ldL,ll que demonstram para estudar ... ), os a lunos julgados com

culdades escolares, cada vez menos freqüentes nas primeiras etapas '.... lI cesso" têm posições escolares mais frágeis, nunca total e defi~
de uma escolaridade que se prolongou nas últimas décadas. De fato, 11Iriv<lmente adquiridas. Dos 3 casos de dific uldades esco lares em
se por um lado é mais provável encontrar crianças dos meios popu~ " Igum mo mento (declínio regular durante rodo o ano, com altos
lares na população que teve ao menos urna repetência no primário (' ha ixos todo o ano ou e m um mo mento de te rminado do anaL
(eles fornecem cerca de 62% das escolaridades "anormais'\ enqu an ~ destaca mos 5. É impo rtante nOta r que os 4 casos de queda de
to representam cerca de 42 % do conjunto da população escolariza- níve l mais ev idente fazem parte das 5 no tas mais baixas do grupo
da), por outro não é absolutamente impossível encontrar crianças vin, q ue está em situação de "sucesso" (obtiveram entre 6,3 e 7). Po-
das destes mesmos meios com escolaridade sem repetência. demos conside rar, portanto, que é preciso ter no mínimo 7 na ava~
De forma globa l, há 20 anos os alunos vêm repet indo menos Iiação para estar-se seguro de não ter uma queda de níve l em
no curso primário 6 . Os descompassos se deslocaram, e operam-se !-o L:gu ida (encontramos ape nas um caso deste tipo , o de um aluno
cada vez mais no ginásio e no colegial. As proporções de acesso ao que teve 7,1; mas trata-se de um caso de queda circunscrita a um
último colegial numa amostragem de alunos que entraram na Si! período bem delimitado e determinado no tempo).
série em J980 mostram diferenças conside ráveis segundo o meio Isso indica que, se os grandes "fracassos" são, dados os casos
social de origem. Enquanto o acesso é quase natural para os filhos cons iderados, quase irreparáve is, os l<sucessos", pe lo con tr~'ir io. pare~
de executi vos e profissionais liberais (83,7%), ou mais ainda de pro- cem poder ser questionados a cada momen to. Apenas alguns casos,
fessores (88,8% ), permanece proibido aos filhos de operários não- interessan tes por serem excepcionais, não somente confirmam seu
qualificados (25,7%) ou de empregados ligados a se rviços (28 ,6%). "êxito" mas parecem consoliclá; lo com uma obstinação observada
O curso primário constitui progressivamente, historicamente, o solo pelos professores (qualidade de "competidor" , aluno qu e vai à esco-
comum sobre o qual as dife re nças se operam. I,,1 " vencer") ....
A última etapa da constituição da população pesquisada consis-
tiu em entrev istas com os professores de cada classe, a propósito de
cada aluno escolhido depo is d as duas primeiras etapas. A entrev is- A PERCEPÇÃO ESCOLAR DOS ALUNOS
ta visava a determinar se uma dada criança, tendo "fracassado" na
ava liação, não seria, habitualmente , um "bom aluno", se seu pas~ Quando o soció logo pretende indagar sobre o que está no prin-
sado confirmava ou negava o resultado da ava liação, etc. cípio do "sucesso" ou do "fracasso" escolar, não pode contentar~se
Foi no final dessas três e tapas que constituímos· nossa popula- com relacionar os critérios de "sucesso" e de "fracasso" com outras
ção final, que comporta 14 crianças e m situação de "fracasso" esco- variáve is familiares, ambie ntais ... N ão pode med ir "rigorosamente"
lar (5 meninas e 9 meninos) e lJ cri anças em situação de Usuces~ te ndo como base a pré-construção social, que é necessariamente vaga' ,
so" escolar (8 meninas e 5 meninos ). mas, de fato, deve incluir em seu objeto os critérios escolares do "suces~
As entrev istas que fizemos com os professores no fim do ano so" e do "fracasso", nunca totalmente explícitos e sempre susce tí~
escolar para compreende r a evolução dos alunos dos dois grupos veis de variações históricas, que ele próprio retomou no início da
durante o ano, permitiram-nos constatar que, enquanto os a lunos pesquisa para constituir sua população.
julgados "com dificuldades" no começo do ano pe rmanece ram na N ão é papel do sociólogo dizer o que é "fracasso" e o que é "su~
mesma situação no fin a l do ano (alguns apenas progred iram no cesso" escolar. Estas palavras são categorias, primeiro e antes de tudo,

52 53
~ FRACASSO" E "SUCESSO "
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

produzidas pela própria instituição escola r. O sociólogo que inter- t: qualidmles intelectunis, por o utro: ex istem alunos indiscip lin a~
viesse nas discussões para a definição do sentido dessas palavras esta- \1, ,.... 1l1strlvcis e com desempenhos escolares medíocres; alunos dis~
ritl entranJo enlumn competição semântica (como um professor ou l IplJnflJOS, atentos e com bom desempenho escolar; mas existem
um "superprofcssor"), dando a ("ti ma palavra. Ao contrário, deve 1.1lllhém. ainda que mais raramente, alunos razoavelmente indis~
constatar e analisar as vari3ções históricas e sociais ucstas noções ,'pllllado. e com bons desempenhos escolares, c " Iunos relativa-
um tanto V"lgas. Elas n ~o são evidentes por diver~;ls razões: de um 1l11:ntc Jisciplinados com fraco desempenho escolar. No entanto,
lado, porque o te ma do Ufracasso" (ou do l'sucesso") é o proJuto dis~ d:lIno#nos conta de que é mais freqüente encontrar crianças "esco~
cursivo histórico de uma configuração escolar e econtmlica s ingll ~ I.Ires " ou "esco Iarmente suponáveis" no pano I cnmponamc.n tal e
la r~. Por outro lado. porque o sentido e 35 conseqüências do "fra~ em "fmcasso" esco lar, que alunos llcscolarmentc insu po n •.íveis" no
casso" e do "suc~ssu" varimn historicamenre {em função do grau de plano compoft3mental e com "sucesso" na esco la. O bom compor#
ex igênc ia esco lar alcançado globalrnente por UI11r1 furmação soc ial, (";1I11cnto esco lar parece ma is acess ível fi esses édunos Je meios
da situação do mercadu tle traba lho, que ex ige novas ou mniores populares - e isto mais ainda quando se rrma de um}! menina (dos
qualificações, etc. "Passar de ano" na Zi} série nos anos 90 para um 7 "Iunos com comportamento escolar considemdo globalmente posi-
filho de operário não tem o mesmo sentido que nos anos 60, insti- tiVO e resu ltados escolares fracos, 5 são menina.) - que o bom
tucionalmente (atrás da semelhança lingüística aparente, "fracassar ,Icsempenho: dessa forma os qualificativos "bonzinho (boazinha)"
no exame fina l do colegial"* não rem nada a ve r com Hfracassar na ou "agradável" silo empregados para os II aluno, dos qua is 9 são
pré-escola") e socialmente (o que é um "resultado brilhante" para uma meninas.
família operária rode ser o "mínimo esperado" ou um "resultado Os professores evocam tanto - senão mais - o comporta~
decepcionantc" para uma família burguesa). Porranta. estamos menrn dos alu nos, suas qualidades morais, quanto seus desempe-
lid,mdn aqui com noções relativas de extrema variabilidade". nhos o u suas qualidades intelectuais. Um princípio de explica-
Ç"O pode vir do fato de que, ao contrário dos a lunos oriundos das
classes médias e superiores, ne m todas essas cri Hnçfls interioriza#
A ordem escolar das qualidades
ram (1::' normas de comportamento que esrfío n ~l hase da social i#
zaçfío esco lar. E~s<:ls normas, que são nat ura is, c que são aintla IlHl is
Os julgamentos dos professores para com detenninados alunos regis-
naturais quando flplicadas a púb licos infantis socirt lmcntc prepa#
tram, de fato, comportamentos reais, e não puros prcxlutos de sua
mdos para recebê~ l as , são questionadas por crianças tias classes
imaginação profissional. Porém, estamos diante de julg,lmcnros que
populares, portadoras, no interior da ordem escolar, de no rmas
fa lam de comportamentos reais a partir de categorias escolares de
heterogêneas (e portanto heterodoxas), ou sej", a'lt<lgônicas ou
compreensão, e, mais precisamente, de categorias utilizadas no curso
incompatíveis com as normas especificamen te e:,colares. Certas
primário. Nesses julgamentos, sohrcssai#se nitidamente uma sele~
cria nças são concretamente descritas como não estanJo escolar~
ção, feita pelos professores, dos fatos e gestos dos alunos que lhes
mente em conformidade, tanto - e até mais - no plano com~
(e para a escola) é pertinente. Assim sendo, constroem perfis que
pnrtamel1tal quanto no plano cognitivo. Elas parecem não ter as
acahmn por demonstrar harmonias ou contradições entre compor-
condições apropriadas para receberem as mensage ns esco lares: as
ramentos c qualidades morais, por um lado, e resultados escolares
mensagens n"o chegam até elas, ou chegam com dificuldade,
porque não o uvem, brincam, não se concentram , não fazem seus
N .• Fr:m(.I, n;lo h,í n::.tlhul.IT, ma." ~ i m lIlIll::X,nllC n,) (lIul do UIJ"',t) c;\,lc~ ... 1. o n.:/(f(lkmràll,
\'11 ~ l rnpIC~mI.!IlfC n.:u:. que Il.Iblllt.1 U ~dutln.1 enlr:lr em ~l llalqLlcr f,KUld,ldc. (N.T.) Jevcres, estão sempre viradas para trás, com a "cabeça na lua",

54 55
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES "fRACASSO· E "SUCESSO·

não estudam CO Il'l O os outros, são le ntas ... Estes a lunos devem sem# primeiro andar do edifíc io escolar, é indissociavelmente um lugarde
pre ser sulicitados, chamados à atenção, receber orde ns e diretivas vida, com regras explícitas e normas implícitas relativas à vida em
uo, professores. Não se pode deixá-los sozinhos, e é necessária mmllm, à relação com o adulto, à disciplina, um lugar onde são incul-
sempre uma pressão externa forte, e ao longo do tempo cansativa: cadas novas estruturas mentais, novos saberes e relações com o saber.
"Repetimos sempre a mesma coisa"; "Sempre temos que dizer# A própria illStituição diferencia esses dois aspectos relativamente indis-
lhes ..."; "Somos obrigados a vigiá-los o tempo todo ... "h' sociáveis em categorias de classificação dos a lunos. que cncontra#
mos nhjeti vadas sobretuJo nos relatórios escolares c nas palavras dos
o aluno ideal da 2'" série do 1 9
grau professores em relação aos alunos: uCompo n ;.1 men tos escolares" e
ll
"Resulnldos escolares A parte dos relatórios concerne nre ;) escola

o aluno ide·a l da 2 í1
l1érit:!, Jd"i nido elll abstrato nUlllil ílvaliaçãn Ilt:!ga liva ou materna l chcga mesmo a privi legiar de forma hem clara a aprcen-
explicitallll::ntc: na ~I v: di aç.fkl positiva dos nlllnl)lI, é t) sCl;:uinl c: ~H() e ~lVfl liação da integração, da adaptação do a luno m1 classe.
Quanro me nor n g nlU de escolariz;lç~n (mnternal mais do que pré~
Quallllades comportamenlais
Um a luno ...
escola, pré#escola mais que primeira série."") , ma is os :lspectos com#
""" i1t1tônnl1lll, dl'Jciplinado. que fíca em seu lugar I! n;in M: mexe muito na c1as# portamenta is parecem ser importantes.
~e, ca lmo, tr.lnqutlo, atemo, oominho, atencil'.l<;(.), educaJo, quI..' panicip..'l au# Os professores privilegiam, portanto, o comportamento como um
vamcnte c escuta \) pmfcs.!;or, rcm vontadc, rcm regularidaJc no estudo c em todo, o emos detectável no aluno através do conjunto de seu com-
scu c.'J(orçt), hll-:\l CtII1lI.'Ç;I a lrabalhar quando S\)llcit.IJO, (.-I: I~ I..'xercícillS l'SCO- portamento na escola em relação ao domínio de qualidaues intelec-
lares no lempo previ!i[o, não (('m a "caheça na lua". n;i\) é Jistraído. n50 brin·
tuais "puras". Aquilo que podemos classificar entre os "resultados esco-
ca durante as aulas. não é in(anril. não';; instável, n:iose deixa levar Pc!\)S que
ficam brincando. não conversa. com os colegas, não fala pm (alar, é sériO, apli. lares" e as "qualidades intelectuais" fica quase sempre no limite da
cado, cUld:IJII$lI, :lprcsenra ou esrruturil bem as li çôcs. ()rdenaJn, n50 esquece Jisposição moral Je conjunto : ter uma escrita "legível" significa tam·
(l m,lIl'fial, apn.::ndc as liçôes, fti: os devl..'rl..-'S em casa, nno falta, ndO I! medrm,o, bém "aplicar-sc"; não precisar o tempo todo de explicações sign ifica
ansioso, angust iado, nii\ ) eorra em pânico, não é emo,)[ivn J etn.lill, é dcsc( lnlmí. também "saher se virar sozinho"; "ser autônomo", "independente",
di). fica COntenl e de ir:'\ cscoln (' mos[ra intere~se pelí'l atividade:: C~t)lar" "curioso", é ser "aberto"; saber "adaptar#se" aos exercícios escolares
QUll lidcl(I~s imelectlUlis menos ori entados é ter "espírito de adaptação" a proble mas sempre
U m :-t llln\) .. novos ... Inversamente, inúmeras qualidades "morais" Ou "comporra#
... dotat.ln, inteligente, n tl to. curioso, que cnnsl!gut! absu ai r, tem hnn mem6- mentais" têm implicações intelectuais quando se referem a trabalhos
ria, cnmprcenl..lc n que lhe é diw. nãu prccis<I constancernente de exp licações, escolares. Ser "orJcnado", "orga nizado", é també m ser "rncicma l" , "ter
rc.'iolve corretamente até o:, exercício:. que n:io t'xlj:!em apenas a aplicação de idéias <..l rde nadas"; ser ucuidadoso" ou "he m·cuidado", em geral, quer
mecanisO)ns {lU <Iu tnmatismos , pensa naquilo qUI! faz, sabe adapmr·sc aúS
dizer "cuidar de sua expressão", "cuidar de sua apresentação" e mU$#
eXl!rcício.' l.'sc\llarcs mcn0." oriencados, Jlrigklt)s, Jeflnidos.l'nquadrados, n50
tem prnhlcmóls de pronuncia, (em uma t:SCrita legível. n50 tem problema ... de trar um "espírito de clareza" em certos casos. Temos, portanto, de ope-
1 {~lCa ou Je comprt!ensão, é oom na resolução de pmhlcmas marcmtÍtlcos. rar com algo de artific ia l, da mesma fomla que, por necessidade da
(em UIIl voclhulário rico, uma bo.:, expressão oral ~ l'scnla, c gosta de ler. análise, fizemos a divisão sistemática entre os julgamentos sobre os
desempenhos e as qualidades "intelectuais" de um lado, e sobre os com-
A lém da explicação da importância da, qualidades comporwmen- portamentos e as qualidades" morais" de outro. Os resultados esco-
tais ou morais mravés dô:ls características socia is do público, é preci~ lares ou as qualidades "intelectuais" são julgados Oll de forma muito
50 evidentemente evocar o fato de que o curso primflrio, enquanto global ("muito bom", "ruim'\ "dotado'\ "inteligente", "não é idiota"".),

56 57
" FRACASSO ~ E "SUCESSO"
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

Ou pela simple, constatação de debilidade ou de fo rça particular nessa sozinho ao fazer um exercício escolar somcnte com as ind iG1ÇÜCS escri,
o u naq uela matéria ("boa em expressfio ora l", ((prohlemas em leitu , ras ... ). O termo "auto nomia" parece crisralizi.1r um conjunto de C"lmc,
-
ra,compreensao " .... ) terísticas valorizadas do ponto de vista csco\}lr.
Conseqüentemente, é necessário leva r em con ta o fato de q ue Antes de tudo é preciso uestacar () far() de que ;1 escol .., não é um
os professore~ 0,1 2.J. série vêe m essencia lme nte os ~ll u n os atr~vés Je simples lugnr ue "lprcndizagem de saberes, m as sim, e ao mesmo
sua (boa Ou má) adaptação ao espaço "e socializaçiio escola r; veri- tempo, um luga r " . oprendizagem " e form". de exercíc io do poder
ficam se estão em confo nnidade com ri o rd e m escolar (sua boa o u c de relnçõcs com o poder, A escola , corn o um universo o nde re ina
má "fo rmação" famili ar em relação à vida e m fo rmas escolares de a regra irnpessoal, "opõe,se a todas as fo rmas de poder que repousam
soc ialização). Podemos a té verifica r, em ex pressões dc) t ipo: "pode, nr.a vonrade ou 0<1 inspiração de uma pessoa"!!. Nesse âmbiro geral
ri a ter resultados quase perfeitos" se ela n rin fo.')sc "instrível", "dis· da regra impessoal a escola passou histo ri camente da construção da
persa"; "menino que tem poss ibilidades" mas Ué infantil"; "inteli , fi gur<l UO u~l lun () dom ;'ldo " à do "aluno sensato c rac io nal", sendo a
gente" mas "carastrôfico do po nto de vista com po rtamental''j "se nlzfio 1I1'n poder sobre si mesmo que substitui o pode r exerc ido pelos
quiser, ela te m muitas capacidades", provas ue
que a "inte ligê nc ia'" Outros C pelo exterior. Deixar o aluno caminhar sozinho e n"l Jireção
as "capilciuades", ilS "possibilidades" são c ritérios necessários, mas ao sahcr, sendo o professor mais um guia pedagógico do que um ins.-
não !)uficientes nos primeiros anos de escolaridade. Fina lme nte, o trutor (no duplo sentido do termo), pedir-Ihc que se comportc hem,
que os professores nno deixam de falar durante as e ntrevistas, é que através de uma forma de autocontro!e bem compreendida, 6ign ifi,
Ctt estrl r cada vez mais próximo de um aluno .sensato e rac ional, de
de nada serve o aluno ser " inteligente" se ele não exercer sua "i n te,
ligência" nos momentos c , sobretudo, nas formas escolares. um aluno capaz de self-gouemmeru, de "aprcnuer a apren"er", de c",ni-
nhar sozinho para a apropriação do sobcr com a aj u"a "e fichas (de
Sobre a autonomia e a disciplina l.eitura, de o rtografia, de gra mática ou de matem:itica), capaz de
faze r um exercício np6s a le itura de uma instrução, de orga ni z~ r soz i~
o r:~pirt[ . hl., , h~llp lin . , ": •. H l 1111: .. 111 •• t ~·lI\po . li I1ho se u tmbalho. de vimr~se sozinho o u rrflhalhar e m grupo ...
~l... nt i,lll I: J,:()~ [O d., II:J,:t d ,lr!d,kl.: . \. ~I:ntld" e \I
o)
Reconhecemos nessa séri e de práricas o u de slogans pedagógicos
~t1~h) d:l Iim lLlç;i n dns dc ..cJu." II Tl',"'pel[. ) :h
rl:gr~I~, {]lll' IInpü c ,tO l11lhd~l lIU ,I mlhi~' ,i'l ~hr.. os leitmoliv da pedagogia moderna, tendência de inlllneros profes-
1Il1J1u l:-'~1" I: d lll:,f'lr~"l l ", [, A ml tl 'nllln i,l ~ ; t ,111 - sores em seu d iscurso c/ou em suas pníri cas. Nada de ap re nder usim,
llh,k· ,le Utn.! \(lnld~ll' \l u e ,ILl'tl" Tegr;l. J1üh ;1
oi
plesmente" a ler (como dizem alguns) , ou seja, somen te decifrar; é
reu lnl1l.'u· c. lln, ' r.'l.lllfl"IIlll'llll' fluld ,,,.!,, " ,
preciso compreender o que se lê; não se trara tampouco de rec itar
Je cor uma liçfio de gram ..itica, hisnjri a o u geografia e n50 saber do
A autono mia e a falta de autono mia sfio frcqüenremcnre c itadas
q ue se está falando; ne m se trara, enfim , de "ap licar mecanicame n ,
nas e ntrevistas dos professores para qualificar a arituue uns a lunos em
rc" regras de grnm ..itica o u procedimentos matemáticos, Illas é prc·
"sucesso" o u em "fracasso". Autonomia visra como autouisciplina cor'
ci,o compreender o que se está fa:endo e mostrar (explicar) que.e
!,oral (saber conter os deseJOS, portar-se bem, fic", ~ Imll, = utar, levan-
compreen"eu o que se fez.
ta r a mão antes de falar, começar a trabalhar sem que o professor tenha
Em língua francesa não partimos de regras Je gra m;lrica ou de
neccssidnde de intervir, imprimir regularidade ao trabalho, ao esfor'
o rtografia para fazer exercícios de ap licação, ma!'! dil constatação,
ço, scr o rdenado ... ) e como autodisciplina mental {saber fazer um exer-
tendo e nunc iados como base (produções orais espom il neas, peque-
cício sozinho, sem a ajuda do professor, sem pergunnu nadt:l, fazer lima
nos textos ... ), de um certo número de pilrticularidndes d,l língua.
leirum silenciosa c resolver por si mesmo um problema, saber se vira r

58 59
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES ~FRACASSO~ E ~ SUCESSO ·

O u se tenta até, em certos casos, fazercam que os alunos descubram pensáve is ao estudo de todas as d isci plinas, ta is como a compreen ~
as regras ou reguhlridaJes gramaticais ou ortográfi cas. Da mesma s;i()e o respeito pelas instruções precisas"'4. Na Illaioria dos exerc íc ios
forma, ainda que os métodos globais nÃo tenham sido realmente apli- de francês e de matemática, as instruções são dadas oralmente pelo
cados, os debates sobre a le itura e a mane ira correta de e ns in á~ l a professor, mas pede~se a ele para não dizer nenhuma outra coisa ( e n~
provocaram uma mudança da defin ição social da leitura escolar, defi ~ con tra mos, por exemplo, no exercício 11 de francês: "Se uma c rian,
n ição e m que a compreensão assumiu uma im portância capital ça ped ir explicações sobre o sentido de lima palav ra, n ão responda") .
( mesmo não sendo exclusiva ). Cada vez mais ped e~se ao aluno urn No entanto, dois exercícios consti tuem a chave da compreensão para
tempo de pesquisa em fra ncês ou em mate mática. Traba lhos e exer- a qual se que r cond uzir a c riança. Trata-se do exercício 4 em fra n -
cícios d uran te um período de te mpo determ inado são dados a eles, cês e do exercício 9 e m mate mática. O obje ti vo, nos do is casos, é
e deixa-se que eles os organizem sozinhos. Traba lham sozinhos a par- determinar se os alunos são capazes de compreender e aplicar as ins~
tir de fichas e aprendem a se autocorrigir, procuram livros na biblio- truções que não são lidas pelo professor. O exercício 14 em francês
teca e marcam sozinhos em uma ficha o gênero, o título do li vro ta mbém começa com a le itura sil enciosa das instruções pelos alu-
que pegaram... Essa te ndê ncia peJ agôgi c~l generalizada explica por nos , e m seguida lhes é dada a pa lav ra para saber se compreende-
que as matérias ou subdomínios que implicam maior compreensão, ram; e, finalmen te, o exercício solicita ao professor que este rcfo r~
mais "razão" da parte do aluno (l e i tura~co mpree nsão , produção mule o ralmente as instruções. Nos comentários do exercício 4 são
textual, resolução de problemas matemáticos ), ganham um espaço fcitas sugestões aos professores a respe ito de exercícios futuros em
cadR vez mais importanre na esco la primári a em detrimento de que se preconi za a c ri ação de instruções por algumas crianças, e , em
exercíc ios julgados mais mecânicos, mais auto mát icos , e, ao mesmo seguida, sua execução por outras c rianças, para verificar se as ins~
te mpo, mais "bobos" ((lprender de cor, aplicar uma regra .. . ). truções são suficiente mente explícitas e se os alunos que as aplica m
Como prova dessa tendência escolar generalizada em direção a o fazem com o rigor necessário. Da m,csma fo rma, o exercício 6 Je
fo rmas de orga nização que atribuem um luga r central à aurodisci, matemática consiste e lll faze r os alunos e ncontrarem a ind icação
pl ina corporal e mental, podemos pegar o exemplo da avaliação nacio- q ue lhes possibili tou realizar um desenho.
n al da 2' série do 12 grau feita em 199 1, que dá uma idéia do que Portanto, para os autores dos cadernos de ava liação, parece que
pode significar o termo "autonomia", Podemos procurar na natu, a autonomia da criança está intrinsecamente ligada às instruções. Por
reza e na formulação dos exerc íc ios! I o aluno v isado por aqueles que exemplo, encontramos, em relação ao exercício 4 do caderno de
conceberam essa '.lV a li aç ~o nacional. francês, o seguinte comentário : "A compreensão e o respe ito por ins~
Podemos notar, antes de tudo, que a ava li ação nacional da 2i! truções variadas são indispensáveis a qualquer trabalho autônomo da
série aconteceu sob o signo das instruções: instruções aos alunos, criança, e isso em todas as disciplinas. Tra ta~se de instnlçôes que ela
instruções aos professores. Em um uDocumenro para o professor'\ encontra h abitualmente nos exercícios que lhe são propostos, e que
os professores encontram uinstruçôes de ap licação", "instruções de quase sempre não são aplicados com rigor. Essa ausênc ia de rigor, mais
codificação" e "comentários". O mesmo texto precisa, em matéria do que uma incompreensão das instruções, pode explicar e rros"!~ ,
de "saber ler", o papel central da compreensão e do respeito às ins- Fica claro, antes de tudo, que a autonomia visada est~ muito liga'
truções nos exercícios escolares, independenteme nte do do mínio tIa a uma relação partic ular com a leitura, e, no fu ndo , à leitura silen,
considerado: "O objet ivo prio ri tá rio que a abordage m dos textos, ciosa e íntima, não~orientada. Nesse sentido, a autonomia tem seu lado
em toda a sua di versidade , constitui acabou por colocar as c rianças de dependência. Essa dependência ex iste em relação aos saberes, IIs
em situações muito diversificadas, incluindo competências ind is' instruções, às regras obje tivadas, das quais é preciso apropriar-se para

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES ~ fRACASSO " E -SUCESSO-

chegar..se sozinho a lima solução, a uma descoberta, a uma progressão ,1 11 " (' "1l.TcptO!''') constituti vos de lima rel~Çiio específica com o poder.
no saber. Mas o conjunto de técnicas que conduzem (obrigam) Hé1 U[O" ~ 1 \. h l.,datl deve agora ser capaz de loca lizar;se em UI11 espaço escri ..
nomia (compreensão audi tiva ou leitura silenc iosa das instnlçóes, I, I t' 1~l. lllc() como o question ári o, de fazer uma escolha entre vár ias
ausência de resposras nas questões colocadas, uso de fichas, sistern as 1" ' I't )"; I~ possíveis predeterminadas Oll de reê1 lizar um ato a partir de
de autocorreção. liSO do dic ionário para procurar soz inho o sen tiuo de IUIt.1 IIl ... truçào dada por escrito e e nunc iada por a lgué m. O poder se
uma palavra ... ) constitui uma relação de poder C uma relação com o saber. \ h- "'I'~' r~llnaliza nesse tipo de situações. Esses usos sociais c.l n escrita
A autonomia é, portanto, uma forma de dependênc ia h istórica espe" 1· ... 11111 \ 11': 1111 uma forma de exercício de poder especia l. E nus faz ine ..
cífica. A iigura do professor desaparece em proveiro de dis/JO.litivos />eM- ,'II.lvl.· lmente pensar na definição weberiana da domin;:!ç~n legnl e
gógicos objetivado"" em relação aos qua is ele desempenha dois papé is: 1. 1\ Illn: lI : "o Jetentor legal.. típico J o poder, o 'superi or', quanJo esta ..
preparar para a utilização autônoma desses dis[K)sitivos através de um 1\11 t·, portanto, quando ordena. obedece por sua vez à ordem impes-
traba lho específico sobre a le itura-compreensoo (leitura solitária com ,,>;,1:11 nlvés da qual orienta suas disposições [... 1, os membros do grupo
os o lhos) f, em seguida, guiar os alunos em sua progressão autônoma IIII\.· (, hedecem ao detentor do poder n ão obedecem à sua pessoa , m3S
em direção aos conhecimentos (respondenJo faralme nre? perguntas, ' "11 :I regulrll11entoS impesso<:lis"' ~ . O autor acrescen ta que "as pro ..
lembrando ou comentando as instruções ... ). 1" )W, tlCS e as dec isões, as disposições e l)S regulame ntos de todo tipo
Devemos {)hservar q ue um tal fUl1cinn;'.lmento peuagógico impli .. ,. H,lixados por escrito"11.
ca () uso recurrente e central de dispositivos objerivm.k')$: d . l ínstruç~o Seria um a CllSO se a seguinte formulação IIPode ríamos portHnto
escrilil nu Ljui.ldru .. negro ou impress<l até as fichi.1~ de perguntas c res-- 1""1"": traba lhos com todos os tipos de instruções; a proUUÇ"O de
postas, pass~l nuo pelos manuais escolares. E podemos relacionm estes 111-" ru ções em o utras situações, pelas próprias crianças, te ndo como
d ispositivos objetivadoscom exercícios propostos a parti r do curso pri- pnmeira va lidação a execução destas instruções por seus colegas;
m,írio: ler um q uadro com entrada dupla e saber colacer os dados em .1 consti tlliÇ~o progressiva de recapitulações metodológicas, que even ..

um quad ro (exercícios 11, 22 , 2S, 27 e 28 de matemática), efetuar uma I ualme nte pod eria m estar afixadas na classe. e que estejam e m
escolha entre muiws respostas possíveis, como em um questionári o de n:Llç;lO com as (ltividades da classe"'tl le mbrasse imediatame nte
múl t ipla escolha (exercíciOS 2, 3, S, 7, 8 e l 2 de francês e 4, 6 e 20 de t.t.:rtns situações soc iais um tanto burocráticas nas qua is instruções
mmem;.írica). saber responder a um questionário, saber ler um cn len- ...,;il) escritas por uns, executadas por outros, e os regulamentos, os
d,írio ou uma agenda (exercícios 10 e IS de matemática ), saber ler mapas proced imentos <:l serem seguidos, afixados em público! Se m preci-
ou situar objetos e m uma representação espacial (exe rcício I de fran~ ~m proc ura r muito longe, basta cons iderar em detalhe o doculllen ..
cês e exercíc ios 1,8, 14 e 16 de mate mática). Os alunos são coloca- ro fornec ido pelo Ministério de Educação N acional francês a todos
dos, portanto, em con tato com instruções, quadros, classificações, Iis.. o~ professores que aplicaram a ~va li ação . As instruções de ap lica ..
tas, quest ion ários fechados ou abertos, mél nual de instruçõcs e mapas. ~~~o c cod ificaç~o são claras e prescrevem uma execução precisa e
Sem dúvida uma instrução escolar do ripa: "Assinale com um X rigorosa. Da mesma forma que é d ito ao a luno "Você deve compreen ..
a a lte rnativa correta" é um procedimento muiro inte ressante em si, de r as instruções e fazer exatamente o q ue pedimos'\ é dito aos pro ..
mesmo se nos question armos o q ue implica em maté ria de exercício fessores " Di g~l aos a lunos: ' .. .'. Conced a três minutos. Depois des;
de poder e de rclaçiio com O pode r. U m tal procedimento se porcce ses três minutos diga aos alunos: 'Virem a p;lgina', ou ' Feche m os
com o questi on(~ rio burocr..ltico que inúmeras instituições aplicam hoje cadernos' , e recolham os cade rn os". Os professores são co locados
usualmente. É como se fosse uma aprend izagem de esquemas J e exatamente na mesma relação de comunicação diante de seu minis..
comunicação (de fo rm;.ls ue relações sociais particulares entre "emis.. té ri o quanto os a lunos diante da institlli ç~o escolar.

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SUCE SSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES "'FRACASSO- E "SUCESSO"'

A auconomia é, portanto, o nome de lima relação social especia l Nau é por acaso, portanto, que os professores que ensinam em
com o poder e o saber. A escola, que pre rende rom ar os a lunos autô- IIH'III'I populares se queixem ritua lme nte da ausênc ia de autonomia
nomos ensinando-os a vi ra r-se sozinhos (sobrerudo pela leitura silen- . ft. '1,'11'1 alunos. Uma análise do juízo fe ita em relação aos alunos de
ciosa), diante de d isposirivos de saberes objet ivados, visa à produção . 1.''1'1''''''' de recuperaçnd ' mostra essa crítica de não~mltonomia , de
de disposições cognitivas para poder apropriar-se de saberes escri tos .11'I1'c.'rs;io, De fato, uma vez que a criança formou, sobretudo na intc r~
complexos, e, ao mesmo te mpo , de d isposições soc ia is a fi m de po_ d ~' pc.· Ih.l ê ncia COlll seus pais, um conjunto de disposições e de com;
de r agir nas formas particulares de exercício do poder. O aluno implí- 1'~ ' ll' ncias, escolarmente adequadas, pode enfrentar "sozinha" as
cito, o "bom leitor" implícito da aV3 liação nllcional da Zi! série do J 2 ~ · \I.L!['nc i as escolares. Mas é exatamente este conjunto de dispnsi;
grau, é, por um lado'oJ, um aluno autônomo, que sabe compreender e \ t 11.'''' e de cf>ll1pe tênc ias pré ~requisitadas que parece estar mais ou

aplicar as instruções, que sabe decodificar sozinho os dispos itivos de UH' l\nS presente, ucpendendo do meio social considerado, e, nesse

saberes obj etivados, e sabe tirar da í informações (verbetes de dic io- "", ,,, caso, J epenJendo da configuração familiar considerad a.
nários, quadros, textos, listas, agendas, calendários, mapas, desenhos...) Em llposiçfío a um Durkheim racionalista demais, podemos dizer
e utilizar os mexios de seleção de uma informação, tais como os que '111\.';\ autonomia não é a conseqüência de uma vontade que rcco~

encontramos nos formulários adrninistrativos clássicos (marcar com Il lll'<'C a regra enquanto algo racionalmente fundado, mas sim <-l con ~
um X ou fazer um círculo em rorno da alternati va correta, sublinhar, 'Il'l lllência de um erhos que reconhece, imediata c taciwmenre, prin;
riscar, coloGlt um número de cód igo no lugar correspondente .. .). O , IplUS de socialização, regras do jogo não mu ito distantes daquelas
fa to, porém, de reconstruir o "bom leitor" almejado não nos informa 'I"e presidiram sua própria produção. Q uan do aqu ilo que é propos-
a respeiro daquilo que os alunos realmente leram. Nem todos "cons- 11' Il il escola não entra em contrad ição com (não põe em crise) o que
troem" n mesma coisa com essa :lvaliação, e o embate com o texto pode Ii I1 mteriorizado até então, neste caso ° aluno se mostra como alguém
ser mais Ou menos feliz do ponto de vista das expectativas da insti tui- ,llIl illlomo. Porém , quando as regras do jogo dos dois espaços de soeia-
ção: nem rodos têm o perfil ideal do aluno autônomo. 1" ,lçao (família e escola) são, por um lado, diferentes dema is, c, por
De faro, a autonomia é questionada pelos alunos que não fi ze~ t 11I Iro, não podem ser vivenciadas em harmonia pelas cri anças, então

ram suas (auto ) le is (nomos ) esco lares enq ua nto mane ira de se ~''1 1 ilS fica m deslocaufls em relação às ex igências e obrigações esco~
comportar e de pensar, Para efetuar sozinho certas rltividnd es é pre; Lm. 's, É necessário fi car atento para que os alunos comecem bem as
ciso ter interi ori zado esquemas mentais e comportamcntais sob a II'..ollCS, prestem atenção, escutem, é preciso con[rolá~ los, le mbrm~ lhes
orientação do adulto. Como di z O psicólogo russo L. S . Vygotski , ;1'" IIlstruções, estar constantemente ao lado deles, responder às suas
a ajuda que a criança recebe e m sua apre ndi zagem (o "e lemento 1lll,Itiplas solic itações. Eles não sabem se cuidar, ocupar o tempo sozi-
ue colaboração") torna;se "invisivelmente presente e implicada na nhos, fazer soz inhos os exercícios, se vi rar, começar a estudar por ini ~
resolução aparentemente autônoma do problema pe la cri ::l nça"lJ. l lariva pr6pri a, e daí por diante, De repente, todos os métodos (ta is
Q ualque r compe tê nc ia aparece duas vezes ao longo da ex pe riê n - rumo O trahalho em grupo) que requerem um mínimo de autono;
c ia de um indivíduo (tanto ad ul ro quanto criança): uma vez no plano Inia demonstram ser difici lmente aplicáveis a estes alunos.
in tcrpsíqu ico e uma segunda vez, mais ta rde. no plano intra psíq u i~ E caímos, inevitavel mente, nos proble mas de disciplina longa-
co. Isro implica, para um bom mé todo , que o pesquisador deva se 1l11.'nte desenvolvidos pelos professores durante nossas entrevistas:
esforçar para reconstru ir as condições de interdependência que prohlemas de crianças turbulentas, barulhentas, agiradas, indispon í-
estão no princípio da prod ução das compe tênc ias, saberes, dis po- \'t: 1S, insttlveis, desatentas, que dizem "qualquer coisa a qualquer hora" I

sições de um indiv íduo de termin ado . que não escutarn, que se enganam de exercício, que entram na c1as~

64 65
SUCESSO ESCOLAR NOS MEros POPULARES ~FRACASSO" E "SUCESSO~

se correndo, brigam sem parar, não pensam no que estão fazendo, fazem p;ígin a. É o tempo inteiro ass im. Portanto, fazem qualquer coisa. A
as lições de qualquer je ito, não se aplicam, esquecem regularmente o ge nt\: acabou de estudara assumo, eles se enga nam de livro. Tem uns
que nem conseguiram achar o livro, outros já acabaram o exercício.
mate rial... Um profC5S0r particulannente prolixo, por uma série de razões
1... 1 Tem pelo menos dez por dia que esquecem os cadem os, pelo
(recém.chegado à escol", Jiz coisas que os outros já interiorizaram de
1Il1'nns dez! Q uando não é mais que isso. Agora verifico a liçi'io no
tal forma à med ida que os anos de trabalho foram passando, e que as
L'aderno de texto, porquc no começo escreviam qualquer coisa e não
°
vivenciarn como corriqueiras e normais; espanto e o cansaço pro~ dava ... Não consegucm copiar o número do problema de matemáti~
vocados por essas crianças tão pouco "autônomas"; o papel quase tera~ Ctl, erram até nisso. Nunca, em uma segu nda~fei ra, consegui encon~
pêutico que a entrevista sociológica pode desempenhar quando se tmr rodos os cadernos assi nados pelos pais, nunca ainda. Se deixo dois
enfrenta sozinho este tipo de situação; uma classe particularmente difí~ ,dunos de lado, se nJo fic~lr o tempo todo cuidanuo da classe ou ras~
cil- no processo de constituição da população pesquisada, foi nessa .sanJo entre as fileiras. logo, em dez segundos, começa um bJnllho ini~
classe que escolhemos a maior parte das crianças oriundas de meios milginávcl. Evito (mbalhar em grupo porque não consigo. Eles não
populares e que tifOram menos de 4,5 na avaliação, ou seja, 12 alunos s~ bem trabalhar. Primeiro brigan1, depois se esrapciam, e assim vai.
em 3 1), diz, num ram rápido e apressado, imitando os gestos e as ins- E ass im ... [... ] E na mila de gimística, elesdesembestam. Se jogam con~
tr~\ as paredes, batem uns nos outros, gritml1 como loucos, fazem
tabilidades dos alunos, os gritos e as entonações, tudo o que os outros
muito barulho, bagunça, c é isso. O que não quer dizer que vão se esfor~
dizem de maneira menos enfática e desenvolvida.
çar. Por exe mpl o. jogando basquete, na quadra ou fora, não importa,
Muitos não escutam enquanto estou explicando. Não sabem ficJr ca l ~ quando tenro fazer alguns pequenos exercícios, para explicar a réc~
mos, escrever alguma coisa sem ... O problema é que as coisas dcge~ nica, não estão nem aí, preferem brigar, gostam muito mais Jisso, cvi~
ncram o tempo todo. Tem um que acabou a lição gritando: "Pronto. cientemente. Recebemos estagiários da UFRAPS (Unidade de For·
Acabe i! ". Assim, bem alto, e aí ele se lev<lnta c sa i. Eles se mexem mação c Pesquisa de Atividades Físicas e Esportivas), e aí e les deram
o tempo todo, fazem barulho. Além disso, falam rnuiw alto, gri~ aulas de luta e hóquei, bom, foi a mesma coisa. Por exemplo. na luta,
têlm o tempo todo. Entram na classe gritando, correndo, é cansmivo. na primeira aula ela CO klCO U um tapete, eles deviam correr sobre o
Passo o tempo todo berrando, senão eles não me escutam [... ]. Só para tapete sem se tocar. Bom, ninguém ficou de pé para começar a cor~
tirar um cademo da mala leva um tempo enonne. As coisas deles ficam rer. Estavam todos no chão, começaram a se jogar no tapete quanto
espalh(ldas por todo canto, nas mesas, cai tudo, e aí eles se levantam. puderam, atiraram~se contra a parede, e assim por dim1Ce. É assim que
Corno se não fossem capazes de arrum ar. Daí eu temo: "Coloquem o ficam contentes. Ela precisou de uma hora para, reunidos, explicar~
livro sobre a carteira, não quero ver mais nada em cima, vocês não lhes. Então disse: "Já que vocês não sabe m correr, vocês vão fazer a
precisam de mais nada, arrumem o resro". Que nada, fica sempre cheia mesma coisa andando". Mesma coisa, todo mundo ficou no chão. É
de coisas, não adianta nada. Tem uns que são mentos, prestam aten~ sempre assim: fazem qualquer co isa. Ébom porque eles se desconrraem,
Ç<:1.0 naquilo que estão fazendo, mas três quartos da classe, ufa, não estão mas não passa disso. Na piscina é a mesma coisa, [... ] Eles me cansam
nem aí, f(lzem tudo rcípido, assim sem mais! "Pronto, acabei!" Fazem o tempo todo. Que eles têm energia, se m dúvida, isso no conjunto,
tudo errado, mas para eles não tem a mínima import~ nc ia, acabaram fora dois ou tres. Se faço perguntas n50 posso dizer que ninguém res~
e pronto. Além disso rêm tendência a dizer qualquer co isa a qualquer ponde nada. Eles respondem qualquer coisa, mas falam, sem dúvida,
hora. Faço uma pergunta, e promo, não foi nem isso o que perguntei não posso criticá~los, não são tímidos, este defeito não têm. [... ] Às
e alguém já respondeu. Não prestam atenção. Assim: "Vamos lá, vezes eu digo a mim mesma, talvez seja eu que não estou acosnllna ~
vamos fazer um exercício", só que eles nem sabem o que eu pedi. Por da, não sei to mar lima atitude, coisas do gênero. Mas vejo que todo
exemplo, um exercício, marco no quadro o número, bom, aí ex plico mundo sente a mesma coisa, até quando a conselheira pedagógica
o que eles têm que fazer, tem sempre dois ou três que se enganam de entra, eles são terríveis. Quando ficavam com as estag iárias, elas eram

66 67
~fR:ACASSO~ E ~ SUCESSO ·
SUCESSO ESCOLAR: NOS MEIOS POPULAR:ES

jovens inclusive, era a mesma coisa, e olha que eles estavam prati· ' I' ''' I" ,,!em vivenciar como retrocessos pedagógicos (lembrar que
cando esporte, alguma coisa bem escruturada, dava na mesma, não ,., 1',1\ 'In regras. "domar" os alunos para que fiquem mais atentos à pala·
adianta, não muda ... Eles são difíceis () tempo todo!J. \'1.1 1111 professor, insist ir na possibilidade de IIsair·se" melhor uapren·
.1"111 hI de cor" , adquirindo técnicas. "mecanismos", evitar a multipli.
Os exemplos que se referem à prática de esporte são muito inte- , .,\ .'" de a tividades que dispersam a já frágil atenção dos a lunos ... ).
ressantes, pois poderíamos imaginar que, avessas aos exercícios mais
Uintelectualizados", as crianças ficassem mais inte ressadas e atentas
nas atividades ma is corporais. Mas n ão é isso o que acontece. Seja
qual for a matéria, seu comportamento perma necerá o mesmo, o que
faz com que certos professores achem que eles "não se interessam por
I / 1'1 ' dl' Br~ln - rll r illy e ZEr J e Brnn-Tcrraillon. Alullos dt: 4 dllsst:s da 2~ série c 2 elas-
nada". Porém, é a forma escolar de aprendizagem, não importa o domí- .•... •11' l oJ t' \lI .s<rks Ju 111 I-:rau n\l ano escolar de 199 l-n. (N.I Fr..IIlça u (lno l'~(llar
nio considerado, que parece estar sendo reje itada pelas crianças. , " 111.'\:;' I..·m .~ I't'mbru e term ina em fl n:-, de jun h o, inkin Jl' julho. O Ministé'riu da EJu ·
Tanto em gi nástica como em outra matéria, a escola passa por , .•\ .111 rr;l!H: l'~ c1as:. itlCll c,lmo zona dt: t:duca..;ão prinritária a l gtlma.~ l.' s co l ;t.~ das n .. ~i l>e5
. 1,. pllPUlllÇdU de b.1iX:l Tl'nJa. com grande inc iocncia de imif!rnntcs, w m prnhlemas Je
exercícios che ios de regras, expl icações, e as c rianças que não
"tl ll ' lll SOC i:11. c:'Cobr. compmtamental ~ N.T.)
seguem à risca o que lhes é pedido (executar tal gesto, tal movimen-
to .. . ) são vistas pela escola, luga r por excelênc ia do controle das pul-
sões e do uso regulamentado do corpo e da pala vra, co mo c riaturas
q ue só pensam em "se soltar", ou seja, "dar livre curso a impulsos
normalmente reprimidos". I t 'f. B. lahire, (;ullun.· !ferife Cf inéRclli,é.~ sClllaires .•
O fato de as "n ovas" definições de regras do jogo escolar impli- 1"'IL't'l\t'l!;t'IlScunstnlida:. CI. p~rtir J(1 quadm ''Tvrcs dI.: c ursusà I\:~u lc prim.. in.' (par rcs
carem, às vezes, um relativo desaparecimento das regras, normal- I\·grlltlpécs )". RI!(x"TI~5 1'1 r~féTL'n ~l!s $ WriMiquo:.~ ... , p. 87.
mente mais implícitas, não deve fazer com que esqueçamos sua exis-
~ h inJ ices de repetência no pré-primári,) (CP) pa~S :lram Je 17,6% em 1970-71 a 12,3%
tência. Os a lunos menos autônomos ex igem que as regras sejam 1'11) 1980-HI l: a 8.1 % t'm 1989-90. O mcsml' acnlltcceu cnm \ ~~ ínJic~ s d~ repetc!m:ia
explic itamente lembradas, que haja uma intervenção direta , con - n.! 4" s(·ric . q ue pas."umn Je 15% em 1970-7 1 iI 4,5% em 1989·90. Q u,ldw: "()s fndi-
l'l'~ dc rcpetêneia no pré-prim;írin c m1 4\! s~ri e. Evoltll,rl(J (França mcrrnpo li wnn)", RCJX)rc.1
siderada ma is "tradicional" pelos ptofessores ("Será que deve mos
\./ r.:Nnmct!5 scali.uiqwe5 ...• p. 59.
domá-los mais ou é preciso controlá-los mais?"), pedem que se
chame sua atenção o tempo todo, que sejam contro lados direta- lt Lahirc . "Discnllls sur 'I' illcttrisme' ..", 19QZb.
mente, e to rnam difíce is os n ovos t ipos de exercícios que necessi·
lt l....tlhirc. C U/fure i crite et inégdlité.~ _.caluires...• p. 44 - ~ .
tam de um m ínimo da famosa "auton omia" (traba lho com fichas,
trabalho e m grupo, trabalho de pesquisa ... ). ./ Ê pol is..<;o que, rncsrnn Sllh pt.'oa J e turnar o tcxrn pc~ado. c,")hxnrn(ls sish.'matil.:amt.'nte
e ntre aspas 0." Icrmos " rmcnsso" e "suce:õso'·.
Os professores, portanto, são surpreendidos por uma terrível con -
tradição: por um lado, as transformações da instituição pedagógica ,.' Em relação ao c.(mjunw J t.' cr ianças das qua is J il.ll<lm('!S d e in(ormaçües t: 411t: t'slão n a
tomam caducos um certo número de termos e de práticas pedagógi- Françadc$o.:1c os 2,5 anos (19 " lunl.X>: 8 em silllação J c "fracasr.o" e I I e m sittlaç:il Idt' "suct.':.-
lo" "). cnn$t;lcamos uma rr('C(lcid"Jt' rdativa da tR:4üênc ia da escol... mate rna l L!ntrt' as
cas (o termo "regra", as práticas de intervenções incisivas junto aos ~ n a n~a:. 411C tcm "suces.....·)·; a idade méJia de o..:ntraJa n <i t'M:llla ma tcrnal é de ., anos c 4
alunos, as aulas teóricas, a apre ndizagem lide cor"... )1" e, por outro, Illt.':.<s para as c rhmç<ls (om "sucesso", e sobrctuJo Jt' 2 an us e 10 meses par"! os ;l lunos
os professores são colocados diante de alunos que os forçam a fazer o \ 'Uo;' Il ramRl acima de 7 na avaliação naeio",,1 da 2~ st::rit.' (uu seja. 8 a lunu6) . O lOCet-

68 69
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

ncnte ,IS c rianças em situação de ..fr.Ka....'>I.J" , l'I idade mó.liil de enrr.IJil no maternal é de
.1 :ml~ e I) meses. "Os a lunos que se Il\!ncfid~·u",lm de lima escolariJ<tJe ma is longd no 3 PERFIS DE CONFIGURAÇOES
mmem al uhlêm melhores rcsuhl'ldos~u bucs no finoll da pri·t:';l.Cllla", escrevem A . Min·
gl.lar c M. RII,:h arJ, E' -t./{lla rion tWs ac:til.liris J.... rt'~d u ratioll ... , I 'NO, p. 49. Isto 1'\<10 sil,'I1i-
fic;) nccC~<;;'lri<lmCn l e I.{lJe ;l escOL.1 rn:.ltt"rnal i: (aus:! de um mc:lh" r ":.UCe.'ill(l" ('sco lar. A
('ntr..ua no maternal pode.ser também um ioJit::aJ nr da re b çào dos ['<I is cClIn ~I escola e
si~nifka t 4UC suas práticas s..x:i.. lizadnnl." j:\ .s:.'\n I r.lha lhnd a.~ te ndo como preocup'lçiio a
t"S(olil. Porem , em uma .série de [X'rfis, consratnnwl.'; que a frC4íiência IllI escnb mate rnal
VI\HI I\<;ÕES SOBRE O MESMO TEMA
dumnle ao me nos 2 anos permite à c ri:mça travar cunhcci mentu com : L~ 1'CS!õ.lS de com-
pt\rtamentu, (Um um;, política disciplinar, com prátic<ls ôc Iinl,'lIa~cm, etc., po uco comulti
na f.uuília, e niiu ~rJer tempo na pré-escll la arr\"ndemJo esses h.tbitos e:'<':lllarcs. ( :"mo obtivemos os perfis que vamos mostrar adiante? Como
I I P. Fmu.:onnct , "L'ccuvre pedagogi4ue de Émilc Durkhcim", 1989, p. 26.
i< ,,.a111 reconstru ídas essas configurações familiares nas quais esta-
V,IIII inseridas as crianças? Se o perfil sociológico, como gênero de
II G . Vincent. L'éco/e primairi! françnise , 1980, r.164. Seria ncc('ss~do dCi'iCnv\)lvcr aqLli ns dos ,·.".,. i,a c ientífica, trata de uma realidade social e realmente visa-
protllnJos enrre " conSTituição dt) E~tadL) ffiCld cm o, li monor ôlkl cSTaml da vinlcncia k'gí-
l IIIHO discurso não .. literário que se apóia nos dados e se preocupa
tima, a Jomin aç ~ ll lcgill r"tcional, .. s regras impe;.'iO.1isc o.~ rn)(,;es.~us Je intcritlri%.'\Ção do con-
Ir'1lle Jas eulOÇÕt:S 4UC pcw.lemos esrabelecer atta ..,'é; das (lhr....~ J e Ml.IJ( Wchcr e Nurhe" Élias. , " 111 " crítica dos contexros de sua produção - a uma verdade rela-
"va, também deve deixar aparecer a maneira específica, o estilo do
1I DI.) mesmo modo q ue Rngcr Charrier It'nra f(.·comliluir I) Ic iTtlr c :l Idtuõ.l implid ros,
insc ritos mlS estruturas materiais dos livro...: da "Bihlim heque Bleu" e visados re los ooi. "desenhista". Neste trabalho de construção, esforçamo-nos, portan-
lores (fuian!)s a partir do século XVII. Cf " Du livre a u li re", 1985, p. 62-88. ' '', para organizar sociologicamente, a partir de uma construção par-
14 EoollulrUm à 1'(II(rc!i! ou C El..., liNI, p. 6.
,ir " l"r do objero, o material oriundo da observação de realidades sociais
n·lmi~amente singulares. Com isso produzimos texros de configura-
IS Ihid., p. 20.
.JIl'S singulares; textos que, no entanto, não são isolados entre si por
16 M. Wd~ r, Éwnomie e'1 sociéré, 1971 , r. 2]1. dllas razões ao menos: por um lado, trabalham com as mesmas
orientações interpretativas, e, por outro, o texto de cada perfil
17 IbiJ., p. 225.
,bempenha um papel no texto de todos os outros perfiS'.
18 Évaluation lI. 1't.'TItrée au CE2 .. , p. 20. Dessa forma, fizemos com que o trabalh o soc io lógico progre-
19 Ele niiu ~e reduz ,l isto. É i).,(ualmeme um aluno que sabe não ultrarasstlt () lempo que:
,lisse com avanços e recuos, o que nos permitiu, finalmente, aban-
lhc é daJ(), qu\,' reconhece <lS expres.o;tjcs wrbais J o tempo, distinl;:lJC os texttJs rc10s rndi- .luna r o gênero mo nográfico puro. Na realidade , nossa forma de
ccs formai .~, ."!lhe. curiar exatamente um text!), concordar ~ ujeilO e verbll, eXImir uma proceder n ão negligenciou a singularidade de cada si tuação, mas
n.'grn a p.artir Jllllhsc.rv'lçfKI de um exemplo. ele . QuiSl'mtll>, ptlrém, i n., i ~tir S(.lbre os aspec-
tos menos .... isfvc is.
sobretudo não se contentou em fazer descrições ideográficas puras,
sem comparações, que traem a ausência de uma orientação inter-
lO L. S. V."golski , Pt'Jtséeedangage, 1985. p. 28 1. pretativa claramente definida. O que procuramos são invariantes
11 B. bhire. C U(luTe écrirc er inégalüés .scolaires ... nu invariânc ias através da análise de configurações singulares t ra-
radas como variações sobre os mesmos temas.
lZ Uma pro(cnnf;\ Jll lona de Educação Prioritária da ciJ atll! de Brun-P;ui\ty.
Ao escolher a forma científica do texro, qu isemos ultrapassar as
1~ As nt,....:L.. lil~'l.Ií~t'OS pcdaJ..lÓgica~ chegam a forçar um rrofessor a corril,tir-sc: !.I:U<lndn durnn- aposições teoria/empirismo, interpretação/faros... e apresentar à lei-
uma e ntre .... ista a p<llavm "rel,,'Ta" lhe escapa ..:omo num lart:iu: "O respe ito us regrJs,
tI." ru ra fatos - teoricamente - construídos. Dessa forma, procura-
inslruçf>es. se vocês nãn l)uefl!m dizer regras, pois !ltÜJ tU.'W .~ dh.l'T 'n.·~r.ls·. É uma pala-
vra fora de moda, dcv\!mus Jiz~r instruçflc:s, li respeitu à;o; instruçiks".
mos encarnar nesses perfis a nossa leitura sociológica das situações
sociais, para demonstrar claramente que os casos particulares na-
70
71
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

tados não passam de sínteses o rig inais de traços (ou carac terísticas) ' (- (,:xcrcem sobre as crianças singulares procura restituir os dete r,
igualmente genéricas. Evitar a explicação unilateral através de um 1111 11!"mOS sociais re laciona is de forma mais próxima da Illaneira como
facor, o u, de modo mais geral, de um tema predominante não sig, ' tO.Iprc~c ntam a e las.

nifica, na realidHde, que nos percamos e m um nevoe iro de causas. t :()mo observare mos várias vezes nos diferentes perfis, os profes'
Trata-se somente de, ao centralizar o o lhar sobre objetos mais pre- '1IrL.·~ tendem, quando falam de casos particulares, a reter ape nas um
cisos, tentarcontextualizar o efei to de ptopriedades ou de traços per- um elemento da vida da criança (ser canhoto, ter sido ope-
II , IÇO,
tinentes de amllises absolutamente gera is, exatamente os que encon, I.ld" '111'" vez, ter um problema de saúde ...) ou da família (família
tramas nas pesquisas estatísticas. IlHll1t1pmenral, pais desempregados que vivem com a aj uda mínima
Se ti vésse mos abordado separadamente troços, terfmnos perdido d" Estado ... ), para convertê- lo em causa do seu problema escolar.
de vista o que nos parece o mais importante a destacar, o u seja, que ( :ll l'l rr,l esras visões espontaneamente isolac ioniscas e absolutistas que
esses traços (características, temas) se co mbinarn entre si e só têm "l' kcionam um traço - às vezes físico - , o isolam do contexto no
sentido sociológico, para nosso objeto, se inseridos na rede de seus qua l desempenha um papel e lhe confere m, de forma mágica, o
entrelaçamentos concretos. Ao contrário do que se poderia pensar pOl..ler exclusivo de explicação, quisernos afirmar a pril11:lZia do todo
costumeiramente, é exatamente nos perfis de configurações e não . . uhre os e lementos, das relações entre as características sobre as
em aná lises que desenredassem o que tínhamos, conscienc iosamen, l-aracterísticas per se. E mais uma vez evocaremos Norbert Élias,
te, enredado que encontraremos a interpretação dos fatos. Nossa preo- qU<lndo defende o procedimento sintét ico (ou sinóptico) que con-
cupação foi a de não destruir demais as lógicas práticas com suas múl- "Jcra a especificidade das relações comp lexas entre diferentes ele-
tiplas coerções simultâneas e embaralhadas (lógicas nas quais somos mentos, contra os proced imentos exageradamente ana lít icos e ato,
constantemente surpreendidos quando precisamos adotar essa ou aque- lIli,w··. Nes(;l segunda via, elementos considerados em configurações
la orientação, fazer uma "escolha" e não outra ao longo de nossa vida \Ir relações mútuas "são abordados como capazes de conservar suas
cotidlana)l, e não a de fazer uma le itura da rea lidade socia l na tin, parricuh-uidades distintivas quando são examinados isolada e inde,
guage m das variáveis e dos fatores explicativos. pcndentemente de qUê'llquer o utro contexto"!.
O fato de os diferentes membtos das famílias contextualizadas É pteciso, conseqüentemente, ressaltar o fato de que o agru pa-
ag irem COlllO agem, de seus filhos serem o que são e comportarem, mento dos perfis por remas - que parece vir contrariar a lógica das
se como tal nos espaços escolares não é fruto de causas únicas que va riações sobre os mesmos temas - operou,se com a tinica preo,
agiriam poderosamente sobre eles. Na verdade, estão envolvidos num cupação de dar ao le ito r uma pausa para respiração. Assim sendo,
conjunto de estados de fatos, de dados cujos comportamentos práti- optamos por uma mane ira particular, entre o utras poss íveis, de jun,
cos cotidianos não passam de tradução: traduzem o espaço potencial tar os perfis. Mais ou menos como n as experiências pSicológicas com
das reações possíveis em função do que ex iste e m tennos inter~huma~ unnge n , em que, dependendo do o lhar, " indi víd uo pode distin-
nos. Qualquer modificação da constelação de pessoas (e portanto guir rostos ou um vaso, um jovem ou uma vc lha senho ra, etc" nosso
dos traços familiares, das propriedades objeti vas ou das dispoSições agrupamento é apenas uma entrada possível na realidade das COIl'
incorpo radas), da estrutura de coexistênci a, pode leva r a uma figurações fa miliares singulares sociologicamente coru,rruídas. Reun i-
transformação do comportamento da criança. Mas nenhuma carac, mos casos na med ida em que distingu imos neles, particularmente
terística em si explica este componamento. Ao contrário da com, hem , certos traços o u conjuntos de traços, mas isso n ~o significa que
preensão descontextualizada das causas do "fracasso" o u do "suces, estes estejam a usentes dos outros perfis. Além disso, ce rtos aspec-
50", a reconstruçiio das pressões socia is re lacio nais conc retas que tos prese ntcs na primeira parte (po r exemplo , as pní.ticas de escri ,

72
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES
PERfiS DE CONfiGURAÇÕES

ta) são tratados ape nas no interior dos perfis e nossas conclusões
I~cido das relações do qual emerge e no qua l se inscreve se expri-
evidenciarão outros tipos de relações entre as diferentes configura-
me";. O traba lho sociológico consiste, portanto, em tentar recons-
ções famili ares (por exemplo, as diferenças segundo o sexo do
I r\lir as formas de relações sociais que estão na origem da produção
aluno).
,Ie informações liberadas no âmbito de uma forma de relação social
e~pec ia l : a enrrevis ta.
O utra questão central: teríamos acesso, através da e ntrevista, à
A ELUCIDAÇÃO DAS PALAVRAS: À PROCU RA DE INDíCIOS
práticas, ao rea l, à verdade destas práticas? Para nós é evidente que
só a o bservação direta das práti cas permite co ns ide rá~ l as com a
NJ(ll'XI~tem C(Ib.; I.~ Itnpurt,IIllC:' 'Ille, em \..t·rta:.
CIIllJI~~ I)c., e Ctn ccrtn~ n U HlICnrll~, tll.tnifl'lll:lm - Imagem que o pesquisador fornece ou que produz por sua própria
~c :ll'e n :l~ por Ml\flis mui to (ra c'I~! 1
... 1E, cnqu:-m- presença (problem>\tica teórica, fich a de observação das práticas,
h ) JUI Z,:'In f; ,:..' r Ulllot invc.~flW1Ç;i u ',uhrc um aS1>as- condições da observação, o papel do observador na produção dos
vod: ""rera o 4U~! Que o ;L....~,b.'>IIlU lenha
1>l n,lr(l ,
JCIX .•JIl ~U,I fOlOgrafltl c seu cnJcrq;(1 no lugar comportamentos o bservados ... ). A partir ti o mo mento ern que esta~
do lrUlIe, ou VllLê dcve ~ cnmCnt ,lr, I)«el>.."t- mos tratando de discursos, não podemos pretender ter acesso às pró-
n.unentc. p.ui1 JCl>cohnr .1 iJcIltIJ••dc du t.:rnni - ncas. lsso porque, primeiro, existe aq uilo que temos o hábito de cha-
110M). Lom mdíclll" em ~cr.11 milito fr:ígcl!l c
in " l g lllfll.; ;mt~ ! N.11I dc~pre:emC\'l , pt.lrl .mt o, U~
mar, hoje , de "efeitos de l eg itimid ad e'~. Q uando estamos diante de
Jl!..""'ILlcn,\', llin.lls: ele.. I"-Idem Ilt.b colnC.lr n" I n - um objeto o u de uma prática cultura l que aconrece em um IInive r~
Ih,1de I,;OIS.\,) nloll~ IInptl rt .lIltC:'\ Ml cu ltura l diferenciado e hierarquizado (onde alguns produtos são
n,"is legítimos que outros); quando, além disso, a pessoa que res-
Antes de tudo é necessário lembrar que a e ntrevista não deixa ponde a lima pergunta referente a esses objetos ou prát icas part ici ~
transparecer uma infonnação que ex istiria previamente, em uma fonna pa mais o u menos desse universo, com uma consciência mais ou
fixa, como um objeto, antes da própria entrevista. Entre o sociólo- menos clara da dignidade ou da indignidade cu ltural de certos obje-
go e o "discurso da entrev ista" não existe a mesma relação que entre tos, de certas práticas, podemos estar, então, diante de efeitos de
o historiador e os arquivos. As palavras não esperam (na cabeça ou legitimidade . O entrevistado corre o risco de subestimar (ou de não
na boca dos entrev istados) que um soc iólogo venha recolhê -Ias. Só mencionar) as pnhicas que percebe como menos legítimas, e de supe-
puderam ser enunciadas, fo rmuladas, porque os entrevistados pos~ r~st im a r as práticas que considera mais leg ítimas _O risco aumenta
suem disposições cu lturais, esquemas de percepção e de interpreta- quando - e é o caso desta pesqu isa - a situação de entrev ista, pela
ção do mundo social, fru tos de suas mélltiplas experiências sociais. maneira como os entrevistados foram avisados (através de um bilhe-
No entanto, suas formas, seus temas, seus limites de enunciação te enviado por intermédio da escola), pelos temas abordados (lei-
dependem também da própria forma da relação social de entrevis- tura, escrita o u esco laridade das c riançasL co loca os entrev istados
ta, que, neste caso, desempenha o papel de um filtro que permite tor- em uma situação de tensão em relação ao que consideram como nor~
nar enunciáve is certas experiências, mas que impede o surg imento mas legítimas. Para muitos pais, fomos identificadns comn profes-
de outras que implica m certas formas lingüísticas e desestimulam sis- sores preocupados em conhecer o meio social nnde vive a criança .
tematicamente o utras ocorrências, etc. Como escreve Norbert Élias, Da meSll13 forma, muitas c rianças entrevistadas querem agradar ao
"o comércio com os outros desperta no indivíduo [...J pensamentos, e ntrevistador, e aprese nta m~se com todas as qualiJaues possíveis.
convicções, reações afetivas, necessidades e traços de caráter que lhe °
É necessário, assim , decodificar a e ntrev ista como resultado de
pertencem , que constitue m seu 'verdade iro ' eu e através dos quais o um processo de construção, pela criança, de uma imagem de si e de
74
75
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

sua família que e la pensa ser, socialme nte, a mais conve niente pos- m/armações oriundas dos professores, da criança (entrevistada sozi-
sível aos olhos de um adul to estranho que veio entrevistá- los den- nha na escola) e das famílias: a multiplicidade dos índices e das
tro da escola, com a autorizaçãn do professor e do diretor. Informações comparáve is permitiu reconstruir pacientemente con-
Como enfrentar uma situação desse tipo? Devemos considerar lextos sociais e razõcssocia is pertinentes para as quais o efe ito de legi-
que a pesquisa é deturpada em princípio e que não poderemos r imidade funcionou e m determinados mo mentos.

nunca aringir a verdade social dos entrevistados? Na verdade, as coi- Como conclusão, fica claro que o proble ma não é, definitivamen..
sas não são tão simples assim. Antes de tlldo, lima parte do traba- te. saber se os entrevistados disseram o u não a "verdade", mas tentar
lho (da profissão) do entrevistador consiste justamente em limitar reconstruir relações de interdependência e dispos ições sociais prová-
o máxi mo possível os efeitos de legitimidade at ravés de sua parti- vt.:! i~ através das convergênc ias e contradições entre as infonnações ver-
cipaçiio ativa na entrevista e ofuscando sua pessoa em prol da pala- hrlis cle uma mesma pessoa, entre as informações verbais do pai e as
vra e da experiência dos entrev istados. Isso implica não colocá-los tê lrncciJas pela mãe Oll pela criança, entre as infonnações verbais e as
em sinmção de humilhação cultura l e, ao contrário , isentar de culpa pi-lnlvcrbais, Contcx tuais o u estilísticas. etc. Com objetivos bem dife-
o~ que se autocensuralTI durante a entrev ista por expressões do tipo: rentes, o método de trabalho do sociólogo comporta, no entanto,
"E verdade que eu dev ia ter feiro isso", "Não sOu muito evo luído". certa analogia com o do de tetive que busca indícios, "detalhes reve-
o u com entonações que demonstram que eles "se sentem diminuí- Lldores", confronta-os. testa a pertinência de uns em re lação aos
dos" diante das perguntas. E também os entrev istados nem sempre llutrOS, para conseguir reconstruir lima realidade social. . . Portanto, é
estão na defensiva durante a entrevista; nem sempre estão preocu- L'nfrentanclo a questão da entrevista como discurso não-transparente
pados em mostrar uma boa imagem o u falar a coisa certa. E mesmo que poderemos ter uma oportunidade de reconstruir as práticas efeti-
quando chegam a fazê-lo, isso nos fornece uma importante infor- vas. Ou melhor, as disposições sociais efetivas que estão no princípio
mação sobre sua relação com a cultura legítima e com a escola. Mas dos discursos proferidos.
uma e ntrev ista nunca é ho mogênea. e mesmo o entrev istado mais
preocupado em dar o que considera como "respostas corretas" mos- O elo impossivel
tra-se mais eloqüente a respe ito de certas práticas (o que denota que
contro la certas práticas melhor do que o utras, que é mais o u menos Havia i ll g(l d"'l~~1 r:lnh\\ illdl;;'iCrit rvcl. lIm;) ror .. [
apaixonado por esse a Li aquele tema), pode parecer dizer "branco" dCMlTIl'n l :I\,':il 1'1' .

pe lo discurso e "negro" pela entonação e as mímicas que faz quan-


do enunc ia "branco". Para aquele que quer vê .. las, mil pequenas co i- Nos perfiS familiares aq ui reunidos, que demonstram um elo
sas trilem os graus de fabulação dos entrevistados sobre os diferen- Impossível entre o unive rso fam iliar e o uni verso escolar. os pais são
tes pontos abordados'. originár ios de países estrange iros e têm lima relação difícil com a
Além disso, não raro há outras pessoas presentes durante a entre- língua francesa. Porém, a origem estrangeira e o frágil domínio do
vista. Marido e mulher, mãe e irmã, marido e cunhado, pais e filhos francês não são suficientes para expl icar as situações delicadas dos
podem estar juntos dura nte um certo tempo, em seguida alguém sair fi lhos ( ver os Perfis 13,14 e 23, onde estas duas características não
durante a entrevista, etc .. e as variações do discurso, dependendo da impedem o bom desempenho escolar) . Os trabalhos sociolingüís-
presença desse ou daquele protagonista da cena familiar, deixam ticos estabelecem bem que não existe uma relação de casualidade
transparecer as contradições, as fabulaçõcs, as o missõeS'. Finalmente, simples entre "língua" e "d ificuldades escolares". Como escreve
e mui to importante, nos o utorgamos a possibilidade de cruzar as John Gumperz para o caso dos Estados Unidos,

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

... se se tratasse apenas de diferenças lingüíst icas, poderíamos espe~ vendo uma concepção maquiavélica do funcionamenro da escola
rar que cri anças de cu ltura chjncs~l e japonesa tivessem maiores difi~ francesa considerada deliberadamenre segregacionista em relação
cu Idades, dada a diferença eno rm e entre seu sistc ma gramatica l e aos filhos de estrangeiros.
o ing lê~. Mas não é o caso. As estat ísticas COnce rn entes aos d esem ~ É mais difícil inserir rodas estas configurações familiares, enquan-
pcnhos escolares most!am que os im ig rantes chine~es que chega- to redes de relações de interdependência, nas formas sociais legíti-
ram recen remente da Asia consegue m, em geral. se &'l ir melhor que mas, do que as famílias mais despossuídas, mas que não são oriun-
os q ue nasceram nos Estados Unidos ll . tias da imigração. As experiências sociais anteriores vividas pelos
Quando falamos de língua o u de cultura, passamos imeuiata - adultos em universos culturais religiosos, administrativos. po líticos,
mente a impressão de que existem fronteiras intransponíve is econô micos muito diferentes não as ajudam a se orientar com faci-
entre as diversas línguas e cu lturas. Mas é preciso lemb rar, con- lidade nas novas formas de relações sociais. Estes percursos de imi-
tra o e mpiri smo . que os esquemas soc iais mentais, as fo rmas gração são casos dolorosos de desemaizamento ou de adaptação difí-
socia is o u os processos sociais mais fund amentais (por exe mplo, cil a novas situações soc iais. Revelam muito particularmente o que
os processos de objetivação, de codificação, de teorização, de escapa ao olhar comum quando tudo parece ser ev idente, o u seja,
formalização, de racionalização, de burocratização, de escolari- as condições histó ricas necessárias para que as formas de vida social
zação ... ) transparecem, na maior parte das vezes, nas línguas, nos possam ser vividas sem tantos choques.
costumes. nos traços culturais próprios aos grupos soc iais. sob re~
tudo quando estes são soc ialmente definidos " . Dessa fo rma, dois • Perfi l I : A discância em relação aos universos objerivados.
seres sociais escolarizados em sociedades muito diferentes sob o Mehdi M .. nascido nas ilhas Comores, ÁfriCll, com três anos de atraso na
::l ngulo de suas tnldições nac ion ais, c ulturais, lingüísticas, políti~ escolaridade (chegou recencememe à França) , obcC\le 3,4 7UC avalillfão.
cas, religiosas, e tc. estão mais próximos e ntre si do ponto de vista
cognitivo que os me mbros não~esco l a rizados de suas respectivas Quando fomos marcar a entrevista, o pai nos recebeu vestido com
sociedades". calça social e camisa branca. Muito cordial, parecia estar a par do
A articulação das configurações familiares e do universo esco- bilhete que lhe encaminhamos por intermédio da escola. Não sabe
lar, nesta série de perfis, é difícil de se realizar por conta da grande ° nome do professor, só o do diretor ua escola. Na casa ressoava uma
disrilncia cultural ("cultural" deve se r entendido aqui no sentido música reggae, razoavelmente alta.
dos processos, das formas sociais ou dos esquemas sociais mentais) No dia da entrevista fomos recebidos pelo pai na presença de
que os separa. Os pais, às vezes. estão vivenciando uma rupwra em Ulll amigo que assistiu a toda entrevista sem intervir. O pai estava

relação aos universos ocidentais da escrita (escola, burocracia ad mi - tomando conta dos dois filhos mais novos da família. Durante a emre-
nistrativa ... ). Podem, como reação a seu unive rso soc ial atual, opor vista, chegou um cunhado que era professor primário nas ilhas
uma legitimidade familiar (moral, religiosa) à legitimidade da ins- Comores e que fa lou muito, a pedido do senhor M., a princípio ("Ele
tituição escolar (a família e seus valo res podem inclusive tomar-se va i explicar ma is melhor qui eu"), e, em seguida, cortando- lhe
a única referê ncia em relação a um mundo exterior julgado mau e oportunamente a palavra. Fo i mais difícil obter a palavra uo senho r
hostil em sua globalidade), operando dessa maneira um fechamento M. enquanto seu cunhado esteve presente. Na verdade, muitas pes-
da famíli a sobre si mesma. Podem, fin almente, por um trabalho soas passaram pe lo apa rtamento durante a e ntrevista, entre as quais
de interpretação de um universo cujos fins e intenções lhes pare- um amigo, o cunhado e uma vizinha que e ntrou diretamente sem
cem incompreensíveis e ao mesmo tempo hostis, esta r desenvol~ tocar a campainha, dizendo: "Oi, pessoa l!". Quando a mulher do

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

senhor M. vo ltou (estava em um curso de alfabetização), fi cou um cm J9890u 1990, com Mehdi, seu filho mais velho de 13 anos. N unca
pouco conosco e depois, rapidamente, fo i para a cozinha preparar traba lho u, nem nas Como res nem na França, mas disse estar à pro~
a comida. (Estavam no período de ramadã*- ) cura de um emprego. A mãe da senhora M. vive na França, não tra-
Esta família é originária das ilhas Comores. O pai freqüentou balha e lê árabe. Seu pai faleceu há muito tempo e ela não sabe qual
durante 3 anos a escola maometana e somente por 3 anos a esco, era sua profissão. O casa l tem cinco filhos (quatro meninos e uma
la comum onde se ens inava o francês (uma das duas línguas inter- menina), dos quais dois são a inda bebês. Os mais ve lhos têm 13 anos
nacio nais, junto com o inglês), pois o trajeto e ntre sua casa e a (Mehdi, na 2" série) , 9 anos (na J" série) e 8 anos (na pré-escola).
escola era lo ngo demais e os me ios de transporte , precários. Seu Os M. são antes de tudo um caso de família que não possui um
c unhado observa que "ele se vira mui to bem", ainda que sua pouca gmnde número de práticas "oc identais" de escrita. Através de uma
escolarização seja "uma desvantagem para ele poder ajudar os rrajetória de imigração, esta família vive um embate entre univ er~
filhos". Seu pai é operário especializado na França, lê apenas árabe, sos objetivados de culturas, e se encontra tota lmente desprepara-
sua mãe nunca trabalhou e s6 lê árabe. da, pela sua situação de origem, para apropriar-se deles. E n80 é por
O senhor M. fala correntemente a língua comoriana e se expri- acaso que, para o senho r M. e seu cunhado , parece importante
me em francês com grande dificuldade nas construções de frases e exp licar bem, além das perguntas que lhes fazemos, como as coisas
no vocabulário. Lê maio francês (sobretudo do ponto de vista da acontecem nas ilhas Comores, do ponto de vista da organização da
compreensão), lê a língua comoriana escrita com a ajuda J o alfabe- vida social e econô mica. Esse é um ponto cen tral da entrev ista, que
to francês ou árabe, e lê o árabe li te rário, sobretudo o Alcorão. revela lima oposição ("Tem muitas coisas que não são nada pareci~
Aprendeu nas ilhas Comores a profissão de alfaiate, mas não possui das") entre dois universos culturais mais ou menos escolarizados, buro,
diploma profissional. Na ocas ião estava desempregado, depois de ter c ratizados, mais o u me nos tecidos por formas sociais de escrita.
traba lhado aqui e acolá para "dar de comer" a seus cinco filhos. Tra- O senhor M. e seu cunhado (que tem um di ploma técnico e fo i
balhou em vários lugares como "trabalhador braçal", "aux iliar de professor primário nas ilhas Comores) insistem mui to em da r o tes-
pedreiro" ou "lavador de pratos no Novotel durante 18 meses". Às remunho de seu espanto e de sua confusão diante do conj unto de
vezes trabalhava apenas 1 mês, outras 15 dias, alternando períodos documentos que é preciso ter na França. N este aspecto estão viven-
de desemprego e de pequenos empregos. Está na França elesde J984. do uma diferença radical entre seu país e a França. Qualificando
A mãe de Mehdi só freqüentou a escola maometana (por cerca scu país como "subdesenvolvido", no estágio de "Idade Méd ia" ,
de 4 anos) . Sabe ler o árabe mas nem sempre compreende o que lê. sem estradas asfa ltadas, sem eletricidade nem telefone (exceto nas
Isso parece ser conseqüência do ensino maometano, que insiste mais "grandes cidades"" ressa ltam a fraqueza da adm inistnlção e, con,
na organização e recitação que na compreensão dos textOs lidos. Tem seqüentemente, os poucos documentos que circ ulam.
também dificuldades para escrever, pois na escola aprendeu primei- Descrevem seu pa ís como bem menos burocrati zado, me nos
ro a ler e depois a escrever. Estava freqüentando, na ocasião, um curso codificado e, ao mesmo tempo, bem menos organizado por práticas
de alfabet ização em uma escola próxima, para onde seu marido disse de escrita e dos documentos oficiais (diploma, hollerirh, cartei ra de
[ê,la "enviado", o que caracteriza o tipo bem distinto de divisão sexual trabalho, certificado de nacionalidade, certidão de nasci mento,
dos papéis domésticos no casal. Ela veio, parece, das ilhas Comores recibo, talão de cheques, cédula de identidade, carte ira de seguri-
dade social, quitação de conta de luz, prova de residência ... ), muito
.. Período Jo ano c(lnsi dcr:ldo "ól}!r.ldo pcltl:- mll ç lllm ,m.l~ , duf,mt.... I) lllJ.ll W Jl'Jll, ' d t.:.:.i.l~ (I mais ligado à palavra dada, ao engajamento puramente oral e pes-
.11l\tlnheCl'r até ti ptJr-J'l-:'OJ. (NT )
soa l: "Num tem nenhuma instituição nos Como res onde você va i

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONFIGURAÇÕES

e eles vão te pedi uma prova de residê ncia, eles sabem que ocê é vezes vou até a loja e assim que entro ela me diz" (sua mulher): 'Ah ,
comoriano, ocê é comoriano. Você diz que é de tal cidade, que é de tem nada. alguma co isa" mas é tarde demais" (riSOS)), não tem
tal cidade e pronto"; "Num te pedem cédula de identidade , só se .lgenda, não marca nada no ca lendário ("N ão. eu tento me lembrar"),
você vai no banco, num têm certificado de nacionalidade: ocê é não ano ta recados no telefone, e nunca teve um diário. Escreve só
como riano , ocê é cmno riano. (Risos.)" algu mas cmtas em comoriano, usando o alfabeto francês ou árabe.
Da mesma forma, o senhor M. compreendeu rapidamente que Seus diferentes docu mentos administrativos ficam guardados em pas-
o fato de não possuir um diploma reconhecendo ofi cialmente suas tas mas em uma ordem, sem dtlvida, não muito rigorosa, pois o senhor
competências era faral na França , enquanto o diploma não tem o M. explicou que passa muito tempo procurando um documento: "Jogo
mesmo papel determinante em seu pars nata l. O senhor M. apren- em qua lquer lugar"; "Se continuar a aumen tar, em todo can to, até,
de u uma profissão na prática (vendo fazer), nas formas socia is orais se você fo r ver, no armário, [em algumas vezes, se alguém pediu nos ..
práticas e não em formas escolares de relações de aprendizagem, e 50Sdocumentos, e u se i que vo u, o documento está lá , mas não sei
nos uh que é capaz. de mostrar que "sabe fazer", mas que csnl cons .. unJe botei, procuro e m tudo quanto é canto o J iC:l inteiro, mas é
ciente ele que isso não é suficiente na França: "O diploma é quan- difícil". Dado o grau de racionalização da atividade soc ial c econõ-
do temos a profissão. Se alguém me pediu para fazer alguma coisa , m ica do universo de o rigem H , compreenderemos que as técnicas de
se me pedissem : IOcê va i tirá as medida e fazê uma ca lça', eu faço, e~c rita que permitem gerir de forma mais racional as at ividades
ou camisas, ou co isas assim, mas não te nho certificaJo". Jomésticas se mostram como a última preocupação do senhor M.,
A língua comoriana não é cod ificada, o u seja, não passou po r que parece ITIui m espantado ao saber que o e ntrev istador faz listas
toelo um trabalho histórico de dicionarização, de pesqu isas grama- de compras. A reação de incompreensão de Mehdi quando lhe per-
ticais, como explica o cunhado do senhor M.: "Não é nem mesmo guntamos se escreve bilhetes a seus pais para dar-lhes algum reca-
uma Irngua, porque não teve de fato estudos sobre ela, sobre sua gra- do mostra que essa não é uma forma habitual de intercâmbio nO
mát ica, conjugação, tudo isso. Tem gente como vocês que são, sei inte rio r de sua família.
lá, sociólogos, franceses que chegam a fazer estudos desta Irngua. Acho O senhor M. lê melhor o árabe que o francês . Raramente com-
que parece que, recentemente, ouvi falar que um francês publicou pra, portanto, algum jornal, pois não compreende tudo o que está
um dicioná rio francês .. como riano , mas antes não tinha isso. Se escrito ainda que use interesse muito pelo noticiário". Nunca lê revi s~
l

você queria escrever para sua mãe o u sua família, você escre via no ras, ne m as de programas de televisão, e dela só ass iste ao not ici á~
dialeto comoriano com as letras ... ". rio e a alguns filmes. Não lê históri as em quadrinhos, nem roman-
O senhor M. declarou que é ele (sua mulher está fazendo atual- ces, Oll livros práticos, e não possui uma estante (seus livros estão
mente um curso de alfabetização) que se encarrega dos documen- num armário). Q uando perguntamos ao senhor M. se ele ou sua
tos, mesmo que isso consista e m pedir ajud;:l (I amigos ou vizinhos, mulher lêem histórias para seus filhos, começou a rir, mostrando com
quando não compreende certos documentos que deve preencher ou isso que essa forma de interação pais-filhos, rotineira em muitas famr-
quando precisa escrever cartas, preencher cheques ... Tirando os Iias fra ncesas, lhe era totalmente estranha.
documentos obrigatórios, o senhor M. não utiliza de forma alguma De fato, o senhor M. lê textos ligados a práticas militanres, reli-
a escrita, pelas razões expos tas acima, em SlIa vida cot idiana. Não giosas ou polrticas. Possu i livros rel igiosos em árabe e lê "quase
possui um caderno de contas (e para que um caderno quando esta· todos os dias" o Alcorão, que consegue compreender (seu cunha..
mos desempregados e sempre em situação econômica precária?), não do esclarece: "Leio o Alcorão, mas não compreendo. Mas ele, isso
escreve lembretes, listas de coisas para fazer ou lista de compras ("Às ele até compreende") . Parece ter lido muitos livros "socialistas" ou

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONfiGURAÇÕES

"comunistas", segundo seus próprios termos (Lenin, Marx, Engels, casa, e o pai confessa calmamente que não sabe se realmente fazem
Mao Tsé-tung), e define-se como um militante político: "Sou um ou não: "Não sei se estão fazendo outra coisa, não sei nada, de ver,
homem de esquerda"; \fÉ um verdade iro militante", diz seu cunha~ dade ... " Aliás, o professor de Mehdi nos diz: "Tenho a impressão que
do. Lutou. muito jovem, enquanto membro do Partido Social ista de não faz mais as lições em casa ... Ele aprende muito pouco das lições".
das ilhas Comores; pela independência de seu país, e passou onze O pai justifica que não ajuda os filhos, porque tem medo de ajudar
meses na prisão: "E o primeiro partido de oposição das Comores. é "mal ". Mehdi fica na escola até às 18 horas*". salvo no período do
o partido socialista das Comores. isso foi antes, ele foi criado em ramadã. Quando tem dificuldades para fazer as lições, pede ajuda ao
1968. e existiu até 75. e aí até a independência das Comores". Sua rio. uA gente pergunta pro meu tio porque às vez meu pai sai, não
mane ira de pensar se mostra inteiramente estruturada por estes está, saiu," Durante as férias, as crianças ficam em casa o u brincam
dois aspectos de seu engnjamento: um engajame nto muçulmano, que pelo bairro, e o senho r M. diz que só fazem lições se a escola pede
o leva a ensinar o A Icomo aos domingos à tarde a um grupo de jovens (mostrando assim que não conhece todos os pressupostos tácitos da
(que incluem seu filho Mehdi) e adultos, e um engajamen to polí- competição escolar, que estima, caso a escola não dê deveres duran~
tico voltado para o marxismo. O senho r M. é um t ipo de autod ida- te as férias escolares de verão, que seja "bOIl1", por exemplo, com~
ta que passou pelo militantismo religioso e político e que Sustenta prar cadernos de férias para as crianças).
um discurso no qual se mpre se misturam referências livrescas sobre O investimento escolar do pai é portanto bem fraco . Ainda que
seu país - históricas ("Ele é realmente capaz de te contar a histó- consciente de que a escola e sobretudo o diploma (que ele não pos-
ria de Castro ou de qualquer outra pessoa do mundo, mais do q ue sui) sejam imporrantes para se ter uma boa profiss~o na França, suas
pessoas como nós. que sabem ler o noticiário") e políticas- e expe- práticas efeti vas indicam mais uma preocupação moral de conjunto
riências pessoais. Fora da entrev ista, o senhor M. nos contou sobre do que uma preocupação especificamente escolar. No entanto. gos-
a assoc iação dos como rianos que acaba de criar (e da qual é presi~ taria que seus fi lhos não fossem como ele e que prolongassem os estu-
dente) para ajudar seus compatriotas e seus filhos a use darem bem" uos, deplorando ao mesmo tempo sua incapacidade de ajudá-los a nível
na escola ou em o utras at ividades, mostrando dessa forma que está escolar: la escolal "Ah. é, muito importante. porque, fico muito cha-
adaptando seu militantismo de origem à situação presente. teado. Tenho muita pena de não poder ir aprender na escola . Porque
Os pais exercem sua ação educativa essenc ialmente no campo hoje eu vejo, a gente precisa ajudar as crianças na escola, senão não
do controle uo comportamento mora l, que tem primazia sobre qual- consegue nada. Sem as escolas, não podemos ter médicos, cientistas.
quer outra dimensão. O pai não é, portanto, particularmente seve~ co isas assim. Acho que as crianças conseguem aprende r alguma coisa.
ro em questões estritamente escolares, ainda que não ignore as difi~ assim não vão ser corno a gente. Não somos nada, não quero que as
culdades de seu filho em francês e em matemática. Ficou bravo crianças fiquem como eu. Espero que ele aprenda uma profissão, se as
quando soube que o próprio Mehdi assinava os cadernos em seu lugar cri::mças têm alguma coisa, é bom".
para evitar sua raiva e as surras que os maus resultados pudessem pro~ Deixa o filho assistir à relevis"o quando volta ua escola e só a proí-
vocar. No entanto, disse que não toma nenhuma atitude especial quan~ be por razões de saúde ou morais (e não por razões escolares, classi-
do constata que as notas não são boas. Evenrualmente faz uso da pro- camente evocadas pelos pais atentos à hora de dormir em função das
messa de um presente como forma de encorajar o filho: "Não vou au las). Se o senhor M. não gosta que Mehdi assista durante muito
bmer nele. ta lvez depois, eu digo que precisa fazer um esforço para
aprender, às vezes digo que vou trazer bicicleta o u coisas assim, para * N,. França. CX1:. tC a r(l,~d" ljdaJc de as o..:TI<m~<b (H.:an:m n.1 ,,:>4.:01,. al'tÍ\ ,1:0. .lU!. b num .1 all -
\"KbJc ch:un.ld,\ "hunírio Jt· c:.tudo:o.livrt's", ondt' (,1:1;'111 , I:' I,,;i'l'~ l' rllOt.lc lll '>t.: r "J lId .lLl.l"
encorajar ele a estudar". As crianças fazem sozi nhr1s as lições de l·n· lltu"l mcllll· por ,dgu lll a:.::..:.tl'ntc do prn(c~"(lr ou C.~ t.I!!I ~ ri,1. (N.T.)

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PERfiS DE CONFIGURAÇÕES
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

tempo à televisão é porque, segundo ele, faz mal para os o lhos (e le Um fraco grau de escolarização, práticas de leitura essencialmen-
nos diz que é desde que estão na França que um de seus filhos preci- te lig'ldas ao Alcorão, que pouca relação têm com a leitura escolar
S" IIs"r óculos, e "ssocia o faro à prática de ver relevisão). O senhor
('em dúvida, não é por acaso que o professor nota que Mehdi lê "cor-
M. também limita a prática televisiva de seus filhos por razões morais: rc r..lInente", oralmente, mas que tem dificuldades "assim que pas~
não podem assistir a filmes ou programas onde se vêem cenas upor~ :"Iam para a parte de compreensão"), fracas práticas domésticas da
nográficas" ou violentas. Ele próprio e sua mulher não vêem filmes língua escri ta e um débil processo de racionalização das ati vidades
Umeio fortes", mas às vezes vêem filmes vio lentos. Da mesma forma, do mésticas (o filho "esquece os cadernos. não sabe o nde estão", segun~
se as crianças descem para brincar e mbaixo, perto do prédio, a mãe Jo o professor), uma v igi lância parental mo ral e não cspccifica me n ~
nilo gosta mui to, porque não quer que sigam "maus exemplos" (quc~ te escolar, SitwlÇão econômica instávei e modesta, um precá rio
brar, roubar, cusp ir nas pessoas ... ). O senhor M. também não gosta do mínio da língua francesa pe los pa is, chegada recente ao territó-
que seus filhos sa iam muito para brincar porque não pode ver com rio francês de Mehd i (agosro de 1990), que tem dificuldades em se
quem estão. Insiste também no fato de que as crianças não fazem muitO exprimir claramente durante a entre vista l /' - o conjun to comb i~
baollho no apartamento, e explica que andam descalços para não fazer nado dessas dificuldades (do ponto de vista do universo escolar) per-
barulho quando pulam. Ao ressaltar por várias vezes a questão dos mite-nos entender o "fracasso" de Mehdi, visro na escola como um
comportamentos "corretos" ou "incorretos" de seus filhos, o senho r aluno "d ifíci l de se entender" , "desinteressado", "que não estuda em
M. prova sua profunda ligação com a inculcação de um ethos. casa'\ e U com problemas de lógica e de compreensão em leitura".
Insiste bastante também no faro de que as crianças devem se cur- A descrição fina da configuração familiar da criança permite real-
var à vontade dos pais (UAqui, entre os franceses, dizem que a partir mente ver que o ufracasso escolar" de lima criança não está neces~
dos 18 anos as crianças podem fazer o que quiserem. Entre nós não é sariamente associado à "omissões dos pais", mas, neste caso preci~
assim, pois mesmo eu, meu pai, estou sob as ordens de meu pai, num so, a uma distância grande demais em re laçHo às formas escolares
posso fazer alguma coisa que ele não quer"), e que não cabe a eles "deci- de aprendi zagem e de cu ltura.
dir fazer alguma coisa". Reconhece ficar atenro pam que eles não que- No entanto, o faro de ter um pai militante e que leu bastante,
brem nada, não roubem, não façam mal a ninguém, "não joguem de ter uma mãe que freqüenta um c urso de ;l lfabet ização e um tio
pedras", etc. C hegou até a pedir a um professor do materna l para que foi professor, em um contextO em que o contro le do compor-
"bater" no pequeno se ele cuspisse nos seus colegu inhas ou no profes- tame nto m Orri I desponta como re lat ivamente estrito , em que a l uci~
sor, pois o viu fazê~lo lima vez em casa. É sempre com a preocupação dez concem ente à importânc ia da esco la no futuro profissional foi
de manter sua autoridade que o pai deixa de hrincarcom os filhos, por adq uirida e em que a frustração escolar e profissional dos adulros os
medo deperder o "respeito" deles. Quer ser levado a sério e inspirar leva a projetar as esperanças sobre os filhos (cf. o que disseram
medo ("E do medo que vem um cerro sentido de respeiro") quando sobre o futuro dos filhos, mas igualmente a vontade associativa de
diz algul1"1a coi&1, e a brincadeira 050 se presta, segundo ele, para ajudar as crianças comorianas a use darem bem"), deixa entrever a
demonstrar sua autoridade: "Pois se estão acostumados a brincar, se possibilidade de cond ições mais favoráveis de "êxiro" na escola pri-
um dia você diz para ele 'Pare defa,er isso!', ele diz, 'Eu não paro'. Por mária para os dois irmãos mais novos. A configuração familiar de
exemplo, a mãe pode 'inventar lima história' para eles irem dormir, socializaç:io não se fanua nunca definitivamente. e as diferentes crian~
mas ele não, porque, explica, 'se e les não tiverem medo de mim não ças oriundas de uma imigração nunca estão codas na mesma posi~
ir"o se deitar' ". Ele só pode brincar com os mais velhos (que já "com- ção. O faro de ser o mais velho, como Mehdi, não favorece eviden-
preenderam" sua autoridade), mas não com os me noresl~ . temente seu destino esco lar.

