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sÆculum

REVISTA DE HISTÓRIA

N° 33 - Jul./Dez. 2015
ISSN 0104-8929
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
Reitora: Margareth de Fátima Formiga Melo Diniz
Vice-Reitor: Eduardo Ramalho Rabenhorst

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA


Pró-Reitor: Isac Almeida de Medeiros

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES


Diretora: Mônica Nóbrega
Vice Diretor: Rodrigo Freire de Carvalho e Silva

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
Chefe: Monique Guimarães Cittadino
Sub-Chefe: Mozart Vergetti de Menezes

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA


Coordenador: Elio Chaves Flores
Vice Coordenadora: Solange Pereira da Rocha

COMISSÃO EDITORIAL - SÆCULUM


Ângelo Emílio da Silva Pessoa
Ariane Norma de Menezes Sá
Carla Mary S. Oliveira (presidente)
Cláudia Engler Cury
Damião de Lima
Lúcio Flávio Sá Peixoto de Vasconcelos
Paulo Roberto de Azevedo Maia
Priscilla Gontijo Leite
Serioja Rodrigues Cordeiro Mariano
Tiago Bernardon de Oliveira
sÆculum
REVISTA DE HISTÓRIA

Departamento de História
Programa de Pós-Graduação em História
Universidade Federal da Paraíba
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
Campus Universitário - Conjunto Humanístico - Bloco V
Castelo Branco - João Pessoa - Paraíba - CEP 58.051-970 - Brasil
Fone/ Fax: +55 (83) 3216-7915 - E-Mail: <saeculum@cchla.ufpb.br>
Sítio Eletrônico: <http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/srh>
Copyright © 1995-2015 - DH/ PPGH/ UFPB
ISSN 0104-8929
e-ISSN 2317-6725

Capa e Projeto Gráfico: Carla Mary S. Oliveira.

Ilustração das Vinhetas: Albretch Dürer, “Moça Lendo” (detalhe), 1501;


desenho a grafite e nanquim castanho sobre papel; 16,1 x 18,2 cm;
Boymans-van Beuningen Museum, Rotterdam, Holanda.

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

É proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio.


A violação dos direitos autorais (Lei nº 9.610/1998) é crime estabelecido no artigo 184 do Código Penal.

Indexada no Latindex (UNAM - México)


e no DOAJ - Directory of Open Access Journals (Lund University - Suécia)

Periódico avaliado como QUALIS B1 na área de História pela Capes

CONSELHO EDITORIAL
Alberto da Silva (Univ. Sorbonne - Paris IV) José Miguel Arias Neto (UEL)
Alômia Abrantes Silva (UEPB) Lina Maria Brandão de Aras (UFBA)
André Cabral Honor (UnB) Luiz Geraldo Silva (UFPR)
Antonio Clarindo Barbosa de Souza (UFCG) Maria de Deus Beites Manso (Univ. Évora)
Antônio Paulo Resende (UFPE) Pedro Paulo Funari (UNICAMP)
Carlos Fico (UFRJ) Peter Mainka (Univ. de Wüzburg)
Durval Muniz de Albuquerque Jr. (UFRN) Ricardo Pinto de Medeiros (UFPE)
Gabriel Aladrén (USP) Sílvia Regina Ferraz Petersen (UFRGS)
Gisafran Mota Jucá (UECE) Tania Bessone (UERJ)
Itacir Marques da Luz (SEC-PE) Thereza Baumann (MN-UFRJ)
Itamar Freitas (UnB) Valdemir Zamparoni (UFBA)
Jorge Ferreira (UFF)

MISSÃO DA REVISTA
Sæculum - Revista de História é publicada pelo Departamento de História da UFPB desde 1995 e,
a partir de 2004, passou a ser também o periódico do Programa de Pós-Graduação em História da
mesma universidade. Sua frequência é semestral, e se trata de uma revista voltada à divulgação e
debate de pesquisas no campo da História e da Cultura Histórica e suas diversas interfaces, abrindo
espaço para pesquisadores do Brasil e do exterior.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Biblioteca Central - Universidade Federal da Paraíba

S127 Sæculum - Revista de História, ano 20, n. 33 (2015).


- João Pessoa: Departamento de História/ Programa
de Pós-Graduação em História/ UFPB, jul./ dez. 2015.

ISSN 0104-8929

Semestral

417 p.

BC/UFPB CDU 93 (05)


ISSN 0104-8929 / eISSN 2317-6725
João Pessoa - PB, n. 33, jul./ dez. 2015

Sumário
Número Temático: “O Oitocentos”
Organizadora: Cláudia Engler Cury (UFPB)

Editorial .......................................................................................................... 9

FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL

Migrantes no Império do Brasil: a trajetória de Jean Bazet


nas origens da Vila de Nova Friburgo, 1820-1858 ...................................... 13
Rodrigo Marins Marretto (UFF)
Projetos e perspectivas na construção da nação brasileira (1822-1840) .... 31
Leonardo Bassoli Angelo (UFJF)
Entre a Igreja e o Império: Dom Marcos Antonio de Sousa,
o primeiro bispo do Brasil independente .................................................. 49
Joelma Santos da Silva (UFMA)
O herói da Confederação do Equador volta do exílio:
Manoel de Carvalho Paes de Andrade e as lutas políticas regenciais
(Pernambuco, 1831-1835) ........................................................................ 71
Manoel Nunes Cavalcanti Jr. (IFBA)
Os Guaranis nas precariedades da guerra: o impacto do recrutamento
nas Missões Orientais (Rio Grande de São Pedro,
primeira metade do século XIX) ............................................................... 93
Max Roberto Pereira Ribeiro (UNISINOS)

UNIVERSO PRISIONAL, FORÇAS POLICIAIS E GUERRA DO PARAGUAI

Prisões no Brasil oitocentista: rotinas e vivências


na Casa de Detenção do Recife na década de 1860 ................................... 115
Flavio de Sá Cavalcanti de Albuquerque Neto (IFPE)
Robson Pedrosa Costa (IFPE)
A Guarda Cívica do Recife: a utopia de uma força policial guiada pela
cortesia nas décadas finais do Brasil Império (1876-1889) ..................... 129
Wellington Barbosa Silva (UFRPE)
Dramas do Império chegam à República: a luta dos veteranos da
“Guerra do Paraguai” pelos direitos socioeconômicos prometidos
durante esse conflito, Ceará (1870-1940) ................................................. 145
Maria Regina Souza (UECE)
UNIVERSO DA POBREZA, TRABALHO LIVRE, LIBERDADE, EX-ESCRAVOS,
ESCRAVOS E SENHORES

Sertão proletário: o universo da pobreza e os limites


da ordem no Ceará oitocentista .......................................................... 163
Tyrone Apollo Pontes Candido (UECE)

População, compadrio e trajetórias de gente negra


na Cidade da Paraíba oitocentista .......................................................... 183
Solange Pereira da Rocha (UFPB)

“Carregando as pedras do pecado”:


a reforma católica devocional em Sergipe oitocentista ............................. 201
Magno Francisco de Jesus Santos (Fac. Pio X – SE)

Uma riqueza nas matas meridionais: a extração da erva-mate


no século XIX na província do Rio Grande do Sul ....................................... 225
Cristiano Luís Christillino (UEPB)

Escravos e ex-escravos na pecuária: a centralidade da escravidão na


economia rural (Rio Grande do Sul, segunda metade do século XIX) ......... 243
Carina Martiny (UFRGS)

As redes de relacionamentos e o espaço de atuação dos proprietários


de escravos no Império do Brasil: Bananal, 1850-1888 .......................... 259
Marco Aurélio dos Santos (USP)

Litigando pela liberdade no Brasil oitocentista: relações escravistas em


um contexto fronteiriço (Alegrete, província do Rio Grande do Sul) ............ 281
Marcelo Santos Matheus (UFRJ)

VIAJANTES

Entre a medicina, a política e a poesia: a trajetória do Dr. Antonio da Cruz


Cordeiro na Província da Paraíba na segunda metade do Oitocentos ....... 299
Serioja Rodrigues C. Mariano (UFPB)

Relatos de um explorador inglês: uma perspectiva da viagem de


Francis Galton pelo Sudoeste da África (1850-1852) ........................... 319
Fabiana Lopes da Cunha (UNESP)
Leonardo Dallacqua de Carvalho (FIOCRUZ)

ESCRITA DA HISTÓRIA

A escrita da História no Brasil oitocentista:


o lugar da província do Ceará ................................................................... 339
Leandro Maciel Silva (UFSC)
O ensino de história na escola de primeiras letras na Paraíba:
pátria nacional e pátria local (1837 a 1914) ................................................ 357
Antonio Carlos Ferreira Pinheiro

A História contra a Revolução:


Edmund Burke e a crítica aos Direitos Naturais ....................................... 375
Paulo Henrique Paschoeto Cassimiro (UERJ)

Os intelectuais: questões históricas e historiográficas


– uma discussão teórica .............................................................................. 395
Rubens Arantes Correa (UEMG)

RESENHA

Por gerações sãs e fortes: nos rastros de um modelo hígido


de educação escolar primária na Parahyba do Norte ................................. 402
Wilson José Félix Xavier (UFPB)
Editorial

O ano de 2015 tem sabor especial para a revista Sæculum, porque estamos
justamente completando 20 anos de nosso periódico, cuja história foi permeada
por percalços e muitas alegrias. A principal delas deve-se ao esforço coletivo de
professores do Departamento de História da Universidade Federal da Paraíba e
dos professores vinculados ao Programa de Pós-Graduação História que também
completa dez anos de existência.
Em meio a um clima de comemorações escolhemos uma nova organização
editorial para a revista, em números temáticos que se alternarão com edições
de artigos livres. Para a presente edição, o número temático tem por mote os
Oitocentos, com o objetivo dar visibilidade aos esforços empreendidos pelos grupos
de pesquisa Sociedade e Cultura no Nordeste e História da Educação no Nordeste
Oitocentista, ambos alocados no PPGH da UFPB, assim como estimular o diálogo
com os pesquisadores dedicados a esse período histórico em outros centros de
pesquisa.
Apresentamos aos leitores os textos que foram aqui reunidos a partir de alguns
subtemas, o primeiro deles discute questões relativas à formação do Estado
Nacional, com cinco artigos: “Migrantes no Império do Brasil: a trajetória de Jean
Bazet nas origens da Vila de Nova Friburgo, 1820-1858”; “Projetos e perspectivas
na construção da nação brasileira (1822-1840)”; “Entre a Igreja e o Império: Dom
Marcos Antonio de Sousa, o primeiro bispo do Brasil independente”; “O herói da
Confederação do Equador volta do exílio: Manoel de Carvalho Paes de Andrade
e as lutas políticas regenciais (Pernambuco, 1831-1835)”; “Os Guaranis nas
precariedades da guerra: o impacto do recrutamento nas Missões Orientais (Rio
Grande de São Pedro, primeira metade do século XIX)”.
O segundo subtema relaciona-se ao universo prisional, às forças policiais e
aos dilemas que envolveram a Guerra do Paraguai e orienta os seguintes textos:
“Prisões no Brasil oitocentista: rotinas e vivências na Casa de Detenção do Recife
na década de 1860”; “A Guarda Cívica do Recife: a utopia de uma força policial
guiada pela cortesia nas décadas finais do Brasil Império (1876-1889)”; “Dramas
do Império chegam à República: a luta dos veteranos da “Guerra do Paraguai’’
pelos direitos socioeconômicos prometidos durante esse conflito – Ceará (1870-
1940)”.
Agrupados em torno do terceiro subtema estão sete textos relativos ao universo
da pobreza, da exploração do trabalho livre, das relações econômicas e de liberdade
envolvendo escravos, ex-escravos e senhores de escravos assim dispostos: “Sertão
proletário: o universo da pobreza e os limites da ordem no Ceará oitocentista”;
“População, compadrio e trajetórias de gente negra na Cidade da Paraíba
oitocentista”; “‘Carregando as pedras do pecado’: a reforma católica devocional
em Sergipe oitocentista”; “Uma riqueza nas matas meridionais: a extração da erva-
mate no século XIX na província do Rio Grande do Sul”; “Escravos e ex-escravos
na pecuária: a centralidade da escravidão na economia rural (Rio Grande do Sul,
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 9
segunda metade do século XIX)”; “As redes de relacionamentos e o espaço de
atuação dos proprietários de escravos no Império do Brasil: Bananal, 1850-1888”;
e “Litigando pela liberdade no Brasil oitocentista: relações escravistas em um
contexto fronteiriço (Alegrete, província do Rio Grande do Sul)”.
Em seguida é contemplado o subtema dos viajantes, com dois textos: “Entre
a medicina, a política e a poesia: a trajetória do Dr. Antonio da Cruz Cordeiro
na Província da Paraíba na segunda metade do Oitocentos” e “Relatos de um
explorador inglês: uma perspectiva da viagem de Francis Galton pelo Sudoeste da
África (1850-1852)”.
Por fim, compondo reflexões sobre a escrita da História, apresentam-se quatro
artigos: “A escrita da História no Brasil oitocentista: o lugar da província do Ceará”;
“O ensino de história na escola de primeiras letras na Paraíba: pátria nacional e
pátria local (1837 a 1914)”; “A História contra a Revolução: Edmund Burke e a
crítica aos Direitos Naturais”; e “Os intelectuais: questões históricas e historiográficas
– uma discussão teórica”.
Fechando o enredo aqui traçado, temos a resenha do livro de Nayana Rodrigues
Cordeiro Mariano, Educação pela Higiene – a invenção de um modelo hígido de
educação escolar primária na Parahyba do Norte (1849-1886), fruto de sua tese
de doutorado defendida junto à linha de pesquisa em História da Educação do
Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPB.
Dessa forma, esperamos que os leitores tirem proveito do número temático que
lhe entregamos e estabeleçam diálogo crítico com as perspectivas e abordagens
oferecidas pelos autores, no intuito de fomentar outros olhares e novas pesquisas
para/ sobre os Oitocentos.

A Comissão Editorial.

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10 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


nÚmero
temÁtico
“O Oitocentos”

Organizadora:
Cláudia Engler Cury (UFPB)
MIGRANTES NO IMPÉRIO DO BRASIL:
A TRAJETÓRIA DE JEAN BAZET NAS ORIGENS
DA VILA DE NOVA FRIBURGO, 1820-1858

Rodrigo Marins Marretto1

As origens de Cantagalo e Nova Friburgo

As origens da região que compreendia a Vila de São Pedro de Cantagalo e da


Vila de São João Batista de Nova Friburgo, capitania do Rio de Janeiro, estão
datadas de meados do século XVIII, por ocasião do pedido de Maurício Portugal a
Intendência Geral do Ouro. O objetivo de Maurício Portugal era abrir um garimpo
na região denominada “Sertões do Leste”. A autorização foi concedida, mas
rapidamente revogada. Por ordem do Vice-rei todos os garimpos foram fechados e
todas as fazendas localizadas na base da Serra do Mar foram destruídas.
Em fins do século XVIII, o bando de Manuel Henriques, o Mão de Luva2 –
aproveitando-se desta situação – invadiu a região a partir de Xopotó e fundou, com
determinada conivência do governador de Minas Gerais, o garimpo conhecido
como “Minas Novas do Cantagalo”. Mão de Luva tinha o objetivo de explorar
clandestinamente o ouro da região e o fez por quase cinco anos. Não foi o único a
ter garimpo naquelas áreas, dividindo a região com os interesses dos irmãos Lopes
e Miguel Muniz também possuíam minas.
Essas relações desenvolvidas em torno do ouro clandestino abriram a possibilidade
da formação do primeiro povoado da Região Centro-Norte Fluminense, São
Pedro de Cantagalo, que ganhou a status de Vila em 18143. Segundo Laura de
Melo e Souza, Mão de Luva era “um curioso bandido do tempo da mineração”
e também “assaltava comboios”.4 Nesta análise prefiro não considerar Mão de
1
Doutorando em História Social pela Universidade Federal Fluminense. E-Mail: <rmmarretto@
gmail.com>.
2
A respeito da alcunha “Mão de Luva” ver: MAYER, Jorge Miguel. “Mão de Luva: história e lenda”.
Revista Tessituras, Nova Friburgo, Faculdade Santa Dorotéia, n. 6, mai. 2015, p. 01-16. Disponível
em: <http://www.revistatessituras.com.br/>. A lenda afirma que Manoel Henriques era um fidalgo
português que se apaixonou por Maria, filha de D. João V. No entanto, ela já estava prometida e
teria beijado a mão de Manoel e lhe dado a luva para que não pudesse ser novamente beijado por
outra mulher. Depois disso Manoel teria sido acusado de traição e condenado ao degredo para o
Brasil. SOUZA, Laura de Mello e. Os desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII.
4. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2004. O relato mais consistente, no entanto, afirma que Mão de Luva
teria sido mutilado e usava na mão esquerda uma luva de ouro.
3
GARCIA, Romyr Conde. Nos descaminhos dos reais direitos: o contrabando entre as capitanias
do Rio de Janeiro e Minas Gerais (1770-1790). Dissertação(Mestrado em História Econômica).
Universidade de São Paulo. São Paulo, 1995, p. 62-75. Esta seção do texto de Romyr Gracia
promove um importante debate sobre os conceitos “bandido” e “banditismo”, a partir das ideias
elaboradas por Hobsbawm. As conclusões do autor apontam que Mão de Luva não se caracterizava
desta forma, ao contrário, em grande medida atuava legalmente. Romyr afirma que seu único crime
foi garimpar em terras proibidas e burlar o fisco.
4
SOUZA, Os desclassificados..., p. 279.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 13


Luva como o bandido que governava um povoamento, onde existiam, ao menos,
duzentas famílias. Desta forma, julgo a utilização do termo “semidesclassificado”
inapropriada ao personagem, pois Manuel Henriques era proprietário de mais de
uma dezena de escravos, o que denotava certo status.
Neste período, a região desenvolvia um espaço escravista, elemento que pode
ser atestado pelos dados de Acácio Dias Ferreira, em seu livro Terra de Cantagalo.
Nesta obra o autor apresenta alguns dados a respeito do volume populacional na
região: “Em 1798 [...] a sua população dobrou, atingindo a cifra de seiscentos
indivíduos, dos quais trezentos e sessenta eram escravos”5. Não tenho certeza
se Acácio compreendeu o significado desses números. Sem apresentar as fontes
de onde os colheu, o autor está afirmando que 60% dos indivíduos no arraial
de Cantagalo eram escravos. A informação, mesmo desacompanhada da fonte,
demonstra que os senhores ali radicados haviam construído um espaço escravista
desde meados do XVIII.
Manuel Henriques, elemento fundamental na montagem desse espaço escravista,
viu seu poder questionado e confrontado pela Coroa, tentou resistir e negociar,
mesmo assim, foi derrotado diante da força dos Dragões do Vice-Rei. Com o Mão
de Luva vencido, abriu-se caminho para a colonização e a Coroa decidiu controlar
a extração de ouro. Todavia, o ouro era ínfimo e veio a extinguir-se, como afirmou
Mawe ao visitar a região:

O governo, tornando-se senhor do território, imaginou


encontrar aí tanto ouro quanto ao se estabelecerem os
primeiros garimpeiros e publicou muitos regulamentos
injustos, oprimiu os nativos como jamais se vira, instalou
registros em vários pontos para impedir o contrabando,
e encheu toda a redondeza de guardas. Os numerosos
colonos, atraídos pela suposta riqueza do lugar, não
tardaram a verificar que o creme fora extraído pelos
contrabandistas.6

A administração, certa de que o valor da região estava na lavoura, passou a


doar sesmarias e por volta de 1809, a principal atividade da região passou a ser a
produção de alimentos.
Na lista dos primeiros povoadores de Cantagalo aparecem, em sua maioria,
indivíduos que migraram para a região tendo como ponto de partida a província
de Minas Gerais. Logo, o enraizamento e a experiência na província mineira
produziria também o aprofundamento dos interesses desses indivíduos pela região
recentemente ocupada. De qualquer maneira, ainda não se vê referência ao café,
que na década de 1820 expandiu-se transformando as paisagens da região. Assim,
pode-se concluir que o interesse e a presença de colonizadores mais antigos na
região são anteriores à chegada dos migrantes suíços e já eram marcados pelo
domínio de grandes extensões de terra e pelo trabalho escravo.
5
DIAS, Acácio Ferreira. Terra de Cantagalo. 2. ed. Cantagalo: s.r., 1979, p. 69.
6
Grifos nossos. MAWE, Jonh. Viagens ao interior do Brasil principalmente aos Distritos do Ouro e
dos Diamantes. Rio de Janeiro: Ed. Zelio Valverd, 1944, p. 128.

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Tal povoação data do final do século XVIII e início do XIX, tendo sido
engendrada, principalmente, por um fluxo migratório de senhores de escravos
advindos das Minas Gerais, o que nitidamente antecede as iniciativas e negociações
empreendidas por Nicolau Sebastião Gachet, agente da colonização suíça, para o
estabelecimento da uma colônia helvética no Brasil. Os colonos europeus serão
inseridos nesse contexto.
Ainda em princípios do século XIX, na conjuntura de doação de sesmarias,
visando acabar com os extravios do pouco ouro que restava, lançou-se um
empreendimento para povoar a região. Desta feita, vários indivíduos se aproveitaram
das terras minerais em favor do Estado. No entanto, constataram que as reservas
minerais realmente estavam exauridas e a terra era o bem a ser explorado. Durante
as concessões de sesmarias, duas chamam a atenção – a concedida a José Antônio
Ferreira Guimarães, que seria expropriada para o assentamento de alguns suíços e
a de Lourenço Correia Dias, chamada “Morro Queimado”7, que viria a constituir-
se no núcleo urbano da Vila de Nova Friburgo. Outros beneficiados com sesmarias
devem ser lembrados, como João Luiz Ribeiro, titular da sesmaria de São Simplício,
que futuramente daria origem a localidade de São José do Ribeirão, principal polo
de migração e de expansão do café da vila de Nova Friburgo. Antônio José Teixeira
Penna recebeu a sesmaria denominada Boa Vista e Manoel Vieira do Espírito Santo
obteve a sesmaria da Barra Alegre. Todos esses senhores merecem destaque, pois
suas sesmarias tornaram-se redutos de extrema importância para a produção de café
alguns anos depois. Além disso, constam os negócios desses senhores com terras e
escravos, adicionados ao papel que ambos desempenharam na administração da
vila após a colonização suíça. Vários desses primeiros sesmeiros da região, aliás,
ocuparam papéis administrativos de importância, o que ampliava suas redes de
poder. Para ilustrar, João Luiz Ribeiro, em 1822, substituiu Lourenço Correia Dias
na função de Juiz Ordinário da Vila de Nova Friburgo8.
Lourenço Correia Dias foi quem vendeu a sesmaria do Morro Queimado ao
Monsenhor Lourenço de Almeida e, posteriormente, esta foi obtida pelo Monsenhor
Pedro de Malheiros Miranda, inspetor dos assuntos relativos à colônia, em nome
dos interesses da Coroa e, ao mesmo tempo, dos plantadores escravistas na região.
Assim, a política joanina privilegiou os antigos colonizadores luso-brasileiros que
consolidaram os seus interesses na formação da Vila de Nova Friburgo e em áreas
adjacentes ao Rio de Janeiro.
Na época da negociação entre Monsenhor Miranda e Monsenhor Almeida, o
jornalista Hipólito da Costa denunciou o caso da compra da sesmaria do Morro
Queimado, vendida por vinte vezes o valor pago por Almeida a Lourenço Correia
Dias. O mesmo jornalista acusava Monsenhor Miranda de ter promovido gastos
excessivos na montagem do empreendimento, ao que corrobora o próprio D.
João VI, reconhecendo que o empreendimento fora dispendioso9. Deste viés, os
gastos garantiram os interesses dos antigos proprietários de terras e escravos que

7
ERTHAL, Clélio. Cantagalo: da miragem do ouro ao esplendor do café. Niterói: Nitpress, 2008, p.
130.
8
ERTHAL, Cantagalo..., p. 93-97.
9
ARAÚJO, João Raimundo de & MAYER, Jorge Miguel (orgs.). Teia serrana: formação histórica de
Nova Friburgo. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 2003, p. 31.

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ocupavam as melhores terras e foram defendidos e beneficiados por D. João VI
quando este se antepôs as intenções do agente suíço de levar os colonos para o
sul do Brasil. Com isso, D. João defendia, não só os interesses dos portugueses
já enraizados, mas os benefícios para a Coroa. Por isso, através do Monsenhor
Miranda, a monarquia portuguesa adquiriu três grandes propriedades na região,
denominadas Fazenda Imperial, São José e Córrego D’Antas.
Entretanto, quais seriam as principais interpretações a respeito das intenções e
dos objetivos da formação da Vila de Nova Friburgo através da implantação de
uma colônia de suíços? Para Jorge Miguel Mayer, a colonização suíça de origem
católica, promovida por D. João, objetivava “afastar os ventos revolucionários que
varriam a Europa e assegurar plena fidelidade ao Rei, uma vez que o catolicismo
era a religião do Estado”10. Outro argumento desenvolvido por Mayer, afirma que
a experiência de introduzir trabalhadores europeus livres com vistas à substituição
do trabalho escravo “serviriam para esclarecer alternativas do trabalho livre em um
contexto escravista”11. Decorrente desse argumento, Janaína Botelho formulou:
“Os suíços, aqueles que deveriam dar o exemplo de que o Brasil poderia ter uma
economia viável sem recorrer ao trabalho escravo”12, assim que puderam, também
adquiriram seus cativos. Segundo a formulação de Botelho, a aquisição de escravos
por colonos suíços estava em discordância com os objetivos da colonização. Esta
ideia não só exclui e isola os colonos suíços das interações sociais entre os diferentes
elementos da colonização, mas veda, principalmente, as possíveis relações com os
escravos e libertos.
Esses pontos de vista têm origem na ideia de que a colonização suíça foi um
empreendimento realizado por obra e graça de D. João VI e a deveria permanecer
sem a influência da escravidão, como em suas concepções mais idílicas. Por esse
motivo, Estou de acordo com o argumento de José Carlos Pedro. Este pesquisador
defende a preponderância dos luso-brasileiros nas atividades políticas, econômicas
e culturais durante o período em que Nova Friburgo comportava a colônia de
suíços, 1820-183113.
Na minha visão, a concessão das terras beneficiou principalmente aos brasileiros
e reinóis que durante a formação da vila de Nova Friburgo estavam com as glebas
mais férteis e tinha acesso a escravos, fatos que permitiram o enraizamento de seus
interesses na região. Neste contexto, a formação da colônia de Suíços da vila de
Nova Friburgo foi marcada pelo processo de expansão escravista e respaldado pela
“política da escravidão” em vigor até 1850.
Com tal argumento procuro afastar as interpretações idealizadas e unilaterais
sobre a colonização e visões que tentam isolar o elemento europeu do restante da
realidade histórica da vila de Nova Friburgo, ao mesmo tempo em que relegam à
escravidão o segundo plano.
10
ARAÚJO & MAYER, Teia serrana..., p. 31.
11
MAYER, Jorge Miguel. Raízes e crise do mundo caipira: o caso de Nova Friburgo. Tese (Doutorado
em História). Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2003, p. 533.
12
CORRÊA, Maria Janaína Botelho. Histórias da História de Nova Friburgo. Rio de Janeiro: Editora
Primil, 2012, p. 41.
13
PEDRO, José Carlos. A Colônia do ‘Morro Queimado’: suíços e luso- brasileiros na Freguesia de
São João Batista de Nova Friburgo,1820-1831. Dissertação (Mestrado em História). Universidade
Federal Fluminense. Niterói, 1999.

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Portanto, através da análise empírica realizada procuro discutir o quanto essas
ideias soam inconsistentes. Durante o recrutamento dos colonos, provavelmente, o
fator escravidão nem foi mencionado, como podemos observar através da surpresa
do padre Joye ao sair às ruas do Rio de Janeiro: “Durante o dia não vimos senão
negros, eles fazem todo trabalho. A maneira como são tratados me causou uma
impressão extremamente sensível, tanto que não podia esperar o momento para
voltar a bordo14”. Porventura, mesmo que estivessem em contradição com os
“sentidos da colonização”, como quer Botelho, estavam de pleno acordo com a
sociedade em que foram inseridos. Logo, desejavam os escravos como força de
trabalho e terras para plantar café.
Não quero desconsiderar por completo a concepção de Mayer e Botelho, mas
é preciso ressaltar que estes ignoram a poder da Coroa e dos senhores de terra
e escravos do sudeste na relação de forças com o agente suíço e o grupo por ele
representado. Os negociantes helvéticos, desta forma, estavam em desvantagem
diante da embrionária hegemonia de uma fração da elite senhorial fluminense
sediada em Nova Friburgo e Cantagalo. Esta elite recebeu apoio do próprio D.
João VI, que havia doado terras a esses antigos colonizadores.
Logo, as terras impróprias para o cultivo de café foram compradas por D. João
e entregues aos colonos suíços. Este episódio denota o mais nítido exemplo de
favorecimento dos senhores já enraizados. Tais indivíduos, ao longo da primeira
metade do século XIX, passaram à direção de todo aparelho político e administrativo
da Vila e colaboraram para o desenvolvimento do projeto de construção do Estado
Imperial, sediado na região Centro-Sul.
Para demonstrar o modo intrínseco como se relacionaram a Corte de D. João e os
senhores da região, pode-se destacar o fato de que os responsáveis pela montagem
da colonização escolheram um local diferente do pleiteado por Gachet, os suíços
desejavam o Rio Grande do Sul para a fixação dos colonos. Consequentemente,
D. João favorece, através da criação de uma nova vila, a expansão de uma
fronteira que em 1817 exalava a prosperidade do café, beneficiando reinóis e lusos
brasileiros previamente estabelecidos e com as melhores terras. Senhores que se
dedicavam, também, ao tráfico de escravos e dominariam as diversas esferas do
poder da nova vila.
Sem dúvida, é preciso ressaltar que, neste contexto, o Tratado de Aliança e
Comércio, feito com a Inglaterra em 1810 previa a “abolição gradual do Tratado
de Escravos15”. Além do mais existiam, tanto no plano externo quanto no interno,
discursos contrários à escravidão. Em 1815, a escravidão foi abolida ao Norte da
linha do Equador, todavia, completar este processo seria um empreendimento
“gradual”, para usar o termo contido na própria lei de 1810. Tais fatos colaboraram
para experiências de migração e de trabalho livre, viabilizando a vinda dos suíços
para o “Morro Queimado”.
Entretanto, as diversas experiências de migração de europeus na primeira
metade do XIX não visavam o fim do tráfico e, no caso de Nova Friburgo, esses
14
JOYE, Jacob. Anotações sobre a viagem dos migrantes suíços em 1819. Manuscrito do acervo dos
Arquives de l’Etat, Fribourg, Suíça. Transcrito e traduzido do original por Vera de Siqueira Jaccoud.
15
Legislação informatizada, Carta de Lei de 8 de junho de 1815, Publicação Original, Coleção de
Leis do Império do Brasil – 1815. Página 27 Vol. 1.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 17


migrantes foram absorvidos pela lógica do mundo escravista. Em 1831 o tráfico
de escravos da África foi proibido, mas com o regresso do partido conservador
e a “política da escravidão”16, o comércio ilegal de escravos continuou até 1850
quanto teve seu fim definitivo.
Outra visão da história da formação de Nova Friburgo argumenta que D. João
VI decidira pela migração europeia para o Brasil e a escolha da região se dera
por fatores climáticos, geográficos e de embranquecimento da população. Antes,
como embranquecer17 uma área adjacente ao Rio de Janeiro, principal receptor de
escravos africanos no Brasil do século XIX? Para termos uma ideia do volume de
escravos trazidos para a região apresento os resultados do quinquênio 1816 - 1820,
durante o qual, entraram 115.861 escravos no Rio de Janeiro e sudeste18. Tornamos
esse argumento mais denso com os dados computados pelo vigário Jacob Joye
em 1828 e o Relatório do Presidente de Província de 1856, os quais, somados,
permitem uma análise do número de escravos e livres nas décadas de 30, 40 e
50. Com os dados recolhidos demonstro que, neste período, a porcentagem de
escravos na Vila de Nova Friburgo sempre esteve em torno de 40% da população
(Quadro 1).
A análise mais detalhada demonstra que a população da Vila aumentou como
um todo ao longo da primeira metade do século XIX, mas os indivíduos livres
foram os que mais cresceram, distorcendo as porcentagens dos escravos, cujo
número também aumentava.

QUADRO 1
POPULAÇÃO ESCRAVA NA VILA DE NOVA FRIBURGO19
1828-1850

1828 1840 1850


ANO
NÚMEROS % NÚMEROS % NÚMEROS %
Livres 1615 55,94 % 2886 57,23 % 4187 58,86 %
Escravos 1272 44,06 % 2157 42,77 % 2927 41,14 %
Total 2887 100 % 5043 100 % 7114 100 %

Desmitificadas as visões que não incorporam o diálogo com a historiografia


nacional, e desejos pessoais à parte, torna-se fundamental compreender a
colonização suíça como um empreendimento que visava favorecer, sobretudo, aos
senhores de terras e de escravos já estabelecidos na região, somados a um grupo
16
PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2011, p. 137-156.
17
O termo “embranquecimento” utilizado para referir-se a migração suíça está deslocado no tempo,
afinal, o vocábulo passou a ser utilizado para o caso do Brasil a partir da segunda metade do século
XIX. Ver: SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro.
Tradução de Raul de Sá Barbosa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. Ver, principalmente, o capítulo 2.
18
MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. “A proibição do tráfico atlântico e a manutenção da escravidão”.
In: GRIMBERG, Keila & SALLES, Ricardo (orgs.). O Brasil Imperial – vol. I: 1808-1831. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 209-270.
19
Fontes: Arquivo da Igreja de São João Batista, Livro de Tombo I; Relatório do Presidente da
Província de 1856.

18 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


de suíços que conseguiu ascender econômica e socialmente. Neste processo de
formação, além de controlar as instâncias burocráticas do poder local, essa fração
da classe senhorial contribuiu com a expansão da fronteira do café e da escravidão.
Desta forma, não foi apenas uma forma de neutralizar uma revolução de modelo
europeu em terras tropicais, ou estabelecer uma experiência de trabalho livre
europeu, no seio da “escravidão nacional”20.
A proposta de uma colônia de imigrantes suíços no Brasil teve origem na
confederação helvética, em 1817. As motivações da confederação helvética para
a migração iniciaram-se por duas condições principais: a primeira relaciona-se ao
aumento das tarifas aduaneiras pela França, principal parceiro comercial dos cantões
helvéticos, após o período napoleônico. Esse aumento imobilizou o comércio e a
indústria de produtos helvéticos; o segundo impulso para a imigração origina-se
na crise de abastecimento originada pelas intensas chuvas de junho de 1816 que
destruíram grande parte das áreas cultivadas, essa diminuição dos produtos no
mercado gerou o aumento do preço dos alimentos, resultando em fome e pobreza.
Mesmo diante das tentativas do governo da Confederação Helvética na tentativa de
importar grãos e diminuir os problemas de abastecimento, muitos suíços decidiram
migrar21.
Neste contexto, Nicolau Sebastião Gachet foi escolhido como agente do Cantão
de Friburg, para solicitar a D. João VI uma concessão de terras em Santa Catarina,
com objetivo de instalar colonos suíços na região sul do país. Segundo a proposta
helvética, a empresa a que Gachet estava associado desejava gerir o negócio
colonizador, cuidar da comercialização dos produtos e garantir o translado de
3.000 suíços. Essas intenções, como se pode perceber, contrariavam os interesses
senhoriais de expandir a fronteira Centro-Norte Fluminense através do café e da
escravidão. O gênero rubiáceo, em 1817, começava a ocupar as paisagens da vila
de São Pedro de Cantagalo. Por causa disso, D. João chamou para o cargo de
Inspetor da colonização suíça Pedro Machado de Miranda Malheiros, Chanceler
Mór e Chefe da Mesa de Consciência e Ordem. Após a análise da proposta feita pelo
representante helvético, seguiram-se as seguintes condições: a região concedida
não se localizaria em Santa Catarina, mas na região serrana fluminense, o número
de migrantes baixou de 3000, para o limite de 100 famílias e a direção da colônia
seria composta, exclusivamente, por autoridades portuguesas, o que reforçaria
o enraizamento dos interesses dos luso-brasileiros estabelecidos na região. Após
aceitar as condições de D. João, Sebastião Nicolau assinou um documento de
compromisso, onde se denominava como “encarregado pelo meu governo, o
Cantão de Friburg, de solicitar a sua Majestade Fidelíssima uma colonização de
suíços no Brasil”22.
O acordo firmado entre D. João VI e o representante suíço foi constantemente
desonrado pelos dois lados. Gachet rompeu o contrato no início do prazo
20
SALLES, Ricardo. “O Império do Brasil no contexto do século XIX: escravidão nacional, classe
senhorial e intelectuais na formação do Estado”. Almanack, Guarulhos, UNIFESP, vol. 1, 2012, p. 17.
21
NICOULIN, Martin. A gênese de Nova Friburgo: emigração e colonização suíça no Brasil (1817-
1827). Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 1996, p. 33-35.
22
BRASIL – Senado Federal. Coleção de legislação Brasileira do Império, vol. VII. Rio de Janeiro :
Typographia Nacional, 1891, p. 62.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 19


de vigência, o número determinado de 100 famílias não foi respeitado e 261
embarcaram em direção a terras tropicais23. Além disso, os suíços arcaram com
o translado para Roterdã e com as despesas de hospedagens prolongadas, o que
segundo o acordo seria financiado pela Coroa, mas não foi. Durante a travessia, os
barcos estavam demasiadamente lotados, tornando-se foco de doenças e mortes,
deixando por volta de 300 órfãos, além de famílias inteiras que foram dizimadas.
Por isso, a travessia foi comparada ao tráfico de escravos, ou seja, uma empresa de
caráter mercantil. De qualquer forma, os representantes suíços foram penalizados
pelos desrespeitos ao acordo e responsabilizados pelas mortes e prejuízos ocorridos
durante a viagem. Com isso, perderam as vantagens almejadas quando do princípio
do projeto.
Através do decreto de três de Janeiro de 1820, D. João VI descreveu os limites
geográficos da recente Vila de São João Batista de Nova Friburgo, separando-a
da Vila de Cantagalo. Os limites fixaram-se “desde as Águas Compridas até o Rio
Grande, compreendendo o território que vai da sobredita Vila até o Rio Paquequer
do lado Oeste, e para a parte de Leste até o alto da Serra, cujas vertentes deitam
para o Rio de S. João”24. Neste mesmo decreto, nomeou o padre Jacob Joye como
vigário da Nova Paróquia e o padre Aeby como Coadjutor, para estas funções os
colonos receberiam 200$ réis e 100$ réis, respectivamente. A despeito do decreto,
o rio Macacu levou a vida do coadjutor e o vigário Joye passou a exercer, por um
tempo significativo, as duas funções.
As famílias que passaram pela provação de percorrer os dez dias entre a foz do
Rio Macacu e à Vila de Nova Friburgo foram socorridas pelas “Providências para
a jornada da colônia suíça desde o porto do Rio de Janeiro até Nova Friburgo”25.
Tais providências foram organizadas por Monsenhor Miranda que, no documento
supracitado, revela algumas das estruturas preparadas para receber os suíços.
Foram construídos moinhos d’água, fornos, açougue e pontes. Havia uma casa
para o Inspetor e uma casa nobre, denominada Chateau D’roi, a varanda possuía
um oratório, utilizado para as missas antes da construção da Capela de São João
Batista.
No final das Providências, Miranda alertava: “em Morro Queimado é por hora
tudo inculto e despovoado; mas é de esperar que tão fértil terreno se ache em
pouco tempo arroteado pelos laboriosos suíços26”. Contrariando as Providências
de Miranda, uma sessão do “Jornal de Coimbra” de 1818 afirmava sobre a região
onde os suíços seriam alocados: “Os lavradores do país, cujo maior interesse vem
da cultura do açúcar, fumo e café; rejeitam essas terras como só próprias para
mantimentos e criações, das quais não tiram tanto lucro”27. É importante ressaltar
que na região estudada, o enraizamento dos interesses dos antigos reinóis ocorreu
através da obtenção das terras próprias para o cultivo dos produtos vendidos no
23
ARAÚJO & MAYER, Teia serrana..., p. 30.
24
Coleção de Legislação Brasileira do Império. Vol. IV, p. 279
25
MALHEIRO, Pedro Machado de Miranda. Providências para a jornada da colônia dos suíços desde
o porto do Rio de Janeiro até Nova Friburgo em Morro Queimado, no distrito da Vila de S. Pedro
de Cantagalo, dadas em consequência de ordens de Sua Majestade. Rio de Janeiro: Na Impressão
Régia, 1819, p. 05.
26
MALHEIRO, Providências para a..., p. 17.
27
Jornal de Coimbra, Coimbra, 20 ago. 1819, n. LXXX, parte I, p. 64.

20 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


mercado externo, o que ensejou a migração de suíços para áreas adequadas ao
plantio do açúcar e do café.
Quando as famílias suíças alcançaram a Vila de Nova Friburgo, alojaram-se nas
100 casas que foram construídas por índios vindos de Aldeia da Pedra, parte delas
registradas pelo olhar do pintor francês Jean-Baptiste Debret (Fig. 1). No texto de
Debret, anexo a sua prancha, o autor enfatiza o caráter civilizatório da colônia
suíça, a fertilidade do vale que os colonos ocuparam e a prosperidade vivida pelos
migrantes. Tais ideias apresentam contradição em relação às informações do Jornal
de Coimbra e alguns depoimentos dos colonos.
Todavia, o pintor francês não deixa de registrar que “o governo tivera também o
cuidado de mandar para aí certo número de escravos de ambos os sexos, destinados
a serem repartidos entre as famílias suíças”28. Não encontrei os documentos
necessários para confirmar as doações de escravos feitas pela Coroa aos colonos
suíços. Diante dessa impossibilidade, é possível conjecturar que os cativos estavam
destinados ao trabalho nas fazendas pertencentes à Coroa.

Fig. 1 – Jean-Baptiste Debret, Colonie Suisse de Cantagallo, 183529.


Litogravura aquarelada à mão, executada pelos irmãos Thierry; 21,4 X 9 cm.

De qualquer maneira, era necessário, para acomodar os colonos na nova vila,


resolver o problema da falta de espaço. Dessa maneira, para colocar em torno de
261 famílias nas 100 casas construídas criou-se o conceito de “família-artificial”30,
que era constituída de 17 a 20 pessoas de duas ou mais famílias. Em outras palavras,
as habitações eram inapropriadas e insuficientes para o número de pessoas e essas
foram reagrupadas. Devido a esses e outros fatores, muito rapidamente os colonos

28
DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. Edição integral. Tradução e notas
de Sérgio Milliet. São Paulo: Círculo do Livro, 1981, p. 318.
29
DEBRET, Jean-Baptiste. Voyage pittoresque et historique au Brésil – Tome 2ème. Paris: Firmin Didot
Frères, 1835, p. 62. Acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Disponível em: <http://
bndigital.bn.br/acervodigital/>. Acesso em: 15 mai. 2015.
30
O termo “Família-artificial” foi criado, pois o agente suíço rompeu o acordo estabelecido com a
Coroa e trouxe 161 famílias a mais. Deste modo, os administradores locais teriam que abrigar 261
famílias europeias nas 100 casas construídas. A “família-artificial”, portanto, consiste na reunião de
duas ou mais famílias com o objetivo de que todos os colonos pudessem ficar nas casas que lhes
foram destinadas.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 21


perceberiam que grande parte das terras agrícolas era infecunda e as regiões férteis
serviam apenas para culturas de subsistência.
Tal fator afastava os colonos da possibilidade de prosperar ligados à produção
de gêneros mais lucrativos, como o açúcar e o café. Diante dessa demanda por
terras mais apropriadas aos gêneros de exportação, os colonos deram origem à
expansão territorial em dois sentidos: um primeiro grupo buscou as vertentes do
rio Macaé e dirigiu-se para a “Terra dos Inhames” e um segundo grupo dirigiu-se
a Cantagalo.
Nas primeiras investidas à região do rio Macaé, os colonos foram surpreendidos
pela presença de um quilombo, localizado exatamente nas terras doadas por D.
Pedro I aos colonos suíços em 1821. Os documentos não apresentam uma descrição
do quilombo, do tamanho ou de quantos negros estariam no quilombo. O primeiro
documento que faz referência ao ocorrido encontra-se na obra do pesquisador
suíço Martin Nicoulin, A Gênese de Nova Friburgo. Trata-se de uma carta escrita
por Antoine Cretton de Martigny, oriundo do Cantão de Valais, que relatou, em
1824, uma expedição à região do rio Macaé.

[...] Ao cabo de oito dias de marcha, deparamos com


um quilombo; é um esconderijo de negros fugidos que,
para escaparem das crueldades dos portugueses vão
viver juntos em montanhas inacessíveis. Esses negros são
perigosos quando em número superior ao de brancos e
espertíssimos, pois é quase impossível chegar a seu refúgio
sem risco de vida [...]. Mas qual não foi a nossa surpresa
ao deparar de repente com oito negros que de arcos
retesados, ameaçavam trespassar–nos o peito. Entretanto,
conseguimos dominá-los e obtivemos todas as indicações
sobre aquelas terras.31

A serra, por certo, foi ponto privilegiado para a formação desses núcleos de
resistência, primeiro pelas dificuldades impostas pelos acidentes geográficos, que
serviam como esconderijo e defesa natural. Em segundo pela distância, tanto de
Cantagalo, quanto da Corte. Quando os suíços constataram a infertilidade do solo
recebido e decidiram migrar para a região de Macaé encontraram o quilombo
citado. Renata Azevedo Lima vem pesquisando mais detidamente o caso do
quilombo32. A historiadora utiliza-se, além do documento citado, de duas outras
cartas assinadas pelo delegado dos assuntos suíços, o colono Quevermont.
Uma das conclusões da historiadora reside na aliança entre suíços e portugueses
para a destruição do quilombo, ou dos quilombos existentes nas Margens do Rio
Macaé, fronteira da vila de Nova Friburgo e da vila de Macaé. Os suíços desejavam
apoderar-se das terras concedidas por D. Pedro I em 1821, suas intenções ficam
explícitas em outro período da carta de Cretton de Martigny, “A terra que cultivamos,
não sendo própria para a cultura do café e do açúcar, eu [Antoine Cretton] quero

31
NICOULIN, A Gênese..., p. 222.
32
LIMA, Renata Azevedo. Conflitos de terra e quilombos na colonização do Rio de Janeiro (1808-
1831). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2013.

22 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


abandoná-la para me dedicar a esse tipo de cultura, já que cada milheiro de pé de
café que plantamos, depois de três anos, produz mil francos a cada ano”33. De fato,
o café já se encontrava em expansão pela vila no início da década de 20 do século
XIX e como podemos inferir pela fala do colono, constituía-se em um negócio
significativamente rentável.
Outra questão importante é a noção do colono suíço de como enriquecer na nova
sociedade, ou seja, acompanhar um processo que “aconteceu” concomitantemente
com outras áreas do vale do Paraíba, a expansão do café e da escravidão. Não só
Cretton de Martigny, mas os colonos que possuíam meios migraram. Anos depois, e
com um próspero lote de terras onde se cultivava café através do trabalho escravo,
temos o exemplo do colono Stöcklin, ele argumentava: “Nós suíços, que viemos
em 1820, fomos postos em terras que só dão batatas, milho e legumes; por isso
os colonos que não tiveram coragem ou meios de mudar para terras de café não
progrediram nada”34. Mais uma vez o café é citado por um suíço como elemento
de ascensão econômica e social.
Assim como Stöcklin, outros colonos suíços prosperaram. Todos envolvidos
com café e escravos, dentre eles podemos destacar os Monnerat, Joset, Robadey e
os Balmant, como senhores de terras e de escravos. O médico Jean Bazet e o padre
Jacob Joye, além de suas propriedades e escravos, também eram remunerados por
suas funções.
O jornal O Spectador de 1826, em sua sessão de correspondências publicou
uma carta, datada de 15 de novembro de 1825, cujo remetente era um colono
suíço, ele afirmava que a colônia poderia não ter dado certo, mas muitos suíços
conseguiram enriquecer. Neste contexto, o colono Levieux relata a qualidade das
terras, “[...] muito mais próprias à cultura de coisas necessárias à subsistência, do
que as que chamamos – coloniais”35. Na mesma carta o colono nos permite entrever
em que medida os colonos haviam se envolvido no cultivo do café desde 1820:

Desde então quase metade de sua população ocupa-


se vantajosamente da cultura do café; se eles não tem
plantado mais de 250,000 árvores, é porque a sua
população se compõe de mais crianças em idade baixa
[...] é porque também cultivam o preciso à subsistência
[...] eles tem preparados viveiros, os quais prometem que
dentro de poucos anos, terão para mais de 600,000 pés
de café, principalmente no distrito de Cantagalo, e nas
margens do Macaé.36

O depoimento deste colono é fundamental para associar os colonos das margens


do Macaé à produção cafeeira da região que compreendia Nova Friburgo.

33
NICOULIN, A Gênese..., p. 222.
34
NICOULIN, A Gênese..., p. 222.
35
O Spectador, Rio de Janeiro, n. 224, 16 jan. 1826, p. 01-03. Acervo da Hemeroteca Digital da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Disponível em: <http://bndigital.bn.br/>. Acesso em: 15 abr.
2015.
36
O Spectador, Rio de Janeiro, n. 224, 16 jan. 1826, p. 01-03.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 23


Diversos documentos dão mostra da defesa dos interesses dos antigos
colonizadores em sua relação com o Estado brasileiro. No contexto da independência,
os membros da Câmara escreveram, em junho de 182l, uma carta de apoio à
convocação da Assembleia Geral dos Deputados. A carta redigida foi elaborada na
presença do juiz ordinário, João Luiz Ribeiro, e de outras autoridades luso-brasileiras
e afirmavam: “[...] é preciso (...) ser inteiramente cego para não ver que só assim
o Brasil gozará dessas vantagens que nos foram liberalmente prometidas”37. Na
mesma carta ainda afirmavam, “O povo dessa Vila, não menos patriota, e amigo da
Causa da Nação”38, e, assim, defendiam exatamente a manutenção dos interesses
dos antigos colonos portugueses presentes na Vila. Além disso, não vislumbravam a
separação do Reino português, como nos indica a seguinte passagem: “modifique
a constituição que se está fazendo em Portugal, relativamente aos interesses deste
amplo e fertilíssimo reino, e conciliá-lo com suas províncias, e união com a de
Portugal”39. Entretanto, os senhores que governavam a Câmara e o poder político
na vila de Nova Friburgo, percebendo as mudanças que levaram, inevitavelmente,
à independência, escreveram, em cinco de novembro de 1822:

Senhor – A Câmara da Vila de Nova Friburgo tem a


distinta honra de felicitar e de beijar a Augusta mão de
Vossa Majestade Imperial nesta época em que o Império
do Brasil tem dado o mais vantajoso passo em defesa da
sua independência política [...] por sua real benignidade
sirva-se aceitar os sentimentos de uma Câmara, que
empenhada em desejos de solenizar tão faustíssimos atos
como é do seu dever, cheia de gloria fez o que esteve ao
alcance de suas forças e fracos conhecimentos.40

Apresento duas consequências, uma direta e outra indireta. A primeira é o


apoio ao novo poder constituído, a segunda é a aliança entre os interesses dos
plantadores escravistas luso-brasileiros e a Coroa. Em 1824, agindo no mesmo
sentido, a câmara da Vila de Nova Friburgo enviaria uma nota ao periódico Império
do Brasil Diário do Governo para informar que:

[...] naquele mesmo dia se procedeu ao ato do juramento


da Constituição do Império com a maior solenidade,
que era compatível com as forças da dita câmara; dando
por esta ocasião todos aqueles habitantes as mais claras
demonstrações do seu exemplar patriotismo.41

37
Gazeta do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 11 jul. 1822, n. 82, p. 440. Acervo da Hemeroteca Digital
da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Disponível em: <http://bndigital.bn.br/>. Acesso em: 15
abr. 2015.
38
Gazeta do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 11 jul. 1822, n. 82, p. 440.
39
Gazeta do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 11 jul. 1822, n. 82, p. 440.
40
Gazeta do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 11 jul. 1822, n. 82, p. 440.
41
Diário do Governo, Rio de Janeiro, 02 jun. 1824, n. 3, p. 536. Acervo da Hemeroteca Digital da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Disponível em: <http://bndigital.bn.br/>. Acesso em: 15 abr.
2015.

24 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


Com essas solenidades a Câmara da Vila de Nova Friburgo alinha-se ao rei,
acompanha o processo de independência e de consolidação da Constituição de
1824. A elite dos plantadores escravistas da vila participa dos eventos fundantes
da nova nação e, com isso, respaldam o seu poder político, principalmente pelas
relações de hegemonia e reciprocidade que estabeleceriam com o incipiente Estado
nacional e com outros senhores da região.

João Bazet: o colono absorvido pela lógica local

Neste contexto de afirmação da Nação e de consolidação dos interesses senhoriais


na vila de Nova Friburgo, a absorção desse modo de vida entre os suíços coincide
com o que Ilmar de Mattos denominou de “tempo saquarema”42. Vale ressaltar
exemplos como Jean Bazet e Jacob Joye, vereadores da Câmara Municipal durante
a independência, indivíduos incorporados pela lógica da sociedade nascente. A
partir da década de 1830, os colonos estavam plenamente integrados à sociedade
imperial, procuravam terras para o café, utilizavam o trabalho escravo e ocupavam
cargos na administração da Vila. Com o fim do “Regime Colonial” para os suíços
em 1831, os colonos foram considerados plenamente brasileiros. Dez anos depois,
tanto os que ascenderam socialmente quanto os que não obtiveram tanto sucesso
haviam assimilado as características da sociedade imperial.
Passemos a considerar, exclusivamente, o colono e médico suíço Jean Julien
Bazet. O personagem era francês, da freguesia de Nay. Ele fez sua viagem
transoceânica no navio Camillus e chegou ao Brasil em oito de fevereiro de
1820, tinha 28 anos. Em junho de 1820, foi agraciado com os títulos de Médico
dos Colonos Suíços da Vila de Nova Friburgo e de Médico Honorário da Casa
Real, o que lhe conferiu significativo prestígio entre os colonos e os proprietários
locais. Muito do prestígio de Bazet também deve ter sido colhido pelos cuidados
característicos de sua profissão.
Bazet casou-se em setembro de 1829 com Justine Froidevaux. A colona era a
filha mais velha do casal Jean-Baptiste Froidevaux e Marie Louise Banguerolle43.
Tal união resultou no nascimento de três filhos, as duas últimas crianças foram
batizadas na Igreja da Glória e tiveram como padrinhos Antônio Clemente Pinto e
Laura Clementina da Silva Pinto, membros da elite aristocrática da Corte, a quem
Bazet e sua família ligavam-se, a partir de então, por parentesco ritual.
A primeira aquisição agrícola de João Bazet ocorreu tardiamente, por volta de
1835, com a compra da fazenda “três bicos” junto a João Dutra da Silveira. Antes
mesmo de completar dez anos com o empreendimento agrícola, o médico vendeu
a propriedade a um brasileiro pela quantia de quatro contos de reis, o ano era
1844. O valor foi pago da seguinte forma: dois contos e setecentos reis em dinheiro
e um conto e trezentos mil reis em “letras a pagar no dia quinze de dezembro do
corrente ano”44.

42
MATTOS, Ilmar Rohloff. O tempo saquarema. São Paulo: Hucitec, 1987, p. 270-273.
43
BON, Henrique. Imigrantes: a saga do primeiro movimento migratório organizado rumo ao Brasil
as portas da independência. Nova Friburgo: Imagem Virtual, 2004, p. 257, p. 464.
44
Arquivo do Cartório do 2° Ofício de Nova Friburgo, Livro III de Notas, fls. 112v, 113 e 113v.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 25


Ainda no início da colonização (1828), Jean Bazet solicitou uma comenda que
o destacasse, a Comenda de Cavaleiro do Hábito da Ordem de Cristo, que só
recebeu em 1849 sendo agraciado pelo Imperador Pedro II. Quando Bazet chegou
à vila seus vencimentos foram determinados em 900 mil réis anuais durante
os cinco primeiros anos e, entre outros benefícios, recebera 480 mil réis para
estabelecer uma casa. Aqui temos um recibo assinado pelo médico da colônia Jean
Bazet, em 1824, com o seguinte teor “eu abaixo assinado declaro ter recebido do
Ilmo. Senhor, diretor dessa colônia [...] a quantia de duzentos e cinquenta telhas a
benefício da casa que está ocupando ficando por elas responsável”45.
O médico Bazet, além disso, enquanto residiu na colônia, ocupou o cargo da
presidência da Câmara de vereadores por três vezes 1829-1833, 1838-1845 e
1846-1849. Na primeira eleição de Bazet e também da Vila, este superou tanto o
padre Jacob Joye, quanto indivíduos de origem lusa, o que raramente aconteceu.
Em seu último mandato, recebeu de D. Pedro II o título de Comendador da Ordem
dos Cavaleiros de Cristo (Quadro 2).
Em relação aos escravos, Bazet concedeu o batismo a vários deles no mesmo
dia, apesar de Bazet, aparentemente, não ter mantido atividade agrícola. Tal
característica, nos leva a especular que a maior parte de seus escravos trabalhava
ao ganho na Vila de São João Batista, que se caracterizava por ser a área mais
urbanizada do município46.

QUADRO 2
PARTICIPAÇÃO NA VIDA POLÍTICA DA VILA DE NOVA FRIBURGO47
1820-1850

POSSE DA
NOME CARGOS OCUPADOS ESCRAVOS
TERRA
Vereador (1827)

Presidente da Câmara (1829, 1830, 1831, 1832)
 Casa nº 18
João Comandante do Batalhão de Guardas Nacionais (1833)
 39
Bazet Presidente da Câmara (1837-1840)
 Fazenda Três Bicos
(1835-1844)
Cavalheiro da Ordem de Cristo


Para contribuir com essa observação, a respeito dos escravos de João Bazet,
aproveito-me do registro realizado em quatorze de maio de 1835, no qual o
reverendo Julho José Viviam Batista ministrou o sacramento a doze escravos
pertencentes ao médico. Em cada um dos registros constam dois padrinhos e
ao final está escrito que são “[...] todos escravos do doutor Jean Bazet”48. Se
considerarmos tanto os escravos batizados quanto os padrinhos como propriedades
de Bazet, o número de posses do médico se eleva para 39 cativos. De qualquer

45
Arquivo da Prefeitura Municipal de Nova Friburgo. Acervo Pró-Memória, Caixa 2-5, Doc. 444.
46
Este parágrafo também está baseado no livro de Henrique Bon. BON, Imigrantes..., p. 254-258.
47
Fontes: Atas da Câmara Municipal de Nova Friburgo, 1820-1850; CDH Pró-Memória, Documentos
da Colônia; Livros I e II de Batismo, Arquivo da Igreja de São João Batista.
48
Grifos nossos. Arquivo da Igreja de São João Batista de Nova Friburgo. Livro II de Batismo, fl. 88.

26 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


forma, considerarei, nas análises seguintes, os 12 escravos batizados e seus
respectivos padrinhos (Quadro 3).

QUADRO 3
ESCRAVOS BATIZADOS PELO DR. JOÃO BAZET49

ESCRAVOS PROCEDÊNCIA IDADE PADRINHOS

Anna Crioula Crioula criança Maxuel e Theresa


Frorinda Crioula Crioula criança Pedro e Roza
Laureano Congo adulto Marcos e Catarina
Jacinto Crioulo adulto Antônio e Maria
Dimingos Crioulo adulto Joze e Roza
Simão Crioulo adulto João Congo e Mariana
Alberto Crioulo adulto Miguel e Josefina
Caetano Crioulo adulto João Moçambique e Maria
Paulo Crioulo adulto André e Josefina
João Congo adulto Antônio e Ludovina
Matildes Crioula adulta Joaquim e Teresa
Josefina Crioula adulta Vicente e Roza

Entre os cativos pertencentes a Bazet temos apenas dois escravos africanos,


denominação congo. Outra questão a se destacar é que a grande maioria dos
batizados é de escravos adultos e em idade produtiva, constando apenas duas
crianças entre os 12 batizados. Entre os adultos apenas duas eram mulheres, fator
que também marcava outros plantéis de escravos na região.
Além da medicina, Bazet teve negócios agrícolas ligados à escravidão. Todavia,
essas atividades não foram as mais importantes para a obtenção e manutenção
de sua riqueza. Bazet valia-se dos empréstimos a juros, sua principal atividade.
Segundo Henrique Bom, em 1842, João Bazet entregou ao padre João José de
Lessa o valor de 11 contos de reis a 1% ao mês50. Ao emprestar uma quantia
considerável, Bazet levanta entre os pesquisadores hodiernos as seguintes
questões a respeito dos padrões de enriquecimento no Império do Brasil: Quais as
possibilidades de enriquecer através de empréstimos a juros e distante da produção
cafeeira? Quais eram os principais investimentos feitos com o acúmulo advindo da
atividade usurária? A quais tipos de negócios os empréstimos estão ligados?
No início do ano de 1853, João Bazet ainda residia na vila de Nova Friburgo,
entretanto, sua saúde encontrava-se debilitada. Mesmo tendo sido um dos primeiros
suplentes para vereador a ser chamado para o cargo, foi obrigado a recusar. Tal
recusa foi feita através de um ofício endereçado a Câmara, neste documento o
médico desobriga-se “de tomar posse de vereador suplente pelo seu estado de

49
Fonte: Livro de Batismo II, Arquivo da Igreja de São João Batista.
50
BON, Henrique. Imigrantes: a saga do primeiro movimento migratório organizado rumo ao Brasil
as portas da independência. Nova Friburgo, Imagem Virtual, 2004, p. 258.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 27


saúde não permitir”51. Tudo indica que por volta de 1856 Bazet retirou-se para
a França com o objetivo de se tratar, apesar de não sabermos qual moléstia fez o
médico sucumbir, seu inventário indica a data de 25 de Abril de 1858 e a cidade
de Paris, como a data e o local de sua morte52.
A inventariante de João Bazet era sua esposa, Justine Bazet, que passou a assinar
o sobrenome do médico após o casamento em 1829. Justine residia na França,
por isso estava impedida de gerenciar a abertura do inventário de seu falecido
marido. Para contornar a situação Justine enviou uma procuração autorizando
Julião Bazet, filho do casal, a agir em nome de sua mãe e de Hortence, que a esta
altura também morava na França. Os documentos foram redigidos em francês e
deveriam ser traduzidos, como a vila não tinha um tradutor foi nomeado Angelo
José Degroff, que assinou seu termo de juramento em sete de maio de 186053.
Entre os bens materiais que compunham o inventário de Bazet constava a
mobília utilizada pelo casal, comprada no ano de 1856, quando ambos habitavam
na capital francesa. Infelizmente os bens não foram arrolados, todavia, Justine
Bazet declara ter em seu poder “um relógio de ouro com trancelim do mesmo
metal, uma caixa de tabaco de ouro, doze talheres de prata, alguma porcelana,
roupa branca de pano; todos estes objetos foram avaliados por peritos no valor
de três mil cento e quarenta e nove francos”54. Os poucos objetos relacionados
indicam que os aposentos de Bazet gozavam de considerável requinte.
Ao Analisar o cálculo da partilha dos bens do médico João Bazet foi possível
identificar as origens de sua fortuna. A sua riqueza estava dividida em cinco partes:
os bens móveis compunham a quantia de 1:111$350 reis, os títulos da dívida
pública francesa somavam 7:413$130 reis e seus juros 559$505 reis, as apólices da
dívida pública do Império do Brasil eram de 65:720$000 reis e os juros, de 10 de
junho de 1858 até 31 de outubro de 1860, que equivaliam a 8:680$000 reis. Tais
quantias importaram em 83:474$102 reis e deste valor foi subtraída a quantia de
391$082 reis para despesas de funeral, assim, “ficava líquido e praticável a quantia
de 83:092$520 reis”.
A partir dos números apresentados podemos retirar duas conclusões prévias. A
primeira estabelece diálogo com a obra de Kátia Queiroz Mattoso, a historiadora
elaborou um quadro para classificar as fortunas baianas no século XIX. Se
estendermos a classificação de Mattoso ao restante do Império do Brasil, João
Bazet será enquadrado no grupo das “grandes/ pequenas” fortunas, status que

51
Os referidos livros encontram-se sob a guarda do Pró-Memória da Prefeitura Municipal de Nova
Friburgo. Trabalhei com uma transcrição feita por Carlos Jayme S. Jaccoud, que cobre toda a
primeira metade do século XIX e também se encontra arquivada no CDH Pró-Memória da PMNF.
Atas da Câmara Municipal de Nova Friburgo, 1820-1850, Livro V, Sessão extraordinária de 11 fev.
1853. Transcrição de Carlos Jayme S. Jaccoud, 2001.
52
Arquivos do Judiciário - SEGAP - Serviço de Gestão de Acervos Arquivísticos Permanentes. Partes:
João Bazet e outros; Ano: 1860; Ação: Inventário; Cartório do Juízo de Órfãos de Nova Friburgo,
p. 08.
53
Arquivos do Judiciário - SEGAP - Serviço de Gestão de Acervos Arquivísticos Permanentes. Partes:
João Bazet e outros; Ano: 1860; Ação: Inventário; Cartório do Juízo de Órfãos de Nova Friburgo,
p. 08v.
54
Arquivos do Judiciário - SEGAP - Serviço de Gestão de Acervos Arquivísticos Permanentes. Partes:
João Bazet e outros; Ano: 1860; Ação: Inventário; Cartório do Juízo de Órfãos de Nova Friburgo,
p. 27v.

28 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


engloba os proprietários cujos inventários contavam entre 50 e 200 contos de reis55.
O volume de riqueza aquilatado no inventário post-mortem de Bazet não é
comparável às grandes fortunas dos Barões do café. Só para termos uma ideia da
riqueza dos principais representantes da elite agrária fluminense apresentaremos
dados colhidos em um texto de João Fragoso e Ana Lugão Rios referentes ao
Barão de Nova Friburgo: os valores dos seus bens subiam a 3.350: 520,000 (três
mil trezentos e cinquenta contos e quinhentos e vinte mil reis), quando da abertura
do seu inventário. Os autores argumentam que, ousados “fazendeiros capitalistas”
passaram a investir cada vez menos na escravidão e mais nas atividades usurárias,
empréstimos a juros, apólices da dívida pública, aplicações em imóveis urbanos
e no comércio56, pode ser o caso do Barão. O que pretendemos argumentar é
que o médico, além de exercer suas atividades, aplicava seus lucros em títulos da
dívida pública tanto no Brasil quanto na França, seu país de origem. Bazet não
possuía muitos escravos ou muitas braças de terra, então, diferente dos fazendeiros
capitalistas podemos afirmar que o ciclo de enriquecimento de Bazet não passava
pela atividade agrícola de exportação. Seus emolumentos eram provenientes de sua
profissão e, principalmente, das atividades especulativas que realizava. As referidas
estratégias de enriquecimento não só guardam semelhanças em relação ao tipo
de investimento feito pelos fazendeiros capitalistas, mas ela guarda características
particulares. A principal delas está no fato de que Bazet não era um fazendeiro, mas
apenas um capitalista formador de uma riqueza considerável.
Colocar a trajetória do colono suíço Jean Julian Bazet no contexto de formação
da vila de Nova Friburgo permite perceber que este não apenas assimilou o modo
de vida expresso por parte da classe senhorial do Império do Brasil, mas também
seguiu as tendências de enriquecimento desenvolvidas por essa classe, ou seja, o
médico estava conectado as inclinações e transformações econômicas características
do oitocentos. Desses elementos decorrem duas conclusões, a primeira indica
que os métodos de locupletamento via atividade especulativa estavam acessíveis,
também, para os estratos medianos da sociedade imperial; a segunda endossa
a adaptação dos colonos suíços à sociedade escravista em que foram inseridos.
O padrão de enriquecimento desenvolvido pelo médico somado aos títulos de
distinção e a sua intensa participação na vida política da vila, inclusive em diálogo
com a corte, vem adensar o argumento de que Bazet assimilou profundamente os
modos de vida do Império do Brasil. Além disso, o personagem traçou estratégias
de enriquecimento e manutenção do patrimônio antagônicas aquelas ligadas as
estruturas escravistas, tão características do oitocentos brasileiro.


55
MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Bahia, século XIX: uma província do Império. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1992, p. 602-604.
56
FRAGOSO, João L. e LUGÃO, Ana Maria. “Um empresário brasileiro do oitocentos”. In: CASTRO,
Hebe Maria Mattos & SCHNOOR, Eduardo (orgs.). Resgate: uma janela para o oitocentos. Rio de
Janeiro: Topbooks, 1995, p. 201.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 29


RESUMO ABSTRACT
O presente artigo tem o objetivo de discutir a This article aims to discuss the formation of the
formação da Vila de São João Batista de Nova Village of São João Batista de Nova Friburgo, in
Friburgo, na província do Rio de Janeiro, com the province of Rio de Janeiro, focusing on the
foco na trajetória do médico e colono suíço Jean trajectory of the doctor and Swiss settler Jean
Bazet, entre os anos de 1820 e 1858. As balizas Bazet between the years of 1820 and 1858. The
cronológicas adotadas marcam a chegada à chronological frame for this paper will be the
vila de Nova Friburgo e a data em que Bazet, period between Bazet’s arrival in Nova Friburgo
já residindo em Paris, faleceu. Para isso, será village and his passing, when already living
analisada a formação da vila de Nova Friburgo in Paris. I will analyze the formation of Nova
no contexto de expansão dos “sertões do Leste” Friburgo village in the context of the expansion
e sua ligação com a escravidão e com o plantio of the “Sertões do Leste” and the role slave
de café como meios de ascensão social na região. ownership and coffee plantations ownership
Por outro lado, também serão investigados played as means of social mobility in the region.
como os empréstimos a juros e as compras de Besides, I will also consider in which extent loans
apólices da dívida pública – atividades usurárias with interests and public debt purchases policies
por excelência – configuravam-se em meios de – usurious activities par excellence – configured
expansão e reprodução da riqueza do médico. the way through which Bazet wealth was made
Compreender as formas de assimilação e and expanded. Understanding the forms of
adequação dos migrantes ao modo de vida assimilation and adaptation of migrants to local
imperial leva-nos a verificar as relações sociais ways of life at the time of Brazil’s Empire can
estabelecidas por eles com membros da elite clarify the social interactions between them and
local, além de revelar métodos de ascensão the members of the local elite, thus, revealing
social e obtenção de títulos nobiliárquicos. A strategies of social climbing that included the
base para as análises aqui propostas é um corpo seek for noble titles. The basis for the proposed
documental composto por arquivos paroquiais, analysis is a body of documents composed of
cartoriais e judiciais, os Livros de Atas da parish, notary and legal files, the Minute Books
Câmara de vereadores de Nova Friburgo e of the councilors Chamber of Nova Friburgo and
periódicos. Somado a essas fontes, contamos periodicals. In addition to these sources, there
com um documento ainda inédito, o inventário is an original document, the inventory of Jean
de Jean Bazet. O conjunto dessas fontes, em Bazet. The analysis of these sources, in dialogue
diálogo com a historiografia referente ao tema, with the historiographical literature regarding this
permitirá uma compreensão mais ampla das theme will allow a broader understanding of the
possibilidades e estratégias de enriquecimento strategies of social climbing during the nineteenth
durante o oitocentos. Por certo, Bazet nunca century. Undoubtedly, Bazet was never a big
foi um grande fazendeiro escravista, mas suas slave owner, but his activities were those of a
atividades são as de um capitalista de sucesso no well-succeeded capitalist in the Empire of Brazil.
Império do Brasil.
Keywords: Migration, Empire of Brazil, Social
Palavras Chave: Migração; Império do Brasil; climbing strategies.
Estratégias de Enriquecimento.

Artigo recebido em 15 mai. 2015.


Aprovado em 27 set. 2015.

30 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


PROJETOS E PERSPECTIVAS
NA CONSTRUÇÃO DA NAÇÃO BRASILEIRA
(1822-1840)

Leonardo Bassoli Angelo1

A construção de uma nação é necessariamente perpassada pela discussão em


torno da forma de governo a nortear a formação política que se projeta. No caso
da criação do Estado-nação no Brasil do século XIX, houve intensa complexidade
diante de projetos e demandas dos diferentes grupos políticos, elementos que
produziram efeitos até mesmo décadas depois do Sete de Setembro. Inicialmente,
era necessário considerar como influência política a continuação de um membro da
dinastia de Bragança na administração desse território que, até pouco tempo antes,
constituía um Reino-Unido. Esse indivíduo, futuramente coroado como imperador
(D. Pedro I), foi um agente político que conhecia portugueses e não abriria mão
de com eles contar como partícipes na construção de uma nação nas Américas,
causando receios em brasileiros ressentidos após séculos de colonização.
Nos primeiros anos do Império do Brasil, as inúmeras propostas políticas para a
nação eram influenciadas pela Europa e pela parte espanhola da América Ibérica,
e a forma monárquica certamente não era a única a ser considerada. Nessa época,
a República Federativa dos Estados Unidos da América se constituía como a
primeira experiência de um governo republicano no período contemporâneo em
um território de dimensões consideráveis, e por isso se mostrava uma alternativa
diante de um território brasileiro de dimensões também consideráveis; no entanto,
era forte a resistência de algumas correntes políticas de que pudesse vigorar no
Brasil, receio motivado, em parte, pela possibilidade de um pacto federativo não
conseguir manter a unidade territorial.
O então príncipe regente D. Pedro, que comandou o processo de Independência,
tinha forte personalismo e era adepto da centralização administrativa. Após ser
coroado, centralizou muitas das decisões tomadas nesses primeiros anos. Alfred
Stephan afirma, baseado em Max Weber, que:

Los Estados deben ser considerados como algo más que


“gobiernos”. Son sistemas administrativos, jurídicos,
burocráticos y coercitivos permanentes que no sólo
tratan de estructurar las relaciones entre la sociedad civil
y la autoridad pública en una organización política, sino
también de estructurar muchas relaciones cruciales dentro
de la sociedad civil.2
1
Doutorando em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Bolsista Capes. E-Mail:
<leobangelo@gmail.com>.
2
Apud SKOCPOL, Theda. “El Estado regresa al primer plano: estrategias de análisis en la investigación
actual”. Cambridge University Press, 1985, p. 10. Disponível em: <http://www.bibliotecajb.org/>

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 31


Com base nessa perspectiva, D. Pedro I, que chefiava a construção de um
Estado, tinha a tarefa de contemplar interesses, demandas, projetos distintos não
apenas dos que exerciam a política no âmbito oficial, mas também daqueles que
desejavam se ver representados, e deveria mediar esses elementos.
É necessário atentar para o fato de que nem todas as pessoas eram consideradas
habilitadas a exercer e a discutir a política, e uma parcela ainda menor tinha direito
a eleger os representantes; os “habilitados” desfrutavam de poder político e/ou
econômico, ao contrário das camadas menos favorecidas da sociedade, as quais,
uma vez privadas de recursos para se instruírem e convivendo em ambientes
supostamente pouco convidativos ao diálogo construtivo e à articulação política,
não teriam – no entendimento dos agentes – capacidade de decisão, e deveriam
ser “tuteladas”.
Dentre aqueles que exerciam o poder de forma direta, se situavam os que
atuavam no governo central, em um primeiro momento indivíduos dos quais
D. Pedro I era mais próximo, como José Bonifácio (seu aliado nos primeiros
anos do Império e que romperia com ele anos depois), também empenhado na
centralização administrativa, na manutenção da unidade territorial daquele extenso
território diante de uma ex-América Hispânica que se fragmentava politicamente.
Se Bonifácio influenciou Pedro I no âmbito interno, a Europa inspirou esse dirigente
do Brasil com Napoleão I e Francisco II, fato que, segundo Lilia Schwarcz, foi muito
importante para que se adotasse a saída imperial, ou seja, a adoção da monarquia
como forma de governo no Brasil3.
A ideia dos primeiros agentes do Império do Brasil era construir, nos trópicos,
uma civilização de grande porte inspirada na Europa do início do século XIX, e
para isso a monarquia constitucional se mostrou uma importante alternativa para
promover e garantir o território unificado, o que foi facilitado pela continuidade de
vários agentes políticos dos tempos anteriores a 1822, além do próprio D. Pedro,
outrora príncipe regente. Conforme destaca José Murilo de Carvalho4, os países
que hoje compõem a América Latina tinham o desafio de manter a unidade em
meio a vários modelos distintos de organização política.
Os membros das elites do Brasil que atuaram nesses espaços durante a primeira
metade do século XIX se formaram em Coimbra – notadamente na área jurídica
–, e, no Brasil independente, ocuparam postos no funcionalismo público como a
magistratura e o Exército5, pois se consideravam preparados para atuar nessa nova
fase política; baseados em Jeremy Bentham (no qual a futura vertente política
“regressista” se inspiraria, assim como em Thomas Hobbes), esses agentes políticos
pretenderam organizar um Estado soberano e reproduzir a estrutura da nova
sociedade6. Nos primeiros anos, estadistas como Evaristo da Veiga e Bernardo
Pereira de Vasconcellos se empenharam em combater o despotismo; este primeiro

Acesso em: 15 jun. 2014.


3
SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. 2. ed.
São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 37-38.
4
CARVALHO, José Murilo de. A construção da Ordem: a elite política imperial. Brasília: Editora da
UnB, 1981.
5
CARVALHO, A construção da Ordem..., p. 31-37.
6
MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo Saquarema. São Paulo: HUCITEC; Brasília: INL, 1987, p.
128.

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indivíduo, em seu jornal “A Aurora Fluminense”, combatia os denominados
“corcundas”, em sua maioria comerciantes, militares e funcionários portugueses
identificados com o Antigo Regime português7.
De acordo com Octavio Tarquínio de Sousa (1968), o filho de D. João VI não
transigia naquilo que julgava pertencer-lhe por consagração popular irrevogável.
Tobias Monteiro caracterizou-o como um “déspota liberal”8, que se empenhou
em desenvolver as práticas liberais no Brasil com as próprias mãos, havendo
participado ativamente na construção de um Estado imperial centralizado, sem
democracia9 ou federalismo e implantado à força, o que levou os grupos políticos
dissidentes nos âmbitos provincial e central a reivindicarem, com intensidades e
instrumentos diferentes, a participação política.
José Bonifácio, então amigo do primeiro imperador do Brasil, foi um crítico
ferrenho do espírito democrático da instável América Espanhola, e afirmou
que jamais se alistaria debaixo das “esfarrapadas bandeiras da suja e caótica
democracia”10; instruído na Europa ilustrada do século XVIII, apreciava muito os
elementos do mundo natural, que teriam, em seu entendimento, o potencial de
trazer riquezas para a Coroa portuguesa11. Em comum acordo com D. Pedro I
e pessoas correlatas, propunha conciliar, para o Brasil, o poder de um monarca
liberal com uma “justa liberdade”12, o que significava implantar o liberalismo com
a garantia de que a segurança e a unidade territorial não fossem prejudicadas, um
modelo que não compactuava com a democracia.
Na linha política e ideológica de D. Pedro I e José Bonifácio se encontrava
José Antônio Pimenta Bueno, marquês de São Vicente, primeiro nomeado para
ocupar a Presidência da Província do Rio Grande do Sul, senador e membro
do Conselho de Estado. Avesso a disputas partidárias, é considerado um dos
principais juristas do Império; caro à centralização administrativa, Pimenta Bueno
considerava a unidade territorial um dogma político, inviolável, e considerava a
tríade “monarquia-Constituição-representação política” apropriada para trazer o
desenvolvimento e a estabilidade política.
Apesar de muitas adesões além das figuras acima mencionadas, esse projeto
centralizador não foi o único a vigorar durante os primeiros anos do Império.
Bernardo Pereira de Vasconcellos manifestava abertamente suas discordâncias em
relação ao governo central – causando insatisfação até mesmo no imperador –, mas
não se pode afirmar que desejava romper com a ordem vigente. Joaquim Gonçalves
7
COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 3. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1985, p. 126-127; p. 132.
8
Apud LUSTOSA, Isabel. D. Pedro I: um herói sem nenhum caráter. São Paulo: Companhia das
Letras, 2006, p. 173.
9
O político José Clemente Pereira, que atuou nesses primeiros anos do Império, definiu o princípio
monárquico em oposição ao princípio democrático. Cf: MATTOS, O tempo Saquarema, p. 158.
10
HOLLANDA, Sérgio Buarque de (dir.). História geral da civilização brasileira. São Paulo: DIFEL,
1985, vol. 3, p. 185; COSTA, Da Monarquia..., p. 131.
11
VARELA, Alex Gonçalves; LOPES, Margareth & FONSECA, Maria Rachel Fróes da. “Naturalista e
homem público: a trajetória do ilustrado José Bonifácio de Andrada e Silva em sua fase portuguesa
(1780-1819)”. Anais do Museu Paulista, São Paulo, nova série, vol. 13, n. 1, jan./ jun. 2005, p. 213.
Disponível em: <http://www.scielo.br/>. Acesso em: 15 ago. 2014.
12
SOUSA, Octavio Tarquínio de. História dos fundadores do Império do Brasil: a vida de D. Pedro I.
Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1960, vol. 4, p. 517.

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Ledo, por sua vez, propunha uma monarquia de feições republicanas, levando
D. Pedro I e Bonifácio a apressarem a instauração da Assembleia Constituinte.
As tendências políticas descentralizadoras não eram vistas com bons olhos pelos
que estavam no centro de poder nesse período, a exemplo da imperatriz dona
Leopoldina, que temia um liberalismo “exacerbado”13.
Em 1823, D. Pedro I convocou uma Assembleia Constituinte no propósito de se
construir a primeira Carta do Brasil. No ano anterior, fora aprovado o estabelecimento
dessa Assembleia, na ideia de pensar um conjunto de leis imprescindíveis para
nortearem e garantirem a união nacional, baseando-se, para isto, nos postulados
da Revolução Francesa sob a égide de um pacto entre governantes e governados,
ainda que houvesse, já nessa ocasião, divergências acerca da abrangência do
poder do imperador14.
Emília Viotti da Costa destacou que, ao mesmo tempo em que os deputados
constituintes se diziam liberais, se confessavam antidemocratas e antirrevolucionários,
valendo-se da lógica de Benjamin Constant e de Jean-Baptiste Say de buscar a
conciliação da liberdade com a manutenção da ordem existente15, concepção já
salientada como presente nas atitudes do imperador e de Bonifácio. No entanto,
além das propostas centralizadoras e descentralizadoras, manifestou-se claramente
o receio de alguns constituintes com o Republicanismo.
O deputado Manoel Jacinto Nogueira da Gama, marquês de Baependi,
manifestou sua preocupação com o colega Venâncio Henriques de Resende, da
província de Pernambuco, excluído pela deputação dessa província por decisão
da Câmara de Olinda nos dias que sucederam a organização da junta provisória.
Nogueira da Gama apontou uma declaração, em dois jornais da província de
Pernambuco, que atestaria o republicanismo de Venâncio16. O deputado Muniz
Tavares, em resposta, ponderou que o acusador deveria ter cautela em suas
palavras, pois

[...] encontra-se o padre Venâncio afirmando que é, por


princípios, republicano; porém o sentido que elle toma a
palavra republicano o poe a coberto de toda a imputação
calumniosa. Quem tem aprendido os primeiros elementos
de hermenêutica sabe que as palavras só devem tomar o
sentido de quem falla ou escreve, e não de quem ouve
ou lê; e tendo o autor da carta declarado por si mesmo
o sentido das suas palavras, só por prevenção, ódio ou
incúria, se passárão a entender de diversa maneira [...].17
13
LUSTOSA, D. Pedro I..., p. 144.
14
SLEMIAN, Andréa. “A construção de uma legitimidade: constituição e administração nos primórdios
do Império do Brasil (c. 1823-1834)”. In: ANPUH. Anais do XXIV Simpósio Nacional de História.
São Paulo: ANPUH, 2007, p. 04. Disponível em: <http://snh2007.anpuh.org/>. Acesso em: 16 abr.
2015.
15
COSTA, Da Monarquia..., p. 127.
16 ANAIS do Império, 1823, Livro 1, p. 85. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/>. Acesso
em: 02 jul. 2014.
17
ANAIS do Império, 1823, Livro 1, p. 87. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/>. Acesso em:
02 jul. 2014.

34 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


Muniz Tavares defendia o colega Venâncio – a quem muito estimava – porque,
em seu entendimento, o acusado tinha a honra atacada pela caracterização como
“republicano”. Essa declaração do deputado Venâncio rendeu discussões. Andrada
Machado, comentando as palavras do acusado, falou em “quimera republicana” e
indicou uma incompatibilidade desse governo com o Brasil. O deputado Nogueira
da Gama postulou que, além das Cortes de Portugal, os políticos daquele período
tinham a combater o partido republicano, que estaria a propor a separação de
todas as províncias em repúblicas independentes e confederadas entre si, sendo
um exemplo os Estados Unidos da América18.
Ao suposto republicanismo de Venâncio Rodrigues de Resende se somaram
ponderações de Andrada Machado sobre a autonomia das províncias, quando
esse deputado observou que as Constituições de Portugal e da Espanha daquele
período adotavam um sistema de poderes isolados, com o “defeito” de carecerem
de uma entidade intermediária que conciliasse os interesses de todas as partes19.
Nesse período, os conceitos “federação” e “confederação” eram utilizados como
sinônimos pelos deputados; a federação nem sempre era interpretada como
incompatível com o sistema monárquico constitucional, e os adeptos dessa corrente
política propunham que cada província buscasse a realização de seus interesses
como julgasse mais conveniente20.
Pelas declarações apresentadas, é evidente que muitos deputados constituintes
de 1823 rechaçavam o republicanismo como uma alternativa para o Brasil,
e temiam o federalismo21, que, relacionado à forma republicana do período
contemporâneo, era classificado como elemento potencial para a desagregação. A
República não parecia segura para esses idealizadores do Estado-nação do Brasil,
e, para afastarem de vez esse “perigo”, desqualificavam-no, o que justifica que um
parlamentar defendesse o colega diante de uma “acusação de republicanismo”,
assegurando a supracitada “ordem política”.
Na ocasião da Assembleia Constituinte, o imperador afirmou que as Constituições
de seu tempo não conseguiram organizar formações políticas a contento, e esperava
que a Carta que então era projetada no país tivesse sua Imperial aceitação22. Em
sua fala, o imperador possivelmente considerou não apenas as Constituições
europeias, mas também as sul-americanas em vigor no subcontinente e que, a seu
ver, eram incapazes de conter as ações que levavam esses territórios a lutas e à
constante desagregação.

18
ANAIS do Império, 1823, Livro 1, p. 169. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/>. Acesso
em: 02 jul. 2014.
19
ANAIS do Império, 1823, Livro 1, p. 91. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/>. Acesso
em: 02 jul. 2014.
20
COSER, Ivo. “O conceito de federalismo e a ideia de interesse no Brasil do século XIX”. Dados –
Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 51, n. 4, 2008, p. 947.
21
Os participantes da Revolta Liberal em Minas Gerais e em São Paulo, ocorrida em 1842 – ou seja,
quase vinte anos após a primeira Constituinte – temiam ser acusados do crime de republicanismo,
além do crime de lesa-majestade. Cf: HORNER, Eric. Em defesa da Constituição: a guerra entre
rebeldes e governistas (1838-1844). Tese (Doutorado em História). Universidade de São Paulo. São
Paulo, 2010, p. 248.
22
HOLLANDA, História Geral..., p. 184.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 35


Nas palavras de Octavio Tarquinio de Sousa, D. Pedro I não toleraria uma
Constituição que o relegasse a posição subalterna ou meramente decorativa23,
pois, participando ativamente do movimento da independência política, se
considerava responsável politicamente pelo território do Brasil, e deixava claro que
quaisquer tentativas que, em seu entendimento, colocassem em xeque um projeto
de unidade territorial seriam combatidas. Os deputados, por sua vez, aceitavam a
monarquia constitucional sob a dinastia de Bragança, mas exigiriam um governo o
mais liberal24 possível, e a Assembleia foi o primeiro espaço para defenderem esses
interesses.
Os debates da Constituinte, além de intensos, não se restringiram às ponderações
envolvendo o Republicanismo. Antônio Carlos de Andrada e Silva argumentou
que, se a Constituição atacasse direitos do imperador, este deveria ter o direito
de se defender. Diante da polêmica em torno da sanção das leis pelo monarca, o
deputado Carneiro de Campos afirmou que, pelo fato de a nação ter escolhido
uma monarquia representativa, a sanção de leis pelo imperador deveria ser uma
realidade incontestável. O padre Henriques de Resende não receou postular que,
para a participação na Constituinte, “[...] viemos com plenos poderes [...] salvo
a monarquia constitucional”25. De seu ponto de vista, a Assembleia – e não o
imperador – deveria indicar os limites dos poderes e estabelecer as regras. Henriques
de Resende provocou o imperador ao afirmar que: “[...] dizem, a Assembleia não
é infalível e é sujeita às paixões: e o imperador é um anjo, não tem paixões? [...] É
tanto homem como nós [...]”26.
A 10 de novembro, a Assembleia discutiu a admissão ao Exército de militares
portugueses que lutaram a favor da Independência na Bahia. Martim Francisco
de Andrada e Silva, indignado com esta situação, proferiu um discurso pelo qual
afirmou que

[...] somos nós representantes? De quem? Da nação


brasileira não pode ser. Quando se perde a dignidade,
desaparece também a nacionalidade. Não, não somos
nada, se estúpidos vemos, sem os remediar, os ultrajes que
fazem ao nobre povo do Brasil, estrangeiros que adotamos
nacionais e que assalariamos para nos cobrirem de baldões
[...].27

Certamente, a dura crítica do deputado à postura do governo com os militares


portugueses – que o fazia se sentir traído em seus princípios nacionalistas – não soou
bem aos ouvidos do imperador, que dificilmente conseguiria conter essas posições
23
SOUSA, História dos fundadores..., p. 544.
24
Esse liberalismo, certamente, foi adaptado à realidade escravocrata do Brasil, tendo em vista que
a mão de obra escravizada africana era indispensável nesse contexto de um país agrário, e cujos
agentes políticos eram, em sua grande maioria, proprietários de terras e escravos. Cf: COSTA, Da
Monarquia...
25
Apud SOUSA, História dos fundadores..., p. 549.
26
Apud SOUSA, História dos fundadores..., p. 549.
27
Apud SOUSA, História dos fundadores..., p. 564.

36 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


inflamadas simplesmente com a negociação. Por declarações enfáticas como a de
Henriques de Resende e de Martim Francisco, além da falta de articulação e da
tendência autocrática do monarca, a Assembleia foi por este dissolvida a 12 de
novembro de 1823.
Um dia após a dissolução, D. Pedro I criou o Conselho de Estado com o fim de
organizar um novo projeto de Constituição, no qual teria ampla participação. O
conde de Lages destacou que não se poderia comparar esse conselho ao Senado,
pois “No Senado está a representação nacional, a que o Imperador não é superior,
o que não acontece ao Conselho de Estado”28. Esse órgão seguia o modelo dos
conselhos áulicos europeus, com membros vitalícios e influência da monarquia
europeia; se constituiu como um mediador entre os interesses dos diferentes grupos
políticos do país e o imperador29, e mostra a centralização que caracterizaria todo
o I Reinado.
Por meio do Conselho de Estado, o monarca mostrava que, em sua maneira de
governar, desejava maior poder de decisão, após um momento – a Constituinte –
em que parecia ter perdido o controle sobre os debates encetados, discussões que
poderiam produzir e difundir reivindicações que ele não estava disposto a aceitar,
como maior autonomia provincial, e pontos referentes à postura do governo central
com questões polêmicas, como a dos militares.
A Carta que seria outorgada em 1824 traria, além do Conselho de Estado, o
Poder Moderador, “neutro” ou “tribunício”, que, exercido unicamente pelo monarca,
tinha essa exclusividade justificada por políticos como José Joaquim Carneiro de
Campos, que afirmou que o imperador, além de chefe do Poder Executivo, era
defensor da nação e deveria ter essa prerrogativa para bem desempenhar a defesa
nacional a que se propôs desde 182230. Esse Poder foi criado com inspiração em
Benjamim Constant e, de caráter centralizador, autorizava o chefe do Executivo do
Brasil a dissolver a Câmara dos Deputados antes do término da legislatura, bem
como convocar novas eleições parlamentares.
É importante salientar que, se os instrumentos jurídicos confirmavam o
projeto de construção de um modelo representativo de governo para o Brasil,
as comemorações também atestaram as aspirações políticas desses agentes do
recente país independente. No âmbito simbólico destacou-se, em 1826, o Sete de
Setembro como componente da relação de feriados imperiais nacionais, evento
que chegou ao final dessa década como o mais importante “dia de festividade
nacional” na capital do Império31.
Uma tentativa de reafirmar o Império do Brasil era perpassada não apenas pela
criação de espaços oficiais que modelassem o sistema político na forma desejada
pelos agentes, mas também pela oficial rememoração de sua independência jurídica,
além de configurar respostas do imperador a demandas dos “exaltados” por um
28
ATAS do Conselho de Estado, 1823-1834, p. 13. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/>.
Acesso em: 20 ago. 2014.
29
MARTINS, Maria Fernanda Vieira. A velha arte de governar: um estudo sobre política e elites a
partir do Conselho de Estado (1842-1889). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007, p. 23.
30
SOUSA, História dos Fundadores..., p. 591.
31
KRAAY, Hendrik. “Sejamos brasileiros no dia da nossa nacionalidade: comemorações da
Independência no Rio de Janeiro, 1840-1864”. Topoi, Rio de Janeiro, vol. 8, n. 14, jan./ jun. 2007,
p. 10.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 37


efetivo rompimento com Portugal. A legitimação simbólica do sistema monárquico-
constitucional no território brasileiro era fundamental diante das insurreições como
a Confederação do Equador (1824), que eclodiu em Pernambuco sob a bandeira
do republicanismo32 e do separatismo, em razão da ausência de um diálogo mais
efetivo com o governo central.
Na política externa, dois eventos ilustram a fragilidade que caracterizava o
Brasil em face de muitos países, mas também o esforço para que se reconhecesse
a soberania dessa monarquia dos trópicos. Primeiramente, a Guerra da Cisplatina
causou problemas orçamentários33 e indicou, em dimensão continental, que era
necessária maior articulação política para impedir a tão comum desagregação
territorial. Se d. Pedro I foi derrotado na tentativa de assegurar o território da
Província Cisplatina, ao menos conseguiu manter o restante do território brasileiro
unificado enquanto esteve no poder.
Em segundo lugar, cumpre salientar que o Brasil independente não foi aceito
com facilidade na Europa, pois a Santa Aliança, que vigorava no “Velho Mundo”,
era resistente a aceitar a nova ordem estabelecida na antiga América portuguesa, e
a solução encontrada pelo imperador foi buscar o apoio de seu pai, o rei de Portugal
D. João VI, que reconheceria a Independência da ex-colônia e abriria as portas
do continente europeu para este novo país americano. Após negociações, a 13 de
maio de 1825, esse monarca português assinou uma Carta Régia por meio da qual,
enfim, chancelou o reconhecimento de Portugal à Independência do Brasil34.
Em relação a outros espaços de discussão e exercício político, verificou-se, no
início dos anos 1820, o crescente número de periódicos na Corte do Rio de Janeiro,
e se desenvolveu uma “opinião pública” com o lançamento de aproximadamente
20 jornais sob uma relativa liberdade de expressão. Sem hostilizarem o imperador
em um primeiro momento, esses periódicos, republicanos ou monarquistas de
outras variações, ressignificaram uma série de conceitos, sendo alguns exemplos as
críticas ao que consideravam “absolutismo” e “tirania” nas atitudes de D. Pedro I
nos tempos da abdicação35.
No contexto de crise da dissolvida Assembleia Constituinte, o imperador acusou
dois jornais, “Sentinela da Praia Grande” e “O Tamoio”, por declarações que o
teriam incomodado, insinuando que censuraria esses veículos36, e, somada a esse
episódio, a turbulenta relação entre o monarca e a imprensa foi intensificada pelo
assassinato do jornalista Líbero Badaró, prejudicando a imagem de D. Pedro I –
que foi acusado pelo crime – e levando-o buscar, sem sucesso, apoio em outras
províncias, a exemplo das hostilidades que recebeu da população quando visitou
Ouro Preto.
32
Quando são considerados movimentos como a Confederação do Equador, é possível compreender
com mais clareza o receio dos anteriormente mencionados deputados constituintes em relação a
tudo o que se referisse ao sistema republicano.
33
CALÓGERAS, Pandiá. Formação histórica do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2009, p. 120.
34
SOUSA, História dos fundadores..., p. 627-629.
35
PANDOLFI, Fernanda C.. “A imprensa e a abdicação de D. Pedro I em 1831: história e
historiografia”. In: ANPUH-SP. Anais do XVIII Encontro Regional de História: o historiador e seu
tempo. Assis: ANPUH-SP, p. 02-03. Disponível em: <http://www.anpuhsp.org.br/>. Acesso em: 05
jul. 2014; CALÓGERAS, Formação histórica..., p. 102-129.
36
SOUSA, História dos fundadores..., p. 571-572.

38 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


Nos últimos meses do reinado de D. Pedro I, um evento conhecido como
Noite das Garrafadas reforçou a ideia de que havia conflitos de interesses e de
impressões sobre o governo do Brasil por parte de brasileiros que desejavam uma
administração genuinamente brasileira e que temiam consequências futuras em
razão de portugueses que apoiavam o imperador, indivíduo também português e
filho de um ex-monarca absolutista. No dia deste evento, brasileiros insatisfeitos
com a política pedrina de inserção de portugueses no Brasil travaram luta corporal
com portugueses apoiadores de D. Pedro I; era necessário conciliar os interesses,
mas Pedro I parecia ignorar os anseios nacionalistas de brasileiros, além de substituir
ministros com bastante frequência37.
Somando-se as supracitadas questões econômicas e políticas que desestabilizaram
o Governo à tentativa de garantir o Reinado de dona Maria da Glória em Portugal,
explica-se a abdicação de D. Pedro I em 1831 e o início do período da história
brasileira conhecido como Regências, quando vários governantes ocuparam o
Poder Executivo na menoridade de Pedro de Alcântara até que o futuro imperador
concluísse sua preparação física e intelectual para ocupar o Trono do Brasil. Com a
vacância de poder provocada pela saída de D. Pedro I, a multiplicidade de projetos
tantas vezes mencionada neste texto foi manifestada com grande intensidade, pois
vários regentes se revezaram e mostraram suas propostas para o país, fossem elas
de cunho centralizador ou descentralizador, monarquista ou republicano, ideias
presentes nos diversos ministérios regenciais que se sucederam durante esses anos.
Apesar de todas as questões apontadas, é incontestável que o primeiro imperador
do Brasil se empenhou, juntamente com constituintes e ministros, para instaurar
o liberalismo nesse território, e buscou projetar o Estado brasileiro dentro e fora
do país. D. Pedro I se mostrou hábil ao manifestar seu compromisso com as elites
políticas e econômicas que, no pós-1822, temiam uma ruptura brusca das bases
econômicas sobre as quais assentavam seus negócios.
Nesse projeto de construção da nação, foram desconsideradas as camadas
populares, às quais estava destituída a participação nos negócios políticos. Penso
que as instabilidades do I Reinado sejam explicadas pelas características de Antigo
Regime que D. Pedro I herdara e por seu personalismo conjugado ao autoritarismo
em casos pontuais de seu reinado, que dificultavam um diálogo efetivo com todos
os setores da política brasileira desejosos de espaço no contexto de criação de um
Estado-nação que, como afirmado anteriormente, não contemplava os interesses
de muitas parcelas da sociedade, mas tão somente daqueles que estavam próximos
ao poder político/econômico.
De acordo com Marcelo Basile, o período regencial brasileiro foi tradicionalmente
interpretado como “anárquico”, impertinente para a formação da nação, e essa
concepção já superada é explicada, a meu ver, por uma historiografia ligada à
centralização política que predominou na política do Império do Brasil, sendo
um exemplo o historiador Astolfo Senra (em um livro retratando a Balaiada), que
afirmou que “[...] a Regência criou um clima de lutas, e as atividades dos homens
públicos caracterizavam-se pelo uso e pelo abuso do poder [...]”38.
37
CALÓGERAS, Formação histórica..., p. 128.
38
SENRA, Astolfo. A Balaiada. São Luís: Instituto Geia, 2008, p. 144.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 39


Atualmente, a historiografia brasileira consolidou a ideia de que as Regências
se configuraram como experiências de riqueza ideológica, nas quais “caramurus”,
“moderados” e “exaltados” ganharam, indubitavelmente, uma voz de que não
desfrutaram durante o I Reinado, quer tenham ou não ocupado espaços oficiais
de exercício político durante esse período39. Ainda que a década de 1830 tenha
chegado à metade já com essa divisão tripartite convertida em “regressistas” e
“progressistas”, as três classificações se confundiam com as duas novas na
legislatura de 1834-183740. Apesar da maior possibilidade de articulação política
para diferentes grupos no período regencial, a complexidade política continuou,
conjugada a maiores oportunidades de exercício político se comparada à situação
anterior.
A imprensa nas Regências impulsionou a “opinião pública”, com autores, leitores
e ouvintes participando mais dos debates nacionais, somando-se à Maçonaria e
às sociedades públicas na atuação política, e cada associação manifestava seus
interesses nesse espaço público em desenvolvimento41. Os rituais cívicos, por sua
vez, se constituíram, nesse momento, como instrumentos pelos quais os governantes
“moderados” legitimaram a Monarquia Constitucional cujo futuro governante se
instruía para ocupar o posto deixado pelo pai.
As disputas por espaço político nos tempos regenciais foram estabelecidas por
diferentes meios, pois, além do debate político, a insurreição também esteve muito
presente na década de 1830. No Pará, a Cabanagem mobilizou indivíduos de baixa
condição social (assim como a Balaiada) na reivindicação pela participação política
e inserção social, e a Revolução Farroupilha foi uma importante revolta de caráter
declaradamente republicano, com duração até o II Reinado e que, nas palavras
de seus contemporâneos, reuniu a “flor da política do período”, ou seja, tinha
participantes mais “civilizados”, pessoas com boa condição econômica e projeção
social a demandarem transformações na ordem política brasileira.
Os participantes da Sabinada reivindicaram o federalismo da Monarquia
brasileira e combateram os abusos de senhores de engenho do Recôncavo Baiano.
Marcelo Basile destaca que muitos desses movimentos jamais tiveram entre
reivindicações principais a separação em relação ao restante do Brasil, e mesmo
os “exaltados” privilegiavam o federalismo à separação política42. Longe de serem
consideradas como instrumentos de transformação radical da ordem políticossocial,
as revoltas regenciais devem ser compreendidas como última alternativa diante de
reivindicações não atendidas por um governo central interpretado como “despótico”
e que não dialogava de maneira eficiente com todas as camadas sociais, muitas das
quais careciam de assistência governamental.
Nesse contexto de instabilidades e incertezas mobilizado por essas pessoas menos
favorecidas situam-se os indígenas, desde os tempos coloniais temas de políticas
39
O historiador Pandiá Calógeras classificou em quatro os grupos políticos deste período:
“absolutistas”, “republicanos”, “constitucionalistas” e “comodistas”. Cf. CALÓGERAS, Formação
histórica..., p. 135.
40
BASILE, Marcelo. “O laboratório da nação: o período regencial (1831-1840)”. In: GRINBERG,
Keila & SALLES, Ricardo (Orgs.). O Brasil Imperial – Volume II (1831-1870). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2009, p. 66.
41
BASILE, “O laboratório...”, p. 66.
42
BASILE, “O laboratório...”, p. 71.

40 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


efetivas por parte da Coroa portuguesa. Esses povos, assim como no período da
América portuguesa, continuaram como “tutelados”, de condição jurídica indefinida,
e sequer foram mencionados na Constituição outorgada de 1824.
Continuava, no desenrolar do século XIX, a necessidade de “civilizar” o índio,
desta vez sob a lógica de um país que também se queria “civilizado” nos moldes
europeus. Entre a chegada do príncipe regente D. João, em 1808, e o ano da
abdicação de D. Pedro e instauração das Regências (1831), vigorou a “guerra
justa” àqueles indígenas considerados “bravos”, isto é, os que reagiam de forma
violenta às investidas dos poderes constituídos no sentido de incutir os valores
essenciais ao “progresso” rumo a uma vida pautada em valores caros ao sistema
político liberal existente; se a atitude desses indígenas foi violenta diante desse
“processo civilizador”, a reação do governo central muitas vezes não foi diferente.
O Império do Brasil desqualificou a cultura indígena, e desejou estabelecer nesses
povos o apreço às leis, mas muitos foram aqueles que atuaram – não somente pela
violência física – demonstrando que sua cultura era forte o suficiente para se impor
diante do que era defendido pelas autoridades, processo no qual indubitavelmente
as duas partes se modificariam. Houve índios que ocuparam postos militares em
uma suposta inserção na lógica governamental, e que, seguindo a própria vontade,
voltaram à “condição de índio”, tirando a roupa, largando as armas de fogo e
voltando a usar o arco e a flecha43.
Em 1826, algumas províncias, por determinação do governo central, enviaram
apontamentos e projetos sobre a “civilização” dos índios de seus respectivos
territórios, e nesse documento prevaleceu uma imagem negativa do índio produzida
por esses agentes, não obstante a má administração de muitos responsáveis pela
política indigenista fosse apontada como forte justificativa para o estágio de
“barbárie” no qual o “gentio” ainda se encontraria44.
Além das tensões mobilizadas por pessoas livres e pelos indígenas tutelados, as
revoltas escravas foram muito importantes no Brasil desse período, sendo Carrancas,
Malês e Manuel Congo três movimentos chefiados por escravizados em uma época
na qual a escravização era substancialmente contestada em muitas partes do
mundo. A Monarquia Constitucional do Brasil chancelou a escravidão diante da
crescente necessidade de mão de obra e do consenso dos grandes proprietários de
que essas “mercadorias africanas” eram de fundamental importância para o bom
desenvolvimento das unidades de produção que possuíam.
Não cabia, nesse período, um debate a respeito da abolição, e o tratado assinado
com a Inglaterra em 1831 determinando o fim do tráfico de africanos escravizados
para as terras brasileiras foi deliberadamente desrespeitado, principalmente nessa
década em que o café plantado no Vale do Paraíba fluminense se mostrava promissor.
Rafael Marquese destaca que, entre a chegada da Família Real Portuguesa, em
1808, e o fim definitivo do tráfico, em 1850, aportaram no Brasil mais de 1,4
milhão de cativos provenientes do continente africano45.

43
ANGELO, Leonardo Bassoli. Guido Tomás Marlière e a política indigenista em Minas Gerais (1813-
1829). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora,
2014.
44
ANGELO, Guido Tomás Marlière..., p. 45.
45
MARQUESE, Rafael de Bivar. “A dinâmica da escravidão no Brasil: resistência, tráfico negreiro e

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 41


Após essas ponderações a respeito da constituição social do Brasil independente
relacionada às atividades do governo central, voltemos à discussão em torno das
ações governamentais no cotidiano administrativo regencial. Opondo-se à tendência
de todo o I Reinado, uma concretização da descentralização nas Regências ocorreu
já no dia 14 de junho de 1831, com a sanção da Lei da Regência, que fortaleceu
o poder dos deputados em detrimento dos regentes. Essa medida teve o mesmo
propósito da lei que instituiu os juízes de paz em 1827, ainda durante o Primeiro
Reinado, e da lei que criou o Código de Processo Criminal.
Foi criada, também, a Guarda Nacional, para dividir a ação policial com
as tropas de primeira linha e as forças policiais, enquanto o Exército, bastante
criticado durante o reinado de D. Pedro I por sua propalada tendência “despótica”,
era classificado como instrumento da “anarquia” em razão da ampla participação
de militares nas revoltas. Porém, a questão regencial que mais suscitou debates,
no entendimento de Marcelo Basile, foi a reforma constitucional, que garantiria a
unidade territorial.
Miranda Ribeiro apresentou esse projeto de reforma na sugestão de que,
entre outras medidas, se adotasse uma monarquia federativa, uma Regência
Una, autonomia provincial, modificação do direito de veto do imperador, fim da
vitaliciedade senatorial, do Poder Moderador, do Conselho de Estado e de boa
parte da autonomia concedida às Assembleias Provinciais: após a implementação
de todos os instrumentos centralizadores do I Reinado, tentava-se tornar a política
brasileira mais descentralizada.
Essas medidas, contudo, foram rejeitadas após uma mobilização política dos
“caramurus”, o que desencadeou uma tentativa de golpe de Estado com a finalidade
de instaurar uma regência encabeçada por Diogo Antônio Feijó e promulgar a
Constituição de Pouso Alegre, criando Assembleias Legislativas nas províncias e
revogando o Poder Moderador, a concessão de títulos de nobreza, o Conselho de
Estado, o Senado vitalício, conservando, no entanto, a monarquia hereditária46.
As tentativas extremas de mudança e as também extremas reações a elas mostram,
mais uma vez, a continuidade da instabilidade política, pois a divisão de grupos
que neste contexto se revezavam no poder provocava atitudes enfáticas: quaisquer
medidas tomadas por um grupo pareciam ameaçar a atuação dos oponentes, o
que encetava tentativas de golpe. Em meu entendimento, essas posturas radicais
são explicadas pela ausência de consolidação de um modelo político consensual
que nortearia a administração do território nacional.
A Regência promulgou, em 1832, o Código do Processo Criminal, que
centralizou toda a estrutura judicial e política do Império. Porém, dois anos depois,
no dia 12/08/1834, determinou-se uma medida descentralizadora: o Ato Adicional.
Essa lei confirmou a criação de assembleias legislativas provinciais, extinguiu o
Conselho de Estado e substituiu a Regência Trina por uma Regência Una com
um regente eleito periodicamente, o que, para alguns historiadores, configura uma

alforrias, séculos XVII a XIX”. Novos Estudos, São Paulo, CEBRAP, n. 74, mar. 2006, p. 121.
46
Feijó se tornaria regente, enfrentando a oposição de Bernardo Pereira de Vasconcellos – este,
segundo Pandiá Calógeras (2009), o fundador e chefe de um grupo intermediário entre a reação
autocrática e os “excessos” do federalismo – e de Honório Hermeto Carneiro Leão. CALÓGERAS,
Formação histórica... Ver também: BASILE, “O laboratório...”, p. 79.

42 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


“experiência republicana” na monarquia constitucional. Entre os que se opuseram
ao projeto, estavam Honório Hermeto Carneiro Leão, Baptista de Oliveira, Araujo
Vianna e Rodrigues Torres; entre os apoiadores, estavam Bernardo Pereira de
Vasconcellos, Evaristo da Veiga, Ferreira de Mello, Custódio Dias, Limpo de Abreu
e Saturnino. Os “caramurus” em sua totalidade votaram a favor, e os “exaltados” se
dividiram tendo em vista o alcance das reformas, compreendidas por uma parcela
como insuficientes.
De toda forma, o Ato Adicional significaria, para seus idealizadores e apoiadores,
a eliminação de resquícios “absolutistas” de D. Pedro I; era chegado o momento de
conceder maior autonomia e possibilidade de exercício político às elites provinciais
do Brasil por meio de Assembleias Legislativas.
Na primeira Regência Una, venceu o “moderado” Diogo Antônio Feijó sobre
o “caramuru” Hollanda Cavalcanti. Durante esse governo, ocorreram intensas
articulações em torno da possibilidade de um golpe – mais uma vez – para forçar
as transformações almejadas, mas Honório Hermeto Carneiro Leão, por meio de
dois discursos, convenceu seus colegas a desistir e continuar na legalidade para
construir as reformas. Após este evento, os “moderados” se dividiram ainda mais e
o Ministério de Feijó foi substituído por outro – de tendência “caramuru” – chefiado
por Hollanda Cavalcanti.
A idealização de um golpe nesse ambiente plural e, por outro lado, a tentativa
de combater esse ato mostram a variedade não somente de projetos, mas também
de instrumentos políticos que se manifestaram nesse contexto instável. Neste caso,
a pluralidade é atestada por meio da Câmara do Império, instância legislativa que
apresentava maior heterogeneidade no tocante às reformas e era mais suscetível
ao clima político denso e aos debates acalorados, ao contrário do Senado que,
destacadamente “caramuru”, se opunha a transformações jurídicas e políticas
substanciais; no fim deste impasse em torno de reformas mais ou menos radicais,
prevaleceu a supracitada lógica do “justo meio”.
Além de fortemente criticada pela política do Regresso, a Regência de Feijó
decepcionou muitos segmentos políticos com as reformas constitucionais que tantos
debates provocaram (e que seriam responsáveis pela queda desse regente). Um
resultado dessa decepção ocorreu 11 meses após a promulgação do Ato Adicional,
com propostas de interpretação de artigos dessa lei que não estavam plenamente
esclarecidos47, o que significava uma tentativa de retrair os efeitos da autonomia
provincial que pareciam incomodar a alguns segmentos.
Diante desta situação, a comissão das Assembleias Legislativas da Câmara,
composta pelos “regressistas” Paulino Soares de Souza, Miguel Calmon e Honório
Hermeto Carneiro Leão, elaborou um projeto versando sobre todas as atribuições
das Assembleias Legislativas que não estavam contempladas no Ato Adicional, no
sentido de amortizar possíveis efeitos descentralizadores: aproveitava-se a lacuna
de uma lei para tentar diminuir seus efeitos, no que ficou conhecido como Lei de
Interpretação do Ato Adicional.
O projeto de Interpretação do Ato Adicional foi levado adiante pela próxima
legislatura, vinculada ao Regresso (mas a lei seria sancionada apenas pelo

47
BASILE, “O laboratório...”, p. 86.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 43


imperador D. Pedro II em 1841, sob protestos dos “progressistas” de que essa
medida era “tirânica” e “inconstitucional”). Essa proposta reiterou a fluidez de
perspectivas políticas e jurídicas das Regências; o fato de haver uma rotatividade
institucionalizada entre esses dirigentes, com oportunidade de atuação para
diferentes grupos, explica em parte a incapacidade de consolidar uma tendência
de governo que norteasse a política brasileira. A meu ver, soma-se a isso a ausência
de um imperador mediador de conflitos, demandas e concepções de governança,
o que D. Pedro II buscaria realizar anos depois.
Com a conturbada saída do “moderado” Feijó, assumiu o regente Araujo Lima,
que nomeou uma legislatura próxima à política do Regresso e que originaria o
futuro Partido Conservador. Bernardo Pereira de Vasconcellos48, adepto dessa
corrente, afirmou que “[...] Hoje [...] é diverso o aspecto da sociedade: os princípios
democráticos tudo ganharam e muito comprometeram; a sociedade que então
corria risco pelo poder, corre agora risco pela desorganização e pela anarquia [...]”49.
Era claro o receio desse “regressista” diante de medidas que muitos de sua corrente
política julgavam “perigosas” para a estabilidade da nação; os agentes dessa
vertente entendiam que as reformas deveriam existir e eram incontestavelmente
necessárias, mas a abrangência dessas mudanças deveria ser cautelosa de forma a
garantir a unidade do Império do Brasil.
Nesse sentido, quaisquer alterações na dinâmica política provenientes
de reformas instituídas por determinada corrente, fosse ela “regressista” ou
“progressista”, resultavam em acusações e adjetivos peculiares, como “tirânico”,
“anárquico”, “desordeiro”, entre outros. Para os “regressistas”, medidas radicais
poderiam comprometer o estágio de “civilização” do país, justificando o papel de
elementos como o Conselho de Estado, a vitaliciedade do Senado, entre outras
instâncias que balanceariam reformas e segurança institucional. Os “progressistas”,
por sua vez (que originariam o Partido Liberal), eram favoráveis à prevalência do
Legislativo sobre o Executivo, à autonomia provincial e, sobretudo, à liberdade
em manifestação mais abrangente, tão temida pelos adversários do Regresso.
Mais importante é destacar que, independentemente de uma regência instaurar ou
não determinada reforma, não havia garantia de que essa medida continuaria no
próximo governo, iniciado com o término – natural ou não – do anterior.
A Regência de Araujo Lima enfrentou revoltas em algumas partes do Brasil,
e esse regente revogou o decreto que restringia a liberdade de imprensa, criou
instituições de ensino e retomou o ritual do beija-mão do imperador, então com 13
anos de idade. Os oposicionistas criticaram a volta desse ritual, que caracterizavam
como “aristocrático”50, e que remontava aos tempos de Antigo Regime com a
função de reafirmar e reproduzir a estrutura monárquica vigente, um “enunciado
performativo”51 – apropriando-me de expressão de Pierre Bourdieu – muito

48
Esse estadista foi acusado de mudar substancialmente suas concepções em relação às ideias que
defendera nos primeiros anos do Império, ao que respondeu que, se antes sua luta era contra
o despotismo real, posteriormente os esforços se concentraram em combater as pretensões
democratizantes dos radicais. Cf: COSTA, Da Monarquia..., p. 121.
49
SALDANHA, Flávio Henrique Dias. Os oficiais do povo: a Guarda Nacional em Minas Gerais
oitocentista, 1831-1850. São Paulo: FAPESP, 2006, p. 72.
50
BASILE, “O laboratório...”, p. 94.
51
BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Tradução de Mariza Corrêa. 9. ed.

44 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


válido para legitimar a dinastia de Bragança no poder imperial assim que o jovem
imperador estivesse em condições de ser coroado52.
Neste período ocorreu, novamente, uma tentativa de golpe: os progressistas
articularam a antecipação da maioridade de Pedro de Alcântara sendo que, pela
Constituição de 1824, o futuro monarca assumiria o trono somente quando
completasse 18 anos de idade. Em 15 de abril de 1840, os liberais criaram o
Clube da Maioridade, ou Sociedade Promotora da Maioridade, na casa de José
Martiniano de Alencar. Os debates se desenvolveram e chegaram à apreciação do
futuro dirigente do Brasil, que manifestou seu desejo de assumir o Trono o quanto
antes. Em 23 de julho de 1840, o período regencial chegava ao fim, e iniciava-se o
Segundo Reinado: os súditos/ cidadãos do Brasil tinham, novamente, um monarca
à frente do governo desse vasto território.
Em meu entendimento, a Regência foi um rico período de experimentações
para o Brasil, momento no qual houve maior espaço para exercer a política em
suas múltiplas manifestações. Os regentes, deputados, senadores e ministros
protagonizaram mudanças na política brasileira, outrora muito ligada à
personalidade de D. Pedro I e da herança política deixada pelo Antigo Regime da
Casa de Bragança. Apesar do fundamental papel desempenhado na construção
do liberalismo brasileiro, o primeiro imperador empreendeu uma centralização que
por vezes limitou transformações políticas asseguradas pela Constituição.
De meu ponto de vista, à tradição de Antigo Regime de D. Pedro I deve ser
somada sua declarada tarefa de manter a unidade de um território que ele ajudara
a se tornar independente politicamente por meio da não submissão às ordens
emanadas das Cortes e de D. João VI, e seu compromisso com o liberalismo é
atestado pelo projeto de uma Constituição poucos meses após o Sete de Setembro,
ainda que a Assembleia tenha sido dissolvida posteriormente.
Octavio Tarquínio de Sousa afirmou que o fato de muitos ministros dos primeiros
anos do Império serem portugueses motivou a desconfiança nos adversários do
imperador, que o acusavam de pender mais para o lado de Portugal do que do
Brasil, ideia mencionada anteriormente. Consequentemente, isso levou a acusações
de que esse monarca se dizia liberal, mas, na realidade, “se tratava de mais um
governante absolutista”; ser membro da dinastia de Bragança significava, para o
primeiro governante liberal do Brasil, dispor de um peso a dificultar seu governo.
Outro fator a ser considerado é o Poder Moderador. Instituído durante o I Reinado
e influenciado pelo teórico político Benjamin Constant, teria, segundo oposicionistas
de D. Pedro I, facilitado a atuação centralizadora e pessoal do monarca53. De todo
modo, a partir da variedade de projetos e da complexidade política dos primeiros
anos de Brasil Império conclui-se que, por mais que se debatesse qual forma de
governo deveria ser adotada, era fundamental garantir a consistência de um regime
recente, buscando-se os mais diversos meios para que fosse legitimado. Apesar de

Campinas: Papirus, 2008, p. 06.


52
Mais uma vez é atestado o compromisso da Regência com a continuidade da Monarquia
Constitucional do Brasil.
53
DOLHNIKOFF, Miriam. “Representação política no Império”. In: ANPUH. Anais do XXVI Simpósio
Nacional de História. São Paulo: ANPUH, 2011, p. 01. Disponível em: <http://www.snh2011.
anpuh.org/>. Acesso em: 13 set. 2014.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 45


esse compromisso ter sido, em meu entendimento, seguido durante o I Reinado e o
posterior período das Regências, deve ser lembrado que os políticos do Brasil não
conseguiam consolidar uma forma estável de governar, isto é, pendia-se para a
centralização e para a descentralização de acordo com as mudanças de dirigentes.
Da centralização excessiva de Pedro I, passou-se à descentralização/centralização
do período regencial, que não conduzia de modo equilibrado a política no Brasil,
além de ter enfrentado revoltas em muitas partes do país, cujos participantes tinham
demandas que queriam em pauta para que o heterogêneo território tivesse o pleno
reconhecimento de seus súditos/cidadãos, muitos dos quais, como já salientado,
não participavam ativamente das decisões políticas provinciais e nacionais.
A antecipação da coroação do imperador D. Pedro II pareceu uma tentativa
extrema de ordenar a monarquia constitucional em meio à efervescência de
projetos e demandas não atendidos em razão da ausência de um consenso. No
início de seu reinado, o segundo imperador buscou articular-se no sentido de
estabilizar o sistema político do qual tomou frente precocemente, pois a intenção
dos liberais que pressionaram por sua coroação foi procurar meios de consolidar
o governo imperial no gerenciamento de interesses entre liberais e conservadores,
que acirravam a disputa por espaço e poder no cenário nacional sem manter
conquistas políticas e jurídicas, diluídas assim que determinada corrente assumia o
poder e considerava deletérias as construções do lado adversário.
Nesse movimento político e jurídico, a monarquia constitucional do Brasil se
tornava mais descentralizada/ centralizada, ainda que não tenha amadurecido a
ideia – ao menos não de forma determinante e consensual – que o Brasil mudasse
seu governo. A articulação do jovem imperador Pedro II com as elites políticas
e econômicas nos primeiros anos se mostrou necessária e fundamental para
conter, principalmente, dois importantes movimentos desse período: a Revolução
Farroupilha e a Revolta Liberal de 1842, esta última considerada um dos últimos
entraves à efetivação da monarquia centralizada no Brasil.
Em suma, constata-se que os vinte primeiros anos de Brasil independente
se configuraram como um período complexo para a história desse país. Foram
interrompidos, ainda na Assembleia Constituinte, debates necessários para que
se chegasse a um consenso a respeito da formação política que contemplasse
a mais variada gama de interesses, e prevaleceu o projeto de uma monarquia
Constitucional, centralizada e dirigida pela dinastia de Bragança. O desenrolar
dos acontecimentos demonstrou que esse projeto de Estado-nação brasileiro se
ajustaria à realidade do país, contemplando os interesses políticos e econômicos dos
grandes proprietários rurais, aos quais seria concedida capacidade de articulação
e considerável poder de decisão. A heterogeneidade manifestada nas Regências e
continuada no princípio do II Reinado foi sucedida pelo amadurecimento político e
pela consequente estabilização do Império do Brasil, na segunda metade do século
XIX.



46 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


RESUMO ABSTRACT
O processo de construção do Estado nacional no The process of constructing of National State of
Brasil foi complexo, momento em que pessoas Brazil was complex, moment in which people
com diversos interesses e adeptas de diferentes with various interests and adept of different
correntes de pensamento pretenderam legitimar schools of thought intended to legitimize values
valores e práticas em um contexto de participação and practices in a context of restricted political
política restrita. Neste artigo, pretende-se analisar participation. In this paper, we intend to analyse
essa complexidade por meio das tensões nos this complexity by means of tensions in debates
debates estabelecidos nas instâncias oficiais established in the official instances by the agents
pelos agentes do I Reinado e das Regências, of I Reign and the Regencies, as well as the
bem como a situação das pessoas que não situation of people who did not enjoy the same
desfrutavam dos mesmos direitos políticos dos rights of independent creators of Brazil. The
idealizadores do Brasil independente. As fontes primary sources used are official documents from
primárias utilizadas são documentos oficiais de various provenances.
diversas procedências.
Keywords: Liberalism; Empire of Brazil;
Palavras Chave: Liberalismo; Brasil Império; Constitutional Monarchy.
Monarquia Constitucional.

Artigo recebido em 07 mai. 2015.


Aprovado em 05 nov. 2015.

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ENTRE A IGREJA E O IMPÉRIO:
DOM MARCOS ANTONIO DE SOUSA,
O PRIMEIRO BISPO DO BRASIL INDEPENDENTE

Joelma Santos da Silva1

Introdução

O Brasil independente herdou da antiga metrópole lusitana uma cultura política


marcada por uma forte imbricação entre as esferas temporais e espirituais, sendo
o Catolicismo estabelecido como a religião do Estado, por meio da Constituição
de 1824, promulgada sob a invocação da Santíssima Trindade. O Império
brasileiro não pôde prescindir das instâncias eclesiásticas para a sua organização e
institucionalização, nem substituir a visão religiosa que dava sentido à existência de
seus habitantes por um ideal estritamente secular2.
Os clérigos, envolvidos com a política desde o início do empreendimento
colonial, foram importantes agentes no período de conflitos que resultaram na
emancipação política do Brasil. Participaram de debates públicos, deliberações,
e constituíram um dos principais grupos eleitos nos pleitos que marcaram
o período de transição entre o Reino Unido e o Império: as eleições para as
Juntas Provisórias de Governo, as Cortes de Lisboa, a Constituinte de 1823 e a
Legislatura de 18263.
Um dos mais destacados desses clérigos foi Marcos Antonio de Sousa, deputado
eleito às Cortes de Lisboa de 1820 e para a Assembleia Geral e Legislativa de
1826, o primeiro bispo do Brasil independente, indicado pelo Imperador D.
Pedro I ainda durante aqueles trabalhos legislativos. Ele participou ativamente de
importantes debates na Assembleia sobre a relação que se estabeleceria, a partir
da emancipação política brasileira, entre o Estado e a Igreja. Ficou conhecido na
historiografia, por suas ações no bispado do Maranhão e defesa das prerrogativas
da Cúria Romana em assuntos ligados a religião, como um dos precursores do
ultramontanismo nestes territórios4.
Apesar de sua destacada ação nas esferas da política e da religião no Brasil, há
um vazio historiográfico sobre a vida e as práticas de Marcos Antonio de Sousa.

1
Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Maranhão. Bolsista da FAPEMA
– Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão.
E-Mail: <joelmasantos@gmail.com>.
2 NEVES, Guilherme Pereira das. “A religião do Império e a Igreja”. In: GRINBERG, Keila & SALLES,
Ricardo (orgs.). O Brasil Imperial – Vol. 1: 1808-1831. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009,
p. 377-428.
3
SILVA, Joelma Santos da. Por mercê de Deus: Igreja e Política na trajetória de Dom Marcos
Antonio de Sousa (1820-1842). Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Universidade Federal
do Maranhão. São Luís, 2012; SOUZA, Françoise Jean de Oliveira. Do altar à tribuna: os padres
políticos na formação do Estado Nacional brasileiro (1823-1841). Tese (Doutorado em História).
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2010.
4
SILVA, Por mercê de Deus...

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Os trabalhos que citam o clérigo trazem poucos dados de caráter biográfico5 e
alguns de caráter laudatório sobre o seu bispado no Maranhão6. Outros se limitam
a destacar a importância que teve, junto a D. Romualdo Antonio de Seixas,
para a inserção do ultramontanismo no Brasil7 e na defesa do modelo político-
administrativo implantado por D. Pedro I8.
Partindo da perspectiva que a esfera religiosa, nesse período, não era autônoma
e dissociada da política, propomos uma análise da biografia e da trajetória de
D. Marcos Antonio de Sousa que não desconsidere a sua identidade religiosa e
política, expondo as possíveis articulações, influências, conflitos e mediações entre
os diferentes espaços nos quais estava inserido.
Como assinalou Giovanni Levi9, atualmente nos encontramos em uma fase
intermediária, onde não é possível, nem desejável, investigar a vida de um indivíduo
abstraindo-o de todo o evento histórico, ou explicar um evento histórico ignorando
e uniformizando os destinos individuais. Nesse sentido, por meio da mediação entre
a biografia de D. Marcos Antonio de Sousa e o contexto no qual ele estava inserido,
é possível entender as mudanças na relação da Igreja com o Estado no processo
de construção do Império no Brasil. Bem como pensar sobre a Reforma Católica
de inspiração tridentina e ultramontana que começou a ser operacionalizada pelos
bispos no Brasil, especificamente no Primeiro Reinado e Regências.
Entendendo que “[...] cada indivíduo é uma síntese individualizada e ativa de
uma sociedade, e uma reapropriação singular do universo social e histórico que o
envolve”10, é possível entender o social a partir de uma biografia, de uma apropriação
particular do contexto vivido. Isso também permite ao pesquisador conhecer as
experiências individuais e as visões subjetivas dos processos institucionais mais
amplos, trazendo novas perspectivas, dados e interpretações à análise de temas
consagrados como o Brasil Império.

Aspectos biográficos de um padre político

Marcos Antonio de Sousa nasceu na Freguesia de São Pedro Velho da Cidade e


Arcebispado da Bahia, aos 10 de fevereiro de 1771, filho de Francisco Manuel de

5
BLAKE, Augusto Vitorino Alves Sacramento. Dicionário bibliográfico brasileiro. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1883-1902; MARQUES, César Augusto. Dicionário histórico-geográfico da
Província do Maranhão. São Luís: Edições AML, 2008.
6
MEIRELES, Mário Martins. História da Arquidiocese de São Luís do Maranhão. São Luís: SIOGE,
1977; PACHECO, D. Felipe Condurú. História eclesiástica do Maranhão. São Luís: Departamento
de Cultura do Estado do Maranhão, 1968; SILVA, D. Francisco de Paula. Apontamentos para a
História Eclesiástica do Maranhão. Bahia: Typographia de São Francisco, 1922.
7
BEOZZO, José O. (coord.). História da igreja no Brasil: segunda época – século XIX. Petrópolis:
Vozes, 1992; HAUCK, João Fagundes. “A Igreja na emancipação (1808-1840)”. In: BEOZZO,
História da igreja no Brasil..., p. 07-139; SANTIROCCHI, Ítalo Domingos. Os ultramontanos no
Brasil e o regalismo do Segundo Império (1840-1889). Tese (Doutorado em História). Pontifícia
Universidade Gregoriana. Roma, 2010.
8
CARVALHO, M. E. Gomes de. Os deputados brasileiros nas Cortes Geraes de 1821. Porto: Livraria
Chardron, 1912; SOUZA, Do altar à tribuna..., p. 212.
9
LEVI, Giovanni. “Os usos da biografia”. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes
(orgs.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1996, p.167-182.
10
GOLDENBERG, Mirian. A arte de pesquisar: como fazer pesquisa qualitativa em Ciências Sociais.
Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 36.

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Sousa Costa e Dona Anna Joaquina de Sousa, segundo a declaração do mesmo
em seu último testamento, de 07 de setembro de 1842, existente na Coordenadoria
do Arquivo e Documentos Históricos do Tribunal de Justiça do Maranhão.
Seu pai, Francisco Manuel de Sousa Costa, era bacharel e foi Ouvidor das
Alagoas, de acordo com o livro de “Documentos manuscritos ‘avulso’ da Capitania
da Bahia: 1604-1828”. No site do Arquivo Nacional da Torre do Tombo11, consta
uma carta de 19 de julho de 1770, direcionada à D. José, onde ele já aparece
como Desembargador da Relação da Bahia.
Sobre a mãe de Marcos Antonio não foi possível encontrar dados, nem mesmo
possível identificar nomes de irmãos. Porém, no seu testamento constam três
sobrinhos, Dona Florinda Romana de Sousa, sua irmã Dona Alexandrina e Firmino
Antonio de Sousa, além de sobrinhos-netos, aos quais deixou seus bens existentes
na cidade da Bahia.
Quanto à sua formação escolar, autores que tratam de aspectos da sua biografia
destacam o quanto era ilustrada em relação aos demais clérigos do período. César
Marques afirma que “[...] desde os primeiros anos deu provas do grande engenho
de que era dotado”12. Em seus “Apontamentos para a Historia Ecclesiastica do
Maranhão”, D. Francisco de Paula e Silva define como qualidades a “Intelligencia
precoce e applicação assídua [que] destacaram logo o joven estudante dos seus
collegas. Espirito serio e alma aberta aos nobres ideaes [...]”13. D. Felipe Condurú
Pacheco (1968) reitera esta opinião.
Foi sagrado na ordem de presbítero secular entre os 22 e 23 anos, como afirma
seu testamento, e fez seus estudos secundários na Bahia14. Pelos escassos dados
biográficos encontrados, não foi possível precisar com exatidão o local e o nível
de formação escolar de Marcos Antonio de Sousa, mas presumimos, pela sua tão
comentada erudição e pela sua origem social, que tenha sido de nível superior.
Corrobora com essa ideia, um escrito do padre que consta da lista de “Papéis do
Brasil 1550/1818”, seção do Guia Geral dos Fundos da Torre do Tombo, entre
as obras de caráter monográfico, intitulado “Princípios de literatura segundo a
doutrina de Cícero, Quintiliano, Abade Batteaux, e Dr. Blair”15.
Após a sua sagração foi instituído vigário colado na freguesia de Nossa Senhora
da Vitória, na capitania da Bahia, onde nascera e fora batizado, exercendo também
por muitos anos o cargo de examinador sinodal e secretário do governo provincial,
até ser eleito em 1820 para deputado às Cortes de Lisboa16.

11
FARINHA, Maria do Carmo Jasmins Dias et al. Guia geral dos fundos da Torre do Tombo:
colecções, arquivos de pessoas singulares, de famílias, de empresas, de associações, de comissões e
de congressos. Lisboa: IAN/TT, 2005.
12
MARQUES, Dicionário histórico-geográfico..., p. 236.
13
SILVA, Apontamentos para a História..., p. 195.
14
Françoise Souza acrescenta que foi no Seminário de São Dâmaso, em Salvador, que D. Marcos fez
seus estudos secundários. Porém, de acordo com o site do Instituto de Patrimônio Artístico e Cultural
da Bahia, o Seminário de São Dâmaso foi fundado somente em 15 de agosto de 1815, sendo
batizado com esse nome em homenagem ao seu criador, o ex-bispo de Málaca e 14º arcebispo
Primaz do Brasil (1815-1816), D. Frei Francisco de São Dâmaso Abreu Vieira. Como a ordenação
de Marcos Antonio de Sousa aconteceu entre 1793 e 1794, não é possível que ele tenha estudado
nessa instituição. Ver: SOUZA, Do altar à tribuna..., p. 456.
15
FARINHA et al, Guia geral dos fundos..., p. 35.
16
BLAKE, Dicionário bibliográfico brasileiro, p. 221.

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Marcos Antonio de Sousa também foi vigário da freguesia do Siriri, na capitania
do Sergipe, e em 1808 escreveu um livro pouco divulgado na época, mas que
atualmente é um dos documentos fundamentais da história local, “Memória sobre
a Capitânia de Sergipe: sua formação, população, produtos e melhoramentos de
que é capaz”, que teve a publicação inicial no Rio de Janeiro, na Tipographia do
Jornal do Commercio, no ano de 187817.
Em 1820, no contexto dos conflitos da Revolução do Porto, o então vigário
da freguesia de Nossa Senhora da Vitória, Marcos Antonio de Sousa, foi eleito
deputado às Cortes de Lisboa pela Bahia. Segundo Marques, os “Seus talentos e
virtudes lhe granjearam as simpatias de seus comprovincianos, que o elegeram”18,
e ainda “Mostrou tanta aptidão e conhecimento dos negócios políticos, que os seus
comprovincianos julgaram não achar melhor representante de seus interesses”19.
A sua atuação na constituinte portuguesa foi consagrada pela historiografia
como de uma defesa vigorosa dos interesses da Igreja e do Estado, o que reflete o
investimento de D. Marcos em sua auto-representação enquanto fiel subordinado
ao imperante e à instituição católica, possível de ser observada em seus escritos
pessoais direcionados ao futuro Imperador do Brasil, D. Pedro I. No texto da
constituinte afirma que:

O respeito aos imperantes, e autoridades constituidas


não só é ordenado pela religião, como a primeira lei dos
codigos de todas as nações. A reverencia a magestade dos
principes, muito concorre para a liberdade bem regulada,
para a boa ordem social, da qual depende a felicidade das
himanas sociedades.20

Ele também ficou conhecido pela defesa da liberdade da imprensa religiosa,


além do sustento do foro eclesiástico, sendo exaltado partidário da Independência
do Brasil, o que lhe rendeu ascensão social, política e religiosa21.
D. Marcos investiu na consagração de uma imagem pessoal vinculada a
momentos importantes e elementos vitoriosos do jogo de poder entre diferentes
grupos, no período de reorganização do cenário político do Brasil. Isso pode ser
entendido como uma estratégia de demarcação e valorização de seu capital social,
que naquele período, em meio a uma cultura de contraprestação de favor, era
marcadamente personalizado22.

17
ALVES, Francisco José. “Contribuição à arqueologia de Sergipe colonial”. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico de Sergipe, Aracaju, n. 34, 2003-2005, p. 39-53.
18
MARQUES, Dicionário histórico-geográfico..., p. 236.
19
SILVA, Apontamentos para a História..., p. 195.
20
MORAES, A. J. de Mello. Historia do Brasil-Reino e Brasil-Imperio. Rio de Janeiro: Typografia de
Pinheiro, 1871, p. 21.
21
BLAKE, Dicionário bibliográfico brasileiro, p. 221; CARVALHO, Os deputados brasileiros..., p.
181, p. 195, p. 237; MARQUES, Dicionário histórico-geográfico..., p. 236; MORAES, Historia
do Brasil-Reino..., p. 321; PACHECO, História eclesiástica do Maranhão, p. 139, p. 144, p. 155;
SANTIROCCHI, Os ultramontanos no Brasil..., p. 198, p. 270, p. 321; SILVA, Apontamentos para a
História..., p. 195; SOUZA, Do altar à tribuna..., p. 230, 256, 335; VARNHAGEN, Francisco Adolfo
de. História da independência do Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2010.
22
CAMPANTE, Rubens Goyatá. “O patrimonialismo em Faoro e Weber e a Sociologia brasileira”.

52 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


As ações dos deputados brasileiros nas Cortes ganharam um sentido patriótico
e heróico após a emancipação do Brasil. Pode-se perceber isso, principalmente,
pelo sentido de consagração que possuem os adjetivos utilizados para descrever
Marcos Antonio de Sousa na obra de Gomes de Carvalho, onde este é descrito
como “astro de primeira grandeza da deputação americana”, “varão ponderado
de alto quilate”, “suave padre”, “sábio”23.
Em outras obras aparecem adjetivações, elogiando sua qualidade moral e
intelectual, onde é possível perceber um claro investimento da formação da
imagem do bispo como modelo de conduta política, religiosa e moral. Assim, César
Marques chama D. Marcos de “piedoso”, “ilustre prelado”, “eloqüente voz”24.
Pacheco destaca o seu “pontificado fecundo”, por ser ele uma “patriota”, de grande
“estatura moral e intelectual”, “apóstolo dedicado”25. E Meireles chama-o de “[...]
o maior e mais digno dos prelados da diocese”26.
Após a impossibilidade de conciliação dos interesses das Cortes com os dos
deputados brasileiros e a proclamação da Independência, estes romperam com
a constituinte portuguesa e voltam ao Brasil27. Entre eles, Marcos Antonio de
Sousa que, em uma ratificação do protesto feito no congresso de Lisboa, em 11
de setembro de 1822, apresentou a D. Pedro I, no ano de 1824, um relatório
detalhado, onde expõe todas as ocorrências que se deram em Lisboa durante as
sessões das Cortes.
Por meio desse relatório é possível perceber a clara opção política do futuro bispo
pela causa brasileira, e posicionamento favorável ao regime político-administrativo
proposto pelo Príncipe Regente D. Pedro. Isso também é explicitado em uma carta
que o clérigo enviou, de Londres, a um amigo na França, em 1822, onde escreveu
que “Nomeado deputado muitas vezes repeti, que fazendo o exame mais reflexo
não descobris os laços, porque a Portugal ficaria ligado o Brasil, que por 15 annos
em si tinha a soberania”28.
Tal posicionamento rendeu como recompensa ao ainda vigário Marcos Antonio
de Sousa, o título honorífico de Comendador da Ordem de Cristo e Dignitário da
Ordem da Rosa, favorecendo sua ascensão na elite eclesiástica por meio da sua
prática política29.
Para além da questão da melhor remuneração oferecida por essas insígnias
eclesiásticas, o fato de os padres as ostentarem dava-lhes prestígio e status junto
à sociedade, favorecendo sua incorporação aos cabidos. Isso ocorria porque a
tendência da Igreja era privilegiar os diplomados para os postos mais elevados
de sua hierarquia, pois se acreditava que o segmento do clero mais próximo do
arcebispo e dos bispos deveria ser mais letrado, contrastando com a média geral
dos padres brasileiros.

DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 46, n. 1, 2003, p. 153-193.
23
CARVALHO, Os deputados brasileiros..., p. 181, p. 195, p. 237.
24
MARQUES, Dicionário histórico-geográfico..., p. 237.
25
PACHECO, História eclesiástica do Maranhão, p. 139, 144,155.
26
MEIRELES, História da Arquidiocese..., p. 221.
27
COSTA, Emília Viotti. Da monarquia à república: momentos decisivos. São Paulo: Editora da
UNESP, 1999.
28
MORAES, Historia do Brasil-Reino..., p. 322.
29
MARQUES Dicionário histórico-geográfico..., p. 236; PACHECO, História eclesiástica do Maranhão,
p. 138; SILVA, Apontamentos para a História..., p. 203.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 53


Em 1825, por meio do prestígio adquirido no contexto da Independência,
Marcos Antonio de Sousa foi eleito Deputado Geral pela Bahia, para a Assembleia
Geral do Império (1826 -1829), que regulamentaria a nova Constituição. Nas
reuniões da Legislatura de 1826 ficou conhecido pela sua defesa do monarca,
do Império e da Igreja Católica, destacando-se dos demais parlamentares pela
sua ativa participação nos debates. É reconhecido, junto ao futuro Arcebispo da
Bahia, Romualdo Antonio de Seixas, como um dos principais representantes dos
chamados “governistas” ou “ministeriais”, além de representante do início do
movimento de Reforma Católica Ultramontana no Brasil30.
Marcos Antonio de Sousa foi o primeiro bispo nomeado por D. Pedro I, após
a emancipação política do Brasil. Foi indicado para a Diocese de São Luís do
Maranhão por decreto imperial de 12 de outubro de 1826, mas foi confirmado pelo
Papa Leão XII somente em 26 de julho de 1827, recebendo a sagração episcopal
no Rio de Janeiro, em 28 de outubro daquele ano. Comunicada sua sagração
ao Cabido do Maranhão, tomou posse da diocese em 19 de março de 1828, por
intermédio dos seus procuradores, os cônegos José Constantino Gomes de Castro
e José João Beckman e Caldas31.
Sobre a relação marcadamente personalista que se estabeleceu, no início do
período imperial, entre a participação dos clérigos na política e a sua nomeação
para altos cargos na elite eclesiástica, é necessário destacar que:

[...] mais do que o cargo político ocupado pelo padre,


a nomeação ao posto de bispo possuía forte vinculação
com o seu alinhamento político. Aliás, seria difícil esperar
o contrário do processo de escolha de um cargo que,
pertencente à alta burocracia estatal, possuía indiscutível
influência político-religiosa no cenário nacional. Não por
acaso, aqueles que foram feitos bispos por d. Pedro I, a
saber, José Caetano da Silva Coutinho e Marcos Antônio
de Souza, foram fiéis defensores do monarca e do modelo
de governo por ele instituído.32

À frente da diocese maranhense a partir de 1830, D. Marcos Antonio de


Sousa realizou várias melhorias patrimoniais e administrativas. Seu bispado ficou
conhecido como um dos mais frutíferos do Maranhão, marcado pela defesa das
ordens religiosas e pela fundação do Seminário de Santo Antônio em 1837.
A vinda de D. Marcos Antonio de Sousa para o bispado do Maranhão não
representou um abandono, ou mesmo declínio, de sua carreira política. Pelo contrário,
com o fim da Legislatura de 1826 não se reelegeu deputado ou senador, mas foi
alçado ao degrau mais alto do Legislativo, sendo nomeado membro do Conselho
de Sua Majestade Imperial. Graham33 afirma que a nomeação para o Conselho de

30
BEOZZO, História da igreja no Brasil..., p.14, p. 83; SANTIROCCHI, Os ultramontanos no Brasil...,
p. 85; SOUZA, Do altar à tribuna..., p. 212.
31
BLAKE, Dicionário bibliográfico brasileiro, p. 221; SILVA, Apontamentos para a História..., p. 203.
32
SOUZA, Do altar à tribuna..., p. 125.
33
GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do século XIX. Tradução de Celina Brandt. Rio

54 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


Estado é o coroamento máximo de uma carreira política no Império, e José Murilo
de Carvalho34 considera os seus integrantes como o topo da elite política.
Durante o seu bispado foi várias vezes eleito deputado provincial, ocupando a
cadeira de Presidente da Assembleia Legislativa Provincial do Maranhão entre os
anos de 1838-184235. A ocupação deste cargo favoreceu suas atividades enquanto
bispo, pois, lhe permitiu colocar na pauta da Assembleia questões relativas à Igreja,
anteriormente desprivilegiadas, possibilitando a aprovação da criação do Seminário
Diocesano de Santo Antônio e o subsídio de dois contos para a sua manutenção.
Conseguiu também evitar, em parte, que os padres seculares se dedicassem a
outras atividades por meio da regularização do pagamento das côngruas.
A despeito dos títulos honoríficos por ele possuídos, os documentos oficiais do
bispado maranhense, em geral, demarcavam o seu duplo pertencimento a elite
política e a elite eclesiástica. Assim, apresentava-se e era apresentado como um
bispo entre a Igreja e o Império, “Dom Marcos Antonio de Sousa, por Merce de
Deos e da Santa Sé Appostolica Bispo do Maranhão do Conselho de Sua Magestade
Imperial”36.

O posicionamento político-religioso de D. Marcos na Legislatura de 1826

Marcos Antonio de Sousa chegou a Legislatura de 1826, eleito pela província


da Bahia, contando com grande experiência na ocupação de cargos políticos
anteriores, reconhecido como grande defensor da Independência do Brasil e do
Imperador D. Pedro I pela sua atuação nas Cortes de Lisboa.
Junto ao futuro Arcebispo da Bahia, Romualdo Antonio de Seixas, foi um dos
principais representantes dos chamados “governistas”, defensores de D. Pedro I na
Câmara dos Deputados. Eram chamados ironicamente, pelos deputados contrários
às intenções centralizadoras do Imperador, de “ministeriais”. Apesar da liderança
política assumida por D. Romualdo dentro e fora do Parlamento, D. Marcos foi
o clérigo que mais vezes frequentou a tribuna falando a favor de D. Pedro I e
em defesa dos interesses do governo, muitas vezes justificando erros e tentando
amenizar os embates37.
A partir das normas relacionadas ao provimento de cargos eclesiásticos,
estabelecidas na Constituição de 1824, as nomeações dos altos cargos eclesiásticos
eram orientadas por interesses do governo imperial. Assim, os reconhecidos
governistas Marcos Antonio de Sousa e Romualdo Antonio de Seixas foram
feitos bispo e arcebispo, respectivamente, por D. Pedro I, ainda durante aquela
Legislatura de 1826.

de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997.


34
CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial/ Teatro de sombras:
a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
35
COUTINHO, Milson. O poder legislativo do Maranhão (1830-1930). São Luís: Assessoria de
Comunicação Social da Assembléia Legislativa do Maranhão, 1981.
36
ARQUIVO Público do Estado do Maranhão. Acervo da Arquidiocese do Maranhão. Autos da Câmara
Eclesiástica. Autos de Visita Pastoral, Caixa 20. 1728-1850. Inventário de avulsos (manuscritos), vol.
1. Secretaria do Governo. Ofícios do bispo diocesano do Maranhão ao Presidente de Província do
Maranhão. 1727-1842.
37
SILVA, Por mercê de Deus..., p. 62; SOUZA, Do altar à tribuna..., p. 230.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 55


Em se tratando especificamente da escolha dos bispos, Santirocchi destaca que
“[...] o Governo brasileiro as considerava verdadeiras nomeações imperiais. O
Imperador escolhia o sacerdote que segundo ele, seus conselheiros e os ministros,
era o mais indicado para governar uma sede episcopal e o nomeava”38.
As divergências políticas na Câmara dos Deputados aparecem já na apresentação
do Voto das Graças39 ao trono, quando D. Marcos foi eleito, por unanimidade,
para prepará-lo e proferi-lo ao Imperador. Ao final do Voto, o deputado Clemente
Pereira aditou a fala do clérigo, tratando dos esforços feitos pelo Imperador para
a conservação da província Cisplatina, que acabou sendo perdida. Diante deste
ato a Câmara se dividiu, pois haviam concordado em não falar diretamente dessa
questão, não nomeando a dita província “[...] para que a honra nacional não
sofresse míngua”40.
Sobre esse episódio, D. Marcos afirmou que o seu Voto conformou-se com as
bases estabelecidas pela Câmara, tratando a questão da Cisplatina de maneira geral,
agradecendo ao Imperador pelo empenho em manter a integridade do território e
sustentar a honra nacional, a partir das bases que lhe foram dadas. Finalizou sua
fala demonstrando o intento de não participar de polêmicas, afirmando que se
houve motivos para desagradar não seria novamente orador.
Porém, as leituras dos Anais da Câmara dos Deputados demonstram que não foi
um comportamento meramente reativo que D. Marcos apresentou na Legislatura
de 1826, como é possível constatar nas questões mais específicas ligadas à relação
entre a Igreja e o Estado. O bispo participou ativamente dos debates em torno das
Bulas Solicita Catholicae Gregis Cura e Praeclara Portugaliae, que concedia ao
Imperador do Brasil poderes de padroeiro da Igreja, semelhantes aos que possuíam
os reis de Portugal41.
Após a emancipação política do Brasil, o Imperador enviou a Roma, em 1824, o
ministro Monsenhor Francisco Correa Vidigal e o seu secretário, Vicente Antonio da
Costa, com o objetivo de conseguir do Papa o reconhecimento da Independência
do Brasil e obter uma concordata concedendo ao Imperador e seus herdeiros o
gozo dos direitos do Padroado42. Também foi solicitado o estabelecimento de uma

38
SANTIROCCHI, Os ultramontanos no Brasil..., p. 170.
39
O Voto de Graças era o discurso oficial que a Assembleia Legislativa formulava e proferia ao
Imperador como resposta da Fala do Trono, que era proferida deste para a Assembleia, na abertura
dos seus trabalhos legislativos.
40
BRASIL. Anais da Câmara dos Deputados: 1826-1829. Brasília: Câmara dos Deputados, s.d.
Disponível em: <http://www.camara.gov.br/>. Acesso em: 03 mai. 2012.
41
NEVES, “A religião do Império...”, p. 382-383.
42
O Padroado significava uma troca de obrigações e direitos entre a Igreja e um indivíduo, ou
instituição, que assumia assim a condição de seu padroeiro. O Padroado Régio e a função de
padroeiro do Grão-mestre da Ordem de Cristo foram concedidos e unificados pela Santa Sé na
figura do monarca português, o que implicou em uma série de obrigações entre a Igreja e o Estado,
em Portugal e nas suas colônias. Tratava-se de um instrumento jurídico que possibilitava um domínio
direto da Coroa nos negócios religiosos, especialmente nos aspectos administrativos, jurídicos e
financeiros. Os aspectos religiosos também eram afetados por tal domínio, pois padres, religiosos e
bispos eram também funcionários da Coroa portuguesa no Brasil colonial. Nesse sentido, religião e
religiosidade eram também assuntos de Estado, e vice-versa. No Império, além do Padroado Régio,
a Constituição de 1824 estabeleceu um Padroado civil, submetendo ao poder temporal toda a
instituição eclesiástica católica no Brasil, fonte potencial de diversos conflitos entre a Igreja e o Estado
no século XIX. O fim do regime de padroado no Brasil se deu com a Proclamação da República

56 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


nunciatura no país e a elevação das prelazias de Goiás e Mato Grosso à condição
de bispados.
A primeira resposta de Roma foi a Bula papal Solicita Catholicae Gregis Cura,
que elevou as prelazias de Goiás e Mato Grosso à condição de dioceses, indicando
também a criação e manutenção dos cabidos e seminários, bem como nomeava
vigários capitulares, sendo um estrangeiro, fixando os seus benefícios. Como
previsto na Constituição de 1824, no artigo 102, o poder Executivo consultou a
Assembleia Legislativa antes de conceder ou negar o beneplácito ao documento,
pois este continha disposições gerais sobre a Igreja no Brasil.
Em julho de 1827, a Bula foi examinada na Câmara dos Deputados pela
comissão eclesiástica, composta por clérigos, e pela comissão da Constituição,
composta por laicos. As duas chegaram a pareceres semelhantes, aprovando a
criação, extensões e limites das dioceses, mas discordando da indicação de seus
bispos, bem como da nomeação de um vigário estrangeiro, julgando sem nenhum
efeito as orientações dadas quanto ao cabido e ao seminário episcopal43.
Nessa situação é possível notar o primeiro grande embate na Câmara entre
duas diferentes posturas quanto à relação da Igreja no Brasil e a Cúria Romana,
que representava também a disputa entre dois diferentes modelos de Instituição
Religiosa: um de influência regalista, representado por Feijó, e outro de influência
ultramontana, representado por D. Marcos Antonio de Sousa e D. Romualdo
Antonio de Seixas44.
Em defesa da execução de todas as cláusulas previstas na Bula, por não ver
nela ofensa alguma às leis do Império, estando em conformidade total com os
cânones e regras religiosas, D. Marcos se colocou contrário ao posicionamento
da maioria dos integrantes da Câmara. Assim, diferentemente do que os outros
deputados estavam pregando com base na Constituição e do que esta versava
sobre os direitos do Imperador sobre a Igreja no Brasil, afirmou que “A creação das
novas dioceses é da competência da Sé Apostolica em conformidade da presente
disciplina geralmente recebida em toda igreja catholica”45.
Alegou ainda que o Imperador teria somente o exercício de “[...] um direito
annexo ao seu poder de jurisdição na igreja catholica”46. Mediante essa controversa
sentença, em um contexto liberal de um clero majoritariamente regalista, a polêmica
eclodiu.
As comissões desaprovaram a concessão do beneplácito completo a referida
Bula alegando que o direito de nomear bispos pertencia ao poder temporal.
Logo, não se poderia admitir uma nova concessão ao mesmo Imperador, pois isso
significaria uma “[...] contravenção a lei fundamental do Império”47.
O parecer afirmava ainda a falta de jurisdição do Papa para taxar o valor dos
benefícios e determinar a criação de seminários no Brasil, pondo em questão o

em 1889. Ver: SANTIROCCHI, Os ultramontanos no Brasil..., p. 76; VIEIRA, David Gueiros. O


protestantismo, a maçonaria e a questão religiosa no Brasil. Brasília: Editora da UnB, 1980.
43
BRASIL, Anais da Câmara..., p. 129.
44
VIEIRA, O protestantismo..., p. 34-35.
45
BRASIL, Anais da Câmara..., p.129.
46
BRASIL, Anais da Câmara..., p. 129.
47
BRASIL, Anais da Câmara..., p. 123.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 57


tradicional entendimento da origem do Padroado enquanto uma concessão
pontifícia. Os clérigos liberais de tendência regalista sustentavam que o direito do
monarca sobre a Igreja no Brasil advinha da Constituição do Império e ele não
deveria requerer nem admitir a intervenção de um poder externo.
D. Marcos, não se conformando com o parecer da Câmara, apresentou um voto
separado onde empreendeu a defesa dos direitos da Cúria Romana. Apesar de
apoiar D. Pedro I na Câmara dos Deputados, o bispo demonstrou sua fidelidade
ao Pontífice Romano ao afirmar a sua primazia em assuntos ligados à Igreja, por
entender que “[...] o poder temporal é inteiramente independente do espiritual,
assim como este daquelle”48.
Nesse voto separado, o bispo explicitou como entendia a hierarquia da Instituição
Católica, não vendo de forma alguma a Igreja no Brasil apartada da de Roma,
ao colocar qual era o lugar do Papa e o do Imperador nessa relação de poder.
Considerava o Papa como o “[...] supremo pastor e centro da unidade catholica”,
demarcando sua posição de superioridade em relação ao Imperador, pois este era
somente o “[...] padroeiro das igrejas do Brasil”49.
Em defesa da criação dos seminários, ponto rejeitado no parecer da Câmara,
o bispo utilizou as leis da Igreja para se opor à decisão. Especificamente a
determinação do Concílio de Trento que todas as catedrais deveriam ser fundados
seminários episcopais, para a educação da mocidade e necessária reforma dos
costumes, e a Constituição do Império, em seu artigo 179. Cabe ressaltar que as
diretrizes estabelecidas por este Concílio foram às principais norteadoras das ações
de reforma dos bispos ultramontanos do século XIX, no Brasil.
No intuito de amenizar suas colocações ou não ser acusado de desrespeitar a
figura do Imperador, pelos oposicionistas, D. Marcos encerrou seu voto afirmando
que “Estas reflexões devem entender-se ficando salvos os privilégios amplíssimos do
Padroado do imperio do Brazil e poderes emanados do primado da igreja universal,
das quaes, há três séculos, gozão os imperantes e padroeiros deste império”50.
D. Marcos demonstrou com suas palavras como era difícil, em um contexto
amplamente influenciado pelo regalismo, defender os direitos do pontífice sem
atacar a autoridade do Imperador, a quem dedicara o seu apoio. Pelos seus
argumentos podemos analisar uma peculiar conjugação da lógica de dois espaços
que teoricamente seriam distintos, a religião e a política, mas que se mesclaram e
influenciaram o processo de constituição de um Estado confessional brasileiro no
século XIX.
Em 30 de maio de 1827, o Monsenhor Vidigal conseguiu, em vez da concordata
solicitada pelo governo, a concessão da Bula Pontifícia Praeclara Portugaliae, que
confirmou o Padroado e o Grão-mestrado da Ordem de Cristo no território brasileiro
ao Imperador D. Pedro I e seus descendentes, com todos os direitos com que os
exerciam os reis de Portugal51. O Imperador, por sua vez, ficava responsável pela
propagação da fé católica e catequização dos pagãos, em especial os índios brasileiros.

48
BRASIL, Anais da Câmara..., p. 128.
49
BRASIL, Anais da Câmara..., p. 124.
50
BRASIL, Anais da Câmara..., p. 125.
51
SANTIROCCHI, Os ultramontanos no Brasil..., p. 73.

58 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


A Bula Praeclara Portugaliae foi enviada para as comissões da Constituição e
Eclesiástica, na Câmara dos Deputados. Desta vez as comissões deram parecer
contrário a todas as suas disposições, manifestando-se contrárias a aprovação do
beneplácito por considerar que ela propunha uma causa injusta.
Quanto a esta questão, Santirocchi ressalta que “Havia algumas motivações
menos explícitas para o parecer negativo à bula Praeclara Portugalliae, dado pelas
Comissões, que eram: o conflito entre a Assembleia e o Imperador e as diferentes
opiniões sobre a fonte e limites da soberania da Coroa”52.
Contrário a esse parecer se posicionou novamente D. Marcos, apresentando
outro voto separado onde expôs os motivos de sua discordância. Em defesa da
Bula e da autoridade do pontífice romano afirmou, em sessão da Assembleia,
que o Padroado não era intrínseco à figura do imperante, mas condicionado pela
dotação das igrejas, sustento dos serviços eclesiásticos e expansão da fé53.
Nesse ponto tem-se uma divergência fundamental quanto à compreensão
de D. Marcos, em relação à natureza do Padroado, e a dos demais clérigos que
formavam a Comissão Eclesiástica na Legislatura de 1826. Para os clérigos de
maior influência liberal e regalista, o artigo 5º da Constituição, em si mesmo, já
dotava o Imperador como padroeiro da Igreja no Brasil, sendo interna a autoridade
que o investia. Segundo o bispo do Maranhão, com esse artigo, a nação brasileira
havia tomado para si a obrigação de proteger e sustentar a Instituição, e somente
essa situação fazia com que o Imperador fosse legitimamente investido pelo Papa
como padroeiro, posto que o reconhecimento, a concessão dos privilégios, direitos
e títulos seriam externos.
Este ousado tratamento dado por D. Marcos ao direito do Padroado fez com
que o deputado Bernardo Pereira de Vasconcelos solicitasse à Câmara que fossem
declarados inconstitucionais os princípios proferidos pelo bispo. Os limites entre a
fidelidade ao Papa e ao Imperador geraram polêmicas e demonstram uma lógica
dúbia, mas pertinente a corrente conservadora católica na qual o bispo se inseria.
Para ele, a relação de complementaridade entre o poder político e o poder religioso,
estando bem demarcados os limites de ingerência de ambos, era essencial para a
defesa das tradições, ordem, hierarquia, comunidade e fé. Apesar da oposição de
D. Marcos, o parecer das duas comissões foi aprovado em 29 de outubro de 1827.
Outro aspecto relacionado à religião que ganhou destaque nos da Legislatura
de 1826 foi à crença partilhada, entre os padres deputados, na necessidade de
uma reforma da Igreja no Brasil, visando uma moralização das práticas de leigos
e do clero. No entanto, não havia um projeto comum sobre como essas reformas
deveriam ser conduzidas. Souza54 polariza as diretrizes para essa regeneração, nesse
período, em dois grupos: o paulista e o conservador. Kenneth P. Serbin também
afirma que se formaram dois campos opostos, mas destaca mais elementos em sua
composição, sendo que:

De um lado estavam os conservadores, ultramonarquistas


reacionários e ultramontanos (ferrenhos partidários do

52
SANTIROCCHI, Os ultramontanos no Brasil..., p. 74.
53
BRASIL, Anais da Câmara..., p. 128.
54
SOUZA, Do altar à tribuna..., p. 377.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 59


papado e da centralização da autoridade eclesiástica);
do outro, os liberais, revolucionários nacionalistas,
republicanos e galicanos (defensores de estreitas relações
entre a Igreja e o Estado e da maior soberania nacional nos
assuntos religiosos).55

No contexto brasileiro do Padroado o poder espiritual estava sob o julgo do


poder temporal, logo, era necessário utilizar os mecanismos da política de Estado
para obter as transformações religiosas necessárias. Por conseguinte, pode-se
afirmar que alguns sacerdotes viram na atuação política a oportunidade ideal
para pensar e agir sobre a Igreja, assumindo no Parlamento a posição de seus
verdadeiros reformadores.
Como a maioria dos políticos do período, os padres pertencentes ao grupo paulista
acreditava que a religião era a fonte primeira de moral pública e tranquilidade do
Estado. Mas, devido à situação de despreparo e imoralidade em que o clero se
encontrava, era necessário primeiro reformar a Igreja e regenerar o corpo clerical
para que ele assumisse seu papel de educador do povo. Esse processo, porém, não
partiria da Instituição Eclesiástica, e sim do Estado, seguindo a tradição regalista do
Catolicismo luso-brasileiro56.
As propostas de reforma apresentadas pelos padres liberais regalistas
encontraram forte resistência por partes daqueles de orientação católica
conservadora, principalmente do Arcebispo da Bahia, D. Romualdo Antonio de
Seixas, e do Bispo do Maranhão, D. Marcos Antonio de Souza, que diversas vezes
reagiram e colocaram obstáculos aos projetos liberais de modernização da religião
apresentado da Assembleia de 1826.
Os conservadores também demonstraram o desejo de transformação da religião
e da Igreja no Brasil, mas entendiam que cabia à Instituição, e não ao Estado,
a função de pensar sobre as soluções para os problemas que se abatiam sobre
a mesma. Para esse grupo o Estado deveria apenas apoiar a Igreja naquilo que
lhe fosse necessário, visto que, enquanto instituição autônoma, não deveria sofrer
ingerências do poder temporal.
Lutando contra os projetos que tencionavam “abrasileirar” a Igreja, D. Marcos
empreendeu na Assembleia Legislativa uma enfática defesa das Ordens religiosas,
uma das principais características da atuação de grande parcela dos bispos
ultramontanos no período imperial. Quando o deputado Paula e Souza propôs,
na sessão de 17 de maio de 1828, que fosse proibida a admissão e residência no
Império de frades ou congregados estrangeiros de qualquer denominação, instituto
ou hábito, bem como qualquer nova ordem ou corporação religiosa, sendo
amplamente apoiado pelos demais deputados, D. Marcos se colocou desfavorável
a essa proposição57.
O bispo declarou que não entendia nem admitia que se excluíssem do território
os frades estrangeiros pelo motivo de seguirem uma ordem religiosa. Perguntou a

55
SERBIN, Kenneth P. Padres, celibato e conflito social: uma história da Igreja Católica no Brasil. São
Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 70.
56
NEVES, “A religião do Império...”, p. 395.
57
BRASIL, Anais da Câmara..., p. 93-96.

60 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


seus colegas de deputação como “[...] o Brasil há de admittir no seu seio homens de
todas as seitas, e podem todos os estrangeiros vir residir aqui, e só serão excluídos
aquelles que professão os conselhos evangélicos?”58.
Os deputados liberais Cunha Matos, Vasconcelos e Lino Coutinho entraram em
confronto direto com D. Marcos Antonio de Sousa, gerando tumulto na Assembleia
e fazendo o presidente chamar a casa à ordem diversas vezes. Esse conflito foi
motivado pela declarada posição do bispo em favor de quatro frades Caraças59 que
estavam no bispado de Mariana, província de Minas Gerais, trabalhando no ensino
dos jovens, e segundo o bispo, contribuindo para os bons costumes e educação
cristã necessárias aos cidadãos. D. Marcos chegou a afirmar que eles não seriam
estrangeiros, como argumentavam os deputados citados, pois estavam no Brasil já
em 1819, antes da declaração da Independência.
Para D. Marcos a política de catequização dos índios também era um elemento
que tornava indispensável à presença e atuação das ordens religiosas no Brasil,
pois a tarefa de “catequizar e civilizar” os índios era, tradicionalmente, uma ação
missionária que estava ligada às determinações conciliares tridentinas. Para ele
isso só era possível por meio da ação dos integrantes das ordens religiosas, pois
eles seriam “[...] homens tocados dos princípios do verdadeiro christão para taes
sacrificios, para tratar da catechese e civilisação dos indios”60.
A ofensiva tridentina sustentada por D. Marcos geraram duras críticas de seus
colegas de deputação, como em sessão da Assembleia de 15 de julho de 1828.
Nela, Cunha Matos afirmou que, mesmo sendo louvável o zelo apostólico do bispo
em defesa dos direitos da Igreja, ele era obrigado a defender os interesses da nação
enquanto deputado, pois “O Sr. Bispo não se acha nessa câmara na qualidade de
prelado, mas sim com o caráter de representante do povo do Brasil”61.
O bispo respondeu que a sua situação e as circunstâncias na qual se encontravam
eram bem “espinhosas”. Mesmo sendo deputado, era antes disso clérigo, e as leis
canônicas e bulas apostólicas o obrigam a defender as ordens religiosas, por elas
serem de grande utilidade tanto para a Igreja quanto para o Estado. Para ele, então,
essa defesa era apropriada aos seus dois espaços de pertencimento.
Seu posicionamento e opiniões polêmicas fizeram com que em diversas sessões
todos os deputados que se pronunciaram na Assembleia fossem contrários ao
bispo D. Marcos. Acusaram-no de inconstitucional, por defender a separação entre
o poder civil e religioso e ser contrário à ingerência do Estado nos assuntos da
Igreja; de “jesuitista”, por defender as ordens religiosas e, por vezes, utilizar o jesuíta
Antonio Vieira como exemplo de conduta clerical; e mesmo de “transmontano”,
por afirmar a supremacia do Papa em assuntos da religião62.

58
BRASIL, Anais da Câmara..., p. 95.
59
A penetração do Catolicismo ultramontano ganhou força com a vinda de alguns frades lazaristas,
ordem religiosa de carisma vicentino, cujo objetivo era o de promover a expansão das missões
populares e oferecer educação e formação em colégios e seminários como os de Caraça, em Minas
Gerais. Essa instituição primava pela moral dos sacerdotes e de lá saíram importantes agentes da
reforma católica ultramontana, como o bispo de Mariana, D. Antônio Ferreira Viçoso. OLIVEIRA,
Luciano Conrado & MARTINS, Karla Denise. “O ultramontanismo em Minas Gerais e em outras
regiões do Brasil”. Revista de Ciências Humanas, Viçosa, UFV, vol. 11, n. 2, 2011, p. 259-269.
60
BRASIL, Anais da Câmara..., p. 100.
61
BRASIL, Anais da Câmara..., p. 124.
62
BRASIL, Anais da Câmara..., p. 125.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 61


Por meio das discussões referentes a uma reforma católica no Brasil, podemos
perceber que não havia uma desvinculação do agente político e do agente religioso
em D. Marcos Antonio de Sousa. Seus pronunciamentos na Assembleia Legislativa
de 1826 indicam que a identidade religiosa influiu diretamente na sua atuação
política, bem como sobre a maneira que entendia as relações entre a Igreja e o
Estado. Isso gerou tensões e conflitos, pois, no contexto do Primeiro Reinado e
Regências, o seu pensamento sobre como deveria atuar a Instituição Católica não
era compartilhado pela maioria dos seus agentes, clérigos amplamente influenciados
pelo liberalismo e tradicional regalismo luso-brasileiro.

Um bispo reformador no Maranhão

A Diocese de São Luís do Maranhão foi criada pelo Papa Inocêncio XI, em
1677, por meio da Bula Super Universas Orbis Ecclesias, como sufragânea do
Patriarcado de Lisboa, abrangendo toda a Amazônia. Em cinco de julho de 1827
a Bula Romanorum Pontificum vigilantia, expedida pelo Papa Leão XII, sujeitou
as Dioceses do Maranhão e Pará, ao Arbispado da Bahia, tornando-as ponto de
difusão da catequese no norte do Império63.
D. Marcos Antonio de Sousa foi o décimo quinto bispo do Maranhão. Assumiu
uma Diocese que abrangia as províncias do Maranhão e Piauí, com uma superfície
aproximada de seiscentos mil quilômetros quadrados, divididos em 36 paróquias,
uma população com pouco mais de 260 mil habitantes e um clero muito reduzido.
Ele substituiu o bispo D. Frei Joaquim de Nossa Senhora de Nazaré, que foi
desligado da diocese em 15 de setembro de 1823, se retirando para a diocese de
Coimbra, em Lisboa, pelo seu envolvimento direto nas guerras de Independência
do Maranhão como presidente da Junta Provisória e Administrativa64 e por não
concordar com a adesão65.
O Maranhão, província com relevante importância geográfica e econômica, passou
por um conturbado processo de adesão à Independência, cujo reconhecimento
não significou um clima de paz, necessitando de um bispo que representasse os
interesses do governo central e auxiliasse na consolidação da unidade e afirmação
da figura do Imperador. Dentro do regime do Padroado, em um delicado processo
de consolidação do Império, não é de se estranhar que o Imperador, juntamente
aos seus conselheiros e ministros, considerasse Marcos Antonio de Sousa o mais

63
GARDEL, Luis D. Les Armoiries Ecclésiastiques du Brésil (1551-1962). Rio de Janeiro: s.r., 1963,
p. 52; SILVA, Apontamentos para a História..., p. 52; MEIRELES, História da Arquidiocese..., p. 59.
64
A primeira junta Provisória e Administrativa do Maranhão foi criada por decreto das Cortes
Portuguesas de 29 de setembro de 1821, sendo presidida pelo bispo D. Frei Joaquim de
Nossa Senhora de Nazaré, 14° bispo do Maranhão. A junta prestou juramento de fidelidade à
Constituição Portuguesa e à Casa de Bragança na figura de D. João VI, na Catedral de São Luís,
desconhecendo a autoridade de D. Pedro e retransmitindo para Lisboa as ordens que recebia do
Rio de Janeiro como prova de lealdade. Acordaram, também, com as províncias vizinhas do Piauí
e Pará um compromisso recíproco de assistência na manutenção da legalidade. Ver: BOTELHO,
Joan. Conhecendo e debatendo a história do Maranhão. São Luís: Fort Gráfica, 2007, p. 76-77;
MEIRELES, Mário Martins. História do Maranhão. São Paulo: Siciliano, 2001.
65
PACHECO, História eclesiástica do Maranhão, p. 127; SILVA, Apontamentos para a História..., p.
192-193.

62 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


indicado para governar o bispado, pois o cargo de bispo era de grande confiança
e indiscutível influência político-religiosa no cenário nacional.
Quando D. Marcos assumiu o bispado do Maranhão, em 1830, após o fim de
suas atividades na Assembleia Legislativa de 1826, iniciou uma série de ações que
o fizeram ser identificado como pertencente ao grupo dos bispos reformadores.
Hauck66 afirma que a reforma que iria produzir frutos reais, ampliando-se em uma
cadeia crescente, teve início no Pará, com D. Romualdo de Sousa Coelho (1819-
1841). Este teria criado um círculo de influência de onde saíram D. Romualdo
Antonio de Seixas, seu sobrinho e Arcebispo da Bahia (1827-1860), e D. Marcos
Antonio de Sousa, bispo do Maranhão (1827-1842). O programa de reforma
adotado pelos três, também chamados de bispos do norte, era o do Concílio de
Trento, baseado no investimento na formação de um clero ilustrado e santo e na
instrução religiosa do povo por meio da catequese.
As medidas implantadas por D. Marcos não tinham somente um caráter
religioso. A organização territorial do bispado e o controle mais efetivo dos bispos
sobre os clérigos eram determinações imperiais largamente discutidas na primeira
legislatura. Deve-se ressaltar que, enquanto bispo, ele continuava sendo um
funcionário público, pelo regime do Padroado, e um membro da alta burocracia do
Estado, enquanto integrante do Conselho de Sua Majestade.
Isso, porém, não impediu que o bispo entrasse por vezes em choque com o poder
administrativo, mediante as ações de reforma que tentava implantar no Maranhão,
porque mesmo ocupando altos cargos na hierarquia da Igreja e do Estado, suas
ações eram limitadas pelo Padroado. Isso gerava tensões na medida em que as
diretrizes tridentinas e a doutrina ultramontana, por ele defendidas, primavam pela
autoridade do Papa, enquanto líder supremo da Igreja, e a autonomia da Instituição
frente aos governos locais, em assuntos ligados a sua organização e doutrina.
Por outro lado, essa situação de uma dupla lealdade ao altar e ao trono, e
de pertencimento à elite política do Império, em algumas situações favoreceu as
ações de D. Marcos, por ser esse um contexto onde o “valor pessoal” tinha um
grande peso nas relações. D. Francisco de Paula e Silva afirma que, ocupando
cargos na burocracia do Estado, tanto a nível nacional quanto provincial “[...]
não foram poucos os favores temporaes que conquistou para o seu clero e suas
freguesias”67.
Dessa forma, conseguiu junto ao Imperador, em 1829, o pagamento de
suas côngruas de bispo que estavam atrasadas e o aumento das côngruas para
os cônegos e dignidades da catedral maranhense, e para os demais párocos e
coadjutores do bispado. Para D. Marcos o aumento das côngruas era fundamental
para a correção disciplinar do clero, pois permitiria que eles não se envolvessem
com outras atividades, dedicando-se exclusivamente à vida religiosa.
A questão das côngruas dos clérigos e das verbas destinadas ao bispado do
Maranhão pelo Tesouro Nacional foi um dos pontos de tensão entre o bispo e o
presidente de província, Cândido José de Araújo Viana. Além do controle que D.
Marcos demonstrava querer ter sobre o seu bispado até em questões financeiras, os
recursos eram necessários para a efetivação das melhorias nos templos, paramentos

66
HAUCK, “A Igreja na emancipação...”, p. 83.
67
SILVA, Apontamentos para a História..., p. 203.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 63


e alfaias, que restituíram à Igreja no Maranhão a dignidade e nobreza que tanto
considerava essenciais ao culto católico.
Para alcançar seus objetivos, D. Marcos utilizou-se das relações e contatos que
manteve na capital do Império, junto ao governo, desautorizado as autoridades
locais em algumas situações. Em carta de 18 de abril de 1831, afirmou ao presidente
de província, Dr. Cândido José de Araújo Viana, que o Ministro da Justiça havia
lhe participado que, em 26 de janeiro do mesmo ano, o presidente do Tesouro
Nacional havia expedido ordem para deixar a sua disposição quatro contos de réis
como prestações mensais para as suas obras. Dito isto, solicitou que o presidente
“[...] se Digne Comûnicar, quando deverá hir o Tesoureiro nomeado o Conego
João Antonio Velles receber a primeira prestação”68.
A precariedade das verbas destinadas à Igreja fez com que D. Marcos tivesse
um rígido controle das contas da Catedral da Sé, chegando a solicitar do
tesoureiro o ponto dos empregados e as folhas de pagamento, para compará-las e
verificar se estavam corretas. Controle extensivo aos demais documentos oficiais,
correspondências e livros da Câmara Eclesiástica que eram diariamente verificados
e rubricados69.
Nas portarias e nomeações dos vigários o bispo recomendava que fizessem
inventário de todas as alfaias, ornamentos e contas da fábrica, fazendo registrar
tudo no livro adequado e remeter todas as informações a Câmara Eclesiástica.
Estabeleceu também uma tabela de preços para os emolumentos, com o objetivo
de inibir os abusos nas cobranças pelos serviços eclesiásticos, padronizando suas
práticas às leis imperiais e determinações conciliares.
Também exigiu do clero do bispado que fosse cumprida a lei da residência,
determinando que os vigários residissem na diocese e freguesia para onde foram
destinados, o que tornava mais fácil controlar esses agentes e garantir a presença
efetiva da Igreja e do Estado nos territórios mais distantes e sobre uma parcela
maior da população. Os padres que se negavam a cumprir as determinações de
D. Marcos eram admoestados, e nos casos recorrentes, processados na forma do
direito.
A defesa das ordens religiosas, uma das principais bandeiras de atuação de D.
Marcos Antonio de Sousa na Legislativa de 1826, não foi abandonada durante o
seu governo da diocese maranhense. Quando, em 1831, os conflitos antilusitanos
decorrentes do clima de tensão e insegurança gerado pela abdicação de D. Pedro
I atingiram também a Igreja, resultando na saída dos religiosos de Santo Antônio
da província do Maranhão, o bispo assumiu uma postura de não cooperação com
as determinações da presidência de província. Em defesa do seu posicionamento
declarou que era “Obrigado pelos Canones, e Bulla do Santo Padre Pio 6° em 10 de
março de 1791, a proteger os reguladores pelos serviços feitos a Igreja geralmente,
e ao Brazil em particular, onde muito tem servido para conversão dos Indios”70.

68
Arquivo Público do Estado do Maranhão. Inventário de Avulsos (manuscritos), vol. 1. Secretaria
do Governo. Ofícios do Bispo Diocesano do Maranhão ao Presidente de Província do Maranhão,
1728-1850. 1831, f. 35.
69
SILVA, Por mercê de Deus..., p. 127.
70
Arquivo Público do Estado do Maranhão. Inventário de Avulsos (manuscritos), vol. 1. Secretaria
do Governo. Ofícios do Bispo Diocesano do Maranhão ao Presidente de Província do Maranhão,

64 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


No mesmo dia em que D. Marcos recebeu o comunicado da presidência de
província de que teriam findados os conflitos e restabelecida a lei e a paz no
Maranhão, remeteu ofício solicitando enviar uma ordem para que os religiosos
de Santo Antônio que haviam sido exilados no Pará pudessem regressar ao
Maranhão71. Pediu ainda que os regulares reassumissem sua Igreja e seu convento
e gozassem dos direitos existentes em qualquer “Estado civilizado e católico”.
A resposta do presidente de província foi que não expediria a portaria solicitada
pelo bispo e que ele não possuía autoridade para mandar retornar os religiosos de
Santo Antônio do Pará, pois este assunto era prerrogativa do poder civil. Diferente
de uma visão consagrada de altar unido ao trono em um projeto de modernização
conservadora do Catolicismo, esses pontos de conflito demonstram que o processo
de reforma católica apresentou também divergências de interesses entre a Igreja e
o Estado, disputas de poder e autoridade pessoal e institucional e entre interesses
centralistas e federalistas.
Em 26 de agosto de 1839 D. Marcos expediu um ofício ao ministro da Justiça
lamentando-se da falta de religiosos dispostos a desenvolver o trabalho necessário
nas missões indígenas, sugerindo que “[...] se enviassem dois ou três sacerdotes de
São Vicente de Paula de Minas para catequizar os índios e ‘ainda com sua doutrina
e exemplo curar a imoralidade, origem de tantas calamidades’”72.
Nessa ocasião não era somente o bispo que se redigia ao ministro e a demanda
não era somente religiosa, pois D. Marcos era desde 1836, deputado, e de 1838,
presidente da Assembleia Legislativa do Estado. E a este órgão competia, pelo
artigo 11, da lei n° 16, de 12 de agosto de 1834, em seu § 5°, promover a catequese
e civilização dos indígenas, bem como o estabelecimento de colônias, juntamente
com o governo geral.
Motivado pela carência de párocos em que se encontrava o interior da província
devido a Guerra da Balaiada73, bem como nas missões indígenas, D. Marcos
solicitou com urgência que o governo imperial tomasse medidas necessárias para o
“bem estar” da Província e felicidade do Império. Indicou ao ministro dos Negócios
que na falta dos capuchinhos que lhe seriam enviados, havia na Bahia Missionários
Barbadinhos e em Minas Gerais alguns sacerdotes do Instituto de São Vicente de
Paulo, versados em conhecimentos teológicos e habilitados para o ensino da moral
pura do cristianismo, que poderiam atender a contento as necessidades da diocese
o Maranhão.
Outra medida de destaque no bispado de D. Marcos foi a realização frequente
de Visitas Pastorais, consideradas por ele rotinas necessárias para remediar os males
que poderiam atingir o clero e o povo. Também havia a necessidade de conhecer
as freguesias, templos, população e clero para melhor diligência das suas ações à

1728-1850. 1831, f. 1-1v.


71
APEM, 1832, f. 1.
72
SANTIROCCHI, Os ultramontanos no Brasil..., p. 321.
73
A Balaiada, no Maranhão, ocorreu entre os anos de 1838-1841. Foi uma revolta popular e
social que eclodiu no interior do Maranhão e se expandiu para as províncias do Piauí e Ceará.
Foi marcada pela forte presença de grupos subalternos, como escravos, negros, forros, vaqueiros,
camponeses, e artesãos. Profissionais liberais e intelectuais ligados ao partido bem-te-vi também
estiveram envolvidos. Ver: BOTELHO, Conhecendo e debatendo..., p. 99-105; MEIRELES, 2001,
p. 231-241.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 65


frente do bispado e cumprir determinações imperiais relacionadas à redefinição
da geografia eclesiástica, estabelecimento de missões indígenas e ordenação dos
dados estatísticos.
O momento das Visitas também era utilizado para a realização das Conferências
Eclesiásticas, recomendação do Concílio de Trento que tinha como objetivo
melhorar os conhecimentos teológicos do clero, e foi um dos caminhos propostos
para a implementação da reforma ultramontana da Igreja no Brasil74. D. Marcos foi
o primeiro bispo do Maranhão a promover as Conferências, realizando verdadeiras
sabatinas e rememorando ao clero as obrigações da profissão religiosa e os prejuízos
que causavam a falta de disciplina eclesiástica.
O controle rígido sobre o direito de ministrar sacramentos e oficiar cerimônias
foi também uma das características da reforma do bispado do Maranhão por D.
Marcos75, visto que a obrigatoriedade das provisões era também um momento de
afirmação da autoridade do bispo e de respeito à hierarquia institucional. Assim, a
afirmação do monopólio e controle da instituição sobre os bens e serviços espirituais
também era a afirmação do seu local de autoridade junto à sociedade e de uma
nova lógica organizacional mais aproximada das diretrizes pontifícias.
As visitas foram de grande importância sob vários aspectos, principalmente
na ampliação da ação de reforma no Bispado do Maranhão e da tentativa de
uniformização de práticas e comportamentos, melhoria da formação teológica do
clero e adaptação dos serviços da Igreja às determinações do Império. Entretanto,
era necessário um trabalho de profundidade sobre a seleção e educação do clero
nos padrões tridentinos, e D. Marcos Antonio de Sousa muito insistiu para a criação
de um seminário diocesano no Maranhão, solicitando-o desde os seus trabalhos
legislativos, em 182776.
Para ele era necessário regenerar e formar um clero moral e culturalmente oposto
à imagem questionável que o grupo adquiriu no período colonial, ampliando os
quadros da Igreja a partir da reprodução de um modelo celibatário e treinado de
acordo com as qualidades institucionais que a reforma tridentina pressupunha.
Porém, abrir um seminário no período do Primeiro Império e Regências não era
uma tarefa fácil, era necessário um prédio adequado ao controle que queria se
realizar sobre os seminaristas, professores instruídos e capazes de ensinar as ciências
eclesiásticas e vocações, o que parecia ser naquele período a tarefa mais difícil.
Os dois maiores obstáculos para a abertura de um seminário no Império eram
a licença do Governo e a obtenção de recursos para manter a instituição, assim
“Fundar um seminário no Imperio era arcar com a má vontade de uns, com as idéas
preconcebidas de outros, e com a quase opposição de todos os que dispunham de
uma parcella de poder”77.
Informado que parte do edifício do Convento de Santo Antônio seria utilizado
para aulas de ensino mútuo, solicitou ao presidente de província que o seminário
do Maranhão fosse inteiramente instalado naquele prédio. Chegou a afirmar que
não se recusaria em contribuir com alguma quantia em dinheiro de suas próprias

74
BEOZZO, História da igreja..., p. 83-84; SANTIROCCHI, Os ultramontanos no Brasil..., p. 223.
75
SILVA, Por mercê de Deus..., p. 140.
76
BRASIL, Anais da Câmara..., p. 129.
77
SILVA, Apontamentos para a História..., p. 207.

66 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


rendas para as reformas necessárias do edifício, caso fosse cedido para a instalação
do seminário78.
Em 1830, D. Marcos havia feito uma representação ao Governo Imperial
pedindo uma verba anual de um conto de réis e uma licença para adquirir bens de
raiz que somassem até dezesseis contos de réis para fundar o seminário diocesano
do Maranhão, mas a abdicação de D. Pedro I protelou o caso. Somente em 03
de junho de 1835, por meio de uma Portaria do Ministro Manoel Alves Branco,
a matéria foi submetida e repassada ao governo provincial, de quem era então a
competência sobre o assunto.
O Ato Adicional de 1834 que criara as Assembleias Legislativas nas províncias
também delegava a elas, por meio do § 2º do artigo 10, a competência sobre
a instrução pública e sobre os estabelecimentos próprios para promovê-la. Isso
possibilitou ao bispo D. Marcos Antonio de Sousa, na posição de deputado eleito da
Assembleia Provincial do Maranhão, e em um contexto favorável de reorganização
do ensino local, que privilegiava o discurso religioso sobre a moral e sua função
junto à sociedade, uma ação mais direta e decisiva no sentido de criar um seminário
diocesano na província.
Em 1837, o Bispo conseguiu a aprovação para a criação do seminário diocesano
no Convento de Santo Antônio, a devolução daquele edifício à diocese e retirada das
aulas de primeiras letras e Guarda da Polícia, lá instalados. Foi aprovado também
o subsídio de um conto e seiscentos mil réis para o estabelecimento imediato da
instituição, e organização dos estatutos pelo bispo79.
Foram aprovados em 1838, na Assembleia Provincial que tinha como presidente
o próprio D. Marcos Antonio de Sousa, função que este exerceu naquela casa até a
sua morte, os estatutos que deveriam reger o seminário diocesano do Maranhão80.
Enfim, depois de dez anos de tentativas o bispo inaugurou, juntamente com o
presidente de província, Vicente Tomaz Pires de Figueiredo Camargo, diante do
clero e de diversas autoridades, o Seminário Diocesano de Santo Antônio.
Como presidente da Assembleia Provincial D. Marcos conseguiu ainda o
pagamento de uma prestação anual de dois contos de réis para o seminário, bem
como a aprovação de uma loteria ao “teatro União”, em São Luís, para ajudar na
sua sustentação. Como bispo, determinou que metade das esmolas arrecadadas
pelos frades capuchinhos em suas missões também fossem revertidas em favor do
estabelecimento. A sua preocupação com a extinção do estabelecimento por falta
de rendas fez com que o bispo deixasse como herança ao Seminário de Santo
Antônio três apólices no valor de quatrocentos mil réis cada, e dois títulos da dívida
pública, no valor de seiscentos mil réis cada81.
D. Marcos faleceu no Palácio Episcopal da Igreja da Sé de São Luís, em 29 de
novembro de 1842. Pelos bens enumerados em seu testamento é possível concluir
que o bispo não possuía grande fortuna, nem terras, mas tinha uma situação
econômica vantajosa em relação à maioria da população no período, como é

78
APEM, 1831, f. 1.
79
COUTINHO, O poder legislativo..., p. 40; SILVA, Apontamentos para a História..., p. 210-211.
80
PACHECO, História eclesiástica do Maranhão, p. 148.
81
SILVA, Por mercê de Deus..., p.154.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 67


possível consultar no seu testamento e codicilo de 07 de setembro de 1842. Nesse
documento solicita ao Imperador favores e gratificações aos seus herdeiros pelos
seus “[...] serviços prestados a Nação Brasileira”82.
O relatório feito para o ministro dos Negócios, Paulino José Soares, um mês
antes do falecimento de D. Marcos Antonio de Sousa, nos possibilita contabilizar
os esforços empreendidos pelo prelado, contando ao fim de seu bispado com 53
paróquias e 90 sacerdotes. Quando assumiu eram 38 paróquias, não existem dados
quanto ao número de sacerdotes, mas em lista elaborada a pedido do governo
provincial, em 1832, existiam somente treze vigários colados. Em 1842 esse número
havia dobrado: eram 26 vigários colados e ainda 27 vigários encomendados83.

Considerações Finais

O espaço da religião e a política no Brasil imperial não eram autônomos,


estavam ligados histórica e culturalmente, bem como por determinações jurídicas,
influenciando-se mutuamente e tornando possível a existência de trajetórias de
padres para quem o duplo pertencimento e a associação entre prática religiosa e
prática política fossem naturais, como a de D. Marcos Antonio de Sousa.
Entre os padres deputados eleitos para a Assembleia Legislativa de 1826, D.
Marcos Antonio de Sousa representou um grupo que no início do século XIX
constituía uma minoria no posicionamento que tinham frente à Igreja, ao clero e ao
Estado, o dos bispos reformadores ultramontanos. Porém, ocuparam importantes
cargos e tiveram visibilidade para divulgar suas ideias e implantar reformas
importantes na Igreja do Brasil, conjugando lógicas do liberalismo dominante com
posturas conservadoras quanto à religião, o respeito à hierarquia e à ordem.
No entanto, as ações dos bispos reformadores encontraram barreiras originárias
da própria simbiose existente entre altar e trono e do sistema de subordinação
constitucional da Igreja, no Brasil, ao Estado. Isso significa que as condições sociais
de afirmação da reforma inspirada nas determinações do Concílio de Trento não
devem ser interpretadas somente em relação às mudanças históricas gerais ou
aos efeitos das determinações pontifícias, devendo-se atentar também para os
modos concretos de funcionamento dos mecanismos de que dispunha a Instituição
Católica em um contexto social específico.
Estabelecendo uma articulação/mediação entre a biografia de D. Marcos Antonio
de Sousa, o contexto de constituição do Império no Brasil, mudanças na relação
entre Igreja e Estado, podemos afirmar que D. Marcos Antonio de Sousa utilizou
sua posição política como oportunidade de pensar e atuar sobre a Igreja. Uma
dupla fidelidade que culminou em conflitos com outros clérigos e com o poder civil.
Apropriando e integrando os preceitos tridentinos de reforma religiosa às
suas condições de possibilidade dentro do sistema de subordinação do Regime
do Padroado, D. Marcos contribuiu para o início de uma nova fase da prática

82
COORDENADORIA do Arquivo e Documentos Históricos. Tribunal de Justiça do Maranhão.
Livros de Registro de Testamento 1840-1842. São Luís, p. 181.
83
Arquivo Público do Estado do Maranhão. Acervo da Arquidiocese do Maranhão. Inventário de
Códices. Livro de registro das Provisões, Alvarás e todos os mais documentos da Câmara Eclesiástica
ou Secretaria episcopal, n. 190-194, 1823-1847. PACHECO, História eclesiástica..., p. 162.

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clerical no Brasil e das relações que seriam estabelecidas a partir de então entre a
Igreja e o Império. Ações que fizeram o primeiro bispo do Brasil independente ser
reconhecido pela historiografia como um dos precursores do ultramontanismo no
Brasil.



RESUMO ABSTRACT

Análise da biografia e trajetória política e religiosa Analysis of biography and political and religious
de Dom Marcos Antonio de Sousa, articulada trajectory of Don Marcos Antonio de Sousa,
ao contexto histórico e social de constituição do articulated to the social and historical context of
Império no Brasil e de estabelecimento de uma the constitution of the Empire in the Brazil and
nova relação entre Igreja e Estado. Relaciona establishing a new relationship between church
o seu destino particular e as condições de and state. Relate your particular destination and
possibilidade de ação às suas tomadas de the conditions of possibility of action to their
posição e dupla filiação, enquanto deputado positions and dual membership, while deputy
na Legislatura de 1826 e bispo do Maranhão. in Legislature in 1826 and bishop of Maranhão.
Destaca de que modo tentou empreender uma Highlights how tried to undertake a Catholic
reforma católica, utilizando o espaço de atuação reform, using the space of political action, to
política, para alcançar seus fins religiosos, e achieve their religious purposes, and the actions
as ações que o fizeram ser reconhecido pela that got him be recognized by historiography
historiografia como um dos precursores do as one of the forerunners of ultramontanism in
ultramontanismo no Brasil. Brazil.

Palavras Chave: Biografia; Trajetória Política; Keywords: Biography; Political Trajectory;


Igreja. Church.

Artigo recebido em 15 mai. 2015.


Aprovado em 17 dez. 2015.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 69


O HERÓI DA CONFEDERAÇÃO DO EQUADOR
VOLTA DO EXÍLIO: MANOEL DE CARVALHO PAES
DE ANDRADE E AS LUTAS POLÍTICAS REGENCIAIS
(PERNAMBUCO, 1831-1835)

Manoel Nunes Cavalcanti Junior1

Quando se fala a respeito do período regencial normalmente nos vêm à mente


os conturbados dias vividos pela então recém-nascida monarquia brasileira. Entre
1831 e 1840, praticamente todas as províncias tiveram experiências de lutas
intestinas, levantes, manifestações de rua, motins e distúrbios os mais diversos.
Foram dias em que a luta política se incorporou ao cotidiano das pessoas, fosse por
meio dos jornais, pasquins, de sociedades secretas ou até mesmo nas comemorações
de datas cívicas. As paixões suscitadas naqueles anos resultaram em análises
divergentes sobre o seu legado e sua natureza. Ainda no séc. XIX os conservadores
enfatizaram a sua instabilidade, a desordem e a insubordinação daqueles anos.
Já os liberais preferiram chamar a atenção para o que denominaram de triunfo
da liberdade. Abordagens mais recentes abriram caminho para se enxergar a
Regência como uma espécie de “laboratório da Nação”2. Foi um rico período onde
os caminhos eram múltiplos, sendo apresentadas diferentes propostas no tabuleiro
político. Todas elas, porém, giravam em torno da dicotomia entre centralização e
descentralização.
Os distintos projetos de Nação postos no tabuleiro do poder regencial eram
representados por três grupos que acabariam por caracterizar a política do período.
Chamaremos a eles de partidos políticos no sentido dado por Marco Morel, segundo
o qual partido para aquele período seria entendido como um “agrupamento
em torno de um líder, ou através de palavras de ordem ou da imprensa, em
determinados espaços associativos ou de sociabilidade e a partir de interesses
ou motivações específicas, além de se delimitarem por lealdades ou afinidades
(intelectuais, econômicas, culturais etc.) entre seus participantes”3. Jeffrey Needell
reforça a compreensão afirmando que a organização dos partidos era diferente do
que encontramos nos nossos dias. Caracterizavam-se por um senso de liderança
altamente pessoal, pela ausência de uma agenda ideológica e geral, além de uma
relação com redes de parentesco e por seus apelos a interesses bem específicos, tais

1
Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor de História do Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia, Campus de Vitória da Conquista. E-Mail:
<manoel73@gmail.com>.
2
BASILE, Marcello. “O laboratório da Nação: a era regencial (1831-1840)”. In: GRINBERG, Keila
& SALLES, Ricardo (orgs.). O Brasil imperial – vol. II: 1831-1870. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2009, p. 55-61.
3
MOREL, Marco. O período das Regências (1831-1840). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003,
p. 32.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 71


como classe, nacionalidade, etc.4.
Ainda de acordo com Marco Morel, o primeiro partido era o moderado,
composto por liberais defensores de um Estado forte e centralizador. Seu núcleo
girava em torno da Corte, especialmente nas províncias do Rio de Janeiro, São
Paulo e Minas Gerais. Porém, isto não impediu que tivessem ramificações por todas
as demais províncias. Após a abdicação de Pedro I, em 07 de abril de 1831,
foram eles que assumiram e controlaram o poder durante o período regencial. O
segundo era o dos restauradores. Existiam desde a década de 1820 e possuíam
um discurso pautado pelo antiliberalismo. Defendiam um Estado centralizador e
destacavam a soberania monárquica diante das noções de soberania nacional ou
popular. Durante a Regência, seu mote seria a defesa do retorno de Pedro I ao trono
brasileiro. O terceiro era o partido dos exaltados, caracterizados por seu ideário de
valorização da soberania popular. Seus líderes usavam um discurso de chamamento
das camadas pobres a que participassem da vida pública, denunciando a opressão
econômica, social e étnica. Além disso, empunhavam a bandeira do federalismo e
da descentralização administrativa5.
A luta pelo poder durante a Regência terá como personagens estes partidos.
As disputas, aproximações e distanciamentos entre eles davam a tônica do
processo político. Muitas vezes não eram as ideias defendidas que prevaleciam,
mas as conveniências e os interesses do momento que ditavam as alianças e os
rompimentos. Sobre a política na Corte há uma vasta e consolidada bibliografia.
Para as províncias, no entanto, ainda há muitas lacunas a serem preenchidas.
A composição partidária da Corte foi nelas seguidas? Como se caracterizava o
processo político local? E as relações entre os partidos provinciais e a Corte?
Concentraremos a nossa busca por estas respostas na província de Pernambuco,
uma das mais importantes do Império e dona de relevante bancada na Câmara
dos Deputados. No Norte, só tinha como rival à época a província da Bahia. Mais
especificamente, tomaremos como base a trajetória política de Manoel de Carvalho
Paes de Andrade após o seu retorno do exílio europeu.
Segundo Pereira da Costa, Manoel de Carvalho era filho do português Manoel
de Carvalho Paes de Andrade, secretário de governo do governador José César de
Menezes, com a senhora Catharina Eugênia Ferreira Maciel Gouvin. Nasceu no dia
21 de dezembro, no entanto o ano seria entre 1774 e 1778. No início do século XIX
foi morar com o tio paterno em Portugal, tendo dali saído quando da invasão das
tropas francesas e ido para a ilha da Madeira. De lá voltou a Pernambuco, onde se
dedicou às atividades comerciais. Começou seu envolvimento com as lutas liberais
pernambucanas a partir da Revolução de 1817. Participou dos clubes secretos
que antecederam a eclosão do movimento e se tornou um de seus mais ardorosos
republicanos. Com a derrota da Revolução, conseguiu escapar à repressão do
governo real e fugiu para os Estados Unidos. Retornou a Pernambuco somente
com a anistia geral promovida em 1821. Se envolveria mais uma vez na política
provincial durante a vigência da Junta de Governo Provisório, sob a presidência
de Gervásio Pires Ferreira. Naquela ocasião Manoel de Carvalho foi nomeado

4
NEEDELL, Jeffrey D. “Formação dos partidos políticos no Brasil da Regência à Conciliação, 1831-
1857”. Almanack Braziliense, São Paulo, n. 10, nov. 2009. Disponível em: <http://www.revistasusp.
sibi.usp.br/> Acesso em: 14 ago. 2012.
5
MOREL, O período das..., p. 33-38.

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Intendente da Marinha, ocupando em seguida a presidência da Junta de Fazenda6.
Sua aura de herói liberal, porém, foi adquirida com o papel cumprido durante os
acontecimentos da Confederação do Equador, em 1824. Desde 1821 que as elites
pernambucanas estavam divididas entre dois projetos para a Nação que emergia
da independência. Segundo Marcus Carvalho, estes projetos eram defendidos
por dois grupos7. O primeiro era o dos centralistas, formado pelos partidários de
Pedro I: bem articulados com o projeto pensado no Rio de Janeiro, seus integrantes
eram favoráveis à união das províncias sob a batuta do príncipe regente. Tinha
como integrantes muitos elementos oriundos da antiga aristocracia açucareira,
despontando como líder maior o Morgado do Cabo e futuro Marquês de Recife,
Francisco Paes Barreto. O segundo grupo era o dos federalistas, interessados
principalmente em manter a autonomia provincial que havia sido conquistada com
a Revolução do Porto, em 1821. Manoel de Carvalho era um dos líderes federalistas,
ao lado de nomes como o de Frei Caneca. Na queda de braço entre os dois grupos,
Manoel de Carvalho conseguiu ser eleito presidente da Junta Provisória e tentou
ser reconhecido pelo Imperador, a quem interessava empossar seu aliado Paes
Barreto. A resistência em não reconhecer as decisões da coroa e a insistência em
continuar Manoel de Carvalho à frente do governo da província levaram à eclosão
da Confederação do Equador. Malgrado o movimento, ele conseguiu embarcar
em um navio inglês e foi se exilar na Inglaterra. O fracasso do movimento de 1824
representou a consolidação do projeto centralizador. O Morgado do Cabo e seus
aliados, principalmente os Cavalcanti, ficaram com os louros da vitória e foram
bem recompensados por Pedro I8. Aos perdedores, reservou-se a perseguição. Isso
não impediu, porém, que continuassem durante o 1º Reinado as disputas entre
centralistas e federalistas, estando aqueles no comando do poder da província e
estes na oposição.
Fora do país, Manoel de Carvalho não testemunhou as mudanças trazidas à
vida do Império e da província de Pernambuco pela abdicação de Pedro I em
abril de 1831. Os federalistas e centralistas pernambucanos, a partir de então,
se desdobraram nos quatro partidos que caracterizariam a Regência naquela
província. A configuração destes partidos se assemelhou ao que ocorria na Corte.
Os federalistas se dividiram entre os liberais moderados e os exaltados. Por sua vez,
os antigos centralistas deram origem aos restauradores, sob a liderança de Pedro de
Araújo Lima (futuro Marquês de Olinda), e ao partido dos Cavalcanti.
A existência de uma quarta força política foi o ponto fora da curva em relação ao
que acontecia no Rio de Janeiro. Embora liderados pelos filhos do velho Coronel
Suassuna, a força dos Cavalcanti era pautada no conglomerado de famílias que
conseguiram juntar em torno de si (principalmente por laços de parentesco) e pelos

6
COSTA, Francisco A. Pereira da. Diccionario biographico de pernanmbucanos celebres. Recife:
Typographia Universal, 1882, p. 653-660; __________. Anais Pernambucanos – vol. 9. 2. ed. fac-
similar. Recife: Secretaria de Turismo, Cultura e Esporte; FUNDARPE, 1983, p. 443.
7
CARVALHO, Marcus J. M. “Cavalcantis e cavalgados: a formação das alianças políticas em
Pernambuco, 1817-1824”. Revista Brasileira de História, São Paulo, ANPUH, vol. 18, n. 36, 1998,
p. 331-366. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0102-01881998000200014> Acesso em:
04 mai. 2012.
8
CARVALHO, “Cavalcantis e cavalgados...”, p. 341.

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cargos que os irmãos chegaram a ocupar (três deles se tornarão senadores)9. Além
disso, tinham laços familiares com políticos da própria província e de outras vizinhas,
como Paraíba e Alagoas, e uma vasta rede clientelista que lhes conferia significativo
poder eleitoral. Constantemente formavam uma sólida bancada na Câmara dos
Deputados e na Assembleia Provincial, quando ela passou a funcionar em 1835.
O resultado foi uma sólida posição nas constantes lutas pelo poder travadas em
Pernambuco. Os Cavalcanti possuíam um aguçado tino político e uma grande
capacidade de articular alianças. A princípio a mais natural era com os restauradores
de Araújo Lima, com quem compartilhavam a origem comum no centralismo do
1º Reinado. Porém, as aproximações entre eles eram de conveniência e em muitos
momentos os dois grupos se distanciariam lutando cada um por seus interesses
próprios. Embora divergentes em muitas questões ideológicas, os Cavalcanti
não se acanharam em alguns momentos de se aproximarem dos moderados e
exaltados. Ao mesmo tempo que a necessidade política ditava uma aproximação, a
movimentação política dos Cavalcanti os levou a uma certa autonomia em relação
aos demais partidos.
Assim como na Corte, os liberais moderados e exaltados pernambucanos
passaram a viver às turras logo após a chegada da notícia da abdicação ao Recife,
no início de maio. Preocupados com uma possibilidade de ruptura da ordem, os
moderados locais reconheciam as conquistas dos revolucionários, mas tentavam
pôr um freio ao acirramento dos ânimos oriundo da disputa entre exaltados e os
antigos aliados de Pedro I em Pernambuco. Partiu de Antônio Joaquim de Mello,
então vereador e presidente da Câmara Municipal de Recife, a ideia de criação
de uma sociedade voltada a defender os princípios ligados à moderação e que
combatesse o revanchismo que se tornava uma realidade com a gangorra política
provocada na província pela abdicação. Foi instalada em Recife, no dia 2 de junho
de 1831, a Sociedade Patriótica Harmonizadora, em torno da qual se uniram os
elementos que comporiam o partido moderado em Pernambuco. Era formada por
altos funcionários, proprietários rurais e ricos comerciantes. Aliados dos moderados
da Corte que assumiram o controle da Regência, os moderados locais foram
alçados ao comando do poder provincial.
Assim como na Corte, os exaltados pernambucanos se viram afastados dos
postos de comando na província. Fiéis aos ideais federalistas, de autonomia
provincial e, para uma parte deles, dos anseios republicanos, os exaltados locais
também partiram para a criação de uma Sociedade que defendesse seus princípios
e fosse um contraponto à Harmonizadora dos moderados. No dia 16 de outubro de
1831, era solenemente instalada em Recife a Sociedade Federal. Sua composição
era relativamente heterogênea. Havia militares, membros da Guarda Nacional,
comerciantes, agricultores, juízes, advogados, professores e alunos do curso de
Direito em Olinda. Muitos veteranos da Confederação de 1824 se integraram a ela.
Os que mais padeciam com a nova composição do poder em Pernambuco eram

9
Os irmãos Cavalcanti eram: Manoel Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque (Barão de
Muribeca), Luís Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque, Antônio Francisco de Paula de
Holanda Cavalcanti de Albuquerque (Visconde de Albuquerque), Francisco de Paula Cavalcanti
de Albuquerque (Visconde de Suassuna) e Pedro Francisco de Paula Cavalcanti e Albuquerque
(Visconde de Camarajibe). Os três últimos foram Senadores por Pernambuco.