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

• Perfil 2: Uma prisão familiar. rem acostumados a esse t ipo de relação comun ic<ltiva. O "b<lrulho
Latifa 5 . lUtSCidn em Bran, com lllno de atraso n(I escolaridade (repe~
I
Je fundo" durante a entrevista, que quase todo o tempo se tomou
riu a pré~escola), obteve 3, 1 na (waliação . um burburinho, não parou. Ouvimos as c rianças falarem, gri tarem,
Aie"" S. , nascida em Bron, sem reper<nda escolar, uh""e 4, I lUl a•.'aiia{iio. herrarem, brigarem. Cortavam rodo o rempo a palavra do pai ou da
mãe, que fora m obrigados a parar de falar para repreender algum dos
C hega mos meia hora atrasados à casa desta fam íl ia arge lina que filhos em voz alta. Se acrescentarmos a dificuldade dos pa is de com-
n50 estava nos esperando: o encontro "marcado" por telefone tinha pree",ler o que estávamos falando e de dominar o francês, pode-
sido esquecido, e o bilhete transmitido por intermédio da escola ai nda mos imaginar 4uase fielmente a forma como se desenvolveu o que
nas moch ilas das crianças. Esta imprec isão na forma de gerir
CS[;.)V ...l Jific ilmente pode mos c hamar de uma "entrevista". Po ré m, isso
os encontros já se m os tr~ como um sinal da relação com o te mpo indica que tínhmnos razão em fazer essas entrev istas na casa dos entre·
dos pais\ 7. vistados e de faze r anotações ernográficas imed iammente ap6s sa ir-
Entramos em um apartamento de sala e três quartos onde hav ia mos da entrevista. Foi ali que cOll1preendernos a configuração fami·
uma fileira de crianças (6 ao menos). A mfie, vestida em trajes tra~ liar em seu funcionamento banal e em sua maior estrane idade.
dicionais, nos abriu a porta, mas esperava o marido, que estava para Essa família veio da Argélia. O senhor S., 44 anos, vem de uma
chegar. entimos um ambiente estranho cuja razão só compree n ~ famíl ia ana lfabeta de Constantine, cujo pai era openlrio agrícola e
deremos mais tarde, durante a entrev ista. De fato, todas as crian; a mãe sem profissão. A senhora S. , 38 anos, perdeu os pais quando
ças estavam na sala, o tempo estava bom, vimos muitas crianças bri n~ tinha 12 anos. Eram lavradores e analfabetos. O senhor S. freqüen-
cando embaixo dos prédios e não havia au la naquele dia ... Por que tou a escola na Argélia, segundo ele, dos 6 aos 18 anos, mas duran-
será que elas não estavam lá fora! te a entrev ista tivemos dúvidas sobre o tempo de sua escolarização.
A entrevista aconteceu em meio a mu ito barulho e com todas Chegou à Fr<mça com 22 anos, depois de ter trabalhado como
as crianças em torno de nós. Ficamos sentados ao redor da mesa . O pedreiro, c nunca ficou desempregado: foi ad mitido primeiro em
menor, que também é o mais barulhento, parece poder fazer o que uma fábrica de amortecedores, e a partir de então como ope r~l rio
quiser, até que a mãe ou o pai lhe dêem um tapa ou o "empurrem". numa f,íbrica de papéis de parede, o nde está até hoje. Sua mulher
Num determinado momento, desfa z, embaixo da mesa, os laços de chego u ~ França há 12 anos. Freqüentou a "escola da Repúb lica"
nossos sapatos, e quando seu pai sa i, sobe n3 mesa e tenta puxar o dos 6 <lOS 9 anos. Ao todo, o casal tem 8 filhos, 6 men inos e 2 meni-
microfone do grnvauor. Durante lima parte da e ntrev ista, Latjfa e nas: um rapaz de 22 anos, que trabalha como pedreiro, Outro de 14
Aicha (ambas da mesma classe) estão sentadas em volta d" mesa e que está na 6" série (2 anos de atraso), um outro de lO que está na
Aicha tenta, algumas vezes, ler nossas perguntas. O pai distribui tapas 4" série, duas meninas, uma de 9 (Latifa) e outro de 8 anos (Aicha),
ou bate nelas com O láp is quando, de vez em quando, respondem que estão na 2i! série, um menino de 6, que está na pré·escola, um
em seu lugar. Visivelmente, não suporta que tomem a palavra em outro de 4 anos, que freqüenta o maternal, c um último de 3 anos,
sua permissão, e quando, por duas ou três vezes, dirigimos, em sua que também está no maternal. O fil ho mais velho não mora mais
presença, a palavra às meninas e nflo a e le, o pai desviou o olhar com os pais, mas de q ualquer forma são 9 pessoas, vivendo em um
mo tranuo seu descontentamento. apartamento de 3 quartos.
O próprio estilo da entrevista quase constituiu a informação cen~ Apesar de estar há 22 anos na França, o pai f"l" mal e não sabe
trai em re lação à pesquisa: tratou~se de uma conversa picot~lJa, ler nem escrever o francês. A mãe 56 sabe alguns rudi mentos de lei-
interrompida, barulhenta, que ressaltou o faro de os pais niío esta- tura em "ra be . Aicha e Latif" têm poucos exemplos em casa do que

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PERFIS DE CONFIGURAÇÕES
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

lo, pago O seguro, sei que no fim do mês, por exemplo, tenho o alu-
conccrne a uma cultura corriqueira da escrita. Éo filho mais velho guei, o seguro do carro, o seguro da casa, o médico, si é eu qui paguei
de 22 anos quem passa normalmente à noite, depois do trabalho, ISSO, qui vô paga por mês, pago e daí e tlaí. .. nó is não fazemo assim
para cuidar dos documentos da casa. Antes, o pai disse, eram seus {com um tom reivindicarivo}, num adianta nada. Si marcamo ou num
amigos que faziam isso, mas agora que seu filho é grande, ele é marcamo, Já no mesmo". Ele parece não tcr idéia do interesse de
quem ficou encarregado dos documentos da casa: "Agora que meu semelhante utilização da escrita, para racionalizar, limitar, prever,
filho é grande, é ele que vai se virar para preencher os papéis". Ele calcular, planejar os gastos. Compra aqu ilo que precisa, e escrever
observa que seu segundo filho de 14 anos e mesmo o de 10 come- ou não escrever para ele dá no mesmo, em se tratando de contas.
çam a ajudar ("Ah, sim , ele é inteligente, faz tudo, o de IO anos, (Rindo): "Si sobra, sobra, si não sobra, não sobra, é verdade né, nó is
um menino legal, sim ' ''), e fala deles orgulhoso. Conta também orgu- nunca fazemo isso"; HA gente traz o dinhe iro pra cnS3 , vamo, e u,
"~oso que nunca teve de recorrer a uma assistente~socia l para se tenho tempo, vô comprá, si não, minha mulher tem tempo, ela
ajudá- Ia a preencher os papé is: "Nunca na minha vida". Preenche vai comprá e pronto. Não marcamo nada, não registramo nada, é
sozinho seus c heques e guarda os documentos d(l f(lmília, mas são verdade né, se num tem mais, num tem mais. Se rem, pegamo a
as crianças que escrevem os bilhetes para a escola. grana no banco". O senhor S. tem hábitos pouco racionais, e con-
O senhor e a senhora S. também não cultivam hábitos racio- sidera a diferença de utilização da escrita como uma diferença
nais e calcu listas de fazer listas, agendas, livros ou cadernos de con- entre "eles" ("os franceses") e "nós" (lias 'írabes").
tas, ou utilizar calendários, lembretes, fazer anotações antes de O senhor e a senhora S. não lêem jornais (a não ser um jornal
falar no telefone: (Irritado com as pergunras): "Ts ts ts ts ts, hum hum árabe que o pai compra umas 4 vezes por ano), nem revistas, nem
hum, nâo m(lrGlmOS nada, hum hum hum , nadinha". Pelo contrá~ histórias em quadrinhos, nem sequer a programação da televisão.
rio, o pai descreve, às vezes agressivamente, os hábitos que deixam O pai possui algumas obras em árabe, entre elas o Alcorão e dois
pouco espaço para se prever o futuro . Nada é escrito nem calcula - livros que contam histórias muito antigas ("As histórias, você vê,
do quanto ao orçamento familiar: "Vamos no banco c tiramos por têm séculos e séculos"). Porém diz que lê o Alcorão se tem tempo
exemplo 3000,4000 francos (600, 800 reais), colocamos tudo na ("Si encontro um tempinho"), e sobretudo no perrodo do ram.dã.
casa, acaba, passamos no banco, não marcamos nada, tem o alu~ Quanto às outras leituras, ressalva: "O resto, não te Ilha tempo" (suas
guel, a ge nte paga, tem as televisões, t,í pago, vamos pagá". Aliás, filhas confirmam que só vêem o pai ler quando está rezando) . Pos-
o senhor M. subli nha várias vezes que "eles", os árabes, não ano~ suem um dicionário, mas o próprio casa l S. não o consulta jamais,
tam esse tipo de coisas. "A h, não, nós, os :-habcs, não fazemos este po is foi comprado pensando nas crianças.
tipo de coisa." Para ele, anotar os gastos sign ifica não ter confian- Nossas perguntas sobre as práticas de leitura e de escrita podem,
ça em alguém e vigiar quem gasta quanto. Isso é incompatível como já di semos, às vezes, provocar efeitos de legitimidade. Porém,
com a concepção que tem da família. "A gente num é ... Nóis esta- para que um efeito de legitimidade escolar possa agir, é necessário
mo todos junto, comer em casa, si priciso, eu, eu vô e pego 100 que aqueles sobre os quais é suscetível de se exercer tenham um mrni-
francos ou 200 francos, 300 francos, minha mulher precisa com- mo de fé no valor do sistema escolar e em seus representantes. Ora,
prá, etc. ... , si sobrô, sobrô, si num sobrô, num sobrô, nunca faze~ para O senhor e a senhora S. a escola tem uma importância secun~
mos isso, a gente num faz isso." Além do mais, diz, escrever não dária na medida em que uma outra lei, a do Alcorão, se lhes mos-
serve para nada, pois, de qualquer jeito, vão gastar a mesma qllan~ tra como mais fundamental . Não se sentem em uma posição de domi~
tia. (Com um tom de evidência): "Num serve pra nada". (lrrira- nados em relação à escola francesa (que a seus o lhos representamos).
do): "Pra que qui serve ? É, sei , eu pagá aluguel, pago isto, pago aqui-
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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAçÕes

Para eles o Alcorão é a Lei, mais forte e mais legítima que a Esco- meninas não sair nunca, e os do is pequenos nunca"). Só os dois meni i
la. E o pai chegará a contestar, com uma certa agressividade, o inte- nos de 10 e 14 anos podem sair para brincar. A proibição também
resse de nossas perguntas: "E então, acabou? Acabou as perguntas? é válida para as quartas-feiras' , sábados e domingos ("Não, nunca,
O ra, o que é isso. purque fazer perguntas, purqui eu num co mpren ~ porque assim não é bom pra nó is, purque eles aprende coisas errada
do isso, essas perguntas. (Mu ito seco e até um pouco agressivo.) Q ui J e ver. Falam palavra que num é bom pra nó is. Ele saem sempre,
é isso, pra que serve, num serve pra nada isso !". Para ele, as pe rgun ~ mas as menina não, e os pequeno também fica em casa"). Assim pude~
tas que fazemos não se rvem para nada, po is estima que é na mo ral 1110S compreender por que todas as crianças estavam em casa no dia
religiosa que encontramos os "comportamentos corretos" e não na Ja entrevista. Aich a e Latifa só podem sair com a famíli a, para a casa
fo rma de gerir o orçamento, nas práticas de leitura e de escrita. dns primos ou para ir fazer compras com a mãe .
A preocupação com a dimensão moral religiosa esteve portanto A televisão também é mui to controlada pelos pais, que ut ilizam a
oniprei:iente durante a entrevista, sem comparaçHo com o interesse chave da abertura que possibilita o acesso ao botão de liga-desliga, por
pelos resul tados esco lares. A mãe terminou a entrevista di zendo que n:lZões morais. A mãe diz que seus fi lhos não podem ver coisas "que
querem voltar para seu país porque aqui as crianças "não respe itam são erradas". Insiste no fato de que é importante que os filhos faça m
mais os pais", e tom amise "selvagens" e umauicaráter": uQuando os como eles no que se refere à prática religiosa. N ão devem insultar as
jovens cresce , num respeita mais os pais, eu num deixo eles, volto pessoas, devem se comportar bem em relação aos vizinhos, e assim por
pro meu país na Argé lia" - e faz, de passagem, uma distinção entre diante: "Eu num insulto ninguém, eu tranqüila com os vizinhos, cum
os "árabes bons" e os outros. Por outro lado , ela exprime uma gran i todo mundo, ué". Deixa claro que, desde que estão morando naque~
de saudade da A rgélia quando diz não poder contar histó rias sobre le apartamento , nunca tiveram nenhuma queixa da parte dos vizinhos
a Argélia a seus filhos, po is isso a "faz sofrer" muito. franceses. Durante a entrevista, ao escutarmos O barulho de uma sire,
Esta configuração familiar é relativamente próx ima do caso pre- ne de po lícia, a mãe nos diz, muito séria, que quando a po lícia passa
cedente (Perfil I ), porém mais excepcional na med ida em que ambos n~o é para ela , insistindo assim no fato de que não têrn nada a escon~
os pais estão na França há muito tempo. Dominam muito mai o fran- der: "N um é pur causa de mim, não, nunca probleITla ...". A mãe tam ~
cês, mesmo depois de tantos anos de permanência no país. No entan, bém cuida de que os filhos comam com calma, fi cando de pé atrás
to, o isolamento familiar em relação a um "exterior" considerado dife~ de les com um chicote ou um c into (liAs cri ança come quatro aqui ,
rente, hostil e ruim para as crianças pode explicar, de certa forma, a i rre is na cuzinha , eu, de pé, do lado, si alguém quer água, eu vô buscá.
conservação da maneira de falar o francês bastante marcada pelo sota- Do lado, eu com o cicote, com o cinto n a mão, sempre de pé"), e
que argelino, e nem sempre correta do pontO de vista das normas s in~ batendo em quem não respeita as ordens. "Bato na cinta e falo: 'Acaba
táticas e léxicas escolares. O retomo é um mito ou um projeto real? co mer, come devagar, come tranqüilo'."
De qualquer forma, contribui para fechar um pouco mais a família em Se, por um lado, a escola não é uma preocupação primord ial dos
si mesma. Este isolamento se opera a partir de uma moral oriunda em pais (os professores nos informam que foram convocados três vezes
parte do Alcorão ou em todo caso legitimada por ele. O princípio de e nunca compareceram) , eles controlam o comporta men to dos
direção da política disciplinar familiar é uma moral religiosa , e não fil hos na escola, po is pensam q ue a escola serve para ensinar uma
uma preocupação especificamente pedagógica em relação à escola. profissão que não seja "dura e suja" e evitar o desemprego. Do ponto
A'icha e Latifa não podem nunca sair sozinhas. As meninas, de vista do comportamento, que lhes parece pmricularmenre impo r ~
ass im como os filhos menores - as filhas, independen.t emente da
idade, são tratadas como criancinhas - ficam fechadas em casa (" As tl N .I qllart:. -fcim 1);10 há au la na:. escola:. fm nct:~al>, atl! a 8· ~é nt! . (N .T.)

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SUCE SSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

ta nte, acham que "vai indo bem" com a "escola da República". Mas que vão lavar (por si mesmas) as mãos. Da mesma forma, Latifa escla-
interpretam o mau desempenho escolar das filhas no sentido de "mau rece, durante a entrevista, que não vê te levisão de no ite, pois a mãe
comportamento" e m aula (não escutar, não faze r o que mandam diz, quando acabam de comer "Vai ir dormir" (expressão repetida
faze r... ). Os dois olham as notas, e quando são baixas, a mãe as pune, desta forma três vezes durante a entrevista, o que demonstra sua recor-
obriga#as a estudarem , proíbe de ver te levisão, grita e bate ne las. O rência). Ainda uma vez, a mãe despon ta como o e lemento ex ter~
irmão mais velho e o de 10 anos também batem nelas, e a mãe expri- no que exerce coerção sobre o comportamento das crianças. Elas
me sua satisfação e m ver os filhos "to marem conta" de suas irmãs: vão dormir porque a mãe diz para irem dormir e não porque no dia
"Ele bate nelas e eu fi co contente, ele bate nelas. É por elas, não é seguinte têm aula, etc. Latifa não fornece ex plicações interi oriza-
por e le. El e inteligente". A s duas irmãs são unânimes, em cada uma das. Tudo isso revela o tipo de exercício de autoridade por press80
das respecti vas entrevistas, ao dizer que as reações dos pais ou dos externa que iremos agora considerar.
irmãos , quando tomam conhecimento de suas no tas baixas , são
vio lentas: "dão bronca'\ "xingam", "ameaça m", batem com um
ci ntu, com sapato ou J~o tapas, e A'icha conta '-Iue sua mãe lhe diz: De fato, nesta configuração familiar, há como um paradoxo
"Se ocê tira nota ba ixa, vou te batê". Elas faze m sozinhas as lições, apa rente entre o estilo bastante coerc itivo de disci plina exerc ido
"ajudadas" ape nas pelos irmãos de lOe 14 anos (a mãe d iz que ela pelos pais sobre as c rianças, pelos irmãos sobre as irmãs, pelas irmãs
"não consegue" aj udá-Ias ou explicar). O irmão de 10 anos ta mbém sobre os irmãos me no res, e o tumul to, o burburinho e o conjun to
bate nelas se não faze m as lições, se não compreende m ou não dos comportamentos que constatamos durante a entrev ista. Por que,
fazem certO os exercícios. Mas A icha e Latifa , evocando explicita- podemos perguntar, crianças tão ucontidas" são tão livres para gri -
mente a incapacidade dos pais de ler o francês, dizem na entrevis- tar, bagunçar, grudar-se nos pais enquanto estão fa lando conosco,
ta que não lhes mostram suas lições sistematicamente , e isto com cortar-lhes a pa lavra o tempo todo quando se dirigem a nós? Na
a cum plic idade dos irmãos. De fatO Aicha e Latifa estão relativa- verdade , a disciplina se e xerce do exterio r, e é compreensíve l,
mente sós em face de sua escolaridade, e só têm "di álogo" familiar quando uma disciplina é aplicada de mane ira coercitiva, que o co m~
sobre qucstões esco lares através de socos, gritos e xingamentos dos portame nto das c rianças apenas se mod ifique tcmporarimnente , no
pais, mas t3lnbém dos irmãos, que se revezam com os pais na polí~ momento em que deixam de existir as sanções (pancadas, gritos,
tica disciplinar parental: "Sobretudo meu irmão, ele me xinga hiper- "x ingame ntos") .
dema is, na 2i! série". - E ele te castiga? - uN ão, ele me bate e coi- Elas têm o hábito de regular o comportamento nos limites deci-
sas ass im", didos pelo outro, e não nos limites construídos pelo outro mas inte-
Q uando chegam da escola, Latifa e Aicha deixam as mochilas, riorizados como autolimitaçàes ou desejos pessoais (A icha e Lati -
trocam de roupa, lavam as mãos, trocam de sapato, tomam lanche fa, por exemplo, estão inscritas no curso de árabe, mas formulam a
e começa m a ler o "dic ionário". Essa lista reconstituída na o rdem coisa dizendo que fo i sua mãe quem as inscreveu, nunca evocando
pronunciada pe la mãe é interessante, po is re ve la a im portância dos
uma vontade pessoal).
aspectos comportamentais e morais (ser cuidadosa, ser limpa) e a No seio desta configuração familiar, A icha e Latifa não podem,
nebulosa que representa para ela o trabalho escolar ("ler o d icio- portan to, encontrar apoio para reso lver eu problema esco lar.
nário" parece designar o conjunto das ações escolares que consiste Primeiramente, embora as duas tenham nascido na França e ido à
em fazer os deve res). Além disso - um parêntese sociolingüístico escola maternal, seu estilo de fala, implícita, nem se mpre bem
- a mãe nos conta que ela lhes "diz" para lavarem as mãos e não do minada sintática e lexicalmente , é muito parecida, ao menos na

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

pro núncia, com o estilo dos pais (uÉ meus primos que ve m na t;t é burra". Estas palavras podem, é claro , agir como enunc iados pre;
minha casa": "Minha mãe, ela que vai lá na casa dos primos"). Quan- dit ivos. O pai possui a idéia tradic iona l de que a escolaridade das
do, por exemplo, Aicha faz a lisra dos irmãos que fi caram em casa meni nas é menos im portante que a escolaridade dos meninos. N ão
com ela durante as férias, procede da segu inte maneira, bastante faulk- t:' este o ponto de vista da mãe, se bem que espero u que seu marido
neriana1!l: "Meu irmão mais velho, meu irmão, meu irmão, meu saísse para dizê- lo. Em tal contexto, o desenvolvi mento de uma dis-
irmão", para dizer "Meu irmão mais velho de 22 anos, meu irmão c iplina coercitiva e exercida do exterio r, não;compreensiva, não per;
de 14, o de 10 e o de 6 anos". A maneira como o diz, pensando em mire que A"icha e Latifa tenham "sucesso" na escola. Vemos tam;
cada um dos irmãos demo nstra que, para ela , sua designação é da hém muito bem, neste caso, que não adianta ser udocilizado" pelo
ordem da evidência. Ambas explicam também com dificuldade a estatuto familia r, ne m ter responsabilidades domésticas (durante a
maneira como procedem para aprender as lições: "Leio palavra por e ntrev ista, a mãe dirá. a A 'icha para "pôr O tênis" no seu irmãozi~
palavra e depois le io rudo. Depois leio palavra-por-palavra-por- nho, e sabemos que ela e sua irmã, ao contrário dos irmãos, parti;
palav ra, depois, quando leio palavra-par-palavra, recomeço e leio c ip<l 1l1 nas tarefas domésticas: lavar a lo uça, arrumar suas camas e
tudo inteiro . Depois repito. Latifa di z que, por sua vez, ajuda o :IS de seus irmãos, varrer... ) para ter sucesso na escola. Ainda que
irmão, mas explica isso implicitamente: "Ah, quando ele me diz, às as duas irmãs sejam vistas como "boazinhas", "muito sensívei s às
vezes, 'Isto dá quanto?', eu faço nos dedos e depo is digo pra ele". ;Idmoestações" e tendo "necessidade constante de encorajamento
Nestas duas entrev istas, são bas tante marcantes a franqueza e , l' afeto", nem por isso possuem menos dificuld ades escolares: têm
às vezes, a vulgaridade ("Ah, a gramática, grrr, uma droga") das pala- "grandes problemas de compreensão", e, sobretudo, ('de compreen;
vras. Temos a impressão de que, ao contrário do conjunto das entre; S:10 das instruções", "precisam sempre que o professor explique", têm
vistas com crianças, nas quais estas têm tendência a eufemizar, "grandes problemas de vocabulário" com a resolução de problemas
esconder os próprios problemas, conflitos, apresentar uma imagem cm matemática, e , de mane ira mais geral, têm dificu ldades "assim
ace itáve l no plano esco lar, aqu i, como com os pais, o efe ito de legi; que os mecanismos se to rnam mais complicados".
ti midade que podemos produzir às vezes é extremamente frágil. As Ainda que os professores notem que o nível permaneça "muito
referências destas duas crianças são fortemente familiares, e a rup; muito baixo nos dois casos" e que "elas tenham dificuldades seme;
tura social com o exterior, sustentada pe los pais, com uma impo r; lhantes", salientamos, no entanto, para concluir, que A"icha fo i mais
tante valorização do "nós" em relação ao lides", parece produzir cedo para o maternal (3 anos e nove meses) que Latifa (4 anos e 9
efeitos nos discursos das crianças. A·icha e Latifa não hesitam em con- meses), o que, e m parte, poderia explicar a repetência de Latifa. Em
tar que apanham, dizem sem reti cênci ~s que os pa is não sabe m ler lI lWl configuração socia lizadora familiar tão distanciada do contex;
francês ou que são más alunas: "No meu boletim, s6 tenho O, 1 e 2", to de socialização escolar, a freqüência mais precoce das fo rmas eSCQ;
diz Latifa. I:lrcs pode constituir um pequeno "investimento" suple mentar.
À parte a aj uda esco lar dada pelo irmão que está na 4" série, mas
que aterro riza as irmãs, e bate nelas, com o consentimento dos pais, • Perfi l 3: U ma ru ptura radictll.
Aj·cha e Latifa não recebem uma ajuda objetiva nem subjetiva N'Dongo K., nascido no Zaire, sem repetência, obteve 4 na a1.Jaliação.
(grau de escolarização, relação com a escrita, relação com o tempo
dos pais, incentivos, apo io, diálogo, reconforto ). A lém do mais, o No dia do encontro , penetramos em Ulll apartamento bastan;
pa i e a mãe não hesi tam em enunciar diante delas que seu irmão escuro. H av ia muita gente : a senh ora K. e três de seus filhos,
1"0
de 10 3nos é "inteligente", enquanto elas são "burras": "Ah, a Lat i; entre os quais N'Dongo, a irmã da senhora K. e seus do is filh os.

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPUlARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

N'Oongo diz, na ocasião, que o bilhete que tínhamos enviado pela as criança ac ha isso. Num só só eu que diz isso. Somos mui tos que
escola ainda estava na sua mochila e que tinha esquecido de diz isso". A senhora K. diz também que "é a po lítica" que quer isso
entregá- lo à mãe. para os filhos de estrangeiros que vivem na França. A responsabili-
Quando informamos à senhora K. que estávamos gravando, ela nos JaJe do "fracasso" escolar dos filhos de estrangeiros é jogada inte i-
disse que não podia, pois falava ma i o francês, e esteve a ponto de se rame nte sobre a escola, e é compreendida na forma de um diabo/tIS
recusar a dar a entrevista" . Mas nós a tranqüilizamos dizendo- lhe que in = hina, de um complô político consciente, intencional. "Eles aca ba
aqu ilo não era importante e que não deveria se preocupar. Começamos cum as cr iança, é a política deles." Pouco preparada para enfren tar
~ SitwlÇão com uma forma de "rea lismo mais o u menos pessimista
ll
a entrevista enquanto a im'lã da senho ra K. e seus filhos estavam sen,
tados no sofá ve ndo um vídeo de música africana em alto volume. (que encontramos em inúmeras fam íl ias) em relação às ex igências
Ficamos sentados com a senhora K. ao redor de uma pequena mesa na esco lares, a senhora K. desenvolve uma concepção maq uiavé lica na
entrada da sala-de-estar. Pouco depois, perguntamos à senhora K. se qual a escola é movida por uma vontade po lítica deliberadamente
podíamos ir para um Outro cômodo por causa do barulho, mas ela pre- segregacionista em re lação às crianças estrange iras.
feriu ficar ali, e fa lou com a innã em sua língua materna. O que fez com A senhora K. diz entender a vio lência urbana dos jovens como
que a música parasse, mas eles passaram a assistir a um programa de n sintoma de lima revo lta ligada ao sistema escolar, pois a esco la não
telev isão. Houve, portanto, muito barulho durante toda a entrev ista. lhes dá os meios para fazerem algo que não seja uma formação para
A entrev ista aconteceu em uma atmosfera muito estranha. A profiSSties manuais: "S i você v isse as crianças que quebram tudo. Num
senhora K. não parava de olhar sua irmã, para quem estávamos sei qua l na rua. N um é pur causa de nada não, mas purque ex iste raiva.
dando as costas, e acreditamos que certas respostas foram ditadas pela Eles estuda como o N'Oongo começô, assim, e aí, qua ndo têm cator-
irmã, ou ao menos bastante insp iradas ne la. Muitas vezes, abando, ze anos: 'A h, cê num é bom aluno. Va i fazê a escola das profissão'. I
nando a entrevista, a senhora K. fa lava com a irmã em sua língua rem genre qu i continua a estudá e o utras qui não. Principalmente
antes de nos responder. O caráter estranho da situação se esclare- os estrange iro, aqui no teu país é assim. Antes as pessoas me falava
ceu quando a relacionamos com as palavras finais da entrev ista. Aí e e u num acred itava. Mais tem que vim aqu i, na fo nte , pra vê como
as uuas irmãs começaram a criticar O sistema esco lar francês. Segun, é que as co isa acontece. Eu agora vi m na fo nte, sei como as co isa
do elas, a escola fran cesa tornava imposs ível uma longa escolarida- aco ntece. É um problema de política, acho". A partir dessa crítica
de paro os filhos de estrangeiros: "Aqui, gosto muito, ele continua podemos compreender que alguém que vá fazer perguntas sobre a vida
bastante tempo na esco la. Mas para as criança estrange ira aq ui, na fa miliar só pode apa recer como muito suspe ito (por duas vezes a legi-
França não acredito as coisas í bem. As criança, os estrange iro, aqu i timidade de nossas perguntas será colocada em xeque através de pedi-
na França, sempre co'as profissão de pintô, marceneiro, como se fa la, dos de explicação, em que percebemo um pouco de agressividade) :
pedreiro. E fazem isso purgue um dia o estrangeiro vai voltá pro país "Qu iria saber purquê de todas essas pergunta. Eu num entendo"; (Me
dele" j "I, tamém, a maior parte deles, estrange iro, qué dizê, alguém desculpa, vocês estão fazendo pesquisa ou u quê?), e aí percebemos
que não sabe lê. Os pais não sabem lê tudo isso". E mesmo se as crian- melhor a estratégia discursiva adotada pela senhora K. que consis-
ças se saem bem na escola, elas sustentam a idéia de que são orien- rir;\ em exaltar os talentos de seu filho.
tadas para cursos profissionalizantes, pma aprender um ofício: uPruquê
me mo que eles faz bem os estudo, depo is, com 14 anos, eles diz: 'Vai
ll
fazê uma profissão, vai sê pintô', o u um o utro curso de pro fissão . A A senhora K. tem 3 7 anos e ve io do Za ire. Fo i à escola dos 8 aos
senhora K. diz que não é só ela que m pensa assim : "A gente, todas I Z anos e aprendeu um pouco de francês. Está na França desde os

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

25 a nos e por du as vezes, em 1990 e 199 1, fez estágios de alfabe ti - A senho ra K. ta mbé m n ão utili za mui to a escrita . Desenvolve
zação qu e duraram 3 meses. Traba lha há apenas 3 anos como faxi- muito pouco as atividades de cálculo , rac ionais, administrati vas, tanto
ne ira e m várias casas. Vive soz inha (d iz, sobre o marido: "N um vejo por conta de sua situação econô mica quan to po r fal ta de háb ito c ul -
e le mais. N um conheço e le mais") com seus 6 filhos: uma me nina tural e m re lação a um cerro número de atos de planificação, de ges-
de 17 anos que está faze ndo um curso de a lfabetização há 8 meses tão: não escreve lembre tes, não faz lista de compras, nem lista de
(e la chego u h á po uco cio Za ire), do is Outros me ninos, um de 15 e coisas a serem fe itas Oll para levar numa v iagem, não te m agenda,
outro de 13 , cuj as classes desconhece, um menino de 11 anos que pos ui um calendário mas não anota nada nele ("Sabê, se i. sei se
os o utros filh os d izem estat cursando uma classe especia l (SES, e m tenho um encontro num dia, na minha cabeça. Entrô nela, eu se i"),
francês) (ela confirma , mas n ão se lembra) , N'Do ngo, que tem 8 n ão tem um cadern o de contas ("Ma is sei que se tire i 500 francos,
anos, c um a filha de 6, que está na pré-esco la. eu falo : 'Tirei 500 francos.' Pra que qui ocê qué o caderno ? Faço tudo
O pa i da sen ho ra K. era um func iomlri o pübl ico de bai xo esca- sem cabeça [o u seja , de ca beça]"), n ão escreve cartas à família ne m
lão no Zi1 ire, mas e la não sabe até que ano da esco la cursou. Mas a amigos, não ano ta nada antes de dar um te lefo nema nem depo is,
sabia ler e escrever. Sua mãe era comercian te e vendia pe ixe fresi e guarda seus documentos sem class ificar "em um grande enve lo-
co e defumaclo nas fe iras. O pai de N 'Dongo está no Za ire, e a senho- pe". O contexto socia l do qual é o riginári a e se u grau de escolari-
ra K. exa lta as qua lidades de seu ex- marid o di ze ndo que conhecia zação contri buem, sem düvida, mui to para justificar essa falta de prá-
muitas línguas ( inglês, italiano, ale mão ... ), pois tra ba lhava "nos escri- tica rotine ira da escrita . S uas competências limi tadas faze m com que
tórios de finanças" e m um aeroporto. Escrev ia c~ rtas destinadas a recorra à ass istente social (uÉ, si tô com a lgum pobrcl11"1, si num rô
vá ri os pa íses, que ele pró prio batia i\ máq uina , e la esclarece. entendendo , procuro a minha assistente social. A í ela vai me mos-
Ao contrário de o utros casos fa mi lia res q ue combinam in vesti- tra como é qui faiz" ), ou então recorre a N'Do ngo: "Pruquê N'Don -
mentos e o bstáculos, a configuração fa mili ar na qual está inserido go lê , né. Ele mi explica um poco si eu num enre ndo a frase"; "Às
N ,Dongo encontra sua coerênc ia a mil léguas de distânc ia das carac- vez e u ajudo e la a lê", n os confirma O filh o .
rerísticas do universo esco lar. N a realidade N'Dongo vive em uma A se nhora K. diz que escreve cartas pa ra fins aJministrativos,
família que acumula uma série de traços que impede m que siga uma preench e sua declaração de imposto e escreve bilhetes para li escola,
escolaridade sem dific uldades. Sua mãe , esco larizada durante somen- soz inha . N o entanto, pode mos n os pergunwr se ela tem competên -
te 4 anos em seu país, faxineira e dominando muito mal a francês, c ia de escrita para tanto, po is se até para ler sua correspondênc ia
.", cursos de <1 1fabe tização, mas continua com dificuldades pa ra ler consulta a ass iste nte social. Dada a visão crítica que conhecemos,
e escrever francês. Com tal percurso escolar e social , suas práticas podemos compreender a estratégia de respostas da senho ra K. como
de leitura são evidentemente muito raras, E lil11itam ~se essenc ialmen- li ma mane ira de não ser v ista como alguém que tenha muitas difii
te às coisas q ue precisa ler por o brigação (a correspo ndê nc ia ) ou po r cu Idades para ler e escre ve r, por medo de ve r o filho encaminhado
necessidade (an(mc ios de jo rnal quando está procurando traba lho : para cursos profissio nalizantes de curta duração.
"Eu 6 io só O traba lho, e pronto . Fora isso, num ó io nada") . N ão pos- Como N 'Do ngo ajuda a mãe a compreender certas cartas admi-
sui livros a não ser a Bíblia ("Eu tenho a Bíblia , e só") , cuj a utiliza- nistrativas, podemos conceber fac ilmente q ue a ajuda que a miíe possa
ção não conseguimos entende r. N a verdade , a senhora K. diz lê- Ia lhe dar q uando faz seus deveres escolares é mui to limiwda. Além disso,
"de ve iz in quando , quando eu posso". Sabemos por expe ri ênc i ~ que ela n ão pode estar e m casa para contro lar a lição de casa dos filhos,
quando nossos entrevistados dizem ler quando podem o u quando têm po is seus ho rári os de traba lho faze m com que vo lte lá pe las 9 h o ras
tempo, isso significa que essa prática é bas tante rara. da no ite. Se, em um prime iro momento , a mãe afirm a que manda o

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARE S PERfiS DE CONFIGURAÇÕES

filho fazer a lição de casa ("Eu pergunto: 'Ocê fez a lição?' 'Não, mamãe, volve a idé ia segundo a qual, se a escola não obriga a fazer os deve-
vô fazê agora mesmo'. Depo is e le começa a fazê. Às veis, si não vejo res, as crianças não vão que re r fazer se os pais lhes pedirem: "Quan~
ele, e le tá no quarto, fazeno se us dever" ) , o contro le não se mostra ,lo a professora n um dá lição, e ocê di z pra teu filho 'Vem aqui lê' ,
ser sempre tão estri td ú . Ela faz questão de dizer que N 'Dongo "gosta ele va i te dizê: 'Ah , não, mãe, a professora num deu lição, então
mui to" de fazer a lição, mas acrescen ta também: "De qualquer je ito. num vô lê'. Então si num têm nada pra fazê e ocê diz : 'Vem deco~
nunca vi assim , que ele num tem vontade de fazê nunca . Ele faz o rá esta poesia', e le num va i ficá contente". É assim que a irmã da
tempo todo, mais às veis ele vai esquecê um l)QUCO". Finalmente, fa l an ~ sen hora K. esboça o perfil da criança que não que r ouv ir os pais se
do ainda da lição de casa, ela acaba de ixando passar: "Num posso a escola não os ajuda a sere m ouv idos. Estes pais a que se refere são
contro lá". A lém disso as únicas pessoas que p<x-le m ajudar N'Don ~ aqueles para quem a escolaridade não é "natural". De fato, em
go nos deve res escolares são pessoas que estão de passagem ("É, si ourras configurações familiares, as ações pedagóg icas dos pa is não
tem gente que veio mi vê aqui, ele pergunta, mostra, bem, diz si fez prec isam do apo io da insti tuição escolar: a criança já interiori zou
dire ito, aí e les diz: 'Aqui você errou, aqui'. Ass im ele vai corrigi") em forma de desejos pessoais aq uilo que se espe ra dela.
- é o caso de sua tiaL1 - , ou de seus irmãos, mas s6 aos sábados, Finalm ente, a senho ra K. mostra a d istância que a separa o bj e-
pois durante a semana cada um está em suas respectivas escolas. O tivamente da escola quando não consegue d izer e m que classe seu
controle que a mãe pode exercer sobre a escolaridade é portanto rela- fil ho está ou então quando se engana sobre os pon tos fortes e fra-
tivamente fraco, e ve mos um ind ício d isso na história do bilhete que cos de N 'Dongo (segundo el a, "ele é melhor em fra ncês", e nquan-
lhe endereça mos por inte rmédio da escola e que nunca chegou às to os res ultados escolares provam que N'Dongo te m melhores
suas mãos. A mesma coisa acon tece com o contro le da hora de se notas e m matem::í.tica que em francês ). Mas e la não de ixa de van~
de itar e às amizades de N'Do ngo . A senhora K. d iz que o filho vai glo ri ar-se das qualidades do filho: seu tra balho na escola, seu amor
dormi r as 20h30 todos os di as, com exceção das vésperas dos di as pe la escola ("ele gosta bastante da escola"), pela leitura (depo is
em que n ão te m aula, quando pode se deita r às 2 \ h30; mas pode- de conversar com sua irmã, a senhora K. diz que é N 'Dongo quem
mos nos perguntar, ainda neste caso, como e la pode verificar se o lê mais na casa), e pela escri ta, sua capac idade para contar ("Ele
filho se de itou às 20h30 se ela chega às 2 \ horas. Por outro lado, ela sabe comprá be m, ele sa be contá bem"), sua seri edade ... No final
ta mbém não conhece os colegas do filho, mas sabe que são "lega is" da entrev ista, a irmã reconhece que ele tem ape nas algumas peque~
("Ah, num cunheço seus colega aqui do ba irro, mais de qualqué jeito nas dific uld ad es para co mpreende r o q ue lê: "compreendê ele
sei qui eles são 'legal''') , e emite seu julgamento a partir do que lhe comprende um poco" . Esta superva lorização de N'Dongo, que
diz N 'Dongo: "Ac ho que seus colega são legal purquê ele n unca me ultrapassa mui to o que a escola reconhece nele como qualidades,
disse assim: IMãe, ele mi fez isso ou aquilo' ". só se explica no quad ro da v isão de complô com a qual justificam
A senho ra K. d iz que conhece os professores de N 'Dongo mas o "fracasso" dos filhos de estrangeiros na França.
que nunca falou com eles. N ão va i às reuniões pois, explica, "antes Neste sentido, N'Dongo é visto desde o maternal (onde en tro u
não, eu trabalhava muito, num tinha tempo de fazê isso", Diz que com 4 anos e 5 meses ) como uma criança "pouco interessada pela
nunca fo i con vocada pelos professores, mas sabemos que entre o vida da classe'\ "muito tagarela e barulhenta". Seu grau de ma turi~
momen to da entrevista e o fi m do ano , e la fo i contactada três vezes dade para a aquisição da leitura é julgado "medíocre", e o desen vol-
por carta e por te lefone pelos professores, que não conseguiram vê~ vimento de sua linguagem, "médio", Seus professores atuais dizem o
la assim mesmo. A irmã da senho ra K. cri t ica a escola por não dar seguinte: "A gente percebe que ele está com a cabeça em outro lugar",
suficien te lição para se faze r à no ite ou nos fins de semana, e dese n- "Está na lua", "É prec iso todo o tempo chamar sua atenção para que

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

comece a trabalhar", "É preciso ficar atrás dele", "Consegue devol- ., ,'" capacidade, (socialmente constituída) de cuidar de sua educa-
ver uma folha em branco sem se importar", O conjunto destas apre- ção, de sua presença a se u lado, o u, fina lmente, de sua disponibili-
ciações ressnlta a pouca implicação que N'Dongo tem em relação ao Jade de transmitir à criança certas disposições culturais ou aco m-
trabalho escolM, Evidentemente, dizem que ele não é "escolar", que panhá-Ia na construção dessas disposições.
esquece de pedir para ass inarem seus caJernos, que esquece Ou perde De fato, os indivíduos que detêm as disposições culturais mais
o material, que o material está sempre em desordem o u então que "não compatíveis com as exigências do universo escolar nem sempre são
é capaz ou não tem vontade de se organizar", E não é por acaso que - por conta da distribuição dos papéis familiares ou do tempo de
é no domínio mais próximo das prÁticas que lhe são mais comuns que dispõe - aqueles que estão em contato com a criança com mi-lis
(N'Dongo vai sempre fazer compras para a m8e), a numeração , que freqüência e de maneira mais duradoura,
obtém "boas notas", enquanto os "problemas", ao contrário, fazem Acontece que o tempo de socialização é uma condição sine qua
com que "decaia", Descrito como alguém "apagado ll no conjunto da non para a aquisição certa e duradoura dessas disposições, das manei-
classe, os professores esclarecem que "no recreio não tem esse tipode ms de pensar, de sentir e de agir, Ao contrá rio do patrimônio IlHlte~
comportamento", Acontece que a fratu ra entre a configuração fami- rial que pode ser transmitido instantaneamente, sem prazo (o que
liar e as formas escolares de vida é tal que, na escola, N'Dongo só pocle não garante, no entanto, de fo rma alguma a capacidade socia lmen-
estar com a IIcabeça na lua", te constituída do proprietário de faze r uso dela, f, mais que isso, de
ti rar dela o melhor partido possível), as disposições, os esquemas men-
A herança difícil tais sociais só podem ser adq uiridos ou construir-se através de rela-
ções sociais duní.veis (versus efêmeras, ocasionais) H, É isso o que
A tcndi-m:ia J u patrimônio (e, n c~ t c $Cnt iJu, demonstram, de n1aneira caricatural, as matrizes de socialização
dl'luJ,[.1 C~l ru l ura !)O(. I,I I) e m pen;cvcmrelll~U
M:r:>(; podo: !te re.lh:ar ~ ,\ hcr, m ~' ,1 hl'nl. , () her-
"to tais" (convento, caserna, prisão, internato, escola ... ): através do
dc,r\" '>C , JlI,r tntcrlll éJLt)d:14Uck'~ que ri::1ll pnl- isolamento dos seres sociais durante um longo período de tempo em
v,,,nrl ,II,wntc ti cl,cargu l' que Jc\'cm rt-"scgur,l r um espaço fech ado e isolado do exterior, pela gra nde promisc uida-
!tU:I.llIICC1t.,\:ll', "o m u rtti ( o u ~j<i , a I'mpricd ••dc)
Jc entre esses seres sociais e pela coerência e sistematicidade da orga~
:l1'0dcr:J-:.c du v iVI) (ml ~CJ,I, um prurrkdrin
db I XJ~ I ~ ll' :11'1 0 .1 h l,'rJ,Ir)" ~~ , nização das ativ idades, tornam possíveis os efe itos de socialização
coerentes e duráveis, É por essa mzão também que, ainda que os soció-
Como herdamos? Quais são as condições sociais, relacionais, para lugos nunca tenham aba ndonado completamente o estudo das rela-
que lima disposiçãu cultural possa ser "tra nsmitida" ou, em todo caso, ções efêmeras, ocasionais, preocuparam~se muito mais em analisar
passada, de uma maneira ou de outra - ;:. força de se incu lcar, Je as relações mais freqüentes, duráveis, estabilizadas, cristalizadas e
forma expressa ou difusa, direm ou indireto, etc. - , de um corpo IllUiti:1S vezes institucionalizadas, pois o exame dessas relações per~
soc ia lizado a um outro corpo socializado? As más condições de mite compreender as disposições sociais mais características e co ns~
h erança que desco brimos em certas condições familiares nos for- titutivas dos se res sociaisZ4.
çam a colocar questões que as h eranças que deram certo c as tr(1n s~ Os perfis que veremos aqui (bem como os de núme ro 8, 9 e L2)
missões fe lizes tendem a escamotear, mostram bem que as IIheranças" - com "sucesso" ou fracassadas -
Dado que o "capita l c ultural" está condenado, de um lado, a viver não são nunca processos mecânicos, mas cfetua m~se sempre, para
em estado incorporado, sua "transmissão" ou sua "herança" Jepen~ a criança, nas re lações concretas com outros membros da configll~
dem da situação de seus portado res: de sua relação com o filho, de ração familiar, que não se reduzem às figuras, normalmente sacra-

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONfiGURAÇÕES

lizadas e reificadas, do Pai e da Mãe. A economia das relações afe- ras c analfabetas. Os pais de Ryad, que nunca foram à escola, ram-
tivas no se io da família, objeto de pesquisa de psicólogos e psica- hém são analfabetos tanto em francês quanto em árabe. O pai veio
nalistas, nunca trata de seres c uj a única caracte rística seria ocupar ".z inho da Argélia com 19 anos aproximadamente, e fez cursos de
uma ou outra posição em uma estrurura familiar abstrata (Pai, Mãe, lurmação profissional que o capacitou a operar máquinas eletrôn i ~
Filho). Essa economia efetua-se entre seres sociais com múltiplas " .. Je concreto, uma profissão qualificada ("Num é fácil fazer fun-
facetas sociais e cognitivas, formando entre si uma configuração social tionar uma máquina de concreto nas obras püblicas"). Ele tem 57
particular; e para cuja apreensão é necessário que se passe de um ,1Il0S e faz cerca de 37 anos que está na França. Atualmente está
modelo de relações entre figuras abstratas, desencamadas (despro- dese mpregado, pois sua empresa atravessou problemas financeiros,
vidas cle corpos socia lizados) de um modelo sociológico de relações c tem dificuldade para encontrar trabalho. A mãe, de 49 anos, veio
de interdependênc ia entre seres soc iais que ocupa m lugares em pnra a França com os filhos em 1971 (há 2 1 anos), e nunca traba-
configurações sociais e possuem capitais Ou recursos ligados a esses lhou, Repetem muitas vezes que entem muito não ter freqüenul~
lugares, bem como à sua socia li zação anterior no seio de outras con~ ,-lo a escola e não saber ler nem escrever. Para eles "faz uma falta
figurações sociais. enorme": uÉ, é, eles falam sempre: 'Que pena, eles não sabem ler,
n~o sabem isso, não sabem aquilo"',
• Perfil 4: A difícil situação do filho mais novo. Ryad, o mais novo da família, tem 5 irmãos e I irmã (Nora): um
Ryru1 B, nascido em L)'on, com 1 ano de atraso escolar (repetiu a pré~
I irmão de 29 anos que fez um curso técnico de soldador e está tra-
esco/a) , obteve 3,5 na a'valiação . halhando nisso, outro de 28 anos que não conseguiu terminar um
curso profissio nalizante de mecânica geral e que está atualmente
Chegamos ao encontro por volta das 14 horas de um sábado. Um fazendo estágios na Agência Nacional para o Emprego (ANPE), um
homem, jovem, abre a porta. Explicamos que havíamos marcado ,'litro de 25 anos que fez um curso técnico de 12 grau (BEP)" de
um encontro com Nora, a irmã de Ryad. Ele pede para esperar. Logo Pllltorde paredes, uma irmã de 2Z anos, Nora, que respondeu a nos-
depois, deixa~nos entrar. Nora nos cumprimenta. Estava descansan- sas perguntas e que esul fazendo um curso técnico de secretariado
do por causa do ramadã, que a deixa cansada, O homem é seu irmão após ter concluído O 22 grau em nível F8" , um outro irmão de 19
mais velho, de 29 anos. Entramos e ela diz para senmrmos em uma anos, excepcional, que está em uma esco la especiali zada, e um
cadeira, na sala de jantar. Irmão de 17 anos, que atualmente está na 7" série de um curso téc-
Seu pai estava donnindo em um cõmodo contíguo à sala de jan- nico de 12 grau, depois de um percurso escolar difícil (está com 4
tar, separado apenas por uma cortina, Não o vimos mas o ouvimos ron~ anos de atraso). Vivem ainda com os pais Nora, Ryad e seus dois
car ligeiramente. A mãe vai se levantar durante a entrevista. Nós a irmãos de 17 e 29 anos.
cumprimentaremos, Ela não se mostrará nem espantada nem parti~ Ryad, que entrou para a escola maternal quando tinha 4 anos e
culamlenre interessada em nossa entrevista. Durante toda a conver~ 2 meses, foi rapidamente considerado como uma criança "inadap-
sa Ryad estará numa festa anual regional. que acontece em lima praça t::lda" em re lação 8S exigências escotares, "Cri::lnça medrosa, pouco
não muiro longe de sua casa, com seu irmão de 17 anos, A entrev is-- à vontade na classe", que "fica sozinho'\ "muito pouco maduro para
ta decorre normalmente, sem barulho. Nora parece estar intereSS>lda aprender a ler", se mostrava "superprotegido" pelos pais, o queri,
U

na conversa e espera sinceramente que Ryad vá melhor na escola. dinho", "começou a saber ler em voz alta aos 7 anos e I O meses".
Os avós de Ryad morreram, menos a avó materna, As famílias, Ryad é a única criança de nossa amostragem que foi indicada para
tanto do lado paterno quanto materno, eram argelinas, agricul[o~ seguir aulas de recuperação no final da 2" série. Seus dois professo-

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

res O consideram difícil de ser "entendido", com "enormes proble~ I,ic il de achar quando preciso. Coloco os papéis do seguro-desempre-
mas de compreensão) mesmo na comunicação co loquial", e "que se go de lado, ou o envelope com os hollerichs, quando ele estava traba-
n
deixa levar pelas brincadeir:olS dos o urros H , lhando, em outra parte, assim fica bem c1assificado , Nora copia as
Vive em uma família na qual foi uma menina quem se deu receitas de cozinha e coloca num caderno, e é ela também que tem
melhor na escola de maneira flagrante, conseguindo obter o d iplo- condições de fazer anotações antes de dar um telefonema, pois é a encar~
2
ma de 2 grau, e que depois foi fazer um curso profissiona liza nte. regada dos documentos administrativos da família: "Faço uma peque-
Não é por acaso que é e la quem responde a nossas perguntas em uma na lista pra num ter de telefonar muitas vezes". É ela também quem
fum ília na qual é a responsável pela gestão administrativa e pelo acom- f~1Z a lista de compras, Mas, em contrapartida, é seu pai quem contro~
panhamento esco lar de Ryad. Tudo repousa sobre ela, o que pode h1 as contas, discutindo com a mulher, a partir do extrato de lima cader~
explicar em grande parte a dificu ldade escola r de Ryad. neta de poupança. Esta não é uma tarefa pam N ora, que é mais do
Ainda que os pais sejam analfabetos e tenh am O Alcoriio como gênero mulh er~ad ministradora que mlllher~execlltiva17, Finalmente,
um objeto sagrado que não é lido, Ryad não vive em um universo mantém um diário pessoal e se corresponde bastante com os primos,
totalmente desprov ido de qualquer prática de escrita. É, sem délvi- primas Oll a avó, que vive m na Argélia, e (em também uma corres~
da, sua irmã Nora que representa O pólo mais instruído da fa rníl ia pondente americana. Ryad vive, portanto, rodeado de membros de
de imigrantes argelinos ana lfabetos: compra o jornal de duas a três ~lIa família que lêem, de uma irmã que organiza a vida familiar C0l110
vezes por semana (Le Progri!s ou Lyon Matin), foi assi nan te durante umél segunda mãe de fa mília. mais escolarizada e racional que sua pró-
do is anos da revista L' Étudiant, e pede emprestados com freqüênc ia pria mãe. No entanto , não basta estar "rodeado" ou "cercado" para
livros na Biblioteca Municipal de Lyon ou às a migas (romances, "h is- conseguir construir concretamente suas competências culturais,
tó rias verdadeiras, antigas"). Mas seu irmiio de 29 anos também lê É ainda Nora que m responde pe lo acompan hamento escolar de
"livros sobre a atua lidade", e seu irmiío de 17 lê romances policiais Ryad . Não tem te mpo de ir às reuniões na escola à noite, mas
e revistas e m quadrinhos. Ryad, de vez em quando, folheia h istórias conhece muito bem a situação de seu irmão na escola (qua l sua c1as~
em quadrinhos, mas sua irmã acred ita que não leia as histórias, con~ se atual, o fato de ter repetido a pré-escola ... ), e sobretudo SOlIS pro-
tentando-se em olhar as imagens: "Ele o lha, mas não lendo a histó- ble mas relat ivos à le itura em voz alta (e le tropeça nas palavras), à
ria, seguindo toda a história do começo ao fim. Lê, o lha as imagens leitura~compreensão, à gra mática e à expressão, É e la que contro ~
assim ou então uma página, depois de ixa o li vro de lado, nel!, la seus estudos, informa ndo os pa is dos resu ltados. Tenta supervi-
Nora é a responsáve l por tudo que se relacione com os documen- sionar suas lições de casa, mas repete várias vezes que nem sempre
tos escri tos, e isso desde a idade de 14-15 anos: "Da correspondência é possível, pois tem um horário muito sobrecarregado. Sobretudo
ou para responder RS cartas, sou eu quem me encarrego", Ela diz que chega muito tarde em casa: "Tento organizá- lo, mas é difícil, por
isso não Ué um sacrifício de forma alguma" e que gosta disso: "Tem CtlUSa de meu hon'irio. Ten to conversar com Ryad pra ver o que não
meus irmãos, que lêem a correspondência, mas como sabem que sou está indo bem, por que faz tantos erros no ditado, por exemplo, uma
eu quem va i)ogo responder ou preencher os papéis, então deixam pra palavra ou outra"; "Acontece que estou aqui só de no ite, nem toda
mim, né?". E ela quern redige as cartas administrativas, quem preen~ noite, porque não tenho tempo",
che a declamç;10 de imposto, que seu pai assina, quem preenche os Apesar disso, ela o obriga a fazer exercícios, quando tem te mpo,
documentos para a escola e quem classifica por ordem cronológica, e a estudar as lições. Quando os resultados não são bons, diz que faz
em pastas, os documentos da família, para poderem encontrá- los "chantagem" com Ryad em relação ao vídeo-game. Geralmente ele
facilmente quando precisam deles: "Faço uma triagem par" que seja começa a ch orar q uando ela faz isso. Pode privá- lo também de ver

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

televisão ou de sai r com os amigos, mas como diz Nora , IIfunciona pela leitura: HTento, começo a contar um pouco da história, para
na hora, depo is não". Ryad, portanto, faz os deveres norm almente t-entar arraí#lo, né ? Então, leio algumas palavras, conto um pouco
sozinho Oll com seu irmão de 17 anos, que não o aj uda muito. Às tia história por alto, mas nunca o fim. E[e sempre me pergunta
vezes a irmã lhe exp lica, o corrige, lhe dá outros exemplos e passa como é que termina (risos ), eu digo: 'Bom, leia e você vai ver como
outros exercícios. A hora da lição de casa parece ser muito desgas- termina, né?'. Daí, ele va i para o quarto, tenta ler, mas não se i, ele
tante para Ryad, que chora cada vez que tem que aprender uma lição: não lê. Faço duas o u três perguntas uma ho ra depo is, duas horas, e
"Ele aprende com dificuldade, mas aprende; chora, é um drama cada ele continua na primeira página. E olha que eu tento contar um pouco
vez que te m que ap render uma lição". C hega a ficar até as 10 e meia a história para facilitar um pouco, mas não". Poderíamos pergun#
da noite para faze r duas operações: "E ele ainda queria q ue eu fizes- rar se ela, sem saber, não está colocando o irmão diante de dificul #
se para ele". O que não é de espantar, pois lIesquece" freqüentemen# drtdes insuperáveis.
te de fazer as lições ou de ano tá- las no caderno. É preciso ficar "o Sua irmã acha que será necessário inscrevê#lo no honhio de estu#
tempo todo at rás dele", e Nora pediu a um de seus professores para do livre após a aula , durante os três últimos meses de escola, po is
ficar lIum pouco mais atrás dele". Durante as férias de ve rão, ele não tI"s 17h às 19h30 mais ou menos (ho ra em q ue volta para casa) ele
fez nenhuma rev isão, a não ser na semana que antecedeu a volta às fica brincando e não faz a lição ("Acontece que não tem ni nguém
aulas. Nora tra balha durante esse período, pro vave lmente para para cuidar disso, das 5h às 7h. E[e brinca demais, não faz a [ição"),
poder pagar os estudos, e n ão pode organizar melhor as coisas. e às vezes nem chega a vê- lo de noite. N a verdade Ryad é mui to
Deplora o fato de não ter mais tempo du rante o ano escolar para ma is ligado a seu irmão de 17 anos ("os do is são mais próximos, ele
fi car "atrás" de Ryad, que, se não for assim, acaba não faze ndo nada. é mui to mais próx imo de Ryad do que de mi m, porque tê m muita
Sua mãe, a cunhada, o irmão de 29 anos e o de 17 também fica m co isa em comum. Saem juntOS nos fin s de se mana. Q uando fazem
"atrás dele" para ele fazer as lições, mas parece que s6 a irmã é que as lições, fazem juntos") , que também está em situação de grande
con trola realmente essa parte. "fracasso" escolar (um dos professores nos infom13 que teve este irmão
Nora nos descreve Ryad como uma criança que não tem nenhum como aluno, e que ele "também t inha eno rmesd ificu[dades" ). Nora
gosto pela leitura: "Bom, eu tento o brigá- lo a ler, mas ele não gosta ressalta a existência de uma grande cumplicidade entre seus do is
de [er". Ryad n80 freqüenta a biblioteca, [ê ra ramente e quase nunca irmãos (UEstão sempre conversando, po is dividem o quarto"); o
pede um li vro: "Nunca ele vai dizer: 'Olha, esta tarde vô pegá um irmão e sua irmã representam portanto concretamente para Ryad
livro e vô lê, em vez de ir joga r bola de gude"'. No fim de semana, dois princípios de socialização contrad itórios (o IIsucesso" e o ufra#
quando ela te m tempo, às vezes lhe dá para ler algumas páginas de casso", a diversão e o esforço escolar), mas a cumplicidade entre os
alguns livros de bolso que guardou de suas aulas da 7' ou 8" séries. dois irmãos, fundada, sem dú vida, em parte , sobre uma identidade
"Tento obrigá- lo a ler ao menos duas ou três páginas por dia, mas masculina comum, faz pender a ba lança para o lado mais desfavo-
ele n;;o gosta de ler. Fica parado na frente do livro. Faço umas per- nível a uma boa adaptação escolar.
guntas, digo: 'Me diz qual é o ass un to, q ual é a história"' , mas ele Nora conta que Ryad, quando volta da escola, vai logo to mar
não gosta de ler. Q uando ela faz perguntas, percebe que ele não [eu lanche, e sai para brincar com seus amigos. Pode vo ltar para casa
ou que não guardou nada: "E[e fica ali , com o livro na frente dele, [á pelas [9h ou faze r a lição antes que ela chegue. Pode ficar fora
num se i, ele não lê. Faço algurnas perguntas, é como se eu fa lasse até às 20h e dormi r entre 211130 e ZZh, no máximo 22h30, e isso,
(risos ) com um surdo. Ele não gosta de jeito nenhum de ler, não sei todas as noites. Às vezes, no domingo, Ryad almoça sozinho por-
por quê". Portanto, Nora tenta, infrutiferamente, provocar#lhe o gosto que fica brincando com seus amigos e só volta depois das 13h.

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

Parece que Ryad se di verte e sai bastante: vê telev isão demais (toma lhe uava frases. É uma senhora que cuida da cantina. Era muito sim #
o café da manhã vendo desenho animado), brinca com seu vídeo- p,ítica com ele. Fazia com que lesse certos ... Era superlegal, não o
game, brinca fora com os amigos, va i ao estádio de futebo l com o rempo todo, mas de vez em quando". A figura da "senhora da canti-
irmão Je 17 anos, pratica atividades esportivas na quarta#feira à tarde na" que deu atenção a Ryad, consagrando- lhe um pouco de tempo,
por intennédio da escola. O controle que é exercido sobre ele é, então, ci o exemplo de uma si tuação, excepcional e não durável, na qual ele
bastante limitado: diz respeito aos filmes a que pode assistir (nada p,>de constituir através de uma relação socioafetiva pri vilegiada, um
de violência nem de sexo), aos amigos que pode freqüentar e aos pri ncípio de mo ti vação ou de interesse pela leitu ra e pelas coisas esco-
limites terri toriais de suas brincadeiras fo ra de casa ("Eles não vão lares ("Chegava todo contente, falava disso com a gente à noite").
além de um certo perímetro, porque eu os proíbo de irem além"). A entrevista com Ryad permitiu confirmar os elos estreitos que
U ma outra faceta para explicar o que acontece com Ryad é for- '"cm com o irmão do qual se se nte mais próximo , o papel de con#
necida, de forma endógena, pela própria irmã, quando diz que ele t rolado ra que sua irmã exerce em matéri a de escolaridade ("Depois
fo i tra tado demais como o "filhinho m;:'Iis no vo", O uqucridinho" "super# da diz: ' Faz a lição'. Depois cu terminei, depo is ela di z: 'Me mostra
pro tegido'\ que "brinca demais" e nunca é colocado di nnte das suas o caderno"'" seu v ivo inte resse po r tud o o que é brincade ira em
obrigações. Parece, realmente, q ue Ryad não é sisrematica mente con- G 1Sa ou fora dela. Mas deixa sobretudo transparecer, através de
trolado em sua vida cotidiana familiar, no interior da qual passa muito Imprecisões semânticas, os d iálogos de surJo, os im plícitos, a ori ~
tempo desenvolvendo atividades lúdicas de todos os t ipos. Não está, gem das dificuldades de compreensão da qual falam seus professo-
portanto, nem em uma situação o nde poderia se redi recionar por si res. E que são, sem nenhuma dúvida. a conseqüência que sofre uma
mesmo para uma autod isciplina do ponto de vista escolar (em con- cmmça cujas produções de linguage m, no interior de uma fa mília,
seqüênc ia, por exemplo . de uma socializaçilo fa mil iar escolarmente não são retomadas pelos adul tos para corrigi- lo e levá- lo a ultrapas-
favoráve l), nem em uma situação o nJe as injunções dos pais sobre sar suas contrad ições, suas imprecisões, seus contra#sensos ...
a irnpo rtânc ia da escola pudessem encontrar os me ios de se conc re#
ti zar mlS formas de exercício de um contro le e de um acorn panha# "Eu... cu vô comê . Depo is eu. depo is minha mãe, cb se ... ela va i
mento mais regulares e permanentes de seu traba lho escolar. O fa to passc~t El<1 passe ia , passe ia, e eu vú pra fora pra passeá. U ma vez,

de ser " "filho mais novo", protegido, dentro de uma família sem gran- lIln <1 vez , 1IIrUl. .. um mo nte de ve is! Fi co da nd o volta, vô na minh a
p rim~ . A í fi gem c,. , a gente fal a, a gente fal:w<1, eles fa lava c ass im
des inves timentos culturais obje ti vos (pais analfabetos, irmãos com
l" assim . Depo is, é ... meu primo. sabe, ahn n ... . tcm. o mesmo t::\ma~
percursos escolares difíce is) ; o fato de ser escolarizado em uma classe
nho lj ue cu. En tão. ahnn n ... elHão ... a gen tc bri ncava um pouco
composta de casos difíce is e onde cada aluno não pode ser aco mpa-
no quarto . Então, ahnnn ... E ... ele si chama F. ... A i ele dissc, ahnnn:
nhado regular e constantemente (como observou um dos dois pro- 'Va i. vai ficéÍ do lado da tua mamãe. vai'. Aí. ahnn , mm ha, minha
fessores); o fato , finalmente, de só pcxler se beneficiar das compe- m5c . ela me di sse. ahnnn: 'Porque você não vai hrincá com o
tências de sua irmã de vez e m quando, de ter re laçõcs ma is estre itas F. .. .!' Aí cu disse: INão, num rô m<lis clIm vontade'. Ai ela me disse:
com um irmão mais velho em situação de IIfracasso" escolar. tudo 'Então, va mo, V~lmo voltá pm casa' , Aí a gentc vo ltou, vi as hom,
isto contribu i para explicar a situação escolar de Ryad. em 10 ho ras. Aí a gente ... depois dormi. minha mãe me dbse:
No ano passado, quando ele almoçava na cantina da escola, sua 'Dorme!'"
Irmã nos conta que fez amizade com uma servente que o fazia ler, e
ele voltava à tarde rodo contente conta ndo- lhes: "Ele conhecia uma Q U>lmlo relemos a entrevista de Ryad, tivemos im edi ~ra mc nte
senhora <lqui , não se i seu no me , que fazia ele preencher o tempo. Ela " impressão de um modo de discurso bastante típico das crianças

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULAIUS PERfiS DE CONFIGURAÇÕES

escolarizadas em classes especiais, que já tínhamos eS[lldado a lguns caue iras exteriores e interiores mais distanciadas da socialização
anos antes" . O fato de fi carmos sabendo que Ryad fora indicado para escolar? De qua lque r forma Nora, se m exemplo anterio r em sua
freqüentar uma classe especial só confi rmou nossa intuição inicial. frarria , pôde, ao contrário de seu "irmãozi nho menor", encontrar
Através de suas respostas, Ryad nos permitiu evidenc iar um pres- um lugar na configu ração familiar, q ue se tornou compatível com
supostO às questões que nos colocamos no momento da entrev ista. scu lugar na escola.
Essas questões partem do princípio de que a c riança saiba si[llar-se
no registro do recorrente, do regu lar, do habitual ou do geral ("Em • Perfil 5: As más condições de herança.
gera l, me deito a tal hora, faço isso, aquilo, etc."), e portanto que lrh K., nascido em Lyon, sem repecência escolar, obret1e 3,8 na at}alia~
adote lima atitude um tanto uteórica" e classificatória em re lação à ção nacional.
sua pnSpria experiência. Acontece que Ryad não consegue suste n ~
tar esse registro. Seu discurso, pleno de implícitos (de "eles", "a gente" Q uando fomos marcar a entrevista, Jescobrimos que a senhora K.
que não remetem n ninguém de preciso ), confuso e contraditór io , n"o tinha lido o bilhete que tínhamos env iado. Pede a seu filho Ith
respondendo ao contrário daquilo que esperamos, é igua lmente um para procurá-lo, se bem que tenhamos insistido em que não havia pro-
discurso que toma a dimensão do fato particular relatado com a uti- hlema e que poderíamos explicar do que se tratava. Ela parece sem
lização do pretérito perfeito' e de demlhes não perti nentes ao tipo graça pelo fato de não ter tomado conhecimento do bilhete, e culpa
de discurso que se espera ("Um dia, com alguém, em tal situação, o filho , que, segundo ela, não lhe conta tudo. O bilhete estava no meio
aquilo se passou assi m ou assado e deste jeito ... "). de suas cai as, todo amassado, o que a deixa bastante aborrecida.
Desta forma, quando perguntamos o que faz quando vem da A sala onde vai acontecer a entrevista, a lguns dias mais tarde,
escola e não quando vai à escola, Ryad responde à segunda propo- é revestida por um papel de parede um pouco gasto, com algumas
sição. Em seguida, após uma retificação de nossa parte, diz que larga ;erigrafias pregadas na parede, entre as quais o busto de uma mulher
sua mochila, que e senta "na mesa'\ que vê te levisão, que toma l an~ com um chapéu de véu. Hav ia também uma televisão, um peqlle~
che, que vai brincar lá fora, que sobe, que pega um copo de água, no aquário com peixes e um grande aquiÍrio onde estavam colocados
que bebc, põc de vo lta, e sai de novo para fo ra com "e les", tudo isso alguns livros. O irmão da senhora K., que está vivendo provisoria-
expresso e m um reg istro superficial. mente em sua casa , entraní. por um ll'lOme nto durante a entrev ista.
Mas é necessário, para compreender melhor a situação de Ryad, Durante nossa conve rsa, a senhora K. nem sempre termina as fra~
sabe r o que ocas ionou o "sucesso" de Nora, que assim mesmo sesI e faz várias afi rmações vagas. Às vezes, fa la depressa, e seu rosto
repetiu a I " série ("Acho que foi por causa das companhias (risos), é muito expressivo. Fora da entrevista, vai falar muito dos proble-
era legal, me d ivertia pra va ler"). Uma socia lização fem inina mas do prédio, do fato de estar velho, de ter baratas e ser insegu-
menos vo ltada para o exterior da casa, um s istema de coe rções e ro e evocará também seu tédio durante os fins de semana. Quan-
responsabi lidades familiares mais importames por causa de seu sexo, do fomos embora, nos agradeceu, talvez por termos preenchido uma
a responsabi lidade muito precoce pelos docu mentos da família e daquelas tardes "morta is", ou talvez por termos nos dado ao traba~
certas tarefas domésticas não acabaram por desviar Nora das brin- lho de escutá- Ia.
A mãe de Ith, que tem 32 anos, é de nacionalidade francesa (como
• Em Irllnc..ê:. c,'Xbh:m dl)l ~ prt'l':nt m rcrfcn (l~ (ação concluíJ .• ) .lIu,.lmcnlc: U d .. Imgll.J· seus pais), e não está trabalhando atualmente, pois cuida do filho
~cm cM..rlla/hlt'r;1ri,I, I:.h,lInaJ;J Jcpa.s~ ~Im"k <P,I:.:-..tJU , unplc:,), c. d:. \'1,::1..":., t'mpn:gaJIl
elll li'nguôl mó,l em ((Irm." Je n;lrr:n i va.~; na IlIlgu.lgelO mal c t'.)(.rH,t nUflll,d, t'lII prt'g.t·~ menor. Ela trabalhou em "impressão" (gráfica), em seguida como
(l ,)(15.~ c(Jtnposé (p:l'''Klo co mro~ro) . (N.T.) digitadora, que aprendeu na prática, "num dia só". Depois de ter

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

repe tido a 4~ série, foi o rientada, durante a 6~ série, para um c urso Depois traba lhe i de novo. Num lembro mais, fi z tanta coisa '''. Seu
pré~profiss iona F<) (liNão era grande coisa, viu?"), depois fo i fazer um ex~ m a rido traba lh ava como vi gia em um restaurante, e às vezes fica~
c urso técnico " de três anos que lh e habilitari a a ser auxi li ar de va servindo no bar. Não conhece ~l() certo SU;:l esco laridade, mas deve
escritó rio. Mas "não goste i não", d iz, "c mesmo h oje ainda não te r sido curta, segundo ela. Os pais de seu ex-marido, que são tai-
gosto". Não teve tempo de fazer o exame de fim de curso, pois sua \andeses (o pai era militar de carreira), v iveram com e les durante
mãe morreu quando tinha 18 anos: "Tive que c uidar de meus irmãos vá rios anos.
e irmãs e de meu pai, cla ro". Na esco la, era rn elhor em francês que Com esse perfi l temos a prova flagrante de que um capital cultu-
e m matemática ("Era um zero à esquerda"), e foi por isso que a ori en ~ ml familia r SÓ pode ter efeitos socializado res sobre as crianças se encon-
taram nessa direção. De fato , niío gosta de traba lhar e m escritório, tra os me ios (situação e tempo) de ser IItnlnsmitido". De fato, ainda
"sen tada, se m fazer nada". Te ve uma série de e mpregos , traba lho u que a senhora K. tenha tido um percurso escolar infel iz (curso pré-pro-
com um dentista ("Traba lhei com um dentista, no começo e ra só Fiss ionalizante, não tirou o dip lo ma) , ainda guarda , de uma formação
como recepcion ista. Mas eu faz ia tudo, na verdade. Era rcsponsá~ escolar curta mas nobre (auxiliar de escritório) - e sem dúv ida tam-
vel por arnlll1ar O materi al, receber os pacientes. OrganizrlVa aq ue~ bém de algumas experiênc ias profissionais valorizadas - , a lgu mas
las fotos pequenas, e le chegou a me ensi nar os diferentes dentes, a práticas de leitum relativamente importantes. Lê revistas (faz palavms
classificar, tudo isso. Fazia um pouco o serviço de secretária, tudo cl1lzadas e lê o horóscopo), jom a l (Le Progres, no qual lê as p,íginas
isso. Era legal porque em variado . POSS() dizer que de rodos os tra- policiais, m as não as de política): ('Bom, num leio muito, porque é meio
balhos que ti ve foi esse que de verdade ... "), e trabalhou tamhém num jato (em vez de chato), e isto, pra mim ... (rLlos) ... o progmma da tele-
centro de recolhimento de impostos. v isão" (uma rev ista chamada Télé 7 ]ours, na qual lê os artigos, mas
Os pais da senho ra K. são re lat iva mente modestos. Seu pai "começo sempre" pelo horóscopo). Gosta também de livros (lê roman-
começou a trabalhar aos L4 anos, sem formação profissiona l, como ces de aventuras Ou livros que falam de "histórias vividas", de "fatos
torne iro~mecân i co, e aí ficou. Sua mãe trabalhou um pouco como reais" - Jamais ,ans ma filie (Sem minha filha, jamais), de Bctty Mah-
ope r~lri a na indllstria têxtil mas parou logo pa ra poder educar os se is moody*, mas faz questão de dizer que não lê romances banais de amor,
filhos. Ela qua lifica os irmãos de, "ao contrário, um zero à esque r- pois Ué rudo sempre igual, são sempre as mesmas histórias" , bem como
d8 cnl francês" (o u seja , comparados a e lo:l: I'Fui eu que ens in e i cle histórias em quadrinhos (seu innão lhe traz, pois ele faz entregas
eles"). Seu irmão que está vivendo com ela, parou na me tade de pma gráficas) , e ela era assinante durante um ano do France Lo i-
um curso pré-profissionalizante de níve l médio, e hoje faz entregas. sirs**. Freqüenta também a Biblioteca Municipal ("O Ith só va i quan-
Tem uma irmã que traba lha "em d ig itação", o utra que traba lha na do lhe dá na telha, mas como n a maior parte das vezes ele fica com
Agência Naciona l para o emprego (ANPE, em francês); outro que os am igos ... ") e um centro de encon tros a nue coordenadoras con tam
é chofer de cam inhão e outro que é li xeiro em Vau lx-en -Velin hist6rias para as crianças e onde mães e fi lhos brincam juntos.
(periferia de Lyon). Vá ri as frases mostram n a senhora K. uma atitude de boa vonta-
A senhora K. está divorciada h á um ano do pai de seus dois filhos de cultural e até mesmo uma certa bu limia cu ltural. Avalia em
(que lhe dá uma pensão a limenta r) , e sua vida profissional instável cinco o u seis o nümero de livros que lê por m ês e, no caso d~s rev is~
está ligada a uma vida pessoa l movi men tada: "Bom, eu podia ter
ficado lá (no dentista), daí eu tive lima história com o pai dos meus Li vro q ll~ n;:lrra :'I lw,,,1ri,. de L1m,1 m:i,.. qUt" dl' ~j ,1 rl',l\'cr ,I li lll.l, sl.'qüc:·..trad .• rd,! f. l!nfll;1

filhos, então fui para Paris por a lgum tempo. E depois ele me fez vai- Je :-cu manJo. (N .T.)

t;l r para Lyon. E, ah , bom, foi aí então que eu trabalhe i ma is tempo. *'" FranCé LoiSll'~: um cluhe li..: h\, ro~. (N.T.)

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PERFIS DE CONFIGURAÇÕES
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

tas, afi rma: "Leio tudo, absolutamente tudo o que me passa pe las c tlcular não o total exato, mas praticamente". Ela anota alguma coisa
mãos". E até percebemos em sua maneim de justificar o fato de reCOf# :lntes de telefonar para algum órgão administrativo, ("Porque às
rer ao dicionário a relação de domínio que estabe lece com a cultu- vezes a gente pensa lima coisa e depois esquece e não sabe mais o
ra legítima: "Prefiro olhar logo pra saber, em uez de ficar assim olhan- liue dize r" ), e também durante ou depois do telefonema.
do feitO boba .. ." É necessário acrescentar que o pai da senhora K. Por outro lado, nunca manteve um caderno de contas, não
parecia dar valor li leitura, pois sua filha ainda guarda uma coleção escreve lembretes ("Tá tudo aqui dentro, ó," nos diz mostrando a
de livros sobre an imais que ele lhe deu de presente ("Foi uma cole- cabeça), não escreve listas de coisas que tem de fazer ("Acho isso
ção de dez livros que meu pai me deu de ,m ive rs{, rio. São livros de ridículo") e tem uma reação tipicamente espontânea em re lação a
A a Z, sobre todos os animais. Te nhas muitos livros ass im, são esse tipo de prática de escrita que julga rígida demais: "A gente sabe
li vros que tenho há muito tempo, mas que conservo") . Ela até se Ill uito bem o que tem de fazer, né ? Num sei, cu se i mais Ou menos
apresenta como a maior le itora de sua f;:unília, e m relação a seus o que tenho de fazer amanhã. Num digo daqui uma semana, não,
irmãos, que não têm nenhuma pa ixão por livros (" Ih, meus irmãos, aí precisava, mas num sei, acho isso me io .. . O lha, é cumo se a gente
nem pensar, nem adia nta falar de livros com eles, não é o negócio escrevesse wna coisa para u.m robô: 'Você tem que fazer isso, aquilo,
deles. Eles gostam é de esporte, de sair, todas essas co isas"), e justi- aquele o utro, etc., etc.'. Bom , que r dizer, eu vivo minha vida, de ver~
fica o pouco interesse de Ith pela leitura por ser homem: "Tento fazer Jade, bom, não assim, do jeito que ela vem, mas ... Num sei (risos),
ele ler, mas é mais d ifíc il , num sei, acho que os meninos se preocu~ é bom, ta lvez ass im , si a gente faz uma lista, precisa fazer isto, aqui~
pam menos com isso, com livros, com a leitura, essas co isas". lo, durante o dia, e si a gente num tá com vontade de fazer uma coisa,
Podemos notar que ela lê, apesar da inexistência de uma rede de 110m, passo roup,l, ten ho que ir num lugar, e depois, si num posso
sociabil idade onde poderia encontrar uma maneira de dar sentido ir, num sei, sei lá. Acho isso, sei lá... A gente faz como pode, como
e va lor, junto com outrOS, a suas leituras: "Estou sempre sozinha, quer". A senho ra K. possui várias age ndas, mas não as utiliza, bem
ent8o ... (risos)". como tliversos calendários que, às vezes, o lha para contar os dias,
A posiç~o da senhora K. enquanto mulher, na divisão sexual dos mas sobre os quais não anota n ada.
papéis familiares, e enquanto pessoa, formada em um trabalho de tipo Atualmente classifica os documentos ad ministrativos, mas duran-
administr(ltivo, acabou por conduzi #IGl a taref(ls familiares de escri# te muito tempo não O fazia. Suas fotografias são, na maior parte, "fotos
ta. A inda que reaja de um modo tipicamente espontâneo a um certo livres". Não acha muito útil classificar fotos "que olhamos só de vez
nlllnero de práticas de escrita que considera rígidas e constrangedo# em quando". Quando perguntamos se anOta co isas nas fotos, res,
ras, foi obrigada a ocupar-se dos documentos do casal e de seus ponde: U Não, imagine, já tem a fotografia, já tá bom". Assim corno
sogros, sem que isso lhe causasse realmente dificuldades. Ela mesma outros entrevistados, ela reage com um uÉ quebrar a cabeça pra nada",
é quem escreve as cartas administrativas (ainda que prefira usar o quando perguntamos sobre certas práticas de escrita. Em relação a
telefone para contatos com sua família) , preenche sua decla ração de tcr um diário, reage também de uma forma um pOllCO espontânea:
impostos, escreve os bilhetes para a escola e deixa às vezes alguns "Nunca me veio na cabeça". Ela considera esta prática "meio estra~
bilhetes pregados na porta quando sai. Faz listas de compras, redi- nha", sem que consigamos saber o que entende por isso: "Nós, nossa
gindo-as à medida que vai se lembmndo das coisas que precisa com- uida, a genre guarda ela na cabeça, não precisa de ... É a vida, é assim
prar, e calcula mais ou menos quanto vão custar: "Faço antes umas e ponto final. Num precisa contar em um ... "
contas, meio por alto, né? Por exemplo , o li tro de leite, aí separo uns A senhora K. insiste no fato de que a escola é uma coisa impor#
20 francos (4 reais), ponho uns 20 francos, ass im, por alto, consigo tante e afirma que não pára de lembrar seu filho: "Bom, não paro

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAçÕes

de repetir, pois quando vemos a vida como está agora, imagina fi z na esco la"'), ou então fica no quarto e, quando sai, afirma já
mais tarde. É nele que penso, digo pro cle: 'Olha como tá difícil encon- ter feito: "Ele quer sempre fazer lição no quarto. Daí digo: 'Não,
trar trabalho ou qua lquer coisa, mesmo quando temos um diplollla você vai fazer aqui', porque depois ele pega as coisas: 'Pronto, já
na nü'ío, num é? .. ' Não quero que ele faça como eu". No entanto, fi:'. Eu aí num vi nada ... " Ele, portanto. utiliza todas as estraté~
ela mostra os limites do acompanhamento escular de Irh , quando gias poss íveis para escapar aos deveres de casa: "Que r se li vrar o
o julga "médio, não muito bom, não mu ito bom. N um seria bom, mais rápido para brincar, simplesme nte" . C hega até a "pular" os
nem muito ruim, média", quando considera que lê e escreve "razoa- exercícios e a esquecer os li vros e cadernos na escola. Sua mãe
velmente bem", quando, na verdade, ele é descrito pelo professor Jiz que, assi m mesmo, ela o obriga a refazer os exercícios até que
como tendo enormes dificuldades em todos os domínios (tirou 3,2 estejam certos, c o faz reci tar em voz a lta as li ções. Durante as
como méd ia geral na últ ima prova do ano, Ja qual 2,5 e m le itura férias, e la lhe compra cadernos de fé ri as ("Pro que ele num esque-
silenciosa, 2,7 em ortografia, 4 em gramática e 3,7 em matemáti- ça tudo, pra que fique um pouco por dentro"), mas ele faz exercícios
ca), e sobretudo em relação à escrita. A senhora K. apresenta Ith a c ad:l uois Ou três dias, e não sabemos se e la consegue realmen-
como uma criança avessa ao trabalho escolar e que só pensa em brin- te impor- lhe essa obrigação.
car com seu v íd eo-game o u fora, com seus amiguinhos: "Pra mim é A própria senhora K. nos dá, num determinado momento, uma
difíci l lidar com ele, é verdade. Porque para tentar que faça alg u- explicação sobre suas dificuldades em controlar seu filho: "É duro
ma coisa ... Quando vejo que tem uma co isa que ele não compreen- mesmo. Digo pra vocês, ele é uifícil. Principalmente, ahn, diga-
de, ou tá difícil pra ele, digo sempre, vem aqui, te explico, vamos mos que com seu pai num e ra ass im. Nós nunca vi\.'emos com ele de
tentar entenJer, ele é tão teimoso, e vem logo me Jizendo: 'Deixa, "erdade um tempo significativo. Aí acho qui tem isso também. Porque
já entendi, num precisa\ e não quer nem saber. Ele é realmente ... quando seu pai tá aqui, num é assim". De vez em quando, e la tem
Fica o tempo todo pensando em ir brincar com seus amiguinhos, e que li 'ar o "cinto": HÉ. sô obrigada a usar de vez em quando o
é só". Ela lhe retirou o víJeo~game durante um certo tempo porque 'cinto' (risos) . Bom, num bato, é só pra amed rontar. Porque sinão
ele ficava muito tempo jogando, mas isso não alterou seu compor.. num tem mais respe ito, num tem mais nada." Mais ad iante, duran-
tamenro: uÉ, eu proibi. Desliguei du rante umas semanas, e e le nem te a entrev ista, confessa que bate nele de vez em quando: "Bato
aí. Ele sa i com os am igos. Berra o dia inte iro que. quer descer, p()r~ nas pernas, um pouco. Não é para mac hucar". Seu marido , por o utro
que o dia in te iro ele ficava jogando vídeo-game, num queria fazer lado, pnrece ter mais autoridade: "Se m bater nele, nada. S6 gritan -
mais nada, e por causa disso. na SUfl cabeça, num tinha mais nada .. . do um pouco, olhando e pronto, ele logo fica com medo, obedece
Era isso ou seus amiguinhos. Então o dia inteiro era o vídeo-game, e acabou. O problema é que ele nunca vem aqui , então, é por isso
os am iguinhos, o vídeo-game, os amigu inhos. Ele chegava, jogava que e le aproveita". Ela acha que deixou "passar muita coisa" quan-
a mochi la no chão e saía correndo pra brincar". do ele e ra meno r: uÉ por isso que com o menor tento fazer. .. Tem
Quando ela tenta explicar- lhe as lições, e le não escuta. Nunca muita coisa que num passo pro pequeno e que passei pro granue.
pede ajuda vo luntariamente, pois está sempre com pressa de É assim também pur causa disso, porque como num estava nunca
livrar-se o mais rápido possível dos deve res de casa. Sua mãe diz em casa, passei um monte de coisa. Num devia, vejo agora qui eu
que faz um controle a cada dois Ou três dias, mas Ith diz sempre num devia tê passado, porque ... Agora é tarde demais".
que já fez a lição na escola ("A maior parte das vezes ele chega e A entrev ista nos permite reconstitu ir uma situação na qual o
eu Jigo: 'Born, agora você vai fazer a lição .. .' - 'Eu nUIl'l tenho casal é particularmente instáve l. O pai nunca esreve fisicamen-
hoje', ele responue. 'Num ten ho, eu já fiz ontem.' Ou então, 'j,) te presente na vida familiar, e nunca se preocupou com os filhos

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPUlARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

("Seu pai, não, de qualquer jeito ele nunca cuidou dos filhos"), aprende o que lhe é ensinado. Uma interpretação psicanalítica se l-
a mãe teria saído de casa várias vezes para voltar à própria família, vagem veria aqui um caso típico de ausência do Pai C , portanto,
deixando talvez as crianças com os avós: "Tem 10 anos que mora- ua Lei. A interpretação sociológica, menos universalisra e mais aten~
mos aqui, antes moramos 2 anos no número 2 e depois viemos ta à singularidade das configurações familiares, tenderia, antes, a
pra cá, por 8 anos. S6 que eu, et, num morei muito tempo aqui. Como descrever as condições sociais de inexistência de regras de vida fixas
disse pra vocês, ia daqui pra la. (Risos. ) A gente mora cada dia e regulares e d" ausência de uma autoridade respeitada.
num lugar". Sem dúviJ", Ith aprendeu que, com uma mãe preocupada com
Potlemos imaginm, é claro, que, em outras configurações familia~ !'iCUS problemas conjugais, suas repetidas "mentiras" (a mãe diz, a esse

res, as dificuldades do casal não se refletissem tanto na escolaridade respeito: "Porque pra e le, entre o que ele conta c o que acontece
dos filhos, pois a preocupação pedagógica é maior. Mas em um meio rcn lmente"" Precisa ver, viu ?") para fugir de cerras obrigações (fami-
onde o capital cultural não é evidente, onde os reflexos, culturalmen- Ii;,rcs Ou escolares) funcio navam perfeitamente. Isso exp licaria o tom
te incorporados, de preservação da escolaridade da criança não estão completamente Hmitômano" da e ntrev ista que tivemos com ele.
presentes, as turbulências familiares têm efeitos imediatos, como é o De fato, foi a entrevista mais imaginat iva que fizemos. Ith parece
caso de Ith. Uma certa fonna de estabilidade familiar (ainda que man- ir inventando situações enquanto vai respondendo às perguntas.
tida através de separações, divórcios".) parece importante para for- Retoma, por exemplo, comportamentos da mãe, atribllindo~os a si
necer as condições de uma escolaridade correta . mesmo: diz que toda tarde sai para comprar o jantar para toda a
E é nessa turbulência do casal que podemos compreender me- família , "lá embaixo", pois a mãe é doente; diz que fica em casa no
lhor o comportamento de Ith. Sua própria mãe diz que, por conta \..Iom ingo tomando conta do irmão enquanto a mãe "vai I ~~ embai~
dessa situação, ela "lhe deixou passar muito" as coisas. Ela de ixa xo". e explica como estuda as lições, invertendo mais uma vez os
transparecer, nas situações que descreve l1 , que perdeu o controle papé is: "Digo pra minha mãe, leio e digo si tá certo". Afirma tam-
dos filhos, e se apresenta como alguém que tem menos autoridade hém que vai 11 hiblioteca todas as quartas-feiras, que mostra as notas
que o ex~marido . Parece deixar as coisas acontecerem e só agir no ao pai (que n~o vive mais com eles) , à rnãe e ao lIirmão" de 18 anos
limite, ameaçando bater de cinto o u dar tapas. As regras de vida (que ta lvez seja seu tio de 30 anos, ou então um ser que e le imagi-
não são, portanto, muito fixas e definidas, e , n~1 maior parte das nou), que, rlcrescenta, está no exército , etc., transformando as s itua ~
vezes, são aplicadas irregularmente. Por exemplo, embora a senho- çõcs ao bcl~prazer de lima fantasia cujo princípio Oll origem nem
ra K. diga que contro la o que Ith faz fora de casa, quando ela vai sempre chegamos a compree nder muito bem.
à biblioteca às quartas-feiras, deixa-o brincar com os amiguinhos, Porém, as lirncntiras'\ as fabulações de Ith só se exp licam na rela~
e não tem na realidade possibilidade nenhuma de controlar o que ç:io com seus pais, e em particular, com a mãe. Poderíamos dizer que
ele faz. Da mesma forma, quando conta que Ith consegu iu uma vez ni'lo passam de um sintoma. As estratégias para contornar as pres~
ir bem longe da cidade sem sua permissão, é sina l de que o contro- sôes que lth inventa são indissociáveis do comportamentos e rea~
le de suas atividades, sem dúvida, não é tão rígido quanto o diz. çl'>es dos membros da constelação familiar. Essas estratégias são cal-
Ou ainda, embora diga que o obriga a fazer e refazer seus deveres cadas nas modalidades dos comportamentos parent3is existentes.
de (aS,l todas as tardes antes que ele saia para brincar com os ami~ No entanto,lth é descrito do ponto de vista escolar como "uma
guinhos, o professor (que confi rma que Ith "não fica triste e infe- c riança que não é nada burra", e cujas lIenormes dificuld;;)des não
li z em um canto" mas que, "pelo contrário, ficaria brincando o dia ,>io necessariamente conseqüência de uma falta de possibilidades",
inteiro") nota que ele nem sempre faz as lições e que raramente mas que não possui as cond ições de atenção adequadas: "Fica todo

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

() tempo virado de costas"; "O tempo todo está distraído"; liAs raras fato, ficou ali até o fim da entrev ista. Portanto, a mãe fica nos
vezes em que escuta, em que presta atenção, reage positivamente"; olhando de um modo engraçado, durante toda a conversa, através
"Nunca está interessado por algo em especial". Podemos, portanto, das flores. Sua filha lhe pedirá, de vez em quando, algum esclareci-
supor que a relação com as pressões, com as regras. com as exigên~ mento, na língua cabila ou em francês, A entrevista se desenvolve
cias impostas por ad ultos é, no quadro da configuração descrita (e muito bem. M, parece muito à vontade durante toda a conversa.
que se caracteri za, sobretudo, por um fraco grau de racionalização Acha algumas perguntas estranhas ou evidentes, que lhe provocam
das atividades domésticas), o centro dos problemas escolares de Ith. risos ou sorrisos e que insta lam uma espécie de conivência entre nós,
Seu irmão menor, pe lo fato de ter uma presença materna mais regu~ Smaúl ficou fora, brincando com os amigos, durante a entrevista.
lar (ela n80 quer lhe "deixar passar" tantas coisas como fez com o O pai de Smai'n, de 52 anos, vem de uma família camponesa
fi lho maior), de começar sua escolaridade no momento em que os cabila analfabeta, Está na França desde que prestou o serviço mili-
"problemas conjuga is" estavam se reso lvendo e por freqüentar um tar (1,,\ ma is de 30 anos ), e está trabalhando como operári o espe-
centro onJe encontra outras crianças e onde brinca e escuta histó~ c ializado, soldador. Lê e escreve fran cês sem problemas. Sua
rias, talvez esteja em uma situação mais favorável para vivenciar lima mulher, de 43 anos, vem do mesmo meio social. Não freqüentou
escolaridade mais feliz . a esco la, f, portanto, não sabe le r ne m escrever. Veio para a
Pma terminar, observarernos que o julgamento do ponto de vista França 4 anos depois do marido, e, ass im mesmo, tem dificu lda-
escolar feito sobre lth tem tendência, em desespero de "causas" (por~ Jes para falar e compreender o francês, e sua filha lhe traduz algu-
que não encontramos lima causa provável para a situação), a con ~ mas das perguntas.
centrar O problema sobre um elemento natural e isolado, e assim Os filhos, à exceção de M., nasceram na França. São seis ao todo:
absolutizar seus efeitos: "Ele é canhotO. Vocês me dirão: ' Isso não é M., de 23 anos, fez até a 8· série, em seguida cursOu uma escola
um problema', mas finalmente, bem, ten"l isso também .. ,", profissio nali zante l !, e trabalha como assistente em puericultura
em uma creche ("Entre parênteses, meu diploma não tem nada a
• Perfil 6: Dois capitais cu lturais indisponíveis, ver com O que eu queria fazer (risos), Bom, depois eu queria fazer
Smai'n M" nascido em LY()J1, sem reJ.>etência escolar, obteve 4 ,41Ul {llI(I~ uma especialização e m atividades sanitárias e sociais. Bom, aí num
fiação nacional. deu certo, porque eu tinha perdido uns documentos e toda essa his-
ll
tória, daí esqueci a escola e entrei na v id., ;:ltiva um rapaz de 17
);

No di;) do encontro marcado entramos em um Apartamento apôs anos que está na 8~ sériej uma menina de 13 anos, na 6 íl série; um
nos tennos anunciado pelo interfone. Ele fica em um prédio um pouco outro de 12 anos, na Si! série; S ma'in, de 8, que está na 2i! série, e
mais "chique" que os outros do bairro. A mãe de Sma'in nos acolhe um pequeno de 4 anos que freqüenta o maternal.
e vai imediatamente buscar a filha mais velha, de 23 anos, chama- Sma'in não vive e m um meio socia l totalmente desprovido em
da M. Explicamos-lhe as razões pelas quais estamos fazendo esta relação ao universo escolar. Freqüentou a escola maternal. como toda
entrevista, pois será ela quem vai responder às nossas perguntas. criança francesa (quando tinha 4 anos), e seus pa is estão na França
Entramos e m uma sala onde duas vizinhas estão sentadas em um há mais de 30 anos. No centro da configuração familiar, o pai e a
sofá. Sentamos em uma cadei ra com um pé quebrado. A irmã mais irmã despontarn como os personagens mais próximos dos uni ver~
velha está sentada ao nosso lado, e a mãe, do outro lado da mesa. sos de cu ltura legítima.
Não vemos muito bem seu rosto, que fica escondido atrás de um O pai é operário especia lizado e militante sindical. Interessa-
arranjo de flores. Pensamos de início que e la fosse afastá-lo, mas de se , ao contrá rio da ma io ria dos pais que consideramos até aqui,

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

através da lei rura cotidi ana do jo rnal (Le Progres ), aco mpanhan - rece q ue a le itura também não é o "passatempo favorito" de seu
do os jornais na T V o u os debates po líricos, pe las ati vidades polí- pa i (" Eu vi ele pegar livros e ler. Bom, digamos que ele não está
ticas e soc iais ("Ele se interessa mui to por tudo que é at ualidade ligado nisso, na le itura, não é seu passate mpo favori to" ), mas que
e essas coisas") . Se considerarmos que a ind ife re nça e m relação ele prefere a telev isão, que vê bastante.
ao mundo político é, na maioria das vezes, um sin al de i mpotê n ~ O utro personagem central, portanto, em relação à cultura legítima
c ia em relação a ele, então o interesse do senhor M. pela política fi a irmã de SmaIn " . Ela tem um diploma profi ssio nal, lê muito e é
é sinal de um se ntime nto de me nor impo tênc ia. Ele não se a uto~ assinante do France Loisirs. Tem até uma profissão, assistente de plle~
exclui deste un ive rso legítimo. e demo nstra assim uma re lação riculrura, que a aprox ima dos proble mas educati vos. Portanto, não
menos infeli z com os uni versos de cul tura leg ítima. Sua filha o é por acaso que fi cou encarregada de responder a um estranho que
ap resenta como o espec ialista da família em po lítica, e diz q ue se faz perguntas sobre a escolaridade. Como o pai, é responsável pelas
d irige a ele q uando não entend e alguma co isa: "Ih , ele lê tudo. re lações externas à família , em particul ar, o externo legítimo. Ela
Si interessa , lê basta n te. Cada vez qui tem um de bate político na d iz que gosta de se ocupar dos problemas familiares: "Gosto de ver
te lev isão. sabe, eu num gosto d i po lítica, aí e u vô imbo ra. Ele não, o que está acontecendo, ué. Ptoblemas de família, tudo isso, me meto
ele diz: 'Vô o lh á, q uero sabê o q ue e les vão d izê, o que eles vão em tudo", e confessa que nem sempre está de acordo com o pa i.
contá' . A liás, quando e u num compreendo uma co isa de po lítica, É o senhor M. q uem, por sua mulher ser analfabeta, toma conta
pergunto pra ele". Acontece também de os do is con versarem dos documentos da família ("É tarefa do meu pai. Q uando tem a ver
sobre co isas que ele lê no jo rn al ou em algum li vro: "Comigo, é com ele e com minha mf'íe , enfim, com a fa mília, é com ele todos os
quase sempre , quando e le pega um li vro , aí, então e le mi di z o documentos administrativos"), sem precisar de ajuda, ainda que a filha
que tá pensa ndo , o u quando um li vro im pressiona e le. Aí assi m desempenhe o papel de assessor quando ele não tem tempo. Écle quem
e le me diz um as frases , e como e u quase se mpre já li o livro antes lê ~l correspondência administrativa e responde, quem preenche a
(risos) , eu leio basta nte, então, eu se i q ue ele tá falando nisso. Daí, decla ração de impostos, preenche os cheques, escreve e assina os docu-
então, a gen te e ngata a conversa, né? Senão, mais ou menos, qua n ~ mentos para a escola, redige lembretes quando necessário e escreve
do acontece alguma coisa, um crime que c hoca e le , o u e ntão "regularmente" ao irmão, que mora na Cabília. No e ntanto, como
po lítica, se mpre igual, uma co isa que choca ele o u qui el e ac ha em muitos lares onde os homens é que são responsáve is pela escri-
que num rá certo, aí e le d iz, pe nsa e m voz alta, aí a ge nte o uve e ta doméstica por conta da menor compe tência de suas mulheres, o
engata um a conversa, né?Il. senhor M. não dese nvolve nada além dessas práticas de escrita e, nesse
De maneira ge ral, ele gosta de ler (até histórias em quadri nhos: sentido, suas disposiçôes racionais. Éele o encarregado dos documen-
"A h, sim, as rev istas de quad rinhos, ele gosta mui to! Compra para tos administrativos, mas a filha nos diz que ele não os arruma real-
as crianças, quando e le sai pra faze r compras, coisas assim , bom, mente: "Ele é um pouco bagunçado. A gente briga sempre por causa
ele passa, compra e diz: 'É pras crianças', mas ele lê"), e freq üen - disso, mas pra ele, digamos, e le põe as coisas num canto , e acha
tava regularmente, há dez anos, a biblioteca municipal. O que, ainda depois, soz inho, mas ele não é ordenado. Põe tudo no mesmo lugar.
neste caso, se mostra como excepcional se comparado às outras s itua~ Bem, a gente sabe que são seus documentos, sua papelada, então a
ções em que os pa is, sobretudo os homens, não colocam os pés em gente num mexe. E daí, quando ele precisa de alguma coisa ele acha
ta l uni verso. Mas a le itura de li vros não parece ser freqüe nte ne le. sozinho". Ele não tem uma caderneta de contas: "Não, nada de cader-
Q uando lê, trata-se sobretudo de obras sobre a geografia de um país neta de contas. Sabe tudo de cor, como minha mãe. Fazem todas as
ou romances policiais, mas não "romances do tipo Sulitzer", M. escla~ contas deles de cabeça, bom, eles não têm caderneta de contas. E tam-

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURA(:ÓES

bém, e m geral elc tem boa memória, se le mbra mui to bem de quan- irmãos e uma irmã que estão atrasados do ponto de vista escolar (um
to gastou, de quanto sobrô, e si esquece ou tcm uma dúvida, ele pega deles te m 3 anos de atraso, e os outros dois, 1 ano de atraso). Os
o mlão de cheques, refaz as contas, mas em gera l, ele se lembra bem". professores que já tiveram seus irmãos e irmãs como alunos (a menor
Só raramente acontece de ele deixar um bilhete para alguém da freqüentou uma classe especial) nos informanl que e les mmbém
família (mas isto é mais freqüente para M.) : "Bom, qué dizê, meu pai, tinham o mesmo tipo de dificuldades escolares.
não, não muito. Num faz muito bilhete. Ou então, quando é muito Dessa forma, Sma"'n encontra-se só para fmer as lições de casa
importante de verJacle, aí então e le tem medo que a gente num lem~ e ,uperar suas dificuldades escolares. Quando perguntamos a M. sobre
bre, ou coisas assim, t.lí acontece. Mas é rflro, e le sempre nos diz na ;1 c~col<.lridadcdo irmão, ela nos diz: "Bom, eu num posso respon~
véspera, as coisas desse tipo. Eu, por exemplo, tenho mais tendência ,-ler mui to sobre isso", pois é o pai quem acompanha mais sua esco~
de deixar, quando saio, se num vô voltá, bom, aí anoto, Ou então qllan~ laridade: "Eh, é, é ele q uem assi na o boletim, por isso é ele quem
do esquec i de comprar algurna co isa, Ou então, quando quero que sabe o que está acontecendo! ", M. fica pouco em casa ("Porque eu
alguém faça alguma coisa pra mim, bom, escrevo e deixo em cima da num tô quase nunca"), e a mãe, que não sabe ler, igno ra todas as
mesa!". Ele mmbém não faz lista de compras ("Não, faz de cabeça") dificuld ades de Smaúl: "A h, não, minha mãe, como ela num sabe
Oll listas de coisas para fazer, não tem agenda e n:lO toma notas antes ler, ela num olha as notas". A irmã confessa , portanto, nào saber
ou depois de um te lefonema ("Niio, ele tem tudo na cabeça, ele sabe quais s~o os resultados escolares do irmão: uNão posso dizer em que
tudo e diz muito bem o que tem de dizê") . matérias e le vai melhor, em quais vai pior. Se i que em leitura ele
O problema de Smain reside no fato de que os dois capitais cul- tem algumas dificuldades, porque num certo momento eu dava bron-
turais (os dois princípios socializadores mais adequados em relação ca e queria que ele lesse e escrevesse melhorj então sei que nisso é
ao mundo escolar) da fam ília quase nunca estão disponíveis. O difícil, mas matem::itica, tudo isso, num sei mesmo s i e le tá na
efe ito que poderiam exercer sobre ele não têm, portanto, o mesmo média da classe o u não". Pouco a pouco, no desenrolar da ent re~
peso que poderiam ter se ele estivesse o tempo todo envolvido por vista. descobrimos que as duas pessoas mais competentes da famí~
eles. Uma irmã de 23 anos que trabalha e tem suas prôprias at ivi ~ Iin estão pouco disponíveis para acompanhar efetivamente SmaYn
dades extrafami linres com amigas; um pai que volta tarde do traba- crn seu percurso'4.
lho ou que tem atividades extrafamili ares com os amigos ("Acon- O controle escolar feiro pelo pai e pela irmã é episódico. O pai
tece dele num ficar em casa, quando sa i com os amigos" ), e que, no verifica ria as lições l "mas não toda noite". Além disso, qmmdo Sma·in
âmbito da div is:1o sexual das tarefas domésticas, pouco se ocupa da rraz notas baixas para casa, o pai lhe demonstra que não está conten ~
ed ucação cotidi ana de seu filho. Ainda que os pais considerem que re e lhe diz que é preciso estudar mais, mas não lhe dá nenhuma puni-
a escola seja uma coisa importante pa ra os filhos ("É, ela (a mãe) ç:io: "Ele dá umas broncas, e diz que ele precisa estudar mais, bom,
diz muito bem, e explica pras crianças que si eles querem mesmo se l:oisas desse tipo, né! Punir, não! Não, meu pai nunca é severo demais!
esforçar, nós num podemo fazê no lugar deles. Então eles precisam Não, de jeito nenhum. Meu pa i dá bronca, reclama, diz p'" ele que
se esforçar o máximo, qui si eles num fazem isso, vno sê e les qui vão ele tem que tirar melho res not3s, senão, já viu, no futuro, mas puni~
sofrê as conseqüências mais tarde, né? De qualquer jeito, isto a ção desse tipo, ah isso nunca"". Sma·in nunca fica depo is da au la no
gente explica bem pra eles") , quem fica em casa para cuidarde Sm3"'n horário de estudo livre, e faz quase sempre as lições em casa. O fato
é uma mãe ana lfabeta que não fala mui to bem o francês (que fica de a innã não saber dizer quanto tempo ele leva para fazer a lição ("Num
atenta para que Sma·in vá se deitar às Z1h "no máximo", a n:1O ser calculo muito O tempo que ele leva pra fazer a lição! Num sei!") é
quando ele não tem au la no dia seguinte e quer ver um filme) e dois um bom índ ice de que acompanha mui to pouco o irmão no traba~