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os restauradores locais. Em sua maioria antigos aliados de Pedro I, viram-se na
situação de perder os postos de comando que até então possuíam. Pior: muitos dos
que perseguiram após 1824 agora se assenhoravam do poder, pintando de cores
carregadas o fantasma do revanchismo. Os Cavalcanti, que a princípio também
tinham muito a perder, não perderam tanto. Tentavam ao máximo compor com os
novos donos da situação e preservar, assim, o prestígio que vinham acumulando
com o decorrer dos anos. Sinal disto foi o fato de que um dos irmãos, Francisco de
Paula Cavalcanti de Albuquerque (futuro Visconde de Suassuna), ter sido sempre
nome certo entre os membros do Conselho do Governo e estar entre os vice-
presidentes da província.
Manoel de Carvalho voltou do exílio na Inglaterra depois de sete anos. No dia
11 de dezembro de 1831 desembarcou em Recife, onde uma grande multidão
o aguardava e o acompanhou em cortejo até o seu sítio na Soledade, região
da freguesia da Boa Vista. Na noite seguinte uma multidão ainda maior foi ao
seu encontro com música e fogos de artifício. Segundo Pereira da Costa, os
festejos duraram dias. Por sua vez, o periódico exaltado A Bússola da Liberdade
destacava: “todos os Federais exultam com a sua presença”10. Não apenas os
exaltados pernambucanos celebravam a volta de Manoel de Carvalho. Os da Corte
também festejaram. O periódico exaltado A Matraca dos Farroupilhas, escrito por
João Batista de Queiroz, celebrava a chegada a Pernambuco do “herói Manoel
de Carvalho Paes de Andrade”, a quem também chamava de “Washington do
Brasil” e de quem esperava ser um dos salvadores da Nação. Colocava-o ao
lado do lendário Cipriano José Barata de Almeida, como sendo as duas maiores
notabilidades brasileiras11. Seu prestígio fora de Pernambuco também pode ser
medido pelo fato de que havia quem dividisse os partidos em São Paulo apenas em
dois: um “desprezível, pequeno, faccioso e europeu”, ligado à “sucia Feijó, Paula
Sousa, Costa, José dos cacos etc.”; o outro era de “Republicanos da Federação do
Equador”, que contavam com Manoel de Carvalho para que fizesse a mesma coisa
que havia feito em 182412.
O clima político em Pernambuco em fins de 1831 era tenso. Em setembro a
capital foi palco de um levante promovido pela soldadesca descontente com a
desmobilização promovida pelo governo e os pagamentos de soldos com base
na moeda falsa de cobre, o xenxen. Por dois dias os principais bairros de Recife
(Santo Antônio Recife e Boa Vista) foram tomados por soldados sublevados que
promoviam saques e espancavam a quem se lhes opusesse. A eles se juntaram
escravos e a “populaça”. A força governista, formada por jagunços, estudantes de
Direito e oficiais de linha, dentre outros, não teve dificuldades em dominar uma
tropa, na sua maior parte, bêbada ou de ressaca. Mais de mil pessoas foram presas,
entre soldados, populares e escravos. Estes eventos dos dias 14 e 15, que passariam
à posteridade com o nome de Setembrizada, levaram as elites a temerem por um
processo de haitinização da província.
Um dos desdobramentos da Setembrizada foi a demissão por parte da Regência

10
COSTA, Diccionario biographico..., p. 653-660. Bússola da Liberdade, Recife, 14 dez. 1831, p. 03.
11
A Matraca dos Farroupilhas, Rio de Janeiro, 17 jan. 1832, p. 03 e 05. Ver também: A Matraca dos
Farroupilhas, Rio de Janeiro, 06 mar. 1832, p. 07.
12
A Matraca dos Farroupilhas, Rio de Janeiro, 21 fev. 1832, p. 06.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 75


do Comandante das Armas, Brigadeiro Francisco de Paula e Vasconcelos, que era
ligado aos exaltados. A razão seria sua desmoralização frente aos acontecimentos
de setembro. Para o seu lugar foi nomeado o Coronel Francisco Jacinto Pereira,
que se notabilizou pela sua atuação na repressão ao movimento13. O fato provocou
um amplo debate na imprensa, com federalistas fazendo sua defesa e moderados
apoiando a decisão do governo central.
Não foi, portanto, coincidência que aos quinze dias do mês de novembro
elementos ligados aos exaltados promovessem outro motim, agora no Forte
das Cinco Pontas, lado sul do Bairro de Santo Antônio. O movimento passaria
à posteridade com o nome de Novembrada. Seus principais líderes foram o
Capitão Antônio Afonso Viana e o 2º Tenente João Machado Magalhães. Apoios
importantes foram conseguidos pelos amotinados, como o do Comandante da
Guarda Municipal, Major Francisco Antônio dos Santos. Ele era um dos militares
condenados em 1824 e anistiado após o 7 de abril, sendo nomeado logo em
seguida para a chefia da Guarda Municipal. Chegou a ser preso por conta de
seu envolvimento na Novembrada, mas solto logo em seguida. Um documento
com reivindicações dos amotinados foi enviado ao governo. Basicamente pediam
a demissão de oficiais e de portugueses ainda integrantes da 1ª linha. Além disso,
para completar o quadro do caráter antilusitano da insurreição, reivindicavam a
expulsão de todos os portugueses solteiros que possuíssem menos de dois contos
de réis em rendas ou bens, justamente os imigrantes mais modestos. Como afirma
Marcus Carvalho, era uma reivindicação muito popular, pois liberaria vagas de
trabalhos para os brasileiros mais pobres14. O motim só acabou depois que o
Presidente da Província, Francisco de Carvalho Paes de Andrade, irmão de Manoel
de Carvalho, se comprometeu a atender as reivindicações, coisa que fez apenas
parcialmente.
O retorno de Manoel de Carvalho, portanto, se deu menos de um mês depois
da Novembrada. As brasas do motim ainda estavam ardendo. O Major Francisco
Antônio dos Santos, preso em um navio, foi cumprimentado por Carvalho quando
este passava em direção à terra firme, levado por um escaler15. O herói de 1824
tratou logo de se unir àqueles que o receberam de braços abertos. Ainda no início
de 1832, o então presidente da Sociedade Federal, o padre João Barbosa Cordeiro,
desligou-se da presidência e a repassou ao ex exilado.
Foi presidindo os federalistas que Manoel de Carvalho testemunhou a eclosão
de outro motim em Recife, que ficaria conhecido como Abrilada. Em 14 de abril
de 1832 estourou um levante promovido por áulicos e portugueses descontentes
com a perda de poder e demissões promovidas desde a abdicação de Pedro I.
Seu líder foi Francisco José Martins, um dos oficiais demitidos em maio de 1831.
Outros oficiais se juntaram à rebelião, além de caixeiros portugueses preocupados
com a possibilidade de serem deportados. O objetivo dos amotinados era derrubar
o presidente da província, Francisco de Carvalho Paes de Andrade, e se possível

13
ANDRADE, Manuel Correia de. A guerra dos cabanos. 2. ed. Recife: Editora Universitária da
UFPE, 2005, p. 36.
14
CARVALHO, Marcus J. M. “Movimentos sociais: Pernambuco (1831-1848)”. In. GRINBERG, &
SALLES, O Brasil Imperial, vol. II, p. 138 e p. 145.
15
Bússola da Liberdade, Recife, 14 dez. 1831, 04.

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também o Comandante das Armas. Os Cavalcanti deram um velado apoio aos
amotinados, a ponto de o engenho Suassuna ter sido local de reuniões que
precederam o levante. Até mesmo o Marquês de Recife e outros nomes abastados da
província apoiaram o movimento. Mais uma vez as tropas governistas conseguiram
derrotar os amotinados e seus líderes fugiram se dispersando pelo interior. Dos
desdobramentos da Abrilada surgiria a Guerra dos Cabanos. Iniciada como um
levante restauracionista, a guerra degringolou em um levante com participação
maciça de escravos, índios e homens livres pobres16.
Os dados mostram o quanto era elevado o prestígio de Manoel de Carvalho
junto ao eleitorado pernambucano. Os sete anos de ausência da vida pública da
província não o afetaram. Pelo contrário, parecia que ele estava mais forte do
que nunca. Onde seu nome era posto, sua eleição se tornava garantida. Começou
pela aclamação à presidência da Sociedade Federal. Em seguida foi alçado ao
posto de juiz de paz da freguesia da Boa Vista, onde residia. Conquistou o lugar
de Comandante da Legião da Guarda Nacional de Recife. Em 1833 foi eleito
deputado geral com a segunda melhor votação entre os treze deputados eleitos,
ficando à frente de nomes como os dos irmãos Cavalcanti (Holanda e Luiz
Francisco), Venâncio Henriques de Rezende e Araújo Lima. Os pernambucanos
ainda o fizeram o conselheiro mais bem votado para compor o Conselho do
Governo, o que o tornava, segundo a legislação, o 1º vice-presidente da província.
Por fim, os paraibanos o colocaram em uma lista tríplice para o senado. Acabaria
sendo o escolhido pela Regência e confirmado pela Carta Imperial de 11 de janeiro
de 1834, ocupando a vaga deixada pela morte do senador Estevão José Carneiro
da Cunha.
Para completar a ascensão política de Manoel de Carvalho após o seu retorno
do exílio, faltava apenas voltar ao posto do qual foi defenestrado em 1824: a
Presidência da província. E nem isso demorou muito a acontecer.
O ano de 1834 começava desalentador. Ocupava a cadeira de Presidente da
província o pernambucano Francisco de Paula de Almeida e Albuquerque. Tinha
sido empossado há bem pouco tempo, no dia 6 de dezembro de 1833. Primo dos
irmãos Cavalcanti e Desembargador da Relação de Pernambuco, era deputado
geral em segundo mandato. Sua nomeação para o cargo mais importante da
província foi construída ainda entre setembro e outubro daquele mesmo ano.
Parece ter sido uma aposta do então Ministro do Império do Gabinete de 23 de
maio de 1833, Aureliano de Sousa e Oliveira Coutinho (Visconde de Sepetiba).
Outros dois nomes estavam sendo cogitados: os irmãos Sebastião e Francisco do
Rego Barros (futuro Conde da Boa Vista). Os três eram ligados aos Cavalcanti, mas
a nomeação de Francisco de Paula desagradou a Holanda Cavalcanti, pois não fora
consultado sobre esta decisão. Na verdade, ele e Aureliano não se relacionavam
bem, conforme versão do próprio Holanda. Este preferiria que Sebastião do Rego
Barros tivesse sido o escolhido. Era um momento de incertezas e uma época não
muito propícia para os Cavalcanti na corte. Mesmo contrariado, Holanda viu a

16
CARVALHO, Marcus J. M. “Um exército de índios, quilombolas e senhores de engenho contra
os ‘jacubinos’: a Cabanada, 1832-1835”. In. DANTAS, Monica Duarte (org.). Revoltas, motins,
revoluções: homens livres pobres e libertos no Brasil do século XIX. São Paulo: Alameda, 2011, p.
167-200.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 77


nomeação de seu primo Francisco ser consumada.
Para liberais moderados e exaltados pernambucanos a chegada de um presidente
da província ligado aos Cavalcanti não era algo bom, pois a boca miúda circulavam
boatos de que os Suassuna estavam por trás do apoio aos cabanos. Deveriam ficar
desconfiados, mesmo com o fato de Holanda não estar satisfeito com a nomeação.
Talvez a intenção de Aureliano fosse a de provocar um racha no grupo do seu
desafeto com um elemento de dentro da própria facção Cavalcanti. O fato, porém,
foi que Francisco de Paula assumiu o poder enfraquecido politicamente. Some-se a
isto seu temperamento. De acordo com o Comandante das Armas da época, José
Joaquim Coelho, o próprio Paula de Almeida lhe havia dito que não era dotado
“daquela disposição necessárias aos governantes em crises arriscadas”17.
As autoridades em Recife se viam às voltas com o recrudescimento da guerra
que se desenrolava em Panelas e Jacuípe. A luta caminhava para completar dois
anos e as perspectivas para o governo não eram nada animadoras. Os cofres
públicos estavam exauridos. Os cabanos pareciam fortalecidos, recebendo apoio
tanto de pessoas em Recife quanto, até mesmo, de indivíduos dentro das tropas
do governo18. Uma anistia aprovada por deputados e senadores e publicada pela
Regência em fins de 1833 não adiantou nada. Pior: alguns críticos disseram que
só serviu para reforçar os cabanos: “[...] não aceitaram a anistia, e foi seu só efeito
dar-lhes tempo e lugar para se reforçarem, rearmarem, e abastecerem”19. Era
preciso que o governo fosse mais duro: “Os cabanos não querem anistia, nem paz;
porém sim sangue, destruição, mortes: destruição, morte, fogo, e ferro se lhes leve,
e seja d’um a outro confim da Província único e, geral o grito – guerra de morte
aos Cabanos”20.
A apreensão aumentou ainda mais com a notícia sobre cartas interceptadas
vindas do Rio de Janeiro articulando os restauradores da corte com os restauradores
locais. As correspondências eram do General Abreu e Lima para o seu irmão Luiz
Roma. Elas começaram a ser publicadas pelo Diário de Pernambuco no dia 12 de
janeiro. Davam a entender que os irmãos Roma se comunicavam desde pelo menos
setembro de 1833. Na carta escrita em 20 de novembro de 1833, Abreu e Lima
recomendava que Luiz apressasse o golpe. Desejava ir logo para Pernambuco, mas
cumpriria a promessa de somente viajar depois de receber o seu aviso. Tinha mais
de 20 bons oficiais, tanto de Cavalaria como de Caçadores, que iriam com ele. Na
sua visão, o Norte decidiria o problema. Orientava para que Luiz tentasse levar os
cabanos a um objetivo único e assim conquistar uma primeira vitória. A adesão de
Abreu e Lima ao partido seria a senha para um movimento geral21.
A primeira reação a estas notícias de conspiração partiu do Coronel Francisco
Jacinto Pereira, do Capitão José Maria Ildefonso Jacome da Veiga Pessoa,
Comandante interino da Fortaleza do Brum, e do juiz de paz José Higino de
Miranda. Os três enviaram uma representação à Câmara Municipal pedindo que o
Presidente da província e o Conselho tomassem medidas efetivas para combater a

17
Diário de Pernambuco, Recife, 20 jun. 1835, p. 01-02.
18
Diário de Pernambuco, Recife, 21 jan. 1834, p. 01-02; 29 jan. 1834, p. 01-02.
19
Diário de Pernambuco, Recife, 09 jan. 1834, p. 01.
20
Diário de Pernambuco, Recife, 02 jan. 1834, p. 01.
21
Diário de Pernambuco, Recife, 12 jan. 1834, p. 01-02.

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ameaça. A partir disto, os vereadores encaminharam um ofício à Presidência no dia
15 de janeiro. Recomendavam, inicialmente, que ao Chefe das forças legalistas no
Ponto de Panelas fosse dado maior poder de decisão para enfrentar os revoltosos.
Em segundo lugar, havendo pessoas já pronunciadas e presas na cidade como sendo
restauradores, e para não permitir que animem “tão detestável partido”, pediam
que fossem remetidos o quanto antes para a Ilha de Fernando todos os presos
envolvidos na Abrilada e os Roma já pronunciados pelo Promotor Público. Em
terceiro lugar, lembravam que fossem dadas as ordens necessárias para a captura
do General Roma (Abreu e Lima), já pronunciado como conspirador, oficiando aos
Presidentes de Alagoas e Bahia e demais autoridades competentes, impedindo-o
de se juntar aos insurgentes de Panelas. Em quarto lugar, que fosse empossado
o quanto antes o Conselho do Governo eleito para aquele ano, pois as medidas
urgentes e necessárias a serem tomadas exigiam um novo fôlego, coisa que o antigo
já não possuía. Finalizam solicitando medidas policiais de vigilância, por parte dos
juízes de paz, em relação aos suspeitos de conivência com os conspiradores22.
Foi então que os exaltados aproveitaram para pôr em marcha um golpe que
levaria Manoel de Carvalho à Presidência. Na manhã do dia 16 de janeiro, guardas
nacionais dos Batalhões de Olinda e das freguesias de Santo Antônio, Boa Vista e
de Recife se reuniram no Campo dos Canecas (Largo de Nossa Senhora do Terço).
Segundo o Comandante das Armas de então, José Joaquim Coelho, ele havia
recebido informações desta reunião ainda na noite do dia anterior. O plano tinha
sido elaborado pelos irmãos Machado Rios, Antônio e Francisco, tenentes-coronéis
da Guarda Nacional e líderes ligados aos exaltados. Prontamente o Comandante das
Armas informou ao presidente da província e lhe sugeriu tomar medidas imediatas
para dissolver o ajuntamento no seu início. Para desarmar os guardas nacionais,
pediu-lhe autorização e um documento onde o presidente se responsabilizaria pelo
que ocorresse. Achando que poderia desarmá-los sem derramamento de sangue,
Paula Almeida não acatou a sugestão e resolveu esperar pelo dia seguinte para ver
o que pretendia aquela gente reunida. Ainda de acordo com o relato de Joaquim
Coelho, os guardas nacionais se reuniam acobertados por uma ordem que os
Carneiros obtiveram do então vice-presidente e também conselheiro Joaquim José
de Miranda, colocando-se à disposição dos juízes de paz23.
Este detalhe da ordem do governo dá mostras do grau de articulação dos
amotinados. Na sessão extraordinária do Conselho do dia 15 de janeiro o assunto
foi posto em pauta. Dá-se a entender que o governo autorizou os Comandantes
dos três Batalhões que compunham a Legião da Guarda Nacional de Recife a
porem seus soldados à disposição dos juízes de paz visando a manutenção da
tranquilidade de seus distritos. Uma dúvida pairava no ar: teria o vice-presidente
Miranda dado a ordem? Como não se fazia presente à sessão, deliberou-se por
encaminhar ao conselheiro Miranda um ofício no sentido de saber se de fato aquilo
era verdade, uma vez que a cópia de posse do Conselho não tinha a autenticação
de sua assinatura. De qualquer forma, sendo o ofício forjado ou não, o que
isso nos indica é o fato dos conspiradores terem aproveitado um momento, na
verdade algumas horas, em que Paula Almeida estava temporariamente afastado

22
Diário de Pernambuco, Recife, 17 jan. 1834, p. 01.
23
Diário de Pernambuco, Recife, 20 jun. 1835, p. 01-02.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 79


da presidência. Vale ressaltar o nenhum esforço que o Comandante da Legião
de Recife fez para que seus subordinados dispersassem o ajuntamento. Era ele
justamente Manoel de Carvalho Paes de Andrade.
A falta de firmeza do presidente permitiu que a manifestação aumentasse e
inviabilizou, àquela altura, qualquer medida por parte do Comando das Armas.
Ainda mais pelo fato de que pessoas influentes empregavam todos os meios de
persuasão para o sucesso daquele movimento. Os guardas nacionais do ajuntamento
também contavam com a proteção de praticamente todos os juízes de paz. Essa
associação se torna mais clara pelo fato de ter sido a Junta de Paz quem enviou ao
Conselho a requisição dos Comandantes dos Batalhões da freguesia da Boa Vista
e Olinda “e mais Oficiais das Guardas Nacionais nela assinados”24. Eles redigiram
um manifesto aos “dignos e livres pernambucanos”. Consistia este documento
em quatro artigos, muito semelhantes às reivindicações da Câmara Municipal.
Entre eles, exigiam que fossem removidos para a Ilha de Fernando de Noronha
todos os portugueses, brasileiros natos e adotivos, tidos pela opinião pública como
restauradores e coniventes com os “salteadores” de Panelas e Jacuípe; que o
Governo empregasse toda a força necessária e a que pudesse obter para reforçar
a tropa legalista na Guerra de Panelas. Os reunidos alertavam o governo contra
qualquer medida hostil que por acaso tomasse para frustrar a execução destes
artigos, se comprometendo a manterem a ordem, a obediência à lei e o respeito às
autoridades constituídas. Por fim, não se responsabilizariam pelos “terríveis efeitos
que resultarem desta reunião”, se acaso o Governo não atendesse as suas súplicas
e quisesse tomar medidas contrárias25.
Paula Almeida ainda tentou controlar a situação. Convocou extraordinariamente
o Conselho do Governo no dia 15 para deliberar sobre as representações recebidas
e avaliar a situação. Diante da gravidade dos fatos, os Conselheiros resolveram
empossar o novo Conselho e tornar a reunião permanente, caso houvesse
necessidade de tomar medidas de salvação pública. O presidente enviou um
ofício aos guardas nacionais, chamando-os a obedecerem à lei e a se recolherem.
Prometia que medidas seriam tomadas em acordo com o Conselho que estava
reunido. Estando presentes nele os novos conselheiros e deputados gerais que se
encontravam em Recife, Francisco de Paula Cavalcanti e os irmãos Rego Barros,
Francisco e Sebastião, esforçavam-se para sustentar a dignidade do governo.
Vendo-se sem apoio político, Paula Almeida, no dia 17, deu parte de doente e
entregou a Presidência ao Conselheiro mais votado, o vice Manoel de Carvalho
Paes de Andrade26. O herói de 1824 retornava, assim, ao comando da província.
Era fundamental aos exaltados ter um homem considerado aliado à frente
do principal cargo da província. Esperavam, assim, ter seus interesses atendidos
através do acesso ao poder. Especialmente para os irmãos Francisco e Antônio
Carneiro Machado Rios, isto significava conquistar cargos. Estar bem inserido na
máquina governamental representava a possibilidade de ganhos materiais e exercer

24
Diário de Pernambuco, Recife, 20 jun. 1834, p. 02-03. PERNAMBUCO. Arquivo Público Estadual
Jordão Emereciano – APEJE. Atas do Conselho do Governo de Pernambuco (1821-1834). Recife:
Assembleia Legislativa de Pernambuco; CEPE, 1997, vol. 2, p. 276.
25
Diário de Pernambuco, Recife, 18 jan. 1834, p. 01-02. PERNAMBUCO, Atas do Conselho..., p.
276-277.
26
Diário de Pernambuco, Recife, 20 jan. 1834, p. 01-02; 20 jun. 1835, p. 01-02.

80 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


influência sobre um grande número de pessoas. Sobre a primeira questão, Paulo
Henrique Cadena demonstrou em seu estudo que a política gerava dividendos27.
Antônio Carneiro estava envolvido com obras públicas desde, pelo menos, 1832.
Em sessão da Câmara Municipal de Recife de 03 de março do mesmo ano, ele foi
autorizado a receber dos cofres públicos a quantia de 98$220 réis por parte da obra
na ponte da Madalena, da qual era arrematante. Já em 1835, seus adversários o
acusavam de ter recebido mais de seis contos de réis e não ter feito praticamente
nada naquela obra28. Sem falar que a riqueza herdada pelos Machado Rios estava
entrando em declínio neste período, fato não negado por eles: não diminuía com
“jogos, bebedeiras, e Inglesas, mas sim com socorros que desde 17 prestam a
aquelas pessoas, que são reduzidas a indigência pelo chimanguismo [...]”29. No
que diz respeito à influência sobre outros, os irmãos procuraram fortalecer posições
na linha de comando da Guarda Nacional. Ela foi usada pela primeira vez em
Pernambuco como instrumento de luta partidária na reunião do Campo dos
Canecas. Provou-se ali a sua eficiência na luta política. Para o futuro, as perspectivas
se mostravam animadoras. Controlar a Guarda Nacional seria elemento essencial
para as elites políticas.
Uma vez à frente do governo provincial, as primeiras medidas tomadas por
Manoel de Carvalho foram no sentido de atacar a ameaça representada pelos
restauradores e fortalecer as tropas governistas no campo de guerra em Panelas
e Jacuípe. Conforme o prometido, ele deu ordens para enviar a Fernando de
Noronha os implicados com o movimento restaurador. Segundo o Diário de
Pernambuco, foram 68 pessoas. Entre eles estavam dois dos irmãos de Abreu e
Lima: Luiz e João Roma. Para o campo de batalha preparou-se um reforço de mais
de mil praças. Foram mobilizados Batalhões da Guarda Nacional de Recife, Olinda,
Goiana, Afogados, Poço da Panela e Casa Forte. Somados a eles, soldados do
Corpo de Municipais Permanentes, uma espécie de polícia do município de Recife.
Esta Legião teria à frente do seu comando o Tenente Coronel Antônio Carneiro
Machado Rios. Comandando um dos Batalhões estava o seu irmão, Francisco. A
tropa ainda seria reforçada por soldados de 1ª linha de Pernambuco e da Paraíba30.
Na manhã do dia 1º de março, todo o contingente embarcou em direção a Água
Preta. Manoel de Carvalho seguiu a tropa, fazendo do Acampamento em Limeiras
a sede temporária do governo e de lá retornando somente em junho.
O Presidente recebeu pleno apoio da Regência em suas ações. Foi autorizado a
“lançar mão de todas as medidas, que lhe possam ocorrer, e pareçam profícuas”.
Uma delas foi a suspensão de habeas corpus para os presos e os coniventes

27
Quando morreu, o Coronel Suassuna deixou para cada filho 833$166 réis. Um dos filhos,
Francisco de Paula (futuro Visconde de Suassuna), ficou com parte do Engenho Suassuna. Este,
quando morreu em 1880, tinha sete engenhos e um palacete. Outro irmão, Pedro Francisco (futuro
Visconde de Camaragibe) morreu em 1875 dono de três engenhos. CADENA, Paulo Henrique
Fontes. Ou há de ser Cavalcanti, ou há de ser cavalgado: trajetórias políticas dos Cavalcanti de
Albuquerque (Pernambuco, 1801 – 1844). Recife: Editora Universitária da UFPE, 2013, p. 22-23,
p. 82-87.
28
Diário de Pernambuco, Recife, 14 mar. 1832, p. 02. O Velho Pernambucano, Recife, 19 mar. 1835,
p. 05; 4 abr. 1835, p. 21.
29
A Razão e a Verdade, Recife, 28 fev. 1835, p. 35.
30
Diário de Pernambuco, Recife, 04 fev. 1834, p. 04. A Quotidiana Fidedigna, Recife, 1º mar. 1834,
p. 02-04.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 81


que fossem recolhidos a sua ordem ou a ordem do Presidente da Província de
Alagoas. Chegou ainda a anunciar recompensa em dinheiro para qualquer que
apresentasse, vivo ou morto, líderes cabanos. Se fosse um dos revoltosos, além do
dinheiro ganharia o perdão por seus “crimes”31.
As medidas adotadas por Manoel de Carvalho surtiram efeito. As tropas
reavivaram sua moral e as notícias de vitórias chegavam à capital. Ao mesmo
tempo, os relatórios das incursões nas matas de Panelas e Jacuípe publicados
pelos jornais mostravam a carnificina e o horror em que estava se transformando a
guerra. Narrando a exploração feita ao acampamento dos cabanos em Castelhano,
em 28 de abril, o Comandante do Corpo, Francisco Manoel Accioli, dizia que para
contar o número de mortos, os soldados lhe traziam as orelhas dos cadáveres. Mas
este método não era exato, pois ele mesmo encontrou muitos outros cadáveres na
mata, “já bastante arruinados, e com ambas as orelhas”32. O Capitão Sebastião
Lins Wanderley disse ter visto em um grupo de prisioneiros, crianças expirando
de fome, mulheres esqueléticas e cobertas apenas de trapos imundos, “em cujos
semblantes apareciam visivelmente os caracteres da fome, e da desgraça!”33. As
cenas pareciam ser tão terríveis que mexiam com o ânimo de certos oficiais. O
Comandante em Chefe das Forças da Província de Pernambuco, Joaquim José
Luiz de Souza, em ofício para o Comandante das Armas, disse que em um grupo
de cabanos trazido ao acampamento havia algumas mulheres e crianças, “em
estado tal de doença, e de fome, que faz comover o coração do homem mais
insensível”. Desde que foi comandar as tropas de Alagoas tem visto estas cenas, o
que torna o seu Comando um peso. Sente como que isso fosse uma punição aos
seus erros, e que caso fosse dispensado deste Comando o receberia como uma
recompensa34. Para outros oficiais a solução seria outra. José Thomaz Henriques,
Comandante Geral das Forças de Alagoas, questionava em ofício: “Estes Cabanos
de qualquer sexo, que se apresentam; para que não exterminá-los do meio de nós;
para que não botá-los para o inferno? Nossa piedade caro nos tem custado...” E
mais adiante completava: “Vou dar por aqui as providências para cessar o mal, e
pedir ao Exm. Snr. Camargo (Presidente da Província de Alagoas) o extermínio
destes demônios do meio de nossas forças”35.
O fato é que em junho Manoel de Carvalho retornava ao Recife e a vitória sobre
os cabanos era dada como certa. A ameaça de uma vitória de restauradores fora
praticamente afastada. Ele assumiria oficialmente a Presidência no dia 3 de junho,
cumprindo a Carta da Regência de 22 de fevereiro que o nomeara para o cargo.
Em comemoração, o Teatro de Recife apresentou no domingo 22 de junho a peça
“A Rusga da Praia Grande ou o Quixotismo do General da Massas!!!”, ocasião em
que o Presidente Manoel de Carvalho seria ovacionado.
Vencidos os restauradores, o desafio de Manoel de Carvalho foi o de lidar com
os exaltados, especialmente com os irmãos Carneiros. Muito cedo os exaltados
pernambucanos perceberiam que suas jornadas de janeiro de 1834 seriam a sua

31
Diário de Pernambuco, Recife, 02 mai. 1834, p. 01; 28 abr. 1834, p. 01.
32
Diário de Pernambuco, Recife, 07 mai. 1834, p. 01-02.
33
Diário de Pernambuco, Recife, 17 mai. 1834, p. 01-02.
34
Diário de Pernambuco, Recife, 27 mai. 1834, p. 01.
35
Diário de Pernambuco, Recife, 13 mai. 1834, p. 01.

82 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


journée des dupes. O sonho de governar junto com Manoel de Carvalho não se
concretizaria, pois o republicano de 1817 e 1824 se mostraria mais monarquista e
moderado do que seus amigos federalistas esperavam.
Os sinais de que Manoel de Carvalho já não era o mesmo da Confederação
do Equador começaram cedo, mas os exaltados pernambucanos não se deram
conta. Republicanos paulistas, no início de 1832, estranhavam o “quietismo” de
Carvalho, esperando que ele agisse, no seu retorno do exílio, da mesma forma
como agiu em 182436. A sua eleição como senador pela Paraíba dava mostras
de sua aproximação com os moderados. Naquela província os moderados locais
tinham como um de seus principais nomes o deputado Joaquim Manoel Carneiro
da Cunha. Segundo o exaltado carioca João Batista Queiroz, Carneiro da Cunha
já tinha feito o irmão de Paes de Andrade, Francisco de Carvalho, seu pupilo. Dá
a entender também que o político paraibano enviava emissários a fim de assediar
Manoel de Carvalho, a quem João Batista aconselhava a não lhes dar ouvidos37.
A inclusão do nome de Carvalho na lista dos candidatos ao senado pela Paraíba e
sua escolha por parte da Regência deram mostras de que o assédio dos moderados
paraibanos produziu resultados. A própria Carta Imperial que o confirmou na
Presidência de Pernambuco, datada de 22 de janeiro de 1834, dá mostras de
que ele já era homem de confiança da Regência. O documento destacava seus
“distintos merecimentos, patriotismo, adesão à Sagrada causa deste Império, e
mais qualidades recomendáveis, que concorrem na vossa pessoa”38.
Uma vez percebendo que Manoel de Carvalho governava com o apoio dos
moderados da Corte e de seus aliados locais, os exaltados pernambucanos
começaram a lhe fazer oposição e se uniram aos Cavalcanti e ao grupo de Araújo
Lima contra o Presidente. Formou-se uma frente oposicionista até então considerada
impossível de existir. Um comunicado inserido no Diário de Pernambuco de 26
de agosto comentava uma notícia do jornal exaltado Bússola da Liberdade, onde
se afirmava que Manoel de Carvalho seria demitido da Presidência. Segundo o
Diário, o Presidente tinha crédito no partido chimango. Na Câmara dos Deputados
ele era acusado e insultado pelos Cavalcanti e por outros membros da oposição
que não eram chimangos. Na Província, quem lhe fazia oposição não eram os
chimangos (que o defendiam e o sustentavam), mas os que seguiam o credo da
Bússola e os que faziam oposição por princípios opostos aos da Bússola, mas que
tinham a simpatia deste. Em resumo, eram os exaltados e os restauradores39.
O rompimento definitivo entre Manoel de Carvalho e os exaltados se deu
em outubro. O Tenente Coronel Antônio Carneiro entrou em choque com o
Comandante em Chefe das Forças de Água Preta, Joaquim José Luiz de Sousa,
ao criticar algumas de suas ações. Dentre elas estava a nomeação de Comissões
Militares contra autoridades legítimas. Segundo Antônio Carneiro, tais Comissões
passavam por cima da autoridade dos juízes de paz nas localidades e agiam de
forma autoritária, provocando a desunião no combate aos cabanos. Depois de
uma troca de ofícios desaforados entre os dois oficiais, a presidência interviu em

36
A Matraca dos Farroupilhas, Rio de Janeiro, 21 fev. 1832, p. 03.
37
A Matraca dos Farroupilhas, Rio de Janeiro, 17 jan. 1832, p. 03 e p. 05.
38
Diário de Pernambuco, Recife, 09 abr. 1834, p. 01.
39
Diário de Pernambuco, Recife, 26 ago. 1834, p. 01-02.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 83


14 de novembro, ordenando que Antônio regressasse ao Recife juntamente com
os guardas nacionais que estavam sob o seu comando40. Na queda de braço entre
comandantes militares, o Carneiro levou a pior.
Os adversários de Manoel de Carvalho começaram a se movimentar nos
bastidores para tramar sua deposição à força. Houve um boato sobre uma rusga
que aconteceria no dia 7 de setembro, mas que acabou não se confirmando. O
clima era de conspiração. Os irmãos Machado Rios passaram a usar sua influência
sobre os Guardas Nacionais de Recife para tentar reeditar a reunião de janeiro
que depôs Francisco de Paula. Caso Manoel de Carvalho saísse, quem assumiria a
Presidência interinamente seria um dos Cavalcanti, Francisco de Paula Cavalcanti
de Albuquerque, um dos cabeças da facção que estava unida aos exaltados na
oposição ao governo.
Os irmãos Carneiro aproveitaram a polêmica em torno da mudança no
Comando das Armas para colocar o plano em prática. Em outubro a Regência
decidiu substituir o então Comandante das Armas, Tenente Coronel José Joaquim
Coelho, pelo também Tenente Coronel Antônio Correia Seara. Este também era
Deputado Geral pela Província do Pará. A nomeação foi fortemente combatida
pelos moderados pernambucanos, principalmente pelas páginas do Diário de
Pernambuco. O problema em relação a Seara era, principalmente, sua atuação
na época da Confederação do Equador. A princípio liberal, acabou por debandar
para o lado das tropas do Imperador. Destacou-se por sua perseguição e violência
contra os confederados. A Câmara Municipal de Recife encaminhou ao Presidente
da Província uma representação se colocando contrária à sua posse, tendo sido
atendida pelo Conselho que decidiu por não empossá-lo e deixar José Joaquim à
frente do Comando das Armas, isso enquanto representavam ao Governo Central
explicando os riscos de levar adiante aquela nomeação41.
Os irmãos Carneiro tentariam usar a parada militar do dia 2 de dezembro, em
homenagem ao aniversário de Pedro II, para sublevar, mais uma vez, os Guardas
Nacionais e forçar o governo a atender suas reivindicações. Uma proclamação foi
espalhada pela cidade, falando de uma representação que seria enviada a Manoel
de Carvalho para que desse posse a uma terceira pessoa, e não conservar no
Comando das Armas o José Joaquim Coelho. A justificativa passava pelo fato deste
ter cometido os mesmos crimes de Seara em 1824 e ser português de nascimento.
Conservá-lo era privilegiar um brasileiro adotivo em detrimento de um brasileiro
nato. Desta vez a reunião não teve sucesso, pois no dia da parada a maior parte
dos oficiais não aderiu42.
Este evento mostra como as questões ideológicas eram facilmente colocadas de
lado e as conveniências e interesses das facções ditavam as alianças e rompimentos
na vida política da província, quiçá do Império. O mais lógico seria a oposição dos
exaltados a Seara, por tudo o que ele representava de opressão contra os liberais
que lutaram em favor da Confederação de 1824 e dos seus ideais. E os irmãos
Machado Rios, juntamente com o seu grupo político, se consideravam herdeiros
destes ideais. No entanto, o importante era desestabilizar o governo provincial e

40
Diário de Pernambuco, Recife, 05 nov. 1834, p. 02; 06 nov. 1834, p. 03; 19 nov. 1834, p. 01.
41
Diário de Pernambuco, Recife, 06 nov. 1834, p. 01; 07 nov. 1834, p. 01-02; 17 nov. 1834, p. 02.
42
Diário de Pernambuco, Recife, 04 dez. 1834, p. 01-02.

84 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


retirar do poder Manoel de Carvalho.
Frustrada a tentativa de reunião dos guardas nacionais, a reação do Presidente
foi a de suspender Francisco Carneiro do comando da Legião de Recife e do seu
posto de tenente coronel pelo prazo de um ano. Considerando a medida ilegal,
Francisco decidiu resistir. Seus sentimentos, de fato, não eram dos melhores. Boatos
corriam dizendo que ele andava prometendo vingança, motivado por uma rusga
com alguns cidadãos que chamava de “Pais da Pátria” e que se opuseram aos seus
planos do dia 243. Foi nesta época que abriu sua tipografia e passou a imprimir o
periódico A Razão e a Verdade, que serviu de meio para propagar as ideias dos
exaltados e atacar Manoel de Carvalho.
Por meio de seu jornal, os Carneiros retomaram um lema que foi muito utilizado
pelos revolucionários de 1824: a luta contra a reescravização das províncias,
especialmente Pernambuco, pelo Rio de Janeiro. Se naquele ano o vilão era
D. Pedro I, em 1834/ 1835 o papel cabia aos chimangos ou moderados que
controlavam o governo regencial na Corte. Na sua edição de 28 de fevereiro de
1835, o jornal de Francisco Carneiro, já com Antônio da Silva Santiago como
redator, acusava os chimangos do Rio de buscarem subordinar as Províncias à sua
revolução, se sustentando por meio da intriga e da aberta perseguição aos liberais.
Ainda segundo o redator, as províncias tinham que se libertar deste jugo. No caso
de Pernambuco, de retirar um presidente despótico que servia de mero instrumento
aos chimangos44.
Para A Razão, Manoel de Carvalho não possuía autonomia, sendo dirigido nas
suas decisões por outras pessoas. Dá destaque ao deputado Venâncio Henrique
de Rezende, a José Tavares Gomes da Fonseca e a Manoel Paulo Quintella. Foi
graças ao ciúme destes dois últimos e às suas intrigas que o Presidente passou
a ver os Carneiros como adversários. Mas, acima de tudo, os irmãos Carneiros
se ressentiam pelo fato de Manoel de Carvalho ter lhes traído. Na visão deles, o
cargo de Presidente só lhe foi passado devido à reunião dos Guardas Nacionais de
janeiro. No decorrer da sua administração, acabou se afastando dos seus antigos
aliados e se aliando aos portugueses. E naquele momento, a retribuição que dava
aos que o alçaram ao poder era suspendendo Francisco Carneiro e mandando
prender o Tenente João Ribeiro em um navio45.
Todos os meios eram válidos para atacar a imagem do Presidente da Província
e muitas denúncias foram publicadas. Ele havia consentido que seu filho, João de
Carvalho Paes de Andrade, fosse empossado no posto de Major do Batalhão da
Guarda Nacional de Igarassu, recebendo soldo de Major de Brigada, mesmo sendo
domiciliado na capital. Foi acusado de ter iniciado sua carreira na pirataria e até
1810 roubava embarcações na costa pernambucana. Além disso, teria se beneficiado
sozinho de uma carga de pau brasil vendida à Inglaterra, em 1824, e que era
pertencente ao Estado. Vivia em mancebia publicamente, era mau esposo, mau pai
e sem fé. Por fim, teria sido o mandante da morte do Padre Nicolau, capelão de sua
mãe46.

43
Diário de Pernambuco, Recife, 06 dez. 1834, p. 01.
44
A Razão e a Verdade, Recife, 28 fev. 1835, p. 34-36.
45
A Razão e a Verdade, Recife, 21 dez. 1834, p. 09-12.
46
A Razão e a Verdade, Recife, 30 dez. 1834, p. 13-14; 05 jan. 1835, p. 20; 14 mar. 1835, p. 43.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 85


Um ano depois de ter sido alçado ao poder por um golpe dos exaltados,
Manoel de Carvalho foi vítima de seus antigos aliados. No dia 11 de janeiro, no
acampamento da Tropa da Direita, em Alagoa dos Gatos, o 2º Sargento de 1ª
Linha de Fernando de Noronha, José Pedro de Souza, e o também Sargento da
Companhia de Artilharia, José Joaquim de Barros, se apresentaram à frente das
tropas em armas durante o toque de chamada de campo. O Major Comandante da
Força, Francisco d’Arruda Câmara, questionou quem os liderava e qual o objetivo
do movimento. Os dois sargentos responderam que a tropa estava sem ração havia
três dias. O Major Arruda tentou persuadi-los a não agirem daquela forma e deu
ordens para que se dispersassem, porém sem sucesso. Os dois sargentos pegaram
a bandeira que estava na residência do quartel do major e se postaram a frente
da tropa, afirmando que se dirigiriam à capital para se apresentarem ao presidente
da província. No dia seguinte marcharam para a capital, conduzindo quase como
prisioneiros alguns oficiais. Os amotinados eram em torno de duzentas praças e
tinham levado uma peça de artilharia47.
Manuel Correia de Andrade chamou a atenção para as condições favoráveis
ao motim, especialmente os fatores que influenciariam os soldados a tomar aquela
atitude: alastramento da varíola entre a tropa, desorganização administrativa
causada pelo transporte dos arquivos do acampamento levados por Antônio
Carneiro quando seguiu para Recife, além do atraso dos soldos de oficiais e
soldados que se prolongava há vários meses, resultando em desabastecimento da
tropa. A Presidência chegou a enviar o capitão Vicente José Ferreira de Morais e o
Chefe de Polícia para negociarem com os amotinados em Santo Antão, propondo
libertar os oficiais que se encontravam presos, marchar para a capital debaixo das
ordens de novos oficiais, receber os soldos atrasados e seguir de volta à frente de
batalha. A princípio, não aceitaram as condições do governo48.
A notícia do motim chegou em Recife por volta do dia 17 e deixou a população
e as autoridades alarmadas. Estavam bem presentes na memória dos recifenses os
acontecimentos da Setembrizada de 1831. O Diário de Pernambuco descreveu as
condições da capital àquela altura. Derramou-se um desassossego geral na cidade,
há dias agitada pelas ameaças de uma próxima conspiração com o fim aparente de
tirar da Presidência a Manoel de Carvalho e pôr no Comando das Armas o Tenente
Coronel Seara. O Presidente agiu se prevenindo para evitar um rompimento, pondo
pessoalmente na povoação dos Afogados uma guarnição para impedir que os
sublevados entrassem na capital por ali. A Passagem da Madalena foi guarnecida
com mais de cem guardas nacionais da povoação de Casa Forte. Já se passavam
cinco dias que a capital vivia nesta expectativa, estando o comércio paralisado.
A população sabia quem eram os autores da conspiração e estes faziam questão
de tornar conhecidas suas intenções, com linguagem subversiva e audaz. Escritos
anárquicos eram derramados, espalhadas proclamações incendiárias e ninguém
ignorava que esperavam unicamente pela aproximação dos insubordinados
d’Alagoa dos Gatos para “arvorarem nesta Cidade o estandarte da desordem”49.
No dia 21 de janeiro estourou a sedição já esperada. Duas proclamações

47
Diário de Pernambuco, Recife, 20 jan. 1835, p. 2.
48
ANDRADE, A Guerra dos Cabanos..., p. 189-190, p. 192-194.
49
Diário de Pernambuco, Recife, 22 jan. 1835, p. 01-02.

86 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


foram espalhadas pela cidade. As datas mostram que, se não estavam em conluio
com os soldados de Lagoa dos Gatos, os irmãos Machado Rios pelo menos se
aproveitaram da situação para agir. A primeira foi feita por Francisco Carneiro
no dia 19. Nela convocava os pernambucanos a salvarem a província e a Pátria,
pegando em armas contra um presidente arbitrário, marionete de uma facção que
controlava o governo na corte e traidor dos que outrora confiavam nele. Terminava
dando vivas à Pátria, à união, à Constituição política do Império, a D. Pedro II
Imperador Constitucional, à Reforma e à Assembleia Provincial. A segunda foi
escrita por Antônio Carneiro no dia 20. Conclamava também o povo a se rebelar
contra o arbítrio do Rio de Janeiro, origem dos males que a província enfrentava.
Atacava a Lei de 3 de outubro de 1834 (Lei dos Presidentes de Província), dizendo
ter sido elaborada para anular os efeitos do Ato Adicional. Lembrava do que estava
ocorrendo em Goiana e Pajeú de Flores (será analisado adiante) e voltava a taxar
Manoel de Carvalho de traidor, falso republicano e de ter conseguido ser eleito
senador pela Paraíba com o apoio dos chimangos da corte. Concluía dando vivas
à Religião, à Liberdade, ao Senhor D. Pedro II “sem a influência Chimanga”50.
Segundo o relato do Diário de Pernambuco, a presidência já tinha conhecimento
da preparação da rusga por parte dos irmãos Machado Rios. Na manhã do dia
21, Manoel de Carvalho determinou que todos os Comandantes dos Batalhões
da Guarda Nacional da cidade convocassem os seus subordinados a quem mais
confiassem para que se postassem em frente ao Palácio do Governo. Às 14h ouviu-
se o som de uma girândola de foguetes largada na casa de Francisco Carneiro.
O governo então tocou o alarma na cidade. Pouco depois do aparecimento da
girândola, Francisco Carneiro surgiu fardado, apesar de estar suspenso do exercício
do posto de tenente coronel e comandante do Batalhão da Guarda Nacional de
Santo Antônio. Acompanhado de 10 a 12 homens armados, a maior parte dos
quais estavam de jaqueta e descalços, Francisco Carneiro chegou ao quartel
da Guarda Nacional onde havia uma força sob o comando do capitão Silveira.
Conseguiu levar consigo esta força, declamando contra o presidente, ameaçando
atirar em quem tentasse impedi-lo e a quem não o acompanhasse. Enquanto isso,
Antônio Carneiro marchava da Boa Vista para Santo Antônio com uma gente e
alguns comparsas, estando entre eles seus irmãos João e Joaquim, alguns alferes
e oficiais da Guarda Nacional. Ele deixou seu irmão João comandando um
piquete que havia posto na ponte da Boa Vista e seguiu com a sua gente para as
imediações do Palácio do Governo. O objetivo era impedir que as tropas legalistas
se unissem. Os sediciosos cercaram, então, o Palácio, onde estava o presidente com
apenas trinta soldados municipais. Por pouco não conseguiram invadi-lo, visto sua
superioridade numérica. Manoel de Carvalho deu ordens para que abrissem fogo
contra os sitiantes, que não ousaram tomar a ofensiva por não serem os guardas
nacionais que acompanhava Antônio Carneiro da confiança dele, pois haviam
sido apanhados incautos e postos, por assim dizer, à força nas fileiras dos rebeldes.
Os sitiantes fugiram rapidamente, mas não foram perseguidos pelos municipais por
estarem estes em pequeno número. A tarde se passou sem que o governo tivesse
tropa suficiente para tomar a iniciativa. Finalmente, às 19h, chegou dos Afogados
o tenente coronel Joaquim Canuto de Figueredo, à frente do Batalhão da Várzea.

50
Diário de Pernambuco, Recife, 27 jan. 1835, p. 02.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 87


Incorporadas a esta tropa estavam as duas Companhias da Casa Forte, sob as ordens
do major Mascarenhas, e parte da Guarda Municipal. Os sediciosos, diante de
tanta força, resolveram fugir para a Boa Vista. O governo preparou durante a noite
um ataque previsto para o dia seguinte. O próprio Manoel de Carvalho foi quem o
comandou. Ao avistarem as tropas legalistas, os sediciosos fugiram em debandada.
Eles só não foram alcançados por falta de uma cavalaria. Perseguidos até o Poço
da Panela, ali a tropa dos irmãos Machado Rios se dispersou completamente51.
Apesar de toda confusão, não houve mortos nos embates entre tropas do
governo e os sediciosos. O governo saiu vencedor, mas era sentimento geral
que uma nova rusga aconteceria. Além das medidas de praxe para prender os
envolvidos na rusga, Manoel de Carvalho resolveu se precaver. Ordenou que
uma Companhia completa de municipais permanentes fosse postada em frente
ao Palácio do Governo por tempo indeterminado. Deu ordens também para que
o armamento existente no Forte das Cinco Pontas fosse transferido para a escuna
Vitória, recomendando ao Comandante das Forças Marítimas que a tivesse em
“boa guarda”. E mandou, enfim, a este mesmo Comandante que fizesse estacionar
a escuna Fluminense na Praia do Colégio, próxima à ponte que ligava os bairros
de Santo Antônio e Recife52.
Os irmãos Machado Rios aproveitaram o tratamento indulgente dado pelo
governo e a leniência de muitos juízes de paz para promover nova rusga53. Notícias
vindas do Pará, publicadas na imprensa no dia 13 de março, davam conta dos
distúrbios ocorridos naquela província e da luta entre forças ligadas a moderados
e exaltados, resultando no assassinato do presidente e do Comandante das Armas,
sendo este o pernambucano José Joaquim da Silva Santiago. Isto parece ter dado
novo ânimo aos Carneiros. Neste meio tempo, A Voz e a Verdade retomava os seus
ataques ao governo. Denunciava que Manoel de Carvalho aproveitava a ocasião
para se vingar dos “patriotas”. Para tanto, trouxe de Goiana o juiz de direito Nunes
Machado, cuja missão seria revisar os processos julgados improcedentes. E com
o fim de angariar o apoio de camadas mais baixas, divulgava em suas folhas o
boato sobre um golpe arquitetado pelo governo contra a gente de cor, os pretos e
os pardos, que os portugueses chamavam de “canalha, gente de faca e de cacete,
que não quer senão roubar”. Depois de agarrados, eles seriam enviados para o Rio
Grande do Sul e Montevidéu, estando apenas por aguardar o retorno da fragata
que fora levar o presidente da província do Maranhão54.
Os Carneiros reapareceram na madrugada do dia 17 de março. Liderando os
sediciosos, atacaram um piquete do Batalhão de Guarda Nacional do Poço da
Panela, comandado pelo tenente coronel Mascarenhas, mataram dois soldados
e se apoderaram de armas e munições. Com a chegada da tropa do governo,
fugiram. Alcançaram a vila de Goiana no dia 20 e lá receberam apoio dos Lins, que
se encontravam em luta contra a facção liderada pelo juiz de direito Joaquim Nunes
Machado. Depois de um tiroteio contra as forças governistas locais, conseguiram se

51
Diário de Pernambuco, Recife, 24 jan. 1835, p. 01-03.
52
Diário de Pernambuco, Recife, 04 fev. 1835, p.0 1; 27 mar. 1835, p. 01-02; 28 mar. 1835, p. 01;
23 mar. 1835, p. 02-03.
53
O Velho Pernambucano, Recife, 23 mar. 1835, p. 09-11.
54
A Razão e a Verdade, Recife, 17 fev. 1835, p. 31.

88 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


apossar da vila e dali preparar o retorno à capital. Um dos Carneiros teve sucesso
em seguir à povoação de Pedras de Fogo e angariar apoio de mais sessenta homens.
Quando estavam em marcha para Recife, a tropa enviada pelo governo conseguiu
batê-los e espalhar suas forças. Finalmente, acossados nas matas de Beberibe, os
irmãos Carneiros dispersaram os seus homens55.
Mesmo praticamente derrotada a sedição, uma proclamação anônima foi
distribuída na capital no dia 27 de março. Foi atribuída por um correspondente
do Diário de Pernambuco aos irmãos Machado Rios e impressa na tipografia do
periódico A Razão e a Verdade. Mais uma vez, convocava os pernambucanos a se
revoltarem contra a “opressão e tirania” do presidente da província, convidando-os
a refletirem sobre a violência dos últimos dias promovida por Manoel de Carvalho,
que por sua vez era subordinado ao governo central. Falava da suspensão de
garantias e de prisões arbitrárias. Acusava o governo de não tomar nenhuma
providência sobre o problema das moedas de cobre falsas. Dizia ainda que os
patrícios de Goiana começavam a ser ajudados por todas as vilas de fora, que para
lá eram remetidas diariamente grandes somas em dinheiro, sendo que os que não
podiam lutar gratuitamente recebiam dez tostões por dia e uma gratificação por
lutarem ao lado dos verdadeiros patriotas56.
Findas as Carneiradas, Manoel de Carvalho tratou de colocar em prática as
punições aos envolvidos. O promotor público interino de Recife, Filipe Lopes
Neto Junior, oficiou a todos os juízes de paz da capital para informar se estavam
procedendo contra os autores da Carneirada de 21 de janeiro. Insatisfeito e
desconfiado, Paes de Andrade acabou por suspender alguns deles. O do 1º Distrito
de Itamaracá foi suspenso por desobediência às ordens legais. Outro juiz de paz
suspenso foi o do 5º Distrito das Cinco Pontas, Rodolfo João Barata de Almeida.
As razões: por “conveniência com os sediciosos, e protegê-los contra seus deveres
como juiz”57.
Um terceiro juiz de paz suspenso e processado foi João Domingues da Silva,
do 1º Distrito do Sacramento da Boa Vista. Segundo a acusação feita pelo próprio
Manoel de Carvalho Paes de Andrade, era público o fato do dito juiz tramar
contra o Governo e sua proteção aos sediciosos. Na sua defesa, o juiz de paz se
mostrou indignado pelo fato do presidente ter dado ouvidos a uma acusação falsa
e caluniosa, não revelando quem era o seu autor. Inocentado ao final do processo,
cutucou Manoel de Carvalho ao lembrar que aquela sedição era semelhante à que
ocorreu em janeiro de 1834, tendo os mesmos fins e os mesmos chefes, os quais à
época eram seus “especiais, e íntimos amigos”58.
A documentação não aponta qualquer vestígio de punição concreta para os
juízes de paz pretensamente envolvidos com a sedição. Que alguns participaram
ou, no mínimo, foram omissos, a dimensão daquele evento certifica. Praticamente

55
Diário de Pernambuco, Recife, 18 mar. 1835, p. 01-02; 20 mar. 1835, p. 01; 23 mar. 1835, p. 01-
02; 30 mar. 1835, p. 03.
56
Diário de Pernambuco, Recife, 31 mar. 1835, p. 01-02.
57
Diário de Pernambuco, Recife, 11 fev. 1835, p. 04; 31 mar. 1835, p. 01.
58
PERNAMBUCO. Processo contra o juiz de paz da Boa Vista, João Domingues da Silva. Recife,
1835, Fundo Instituto Arqueológico (FIA), CX 09/12 DOC/1842. Instituto Arqueológico, Histórico e
Geográfico Pernambucano – IAHGP.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 89


nenhum dos líderes foi preso ou punido. No entanto, era algo de difícil comprovação,
tornando-se quase impossível fazê-lo devido às relações clientelistas. As testemunhas
simplesmente não queriam se comprometer. Criava-se um manto de proteção
em torno de determinadas autoridades. Os irmãos Carneiros permaneceram
escondidos e intocáveis.
Mas se a liderança se livrou de punições, o mesmo não pode ser dito para
os indivíduos de menor projeção. Uma parte dos prisioneiros envolvidos nas
Carneiradas foi enviada para embarcações, onde seriam mantidos em segurança,
mas não em ferros. Entre eles estavam os amotinados da Lagoa dos Gatos, que
marcharam para Recife e se renderam ainda quando passavam pela vila de Santo
Antão. Foram presos e enviados à capital, onde chegaram por volta do dia 27 de
janeiro. O destino deles foi definido pelo governo: formariam uma Companhia
a ser enviada para o Rio Grande do Sul. Dificilmente voltariam a pôr os pés em
Pernambuco. Por sua vez, um antigo aliado de Manoel de Carvalho acabou sendo
preso. Era Antônio de Barros Falcão d’Albuquerque Maranhão. Segundo ele, sua
prisão ocorreu sem que fosse em flagrante delito. Assim permaneceu por oito dias,
sem culpa formada, só depois sendo encaminhado para o juiz de direito e chefe
de polícia, Nunes Machado. Antônio de Barros acusou o presidente de déspota, se
perguntando por que os pernambucanos, chamados de manada de escravos, ainda
não se rebelaram contra esta escravidão. Dizia ser taxado de sedicioso, coisa que
reconhecia ter sido em 1824 quando sustentou Manoel de Carvalho no governo,
que o abandonou covardemente59.
No final de tudo o sentimento era de impunidade. O próprio Manoel de Carvalho
vaticinara: “Fiz o que dependia da ação deste Governo; o mais depende de outro
Poder. Praza aos Céus, que a impunidade não continue. E se continuar, perdida
será esta Província e quiçá todo o Brasil”60. Convocado para assumir a sua cadeira
no Senado, partiu para a Corte em 11 de abril. Seu substituto foi Thomaz Pires de
Figueredo Camargo, que anteriormente fora Presidente da Província de Alagoas e
companheiro de Carvalho na luta contra os cabanos.
A princípio, os 14 meses em que Manoel de Carvalho esteve à frente da
presidência de Pernambuco nos apontam para a conclusão de que seu governo foi
exitoso. Por um lado, derrotou os restauradores deixando a vitória na guerra contra
os cabanos bem encaminhada. Por outro, resistiu às investidas de seus antigos
aliados exaltados quando estes o tentaram tirar do comando administrativo da
província. No entanto, olhando com mais cuidado veremos que esta vitória sobre
o partido dos exaltados foi parcial. Se não conseguiram derrubar Paes de Andrade
pelas armas, ele acabou perdendo o cargo no momento em que o novo Gabinete
de 20 de janeiro de 1835, liderado por Manuel Alves Branco na pasta da Justiça, o
convocou para o Senado. Se o objetivo da oposição era substituí-lo por Francisco
de Paula Cavalcanti de Albuquerque, isto acabou acontecendo em junho, quando
o mais velho dos irmãos Cavalcanti foi nomeado novo presidente da província pela
Regência.

59
Diário de Pernambuco, Recife, 04 fev. 1835, p. 02; 28 jan. 1835, p. 01; 02 mar. 1835, p. 01-02; 04
abr. 1835, p. 01-02; 08 abr. 1835, p. 02-03.
60
ANDRADE, Manoel de Carvalho Paes de. Ofício ao Ministro do Império. Recife, 1835, Registros de
Ofícios, vol. 7/1, p. 05-06. APEJE.

90 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


O pior estava reservado para os moderados locais que deram sustentação a
Manoel de Carvalho. As consequências das Carneiradas e a repressão levada a
cabo pelo governo provincial aumentaram ainda mais o fosso que separava os
liberais moderados e exaltados. Munidos do sentimento de revanche, os exaltados
firmaram uma aliança com os Cavalcanti e a facção de Araújo Lima. O resultado foi
o isolamento dos moderados, que viram a oposição chegar ao poder com a posse
de Francisco de Paula na Presidência. Para muitos dos chimangos pernambucanos,
era o início de um longo período de ausência do poder, situação só revertida em
1844, quando já estavam reunidos em torno do Partido Praieiro.
A trajetória política de Manoel de Carvalho Paes de Andrade durante parte da
Regência nos revela as estratégias dos partidos para enfrentar as lutas políticas do
período. É a história das alianças e distanciamentos entre os partidos pernambucanos
e como eles imprimiram uma dinâmica própria ao processo de luta pelo poder
na província de Pernambuco, sendo esta dinâmica regida não somente por ideias
comuns, mas também pela busca do poder puro e simples, pela conquista do poder
de mando que levava à ocupação de cargos.


RESUMO ABSTRACT

Entre 1831 e 1840 o Império Brasileiro viveu uma Between 1831 and 1840 the Brazilian Empire
de suas fases mais conturbadas. Embora repleta lived one of its most troubled phases. Although
de crises e disputas intestinas, a Regência teve full of crises and internecine fighting, the Regency
uma rica disputa política onde diferentes partidos had a rich political dispute where different parties
procuravam direcionar os rumos do país a partir sought to direct the course of the country from
de seus interesses e projetos de Nação. Para their interests and Nation projects. To understand
entender a forma como estes partidos lutavam how these parties were fighting each other and
entre si e as suas estratégias políticas, tomamos their political strategies, we analyze the political
como objeto de análise a trajetória política de trajectory of Manoel de Carvalho Paes de
Manoel de Carvalho Paes de Andrade após o Andrade after his return to Brazil. Originally
seu retorno ao Brasil. Tido inicialmente como o considered the great hero of the Confederation
grande herói da Confederação do Equador, ele of the Equator, he was the representation of the
foi a representação das idas e vindas, das vitórias comings and goings, the victories and defeats of
e derrotas das elites políticas brasileiras naquele the Brazilian political elites during that period.
período. Keywords: Regency Period; Power Relations;
Palavras Chave: Período Regencial; Relações Party Politics.
de Poder; Política Partidária.

Artigo recebido em 30 mai. 2015.


Aprovado em 29 set. 2015.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 91


OS GUARANIS NAS PRECARIEDADES DA GUERRA:
O IMPACTO DO RECRUTAMENTO NAS MISSÕES ORIENTAIS
(RIO GRANDE DE SÃO PEDRO, PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIX)

Max Roberto Pereira Ribeiro1

Introdução

Em 1810, iniciava um dos períodos mais conturbados da história dos índios


guaranis das Missões Orientais. Aquela região se localizava na fronteira entre o Rio
Grande de São Pedro e as colonias espanholas do rio da Prata. As instabilidades
político-sociais provocadas pela insurgência do Vice-Reinado contra sua metrópole
provocaram efeitos irreversíveis à dinâmica socioeconômica missioneira. Da capital
do vice-reinado, Buenos Aires, partia um grande projeto centralizador, levado a
cabo pela elite portenha o qual visava estender seu domínio às demais províncias2.
As instabilidades eram causadas pelas dúvidas quanto ao sistema de governo que
seria adotado nestas províncias provocando o confronto armado.
Manuel Belgrano, funcionário da Junta Governativa de Buenos Aires foi
encarregado de sufocar as forças insurgentes ao projeto centralista, as quais se
espalhavam pela fronteira do rio Uruguai indo até a província do Paraguai. Estas
movimentações chamaram a atenção dos luso-brasileiros. Em agosto de 1810, o
comandante da fronteira de Missões, Francisco das Chagas Santos, foi informado
pelo Tenente Manuel Ferreira Braga que ele havia encontrado dois castelhanos
vindos de Buenos Aires os quais se achavam fugidos do recrutamento que lá se
fazia. Disseram os castelhanos que de Buenos Aires partiam 600 homens para
aquela fronteira3.
Ao mesmo tempo, apresentou-se ao Tenente Manuel Ferreira Braga um guarani
de Japeju dizendo que, naquele Povo, haviam chegado 400 homens, os quais
esperavam mais 600, e que ali se achavam prontos 1500 guaranis com lanças4.
Chagas Santos obteve mais informações do outro lado do rio do Uruguai depois
da chegada do Cirurgião-mor, Henrique José Peixoto, do Povo de Santo Tomé,
ao território missioneiro. Disse o Cirurgião que o Governador Rocamora não
quis se submeter às ordens do Governador do Paraguai o qual não reconheceu a
legitimidade da instalação da Junta Governativa de Buenos Aires5.
A partir destes acontecimentos, Francisco das Chagas Santos adotou uma
política militarista a qual envolveu índios e luso-brasileiros na defesa de uma

1
Doutorando em História pela Universidade do Vale dos Sinos. Bolsista Capes/ PROSUP. E-Mail:
<maxrpribeiro@gmail.com>.
2
DONGHI, Tulio Halperín. Revolucion y guerra: formación de una elite dirigente en la Argentina
criolla. 3. ed. Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 1994.
3
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul – AHRS. Fundo Autoridades Militares, Francisco das
Chagas Santos, ago. 1810, maço 16.
4
AHRS. Fundo Autoridades Militares, Francisco das Chagas Santos, ago. 1810, maço 16.
5
AHRS. Fundo Autoridades Militares, Francisco das Chagas Santos, ago. 1810, maço 16.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 93


possível invasão castelhana. Assim sendo, a finalidade deste artigo é caracterizar
o grupo de índios guaranis que passaram a serem recrutados como milicianos nas
Missões a partir de 1810, ano da independência das colônias espanholas do rio
da Prata. A revolução de independência teve impacto político e social decisivo
sobre os povos missioneiros que conformavam a fronteira colonial portuguesa na
América Meridional. A partir da Lista de Todas as Pessoas Empregadas na Província
de Missões, à luz de análise quantitativa, traça o perfil sócio-profissional dos índios
que foram recrutados como milicianos.
Diferente do que a historiografia apontava os índios não foram agentes passivos
nos processos históricos da Fronteira Meridional. Eles participaram ativamente da
administração dos povos e também das milícias de guaranis que serviam de suporte
aos exércitos luso-brasileiros empregados na defesa do território missioneiro. Suas
ações faziam parte de estratégias individuais e coletivas que atendiam necessidades
concretas do mundo social.

Cabildantes e Milicianos: resquícios de uma elite indígena

O Cirurgião Henrique José Peixoto informou, em 1810, após seu retorno do


lado insurgente, que a disputa havia divido o povo em dois partidos (os a favor
de Buenos Aires e os a favor do Paraguai) e que Rocamora, instalado em Japeju,
passou a se prevenir juntando e organizando milícias para defender aquele local.
Naquele tempo, o governador mandou prender o padre de Japeju que era a favor
do partido do Paraguai, sendo este remetido a Buenos Aires, onde se achava preso
o Vice-Rei das províncias do rio da Prata. O comandante da fronteira de Missões,
Chagas Santos, combinou estas notícias com o que se publicava na gazeta de
Buenos Aires tendo, naquele momento, a exata dimensão do que acontecia6.
No entanto, Chagas Santos nutria dúvidas sobre as reais intenções dos espanhóis.
Tomando por precaução, ele decidiu mandar reforçar todas as guardas e passos
existentes na margem oriental do rio Uruguai. O comandante também se preocupou
em acompanhar os movimentos do governador do Paraguai Bernardo de Velazco.
Em Santo Tomé, o Cirurgião-mor Henrique José Peixoto remetia a Chagas Santos
notícias sobre a marcha que fazia o Governador do Paraguai. Velazco havia saído
do Povo da Candelária e tinha por destino o Povo de Santo Tomé.
Chagas Santos, naquele instante, informou ao governador do Rio Grande, Dom
Diogo de Sousa, que o estado das guarnições e dos efetivos de toda fronteira
de Missões eram precários. Segundo o comandante havia apenas 82 soldados
de dragões e outros 34 soldados para guarnecer 60 léguas de fronteira e que os
milicianos encontravam-se mal pagos e deficientes em armamentos, enquanto que
os espanhóis contavam com mais de 600 homens bem armados. Chagas Santo
ainda relatou que as forças espanholas se concentravam nas guardas à margem
direita do rio Uruguai com mais de 25 peças de artilharia distribuídas em vários
calibres.
O comandante temia que houvesse ataque dos espanhóis alertando ao

6
Donghi destaca que a Gazeta de Buenos Aires foi um periódico, criado em 1811, pelos revolucionários
portenhos com propósito de espalhar a revolução e aumentar a adesão ao movimento. Ver:
DONGUI, “Revolución y guerra…”, 1994.

94 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


governador Dom Diogo de Sousa sobre o seguinte:

Estas providências ou sejam para se defenderem ou são


para nos atacarem, já estão na sua fronteira, e quando eu
souber ou observar algum movimento contra nós, pode
suceder que não haja tempo de recorrer, alcançar Vossa
Excelência ou mesmo do comandante da fronteira do Rio
Pardo as providências, socorros necessários a esta fronteira
que dista de Porto Alegre 100 léguas e de Rio Pardo 80 de
caminho até a Serra de São Martinho no espaço de 30
léguas e cortando vários rios de nado e outros difíceis de
atravessar em tempo de chuvas, além da sobredita serra
que atravessa no espaço de duas léguas.7

A figura abaixo esboça de modo aproximado os contornos do território


missioneiro naquela conjuntura de 1809.

Fig. 1 – Dimensão aproximada do território das Missões Orientais em 1809.


Fonte: mapa adaptado de Google Maps, Max Ribeiro, 2015.

7
AHRS. Fundo Autoridades Militares, Francisco das Chagas Santos, ago. 1810, maço 16.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 95


Chagas Santos esboçou um quadro lastimável em relação ao estado da defesa
do território missioneiro no qual, além da deficiência de efetivos, havia também os
complicadores da logística ocasionados pelas limitações impostas pela geografia,
dificultando o deslocamento de tropas de outros lugares. O comandante ponderou
que aquela fronteira era a mais despovoada e a mais exposta a ataques e, por
tal razão, não havia motivos para ser menos guarnecida do que a fronteira do
Rio Pardo. Frente a todas estas adversidades, Chagas Santos resolveu aproveitar
os moradores da fronteira inserindo-os em milícias visando defender o território
missioneiro.
O comandante estava convencido de aumentar os efetivos militares da fronteira
acreditando que poderia obter mais de 700 milicianos, entre os quais, marcavam
presença, portugueses e guaranis. A guerra chegava aos índios e o recrutamento
iminente acabaria por mudar a geografia humana nas Missões. Francisco das
Chagas Santos mandou recrutar os trabalhadores guaranis considerados robustos
e capazes de ingressar nas milícias missioneiras. Havia a ressalva de não se ocupar
todos os guaranis com o oficio de tecelão e carpinteiro8. O recrutamento se deu em
maior grau sobre os índios com o oficio de agricultor9.
Para melhor compreender este processo é necessário ater-se a lista das
ocupações, existente na correspondência do comandante Chagas Santos, feita
no mesmo ano de 1810. No cabeçalho do documento consta sua natureza, Lista
das Pessoas Empregadas em Todas as Classes Nesta Província de Missões10. Este
documento é basicamente um recenseamento o qual abarca apenas a população
masculina, em virtude de ter sido feita, muito provavelmente, para poder se fazer o
recrutamento, constando nesta lista os nomes, local de moradia e as ocupações dos
sujeitos nela recenseados. A lista é dividida por Povos onde se observa três campos
que foram distribuídos em nome, ocupação e habitação.
A listagem, antes de tudo, expressa em linhas mais ou menos precisas, a estrutura
social missioneira. Na lista constam 1658 indivíduos entre os quais se encontram
1372 (83%) moradores guaranis, 233 (14%) moradores portugueses e 53 (3%)
moradores escravos11. Em números e percentuais gerais, nota-se que a maior parte
dos homens era empregada na agricultura. Outra parcela importante da mão-de-
obra masculina missioneira desenvolvia ofício de peão e trabalhos manuais, tais
como a tecelaria, carpintaria, olaria entre outras. Embora a lista sobrerrepresente
a população masculina, parece evidente que a principal atividade econômica nas
Missões era a agricultura.
A representatividade dos ofícios, no entanto, pode variar visto que não há
referências aos ofícios desenvolvidos pelas mulheres, especialmente às mulheres
guaranis. Em observância aos ofícios dos homens apresenta-se o gráfico que segue
abaixo:

8
AHRS. Fundo Autoridades Militares, Francisco das Chagas Santos, ago. 1809, maço 16.
9
AHRS. Fundo Autoridades Militares, Francisco das Chagas Santos, ago. 1810, maço 16.
10
AHRS. Fundo Autoridades Militares, Francisco das Chagas Santos, dez. 1810, maço 16.
11
AHRS. Fundo Autoridades Militares, Francisco das Chagas Santos, dez. 1810, maço 16.
GRÁFICO 1
OFÍCIOS DOS MORADORES PORTUGUESES
E GUARANIS NAS MISSÕES EM 1810

Fonte: AHRG. Fundo Autoridades Militares. Francisco das Chagas


Santos. Dezembro de 1810, maço 16.

O gráfico acima nos ajuda a visualizar a composição social geral nas Missões12.
Nota-se a esmagadora presença dos homens guaranis entre os agricultores, a
ausência de portugueses entre os peões e a forte presença dos índios nos trabalhos
manuais13. Por trabalhador manual se entende todos aqueles sujeitos classificados
na lista como tecelão, alfaiate, curtidor, oleiro, padeiro, carpinteiro, ferreiro,
sapateiro entre outros. Entre os capatazes de estâncias e militares há ausência de
guaranis, já entre os classificados como estancieiros encontra-se 69 portugueses e
sete nomes de guaranis.
O termo estancieiro, segundo o dicionário de Antonio Moraes Silva (1789), foi
peculiar no contexto da América do Sul14. Este termo está associado ao criador de
gado, não especificando se de pequeno, médio ou grande porte. Possivelmente, o
emprego desta expressão, na lista de ocupações, tenha sido feita de modo genérico,
estendendo-se a todos aqueles que desenvolviam a atividade da criação de gado.

12
Na lista consta os nomes de 53 escravos que foram excluídos da análise por não haver referências
aos seus ofícios.
13
Estes ofícios eram desenvolvidos por mão-de-obra especializada e exigiam habilidades manuais.
Roberto Guedes (2006) ao estudar os ofícios desempenhados por escravos no rio de Janeiro e São
Paulo, também notou semelhantes atividades, classificando-as como ofícios mecânicos. Nota-se,
com isso, uma correspondência entre o que foi postulado por Guedes e os dados presentes na lista
de ocupações. Contudo, optou-se em usar o termo trabalhos manuais. Para maiores detalhes sobre
os ofícios dos escravos, ver: GUEDES, Roberto. “Ofícios mecânicos e mobilidade social: Rio de
Janeiro e São Paulo (séc. XVII-XVIII)”. Topoi, Rio de Janeiro, PPGHIS-UFRJ, vol. 7, n. 13, jul./dez.
2006, p. 379-423.
14
SILVA, Antonio de Moraes. Dicionário da língua portuguesa composto pelo Padre Rafael Bluteau,
reformando e acrescentado por Antonio de Moraes Silva, natural do Rio de Janeiro. Lisboa: Oficina
de Simão Tadeu Ferreira, 1798, tomo segundo, p. 559.

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Isso não entanto, não caracterizaria ainda as grandes unidades produtivas que se
configurariam na segunda metade do século XIX, em especial na campanha sul-
rio-grandense.
Quanto à ausência de guaranis como militares, este dado não corresponde
a inexistência de índios armados, empregados na defesa, pois já havia guaranis
preenchendo as fileiras das milícias missioneiras. Estas milícias existiam desde o
período missional (1640-1768) e, depois de 1801, os administradores portugueses
instituíram o pagamento de soldo aos milicianos guaranis15. Chagas Santos,
comandante da fronteira, já contava com 200 guaranis os quais se encontravam
destacados pelas diversas guardas da fronteira de Missões o que, muito
provavelmente, provocou a falta destes índios na lista16. Os militares portugueses,
em geral, eram oficiais e soldados do Quartel de Dragões de Rio Pardo, destacados
para a defesa daquele território.
O dado mais significativo do gráfico 1 indica que a agricultura tinha grande peso
na estrutura socioeconômica missioneira. Conforme os dados apresentados por
Juan Carlo Garavaglia17, os Povos da margem oriental do rio Uruguai eram grandes
produtores de algodão e erva mate no século XVIII. Boa parte do excedente desta
produção missioneira era comercializada com Buenos Aires e Santa Fé. Garavaglia,
com isso, identificou um circuito comercial no qual as Missões Orientais se inseriam
na lógica colonial espanhola destinando grande parte de sua produção ao mercado
interno na região platina.
Mesmo que, ao longo do tempo, tenham ocorrido mudanças no processo
econômico missioneiro, parece que a agricultura, mesmo depois da conquista
luso-brasileira, manteve um importante papel na economia missioneira, visto o
número esmagador de agricultores. No entanto, pode ter ocorrido a fragilização
e ou até mesmo o rompimento deste comércio em virtude do movimento de
independência das colônias do Prata a partir de 1810. A organização produtiva
indígena estruturava-se no sistema de comunidades o qual foi organizado no
período missional. Em linhas gerais, este sistema se organizava em torno de uma
produção comunitária (tupambaé – terra de deus) e outro particular (abambaé –
terra do homem)18.
Patrício José Correia da Câmara, comandante da fronteira do Rio Pardo, em
1801, enviou oficio ao Cabildo de São Miguel, logo após a rendição dos Povos
a Portugal no qual se dava garantias de que a mudança de vassalagem por parte
dos índios não lhes causaria alterações na organização política e social dos Povos.
O sistema de comunidades, no entanto, vinha sendo abandonado pelos espanhóis
antes de 1801. No ano anterior a conquista luso-brasileira, ocorreu a liberação de

15
GARCIA, Elisa Frühauf. As diversas formas de ser índio: políticas indígenas e políticas indigenistas
no extremo sul da América portuguesa. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal
Fluminense. Niterói, 2007, p. 274.
16
AHRS. Fundo Autoridades Militares, Francisco das Chagas Santos, ago. 1810, maço 16.
17
GARAVAGLIA, Juan Carlo. Mercado interno y economia colonial: tres siglos de historia de la yerba
mate. Cidade do México: Grijalbo, 1983.
18
GARAVAGLIA, Juan Carlo. “Um modo de produção subsidiário: a organização econômica das
comunidades guaranizadas durante os Séculos XVII-XVIII na formação regional do Alto Peruano –
Rio Platense”. In: GEBRAM, Philomena (org.). Conceito de modo de produção. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1978, p. 247-275.

98 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


algumas famílias do dito sistema, o que acarretou em atritos entre a administração
espanhola e os índios, pois a liberação desrespeitava a noção de família que os
guaranis conheciam19.
O parentesco guarani se estendia a um grupo amplo de sujeitos, incluindo
seus compadres (compadrazgo) e seus cunhados (cunhadazgo), o que ia muito
além do modelo familiar europeu corresidente, ou seja, um núcleo parental; pai
e mãe unidos pelo matrimônio e seus filhos legítimos. Contudo, como destaca
José Luís Moreno (2004), a Igreja teve que conquistar espaço em meio a práticas
culturais pré-hispânicas que delineavam outros formatos de família e, só com o
tempo, conseguiu estabelecer o modelo de família nuclear como o único aceito
socialmente20.
Como apenas alguns núcleos parentais foram liberados, muitos índios
protestaram contra os critérios adotados pelo Vice-rei. Parece que a liberação das
comunidades também se fez sentir na política luso-brasileira de gestão dos Povos.
O comandante da fronteira de Missões, Francisco das Chagas Santos, em 1809,
reclamava de um decreto do governador do Rio Grande de São Pedro, de 1803, o
qual permitia aos guaranis retirarem-se à fronteira do Rio Pardo21. Este decreto foi
baixado pelo governador Paulo José da Silva Gama e enviado ao administrador
geral dos Povos, Joaquim Felix da Fonseca.
O que se pode notar com isso é que os guaranis durante a administração
portuguesa foram desobrigados do sistema de comunidades, tendo como
possibilidade migrar para outros territórios. Contudo, uma parcela significativa
da população missioneira permaneceu nas Missões. É bem provável que esta
permanência estava relacionada com a existência das comunidades indígenas
as quais perseveraram como parte da organização política e social dos guaranis.
Contudo, não se pode acreditar que tal sistema fosse o mesmo do período missional.
Estes resquícios nos levam a crer, no entanto, que as comunidades faziam parte
da lógica social indígena e que, após a conquista das Missões pelos luso-brasileiros,
foram reordenadas aos interesses do Estado português, que acabou se utilizando
deste sistema produtivo pré-existente para dar conta da defesa de suas fronteiras
com as antigas colônias platinas. August de Saint-Hilaire, naturalista francês de
passagem pelo território missioneiro em 1821, observou no Povo de São Luiz
alguns elementos que ajudam a compreender o funcionamento do sistema de
comunidades:

Vi no convento um grande número de surrões cheios


de arroz, milho e feijão. Esses gêneros, resultado dos
trabalhos da comunidade, se destinam à alimentação
dos habitantes da aldeia. O excedente das colheitas e dos
tecidos de algodão é trocado por bovinos, e os índios de
São Luís comem sempre carne. À exceção dos artífices,
todos trabalham nas plantações da comunidade, mas,

19
WILDE, Guillermo. Religión y poder en las misiones de guaraníes. Buenos Aires: SB, 2009.
20
Sobre família no Rio da Prata, ver: MORENO, José Luís. Historia de la familia en el Río de la Plata.
Buenos Aires: Sudamericana, 2004.
21
AHRG. Fundo Autoridades Militares, Francisco das Chagas Santos, ago. 1809, maço 16.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 99


além disso, o administrador lhes permite fazer plantações
particulares e lhes dá dias de férias para cuidá-las.22

O fragmento acima nos mostra, como funcionaram as comunidades indígenas


após 1801. Como se pode perceber, os índios produziam para sua subsistência
além integrarem as comunidades que geravam os excedentes os quais eram
permutados e redistribuídos entre os guaranis. Entretanto, parte desta produção
também era usada como moeda em tempos de guerra. O comandante Francisco das
Chagas Santos, em 1813, deu notícias ao Governador sobre as supostas invasões
pretendidas pelos espanhóis às Missões. O comandante, em seu informe, chamou
estas notícias de “fabulosas”, dizendo que os únicos a se apresentarem na fronteira
eram homens que iam comprar alguns gêneros e que trocavam cavalos por panos
de algodão23. Os cavalos eram imediatamente distribuídos entre os Povos os quais,
muito provavelmente, eram empregados nos serviços da guerra.
Dois anos antes, Chagas Santos formou um regimento de cavalaria composto
de guaranis missioneiros, o qual foi batizado pelo comandante de Regimento de
Milícias de Guaranis a Cavalo24. Esta milícia era formada por 512 postos, todos
estes ocupados por índios. O Regimento era dividido em oito companhias e cada
uma delas possuía de 62 a 64 milicianos, um capitão, um tenente, entre dois a
quatro furriéis, cinco cabos e o restante de soldados. A distribuição das companhias
se dava do seguinte modo: a 1ª e a 2ª do Povo de São Borja, a 3ª e a 5ª do Povo
de São Nicolau, a 4ª do Povo de São Luiz – todas com 64 postos cada – a 6ª do
Povo de São Miguel, a 7ª do Povo de São João e 8ª do Povo de Santo Ângelo,
cada uma com 62 postos25.
Conforme a relação de soldo a se pagar aos milicianos guaranis, elaborada
em 1812, havia 470 índios com soldo a receber, entre março e agosto de 1812.
A relação de soldo, por sua vez, é composta das seguintes informações: nome do
miliciano, posto, divisão valor do soldo vencido, bem como os meses que tinha
a receber26. No ano seguinte, Chagas Santos respondeu ao Governador sobre
acusações dirigidas contra ele em respeito à compra de cavalos para uso particular
pagos com varas de algodão produzido pelos guaranis27. O comandante, em sua
defesa, alegou ter usado as varas para comprar cavalos que seriam destinados ao
Regimento de Guaranis.
Chagas Santos lembrou que o Cirurgião Henrique José Peixoto, encarregado
da compra dos cavalos, tinha permissão especial do próprio Governador do Rio
Grande de São Pedro para ir ao outro lado do rio Uruguai permutar diversos gêneros
por cavalos novos e mansos os quais eram comprados a sete varas de algodão cada

22
Grifos nossos. SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. Tradução de Adroaldo
Mesquita da Costa. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 366.
23
AHRG. Fundo Autoridades Militares, Francisco das Chagas Santos, abr. 1813, maço 37.
24
AHRG. Fundo Autoridades Militares, Francisco das Chagas Santos, ago. 1811, maço 24.
25
AHRG. Fundo Autoridades Militares, Francisco das Chagas Santos, abr. 1811, maço 24.
26
AHRG. Fundo Autoridades Militares, Francisco das Chagas Santos, ago. 1812, maço 26. A relação
de soldo representa apenas os milicianos com soldo a receber, não significando, portanto, que
houvesse apenas 470 índios no regimento.
27
AHRG. Fundo Autoridades Militares, Francisco das Chagas Santos, dez. 1813, maço 37.

100 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


um28. O dito Cirurgião comprou um total de 413 cavalos como demonstra uma série
de documentos comprobatórios emitidos pelos administradores e corregedores dos
Povos. Contudo, Chagas Santos informou a compra de 428 animais o que daria
uma diferença de 15 cavalos do total comprado.
Seja como for, o importante a ser destacado é a existência de um mercado de
guerra onde operava um sistema de trocas na fronteira em que circulavam gado
vacum e cavalar das províncias do Rio da Prata e panos de algodão e erva-mate de
produção missioneira. O que pode se perceber é que a produção das comunidades
foi drenada para uma logística de guerra, o que muito provavelmente, afetou a
subsistência dos Povos. Neste sentido, as comunidades indígenas podem ter
adquirido grande importância aos luso-brasileiros uma vez que ajudavam a galgar
recursos para o esforço de guerra.
Além de desviar recursos materiais das comunidades para guerra, os luso-
brasileiros também recrutaram os trabalhadores guaranis, o que também,
possivelmente, acabaria por afetar as comunidades diminuindo seu contingente de
mão-de-obra. É possível medir o impacto do recrutamento sobre as comunidades
realizando um procedimento simples de contabilidade dos ofícios dispostos na
lista de ocupações de todos os guaranis que nela foram assentados. Em seguida,
fazendo um cruzamento desta lista com a relação de soldos a pagar ao Regimento
Guarani, é possível de se traçar um perfil dos índios que foram recrutados.
Focando, primeiramente, na lista de ocupações, contabilizamos os ofícios de
todos os moradores guaranis nela assentados. A partir destes dados apresenta-se o
gráfico que segue abaixo:

GRÁFICO 2
OFÍCIOS DOS MORADORES GUARANIS NAS MISSÕES (%)

Fonte: AHRG. Fundo Autoridades Militares. Francisco das Chagas


Santos. Dezembro de 1810, maço 16.

28
A vara de algodão refere-se à unidade de medida portuguesa conhecida como vara, a qual media
110 cm. No Dicionário da língua portuguesa de Antonio de Moraes Silva, de 1789, há esta mesma
relação da vara como medida de pano.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 101


Pelo gráfico 2 é possível perceber que a agricultura era estruturante para a
sociedade guarani missioneira. A maciça maioria dos homens guaranis (908/ 72%),
como se vê, desempenhava o oficio de agricultor. Algumas considerações devem
ser feitas em relação a esta classificação. Não há referencias diretas quanto ao tipo
de agricultura praticada pelos guaranis neste período. Entretanto, se pode sugerir
que os agricultores guaranis assentados na lista de ocupações desenvolviam suas
atividades na produção do algodão e da erva-mate que eram os principais gêneros
produzidos pelas comunidades.
Embora a produção da erva-mate estivesse associada ao extrativismo, onde se
poderia explorar os ervais naturais, o beneficiamento da folha para o consumo,
passava por diversas etapas o que envolvia, por sua vez, muitos trabalhadores29. No
Dicionário da língua portuguesa de Antonio de Moraes, por exemplo, o significado
de agricultor está associado ao trabalho com a terra, não havendo diferenciação
quanto ao tipo de produção. O que se pode notar é que não havia por parte do
recenseador dos índios, quanto aos seus ofícios, uma definição clara com relação
ao emprego deste termo.
O uso genérico desta expressão, no entanto, pode ter ocultado uma complexa
cadeia produtiva nas Missões que ia da produção de alimentos até o plantio e
colheita do algodão e beneficiamento da erva-mate, usados como moeda de troca
pela administração dos Povos. Parte do controle desta produção poderia passar
pelos guaranis ligados à administração (os cabildantes) o que poderia possibilitar a
eles certo grau de autonomia em relação às comunidades. A produção comunitária
abarcava grande parte dos trabalhadores manuais (224/ 17%) e outros ligados
aos trabalhos campeiros (151/11%). Os dados da lista de ocupações indicam que
muitos índios permaneceram ligados às comunidades indígenas.
Sem negar a existência de forças e imposições que pudessem constranger os
guaranis a não abandonar as Missões, considera-se também a vontade dos índios,
principalmente aqueles ligados à burocracia dos Povos, em não deixar suas terras,
suas casas, seus postos de trabalho e ofícios. Enfim, não queriam abandonar os
meios sócio-políticos capazes de gerar o prestígio social que somente seria possível
adquirir enquanto um guarani ligado de algum modo à burocracia missioneira ou
à tutela do Estado português.
Esta hipótese pode ser demonstrada ao observar os ofícios dos guaranis que
ocupavam os postos de cabildante nas Missões. Na lista de ocupações há 59 nomes
de guaranis assentados como cabildante e agricultor30. Este dado torna-se mais
relevante pela inexistência de cabildantes com outro oficio, o que pode indicar
que a agricultura além de estruturante na sociedade missioneira também era
exercida por membros da burocracia indígena. Há ainda outros 21 guaranis, todos
classificados como agricultores, que foram recenseados com o nome precedido do
distintivo Dom, antigo título nobiliárquico espanhol. Estes podem ser indícios da
permanência de uma parte da elite indígena nas Missões.
Com isso se pode notar claramente que os índios participaram da administração
dos Povos, fazendo-se representar politicamente no exercício do cargo de
cabildante. Este dado também evidencia uma das formas de inserção dos índios na

29
GARAVAGLIA, Mercado interno..., p. 243-252.
30
Este número foi obtido somando os cabildantes de todos os Povos.

102 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


relação com o avanço da colonização luso-brasileira das Missões. Além dos cargos
nos cabildos, outra forma de inserção e participação dos índios no sistema sócio-
político missioneiro que deve ser considerado diz respeito ao próprio recrutamento.
Como já foi referido, na lista de ocupações se encontra os nomes de 1372 índios.
Na relação de soldo do Regimento Guarani, somam-se 470 nomes. Relacionando
estes totais, nota-se que o total de índios com soldo vencido corresponde a cerca de
um quarto dos guaranis assentados na lista de ocupações. Este número já nos mostra,
inicialmente, o impacto do recrutamento sobre o sistema produtivo missioneiro. A
participação dos índios no Regimento, porém, pode ser tomada como outra forma
de inserção e ascensão social possível aos guaranis dentro das Missões.
Realizando um cruzamento nominal entre a lista das ocupações e a relação de
soldo se pode ter uma noção do perfil social dos índios que foram recrutados para
comporem o Regimento. Dos 470 nomes presentes na relação de soldo, foi possível
encontrar 195 nomes correspondentes na lista de ocupações31. Este procedimento
permite traçar um perfil ocupacional dos guaranis que foram recrutados como
demonstra o gráfico a seguir:

GRÁFICO 3
PERFIL OCUPACIONAL DOS GUARANIS RECRUTADOS

Fonte: AHRG. Fundo Autoridades Militares. Francisco das Chagas


Santos, 1810/1812, maços 16 e 26.

Nota-se que a ampla maioria dos guaranis recrutados (136/76%) possuía o


oficio de agricultor. Estes índios foram empregados na Cavalaria Miliciana Guarani.
Pela relação de soldos a pagar pode se esboçar como se estruturava o Regimento.
As companhias somadas atingiam 512 postos, contudo, na relação dos milicianos
com soldo a receber, apenas constam 470 nomes, muito provavelmente porque
a 7ª companhia de cavalaria, que era do Povo de São João, não tinha soldo a

31
Estima-se que este número possa ser bem maior, pois há muitos problemas em relação à grafia dos
sobrenomes guaranis, o que dificulta encontrá-los nos diferentes documentos.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 103


receber, já que foi a única não referida na relação. Entre os 24 oficiais guaranis
os quais foram propostos pelo comandante Chagas Santos para o comandando
destas companhias, apenas dois não eram agricultores32. Pela relação de soldos, foi
possível encontrar 18 oficiais: seis capitães, seis tenentes e seis alferes. Entre estes
apenas dois não eram agricultores.
No grupo dos oficiais se encontra o cabildante e capitão corregedor do Povo de
São Borja, o guarani João da Cruz, que também foi interinamente administrador
daquele Povo. Segundo o que ponderou Chagas Santos, o índio foi escolhido para
desempenhar esta função por ser considerado o mais capaz e também porque,
segundo ele, o Povo não tinha fundos para pagar os 12.000 réis mensais a um
administrador português. Por tal razão, Chagas Santos combinou com João da
Cruz em lhe dar 10 arrobas de algodão a cada 100 que colhesse da nova colheita
como pagamento para administrar aquele Povo33.
O capitão guarani João da Cruz foi substituído depois de passados um mês
e meio de ter assumido o cargo pelo administrador português Sabino José de
Almeida, nomeado diretamente pelo Governador Dom Diogo de Sousa. Segundo
informa Chagas Santos, o motivo de sua substituição seria em razão do guarani
não vencer o ordenado mensal que era exigido. A administração de Sabino
José, entretanto, não agradou ao comandante Chagas Santos. Segundo ele, o
administrador não colheu o algodão no tempo certo, deixando-o estragar, fato que
levou o comandante Chagas a afastar Sabino José Almeida da administração do
Povo de São Borja.
O comandante, em resposta ao Governador, explicou que aquele era o Povo
mais atrasado e pobre em relação aos outros e, por este motivo, João da Cruz não
vencia a receita mensal exigida. Disse também que o trato feito com o índio teria
sido em virtude de ele ter demonstrado interesse pela colheita do algodão34. Assim,
Chagas Santos encontrava uma solução fiscal para a falta dos 12.000 réis de salário
pago a um administrador português, colocando um índio como administrador e
que tinha participação na distribuição dos recursos.
João da Cruz não foi o único guarani empregado como administrador nas
Missões. Em janeiro de 1811, Chagas Santos enviou um relatório ao Governador
Dom Diogo de Sousa em respeito às atividades de todos os administradores. No
relatório figura o nome de Santiago Pindó, administrador interino e corregedor do
Povo de São Luiz. Pela lista das ocupações, nota-se que Pindó permaneceu no
cargo por no mínimo um ano. Chagas Santos pretendia substituí-lo por “[...] faltar-
lhe um certo manejo para as compras e as vendas do mesmo Povo o qual precisa
de outro administrador voltando a ser corregedor o mesmo Pindó”35.
Além destes milicianos guaranis que se envolveram na administração dos
Povos houve também outros índios que possuíam título de Dom. Estes índios
foram empregados na cavalaria miliciana como é possível demonstrar seguindo as
informações da Relação de Soldo do Regimento Guarani:

32
Este resultado foi obtido através do cruzamento dos nomes propostos como oficias com os nomes
da lista de ocupações.
33
AHRS. Fundo Autoridades Militares, Francisco das Chagas Santos, abr. 1813, maço 37.
34
AHRS. Fundo Autoridades Militares, Francisco das Chagas Santos, dez. 1813, maço 37.
35
AHRS. Fundo Autoridades Militares, Francisco das Chagas Santos, jan. 1811, maço 24.

104 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


QUADRO 1
POSTOS DE CAVALARIA DOS GUARANIS COM ATRIBUTO DE DOM

Fonte: AHRG. Fundo Autoridades Militares, Francisco das Chagas


Santos, 1810/1812, maços 16 e 26.

Todos os dados, expostos até aqui, ajudam a demonstrar a infinidade de


estratégias adotadas pelos índios guaranis, após a conquista luso-brasileira. Estes
dados também dão resquícios de uma diminuta elite indígena que continuou
residindo no território missioneiro. A permanência desta elite nas Missões pode
estar associada mais à ideia de que decidiram permanecer por sua escolha junto
de suas famílias desempenhando suas funções junto à administração dos Povos
e menos à ideia de que eles tenham ficado constrangidos em abandonarem o
território missioneiro. Neste sentido, se faz preciso descrever a composição familiar
indígena missioneira.
Nas Missões, elas se estruturavam com parentesco estendido àqueles que
não possuíam laços de sangue. Nos séculos XVII-XVIII, as autoridades coloniais
as chamavam de cacicados. Conforme aponta Guillermo Wilde, os cacicados
foram a unidade social indígena mais elementar na estrutura sócio-política das
Missões36. Cada cacicado possuía a liderança de um cacique responsável por todos
os membros que integravam o cacicado. O cacique, por sua vez, participava do
cabildo missioneiro como corregedor.
Estas lideranças possuíam sua autoridade reconhecida como legítima no mundo
colonial hispânico. Desse modo, as lideranças indígenas recebiam tratamento
diferenciado. O cabildo missioneiro funcionava como uma espécie de conselho
que imitava o núcleo administrativo dos principais centros urbanos da América
Espanhola. Nas Missões, o cabildo reuniu as lideranças guaranis em torno
da administração colonial com o propósito de governar os Povos de índios. A
documentação das Autoridades Militares revela que os cabildos missioneiros
estiveram em atividade até pelo menos 183037.
Além da lista de ocupações, na qual existe o nome dos 59 cabildantes dos
Povos, há outras referências que reforçam a hipótese de que parte da elite indígena
permaneceu nas Missões. August de Saint-Hilaire naturalista francês que esteve
de passagem pelo território missioneiro, em 1821, observou que no Povo de São

36
WILDE, Religión y poder…, p. 82-87.
37
Logo adiante será demonstrada a venda de uma estância feita pelo cabildo de São Miguel, em
1830, o corrobora com a hipótese da permanência da elite indígena e da continuidade dos cabildos.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 105


Nicolau o cabildo não funcionava como em outros tempos, contudo os principais
cargos ainda eram preenchidos, a saber: o cargo de capitão corregedor, tenente
corregedor, alcaide e escrivão38. Estes cargos também foram exercidos nos demais
Povos o que dá indícios da continuidade da participação indígena na administração
missioneira.
Outro episodio ocorrido em julho de 1820, nos ajuda a perceber a longevidade
do cabildo missioneiro. Naquele ano, foi realizado um ato solene no Povo de
São Borja, onde esteve presente o Coronel comandante da fronteira de Missões
Antonio José da Silva Paulet, o Vigário e demais autoridades como os oficiais
militares e corregedores dos Povos. Todos se achavam em frente à igreja matriz
daquela povoação pela ordem que recebeu o comandante Paulet do Governador
do Rio Grande, através de um decreto real, para jurarem lealdade ao Rei e a nova
constituição das Cortes que se fizesse em Portugal39.
Com a mão direita sobre os sagrados evangelhos, o comandante Paulet proferiu
o seguinte:

[...] Juro veneração e respeito a nossa Santa Religião,


obediência a El Rei Nosso Senhor, observar guardar e
manter perpetuamente a constituição tal qual se fizer em
Portugal pelas Cortes; e pela mesma forma prestarão
juramento todas as pessoas que neste vão assinadas; como
também a Tropa e mais povo haviam dado demonstração
de aplauso, júbilo e satisfação, repetindo por três vezes
= Viva a Nossa Religião, Viva El Rei Nosso Senhor, Viva
nossa Constituição [...].40

No documento estão presentes 70 assinaturas em que se encontrão inclusas as


rubricas de 27 oficiais guaranis; entre eles três capitães, cinco alferes, nove furriéis e
onze cabos. Este documento, além de elucidar a participação indígena no cerimonial
de juramento a nova Constituição, também ajuda a perceber a permanência de
membros da elite guarani missioneira nas Missões. A este respeito há um elucidativo
caso sobre a venda de uma das estâncias missioneiras pertencente ao Povo de São
Miguel.
Ela foi vendida ao Escrivão José de Abreu Vale Machado, em 1828, no entanto,
a escritura de compra e venda foi feita somente em 1830. Na escritura consta que
ela foi elaborada, “traduzida do castelhano para o brasileiro”, a partir de uma
das atas do cabildo do Povo de São Miguel, a quem pertencia a estância, que foi
vendida por 10 contos de réis41. Segundo o conteúdo da escritura, os cabildantes,

38
SAINT-HILAIRE, “Viagem ao Rio Grande...”, p. 342.
39
Em 1820, estourou em Portugal a Revolução Liberal do Porto. As Cortes de Lisboa, além de
exigirem o retorno do rei Dom João VI, que havia migrado para o Brasil em 1808, desejavam
limitar os poderes do rei, impondo a ele uma nova Constituição. Sobre a Revolução do Porto e
suas repercussões no Brasil, especialmente em relação ao processo de Independência, ver: COSTA,
Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 9. ed. São Paulo: UNESP, 2010.
40
AHRG. Fundo Autoridades Militares, Antonio José da Silva Paulet, jul. 1820, maço 79.
41
AHRS. Fundo Justiça, São Borja, Escrivão José de Abreu Vale Machado, 1830.

106 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


corregedores, caciques e demais autoridades indígenas estiveram presentes durante
a transação onde foram respeitados “todos seus ritos políticos”42.
Os índios venderam a estância para “acompanharem por livre e espontânea
vontade” o Exército do Norte. As autoridades indígenas receberam de adiantamento
a quantia de dois contos e quinhentos mil réis para custear os gastos extraordinários
que fizeram suas famílias na retirada de São Miguel. Na escritura também vigorava
um termo de compromisso no qual ficou estabelecido que o comprador da estância
se comprometesse em auxiliar as famílias que “não quiseram ou não puderam
acompanhar o exército do norte”. A referência, entretanto, foi feita às famílias
pertencentes às comunidades indígenas e toda a ajuda que o comprador lhes desse
deveria ser reembolsada pela Fazenda Real43.
O Exército do Norte era formado pelas forças do general uruguaio Frutuoso
Rivera que lutava na Guerra Cisplatina, ocorrida entre os anos de 1825-1828. Ao
final do confronto, o Uruguai tornou-se independente do reino do Brasil. A Banda
Oriental, como era conhecido o Uruguai naquele tempo, tinha sido anexada, em
1821, pelos luso-brasileiros, aos domínios de Portugal, Brasil e Algarves, passando
a se chamar Província Cisplatina. As forças lideradas por Rivera derrotaram as do
Império do Brasil e, após este triunfo, o general uruguaio, em união com seis mil
guaranis missioneiros, partiu para o Uruguai onde se fundou a colônia indígena de
Bela União, ao norte daquele território44.
Todavia, uma rebelião dos índios levou Rivera a dissolver a colônia em 1832, o
que provocou uma nova migração dos guaranis no território do nascente Estado
Oriental do Uruguai. Como consequência deste movimento populacional, foi
fundada, no ano seguinte, a aldeia de São Borja del Yÿ pelos guaranis remanescentes
de Bela União45. Outra parte dos índios que havia migrado para a colônia uruguaia
regressou às Missões Orientais. Este foi o caso dos cabildantes do Povo de São
Miguel os quais efetuaram a venda da estância de São Vicente pertencente àquele
Povo.
Manuel da Silva Pereira Lago, administrador geral dos Povos de Missões, em
1830, num ofício ao presidente da província do Rio Grande de São Pedro, relatou
sobre o teor da venda da dita estância informando que:

Em observância ao respeitável despacho de V. Ex., datado


de 20 de julho do presente ano lançado no requerimento
de Alexandre de Abreu Vale: cumpre-me informar a V. Ex.
que a respeito do suplicante dizer que comprou a fazenda
denominada São Vicente a seus legítimos donos intuído
Ex. Sr. que é nula toda e qualquer venda feita por aqueles
indígenas que acompanharam o partido de Frutuoso
Rivera e resulto daqueles proprietários estarem sujeitos a
uma administração posta por Sua Majestade Imperial, em

42
AHRS. Fundo Justiça, São Borja, Escrivão José de Abreu Vale Machado, 1830.
43
AHRS. Fundo Justiça, São Borja, Escrivão José de Abreu Vale Machado, 1830.
44
PADRÓN-FAVRE, Oscar. O caso de un pueblo de índio: historia del éxodo guarani-misionero al
Uruguai (Bella Union – San Borja del Yÿ). 2. ed. Durazno: Tierradentro, 2009.
45
PADRÓN-FAVRE, O caso de un pueblo..., p. 181-184.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 107


consequência de se considerarem de menor idade e não
serem capazes de regerem nem os bens que lhes pertencem.
Os índios EX. Sr. Foram enganados por Frutuoso Rivera,
como é notório por alguns indígenas que voltaram por se
verem inteiramente sem ter coisa alguma porque tudo que
foi levado foi pouco para o citado Frutuoso lançar mãos e
os índios ficaram sem nada do que carregaram [...].46

Pelo que foi possível observar entre as informações esparsas sobre a estância
de São Vicente, sua venda foi anulada sendo restituída aos bens dos índios. Há
referências de que depois da guerra, muitos guaranis voltaram àquela estância
empregando-se como peões e agricultores. O administrador geral dos Povos,
Pereira Lago, registrou também que muitas famílias regressaram da colônia de
Bela União ao território missioneiro. Outras famílias dirigiram-se à Corrientes e ao
Paraná. Segundo Pereira Lago, os índios que retornaram às Missões o informaram
de que os guaranis de Bela União “[...] estão passando miseravelmente e que se
não vem todos é por não poderem [...]”47.
Esta situação já era percebida pelos corregedores dos Sete Povos Missioneiros que
transmigraram para Bela União. Em 1829, os chefes dos Sete Povos transmigrados
enviaram uma carta ao General Rivera dando conta do estado dos índios naquele
momento. Na, carta os índios disseram que:

Los Gefes de los Siete Pueblos, habiendo abandonado


nuestros hogares por acogermos bajo el pavellón de la
República Oriental, hicimos a V. S. una representación
para que se dignase elevarla al Congreso Asamblea
soberana; en la tal representación manifestábamos las
causas que habían dado motivo a transmigrar con nuestros
hijos y familias, como también las condiciones y pactos
que debían preceder a nuestra incorporación y a nuestro
perpetuo establecimiento en las costas del Cuarey.
Por no haber tenido hasta ahora contestación alguma
nos reputamos aún como peregrinos, como huéspedes,
advenedizos, y sin residencia fija; esta situación nos llena
de angustia, y al mismo tiempo nos desalienta en el trabajo
que con tanto brío habíamos emprehendido en la población
de este suelo, que más hoy más mañana hebremos de
abandonar en el caso de que la República Oriental nos
deje sepultados en la incertidumbre angustiadora de loque
somos y de lo que seremos [...].48

Como se vê, os guaranis tinham dimensão do que ocorria em Bela União.


Tinham eles a exata noção de que a transmigração poderia ter sido um erro já

46
AHRS. Fundo Autoridades Militares, Manuel da Silva Pereira Lago, out. 1830, maço 114.
47
AHRS. Fundo Autoridades Militares, Manuel da Silva Pereira Lago, out. 1830, maço 114.
48
PADRON-FAVRE, O caso de un pueblo..., p. 105.

108 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


que na negociação com Rivera havia pontos sem acerto. Por este motivo, a dúvida
quanto ao futuro colocava os índios em direção a lugares onde a previsibilidade
se fazia mais notável. Em virtude disso, os destinos destes índios se mostraram
variados. Contudo, para o caso de parte da elite guarani missioneira, podemos
sugerir que a previsibilidade estava ligada à manutenção dos privilégios os quais se
construíam na relação com a administração dos Povos.
Os cargos assumidos nos cabildos davam aos guaranis da elite a capacidade
política e econômica de transmigrar. Padron-Favre evidencia que boa parte da elite
guarani que transmigrou à Bela União dominava a escrita. O domínio da prática
letrada é mais um indício de que estes índios pertenciam à elite dos guaranis
missioneiros. O domínio da escrita possibilitava aos guaranis acessar o universo
administrativo dos líderes da sociedade envolvente (luso-brasileiros ou hispano-
crioulos), fenômeno que já ocorria desde o período jesuítico e que se intensificava
em tempos de crise49.
Ao que tudo indica, os índios transmigrados ao Uruguai, em 1828, pertenciam à
elite indígena que havia permanecido nos Sete Povos missioneiros após a conquista
luso-brasileira de 1801. Pela escritura de compra e venda da estância São Vicente
é possível sugerir que havia uma parte dos índios que ainda se organizava em
comunidades e estas, provavelmente, não migraram à Bela União. A migração
exigia recursos econômicos que possivelmente estava ao alcance apenas de uma
fração da elite missioneira.
Oscar Padron-Favre aponta que, no Uruguai, houve uma parte dos índios que
adquiriram independência econômica das comunidades, os quais passaram a viver
como pequenos produtores rurais. Pela documentação analisada, sugere-se que
também os oficiais guaranis das Missões Orientais tenham conseguido viver fora
do sistema de comunidades, desempenhando cargos como os de oficias milicianos,
corregedores, agricultores e pequenos criadores.
Neste sentido, o caso do guarani Miguel Ivaré, Alferes do Regimento de Guaranis
do Povo de São Miguel, pode ser esclarecedor em relação às estratégias da elite
indígena. Em 1821, o comandante da fronteira de Missões, Antonio José da Silva
Paulet, relatou ao Governador interino do Rio Grande de São Pedro o seguinte:

O terreno mencionado no requerimento do Alferes


Miguel Ivaré [...] confessado pelo mesmo requerente
pertence ao Povo de São Miguel, e sabem que os meus
predecessores, assim como os administradores da dita
povoação consentissem ali situado a família do suplicante,
era o exemplo do que se tem praticado, e pratica com
muitos outros que faziam e fazem a exceção de pensar dos
guaranis, quero dizer que tem uso da razão, e se amoldam
às leis da sociedade; por cuja a razão costumam sair
enquanto assim procedem fora da tutela, ou comunidade
em que os mais devem viver; e porque o terreno acima dito

49
Sobre a prática letrada guarani, ver: NEUMANN, Eduardo Santos. Práticas letradas Guarani:
produção e usos da escrita indígena (séculos XVII e XVIII). Tese (Doutorado em História).
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2005.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 109


pertencente a todos que formam o Povo de São Miguel,
não se deve dar um, por enquanto muitos exemplos desta
natureza desfalcariam completamente o patrimônio dos
outros (índios), entretanto como cada um tem direito a uma
certa porção do todo, deve o que casar com extranatural,
ou que se julgar emancipado, não pela sua idade, mas
pela sua conduta ser gratificado com uma certa quantia
saída do cofre da comunidade onde pertença a título de
princípio de seu estabelecimento, ficando desde logo sem
direito às vantagens dos comuns.
Convencido o suplicante pelas razões que tenho exposto
do pouco direito que tinha à sua pretensão, trata de tomar
de renda o mencionado prédio à sua administração, o que
eu facilito por preço muito diminuto, não só para exemplo
dos outros pretendentes de natureza idêntica, mas para
antepor às vendas clandestinas que muitos entre eles em
tais casos costumam fazer por tênue quantia, e muitas vezes
para qualquer copo de bebida espirituosa: semelhantes
vendas me persuado estarem duplamente nulas.50

Este caso evidencia que o sistema de comunidades era permeável, possibilitando


aos índios que dispunham de recursos a emancipação da organização comunitária.
Esta emancipação, como se pode notar, estava associada à capacidade dos índios
em se utilizar dos cargos de oficias de milícias para concentrar capital material e
simbólico que possibilitassem a saída das comunidades51. O desempenho como
bom soldado, oficial e guerreiro dava ao índio condições de acionar os mecanismos
políticos formais que garantiam a eles o direito de fazer requerimentos como este
descrito acima.
O que chama atenção, como demonstra o documento, é o fato de que
muitos guaranis faziam este tipo de pedido. O horizonte dos índios milicianos,
em muitos casos, era garantir as suas famílias melhores condições de vida. Estes
projetos possuíam uma dimensão individual (ação do requerente) e ao mesmo
tempo coletiva, pois o pedido abarcava o grupo familiar. Como se apresenta no
decorrer do documento, as estratégias elaboradas pelos guaranis da elite, na busca
por autonomia, representavam para as comunidades a perda gradual de seus
bens, os quais passavam por crescente de “privatização”. Os guaranis milicianos
participaram desse processo, assim como outros luso-brasileiros.
Isto representou para o governo dos Povos um dilema administrativo, pois se
os requerimentos não fossem atendidos, as comunidades venderiam seus bens
clandestinamente. Atender aos pedidos formais dos índios e dos luso-brasileiros
significava, portanto, uma forma de regulamentar as vendas irregulares que faziam
as comunidades. A elite indígena, na busca por autonomia das comunidades,

50
Grifos nossos. AHRS. Fundo Autoridades Militares, Antonio José da Silva Paulet, mai. 1821, maço
69.
51
Sobre capital simbólico, ver: BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz.
Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

110 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


ajudou a privatizar os bens missioneiros, comprando-os ou arrendando-os, e as
comunidades, por sua vez, ajudaram na privatização vendendo seus bens a quem
tivesse interesse.
Neste processo também se nota, como as fontes indicam, que a sociedade
indígena missioneira se organizava de modo desigual, por haver alguns guaranis
com capacidade das de emancipação das comunidades e outros que não dispunham
da mesma possibilidade. A estes últimos, permanecer na comunidade representava
obter uma margem de segurança maior em relação ao mundo externo do sistema
comunitário. A própria elite cabildante, ou mesmo os índios com outros ofícios
que permaneceram nas Missões, poderiam naquele contexto garantir seu local
de moradia, as rações de carne e seus salários, embora tênues, como recursos
previsíveis e que, em territórios estranhos, a incerteza povoava a possibilidade de
não os tê-los.
Ao contrário daqueles que decidiram ficar, a permanência nas Missões, para uma
parte da elite indígena, vigorava como incerteza de seu futuro. A transmigração dos
guaranis missioneiros à colônia de Bela União pode ter representado a possibilidade
de manter e garantir seu prestígio social frente a uma realidade que se tornava
cada vez mais incerta. Os movimentos revolucionários ocorridos do lado ocidental
do rio Uruguai buscavam envolver os índios com base numa estratégia discursiva
que tentava resgatar o passado jesuítico, idealizado como um tempo esplendoroso.
Dois grandes projetos dessa natureza foram encabeçados por José Artigas e
Frutuoso Rivera que atraiam os guaranis, prometendo a eles a recuperação da
antiga “unidade” territorial e administrativa missional52. A elite missioneira, não foi
enganada por Rivera como afirmou o administrador Pereira Lago.
O discurso de retorno ao passado pode ter convencido aos guaranis visto que
a propaganda destes projetos poderia convergir com seus interesses pessoais
e coletivos. Alguns fragmentos de trajetória pode nos ajudar a ilustrar estas
alternativas que se colocavam no horizonte da previsibilidade indígena. Em 1832,
foi feito um empadronamento de população (censo) em Bela União. Nele constam
os nomes de todos os membros dos cabildantes dos sete Povos missioneiros que
transmigraram para lá. Ao todo, foram recenseados 12 corregedores, 12 tenentes-
corregedor, 12 caciques e 12 alcaides53.
Entre estes, figura o nome do Corregedor do Povo de Santo Ângelo, o guarani
Leandro Mandaré. Na lista das ocupações nas Missões, Mandaré foi recenseado
como agricultor. Como esta lista foi elabora para se fazer o recrutamento, este
guarani certamente foi incorporado ao Regimento de Guaranis. Integrou a 8ª
Companhia de Cavalaria Miliciana Guarani onde ocupou o posto de Cabo, como
se pode ver pela relação de soldo. Outro exemplo é o de Fernando Tiraparé,
Corregedor do Povo de São Borja.
Foi recenseado como peão na lista de ocupações e listado como soldado da 2ª
Companhia de Cavalaria Miliciana Guarani do Povo de São Borja. Feliz Capuí,
Tenente-Corregedor, Dom João da Cruz, secretário do Povo de São Borja em Bela
União, corregedor do mesmo Povo, em 1810, e soldado da 1ª Companhia; todos
agricultores. Dom Vicente Japuí, Corregedor de São Nicolau em Bela união, foi

52
WILDE, Religión y poder…, p. 350-355.
53
PADRON-FAVRE, O caso de un pueblo…, p. 96.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 111


listado como agricultor em 1810, Dom Estaquio Potí, agricultor, soldado e alcaide
do mesmo Povo, Dom André Caví, listado como agricultor nas ocupações de 1810.

Considerações Finais

Enfim, são estes alguns exemplo que demonstram como alguns membros da
elite missioneira conseguiram ascender socialmente elevando-se aos cargos dos
cabildos e das milícias. Esta fração da elite guarani ajuda a perceber que houve a
permanência destes notáveis nas Missões até pelo menos 1828, quando ocorreu a
invasão do general Rivera. Os indícios mostram também que esta elite missioneira
conseguiu se manter no exercício de seus cargos mesmo fora do território
missioneiro, garantindo assim certa longevidade do cabildo, principal órgão político
de representação indígena ante a sociedade envolvente.
Contudo, é possível notar que os cabildos vinham perdendo seu espaço
de representação durante a administração luso-brasileira. Primeiro porque,
provavelmente, o órgão não garantia a representação de todos os índios e
segundo, porque o recrutamento para as milícias dava aos índios uma segunda via
de representação e ascensão social dentro das Missões alheia aos cabildos. Com
isso, podemos pensar que o poder da elite missioneira vinha se fragmentando e a
legitimidade do cabildo diminuindo devido à concorrência dos líderes guaranis que
ingressaram nas milícias.
Talvez, no discurso restaurador de Rivera, os guaranis da elite, ligados aos
cabildos, tenham visto a possibilidade de resgatar o papel político central que
o órgão ocupava, principalmente após a expulsão dos jesuítas quando o poder
desta instituição indígena cresceu consideravelmente. A transmigração pode
ser interpretada como uma estratégia na qual os índios visavam assegurar sua
autonomia frente a uma conjuntura de debilidade de sua organização social
tradicional.
Os índios que concentravam mais recursos buscavam sair das comunidades,
talvez porque tenham percebido que se tornava cada vez mais desfavorável
permanecer naquela situação. A produção comunitária se mostrava cada vez mais
incapaz de gerir a subsistência dos Povos. Os guaranis se viram envolvidos por
estas conjunturas adversas o que afetou diretamente as comunidades indígenas.



112 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


RESUMO ABSTRACT
O objetivo deste artigo é caracterizar o The purpose of this article is to describe the
grupo de índios guaranis que passaram a ser group of Guarani Indians who came to be
recrutados como milicianos para defender o recruited as militiamen to protect the missionary
território missioneiro. O recrutamento iniciou a territory. Recruitment started from 1810 because
partir de 1810, devido às ameaças de invasão of threats of invasion of those territories by the
daqueles territórios pelos castelhanos, por causa Castilians, because of the wars of independence
das guerras de independência das colônias of the Spanish colonies of the River Plate. The
espanholas do rio da Prata. A revolução de revolution of independence, triggered by Buenos
independência, desencadeada por Buenos Aires, had decisive political and social impact
Aires, teve impacto político e social decisivo on missionaries’ people who were located in the
sobre os povos missioneiros que se localizavam colonial border between Portugal and Spain in
na fronteira colonial entre Portugal e Espanha South America. From the List of All the People
na América Meridional. A partir da Lista de Employed in Missions Province, in the light of
Todas as Pessoas Empregadas na Província de quantitative analysis traces the socio-professional
Missões, à luz de análise quantitativa, traça o profile of the Indians who were recruited as
perfil sócio profissional dos índios que foram militiamen. From this, it is noted that the
recrutados como milicianos. A partir disso, nota- Indians were not passive agents in the historical
se que os índios não foram agentes passivos nos processes of the Southern Border. They actively
processos históricos da Fronteira Meridional. participated in the management of people and
Eles participaram ativamente da administração also of the Guarani militia that served as support
dos povos e também das milícias de guaranis for Portuguese-Brazilian armies employed in the
que serviam de suporte aos exércitos luso- defence of the missionary territory. His actions
brasileiros empregados na defesa do território were part of individual and collective strategies
missioneiro. Suas ações faziam parte de that met the specific needs of the social world.
estratégias individuais e coletivas que atendiam
Keywords: Guarani; Recruitment; War.
a necessidades concretas do mundo social.
Palavras Chave: Guaranis; Recrutamento;
Guerra.

Artigo recebido em 30 mai. 2015.


Aprovado em 08 out. 2015.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 113


PRISÕES NO BRASIL OITOCENTISTA:
ROTINAS E VIVÊNCIAS NA CASA DE DETENÇÃO
DO RECIFE NA DÉCADA DE 1860

Flavio de Sá Cavalcanti de Albuquerque Neto1


Robson Pedrosa Costa2

O cárcere, enquanto mecanismo de custodia de presos, existe desde tempos


bastante remotos. No entanto, a pena de prisão, como um instrumento de recuperação
do criminoso, emergiu a partir do século XVI, com as experiências das casas de prisão
com trabalho em países como Inglaterra e Holanda3. Já no século XVIII, a privação de
liberdade era tida como única punição útil para a sociedade, pois, com ela, passava-se
a ser considerada a possibilidade de recuperação do indivíduo via trabalho.
No Brasil, o trabalho penal foi estabelecido pelo Código Criminal de 1830,
que rezava a necessidade de existirem estabelecimentos onde a pena de prisão
com trabalho pudesse ser aplicada. Assim, nas duas décadas seguintes, teve início
uma reforma prisional no Brasil, quando em diversas capitais do Império – Rio
de Janeiro, São Paulo, Recife, Salvador, Belém – foram inauguradas as prisões
penitenciárias, onde o labor dos presos era executado em oficinas.
No caso da província de Pernambuco, foi posta em funcionamento a Casa de
Detenção do Recife em abril de 1855. Em agosto deste ano, o legislativo provincial
aprovou o seu regulamento, que normatizava desde os horários das atividades dos
presos ao salário dos seus funcionários. No que tange à possibilidade de trabalho
para os presos, o regulamento não estabeleceu regras específicas nenhum tipo de
atividade para os detentos.
No entanto, apenas o artigo de número 16 rezava que era permitido a todos os
presos trabalharem nas artes ou ofícios de sua profissão, nos lugares designados
pelo Chefe de Polícia, contanto que não perturbassem a ordem do estabelecimento.
Aqueles que regularmente assim se ocupassem, ficariam dispensados de todo o
serviço determinado no artigo 13, que obrigava os presos à limpeza das prisões.
Era ainda permitido aos presos que trabalhassem, ter consigo no lugar de execução
do seu trabalho os instrumentos indispensáveis à sua profissão, necessitando, para
isso, de autorização por escrito do Chefe de Polícia, designando a qualidade,
quantidade e natureza das ferramentas4.
Mesmo assim, por iniciativa do administrador Rufino Augusto de Almeida,

1
Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor do Instituto Federal de
Pernambuco, Campus Caruaru. E-Mail: <flaviosaneto@gmail.com>.
2
Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor do Instituto Federal de
Pernambuco, Campus Recife. E-Mail: <robsonpc@gmail.com>.
3 MELOSSI, Dario & PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica: as origens do sistema penitenciário
(séculos XVI-XIX). Rio de Janeiro: Revan, 2006; RUSCHE, Georg & KIRCHHEIMER, Otto. Punição
e estrutura social. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2004.
4
ALBUQUERQUE NETO, Flávio de Sá Cavalcanti de. A reforma prisional no Recife oitocentista:
da Cadeia à Casa de Detenção. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de
Pernambuco. Recife, 2008.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 115


foram montadas oficinas de trabalho no ano de 1862, com o objetivo de retirar
os presos da ociosidade e aliviar os gastos provinciais com o custeio dos detentos.
Estas atividades marcaram o cotidiano da Casa de Detenção, tanto pela rotina
estabelecida para alguns presos, como por atrair um número significativo de
visitantes, que adentravam a instituição e busca do dinheiro auferido pelos presos,
fazendo entrar produtos ilícitos (armas, bebidas “espirituosas”, etc.), ou servindo
de receptadores de artefatos produzidos nas oficinas.
Rufino de Almeida foi uma figura polêmica no Recife oitocentista. Era Chefe
de Polícia quando, em 1861, foi nomeado Administrador da Casa de Detenção,
cargo que ocupou até 1874. Durante todo este período, foi, por diversas vezes,
acusado por diversos atores e veículos, como a imprensa ou até mesmo os próprios
detentos, de auferir lucros pessoais com o trabalho dos presos, comercializando
diretamente com eles, obrigando-os ao trabalho:

[...] como pode o senhor Rufino de Almeida ter uma fábrica


de sapatos, obrigando os sentenciados a trabalharem
para ele [...]. Por causa dessa oficina sofremos na cadeia
mil infortúnios [...] Sr. Ministro, trabalhamos para o
administrador doutor, porém é contra a nossa vontade [...]
desejamos [...] trabalhar para a nação ou comprar nosso
cabedal aos negociantes e vender nossas obras ao mesmo.5

Um articulista do jornal O Liberal, folheto republicano que circulou nas décadas


de 1860 e 1870, foi bastante taxativo ao acusar de ser bajulador de seus superiores,
independente de quem ocupasse os cargos, bastando apenas a condição de superior:

O senhor Rufino de Almeida, administrador da Detenção,


segundo corre, acha melhor consumir o seu tempo
escrevendo artigos para o Diário de Pernambuco,
deprimindo todos os partidos políticos e homens que se
retiraram do poder, que submetem-se à queda política,
e elogiando os que sobem. Sobretudo os presidentes de
província, os chefes de polícia, são sempre dois heróis. [...]
A ser exato o que se diz, que o Sr. Rufino à cada novo
presidente que assume o governo, e a cada novo chefe de
polícia que chega à Rua do Imperador, elogia em tom cada
vez mais alegre e agudo, é na verdade extraordinário o seu
caráter e a faculdade apreciativa que possui.6

Ainda no que tange aos sugeridos lucros de Rufino com as oficinas, as acusações
não se baseiam, apenas, nos ganhos em si, mas na forma como são auferidos.
Segundo as denúncias d’O Liberal, o administrador atuaria como atravessador na
aquisição das matérias primas, e o produto final era vendido numa loja, montada

5
Carta dos Presos Sapateiros ao Ministro da Justiça, 1865.
6
O Liberal, Recife, 21 nov. 1868.

116 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


por Rufino, destinada apenas aos produtos fabricados na Detenção:

Em parte alguma do mundo, a não ser em Pernambuco


e na cidade do Recife, se permite que o administrador de
uma casa de detenção comercie com os presos. O Sr. Dr.
Rufino de Almeida compra no mercado, ou manda vir por
sua conta, matérias primas e a vende aos presos ou lhes
fornece, segundo dizem. Esses empregam essas matérias
em obras, que lhe são vendidas, para depois serem por
ele revendidas em um depósito existente em uma das ruas
desta cidade.7

Denúncias à parte, a documentação estudada nos mostra que, em toda sua


gestão, Rufino tentou, sem muito sucesso, controlar a entrada de pessoas estranhas
na prisão, por entender que esse fluxo seria prejudicial à ordem interna. Essas
visitas deram outra dinâmica à CDR que não fora pensada pelos legisladores que
elaboraram o Regulamento da instituição. Assim, é sobre algumas rotinas das
oficinas de trabalho montadas na Casa de Detenção do Recife, àquelas de cunho
produtivo, econômico, bem como a interação dos mundos intra e extramuros da
prisão que iremos, doravante, nos debruçar.

Trabalho, Disciplina e Moralização

Pernambuco na segunda metade do século XIX passava por transformações


profundas. Mesmo diante de crises esporádicas que ora reduziam os lucros da
produção açucareira, ora da produção algodoeira, também experimentava
ares de progresso. Estradas de ferro foram abertas ligando a capital ao interior,
favorecendo o transporte principalmente de açúcar8; no Recife e em Olinda as
canoas e os “ônibus”9 ganharam a concorrência das Maxambombas, trens urbanos
que aproximavam a capital a sua cidade irmã. A ideia de modernização batia à
porta e a estrutura urbana foi repensada.
É neste contexto que surge a proposta da Casa de Detenção do Recife. Ela
se localizava no bairro de Santo Antônio, onde se encontravam ainda o Palácio
do Governo, a Câmara Municipal e o Teatro de Santa Isabel, todos exemplos da
modernização anunciada pelos novos tempos. Em contraste, o bairro não possuía
calçamento, já existente no bairro da Boa Vista, o melhor estruturado entre os
três que formavam a capital. O último era o bairro do Recife, considerado o mais
movimentado e local preferido como moradia dos comerciantes10.
Ao lado deste processo civilizador, era preciso controlar a organização espacial e

7
O Liberal, Recife, 26 mai. 1866.
8
MAIA, Clarissa Nunes. Sambas, batuques, vozeiras e farsas públicas: o controle social sobre os
escravos em Pernambuco no século XIX (1850-1888). São Paulo: Annablume, 2008, p. 35.
9
Diligência puxada por quatro cavalos. SETTE, Mario. Maxambombas e maracatus. Recife:
Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1981.
10
MAIA, Sambas, batuques..., p. 31-34.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 117


os usos do espaço pelos diversos agentes também em transformação11. Convencer
a população dos benefícios do progresso nem sempre foi tarefa fácil. Por isso, os
agentes da ordem e da disciplinarização também evidenciaram sua criatividade
quanto à modernização do cárcere, de acordo com os modelos em discussão. Mas
antes de adentrarmos neste debate, fazem-se necessárias algumas palavras.
Ao nos depararmos com relatórios e outras fontes produzidas pelos agentes da
lei, tivemos a preocupação de ter o cuidado com as “vozes” de quem estava por
trás dos referidos escritos. Apesar das instituições totais12 nos legarem uma rica
documentação sobre sua dinâmica interna, devemos ter atenção redobrada com
o discurso produzido “de cima”, muitas vezes difusor de posturas disciplinadoras
e castradoras das práticas dos grupos subalternos. Caso contrário, acabaríamos
colocando “a casa-grande” no “ápice, e todas as linhas de comunicação”
convergiriam “para a sua sala de jantar, o escritório da propriedade ou os canis”13.
Mas do que apresentar as malhas de vigilância, pretendemos adentrar no cotidiano
de tensões e conflitos que marcaram a trajetória dos diferentes sujeitos encarcerados
na Casa de Detenção do Recife na década de 1860.
E o fio condutor deste artigo é o trabalho. Ou melhor, a tentativa de criação
de uma prática que visava disciplinar, moralizar e dar lucro através de oficinas
que contribuíram para um contato intenso entre os que deveriam ser afastados
do convívio da sociedade e o mundo extramuros. Vejamos como se deu este
processo. No que tange ao trabalho dos presos na CDR, houve, nos anos 1860,
vários tipos de oficina, como a de carpintaria, ferraria, tornaria e sapataria.
Já em 1863, a produção da oficina de sapateiros, a mais rentável, era tão
significativa que os coturnos ali fabricados foram destinados ao Arsenal de
Guerra, para lojas e até mesmo para o Exército. Segundo Clarissa Nunes Maia,
a produção de calçados entre junho e dezembro de 1863 foi de cerca de seis
mil pares, sendo que desses, quatro mil foram destinados ao Exército. Os presos
sapateiros recebiam, por sua produção, um salário equiparado às oficinas
particulares, e com ele custeavam suas despesas na prisão e o que restasse
poderia ser entregue à sua família. Isso resultou numa redução considerável nos
custos com os presos.
Segundo o administrador Rufino de Almeida, “economia e vantagens” destas
atividades não precisavam ser demonstradas. Bastava apenas dizer que o calçado

11
SILVA, Maciel Henrique Carneiro da. Pretas de honra: vida e trabalho de domesticas e vendeiras
no Recife do século XIX (1840-1870). Recife: Editora da UFPE; EDUFBA, 2011, p. 37.
12
Erving Goffman define instituições totais como um local de residência ou trabalho onde um
grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por
considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada”. Entre estas
instituições, o autor destaca as prisões, os conventos e, principalmente, os manicômios, analisando
os efeitos psicossociais do isolamento nestes indivíduos. A partir deste conceito, Michael Ignatieff
propõe que devemos repensamos a história das instituições, levando-se em consideração que seu
foco não é apenas o que acontece dentro das paredes, mas a relação histórica entre o dentro e o
fora. Veja-se: GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. 7. ed. São Paulo: Perspectiva,
2005; IGNATIEFF, Michael. “Instituições totais e classes trabalhadoras: um balanço crítico”. Revista
Brasileira de História, São Paulo, ANPUH, n. 14, 1987, p. 185-193.
13
THOMPSON, Edward Palmer. “Patrícios e plebeus”. In: __________. Costumes em comum: estudos
sobre a cultura popular tradicional. Tradução de Rosaura Eichemberg. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998, p. 29-30.

118 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


produzido pelos detentos, além de ter excelente qualidade, custava bem menos
que o adquirido pelo conselho administrativo, gerando uma economia de 5700$
aos cofres públicos. Além do fornecimento interno, a venda do produto possibilitou
a vários presos custearem sua alimentação, resultando em mais economia,
alcançando a cifra de 14,910$47014.
Ressalte-se que, como atividade complementar a essa oficina, logo foi aberta
uma outra, de serramento de solas, e também um curtume, para tratamento do
couro, o que corrobora a afirmação de que era a sapataria a principal atividade
exercida entre os detentos. Além de oferecer uma maior facilidade de aprendizagem
pelo detento, era a atividade que “mais comodamente pode ser exercido no recinto
das prisões15.
Já em 1862, as oficinas apresentavam-se como uma boa alternativa para
desafogar os gastos provinciais com a CDR. Segundo o então presidente da
Província, João Silveira de Souza, uma economia significativa foi alcançada com
a “inauguração do trabalho dos presos”, que gerou recursos capazes de garantir
o “asseio e conservação do prédio e outras despesas extraordinárias”. Apesar do
sucesso do empreendimento, o presidente lamenta a atividade não ser autorizada
e animada “com melhores estímulos e sob bases mais regulares e econômicas”16.
Sua queixa refere-se ao fato de não estar normatizado pelo legislativo provincial
o trabalho para os presos na Casa de Detenção. Ainda assim, no ano seguinte,
sobre o mesmo tema, ele afirma que “as oficinas dela criadas proporcionam meios
de subsistência aos infelizes que precisam desse recurso sem dispêndio dos cofres
provinciais”17.
Já Rufino de Almeida vai além da justificativa meramente econômica. Sua defesa
em torno da moralização pelo trabalho é reveladora e nos possibilita adentrar mais
profundamente nos debates em torno do discurso acerca da importância do trabalho
penal no século XIX. Para ele, mesmo que “nenhuma economia resultasse aos cofres
públicos”, o trabalho deveria ser visto “como objeto de suma importância”. Isso
porque, “os males provenientes da ociosidade são incalculáveis, e o remédio para
os seus perniciosos efeitos é sem dúvida o trabalho”, que apresenta benefício duplo.
Se de um lado a atividade laboral habilitava o detento “ao trabalho e a indústria,
moralizando-o”, por outro o público também é beneficiado, pois “habilitados os
presos a alimentarem suas famílias, garantindo a esta o pão”, socorriam muitos
infelizes que poderiam, sem esta ajuda, aumentar “o número de mendigos e das
desgraças vítimas da prostituição”18.
A importância dessas oficinas não era meramente econômica e também poderia
ir além da moralização. Clarissa Nunes Maia destaca que os detentos sapateiros
possuíam uma função social importante no presídio, tendo em vista que, além
executarem seu próprio trabalho, ensinavam o ofício a outros presos. Dessa forma,
contribuíam para que esses homens também tivessem chance de ajudar nas suas
próprias despesas bem como diminuir a responsabilidade de suas famílias ou dos

14
Relatório do Administrador da Casa de Detenção do Recife, Rufino Augusto de Almeida, 1864.
15
Relatório do Administrador da Casa de Detenção do Recife, Rufino Augusto de Almeida, 1864.
16
Relatório do Presidente da Província de Pernambuco, João Silveira de Souza, 1863, p. 08.
17
Relatório do Presidente da Província de Pernambuco, João Silveira de Souza, 1864, p. 08
18
Relatório do Administrador da Casa de Detenção, 1864.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 119


cofres públicos para com seu custeio19. A autora menciona um interessante caso
do mestre sapateiro Leandro Aprígio, que deveria ser enviado para o presídio
de Fernando de Noronha, mas o administrador da Casa de Detenção, Rufino
de Almeida, teria relutado a entregar o detento às autoridades competentes,
argumentando que

Este sentenciado é o mestre de sapateiro, o mais perito


que existe nesta Casa: montou a custa própria uma
pequena oficina [...]. Fazê-lo sair sem ter sido avisado
com antecedência parece que seria uma injustiça contra
esse preso que além de prestar grandes serviços ao
estabelecimento, tem tido conduta exempadíssima.20

Fica evidente o interesse do administrador na manutenção do preso na CDR,


devido a importância que ele representava no seu projeto. Ao mesmo tempo,
devemos pensar sobre as estratégias do detento para se manter bem distante da ilha
prisão, tão afastada do mundo em que conhecia e possivelmente dos benefícios que
possuíam naquela Casa. Sua conduta “exempassíma” [sic] e juntamente o ofício
que trazia consigo, eram importantes instrumentos na manutenção de conquistas
duramente alcançadas. A este preso não cabia escolher entre a liberdade e a prisão,
mas apenas a possibilidade de ficar num espaço carcerário menos problemático e,
quem sabe, mais desejável, dentro das limitações da reclusão forçada.
Além da oficina de sapateiro, outras atividades bastante importantes eram as de
ferreiro, pedreiro e marceneiro, pois esses presos eram obrigados a realizar reparos
no edifício. Essas outras oficinas estavam localizadas em telheiros nos raios sul e
leste do edifício e serviam inicialmente apenas para fazer os reparos mencionados.
Mas Rufino de Almeida pretendia torná-las lucrativas, oferecendo a mão-de-obra
dos presos à Repartição de Obras Públicas, o que parece ter obtido êxito, pois, no
ano de 1864, ele sugeriu que esses presos estariam recebendo salários. Ressalte-
se, ainda, que Rufino encomendou dois teares, iguais aos usados em prisões na
Bélgica, para que os presos pudessem tecer as roupas utilizadas na Casa21.
Assim, apesar da predileção tanto da gestão, como dos próprios encarcerados
pela sapataria, outros ofícios foram praticados e, de acordo com Rufino de Almeida,
até estimulados. Além de atividades auxiliares ao de sapateiro (surramento de sola
e couros e curtume de peles), o administrador instituiu outras oficinas, empregando
ferreiros e carapinas, “colocadas em velhos terreiros existentes entre os raios do sul
e do leste”. Em um terreno desocupado da CDR, Rufino autorizou o sentenciado
Bento Alves da Crus, mestre canteiro, a trabalhar no preparo de pedras para “as

19
MAIA, Clarissa Nunes. “A Casa de Detenção do Recife: controle e conflitos (1855-1915)”. In:
MAIA, Clarissa Nunes; SÁ NETO, Flávio de; COSTA, Marcos & BRETAS, Marcos Luiz (orgs.).
História das prisões no Brasil – Vol. II. Rio de Janeiro: Rocco, 2009, p. 111-153.
20
Ofício do Administrador José Rufino Augusto de Almeida para o Chefe de Polícia José Antonio
Vaz, 24 mai. 1862.
21
Ofício do Administrador da Casa de Detenção, Rufino Augusto de Almeida, ao Chefe de Polícia
de Pernambuco, Abílio José Tavares, de 10 de agosto de 1864; Veja-se também: MAIA, Clarissa
Nunes. Policiados: controle e disciplina das classes populares na cidade do Recife, 1865-1915. Tese
(Doutorado em História). Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2001.

120 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


obras do cais contratadas pelo barão do Livramento, responsável pelo pagamento
do dito oficial. Em troca, o artífice retribuía ensinando seu ofício a outros detentos22.
Mas, além da possibilidade de trabalhar na oficina, os presos também ficavam
encarregados do serviço de faxina da CDR, conforme rezava o Regulamento. No
entanto, os serviços dos presos eram empregados para além da mera limpeza do
edifício. Entre as obrigações referentes à faxina, estavam “a condução de gêneros
para a alimentação dos detentos, matéria prima para as oficinas, enfim [...]”23.
As oficinas da Casa de Detenção do Recife também foram palco de eventos que
nos evidenciam que a prisão é um microcosmo da sociedade recifense oitocentista.
Existia toda uma dinâmica própria, pulsante e bem peculiar. Em 27 de maio de
1862 ocorreu um incidente envolvendo dois trabalhadores da oficina de ferreiros.
Tratava-se de um escravo e de um pardo livre. Segundo o administrador Rufino de
Almeida, o escravo José Maria e o pardo Manoel Silva Lopes envolveram-se em
uma discussão, chegando à luta corporal. O escravo levou um golpe de martelo
no peito, e o livre foi ferido na cabeça. Depois de mandados para a enfermaria
para tratar dos ferimentos, ambos foram enquadrados nas penas disciplinares
estabelecidas pelo Regulamento: solitária por três dias para Manoel Lopes e
punição de aplicação de ferros para o cativo José.
No entanto, à noite o guarda Fabrício da Silva foi pego açoitando o referido
escravo, sem autorização nem do administrador, nem do chefe de polícia. O guarda
foi suspenso por cinco dias de serviço. Não encontramos o que ocorreu com os
envolvidos na documentação, mas o fato de um guarda chicotear o escravo, na
surdina (se é que isso seria possível, devido à confusão entre os sons do açoite e
dos gritos), à noite, evidencia o preconceito que havia contra o elemento escravo.
Talvez ai não tenha pesado apenas questões em relação à cor da pele, até porque o
próprio guarda, oriundo dos mesmos estratos sociais daqueles a quem era obrigado
a policiar, talvez tivesse também a sua epiderme mais escura. Assim, sua ação foi
mais voltada para o escravo, não para o negro24. Se é que podemos dissociar, nesta
época, um do outro. Se a sociedade extramuros era marcada pelas hierarquias
sociais, pouco mudava na vida em cárcere. E não se tratava de mera perpetuação
de costumes trazidos de “fora”, mas como parte integrante do próprio regulamento,
que estabelecia critérios diferenciados para os sentenciados também de condições
sociais diferentes.
Além dessas altercações entre os presos, o dia a dia desses trabalhadores era
marcado por uma constante interação com pessoas que, diariamente, entravam
e saiam da CDR, tanto para visitar seus parentes encarcerados, como para
comerciarem com os presos, levando objetos diversos. Esses visitantes, que, segundo
o regulamento, estavam autorizados a entrar no estabelecimento duas vezes por
dia (as visitas eram liberadas das dez da manhã ao meio dia, e entre as quinze
e as dezessete horas), provocavam, como será visto abaixo, diversos problemas,
frequentemente reclamados por Rufino de Almeida em sua correspondência com

22
Relatório do Administrador da Casa de Detenção do Recife, Rufino Augusto de Almeida, 1864.
23
Ofício do Administrador José Rufino Augusto de Almeida para o Chefe de Polícia, 20 jun. 1866.
24
Ofício do Administrador José Rufino Augusto de Almeida para o Chefe de Polícia José Antonio
Vaz, 31 mai. 1862.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 121


as autoridades superiores.
Aurélio Britto explorou, em sua dissertação25, um aspecto importante do cotidiano
da Casa de Detenção, ligado às oficinas: a existência de atividades comerciais e a
presença de um número variado de comerciantes, que adentravam a Detenção em
busca de compradores para seus produtos, tendo em vista o pecúlio recebido pelos
presos trabalhadores. Essa presença não é aprovada pelo administrador Rufino
de Almeida, que afirmou que uma das falhas existentes na segurança da CDR
provém “da faculdade dada às quitandeiras de penetrarem duas vezes por dia no
recinto das prisões e venderem gêneros alimentícios aos presos”26. Segundo ele,
a presença dessas mulheres só seria controlada “quando houvesse aumento da
parca alimentação dada aos presos”27, o que seria conseguido apenas através do
trabalho por eles realizado.
Difícil pensar uma instituição que pretendia manter o criminoso sob total reclusão
e banido, mesmo que temporariamente, do convívio das “pessoas de bem”. Mas a
presença dessas pessoas externas, principalmente vendeiras, quebrava a dinâmica
interna da vigilância e nos revela um universo bem diferente do desejado pelas
autoridades da época. Mulheres circulando por um espaço tão “perigoso” é uma
imagem difícil de visualizar. Contudo, a historiografia já demonstrou que a ideia
em torno da “reclusão feminina dos tempos patriarcais” não poderia ser aplicada
ao cotidiano de mulheres pertencentes a estratos sociais mais baixos. Em busca
pela sobrevivência, escravas, forras e mulheres livres pobres construíram práticas
pautadas em grande movimentação pelos diversos espaços públicos da cidade,
oferecendo os mais variados produtos28, inclusive o próprio corpo.
Se suas práticas cotidianas eram definidas como de “portas a dentro” ou de
“portas a fora”, como repensá-las dentro de um espaço tão peculiar como uma
prisão? Se na rua enfrentavam os perigos, as obscenidades e todo o tipo de
imoralidade representados pela sociedade da época, o que dizer de mulheres que
frequentavam um espaço sempre associado com o crime, a morte e a sujeitos que
deveriam ser evitados e, com sorte, até esquecidos?
Mas não apenas quitandeiras visitavam a CDR. Outras mulheres, em busca
de angariar a féria do dia, também tinham acesso a essa instituição, a exemplo
das prostitutas. Segundo Rufino de Almeida, estas tinham “grande influência na
moralidade dos detentos e muitas vezes” tinha “concorrido para a perpetração de
novos crimes, quer nas prisões, quer fora delas”29 e constituíam-se em aproveitadoras
apenas em busca do dinheiro proveniente do trabalho dos presos.
A presença dessas mulheres algumas vezes mexia com a disciplina e
comportamento dos presos, que usufruíam dos seus serviços, no caso de prostitutas,
e acabavam se afeiçoando a elas. Rufino Augusto comunicou, ao chefe de polícia,
um caso deste tipo:

25
BRITTO, Aurélio de Moura. Fissuras no ordenamento: sociabilidades, fluxos e percalços na Casa
de Detenção do Recife (1861-1875). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de
Pernambuco. Recife, 2014.
26
Ofício do Administrador ao Chefe de Polícia, apud BRITTO, Fissuras no ordenamento..., p. 75.
27
Ofício do Administrador ao Chefe de Polícia, apud BRITTO, Fissuras no ordenamento..., p. 82.
28
SILVA, Pretas de honra..., p. 62.
29
SILVA, Pretas de honra..., p. 79.

122 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


Há preso que de trabalhador econômico, bem comportado
e asseado se torna, de repente, indolente maltrapilho e
verdadeiro tratante. Indagada a causa, uma mulher que
se apaixonou depois de preso é a origem de sua desgraça;
todo o lucro de seu trabalho é pouco para satisfazer os
desejos de sua amante.30

Sabemos, ainda, que a presença dessas mulheres facilitava a entrada de um sem


número de objetos proibidos pelo regulamento da instituição. Em 1865, no mês de
agosto, ocorreu um levante de presos durante a missa dominical, e foi descoberto
que uma das armas apreendidas de um detento “lhe fora ministrada naquele dia
por uma preta quitandeira na ocasião da visita”31. É interessante pensar como “os
modos de proceder” de um grupo ou indivíduo contribuem para alterar as estruturas
de funcionamento das redes de vigilância. Com suas “astúcias”, “táticas”, formas
“sub-reptícias” contra as imposições dos mecanismos disciplinares da sociedade.
Longe de ser um espaço de controle absoluto, o cotidiano da Casa de Detenção
do Recife nos revela como um campo de conflito cotidiano, de “antidisciplina”32, e
que os sujeitos envolvidos tinham consciência de suas possibilidades e limitações.
Se a missa, na perspectiva dos agentes da ordem, tinha como objetivo instruir os
detentos no respeito à disciplina, obediência e moralização, eles se apropriaram de
uma estratégia que visava subjuga-los para então voltarem-se contra a força que
os encarcerava. O olhar vigilante do padre e dos guardas foi surpreendida pela
ousadia dos prisioneiros.
Além de armas, não era incomum a entrada de bebidas alcoólicas, consumidas
tanto pelos presos, como pelos guardas.

A faculdade que tem todas as pessoas de entrarem


diariamente no estabelecimento e nele permanecerem
[...] põe em perigo a segurança do estabelecimento pela
facilidade que há em transmitir-se aos presos armas,
bebidas espirituosas, e ate instrumentos e reagentes
próprios para destruir as grades de ferro.33

Em setembro de 1870, Rufino de Almeida, fazendo a revista de rotina das células,


encontrou vários objetos, em bom estado, na posse do detento Antonio Joaquim
da Silva Catete, que deveria estar ligado a alguma quadrilha de “ratoneiros”, ou
seja, de venda de objetos roubados. Os objetos, encontrados dentro de uma garrafa
ou costurados no forro interno do paletó do mesmo detento, foram um relógio de
algibeira de ouro, um correntão de ouro, medindo mais de um metro e meio, um
anel de ouro com dois pequenos diamantes cravados em prata, um porta-retratos

30
SILVA, Pretas de honra..., p. 80.
31
Ofício do Administrador da Casa de Detenção ao Chefe de Policia, 20 ago. 1865.
32
CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano – vol. 1: artes de fazer. Tradução de Ephraim
Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 41-42.
33
Relatório do Administrador Rufino de Almeida, 1863.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 123


de ouro e um alfinete de ouro para gravata. Tais objetos foram apreendidos e
encaminhados à chefia da polícia34.
Devido à negligência dos guardas, aconteceram casos de fuga de presos ou de
entrada de pessoas em horários não permitidos na prisão. Rufino de Almeida, em
seu relatório, afirmou que o trabalho dos guardas era dificultado pela ausência de
um locutório35, o que dava a possibilidade aos presos de conversarem sem que
os guardas os ouvissem. Por conta dessa sabida facilidade, várias pessoas não
autorizadas entravam no edifício, sob concessão dos guardas, com o pretexto de
levar comida aos detentos. Segundo o relatório de Rufino, as coisas chegaram a
um ponto tal de “ser esta casa o melhor lugar para a ocultação e venda de objetos
furtados. Do poder dos presos, tem se tomado objetos de ouro, prata, furtados e
dados a guardas ou vendidos na ocasião da visita”. Além desses objetos, eram
encontrados ainda no interior das celas “punhais, instrumentos para serrar grades
e também bebidas espirituosas, fornecidas pelos portadores de alimentos”36, tudo
isso sob os auspícios dos carcereiros.
Diversos foram os casos em que visitantes foram pegos levando, para fora do
estabelecimento, produtos feitos nas oficinas, para que fossem vendidos na praça
da cidade. A parda Feliciana Maria da Conceição foi presa por ter sido flagrada
ocultando nos “seios um par de sapatos de couro de cabra fabricado com materiais
da oficina de sapataria” da CDR e que fora furtado pelo “preso Manoel Rodrigues
dos Passos e entregue a ela para ir vender fora”37.
Os presos e seus contatos das ruas utilizavam-se das mais criativas soluções para
transportar algumas manufaturas para fora da Detenção, como um caso divulgado
no jornal O Liberal: sapatos eram passados para fora do estabelecimento através
das latrinas, onde foram achados diversos pedaços de calçados, inutilizados ou
não38.
Assim, devido a esses problemas enfrentados, Rufino de Almeida criticava
severamente o “pernicioso costume de poderem os sentenciados e detentos
alimentados a custa própria serem visitados duas vezes por dia”39. Em diversas
ocasiões, ele argumentou que a solução para diminuir a entrada de pessoas na
prisão seria empregar o maior número de presos possíveis em oficinas, para que
eles pudessem custear sua alimentação e vestes, reduzindo, assim, a necessidade
das visitas.
No entanto, além de tentar reduzir a frequência de estranhos no dia a dia da
Detenção, Rufino argumentava, como foi dito mais acima, que o trabalho dos
detentos aliviaria os cofres provinciais. Rufino de Almeida, em 1864, comunicou
ao chefe de Polícia que impôs aos presos que trabalhavam nas oficinas “o ônus de
alimentar-se e vestir-se a custo próprio”. Quanto menor o número de detentos que
trabalhavam nas oficinas, maior a quantidade de pessoas alimentadas à custa dos

34
Ofício do administrador da Casa de Detenção, Rufino Augusto de Almeida, ao Chefe de Polícia de
Pernambuco, Luiz Antonio Fernandes Pinheiro, 01 set. 1870.
35
Relatório do Administrador Rufino de Almeida, 1864.
36
Diário de Pernambuco, Recife, 20 out. 1874.
37
Ofício do Administrador ao Chefe de Polícia, apud BRITTO, Fissuras no ordenamento..., p. 84.
38
O Liberal, Recife, 17 jul. 1866.
39
Ofício do Administrador ao Chefe de Polícia, apud BRITTO, Fissuras no ordenamento..., p. 67.

124 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


cofres provinciais Assim, de acordo com Aurélio Britto, podemos compreender a
tendência que observamos de ampliação do número dos que recebiam custeio do
Estado, em função da progressiva extinção das oficinas de trabalho, a partir de 1865,
principalmente a de sapatos, a mais lucrativa e que empregava maior numero de
trabalhadores. O autor afirma que em 1866 havia apenas 36 presos exercendo o
oficio de sapateiro, o que significa menos de 10% da população carcerária daquele
ano que, em fins de janeiro girava em torno dos 370 indivíduos40.
Em relatório de 1865, Rufino de Almeida afirma que, desde a abertura das
oficinas, “consegui diminuir extraordinariamente as despesas fornecendo meios de
aos sapateiros e aos que desejavam aprender tal oficio”41. Contudo, em 1865 os
gastos voltam a crescer mediante a queda das vendas de sapatos produzidos pela
CDR. Se em 1864 grande parte da produção foi vendida para o Arsenal de Guerra,
em 1865 as vendas declinaram devido à montagem de uma oficina no presídio de
Fernando de Noronha, que passou a atrair o interesse dos principais compradores
da Casa de Detenção. Já em relação aos comerciantes locais, o administrar afirma
desconhecer a razão pela qual deixaram de adquirir os calçados produzidos pelos
detentos do Recife. Diante deste quadro, Rufino foi obrigado a “diminuir o número
de trabalhadores da oficina de sapataria e aumentar o dos raçoados pelos cofres
públicos”42.
Apesar do alegado sucesso, mesmo que temporário, da experiência de trabalho
penal na Casa de Detenção do Recife, já nos meados da década de 1860 as
oficinas, em especial a de sapateiro, entraram em declínio, devido à concorrência
com o Presídio de Fernando de Noronha, sendo que o Arsenal de Guerra passou a
comprar ali seus coturnos. Rufino de Almeida alegou ainda o aumento do preço da
matéria-prima, tanto estrangeira como nacional, resultando numa crise comercial.
Como desdobramento disso, o administrador teve que reduzir gradativamente o
número de trabalhadores nas oficinas, até sua completa desativação em 1869,
quando afirmou não ter mais “forças pecuniárias para continuar o seu custeio”43.
Uma das razões apresentadas para o malogro das oficinas foi a falta de verbas
destinadas para tal serviço, tendo em vista que a existência dessas oficinas não
estava regulamentada e, por isso mesmo, não existiam previsões para seu custeio no
orçamento provincial. Neste sentido, Rufino reconheceu que a extinção do trabalho
foi um “grande mal para os presos e mesmo para a província; conheço, porém, por
uma experiência de sete anos, que ao ser permitido, senão sob bases regulares,
metodizando-se o trabalho a fim de se poder dele colher frutos salutares”44. Além
disso, segundo ele, a permissão para que os presos trabalhassem em suas celas
gerava uma série de inconvenientes, pois, como eles não tinham como adquirir por
conta própria a matéria-prima necessária ao seu trabalho, seria inevitável permitir-
se que eles tivessem contato constante com pessoas de fora da prisão que lhes
forneceriam o material.

40
BRITTO, Fissuras no ordenamento...
41
Relatório do Administrador da Casa de Detenção, 1865.
42
Relatório do Administrador da Casa de Detenção, O Liberal, Recife, 17 jun. 1866.
43
MAIA, Policiados...
44
Ofício do Administrador da Casa de Detenção, Rufino Augusto de Almeida, ao Chefe de Polícia de
Pernambuco, Francisco de Farias Lemos, 04 mai. 1869.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 125


Diante desses problemas, Rufino de Almeida defendia, quando da desativação
das oficinas, que o trabalho deveria “ser o quanto antes restabelecido por conta
do governo e fundado em melhores bases”. Mas da forma que se encontrava, com
a permissão do trabalho nas células, nenhum proveito se tiraria. Não apenas isso,
mas, na perspectiva do administrador, e implantaria “um gérmen de indisciplina e
perigo para a segurança do estabelecimento”45.
Uma consequência do gradativo fim da experiência das oficinas de Rufino foi um
aumento do número dos presos alimentados à custa dos cofres provinciais. Como
foi analisado por Aurélio Britto46 e por Flávio Albuquerque47 pode ser notado que
a partir do ano de 1865 ocorreu uma ampliação do número de presos alimentados
pelo Estado, e no ano seguinte já ultrapassa a quantidade dos que não o são, que
remontam a cifra de menos de 44% da população carcerária. Para o ano de 1868,
essa proporção cai para menos de 40%.
Esta experiência com as oficinas na Casa de Detenção do Recife demonstrou
a falta de uma política prisional que sustentasse legalmente os vários discursos de
valorização do trabalho como elemento reformador do criminoso. Apesar de o
trabalho ser visto como “forma de redenção”48 para o preso, o governo provincial
debatia-se em questões que diziam respeito meramente à sua sustentabilidade
financeira e complementação para o parco orçamento da Casa de Detenção49.
Depois do fim dessa primeira experiência de trabalho produtivo na Casa de
Detenção, as oficinas sempre eram reclamadas pelos administradores, que viam
nelas um mecanismo de moralização e um meio de diminuição de gastos, bem
como eram também reclamadas pelos presos, que se queixavam da ociosidade a
que eram submetidos dia a dia e da impossibilidade de ajudarem no sustento de suas
famílias. Muitos solicitavam que pudessem exercer seus ofícios individualmente,
dentro das celas. A administração da Casa encaminhava essas representações ao
chefe de polícia, mas alertando que essa permissão seria prejudicial à disciplina do
estabelecimento, tendo em vista a entrada e saída de parentes e esposas de presos,
que eram portadores de matéria-prima.
Apesar de todos (autoridades e mesmo os presos) concordarem na importância
na regulamentação do trabalho penal, fica evidente sua dificuldade. Não apenas
devido às barreiras burocráticas e políticas, mas sem dúvida em sua dimensão
cultural. Qual seria a reação dos detentos diante das restrições do acesso de
externos ao interior da prisão, com o objetivo de maior estruturação do trabalho
rotineiro e disciplinado? Práticas costumeiras regulamentadas e construídas que
traziam grandes benefícios para os presos deveriam ser substituídas, na perspectiva

45
Ofício do Administrador da Casa de Detenção, Rufino Augusto de Almeida, ao Chefe de Polícia de
Pernambuco, Francisco de Farias Lemos, 04 mai. 1869.
46
Veja-se: BRITTO, Fissuras no ordenamento...
47
ALBUQUERQUE NETO, Flavio de Sá Cavalcanti. Punir, recuperar, lucrar: o trabalho penal na
casa de detenção do Recife (1862-1879). Tese (Doutorado em História). Universidade Federal de
Pernambuco. Recife, 2015.
48
HASSEN, Maria de Nazareth Agra. “O trabalho e os dias: enfoque antropológico sobre trabalho e
prisão”. Revista Transdisciplinar de Ciências Penitenciárias, Pelotas, UCPEL , vol. 1, n. 1, jan./ dez.
2002, p. 61-72.
49
ALBUQUERQUE NETO, Flavio de Sá Cavalcanti & MAIA, Clarissa Nunes. “O trabalho penal na
Casa de Detenção do Recife no século XIX”. Passagens, Niterói, UFF, vol. 3, 2011, p. 187-202.

126 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


das autoridades, por ordem, restrições do ir e vir, limites na entrada de objetivos
e tantos outros elementos proibidos para o interior da Casa. Não foi à toa que os
envolvidos no trabalho das oficinas solicitavam executar suas atividades nas celas,
obrigando os administradores a conceder-lhes maior contato com o mundo “lá
fora”.
Mas a ideia de regulamentar o trabalho artesanal e seus “ritmos irregulares”
na é novo. Sempre foi desejo da elite e outros setores desejosos por ordem e
disciplina regulamentar o trabalho dos subalternos através de ritmos nem sempre
bem aceitos. Como existia uma grande dificuldade em impor certos padrões de
trabalho, muitas vezes devido a própria resistência dos envolvidos, suas práticas
foram frequentemente desapontavam os setores dominantes50.
Na verdade, a dificuldade de se implantar um trabalho rotineiro, disciplinado,
regular não era uma peculiaridade da CDR. Em diversos ramos do mundo do
trabalho até o século XIX encontramos os patrões/ senhores reclamando da
indolência, preguiça, vadiagem dos trabalhadores diante de um padrão mais
rigoroso em relação ao tempo de trabalho. Muitos indivíduos – fossem eles livres,
escravos ou libertos – enfrentaram as tentativas de imposição de uma lógica
menos agregada ao tempo “natural” (da colheita, da maré, do cantar do galo)
e aproximada ao tempo do relógio. Na visão dos administradores, preocupados
com a moralização, disciplina e economia, parecia possível sistematizar um padrão
temporal mais rigoroso numa instituição tão estanque e passível de maior controle.
Mas não foi o que aconteceu.
Muitos, apesar de submetidos ao tempo regulamentado da prisão, seguiam
uma rotina pautada no ócio, grande “vício” sempre associado a tantas outras
práticas indesejáveis para uma sociedade pautada no desejo pela ordem. Até
mesmo os detentos envolvidos no trabalho rotineiro das oficinas nem sempre
seguiam a dinâmica do relógio. Como muitos produziam em suas próprias celas,
sem a fiscalização constante de um “patrão” ou “capaz”, seus ritmos seguiam a
irregularidade típica de outras atividades não industriais, como bem nos demonstra
E. P. Thompson51. Para o sucesso dessa empreitada, todos concordavam que seria
necessário mudar o regulamento e as práticas construídas em torno da entrada e
saída de pessoas duas vezes (ou mais!) por dia.

Considerações Finais

É interessante pensar que a Casa de Detenção do Recife apresentava muitos


aspectos de “desordem” e “vícios” que tanto aparecem no discurso da elite quando
pretendiam desqualificar determinadas práticas dos estratos mais baixos. O
consumo de bebida alcoólica, a prostituição, os encontros entre amantes, as brigas,
os risos, o roubo e tantas outras formas de interação “ilícitas” que marcavam a
rotina de grande parcela da população, de acordo com o imaginário da sociedade.
Tudo isso poderia ser observado dentro de um espaço teoricamente planejado
para a ordem e não a (ant)indisciplina.

50
Tempo, disciplina de trabalho e o capitalismo industrial. THOMPSON, “Patrícios e plebeus”, p.
284-285.
51
THOMPSON, “Patrícios e plebeus”, p. 283.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 127


As relações que permeavam estes diferentes sujeitos do cárcere (presos, guardas,
prostitutas, quitandeiras, comerciantes, familiares) não podem ser simplesmente
enquadradas na conhecida dicotomia “casa e rua”, pois seus “habitantes” estavam
subordinados a uma dinâmica própria. Não era uma “casa”, com todos os seus
símbolos associados a lar, proteção, moralidade. Muito menos a rua, com sua
liberdade, seu ir e vir, suas cores. Ao mesmo tempo, a CDR aglutinava estranhamente
um pouco destes dois universos, numa mistura perigora que preocupava as
autoridades da época. Nas celas e nos seus corredores apertados, pessoas circulavam
livremente não apenas nos horários determinados pelos agentes da ordem, mas
também na ausência de vigilância, fosse clandestina ou não. Em muitos aspectos, a
vida “portas a fora” era transplantada para “dentro”, numa simbiose confusa entre
encarcerados e sociedade “livre”. Livre? Como definir a atuação de uma escrava
quitandeira que usufruía de ampla liberdade de movimentação vendendo seus
produtos para homens livres subtraídos de sua condição de nascença? A prisão
nos parece um espaço tão repleto de significados que pode nos revelar aspectos
bem diferentes daqueles convencionalmente conhecidos em torno da sociedade
escravista do oitocentos.


RESUMO ABSTRACT
Este artigo se propõe a analisar no cotidiano This paper aims to analyze the riddled everyday
eivado de tensões e conflitos que marcaram a tensions and conflicts that marked the course
trajetória dos diferentes sujeitos encarcerados na of the different subjects imprisoned at Recife’s
Casa de Detenção do Recife (CDR) na década House of Detention in the 1860s. Opened in
de 1860. Inaugurada em 1855, a CDR inseria- 1855, the House of Detention inserted itself
se no contexto da reforma prisional realizada into the context of the prison reform held in
no Brasil oitocentista, momento em que foram the nineteenth-century Brazil, when were built
construídas, nas principais capitais do Império, in the main capitals of the Empire, prisons for
penitenciárias para o cumprimento da pena de the fulfillment of imprisonment with labor,
prisão com trabalho, visto que o labor era tido since labor was seen as the principal element
como o principal elemento moralizador para moralizing to the criminal’s reintegration into
a reinserção do criminoso na sociedade após society after paying their debts with society .
o cumprimento da pena. Assim, no início dos Thus, in the early 1860s, there were mounted
anos 1860, foram montadas algumas oficinas some workshops in this institution, which directly
de trabalho nesta instituição, que afetaram affect the daily lives of prisoners, guards, also
diretamente o dia a dia de presos, guardas, as the outsider population that entered the prison
também da população externa que adentrava walls for buying and selling products, intimate
os muros da prisão para compra e venda visits, etc. These incursions and its impact on the
de produtos, visitas íntimas, etc. São nessas functioning the Recife’s House of Detention are
incursões e seu impacto no funcionamento da what we will look at.
Casa de Detenção do Recife que iremos nos
Keywords: Prisons; Daily Life; Social History.
debruçar.
Palavras Chave: Prisões; Cotidiano; História
Social.

Artigo recebido em 15 mai. 2015.


Aprovado em 28 set. 2015.

128 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


A GUARDA CÍVICA DO RECIFE: A UTOPIA DE UMA
FORÇA POLICIAL GUIADA PELA CORTESIA NAS
DÉCADAS FINAIS DO BRASIL IMPÉRIO (1876-1889)

Wellington Barbosa Silva1

Art. 12º. A garantia dos direitos do homem e do cidadão


necessita de uma força pública. Esta força é, pois,
instituída para fruição por todos, e não para utilidade
particular daqueles a quem é confiada.

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, 1789.

Marcos Bretas, em um já clássico artigo sobre criminalidade no Rio de Janeiro


do início do século XX nos lembra em tom ligeiramente jocoso que uma das regras
da História Social brasileira é a de que “um trabalho comme il faut começa com
uma boa história”2. Seguirei ao pé da letra esta regra para entrar nos meandros
de um sério conflito ocorrido no Recife de fins do Império, e que envolveu mais
ou menos uma vintena de soldados do Exército e outras tantas praças da Guarda
Cívica – uma força policial existente naquela época. E a partir dele tecer alguns
comentários sobre essa força policial pernambucana e suas práticas relacionadas
ao controle e à prevenção do crime no período em tela. Fixemo-nos então na
história, prezado leitor.
Recife, 26 de outubro de 1886. Era noite alta de um domingo, quase madrugada
da segunda-feira. Muitos recifenses já estavam recolhidos de portas adentro,
dormindo o sono dos justos. Mas, apesar do toque de recolher ditado pelas posturas
municipais e imposto na medida do possível pelos aparatos policiais, as pouco
iluminadas ruas recifenses nunca estavam totalmente vazias. O que não lhe faltava
era transeunte dos mais diversos perfis sociais: ladrões, prostitutas e escravos
(fugidos ou não); mas também estudantes e outros notívagos e boêmios (livres ou
escravos), promovendo suas “patuscadas” e “súcias de guitarras”, fazendo da noite
a melhor parte de todo santo dia. E mendigos que, após perambularem o dia todo
pela cidade em busca de esmolas, dormiam ao relento nas barracas dos mercados
públicos, embaixo dos arcos das pontes, dos átrios das igrejas, nas praças públicas.
Os quais, como afirmou o responsável pelo policiamento da cidade, ainda no
decênio de 1837, contribuíam tanto para emporcalhar estes espaços quanto para
ajudar a esconder ladrões e outros malfeitores entre eles3.

1
Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor do Departamento e do
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Rural de Pernambuco. E-Mail:
<wellington.ufrpe@gmail.com>.
2
BRETAS, Marcos. “As empadas do confeiteiro imaginário: a pesquisa nos arquivos da justiça
criminal e a história da violência no Rio de Janeiro”. Acervo, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, vol.
15, n. 1, jan./jun. 2002, p. 08.
3
OFÍCIO do Prefeito da Comarca do Recife, José Carlos Teixeira, para o presidente da província de
Pernambuco, Vicente Thomás Pires de Figueiredo Camargo, 27 fev. 1837. Prefeitos de Comarca,

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 129


Porém, naquela longínqua noite de outubro um acontecimento colocou a
cidade, ou mais especificamente a freguesia de São José, de ponta-cabeça. Por
volta das 23:30 hs um grupo de mais ou menos vinte soldados do 2º Batalhão
de Infantaria do Exército, “armados de cacetes, facas e pistolas”, atacou a 3ª
Estação da Guarda Cívica, localizada na rua de Lomas Valentinas, naquela mesma
freguesia. A investida pegou os guardas cívicos de surpresa. Ao notar a inesperada
aproximação dos agressores a sentinela somente teve “tempo de recuar para
dentro do quartel e dar o grito de alarma” para seus companheiros. Os soldados do
Exército invadiram a estação “disparando tiros” e entraram em luta com os guardas
cívicos ali destacados. A luta entre eles, de acordo com os registros documentais,
demorou pouco tempo; porém, cruenta.
Depois do embate, os soldados de linha puseram-se em fuga, deixando para
trás um triste saldo: três pessoas mortas e quatro com ferimentos “a bala e vários
golpes”. Entre os mortos estavam o cabo n. 47 da Guarda Cívica, Luciano Pereira
da Silva, vítima de um tiro, o cabo Manoel Gabriel do 2º batalhão (falecido pouco
tempo depois na enfermaria militar) e João Veríssimo da Silva, soldado do Corpo
de Polícia, que estava na porta da estação, conversando com Isaías Gabriel de
Oliveira, seu colega de farda, no momento do ataque – tendo sido ele assassinado
“com vários ferimentos de faca”. Outro documento analisado aponta que João
Veríssimo da Silva se envolveu “na luta casualmente e por ter passado no local
quando ela se travou, estando de ronda”4. De uma forma ou de outra, pode-se
dizer que ele teve a infelicidade de estar no lugar errado e na hora errada. Os
feridos foram o sargento Laurindo Pereira de Brito e os soldados Francisco Vieira
de Andrade, Teodoro de Albuquerque Lopes e Felipe São Thiago Maior.
Logo no início da invasão, não sabemos se foi devido a uma tática utilizada
pelos agressores ou por um acidente de percurso, “o candeeiro de querosene”
que alumiava parcamente a estação foi arrebentado, deixando-a mergulhada na
escuridão. Caso contrário, o inventário de mortos e feridos poderia ter sido mais
encorpado. Este “deplorável acontecimento” entre os agentes da força policial e
praças do Exército, como a ele se referiu o presidente da província, José Fernandes
da Costa, em seu relatório anual, não era nenhuma novidade no Recife. Mesmo
sendo responsáveis diretamente pelo policiamento das freguesias centrais da
capital pernambucana, as praças da Guarda Cívica tiveram de dividir o monopólio
do exercício repressivo com outras instituições armadas ou dotadas de poder
coercitivo (policiais civis, militares do Corpo de Polícia, do Exército e da Marinha).
No caso destas duas últimas instituições, volta e meia suas praças eram requisitadas
para cobrir as lacunas abertas no policiamento da cidade, para montar guarda
nas cadeias ou realizar diligências de Justiça. Um problema igualmente enfrentado
pelos soldados do Corpo de Guardas Municipais Permanentes desde sua formação
ainda na primeira metade do século XIX.
Desde o início das atividades da Guarda Cívica vislumbrou-se que as relações
entre as suas praças e os soldados do Exército não primariam pela cordialidade.
Em 1877, pouco tempo depois da sua criação, um relatório do ministro da Justiça
já antecipava o quadro de animosidades que cercaria a convivência entre eles.

cód. 2, fl. 87-87v. Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano (doravante APEJE).
4
“POR causa de um cão”, Diário de Pernambuco. Recife, 28 out. 1886, p. 02.

130 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


Como consta no citado relatório, no último tríduo de agosto daquele ano uns e
outros estiveram envolvidos em pelo menos três sérios confrontos. No dia 29 de
agosto, um guarda cívico “foi agredido e desarmado por três soldados do 14º
batalhão de infantaria” enquanto estava de serviço. Decidido a reaver a arma
tomada de maneira tão acintosa, o comandante da estação arregimentou alguns
de seus subordinados e se dirigiu “à força de linha que guarnecia a Alfândega, e da
qual faziam parte os agressores”. Chegando ao seu destino, a patrulha foi repelida
pelos soldados do Exército e o confronto revelou-se inevitável – como inevitável foi
o saldo negativo desta contenda: três praças de linha e dois guardas cívicos saíram
feridos.
Neste mesmo dia de agosto, por volta das sete horas da noite, talvez como reflexo
do conflito ocorrido horas antes se verificou um novo entrevero entre os integrantes
das duas corporações: meia dúzia de soldados, sendo dois do 2º e quatro do 14º
batalhão de infantaria, atacou o guarda cívico Manoel de Souza Bandeira, lotado
na 3ª estação (a mesma que serviria de palco para a escaramuça de 1886) – o
que resultou na prisão de três soldados de linha. Na noite do dia seguinte, uma
patrulha composta de oito guardas cívicos foi assaltada por um grupo de cerca de
30 soldados dos mesmos batalhões acima citados. O número desproporcional de
agressores fez com que o fiel da balança pendesse negativamente para os guardas
cívicos: três deles ficaram feridos, “sendo 2 gravemente”5.
Efetivamente, a documentação coligida mostra-nos que as praças do exército
e as da Guarda Cívica andavam às turras. De quando em quando, uns e outros
estavam se estranhando nas ruas do Recife, se enfrentando em pequenas e grandes
altercações; mas, na ótica do 1.º vice-presidente Souza Leão, o conflito de 1886 teria
sido “o mais lamentável” de todos6. O ataque dos soldados de linha à 3ª estação não
foi algo fortuito, uma simples assuada resultante de uma bebedeira desenfreada em
alguma das tabernas ou lupanares da cidade, como era relativamente comum no
Recife; mas sim uma represália, uma vingança. O leitmotiv para tanto foi a prisão,
dois dias antes, de Manoel Joaquim Cavalcanti, cabo de esquadra do 2º batalhão
de infantaria do Exército. As versões do ocorrido variam de acordo com as fontes
documentais – sendo a prisão do citado cabo o único ponto de partida em comum
para todas elas.
O relatório do chefe de polícia, embasado no depoimento de João Batista
Cabral, então comandante da 3ª estação da Guarda Cívica, localizada na freguesia
de São José, aponta que na noite do dia 24 de uma patrulha de seis guardas
cívicos teria se dirigido ao Beco dos Patos para atender uma denúncia de agressão
física praticada por Manoel de Abel contra Eufrosino Soares das Chagas. Porém,
ao passar por uma casa próxima ao local onde se dera a ocorrência, a patrulha
foi atacada por um cachorro, obrigando os soldados a dar-lhe uma pancada para
afugentá-lo. Nisso um homem “que estava de calça e camisa” nessa casa tomou
as dores do cachorro, talvez fosse o seu dono, e resolveu cobrar satisfações da

5
RELATÓRIO do ministro e secretário de Estado dos Negócios da Justiça, Lafayete Rodrigues
Pereira, 26 dez. 1878. Disponível em: <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1871/000001.html>. Acesso
em: 25 jan. 2015.
6
RELATÓRIO do 1º vice-presidente da província de Pernambuco, Inácio Joaquim de Souza Leão,
10 nov. 1886. <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u667/000001.html.>. Acesso em: 25 jan. 2015.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 131


patrulha, lançando “mão de uma pistola para agredir a mesma”. Houve briga e
os guardas tiveram de empregar a força para desarmá-lo e conduzi-lo preso para
a estação de São José. Ainda segundo o relato do chefe de polícia foi somente
ao chegar à estação que Manoel Joaquim Cavalcanti declarou ser um cabo do
Exército.
Após tomar conhecimento de que o mesmo era um militar, João Batista Cabral
imediatamente solicitou uma patrulha ao oficial do quartel onde Manoel Joaquim
estava engajado para que ele pudesse ser escoltado e ficar à disposição do seu
comandante. Quando a escolta chegou, ele narrou o fato ao sargento que a
comandava e disse-lhe “que no dia seguinte se entenderia com o tenente-coronel
comandante do batalhão”. Sendo assim, na versão do chefe de polícia, nada de
mais teria acontecido naquela noite: apenas a prisão de um soldado que havia
se excedido ao questionar uma ação legal da patrulha de guardas cívicos. Um
desatino momentâneo, tão rotineiro quanto deletério, cuja sanção adequada ficaria
a cargo do oficial superior ao qual ele estava subordinado.
A versão do comandante das armas foi outra, bem diferente daquela apresentada
pelo chefe de polícia. O inquérito e o relatório preparado por ele inocentaram
o cabo Manoel Joaquim e puseram na berlinda os guardas cívicos responsáveis
pela sua prisão. Sem atentar para um possível desatino do seu subordinado,
ele concentrou-se no fato de que os guardas cívicos “se excederam no ato de
prenderem o dito cabo”, espancando-o “com sabres e fazendo-lhes ferimentos”.
E mais: João Batista Cabral, o comandante dos guardas cívicos estava na estação
quando o preso chegou, mas ao tomar conhecimento do fato agiu pelo avesso.
Em vez de repreender o procedimento dos seus comandados, ele autorizou o
espancamento do preso em sua presença, “chegando ele próprio a empurrá-lo
para dentro da estação”7. O chefe de polícia questionou essa versão, atribuindo-a
a uma adulteração dos fatos feita pelo sargento que conduzira o cabo Manoel
Joaquim de volta ao quartel da 2ª Companhia de Infantaria.
Conforme denunciou Domingos de Mello Castro, alferes-ajudante do batalhão
ao qual pertencia Manoel Joaquim, a polícia teria ocultado do público essa “bravura
que muito [deveria] honrá-la” praticada por alguns de seus integrantes. Em carta
de sua autoria, enviada ao Diário de Pernambuco um dia antes desse confronto,
mas publicada apenas no dia seguinte ao ocorrido, ele afirmou que o propósito da
mesma era o de “prevenir o público de um fato que [podia] trazer consequências
desastrosas, pois [vinha] aumentar a rivalidade entre o Exército e a polícia”. Nela,
Domingos de Mello contou sua versão dos fatos. Diz a sabedoria popular que
“quem conta um conto aumenta um ponto”. E, nesse caso, ele acrescentou outros
pontos ao que já sabemos sobre o caso. Segundo ele, pelas 7 horas da noite do dia
24 de outubro de 1886,

[...] um grupo de 10 guardas cívicos agrediu e espancou


barbaramente ao cabo de esquadra do 2.º batalhão de
infantaria, Manoel Joaquim Cavalcante, em sua própria

7
RELATÓRIO do presidente da província de Pernambuco, Pedro Vicente de Azevedo, 02 mar. 1887.
Disponível em: <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/705>. Acesso em: 26 jan. 2015.

132 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


casa no Beco do Patos, d’onde depois foi arrastado para a
1.ª estação da dita guarda, e aí novamente castigado em
quadrado por ordem do respectivo comandante geral, que
teve o arrojo de mandar dizer ao comandante do batalhão
que o espancamento fora ordenado por si e estava pronto
para responder?!

Segundo ele, o motivo da agressão inicial ao cabo Cavalcante, foi o de o mesmo


ter “reprovado o procedimento de um guarda que lhe matara um pequeno cão que
ladrava, quando passaram os bravos mantenedores da ordem!” Diversas pessoas
teriam presenciado o acontecimento, incluindo-se entre elas o fiscal da freguesia de
Santo Antônio e o Sr. Numa Pompílio, que indignado comunicou-o pelo telefone
ao oficial do estado-maior”. Segundo Domingos de Mello, o comandante geral da
Guarda Cívica, teria tido a arrogância de afirmar para o comandante da patrulha
que fora buscar o cabo Manoel Cavalcante que “o espancamento fora ordenado
por si e estava pronto para responder?!” Mas depois, ao se dar conta do seu
irregular procedimento, ele rapidamente se comunicou com o chefe de polícia e
contou apenas o que lhe convinha, na tentativa de fazer prevalecer a sua narrativa.
Por sua vez, ao levar o caso ao comandante das armas, o chefe de polícia o teria
feito de uma maneira a “predispô-lo a favor da sua gente, cujo procedimento não
quis mencionar em sua parte oficial”8. Um argumento semelhante foi utilizado pelo
chefe de polícia quando afirmou que o sargento encarregado de conduzir o cabo
Manoel Cavalcante de volta ao quartel tinha adulterado os fatos na hora de contar
o acontecimento aos seus oficiais superiores.
Independente disso, o inquérito do comandante das Armas produziu um efeito
de verdade mais consistente do que a explicação dada pelo chefe de polícia. O fiel
da balança voltou-se contra os guardas cívicos agressores e, principalmente, contra
seu comandante. O procedimento de João Batista foi considerado muito grave.
No inquérito procedido pelo comandante das armas, ele finalmente confessou a
autorização para “que mesmo em sua presença fosse o preso ainda espancado,
chegando ele próprio a empurrá-lo para dentro da estação”9. Mesmo assumindo a
responsabilidade pelos seus atos, ele continuou acobertando as transgressões dos
seus subordinados e negou-se a dar maiores esclarecimentos ao chefe de polícia,
dizendo “não se lembrar quais os guardas de seu comando que tomaram parte no
conflito”; uma informação que, segundo ele, não poderia ser dada nem mesmo pelo
oficial inferior responsável pela desastrosa diligência. Por conta desse seu “espírito
de corpo” (se não foi por isso, ele então passou um atestado de incompetência
administrativa para seus superiores), ele foi submetido a processo criminal (incurso
no artigo 145 do código penal) e suspenso de suas atividades à frente da Guarda
Cívica – que ficou sob o comando interino do alferes Luiz José Antunes.
Bom, a partir desse “deplorável acontecimento”, como o definiu o presidente da
província, entre guardas cívicos e soldados do Exército pretendo discutir algumas
questões sobre o policiamento do cotidiano no Recife do período em tela. A Guarda

8
“ATÉ onde será real?”, Diário de Pernambuco. Recife, 27 out. 1886, p. 03.
9
RELATÓRIO do presidente da província de Pernambuco, Pedro Vicente de Azevedo, 02 mar. 1887,
p. 21. Disponível em: <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/705/000002.html>. Acesso em: 27 jan. 2015

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 133


Cívica, instituição da qual faziam parte as seis praças envolvidas na prisão do citado
cabo de esquadra, foi criada aproximadamente dez anos antes desse conflito que
nos serviu de preâmbulo com o propósito exclusivo de realizar o patrulhamento
das freguesias centrais do Recife. Ela surgiu em um momento onde a insegurança
e a criminalidade pareciam ser uma das principais preocupações da população
recifense – pelo menos da sua parcela mais afortunada.
Na segunda metade do século XIX, segundo Clarissa Nunes, os “jornais não
cansavam de descrever um Recife perigoso, onde os crimes se avolumavam, sem que
a polícia conseguisse dar conta deles”. Ainda segundo esta autora frequentemente
ocorria assaltos à mão armada “em matas próximas à cidade, nas estradas de
Fernandes Vieira, Olho do Boi, Beco do Suassuna e, principalmente, em João de
Barros, que se temia tornar-se um novo Catucá”10. Estes testemunhos parecem
indicar que a capital pernambucana era uma cidade perigosa. Brigas, altercações,
agressões morais e físicas povoavam as páginas das ocorrências policiais e dos
jornais coevos. Aliás, brigas e agressões físicas aconteciam até mesmo entre senhores
respeitáveis em plena via pública. No lusco-fusco do dia 22 de outubro de 1886,
alguns dias antes da ocorrência do confronto entre praças do exército e da Guarda
Cívica, o procurador fiscal interino da Tesouraria da Fazenda, Olympio Marques da
Silva, estava saindo do seu escritório, na rua 1.º de Março, localizada na freguesia
de Santo Antonio, uma dos bairros centrais do Recife, quando foi agredido pelos
bacharéis José Mariano Carneiro da Cunha e José Maria Albuquerque e Mello,
que estavam acompanhados por dois capangas – um dos quais lhe deu “uma
bengalada que ligeiramente atingiu-lhe a cabeça sem feri-lo.” A pronta intervenção
de dois cidadãos, que se opuseram contra a investida dos agressores, livrou o
procurador de um espancamento e, talvez, até mesmo da morte.
Para fazer frente à essa onda de criminalidade, havia uma reclamação
constante por mais policiamento nas ruas – uma reclamação que transparece
tanto nos artigos e cartas de leitores publicadas nos jornais coevos quanto na
documentação legada pelos chefes de polícia e pelos presidentes da província.
Marcelo Martins11, analisando o contexto da violência em São Paulo, durante
a Primeira República, informa-nos que a leitura dos relatórios policiais,
processos criminais e notícias de jornal lhes permitiu entrever o surgimento no
Brasil daquilo que Robert Reiner denominou de “fetichismo da polícia”, ou
seja, “a pressuposição ideológica de que a polícia é um pré-requisito essencial
para a ordem social, e que, sem a força policial, o caos vai instalar-se”12. Não
pretendemos fazer uma genealogia deste processo, mas a partir da leitura de
documentos semelhantes sobre o contexto recifense da segunda metade do
século XIX poderemos antecipar em algumas décadas antes o surgimento deste
“fetichismo”, ou pelo menos da maior ênfase na utilização da polícia como

10
MAIA, Clarissa Nunes. “O controle social no Recife oitocentista.” In: SILVA, Wellington Barbosa da
(org.). Uma cidade, várias histórias: o Recife no século XIX. Recife: Bagaço, 2012, p. 185.
11
MARTINS, Marcelo Thadeu Quintanilha. “‘Policiais habilitados não se improvisam’: a modernização
da polícia paulista na Primeira República (1889-1930)”. Revista de História, São Paulo, n. 164, jan./
jun. 2011, p. 245.
12
REINER, Robert. A política da polícia. Tradução de Jacy C. Ghirotti e Maria C. P. Da C. Marques.
São Paulo: EDUSP, 2004, p. 19.

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instituição responsável pelo controle da criminalidade.
Esta inquietação se traduziu na formulação de políticas públicas de controle
do crime mais consistentes – embora seus resultados práticos fossem pífios e
irregulares. À medida que o século XIX se encaminhava para o seu término e o
Estado ia ganhando maior solidez burocrática se pode notar uma gradativa mais
ainda tímida preocupação dos administradores provinciais com o aumento da força
pública disponível na capital pernambucana. Uma preocupação que, na segunda
metade da citada centúria, deixou de ser concentrada apenas na cidade do Recife,
alcançando igualmente as áreas interioranas. Foi neste contexto que surgiu, em
30 de abril de 1874, da Guarda Local – uma força policial que, como podemos
entrever na sua própria denominação, deveria ficar circunscrita aos municípios
interioranos. Com a sua criação pretendia-se garantir a fixação de uma força
policial nessas regiões da província – principalmente porque uma lei geral de 1873
havia dispensado a Guarda Nacional de fazer serviço de polícia em todo o Império.
E, consequentemente, proporcionar às autoridades locais melhores condições de
enfrentamento contra os grupos de facinorosos que viviam pelas cercanias de suas
cidades, levando terror às suas populações.
No entanto, a lei de criação da Guarda Local trazia outros objetivos embutidos
nas suas entrelinhas, quais sejam, o de não se desfalcar regularmente o contingente
do Corpo de Polícia, mantendo-se, portanto, um maior número de soldados de
polícia no Recife. E, em contrapartida, podia-se dar uma resposta àqueles que
viviam reclamando a adoção de um policiamento mais ostensivo, ou pelo menos
mais visível, nos logradouros públicos. Não foi à toa que, dois anos depois da criação
da Guarda Local, o governo provincial resolveu criar outro aparato de polícia de
vertente civil, a Guarda Cívica, cujos integrantes deveriam ficar circunscritos aos
limites urbanos da capital da província. Com isso, o governo poderia destacar
soldados do Corpo de Polícia para as comarcas mais distantes, que ainda não
dispunham de contingentes da Guarda Local, sem pôr em risco a segurança da
capital – que, apesar de não ter sido mais atormentada por quarteladas e rebeliões,
como ocorreram nos decênios de 1830 e 1840, continuava sendo o palco
privilegiado das mais diversas formas de desordens e de criminalidade cotidiana.
A Guarda Cívica do Recife foi criada por lei provincial de 03 de junho de 1876 –
quase uma década depois da criação da Guarda Urbana do Rio de Janeiro13. Seria,
na verdade, uma companhia adida ao Corpo de Polícia com a responsabilidade de
fazer exclusivamente o patrulhamento diuturno nas freguesias centrais da cidade.
A forma de ingresso na nova instituição era bastante simples. Exigia-se apenas
que os candidatos tivessem entre 20 e 45 anos de idade e fossem “sãos, robustos
e de bons costumes”. Não obstante, dar-se-ia preferência àqueles que soubessem
ler e escrever, bem como aos que “tivessem prestado serviço ao país”, ou seja, os
veteranos do serviço militar ou de outros cargos públicos.
Ao contrário dos soldados do Corpo de Polícia, que era uma força de ação
repressiva, os guardas urbanos executariam um trabalho de caráter eminentemente
preventivo. Atuando apenas na área delimitada pelos seus superiores, eles deviam
vigiar as práticas e comportamentos das pessoas que transitavam pelos seus

13
Todas as leis, regulamentos e instruções referentes à Guarda Cívica utilizadas neste artigo fazem
parte do acervo do Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano – APEJE.

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distritos com o fito de antecipar (e evitar) a ocorrência de crimes, desordens e
outras transgressões. Boa parte de seu abrangente repertório de atribuições estava
voltado para o controle do crime, cabendo-lhes a prisão de pessoas em flagrante
delito ou perseguidas “pelo clamor público”, de desertores, escravos fugidos,
bêbados, jogadores de profissão e todos aqueles que lhes parecessem suspeitos.
Saliente-se que este não era seu único foco de atuação, pois, também era da
sua alçada uma série de serviços sociais que iam desde o acompanhamento de
qualquer pessoa desnorteada, que ignorasse o caminho de sua residência, e a
custódia de crianças perdidas até a preocupação com aspectos da administração
municipal, como verificar se as ruas estavam sendo varridas regularmente ou se os
lampiões da iluminação pública eram acesos e apagados nos horários apropriados.
Uma situação semelhante àquela vivenciada pelas polícias norte-americanas neste
mesmo período, onde somente no fim do século XIX as atividades assistencialistas
(como dar abrigo aos sem-teto e distribuir sopa aos pobres) praticadas pelos
policiais cederam espaço para uma concentração maior no controle do crime14.
A rotina de patrulhamento diário dos guardas cívicos era definida nos mínimos
detalhes pelo regulamento. As ordens concernentes ao serviço deveriam ser
atendidas com todo zelo e pontualidade. Uma vez definidos os seus postos de
vigilância, eles não poderiam abandoná-los, a não ser para prestar auxílio aos
outros guardas ou no caso de receberem ordens do seu comandante. Quando
estivessem patrulhando os seus distritos deveriam fazê-lo “com passo regular,
parando somente quando [tivessem] de ouvir alguém sobre objeto de serviço, ou
quando [observassem] alguma coisa ou pessoa que lhes [parecesse] suspeita”. Não
nos esqueçamos que a prevenção dos delitos deveria ser o seu principal objetivo.
Caso ocorressem tumultos na sua área de atuação, ou o simples receio desta
possibilidade, o regulamento os instruía a fazerem imediatamente a “conveniente
participação ao comandante da estação” e conservarem-se vigilantes, requisitando
auxílio de outros guardas se assim julgassem necessário.
Em 1877, apesar de a Guarda Cívica ter sido criada há pouco tempo e não estar
sequer com o seu efetivo completo, o presidente da província já alardeava uma
visível melhora nos índices de criminalidade na capital pernambucana, sucesso
creditado à decisiva atuação das suas praças. Segundo ele, os crimes contra a
propriedade tinham diminuído e havia “maior vigilância no serviço policial”. De
fato, as estatísticas da Repartição de Polícia referentes ao período de 1872 a 1876
apontavam para um decréscimo no número de delitos anual, que caiu de 609
registros, em 1872, para 283 em 1876 – uma redução de mais de 50% em um
período de cinco anos. Inversamente, a quantidade de criminosos capturados pela
polícia teria aumentado neste mesmo espaço de tempo: de 318 prisões, em 1872,
para 458, em 187615. Dados significativos que pareciam dar razão ao presidente.
A criação da Guarda Cívica pode ter produzido um upgrade, mesmo
momentâneo, no policiamento da capital pernambucana. Como ela se dividia em

14
MONKKONEN, Eric H. “História da polícia urbana”. In: TONRY, Michael & MORRIS, Norval
(orgs.). Policiamento moderno. Tradução de Jacy Cárdia Ghirotti. São Paulo: EDUSP, 2003, p. 577-
612.
15
FALA do presidente da província de Pernambuco, Manoel Clementino Carneiro da Cunha, 02 mar.
1877. Disponível em: <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/692>. Acesso em: 26 jan. 2015.

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destacamentos pelas freguesias centrais da cidade, os subdelegados destes lugares
passaram a contar com um contingente de homens armados para lhes auxiliar
rotineiramente no serviço de policiamento, sem ser necessário requisitar (e nem
sempre ser atendido) patrulhas ao Corpo de Polícia. Se toda essa rede de controle
social (da qual também faziam parte os soldados do corpo policial, subdelegados
e inspetores de quarteirão) funcionasse com a precisão de um relógio suíço, sem
deixar muitas brechas, decerto que os índices de criminalidade seriam pouco
expressivos – o desejo embutido na criação de aparatos policiais aqui e alhures.
Mesmo assim, podemos questionar o alcance do policiamento dos Cívicos. Como
afirmaram Bayley e Skolnick, “o patrulhamento intensivo de fato reduz o crime, mas
apenas temporariamente, em grande parte porque o desloca para outras áreas”16.
Logo, a presença mais ostensiva dos guardas cívicos no espaço citadino pode ter
inibido por certo tempo os possíveis desvios da população, mas não significa que
a nova organização policial tenha se tornado uma espécie de panaceia contra o
crime.
Por outro lado, como bem sabemos, as estatísticas oficiais apenas nos fornecem
indícios da violência cotidiana; elas não expressam fielmente o que ocorreu neste
sentido. Como disse William W. Watt, não “ponha fé no que as estatísticas dizem
até que você tenha considerado cuidadosamente o que elas não dizem”. Sabemos
que os diversos registros que os amanuenses da burocracia policial deixaram
marcados a bico de pena nos seus livros de escrituração, não são suficientes para
se determinar, com segurança, como era feito o trabalho da polícia. Em outras
palavras, as fontes documentais legadas pela própria polícia, mesmo quando são
completas e não residuais, não são capazes de refletir realmente o “que” a polícia
fez e “como” fez e qual o alcance do seu trabalho de repressão aos delitos. E, neste
sentido, elas servem apenas como indicativos de possibilidades e perspectivas.
Os próprios relatórios presidenciais, onde os governantes estampavam a
diminuição nos índices criminais, também nos oferecem outros dados para
questionar o trabalho preventivo da Guarda Cívica. As limitadas estatísticas
criminais legadas pela Repartição de Polícia indicam que os delitos contra a
propriedade decresceram no triênio de 1873-1875, mas nesse intervalo de tempo
a Guarda Cívica ainda não existia, não era sequer um projeto. Da mesma maneira,
elas apontam que no ano de 1876, quando os guardas cívicos já estavam em ação,
a quantidade de crimes contra a propriedade aumentou em relação aos três anos
citados. A aludida diminuição cantada pelo presidente Carneiro da Cunha, em seu
relatório de 1877, teria se dado apenas no cômputo geral de delitos, mas esta seria
uma tendência já esboçada nos anos que antecederam o surgimento da nova força
pública.
O mesmo argumento é válido para se analisar o aumento no número de prisões,
algo já evidenciado no ano anterior ao da criação da Guarda Cívica (1875) e
mantido no ano seguinte (1876), não sendo reflexo, portanto, unicamente da ação
dos seus integrantes. Por outro lado, o maior número de criminosos encarcerados
não traduz uma ação mais exitosa da Guarda no combate à criminalidade. “As
detenções” – no dizer de Stanley Vanagunas –, “são apenas um indicador da

16
BAYLEY, David H. & SKOLNICK, Jerome H. Nova polícia: inovações nas polícias de seis cidades
norte-americanas. Tradução de Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: EDUSP, 2006, p. 18.

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produtividade policial de controle do crime”. O seu crescimento, principalmente
ao pensarmos na Guarda Cívica e suas táticas proativas de policiamento, significa
menos o êxito do que o fracasso de seu dever principal, ou seja, a prevenção
do crime17. Acresça-se que tais estatísticas expressam apenas os casos registrados
pelos escrivães de polícia. Inúmeros outros delitos, não investigados ou até mesmo
deixados de lado pelos policiais, não se traduziram em números para abastecer os
mapas estatísticos da burocracia policial.
Mesmo assim, a nova corporação trazia vantagens. Uma delas era a economia
para as finanças públicas. As despesas com aquartelamento (água, luz e o aluguel
ou manutenção da edificação que servia de caserna), alimentação e cuidados
médicos não entravam na rubrica de gastos com a mesma – como ocorria com o
Corpo de Polícia. É verdade que os guardas urbanos não executavam um trabalho
litúrgico, a forma de cooperação basilar dos milicianos da Guarda Nacional. Eles,
inclusive, recebiam um salário superior aos seus colegas de farda adstritos ao corpo
policial. Enquanto estes recebiam um soldo diário de 1.300 réis (resultando em
um salário mensal de aproximadamente 39.000 réis), os primeiros recebiam 1.500
réis diários (ou seja, algo em torno de 45.000 réis ao final de cada mês) – uma
diferença considerável de 6.000 réis entre os vencimentos de uns e de outros. Esta
diferenciação salarial também se evidenciava na Corte18. Ao governo provincial
também competia pagar pelo fardamento e armamento da corporação.
Entretanto, o seu efetivo (mesmo quando estava no seu estado completo) era
diminuto: pouco mais de uma centena de guardas – comparando-se, mais uma vez,
com os efetivos do Corpo de Polícia, que, em 1876, deveria ser composto por 500
soldados. Quando não era, por motivo de contenção de gastos, deliberadamente
diminuído, como ocorreu em princípios de 1879. Na ocasião, seu contingente
foi reduzido para apenas cem praças. Além disso, sua atuação era apenas local.
Como os guardas ficariam circunscritos a uma determinada estação ou freguesia,
sem necessidade de efetuar grandes deslocamentos, como faziam os soldados do
corpo policial quando destacados para outras comarcas, as despesas neste sentido
também não entravam no orçamento provincial – dando um pouco de alívio aos
cofres públicos.
Após o estabelecimento da nova força policial, o presidente da província
elaborou uma série de instruções operacionais para os seus integrantes, que
vigorariam enquanto não lhes fosse dado um regulamento específico. Por essas
instruções ficou decidido que a mesma compor-se-ia de 120 homens – sendo 115
praças, 4 comandantes de distrito e um comandante geral. Este contingente seria
dividido e distribuído pelas quatro freguesias principais da capital pernambucana,
cada uma comportando uma estação sob as ordens de um comandante de distrito
– que, por sua vez, receberia ordens do comandante geral. Apesar desta estrutura
hierárquica militarizada, a corporação ficaria subordinada a uma autoridade
civil: o chefe de polícia. Este seria o responsável pela sua “imediata inspeção e

17
VANAGUNAS, Stanley. “Planejamento dos serviços policiais urbanos”. In: GREENE, Jack R.
Administração do trabalho policial: questões e análises. Tradução de Ana Luísa Amêndola Pinheiro.
São Paulo: EDUSP, 2002, p. 46.
18
HOLLOWAY, Thomas H. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século
XIX. Tradução de Francisco de Castro Azevedo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1997, p. 216.

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direção”.
A 1ª Estação e, ao mesmo tempo, Posto Central de coordenação de todo o
contingente, se localizaria na freguesia de Santo Antônio, centro da vida política
e administrativa da província, onde se concentrava a maior parte das repartições
públicas, como o Palácio do Governo, a Câmara Municipal, a Tesouraria, a
Repartição das Obras Públicas, o Tribunal dos Jurados, a Secretaria de Polícia,
entre outras. E da elegante vida social também, pois esta freguesia era um
importante espaço de sociabilidades, com suas igrejas imponentes, livrarias, cafés,
passeio público e o não menos imponente Teatro de Santa Isabel. Nela, ficariam 32
guardas (entrando neste cômputo o comandante de distrito e o comandante geral
da corporação). Nas outras três freguesias, o menor contingente (25 guardas e um
comandante distrital) caberia à do Recife, o que talvez se explique pelo fato de esta
ser a menor freguesia da cidade em extensão territorial, embora fosse recheada
de tabernas e lupanares – palcos onde a ação das chamadas “bebidas espirituosas”
costumava resultar em desavenças, brigas e até homicídios. Suas vizinhas (São José
e Boa Vista) receberiam o mesmo efetivo: 30 guardas e seu respectivo comandante
de distrito.
Embora não fosse um aparato policial militarizado, a Guarda Cívica era uma
instituição uniformizada. Suas praças eram obrigadas pelo regulamento de 1876
a “andar sempre em serviço e fora dele, armados e com o seu uniforme”. A não
ser que recebessem “ordens expressas para trajar outras vestes”. As instruções de
27 de junho de 1876 estabeleceram que suas praças usassem casaco de pano azul
ferrete, calça de brim da mesma cor ou branca, botina, capote de pano azul escuro
e um quepe “de pano azul ferrete, tendo na frente uma chapa de latão com o
número entre as iniciais G. C.” (de Guarda Cívica). Pouco mais de um ano depois,
o presidente da província alterou o fardamento dos guardas cívicos – alegando
que tais alterações não resultavam em “aumento de despesa”. O quepe e o capote
continuaram como dantes, mas o figurino do uniforme mudou um pouco. A partir
de então, eles usariam um “sobrecasaco de pano azul ferrete com gola e vivos de
azul mais claro e botões amarelos, calça do mesmo pano com vivos iguais, blusa
de brim pardo trançado e calça de brim branco”. Em serviço, portariam “um sabre
com bainha de couro envernizado, um cinturão com canana (cartucheira) e uma
pistola”. O seu arsenal ainda incluía um apito para, através de sinais determinados
pelo seu comandante, comunicarem-se com os seus colegas – solicitando auxílio
dos mesmos ou emitindo sinais de alerta.
A Guarda Cívica surgiu como uma crítica aos imperativos da disciplina militar
que cercava o trabalho dos soldados do Corpo de Polícia, pois, alegava-se que o
cotidiano dos quartéis, com suas constantes e improdutivas práticas intramuros,
desviavam continuamente os policiais de suas verdadeiras atribuições, ou seja, a
manutenção da segurança pública. Não obstante, ela também se pautava por um
conjunto de normas que, se descumpridas, resultariam na aplicação de sanções
disciplinares. As instruções de 27 de junho de 1876 especificaram as seguintes
penas: repreensão, suspensão de vencimentos por até 30 dias e, como punição
máxima, a demissão. Tais penas, mantidas pelo Regulamento de 10 de agosto de
1876, seriam “impostas por infração ou negligência no cumprimento de deveres
ou de ordens expedidas pelos superiores legítimos”. Os comandantes de distrito
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tinham autorização para impor somente as duas primeiras penalidades (repreensão
e suspensão temporária dos vencimentos), ao passo que o chefe de polícia
poderia impor qualquer uma delas. Contudo, a demissão de guardas relapsos
ou insubordinados deveria ser solicitada por ele ao presidente da província, que
decidia caso a caso como julgasse mais conveniente.
Um ano depois de sua criação, essa nova força de polícia ainda estava
incompleta, mesmo assim sofreu uma pequena reformulação na distribuição do
seu contingente, passando a contar com apenas uma centena de guardas assim
distribuídos: 22 na freguesia do Recife, 25 nas de Santo Antônio e da Boa Vista e
28 na de São José. A decisão de se destinar um número maior de guardas para
esta última freguesia foi explicada pelo fato de ela encontrar-se dividida em dois
distritos policiais. Esta era uma freguesia de gente pobre, de ruas estreitas e casario
modesto, onde até mesmo a concentração da propriedade escrava (tomando-a
aqui como índice de riqueza) era a menor do Recife. Era o lugar de batuques e
terreiros com os quais, para utilizar as palavras de Lima Barreto, “a teologia da
polícia” implicava, realizando constantes batidas com o fito de combater o que
eles definiam como “cultos fetichistas” ou “rituais de feitiçaria”. Em suma, era a
freguesia onde, no dizer de Marcus Carvalho, “residia grande parte da tal ‘populaça’
da cidade, que tanto aperreava as autoridades”19. A necessidade de se impor uma
maior vigilância sobre a sua população foi, possivelmente, uma das motivações
para dividi-la em dois distritos policiais.
Este efetivo, apesar de pequeno, manteve-se praticamente inalterado durante
todo o período de existência da Guarda Cívica. Em 1885, por exemplo, ela
continuava com um efetivo de 100 praças, sendo que neste ano os seus integrantes
já eram responsáveis pelo policiamento de mais uma freguesia: a da Graça. No início
do ano seguinte, conforme relatório apresentado no dia de abertura dos trabalhos
da assembleia legislativa, o presidente da província relatou aos deputados que era
“manifesta a insuficiência desta força para o serviço que lhe [incumbia] em tão
extensas e populosas paróquias” e se as “circunstâncias financeiras da província”
fossem propícias, ele não hesitaria em “elevá-la pelo menos a 150 praças”20 –
justamente como era no ano da sua criação, ou sejam uma década antes.
O mais importante a ser discutido aqui é o fato de que, com a formação da
Guarda Cívica, inaugurava-se, pelo menos no papel, um aparato policial pautado
pelo respeito ao cidadão – mesmo com aqueles reputados como “criminosos”.
Neste sentido, quase copiando integralmente o regulamento de sua congênere da
Corte, os guardas cívicos do Recife deviam tratar a todos com polidez e cortesia,
evitando “com o maior cuidado disputa ou altercação com que quer que [fosse],
portando-se com prudência, ainda mesmo para com aqueles que [fossem]
desatenciosos ou provocadores”. Quando dois ou mais indivíduos estivessem em
desordem, eles deveriam tentar “acomodá-los por meios brandos e suasórios”,
ameaçando levá-los à presença das autoridades caso eles não obedecessem às suas

19
CARVALHO, Marcus Joaquim Maciel de. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo no Recife,
1822-1850. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2001, p. 87.
20
RELATÓRIO do presidente de província de Pernambuco, José Fernandes da Costa Pereira Junior,
06 mar. 1886. Disponível em: <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/704/000002.html>. Acesso em: 28 jan.
2015.

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admoestações. O utópico código de conduta expresso neste regulamento ainda os
proibia de “maltratar de qualquer maneira os presos, ou por palavras ou por gritos
e, sobretudo, fisicamente”.
No entanto, como adverte Regina Faria ao discutir a mesma diretriz para os
guardas urbanos do Maranhão, a “explicitação neste e noutros regulamentos
de que fossem usadas a cordialidade e a brandura pode indicar que os policiais
costumavam recorrer a métodos violentos no desempenho de suas obrigações”21.
E era isso o que, não raramente, acontecia O mesmo artigo regulamentar que os
instruía a serem corteses e polidos no trato com as pessoas também os autorizava a
“empregar o grau de força necessário para efetuar a prisão” dos recalcitrantes. Mas
no mundo da rua, onde os policiais muitas vezes deixam de invocar a lei e empregam
sanções alternativas baseadas na sua visão dos fatos, a fronteira entre a brandura
e o uso da força física necessária é uma linha muito tênue. Como afirmou Egon
Bittner, “ser policial significa estar autorizado, e ser exigido, a agir de modo coercitivo
quando a coerção for necessária”, mas a decisão de se empregar ou não a força física
depende da “avaliação do próprio policial das condições do local e do momento”22.
Nestas ocasiões, atributos como a cor, idade, sexo e nível socioeconômico servem
de indícios para qualificar a cidadania dos indivíduos envolvidos e, por extensão,
para definir o procedimento a ser adotado – com recurso à violência física ou não23.
Denúncias de brutalidade e excessos cercaram o trabalho dos guardas urbanos
em algumas províncias do Brasil Império. No Rio de Janeiro, segundo Holloway, o
Corpo de Polícia já havia construído em poucas décadas a reputação, nada lisonjeira,
de instrumento arbitrário e violento, mas “os guardas urbanos logo excederam
os soldados de polícia em brutalidade24. No Maranhão, denúncias estampadas
nas páginas dos jornais também apontam para um quadro semelhante. Entre as
grosserias praticadas pelos guardas maranhenses, segundo o testemunho anônimo
de um cidadão coevo, estava o costume de eles lançarem mão das chibatadas,
sem dó nem piedade, para conter o “desregramento da molecada” durante as
festividades religiosas25.
Relatos de destemperança dos guardas cívicos no trato com o público aparecem
amiúde na documentação sobre o Recife oitocentista. Em 1886, uma década
depois do seu aparecimento na capital pernambucana, quando, pelo menos em
tese, as normas disciplinares da Guarda Cívica já deveriam ter sido internalizadas
por seus integrantes, a brutalidade de alguns deles resultou no grave conflito
narrado nas páginas iniciais desse artigo. Um conflito que demonstrou de maneira
sombria o quanto esta nova instituição estava distante de ser a força policial que a
elite política pretendia instaurar no Recife daquela época: uma força pública que
pudesse conjugar energia e atividade com cortesia e polidez. Na análise de uma

21
FARIA, Regina Helena Martins de. Em nome da ordem: a constituição de aparatos policiais no
universo luso-brasileiro (séculos XVIII e XIX). Tese (Doutorado em História). Universidade Federal
de Pernambuco. Recife, 2007, p. 207.
22
BITTNER, Egon. Aspectos do trabalho policial. Tradução de Ana Luísa Amendola Pinheiro. São
Paulo: EDUSP, 2003, p. 20.
23
BRETAS, Marcos Luiz. A guerra das ruas: povo e polícia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Arquivo Nacional, 1997, p. 22.
24
HOLLOWAY, Polícia no Rio de Janeiro..., p. 219.
25
FARIA, Em nome da ordem..., p. 207.

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importante autoridade provincial, era “sobremodo lamentável que a força pública,
que [devia] ser o sustentáculo da ordem e da garantia da sociedade, [fosse] a sua
perturbadora, dando, deste modo, o mais reprovado exemplo de indisciplina e
desrespeito às leis”26.
Não foi à toa que, em 1888, ou seja, dois anos depois da grave escaramuça
entre as praças do Exército e as da Guarda Cívica, o presidente da província, Pedro
Azevedo, chegou a cogitar mudanças no serviço de policiamento da província –
particularmente, no que dizia respeito ao policiamento realizado pelas suas praças,
que, na sua acepção, era “feito de modo insuficiente”, não condizendo com “uma
cidade importante como a do Recife”. Por isso, achava necessário reorganizar
a instituição, de forma que ela, “conciliando a delicadeza com a energia e a
atividade, se tornasse apta para evitar conflitos, prevenindo ou reprimindo, mas
nunca provocando”. Uma diretriz estampada há dez anos nas páginas do seu
regulamento e pisadas pelas botas daqueles que deveriam segui-la ao pé da letra.
Ele reconhecia que o povo pernambucano era “altivo e valente”, mas abusava
“muito da faca”. Por isso, antecipando-se àquela famosa frase do revolucionário
argentino, o presidente advertia que a ação da polícia deveria ser “firme e enérgica”;
mas dentro da legalidade, sem esquecer a necessária prudência.
Ele admitia não ser favorável a corpos de polícia que se afastavam da sua
natureza civil e se estruturavam segundo o modelo das tropas de linha, preferindo
“as instituições de guarda urbana e polícia local”. Mas, atentando para as
peculiaridades de cada região, ele argumentava que o policiamento das províncias
não era e nem podia ser uniforme: “Não é igual o efeito de certas medidas em
todas; de modo que as opiniões também devem estar sujeitas a serem modificadas,
conforme as circunstâncias, a índole ou hábitos da população policiada”. Lembrando
que as “melhores instituições algumas vezes decaem de modo que não encontram
remédio senão na supressão”, mesmo afirmando não ser o caso da Guarda Cívica,
ele sugeriu:

Mas é assunto para deliberar a substituição desta força


por uma seção de cavalaria, posta ao serviço do chefe de
polícia. Auxiliada por certo número de praças do próprio
corpo de polícia, quem sabe se os resultados em relação à
pacificação da cidade e garantias individuais, não seriam
melhores que os atuais, e talvez sem maior dispêndio?27

Sua proposta não foi encampada de imediato pelos deputados provinciais, mas
não se esvaiu como poeira ao vento. Em meados de 1889, já no lusco-fusco do
Império, um projeto de lei previu a sua extinção e, em sua substituição, a designação
de 180 praças do Corpo de Polícia para realizar o policiamento da comarca do
Recife. O presidente, Inácio Joaquim de Souza Leão, alegando a intromissão

26
RELATÓRIO do 1º vice-presidente da província de Pernambuco, Inácio Joaquim de Souza Leão,
10 nov. 1886, p. 17. Disponível em: <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u667/000001.html>. Acesso em:
29 jan. 2015.
27
RELATÓRIO do presidente da província de Pernambuco, Pedro Vicente de Azevedo, 02 mar. 1887.
Disponível em: <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/705>. Acesso em: 30 jan. 2011.