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

lho escol~r. No entanto, ela diz que, quando ele tem alguma dificul- f",l1i li ares. A divisão sexual dos papéis, princ ipal mente, contribui
dade em fazer as tarefas, pede ajuda mais para ela que para o pai, que para manter o pa i alheio às tarefas educativas e afastá-lo de uma
volta wrde do trabalho. Essa assistência deve ser, no entanto, relati- boa parte do capital cultural familiar.
vamente pouco freqüente, pois quando lhe perguntamos em que
consistem as dificuldades de Sma"in, não consegue dizer ("Bom, deixa • Perfil 7: Uma perturbada divisão sexual das mrcfas domésticas.
ver, hum ... tudo depende do problema, depende de ver o que ele tem Marrine C., nascida em Vénissieux, um ano lItrasada (reperência da I)fé,
de fazer. Tem vezes qui ele num comprende direito, tem vezes que sim") . escola) , obte'tle 7 na avaliação nacional .
M. acrescenta que S m:ún faz as lições por inic iat iva própria, sem que
lhe peçam. Mas isso pode significar que Sma"in faça seus deveres o senhor e a senhora C. vivem em uma pequena casa no me io
quando tem vontade e que não há ninguém que lhe diga que os faça. de um terreno com uma horta e um ga linheiro. Quem nos recebe
Aliás, os professores confirmam que o sistema de controle dos deve- é o senhor C. , que, muito ne rvoso, nos faz entrar na coz inha , onde,
res de S ma"in é bastante permissivo , pois lIele tem tendênc ia a não numa parede, está pendurado um d iploma q ue obteve recentemen-
fazer grande coisa em cHsa" e lIesquece muita coisa, se esquece de pedir te, de estudos profiss ionais agrícolas. Ele está preparando a comida
para assinarem seus cadernos". antes q ue a mulher c heg~e do trabalho, e nos diz: "M ui to bom o
Se po r um lado M . e seu pai controlam os amigos de Sma"in, que vocês estão fazendo. E a primeira vez que alguém vem me per-
po is não gOSt<:lI11 que e Ie " vaga bun de ·le " com qua Iquer um ("So m, guntar sobre minha filh a, q ue alguém vem me ver por i so. Muito
confesso que é mais eu [que sua mãe]. I tamém meu pai, purque bom". T ínhamos marcado o encontro para antes do jantar, pois a
ele num gosta mui to qui a gente fique vagabundeando sem fazê senhora C. nos esclarecera q ue eles jantavam tarde.
nada até mui to tarde. Isto ele num gosta mui to"), SIll<ün passa bas- A entrev ista começa com o pai, depois continua com a mãe na
tante tempo (as tardes, depois da aula, quartas-feiras e os fin s de presença de Martine. Os pais respondem sem reticências às pergun-
semana) e m atividades que não requerem necessa riame nte as mes, tas que lhes fazemos. Utilizam expressões familiares e vu lga res,
mas qualidades de traba lho e atenção que as ta refas escolares: inclusive diante da filha. Não se trata de fato de um linguaja r popu-
vídeo-ga me, bolinha de gude, skateboard, bicicleta, pi scin a ... lar típico dos me ios operários, mas sim da linguage m coloqu ial de
Durante as férias, parece que o programa de Sma"in é o mesmo das quem freqü ento u O [ . e o 22 graus.
quartas-feiras, sábados e domingos do ano. A própria irmã, M., ac ha Atualmente o senhor C. está sem profissão definida. Traba-
que e le passa tempo demais brincando e não mui to tempo lendo lha com a mulher em um posto de gasolina, apenas nos fins de
("Ele num gosta mu ito de ler, mas talvez seri a melhor dizê pra ele, semana. C ursou até o fin al do 22 colegial de contabilidade, qua n-
dar algumas idéias") " , e não é de se espantar que os professores do lhe propuseram que repetisse de ano. Foi nesse ano esco lar que
observem que Sma'in "gosta muito de brincar" e que tem IIdificul , conhece u sua futura mulher e, então , decidiu parar de esrudar:
dades e m se concentrar nos estudos". IINão queriam me de ixa r passar para o último ano porque eu não
Dessa forma, Sma"in desenvolve fora da esco la certos compo r- freqüentava mu ito as aulas de matemática, mas eu não era tão ruim
tamentos que não estão em harmonia com os da vida em aula, pois assim em matemática . Além disso, não me dava bem com o pro-
desponta, no universo escolar, como muito "disperso" e sobretudo fessor de mate mát ica, e le se encheu, e nào qu is me deixar passar.
"instável". Podemos dizer, portanto, para resumir a info rmação Então estourei e pare i com tudo". Ele já tinha repe tido de ano
central nesta configuração familiar singular, que Sma"in é, do pOnto duas vezes: inicialmente, a 8'" série f, depo is, a I!! série do 2 2 grau.
de vista escolar, vítima da indispo nibilidade dos capitais culturais Seus pais pagaram-lhe então um curso particular de digitação, e

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULAR.ES PERFIS DE CONfiGURAÇÕES

em segu ida trabalhou durante 10 anos em "informática, mas coisa Murtine é filha única. Ela faz parre das cri,mças que têm "sucesso"
pequena, digitador, coisas ass im". Foi mandado embora por razões na escola, embora seu nível renha baixado no decorrer do ano, do pri-
de econom ia da empreS<1, c aí ele "3busou", pois os empregos que meiro para o décimo primeiro lugar. Apesar disso, o professor obser-
lh e propun h am pagavam aba ixo do que recebia como sa lário- vou que o pai ve io conversar com ele e que as coisas pareciam ir me;
desemprego: "E agora estou aqui, ao deus;dará, sem saída". Pode; Ihar a partir de então. Durante um período, ela não conseguia mais
ria ter continuado a trabalhar no setor de informática, mas não <-lprender as lições, não mandava assinar seus cadernos e os deveres eram
era desse tipo de trabalho de que rea lmente gostava: "O proble- fe itos "mais ou menos". O professor nota que a situação "não era ca;
ma era que em informática, eu ganhava urna miséria. O que me rastrófica, mas que era uma pena que seu nível estivesse baixando
enchia muito, mas daí deixei rolar. Tenho vergonha de dizer, tanto". Descrita como Lima aluna "séria", com "resultados satisfatórios"
mas digo assim mesmo (risos)". Ele acabou Je tirar um dip loma no início do ano, ela passa a ser notada no final do ano, por sua incons-
profissional de estudos agríco las" , Jcpois de um curso de forma- tância: "Ela tem muito mais capacidade . Quando quer, se arlica. Se
ção que durou 10 meses, pois pensava estabe lecer-se como "peque- presta atenção, seu cadenlo é muito apresent ..~vel. Mas no uia seguin;
no criador" com a mulher: "A gente escreveu, nem sei mais, a uns te é capaz de fazer quinze erros em uma cópia de dez linhas". Marrine
trinta Oll c inqüenta o rgan ismos que gerenciam um pouco essa coisa. entrou relativame nte tarde no matemal (4 anos e 9 meses), e repetiu
A única coisa que nos propusemm foram sírios de 35 hectares. a pré-escola.
Isso não me interessa. Queria um pequeno negócio legal, né?". Se compararmos a situação escolar de Martine com outras situa;
Arrepende-se de não ter ido mais longe em seus estudos pois, diz, ções em famílias nas quais as trajetúrias escolares dos pais SHÜ relê:!;
"Me deixa uma vara estar com 35 nos costados sem ter nada ... ". tivamente limitadas (este é o primeiro caso de pais que cursaram
O senhor c., que é filho único, não vem de um meio operário: O até o 2 Q grau), ficamos um pouco desarmados para compreende r o
pai era suboficia l no exército francês e a mãe trabalhava nos que acontece. Martine repetiu a pré;escola, enquanto seus pais não
escritórios civ is do exé rcito. repet iram de ano an res do g inás io (7 iA série, 8>! série, 22 ano colc;
A mãe de M:lrtine, que tem 34 anos, é digitadora em um escritório gial), e seu nível baL~ou durante o ano. Poderíamos esperar que, sendo
de contabilidade desde 1985 ("Isto a enche muito, bom, não é bem O de um meio familiar no qual os pais freqüentaram até o 2 2 grau, onde
negócio dela. Vejam por alto a quantas anda mos atualmente") , e tra- os avós paternos não são operários e o avô materno teve LIma peque;
ba lha também às vezes nos fins de semona com o marido no posto de na ascensão soc ial, a criança não repetisse de ano no curso primá;
gasolina vizinho. Antes, diz, "eu cuidava da minha filha". Ela não tra; rio. Acontece que mais uma vez nos encontramos diante de um caso
ba lhou até que Marrine entrasse na escola. Como seu marido, ela foi de capital cultural familiar que não encontra condições para ser "trans-
aré a 2" série do 22 grau, depois de ter repetido a 7' série. "No fim", mitido". Em vez de exp li carmos o "sucesso" de Martine, so mos
diz, "eu faltava tanto nas Bu las. estávamos cOllleçando a namorar, assirn, paradoxalmente, levados a explicar por que este "sucesso" não
então, já viu". Ela tem um innão que parou de estudar na 8E!. série, outro é mais completo, por que esta situação escolar é tão difícil, mais do
que tirou um diploma profissional em agricultura e uma innã que seguiu que o capital escolar familiar poderia deixar prever.
só a parte prática de um curso profissionalizante de "faxineira". Seu
pai era operário, depois cuidou de colônias de férias, e, no final da car-
reira, trabalhou como cozinheiro em um Centro de Adaptação para O problema central desta configuração familiar, do ponto de vista
o Trabalho 1\ A mãe trabalhou, temporariamente, como sccrer:.'1ria en1 da escolaridade de Marrine, deve ser buscado, sem dúvida, nos papéis
uma fábrica, na prefeitura, e num centro de convivência. parentais, que, por força das circunstâncias, foram invertidos sem que

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

os hábitos sociais e as disposições mentais ligadas classicamente a esses Possuem livros sobre jardinagem e livros de culinária que ele afir-
papéis fossem eles próprios modificados. O pai está desempregado e ma "estudar mui to" pois gosta muito da cozinha exótica. Mas é ela quem
segue cursos de formação há 3 ou 4 anos, mas a mãe encontrou ime, é do France Loisirs e do G rand Livre du Mois' (se bem que os livros
diaramente um emprego do mesmo tipo de seu marido (digitadora), que compra sejam para Martine) e quem lê livros ("Verdade que aí,
o que, do ponto de vista econômico, não constitui uma alteração no em re lação à leitura, tenho um certo receio, bom, é isso, é assim, que
nível financeiro da família, pois, quando o pai trabalhava, a mãe fica- f'Osso fazer? .. ", diz o senhor C). Quando acontece de ler livros de fic-
va em casa cuidando da filha. Do pontO de vista econô mico nada ção científica, explica, não pode ser do tipo de "passar um terço do
mudou, c, no entanto, do ponto de vista familiar, nada é igual a antes. rempo tentando entender o que acontece, porque daí eu fecho logo.
A situaç50 seria , de fato, idêntica se as competências, as disposições, É verJade que tenho dificuldade em entrar na história quando leIO
os gostos entre marido e mulher fossem intercambit\veis, o que não romances, essas coisas". Ele opõe, por outro lado, as leituras de "infof'
é, evidentemente, o caso. O pai não pode, de repente, mudar para mação" que suporta e as leituras "literárias" das quais não gosta ("Sem,
uma identidade sexual socialmente construída da no ite para o dia. rre que pego livros é mais para ler infonnações, e não romances ou
Aquilo que é da alçada das mulheres (ocupar-se da gestão domésti- outra coisa, sabe. Li alguns clássicos, como todo mundo, né?, porque
ca cotidiana, da educação cotidiana dos filhos, e sobretudo do acom- não teve jeito, mas não faz meu gênero. U m resumo é mais que sufi,
panhamento de sua escolaridade), o senhor C, enquanto homem, ciente (risos)."), e declara ver no cinema ou na televisão aquilo que
não o possui nanlralmente, e suas disposições, sua identidade, o colo, a mulher lê. A senhora C., ao contrário do marido, diz "devorar" os
cam em uesacordo com a situação que está vivendo. Suas estruturas livros. "Ela deve matar talvez um livro por dia." "Meu negócio é
menta is estão mal adaptadas à situação que deve enfrentar, e esta é romance policial", ela diz. Diz também que gosta de ler "romances água-
certamente a razão de seu mal-estar, pelo fato de que, como ele diz, com,açllcar", e os sarcasmos de seu marido a forçam a justificar,se: "Oh,
"h(1 algo que incomoda", "ou que as coisas andem mal". você não me deixa falar ... Eu leio isso, mas não é especialmente meu .. .
Em primeiro lugar, é a senhora C quem lê mais. Seu marido lê "muito Não peguei na coleção de 'romances para moças'. Isto sem problemas,
raramente" jonlal "pois'\ diz, "me enche o saco", c, "de uma maneira eu lia porque, bom, tinha oportunidade de ler. E é verdade que devo-
geral, não leio muito". E acrescenta imediatamente: "Mas minha rava em meia hora, é isso, ora. Mas estou aberta para tudo". Antes de
mulher sim, lê muito". Tem mais paixão pela música e cinema que pela trabalhar, ela li a cerca de dois livros por semana, e agora um a cada
leitura: uÉ, mas música eu ouço dia e noite, estou sempre escutando. uma ou duas semanas, toma emprestados muitos livros da biblioteca,
já viu, nér'. No entanto, foi leitor de rev istas especialiZ>1das em músi- aonde vai junto com a filha, e ajuda Martine a escolher seus livros.
ca e cinema: Acruel, Besr, Rock'n Folk, Cahiers du Cinéma, Ciné Revue, Foi ela também que, quando Martine era pequena, fez uma assinatll#
T élé-Cassette ("Eles falam dos novos filmes que entram em cartaz, coi- ra de uma revista infantil (Paussy, L'Ours), e é quem ainda lhe conta
sas desse tipo, aí me interessa um pouco mais"), e também La Chevre, histórias pam donnir. O pai, por sua vez, exprime seu dcscontentamen,
uma revista especializada que lia quando pensou em tomar,sc criador. to em relação às besteiras que são contadas às crianças, como por e~en::
Sua mulher quase não compra revistas, mas cita Rusrica, Femme AcrueUe pio a história de Papai N oel: ''Não gosto que lhe contem bobage lras :
(que lê às vezes na casada mãe) e uma revista sobre boomerangque com- Quando Martine viu a mãe sair de casa para trabalhar e seu paI
praram numa época. Fo i a senhora C. quem mais leu rev istas em QU3' ficar viu sair uma mãe que lia bastante e que despertava seu inte'
drinhos na infância. Lembra Asrérix, 1inrin, Lucky Luke e também qua- ress~ pela leitura. Em contrapa rtida, herdou a presença de um pai
drinhos de ficção científica. "Bom, era o meu irmão que tinha geral-
mente, nó? Eu devorava tudo." Mas faz muito tempo que deixou de ler. .. Gnmd Livre til! MfIIs: um tipO de Cluhc du Livru, Cl1Illlll\ France Lmsm•. (N.T. )

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

mais interessado por cinema, música e televisão. Ela própria con, É ,empre ela quem deixa bilhetes para o marido que, no en-
firma que o pai "não lê muito", a não ser quanuo faz palavras cru' !.!lHO. fica em casa o dia todo, para lembr~Ao de não esquecer de
zadas t mas em troca, insiste no fato de que :1 mãe lê muito, e rapi, I ;m~ r alguma cois::! ("Quando me levanto pela manhã, escrevo um
damente: "Minha mãe lê um livro desm grossura em dois dias. Fica hdhete: 'Faça isso, faça aquilo'. Se tem coisas realmente impor-
muito tempo no banheiro porque fica lendo lá dentro. Como ontem, '.IInes para fazer que tenho medo que ele esqueça ou que esqueci
ela não viu televisão. Foi se deitar e então ficou lendo". Martine ,k peJir, porque às vezes isso pode acontecer, eu lhe escrevo uns
esclarece à noite que não gosta tanto de ler corno a m5e: "Não como hilhetin hos")" . Éela quem controla as contas familiares ("Anoto
a minha mãe, né? Minha mãe gosta muito. Eu gosto médio", c tuUO num bloco, e marco quanto entrou e quanto saiu. Não faço
declara, sem vaci lar, que prefere ver televisfio a ler. Martine tem sua '" '' " tempo todo. Quando faço é porque é preciso realmente"),
própria televisão e seu próprio aparelho de som no quarto, e a mãe quem faz as listas de compras (que ele "n~ o respeita" quando faz
tliz que ela foi obrigada a frear um pouco a televisão: "No ano pas- as compras, mas e la sim, mostrando que é mais preocupnda que
satlo, ah, de manhã precisava ligar a televisão pros tlesenhos ani- de com a gestão do o rçamento doméstico, enquanto ele tem um
mados, mas não, eu disse não e não, acabou, porque é uma perda comportamento mais hedonista L que anota co isas em urrw agen,
ue tempo". As preferências de Martine demonstram que e la incor, da ("Ponho os sábados que trabalhamos no posto de gasolina") e
parou mais os gostos associados ao pai que à mãe, pois seus pais opõem, no calend,\rio (com respeito à coleira tio cachorro, ao bujão de
se quanto ao eixo leitura/tc levisào,cinema,mllsica .. . g,ís ) e que faz anotações antes de dar um telefonema. (O senhor
Os papéis econõmicos foram trocatlos, mas os papéis domésticos C. diz: "Eu não, dou uma maturada antes"). Finalmente, é elFl quem
não sofrernm alremção. A senhora C. continua gerindo uma boa parte arruma as fotografias nos álbuns e escreve a data em cada uma.
tio cotidiano, " responsável pela correspondênc ia e pelo conjunto Quanto à cozinha, a senhora C. diz que LIsa livros c fichas, e o senhor
dos documentos administrmivos: "Deixo tuuo por conta da rninha C ., confirmando suas disposições mais hedonistas, acrescenta:
mulher. É ela quem se encarrega de tudo quanto é papelada e com- "Eu vou pelo meu feeling na lata, sempre". Nem suas fichas de cozi-
panhia"N. É e la quem, com efeito, escreve as cartas, se bem que às nha nell'l seus documentos administrativos estão, no entanto,
vezes ele redige "o conteúdo": "Gosto bastante de e c rever, mas não classificados. (A senhora c.:
"Ah, não, a genre não consegu iria.
gosto de procurar as frases certas) as palavras corretas, c além disso C lassificar não é be m nosso negócio ... ", e o senhor c.: "Ih , a
tenho uma letra bonim ... (risos). Bom, escrevo melhor do que ele gente faz uma bagunça com estas coisas").
(risos). Portanto, na maior parte das vezes, ele não escreve nunca". Embora o casal se caracteri ze por uma predomin~nci:1 de ten,
Mas a sen hora C. guarda os rascunhos dilS cartas que manda às repar, dêncins hedonistas e espontâneas, a mãe - e vemos isto muito bem
tições pl,blicas para potler reutilizá-los como modelos para as próxi- através da gestão do cotidiano doméstico - desenvolve mais dis-
mas carras ou então pede os modelos para a mãe Ou para a sogra. É posições racionais que o pai. Portanto, novamente sno as disposi'
cla quem preenche a declaração de impostos, quem paga as contas ções racionais que se afaSTam de Martine quando fi mfic sai p~r.a
da família, quem toma conta dos documentos escolares: "Até assi- trabalhar, deixando-a em companhia de disposições paternas nltl-
no por ele. Sou eu que escrevo os bilhetes para a professora. Sou eu Jamente mais hedonistas.
que assino os documentos", É e la também quem organiza os docu, Embora a senhora M. vá buscar a filha à tarde na escola (uma vizi-
mentos administrativos, embora não os classifique de fato: "Estão na nha a leva todas as manhãs, junto com sua filha) e a ajude. ~lS vezes,
maior bagunça. Não consigo. Primeiro não temos IlHlito lugar. e talTI' a fmer as lições, sentimos que tudo isso não lhe é muito fmni liar. Se
bém somos bagunçados. Aviso j,í, levo 2 horas pra achar". bem que seja ele quem acompanhe melhor a escolaridade da filha, é

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES
a mãe quem responde espontaneamente às perguntas em relação à
escolaridade de Marrine. Ela acha que Marrine está indo bastante bem po e ela já acaboll, em gera l", No e ntanto, não somente Martine
na escola , mas está consciente de que sua classe n;:lo é muito ooa e n;'1o solicita espontaneamen te os pais elEla nunca uiz: 'Me toma
que não podemos realmente julgar se Martine é boa aluna ou se são :1 lição'''), mas o pai confessa que Mart ine so li c itél sobretudo a

os outros que têm resultados muito fracos ("Precisa ve r o nível da clas- m?lc, quc raramente eSG:l disponível: "Mas como sua mãe nem sem~
se!"). Além disso, quando é levado a falar sobre cada disciplina, julga pre está em casa ... (risos)". Quando Martine traz notas baixas, mos~
que a f,lha tem alguma dificuldade com quase todos os temas. Diz que tra prime iro para o pa i: "Bem, COmo a mamãc trabalha, e ntão isso
em francês ué difícil", "porque ela tem lacunas e m conjugação, gra ~ li com meu pai". O sistema de sanção dos pais repousa sobretudo
mática". Aliás, Martine está indo a uma fonoaudióloga, pois confun- nas recompensas que são dadas quando os resultados são bons e,
de algumas letras quando lê. Ela seria boa em matem:hica "se quises- evide ntem ente , que são subtraíd as quando são maus*. A própria
se aprender a tabuada , porque é sempre igua l. .. ", diz a mãe, deixando Mnnine nos conta que é proibida de ver te levisão, po r exemplo ,
entender que a filha nem sempre tem boa vontade em relação i\ esco- stÍ quando "faz besteiras", o u então quando não arruma seu q u a r~
la, Em re lação a o utras maté rias, a mãe o bserva ainda o utras falhas. to, Durante aS férias, ela vai para a casa dos avós mate rnos, no
"Em história, parece que a coisa não anda. Em geografia, também não campo, o nde "então, ali, faz o que quer", e a avó tenta fazê~la est u ~
é excelente. " G lnb;,lmente, no entanto, ficaram surpresos com os bons Jar um pouco com cadernos de exercícios de férias, "ma é difícil,
resul tados do ano, pois Marrine tinha repetido a pré-escola. hein"; "Ela faz os exercícios, mas reclama, sim, é minha mãe~ ' quem
E sempre a Il1He quem assina os caden10s uma vez por semana, faz, gera lm ente".
mas observa que "agora tenho menos tempo, e o lho menos que antes". A mãe, leitora assídua, possuindo as maiores disposições racio-
Mas é a senhora C. que, embora trabalhando fora, diz que vai ten- nais e habituada, pe la div isão sexual dos rapéi ', a tomar conta de
tar Uretomar as rédeas" e m relação à filha, pois constata, sobretudo Martinc, é, portanto, pouco dispon ível para a filha durante a sema-
nos s;'ibaJos e domingos, quando reto ma seu papel unmural" de na, e chega a ajudar o marido no posto de gasolina, em alguns fins
mãe educaJo ra, que ela nem sempre estuda como deveria: "Disse de semana. Com a mãe fora de casa, Martine perde o benefício que
que ia retomar as rédeas, acompanhá- Ia mais cle perto, porque ela poderia extrair, através de interações mais freqüentes e regulares,
tem tendência a dizer, assim, numa lição, por exemplo, ela ve io com Jn pessoa rnais compatível com o universo escolar, Ela ganha com
essa sá bado: 'Ah, mas ningué m vai me fazer perg untas, nem nada, isso um pai pouco afe ito à le itura, mais hedo nista e que se adap ta
então nrio preciso estudnr'. Então, é por isso que eu disse: 'Bom, agora mal, por sua própria identidade sexual soc ia lmente construída, au
temos que dar uma sacudida nela'. Po rque, bem, ela faz suas ta re- papel imposto de (·do no~d e~casa ". O casa l atravessa, dessa fo rma ,
fas, mas niio ac ha útil aprender o que foi dado em aula. Mas o pro- uma fase difícil de vida relacionada, em parte, à dificuldade do pai
blema é quando tem prova. Ela precisa ter consciência que prec isa em encontrar trabalho: "Atualmente, vegeto demais. Bem, aliás não
ap render tudo". Contando isso, a senhora c., sem dizê-lo expres- sou só eu, toda a famflia vegeta, e todo mundo sofre com isso". Ele
samente, traça os limites do acompanhamento escolar feito pelo mari- próprio evoca vá rias vezes esse seu Hma l ~estar" pessoal que se refle~
do durante a semana. te no conjunto da família: "Num sei se vocês escolheram a melhor
Martine faz as tarefas e m casa "sozinha, e quando tem co isas família. O que eu quero dizer com isso é que as coisas est;;o difíceis
que não e ntende, ela c hama a gente", d iz a mãe, que, entretan~ pra nós, neste mo mento".
to, logo e m segu ida, especifica: "Bem, ela re chama, porque eu,
em geral, não estou em casa à tarde. Bem, volto às 7 horas do trmn- ... "IMII é, cI ,ll cm rCú)lllpClh,t !>I.i qu,mJu l..:m boa~ n\.l(,b, c n:ill l cm m;lI ~ llll,mdl) Il'm n ll l,l~
h.HX ,'!>,"

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULAR ES
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

A situaçiio J e mal-estar (econômico e familiar) permite com - ' clv"gem, como seu pai (risos)?". Descrevendo a si mesmos ao longo
preender o que incomoda os pais em relação a dois grupos que ,LI entrevista, como "zé-ninguém", "bagunceiros'\ os pais não são
para eles const ituem como que atentados à sua dignidade. De um .,,!ertos da regularidade (seus horários são variáveis: "Quanto a
lado, percebemos aparecer uma forma de racismo em relação às '''0,é verdade, não podemos dizer que ela tenha uma vida bem equi-
popu lações estrangeiras julgadas de mas iado nume rosas na esco- llhrada", d iz o pai), nem da ordem (os documentos não são organi-
la . ~ s:nho r e a senho ra C. consideram, po r exemplo, um privi- :"dos, nem os livros: ''Tá em tudo quanto é lugar") . Ainda neste
légio naO!:ie come r carne de porco na c antina da csco la*. Foram Cl>O," mãe é que é a mais racional dos do is, mas é ela também quem
até lá perguntar se a escola poderi a fornecer refei ções vegetaria- :-il' relaciona menos com Martine~ ; .
nas o u di e téticas, e a resposta foi que não era possíve l: "Os muçul-
manos têm um carJ"ípio especia l, e se eu quise r que minha fil ha Da indisciplina à autodisciplina
seja vegetariana, eles me mandam à merda. Esse tipo de coisa , já
, .. " P
V l ll, n é ., me Irflta lIrn pouco , ar o utro laJu eles pníprios se n- De (:110, n que h:i dI.! n\;\l ~ e.~~c n~lal no L.mílcr
ê.-l dpudfiu.1 "" cum rub ro ê;1 (.ILll ld,I~le de p,lIm.
tem-se estranhos e m relação ao peque no grupo de famíli as pre- UU, t:UlIltl 'e di :, de In lh,r·-.c, que Il O'" pcmUlc
sentes nas reuniões, pessoas que se conhecem 4 ! e eMão bem inte- u:m l er n(.l~L'" P,lIxüc"" Ilt"'~'" dl''4..:Jn.', Iltl....'O),

gradas no grupo esco lar freqüentado por Martine : "É ve rdade hõ.Íh lh)~, e (,I:cr dclc~ ,I Il"",
que s ~o sempre os mesmos pais, e que eu não tenho vontade de
me inregra r nesse pequeno grupo". O sentime nto de injustiça que É nas relações de interdependência entre os membros da cons-
sen tem em relação aos imigran tes, bem como o se ntime nto de telação familiar que se constroem as fonnas de contro le de si e do
exclusão vivido e m relação às famílias bem inseridas no gru po esco- o utro, as relações com a ordem (e sobretudo o grau de sensibilida-
lar, só podem ser os sintomas de uma situação J e mal-esta r fami- de ;\ o rdem verbal) e com a autoridade, ou o sentime nto dos limi -
liar, Jevida ao fato de o pai estar desempregad,), mas passando tam- tes 4ue nfio deve m se r ultrapassados, Essas formas de exercíciu da
bém pela confusão dos papéis familiares. au to ridade (c, do ponto de vista da criança, de sensibilidade à
Podemos di zer, finalmente, que M'''tine está sendo soc i" liz.da o rdem), vnriávcis histó rica e socialmente, tornam poss íveis ali atra-
em um ambiente cu ltura l familiar orientado globalmente em di re- pnlhmn n Utrnnsm issão" do capital cultural ou f1 construç8o dis- ue
ção n gos tos c ud emonistas: uma mistura de desCOntfflção em moda , posições c ulturais, c são mais ou menos compatíveis com as po líticas
gosto por artes de nível médio como o c inema c n músicn pop ou o disc ipl inarcs próprias à ordem escolar.
rock, gü>ro pela dietética, pelos países estmngeiros, pela cozinha exóti- Ésempre ntravés do contro le do outro, através das formas se m-
ca, ecologia, pelo re to rno ao campo, que fazem parte de uma "c lll ~ pre específicas do exercício do pode r, que os conheci mentos e a
tura jovem" adquirida no ginásio e no colégio. Oque pode, e m lima técnicn podem ~e r "transmitidos" o u construfdos. De fato, para que
configuração singular reconstruída, contribuir paro descompro me- a criança possa adqu irir esses conhecime ntos e essa técnica gerais
ter Martllle de um mínimo de ascetismo exig iJo pe lo sistema esco~ ou espec ializados que farão Jele um ser soci al adaptado às situa-
lar: concentração, regularidade no esforço, regras a serem resr eita- ções sócio- históricas determinadas. é necessário não ~ome nte a pre-
Jas ... Pois o r ai não disse, no final da entrevista: "M",h" filha é meio se nça organizadora - e mbora a organi zação ne m sempre seja evi-
dentemente consciente - de adultos disponíveis (como já v imos),
• N:h rdcll,.tlc, IllrncLl~Ia), n,l~ C"'CUI.I!> fr<lnCCs;h. h.i ::.clHprc lI lll.1 " )'<, .10 p.lr, 1 iI'•• 111I11I1II de mas igualmente a capacidade de a c riança tomar-se Jisponível, aten-
rcll'-lI,1Plllu;,.ul m,tr',I, que n:iHC\)l1l l'!n carne de l'IIln:o. (N,T.) ta, se nsível" palavra e às ações dos ad ul tos. É claro 4uo, como em

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

toJos OS círc ulos v iciosos, são esses mesmos adultos que, através tvI"uricc Halhwachs, e é realmente isso q ue as formas de relações
da relações de poder que exercem sobre a cria nça, levam-na a cons- baseatlas na autodisciplina demonstram.
't }(, 1;11 ..,

truir essa atenção Ou essa disponibilidade. (), perfis agrupados nesta parte do livro evidenc iam a importân-
Desde William )ames, os psicólogos têm des tacado os fenôme- ,1:, da economia das relações de poder no se io das famílias. Outros
nos de atenção seletiva: é im possível esta nuas constantemente aten- "l'rf" poderiam ter s ido escolh idos como exemplos de formas de
tos aos múltiplos acontecimentos (lingüísticos e não-lingüísticos) exercício da autorid ade particularmente di retos o u coercitivos (Per-
que nos rodeia m; e são, de fato, as interaçôes com os ad ul tos que I" 2 c 5), ou formas de exercício da autoridade bastante eufemísti-
aJ~dam pr~gresslvamente as c rianças a udefinir s ituações", a deter~ e iS, c que repousam sobretudo sobre a auto-rcpress50 (Perfis 13, 22,
minar i-lqUllo que, nessas situações, é significati vo ou n~o, pertinen- 2J e 25) .
te o u n50, etc . Os estudos fe itos por ) érôme S. Bruner, por exemp lo,
destflcam o faro de a c ri ança "apre nder", niio conscienteme nte, a • Perfil 8: Recus;:J às coe rções e "bloqueio" em relnção à escrita.
volmr seu o lh ar para aqu ilo que o adu lto;; sw, frente está o lha n - Walrer O., nclScido em Lyon, I ano de atraso na escola (repetência da
do, ;) "fazer co inc idir seu centro de atenção com o do o utro". Nas 3.'
')1",,-«cola); obteve na avaliação.
brincadeiras, sobretudo, a c riança in terior iza paulatinamente um
"sistema de atenção se letiva conjunta" com o ildu l to~~. Quantia fomos marcar a entrevista, havia muita gente e muito
A educação do o lhar e da atenção, porém, supõe, como qual- haru lho no apartamento. A senhora O. não tinha lido o bilhete, e
quer processo de social ização, uma fo rm a de docilidade por parte pede ao filho para procurá-lo, mas ele não o encontra imediatamen-
da criança. Ao contrári o do que podem fazer Slipor certos esque- te. Enquanto exp licamos, na porta, do que se trata, algumas crian~
ma~ da comunicação para os quais lII'na infonnflção é transmitida ças vêm espiar o que está acontecendo. A senhora O. manda-as entrar.
aSSllu que o destinatário da mensagem possua o cód igo para deci- No dia da entrevista, não apa rece ninguém no ho rá ri o ma rcado (10
frá-Ia, este é ouv ido só por aquele q ue se interes." em ouvi-lo, por horas). Passamos de novo às IOh25; a senh.ora O. jé está em casa,
aque le que, por Causa das rel ações de poder entre destinat,lrio e des- e Jiz calmame nte: "Vocês vieram às 10 horas! Eu estava no médi-
t inado r, é forçado a escutá- lo. Para penetrat nas re lações estáve is co", demonstrando que marcar hora para ela não s ignifica n ada de
de construção de conhec im.e ntos, de comportamentos, é preciso formal o u de preciso. Um sobrinho (de cerca de L8 o u 20 anos) tam-
ta ~bém que os seres soc iais sejam contro láve is. Aconrece que bém est" no apartamento, vendo televis;;n. Ela pede que a desl igue
eXIStem casos de falhas na autoridade parenta l (ligadas a históri as durante n entrev ista. Assim que paramos de grava r, o sobrinho
familiares complexas), que impedem a lgu ns pais, ainda que pos- vo lta a ligar a televisão, e bem alto.
suarn recursos cu lturais, de ajudar seus filhos a construírem seus aapartamento tem poucos móveis. Notamos um bufê de est i ~
conhecimentos, suas o rientações cognitivas, suas pr:hica de lin ~ lo modemo, ava ri ado em vários pontos, sobre o qua l estão dispos-
guagem ... , em um sentido didaticamente adequado (cf. o Perfil 8, tOS v,lrios bibelôs; a lgumas fotos de família estão coladas em uma
ou mesmo O Perfil 5). de suas portas. Observamos também uma pequena serigrafia sem mol-
É necess,\rio também que as formas de autoridade parental, dura tendo como motivo uma mulher com um chapéu de véu . Uma
qWlndo conseguem cxercer seus efeitos, cstejam em harmoni::l com grande televisão, um rádio, uma pequena mesa baixa sobre a qual
a~ que sã~ cxc~ci~as na escola, cada vez mais fundadas na au[o~ repres~ Walter às vezes faz suas lições e um sofá em péssimo estado com-
sao e_na lI1tc:loflzação das no rmas. liSO mos mais obedecidos quan~ põem a mobília da sa la . N otamos, n a cozinha, que a porta do forno
do ni:lO precisamos repetir sempre as mesmas ordens~(''', escrevia está presa por uma fita ades iva marro m. Durante toda a entrevista,

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PERFIS DE CONFIGURAÇÕES
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

o cachorro da senhora O . vem se grudar na gente e ela lhe pede várias pmfis>ional. Como às vezes, nos meios populares, o diploma não
vezes para se deitar. c um critério pertinente nos encontros com o o utrO, esposos o u
A senhora O. nem sempre termina as frases. e exprime#se muito U H1c ubinos nem sempre sabem qua l é exatamente o nível esco#
com o auxílio de mímicas, o que nos leva a pergunrar#lhe várias vezes lar do cônjuge".
o que significam as expressões de seu rosto. Podemos ver aí, sem dúvi- Ne ·[3 configuração familiar, não estamos nem diante de um caso
da, o si nal de um modo de comunicação pelo qU:11 a mensagem passa de fraco domínio do francês, nem diante de um analfabetismo
tanto através das palavras quanto fora delas. Isto demonstra, em rodo radical, nem de uma oposição e ntre dois un iversos cu lturais radi#
caso, uma atiwdc diferente das que a entrevista Oll o CXH1n c oml ca lmente estranhos entre si. A se nhora O. lê muito raramente os
escolar presumem. jornais. e quando lê, só se interessa pe las pági nas policitlis, e nunca
A sen ho ra O. é uma jovem mamãe de 27 anos oriunda de uma rela po lítica, que reje ita com veemência ("Olha, vô dizê franca-
famíl ia relativamente modesta. Seu pai, argeli no, trabalhava em mente, num quero nem sabê (risos) de política. Sei que Mitterrand
um hospital, mas pa rou por invalidez quando el" tinha 2 ou3 anos. é o presidente; é tudo o que sei, purque cu c a política, num tô nem
Sua m~e, francesa da região da Alsácia, era faxineira. Em um con~ aí, viu?"); não lê revistas*. Declara ler cerca de um livro por mês
texto econômico pouco favoráve l, viveu rodeada de doze irmãos e ir todas as sema nas com seus filhos à bibliorec<l para pedir empres-
e irmãs, dos qua is somente dois conseguiram diploma profissional taJos livros que contem "histórias verdadeiras": leu Rahes (cuja adap#
(cabelei reira e pintor de paredes). Foi à escola até os 16 anos, onde tação viu na televisão), que fala de rac ismo, a história de uma pros-
fez o 12 ano de um curso profissionalizante (pintura de paredes). titllta, etc. Por outro lado, não gosta de romances de amor, que,
Saiu da 5" sé ri e para freqüentar por I ano um curso pré-profissio- segundo ela, são besteiras: "É um ho rror, não,va le nada. N um acre~
nalizante. Q ualifica sua escolaridade de "não mui ro boa". Tudo o dito em histórias de amor, é tudo bobagem". E sócia, há 4 ou 5 anos,
que diz da escola demonstra seu pouco interesse pelas at ividades do France Lo isirs onde só compra livros para seus filhos. O com-
escolares durante a inf"ncia e a <ldolescência ("Bom, digamos que panheiro da senhora O. lê essencialmente romances policiais.
eu num trlva nem aí com a escola"; "Num gostilva de jeito nenhum"; O princípio do "fracasso" escolar de Walter é o produto da com-
"Digo franc~lmente, a escola num me interessava de jeito nenhum"), binação de vários traços familiares, ta is como as fracas disposições
a inda que observe ter algumas capacidades: "É, os professores me racionais domésticas, a relação dolorosa com a palnvra escrita, a rela~
diziam que eu tinha capacidade para estudar, mas e u num queria çi-io da mãe com ri escola, bem como a política disciplinar familiar
nem sabê". ohjetiva (não#consciente, não#intencional, com todos os seus efe i#
Logo que saiu da escola conheceu o pai de seus dois filhos (dois tos e implicações). Dito de outro modo, a forma de exercício da auto-
meninos, um no último ano do maternal e Waltcr, que está na ridadc que estrutura as relações mãe-filhos. Nenhum elemento em
2" série). Ela não começou a trabalhar logo. Foi só quando se sepa- si pode dar conta da dificuldade escolar de Walter. Certos elemen-
rou do pai das c rianças que fez uns Htrab<1 lh inhos", nunca muito tos poJerão até mesmo ser encontrados em famílias em que a cr i an~
estáve is: foi faxineira em uma escola, trabalhou em serigrafia e ça tem "sucesso".
no McDonald's. O pai das crianças era entregador de bebidas em A senhora O. demonstra, antes de tudo, ul11il fraca propensão
um supermercado. Ela ignora scu nível escolar. A mãe desse ~ racionalização de suas ativiJades domésticas: se, por um lado,
homem era faxineira na França, e seu pai v ivia na Martinica. O
atua l companheiro da sen hora O. é cozinheiro, e deve possuir um • Al'e.~;lr de 1.lml'!é m n:in ler rc \'i Sl:l'i, I!b. no 1!1lI .1!lIO, n;-u) "·'I .i dc~pr\,\ id.l .111 u mlr:ín u
diploma profissional, ao menos é o que ela deduz de sua situação _ dc ~Ill,dqller mleTe, 'C pela leitura.

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONFIGURAÇÕES

escreve lembretes sobre algo preciso que deve fazer ("Pego um papel, \ 1.1. 0" então cle me faz um rascunho e eu copio, e olha que às vezes
coloco em cima do armário ou diante da televisão, num lugar aonde erro quando cop io, aí já viu ... Não, mas é verdade, eu num
.111\1.1;1
vou bastante, pra me lembr,,"), e faz, ocasionalmente, listas de com- l"l-revo, erro demais quando escrevo," Quando precisa escrever um
pras que esquece quase sempre de levar ou de consultar quando !l'Xl<l, tem medo Je cometer muitos erros: uOlha, eu consigo escre#
c hega ao supe rme rcado; por outro , não o rgani za o orçamento , vÍ'. ma~ erro demais", Por conta disso não m ~lnté m correspondên#
não faz uma li st:1 das co isas que tem que fazer, não tem agenda pes~ LI;! escrita com a família ou os amigos: "Ou vali visitá ou então, si
soa i, possui vários ca lend,lrios dos quais nunca se se rve, e nunca ele mora longe, si mo ra fora da França, bom, ta lvez e u escrevo, ou
faz uma anotação antes de telefonar. Além disso, nãu classifica os l' nrflo num escrevo, espero que ele me escre va, l)Urque eu num gosLO
documentos, que "ficam jogados em qualquer lugar". Diz que tem clc escrevê, me deixa maluca (risos), é verdade ... errOdemais, fico ner-
"preguiça" de ",rum á- Ios: "É verdade, quando os documentos vosa de escrevê". Quando precisa mandar algum bilhete para a
estão bem arrumados, a gente num precisa andá de um lado pro escola, tenta redigi .. lo sozinha, sem cometer muitos erros, mas acon#
outro, o lh á no quarto, no armário, em todas as portrlS, prá vê si o tece de perguntar a Walter sobre alguma palavra da qual tem dúvi-
documento num tá lá dentro, antes de encontrá, é ve rdade que Jas. "Tento relê o que escrevi, ou então alguém que tá do meu lado
leva um tempo danado prá encontrá, verdade qui é muito melhor lê prá mim ... Às vezes pergunto pro meu filho como é qui escreve
classificá que colocá em qualquer lugar. Mas tenho preguiça de fazê, uma palavra. Mas isso me deixa muito mal, num se i, fico meia sem
digo francamente, podia fazê mais, ih ... tenho preguiça de e co- gmça". Isso significa que seu filho é colocado numa situação de ver
lhê, de separá , a gente tem documento demais". O mesmo ocor# concretamente a mâe em dificuldade com a escrita.
re com as fotos da família: estão dispersas por todo lugar e e la não A senhora O. não faz palavras cruzadas, pois acha muito difícil.
as orga ni za em álbuns. Prefere co locar em porta .. retratos. S ua rea# "É uifíci l pra mim." N ormalmente faz palavras cruzadas de um tipo
ção à nossa pergunta sobre a lista de coisas que deve fazer confir- mais fácil, onde só precisa localizar as palavras em uma lista e encai-
ma o fraco desenvolvimento de uma disposição racional, o rgan i# x,í-Ias adequadamente nos quadradinhos. A explicação que forne-
zacional. Prefere, quando pode, deixar que as co isas aconteçam e ce referindo#se a seu in(eresse por esses jogos revela n insegurança
não agendar suas at ividades: "Eu, se tenho um negócio pra fazê, cul tural que permeio a entrevista. Ela faz esses jogos porque, nesse
eu faço, né? Si num tenho nada pra fazê, num vô ficá fazendo , como .
caso, n ão se acha em uma Slwaçao - dc "fracasso " nem d" e gran de
se diz, uma, uma ... Por exemplo, eu digo hoje: 'A h, amanhã tenho dificuldade", encontrando assim uma forma de sa ir-se bem em algo,
de ir aqu i, ali'. Eu não, si tenho algu ma co isa pra fazê, eu vô e depo is em contraponto à sua possível situação de vergonha cultuml per-
vo lto, cabô. Num fico me ocupando o dia inte iro", manente e a uma frustração em relação à sua experiência esco lar:
Escrever, sobretudo quando se trata ue escrever algo "oficial", "Bom, eu faço, vocês ..OO gozá de mim, faço purque quando faço, quan-
exposto aos o lhares extrafamiliares, torna-se um problema muito do acabo. fico comente purque num en·ei. Ao menos [em uma coisa qui
sério para a senhora O. Se, por um ladu, diz que lê sozinha a cor- eu sei fazê, purque quando olho as outras palavra cruzada, fico olhan-
respondência ("Sei lê, né?"), é seu companheiro quem redige as car- do, precisa pensar pra fazê esta co isa. Isw, ao menos, eu sei fazê".
tas auministrativas ou quem preenche a declaração ue impostos. "Ah, No entanto, ela tem um certo número de práticas de escrita pes-
prá isso me dá um bloqueio, nossa, é muito complicadu, né?, quando soal ou desrinada a pessoas próximas, cujo julgamento cultural a
eu priciso escrevê. Bt:m, às vezes tem meu amigo, ele m e dá lima força, amedronta menos. Preenche cheques ou ordens de pagamento sozi-
ele me uiz: 'Ora, veja, cê só tem que escrevê, tô cheio, você sabe nha, pois "num tem mu ita coisa pra marcá", possui uma caderneta
escrevê!', mas é ele quem escreve a maior parte da correspondên# de endereços própria, deixa de vez em quando bilhetinhos para seu

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONfiGURAÇÕES

companheiro ou para Walter na porta, para que saibam onde está quan- k':-.~ora diz: 'Ele pode estudar mais', e as minhas professoras di ziam a
do sa i ("Tô neste luga r, me esperem'\ Ou "Venham me encontrá"), e tllesma co isa, que e u pod ia estudá mais, mas que num que ria, e acho
finalmente escreve a Walter todos os d ias quando ele vai para a colô- que meu filho é como eu. " A senhora O. ta mbém se compara ao filho
nia de férias, pois sente muita fa lta dele (neste caso, escrever uma carta quando con versa com e le: "Tô sempre brava com ele. E então digo:
lhe parece menos difíci l, pois, diz, Hnum preciso frlZê, como a gente '() Iha, você é um impres tável na escola', e eu falo : 'Olha, você vê,
diz isso, fazê frases, como quando escrevo para a prefeitura ou coisas assim , cu, eu ... ', mostro que gostaria de voltá pra trás. Com O que eu se i hoje
parque escrevo como eu penso") . De fato, a senhora O . poderia escre- num teria fe ito as bes te iras que eu fazia na esco la. E digo isso se m ~
ver mais, mas, po r um lado, teme os erros de o rtografi a ("Sabe, eu pre pro meu filho, pro Walter, eu digo: 'Ocê vai vê, ago ra você diz,
fi co sem jeito"), e, por outro, tem dificuldades para formular frases, né, que num qué nem sabê da escola , mas ocê va i vê mais tarde, va i
redig ir urna carta, quando sabe que sen-~ um adulto, princi palmente se arrependê de tudo o que você fe z agora, você va i d izê: 'S i eu t i ves~
se escolarizado (professor, funcionário. ,.) , quem deverá lê- la. se sabido , eu teria es tudado, como a minha mãe di zia'''.
Q uando fal amos da ajuda escolar que dá a Walte r, reaparece o Podemos igualmente constatar uma analogia chocante entre as
mesmo medo de se enganar, a mesma falta de segurança. Como palavras empregadas pela mãe a seu próprio respe ito e as da profes-
Walte r não fica na escola durante as horas de estudo livre, faz as lições sora referindo-se a Walter, A senhora O. diz ser "bloqueada" em rela-
em casa. A mãe o ajuda, mas sente dificuldades e pede ajudi?l às irmãs: ção à escrita e não gostar de escrever; a professora de Wa lter di z que
"Eu também erro, e aí peço ajuda". Diz que antes (na pré-escola e "ele tem U1l1 bloque io terrível em relação à escri ta". Q uando a senho~
na 1~ série) era mais simples que agora e que "aprende" coisas ao ra O . nos conta que, apesar das dific uldades em escrever na escola,
mesmo tempo que Walter, N unca fi ca segura da ajuda que dá ao filho, Walter sempre redige histórias que inventa e pede que ela leia ("Ah,
e ped e~ lhe sempre para perguntar à professora no d ia seguinte. "Bom, escrevê, é impossível fazê ele escrevê na esco/n, né? Digo ass im na esco~
eu d igo, deixa como está, si, po r exemplo , no pro blem8 tem um erro la, pra fazê ele escrevê, a professam pena. Mas em casa ele gos ta de escre~
Ou co isa assim, o u en tão em francês, eu ex plico, eu d igo pra e le: 'Olha, vê umas historinhas, ass im, em cima do pape l. Pra ele escre vê na esco~
W alter, você errô '. Daí eu digo: 'M as num tenho certeza, pergunta pra (a te m que fic~í. em c ima de le. Mas aqui e le escreve pra burro, às vezes
tua professora'. " Po rtanto , parece que durante as lições de casa, Wa l~ ele pega umas folhas, faz um livrinho, e então inventa umas histórias");
ter e ncontra ~se em urna situação e m que se dá conta mais uma vez poderíamos, com isso, nos perguntar se ele não estar ia "repetindo" a
das dificuldades da mãe, de sua fr;ígil segurança cultural. situação da mãe, reticente diante da escrita piiblica, extrafamiliar. O
Q uanto il escolaridade de Walter, a senhora O . está totalmente fato de não escrever para um uni verso es tranho ao mundo fa miliar
a par de suas dific uldades, e chega a con versar com a professora uma (enquanto escreve para a mãe ) não reiteraria, na verdade , a própria
vez po r semana. D iz que é a escrita que lh e traz mais problemas. Mas relação da mãe com a escrita que a leva a escrever só para seu círc u ~
o que chama princ ipalmente a nossa atenção é a fo rma como a lo familiar mais próximo (seu filho, seu companheiro ), por causa de
senhora O . se compara rapidamen te com Walte r. Diz assim: "Acho um medo menor de julgamento cultural?
qui ele é como eu, num qué sabê da escola", de uma forma que faz A mãe parece comunicar ao filho, em inúmeras situ ações, seu
s,-!po r que as coisas se rep itam como que por fatalidade heredi tá ria. "bloque io" inicial em re lação à escrita: medo de cometer e rros orto ~
"E purque às vezes tem coisa quando falo com sua pro fessora qui tenho gn~fi cos , de escrever mal, e, no fun do, de e ncontra r~se novamen te
a impressão qui sou e u há 20 anos atrás. E vejo eu di novo na 2~ série , na mesma situação de julgamento escolar nega ti vo e sentir ve rgo ~
quando meus pais eram sempre chamados, 8ssitn , pela professor8, e nha cul tural. Lemos no discurso da mãe uma re lação íntima entre
quando ela d izia: 'A M, é isto e aquilo', e é verdade, quando a pro- sua pr6pri a escolaridade (não tão distante assim) e a de seu filho,

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

Retoma os próprios termos da professor" de Walter para falar de sua 1,ldos. As situações que descreve, porém, mostram que as "batalhas"
u
próprifl experiência, "identifica;se nos julgamentos que os profes; n:;o ,ão levadas até o fim: "Tenho que brigar com ele, e às vezes
sores fazem em relaçiio a Walter, faz explic itamente analogia entre hrigo porque, quando ele chega em casa, mostro que confio um pouco
as duas situações, seja em cons ideração a nós ("Ele é como eu"), seja nde . Pergunto si ele tem lição. Ele me diz que não. E então ac re-
em consideração 11 professora ("Minha mãe me disse: 'Eu era meio ,li to, porque é verdade, a professora não dá sempre lição, estas coi-
assim quando era pequena, tinha o mesmo problema"'). sej" final- sa" e ele me diz não. Aí digo: 'Si você num tem lição, tudo bem'.
mente em consideraçiio a seu filho. Demonstra para com o filho (nas E de manhã vou ver a professora e digo: 'Ele tinha lição? Tinha,
discussões com seu companheiro sobre as dificuldades de redigir car- claro'. Aí digo pra ele: 'Walter, você me enganou' . Ou então ele
tas, na ajuda às lições de casa pouco segura, nas perguntas que faz esquece de marcá que tinha lição. Eles têm lição mas ele num anota.
ao filho sobre ortogmfi" das palavras... ) uma fmgilidade em suas com- Ou então ele anota mas esquece os cadernos, os livros que preci~
petências de escrita, um sofrimento ern re l aç~o a qualquer documen; sa", Da mesma fo rma, quando tenta que o fi lho estude um pouco
to escrito mais ou menos formal. Não csm ri a Walter fazendo a nas fé rias de verão, a tarefa não parece fácil, e é ela quem acaba
udedução prática!!, por ana logia n ão~consc i cnte, de que a escrita diri; cedendo. Uma vez comprou um livro, Pass{XYrt paur Ie CP (Passaporte
gida ao Outro (sohretudo quando esse outro oi exterior à família) é para a pré-escola) e ele nem abriu ("Eu acho que num serve pra
causa ou s inal de sofrimento, e que s6 a escrita para si ou para sua naJa, né?"). Também tenta fazer ditados com ele durante as férias,
família seja tolerável? Niio poderíamos compreender assim o "blo- mas isso não dura muito, e diz que fica nervosa com o comporta-
queio com a escrita" de Walter no espaço esco lar, c sua produção mento de Walter: "Sou eu que num agüento, q ue deixo ca ir. Largo
escrita espontânea no espaço familiar? Veremos, mais adiante, que rutlo, deixo as coisas: 'Vai embora, você me deixa nervQS<l'". A scnho~
essa interpretação pode vi r acompanhada de outra . ra O. parece também ter admitido o fato de "não poder" falar de
Do ponto de vista das formas do exercício da autoridade paren- escola com o filho porque ele "não quer" falar nisso: "Ele me diz:
tal, parece realmente que Walter soube encontrar, através de dife- 'Mãe, a escol" já acabô, mi deixa em paz'. É, ele é assim, num posso
rentes experiências familiares, os rneios de contornar ou de enfren; ralá de escola com ele".
tar as obrigações que, a lém disso, na maior parte das vezes, são Quando chega da escola, Walter larga a mochila, em seguida ou
expos tas, mas não arlicadas. vai direto brinca"," sala de jogos (um dos quartos da casa) ou vai para
Q uando os resultados esco lares não são bons, a senhora O. , que a coz inha tomar lanche. Depois de ter lanchado, ele volta a brincar,
é a única que controla a escolaridade do filho (a professora nos conta e só depois vai fazer a Iição, quando diz que tem: "Quando eu chamo,
o que foi dito pela mãe sobre as reações de seu companhe iro, apre- ele num vem. Quando diz que num tem lição e quando eu num tenho
sentado como pai, em relação às dificuldades esco lares de Walter: tempo de ver a professora às 4 e meia da tarde, eu deixo ele brincan-
"0 pai não parece levar muito a sério, pois quando e la lh e conta do". Ainda que a mãe tenha "boa vontade escolar", muitas vezes não
das dificuldades do filho, ele ac ha graça".) , diz que não lhe dá age de maneira fiome em relação a isso. O próprio Walter confinna
nenhuma punição: HQuando ele me mostrou sua classificação, é ve r- que brinca quando volta da escola, e não hesita em nos dizer que às
d"de que ele piorou. Eu não castiguei porque num adianta. Se e le vezes esquece as lições. A maneira como avalia o tempo que passa fazen-
num quê estudá, ele num vai estudá. Eu até que daria um cast igo, do as lições nos revela muito sobre sua relação com a escola: de hábi-
grifaria com ele, rnas num vai adiantá nada". Com relação às lições to, 5 minutos, e 10 minutos, "se a lição for comprida demais". Aliás,
de casa de Walter, sua mãe diz que "batalha" para que ele as faça fa la muito sobre televisão"\ do fato de gostar de "sair para brincar" c
c, mais que isso, para que anote antes os deveres que foram so li ci~ do tempo que passa brincando (com um carrinho teleguiado, um

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONfiGURAÇÕES

vídeo-game, de banco imo bil iário, jogando cartas, de escomle-escon- dadc" rdativa Oll de imposição de obrigações, cujo carnrer tênue e
j
iJC, ongan d"
" I. '
o . ou com os carrinhos, junto com a mãe). dêl" I a criança já experimentou no passado. Po uco controle perlna-
Quando sa i, a miie é obrigada a ir busc,\-Io, pois não volta nunca Ill'me, mas somente limites de aceimbilidade a p"'tirdoo quais o ad ul -
por si mesmo, e e la bate nele se faz "besteiras". Por exemplo, no ver50, In Julga se a criança está realmente exagerando (pa:»ando dos limi-
\X(alter fica brincando fo ra até as 19 homs, 2 1h30 e até mesmo 22h: ,~s, como se diz); e a transgressão desses limites deverá gemr uma
"As vezes, às 10 horas só obrigada a corrê amís dele pra ele voltá rcprc~são verbal ou física . As crianças, aliás, parecem eStê.lr o tempo
pra casa , e às vezes ele se esconde hí embaixo". Qual ifica seus dois IOdo buscando esses "limites", ou seja, o momento preciso em que a
filhos de '\.l emônios" ou "d iabos", que fazem tuJo o que podem para mãe "fica acabada". Mas esse funcionamento , apresenwdo pela mãe
"aca
bar com e Ia: " "lien ho um apartamento com três quartos, c um como lig>lllo ao comportamento de seus filhos, depende em grande
del es é 5<1 pra eles brincarem. Mas eles querem leva r os brinquedos p,lrte Ja mane ira como ela organiza, percebe e interpreta as situações
lá pra baixo . Aí cu digo: 'N"o, vocês ficam apro nta ndo lá fora'. E fa miliares. É ev idente que os comportamentos das crianças baseiam-
eles me Je ixam nngustiaJn, até que cu começo ~l gri t~, e qua ndo eles !'iC inter:ltivamcnre mlS reações (anteci pad~s pelas crianças) da mãe,
não agüentam mais de me vê gritá, aí e les me provocam até cu hatê e que SÓ se explicam na relação com o ad ul to. A mãe coloca o pro-
neles pra que cles se aca lmem". Segundo ela, "só batendo" é que duto de sua interação, de sua interdependência, no comportamento
e les se aca lmarn : "Uma vez eu o surpreendi com Ulll cigarro na boca mtrínseco de seus filhos. Estes têlll o h,lbito UC "üJzer", até que um
junto com um amigo, aí não me segurei, nem o lhei e bati, né!"; "Eles auulto venha lhes comunicar, através de uma admoestação verbal ou
continuam, e ass im que ponho a mão neles começo a bater. Aí e les fí~ica, que nào podem mais continuar.
ficam calmos, juro. P", acalmá eles, sou obrigada a batê. Tem um Esse modo de exercício da autoridade familiar é pouco compatível
sobrinho que di z: 'bme neles logo, assim eles te deixam o dia inte i- com o da escola que pede a interiorização das normas por parte das
ro sossegada'''. Conta também que as crianças n~o têm mais escan; cnanças para que façam "por si mesmas", sem que tenham de ser
te de livros porque a desmontaram, e fazem isso para ver f'l mHe "deses- consta ntemente lembradas da ordem e das coisas a serem fe itas. A
perf'lua": "Eles desmo ntaram, e num ad ianta fazê Outra. Pra me ,onhora O. diz que se a professora não estiver sempre atrás de Wal-
enchê. De qualquer jeito o que meus filhos fazem é p'" me enchê. ter p~ra ver se está escrevendo, ele não faz nada: "Enquanto seus
Eles gostam di me vê desesperada". co legas escrevem uma poesia inteira, ele não passa de duas linhas,
A senhora O. parece não conseguir impor obrigações tiOS filhos, c fica descnhando e assim que vê que a professora tá vendo ele, ele
e Walter faz as cois"s qua ndo "lhe dá na telha", e não porque a mãe começa" escrevê". A lém disso, as bri ncade iras, as dist rações lúdi-
ex ige ou lhe pede. Seria então, um acaso o fato de Walter nos dizer cas, ocupam um luga r importante na vida de Walter, lugar objeti-
q~e gosta Je escrever histórias em casa, afirmando ao mesmo tempo vado na "sa la de jogos" (a professora diz: "Ele gosta de brincar").
nao gOSti1r da expressão escrita, explicando de modo muito revela- Walter surge, dessa forma, como uma criança cujo interesse pela esco,
dor: "Eu faço sozinho''. como que para dizer que faz voluntariamente la é muito limitado: o fato de considerar que tem "liçào demais''.
(sem que lhe peçam), mas que não gosta da pressão da obrigatorieda- de declarar que se esquece de vez em qua ndo de fazê-Ia, de dizer cla-
de! Do ponto de vista do modo de exercício da autoridade familiar, ramente (em lugar de fabular, como muitos J e seus colegas, cons-
podemos observar que, em vez de tentar impor "regras de convivên; cientes da Importânc ia da leitura) que prefere brinGu ou ver tele-
c in" através da compreensão, a senhora O. parece fun cionar através visão em vez de ler, de parecer fazer disti nção entre aquilo que tem
~a ~err~iSS ivida~e, cujas transgressões de limites siio sanc ionadas por vontade de fazer po r si mesmo e aquilo que lhe é imposto, de preen-
gri tos e corrctlvos corporais. Estamos diante de um tipo de "Iiber- cher a vida com brinc:ldeiras, mostra bem um dos problemas cen-

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PERfiS DE CONFIGURAÇÕES
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES
l'III lClÍ Obesta na escola, digo francamente. É verdade, ela é muito difí-
trais de Walter. Ele recusa as obrigações escolares porque não está \. d. com tudo o que tá acontecendo agora. Eu num queria qui meu
habiruado a ter um h orário rão regular quanto o horário escola r. I.Ih" ficasse nesta situação, não. Prifiro que ten h a um b<)m traba-
Tudo isso é bem coerente com o que nos diz sua professora. Ele Ih", né?". Quando fala de seu filho e das esperanças que deposita
n110 encontra suas "mnrcas", suas "referências naturais" (culturais) · "fracaSSQ .. esco~
Ill.. I~, não pára de falar de si mesma, de seu prÓprlo
no espaço escolar, oode lhe pedem que realize coisas precisas em um lar e de sua frustração atual em relação a essa experiência escolar
espaço de tempo determinado e em momentos que e le próprio n ão n~gativa: "Olha, vô te dizê francamente. Tem dias que mi arrepen~
escolheu. Assim sendo, Walter surge como a lguém que não quer tra- do di verdade de num tê te rminado a escola e de num tê me preo-
ba lhar, como uma crinnça que se chate ia, que "despreza a escola" e c upado com os estudos, né? E eu num quero qui meu filho seja cOl~O
que, Use a gente de ixar", como d iz a professora (e nfio é justamente cu, qui ten h a problema pra escrevê uma carta. Quero que ele se VIre
o que a mãe faz e m casa?), Hbr incaria o dia in tei ro Wa lrer é clara~
ll
, sozinho, qui num precise de alguém do lado de le pra preenchê a uecla-
mente descrito Con1() uma criança sem autonomia, IIque não sente ração de imposto, coisas ass im" . . _ .
nenhuma responsabilidade e rn re lação a si mesmo que tem "hor~ A senhora O. até tem práticas que, em uma conftguraçao faml~
ll
,

ror a impor~se uma obrigação, lima disciplina". Se acrescentarmos a liar de conjunto, poderiam contri buir para uma escolaridade feliz:
isso o pequeno grau de racionalização doméstica, v isível tanto na recu~ lê livros, vai à biblioteca uma vez por semana com os filhos, lê ou
sa parenta I em impor-se horários, em classificar os documentos ou conta histórias para que adormeçam, acompanha a escolaridaue de
fotografias (a professora observa que "todo o material de Walter fica Wa lter, fala com a professora, ajuda Walter em suas lições ... Mas os
espalhauo pelo chão"), quanto no bloqueio com a escrita, as dúvi- efeitos dessas práticas ficam como que anulados pela situação que
das e vergonha cultural da mãe, percebemos bem a configuração que "cabamos de descrever.
engendra o "fracasso" escolar de Walter. Damo~nos conta, ao mesmo
tempo, de que aquilo que se "transmite" de uma geração a o utra é • Perfil 9: A moral, a autoridade e a escola.
muito mais que um capital cu ltural. É um conjunto feito de relações Nabifa M .. nascida em Lyon, sem nenhu17UI repelência escolar, obteve
com a escola e a escrita, de angllstias e de vergonhas, de reticências 4,1 na avaliação nacional.
e rejeições, de sistema de defesa diante de julgamentos externos, de
relações com a autoridade e com o tempo ... Quaodo ch egamos ao encontro marcado, foi a senhora M. quem
Não podemos dizer que a mãe não se interesse pe los estudos de nos abriu a porta. Apresentamo~nos e perguntamos se estava
Walter e pelas conseqüências de seu percurso escolar negativo. Pelo lembrada do e ncontro. Ela responde que, ao ver-nos, lembrou. Isto
contrário, é vista pela professora como "bastante presente na esco- é muito característico de uma parcela de nossos inte rlocutores,
la"; vem regularmente saber como Walter está indo, e c hegava que n ão têm, fora das obri gações profissionais, a oportu nid ade de
mesmo a ir buscar suas lições de casa quando e le estava na I" série. pôr em prática a noção de encontros com hora e data fixas .. Seu
Além d isso, está bem consciente da importância da escola para se raciocínio prático no mo mento de marcar o encontro é pnncl~
encontrar um emprego interessante, e não gostari a que o filho palmente do tipo: "Tal dia eu não trabalho nunca, pode passar::,
conhecesse as mesmas dificuldades que ela: "E eu num peço gran - ou : "Todos os dias trabalho até ta l hora, pode passar depOIS .. . .
de coisa, mesmo se é faxina, si são duas ho ras de faxina por dia: 'Eu A relação com o futuro é menos precisa, menos racional. A
faço sem problema'. Mas e les me pedem diploma e estas coisas. Tem senh o ra M. pede-nos para sentar na sa la de jantar e conta que
mesmo estas firmas de trabalho temporário que num quiseram mi acabam de se levantar por causa da Quaresma. Seu marido sai do
inscrevê porque eu num tenho diploma. A vida lá muito difícil pra
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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

quarto, vem nos ver e nos cumprime nta. A entrevista vai ser feita illl:lprrld:J", "muito ap licada", embora emot iva. No segundo ano, qllan~
com o pai, pois sua mulh er (que no telefone disse que preferia d" tirou 4, I como méd ia n a ava li<lção nac io nal (da qual 2 e m lei-
que fosse em um di}) e m que o marido est ivesse) perma necerá ocu~ tura-compreensão, 3 ,9 em produçiio de texto e 3,5 em exercícios
paela nas "suas" t;1 re frl s (domésticas, essencialmente), e in te rvi~ numéricos), é julgada como alguém que tem "possibilidades'\ "tra ~
d só de vez em quando. ha lha razoavelmente bem quando não fica conversando", j'escolar" I

No começo da entrevista, todos os filhos ficaram em tomo da mesa "c1ar(l" e "relativamente organizada" mas que tem problemas com
I

e" relevisão continuou ligada. Julgando rapidamente que havia baru- ;t escrita ("fa lta de sintaxe"), em compreensão e nas operações. Os

lho demais, o pai lhes diz pam s8 írem, mostrando a porra e gr it;:!ndo professores observaram , no entanto, no final do ano, que estava um
secamente para o mais novo: j/Vai! Saia já!". De uma forma geral, a pouco "desatenta" e j'com tendência a dispersar-se quando em con-
entrevista desenvolveu~se sem reticências da parte do senhor M. A tato com os outros". Estamos, portanto, diante de um caso de aluno
discussão não foi perturbada por interferências, que se manifestaram que consegue manter o papel de "aluno" nO plano comporeamen~
só em segundo phmo. Durante uma boa parte da entrevista pudemos t:1. l. mas cujos resultados escolares não correspondem.
escutar a senhor;,) M. cozinhar ou f(lzer a faxi na (afastar os móveis, Em re lação aos atributos familiares, temos, primeiro, um pai
deixar cRir uma vassoura ... ), bem como as vozes das crianças. que possui um diploma profissio nal (embora obtido tardiamente)
O senhor M. cle 43 anos, freqüentou a escola cios 9 aos 14 anos, c ocupa uma função que n::io o coloca diretamente em contato com
na Argélia, e comenta: "N um fiz grande co isa , nér'. Ficou 3 anos sem ,1 produção de auto móveis, méls que, ao contrário, comporta re la -

trabalhar, e em seguida ve io para a França com seu U mano" quando çües com os clientes. Isto confere ao senhor M. um tom empostrl-
tinha 17 rlnos. Fez um estágio de mecânica de automóve is e tirou um do, um vocabulário e uma sintaxe de frase de uma grande correção
diploma profissional. Depois desse estágio, empregou-se na C itroen, na maior parte das vezes, algo próximo aos pequenos empregados
onue está até hoje; traba lha atualmente no serviço de recepção dos (freqüentemente mulheres, tais como recepcionistas), cujo traba-
carros, que consiste em cuidar deles da chegada até O envio para os lho consiste, em paree, em falar com usuários ou clientes, e que obri -
clientes. O pai do senhor M. era agric ultor na Argélia, e analfabeto. ga a um esforço de correção, de expressões de polidez ...
Sua m~e ficava em c~sa e ajudava o marido. Ela também não sabia A lém disso, os pais exprimem uma fé na importância da escola.
ler nem escrever. O senhor M. está totalmente consciente da relação escola-emprego,
A senho ra M., que tem 40 anos, c ursou a esco la por 2 ou 3 anos, sobretudo em rermos dc qualidade do trabalho: "Não é possível ter
na Argélia, e lê e escreve um pouco em francês. Nunca trabalhou. uma profissão sem passar pela escola; quando se é mecânico, calde i-
Seu pai veio para a França depois da guerra da Argélia, e trabalhou reiro, co isas desse tipo , é porque é um cara que não se deu bem na
no setor de recepçrio de mercadorias numa empresa. Freqüentou a escola. Senão ele não va i fazer i o, né? Porque quando a gente é mecâ-
escola e sabia ler e escrever um pouco o francês. Sua mãe, ana lfa~ nico, se suja todo, porque os caras realmente não têm escolha, né!".
hera, era dona-de-casa. "Fui eu que m foi buscá-Ia", diz o senhor M. Porém, vários comportamentus parentais só podem ser compreendi-
referindo-se à sua mulher, que mora na França h á II anos. Eles têm dos sc percebermos que, para eles, a escola é uma coisa séria. O pai
quatro filhos: um menino de 9 anos, que está na 3i! série, lima meni, explica, por exemplo, q ue não ensina jogos a seus fil hos porque isso
na de 8, Nabila , na 2i! série, um outro de 7, na l i! série, e finalmen~ poderia desviá~los da escola: "Senão eles não conseguem, as cri an~
te um menino de 4 anos, que freqüenta o maternal. ças. Não pode deixar eles brincarem demais. Se cles brincam, eles não
Nabila é considerada, desde o maternal (onde entrou precoce- estudam. Eu, pessoalmente, não ensino eles a jogar, não". Controla
mente, aos 3 anos de idadeL como uma criança "agradável", "bem regularmente os bole tins esco lares e "grita" com a ftlha ou "bate" nela

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PERFIS DE CONFIGURAÇÕES
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

quando traz notas baixas ou observações de mau comportamento em de maneira muito reveladora. a sua "casa'" que é o domínio sobre
classe. Às vezes, como castigo, afasta-a do resto da família. "Coloco 11 qllal ele reina e de c uj a política está incumbido, e a "política",

ela num canto sozinha. Ela pega um caderno ou fica lá, faz o que qui- l n inO um universo que não domina e pelo qual o utros são respon-

ser, mas que ela não se mexa ... (risos). E eu afasto ela da família." Inde- 'i lvcis: "Não, a política não estou em condições, não m 'interessa.
pendentemente do que possamos pensar dos efeitos deste tipo de rea- Ikixo aos cuidados dos que. (Risos.) Porque não serve pra nada a
ção, somos obrigados a constatar que, se um pai bate em seus filhos gente perder tempo com coisas que não domina". "Mesmo o que
por causa dos maus resultados ou mau comportamento escolar, é por- e~r;\ acontecendo na Argélia?" "Ah não, não m'interessa. Porque
que, para ele, a escola representa algo que não é desprezível. Os pais ctlmo eu vivo aqui, não m'interessa as coisas que acontecem lá. Os
também controlam Nobila para que vá dormir todos os dias da sema- que vi vem lá que se preocupem com isso. Meu problema é tomar
na, "varia pouco", à mesma hora: lCNove e meia, mais ou menos, ela cunta da minha casa, o resto ... ".
está de itada", fora as vésperas dos dias em que não há aulas, quando Também não lêem revistas, e o senhor M. evoca, rindo, somen~
pode ficar até por volta das 22 horas. te as revistas que folheia na sala de espera de um consu ltório médi-
Infelizmente estes investimentos são contraba lançados por co, bem como rev istas técnicas que possui, mas que não utiliza mais
uma série de obstáculos. Primeiro, o capital cu ltura l dessa família desde que fez sua formação técnica. Também não lêem revistas em
está quase intei ramente concentrado na pessoa do pai, que é quadr inhos, ainda que ele, "antes", "dava uma olhada". A leitura
pouco presente, sobretudo em relação à educação dos filhos. A mãe, de livros também não faz parte de suas atividades cotidianas. A senho-
que, no quadro de uma divisão sexua l do trabalho bastante clás- ra M. evoca imediatamente sua falta ue interesse por essas coisas,
sica, é responsável pela educação dos filhos, s6 tem 2 ou 3 anos e a elas opõe práticas que, a seu ver, são mais sérias, como cuidar
de esco laridade e está na França há apenas 11 anos (contra 26 de JH casa e educar os filhos: "É, num m'interessa. Tenho de cuidar dos
seu marido). Tem dificuldade para ler a correspondência e não tem filhos o dia inteiro. Já é um grande trabalho". Ela não tem livros
cond ições de aj udar os filhos a faze rem as lições de casa. Acon- práticos sobre cozinha, costura, tricô, e o marido diz, para defendê~
tece que o pai chega por volta das 19h30 ou 20h, e não pode real- la, que "ela sabe cozinh ar"; deixando entender que para ele o livro
mente cuidar dessa parte. é para ser utilizado por incompetentes. Possuem um dicionário para
Aliás, de um ponto de vista globa l, os pais de Nabil.a têm práti- toda a família, mas não uma enciclopédia, e o senhor M. d iz que
cas de escrita e de leitura muito restritas. No que concerne à leitu- tinha um livro de preces e o Alcorão, mas não lia nenhum dos dois.
ra, o senh or e a senhora M. não têm grandes interesses. Lêem jor- Ainda que convencido de que o Alcorão diga coisas interessantes
nal muito rarame nte (UNão, isso num m'interessa", diz a senhora sobre o passado ("É interessante, né?, é um livro que conta histórias
M., e o marido esclarece: "Durante um tempo eu comprava sem~ que acontecera m"), parece possuir estes livros enquanto signos
pre, mas agora, não compro mais"). A televisão substitu i o jornal: exteriores de seu credo religioso, e não como livros que sejam obje-
"Tudo o que a gente o lha, as notícias, as coisas, dá na televisão". O to de uma apropriação pela leitura."
senhor M. compra Le Progres todos os domingos, mas por causa da No referente às práticas de escrita, é o senhor M. quem, por
programação de televisão. Ern um primeiro momento disse que "via conta de suas competências, cuida de todos os documentos ("Ele é
um pouco de tudo" no jornal, mas quando tentamos fazer com que o responsável, né?", diz a senhora M.) e se u marido acrescenta:
detalhasse mais sua leitura, descobrimos que não lê nem a seção espor- "Numa casa, é normal, ou a gente faz o u num faz"). Mas ele prefere
tiva ("Não gosto de espane") nem a política, que lhe parece total- ir direto às repartições públicas para explicar "pessoalmente" e "acer~
mente fora de sua realidade e de suas competências. Chega a opor, tar o que tem de ser acertado, logo" I em vez de escrever uma carta

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PERFIS DE CONFIGURAÇÕES
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

pedindo explicações ("Eu não sou complicado, então não complico Vl'r você quando tem alguma co isa, ele é sincero") , os elementos mais
minha vida"), da mesma forma que prefere telefonar para um paren- l'lll()~ das reun iões escolares ("Por causa das besteiras que fazem as
te a trocar uma correspondência escrita, pois isso ev ita esperar H res- \ nill1çaS no recreio. Tem c riança que leva faca na escola"), e pr~o­
posta e permite escutar a voz da pessoa: "Como ex iste o telefone, '- up:lm-se mais com o comportamento da filha na escola (que bnn-
então dou um telefonema, é preferível... Não é a mesma coisa que C:I demais) do que com o desempenho escolar propriamente dito.
escrever num pedaço de papel e esperar o ito dias pra saber {rindo)". I lilr~l o senhor M., se os jovens fazem beste iras "é po r culpa dos pais
A senho ra M. anota somente os números de telefo ne em uma cader- qUl' não tomam con ta uas filhos", empregando neste cas~ l~m a

neta e algumas coisas no calendário (consultas médicas, excursões expressão tipicamente escolar. mas atribuindo- lhe, sem dUVida.
escolares das crianças ... ). mais um sentido moral e disciplinado que pedagógico.
Mas o leque das práticas de escrita utilizauas pára aí, indica ndo O pai cita uma ativid"de escolar paralela (desenho) como uma maté-
um grau bem fraco de racionalização doméstica. N ão mi'lntêm uma ria na qual N abila se sai bem: "Ela desenha bem. Não sei por quê. Ela
cadernem de contas, nem escrevem le mbretes ("Não, não, esse não go,ta. Prefere o desenho". Ele também não sabe que a filha não fica
é meu estilo, qUólndo te nho alguma coisa pra fa ze r, cu penso nisso", na escola nas horas de estudo livre para faze r as Iições~" mas sim para
diz o senhor M.), não fazem lista de compras ("Dou uma o lhada e aprender costura. Quando evocam um exercício de leitura-compr:en -
pronto, fica gravado") , nem lista de coisas para fazer ou para levar :o;i'í(), ()s pais demonsu am também que não entendem esses exercl c10~
em viagem, não anotam nada em agendas, l1HO copiam rece itas cu li - "novos", que lhes pareccm difíceis para uma cri".nça dessa iuade: "E
nár ias. não fazem anotações antes de dar um te lefonema im porran- Illuito difícil. Nós, antes, a geme não tinha isso. E novo, difícil, né?".
tc, quase não anotam nada durante um te lefonema, o u depois dele O senhor M. até acrescenta "que as coisas evoluíram e que a gente
(a não ser que haja uma lista grande de documentos solicitados, pre- não consegue acompanhar. Por enquan to dá, eles são pequenos, mas
c isa o sellho r M; "scllão não adianta nada") , tê m fotos dos filhos, Jepois eles vão nos ultrapassar".
mas nrio o rgani zadas em álbuns ("Fazemos uns pacotinhos"), e não Ao mesmo tempo, é pelo fato de ter uma visão redutora da rea-
escrevem nada atrás das fotos. També m não fazem palavras c ruza- lidade e dos "bons" comportamentos escolares que o senhor M. é
das de nenhum t ipo ("Não gosto", di z o senhor M.). levado a reje itar tudo aquilo que não Ih e parece ser " csco Iar" .
Além uisso, várias informações demonstram que, apesar do Jese- Desta forma consid era que os jogos, em seu conjunto (dos quais
jo de que Nabila "seja boa" na escola, os pais estfio bem alheios ao parece desconhecer as virtudes pedagógicas exploradas pela própria
sistema escolar e à escoloriuade dos filhos. O pai não consegue uizer escola), e as leituras extra-escolares (que desviam dos "deveres")
espontaneamente em que classes estão os filhos (UPreciso pergun- são "besteiras" das quais preserva seus filhos. O senhor M . não com -
tar pra eles (rindo), porque eu ... "), e nem e le nem a mulher conhe- pra , portanto, livros para presentear N ab ila: "E como é que e u vou
cem os professores. Seu interesse pela escola é mui to mais moral do comprar livros ass im, que não têm pé n em cabeça , que conta
que especificamente escolar ou pedagógico: retêm a figura moral histórias! N~o se i se é impo rtante o u não é. Pra mim acho que nHo
(corajosa, franca, direta, trabalhador" e voluntarista) do diretor é importante, porque tem o utras coisas que são mais importantes
(uÉ um cara legal. Tomara que dure, que fique lá. Ele se preocupa que isso. Fazer lição, fazer desenho, em vez de le r hesteiras. Eu não
com muitas co isas. Infe li zmente não tem muitos que são assim . Ele gostO de ler besteiras, e então (rindo) não faço meus ftlhos_le;em
ajuda muito todo mundo. Te m uns que não têm vontade ae estu - beste ira". Ele divide, portanto, a rea lidade em duas: a que e sen a,
dar. Eu. se tivesse a idade das crianças que ficam lá sem faze r nada , que serve para a escola (os deveres de casa), e a que é v ista como
conseguiri a alguma co isa, tenho certeza. Ele não se incomoda, vem um luxo inLitil, uma "besteira".

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PERfiS DE CONFIGURAÇÕES
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

Como volta do trabalho entre 19h30 e 20h, o pai reconhece que pam que ete pudesse to mar alguma atitude: "Tem que d izer antes
,~ eles vêem que ela tá brincando muito. Po r que esperar o dia ...
n ão vê o que os filhos fazem, e as lições de casa não parecem ser
. If é () Jia que eta vem trazer o boletim?". A comunicação po r vias
verificadas (e poderiam ser?) . Confessa que não sabe se N abila está
mentindo quando diz que não tem lição: "Infe lizmente, e les nunca It:gu lamcntares e oficiais, como o boletim, para e le é perda de
tiye ram lição de casa. Agora, cada vez que a gente pergunta pra ela: fl'mpo. Gosto u que um professor do ano anterio r tivesse dito que
UE verdade o u não é?, ela me diz: 'Não tenho lição'. Será que é ver~ 11m de se us filhos se co mportava ma l em aula, e conta que ele lhe
dade ou num é?". Por seu lado , Nabila di z que n ão pede aj uda ao deu "<.Iutorizaçâo" para "corrigi~lo": UEnt~o eu disse: 'O lha eu te do u
pai "porque ele es tá traba lhando", nem aos irmãos, "que ficam brin~ autorização. Quando ele fizer isso, o senho r corrige, e eu faço a mesma
cando lá fora", e conta que às vezes n ão faz a lição. O senhor M. co isa do meu lado. E a partir de agora , se o senho r vê que e le vai
parece pensar que , se os professores não lhe di ze m nada, é porque cnntinu::lr a brincar, não de ixe de me convocar imediatamente' ''.
não há problema desse nível, mas a verdade é que as lições de casa O problema ê que, a lém de tudo, ele não compreende por que lhe
(não obrigatórias) não são sistematicamente controladas. Nabila não dizem que Nabila brinca durante a aula, uma vez que não pode fazer
é forçada a estudar durante as férias, e o senho r M. acha norma l que nada, porque não está presente. Segundo ele, quando os professores
UlTla c;iança, "como todas as crianças", pense antes de tudo em brin~ notam que Nabila está brincando, estão confessando sua falta de fir-
~ar: ICE raro, se a gente não diz pra e les, eles não fazem . É férias, né? meza. Se ele não está I~, n ão pode fazer nada: e se ela brinca, é porque
E férias mesmo , de verdade, nê? (risos)". os professores de ixam: "O ra, se ela brinca os professores estão lá para
Aliás, durante toda a entrevista, o se nhor M . revela sua con - (risus) corrigi, né? (Risos.) Não sou eu que vou ver isso ... se eu não tô
cepção de uma infânci a n aturalmente impu lsionada para a brin~ lá". Interpreta, portamo, o faro de a filha brincar como um excesso de
cadeira (à tarde, "eles passam primeiro pelo pátio, é esse o proble- liberdade dada às crianças: "Se eles brincam demais, como tá marca-
ma das crianças"), o divertimento , a proc ura de "libe rdades". Mas do no boletim, é que a menina encontrou liberdade. É a criança que
nos fala , 30 mesmo tempo, da intervenção necessária e exterio r do é livre". O pai mostra com isso que não concebe o fato de que lima
adulto, c ujo papel consiste em atenuar e lim itar essa natureza. O educação diferente pod eria levar Nabila a brincar menos em aula. E,
modo de exercício da au toridade parental ê, portanto, direto, ime~ reagindo a partir do único modo de auroridade que conhece - o dire-
diato, e se apó ia na manutenção de uma obrigação ex terna. N essa to e imediato - , diz que quando não está presente, não pode fazer nada,
forma de exercício de autoridade, que se reve la na maneira como e o responsÁvel é o professor. O senhor M . preferiria, portanto, que os
fal am aos filhos durante a entrevista" ou como reagem às notas bai- professores "fossem severos com as crianças desde o início. Elas não
xas (nada de punição, advertência o u privação, que teriam influên~ têm que brincar muito na classe. Eu prefiro que eles tentem controlar
da, com o tempo, sobre a interiori zação das obrigações pela criança, rna is as crianças, nê?, porque ... As crianças, se a gente deixa elas brin~
mas "be rros" e surra quando as coisas andam ma IH ), os problemas carem, é normat elas vão brincar, né? Se a gente tentar tomar um pouco
são resolvidos, ass im como os problemas administra tivos, no ato, conta, elas não vão brincar". Os efe itos não previstos dessa fo rn1a de
sem espera. Isto supõe uma presença constante junto às crianças, exercício da autoridade residem no fato de que, uma vez atenuada a
a lgo que os professores não fazem, sendo por isso a lvo da c rítica do coerção, o u seja, assim que as crianças conseguem encontrar a IIlj ber~
pai de Nabila. De fato e le não compreendeu por que os professo- dade", como diz o senhor M., seu comportamento pode ser menos c(m~
res esperaram o boletim para avisar que Nabil a brinca va na aula: tro lado. N ão tendo aprendido a se autodisciplinar, clas podem estar
"Eles puseram: ' Ela brinca dema is , o lha'''. Segundo e le, eles deve- deslocadas diante de uma situação escolar que exige um mínimo de
riam tê~lo prevenido ass im que as co isas não est ivessem indo bem, autonomia. Esses efei tos estno atenuados (ainda que presentes) no caso

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONFIGURAÇÕES

de Nabil", que, pelo fato de passar por uma socialização feminina que h,i 16 anos como operário em eletricidade, sem no entanto ter fe ito
a leva ao exercício de suas responsabilidades familiares (ajuda nas nenhum curso de formação: "Em eletricidade eu me viro. Num tenho
tarefas domésticas, responsabilidade educativa junto ao imlão menor) , qualificação". Vem de uma famíli a de onze irmãos, e seu pai era
aprendeu a ser muito mais dócil e "responsável" que os inllHos~J . Os ,,<,drei ro na Argélia. Sua mulher, de 38 anos, também nunca foi i\ esco-
professores notam que ela é I'trabathadeira", "clara ll , "ordenada", qua~ l". C hegou à França em 1980 e nunca trabalhou. Há um ano faz algu-
lificativos que poderiam ser característicos de uma "boa dona-de-casa". m"s horas de faxina por dia. Vem de uma família de doze irmãos, e
Um capital cu ltural pouco disponível, um fraco grau de racio- ' cu pai tinha um bar na A rgélia. O casal tem três filhos: O mai velho,
nalização doméstica, uma vigilância mais moral que escolar e uma 11m garoto de ,O anos, está na 4" série do '0grau. Em seguida vem
forma direta e exterior de exercíc io da autoridade familiar: eis os UIHi1 menina de 8 anos, Sal ima, que está na Zi! série, e lima menina
trrlços que, combinados entre si, fornecem a configuração familiar de 7 que está na ' " série ("A senhora'" me disse: ' Ele é formid ável''').
a partir da qua l Nabila consegue, dificilmente, apesar de uma adap- Salima entrou no mate rnal aos 2 anos c 8 meses. Fez cursos de
tação relativa 30 comporta mento escolar, apropriar.. se do co nh e~ fono3ud iologia durante dois anos antes de entrar para o primário.
cimentos escolares. Julgada "um pouco menos rápida e brilhante" que o irmão ("ávido
de conhec imentos") pelo professor, que teve os dois como a lunos,
• Pcrfil 10: A "cscrevinhadora" disciplinada. Salima é "discreta", "alegre", "não é barulhenta" e faz as coisas
Salima T., nascidn em Oullins, sem nenhuma repetl'11cia, obcel1e 7.2 na quando é preciso fazer. "Sentimos que ela quer fazer", acrescenta o
avaliação JUlcional. professor. Segundo ele, o pai "control,," os filhos. A única crítica
que faz a Salima é de ser às vezes um pouco distraída, e um pouco
Foi o senhor T quem respondeu às nossas perguntas, pois sua "bagunceira". Seu desempenho foi constante durante todo o ano
mulher estava ausente durante a entrevista. Mas não é por acaso (na última prova tirou 7,5 em francês - da qua l 8 em expressão
que é ele quem responde às perguntas sobre a escolaridade de Sali- oral - e 8,3 em matemática).
ma: como sua mulher é analfabeta, é ele quem acompanha e ajuda O caso de Salima reúne todas as condições objetivas para um pro-
os filhos, na med ida cio possível. A entrevista aconteceu na sala de vável "fracasso" escolar. De fato, o pai, e letricista n ão~qll a lificado, e
jantar, em torno da mesa. Na sala, podemos observar que os móveis a mãe, faxineira em tempo parcial, n<1o foram ~ escola. A mãe é ana l..
são si mples, e na parede há uma gravura com um texto em ()rabe e fabeta, e o pai lê um pouco em francês, mas quase não escreve. E, no
um calendário. O senhor T é conciso em suas respostas e parece à entanto, Salima nunca repetiu de ano, está tendo "sucesso" na ZO
vontade ao longo da entrev ista. Fala mui to rápido, com um pronun- série e manteve um bom desempenho escolar durante todo o ano.
ciado sotaque argelino, e às vezes fica difícil compreender o final Ainda neste caso, será a combinação de características da configu-
das frases. A lém disso, comete freqüentemente erros de vocabulá- ração familiar que permitirá compreender seu "êxito" na escola.
rio ou de gramática: emprega constantemente "ele" em lugar de "ela", Não será, portanto, nas práticas de leitura de seus pais que pode-
os ve rbos permanecem no singu lar, enquanto o sentido da frase remos encontrar uma parte da explicação da boa escolaridade de
demonstra que deveriam ser conjugados no plural... Sa lima. A senhora T não sabe ler, e seu marido lê ocasionalmen-
O senhor T , de 40 anos, é o riginário da Cabília, na Argé lia. te jornal (Le Progres), que consegue compreender porque já ouviu
Nunca freqüentou a escola em seu país, e declara: "Sei ler um pouco, fa lar dos acontecimentos pelo rádio ou pela ,e1evis.'io. O suporre escri-
mas não escrever". Não escreve em árabe, nem em francês , e não lê to é, portanto, contextualizado pe la mídia audiovisua l: "Eu inten -
francês. Após passar por vários empregos, trabalha em uma empresa do, sobretudo o jornal, compreendo melhor qui outra coisa, né?