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dos deputados em assuntos de competência da administração provincial, negou-
lhe sanção28. Não obstante, essa experiência de uma polícia desmilitarizada estava
com os dias contados. Mesmo sob desconfiança, a companhia de policiamento
civil sobreviveu à queda do Império; mas não conseguiu manter-se incólume na
alvorecente República.
Com o desaparecimento gradual da Guarda Cívica ruía na capital pernambucana
a intenção de se constituir um aparato de policiamento que se aproximasse da
proposta de força pública contida no artigo 12 da Declaração de Direitos do Homem
e do Cidadão, de 1789, que nos serve de epígrafe, ou seja, uma instituição focada
na defesa dos direitos do homem e na proteção dos cidadãos contra os interesses
particulares das elites políticas e econômicas. Como bem explicitou Francis Cotta,
em um de seus livros, esse modelo de polícia idealizado pelos revolucionários
franceses não vingou no Brasil. Em vez disso, delineou-se e ganhou concretude a
ideia de manutenção da ordem pública e “a utilização da estrutura, funcionamento
e lógicas dos corpos militares em atividades relacionadas à polícia”29.
Em Pernambuco, mesmo um presidente como Pedro Vicente de Azevedo que,
em meados do decênio de 1880, dizia preferir “as instituições de guarda urbana
e polícia local” em lugar de corpos de polícia que se afastavam da sua natureza
civil e se estruturavam segundo o modelo das tropas de linha, sucumbiu à ideia
de que uma força pública de vertente militar poderia obter melhores “resultados
em relação à pacificação da cidade e garantias individuais”. Uma ideia, conforme
mostrou Francis Cotta, que deu sustentação às matrizes do sistema policial luso-
brasileiro desde o século XVIII até os dias atuais.
A Guarda Cívica foi um frágil ensaio, um titubeante (e infrutífero) passo
dado na formação de uma polícia de vertente civil, de caráter mais proativo que
reativo, uma polícia respeitadora dos direitos humanos. Esta utópica instituição
estava inserida em uma sociedade escravista, onde a cidadania era limitada e
a violência era uma marca registrada, uma forma culturalmente sancionada de
resolver as questões interpessoais. E os guardas cívicos, mesmo fazendo parte
de uma corporação que possuía suas próprias regras e tentava discipliná-los,
refletiam e repetiam os mesmos códigos culturais da ordem social mais ampla. Seus
corriqueiros desregramentos, a brutalidade no trato com as pessoas e os conflitos
com integrantes de outras forças armadas, entre outras coisas, pouco a pouco
demonstraram a incompatibilidade entre o real e o desejado. Contudo, essa utopia
que ela despertou no Recife oitocentista persiste na atualidade. De certa forma,
ainda esperamos pelo surgimento de uma força policial que concilie a manutenção
da ordem pública com a defesa e garantia dos direitos do homem e do cidadão. A
utopia despertada pela Guarda Cívica sobrevive à ação corrosiva do tempo.


28
RELATÓRIO do presidente Inácio Joaquim de Souza Leão, Barão de Souza Leão, 20 jun. 1889.
Disponível em: <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u673/000028.html>. Acesso em: 25 jan. 2011.
29
Grifos do autor. COTTA, Francis Albert. Matrizes do sistema policial brasileiro. Belo Horizonte:
Crisálida, 2012, p. 26-27.

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RESUMO ABSTRACT
Este artigo estuda a formação e a atuação da This paper studies the formation and activities
Guarda Cívica do Recife, uma força policial of the Civic Guard of Recife, a police force
criada em 1876, cuja premissa era a de created in 1876, whose premise was to reconcile
conciliar energia e cortesia no policiamento energy and courtesy in policing the capital of
da capital pernambucana. Mesmo sem seguir Pernambuco. Even without following strictly the
rigidamente o que se convencionou chamar de so-called theory of social control, this work takes
teoria do controle social, este artigo trabalha on the idea that the police occupies a place in
com a perspectiva de que a polícia ocupa um the social structure, and acting in accordance
lugar na estrutura social, e agindo de acordo with expectations, imposing the dominant social
com as expectativas, impõe os valores sociais values, either by persuasion or by force. Based
dominantes, quer pela persuasão quer pelo uso on the concepts of sociologists and historians
da força. Escudado por trabalhos de sociólogos who studies the Police (Monkkonen, Bayley,
e historiadores da polícia (Monkkonen, Bayley, Skolnick, Vanagunas, Reiner, Bittner, Holloway,
Skolnick, Vanagunas, Reiner, Bittner, Holloway, Bretas), the effectiveness of the Civic Guard work
Bretas) ele discute a eficácia do trabalho da is discussed on this period. The research started
Guarda Cívica no período em tela. A pesquisa from Brazilian 19th century digitalized documents
foi realizada basicamente a partir da leitura e available at institutional websites of the
análise de documentos pertencentes aos arquivos Universities of Chicago and Florida, supported
de centros de pesquisa das Universidades de by a specific bibliography on the topic discussed.
Chicago e da Flórida – disponíveis na internet – The results show the limitations of that institution
e da leitura de uma bibliografia específica sobre in relation to crime control and inconsistencies
o tema abordado. Os resultados obtidos nos of the utopic institutional design of police force,
mostram as limitações da referida instituição em who was inserted on a slave society and should
relação ao controle do crime e as incongruências act with courtesy when dealing with suspects and
do seu utópico desenho institucional de criminals.
força policial que, em meio a uma sociedade Keywords: Civic Guard; Policing; 19th century
escravista, deveria agir com cortesia no trato Recife.
com os suspeitos e criminosos.
Palavras Chave: Guarda Cívica; Policiamento;
Recife Oitocentista.

Artigo recebido em 15 mai. 2015.


Aprovado em 23 nov. 2015.

144 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


DRAMAS DO IMPÉRIO CHEGAM À REPÚBLICA:
A LUTA DOS VETERANOS DA “GUERRA DO
PARAGUAI” PELOS DIREITOS SOCIOECONÔMICOS
PROMETIDOS DURANTE O CONFLITO,
CEARÁ (1870-1940)

Maria Regina Santos de Souza1

Introdução

Em novembro de 1867, Frederico, um aguerrido Voluntário da Pátria cearense,


retornava da “Guerra do Paraguai (1864-1870)” à província natal, inválido.
No desembarque em Fortaleza, capital da província do Ceará, nada de música,
estrondos de foguetes, flores, nenhuma menção honrosa. A sua espera apenas o
fiel amigo Antônio que ficou chocado em meio aos semblantes dos familiares dos
praças (soldados) que choravam, talvez mais de tristeza do que de alegria, por
verem corpos tão deformados descerem do vapor. Do meio da multidão alguém
havia gritado que “a recompensa dos bravos voluntários” era exatamente “os pares
de muletas que muitos portavam e quatro vinténs”2.
Antônio demorou a reconhecer o amigo “tão desgraçado era o estado dele”.
Frederico havia perdido “uma das pernas pelo tronco, a mão esquerda faltava alguns
dedos e o rosto estava desfigurado pela fúria do inimigo”. Este voluntário inválido
não havia perdido apenas os membros na guerra. Ao desembarcar, soube que sua
genitora havia morrido, enquanto ele estava a pelejar. Lembrou com pesar do dia
em que se “alistou abandonando a mãe pobre, idosa e viúva”. Seu coração estava
amargurado, e para ele o conflito também foi o responsável pela morte de sua mãe3.
Frederico, ainda que mutilado, poderia ter se revoltado ali mesmo no porto,
convocando os colegas à violência, mas, ao que tudo indica, preferiu resignar-se.
“Abraçou-se com o amigo Antônio dizendo-lhe que havia se arrependido do mau
passo que deu indo à encarniçada guerra”4.
Infelizmente, a história de Frederico, então escancarada nas páginas do jornal
fortalezense A Constituição, era apenas a ponta do iceberg de vários problemas
sociais ocasionados e/ou intensificados pela “guerra do Paraguai” na província
do Ceará. O drama do personagem, apesar de hiperbolizado pela impressa de
Fortaleza tinha um compromisso com o real, isto é, partiu de uma realidade, a

1
Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Professora Substituta do Curso de
Graduação em História da Universidade Estadual do Ceará, Campus de Limoeiro do Norte. E-Mail:
<mamuk2013@yahoo.com.br>.
2
A Constituição, Fortaleza, 11 set. 1867, p. 03. Hemeroteca da Biblioteca Pública Meneses Pimentel
– BPMP, Fortaleza – CE. Todos os exemplares de periódicos cearenses do século XIX consultados
pertencem ao acervo da BPMP.
3
A Constituição, Fortaleza, 11 set. 1867, p. 03.
4
A Constituição, Fortaleza, 11 set. 1867, p. 04.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 145


saber: as misérias, física e moral, vivenciadas pelos “veteranos cearenses regressos
do Paraguai”.
Mais de meio século depois, os infortúnios que envolviam os veteranos cearenses
da guerra do Paraguai, no Império, chegaram à República. Eis que, na edição de
24 de novembro de 1929, o periódico fortalezense A Razão publicava que “José
Raimundo, um ex-voluntário da pátria da guerra do Paraguai”, depois de muita
luta havia recebido uma pensão pelos serviços prestados no referido conflito.
Ocorre que naquele ano ele “morreu em estado de absoluta pobreza”, pois o parco
benefício não era suficiente para alimentá-lo. Quer dizer, a pensão concedida não
era justa nem decente para o veterano, certamente um homem já idoso, morto na
miséria.
O texto acompanhará a trajetória de veteranos cearenses do conflito do
Paraguai que, durante o Império e também na República, lutaram pelos direitos de
guerra. Por meio desta luta, foi possível visualizar o desprezo e o descaso sociais
das autoridades imperiais e republicanas em relação a eles.

“Brutos ou embrutecidos de guerra”:


a visão da sociedade sobre os veteranos do Paraguai

A “guerra corrompeu e embruteceu os praças”, este era o núcleo dos discursos


das autoridades cearenses após o conflito do Paraguai. Estas sentiram-se
extremamente incomodadas com a presença desses militares em Fortaleza. Esses
incômodos podiam ser vistos, principalmente, nas páginas policiais dos grandes
periódicos da cidade.
Geralmente, denunciava-se a “crueldade premeditada” dos praças regressos,
no momento em que estes praticavam os “crimes de sangue”, ou seja, ferimentos
e assassinatos. Por vezes, a condição de extrema pobreza da maioria deles era um
agravante da situação, uma vez que “a miséria levava a corrupção dos espíritos”,
diziam uníssonos os editores dos principais jornais fortalezenses, bem como os
chefes e delegados de polícia da província.
A imprensa foi um dos espaços bastante utilizados para a exposição dos praças
regressos da “guerra do Paraguai”. Muitos jornais cearenses contabilizaram as
transgressões e os crimes cometidos por esses militares, alterando o sentido da
retórica patriótica, outrora presente na província. Melhor dizendo: se durante esse
conflito, o presidente paraguaio, Solano López, e seu exército foram apontados
como “bárbaros”, depois dele, os veteranos brasileiros sem patente, ativos ou não,
sãos e inválidos tornaram-se “selvagens”, os verdadeiros inimigos da nação5.
No período pós-guerra, sobretudo, as referências da imprensa de Fortaleza
em relação aos “veteranos do Paraguai” ressaltavam que esses militares eram
“pervertidos e pervertedores do povo”:

Segurança Pública
A freqüência, como que se repetem os homicídios e as

5
SOUZA, Maria Regina Santos de. A chama apagada, a chaga aberta: a “Guerra do Paraguai”, a
Sociedade e os Militares Regressos. Ceará (1865-1889). Tese (Doutorado em História). Universidade
Federal de Pernambuco. Recife, 2012.

146 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


ofensas phisicas no Ceará, já vai produzindo um certo
desanimo nos que se interessão pelo futuro desta terra e se
alistão soldados na cruzada da liberdade e da civilização.
Cada um facto novo e mais accentuado de ferocidade vem
nos desenganar do processo moral da população e fazer
duvidar da eficácia dos meios empregados até hoje, para
castigar os costumes, e emplantar no animo do publico os
verdadeiros sentimentos da honra e da justiça.
Não tem sido, porém, pacientemente estudado a causa do
mal, e cada um se attem aos efeitos, para proguejar os que
assim, expõem ao labirinto dos povos civilizados o nome
cearense, que symbolizava a coragem, a hospitalidade, o
trabalho e a intelligencia.
Circunstancias de si mais pouca se tem imposto contra
a origem do mal, somente porque estão mais potentes.
Escapa, no entanto a apreciação do publico outra ordem
dos fatos, cuja lógica alias se mostra inflexível.
A uns parece que a reforma judiciária, desarmando
a autoridade os momentos de perigo, embaraçando
e encarecendo desmedidamente o processo, criando
finalmente mais garantias para os crimes do que menos
de defesa para os inocentes influi para que os sicários
redobrassem de furor. A outros se figura que os legionários
do Paraguay, habituados as scenas sangrentas dos cinco
annos, pervertidos eles mesmos, vieram perverter também
as classes miseráveis, com quem puseram em contato,
lhes comunicando os seus instintos homicidas. Muitos
pretendem que os partidos esfacelados, e empobrecidos
de aptidão, não dispõem do numero suficiente para
fazerem ocupar os lugares da judicatura e da policia por
homens prestimosos, que façam respeitar as autoridades.
Finalmente, diversos são as causas que atribuem a
crescente perversão do povo, sem esquecer a falta de
desenvolvimento necessário do ensino publico[...].6

Os jornais também publicavam “crimes brutais” praticados por veteranos como


o que foi praticado pelo “inválido da guerra Izidoro de Souza Machado que atacou
o infeliz Antonio Cordeiro de Castro, então ferido por tiros disparados pelo facínora
que, ainda decepou-lhe a orelha e lhe fez outros ferimentos”7.
Opinião semelhante à do jornal Cearense havia sido expressa em meados de
1874, pelo chefe de polícia do Ceará, José Antônio de Mendonça, que incomodado,
sobretudo com os “crimes de sangue” ocorridos durante sua chefatura, acusava
os veteranos da guerra de serem os maiores responsáveis pela insegurança na

6
Grifos nossos. Cearense, Fortaleza, 08 ago. 1875, p. 02.
7
Cearense, Fortaleza, 10 out. 1875, p. 03.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 147


província:

Segurança Individual e de Propriedade


O estado da província quanto a segurança individual
não é lisongeiro e dá lugar à serias cogitações. Não se
pode, porém, chama-lo desanimador, porque seriam os
poderes públicos descrer de si mesmos, e ainda resta bem
fundada esperança de se tirar muito proveito da índole
reconhecidamente boa da população. Si é força confessar
que o numero de crimes tem augmentado, como se verá
da confrontação dos seguintes algarismos, não o é menos
que esse augmento guarda manifesta proporção com
crescimento certo da população.
Foram commetidos, a contar de 16 de maio do anno
passado até 31 do mez próximo findo, 343 crimes...
[...]
Vê-se d’ahi, que os crimes de sangue observem a quase
totalidade dos delictos. Isto denuncia as disposições
bellicosas da população ainda não modificada pela
educação e o prudente temor do castigo. Não contribuem
menos os maos hábitos contrahidos na ultima guerra, si
considerarmos, que muitos d’esses crimes foram praticados
por indivíduos que estiveram n’ella, e regressaram à
província sãos ou inválidos.
Confrontado estes algarismos com os do relatório anterior,
vê-se que em decurso de tempo quase igual deste, os
homicídios foram 71, as tentativas d’este crime 12 e os
ferimentos 98, resultando um augmento actualmente de
29 homicídios, 1 tentativa d’este, e 72 ferimentos.
As causas geraes para esse deplorável estado de cousas são
assás conhecidas e não farei mais que reporduzi-las.
O uso freqüente de bebidas alcoólicas; a falta absoluta de
instrução moral até ausência dos primeiros rudimentos
escolares na maioria dos adultos da numerosissima
classe dos desfavorecidos da fortuna; a escarcez da força
pública, que além de ser geralmente de más condições
para os fins policiaes, não chega nem para distribuída
por todas as cidades e villas, quando a devia haver em
todas as localidades, como convém a prevenção e prompta
repressão dos delictos; a pouca ou quase nulla edificação
religiosa no animo dos entes grosseiros do coração cegos
do entendimento, pelo desprestigio dos encarregados de
desenvolver no povo a boa palavra e o bom exemplo o
temor de Deus e amor do próximo finalmente, o asylo certo
que sempre encontra o criminoso entre ricos e potentados
locaes, que não escrupilam animar por este modo a
pratica do crime, com tanto que tirem algum proveito da
148 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.
dependência dos homens perigosos à sociedade [...].8

Embora o chefe de polícia tenha, em seu relatório, se referido aos veteranos da


guerra, de maneira genérica, isto é, não especificando a patente desses militares,
ele fazia alusão aos praças regressos. Essa conclusão veio por meio da comparação
entre esses relatos policiais e as fontes jornalísticas da província.
Em meio a esses acontecimentos, as autoridades cearenses buscaram soluções
imediatas para o problema. Elas sabiam da existência do Asilo dos Inválidos da
Pátria, em Niterói, no Rio de Janeiro, então inaugurado, em agosto de 1868, pelo
governo imperial, cujas funções primordiais eram: receber militares brasileiros
regressos da “guerra contra Paraguai” que tinham adquirido incapacidade(s)
física(s) no conflito e acolher os parentes desses homens.
Segundo Marcelo Augusto Gomes, a presença dos veteranos, principalmente
os inválidos, portando “suas enfermidades nauseantes e potencial criminoso”, na
capital imperial, incomodava as autoridades cariocas, afinal o asilo ficava muito
próximo da cidade do Rio de Janeiro9. Levando em consideração as especificidades
locais, pode-se pensar que as autoridades cearenses compartilhassem de incômodo
similar, sobretudo no que se referia à violência que os veteranos poderiam causar10.
No Ceará, o presidente Francisco de Assis Oliveira Maciel chegou a firmar que
“militares regressados, portando alguma invalidez, pediram para ir ao Asilo dos
Inválidos da Pátria situado na Corte”, por isso , no dia 13 de janeiro de 1873,
essa autoridade despachou, a rogo do soldado João Nepomuceno de Oliveira, o
seguinte requerimento:

Tenho a honra de transmittir a V. Ex.ª incluso o


requerimento em que João Nepomuceno de Oliveira
ex-soldado do 8° batalhão de Infantaria pede para ser
socorrido. Como informação devo scientificar a V. Ex.ª que
o estado de miséria a quê se acha reduzido o supplicante
em conseqüência de moléstia e ferimentos adquiridos na
Campanha do Paraguay dá llhe direito a um lugar no azilo
de Inválidos dessa Côrte, no entanto S. M. Imperador
designará de resolver em sua alta sabedoria como for
servido.
Deos Guarde a V. Ex.ª. Francisco de Assis Oliveira Maciel11

Na verdade, o requerimento mostrava as incapacidades (social, financeira,


8
Grifos nossos. RELATÓRIO do chefe de Polícia ao Presidente Interino do Ceará. Fortaleza:
Typographia, 10 jul. 1874, p. 02. Disponível em: <http://www-apps.crl.edu/brazil/provincial/>.
Acesso em: 17 jan. 2014.
9
GOMES, Marcelo Augusto. A espuma das províncias: um estudo sobre os Inválidos da Pátria e o
Asilo dos Inválidos da Pátria, na Corte (1864-1930). Tese (Doutorado em História). Universidade
de São Paulo. São Paulo, 2006.
10
SOUZA, A chama apagada..., p. 89.
11
APEC/CE. Fundo: Presidência do Ceará ao Ministério da Guerra. Livro n. 150. Requerimento
enviado em 13 jan. 1873.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 149


administrativa) da autoridade cearense em lidar com o problema. Em outros
termos, a província não havia se preparado para receber os veteranos de
guerra.
Mesmo diante desse obstáculo que, vale ressaltar, não era apenas uma realidade
local, o praça cearense João Nepomuceno conseguiu ser asilado. Contudo, o
exame de um ofício despachado pelo Ministério da Guerra à Presidência Cearense
mostrou que havia alguma irregularidade na permanência do referido militar no
asilo:

Remetto a V. Ex.ª o incluso requerimento em que o soldado


do Azilo de Inválidos da Pátria João Nepomuceno de
Oliveira alllegando ser guarda nacional designado dessa
província [do Ceará] pede que essa Presidência mande
passar sua certidão de assentamento, visto ser considerado
recrutado, afim de que V. Ex.ª preste esclarecimentos sobre
o que pede o supplicante, mandando juntar a certidão
requerida para ter o competente destino. Deos guarde a
V. Ex.ª 12

A confusão das informações militares (em qual força serviu e em que condição
aderiu à guerra) fez de João Nepomuceno um suspeito. Desconfiadas, as
autoridades ministeriais começaram a colocar em questão o asilamento do praça
cearense. Com o asilo superlotado de inválidos, quaisquer desencontros de dados
poderiam ser motivos para o deslocamento de contingente13. Sendo assim, o militar
foi interrogado sobre sua condição de alistamento, tendo alegado a qualidade de
“designado”, isto é, chamado pelo Estado para “servir a nação” na guerra.
A categoria de recruta, assuntada pelas autoridades da Corte, mas negada
pelo praça cearense, talvez tenha sido o principal motivo do ofício. Essa condição
poderia complicar a permanência do soldado João Nepomuceno no asilo, uma
vez que aos recrutados, os forçados, quase nada lhes era garantido. Infelizmente,
na documentação ministerial consultada não há mais indícios que pudessem levar
ao desfecho da história desse militar, mas, por meio da trajetória dele, algo ficou
esclarecido: a atuação de políticos e/ ou militares em pedidos de asilamentos de
veteranos inválidos não era incomum e nem se tratava de um ato de caridade.
Ao contrário, foi um recurso usado pelas autoridades para “livrarem” os grandes
centros urbanos da presença indesejada dos ex-combatentes da guerra14.
Em fevereiro de 1874, o presidente do Ceará, Francisco Teixeira de Sá, em oficio
ao ministro da guerra disse que “nessa data mandava dar sob a responsabilidade
do ministério”:

12
Grifos nossos. APEC/CE. Fundo: Ministério da Guerra à Presidência do Ceará [1873]. Livro n. 72.
Requerimento enviado em 24 nov. 1873.
13
GOMES, A espuma das províncias...
14
SOUZA, Maria Regina Santos de. “O fantasma da ‘Guerra do Paraguai’ e as oposições à ‘Lei do
Sorteio Militar’ no Ceará (1874-1875)”. Histariae, Rio Grande, FURG, vol. 5, n. 1, 2014, p. 237-
261.

150 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


[...] transporte para esta Côrte, de conta do Ministério
da Guerra, aos inválidos da pátria, alferes honorário do
exército Joaquim Gomes Coutinho e o ex-cabo Antonio
Raymundo Gomes em vista do estado de penúria em
que, de presente, aqui se achão, tendo por fim rogar a V.
Ex.ª que attendendo as rasões acima expostas, se digne
de aprovar meu acto. Deos Guarde à V. Ex.ª. Francisco
Teixeira de Sá15

A atitude foi reprovada pelas autoridades ministeriais, o que acabou por se


configurar num Aviso à autoridade cearense. Disse o ministro da guerra que “tal
despesa deveria ser a carga da dita presidência”16.
Acompanhando-se as notícias oriundas de jornais de Fortaleza, verificou-se
também que os crimes perpetrados por veteranos sãos recebiam relevância. Nessas
folhas ganharam destaques especiais os “soldados criminosos” do 15º Batalhão de
Infantaria, um batalhão cuja composição majoritária não era por cearenses17.
Homicídios como o praticado por Vicente José Ribeiro, a “fera do 15°”, havia
chamado a atenção da sociedade fortalezense, porque depois “dele ter assassinado
a paraguaia Damiana, casada com outro praça do mesmo batalhão, residente
no lugar Outeiro desta cidade [de Fortaleza], por ter ela se negado aos desejos
libidinosos do delinquente”, este, “na noute em que o marido da vítima estava em
serviço, praticou o homicídio e consta achar-se [atualmente] refugiado na província
da Parayba”. Pelos motivos torpes e pela premeditação, esse crime foi arrolado pelo
o chefe de polícia, Júlio Barbosa de Vasconcelos, entre “os crimes mais importantes
da província”18.
Porém, a maioria dos veteranos da “guerra do Paraguai”, são ou inválido, não
tinha esse potencial criminoso. Ao contrário do que afirmavam as autoridades,
muitos dos praças cearenses regressos desse conflito não eram “homens
corrompidos pela guerra que se tornaram brutos afeitos aos crimes de sangue”.
Vários soldados, cabos, sargentos e muitos oficiais subalternos (como alferes e
tenentes) oriundos, sobretudo, das forças terrestres, procuraram ter uma vida
considerada normal, longe dos crimes19. A busca por essa normalidade pôde ser
vista, por exemplo, em inúmeros requerimentos de pensão, empregos públicos,
terras e gratificações em dinheiro; despachados em nomes desses militares para o
Ministério da Guerra.

15
Grifos nossos. APEC/CE. Fundo: Presidência do Ceará ao Ministério da Guerra. Livro n. 150.
Requerimento enviado em 04 fev. 1874.
16
SOUZA, A chama apagada...
17
SOUZA, Eusébio. História Militar do Ceará. Fortaleza: Editora do Instituto Histórico do Ceará,
1950.
18
RELATÓRIO do Chefe de Polícia da Província, Júlio Barbosa de Vasconcelos. Anexado à Falla do
presidente da província do Ceará, Francisco Faria Lemos, em 1° de julho de 1876. Disponível em:
<http://www.apps.crl.edu/brazil/provincial>. Acesso em: 17 jan. 2014.
19
Capitães, tenentes e alferes eram considerados baixos oficiais ou oficiais subalternos. Cf.:
ALMANAK do Ministério da Guerra (General em Chefe o Sr. Visconde da Gávea). Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1885. Nas documentações, civil e militar, da província do Ceará há também
alguns registros de transgressões e crimes cometidos por “baixos oficiais” regressos da guerra.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 151


As exigências desses militares contavam com um aparato considerado legal, a
saber: o Decreto n. 3.371, dos Voluntários da Pátria, baixado em 07 de janeiro
de 1865, que os respaldava, moral e financeiramente. Este decreto possuía 15
artigos, sendo necessário citar apenas os artigos 2º, 9º e 10º, para se entender as
reivindicações do ex-combatentes:

[...]
Art. 2º. Os voluntarios, que não forem Guardas Nacionaes,
terão, além do soldo que percebem os voluntarios do
Exercito, mais 300 rs. diarios e a gratificação de 300$000
quando derem baixa, e um prazo de terras de 22.500
braças quadradas nas colonias militares ou agricolas.
[...]
Art. 9º. Os voluntarios terão direito aos Empregos Publicos,
de preferencia, em igualdade de habilitações, a quaesquer
outros individuos.
Art. 10. As familias dos voluntarios que fallecerem no
campo de batalha, ou em consequencia de ferimentos
recebidos nella, terão direito á pensão ou meio soldo,
conforme se acha estabelecido para os Officiaes e praças
do Exercito. Os que ficarem inutilisados por ferimentos
recebidos em combate, perceberão, durante sua vida,
soldo dobrado de voluntario [...].20

A maioria dos veteranos cearenses requerentes, são e inválidos, era, de fato, ex-
voluntários da pátria, mas, em meio os requerimentos consultados, existem muitos
recrutas do Exército, da Guarda Nacional e da Polícia que alegaram ser voluntários,
tendo em vista, principalmente, os benefícios acima citados. Atitude perfeitamente
compreensível, uma vez que “a guerra do Paraguai calcinou, devastou e despedaçou
a vida de todos, inclusive a vida daqueles que estiveram ligados indiretamente a
ela, como era o caso dos parentes dos combatentes mortos nesse conflito”21.

O Caminho falho da legalidade: requerimentos


de praças e oficiais cearenses regressos da “guerra do Paraguai”

O caminho da legalidade, embora parecesse seguro, na verdade, foi muito


falho, pois centenas de veteranos cearenses (praças, voluntários e recrutas) que
lutaram na “guerra do Paraguai” morreram após esse conflito – por complicações
físicas adquiridas nos combates – sem nada receberem dos cofres públicos. Entre
centenas de requerimentos pesquisados, destacou-se o do praça veterano Pedro

20
COLEÇÃO das Leis do Império do Brasil de 1865. Tomo XXVIII, Parte II- Leis de 1865. Rio de
Janeiro: Typographia Nacional, 1865, p. 03. Conferir também a URL <http://www.lexml.gov.br/urn/
urn:lex:br:federal:decreto:1865-01-07;337>. Acesso em: 07 set. 2014.
21
ALAMBERT, Francisco. “Civilização e barbárie, História e cultura: representações literárias e
projetos da Guerra do Paraguai”. In: MARQUES, Maria Eduarda Castro Magalhães (org.). Guerra
do Paraguai: 130 anos depois. 2. ed. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995, p. 85-96.

152 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


Rogério, devido ao desgaste do tempo de seus requerimentos e também pelo fato
deste militar, provavelmente, não ser natural do Ceará, podendo ele ter sido mais
uma “vítima” de envios indesejados para uma província distante. Geralmente, as
autoridades da Corte agiam dessa forma para desafogar e livrar a capital carioca
da presença da soldadesca, pois a cidade do Rio de Janeiro era a primeira parada
dos batalhões retornados da guerra.
Em 1866, o soldado Pedro Rogério havia sido mutilado na “guerra do Paraguai”.
Ocorre que, em 1875, nove anos depois de sua mutilação, ele se encontrava no
Ceará, buscando conseguir a “pensão do governo” para sobreviver com alguma
dignamente:

O soldado do exercito Pedro Rogério Moraes adido ao


15° batalhão de infantaria estacionado nesta província,
allega em seo requerimento que acabo de deferir ter
seguido para a campanha do Paraguay, e dos ferimentos
graves recebidos em combate em julho de 1866,
resultando a amputação de sua perna esquerda; ficando
consequentemente impossibilitado de procurar os meios
de subsistência julgado incapaz para todo o serviço do
exercito pela junta militar de saúde da Corte e que foi ele
submettido em fevereiro de 1867 para aqui transportado,
a fim de aguardar decisão do Governo Imperial desde
26 de maio deste ano, sendo certo que até hoje não
foram remunerados seus serviços. Rogo, pois, que a
Vossa Excelência, a visto do que foi exposto, se digne de
interceder no sentido de ser o referido soldado agraciado
com uma pensão, conforme o tem sido muitos outros em
idêntica circunstancia.
Deos Guarde a V. Ex.ª
Heráclito de Alencastro Pereira da Graça.22

Cinco anos após esse requerimento, o soldado Pedro Rogério foi citado “num
Aviso do Ministério da Guerra como um dos militares reformados da infantaria do
15° batalhão, tendo suas provisões enviadas à província cearense”. A Reforma era
uma espécie de “aposentadoria”, mas outro ofício daquele ministério colocava em
dúvida a informação, uma vez que o benefício “[...] da pensão outrora requerida

22
Grifos nossos. APEC/CE. Fundo: Presidência do Ceará ao Ministério da Guerra. Livro n. 150.
Requerimento enviado em 18 abr. 1875. O 15º batalhão ao qual fora enviado o referido praça
estava estacionado no Ceará, sendo sua composição majoritária formada por militares de outras
províncias, como as do Amazonas e Pará. Segundo o relatório do presidente Francisco D’Assis
Oliveira Maciel, esse batalhão “cujo estado completo era de 683 praças, tendo em seu estado
efectivo 525, incluindo 120 praças e 2 oficiais do 14° batalhão que lhe foram adidas, por ordens
do ministro da guerra”, havia sido enviado da Corte à Fortaleza para substituir o 14º batalhão,
este “filho da Província”. Cf.: FALLA com que o Ex.mo Sr. Dr. Francisco D’Assis Oliveira Maciel
abriu a 2° Sessão da 21° Legislativa da Assembleia Provincial do Ceará, no dia 7 de julho de 1873.
Fortaleza: Typograpfia: Progresso, 1873, p. 03. Disponível em: <http://www.apps.crl.edu/brazil/
provincial/>. Acesso em: 17 jan. 2014.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 153


a rogo do referido praça que, até ali não recebeu qualquer auxílio financeiro
do governo [...] pela sua participação na guerra do Paraguai”, não tinha sido
efetivado. Levando em consideração o ano de 1880, data do último requerimento
encontrado, o soldado que, há quase quinze anos “[fora] mutilado em combate
no Paraguai, completamente incapacitado de obter meios de sobrevivência” nada
tinha recebido dos cofres públicos23.
As autoridades imperiais também permaneceram “surdas” perante os apelos
financeiros de oficiais subalternos veteranos “da campanha do Paraguai”. O alferes
voluntário João Ribeiro de Carvalho e o capitão Antonio Maria de Castro (ambos
invalidados no conflito), tiveram de “lutar” com o Estado Imperial para receberem
a assistência social prometida durante o conflito. Nessa luta, a dignidade moral
desses militares também estava em jogo. Vejamos.
Em 8 de março de 1871, um requerimento “a rogo” do alferes Carvalho foi
expedido pela Presidência do Ceará ao Ministério da Guerra:

Levo ao conhecimento de V. Ex.ª que tendo fallecido a 6


do corrente o Tenente reformado João da Silva Pedreira
encarregado do depósito de artigos bellicos nesta capital,
nomeei para substituí-lo o Alferes reformado João Ribeiro
de Carvalho que por Aviso de 3 de janeiro de 1871 V. Ex.ª
mandará ficar a minha disposição a fim de ser empregado
convenientemente. O Alferes Carvalho, natural desta
província sérvio 16 annos no exército, tomando parte na
Campanha do Paraguay até que no ataque de Curupaty
a 22 de setembro de 1866 foi ferido e teve de soffrer a
amputação de um pé pelo que foi reformado. Mereceu
ser condecorado nessa Campanha e segundo informações
de pessoas fidedignas que sou sempre a nomeada de
militares inteligentes e briosos. Deus guarde a V. Ex.ª José
Fernandes da Costa Pereira Junior.24

De acordo com o jornal O Cearense, a nomeação do alferes Carvalho foi


rapidamente acatada pelas autoridades ministeriais, sendo que “em fevereiro de
1871, ele foi adido (agregado) ao depósito de praças para ser convenientemente
empregado”. Mas, em outubro do mesmo ano, essa repartição foi extinta na
província, tendo o militar perdido o cargo. Como ficou a situação do referido
alferes?25
Considerando a retórica e a justificativa do requerimento é inevitável o
questionamento: por que um militar “reformado de guerra”, que teoricamente
recebia mensalmente soldo, precisava desenvolver atividades extras? A análise de
algumas pensões concedidas aos alferes resulta em respostas plausíveis:

23
APEC/CE. Fundo: Ministério da Guerra à Presidência do Ceará. Livro n. 75 (1878-1880).
Requerimento enviado em 04 out. 1880.
24
APEC/CE. Fundo: Presidência do Ceará ao Ministério da Guerra. Livro n. 150. Requerimento
enviado em 08 mar. 1871.
25
O Cearense, Fortaleza, 20 out. 1871, p. 01.

154 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


João Soares Baptista Machado, alferes do 3° Batalhão
de Infantaria do Exército percebia, sem prejuízo do meio
soldo, 18$00 réis mensais de pensão, pelos serviços que
prestou na guerra.26
O alferes cearense adido ao 14° batalhão de infantaria,
Procópio José Moreira, pedia a consignação mensal de
36$00 para alimentar sua filha Casemira Alves Moreira.27

Como se vê, os valores podiam variar, mas, no geral; concediam-se parcas


pensões. Para um oficial que possuía extensa família, como era o caso do alferes
João Carvalho, a situação de sobrevivência era complicada, conforme ficou
evidenciado em de 1879, quando:

[...] viúva do alferes Carvalho, d. Maria Amália Riberio


de Carvalho prostrava-se perante a Majestade Imperial
pedindo que receba em seu favor e de seus cinco filhinhos
a pensão de 18:000rs que seu finado marido tinha.
A suplicante imperial Senhor reduzida somente a 18:000rs
do meio soldo, muito carece dessa pensão para minorar a
cruel situação em que se vê com seus filhos dos quaes o
maior tem dez anos de idade.
A morte do marido da suplicante foi consequência de
moléstias adquiridas na guerra do Paraguai, donde voltou
sem a perna esquerda e com a saúde completamente
estragada.
Dos papéis que servirão habilitar a suplicante, a percepção
do meio soldo, poderão dar alguns esclarecimentos que
justifique a pretensão da suplicante.28

Tudo indica que, uma vez extinto o depósito, o oficial reformado que, certamente
recebia uma pequena, não conseguiu outra ocupação digna dentro dos trâmites
legais, sendo a penúria de sua família a constatação disso.
O drama vivido pelo voluntário “Antonio Maria de Castro, capitão da polícia
embarcado em 1865, voluntariamente, para o teatro da guerra junto com as tropas
de linha cearenses”, foi bastante similar ao do alferes Carvalho. O capitão buscava
a “Reforma no exército pela condição de voluntário que teve e que se julgava com
direito”; mas, deparou-se com várias dificuldades, a começar pelas desencontradas

26
A Constituição, Fortaleza, 10 out. 1870, p. 02.
27
Arquivo do Exército – AHEx/RJ. Fundo Ministério da Guerra: Secretaria do Estado dos Negócios
da Guerra à Presidência do Ceará (1863-1906). Livro n. 20. Ofício enviado a Thesouraria da
província do Ceará em 24 abr. 1868. Vale ressaltar que os preços altos dos gêneros básicos da
alimentação. Se em 1866, durante a guerra, a farinha de mandioca custava cerca de 60 a 80 réis,
depois do conflito, diante de outra crise econômica vivenciada pelo Império, não temos razões para
crer que os preços dos alimentos baixaram.
28
Arquivo Nacional – AN/RJ. Fundo: Ministério da Guerra. IG1. Requerimento enviado em 09 set.
1879.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 155


informações acerca de sua invalidez29.
Na imprensa local os debates sobre as incapacidades físicas do capitão veterano
se dividiam. Para os periódicos liberais, como era o caso do Jornal da Fortaleza,
não existiam dúvidas sobre a forma pela qual Antônio Maria tornou-se um inválido:
“ao receber ferimentos gloriosos na guerra, mutilou-se”. Suas “glórias de guerra” foram
lembradas no momento de seu falecimento, em 1870:

FALLECIMENTO. Faleceu hontem, após graves e antigos


padecimentos, o capitão reformado da polícia desta
província Antonio Maria de Castro.
Tendo seguido em 1865 com seu corpo para a Campanha
do Paraguai, tomou parte em vários combates, nos quais
recebeu gloriosos ferimentos.
Agravando-se de seus padecimentos, recolheu-se ao
império, sendo lhe conferida as honras de capitão do
exercito. Era ainda condecorado com as medalhas da
campanha e com hábito da Rosa. Uma companhia de
guardas nacionais à porta, fez lhes as honras fúnebres a
que tinha direito pela sua patente.30

Porém, alguns relatos de outros jornais chocavam-se com os escritos das


autoridades civis e militares da província. A dúvida sobre qual tipo de invalidez foi
acometido o referido militar estampou-se em alguns periódicos, o que, certamente,
causou problemas para a sua família no que se referia ao recebimento da pensão.
O conservador jornal do Ceará, por exemplo, anunciou, em 1868, que “o brioso
capitão Antônio Maria de Castro, estava incapacitado por ferimentos recebidos
na guerra”, afirmando ter confirmado a informação junto à documentação do
Ministério da Guerra.
Já nos manuscritos elaborados pela Thesouraria da Fazenda da Província
do Ceará, o “[...] cap. Antonio Maria apareceu como invalidado por doença
adquirida nos campos paraguaios”. Esta informação está contida em seu
primeiro requerimento, então datado de 1867. Na ocasião, ele exigiu a “reforma
(aposentadoria) à Thesouraria Provincial por ter voltado com moléstia incurável
contraída na guerra31. Mas, até o ano de 1870, nenhuma resposta foi dada ao
militar pela referida Tesouraria, ou seja, até a data de sua morte, ele não havia sido
ressarcido como mandavam às leis e os decretos militares.
Exemplos como esses citados acima abundam na documentação militar do
Ceará, sobretudo após a “guerra do Paraguai”. Sendo assim, o que se pode concluir
é que a pobreza alegada não era apenas hipérbole de pessoas que foram atingidas,
direta ou indiretamente, pelo conflito. Havia evocação de uma realidade cotidiana.
Falava-se que “no Império, não só os orphãos como os próprios voluntários da
pátria, os heroes da guerra de honra, vivem por aí esmolando, abandonados a

29
APEC/CE. Fundo: Thesouraria da Fazenda da Província do Ceará (1835-1889). Caixa n. 9 (1868).
Requerimento enviado à Thesouraria da Província do Ceará em 21 ago. 1868.
30
Jornal da Fortaleza, Fortaleza, 08 fev. 1870, p. 01 (Gazetilha).
31
APEC/CE. Fundo: Thesouraria da Fazenda da Província do Ceará (1835-1889). Caixa n. 9 (1867).
Requerimento enviado à Thesouraria da Província do Ceará em 19 fev. 1867.

156 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


fome e a miséria”32.
A luta pela pensão de guerra, nos idos e 1870, tornou-se constante na imprensa
de Fortaleza. Listas inteiras de militares solicitantes eram divulgadas, com ou sem
intenção de criticar o governo imperial. Somente na edição do dia 14 de julho de
1870 do periódico conservador Pedro II, na parte intitulada Requerimentos, dez
petições de pensão foram encontradas, entre as quais destacamos apenas as dos
praças reformados:

Antonio Ferreira Duarte, soldado reformado do 26° corpo


de voluntários da pátria, requerendo para lhe solicitar a
sua carta de pensão.
Raymundo Alves Martins, soldado reformado do 36ª
batalhão de infantaria. Idem
Luiz de França Bispo, anspeçada reformado do 2° batalhão
de infantaria. Idem
Manoel Pereira de Carvalho, soldado reformado do 14ª
batalhão de infantaria. Idem
Francisco Rodrigues da Cunha, soldado reformado do 9ª
batalhão de infantaria. Idem
Jose Ferreira, anspeçada reformado do 2° batalhão de
infantaria. Idem
[...]33

Segundo o Pedro II, todos os praças acima apontados foram “invalidados no


Paraguai”, advindo daí a reforma e o pedido de pensão. Um dos praças requerentes,
“Luís de França Bispo, cuja invalidez adquiriu em 1866”, foi citado, dias depois,
como autor de uma crime de morte na capital cearense pelo mesmo jornal, fato que
, certamente, ajudou no indeferimento de seu pedido. Porém, o que se analisa é o
fato do soldado inválido ter buscado seus direitos na lei, por meio de uma petição34.
Outros pontos, no que se referem às pensões de guerra, também são relevantes:
se questões burocráticas, administrativas e políticas impediram que praças e oficiais
invalidados na guerra do Paraguai obtivessem os benefícios financeiros, então
garantidos por decretos e leis, pode-se imaginar a situação difícil ao qual ficaram
os militares sem patente que regressaram incólumes, fisicamente, do conflito.
Muitos veteranos sãos pediram, além da pensão, outros benefícios financeiros
prescritos no decreto dos Voluntários da pátria, a exemplo dos “300 réis diários
(prometidos no engajamento), a gratificação de 300$00 e os prazos de terras de
22.500 braças nas colônias militares ou agrícolas, no momento de suas baixas”,
direitos estabelecidos no Art. 2° do referido decreto, como vimos.
O que talvez esses voluntários (sãos) não soubessem era que o benefício dos
“300 réis diários”, por exemplo, havia sido interrompido para eles, conforme uma
circular expedida pelo Ministério da Guerra, em 1867:

32
O Cearense, Fortaleza, 02 ago. 1875, p. 02 (Transcrição do Opinião Liberal Aos Voluntários da
pátria e às famílias dos que morreram na guerra).
33
Jornal Pedro II, Fortaleza, 14 jul. 1870, p. 01 (Parte Official – Requerimentos).
34
SOUZA, A chama apagada...

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 157


Tenho a honra de acuzar o recebimento do aviso circular
de V. Ex.ª de 9 do corrente mez, e fico inteirado de
gratificação de 300$reis diários concedida aos voluntários
da pátria sendo propriamente de campanha não deve
continuar à ser abonada aos mesmos, desde que regressão
ao império. Deos guarde a V. Ex.ª.35

Alguns meses depois da guerra, “praças como Joaquim Guerra Passos, Luiz
Antonio Cabral e o músico da 3º classe Conrado Pereira da Silva”, exigiram “as
terras prometidas pelo governo por terem pertencido ao corpo de voluntários
da província do Ceará”. Todos obtiveram a mesma resposta do presidente da
província: “informe ao inspector da Thesouraria”. Ou seja, naquele momento não
foram ouvidos36.
Pode-se inferir, no entanto, que o sentimento de injustiça levou vários veteranos
à insistência nos pedidos. Além dos voluntários da pátria, outros militares incólumes
sentiram-se igualmente injustiçados. Praças que foram recrutados para a guerra,
por exemplo, não tinham direito à pensão, pois eram de uma “categoria” que,
devido a sua condição de engajamento forçada nas forças armadas, nada tinham a
receber dos cofres públicos. Mas, mesmo assim, muitos recrutas requereram alguns
benefícios financeiros.
Antonio Pereira da Silva, “que dizia ter se alistado voluntariamente no conflito
do Paraguai requerendo o prêmio de voluntário, não teve seu pedido enviado
às autoridades competentes por ordem do Barão de Ibiapaba, então presidente
interino da província do Ceará”. Segundo esta autoridade, aquele “individuo foi à
guerra como recruta, por isso não se acha no direito de receber benesse alguma”37.
Utilizando-se da mesma estratégia, o soldado de infantaria João Marcolino
Barbosa requereu os direitos de voluntário da pátria, mas seu pedido não convenceu
as autoridades militares, porque “desconfiou-se que ele era um recruta, portanto,
um forçado”. Por essa razão, o Ministério da Guerra exigiu da presidência cearense
explicações sobre a forma de ingresso desse ex-combatente:

Para que se possa verificar a qualidade de praça do soldado


do 9° batalhão de infantaria João Marcolino Barbosa, que se
considera com direito aos favores concedidos aos Voluntários
da Pátria, remmettendo a V. Ex.ª, por copia, a nota das
declarações por elle feitas, afim de que V. Ex.ª informe si
taes allegaçoes são verdadeiras, e si elle apresentou-se ou
não voluntariamente para o serviço da guerra.
Deos Guarde a V. Ex.ª.38

Nesse caso, a desconfiança não foi confirmada e nem negada, mas o pedido foi
indeferido.

35
APEC/CE. Fundo: Presidência do Ceará ao Ministério da Guerra. Livro n. 149. 28 mai. 1867.
36
Jornal Pedro II, Fortaleza, 09 out. 1870, p. 02 (Parte Official - Requerimentos)
37
APEC/CE. Fundo: Presidência do Ceará ao Ministério da Guerra. Livro n. 150. 07 out. 1874.
38
APEC/CE. Fundo: Ministério da Guerra à Presidência do Ceará. Livro n. 73. 04 nov. 1874.

158 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


A pesquisa realizada nos requerimentos da província cearense mostrou que
muitos dos praças regressos não foram beneficiados de fato pelas leis militares
e pelo decreto dos voluntários da pátria. Para a maioria desses ex-combatentes,
a pensão era a única garantia de sobrevivência. Constatou-se também que, no
geral, o pagamento de pensões aos “veteranos do Paraguai” foi o benefício mais
negligenciado pelo Estado Imperial.

Os Dramas vividos pelos “veteranos do Paraguai” chegam à Era Vargas

Em plena segunda Guerra Mundial (1939-1945), no governo de Getúlio Vargas,


“João Paulo da Silva, cujo nome de guerra era Muruoca, cem anos de idade, filho
da cidade Tauá, região dos Inhamuns cearenses, ex-combatente dos conflitos do
Paraguai, de Canudos e do Acre”, a exemplo dos veteranos do século XIX, vivia
em situação semelhante de pobreza. O depoimento dele também chamou atenção
da imprensa de Fortaleza pelo desgaste do tempo e pela sua participação em várias
guerras.39
Na entrevista dada à Gazeta de Notícias, o veterano de guerras João Paulo
ressaltou com mais veemência a sua participação no “conflito do Paraguai”, não
citando a condição de seu alistamento, se foi voluntário ou não. Certamente, o mais
importante para ele naquele momento era falar da intensidade dos acontecimentos
no front, a forma como lutou e sofreu, o que respaldava sua condição de militar
“servidor do governo”.
Setenta e cinco anos após o “conflito do Paraguai”, João Paulo lembrava com
minúcias “[...] dos sofrimentos da viagem e dos dias amargos nos pântanos do
Paraguai, além de detalhar batalhas como as de Humaitá e Itororó”. Nesta peleja,
“[...] ele havia quebrado a parte superior do esterno, além ter sido atingido na
cabeça, consequência de uma arremetida do inimigo paraguaio, o que o levou a
passar mais de um mês internado no hospital de campanha”- escreveu o repórter40.

39
Gazeta de Notícias, Fortaleza, 03 set. 1940, p. 02.
40
Gazeta de Notícias, Fortaleza, 03 set. 1940, p. 03.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 159


Fig. 1 – João Paulo (à esquerda), veterano cearense da Guerra do Paraguai41.

Segundo o repórter, João Paulo fez questão de mostrar a cicatriz na cabeça


para provar, de fato, sua ida ao conflito, intuindo o ganho. Tão vívida quanto sua
“marca de guerra”, era também sua pobreza. No final da entrevista, “Muruoca,
para terminar a sua longa descrição, disse: - Estou à disposição do governo. Só
tenho pena em não ser mais moço. Nasci pra brigar, pra mandar bala a tôrto e a
direito”. Depois disso, afirma o jornal:

Uma gostosa gargalhada soltou João Paulo quando acabou


de afirmar isso, pedindo, após, por nosso intermédio,
um auxilio do governo, das autoridades militares, pois
necessita de um casebre para morar e de algum sustento
para o resto de sua vida.
É justo o apelo do bravo cearense, que honrando a tradição
do seu Estado, tomou parte em três campanhas a serviço
da pátria.42

41
Gazeta de Notícias, Fortaleza, 03 set. 1940, p. 01.
42
Grifos nossos. Gazeta de Notícias, Fortaleza, 03 set. 1940, p. 02-03.

160 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


O drama dos veteranos do Paraguai não havia acabado, mesmo na República
brasileira cujo presidente, Getúlio Vargas, era intitulado de “o pai dos pobres” pela
maioria da população.

Considerações Finais

No Ceará, a pesquisa realizada nos requerimentos de praças regressos do


Paraguai, sobretudo no período do pós-guerra, mostra que o pagamento de
pensão foi o benefício mais negligenciado pelas autoridades imperiais. Portanto,
não é exagero dizer que o decreto 3.371, por exemplo, tornou-se “letra morta” no
Império, uma vez que o governo não cumpriu, efetivamente, as promessas que
fez aos voluntários da pátria no momento da partida ao front no Paraguai. Sendo
assim, não foi surpresa o tratamento desprezível dado aos militares recrutas (os
forçados) por parte daquelas autoridades.
Por que tanto desprezo e descaso com homens que tiveram suas vidas
sacrificadas pelo Brasil? A resposta é complexa, mas as autoridades ministeriais
da época afirmavam (e supervalorizavam) a crise econômica, então advinda dos
custos financeiros do conflito. Tal crise teria ocasionado o esvaziamento dos cofres
públicos do Império levando-o quase ao colapso total.
Segundo o historiador Francisco Doratioto, os custos com a “guerra do Paraguai”
causaram déficits que persistiram até 1889, pois os gastos empreendidos pelo
governo brasileiro durante esse conflito chegaram a atingir 614 mil contos de réis,
um número onze vezes maior que o valor orçamental em 186443. Rui Granziera
também confirmou a crise por que passou a nação, ressaltando “o extraordinário
aumento da dívida pública interna representada pelas apólices emitidas para o
financiamento da guerra”44. Todavia, nenhum dos autores fez ligação direta entre a
situação financeira imperial e o não ressarcimento dos militares regressos.
O momento deficitário por que passou o Brasil, durante e depois do “conflito
do Paraguai”, não pode ser negado. Contudo, a crise econômica não justificaria
tamanho descaso e o desprezo das autoridades governamentais para com os
veteranos de guerra, pois nos idos de 1870, o governo imperial continuou
arregimentando tropas nacionais direcionando-as a Assunção, a capital paraguaia,
alegando que, na condição de vencedor, o Brasil deveria primar pela ordem na
“anárquica república do Paraguai”. Em outras palavras: os gastos continuaram
com envio de militares45.
A conclusão: o drama social vivido pelos veteranos do Paraguai, principalmente
no pós-guerra, não foi um problema de “prioridade pública” do Império, tampouco
da República.


43
DORATIOTO, Francisco Fernando M. Maldita Guerra: uma nova história da guerra do Paraguai.
São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 11.
44
GRANZIERA, Rui. Guerra do Paraguai e o capitalismo no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1979, p. 102.
45
SOUZA, “O fantasma da ‘Guerra do Paraguai’...”.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 161


RESUMO ABSTRACT
O que aconteceu com os ex-combatentes do What happened to the ex-soldiers after their
“conflito do Paraguai” no pós-guerra? Esses return from the Paraguayan war? Have they
militares foram assistidos, em termos sociais, been socially assisted by the government? How
pelo governo? Como a sociedade passou a ver society came to see these “nation’s heroes”?
esses “heróis da nação”? Estas são as principais These are the questions addressed in this paper.
questões que serão tratadas neste texto. Em It will look into the life histories of some war
específico, este se debruçará sobre a trajetória veterans from Ceará who, during the Empire and
de alguns veteranos cearenses do Paraguai que, the Republic fought for their rights, pensions and
no Império e também na República, lutaram, lands. Things promised by governments for their
sobretudo pelos direitos de guerra, como front services “to the Brazilian nation”.
pensões, meio soldo e terras, então prometidos
Keywords: Paraguayan War; Veterans; Social
pelos serviços prestados à “nação brasileira” no
Rights.
front.
Palavras Chave: Guerra do Paraguai;
Veteranos; Direitos Sociais.

Artigo recebido em 15 abr. 2015.


Aprovado em 23 nov. 2015.

162 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


SERTÃO PROLETÁRIO: POBREZA, PATERNALISMO E
TRABALHO NO CEARÁ OITOCENTISTA1

Tyrone Apollo Pontes Candido2

Honorato Pereira dos Santos e Luís Manuel da Silva eram lavradores


reconhecidamente miseráveis – “paupérrimos”, segundo um processo de 1879
pertencente à antiga comarca de Baturité. Em algum momento do ano precedente,
durante uma grande seca, chegaram com suas famílias às terras do capitão João
Nunes de Albuquerque, no alto da serra, a procura de recursos para a sobrevivência.
Com a autorização do proprietário, montaram ranchos em um terreno no sítio
Monte Pilar e ali com muito trabalho cultivaram “quatro mil e tantas” raízes de
mandioca. Como retirantes, podiam se sentir afortunados por terem podido contar
com a “benevolência” de uma pessoa influente e dona de terras tão férteis. Talvez
mesmo alimentassem a esperança de ali continuar a viver após a seca como novos
moradores do capitão Albuquerque3.
Mas a sorte daqueles retirantes mudou no dia 21 de agosto de 1879. Por volta
das onze horas da manhã, quando trabalhavam nos roçados, “ali apareceram
armados de espingarda, clavinote, espada e diversas armas” cerca de quarenta
homens que arrancaram todas as mandiocas e atearam fogo nas choupanas,
queimando “nelas todos os móveis e roupas que dentro havia”. Os agricultores
nada puderam fazer, nem sequer chamar por socorro, pois os agressores “puseram
piquetes nos caminhos”. Não se tratava de um assalto. Afinal, os homens de lá
nada levaram. O motivo por trás daquele crime era mesmo vingança.
Enquanto transcorriam os fatos, os agressores declararam estarem agindo a
mando do tenente Manuel José de Oliveira Figueiredo. De fato, foram reconhecidos
os moradores Joaquim de tal e Bernardo de tal – “conhecidos como Belo e Manuel
de tal” –, ambos trabalhadores das terras do tenente Figueiredo.
Apesar de quase nada possuírem, os prejuízos para Honorato e Luís Manuel
foram enormes na proporção das suas condições de vida. Havia entre as mandiocas
agora estragadas uma parte “em estado de fazer farinha”, o que, parece, seria o
principal meio para a sobrevivência de suas famílias enquanto a seca perdurasse.
Foi na esperança talvez de serem ressarcidos por seus prejuízos que os retirantes
deram entrada com suas queixas junto à comarca de Baturité.
Todas as testemunhas ouvidas – moradores de sítios vizinhos – foram unânimes
em apontar como motivo daquilo tudo o fato de dias antes o próprio capitão João
Nunes de Albuquerque ter enviado moradores seus até um roçado mandado
fazer pelo tenente Figueiredo na intenção de incendiar a plantação. As terras do
1
A pesquisa que resultou neste artigo contou com bolsa da Fundação Cearense de Apoio ao
Desenvolvimento Científico e Tecnológico – FUNCAP.
2
Doutor em História Social pela Universidade Federal do Ceará. Professor do Curso de História da
Universidade Estadual do Ceará na Faculdade de Educação, Ciências e Letras do Sertão Central –
FECLESC, em Quixadá. E-Mail: <tyronecandido@gmail.com>.
3
Processo criminal n. 44, pacote 3, Comarca de Baturité, 29 set. 1879, Arquivo Público do Estado
do Ceará (APEC). Todas as informações contidas nos próximos parágrafos são referentes a esse
processo.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 163


sítio Monte Pilar faziam divisa com as do sítio Macaco, pertencente ao referido
tenente. Albuquerque e Figueiredo travavam assim uma violenta guerra particular
pelos limites de suas terras, mas no meio do fogo cruzado estava a plantação de
mandioca dos retirantes...
O destino das famílias de Honorato e Luís Manuel encontrava-se na dependência
dos jogos de poder ligando aqueles dois proprietários. Eram eles pessoas poderosas,
destacados senhores de terras e de homens. Sendo “capitão” e “tenente”, decerto
eram oficiais da Guarda Nacional, possuindo títulos que lhes propiciavam afluência
sobre as pessoas comuns da região. Podiam se valer da autoridade para designar
homens para o serviço militar, decidindo sobre a sorte das famílias sertanejas e
exercendo, com isso, um forte controle social.
Quanto aos retirantes Honorato e Luís Manuel, viram suas plantações serem
destruídas em razão de uma luta que (ao menos inicialmente) não lhes dizia
respeito. Pode ser, porém, que o próprio capitão Albuquerque tenha convencido
os lavradores a entrarem na justiça contra o tenente Figueiredo. Quem sabe?
De qualquer modo, aquela parecia ser uma das poucas chances que restaram
aos retirantes em obterem alguma compensação pelos estragos sofridos. Mas a
conclusão do processo não lhes seria favorável. O promotor público concluiu que
não havia “base no presente inquérito para uma ação criminal”: sendo um conflito
gerado por questão de limites de terras, acreditou que seria mais bem caracterizado
num processo cível – o que confirma inclusive que, para a autoridade judicial,
havia maior relevância nos interesses dos donos das terras do que na violência
sofrida pelos “paupérrimos” lavradores.
Aos retirantes restaria o desafio de enfrentar os últimos meses de estiagem sem
terem conseguido se fixar em um pedaço de terra, algo que parece ter sido um
objetivo compartilhado por muitos sertanejos durante aqueles anos.
O caso envolvendo os retirantes Honorato e Luís Manuel flagra episódios
muitas vezes repetidos no âmbito do universo da pobreza do Ceará oitocentista. O
processo pertencente à comarca de Baturité – em meio a depoimentos de diversas
testemunhas e implicados – permite observar certas intenções de sertanejos pobres
que procuravam no amparo da gente influente e poderosa algum meio seguro
para fixarem-se a um pedaço de terra durante tempos de crise. Constitui-se, dessa
maneira, em fonte adequada ao estudo dos laços paternalistas que permeavam
as relações de trabalho no agro cearense. Ali estão presentes falas e gestos de
trabalhadores do sertão que confirmam a presença dos laços de proteção e
deferência que caracterizam as redes de obrigações recíprocas entre patrões e
empregados na ordem paternalista. A Honorato e Luís Manuel foram concedidas
autorizações para plantar seus roçados, e isso implicava em certas retribuições por
parte dos retirantes para com o capitão Albuquerque que, possivelmente, utilizava
o trabalho daqueles agricultores como forma de fazer avançar os limites de sua
propriedade para cima das terras do tenente Figueiredo. Também se encontra
registrado no processo a ação de moradores agindo como braço armado particular
dos donos das terras. São obrigações que se convencionava serem inerentes aos
serviços dos trabalhadores rurais que, em troca, recebiam a assistência e a proteção
dos proprietários, além do tão almejado direito de cultivar as terras.
Mas, ao mesmo tempo em que confirma a presença dos fortes laços paternalistas
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presentes no tecido social sertanejo, o caso envolvendo as duas famílias de retirantes
também fala sobre um contexto em que uma crescente precarização das condições
de vida do povo pobre levava ao limite as possibilidades dessa proteção paternalista
em momentos de crise. Honorato e Luís Manuel inseriram-se numa corrente de
relações em que todos procuravam estabilidade, mas, sendo retirantes, há apenas
pouco tempo chegados às terras do capitão João Nunes de Albuquerque, foram
integrados à rede de dependências constituída no sítio Monte Pilar ocupando uma
posição das mais frágeis. A condição de miséria dos agricultores talvez tenha feito
com que aceitassem o risco de investirem seu trabalho num serviço de retorno
incerto. Talvez tivessem julgado que o risco ainda assim valesse a pena, pois a
alternativa da emigração implicaria em perigos ainda maiores.
Nesse cenário é possível se perceber o quão importante era para os pobres
a inserção a uma rede paternalista de proteção, ainda que numa posição de
dependência, pois às vezes uma ordem estruturalmente injusta era tida como menos
desvantajosa que a ausência de qualquer ordem4. Mas num momento de precarização
intensificada – em que a seca era tão somente o ponto mais alto a que chegavam os
problemas dos sertanejos do semiárido – a ordem tradicional podia não se mostrar
sequer minimamente segura aos pobres. Um sintoma de esgotamento do recurso
da proteção paternalista é o fato de Honorato e Luís Manuel terem procurado na
justiça oficial – e não mais na autoridade pessoal do fazendeiro rico – uma maneira
de alcançar uma compensação a que julgavam ter direito.
Essa processual corrosão da eficácia da proteção paternalista dos proprietários
rurais dos sertões cearenses fez-se sentir mais evidentemente nos tempos das
secas durante o último quartel do século XIX. Até esta época, diversos períodos
de estiagem ocorreram – alguns particularmente intensos em termos de escassez
de chuvas – sem que, no entanto, assumissem dimensões de calamidades sociais,
como nas secas de 1877-1879, 1888-1889, 1900 e 1915. Nos anos secos anteriores
a esse período, as migrações – seguidas de grandes concentrações em cidades
litorâneas, altos índices de mortalidade e a exigência de providências por parte
do Estado para amparar a população pobre – eram um tanto quanto episódicas,
nada comparáveis aos efeitos impactantes que as massas de retirantes passariam
a exercer. Em parte, obviamente esta mudança decorrera do próprio crescimento
da população rural, mas sem dúvida as principais causas desse fenômeno estão
atreladas às transformações das relações sociais sertanejas em consequência do
avanço do capitalismo e uma correspondente proletarização das populações rurais.
Segundo Frederico de Castro Neves, a subordinação da economia de subsistência
à agricultura comercial em ascensão nessa época resultava no comprometimento
da reserva alimentar dos camponeses, o que “significava a impossibilidade de
‘atravessar’ a seca em condições mínimas de ‘segurança alimentar’, em que a
proteção oferecida pelo proprietário torna-se insuficiente e as famílias tornam-se,
assim, ‘retirantes’ à procura de trabalho e comida”5.
Através do processo movido pelos agricultores Honorato e Luís Manuel, tomamos
4
GENOVESE, Eugene D. Roll, Jordan, Roll: the world the slaves made. Nova York: Vintage Books,
1976, p. 125.
5
NEVES, Frederico de Castro. A multidão e a história: saques e outras ações de massa no Ceará. Rio
de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 47.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 165


conhecimento de uma experiência de um grupo de sertanejos na iminência de
atravessar a fronteira social da proletarização. Por meios violentos, o incêndio aos
ranchos onde habitavam e as macaxeiras arrancadas poriam fim ao plano daqueles
retirantes em continuarem a procurar na agricultura o seu meio de vida, lançando-
os nas estradas novamente, desde onde o futuro se anunciava mais incerto e
precário. Mesmo que não seja mais possível apurar o destino daquele grupo de
agricultores, é possível afirmar que as experiências das famílias de Honorato e Luís
Manuel assemelhavam-se às de muitos milhares de outros sertanejos que naqueles
tempos tornavam-se proletários das secas.
O império da agricultura comercial
Diferentemente do que predominava na Zona da Mata pernambucana, onde
a produção açucareira dependia fortemente do escravo africano, nos sertões
cearenses prevalecia o trabalhador livre pobre, atuando nos diferentes ramos da
economia. Para sobreviver, esse trabalhador deveria estabelecer-se sob alguma
dentre as várias modalidades de prestação de serviços rurais que caracterizavam os
sertões desde os estabelecimentos das primeiras fazendas de criação de gado nos
primórdios da colonização. Mesmo que a ausência de estudos embasados impeça
qualquer generalização conclusiva, é possível se dizer que só uma pequena minoria
dos pobres do sertão tinha a posse absoluta das terras de onde eram retirados os
meios da subsistência. A maioria estava fadada a submeter-se a alguma espécie de
“contrato” junto a um proprietário para manter-se a si e a sua família. Em torno das
fazendas de criação principalmente empregavam-se as famílias pobres sertanejas,
numa complexa conjunção de esforços.
O vaqueiro era o elemento mais evidente dessa unidade produtiva. Homem
habilitado no trato dos animais, possuía certa projeção social e muitas vezes, na
ausência dos patrões, passava a dar as ordens na fazenda. Sob sua responsabilidade
estava a conservação do gado, criado solto nos vastos campos num sistema
extensivo. Em tempos de chuva (de dezembro a abril), coordenava a ordenha e
curava os animais de doenças. Nos outros meses, quando rios e aguadas secavam,
retirava o gado para regiões úmidas como as serras ou os campos do Piauí. Alguns
vaqueiros eram escravos qualificados, “de confiança”. Em geral, trabalhavam
sob o regime de “quarteação”, quando uma a cada quatro cabeças de gado era-
lhes reservada como forma de pagamento ao final do ciclo de criação. Quando
o proprietário era “mais liberal”, disse Manuel Correia de Andrade, permitia que
os animais dos vaqueiros fossem “criados ao lado dos seus, como animais ‘da
fazenda’”6.
Além dos vaqueiros, havia nas fazendas outros empregados para cuidarem das
tarefas auxiliares, como carreiros ou tangedores de gado. Diferentemente daqueles,
6
“Outros, porém, achando que os animais crescem mais ‘com a vista do dono’ e que ele, ao
contrário do vaqueiro, está ausente a maior parte do tempo, temendo que nas ocasiões da seca os
seus animais sejam relegados em benefício dos do empregado, exigem, então, que o vaqueiro lhes
venda os animais que a ele couberam, logo após a partilha. Tiram, assim, a possibilidade de um dia
o vaqueiro vir a ser também fazendeiro, ter um rebanho próprio.” ANDRADE, Manuel Correia de.
A terra e o homem no nordeste. Contribuição ao estudo da questão agrária no Nordeste. 5ª edição.
São Paulo: Atlas AS, 1986, p. 164.

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trabalhavam em troca de salários que, por vezes, porém, eram-lhes pagos em
espécie, descontados os gastos feitos por suas famílias durante a semana ou o
mês. Às vezes esses assalariados rurais – também conhecidos como “diaristas” ou
“jornaleiros” – moravam em vilas ou povoados, mas passavam a vida a percorrer
os sertões em busca de serviços e salários. Uma parcela, por outro lado, residia nas
próprias fazendas, onde podiam plantar seus roçados que se constituíam numa
importante fonte de alimentos para sua família. A vida dos jornaleiros era, em
geral, bastante precária: moravam em humildes choupanas e tinham no almoço
quase sempre sua única refeição diária.
Quando nas propriedades havia áreas de melhores solos, os patrões costumavam
reunir ali uma considerável quantidade de moradores ou agricultores de povoados
próximos, lhes autorizando a plantação de roçados. Somente uma pequena parte
destes lavradores era de arrendatários, sendo a grande maioria ocupada sob o
regime da parceria. Destacava-se a modalidade da “meia” (também chamada
“meação”) na qual o proprietário fornecia terra e sementes, financiando o agricultor
durante a formação e o trato do roçado. Metade da colheita deveria caber ao dono
das terras (daí o nome do sistema), ficando o roceiro com a outra metade. Nos
tempos em que a comercialização do algodão realizava grandes lucros, os patrões
se interessavam em receber de seus moradores o máximo do arbusto em detrimento
de cereais e “frutas de rama”, mas os roceiros procuravam não se descuidar em
reservar um tempo para cultivar esses produtos que, ao fim e ao cabo, eram os que
lhes garantiriam certa segurança alimentar, a si e aos membros da família7.
O espectro social dos sertões comportava enfim a presença de um sem-número
de uma gente sem ocupação definida, figurada nos documentos oficiais como
“vivendo de suas agências”, algumas vezes prestando serviços ocasionais “de foice e
machado” para pequenos e médios proprietários, muitos deles improvisando a arte
da sobrevivência por meios ilegais como o roubo ou o consumo não consentido de
animais encontrados nos ermos caminhos. Num processo pertencente à comarca
de Sobral, um morador dos subúrbios daquela cidade, vaqueiro ocasional de
pequenos criadores da região, era acusado pelo furto de cabras e, em certa ocasião,
chegou a ser preso por haver se apropriado de um cavalo em Baturité8. Essa gente
“desclassificada” podia representar o martírio dos homens poderosos do sertão,
pois se encontravam fora do campo de influência de fazendeiros e autoridades,
mas também de suas fileiras saíam tantos “cabras” que comporiam o braço
armado das grandes famílias sempre envolvidas em violentas disputas por terras
ou apaixonadas retretas políticas.
Sendo assim variadas as modalidades de prestação de serviços feitos pelos
trabalhadores pobres do sertão, também diversos eram os níveis de dependência
7
Num processo criminal de 1872, em Sobral, tem-se um exemplo de acordo estabelecido entre um
proprietário e um grupo de agricultores (pertencentes todos a uma mesma família) segundo o qual
o dono do sítio Flores da serra da Meruóca “deu a João Pereira de Vasconcelos e a parentes deste”
uma porção de terras “para ali plantarem dois anos, findo os quais entregariam ao queixoso roçado
com toda plantação de algodão que ali houvesse”. Processo criminal n. 1, pacote 1, Comarca de
Sobral, 12 jan. 1872, APEC.
8
Processo criminal n. 13, pacote 1, Comarca de Sobral, 16 dez. 1890, APEC.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 167


estabelecidos entre esses sertanejos e o patronato rural. Ali a acumulação de
riquezas do comércio agroexportador nunca alcançaria a opulência conquistada
nos grandes centros do país. A pecuária, como o principal setor econômico da
província, inserir-se-ia apenas como produção de segundo plano em âmbito
nacional, fornecedora de carnes às ricas regiões açucareiras – Pernambuco em
particular. Estrangeiros que por ali passavam, como o missionário norte-americano
Daniel Kidder, testemunhavam a flagrante fragilidade do comércio e a lenta rotina
a qual se entregava “a grande massa do povo que vive ao Deus dará”9. Em
semelhante quadro, uma considerável parcela da população encontrava-se alijada
dos núcleos mais dinâmicos da economia, dedicando-se a serviços estritamente
voltados para a subsistência familiar.
Certa precariedade estrutural marcava as condições de vida e trabalho das
classes pobres dos sertões cearenses. Aqueles que (como os retirantes Honorato e
Luís Manuel, apresentados acima) alcançavam a proteção de algum proprietário
rural e obtinham a concessão do uso da terra tinham sua sorte a todo o momento
sujeitada às contingências e vontades dos patrões, podendo a qualquer hora serem
expulsos e perderem assim o produto de seus serviços. Nomes popularmente
utilizados para identificar e classificar alguns tipos de relações de trabalho, como
a “sujeição” (referindo-se à obrigação do pagamento estabelecido pela parceria)
ou o “agregado” (designação conferida aos roceiros que moravam nas fazendas),
são esclarecedores acerca da forma como era encarado pelos sertanejos o grau de
dependência que essas relações implicavam.
A quase total ausência de instituições alternativas que pudessem oferecer
ocupação às populações levava muitos a optarem por uma vida afastada do
campo de controle das famílias proprietárias, alimentando um estilo de vida mais
independente. Parece ter sido esse o caso de João Batista de Souza, preso por ter-
se apropriado ilegalmente de uma novilha pertencente à capela do povoado de
Lagoa Grande, nas imediações de Sobral; seria qualificado em inquérito policial
como “homem que não se dedica ao trabalho, turbulento, que vive na beira do rio
Acaraú morando no mato em companhia de mulheres perdidas”10. Os que assim
viviam estavam, por outro lado, mais vulneráveis para lidarem com os tempos
difíceis das secas, inundações, epidemias, carestia; ficando também expostos ao
recrutamento militar forçado, esse consagrado mecanismo de controle das elites
locais que se valiam de sua influência para perseguir dissidentes e criminosos.
Tornar os sertanejos uma classe de trabalhadores laboriosos e produtivos era um
verdadeiro desafio aos proprietários cearenses nesse quadro de incipiente retorno
econômico e desmandos. Muitas vezes, os trabalhadores preferiam arriscar a vida
fora das fazendas de criação, engenhos ou plantações a terem de se submeter às
ordens dos patrões. Daí porque muitos acreditassem que a verdadeira felicidade
residia na conquista de um pequeno pedaço de terra onde pudessem cultivar roçados
de forma autônoma, independente, ainda que isolados dos centros comerciais. Em
consequência talvez desse pensamento largamente disseminado entre os pobres do
sertão surgira na época uma “queixa geral” contra a vida de indolência e vadiagem
9
KIDDER, Daniel P. Reminiscências de viagens e permanências nas Províncias do Norte do Brasil.
Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1980, p. 157.
10
Processo criminal, n. 15, pacote 2, Comarca de Sobral, 05 set. 1873, APEC.

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atribuída aos sertanejos, registrada pelo botânico Freire Alemão em seu diário de
viagem, ao passar por Aracati:
Homens brancos trabalhadores. Ouço aqui queixa geral
contra a indolência e vadiação desta gente, custa-lhes
muito a chegar e não têm persistência no trabalho; falham
quando mais se precisa deles; eles fazem grandes estragos
nas plantações, roubando tudo. Costumam muito furtar,
isto é, pedir dinheiros adiantados – safarem-se. O preço
dum jornaleiro aqui é de 640 [réis] a seco. Todos se
queixam da falha da polícia, isto é, querem que o governo
obrigue esses homens a trabalhar!11
Era diante desse quadro de precariedade estrutural das relações de trabalho
no universo sertanejo que o controle paternalista “sobre a vida inteira do
trabalhador” adquiria seu pleno sentido12. Ainda que o paternalismo se baseie
numa reciprocidade estabelecida entre sujeitos desiguais, onde o poder de decisão
concentra-se desproporcionalmente nas mãos dos proprietários, o “compromisso”
estabelecido entre patrões e empregados faz surgir uma expectativa de proteção
fundamental para manter os pobres sob a zona de controle dos homens de poder.
Era com essa expectativa de proteção que os proprietários do sertão contavam
para aproximar as famílias carentes de seu campo de influência. Mas, uma vez
constituído o pacto paternalista, os patrões viam-se enredados ao compromisso de
terem de oferecer meios tangíveis de amparo aos trabalhadores, conferindo com
isso alguns motivos de reivindicação aos sertanejos.
Entre dissolutos e famílias carentes da proteção paternalista o patronato rural
do século XIX enfrentava as dificuldades de ter de converter em trabalhadores
produtivos uma população apenas virtualmente passível de se constituir em mão
de obra adequada às necessidades da economia agroexportadora em formação.
Por volta de meados do século, as mudanças verificadas na economia provincial,
particularmente aquelas relativas ao domínio da exportação de determinados
produtos agrícolas, tais como o café, o açúcar e, principalmente, o algodão,
resultaram numa maior pressão sobre o proletariado rural para se adequar às
novas necessidades do mercado capitalista, a cada dia mais presente nas relações
de produção sertanejas.
Durante séculos, enquanto a pecuária exerceu um domínio quase absoluto nas
relações sertanejas, as trocas comerciais permearam apenas uma diminuta parcela
da economia local. Disso decorria a pequena circulação de moedas, bem como
a perpetuação das trocas em espécie, consagradas pela difusão dos “nimbós” –
novelos de fios de algodão que funcionavam como o principal equivalente de troca
no Ceará até as primeiras décadas do século XIX13.
11
ALEMÃO, Francisco Freire. Diário de viagem de Francisco Freire Alemão. Fortaleza-Crato, 1859.
Fortaleza: Museu do Ceará, 2006, p. 72. Os grifos seguem o original.
12
THOMPSON, Edward P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional.
Tradução de Rosaura Eichemberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 45.
13
GIRÃO, Raimundo. História econômica do Ceará. 2ª edição. Fortaleza: UFC / Casa de José de
Alencar, 2000, p. 131.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 169


Mudanças mais significativas na economia sertaneja – quais sejam, maior
diversificação da produção agrária impulsionada pela intensificação do comércio
– adviriam apenas num tempo posterior daquele século. Um passo decisivo para
tanto foi a separação da capitania, até então subordinada ao Governo Geral
de Pernambuco, através da Carta Régia de 17 de janeiro de 1799, pela qual os
comerciantes locais viram-se finalmente autorizados a fazer seus negócios diretamente
com o reino de Portugal. Até aquela data, todas as mercadorias exportadas desde o
Ceará eram obrigadas a passar antes pela alfândega de Pernambuco, encarecendo
os produtos locais com transportes, taxas e armazenamentos extras14.
Aos poucos, novos itens de exportação foram surgindo no Ceará oitocentista,
destacando-se logo no início do século o algodão, estimulado pela temporária retirada
dos plantadores norte-americanos do mercado exterior durante os anos de sua
Guerra da Independência (1776-1783). Também surgiram engenhos e, sobretudo,
engenhocas (produzindo especialmente cachaça e rapadura), acompanhando as
plantações de cana que se difundiram em alguns pontos da província. Eram culturas
com um baixíssimo nível tecnológico, sendo quase completamente ausentes as
máquinas. Em geral, as plantações faziam-se com o secular emprego da coivara
– quando se queimava as matas para a abertura das capoeiras, deixando que as
cinzas das plantas depositassem no solo seus nutrientes. Nessa técnica “primitiva”
utilizava-se a enxada como principal e quase único instrumento de trabalho.
São de meados do século XIX, no entanto, as alterações econômicas mais
significativas relacionadas à constituição da agricultura exportadora na província
cearense. Como nunca antes, cresceu nesse período o comércio de produtos
cultivados com a intenção de alimentar lucros de plantadores e comerciantes,
fazendo avançar as fronteiras agrícolas sobre territórios antes dominados pela
pecuária ou pelas culturas de subsistência. Foi o caso do café, produzido inicialmente
em pontos da serra da Aratanha e difundindo-se, em seguida, por outras regiões
da província. Os ganhos obtidos com o café propiciaram o surgimento de certa
aristocracia rural em Baturité que logo se destacou como a mais importante região
cafeeira do Ceará.
Nenhum outro produto compara-se, no entanto, ao algodão em nível de
importância entre os bens de exportação da província cearense no Oitocentos.
Sendo uma planta já conhecida pelas populações indígenas antes mesmo da
chegada dos europeus, apenas adquiriu relevância comercial com a Revolução
Industrial inglesa que passou a importar as plumas de algodão de diversos lugares
do mundo. Antes de meados do século, o Ceará não passava de região com
secundária importância nesse que conquistara o status de maior ramo comercial
do mundo ocidental. Mas essa realidade transformou-se diante da retirada dos
norte-americanos envolvidos, desde 1860, na Guerra da Secessão, o que levou
os industriais ingleses a procurarem em outras regiões do mundo fornecedores
do que então era conhecido como “ouro branco”. Pela primeira e única vez, a
província do Ceará despontou como uma das primeiras regiões do país na pauta de
exportações agrícolas, durante alguns anos equivalendo-se o algodão aos valores
negociados pelos produtores de açúcar e café. A grande euforia não resistiria à
14
GIRÃO, História econômica do Ceará..., p. 173-191.

170 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


crise econômica do início da década de 1870, mas a cotonicultura ainda assim
transformara o cenário rural do Ceará, consolidando-se como um dos principais
setores da economia – o único a concorrer realmente em nível de importância com
a pecuária – durante os cem anos subsequentes.
A hegemonia da agricultura comercial conferiu nova dinâmica a diversos setores
da sociedade cearense. Em 1858 iniciaram-se as atividades de uma nova linha
de navegação pelos portos da província com a chegada do vapor São Luiz, da
Companhia de Navegação a Vapor do Maranhão. Até então, apenas o Iguaçu da
Companhia Pernambucana fazia a linha Norte, trazendo ou levando passageiros
e mercadorias de outras províncias do país. Raimundo Girão considerou que
esse incremento “de modo considerável alargaria o comércio de exportações e
importações” da província, mas disse ainda o autor da História econômica do
Ceará que “as safenas do progresso abrir-se-aim mais amplamente com as entradas
diretas dos navios a vapor da companhia inglesa Booth Line, de Liverpool, a
começar de 1866”. Em união com outra companhia britânica, a Red Cross (estas
acabariam por se fundir em uma única empresa), os vapores dessa corporação
deteriam a exclusividade dos carregamentos entre o Ceará e os portos europeus
e norte-americanos, particularmente Liverpool, Hamburgo, Havre, Barcelona,
Lisboa e Nova York15.
Casas comerciais – as maiores pertencentes a estrangeiros – passaram a dominar
os negócios mais rentáveis dessas transações de exportação-importação, algumas
chegando a financiar lavradores com empréstimos e fornecimento de ferramentas
e máquinas para o incremento da produção agrária.
Uma extraordinária ausência de fortes secas num interregno de mais de trinta
anos (de 1845 até 1877) – combinada a diversos “melhoramentos” propiciados
pelos lucros obtidos com os negócios de exportação – fez com que muitos
contemporâneos pensassem naquele como um período de progresso contínuo.
Mas, para milhares de trabalhadores rurais, aqueles tempos traziam consigo o
indigesto e amargo gosto da pobreza em ascensão. Para se saciar a fome de lucros
foram geradas as condições que fizeram crescer a fome dos corpos. Terras antes
utilizadas por arrendatários e moradores para plantar bens voltados à subsistência
das famílias sertanejas, no novo contexto foram cada vez mais reservadas ao
plantio do algodão ou de outros produtos exportáveis, colocando em risco a
segurança alimentar dos pobres. Observador atento dos acontecimentos de sua
época, Rodolfo Teófilo denunciou as consequências do que chamou de “febre da
ambição”, uma “doença” que “alucinava” a quase todos:

De um ano para outro, a província cobriu-se de algodoais;


derribavam-se as matas seculares do litoral às serras, das
serras ao sertão; o agricultor com o machado numa das
mãos e o facho noutra deixava após si ruínas enegrecidas.
Os homens descuidavam-se da mandioca e dos legumes,
as próprias mulheres abandonavam os teares pelo plantio
do precioso arbusto; era uma febre que a todos alucinava,
15
GIRÃO, História econômica do Ceará..., p. 347, p. 349.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 171


a febre da ambição.16
A mercantilização das relações sertanejas trouxe consequências nefastas para a
vida das camadas mais pobres. A alta geral dos preços fazia com que certos produtos,
antes consumidos pelas comunidades interioranas, passassem a ser escoados para
os centros litorâneos, provocando crises de abastecimento no interior. Em União,
a população procurou a Câmara Municipal para reclamar providências porque
os caroços de algodão, antes utilizados para alimentar o gado, estavam agora
sendo vendidos para Aracati, provocando a morte dos animais. Enquanto as taxas
de exportação do “ouro branco” batiam recordes a cada novo ano na segunda
metade da década de 1860, a falta de comida deprimia as populações do sertão,
o que levou um presidente da província a condenar “a peste dos monopolistas
e atravessadores dos gêneros de alimentação” por estarem levando “o povo ao
desespero” com a especulação17.
Esse quadro veio a se agravar com os impactos da Grande Depressão (1873-
1898) sobre o mercado exportador das províncias do Norte. Em pouco tempo
o preço do algodão declinou bruscamente já no início da década de 1870, ao
que se somou o retorno da concorrência exercida pelos plantadores do Sul dos
Estados Unidos que recuperavam a produção interrompida nos anos da Guerra
Civil (1861-1865). Segundo Francisco de Oliveira, a incorporação do território
cearense (bem como os de outras províncias do Norte) à produção algodoeira
tornaria mesmo a economia local mais sujeita aos efeitos das crises periódicas do
capitalismo internacional18.
A crise que antecedeu a grande seca de 1877, no entanto, não era somente
conjuntural. Mudanças mais profundas relacionadas à configuração das próprias
relações de produção da economia agroexportadora estavam atreladas ao declínio
do trabalho servil, sentido de modo particularmente intenso nas províncias do
Norte entre as décadas de 1860 e 1870. A interrupção efetiva do fornecimento
de escravos africanos em consequência da Lei Eusébio de Queiroz, de 1850,
combinada aos lucros crescentes obtidos pelos cafeicultores das províncias do Sul,
resultou na intensificação do comércio interno de mão de obra cativa, tendo como
principal destino os novos cafezais abertos na região do Oeste Paulista. O Ceará
figurou como uma das províncias que mais exportou escravos nesse período, o que
contribuiria com a extinção precoce do trabalho servil, aí decretada alguns anos
antes que no restante do país.
Caio Prado Jr. viu na decadência da escravidão, “representada pela ininterrupta
redução da massa escrava”, uma “crise crônica de mão de obra” que levava à
iminência “do colapso de seu sistema produtivo”. O discurso das elites que
protestavam contra a “falta de braços” para a grande lavoura exportadora
16
TEÓFILO, Rodolfo. História da secca no Ceará (1877-1880). Rio de Janeiro: Imprensa Inglesa,
1922, p. 22.
17
Ofício de 06 jun. 1874. Câmaras Municipais, União, caixa 90, APEC. CEARÁ. Relatório apresentado
a Assembléia Legislativa Provincial do Ceará em sua reunião extraordinária em 1° de dezembro de
1866 pelo presidente da mesma província, o Excelentíssimo Senhor João de Souza Mello e Alvim.
Fortaleza: Typ. Brazileira de João Evangelista, 1867, p. 20.
18
OLIVEIRA, Francisco de. Elegia para uma re(li)gião: SUDENE, Nordeste, planejamento e conflitos
de classes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 53.

172 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


interpretou como a evidência de um efetivo declínio demográfico ocasionado pelas
massivas migrações ocorridas na época que, em geral, partiam das decadentes
regiões açucareiras e algodoeiras em demanda de zonas economicamente em
ascensão (como os seringais amazônicos e, sobretudo, as fazendas paulistas de
café)19. Seguindo o modelo interpretativo de Prado Jr. chegar-se-ia a conclusão
de que o sertão do Ceará tornava-se uma região despovoada, o que efetivamente
não condiz com os índices demográficos disponíveis. Estudos alternativos, porém,
oferecem explicações mais complexas e convincentes sobre aquele fenômeno.
Para Peter Eisenberg havia na verdade uma abundância de trabalhadores,
mas também uma forte carência de mão de obra20. À medida que a população
escrava declinava rapidamente na região, manifestava-se a falta de mão de obra
em decorrência não da efetiva ausência de pessoas, mas pela indisponibilidade dos
trabalhadores em empregarem-se nas plantações de algodão ou nos engenhos de
açúcar. Celso Furtado asseverava que os trabalhadores livres e libertos preferiam
ocupar as franjas dos latifúndios, em atividades de pequena produção, a terem de
se sujeitar ao trabalho na grande lavoura21. Corroborando com as interpretações
desses autores estão os discursos proferidos por proprietários de diversas regiões
reunidos em agosto de 1878 no Congresso Agrícola do Recife. Ali se tornara
uma unanimidade o protesto contra a “indolência”, na verdade indisposição dos
trabalhadores livres em quererem se empregar nas grandes propriedades açucareiras
ou algodoeiras, ao que contrapunham propostas de medidas que viessem a coagir
as populações pobres ao trabalho22.
Essas transformações verificadas em escala local estavam articuladas
diretamente às mudanças no plano internacional, tendo a Guerra Civil norte-
americana provocado impactos em regiões agrárias tão distantes como eram a
Índia, o Egito ou os sertões do Brasil. A “fome do algodão” (the cotton famine)
provocada pelo conflito levou comerciantes que antes se beneficiavam com os
preços vantajosos obtidos junto às plantations do Sul escravocrata a procurarem
em outras regiões do planeta novos fornecedores, integrando territórios até então
relativamente isolados do mercado mundial. Sven Beckert afirma que a ação de
negociantes europeus “lançaram as sementes para uma reformulação do império
do algodão”, levando as plumas cultivadas na Índia, no Egito e no Brasil a obterem
“uma maior presença no mercado ocidental”. Mas para que essas novas regiões
fornecedoras oferecessem preços vantajosos, além de investimentos em meios de
transporte eficientes e baratos (ferrovias e portos), precisaram inventar “um novo
sistema de mobilização de trabalho não-escravo”, ou seja, explorar o trabalho de
um proletariado rural constituído por “lavradores imersos em dívidas”, “meeiros
sujeitados” e “produtores rurais com baixo poder político”23.
19
PRADO JR., Caio. História econômica do Brasil. 17. ed. São Paulo: Brasiliense, 1974, p. 201-202.
20
EISENBERG, Peter. Modernização sem mudança: a indústria açucareira em Pernambuco (1840-
1910). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 174-175.
21
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.
134.
22
PERNAMBUCO. Trabalhos do Congresso Agrícola do Recife, outubro de 1878. Edição fac-similar.
Recife: Fundação de Planejamento Agrícola de Pernambuco, 1978, p. 164.
23
BECKERT, Sven. “Emancipation and empire: reconstructing the worldwide web of cotton
production in the age of American Civil War”. The American Historical Review, vol. 109, n. 5, dez.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 173


As décadas durante a passagem do século XIX representaram para a vida
de milhares de famílias pobres dos sertões o atrelamento de seu cotidiano a um
agressivo avanço da agricultura comercial, cujos impactos foram profundos sobre
os modos de vida e trabalho das populações mais carentes. Decerto as proporções
catastróficas atingidas durante as sucessivas crises climáticas do período estiveram
vinculadas à desestruturação das pequenas culturas de subsistência, derivada da
incorporação de tantos vaqueiros, rendeiros, moradores e jornaleiros à cotonicultura
e a outros negócios agrários sujeitos ao mercado exportador. Frente às mudanças
econômicas – tidas como modernizadoras pelas camadas sociais superiores –
os sertanejos pobres procuravam resistir, apegando-se aos meios tradicionais
de proteção propiciados pelas relações paternalistas. Daí ter sido a sociedade
cearense da segunda metade do século XIX marcada por intensos conflitos cujos
eixos relacionais mais significativos residiam no paternalismo que, unindo patrões
e empregados através de fortes vínculos pessoais, não deixava de se constituir em
arena de antagonismos.
As armas dos fracos
Os historiadores estão em geral de acordo com a tese de que o coroamento de
Pedro II (1840) marcou um momento de consolidação da ordem política imperial.
Após as agitações que tomaram conta do país durante a Independência e na
sequência à abdicação do primeiro imperador, ocorreria um arrefecimento nos
ânimos das elites regionais que, através de diversas revoltas, resistiram aos excessos
de centralização de poder na Corte. Diferentes teses – muitas delas convincentes
– procuraram abordar o processo de centralização política do Império, quando
teria prevalecido enfim uma consciência nacional conservadora em detrimento
das tendências regionalistas exaltadas características dos primeiros anos do
regime monárquico. Mas, se uma maior unidade política entre as elites imperiais
inegavelmente se deu nesse período, isso não deve esconder a emergência de
outras modalidades de lutas sociais ocorridas nas últimas décadas do século XIX.
A bem da verdade, enquanto as elites imperiais empenhavam-se em ordenar
seus interesses ao regime monárquico uma outra sorte de tensões e conflitos
espraiava-se pelo país. As expectativas quanto a mudanças anunciadas (porém,
nem sempre desejadas por todos) em relação ao regime escravista provocou o
receio quanto ao futuro de uma nação que se formava tendo no trabalho cativo
um dos seus mais firmes esteios. Tão fortes eram os interesses dos que defendiam a
preservação do regime escravocrata que o Brasil chegaria à década de 1880 como
um dos últimos países a praticar a escravidão num contexto internacional de franco
entusiasmo com os valores associados ao trabalho livre.
O Estado exerceria um proeminente papel na ordenação de reformas no
mercado de trabalho num tempo em que se debatia a respeito de meios pelos
quais a economia nacional – sobretudo os setores associados à grande lavoura
exportadora, que mais dependiam de uma regular oferta de mão de obra –
poderia se sustentar sem o acesso ao trabalho escravo. Célia Marinho de Azevedo
demonstrou como esses debates se deram sob o signo do medo quanto ao papel

2004, p. 1415.

174 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


ativo dos negros em face da perspectiva da liberdade. A revolução de Toussaint
L’Overture em São Domingos figurava enquanto exemplo terrível do ponto de
vista dos senhores de escravos que podiam perfeitamente imaginar acontecer algo
semelhante no Brasil, com negros subvertendo a ordem escravocrata, declarando a
abolição do cativeiro e se voltando vingativamente contra os antigos senhores24. Os
legisladores do Império aprovariam diversos decretos cuja principal intenção era
conter as possibilidades dessa transição fugir ao controle da classe dos proprietários.
Pressionada, ora pelo poderoso governo britânico – que desde o começo do século
empenhara-se em combater o tráfico de escravos por todo o Atlântico –, ora pela
classe dos proprietários rurais – interessados em prolongar o regime da escravidão
–, a elite política brasileira viu-se na obrigação de negociar com as circunstâncias.
Numa dinâmica de avanços e contramarchas, o fim do trabalho servil no Brasil
obedeceu às conveniências de uma hegemonia que encarava a mudança sob a
perspectiva dos negócios exportadores, e não como um modo de reposicionar os
negros nas relações de poder da sociedade.
As mudanças precipitariam o descontentamento das camadas subalternas. Se
entre os escravos as perspectivas da liberdade despertaram agitações e levantes,
quanto aos trabalhadores livres enxergaram as reformas no regime de trabalho
como uma pressão a mais na vida já incerta dos pobres. Entre os pobres do campo
a percepção do declínio do trabalho escravo ativaria o receio dos trabalhadores
livres serem reduzidos a condições ainda mais penosas que as de costume, pois se
viam na iminência de serem usados como substitutos dos escravos numa sociedade
que promovia o fim do cativeiro sem, no entanto, operar uma correspondente
mudança da mentalidade senhorial.
O receio popular quanto às mudanças no mundo do trabalho do Brasil oitocentista
parecia se confirmar quando reformas implicavam em medidas coercitivas que
recaíam sobre a população de trabalhadores livres. Em 1835, por exemplo, uma
lei provincial procurava criar no Ceará algumas Companhias de Trabalhadores
que deveriam concorrer para a superação do problema da “falta de braços” para a
execução de obras públicas, uma matéria espinhosa aos governantes que atribuíam
a rejeição do povo em querer trabalhar em serviços como construções de estradas
e açudes ao “vício da vadiagem”. Para debelar o assim considerado malefício
das classes pobres, o decreto de 24 de maio de 1835 previa o recurso de meios
incisivos de coerção e punições aos que se recusassem a atender a convocação da
Companhia dos Trabalhadores. Disciplinamento militar, com a obrigação do uso
de uniformes para que os trabalhadores pudessem passar por revistas na ocasião
das missas aos domingos, aquartelamento e pena de dois meses de prisão para
desertores eram medidas tidas como necessárias para garantir a assiduidade dos
operários que relutavam em tomar parte nas Companhias. Evidência dessa recusa
popular seria a reclamação do presidente Martiniano de Alencar sobre os operários

24
“Garantias de que o Brasil seria diferente de outros países escravistas, uma espécie de país abençoado
por Deus, não havia nenhuma, pois aqui, assim como em toda a América, os quilombos, os assaltos
às fazendas, as pequenas revoltas individuais ou coletivas e as tentativas de grandes insurreições
se sucederam desde o desembarque dos primeiros negros em meados de 1500”. AZEVEDO, Célia
Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites, século XIX. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 35.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 175


que abandonavam o serviço quando “apenas completam seu tempo” e sobre os
que “tem acintosamente desertado”, de modo tal que se via compelido a completar
a Companhia dos Trabalhadores com “africanos apreendidos” do tráfico ilegal,
teoricamente considerados livres pela lei de 7 de novembro de 1831, mas que de
fato eram explorados em serviços daquela natureza no Ceará, assim como pelo
restante do país25.
Durante os anos da segunda metade do século XIX se repetiriam reações
exaltadas de parte das populações pobres do sertão – em particular daquelas das
províncias do norte do país – configurando um cenário de sedições cujas diversas
motivações associavam-se à resistência do povo ao controle social voltado para
a coerção ao trabalho. A aprovação de determinadas leis impopulares provocava
a ira de sertanejos que, via de regra, invadiam as paróquias aos domingos –
quando usualmente eram divulgados os conteúdos das leis na ocasião das missas
–, rasgavam editais e outros papéis oficiais e ameaçavam autoridades que se
mostrassem desafiadoras às imposições dos sediciosos.
Foi desse tipo a reação aos decretos 797 e 798, de 1851, que estabeleciam regras
para uma ampla apuração censitária no país, além de criar a obrigatoriedade do
registro civil de nascimentos e óbitos, até então uma atribuição exclusiva da Igreja
Católica. O fato de essas leis terem surgido na sequência à proibição do tráfico
atlântico de escravos parece ter levantado a desconfiança sobre algum plano oculto
de, através dos registros civis, converterem-se os pobres livres em escravos, para
que dessa maneira fosse reposta a mão de obra negra. Um estudo recente associa
esse movimento – que ficou conhecido como a Guerra dos Marimbondos em
Pernambuco e Ronco da Abelha em outras províncias – ao grande medo popular
ante a precariedade da condição de liberdade no Brasil oitocentista.
De mais largo alcance seria, anos depois, a revolta dos Quebra-Quilos em
1874-1875. Também nessa onda sediciosa multidões de sertanejos invadiriam as
igrejas para impedir a divulgação de editais e inutilizar documentos oficiais, mas as
atitudes mais consagradas seriam as destruições de balanças e outros instrumentos
de aferição distribuídos pelo governo para a implantação do sistema métrico
enquanto o novo padrão de pesos e medidas do país. A revolta dos Quebra-Quilos
espalhou-se por vilas e povoados de províncias do norte, concentrando-se em
Pernambuco, Alagoas, Rio Grande do Norte e Paraíba. Pelos gritos das multidões
enfurecidas percebe-se que a motivação para o levante popular era de natureza
complexa, estando presentes, além da rejeição ao sistema decimal de pesos e
medidas, reivindicações pelo fim dos “impostos do chão”, protestos contra as
influências dos maçons na sociedade, a luta de escravos pela liberdade e a recusa
da nova lei do recrutamento militar decretada na mesma época.
A ação do governo em restabelecer a ordem durante essas sedições não era das
tarefas mais fáceis, pois os rebeldes contavam com a ampla simpatia da população
que se valia de diversos recursos para proteger os rebeldes das perseguições das
25
Lei n. 12, de 24 de maio de 1835 e Regulamento n. 1, de 26 de maio de 1835. OLIVEIRA, Almir
Leal de & BARBOSA, Ivone Cordeiro (orgs.). Leis provinciais: Estado e cidadania (1835-1861).
Fortaleza: INESP, 2009, p. 54-55 e p. 72-74. CEARÁ. Fala com que o exm° presidente da província
do Ceará abriu a segunda sessão ordinária da Assembléa Legislativa da mesma província no dia 1°
de agosto de 1836. Ceará: Typ. Patriotica, 1836, p. 03.

176 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


tropas. O governo imperial viu-se na obrigação de enviar homens do Rio de
Janeiro para as províncias convulsionadas pelos Quebra-Quilos, pois os agentes
locais constrangiam-se em prender sediciosos respeitados por grandes parcelas das
comunidades sertanejas. Quando finalmente, em meados de 1875, as autoridades
julgaram ter sob controle a ordem pública pelos sertões, outra onda insurrecional
alastrou-se pelo interior do país. Dessa vez a razão principal da revolta popular era
a execução da nova lei do alistamento militar, que previa que o recrutamento de
homens para o exército e a armada seria feito por meio de sorteios, e não mais pela
indicação direta das autoridades tradicionais.
Essa nova revolta ficaria conhecida como a Guerra das Mulheres devido ao
protagonismo feminino nos levantes. Também seriam chamadas de revoltas dos
Rasga-Listas porque resgataram a prática de invadir as igrejas em dias marcados
para a execução do alistamento militar, inutilizando documentos oficiais, rasgando
listas de recrutáveis e outros papéis. Dentre todos esses movimentos sediciosos,
a revolta dos Rasga-Listas foi o de maior abrangência no sertão do Ceará. Um
estudo identificou dezessete localidades em que grupos geralmente provenientes
de povoados mais ou menos distantes invadiam as sedes das vilas a fim de inutilizar
as listas de recrutamento, muitas vezes ocorrendo conflitos26.
Em torno do recrutamento militar do século XIX envolvia-se uma complexa rede
de proteções e disputas, na qual as relações patrono-cliente faziam-se decisivas
sobre o destino dos recrutáveis, em geral homens provenientes das camadas mais
carentes. Para compor as fileiras das forças armadas, o Estado imperial esforçava-
se por convencer uma população em geral pouco disposta ao engajamento no
exército e na marinha, instituições associadas aos maus-tratos a que submetiam os
recrutas com soldos insuficientes e muitas vezes pagos com atraso, disciplinamento
por meio de castigos físicos e deslocamentos de tropas que afastavam os soldados
de suas famílias, principalmente em tempos de guerra. Ainda que as forças armadas
do país estivessem longe de se constituir numa “sociedade disciplinar” – tal como
pensada por Michel Foucault27 –, a imagem predominante sobre a vida nos quartéis
e navios de guerra era assaz negativa, dificultando a ação dos agentes recrutadores
nos momentos de composição das tropas.
Nos sertões, trabalhadores rurais contavam com a proteção de proprietários de
terras para conseguir isenções, uma vez que estavam previstos em lei determinados
critérios que livravam do recrutamento aqueles homens com reconhecimento moral,
papel de chefia familiar ou estabilidade laboral. Nesse ponto, a proteção senhorial
podia exercer um imenso poder, preservando das conscrições aqueles elementos
apadrinhados em detrimento dos que não contavam com o apoio patronal.
Não se deve encarar o recrutamento como o domínio exclusivo da vontade do
patronato rural, como se os recrutáveis exercessem um papel meramente passivo
diante da correlação de forças entre o Estado e a classe senhorial. Em torno da
questão do recrutamento ergueu-se uma forte noção de justiça (e de injustiça)
26
CÂNDIDO, Tyrone Apollo Pontes. “Rasga-Listas no Ceará: aspectos de uma sedição sertaneja”.
Trajetos – Revista de História da UFC, Fortaleza, UFC, vol. 6, n. 10, 2008, p. 23-48.
27
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização, Introdução e Tradução de Roberto
Machado. 11. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1997, p. 174.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 177


por parte das famílias carentes, tendo sido decisiva para desacreditar e, por fim,
inviabilizar a nova lei do alistamento militar por sorteio. Não apenas os argumentos
populares acerca do caráter injusto da nova lei do alistamento não coincidiam
com o entendimento do patronato rural em torno da matéria; a própria forma
de luta empreendida pelos sertanejos – a sedição, as fugas, a resistência violenta
ao recrutamento – era vista com reprovação pelos paternalistas que temiam pela
perda do controle social. A sugestão de Hendrik Kraay – ao ver no recrutamento a
resultante de uma “luta de relação triangular” envolvendo o Estado, a classe senhorial
e o povo pobre – apresenta-se como modelo interpretativo mais convincente que
aquele que enxerga no recrutamento a ação de um Estado forte impondo-se sobre
uma população recalcitrante. Vendo o recrutamento como, primordialmente, uma
“negociação” – levada a cabo em função das pressões exercidas pelos próprios
recrutáveis –, a linha de interpretação de Kraay está mais de acordo com a literatura
histórica que vê na classe dos pobres livres da sociedade brasileira “uma categoria
social extremamente diferenciada, dinâmica e ativa, não simplesmente uma classe
marginal para a qual a sociedade escravista do Brasil não deixava espaço social ou
econômico”28.
Em seu interessante estudo sobre o recrutamento no Ceará, Xisley de Araújo
Ramos mostrou como as conscrições assumiram um caráter violento, apanhando
a população pobre literalmente “a laço”29. No século XIX, eram comuns notícias
de recrutados sendo arrastados amarrados pelo interior. Também eram comuns
as fugas espetaculares quando se aproximavam os agentes recrutadores. Às vezes,
o recrutável preferia mutilar um membro do corpo a ter de ser conduzido para
algum quartel ou campo de batalha. Em 1868, um recruta arrancou seu dedo
médio da mão direita “com o fim de inutilizar-se para o serviço da guerra”, mas o
governo provincial resolveu por engajá-lo mesmo assim, “afim de que o exemplo
não aproveitem a outros”30. Para Ramos, nos anos da Guerra do Paraguai (1864-
70) foram mais intensas essas rusgas em torno do recrutamento31.
Uma ambivalência marcava a cultura política popular nos sertões do século XIX.
Através da análise da prática do recrutamento militar e dos episódios da revolta
dos Rasga-Listas de 1875 é possível se observar a circulação das populações
sertanejas no interior de um campo simbólico em que, por vezes, se confirmava o
domínio patronal dos proprietários de terras (sobretudo quando estes se prestavam
a oferecer sua valiosa proteção paternalista); porém, em outros momentos os
sertanejos pareciam dispostos a se desvencilhar desse controle direto e estreito em
que se viam enredados e assumiam uma atitude política independente e contrária
às intenções projetadas pelos paternalistas.

28
KRAAY, Hendrik. “Repensando o recrutamento militar no Brasil imperial”. Diálogos, Maringá, DH-
UEM, vol. 3, n. 3, 1999, p. 116.
29
RAMOS, Xisley de Araújo. Por trás de toda fuga nem sempre há um crime: recrutamento “a laço” e
os limites da ordem no Ceará (1850-1875). Dissertação (Mestrado em História Social). Universidade
Federal do Ceará. Fortaleza, 2003.
30
Ofício de 25 jul. 1868, Ministério da Guerra, livro 149, APEC.
31
RAMOS, Por trás de toda fuga..., p. 159.

178 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


Algumas Considerações Finais

Podemos voltar agora, ainda uma última vez, aos episódios que envolveram
as famílias dos retirantes Honorato Pereira dos Santos e Luís Manuel da Silva,
apresentados no início desse artigo. A luz de tudo o que foi dito acima, um
enquadramento complexo sobre as atitudes e expectativas daqueles sertanejos
pobres faz-se possível. Ao verem malogrados seus planos de se estabelecerem
no sítio Monte Pilar, Honorato e Luís Manuel vivenciaram um desses momentos
em que as tradicionais relações de proteção paternalista eram questionadas.
Com a destruição do roçado de macaxeiras e a inoperância do juiz da comarca
de Baturité em restituir aos agricultores compensações pelos prejuízos sofridos o
poder do capitão João Nunes de Albuquerque em socorrer os retirantes arruinados
seria mais uma vez acionado como componente de uma tradição que orientava
as expectativas de senhores e trabalhadores sertanejos naqueles momentos em
que os pobres necessitavam da proteção material da aristocracia rural. Tratava-se,
portanto, de uma circunstância até certo ponto típica do universo cultural sertanejo.
Mas se o drama envolvendo Honorato e Luís Manuel era, de certa maneira,
conhecido, seu contexto de encenação apresentava-se como uma novidade para a
vida daqueles sujeitos.
De nada sabemos sobre experiências posteriores dos implicados naquele
processo criminal, mas a se considerar o que se passava com a grande maioria da
população dos sertões durante aquele tempo, é provável que as famílias daqueles
retirantes viessem a engrossar as multidões de flagelados que percorriam estradas
e caminhos secos em busca da salvação que acreditavam poder talvez encontrar
em vilas, povoados e cidades, especialmente naqueles pontos do litoral aonde
embarcações chegavam trazendo alimentos para serem distribuídos às aglomerações
de retirantes estacionadas em pontos como Aracati, Camocim e Fortaleza. Desses
portos, diariamente embarcavam milhares de pessoas em direção aos seringais ou
colônias agrícolas da Amazônia, aos cafezais e outros estabelecimentos rurais das
províncias do Sul, ou para alguma outra região em que os retirantes visualizassem
um refúgio possível para se verem livres da extrema miséria que reinava no Ceará
desde o ano de 1877, mas que só terminaria com o retorno das chuvas nos
primeiros meses de 1880.
Daí para frente, a cada período de estiagem prolongada as aglomerações de
retirantes provenientes dos sertões do semiárido ocupariam centros urbanos e outros
espaços do poder passando a cobrar do Estado um socorro que tradicionalmente
era uma atribuição dos proprietários rurais. As expectativas de proteção paternalista
dos retirantes passavam a se deparar, nesses momentos, com experiências derivadas
de circunstâncias divergentes aos padrões costumeiros de relações de reciprocidade
desigual prevalecentes ao longo do século XIX. As medidas de socorros públicos
promovidas pelos governantes desde a seca de 1877 configuravam, nas palavras
de Frederico de Castro Neves, “novas experiências” enfrentadas pelos retirantes.
A exigência de ter de trabalhar em alguma turma de operários nas diversas obras
de socorros públicos como maneira de restituir com a prestação de serviços os
“benefícios” distribuídos pelo Estado gerava constrangimentos vários, resistências
e era motivo de estranhamento por parte dos sertanejos pobres:
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 179
O trabalho em turmas e sob o comando enérgico de um
superior contrastava radicalmente com o trabalho familiar
e autônomo desempenhado nas terras arrendadas e
representava uma divisão de trabalho mais aprofundada
entre executores e planejadores. Seja no carregamento de
pedras para o calçamento das ruas, seja na construção de
alvenaria dos prédios públicos, ou seja na construção de
linhas de trem, o saber relacionado ao trabalho acionado
pelos camponeses é inteiramente desprezado, com a
exceção do desbravamento das matas para a passagem
das linhas férreas. São atividades novas e desnecessárias
no contexto da vida rural do semiárido tal como praticado
na agricultura ‘tradicional’. Além disso, a presença de
engenheiros, muitas vezes vindos da capital do Império, ou
até do estrangeiro, aumentava a estranheza do retirante, já
que a fonte de poder exercido por eles era o saber e não
mais a propriedade.32
Uma nova dinâmica na vida sertaneja se configuraria, assim, durante as secas
que se sucederam na passagem do século XIX (1877-1879, 1888-1889, 1900
e 1915). Ao partirem do sertão, quando reconheciam a perda das safras ou a
impossibilidade de preservação do gado, os retirantes iniciavam uma trajetória
arriscada, pois, uma vez abandonado o local de moradia e trabalho, o retorno
ao fim da quadra seca não era garantido. A retirada representava, igualmente,
uma precarização nas relações de trabalho e dependência da sociedade tradicional.
Mesmo quando, ao fim da seca, os pobres conseguiam se restabelecer nas glebas
do sertão, nos novos vínculos possivelmente não mantinha expectativas de
fixação como no passado. Além disso, os retirantes, ao retornarem ao sertão após
empreenderem curtos ou longos deslocamentos, incorporavam a suas estratégias
pessoais a possibilidade de acionar as rotas que agora já conheciam, podendo
com isso optar pela emigração ao se depararem com circunstâncias opressivas do
cotidiano de trabalho, mesmo em tempos de chuva.
Pode-se dizer que as secas geraram consequências duradouras na dinâmica
sertaneja. Se, em 1877, a grande seca alcançou a população de certa forma
“desprevenida” – pois uma extraordinária ausência de fortes crises climáticas desde
1845 havia se combinado a um período de euforia econômica com o boom da
exportação do algodão na década de 1860 –, a partir de então o tempo de seca
passou a fazer parte do próprio horizonte de expectativa dessa sociedade, na medida
em que se reconhecia a inevitabilidade de uma nova grande estiagem vir a ocorrer
mais cedo ou mais tarde. Consequências das jornadas de seca repercutir-se-iam
nos tempos de regularidade climática, fazendo com que, de retirantes ocasionais,
os sertanejos se tornassem verdadeiros proletários das secas, pois suas experiências
nos meses de estiagem criariam marcas constantes na sua condição de trabalhador.
Em diversos aspectos, as experiências e as condições de vida e trabalho das
maiorias de trabalhadores rurais do Ceará durante as secas da passagem do
32
NEVES, A multidão e a história..., p. 54.

180 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


século XIX apenas continuaram (e intensificaram) processos que já vinham
transcorrendo no universo sertanejo por várias décadas. Na verdade, as secas
desse período viriam coroar uma conjugação de fatores previamente em curso que
concorriam para a proletarização de largas parcelas da população sertaneja. Ante
a precarização progressiva dos laços que ligavam os grupos camponeses à terra,
as crises climáticas acentuavam a quebra de relações de trabalho estabelecidas
por vezes através de gerações, mas que, no contexto de inserção do capitalismo
no campo, tendiam a se desfazer mais cedo ou mais tarde. Uma parcela cada dia
maior dos sertanejos tivera de encontrar em ocupações estranhas aos tradicionais
regimes de trabalho no campo alternativas para a sustentação, formando uma
crescente camada social obrigada a contrair novas modalidades de trabalho, nem
sempre encaradas como dignas ou vantajosas. “Liberava-se” dessa maneira um
contingente de trabalhadores rurais a circular para cima e para baixo, na condição
de jornaleiros ou prestadores de serviços ocasionais, que buscavam ocupações
temporárias em sítios e fazendas, mas que nas épocas das grandes estiagens viam-
se na contingência de, ou emigrar para terras distantes ou procurar alternativas
para a sobrevivência em serviços acionados pelos poderes públicos como forma de
prestar socorro às grossas fileiras de retirantes.
Neste artigo, procurei analisar as tensas relações estabelecidas entre o patronato
agrário cearense e os pobres no contexto da ordem paternalista. O controle através
do trabalho – um recurso largamente utilizado nas secas da passagem do século
XIX – reproduziram para os pobres um antigo drama no qual as autoridades
procuravam fazer dos sertanejos trabalhadores disciplinados e adequados aos
desafios de uma economia moderna e capitalista.
Uma arte da resistência foi sendo gestada ao longo de anos em que trabalhadores
rurais confrontaram-se com o avanço das relações comerciais no universo agrário,
sobretudo quando da ascensão da produção exportadora do algodão que passou
a hegemonizar a economia local a partir da década de 1860, e isso em detrimento
da própria agricultura de subsistência dos pobres. Nessa guerra sem exércitos, as
armas dos fracos consistiam muitas vezes em atitudes cotidianas de resistência,
como eram a recusa ao recrutamento militar, a desobediência ao engajamento em
companhias de trabalhadores, o isolamento em territórios liberados das redes de
poder dos potentados locais. Essas “formas cotidianas de resistência camponesa”,
na expressão de James C. Scott, era a maneira preferencial que o povo do campo
tinha de “fazer sentir sua presença política”33. Outra maneira de se abordar a matéria
é considerar as experiências de luta dos pobres conformando certa economia moral
sertaneja em contraposição à instituição da economia capitalista em ascensão34.
Nesse sentido, a malsucedida estratégia de inserção social de duas famílias
de camponeses (Honorato e Luís Manuel) nos remete a um ponto de interseção
33
São formas cotidianas de resistência camponesas para J. C. Scott: “the prosaic but constant struggle
between the peasantry and those to seek to extract labor, food, taxes, rents and interest from them.
Most forms of this struggle stop well short of outright collective defiance. Here I have in mind the
ordinary weapons of relatively powerless groups: foot dragging, dissimulation, desertion, false com-
pliance, pilfering, feigned ignorance, slander, arson, sabotage, and so on”. Cf. SCOTT, James C.
Weapons of the weak: everyday forms of peasant resistance. New Haven and London: Yale Univer-
sity Press, 1985, p. xvi.
34
THOMPSON, Costumes em comum..., p. 150-202.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 181


histórica em que costumes e novas experiências articularam-se através das
experiências de conflito envolvendo disputas por terra, o uso da violência
promovida por forças armadas particulares, expectativas de proteção paternalistas
e o recurso à Justiça como mediação de poderes. Mais uma vez revelava-se que
a economia moral dos trabalhadores sertanejos tinha suas bases assentadas nas
fortes relações paternalistas que envolviam os diferentes grupos sociais. Porém
esses mesmos liames paternalistas pareciam encontrar seus limites nessa época
de transformações. Manter os vínculos de lealdade de uma população submetida
a maiores pressões econômicas, restrições de recursos, despossessão de terras,
coação ao trabalho – todos esses processos que levavam o proletariado sertanejo
a assumir um estilo de vida cada vez mais móvel – tornava-se uma atitude de
mais difícil controle para o patronato rural. No seu conjunto, o cenário do sertão
proletário oitocentista assemelhava-se mais a um viveiro de lutas sociais que a um
quadro de amenas cordialidades.


RESUMO ABSTRACT
Este artigo trata das transformações no cenário This paper shows the changes in Ceará’s
da pobreza do sertão cearense, enfocando as backland poverty scenario, focusing on the
relações entre proprietários rurais e trabalhadores. relations between landowners and workers.
Partindo de uma tentativa fracassada de um Starting from a failed attempt of sertanejos
grupo de sertanejos em cultivar macaxeiras nas (countrymen) group to cultivating macaxeira
terras de um proprietário na serra de Baturité, (Manihot esculent) in the lands of an owner
durante a seca de 1878 (caso que figurou in Baturité hills during the 1878’s drought
num processo criminal movido pelos próprios (case figured in a criminal case brought by the
agricultores), problematiza as expectativas dos sertanejos themselves), the text discusses the
pobres quanto à proteção paternalista diante expectations of the poor as the paternalistic
das circunstâncias históricas no transcurso protection given the historical circumstances in
do século XIX. Porém, a cada momento em the course of the 19th century. However, each
que as mudanças atreladas ao processo de time the changes linked to the hegemony process
hegemonização da agricultura comercial of commercial agriculture played the ways of life
tocavam os modos de vida das camadas of lower classes, these paternalistic ties tended to
subalternas esses laços paternalistas tendiam a be questioned. Some evidence from the point
ser questionados. Algumas evidências do ponto of view of the countrymen themselves, found
de vista dos próprios sertanejos, encontradas em in criminal cases in the official documentation
processos criminais, na documentação oficial and travelers records and memoirs suggest the
e em registros de viajantes e memorialistas, movement of poor people in a symbolic field
sugerem a circulação das populações pobres num in which the paternalistic order was sometimes
campo simbólico em que a ordem paternalista confirmed, sometimes challenged when
era por vezes confirmada, por vezes desafiada, casualization of labor relations and dependence
quando a precarização das relações de trabalho triggered resistance and conflict.
e dependência desencadeava resistências e
Keywords: Poor Countrymen; Paternalistic
conflitos.
Protection; Work Casualization.
Palavras Chave: Sertanejos Pobres; Proteção
Paternalista; Precarização do Trabalho.

Artigo recebido em 31 ago. 2014.


Aprovado em 06 out. 2015.

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POPULAÇÃO, COMPADRIO E TRAJETÓRIAS DE
GENTE NEGRA NA CIDADE DA PARAÍBA OITOCENTISTA

Solange P. Rocha1

Introdução

Neste artigo, analiso a prática de compadrio e a trajetória individuais de pessoas


negras da capital da província da Paraíba do Norte, a então na Cidade da Paraíba,
utilizando fontes seriais (assentos de batismo, do período de 1833 a 1860) que,
com tratamento da demografia histórica, proporcionam informações acerca do
conjunto da população e as suas redes de sociabilidade. A Micro-História, por
sua vez, é uma abordagem interessante, pois com a “redução da escala”2 propicia
a recuperação de experiências individuais concretas como a de Manuel Pedro
Cardoso Vieira, nascido no final da década de 1840 e falecido em 1880, e a de
Eliseu Elias César, cujo natalício ocorreu no primeiro ano da década de 1870 e
viveu até o ano de 1923. Ambos fizeram parte da elite paraibana e exerceram
diferentes funções intelectuais e políticas nas últimas décadas do Império brasileiro.
Para o desenvolvimento deste estudo, a perspectiva teórica da História Social da
Cultura3, que considera os indivíduos anônimos como agentes históricos relevantes,
possibilitou não só mostrar as experiências coletivas de pessoas negras livres, mas
também retirar da obscuridade e do silenciamento sujeitos singulares que viveram
na sociedade escravista, caracterizada por relações de poder fortemente baseadas
em hierarquias e em intensas práticas clientelísticas.
Os dados seriais foram coletados e organizados durante a execução do projeto
de pesquisa Gente Negra na Paraíba Oitocentista: arranjos familiares e redes de
sociabilidade, desenvolvido nos anos de 2009 a 20114. Tal projeto resultou numa
base de dados composta por 8.057 pessoas batizadas (livres, libertas e cativas)
na freguesia de Nossa Senhora das Neves, entre os anos de 1833 e 1860 e tem
sido utilizado para a elaboração de estudos, sobretudo, na área de História, como
monografias de conclusão de curso de graduação e dissertações de mestrado,

1
Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Professora Adjunta do
Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba.
E-Mail: <banto20ufpb@gmail.com>.
2
LEVI, Giovani. “Comportamentos, recursos, processos: antes da ‘revolução’ do consumo”. In:
REVEL, Jacques (org.). Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Tradução de Dora Rocha.
Rio de Janeiro: FGV, 1998, p. 203-224.
3
THOMPSON, Edward Palmer. A formação da classe operária inglesa – vol. 1. Tradução de
Denise Bottman. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987; e THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em
comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. Tradução de Rosaura Eichenberg. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
4
Aproveito para agradecer o apoio recebido para o desenvolvimento do mencionado projeto.
Contei com o auxílio da Pró-Reitoria de Pós-graduação da UFPB e do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico/ CNPq que financiaram bolsas de Iniciação Científica às/
aos graduandas/os do curso de História que estiveram (ou estão) sob a minha orientação.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 183


evidenciando, assim, as potencialidades das informações sobre o sacramento do
batismo para a elaboração de pesquisas em diferentes temáticas, como escravidão,
relações familiares e parentesco espiritual; e em variados segmentos sociais, por
exemplo das elites políticas, dos povos indígenas, das camadas médias e pobres,
da população escravizada, mulheres, etc.
Entretanto, no presente texto, o objetivo principal foi de examinar os laços de
compadrio firmados por gente negra5 livre e as trajetórias individuais de Cardoso
Vieira e Eliseu César, com o propósito de apreciar as relações sociais do citado grupo
em sociedade escravista ao longo do Oitocentos, um período complexo e de várias
mudanças, pois, se de um lado, na primeira metade do século, no plano político,
ocorreu a formação da nação brasileira e foi a fase áurea do tráfico transatlântico,
por outro, na segunda metade, o escravismo estava em processo de desagregação
e ocorria uma intenso crescimento da população, sobretudo de indivíduos livres
e negros, e houve um crise política que resultou no regime republicano (1889).
Antes de adentrar nas relações de compadrio das pessoas negras, é importante
apresentar a freguesia de Nossa Senhora das Neves, localizada na Cidade da
Paraíba, destacando dados populacionais e econômicos, sendo que também serão
utilizadas informações de todo o Brasil, visando uma melhor compreensão do
contexto oitocentista.

A Cidade da Paraíba Oitocentista: população e economia

Na primeira metade do século XIX, a capital da Paraíba do Norte tinha características


do mundo rural, uma vez que, apesar de concentrar órgãos administrativos e
religiosos, os seus entornos eram formados por engenhos de produção de açúcar e
de seus derivados, por pequenas propriedades rurais, como os denominados sítios ou
as chácaras. Segundo relato do cronista Henry Koster (1942[1816])6, em passagem
pela mencionada urbe, em 1810, a cidade possuía uma “visão peculiar” [...], com
“vastos e verdes bosques, bordados por uma fila de colinas, irrigados pelos vários
canais que dividem o rio”, [...] e formados “pelas árvores soberbas”. Mesmo no final
do Império, memorialistas não deixaram de apontar que, após os limites geográficos
do bairro mais populoso da capital, o Tambiá, se viam “matas, verdadeiras florestas”,
que se transformavam em “coito de pretos fugidos e malfeitores”7. Contudo, esta não
era uma característica exclusiva da Cidade da Paraíba, uma vez que o processo de
modernização das cidades brasileiras se iniciou no final do século XIX, vários espaços
mantinham a mescla de urbano e rural.
Como dito, foram poucas as mudanças na paisagem da Cidade da Paraíba,
permanecendo, em 1851, aspectos rurais com seus dez engenhos, sendo alguns

5
No presente estudo, utilizo as designações “negro(a)” e “população negra”, seguindo as perspectivas
dos contemporâneos movimentos sociopolíticos negros(as) no Brasil, que reconhecem tanto
uma marca identitária quanto suas origens raciais e sociais, ou seja, descendem de africanos(as)
escravizados(as). Contudo, quando pertinente, farei referências aos termos da época em estudo, o
século XIX, ou seja, “preto”, “pardo”, “semibranco”, “cabras” ente outros.
6
KOSTER, Henry. Viagens pelo Nordeste do Brasil. Tradução de Luiz da Câmara Cascudo. 2. ed.
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942, p. 70.
7
MEDEIROS, Coriolano. O Tambiá da minha infância. João Pessoa: Conselho Estadual de Cultura/
SEC, 1994, p. 26.

184 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


deles assim denominados: Cuiá, Paul, Mandacaru, Velho, Graça, Cumbe, Água
Fria8. Por essa época, a população da capital era composta por aproximadamente
28.082 habitantes, de diferentes condições jurídicas (livres: 23.691 e escravizados:
4.391)9. Na documentação paroquial pesquisada foi encontrado um mosaico de
cores e origens étnico-raciais, de pretos (africanos e crioulos), passando por brancos
e indígenas, até a indicação de vários mestiços (“pardas”, “cabras”, “semibrancas”,
“cafuzas” e “mamelucas”), evidenciando o processo de mestiçagem presente nessa
província do Norte do Brasil. Dessas, a classificação mais frequente foi a categoria
“pardo”/ “parda”.
Importa salientar que, no século XIX, o termo “pardo” era usado para se referir a
uma pessoa resultante dos relacionamentos inter-raciais, entre africanos e europeus.
No século XIX, os “pardos” costumavam se autoclassificar dessa forma, com a
intenção de se distinguirem dos crioulos (primeira geração de africanos nascidos
no Brasil) e de outros grupos mestiços, como os “cabras” (descendentes de ‘raças
mistas’ variadas), os “cafuzos” (mistura entre pessoas negras e indígenas) e os
“mamelucos” (fusão entre pessoas brancas e indígenas). Segundo Karasch (2000),
esses mestiços no Rio de Janeiro Imperial orgulhavam-se de serem tratados como
“pardos”, abominavam o termo “mulato”, desprezavam os negros e procuravam
se aproximar dos brancos10.
Desde o final do século XVIII, esses indivíduos negros se tornaram uma camada
crescente da população livre ou liberta, em boa parte dos territórios brasileiros, em
razão da reprodução natural e do aumento de alforrias que costumava beneficiar
os “mulatos”11. No contexto oitocentista, a população brasileira aumentava de
forma significativa. Nas primeiras décadas do século XIX eram cerca de 4 milhões
de indivíduos, ao ser divulgado o primeiro censo, em 1872, registrava-se quase
10 milhões de habitantes no país, com uma ampla maioria de livres, por volta
de 7 milhões, entre os quais um expressivo número de pessoas com ascendência
africana (3.324.278 eram pardos e 1.957.226 pretos)12. De forma, que um processo
iniciado nas décadas finais do Setecentos se alargou no Oitocentos. Nesse sentido,
Barickman destaca que

[...] a longa história da escravidão e a oferta abundante


de escravos como decorrência do tráfico combinava-se no
Nordeste com as práticas relativamente liberais em relação

8
RELATÓRIO de Presidente da Província da Paraíba, Antonio Coelho de Sá e Albuquerque, 1851,
Mapa 10 – Açúcar – Indústria. Disponível em: <http://brazil.crl.edu/>. Acesso em: 09 fev. 2015.
9
RELATÓRIO de Presidente da Província da Paraíba, Antonio Coelho de Sá e Albuquerque, 1851,
Mapa 5 – População – estatísticas. Disponível em: <http://brazil.crl.edu/>. Acesso em: 09 fev. 2015.
10
KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). Tradução de Pedro M.
Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 39.
11
KLEIN, Herbert. “Os homens livres de cor na sociedade escravista brasileira.” Dados - Revista de
Ciências Sociais, Rio de Janeiro, IUPERJ, n. 17, 1978, p. 03-27.
12
NOVAIS, Fernando A. (coord.) & ALENCASTRO, Luiz Felipe (org.). História da vida privada no
Brasil – Vol. 2 – Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das Letras,
1997, p. 474; e FARIAS, Juliana B.; GOMES, Flávio dos S.; SOARES, Carlos Eugênio L. & ARAÚJO,
Carlos Eduardo M. Cidades negras: africanos, crioulos e espaços urbanos no Brasil escravista do
século XIX. 2. ed. São Paulo: Alameda, 2006, p. 11-14.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 185


à manumissão para dar origem a uma população livre de
cor [negra] que crescia rapidamente e que, em começo
do século XIX, já superava numericamente a população
branca.13

A situação não era diferente na Paraíba. Em 1823, a província tinha-se uma


população livre de 83,6% e a escravizada de apenas 16,3%. Passadas quase
cinco décadas, no ano de 1870, somente 8,3% eram cativos e aumentava-se o
número dos livres para 91,6%14. Quando foi divulgado o Censo de 1872, num
total de 376.226 habitantes em toda a Paraíba, a maioria era de pardos, somavam
188.241 (ou 50%), os classificados como pretos eram apenas 33.697 (ou 9%).
Entre os recenseados restantes, estavam os brancos (144.721, ou 38,5%) e os
indígenas aldeados (9.567 ou 2,5%)15. Com relação ao estatuto jurídico, havia uma
ampla maioria de pessoas livres – 354.700 (94,3%) – em comparação com um
grupo reduzido de indivíduos escravizados – 21.526 (5,7%)16. Como se percebe,
mulheres, crianças e homens pardos formavam uma “enorme massa de pessoas”,
por todo o Brasil oitocentista, porém, em geral, eram “destituídas de propriedade
e de instrumentos produtivos”, quase sempre, precisavam recorrer às relações
clientelares para garantir sua sobrevivência, tanto no meio urbano quanto no
rural17.
Além disso, apesar de pessoas negras (livres e libertas) passarem a se firmar
como uma maioria física, essas não eram conceituadas na sociedade escravista.
Pelo contrário, predominavam visões e práticas que levavam a desclassificação
social, de modo que membros da elite imperiais costumavam afirmar que esse
segmento social preferia o lazer a ter uma vida disciplinada e vinculada ao trabalho.
Certamente, essa era uma visão da classe senhorial, cujas relações sociais eram
baseadas no mando e na expectativa de ser sempre obedecida. Mulheres e homens
livres e libertos estavam inseridos no mundo de trabalho, sobretudo desempenhando
atividades temporárias em engenhos de açúcar e de seus derivados (rapadura
e aguardente). Atuavam também em outras propriedades rurais, cultivando
produtos de exportação, como o algodão, na criação de animais e, em áreas
pertinentes, realizavam coletas de frutos, pescavam e plantavam alimentos para
a sua sobrevivência e abastecimento da população18. Nas cidades, trabalhavam
inúmeras atividades, entre outras, como o transporte de variados tipos de objetos
e ainda exerciam diferentes funções domésticas. Uma experiência concreta foi a de
Felipe Bezerra da Silva, de 56 anos, pardo, casado, morador na capital paraibana,

13
Grifos meus. BARICKMAN, Bert J. “As cores do escravismo: escravistas ‘pretos’, ‘pardos’, ‘cabras’
no Recôncavo baiano, 1835”. População e Família. São Paulo, CEDHAL/USP, n. 2, 1999, p. 16.
14
MEDEIROS, Maria do Céu & SÁ, Ariane Norma de Menezes. O trabalho na Paraíba: das origens à
transição para o trabalho livre. João Pessoa: Ed. Universitária/ UFPB, 1999, p. 55.
15
NOVAIS & ALENCASTRO, História da vida..., p. 474, p. 481.
16
GALLIZA, Diana S. O declínio da escravidão na Paraíba, 1850-88. João Pessoa: Ed. Universitária/
UFPB, 1979, p. 83-84.
17
GRAHAM, Richard. O clientelismo e a política no século XIX. Tradução de Celina Brandt. Rio de
Janeiro: Editora da UFRJ, 1997.
18
MEDEIROS & SÁ, O trabalho na Paraíba..., p. 82-84.

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que exercia diferentes funções, era “oficial de carpina”, agricultor e trabalhador
sazonal no Engenho Tibiri (Santa Rita), na década de 184019.
Vale assinalar que, em algumas províncias, desde 1870, como a de Pernambuco,
os trabalhadores livres constituíam a maioria nos engenhos de açúcar.20 Na Paraíba
o mesmo ocorreu, pois a cada década do século XIX diminuía a população
escravizada, todavia, apesar da modernização da agroindústria, com a criação dos
engenhos centrais e usinas, aumentava o número de engenhos de açúcar que se
estendeu até os primeiros anos do século XX, em 1916.21 A cultura de algodão, que
se tornou, a partir da década de 1860, um dos principais produtos de exportação,
cresceu de forma sistemática e no século seguinte foi fundamental para a economia
paraibana22. Assim, para o desenvolvimento dessas atividades econômicas, os
proprietários tiveram que usar os “braços nacionais”, entre os quais estavam os
indivíduos livres (negros e brancos) e os egressos do cativeiro.

População e redes de compadrio de gente parda livre

Nesta parte do artigo, primeiro apresento o perfil das 8.057 pessoas23, indicando
o sexo, faixa etária, cor/ grupo étnico-racial e a condição jurídica das pessoas
batizadas entre 1833 e 1860. Em seguida, selecionei o grupo composto por pardos
livres para investigar suas relações de compadrio na Cidade da Paraíba oitocentista.
Entre as pessoas batizadas, entre 1833 e 1860, constam 4.019 do sexo feminino,
4.025 do masculino e 13 registros estão danificados ou ilegíveis, por isso mesmo
não permite determinar se eram homens ou mulheres, mas percebe-se que não
havia desequilíbrio sexual. Acerca da faixa etária foi possível verificar apenas
que crianças predominavam entre os batizandos. Somente 21 adultos (africanos
escravizados, pardos e brancos) receberam o primeiro sacramento na paróquia em
estudo, mas ressalto que sobre 592 indivíduos nada foi registrado, alcançando um
índice de 6,3% batizados sem a variável idade.
Entretanto, 68% foram classificadas racialmente. Desses, uma maioria era de
mestiços, predominando os “pardos” (2959) e os “mulatos” (05), representando
36,8% (ou 2.964) dos indivíduos batizados, em seguida, vinham os brancos
(1.783, ou 22,1%). Entre os estrangeiros, procedentes da África Ocidental e
Centro-Ocidental, havia apenas 46 africanos (0,6%) que receberam o primeiro
sacramento na Cidade da Paraíba. É relevante destacar que em tal época o

19
As informações sobre o trabalhador Felipe Bezerra da Silva estão publicadas em: “O PRESIDENTE
Pedro Chaves: tentativa de morte”. Revista do Instituto Historico e Geographico Parahybano,
Cidade da Paraíba, IHGP, n. 4, ano IV, 1912, p. 287-343.
20
EISENBERG, Peter L. Modernização sem mudança: a indústria açucareira em Pernambuco, 1840-
1910. Tradução de João Maia. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Campinas: Editora da UNICAMP, 1977,
p. 201.
21
GALLIZA, O declínio da escravidão...., p. 34; p. 43-44; GALLIZA, Diana S. de. Modernização sem
desenvolvimento na Paraíba: 1890-1930. João Pessoa: Idéia, 1993, p. 50.
22
GALLIZA, Modernização se mudança..., p. 53.
23
Os as informações batismais estão em uma base de dados, armazenados em CD-ROM e referem-se
aos Livros de batismo da freguesia de Nossa Senhora das Neves, numerados e datados da seguinte
maneira: I -1833-41; II -1846-50; III -1850-57; IV -1857-63, com algumas lacunas, faltando,
portanto, os anos de 1842 a 1845. Doravante, Livro de Batismo NSN – ano, fls, e sigla do acervo,
AEPB.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 187


comércio transatlântico de africanos era proibido pelas Leis de 1831 (Diogo Feijó)
e de 1850 (Eusébio de Queirós), o que pode justificar a baixa presença de pessoas
africanas batizadas. Sendo que entre os seus descendentes, os designados de
“crioulos”, havia um total de 463 (5,7% do total de batizados). Eles também foram
identificados como “pretos crioulos” em 52 assentos de um total de 68 nos quais
o padre indicou os indivíduos como “pretos”. Assim, ocorreu um leve crescimento
do grupo dos crioulos, totalizando 6,3% (ou 515) de filhos(as) de africanos
nascidos no território paraibano. Tratando-se dos indígenas poucos casos foram
registrados nos livros de batismo da capital, apenas 52 (0,6%) “índios”. A mistura
deles com outros segmentos sociais também não foi muito expressiva: apenas 03
cafuzos (indígena com negros) e 3 mamelucos (indígena com brancos), ou seja,
um percentual de 0,03% para cada um. Houve, ainda, 77 casos (ou 0,9%) de
pessoas classificadas como “semibrancas”. Sem dúvida, uma categoria instigante
para se pensar as hierarquias sociais e relações de poder na sociedade escravista e
que merece análises mais detalhadas24. Entre os últimos estavam os “cabras”, em
número diminuto, não mais que 24. Em seu estudo a historiadora Karasch (2000),
considerou tal termo “difícil de interpretar” e, na opinião dela, “parece” ser um
grupo de pessoas nascidas de relações inter-raciais de vários tipos de mestiços25.
Por fim, mais de 31% (2.569 pessoas) não tiveram nenhuma indicação sobre o
pertencimento a um grupo étnico-racial e outros poucos são de registros danificados
(05), conforme representação no Gráfico 1.

Gráfico 1
COR OU GRUPO RACIAL DE PESSOAS BATIZADAS
NA FREGUESIA DE NOSSA SENHORA DAS NEVES - 1833/1860

Fonte: Livros de batismo NSN, 1833/1860, AEPB.

24
Análises incipientes sobre os semibrancos foram feitas por: MONTEIRO, Sandra. Pessoas negras
livres e libertas na freguesia de Nossa Senhora das Neves, 1851-1860. Monografia (Graduação em
História). Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2010; e GUIMARÃES, Matheus Silveira.
Famílias e laços de solidariedades negras: parentesco da população parda e semibranca da Cidade
da Parahyba do Norte (1833-1860). Monografia (Graduação em História). Universidade Federal da
Paraíba. João Pessoa, 2013.
25
KARASCH, A vida dos escravos..., p. 39.

188 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


Outra variável analisada foi a condição jurídica dos indivíduos batizados
(8.057). Este foi um dado que raramente era preenchido pelo padre responsável
pelo ritual do primeiro sacramento na Cidade da Paraíba. Poucos registros, um
total de 2.308 (28,6%), destacam a situação social dos(as) batizandos(as), que
resultou na seguinte distribuição: 965 livres, 249 libertos(as), 975 escravizados(as),
119 expostos(as). É bom assinalar que, apesar da ampla maioria não receber
classificação, provavelmente, compunha o grupo de pessoas livres ou libertas, visto
que em todo o período de vigência da escravidão, o registro de batismo era um
documento importante. De um lado, poderia ser utilizado para se comprovar a
posse de um(a) cativo(a); de outro, a população negra livre ou liberta, que vivia
sob o estigma da escravidão, se confrontada, poderia requerer o assento batismal
para comprovar sua condição jurídica.
Vamos adentrar no universo das crianças, mulheres e homens pardos de todos os
estatutos jurídicos. Inicialmente, identifiquei 34,6% (2.964) anotados nos assentos
batismais como “pardos”. Todavia, esse grupo pode ser ampliado, uma vez que
entre os que não constavam a cor e/ou grupo étnico-racial, foi possível encontrar
mais 733 crianças batizadas, com indicação da classificação racial/cor do genitor
e/ ou da genitora, a exemplo do casal “pardo” e “livre” formado por José Virgínio
Pereira e Domiciana Maria da Conceição, pais legítimos de João (sem indicação
da cor) e Rosa (parda), batizados, respectivamente, em 1836 e 1840 e pela mãe
solteira Antonia Maria (“parda livre”), cujo filho Francisco (“livre”) foi batizado
em 08 de agosto de 184126. De forma que, considerando a classificação étnico-
racial das crianças e dos genitores, foram identificadas 3.697 crianças pardas, ou
45,8%, do total de batismos realizados no na freguesia de Nossa Senhora das
Neves, período em análise. Sem dúvida, um grupo étnico-racial expressivo.
Mas qual era o perfil desses 3.697 indivíduos pardos, considerando sexo e a
condição jurídica? Análises com cruzamento dessas variáveis nos mostram um
equilíbrio sexual, pois eram 1.864 do sexo feminino e 1.833 do masculino. Conforme
o esperado, a fonte paroquial pesquisada disponibilizou poucas informações sobre
a condição jurídica dessas pessoas. Apresentando, portanto, uma maioria – um
total de 2.277 (61,6%) de pessoas pardas – sem indicação do estatuto social.
Entre os pardos classificados estavam 793 livres; 404 cativas; 183 libertas e 40
expostos, totalizando, portanto, 1.420 (38,4%) com indicativo de estatuto social.
Entretanto, na análise que se segue, deter-me-ei nos dados das pessoas livres
pardas, para examinar seus arranjos familiares e seus laços de compadrio, pois
em outro trabalho27, investiguei a população negra composta por pessoas pardas
escravizadas e libertas da cidade da Paraíba do Norte. As crianças expostas foram
recentemente pesquisadas por Oliveira e a população africana da capital paraibana
por Guimarães28.

26
Conforme Livro de Batismo NSN – 1833-1841, fls. 42, 148 e 185, AEPB.
27
ROCHA, Solange P. Gente negra na Paraíba Oitocentista: população, família e parentesco espiritual.
São Paulo: Editora da UNESP, 2009.
28
OLIVEIRA, Luiza Iolanda P. Cortez de. Entre casas, ruas e igrejas: crianças abandonadas na cidade
da Paraíba oitocentista. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal da Paraíba. João
Pessoa, 2014; e GUIMARÃES, Matheus S. Diáspora africana na Paraíba do Norte: trabalho, tráfico e
sociabilidades na primeira metade do século XIX. Dissertação (Mestrado em História). Universidade

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De maneira que, considerando a gente parda de condição livre, analisei 3.070
cerimônias batismais. Primeiro, examinei os seus arranjos familiares e suas relações
de compadrio e, no último tópico, as trajetórias de dois homens negros, ditos
“pardos” livres, que viveram na sociedade oitocentista e tiveram uma atuação
exitosa na vida política e, atualmente, estão presentes na memória da Academia
Paraibana de Letras como patronos, Manoel Pedro Cardoso Vieira (1848-1880),
ocupa a Cadeira 10 e Eliseu Elias César (1871-1923), a Cadeira 1429.
Atentamos, para os tipos de famílias dos 3.070 pardos livres. Uma maioria
(totalizando 1.897 casos) estabeleceu o matrimônio sacramentadas pela Igreja
Católica; outros 1.101 faziam parte de família natural/ monoparental, com forte
indicação da presença materna. Os 72 assentos restantes referenciam-se as
diferentes situações, alguns estavam danificados ou ilegíveis e outros verificamos a
indicação do nome do pai e da mãe da criança batizada, sem indicação do estado
conjugal de ambos, conforme segue alguns exemplos: André Rodrigues da Costa
e Joana Maria da Conceição eram pais de Silvério, batizado em 16 de outubro
de 1846. Em outro registro batismal, aparecem Antonio Felis e Candida Maria da
Conceição como pais de Florença, os três são classificados como “pardos”, mas
nada é colocado a respeito do estatuto jurídico e do tipo de filiação ou se os pais
eram solteiros, contudo, está anotado “pais moradores da praia de Tambaú”30.
Destaco também o caso de Joaquim Mariano da Silva Frazão e Gertrudes Maria
Velloza, pais de José (“pardo”), batizado em 16 de janeiro de 1859 e, na década
de 1840, Galdino (“pardo”), cujos pais, Joaquim José de Sant´Anna e Leocádia
Maria da Conceição, o levaram a pia batismal em 21 de fevereiro de 184731.
Esses casos nos possibilitam identificar as uniões sem formalização do matrimônio
católico. Nem por isso, deixavam de proporcionar o acesso de seus(suas) filhos(as)
ao primeiro sacramento: o batismo.
Evidenciamos ainda que era comum os pardos livres adotaram como sobrenomes
que referenciam o universo católico, como os nomes de santas e símbolos religiosos,
como Conceição, Anunciação, Sant´Ana, Santos, Anjos, Nazareth, Espírito Santo, Cruz,
Sacramento entre outros. Mas também incorporavam sobrenomes de origem portuguesa,
como Coelho, Rocha, Nascimento, Silva, Ribeiro, Almeida, Menezes, entre outros.
No tocante as alianças espirituais, verifiquei que os pais e mães pardos livres
sempre procuraram oferecer um protetor ou uma protetora para seus filhos.
Eles estiveram presentes em 99% das cerimônias batismais. Somente em casos
extremos, quando as crianças eram batizadas urgentemente, por “perigo de morte”,
não houve escolha de padrinho ou madrinha. Todavia, a presença masculina foi
mais frequente, eles participaram de 95,1% das cerimônias do primeiro ritual
do catolicismo. O mesmo não se deu com a madrinha. Elas foram indicadas em
70,8% dos batizados. Em síntese, apesar das ausências das mulheres, percebemos
a valorização do batismo e a formação de redes de solidariedade entre os protetores

Federal da Paraíba. João Pessoa, 2015.


29
Consultar: ESTATUTO da Academia Paraibana de Letras. João Pessoa: Curso de Tipografia e
Encadernação, 1944, p. 13.
30
Os assentos batismais de Silvério e Manoel constam no Livro de Batismo II-NSN, 1846-1850, fl.
32, e o de Florença no mesmo livro na fl. 40, AEPB.
31
Livro de Batismo IV-NSN, 1857-63, fl. 30 e Livro de Batismo II-NSN, 1846-50, fl. 50, AEPB.

190 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


espirituais com a criança e sua família.
Acerca do perfil dos protetores espirituais, apesar das limitadas informações,
pude constatar a preferência por pessoas livres. Esta afirmação se faz com base na
importância do assento batismal, pois era um dos documentos para se comprovar
a condição jurídica, como destacado anteriormente. Nos assentos batismais
quando os protetores espirituais tinham alguma vinculação com o cativeiro, sempre
havia a informação de sua condição jurídica – “escravo” ou “escrava” – seguida
do nome do proprietário. Entre os pardos livres apenas sete crianças tiveram um
padrinho cativo e duas delas tiveram madrinhas cativas. A tendência, portanto, era
de mães e pais pardos buscarem alianças horizontais, ou seja, com pessoas de sua
mesma condição. Além disso, quando possível, estabeleciam laços com pessoas
livres com algum prestígio social. Na Cidade da Paraíba, entre 1833 e 1860, eles
escolheram 311 padrinhos que eram advogados, engenheiros, cirurgiões, religiosos
e dispunham de patentes militares, sobretudo, na guarda nacional. Por sua vez,
as madrinhas costumavam ostentar o título de “dona” (502 casos de mulheres
casadas) e, mais raramente, de “senhorinha” (02 casos de mulheres solteiras),
indicando as vinculações com os homens, o marido ou o pai, pois no contexto
oitocentista, as mulheres das camadas altas e médias, eram socializadas, em geral,
para manter-se no espaço privado.
Quase todas as mães e pais pardos e livres batizaram seus bebês na Igreja Matriz,
a de Nossa Senhora das Neves (foram 92,3% dos batizados nesse). Os outros 7,7%
escolheram como espaço do primeiro sacramento alguma das capelas existentes
na Paraíba (132 casos), como a de Nossa Senhora da Penha, Nossa Senhora da
Conceição. Em seguido, batismos foram celebrados em outras Igrejas (62 casos),
como a das Mercês, Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora da Misericórdia,
Convento Santo Antonio, e poucos (28) em oratórios particulares, em residências
ou em propriedades rurais e urbanas, a exemplo do batismo realizado na “casa
de Manoel Saturnino”; no “Oratório Particular de Herculano Elias de Figueiredo”
e no Oratório do “Sítio Mussuré”32. Ainda sobre a escolha do lugar de batismo,
procurei verificar os batismos em “espaços negros”, como as Igrejas Nossa Senhora
do Rosário (pretos) e Igreja Nossa Senhora Mãe dos Homens (pardos), mas, não
identifiquei nenhum dado expressivo, apenas 14 batismos, sendo oito no primeiro
templo católico e seis no segundo.
Em resumo, sobre o grupo de pardos, foi possível identificar crianças livres,
cujos pais e mães tinham a mesma tez; procuravam estabelecer entre si relações
familiares dentro do sistema de valores da época, ou seja, casavam-se na Igreja.
A respeito das alianças espirituais, pude verificar também a formação de laços
horizontais, tendo em vista que eles escolheram preferencialmente pessoas livres
para apadrinharem suas crianças. Porém, vale enfatizar que, com esses primeiros
apontamentos de pesquisa, ainda não é possível destacar se mulheres e homens
pardos estabeleceram laços verticais, isto é, com os grandes e médios proprietários,
o que poderia favorecê-los nas relações de trabalho, com o acesso a um lote de
terra, ou mesmo evitando ser recrutado pelo Exército. Para se ter uma melhor
compreensão acerca desses sujeitos sociais, novas fontes precisam ser agregadas

32
As referências sobre os batismos em oratórios estão no Livro III-1850-57, nas fls. 19, 41 e 241,
AEPB.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 191


aos futuros estudos, viabilizando, sobretudo, análises qualitativas.
Apesar desses limites, pesquisas recentes nos mostram que, além do parentesco
espiritual, essa população parda livre da Paraíba buscou formar outras redes de
sociabilidades, participando de irmandades religiosas: espaços que reuniam
pessoas com interesses comuns, tanto de ordem espiritual e festiva (procissões,
rezas, festas negras, etc.) quanto de ajuda mútua (auxílio na doença, rituais antes e
pós-morte, etc.). Em toda a província da Paraíba oitocentista havia seis irmandades
exclusivas dos pardos livres: a Nossa Senhora do Livramento (1851), Glorioso São
José (1851), Nossa Senhora da Conceição (1851), Nossa Senhora do Socorro
(1863), Nossa Senhora das Mercês (1867) e Nossa Senhora das Dores (1868).
Eles participavam, ainda, de mais duas: Bom Jesus dos Martírios (1863) e Nossa
Senhora do Rosário (1791), junto com os “pretos”33. Na Cidade da Paraíba havia,
no mínimo, três irmandades nas quais esses pardos podiam frequentar, eram as
de São José, de Bom Jesus dos Martírios e de Nossa Senhora Mãe dos Homens.
Essa última funcionava na Igreja com o mesmo nome e, no século XVIII, era uma
irmandade de “pardos cativos”, passando, no Oitocentos, a ser de “pardos livres
e libertos”34. Talvez essa mudança tenha ocorrido para atender o alto índice da
população parda (livres e libertos). Ainda, nas proximidades da capital, na freguesia
de Santa Rita, havia mais duas irmandades consideradas “espaços dos pardos”, a
de Nossa Senhora do Socorro e a de Nossa Senhora da Conceição35.
A igreja, espaço do sagrado, servia, então, não só para o recebimento de
sacramentos, mas também para a socialização e formação de parentescos espirituais,
pela via do compadrio. Além disso, nesse espaço sagrado era comum que indivíduos
negros realizassem festas religiosas para vivenciarem a sua cultura. Na Cidade da
Paraíba, os pardos participavam de expressões variadas da cultura negra, dentre
elas, estavam os “sambas”, os “batuques”, as danças “estrepitosas”, os “entrudos”,
o maracatu, entre outras. Em comum, essas manifestações eram “perseguidas”
pelas autoridades, mas mantiveram-se ao longo do tempo, adentrando o século XX
e, certamente, tiveram importância para minimizar as tensões de pessoas negras
que viviam em sociedade escravista36.

Negros Letrados: de políticos a patronos das Letras

A população negra paraibana não era composta somente de gente negra livre
inserida no mundo do trabalho, exercendo funções que exigiam apenas o esforço
físico. Havia algumas exceções. Para tanto, apresento, de forma breve, as trajetórias
de dois homens negros – ou como eram denominados: “mulatos”, “mestiços” e

33
LIMA, Maria da Vitória B. Liberdade interditada, liberdade reavida: escravos e libertos na Paraíba
escravista, século XIX. Brasília: FCP, 2013, p. 87-89.
34
Requerimento do juiz e irmãos da Irmandade de Nossa Senhora Mãe dos Homens dos Pardos
Cativos da cidade da Paraíba, enviado ao rei de Portugal D. José I, solicitando esmolas para o
término da construção da capela para nela depositarem a imagem da mesma Senhora. AHU_ACL_
CU_014, Cx. 24, 09 nov. 1767. Ver, também, compromisso aprovado pela Assembleia provincial,
em 1874, referente à irmandade Nossa Senhora Mães dos Homens, com indicação de “pardos
livres e libertos”, Caixa 1874, no Arquivo Histórico Waldemar B. Duarte.
35
As informações estão em: LIMA, Liberdade interditada..., p. 80-87.
36
Mais informações no capítulo 2 de: LIMA, Liberdade interditada...

192 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


“pardos” – que compunham a elite paraibana.
O primeiro, Manoel Pedro Cardosa Vieira, nasceu em 1848, no interior do Brasil
oitocentista, no Conde/ Paraíba (então chamada de Jacoca), era um “mulato”
livre, filho de pais proprietários de terras e de cativos no litoral da Paraíba (Manoel
Cardoso Vieira e Maria Severina Vieira). Em sua trajetória profissional, fez os
caminhos comuns aos homens da elite oitocentista, qual seja, no secundário,
estudou no Lyceu Provincial da Paraíba do Norte e no ensino superior, cursou
Direito na Faculdade de Direito de Recife. Ao longo de sua vida, exerceu várias
funções profissionais e políticas, como professor de Retórica no Lyceu Paraibano,
foi jornalista de alguns periódicos políticos e, aos 30 anos, elegeu-se deputado
geral pela Paraíba, como representante do Partido Liberal, na 17ª Legislatura,
que vigorou no período de 1878 a 1881, e fez parte do grupo de parlamentares
abolicionistas. No início de 1880, algo de inesperado ocorreu: o seu falecimento,
quando vivia na capital do Império (Rio de Janeiro), interrompendo sua atuação
parlamentar. Sua morte foi causada por “febre perniciosa, um sintoma genérico,
mas que debilitava rapidamente um indivíduo na época e podia finalizar sua
existência física”37.
Vejamos os temas políticas que estavam sendo debatidos nacionalmente no
contexto em que Cardoso Vieira esteve no Parlamento, na Câmara dos Deputados,
entre 1878 e 1880. Desde 1850, o Brasil passava por transformações econômicas e
sociais importantes, pois o escravismo estava em desagregação e se discutia como
abolir a escravidão e consolidar o trabalho livre no país. Na década de 1870, no
plano político, o Partido Liberal retornava ao poder central – de 1875 a 1885,
os políticos liberais estiveram presidindo o Conselho dos Ministros –, após um
ostracismo político de dez anos. Na região de origem de Cardoso Vieira, o Norte
(atualmente tal região é denominada de Nordeste), vivia um momento difícil, visto
que a agroindústria açucareira estava em crise e a mão de obra era diminuída,
em razão do fim do tráfico internacional e também por causa da intensificação
do tráfico interprovincial. A lavoura algodoeira amenizava a crise econômica,
contudo, no Sudeste, o café figurava como principal produto de exportação do
país e, por isso mesmo, recebia expressivo apoio governamental para modernizar
sua infraestrutura e minimizar os “problemas” com os trabalhadores, a partir do
estímulo à imigração estrangeira. O Norte ainda procurava enfrentar os ônus
causados pela “grande seca” – 1877, 1878 e 1879 – que solapou não apenas suas
atividades econômicas, mas também a mão de obra cativa, que apresentou altos
índices de mortalidade.
Foi neste contexto que Cardoso Vieira representou a Paraíba no Parlamento.
Em 1878, na Corte Imperial reencontrou colegas do curso de Direito, como
Joaquim Nabuco (1849-1910), que integrava o Partido Liberal e surgia como uma
das principais lideranças do movimento abolicionista no parlamento brasileiro. O
deputado paraibano se aliou a este grupo e não deixou de se manifestar sobre
assuntos variados, a exemplo das mudanças no mundo do trabalho.
Com base nos seus discursos parlamentares, podemos identificar seu

37
Os dados biográficos de Cardos Vieira estão em: MARTINS, Eduardo. Cardoso Vieira e o Bossuet
da Jacoca: nota para um perfil biográfico. João Pessoa: Secretaria da Educação e Cultura, 1979. Ver
o Anexo, onde constam os seus discursos parlamentares.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 193


posicionamento, por exemplo, a respeito da escravidão. Como integrante do
grupo abolicionista no parlamento, se colocava em defesa da Abolição imediata.
Entretanto, como a maioria dos políticos da época, acreditava na necessidade da
imigração de europeus para ocupar o mercado de trabalho brasileiro. Cardoso
Vieira, ao que me parece, esteve próximo dos liberais moderados reformistas, que
defendiam mudanças que não implicariam em expressivas rupturas com a elitista,
hierárquica e excludente sociedade brasileira do século XIX. Os programas liberais,
em geral, propunham reformas políticas e no judiciário, entre outras38.
Num de seus discursos, mostrou-se ser um indivíduo questionador e, de certa
maneira, era um provocador. Esse comportamento esteve presente ao inquirir
os integrantes da mesa da Câmara dos Deputados, sobre o sentido da palavra
interpelação, com vistas a realizar, provavelmente, seu primeiro pronunciamento.
Assim, em 12 de março de 1879, interrogou o “ministro do império”, para obter
respostas de seis questões a respeito do “flagelo da sêca”, referentes às medidas
emergenciais governamentais como distribuição de “socorro às vítimas” (alimentos),
autorização de construções de estradas de ferro nas províncias de Alagoas e do
Ceará39.
Somente seis dias depois, em 18 de março do mesmo ano, conseguiu voz na
Câmara dos Deputados. No primeiro momento, Cardoso Vieira fez uma longa
explanação, cuja tônica foi a reclamação pelo fato de sua interpelação não ter sido
atendida. Ora afirmava, ora interrogava: “eu quero que esta câmara me diga o
que representamos nós [deputados] nesse país”? Em seguida, chamava a atenção
sobre o papel do parlamentar, sobretudo, daqueles que “tinham compromissos
com a província, para os deputados que têm de dizer verdades ao país, que tanto
carece de ouvi-las?” Ou ainda, analisava a atuação do Partido Liberal no poder,
ao afirmar à câmara que “a nossa estada no poder não será eterna, pelo contrário
pode ser efêmera”, complementava “não devemos quebrar no governo as armas
com que lutamos, com que vencemos e com quem havemos de amanhã combater
a oposição”40.
Para enfrentar a crise de mão, Cardoso Vieira se alinhou a um grupo que não
considerava viável investir na imigração chinesa. Num das sessões da Câmara
dos Deputados, ele fez uma nova interpelação ao presidente do Conselho dos
Ministros, Cansanção de Sinimbu (1878-80), pedindo explicações a respeito do
uso de cerca de 120:000$ para as despesas de missão na China, para viabilizar a
imigração chinesa. Ao debater tal tema, Cardoso Vieira nos mostra uma faceta que
se assemelhava aos políticos liberais, que eram contra a substituição da escravidão
africana pela “escravidão asiática”, e considerava o povo chinês como “obediente,
passivo, incapaz de resistência”. Seu posicionamento, o colocava próximo das
teorias científicas raciais, ao declarar que “basta olhar para o chim, ver o seu
crâneo, sua configuração, todo o seu físico, para conhecer que o corpo de um chim

38
Algumas ideias sobre o debate da atuação política de liberais encontram-se em: CARVALHO, José
Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2009. Em especial no capítulo intitulado “Os partidos políticos imperiais: composição e ideologia,”
p. 199-228.
39
MARTINS, Cardoso Vieira..., p. 104-105.
40
MARTINS, Cardoso Vieira..., p. 106-111.

194 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


não contém a alma de um povo que emigra”41. Na audiência, ele destacou ainda
a responsabilidade do seu partido com as reformas necessárias para acabar com
a escravidão, quando afirmou ser um defensor das “causa da liberdade”, porém
defendia a vinda de “imigrantes livres”, isto é, europeus para serem inseridos no
mercado de trabalho.
Como percebemos, Cardoso Vieira era um homem audacioso, combativo,
agressivo, mas marcado também pela contradição quando se tratava da questão da
escravidão, pois, de um lado, discursava ser um adepto das “causas da liberdade”,
entretanto, é possível identificar que ao longo de sua vida, como era comum entre
integrantes da elite oitocentista, manteve a posse de cativos42. Sua prática social
evidencia, de certa maneira, a dificuldade da sociedade brasileira em extinguir a
escravidão – um debate iniciado no princípio do século XIX e que se estendeu até
1888 – sendo o Brasil o último país do ocidente a abolir o cativeiro de africanos e
de seus descendentes.
Outro importante intelectual negro paraibano, nascido no século XIX, foi Eliseu
Elias César (1871-1923)43. Ele foi descrito por um dos seus biógrafos como um
homem “alto, forte, corpulento”, dotado de “temperamento de lutador e de [...]
talento” e de “inteligência privilegiada”. Reconhecia-se como um “mestiço, de
alma de meridional”. Foi casado com a paraibana Bernardina Honorato Cezar
e pai de três filhas44. O ano de nascimento de César, 1871, foi um ano marcante
com a aprovação da Lei Rio Branco, que resultou em forte impacto nas relações
escravistas e no aceleramento do processo de desescravização do Brasil, pois, além
do ventre da mãe cativa passar a ser “livre”, havia vários artigos favoreciam a gente
escravizada, a exemplo da possibilidade de comprar a carta de liberdade pela via
judicial, contrapondo-se aos seus proprietários. Vale o registro acerca da recepção
de tal lei pelas mulheres escravizadas na Paraíba, com base em Nóbrega. Este
salientou que “as negras cantavam e dansavam numa alegria estranha, pelas ruas,
sobretudo, defronte ao velho templo, evocador do nome daquela santa [Nossa
Senhora do Rosário]”. Conclui, salientando que a promulgação da referida Lei foi
recebido com plena “satisfação nas senzalas” e de “tristeza nas casas grandes”45.
Esse homem negro (ou como diziam “pardo”, “mestiço”46, mas também de
“gigante negro”) com 24 anos migrou para Pernambuco para estudar e depois
viveu de forma intensa em várias cidades brasileiras. Conseguiu superar sua origem
pobre e com apoio de parentes paternos senão abastados com mais condições
econômica que sua mãe, bem como com relações clientelares, teve êxito ao se

41
MARTINS, Cardoso Vieira..., p. 224.
42
Informações mais detalhadas sobre a posse de cativos pela família de Cardoso Vieira estão em
artigo de minha autoria: ROCHA, Solange P. “Cardoso Vieira, um homem na composição das elites
da Paraíba oitocentista: biografia, memória e história”. Revista Crítica História, Maceió, CPDHis/
UFAL, Ano III, n. 6, dez. 2012, p. 01-18.
43
MARTINS, Eduardo. Elyseu Elias Cézar: notícia biográfica. João Pessoa: mimeo, 1975. (Discurso
de posse no Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba, em 22 nov. 1975).
44
MARTINS, Elyseu Elias Cézar..., p. 20, p. 31.
45
NÓBREGA, Seráphico. “Discurso de posse na Academia Paraibana de Letras”. Revista da Academia
Paraibana de Letras, João Pessoa, n. 6, 1955, p. 275-302. As informações estão na p. 281.
46
Em 1935, mais de uma década após a morte de Eliseu E. César, o escritor Ascendino Leite (1915-
2010) o classificou como “pardo” e “figura mestiça” e “mulato”, em: LEITE, Ascendino. “O pardo
Elyseu Cesar”. In: ANUÁRIO da Parahyba. João Pessoa: Imprensa Oficial, 1935, p. 65-69.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 195


escolarizar e concluir um curso superior de direito. Nóbrega, no início dos anos
de 1950, destaca que Eliseu César foi apadrinhado “por um rico comerciante”, o
capitão Caetano Daniel de Carvalho; já seus parentes paternos foram considerados
integrantes de uma “distinta família”. Ainda não disponho de fontes históricas para
compreender tal afirmação: Será que a família César compunha a elite econômica?
Por enquanto, os indícios mostram que seu pai estava inserido nas camadas médias
urbanas. Ele, Dulcídio Augusto César (“branco”) trabalhava como “administrador
dos correios da Paraíba e do Rio Grande do Norte” e nas horas vagas costumava
atuar como “ator”, por mera distração, como reforça Nóbrega47.
Ainda sobre sua família paterna e Eliseu César é relevante destacar as várias
relações de sociabilidade que podem explicar, mesmo que parcialmente, a sua
mobilidade social. Sua vida esteve, frequentemente, vinculada a indivíduos da
elite. Na infância recebeu apoio da família paterna, que com análise nos assentos
batismais já citados, pude identificar seus vínculos parentais (consanguíneos e
espirituais), a exemplo do assento de batismo de seu pai Dulcídio Augusto César
(julho de 1851, classificado como “branco”), e de ampla rede formada por seus
avôs (Christiano de Fojos Correia Cézar e Vicência Ferreira de Albuquerque) ao
longo de duas décadas.
No seu assento de batismo foi denominado “Elizeô”, sua mãe, Maria Joaquina
de Freitas (mulher solteira), foi indicada como “parda” e os padrinhos foram o
Capitão Caetano Daniel de Carvalho e Dona Silvana Augusta Pessoa de Carvalho,
no dia 17 de dezembro de 1871, quando ele estava com cinco meses de idade. A
cerimônia foi realizada pelo vigário Francisco de Paula Mello Cavalcanti na Matriz
de Nossa Senhora das Neves e nos indica uma relação horizontal, ou seja, de
pessoas pardas e brancas livres, mas os compadres apresentam título de distinção
social indicados pela patente de Capitão e do título de Dona48.
Tratando dos avós paternos de Eliseu César percebemos uma ampla rede de
sociabilidade, envolvendo pessoas de diferentes grupos étnico-raciais e sociais,
apadrinhando crianças entre as décadas de 1830 até final dos anos de 1850. Eram
crianças negras, oriundas do grupo de pardos (livres e libertos), crioulos livres e
também seus parentes, como sobrinhos, que foram registrados como brancos49.
Essas alianças dos avós de Eliseu E. César nos mostram as sociabilidades entre
a gente negra com a população branca. Considerando, o funcionamento das
instituições sociais no Oitocentos, essas redes poderiam fortalecer relações sociais
e políticas e, se necessário, acionadas, em diferentes momentos, para garantir um
melhor viver em sociedade escravista. Parece-me que César se beneficiou desses

47
Tal qualificativo atribuído a Eliseu E. César foi feito por Seráphico Nóbrega. Ver: NÓBREGA,
“Discurso de posse...”, p. 280, p. 292.
48
O assento de batismo de Eliseu E. César encontra-se no Livro de Batismo NSN VII-1871-75, fl. 47,
AEPB.
49
Os assentos batismais das crianças batizadas pelos avôs de Eliseu César, o senhor Christiano
de Fojos Correia Cezar, estão nos seguintes livros: I-1833-41, fls. 115, 120, 136, 143 e 181; III-
1850/57, fls. 62 e 113 e IV-1857-63, fl. 31, todos no AEPB. Considero interessante destacar que
uma das crianças batizadas, em 1851, é indicada como moradora do “lugar do Salgado do Paratibe,
desta freguesia [Nossa Senhora das Neves]”. Contemporaneamente, essa localidade é território
da Comunidade [Urbana de] Remanescente de Quilombos Paratibe, reconhecida pelo governo
brasileiro por meio da Fundação Cultural Palmares, em 2006.

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laços espirituais e de amizade para ascender socialmente, e ao longo da sua vida
considerou estratégico estabelecer novas redes de sociabilidade. Nesse sentido,
constata-se que, desde muito jovem, tinha amizades importantes. Tanto é que, em
1894, antes de iniciar o curso de Direito, em Recife, publicou um livro de poesia
– Algas – com prefácio de Castro Pinto (1863-1944), um intelectual renomado na
Cidade da Paraíba.
Apesar de extrapolar a temporalidade proposta no presente texto, é importante
mostrar, brevemente, a trajetória profissional de Eliseu César no pós-abolição.
Após concluir o curso superior de Direito, em 189850, ele se mudou para Vitória
(Espírito Santo), onde iniciou a sua vida profissional na área jurídica, escolhendo a
“promotoria pública”. Ficou pouco tempo em terras capixabas, por volta de 1900,
mudou-se para Belém, e se vinculou politicamente ao senador e intendente do Pará
Antonio Lemos (1843-1913). Por mais de uma década, vivenciou intensamente a
vida política, no início da organização do novo sistema, o republicano, exercendo
atribuições importantes para consolidar tal regime em terras nortistas. Para tanto,
desempenhou diferentes funções, como administrador público (secretário da
Intendência Municipal de Belém), deputado estadual (1909), jornalista (Gazeta de
Belém, A Província do Pará, 1903) e diretor d´O Jornal, em 190551. Parece-me
que sua mais importante experiência profissional, ocorreu em Belém, na fase de
formação do regime republicano. Com quase quarenta anos, depois da queda de
Lemos, migrou para o Sudeste, passou, rapidamente, por Santos (São Paulo) e
acabou por se estabelecer no Rio de Janeiro. Nesta região, continuou a escrever
em jornais, a atuar como advogado e orador. Martins (1975) menciona que numa
“tribuna do júri”, ele era “simplesmente assombroso, fantástico, arrancava lágrimas,
emocionava, comovia, enternecendo, empolgando”. Conseguia também dominar
e vencer “qualquer corrente de hostilidade e antipatia ao seu cliente”52. Enfim,
mantinha uma característica dos intelectuais do Oitocentos, um sujeito com várias
facetas, que desempenhava múltiplas atividades.
As trajetórias desses dois indivíduos singulares nos mostram a complexidades das
experiências históricas, ampliando, nossos conhecimentos sobre as pessoas negras.
Ademais, apesar de haver um silenciamento sobre suas origens étnico-raciais, eles
foram eternizados e monumentalizados com a inclusão entre os “imortais” da
Academia de Letras, espaço, da elite intelectual de um determinado território, que
na Paraíba foi criada em 1941. O estatuto da academia reiterava que no seleto
grupo de trinta literatos, seriam “ocupadas por paraibanos de nome firmado nas
letras [...] e que sejam notáveis por suas ações intelectuais”53.

50
Há registro de que Eliseu César concluiu o curso de Direito, em 1898. Ver: MARTINS, Henrique.
Lista geral dos bacharéis e doutores que têm obtido o respectivo grau na Faculdade de Direito
do Recife: desde sua fundação em Olinda, no anno de 1828, até o anno de 1931. 2. ed. Recife:
Typografia Diário da Manhã, 1931, p. 58.
51
MARTINS, Elyseu Elias Cézar..., p. 20. Henrique Martins publicou a “Primeira Conferência
Pública”, realizada no “Theatro da Paz, na manhã do dia 7 de setembro de 1900, pelo Sr. Dr. Elyseu
Elias Cezar”, em que podemos constatar que, em 1900, César residia em Belém.
52
MARTINS, Elyseu Elias Cézar..., p. 27.
53
Conforme consta no Estatuto da Academia Paraibana de Letras..., p. 01. Na ocasião da publicização
do Estatuto da Academia, divulgaram também o seu lema em latim, Decus et Opus, que significa
“Estética e Trabalho”.

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Considerações Finais

Com a realização da análise dos dados de compadrio firmados por gente


parda livre, pude constatar que eles buscaram formar famílias legítimas, conforme
orientado pelas normas eclesiásticas, aproximavam-se, assim, da ordem social
vigente no Oitocentos. Além disso, incorporaram sobrenomes e procuraram ter
como protetores espirituais de seus filhos, sobretudo, os homens/padrinhos, mas
as mulheres/madrinhas participaram de mais de 70% das cerimônias de batismo.
Quando possível também procuravam firmar relações com pessoas livres com
status superior. Considero que essas foram algumas estratégias criadas pelos
pardos livres viverem em sociedade escravista. As trajetórias de vida de Cardoso
Vieira e de Eliseu César, que participaram ativamente de debates políticos de suas
épocas, sem dúvida, foram exceções. Mas são personagens históricos importantes
e merecem ser visibilizados, pois nos proporcionam novas representações sobre
pessoas negras, consideradas, geralmente, como escravizadas e com incapacidade
intelectual, nos deixando entrever que as relações sociais no século XIX eram mais
complexas do que imaginamos, assim como é fundamental uma compressão mais
alargada do passado escravista, viabilizando conhecimentos sobre experiência
histórica de sujeitos outrora silenciados.



198 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


RESUMO ABSTRACT
Este artigo apresenta alguns resultados de This article presents the partial results of a
projeto de pesquisa em andamento, no qual research project that is still in progress, in which
se investiga a população negra e as redes de the black population and the sociability networks
sociabilidade da freguesia de Nossa Senhora das of the parish of Nossa Senhora das Neves, the
Neves, a mais antiga da Paraíba. Tendo como oldest of Paraíba, have been investigated. The
aporte teórico a História Social da Cultura, que theoretical support consists of the Social History
considera os sujeitos anônimos como agentes of Culture, that considers the anonymous
históricos relevantes, a exemplo das experiências subjects as relevant historical agents, such as
da população negra da Cidade da Paraíba que the experiences of the black population at the
firmaram laços espirituais, o compadrio, como Cidade of Paraíba who had relations of spiritual
forma de se estabelecer em sociedade escravista, kinship, recognized as godparent relationships,
hierarquizada e com relações de poder marcadas a way to establish these people in a slave
por práticas clientelísticas. O estudo teve society, characterized by hierarchical and power
como base documental as fontes paroquiais, relations marked by clientelist practices. The
sobretudo, os assentos de batismo (anos de documental base of this study was centered
1833 a 1860), que, a partir da utilização de in the parish sources, especially the baptism
procedimentos da demografia histórica para records (from 1833 to 1860), which, from the
a organização de dados seriais, proporcionou operating procedures of historical demography
análises acerca da gente parda livre sobre seus for the organization of serial data, provided
arranjos familiares, as alianças e estratégias de analysis about the pardos who were free, their
sobrevivência e de sociabilidade forjadas na family arrangements, alliances and survival and
sociedade escravista, mostrando o predomínio sociability strategies forged in the slave society,
de laços espirituais horizontais, ou seja, as showing the predominance of horizontal spiritual
pessoas negras livres procuravam formar suas kinship. In other words, free black people
alianças com indivíduos da sua mesma condição sought to form their alliances with individuals
e, em alguns casos, com prestígio social e/ of the same condition and, in some cases, with
ou com bens materiais, o que potencialmente social prestige and/or material possessions,
facilitaria suas vidas, uma vez que poderiam which would make their lives easier, since they
receber apoios em momentos difíceis, tanto could receive support in difficult times, both to
para comprovar sua condição jurídica quanto prove their legal status and to enter or remain
para adentrar ou permanecer em atividades in economic activities. Moreover, despite the
econômicas. Ademais, apesar das dificuldades difficulties to obtain qualitative data on the
para a obtenção de dados qualitativos sobre a experience of free black people who lived in
experiência de pessoas negras livres que viveram Paraíba during the nineteenth century, it was
na Paraíba do século XIX, foi possível identificar possible to identify and elaborate the trajectory
e elaborar a trajetória de dois sujeitos singulares, of two unique subjects, one of them has born
um deles nascido no final da década de 1840, in the late 1840s, Manuel Pedro Cardoso Vieira
Manuel Pedro Cardoso Vieira (1848-1880), (1848-1880), and another in the early 1870s,
e outro no início dos anos de 1870, chamado called Eliseu Elias César (1871-1923), both
Eliseu Elias César (1871-1923), ambos fizeram were part of Paraiba elite and exercised different
parte da elite paraibana e exerceram diferentes intellectual and political functions in the last
funções intelectuais e políticas nos últimos anos years of the Brazilian monarchy. Removing them
da Monarquia brasileira, procurei, assim, retirá- from the historical invisibility and expanding the
los da invisibilidade e ampliar conhecimentos knowledge about the historical experiences of
sobre a experiência histórica de sujeitos outrora subjects who were silenced.
silenciados.
Keywords: Black Population; Godparent
Palavras Chave: População Negra; Compadrio; Relationships; Trajectories of Live; 19th Century
Trajetórias; Cidade da Paraíba Oitocentista. Cidade da Paraíba.

Artigo recebido em 30 mai. 2015.


Aprovado em 11 out. 2015.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 199


“CARREGANDO AS PEDRAS DO PECADO”:
A REFORMA CATÓLICA DEVOCIONAL
NO SERGIPE OITOCENTISTA

Magno Francisco de Jesus Santos1

Sete de junho de 1847. Na cidade de São Cristóvão, capital da Província de


Sergipe, os deputados se reuniam para a sessão ordinária. Era o final de uma manhã
chuvosa e as principais lideranças políticas da região iriam discutir e aprovar alguns
projetos de relevância. Entre as propostas, destacava-se a petição de Joaquim
Fernandes Barboza, tesoureiro da venerável Ordem Terceira do Carmo, pela qual
solicitava a “consignação de 1.000$000 reis para revestir-se de prata o andor do
Senhor dos Passos”. O pedido foi encaminhado para a Comissão de Justiça Civil e
Eclesiástica e nos meses seguintes foi aprovada.
Essa petição era uma medida voltada para a ornamentação do andor da mais
venerada imagem de Sergipe provincial. O Senhor dos Passos de São Cristóvão
era a devoção aglutinadora de romeiros de praticamente todos os recônditos
da província, que anualmente lotavam as ruas da capital na festa penitencial,
marcada pela presença de promesseiros, intelectuais e lideranças políticas. As
celebrações eram organizadas pelos leigos que integravam a mais prestigiada
irmandade sergipana e contava com a presença de religiosos de diferentes ordens,
especialmente os carmelitas.
Esse processo de reorganização da romaria do Senhor dos Passos ocorreu de
forma concomitante com a redução do número de religiosos nos conventos da
cidade e com as primeiras ações no processo de reforma devocional católica. Diante
disso, nesse artigo, temos como foco discutir o processo de reforma devocional
na cidade de São Cristóvão, ao longo da segunda metade do século XIX, em
consonância com a renovação das práticas penitenciais na romaria do Senhor dos
Passos. A segunda metade do século XIX foi marcada pelo processo de restrição
da atuação do clero regular no Brasil e em Sergipe, especialmente em relação
aos frades franciscanos e carmelitas. Contudo, nesse mesmo período, houve um
estímulo para a criação de conventos e hospícios, assim como pela realização
das santas missões pelos capuchinhos em diferentes localidades da província. Os
capuchinhos, de origem italiana, passaram a atuar em terras sergipanas como os
agentes centrais da reforma devocional católica2, na qual buscavam restringir os
casos de desvios do clero secular e orientar as práticas devocionais dos leigos de
acordo com os cânones estabelecidos pela Santa Sé.
Nesse sentido, São Cristóvão, capital da província de Sergipe até os idos de

1
Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense. Mestre em Educação pela Universidade
Federal de Sergipe. Professor Titular da Faculdade Pio Décimo (Aracaju – SE). E-Mail:
<magnohistoria@gmail.com>.
2
De acordo com Riolando Azzi, a reforma católica no Brasil, fortalecida ao longo da primeira
metade do século XX, “foi um movimento iniciado em meados do século XIX”. Cf. AZZI, Riolando.
“O início da restauração católica no Brasil: 1920-1930”. Síntese, vol. IV, n. 10, mai./ ago. 1977,
p.61-89.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 201


1855, e sede do Convento Nossa Senhora da Conceição dos capuchinhos, tornou-
se o lócus irradiador da reforma devocional em terras sergipanas. As ações do
clero, no sentido de restringir as práticas devocionais das camadas populares, por
vezes, estavam em consonância com as políticas públicas provinciais de controle
das manifestações populares e de modernização das vias públicas, ou seja, reforma
católica e reformas urbanas dialogavam em sintonia com as questões do higienismo
e difusão da civilidade. Com isso, a romaria dos Passos, maior manifestação católica
de Sergipe oitocentista, passava a ser vista pelas autoridades religiosas, por vezes
como uma ameaça ao novo modelo devocional, por outras como um modelo a
ser reorientado.
A romaria do Senhor dos Passos era uma solenidade católica de caráter
penitencial e expressava pelas ruas de São Cristóvão inúmeros atos de desobriga
de práticas sacrificiais públicas3. O ápice dessas práticas ocorria na Procissão do
Depósito, realizada na noite do segundo sábado da Quaresma. Nas trevas da
noite cristovense suavizadas pelo luar, os penitentes cumpriam suas disciplinas. De
acordo com Manuel dos Passos de Oliveira Telles:
A imagem do Senhor dos Passos tem fama de milagrosa
e outra coisa não quer dizer a execução de tantos votos e
penitências. Na primeira procissão, a do depósito, o povo
aperta-se, condensa-se, luta muitas vezes por carregar o
andor ou pelo menos agarrar as misericórdias dele. Alguns
indivíduos cingem coroas de espinhos feitas de cipó de
japecanga, muitos outrora açoitavam-se com disciplinas;
outros aparecem amarrados de um grotesco como barrocos
para o matadouro a carregarem grandes pedras. Conta-
se de boca em boca o milagre da muda que alimentava
devoção particular à sagrada imagem e num ano, ao passar
a procissão do depósito, repetiu desembaraçadamente: Eu
também vou acompanhar o Senhor dos Passos. – Desde
então recuperou a fala.4
Na segunda metade do século XIX, intensificou-se a relação entre os membros
das associações religiosas de leigos e os romeiros do Senhor dos Passos em São
Cristóvão5. Esse foi um momento marcado pela perda de espaço das ordens religiosas

3
SANTOS, Magno Francisco de Jesus. “O Prefácio dos Tempos”: caminhos da romaria do Senhor
dos Passos em Sergipe (séculos XIX e XX). Tese (Doutorado em História). Universidade Federal
Fluminense. Niterói, 2015.
4
TELLES, Manuel dos Passos de Oliveira. “Ao romper do século XX: o município de S. Christovam”.
O Estado de Sergipe, Aracaju, mar./ abr. 1917, p. 02.
5
Ainda na primeira metade do século XIX é possível encontrar ações restritivas às ações das
ordens religiosas regulares no Brasil pós-independência, como a proibição da entrada de religiosos
estrangeiros, a expulsão de ordens na qual os seus respectivos superiores não residissem no
país e a proibição de entrada de noviços nas ordens beneditinas e carmelitas, nos idos de 1822.
De acordo com Márcio Moreira Alves, o governo imperial “produziu, entre 1828 e 1830, uma
série de restrições ao funcionamento das ordens religiosas, mais independentes do Estado que o
clero secular: foi interdita a entrada de religiosos estrangeiros no território do Império; proibiu-se
a criação de novas ordens, dos dois sexos; expulsaram-se os religiosos ou as congregações que

202 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


no Brasil em decorrência da lei imperial que determinava a proibição de noviços
nas ordens existentes no país6. Nesse período, na antiga capital sergipana, existiam
três ordens regulares atuando na cidade: Carmelitas, Franciscanos e Capuchinhos7.
No caso dos carmelitanos, a situação da ordem ao longo do período imperial foi
extremamente delicada, pois a sua trajetória foi permeada por atos institucionais de
extinção e de apropriação dos bens religiosos, assim como pela constante redução
do número de frades. De acordo com o historiador Augustin Wernet, a extinção da
referida ordem foi resultante da ação promovida pela Assembleia Provincial:
Paralelamente processou-se a extinção da Ordem dos
carmelitas da Antiga Observância em Sergipe. Aí foi uma
resolução da Assembleia de Sergipe, aprovada em seguida
pela Câmara dos Deputados. Os padres da Câmara dos
Deputados estão de acordo e até aplaudem este processo,
havendo apenas divergência ao redor da partilha dos bens,
ou seja, se esta partilha pertence à esfera das assembleias
legislativas ou ao Governo Central.8
A crise na ordem carmelitana em Sergipe apresentava grande repercussão na
romaria do Senhor dos Passos, pois além da mesma ser organizada pela Ordem
Terceira do Carmo, com fortes vínculos com os frades da referida ordem, a Procissão
do Depósito tinha como palco inicial a igreja conventual. Nesse caso, os impasses
acerca do patrimônio dos religiosos influíam na organização das solenidades e
também envolveu o interesse dos terceiros carmelitanos. É preciso lembrar que a
existência da Ordem Terceira estava condicionada a presença dos frades carmelitas,
pois somente os religiosos detinham o poder da investidura do hábito para irmãos
leigos. Nesse caso, a extinção da ordem levaria a extinção da poderosa associação
de leigos.
Talvez esse tenha sido um dos motivos para a permissão de continuidade dos
carmelitas em Sergipe em meados do século XIX. A presença dessa ordem foi
marcada pelo controle estatal, no qual a entrada de noviços ocorria apenas com
a permissão do governo provincial ou do governo central. Diante dessas ações
restritivas, o Convento do Carmo em São Cristóvão ao longo do século XIX
contava com um número reduzido de religiosos, sempre com sérias ameaças de ser

obedeciam a Superiores não residentes no Brasil. Os Beneditinos e os Carmelitas não podiam mais
aceitar noviços. À medida que as ordens desapareciam, as suas propriedades eram incorporadas no
patrimônio nacional”. ALVES, Márcio Moreira. A Igreja e a política no Brasil. São Paulo: Brasiliense,
1979, p. 28.
6
Segundo Márcio Moreira Alves, “o parecer do ministro da Justiça de 19 de maio de 1855, que
deveria ser provisório, teve força de lei até ao fim do Império, trinta e quatro anos mais tarde:
proibia que as ordens religiosas aceitassem noviços sem o consentimento do Governo, garantindo
assim a sua extinção a longo prazo”. ALVES, A Igreja e a política..., p. 30.
7
Em 1859 existiam na cidade de São Cristóvão os seguintes conventos e hospícios: Nossa Senhora
do Carmo (carmelitas), Bom Jesus (franciscanos) e Nossa Senhora da Conceição (capuchinhos).
Cf. Correio Sergipense, Parte Official, Governo da Província, expediente do dia 21 de outubro de
1859, Aracaju, Anno XXII, n. 82, 07 dez. 1859, p. 01, col. 3.
8
WERNET, Augustin. “Crise e definhamento das tradicionais ordens monásticas brasileiras durante
o século XIX”. Revista Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo, n. 42, 1997, p. 125.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 203


fechado. Além disso, os carmelitas apresentam um agravante em relação a outros
religiosos da província, pois a ordem possuía um grande número de propriedades,
fato que dificultava a administração e a manutenção de todos os estabelecimentos
religiosos em atividade. Observem-se os dados do Quadro I9:

QUADRO I
DISTRIBUIÇÃO DAS PROPRIEDADES DA
ORDEM DO CARMO NO SERGIPE OITOCENTISTA

PROPRIEDADE LOCALIZAÇÃO ELEMENTOS


Freguesia Nossa Senhora da Vitória de
Convento do Carmo Igreja, convento e sítio
São Cristóvão
Hospício Nossa Senhora do Carmo Freguesia Santo Amaro das Brotas Igreja e hospício
Convento Nossa Senhora do Carmo Igreja, convento e
Freguesia do Espírito Santo
do Rio Real fazenda
Convento Nossa Senhora do Carmo Freguesia Nossa Senhora do Amparo Igreja, convento e
de Palmares do Riachão fazenda
Freguesia Nossa Senhora da Vitória de
Engenho Quindongá Engenho
São Cristóvão
Freguesia Nossa Senhora da Vitória de
Engenho Pitanga Engenho
São Cristóvão
Freguesia Nossa Senhora da Vitória de
Engenho Coqueiros Engenho
São Cristóvão
Engenho Velho da Ribeira Freguesia Nossa Senhora da Vitória Engenho
Freguesia Nossa Senhora da Vitória de
Aldeia de Água Azeda Aldeia Indígena
São Cristóvão
Aldeia Nossa Senhora do Carmo de Freguesia Nossa Senhora da Saúde de Aldeia Indígena (início
Japaratuba Japaratuba do século XIX)

Por meio desses dados é possível observar como a Ordem do Carmo em Sergipe
era possuidora de importantes propriedades. Os frades precisavam administrar
duas aldeias10, três conventos, um hospício11, além de quatro engenhos. Na

9
Propriedades da Ordem do Carmo no Sergipe oitocentista. Quadro elaborado pelo autor. Fonte:
notas na imprensa sergipana do século XIX. Não foram inclusas as casas existentes na cidade de
São Cristóvão, nem os africanos e crioulos escravizados nos seus respectivos conventos e engenhos.
Foram localizadas notícias da existência de três mulheres escravizadas no Convento de Palmares
e seis no de São Cristóvão. Todavia, esse número era bem mais expressivo, pois a maior parte
encontrava-se nos engenhos.
10
Em 1850 as aldeias de Sergipe foram extintas pelo governo provincial, pois o mesmo alegou que
em Sergipe não existiam mais índios. Cf. DANTAS, Beatriz Góis. “Os índios em Sergipe”. In: DINIZ,
Diana Maria de Faro (coord.). Textos para a História de Sergipe. Aracaju: UFS/Banese, 1991, p. 19-
25; MOTT, Luiz. Sergipe colonial e imperial: religião, família, escravidão, e sociedade (1591-1882).
São Cristóvão: Editora UFS; Aracaju: Fundação Oviêdo Teixeira, 2008. No século XVII, a Ordem
do Carmo ainda possuía o engenho Ilha e as terras da Aldeia do Geru, posteriormente vendidas
aos padres jesuítas. Cf. SANTOS, Ane Luíse Silva Mecenas dos. Conquistas da fé na gentilidade
brasílica: a catequese jesuítica na aldeia do Geru (1683-1758). Dissertação (Mestrado em História).
Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2011.
11
Era um convento de pequenas proporções. Segundo o dicionário oitocentista, era “Convento
pequeno de Religiosos, onde se agasalhão os que vão de passagem, e são da mesma ordem”.
PINTO, Luiz Maria da Silva. Diccionario da Lingua Brasileira por Luiz Maria da Silva Pinto, natural

204 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


segunda metade do século XIX essas propriedades praticamente se restringiam aos
conventos e ao hospício, ou seja, isso revela a desarticulação da ordem e a perda
das propriedades por meio da venda ou das terras devolutas. Observe-se, na figura
a seguir, a distribuição dos conventos e hospícios da Ordem Carmelita no Sergipe
oitocentista:

Fig. 1 – Conventos e Hospícios da Ordem do Carmo no Sergipe oitocentista.

A situação das ordens regulares em Sergipe amenizou-se no governo provincial


de Sebastião Gaspar de Almeida Boto12, importante político sergipano do partido
liberal, membro da Ordem Terceira do Carmo e devoto do Senhor dos Passos. Na
sua gestão foi aprovada a Resolução Número 95 e estabeleceu a permissão do
ingresso de noviços:

Resolução N. 95
De 12 de Março de 1842.
Sebastião Gaspar de Almeida Boto, Presidente da Província
de Sergipe: Faço saber à todos os seus habitantes, que a
Assembléa Legislativa Provincial Decretou e eu Sanccionei
a Resolução seguinte:
Art. 1º. Fica concedida aos Reverendos Provinciaes dos
Conventos do Carmo, e de São Francisco desta Cidade,
licença, para cada um delles, acceitar vinte Noviços,
naturaes desta Província, para os seus collegios nos
Conventos desta mesma Cidade, ou onde melhor convier.

da Provincia de Goyaz. S.r.: Na Typographia de Silva, 1832, p. 586.


12
DANTAS, Ibarê. Leandro Ribeiro de Siqueira Maciel: o patriarca do Serra Negra e a política
oitocentista em Sergipe. Aracaju: Criação: 2009.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 205


Art. 2º Ficão revogadas todas as disposições em contrário.
Mando por tanto & c.13
A aprovação do ingresso de noviços na Ordem do Carmo ocorreu em um
momento de dificuldades e críticas em relação à preservação de seus templos.
O Convento do Carmo encontrava-se em completa ruína, com parte do teto
desmoronado e com ameaça da fachada ruir sobre o casario da Praça do Carmo14.
Já Igreja do Ordem Terceira, da devotada imagem do Senhor dos Passos, de acordo
dados da imprensa oficial da província, “jazia todo adulterado, e em lamentável
decadência. Sobre a Ara sagrada, nas estações chuvosas, recáem do tecto densas
goteiras, que a fazem ensopar, deixando-a na maior indecência e impiedade”.
A situação degradável do templo foi alvo de denúncias na imprensa local, pois,
em nome da liberdade o Correio Sergipense se propôs a “dar um bosquejo no
menos-prezo, em que jazem as casas de Deos vivo”. O jornal oficial da Província
de Sergipe denunciava a situação do edifício, com o “assoalho do Claustro, dos
salões, carcomidos pelas chuvas, que o putreficão”15.
Tais denúncias estavam condizentes com as demandas civilizatórias desejadas
para a sociedade sergipana de antanho. Isso demonstra a presença preocupações
similares aos embates existentes na cidade do Rio de Janeiro nesse mesmo
período, na qual havia o investimento de sanar a cidade de suas mazelas16. Antes
de descrever o estado de conservação do prédio que abrigava a mais poderosa
associação de leigos de Sergipe oitocentista, os editores do jornal elucidaram as
preocupações com a construção da liberdade civilizadora:
Nos séculos appellidados da ignorância, do selvagismo, e
da barbaridade, pomposas Aras e, maravilhosos Templos
erão erigidos ao culto Divino; hoje porém, em tempo de
luzes, em dias, em que só ufanamos respirar um ar livre,
e saudável, desmoronão-se os edifícios Religiosos, nem
se-quer se fazem conservar essas architecturas fulgentes
dos antiquários tempos (ó fatalidade!). Hé da venerável
Ordem-terceira do Carmo desta Cidade, que por esta vez
passamos a occupar-nos.17
No mesmo mês, Frei Francisco de Santa Rosa de Viterbo, Prior do Carmo de
Sergipe publicou uma correspondência de Frei Thomaz de Aquino Ribeiro, Prior
da Bahia na qual autorizava os reparos nos edifícios religiosos de Sergipe, com
a utilização da verba obtida a partir da venda do antigo Engenho Quindongá18.

13
Correio Sergipense, São Cristóvão, n. 351, 14 mai. 1842, Parte Official, Governo da Província,
Resolução n. 95, p. 01, col. 1 e 2.
14
“CONVENTO do Carmo”. Correio Sergipense, São Cristóvão, n. 354, 25 mai. 1842, p. 01, col. 1 e 2.
15
“A ORDEM-TERCEIRA do Carmo”. Correio Sergipense, São Cristóvão, n. 356, 11 jun. 1842, p.
03.
16
CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia
das Letras, 1996.
17
“A ORDEM-TERCEIRA...”, p. 03.
18
O Engenho Quindongá pertencia aos frades carmelitas de Sergipe e no início da década de 40 do
século XIX foi vendido ao Brigadeiro Domingos Dias Coelho e Mello, pai do Barão da Estância e

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Os tempos provinciais nos quais Sebastião Boto atuou como presidente e vice-
presidente em Sergipe foram marcados pela preocupação em recuperar os templos
católicos e restituir as antigas ordens da capital provincial. Enquanto os legisladores da
Assembleia Imperial buscavam coibir o ingresso de religiosos europeus, o presidente
provincial de Sergipe argumentava sobre os benefícios da reabertura dos conventos
na cidade de São Cristóvão. De acordo com a fala de Anselmo Francisco Peretti
Abrão, presidente da província em 1843, “é com effeito a Religião, como sabeis, a
educação do pobre, o freio que retém o rico, e o poderoso no meio dos desvarios,
que inspira a riqueza, e o poder, hé enfim o complemento da Moral, e de toda a
Legislação”19. Anselmo Abraão ainda mencionou sobre a falta de execução da Lei
que permitia o ingresso de noviços nos conventos do Carmo e de São Francisco,
fato que teria motivo a ausência de procura dos jovens para adentrar nas ordens.
Todavia, a informação mais reveladora da fala presidencial foi o convite para os
frades capuchinhos italianos reabrirem o seu hospício em São Cristóvão.
Penso porém que não tardarão muito a chegar os
Capuchinhos, que, em virtude da Lei Provincial de 8 de
Março de 1841, foram mandados vir da Itália; e como nesse
negócio a previsão da Assembléa, que vos procedeo, não
andou a pár de seo zelo, tenciono fazê-los acolher, quando
aqui se appresentarem, no Convento de Santo Antônio,
até que as ruínas, que, sob a pomposa denominação de
Templos principiados do Senhor da Mizericórdia, e de
S. Gonçalo, forão designados para o Hospício de taes
Religiosos, sejão postas em circunstâncias de recebê-los.20
Essa ação de promover a entrada de frades capuchinhos em Sergipe contribuiu
para a difusão inicial do processo de reforma devocional. Enquanto os antigos
conventos encontravam-se arruinados e com dificuldades para receber novos
membros, os capuchinhos italianos viriam à província para assumir o papel de
defender as tradições católicas e de orientar a conduta moral da população e
do próprio clero. Trata-se, portanto, de uma fase inicial do processo de reforma
devocional católica em Sergipe, marcada pela realização de santas missões
itinerantes e com visitações esporádicas às comunidades recônditas da província.
Essas ações tiveram como centro irradiador o Convento Nossa Senhora da
Conceição, edificado nos arredores da cidade de São Cristóvão.
Ao que parece, as obras do Hospício e da igreja Senhor das Misericórdias
foram adiantadas e os religiosos passaram a usufruir desse espaço antes mesmo
da conclusão. Dois anos após a fala presidencial, foi publicado um convite para
os sermões penitenciais dos barbadinhos na Quaresma de 1845: “Sexta-feira 7
do corrente, no Hospício N. S. da Conceição dos Capuchinhos, principião os

membro da Ordem Terceira do Carmo. Cf. “Correspondência”. Correio Sergipense, São Cristóvão,
n. 360, 15 jun. 1842, p. 04.
19
“FALLA com que o Exm. Sr. presidente da Província de Sergipe, Dr. Anselmo Francisco Peretti
Abrão, abrio a 2ª Sessão da Assembleia Legislativa Provincial em dia 22 de abril de 1843”. Correio
Sergipense, São Cristóvão, n. 443, 10 mai. 1843, p. 03.
20
“FALLA com que...”, p. 03.

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sermões chamados de 6ª feira de quaresma”21. Contudo, a edificação não chegou
a ser finalizada. Em 1860, ao visitar a cidade de São Cristóvão, o imperador Dom
Pedro II registrou em seu diário a situação da igreja e do convento: “Senhor das
Misericórdias em construção, assim como a Conceição – ambas paradas”22.
Além disso, pode-se inferir que a atuação dos religiosos italianos em Sergipe não
significou um rompimento com as práticas devocionais do povo sergipano, pois os
referidos frades apresentavam-se como entusiastas dos atos de sacrifícios públicos,
da penitência e até mesmo da mortificação do corpo, caso fossem realizadas no
ambiente privado23. As prédicas capuchinhas, respaldadas pelo medo, dialogavam
harmoniosamente com a conduta de romeiros nas festas católicas de Sergipe,
especialmente a romaria do Senhor dos Passos.
O momento propício para os sacrifícios e para a penitência no Sergipe
oitocentista era o das santas missões capuchinhas. A preocupação central dos frades
era combater a ascensão do protestantismo, do espiritismo e da maçonaria e esse
combate os levou a valorização das práticas devocionais dos pobres24. Nesse caso,
pode-se afirmar que a atuação dos religiosos italianos em Sergipe, na primeira fase
da reforma devocional católica, foi respaldada pela busca de uma reorientação da
conduta religiosa da população leiga e pela vigilância acerca da conduta moral dos
sacerdotes responsáveis pelas freguesias25.
Mesmo sendo possível perceber a existência de um discurso voltado para a
construção de um mundo civilizado e no controle às superstições e práticas tidas
como selvagens e atrasadas, os frades capuchinhos em Sergipe impulsionaram o
fortalecimento do caráter penitencial da população católica local. A proposta de
orientação devocional do clero reformador no Sergipe oitocentista não estava muito
distante das condutas da população local, fossem pobres ou ricos. A penitência
que futuramente seria combalida pelos intelectuais, políticos e, principalmente,
religiosos, era uma expressão valorizada e difundida pelos frades nas santas missões.
Ao longo da segunda metade do século XIX, e nos primeiros decênios do século

21
“AOS CATHOLICOS”. Correio Sergipense, São Cristóvão, n. 589, 12 fev. 1845, p. 04.
22 PEDRO II. “Diário do Imperador Dom Pedro II na sua visita a Sergipe em janeiro de 1860”.
Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Aracaju, n. 26, vol. 21, 1961, p. 70.
23
CUNHA, Tatiane Oliveira da. Práticas e prédicas em nome de Cristo...: capuchinhos na “cruzada
civilizatória” em Sergipe (1874-1901). Dissertação (Mestrado em História). Universidade federal da
Bahia. Salvador, 2011.
24
Percebe-se essa preocupação em combater as chamadas ameaças da modernidade por meio das
Encíclicas papais publicadas ao longo da segunda metade do século XIX. Um caso elucidativo é a
Carta Encíclica Superiore Anno, do Papa Leão XIII, na qual defende a difusão do Rosário de Maria
no intuito de “Efetivamente, agora também se trata de um negócio bastante árduo e importante:
isto é, de abater o poder do antigo e astutíssimo inimigo, arrogante na sua força; de reivindicar a
liberdade para a Igreja e para o seu Chefe; de conservar e defender os fundamentos sobre os quais
deve apoiar-se a segurança e o bem-estar da sociedade. Grande deve, por isto, ser, nestes tempos
tão lacrimosos para a Igreja, a solicitude de manter com piedosa diligência o santo costume do
Rosário; sobretudo porque esta oração é composta de modo a evocar sucessivamente todos os
mistérios da nossa salvação, e portanto particularmente adequada para fomentar a piedade”. Cf:
LEÃO XIII. Carta Encíclica Superiore Anno de Sua Santidade Papa Leão XIII. Cidade do Vaticano,
30 ago. 1884. Disponível em: <http://w2.vatican.va/>. Acesso em: 28 nov. 2014.
25
SANTOS, Magno Francisco de Jesus. “O triunfo da Quaresma: práticas romanizadoras na Freguesia
de Nossa Senhora d’Ajuda”. Sæculum – Revista de História, João Pessoa, DH/PPGH/UFPB, n. 25,
jul./ dez. 2011, p. 195-213.

208 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


XX, os frades barbadinhos se tornaram interlocutores clericais do catolicismo das
camadas populares. Na santa missão realizada em Aracaju, nos idos de 1860,
apenas cinco anos após a fundação da cidade, os frades conclamavam os moradores
da jovem capital para a procissão de penitência: “Hoje após a prédica apostólica
terá logar a procissão de penitencia, a erecção da Santa Cruz da Redempção em
memória da missão e da fidelidade catholica do povo do Aracaju”26.
A retórica dos frades italianos aproximava-se dos anseios e das práticas realizadas
pelas camadas populares de Sergipe na segunda metade do século XIX. A primeira
fase da reforma devocional católica na província foi marcada por uma orientação
civilizatória, no qual os religiosos recomendavam a penitência coletiva pública na
suplicação pelo perdão e os atos de sacrifícios resguardados no mundo privado.
Com isso, nas procissões organizadas nas santas missões era possível visualizar
cenas próximas ao que ocorria na romaria do Senhor dos Passos:
Seguio a procissão pelas ruas do barão, em três faces da
praça do Palácio, rua da Aurora até o estaleiro adiante do
qual se achava uma montanha de pedras que em menos
de um quarto d’hora desappareceo, occupando cabeças
e hombros desde o presidente da província, até o último
cidadão, desde a mais distincta Senhora até a da mais
inferior condicção, e restituídas todos a mesma ordem
se encaminhou a procissão ao logar do cemitério, onde
depositou toda a pedra, e regressou a recolher-se, o que
teve logar as 7 horas da noite.27
Percebe-se como a penitência entre os católicos de Sergipe oitocentista era
uma prática diletante e encontrava-se coadunada com as ações missionárias dos
capuchinhos. Além disso, ressalta-se o fato da penitência apresentar-se como uma
missão para todos os segmentos sociais, incluindo o presidente28. A presença do
presidente provincial exercendo penitências nas ruas da capital pode ser lida como
uma ação da política imperial do padroado régio, no qual as ações reformadoras
do clero, em alguns casos, podia aproximar-se do discurso civilizador da política.
“Numa pequena cidade, que só há quatro anos emergiu das areias do mar”29,
a santa missão tornou-se um grande atrativo das diferentes camadas sociais.
Provavelmente, essa tenha sido uma das maiores manifestações devocionais na
cidade de Aracaju, ao longo do século XIX, pois de acordo com os impressos da
época, o evento teria reunido mais de dez mil pessoas30, um número extremamente
relevante, se levarmos em consideração que em 1872, doze anos após a celebração,

26
“NOTÍCIAS”. Correio Sergipense, Aracaju, n. 40, 03 mai. 1860, p. 04, col. 1.
27
“NOTICIÁRIO: Procissão de Penitência”. Correio Sergipense, Aracaju, n. 41, 15 mai. 1860, p. 04,
col. 1.
28
Nesse período Sergipe tinha como presidente provincial Manoel da Cunha Galvão, que governou
entre 7 de março de 1859 e 15 de agosto de 1860. Cf. DANTAS, Ibarê. Leandro Ribeiro de Siqueira
Maciel: o patriarca do Serra Negra e a política oitocentista em Sergipe. Aracaju: Criação: 2009, p.
470.
29
AVÉ-LALLEMANT, Robert. Viagens pelas províncias da Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe
(1859). Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1980, p. 336.
30
“NOTICIÁRIO: Procissão...”, p. 04, col. 1.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 209


Aracaju reunia pouco de cinco mil almas31. A procissão de penitência tornou-se o
grande atrativo:
Desde as 2 horas da tarde daquelle dia 12 que a cidade
se vio em grande movimento: povo immenso de todas
as ordens, qualidades e sexos affluia por diversas ruas
convergindo ao logar da missão. Ahi pelas 4 horas e meia
subio ao púlpito o reverendo capuchinho Frei Paulo e orou
doctrinando sobre um dos pontos do cathecismo, findo o
que, erão 5 horas, se poz em marcha a procissão, precedida
pela Imagem do Crucificado. Seguião-na, em duas alas,
todos os meninos, depois todos os adultos, o clero com
a cruz, as virgens vestidas de branco com cabellos soltos
atados apenas, pela fronte, com uma fita da mesma cor,
levando em mão uma vela e quatro conduzindo a Imagem
da Virgem da Piedade, dirigidas por quatro matronas.
Após a imagem formavão, porém em grupo, porque não
foi possível reduzir à ordem de alas, todas as mais pessoas
do sexo feminino; e essa descompostura na marcha das
“Senhoras mulheres” como as chamavão os Reverendos
capuchinhos, nascia do desejo de se quererem todas
aproximar da Imagem da Virgem.
Este préstito occupava uma linha de estensão nas
differentes ruas, de mais de mil braças, calculando-se, sem
receio de errar, acima de dez mil pessoas, que formavão
o préstito da procissão nas duas alas e grupo mulheril em
número quase de dous terços dos homens.32
Na longa descrição da procissão penitencial ressalta-se o foco das devoções
difundidas pelos frades capuchinhos. Mesmo Aracaju tendo como padroeira Nossa
Senhora da Conceição, as imagens veneradas na santa missão estavam associadas
aos cultos do catolicismo luso-brasileiro, ou seja, do Bom Jesus sofredor e a Virgem
dolorosa33. Partindo dessa premissa, pode-se relativizar o desenrolar do processo
de reforma devocional católica, pois se torna explícito as diferentes estratégias da
conduta da Igreja Católica de acordo com as ordens religiosas, o contexto social
e os momentos históricos. Nesse sentido, nem sempre ocorreram críticas aos
comportamentos dos devotos ou imposição de novas devoções, como elucidam
estudos acerca da Igreja católica em Sergipe sobre o período da reforma34.