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONFIGURAÇÕES

Porque são coisas qui já ouvi na tevê, ouço falar no rádio, e então, l \ IInrras. Si minha mulher vem comigo ela pega as coisas que pre-
quando revejo o artigo, por exemplo, eu vô comprendê um pouco l I~a pm casa. Si vemos alguma coisa pras c rianças. Di qualquer
mais". Quando o senhor T. lê o jornal, interessa-se sobretudo pelas lIIaneim pra comida num sei porque tenho que fazê lista, purque
pé:\ginas policiais, esporte e turfe ("0 resto num m'interessa"). Ele prCciS~1Il10 de iogurte, de pão, disso, daquilo, do que precisa, né,
não lê revistas nem histórias em quadrinhos. vê a programação de ,,"m tenho nada prá dizê. Num calculo, num calcu lo o que prici-
televisão no Le Progres, quando o compra, ou então escuta os pro- "'. Pego, depo is, quando num tem mais, vô comprá e acabô"), não
gramas anunciados na televisão. Quando o texto é longo, como no laz listas das co isas que tem a fazer, não utiliza agenda, não anota
caso de um livro, o senhor T. declara ter dificuldades para compreen- "ada no calendário e não escreve cartas para a família ("Dô um
der: "Num posso ler, por exemplo, livros de histórias. Num consi- Iclefonema, é suficiente").
go acabar porque tem muita coisa qui num consigo intendê", Possui, Se tem de enviar uma cana para "explicar" COiSHS e Ué longo", e le
no entanto , um dicionário do qual se serve constantemente, sobre .. rede para alguém. Em vezde telefonar a uma repartição pública qual-
tudo para os jogos de scrabble: "Tenho um primo, e jogo scrabble de quer e anotar o que dizem, prefere ir pessoalmente, pois, segundo ele,
vez em quando com ele. Aí procuro as palavras no dicionário. Pra exprime-se mal ao telefone. A preferência por uma cu ltura oral e ges-
encontrá uma palavra qui tenho lá no coisa, por exemplo. Sem dicio- rual em situação de interação face a face é nítida neste caso: "Num
nário num consigo fazê nada". telefono sempre pras repartições. Prifiro estar lá que falá no telefo-
Entender as práticas domésticas de escrita também não nos abre ne, porque falo mal no telefone. Então prifiro ir no lugar. Telefono
caminho para compreender O que acontece na família. Encon .. por exemplo pra marcá hora_ Si é coisa pouca, tudo bem, mas si tem
tramos, (la contrário, numerosos sinais de uma disposiç~o espon- que explicá coisas, vô lá. prifiro. Assim frenee a frente mi explico melhor.
tânea na organização das atividades domésticas. É o senhor T. quem Si eles num entenderam uma coisa, posso explicá com gestos".
lê a correspondência ("Num tenho problema"), a não ser quan- No que se refere à escolaridade, é preciso observar que o senhor
do é um pouco complicado. Nesse caso, pede ajuda a alguém da T. não consegue dizer em que classes estão seus filhos ("Eles vão dizer
família ("Sempre da família, é claro"). Como não sabe quase daqui a pouco quando chegar"). O que não significa que não se inte-
escrever francês, não é ele quem escreve em casa: "Quase nurn escre- resse. Pelo conmírio, a escola é para ele algo muito importante: "É
vo". Fora a declaração de impostos, que e le preenche, e os docu- muito importante, sobretudo neste momento". Ele acha que, por
mentos escolares que assina, a maior parte dos documentos quem um lado, há cada vez menos necessidade de rrabalhadores braçais
preenche é um primo. Não tem talão de cheques, pois tem medo (UPenso que mais tarde, é a técnica que vai funcioná"L e que. por-
de se enganar na hora de preencher: "Tenho medo purque num tanto, a esco la se torna cada vez mais necessária c, por outro lado,
se i escrever, escrever com letras". É e le quem organiza seus docu# que "é importante aprender". O senhor T. vai ver os professores quan-
mentos, mas não de uma forma muito ordenada ("Num estão tão do é necessário e estes estão muito contentes em seus filhos. No entan-
bem arrumauos, médio. Um pouco entre os dois, né?"), e decla# to, nunca viu, em especiaL o professor de Salima, e é raro compa#
rou não poder realmente "gerir" seu orçamento, porque ganha muito recer às reuniões da escola, pois volta muito cansado do rrabalho:
pouco: "Vivemos com o dinheiro contado quase, porque com meu "Istô muito cansado porque às vezes võ trabalhá muito longe. Chego
salário num vejo qui orçamento posso fazê. Esperamos que che- às 6 horas. e a reunião é as 6 horas, num posso í. Prifiro ficá em casa".
gue o salário e depois o aluguel. Num tem orçamento pra gerir". O senhor T. se revela um pai ativo na ordem do "saber", sobre-
Não escreve lembretes ("Mi lembro bem quando tenho um encon- tudo para os filhos. É sobretudo a ele que se dirigem quando falam
tro, e sem escrevê nada"), listas de compras ("Nunca fiz lista de da escola, pois nem sempre sua mulher compreende o que dizem:

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONfiGURAÇÕES

"Com a mãe talvez não fa lem mu ito da escola. m ..1S comigo s im. lemente com um li vro composto por uma história para cada d ia do
Po rque com sua mãe, e les dizem coisas qui ela n um compreende". .1 110 c compra, às vezes , para Salima "livros de histó rias, Branca de
Apesar de não saber em que classe esté Sa lima, ele conhece seus Ne ve, coisas desse ti po". Considera evidente ("Ah, claro, felizmen-
pontos fortes e fracos. Diz que ela te m proble mas em leitura silen- ,,," ) que seus filhos possuam sua própria biblioteca.
ciosa e que nem sempre é cuidadosa quando escreve: "Em leitura A lé m disso, embora ele próprio não escreva, "obriga" os filhos a
silenc iosa, bom, ela responde qualque r coisa. E sua letra é miserá- b zerem coisas que ele "não faz" (não pôde fazer) em maté ria de prá-
ve l. Digo: ' Escreve devagá e bem, mas ela escreve qualque r coisa , Ilcas de escri ta. Pede-lhes, por exemplo, para ter uma agenda para
num d ~ pra lê, G rande, pequeno , torto, risca de mais, o senhor vê prever e lembrar-se do que devem faze r: "Forço as crianças a escre-
como são::ls coisas'. En tão eu digo: 'Te m que fa zê me lho r', mas num verem coisas importantes no calendário, mas eu não. Se i lá, q u a n ~
tcm jeito". O pai parece te r um papel importan te quanto ao cá lcu- do te m alguma excursão com a escola, coisas desse ti po d igo: 'pre-
lo: "Ensinei bastan te cálculo pra ela, porque eu faço muito cálculo". cisa ano tar antes que .. .' Quando chega O dia, a gente sabe que ele
Apesa r de tudo , ela a acha "boa", se bem que o filho mais velho seja, ",tá la. É bom pra eles, eu ac ho. Assim eles sabem que, sei la, nesse
segundo e le. limais ins truído que ela": "Sa lima tem a cabeça dura. ,-lia tem que ir em tal lugar, o u no utro dia, ele vai fazer Ou tra coisa.
Q uando fa l~ m com ela, explicam, parece que est:í com a cabeça nou- Por isso faço eles marcá. E também no fim do ano cles sabem o que
tro lugar". As vezes ele se declara "descontente" com Salima, pois fizeram, sei lá, coisas assim. Em princípio, e les marC31l'l, É um ca l e n ~
e la traz "notas muito baixas", e e la pró pria d iz que isso "acontece dü rio com umas p,lginas. Como chama isso? Uma age nda". Ele tam-
bastante", mas, na verdade, os seus resul tados estão longe de ser decep- bém os incentiva a te r um diário das férias para contar O que fize#
cionantes. Mas isso indica a sensibilidade tanto do pai como da fil ha ram, e , nesse momento, exprime seu ressentimento em relação a essas
para com notas (rara mente ) mais ba ixas. pníticas que gostaria de poder ter feito, po is poderia conservar lem-
Todas as no ites, o senhor T. diz aos filhos para fazerem as lições, branças precisas de seu passado. Salima é q ue parece ter interioriza-
e control a regularmente suas notas. Ele os ajuda na medida de suas do melhor os desejos patem os: "Eu os obrigo quando saem de férias.
possibilidades, ou seja , mais e m cá l5'u lo do que e m le itura: " Daqui Eu digo pta eles: 'Tem que fazê um diário, o que vocês fizeram de dia,
há pouco não poderei dar fra ncês. E mais do qui e u se i. Ajudo eles por exemplo , o que vocês fizeram durante nas férias, essas coisas'.
um pouco, explico um pouco du qui eu posso. Quando num se i digo: Bom, o mais velho num faz nunca. É raro s i escreve um bilhe te, mas
'Num e nte ndi', e a í e la va i perguntar para o utra pessoa ". U m tio ela (Salima), tõ certo q ue quando ela fi car de férias, ela pode faze r
de Sa lim 3, que está te mpo rarimne nte v ive ndo com eles, a ajuda um d iário e norme. Sou eu que digo pra ela fazê. Eu falo: ' Purque é
quando ela te m dúv idas em leitura. Sa lima e o irmão mais velho bom pra vocês'. É legal, si eu pudesse ter fe ito, ah , q ue pena! Porque
se ajud am toma ndo a lição um do o utro. Em geral o se nhor T. pede c u me arrependo d i não te r lembranças de toda minha juventude,
para ver qua ndo eles term inam as lições, mas quando volta cansado sabe? Porque é uma pena. S i tivesse escri to, taria tudo escri to, né?
do trab,) lho só pergu nta se acaba ram e d iz que confia no que res- Oque a gente escreve fica", Ex iste . portanto, entre o senho r T, e seus
ponde rem" . Q uando Sa lima está de férias, o pa i faz q uestão de lhe fi lhos, laços q ue passam pela escri ta. Seria um acaso o fato de o fi lho
comprar, be m como para se us outros irmãos , um cade rno de ser "ávido de conhecimentos" e a filha, que gosta de escrever histórias
exercíc ios, a partir do que lê, desejar ser "escrevinhadora" ("Tenho vontade de
Embora não passe a image m de um pai que consulte freqü e nte~ ser escrevinhadora quando for grande"; " Invento muitd', ela diz, falru.1 ~
mente o d ic io l"Hírio e m casa, o senhor T. (ou às vezes sua mulhe r) do de histó rias)" ? Os filhos sabem q ue dão praze r ao pai quando se
va i com os filhos à biblioteca municipal; também os presenreou recen- saem bem n ~ escola e escre vem pam e1e m,

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONFIGURAÇÕES

Porém, as exigências do pai em matéria de leitura, de escrita e, de de não ser indisc iplinada, em resumo: "Você lhe dá trabalho para
forma mais ampla, de escolaridade são mais eficientes junto aos filhos fnzcr", di z () professor, Hela começa e pronto, sem discutir".
na medida em que ele se mOStra igualmente preocupado em estabe- Mas talvez a fi gura central do pa i explique também por q ue Sa-
lecer boas relações com eles, em sair, brincar, ainda que, cansado do lllna é julgada, do pon to de vista escolar, um pouco menos "brilhan-
tra balho, nem sempre tenha vontade: "Bom, às vezes num tôcom von- tc" q ue o irmão. O pai descreve uma di visão sexual de papéts bas-
tade, mas faço por eles, porque, bom, tô cansado, chego, tô mo rto, mas t:lnte clássica. É ele q uem fica atrás do filho, incita ndo-o ""v trar.se
eles são jovens, prec isam se mexê, nél". Responde também a desejos qtJando, por exemplo , um pneu de sua ~ici~lcta ~stollro. .u: Eu , por
deles por atividades, inscrevendo-os em clubes esporti vos ("Queria levar CXC ml)lo si sua bic icleta quebrou, eu dIgo: O lha. Eu do as peças e
, ,M
eles na gim\stica, mas é mui to longe. Num tenho tempo de chegar às e u digo: 'Ti v ira, eu ti compre i cola, você mo nta, a peça. as uma
5 e meia e levar eles até lá. Então coloquei eles no fute bol pra que eles vez montei uma peça pra ele". Em contmparttcIa, é sua mulher
se soltem um pouco"), ou então deixando-os participar de excursões quem é a respo nsáve l po r uma parte da educação das me nm a~ ,
organizadas pelo centro social durante as férias. :->obrctuJo e nsinando .. as a cozinhar um pouco: IIS o bretudo as m~ nt ~
De modo geral, o pai parece exercer uma autoridade baseada niio nas, e u digo pra sua mamãe, 'po rque elas s50 meninas ?um so e~
na violência física, mas na interiorização da legitimidade de suas pala- que vô tomar conta, é a mãe, de e nsinar a cozinhar, de f~:~ e las COZI~
vras pelos filhos. Assim sendo, ele não bate quando os filhos trazem nharem fazerem umas coisas, num vai fazê mal pra elas . N a cons·
notas baixas, e "xinga" moderadamente , com a preocupação de não trução s~i al de sua identidade sexual, ,S alima te l~ de ajustar~se a
os culucar contra e le ou piorar a situação: "Num quero dizer coisa uma mãe bastante alhe ia à cultura escri ta e ao 1I111VerSO escolar.
demais. N um sô tão vio lento. G ri to com eles, mas .. . G rito pro bem
deles, mas não demais". Vimos também que o senhor T. verifica as Senrimento de inferioridade, sentimento de superioridade
lições de casa à no ite, mas, quando não o faz, demo nstra confiança
Minha Int lllç:.i o Illc \I.~ 11 Io:cnC:::1ue quc. IIn,llInen-
nos filhos. Isso não significa fa lta de autoridade. Sabemos que ele tc . toJo mi hem . c a l n hu<l Ill:-l. ' . 10 1'1\0 n n c ",nll -
sabe faze r~se respe itar rapidame nte, e que as crianças inte rio rizaram IflCntu de 1>egur.IOÇ:l q\l e e:qx-n mcntci l'nqll:m-
o respe ito ao adul to. Uma passagem da entrevista nos fornece um {(1 I1Iho línico, Rraça.> a ll. 1Il1tlr de meu. . . pa is \',

belo exemplo disso. De fato, quando as crianças chegaram da esco-


la, dutante a entrevista, Salima perguntou se pod ia brinca r lá fora, Em certos casos de "fracasso" escolar, podemos dizer que o con ..
e o pai respondeu-lhe uma só vez, pela negativa: ("Não, e feche a fli to cultural é duplo para a criança. Enquanto ser socializado pelo
porta, Sa lima"). Ela não fez nenhum come ntário , e não ins i stiu~7 . A grupo familiar, ela transporta para o universo escolar ~sque n:as com ~
nosso pedido, o senhor T. comen rou esse aconteci men ro mais tarde portamentais e mentais heterônimos que ~cabam por Im~eJI~ a com~
durante a entrevista, di zendo: "Em princípio, quando digo pra eles preensão e criar uma série de ma l ~e n[e ndldos: esse ~ 0 . pnmelfo con ~
fazerem alguma coisa, eles niio d izem não. Porque são jovens. Q uan- flito. Mas, vivendo novas fo rmas de relações SOCiaiS na esco'~, ,<.1
do lhes digo qualquer coisa , é qualque r coisa. A í eles num podem criança, qualquer que seja seu grau de resistência pata com a socmIt-
me d izer não. D igo: 'Vai fechar a porta, vai buscar tal coisa' , e le num zação escolar, interioriza novOS esquemas culturaiSque leva pa.ra o Ul~l ~
vai me di zer não. Nenhum dos três va i me dizer não. Estão habi tua~ verso familiar e que podem, mais ou menos confonne a cOl:flguraçao
dos". Esse modo de exercício da autoridade familiar está sem dúvida fa miliar, deixá-Ia hesitante em relaçiio a seu uni verso de o ngem: esse
bastante ligado à capac idade, observada pelo professor, de começar é o segundo conflito. O "fracasso" escolar é. entã~, o ~r~uto ~e,lIm
a estudar quando ele lhe diz, de ser discreta, de não fazer barulho, conflito tanto entre a criança e a escola (entre a famtlta e a esco~

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONfiGURAÇÕES

la", como se diz freqüentemente de mane ira lap idar, mas essa forma \ :1:-', da Htransmissão dos sentimentos" é importante , lima vez que sabe·
sumária de colocar o problema desvia o olhar da sutileza do duplo con- 1I111S que as relações sociais, pelas mllltiplas injunções preditivas que
flito vivenciado na intersecção de duas redes de interdependência) engendram, são produtoras de efeitos de crenças individuais bem rea is.
quanto entre a cr iança e os membros de sua fam íl ia.
Po r consegui nte , a maneira como os me mbros da configuração • Perfil 11: Um sentimento de "inferioridade cultural".
familiar vivem e trata m a experiênc ia escolar da criança, reviven~ Alberto C . . nascido em Bron, sem nenhuma repetência escolar, obteve
do, às vezes, através dela, sua própria experiê nc ia esco lar passada, nota 3.3 na at1aliação nacionaL.
feliz ali infeli z, se mOStra como um e lemento cen tra l na compreen.
são de certas situaçõcs escolares. Os adultos da família, às vezes, vive m A entrev ista é feita com os pais de Alberto. Estamos sentados
numa relação humilde com a c ultura escolar e com as instituições "m volta da mesa da sa la de jantar. A peça tem poucos móveis: um
legítimas e podem transmitir à criança seu próprio sent imento de relevisor, uma cômoda ba ixa onde estão colocados numerosos bibe-
indignidade cu ltural ou de incompetênc ia (cf. os Perfis 11 e 12 e lús e uma Virgem no centro, um pequeno apare lh o de som e um
também o Perfil 8). Mas, ao contrário, podem comunicar o senti- pequeno sofá num canto. Depois da entrevista, o senho r e a senho-
mento de orgulho que experimentam d iante dos bons resultados esco- ra C. nos oferecerão vi nho do Porto, de sua terra nata l, com orgu-
lares da criança, ou então olhar com benevolên cia a escolaridade lho, e, quando for mos embora, nos agradecerão.
da criança, apesar da d istância que os separa do mundo escolar (cf. O senhor e a senh ora C,) in ic ialmente, estão muito intimida·
os Perfis 13 e 14 e também os Perfis 16 e 25). dos. Fica m à nossa frente com as rnãos sobre a mesa , quase como
O apoio mo ral, c]fetivo, simbólico se mostra tanto mais importan~ numa situação de exame . Por diversas vezes, demonstram que
te quanto sejam pequenos os investimentos familiares (por exemplo, estão prestando atenção no que estamos uizendo e que querem pare#
o caso dos pais analfaberos). Ele possibilita à criança senti r-se inves- cer "bons pais". Permanece m muito prudentes em suas respostas,
tida de uma im portância exatamente por aqueles de quem ela está que são sempre razoave lme nte c urtas, e, na maior parte das vezes,
em via de separar-se. Com efeito, como sublinhava Maurice Halb- parecem ter por princípio a vo ntade de "responder bem". Ao
wachs a propósito da dor (psíquica ou fíSica), esta se mostra mais supor- mesmo tempo, tudo na atitude deles evoca a humildade, o senti-
táve l quando podemos imaginar "que ela pode ser experimentada e mento de não ser m uito importantes. Parecem sempre espanta~
compreendida por vá rias pessoas (o que não seria possível se perma- dos quando lh es fazemos perguntas sobre le itura o u escrita, mas
necesse uma impressão puramente pessoal e , então, única)", pois nos nunca ousarão cOntesta r a legitimidade das perguntas ou a utili-
parece, então , que "transferimos uma parte de seu peso para os o utros, dade de fa lar das práricas que evocamos.
e que eles nos aj udam a suportá-Ia"" . E, se a criança consegue, no ponto A fa mília C. é portuguesa . O pai, 32 anos, paisagista (ou "jar-
de cruzamento da configuração familiar e da configuração escolar, tor- Jine iro", como diz em um determinado momento), ch egou à França
nar o traba lho escolar o local de construção de seu valor ou de sua há I O anos. Foi à escola primária durante 4 anos, e m Portugal, e
legitimidade própria, então as "desvantagens" de origem podem até gostaria de ter continuado os estudos. Entretanto, seu pai n~o que,
tornar-se uma fonte de desafio suplementar para a criança. ria que ele continuasse, pois "era preciso trabalhar", e foi o que ele
A uherançal! familiar é, pois, também uma questão de sentimen# fez depois dos 11 a nos, no sítio da família. Na verdade, seu pai e
tos (de segurança ou de insegurança, de dúvida de si ou de confiança sua mãe são lavradores, ana lfabetos, e todos, na época, traba lha·
em si, de indignidade ou de orgulho, de modéstia ou de arrogância, de vam com eles n a propriedade em que eles eram meeiros. O senhor
privação ou de domínio ... ), e a influência, na escolaridade das crian- C. viveu com seis irrnãos e irmãs. Destes, o que foi mais lo nge na

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfIS DE CONfIGURAçÕes

escola conclu iu o primário. Foi durante férias em Portugal que o . iL· tudo" ("E depois, se vejo que me inte ressa, continuoi senão,
senhor C conheceu sua futura mulher. VirO a págin a"), mas se m grande con v icção. A mãe diz que não lê
A senhora C, de 28 anos, atualmente está trabalhando como ope- I''''que não gosta de política ("Principalmente po lítica, não me
rária numa fábrica de encerados de caminhão e cortinas de lona. Veio Interessa, então ... Ah, tenho h orror disso"), associando, dessa
de Portugal para a França com a idade de 4 anos. Foi à escola até a 4" h mna, espontaneamente Ujornal" a Upolítica". O senhor C. lê, todas
2
série do 1 grau, e tinha, segundo ela, 15 anos (o que indica ou uma ilS semanas, revistas, que ele chama de "livros", sobre automóve is
escolarid:de particulannente difícil- 5 anos de atraso - ou uma supe- (Auro- Plus), e sua mulher compra o que ela c hama de "roman ces",
restlmaçao da Idade de sa ída da escola primária). Em suas palavras, que são "fotonovelas", mas "só quando me vem na cabeça", pre~
ela oscila entre o arrependimento de ter parado de ir à escola e a ausên- eisa e la. Eles também compram um gu ia de TV (Télé 7 lOUTS), que
cia de arrependimento: "Bem, eu fui até a idade de 15 anos. Até a 4" ele decla ra ler inteiro ("A gente lê tudo, hein, eu leio tudo"), e
série, e depois parei. Não fava indo muito mal. Mas também não tava ela d iz ler apenas a parte da programação.
indo muito bem, não. Ah, me virava. Das vezes, os jovens, a gente se Fo ra disso, ambos não lêem. Ele não tem livros práticos ou téc-
enche da escola e então pára, a gente prefere trabalhar. Foi o que acon- ni cos , e ela tem um livro de rece itas, mas não o consu lta (ela diz
teceu com igo. E depois, mais tarde, a gente se arrepende, Or3. A gente que cozinha "assim" - subentend ido de cabeça ou "por intuição").
t113, se a gente tivesse ido mais adiante". "A senhora se arrepende?" Não lêem romances ou histórias em quadrinhos, nunca foram assi-
IINão, acho que não, não necessariamente. Não, não me arrependo." nantes de uma organização de venda de livros por correspondên-
Na ocasião, ela tinha vontade de trabalhar, e foi o que fez. Faz 12 anos cia, não vão à biblioteca e não têm biblioteca em casa. Se têm um
que está empregada na mesma empresa. Seu pai é paisagista no mesmo Jicionário (mas não enciclopédia), é apenas para Alberto usar. Eles
local que seu marido. Foi ele quem conseguiu que o senhor C fosse não o utilizam nunca, e constatam que Alberto também não O lIti,
contratado. A mãe da senhora C, que também é a "babá" de Alber- liza muito: "Bem, o dicionário a gente comprou principalmente pra
to, nunca trabalhou (exceto fazendo algumas "fax inas"). Não lê nem ele. Porque uma vez ele pediu um. A gente comprou c depois, no
escreve em francês, só em português; na maioria das vezes, fala em sua fim das contas, ele não usa muito ele. Ele diz: 'Mãe, prec iso de um
lí~gua de origem. A senhora C tem um innão e uma irmã que, dos dicionário" f, no fim das contas, ele só usou uma vez e nunca mais".
tres filhos, é a que foi mais longe nos estudos (7" série). Esse dicionário que tem em casa, e que não tem nenhum usuário
O "fracasso" esco la r de Alberto (que é a ünica criança depois pelo lado dos pais, é o exemplo típico da situação de ruptura que
da morte, no início do ano esco lar, de sua irmã) pode ser explica- Alberto pode estar vivendo. Os livros que, no universo escolar, estão
do, Como em todos os casos observados, não por uma causa deci~ investidos de um grande valor (e Alberto não se engana quando esco-
siva, única, mas pela combinação si ngular de características fami~ lhe, no decorrer de sua entrevista, antes a leitura do que a televi-
liares bastante gerais. Inicialmente, trata,se de pais que tiveram são) permanecem em estado de "letra morta" no âmbito do universo
~rna .experiência escolar extremamente curta (caso do pai) ou familia r. Os contextos de leitura que se oferecem a ele no interior
IIlfeJ.z (caso da mãe). Por causa de sua socia li zação escolar, não de sua família são raros e pouco variados. Se íl mãe se espanta s in~
desenvolvenllTI um grande interesse pela leitura e, entre o utras, ceramente com o fato de que Alberto apenas utilizou o dicionário
pela leitura de livros, totalmente ausente de suas práticas. O pai uma vez, já que o comprara porque ele tinha pedido, ela não ima-
lê jorna l "não todo o tempo" e só o compra muito raramente. Afir, gina que é a re lação entre a criança e o dicionário que não é susci,
ma que foi nos jornais cl i,lrios que aprendeu a le r o francês sozi- tada (como nas famílias em que os pais dão o exemplo natural cle
nho, mas que "é mui to difícil"; declara ler nos jornais "um pouco uma utilização cotidiana do dicionário) ou organizada pelos adul-

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PERFIS DE CONFIGURAÇÕES
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

tos. O senhor e a senhora C. compram-lhe livros "de tempos em Ii 111((0 da entrevista, numa espécie de humildade e de grande timi-
tempos", mas dão o exemplo de Picsotl (revista de história em qua- dez. O discurso do pai, fora da entrevista, sobre os "pobres" que têm
drinhos), de Martine (álbum) ou de ,\lbuns com figuras para colar de "se calar" e os tl ricas" que decidem por eles realmente indica a
(uas tartarugas N inja), mas não pequenos romances (ele próprio diz maneira como e le se percebe.
não pegar livros sem imagens). Os pais de Alberto vivenciam, além disso, uma série de defasa-
As práticas familiares de escrita deles também não são muito fre- gens em relação à escola que indicam a que ponto estão excluídos
qiientes. Como sempre acontece nos meios populares, é a senhora do universo escolar, apesar da vontade de ajudar o filho da melhor
C. quem se encarrega de escrever as cartas administrativas, de preen~ maneira possível. É ainua a senhora C. que mais responde às pe r-
cher o formulário de impostos ou cheques da família, de escrever os guntas referentes à sua escolaridade . Com efeito, no âmbito de uma
bilhetes pa", a escola ou de assinar os papéis da escola. É ela ainda divisão sexual, bastante clássica, dos papéis familinres, é ela quem
que, às vezes, deixa bilhetinhos para O ma riu O ("Às vezes, sim, deixo cuida da sua educação. É ela quem vai às reuniões (ele não conhe-
um bilhete . Por exemplo, quando preciso que compre alguma coisa, ce o professor) e diz que Alberto tem muita dificuldade em orto-
porque vou chegar mais tarde: 'Será que você pode fazer isso pra grafia, matemática e leitura, mas julga que "está indo melho r" na
mim?'''), que anota coisas num calendário ou que, às vezes, faz as ano~ escola desde que está indo à fonotempia ("No final das contas, é
tações prévias para um telefonema quando há várias coisas a pedir. graças a ela que ele aprendeu a ler, porque não sabia absolutamen-
Seu marido se encarrega apenas das cartas em português, quando pre- te ler. Ele ainda precisa progredir muito, mas se sai razoavelmen-
cisa escrever para uma pessoa de sua família em Portugal (a senho- te"), enquanto os resultados e os j~lgamcntos escolares permane-
ra C. não sabe escrever em português). cem constantemente negativos ("E um desastre", diz o professor).
Mas não fazem exammente suas contas (a senhora C. conhece Os pais foram convocados uma vez pelo professor, e a mãe imedia-
um colega de trabalho que as tem num caderno), não redigem lis- tamente acred ito u que ele tinha feito uma "bobagem" ("Minha
tas de coisas a serem feitas, a serem levadas numa viagem (!lÀ medi# reação foi: 'Que bobagem você andou fazendo, que besteira você
da que a gente arruma a mala, pega as coisas, põe dentro") ou listas ap rontou?' E ele me disse: 'Nada, não fiz nada'. E eu lhe disse: 'Mas
de compras ("Não, não. Sei mais ali menos, abro o arrnário, olho e se o professor me convocou, é porque você fez algu ma coisa. Você
sei mais ou menos o que está faltanuo. É raro quando faço uma lista, deve saber' . Ele disse: 'Não, não, não fiz nada'''), quando se trata~
ora."). Com seu modo de responder, o sen hor e a senhora C. nunca va dos resultados escolares de Alberto.
alisam, entretanto, dizer coisas que poderiam questionar a legitimi~ É ela quem "controla", todas as noites, sua mochila para saber
dade das perguntas: as práticas, mesmo as mais distanciadas do uni- se ele tem tarefas, quem o manda fazê-Ias se ele ainda não as fez antes
verso cultural de les, nunca são rejeitadas como inúteis ou incom, ue ela ter ido buscá-lo, à tarde, na casa de sua própria mãe, e é enfim
preensíveis. As respostas sempre revelam a mesma humildade, que ela quern verifica suas notas. Ela o manda refazer as tarefas (USe não
consiste em dizer que "talvez é ütil", mas que nunca "pensaram" e está bem feito, como aconteceu comigo várias vezes, risco e depois
que mostram que eles não se sentem, diante de nós, em posição ue mando ele refazer"), se o que fez estiver errado, e, às vezes, lhe faz
julgar sobre a utilidade de tais práticas. Da mesma forma, se não fazem ditados. A maneira como a senhora C. julga a ortografia correta das
palavras cruzadas diretas, e não jogam sCTabble, é porque ach,lm isso palavras mostra, nesse aspecto, também lima defasagem em relação
muito difícil para e les ("Tentei lima vez, não cunsegui, larguei'\ diz às exigências escolares: "Eu falo pra ele: 'Bem, você pega um cader-
a senhora C.). Parecem, assim, diante de nós, experimentar como nO que, depois, vou te fazer um uit<1do, pm ver o que você sabe'. Ele
que um sentimento de inferioridade cultural que transparece ao esquece uma letra e muita.s vezes põe uma a mais. Mas ele sabe. Não

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONf iGURAÇÕES

sei como ele faz, mesmo das vezes que e le não aprende, ele sabe". ,'m casa , a senhora C. é obrigada a repetir-lhe várias vezes, até
A senhora C. ju lga corretamente ortografada uma palavra mesmo erguendo a voz, para que ele comece a estudar ("Ele é teimoso, sim.
que esteja com "aproximadamente uma letra" errada, ao passo que l~ preciso pelo menos que eu lhe diga três vezes: 'Alberto, faz as tarefas'.
a escola considerará que um erro por palavra é sinal de um péssimo E logo depois, bem, ass im que e rgo um pouco a voz, que comece a
domínio da ortografia. ficar aborrecida, então, ele começa logo em segu ida"), A avó mater-
Os pais também não compreendem as novas regras pedagógicas na, que cuida dele desde seu nascimento, durante os períodos de férias
que abalam um pouco certezas e transtornam as poucas referências, c todas as quartas-feiras (ela o leva à fonoterapia e ao catecismo, a
ligadas à sua própria experiência esco lar, que tinham em relação ao CH,lJ quinze dias), é analfabeta em francês, só fala com A lberto em
sistema escolar. Criticam a escola por não dar muita tarefa, como português e não pode, pois, aj udá-lo a fazer as tarefas. Ela também
na época deles ("A gente acha em relação à nossa época - é, a gente nõo pnrece quere r obrigar o neto a fazê-las. Da mesma forma , nas
compara - , a gente acha que ... eles não tê m muita tarefa como a férias, os pais de A lberto compram-lhe um caderno de mrefas, umas,
gente, antes"), e acham que há pouca severidade (mesmo que pen- se cu não obrigo e le a fazer, ele não faz", diz a senhora C. Ele quer
sem que, em sua época, fosse muita (UE a gente, na nossa época, o brincar, e diz à mãe que as férias não são feitas para estudar: IIEle só
que a gente levou um chute. E isso não é método", diz O senhor C.) quer brincar. Ele diz: 'É as férias, não é pra estudar'''.
e pouca aprendizagem "de cor". Criticam também o método de Q uando traz más notas da escola, seus pais "ficam bravos" com
apre ndizagem da leitura mais global (eles não empregam essa pala- e le, mas sem se re m "maus". Eles lhe pedem que melhore, mas
vra), que não lhes parece bom, e ao qual parecem atribuir a respon - nunca o punem: "A gente não diz: 'Bem, vais ficar de castigo, sem
sabilidade da dificu ldade de leitura do filho. O senhor C. diz: "Eu te lev isão, vamos te deixar de castigo por isso''' . Da mesma forma,
não aprend i assim. Aprendi começando a aprox imar as letras. O Alberto vê muito televisão (A senhora C.: "Assim que chega a casa,
senhor vê, ele não. Ele, é tudo de cor, ora . Não gosto disso. Eu come- se abole ta em seguida, Antes de colocar a mala (riso), liga a tele-
cei aprendendo palavrinhas, mas letra por lerra, e depois a gente visão") e pode deitar quase que a hora que quiser. O pai diz que
aprend ia bem e depressa, enquanto agora .. . Não ap rendem mais seu filho "nunca tem pressa" de ir d e i[a r~se, e freqüentemente
nada"; e a senhora C.: "E eles não aprendem o alfabeto como a gente acontece de ficar com eles até as 22 h . As palavras um tanto quan-
na nossa época . E a gente pensa que se ele tivesse aprendido o alfa- to vagas sobre as horas de deitar-se parecem indicar que elas depe n-
beta como a gente, teriam ° métodoquc a gente tinha antes, penso dem da atitude mais ou menos coercitiva dos pais conforme as no i-
que ele teria conseguido ler. Não precisaria da fonoaudióloga". tes: "Acontece dele se de itar ta rde. Princ ipalmente se a gente não
Demonstram, assim, uma forma de desespero diante das mudanças diz nada". O próprio Alberto diz, ainda a respe ito da te levisão, coi-
pedagógicas que não dominam. sas aparentemente contraditórias que podem ser ap roximadas do
Mas as regras de vida ou as exigências escolares impostas a A lber- "falso rigor" dos pais em relação à hora de dormir. Com efeito, às
to são também muito raramente aplicadas de forma muito rigorosa. vezes diz que não "pode ver te lev isão à noi te'\ e "quando quero ,
A anál ise das palavras dos pais faz surgir elementos que entram em vejo". Isso só se mosaa contraditório se não fizermos a distinção
contrad ição com a vontade real declarada por outro lado. Por exem- entre uter o dire ito formal" e IIsaber que se pode ficar se se quiser'\
plo, Alberto não fica no horário de estudo livre, mas vai à casa de isto é, entre o discurso empregado pelos pais e as práticas efe tivas.
sua "vovó". Sua mãe diz que ele tem" de fazer suas tarefas até e la ir
U De modo geral, os pais, portanto, não reprimem Alberto rígida e
buscá- lo depois que sai do traba lho (por volta das 18h ), mas, freqüen- sistematicamente, e, quando a senhora C. lembra a conversa que
temente, quando ela chega, encontra-o brincando. Assim que chega teve com a professora sobre o caráter "fechado" de Albetto, des-

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PERfiS DE CONFIGURAÇÕES
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

venda , em grande parte, o que transparece por trás de um conjun - 1'; 1i~ terminam transfe rindo suas esperanças para a Clvontade" de
to de resposras: "Ela queria saber por q ue ele se t inha fechado e se
A lberto e pa ra a sua capacidade pessoa l de "mudar" , e nqua nto
(: 'ire , preso a uma inte rdepe ndência familiar, não pode, se m dúvi~
h av ia alguma coisa que incomodava ele n a escola, seus colegas, ou
e m casa. Eu d isse a ela : 'Não, em casa , de fato , a gente deixa ele fa ZeT .1:\, muda r sem que mude a constelação d e pessoas que constituem
° que quer'. Então, não sei por que ele era assim, fechado ". As regras 'iC U universo:

de vida ex istem, mas Alberto tem o h á bito de transgredi-Ias bas-


Sra . C.: O que a gente quer para ele é que ilprenda. Q ue aprenda bem
tante freqüentemente, na medida el"!') que nenhuma punição repro~
e q1..IC v:i mais longe do q u e ... do q u e a gente foi. A gente quer que vá
vará essas transgressões.
mais longe. se não é ... se for possível. Mas isso depende dele, se tiver
Em uma tal configuração, sem exe mplos de contextos de apropria- vontade, que ele tenha diploma, que V Ll. mais longe . ora. Porque agora,
ção da escrita nem sistema muito rígido de coações, na interação socia, agora, n~o é, se a geme não tem diploma. não tCITI nada, não é ...
lizadora com uma avó analfabeta q ue se dirige a ele em português e E: E o que é que vocês chamam "será que há um mínimo", vocês
com pais de passado escola r curto e infeliz e que ta mbém fa lam com querem Jizc r: "É preciso que ele atinja um mínimo , para ... "?
ra. C.: Bem, a geme gostaria muito que ele tcrmmasse o 3 col e~
Sl
ele. em gemi, em português, Al berto não pode criar outra vida senão
essa que sculugar nas relações de interdependência familiares lhe esbo- gial, mas não dá pra pedir mui to, não é ...
ça. Repetindo, sem dúvida , as angústias familiares diante da escola E: É, pe lo jeito de vocês, parece 4ue não têm mu ita ce rreza ...
(sua mãe conta que tinha "dificuldades e m mate mática, na escola", Sr. C.: É que ele j~l. t~í pe nsando em trabalhar co migo.
e a professora de Alberto nota que ele tem "um sério problema com E: Já?
Sr. c., rindo: Sim, mas ... ele tava me falando disso ... Me fa la disso
n úmeros") e das práticas de escrita, Al berto é descrito pela professo-
ra como uma c riança "ansiosa'\ "completamente bloqueada", "se n) ~ sempre.
pre na defensiva", Hmuito inquieto". Um clementosuplementarpode
Sra. c.: Ah, é.
S r. C. , dirigindo,se ao fi lho: "E en tão, você que ir com o pai? Veja
con tri buir para justificar essa inquie tação e tiques nervosos de Alber-
bem, hcia, lá não é ... não é a esco la".
to, ou seja, a morte de sua irmã, no in ício do ano leti vo. Mas tal ti po S ra. C.: É mais Juro que a escola.
de acontecimento, que pode permitir melhor esboçar o perfil de um E: Vocês acham <.tue se ri a bo m que elc termin asse o 2 Sl grau, mas ,
"fracasso" e que, freqüentemente, é citado n os discursos dos pedago- no mo men to , vocês não acreditam tTIui ro nisso , se é lluC estou
gos, nada diz em si mesmo e por si mesmo. N ossas análises provam entend endo bem ?
que nenhum elemento pode ganhar o stattiS de causa, e que cada ele- Sra . C.: Sim, não, mas não acredi to mui to. Principalmente com,
mento só tem sentido e efeito em configurações familiares singulares. bem ... , como e le tásc comportando na escola c com as no tas que tem.
Tanto para a mãe como para o pai, a escolt1 , no entanto, é uma Sr. c.: Ele vai mudar. Não é, Alberto?
coisa importa nte. Esperam que Alberto possa ir mais lon ge do q ue Sm. C .: A gem e espera, pra e le, que e le mude.
e les , e estão conscientes da necessidade do diplo ma na ú tuação
do mercado de trabalho. Visam ao "di plo ma de 2· grau" para o filho, • Perfil 12: Uma reencarnação social.
mas timidame nte, també m sem muito acredi tar n isso. Em um ROM' F., nascido em Lyon, 11m ano de a,raso (repe":'ncia do /JTé-escola) ,
di álogo que conclui a e ntrev ista, e ncontramos, de mane ira co n ~ obteve 4 na ,,,,alioção nacional.
de nsada, ~ mistura de rea lismo e de esperança, ue resignação e
de vo n tade , que ca racteri za o discurso do senho r e da senho ra C. No momento da marcação do encontro por te lefone, o pai de
Se esse trecho n os pa rece partic ula rme nte pungente, é pu rque os Robe rt nos pergunta se estamos ve nde ndo algo. Q uando lhe expli-

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

camos que se trata de seu filho, de sua vida na escola e na família, s~glliJa, trabalhou com costura até a idade de 20 anos, caSOu-se e
nos diz então: "Se é pelo meu filho, me interessa". Ilullca mais voltou a trabalhar (à exceção de alguns trabalhos como
No dia do encontro, estamos um pouco adiantados, e co me~ L· mpregaJa doméstica), até hoje. No momento da entrev ista, acaba
çamos a entrevista em torno da mesa da sala de jantar, com a mãe} de retoma r um trabalho de babá e de faxineira que a ocupa da
que fala muito baixo e parece estar intimidada. Ela chama Robert, manhã até <:lS 16h. Diz que na escola e ra IIzero", "nu la", p rincipa l ~
que est~ em seu q uarto. Ele chega, nos d" bom-dia, permanece mente em cálculo: "Em cálculo, tinha zeros de enfiada". O pai da
um insta nte atrás da mãe e, depois, se n n:l~se à me a, e n~o se mexe~ !'tcnhom F. mo rreu quase no nasci rnento ue la. Era pintor numa
r~ mais até o final de nossa conversa. Inte rvirá em a lguns momen- cmpresa e sabia le r e escreve r. Sua mãe era cmprcg<:lua doméstica,
tos, principalmente sobre as questões de esco laridade e de a tivi - e foi ~ escola até a idade de 12 anos: "Eles a puseram pra trabalhar
dades extrac urri c ula res, porque seu pai demonstra dificu ldade mu ito nova". Robert a encontra regularmente.
para falar destas de mane ira detalhada. Quando o pai chega, des- Robert é O caçula de uma família de três filhos. Tem duas irmãs
cu lpa -se por estar atrasado (apenas dez minutos) . Começamos a mais velhas. A ma is velha, com 21 anos, que repetiu a pré~esco~
e ntrev ista com a mãe , continuamos com os uois pais e, depois, la e saiu da escola no "I Q colegial" , vai se casar, e está preparan~
ape nas com o pai (a mãe tem uma hora ma rcada no fisioterapeu- do sua licença de monitora de auto-escola. A segunda, de 19 anos,
ta), e e nfim a termina remos com o casal. No deco rrer da entre- repetiu a )í! série , está como aluna interna num colégio agríco~
vista, o pai nos oferecerá algo para heber. Ele e a mulher nos agra- la, o nde estuda para obter um diploma de técnica agrícola. Teria
decerão por nossa visita ao sai rmos. ,do à escola até a 8" série, mas a mãe se confunde um pouco nos
O pai de Robert, de 46 anos, nasceu na Itália , e conserva um forte anos: nno sabe mais realmente se ela foi até o fim da 8" sé rie ou se
somque italiano, assim como os estigmas de uma apropriação tardia cstlí no 3" ano do Curso T écn ico Agrícola: "Espere, 6", 7" (silêncio
do francês (por exemplo, enuncia "pourquoi " para dizer "parce que", de 3 segundos; respira). Não se i dizer exatamente". Ames de Robert,
lIiP' para "elle"".)*. Na Itália, foi à escola, mas não tirou nenhum a en hora F. esclarece que teve o utra filha, mas q ue a perdeu mui -
diploma. Mui to jovem, foi colocado paro traba lhat como pintor de to nova.
pareues. Quando ve io para a França, com 17 anos, trabalhou como A amllise do caso de Robert é interesS>ll1te pelos efeitos esco la-
openhio montador, e em seguida, depois do serviço mi litar, como fre- res das re lações socioafet ivas pa is/fil hos que deixa transparecer.
sador em uma empresa de fabricação de tubos de aço para cade iras. Robert vive num meio que realmente podemos qua lificar de "modes-
Desde os 22 anos está na mesma empresa, o nde galgou todas as esca- to" em todos os sentidos do termo. Seus pais uiío provas, pelas pala-
las c, atualmente, é OP2"". Seu pai era sapateiro na Itália, sabia ler vra~ como também pela voz e no modo de comportar-se, de humil-
e escrever, e tinha até uma "bela ca ligrafia". Sua mãe transportava dade, de modéstia e de uma espécie de retraimento. O sellhor F. não
faz uma aposta em corridas de cava Ios} T . h"
caz uma " apostaz ln a . A
água de uma aldeia para Outra e lavava roupas para algumas pessoas.
A mãe de Robert, de 42 anos, abandonou a escola com 12, "por senhora F. não tirou um Certificado de Aprendizagem Profissional,
causa da guerra da Argélia". Ela, na verdade, é francesa da A rgé lia. e la conseguiu um "d iplominha de corte e costura". Tem uma atitu~
Entre os 10 e 13 anos, tomou conta de crianças, depois obteve um de muito humilde que até a faz entender, às vezes, nossas pergun-
Certificado de Ap rend izagem Profissional de Corte e Costu ra. Em tas em outro sentido. Assim, quando lhe dizemos que a interrup-
ção de sua escolaridade não foi "porque ela quis", ela responde:
• PlJurquor. em (r,m,'::., é l'lllprt'Wldo p01r<1 lIlIIa pc rglllll;J (por 4l1l'), l.' I"'TO! qUi' . p;u~. um.' "Não, não foi por minha culpa, não". Sente~se, na maneira como
r~!) poM. 1 (J'!t ) r~lllt'). 11 c dlo! :.;'io, re~pcl.tlvam~ntc. de c ch (N .T.) nos responJem, que temem dizer coisas que não esteja m corre tas .

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SUCESSO ESCOLAR NOS MErOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

A miie, principalmente, nos olha ao responder, esperando como que em particular, apresenta uma série de dificuldades em relaç.'Ío à lei-
um sinal de confirmação de que o que está dizendo é legítimo. lura, à escrita e a todas as situações oficiais um tanto quanto formais
Atitude modesta, mas também práticas modestas de leitura. O li"' quaisparece perder suas capacidades. Tem grandes problemas de
senhor e a senhora 1', ambos, lêem jornal (Le Progres), duas vezes nílculo, mesmo simples (de onde advém a divis:10 do rrab.1lho de preen-
por semana (aos sábados e domingos). Ela lê a rubrica Necrologia chimento do formulário de impostos segundo a qual ele se encarre-
("Porque digo pra mim que pode ter pessoas que conheço") e um pouco ga Jos "números" e e la das "letras", insistindo no incômoJo diário do
das ocorrências policiais, mas não sobre política: "Ah, não, num quero qual se ressente) ("Aliás, ainda tenho alguns problemas em calcular.
saber. É rudo blá-blá-blá, então. E ainda é desmoralizante". Ele o lha, l) cá lculo, aliás. me dava medo, e ainda me dá SC I11pre meJo'''-'I)j tem
em prime iro lugar, o resultado das corridas de cava los, porque tenta grandes dificuldades para lembrar-se de coisas que aconteceram no
regu larmente a san e, um pouquinho de política, embora esteja u can, próprio dia, sai dos ó rgãos adm inistrativos sem ter compreendido ou
sado" desde a subida de Mitterand ao poder ("Mas enfim, tou come- rctido as explicações que lhe são fornecidas ("Por exemplo, minha
çando (l me cansar. Por causa que são tudo igual. mas se quero vê mu lher, se tem de ir a algum lugar com, por exemp lo, CClrr(1nllTI a luz,
um homem político, escutá seu discurso até o fim, não. Dois ou três ou pior aind(1, se enganaram, bem, minha mulher, ela é incapaz Je ir
minuto, e ... chega. Eles tão sempre certo. Quando tem os debate dos lá e explicar por que tem ... Então, eu é que preciso ir. Por causa que
home político, bem, os dois qué tê razão"), e o horóscopo, sem acre- ela me diz: 'Se vou eu, entro e, quando saio, não sei nao::1'. É isso que
ditar muito, de fato . Quase nunca lêem revisms. Em matéria de livros, ela me diz. Ela manda sempre eu por causa que não sabe explicá"),
enquanto o senhor F. n~o lê nenhum ("Não, não só apaixonado"). tem dificuldades para compreender as cartas administrativas e deixa
a senhora E "gosta muito em relação a docllmentaç~o, a histó ria", que o marido cuide delas ("Eu pego a carta, dou uma olhada, enquan-
e lê também um pouco a Bíblia, mas nunca romances. Ela esclare- to ele pega a carta e fica em cima dela uma hora").
ce, aliás, que começa os livros, mas nunca OS termina: "É, eu come, Ambos têm problemas de compreensão de certas cartas adminis-
ço, mas não acabo. Nunca acabei um livro, nunca". Durante 2 ou 3 trativas, e apelam par.l o irmão da senhora F. quando as coisas estão
anos, a senhora F. foi associada ao France Loisirs, mas desligoll,se há fora do alcance deles. Em relação às cartas aos lÍrgãos administrativos,
um ano por razões financeiras. Têm um dicionário, mas respondem é antes ele que diz o que tem de ser colocado, e ela é que redige, pois
"Sim , o dicionário Le Robert, temos um", indicando com isso que, ele escreve muito pouco em francês: "É minha mulher, por causa que
para eles, a utilização não é mu ito freqüente (o senhor F. não o uti, ela escreve, portanto sabe escrever. Eu não sei bem. A gente faz ela os
li za nunca, e sua mulher o olha, às vezes, para conhece r a definição dois. Quando a gente consegue se virá, a gente faz. Eu dito e ela escre-
de palavras "esquisitas"que ouve). Espontanean"l.ente, no momento ve". Se, de fato, eles não conseguem, recorrem ao irmãu da senhora F.
de falar dos livros, os pais de Robert evocam o irmão da senhora 1', Não têm um caderno de contas, mas a senhora 1', que se encarrega de
que trabalha como telefonista numa empresa, leitor voraz que lê quase fazer as contas de tempos em tempos, diz que seria melhor fazê~lo, "assim,
um livro por dia e que os oferece a Robert. Robert gosta principal- a gente sabia pra onde vai o dinheiro". Não têm agenda, praticamen-
mente de histórias em quad rinhos, pois a imagem, diz ele, "me dá te nunca escrevem cartas à família ou a amigos, mas telefonam, e não
uma idéia do que vai acontecer depois". Mas compara-se, bem expli- fazem listas das coisas a serem feitas ou listas das coisas a serem leva-
citamente, com sua mãe quando lembra os livros de escola (livros das em viagem: "Bem, se a gente se põe a fazê tudo isso! (riso)".
de história e de ciência) de que gosta ("como eu"). É ela, enfim, quem, no âmbito de uma divisão sexual clássica do
O senhor e a senhora E conservam ainda as marcas de percursos trabalho de escrira doméstica, mantém atualizada a caderneta de ende-
escolores relativamente curtos e, sobretudo, infelizes. A senhora 1', reços e de números de telefones, escreve lembretes, deixa bilhetes

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PERFIS DE CONFIGURAÇÕES
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES
drlo qua li ficado. A escola é importante para e les, pois Ué rea lme n ~
ao marido ou aos filhos ("Quando ela não tá quando vaito pra casa, te preciso tomar o caminho certo" para "conseguir um emprego
pIor, quando tenho que fazê alguma coisa, então ele me escreve. Até depois", mesmo q ue o discurso deles esteja matizado de uma forma
pro Robert. "), redige listas de compras, anota algumas coisas no ca- \ Ic rea lismo fatalista que mostra que, de certa fo rma, não acred itam
lendário da família, guarda fichas de rece itas e as classifica, cuida dos mui to nisso: "Po r que não?, mas ... Se isso melho ra, por que não? Eu
álbuns de fotos e anota coisas atrás das fotos (Robert diz q ue "atrás ",;0 sou contra. Pelo contrário, se ele pode escolher um belo empre-
das fotos, ela escreve coisas, os no mes da pessoa que está na foto"). go e pode ganhar seu pão sem ter que se esforçar muito, por que não?".
O senhor F. I po r sua vez, se mostra saudoso de uma I t~ li a rural menos A preocupação deles em relação à escolaridade de Robert é tam-
burocratizada do que a França urba na contempo rânea, e onde havia hém inegável (no final da entrevista, o pai procura saber o que h á
menos papé is e incômodos administrativos: "A Itá lia não rem pape; "J e bom para a escola" no que nos disse). A amllise dessa configu-
lada . Enfim, acho que antes era melhor. A gente esquenta muito a ração familiar, mais uma vez, questiona a idéia de uma o rnissão paren ~
cabeça, de ve rdade, hein . A vida que a gente tá levando hoje não tal e do desinteresse dos pais para com as coisas escolares. Eles
dá pra acredi tá". conhecem as dificuldades do filho ("Não é forte, hcin ?") e o estão
A lém disso, o senhor e a senhora F. demonstram mal-estar em levando à fonoaudióloga há um mês ("E depois, ele está se aplican-
relação à es~o l a primária, que não se assemelha mais à que conhe; do. A gente vê isso"). Sua mãe nota que, como ela, ele está tendo
ceram. O pat, por exemplo, parece perdido e quase escandalizado dian- Jificuldades para lembrar-se das lições. É ela quem toma conta de
te da tabuada que pediu para o filho ir buscar e q ue nos mostra. São sua escolaridade, controla suas tarefas, explica, quando pode, ao filho
as linhas. de ".o" que lhe parecem aberrantes, inúteis. De qualquer (o pai também, mas unicamenre quando se trata de cálculo, assim
fo rma, nao fOI aSSIm que ele aprendeu, e parece um pouco espanta- como sua irmã, quando vem no fim de semana) e o faz repetir em
do com as "mudanças pedagóg icas": "Zero, zero , zero, zero. O que é voz alta as lições ("Bem, eu falo ela muitas vezes. E depois, eu fecho
esses zero? Então por que põem os zero aí? Pra mim, a escola quan- o caderno, dou à mamãe e depois eu falo ela prá minha mãe. E ela
do eu, partI a de 1 Igual a 1. Sim , mas se a gente tira tudo isso, não me d iz se tá bo m ou não tá bom" ). Durante as férias escolares de
é melhor pro menino pra decorá? Então, ele precisa decorá o zero verão, os pais compram também um caderno de exercfcios para
na cabeça. Ele começa de zero. N ão é melhor tirar isso? Bem, eu n;;o Robert, para que ele continue faze ndo um pouco de exercícios,
sei, mas é bobo isso. Podiam tirá os zero, é mais simples. Quanto mais mesmo que seu pai diga que "é preciso correr at rás dele para man-
Simples, o menino decora , é isso. Bem, num se i não". A lém disso, a dar ele faze r" , po is, se não, ele só brincaria ("Ele não pegava nele
esco la rem como missão, do ponto de vista deles, instruir, tra nsmi ~ nunca, só pensava em brincá") . O pai até que se di verte, às vezes,
rir conheci me ntos necessários para sair~se bem na v ida. Para eles em dar-lhe mul tiplicações para faze r: "E das vez, a gente se di ver-
fica claro que é a alfabet ização que tem a primazia, e que todas a~ te : 'Papai, me dá conta de multiplicá', por exemplo. Então, eu dô
novas ati vidades escolares (esportivas, cul turais) lhes parecem supér- pm ele alguns nlimero, e não é que ele fa is?" .
flu as. Por exemplo, a senhora F. pode compreende r por que Robert Q uando ele vem para casa com notas ruins, o pa i d iz que eles
está aprende ndo a nadar, pois é "útil", mas não para que lhe fazem não "ralham com ele". O senhor F. explica a razão pela qual nada
praticar a luta. Q uanto ao pai, ele acha (Itil saber q ue tal país fica ao diz a Robert: "Eu não falo nada p'" ele, o senhor sabe por quê? Porque
norte de outro ("Concordo, isso serve"), mas inútil estudar história. meus pai nunca me d issero nada, então eu num quero ralhá com
Ao mesmo tempo, o senhor e a senhora F. não estão privados ele. Então, eu digo: ' Robert , cê re m que fazê tuas tarefa, hein ?'. A
objetI vamente de investimen tos culturais. Ela tem um Certificado gente não se cansa de falá pra ele". O pai nota que Robert, às vezes,
de Aprendizagem Profissional, e ele pouco a pouco se tom ou ope-
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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

não quer fazê .. las, c quando não consegue, fica nervoso: "Quando extremamente recorrentes para que se possa crer no acaso: tímido,
a mãe dele diz: 'Não, n~o é assim!', e pronto, ele fica nervoso". apagado, bloqueando-se em matemática, embora conheça muitas
Os pais cuidam de que Robert se deite cedo (20h30) toda noite coisas de ciência e geografia, construindo um complexo de infe ..
anterior aos dias de aula. Também são muito prudentes quanto às riuridaue ao pensar que vai se enganar, e que não vai saber fazer,
saídas de Robert (quase inexistentes) no âmbito de um novo con- rendu problemas de memória, tantas características que também ser-
texto (até as últimas férias de verão, a família F. morava na lsere, vIriam muito bem para descrever sua mãe. Assistimos, pois, a uma
onde tinham uma casa). mais urbano, que lhes causa medo (medo verdade ira reencarnação social dos problemas (e também da pre-
das arruaçns, da ausência de conhecimento dns crianças que brin- ferências) da mãe na pessoa do filho" .
ca m na rU8, dos Hpalavrões"). Robert parece ter interiorizado as von .. É como se. por amor à mãe, ou em virtude da relação socioafeti ..
rades dos pais, pois ele próprio n~o tem vontade: "Não é porque a va que o une a ela, Robert não pudesse permitir-se passar (ou pen-
gente proíbe ele, hein?, é ele mesmo, ele também. A gente num gosta, sar) por cima dela. Da mesma forma que ela lhe transmite suas pre-
e ele também num gosta"; "Num gosto de sair por caus~ que tem ferências, transmite~lhe suas dúvidas, sua total falta de segurança, seus
muito palavrfio que se ouve. E eu num gosto de ouvi palavrão". problemas de memória, seu bloqueio em cálcu lo ... Um pouco como
O que se entende, em realidade, nessa configuração, é que, de certa no caso da senhora O. (Perfil 8), assist imos a uma troca entre duas
maneira, Robert repetc as dificuldades de sua mãe, de quem, particu .. experiências: a do filho e a da mãe. Aliás, os professores apontam um
lamlcnte, parece sentir..se próximo. A mãe, que toma ccnm de sua esco.. ligeiro progresso no decorrer do ano devido a diversas intervenções
laridade, que lhe contava histórias quando era pequeno e que escuta que, sem dúvida, comribuíram para dar a Robert confiança em si . Ele
suas histórias, parece lhe ter transmitido seus complexos, suas angús- está indo à fonorerapia, é acompanhado em horário de estudo livre
tias, suas próprias dificuldades escolares, ao mesmo tempo que suas pre- durante três meios .. períodos por semana, e seus professores notam
ferências. Por exemplo, Robert diz que o que ele prefere na escola é mudanças positivas: "Ele progrediu"; a classe de recuperação "lhe fez
história, geografia e ciências, que são os assuntos de que a senhora E um bem enorme"; "Ele não mais escreve qualquer coisa" em mate ..
nos diz gostar. Robert até precisa que é sua mãe quem o ajuda nesses mática; "Agora, ele até utiliza um procedimento de reflexão"; uÉ
três aspectos, cque ela gosta de ler livros de história e de ciências "como" muito mais legíve l". E o termo "bloqueio", utilizado por um profes ..
ele. Robert também participa muito dos trabalhos de casa, ajudando .sor para evocar as dificu ldades em matemática, nos parece particu ..
a mãe, e diz, como ela, que gosta de cozinhar. A própria senhora F. diz larmente adequado, na medida em que Rohert interiorizou, no decor-
que, quando era mais jovem, era "mu ito tímida, como Robert". rer das relações intrafamiliares, uma série de complexos.
A comparnç;;o está preseme ao longo da entrevista. O pai até O que se mostra, por conseguinte, aos professores, como um pro-
lembra as dificu ldades mnemônicas de Robert, próximas às de sua blema "médico" num dado momento, isto é, como um caso que não
mãe. Mas tudo se esclarece mais ainda quando se escuta os profes- dizia respeito apenas à competência pedagógica deles ("Nós não somos
sores falarem de Robert e de suas dificuldades escolares: "Ele tem médicos, não temos muita coisa a fazer") é apenas um caso cu lru ..
muita dificuldade em matemática e, para mim, é um tanto incom- ral de inrcriorização particularmente forte de relações familiares com
preensível, pois é um menino muito aberto, que conhece muitas cai .. a escola sociologicamente compreensível; uma tal situação não
5as de ciências, de geografia. Ele sabe muitas coisas, mas tem um blo- pode, sem dúvida, encontrar melhor solução escolar que não seja
queio em relação a matemática. Ele dil:: 'Eu vou errar, não tlOIi saber pela construção de outras relações sociais que possibilitem a Robert
fazer"'Ol; "Ele é muito tímido, muito apagado em classe"; "Ele tem encontrar outros pOntOS de apoio (exrrafamiliares) para vencer seus
um problema de memória". As analogias emre a mãe e o filho siío complexos e seus "bloqueios".

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

• Perfil 13: Vigilância moral e auxílio mútuo familiar. hraço, a no ite inteira eu não dorme, fico esque ntado. Ah, tô sem-
Sou'Yla. B., nascida em Sain [~Priesl, sem nenhuma reperência escolar, obte~ pre se sentindo mal. Puxa, é fogo. E e ntão, como chuvia. A gente
ve 6,6 na utlaliaç(lo nacional. 1r"baia sem pará. Nóis faiz 8 hora na merda, o te mpo intero. E então,
hem, ainda bem, desde no vembro até agora, num trabaio. T ô apo~
o pai aceitou Hmarcar um encontroU, dizendo: "Esto ll aqui o 'cntado, ora". Fez um estágio de 6 meses e m curso de fo rmação de
dia inteiro, se você marcar uma hora! mlvez estou aqui , talvez não. .Idulms, mas ap re ndeu seu trabalho essencialmente na prática ("Foi
Passa à tarde". No dia marcado, chegamos diante de uma casa, cons- 1",ha iando"). Parece contente em poder nos falar de sua cxperiê n-
truída pelo senho r B. , que, externa me nte, não está rebocada . É cia profissional. Fo i à escola na Argélia até a idade de 7 anos, e diz
sua filha de i7 an os quem nos recebe. Não está a par, como ta m- rcr "prendido o á rabe, mas não sabe Icr e escrever n em em árabe
bé m não estão suas duas irmãs, de nossa visita . Quando c hama o ne m em francês. Esclarece que era preciso ter dinheiro para ir à esco-
pa i, ele c hega visivelmente espantado. Estava vestindo sua roupa la, c que seus pais, ambos analfabems, não o tinham. Seu pai tra-
de se rviço e, sem dúvida, iria sair para trabalha r em torno da casa h"l lhrt va para alguns meeiros como assa lAriado agrícola, e g mãe não
(o que fa rá qua ndo formos e mbora). Conv ida- nos a sentar à mesa rrabalhava (eles tinham cinco filhos).
da cozinha e a começar a conversa. Enqua n to termina de se pre- A mulher do se nhor B. nunca traba lho u, e n ão sabe ler nem es-
parar, a filha de 17 a n os n os oferece um café e pergunta, com a r crever. Seu pai, ana lfabeto! u aba lhavg como mineiro em Sa in t~
preocupado, se h á algum problema com Souyla. Nós a tranqüili - Étienne, e a mãe, ta mbém analfabeta, cuidava do lar. De seu mari-
za mos, exp licando- lhe e m duas pa lavras u porqu€ de n ossa visita. 1..10, a senhora B. teve o nze filhos. Os uois Il'Hl is velhos nascera m n a
Durante a entrev ista, o senhor B. fala conosco visivelmente com A rgé lia; os outros, na França. A frátria é composta de nove mulhe-
prazer. S uas inte rve nções verbais são, às vezes, muito longas e sem .. res e dois h omens. Uma das filhas é quem ava n çou mais n a esco-
pre muito implícitas! com frases nem sempre muito corre tas g ra ~ In, até o [ " ano da Faculdade de Direito. O nível escolar mais ba ixo
maticalmenrc. A senho ra B. vem um instante nos cumprime ntar. é o Certificado de Aprendizagem Profission al. Dois filhos obtive-
Pa rece falar bem francês, mas, visive lmente, n ão é de sua alçada ra m um Certificado de C urso Profission alizante de I · grau, e um
responder a nossas perguntas. Quanto às irmãs de Souyla, pare- te m um Diploma de Conclusão do 2· grau Profi ss ionalizante. Três
cem ocupadas e m ver televisão. Depo is da entrevista, o pai nos filhas estão no 2" grau , duas na 2' série de Adm inistração e Con-
acompan h ará até a grade do jardim e nos fa la rá d e seu jardim e ta bilidade, e uma, n a I '.
do cão, que causa estragos n a grade .. . Souyla faz parte dos alunos em hêxito" escolar que tiveram irre~
O senhor B., de 65 anos, é apose ntado. Veio para a França em gu laridades de desempenho no decorrer da 2" série do I· grau. Desde
1946, graças a seu sogro, que era mineiro perto de Sai nt-Étienne. a pré-escola, os professores observam um problema de regularidade
Trabalho u durante 6 meses como mineiro, depois em obras públi- n o rrabalho. N a 2" série do I· grau, quando da primeira e ntrevista
cas, como pedreiro: "Entclo , um pouco de construção, pá e e nxada com O professor, este observava que , hav ia duas ali três semanas, ela
não estava fazendo "mais nada esquecia sempre os li vros e não man~
ll
sempre. E a gente coloca cercas e tudo, e é uma trabalheira, é pesa- ,

do". insiste muito na dureza de seu trabalho, porque "antes a gente dava mais assinarem os cadernos. Os pais tinham sido, então, con~
fazia tudo na mão", e (ala dos proble mas de sa úde que tem desde vocados. No final do a no , o professor observa que, depois de ter-se
então : uÉ duro. no meu trabalho. Agora, tô com dor nos rim, veja e ncontrado com os pais (o pai e também a irmã), "funcionou": "Fui
bem. Desde das 10 ho ra, vô tentando se le vantá e acabo se le van- e u que convoquei. justamente porque ela não mandava mais assi~
tando agora. O ~c nh or tem dor nas costa? - vixe, as costa, os nar nada. Os pais não estavam mais a par do que estava acontecen#

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONfiGURAÇÕES

do. Seu pai veio te r comigo, e depois foi ta lvez uma inn~ mais velha " que vou mand,1 lê? Hei n ? Se vocês é capaz, vocês tão certo. Mas
que passou um dia, me parece. Portanto, como era preciso, e u lhes 'lo: n:1o. bem, se vocês estuda. é pra vocês, não é pramim. Bem, vocês
ped i que prestasse m muita atenção para que fosse tudo assinado, e 1:'10 hen . . ·vestido. come bem e tudo , não farta nada pra vocês! Só
que o lhassem um pouco as tarefas à noite. Pelo menos o essencia l, IL' IH que estud,í. Ma ' 'e você num consegue, o que é que cê qué? T á
digamos. Aparentemente, isso deve ter sido feito, uma vez que se recu- hem, mas o que é que eu tenho que fazê? Não aprend i lê em fran-
perou e tudo. Penso que não tem grandes problemas". A família, por- I.. L'." c lê e escrevê. Num cons igo, e como é que vô fazê? Hein ?".
tanto, desempenhou um papel eficaz em relação a Souyla"'. Eles interferem, assi m, mais na perifcria da escola do que na esco-
Fora essas irregularidades no comportamen to, e mais raramen- la. É o pai que leva e vai buscar Souyla na escola (alternando esse
te nas no t3s, Souyla é considerada, desde o maternal, como uma papel com um vizi nho ), e conhece as crianças com as quais cla brin-
boa alun a. Destacamos sua capacidade de fazer um trabalho com ca, puis são crianças da vizinhança. Quando ela tem aula no dia
aplicação, sua mo tivação pela leitura, seu interesse pelo traba lho "'cguinte, os pais fi cam atentos para que Souyla vá se deitar, no mais
feito em classe e sua vivacidade (que, às vezes, pode se tornar "con_ ,ardar, às 2 1h30. Eles a mimam se ela rem bons resultados e, princi-
versa"). Na última ava liação do ano, ficou e m terceiro lugar, pro- palmente, se são respeitados por ela. O senho r B. diz que se ela gosw
vando que seu "sucesso" permanece estável. de brincar com amiguinhas, e le, entretanto. nào tem de que "rerro·
O caso de Souyla é o exemplo de um "sucesso" escolar numa con- v:l· hl", pois e la o "respeita": uDizem, ela é um pouco a qucridinha do
figureção familiar que, em relação aos critérios socio lógicos habi - papai, ela, e da mamãe também. Sim, mesmo quando ela discute comi-
tmlmente consideraJos (profissão, nível de diploma dos r ais, núme- go de verdade . me respeita. tá vendo". Os pais "gritam" C1Grim um
ro de filhos) , não parece poder preparar eficazmente para bons pouco, aSSlm

mesmo" ) , 11oprimem,
• ""
pnvam
. "lo
1 maItratam " . se {ror
desempe nhos escolares. Pais analfabetos, um rai aposentado, ex-ope- preciso. no mo mentO certo ("Souyla, no momento. tá indo bem, mas
rário de obras públicas, com um discurso muito implícito, dominan- ,. começar a ... precisa oprimi ela um pouquinho, rrecisa estud,í. Ele
do fracamente o francês, não conhecendo o sistema escolar (suas me diz pra mim, eu digo pra ela o que precisa (sorrindo) fazê. N um
exigências, as classes de seus filhos, seus descmpenhos), pais que vivem posso ficá vigiando ela. Se você marcá quarqué coisa no caderno, rá
lima ruptura cu ltural e , principalmente, lingüística com os próprios certo"), tanto quando ela faz bobagens quanto quando fi cam saben-
filh os" , onze filhos ... não seria prec iso tanto para compreender uma ,lo (raramente em seu caso) que hfi um problema na escola, mas pare-
situação de "fracasso" escolar, princ ipalmente quando se compara, cem, por outro lado, estabelecer um contrato de confiança com os
segundo os c rité rios que ~1Caba mos de enumerar, essa si tuação fami~ filhos. Po r exemplo, o senhor B. se mostra absolummente comrreen -
liar cm relação a o utras configurações familiares já analisadas. E, no ,ivo em relação à vontades de seus filhos. Na quarta-feira à tarde,
enta nto. estamos com um caso, realmente . de IIsucesso". Souyla queria praticar espon e na escola, e o pai conta que se limitou
De início, esse caso prova que o investimento pedagógico não il assina r e dar o dinheiro: "[Souylal vê o que fai, à tarde, é diverti-
é a única e exclusiva chave para consegu ir que, do ponto de v ista. do, o esporte. E ele diz: 'Papai, eu fiz isso'. N um posso dizê sim ou não,
as c rianças, em meios populares, tenharn "êxi to". Os pais. neste caso, então, ele queria o esporte, eu disse sim. Num vô dizê não. Eles, eles
exercem wna vigilância mo ral que ultrapassa Illuito o caso da esco- faiz o que querem, heim, então eu num posso dizê, é eles que esco-
la . Não podendo aj udar os filhos na escola, o importante para eles lhe. Então, ele diz isso e, bem, eu dô o d inhero pra ela. E é sô: 'Se
é fornecer-lhes boas condições de vida, dar-lhes o que precisam, para você qué o dinheiro" como o esporte, nóis pagã 50 franco, hei n ?".
que traba lhem o melhor que possam: "Não fui na escola. O que é É claro que, em relação à escolaridade de Souyla, são as três
que vô dizê?Tenho minha filha, hein , eu num entendo nada, o que irmãs mais velhas presentes na casa que desempenham um pape l

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

central. Elas estão no 2º grau, foram assinantes, há alguns anos, conte uma histó ria?', porque ele não consegue dormir. Depo is, eu
de Science et Vie, gostam muito de le r ro mances e , nesse aspecto, (unto pra ele, bem no meio da história, ele dorme". Da mesma fonna,
são aconselhadas pela irmã mais velha, que foi à universidade ('6, (·Ia rede que uma das irmãs leia uma históri a para ela, para poder
ajud am Souyla e constituem , com a ma is velha, exempl os con- kmbrar~se à no ite e sonhar: "Ã no ite, eu conto a história pra mim,
cretos de poss íveis escolares para ela. Poderíamos nos perguntar 1\;\minha cabeça. Eu gosto muito porque eu chego a não sonhar, a
(sem te r respostas) como se engendrou o "sucesso" escolar da irmã ter pesade lo, então me vem a história".
mais velha, que c hegou à unive rsidade. Para as outras, uma das É aind a a mesma so lidariedade familiar que faz com que os
chaves da compreensão reside num sistema mui to efi caz de a uxí~ (!Ih", ajudem o pai em todos os documen tos. Quanto a tudo que
lia mútua familiar. Com efe ito, no que diz respeito à escola, o diz respe ito a dinheiro, o senhor B. di z que se vira mu ito bem, e
senhor B. se mostra incapaz de dizer as classes nas quais se encon- que não conseguem uenro l á~ lo'\ po rque e le conhece bem os núme~
tram seus filh os (UAh, não se i ao ce rto, não, nisso, eu disse a v e r~ ros: "Eu não le io. Se tem algumas coisinhas ass im, cons igo mani~
dade"), o u de emitir um julgamento sobre a escolarid ade de Souy- pular o dinheiro. Se, por exemplo, eu te dou um ch eque e pra fazer
la: "Bem, eu, quanto a isso, eu não posso dizer se têi indo bem o u d e , cê quer dar uma de esperto, cê não consegue, porque eu se i a
se num tá indo bem. Então, eu pergunto como, ele diz: 'Tudo bem, soma que cê tá colocando e tudo o mais. A lguma coisa não con s i~
papai, tudo bem ', e é só" . É, portanto, uma das irmãs mais velhas go, mas, ao contrário, com co isas assim, eu consigo muito bem".
presente no dia da entrev ista (17 anos, 2' série do 2º grau de A filha mais velha se encarrega dos documentos da família desde
Administração e Contab ilidade), a que se encontrou co m a pro- ;Jidade de 10 anos (o pai pedia também a colegas de traba lho), e
fessora e o diretor, que responderá a nossas perguntas. Ela nos infor~ foi ela principalmente que se ocupou em cuidar dos papéis para a
ma que é Souyla quem vem mostrar Sllas tarefas às três irmãs (na aposen tadoria do pai. Atualmente, é a filha de 17 anos, que está
2" séri e e na I" série do 2 2 grau) para saber se o que el a fez está na 2" série do 2º grau de Administração e Contabilidade e que gos-
certo: "Não, nem precisamos perguntar a e la: 'Você acabo u o tra~ taria de tornar~se contadora, quem o acompanha quando va i ver
balho?' ou 'Você não tem tarefas?', porque é ela quem chega, a assistente social: "É sempre uma filha. É uma filha que vai ircomi-
ab re o caderno e me diz: 'Ei, dá uma olhada'. Q uando está erra- go" . É graças às filhas que o senhor B. consegue limitar as situa-
do, ela me pede para explicar, é isso"" . Ela destaca também a ex is- ções de humilhação que todos aqueles que n ão sabem ler nem
tência de uma grande solidariedade familiar entre os filhos, da escrever e que dependem de maior ou menor boa vontade de
qual também se beneficiou: "É o que é lega l na minh a família é outrem são, inevitavelmente, levados a vivenciar. Ele conta, por
que todos, eu sei que, eu me lembro, quando tinha a idade de Souy- exemplo, que às vezes, quando pede a funcionários da administra~
la, com igo, todo o tempo era minhas irmãs mais velhas que se çào para preencherem os papé is em seu lugar, eles recusam: "Eu tava
debruçavam comigo e depois me ajudavam . Portanto, isso faz I.l, em Sa in t~ Pri est, para enviar uma ordem de pagamento, e falei:
com que ... ". 'Senhora, bem, a senhora poderia preencher isso'. Ela me disse: 'Não,
É também, sem dúvida, pela interação com as irmãs que Souy- meu senhor, é pro ibido'. Então, vo lte i pra cá e , à no ite, quando meus
la construiu seu gosto pela leitura. Ela vai à biblioteca municipal, filho viera, foi as c riança que fez. Ah, sim, e le diz: 'Não, não, num
ass im como à biblioteca da escola, e lê contos, histórias em quadri~ posso pree ncher', ele fala: 'Num te obriguei, obrigado' (diz, sorrin-
nhos e pequenos romances (da coleção "j'Aime Lire"). Diz que fala do)". E depois do relato dessa história que o sen hor B. diz que Ué
sobre eles com as irmãs e que também conta histórias ao pai para Ju ro" quando não se sabe ler e escre ver: "Ah, sim , isto é, pra que m
que e le pegue no sono: "Eu falo pra e le: 'Papai, você quer que eu te num sabe lê e escrevê , escrevê então. é duro".

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PERfiS DE CON fiGURAçÕes
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

A través desse sistema de auxílio mútuo, mostra-se a Souyla a Ililr Jescrira"'\ traduz,se, na entrev ista, po r uma espécie de apre,
impo rtância social, simbólica, no próprio seio da estrutura de coe- 'l·lltação de si muito positiva, muito espec ialmente 'obre questões
xistênc ia f",niliar, dos que sabem le r e escrever. Ali,ls, Souyla não l',co lares: !lEu sabia ler bem com 3 anos". Essa maneira de apre,
se engana quanto a isso. Ela in venta, na entrevista, dizendo que os 'c ntar,sc, que revel a uma grande segurança , uma grande confi an'
pais lhe pedem para ler a correspondência e escrever as cartas. 'i" em si, é, evidenteme nte, o produto interiorizado do o lhar de
Mostra, ass im, que se identifica com o papel das irmãs mais ve lhas ",do um grupo familiar.
e que d,\ valor ao fato de sabe r le r e escrever. Ela até diz que procu-
ra palavras nos dicionários para as irmãs, ~lfirm a que sabia ler aos 3 • Perfil 14: Um afável confinamento sim bólico.
anos e que escreve desde a idade de 5 anos, lembrando-se de uma S(lfnira B., J1llScida em ViUerbanne, sem nenJulTM repe.[L'llcia escolar, obte,
história lida: "Eu copio elas. Depois, às vezes, leio um livro, coloco ve noU! 7, I na avaliação nacional.
e le na minha mala, vou nalgum lugar e depois escrevo o que tenho
na cabeça. É porque preciso me lembrar das coisa aqui na minha Q uando a entrevista começou, o senho r B. tinha acabado de
cabeça. Mas eu só copio o que preciso mais. E depo is, cada vez mais, fazer a sesta. Ele está fazendo o ramadã e, alé m do mais, tem horá,
antes, quando comecei com 5 ano, tive a idé ia ass im, e eu lia livros rios de trabal h o ca nsativos (das 4h às 11 h ). Ele e a mulher são pes-
porque já sabia ler bem com 3 anos. E depois, com 5 ano, e u disse, ,oas sorride ntes, calmas, acolhedoras. É o se nhor B. quem respon-
bem, agora eu leio e depois escrevo, e se não sei c u torno a ler, lcio, de a nossas perguntas. S ua mulher fica, durante quase toda a
leio, como se fosse um autoditado pra Inlm mesma, o q ue precisa- L'nrrevista, afas tada, numa cadeira isolada. Só raramen te partici,
va saber. Agora, eu leio duas vez e depois me lembro das coisa". Ela pa da conversa , apenas para rir ou confirmar o que seu marido diz,
conta tamb6m que ch ega a escre ve r poemas. Todas as histórias que com um movimento de cabeça ou ráp idas palavras. Dá mamadei-
podemos descobrir em Souyla não de ixam de ser interessantes na ra durante longo tempo a seu bebê, escuta ndo- nos falar. Apesar
medida em que deixam transparecer sua identificação com as irmãs. de sua dificuldade e m falar o francês, o senhor B. o compreende
Isso se traduz, na realidade e não mais no discurso fi ccion al, pela mu ito bem, c raros sãos os momentos e m que há mal,entendidos.
escrit(l freqüente de cartas quando est;:l em férias, o que, até agora, Estornos sentados em torno da mesa da sa la d e janta r. O cômodo
nunca encontramos em nossas entrevistas ("Tem se mana que a parece vazio, tendo em vista os poucos móve is e 3 ausência de enfei,
gente rece be duas, três"). tes ou b ibe lôs. No final da entrev ista, o senho r B. agradecerá por
Pode mos acrescentar, para completar o perfil fam ili ar, que O te rmos ido vê- los.
próprio fato de o senhor B. ter construído uma casa mostra lima O senhor B., de 40 anos, nunca fo i à esco la em se u país, o Mar-
vontade de instalação definitiva, ao passo que, em outras famílias rocos ("Era a miséria, quando a gente nasceu. Nóis num era nada
magrebinas, a situação e ra ma is ambígua. A casa també m é sinal nada. É por isso que n ó is num foi na esco la. Não tem como mandá
de um distanciamento e m re/ação aos gran des conjun tos urban os. os filho pra escola") , e não sabe lere escrever nem árabe, nem fran-
Enfim, Souyla é a ("tima de uma família de onze filhos" e é con- cês. Viveu nas mo ntanhas e em condições muito difíceis, sem água
siderada como a "queridinha" por seus pais, isto é, ben efic ia-se de nem e letricidade. Nem mesmo sabe ao certo a data de seu nasc i,
uma ate nção específica da qual todos os outros irmãos e irmãs de menta, porque a família não tinha registros de nascimento n a
uma família tão grande, sem dúvida, não puderam benefic iar,se época: uM~ s não é bem certo ainda que eu nasci em 5 1, porque meu
(por exemplo , a mãe de Souyla não a deixa faze r serviço. de casa). pa i não tinha o registro, e a gente não tinha nada de nada! Eu é
Essa atenção específi ca dada a ela, no âmbi to da configuração fami - q ue pôs a data". O pai do senhor B., que tinha três mulheres, mor-

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SUCESSO ESCOLA.R NOS MEIOS POPULARES PERfI S DE CONfIGURAÇÕES

reu quando este tinha 8 anos. Era um pequeno lavrador, caçava um 1';1 pode , portanto , revel ar~se como um caso sociologica me n te
pouco (com cachorros nas tocas ) e possuía alguns animais. Nem espantoso. Com um pa i e uma mãe analfabetos (os únicos li vros
ele nem a mãe do se nhor B. aprenderam a ler e escrever. A ntes de presentes na casa são os da esco la e da bibli oteca que as crianças
vir para a França, com a idade de 18 anos, o senhor B. tra balhou , raze m), um pai operário não~qu a lificadoJ um a mãe sem profissão
no Marrocos corno servente, na construção c ivil e na funil aria de L' , enfim, uma irmã mais velha escolari zada em C urso de Educação
auto móve is, Um de se us irmãos tro u xe~o para a França med iante E.>pecializada, podemos efeti vamente perguntar-nos o nde Sam i-
um contrato de traba lho para ser sucateiro. Depois, ele traba lhou, I'a encontra os apoios para respo nder adequadame nte às ex i gê n ~
a partir de 1974 , numa empresa de fabricação de almô ndegas e aí e ias escolares .
fi cou desde então. Fez exame de motorista na França, se m saber In icialmente, fica claro que a configuração familiar confe re
ler ou escreve r, numa época em que o exame era oral. S ua mulher, uma posição legítima à "criança letrada". O senhor B., em vários
a senhora B., com 3 1 anos, ta mbém é analfabe ta. Veio para a exemplos, mostra confiar em se us filhos em matéria de leitura e de
França há II anos e nunca trabalho u, exceto q uando ajuda va, em escrita. Ele próprio preenche seu formulári o de impostos, porq ue
sua alde ia, a moer cerea is. Seu pa i e sua mãe eram pequenos lav ra~ sabe ler e escrever os nú meros sem problema (d izem-lhe onde tem
Jores analfabe tos das montanhas marroquinas, de preencher e ele escreve as importâncias ). A prendeu isso com
Eles têm cinco filhos, cuj as datas de nasc imento o senhor B. sabe colegas quando estava no alojamen to e ti nha o h,íbi to de di vidir
de cor. De modo geral, o senhor B. é, ali ás, extremame nte prec iso os gastos: "S im, porque antes, a gente mo ra sozi nho, n ão te m
quanto às datas. T êm uma filh a mais velha, A., nasc ida em 1978, mu lher, não tem n ada . N o alojamen to, tenho amigo, também
no Marrocos, que repetiu de ::1 11 0 uma vez (a 2ª série do 1Q grau ou . írabe , e francês també m, a gente come junto e daí, no fim do mês,
a 4" série ) e q ue está na 7" série do 1º grau, em C urso de Educação a gente di vide o que comeu. Marca tudo. Ele é q ue marcava, e por
Especia lizada" . Depois vem Samira, nasc ida em 1983, que está na isso aprendi os número. A gen te marca, por exemplo , hoje nó is com~
2ª série do ] 2 grau (" Eu acho que Samira é melhor que A." ), um prõ um frango e uma bengal a de pão , marca a data, por exemplo,
menino nascido em 1984, que está na I' série do I º grau (o pai decla- amanhe de novo, e no fim do mês, ele me fala: 'Isso foi o que nóis
ra que o professor lhe disse que ele era o prime iro da classe ), uma comeu'. Ele faiz a conta, por exemplo, 500 franco, di vide por dois
menina que morreu aos 6 meses e 7 d ias e c ujo lugar, que deveria e d,; 250 franco pra cada um".
ocupar entre os irmãos e irmãs, o senho r B. lembra como se ela esti- Caso contrário , ou ele vai diretamente às repartições para te r
vesse viva, lima menina nascida e m 198 7 que está no maternal e, explicações e mandar preencher se us papéis ("Explico cara a cara
finalmente, uma outra nasc ida em jane iro de 1992 (tem aprox ima- com lima se nhora, ass im. N unca escrevi. Por exemplo , na prefe i ~
da mente 3 meses no momento da entrevista ). tura ou como você tá falando, no depa rtamento de salário-famí-
Samira entrou bastante cedo n a escola mate rnal (com 2 anos lia, eu é que vô pra te r explicação, porque, como num se i lê nem
e 6 meses) e nunca fo i, de fato, apontada como uma aluna com escrevê, as ve iz vô e u mesmo ") , o u pede a seus vizinhos argelinos
dificuldades. G lobalmen te, é considerada como "uma boa aluna" (Perfil 2), cuj o filho mais velho ajuda os pa is para escrever as car-
numa classe de 2' série do I º grau/3' série, cuj o nível médio já é tas e m francês C'Sim, às ve i! eu falo pra e le: 'Ve m aqui e m casa',
bastante e levado . É uma aluna qualifi cada como "interessante", assim . A gente confia, são vizinho"), ou, enfim, pede à sua filha
que "compreende mui to ráp ido", "trabalh a be m" , "aprende be m", mais velha, A ., ou a Samira, que lê mas aind a não escreve a co r ~
"toma a pa lavra" ("ela se exp rime be m, é inte ligente, não fala à respondência : "Sim, faz, e la escreve mais o u menos bem, como pre~
toa, sempre tem idéias, boas idéias"71) e "partic ipa". O caso de Sa mi ~ cisa. Mas ela ainda não preencheu nenhuma ordem de paga men -

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONfiGURAÇÕES

to. Mas às vez vai cheg;..) uma carta como essa, não se i, talvez um n~o tudo" , ele pede à irmã, ass im como a ela própria, para ler pcua
salário-fam íl ia ou mesmo imposto, da televisão, não sei, bem, ela ele cartas em fra ncês: "E quando ele recebe ca rtas em francês, bem,
me explica. Ela fala: 'Papa i, quando precisa pagá, presta ate nção, é nós quem lê elas".
precisa passar lá bem na data'. Ela, entremnto, às vezes, preenche Mas o segredo do sucesso escolar de Samira reside essencialmen-
ela mesma os documentos da escola". Te no elhos familiar mui to coerente que é postO em prática com muita
O senhor B. não tem talão de cheques, e, quando precisa preen- regularidade e sistematicidade. Os pais exercem um contro le moral
cher uma ordem de pagamento q ue envia à família, é sempre A. que em todos os insrantes, e o contro le esco lar surge como uma parte
se encarrega disso. Quando era ele que se encarregava de arrumar entre outras do contro le exercido mais amp lamente em todos os seto·
os documentos, estes não eram classificados: "Das vez procuro um res da ex istência.
papel qua lqué, levo 15 minuto". Desde que A. o faz, ela os arruma Os pais são, inicialmente, n1uiro rigorosos e m re lação às horas
numa grande pasta: "Agora, como A. está no colégio, é quem cu ida Je deitar-se (Samira se deita, no mais tardar, às 2Oh45 e declara
quase de tudo agora, os documentos. Ela comprou uma pasta gran· ela própria comer às 7 em ponto). Fixam limites que não devem
de assim. Tem folhas lá dentto em branco, e ela, por exemplo, pões ser ultrapassados, que se ap licam a todos os dias da semana, cxce·
as conta de luz de um lado, os impostos de o utro, as ordem cle paga- to o sábado, quando as crianças podem ver os desenhos animados
mento de outto, os holleriths de outro, tudo ao lado. (Riso.) Ela na TLM " (os pais exercem uma censura sobre os filmes vistos) e
marca, isto é, põe um paperzinho assim, cola ele. faz isso pros impos· deitar-se às 21 h45. Em seguida, Samira, assim como o irmão ou
to, esse é pras conta de luz, esse é pro aluguel, tudo. É bem arrumado. ~'s irmãs, não sai para brincar sozinha no bairro ("Ele não sai
(Riso.) Antes, eu punha no troço assim. Quando começo a procu- nunca, só se eu saí com"), e os pais a levam e vão buscá· la na esco·
rá argu ma coisa, tenho que procurá por tudo lugar'. A., portanto, la. O fato é apresentado, tanto pelo lado do pai ~uanto de sua filha,
introduziu classificação, organização na família. A utilização de como sendo uma escolha da parte dos filhos. E Samira q uem não
pasta faz pensar que a escola, com sua lógica de diferenciação em quer sai r para brincar fora ("Não tenho von tade. Gosto mais tle
matérias, em disciplinas, em horários, não est<~ a lh eia a essa pní.ri· ficar em casa do que de sair"), é ela quem não gosta de ir às excur-
e que contribuiu para a racionalização dos docurnentos familia·
G I, sões escolares sem os pais, é ela ta mbém que, durante as férias, não
res. O senhor B. guarda todos os números de telefone na cabeça quer fi ca r lo nge da família. O pai esclarece que é ela quem não
("Tenho todos eles na ca beça , tudo!"), mas A. anota todos os núme- quer sai r, mas que ele prefere que as co isas sejam assim. Estamos,
ros num caderno ("Ela marca tudo, A. , agora"). Enfim, o sen hor B. pois, na esfera da coerção bem interiorizada pelos filhos. E essa
diz que, freqüentemente, utiliztlm os ca lendários para anOtar os interiorização só é tão perfeita" porque a ação familia r é constan-
compromissos ('IAh, sim, claro. Os cornpromissos assim, a gente te. Os filhos vivem princ ipalmente (fora da escola) num univer-
marca, clard'), e ainda é A . quem se encarrega de anotá· los. so de referências morais, c uidam de todos os seus possíveis impos ..
Samira só participa dos atos Je leitura e escrira da família modes- toS e ignoram ou rejeitam as coisas impossíveis ou contraditórias.
tamente em relação à irmã mais velha (ela confirma que é antes a Mas o confinamento simbólico no unive rso familiar só é possível se
uirmã mais ve lha" quem se encarrega), mas contribui assim mesmo os pais ("Eu faço apenas pros meus filho, pra mim num interes-
a esse auxílio mútuo familiar, e vê, por intermédio da irmã, a impor· sa", diz o pai) oferecem aos filhos momentos de descontração, pas-
tância simbóli ca conferida pelo pai às competências de leitura e de se ios: A gente sai. Num é preciso fi cá sempre e m casa, parecen~
li

escrita dos filhos. Ela mesma conta, orgu lhosamente , que, na medi- do uma prisão. (Riso.) Durante as férias você tem o direito de sai r
da e m que seu pa i "sabe ler um pouquinho, algumas palavra, mas um pouquinho pra tomá ar, prá mudá"i~.

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PERFIS DE CONFIGURAÇÕES
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

Se o senhor B. leva os filhos para passear ou brincar longe do pri o rem resse ntime ntos e m relação a uma esco la que não conhe#
bairro, é porque ele o considera um lugar pouco exemplar: "Saí ce u (uÉ claro, senti muito . Quando era peque no, num sabia o que
sozinha, isso nunca. E já tô aq ui desde 85, elas nunca sa íra soz i- queria dizê ir pra esco la, porque a gente e ra como animal, pare#
nha, só comigo. Levo no parque, é rudo. A gente fi ca lá a tarde c ido") e em relação ao curso de alfabetização que não freqüen -
in teinl e vo ltamo. Mas el es nunca sa íra sozinho. Das vez sa i, mas tou quando teve a possibilidade no alojamento ("Era jovem e baba-
fi co olhando da janela assim dois ou treis minuto, depo is eles ca (riso abafado). Nunca escutava"). Mas vcmos muito bem, ao
sobe. Eles num tão acostumado. Mas é melhor assim, porque se longo da entrevista, que a escola nunca é percebida como um un i#
e les sai, ficam acostumado. Ho je, eles brinca aq ui, amanhã vão verso autônomo, mas antes como um local onde se deve , também,
longe, depois mais longe, mais longe, e depois é uma baderna, depois antes de mais nada, comportar-se bem. Assim, se O senhor B. julga
quebra os carro, e depo is, como sempre. Não deixo eles no bair- que Samira é a mais "inteligente" de todos os seus filhos, é por-
ro. Vô um pouco mais longe, quando acho que é mais ou menos que uela nunca teve proble mas na escola. Ela estuda, faz seu rra#
c c ,, ~(, S ".
limpo, a genre come I~~". O pai, portanto, sai com eles para faze r ba lho, nunca fo i má com seu prolessor ou prOl cssora '. er mte#
passeios, jogar um pouco de bola , e Samira joga tênis, basquete, ligen re" é exatame nte co mporta r~se na au la, não ser mau e fazer
anda de patins de rodas, pula corda. Durante as fé rias, ele os leva os trabalhos. E mais ad iante, n a entrevista, o senhor B. dirá tam-
para passear todos os di;.lS, fazer pique niques, brinca rn . E també m, bém que Sam ira, freqüentem ente, lhe pergunta se p'ode reza r
nas noites de verão, os filhos fi cam com os pais na grande sacada co m e le , e é por isso que ele gosnl muito de S~ mira : UE por isso,
do apartamento da fam ília. tô te dizendo, Samira é lega l (riso) . Me pede pra rezá comigo".
O pa i se destaca das outras famílias árabes que moram no T alvez, portanto, quando ele diz que Samira é a mais "inteligen -
bairro ("Eu também sou árabe, mas ... ") e critica os jovens que fazem te" de todos, ele também esteja pensando na inteligência de com-
bobagens, quebram, roubam ("E se você est ivé lá, eles te dego- portamento da filha, que, por si própri a, caminha em direção 11
lam"). Esses atos constituem para e le uma degradação moral. sua cultura.
Segundo ele, os pais desses jovens não tomam conta de les, e nos O pai verifica se o trabalho escolar está feito, apoiando-se nos
conta que algumas crianças ficam fora de casa do fin al das aul as, controles mútuos que estimula entre seus diferentes filhos, uma vez
até as 2 1h. Os pa is joga m o lanche deles por uma janela e fi ca m que ele mesmo não podc verificar nada: "Das vez, quando eles têm
tranqüilamente em casa vendo telev isão. Nessas condições, diz trabalho e fizero mal, eles olha, voltam pra casa , mexem nas mala
e le, lia gente pode ter se is, sete , oito, nove filho". A mane ira como e depois vem pra mim e diz: 'Veja, papai, o que ele fez' , e se ele
o senhor e a senhora B. interpretam a final idade da entrevista é, num fez , por exemplo, meu filho vai chegá daqui a pouco: 'Pai, ele
ali ás , igualmente reveladora de seu modo de ver as co isas. A mãe não fez certo sua tarefa'; Samira é igua l, ela olha···, se ele não fez
nos d iz: "É pra fa lá os que cuida de se us fil hos e os que não cuida" certo, vai chegá: 'Papa i, ele não tá bem, ele enganô, escreveu erra~
- mostrando ass im que adota um ponto de v ista muito próx imo do porque escreveu depressa, pra ir vê televisão' (riso). Portanto,
do da inst itui ção escolar, ainda que sua orie ntação seja mais eles contro la entre eles, hei n". Samira faz suas tarefas quase sozi#
mora l do que espec ificamen te escolar - e nos pergunta se esta - nha, e m casa. De qualquer forma, sua irmã a ajuda um pouco, mas,
mos fazendo isso para saber se o que os pais fazem "está certo o u juntas, elas brigam freqüentemente. Quando ela tem notas baixas,
não estr~ ce rto", seu pai lhe d iz que é preciso não br incar e que é preciso escuta r o
O senhor B. diz que a escola é importante para ele: "Ah, sim , professor. Com isso, indica que, para ele, o "bom comportamen -
lógico, é importante. S im, importante 100%. É normal". Ele pró- to" é a chave do "sucesso" escolar, e dá como exemplo à filha sua

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

própria ~t itud e no trabalho: "Bem, eu falo pra ela: 'Não tem que " que leu (e la lhe falou, por exemplo, do que le u sobre a histó-
ficá brincando, não te m que fiG\ rindo na escola. Quando você vai riJ, há "100 ou 200 anos")".
na e~cola, é a escola. Num precisa ficá brincando com as criança. De modo gera l, o senhor e a senhora B. estabelecem sua auto-
PrecIsa escutá o que a professora tá dizendo'. Eu expliquei: 'Vê eu, nJaJe na interiorização, pe las crianças, de disciplina e dão um lugar
fá lz quanto tempo tô na fábriGl? Quase deiz ano. Nunca cometi um essencia l à atenção e ao diálogo. Mesmo que o pai não possa exer-
erro, nada, nada, nunca. Tô bem onde tô trabaiando, sô educado cer vigilância direta nas questões escolares, o diálogo que man-
com o patrão, o chefe, porque nunca fiz uma bobagem, nunca'. Eu tém acerca da escolariclade possibilita a integração si mhólica no
fa lo: 'Cum voceis é igual. Se voce is estud,í bem, escutá professora :jcio uo universo familiar da experiência esco lar de Samira. Além
ou escutá bem, nunca vai vê os pai, eles fala que nilo traba lha bem, "i,50, para o senhor B. "num serve pra nada batê neles" para lhes
eles fazem bobagem, não escum'''. moclificar o comporta mento. Segundo ele, é preciso falar com
Os pais já estiveram com o professor de Samira , e o senhor e les, eventualmente griró:l r para ca usa r~ lh es medo o u puni~los, mas
R., às vezes, vai às re uniões esco lares. Diz que é me lhor e ncon~ niío bater neles. Quando lembramos os casos de fa mílias muçul-
t"H-se com os professores do que confia r nos filhos: "Ah, sim, é manas que proíbem os filh os de falarem à mesa, ele chega a dizer:
interessante, claro. porque nisso, é preciso não confiar, as c ri an~ "É, é ve rdade, existe isso, mas nós, a gente se fala" e clcrescenta:
ças, tudo o que e les fal" disso. Melhor é ir vê o professor". Mas "Com as c rianças, cê não consegue parar as criança. (Rindo.) Não
o senhor B. também pergunta , freqüentemente, aos filhos sobre consegue. Pár. uma, depois a outra começa. (Riso.) Cê deixa tudo
o que aconteceu na escola, se está indo tudo bem, se não fizeram pra hí (rindo)".
~o~agens, pa ra expressar~ lhes que se interessa por e la, que não é Além deS&1 ordem moral familiar, o pai calcula o orçamento, sepa-
II1dlfe rente ao que possam estar faze ndo na escola: "A h , todos os m uma quantia de dinheiro para a poupança, para poder enviar ordens
dias, isso, todos os dias. Sim, é obrigatôrio, porque se a gente não uc pagamento ?t família, mostrando, assim, uma relação com o
pergunra, eles volt» pra casa , eles diz: 'Boa-tarde , pap~ i! ', e depo is tempo pessual, feito de paciência e ascetismo: "Si m, das vez, a gente
a genre não se fa la: 'O que é que você feiz na escola?'; Bcrn, no pensa assim: mais o u menos 2000 franco pro aluguel, num se i, pra
dia segu inte, e les fa la: 'E, papai num me falô nada. Ele num me luz 400, telefone 300 mais ou menos, a gente fa iz aS conta assim. A
fala da escola'. No dia seguinte, vão fazê bobagem c ninguém fi ca gente fala, por exemplo, 4000 exato pro aluguel, luz e imposto, e
sabendo. Depo is, v:l0 batê em alguém c ninguém fica sabendo. rudo, e deixa um pouco na caderneta de poupança, e quando a gente
Por isso eu pergu nto sem pre: 'O que é que você feiz na escola? precisa, a gente tira, é isso". Ele até mandou construir uma casa no
Nu m feiz bobagem? Que que você feiz, que que você tem Com teu M'Jrrocos, durante 12 anos (entre 1968 e 1980), sinal de uma dis-
professo r? Foi educado com ele? Você é ruim?'; Faço as pergun- posição para poupar e ter paciência: "Doze anos, porque eu faço deva-
ta, é necessário. Nóis, a gente num sabe lê, nem escrevê, mas a geme garinho, porque não tinha como". Pouco a pouco, separando uma
/)ergtmta assim mesmo, é necessário. De maneira que se e les faiz quantia de dinheiro, ele conseguiu pagar os serviços de pedre iro.
como qué, porque as criança, cê sabe, é preciso vig iar, mesmo ass im, Desde o maternal, os professores notam o faro de que Samira "se
é preciso fa/á, é />reciso vigiá , é preciso /JergJlnlá, porque que que eles preocupa muito com os outros, em detrimento de seu próprio tra~
fa iz na escola? Que que fazem' Que que tão pensando na cabeça balho (se ja ajudando, seja avisando pequenas coisas)". Na pré-
deles!". De 1l1Odo gera l, escutando e questionando o pai, Samira escola, as professoras observavam que eln tomava conta de seus cole~
est~ numa configuração familiar em que o lugar sim bólico do "esco- gas. Na 1il série do 12 grau, esse comportamento persiste , uma vez
lar" é legitimado. Seu pai também escuta quando ela lhe conta que a professora diz que e la é "muito prestativa", "mu ito amável'\

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONFIGURAÇÕES

« •
sempre pronta para lazer favores". Essa característica de cornpor~ Configurações familiares heterogêneas
tamento (ou de caráter, como se diz comumente) é, sem dúvida, o
produto de uma socia lização familiar que estimula as crianças (prin- Em hX Ia, c!"'<;,b (orlll .I~ . ,\ Ct)C rcn":: la ,1.:, "1ll d~·
.:uhcrr,\ d c~clII~n h ,1 -.empr!." o II\c~mo 1'<11'(:1;
cipa lmente as meninas) a cuidar das coisas do lar (Samira tira a mesa, ml lC! ttM4uc .15conlmdl~-ÕC" imt.'lhal.1ll1t'nl l." Vls f·
passa o aspi rador, arruma a cama, "esquenta um cafezinho , um c h a~ \'CI~ na...!;t mal ... :.<10 Ju que um rdlt'xll de ~upcr ­
ficiei c '-lU\: é prec l:'l) n.:JlI:lr a m n,l llrij!cTll únlc.,
zinho" de vez em qua ndo para o pai ... ), da correspondência e de seus o jugo uc rdl cx i)C~ dl!>pc ~IJ, L.. I... I. De 4u.tlque r
irmãos e irmãs. Desde o maternal, Samira tem tendência a cuidar (...lrm:l, .1 :m:íhllc te ll\ de 'illl'nuur, t.mlu l.Jll<ln tu
possfvel, ,\ cunrmdiç,id',
de seus colegas de escola, sinal de que, mui to cedo, teve de cuidar
do irmãozinho. As ta refas domésticas ou educativas lhe dão respon-
sabilidades, assim como o hábito do traba lho e da ordem. Entretanto, Assim como a h istória das idéias que, como escrevia Michel Fou-
h,\ certamente um limite para essas atividades, que podem tomar cau lt , atribui ao discurso um "c réd ito de coerência", as concepções
tempo do trabalho escolar (a irmã mais velha, que cuida principal- globalizantes que vêem em cada família um pequeno mundo total-
mente dos trabal hos domésticos com a miie, está com muita difi- mente coe rente . unitário, às vezes uniforme, subestimam, freqüen-
culdade escolar). tememe, as diferenças de investimentos, de disposições, de orien-
A situação escolar de Sam ira só é, portanto, muito favorável tações e de interesses que caracterizam os diversos componentes da
porque a configuração famil iar não é contraditória (os pais são coe~ configuração familiar.
rentes entre si, não há vár ios princípios de socia li zação que se super~ É claro que tudo é uma questão de pomo de vista e de escala
ponham ou se choquem) e exerce seus efeitos regular, sistemática e dos contextos que o pesquisador se propõe reconstruir. Pode ser úti l
permanentemente. A ausência de capi tal escolar é compensada pela caracterizar a família com indicadores muito gerais, tais como a pro~
presença de uma ordem de vida que, direta (na produção de crian- fissão do chefe do lar, assim que se pretenda compreender as linhas
ças disc iplinadas, que respeitam as autoridades) ou indiretamente (pela gerais de uma situação social global. As correlações estatísticas entre
produção de Sitll;'1ções em que as crianças são incitadas a ir, por si var iáve is nos dão como que visões panorâmicas, conforme ãngu ~
mesmas, em direçiio a uma cultura escolar ausente da f.1mília) se har- los específicos. Se esse ponto de vista revela o espaço em suas
moniza com o uni verso escolar, Mas vemos que, ncsscs casos, o linhas gerais, suas estruturações mais genéricas, e le, entretanto, não
"êxito" nunca está definitivamente assegurado. Samira chegou a ter possibilita esclarecer as múlt iplas particularidades mais finas, apa-
uma queda no ~lno: "Não era catas trófico, mas era menos bom", Ora, gadas sob O efe ito do distanciamento. Pode, por conseguinte, ser
essa queda, em janeiro e fevereiro, corresponde exatamente ao nas~ muitíssimo útil heterogene izar o que parecia homogêneo aos olhos
cimento de uma irmãzinha (no dia 18 de janeiro). Nada de espan- da visão estatística.
toso se, numa situação tão excepc io nal, a modificação da economia A atenção para com fenômenos, tais como o fato de pertencer-
das relações afetivas no seio da família devida a um nascimento pôde mos, simu ltânea ou sucessivamente, a vários grupos ou como a trans,
pôr em perigo o equilíbrio de uma situação escolar. Talvez Samira formação progressiva dos grupos aos quais participamos, o que impli-
tenha se sentido menos ouvida, menos envolvida. Talvez os pais ca que nunca estamos totalmente no mesmo grupo em momentos dife-
tenha m diminuído sua vigilância durante um curto período. De rentes da história desse grupo (duas crianças que pertencem a uma
qualquer forma, a mãe foi chamada, disse que fa laria com o pai e, mesma. frátria não nascem e não vivem nunca exatamente na mesma
como diz a professora. "depois, voltou (la normal", sinal de que os família), ou tais como o fato de freqüentarmos segmentos ou frag-
pais souberam restabelecer " equilíbrio inicia l. mentos singulares de certos grupos, já está bem presente no traba-
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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONfiGURAÇÕES

lho de um soció logo como Maurice Halbwachs, preocupado com o Q uando da marcação da entrev ista, a senho ra B., jovem mulher
cru zame nto e os laços íntimos enTre o psicológico e o social: arge lina, nos recebe na sole ira da porta; atrás de h"l, a mãe, vestida
rri:ld icionalmente. Ace ita a enrrev ista, mas espera que e la seja fe ita
Para razermos urna idéia, ao contltÍno, da rn ul npl lclJaJeJas menh)~
na escola. No d ia marcado, ela n ão está lá. O diretor nos diz: "Me
r i a~ colet ivas, imag inemos o que seria a his[()ria de nossa viJa se,
espanta M . .. ., e la não esquece esse tipo de co isa", Ela fo i sua aluna,
enqu<1 mo a estivermos comando, nós a interrompêssemos sempre
que nos lembrássemos Je um Jos grupm pe los quais p<lssamos, p~:u.l e ele a conhece mui to bem . Telefona para a casa dela e pede à mãe
exami n í.í~ lo em si mesmo e dizer rudo o que dde conhecemos. N ~o mandá- Ia à escola assim que ch egar. Q ua ndo ela c hega , em abrigo
esporti vo, be ijam-se e fica claro q ue ela tinha esquecido comple ta-
ba::,[..lria dis tingUir íl lguns conj u n to~: nossos pnis, :1 escola, o co lé~
gio, nussos amigos, os homens de nossa profissão, nossas relações
em socicJade e, ainda , lima dada sociedade polít ica, reiigioS3, arrís.
mente o e ncontro , po is diz: "Assim que soube que M···queria me
ve r, v im ". Ex iste uma re la ção muito íntima entre a senho ra B, e a
tica ~ qual poderíamos nos [cr ligado. Essas grandes ditlisões são escola e, partic ularmente, com a família do diretor. Q uando a de i-
cômodas, l7ULS re,~pondcm a uma tlisão aincUl exu..'T;or e simplificada da xarmos, e la vai para a reunião de preparação da que rmesse organi ~
realidade. Essas sociedades compreendem grupos bem menores que DC11 ~ ,ada pe la escola.
IXlm apenas uma pane do espaço, e fo i apenas com uma seção local de A senhora B. tem um defeito de pronlll1cia que, às vezes, tom a difí-
um dentre eles qlle esei'vemos em contaro. Eles se trtmsfon1wm, se seg~
c il a compreensão de suas palavras, e os erros de francês são pemln,
menUlm, de modo que, mesmo que pemumeçamos num gmpo e qHe dele
nentes em seu d iscurso. Q ualquer que seja a "boa vontade cultura l"
ntlo saiamos, acon tece de o grupo tomtlr~sc, /)ela renot'açào lenta ou
rápida de seus membros, realmente mn Outro grupo que [em apenas fJOu ~ expressa por ela no decorrer da entrevista, vemos como se inscreve
cas tradições comuns com aqueles que o constituÍllm no inícid'". em seu discurso a d istância objetiva q ue a separa do universo do falar
escolar. Souyla, tal como a mãe, te m um defe ito de pron(mcia: ela fala
As fa míl ias reuniJas aqui (cf. também os Perfis 4, 6, 9 e 13) , às vezes "ch" no lugar de "se" Ou "ce".
numerosas, consti tuem como que leques, mais o u menos amplos, de A senho ra B. te m 29 anos e vi ve na casa dos pais com a única
posições e de d isposições culturais, de preferências, de comporta men- fi lha, Souyla. Teve uma escolaridade d ifícil, que a levou a faze r e m
tos, de, relações com a escola, de princípios socializadores heterogê- 2 anos a 7 íJ série , numa classe pré~ profiss ion a l ue aceleração, e mais
neos, A s vezes, até o bservamos um conjunto de mati zes mui to sutil 2 anos para obter o Cert ifi cado de Aprendizagem Profissional de corte
na ex periência escolar dos diversos membros da constelação familiar. e cüstum, parando, fin almente , os estud os antes de faze r o exame:
Essas dife re nças, esses desv ios o u essas contradições no se io da "Não te rm ine i. Tava me enchendo. A esco la não me di zia nada, o ra.
fa mília (a lgu mas contradições se apresen tam, às vezes, até mesmo Preferia trabalhar". Explica q ue n ão tillha vontade de fazer corte e
nos ind ivíduos) são ta mbém relações de fo rças, te nsões e ntre dife- costura, mas que fo i influenc iada pelos pais: "Fo i quando estava na
rentes pólos familiares, e a escolarização da criança depende, e m iío, classe pré-profission al de aceler"ção que e u quis fazc r um c urso pro-
do produ to dessas relações de fo rças modificáveis pe la evo lução dos fission aliza nte. Sempre gostei de datilografia ou mcd\n ica, mas meus
destinos individuais (nascimen to de outra criança, morte de um adul- pais: 'Não, costura, costura', E eu, não era meu caso". Trabalhou como
to, part ida o u chegada de um dos membros da fa míl ia). faxi neira e depois fico u dese mpregada, após um período de doença.
No momemo da entrevista, ela fdZ um estágio Je reinserção há 5 meses:
• Perfi l 15: As contradições. "Agora, estou faze ndo um estágio, com re i nserç~o. É uma reci cl a~
SOIl)'1a B., nascida em L)'on, sem nenhWll11 refJerêllcia ('scolar, obtei.le gem oA gente te m o vídeo, tem ecologia, tem expressão oral. Isto é,
3,3 rui mJaliaçào nacional. esse estágio é pra ir pro Marrocos, e a gente faz esporte. À ta rde, a