31
De acordo Amâncio Cardoso dos Santos Neto em 1860 viviam, no município de Aracaju, 6.364
habitantes. Esse número inclui os moradores do povoado Santo Antônio e da Vila do Socorro. Cf.
SANTOS NETO, Amâncio Cardoso dos. Sob o signo da peste: Sergipe no tempo do cholera (1855-
1856). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2001,
p. 234.
32
“NOTICIÁRIO: Procissão...”, p. 04, col. 1.
33
AZZI, Riolando. “Do Bom Jesus Sofredor ao Cristo Libertador: um aspecto da evolução da Teologia
e da Espiritualidade Católica no Brasil”. Revista Perspectiva Teológica, Belo Horizonte, ano 18, n.
45, 1986, p. 215-233.
34
AGUIAR, Fernando José Ferreira. “Em tempos de solidão forçada”: epidemia de varíola, sistema

210 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


Percebe-se entre as ações dos capuchinhos no Sergipe oitocentista uma
preocupação com a reorientação devocional e muitas vezes incluía um reforço à
devoção aos santos de apelo popular. Utilizando-se dos recursos pedagógicos das
prédicas, do caráter penitencial das procissões e do uso do medo35, os religiosos
tentavam direcionar a atenção do povo sergipano para o universo religioso, ou
seja, constituir nos locais de santas missões uma atmosfera sagrada. Observe as
orientações propostas pelos frades Paulo de Casa Nova e Davi:
Guardou-se nesta procissão a melhor ordem possível, a
melhor veneração, o maior respeito.
Foi um acto summamente tocante e edifficante. Os ministros
do Senhor tiravão as ladainhas de todos os Santos, e o
povo respondia com a maior piedade e devoção.
Não se deo o espetáculo deshumano de se ver penitentes
retalhando-se as carnes vertendo destas o sangue, e
compungindo corações. Os Reverendos missionários
tiverão a prudente discripção de o prohibirem, deixando
isso para o recolhimento de cada um, que assim o quizesse
em sua consciência, certos de q’ não erão as disciplinas que
lavarão suas culpas; que a verdadeira penitência, era uma
cordial contricção, a confissão das culpas, e o propósito
firme de arredar-se dellas, para uma vida morigerada
segundo as leis e preceitos da Igreja de Jesus Christo e de
suas Divinas palavras no decálogo.36
As orientações dos frades missionários revelam uma conduta bem divergente
ao preconizado pela historiografia acerca da reforma católica. Não existe nenhuma
referência a Eucaristia e a confissão, ou até mesmo, proposta de combate ao
catolicismo das camadas populares. Ao contrário, percebe-se uma clara tentativa
de orientar tais práticas com a recomendação para serem evitados os sacrifícios do
corpo em público. Nesse caso, torna-se possível compreender alguns aspectos do
catolicismo na segunda metade do século XIX. O primeiro, trata-se da assertiva de
não ter ocorrido “o espetáculo deshumano de se ver penitentes retalhando-se as
carnes vertendo destas o sangue, e compungindo corações”. Esse estranhamento
pode ser entendido como um indício de tais práticas naquela época serem
recorrentes nas procissões queresmeiras de Sergipe. Além disso, ressalta-se o fato
de não ter existido uma proibição de fato, mas uma recomendação para deixarem

de saúde, costumes e fé em Sergipe novecentista. Dissertação (Mestrado em História). Universidade


Federal da Bahia. Salvador, 2002; SOUSA, Antônio Lindvaldo. O eclipse de um farol: aspectos da
romanização do catolicismo brasileiro (1914-1917). São Cristóvão: Editora UFS, 2008; ANDRADE,
Péricles. Sob o olhar diligente do pastor: a Igreja Católica em Sergipe. São Cristóvão: EDUFS;
Aracaju: Fundação Oviedo Teixeira, 2010; SANTOS, Claudefranklin Monteiro. A festa de São
Benedito em Lagarto-Se (1771-1928): limites e contradições da romanização. Tese (Doutorado em
História). Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2013.
35
O medo da morte permeava o imaginário da sociedade sergipana da segunda metade do século,
especialmente pela efusão de epidemias que grassavam a maior parte da população. Cf. SANTOS
NETO, Sob o signo...
36
“NOTICIÁRIO: Procissão...”, p. 04, col. 1.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 211


“isso para o recolhimento de cada um”.
Nos bastidores das procissões penitenciais, com o consentimento dos frades
reformadores, continuavam as práticas condenadas pelos higienistas e pelos
sacerdotes pouco afeitos às penitências sacrificiais. No processo civilizatório, a
mortificação do corpo deveria ocorrer na esfera privada37. Contudo, a realização de
procissões de penitências não foi prática exclusiva dos membros da Ordem Terceira
do Carmo de São Cristóvão ou dos missionários capuchinhos. O próprio arcebispo
da Bahia, Dom Romualdo Antônio de Seixas, tido como um dos principais
entusiastas no combate às prática penitenciais, na carta pastoral de 1850, exortou
a população de sua arquidiocese a participar das procissões de ação de graças pelo
fim das epidemias. De acordo com o arcebispo:
Hé tempo, Irmãos e Filhos muito amados, de rendermos ao
Pae das Misericórdias e Deos de toda consolação o tributo
de nossas acções de Graças pelo inestimável benefício
da extincção da fatal epidemia, que affligio e cobrio de
luto esta e outras Províncias do Império. Ainda quando
fossem mais duradóros e mortíferos os seos estragos, a
consideração das reiteradas offensas com que de contínuo
abusamos da sua infinita bondade e paciência e desafiamos
os rigores da sua justiça, de vir humilhar-mos debaixo da
poderosa Mão, que nos ferio, sem com tudo abandonar-
nos esperando ainda, que doceis a estes saudáveis avisos
voltássemos aos seos Braços paternaes, sempre abertos ao
arrependimento.
Penetrados pois d’estes sentimentos, e Conformando-Nos
com o espirito e prática da Igreja, temos resolvido, auxiliado
pela cooperação da respeitável Confraria do Senhor Bom
Jesus dos Passos, fazer uma solemne Procissão de Acção de
Graças pela extincção da supradita epidemia no dia 30 do
corrente,e contando sempre com a boa vontade do Nosso
IIIº Cabido, Convidamos os Rev. Párochos com seo Clero,
Corporações Religiosas, Confrarias, e mais Fieis para que
compareção no referido dia, pelas 4 horas da tarde, em a
Nossa Sé Metropolitana, afim de acompanharem a mesma
Procissão; o que esperamos farão todos com a modéstia,
recolhimento e silêncio próprio de tão edificante acto,
exhotando-os igualmente à que para elle se disponhão
com os Sacramentos da Penitência e Eucharistia, afim
de que o fruto da nossa religiosa gratidão reverta para

37
De acordo com Norbert Elias, “hoje sabemos como aliviar as dores da morte em alguns casos;
angústias de culpa são mais plenamente recalcadas e talvez dominadas. Grupos religiosos são
menos capazes de assegurar sua dominação pelo medo do inferno”. ELIAS, Norbert. A solidão dos
moribundos: seguido de envelhecer e morrer. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2001, p. 23. Diante disso, percebe-se como no Sergipe oitocentista existia uma preocupação
dos religiosos para indicarem aos devotos para cumprirem as disciplinas no universo privado, em
nome da civilização e do combate aos costumes tidos como desumano.

212 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


nós, como se explica S. João Chrysostomo, e nos torne
credores de mais copiosa graças. Confiamos que os Rev.
Párochos do interior da Diocese praticarão o mesmo nas
suas respectivas Freguesias, e Ordenamos que cessando
a oração que havíamos prescripto, se recite só no dia da
Procissão a Oração – Deus, cujus Misericordia nom est
numerus – da Missa – pro gratiarum actione.
Dada n’esta Cidade da Bahia sob Nosso Signal e Sello das
Nossas Armas aos 19 de Agosto de 1850
Romualdo – Arcebispo da Bahia.38
Nos tempos de reformas, a maior autoridade eclesiástica do Brasil convocou
uma procissão de caráter penitencial devotada ao Senhor dos Passos e promulgou
a defesa que a mesma se reproduzisse nas freguesias do interior. São frestas
reveladoras dos impasses permeados nas ações de bispos, frades e párocos no
país. É possível pensar que um dos motivos para os atritos entre religiosos e leigos
em relação aos santuários fosse decorrente da questão da autoridade, ou seja,
os responsáveis pelo controle das devoções. Até o final do século XIX, a quase
totalidade dos santuários de grande apelo popular no Brasil era controlada por
irmandades de leigos. As romarias eram importantes fontes de prestígio e não era
raro encontrar membros da elite política inseridos no seio das grandes irmandades,
confrarias e ordens terceiras, como foi o caso de São Cristóvão. Na carta pastoral
de D. Romualdo Seixas aparece alguns elementos distintivos da religiosidade
católica reformada, como a ênfase atribuída a Eucaristia. Além disso, emerge uma
nova proposta hierárquica, na qual a Confraria do Senhor Bom Jesus dos Passos
“auxilia e coopera” na organização da procissão penitencial de ação de graças.
No Sergipe oitocentista também foram recorrentes as procissões votivas de ação
de graças com a imagem do Senhor dos Passos. Na cidade de Estância, localizada
no sul da província, em 1857 foi realizada a procissão de lavagem dos pés do
Senhor dos Passos. De acordo com o Correio Sergipense:
Tivemos depois d’essa uma outra procissão, a que o amigo
Forraguidas denominou procissão da ponte nova. Foi
mais um passeio devoto q outra cousa, e não sei se com
effeito ahi se praticam uma formalidade que me disserão,
lavarem os pés da Imagem do Senhor dos Passos, para
que assim se dignassem remediar a escassez das chuvas,
que já está se tornando penosa. Enfim, o que sei é que
todo o povo partio da Igreja Matriz e foi em procissão até
a ponte nova da caxoeira (alega auctoridade [ilegível]) e
voltou pela estrada nova, entraram para a mesma Igreja,
gastando de ida e volta umas quatro horas pelo menos.
Não serei eu que reprova a prática de se lavarem no rio
os pés das Imagens, para pedir-lhes memoração da secca.

38
SEIXAS, D. Romualdo Antônio. “Pastoral”. Correio Sergipense, São Cristóvão, ano XIII, n. 76, 5
out. 1850, p. 03, col. 1-3.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 213


Esses actos praticados com a melhor das intenções, nada
tendo em si de degradantes, estão muito além da censura,
que pode exercer a minha nullidade, fique lá isso para os
nossos D. D. e Theologos, que devem entender mais do
que eu de materias theológicas.39
As críticas às procissões penitenciais em Sergipe eram mais notórias entre os
intelectuais e profissionais ligados à imprensa provincial da segunda metade do
oitocentos. Havia uma clara preocupação em difundir a civilização e combater as
práticas tidas como perniciosas e selvagens. Com isso, a renovação das procissões
era uma exigência singular para moldar a sociedade local aos novos parâmetros da
modernidade, respaldados na valorização das artes, nas normas de etiqueta e maior
racionalidade nas práticas devocionais. Nesse caso, a realização de uma procissão
com a imagem votiva patrona da mais próspera irmandade da cidade Estância,
com propósitos mágicos era visto com desconfianças entre as elites intelectuais
da época. Por outro lado, esse episódio elucida os diferentes usos da devoção ao
Senhor dos Passos no Brasil oitocentista, pois ele era o “santo” capaz de solucionar
os problemas de epidemias ou até mesmo sanar as longas estiagens, ao ter seus
pés lavados nas águas do Rio Piauitinga40. Também não pode ser negligenciado o
fato dos frades capuchinhos terem realizado procissões penitenciais com algumas
características similares a do Senhor dos Passos da Ponte Nova. Na santa missão
de 1864, em dez dias, os religiosos impressionaram a população local com o
poderio de suas prédicas. No encerramento das atividades, os frades Paulo Casa
Nova e Davi realizaram duas imponentes procissões. De acordo com o intelectual
estanciano Severiano Cardoso:
Notícia Religiosa
A Missão na Estância
Forão Estes os seos trabalhos, além de terem promovido
duas procissões de penitência, de que não posso deixar de
fazer um pequeno esboço.
Uma procissão de homens, tarde da noite, e com todo o
recolhimento e devoção. Na frente a Cruz – em seguida
homens trajando branco, descalços, com as cabeças
cobertas e uma coroa de espinhos, levando alguns uma
Cruz. Depois o Crucifixo, o clero e mais povo.
Esta procissão percorreo quasi toda a Cidade. Outra, a das
mulheres, e homens, indo estes adiante e ellas seguindo o
andor da Piedade, que ia precedido de 203 Magdalenas
vestidas de branco, cabellos soltos, uma fita branca na
cabeça e uma vela acesa na mão. – Podia se ver; mas não
haviao espectadores; porque toda a cidade, em numero de
mais de 10:000 pessoas, fez parte da procissão.
Cessarão os seos trabalhos no dia 1º do corrente e

39
“CORRESPONDÊNCIA”. Correio Sergipense, São Cristóvão, n. 42, 19 set. 1857, p. 03.
40
Rio que banha a cidade de Estância e integra a bacia do Pauí-Piauitinga.

214 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


retirarão-se no dia 2 do corrente, sendo acompanhados
pelo povo até certa distância. Forão para São Christóvão e
de lá para Larangeiras.41
O retorno dos frades para São Cristóvão elucida o papel da cidade no processo
de reforma devocional com as santas missões itinerantes dos capuchinhos em
Sergipe. Com a proximidade do Convento Nossa Senhora da Conceição, se tornava
possível realizar inúmeras santas missões no agreste e nos sertões da província,
intercalados com pequenos momentos de repouso na casa religiosa da velha
capital. Isso possibilitava também uma maior autonomia dos frades italianos na
atuação em território sergipano em relação ao Convento da Piedade de Salvador.
Nessa primeira fase do processo de reforma devocional católica em Sergipe, as
diretrizes da atuação do clero eram gestadas em Salvador, com a Arquidiocese da
Bahia. Todavia, também devem ser elucidados os papeis desempenhados pelos
atores sociais em São Cristóvão, especialmente o vigário geral de Sergipe e os
frades do Convento Nossa Senhora da Conceição. Em certa medida, São Cristóvão
foi um centro irradiador da reforma católica em terras sergipanas, pois nela viviam
o vigário responsável pela coordenação de todo o clero provincial, assim como os
frades pregadores das santas missões itinerantes nos interiores de Sergipe.
Ao longo da segunda metade do século XIX a cidade de São Cristóvão passava
por uma série de ações que levavam a reestruturação do seu clero. Enquanto o
Convento Nossa Senhora da Conceição era vitalizado com a recepção de frades
italianos destinados a pregarem em recônditas localidades, os conventos do Carmo
e de São Francisco sofriam com as sanções imperiais, sem autorização de receber
noviços, fossem estrangeiros, fossem nacionais. As restrições no Convento do
Carmo repercutiram com a intervenção dos carmelitas da Bahia, por meio de
visitações e acompanhamento da liquidação das propriedades. Com isso, a segunda
metade do século XIX delimita o declínio da Ordem do Carmo em Sergipe, com o
esvaziamento dos conventos. Em 1855, o Correio Sergipense publicou um aviso
do Prior do Carmo da Bahia, Frei Alexandrino José do Rosário Figueiroa sobre a
demência do Prior do Carmo de Sergipe:
Annuncios
Fr. Alexandrino José do Rozario Figueirôa, Prior do
Convento do Carmo da Bahia, Visitador deste de Sergipe,
participa ao respeitável público, que a sua comunidade
não fica responsável por qualquer dívida ou contracto
feito pelo actual Prior deste mesmo Convento O Padre
Mestre Fr. Francisco de Santa Rosa de Viterbo, visto estado
de demência e por isso incapaz de contractar; como he
publico e notório.42
Como se pode perceber, a Ordem Carmelitana encontrava-se em crise, com a
finalização da maior parte das atividades nos conventos e fazendas do interior e a

41
CARDOSO, Severiano. “Notícias Religiosas: a Missão na Estância”. Correio Sergipense, Aracaju,
n.º 24, 23 mar. 1864, p. 04.
42
“ANNÚNCIOS”. Correio Sergipense, São Cristóvão, n. 11, 10 fev. 1855, p. 04.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 215


redução do número de frades na sede cristovense. Três antes da visitação de Frei
Alexandrino Figueiroa a Sergipe, o Prior do Hospício Nossa Senhora do Carmo
do Rio Real, na Freguesia do Espírito Santo (extremo sul da província de Sergipe),
foi denunciado por ter cometido crimes contra membros da família de Antônio
Faustino43. Além disso, também é possível encontrar uma série de denúncias de
maus tratos dos frades em relação às mulheres negras escravizadas no Convento do
Carmo de Palmares, no sertão sergipano, ou seja, além de decadente, os carmelitas
também perdiam a legitimidade na sociedade sergipana por meio de críticas e
denúncias.
Essa redefinição das hierarquias das ordens religiosas no Sergipe oitocentista
respingou na estrutura de organização da romaria do Senhor dos Passos. A maior
solenidade religiosa da província era um evento atribuído à Ordem Terceira do
Carmo com o auxílio dos frades. De acordo com Serafim Santiago, na saída da
procissão do Depósito:
Collocados os homens e meninos em ordem para sahir, eis
que surgem da sacristia, o Prior do Carmo, outros frades e
Padres, o sacristão trazendo o thuríbulo e a naveta contendo
o aromático incenso de bejuim, e os Irmãos 3ºs do Carmo,
vestidos de hábitos pretos, com escapulários e capa de
tafetá cor de palha, sendo elles os seguintes senhores:
Capitão José Pedro de Oliveira, zelador e Thezoureiro da
3ª do Carmo, trazendo a Cruz Processional; Capitão José
Joaquim Pereira Lobo; Tenente Manoel Messias Álvares
Pereira; Tenente José Florêncio dos Santos; Tenente João
Caetano de Andrade; Capitão Antônio José Pereira e
muitos outros.44
A Procissão do Depósito de São Cristóvão, na segunda metade do século XIX,
era um espetáculo dirigido pela Ordem Terceira do Carmo e orquestrado pelas
ordens religiosas presentes na cidade, especialmente os frades carmelitas. O clero
era mais um atrativo da grande romaria e detinha pouco espaço para apresentar
propostas para o evento. Prova disso é o fato dos terceiros serem os responsáveis
pela contratação do orador sacro para pregar o sermão do Encontro, justamente a
atividade na qual o clero poderia exercer maior influência na solenidade.
Ao atuar como prestadores de serviços na romaria dos Passos, com o recebimento
de importantes donativos para acompanhar as celebrações e pregar sermões, os
religiosos tornaram-se apenas sentinelas que saíam dos bastidores para guarnecer
a charola ao longo da procissão e, posteriormente, desaparecerem na chegada do

43
Antônio Faustino denunciou “o Prior do Hospício Nossa Senhora do Carmo, Frei Joaquim Maria
do Sacramento, pelos factos criminosos por elle praticados quer em relação a pessoa do supplicante,
quer a de huma sua parente; e inteirado tanto do contexto d’esse requerimento e como do que a
respeito v. m. informa cabe-me em resposta dizer-lhe que cumpre que, tamanho de taes factos trate
de formar os respectivos summarios pelos crimes em que tiver logar o procedimentos officiais”.
Correio Sergipense, São Cristóvão, n. 82, 20 out. 1852, p. 02.
44
SANTIAGO, Serafim. “Igreja do Amparo”. In: Annuario Christovense ou Cidade de São Cristóvão:
manuscrito de Serafim Santiago [1920]. São Cristóvão: Editora UFS, 2009, p. 183.

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cortejo enquanto os romeiros se exprimiam para tocar nos pés do Senhor dos Passos.
O pensador da história Serafim Santiago descreveu a ordem de saída da procissão:
Sahia então a procissão da seguinte forma: na frente,
um Irmão 3º levava a cruz processional; em seguida, o
Justiniano collocava os homens e meninos e mandava
abrir alas, seguindo-se da mesma forma os Irmãos 3ºs do
Carmo. Junto a charola, o frade Carmelita, o Franciscano
e o sacristão levando o thuríbulo de onde subia fumaça do
aromático incenso de bejuim perfumando as ruas por onde
passava. [...] Em toda a praça do Carmo, rua da Imperatriz
e praça da Matriz por onde passava a procissão estavam
illuminadas as fachadas das casas e sobrados.45
A romaria dos Passos, capaz de mobilizar parte considerável da sociedade
sergipana, era um motivo para as práticas de negociação entre os irmãos terceiros
e o clero, os membros de irmandades e até mesmo os moradores das ruas do
itinerário das procissões. A negociação com o clero se dava por conta dos contratos
para a realização das missas, dos sermões e acompanhamento das procissões.
Com os membros das irmandades, confrarias e ordens terceiras eram
negociadas as presenças dos irmãos46, a disponibilização de anjos47, a recepção
nos oragos48, o dobrar dos sinos e, no caso da Ordem Terceira de São Francisco,
o direito de transportar as charolas49. Com os moradores das ruas do itinerário
das procissões a negociação envolvia três ações centrais: a primeira, mais restrita
e elitista, ocorria por conta da seleção das casas para receberem os “Passos”50 nas

45
SANTIAGO, “Igreja do Amparo”, p. 183.
46
Praticamente todas as irmandades da cidade participavam das procissões. No caso de São
Cristóvão, como a cidade possuía mais de 14 irmandades, as atividades dos irmãos variavam de
acordo com o prestígio e importância social da mesma.
47
Na Procissão do Encontro a Irmandade Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos
disponibilizava crianças vestidas de anjinhos para acompanharem a imagem do Senhor dos Passos,
provavelmente transportando as insígnias da Paixão. Cf. SANTIAGO, “Igreja do Amparo”, p. 186.
48
A Imagem do Senhor dos Passos era recebida na Igreja Matriz Nossa Senhora da Vitória pelo
vigário Barroso e irmãos da Confraria do Santíssimo Sacramento. A imagem pernoitava diante da
capela da referida irmandade. SANTIAGO, “Igreja do Amparo”, p. 184.
49
De acordo com o Compromisso da Ordem Terceira de São Francisco da cidade de São Cristóvão,
estavam “obrigados os Irmãos 3ºs de São Francisco a carregarem a charola do Senhor dos Passos na
procissão da 2ª Dominga da quaresma, assim como os Irmãos 3ºs do Carmo a carregarem a charola
da Virgem da Conceição na procissão de Cinzas”. SANTIAGO, “Igreja do Amparo”, p. 186.
50
Eram armações efêmeras montadas para expor cenas da Paixão de Cristo. No caso de São Cristóvão,
os sete Passos eram quadros com as seguintes representações: Jesus no Horto da Oliveiras, A prisão
de Jesus, Bom Jesus da Coluna, Senhor da Pedra Fria (coroação de espinhos), Ecce Homo ou cana
verde, Cruz as costas e Senhor Crucificado. Esses quadros atualmente encontram-se no acervo
do Museu de Arte Sacra de São Cristóvão. Cf. SANTOS, Magno Francisco de Jesus. Caminhos
da Penitência: a solenidade do Senhor dos Passos na cidade de São Cristóvão (1886-1920).
Aracaju: Casa de Sergipe, 2014; CAMPOS, Adalgisa Arantes. “Quaresma e tríduo sacro nas Minas
Setecentistas: cultura material e liturgia”. Revista Barroco, Belo Horizonte, n. 17, 1993, p. 209-219;
__________. “Piedade barroca, obras artísticas e armações efêmeras: as irmandades do Senhor
dos Passos em Minas Gerais”. In: Anais do VI Colóquio Luso-Brasileiro de História da Arte. Rio de
Janeiro: CBHA/ PUC-Rio/ UERJ/ UFRJ, 2004.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 217


procissões do sábado e do domingo. Os “Passos” eram disputadíssimos entre os
moradores. Tratava-se de um ato de grande visibilidade na romaria, pois além da
charola do Senhor dos Passos parar diante deles para a execução dos motetos, os
romeiros costumavam visitá-los após o encerramento das solenidades religiosas.
A segunda ação era a seleção da Verônica, a jovem virgem que transportava o
véu com a esfinge do Senhor dos Passos. Até o início do século XX, esse papel foi
desempenhado por filhas de senhores da elite sergipana. Por fim, na ação mais
aberta, ocorria em decorrência dos moradores das praças e ruas no itinerário da
Procissão do Depósito produzirem lanternas para serem expostas na frente das
casas, com intuito de iluminar o cortejo penitencial noturno. O intelectual Severiano
Cardoso, no descerrar do século XIX, descreveu o envolvimento da população
local nos preparativos das lanternas para a rememoração dos Passos:
Uma Pétala todas as Manhãs
Os Passos
É todo o ano assim! A nossa festa
Foi sempre desejada e concorrida...
“Não vais aos Passos”? Pergunta repetida...
E é a última alegria que nos resta
Dizia isto, em modo prazenteiro,
Uma moçoila muito coradinha,
Picando, na janela, à tesoirinha,
Um cartucho do noivo p’ra o tocheiro...
E na rua passava tanta gente,
E o povo se mostrava tão contente,
Que a festa ia ser de todo boa...
A moça deu um touco arrebitado...
Bobagem, disse ela, neste Estado,
Outros Passos farão, mas muito a toa...51
Os Passos, de acordo com Severiano Cardoso,52 eram vistos como “a nossa
festa” e a celebração que “sempre teria sido concorrida e desejada” pela população
sergipana. As procissões envolviam a participação dos mais diversos segmentos
da sociedade cristovense, especialmente as elites com propriedades nas ruas da
cidade alta. A preparação dos cartuchos para serem expostos nas fachadas das

51
CARDOSO, Severiano. “Uma pétala todas as manhãs: XX. Os Passos”. O Republicano, Laranjeiras,
n. 41, 24 fev. 1891, p. 03.
52
Severiano Cardoso foi um dos mais ativos intelectuais sergipanos da segunda metade do século
XIX, com vasta publicação na imprensa sergipana e baiana. Filho do professor Joaquim Maurício
Cardoso e D. Joana Batista de Azevedo Cardoso, nasceu a 14 de março de 1840 na Estância e
faleceu no Aracaju a 2 de outubro de 1907. Além disso, atuou em importantes instituições escolares
de Sergipe e Minas Gerais, como o Atheneu Sergipense e o Pathernon. Cf. GUARANÁ, Armindo.
Dicionário bio-bibliográfico sergipano. Rio de Janeiro: Pongetti, 1925, p. 483; SANTOS, Maria
Fernanda dos. “A escrita da história de Severiano Cardoso no entardecer do século XIX”. Revista
do IHGSE. Aracaju, n. 42, 2012, p. 329-352.

218 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


casas na ocasião da Procissão do Depósito foi elucidada pelo intelectual, pois
se constituía no momento oportuno para observar o transitar dos romeiros pela
cidade. A urbis passava a apresentar um aspecto bem divergente ao seu cotidiano,
com movimento descomunal por todas as ruas e igrejas seculares. Esse movimento
era mais intenso a partir do sábado de Passos, dia consagrado à Procissão do
Depósito. Provavelmente, em São Cristóvão ocorria um espetáculo similar ao de
outras localidades do Brasil imperial, onde nas “vias públicas se formavam línguas
de fogo vistas das altas janelas dos casarios. O clarão das velas em chamas e o
cheiro de cera queimada exalavam para todos os lados”53. Na primeira capital
sergipana as celebrações do Senhor dos Passos ocorriam de forma similar a da
Cidade de Goiás, com uma maior ênfase para as práticas penitenciais, sacrifícios
públicos e a presença dos terceiros carmelitas.
Com a redução do poderio da Ordem do Carmo em São Cristóvão, os
membros da Ordem Terceira, responsáveis pela organização da romaria do Senhor
dos Passos, necessitaram redefinir as hierarquias constituídas na celebração. Nos
tempos imperiais, a procissão dos Passos revelava a negociação entre os terceiros
do Carmo e os vigários colados da Freguesia Nossa Senhora da Vitória. Um desses
vigários tornou-se um dos ícones do sacerdócio e da política local na segunda
metade do século XIX. Tornou-se também um entusiasta da dramaticidade da
romaria dos Passos na velha São Cristóvão. Era o homem das prédicas eloquentes
e difusor dos elementos de teatralidade na procissão. Trata-se do orador sacro José
Gonçalves Barroso54.
O Vigário Barroso, nome pelo qual ficou conhecido em Sergipe José Gonçalves
Barroso, teve uma importante atuação no cenário político, literário e social de
Sergipe oitocentista. A imprensa provincial do século XIX é notória em apresentar
textos marcados pela descrição dos embates políticos e dos discursos do vigário
em defesa dos interesses da velha capital e do grupo político do partido liberal,
especialmente em relação ao correligionário Antônio Dias Coelho e Mello, o Barão
da Estância. Na esfera religiosa, o pároco de São Cristóvão atuou como vigário
geral de Sergipe entre 1861 e 1882. De acordo com o biógrafo Armindo Guaraná,
Barroso:
Nasceu na então vila de Laranjeiras a 21 de março
de 1821 e faleceu na cidade de S. Cristóvão a 17 de

53
PRADO, Paulo Brito do & BRITTO, Clóvis Carvalho. “A economia simbólica da Paixão Vilaboense”.
In: ROSA, Rafael Lino & BRITTO, Clóvis Carvalho (orgs.). Nos Passos da Paixão: a Irmandade do
Senhor Bom Jesus dos Passos em Goiás. Goiânia: Kelps/PUC-GO, 2011, p. 108.
54
É considerado um dos maiores oradores sacros de Sergipe. De acordo com Jacques, em texto
publicado sobre a festa de Nossa Senhora da Pureza de São Cristóvão, no jornal “O Guarany”,
o vigário Barroso era “um dos ornatos mais dignos do Clero sergipano”. “FESTA”. O Guarany,
Aracaju, anno II, .nº 45, 8 out. 1879, p. 03, col. 1. Para o Jornal do Aracaju, ao se referi a inauguração
do Asilo Nossa Senhora da Pureza destacou a relevância da prédica de Barroso, ao afirmar: “No
ato da coroação da Virgem Santíssima, o eloquente orador o sr. vigário Barroso trouxe o auditório
suspense e possuído de indisível entusiasmo, aos sons doces e convincentes de sua palavra, fazendo
o mais brilhante e justo elogio à pureza de Maria, nossa Divina Mãe. Honra ao sr. vigário Barros,
honra ao orador que nunca desceu da tribuna em que se faz ouvir há longos anos, senão cheio de
glória, rodeado de auréolas. “ASYLO de Nossa Senhora da Pureza”. Jornal do Aracaju, Aracaju,
anno VIII, n. 789, 7 abr. 1877, p. 02, col. 1.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 219


setembro de 1882, tendo sido seus pais o capitão Antonio
Gonçalves Barroso e D. Martinha Maria do Sacramento.
Feito com rápido progresso o curso das aulas do seminário
arquiepiscopal da Bahia, concluiu os seus estudos antes
de completar a idade precisa para receber a investidura
clerical, e por esta circunstância foi obrigado a recolher-se
à província por determinado tempo, no decurso do qual se
lhe deparou o ensejo de inscrever-se candidato a cadeira
de latim da Capela então em concurso, e na qual foi
promovido lente substituto por ato de 13 de dezembro de
1842. Passados dois anos voltou à Bahia, onde lhe foram
conferidas as ordens sacras de presbítero secular.55
O padre laranjeirense passou a atuar como pároco de São Cristóvão em
meados do século XIX. De acordo com a documentação do Arquivo Nacional, o
concurso público para a Freguesia Nossa Senhora da Vitória da capital de Sergipe
transcorreu entre 1852, ano da morte do cônego Luiz Antônio Esteves, e 1853,
ano da nomeação do vigário Barroso. No concurso, o padre José Gonçalves
Barroso teve apenas um concorrente, Luiz Corrêa Caldas Lima, na época vigário
encomendado da Freguesia Nossa Senhora da Vitória de São Cristóvão. De acordo
com o arcebispo da Bahia, Dom Romualdo Seixas, o referido concurso foi um dos
mais intensos da arquidiocese, pois envolveu nos bastidores questões relevantes da
acirrada política provincial. Segundo as palavras do arcebispo baiano:
Aberto o concurso à Freguesia de Nossa Senhora da Victória
da Capital da Província de Sergipe, só comparecerão dois
opositores, a saber os Padres José Gonçalves Barroso, e
Luiz Corrêa caldas Lima, Vigário encomendado da mesma
Freguesia, cujos documentos tenho a honra de submeter
ao Alto Conhecimento de Vossa Majestade Imperial.
Este concurso é um dos mais agitados que se tem visto
nesta Diocese, porque os dois concorrentes, ou antes os
seus principais protetores, como representantes de duas
parcialidades ou dissidências, menos políticas que pessoais,
que infelizmente dividem aquela Província, parecem haver
encarado a vitória de seus candidatos como um triunfo
para o seu pretendido partido. Neste intuito, eles não tem
poupado diligências e esforços para conseguir os seus
fins.56
O concurso da Freguesia Nossa Senhora da Vitória foi intenso. De ambas as partes
partiam calúnias acerca da vida pessoal dos concorrentes. Tais ações revelavam “as
intrigas locais”, a forma pela qual a vida da Igreja católica encontrava-se imbricada
pelos interesses da política imperial e os bastidores da política imperial. Apesar

55
GUARANÁ, Dicionário bio-bibliográfico..., p. 315.
56
ARQUIVO NACIONAL. Decreto de 21 de abril de 1853. Coleção Eclesiástica. Cx. 889, doc. 50, p.
3.

220 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


da tensão existente no cenário provincial acerca do concurso, o padre Barroso
conseguiu ser aprovado em primeiro lugar57. Isso mostrava a força do religioso
no campo político sergipano no momento anterior a mudança da capital, assim
como o poder de influência de seus correligionários. Ainda em 1853, Barroso
foi apresentado como vigário colado58 da Freguesia Nossa Senhora da Vitória.
Conforme a documentação do referido concurso:
Conformando-Me com a Proposta do Reverendo Arcebispo
da Bahia, Hei por bem Apresentar o Padre José Gonçalves
Barroso na Freguesia de Nossa Senhora da Victoria da
Capital da Província de Sergipe. José Ildefonso de Sousa
Ramos, Meu Conselho, Ministro e Secretário d’Estado
dos Negócios da Justiça, assim o tenha entendido e faça
executar. Palácio do Rio de Janeiro em vinte e hum de Abril
de mil oitocentos e cinquenta e três, trigésimo segundo da
Independência e do Império.59
O Vigário Barroso atuou na Freguesia Nossa Senhora da Vitória entre 1855 e
1882. Trata-se justamente da época na qual o intelectual Serafim Santiago descreve
em seu anuário, como período áureo, de grande pompa e articulação entre o
pároco e os membros da Ordem Terceira do Carmo. Provavelmente, esse tenha
sido os últimos instantes de articulação entre o clero e os leigos das irmandades na
organização das festas religiosas na velha capital. Os impressos sergipanos elucidam
os contratos e os convites para Barroso pregar os sermões nos dias de procissões
em São Cristóvão, Aracaju, Nossa Senhora do Socorro e Laranjeiras. Os sermões
mais afamados nessa época eram os pregados na romaria do Senhor dos Passos,60
ocasião na qual a Praça São Francisco era transformada no auditório povoado por
grande número da população sergipana.
Contudo, o prestígio social e político do vigário Barroso não ficou restrito a
província de Sergipe. Ao longo de sua trajetória é possível encontrar inúmeras ações
voltadas para o acúmulo de títulos imperiais, especialmente a partir de 1860, ano
no qual Sergipe foi visitado pelo imperador Dom Pedro II. Após essa visita imperial,
muitos políticos da província passaram a receber títulos nobiliárquicos. Isso teve
como resultado o aumento significativo do número de senhores de engenho com
título de barão em terras sergipanas. Nessa conjuntura, em 1866 o vigário Barroso
solicitou ao imperador a nomeação para “Cônego Honorário da Capela Imperial

57
José Gonçalves Barroso foi aprovado com 17 pontos, nota considerada ótima. Cf. ARQUIVO
NACIONAL. Decreto de 21 de abril de 1853. Coleção Eclesiástica. Cx. 889, doc. 50, p. 6.
58
Vigário Colado é o “ Sacerdote que, após o concurso, foi constituído pela autoridade diocesana com
a régia apresentação”. O Vigário Encomendado era o pároco de freguesia aind anão reconhecido
oficialmente pelo Rei. Cf. NUNES, Verônica Maria Meneses. Glossário de termos sobre religiosidade.
Aracaju: Tribunal de Justiça; Arquivo Judiciário do Estado de Sergipe, 2008, p. 154.
59
ARQUIVO NACIONAL. Decreto de 21 de abril de 1853. Coleção Eclesiástica. Cx. 889, doc. 50, p. 1.
60
Os sermões inéditos escritos pelo vigário Barroso foram doados a padres de outras freguesias. De
acordo com Armindo Guaraná, “Deixou grande número de sermões inéditos, dos quais os seus
herdeiros ofereceram a maior parte ao falecido Padre José Joaquim Ludovice, vigário de Simão
Dias, e os restantes ao Padre José Joaquim de Brito, atual vigário de Vassoura, Estado do Rio de
Janeiro”. GUARANÁ, Dicionário bio-bibliográfico..., p. 315.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 221


ou da Catedral da Bahia”. Na solicitação o pároco justifica seu pedido com o
argumento acerca do respeito adquirido por parte de Dom Pedro II na ocasião da
visita imperial a Sergipe. O arcebispo da Bahia e Conde de Salvador, Dom Manoel
Joaquim da Silveira, afirma o seguinte sobre o vigário:
Satisfazendo aos desejo de V. Sª cumpre-me declarar a V.
S que quando Sua Majestade está em Sergipe condecorou
a este Pároco com a Comenda de Cristo, que é ele um
sacerdote de reconhecido talento, que desempenha bem as
funções do ministério paroquial, e as de Vigário Geral e que
me pareceu digno, e merecedor das honras, que solicita.61
Pelos registros documentais62, o argumento para o vigário Barroso receber
as honrarias estava atrelado à visita imperial. Todavia, o registro de Dom Pedro
II acerca do vigário nos idos de 1860 não eram nada pomposos. No diário do
imperador foram feitas anotações sobre as cerimônias de recepção da família real
na cidade de Aracaju:
Matriz bonita, mas simples capela, grande indolência nos
padres. Te Deum e cerimônias que nunca se acabavam;
sermão medíocre do vigário de S. Cristóvão, Barroso,
contudo disse o presidente que tendo desabado o telhado
da matriz e S. Crist. ele exortou o povo, e tudo até
meninos trabalharam, estando a igreja pronta par meu
recebimento.63
As primeiras imagens do imperador acerca do vigário de São Cristóvão foram
pouco atraentes. Como D. Pedro II mesmo registrou, a cerimônia foi longa e o
desgaste da viagem deve ter contribuído para as anotações pouco humoradas em
relação a prédica do orador sacro. No momento posterior ele anotou que “o vigário
daqui (Aracaju) é moral, sendo o único ilustrado o de São Cristóvão”.
O longo tempo da cerimônia de recepção da família imperial a Sergipe não deve
ter sido uma exceção. Pelo contrário, os registros documentais na imprensa, assim
como as anotações de intelectuais como Serafim Santiago reforçam a ideia do
vigário Barroso ter se notabilizado pelos longos sermões e realização de cerimônias
intermináveis, carregadas de teatralidade e encenações. Talvez fossem essas
festividades um dos últimos suspiros das festas barrocas em Sergipe oitocentista64.
Entretanto, essa presença de festividades carregadas elucidam para outra
questão relevante. O vigário Barroso teve sua formação no Seminário da Bahia

61
“Ofício de Dom Manoel sobre o pedido do vigário Barroso no dia 28 de agosto de 1866”. Arquivo
Nacional do Rio de Janeiro, Coleção Eclesiástica, Cx. 930, p. 04.
62
De acordo como requerimento imperial do dia 17 de julho de 1869, o vigário José Gonçalves
Barroso foi nomeado cônego honorário da Capella Imperial. Cf. “Despacho Imperial n. 829-69 de
1869”. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, Coleção Eclesiástica, Cx. 930, p. 22.
63
PEDRO II, “Diário do Imperador...”, p. 65.
64
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX.
São Paulo: Companhia das Letras, 2009; PEREZ, Léa Freitas. “Dionísio nos trópicos”. In: Anais do
I Colóquio Festas e Sociabilidades. Aracaju: UFS, 2008, p. 77-106.

222 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


no período de Dom Romualdo Seixas, tido como um dos precursores da reforma
devocional no Brasil. Apesar de ter passado pelo seminário que preparava os
padres reformadores, a trajetória do vigário Barroso em São Cristóvão revela
uma conduta bem distinta em relação aos clérigos tidos como tal. José Gonçalves
Barroso teve uma atuação marcada pela proximidade em relação às irmandades
cristovenses, além de ter sido o preferido para proferir sermões nas solenidades
religiosas, especialmente nas homenagens ao Cristo sofredor, como foi o caso
do Senhor dos Passos. Esse posicionamento deve ser considerado ao se referi às
expressões de religiosidade no Sergipe oitocentista, no intuito de relativizar o papel
do clero no processo de reforma devocional, no qual, “na perspectiva dos párocos,
o culto aos santos deveriam ser concedidos apenas aos religiosos e honrados pais
de família, e serem praticados numa postura interior, sem pompa e alegria”65. A
reforma devocional em Sergipe e, consequentemente no Brasil, não foi linear,
nem tampouco homogênea. Ela dependeu da postura dos religiosos diante do
aceitação, respeito ou tolerância às práticas devocionais das camadas populares ou
até mesmo de parte das elites. É necessário considerar o fato de muitos religiosos
estarem imersos nesse contexto cultural marcado pela aproximação com os santos
e pela penitência como caminho de exortação da fé no catolicismo.
Outro ponto relevante em relação à postura de José Gonçalves Barroso é o
fato de ele ter sido o vigário geral de Sergipe durante duas décadas. Nesse caso,
a tolerância ao catolicismo das camadas populares não ficou restrita a Freguesia
Nossa Senhora da Vitória de São Cristóvão, mas pode também ter sido recorrente
em paróquias do interior, nas quais os párocos não tenham exercido suas ações de
combate às práticas tidas como perigosas ou pagãs. A difusão dos sacrifícios físicos
pelos frades capuchinhos e negociação entre o vigário Barroso e os irmãos terceiros
do Carmo refletem um universo peculiar do mundo católico no Sergipe oitocentista,
pois pode ser entendido como sinal da não existência de uma fronteira visível entre
devoções de pobres e ricos. Os dois grupos compartilhavam de algumas devoções
e, paulatinamente, ocorreu um distanciamento por meio das práticas votivas.
O catolicismo que, ao longo do século XX, seria tido como “popular”,
“supersticioso”, “selvagem” e “pernicioso”, no século XIX nem sempre foi visto
assim, pois membros das elites e religiosos seguiam esse modelo. Até mesmo
padres com reconhecimento do estado imperial e regente do catolicismo provincial,
mostraram-se propensos a seguir e estimular as práticas devocionais voltadas para
a exterioridade, pompa e penitência pública. Esse foi o caso de José Gonçalves
Barroso, vigário geral de Sergipe durante vinte anos, detentor de títulos e honrarias
imperiais e propagador da romaria do Senhor dos Passos. Diante desse quadro,
pode-se inferir que a primeira fase do processo de reforma devocional em Sergipe
não delineou uma ruptura das práticas religiosas, pois esse momento teria sido
marcado pela presença de religiosos europeus e do vigário geral da província no
intuito de promover uma orientação do clero em busca da moralização. Também é
possível localizar ações pontuais de combate, por parte do clero local, de algumas
práticas tidas como perigosas e insalubres. Contudo, tais ações não chegaram a ser
sistemáticas e contínuas. Possivelmente, foram decorrentes do perfil dos religiosos

65
ANDRADE, Sob o olhar diligente..., p. 79.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 223


ou até mesmo resultantes dos conflitos entre religiosos e membros das irmandades
instaladas nas suas respectivas paróquias.


RESUMO ABSTRACT
Esse artigo discute o processo de reforma This article discusses the devotional reform
devocional em Sergipe ao longo da segunda process in Sergipe during the second half
metade do século XIX, com foco para as of the nineteenth century, focusing for the
aproximações e os distanciamentos entre as approximations and distances between the
práticas penitenciais na romaria do Senhor dos penitential practices in the procession of the
Passos de São Cristóvão e as recomendações do Lord of Saint Kitts Steps and recommendations
clero local, especialmente os frades capuchinhos of the local clergy, especially the friars Capuchin
e o vigário Barroso. Ao longo da segunda and vicar Barroso. Throughout the second
metade do século XIX, Sergipe passou a receber half of the nineteenth century, Sergipe started
religiosos capuchinhos que se instalaram na receiving Capuchin religious who settled in São
cidade de São Cristóvão, local de onde partiam Cristóvão, location from where they left to carry
para a realização das santas missões. Tais out the holy missions. Such celebrations have
celebrações se tornaram vitrines das práticas become showcases of the devotional practices
devocionais de cunho penitencial, bem como as of penitential nature and the cracks of the
frestas dos conflitos e tensões do campo religioso conflicts and tensions of the religious field in the
na província. A partir dos textos publicados na province. From the texts published in the local
imprensa local do oitocentos, torna-se possível press of eight, it becomes possible to understand
compreender as nuances entre religiosos e leigos the nuances between religious and laity in the
na redefinição das práticas devocionais. redefinition of devotional practices.
Palavras Chave: Romaria; Reforma Devocional Keywords: Pilgrimage; Catholic Devotional
Católica; Sergipe Oitocentista. Reform; 19th Century Sergipe.

Artigo recebido em 30 abr. 2015.


Aprovado em 10 out. 2015.

224 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


UMA RIQUEZA NAS MATAS DO RIO GRANDE:
O EXTRATIVISMO, OS FAZENDEIROS E OS
TRABALHADORES DO MATE NO SÉCULO XIX
Cristiano Luís Christillino1
A erva-mate é produzida a partir das folhas da Ilex Paraguariensis, árvore
abundante nas regiões de clima subtropical da América do sul, presente na região
sul do Brasil, no Mato Grosso, no Norte da Argentina e no Paraguai. A erva-mate
foi a maior economia extrativa das fronteiras do Brasil com o Prata no século XIX.
A produção da erva-mate foi a segunda atividade de exportação mais importante
da Província do Rio Grande do Sul entre as décadas de 1840 e 1870, quando a
agricultura, expandida nas áreas coloniais, ultrapassa os números da erva-mate
no comércio da província com as demais regiões do Brasil e com o exterior. A
colheita do mate era realizada em meio às matas nativas, pois, no século XIX,
ainda não havia plantios comerciais. A extração do mate era realizada a cada 4 ou
5 anos, período que as árvores da Ilex Paraguariensis levavam para regenerar os
seus ramos. A colheita, em período menor, comprometeria a vida útil das árvores.
A extração do mate era realizada, principalmente, nas serras do município de
Cruz Alta, mas também se expandia pelas escarpas de montanha de Cachoeira,
Triunfo, Rio Pardo e Taquari. No caso destes dois últimos municípios, o francês
Aimé Bonpland afirmou em seu relatório de viagem que a erva-mate era uma das
três árvores mais abundantes em suas matas2. A extração dessa riqueza empregou
a mão-de-obra de milhares de homens livres.
A erva-mate também assumiu um papel de destaque na Província do Paraná,
sendo o seu principal produto de exportação entre 1853, data da sua criação, até
a crise de 19293. Essa foi a principal atividade do oeste da Província de Santa
Catarina no século XIX4. O mate também foi explorado na Província do Mato
Grosso cujos ervais foram alvo de disputas entre o Brasil e o Paraguai5. Nesse
período, a produção brasileira era exportada principalmente ao Uruguai, Chile e
Argentina.
Há um problema com as fontes sobre estas atividades na América espanhola, a
falta de fontes fiscais não permite um detalhamento da sua importância, uma vez
que a sua produção não era exportada para a Europa, como a prata de Potosí, o
couro e outros subprodutos vacuns, desta forma temos poucos dados a respeito

1
Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense. Professor Adjunto do Departamento
de História e Geografia da Universidade Estadual da Paraíba, Campus de Guarabira. Professor
colaborador do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco.
E-Mail: <christillino@hotmail.com>.
2
LINHARES, Temístocles. História econômica do mate. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969.
3
SANTOS, Carlos Roberto Antunes dos. História da alimentação no Paraná. Curitiba: Fundação
Cultural, 1995.
4
MACHADO, Paulo Pinheiro. Lideranças do contestado: a formação e atuação das chefias caboclas
(1912-1916). Campinas: Editora da UNICAMP, 2004.
5
BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O expansionismo brasileiro e a formação dos Estados na Bacia do
Prata: da colonização à Guerra da Tríplice Aliança. Brasília: Editora da UnB; Rio de Janeiro: Editora
Revan, 1985.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 225


destas atividades. Mas a historiografia mostrou que os centros mineradores, como o
de Potosí, e outros núcleos populacionais importantes, engendraram uma “cadeia
de efeitos” e criaram espaços comerciais para outras atividades, incluindo o mate.
Os ramos do mate, secos, tostados e moídos, eram utilizados pelos guaranis para
a infusão de uma bebida que, posteriormente, ficou conhecida como mate ou
chimarrão, e foi difundida até mesmo entre os trabalhadores das minas de Potosí,
ainda no século XVII6.
A exploração comercial do mate iniciou com nas reduções da Província
Jesuítica do Paraguai, e depois foi expandida para as demais regiões da Bacia
Platina. De acordo com Temístocles Linhares, a erva-mate se difundiu rapidamente
entre os colonizadores espanhóis e portugueses. Entre estes últimos, os tropeiros
disseminaram o uso do mate até a Província de São Paulo. O mate foi um dos
produtos comerciais mais expressivos também na praça comercial de Buenos Aires
ao longo dos séculos XVIII e XIX, o que refletia a sua importância na região platina.
O mate não só foi responsável por boa parte dos negócios realizados naquela
praça, como integrou economicamente várias localidades e povos indígenas à
capital portenha7. A erva-mate também foi um estímulo econômico à ocupação do
Planalto do Rio Grande do Sul.
Desta forma, discutimos neste artigo a importância do mate no Rio Grande do
Sul, no século XIX, mostrando que a economia província meridional não pode ser
restringida a pecuária. As atividades eram diversificadas na “terra dos estancieiros”,
e sua população se dedicava ao trabalho na criação de gado, na agricultura e na
extração do mate, uma atividade esquecida nas análises sobre o Rio Grande. Esta
última proporcionou o avanço da fronteira agrária e o emprego de uma mão-
de-obra que não era muito inferior àquela empregada na pecuária. Por outro,
procuramos mostrar que a expansão da erva-mate, na segunda metade do XIX,
levou muitos fazendeiros apropriarem ervais em terras “devolutas”, ao arrepio da
Lei de Terras de 1850, que abrigavam uma extensa população de trabalhadores
do mate, os ervateiros. Mostramos a resistência deste grupo frente às grilagens dos
terratenentes do Planalto do Rio Grande do Sul.
O mate na economia do Rio Grande do Sul
Após o Tratado de Madri de 1750, quando o território dos Sete Povos das Missões
foi entregue aos portugueses, muitos negociantes de couro de gado, tropeiros8, seus
peões e escravos se deslocaram ao Planalto do Rio Grande do Sul, em busca dos
rebanhos da Vacaria dos Pinhais. A erva-mate era uma base econômica importante
das Missões e com a destruição dos Sete Povos na Guerra Guaranítica (1753-1756),
o produto passou a ser explorado na região pelos súditos da Coroa Portuguesa. A
maioria dos tropeiros que iam ao Planalto sul-rio-grandense não eram militares de
patente para receberem uma concessão de terras, e nem mesmo possuíam capital
para adquirirem rebanhos a fim de ocuparem a terra ou então para comerciá-los

6
LINHARES, “História econômica do mate...”, p. 34.
7
GARAVAGLIA, Juan Carlos. Mercado interno y economia colonial: tres siglos de historia de la
yerba mate. 2. ed. Rosario: Prohistoria Ediciones, 2008.
8
As carnes passaram a ser aproveitadas em escala comercial a partir da implantação das charqueadas
na década de 1780.

226 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


no Sudeste. A solução para esses “remediados” foi a exploração da erva-mate.
Eles reuniam alguns parcos recursos, escravos e agregados e montavam carijos
para o beneficiamento do mate. Esses tropeiros “remediados” negociavam a erva
obtida em troca de mulas e rebanhos bovinos com aos negociantes estabelecidos
junto ao rio Uruguai. Esses animais eram invernados no Planalto ou nas Missões,
até que fosse formado um rebanho com número suficiente para ser tropeado até
as feiras de São Paulo, um ciclo que poderia durar até cinco anos. A erva-mate
permitiu a um número razoável de pessoas a obtenção de capital para entrada no
promissor negócio das tropas. Os súditos da Coroa Portuguesa que se envolveram
no comércio de tropas e da erva-mate ficaram conhecidos como birivas. Esse foi o
caso de Manoel Francisco Xavier, natural da Freguesia de Castro, então Província de
São Paulo, que se instalou na região do Planalto em 1822, acompanhado do filho
adolescente Francisco, de escravos e índios ervateiros. Manoel explorou o produto
nos ervais da Palmeira e, com os recursos obtidos, comprou uma tropa de mulas
na Fronteira, que depois foi comercializada na feira de Sorocaba9. Os números
das exportações do Rio Grande do Sul, no mesmo ano, mostram a importância
econômica da erva-mate na Província.
Em 1822, o Rio Grande exportou 797:183$520rs em charque, 107:273$600rs
em couros, enquanto as vendas de erva-mate chegaram a 444:368$960rs10. Ou
seja, as exportações de erva-mate atingiram 50% da receita obtida através do
comércio dos dois principais produtos da pecuária bovina. Esses números mostram
a importância econômica dessa atividade para o Rio Grande do Sul. No Paraná,
foram largamente empregados os engenhos de moagem da erva-mate movidos
pela força hidráulica, o que permitia uma melhor qualidade ao produto. Na década
de 1870, a produção da Província do Paraná entrou numa nova fase, através da
difusão dos engenhos movidos a vapor. Os mecanismos de beneficiamento e a
fiscalização da qualidade permitiram aos paranaenses a produção de uma erva-
mate de melhor qualidade, e preço mais alto do que a produzida no Rio Grande
do Sul ao longo do período imperial11.
Os dados referentes às exportações de erva-mate pelo Rio Grande do Sul, ao
longo do período imperial, mostram a importância do produto na economia local
e o seu crescimento até a década de 1860. Esses números também confirmam a
nossa hipótese de que a maior expansão dos ervateiros e negociantes do mate do
Planalto ocorreu nas décadas de 1840 e 185012. Já nos anos 60 do século XIX, a
saturação das primeiras áreas de exploração, bem como a exploração dos últimos
mananciais nativos do mate, levou a uma retração na atividade. Na década de
1880, a produção de erva-mate teve uma diminuição acentuada, foi reduzida a
metade ou até a menos do volume das duas décadas anteriores. Isso se deve a dois
motivos principais. Por um lado, a expansão da colonização sobre as áreas serranas

9
AVILA, Ney Eduardo d’. Passo Fundo: terra de passagem. Passo Fundo: Aldeia Sul, 1996.
10 CHAVES, Antonio Gonçalves. Memórias ecônomo-políticas sobre a administração pública
do Brasil. 4 ed. São Leopoldo: Ed. UNISINOS/ COPESUL, 2004, p. 225.
11
ZARTH, Paulo Afonso. Do arcaico ao moderno: as transformações do Rio Grande do Sul rural no
século XIX. Ijuí: Editora da Unijuí, 2002.
12
Cf. Revista do Arquivo Público do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, n. 08, 1922. Apud ZARTH, Do
arcaico ao moderno..., p. 225-226.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 227


levou à destruição de ervais para a abertura de lavouras, como foi o caso do vale
do rio Pardo e Taquari, por outro lado, a exploração acentuada dos ervais pelos
trabalhadores e negociantes do mate. As sucessivas colheitas, exigidas pelo próprio
fechamento da fronteira agrária, obrigaram os ervateiros a extraírem o produto em
intervalos menores, o que provocou a lenta destruição das árvores13. Os próprios
fazendeiros acentuaram a exploração predatória do mate. O preço da erva-mate
oscilou entre 1$500rs e 3$000rs a arroba ao longo do período estudado14. Em
determinados períodos, com apenas três arrobas de erva-mate, o fazendeiro
poderia alcançar o mesmo valor que obteria com a venda de um novilho para a
charqueada15. Dessa forma, em um erval denso, em poucos hectares, o proprietário
ou arrematador poderia obter uma produção que rendesse o mesmo valor de uma
boiada enviada para a charqueada por um médio fazendeiro.
A erva-mate também despertou a atenção do Ministério dos Negócios Estrangeiros
em 1871. Neste ano, o ministro Manuel Francisco Correia solicitou informações
sobre as reservas do produto no território localizado ao oeste das províncias de Santa
Catarina e do Paraná e sobre o estágio e as possibilidades de exploração dessas
riquezas pelos brasileiros. Ao padre e historiador francês João Pedro Gay foi confiado
essa missão. O clérigo estava à frente da Paróquia de São Borja, no Rio Grande
do Sul, e conhecia a região. O Padre relatou em correspondência ao Presidente da
Província, o senador Jerônimo Martiniano Siqueira Mello, em 1871, as informações
sobre a região e os ervais nelas existentes16. Segundo o pároco, depois da Guerra do
Paraguai alguns argentinos estavam explorando madeiras e erva-mate nas “costas do
rio Paraná”, em pleno território brasileiro. Ainda segundo o padre, as informações
que recebia em São Borja davam conta de que alguns moradores da Província de
Corrientes estavam explorando aqueles ervais. Havia o projeto de construção de
uma estrada na margem direita do rio Uruguai, em território argentino, para facilitar o
escoamento da produção de erva-mate do país vizinho Isso abriria espaço para uma
exploração ainda maior dos argentinos sobre os ervais do Império. O Padre João Pedro
afirmou que não existia o risco de os argentinos requererem o uti possidetis sobre os
Campos de Palmas, nem sobre os ervais das serras próximas ao rio Paraná, uma vez
que não estabeleceram guarnições ou povoados no local. No entanto, alertou sobre
os prejuízos sofridos pelo Império com exploração dos ervateiros argentinos de seus
ervais. O Padre João Pedro Gay alertou sobre o potencial econômico da região para
os súditos do Império. Essas áreas poderiam proporcionar a ascensão econômica aos
fazendeiros e negociantes, assim como ocorria nas regiões do Planalto e das Missões
da Província do Rio Grande do Sul.
A extração do mate foi a principal fonte de receita da Câmara de Cruz Alta.
Entre 1870 e 1873, os impostos sobre a erva-mate foram responsáveis por cerca

13
Conforme mostram os registros paroquiais de terras e os processos de medições de Taquari e Rio
Pardo, resultantes da aplicação da Lei de Terras de 1850.
14
ZARTH, Do arcaico ao moderno..., p. 147.
15
CHRISTILLINO, Cristiano Luís. Litígios ao sul do Império: a Lei de Terras e a consolidação política
da Coroa no Rio Grande do Sul (1850-1880). Tese (Doutorado em História). Universidade Federal
Fluminense. Niterói, 2010.
16
Relatório do Padre Gay. Arquivo Padre Gay, lata 404, documento 37. Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro- IHGB.

228 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


da metade da arrecadação do município17. A arrecadação de impostos com a
erva-mate também foi importante nos municípios de Taquari, Triunfo, Rio Pardo
e Cachoeira, os quais abrangiam áreas serranas no período. A Câmara de Cruz
Alta cobrava uma taxa de $800 réis por cada carreta carregada com erva-mate,
além de vender a própria licença de exploração dos ervais públicos18. A expansão
das atividades ervateiras interessava diretamente à Câmara pelo retorno em
impostos obtidos com a exploração da erva-mate, bem como aos negociantes
locais, os quais acumulavam fortuna com a sua comercialização. A “descoberta”
e exploração de novos ervais eram fundamentais para a municipalidade e para os
indivíduos envolvidos na atividade. A Câmara de Cruz Alta solicitou à presidência
da província expedições de “reconhecimento e localização dos ervais” no interior
das matas do Município.
Em 1857, o Presidente da Província do Rio Grande do Sul, Patrício Correia da
Câmara, atendendo a um pedido da Câmara de Cruz Alta, solicitou ao Ministro
do Império, o Marquês de Olinda, uma comissão de reconhecimento para a
“descoberta” de um rico erval no vale do Ijuí. Manuel Luís Osório, um dos mais
renomados militares sul-rio-grandenses na época, foi encarregado de chefiar a
expedição. Os tais ervais teriam sido “descobertos” por dois moradores da região
das Missões que foram afugentados pelos indígenas que habitavam aquelas matas.
A força comandada por Osório contou com um capitão, um tenente, um agrimensor,
27 soldados da Guarda Nacional e ainda com a participação do cacique Prudente e
7 “índios mansos”. A expedição levou meses em seu deslocamento até encontrar o
dito erval19. O longo período dessa incursão e o número de participantes mostram
a importância que esses novos ervais tinham para a economia da Província. Em
virtude do seu êxito, Manuel Luís Osório recebeu o título de Barão do Erval. A
“descoberta” do erval constituiu um fato mais importante para a carreira do futuro
General Osório do que a sua participação nas campanhas contra os governos de
Oribe e Rosas no início da década de 1850.
As atas da Câmara de Cruz Alta mostram o impacto da descoberta desse novo
erval na sociedade local. Em muitas reuniões, eram discutidos os problemas relativos
ao mate, à situação e ao reconhecimento dos ervais. Em 1860, a notícia de um
novo erval na localidade do Campo Novo e o seu potencial de exploração esteve
presente em parte significativa das reuniões dos vereadores20. O subdelegado do
Distrito do Campo Novo, cap. João dos Santos Paiva ressaltou a importância desse
erval para a “riqueza do Município”. O subdelegado também solicitou a abertura de
um “pique” em direção ao rio Uruguai para possibilitar a exportação da produção
local ao mercado platino, especialmente, Buenos Aires21.
Os lucros propiciados pela erva-mate permitiram num primeiro momento que
alguns homens de poucas posses ingressassem na pecuária e no comércio de

17
ZARTH, Paulo Afonso. História agrária do Planalto Gaúcho (1850-1920). Ijuí: Fidene/ Unijuí, 1997,
p. 122.
18
Cf. Ata da Câmara de Cruz Alta, 14 fev. 1851. Arquivo Histórico da Câmara de Cruz Alta – AHCA.
19
OSÓRIO, Fernando Luís. História do General Osório. Rio de Janeiro: Typographia Leuzinger &
Filhos, 1894.
20
Cf. Atas da Câmara de Vereadores de Cruz Alta, 1860. AHCA.
21
Cf. Ata da Câmara de Cruz Alta, 24 jan. 1860. AHCA.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 229


tropas. Todavia, os ricos ervais encontrados no interior das matas do Planalto,
somada à valorização do mate no mercado platino, incentivaram os fazendeiros,
especialmente a partir da década de 1840, a explorarem essa atividade. A erva-
mate redirecionou a produção local e a própria ocupação do Planalto e das Missões.
Os registros paroquiais de terras de Cruz Alta mostram que os fazendeiros estavam
apropriando largas extensões de terras florestais no município, exatamente nas
áreas de ervais. Os criadores, geralmente, declaravam as suas áreas de campo,
e depois registravam mais uma “posse de matos obtida por legítima ocupação”22
Dependendo do local, com alguns hectares de erva-mate era possível obter o
mesmo capital propiciado por um extenso campo.
Os maiores fazendeiros do Planalto ingressaram na extração da erva-mate. O
ten.-cel. Joaquim Thomaz da Silva Prado, o segundo maior proprietário de terras
de Cruz Alta na década de 1850, declarou, nos registros paroquiais, 18 léguas
de campo no Distrito da Palmeira23. Além desses vastos campos (mais de 78 mil
hectares), Silva Prado ainda declarou mais 10 áreas de “posses de matos” em nome
de seus filhos na serra do Ijuí, uma região rica em ervais. As “posses de matos” da
família Silva Prado teriam a extensão de quase 3 léguas de área (mais de 12.500
hectares) nas bordas das suas duas fazendas24. O Barão do Ibicuí, o terceiro maior
proprietário de terras do município de Cruz Alta nesse período, além de registrar a
posse de 8 léguas de campo (mais de 34 mil hectares)25, declarou ser proprietário
de uma área de meia légua de “terras lavradias” na Palmeira, Distrito de Santo
Ângelo. Essa posse de mais de 2 mil hectares estava localizada ao sul da fazenda
das Brancas, na Serra do Ijuí26. Essa região era rica em ervais, e os processos de
legitimação do Barão mostram indícios da sua exploração pelo estancieiro27, mas
não se restringiam à posse de “terras de agricultura”.
Os trabalhadores do mate
Um grande número de ervateiros, como eram conhecidos os homens que
trabalhavam na extração do mate, já exploravam a mesma área no Distrito da
Palmeira. Eles formaram um grupo social extenso na Província do Rio Grande
do Sul, conforme podemos observar na documentação do período28. Na região
das Missões, Temístocles Linhares afirma que havia cerca de 6 mil trabalhadores
envolvidos na colheita da erva-mate no ano de 1856 (Linhares, 1969: 105). Os
ervateiros constituíram o universo de homens pobres dedicados à extração da
erva-mate sem posse formal de suas terras, na maioria dos casos. A sua origem
social era heterogênea, composta por agricultores e agregados, que migravam em
busca de alternativas à pressão fundiária das áreas próximas às vilas e das lavouras

22
Cf. registros paroquiais de terras da Freguesia de Cruz Alta. Arquivo Histórico do Rio Grande do
Sul – AHRS.
23
Cf. registros paroquiais de terras da Freguesia de Cruz Alta, ns. 09 e 11. APERS.
24
Cf. registros paroquiais de terras da Freguesia de Cruz Alta, ns. 13; 14; 18; 19; 20; 21; 22; 23; 24;
25. APERS.
25
Registros paroquiais de terras da Freguesia de Cruz Alta, ns. 492, 496 e 512. APERS.
26
Registro paroquial de terras da Freguesia de Cruz Alta, n. 509. APERS.
27
Cf. os autos de legitimações de terras, ns. 194, 195, 196, 197, 198 e 737. AHRS.
28
Processos de legitimação de terras, correspondência das câmaras de vereadores, processos crimes,
relatórios de presidentes de província e memórias de época.

230 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


de meação das fazendas locais, por escravos fugitivos e por um grande número de
foragidos da justiça.
Os ervais se consagraram como um local de refúgio. Durante a Farroupilha, por
exemplo, muitos combatentes farrapos retiraram-se para os ervais de Taquari após
o Combate de Santo Amaro em 1837. Além disso, os ervateiros também foram
marcados pela diversidade étnica. Popularmente conhecidos como caboclos, este
grupo foi marcado pelo encontro entre o negro, o branco e o indígena.
Muitos fazendeiros empregaram os ervateiros nas suas terras, pagando a eles
dois terços do total de erva-mate colhida29. A grande maioria dos ervais, no entanto,
estava em terras públicas. Temístocles Linhares afirma que cada peão recebia, em
média, 4$000rs por cada jornada diária de trabalho nos ervais sul-rio-grandenses30,
um valor que consideramos alto para o período, pois foi a remuneração que os
trabalhadores campeiros receberam somente em 191031. Na década de 1850,
os fiscais dos ervais de Santo Ângelo, de Soledade e da Palmeira recebiam a
gratificação anual de 240$000rs. Já os guardas municipais, encarregados de
auxiliar os fiscais, recebiam apenas 100$000rs anuais32. Os trabalhadores dos
ervais, geralmente, se dedicavam à atividade nos meses do outono e do inverno.
No verão e na primavera, trabalhavam em suas lavouras de “subsistência”. Esses
roçados também abasteciam o mercado local.
As duas obras clássicas sobre o grupo de “agricultores pobres nacionais”
consagraram a visão da sua desintegração da vida econômica e política da sociedade
brasileira no século XIX e no início do século XX. Maria Sylvia de Carvalho Franco
analisou este grupo social no século XIX33. A autora defendeu que a violência
cotidiana entre esses homens era o subterfúgio à sua falta de mobilidade social.
A escravidão teria deixado os homens livres e pobres “sem razão de ser” naquela
sociedade. Antonio Cândido estudou o “caipira” paulista nas décadas de 1940 e
1950. Na sua concepção, os homens pobres do campo tinham uma cultura pobre,
a qual “[...] não foi feita para o progresso: a sua mudança é o seu fim [...]”34. A
falta de estímulos e de técnicas produtivas teriam causado o seu “desapego ao
trabalho”.
Martins defende que o avanço da fronteira interna tem um caráter de sacrifício,
pois é na expansão da fronteira econômica que o outro é degradado, isso para
assegurar a existência de quem domina35. Martins procura desconstruir o mito
do pioneiro, mostrando o aspecto trágico da fronteira, que se afirma a partir da
destruição de grupos preestabelecidos nas “novas áreas”, mas não totalmente
integrados ao capitalismo, quando são recriadas formas arcaicas de dominação

29
CHRISTILLINO, “Litígios ao sul do Império...”, p. 217.
30
LINHARES, “História econômica do mate...”.
31
MAESTRI, Mário (org.). O negro e o gaúcho: estâncias e fazendas no Rio Grande do Sul, Uruguai
e Brasil. Passo Fundo: UPF Editora, 2008.
32
Atas da Câmara de Cruz Alta, década de 1850. AHCA.
33
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Kairós,
1983.
34
CANDIDO, Antônio. Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação
dos seus meios de vida. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1964, p. 82.
35
MARTINS, José de Souza. Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano. 2. ed. São
Paulo: Contexto, 2009.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 231


e de reprodução ampliada do capital, como a escravidão. José de Souza Martins
distingue o avanço da fronteira em duas frentes. A frente pioneira se define
economicamente pela exploração capitalista da terra, enquanto que a frente de
expansão constitui a etapa de ocupação entre a primeira e a frente demográfica
cujo grupo mais representativo seria o do indígena. Para Souza Martins, ambas
constituem momentos históricos distintos e combinados de ocupação da fronteira.
A frente de expansão, na visão do autor, é o momento, no qual a vida econômica
não está estruturada na relação com o mercado, mas não pode ser considerada uma
economia natural, na medida em que fornece produtos para a comercialização.
Essa seria a economia dos excedentes, na qual se tem como primeiro objetivo a
subsistência e, secundariamente, a troca dos seus produtos por outros em circulação
no mercado. Entretanto esses também não poderiam ser enquadrados na fronteira
econômica em função da entrada de excedentes demográficos que não poderiam
ser englobados por essa fronteira. A frente de expansão estaria interligada ao
capitalismo, ao oferecer mão-de-obra e oportunidades de abertura de espaço às
futuras ocupações da frente pioneira36.
A discussão de José de Souza Martins contribuiu com os estudos sobre a
fronteira no Brasil, especialmente, ao desenvolver uma análise sociológica sobre
uma temática que vinha recebendo destaque somente pela antropologia. Em
seu trabalho, ele juntou o “mundo do posseiro” numa única singularidade. A
fronteira de expansão englobou um grupo social complexo, com níveis diversos de
integração ao mercado e, em meio a processos sociais variados. A sua abordagem
sobre a fronteira de expansão não nos permite enquadrar a experiência histórica
dos homens pobres inseridos na atividade de extração da erva-mate no Rio Grande
do Sul, no século XIX. No século XIX, não houve uma separação assim tão nítida
entre este grupo e aqueles que praticaram a “agricultura pioneira”.
No caso do Rio Grande do Sul, no século XIX, a economia praticada pela
frente pioneira, que tem o seu tipo mais representativo na figura do imigrante, e
pela de frente expansão, que seria a dos ervateiros, não constituiu, na maioria dos
casos, realidades distintas. Nem as atividades das colônias imigrantes, nem mesmo
a dos fazendeiros poderiam ser totalmente vinculadas ao mercado, bem como a
“economia do excedente”, da frente de expansão, não estaria assim tão distante
assim dele. Alguns ervateiros estavam, de tal maneira integrados ao mercado, que
conseguiram acumular fortuna. Outros posseiros arranchados no interior das matas
também vendiam seus produtos regularmente no comércio local. Hebe Maria
Mattos mostrou a importância e a abrangência desse grupo em meio às lavouras
escravistas no Sudeste, na segunda metade do XIX. Segundo ela:
Não se trata, no entanto, de uma área de economia natural,
pois dela saem regularmente produtos que assumem valor
de troca no mercado, completando o processo de reprodução
social de seus participantes. No período escravista, o
avanço da plantation, se, por um lado, determinou o

36
Martins constrói seu conceito a partir da realidade da Amazônia no século XX, mostrando que
o capitalismo provoca a reprodução de relações não capitalistas de trabalho, como é o caso do
escravismo.

232 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


desenraizamento histórico do pequeno produtor rural no
espaço sócio-histórico brasileiro, por outro, não chegou a
desenvolver mecanismos suficientemente poderosos para
impossibilitar-lhes a existência.37
Os ervateiros e pequenos posseiros do Rio Grande do Sul estavam integrados,
mesmo que sazonalmente, ao comércio local. Dessa forma, não é possível enquadrá-
los numa frente de expansão, isolando-os da realidade dos colonos imigrantes.
Estes últimos realmente estavam mais integrados ao mercado provincial, em função
das dívidas assumidas na aquisição dos seus lotes de terras38. Essa visão nega
o pioneirismo de muitos grupos que seriam enquadrados, a partir da concepção
de Souza Martins, na dita frente de expansão, como foi o caso daqueles que
trabalhavam na extração da erva-mate e nas lavouras de alimentos. É importante
levar em conta que, nas próprias colônias alemãs, os colonos produziam uma boa
parte da sua subsistência e, muitas vezes, apenas os excedentes eram levados
ao comércio. Por outro lado, a própria propriedade da terra constituiu um longo
processo de transição ao longo do XIX, dessa forma, não podemos diferenciar,
no plano legal, as pequenas colônias dos imigrantes das posses dos ervateiros. Os
trabalhadores que atuaram na cadeia de exploração da erva-mate não poderiam
ser enquadrados unicamente numa frente de expansão, à margem do mercado,
quando eram responsáveis pelo segundo produto mais importante da economia da
Província do Rio Grande do Sul, durante boa parte do século XIX. Paulo Zarth, em
seu trabalho pioneiro sobre os “lavradores nacionais” (ervateiros), mostrou que o
mesmo grupo não estava isolado naquele contexto e nem tampouco afastado dos
mercados39. Neste sentido Zarth defende que estes trabalhadores poderiam, em
sua grande maioria, serem enquadrados como camponeses.
Os ervateiros representaram, em alguns casos, uma ameaça aos interesses dos
fazendeiros e negociantes de erva-mate. Ainda em 1849, a Câmara de Cruz Alta
tomou algumas medidas para impedir a destruição dos ervais do município, os
mais importantes da Província40. As colheitas predatórias da erva-mate estavam
aniquilando as árvores de mate e, em alguns casos, levaram à destruição dos
ervais. A Câmara de Cruz Alta procurou, através do aumento de impostos e da
fiscalização, os meios para impedir a ruína da sua mais importante fonte de renda.
Uma arrecadação maior permitiria a melhor remuneração dos fiscais e guardas
que atuavam nos ervais, de modo a estimulá-los a aplicarem sanções do Código
de Postura municipal e de outras medidas tomadas pela Câmara para regrar a
exploração dos ervais públicos. Mas, essas medidas não impediram a apropriação
de vastas extensões de ervais pelos fazendeiros do Planalto, conforme mostram
os registros paroquiais de terras. Essas áreas não poderiam ser incorporadas aos
domínios dos fazendeiros, conforme previa a Lei de Terras, uma vez que somente
as atividades agrícolas e pecuárias confeririam legitimidade de posse, o mesmo

37
MATTOS, Hebe Maria Mattos de. Ao sul da história: lavradores pobres na crise do trabalho escravo.
São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 15.
38
CUNHA, Jorge Luís. Os colonos alemães e a fumicultura: Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul –
1849-1881. Santa Cruz do Sul: Livraria e Editora da FISC, 1991.
39
ZARTH, “História agrária...”, p. 122.
40
Ata da Câmara de Cruz Alta, 12 jun. 1849. AHCA.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 233


direito não era estendido às áreas de extrativismo. Ainda assim, a destruição dos
ervais de Cruz Alta era atribuída à “posse coletiva”.
É ao principio da propriedade comum que nos devemos a
destruição de todos os magnificos hervaes deste municipio,
e por consequencia a expantosa diminuição deste produto
que tende a desaparecer d’ entre nós, se medidas muito
energicas não forem tomadas por esta Camara para abster
a sua total destruição, passando os hervaes ao dominio
privado.41
Nesse trecho da ata da Câmara de Cruz Alta, os vereadores mostram sua visão
sobre o problema. As causas da destruição dos ervais estariam no fato de uma
parte significativa desses ser pública e assim a população tinha livre acesso a eles.
A solução para a sua preservação estaria na transferência deles para o domínio
privado. Dessa forma, as apropriações abusivas dos fazendeiros sobre as terras de
ervais estariam na direção da “solução” à preservação de tais áreas. Isso, quando
alguns desses fazendeiros ocupavam uma cadeira no legislativo municipal de Cruz
Alta ou então eram nele representados por integrantes das suas redes de relações
sociais.
Em 1856, na região das Missões, principalmente no Distrito da Palmeira, havia
mais de seis mil homens trabalhando nos ervais42. Nesse período, as “invasões”
às matas públicas, ricas em mate, fugiam ao controle da Câmara de Cruz Alta.
No plano jurídico, a Lei de Terras de 1850 transformou o pequeno posseiro em
invasor a partir daquela data. As câmaras municipais se basearam nessa lei para
formularem artigos adicionais aos seus códigos de postura, a fim de regrarem o uso
dos ervais públicos e instituírem penas aos infratores. A Câmara de Cruz Alta foi
pioneira em anexar artigos que tratassem da questão dos ervais43.
Em 1867, o Presidente Francisco Homem de Melo destacou, em seu relatório
os problemas em torno da produção da erva mate44. O Presidente determinou às
câmaras que dessem atenção ao assunto e que formulassem normas municipais em
relação à qualidade da erva-mate e à destruição dos ervais, em conformidade com
o que fizera a Câmara Municipal de Cruz Alta. Uma boa parte dos municípios que
possuíam florestas ricas em mate atendeu aos sucessivos pedidos dos presidentes
provinciais e formulou adendos aos seus códigos de postura. Santo Antonio da
Patrulha e Taquari tiveram alterações aprovadas no início da década de 1870.
Neste último Município, os artigos complementares ao seu código de postura foram

41
Ata da Câmara de Cruz Alta, 28 abr. 1868. AHCA.
42
LINHARES, “História econômica...”, p. 267.
43
Mas as alterações no código de posturas municipais de Cruz alta não foram encontradas em nossa
pesquisa. O presidente provincial Homem de Mello citou o mesmo código de postura em 1867,
alegando que as demais câmaras deveriam seguir o seu exemplo. Entretanto, na correspondência
da Câmara e nas atas das reuniões dos vereadores, não constam esses artigos ou mesmo o novo
código.
44
MELLO, Francisco Ignacio Marcondes Homem de. Falla dirigida à Assembléa Legislativa da
Provincia de S. Pedro do Rio Grande do Sul pelo presidente Dr. Francisco Ignacio Marcondes
Homem de Mello, em a segunda sessão da 12ª legislatura. Porto Alegre: Typ. do Rio Grandense,
1867. AHRS.

234 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


apresentados em 187345.
Taquari englobava uma considerável extensão de áreas serranas ricas em ervais,
e a sua conservação interessava à municipalidade e também aos fazendeiros e
negociantes de erva-mate. Os artigos referentes ao adendo do seu código de
postura foram apresentados com o objetivo principal de garantir a qualidade do
produto. No entanto, o que se observa é que o seu principal propósito foi coibir
a ação dos ervateiros pobres sobre os mananciais de mate existentes nas áreas
públicas. Dos nove artigos apresentados, apenas dois se referiam à qualidade
do produto, os outros sete diziam respeito às restrições na extração e abertura
de roçados no interior dos ervais. Estes últimos estavam diretamente relacionados
às atividades dos ervateiros, que permaneceram sujeitos a multas e à prisão. Os
maiores responsáveis pela destruição dos ervais em Taquari foram, na verdade, os
colonizadores, que lotearam as áreas públicas e as venderam aos imigrantes. Estes,
por sua vez, derrubavam as matas ricas em mate para a formação de lavouras.
Nenhum colonizador foi multado ou denunciado pelos fiscais dos ervais públicos.
Os códigos de postura dos municípios, ao criarem mecanismos de preservação
dos ervais à ação dos ervateiros e pequenos posseiros, mostram o interesse cada
vez maior dos fazendeiros e dos negociantes de erva-mate na extração do produto
nas matas do Planalto e da região serrana. Uma árvore de mate adulta poderia
render até 50 ou 60 quilos de ramos de mate para o beneficiamento46. Com
isso, dependendo do erval, apenas duas árvores poderiam render pelo menos
uma arroba de erva-mate pré-moída e desidratada, pronta para o comércio nos
engenhos de processamento ou para sua venda final. Um erval “rico” poderia
conter até 100 árvores da Ilex Paraguariensis por hectare, o que renderia mais de
50 arrobas de erva-mate beneficiada que, negociadas por um valor entre 1$500rs e
3$000rs a arroba, poderia render pelo menos o mesmo capital obtido com a venda
de 15 novilhos para a charqueada. Nessa base, em 15 ou 20 hectares de um erval
“rico”, o produtor poderia obter uma renda aproximada ao que um estancieiro
alcançava numa légua de campo47. O mate propiciava uma colheita a cada 4 ou
5 anos, e sua incidência, em geral, não era de forma tão adensada quanto a que
descrevemos anteriormente. Todavia, esses dados mostram que os ervais “ricos”
poderiam proporcionar, em poucos hectares, uma renda superior àquela obtida
numa fazenda de gado.
A década de 1860 também foi marcada pela crise na pecuária muar. Cruz Alta
era um produtor tradicional de mulas, o maior da Província do Rio Grande do Sul.
Em 1800, a Feira de Sorocaba recebeu, anualmente, cerca de 20 mil mulas do Sul,
em 1850, foram 50 mil, em 1865, foram 100 mil muares, mas, entre 1875 e 1890,
essa média caiu para apenas 12 mil mulas por ano48. Em 1863, o Barão de Ornano

45
Correspondência da Câmara Municipal de Taquari, 1873, n. 17. AHRS.
46
LINHARES, “História econômica do mate...”, p. 46.
47
Um estancieiro poderia ter em média até mil cabeças de gado numa légua de campo, do qual
obteria cerca de 100 cabeças para comercializar anualmente. O preço médio do novilho oscilou
entre 8$000 réis e 10$000 réis, na década de 1870, portanto 100 cabeças atingiriam um valor em
torno de 800$000 réis e 1:000$000 rs. Em determinados períodos, esse valor poderia ser obtido
com um volume inferior a 400 arrobas de erva-mate. Conforme: CHRISTILLINO, “Litígios ao sul
do Império...”, p. 189.
48
COSTA, Licurgo. O continente das Lagens. Florianópolis: FCC, 1982.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 235


registrou que a produção de mulas encontrava-se em franca ruína na Província.
Segundo ele, na década de 1850, pagava-se até 30$000rs por uma mula no Rio
Grande do Sul, mas em 1863, o seu valor não ultrapassou os 5$000rs, e ainda
assim era difícil encontrar compradores49. O relatório do Cônsul Francês em Porto
Alegre mostra que os pecuaristas, dedicados à produção de mulas, sofreram um
grande prejuízo50. Logo, esses criadores teriam que procurar outras alternativas, e a
erva-mate foi a atividade que proporcionou um maior volume de lucros no período.
Mesmo a agricultura, cuja produção era ainda incipiente no Planalto, no período
entre 1850 a 1880, apresentava um baixo rendimento e seus preços não eram tão
compensadores quanto os da erva-mate. Em 1867, a saca de feijão exportada do
Rio Grande do Sul alcançou 4$500rs e a saca de milho 2$800rs51. Estes valores
constituem o preço final desses produtos, registrados nas alfândegas. Sabemos
que, entre o agricultor e o porto, era percorrido um longo caminho em que o
transporte e os atravessadores tomavam a maior parte dos valores obtidos por
esses produtos. No mesmo período, o preço da arroba da erva-mate variava entre
1$500rs e 3$000rs. A erva-mate, até mesmo por uma questão de mão-de-obra,
foi bem mais lucrativa do que a agricultura, o que incentivou os fazendeiros a se
apropriarem das terras de ervais, em sua absoluta maioria, públicas.
Os engenhos para o beneficiamento da erva-mate também permitiram o
desenvolvimento de algumas serrarias. Nos registros paroquiais de terras de Cruz
Alta, existem nove referências a esses estabelecimentos. Boaventura Soares da
Silva declarou possuir “uma propriedade com casas, engenho de serrar madeiras,
matos, potreiros de pequenos campos e grandes capoeiras” no Pirapó, região
próxima à foz do rio Ijuí, nas águas do Uruguai, com a extensão de uma légua e
meia52. Esses locais mostram, por um lado, a progressiva diversificação da economia
local, mas por outro, chama a atenção à ligação dos povoados missioneiros com
o Prata. O rio Uruguai foi a principal via de escoamento da erva-mate e de outros
produtos daquelas localidades. Como a serraria de Boaventura Souza da Silva
estava localizada próxima ao rio Uruguai, sua produção e a de algumas outras
estabelecidas na mesma região, provavelmente, esteve direcionada aos mercados
da Argentina e da República Oriental.
Os fazendeiros e a expansão sobre as terras de ervais
No Planalto a grande maioria das terras era fruto de posse e uma boa parte delas

49
O Barão de Ornano atribuía a decadência do mercado de mulas às melhorias nas estradas no
Sudeste e à introdução de estradas de ferro, o que facilitou o transporte nas regiões cafeeiras e
dispensou, em parte, o tráfego muar. Como as mulas eram amplamente utilizadas no transporte de
cargas em todo o Brasil naquele momento, e a economia do Sudeste não se limitava à produção
cafeeira, é bem possível que a ruína do mercado às tropas muares do Sul também esteja vinculada
à superprodução local ou também à concorrência de outras áreas, inclusive do próprio Sudeste.
ORNANO, Paul Baptiste d’. Um barão na província: apêndice ao Relatório Geral, 1863. Tradução
de Fúlvia Moretto. Porto Alegre: EDIPUCRS; Brasília: INL, 1996.
50
Em parte, a diminuição da produção muar se deve à valorização do gado bovino no mercado
provincial. Seus preços eram mais atrativos, diante da desvalorização das mulas, além disso, ciclo
de reprodução dos bovinos era menor. CHRISTILLINO, “Litígios ao sul do império...”.
51
Cf. Revista do Arquivo Público do Rio Grande do Sul, n. 08, 1922. Apud ZARTH, Do arcaico ao
moderno..., p. 114.
52
Registro paroquial de terras da Freguesia de Cruz Alta, n. 667. APERS

236 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


era o resultado da grilagem. Os fazendeiros dessa região, além de efetuarem “posses
suspeitas”, também enfrentavam a resistência dos ervateiros e pequenos posseiros à
expropriação da terra e dos ervais. Os processos de legitimação também resultaram
da ameaça à afirmação de propriedade. Os fazendeiros instrumentalizaram a Lei
de Terras, sempre que ela pudesse beneficiá-los. Foi o caso dos irmãos Rodrigues
Fonseca no Distrito de Santo Ângelo em Cruz Alta.
Os irmãos Rodrigues Fonseca eram paulistas e teriam se instalado na região
das Missões em meados da década de 1830, quando João Rodrigues da Fonseca
trabalhou como capataz na fazenda Monte Alvão, de propriedade do Barão de
Ibicuí53. João e seus irmãos, provavelmente, mudaram para o Rio Grande do Sul
por meio do trabalho nas tropas organizadas pelo Barão do Ibicuí, o guarda-mor
Francisco Paula e Silva e do barão de Antonina, o ten.-cel. João da Silva Machado.
Em 1835, quando os irmãos Rodrigues teriam chegado ao Sul, eles ainda eram
jovens. João tinha 21 anos, Antonio, 20 anos e Luciano tinha apenas 14 anos. Além
deles, a documentação analisada ainda faz referência a mais três irmãos: Ângelo,
Francisco e José Rodrigues da Fonseca. Num primeiro momento, eles trabalharam
na fazenda do Barão do Ibicuí e, em seguida, apossaram-se de terras nas bordas
dos campos do capitão-mor. As áreas de matas e alguns campos do Planalto e das
Missões foram os últimos espaços a serem ocupados na Província do Rio Grande do
Sul, em função da resistência das tribos caingangues e guaranis à ocupação dos seus
territórios, o que retardou a sua ocupação definitiva. Os processos de legitimação e
os registros paroquiais de terras apontam que a ocupação dos campos, localizados
próximos à Serra do Ijuí, no Distrito de Santo Ângelo, iniciou na década de 1830.
As áreas florestais da região, ricas em erva-mate, foram apossadas posteriormente.
A própria expedição de reconhecimento a um erval, comandada pelo então ten.-
cel. do Exército, Manuel Luís Osório, no vale do Ijuí, em 1857, do qual alguns
ervateiros foram “corridos pelos índios”, comprova a ocupação tardia dessas matas
em relação às áreas de campo do mesmo distrito. A valorização da erva-mate foi
um incentivo à ocupação das áreas florestais do Planalto e das Missões.
A trajetória dos irmãos Fonseca mostra que muitos milicianos, ao ingressarem
nas tropas ou nas redes de relações sociais de alguns chefes da Guarda Nacional,
puderam obter vantagens na apropriação de terras. João Rodrigues da Fonseca
e Antonio Rodrigues da Fonseca obtiveram a patente de tenentes no regimento
comandado pelo Barão do Ibicuí. Luciano e José Rodrigues da Fonseca não
aparecem nos processos, enquanto ocupantes de postos na milícia. Ainda assim,
a participação nas tropas comandadas pelo Barão, no momento da ocupação dos
campos do Distrito de Santo Ângelo, lhes garantiu o acesso à terra na região. As
apropriações dos irmãos Fonseca mostram a importância da patente no acesso a
terras, mesmo que por meio de posse. João Rodrigues da Fonseca, que ocupou
o posto de tenente, apossou 9.400 hectares. José Rodrigues da Fonseca, também
integrante da Guarda Nacional, apropriou 8.258 hectares, enquanto Luciano
Rodrigues da Fonseca, que era mais novo e não obteve patente na Milícia, apossou
6.886 hectares de terras, todas elas localizadas nas bordas das fazendas do Barão
do Ibicuí. Isso mostra que, na ocupação do Planalto e das Missões, a patente

53
Auto de medição n. 198. AHRS.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 237


militar e miliciana era importante no acesso a terras, principalmente em função da
“ratificação” ou permissão dos chefes militares.
Seis integrantes da família Rodrigues Fonseca possuíam terras no Distrito de
Santo Ângelo54, mas somente três deles legitimaram as suas posses: João, José
e Luciano Rodrigues da Fonseca. Esse fato mostra que os fazendeiros somente
encaminharam processos de legitimação, quando a sua posse estava sendo
contestada por outros posseiros ou ervateiros. Já as áreas de “posses mansas e
pacíficas” dos outros integrantes da família Fonseca, não foram legitimadas. João,
José e Luciano Rodrigues da Fonseca legitimaram 24.644 hectares de terras no
Distrito de Santo Ângelo, na Serra do Ijuí.
Os processos de legitimação expressam as disputas existentes em torno da
apropriação fundiária. As ações eram caras e demoradas, e o seu encaminhamento
ocorria, geralmente, diante da ameaça de outros confrontantes que possuíam o
mesmo poder econômico ou prestígio social. Esses processos revelam a dinâmica
política da afirmação de propriedade e mostram outra face da aplicação da Lei
de Terras de 1850, ainda não explorada pela historiografia: a contribuição da sua
aplicação no processo de centralização política do Governo Imperial. O Decreto
número 1.318 de 30 de janeiro de 1854, que regulamentou a aplicação da Lei,
estabeleceu que as ações de legitimação e revalidação de terras, encaminhadas
após o período das declarações paroquiais de terras (1854-1857), tramitariam
nas repartições especiais de terras públicas. Estes órgãos estavam subordinados às
secretarias das presidências provinciais, e o julgamento sobre os processos caberia
ao chefe do executivo provincial e não a um magistrado. A aprovação dos autos
dependeria da “avaliação” do presidente provincial sobre os processos. Estes foram
encaminhados diante de litígios, e sua aprovação dependeu, em boa parte dos
casos analisados, do grau de relações políticas do legitimante com a presidência da
província. As ações analisadas, nos municípios de Taquari e de Cruz Alta, revelam
a intensidade das disputas em torno da apropriação territorial e os enfrentamentos
entre os membros da elite no apossamento das terras devolutas. Um processo
de legitimação muitas vezes era fruto do enfrentamento de duas famílias que
ocupavam altas patentes na Guarda Nacional. Essas disputas equilibradas exigiam
uma maior aproximação dos fazendeiros à presidência da província. Além disso, os
dispositivos da Lei, ao proibirem a posse após 1850 e exigirem a ocupação efetiva
das áreas apropriadas para a sua titulação, ameaçaram o direito de acesso dos
mesmos fazendeiros. Esse contexto exigiu dos posseiros uma maior negociação
política com a Coroa55.
Em Cruz Alta, foram encaminhados 86 processos de legitimação para a obtenção
do título de propriedade, dos quais 48 se referiam à posse em terras de matas. Essas
48 áreas legitimadas, em terras florestais, somaram 65.098 hectares, uma média de

54
Francisco Rodrigues da Fonseca declarou duas áreas de terras que somavam mais de 7.600
hectares. Ângelo Rodrigues da Fonseca registrou meia légua de campo no Distrito da Vila de Cruz
Alta e aparece como confrontante de uma área de matos na Serra do Ijuí. Esse era o mesmo local
em que Porfírio Rodrigues da Fonseca aparece como vizinho de uma posse em terras de matas.
Esses três posseiros não efetuaram processos de legitimação de suas terras. Cf. registros paroquiais
de terras da Freguesia de Cruz Alta, ns. 44; 56; 57; 252; 262; 278. APERS.
55
CHRISTILLINO, Cristiano Luís. “Sob a pena presidencial: a Lei de Terras de 1850 no Rio Grande
do Sul e a negociação política”. Tempo, Niterói, vol. 16, 2012, p. 223-245.

238 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


1.356 hectares para cada posseiro. Um número que mostra a intensidade da grilagem
nessa região. Nossa hipótese, com base na pesquisa dos registros paroquiais de
terras, processos de legitimações e nas fontes sobre as colônias imigrantes, é de que
uma unidade produtiva baseada na agricultura poderia atingir, numa expectativa
bastante otimista, 300 hectares56. Isto no período de 1850 a 1880 no Planalto do
Rio Grande do Sul. O agricultor que possuía o maior plantel escravo empregado na
lavoura, nesta região, possuía uma propriedade que não ultrapassou 150 hectares!
Os ervais constituíam uma importante fonte de lucros para os fazendeiros do
Planalto e das Missões, em alguns casos proporcionando lucros não alcançados
na pecuária, desta forma levou os fazendeiros a se apropriarem da maior extensão
possível deste importante recurso natural. Ato este proscrito pela Lei de Terras de
1850, por se tratar de uma atividade extrativa e que não propiciava “cultura efetiva
e morada habitual”.
Os registros paroquiais de terras demostram a intensidade das apropriações dos
ervais pelos fazendeiros. Entre as declarações que citaram a extensão da área em
Cruz Alta, 63,48% registraram terras na faixa entre 1.001 e 5 mil hectares. Grande
parte delas se refere a posses em terras florestais ricas em ervais, declaradas,
principalmente, no tamanho de um quarto de légua (1.089 hectares) e de meia
légua (2.178 hectares). Essas áreas registradas dificilmente seriam ocupadas, em
sua totalidade, pela agricultura. Por isso, o próprio percentual de extensão declarada
dos registros paroquiais entre 1.001 e 5.000 hectares mostra a intensidade da
grilagem no Município de Cruz Alta.
A erva-mate também foi uma importante fonte de lucros para os negociantes.
Nesse momento, o gado do Planalto era negociado com os tropeiros, geralmente
de outras regiões, com charqueadores estabelecidos nas margens do Jacuí (Rio
Pardo, Cachoeira do Sul e São Jerônimo), no sul da Província (Rio Grande e
Pelotas) e na Campanha. Dessa forma, a erva-mate abriu espaço maior para a
atuação dos negociantes do Planalto. O produto garantiu a acumulação de capital
nas mãos de muitos “birivas”, permitindo o seu ingresso no comércio de tropas.
Também possibilitou que alguns pequenos negociantes ou arrematantes de ervais
estabelecessem casas de comércio nas suas proximidades e formassem fortuna como
foi o caso de Joaquim Pereira da Motta e de João José Veau. Temístocles Linhares
também relatou os altos lucros obtidos pelos negociantes da erva-mate no Paraná,
citando o caso de um deles que, mesmo tendo utilizado um empréstimo para obter
o capital de giro, conseguiu um lucro de 200% em um ano de atividades57.
A erva-mate do Planalto e das Missões era vendida, principalmente, em duas
praças comerciais. A primeira era nas casas de negócios nas margens do rio Uruguai,
e as mais importantes delas estavam situadas em Itaqui. Desses entrepostos, a
erva-mate era exportada para o Prata. A segunda praça comercial era Rio Pardo,
para onde era enviada a produção do Distrito do Botucaraí. A cidade de Rio
Pardo estava estabelecida no trecho navegável do Jacuí e para a qual, havia
duas estradas na Serra Geral: a de Santa Cruz e a do Botucaraí. A erva-mate era
transportada por embarcações de Rio Pardo até Porto Alegre e Rio Grande, de
onde era distribuída ao interior da Província e também exportada. Ave-Lallemant

56
CHRISTILLINO, “Litígios ao sul do Império...”, p. 219-222.
57
LINHARES, “História econômica do mate...”, p. 320.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 239


visitou o Rio Grande do Sul em 1858 e registrou que, em Rio Pardo, havia um
engenho capaz de beneficiar até 100 arrobas de erva-mate por dia. O médico
alemão também destacou o caso de uma “pequena firma francesa” em Itaqui que
exportava, anualmente, 4 mil arrobas do produto58. Os processos de legitimação
de terras e os registros de transmissão de tabelionato de Cruz Alta mostram a
disseminação dos engenhos de moer erva-mate nas regiões do Planalto e da Serra.
Esses dados confirmam a existência de um importante complexo ervateiro no Rio
Grande do Sul, em meados do XIX.
Considerações finais
No período de 1850 a 1880, os altos lucros com a exploração da erva-mate
estimularam a apropriação de terras, sendo que o mate foi a segunda riqueza
mais importante da Província. A análise da estrutura produtiva dos estancieiros,
na década de1850, revelou a baixa lucratividade apresentada pelos rebanhos
cujos preços não cresceram na mesma proporção que os valores do hectare de
terras. No caso de Cruz Alta, o número de estancieiros que enfrentavam problemas
financeiros foi ainda maior. Esse contexto levou os criadores a apropriarem as terras
de ervais, pois o mate exigia baixos investimentos e proporcionava bons ganhos.
Nas áreas mais ricas do produto, poucos hectares poderiam render um lucro maior
do que aquele obtido em uma légua de campo pela pecuária. Essa conjuntura
explica a rápida apropriação dos ervais do Planalto pelos fazendeiros, expansão
esta baseada na grilagem de terras públicas.
Os ervais abrigavam um grande número de trabalhadores dedicados à extração
do mate e a agricultura de subsistência. Um grupo que numericamente não estava
muito abaixo da mão-de-obra empregada na pecuária, a atividade mais conhecida
do Rio Grande do Sul ao longo do período colonial e imperial. O próprio peso da
economia do mate no quadro das exportações da província meridional apontam
a importância, e extensão, deste grupo. Os ervateiros não foram indiferentes ao
avanço dos fazendeiros sobre os ervais, especialmente na região do Planalto.
Eles denunciaram as apropriações abusivas e, em muitos casos, recorreram aos
crimes, tornando os ervais “perigosos aos homens de bem”. Os ervateiros também
ignoravam as proibições das câmaras municipais, assim como as suas concessões
de exploração do mate aos “arrematadores”. A criação de adendos aos códigos de
posturas municipais, para regrar a extração do mate, é uma tentativa das câmaras
de submeter os ervateiros ao seu poder de “conservação” dos ervais.
O estudo em torno da produção da erva-mate na Província de São Pedro do
Rio Grande do Sul oferece subsídios para a discussão em torno dos homens e
mulheres livres e pobres no Brasil oitocentista. Na “terra dos estancieiros” existia,
além da agricultura, uma atividade extrativa que abrigava um extenso número
de trabalhadores, e passou muito tempo abandonada pela historiografia, e que
vem mostrar que a plantation, por si só, não permite explicar a dinâmica social e
econômica do mundo rural no Brasil no século XIX. E estas atividades “nas bordas
da plantation” precisam ser trabalhadas pela historiografia, de modo a mostrar a
diversidade de nossa economia no século XIX e a abrangência, e lutas, sociais dos

58
LINHARES, “História econômica do mate...”, p. 286.

240 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


trabalhadores envolvidos nestas atividades, voltadas principalmente ao mercado
interno. Pois como dizia Maria Yedda Linhares, a historiografia não pode mais
reproduzir a visão plantacionista, ou seja, defender que o Brasil “viveu de açúcar,
nada mais do que açúcar, nos primeiros séculos, e, depois, no século XIX, até a
ruptura de 1930, de um segundo “produto rei”, o café”59.



RESUMO ABSTRACT
O objetivo deste artigo é analisar a importância The purpose of this article is to analyze the
econômica da erva-mate no processo de economic importance of yerba mate in the
colonização do sul do Brasil no século XIX. process of colonization of southern Brazil in
Mostramos que, diante dos baixos lucros obtidos the nineteenth century. We show that, given
com a pecuária, a elite fundiária apropriou the low profits from livestock, the landed elite
vastas extensões de ervais, especialmente na appropriated vast tracts of herbal, especially
segunda metade do XIX. Na Província do Rio in the second half of the nineteenth. In the
Grande do Sul esta atividade extrativa permitiu Rio Grande do Sul Province this extractive
aos fazendeiros, e aos comerciantes, uma activity allowed farmers and traders, a rapid
rápida acumulação. A lucratividade com o mate accumulation. Profitability with yerba mate was
também foi o estímulo econômico à grilagem also an economic stimulus for grabs on forest
sobre as terras florestais. A exploração dos ervais lands. The exploitation of herbal located in the
localizados no oeste da Província de Santa west of the Province of Santa Catarina, by the
Catarina, pelos argentinos, levou o Governo Argentines, led the Imperial Government to
Imperial a intervir na região. A exploração da intervene in the region. The exploitation of yerba
erva-mate empregou uma mão-de-obra tão mate hired a skilled workforce as extensive
extensa quanto a pecuária, e permitiu a expansão as the one used in livestock, and allowed the
do universo social dos “homens livres e pobres”. expansion of the social universe of “poor free
men” in nineteenth-century Brazil.
Palavras Chave: Erva-Mate; Recursos Naturais;
História Agrária; Lei de Terras; Brasil Meridional. Keywords: Yerba Mate; Natural Resources; Law
of Land; Agrarian History; Southern Brazil.

Artigo recebido em 09 mai. 2015.


Aprovado em 22 nov. 2015.

59
LINHARES, Maria Yedda Leite. Pecuária, Alimentos e Sistemas Agrários no Brasil (Séculos XVII e
XVIII). Revista Tempo, Niterói, vol. 01, nº 02, 1996, p. 133.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 241


ESCRAVOS E EX-ESCRAVOS NA PECUÁRIA:
A CENTRALIDADE DA ESCRAVIDÃO NA ECONOMIA RURAL
(RIO GRANDE DO SUL, SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX)

Carina Martiny1

A presença do trabalho escravo na produção pecuária do Rio Grande do Sul,


na segunda metade do século XIX, é o mote da discussão proposta neste artigo.
A análise foca nos escravos da família de um importante político republicano
brasileiro a qual residia em São Martinho, distrito de Cruz Alta, atual município do
planalto do Rio Grande do Sul. O político em questão é Júlio Prates de Castilhos,
líder do Partido Republicano e presidente do estado durante a década de 1890.
A escolha da família Castilhos não é fortuita. Júlio de Castilhos é o fio condutor
da análise que desenvolvemos na pesquisa para Tese de Doutorado acerca da
construção da República no Brasil. A análise da atuação política do líder republicano
sul-rio-grandense demonstrou que somente é possível compreender as ações e
escolhas de Júlio de Castilhos a partir, também, das ações, escolhas e estratégias do
universo familiar ao qual pertencia. Universo este, em grande medida, vinculado à
pecuária e escravidão, como demonstraremos.
A família de Castilhos tinha na produção pecuária sua principal atividade
econômica. A criação e venda de animais foi sua principal fonte de recursos
econômicos, pelo menos até o início do século XX. Até a década de 1870, grande
parte deste comércio concentrava-se na venda de mulas à região sudeste do
Brasil. Francisco Ferreira de Castilhos, pai de Júlio, sustentava uma ampla
rede de comércio de mulas em Sorocaba. Já a partir da década de 1880, observa-
se o envolvimento de Júlio e de seu irmão Francisco, bem como da mãe Carolina,
com a venda de animais para charqueadas no Rio Grande do Sul.
Na historiografia, a centralidade da escravidão na pecuária não constitui
novidade. Diversos trabalhos recentes tem demonstrado a importância do trabalho
escravo para a produção pecuária2. No caso dos Castilhos, a análise aponta
que a mão-de-obra escrava foi estruturante em suas propriedades, constituindo
o núcleo fixo de trabalhadores. A análise demonstra que foram as atividades
pecuárias da família, que ocorriam via mão-de-obra cativa, que garantiram não
somente a manutenção dos negócios rurais como também se tornaram importante

1
Doutoranda em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista Capes. E-Mail:
<carinamartiny@gmail.com>.
2
Sobre a importância da escravidão na pecuária na região da Campanha ver os seguintes trabalhos:
FARINATTI, Luís Augusto. Confins meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na fronteira
sul do Brasil (1825-1865). Santa Maria: Editora da UFSM, 2010; e MATHEUS, Marcelo Santos.
Fronteiras da liberdade: escravidão, hierarquia social e alforria no extremo sul do Império do Brasil.
São Leopoldo: Oikos; Editora da Unisinos, 2012. Sobre a relação escravidão e pecuária na região
do central do Rio Grande do Sul ver os seguintes trabalhos: ARAÚJO, Thiago Leitão de. Escravidão,
fronteira e liberdade: políticas de domínio, trabalho e luta em um contexto produtivo agropecuário
(Vila de Cruz Alta, Província do Rio Grande do Sul, 1834-1884). Dissertação (Mestrado em
História). Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2008; e CORRÊA, André do
Nascimento. Ao sul do Brasil oitocentista: escravidão e estrutura agrária em Caçapava, 1821-1850.
Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Santa Maria. Santa Maria, 2013.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 243


fonte de renda para diversos outros investimentos familiares, ligados ao mundo
urbano. Foram estas atividades que sustentaram, por exemplo, a carreira de um
dos membros da família – Júlio Prates de Castilhos – como profissional liberal
(advogado, jornalista e político), residente na capital do estado.
O movimento abolicionista, especialmente na década de 1880, marcou
profundamente as relações de trabalho nas propriedades dos Castilhos. A posição
política republicana de Júlio de Castilhos teve reflexos nas ações de outros
membros da família, que publicamente aderiram ao movimento abolicionista. Na
prática, entretanto, as relações de trabalho nas propriedades parecem ainda ter
sido fortemente marcadas pelo mundo escravista.
Ao atentar para os anos posteriores à abolição, fica evidente a produção
pecuária ainda continuou dependendo, em grande medida, do trabalho de ex-
escravos.Muitos escravos, após a abolição da escravidão, em 1888, permaneceram
nas propriedades dos Castilhos, ligados ao trabalho doméstico e também campeiro.
Com o uso conjunto de fontes documentais variadas, como inventários, registros
batismais, periódicos e correspondência familiar, este artigo apresenta uma análise
do papel desempenhado pelo trabalho escravo na dinâmica produtiva, discute sua
importância para os negócios da família e caracteriza a permanência de muitos ex-
escravos nas propriedades da família Castilhos após a abolição.