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONfiGURAÇÕES

gente faz sempre esporte. Isto é, o que a gente quer é escalar o Atlas em que ela fa lta dois o u três dias". Esse problema envolve a con-
do Marrocos, o maior A tlas do Marrocos. É isso que é meu estágio". figu ração fami li ar e, princ ipa lmente, o papel da avó materna:
A senhora B. é mãe solteira, e não mencionará o pai de sua filha, "Falei com a mãe dela, então ela já está sabendo. Não sei por que
que nunca a conheceu. Nasceu na França, mas sua nacio nalidade ela está sempre ausente assim. Aparentemente, e la fica ria na casa
é arge lina. Seu pai, chegado em [954, hoje é aposentado, foi ope- da avó, deve te r muitos problemas de saúde , enfim, ou então,
rário em fundição. Ele nunca foi escolarizado, e não sabe ler nem basta ter qualquer coisinha, não vem. E além disso, tenho a impres-
escrever (em francês ou em árabe); fala misturando palavras fran- são que é a sua avó que m c uida dela quase sempre. A mãe não está,
cesas e árabes. Sua mãe, na França desde a idade de 16 anos, nunca e quando a mne não está, se ela não tem vontade de vir, a avó
trabalhou e é analfabeta como o marido ("Lá, ela nunca põde ir à parece que não diz nada. Porque a mãe de la, Qutra dia, me disse:
esco la; seus pais não deixaram"). Os irmãos e irmãs da senhora B. 'Não estarei no mês de junho, então fique atenta para que ela venha,
tiveram resultados desiguais na escola: ela tem um irn1ão que co m~ porque é a minha mãe que vai cuidar dela, e muitas vezes, se e la
l

pletou o 2 2 grau, uma irmã que tem um Certificado de Aprendiza- não quer v ir, e la não vem'. Então, e la me disse: IPrecisa te lefonar
gem Profissional de cabeleireiro, dois outros irmãos que pararam o nessa época'. E, aparente mente, se Souyla não pode vir, a avó não
estudos depois do gim\sio e um último que está na última série do diz nada, ora". O av iso da mãe é interessante na medida em que
2º grau (contabilidade). Compreendemos por que a senhora B. deixa transparecer a diferença de percepção da importância da esco-
marcou o encontro na escola. Vive na casa dos pais e divide um la entre ela e a avó ana lfabeta. Esta não tem, portanto, um papel
quarto do apa rtamento com a filha. Sem dúvida, a escola, mais do de socialização nulo (mesmo que se trate de uma personagem
que o espaço familiar, lhe possibilita falar mais livremente. pouco lembrada nas entrevistas com a senhora B. e com sua filha),
uma vez que sua percepção da escola tem implicações pn\ticas con-
side ráveis na freqüência esco lar da neta.
o caso de Souyla está longe de ser simples. Mesmo a nota na ava- O professor observa, portanto, um "trabalho irregular" e con-
liação não é das mais confiáveis no que diz respeito a ela, na med ida tradições no comportamen to de Souyla, que ora pe~e exercíc ios
em que, em três campos, não fez trabalhos por causa de fa ltas: conhe- suplementares, o ra não faz os exerdcios normais: "E uma meni~
cimento do cód igo, produção de texto e resolução de problemas. na que um dia vem me pedir exe rcícios suplementares e, no di a
Essas ausências parecem ser o centro do problema de Souyla. No final segu inte, quando s6 tem um exercício ge mate mática pra faze r,
do ano, o professor nos indicou que estava em 14 2 lugar, numa clas- ela não o faz. Então, bem, eu digo a ela: 'E bobagem me pedir mais,
se de 24 alunos. Não estamos, portanto, neste caso, tratando de uma se você não faz o que eu lhe dou'''. Apesa r disso, mesmo que não
situação cat..lstrõfica, mas de uma aluna "bastante média", como julgue tais comportamentos mui to sérios, O professor observa,
dizem os professores, no seio de uma classe de nível "bastante médio". com espanto, que ue la se v ira re lat ivamente bem" com ntnneros,
Desde o maternal, para o nde entro u muito cedo, com 2 anos que "não é de todo catastrófica" na resolução de problemas, e que,
e 6 meses, Souyla tem uma freqüência à instituição escolar muito finalmente, "apesar de todas essas ausências, não é totalmente
irregular, por causa, principalmente, da saúde . Os professores dessa catastrófica, porque não sei como ela faz para se recuperar".
época jtl evocam uma "criança apagada e integrando~se pouco na Nesse aspecto, as contradições apontadas pelo professor são
v ida da classe por causa de suas ausências". O professor de Souy- compreensíve is quando se reconstitui a configuração familiar da
la, da 2" série do 1º grau, destaca O problema: Souyla está "mui - criança. A pequena Souyla vive concretamente em relação de
tíssimas vezes ausente", "perdeu numerosas provas"; "há semanas interdependência com pessoas que representam universos cultu#

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONFIGURAÇÕES

rais e princípios socializadores muiro diferentes e cujas relações com pensar as repetidas ausências. Espera acompanhá- la, para que ela
a escola são extremamente heterogêneas (essencialmente sua mãe, niío perca pé na escola: "É verdade que ela está sempre doente,
os avós, um tio que está na última série do 2 2 grau e uma tia). As mesmo. Ent.ão, eu gostaria que e la não ficasse atrasada na au las,
oposições entre ausência escolar e trabalho em casa, pedido de exer- Bem, ontem ela recuperou todas as au las de uma semana. Bem,
cíc ios suplementares e tarefas de casa irregularmente real izadas colo- cu fa lo pra e la: 'É me lhor você recuperar as aulas, pelo menos ente n ~
cam em jogo diferenças entre membros da constelação familiar. Para I.. lcr, assim você será como todos os o utros'", A senhora B. diz que
a mãe de Souy la, a escola é algo importante , e ela gostaria que a ela está sempre "atrás dela" (verificando se fez as tarefas), mas fica-
filha continuasse , pelo rnenos, até onde foi seu tio: "Orfl, e la os ins~ mos sahendo pe lo professor "que acontece dela esq uecer as [are~
trui. E depois, na vida, falo dos que não esteve na esco la ... Tenho fas", Nós, entretanto, compreende mos como Souyla consegue
um colega , ele não fo i na escola. Ele fava pouco se lixando. Bem, "rccupenl r, sc": os cadernos de exe rcíc ios parauidáti cos, o tio no
ele n80 sabe ler, nem escrever. E então, prum documento, bem, e le último co leg ial que ajuda e m tarefas, corrige, eXpliGl e até lhe
precisa procurar o diretor do alojamento o u qualquer ou tro e isso ensi na coisas que e la a inda não viu na esco la, o contro le e a v i g: i ~
que eu falo que ~ pena. Falo, é melhor que a gente tenha uma pos- lância mais ou menos regulares da mãe, tuJo contribui para com~
sibilidade ue ir na escola, melhor a gente ir. Por mais ta rue que seja, pensa r, e m parte, as ausências freqüentes de Souyla, que parece
ela nos serve. Eu gostava que terminasse o colegial pelo menos. E viver quase como as crianças que fazem cursos por correspondên~
depois, ela própria, ela diz pra ela: 'Sim, eu vô até onde como meu C Ia e fora do sistema escolar.
tio, até o fim do colegial', ora. Ela diz isso na cabeça dela. Bem, Além do acompanhamento escolar, a mãe, assim como os avós,
então eu falo: 'Precisa estudar para chegar até lá'. É isso que eu tento ficam atentos às atividades e às companhias de Souyla. Na qua"a-
fazer ela entender", feira pela manhã, ela tem aula de dança, e à tarde pratica esporte
A senhora B. conhece relativamente a escolaridade de Sua filha nH escola. No sábado e no domingo, a senhora B. passeia com ela
encontra,sc regularmente com o professor e pa rece acompanhá~ c deixa que ela desça para brincar fora, mas não o tempo todo, por
la bem de perro, mesmo que fiqu emos sabendo, pouco a pouco, causa do bairro, que apresenta, segundo ela, perigos: uA gente vê
que não é e lfl, definitivamente, quem c uida, no mnis das vezes, muito jovem que a gente não conhece. E depois, nos momentos que
das tarefas de Souy la. Ela olha as tarefas com a filha dumnte o tcm CSS;;lS baderna que a gente vê nos bairros, então eu prefiro evi~
fim de semana (pode , por exemplo, pedir que ela rev ise as tabua- tar pras crianç.as, pra minha filha e também pros outros, prefiro que
das), o u então diz à filha para pedir ao professor. Durante a se ma- l'iubam) 4UC ficam aqui se tem badenla, Como ontem, aconteceu uma
na, é o tio de Souy la (3" série do 2° grau de ontabilidau e) quem badema no bairro". Ela vigia sempre a filha por uma janela: "Ela
corrige suas tarefas e, se erradas, faz com que e la refaça: "Deixo desce, uepois tem suas amiguinhas que descem, bem, é verdade que
o encargo a meu irmão mais novo, s im, como é mais instruído do t!~tou na janela e não saio dela um minuto, ora", O avô de Souyla
que t!u, então deixo que ele se encarregue um pouco", A senha, vai buscá, la na saída da escola, ao meio .. Jia, e é sua mãe quern a
ra B" assim como Souyla, até conta que o tio lhe ensina divisão, leva pela manhã e vai buscá-la à tarde: "A gente não deixa ela sozi-
ao pHSSO que o professor ainda não a abordou. É sempre o tio que nha nunca", Se a mãe de Souyla se opõe à avó em matéria de per~
lhe uiz pa ra reler, a fim de compreend er melhor, ou que lhe dá cepção da importância da escola, ela próprIa é perturbaua por uma
outros exemplos para que ela compreenda. A tia (eAP) ou a mãe contradiç.ão e ntre diferentes aspectos de suas experiências (presen~
podem também ajuuá- Ia quando não estoo trabalhando. A senho- tes ou passadas) e de suas disposições sociais. De um lado, seu per-
ra B. até comprou para a filha cadernos de exercíc ios para com- curso escolar infeliz, seu percurso profissional difícil, irregular, seus
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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

erros de sintaxe e suas imprecisões léxicas, suas dificuldades com o clais. Também lê revistas, como Maxi ou Femme Acwelle, que deno-
texto escrito e com um conjunto de coisas que lhe lembram, de perto mina de "livros". Em gera l, "evita" as páginas sobre os "problemas"
ou de longe, a esco la, sua pouca prática de leitura; por ourro lado, das pessoas, mas o lha principalmente as receitas ("É o q ue gosto
uma boa vontade culcural recente, uma particular atenção em rela# mais"). Tem o programa da televisão no Le Progres. IlH1S diz não o
ção à escolaridade da filha (ela a leva à biblioteca, compra-lhe consultar, pois isso nfio lhe interessa. Essa declaração pode, entre~
cadernos de exercfcios ... ), suas ambições profissionais e as que pensa tanto, estar matizada, na medida em que talvez nada mais seja do
para a filha, mesmo que possam mostrar-se um tanto vagas (ela gos- que o produto de um efeito de legitimidade que a excita, particu-
taria que a fi lha concluísse o 2 2 grau para '4 ser cabe leireira" ou u pro # larrnente num período de "reciclagem" e de contato com a cu ltura
fessora primária"). legítima. A senhora B. diz, com efeito, que só deixa a filha ver tele-
A senhora B. parece estar em plena fase cle mutação ou de moti- visiio entre 20 e 20h30, durante a série Madame est servie, ao passo
vação cultura l, por causa do estágio que está fazendo. Expressa suas que a filha esclarece que liga o aparelho quando tem "vontade", e
aspirações quanto a um trabalho como monitora, para ajudar os jovens prova, em todo o caso, que não está inventando ti esse respeito, c itan#
na rua, depois da obrenção de um BAFA~" e declara que, agora, a do os títulos dos programas a que assiste: os desenhos animados Club
escola lhe interessa: uOs estudos, pra mim, antes não me dizia nada, plus, La Petite Maison dans la prairie, Flipper te dauphin, Drôtes de dames,
enquanto que agora, bem, tô fazendo urna reciclagem. e me inte# Madame est servie e o filme das noites de terça-feira para as crian-
ressa cada vez mais. f eu acho que tenho, parece que, o professor de ças. E acrescenta: USe eu quero , fico acordada" e "Quando tem
francês, ele me disse que eu avaliei [por evoluí! de verdade, compa - coisa legal na televisão, eu vejo". Isso, portanto, põe em dúvida uma
rando com o início que ele me viu". Mas diz, no final da entrevis# parcela das palavras da mãe, que, sem dúvida, são incitadas pelo dese-
ra, que gostaria rambém de alpinismo, mosrmndo o frágil realismo jo de "falar bem".
de suas esperanças profissionais ("É verdade que o alpinismo, bem, Seu interesse pela leitura de livros parece ter-se constituído,
antes, eu nfio conhecia, e, então, estou começando a descobrir o recentemente, pelo estágio de reinserção. No momento. relaciona#
alpin ismo. Acho que é legal mesmo, orno Depois, escalar uma rocha do ao projeto de alpinismo no Marrocos, está lendo um livro sobre
de verdade, ver o que é, comparar com uma parede artificial, e ntão esse país (UBem, agora, estou debruçada sobre o Marrocos, pnrrl ver
eu prefiro ter uma rocha de verdade. (Riso.) É, acho que é bon ito, o que é que nos espera lá. Como não conheço o Marrocos. Entiío
ora, principalmente quando a gente chega no alto e depOis olha a é pra ver as tradições deles, é. E depois, de vez em quando, ele nos
paisagem. Eu acho que é legal"). explica o que eles comem e o que tem que ser respeitado, o que não
Encontramos a mesma nlptura entre um "antes" (o estágio) e tem de ser respeitado. Como a gente não conhece a vida deles, é
um "agora" referente às suas práricas de leitura. A senhora B. diz diferente da nossa. É isso que estou fazendo nesse momento sobre
que lê o jornal todos os dias, há algum tempo: "Todos os dias eu leio o Marrocos"). mas e la não gosta de romances (UNão me diz nada
agora. É. todos os dirls. Antes, eu não me interessava, mas agora eu de nada, ora, não gosto de jeito nenhum"). Ela fala do que está lendo
pego todos os dias". Ela compra Le Progres e fi Moudjahid (jornal com seu professor de francês, com quem se encontra duas vezes por
argelino em francês). A primeira das coisas que declara ler são "os semana e que parece ser a principal pessoa para ela nessa nova fase
classificados" (para encontrar um trabalho mesmo durante as fé rias) de sua vida: "Eu. finalmente, falo sobre isso com meu professor de
c as notas policiais. "Sempre" dá uma olhada no horóscopo, "nunca" francês, porque sei que ele é atencioso, ele nos escuta, nos diz: 'Se vocês
a política. No fi Moudjahid, ela se interessa pelos anúncios (em rela- rêm algo, bem, a gente pode discutir o livro' ". Ela também usa dicio-
ção a casas de campo, para passar férias na Argélia) e nOtas poli - nário, sobretudo nas aulas.

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONFIGURAÇÕES

Se a senhora B, vai à biblioteca municipal com a filha, todas as definições não consigo encontrar. Então tem LIma palavra que n;1o
quartas-feiras, é "sobretudo por Souyla". Pede ã bibliotecária que sei o que quer dizer. Tem uma, não se i o que quer dizer, então des is;
lhe sugira li vros para a filha, e retira, assi m, um livro de receitas para to. Então, não cons igo. As palavras e mbaralhadas, é mais prático
crianças e livros para a escola. Também compra livros como pre- pra mim". Também diz nunca ter riJo diário pessoal. Gosta ria, mas
sentes de Nata l Ou na época dos aniversários (ultimamente cinco :lcha que é muito difícil pôr por escri to, Também foi apenas recen-
livros de con tos), te mente que aprendeu, no estágio, a escrever começando por um
Seguindo os conselhos do irmão mais novo do 3" co legial, faz brainswnlling ("Então, o que eu aprendi ultimamente é fazer um
a filha ler uma página de livro todas as noites e, desde a idade de l>raimstorming [sic! sem medo, e depois tudo o que sinto, tudo o que
3 anos, lê para e la hist6 rias à noir.c: "Meu irmão me disse: 'VOll te me vem na cabeça, nurna folha e, depois, trabalhar e m c ima disso,
da r u}1,a fórmula pra que a pequena guarde bem o que você lê pra é. É isso que estou fazendo agora").
ela. E comprar um livro e ler e le. Os con ws, aos J anos, entram Ela não faz listas de coisas a serem feitas, não gosta de agendas ,
um pouco na cabeça'. Bem, é verdade, nessa idade não é s imples, porque diz não supo rtar ver as semanas passarem, não escreve car#
mas devagarinho, devagarinho. ela começava a entender. E agora tas à fa mília ou a amigos ("Não rne diz nada escrever"), exceto se
está entendendo bem". A esse respeito, a filha faz um julgamento os pais lhe pedem para ter notícias da família na Argélia, e "nunca"
escolar negativo sobre o modo de ler em voz alta da mãe , exp li - faz listas das coisas a sere m levadas numa viagem ("Tudo de impro-
cando-nos que "ela lê depressa", ao passo que ela própria lê como viso, eu improviso no último momento. Não esquento a cabeça com
"precisa" ser lido ("Eu faço como precisa ler"), As mesmas COntra- isso"). Também não redige listas de coisas a serem ditas antes de
dições se Hpresentam à senhora B" principalmente no leque de suas telefo nar, e conta que foi censurada por isso no estágio. A prepa-
pníticas com uns de escrita: a regularid ade das práticas de escrita ração escrita, que ret ini a espontane idade do discurso, incomoda
passadas ou recentes caminham lado a lado com a rejeiçiio de cer- a senhom B. Portanto, aO mesmo tempo. diz de sua dificuldade dian-
tas fo rmas do texto escri to, e o desejo de escrever pode, às vezes, te dessa planificação escri ta do que va i dizer e de sua preferência
ser paralisado pelo medo de cometer erros ou a angústia de ter de pela espontaneidade da fala, pelo senso lingüístico l)fático: "O dire-
encontrar palav ras ... ror lá onde eu fazia meu estágio me disse: 'É melhor anotar, dizer
A ajuda buscada para determinados textos escri tos é, inicial- antes para saber o que se quer dizer a um chefe'. Mas e u improv i ..
mente, sinal de pouca habilidade de escri ta. A sen hora B. redige as so no último instante . Não esq ue nto a cabeça. Não gosto de ano ..
cartas às repartições com as qua is tem en vo lvimento, com seu gu ia ta r toda vez e, depois, olhar minha lista. Isso me perturba um
de correspondência ("Pego o modelo. É, leio bem o modelo e, depois, pouco. Eu, é verdade, eu, esses negócio, não gosto de jeito nenhum.
escrevo minha carta!!), e também pede aj uda ao irmão mais velho; Isso me incomoda muito. Tentei. A gen te queriél organ iza r uma v ia ..
o mesmo acontece com os bilhetes endereçados à escola, pois te m gem para os desempregados que recebem o RMI, en tão, a orienta ..
dificuldades com ortografia. É também o irmão q uem lhe preenche dora nOS preparou a lista, então, como era eu que telefonava, aqui ..
a declaração de impostos. Da mesma forma. quando resolve caça- lo me incomodava muito. Então, eu falei: 'Eu pre firo improv isa r'.
palavrasi não gosta, porém, de palavras cruzadas, por causa d::ls defi~ Então . ela me falava: 'Não, não, é impormntc saber ponto por ponto'.
niçães que lhe lembram suas dificuldades escolares. É nesses momen- Então, aquilo me incomodava, mas não era sim ples. Precisava cu
tos que se percebe que a recentíssima boa vontade cultural encontra telefonFlr uma segunda vez para tornar a me exp li car como é pre~
limites nas experiências escolares infel izes: "Já as definições, 1180 ciso. Mas, depois, eu fiz sem a folha, hcin ?, não agüentava mais.
consigo encontrar elas cu mesma. Como não era boa e m fran cês. as (Riso.) É duro pra mim".

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PERfiS DE CONfiGURAÇÕ ES
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

Ela também nunca faz anmações depois ou du ra nte um telefo- Podemos concluir dando a palavra ao professor, que, ignorando
ne ma: "N unca. (Riso.) Não, eu ten to memori zar na minha cabe~ () conjunto das características singulares da configuração familiar,
ça. Depo is, mesmo que ti ver de fa zer de novo, de repetir duas mas med indo os "efeitos" através dos comportamentos e dos resul#
vezes, porque sei que tem sempre alguém do meu lado. Bem, q uan- tados escolares de Souyla, declara: "O problema é, principalmen-
do é pra uma viagem ou qualquer co isa, te m uma pessoa do me u te, as ausê ncias, porque tenho certe za de que ela teria melhores resul-
lado, e la escuta. Mas, de outro jeito, não, hein ?". Em relação às recei# tados se estivesse sem{Yre presente, regularmente , e também se fi zesse o
tas cu linárias, arranca as que estão nas revistas e as põe e m plás ti # trabalho regulanllente. Porque é a mesma co isa, um d ia não vem e
cos, ou num li vro de rece itas, mas não as copia. Também tem fez as tarefas; no dia seguinte, vem e não fez as tarefas. É. humm ...
~ l b uns de fotografias, mas não escreve nada em c ima (nem datas, muito, muito irregu lar".
nem comentários : "Não, não coloco nada, nunCCl escrevo nada. Mas podemos facilmente imaginar que a situação das relações
(Riso.) Enfim, eu, acabo reconhecendo quando ela foi feita, a foto, de interdependênc ia no se io das qua is se acha inserida Souyla é
mas não diz nada pra mim marca r num álbum"). susce tível de se transformar. A mãe pode encontrar um trabalho
En'l contrapartida, a senhora B. mantém um caderno de contas, mais va lorizador ou ver a boa vontade cultural fnlsrrada com os resll l~
desde que aprendeu a fazê- lo no curso de preparação ao CAP de cos- tados de seu estágio o u de suas tentativas de volta ao emprego. Os
tum ("Eu gosro bastante de fazer isso. Marco minhas despesas no irmãos podem deixar o domicílio familiar, e Souy la se acha r mais
mês. S im, escrevo o que gasto, o q ue retiro, o que ga nho. Eu come- solitária diante dos problemas escolares. A senhora B. pode insta-
ce i, bem, ensinaram pra gente isso quando e u estava no curso CAP lar-se num apart3mento com a filha, e Souyla pode ser forçada a
de costura. Foi ali que ensi naram pra nós, e depois eu conserve i isso uma ma io r presença escolar, e ass im por diante . Q uando tudo (a
e ac ho interessante") , escreve, às vezes, le mbretes ou deixa bilhe# situação escolar positiva ou negativa da criança) s6 se mantém por
tes aos irmãos. Também escreve, "o te mpo inteiro", listas de com# um fio, por causa de uma ausência de investimentos cultura is e eco#
pras. anota coisas num calendário e tem , e nfi m, uma caderneta pes# nôm icos suficiente mente forres, recorrentes, para impedir qualquer
soa i de endereços e de números de telefone . acontec imento perturbador, a menor modificação das relações de
As contrad ições presentes no âmago da configuração familiar força entre e lementos contraditórios pode se transforrnar em ICsuces,
e que passam pela se nhora B. são visíveis também em sua própria so" o u e m "fracasso" escolares.
rede de interd ependênc ia. Ela vive num uni verso de pessoas muito
heterogên eas do pOnto de vista da relação com a cultura legítima • Perfi l 16: Entre inquisição e indul gên ci~ .
e a escola: os pa is ana lfabe tos e uma parte po uco escolarizada de Kamel B . , nascido em Lyon, sem nenhuma repelência escolar, obteve 4 ,3
sua frátria se acham lado a lado com o diretor da escola, o profes- na avaliação nacional.

sor de francês (várias vezes c itado, e que representa um novo


mode lo de ident ificação possível) e uma outra parte ma is escola- C hegamos ao encontro por vo lta das 14h50, em vez de 15h . O
rizada de sua frátria. Essas contradições entre personage ns fam i- senho r B. ab re~nos a porta, dá#nos a mão e nos conv ida a sentar.
liares o u extrafamiliares, entre o passado e o presente drl senho ra Sua mulher está lá, assim como Kame l, que est<í doente desde a
B., entre seus diversos comportamentos, interesses Ou preferências, manhã e não foi à escola. O senho r B. é um homem mui to acolhe-
são contrad ições que podem muito be m expli ca r os resultados dor, que fa la mui to e conta inúmeras anedotas deta lhadamente. S ua
"médios" de Souyla, que vive, muito conc retame n te, no inte rior mulher fala me nos, e freqüentemente sua palavra é cortada pelo
dessas múlt iplas oposições. marido, quando seu discurso é um pouco longo. O senho r e a

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PERfiS DE CONfiGURAÇÕES
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

senhora B. discutem mui to facilmente durante toda a duração da I r"ba lhando há I3 an os, numa empresa de fabri cação de aquece-

entrevista e não parecem incomodados nessa situação, Conservam ,[. >rcs elétricos. É operá rio Pl, na função de regulador. Se u pai, que
um forte sotaque de seu país de origem, a Argél ia, e comete m hli :\ escola árabe "como devia", fazia a oração para as pessoas da
numerosas incorreções sintáticas e léx icas (e la mais do que ele), ,ddcia e possuía terras cultiváveis e animais. Sabia ler e escreve r em
mas, no geral, s50 bastante compreensíveis, .irabe e estava sempre com os livros: UPra ele , não tinha a fronte i·
No final da e ntrev ista, o senho r B. se desculpa por n ão n os ra. Ficô o tempo intero na escola. É, lia o tempo intero os li vro, assim.
ter oferec ido a lgo para beber, pois está fazendo o ra madã. Con- Se mpre com os livro. É, memo casado, o tempo inte iro lia e les. o
clui: "Bem, a gente falamos mu ito. Num se i se tá certo mas .. . ", rcmpo inteiro , até mo rrê. Se eu me lembro bem, o tempo inte iro
e n os ag radece. Respondemos que somos nós que agradecemos, com seu livro (risO), o lhava, ele falar cosas [coisas], expricava pro
mas e le afirm a que não , "rá certo", a e ntre vista lhe fez passar o nó is como a ge nte nasce , precisa sê amável. não pode roubá, pre·
tempo, e que, depOis da nossa visita, é exatamente a hora da prece, e isa segui o Alcorão, isto é, provocá as pessoa, você precisa sê amá·
"po rtanto, está bem". Sua mulher, ao fin al da e ntre vista, fo i vd, enfim cosas assim". A mãe do senhor B. não foi 8 escola e nunca
para a cozinha, e o uvimos e sentimos que estava preparando a traba lho u fora .
refeição. Antes de sai r, da mos a mão ao se nho r B., a Kamel e à A senhora B., 36 anos, nunca foi à escola. Como sua mãe era
senhora B. doente, ela é que cuidava da casa ("Mamãe é doe nte, eu ficar n a
O senhor B., de SS an os, n ão foi, durante muito tempo, à esco- casa, faz o serviço de casa" ) e trabalhou com máquinas de fia r a lã
la: "Eu, falanJo ~ incera mente. não fui na escola", Ficou 3 ou4 meses entre 14 e 16 an os. Veio para a França e m 1977, com a idade de
na escola do Alcorão, recebeu um a paulada na cabeça e nunca mais 23-24 anos, e às vezes trabalho u como faxineira: "Trabalho, vez ou
voltou: "Eu não tinha chance. Tinha um mestre que era muito ruirn outra, nas casa", Seu pai e ra zelador de escola, e ela nos diz que ele
na escola :irabe, só sabia batê. No prime iro dia que estava na sabia "lê um poquinho". A mãe não trabalhava e não sabia ler nem
escola, fo i o primeiro dia que recebi uma paulada n a cabeça. Num esc rever. O senhor e a senhora B. têm quatro filhos: uma menina
se i se e le que um dia me pegou quando (;.lva na escola e rne disse: de 12 anos e um menino de 10 anos que estão n a 4" série, Kmnel,
'Vamos lá, diga como é que as otras crianças que tão na escola (alam'. de 8 anos, que está na 2" série do I" gra u, e uma menininha de 4
Eu num ,e i o que é que eles fal a. Eu fal ei· 'Num se i n ão' . 'Você ilnos, no maternal.
n ão sabe nada', pimba! (Um gesto acompanha afala .) Eu fal ei bem, Kame l freqüe ntou a escola maternal du rante I ano apena,
então, e v i que tinha sa ngue. 'Professõ, posso i no banhero?'. Ele (entro u com 4 anos e 11 meses) e é descrito, n a época, como uma
me falô: 'Pode, pode, vai'. Saí pro banhero, fui embora, nunca mais c riança "fechada", "po uco envolvida com a classe" e cuja freqüên.
voltei na esco la. Meu pai então, dizia o tempo intero: 'Va mo , é
1
da e ra "irregular" por causa de c rises de asma. O "grau de l1latu ~
preciso i na esco la' . Eu falei: 'Não, escola não'. Ele, portanto, ridade para aqu isição da leitura" foi julgado, n a época, "med ío-
aprendeu apenas a le r um pouco e m ára be com o pai e os irmflus. c re" . Entretanto, apesar de seu fraco desempenho na avaliação
O senhor B. não sabe le r nem escrever em fran cês. Sabe apenas naciona l da 2" sé rie do 12 grau (nota 4,3), Kamel nunca repet iu
escrever e ler núme ros, de ano, é considerado "um aluno muito interessado pelo que está
Trabalhou nas terras do pai e guardou os carneiros e as cabras até faze ndo" , consegue le mbrar ao professor que e le não corrigiu seu
a idade de 17 anos. Fez o serviço militar na França, por volta dos 19 caderno, "que te m o senso da operação", "mostra lima certa auto-
anos, depois começou a trabalhar na França, em obras públicas, com nomia na vida de todos os dias", "se v ira" e "não tem de fato gran·
"o senhor Francis Bouygues, o me lhor patrão, aqui, na França". Está des deficiências", mesmo que ne m sempre faça as tarefas. Ele é o

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

a luno que, no grupo dos que conside ramos "em fracasso", pare# as mulher, não é como a gente, tem cosas pra anotá a li {riso)". O
ce ter progredido mais. , enhor B. tem um ta lão de cheques, mas pede aos ca ixas que
Podemos considerar o caso de Kamel relativamente espantoso preench am seus cheques. Entretanto, cuida das contas familiares
se o compararmos a o utros ufracassos" mais significati vos em que os e consegue calcular "de cabeça" muito bem: "Tudo coa minha cabe#
pa is têm, entretanto, um capital escolar não negligenciáve l (CAP, ç a, tudo, Il'l eS m O, não sei lê nada de nada, mas se i qua nto eu devo
por exemplo) . Entretanto, o capita l cultural não é transmitido e quando sobra, sei mais o u me nos. A ge nte não tem dinhero, dá
mecanicamente. A possibi lidade de sua transmissão tem condições exato, tenho minhas dívida. Antes de recebê o pagamento, o
sociais (relacionais) . Mas examinemos os problemas pela ordem. Por uinhero das cria nça, paga isso, paga aquilo e o resto, não se i quan-
que Kamel está com dificu ldades? Por que ele, com um capital cul- to sobra . Vó fazer as compra. As coisa, a gente não pode compn\
tural familiar no grau zero, tem menos dificu ldades que outras crian- todo mês, hein ?Tem veiz que eu compro. Das veiz, falta um poqui-
ças oriundas de meios mais bem-dotados? nho, das veiz sobra um poquinho. Pergunto no banco quanto fi cô.
O "fracasso" relativo de Kamel é compreensível se considerar# Como tenho minha casa , é lá que paga, o aparta mento comprei
mos O conj unto do capital cultural familia r à sua disposição. Ini- a prazo, então só obrigado a perguntá quanto eles cobraro do apar-
cialmente, tem pais que falam um francês rnuito aprox imativo e que tamento, algu mas prestação também. Fica quanto, fica isso, e
não o põem em contato com lima cultura comum da escrita. O senhor qua nto fica eu ano to. Vixe, os n úme ro, s im, sim, cu se i, c u sei ca l#
e a senhora B. não sabem ler e quase não possuem nenhum livro. cu lá, qua nto e tudo". Quanto aos nluueros de telefone, o senhor
Não têm o A1cordu, mas conhecem preces "de cabeça": "Assim, como B. diz que tem alguns marcados numa caderneta, "ou então, minha
a gente diz: 'A, B, C, D'. Assim, de cabeça". Não compram livros filha va i procurá no livro [a lista]. Acha logo de cara". Mas a senho-
para os filhos ("A h não, não vou menti. Não, acho que não com- ra B. sabe aproximadamente cerca de vinte números de telefone
prei, hein, Kamel?"), exceto quando eles lhes pedem (caso de um Je cor. Quanto às compras, o senhor e a se nhora B. não têm lis-
livro de Cálculo). A leitura está tão longe de suas preocupações !"aS de compras: "De cabeça, assim . Das veiz, a gente acaba esque-
comuns que, quando perguntamos ao senhor B. qual de seus filhos cendo alguma cosa" .
lê mais, ele responde: "Ah, isso a gente não prestó atenção". Kamel O senhor e a senhora B. têm um conhecimento ape nas muito
declara que gosta de ler "méd io" e não hesita em dizer que prefere vago da escola. O senhor B. não consegue c itar as classes nas quai
ver televisão a ler. Se toma emprestadas histórias em quadrinhos seus filhos estão escolarizados, e é Kamel quem responde em seu lugar.
na biblioteca da escola (Astérix e Obélix, Lucky Luke .. .), não conta As dificuldades de Kamel não são, de fato, percebidas, por ainda
para ninguém em casa. não ter sido reprovado e por estar em séries iniciais: "Isto é, e le , não
Quanto à escrita, o senhor e a senhora B. se viram com a aj uda sei ainda, porque ainda não tã na secundário. No momento, tá
de uma rede de vizinhos conhec idos. Q uando há cartas um pouco I11do bem ele. T á bem na escola. Não é como seus irmão. Seus irmão
complicadas de escrever ou formulários de impostos a serem preen- começa a caí. Ele, até agora, sempre ele me traiz o bolet im, ele tã
c hidos, u a gente pede a v izinhos", a "c hefes" no trabalho, que são contente e tudo: 'Olha, papai, 9, 10,9,8, droga'. Pra ele, vai bem .
"mui to amáve is", ou en tão aos filhos (essencia lmente a filha mais Os problema pra mim, pra mim, é a menina". O senhor B. parece
velha). Os bilhetes destinados à escola são redigidos pela filha mais representar as dificuldades escolares como dificuldades crescentes,
velha ("Ela é me io in te ligente "), ass im co mo as guias méd icas e ,i medida que as crianças crescem. Éevidente que os pais não podem
as ordens de pagamento que têm de ser preenchidas. É sempre ela .ljudar Kamel em suas tarefas, e ele fica nos horários de estudo livre:
quem anota coisas num calendário árabe, a pedido da mãe: "Porque ·'E é 1,\ que ele faiz a tarefa. É melhor pra eles, porque eu, se tem

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

alguma cosa que não entendo, eles pode perguntá pra professora. E ra B. reconhece facilmente que as crianças preferem a atitude do
aqui , O que é que e le pergunta' Papai não sabe nada. Assim é pai: "As criança, eles gostam dele, não de mim. Eles gostam dele,
melhor". A irmã o u o irmão que estão na quarta série é que o aju, hein?, por causa que e le não bate nelas, é isso", tem, portanto, um
dam em suas tarefas e verificam se e le as fez. papel difícil de desempenhar. Às vezes, acontece de ela até ter de
ll
Além do mais, Kmne l fica entre o pai, que ocupa o pólo da indul- recorrer à força para fazer ouvir seu "ponto de vista liA cinta, a :

gência, e a mãe, que, não aprovando o lax ismo do marido, detém c inta. Ela bate, bate, bate". Kamel, portanto, v ive entre esses dois
o pólo inquisitorial em todos os campos, mas principalmente nos pólos, e não encon tra no comportamento patenlO o me io de "se ape ..
do trabalho escolar e das regras famil iares. O pa i te m tendência gar" ao trabalho escolar que, dados os investimentos familiares,
a não puni -lo quando tem notas baixas (ameaça-o, apenas se repe- não é nada natural para e le.
tir, de tranccíAo no porão, e lhe promete, se passar, comprar, lhe Mas a situação não é simples. Inic ialmente, o senhor B. é anal-
"alguma cosa que gosta mu ito"), pois, não sabendo le r nem esc re, fal1Cto, mas não complexado por sê- lo. Os filhos desempenham, dian-
ver, não se sente legiti mado a forçá- lo a ler: "Eu, é por isso que eu [C dos pa is, papéis de intermediários cu ltu rais. Os pa is legitimam,
não vigio muito eles. Porque não sei lê. O que é que vocêis que- assim, seus conhecimentos escolares. Por exemplo, o senhor e a senho,
rem que eu digo, hein? Se eu, se eu dizê pra ele isso ou aqu ilo, ele ra B. recebem uma programação de televisão, mas são as crianças
me diz: 'Ocê num sabe lê'''. Ele só pergunta raramente sobre as tJue a consultam e lhes ind icam os programas: "Pra vê o que é que
tarefas ("Eu não pergunto muito nno"), e não o obriga a fazê, las rem, é obrigado, é as criança. Porque eles é que sabe lê, é eles que
durante as férias ("Ah, não! Nunca! Nem ele, nem seus irmão. Ele tala: 'Papai , tem um bom filme assim, ou um filme que num é bom'''.
fala: 'Tõ de férias"'), ao passo que sua mulher está sempre atrás Também não sentem nenhuma vergonha em pedir à filha ma is
de Kamel a esse respeito. Também a propósito da televisão, o velha para ajudá-los com alguns dos documentos, e consideram, ao
senhor e a senh ora B. têm atitudes diferentes. A senhora B. acha contrcl rio, que isso é um sinal de "in teligência". Da mesma forma,
que Ué me lhor a esco la'! do que a televisão. Seu marido diz: "Ah, durante a entrev ista, a ajuda de Kamel é solicitada pelos pais para
sim, e les vê te levisão, o te mpo intero! O tempo intero assim, ela ler o título dos livros que estavam na sala de jantar: "A gente tem
fala pra eles: 'Prá cama!'. Eu fa lo: 'Não, deixa, deixa, deixa eles um, cê vai buscá ele, Kamel l"; "O que é isso, Kamel, o que que tem
vê'. Eu é que tô e rrado, e u se i". aí dentro?"; "Vai buscá otro lá atrás na esquerda". Assim, existe, no
O senhor B. se mostra mais como uma espécie de "supervisor" seio dessa configuração familiar, um lugar legítimo para escolares.
em relação aos resultados escolares: é ele quem assina o boletim de E isso não é nada. Na impossibilidade de ajudar os fi lhos, esses pais
notas e é a senhora B. que tem a responsabilidade da exigênc ia coti- sem capital cultural também não têm tendêncill a transmitir-lhes
diana de vigi lânc ia, a fim de construir uma certa disciplina fami, lima relação dolorosa com a esco la e ;::1 escrita.
liar (principa lmente em relação ao universo escolar). Ela se encar- Em segundo lugar, a mãe é ana lfabeta, mas frustrada por nlio ter
rega de controlar as horas de dormir. as tarefas, as refeições, com podido ir à escola ("É pena, é pena quanto à escola"), o que a te ria
rigor: "Eu, O tempo intero, o tempo intero, é a bagunça. Ele nada, levado, pensa e la, a não ficar reduzida a cuidar da casa: "T á vendo
vê televisão, a luta de boxe, o futebo l, tudo isso e le". O senhor B. eu, sem ler, ctlsa, sempre casa na vida. Precisa não sê como eu, pre,
parece ter confiança na ilÇão da mulher: "É por isso que eu não esguen, eisa lê", repete ela para o filho. A lém disso, ela tem exemplos fam i-
to a cabeça, porque ti'> vendo o que que ela tá fazendo. (Riso.) É por liares de possíveis escolares e profissionais que estão re lacionados
isso que eu falo que num fico atráis deles, por causa que é ela. Ela " situações de grande controle das crianças. Com efeito, tem em
fala tudo, e eu fa lo pra ela: 'Você é verdadeiro um fisca!!"'. A senho- mente o "sucesso" de primos ou de seu irmão ("Ler, ele é bom nisso.

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONfiGURAÇÕES

Não é como eu"} que galgaram as esca las da hierarquia social por A lém do mais, Kamel, e é o próprio pai que O diz ("Ele é menos
causa do investime nto escolar significativo (seu irmão completo u ,lifíc il que os irmão, porque os irmão já passô por isso. Ele, se rem
o 2· grau, e alguns dos primos são méd icos, dentisras ou engenhei- "m problema, pergunta pros irmão, mais o problema é a menina,
ros). C uida, portanto, continuamente, das horas de dormir, das I'<lfque é ela que é a mais grande. Se ela pergunta alguma cosa , ela
rarefas, das saídas da escola, da relev isão, das horas das refeições: va i perguntá pra quem? Eu num sei lê, a mãe num sabe lê, é obri-
"Ela vê isso [o "êxito" dos primos da mulher], ela esquenta a cabe- gada a ir nos vizinho pra pedi pras meninas mais grande"), não está
ça, 'Por que não meus filhos?'. Então, começa a barer quando e les na situação de sua irmã mais velha, que não tinha ningué m para
se faz de idiota'\ resume o pai. 'Ij udá-Ia nos afazeres escolares. Com o irmão e a irmã escolarizados
Mas apenas e la está e mpregando, com pulso, uma concepção na 4" série, ele tem, de qualquer forma, próximas a ele, duas pes-
moral, central na enrrevista, qu e o marido divide com ela : é pre- soas capazes de dialogar com ele sobre problemas escolares. Essa é
ciso agir corretamente, obedecer, não fazer bobagens, não roubar, uma razão suplementar que possibilira compreender o fato de que
não insultar, não ferir'il ... A esco la, entre o utros , fa z parte dos Kamel estej a em ufracasso", mas não mais do que outras crianças
loca is onde é preciso comportar-se bem; o invesrimen to ou a que pertencem a me ios sociais objetivamente mais bem dotados.
"mobilização" familiar não são, esrriramente, de ordem pedagó-
gica ou esco lar, mas moral. Por exemplo, o pa i conta, no decor- • Perfil 17: Uma relação de força cultu ra l.
rer de um longo relato, como brigou com uma caixa de loja que Yassine M" nascido em Bron, sem nenhuma repelência escolar, obteve
não queria acreditar que lhe rinha devolvido dinhe iro demais, e 7 na avaliação nacional.
faz questão, com esse relato; de provar·nos a honestidade que
emprega na vida coridiana. Ele rambém diz rer ficado desgostoso No dia do encontro, são as irmãs mais velhas de Yassine que nos
c afi rma rer rido vergonha ao ficar sabendo que um professor foi abrem a porra. A mãe esrava fazendo bolac has com ourras mulhe-
espancado por um árabe, numa fes ta da escola: "Nunca v i isso ! É res e pára para nos vir c umprimentar. Vendo que vamos gravar, as
uma vergonha! Bater num mestre que e nsina as c rianças na esco. duas irmãs decidem fazer a e ntrev ista e m seu quarto, para ev itar o
la, isso não existe aqui e m casa. Isso, com os árabes, isso não exis. haru lho das panelas c da relevisão. A prima delas as acompanha.
re. Ah, juro que não ex isre! Bater num, olha eu, a prova, eu já No quarto, há duas camas e uma pequena escrivaninha, uma estan·
disse pra voce is, que ele me abriu a ca beça e que que meu pai fez, te com firas-casseres, cerca de trinta livros de bolso e uma coleção
e le me falô: 'Bem feiro pra você'. Com a gente, norma lmenre, a completa de "Tout l'Univers", que, visivelmente, fo i muito usada
gente não dá quei Xi.l na po lícia quando um mestre bate num meni. e foi comprada para ajudar as crianças em sua escolaridade.
no, não, isso não ex iste! Quando me contaro isso, eu fiquei loco, No início da entrevisra, a mãe nos rraz café e bolachas que esrá
rinha vergonha, eu aré nem mais queria i n a escola. Fo i minha assando. As meninas não comem porque esrão fazendo o ramadã. A
mulher quem me empurrô. Não precisa dizê besrera, é. Eles nos senhora M. volranl para oferecer mais café, e iremos embora com
dão a escola e rudo pra fazer meus fi lho inteligente, e tudo , e barem "m saco cheio de bolachas. Em alguns desses momentos, nós lhe fare-
na gente, isso nunca. Um mestre, a gente num bate num mestre, mos perguntas, que e la responderá, merade em dia leto cabila (rra-
não existe batê num mestre, oh~l !". O senho r B. insiste, enfim, nas ,luzido pelas filhas), merade em francês. O pai esrá presente no apa r-
am izades dos filhos: conhece os amigos com quem Kamel brinca ramento durante a entrevista, mas está em scu quarto dornlindo. Assim
na rua, e sabe que os pais dessas c ri anças as "educam bem", senão mesmo, a mãe irá ao quarto pedir-lhe uma informação, apesar de nos-
não O deixar ia brincar com elas. "" diversas rentativas de lhe dizer para não incomodá-lo.

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

São, portanto, as duas irmãs que respondem às nossas pergun~ Illuito"; "segunda irmã"; "Ela não se interessa pelas aulas. A gen te
tas. Falaremos delas dizendo "primeira irmã ll e "segunda irmã". A n:io sabe como fazer com ela. N ão se i se é o período de adolescên-
primeira tem 16 anos, nunca repetiu e está na 2i! série do 2 2 grau c ia".); um menino de 8 anos, Yassine, c, enfim , um último menino
(contabilidade). A segunda tem 18 anos, repetiu a 3" série do I " de 7 anos que está na I" série do 1g grau ("Precisa ajudar ele").
grau, t irou um diploma nacional de sa lvame nto, está se preparan- Yass ine, que, é importante dizê~lo, freqüe nto u a esco la mater,
do novamente para poder conseguir o Certificado de Conclusão do nal bastante precocemenre (2 anos e 7 meses), de maneira regular,
C urso de 12 G rau Profissionalizante de Secretariado, pois foi repro- é, segundo sua professora, um aluno "perfeitamente integrado no
vada no ano anterior e gostaria, eventualmente, de se tornar enfer, . . istema escolar", "muito sério'\ "concenrrado", "muito estudioso",
meira de amb ulância ou então conseguir obter O Diploma Técni- "n1uito ate nto", que "procura saber", "quer tudo", tem usede de
co Profiss ional de 2 2 G rau de Secretariado. aprende r" e não te m "grandes pontos fracos", à exceção de sua
O senhor M., na casa dos 50, é operário qualificado, eletricista "hase lingüística", qualificada de "frágil". Segundo ela, "na base, deve
da Compan hia de Eletricidade de Lyon . C hegou à França em 1962 :;cr sólido, deve haver lima boa estrutura familiar". Entretanto, não
e, na Argélia, tinha ido à escola até a 5" série. Lê e escreve em fran- é tão simp les ass im. Yassine é cercado por uma constelação de pes-
cês e fala francês com os filhos, com uma pronúncia nem sempre muito , oas muito diferentes do ponto de vista dos percursos escolares. A
"correta" ("Quando ele fala francês, tem vezes, ele deforma palavras"). configuração familiar na qua l v ive não é abso lu ta mente coerente,
Seu pai traba lho u na França como operário, e a mãe ficava em casa. homogênea culturalmente. Estamos diante de um caso típico em
A senhora M., de 45 anos aproxi mada mente, não trabalha. Nunca que é difícil falar de uma conformação exterior familiar coerente,
foi à escola, é analfabeta , fala francês com muita dificuldade ("Ela produtora de disposições gerais inteiramente orientadas pelos mes-
entende razoave lmen te bem, mas tem dificu ldade pra expressar-se") mos princípios de direção. Yassine vive, concre tamente, no seio de
e fala dialeto cabila com os filhos. C hegou à França com eles, há 17 um espaço de socialização familiar com características var iadas e exi~
anos. Seu pai era servente de pedreiro, tinha ido à escola e sabia ler gências variáveis, o nde exemplos e contra ~exe mpl os estão lado a
e escrever em francês . A mãe não trabalhava e era analfabeta. A famí- lado, onde princípios de socialização contraditórios se entrecruzam.
lia M. é composta de sete filhos, que vivem todos no mesmo apar- Por um lado: uma mãe analfabeta, q ue fala francês com dificul-
tamento: o mais velho, um rapaz de 23 anos, que chegou à França dade e se dirige aos filh os, no mais das vezes, em dialeto cabila, um
com a idade de 6 anos, teve uma escolaridade difícil (realizada prin- pai q ue não lê quase nada (salvo a correspondê ncia e a programa-
cipalme nte em classe pré-profissionalizante de aceleração: "Meu ção da televisão), um irmão mais velho que teve grandes proble-
irmão mais velho, que tem 23 anos, bem, quando ele chegou na França, mas escolares e tem mui tas dificuldades com a língua escrita ainda
ele tinha 6 ou 7 anos, e não sabia falar nada de francês, portanto tinha hoje (UEle não sabem escrever bem, he in ? Enfim, sabe escrever, mas
dificuldades de se adaptar".) e está trabalhando como temporário ("Ele tem palavra que ele modifica"), uma irmã na 6'i! série, que parece
vo lta pra casa, come e, depois, volta [I sair, e , depois, a gente não não apreciar a esco la, uma irmã que está fazendo de novo o último
sabe o que ele faz"); a Ilsegunda irmã"; "a primeira irmã" (da qual a ano para consegu ir o Certificado Profissionalizante de \" Grau,
"segunda irmã" diz: "Em casa, era a caxias. (Riso.) Me lembro que, irmãos e irmãs que, freqüentemente, repetiram de ano e que, no todo,
no } 2 co leg ial, e la estudava até meia~noite, 1 hora, e ficava cansa~ não são le ito res particularmente [lssíduos o u apaixonados ("A gente
da , ora".); uma garota de 15 anos, na 8" série (série que está "repe- não lê muito"), alé m das obrigações escolares (3 "segunda irmã" até
tindo"), e que fez duas vezes a pré-escola; uma garota de 14 anos, Jiz que tem "horror" de ler). Por o utra: exemplos, todavia, de aces-
que cst..l repetindo a 6í! séri e (Il prime ira irmã": "Ela não estuda so ao ginásio ou ao colégio , um pai que é operário qualificado

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS OE CONFIGURAÇÕES

(mesmo que seja do primeiro nível da hierarquia: PI), que foi à esco- n> do classe" e "vá indo pra melho r", de qualquer forma, é preciso
la até a 5' e cuida de todos os documentos famili ares, e uma irmã "ficar atrás dele" {parece ter o sentimento íntimo do esforço a ser
de 16 anos (a "cabeça" da família) que lê um pouco mais do que O (cito para conseguir manter a vantagem escolar durante muitos
resto dos filhos (mais livros de "aventuras", tais como Jamais sans :1nos) ; o pai deixa o filho ver televisão 11 no ite , ao passo que a irmã
ma filie, de Betty Mahmoody) . () obriga a ir deitar-se ("Às vezes, a gente obriga eles, mas porque
Yassine tem, portanto, o exemplo de um pai escriba, absoluta# rneus pais mimaram muito eles. Eram os últimos"), porque te m aula
mente autônomo. Exceto os bilhetes referentes à escola que as duas no dia seguinte (a relação de força é, neste caso, mais a favor do
irmãs redigem, na medida em que são elas que cuidam da escolari- pai: nAh, de ixa eles, deixa eles, mais cinco minutos, dez minutos,
dade de Yassine, c que ele se contenta em assinar, o pai escreve usozi# deixa eles, são pequeno ainda". "Mas a gente os obriga, grita: 'É, ama·
nho" as cartas às repartições, preenche o formulári o de impostos e nhã você tem aula, começa às 8 e meia, já dev ia estar na cama'.
os c heques da famíli a, manté m as contas por escrito , deixa, às vezes, Depois, ele não nos escuta, ora, visto que nossos, seu pai ... "); o pai
um bilhete aos filhos quando sa i com a mulher, classifica as foto- n~o se preocupa COl'n a escolaridade de Yassine ("prime ira irmã" ;
grafi as nos álbuns ("Ele gosta bastante de classificar") e organiza de "De jeitO nenhum, até poderia dizer"), mas antes tem vontade de brin-
maneira bastante precisa os documentos ("Ele tem uma pasta s6 pra car com ele, ao passo que a irmã se preocupa ("Só eu que o lho", con#
isso. Tem repartições onde faz a separação. E todo mês, ou a cada trola as tarefas.) ("Todas as no ites verifico o que ele faz"), aj uda-o,
do is meses, faz uma separaçiio" ). As filhas insistem particularmen- J,í- Ihe explicações, manda-o refazer ("É preciso forçar ele o tempo
te no canlter ordenado de um pai que não gosta que se deixem desor- inteiro. O tempo inteiro é assim"), fá-lo falar em voz alta as lições ou
ganizados os documentos. "Segunda irmã": "N ão, todas as no tas do recitar SlIas poesias ("Porque e le, às vezes, esquece a lição, o tempo
carro e tudo, elas são arrumadas em ordem, é class ificado. Meu pai inteiro mandamos ele repetir em voz alta as lições, mas, bem, se for
é bem rigoroso na classificação. Ele gosta mesmo que tudo que é de uma poesia, bem, ele aprendeu e la, muito bem, mas se ele não acer-
carro, de um lado; méd ico, de outro. Precisa tá bem arrumado, é pre- ta a entonação, eu explico pra e le como é. Sempre que tem um
ciso não desarrumar, precisa deixar ele sossegado. Gos ta muito que ponto, precisa aba ixar o tom. Explico tudo isso pra ele. Depois, quan-
nós, a gente não tire. Enfim, a gente classifica também, ele gosta do ele sabe mais ou menos, deu entonação, bem, está bom"), fá#lo
muito disso"; "primeira irmã": "Ah, sim, ele classifica. Ele gosta muito ler e verifica se entendeu" , não acredita piamente nas palavras do
de classificar. É bem arrumado. Ele niio é severo, mas é severo irmão quando lhe diz que acabou as tarefas no horário de estudo livre
para ... Ele gosta que esteja bem separado, bem arrumado para um ("Sempre fi ca faltando alguma coisa. Sempre fica, mas ele mente, diz
dia que a gente tem de procurar alguma coisa, a gente ache logo, que acabou. E eu se i muito bem que ele não terminou, portanto obri#
não tem que desembalar tudo" . go ele a deixar eu ver o que ele fez") e fá-lo voltar para casa para mandá-
Mas, se Yassinc tem diante dos olhos o modelo de um pai escri - lo fazer as tarefas - "prime ira irmã": "Sempre, eu berro com ele por
ba, vive, entretanto, numa oposição de comportamento e ntre o pai causa disso ... "K-t .
e a irmã de 16 anos: o pai não pune os filhos por causa de maus resul- Sabemos que o pai não fo i se mpre tão fl exível com todos os
tados escolares ("Ele não gosta mui tO de berrar com eles sobre isso. seus filhos. As irmãs eram muito mais acompa nhadas, controla-
São os do is queridinhos"), tratando os dois filhos mais novos com d,lS por ele, inclusive em relação a questões de escolaridade; a
indulgência, ao passo que a irmã uberra" com e les, como diz (UBem, I<segunda irmã" le mbra o trabalho que e le a m~ndava fazer: "Eu,
eu, pessoalmente, eu berro"), e acha que, embora Yassine tenha ufaci# ele me fazia de verdade estudar. É, eram multi pli cações, divisões.
Iidades", que "na I" série do 1º grau e na pré-escola fosse o primei- G ritava por causa disso .. 11

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PERfiS DE CONFIGURAÇÕES
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

As irmãs explicam essa transformação pe lo fato de que Yassine A criança no centTO da faml1ia
é considerado, junto com seu irmão menor, como O uqueridinho",
Se puJcrl1lo:'lll.lllhar, ~ pam o futur('I, r.1r<1c~
O caçula. Podemos pensar que o fato de que seja um garoto contri - futuro hOJc J:í prc..cnt C: :l c rianç a",
bui muito para a relação que o pai mantém com ele. O senhor M.
parece ter um carinho especial por Yassine e seu filho caçula, brin- Conhecemos, a partir dos estudos de Philippc Aries, o impor-
cando com eles, indo ao parque com eles no verão, levando-os para tante papel desempenhado pela escola na invençiio social da "infân-
comer salgadinhos na beira do lago ... Com isso, o pai não exige dele cia'\ do "sentimento da infância",
o que exigia das filhas, principalmente em matéria de organização Agrupando juntos indivíduos segundo sua iJade biológica, man-
ou classificação. Yassine não "faz nada" em casa, não arruma nada, tendo, durante muitO tempo, os alunos excluídos das atividades dos
ao contrário, deixaria suas coisas espalhadas ("Ao contrário, ele deixa adultos, numa situação de imaturidade soc ial, de irresponsabilida-
tudo espalhado pelo chão") , ao passo que as irmãs participam regu- Je provisória, da mesma forma que adaptando os conhecimentos e
larmente do trabalho doméstico, desde a idade de 12 anos, aprox i- a5 maneiras de ensinar confonne a idade (o próprio princípio da peda-
madamente. O pai, que gosta bastante, como sabemos, de que seus gogia), a escola participou da construção da infância como catego-
documentos estejam bem separados e de que suas filhas façam o ria social de percepção e organização. Com a educaçiio escolar, "a
mesmo, não exige tanto rigor do filho, que, com isso, nãa canse, família começa [...1a organizar-se em torno da criança, a atribuir-lhe
gue beneficiar-se de uma qualidade escolar a mais (o rigor, a ordem). uma importância tal que ela sai de seu antigo anonimflfo"w. Entre,
Yassine está, portanto, colocado diante de um amplo leque de po- tanto, a desigualdade em matéria da duração do tempo de freqüência
sições, de preferências e de comportamentos possíveis no conjunto à escola, conforme o meio social de origem, explica que "o senti-
dos membros de sua constelação familiar. Mas, principalmente, nos mento de uma infância curta permaneceu ainda muito tempo nas
matizes das experiências escolares de seus irmãos e innãs, na relação classes populares""".
cultural de forças que perpassa pela família, ele se beneficia muito, Não é, portanto, espantoso que a escolaridade obrigatória e o
entretanto, da presença de um capital escolar e, sobrerudo, de uma alongamento progressivo da duração da escolaridade tenham acar-
vigilância enérgica, escolarmente orientada, Ja parte de uma irmã de retado transformações nas famílias populares,
16 anos, consideradFl "a cabeça" da fal11íliaM~ , Yassine parece, por A vontade parental de preservar os filhos e de fazer com que atin-
exemplo, ter uma preferência pela leitura, graças à ;;lção socia lizado, jam aquilo que não se pôde conseguir se traduz, às vezes, pO,r lima
ra da irmã: "Yassine, ele gosta bastante de ler, Yassine. O tempo intei- verdadeira doação de si, um sacrifício de si mesmo em beneffclo dos
ro na biblioteca, gosta bastante de trazer livros e ler eles"" . Podemos filhos, isto é, do futuro (cf. o Perfil 25), O sacrifício é, inicialmente
dizer que suas qualidades - percebidas em nível escolar - de serie- e antes de tudo, financeiro, Priva,se a si mesmo para comprar para
dade, de atenção, de concentração, de curiosidade dependem de uma os filhos tudo aqui lo de que têm necessidade (para a escola ou para
situação familiar estável, voltada parfl o uêxito" social (mais ampla, seu conforto pessoal). Recusa-se que eles sofram as conseqüências
mente do que escolar) dos filhos, mas, principalmente, do papel da de uma situação econômica difícil ou modesta, e faz-se de tudo para
irmã que se atribui a missão de estar atenta às condições de uma boa colocá-los em posição de privilegiados. Algumas crianças vivem, assim,
escolaridade para os innãos, persuadida que está da importância da graças à ação voluntarista de seus pais, como pequenos#bllrgllcses ou
escola ("É por isso que fazemos eles darem duro"), "para encontrar tra- burgueses no seio de meios populares, .
balho", "para o futuro principalmente", mas também "para aprem.ler O mundo da criança se toma como que uma pequena Ilha de
alguma coisa, para ter conhecimentos": uÉ bom saber coisas"·~7 , riqueza e de luxo no seio de um universo na verdade pobre, e a crian-

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PERFIS DE CONFIGURAÇÕES
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

ça-rei se toma, então, objeto de um verdadeiro cul to familiar. O sacri- coisa assim". Atualmente, está recebendo o salário do seguro-desem-
fício é, ev identemente, também uma doação parenta I de tempo con- prego. Durante seu casamento teve se is filhos (o mais velho tem 28
sagrado ao auxílio escolar da criança. ,mos), dos quais Michel é o último. Seus filhos estudaram muito pouco
Mas, reverso da medalha do sacrifício parental, mimadas, papari- ("Eles não continuara, num ti vera nada, nada"): apenas uma con-
cadas, as crianças, vivendo em tais universos, podem, apesar de tudo, ,cguiu um CAP (de cabeleireira). Todos ocupam posições profis-
experimentar algumas dificuldades escolares, mostrando-se escolannen- sionais pouco elevadas ou precárias (prendas domésticas, para as
te como muito "nenéns", muito voluntariosas, muito desprovidas de mulheres; pequenos empregados, músico de ba ile .. . ). O pai da
senso de responsabilidade. Da mesma forma, paradoxalmente, os pais senho ra B., fabricante de bonés, tinha freqüentado a escola primá-
protetores podem acabar, por causa de seu elevado investimento na ria. Não o conheceu muito, pois ele morre u quando ela ainda era
criança, percebendo a escola como uma rival educativa. mu ito nova. S ua mãe , sem emprego assalariado até a morte do
Essa reação é o sinal de uma vontade parenta I de controle da marido, trabalhou em seguida como fabricante de bonés. Foi à esco-
sOCÍrl lizHçãn dos filhos e de uma res istência objetiva em re lação a la primária.
q ualquer ação das instituições legítimas de sociali zação sobre estas". O senhor B., de 34 anos, foi escolarizado em colégio de freiras
Em todo o caso, estes perfis mostram a que ponto os "sucessos" em até a 6" série. Fez a escola de jóquei, se fonnou c depois fez um CAPA" .
meios populares nunca são simples. Foi jóquei profissional, mas, depois de um acidente, começou a tra-
balhar como enfenneiro, depois como coordenador de estágios duran-
• Pcrfill 8: Uma situação com dupla face. te \O anos (conseguiu o diploma de habilitação para as funções de
Michel B., nascido em Lyon, sem nenhuma repetência escolar, obteve coordenador) e princ ipalmente como diretor de colôn ia de férias:
6,3 na at!aliação nacional. "Fu i coordenador de estágio, diretor, copeiro, fiz de tudo". Recen-
temente, fez estágios na ANPE (Agência Nacional para Emprego)
C hegamos um pouco adiantados ao encontro. Um homem vem (principalmente sobre administração e manutenção de restaurantes,
ab rir a porta para nós, é O senhor B. (que chamaremos "seu mari- com " senhora B.), e ele também participa do programa de seguro-
do", falando com a senhora B.: na realidade, eles vivem maritalmen- desemprego no mo mento (como assegurado, está tirando sua carta
te ). A entrev ista comportará três momentos: prime iro , começamos de motorista). Seu pai tinha ido à escola até 14 ou 16 anos e traba-
com o casal, depo is o senhor B. sa i para buscar Michel, que estava lhava como cabeleire iro num hospital em Salon-de-Provence: "Ele
viajando o dia inteiro com a escola, e continuamos com a senhora fo i o primeiro cabeleireiro em Salon-de-Provence que fazia cortes
B., c, enfim, terminamos a entrev ista novamente com o casal. com navalha. E depOis trabalhou no hospital. Teve seu sa lão e tudo.
Durante todo o tempo da entrevista, a televisão permanece ligada. Depois trabalhou durante anos e anos. Ganhou a medalha de ouro
Q uando lhes dizemos q ue estamos gravando, o senhor B. nos diz q ue do trabalho, pois era conhecido no hospital e em Sa lon". Sua mãe
va i abaixar o som. De vez em quando, dão uma olhada na image m, também foi à escola primária, mas não trabalhava .
sem deixar de nos dar atenção. O senhor e a senhora B. tiveram , no início, um pouco de vergo-
A mãe de Michel, 48 anos, foi à escola até a idade de 14 anos, nha de "confessar" que ambos fazem parte do programa de seguro-
depois trabalhou numa fábrica de bonés até seu casamento. Não obte- dese mprego (dizem, inicialmente, que estão fazendo "um estágio ofi-
ve o certificado de conclusão de curso, pois faltou mui to: "Nunca cial"), e querem ter certeza de que o que vão dizer vai permanecer
consegui ele, porque minha mãe não me mandava sempre pra esco- confidencial ("Não que a gente tenha coisas pra escondet, hein ?") .
la para ficar tomando conta de meus irmãos menores ou qualquet Parecem temer os mexericos ("As pessoas extrapolam depois e,

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONFIGURAÇÕES

então ... "), tanto a esse respeito quanto sobre a diferença de idade que é bobagem, no fundo , esses jornais. A gente vê assim, m,as, no
entre eles (ela tem catorze anos a mais que ele). lundo, não precisa. A gente não vai perder tempo com isso. _E idio-
Michel, que freqüentou por 2 anos a escola maternal (entrou com ta, não?". O senhor B. diz que assina o Noullel Observareur. E difícil
3 anos e 9 meses) , é considerado por Sua professora como uma dizer com que intensidade essas revistas são lidas ou vistas, mas o senhor
criança que permanece muito "infanti l", "que se distrai muito , B. diz, falando de todas as revistas que lhes dão: "A gente fo lhe ia".
muito rapidamente", "não consegue fixar a atenção", às vezes é A propósito dos li vros, a senho ra B, ass inante há po uco tempo
"catastrófico do ponto de vista compo rtame ntal", mas que é "ori# Je France Lo isirs, diz que lia muito mais antes do que ago ra, pois
gi nal'\ "inte ligente" e "tem idé ias". O ra, a reconstnlção da confi# teve uma rápida diminuição da visão de um o lho. Diz ter lido todos
gumção familiar possibilita compreende r o conjunto dessas carac- os livros de Bernard C lavel e de Guy des Ca rs, assim como vários
terísticas escolares positivas e negativas. de Konsa lik, que qualifi ca de "romances áglla~com#açúca r": liMas,
Quanto aos investirnentos, podemos classificar, sem ambigüida# enfim, gostava muito ass im mesmo", O senhor B" que declara con#
de, as disposições sociais dos pais em matéria de leitura. Ambos, que !'icgllir le r do is livros e m uma semana, gosta de histórias vercla#
passaram pela Juventude O perária C ristã, têm uma preferência Jeiras, rea is, e não lê ficção científica. Aprecia o que o padre ope-
declarada muito grande por leitura de qualquer gênero. O senho r rário G uy G ilbert faz, de quem fa la como se fosse seu amigo, as
B.: "Estou acostumado, le io muito desde menino, c uepois, quan# histórias que falam de crianças ("SummerhiIL - Liberdade sem
do fui enferme iro, eu também lia muito, acontece, então, que perdi medo: é muito bonito"), os livros de Marcel Pagnol e os livros de
o h,íbito". Compra o jornal (Le Progres) todos os dias, mas esclare- história (tem uma coleção sobre os grandes processos da histó-
ce que, não faz muito tempo, comprava Le Monde. Diz que lê tudo ria : " Isso nos faz conhecer um pouquinho quem foram essas pes-
no jornal, "da primeira à última página". Sua maneira de fa lar dos soas"; obms sobre os tiranos da históri a, "do tipo Hitler"). Leria
jornais mostra uma concepção um ta nto quanto enciclopéd ica do um romance de ave nturas "se a aventura fosse verdade ira, sim,
saber como soma de informações sobre o mundo: "Gosto bastante mas se é uma aventura inventada, não me inte ressa, Gosto do que
de ler sobre esporte, atualidade, notíc ias policiais. Gosto de tudo, tO ve rdade, do que é rea l, ora". Apesar de sua declarada paixão pelos
porque quero esmr a par de tudo, para ter conhecimentos". A senho- livros, O senhor e a senhora B. di zem nunca discutir suas leituras
ra B. lê mais as no tíci as policiais e as nOtas de fa lec imento _ e nunca terem trocado livros entre si. Ele: "Eu leio o li vro pra mim".
"Porque a gente chega, nos falec imentos, a ver pessoas que a gente Enfim, possuem do is d icionários que dizem utilizar quando estão
conhece" - , o horóscopo, embo ra não acredite de fato nele ("Olho jogando - lI rnu ito, muito" scrabble.
assi m, mas pra me divertir, afinal" ), mas não política: "Não, não me Os jornais, revistas, livros ou autores c itados não possibilitam
interessa, fico perdida nesse assunto, não se i nada". duvidar das palavras de nossos entrevistados. Entretanto, o efe ito
Têm também muitas revistas que lhes sôo dadas pelo ex-sogro da de legitimidade está constantemente presente na entrev ista. Marca-
senhora B. São revistas variadas, mas comportam uma parte de se, inicialmente, por uma tendência do senho r B. em superestimar
Imprensa marrom: dentre e Ias, encontramos Déteclive lei Paris,
11' "
I certas práticas em detrimento de algumas outras (por exemplo, a
France-Dimanche, Le Hérisson, Paris-Match, VSD e também Seleções leitura em relação à televisão - a senhora B. diz, quando seu côn-
do Reader'-, Digesr (Ela: "Bem, aí tem histórias, dramas da vida real, juge sa iu, que ele vê televisão freqüentemente)" , selecionando, em
histórias verJacle iras que aconteceram ") . A senhora B., entretanto, seu passado ou em seu presente, as atividades mais legítimas, as que
quase como em relação ao horóscopo, faz restriçõcs em relação à valem ser declaradas (Le Monde, Le Nouve!Observareur ... ). Em sua
imprensa marrom: "Quando a gente lê essas porcarias (risos), sim, por- entrevista, Michel , aliás, não fala de um pa i leito r de livros, mas faz

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

o perfil de um leitor de jornais e até diz que não há grandes livros ra B. observa o pequeno grau de rigor do companheiro: "Leva sem-
na casa. O efeito de legitimidade se marca a inda no modo como a pre três horas. E no entanto escrevo dire itinho no papel dele, mas
senhora B. não pára de fazer restrições e m relação a certas lei turas não sei como ele se vira. Ele roda, roda, e m vez de percorre r prate-
que percebe, imediatamente após tê- las enunciado, como mais ile- leira por pratele ira".
gítimas (os uromances água~com~açúcar" , o ho róscopo visto "para O senhor e a senhora B. não têm um caderno de contas (ele: "Não,
rir", a impre nsa marrom que conté m "porcarias"). Mas o fato de que porque a gente sabe. A ge nte sabe, assim"; ela: "A gente presta aten-
lt
o efeito de legitimidade estrutura a entrevista não é desinteressan- ção não an otam nada nas agendas que possuem nem no cale n-
),

te para nós. Isso marca a crença dos pais na cu ltura escrita legíti- dário, nfio fazem anotações prévias para um telefonema (é ai nda ela
ma . Entretanto, é preciso situar as práticas de le itura de Michel num quem se encarrega de telefonar para as repartições), e raramente
contexto se m dúvida me nos "letrado" do que nos faz pensar o dis- depois de uma chamada telefônica. Em contrapartida, ambos escre-
curso dos pais à primeira vista: ele não vai à biblioteca munic ipal, veram poemas. Quando era jovem ("Era menina") , a senhora B. tinha
não lê mui to regularmente ("Depende dos momentos. Tem momen- o hábito de escre ve r poemas ("Eu tentava, e u gostava mui to, afi-
tos que Michel lê mais, depois, e m outros momentos .. ,"), e a mãe nal" ), mas não sabe se conseguiria ainda fazê-los ("Mas agora não
diz que algumas vezes deve ler "mui to rápido", pois não entende o se i mesmo se ainda teria idéias"). H::l apenas 15 anos, e la in ventou
que está lendo. a le tra para lima música, e "depois, eu grave i pra mim", diz e la. O
Segundo investimento importante: em matéria de práticas domés- senho r B. ainda continua a escrevê-los ("Ele é muitu poético") e,
ticas de escrita, os pais de Michel nfio têm nenhum problema par- às vezes, com Michel: "E, às vezes, faze m os dois juntos. Michel tam-
ticular. A ma neira como eles dividem o traba lho faz, entretanto, bé m gosta bastante de poem inhas ou inventa músicas". Aliás, o pró-
despontar, por um lado, uma divisão sexual das ta refas bastante clás- prio Mi chel diz gostar de poesia ("Adoro a poes ia") e tentar inve n-
sica'" {a mulher c uida dos documen tos do seguro social e dos docu- tar poemas. Mas acha isso difíci l, explica: "Não sei bem o negócio,
me ntos da escola; o homem, do formu lário de impostos; quanto às pra rimar". Jáaconteceu de ele escrever cartas para sua avó pate r~
cartas, o homem dita ou dá as idéias - "Às vezes, e le dita"; USe e u na ou para a prima com a aj uda dos pais ("A gente lhe faz um ras-
dito, sai melhor. Faço frases mais elaboradas, tenho tempo para ana- cunho e depois ele cop ia"), ou então redigir "cartinhas" para os pais
lisar o que quero d izer" - e a mulher contribui com "sua bela ca li- e escondê- las debaixo das almofadas: "Eu escrevo pra eles: 'Eu te
grafia": uNão, porque ele, às vezes, não gosta de escrever. Então, pra amo"'. Michel está, portanto , num universo fam iliar e m condições
e u fazer pra e le, e le me diz: 'Bem, você escreve melhor' "" e, por de lhe transmitir uma cultura da escrita.
outro lado, uma oposição entre as disposições racionais da senho- A senhora B. diz que na escola "está muito bem" em matemáti -
r." B. e as d ispos ições mais espontãnas e hedonistas de seu cônjuge. ca e em conjugação, mas que o fi lho teria problemas para com-
E ela que faz uma lista das coisas que o filho leva quando de uma preende r ce rtas palavras (não consegue lembrar-se do nome da
viagem (não para evitar esquecer algo, mas para verificar se ele trou~ "matéria": leirura-compreensão). Diz também que Miche l "estuda
xe rea lmente tudo de volta) , que escreve ou copia freqüentemente bastan te, mas é muito lento". Os pais parecem bastante cuidadosos
rece itas, que cuida da caderneta de números de telefone e de ende- quanto a Michel fazer bem suas tarefas. A senhora B. diz que "seu
reços. É ainda ela que faz a lista de compras, na ordem das gôndo- pa i olha" mala dele todos os dias, todos os d ias, todos os dias, para
las ("Não vou pôr sabão em pô, por exemplo, e depois açúcar, e depois ver se não tem papé is para assinar. Porque, às vezes, e le pode esque-
manteiga. Tudo o que é de laticínio, junto, e o que é enlatado, junto"), cer de dizer: 10lha, tem isso pra assinar', ou coisas assim", e que lia
e ele quem faz as compras. Apesar de sua lista "racional", a senho- gente pergunta pra ele todos os dias" acerca do que fez na escola. Quan-

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONFIGURAÇÕES

to às tarefas, Michel pergunta mais para o pai do que para a mãe ("A cimento (que ele próprio concebe como uma soma infinita de infor-
gente ajuda bastante ele nas ta refas"). Os exemplos que a senhora mações sobre o mundo) não foi principalmente construído na rela-
B. dá provam que eles, efetivamente, acompanham sua escolarida# ção com os livros e com os exercícios escolares clássicos, mas se cons#
de. Quando os resultados são menos bons, a senhora B. diz não con- tituiu através dos múltiplos encontros de uma vida de boêmio ("Ah,
seguir puni# lo: "Eu não gosto disso". É antes o senhor B. que "deixa você gandaiô bastante! (riso)", lhe diz a senhora B.) em que nada
ele sem jogar" durante uma semana. Os pais cuidam também de que pôde ser capitalizado (jóquei, enfermeiro, copeiro, coordenador,
Michel vá para a cama por volta das ZI h 15 quando tem aula no dia diretor de colônia, desempregado recebendo o seguro-desemprego).
seguinte. O:mhecem muito bem o professor de Michel, vão vê-lo "regu- Quanto à questão de religião, o senhor B. insiste no fato de que a
larmente" ("O mais freqüente possível") para saber se tudo está indo fé deve ser sentida do interior pela criança e nno imposta pelos ad ul-
bem e também comparece m às reuniões da esco la. tos, mostrando com isso suas disposições espontâneas e sua visão
Mas os pais de Michel parecem, sobretudo, um pouco confusos antiascéticc) do mundo: "Uma criança que é batizada é uma crian#
com as novas formas pedagógicas, embora tentem adnptar#se para ça que não sabe se vai ter fé mais tarde ou não. Uma criança que a
melhor ajudar Michel escolarmente. A senhora B. diz que ela gosta- gente manda pro catecismo fazer sua comunhão e tudo, as pessoas,
ria de ter continuado os estudos, pois não consegue "acompanharll é mais pra fazer uma festinha, pros presentes, é negócio ou oba-oba.
os "garotos de agora", e o que lhes pedem em aula. Ela dá exemplo Eu falo, se a gente mandar ele pro catecismo, é pra fazer ele sentir
da divisão: "Eles não fazem como a gente fazia na escola. Eu vejo quan- se tem fé ou se não tem. E depois não precisa forçar uma criança a
do ele faz as contas de dividir. A gente lhe dizia: 'Não, não é assi m', fazer o que ela não quer. Portanto, se aman hã ele me fala: 'Eu quero
c depois ele provava por A mais B pra nós que era daquele jeito. E ir no catecismo', matricularei ele no catecismo. Se ele quer ir na
efetivamente ele lseu companheito] perguntou então ao professor, eles igreja, levo ele na igreja. Se ele quer ver um padre, elc vai se encon-
mio fazem, não sei (suspiro). Aliás, não sei como eles conseguem encon- trar com um padre, porque eu tenho amigos padres". Ele gosta de
trar O resultauo. Não sei nada, não entendi naJa, eu". A escola se toma, contar histórias a Michel para que adormeça) com, às vezes, um IIfun#
então, a escola dos pais. O professor conta: liMe aconteceu, por exem- dinho musical", recuperando com isso hábitos adqu iridos nos meios
plo, de lhe lao senhor B.l explicar como se aprendia a multiplicação de coordenação ("Como eu fazia quando estava na colônia"). Enfim,
ou como se aprend ia a divisão, qua is eram as diferentes etapas. Bem, escreve poemas com e le. Será, então, um acaso esse padrasto "poé#
porque eu senti que ele tentav8 fazer a seu modo, portanto, para que tico" produzir uma criança 'Ioriginal", que "tem idéias", que "ê.ldora
o menino não ficasse hesitante, ou cu hesitante em relação ao meni~ a poesia", mas que, às vezes) não consegue entretanto "concentrar#
no, bem, eu lhe expliquei como a gente fazia". se" numa tarefa escolar precisa) que "não consegue prestar atenção"?
É o senhor B. que mais cuida de Michel do pontO de vista esco- As disposições espontâneas do senhor B. (já visíveis nas práti-
lar. Ora, o senhor B. tem um perfil cu ltural bastante particular, que cas de escrita), mistura de d isposições culturais adquiridas no curso
é o produto de sua trajetória escolar e profissional. Tem todas as carac- de uma trajetória feita de encontros e de uma ideologia pedagógi-
terísticas do autod idata um pouco espontâneo, criativo, "poético", ca da criatividade existente em certos meios de coordenação, o levam
como diz a senhora B. Ao longo da entrev i ·ta, dirá "ser apaixona- assim a reprovar na escola o fato de elas darem Hmuita" tarefa às crian;
ll
do" Oll "não ser apaixonado" por essa ou aquela coisa e responderá ças, que não mais têm tempo para "levar sua vida de criança , para
às nossas perguntas dizendo que lê "tudo", olha "tudo", se interes- conversar Oll brincar com os pais. Sua visão aoriascética uo mundo
sa por .. tudo ..... Poderíamos dizer que o senhor B. tem o esti lo do se toma, às vezes, uma visão antipedagógica (sendo o exercício
criador aventu reiro com conhecimentos heteróclitos. Seu conhe- percebido como oposto à vida). É sem dúvida isso que leva os pais

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ue Michel a não insistirem muito para que ele faça tarefas d urante em suas tarefas, vão buscá~ lo na sa ída da esco la, procurem ° pro#
as fé rias. Se a mãe tem em vista "agora, que está começando a ficar fessor para saber se tudo está indo bem, evitem q ue ele tenha más
grande", comprar-lhe cadernos de tarefas de férias, até então, duran - companhias ou problemas com outras crianças, cortando- lhe qual-
te o verão, os pais não obrigaram Michel a fazer trabalho escolar: quer (má) amizade ("Não deixo ele brincar lá emba ixo") ... Mas, ao
"Va i depender, às vezes va i ter vo ntade , às vezes não". Esse traba# mesmo te mpo, é esse universo pri vilegiado no seio de uma família
lho parece depender dos desejos de Michel, e seus pais rea lmente modesta que contri bui para to rná-lo "infantil", desprov ido de senso
o precisam: uÀs vezes, a gente vai dar um empurrãoz inho ne le j às de responsabilidade em relação ao que está fazendo.
vezes, a gente vai de ixar ele um pouco". Conjugada à atitud e pouco É preciso observar que Michel faz parte das crianças em "êxito"
auto ritéri a da mãe , essa visão das coisas pode afastar Michel, con- que ti ve ram quedas no ano. A diminui ção de rendimento mais
siderado um aluno qlle se distrai muito, muito , rapidamente '\ do
Ll importante está ligada a uma permanência prolongada nos horários
mínimo de ascetismo escolarmente exigido ("É preciso que eu este- de escudo livre. A senhora B. conta: "Ele, no final das contas , nem
ja atrás dele sem parar", diz o professor) . chegava ~l fazer as tarefas, não se i, de via brincar, não sei o que ele
Se qllisenl1os, em tal caso, separar as características fa miliares posi# ficava fazendo. Também, é um pouco por nossa culpa, porque antes
tivas e negativas, nos defrontaríamos com a seguinte dificuldade: os ele não ficava. Não faz mu ito tempo que está fica ndo no horário de
investimentos comportam seus reversos negativos, e lima prática o u estudo livre. A gente falava: 'Ele fica no honlrio de escudo, porta n-
dispoSição fam iliar pode ser considerada tanto como um elemento to, está faze ndo suas tarefas, não precisa olhar'. Como a gente esta-
favornvel quanto desfavorável. Por exemplo, Michel se mostra, aos va errado. E, afinal, ele não fazia as tarefas. TIvemos sorte, porque o
o lhos do professor, como uma criança "paparicada", "mimada" ... professor percebeu logo em seguida e , portanto, nos av isou".
Podemos dizer q ue Michel é objeto de uma espécie de cul to fa mi- Esse acontecimento nos permite destaca r a parcela de responsa-
liar: possui sua própria te levisão, uma multidão de brinquedos ("Ele bilidade escolar nas ações que podem fazer a balança dos desempe-
tem brinquedos por toua parte. Tem aqui, te m de ntro dos armários" ). nhos escolares pender para um ou para outro sentido. Desentendi-
numerosas fi ras de vídeo ("Estão vendo todas as fi tas que tem aqui , mentos sobre o que está acontecendo nesses horários de estudo, sobre
é tudo praticamente de Michel"), é dele a maior parte dos álbuns de o grau de adaptaçiío das crianças e sobre o grau de confiança que se
fot05- "A gente t ira mui tas fotos de Michel. A té observei com meu pode depositar na instituição escolar em matéria de verificação das
filh o que ele é bonito, ele é bonito, é isso (riso )" - e é dispensado t>ltef<ls, tudo isso pode contribuir para fragilizar a situação escolar mais
de qualquer ta refa doméstica por sua mãe: "Eu papa rico mui to ele. p::lra boa de certas crianças que já estão vivendo no limi te. Para a maior
Eu é q ue fazia tudo, afinal. Não deixava ele fazer nada"" . Ela o con- parte dos pais, alheios às sutilezas dos serviços oferecidos pela insti-
s idera ta mbém como uma c riança Hmuito e vo luída": "Miche l, o que tuição escolar, o termo uhorário de estudo liv re" pode porta nto pro#
ele gosta de ler também é o dicionário, e desde que era pequeno. Ele vocar confusão.
tinha que idade? Devia ter 3 anos, porque era um garotinho, bem, Durante cerca de quinze dias, Michel não fez as tarefas, e foi só por-
não é porque é o meu garotinho, mas ele é muico, muito, muito, muito que o professor se deu conta de que a situação pod ia voltar a ser con-
evoluído, e ele começou a falar bem, bem cedo". De modo geral, trolada pelos pais"'. Mas as coisas nem sempre acontecem assim, e pode-
Michel, tendo o luga r de "caçula", está colocado no centro de todas mos dizer que a escola participa, sem o saber, da produção de certos
as atenções e de todas as admirações do casa l. mal-entendidos prejud iciais à escolaridade de algumas crianças.
Assi m, esse fato faz com que os pais aco mpanhem de perto seu Para concluir, observaremos que se trata de um casa l numa si tua~
filho, dêem-lhe o que deseja, cuidem escolannente dele, o ajudem ção econô mica mui co precária que te m um filho mais para o "suces#

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soll escolar, ao passo que outros meios rnenos privados economicamen; esta r interessados nas perguntas que lhes são feitas e, e m certos
te têm crianças em "fracasso". Isso significa que o capital econô mico momentos, até parecem arrebatados pelos assuntos abordados . Com
não está, de forma alguma, isolado das disposições sociais e da orga- idéias bem detenninadas em relação à educação de seus filhos, a senho-
nização familiar capazes de gerá-lo e orientá-lo num o u no utro senti- ra C. desenvolve, em vários momentos, suas concepções com ardor.
do. Neste caso, a preocupação com a cri ança leva o senho r e a senho- O pai de N ico le , de 33 anos, foi à escola até a idade de 13 anos.
ra B. a privilegiarem Michel e a criar e manter para ele um universo Nessa época, começou um cu rso de formação de ho rtic ul to r numa
dourado no seio de uma configuração familiar com pouco dinheiro. Escola Agrícola, mas não concluiu o curso e entrou diretamente,
"sem ir à esco la", como aprendiz numa cava lariça. Fo rmado na prá~
• Perfil 19: A cr i a nça~ re i num reino modesto. tica até a idade de l 8 anos, parece ter atualmente adqu irido uma
N icole C. , l1llSCida em Lyon , 1 ano de atraso (repetência da pré-escola, mas posição hierárquica si mbolicamente valorizada. A senh ora C. diz
rendo emrado nela com 5 anos e meio), obteve 6,9 na avaliação TUtelonal. que o marido "tem o mais alto gralt entre os cava lari ços~j óqueis ,
po is ele é "prim e iro~cava l ar i ço de Lyon", aba ix o dos primeiro,
Bate mos à porta de entrada. A senhora C. vem abrir e nos con- segundo e terceiro jóqueis, mas respon sável pela cavalariça. Seu tra-
v ida, com um leve sotaque italiano, a entrar. De imediato, temos a balho consiste em treinar os cava los, limpá-los, cuidar deles e, às
impressão de estar à frente de algu ma dessas caricaturas de habitação vezes, aos domingos, "montar" neles, "participando das corridas".
popular. Estamos numa minúscula sala de jantar de um aparta men - Seu salár io não é mui to alto (cerca de 5000 francos por mês), mas
to de dois quartos q ue parece estar em muita desordem: um sofá-cama as corridas que faz lhe rendem numerosos prêmios que lhe possibi-
de cor ve rde (ficamos sabendo, no decorrer da entrevista, que se litam "arredondar o mês" (seu salário é de, aproximadamente, 9000
trata da cama dos pa is), uma mesa redonda preta e cadeiras, nume~ francos por mês, e chega, no verão, perto de l2 000 francos, pois
rosas bibelozinhos em prateleiras de parede, vários quadros (dentre ele faz mais corridas). Seu pai era agu lhe iro n a Companhia de
os quais algumas daquelas crianças típicas de Montmartre), uma tele- Estradas de Ferro, ele ignora seu nível escolar, mas diz que ele não
visão, um cacho rro dormindo no ch ão ... Não é nada espaçoso. "lia mui to". A rnãe e ra faxineira, de vez em quando, em salas de cine;
O senhor C. está sentado no sofá-cam a, de calção, sem camisa ma. Não tinha diploma, mas lia "muitos romances, e principalmen;
e falando ao telefone; q uand o desliga, desculpa-se por nos receber te fotonovelas. Lê muito, ora, é seu passatempo".
daquele jeito. Oferece-n os um café que aceitamos. As miga lhas de A mãe de N icole, 33 anos, t inha 6 anos e me io qua ndo veio para
pão de c ima da mesa - restos do almoço - são lin1pas com uma a França. Aprendeu o francês numa escola particular mantida por
esponj a pela senho ra c., e o senho r C. dá uma vassourada ráp ida religiosas e diz que sabe ler e escrever em italiano. Tem um Certi-
para ret irar as que haviam caído no chão. Não consegue ir muito ficado de Aprendizagem Profissional de cabe le ire ira, e trabalhou,
longe, porque o espaço entre as cadeiras é exíguo . Depois, veste-se durante sete anos, como cabeleireira até o nascimento de seus filhos
quase diante de nós. Começamos a en trev ista com o casal, depois (a mais velha tem lO anos). Seus pais, que atualmente são, ambos,
o senhor C. sai para um compromisso, desculpando-se. S ua fisio- fisca is de seguro, exerceram muitas profissões na v ida, mas tiveram
nom ia é fechada: sentimos que teve, como se diz, "uma vida dura". êx ito em numerosas e mpresas que nos descreve com inluneros deta;
No decorrer da entrevista, a senh ora C. se levaritará diversas vezes lhes para destacar o fato de que levou uma vida luxuosa e desp reo-
para acender um c igarro e nos oferecerá Coca-Cola. cupada durante toda a juventud e: "Meu pai, antes de ser fiscal, era
A entrev ista é bastante fluid a e não revela ret icências por parte cozinheiro-chefe no Palais de la Méditerranée de Nice. É um gran -
dos entrevistados. Estes dão a impressão, ao longo da conversa, de de cass ino. Quando e le vem aqu i e vê que estou morando aqu i, fica

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louco, hein? Ah, é, é sim (ela ri), ele me diz: 'Mas onde é que você corridas, os contratos dos cavalos e, de tempos em tempos, dá uma
fo i ca ir, não é possível!'. Eu sempre tive casas, eram palácios, hein? olhada num jornal regional de esportes, mas nos diz não gostar de
O tempo inteiro a gente era mimada, hein 7 A gente não tinha a ler: "Porque ouço bastante as notícias todas as noites. O uço um pouco
noção de dinheiro. A gente era tão mimado, a gente vivia como as informações, porque senão, não sou muito de ler. Não gosto de
rico. Tinha tudo o que a gente que ria, saíamos de férias três, qua- ler. Não é uma coisa que eu gosto, não. É uma coisa que nunca me
tro vezes por ano, tínhamos casas, era um sonho. A gente tinha grana. agradou". A senhora C. não lê jornais; algumas vezes, lê revistas tais
Bem, é, a gente estava acostumado com o luxo. Então, a filh a dele, como Nous De",(, Intimiré, Femme Actuelle, e não tem livros de recei-
de início, foi parar num apartamento tipo COHAB (riso), mas isso tas C'Não, porque uma vez que eu fiz duas ou três vezes a receita,
me ... Eu não era uma pessoa inconseqüente. Passei do luxo ao outro num preciso mais delas, hein ? Bem , eu me lembro delas, hein?") ou
extremo sem me queixar. No entanto, acreditem~me, a ge nte tinha de tricõ ... Em contrapa rtida, diz gostar dos romances de Agatha
luxo, a gente vivia realmente como burgueses, hein? Aliás, meus Christie ("É isso que eu leio mais"), mas, na verdade, lê alguns tex-
pais têm modos burgueses em tudo. Eles não comem como Cu . tus de Agatha Christ ie que são publicados em Nous Deux e, talvez,
Minha mãe não come qualquer tipo de carne. Não come se não for muito mais histórias de amor: "Às vezes, tem algumas historinhas.
feito de certo jeito. Ela foi tão acostumada com luxo que acabo u Nous Deux é fotonovela, mas lá tem histórias escritas. Belas histó-
sendo assim, minha mãe". rias. Gosto disso, é, histórias de amor principalmente (rindo). Se fosse
Assim, ela está vivendo hoje uma situação muito mais difícil, ass im na vida real, seria bom (risada)" . Seu marido até esclarece,
que diz aceitar, embora percebamos, no todo, um pouco de sa uda - dirigindo~se a ela: "Mas cê num compra livros". "Os linicos livros
des em relação a seus anos mais dourados. Seu pai estudou até a idade que compro é as enciclopédias", declara a senhora C. T êm duas que
de 22 anos (com uma interrupção durante a guerra), e a mãe pos- compraram "para os filhos", para ajudá-los quando têm determina-
sui um diploma de esteticista. das tarefas para fazer: "Eles copiam a tarefa neles". Têm também três
O senhor e a senhora C. têm quatro filhos: uma men ina de lO dicionários que são mais utilizados princ ipalmente pelas crianças e
anos, na 3í! série (que está na mesma classe que Nicole, pois trata~ pela senhora C.
se de uma classe de 2" série do 12 grau), Nicole, com 9 anos, na 2" De mane ira totalmente clássica, é essencia lmente a senhora C.
série do 12 grau, um me nino de 7 anos, na pré,escola, e uma lilti~ que m cuida dos documentos, mostrando às crianças a imagem de
ma filha de 6 anos, no último ano do maternal. uma mãe escriba ("Freqüentemente, é ela quem cuida dos documen~
Como em outros casos, ape nas a consideração da situação pro- tos, mais do que eu mesmo"). É ela quem redige as cartas admin is-
fissional e do capital escolar não possibilita compreender o que dis- trativas (com exceção do formulário de impostos)"', quem cuida dos
tingue essa configuração familiar de outras no seio das quais a cri an~ papéis da escola, quem controla as contas, sem caderno ("Até o geren-
ça está em lIfracasso" escolar. O pai, cava lari ço~j óque i. foi à escola te do banco ficou espantado, porque nunca precisei que me tirasse
até a idade de I3 anos e não tirou nenhum diploma, a mãe tem ape- um extrato da conta pra me dizer se isso foi pago, se aq uilo foi pago.
nas um CA P de cabe leireira e não trabalha. Podemos, portanto, nos Ah , não, não, sei quase que centavo por centavo o que estou deven~
perguntar o que, na soc ial ização de Nicole, é relativamente com, dali), quem faz as listas de compras "com os preços ao lado, porque
patível com a socialização escohlr. sei os preços de cor" e quem classifica os documentos administra~
Em todo o caso, não é nas práticas pessoais de leitura dos pais tivos em pastas: "Tudo o que é orçamento, escola, filhos, tudo isso,
que encontraremos uma resposta a essa pergunta. O senhor C. lê é eu". Como eles não escrevem lembrer.es, não fazem listas das coi~
os jornais hípicos em seu trabalho para conhecer os resultados das sas a serem feitas ou levadas numa viagem, não têm agendas (a senho~

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ra C. esclarece que suas du as filhas mais velhas tê m uma age nda e início e antes de tudo , financeiro. e não é exagero dizer que as crian#
"marca m o aniversário delas, as am iguinh~ls que vão convidar, o ças vivem, graças aos pa is, como pequeno-burgueses ou burgueses.
número de suas am iguinhas") o u não escrevem nada no ca lendá~ O mundo da criança se torna como que uma ilhota de riqu eza e de
rio , é a senho ra C. quem constitui a memó ria viva familiar: "Eu é lu xo no se io de um universo, na verdade, modesto h:lI .
q ue tenho que lembrar ele de tudo o q ue ele tem de fazer (riso)". Tudo demo nstra, com efe ito, que os filhos ocupam um lugar essen-
Além d isso, marido e mulher de ixam pequenos bilhetes um para cial na vida dos pais, e estes sacrificam muitas coisas para comprar~
o outro ("Entre eu e meu marido, po rque ele se levanta às 5h (rindo), lhes o que desejam. "Eu sofri muita privação quando e ra pequeno,
e eu estou dormindo. O u sou eu à no ite, antes de me de itar, quem e ntão tento não privar e les de nada", diz o senhor C. Eles tê m apa#
lhe deixa bilhe tes prodia seguinte. Se i lá, a lguma co isa assim: 'Bom- relh o de vídeo, du as enciclopédias (uma das quais c ustou lO000 fran-
dia, amo r. Como está? Beijos', ou então: 'Es to u indo traba lhar' , 'Você cos). O filho de 7 anos tem uma televisão no quarto, um apa re lho
tem que pedir isso e isso a teu c hefe ' para que ele não se esqueça")W, de vídeo-game (de 3000 francos) . As duas filhas mais velhas têm,
e a senho ra C. às vezes escreve poemas para os filhos o u para uma e m seu quarto, uma televisão pequena, um aparelho de som, uni
a miga: "C hego a cri ar coisas com muita facilidade . (Rindo.) Aliás, radi o toca-fitas... Os pais até dormem na sala de jantar, no sofá-cama,
n em sei porquê. Não sou poeta, he in ? (Risos. ) É um dom, o ra. Tenho po is deixaram o quarto para os do is mais novos. A mãe esclarece
até uma colega de 20 anos, ela precisava fazer um poema de uma pági# q ue eles até podem comer me nos para que os filhos sejam mimados
na , e fui eu q ue fiz o poema pra ela , e ela tirou 9 . Fu i eu que fiz. Estou (por exemplo, um quarto de hotel a 900 francos a di ári a. "Com as
assim comendo, começo a pensar e invento, 3ssim, num estalo. É cria nças, gas ta mos muito dinheiro"). O luga r central dos filhos
verdade que já fiz uns bem bonitos, mas pra mim, não, eu nunca ... pode ser visto também n os á lbuns de fotografias, que são dedicados
Pra in ventar um, me vem instan tanea mente . Da última vez, inven# exclusivamente a eles; na mane ira de fazer a lista de compras, con#
tei um poema sobre as mães. Era realmente bonito, e me v inha s istindo e m anotar, prime iro , as compras que são destinadas a e les
ass im, sozinho. Não se i como é que essas coisas me vê m". ("Começo primeiro po r [LIdo O que é para as c rianças. S im, le ite,
Ésempre a mãe quem cuida dos filhos. O ra, or iunda de um me io Nescau, iogurte, bolacha, tudo o que é para eles primeiro"); no fato
socia l não operário, e la n ão te m absolutamente as mesm as disposi- de os pais não possuírem carro para buscar os filhos na escola , que
ções sociais que seu marido. Em prime iro lugar, a senhora C. viveu é o que eles desejam; no fato de que são as c ri anças q ue decidem
num meio familiar mui to abastado, foi mimada, adquiriu e desen- sobre o que vão comer no almoço ("E também meus filhos comem
volveu, nesse meio, duas atitudes que perpassam o conjunto de suas o que querem. É me us filhos que decidem o que vão com er, não eu.
palavras: por um lado, uma concepção da infânc ia que tem de ser, A liás, por causa disso, sem pre sou mui to cri t icada por minhas ami-
segund o ela, uma infância dourada, despreocupada, lux uosa, e, por gas. Porque eu, às vezes acontece de ter que fazer três coisas dife~
o utro, em relação à ex istência e m gera !, consiste e m querer ser in# rentes para o a lmoço. É, porq ue P. e Nicole querem uma coisa, X.
dependente e não se deixar enganar ali "se deixar insultar". e J. querem o utra, meu marido e eu queremos o utra. Eles não comem
Na casa deles, os filhos v ivem, portanto, como re is. São os so be- todos a mesma coisa, e isso me acontece muito. Aqui, parece até
ranos de um pequeno reino o nde os indivíduos faze m de tudo para que estamos numa lanchonete"), ou a ind ~l nos dois PEP'll1 , feitos para
ocultar as dificuldades econô micas. A vontade de preservar as crian - os dois ma is velhos.
ças e de fazê-las alca nçar aqu ilo que não se conseguiu por si mesmo A senho ra C. n ão gosta de regras muito ri gorosas em re lação aos
traduz-se , neste caso, por uma verdade ira doação de si, um sacrifício filhos. É preciso, segundo e la, deixá-los v iver, e não coagi-los como
de si e m proveito dos filhos, ou seja, do futuro "" . O sacrifíc io é, de no exérc ito: "Tenho uma amiga ass im. Eu a chamo de Gestapo, a liás.

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Tenho horror, tem de chegar às 8, às 8h05 tem de fazer isso. Aqui coisas: "Agora . e les impõem coisas. Não param de dizer pros meus
em casa não é muito rigoroso, exceto a hora de deitnr, às 8 e meia, filhos: 'É obrigatório'. E eu não paro de dizer pr9s meus filhos: 'Não
e só. Mas tenho horror disso. Na minha casa não era assim. Bem, é obrigatório, é se EU quiser! '. Esquecem que SAO MEUS FI LHOS
tem certas mães que até dizem: 'O armário de bolachas, eu fecho às PRIMEIRO, EU dec ido. Enquanto que para meus filhos, eles não
4h e meia, agora você não vai comer porque p<lSSOU da hora'. Ah, têm Odireito de ficar dizendo sempre: 'É obrigatório!'. Os meus filhos,
não, não, pra mim eles comem o dia inteiro se quiserem. Eles vol# eu falo pra eles: 'Obrigatório, eu não conheço. É obrigatório se
tam às 4h e meia e tomam lanche, e as 5h e meia tomam outro. Eles papai ali malnãe quiserem. Se papai ou mamãe não quiserem, não
abrem, fecham, fazem o que querem, não tem.,. A gente não está tem obrigação que se segure. Fui EU q ue te pus no mundo (rindo),
no exército. Eu con heço gente assim . Às vezes, eu digo a elas: 'Mas l i a sen ha r... [prOfessor
não fo l 1nem o sen h'"
ar O l'" .
[d Iretor
1150 é possível, eles não estão no exérc ito, deixa eles viverem!'''. Também crítica sucessivamente os professores que não ficam muito
Por outro lado, a senhora C. dií provas de uma relaÇ<io crítica, desen- tempo explicando várias vezes às crianças ("Agora, a gente até
cantada, para com as instituições legítimas (principalmente a esco- podia dizer que se chateiam em ficar explicando às cri anças duas
la), contra as quais ela, freqüentemente, parece oferecer resistência. ou três vezes a mesma coisa. E é só isso que eles têm que fazer, ora"),
Assim, ela não suporta que os professores possam "encostar a mão" a maneira de ensinar a nadar ("Eu acho que eles não sabem de forma
ern sua filha o u mesmo "gritarem" com ela. Para e la, a função da esco# nenhuma ensinar as crianças a nadar. Aconteceu com minha filha
la tem de limitar-se à tarefa de ensinar e não ocupar-se com a educa- Nicole, que já se afogou, hein? Levaram um ano pro recuperar ela,
ção disciplinar das crianças 'O' : "A liás. sou muito rigorosa com os pro# fazer ela perder o medo da água, hein?"), o método de aprendiza-
fessores, hein? E na escola não tem nenhum professor que vai gritar gem da leitura que compara com o que e la conheceu ("Comigo, era
com meus fi lhos ou tocar neles. Porque, e isso aconteceu não tem muito primeiro o alfabeto, Eu aprendia que "m" e "a" dava "rna", Meu fi lho
tempo ali,\s, o senhor"', meu marido foi lá pra quebrar a cara dele, lê como um papagaio. Lê um milhão de vezes a mesma frase, e depois
é verdade. Ele levantou a mão pra minha filha. Eu não adm ito isso. de um milhão de vezes, ele sabe de cor a frase. Vê ela num jornal e
Isso, pra isso, a gente é muito rigoroso. Nem sendo diretor de escola reconhece ela. Uma vez, eu disse aos professores: 'Vocês lêem como
como ele é, não ad mito de forma alguma, ninguém, hein? (Com fir- papagaios'''), e observa que, às vezes. os professores ensinam às
meza.) Nem meus pais, ninguém tem o direito de tocar em meus filhos. crianças coisas que não estão "certas".
Ésó o meu marido que tem direito. É primeiroos meus. Isso não ad mi- A senhora C. rem o mesmo torn c rítico em relaç~o à institui #
to de fomla nenhuma. Acho que um professor está lá pro ensinar-lhes, ção religiosa, confirmando a existência de uma relação rebelde mais
e ponto fina/. Eles acha m que são pessoa importante, mas fora ensi- ampla com relação às instituições: "Sou católica , mas não acredi-
nar-lhes a escrever, ler e as lições deles, fora isso, eles não têm o direi- to nern em padres, nem em freiras. Ao contrário, não posso nem
to de fazer nada. Talvez eles tenham esse hábito aq ui porque, é ver- vê- los. Representantes de Deus, aqui, 6, nada mais são do que la-
dade, tem muitas mães árabes que não falam o francês. Batem nos drões, eles, hein?", Mas sua c rítica à instituição escolar não irnpede
filhos delas e rudo e elas não falam nada. Mas comigo, eles se deram que a enhora C. compreenda a escola como um meio de acesso à
mal, hein? (Num wm finne.) Com isso, eu sou muito rigorosa. Eles independência econômica: com a obtenção de uma "boa profissão",
não têm o direito de gritar com meus filhos, por exemplo, na escola, e, quando se é mulher, tornando-se independente do marido. Ela
ou de dar~lhes um tapa, isso nem pensar! "It).f, própria confessa ser totalmente dependente de seu cônj uge, e diz
Afirma bem alto que são seus filhos e que os professores têm ten- que, se um dia não de r mais certo entre eles, ela ficará sem dinhei-
dência de esquecer-se disso quando querem "obrigá- los" a faze r as ro e sem trabalho. Independente em relação às instituições, a

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

senhora C. também deseja a independência para as filhas. Essas duas que a gente fale palavrão, coisas assim. Não quer que a gente falte
atitudes de proteção dos filhos e de controle familiar da socia liza- com o respeito com as pessoas, e, nisso, ela é muito brava. Ela não
ção deles (que leva à crítica de alguns aspectos da escola) se tra- quer que a gente rou be e que a gente co Ie "1 0<1 .
Juzem por uma série de ações socializadoras que estão longe de limi- A mãe desenvolve, portanto, entre outras coisas, uma atenção
rar~se à dimensão escolar. O "investimento" da senhora C., se é que no campo da escolaridade . É ela quem cuida disso, porque o mari-
podemos empregar esse termo por demais economista, é muito do "perde a paciência muito mais rápido" do que ela se as coisas não
mais global do que estritamente escolar. Leva, principa lmente, a estão indo bem. Sabe as classes de seus fi lhos e acompanha de perto
uma vigilância física e moral. Quando Nicole sai da escola, a mãe a escolaridade de Nicole. Olha seus cadernos todas as noites -
vai se mpre buscá-la ("Estou sempre lá"), e quando ela sai para "Assim que eles chegam da escola, olho nas malas deles!" - e
brincar, a mãe diz que tem que ficar vendo~a de lima janela e a chama esclarecendo: "Nisso, sou mito rigorosa". N icole só pode sair para
assim que começel a anoitecer. brincar com suas colegas ou ver televisão depois de ter acabado as
Também controla especia lmente as amigas, e nunca aceitaria tarefas: "Primeiro as tarefas, depois a televisão"h.ll .
que sua filha fosse brincar ou dormir na casa de uma co lega cujos Ela, portanto, faz as tarefas em casa com a mãe, que a ajuda: "Eu
pais ela não conhece: "Ah, sim, s im , conheço os pais, os irmãos, mando eles fazerem, e depois, quando acabaram, eu falo para eles:
as irmãs . Nunca ini na casa de alguém que não conheça, nunca. 'Você entendeu como você fez pra chegar nesse resultado?'. Então,
Aliás, meu filho, tem um passeio no mês de maio, pelo menos devia se ela me dizsim, bem, pergunto pra ela como ela fez e tudo. Se ela
ter. Recusei inscrevê-lo. Ele iria na casa de seu correspondente. me diz não, eu explico pra ela". Às vezes, quando a própria mãe não
Eu não sei na casa de quem e le está indo. Não sei quem são os compreende, ela telefona a uma "colega" que tem 20 anos e que ainda
pais dele. Não se i quem são seus irmãos e irmãs. Quem me diz que está na escola. A senhora C. diz que ela não deixa os filhos fazerem
não são crianças to rturadas pelos pais, eu, hein? No telefo ne, eles sozinhos as tarefas, e afirma ser especialmente obrigada a ficar lem-
podem ser bem amáveis, mas na vida, se a gente for ver, não é brando Nicole de fazê- las ("É preciso dar um empurrãozinho nela,
nada disso". Ela diz que "presta muita atenção" nisso e acrescen~ hein? pras tarefas"), pois para ela Ué lima obrigação".
ta: uPra isso, sou uma chata". Fica atenta para que Nicole vá de i ~ A mãe, que, como vimos, não tem uma prática pessoal de leitll~
ta r-se todas as noites às 20h30" \ exceto nas noites que precedem ra muito intensa, em contrapartida lê muito para os filhos . Lê para
os dias sem au la, em que ela pode deitar~se mais ou menos entre Nicole , por exemplo, pelo menos uma vez por semana, contoS de
22h30 e 23h. fadas, antes que ela durma. Mas desenvolve principalmente o con-
Fica claro que a mãe é até rnais rigorosa com questões morais do trole de leitura da filha, lendo ela própria os livros emprestados e
que com questões estritamente escolares, perdoando facilmente fazendo-lhe perguntas para saber se ela leu bem ou compreendeu
maus desempenhos, mas não transigindo com as faltas de respeito, bem: "Quando elas retiram um livro da biblioteca, eu leio ele pri-
os roubos, as colas escolares ... "Às vezes, ela me diz: 'Se você fez o meiro. E depois, quando elas me falam que acabaram de ler ele, per-
que pôde, não tem importância" ou e la me diz: (Não tem impor~ gunto a elas do que se falava, se elas entenderam, se gostaram ou
tância, você não tem muitas notas ruins'. Ou às vezes e la me diz pra se não gostaram, para ver se elas compreenderam o que leram.
tentar ter menos nOtas ruins. Senão, e la diz que vou ficar reprova~ Depois, bem, assim eu posso ver se elas sabem ler direito o u se, na
da com as notas ruins, não terei festa de aniversário. Mas é O que verdade, lêem assim, pra ficar fazendo alguma coisa, ou ... E eu per;
ela diz. Às vezes, ela nos fala alguma coisa, mas às vezes ela não faz. gunto pra elas sobre o que e las leram, ora". Ela vai à biblioteca da
Não, ela não castiga por causa das notas baixas. Mas e la não quer escola a cada quinze dias para ajudar uma professora a atender às

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERF IS DE CONFIGURAÇÕES

crianças que devolvem e retiram livros e, reforçando o trabalho peda- mento escolar está errado pelo menos num ponto: não é apenas a
gógico, pergunta em casa, como a professora na biblioteca da escola, escola que dá cultura a N icole, mas toda uma configuração fami-
do que elas gostaram e por quê: "Eu pergun ro pra elas o que acharam. liar que, com todos os in vestimentos objetivos realmente não muito
Se elas me falam: 'Não gostei', pergunto a elas por que não gostaram". excepcionais, consegue construir, entretanto, um lugar significat i#
Nicole evoca também, muito exatamente, no decorrer de sua entre# vo para a experiência escolar dos filhos.
vista, a maneira como são os encontros na biblioteca da escola e a Mas algumas disposições relativamente favoráveis para a esco-
maneira como e les são preparados pela mãe: L1Com os livros que a laridade têm também sua vertente "negativa" no universo escolar.
gente pega na segunda#feira com a senhora···, assi m que eu aca# Sabemos que, tendo entrado um tanto quanto tardiamente na esco-
bei de ler, eu dou ele pra mamãe. Falo pra ela se gostei ou não gos- la maternal (4 anos e 9 meses), Nicole apenas a freqüentou muito
tei. Se eu não gostei, eu fa lo pra ela por quê, e se eu goste i, eu falo irregularmente, por "negligência dos pais" , obse rvam na época.
também por quê, mas sem contar pra ela a história, porque a senho# Assim, Nicole era julgada "defasada na vida da classe por causa de
ra••• f aIa: 'Voces
,- vao nos exp I·Icar por que gostaram de Ie, mas não suas numerosas ausênciasll . Acompanhando seu pe rcu rso escolar,
precisam contar a história inteira'. Ela nos pergunta se a gente gos- damo-nos conta de que Nicole só se adaptou à escola e às suas obri-
tou ou não gos tou, e, às vezes, perguntam se a gente indicaria ele gações progressivamente. Aliás, a mãe observa que, quando ela
ou não, e eu falo pra ela se eu indico ou não ll 10B . passou para a pré~esco la, foram as tarefas o que e la absolutamente
A mãe pode até ajudar a filha a rom ar mais complexa a primei- não suportou.
ra leitura que tinha feito de uma história: "Eu, da Liltima vez, tinha O fa to de que os filhos sejam soc ializados com () hábiro de fazer
lido o livro e tinha gostado dele. Tinha ac hado que era uma histó- principalmente o que querem e sem preocupação C001 a mane ira
ria bonita. E elas não tinham gostado, e eu acho que elas não de obter o que desejam não contribui , ao mesmo tempo que isso os
tinham gostado porque não tinham compreendido o sentido da his- protege no seio de um universo modesto, para desequilibrá-los em
tór ia. Era uma história de racismo. Numa esco la infantil, havia re lação às ex igências e pressões escolares coletivas que se impõem
crianças negras, c rianças árabes e fra ncesas, e era uma criança árabe a todos igua lmente (não fazemos o que queremos na escola, mas o
que roubava n a escola. Roubava o lanche da vizinha, da colega e que está prev isto fazer de tal a tal hora ... )? A senhora C. expressa,
dos colegas, então ninguém gostava dele. Então elas me disseram: aliás, seu temor de que a fi lha não continue na escola além dos 18
'Não goste i desse livro porque esse menino é mau'. E eu disse a ela: anos, po is, para ela, a escola é uma "obrigação" e não uma paixão.
'Mas você entendeu por que e le é mau, esse menino , será que você A disposição que consiste em querer controlar as situações sociali-
entendeu por que ele fazia aqu ilo?'. Então, ela não tinha entendi- zadoras nas quais são co locados seus filhos leva também a se nhora
do. Então, quando eu lhe expliquei, ela me disse : 'Ah, é!' . Na ver- C . a ver na escola uma ri va l educa tiva que tenta ter a penhora sobre
dade, ele fazia aquilo porque tinha uma família de onze pessoas. Seus seus filhos, e a adotar, com isso, comportamentos nem sempre muito
pais, os dois, estavam doentes e davam de comer aos irmãos e irmãs. favoráveis à escolaridade. Assim, a senhora C. diz que, se não hou-
Ele não fazia aquilo porque era um marginal, ora . Ao passo que ela , vesse escola, ela ficaria mais contente ainda, pois gostaria de poder
imediatamente, bem em seguida: 'Ah, não, ele rouba e tudo, não cuidar soz inha dos filhos. Isso a levou a querer conservá- los com ela
gosto dele. Eu não goste i desse livro, não'lI. durante o maior tempo possível, em vez de colocá-los na escola mater-
Escolarmente, Nicole é percebida como uma aluna "ap licada", nal, sinal, sem dúvida, de uma maneira de "ficar livre" dos filhos,
"d·lscreta "OI
, est áve I" em seus desempen hos '" ,mas em quem se sente como ela o diz claramente a propósito dos horários de estudo li vre
que "o que ela ass imila vem muito da escola". Na verdade, o julga- e da cantina l 10 •

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONFIGURAÇÕES

Em conclusão, faremos duas observações a propósito desse perul. régias educativas em torno de um "projeto escolar" e conduzem os
A primeira é que, se as trajetórias da mãe e do pai fossem exatamen- fi lhos nos caminhos do "sucesso" escolari de outrO, aqueles que não
te inversas, no âmbito da própria divisão sexual dos papéis, o "suces- rêm os recursos objetivos e subjetivos para pôr em prática dete nni-
so" de Nicole estaria, sem aúvida, muito comprometido. A segunda ""das estratégias e determinada mobilização, e cujos fiLhos experi-
é que a reconstrução da configuração familiar não possibilita ver mentam as dificuldades escolares. Esse q uad ro se mostra simples e
uma separação clara entre as características familiares favoráveis à esco- esclarecedor, mas a realidade se revela um tanto quanto rebelde.
laridade da criança e as características famili ares desfavoráveis a essa Em primeiro lugar, todos os casos de "sucesso" escolar encon-
escolaridade, mas que algumas práticas socializadoras são ambivalen- rrados não dependem, ao contrário, desse modelo de mobilização
tes do ponto de vista dos efeitos escolares, nem totalmente positivos, fam ili ar em torno de um projeto escolar: o grau de intencional i-
nem totalmente negativos. dade nas condutas familiares, assim como o grau de investim ento
f~ miliar especifi ca mente voltado para a escolaridade, é extrema-
Investimento familiar positivo ou negativo mente variável. Em segundo lugar, quando ex iste, a mohi li zação
fa miliar nno ocasiona automaticamente o "sucesso" escolar. Como
N a situação social contemporânea, caracterizada por uma muito as condutas que são classificadas na ru brica tl mobi li zação" podem
grande proporção de assalariados e de exigência · cada vez mais ele- ser muito diversas e como essa mesmas condutas não são se m ~
vadas em matéria de cursos de qualificação, o diplo ma se torna uma pre coerentes com o utros aspectos das pn'iticas familiares, os efe i ~
cond ição necessária (mesmo que insuficiente) de entrada no mer- ros positivos na escolaridade das c rianças são, ainda aqui , extre~
cado de trabalho para o conjunto dos grupos sociais. Mesmo o filho ma mente diferentes.
do lavrador que quiser assumir a propriedade familiar tem ae passar Alguns pais podem, portanto, ter uma elevada expectativa esco-
pela escola e submeter-se a suas ex igências. Com a crise do empre- lar para seu filho e, com isso, controlar sua escolaridade, acompa-
go, od iploma até se toma particulanneme detenninante para se con- nhando-a e conhecendo-a em detalhes, fiscalizando e corrigindo as
seguir um emprego estável. N o âmbito dessa nova configuração tarefas, fazendo estudar durante as férias com material comprado com
social e escolar, o nde tudo é oposro à situação do século XIX (onde essa finalidade, encontrando-se regularmente com os professores,
o acesso ao emprego e, por conseguinte, às posições sociais se orga~ sancionando ou demonstrando seu descontentame nto quando os
nizaVrl, para muitos, independentemente do tempo ue escolarização), resultados escolares parecem insatisfatórios, etc. Mas a rentabilida-
o "fracasso" escolar ganha, imediatame nte, o sentido de uma rele~ de escolar desses compo rtamentos de investimento varia conforme
gação socioeconômica, e os pais dos me ios populares vão, pouco a a configuração familiar considerada.
pouco e em graus diferentes confonne os recursos e as trajetó rias fami# Em a lguns contextos familiares perpassaaos por contradições
liares, investir na escola como um importante desafio. Em certos casos, (entre as expectativas escolares e os me ios concretos para sua rea~
;) escola até pode invadir a família, que, com isso, destina a maio r lização, entre as palavras e os atos, entre os princípios alardeados
parte de seus esforços e de suas atenções para a criança. e os princípios posros em pni tica), em q ue os pais punem quando
Assim, supomos, às vezes, que é no grau de conscientização e de de maus resu ltados escolares sem ve rdadeirame nte conseguirem
mobilização familiares em relação aos desafios escolares que reside ajudar Oll dar o "bom exe mplo!!, e só incita m o filho para o traba~
o princípio das diferenças entre as escolaridades cm meios popula- lho escolar em forma de sanções, a mobilização familiar produz efei-
res. De um lado, temos aqueles que, buscando explícita e intencio- ros negativos n80 controlados (Perfil 20). Em outros casos, tam-
nalmente (e, às vezes, racionalmente) um objetivo, desenvolvem estra- bé m, a arrebatada mob ilização familiar e as numerosas pequenas

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

estratégias educarivas postas em prática mal conseguem compen- f;\bricas ou ficava em casa. O contexto fam iliar (sete fil hos, con-
sar as dificuldades familiares objetivas (cf. o Perfil 2 1 e também tando o pai de Johanna) pode explicar a situação do senhor U., quar-
o Perfil 19). to filho, que é eletricista. Com a morte de sua mãe, o filho diz que

Enfim, e m outras cond ições materiais e c ulturais e outras con# se ton10u "responsável pela família": "Perdi minha mãe, e então tive
figurações familiares, alguns pais podem, a partir às vezes de um que trabalhá, ora". Uma de suas irmãs (o terceiro filho, com diplo-
pequeno capital escolar, cuidar da escolaridade da cria nça como ma de 2" grau) trabalha, atualmente, nas Antilhas como "diretora
que para fazê- Ia chegar a um rendimento máxi mo (cf. o Perfil 22 de telecomunicação, na pesquisa". Ele não rem condições de falar
e também os Perfis 17 , 24, 25 e 26). de todos os outros irmãos com os qua is não manteve nenhuma
relação. Seus irmãos e irmãs foram à escola durante maior o u menor
• Perfil 20: Um superinvestirncnto escolar paradoxal. tem po, mas não estão privados de qualquer capital escolar. É, entre#
Johanna U., nascida em Lyon, sem nenhuma rel)etênôa esco/tlr, obre\/e tanto, necessário o bservar que, em vários momentos, o senhor U.
1,8 na avaliação nacional. parece confundir os níveis escolares: o de um irmão que está uno
1º colegia l ou na 7' série, qualquer coisa assim", ou seu próprio nível
Foi com o pai de Johanna que marcamos o encontro. De início, escolar que afirma ser a U6i! série" e, depois, em o utro ponto da entre#
escava desconfiado, reticente. Pede#nos um documento, "uma car, vista, quando sua mulher declara ter ido até o colegial, "a 7' '': "É,
tão" e só aceita a entrevism quando vê O bilhete que mandamos arra, é mesmo, não e ra 8ª, me enganei, era o mais ou menos a 7ª ", Tem
vés da escola e que sua filha não tinha mostrado (sinal da forma pela 37 anos, trabalha como eletricista em uma empresa de obras públi-
qual os documentos circu lam entre a escola e a família). cas com a qual é obrigado a deslocar-se inúmeras vezes (uma em cada
A entrev ista acontece na sala de jantar. O cômodo parece entu- duas semanas). Chegou à metrópole há 12 anos, fez um curso de
lhado - há uma mesa, um jogo de sof,\s, uma televisão e móveis formação profi sional e obteve um Certificado de Aprendizagem
diversos - e nele se circula com dificuldade. Durante a entrevis- Profissional_de eletricista. Depois, fez um em\gio de formação em
ta, a televisão está ligada. e as crianças passam inúmeras vezes eletrônica. E muito sensível em re lação às diferenças entre profis~
(para as tarefas escolares, para ouvir O que se está falando), bem sào qua lificada e profissão não-qualificada (falando do trabalho da
como vizinhos. O pai sai no deco rrer da e ntrev ista (e era princi# irmã de sua mulhe r, e le diz: "Não é um a coisa mecânica, ora. Te m
palmente ele quem estava respondendo às perguntas) , porque a prima uma diferença entre ser lima coisa mecânica e, pior, ser, bem ... ").
de sua mulher vem procurá-lo para que ele saia com ela de carro. Em re lação aos avós matenl0S. a situação parece menos favo#
A mãe toma seu luga r. Muitas das vezes, ela responde em poucas nive l: dois filhos que viviam sozinhos com a mãe, que "trabal hou
pa lavras ou balançando a cabeça. Definitivamente, a entrevista é em fábrica". A irmã da senhora U. foi até o 2" co legial, mas e la
mais uma cena corriqueira do que um momento formal, um parên- só foi até o I". Gostaria de ter continuado os estudos, mas a situa-
tese no ritmo doméstico cotidiano no qual as pessoas se dedica- ção familiar não o permitia. Tem 35 anos e trabalha como auxi-
riam inte iramente a responder a questões ou no qual as condições liar de enfermagem num hospital de Lyon. Não tem em vista tor-
nas quais a conversa se concretiza seriam controladas (limitar os nar~se enfermeira porque Uagora é muito tarde": "Com três filhos,
ruídos, as passagens das pessoas ... ). não vou muito longe" .
A fam ília é originária da Martinica. O avô paterno é apresen- O senhor e a senhora U. vivem maritalmente. Têm três filhos,
tado, por seu filho, como "subdiretor de obras públicas" e "respon- Jentre os quais um está escolarizado na 6" série (um menino), um
sáve l por tudo". A avó fazia, antes de morrer, "serv ic inhos" em na 2" sé rie do I" grau (Johanna) e um no maternal (um menino).

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

o maior já está I ou 2 anos atrasado, e o pai parece falar, a respei- qua ndo não faz as coisas corretamente, compra-lhe cadernos de
to dele, um tanto quanto incoerentemente, quando lhe pergunta- exerdc ios de férias, vai ver os professores para fazer- lhes perguntas,
mos como está indo sua escolaridade: "De modo geral, a gente tem, pôs a filha na fonoterapia (há 2 anos) ... Até podemos destacar a prá-
bem, não vou batê pa lma pra ele, mas tá indo mais ou menos bem, tica do catec ismo todas as quartas-feiras pela man hã (forma escola-
mas, nesse momento, não está lá assim". Não sabemos realmente rizada de transmissão da religião: com leitura, audições, diálogo ... )
no que é que ele quer insistir: no fato de seu filho não te r proble- c ~1 freqüênc ia ao centro de atividades extra~esco la res, indicando uma
mas na escola o u no fato de estar atravessando uma fase ruim na participação e m instâncias educativas externas. E as palavras do
esco la. Mas já até fala no passado sobre as expectativas profissio- professor responSável por Johanna confirmam realmente essa impres-
nais que tinha para e le. Ele "teria preferido" (mas o filho ainda não são: uS ua mãe se expressa bem, he in !"j "ela é muito acompanhada
completou a escolaridade) que o menino fosse mais longe que ele pela m8e, que se preocupa com e la, leva,a à fonoterapia".
e5colarmente, que tirasse o diplo ma de 22 grau, ou, melhor ainda, Mas as mobi lizações o u os investimentos familiares, ass im como
que fizesse O "mestrado" para tornar,se rnédico ou advogado, e não os investimentos objetivos dos membros da família, são impotentes,
gostaria que e le se tornasse eletricista, pintor o u mecânico. parece, para modificar o desempenho desta aluna. Com efe ito, isso
Do ponto de vista das condições familiares objetivas, nada nos nfio é totalmente exato. Tanta coerção fami liar n~o deixa de ter um
parece poder expl icar o "fracasso" de Johanna na 2" série do I· grau. efeito sobre o comportamento escolar da c riança. NHO é por acaso
Um pai operário qualificado e uma mãe empregada, um pai deten- que o professor observa que, apesar de seus mallS resultados, "ela tem
tor de um CAP e uma mãe que foi até o 12 colegia l. Tudo isso vontade", Utenta, de qualquer forma, progredir'\ "é esforçada", upro~
distingu iria mais positivamente essa família de o utras famílias obje- cura saber", e que é "uma menina muito, rnuito amável, que não tem
tivamente menos bem-dotadas. Não ape nas do ponto de vista das nenhum defeito", ou que, use aprende uma regra de gramática",
condições da vida familiar, mas também do ponto de vista do que "sempre se lembra o u é capaz de aplicá- Ia". De qualquer forma,
alguns chamam de a "mobilização familiar", estamos diante de um ca~ alguns vestígios dos comportamentos familiares permanecem: e la não
50 em que tudo deveria correr bem. Mas este não é O caso. Johanna é é uma aluna instável, indisciplinada. Entretanto, podemos ficar
exata mente a aluna de nossa amostragem que obteve a no ta mais espantados com o baixo rendimento escolar que uma tão grande mobi-
ba ixa na ava liação nacional. Experimenta, em final de ano, gran~ lização familiar produz. Na verdade, tudo isso só pode se tornar sur-
eles dificuldades em todas as matérias. Assiste-se, claramente, neste preendente se permanecermos num níve l muito abstrato de defini,
caso, a um caso paradoxal de superinvestimento escolar que não leva ção de um comportamento de "mobilizaçfio", oe "superescolarização"
aos efeitos esperados. Écomo se houvesse uma distorção objetiva entre ou de "superin vestimen to escolar", É preciso considerar um pouco
os fins visados e os meios utilizados ou detidos para chegar a eles. mais de perto as práticas e os comportamentos fam il iares, assim
N umerosos índices mostram, contrariamente ao que se imagina fre, corno ~l economi a psíquica particu lar das relações pais~filhos.
qüentemente, que não há nenhuma "omissão" dos pais, nenhum
"abandono". O pai deseja para o filho um belo futuro escolar, gos-
taria que se saísse me lhor que ele na vida, aplica sanções quando ele O pai é operário qualificado, mas tem práticas de le itura incon-
cai escolarme nte, diz a seu respeito, como sua mulher a propósito de sistentes. Prefere ver o jornal televisionado a ler o jomal. Quando
Johanna, que Ué preciso a gente ficar atds dele". A mãe controla cans, o lê, inreressa,se pelas notícias policiais e pelo futebol, mas não, tal
tantemente a fi lha, manda-a fazer as tarefas, verifica se as fez corre- como sua mulher, pela política ("A política eu não gosto muito, não
tamente, contro la suas notas, sua freqüência, pllne~a Oll bate nela é meu campo") , da qual se sente muito afastado. Foi fê de histórias

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONfiGURAçÕes

em quadrinhos populares na infânc ia (Blek Ie Roc, 2emb/a, Akim). vol ta dos 30 anos, mais do que na esco la por vo lta dos 16-1 8
Quando ele diz: "Antes, outrora, lia muito", sua companhe ira come, anos). ou como muitos empregados em contato direto com pes-
ça a gargalhar, contradizendo-o, com isso, imediatamente. Ele, soal mais qualificado (a aux iliar de enfermagem, oriunda do pessoal
e ntão, acrescenta: "Agora não tenho mais tempo, sou mais televi, de limpeza , está em contato com a enfermeira e com o médico),
são, ora". A senhora U. parece ler um pouco mais que seu compa- o pai e a mãe mantêm uma relação ambivalente com a cultura esco-
nheiro''' . Ela compra revistas (March, Maxi, Femme Acwelle) para lar, impregnada de reverência mas afastada da maioria de seus pon-
ler "no serviço", lê Té/é-Poche inteiro, é assinante de France Loisirs tos de referência, compreenderemos, então, o próprio estilo da entre-
e declan] le r um li vro por mês. Entretanto, não é, de fato, capaz de vista. Por um efe ito de legitimidade, os entrevistados sem dúvida
dizer o gênero de livros de que gosta. Como seu marido, enrola-se orientaram, consciente o u inconscientemente, suas respostas para
um pouco em suas expl icações: "Quando tenho tempo também, por- os pólos mais legítimos . Não é por acaso que a mãe não consegue
que quando a gente trabalha, hein?, mais durante as féri as, ou então deixa r de rir quando o marido diz ter lido muito "antes". Ela tam-
quando ten ho um tempo". E, mais ad iante, torna a acrescentar bém não deixará de faze r o mesmo (aliáS, o marido não estava mais
ainda: "Eu gosto bastante de ler, porque então, agora, eu leio menos ali) a propósito de suas leituras de romances, sobre os qua is não
porque não tenho tempo". conseguirá dar mui tos detalhes. Podemos, afina l de contas, per-
A mbos crêem que a enciclopéd ia é para seus filhos e não para guntar-nos que va lor devemos atribui r '15 decla rações dos pais a
eles. Q uase nunca a utilizam, tanto quanto não utilizam os dois dicio- respe ito de seus níveis escolares.
nários ("Mais para enriquecer eles, porque ele [o filho] nos faz uma O utro ponto central na compreensão desta configuração fami-
pergunta, ele só tem que olhar lá") . O ra, uma enciclopédia como a liar: a relação dos pais com a escrita. Dizem explicitamente não gos-
deles não é, sem dllvida, muito acessível a c rianças, mesmo às de tarde escrever e preferir telefonar ("Não gosto de escrever", diz prin-
6" série (principalmente para um aluno com dificuldade escolar). c ipalmente a mãe, "toma tempo"). O pai raramente se envolve com
Trata-se de um patrimõnio cultural que quase não é mobilizado a escrita doméstica e pede explicações à mulher sobre a maneira de
pelos pais e para o qual as crianças estão, sem dúvida, totalmente preencher o formu lário de impostos (ela declara isso quando ele se
despreparadas. É um patrimônio cu ltural morto, não apropriado e ausenta por um instante). Mesmo que haja um ev iden te desequilí-
impróprio. Mas haverá metáfora mais perfeita para um patrimô nio brio do ponto de vista das tarefas domésticas de escrita "a favor" da
cu ltural morto do que a disposição que nós, imed iatamente, cons- mãe ("Sim, tudo, papelada é com igo"), esta, o rgan izando, mais do
tatamos ao entrar na sala de jan tar? Os volumes ex ibem, a quem os que o companheiro, a vida familiar (por sua posição na divisão sexual
esteja olhando, o seu corte de frente, e n ão a lombada. do trabalho doméstico, ela gerencia o cotidiano doméstico e é for-
Nem o pai nem a mãe vão à biblioteca municipal e também não çada a recorrer à escrita: lembretes, agenda para O estudo e para a
levam os filhos ali . Johanna "está começando a ler", segundo sua cantina dos filhos, cartas às repartições, bilhetes para a escola, for-
mãe, mas não lê li vros sem imagens. Ela não tem ass inatu ra de algu- mu lário de impostos ou de seguro soc ial, listas de coisas a serem
ma revista para crianças e nunca pede livros, salvo qua ndo está num levadas em férias, caderneta de números de telefone e de endere-
supermercado. Não tem um espaço pessoal para colocar os próprios ços), quando não se vê forçada, também não utiliza realmente a escri -
livros, que se espalham por toda parte em seu quarto (eles parecem ta (USim, no trabalho sim , a gente é obrigada, he in ?, é, é, escrever
não estar arrumados). no trabalho, escrever aqui, assim de vez em quando, é ... ") : nenhu-
Se postularmos a hipótese de que, como muitos operários qua- ma lista de compras, pois estas são feitas espontaneamente ao pas-
lificados na prática e tardiamente (em estágio de formação, por sar pelas gôndolas {"Vou, passo em cada prateleira, vejo o que tá

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

faltando (riso) e pronto, tá pronto"}, nenhuma lista de coisas a Nesse aspecto, se e la não fize r as tarefas, a mãe também ralha
serem feitas (exceto para dizer aos seus para fazerem o que ela pró- com ela. A mãe até ex plica que, às vezes, a filha fica estudando
pria n ão pode fazer quando está traba lhando), n enhuma nota no até as 2\ h 30, e que nno va i se de ita r e nqua nto n ão tiver termi-
ca lendário-agenda, que, outro detalhe revelador, está na data erra- nado. Ou então ela a chama às 6h da manhã para que termine as
da quando da e ntrev ista, nenhum livro o u caderno de contas, tarefas. A mãe ch ega a esclarecer que é muito mais a prima de
nenhuma nota antes de um telefone ma impo rcante, etc. Johanna (2\ anos, Cerrificado de Conclusão do 10 Grau Profis-
~lS ausências marcam lima o rganização doméstica muito pouco sionalizante de costura, agente de serviço n o hospital) que se encar-
centrada na raciona li zação, na previsão e no cálculo. O utrO índice rega de ajudá-Ia, pois e la própria acaba ficando nervosa e batendo
disso tmnbém é o fato de que a mãe reconhece n ão ser muito "o rga- ne la. Aliás, " filha se dirige ma is à sua prima, por causa do com -
nizada": ela realmente não arruma os documentos familiares, que portamento da mãe: "Quando, às vezes, já lhe explique i duas ou
tem dificuldade de e ncontrar, e faz os próprios filhos arrumarem os três vezes e el a me acaba fazendo a mesma bobagem, então isso
quartos, rec u sando~se a intervir: "N ão é fê:kil, hc in ?, pra e les, bem, me e ne rva e eu bato nel a". Podemos dizer que, par;) as c rianças,
mas eu deixo eles fazerem, he in ?, e eu não arrumo, hein?". Confes.. a esco la e tudo o que de la decorre (especialmente as tarefas) po-
sando que os fil h os têm dificuldades para arrumar o q uarto ()ohan- dem se mostrar, pelas experiê nci as familiares que têm, como uma
n a chora para não fazer isso), faz pensar que os diferemes cômodos ocasião de sofrimen to, de punição, de san ção, de privação, de ner-
devem ficar freqüentemente e m desordem. Da mesma forma, os horn~ vosismos, de surras, e assi m por diante. Johanna freqüentemen ..
rios de deitar, de higie ne corporal e de refe ições são freqüentemen- te esquece os cadernos na escola, vendo~se, ass im , ameaçada pel a
te var iáve is, indicando com isso uma irregularidade nos ritmos mãe ("Freqüentemente, s im, sim, então mais ameaças também:
familiares. A ausência de disposição racional marcada, visfvel tanto 'Você va i levar lima surra', ah, mas é freqüente, hein?"), e pode,
na o rdem dos cômodos o u nos ritmos fmniliares quanto n~l manei .. mos nos perguntar se o esquecimento dos cadernos o u dos livros
ra de gerenciar a atividmje do mést ica, pode revelar-se importante n ão é um a to fa lho sociologicamente compreensíve l da parte da
para a cO ll1preensão do IIfrac~sso" escolar de Jo hanna. Alhís, vemos me nina: é fác il esquecer de levar objetos que silo a origem de uma
um efeito direto dessas características familiares n as palavras do pro- experi ên c ia do lo rosa'''.
fessor, referindo-se a Johanna, que gos ta "de te r muitas coisas em Num po nto de vista superfici a l, poder-se- ia ver, nas práti cas
volta dela". de vigi lância, de controle, de c h amada à ordem , os índices de uma
Enfim , os modos de intervenção do pai em relação ao filho (fOi ele mob ilização familiar positiva"'. A mãe conhece bem a s ituação
quem puniu O filho quando seu resultado escolar baixou) e da mãe em escola r da filha, sabe que não repetiu , está também a par de suas
relação à fi lha parecem ser muito coerc ivos. Quando as co isas não vão dificuldades escolares, que começaram na pré-esco la, "em todas
bem na escola , os pais reagem rapidamente, mas através da punição, as matérias ll ; na sua opi ni ão, é O ditado que lhe traz mais prob le ..
da chan tagem, da sanção, da privação, da coerção. Quando as notas mas - e o professor observa, com efeito, grandes dificuldades e m
de Joh anna ..;0 ruins (e elas o são freqüentemente) , a mãe diz que e la ortografi a. A senho ra U., aliás, vai regularmente ver o professor,
"leva uma surra", que ralha com e la ou que faz chantagem com ela faz perguntas a e le sobre o trabalho da filha, pergunta-lhe se ela
com os presentes de aniversário, emhora confesse que isso não ft.m~ está progredindo, se ela é "ajuizada" Oll IIdistraída" e m au la, vai
ciona durante muito tempo, pois Johanna é qualificada de "cabeça- às re uniões da escola com o ma rido e ach a que é útil porque
dura". É preciso constantemente, segundo a mãe, lembnl .. la de fazer ficam sabendo "o que está acontecendo n a escola". Durante os
as tarefas, estar sempre "atrás dela", senão ela só quer brinc:l r. longos períodos de férias, Joh"nna fica e m casa com a prima o u

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PERFIS DE CONFIGURAÇÕES
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

então viaja para a Martinica; compram-lhe cadernos de exercícios sobre os estudos de Johanna (vigilância, acompanhamento, contro-
de férias e ela tem de estudar 2 horas todos os dias, apesa r do fato de le, chantagens, punições ... ). e Johanna, de fato, não ter nunca opor-
ela "rebelar-se". tunidade de fa lar de sua experiência escolar o u de "ter explicações"
Mas vemos, ademais, numa tal configuração familiar perpassa- ca lmamente, sem excesso de nervosismo , isto é, que as tentativas
da por contradições culturais (por desejos e expectati vas para cuja Je trabalho escolar não estejam associadas sistematicamente com
rea lização não se encontram os me ios conc re tos), os índi ces de experiências infe lizes ' 14 .
uma mobili zação familiar de efei tos negativos não controlados. As Apesar da maneira "correta" como os pais fa lam, sentimos a fra~
crianças parecem estar submetidas a um sistema de double bind* com gilidade das informações e a frágil coercncia de algumas de suas
pais que punem sem dar o "bom exemplolt e que incitam excl ll s i ~ palavras. Por exemplo, é como se o pai quisesse empregar uma ret6-
vamente em fo rma de sanções. Os princípios ou as vontades apre- r rmu Ias, pa Iavras (" mestr:1 do ", "I a boraton.sta ")
rica, expressões, r6 .. .
goados pe los pais diante de nós ou diante dos filhos podem tam- que dão aparência da "boa linguagem" t da uboa mane ira de falar'\
bém nem sempre ser colocados em prática. Enquanto;'l mãe diz que sem dom imí-Ias J e faro. Com isso, O emp rego delas é um pouco vago
é obrigada a luta r para q ue a filha faça as tarefas, em vez de ver tele- ou aparece em contextos sintáticos ou semânticos nem sempre muito
visão, esta fica ligada durante quase todo o tempo da entrevista : está pertinentes. O que as palavras d izem, e os valores que elas parecem
ligada sem q ue alguém em particular a esteja vendo, quase como encerrar, entra imediatamente em contrad ição com o e mprego que
uma emissora de rád io que se teria posto como fundo sono ro. Jelas se faz. Isso tamhém acontece com sua mulher, cujo discurso se
No decorrer da entrevista com Johanna, esta ap resenta suas caracteriza por imprecisões léx icas e raciocínios um tanto quanto
ações depois da sa rda da escola na seguinte orde m: lanche, tarefas, imprecisos. A liás, a entrev ista com Johanna revela uma men ina
televisão, brincar com o irmão - prestando bastante ate nção para bastante tímida, que fa la baixo, quase sussurrando, como q ue para
colocar as tarefas antes da televisão, como a mãe não pára de lhe não fazer barulho, e que sente, como os pais, certa dificuldade de falar
repeti r. Mas se Jo hanna afirma também preferir leitura a tel evisão de mane ira coerente e exp I"ICltaII'i . N a entreVista,
. aIguns "eles" , "a
(interiorizou bem a legit imidade relat iva das d uas práticas), fala mais gente", nós " re metem a pessoas raramente explicitadas, salvo pedi,
U

dos programas a q ue assiste ("Vejo Madame est servie e Sauvé par le do de nossa parte. Como em relação a seus pais, podemos dizer que
gong, e Pro! et tais-toi") do que dos livros que lê. Da mesma forma, há imprecisões em sua linguagem, e que ela tem formas de raciocinar
a mãe di z, prime iro, que a filh a não pode descer para brincar; depo is, um pouco surpreendentes. Quando lhe perguntamos, por exemplo, o
d iz que va i brincar, às vezes, com O irmãozinho ; e acrescenta, mais que prefere na escola, ela inicialmente responde que é "francês"e "mate,
adiante na entrevista, que, 1105 fins de semana, quando o tempo está mática". Depois diz que o que gosta menos são "os exercícios". E fin al-
bom, e la lia manda descer", mente acrescenta, depois de um ped ido de esclareci mento: "Fora os
Além disso, a mãe diz, o que pode parecer cont rad itório com o exercícios de matemática e francês, não gosto dos exercícios de, de ...
investime nto escolar, não "falar muitd ' da escola com Johanna, com (silêncio de 7 segundos) gramática". Além disso, Johann, não domi-
exceção do que eventualmente tenha acontecido no recreio (acerca na a noção de tempo (duração e horas) : não consegue aval iar q uan-
das outras crianças que possam estar incomodando a filh a). to te mpo dura seu trabalho escolar da noite, diz que d eita às 9h da
Entretanto, talvez não seja tão contraditório assim: O diiílogo fami- no ite, mas não sabe a que horas s~ deita nas noites e m que fica acor,
liar a respeito da escola parece reduzir-se a um monólogo dos pais dada até mais tarde: "Depois de Equalizeur"lI>.
Se q uisermos acrescentar um último retoque ao perfil familiar, é
• Em inglês, no llrigin.l 1. (NT) preciso, sem dúvida, considerar o fato de que ambos os pais traba-

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

!ham, a mãe com ho rários va riáve is e o pai viajando durante uma traba lhando como pedreiro na construção civil. A prende u fra ncês
semana em cad:-'l duas . Mas essas situações profi ssio nais que apenas q uando chegou à França, mas não sabe ler nem escrever (nem em
poss ibilitam po uco _tempo de dedicação aos filhos não explicam ára be , nem e m francês). Seu pai, lavrado r na Tunísia, mo rreu antes
nada em si mesmas. E apenas recolocado no seio da configuração fami- mesmo de e le nascer. S ua mãe estava gravemente doente, e depois
liar de conjunto que esse último aspecto pode adquirir um sentido "ficou inválida". Era o filho que a aj udava financeiramente.
particular. A senhora H., de 35 anos, fo i à escola na Tunísia du rante 6 anos.
Durante 3 anos estudou ape nas árabe, e depois o árabe e o francês,
• Perfil 2 1: Os limi tes da despesa fa mili ar. por mais 3 anos. Sabe ler e escrever em árabe, e lê e escreve com
Kais H .. nascido em Villerbanne, um ano atrasado (repeLêncill da 1 série
(I d ificuldades em francês ("Tem erros" ), Conheceu o marido quando
do I Q grau) , obr.e·l!e 6,7 na avaliaçl10 nacional . este estava de férias na Tunísia, há 13 anos, e , desde então, vi ve na
França. Faz 5 meses que ela começou a trabalhar como fax ine ira em
Estamos adi antados para o encontro; a senho ra H . acaba de d ife rentes loca is, emprego que a obriga , às vezes, a ho rários até tarde
chegar do traba lho e se apressou para estar em casa antes de nossa da no ite. Seu pai teve mais o u menos o mesmo níve l escolar que e la
chegada. Está um pouco maq uilada, usa roupas modernas. A casa, e, antes de aposentar-se, era caminhoneiro por conta própria (trans-
bem c uidada, pa rece~se , em sua decoração, mais com um lar euro~ portava fru tas e legumes). Sua mãe, analfabeta, não fo i à escola.
peu do que Outras casas magrebinas visitadas" '. O senhor e a senho ra H. têm quatro filhos: uma menina de 11
Durante a entrevista, ficamos sentados num sofá, À nossa fren- anos, esco!rlfi zada, na 5i! série ; um menino de lO anos, esco l a ri za~
te, a senhora H . sentou-se numa poltrona. Entre nós há uma mesa do, na 3" série (série em que ficou retido no ano an terior) ; Ka'is,
baixa. A irmã mais velha de Ka'is ta mbém está sentada no sofá, à escolari zado , na 2i! série do I!:! grau, e uma menina de 6 anos, esco~
nossa dire ita. Menina sorriden te, amável, responde, algumas vezes, larizada , na pré-escola, e a propósito de q uem eles nos explicam, de
às nossas perguntas e se expressa como um adulto. Sua mãe fa la arras~ imediato, que é a prime ira da sua classe.
tando os "r" e pronuncia "lé" po r "le", "pé" por "peu", "ti" por u tu ", O caso de Ka'is nos fornece o exemplo de um meio social que,
Cljo urni )1 por "journée" ... Tem, portanto , um fo rre sotaque tun is iano, aparentemente, apresenta todas as características do me io "desfavo ..
mas se faz compreender. Q uase no fina! da entre vista, a irmãz inha, recido". Se falarmos a linguagem das variáveis e se objetivarmos esse
Ka'is e o irmão mais velho chegam e se instalam, por algum tempo meio com a ajuda de variáve is socio logicamente clássicas, nos encon~
- os meninos atrás da mãe, a meno r a seu lado - , para escutar nossa traremos em face de uma situação objetivamente desfavorável. O pai,
conversa . O funcionamento da entrevista é pe rfeitame nte reve l a~ pedreiro, é analfa beto. A mãe, fax ineira, com um pequeno capital
dor da configuração familiar: o pai está no trabalho, a irmã mais velha escolar (em relação a outras configurações familiares em que a crian-
respo nde às perguntas junto com a mãe e os meninos estavam fora ça estava em "fracasso"), domina o fra ncês com d ificuldades e, caso
e só inte rvirão quando chegarem, no final da entrev ista, tenha lido na juventude, não lê quase mais nada : "Antes de me casar,
O senhor H ., de 45 anos, nunca foi à escola na Tunísia, "Éa famí- eu pegava em árabe, às vezes em francês, e tudo , eu leio. Mas desde
lia dele, é um pouco pobre e tudo. Ele não encontrou os meios. Sua que ... Estou ocupada, não sei, não encontro tempo (e la ri)", De vez
mãe trabalhou um pouco nas casas para ajudá- lo um pouco. Ele não e m quando, compra um jornal tu nisiano, em fra ncês ("Para saber,
chegou a estudar ou algo assim ." Fez vários tipos de serviços ("Em nosso ministro, O q ue é que ele conta") e uma programação de tele-
qualquer lugar, quando ele acha alguma coisa de bom, ele faz, hein ?") visão. O senho r e a senhora H . possuem o A lcorão, mas ape nas o
antes de vi r pa ra a França, há q uase 20 anos. Desde o início, está lêem raramen te, po is aprenderam preces de cor na infância.

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONfiGURAÇÕES

Esse tipo de situação pode leva r a duvida r da importância da ra H. ope ra, com todas essas práticas, todo um trabal ho de pôr
"origem socia l" ou do "meio social" do a luno para compreender os fi lhos em contato com uma cultura da escrita.
sua esco laridade . Em verdade, é sinal de que essas categorias glo- Dá prova também, além de suas práticas de gestão da escrita, de
ba lmente (estatisticamente) pertinentes camuflam as mú ltiplas um gosto pela escrita que pode desempenhar um papel incitador junto
relações socia is, os mllltiplos processos que tornam possíveis um aos filhos. Redige freqüentemente (ainda que menos freqüentemen-
"sucesso" ou um "fracasso" esco lares. Os fracos investimentos são, te do que quando não estava trabalhando) cartas em árabe para a
neste caso particu lar, compensados por maneiras de fazer, por orga- fa mília ("Sim, freqüentemente, ora! Não faz nem dois ou três dias,
nizações e orientações familiares. É a mãe quem, a partir de um escrev i quatro, ci nco cartas para a família, como meu cu nhado e
modesto capita l esco lar, o pera um traba lho de in te rmediá rio ITlinha mãe, para minha família e para minha irmã"), gosta de
entre os filhos e uma cultura da escrita. A se nhora H. leva e va i cop iar rece itas em uma caderneta, troca pequenos bilhetes em CUl11 '
buscar os fi lhos n a biblioteca munic ipa l ("Ontem eu leve i dois ... plicidade com a filha mais velha: "De vezem quando, sim, com minha
minha filha c um a outra filha. Leve i lá até as 7h. Fui buscar e las. filha, ass im, a gente escreve bilhetes secretos". É ela também quem
Eu ... eu não fiquei. (Rindo.) Estou se mpre ocupada aqui em arruma as fotografias, indicando, quando tem tempo, a Jata, e até
casa"), às vezes lê um li vro com eles e o lha os que eles trazem da afirma ter tido, quando era jovem, uma espécie de diário íntimo:
biblioteca. Ela manda-os ler, revezando-se, páginas de uma h is- <lAntes, fazia às vezes, assim, pra passar o tempo, gosto bastante de
tória ("E de vez em quando ta mbém eu fa lo pra ela, está bem, contar minha vida, assim. O que acontece com meus pais, em vo lta,
ela I:ega o livro e o outro lê, lê uma página, o outro lê uma pági- tudo. Escrevo três, quatro folhas ...".
na. E sempre assim, essa é a pág ina de K... , essas é as página de Foi ainda a senhora H. quem pensou imediatamente, quando
Ka"is, a gente divide entre eles assim pra ler um livro numa ou começou a trabalhar, em compensar sua ausência, recorrendo a uma
duas hora, assim mesmo. É bom, assim ele lê, mesmo não que, estudante que ajudasse os filhos todas as noites: "Eu falo, é isso, eu
rendo, eu falo pra ele, é preciso isso e você num vai sair"), ou não tenho todo o tempo, eu pago ela para qt<e ela fique no meu lugar".
manda a mais velh a ler histórias em voz alta durante as fé rias para Mas acrescenta que a estudante pode contri buir com uma ajuda
os irm ãos e a irmã: "M inha filha de vez em qua ndo me lê argu- mais eficaz do que ela: enquanto seus filhos estavam em séries bem
ma coisa". QUClndo Ka"is era pequeno, ela lia para e le Ou conta, inic iais, ela podia ajudá-los ("Porque eu, antes, as coisa fáceis, eu
va- lhe também histórias em fran cês antes de e le dormir. Da conheço, mas ..."), mas, segundo ela, a filha mais velha, agora, já sabe
mes ma forma, às vezes, ela manda os filhos escreverem peque- mais do que ela. Foi sempre ela quem soube manter com a filha uma
nas histórias, e Ka·is, como veremos, que t·em te ndência acho, relação de grande cumplicidade e quem a estimu lou a cuidar esco-
rar quando tem de fazer tarefas extra-escolares; escreve sem pro- larmente dos irmãos e da irmã. Esse conjunto de ações, que poderia
blema, pois isso ganha a forma de um jogo: "Às vezes eu digo pra assemelhar-se a um verdadeiro plano educativo premeditado, ape-
eles assim: 'Imaginem que vocês estão com um menininho pobre nas é o produto do sentimento que a mãe tem da importância da esco-
ou qua lquer coisa, contem o que é que ele fez ou um rico pro saber la para acesso a empregos mais decentes do que o de seu marido ou
onde ele vai'. De vez em quando, quando eu mando eles fazê assim, o seu. Aliás, freqüentemente cita o exemplo do traba lho muito can-
pra faze r historinha assim. Cada um faz a história que sabe. [Ka"is] sativo do marido para dizer aos filhos que é do interesse deles esn,dar
Ele faz coisas ass im , sim. Não chega a fazer UIlUl grande coisa, mas bastante em aula: "Vocês tão vendo como o pai de vocês trabalha,
só três ou quatro linha". Enfim, resolve com os filhos palav ras- é muito duro. Ele trabalha muito. Se vocês trabalham um pouqui-
c ru zildas, joga "Trivial Pursu it" e IIDeux Mille Mots". A senha, nho assim, depois vocês vão descansar um pouqui nho. É melhor ser

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONFIGURAÇÕES

um professor assim, ou qualquer outra coisa, no que ntinho, no limpo, É isso, chega, hoje é estudar um pouco, eu desligo a televis,'io"'''''. Acon-
não é como meu marido. No inverno, precisa vestir três, quatro coisa". '2
selhada pelo professor dele da I" série do grau, durante as últimas
Ela própria surge como uma pessoa um pouco frustrada com a esco, férias, a senhora H. comprou-lhe um caderno de férias. De vez em
la, até confessando aos filhos que, se estivesse no lugar deles e não quando, também a irmã mais velha brinca de professora e manda os
tivesse se casado, teria continuado os estudos, pois, na França, os pro, irmãos e a irmã fazerem pequenos exercícios escolares, e depois mri,
fessores são amáveis ("A amabilidade conta também pras crian- bui no tas a eles.
ças") , ao passo que, na Tunísia, eles batem nos alunos com bastões, A senhora H . passa a image m de alguém que é, ao mesmo tempo,
se não souberem as lições de cor. Com uma grande energia e uma o comandante do barco familiar, direcionando-o, e o simples grume-
grande fé na escola ''', ela faz, portanto, frutificar seu pequeno capi- te que cuida de todas as manobras a bordo ("Ele [seu marido] está ocu-
tal escolar para além do que ele parece poder produzir, apoiando-se, pado desde a manhã até a no ite, vem lá pelas 7h. Esní cansad~ do
para tanto, na filha mais velha e na estudante. seu dia") . Assim, é ela quem cuida dos documentos familiares: "E eu
Pelas razões que conhecemos, é a mais velha quem respo nde que faço eles, purque meu marido num tem tempo e não sabe muito
espontaneamente às perguntas sobre as dificuldades escolares de KaYs. bem. Então, eu sei um pouco mais que ele. Eu me viro um pouqui,
Ela, na verdade, está muito próxima do irmão em matéria de escola- nho pros documentos, pra preencher o cheque e tudo, porque o tra-
ridade. Diz que Ka"is, assim como O irmão mais velho, tem maiores balho dele é duro, quando ele chega, é isso, ele descansa um pouco".
dificuldades em francês do que em matemática (isso, aliás, se confir- Ela nunca pede ajuda a alguém. Quando morava em um bairro mais
ma nos resulrados da avaliação nacional, em que Ka'is obteve 6 em central de Lyon (há 4 anos), sua vizinha a ajudava um pouco, mas
francês e 7.4 em mate mática). Ka'is "às vezes pede à irmã para aj udá- não mais agora. É ela quem preenche o formulário de impostos, quem
lo nas tarefas", e esta esclarece de fa to que nunca as faz em lugar dele: cuida da caderneta de endereços e de números de telefone, quem faz
"Eu explico pra ele e deixo ele se virar. Antes de explicar pra ele, eu resumos para cuidar de todas as atividades familiares ("Às vezes, por-
falo pra ele: 'Se você me ped ir pra fazer pra você, num vô fazer'. Então que esqueço um pouquinho, ao lado da escri vaninha de minha filha
ele me fala: 'Tã bom, então me explique' ". Quando o irmão tenni- ou algo assim, eu falo, é isso, para quando eu voltar, eu vejo logo em
na o trabalho, ela o "corrige". Este só quer fazer O que os professores seguida. Se eu tenho uma hora marcada ou algo assi m no médico,
pedem, mas não outros exercícios que a irmã Ou a estudante lhe dão para as crianças ou qualquer coisa. É preciso eu vê diante de mim, se
("Se eu falo pra ele, toma lá, ele chora: 'Não, não, eu não preciso disso, não, esqueço (e/a ri)"), quem classifica os documentos ("Eu pus em
não é o professor, ele não disse'''); ele chora freqlientemente, mesmo saquinhos todas as fichas de pagamento, com um letra grande assim,
quando tem de aprender as lições. A mãe acrescenta que os resulta- as coisas assim, eu classifico de vez em quando"), quem escreve coi,
dos de KaIs são irregulares. Q uando tem notas baixas, ela lhe diz "que sas no calendário (compromissos ... ) e quem faz anotações após uma
precisa prestar bastante atenção no professor'\ e o priva também de chamada telefônica (endereços ou números de telefone).
televisão para que vá fazer ilS tarefas: "Sim, de vez em quando, tem Não tem caderno de contas, mas ve rifica, de qualquer forma , os
desenho animado o dia inteiro, então eu falo: 'Taí, vou desligar a tele- extratos bancários a cada 15 uias para saber O que foi retirado e o
visão. Vão pro quarto estudar um pouquinho'. De vez em quando eu que fica, e tem uma preocupação ev idente (junto com o marido)
digo: 'É , é quarta-feira ou algo assim - é de manhã - , deixa um de ca lcular, de prever, de antecipar as coisas fUl1ltas, que a leva a
pouquinho de telev isão à tarde', é isso, eu desligo. No sábado à no ite, refletir mesmo durante a noite: "Não, mas, ora! A gente sabe o que
ele põe uma fita que ele aluga ou algo ass im. E no domingo, assim, a a gente tem. Se tem 4 milhão, então, é preciso deixar 3 milhão pras
tarde inteira eu falo pra ele: 'Chega, teve televisão o sábado inteiro. férias. É para as despesas de 2 ou 3 meses. Ainda tem 3 ou 4 meses

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

pra chegar, o que é que a geme vai fazer mais ou menos! E se acon- outros. Um nasceu aqui, o outro nasceu na Turquia ou n:l Tunísia,
tece alguma coisa ... Sei lá, uma coisa qualquer pra comprar pra casa depois tudo fica misturado e tudo. Isso é duro".
ou qualquer coisa. Então, deixa 1 milhão ou coisa assim de lado. Sempre com a preocupação de que os filhos tenham "sucesso" na
Não é uma grande soma, das (riso) de patrão. A gente pode calcu- escola, ela também gostaria que os horários de estudo livre da tarde
lar sozinha assim, de cabeça. Sim, tudo, sempre assim, quando a geme fossem mais eficmes, mais organizados e mais sérios. Ka'is fica no horá-
tá semada à noite, assim um pouquinho, a gente calcula tudo. Pre- rio de estudo desde que a mãe começou a trabalhar, mas ele próprio
cisava isso, precisava aquilo. O que é que a gente vai gastar! O que diz, assim como o irmão mais ve lho, que não consegue estudar lá,
é que precisava deixar um pouco de lado?". porque tem barulho e todo mundo fica brincando, A senhora H. cri -
O papel da senhora H. consiste em cuidar da família, em fazer tica, portanto, o horário de estudo para dizer que não é sério; ela até
que tudo funcione da melhor forma possível (levando, por exem- estaria disposta a pagar para ter horários de estudo em que as crian-
plo, os filhos à biblioteca e voltando para continuar o trabalho da ças fossem fiscalizadas quando estivessem fazendo as tarefas, ajuda-
casa). Em sua brava vontade de promover os filhos, a senhora H. das quando não compreendessem e corrigidas no final do horário,
até se mantém a distância no bairro ("mal freqüentado", segundo Sabendo de tudo isso, podemos conside rar que as palavras do
os termos da filha). No entanto, eles compraram o apartamento onde professor de Ka'is a respeito de seus pais constituem uma espécie
estão morando e têm um financiamento de 10 anos: "A gente pro- de injustiça interpretativa em relação à intensa energia emprega-
curou em Outro lugar, mas não era, é menos caro aqui. depois, a gente da pela mãe, que acompanha regularmente a escolaridade, ofere-
tava aqui e então a gente comprou. Tá fazenoo, é, quase 4 anos, ou ce meios aos filhos além de suas próprias capacidades, vai ter com
por aí, a gente comprou aqui, mas .. .". Entretanto, e la esclarece que, os professores quando é convocada, trabalha fora freqüentemen-
se tivesse as condições finnnceiras, não ficaria nem um ano num te até as 20h ou 20h30 e, às vezes, só volta para casa depois de
bairro como aquele, onde se põe fogo em carros: "Agora, os jovens, 21 h: "Não, os pais, a gente os vê raramente. A mãe essencialmen~
então, você olha pra eles assim, olha por acaso, assim . E então, ele te quando há necessidade, bem, a gente a chama, ela vem, Por outro
se zanga, fala qualque r coisa. Por que você está olhando pra ele! Por lado, tem esse crédito de confiança que se dá, que é positivo por
quê!Não sei, eles são tão cheios de si! Isso é que me dá medo aqui. um lado e negativo por outro, e que faz com que a gente não a
Eu procurava tanto me mudar daqui, mas o meio é .. , Se fosse dife- veja se não for chamada , Nós é que somos os professores, temos
rentc, ora, eu não ficava aqui nem mesmo um ano". Alié:ls, e la não de fazer nosso trabalho".
deixa K,ús sair muito freqüemememe para brincar fora por todos Da mesma forma, a recusa da mãe em aceitar que a filha mais
es es motivos, e previne .. o de que se houver uma baderna, mesmo velha fosse viajar para ter aulas oe inici::tção ao esqui, no ano ante~
que não tenha sido ele a começar, é ele quem vai ser castigado. Tendo rior, no momento em que esta estava com dificuldades na 4·
morado num bairro de Lyon onde também havia famílias france- série, mostra o profundo mal-entendido entre alguns pais, volta-
sas, ela pensa que ali as crianças teriam mais oportunidades para ter dos para a atividade escolar estrita e conhecendo os esforços con-
usucesso". É difícil, segundo ela, "aprender" num bairro com uma sideráveis despendidos para chegar a resultados corretos, mas
grande proporção de imigrames, pois como tem muitos filhos de imi- nem sempre brilhantes, e professores, com, sem dúvida, uma
grantes nas classes, isso se torna mais duro: "É duro que a gente é pedagogia objetivamente voltada para meios sociais mais bem-
tudo im igrante. É duro deixar eles bem na escola. É a primeira vez dotados, para os quais os ufracassos" escolares são relativamente
que estou morando aqui . Tudo é mais duro porque a geme era tudo improváveis. O antigo professor da 3" série da irmã conta, com
imigrante aqui. É, é duro pra você aprender o francês como os um toque de condescendência: "Ela tinha ido mal no início do

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ano anterior, e a professora queria fazer uma excursão com seus livro, assim si m. Mas quando você dá pra ele um livro de um ou dois
alunos para aulas de iniciação ao esqui , e a mãe não permitiu por· dias ou algo assim ... ". A mãe também constata que é preciso mandá-
que não entendia . É também um pouco O problema com esses pais, lo ler, e q ue não fará isso por gosto próprio: "Traba lha bem na esco-
é que ela não entendia. Ela me tomou por testemunha (eu tinha la, mas pegar um livro assim, sozinho, num canto ... Nunca é pra ele,
tentado explicar-lhe) de que comigo, eu era um bom professor, mas (rindo) pra mim. Se você fala pra ele: 'Lê!', ou então eu forço
porque comigo ela ia bem e com a professora, e ra uma má pro' e le: 'Toma, precisava te trazê cinco li vro'. Eu falo: 'Todo dia você
fessora, porque só dava aula de ginástica e só fazia excursões e tudo, vai ler um ou algo assim', então e le lê. Mas é só assim, não por seu
e assim, e la não estava estudando mais". gosto". Em contrapart ida, as duas meninas parecem ter interioriza,
Ka"is só foi durante 4 meses à escola maternal, e prova, com sua do o gosto pela leitura, e a senhora H. confessa ficar espantada, às
adaptação esco lar rápida, o papel do modo de socia lização familiar. vezes, com as palavras empregadas pela mais nova, "primeira da
Na 2a série do IQ grau, ele é descrito como um aluno que não é IImau", classe", extraídas de suas leituras: "Da outra vez, disse num sei o quê
"bastante amáve l. apagado" que, "às vezes , tem dificu ldades de pra sua irmã. Eu falei: 'O que é isso? As palavras, é muito grande pra
compreensão", mas que, de qualquer modo, "n~o deixa" de acom· cabeça dela', eu brinquei".
panhar, faz as tarefas, "sabe a tabuada de cor", é "calmo", "atento'\ Será que este não é o caso do efeito da diferença sexual dos papéis
"cuidadoso", não cria problema na au la, fica sempre calado, às vezes no seio da família' As meninas têm a possibilidade de constru ir sua
!lfica no mundo da lua" e Ué um pouco autônomo". Essa é a situa· identidade sexua l sobre o modelo de uma mãe que conjuga o fato
ção escolar, correta, mas apenas correta, de uma criança cuja mãe de cuidar dos documentos e gostar de escrever, de se preocupar com
desenvolve numerosas estratégias educativas. É preciso, portanto, a escola e de ter sido frustrada com ela ... Observamos, princ ipal-
muita energia materna para atingir resultados corretos. mente, a cumplicidade estabelecida entre a senhora H. e a filha mais
É importante, para compreender ainda mais a situação escolar de velha , que desempenha, em determinados campos, o pape l de uma
Ka"is, observar que sua irmã mais ve lha era, segundo os professores segunda mãe (escreve os bilhetes para a escola, consulta um dicio-
do primMio, "uma aluna muito boa, muito escolar", que tinha ua lgu · ncí.rio quando a mãe tem necessidade de escrever uma palavra, troca
mas dificuldades, mas era muito estudiosa", "era muito aplicada" e bilhetes com ela, cuida da escolaridade dos irmãos e da irmã ... ). Ape-
"cuidava bastante" de seu trabalho. Temos, pois, com a irmã mais sar das incitações da mãe , os meninos devem construir sua identi·
velha, como que lima variante mais brilhante do modelo compor- dade sexua l com um pai analfabeto, ocupado com um trabalho
tamental das crianças dessa família. Ao contrár io, O irmão mais estafante, domesticamente voltado para a recuperação de sua força
velho de Ka·is é julgado por esses mesmos professores como um aluno de trabalho e totalmente alheio aos problemas escolares.
que tem "enormes dificuldades escolares", que é "preguiçoso em
relação a seus irmãos c irmãs" c não "se inte ressa" pela escola. Mas • Perfil 22: O investimenro escolnr.
os meninos são apresentados pela mãe como os que têm os maiores Sabine G., nascida em BTon, sem ncnhUllW Tl!pcrência l!scolar, obteve
problemas escolares: "Tento para os meninos se melhoram um pou- 7.5 na avaliação nacimull.
quinho". Sabemos também que eles lêem menos e gostam menos de
ler do que as irmãs. Ka"is vai à biblioteca municipal e à biblioteca da A senhora G. é uma mulher acolhedora, que gosta muito de falar.
escola, mas a irmã mais velha diz que ele não gosta de romances e Com ela, fizemos lima das entrevistas em que as respostas eram as
de contos, pois n~o aprecia os livros nos qua is há muito texto e que mais longas. Manda-nos entrar na sa la de jamar do apartamento.
demoram para ser lidos: "Um li vro assim em 20 minutos, ele lê um O cômodo, espaçoso, esní bem-arrumado e possui um jogo de sofás

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de couro, uma mesa redonda com cadeiras, um living e uma televi- talvez cuide menos do que uma mãe, para as tarefas, hein! estou que~
s50 colocada sobre um móvel. Notamos, numa das paredes, uma {ato rendo dize r". Seu pai era agricultor. O senhor e a senhora G. têm
do senhor G. montado num cavalo. Conversamos sentados em dois filhos: um menino com a idade de 10 anos, na 4" série, e uma
volta da mesa, e a senhora G. se levantará uma vez para ir buscar menina, Sabine, que tem 8 anos e está na Z' série do I" grau.
um volume de uma enciclopédia. Por volta das 18h, Sabine e o irmão Tendo entrado muito cedo na escola maternal (2 anos e 5 meses),
chegam da escola. Sabi ne, desde o início, adaptou-se à escola. E isso continuou na pré-
A senhora G., de 35 anos, fez a ma ior parte dos estudos em esco- escola e na \ " série do I" grau. Na Z· série do IRgrau, o professor
las particulares. Ficou num internato de freiras na 3" e 4" séries ("Eu só tem elogios a lhe fazer: "Se a gente tivesse só criança assim, bem,
aprendia bastante na escola. Não era uma menina difíci l") e co n ~ não terminaríamos o dia com a cara no ch ão. É uma flor. Se todos
t inuo u os estudos até a conclusão do ZO grau , na átea de matemá - eles fossem iguais." É, e la é amáve l, acompanha, estuda, tell1 senso
tica e ciências naturais, no ensino particular. ("Não fui brilhante, de humor. Não tem problemas. Perfeitamente integrada à escola,
mas terminei, hein?"). Depois de um ano de {acuIdade, em curso ela só vê vantagem em vi r à escola de m"nhii. Sente que a m.e con-
de biologia, pouco decisivo, a conselho da avó que foi quem prati- fia nos professores, estuda bem".
camente a educou, prestou concurso público e {oi aprovada: "Minha Tendo estabelecido nossa população em função, antes de tudo,
avó tinha a cabeça bem no lugar. Veja isso, era uma avó que apren- da categoria socioprofissional do pai, deparamo-nos, neste caso, com
dia bem na escola, teria conseguido ... Foi ~ escola durante muito um casal socialmente misto: o marido é um pequeno empregado, "auxi-
tempo. Falava muito da professora dela, hein?a minha avó. É, a mãe liar de viagem", possuindo apenas um certificado de conclusão do
de meu pai . Aliás, depois, quando a gente saía do intemato nos fins primário, ao passo que a mãe é secretária admin istrativa e tem o 22
de semana, a gente ia pra casa de minha avó, hein! Porcanto, a gente grau completo. O pai, que freqüentemente está viajando a trabalho
teve boa base para a vida com ela, e então, ela fa lava: 'Bem, você e que não se preocupa nem em gerenciar o cotidiano da família, nem
devia prestar concurso para entrar no funcionalismo', e então, foi com a escolariclade, parece apenas desempenhar um papel secundá-
o que fiz". Num pri mei ro mo mento, passou num concurso que exi, rio na economia das relações familiares. Assim, por causa do impor-
gia diploma de 10 grau, depois em outro com níve l de Z· grau, o tante papel desempenhado pela mãe em numerosos campos, temos
que lhe possibili tou ser secretária administrativa. Seu pai , inicial- a impressão de estar diante de uma família mais de classe média.
mentc agriculto r, se to rno u o perário , primeiro numa fábrica de A balança pende muito mais a favor da senhora G. em relação
rolhas de plástico, depois no Progres de Lyon. Tinha um certificado às leituras. O senhor G. só lê o jornal: de vez em quando, compra
de conclusiio do primário. A mãe da senhora G . morreu quando ela Le Progres e, todos os dias, compra Pmis- Turf para acompanhar de
só tinha 5 anos. perto o mundo das corridas: "Ah, ele, quando ele lê, é sempre sobre
O senhor G., de 37 anos, "é apa ixonado por cava los". Traba lha os cavalos. Lê tant ... (riso)" . A senhora G. compra e lê Le Progres
desde os 14 anos com cava los de corrida. É "auxiliar de viagens" e todas as quartas-feiras por causa do suplemento infantil que ela tenta
cavalariça. Quando não os está transportando, "é ele quem prepa- fazer o filho e a fi lha lerem: "Eu leio Le Progres des Enfams, e {alo
ra os cavalos para que corram". Obteve o certificado de conclusão pras crianças: 'Vocês deveriam ler'. Então, de vez em quando, e les
do primário e depois fez um estágio prático no campo do hipismo: lêem, mas enfim, como digo a eles, ta lvez um dia na cabeça deles
"Não é que não apre ndesse na escola. Bem, preciso dizer-lhes que aconteça alguma coisa, não é! Não é semprc, é raro, mas agora que
ele também perdeu a mãe com 8 anos. Ele tinha o pai, enfim, bem, eles pegaram o hábito, nem que seja só às quartas-feiras, acho que
não quero ficar criticando, mas um homem em casa com os filhos eles sentiriam falra se eu não fosse comprar o jornal. Então eu fa lo,

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é melhor eu faze r esse esforço, mesmo que eles não leiam, e depois, panha sozinha a escolaridade dos filhos (" Isso, a escola, sou eu, 100%,
é verdade que eu gosto bastante de ler o jornal infa ntil, então não hein 1") e te m dificuldades para dizer quais são os pontos fracos da
está perdido pra todo mundo. Acho que ele é bem-feito". Às vezes, filh a, pois esta tem bons resultados escolares: "Não posso respon -
ela recorta "folhetos", que põe na bolsa para ler no traba lho. Tam- de r muito bem, porque acho que ela está indo bem em tudo". Só
bém lê revistas (Femme Aetuelle, Voiei), princ ipalmente no verão. reprova nela o fato de não se aprofund ar muito, às vezes, nas lei-
Apenas e la lê li vros C1Não, ele , é preciso cutucar" l!l\ a proxi ma~ turas. Todas as noites, ela olha os cadernos de Sabine, que faz as
da mente se is por ano, e é assoc iada a France Loisirs desde a idade tarefas quase sozinha: "De qualquer forma, olho o tempo in teiro o
de 19 anos . Diz: "O que eu gosto é romance . O bem romance, não que eles fizeram. Pergunto pra eles o que eles tiveram. Q uero
os águ a~co rn ~aç ú ca r, he in ?, O bo m ro mance, os 8 arbara Cardand , mesmo saber o que fizeram". Verifica se as tarefas estão corretas (o
ah , não, não agüento, hein 1". Ela gosta de Hemi Troyat (Le mos- que pode fazê- Ia ler, às vezes, dez páginas de um livro ) e as corri -
covite), N icolas Hulot, Nicole Avril , Régine Deforges (La bieyclet- ge, se necessllrio 122 . A s crianças sabem que fazer as tarefas é lima
te bleue) , e gostaria de ler livros de Paul-Loup Sulitzer. Di z que vol- regra absoluta : "El es sabem que é proibido ir à escola sem saber a
to u a ler durante o ano, fora dos períodos de férias: "Eu me obrigo lição. Então, ora, se um dia eles não sabe m a lição bem, bem, eles
a reler ro mances, ta lvez eu só le ia três páginas à no ite , mas le io ". tê m que ... Normal mente, é proibido. Então, é raro que vão à esco-
Precavendo-se de qualquer pretensão quanto ao futuro dos filhos la sem saber a poesia, por exemplo. É raro, isso nunca, he in! Então ,
e quanto a seu II n ível c ultural", ass im como o de seu marido {e la às vezes, te m algumas que são ma is d ifíce is que o utras, mas e les se
insiste, por várias vezes, no fato de que e les não são "inte lectuais 1J
, levantam quinze minutos mais cedo de manhã, às vezes, para rev i ~
de que não discutem política em casa, pois eles não gostam de "dar saro Eu parto do princíp io de que não tem mo ti vo. Então, é isso.
uma de inte lectuais" ou de "consertar o mundo", e de que e la é II bem Não é ser mui to seve ra! É ser lógica, eu acho". Q uando falamos
pé, no~chão" , que e la não "se atreve" a di zer até o nde irão os filhos com a mãe a respe ito das ati vidades da filha durante as férias esco-
na escola ... )' '' , a senho ra G. o rgani za , rigorosame nte, a v ida fa mi ~ lares, é e la própria quem lem bra, esponta nea men te, as ta refas de
liar em ro rno da escolaridade dos filh os, traduzindo os julgamentos féri as que os filhos fazem com "fi chas escolares" que ela compra.
ou conselhos escolares em práticas familiares. Gosta muito de todos A senhora G . também atribui uma particular importância à lei-
os professores da escola ("Eu gosto deles todos"), e fala com eles para tura . Vimos que ela lhes comprava regular mente Le PTogres des
poder dar a seus filhos exercíc ios suplementares. A liás, foi a con- Enfanrs e que adq uiriu uma enciclopédia para eles por ocasião do
selho de uma professora do maternal que começou a ler histórias Natal. Podemos acrescentar que ela comprou dicionários para eles
para os filhos 11 noite: "No maternal, ela mandava fazer isso. Então como presen tes de ani versário e que ass ino u para e les, durante
é por isso que eu ia buscar os livros na biblioteca e, à no ite, lia uma certO tempo, rev istas infa ntis. Mas , principa lmente , e la obriga os
história". Foi também depois que viu na escola uma enciclopédia filhos a lerem um po uco todas as noites l -'l (UN isso, as c rianças, eu
e achou que "podia ajudá- los", que ela comprou uma em o ito volu - as obrigo todas as noites. É, todas as noi tes, bem, eles vão se dei tar
mes para os filhos. Está persuadida de que os filhos, hOje, tê m de por vo lta das 8 h e me ia, 9h, bem, azar, eles lêem na cama, não é?
Uaposta r" o u "in vestir" na esco la, e pensa que não é mais poss ível, Eu deixo eles sozinhos, mesmo que apaguem a luz às 9h e meia , eles
como em certa época, sa ir~se be m apenas com um us imples certifi, lêcrn sozinhos na cama, e ass im eles se acostu mam, não é?") , e
cado de freqüência". "obrigou" a filha, no iníc io , a ir sozinhCl à biblioteca: "Eu nunca com ~
El a própria conheceu um regime escolar mui to rigoroso (fez a prei montes de livros pros meus meninos. A gente ia na bibliote-
maior parte dos estudos em escolas particulares ca tólicas) . Acom- ca". EI;) cambém lê os mesmos li v ros que eles , para podere m falar

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disso depois: "Então, a gente leu o li vro, os três. Bem, a menina não está. O marido eu conheço muito pouco, não posso dizer muita coisa
acabou, não é? porque tinha também, não sei, tinha talvez 100 pági- sobre e le, não é com e le que a gente se encontra".
nas. Bem, todos nós lemos o livro, e, de fato, pude falar sobre isso Além disso, a disciplina familiar passa principalmente pelo
com eles. E depois, eu falei, mas as histórias são muito, muito autocontrole: as crianças sabem, por exemplo, que é proibido ir à
~as"''' . E mesmo eles, às vezes, lhe perguntam o que ela está lendo. escola sem ter aprendido as lições e interiorizam isso em forma de
As vezes, o "acaso" faz com que ela discuta com os filhos o assunto neccssidaues pessoais. E quando, excepciona lmente, Sabine tem
de um livro que está lendo, porque pode haver uma relação com O notas ruins, sua mãe lhe diz que, na próx ima vez, ela vai "pensa r
que eles estão estudando na escola ("Como Le moscovice, foi engra- melhor" I mas não fica brava com ela. Desse ponto de vista, a
çado, não é? Tinha a retirada da Rússia, ele [o filho] estava deco- maneira como se dá a entrevista é muito reve ladora da autodis-
ranelo um texto sobre a retirada ela Rússia. É bem estranho. Então c iplina familiar. Quando as crianças chegam da escola, não fazem
eu falei: 'Bem, olha, o que você tá aprendendo aí é o que estou lendo', barulho, brincam com seu vídeo-game no cômodo em que esta-
tá vendo? Eu falei pra ele: 'Veja, os so ldados na neve, no frio', coi- mos conversando, mas tendo o cuidado de tirar o som da televi-
sas assim , mas não pra ficar enchendo a cabeça ueles, não é?, mas são e não falando, tudo isso sem que a mãe tivesse dito o que quer
quando dá certo"). E além disso as duas crianças vão ao catecismo que fosse. Mesmo a entrevista com Sabine revela uma menina
todas as quartas-feiras pela manhã, onde continuam, ele outra forma, ca lma, educada, até um pouco tímida, que fala com multo zelo,
O trabalho escolar (têm textos para ler ou para copiar). cometendo poucos erros de francês, e que interiorizou bastante pro-
A senhora O. verifica regularmente as notas, conversa freqüen- fundamente as normas de boa educação.
temente sobre a escola com os filhos (todas as noites, ritualmente, Também a senhora O. cuida sozinha dos documentos familia-
Sabine conta um pouco sobre seu dia na escola para a mãe: o que comeu, res, desenvolvendo um grande número de práticas de escrita. Lê a
o que fizeram em classe, as notas que tirou) e mantém contatos regu- correspondência ("Ele lê também, mas, bem, os assuntos de casa,
lares com os professores. Ela é até uma espécie de apoio da escola. eu é que ponho em ordem"), escreve as cartas às repartições, preen#
Presente no bairro há dez anos, conhece muito bem os professores e che o formulário de impostos (ele se contenta em ass iná-lo), cuida
o diretor, e va i a todas as reuniões escolares: uEu gosto bastante, sim. dos documentos da escola, arruma os documentos administrativos
Pois is$O nos ensina, nos ajuda a nos conhecer. E também acostuma ("Bem, tudo vai para um cesto. Durante um ou dois meses, eu
a ver a equ ipe ue professores, mesmo que seu filho não esteja numa amontôo. Quando tem muito (riso), faço um;.) triagem, e tem lima
classe. Você vê tudo, vê o que está acontecendo. E depois, ora, você pasta"L tem um caderno onde anOta suas conras ("Então, agora, eu
entrega seus filhos lá, então, não é". E é assim que o professor de Sabine faço, em vez de fazer em pedaços ue papel, faço num caderno, como
fala da senhora O .: "São pessoas que, principalmente a mãe, a gente um caderno de rascunho. Mas não é por isso que fiquei mais rica,
a vê muito, todas as tardes está na saída, esperando os filhos, conver- hein?! (Riso.) Então, é isso, faço e depois risco"), escreve lembre-
samos muito, e neste ano nos encontramos fora da escola. Por ini# tes ("Agora mesmo tem um lá na lousa"), redige listas de compras
ciativa da senhora O., fIZemos um almoço para nos encontrannos todos. com cuidauo ("Bem, isso também faço na lousa, e depois coPio direi-
São pessoas que a gente encontra todos os anos na quermesse, que a to, porque não vou levar a lousa"), na ordem das gônuolas do super-
gente encontra sempre na saída. A senhora O. não é uma senhora mercado, e vai assinalando as compras ("Depois de um tempo, não
complicada, a gente sente que ela tem alguma co isa na cabeça, que sei mais direito onde é que estou, e pra ver se não esqueci nada, come#
ela sabe muito bem O que quer. Muito amável, muito meiga, mas sabe ço a marcar tudo o que peguei, vejo o que eml faltando. Depois,
o que quer, sabe muito bem levar seu barco, sabe muito bem onde bem, é um hábito que a gente adquire com o passar dos anos, tudo

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isso, não é? Não acredita? A gente até não fica pensando mais entre Sabine e o irmão provenham dos modelos sexuais de iden-
quando faz isso. niio é? mas precisa fazer. é claro"). escreve coisas tificação tota lmente diferentes.
no ca lendá rio da família ("Porque é mais fácil pra mim. O ca len- Se, por uma ou outra razão, tal como encontramos em outras con,
dário fica diante de nós quando estou comendo à no ite") e, num figurações familiares. o senhor G. gostasse de imprimir mui to mais
bloco-calendário que tem no loca l de trabalho. guarda receiras a própria marca nos filh os. a situação não seria absolutamente a
coladas num caderno elA gente retira, eu tenho um caderninho meu. mesma para eles. A configuração das incitações socializadoras se acha-
Freq üentemente recorto e colo") em ordem alfabética ("É bem-arru- ria muito mod ificada. Na situação descrita. o senhor G. parece
mildo"), rroca~as com as "colegas", faz anotações depois de uma c ha~ desempenhar o papel de um capital econô mico que delega à mulher
mada telefônica. troca pequenos bilhetes com o marido e dei xa alguns toda a gestão das questões familiares, dentre as quais as questões esco~
para os filhos ("Mesmo pras crianças. outro dia deixei um pra eles"). lares. A situação é, po rtanto, relativamente coerente para os filhos,
A senhora G. dá mos tras de grandes disposições racionais na pois a delegação de autoridade leva ao esmaecimento do caráter rela-
orga nização do cot idi ano fam iliar c utiliza freqüentemente. para tivamente contraditó rio das características familiares,ligado à mis~
tanto. escri tos domésticos. Em contrapartida. o marido deixa tudo c ibilidade social do casal.
por conta dela ("Ele berra quando niio tem mais dinheiro" . diz ela
falando dcle com humo r), e ela aceita a situação como se fosse uma Os "brilhames" sucessos
ev idênc ia: "Acho que é. de qualquer forma. da minha natureza.
não é?, fazer assi m. Nunca me pergunte i" . Será, portanto, um COIH.:lUl -"C 411C, mc.. mu 4Ué a ('lInih .l não I,)
"ubnl:,'UC" muHU. é d e quem O
'"" flhng:l" (um WJ.b
acaso se a mãe observa que a filha "se o rganiza quase sozinha" para ,l\ ~Ui.I' fl\rça~ c par.! .11~1ll de \ lll.lll{llC r Illcd id ,I,n .
as tarefas ? ("Ainda o ntem. ela me disse: ·Ah. bem. eu tenho
te mpo. é pra sábado que ve m. eu vou fazer· ... ) Para ela. é porque Os últimos perfis de famílias agrupados agora (pode-se também
ehl é uma menina (em sua cabeça, uma me n ina é, necessariamen~ ler o Perfil 22 na mesma perspectiva) são casos de verdadeiros "êxi-
te, o rdenada, ansiosa, preocupada): "Porque é as me ninas, não é?, tos", sem defeitos, que os professores percebem como "brilhantes"
com as menin(ls rem ourra coisa , é tudo mais ordenado . E tam~ sucessos em meios populares. Por sua diversidade. estes exemplos são
bém . ela é preoc upada. ansiosa. fi ca aflita. então. ela também tem uma prova do fato de que não h,' um estilo familiar único que leve
suas confusões. Eles rêm o livro de textos e ela entende ráp ido . à conclusão da escola primária. Estes casos se mostram, pela regllla~
como tem de ser. Ela é esperta . São as meninas". Será um acaso ridade. pela linearidade dos resultados. como fatos excepcionais.
re r sido a filha q uem pensou por si mesma em escrever na lousa Todas as crian ças parecem ter interiorizado precocemente - J.Xlr razt1es
da família o que estaria faltando ("Pilhas para o walkman") e a mãe de singular economia socioafetiva que a análise sociológica das rela-
ter esclarecido que o filho nunca teria tido essa idéia ("Mas fo i ções de interdependência tenta reconstruir - o "sucesso" escolar como
e la que inv ento u isso, porque o maio r, ele não teri a pe nsado lima necessidade interna, J>essoal. um motor inte rior. Assim, e las têm
assim") ? Será ainda um acaso se o filho é, escolarmente. um pouco menos necessidade de solicitações e de adve rtências externas do que
menos "brilhante" que a irmã (ele. principalmente. foi à fonoau- outras crianças, e até parecem, às vezes, ma is mobilizadas do que os
dióloga: "O irmão também estuda bem. mas ela tem. talvez. mais pais (p. ex .• Perfil 23 ).
facilidade do que ele . Ele talvez tem um pouco mais de dificulda- A autobiografia de Richard Hogga rr"' . intelectual o riundo das
des e m francês, é menos expansivo que a irmã. A irmã está bem classes populares inglesas. nos dá um bom exemplo dos casos de "suces-
à vontade")? Ninguém duvida de que as nuances de escolaridade so" improvável (o Perfi l 25 apresenta numerosos pontos em comum

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

com a situação familiar vivenciada pelo autor) c, mais ampl amen~ e enfim de sua tia Annie, que, como a avó, tem para com e Ie " um
te, da maneira como podemos justificá-lo. Com efeito, num gêne- amor desi nteressado". Mesmo a figura contrastante de seu tio
ro particular de escrita, uistinto do gênero literário que consiste em Walter (que "esbanja" seu talento bebendo álcool) não é totalmen-
sempre dar prioridade à vida e aos senti mentos do autor, Hoggart te negativa: Hoggart se lembra de que, num universo socia l bastan-
nos oferece uma autobiografia que não está exclusivamente volta- te distanciado da cultura escrita, seu tio Walter escrevia histórias
da para um percurso individual isolado, mas que nos ap resenta, atra- "conforme o modelo que podia ser encontrado nas baratas revistas
vés de um minucioso trabalho de reconstrução, as diferentes con- semanais da época"l!!'. Da mesma forma, o avô paterno (morto antes
dições sociais de produção de sua pessoa. A autobiografia, para ele, que ele se integrasse à família), caldeireiro e "bem acima de um ope-
só pode ser a descrição de si mesmo visto, e incessantemente for- rário não-q ualificado" , ficou na memória da família como um
mado, constituído, num tecido de relações sociais, de m(lltiplos homem caracterizado por um orgulho profissional.
vínculos de interdependência . E se acrescentarmos a impo rtância de um diretor de escola pri-
Hoggart viveu muito pouco com os pais: seu pai, pintor de pare- mária e de um professor da Universidade de Leeds que foram solíci-
des, que teve muitos períodos de engajamento nO exército, morre tos em ajudar materialmente e em encoraja r o jovem Hoggart (com
antes da idade de 40 ou 45 anos, e a mãe, originária de uma famí~ injunções preditivas do tipo: uÉ preciso que você vençil. meu jovem"),
lia de Liverpool, considerada pelo lado paterno como de "classe compreenderemos todos os pequenos elementos, materiais e simbó-
melhor", morre quando seu fil ho tem apenas 7 ou 8 anos. Essa mãe, licos, que contribuíram para tornar possível um improvável "suces-
verdadeiro "princípio organ izador do lar", se camcterizt:l, antes de so" escolar. No entanto, é necessário esclarecer que esses múltiplos
tudo, por uma recusa constante, ligada provavelmente a sua o rigem elementos não se somam uns aos outros, mas se combinam para c riar
social menos popu lar, da "negligência", do "desleixo" e da "indul- a realidade, tão evidente à intuição quanto rebelde aos esforços de
gência", características de outras famílias também deserdadas. Viven- objerivação. que um "cl ima familiar" escolarmente favorável cons~
do em cond ições materiais muito precárias e , sob muitos aspectos, titui. Não estamos, neste caso, diante da lógica dos investimentos
humilhantes (a família Hoggart, composta da mãe e de seus três filhos, que se somariam entre si, onde o ntllnero mais ali menos elevado de
fica sob a responsabilidade da paróquia, da Comissão da G uarda investimentos determinaria o grau de "sucesso" escolar.
Civil e da assistência socia l da municipa lidade), ela, com o pouco As an~lises estatísticas de alguns percursos escolares de lIêxito" em
dinheiro de que dispõe, gerencia, como pode, uma vida familiar con- meios populares fazem, aliás, realmente evidenciar-se dois pontos fun-
centrada em si mesma. damentais l!". Por um lado, nenhum faror explica por si SÓ O IIsucesso"
Quando Richard Hoggart, com a morte da mãe, foi separado dos alunos: avós nfio-operários, uma relativa estabilidade profissional
do irmão e da irm~. ficando na casa da avó paterna em Hunslet, na e uma comodidade financeira de um pai mais para operário qualifica-
Rua Newport, 33, integra então um meio que também se caracte- do, uma mãe ativa ou com uma sitlla~1.o profissional mais elevada do
riza por um "apego crispado e contínuo à respeitabilidade, produto que o pai, uma família pouco numerosa, uma trajetória de imigração
do temor de soçobrar sem deixar vestígios"'''. Essa "classe popular dos pais ... , tudo isso pode contribuir para explicar certas trajetórias esco-
respeitável" se personifica nos traços de sua tia Ethel, guardiã intran- lares, mas nenhum desses investimentos se mostra claramente deter~
sigente das exigências da "não-negl igência", do controle de si e da minante. Por outro lado, quando se tenta ver se o acúmu lo de inves~
respeitabilidade, da sua avó "imensamente cnfamiliarizada", despro- timentos mais sólidos pode possibilitar uma melhor compreensão
vida de qualquer ambição pessoal, que quer que o neto "siga seu cami- dos casos observados, constata~se que raras são as famílias que acu~
nho" e, "acima de tudo'\ "saiba manejar as palavras" e "aprenda", mulam os fatores mais favoráveis, e encontram-se até casos de alu-

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SUCESSO ESCOlAR NOS MEIOS POPULARES
PERfiS DE CONFIGURAÇÕES

nos que acu mul am mais investimentos do que Outros e que são ou por breves garga lhadas. De modo geral, não se afastam da pergun-
foram escolarizados em escalões menos nobres. ta feita, e suas respostas são, em conjunto, bastante curtas, mas
sempre precisfls. ~
• Perfil 23: AlIUi. tudo é ordem e regularidade ... O senhor v..
de 42 anos, veio para a França em 1985. E uriginá-
Bun Nat v., nascido na Tailândia, rem, sem dlívida, dois anos a mais rio do Camboja, onde vivenc iou o regime khmer verme lho de Pol
do que a idode declarado. Obrei'" 7.5 na avaliação nacional. POL Entrou para a escola com 9 anos, onde permaneceu até os 24,
na última série do 2· grau, onde estudava matemática. Trabalhou
v..
Quando chegamos à casa do senhor e da senhora o marido ainda inicia lmente no Camboja como policial, depois como "aux iliar de
não tinha voltado do trabalho. Sua mulher, que estava conversando mecânica" na aero náutica . Q uando veio para a França, consegu iu
com uma viz inha cambojana, manda~nos sentar na sala de jantare nos emprego como operário não-especializado e permaneceu nesse cargo
oferece um café. O apartamento no qual entramosse distingue dos outros Jesdc então. Seu domín io precário do francês e o fato de ter perdi-
interiores visitados pela clareza e grande ordem que nele reina. Nada do todos os seus documentos que provam seu nível de estudo o
está jogado pelo chiio ou sobre os móveis. No cômodo, iluminado pela impedem de encontrar um empregu mais qualificado. Seus pais eram
luzdo dia, há um gr<mde sofá. uma mesinha branca encostada na pare- comerciantes num pequeno armazém e traba lhavam também como
de e um telev isor Sony de excelente qualidade. Percebemos uma nesga agricu ltores nos arroza is. Seu pai sabia ler e escrever, m;)s apenas o
da cozinha, que fiC<l ao longo da sala, limpa, arrumaua, clara. Uma sim- que se referia aos assuntos de sua loja (ele não escrevia "cartas muito
ples cortina separa a sala de estar de um quarto de crianças. lo ngas") , e sua mãe não sabia ler nem escrever.
Começamos a falar com a mãe. explicando-lhe o que gostaría- A senhora V., de 38 anos, foi à escola até os 2 1. na última série
mos de saber. Ela parece muito cansada. e observamos, em vulta de do 2" grau de ciências. Ia entrar para a faculdade de direito quan-
seu pescoço, uma cicatriz, vestígio da vida no Camboja sob o regj~ do o regime de Pa i Pot se instalou. Ela nos descreve as condições
me de Pol Pot. A irmãzinha mais nova de BUIl Nat (no 2" ano do de vida no tempo de Pol Pot que reduzia as pessoas à escravidão nas
maternal) estl\ ali. Faz~nos grac inhas e vai esconcle r~sc, como numa "cooperativas" de traba lho forçado. Todas as escolas foram fecha-
brincadeira. Quando as outras crianças chegam da escola, uma a uma, das, e todos trabalhavam 14 horas por dia, sem sa lário, apenas por
olham- nos, mas não dizem nada, e não farão nenhum barulho. No um pouco de comida e uma ro upa por ano. Desde en tão, por causa
final da entrev ista, tomaremos um café com o senhor v.. café que do esgotamento. tem problemas de memória e de coração. Antes
nos foi trazido por Sua mulher. Por duas vezes, a senhom V. nos per- do regime de Pol Pot. estava empregada como agente de impostos.
gunta, preocupada, se nós nos encontramos apenas com refugiados Desde que chegou à França. em 1987. trabalha como costureira em
em nossa pesqu isa, e nos explica, por antecipação, que seus docu~ domicílio. Seu marido a ajuda nos trabalhos de costura. à noite, quan-
mentus se que imaram no decorrer da imigração que. do Camboja, do volta da fábrica. Os pais da senhora V. eram comerciantes um
os trouxe para a França, passando pela Tailândia. pouco mais abastados que os de seu mariuo. Também eram agricul-
O senhor e a senhora V. falam. com um carregado sotaque cam- tores e possuíam tratores. Os dois escreviam e liam bem, e seu pai
boja no, um francês cujo domínio é muito imperfeito do ponto de até poderia ser professor primário, "porque eles vão à escola duran-
vista sintático e léxico, e que, às vezes, temos dificuldade em te muito tempo", umas ele não quer fazer", "ele quer fazer comer~
compreender. Mas compreendem bem as perguntas e, em caso con ~ c iante". O senhor e a senhora V. também poderiam ser professores
trário, não hesitam em pedir esclarecimentos. Não transparece primários, pois haviam concl uído o 2" grau, ao passo que, para
nenhuma reticência. O [Imbiente é tranqüilo, às vezes pontuado tanto, bastava o 2" ano.

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SUCESSO ESCOLAR: NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

o
·cnhor e a senhora V. têm quatro filh os. O mais velho é um filh o. N ão é considerando, rápida e superfic ialmente, as caracte-
rapaz de 14 anos, esco larizado na 6" série. Depo is vem um outro rísticas obj etivas e as práticas dos pais que se conseguirá exp licar
mcn ino de 10 anos, na 4" série; Bun Nat, de 8 anos, na Z' série do um uStlcesso" escolar tão admirável.
12 grau, e a ((I t i ma, de 4 anos, no maternal. Entretanto, há uma Se examinarmos, inicialmente, as práticas de le itura, ficaremos
dú viJa em relação à idade das crianças. O professor de Bun Nat sabendo que, apesar de o senhor e a senhora V. terem aprendido fran-
nos disse, com efe ito: "A idade ofic ial não é a sua idade rea l. Na cês na escola no Camboja, eles o lêem com dificuldade. A senho-
verdade, ele de ve ser de 8 1 (e n50 de 83 ), acho. Na rea lidade, é ra V. diz que há frases que ela não entende (" Ela não entcnde o sen-
mais ve lho , e , freqüe nteme nte , e ntre os ca mbo janos ou os v ietna# tido para as frases", explica o marido ). Mas e les não têm ne nhum
micas, eles enganam sobre a idade para poder recupcrar o nível esco- tempo livre pa m ler, pois ambos trabalham muito (o pai, desde que
lar. E ele deve ser de 8 1. Ele diz isso abertamente, inge nu amente". vo lta do trabalho, ajuda a mulher a costurar: "Não muito tempo para
Bun Nat é descri to , na Z' sé ri e do 1° grau, como um "super- ler assim . Trabalho depois assim"; "N ão, porque o senhor sabe,
bom aluno'\ II muito escolar, pe rfe ito , c uidadoso, impecá ve l", que como a gente trabalha sempre, trabalho mui to, n;;o posso fazer tudo
escre ve bem . Ele até é visto corno ullla c ri ança II lllu ito minuc iosa" sozinha. Meu marido ajudar um pouquinho qua ndo sa i trabalho, ele
e que rea liza "belos grafismos" desde a escola maternal, que fre- ajudar para costura ass im") , e não lêem, portan to. nen l~um jornal,
qüe ntou durantc Z anos. Termina o ano seguindo as aulas de ma te- nenhuma revista e nenhum livro em francês ou em cambojano. Quan#
máti ca com os alunos da Jõ! série da classe , ca mpo e m que e le é J o evocamos a possibilidade de ler histórias em quadrinhos, riem e
particu larmente excelente. De qualquer forma, tem algumas lac u- nos dize m que os filhos deles possuem algumas, mas que eles não
nas na expressão o ral e escrita, isto é, nos ca mpos e m que o domí# têm tempo para esse tipo de coisa ("Nunca ler. N unca ter tempo
nio preciso da Irngua francesa est,í em jogo (confunde, na linguagem para ler ass im") , ne m mesmo , segundo eles, para os jornais distri #
oral , os masc ulinos e os femininos, por exemplo). Não contente buídos gratuitamente nas caixas da correspondência.
de ser um excele nte aluno e m mate mática ( l Ona maioria das pro# A penas o lham, de vez em quando , os livros de matemática e de
vas: "Em mate mática, e le realmen te domina o assunto" ) Il(l e um física do filho mais ve lho, pois se interessam por isso: "Como o livu-
mu ito bom aluno em francês (mesmo assim , cle te m 8,2 como média ro de matemát ica, sim. eu le io muito porque tem interesse para mim.
geral de francês , o u seja , 8 em le itura#compreensão e 7 e m expres# O física também. Sim, ass im". Achmn que os métodos mudaram,
siio esc rita). Bun Nat desenvolve qualidades de compe tido r: "Ele mas ucu sigo sempre", diz a senhora V : "Os métodos, uifercnte um pou#
quer ser o primei ro , quer ve ncer. Seu obj e ti vo é sempre fazer o quinho, mas leio um pouquinho e depois cntendo", diz o senhor V.
me lhor possíve l, vencer os outros". Tem um "tempe ramento de COffi # Eles compraram uma enciclopédia para que os filhos, quando cres-
pet ido r", "compara#se sempre com os o utros", va i solici tar a clas# cerem, possam fazer as tarefas ("Sim, muitos vo lumes, sim , para meus
sificação (que o professor não entrega publica mente na classe ) e, filhos também, depois d>l S>l ída da escola, c voltam pra casa, não tenho
"se não tiver a melhor no ta, não fi ca satisfe ito ". Alé m disso, não muito tempo pra ver, pa ra acompanhar a tarefa ass im" ), e sabem
se nota ne nhuma queda no decorrer do ano: uFo i exce len te do perfeita mentc bem que ela não é um instrumento de trabalho para
começo ao fi m. É semprc mu ito bom". O mesmo professor teve as crianças que estão no primário, mas mais para as c n anças que cur#
como aluno um irmão mais velho (o que est<í na 4" série). e diz sam o ginásio e aci ma. Também têm um dicionário , que consultam
que se tratava de um "a luno do mesmu tipo", prova de que o de vez em quando (o senhor V. diz: "Se eu não compreende r, ablo
"sucesso" escolar de Bun Na t está relac ionado a uma configura- o dicionário, explicar ass im, mas não tenho muito te mpo para ler
ç ão familiar singul ar que produ ziu efe itos em, pe lo me nos, o utro ass im), mas que é, sobretudo, para as c rianças: (lAh , não , é meus

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFI S DE CONFIGURAÇÕES

filhos! (Ela ri.)". A se nhora v., às vezes, também os leva à biblio- lares relativas aos quatro filhos. Além disso, falam raramente sobre
teca municipal, para que eles retire m livros, e os compra quando a escola com os fi lhos, somente quando há algum problema: "Não é
e les têm necessidade, mas trata~se unicamente de livros escolares: sempre não. Como te m um probre ma sim, se não tem probrell)a... ,
"Si m, se ele quer livuros como matemática, como ortografia ou gra- probrema com as tarefas, com meus filhos. E com probrema assim.
mát ica, leva na loja para comprar, sim, sim , ou ler alguma coisa tam~ Sigo todos os tirimeste assim. Vejo a caderneta da escola. Se as notas
bé m, se e le quer". baixa que o mês antes, eu falo: IPor que as notas baixar um pouco assim.
Q uanto à correspondência, o senhor e a senho ra V. tentam Precisa aprender bem', eu converso com e le ass im para ... ".
resolvê- Ia entre si sempre que possível, sem a ajuda das crianças. É Bun N at não fica nos horários de estudo livre e faz as tarefas em
mais ele quem cuida da correspo ndência e a redige, pois veio para casa. O pai diz que não tem muito tempo para ajudá-lo: "Se eu
a Fmnça dois anos am es da mulher e domina melhor a língua escri- tenho um pouco de tempo, aco mpanho as tarefas com meus filhos,
ta, mas é ela quem so licita a ajuda da ass istente social qua ndo se assim . E depois, cansado, eu descanso!". Bun Nat, às vezes, lhe pede
trata de documem os mais complicados que o normal, em relação explicações (liDas vez, meu marido, ele exprica. S im, se tem a lgu~
ao sa lário-famíli a. Quando não consegue, o senhor V. pode recor- ma coisa assim. S im é meu marido que expricar que mostrar sim, mas
rer, numa primeira vez, a alguém, mas depois é ele mesmo quem faz: não tempo inteiro"). Q uando perguntamos ao irmão mais velho
"A primeira vez, mas a segunda vezjá sei bem". São e les que preen~ presente se ele ajuda Bun Nat, ele responde laconicamente: "Não,
chem o formulário de impostos, que fazem os cheques ("Sem pro- deixo ele se virar". Q uando tem notas menos boas, seu pai lhe diz
blema") , que fazem os bilhetes para a escola ("Sim, sim, a geme pode para ler mais e aprender: "Ele chegava na casa e eu fa lo fi ele para
fazer isso. Po rque é bilhete sempre. Não é compricado! (Ela ri.) Se aprender, para ler assim, o lha bem a gramática, ortografia. E depois,
compricado, não posso fazer"), que classificam os documentos, que para fazer os ditados com seu irmão também". E, finalmente, Buo
colocaram numa folha de pape l, e em ordem alfabética, os no mes Nat não faz trabalhos escolares durante as férias.
das pessoas com os números de telefone ("S im , marcado numa Com um pai operário não~especia lizado e lima mãe costureira que
folha, folha grande assim, marcado o nome na orde A, o B, o C , o fa lam francês com dificu ldades e se dirigem aos filhos em camboja-
O, o nome assi m, bem grande, é mais fác il para olhar. Sim, é me lhor no, que nunca lêem livros, revistas ou jornais, que têm práticas de
assim") . Ambos anotam pequenos recados dados pelo telefone e a escrita em fmncês pouco trabalhosas, que rea lmente não têm tempo
senhora V. escreve, num ca lendário, os compro missos dos filh os e para cuidar da escolaridade dos filhos e, principalmente, para acom-
deles. Ambos também escrevem, uma ou duas vezes por mês, ca r~ panhar regularmente as tarefas, que não obrigam os filhos a fazer tra-
tas em cambojano para a famíl ia. Ellfim , têm mu itas fotografias ("A balhos escolares durante as férias, que não conhecem o professor de
gente tem bastante"), classificadas em ordem cronológica em ,llbulls. Bun Nat e que quase nunca vão às reuniões escolares, não dispomos
Em relação à escolaridade de BUIl Nat, o senhor V. diz que "ele é da chave para interpretar o "sucesso" escohu ua
criança.
sério para apre~de r" , mas "tímido um pouquinho": "Ele tem muito O senhor e a senhora V. têm um nível escolar equi va len te ao
medo, assim". E ele quem acompanha seus resultados, e nos diz que do 22 grau completo. Se não tivesse parado em sua progressão pela
ele é mais fraco em francês (ortografia e leitura) do que em matemá- instauração do regime de Pai Pot, a mãe teria até entrado na
tica (Bun Nat lê, limas não bem" e "não muito depressa"). Entretanto. fac uldade de direito. Ela estudou ciências e o pai, matemática. E,
o sellhor e a senhora V. não conhecem o professor de seu filho (a senho- sem dúvida, não é por acaso - mesmo que não captemos, de ime-
ra V. diz: "Não , c u nunca ir com, conversar com e le nunca"), e ape~ diato, com a e ntrevista , as modal idades da transmissão de um ta l
nas participarmn, por fa lta de tempo, de uma ou duas reuniões esco- saber - que Bun N at é particularmente forte em matemática. A

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONfiGURAÇÕES

mãe até parece ser de extrato social relativamente abastado, uma discipl ina. Neste caso, nenhuma chamada incessante à ordem por
vez que seu pa i tinha formação para ser professor primário e pre~ parte dos pais em relação a seus fi lhos. Estes não vêm perturbar a
feriu ser comerc iante para ganhar melho r a vida. entrev ista, são calmos e reservados. Desde o mate rnal, Bun Nat é,
Entretanto, o capital escolar dos pais não parece ser transmitido aliás, ass inalado como "ativo" nas atividades físicas individuais,
de forma pedagógica dentro do ambiente familiar. Neste caso, não mas "apagado" no grupo . Bun Nat é antes descrito, tanto do ponto
estamos tratando com pais que sempre têm tempo para ajudar nas tare~ de vista escolar quanto familiar, como uma criança interiorizada,
fas ou assegurar que tenham sido bem feitas (Bun Nat confirma que fechada, que quase não gosta das atividades coletivas nas brinca-
ninguém o controla). E, no entanto, sabemos também que Bun Nat de iras aO ar livre com crianças de sua idade.
faz bem todas as tarefas e assumiu a escola de fonna competitiva. Temos, Os pais tmnbé m insistem no fa to de que os filhos devem apren-
portanto, um caso, se assim podemos dizer, ele superinvestimento der na escola e também em casa: ('Um pouquinho assim, não muito.
escolar de Bun Nat, sem superin vest imento escolar por parte dos pais. Sim, eu fa lo: 'Ah, não ap render tudo na escola. Aprender em casa
Por que meios, então, os pais Utransmitem" essas disposições esco l a r~ um pouquinho'lI. Por exemplo, Bun Nat tira ~ mesa quando acaba
mente adequadas que fazem de Bun Nat um "superbom aluno"? de comerll~ . A liás, o que nos impressionou ass im que entramos n O
t sem dúv ida, no estilo de vida familiar como um todo, na apartamento foram a ordem e a clareza. Nada estava espalhado.
ordern mora l doméstica, que é, indissociavelmente, uma ordem nern na sa la de jantar, nem na cozinha 1" . Essa irnprcssão se confir-
menta l, que podemos reconstnlir os princípios de produção de com- mou com certas práticas de escrita Oll de classificação: organ ização
portamentos adequados do ponto de vista escolar. Percebemos, dos documentos, listagem de telefones, classificação cronológica das
tanto nas moda lidades da entrevista quanto nas declarações feitas, fotografias o u freqüente utilização do cale ndário. Por fim, a incan-
que há inculcação difusa mas siste mática de uma espécie de elhos sovel atividade da mãe e do pai é um exe mplo de regularidade que
ascético, racional. Os horários da fam ília, por exemplo, são de gran- se ap lica, em casa, num trabalho especia lmente minucioso e prec i~
de precisão, e a regularidade parece ser uma importante qua lidade 50: a COStura.
fa mili ar. Bun Nat vo lra da escola às 17h. Até a hora do jantar, vê Precisão, regl,/nridade, interioriZll)'ão, calma, autonumia, ordem , cla-
relevisão ou fica brincando, em casa ou fora. Janta por volra das 18h30 reza e minúcia , essas são as "qualidades" indissociavelmente co m ~
c, entre o fim da refeição e a hora em que va i se de irar (entre 2Oh30 porra mentais e o rganizacionais que sobressaem de todo um conjun-
e 2 1h, exceto quando não tem aula no dia seguinte), e le "estud a" to de elementos em relação ao conrexto da entrev ista, o estilo do
e Ué proibido ver telev isão". Às quartas-feiras, Bun Nar fica livre o uiscurso mais do que seu conteúdo. Os pais, e também o filho, são
dia inte iro , desce para brincar fora e vê televisão. Mas, a partir de precisos e breves e m suas respostas. Bun Nat responde às nossas per~
l 8h30, põe-se a faze r suas tarefas, e essa regra é igualmente válida guntas de mane ira rápida e concisa. Sua maneira de falar é seca e
para os domingos: "Também é proibido". As regras são enunciadas contida, e não é do tipo de ficar mu ito tempo numa questão. Inllt il
claramente: a partir de tal hora, todas as no ites, Bun Na[ tem de dizer que essas qualidades familiares são também qualidades esco-
passar das brincadeiras para o trabalho escolar. Ele, ali,ls, nos mostra lares. Se Bun Nat é descrito como uma criança "mui tO escolar" pelo
o produto dessa regularidade e dessa exatidão dos horários familia- professor, é porque tudo, em seu comportamento preciso, minllci o~
res quando nos diz as horas exatas de de itar~se, de tomar as refei~ so, rigoroso, Hdireto", se aj usta à lógica escolar da regularidade, da
ções ou a duração de suas tarefas!I 1. ordem e da clareza, e, particularmente, no interior da ordem esco~
A maneira como acontece a entrevista nos informa muito tam~ lar, às qualidades mentais e comportamentais que os exercícios de
bém sobre a mane ira fam il iar de comportar~se que repo usa na a uto~ matemática exigem.

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PERfiS DE CONfiGURAÇÕES
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

Mesmo que este "sucesso" aconteça sem superinvestimento esco~ tendo uma coleção de bonecas e numerosos bibelôs de porce lana,
lar dos pais e que estes se apóiem na autod iscipl ina dos filhos, isso um televisor, um apa relho de som e um aparelho de vídeo. Nas pare-
não significa que os pais se ex imam tota lmente da questão da esco- des, vê~se uma paisagem em serigrafia, um quadro em relevo de bar~
laridade. Compraram uma enciclopéd ia para os filhos (depois, sem cos no mar e um pequeno quadro vertical intitulado Ethnology Df
dúvida, de um longo traba lho), levam-nos, às vezes, à biblioteca muni- Madagascar. Um calendário para as férias escolares está pendurado
cipal, compram-lhes livro escolares quando têm necessidade e, num paine l. Durante a entrevista, a senhora R. parece bastante tensa,
principalmente, modificaram, sem dúvida, e com muita lucidez, a como alguém que esteja procurando respostas corretas, que não
idade rea l dos filhos para possibilitar-lhes recuperar o atraso ligado quer se enganar.
ao problema lingüístico. Já que o sistema escolar francês distribui O marido da senhora R., de 45 anos, é originário de Madagás-
os alunos segundo a idade e não segundo o nível de desempenho, car, mas de nacionalidade francesa. Foi 11 escola em Madag,\scar até
os pais mentem quanto à idade dos filhos, para que não fiquem per- a 6" série ("Ele não foi muito, muito, muito bom. E além disso, não
didos em classes onde não compreenderiam nada. Notável preocu- pôde continuar"). Na França, fez um estágio de formação de tor-
pação pedagógica, portanto. Mas essas poucas práticas, se não esti- neiro, alguns serviços temporários, depois encontrou um emprego
vessem fundamentadas na autonomia das crianças e no conjunto de operário polivalente na Black & Oecker: tem uma loja há 10 anos.
das disposições familiares, no fundo muito "escolares", não produ~ O senhor R. está na França h,\ 20 anos. E fo i aqui que conheceu a
ziriam de forma alguma os mesmos efeitos. A conseqüência da mulher. Esta nos diz que o marido não é muito apegado aos pais (apo-
socia lização difusa descrita é realmente tão potente que Bun Nat sentado da Companhia Nacional de Estradas de Ferro e dona-de-
desenvolve uma energia escolar fora do comum. Com este caso vemos, casa), pois ficou muito tempo em um pensionato, e, quando esta~
portanto, como obstáculos lingüísticos, materiais e cultu rais (os va em férias, ia mais à casa do avô, no campo.
momentos vo ltados exp lícita e diretamente para a transmissão de A senhora R., de 42 anos, também é originária de Madagás-
um conhecimento parecem ser limitados pelo tempo que os pais ficam caro Foi à escola até a 7i! série, "os dois primeiros trimestres", mas
no trabalho) são vencidos por um ethos familiar muito coerente, regu- esclarece que a escolaridade começa mais tarde em Madagáscar
lar e sistematicamente posto em prática e, com isso, potente em seus (ela saiu da escola com a idade de 16 anos e meio). Interrompeu
resultados. os estudos para vir para a França. Tinha decidido fazer um está-
gio de formação profissional, mas abandonou-o. Começou, por-
• Perfil 24: Uma vigi lânc ia regular e sistemática. r::mto, como operária não~especia li zada numa fábri ca durante 10
Cliristian R., nmcido em Bron, sem relJerência escolar, obteve 7,5 na anos e parou com o nascimento da filha ("Parei para cri ar minha
a1valiaç[w nacional. filha"). Agora está trabalhando como babá. Não conheceu o pai,
que morreu quando ela era muito pequena e sua mãe nunca exer~
A entrevista se desenvolve com a senhora R., na presença de ceu at ividade assalariada.
sua irmã e de um bebê de quem toma conta. A irmã intervirá de O senhor e a senhora R. têm dois fi lhos: uma filha de 12 anos,
2
vez em quando na conversa, desculpando-se sempre por isso. Esta- na 6" série, e um filho de 8 anos, Christian, na 2" série do 1 grau.
mos na sala de jantar, em volta de uma mesa recoberta por uma toa~ Este' entrou muito cedo (2 anoS e 2 meses) no maternal e, desde a
lha plastificada. No cômodo, percebe-se Lima estante com enciclo- época, é visto como uma criança "bem adaptada" e "muito séri a em
péc.lias ("J.:univers en Couleurs", "BBC"), fotos de Christian e seu seus trabalhos". Na [" série do 12 grau, os professores observam que
time de futebol, um grande móvel com uma parte envidraçada con- Christian é um "aluno dócil" e, na za série do 1Q grau, é cons ide~

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONFIGURAÇÕES

rado como uma c riança "tranqüila", "distraída" o u "indole nte", mas É, portanto, quase exclusivamente a senhora R. q uem cuida de
"dotada". Os n íveis escolares ou as profissões dos pais de C hristi an todos os escritos do mésticos. Põe o rnarido "a par" da correspon ~
não nos possibiliram espec ialmente compreender uma situação dênc ia, mas e le não a lê. Redige as cartas administrati vas, pree n ~
escolar muito fav orável. che o formulário de impostos, cuida das contas familiares, classifi -
Uma abordagem pelo ãngulo das prá ticas familiares de leitura tam- ca rigorosamente os dive rsos documentos em pas tas, gere nc ia o
bém não é esclarecedora, na medida e m que são muito restri tas por orçamento familiar, sem cade rno , mas separando as notas que ainda
parte dos pa is. N ão estamos diante, por exemplo, de pais autod ida- não foram pagas ("Tudo o que está pago, arrumo , sucessivamente ,
tas que se in teressariam por práticas de leitura apesar da posse de um e m pastas") , escre ve le mbre tes, listas de compras, faz ano tações no
capital escolar relati vamente pobre. O sen hor e a senhora R. não calendário da cozinha ("Tem dias que rá marcado: médico, dentis-
compram regul arm ente jornal ("Ele, é principalmente o jornal da ta, re u ni~ o, compro misso que vou riscando ... N ão posso esq u e~
televisiio, às 20h , que ele assiste, e s6", di z a senho ra R. a prop6sito cer") IH, troca pequenos bi lhetes com o cônjuge, redige as cartas para
do marido ), e, quando têm um, "folhe iam" apenas as notícias poli~ a família ("M eu marido não escreve nunca. Ele é muito fechado
ciais (assassinatos, ate ntados ...) o u os classificados de emprego, mas (riso) "), escreve o u cola rece itas num caderno ("Copio tudo, sim ,
nunca a política ("Passo de lado") . Também q uase não lêem revis- sim, te nho um cade rno , tiro num caderno, coloco o título no iní#
tas, histórias em quadrinhos ou livros ("N ão gosto muito") , diz a senho- cio") , faz anotações prévias a um telefonema (" Faço uma espécie
ra R.: "O lho revistas de vez em quando, folhetos, anúncios, ca tálo- de rascunho, por exemplo, etapas") ou depois de uma conversa
gos, mas ler de fato, ler um livro, não". Q uanto ao marido , e le "o lha telefô n ica, para lembrar-se do que lhe disseram ("Risco, anoto,
a Bíblia" de ve, em quando. O senhor e a senhora R. têm um dicio- escrevo algumas palavras que vou abreviando ao longo para me lem-
nário e enciclopédias ("Comprei 'BBC' para minha filha", diz ela , bra r a que foi que ela respondeu" ), e cuida dos ,I lbuns de fotos, escre-
"para apre nder me lhor o inglês"), que estão dispostos numHestan# vendo pequenos come ntários: "Fazia isso princ ipalme nte antes,
re. A senhora R. diz que utiliza "freqüentemente" o dicio nário, que quando a gente não tinha filhos, eu marcava: 'Um feliz aniversá-
desempenha um pape l de árbitro nas contendas semânticas ou orto- rio. Esse dia foi formidável' o u, por exemplo: 'Comemos e bebemos
gnificas C'Pras palavnls que a gente não entende, sempre tem um que mu ito be m', 'Um di a inesquecível'. co isas ass im".
fa la: 'Não é isso', o outro, e le d iz: 'Ê isso', entRO a gente fal a: 'Beim, Apesar de a mãe parecer, às vezes, descrever, no decorrer da e ntre~
olha no dicionário ' '. A genre olha sempre no dicionário para ter, como vista, uma mane ira bastante indolente de gerenciar o tempo - sua
falar, o resultado exato. É o dicionário que nos guia, que nos dá O irmã diz: "Bem, ela vem das ilhas, hein ? (Riso.)" - , ela utiliza bas-
certo") , ou a enciclopédia ("Tem mais detalhe"). Os livros que pos- tante os numerosos calendários presentes quase por toda parte na casa
sueryt são essencialmcnte os que são comprados para as criança. (no quarto de cada um dos filhos tem um ), e gerenc ia racionalmen-
E mais considerando as dispos ições socia is fa miliares materiali- te o cotidiano familiar. A lém disso, a senho ra R. insiste no fato de
,adas na pessoa da mãe, que cuida da gestão do cotidiano e da esco- que o filho tem de saber olhar o calendário para poder organizar-se
laridade de seus filhos, q ue podemos compreender um po uco melhor em seu trabalho: "Ele tem sempre programas na cabeça . então, para
a situaçiío escolar de C hristian. Éa mãe quem cuida de tudo na casa. mim, é essencial que saiba olhar o calendá rio, para poder guardar 'Tal
Ela diz, rindo, de mane ira reve lado ra, que scu marido Ué inex i ste n ~ dia, tenho tal coisa pra fazer' ''. Por trás de uma fo rma de displicên-
te". A lém disso, e la recorre a numerosas práticas de escri ta o u de cia (que os professores também observam no comportamento de
classificação que revelam uma grande disposição racional, uma ten - C hristian) se esconde uma mane ira muito rigorosa de pautar os rit~
dê ncia ao cá lculo e à previsiío. mos familiares, de controlar as ati vidades dos filhos, de organizar as

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

obrigações e de organizar a vida familiar. A mãe até corrige alguns É sempre a mãe quem acompanha a escolaridade de C hristian
aros dos filhos para que sintam o valor das coisas que consomem e a e até faz parte do Conselho de Classe da escola. "Assim, fico saben-
necessidaJe de não avançarem sobre um alimento para poder guar- do o que acootece na escola", diz ela. Isso lhe possibilita também
dar um pouco para mais tarde. Arravés de aros cotiJiaoos, ela traos- julgar os desempenhos do fi lho em função do que ouve acerca dos
mite uma relação específica com o dinheiro e com o temJX), que impli.. outros alunos. Cons idera que, em matemática, a situação de Chris-
ca cálculo e a limitação dos desejos imediatos: "Aliás, quaodo a gente t ian é bml, mas que ele tem dificuldades em ortografia' l\, pois quer
faz as compras, bem, as crianças só querem doces, bem, mioha filha ir muito rápido: "Ele não pensa muito quando está copiando". O lha
é roupa, é uma loucura, a gente fala pro eles: 'É, você vai ver, quan- regularmente smlS notas e , quando 'ão ruins, o "repreende".
do trabalhar, se va i poder comprar tudo isso, é, você va i ver quando C hristian não fica nos horários de estudo livre depois da au la,
for com você, com teu dinheiro que você vai pagar. Vai aprender que nunca desce soz inho para brincar, pois a mãe tem medo dos carros,
é preciso prestar ate nçiío, que oão é ficar gastando assim de um dia e faz as tarefas no quarto. Reso lve soz inho, depois mostra os cader-
pro ourro assim o que tem em casa'. Meu filho, que tá sempre comen- nos à mãe OU" innii: "Estuda sozinho. Quando acabou e já está saben-
do, sempre procuraodo, porque acabamos de voltar das compras, eu do, vem até nós, nos mostra seu caderno e, então, a gente olha com
falo pra ele: 'Não é porque a gente acabou de comprar isso que já vai ele e ele repete em voz alta. E sempre a gente diz: 'Será que você
dando um fim. Tem que saber que amanhã vai fazer falra, assim, que entendeu o que isso q uer dizer'! Porque, bem, falar assim em voz
não vai fica r comprando toda vez que não tem. Isso custa dinheiro, alta é bom também, mas pode ser que até não compreenda o que
é'. A gente ensina tudo isso pra eles". E a isso é necessário acrescen- aquilo quer dizer, oão é!"' ''. A senhora R. controla muito o filho,
tar o ritmo familiar bastante regular, tanto das crianças quanto dos pois está persuadida de que o professor dá tarefas muito fáceis e de
ad ul tos. Na véspera dosdias em que tem aula, Christian se deita "cedo, que ele tem "tendência :'1 ser muito tranqüilo e dar notas muito
8h e meia'\ e eles próprios têm um ritmo regular que se expressa par- altas""': "Por exemplo, se meu filho tem 9,5, bem, ele fala: 'Não
ticu lannente no ditado: "Quem deita cedo, cedo madruga". Assim, vou dar 9,5; 10 está bem'. E eu não gosto disso, não concordo com
podemos pensar que as rigorosas organizações da existência familiar isso, porque mesmo em vez de dar 9,5, era melhor ele dar 9,0 pra
que descobrimos podem estar na origem das organizações de pensa- criança entender que não estava bom o que fez, porque se a crian-
mento bem-estruturadas. ça começa a fazer assim, fica achando que uma vírgula não é impor~
Mas isso não basta, sem dúvida, para explicar o "sucesso" escolar rante c, então, vai continuar". Ela não está contente com os atuais
de Christian. Além do mais, é preciso considerar uma vontade de asceo- resultados absolutamente brilhantes do filho, pressentindo que
são social que está conscientemente voltada para a escola como meio qualquer desleixo de sua parte poderia prejudicar o que já apren-
de vencer na vida. A senhora R. "lastima muito" não ter )X)dido ir mais deu lll'. . Para ela, os atuais resulmdos não constituem lima razão para
adiante nos estudos. Para ela, a escola é um investimento particular- não ma is csforçar,se, para uma negligência. Mantendo a pressão,
mente importante para ter uma IIsituação". Atribui sua condição fica lembrando constantemente ao filho para que faça as ta refas
modesta a um nível de escolaridade muiro baixo: "É importante, por- ("Quando a gente vê que está vadiando, falo: 'Você já fez as tare-
que a gente sabe que nós, os pais, a gente leva uma vida dura, e acho (as!'"), para que "ele não se acomode assim facilmente", e acres-
que é porque não fomos muito longe na escola e a gente não tem muita centa que e le precisa ser controlado l I" .
instrução. A gente não aprendeu o suficiente, e é por isso que a gente A mãe ta mbém estimula os filhos:J lerem. Vai à bibl ioteca muni-
tá assim na vida". Ela e o marido sempre repetem a seus filhos: "Você c ipal, lide vez em quando, mas é sempre assim. para as crianças", e com-
precisa apreoder bastante na escola para se sair melhor mais tarde". pta-lhes livros como presentes'''. Como ela própria não lê e consi-

,00 ,O I
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derando essa lacuna como um "defe ito" , tcnta persuadir os filhos de so" escolar (e, mais amplamente, social) dos filhos. Podemos até acres-
que se trata de algo interessante: liAs crianças, eu estimulo mu ito centar que o fato de que a mãe tenha parado de trabalhar por von-
eles, ler, ler, ler. Sei que é um defeito que tenho". C hega a incitar tade própria no mo mento do nascimento da filha, só voltando a
C histian a ir ele próprio consultar o dicionário quando não compreen- fazê-lo com um serviço em casa, desempenha um papel não-negli -
de uma palavra ("Ele faz isso, mas não é sempre , he in ? Preciso estar genciável, princ ipalmente em configurações familiares em que tudo
sempre atrás dele"). Ela ac ha que é lendo que ele poderá melho rar depe nde de uma vigilànc ia regular e sistemática' '' . O que pode
a ortografia: "Eu quase obrigo ele. Tento fazer que ele fa ça isso, por- reforçar essa hipótese é o fato de a irmã da senhora R. intervir no
que se i que é assim que ele poderá melhorar do ponto de vista da fi nal da enrrevista, lembrando as dificuldades escolares de seus pró-
ortografi a, por exemplo. Ele vai encontrar palav ras novas que tem prios filhos, mais graves, por, segundo ela, trabalhar fo ra e pela sua
de anotar, que tem de aprender". Segundo a mãe, C hristi an "não gosta relativa falta de disponibilidade em relação a eles. "M eus filh os tra-
mui to" de ler. pois não tem "paciência"Hl. Mas isso não impede que balham menos bem q ue os filhos de minha irmã. Te ver em casa, já
ele, às vezes, peça livros: "Foi por causa deles que ele descobriu a esco- te m Lima preocupação de rnenos pras criança, tem a impressão que
la. Ele me disse: 'Veja, a professora nos fala isso, aquilo, ralvez seja isso tranqüiliza elas. Comparo os filhos dela com os meus. Eu , por
interessante, que ro ler da próxima vez', o u algo ass im" . exemplo, que esrou quase sempre mais fora do que dentro, bem, quan-
A mãe també m exerce lima ação socializadora que estimula os do e les vo ltam, não encontram n inguém, e isso já é lima preocupa ..
filhos do ponto de vista das exigências escolares, de forma que ção a mais, que não de ixa e les em condições para estudar, estudar
C hristian vive ncia a escola como um universo de compe tição na melhor, eu diria. É, eu esto u mais metida na engrenagem , sempre
qual deseja ser o prime iro. Preocupado, ele interiorizou a vo ntade correndo, a mesma ro tina. Incapaz nem de aj udar meus filhos em
escolar da mãe de fonna competi t iva. Com efeito, e le go ta ria de seus estudos, e" (Riso. ) A senhora R. confirma isso: "Estol< em casa,
passar na frente de uma menina de sua classe que sempre está em posso controlar muito mais do que ela, po rque ela, ela trabalha" .
primeiro lugar (é a aluna do Perfil 25 ): "Então, bem, é o que deixa
ele nervoso, às vezes; tem uma me nina, que está na file ira 2, que • Perfil 25: Um caso "idea l".
va i me lhor que e le, que é sempre a prime ira, en tão e le fa la: 'Putz! Nadill D., nascida em Ou/lins, sem nenhuma repetência escolar. oble-
A quela ali , não consigo passa r na frente dela! '. Eu falo pra ele: 'Mas ve 7, 6 na avaliação nacional .
não é isso que precisa faze r'. Eu falo pra ele: 'N ão é isso que conta,
porque' ..., é claro, eles estão, não sei bem, com do is pOntos de dife- Q uando marcamos o encontro por telefone: falamos com a senho-
rença , ou um po nto. Eu falo: 'Não é isso q ue precisa faze r. É você, ra B., avó m aterna de Nadia, que nos diz.: "E claro , aceito . Somos
você o lha o que está diante de você, não precisa que rer passar na muito abertos ao diálogo. Tudo o que puder ajudar a criança. Venha
frente da outra!'. É o trabalho dele q ue ele tem de ver, se fez com à minha casa, o senho r verá em que ambiente vive Nad ia, é im por'
vontade, com atenç ão, va i dize r: 'Bem, pô, não consegui faze r rante o ambiente". N o dia da entrev ista , entramos num apartamen,
melhor, mas fiz o que pude' . Além disso, 'ele aprende bem as lições, to impecável: arrumado, limpo, claro e espaçoso. No hall de entra-
consegue guardar bem elas. Aliás, ele fi ca repetindo elas várias da, esní. pendurado um pequeno quadro com a inscrição: "Quem chega
vezes e tudo. Isso o atormenta . Antes de ir pra escola de manhã, ele como amigo chega muito tarde e sai muito cedo". A entrevista ocor,
ainda faz uma revisão delas". re na sala de visitas. N ela encontramos um jogo de estofados de couro,
Os "dons" ntribuídos a C hristh-ln pelo professor são, portanto, o uma estante com po rtas de v idro . móveis novos em uestilo rústico",
produto de uma organização fam iliar racional voltada pa ra o "suces- uma televisão e um aparelho de vídeo, grandes plantas, fotos dos filhos,

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da sua filha falecida (a mãe de Nadia) e quadrinhos acompanhados tem um innão que concluiu o 22 grau (na área de matemática e ciên,
de textos em árabe, O quarto de Nadia, que a senhora B, nos levou cias naturais), uma irmà que tem um Certificado de Conclusão de
para conhecer quando a entrevista acabou, está bem arrumado. l 2 Grau Profissionalizante de Secretariado, uma outra que cursou
Nele, observamos principalmente livros e uma lousa. O senhor B. a escola de enfermagem, um irmão que é telhador e outro que se
vem se juntar a nós no decorrer da entrevista. U sa pequenos óculos tornou "gerente de lima boate". O se nhor B" de 64 anos, é aposen-
em metal, um corte de cabelos impecável e está vestindo, sobre uma tado, Trabalhou como montador em metalllrgica (operário qualifi-
camisa clara, um pu lôver com decote em V, de losangos, cado) e foi à esco la na Argélia até O fim do curso primário,
Nadia D. vive com os avós maten10S desde a morte da mãe, ocorri, A mãe de Nad ia morreu há 6 anos. Conclu iu o 2" grau , na área
da quando ela tinha 23 meses. A senhora B., de 56 anos, ficou em de mate mática e ciências físicas, e tinha uma licenciatura em russo.
casa para cu idar dos quatro filhos, e depois, como os estudos de seus Tinha começado a trabalhar como programadora, e havia se casado
filhos se tornamm muito onerosos, ela trabalhou como auxil iar de com um homem de quem a senhora B, parece não gostar muito. De
maternal IH . Não foi à escola na Argélia e chegou à França com a início, ela havia questiunado sobre o nível de estudos (pouco ele-
idade de 14 anos, sem saber ler nem escrever. Mais velha de uma vado) daquele rapaz - sinal da importância atribuída por essa famí-
família numerosa, seu pai queria que e la auxiliasse a mãe junto aos lia à cultura esco lar: "Quando minha filha o apresentou a mim, é,
irmãos e irmãs: "Eu era a mais velha. Precisava ficar em casa, pre, era um belo rapaz. Um belo rapaz, nada mais. Mas beleza não põe
cisava ajudar toda aquela criançada". Cursou a escola durante 28nos mesa, A h!, é por isso que lhe digo, talvez seja pretensão porque eu
na França, mas aprendeu, quase às escondidas, a ler e a escrever, e teria preferido para meus filhos pessoas intelectuais, que alcançaram
dá mostras de uma grande curiosidade cultura l. Aprendendo com um certo nível. Sabe, não podemos todos ser doutores, mas ter algu,
a irmã, env iava seu trabalho à sua antiga professora, que o corrigia ma coisa para conversar, conversar com alguém sobre alguma coisa,
e o devolvia. Esta queria que ela fizesse o exame para obter o Cer- dum livro que a gente leu, de um filme que assistiu". O pai de Nadia
tificado de Supletivo, mas o pai não deixo u, trabalha como motorista-entregador e vê a filha todos os domingos.
Desde muito nova, era fascinada pelos livros (teve a oportuni- Tendo entrado na escola maternal com 4 anos, Nadia é vista
dade de conhecer a biblioteca de FerhatAbbas"" ': "Ferhar Abbas era como uma c ri ança que se adapta bem escolarmente, embora
nosso vizinho. Quando a gente vê que era um médico, um farma, tenha "dificuldades para se desenvolver, às vezes". O professor da
cêutico reputado, um homem que tinha biblioteca, milhares de 2i! série do 1~ grau observa que ela sempre "progrid e", que "vem
livros' Eu me lembro só disso, quando entrava na casa deles, Eram à escola contente", que Hsabe bem as lições" e que se sente "que
os livros que me atraíam. Queria saber o que tinha dentro de todos elél vem à escola para ter sucesso" . Pudemos constatar que o
aqueles livros. Eram pra mim um rnistério. Um mistério, porque eu maior obstáculo para lima escolaridade excelente das crianças que
não sabia o que era um livro". Seu pai era operário nào,qualifica, vivem em meios populares estava relacionado ao fato de que a
do e dirigia os negócios da família com uma vontade moral bastan- boa vontade esco lar dos pais nem sempre encontrava os meios
te segura: HUm simples operário, mas a gente viveu muito bem. A para sua realização (em tempo, em formas de relações sociais".),
gente era feliz. Meu pai era supergentil , em todos os aspectos, mas o u então era questionada por elementos socializadores contradi,
era muito rigoroso. Super. A gente podia pedir a ele o que quises- tórios no próprio seio da família. O caso de Nadia é um caso excep-
se que e le nos trazia. Mas era rigoroso, era o homem, ora. Não era cional de cr i::lnça que vive uma socia li zação estável, sistemática
nem o homem, era o patrono . (Riso.) Aquele que dava murros na e nào,contraditória que a leva a um "sucesso" escolar "brilhan;
mesa, é". Seus irmãos e irmãs não se tornaram todos operários; ela te", Ainda neste caso, não é pelos diplomas ou pelo tipo de pro-

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fi ssão exerc ida pe los avós q ue se pode compreender o processo rev ista que tinha começado a assinar para Nadia. Lembra com
de "êxito". Do ângulo do capital esco lar e do capita l econô mico, menosprezo os romances policiais ("Ah, não gosto de romances po" -
não se percebe e m que consiste a espec ificidade da configu ração cia is! Tenho horro r d isso") e os tomances "melosos". Cpega a cen-
fa miliar, da constelação de atitudes, de disposições, de incitamen - surar o marido por não ler bastante: "Ele não lê nada. E verdade, é
tos cot id ianos, difusos o u explíc itos , no se io da q ua l N ad ia pode uma censura que faço a ele constantemente._ A gente se to m a cul to
constituir sua pró pria persona lidade. lendo. (Tom um tanto quanto moralizador.) E isso que e le não con-
Em prime iro lugar, estamos às voltas com uma personagem eguc compreende r. N ão quer to rnar#se c ulto". M esl~o ass im, ~
central, uma figura#chave desta famíli a: tl avó materna. Esta se s in ~ senhor B. compra, ocasio nalmente, o jornal (Le Progres) , onde le
gulariz. por sua bulimi a cultural, sua curios idade enciclopédi ca de as no tícias po liciais, espo rte , ass im como todas as no tí~ i as [ocai~H.~ .
autodidnta, po r se u respe ito pe lo sa be r e al ra c ultura e , muito E a avó ainda organiza rac ionalmente a vida fami"ar: as ativI -
espec ialm ente, pelos li vros. Antes da morte da filha, ela li a apro- dades dos diferentes dias, os horários das refeições, os horários de
x imadame nte quatro li vros po r se mana. Fala com uma no tável de itar... SHO de grande precisão (uÉ po ntual, é exato") 14Ú, e estão cal,
intensidade da enonne vontade de saber que sente dentro de si e que cados nas ex igências escolares (Nadia se deita po r volta das 2 1h,
poderia tê- Ia levado a faze r outra coisa de sua vida: "Li tudo. Se meu exceto nas no ites e m que, no dia seguinte, não te m aula e quando
marido estivesse aq ui , ele lhe diria: 'Ela me queimou muitas lâmpa- pode ver televisão até um pouco mais tarde). Essa organização fa mi-
das. N o ites in te iras, dias inte iros, ficaram acesas'. Li durante noi res liar rigorosa se torna visíve l também no aspecto do a~a rtamen to,
inteiras. Q uando me case i, lia livros até 3, 4 horas da manhã, escon- bem-cuidado, sem desordem (incluindo O quarto de Nadm), que passa
dida, hein ?, porque meu marido trabalhava de manhã. Eu na época (e, sem dú vida, quer passar) a image m de gente de "bem e q ue se 11 ..

t inha 19 anos, tapava com jornais a lilmpada de cabeceira . Porque apresenta bem", Inclusive na apresentação Je si ; com sua mane ira
era uma necessidade de saber, de aprender. E eu q ueria aprender e de fa lar e de vestir-se, o senhor e a senhora B. lembram a classe ope-
conseguia. Agom sei que isso não é arrogânc ia. N ~o é nem mesmo rária rcspe itáveP"'. .
pretcnseo, é uma necessidade. Acho que é uma necessidade. Talvez A gestão da o rganização do méstica, pela senho ra B., é espe~ lal ­
tenha nasc ido para o utra coisa alé m disso, É alguma coisa em mim, mente o rdenada, e é ela quem cuida de todos os papéiS - Era
é alguma coisa em mim, sinto assim. Ah, veja, n.i o é arrogância, é sua fun ção", di z o senhor B, ; "É me u do m íniO", ac resce l:ta a
um ..l necessidade ", Q uando O marido chega, e le confi rma suas pala# mulhe r, A mbos lêe m a correspondênc ia, m8S e le faz uma leitura
Vri-1S, comentando : "Ela lia, ah, sim, ela comia , he in ! Ela é mais
mais usupe rficial". Q uando é preciso escrever c artas ns re partições
c ulta qu e e u" . El a le u, e ntre o utros , Ca mus, Mo nth e rl <:l nt , o u r ara a fa mília, é sempre ela quem se encarrega disso: "Sou sem-
C hateaubriand , G ise le Halimi, e gosta de biografias (acabo u de ler pre eu, não é às vezes, é sempre". O marido ac rescenta: "Ela é ded i-
a cle Romy Schneide r, Moi, Romy) . Nas biografi as, gosm do fato de cada . É a secretária, faz todo o orçamen to, tu~o, gerenc ia o orça-
poder em rar na história de uma pessoa rea l: "Porque isso dá a impres- mento. Ela se mpre conduziu o barco, hein ?". E ela quem preenche
sfio de que te m alguém por trás desse livro. Tem uma presença , e fico " formulário de impostos (e la o assina), faz os bilhetes para a es-
imaginando essa presença quando esto u lcnuo". cola, se e ncarrega das contas fa miliares, organiza os doc ume~tos
A lém disso, ela interio ri zou uma relação legítima com os pro- (UEs t~'í tudo class ificado, he in ?, e m pastas com os nomes em Cllna,
dutos cultu ra is, e fala das "bobage ns" da televisão (que opõe às com etiquetas. Tudo está marcado. A h, s im, aqui em casa é ass im" ),
"info rmações rea lme nte interessantes", ta is como os "programas faz as contas familiares todos os meses com a aj uda de um cacle r,
médicos o u os jornais informativos") o u da Hi mbeci lidade" de uma no e de uma agenda , mantém atualizada a caderne ta de e nd e re~

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

ços e de n(uneros de te lefo ne e escreve lembretes num papel o u moralmente": "U ma c riança, do que e la precisa? Precisa de um
num "calendá rio". É ela ainda q uem de ixa bilhetes para o mari- apoio moral. Isto é, de alguém que esteja ali , uma presença, só isso.
do ou para ourras pessoas ("Quando meu marido está ausente e Mesmo que a gen te não a aj ude, não pego a caneta dela para faze r
eu tenho que sair, deixo um bilhete para e le. Ah, isso sou eu que su:lS ta refas, não sou e u, é e la quem tem que fazer, mas esto u aqui
faço. Ele não faz, mas eu sim".) , redige uma lista de compras na (acentua essa palavra). Isso prova que o esteio está aqu i. E ela estu-
orde m das gôndolas c vai marcando as compras grada tivamente, da, estou em volta dela, só isso. Ela sente que estou aq ui". E com-
no supermercado CCEm princípiO, faço ass irn, na ordem , porque preende mos a excepcional transferência de afeto que se opera por
depo is me amo la te r de to rnar a marcar e vo ltar ao Outro lugar. causa do desaparecimento da mãe: "Eu a educo com muito amo r,
Vou lendo o que Va li pegando. Sei pra o nde vo u, o lugar pra o nde muita ternura. Mais amo r, prime iro , do que te rnura po rque minha
estou indo. De qualquer fo rma, a gente consegue se loca lizar, por filha não está aqui . Minha filh a não está aqui , mas ac ho que gosto
exemplo , n gente pega cinco, se is coisas no mesmo loca l, c a gente muito mais de la do que sua própria mãe".
va i logo dire tame nte pra lá") , escreve uma lista das co isas a serem Esse constante apo io se manifesta especialmente num aco mpa~
levadas numa viage m ("Quando a gente sa i, por exemplo , q uan - nhamcnto escolar e , mais amplamente, cultural muito ri goroso '~.
do vo u para Argé l ia, ou então quando a gente sa i de féri as, sou A avó esní convencida do valor da escola: "O estudo, para mim , é
obrigada, de q ualquer fo rma, a falar: ' Levo se is pulôveres, três cal- uma necessidade e é sagrado. Com a vida que se está levando ago ra,
ças, um maiô'. A gente é o brigada, porq ue, senão, " mala fica uma a gente é obrigada a ter instrução e educação" . Ela conhece bem o
confusão") e faz anotações ao telefone . professor de Nadia, e vai vê-lo freqüentemente"". Verifica as tare-
Toda a oposição entre as d isposições gerenciais, calculadoras, íclcio~ fas ("A gente controla isso todos os d ias"), corrige-as, explica quan-
nais da avô e as do avô se revela qua ndo perguntamos se eles têm do Nadia não compreende uma palavra ou um exercício''', fá- Ia dizer
uma cadenleta para contro le de manutenção e gastos com o carro, e m voz. alta as lições ("Às vezes, quando tem resumos para estudar,
e a senhora B. , julgando certamente ser da alçada de seu marido, bem, eu decoro, e depois dou meu caderno pra ela e fa l em voz alta",
diz: "N ão ele ' A h , ele não é minucioso", e se d irige a ele, falando confirma N ad ia) e acompanha as notas com o marido.
num tom mo rali zador: 'cVocê não é esfo rçado". O senhor B. va i com N adia à biblioteca municipal regularmen -
O senhor e a senhom B. também orientaram a própria vida para te, todas as quartas-feiras. Ele e a mu lher compram-lhe livros como
o futu ro dos fi lhos. O orgulho pessoal deles se man ifesta no orgu- presentes freqüentemente. Ela tem contos, livros da coleção "Biblio-
lho que sentem r elos "sucessos" escolares e sociais dos filhos. São theque Rose", te m sua própria biblioteca ("Tenho mui tos livros",
pa is que tuJo sacrificaram para tanto , e esperam fazer o mesmo pela diz Nadia) . A avó também lê h istórias pam Nadia desde que ela era
neta, a quem dedicam um verdadeiro cul to: "Nós fizemos tudo pros bem pequena, pois entende u que a filha o fazia quando ela ainda
nossos men inos. A h, tenho o rgulho de meus filhos, e digo. Tenho era bebezinho: "Minha filha ti nha jeito. Sabia muitas coisas. Sabia
mu ito orgulho de me us filhos. Ah' eu, é por isso, mesmo ela, age nte canções e tudo, e Nadia desde cedo sabia tudo isso, e qua ndo veio
anda de cabeça erguida. Por quê! Por que a gente sofreu por eles. A morar comigo, ela t inha 23 meses q uando minha filh a entro u em
gente não buscava o luxo ou coisas ass im . Nosso objetivo era educar nos- coma, e ntão fiquei com N adia e , à no ite, e la fa lava: 'Conta!" e eu:
sos filhos", d iz o senhor B. 'Conto' , era I, 2, 3, e ela chorava. Um dia, ela pegou um livro e
A avó acrescen ta a isso a concepção de uma presença consta n ~ disse: 'Conta, vovó !', e entendi que era um conto que e la queria",
te ("Eu estou aq ui"; "Ela tem uma presença") . Acha que uma crian- E, além disso, ela lhe compra cadernos de férias, assim como jogos
ça tem necessidade de amo r, de ternura e de e n t ir~se Il apo iacla educativos (um minicomputador, Les Incollables ... ).

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SUCESSO ESCOlAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONFIGURAÇÕES

Os ~lVÓS s~o muito sensíveis às variações de notas de Nad i al ~l . A tos lidos, interiori zados: "Lendo liv ros, encontrei pedaços e juntei
senhora B. diz que, se virem o nível escolar da neta ba ixar, seu ma ri ~ mais ou menos eles com outros pedaços, assim. Deu certo".
cio ficar::) "furioso", e ela, "envergonhada". O amor dos avós para Descrevendo e m detalhe sua man eira de aprender as lições
com a neta se manifesta pe lo "sucesso" escolar de Nadia, que sente ("Le io a frase, faço um pontinho bem de leve com o lápis e, depOis,
que ter~í tanto mais amor por parte dos avós quanto mais progredir apre ndo bem a frase. Faço isso com todas as frases e, depois, fa lo
na escola. Nessa econol11ia afet iva especia l que se instaurou, qu a l ~ tlldo, e depois e u falo ela em voz alta pra vovó e apago os pon ti~
quer sucesso escolar se converte em amor. Vemos que Nadia in te~ nhos" ), ela revela, enfim, qual idades também presentes em sua avú:
riorizoll a importânc ia do "êxito", pois fica envergonhada quando método, minúcia e cuidado. Considerando-se que é a senhora B.
não encontra a palavra correta em seu computador: "Quando e la que m está mais e m interação com a neta e que o senhor B., mesmo
n~ o consegue, ele lh e diz: 'Est~í errado', e isso a envergonha". que se mostre menos racional e menos "culto" que a mulher, não
Tendo vivenciado a perda da mãe, o afeto dos avós deve ser par- contradiz suas orientações socializadoras, podemos di zer que Nadia
ticu larme nte importante para ela. Quando ficou separada deles se constró i numa configuração famili ar homogênea, no seio da qun l
durante 28 dias numa colônia de férias, ela lhes e nv iou 28 cartões as inci tações c ulturais são incessantes, onipresentes, principa l men~
ou cartas, mostrando um apego excepcio nal: "Ela colocava bilhe- te através do modo de expressão mui to explíc ito e correto de seus
tinhas. Q uando já tinha fechado o en velope e tudo, e tinha esque- avós. A liás, no decorrer da entrevista, Nadia fala com facilidade e
cido alguma coisa, então ela virava a carta, o remetente, no lugar de mane ira muito clara.
do remetente, e escrevia: 'Vovó, esqueci de te dizer isso'. (Riso.) Então Mas não compreendería mos tota lmente a energia familiar des-
e la me escrevia bilhetinhos por cima. Então, veja, que gracinha". pendida pela senho ra B. se não levássemos em conta um "ltimo
Mas o notáve l'" é que esse apego seja expresso de maneira tão aspectO. Esta se mostra, ao longo de suas falas, como uma pessoa
intensa através da escrita. Ela também escreve bi lhetes para os avÓs "de caráter", "inte ligente"; e podemos ana lisar essa energia como
quando é O an iversário deles l'l : "Era o an iversário de seu vovô, dia o produto de uma lucidez sobre sua condição de dominada ou de
I Q de março, ela lhe escreveu um b ilhetinho a mável : 'Meu vovô, estigmatizada que se tradu z em orgulho, ell'l vontade de mostrar aos
te amo mui to, pelos teus 65 anos, desejo- lhe muito a mável'. (Riso. ) out ros que não se deixa humilhar, que ela não pede n ada a nin-
Então, disse a meu marido: 'Tá vendo, você nãoé amável , é por isso'. guém e consegue as co isas por si mesma, po r seu traba lho e po r sua
(Riso.)" . S ua avó também diz que "ela tem te ndência a escrever, luta: "O senhor vê, eu talvez seja um po uco orgulhosa. Digamos
mesmo aqui, quando está brincando com os primos, às q uar tas~fe i ~ o rgulhosa , se preferir, é. Sou orgu lhosa. Não gosto de me aba ixa r.
ras de manhã, e la brinca de professora. Então, escreve, faz bilheti- Sempre tive horro r de ped ir".
nhos". Às vezes, ela também copia trechos I'engraçados" de um livro Foi ela quem estimulou o marido a pedir demissão de uma empre-
que está lendo: "Assim , depois, le io eles pras minhas colegas. Tem sa na qual o ameaçavam despedi~lo se não estivesse conte nte: "Ele
pedaço que é mui to bom, que a gente pode rir. Pego eles o depois sempre fo i maltratado, eu acho, na fábrica. Ele ficou trabalhando
leio pras minhas colegas". Seus muitos contatos com hist6rias (lidas na mesma f~íbrica durante treze anos, era explorado, e diziam pra
por Outros ou por ela) faze m com que ela ch egue, agora , a compo r e le sempre: 'Se não está contente, sa ia'. E um d ia ele me contou.
novas histórias a partir d~"ls que já conhece. Sem o saber, ela desco ~ Me deu nos nervos, e eu disse a e le: 'Você va i me fn zer o favor de
briu "sozinha"- graças às múl tiplas ações fam ilií-lres e escolares - ir lá e pedir a conta, agora'. Em 66, e ra duro, hein? lhe asseguro q ue
uma parte do processo da criação textual: produzir o novo com () era d uro. Eu disse a ele: 'Você vai me faze r O favor de ir [" e pedir a
ve lho, se r capaz de improv isar um texto a partir dos inúmeros rex· conta, agora. Não quero saber. Se for /lra ficar vivendo, sendo explo-

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

mdo e slIbjugado'. Disse a ele: 'Não precisa chegar a esse ponto. Não t3 numa escola menos "desfavorecida"; "O senhor se cJ::1 conta! Por
estamos num campo dos boches que oprimiam os judeus, não esta- que não a aceitaram , para que ela não progred isse aqui? Mas eu
mos mais no tempo da guerra da Argélia, o nde os soldados, os boi- lhes d isse: 'Vocês vão à*** [nome da escola] e vão e,,"dar mais do
nas-vermelhas, batiam nos muçulmanos. Agora estamos na França, qlle os OUITOS'. E é por isso que eu deixarei eles na·" [nome da esco-
hein ?, igualdade, igualdade, é o caso de dizer pra e les'. Ele me escu- la], porque eu te nho o direito de coloca r e les onde quiser, mas eles
tou. Foi lá, pediu a conta e saiu. Ficou dois dias sem trabalhar; no ficarão lá. Estudarão, e eu lhes mostrare i que estudam melhor do
terceiro, arrumo u trabalho", que os outros, isso eu lhes asseguro". Uma vez que lhe impunham
Ela não gosta de mendigar, de rebaixar-se, de solicitor auxílios co locar sua filh a numa escola menos "comda", a senhora B. teve
sociais Oll econôm icos. Recusa, por exemplo , que considerem seu meio a reação que consiste e m ace itar:1 s ituação, mns provando que seus
familia r como um "meio desfavo recido" ("Eu não gOSto da palav ra fil hos podem ser melho res do que todos os o utros. Lógica típica
'desfavorccido'''), e insiste no fato de que conseguc ;1S coisas po r si do estigma invertido, muito bem condensada na expressão "Black
própria e não espera que lhe dêem: "Mesmo que nos esteja faltando is beautiful" II~.
alguma coisa, eu falo que não está faltando nada para nós. Porque a Sendo argelina, filha e mulher de operários, a senho ra B. pode-
gente pode lutar para ter alguma coisa". C hegou i\ França "i letra- ria ter interio ri zado sua condição em forma de submissão e de
da", IC mas l1, diz ela, II cheguei com meus próprios Il'leios". Por exe m~ modéstia . Por razões que a entrevista não nos possibilita eluc idar
pio, depois de uma tentativa de suicídio, em seguida ao falecimen- totalmente (suas d iversas leituras de autodidata a esclarece ram
to de sua filha, a senhora B. foi aco mpan hada por um psiquiatra que sobre o funcionamento do mundo: conhece a história da A rgé lia,
lhe aconselhou "pedir 1()()% de reembolso ao Seguro Social". Como cita uma escritora feminista ... ), a senho ra B. tomou, antes. o cami~
seu primeiro pediuo de reembolso integral das despesas foi recusa- nho ua reivindicação, do combate militante (desde a militância polí-
do, o psiquiatra lhe propôs "recorrer", o que ela recusou: "Ah, eu disse: tica pela independê ncia da Argélia até a mil itâ ncia assoc iativa na
'Nunca ! Meu mariuo contribui durante toda a vida, desde a idade França para conseguir abrir um centro po liesporti vo , ela nunca dei~
de 17 anos que está na França, já contribuiu muito mais do que pre- xou, em sua v ida, de participar dos assuntos da municipalidade), mas
cisava, e, resultado , me indeferem isso. N~o é normal'. Então , veja também, e principalmente, d~ luta coticJiana através da educação
como é o rgulho, mal colocado talvez, mas é orgulho. E não recorri. dos filhos e, hoje, de Nadia. E também essa energia do estigmati-
SOll muito,muitQ o rgulhosa". Da mesma fo rma, quando lhe "impu~ zado, essa força específica dos dominados, cheios de lucidez e de revol-
seram" a nacionalidade argelina, no momento da independênc ia, ao m, que a senho ra B. põe a serviço da neta.
passo que teria preferido a nacio nalidade francesa , e la não procurou
mudá-Ia. Considerando que era seu direito ser francesa, ela consi- • Perfil 26: Uma militância familiar.
derou essa recusa como um menosprezo em re lação a ela: 110 c u te, lmane M., nascida em Lyon, sem nenhuma repetência escolar, obteve
lo caiu: 'Você é argelina'. De um dia para o outro. O senhor sabe, 7.9 na at1aliação nacional.
isso 1l1exe. Com meus princípios, com minhas conv icções, não,
nunca me tonlarei francesa. E eu falo, hein ?, e, no entanto, aqu i estou, Quando fomos marcar a entrevista, nós nos encontramos com o
e no entanto estou aqui, mas não, nunca me to rnarei francesa". senhor M. Ele vi u o bilhete no bloco ue anotações e nos pergunta se
É sempre com o mesmo orgulho dos indivíduos dominados e somos "universitário". Convida- nos a sentar e lhe falar da pesqu isa que
humilhados, mas lúc idos quanto à sua condição, que a senho ra B. estamos fazendo. Fala-nos de modo gera l do bairro, que, segundo ele,
evoca sua maneira de pensar quando a mãe de Nadia não fo i ace i, tem muitos imigrantes ("Eu sou imigrante, não nego"), e parece pen~

312 313
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

sar, como a mãe do Perfil 21. que ex istem "imigrantes" e "imigrantes". \.Iade para ler e escre ver e m francês. Seu pai era agriculto r e sua mãe
Durante uma reunião de condôminos, hé:í. dois anos, fa lo u com um dos nlio traba lhava. Ambos sabiam le r e escreve r o árabe . O senho r e
auxi liares do prefe ito para que fizesse algo pelo bai rro , mas nada fo i a se nho ra M. tê m quatro filhos: o ma is velho, um rapaz de 17 anos,
feito desde então. Para ilustrar o u esclarecer seu discurso sobre a pre~ fm a 8" série do 1° grau profissionaliza nte n uma escola particu lar
venção, cita-nos um provérbio: "Não se compram arm as depois da guer- (por aproximadamente 12000 francos por ano); um menino de 1Z
m", e evoca os acontecimentos de Vénissieux de alguns anos atr.'Ís. Com ~ anos, na 6i! série i um menino de 10 anos, na 4 il série; e uma me ni ~
binamos um encontro para a semana seguinte. na de 8 anos, lmane, na 2"" série do 1g grau.
Po rtanto, o senho r M. nos recebe lima semana mais tarde, pel8 Foi só no fin al da entrevista que o senhor M. evocou a militân-
manhã. C umprimentamos sua mulher, cordial e diserem, que não par~ c ia sindica l e po lítica que o levou a abandonar a Tunísia. Tinha ade-
t ic ipará da entrev ista. Fica n a cozinha e não faz barulho. N ós nos ins- rid o ao Partido Comunista e tinha tendên c ia a di zer o que pensava
ta lamos na sala de visitas, em po ltro nas confortáveis. Um tapete num pflís em que a liberdade sindical e política era pa rticularm e n ~
o rientnl cobre o chão; a sala é lim pa, bem~arrumada; fi arca de m ad e i ~ te limitada. Fo i para fugir de grandes dissabores que e migrou: "Me
ra escura parece ser de boa qua lidade. Vemos tam bé m uma televisiio. trouxe muitos problemas. Comecei primeiro no sindicato e vi que,
Por volta das l1h40 as crianças, dentre as quais lmane , começam a como já lhe disse, não tinha mui ta liberdade, e tudo ... Eu era jovem,
c hegar da escola. O filho que está na 4" série senta-se no soH, mas a não tinha nenhuma responsabilidade, não estava nem aí. Eu respon~
mãe o chama. N o final da entrev ista, o senhor M. se desculpa por J itl, e era esse o problema, eu respo ndia. Q uando ten1 a lguma coisa
não ter pensado em alguma bebida para n os ofe recer. que n~ o está certa, e u falo , mesmo na frente de meus chefes mais
O senhor M., de 41 anos, é originário da Tunísia. Foi escolarizado altos, os grandes responsáveis da empresa, eu falo. Então, eu era mal~
até a 5" série (repetiu uma série), depois fez um c urso de fonnação em v isto, não gosta va m de mim. A gente arr iscava tudo, tudo: perder o
mecânica durante 2 anos e o abandonou para tra ba lhar. Te ndo vindo emprego, ir pra cadeia, tudo, he in ? A gente arriscava tudo, e eu res~
para a França em 1971, fez um estágio de 6 meses em automação e, pondia". Tendo ficado aj uizado com a idade, o senhor M . confessa
depois, um esnígio de um ano ("Foi quando tive a oportunidade na que não tem mais ne nhuma vontade de militar aqui .
minha empresa, bem, e u fui o prime iro a me inscrever. E eu falei: 'Por Imane entrou cedo na escola materna l (2 anos e 5 meses ), Nota-
que não eu?"') na empresa onde está trabalhando atualmente como mos imediat8mente o cuidado qu e tem com seu tr::tbalho . Ela é uma
ajustador-operário qualificado níve l P3 . N a Tunísia , tr;lbalhava para dos dois melho res alunos da sua classe de Z· série do 1° grau, junto
a Tunis A ir, no aeroporto, e era encarregado da encomenda e da com ~ com O menino do Perfil 23 (uÉ, sem dúvida, a me lhor aluna de minha
pro de peças soltas de avião em diferentes países europeus. Seu pai tra~ classe") . No fina l do a no, já está tendo au las de ma temática junto
balhava C01110 guarda em uma empresa e tinha freqüentado a escola com os alunos da 3" série. O professor está espantado com a capa-
do Alcorão; sua mãe nunca trabalhou e nunca foi à escola. Ambos c idade de explicação o ra l de Imane: "A mim, e la me de ixa boquia-
estão mortos. O senhor M. tem um irmão que vive na Franç~l e cujos berto , porque sempre tem lima resposta certa. O utro dia, estávamos
filhos freqüentaram a escola durante bastante tempo: uma filha no 3" falando de 'aprender' e de 'compreen de r'. Ela, logo e m seguida ,
ano de direito na universidade (que gosta bastante de Imane e com disse coisas de uma ta l forma! Mas de uma clareza' Ela definiu, e,
quem realiza muitas atividades), uma filha estilista e um rapaz que tem de fato, sentiu a coisa". Ela participa, compreende muito ráp ido,
o Z· gra u técnico de contab ilidade. nunca esquece as coisas: "É sempre impecável".
A senhora M ., de 38 anos, c hegou à França em 1975. Freqüen - Q uais são, neste último perfil, as razões do "sucesso" esco lar da
tou, na Tunísia, a escola árabe durante 4 o u 5 anos, e tem difi eul~ cri ança r O pai é operário qualificado, c a mãe não tem emprego;

l 14 l15
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONfiGURAÇÕES

seus níveis de dip loma n ada têm de excepcion al, mas é na traje- ra de cuidar da casa, e o apartamento comprova, de imediato, uma
tória do pai que encontramos a c h ave principal para a compreen- atividade doméstica rigorosa e regul ar).
são das disposições fami li ares extre mamente favoráveis à esc() l ari~ De maneira inabitual no âmbito da divisRo sexual tradicional das
dade dos filh os . tarefas domésticas. mas por causa das competências, é , portanto, o
Em primeiro lugar, o estilo de discurso do senhor M. sobressa i senho r M. que se en carrega dos documentos. Redige as cartas ad mi-
elo de muitos o utros e ntrev istados. Muito cordial, esse ho me m nistrati vas, preenche o formuhirio de irnpostos. os cheques para co n~
incorporou um conjunto de atitudes em harmo nia com a escola: ed u~ tas familiares, escreve os bilhetes para a escola e classifica com méto-
cação, linguagem exp líc ita, construída, correta, precisa, tom refl e~ do os docu mentos familiares: u A rrumo~os uma vez por semana.
tido, voz ca lma e suave, gestos que acompanham seu discurso ... Desen~ Tenho essa cestinha. Tudo o que chega diariamente, bem, eu leio.
volve as respostas sem nunca perde r de vista as perguntas . Às vezes, A correspondência que pode esperar, isto é , se tcm uma conta, eu
temos a impressão de que se perde, mas está ape nas explicando sua co loco num lugar, e, então, se é lima correspondência que precisa
resposta, dando o seu contexto o u fazendo apartes: uIsso é entre parên# ser class ificada, eu co loco ela nessa cesta , e uma vez por mês tenho
teses". Essas modalidades da expressão ve rbal e corporal estão sem um pequeno armário de correspondência, bem, eu a arrumo lá den-
dúv ida ligadas, por um lado, ao passado militante do senhor M., que tro". Escreve co isas numa caderneta o u os compromissos num ca len#
adquiriu o hábito do discurso formal, explícito (através da partici- dário, para se lembrar deles, e faz anotações ao telefone. As contas
pação em numerosas reuniões nas quais tinha de argumentar, ou atra~ famili ares são feitas com sua mulher e sem cadenlo. mas o o rçamen#
vés da redação freqüente de textos) e, por outro lado, a um passa- tO é "ca lculado" em função dos extratos de conta: "Para a verifica#
elo profiss io nal numa companhia aérea nacional. ção, sou eu, e para as despesas o u outra co isa, é minha mulher".
S ua militância sindica l e po lítica o levou não apenas a ler mui ~
tos jornais e rev istas políticas Ueune Afrique) , mas també m, de um
modo geral, a apreciar produtos culturais legítimos, tais como OS poe- Os filhos têm, portanto, a Lmagem de um pai que gerencia os asslln~
tas e cantores eg ípcios o u escritores á rabes' ~\ . Se atualmente só lê tos familiares, mas e les também participam dos escritos domés ticos
jo rnais (tunisianos - dentre os quais Le Renouveau, três vezes por e integrall"'l a escrita em numerosas at ividades mais o u menos Illdi#
semana - e franceses, Le Progres ), revistas e livros ou folhetos pro- cas . Deixam bi lhetes para o pai para que assine os cadernos quan-
fissionais sobre "qualidade total"; se deixou de lado qua lquer idéia do ele volta tarde do trabalho, mantêm em dia os ,libuns de fotos e
de voltar a ser militante s indical, o senhor M ., entretanto, não per# acrescentarn a elas pequenos comentários (UEles escrevem: 'Isso
deu as disposições que estavam relac ionadas a essas a tividades e que aconteceu em tal lugar', 'É a moça tal, minha prima tal, meu primo
e le transformou, arualrnente . num compro meti mento profissional qualquer coisa. Em tal luga r, fize mos .. . "') . Também escrevem car-
(foi "o primeiro" que quis fazer o estág io que o conduziu ao topO da tas a seus primos. e lmane as envia durante os períodos de fesras:
h ierarquia operá ria, e nos fala por bastante tempo de sua empresa) "Faz isso na época de festas religiosas, le igas o u outra co isa . Ano~
e educativo ("Tudo o que faço agora é para eles"). Novo, coisas assim, e l ~ escreve sua C:l rta" . Imane copia e ~arda rece i~
O senho r M. constitui, po rtanto, o pó lo "cultural" da família. tas que sua prima, n o terceiro ano de di reito, lhe dá ("E sempre sua
Sua mulher parece ma is d istan ciada das questões esco lares e edu- prima mais velha que lhe dá. Ela adora isso, a Imane") , redige his-
cati vas ("Ela não lê mui to freqüentemente"). Em contrapartida, está tó rias o u poesias quando está doente ou não tem nada para fazer,
muito presente n a gestão do cotidiano doméstico (seu marido no- tenta copiar de li vros e brinca com os innãos de se deixarem bilhe-
la descre ve como sendo "um pouco man íaca" em relação à manei# tinhos: uPra brincar, a gente escreve, pra não te r que se des locar.

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONfiGURAÇÕES

Por exemplo, cu escre vo um bilhete e dou ele pro meu irmão para Quando vejo ela n a cama, vejo que está com um livro. Antes de
que e le entregue ao o utro". do rmir, tem um livro") e se lembra de que, com a mulher, eles lhe
É sempre o .enhor M. quem cuida da escolaridade dos fi lhos. contavam histórias "para adormecer" quando ela era pequena lW .
Acompanha as notas de Imane regularmente ("Sim, faço questão Além disso, os ritmos familiares são muito regulares (às 21 h "no
.•. ") "" c conSIdera que esteá "bDa no conjunto.
ulSSO " FaIa sempre sobre máx imo " as crianças estão deitadas), e o pa i também aconselha os
a escola com os filhos: "Sempre, aliás, é a primeira pergunta que faço, filhos sobre a maneira de organizar o traba lho, de planejá-lo:
quando sen;flmos à mesa : 'Então, o que é que vocês fi zeram hoje de "Provas , c hamadas orais, lições pra estudar, pra quc dia da se ma-
man h-''''
el. . E nlro que Imane peça rea Imente ajuda para suas tare~
na, fazer a agenda. Às vezes , sim, conselhinhos, é claro: 'Não preci-
frls, m,lS, e m contrapartida, ela pede ajuda, às vezes, para as mrefas sa esperar o dia para estudar a lição, para revi sá~ l a'. S im, porque
de seu irlll fio da 4í! séri e, que tenta fazer ao mesmo tempo que e le ils vezes, cu mo toda c riança, bem: 'Tenho tecnologia, mas p ro
(s innl ele que interiorizou a escola em forma de lima preferênc ia pes~ se mana que vem'. Então, não precisa esperar a semana que vem,
soa i) . Seu pai ace ita explicar-lhe uma parte, mas c uidando de não quinta por exemplo, ou quarta para pegar o caderno de tecnolo,
confunui-Ia: "Quando vê o irmão fazendo multiplicações ou divi- g ia. 'Não, porque, na quarta, você vai ter o utra co isa pra faze r, com
sões, coisas assim, ela te nta fazer com ele. É claro, depo is de ter aca- ce rteZ<l, va i ter o utras tarefas pra faze r, te m com certeza o utras
bauo as tarefas dela. Bem, ela pega seu caderno de rascunho, como lições pra estudar o u pra, revisar pra quinta. E depo is, na quarta,
eles têm uma só escrivaninha, bem, ela se põe ao ladodcle, fica o lhan- você não vai ter tempo'. E isso, um pouco de organização, ora. Ficam
uo, faz a operação e, então, vem me pedir explicação. Eu acho que vendo televisão: 'Eu ainda tenho tempo pra estudar essa lição.
não é pra fi car confundindo ela com coisas assim, porque, às vezes, Si m , ainda tenho dois ou t rês dias, te nho tempo pela frente'. Então
pega lIllla uivisão com dois ou três números, e ntão eu falo: 'Escuta, explico que não precisa esperar o dia marcado pra estudar, porque nesse
filh inha, você ainda não está aí. Se você quer, te explico um pouco mes mo dia: 'Você vai ter outra coisa pra faze r panl o dia seguinte,
de divisão com um número, é s il'nples e você v~li entender, no e quando você />õe tudo junto, bem, você não vai con.liegllir mais, e nfío
entanto, se você pegar dois ou três números como teu irmão, você vn i aprender nada, e não vai compreender naua, e n~n v;'l i faze r
não vai entende r nada e vai confundir a cabeça por nada'''. nada'''. Com suas explicações sobre o fato de que, csperanJo muito
O senhor M . também é mui to atento em relaç>ío no tempo ded i- rempo, () trabalho se "cumu la até c hega r () Jia e m q ue n >io se con -
cado ils tarefas e aos brinquedos. Quando volra m da escola, os filhos segue mais fazê .. lo, (l senhor M. desenvo lve uma rclaç~o com o tcmJX1
tomam lanche e to rnam a descer "para brincar um pouco, para que estfí indissociavelmente re lacion"'1d a com o futuro e com o pre~
esquecer um po uco, durante uma meia honl , quarentf:l e cinco minu~ sente: é preciso prever as coisas e , portanto, pô r em pn'ítica uma
tos", Jepois tornam a subir para fazer as ta refas 'i7 . O senhor M. guar, ética do rraba lho cotidi ano, regular, possibilitando, como se diz,
dou durante um te mpo o vídeo~game que estava tomando o lugar não ser pego pe lo te mpo.
uo trabalho escolar: "Está fazendo uma semana que suspendi o Se Imane inte rio ri zou as exigências escolares como anseios
vídeo~game . Sim, porque eles perdem muito tempo" I~ . Incentiva pessoais, constatamos que tem, como por mimetismo, o mesmo
os filhos a não se "contentarem" em apenas fazer as tarefas du ran ~ to m refl e tido , o mesmo estilo de discurso exp lícito que seu pai
te as férias: "E alé m das tarefas, eu os estimulo a fazerem outro coisa, durante a e ntrevista . Utiliza complexas estratégias de respostas e
;.1 ler ou :l fazer exercícios, !l lém das tarefas, é claro, e m vez de ficar descreve claramente e com detalhes tanto a mane ira como es rLl ~
() dia intciro brincando". E ai nda ele q uem leva os filhos à biblio- da as lições como as características de um "~ílbum" para crianças.
rcca a cada 15 uias. A li,;s, vê a filh a sempre lendo ("Ela lê mui to. Também inte riorizou, suficienteme nte, a cu ltura escrita escolar,

J 18 3 19
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

servindo,se dessas competências, junto com seus dois irmãos da D~l í a imponância dalob à rran:.crição predsa c Jctalhada d;ls e ntrev istas. Se nàu lnlflS~
4" série e da 6". com fina lidades mais lúdicas. Além do pai. que é cn:vt:sscmos. por exe mplo, llS risadas, o:. :.il~ndos c as di\'ersas entonaçõcs que contri-
bucm t<lntO quanro a estrutura vcrha l para Jar senriJ o àqui lo que é dito, perderíamos
a figura central na orientação dos comportamentos esco larmen ,
múltiplos fnuices da relação - vari.\vd dependendo Jos momentos da entrevist,l - que
te adequados. é preciso também lembrar a cumplicidade que se esta- o L:ntrevist,lJIJ Inanrém com o pesquisador e com as questõc:. 4ue lhe fo ram colocadas.
beleceu entre Imane e sua prima mais velha. A inda neste caso. Da mesma forma que conse rvamos, na medida d o possívd, a pronúnc ia, ;1 sintaxe e o
Im r.me está em relação com uma pessoa que, em seu modo de léx ico d'l linguagem oral, par;.! rc!'tituir lanroq uantu po:.sível ocslilo da (~Ia de c;ldn um
de n os:;!).., interloculOres. Em c~. rt0S extr.1ms dns entrev isw:. lltiliz,lmus ü itálico pa~ evi-
falar. em suas preferências ...• pode contribuir para que se consti- dcnciar ce rtas palavras.
tuam, nela, disposições esco larmente adequadas.
8 ()s manuais de sociologia freqüenlemente opõem a emrevi:.ta à pesquisa por qucstio m'irio,
Observemos, de qualquer forma, para concl uir, que essa situação
ac reditando que por um bdo ocorra lima análi:.e "Ljualitativa" das reprcsenwçõesconscicn-
tão favorável se deve a uma divisão sexual das tarefas domésticas tes e, por ourrn, uma compreen.sào dos determinismos não cn[)sciente:., das rcalidaucs quc
tow lmente atípica . É, sem dúvida, porque houve "fracasso" da mili, t.'SCapam i'l conscit?ncia dos alOre~. Por um l;1do, esm oposiç:lo :.implist<l itnpnk- qoalquer
possihilidade de ana lisar a entrevisca de fonna mais ou menos cumplexa (pe las contradi-
tância cio pai que este passou a controlar a educação dos filhos.
çõt."S que ela oclllt=l, os n[io-Jil os, o::, implícitos ... PJr'tI cOlnpreendcr determim:.mos 1lli.IIS fmos
lmane poderia muito bem ter, em uma outra configuração, um pai e cuntextualizados), e, po r o utro, Hf:e como se o que tinha sido sistenmticmnente relacio-
preocupado com suas atividades militantes e com a vida profissio- naJa num ~r.mdc número de I~sq llisas mlda 111<1is (ü:)SC do que dcclaraçÕ0.> produzidas em
na l. e que delegasse à sua mulher o cu idado de assegurar. com seus circunstâncias de comunicaç[io paniculart!:.. Com isso confunde-se mélOJo Je produçflo
dus uadus c <l tipo de trntrlmento dos uados co l etaJ~.
próprios recursos (muito menores esco(armente) , o acompanha,
menta escolar e cultura l dos filhos' '''. Portanto. de fato. é pela sin- 9 É em parte o procedimento do hbturü~uor italbno Carlo Oinzburg (M )'lhes. embli'mes,
traces ... , 1989), que (ala de "pan1uigma dos indfcios".
gu laridade da configuração das relações de interdependência entre
seres socia is com recursos variáveis que se realiza um tão brilhante 10 A. Ernaux, /..es anl1oirc.~ vides, 1984, p. 53.
usucesso" na escola primária.
II J. Gumpt: rz, "l llleractional S<lciolinguiSElcs .. ". 1986, p. 5 1.

12 É ass im que Maria Therc:"l Sicml (Praliqlws discursives Cf rellllions ae J)('Jll1luir .. , 1986)
dl.'sc rcvc, a rc~pelro do Mt';xico comempur.ineo, os processos de fmma lizaç::iu do~ dis-
cursos nos vilarejos OIomi do va le do McZtJuital, Ullrancc as diversO!s assemhléias COIU U -
NOTAS mli:.. bem como a exclus:jo dn mnlor parte d o~ aldeões incapmes de dominar os novos
esquemas ue imeração verha l. Esta renovaçãu dos esque m,ls cultunlis pode prod uzir-se
Gosrarbtnos de d estacar aLjui 1l1lS<1 dl:tcrmin,lIue du prugrdTllll de tr,LI~lIuento de tCXt() n::J J1rópri~ língua vernácula, c, inversamente, o espanhol poJe s~ r utilizauo nO!s pr:'Íti-
qlle fl)rn('lU possrvc1 a redação cientftka d(l ~ perfi:.. Panl nó:. era tnJbpellS<Í\'ellmbalhar em; discursiv(ls "menos oficial i :ad~s, m3is ligadas à comunidaue e panilhau8s pela m;lio-
caua pcrfi l cnmo um re xto que poderia ser p\ltencialnlt'nll.' :lltl.'r:ldo, em rebçiio ao lt:Xto ria dos membros do vilarejo" (p. 297-330).
do~ Ulllrm pl:"rtl:.. A ln<dc:lhiliJaclc do progmma dc tr,H:'lmento Je tcx\l) pCrlllI ri u-nos
redigIr perfis que ~e n.'laciunas~cl11 entre si. De lima certa m,meira, Cizemus com qUl.' toe 13 Cf. S. Scri hner, "Modcs o( chinking am! ways u( speak ing .. ", 1977.
Ct)lllunIC.lS~t' m.
14 Ne"Sc aspecto, a silltaçJo descrita pelo entreViSl',lJn pHf ~ce com a situação êHl~11isada por
r. Bullr~lleu, Lc SCH.I p'mrique, 1980: M. de Ccneau, L'ill1llmrion ali qllOlidicn; M . Dcricn- Sylvia Scribncr t' Michael Cole em The psychology o/ litcracy, 1981 . Os ,lut orcs mostram,
nee e J. -P. Vemam, !..e.1 mw.~ de l'iI11dlig~'llce ... , 1974. sohre tuJo, com respeito i'ls populaçõcs vai na Lihérb, que as relações sociais efetuam-se,
em numerosos c,unpo~ da pr'ática, sem qua lquer rcc ur.,tl à cs<:rita: a maior parte da her.'m-
1 N. ÉIl:l~, Enga.t:f111Cll1 Cf distanciallon ... , p. 41 .
ça cultUI':ll e os conhecimentos técnicos &10 tmnsm itidus sem a ajuda de mHtcriais escri-
S. FrclId, hltrOOlK'lion à W J)sychanaIY$e. 1989, p. 17. tos. Em co nseqii~ncia, os cuntextos !'i<1(:iais de liSO d:l escrita ~rmanccem marginHis, oca-
sionais, e contribuem muito r>llllCO par,] org'J nizar, prodll2ir e reprnduzir <1 vid:l soc ial.
~ N. Éb as, La sociét~ des Illdu)u./w;, p. 72.
I) Do Ixmtu de vi:.ta da autoridade (amiliar, ,1 do p<1i parece fune!.' predomin;lntc no cas" l.
1'. Bourdlcu e R. Ch:lTI ic r, "La Iccturc: 1I1l1.' pr,llIljUc cu ll urt' lle", 1985, p. 223.
A divi.s::io soc ial do trahalho domésliG:o parece ht!11l estrita, llgad:.l sem düv,da ~s rmLlI-

320
32 1
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONfiGURAÇÕES

çõcs muçulman:l!' (O P;II JIs:.c ler "enviado" d mulhe r dO cu rso Jt' .IUahctlzação, o que h I >ipl\lmade cnnc!lL....io do 2' grnu na área de ciênciõb m&hcu-'IOC ials. 411C habl ltta U juvem
tnJlca O II ll1.'I Je rclaç:lo Instaurad., entre os JOIS). A própna nmn.:tm como se de~n­ . 1 enlrarnuma bcu lJade.
\'olve a cntrevl5la é um stnal dCS&1 Jivis;io ~xu;jl dl.~ ('<lr!!I!>: o n1.lriJo respoode .I um
e!>lrilnho, enquanfO;1 mulher vaI logo pnra a cO:lnh:1. Durante n P.'M.ICO lelllpUC(llt,'.1 m;ic. !i M. Gl.lude e F. de SlOgly. "L'org-dIli!alloO domest ique ... ". 1986.
ao chegar de (u n i. n us (ala. o mdndo rt.'sponde quase sempre em SCu lu~:tr.
1tC 13. Llh lrt!, Culllm.' éCTlfe ellllégllÚtls .scolaires •.. , c "Réclts maux d'enfallfj ... ".
16 Para Mchdl, urandtl.1 J ltlc u lJ,tde t'Specíflca em fal.lr fr,tncê~. expltcar n;io parecc otar
d t..so(i,ldu de r.lzcr u u mu,tmr, uma vez que :.eu ml.Xlo de cxpre~\;i() é Implícito. CIIC' N CPPN. "Clcu.se pri-p-rofl!nIOJleI/.e ck mWJII". e m fr:mcê ....
nll)~ u m tredlO em q ul.' lenta explICar as re!,tr..1S de um jogo de C.lrt.lS: "DepOIS a gell(e
pq:!:l, a ~Clllc pe~:l esta qu i, e delXd Hs:mn e peg;.1 '-luc ,", "t,
pmc ur:I l ) que eMo.!: Je copa kl CET, "collêgo.! d·cIIJdgn.:.'1nclII tcchnuJlU!". t!1Il (nlllc~.s.
aS~Ll I\ , J CI'l\HS ;1 ,::entc pega ... ".
I1 E q ue pod l'[Jl ser rchu.: itfm.lJ ,I~ (um as lIJlu,lç6es d tM:Tll as pela Senhora O. {Pe rfi l 8).
17 Aleh" c L.ui ( 1 têm difi c uldades cm ava lia r o tempo c dizer ali hUnI),: L.lli fa Ji~ que leva
" I hlfr, l" parll (;ne r ~I.' u ~ Jt!ven.'s e Ai"cha "1 minuto"; La lif:l d iz qllC jlmt:t j unto com a Il Tirou um d ip lo ma em h otclaria e rrn halh us cO l mu"r~ri os,
mlie c q\lC v<l i J orm ir dl.' p(m Ju jimtar ("Q uan do "C< lho de Cm111.'r. vi) dmmir"), mas n:1O
s:lbe cxalamenl cqll.lmltl. c acrt!scen ta q ue IUJnca vê a~ hUnI!>; Aicha. 1J;tt: llmenl e. ~ Inca- 11 S main CO!lftrtlla 4 11 C vê e~c ncla llllcllle o pai e ,\ irm;i m,IIS vdha Icr": lIl em C:lSll.
pa: de Ji~er a q ue horas Jantam nu a que hnra:. é t} recrc ill d l .INC.
14 Éo 4 Ul! d it S Ul.Ii·n e m ... ua e nlrevi ... ta. Quando a Itçi'io é JI(fcll c fiel! ral CSI:1 em casa. JI:
In B. Lllure, " R ~m. . UrlIlIX dl.'ll enf.1nts... " . 1993f. llue pergu llla para de ("Ã. . \'c:cs, quando é d ifícil e quando mel41KlI c~rá ('l1l ca.~ e quan-
10,1 O SUl "que I! ;t (;(1n:.CrtlÇdtl Ja~ fra.'ics, nem sempre ~rnm:1I ic... lmcntc cnrre t,I:... wrn.lrdo, dn vuh.1 do tr.lhalho ~ 6 h o ras. cu pergunto um pouco. néf') n u J trtlld ("Às v..::es. !lt!.
Je (,110, 'llgUIIMs re"'J"<bt...:. J itlc ilmt.'nte co mpreensíveis. purqul' às t.'I::l!S da ui i m ca.<a mas num f>t:Jde- H). Sma·ln. porém, rrCCI ~d 4ue •• ttu,llmente.
n,10 nl.'CC".~jta de aj uJa. É sua Irmã quem pcrb'llnfa "l~ \'e:es" se ele fet a ltç;tO, ma.. "à.}
!Il N'Oongo nth C(".Intuu que. ;)s \·c:es. e.squece Je fil:er ,I lIçãu UU 4uC OiH) Icm nlnlade d e t'C:I!S da num cti em casa i lu t'1.':te.5 ela f.51llleco:". E Che-g.l :1 preU"'lr: HE m ,1n eu Icnh() qUl'
(a:é·la. ;Iprcnder l!O:lnhu, né1".

21 M ,IS d .1 rn'lp n:t diZ: '"NÚts num sahe comI) fa-..J. punlllC fal! tempo. A pt'd' ll,.'ogi,1 de quan~ IS "Às \'e~~qu ••m lo n:pltode .11\(1.li de ml lxne, ma~ eu .ll nda n u m re plll". dl~ Sm.un dl.·
do nÓls tav,1 n;"l escul.l c a~o ra num é a mem.1 cuba. Eu. pur eXt.'mplo . dS \'CI) tcnho J ifl-
mod o s lg nifll.:.u ivo.
l.:uIJ,lde".
III S maln pede o.!mprc.~ t:ld as, p ri ncipalmente J a h ih ltmeeada e)(o h revista~ em q uadn-
U I~ Buurdlcu. U'S r~gl,·.s de "C!TI ..• 1992. p. 30.
nhos. c d i!: "Num leIO mu ito purq ue tenhu do.! (a:ê <lll~ão de l:m",".
Zl r. &urd lcu, "Lc~ Ir" l~ é tab J u cap ita l eullll rcl". 197911, p. 4.
H [)iplo ll1<.1 de c~ tud\Js J1r\.1fb~lll n ab agrfco l a~. BEPA.
l4 Em vez de ge ne ral izar c;cr((lS aspcctos cb s realid:ldcs soeHlI~ en(jlldnt O fd uMl(las .soCLa i....
é prc rcrtvcl {I U I.'~ l i(ln :) r a~ condiçõc.o;; s6c io-hisI6n c:h de erne rgên d.1 tl:ts (urmas :.oci<lis. )/1 CAT, c m (r.ttlc~.
DCM ,I m:m~'ir.t, U) su<: i 6 I ogo~ opt)Cm ·se . nllJ\l a.~ vc:e.~ . f;1 cha mc nr c . e!ll rcl:,ç;in i'l quc~­
l:'it l dll C<tníler efêll1ero/Ot.:asio n a l ou J u rá\'cl/cs r~\'cI d :l~ rclaçi'c.. ~f)CialS. OmiTa a vi"I() 1'1 Qua n dn ['t:r)::unra mOli q ue m escreve a... cartas nd ulIlllsl r.IIl\f, I:;. é Marlinc quem . h;I1X I'
mm.int IC I d.lqudes q ue concd)t!m li socieJ,!<.Ic Cdmo um mov uncnro com(nun d e in \'cn- !lho , respo nd e: "A nmm5e". c toJo munJo n .
çi'io. o u. sef!undn ,I cx prc:,:,:itl Je Bakh tine, como um "pruCCS)j(1 Cr\; II IVIJ Inln ternlr l(l Je
c O I\.~ lruç;io (tonerRt'ia). cstiio ,.qudes q ue. prcS()) d anáhse Jas "eSIrUlur,tS". d.tS " instlllll - 40 MJrlmc u bSt'T\'iI q UI!!! íl l1lJe '-luc Jelxa btlhete .. pnm o 1';11: "CI)m\) mi nh .. m;'ic I mbêl ~
t;ôcs", Jos" grupo,". vêem a sociedade ~m ku.:. :hpe... tus 11'1011), cnst.ll lzaJos. mal) (:~I.lhl­ Ih.l, di! "(lha ,11) mel.,-d,J c peJe :)s \'e:cs pro meu pai que lhe rrep;tre o almuço".
It'<ldos. Ésomente qu,lIloo se coloca, por exem plo, o pmhll.'tU,1d.l~ l:onJII'üe~ lustúncas
di! )urgllOento J e rcbçõc.s~ials frágeIs ou pcrm:lIlenlc~, efêmera~uu Jur.hre ...... que pode- 41 A .w(~ materna. 0., ClS."I de '-lucm ~ tanioc p<bS<1 tiS ("an!t':o Jeqll;lrtõl·(o.!lr.1 e que.1 (,,: csll...tlr
mos fugir J u deh:lle filosófiCO e remet~·lo a uma qUQ I;iu MX. 1\lloglc,lml!nle I'ertmentt.' dUl"al1le as férias. pan..'Ce ser mmhém Utml PCOUIl<lf.,"I:1I\ IIllpu rt.lnte n,1 wnslclaçi....l f'llmltou.
(.1 mI!JIJ.1 que .I Jlt!S4l1IS<l cmrfrica pode concrihu ir.1 rc.<;olvê- b) . DI'>M.'mmanJo.1 reilh~ Por éxcmplo. a. paiS lk Mantne COnt..lm que "tllllenll);l, d .• ocrc\C 11IlCma.~. fe: um sohre
tI.lde ~oci.l l elll um.1 multlplic iJaJe de rclaçi'ies efêmera.... \"lCõl.-.iun.u \, lIl~rc mll ...... reno- ,1 prunavcra , uutru sohre li noite, sobre o sol. da (..: a ",1I1I 4U;Ullltl d:'i ",llelha". Ma.. »Olhe-
\'aJ ...... c"'IUel:ellhl'llluC ~IS n:l,u;:tk.'s pud em rercllr·~ hlst(ltll.:.lInenlc: perJurm . repro - 11l\J(i ••1Ir..lVi'll Jc Marttne. qUI! ehl l!SCre\'e cum sua "VO\'I'l": "Eu c.'iCrcvlll"\'lCm.b e mtnha \'uvu
dmlr-se, lnslil llcmn,lllzm ·sc. f.lz ~lk~nh us"; o u en tão "Eu escrevo poemas emhaixo d,"I"o Jc:;cnhu'I ti. Mtlrl llll.' !,ru;tnJ.1~1I;b
pOC~I,l~ em um,1 ca ixa e depol~ rccopi:l em um caderno que seu "vuvú" lhe dt'lI. Sem '-ClL'
H Oi plom,1 de 1li gmll prntl'''~ \lma li!.1n tc. ,IV\Í/., OI MIII,I\-.llJ c:;cnlar dc Martine poderia ...er M!m dúvid ,1.. md.1 menus (Ivur.ivel.

322 323
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

41 É O Ca:.Q do rcrtll12 . i~ S::llima é a que mms lê entro;;: o:. irm::io~, ma~ lIÜbrcrudtl é cla tjllo;;:m mal~ 1-,... 1:01.1 Je c'>(.rc-
ver: "Ela lê m'\ls que O~ outro:.. PnnclpalmCllh! e'iCrc\'c rn.lis que tl:'> OlllroS. Sei qUI ela
4' PoJO;;:I1\US ubservar que a.~ múh Ipl.lS muJ,tnça!>Je Pr<l(c..<>.,or na d ,!..):.c dc Marlme (OIro pro-
c:,ero;;:vl;"". Muit.l::' vc;:.cs CM.:rcve um,1 carl a :'IU p;u (Iu.andu r,me ror "lgullS d ias em excur-
rc~.m:.:.dUr.lI\lC o ano esct)I.lr: "Ach o um cahuso". diz o !iCnlulr .) Jog<Ull pam a escola um:1
~dO com a e~ol,l, e /:0:.(,1 :.cmpre de escrc ver carrõc.'-I""OStais q u:m do CSI;'i de fé rbs.
parle d.1 rCSl"ll.,"~abllIJ. IJl·em relaç.io ;J(l ":.uces.::.o"lrrc.l..'ul:1r Je M"rllne. Uln rro(cz:,:,(,rl.'l'itá-
\·cl. que lenha lelllpodC"cnnhecer melhoras crianças, rJc \'enficm <\C apro;;:ndenull :l~ liçôl's, Só Norhcrr Elias, ao exph car a excepc io n a lidade da:; competências mUSicai!> precocc::. Jc
de convoc..1r tx-. I""'" nu momemo em q ue ,L~ COISo!..) cornclj.lm a Jegrin~'Olar, ni"MJ é 1~'1.Ial <I Mo::ur. descrcve como seu pai [ccem com ele hgaçilcs ,1(etlVa::. mUIto (ort ~ i..Jue pa~·
um Wbsllflll OlltlC fica uma semana. que n:io temlo;;:mpo nem de conhecer a:. Crt.lIlçi.l~, nem ~avam pela mlÍ.sic,l. Mu:,lrt recebid "um suplemcntu .1(C1IVO para caJ" uma de ~u;!..)t')(e·
de Jescnvol\"er ~1I, 1 a<;.io Pcdab'Óglca a longo lcrmo, nelll t.le cunract.lr os pai:. ... cuçõcs musica is , c 1:.50 :.c-gurnmento;;: (oi b..:néfku p .. rn o de:ocnvolvlIllcntn lb Crl.mçOl
no semido quc o pai deM!Jam" (Mo::::an ...• p. 93).
H É. DurkhCllll, L'éducllunn mora/e. p. 39.
57 S,, 11Il1<l no:. C(llHa lluC bnoc;! h.I fora com as amig;ls, .!iOhre lUdo no dominf.'o: "Porquc",
4S J. S. Bruner. Lc dét'éluPJ~II1f1l1 de /'(.'flf{Jnr ••• 199 1, )1 . 179.80. da JIZ. "nu~ o utros dl:l!>, não tenho \"onmdc. c mel! paI, algulllas vezes, n,10 qucr, ncm
minh:1 mãe. Eles nem M.:mrrc t.lizcrn !>im".
~ 6 M. H a lhw:lc h ~, Ln mblloirc cullectlt'c. 1968, p. 178.
~8 N. Élias, Norbcrr frias Jxrr /ui. même, 1991" p. 14.
47 Comu um conrr.l-cxell1pln Into;;:re:.same, vercmo~ ,I 11I1port:incia quc lima f:unflt.1 (Pt.'r-
fd 25) d..í au Jlpltlma dos cônjuge:. de seus (dhu.... 5'1 M. H.. lbwachs, UI mémoire coUeCUl't', p. 9 1.
4·' A mãc diZ\.{ue de vê ;1 TV o tempo tnJo. e de::.Je cedo. ao ml.... mu tempo que (l)l1\a c:lfé
60 A hier.trqlll:! \'pcr:1ria celOleça com os 051, 052, OS}, depoiS contimm com o:. QPI
e se Vc:.le.
(Qrcráno prufi..."'tlll:ll). OPZ, Orlo (OS 5lg01ficn.lttcm lmentc, operário e:.pccl::t li:ado
4Y Quando pcrgunt.III1US d Nabda se via o:. pOlIS lerem. da demo nstrou pur :.u,!..) respo:.laS I"ou\ftlcr ::.péc.ial l<;é"I. No COlamo, essa tennlntlln!-:I:J (Ixnu -~e maUt."qu••Jamemc; OS~.
cb , a leitura linha uma dctlniç:io pununcnh: e:.col.lr, 1'101:; só na CSCllln vi,1Hl!;lI~m
l llte"l<trd em rcaliJade, um oJX'r.:'ino n do-qual ificado. (N.T.)
I~ndo: "Scu::. pai:, lécm ! 'Elc., I&em :;im. Aquilo quI' eu [açar ".
61 EI.I não con:.q:ue, por exemplo, no decorrer da Cl1lrC\fI~(a, l:Ollclllar mcmalmcOlc a idade
50 Ahá.-i. ,lS.s1l1l comu () scnhnr M., muitos p<us pcn..<\am que ,I pcnn<lllência dcpem da .lul.1 t: Jo marido em 1963, :.nlX'ndo que ele nasceu em 1946 ("Por c"u.~a que prcciSo'"!ria coma r").
IIIn" g.U';.Illlld 1"11';1 \.{UC .Ili crbnça.~ f: 1\-"1ll bem UlIliçõcs, (1 que, '>.1 1:M:UlU::t. rammcnre é o casn.
61 É vertl,ldo;;: tlue R<lhcn Olpa rece. em entrevista, como um mcmno muno tínuJo, mas que
~I 11:1 mc..m,1 (lmn;t Ixxlcmu,.. nOliJr o mo..Jo comI) d rni"ie, qll:l5C ~elllpr~ Crtt"ndu, ~ dlflRe (.11" Je I1lo1llelra consfn lida, Ct1erente e refletida_ConslJcmmlollCu discurso, tlvcmu:.dill-
;1&.1 filho~, pam pcJ lr que (açam a lgo. Ou a~ IIltervençõcs \'erb:lls do p,li, num rum rf~­
culJaJes em pcrcehc r uma c rianp em "fr:.lcasso" c~oltlr como em Uutros (,,!ou:.. Rub..:rl
plJO cm rclaçi'io Oltl:'> fi ll l0:;: "NJo mexe!". "V;u hrincar lá (um!". " [mcJi,lImuo;;:ntc!", "Me explic.a hem o que fm, é calmo c o;to M! contradiZ :.cl1\prc.
d.í .1 va~soum", " r are!". "Pare! v<li lá pm fora. V:l0", ·'V.unus, sa l d,lqut! Dcpre~,,! Rápi-
do! Tim u Ca.s.lCll!". O meMllO aconlece. rt:pccimlo o Pernl2, nll manei ra CClmt) N. lhila óJ M. Mcrlcau-Pumy, La prose du monde. 1992, p. 138-9: "ASSim. a dcspeiw dos zigl1t:za-
com;! cc n,, ~ . lIi vidadc ~ d i:"i na ~ (depois de brincar lá fora. ela 1t.11 l\;l b. .mhn. vê le [cvbllu. !;ue:., que :. . s vezc~ lc"n m ao ponto de partida, c pnrqllc caJa critmça, atr:lv6 Jc cada
c ;!C rCSCCIU .I. "d epob minha mi'ic me diz: 'V"J ontur', c depois cu durmo" '. IIlscrevend\) cUlJ,Ido de que é o hjclO, de cada gcsro Je quc é Icstc l1ll1nh,l. iJemifica-1IC com" forma
a!o.~im o mo,kl de t:x pre ~~o dos p:lis, pr6xIIllO d .. oNem Jo II1Ji::.Cutivd : "V.i dorm ir". de " ida dos pOl IS. esrahclcce-5(' u ma traJiç:io pa~:.iv .. i't q ual todo o pctlO d.. cxpe Tlt:nt.:la
c ..J:l!> "qllis I ÇÕC~ própriaS mio ser:i sufic iente p,u'd .Ic rescenl;lr algum.1 mud.mç;l . A~i l1\
5~ QuanJo Nabtl" mtlSlm as notas balxas:lo pai, 1.'1.... "bc:rm": "Ele me JIZ: 'Num va i cume-
se faz .. tcrrívcl e ncccssárla lntt!"gmçiio cultur.11. .1 rewm.lCb de um Jc:.ttntl n o tcanpú".
Ç-oIr de novo H Icr CSta nut.I', e depois ele me h;n c". M.I~ da JCIX:l c lnro que de ntiu lhe
d:'i nt:nhuma pumção ("Nun!.;;!, ele ndO me d:1 pUIlição") ou ndO a prtvOl de il ,k.J.1 (Jc
M Souyhl cont;J: "Um,1 ve~, qu;mdt) t inh" estllM!cido..Je fazcr ela.~. meu P.. . I ficolI br.wo comi-
lclcvh,10, de ~. ir) . O que pode p<trecer ~t mnho ~ que cI,l J.~ que apan ha . mas nJo é
!.'o e IlUnh,l mãe Irlmhém".
" pulllua". De (atu. 1:.10 sign ifica que ,I autoridade se aplic.1 Je IIllL-d i:u o, c nãn lem
mfluênci,,:! longo lcnnt), como as pm'açõcs, a:. puniçõcs... O que Implica, cenam(' llIe, 65 O .;enhl)J B. exprllnc. v:1rias vezes. o raIO de quc IICntc uma ruplUr:1 c"lda \lez lIla i:. cI:l(,1
uma rclaçno t:~lx-c1.I1 com li tcmpo. e l1l rc sell~ filht)S e eles. Ni'io que a ruptum !>cj;a connituill . pois o:. laços r:lreCelll IIIUIIO
5J O tempo rela l iwunem e lungo que passou nu mmcm.11 (} .mos) f""xlt.' também conin- s6hd~ e nrrc p;us e Alhos. I1l<1S cla se Instaura obje tl v"mente entre filho:. ' IUC caJ'1 Ve1:

hUlr fXlr:l a compreensãu Ju compurtamentt) hcm -"J.lptado dc Nahtla ml e:'<:lll.l. menos (;llam () árabe e p.tl::'lJue domtnmn () francê:. cum dl(II,::lIIJ"dé. entre (tlh(\', c..o,cola-
ri:ados e r ,lb dn.tll:lht! ro:.: ''Começu ,I (alar c m ,'i mbe: 'VIlCê 1:1 cnlcnJendof Nilo. Ê ISSO.
$4 A COnrIOln~~a parece surrir efcilll, pu ..... o p rofessor de S,t1l1l1a no:. ...11: que cl.t (,I~ M!mprc é UO;;:l>S..1 fllrm,L Com nu nh;1 mu lher, a geme (ala em :'írnhc, a S,'cme (ala em fr.tncê~, qu;.m-
"s lições. do e1t!" di!: 'Mmh'l (1Ih.I, meJj um corod':'igua', e m :1rahc. Elc VIr.! pra JlrClta, pra eM.juer-

,24 325
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONfiGURAÇÕES

d.I:·O \.jut!. papal, o que é yue u senhor t"á l"l.Jtndo~ Um copu J"~gua!' ~1I11. '>4,' cu 11.1
" 11'1 M. Fl1ucólUl l, L'archt!ologtedu.,SauJir. 1969. jl. 197.
peço em fmncC:.. prolllo, ru:ahou". O fmu de Souyhl ficar no IU lrárlu de C.'IlIl.III II\'rl· .hi",
ve~t'S por ::.emana para f..ner llm CUTSU de á rabe só ro,h: cont ribUIr ['<Ira ,I).:rad.,r .h'" 1'.11' 19 M. HtllhwHCh~, LlI m.!lfIoire collt'cfltt', p. 76. Gnfos dd auror.

(.t, <..) 'lenhO! B. nu~ JI Z: "N .. ofi c lIltl. rinha p.' péis c papéb (I lv rosl .M! eles qu l....:,~ h'r Hl.'lI l. &.l Bre..,e! d'Arlllllde :mx Fo nctluns d 'Animatl:.'ur (Diplllma J e Hnbilu3ção par.! as Fun.. ~
[em porque Jcve começJ pt;!l.jucno c :ué os 20;1nO$, As criança deixa um:1 pratIUlr,l. dt" J e CoorJen.IJor).
lé rudo ISSO". Ele , llug~l e~s li vros no colégio d<b filh,l\.
til O senhor B. dIZ q ue :\ c lJade onJe na:.ceu, Tlemcen . era uma bela Cidade, J"'HS. nda.
('1 $ouyla peJe.' às Irmãs, Ille:.mu \Iuando cl>tãu ocupnJ as: "Mcsml! 'lut: t:l>[,iu (, lzenJI! '11.1' dizia-se às pt'it,sU.b 4ue e m rreclso não roJu h~r, nàn ser mau, niio fal.lr 11m!...
IlITt'f:b, eu nem ligo. Eu (,,10: 'Vucês me explicmn pruneiro', (RISll.)"; ac reM:t:IlI,. yUl.· n,i"
lhe d.iu a rel>~t ... , pOIS ~nào e b nãu ~ " m teltgcllle": "Qu::m do nàol:.'nll·lh lo, IlImha' ~2 NO l.HeIllO~, no trecho, que o senho r B, JIZ llUC :I c!>(ula é feila pata "lúrn:U intehf.,'Cn-
Irmà me di2CIII u que tem tllle (,,,~t!. Por exem plo, me úJu um ÚUI"TO cxemrlu t: deJlIlI ' I:.'tI, les" ns crianças, e quc o fatu de bater cm UIlI mé~l rc é, IXI ....l ele. um:. falta Je rel>jlCito
4uanJo c lll cndl, 1~1lI , t'll faço tudo ~zi nh:l, ptlrqlU! eles n:io goStflrn de me Il l z~. h rl:.'l "'" com rdaçãu au que d e cuns iJcrn ser Ulll fl autoridade inconlcsulvd .
t,l.'>, porq ue, de pl)is , cu vuu (ü::a r menos intdi~ênte" .
~1 O próprio Ya~ine explica, de maneim ahsolulflmcllte c ulta, a maneird t.:U11l0 age tluan -
h" EI,. própria e~c larcce de IllleJt:1tll na entrcvl~I ,I : "Eu <>OU:l mc n ur J,I f: lIll ill:l. Tl:.'nh,! \lIt" du não t.:omprct'llllt: um.. palavrn num tex to: "Por exem plo. pegu meu ilvtll c dCI''t)is
Irmãs c dOIi> mndos. Onze filh os mm~ meus pms, Ire:e, c tcnho um.' mnJ e um Iml.i.! c u ICIO, depois experime nto com o contexto, ou com :I fmsc. o u em l'io, hem, pC,",'O o
llUC e~ t Ju murto, nurm ... lmente a gem e .:>eTlil ljulIl:e". diciom'ino"_

'''' Cf, pnnc lpa lme ntc o C:I~ in\'erso do Perfil 4: ,I M!u .. ção difícil du ;·c;1çullllh.I". H1 Evidentemt'nte, a rcl,IÇõio cuhurnl de forças pc rpa~~1 toJ,1 a fmnfli.l, cum membros que
dda panIClpam mais ou menos a tl\'amcntc, A mllJ IllollS \'elha est:t, antes, do I:!du de
7l' O senhur B, mand,1 q ue lC1oI1Il para nÓl> uma cart:.1 <1.1 ~in;'bi(Il/lle JIZ rt'l>pclto.1cI.1 e ~Ill\' sua mnil ("A gem e fal... : 'Você ~<1 i mult u pra fura . Fnça as mrefas', Enfim. d ~>elltC b'Tlt<l
1I1dic.1que ela ficou de recuperação por "esqucd lllc nl o de mfll c ri,II, tr,tha lhu n~u t:ntn'- com ele .ISSllll mel>lllo"), mas $em g:lstllr mnl:l encrf.:\a qu,lIlto da; por excmrlo, pa ra o
~ue c il1lhsctrlina". auxíllu nas t,lref, ls, da manda o Innão para a o utra irmJ.: "Ya~ in c, qll,mdo vem a té a
,I C' .
..-xlmll':l é. a,) lIIomo tempo, mUI 10 explfcita e mUllu exprC:i>.'>Í\m cm suas rc.~I'IO\I,l'i llll.mJn
gente, ll05fal:!: 'ExplICa ISSQ pra mim', c cu f,do: 'A h, v.li na cas., de··· I., rrimelra irmãl
e tudo'". O ITmdU rn,m velh u, ramlllc nre rrt.'M:nte e 4l/i! experimentuu um f.l'ranJc "fm-
d,1 enrrc\'ism , c:t.~n c~o l .lt, e~t~. obJetivamentc, do ou!ro lado da linha Je força , .U IlJ.l que n:in
rcprCl>Cnt<: um Jl:lj'lel ,11 IVO. A Irmã de 15 a n rno, qlll·I:.'~I,í na 8iJ l>C:n e. \'~I cum Yfl ...~ in e:'J
1l Té lé Lyo n Métropole: c missom de televis;iu dc Lylln.
hihlintcca lIlunlcipal C 1>C acha, relo menUi> nes!>!: ;lSpcC hl, ~Io mesmo I:!Jo q uI:.' [LS IrmdS,
E assim por dmnrc,
11 O to m de .s.lnUta para fabr desse assunto n:iu revela nen hum sinal de dl:.t:inci< l em fl:.'l,, -
çj() ~s vo nt;lde~ du pai.
I<i PeIdemos nos pcr).:lIntar se u irmüozinho de Ya,~inc, aprcsclH:1do comu a md.t lllll púuco
menos mo tivadu csco lanuente do que ele, n:10 eSlflrá correndo um risco maiur ut: d iCi-
74 0, Schwõ'lrtz (Le ml1nde fmw des ouvriers ... • p. 161 ) escreve, a prop&.it u Je cerras famí-
cu lu"dc el>cular ~e ,I rcl"çüll cultural de forç:ls se inclinar :1 f<lvor dI) ]1:11 ,
li.ts: "Parn l>:m-se hem SOC ia lmente!. é prccbo fl""<: har-sc famlli.ITmcme".
rIó InicmlmcllIc, Y"sslne rel>ponJc àqucsl"i'iode 'oC:.nher quem lê mais na Clt,,,",: "É mlllhn Irmii
H O senhor B, JIZ, t'lllre lanto, q ue a filha é munu grande p"r... nadar com ele: "A gemI:.'
c mesmo eu também", mustl':mdo que se pcrcchc, ao menos t'm n:laçJo a t'~ ni>l'Cclo,
vê mUita Jlferenç<l t: ntre Oi> francês e os :trahe, veJ'-l, Purque os fmnccs ne m Ilg,l*
do mesmo bdu que a irmã. EIS l3mhém como de pró rno descreve suas atl\'iJades do, nOlle:
uma ~arota Je 14, 15 ano~ n ada com os pai aSSllll , de c,i1çüo e tudo, Não, nãn, I1l!m
''Tenlllno minhas l';Irefas, Depois, bem, kUJ um UlIT'inho, DerOls, quando acabou, bem, eu
~C I como océs falfl, pu rque nÓI~ (riso), nãi> sei CI)n111 vil explicd em francês, pm 11\<11'.
veJo um rouco de tcle\'i:.<io e depois cnmo C \POli dormir". E à-i 411llrt<ls-fc!tl.1$: "PrI!fWlrO,
I ~SO num eXiste".
leio um UI'fO. Dcpol~, vejo um pouco de Ielev lsão c :':110", Enfim , conta- nus, (um muita
prl"Ci:>ti o, a htl>tó na do último livro que leu (úlly mouwrde) .
76 Quando pcrgun r:unos a S., mira que m , e ntre da c a Irm:l, em melhor 11:1 t::.cU ld , e1,\ re ...
pt.lIldc, mui to oportunamente, que :1 ItImi ~ mal!> fone hOJe, mas que, 411ando e1,1esta-
tl1 A eotrevls[<\ com YaltSillC re\'e la que, (rt::4üentcmCnI C, e le a! ribui au pai ;\S j'lrá tll:<lS que
va no primáriO, cm plur do que ela própria ilgom.
5<'0 de sua imã de 16 anos. Fantasia I:1mhém, in\'em :mdo uma mãe 4ut' l>.1bt: ~rí;:ver
jj Ela lê hlsl,kias J"'"ral)S Inn5u~ c Irmãs: "Às \'CZCl>, cumu hiMórias pm me u irmoiml - (embora JIj.!lI, e m outro:, mumentos. que ela lem d.ficulJades rara le r). um p'lI que lê
Jornal t' rt:\·I~ I ;\S ... Por 'lue ele "aumenta" os paiS, princ lp.,lmentc li pai ~ Pode mos ima-
nhu e mmha Ifmà:lI1 ha, Ido pra e1c~ a J"'ágma e deplll:. ex plico pra elcs, J"'lrque c1e~
nJo t:llle nJem". j:llllaT ljllC, para ele, \) ide:ll seria um 1"31 'lUC cuida»e dele comI) sua lrm:' c q uc tI\PC~SC

126 327
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONfiGURAÇÕES

10..1.15.1:' :'Ud:' C,Ir.lclcrí:.tic..lS. Condensa cm um ún ico c singular pcrl>On;'J~cm, que dcvc tCS J e manclra Isnlndn. O :'Iutor escreve principõllmenre que, no Rr\lpo de f.m\ílm5 em
rnO<;Ir:tr--.e.1 de como f,;c lll ral em SU:1 famílm. o l.)UC cst-j JI!'I.'lemin..do em pelo menu:. que as crianças csl:io. e m rea lidade, e m "(racasso", "os p;1is nào c:,condem Mla ho:.tlliJ a-
Juõ\S re>~().lS (o pai e:1 irm.i). de par;! cum a escola n:ação, pn ncl[X1lmenrc a das menm:1s: '0 mestre decide em sua
d.b:>C. m.l.S ndO em mmha casa"'(p. 467).
SS M. Verrcl, La CU/fUre oll\.-nere, 1988, r. 63.
1(4 ·"Pr.1 mim, se focam no meu memno, é como se tocasscm cm mlln', diZ Myriam Sem-
h'j P. A ric!lI,l'enfalll i!L la tII<, [ami/.ale .... 1973, p. 8. hart. É da í que ad\'êm ltgClTOS conOi ros COITC ela' c a r ro(cssom, cUJa.~ oh..ervaçõcs o u
cventlMill sançócs com ra sua filh a mms velha (7 ano<;) descnc.."KIcmm IlYledm wmenrc a
QQ Ihld., p. 207.
.lgrt'l>I>ivIJ.H.le dc Myrimn". (O. Sc hwartz, l..e mOIllÚ! lnivé dcs OIwrim ... , r. 136.)

1,11 Por cxemr lo. um dlrernr de escola nos dá par;. ler d uas carta.'. Jc P,lI!'! dc mClOS f'OPulart::i IO~ S ua (I lha nos confi rma q ue c l:. só pode ver rclcv l s~o i)s terças, sextas e s:'ihadns i) noite;
cujl) IJhjcll v,) cun~ I:.IC , em suma, t:m Ji:cr que o lmh.l lho dOI c"Col:. cm inStTuir ali crifl nças C:ISO contr:'Í no , "quando :.l !:ente ~ caba de come r, va i direto 11m cama".
(cn:.inOlr (mncC:l, mmem:k lca" .. ) C nãooclIpar-sc COIll l~~.l lhaio em mméria de a1llCllÇ:.'io mora l.
100 S uhli n hel nqui , no discurso d:\ menina . a exrressão e rnprc~ru.b de (nrmfl recorrent e
92 Ccni ncildo ti l' H , lh l lila ~:;io Prt>fb.~ i o n,,1 Agrícu la.
pehl mãe.
t)} () q ue "CXpllc.l rla" a tclev isiiu dClx,tda ligaJ'j JlIriUltC ti en trevi.~l :1 .
107 A fil ha cum .l: "EI:. per~u n rn pT:l nós. Ela nos f;1 I:1: 'Vncê (e: as 1.1refnllr. DePOIS. a gem c
'1-1 B. L lhlre. "La d lvl.)lon scx ucllc d u rr.JV<lil d'écrnul\.' ... ". fu I:. se (l:cmos e las Oll nllo ft:e mos. Q uando a gen te diZ pm ela: 'NJo', hem, cmolo. c1:l
n(IS (,11.1: 'Vucê V'. I 1 {,.zer agora'. (Tom all1oriláno). 'Não espere:l nOlre pm mc dm.' r que
,,~ O profC.)I>Ur aconselhou a !oCnhmel B. a dlr~lhe <11~umas re:if'ol\S;:lbihd:t~ (arnllll<lr ;:1cama, você mio {ez ób rarcf,ls' ".
rtu uNem em SII:ls C''t">'b ... ), ('Xlrque, em .lUla, elc tem um compmtamenhl " inf'llltl l".
Mas a senhura B. diz quc é m,us {on eque elil ~ é "crm" de l.I, é d,l tlucm é "clIlr;H.b " por 11311 Par.! nos (abrJe um 11\'10. Nicole retom3, aliá:.. e:.ront;\I\~l mel\l c. Utll.l r;trted~ csque-
Michel .!-c.:t C(lmo é. m.l: "EMOU Ctlm um livro que fl\."guci n..'l hlhliotCCd da l.."SCola. Eu pcguei ele porque em
engtil\.ldt). (UI:r somndo.) É R<,nde::~In('" mes poux. Eu achcI ele go:t.,do porque quando
'16 Já li pai do Perfil 9 o.til\·;t persuaolJo de que õl mh.l (.1:1<1 <b t.!TC{,IS nn hor.hlo de ct>tu;.!u, a j;ente tem pu lga:. c a t,:cntc tua elas, bem,:I gente ndo l\ucr que dcvolvam elas rm gente.
dO pa:..\u quc eSI,I\';I (,,:enJ o:l "oficma de cosltnn". E o menm mho qucr 4UC devolvam prn dI!' :.uas pulgas, cmdO cu .Ichei f.:0::.I00. em ão cu
I'Cf.:UCI dc".
97 Eles VIvem m:lTl lõllmente.
109 NLCole lIC nm~tnt na cntrevlst a como uma mcnina mU ito calm ... . Às VCZCs, rencte Juran-
'I/i Tilln hém ne:.:.c caso, tr:ld lc lo ndlmenre rrecnl.. h ldo !\\:u s pelos homens do q uc I'd,l~
te muito tcmpo antes de rCiopondcr e Já a imp re s....io de:.cr ~éria, ulé d c~cnvo l vcndo um
1llu lhere,.
J i'ICun.lI hc m -C()n ~ 1 ruíllu , acima da!' questões que lhe cllloCiL1llll.'.
99 N k.o lt: Il~ di z qlLe vê pril\l:lpa lmcntc"l mãc deixar hilhl:lCll pa ra {l p:t i.
111,) N lcolc fica no ho rário de c:.luJu hvre uma vez IXlr ~e m a n " pOl rOl (iI,:iLr l:om 1I1llHclllcga,
100 c cOllle tod l» llS d lllS l'm casa. S lLil IllJe nus dIZ quI.' llelxolf aio cri ançall no honíno dI.'
J acq lL c~ TeMallLcrc (Le.~ /?l1[UlII') ele m i~e u x /)O/mil/ires ... ) escreve: "~c c~ p íritoct)m oqlltLl
l" ludu uu nal,;ant\ n;J c! qua!>t" que ;'se lL \'r.lr" dd ,I:'.
m p:m UlccnlLv.lIn os ftIh os em seus estudos (el\! cumu conseqüênc ia u (ato de (llIC d e:,
tornam n \ lICC~' cscol:'lr \) ohjelivo exclusivu de :teus c~{orços c se privam de m UII . IS
111 A nUm cun (mn.1 i!'l.'lo na entreVista: "Pri m.:ipalmcntc m UlIl;L m:lc e minha prima, m'b
CUlio.lio para {avtlrt:Ce r e!'l.'lC 'êx ito': e m cercos casos, vive m com de:.ctlnfurlu. S;:lc r lft c llu-
Ill CU p;lL nunca .......
se vcrJiliJelramCntc" (p. 144 ); os pais "trocam a \' iJa IX ld vida dOo'> ft lhus" (p. 151).

1(11 Patll excmplos scmelh,mlt':l> de "crianç;.c.-re l:''', cf. O. Schw.trt:. te IMllite 11l'I\.i des
IH Em u monde pnt..! tks OU1'1'lCTS .... Olivicr Schw;ITt: CVtX::l um pai que uhriga o fil ho a
(.Izer uma rl'(bção grunndu com clc e esbu(cteandn-o.
OI.nmm .. . , p. 151·2.

1\)2 PEP - Pl.m J'Ép.:IIJ!ne PUl'ulaire (Plano de Poupançil Ptlpu l.lr). 111 A mole diz 1,IInhém "fi.:.Caliz.a r" o tempo inteiro .l.~ cnmranIU:'IsJ.l (Ilha: Juhaon'l não
pode hrinc:l r "Jentro" do prédIO. c re m de eu;!r visfvel a partir de um:l Jancb do
10' Zal hl;1 Zémultlu ("O sucesso c:.colar Jos (1lhnsdc Irn lbrr.m ll'S ... ". 1988) dc:.crcve e,'>C Ilpo ,Ira rt a menttl.
de comporlamen to ul\ icd m entc nas (amilt:b c m q uc ~s CTl <ll\Çaio cst:lnem "(raci.\s.~)" csco-
I.lr, .1(1 r.tll~O {IUC c<:..-.c niio é o caso aqui . <>.. mlços rcrlLncntcs q uc deM.:rc\'cm essa o u I I ~ Vemo.. mmbém que, no caso do mho, o pai só Int crvé m de (orm:l punitiVa c q U:'InJ o .1.

nquda cunfil-;u raçiio fumdl aT c.scohtrment t= con:.Oilntc ou dl~ll;lIltC nunca ....in pertLncn - "queda" escolar é constat:lda.

328 329
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

1J) Po r exemplo, 4u,mdo da Contd <I hi.stóriôl Je um Itvro: " Fa la Jc uma c riança que:, com J (I Sun Nal dIZ l jlle cume:'l.') I 8h 30, se deila às ZOh50 {ail.b, é exa (~II:ru.:mc ances dos pri-
lima me nina, he m, clt:.s tinha fénas t' ... e Jepols;t professora deles, ela fa lo u pm ele, dl1, meiros (j\m~ lia noite) quando tem :m la no J ia .')cgumtc, e por volm Ja.') B h "qu::lndo
e le.s f,em a pm ... a pro(CSSOI'H, conta pra eles uma história c d epois as criança v<io prulna não tem t:scula". Suas laref::ls duram "4uarc nta minutos".
casa e pe nsam q ue rCIllUIll lulxJ na G ISa , c Jcpu i.s vão prum;t OUfra casa hrin ca r". Nc.')sc
trecho, observamos que a relação e l1l rc o fato de a professom. cst:.lr c(ln/;mJ o um::l hb~ J l~ Bun Naf nos di: 4 L1e às qu,tTtas ~ fcims, .')áh ••d os e d o mm,t:os, "cu qui (aço U lraba lh o
túria às crianç as, por um I:ldo, e o fa to de <I.') c rmnçmi estare m pensando que há um lo ho de c asa".
na C,lS<I, por outro ladn, mio é cx plicitada .
t il M. Halbwach.'), La mémnire rollectiw, p. 30: ';Auguste <Àmte o~..: r\' a vôl q ue ~l equi líhm)
116 Séne que p......sa n u cunal de lcl..:v ilkio M6. mental re~u h , l , em bo::l p ;U lC e de início, do fato d e 4ut' U.')obje tos 1l1õ1(e n ,lis com osquab
tcmoscontalodh~n \l n:lO mudam ou mudam pouco, o(e rccendo-nUl uma imagem J e per-
11 7 Faz um ano que a senhora H . tinIU carta Jt: moto rbta e pussui, Olssim como seu marido, manênc ia e de cSl:lbiltdadc. É como 411e uma sociedade silen ciosa e un6vcl , alhem il
um ca rru. É o sinal d e qlle a divb:iu sexual do~ p~Jpéis é considcr'dvclme nte mais nex f- noss,1 ag ilação e i'l~ nussas muJanças dI..' humo r, quI..' nos dei um sentimento de ordem l'
vcl e m relação iI ou tras famrlias mllçu lm'lO;1s. dt! quietuJ e. É CX<l[Q liU(' v~ria.s pt'rt'urbaçi"lCs ps f4uic as sãnacompOlnhada.') pu r lima e~ré­
cie de ruptura de contaw entre nusso pcnS:lmento c :I~ COiSHS, por um" in capad dudc de
'" Podemos const:ll:lr sua fé e~..:t l l a r também n o fatu J c que éI ITIn:l de Ka'is pamu de faze r reconhecer os Objt:tllS h ,lhituél is, Je (orma q ue nos achamos pt:rdldos em um meio eSTra-
a precc J('Sde que eSI:'Í no ~inás l u . pois letn Iarel.L> para fa:er: fi f.lmílkl prh'lle~lllll a l'~CI )­ nho e movl:(.liço e q uI..' e:-I,í no~ mhando q ualquer ponto de apoio".
la em relilção 11 rcligi;io.
I H Ela nus moslt<l que n osso encontro está marcado .. li.
119 Os professores confirmam que K,.Ii.') nunca se esquece de fOl zcr as ta refa),.
I li Em ca&l, mu itas \'c.es, C hrisl lan b'Osta dI..' escrever hist6rms I1lvc n(;lJa~ , t: a mflc (,n CI)lO
IXI que ele corrija seus erros: "Entàú, eu (" lo: 'N:'Í(l se i, você cscrcve cumo ouv~ , pe nse um
Em CiI:><I, S'lbinc diz que vê a m:k le r livros ("Bem, d a lê um li vro, roJo dia ela lê alj!u-
mHS páginas, acho, quando tc m lempo, e, à~ vezes, d a leva r ru trabalho" ), mas o seu pouquinho, uepu is t:11 volto e comjo''', Da mesma fo rm'l , n o verJo, ela lhe compra cade r-
pni, que só lê o jurnal, a.') corriJ as. n os de fé rias, e a filh a m;1i ~ velha mllims vczcs lhe (m diwJos em (arma de )Oj!O.

121 Ssa nào-prctens.;o deve ser re b c ilmad .. cum <l.s o rigcll!> populares do cOlsa l, :lssim CI)lll V Iló C hrisrhm, f:d :mllo d:1 mãe, di:: "Ãs veres. ela me corrige c diz os e rros ljuc fiz" . Conllr-
com o univcr.\O c ultural do ma riJ o, ma que é d a quem lhe pergunta se fez suas tare(" ... e veri fica o que fcz.

III Ela ~lt é comgc .\.') c<ln.\.') quc a filha escreve nas fé ri:ls. SOlbinc JIZ: "Faço e[;b :.ozinha e 117 Ê preciso ohscrvllr que dar exerdctt)s fácc i.~ de f.-Iter para a cnança sem n enhum;! 'ljUJ.I,
dCJlOIS eb corrige mel.... c rrus". ,) noite, é um.. políticu reJagógica ddihcmda da parle J o prof('.')sor: "É p rl!eistl d izer l'IlIC
não lhes dou tnuil u. N:in é um mo ntc, compreendI..', que cai s"hre e le.:. c os esmaga. Ê
]lJ
A ohrigação se torno u h áb ito: "Não esrou com vontade de do rmir, enri'iu leio na cama", um t:xercício quc viio Plxlcr fmer sozi nhos, J'llrtanw, mio rrcchhun ir incomodar OS p :I1S.
cxplica Sabi ne. Veja, é alguma co isa lluC não us põe numa ~ itll açào de ft<lcasso. E issu n ão é bem co m-
preendido. A If::llmaS I"l'ssua.s poderiam achar que eu do u para clc,s exercicios muito
124 S abine conea que a miic leu seu livro e que cl .. s o dil>Culirdm juntas: "Eu linha l'Cga- (áceis. N:lo nccc:..~ arimnenle . Ao ;llcan ce del es! Q ue consigam se virar um pouco .')(Jzi-
do um liv ro, e minha m:1e queri a ler ele, e ..mIes que d a It:ssc . eu cx p liquei pt<l ela o nhos. Sem que tuda OI (,lIllília (u..Jue atrás, d epcndumda".
começo da hblóna".
t lI' A senhom R. é vbw pc lo profc~r como uma pcs:.oa muito exigente com os filhos: "E
125 R. Horu,rnrr, La wlmrc du [>azwrc, 1970, p. 353. t<lmht!m ela me diz: 'Oh, e lc é nulo em o rtOb'T,l(l,1 ' ''o Além cl1.SS11, Chrisnan n os diz que n:1o
gosta de hi~ [6r ias em q ll:1drinhos por411e chls levam a comcler erros dc (lrlo~I'tI(ja : " Pur411t:
IUI R. Hoggllrt, 33 Newpot'l SrrecI minhOl innà , uma V("l, tinha lido h istórias t:m qU:lI.lrinhos. e então ela cometia muitoserr'(»".
Sem dúvida, esn'i retOlmmJo as p .. lavr:ls d~ m:ic, rel,lc io n Oldas com a o Ttol,:mfi<1 .
127 Ibid ., p. 58.
1~<) tútil indicar que, a lém Jo programa mf;l:lmz,ldo pc l:.! mãe , to d as as quartas- (dms, pela
lZI! l!lid., p. 51. manhã, C hriMml1 "<11 '-lO cat ecismo.

119 J.-P. Laurens, J ~1{r500 .. lotO Qu,.mdo e ra meno r. C hri.swm cra assinamt: d u Jmtma l de Mickey.

1l() Éo primeiro n eSS<1 nmté rlil. t: nos d iz com um ~randc ~rrist): "Até sou prunt."l ro". 14 1 O p ro fessor o hscn 'a, an cum rá rio, que C hristian lê h"sf',lIltc.

110 331
SUCESSO ESCOLÁR NOS MEIOS POPULARES PEll:FIS DE CONFIGURAÇÕES

141 Pod~mo)ohM:rvar quc Chnsllõ'ln é im~diatamenle cump:lradn, pelo prufcs:.ur, C<lm a irmã, li) "Qu,mdtl é ;lnlversá rio deles, bem, eu escrevo um hllhcttnhu. c o C.trldU eu ponho Il.I
.::on.'~iJemJa aind:l m:us "bnlh:mle" c "conccllImda" do que ele. M.lIs ullla vez, pode. I1ll'M. Edc'XlI' cu rc~o um clipe, rego um pedaço de papel c cscre\'u, por exemplo 'Par.1
mo:,> ver. ne~1 hgeim diferença, o efeito da diferença enrre o ",-.1 c ri mãe como mode. u vnvõ' ou 'Par:t a vov6', c depois cu prendn na Clrt.I."
los seXU,Ii:. de iJelluficaçãu.
li4 A avóJe N.IJla parece·se multo com a flgum Jo avô p.ltemu de RlcharJ H~lggart (33
1<' Além dn milc de N:tJIiI , uma (ilha terminou o 211 gntu e, depoIS de ler comcçado .1 tra- Ncu.porc 'scrcct ... , p. 40): "Meu avô tinha :'Idu c,JldclTcim, muilo aCima de um opc:r.'inu
balhar como enfermeml lIl(anul, é dlgiwdora. Uma uutra pmou (li> e)wJos na I iI M!n~ 411al!fIC:'IJO. Eo rgulhOl!oo rm sê·ln. Uma hl:.16rla f:lIlultar I) míl:.Tm pedindo Jembs:"jo de
J o 2~ Rl'all c abnuulll :,aJ.iode cabeleireira. Um filho estudou em c:,col.. parfu:ular, com. um bom tr:tbillllll nllma fãhrica l(ue f<'l:ia má4ulnas JXlm hm,lSc sapmos, por'-1ue um c hefe
plet,tnJo 11 19 ~r::tu, na área de matemática e ciênCias f(:'lca::.. Cmnpc;'io do R6Janu de lIue noiuu ,n(I,lv,1nele crlticava.seu (f~h.1Iho. Pdoqucdi%lam, ele re~rnndeu : 'FI4ue cum
'0 m (corriJa a pé), Inlclalmen le qui::. ser professor de eJllca~:l() (íslca. depoiS fez eX,lmc -.cll' l\<lp:lln~ ', c dClxou,o fa lando sozinho'''.

ue ~cleç,io p.Ui.\ ingresso num:'! escol:'! dt: funnação Jc educadores, tcnJu sIdo cI:t..,sificn.
do Ctn 3~ lllg.. r c, .ltllalmenre, é .::oordcnador de arivIJ;Jdc~ e~p(lrti v<l~, IíS Qurmdn em jovem, tcve até um diário pCSIiO:t1 ("TiVt: i:.w, é \'c rd,ldc, quanJo C'.l sfl ltCI'
ro"), que destruiu tlu_lIldo se ca:.ou: "Gustrlva muito disso, é vel\ladc, Principalmente a.~
aVl'nfllm~, cobas a::..... im que fazíamos en tre nlllll::0.~. Escre~,i;l flIdn, mas (IUando cra sol·
t\::im. Tmkl o que aconteceu, escrevi q uase rudo, hein 1. ror alto, E aMoinl l(UC m~ C a~l'l,
145 NaJi.I, cm SCll~ dl.-.cIlI'SO.">, (.12 oJXlsiçJo clara emre o ,IVI\ C ,I ;1\'Ó d u pOnto Jc viMa d,LS JeiXCI pm lti, Tinha mUitas rccordaçõc'í e tinha dt' tuJlllá dentro, então. eu (alei. é uma
pr.Íllc.c,eulturals: e le vê televis;i() t: ela I.:, Sua avó lê loda::':I:' nOite:.! "<...ruando meu V(WÕ pcna de<truir ISSO, mas, hem, fma lmente, Jecidl de:.truí.lo", Fa!l.I, ne:'~1 me:.m... época.
C)l,i vendo tclcvls<io, JXlr exemplu futeboL t: ela não gO"I:l, el1lJo ViU ler". poemas que falava m das moças por quem se ~1J'alxona"a .

,«I Ela prúpn,l foi eJucada numa família murd lmcnte mUIto contrul.lda por um pai "amá. I 'Xi Imane e.sdarc..'Ce que ela não tnlbtnl sua!. not.c, à mi'ic "p<lr'l\le da n;ioMhe ler Illuilt) hem".
vcl, 11\;1.. nllllto f1Yoroso".
151 Su.,,> comp.mhl<l!o s.10 controladas: ~Eu sempre faço qUC5tão das cumpanhi.IS, é ,'enJade.
1·41 R. 111~;Hr, 33 Newpurt Siri.'...! . F.Ilu prol ele"" que \ "IUÇO falar de um certo menino ou menul.I: 'Tentem cvltj· lo. tl'ntt:1Il
evlt.tf hrlllcnr com ele"'.
14M Cercada Je :'Itl·n\.itl COIllO é, NaJ ia é :ué p<IlIP;IJ;1 Ja re,tliJade dllmé~IIc;I : n.io f,u
nenhum serviço Je C,IS;I, e a avó fI,.'(onhece que "d,l': Tlluitu IIlIl11aJa". ultlas:l!o ,Ui VI' ISI! A :tlllofldaJe do pai rafi..'(C ser fone. mas illlerion::.td~ 1 pclo::. (1Ihu:.. Pur exemplo, tluan·
J,ldé~ que exerce S.'kl CllllcchlJas pt!10'> <lv6s como .1 1iVld,ld...s líteb a seu JesenvulvlllIcn . dl) tOl.ios CSt:lo à me~, os filh os têm o direito de f"I ,IT, t:X~t:tu quando o:. p,u:. têm algo:1
con\'er~;l r entre ~i. E c1e:. parecem tt:r illlenun:ado e:"".1 re~r;t implki l,l: "Bem, é verda·
to (f~ICU Ull cultural (lev:lm'Il." <10 basqut:te, ao centro de .lllvIJade:. extT;a·escolarc.,) c
lIt: llIprc i.:olHrolad,I.~ por :IJultos: .IV&., pai ou COmdell:lJl1rc., (qu,l~ nunc" ...ai "Ilzlnh:'1 Je, ele:. nãu pudcm (a lart:om a gente aquc eStam(l~ f:lbndo, ISIO é, cOlllolTl lnhfl Imllher
para hrlnca r com crianças de sua idaJe) , e cu, por ... xemplu. É \'t:nlade . 1$:.0 não podem. Sem d!'~er pra e1e.~, hem!! Bem, mas ~e é
:tlgulll:l cl}i,~:t que intcre<\s.'l fi todos, bem, :lí si m, sim, eles Illxlt.:m participar".
1-49 At;,~Ull como a mãe do Pl'rfil24, da acha que u profl'::.sor (é u me~ml1) ~c e~qllt:~c ue cor.
ngtr os crf(l~, c \lU lIl,md.. NaJia Jizo.:r·lhe isso 0 11 dil própria V,I; dizer :l ele, I S,) Podemos supor que ,I relação enlre as d uas rrjticlls mio $C].I pura cOlllcidênci:l.

150 160 C f. o paI do Perfil 6.


NaJi:! :lIédlzquc. qu.1nJoOi avós não constl,oucm l1jld1·la, ele:. chcy,un a te lefonaralllll ~k
.:.cus fl lhUl: "EClltiK't, às Vczc.", eles liyam par.l minha tia e meu tit iO pam :"lhcr:.cclc.<:"1hcm"".

I ~ I O pTo(t:'\)()ri.:Olltd'lUC "o aví}csr.wn contronaJo porque, rela <õCJ.,'llndl vt':, da e:.tava rir.lIl '
..lo 9,40"'111 vczdc 9.4J. ou algo assim" -e Nadla conl1rma, dizcndo.nllb: "Ame,) cu tlllha
9, al,'tlt;1 ('Sf(lU com 8,75. não 78. e eles ficam bnlV03. t:OIllI$.I\), oro, porque baixei".

A :.cnhom B. Utllt:uu a e:.cri ra em momentOS dificei::.: "E.o;cre\'i num caJt:mmhu :t."5lm,


qllal'l<ICI Illmh,l fllh.1 entruu em com:~". Dc:.Je li mortc J.I filh .l, n:11) reJll!lu m.IlS nad ... :
"E,x:uantentc naquele mo mentu. E': simples, assi m que me JIs::.cram 4ue mmha ti lha
e::.ta\'a murr,l, era o enterro Jc minha ftl ha, não escrcvl nad.l. rard. Ni\o era nem um
dl;'inu, t:nlln nUlas que reli:'!, só i5:>u".

332 333
CONCLUSÕES

CONCLUSÕES aos comportamentos e aos desempenhos escolares: para bater nos


filhos, é também necessário julgar que isso vale a pena e conferir à
escola um mínimo de importância e de valor. Constatamos até
casos paradoxais de superinvestime nto escolar que não leva m aos
efeitos esperados por causa de uma distorção entre os fins visados
o MITO DA OMISSÃO PARENTAL e os meios ut ilizados para atingi-los (Perfil 20).
E AS RELAÇOES FAMÍLIAS-ESCOLA É claro que existem casos em que as rupturas são tão numerosas
(Perfis I e 3), e as condições de vida fa miliar, econõmica ... , tão difí-
ce is que, ou o tempo que os pais podem dedicar aos filhos é abso-
Se, através desta obra, um fato pôde ser estabelecido, é o seguin- lutamente limitado, ou suas disposições sociais e as condições fami-
te: o tema da o missão parental é um mi to. Esse mito é produzido pelos li ares estão a mil léguas das disposições e das condições necessárias
professores, que, ignorando as lógicas das configurações fa miliares, para aj udar as c rianças a "te r êxito" na escola. Mas) mesmo nesses
deduzem, a partir dos comportamentos e dos desempen hos escola- casos, o termo moralizador de "omissão''. que remete a um ato
res dos alu nos, que os pais não se incomodam com os filhos, deixan- vo luntário, uma escolha deliberada da parte dos pais, nem sempre
do-os fazer as coisas sem intervir. Nosso estudo revela claramente a corresponde ao que pudemos apreender das rea lidades de interde-
profunda injustiça interpretativa que se comete quando se evoca uma pendência social.
"o missão" ou Ullla "negligência" dos pais l . Q uase todos os que inves, Os discursos sobre a "omissão" dos pais são emitidos pelos pro-
tiga mos, qualquer que seja a situação escolar da criança, tê m o sen- fessores principalmente quando os pais estão ause ntes do espaço esco-
timento de que a escola é algo importante e manifestam a esperan- lar. Eles não são Uvistos", e essa invisibilidade é imediatamente inter~
ça de ver os filhos "sair-se" melhor do que eles. Aliás, é importante pretada - principalmente quando a criança está com dificuldade
destacar que os pais, ao exprimir seus desejos quanto ao futuro pro- escolar - como uma indiferença com relação a assuntos de escola
fissional dos filhos, tendem, freqüentemente, a desconsiderar-se pro- em geral e da escolaridade da criança em particular. Alguns profes-
fissionalmente, a "confessar" a indignidade de suas tarefas: almejam sores até parecem pensar que a ausência de relações, a ausência de
para sua progênie um trabalho menos cansativo, menos sujo, menos contatos com algumas famílias (populares, é claro), explicaria o "fra-
mal-remunerado, mais valorizador que o deles. CilSSO escolar" das crianças. Por isso, é preciso fazer os pais irem, de

As mães ou, mais ra ramente, os pais cuidam da escolaridade, con- qualquer jeito, à escola: nas diversas reuniões, festas escolares ...
tro lam as tarefas, explicam quando podem, fazem repetir em voz alta O ra, sabemos que as relações pais-professores seguem a lógica
as lições, compram cadernos de exercícios durante as férias escola- das sociabil idades sociais corriquei ras' : os pais das classes médias
res de verão para que os filhos continuem a se exercitar (Perfil 12). e altas são os que se encontram mais com os professores de manei-
Também ficam atentos para que estes deitem cedo todas as noites ra informal, mas essas relações dizem respeito menos a um acom,
que antecedem os dias de aulas e , algumas vezes, são extre mamen, panhamento da escolaridade do que a uma sociabilidade fundamen-
te prudentes com suas saídas e suas amizades. E o que dizer dos pa is tada em posições e disposições sociais comuns ou próximas '. Essas
ou mães que batem nos filhos quando os resultados são n1ins ou quan- relações de proximidade ou de distância en tre adultos de dife ren -
do as cadernetas mostram que brincaram em aula (Perfis 2, 8, 9, 16)1 tes meios sociais estão fundamentadas em diferenças sociais evi·
O que quer q ue se possa pensar da eficácia pedagógica dessa polí- dentes, e podemos nos perguntar se os professores não estejam
tica disciplinar, tais fatos provam que os pais não são indiferentes concebendo sua relação com as famílias populares através do mode-

JJ4 3JS
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES CONCLUSÕES

lo utópico (utópico por causa das distâncias sociais que ele esca- considerarmos que a simples participação dos pa is na vida escolar
mote ia) de sua relação (po is e les pertencem às classes médias) poderia modificar as coisas em relação aos uesempenhos das crian-
com as famílias das classes médias: intercâmbio na saída da esco- ças, estarfamos postulando, com isso, lima hipó tese que se rcve l a~
la, na rua, no supermercado, nas festas, etc. Se esse for O caso, pode- ria - em vista dos resultados de nossas análises - como totalmen-
mos perceber, atrás da necessidade de "ver'\ de "encontrar" o u de te ingênua e superficial.
"fazer vir" os pais à escola para limi ta r as dificuldades escolares da Richard Hoggart mostra, a seu mouo, a dissociação entre as famí-
criança, uma nova imposição de quad ros soc iais e simbólicos, de lias populares (das quais faz parte a sua) e a escola: "Não me lembro
normas de comportamentos direcio nados, não mais às c rianças, rnas de que tenha havido encontros regulares entre os pais e os mestres
aos adul tos de me ios populares. em Jack Lanc, e nôs mesmos nunca nos vimos como fazendo parte
Portanto, boa parte das ações ou das reflexões sobre as relações do dispositivo educativo desenvolvido pela municipalidade de loeds".
famílias-esco la feitas em nome da lu ta contra o "fracasso escolar" O u ainda : "Os pais conhecem a escola , mas eram muito ignorantes
só tem, sem dúvida, frágeis relações com esse "objeto". Existem, neste acerca do que hoje se chamaria de sua 'filosofi a', que se limitava a
caso, uma o rie ntação e uma ação da escola que têm mais a ver com um pequeno número de objetivos e de pontos de vista pragmáticos,
a gestão social das populações, com a integração moral e simbóli- geralmente convencionais. Eles só entravam nela em caso de urgên-
ca dos meios populares nas instituições legítimas (em locais e ati- cia, e, na ma ior parte do tempo, nunca tinham posto os pés nela't'i.
vidades legítimas: festa local, festa da escola , escola como ambien- Mas, mesmo que a ida dos pais ao espaço escolar pareça ser dese-
te de vida o nde os pais vêm "dar uma mão" e m cerras ati vidades, jada por uma grande parte dos professores, isso não emí despro-
abertura da escola aos ad ultos para estágios de alfabe tização, para vido de ambigüidade. Os pais podem ser vistos como que se intro-
estágios de formação de jovens... ). Ações desse ti po dizem respei- metendo um pouco de mais num domínio pedagógico cons iue rado
to aos costumes escolares, às normas legítimas da sociabil idade e a reservado e, assim , despe rtar reações de defesa. U m professor con -
uma determinada forma histórica de vida pública, mas não te m rela- fessa assi m que o respe ito - que leva alguns pa is de me ios popu-
ção com os fundamentos das diferenças (e dos mal-entendidos) lares a uma de legação total de autoridade pedagógica - é mui to
culturais, que estão na origem das "dificuldades escolares", entre uma confortante para os professores: "Há um respeito aqui pe lo mes-
parte das famílias populares e a escola. Q uerendo a qualquer preço tre, eu acho. Também talvez dependa do nível sociocultural. N o
integrar as famílias em locais e instituições legítimas, podemos nos mais das vezes, trata~se de resolver um proble ma, he in ? Q uando
questionar se não se está aumentando em dobro o traba lho de con - as famílias vêem, nas cadernetas escolares, que tudo va i bem, h á
versão das estruturas mentais, cognitivas - que fatalmente qual- satisfação. Bem , pode acontecer que a gen te não os veja, mas não
quer aluno oriundo dos meios populares deve operar para adaptar- é freqüente. Q uando as coisas estão indo bem, o senhor sabe ...
se ao universo escolar - , com um tra balho de conversão-aculturação (Riso.) Não vão se intrometer na pedagogia, eu diria, e quanto a
do echos, dos costumes'. Alguns perfis rea lmente revelam pais que isso, bem, ora, há uma certa tranqüi lidaue para os professores. Porque
partic ipam da vida escolar (reuniões, conse lhos de pais de a lunos, há o utras escolas em que talvez os pa is sejam bastante sequiosos
festas, excursões às montanhas, acompanhamento nas sa ídas ...: Per- por explicações no campo pedagôgico, e isso pode encher um
fis 24, 22, 19), mas isso não pode ser considerado como uma "causa" pouco os professores. Sei que , se uma fam ília quiser ir muito longe,
do "sucesso" das crianças. A esses casos, opõem-se todos aqueles que e então, como se diz. ficar esm iuçando , be m, isso pode ser i rr i tan~
só conhecem a escola através das cadernetas escolares, das notas das te , ora , e além do mais a gente sabe o que é que te m que faze r, e
crianças e, quando tê m tempo, das reuniões de início de ano. E, se então o que é que está faze ndo". (Risos.) O direito educativo de

336 33 7
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES CONCLUSÕES

ingerência é, portanto, dissimétrico: os pais se vêem sendo acon~ mos que a sociologia, e não apenas a ps icologia, está envolvida com
se lhados sobre a maneira de agi r com seus filhos, mas os profes- a análise dos processos de constn.ção de esquemas cognitivos ou com-
sores não gostam que lhes digam o que devem fazer. portamentais, então é preciso dotar-nos de ferramentas conceituais
adequadas para avançar nesse campob.
As MODALIDADES DA TRANSMISSÃO Se uma parte da sociologia estatisticamente fundamentada reve-
lou a distribuição desigual do cap ital cu ltural segundo os grupos
o tempo e as oportunidades de socialização sociais, se estabeleceu que o capital cu ltura l leva ao capital cu ltu-
ral, é preciso, doravante, destacar as modalidades efetivas de "trans-
o
que os dados estatísticos não pode m ver por falta de con- missão" desse capita l cultural, os procedimentos pelos qua is algu-
textua lização dos critéri os considerados é, muitas vezes, determi- m(l coisa como a cultura se "transmite" no nível comum das práticas
nanre. A presença objetiva de um capita l cu ltural familiar só tem (familiares ou outras). Se é importante reconstruir as disposições
sentido se esse capita l cu ltural for colocado em condições que tor- sociais dos adultos (e principalmente dos pais), podemos nos per-
nem possível sua "transm issão". Ora, nem sempre isso acontece. guntar o que Ué transmitido" concretan'lente através das relações pais~
As pessoas que têm as disposições cu lturais susceptíve is de ajudar filhos . Essa insistência nos contatos ou nas relações diretas não é
a cri ança e, mais amp lamente, de socia li zá~ l a num sentido harmo, uma abdicação positi v ista que acentuaria excl usivamente as inte~
nioso do pOnto de vista escolar nem sempre têm tempo e oportu - rações visíve is, imediatas 7, mas uma precaução sociológica inspira~
nidade de produzir efeitos de socialização. Nem sempre conseguem da pela idéia segundo a qual competências podem, às vezes, perma-
construir os dispositivos familiares que possibilitariam "transmi- necer sem efe ito (de socialização) quando não encontram situações
tir" alguns de seus conhecimentos ou algumas de suas disposições para que sejam postas em prática.
esc~lar mente rentáve is, de manei ra regular, contínua, sistemáti .. Que pessoa detém o capital cu ltural? Estará ela sempre presen-
ca. E por essa razão que, com capital cu ltural equivalente, dois con- te junto à criança? Ela cuida da sua escolaridade? Muitas são as per-
textos familiares podem produzir situações escolares mu ito dife- guntas que, por pa recerem banais, não são menos essenciais. Com
rentes na medida em que o rend imento escolar desses capitais efeito, a simples existência objetiva de um capita l cultura l ou de
cultu ra is depende muito das configurações fam ili ares de conjun - disposições cu lturais no se io de uma configuração familiar não nos
to. Podemos dizer, lembrando uma frase cé lebre, que a herança cu l- diz nada acerca das maneiras, das formas de relações sociais, a fre-
tural nem sempre chega a encontrar as condições adequadas para qüência das relações, etc., através das quais e les se "transmitem" Ou
que o herdeiro herde. não se "transmitem"'!. Se o capital ou as dispoSições culturais estão
Por isso, só podemos ficar desconfiados em relação a concepções indisponíveis, se "pertencem" a pessoas que, por sua posição na divi~
que poderíamos qualificar de "ambientalistas" e que abordam os efei- são sexual dos papéis Jomésticos, por sua situação em relação às pres-
tos de um "meio" (familiar ou socia l) de uma maneira muito abs- sões profissionais, por sua maio r ou menor estabil idade fam iliar, por
trata. Sem estar jogando com as palavras, podemos dizer que não sua relação com a criança (Perfis 4, 5, 6, 7,9), não têm oportuni -
basta, para a criança, estar cercada ou envolvida de objetos cu ltu- dades de ajuda r a criança a construir suas próprias d isposições cu l-
rais ou de pessoas com disposições culturais determinadas para che- turais, então a relação abstrata entre capital cu ltural e situação
gar a constru ir competências c ulturais. Se não queremos fazer da escolar das crianças perde a pertinência. Vimos, em contrapartida.
constituição das estruturas mentais um processo miraculoso cujas o poderoso efeito, em algumas escolarid"des, da presença constan-
modalidades concretas nunca serão compreendidas e se considera- te de adultos que possam exercer disposições escolarmente harmo-

338 339
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES CONCLUSÕES

niosas a todo instante , de mane ira sistemática, regular e duradou~ Falar de "transmissão" é, principalmente. conceber a ação unila~
ra (Perfis 24 e 25). O fato de marcar, de forma contínua, sua pre- teral de um destinador para um destinatário, ao passo que o destina-
sença se mostra particularmente impo rtante em configurações fa mi ~ tário sempre contribui para construir a "mensagem" que se considera
Iiares e m que tudo depende do alto grau de vigilância dos pais. ter-lhe sido "transmitida". Ele tem de atribuir-lhe sentido na relação
social que mantém com O que o está ajudando a construir seus conh e-
Transmissão ou construção? cimentos e com seus próprios recursos, construídos no curso de expe~
riências anterio res. Além disso, mesmo nas mais fo nnais situações de
Se tomamos o cuidado, ao longo desta obra, de colocar os ter- aprendizagem (por exemplo, as situações escolares) , o que o adulto julga
mos "transmitir" o u "transmissão" entre aspas, é porque eles re me~ "transmitir" nunca é exatamente aquilo que é "recebido" pelas crian~
tem, freqüente mente, à idéia de uma reprodução idêntica ("mode- ças. Os hori zontes se revelam diferentes sob muitos aspectos. Em pri-
lo a ser imitado" ) de uma disposição (ou de um esque ma) mental e me iro lugar, o "adulto" (enquanto tal) possui um ho ri zonte e uma
levam, antes, a pensar em situações formais de ens ino nas quais um vivênc ia lingü ística que não estão ao alcance imediato das crianças,
saber está explicitamente em jogo. que constroem o sentido da situação de aprendizagem e dos conheci-
Com efeito , é preciso questionar essa maneira de conceber as coi~ mentos propostos a partir do estágio de seu desenvo lvimento cogni-
sas, Transmitimos, por exemplo, uma mensage m escrita a alguém, ti vo (socialmente dete rminado pelas experiências lingü ísticas das
remetendo- lhe ou mandando remeter-lhe um suporte sobre o qual quais participam). Em segundo lugar, entre o adulto-docente e as
a mensagem foi previamente inscrita . Nesse exemplo, a tra ns mi s~ crianças-discentes as diferenças são também diferenças de modo de
são parece não mudar nada da natureza ou do conteúdo da me nsa- inscrição nas relações sociais, de formas de configurações sociais de
gem transmitida; a mensagem preex istia ao ato de transmissão. A referência (a criança é um menino ou uma menina, um fi lho mais velho
(o destinador) deu (ou mandou dar) a me nsagem a B (destinatá- ou um caçula, um filho de funcionário público ou de um dono de uma
rio). Esta mos diante do modelo clássico do esquema da comunica- grande empresa privada, um filho de pais imigrantes o u um filho cujos
ção elabo rado por Roman Jakobson' . Da mesma forma, no caso da pais nasceram na França, e assim por diante ). Assim, a noção de
transm issão de um patrimônio material, o objeto X passa do doa- "transmissão" não explica muito bem o trabalho- de alJropriação e de
dor ao benefi ci<\rio (um herdeiro, por exemplo) sem que X se modi- construção - efetuado pelo "aprendiz" ou pelo "herdeiro", Ela tam-
fiqu e com O processo de transmissão (ou de herança ). Aconteceria bém não consegue indicar a necessária e inevitável transforrnLlÇão do
o mesmo em matéria de c ultura, de disposições sociais, de m a ne i ~ "capital cultural" no processo de "outorgação" de uma geração para
ra de ver, de sentir, de agir, de esquemas compo rtamentais e me n ~ outra, de um adulto para um outro adulto, etc., pelo efeito das dife-
ta is, etc.! Pode mos dizer que o saber ou a cultura passa dos ad ul tos renças entre aqueles que, presume~se, "transmitem" e aqueles que, supõe~
para as crianças como a mensagem escrita o u o patrimô nio mate~ se, "recebem",
ria I passa de A a B! O sociólogo da educação e da cu ltura deve con- Mas ela é ainda mais inadequada para conceber as freqüentes
tentar~se com a metáfora do "transvasar" o u da "outorga" (fala~se situações em que algo se "transmite" - o u me lho r, se constró i -
também e m "transmissão de poderes"), o u então deve c riar uma lin~ sem que nenhuma intenção pedagógica tenha sido v isada, sem que
guage m mais adequada à descrição desses fenõmenos! As noções de ne nhuma ação de transmissão te nha sido pensada como tal. Q uan-
capital c ultural e de transmissão ou de herança perdem, afinal de tos conheci mentos e habilidades construímos sem saber, sem que
contas, sua pertinência ass im que nos ded iquemos à descrição e à alguém nos tenha dito: "Veja, hoje nós vamos ap render a fazer isso
análise das moda lidades da soc ialização familiar ou escolar. o u aquilo., ." ? Se pudermos datar aprox imadamente o mo mento em

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES
CONC LUSÕES

q ue aprende mos a ler e a escrever ("Eu aprendi a ler ma is ou menos membros da família, e as crianças estão, muitas vezes, privadas dele.
com 5 anos"), porque, neste caso, estamos d iante de um saber obje# Trata-se, portanto, de um patrimônio cultural morro, não ajYropriado e
tivado, constituindo um investimento explíc ito em nossas forma# in-a{JI'opriado (Perfis 11 e 20). Um capital cultural objetivado não
ções socia is, e ensinado e m situações formais de aprend izagem, tem efeito imediato e m ágico para a cri ança se interações efetivas
quem pode dizer com precisão em que momento aprendeu a puxar com ele não a mobilizarem".
ou a e mpurrar um objeto, a combinar habilmente essas duas ações, Por outro lado, em oposição a essas famílias que não desenvol-
a sentar d ireito à mesa , a ligar um televisor ou a discar um número vem estratégias de apropriação dos objetos cu lturais por seus filhos,
de telefone? E, no entan to, objetivamente , isto é, para o sociólogo encontramos outras famílias em que, mesmo que os próprios pais quase
ou o psicólogo que estudam , descrevem, ana lisam, nesses exemplos n ão leiam (não passando ass im a image m de uma prática n atural da
existem conhecimentos e h abilidades e m ação. H á, pois, um gran- le itura), e les, entretanto, desempenham um papel de intermed iár ios
de n úmero de situações n as q ua is a criança é levada a consenti,. dis- entre a cultura escrita e seus filhos: fazem com que eles leiam e
posições, conhecimentos e habilidades em situações "organizadas" escrevam históri as, fazem-lhes perguntas sobre o q ue estão lendo, lêem
- não consc ientemente - pelos adu ltos e sem que tenha h avido para eles histórias desde pequenos, levam-nos à biblioteca munici-
verdadeiramente "uansmissão" vo luntária de um conhecimento lV• pal, jogam palavras cnlzadas com eles, etc .... (Perfis 10 e 21).

Um patrimônio cultural morto A integração social e simbólica da experiência escolar

Nenhuma família é desprov ida de quaisquer objetos culturais, mas Podemos observar também que famíli as fracamente dotadas de
estes (principalmente os impressos) podem, às vezes, permanecer em cap ital escolar o u que não O possuam de forma alguma (caso de pais
estado de letra morta porque ninguém os faz viver fam iliarmente. A analfabetos) podem, no entanto, mui to bem, através do diá logo o u
existênc ia de um capital cultural familiar objetivado não implica através da reorgan ização dos papéis domésticos, atribuir um lugar
forçosamente a existência de membros da família que possuam o capi- simbólico (nos intercâmbios familiares) ou um lugar efetivo ao "esco-
tal cultural incorporado adequado à sua apropri ação. Os pais com- lar" ou à "criança letrada" n o se io da confi guração fam ili ar. Assim,
pram liv ros, d icionários, enc iclopéd ias (que, freqü entemente, cons- em algumas famílias, podemos encontrar, inicialmente, uma escu~
tituem investimentos finance iros mui to altos ) para seus filhos, mas ta atenta ou um questionamento interessado dos pais, de mo nstra n ~
sem que possam acompanhá- los em suas descobertas desses objetos do assi m, para elas, q ue o qu e é feito na escola tem sentido e valor.
c ul tura is. Não desempenham - por falta de disposições ou de opor- Mesmo que os pais não compreendam tudo o que os filhos faze m
tu nidades - o papel de intermediários que possibilitar ia aos filhos na escola e como não têm vergonha de dizer q ue se sen te m infe-
apropriarem-se dos textos que são colocados à disposição deles, e, riores, e les os escutam, prestam atenção na vida escolar deles,
freqüentemente, ficam decepcionados com O pouco uso que eles fazem interrogando~os, e indicam, através de inúmeros comportame ntos
desse capital. As crianças são, portanto, colocadas numa situação para- cotidianos, o interesse e o va lor que atribuem a essas experiências
doxal, uma vez que possuem objetos cuja ausência de utilidade fami- escolares". As con versas com pelo menos um membro da família
liar podem constatar todos os dias. Os livros comprados estão tam- possibili tam verbalizar uma experiência nova, não v ive nc iá#la sozi#
bém freqüentemente - por seu conteúdo - fo ra do alcance das nho, não carregar sozinho uma experiência diferente. Da mesma
crianças, principalmente quando estas já têm problemas de compreen- forma, quando pais an alfabetos ou com dificuldades n a escri ta
são de textos. Esse patrimô nio cultural quase não é mobilizado pelos pedem progressivam ente aos filhos escolarizados no c urso primá-

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES CONCLUSÕES

rio que os ajudem a ler a correspondência, a explicar- lhes o con - conservem angllStias, vergonhas, complexos, remorsos, traumas ou blo--
teúdo dela, a preencher as ordens de pagamento, a escrever bilhe- queios. Na incapacidade de aj udar os filhos, os pais sem capital esco-
tes para a escola, a procurar números de telefones na lista, a aco m ~ lar também não tendem a comunicar-lhes uma relação dolorosa com
panhar a escolaridade dos irmãos e irmãs, etc., podemos dizer que a escola e com a escrita. Essa é uma das razões que podem explicar o
eles criam uma função familiar importante, ocupada pela criança fato de que não se observa, em nossos perfis, um vínculo mecânico e
que, com isso, ganha em reconhecimento, e m legit imidade fami~ di reto entre grau de "sucesso" escolar dos filhos e grau de escolariza-
liar (Perfis 13, 14, 16). Algumas configurações familiares demons- ção dos pais. Saindo da lógica simplista do volume de capital escolar
tram, portanto, a importância socia l, simbólica, no próprio seio da possuído, é preciso interrogar-se a respeito da plura lidade das condi-
estrutura de coex istência, daqueles que sabem ler e escrever (da ções e das modalidades concretas de "trans missão" ou de " não~trans~
"criança letrada"), ou a integração simbó lica do "esco lar". Quando missão" das disposições culturais.
se está desprovido de qualquer meio de aj uda direta, esses proce- Também se percebe claramente que o que se "transmite" de
dimentos de legitimação familiar desempenham um papel central uma geração a o utra é muito mais do que um c::!p iml cu lru ral: um
na possibilidade de uma "boa escolaridade" no curso primário. conjunto construído em relação à escola e à escrita - de angllstias
e de humilhações, de reticências e de rejeições - em relação ao
Capital escolar e experiência escolar tempo, à orde m e às pressões ... O estudo dos fenômenos de "heran-
ça cultura l" nunca deve o mi t ir a análise da especifi cidade cogniti-
Temos, pe lo menos, dois casos flagrantes de "tnmsmissão" de uma va " do que se herda.
relação infeliz com a escrita em nossa população (Perfis 8 e 12). Nos
dois casos, mães passam aos filhos seu "bloqueio" inicial em relação à A constituição das identidades sexuais
escrita, ao dlcu lo ou à memória: medo de cometer erros de ortogra-
fia, de escrever sem encontrar as fonuas certas, de não saber fazer um A análise dos perfis de configurações, assim como outras pesqui-
cálculo ... Essas mães não estão desprovidas de qualquer capital esco- sas l4 , revela que freqüentemente as mulheres, encarregando~se dos escri~
lar, mas expõem aos olhos dos filhos, em múltiplas situações cotidia- tos domésticos, estão por isso mais para o lado do pólo racional e os
nas, a frag ilidade de suas competências em escrita, em matemática, homens, contando com o trabalho de gerenciame n to de suas mulhe-
ou de suas competências mnemônicas, um sofrimento em relação a res, estão mais para o lado do pólo espontâneo ou hedonista. As mulhe-
qualquer documento escrito mais o u menos formal ou a qua lquer res também se encarregam da educação dos filhos e, principalmen-
situação de cá lculo. Comunicam, portanto, seus complexos, suas te, do acompanhamen to escolar deles. E tal fato não deixa de produzir
angústias, suas próprias dificuldades escolares passadas, ao mesmo efeitos nas escolaridades dos filhos " . Em mais de um caso, os meni-
tempo que suas preferências, mostrando assim que um cap ita l escolar nos é que estão, escolannente, com mais dificuldade, na medida em
nunca está dissociado de uma experiência escolar (feliz ou infeliz). Para- que a constituição de sua identidade sexual no seio da configuração
doxalmente, essas situações em que os pais têm um pequeno capital familiar deve ajustar-se a um pai que se acha, freqüentemente , do lado
escolar são mais problemáticas do que aquelas em que os pais são anal- dos princípios familiares de socialização mais dissonantes em relação
fabetos, mas desenvolvem outras estratégias familiares para ajudar os aos princípios escolares de socialização.
filhos. Expondo os fatos rapidamente, poderíamos dizer que, do ponto Mas, de maneira mais geral, vimos que, em famílias em que havia
de vista da escolaridade da criança, é sem dúvida preferível ter pais diferenças marcadas em matéria de capital cultural, de disposição social
sem capita l escolar a ter pais que tenham sofrido na escola e que dela o u de atitude cu ltural entre o pai e a mãe e, mais amplamente, entre

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES CONCLUSÕES

os h omens e as mulheres confrontados, a escolaridade das meninas pela le itura ... Mas as contradições perpassam, às vezes, as próprias
e dos meninos comportavam matizes: um menino considerado um pessoas, dúplices por sua história (Perfil 15). A ex istên c ia de prin-
pouco menos "brilhante" que seu irmão numa configuração familiar cípios de social ização contraditórios faz com que a situação escolar
em que o pai era o único que sabia ler e escrever e que cuidava da da criança dependa, mui to particularmente, de uma relação de
escolaridade (Perfil 10 ); meninos um pouco men os fortes escolar- força c ultural (Perfil 17) entre os diferentes membros da família: a
mente do que as irmãs numa situação familiar bastante desigual mod ificação das relações particulares de interdependência que pos-
entre os pais e as mães do ponto de vista das disposições rac ionais, sibilitam à criança "desobrigar-se" escolarmente pode fazer com
do capital escolar e das práticas culturais, porém, neste caso, a favor que sua carre ira escolar 17 seja reconsiderada.
das mães (Perfis 21 e 22) ... Isso e nfatiza, qualquer que seja o sexo De qua lque r maneira, é ma is raro encontrar configurações fami-
que se beneficie de uma situação familiar existente, o peso da cons- liares cultural e moralmente h omogêneas. Pouco numerosos são os
trução social das identidades sexuais na constituição das estruturas exemplos que possibilitam falar de uma exterioridade familiar coe-
da personalidade e do comportame nto dos filhos. Isso obriga a reco- rente , produtora de disposições gerais inteiramente orientadas nas
nhecer as diferenças sexuais como diferenças plenamente sociais que mesmas direções. N umerosas crianças vivem concretamente no
entram em jogo na compreensão dos matizes de percurso escolar no seio de um espaço fam iliar de sociali zação com ex igênci as variáveis
seio de uma mesma fratria , e características variadas, em que exemplos e contra, exemplos se
ch ocam (um pa i ana lfabeto e uma irmã n a unive rsidade, irmãos e
Contradições e instabilidade irmãs em "sucesso" escolar e outros em ufracasso", e assim por dian-
te), em que princípios de socialização ~ontraditórios se entrecru-
roJcnl\l~ I ,·1deplor<lT que u contexto seja fre -
zam. Com o conjunto dos membros de sua família, elas são, freqüen -
qüe nt e mente pintaJo como rígiJo , coerenTe c
que sirva de rela de fundu uuüvd para explicar temente, colocad as diante de um amplo leque de sis temas de
a biografIa!", preferências e de comportamentos possíveis. E temos muito mais
possibilidades de encontrar elementos contradi tórios quando esti-
Longe de constituir realidades homogêneas, as configurações fami- vermos em presença de famílias numerosas em que várias ge rações
liares estudadas nos forneceram ma is de um caso de h eteroge ne i- de filhos v ive m sob o mesmo teto ou que comportam, po r mú lti-
dade. A c riança pode estar cercada de pessoas que represen ta m plas razões, tios, tias, primos Oll primas, e avós.
princípios de socia lização, tipos de o rientação em relação à escola A situação das re lações de interdependê nc ia no seio das quais se
muito diferentes, até mesmo opostos. Uma parte do sucesso esco- acham inseridas as crianças é , po rtanto, muito susceptível de trans,
lar dessas crian ças está, a liás, relacionada a essa presença de elemen- fonnação e, quando a boa situação escolar das crian ças só se mantém
tos contraditórios que lhes possibilita ter pelo men os um membro por um fio, por uma ausência de in ves timentos culturais e econô,
da famíli a (pai ou mãe, irmão mais velho ou irmã mais velha, tio micos suficientemente potentes, recorren tes, para evitar qualquer
ou tia.. ,) e m quem podem apoiar'se em SLla experiência escolar. A acontecimento perturbador, então a menor modificação das relações
oposição ou a contradição pode estabelecer-se, confonne o caso, entre de interdependência entre as pessoas confrontadas (e, por consegu in-
o controle moral muito rígido e a indulgência, entre o "divertimen- te, entre as disposições sociais, as orientações ou os princípios sacia,
to" e o "trabalho escolar", entre uma sensibilidade mui to grande para lizadores ) pode traduzir-se em "dific uldades" (Perfil 14 ou 15). Esses
com tudo o que diz respeito à escola e uma menor sensibilidade, entre elementos perturbadores podem ser de natureza extremamente varia-
prefe rên c ias pela le itura e uma ausên c ia de práticas e preferências da: nascimento ou morte de um irmão ou de uma irmã, que provo-

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES CONCLUSÕES

ca a modificação temporária ou permanente da economia dos laços salta de geração em geração. E, no entanto, a língua avança ao mesmo
afetivos no se io da famíl ia, um desemprego que acarreta modifica- te mpo que essa corrente e é inseparável dela. Em realidade, a língua
ções de comportamentos, um início de trabalho de uma mãe que até não é transmitida, ela dura e perdura na fomUl de um processo ininter-
então estava em casa, saída de um irmão mais ve lho ou de uma irmã rupto de evolução. Os indivíduos não recebem , como quinhão, uma lín-
mais velha da família, um divórcio que modifica as situações habi- gua pronta para ser utilizada, eles se inserem na corrente da comunica-
tuais de socialização ... , qualquer acontecimento que venha transfor~ ção verbal, ou, mais exatamente, sua consciência s6 sai do limbo e
mar a estrutura de coex istência familiar pode fazer com que tudo o desperta graças à sua imersão nessa correme"/9.
que tinha sido adq uirido com dificu ldade possa ser reconsiderado. Essas poucas palav ras de Mikhail Bakhtine são de uma notável
Mas esses acontec imentos não são tão perturbadores numa situação clareza e podem servir para esclarecer boa parte das discussões socio-
familiar inversa, e a força de seus efeitos na situação escolar das crian- lógicas em torno das oposições (ou tentativas de esmero dialético)
ças é, sem dúvida, inversa mente proporcional à força dos investi- entre indivíduo e sociedade, ator e estrutu ra, subj etivismo e obj e~
mentos fami liares. tivismo, estruturas mentais e estmturas objetivas. As ciênc ias socia is
No oposto dos casos de "êxito" engendrados em configurações têm realmente a tendência, como sugeri a Bakhtine, de rei fi car as
familiares contraditórias e que dependem de uma relação de força noções de contexto, de ambiente, de sociedade, de estrutura, e de
entre os diferentes princípios de socialização mais ou menos com ~ colocar diante dessas abstrações reificadas indivíduos isolados, fazen-
patíveis com o universo escolar, observamos casos e m que a força do de duas apreensões, distintas da mesma realidade de interdepen-
escolar da criança repousa numa configuração familiar n ão~co ntra~ dência, duas realidades substanciais, dois objetos rea lmente sepa-
ditória, composta de adultos coerentes entre si , em que vários prin- rados. Passamos, assim, de um corte metodológico a um corte
cípios de socialização não se superpõem e exercem seus efeitos regu~ ontológico entre indivíduo e sociedade" . Além disso, as opos ições
lar, sistemática e duradouramente (Perfis 14, 23, 25) . (ou as dialéticas) do tipo ator/estrutura ou indivíduo/sociedade des-
crevem a formação das consc iênc ias individuais da mesma forma
UMA ANTROPOLOGIA DA INTERDEPENDÊNC IA que Santo Agostinho descrevia a aquisição da linguagem pela crian-
ça, a saber, "co mo se esta fosse para um país estrangeiro se m com~
A interdependência preender sua língua: isto é, como se ela já possuísse uma linguagem,
mas não aq uela linguage m, ou ainda: como se a criança já pudesse
C riticando o objetivismo abstrato da lingüística saussuriana que pensar, mas não ainda falar"ll. Ora, os seres sociaisH não se encon~
define, de mane ira mu ito durkheimiana, a IIlíngua" - que 110 indi ~ tram diante das "estruturas sociais" ou das "estruturas lingüísticas",
víduo registra passivamente"' S- em oposição à "fala", da mesma mas se constituem enquanto tais através das formas que suas rela~
forma que o social se opõe ao individual, Mikhail Bakhtine escre- ções sociais adq uirem. Como muito bem di zia Norbert Élias, o
ve que essa corrente teórica "considera a transmissão da língua tal tenno "indivíduo" é particularmente confuso na medida em que "des~
como um objeto, por herança, de um ponto de vista mernfísico", masobser- perta a impressão de que se está falando de um adulto sem nenhu-
va que "essa assim ilação não constitui apenas {... ] uma metáfora: crian~ ma relação, isolado, e que nunca fo i c riança"21.
do o sistema da língua e tratando as línguas vivas como se fossem A consciência de qualquer ser social só se forma e adqu ire ex is-
mortas e desconhecidas, o objeti vismo abstrato corta a língua da cor- tênc ia através das múltiplas relações que ele estabelece, no mundo,
rente da comunicação verbal. Essa corrente avança sempre para a fren- com o o utro. Ela é, portanto, social por natureza, e não porque seria
te, de maneira contínu a, ao passo que a língua, tal qual um balão, lI influenciada" por um "meio social", um "ambiente social" (con~

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES CONCLUSÕES

cepção de um social periféricoY+, A "consciênc ia interior" só tem indivíduo estejam numa casa e que não possam "estar em nenhuma
rea lidade porque é a consciência de um ser em relação e, principal- outra"30. A preocupação com coerência e exaustão que implica, para
mente, de um ser que tem uma atividade lingüíst ica determinada. ser concretizada, técnicas intelectuais especiais, como formulários,
O homem é social de parte a parte, do princípio e por constituição: regras, instruções ou procedimentos automatizados, é a linguagem pró~
porque é um ser em relação e um ser com linguagem H . pria do taxionomista. Do ponto de vista de uma sociologia do conhe-
Mas a intersubjetividade ou a interdependência não é a inte- cimento, podemos considerar que essas técnicas intelectuais são os
ração de indivíduos isolados, sendo cada um o "centro autônomo padrões lingüísticos (os óculos) a partir dos quais os estatísticos - e
de uma experiênc ia do mundo"ló, ou a "fonte" e o "proprietário qualquer um que utilize estatísticas - aprendem a olhar o mundo.
privado do sent ido". Não signifi ca adição, agregação ou mesmo Operando essa volta reflexiva, tomamos consciência do fato de
interação de inúmeros espetácu los individuais isolados. E é ver- que a linguagem estatística das variáveis transforma tudo o que
dade que rodas as metáforas que podem ser utilizadas para evocar mede segundo sua própria lógica". Transforma, assim, múltiplas
a interdependênc ia dos seres soc iais cont inuam sempre impoten~ situações sociais que têm suas lógicas próprias (endógenas ou indí-
tes para criar a imagem de seres sociais const ituídos na e pela genas) segundo a lógica do quantificável e do mensurável, e a par-
interdependência. Se tomamos, por exemp lo, a imagem das bolas tir de c ritérios o u de variáveis que tentam objetivar essas situações:
de bilhar, que interagem umas com as outras, daremos a impres- categoria socioprofissional, nível de diplomação, idade, sexo, etc. ".
são de que cada indivíduo já está constituído antes ou fora de sua Esses crité rios ten tam constituir indicadores o mais pertinentes
interação com outros indivíduos. A imagem da bola de bilhar, obje- possível das cond ições sociais de ex istência dos indivíduos, e o
to isolado que entra em relação física com outras bolas no âmb i- sociólogo pode, então, constru ir, graças às suas medidas, espécies
to de um jogo, não possibilita que se apreenda a idé ia de uma sub- de mapas que tornem visíveis desvios, diferenças entre grupos, cate-
jetividade constituída na intersubj etiv idade. gorias, classes ... Pode, portanto, dotar-se de fotografias, tiradas de
Cada ser soc ial particu lar não ape nas se forma enquanto tal nas ângu los sempre particulares, daquilo que freqüentemente se chama
múltiplas relações de interdependência que estabelece com o mundo de estruturas objetivas do mundo socia l. Com efeito, essas estrutu-
e com o outro desde o seu nascimento, como também nas relações ras objetivas são "cientificamente apreendidas como probabilida-
que mantém com outros homens, "passam pelas coisas"21 , isto é, pelos des"". Da mesma forma, aquilo a que se dá o nome de cond ições
produtos objetivados das formas de relações sociais passadas ou pre- objetivas é construído pelas ciências sociais "através das regulari-
sentes (máquinas, ferramentas, arqu iteturas, obras ... ). A intersub- dades estatísticas, como probabilidades objetivamente relacionadas
jetividade também não é, portanto, sinônimo de interação entre ato~ a um grupo o u a uma classe" '4.
res nus e despojados. O sociólogo pode, então, indagar sobre a relação entre as medi-
das objetivantes das estatísticas (as estruturas objetivas) e as estru-
Das estruturas objetivas às estruturas mentais turas mentais dos seres sociais que ele pode tentar, mais ou menos,
reconstruir sempre através das mesmas pesquisas li , Para reintegrar
A visão estat ística é uma maneira muito particular de ver o uma parte da realidade social (as estru turas mentais), o sociólogo
mundd5 . Por exemp lo, os estatísticos "são submetidos a coerções objetivista e realista terá tendência a proceder, implicitamente, da
específicas como a de produzir uma representação homogênea (por- seguinte maneira:
que quantificável) e exaustiva do mundo social"" . O emprego de - pela objetivação estatística ignora sobretudo de forma volun -
nomenclaturas ou de quadros implica também que um objeto ou um tária as modal idades das práticas, assim como as estruturas men-

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES CONCLUSÕES

tais dos seres socia is, para construir regularidades mensuráveis (fre# tituído como "momento necessário da ruptura com a experiência
qüentemente produtos objetivados ou institucionalizados, e às primeira e da construção das relações objetivas""o, momento ou pri#
vezes até quantificados, das formas de vida social: nível de sa"írio, meiro tempo insuficiente em si mesmo, que tem de ser completa#
dip loma, idade, propriedades" .. . ) que ele pode chamar de estrutu- do com a consideração das "representações primeiras" que fazem parte
ras objetivasi da "definição completa do objeto"'I . Para essa formu lação do pro-
- esquecendo que está diante de uma construção, considera suas blema, o autor conserva, entretanto, os termos de "estruturas obje#
medidas como o real, a base que vai permiti r explicar as práticas tivas" e de "estruturas mentais" ou "cognitivas"1!.
socia isi No âmbito de uma teoria do conhecimento, o autor postula que
- quando retoma as estruturas mentais dos seres sociais (que lias estruturas cognit ivas que os agentes sociais empregam para conhe#
eliminara, no início, pelos seus autos de reconstrução), coloca#as cer praticamente o mundo social são estmturas sociais incorporadas"i l .
em pos ição de ex terioridade em face das "estruturas objetivas, tor- Temos, pois, incorporação, inscrição, interiorizaÇélo das estruturas obje#
nando-as um reflexo (mais ou menos deformante) ou um acrésci- tivas. Há conversão, transfonnação, reprodução ou transfiguração das
mo, ao passo que é através delas, com elas, que os seres sociais se estruturas objetivas em formas ou sistemas de classificação; ou então
orientaram, interpretaram (perceberam) as situações que estavam ainda correspondência entre os dois termos da oposição.
vivendo, agiram, se organizaram, consumiram, produziram ... i Mas, caracterizando dessa maneira a relação entre exteriorida~
- confronta, então, sem o saber, duas espécies de estruturas men# de, como sistema de disposições, e estruturas objetivas, damos a
tais ou cognitivas particulares: aquelas com as quais os seres sociais impressão de que as estruturas objetivas - que são indissociáveis
tecem suas relações sociais e apreendem o mundo social, e aquelas do traba lho de construção do sociólogo - existem independen-
por meio das quais o sociólogo-estatístico compreende a realidade social. temente ou fora de quaisquer formas de classificação e "antes"
delas, uma vez que se reproduzem, se transformam, se convertem
o "interior" e o "exterior" ou se transfiguram. O ra, trata,se, neste caso, de duas apreensões
d ife rentes da mesma realidade social. As propriedades, os capitais ...
A dependênc ia natural t!u indivíduo t!'1Il rda· são os índ ices que o sociólogo retém para construir, por exemplo,
çJ() fiOS o utros, a miclltitç:io nntuml das flU1ÇÕCS um espaço objetivo das posições num campo ou uma condição obje-
p~i4\Jicas em direção :) rclaç:10 com ns outros e
~ua <lda)ltaçfio a c!>sa relação. SUIl rnalcabilid(i o
tiva de ex istência, mas essas propriedades o u capita is s6 ex istem
(h: no [ulIbito ut!':.sa relação !>tio fenô menos q ue em relações sociais de interdependência, encarnadas o u mobiliza-
não const:guirf.uno:. t!'xpli(ar com a ajuda de das por seres socia is concretos que, eles próprios, se constituíram
C~4ul..'nl,l~ conc reto:.. dt' n oçÜt.'~ t'~pac"\I~ como
através dessas formas de relações. Não é, então, espantoso consra#
"imerior" Ou "(' lui:ri \lr", A ,..,r.t..,.,. del.c. t'Xtgt'
vereJ:-.dcimmellle Out f( I,~ tn,lrul ,tl..'n llh de lX'n~ tar lima correspondência entre o espaço ou a estrutura das posi#
sarnento C ollrm v is:)o de h:t<;c ". ções sociais (construído pelo sociólogo a partir do volume global
e da estrutura do capital possuído) e o espaço ou a estrutura das
Entretanto, todas as sociologias não procedem de semelhante opiniões, preferências, posicionamentos ... dos seres socia is.
forma . Pelo conceito de exterioridade concebido como um "dos con- Se consideramos que os seres soc iais se constituem - cons#
ceitos intermediár ios mediadores entre o subjetivo e o objetivo" 111 , troem suas estruturas mentais ou cogn itivas - de forma contínua
Pierre Bourdieu pretende conceber "a dialét ica das estruturas obje- através de suas relações de interdependência, livramo-nos, então,
tivas e das estruturas incorporadas"'9. O objetivismo é, então, cons# da oposição entre ator e estrutura e, com isso, não é tão necessário

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARE S CONCLUSÕES

d izer que "a ord em social se inscreve progressivamente nos cérebros", C. Munlandon , L'écu!e dllm la vil' d....~ fanul!es, 1991.
q ue "há correspondênc ia entre as divisões reais e os princípios prá- Os prnfessorcs também l'xperime nt~lm reações de de~pre:o por p.ute dos pa is de cla~scs
t icos de divisão, entre as estruturas sociais e as estruturas menta is", Ill;lis altas, mUltas vezes pmtadort::~ de dIploma.:. l' de salá rios mais e le,·ados.

o u enfat iza r a re lação entre "o mundo real e o mundo pensado"" , O que formulam os s6 te m se ntidu ~c accium llos " hipÓlt::~C l-I!gundu a qua l o que é
o u dizer que (Ias estruturas o bjetivas da o rdem escolar" se transfor- doi ordem Jo cognitivo é re laflvamcnrc llldcpc ndenlt:: do que é d a o rdem do echos, e
mam, pela interiorização, "em fo rmas escolares de classificação"is. que é possfvclmsc rir as crianças do~ I1ld us popul.ue::. na cu\lum escri ta esco lar, sem
necessariamente visar a uma convt:r~üo, mais ,umlfl utópica. d o conjun to dos h á h i-
Se as estruturas mentais de um ser social se constituem através das toS de vida popula res.
formas de re lações sociais e as estruturas objetivas são uma "medi-
R. Hoggan, 33 NetIJpart SlrecI ... p. 193-4.
da" particular dessa realidade intersubjetiva, desse tecido de inter-
dependências soc ia is<fó, compreenderemos rea lmente, então, que C f. V. Cicourcl , ·'Dcvelopmcnw l and adult aspects ufhal1Ltu~", 1989 , c "Some hasic rhco-
ret icnl issues .. .", 1974.
não se trata de duas realidades diferentes, sendo uma (as estruturas
mentais) o produto da interio rização da outra (as estruturas obje- Cf. a pu~içJo Jc PICHe Bou rdie u sohre :l noçfio de campo q m· ~lll"lÕ<: "um" rllprur.l com

a fl'prCScnwçi"io re;l lisla q ue leva 1"1 recluç:"io do efdLO d o meio ao cfe ihl J;l ação direta
tivas ), mas duas apreensões de uma mesma real idade.
4ue se efetua muna interação", LeÇOI1 sur la leçon, 1982<1, p. 42.
Assim como a expressão "a língua como sistema de signos é trans-
6 A lgumas pcsquba~ t::~liItf~t ic"s venficnm, aliás, (I f:lto de q ue um a lto nfvel de <.h plu lII.1
mi t ida" é apenas uma imagem (que pode revelar-se incômoda), pois
o u uma pu~ição (,lvuráve l d,!s pa is nfio têm, automaticamentt::, de itu de :.odallwçãu p<lr,
todo ser social não aprende uma "língua"~7 , mas entra progressivamen- ticu lar. S abt:mos, por exemplo, que o número de ju\'e ns que gustam do.:: lt:r c c ujos pais
te nos intercâmbios sociais de linguagem (trocas lingüísticas, intera- sJoexecutivus {ou 1....1ssue1l1 diploma de 2 v grau}, m,l~ peq uenos leih)fcs, é menor do q ue
çôes verba is ... ), podemos considerar que a expressão "as estruturas o n úmero de jnvens C UJOS pais s~o opcnínos ou emprcgadm. (e n<io têm d irlo m:l de 2°
gr:lu) , mas grandes le iTOres: "O g01,to pela ld LUra te m mais o p\1fI unidades de smglr num
sociais se incorporam" é , de fato, uma metáfora. As estruturas men- jove m q ue pt.)s"'iua a carla "pai le ito r" do q ue aquele que tem em mãos uma carla "pai
tais, cognitivas de indivíduos, são elaboradas socialmente dentro de dlploiU:ldo" ( F. de Singly, "Savoir h~rHt'r...", 1993).
fo rmas de relações sociais específicas e através de práticas de lingua-
~ R. Jakobson, Essais de./illgHislique génémk .. , e espeda lm\:!n tc li capít ulo XI, "LingUls-
ge m específicas: di zer isso constitui o único me io de não ton1ar o pro- tique ef poét ique", p. 209-48.
cesso de "interiorização da exterio ridade", de "incof1XJração das estru -
10 C f. l~ "prUCe1>MlS de escor:lmento" Je~critO~ l-Xl r J. S. Bnmer 11 pmp6si lCl d:"ls "inrer:lçõc~
turas objetivas" ou de "inscrição das estruturas socia is dos cérebros" ... de tutela" e m Le dé"t1dn{l{lCmellt de I'mfanl ..
algo misterioso e que não pode ser analisado em si mesmo.
II "N unca ser.í demal ~ rt'petir q ue ne nhu1I1 'gOSto pela leitura' poJe ~mgl r d e um cont ;lto
simplesmente Illml!ria l com obje tos- li vros", escrevem A.,M. C h<lrti cr, C. Cles.sc e J.
Héhra rd, Urc,Écrire ... , [l . 9 1.

t2 R ic ha rJ Ho~art conta llue, q uanJo voh:wa di) colégio, rclat;l\'<I SU.I expenê nci'l )la"l
NOTAS a avó parerna, C "t{,Ja~ a .. n,11L('s volt :wa p:1r:l. conversar Sllbrc os ,KonLccimcntll::> ~h) di,\
com minha avó" (33 Newporl Srreer ...• p . 128).
É prcc l~u acrescenl:tr que, sc no:.:." pcsqllis,l tem como ohjc tn a., tll~n,incl:1s e <I::.
II B. L'lhire , Cl4 lum~ écrue c r inégalirés S<"oltures .. , p . 5 3- 5.
c 01"u n .inc Í<L~ e ntre sncializaçJo e~colar e ~()cializaçãu f. lI11illar, acentuando as espe-
c i fi c id.ld~ ~ , as pressõc~ prôpri<\~ da~ configurações f"m illares, a e~t:O l a também part i, 14 B. L.lh irc , Ln raisml des p lll.\ faibles .. i " La div i~ ion :.exuellc dll rmva il d'écri tllrc ..
cipa, ~em dll viJa , da proJ uçJu de al~u n s m a l -e nt c ndi do~ prcjl1dicin i ~~' esco lariJadc
das cri anç;ls {cf u ca.:.o do "horário dc e:.tudo livre", quc lnuitus paIs pcns.I1l\ , pur causa 15 I)a mcsm,l fu nna q ue .\~ lnte rprel:Jçi1cs socioI6'::: 1C;\~ I''j clã:.:.IC:IS q ue têm como obje to ns
de ~ U<1 conflllnça ceg<l na escola, q ue ~eFl uma gdrantl:l dI! tarefa::. conlro ladas, u rien- desigualdades ~ociais diante da escold nunca evocaram a n.llllTez,.'l escrit a dos conheci,
tada~ e c(lfn~ iJ:l :' p ~l r pessoa.~ muito mais cumpeten tes do que dcs, (l q ue o~ leva a lllc ntns e1>C.úla re~, nenhuma d:ls tcse!>defcndida.:. hoje t:m relação ao "melhor êxito" e~Ü'
niio IlUUS \'e rificm, t:!l·S pró pri\)s, o traha lho cscolar dos filhos. lolT das menin:l~ na escola primária (e.:.pedalrncnte nus mei os popu la res) considem a~

154 355
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES CONCLUSÕES

dlferc nça~de pr.\tk\L-;tb escri l:l cnnfurme o~exo. Cf. B. L:lhi re. "Llnt:<,,:a[e 'réll~.'>1te sci~b ire' o lrab<"l lho de Je:m P!.lget dUT:lI\[c I1lll1 tü tcmr'l(l COlll>t ltl1 lU.1 refen::nc ltl p<1lCológica lmJ' lí~
Jes g:m;:on:. el Je~ fi lies ....., I993c; ve r t,lIubém D. Fnhre. Écmures un:lillaires , 1993. cll a mab ltllpOrl :m le d e I\Ullle rOSm M"lCIÓlllgm, é U tr.t halh ll d e Vyglltski que é 11I,lls
compat ível Cllm nossa co ncepç5ü d e soc iolog ia. Cf. , lleSl'oa pel'lopeCtiv,l, J. S. Bnmer.
16 G. Lcv i, "u:s ustlgcs de la hio~rap h 1t:!" , p. 1331. Le dét'doppcmcm d... l' cn[nnL. " a% im corno M. De le<1 ll , LI!.~ origines .wcial ...\ du Jévdop-
1'' 1111'111 mc1Ulil .... 1990.
11 Além desS(!s elemen tos cOnl rad itôrl W>. podemos de:ilacar u:. "efe it ü:o amhíguos" de algu-
mas car,1Cler ístk <1~ ou sua ", mh ivnléncia. Q uando se é tCnlndo espont,me,IIl1ente n fa :cr J. S. Bruner, Le dét1elopp.!m1!m de I'enfam ... , p. 285: "GosI.ui,unos de sugerir que <I lin -
um oalr11l~~(I da' características cscolarllll:nte po:. it ivas e negativas, pe rcebemos mpkb- guagem 11:10 é um instrumen to comu m. mas um in ~ t rllmem o que l!ntr,l n n própr ia orga-
mente q ue n l1 proced imt:nto é ingl!nuo: investimentos J o ponto dl! v ist:ll's,,:u!;lr em um m:<lçãn do pensamento c da~ relaçõcs sociais. Pcxle-$c pe rceber que es'\C ponto de VISW
determinado número de ca:.u:. ou para detcrmmaJ.~ Jlluemiíes das pfát i c a.~ e:.col,m.:s, se upõe .) im,l~e m p i.tgctl.ma da linguagcm cumo 1>il'o[cma 'pregu içOsO' q ue npc nas rel a-
,llgu1llob ' :l!;iCl e ri<;lic<l:. (di~pu:.içôc~ . oric n raçt1es .. f,lI11 iliã rclo) po d em CO ll~ lltulr. em 1.uia o pe n~ lI nento e seri'l "pcnas UIlI,' clol"ll.!c ie de sintomatnlogia Jc1c". Cf. também B.
(ll1 tra~ :.itW1ÇÕl.·S, 11l11ilaçl)Cl'o do ponto d e vist a de uma "Ix,,, c~ ularidade". O exame d.l Lalure. "Soc iolugie dc~ pnH1que$ d 't:Cnl Url· ..
realitbJe n em semprc possibi lil :l l>ep:mu claramente as características fmudiares "favo-
d\'eis" à eocolarkbdc dll crinnç:l J:l:\ "des favo rá\'ei~" a essa el'oc()larid.lde. lIla~ m OHr:l, M. Bakhtine, Li' [relullsmc, 19t:10, p. ZO I.
antes, a amll1\'i1lêI\Lla de- ccrt,IS prntical'ol'olx iallZ<ld oms do f'Onll)Je "'ista d m efcitul'o esco-
lares (Perfis 18 e 19). É o caso, por exempl\!. dtt ,llgullS exemp los par,ld(lx,li~ de supc- 11 M. Merleau-Ponty, Les at,... ntuTes de la dlllkcriqlle, J 977, p. 51.
rinvcSl imento cscl)lnr com cmmças e m gr:lIldc d ificuldade escolar. Se não examina r-
11l0S de pertil. CS$.,'lS s il'uaçilt.~sd: l r;jo idé ia de llmn "lllt)hil izaçJu (,lmi linr posiriv:l·· . Quand u B. Llhire , "Funn es ~llLÍ, d e~ et 1>lrut.:tures Ilhjcct ivel'o ... ".
tlx las as açõcs de actlmp;l nh,ll11cntu se c()nCCI1 Ir:l m no lerre no estritamente c~(lla r d .ls
A. Desrú:>iêre1>, A. Goy e L Th~venut, "L'idemité loOC i,lle d ,m~ le m!\',lil :.tatbtique ..
I , lref.l~, sem ljUC a configur:.1Ç:il) ... lu conJ untu das I'rática~ f.uniliarcs se moJifique - lX:I
atm de "boa vuntad e escolar" sãll como quc uma il h ot a 1~() l aJ.l no conj l1nto das pr;'it i- 1983. p. 60.
c as fnmiliarcs-, eS~,~ açôcs coercit ivas (vigi lfincia, acomprm hame nto, cunt ro le , Ch"111-
10 A. Desro..~ i Cres 1.' L. ThévCIllH. " Les m\)ts 1.'1 lcs dllffrc.~ ,,",1979, p. 54.
wgcm, punição. tapas) <1Ument:lI11 os tl)rmcntus t'M.:olares da c riança. nJuchegandu, entãú,
a aflnglr o ohjeti vo dete n ninado ( Perfil 20). li M. de CcrtC;J U, l'uwenuon dll ql/oudi1!n, p. 20.
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Na história, ludos us cOlltiic<ld o rc~ CIlCOlHr;mllll o me~mo tipo de problt.:ma: o da detcr-
minaçiio de cri t':rios "lJ hjcllvtl~" que po~ sib d it a ~sc lll c1i1~l> ificar ~ itllaçt!es , peSl'oo:Js 111 1
M. B:lk htine, ,\olarxismc cr philmnprne dll Icmgag ... ..• 1977, p. 117. Grilos du autor.
uhje tolo par,l púr u m fim e m tuda~ ..~ (()rlll a~ de "su hje ti v ism.)'·. consiJerml<l1> ".Irhi.
trá rias". O <;1)Clólogo ohjetlV lsta q ue Inv()Ca a desconfianç a contra a, " repre<;elllaçi'les
lO N. Êl ia~. Qu'est-ce qlle la .ç/JCinlngil!!. p. 134.
suhjetlvas" , as "pré-noções", etc. real1va, portanto. os mesmos raciocín ios que os inven-
tados na história pelus l cg i ~hldu res e aJ Ulini ~tr<ld u rcs d e q ua lq uer tipu. FOI ncces~á­
" L. WltIgenstc in, TraCtlllus 1/JJ,rjc/J ·I)hiln.~ophicus . . , 1986, p. 130. G riios do aUlor.
ri u principa lmente um enorme tmbalhu d e cunstrução de ttqu iv,liê n cil1s, no terri tú-
!! A noção de loCr loUC ial é indisSOCi;'iwl das nuçõc~ de confiRmação. de interdependência, ri u IlôtciUn,ll. para que med itb s e~t;Jtí~tlC <1S - a partir dl' nomc n c latur,ls u ti li~,í VCLl>
Je forma de rd,lçãu loUCial, c[c., e s6 é u t illz,ívd pdo MX:lólogo (.L~s lm como as noçõc:. de em qu.liq ue r lugar - pudc-.:.e m scr pcm, .da~: d ifu:.ã1J d,l língua fr;Ull.c:.a" dCl>truiç:io
agent e, de alilr, de lIldi\'fduo. d e SUJe it o, de pe~sU<I ... ) e m m Olllem{)~ lim ll;ld0S. circuns- d o~ d i a1L·to~, uniformi zaçiin da rl!dc e~co l.lr. :.c rviçu m dil fl r "hr ig;l\ório. codi(;clçôel>
cr itus de rcllex(in Icôric;. ou ep btelllológicn. n(),~ qu,ll~:.e a'e ira lempnra rhullc nte dl'ixa r jll rfd icns d iver.':ls. divb;io aclministr.1ti\':l J o terri ró rio em deparrnlll e ntn~ , sistema mé tri -
pendente a ql l e~ I':'io ~l os O)!ltextlX:l .'>Ócio-hisrô ricos hempre parricubre:.) l·~ltldados. co comum, unlficaçào dos peS\lS e meJllbs. erc. Cf. A. DesroSlI;res. Lll pollllql/o! dt:.ç
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freq['u:! ntemenre, um conct.:itu q uc - como n d e indi víduu - fixa" hnmclll 11.1 forma
de 11m adulto independe nte , ~()I! t.\ r io, ~i t uado fora de q ualq uer rede rebclOn •• l,.'>Ctn que P. Bou r~he u . L> seus Imuu/III.'. p. 90. EXlstcm ttmprego~ m,H~ reah~ ta:. - ... me nus l ic lllí-
janl.1 i:. l enhd Mdo crian ça e ~em llue )<lIuais se tenha tUTn,ldo adulto r'. f. cos - du~ 1ttn no:. "e~trl1 tur:.1 ~OC i ,I I ", "e:.(rut llr.1 o h,ct 1\,,1", "e:.lnlt l1f,1 J,IS rdaç':k~ ent re
d, ll>~l'~" ... q ue de ix:ull int c immentc :.hert fl a qucsl:io d o modo de ace .........., melOllológlco
Lev Se me nuvitch V~'got~k l e Norhert Êli::ls - n p rimeiru, p~icô l{)go: o ~er.:u lldú. ~ociú­
" logn - crltlcaram cssa concepção , mu~tran d o a'\S im qut.: a revbJo da opo~içilo inlh-
a e~~ as "l!~ 1 nnunJS". Q uando evoca , na llleSllln ohra. as "eStTlllUr:lS o hjeTlvas" como "pro-
dums da história coleriva" (I'. 96) ou como "p r(lJuro~ oojcti \'ados" (p. 88), P. Bourdiell
v íduo/<.OCic•..l.lde impl ica trnnSf'lrnMçõcs mllo rcl,lçõcs ent re p~ icolog i a e :.oc iolugia. Como e1>tá ado t:1nJo uma Imgu,lgem mais realista e me nos cOllvcnciutldl.

356 357
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

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':)ujclto:.' pod eriam eX\:)l lr :;cm 'objeto..,'. !.s.""1 leva (\5 ho me ns a se pCl"J::l1nr,\ rem qual dos dOl~
é a Call.."l c qua l é () c{elto".

1(, É p recl'>O colocar n I"lI,)...., ihdid .ldc d e ~ (azer um Imhalhu UhJCIIVI~W em Clênci m; wdal~
I':tm lclamenlc com os prlxcssos !>Ócio-históricrn. de ohjcli v.u;-ão, de cut!i fic'lçJ o (mUt.'l..la, ARIÉS , P. 1973. L'en!ant et la vie familiale sous l' Ancien Régime. Pari s, Seui!.
Ji plo mas nfic blmcnle recnn hccidos, d;ltas de Il ascimcnro~ rcg l ~ 1r ad,l ~ q ue pcrmit,ulI a
m cdid,1 ubje t iva da idade ... ), eles r róp ri m in dissoci:ivci:-. <!l. {üf1lms de exercícÍlI do
3 16 p. (Poin ts. )
r~.Jde r e dt! mo dus de gel>t50 das roPUh:u,:ClCS. Com isso, po d em O-" dizer que o s()c i l~ l ogo
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