Os negócios dos Castilhos: pecuária e escravidão

Em 1871 faleceu, em São Martinho, distrito de Cruz Alta, Francisco Ferreira


de Castilhos. O fato provocou a abertura do processo de inventário dos bens da
família. Eram herdeiros, além da mulher Carolina Prates de Castilhos, dez filhos:
Francisca, Carlos, Adelaide, Clara, Francisco, Inocência, Júlio, Rita de Cássia,
Maria Cecília e Alfredo.
Júlio Prates de Castilhos, o oitavo filho, havia deixado a casa casa paterna ainda
jovem3. Depois de receber as primeiras lições em aulas ministradas em casa, pela
professora particular contratada pelo pai, Júlio completou seus estudos primários
na Vila de Santa Maria. Em seguida, mudou-se para a capital da província, onde
frequentou o Colégio de Fernando Ferreira Gomes, cursando os preparatórios
para poder ingressar na Faculdade de Direito de São Paulo. Em 1877, ingressou
na Faculdade de Direito de São Paulo, bacharelando-se em 1881. Já bacharel,
retornou ao Rio Grande do Sul. Passou a residir na capital do estado, onde abriu
seu próprio escritório de advocacia.
Deve-se lembrar que a opção pela formação superior não estava ao alcance
de todos, uma vez que dependia de significativo investimento. Como apontou
José Murilo de Carvalho, a grande maioria dos alunos das faculdades de Direito
provinham de famílias abastadas, já que a matricula cobrada, o deslocamento
e a permanência nas cidades em que havia os cursos despendiam de quantia
considerável.4 Assim, foram os recursos advindos das atividades econômicas da

3
Apesar de na listagem de herdeiros Júlio aparecer como o sétimo filho, era na realidade o oitavo.
Nascida dois anos antes de Júlio, Carolina acabou falecendo, motivo por não constar no título de
herdeiros.
4
Trata-se de: CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial/ Teatro

244 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


família Castilhos que sustentaram os estudos de Júlio em Santa Maria, Porto Alegre
e São Paulo e, depois, ainda garantiriam sua permanência, já como advogado, na
capital do estado.
O inventário de Francisco Ferreira de Castilhos é em grande medida
esclarecedor acerca da natureza dos recursos econômicos da família. A análise
desta fonte demonstra a grande concentração de capital em propriedades rurais,
animais e dívidas ativas, como também informa acerca das atividades comerciais
que envolviam a venda de mulas nas feiras em Sorocaba. Percebe-se, portanto,
a existência de um complexo produtivo vinculado à criação e venda de animais,
especialmente de muares para a região Sudeste.
Em relação aos bens de raiz da família, observa-se que eram em maioria
propriedades rurais e estavam distribuídas em três localidades. No município de São
Gabriel havia campos, ranchos, currais e uma casa, além de um terreno na praça
da matriz. Na vila de Santa Maria da Boca do Monte, um quarto de légua de mato.
Em São Martinho, onde a família residia, estava a maior parte das propriedades:
duas sesmarias que correspondiam à chamada Fazenda da Reserva, contendo
invernada, casas, galpão, mangueiras e mais benfeitorias; cerca de duas léguas
de campo denominado da Sortiga com matas, invernada, casas, mangueiras e
benfeitorias; mais de duas léguas de campos com casas, mangueiras e benfeitorias
denominados Boa Vista e Taquará; uma légua de extensão correspondente à
invernada da Várzea; e, uma légua de extensão de terras lavradias na Serra Geral
de São Martinho, com paiol e benfeitorias5.
Uma rápida observação dos números de animais por rebanhos descritos no
inventário de Francisco Ferreira de Castilhos sugere a centralidade da atividade
criatória nas propriedades da família. Eram 9884 animais vacuns; 2228 cavalares;
2300 muares; além de 450 ovinos e 186 burros. Era nas propriedades localizadas em
São Martinho, portanto, na sede da família, que estava concentrada a maior parte
dos rebanhos. A análise das dívidas ativas confirma o destino dado a estes rebanhos
e demonstra que boa parte da renda familiar advinha dos negócios envolvendo a
venda de animais. Francisco era credor, por exemplo, de uma dívida no valor de
38 contos e 700 mil réis referente a venda “de uma tropa de bestas em número de
900 vendidas pelo tenente Coronel Frederico Martins, na Província de São Paulo”6.
Diversos outros documentos comprovam a centralidade das atividades
comerciais da família. São contratos firmados por Francisco com homens que
conduziram e venderam tropas de bestas na feira de Sorocaba; recibos de dívidas
pagas por compradores de animais; recibos de registros confirmando a passagem
de tropas por Curitiba e Sorocaba; além de uma série de correspondências fazendo

de sombras: a política imperial. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. Sobre o envio
de sul-rio-grandenses para as escolas de Direito do Império, especialmente a Faculdade de Direito
de São Paulo ver: GRIJÓ, Luiz Alberto. Ensino jurídico e política partidária no Brasil: a Faculdade
de Direito de Porto Alegre (1900-1937). Tese (Doutorado em História). Universidade Federal
Fluminense. Niterói, 2005; e VARGAS, Jonas Moreira. Entre a paróquia e a Corte: os mediadores
e as estratégias familiares da elite política do Rio Grande do Sul (1850-1889). Santa Maria: Editora
da UFSM; ANPUH-RS, 2010.
5
Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul – APERS. Inventário post-mortem de Francisco
Ferreira de Castilhos. Júlio de Castilhos (RS), n. 93, 1871.
6
APERS, Inventário post-mortem de Francisco Ferreira de Castilhos..., f. 43v.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 245


alusão a viagens de negócios ou cobranças de dívidas. A correspondência familiar
revela que o comércio de animais era uma das principais atividades a que a família
Castilhos se dedicava. É este o caso, por exemplo, da carta enviada por Carolina
Prates de Castilhos ao marido, em junho de 1866, na qual dava notícias suas, dos
filhos e dos negócios da Fazenda da Reserva. Francisco, ao que é possível presumir,
encontrava-se em viagem de negócios: “mto [sic] estimarei tenha feito boa venda
de suas boas tropas ainda mais desejo que ten(ha) feito algumas cobranças”7.
É importante ressaltar que tanto a diversificação dos rebanhos quanto
a predominância de gado vacum e muar, não eram características apenas da
propriedade produtiva dos Castilhos. Pelo contrário, inseria-se à base produtiva
característica da região a qual São Martinho pertencia. Thiago Leitão Araújo, ao
analisar as propriedades de Cruz Alta constata que a “produção e o comércio de
gado vacum e de gado muar eram as atividades pecuárias de maior importância na
região, embora a produção de mulas fosse muito mais importante na vila quando
comparada com outras regiões do Rio Grande”8.
Em relação ao período que se seguiu ao falecimento de Francisco, o inventário
de Carolina, aberto por ocasião de seu falecimento em 1890, demonstra que a
pecuária manteve-se como principal atividade da Fazenda da Reserva. O inventário
arrolou animais de diversos tipos de rebanhos – equino, muar, ovino, vacum –
sendo o grande destaque o número de reses de criar: mais de 2500 animais9.
Chama a atenção que, diferentemente do inventário de Francisco, o número de
mulas arroladas no inventário de Carolina não chegam a meia centena.
Percebe-se assim, possivelmente, um abandono da atividade criatória de
muares, que tinha por destino a feira de Sorocaba, característica das atividades
da família até a década de 1870 e uma concentração na atividade vacum, voltada
para a venda de animais às charqueadas. É o que se pode depreender da carta
que Júlio escreveu à mãe, a 13 de novembro de 1883, noticiando sobre negócios:
“Estive com o Esteves varias vezes. Segundo disse-me, obteve do charqueador
33$000 para o seu gado, e vai telegrafar-lhe hoje”10.
Outra carta, de 23 de novembro de 1883, além de tratar da situação do mercado
de venda de animais, confirma que os negócios de venda do gado de que tratava
a carta anterior, haviam se efetivado. Escrevia Júlio a Carolina: “Por aqui o que
consta sobre preços de gado é que elles tenderão a subir, porque está cada vez mais
escassando o charque no Norte, onde o consumo augmenta. Entretanto, não tem
Vmºce de arrepender-se do negócio que fez, que, na épocha actual, é bom, sinão
o melhor que se podia fazer”11.
Diante deste quadro, pode-se entender que Francisco Ferreira de Castilhos era
o grande elo entre as atividades comerciais da família com as feiras do Sudeste do
país. Sua morte significou a desarticulação desta atividade, mas não da atividade

7
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul – AHRS. Fundo Júlio de Castilhos, Série 2, Subsérie 4, cx.
2, m. 7, doc. 1.
8
ARAÚJO, Escravidão, fronteira..., p. 41-42.
9
APERS. Inventário post-mortem de Carolina Prates de Castilhos. Júlio de Castilhos (RS), processo
n. 277, 1890.
10
VELHO, Keter. Teu amigo certo: Júlio de Castilhos – correspondência inédita. Porto Alegre: Edijuc,
2013, p. 118.
11
VELHO, Teu amigo certo..., p. 126-127.

246 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


criatória, que permeneceu a partir de então concentrada no comércio com o
complexo charqueador do estado.
Mas não foi apenas Carolina quem deu continuidade às atividades criatórias
depois da morte de Francisco. Seus filhos também o fizeram, afinal, herdaram
não somente propriedades rurais como também animais e escravos. Foi o caso de
Júlio de Castilhos. Depois de formado bacharel em Direito, Júlio retornou ao Rio
Grande do Sul, estabelecendo-se na capital, onde abriu um escritório de advocacia.
Com dificuldades financeiras em decorrência do pouco serviço que tinha em seu
escritório, era a renda advinda das atividades rurais que o sustentaram em Porto
Alegre. Júlio manteve com o irmão, Francisco Ferreira de Castilhos (filho), ou
Chiquinho, uma sociedade na criação de animais que eram comercializados para
as charqueadas, como revela parte das cartas escritas por Júlio.
Em julho de 1883 Júlio escrevia a Chiquinho solicitando informações sobre
a produção: “Conte-me como estão os nossos gados; si prometem bom engorde
na safra próxima. Poderemos fazer bôa venda de vaccas? Exponha tudo
minunciosamente”12. Em 27 de agosto, nova carta revelando o destino do gado
criado em sociedade com Chiquinho:

Quanto aos nossos gados invernados, não preciso


absolutamente dizer-lhe palavra alguma. Melhor do que eu,
V. conhece a necessidade que temos de fazer bom negócio
na próxima safra. Desde que os nossos gados estejam bem
gordos, poderemos, não só vender um número crescido,
como obter o preço mais alto que aparecer. Em qualidade
o nosso gado é egual aos melhores, portanto um bom
negocio depende apenas do estado de gordura. Não deixe
de ir de quando em vez ver as nossas vaccas invernadas. A
safra próxima não promete ser melhor do que a passada;
entretanto, é de presumir que a charqueada d’aqui e a de
Cachoeira, pelo menos, pagarão os 32$000 (bois) e as
24$000 (vaccas).13

Ao buscarmos investigar a dinâmica das relações de trabalho que sustentaram


estas atividades, mais uma vez o inventário de Francisco nos parece ser bastante
esclarecedor. Constam no inventário 56 escravos, sendo que destes, quatro estavam
na propriedade de São Gabriel e os outros 52 em São Martinho, local também de
maior concentração de rebanhos. Destes 56, tem-se 37 escravos e 19 escravas.
Os números são bastante importantes por permitirem descrever Francisco Ferreira
de Castilhos como um grande proprietário de escravos. Se esta designação não é
possível ao comparar com as grandes escravarias de outras regiões do Brasil, ela
serve como um designativo local, visto que, se por um lado o trabalho cativo era
comum na pecuária sul-rio-grandense, como já demonstrado pela historiografia,
na região da Serra Geral a média do número de escravos por proprietário era

12
VELHO, Teu amigo certo..., p. 29.
13
VELHO, Teu amigo certo..., p. 55.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 247


bem menor. Analisando Cruz Alta, Thiago Araújo, no período de 1860 a 1879,
encontrou apenas três proprietários com 20 ou mais escravos14. André Corrêa,
por sua vez, ao analisar 148 inventários com escravos para Caçapava, no período
1821-1850, encontrou apenas dois proprietários com mais de 50 escravos15.
Dos 37 escravos descritos no inventário, apenas 22 apresentam alguma descrição
em relação a ocupação. Dos 22 escravos com descrição de ocupação, 14 eram
campeiros, três roceiros, um pedreiro, um oleiro, um sapateiro, um carpinteiro e
um alfaiate. Pode-se supor que os oficios diversificados dos escravos permitiram
à família uma certa autosuficiencia de serviços ou mesmo lhe garantiram uma
renda extra com o aluguel de serviços de escravos. Entretanto, o que nos interessa
mais, neste caso, é o fato de que a maior parte dos escravos com designativo de
ocupação são campeiros, ou seja, estavam diretamente ligados à atividade criatória
de animais. Entre estes, observa-se que a variação de idade é significativa. A maior
parte eram escravos relativamente jovens. Seis campeiros tinham entre 11 e 20
anos e outros quatro entre 21 e 30 anos. Mas, aparecem dois escravos ainda mais
jovens – um de 8 anos e outro com 9 – e outros com idade bem mais avançada:
um com 48 anos e outro com 56 anos.
Como é possível perceber, o inventário de Francisco Ferreira de Castilhos
demonstra haver uma aproximação entre a posse de animais e escravos,
corroborando o que a historiografia sul-rio-grandense vem demonstrando em
relação ao século XIX. Luís Farinatti para o caso de Alegrete, Tiago Araújo para
Cruz Alta e André Corrêa para Caçapava observaram que as grandes escravarias
estavam concentradas nas propriedades com grande concentração de rebanhos,
especialmente vacum16. É este o caso, também, das propriedades de Francisco
Ferreira de Castilhos. A grande quantidade de escravos do sexo masculino (37
dos 56, ou 66%) combinada a grande quantidade de escravos campeiros (14)
demonstra que parte significativa da escravaria dos Castilhos era empregada nas
atividades de criação de animais, sendo a maior parte escravos jovens, com idade
entre 11 e 30 anos.
Ainda é preciso considerar que há escravos sem descrição de ocupação. Como
aponta Farinatti, “a omissão” da ocupação “pode significar que aquele escravo
era empregado em um variado leque de funções”, inclusive, neste caso, a lide
campeira17. Se tomarmos os escravos masculinos sem descrição de ofício e com
idade de oito anos ou mais, teríamos seis escravos que poderiam, possivelmente,
ter exercido atividades campeiras, três dos quais nas propriedades de São Martinho
e ou demais três em São Gabriel18.
Havia, portanto, um núcleo fixo de trabalhadores escravos que atuavam na
atividade criatória. Apesar do número significativo de escravos, a família também
fazia uso, concomitante, de mão-de-obra livre. Nas últimas declarações feitas por
Carolina após a avaliação dos bens da família, em 1871, ela declarava ter “recebido

14
ARAÚJO, Escravidão, fronteira...
15
CORRÊA, Ao sul do Brasil...
16
FARINATTI, Confins meridionais...; ARAÚJO, Escravidão, fronteira...; CORRÊA, Ao sul do Brasil...
17
FARINATTI, Confins meridionais..., p. 353.
18
Considerou-se a idade de oito anos como baliza uma vez que parece ser já uma idade apta para o
trabalho no campo, visto que o escravo Basílio, de 8 anos, é descrito como campeiro.

248 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


do doutor Antônio Gomes Pinheiro Machado a quantia de dois contos de réis” e
que teria aplicado “essa quantia em pagamentos dos mestres e mais oficiais de
carpinteiro [...], peões, contas que depois juntará, e despesa”19.
Infere-se, assim, que os Castilhos faziam uso combinado de mão-de-obra cativa
e livre, sendo a primeira estruturante, como núcleo fixo de trabalhadores, à principal
atividade econômica da família. Este comportamento em relação ao uso da mão-
de-obra mista não era novidade. Helen Osório demonstrou a concomitância do
uso de trabalhadores escravos e livres nas estâncias no século XVIII enquanto que
Farinatti o fez para o século XIX (1825-1865)20.
Outro dado interessante, se analisarmos a listagem dos escravos da família
presente no inventário de Francisco é a idade. O número de crianças cativas é
significativo. Dos 56 escravos arrolados no inventário, 18 tinham a idade de dez
anos ou menos. Destes, cinco contavam com idade de um ano e outros seis entre
dois e cinco anos. Pode-se pensar, a partir destes dados, em uma reprodução
endógena da escravaria.
Se analisarmos os dados encontrados nos registros batismais de São Martinho,
veremos que o nascimento de crianças escravas era uma constante na fazenda dos
Castilhos. Encontramos o registro treze batismos realizados na casa de Francisco
Ferreira de Castilhos entre 1856 e 1862 envolvendo filhos de escravas de propriedade
da família. Atentando para o nascimento destes batizandos, tem-se uma constante
de nascimento de escravos ao longo deste período. Dois nascimentos em 1855, um
em 1856, três em 1857, mais três em 1860 e outros quatro em 186221.
Ao atentar para as mães escravas destas crianças, percebe-se uma recorrência:
para as 18 crianças escravas nascidas no período (1855-1862 e 1870), existiam cinco
mães escravas distintas22. Se considerarmos não ter havido escravas homônimas,
Maria e Joaquina tiveram, cada uma, cinco filhos no período em análise, Catarina
quatro, Castorina três e Joana um. Tem-se, portanto, um grupo formado por cinco
escravas que proporcionou a reprodução interna desta escravaria. Estes números
são, certamente, incompletos e subestimados, como se pode supor a partir do caso
da escrava Joaquina.
A análise dos batismos e dos escravos arrolados no inventário indicou que
Joaquina teve, pelo menos, cinco filhos escravos. Entretanto, uma petição de
Carolina Prates de Castilhos dirigida ao Juiz Municipal, em 1879, demonstra que a
escrava Joaquina possuía, pelo menos, mais outros dois filhos. Na petição, Carolina
afirmava ter esquecido de assentar na matrícula os escravos menores José e Félix,
“estes filhos da escrava Joaquina de sua propriedade”23. Félix encontra-se entre
os escravos arrolados, em 1871, no inventário de Francisco, descrito como “preto,

19
Grifos nossos. APERS. Inventário post-mortem de Francisco Ferreira de Castilhos. Júlio de Castilhos
(RS), n. 93, 1871, f. 47.
20
OSÓRIO, Helen. O Império Português no sul da América: estancieiros, lavradores e comerciantes.
Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007; e FARINATTI, Confins meridionais...
21
Arquivo da Cúria de Santa Maria – RS – ACSM. Batismos – São Martinho. Livro 2, 1855-1874.
22
O número de 18 crianças escravas nascidas no período de 1855-1862 e 1870 deriva da soma dos
batismos de filhas de escravas entre 1855 e 1862 e as 5 crianças escravas descritas no inventário de
Francisco com idade de um ano.
23 APERS. Inventário post-mortem de Francisco Ferreira de Castilhos..., f. 189.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 249


de quatro anos de idade, pouco mais ou menos”24. Em 1879, quando por ocasião
da petição, Félix possuía cerca de 12 anos. Já José não está entre os arrolados no
inventário, o que nos leva a crer que tenha nascido depois de 1871.

O abolicionismo dos Castilhos:


entre a dimensão pública e a prática privada

O jornal republicano A Federação, de 26 de setembro de 1884, anunciava, na


primeira página, sob o título “São Martinho triunfando” a seguinte notícia:

Começou o movimento abolicionista em São Martinho,


e começou patrioticamente. A família Castilhos, residente
n’aquele município, libertou todos os escravos que
possuía. A excelentíssima senhora dona Carolina Prates
de Castilhos, respeitável progenitora do diretor da redação
desta folha, o doutor Júlio de Castilhos, libertou todos os
seus escravos, em número de 19. Francisco Ferreira de
Castilhos libertou 2, Carlos Prates de Castilhos 2, doutor
Revoredo Barros 1 e a excelentíssima senhora dona Cecília
de Castilhos 1. A São Martinho um bravo!25

Como apontava a notícia, a família Castilhos, menos de quatro anos antes da lei
Áurea que pôs fim à escravidão no país, realizava um ato que era comemorado pelo
jornal como patriótico e iniciante do movimento abolicionista em São Martinho.
Carolina Prates de Castilhos, seus filhos e o genro Revoredo Barros libertavam
seus escravos. Note-se que, naquele momento, Júlio de Castilhos era o diretor
de redação d’A Federação. Assim, é importante levar em conta o jornal no qual
a noticia foi vinculada. A Federação, fundado em 1884, era o jornal do Partido
Republicano Rio-Grandense (PRR) e, segundo Margareth Bakos, foi a primeira folha
republicana a radicalizar em relação à questão servil. Segundo a autora, os jornais
republicanos que existiram antes d’A Federação, nomeadamente A Democracia e
A Imprensa, reproduziam, em boa medida, “a posição dos republicanos paulistas
frente à situação servil”26.
Segundo Margaret Bakos, a posição de Júlio de Castilhos era distinta. O
político sul-rio-grandense fazia parte do grupo de positivistas que considerava a
necessidade do fim da escravidão se dar de modo imediato e sem indenização,
tendo sido também essa a posição de seus seguidores no PRR. Ao analisar os
textos escritos por Castilhos em A Federação, Bakos aponta que estes “Buscam
a formação de uma posição político-partidária coesa contra a escravidão e a
monarquia, fundamentada em seu conhecimento sobre o Positivismo de Auguste

24
APERS. Inventário post-mortem de Francisco Ferreira de Castilhos..., f. 38.
25
A Federação, Porto Alegre, n. 222, 26 set. 1884, p. 01. Disponível em: <http://memoria.bn.br/>.
Acesso em: 20 jan. 2015.
26
BAKOS, Margaret Marchiori. Júlio de Castilhos: positivismo, Abolição e República. Porto Alegre:
IEL; EDIPUCRS, 2006, p. 26.

250 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


Comte”27.
O ato de Carolina, filhos e genro deve ser entendido em sua dimensão tanto
simbólica quanto concreta. Simbólica, pois este foi o modo pelo qual o feito foi
explorado pelo jornal, que o utilizou como parte de uma estratégia política: a
família de um dos principais republicanos do estado realizava um ato exemplar
pela abolição da escravidão, dando o tom de qual era a posição do partido e de
uma de suas principais lideranças frente à questão.
O tema escravidão tornou-se, no contexto da década de 1880, bastante
delicado para o chefe do PRR. Júlio de Castilhos era favorável à abolição e assim se
expressava em seus textos publicados n’A Federação28. Segundo Margaret Bakos,
ele considerava “a Abolição uma questão prioritária”29. Mas, a origem familiar lhe
legara um forte vínculo com a escravidão. O capital da família e também o seu,
como demonstramos neste artigo, esteve assentado na exploração da mão-de-obra
escrava. Vale lembrar que, por ocasião do falecimento do pai, em 1871, Júlio havia
herdado dois escravos.
Havia, evidentemente, uma preocupação por parte de Júlio de Castilhos de
evitar a publicidade dos negócios que envolviam escravos. É o que se percebe
ao analisar quatro cartas que enviou ao irmão Chiquinho nas quais tratava da
venda do escravo Aníbal. Ao que se pode inferir, Aníbal pertencia a Chiquinho,
que alugava os serviços do escravo na capital da província. Júlio intermediava
o aluguel, cobrando e repassando os ganhos ao irmão, como fica evidente no
seguinte trecho da carta escrita em agosto de 1883: “Estão em meu poder os
32$000 do aluguel do Annibal durante o primeiro mez, que começou a 27 de
junho e terminou a 27 de julho. Mais uma vez lhe peço que diga que destino quer
V. que dê a esse dinheiro”30.
Mas Júlio tinha ciência de que, se tornada pública sua relação com negócios
envolvendo escravos, poderia ser politicamente prejudicado. Em carta de sete de
setembro de 1883, Júlio relatava: “Não faz idéa como tenho andado constrangido
n’esse negocio, apezar de ser ele tratado por um corretor, que é ao mesmo
empregado do meu escriptorio. Tenho receio dos maldizentes e dos jornaes, que
estão todos muito abolicionistas”31. Em outra carta, de outubro de 1883, o temor
de Júlio era reiterado ao irmão:

Em todo esse negocio não posso absolutamente aparecer,


porque logo que se soubesse começariam os boatos, os
commentarios calumniósos, os murmúrios, principalmente
agora que estamos aqui em atmosfera puramente
abolicionista. Quem aluga ou vende escravos actualmente
aqui é alvo de tudo quanto se póde dizer de mal, ja na
imprensa, ja em reuniões. De sorte que nada posso fazer

27
BAKOS, Júlio de Castilhos..., p. 43.
28
Sobre seus textos publicados no jornal A Federação ver: BAKOS, Júlio de Castilhos...
29
BAKOS, Júlio de Castilhos..., p. 19.
30
VELHO, Teu amigo certo..., p. 45.
31
VELHO, Teu amigo certo..., p. 65-66.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 251


directamente com relação á venda do Annibal [...].32

Margaret Bakos, analisando o caso, apontou três razões que justificam a aflição
de Júlio expressa nas cartas:

A primeira era a incoerência entre a negociação de que ele


participava e o programa do partido Republicano por ele
idealizado, que condenava a escravidão. A segunda, porque
sua atitude ia de encontro aos princípios positivistas em
que o aforisma Viver às claras era impositivo, posto que ele
se envergonhava e desejava sigilo sobre sua mediação no
negócio de um ser humano. E, finalmente, a terceira razão
era o receio que tinha, se conhecida essa participação no
tráfico de escravos, do uso político do fato. Em torno dele
poder-se-ia criar uma polêmica que poria em discussão
sua coerência pessoal e sua carreira política.33

Deste modo, a publicação feita pelo jornal em setembro de 1884, tinha o objetivo
de evidenciar a posição política favorável ao abolicionismo adotada pela família
Castilhos. Se antes era uma família escravista, o jornal a apresentava, naquele
momento, como abolicionista.
Em relação à dimensão concreta, duas questões são centrais. Primeiro a
adesão da família Castilhos ao movimento abolicionista que ganhava força deve
ser compreendida em seu contexto. Como explica Marcelo Santos Matheus, na
“província do Rio Grande do Sul, por exemplo, o ano de 1884 foi marcado por uma
concessão em massa de alforrias [...] em quase todos os municípios, acompanhando
o que as províncias do Ceará e do Amazonas já haviam feito”34. O próprio jornal
A Federação anunciava, na mesma edição, que em São Sepé (RS), 186 cartas de
liberdade haviam sido concedidas35. Assim, o comportamento dos membros da
família Castilhos não é descolado de outros proprietários da província.
A segunda questão em relação à dimensão concreta, diz respeito à efetiva
liberdade dos escravos dos Castilhos anunciada pelo jornal. Para tanto, é preciso
considerar o teor parcial da notícia d’A Federação, que não concedia detalhes
acerca do ato que descrevia como marco do início do movimento abolicionista em
São Martinho. A análise da documentação e correspondência familiar, entretanto,
pode nos conceder maiores indícios acerca das condições em que esta liberdade foi
concedida e do destino destes escravos libertados.
Ocupemo-nos, um pouco, dos escravos libertados por Carolina. Como
apontado na nota do jornal, Carolina libertava, em 1884, dezenove escravos.
Eram, certamente, muitos dos escravos que com ela permaneceram após a divisão
dos bens efetuada por ocasião da morte do marido, em 1871. Dos 56 escravos que

32
VELHO, Teu amigo certo..., p. 79.
33
BAKOS, Júlio de Castilhos..., p. 18.
34
MATHEUS, Fronteiras da Liberdade..., p. 19.
35
A Federação. Porto Alegre, n. 222, 26 set. 1884, p. 01. Disponível em: <http://memoria.bn.br/>.
Acesso em: 20 jan. 2015.

252 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


a família possuía, 34 permaneceram como propriedade de Carolina.
Sabe-se que, antes de libertar seus 19 escravos, outros já haviam sido libertados
pelo fundo de emancipação visto que, na petição feita por Carolina, em 1879, ela
declarava ter esquecido de assentar na matrícula geral os escravos menores José
e Félix, considerando-os livres. Essa petição indica não somente a condição de
liberdade dos escravos menores em questão, como também, que Carolina já havia
realizado o assentamento de alguns de seus escravos na matrícula geral para serem
libertados. Por isso, em 1884, restava-lhe apenas dezenove.
Uma carta de liberdade assinada por Carolina, no dia 17 de setembro de 1884,
ou seja, alguns dias antes da notícia vinculada no jornal, nos leva a questionar
acerca das condições impostas na concessão de liberdade noticiada pelo jornal.
Nesta carta de liberdade, Carolina afirmava: “Concedo liberdade ao meu escravo
Felipe, matriculado sob o número 1717, com a condição de me prestar serviços
pelo prazo de 4 (quatro) anos, a contar da data da presente carta, que mandei
passar e firmo”36.
Não temos dados suficientes, além da proximidade das datas, para afirmar que
Felipe era um dos dezenove escravos libertados a que se referia o jornal. Se for
um destes, então, cumpre ressaltar que a liberdade concedida aos escravos que
o jornal saudava como exemplar do movimento abolicionista era, na realidade,
uma liberdade condicional, fato não anunciado pelo jornal. Caso Felipe não fosse
um dos 19 escravos, ainda assim a notícia aparece como nebulosa, carente de
informações, permitindo-nos questionar as vias pelas quais ocorreu esta libertação.
Note-se também, em relação ao caso do escravo Felipe, que não era a primeira
vez que Carolina concedia liberdade sob condições de antes serem-lhe prestados
serviços. Por ocasião da divisão dos bens da herança de Francisco, seu marido,
Carolina requeria, em 1871, além do “estabelecimento e campos correspondentes
denominados da Reserva, a baixela de prata e mais trastes da casa, os escravos
Salvador e Anacleto, para considera-los livres depois de prestarem oito anos de
serviços obrigatórios”37.
Correspondências familiares reafirmam a suspeita da libertação condicional. Em
seis de abril de 1888, Carlos Prates de Castilhos escrevia da Fazenda da Reserva
à mãe, Carolina, que naquele momento não se encontrava em sua casa. Entre os
diversos assuntos tratados, Carlos informava à mãe que pretendia se mudar para
sua própria casa, que julgava estar acabada em cerca de um mês e meio. Sobre
a mudança, completava: “Se por ventura fizer a mesma mudança antes de sua
chagada, prevenir-lhe-ei para mandar uma pessoa tomar conta da casa para não
ficar ao cuidado dos negros e negras”38. Apesar de não sabermos se em condições
cativas ou não, percebe-se, pela carta de Carlos, que negros e negras continuavam
prestando serviços aos Castilhos em 1888.
Pouco depois, a 12 de maio de 1888, era Chiquinho quem escrevia para mãe

36
Grifos nossos. AHRS. Fundo Arquivo Particular Júlio de Castilhos. Série Assuntos Familiares, maço
8, doc. 13.
37
Grifos nossos. APERS. Inventário post-mortem de Francisco Ferreira de Castilhos. Júlio de Castilhos
(RS), n. 93, 1871, f. 46v.
38
Grifos nossos. AHRS. Fundo Arquivo Particular Júlio de Castilhos. Série Assuntos Familiares, maço
6, doc. 35.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 253


Carolina. Também em sua carta é possível identificar a permanência de escravos na
propriedade e seu envolvimento com as atividades campeiras. Escrevia Chiquinho:
Minha Mãe. Segue o (José) negrinho com os 6 cavalos de
seu pedido. Desejo-lhes feliz viagem.

Para não ter de incomodar-lhe com uma novidade, vou


contar-lhe uma: O negrinho José desapareceu há 4 dias.
Desatendeu ao Antônio (negro) e ele amarrou-o para
vir trazerem-no; porém, enquanto foi ao potreiro, ele
ou alguém o desatou e saiu sem que alguém privasse.
O que é fato, é que até agora não se tem sabido notícia
alguma. É opinião geral que ele fosse para aí. O Júlio, a
quem consultei, foi da opinião que eu não desse maiores
providências. Supomos que ele aparecerá. O José andava
muito malcriado e vadio e acreditamos que o Antônio
tivesse razão.39

Antônio era possivelmente o mesmo Antônio preto e campeiro, descrito no


inventário de Francisco, em 1871. Já o “negrinho José” poderia ser o mesmo José,
menor, filho da escrava Joaquina, a quem Carolina se referia na petição, de 1879,
declarando-o livre. Caso não se trate dos mesmos escravos, ainda assim a carta de
Chiquinho, tal qual a enviada por Carlos, demonstra que, passados mais de três
anos do ato de libertação noticiado pelo jornal, negros continuavam trabalhando
nas propriedades da família. No caso da carta de Chiquinho, o relato acerca do
castigo e da fuga do negrinho José, sugerem que a continuidade do trabalho tenha
de fato ocorrido sob forma de escravidão.
Percebe-se, portanto, que, se por um lado, o posicionamento de Júlio de
Castilhos como republicano e abolicionista, influenciou os atos de outros membros,
por outro lado a adesão ao movimento de libertação dos escravos, realizado pela
família, deu-se com certas reservas, procurando, de todas as maneiras, preservar
seu patrimônio. Não se pode esquecer que as atividades de criação dos animais
eram dependentes do trabalho escravo. Salvador e Anacleto, os dois escravos que
Carolina requeria para receber como herança, eram campeiros. Assim, apesar de
ser comprometer a lhes conceder a liberdade, obrigava-os a prestarem-lhe serviços
por mais oito anos, tempo em que poderiam ensinar as lides do campo a outros
escravos. Assim também se pode compreender a carta de liberdade concedida a
Felipe, outro escravo campeiro.
O certo é que Carolina não podia prescindir do trabalho de escravos que eram
essenciais para o bom funcionamento das atividades da fazenda. Não é a toa que,
mesmo depois de libertados, seja por iniciativa de sua senhora, seja por iniciativa
própria ou por ocasião da lei de 1888, alguns escravos ainda permaneceram na
propriedade dos Castilhos, na condição de trabalhadores livres.

39
Grifos nossos. AHRS. Fundo Arquivo Particular Júlio de Castilhos. Série Assuntos Familiares, maço
14, doc. 19.

254 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


Ex-escravos na fazenda dos Castilhos

No inventário de Carolina Prates de Castilhos, falecida em 1890, há indícios de


que parte dos ex-escravos possam ter permanecido na Fazenda da Reserva. No
ano de 1892 o inventariante Júlio Prates de Castilhos apresentava os “documentos
das dívidas passivas da herança, que por não oferecerem dúvida e pela natureza
e procedência delas”, requeria “o respectivo pagamento”40. Entre os documentos
apresentados como parte da dívida passiva estavam contas que a Fazenda da
Reserva devia a seu capataz, datadas de 1890 e 1891. Na descrição das contas
constava o pagamento realizado aos empregados41.
Ao cruzarmos a lista dos empregados com a lista dos escravos da família
Castilhos, percebemos que alguns nomes podem ser encontrados nas duas
listagens. Na lista dos empregados aparecem dez nomes que tem correspondência
na lista de escravos, de duas décadas antes. Certamente um dos problemas deste
tipo de metodologia está na existência de homônimos. Assim, o Manoel da lista
dos empregados de 1891pode não ser o mesmo Manoel escravo da lista de 1871.
Entretanto, alguns indícios nos levam a crer que, na maioria dos casos, se trate da
mesma pessoa.
Primeiro porque este parece ser um comportamento comum. Walter Fraga Filho
observou, com base nos dados referentes à Rio Fundo e Lustosa, no Recôncavo
Baiano, “que os engenhos continuaram a operar”, após o fim da escravidão, “com
mão-de-obra das próprias localidades, boa parte dela egressa da escravidão”42.
Para este artigo, não dispomos das mesmas fontes utilizadas pelo historiador, ou
seja, registros de nascimento e lista dos internados em hospitais, cruzadas com listas
de escravos em inventários. Entretanto, o cruzamento que fizemos, apesar de frágil,
sinaliza à possibilidade de permanência de ex-escravos na Fazenda da Reserva.
É preciso considerar também que, os possíveis ex-escravos que reencontramos
na lista de trabalhadores livres de 1890 e 1891 eram, na década de 1870, ainda
jovens. Ernesto e Anastácio, por exemplo, aparecem, em 1871, com idade de
três anos, de modo que em 1891 estariam com 23 anos. Os empregados mais
velhos seriam mulheres – Catarina, que em 1891 estaria com 66 anos e Castorina
com 60 – ainda aptas para serviços domésticos. Nada sabemos dos ofícios destas
escravas, mas é possível supor que se dedicavam ao trabalho doméstico, pois como
lembra Farinatti, o “trabalho doméstico não pode ser visto como algo de pouca
importância, já que era essencial para a reprodução das unidades produtivas”,
sendo que mesmo os criadores “que possuíam escravarias com alta proporção
de homens, jamais deixaram de contar com cativas”43. No mesmo sentido, Walter
Fraga Filho observou que, no Recôncavo Baiano, as domésticas constituíam o

40
APERS. Inventário post-mortem de Carolina Prates de Castilhos. Júlio de Castilhos (RS), n. 277,
1890, f. 32.
41
APERS. Inventário post-mortem de Carolina Prates de Castilhos. Júlio de Castilhos (RS), n. 277,
1890, f. 51-53v.
42
FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da liberdade: histórias e trajetórias de escravos e libertos na
Bahia, 1870-1910. Tese (Doutorado em História). Universidade Estadual de Campinas. Campinas,
2004, p. 236.
43
FARINATTI, Confins meridionais... p. 353.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 255


terceiro grupo profissional mais numeroso de ex-escravos que permaneceram nos
engenhos após a abolição44.
Além do mais, há outros fatos que reforçam nossa suspeita de permanência de
ex-escravos na fazenda na condição de trabalhadores livres. Veja-se o caso dos
empregados Salvador e Vicente. Entre os escravos da família Castilhos, arrolados
na década de 1870, estava Salvador, de 23 anos, descrito como campeiro. Salvador
reaparece na listagem de 1891. Considerando que ainda em 1891 as atividades
pecuárias eram centrais para a família, a manutenção de um ex-escravo campeiro,
na condição de trabalhador livre, seria compreensível. Mais exemplar ainda é o
caso de Vicente que em 1871 é descrito como escravo pardo, de 12 anos, campeiro
e que aparece na listagem dos empregados da fazenda em 1890 como o peão
Vicente.
Fraga Filho afirma, para o caso das propriedades açucareiras baianas, a grande
dificuldade, mesmo antes do fim da escravidão, de mobilização de trabalhadores
livres dispostos ao trabalho na lavoura45. Isto teria levado os senhores de engenho
a se utilizarem do trabalho da população cativa remanescente neste tipo de serviço.
Para o caso que estamos tratando, a produção pecuária, algo semelhante pode
explicar a permanência de ex-escravos na Fazenda. A especialização e conhecimento
que o trabalho da lide do campo requeria tornava difícil encontrar trabalhadores
aptos, de modo que a opção de manter ex-escravos campeiros fosse a alternativa
mais razoável.
É importante considerar também que a permanência no local em que
antes serviram como escravos podia, também, ser uma opção dos egressos da
escravidão. Neste sentido, Fraga Filho aponta que “depois do fim do cativeiro,
intensificaram-se a repressão policial e o preconceito em relação aos indivíduos
egressos da escravidão”, de modo que muitos permaneceram nos locais de origem,
pois, um “ex-escravo distante de sua localidade de origem podia ser considerado
forasteiro e facilmente podia ser preso como ‘suspeito’ ou vagabundo”46. Seja por
vínculos familiares ou comunitários, por questões de segurança, ou por facilidade
de sustento, como, por exemplo, pelo acesso à terra nas propriedades de seu ex-
senhor, o que lhes permitia manter suas próprias roças, a permanência de ex-
escravos nos locais em que antes eram escravizados era uma possibilidade.

Considerações Finais

A família Castilhos permite vislumbrar algumas questões que foram essenciais


no Brasil da segunda metade do século XIX, no que diz respeito à relação estrutura
produtiva e trabalho escravo. A pecuária aparece como a atividade central, voltada
essencialmente para a comercialização de animais, tanto vacuns quanto muares.
Acompanhando as atividades produtivas da família ao longo das décadas
finais dos Oitocentos, percebe-se uma mudança no destino da produção pecuária
determinada pelo falecimento de Francisco Ferreira de Castilhos. Até 1871, grande
parte das atividades de comércio de animais estava voltada para a venda de mulas

44
FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade...
45
FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade...
46
FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade..., p. 238.

256 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


na região Sudeste. Depois de seu falecimento, houve uma reestruturação das
atividades criatórias, que ainda se mantiveram como a principal fonte de renda da
família, mas voltada para a produção de vacuns comercializados com o complexo
charqueador da província.
Toda esta estrutura produtiva voltada para a pecuária foi mantida com base no
uso concomitante de trabalho escravo e livre, constituindo o primeiro um núcleo fixo
de trabalhadores, muitos dos quais diretamente vinculados ao trabalho campeiro.
Foi esta estrutura produtiva, pautada na pecuária e mão-de-obra escrava, a grande
fonte de renda da família Castilhos.
Observa-se também o envolvimento da família com o movimento abolicionista.
Demonstrou-se que a libertação de seus escravos esteve vinculada ao movimento
de concessão em massa de alforrias, observável em toda província e também em
outros locais do país no mesmo período. A libertação dos escravos da família esteve
também diretamente relacionada à posição política republicana e abolicionista de
Júlio de Castilhos, tendo sido o fato explorado de forma simbólica pela imprensa
republicana.
Em termos concretos, a análise demonstra que a libertação dos escravos da
família foi caracterizada pela concessão condicional de liberdade, possivelmente
visando minimizar os prejuízos que representaria a perda de uma mão-de-obra
especializada – os campeiros – e necessária para a produção pecuária, base
econômica da família.
Mesmo após a abolição da escravidão, em 1888, percebe-se a permanência,
nas propriedades da família, de ex-escravos na condição de trabalhadores livres.
É difícil precisar as condições que os levaram a permanecer, mas é possível inferir
que sua permanência foi importante para a continuidade das atividades produtivas
dos Castilhos.



sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 257


RESUMO ABSTRACT

Esta artigo trata da presença de trabalhadores This paper deals with the presence of slave
escravos na produção pecuária no Rio Grande do labor in livestock production in Rio Grande
Sul, na segunda metade do século XIX. A análise do Sul, in the second half of the nineteenth
foca nos escravos da família de Júlio de Castilhos, century. The analysis focuses on the slave of the
importante político republicano brasileiro, a qual family of Júlio de Castilhos, important Brazilian
residia em São Martinho, distrito de Cruz Alta Republican politician, which resided in São
(RS). A família Castilhos tinha na produção Martinho, Cruz Alta district (RS). The family
pecuária sua principal atividade econômica, had Castilhos in livestock production its main
primeiramente voltada à venda de muares à economic activity, primarily focused on the sale
região sudeste do Brasil e, posteriormente, nas of mules to the southeastern region of Brazil
décadas finais do século XIX, dedicada à criação and later in the final decades of the nineteenth
de vacuns vendidos à produção charqueadora. century, dedicated to creating vacuns sold to
A análise da documentação familiar demonstra charqueadora production. The analysis of family
a centralidade do trabalho escravo nas documentation demonstrates the centrality of
propriedades dos Castilhos, sendo que estes slave labor in the properties of the Castillos,
constituíam o núcleo fixo de trabalhadores. Com and these were the fixed core workers. With the
o uso conjunto de fontes documentais variadas, joint use of various documentary sources, such
como inventários, registros batismais, periódicos as inventories, baptismal records, journals and
e correspondência familiar, a análise apresenta family correspondence, the analysis presents the
o papel desempenhado pelo trabalho escravo role of slave labor in the production dynamics,
na dinâmica produtiva, discute sua importância discusses its importance for the family business
para os negócios da família e caracteriza a and features the permanence of some of these
permanência de alguns destes trabalhadores nas workers in properties after the abolition of slavery.
propriedades após a abolição da escravidão. Shows that were ranching family, occurring
Demonstra que foram as atividades pecuárias via bonded labor, which ensured not only the
da família, que ocorriam via trabalho cativo, maintenance of rural business and also become
que garantiram não somente a manutenção an important source of income for many other
dos negócios rurais como também se tornaram family investments linked to the urban world.
importante fonte de renda para diversos outros Shows the relationship between the abolitionist
investimentos familiares, ligados ao mundo stance of the family with the political position
urbano. Evidencia a relação entre a postura connected with the republican movement of
abolicionista da família com a posição política one of its members, Jùlio de Castilhos. It also
ligada ao movimento republicano de um de shows that former slaves remained in the family
seus membros, Júlio de Castilhos. Demonstra properties after the abolition, provided that
também que ex-escravos permaneceram nas workers linked to domestic and pampas work.
propriedades da família após a abolição, na Keywords: Livestock; Slavery; Free Labor; Rio
condição de trabalhadores ligados ao trabalho Grande do Sul.
doméstico e campeiro.
Palavras Chave: Pecuária; Escravidão;
Trabalho Livre; Rio Grande do Sul.

Artigo recebido em 30 mai. 2015.


Aprovado em 11 out. 2015.

258 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


AS REDES DE RELACIONAMENTOS E O ESPAÇO DE
ATUAÇÃO DOS PROPRIETÁRIOS DE ESCRAVOS NO
IMPÉRIO DO BRASIL: BANANAL, 1850-1888

Marco Aurélio dos Santos1

As pesquisas feitas especialmente na área de História Social sobre o “Oitocentos”


vêm produzindo, nas últimas décadas, estudos sobre diversas localidades,
deslindando a complexidade social, política e econômica do Brasil. Esses trabalhos
se utilizam de uma série de documentos, dentre os quais se destacam os processos
criminais, os inventários post mortem e os periódicos. Muitas das pesquisas
realizadas em diversas universidades, quando perscrutam a realidade de um
determinado município, não se desvinculam totalmente dos preceitos teóricos e
metodológicos da Micro-História. Essa relação entre as pesquisas de determinada
localidade e a micro-história pode ser observada se pensarmos na consideração
que esses estudos dispensam aos indivíduos, na atenção dada ao nome próprio,
na procura do mesmo indivíduo em diferentes contextos, na valorização das
estratégias sociais dos sujeitos “em função de sua posição e de seus recursos
respectivos, individuais, familiares, de grupo etc.” 2, na construção de redes de
relacionamentos, na multiplicidade de experiências. Observa-se, com tudo isso, a
existência de componentes da microanálise nesses estudos. Talvez muitos desses
historiadores não concordem com essa classificação, mas a micro-história está sem
dúvida presente em seus estudos. O foco no comportamento, na experiência social,
na formação de identidades de grupo e a atenção dispensada aos indivíduos em
relação com outros indivíduos são elementos presentes em diversos estudos sobre
determinada localidade e constituem uma análise enriquecedora da realidade3.

1
Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. E-mails: <marcosantos@usp.br> ou
<marcoholtz@uol.com.br>.
2
REVEL, Jacques, “Microanálise e a construção do social”. In: __________ (org.). Jogos de escala:
a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1996, p. 22.
3
Para a compreensão da escravidão no Brasil, a bibliografia é ampla e bastante diversificada. As
pesquisas acadêmicas que se debruçam sobre localidades específicas é igualmente vasta. Dentre os
autores que servem de referência para inúmeros trabalhos e focam seus estudos em determinadas
localidades procurando, por vezes, compreender o quadro econômico e político mais largo,
concentram seus esforços de pesquisa no Sudeste, especialmente na agricultura cafeeiro-escravista
do Vale do Paraíba. Dentre esses se pode destacar: STEIN, Stanley J. Grandeza e decadência do
café no Vale do Paraíba: com referência especial ao município de Vassouras. São Paulo: Brasiliense,
1961; FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo:
Editora da UNESP, 1997; MACHADO Maria Helena Pereira Toledo. Crime e escravidão: trabalho,
luta e resistência nas lavouras paulistas: 1830-1888. São Paulo: Brasiliense, 1987; WISSENBACH,
Maria Cristina C. Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São Paulo (1850-1880).
São Paulo: Hucitec, 1998; MOTTA, José Flávio. Corpos escravos vontades livres: posse de cativos
e família escrava em Bananal (1801-1829). São Paulo: Fapesp; Annablume, 1999; PAPALI, Maria
Aparecida C. R. Escravos, libertos e órfãos: a construção da liberdade em Taubaté (1871-1895).
São Paulo: Annablume; Fapesp, 2003; SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo: Vassouras, século
XIX – Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: 2008.
Sobre as considerações teóricas e metodológicas da Micro-História presentes neste parágrafo, ver:
REVEL, “Microanálise e a construção do social”, p. 21-28.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 259


Já os historiadores que trabalharam especificamente com a matriz política,
por um lado, e com o abolicionismo e a crise da escravidão, por outro, foram de
fundamental importância para se entender a formação, consolidação e derrocada do
Estado Imperial e também a agência escrava. A escravidão sempre esteve presente
nesses estudos ora de maneira determinante, ora de modo incidental, como pano de
fundo para as análises do funcionamento político do Estado brasileiro. No primeiro
grupo, cumpre destacar os trabalhos de José Murilo de Carvalho, Thomas Flory,
Ilmar Rohloff de Mattos, Miriam Dolhnikoff, Maria de Fátima Silva Gouvêa e Ivo
Coser. No que tange aos estudos que focam o movimento abolicionista, destacam-se
Elciene Azevedo, Maria Helena Machado, Robert Conrad, Robert Brent Toplin, Joseli
Maria Nunes Mendonça, Jonas Marçal de Queiroz, Sidney Chalhoub e Célia Maria
Marinho de Azevedo4. A crise do Estado imperial e a crise da escravidão são dois
processos concomitantes e muitos desses autores estudaram as implicações políticas
do abolicionismo e dos movimentos sociais nas décadas finais do Império do Brasil.
Os trabalhos do primeiro grupo são de fundamental importância para se entender
o funcionamento do poder no século XIX e as articulações desenvolvidas pelos
sujeitos entre os diferentes níveis de governo. Já os estudos sobre o abolicionismo
também se preocuparam com a agência escrava e abordaram a crise política e a
crise da escravidão a partir de diversas perspectivas. Vale a pena destacar, nesse
último grupo, o mestrado de Jonas Marçal de Queiroz, que estudou a questão das
disputas políticas na crise do Estado Imperial nas décadas de 1870 e 1880. Esse
autor apresentou uma interpretação da derrocada do Império do Brasil a partir das
lutas políticas envolvendo os partidos imperiais (liberal, conservador e republicano).
Queiroz mostrou a profunda crise do Estado imperial e o esfacelamento do que se
convencionou denominar de “classe senhorial”.
Nesse sentido, considerando, grosso modo, essas três grandes vertentes
historiográficas (os estudos que focam determinada localidade, os que priorizam
a matriz política e aqueles que trabalham a crise da escravidão na perspectiva
do abolicionismo) o objetivo deste artigo é entender a multiplicidade de redes de

4
AZEVEDO, Elciene. O direito dos escravos: lutas jurídicas e abolicionismo na província de São
Paulo. Campinas: Editora da UNICAMP, 2010; CARVALHO, José Murilo de. A construção da
ordem: a elite política imperial/ Teatro de sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2008; CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil: 1850-1888. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978; FLORY, Thomas. El juez de paz y el jurado en el Brasil
imperial. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1986; DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto
Imperial: origens do federalismo no Brasil. São Paulo: Globo, 2005; GOUVÊA, Maria de Fátima
Silva. O Império das Províncias: Rio de Janeiro, 1822-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2008; COSER, Ivo. Visconde do Uruguai: centralização e federalismo no Brasil, 1823-1866. Belo
Horizonte: Editora da UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2008; MACHADO, Maria Helena. O plano
e o pânico: os movimentos sociais na década da Abolição. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1994;
MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Entre a mão e os anéis: a lei dos sexagenários e os caminhos da
abolição no Brasil. Campinas: Editora da UNICAMP, 2008; MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo
saquarema. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 2004 [1987]; QUEIROZ, Jonas Marçal de. Da senzala à
República: tensões sociais e disputas partidárias em São Paulo (1869-1889). Dissertação (Mestrado
em História). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1995; TOPLIN, Robert Brent. The
abolition of slavery in Brazil. Nova York: Atheneum, 1975; AZEVEDO, Célia Maria Marinho de.
Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites, século XIX. São Paulo: Annablume,
2004; CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão
na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

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relacionamentos que a classe senhorial-escravista do município cafeeiro de Bananal
desenvolveu para além das fronteiras dessa localidade.
Bananal localiza-se no Estado (no século XIX, Província) de São Paulo. Fica
próxima a Angra dos Reis, por onde grande parte do café era escoado para a
Corte para, daí, alcançar os mercados mundiais5. As redes de relacionamentos de
diversos sujeitos de Bananal permitem verificar que muitos dos que aí moravam
tinham fortes vínculos com municípios da Província do Rio de Janeiro como Barra
Mansa, Piraí, Angra dos Reis e Resende ou mesmo Baependi, na Província de
Minas Gerais. Essas referências geográficas básicas são importantes porque as
características do funcionamento da política no Império do Brasil forçaram os
sujeitos, principalmente aqueles com maior projeção política, a construírem um
espaço de atuação que ultrapassava os limites territoriais do município alcançando
outros municípios e os níveis da Província e da Corte. O propósito de se olhar
para as redes de relacionamentos e para o espaço de atuação de proprietários
rurais é entender a necessidade de se inserir uma determinada localidade em
um contexto político e econômico maior. Pretende-se, com isso, compreender
como se pode, no Império do Brasil, articular um município a um quadro mais
amplo de consolidação, transformação e crise do Estado imperial. Como se verá
na sequência, as considerações desse artigo são relativas a Bananal, mas podem
ser pensadas para outros municípios, permitindo considerar a inserção de uma
localidade nos quadros da política nacional e, mesmo, da economia-mundo.

As redes de relacionamentos dos proprietários de escravos


e o funcionamento do poder político no Império do Brasil

Após a lei que suprimiu o tráfico de escravos entre a África e o Brasil (1850),
e até meados da década de 60, o clima político no Império era favorável àqueles
que defendiam a escravidão. Nessa época, os proprietários de escravos se sentiam
protegidos pelo Estado na delicada questão do elemento servil e não vislumbravam,
por parte das autoridades e do Imperador, nenhuma atitude contrária aos seus
interesses. Para Tâmis Parron, o momento vivenciou um arrefecimento das
publicações e das iniciativas contra a escravidão e conheceu uma significativa
“estabilidade discursiva” pautada pelo silêncio do Poder Legislativo nas questões
relativas ao trabalho escravo. Segundo Robert Conrad, pouco se fez a favor dos
escravos e dos africanos introduzidos ilegalmente no Brasil. Seguiu-se, então, “mais
de uma década de quase silêncio sobre o problema dos escravos”6.

5
Para entender a inserção do Vale do Paraíba na formação do mercado mundial do café, ver:
MARQUESE, Rafael & TOMICH, Dale. “O Vale do Paraíba escravista e a formação do mercado
mundial do café no século XIX”. In: GRINBERG, Keila & SALLES, Ricardo (orgs.). O Brasil
Imperial – Volume II: 1831-1870. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 339-383. Versão
modificada desse artigo foi publicada em: MUAZE, Mariana & SALLES, Ricardo (orgs.). O Vale do
Paraíba e o Império do Brasil nos quadros da Segunda Escravidão. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2015,
p. 21-56.
6
PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil: 1826-1865. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2011, p. 299-300. Conforme Parron, um desembarque ilegal de escravos
em Sirinhaém, Pernambuco, no ano de 1856, rompeu por breves instantes os silêncios sobre a
escravidão que caracterizaram esse período. Contudo, tal fato não impediu que a escravidão se

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Mesmo as suspeitas de desembarques ilegais de africanos após a aprovação
da lei de 1850 e a celeuma produzida com a ação governamental não abalaram
a confiança e a segurança depositadas na existência da instituição do trabalho
escravo. Em Bananal, a denúncia de um desembarque ilegal e o envolvimento de
grandes potentados locais estremeceram, por breve período, as relações de poder
nessa localidade. No mês de dezembro de 1852, correu a notícia da chegada de
um navio com africanos e do desembarque deles em terras da Fazenda Santa
Rita, pertencentes ao Comendador Joaquim José de Souza Breves. O palco do
desembarque seria o porto do Bracuhy, freguesia da Ribeira, próximo a Angra dos
Reis. O ocorrido explicitava o desrespeito à recém aprovada Lei Eusébio de Queirós,
diploma que procurou suprimir em definitivo o contrabando negreiro, existente
no país e tolerado pelas autoridades desde 1831. Os africanos desembarcados
teriam sido remetidos para a cidade do Bananal, e um amplo conjunto de agentes
repressores foi mobilizado pelo Ministro da Justiça, José Ildefonso de Souza Ramos,
para investigar a transgressão. As ações repressivas deram resultado e no dia 16
de janeiro de 1853, 10 africanos boçais e um escravo ladino foram apreendidos
em Bananal, em terras da Fazenda do Resgate, então pertencentes ao delegado
de polícia Manoel de Aguiar Vallim – que seria demitido do seu cargo pelo chefe
de polícia interino, o sr. Joaquim Fernandes da Fonseca, no início de fevereiro.
No dia 20 de janeiro, mais 33 africanos foram retidos “em uma pequena mata de
propriedade de José Barbosa, ainda no município do Bananal, junto da estrada
que servia de caminho para Resende e São Paulo”7.
O caso Bracuhy revelou, por um lado, o interesse do governo central de fazer
cumprir a nova legislação antitráfico e, por outro, expôs o conflito dos potentados
locais contra a administração central. Como se vê, é possível ver nesse caso, em
uma primeira aproximação sobre o tema deste artigo, como o “local” e o “central”
se articulam no Império do Brasil. Para se defender, os acusados pelo tráfico ilegal
de africanos argumentaram sobre o perigo das insubordinações dos escravos e
sobre a insatisfação provocadas pelas intervenções e investidas das autoridades no
interior das fazendas. O episódio evidenciou também que, em casos envolvendo
a questão da escravatura, liberais e conservadores se uniam em uma aliança de
classe que fazia esmorecer as divergências políticas. Dentre os suspeitos pelo tráfico
estavam os membros do Partido Conservador Manoel de Aguiar Vallim e seu sogro,
Luciano José Nogueira, e os liberais Joaquim José de Souza Breves e o Major
Antônio José Nogueira. Esses dois últimos estiveram diretamente envolvidos nas
revoltas liberais de 1842, sendo que Breves foi, à época, preso em Bananal8.

tornasse um “não evento na agenda política imperial”, de acordo com os exemplos apresentados
por esse autor. PARRON, A política da escravidão..., p. 300-303. Ver também sobre esse momento
histórico: CONRAD, Os últimos anos..., p. 62; TOPLIN, The abolition…, p. 41.
7
ABREU, Marta, “O caso Bracuhy”. In: CASTRO, Hebe Maria Mattos de & SCHNOOR, Eduardo
(orgs.). Resgate: uma janela para o oitocentos. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995, p. 169; Ver também:
LOURENÇO, Thiago Campos Pessoa. O Império dos Souza Breves nos oitocentos: política e
escravidão nas trajetórias dos Comendadores José e Joaquim Breves Dissertação (Mestrado em
História). Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2010, p. 149-163.
8
ABREU, “O caso Bracuhy”, p. 171-176. Sobre a prisão de Breves em Bananal e o movimento de
1842, ver: HÖRNER, Erik. Em defesa da Constituição: a guerra entre rebeldes e governistas (1838-
1844). Tese (Doutorado em História Social). Universidade de São Paulo. São Paulo, 2010, p. 311.

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O episódio envolvendo grandes senhores de escravos em Bananal esteve inserido
em um contexto singular. A historiografia informa que o cenário brasileiro de
meados do século XIX apontava para a consolidação, no âmbito do governo central,
do projeto dos saquaremas. As medidas executadas pelo Gabinete conservador
que ascendeu ao poder em 29 de setembro de 1848 foram o ponto culminante
de uma estratégia que vinha sendo praticada desde o final da década de 1830
pela revisão conservadora e que visava à centralização do sistema judiciário e à
estabilidade da ordem social, com a defesa dos interesses dos grandes proprietários
e da escravidão como elementos norteadores das políticas governamentais. A
composição saquarema do Ministério capitaneado pelo Presidente do Conselho,
Pedro de Araújo Lima, alcançou sucesso ao tentar colocar em prática uma
ordem política em que as divergências entre as elites não deveriam desestabilizar
a segurança das relações sociais e o domínio político dos proprietários rurais.
Medidas centralizadoras adotadas ao longo da década de 1840, como a submissão
do juiz municipal, do juiz de órfãos e do promotor público ao governo central
e o esvaziamento das atribuições do juiz de paz, que perdeu suas prerrogativas
policiais para os delegados e subdelegados nomeados e demitidos pelo Ministro da
Justiça, seriam coroadas com as políticas aplicadas pelo Gabinete conservador, a
quem coube a resolução de conflitos regionais (repressão ao movimento praieiro
em 1848) e a aprovação da reforma centralizadora da Guarda Nacional, além
da sanção da Lei de Terras e da lei que proibia o tráfico intercontinental, ambas
aprovadas em 1850. Fixadas ao longo da década de 1840 e então firmemente
laureadas com as medidas do Gabinete de 29 de setembro, cujo Presidente do
Conselho foi Pedro de Araújo Lima, as fundações políticas do Império brasileiro
funcionariam sem grandes abalos até pelo menos o início da década de 1880,
quando a vaga abolicionista e as cizânias políticas exporiam a crise não somente
da instituição escravista, mas da classe social que apoiava seu poder sobre as
costas do escravo. O momento de inflexão desse longo período conhecido como
Segundo Reinado – se é lícito escolher um – deu-se entre 1868 e 1871. Os dois
marcos basilares foram, por um lado, a reviravolta política que levou à ascensão do
Gabinete de 16 de julho de 1868, quando os liberais foram afastados do poder e o
conservador Visconde de Itaboraí se tornou Presidente do Conselho e, por outro, a
aprovação da Lei do Ventre Livre, em 28 de setembro de 18719.

O trabalho de Jaime Rodrigues analisa quais foram os mecanismos utilizados pelo governo imperial
para garantir o contrabando de africanos após a aprovação da lei de 1831 e, por outro lado,
estuda também quais foram as medidas tomadas pelo governo para coibir o tráfico após 1850. Ver:
RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos
para o Brasil (1800-1850). Campinas: Editora da UNICAMP; CECULT, 2000, p. 131-155.
9
CARVALHO, A construção da ordem..., p. 254-255; GRAHAM, Richard. Clientelismo e política
no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997. Sobre as medidas adotadas
pelo Gabinete de 29 de setembro, ver: MATTOS, O tempo saquarema, p. 183-189. O momento
histórico delineado neste parágrafo não foi isento de tensões e rivalidades partidárias, como
demonstra a análise feita por Tâmis Parron sobre o momento da Conciliação. Ver: PARRON, A
política da escravidão..., p. 276-287. Francisco Iglesias, ao traçar o perfil da “vida política” do
Império do Brasil entre 1848 e 1868, não deixou de salientar as divisões políticas características
do período. Tais dissensões produziram, em muitos momentos, longas séries de gabinetes instáveis.
Ver: IGLESIAS, Francisco. “Vida política, 1848/1868”. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de (org.).
História Geral da Civilização Brasileira – O Brasil monárquico: reações e transações, tomo II, vol.

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Os três pontos fundamentais do projeto político construído na década de 1840
foram a estruturação de um Judiciário centralizado, que pudesse estabelecer
vínculos entre o governo central e as municipalidades, a defesa da escravidão
e a defesa dos interesses dos grandes proprietários de escravos, especialmente
daqueles vinculados à produção cafeeira. Para funcionar, o projeto político
saquarema articulou os níveis imperial, provincial e local e permitiu que os
políticos da corte se interligassem com os interesses dos proprietários escravistas
das localidades, construindo uma rede clientelística que vincularia todas as esferas
do governo. Um dos principais objetivos dessas reformas centralizadoras seria a
garantia da ordem pública, com a criação de mecanismos que pudessem viabilizar
o domínio da classe dos proprietários mais ricos. Nesse sentido, a aprovação
da lei n° 261, de 3 de dezembro de 1841, e do Regulamento n° 120, de 31 de
janeiro de 1842, cumpriram um papel de importância crucial para que o projeto
político dos saquaremas pudesse funcionar. Esses dois diplomas – o primeiro é a
Reforma do Código do Processo Criminal, o segundo o regulamento da execução
da parte policial e criminal dessa mesma lei – são exemplos fundamentais para
se entender as articulações que ocorreram entre os três níveis de governo. Daí se
estruturou a centralização das atividades policiais e judiciárias do Estado Imperial
e, por conseguinte, os vínculos que surgiram entre o “local” e o “central”10. A
lei e o Regulamento acima mencionados permitem entender como os potentados
nas localidades se articularam e se movimentaram para além dos limites de suas
fazendas e da política municipal. Se olharmos da perspectiva dos senhores nos
seus municípios, os vínculos entre os níveis local, provincial e imperial ajudam a
entender o espaço de atuação de muitos proprietários rurais e perceber a construção
de ligações firmes e confiáveis, apesar de conflituosas em muitos momentos, com
diferentes níveis de governo. Os senhores de escravos da localidade se inseriam
no debate público acerca de diversos temas mas, principalmente, aqueles ligados
às suas atividades econômicas e aos seus interesses financeiros despertavam mais
atenção.

3. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1987, p. 09-112. Já Ricardo Salles observou que após a crise
política de 1868, malgrado o recrudescimento da oposição à hegemonia saquarema, “o sistema
continuou funcionando de acordo com as regras estabelecidas”. Ver: SALLES, Ricardo Henrique.
“O Império do Brasil no contexto do século XIX: escravidão nacional, classe senhorial e intelectuais
na formação do Estado”. Almanack, Guarulhos, UNIFESP, n. 4, 2012, p. 05-45. Um esboço da
oposição à hegemonia saquarema pode ser visto em: CARVALHO, José Murilo de. “As conferências
radicais do Rio de Janeiro: novo espaço de debate”. In: CARVALHO, José Murilo de (org.). Nação
e cidadania no Império: novos horizontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 17-41.
10
É importante salientar que os efeitos da lei não se restringiram à centralização das atividades policiais
e judiciárias. Para Thomas Flory, a lei de 3 de dezembro provocaria também efeitos eleitorais,
uma vez que os agentes indicados pelo governo central teriam clara influência nas eleições, na
elaboração das listas de votantes, etc. Nesse sentido, esse autor entendeu que após as reformas da
início da década de 1840, passou a vigorar um “novo sistema eleitoral” que estruturou um “sistema
político viável”. Ver: FLORY, El juez de paz..., p. 279-280. Esse autor continua a analisar os efeitos
da lei de 3 de dezembro no capítulo seguinte, denominado “La politica de la justicia, 1841-1871”.
Nesse capítulo, destaca a importância das nomeações e a interferência do governo central nos
interesses locais e na magistratura. O papel dos juízes para garantir as conveniências do governo
central e a utilização política das remoções desses profissionais para localidades distantes foram
práticas que estão intimamente associadas ao funcionamento do sistema político do Império. Ver:
FLORY, El juez de paz..., p. 281-307.

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O tema das relações políticas entre o poder local e o poder central, intermediado
pelo nível provincial, não é novo na historiografia brasileira e encontra-se diretamente
relacionado às interpretações acerca das características e do funcionamento do
Estado Imperial. As categorias de mandonismo, coronelismo, clientelismo e
patrimonialismo são determinantes, por um lado, para se compreender as relações
estabelecidas entre os potentados locais e o governo central e, por outro, facilitam
o entendimento de muitas manifestações de poder de diversas autoridades no
Império do Brasil11. Isso porque o personalismo foi uma das marcas de todas
essas categorias. Acompanhadas por exibições arbitrárias, o personalismo foi, nos
dizeres do Correio Paulistano, “a fisionomia geral de quase todas as manifestações
de autoridade” e, portanto, de poder. Como decorrência, as “boas amizades”,
o “favoritismo” e o “compadresco político” eram condições para salvaguardar
qualquer pessoa das manifestações caprichosas do poder de qualquer autoridade
ou dos potentados locais. O corolário dessas práticas, tão comuns no Brasil
do século XIX, era o desrespeito às leis e a fragilização das instituições, pautas
sempre presentes no noticiário jornalístico do Império do Brasil12. Por isso muitos
homens livres e dependentes se interessavam por buscar ligações com os influentes
locais, os potentados dos municípios. Isso representava a garantia de proteção e,
por conseguinte, freio para as ações abusivas das autoridades. Richard Graham
oferece-nos um exemplo disso na prática dos recrutamentos forçados para a
Guarda Nacional ou para o exército, especialmente no momento da Guerra do
Paraguai (1864-1870). Segundo esse autor, esse tipo de atitude garantia apoio
eleitoral e interessava aos dependentes que se sentiam protegidos. Em seus
termos, “proteger alguns pobres da ameaça de recrutamento surgia como tema tão
frequente nos documentos da época que se pode acreditar que a sua verdadeira
finalidade era obrigar a todos a se identificarem com quem pudesse oferecer essa
ajuda”. A obediência e a lealdade dos subalternos merecia recompensa. Uma das
retribuições era a proteção contra esses recrutamentos13.
Para os propósitos deste artigo, a pesquisa de Richard Graham constitui-se
como um bom ponto de partida para se entender as relações entre o “local” e
o “central” dos proprietários de escravos mais ricos e influentes de Bananal no
período entre 1850 e 1888. O mais importante a reter do trabalho desse autor
são as redes de clientelismo que muitos homens influentes procuravam formar

11
Ver a discussão historiográfica sobre esse assunto em: CARVALHO, José Murilo de. “Mandonismo,
coronelismo, clientelismo: uma discussão conceitual”. Dados, Rio de Janeiro, vol. 40, n. 2, 1997, p.
229-250.
12
Correio Paulistano, São Paulo, 24 set. 1873, edição 5113, p. 01.
13
GRAHAM, Clientelismo e política..., p. 48. Esse assunto da dependência que muitos homens livres
tinham com os proprietários poderosos foi trabalhado por Maria Sylvia de Carvalho Franco, que
abordou a questão da dominação pessoal sobre os homens pobres e as estratégias de inserção
desses sujeitos na sociedade escravista da época. Essa autora apontou ainda as consequências
eleitorais dessas práticas de dominação. FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres
na ordem escravocrata. São Paulo: Editora da UNESP, 1997, p. 65-113. Sobre as questões do
recrutamento e da força policial e os conflitos que surgiam entre a Assembleia Provincial e o
Presidente da Província, representante do governo central, ver: DOLHNIKOFF, O pacto Imperial...,
p. 191-200 e p. 254-261. Thomas Flory analisou o uso político do recrutamento para fins eleitorais
(ou recrutamento seletivo), prática que pode ser entendida como uma das consequências da lei de
3 de dezembro de 1841. Ver: FLORY, El juez de paz..., p. 292-293.

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no Império do Brasil e que vinculavam, em uma via de mão dupla, os senhores
poderosos na localidade e o Gabinete no poder. Nas palavras desse autor,
“inspetores de quarteirão, subdelegados, delegados e oficiais da Guarda Nacional
trabalhavam junto com membros do Gabinete, reforçando a ordem pública sobre
os escravos e os pobres”14. Outros sujeitos também participavam dessas redes,
tais como os juízes de órfãos, os membros da Igreja, o Presidente de Província
etc. Se, por um lado, ao longo da história do Segundo Reinado (1840-1889) esse
funcionamento não aconteceu de modo rigidamente mecânico, dando margem
para que a oposição em muitos momentos se organizasse, é preciso considerar
que, por outro, a sentença de Graham tem o mérito de chamar a atenção para
aqueles que, nas localidades, operavam a política imperial do Gabinete ora no
poder com vistas à manutenção da ordem. Através do mecanismo das nomeações
e exonerações previsto pelas reformas centralizadoras do início da década de 1840,
a nova situação política, divergente da antecessora, construía as bases sociais para
facilitar a governabilidade. Por fim, entrevê-se o interesse e a importância para os
potentados locais em procurar um espaço de atuação que extrapolasse os limites
de sua fazenda e da política do município. Os líderes locais procuravam agir para
formar vínculos mais amplos que ultrapassavam os limites do município e, nesse
sentido, a Corte foi um espaço aglutinador.
Mas há um dado importante que se deve considerar para se entender o espaço
de atuação dos proprietários rurais. Esse espaço de atuação foi decorrência direta
do arranjo institucional construído a partir do Ato Adicional de 1834. Considerar
somente as reformas capitaneadas pelos saquaremas no início da década de 1840
pode ser um equívoco se se quiser entender o funcionamento do poder no Império
do Brasil. Isso porque uma característica básica da reforma constitucional de 1834,
como demonstraram Thomas Flory, Miriam Dolhnikoff, Maria de Fátima Silva
Gouvêa e Ivo Coser, foi a subordinação dos municípios ao governo provincial e,
mais especialmente, à Assembleia Provincial. Ao mesmo tempo, a centralização
do judiciário fez com que o governo central pudesse estender suas articulações
e sua influência até as municipalidades. Desse modo, as relações entre o “local”
e o “central” foram intermediadas pela política provincial. Esse foi um espaço
importante para as manifestações e a defesa dos interesses da localidade. Segundo
Gouvêa, em debates na Assembleia a respeito do orçamento municipal, por
exemplo, os discursos dos deputados provinciais manifestavam as demandas da
localidade. O que se destaca do trabalho dessa pesquisadora é que entre o “local”
e o “central” havia um importante espaço intermediário que era o da política
provincial. Seu estudo evidencia a interferência e a força dessa instância de poder
nos assuntos da localidade e a importância para os potentados locais em investir
na defesa dos interesses de seus municípios na Assembleia Provincial. Por isso,
esse órgão de poder foi palco de diversos conflitos entre representantes de várias
partes da Província. Como a atuação dos potentados locais tinha de se dirigir para
as instâncias superiores, o Presidente da Província também entrava em cena como
ator importante na resolução dos conflitos internos entre os potentados locais e
entre os interesses dos diversos municípios. Para Miriam Dolhnikoff, o Presidente

14
GRAHAM, Clientelismo e política..., p. 100.

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de Província não pode ser considerado um mero articulador das vontades do
governo central, pois sua atuação dependia de intensa negociação com a “elite
da província” [os deputados na Assembleia Provincial] para que os objetivos de
interesse do Gabinete fossem alcançados15. Como os deputados eram homens do
município, pode-se falar de um espaço intermediário de atuação dos proprietários
locais que será de fundamental importância para satisfazer os interesses de
determinada localidade.
Desse modo, dado o funcionamento político do Estado imperial, as articulações
dos potentados locais extrapolavam os limites do município e se dirigiam para
a Assembleia Provincial e para o governo central. Tal dado ganha relevo se
considerarmos os momentos de crise que conduziriam, entre 1868 e 1888, à
abolição da escravidão no Brasil. A esfera dos interesses políticos do centro e a
“esfera dos interesses locais” se imiscuíam, tensionando as redes de relacionamentos
que articulavam o “local” ao “central”.
Nesse sentido, pode-se entender que os vínculos que os senhores estabeleceram
para além das fronteiras de suas propriedades rurais e do município foram variados.
Eles poderiam se relacionar diretamente aos interesses de status social e reforço do
ethos senhorial ou aos seus interesses econômicos. Os senhores tiveram, assim,
um espaço de atuação muito maior em tamanho e em mobilidade do que aquele
vivenciado pelos escravos e por muitos homens livres nas localidades.
Os laços de parentesco podem ser uma das chaves para se entender as
características do espaço de atuação dos proprietários rurais. Uma das estratégias
recorrentes dos grandes potentados do século XIX foi a utilização do casamento
como ferramenta para preservar a riqueza e garantir e ampliar os negócios e os
interesses familiares. O casamento era visto como um dos meios para se preservar
o patrimônio familiar e o importante era que ocorresse “entre iguais”, ou seja, entre
membros da mesma classe. Para os senhores abastados, isso significou também
uma estratégia para manter o prestígio e ampliar as redes. Ao mesmo tempo, o
casamento foi um dos meios para consolidar alianças políticas e poderia ser uma
investida que ocorria entre os membros da classe senhorial na própria localidade
ou entre esses e os dirigentes do Império. Por conseguinte, a política foi outro
caminho para afirmar o prestígio social. A força política trazia prestígio e respeito.

15
FLORY, El juez de paz..., p. 244-246; DOLHNIKOFF, O pacto imperial..., p. 100-118; GOUVÊA,
O império das províncias... A expressão “relações entre o ‘local’ e o ‘central’” é empregada, neste
artigo, no sentido de articulação entre os três níveis de governo, quais sejam, o governo imperial, o
governo provincial e o município. Não se pode desconsiderar a política provincial como espaço de
atuação dos potentados locais que lutavam, na Assembleia Provincial, para a garantia dos interesses
de seu município e para a resolução dos conflitos internos entre as diversas facções locais. Para
Thomas Flory, o Ato Adicional de 1834 representou um processo de “centralização intermediária”.
Essa reforma constitucional foi uma resposta dos liberais que se desesperaram em governar o
país sem o controle da justiça local. Em suas palavras, “el echo de conferir esos poderes a los
gobiernos provinciales sólo podría considerasse como una medida descentralizante si el gobierno
central hubiera tenido esos poderes anteriormente”. O estudo de Jonas Marçal de Queiroz mostrou
como os proprietários se organizavam, especialmente com a fundação de Clubes da Lavoura, para
pressionar e cobrar os políticos no âmbito da Província e do governo central. Segundo esse autor,
a ideia de formar Clubes da Lavoura e confederações mais amplas se espalhou no final da década
de 1870. Ver: QUEIROZ, Da senzala à República (especialmente o capítulo III do volume I dessa
dissertação).

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Casamento e prática política – fosse ela feita no município, no âmbito da Província
e da Assembleia Provincial ou na Corte – foram dois pólos constituintes de um
direcionamento exercitado pela classe senhorial mais abastada que comprovam
o espaço de atuação para além da propriedade senhorial e, em muitos casos, das
fronteiras do município16.
Esse espaço de atuação fez com que os senhores de escravos da localidade
se interessassem pelos acontecimentos nacionais e internacionais que pudessem
interferir, por um lado, nos direcionamentos da política nacional e, por outro, na
esfera dos interesses imediatos e do poder local do fazendeiro. Um bom exemplo
disso é uma carta escrita pelo Barão de Bella Vista, importante fazendeiro de
Bananal, e que está atualmente localizada em uma das salas da casa de vivenda da
fazenda de mesmo nome. Tal documento relata sobre os contatos estabelecidos por
esse senhor com agentes dos Estados Unidos, em um momento em que esse país
vivenciava a Guerra Civil, e informa que o espaço de atuação de muitos senhores
de escravos era bastante amplo. Na missiva, enviada do Rio de Janeiro, datada de
17 de dezembro de 1862 e remetida ao Presidente da Câmara Municipal da cidade
do Bananal, o Barão afirmou que procurava “auxiliar a lavoura do nosso país”
enviando “uma porção de sementes de algodão herbáceo da melhor qualidade que
se conhece nos Estados Unidos”. O missivista disponibilizava, desse modo, “seis
sacas das ditas sementes” ao Presidente da Câmara para que se pudesse distribuir
“aos senhores fazendeiros” do Município de Bananal. Revelando a intenção de
beneficiar a agricultura e o desenvolvimento da lavoura do país, o Barão de Bella
Vista escreveu que “com muito prazer oferecemos qualquer informação às pessoas
que querem dedicar-se a este ramo de lavoura, por estarmos em correspondência
direta com agentes competentes nos Estados Unidos”. As sementes poderiam ser
procuradas na Rua do Pescador, número 47.
Um escravista de Bananal, que envia uma carta do Rio de Janeiro e menciona
sua “correspondência direta com agentes competentes dos Estados Unidos”. São
exemplares as referências contidas nesse documento. Elas informam como muitos
escravistas estavam inseridos e bem informados a respeito dos eventos no âmbito
internacional e revelam como é possível conceber em um mesmo quadro analítico
muitas das questões relativas à economia-mundo do espaço Atlântico no século
XIX17.

16
MUAZE, Mariana. As memórias da viscondessa: família e poder no Brasil Império. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2008; SALLES, “O Império do Brasil...”, p. 32. Ricardo Salles menciona os vínculos
que vários importantes homens do Império do Brasil estabeleceram com suas bases políticas e
sociais como, por exemplo, aqueles estabelecidos pelos saquaremas Joaquim José Rodrigues Torres e
Paulino José Soares de Sousa, que se casaram com as filhas do proprietário João Álvares de Azevedo.
Cf. SALLES, “O Império do Brasil...”, p. 08. Sobre o casamento de Paulino e de outros políticos
importantes, ver: CARVALHO, José Murilo de. “Entre a autoridade e a liberdade”. In: CARVALHO,
Jose Murilo de (org.). Visconde do Uruguai. São Paulo: Editora 34, 2002, p. 11-47. Sobre os interesses
recíprocos de fazendeiros de casarem suas filhas e de juízes de aceitarem esse matrimônio, facultando
assim uma ampliação dos contatos dos poderosos da localidade dentro do governo e da burocracia
central, ver: FLORY, El juez de paz..., p. 300-302. Esse autor cita também o exemplo de Paulino e os
do magistrado Albino José Barbosa de Oliveira e de Firmino Rodrigues Silva.
17
Sublinhe-se que esse é o momento da Guerra Civil americana. Os debates sobre esse acontecimento
também repercutiram no meio político brasileiro. Após o término da guerra nos Estados Unidos, D.
Pedro II passou a pressionar os membros mais progressistas dos ministérios e mesmo do Conselho
de Estado para reformar a escravidão. A esse respeito, ver: PARRON, A política da escravidão...,

268 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


Contudo, a iniciativa do Barão de Bella Vista parece não ter transformado a
vocação cafeeira da localidade de Bananal. Em ofício de 1° de abril de 1869,
os vereadores da cidade remeteram ao Presidente da Província, o Barão de
Itaúna, um relatório com a descrição geográfica e econômica desse município.
Nesse documento, verifica-se a preeminência do café como atividade econômica
principal, ao lado da produção de diversos mantimentos, como o arroz, o milho,
a farinha de mandioca e a aguardente de cana, sendo “pouca ou insignificante a
plantação de algodão e fumo”18.
O fracasso da iniciativa do Barão de Bella Vista não esconde, contudo, a
centralidade da Corte no contexto da história do Império do Brasil. A carta
demonstra o vínculo que muitos senhores locais estabeleceram com a cidade do Rio
de Janeiro. Desse modo, entende-se porque Manoel de Aguiar Vallim, proprietário
da Fazenda do Resgate, foi também proprietário de uma casa de sobrado localizada
na Rua do Conde D’Eu, número 159, e igualmente porque Maria Candida Ribeiro,
filha de Candido Ribeiro Barbosa, rico proprietário da Fazenda dos Coqueiros,
casou-se com José Leite de Figueiredo, comissário de café no Rio de Janeiro19.
A cidade do Rio de Janeiro foi de fato um espaço de circulação importante e
de estada dos senhores de muitos municípios. De lá, era possível informar-se dos
acontecimentos políticos nacionais e internacionais. Lá era o local que centralizava
as exportações de café e, portanto, centro aglutinador da produção cafeeira do
Vale do Paraíba. Muitos proprietários rurais dos municípios cafeeiros estabeleceram

p. 319-324. Robert Conrad disse que o resultado da Guerra Civil vai enfraquecer a escravatura
no Brasil e despertar a oposição ao trabalho escravo. Sobre a ação de D. Pedro II como reflexo da
situação do trabalho escravo no plano mundial, ver: CONRAD, Os últimos anos..., p. 88-91. Para
um estudo de história comparada em perspectiva atlântica, ver: BERBEL, Márcia; MARQUESE,
Rafael & PARRON, Tâmis. Escravidão e política: Brasil e Cuba, 1790-1850. São Paulo: Hucitec;
Fapesp, 2010. Ver também: ZEUSKE, Michael. “Comparing or interlinking? Economic comparisons
of Early Nineteenth Slave Systems in the Americas in Historical Perspective”. In: DAL LAGO, Enrico
& KATSARU, Constantina (orgs.). Slave Systems: ancient and modern. Cambridge: Cambridge
University Press, 2008, p. 148-183; TOMICH, Dale. Through the prism of Slavery: labor, capital,
and World economy. Boulder: Rowman & Littlefield, 2004, p. 56-71. Sobre a cultura de algodão
na Província de São Paulo e o interesse inglês em propagar o plantio dessa cultura em outras partes
do mundo com o objetivo de se “libertar da dependência quase exclusiva do mercado americano”,
ver: CANABRAVA, Alice P. O desenvolvimento da cultura do algodão na Província de São Paulo
(1861-1875). São Paulo: EDUSP; Associação Nacional de História, 2011. Essa autora analisa a
atuação da “Associação para o Suprimento do Algodão em Manchester”, fundada em 1857, e do
superintendente da estrada de ferro Santos-Jundiaí, Jean Jacques Aubertin, no desenvolvimento
da plantação de algodão na Província de São Paulo na década de 1860. CANABRAVA, O
desenvolvimento da cultura..., p. 79-87.
18
Arquivo do Estado de São Paulo (AESP). Ofícios diversos de Bananal: 1869-1891. Caixa 35.
Ordem 829. Pasta 1. Doc. 14. O ofício está assinado por Francisco Xavier Vahia Durão, Antonio
Caetano de Oliveira Carvalho, Henrique José da Silva, Candido Pereira Leite e João Candido de
Macedo.
19
Inventário de Manoel de Aguiar Vallim de 1878. O presente inventário encontra-se arquivado no
Museu Histórico e Pedagógico Major Dias Novaes, localizado em Cruzeiro, Estado de São Paulo,
Ver Museu Major Novaes (doravante MMN)/ Caixa 170/ nº de ordem 3472. 1° Ofício. Sobre o
casamento de José Leite de Figueiredo, ver: RODRIGUES, Píndaro de Carvalho. O caminho novo:
povoadores do Bananal. São Paulo: Governo do Estado, 1980, p. 135. Sobre a importância da
cidade do Rio de Janeiro, ver também: MATTOS, O tempo saquarema, p. 62-63.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 269


vínculos fortes com comissários baseados na Corte20. A cidade destacava-se pelo
sua importância econômica e política, pelas ligações com a economia mundial e
pelo cosmopolitismo que favorecia o intercâmbio de ideias e notícias. Desde muitos
antes de 1850, a cidade do Rio de Janeiro já mostrava sua importância como
centro irradiador e distribuidor de escravos para o Sudeste e para as províncias do
sul. Na era do tráfico intercontinental, os comerciantes cariocas construíram sua
hegemonia controlando uma série de mecanismos que permitiram o domínio do
“capital traficante carioca” nos negócios do tráfico21.
Outros proprietários tiveram a oportunidade de expandir seu espaço de
atuação para cidades próximas a Bananal. Os municípios circunvizinhos são um
elemento importante e devem ser levados em consideração. O complexo produtivo
administrado por Manoel de Aguiar Vallim é um caso exemplar. Esse poderoso
proprietário de escravos administrou um conjunto de cinco fazendas importantes.
Alinhadas em continuidade, as terras desse escravista seguiam para Barra Mansa,
município limítrofe a Bananal, mas que se localizava na Província do Rio de Janeiro.
A principal fazenda foi, sem dúvida, a Fazenda do Resgate. Conforme inventário
desse escravista, essa última fazenda possuía 285.200 pés de café em uma área
de aproximadamente 197 alqueires de matas virgens, capoeiras e cafezais. Na
Fazenda das Três Barras havia mais 226.500 pés de café em mais ou menos 231
alqueires. No Sítio da Perapetinga existiam 25.000 pés de café em 20 alqueires e na
Cruz havia 96.000 pés de café em 69 alqueires. E, como foi dito anteriormente, seu
complexo produtivo estendeu-se até Barra Mansa, na Província do Rio de Janeiro,
onde se localizava a Fazenda da Bocaina22.
Outro exemplo é o do 1° comendador Antonio José Nogueira. Esse escravista,
no ano de sua morte (1864), possuía 403 escravos espalhados em diversas fazendas
e sítios entre Bananal e Angra dos Reis. Em um relato inusitado presente no livro
de Agostinho Ramos, verifica-se quais eram os interesses de Nogueira em manter
uma fazenda nesse município da Província do Rio de Janeiro. Ramos apresentou o
depoimento do casal José de Paula Ramos e de Ana Maria Nogueira Ramos, ambos
com quase noventa anos e parentes do comendador Nogueira. Paula Ramos era
filho de Ernesto Ramos Nogueira, “amigo decidido do comendador Nogueira”.
Segundo o depoimento do casal, Nogueira tinha muitos negócios e dentre eles

20
Sobre os vínculos entre proprietários de café e comissários e a importância dos créditos agrícolas
para financiar a produção de café, com destaque para a centralidade da Corte, ver: SWEIGART,
Joseph E. Coffee factorage and the emergence of a Brazilian capital market, 1850-1888. Nova York
& Londres: Garland Publishing, 1987, p. 66-186. Sobre os comissários, ver também: FRANCO,
Homens livres...,p. 170-192.
21
FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o
Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Dentre esses mecanismos, destacam-se a
propriedade ou locação dos navios envolvidos no tráfico, a formação de estoques de mercadorias
que seriam usadas no escambo na África e a montagem de um “sistema de seguros marítimos” para
garantir a realização de um empreendimento marcado pela insegurança e pelo risco. FLORENTINO,
Em costas negras..., p. 120-137. Sobre a participação dos Estados Unidos no tráfico intercontinental
para o Brasil, ver: MARQUES, Leonardo. “Os Estados Unidos no tráfico ilegal para o Brasil”.
Disponível em: <http://www.escravidaoeliberdade.com.br/site/images/Textos.6/leonardomarques.
pdf>. Acesso em: 30 abr. 2015.
22
Conforme Inventário de 1878. MMN/ Caixa 170/ nº de ordem 3472. O registro sobre a Fazenda da
Bocaina não informou o número de pés de café e nem a quantidade de terras.

270 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


“cuidava também do tráfico de negros”. Assim,

Desembarcados do navio negreiro, procedente de Loanda,


Angola, Guiné – a leva de escravos transpunha a serra
e na Fazenda Quimbaca, ‘era armazenada’ debaixo de
uma grande pedra, lá existente, [a]ssim, numa espécie de
caverna.
Aí, tais escravos, permaneciam pouco tempo, para o fim
de, mais ou menos, aprenderem nossa língua, como,
também, para se adaptarem à nossa alimentação, vez que,
eram ‘artigos’ de comércio.
‘O mais importante, meu pai contava’ [é D. Ana Maria
quem fala] – O comendador Nogueira teve notícia de que
um navio pirata, ou da marinha inglesa se aproximava,
procurando o navio negreiro para o fim de apresá-lo. O
que faz o comendador: pessoalmente, no porto de Angra
dos Reis, mandou que apressadamente fosse descarregada
a ‘carga’ e que se afundasse, logo, o dito navio. Assim foi
feito.23

O relato impressiona por vir de um livro que procura enaltecer a figura de


escravistas como Nogueira, sem levar em consideração, como se pode inferir da
narrativa, as condições dos escravos e a desumanidade do tráfico. De qualquer
modo, é uma boa justificativa dos interesses que vinculavam proprietários
escravistas de Bananal com o município de Angra dos Reis, demonstrando que o
espaço de atuação desses proprietários rurais era amplo e vinculava-se, por vezes,
às questões maiores do espaço Atlântico.
Por outro lado, a ligação dos senhores com outras localidades aconteceu muitas
vezes através das relações familiares que ampliavam os contornos de mobilidade
desses senhores. Assim, por exemplo, o inventário de Marcos de Oliveira Arruda
(1881) informa que esse escravista tinha filhos residentes em São Paulo, Jundiaí e
Mar de Espanha, na Província de Minas Gerais e também uma neta inventariante
em Petrópolis, Província do Rio de Janeiro. Além disso, a esposa do falecido
encontrava-se fora de Bananal “a passeio” na casa dos filhos, desde o “sétimo dia
da morte do inventariado”24.

23
RAMOS, Agostinho. Pequena História do Bananal. São Paulo: Gráfica Sangirard, 1975, p. 395-396.
Deve-se sublinhar que Nogueira e outros potentados de Bananal participaram do desembarque
de africanos conhecido como “caso Bracuhy”, em 1852. Nesse episódio, Nogueira foi um dos
responsáveis por “distribuir” 250 “negros novos” para outras fazendas do Vale. Sem dúvida que
essa distribuição esteve facilitada pelas suas propriedades em Angra dos Reis, local do desembarque
dos africanos ilegalmente importados. Ver, a esse respeito: LOURENÇO, O Império dos Souza
Breves..., p. 152.
24
Eram eles o Dr. Marcos de Oliveira Arruda, que morava em São Paulo, o Dr. Ignácio José de
Oliveira Arruda, residente em Jundiaí e D. Helena Arruda Barbosa da Silva, casada com João
Barbosa da Silva e Sá e residente em Mar de Espanha, Minas Gerais. A neta chamava-se Alba
Nogueira Arruda, de dezessete anos de idade e filha do finado herdeiro Boas Ignácio de Oliveira
Arruda. MMN/ Caixa 12/ n° de ordem 252. 2° Ofício. Inventário de 1881.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 271


Como se viu, no plano político os anos de 1850 e 1860 foram um período de
relativa estabilidade e de garantia para os escravistas. No entanto, sabe-se que
acontecimentos nacionais e internacionais minariam aos poucos as bases nas quais
estavam assentadas a instituição da escravidão no Brasil. Diversos historiadores
já analisaram as repercussões que o resultado da Guerra Civil americana (1861-
1865) produziu na classe política brasileira. O final da década de 1860 já anunciava
a mudança. A crise política de 1868 e o fortalecimento das vozes de oposição
aumentaram a circulação das ideias contrárias aos interesses dos proprietários
escravistas. Segundo diversos estudiosos, a crise do gabinete de Zacarias de Góes
(liberal), provocou um considerável desgaste da Monarquia. Já salientamos que a
ascensão ao poder do conservador Rodrigues Torres (Visconde de Itaboraí), em
16 de julho de 1868, causou uma ruptura política que foi considerada como um
divisor de águas na história política da Monarquia. Os conservadores, a partir de
então, exerceriam o controle do governo por dez anos25. Por essa época, os clubes
emancipacionistas e os jornais antiescravistas estavam contribuindo para aumentar
a circulação das ideias contrárias ao trabalho escravo. Entre maio e julho de 1869,
na fase final da Guerra do Paraguai, projetos reformistas que visavam a liberalizar
a escravidão foram apresentados ao Poder Legislativo. A maioria desses projetos
nem entrou na pauta de discussões. Contudo, no dia 25 de agosto passou a vigorar
a lei que proibia os leilões públicos de escravos e a separação de casais e seus filhos
com idade inferior a 15 anos. E, mais uma vez, um evento internacional levaria as
discussões no Brasil a novos patamares: a Espanha aprovara, em 1870, uma lei
concedendo a liberdade aos recém-nascidos e aos idosos em Cuba e Porto Rico.
Desenvolvia-se, portanto, um ambiente político que iria pressionar o governo e
levaria à discussão de um projeto para favorecer a liberdade dos recém-nascidos
– a Lei do Ventre Livre, aprovada em 28 de setembro de 1871. O debate nacional
que precedeu a aprovação da referida lei foi, na avaliação de Conrad, “quase sem
precedentes”26.
Para Ricardo Salles, o período em tela marcou a “disjunção entre as percepções
que fazendeiros e estadistas tinham da situação”, ou seja, dos rumos e das soluções
acerca do trabalho escravo27. No que diz respeito aos debates que levaram à

25
TOPLIN, The abolition of slavery…, p. 45-47; CONRAD, Os últimos anos…, p. 103-106. Sérgio
Buarque de Holanda inicia seu livro sobre a Monarquia com esse evento político. Para esse autor,
houve uma “recomposição de forças e programas políticos” a partir de 1868, que vai fazer crescer
a oposição à Monarquia. 1868 teria sido um momento de “clivagem” na história política do regime
de D. Pedro II e marcaria “o ponto de partida mais visível da deterioração do regime”. HOLANDA,
Sérgio Buarque de. O Brasil Monárquico: do Império à República – Tomo II – Vol. 5. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, p. 07. Francisco Iglesias entende que 1868 encerrou o período
de esplendor da Monarquia e iniciou o momento de crises que levarão à queda do Imperador D.
Pedro II. Ver: IGLESIAS, “Vida política”, p. 107-112. A ruptura de 1868 foi de fato um dos eventos
mais importantes da história política do Império do Brasil. É possível considerar que a partir desse
momento, por intermédio do Clube Radical – grupo político composto por dissidentes do Partido
Liberal – e da maçonaria, diversos atores importantes que defendiam o fim da escravidão, como
Luiz Gama, Ferreira de Menezes e Rui Barbosa, iniciaram uma militância política mais intensa pela
causa abolicionista. Ver, a esse respeito: AZEVEDO, O direito dos escravos..., p. 107-113.
26
CONRAD, Os últimos anos..., p. 106-116. Ver também: CARVALHO, A construção da ordem..., p.
308.
27
SALLES, E o Vale era o escravo..., p. 81.

272 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


aprovação da Lei Rio Branco, conhecida como “Lei do Ventre Livre”, a disjunção
ocorreu, conforme salientaram outros autores, no âmbito nacional, ou entre
as regiões brasileiras. O debate do projeto sobre a “reforma do estado servil”
provocou, portanto, uma desunião entre os fazendeiros de diversas partes do país e
também entre os estadistas representantes de regiões onde o trabalho escravo tinha
importância política e econômica declinante. A defesa da escravidão nos debates
ficou majoritariamente concentrada nos representantes das regiões produtoras de
café, uma decorrência da concentração de escravos nos municípios cafeicultores.
Dos 45 deputados contrários à reforma na Câmara, 30 (66,7%) eram do Centro-
Sul, ou seja, de Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro (incluindo o Município
Neutro) e São Paulo. No Senado, dos 7 contrários, 5 (71,4%) eram dessa região.
As discussões também provocaram cisões internas nos dois partidos, o Liberal e o
Conservador28.
Claro que essa conjuntura política revela, no âmbito das localidades, um
movimento da classe senhorial para tentar impedir a aprovação da referida lei.
No período que precedeu à votação, os proprietários de escravos de Bananal
participaram intensamente do debate e marcaram posição contrária à aprovação
do projeto que levaria à Lei do Ventre Livre. Atentos aos acontecimentos da
política nacional, esses homens temiam que a reforma em discussão pudesse
interferir em seus negócios privados. Em representação sobre o “elemento servil”
publicada no Diário do Rio de Janeiro de 22 de junho de 1871, 144 defensores da
escravidão em Bananal, dentre eles um padre, o presidente da Câmara Municipal,
vereadores, muitos proprietários de escravos e eleitores dos dois partidos (o Liberal
e o Conservador) opuseram-se ao referido projeto de orientação emancipacionista
que se discutia no Legislativo29. A lista de assinaturas estava encabeçada por
um dos grandes escravistas de Bananal, Manoel de Aguiar Vallim, membro do

28
CONRAD, Os últimos anos..., p. 114-116. Ver também a tabela 21, à página 362. CARVALHO,
A construção da ordem..., p. 308-311. Não se pode deixar de mencionar outras disjunções que
passaram a existir na década de 1860, fruto do recrudescimento do debate político, e que se
tornaram mais explícitas após o evento de julho de 1868. Esse é um ponto importante porque
senão corre-se o risco de simplificar o entendimento do processo político e empobrecer o debate
acerca do mecanismo de funcionamento da política imperial. Nessa época apareceu com força uma
série de discussões acerca de questões que estavam diretamente ligadas às reformas saquaremas
do início da década de 1840 e aos mecanismos de funcionamento da política imperial. Sobre esses
pontos e o fato de o republicanismo ter significado um retrocesso no debate político e na discussão
de reformas, ver: CARVALHO, José Murilo de. “Liberalismo, radicalismo e republicanismo nos anos
sessenta do século dezenove” [working paper]. Oxford: Centre for Brazilian Studies/ University of
Oxford, s./d., p. 01-22. Ver também: SALLES, Ricardo. “Abolição no Brasil: resistência escrava,
intelectuais e política (1870-1888)”. Revista de Indias, Madri, vol. 71, n. 251, 2011, p. 259-284.
As mudanças ocorridas na segunda metade do século XIX foram mais amplas e complexas, e não
podem ser restringidas a esse ou aquele assunto. Essas mudanças provocaram crescente insatisfação
e facultaram o surgimento de uma oposição ao Estado Imperial, à burocracia, ao patronato político,
etc. Ver, a esse respeito: COSTA, Emília Viotti da. “Brasil: a era da reforma, 1870-1889”. In:
BETHELL, Leslie (org.). História da América Latina – Vol. V: de 1870 a 1930. São Paulo: EDUSP;
Imprensa Oficial do Estado; Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2002, p. 705-760.
29
A Representação, com apenas 14 assinaturas, foi reproduzida em: CASTRO & SCHNOOR,
Resgate..., p. 245-250. Sobre a oposição dos cafeicultores do Vale do Paraíba à Lei do Ventre
Livre e o contexto geral das representações contrárias ao projeto em discussão, ver: PANG, Laura
Jarnagin. The State and Agricultural Clubs of Imperial Brazil, 1860-1889. Tese (Doutorado em
Filosofia da História). Vanderbilty University. Nashville, EUA, 1980, p. 84-124.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 273


partido Conservador e, como se viu, um dos envolvidos no caso Bracuhy no início
da década de 1850. Mais uma vez, como em 1852 no processo envolvendo o
contrabando ilegal de africanos, as questões relativas ao trabalho escravo pareciam
aproximar liberais e conservadores numa união representativa dos interesses dos
proprietários escravistas. Esses dois episódios da história de Bananal, separados
por um hiato de cerca de dezenove anos, reforçam os vínculos incontestáveis que
os proprietários de escravos tiveram com a instituição da escravidão e corrobora,
uma vez mais, os elos desses homens com as bases materiais da vida social e
econômica.
No entanto, no caso da Representação, a aproximação dos liberais com os
conservadores talvez tenha sido parcial, indicando neste momento uma ruptura
de interesses de classe. Chama a atenção a ausência de liberais históricos do
município de Bananal entre os signatários, dentre eles o comendador Antonio
José Nogueira e o Dr. João Venâncio Alves de Macedo. O periódico A Reforma
de 20 de junho de 1871 talvez explique a ausência. Um comunicado enviado
por um correligionário “diretamente interessado na sorte da lavoura, e um dos
cidadãos mais conspícuos da província de São Paulo” (seria o chefe do partido
liberal, o comendador Antonio José Nogueira?), informava que os conservadores
de Bananal estavam se arregimentando para levar à Câmara um protesto contra
a questão do elemento servil que se discutia no Parlamento. Porém, o missivista
informava que o Partido Liberal de Bananal se posicionava contra o conteúdo da
Representação e desejava que se resolvesse “o problema da emancipação, ao que
está ligado o futuro do país”. Além disso, denunciava que o delegado de polícia
era o responsável por recolher as assinaturas e que “os liberais têm sido fortemente
instados para assinarem o protesto”. Por fim, o missivista escreveu que “nós
aderimos aos princípios sustentados pelos liberais do senado, e não desejamos que
se creia que o partido liberal daqui faz causa com a propaganda escravagista, que
tememos traga as mais graves perturbações ao país, se não for sendo contrariada
nos próprios centros agricultores”30.
Surgido como resultado da reviravolta política de 1868 que levou ao poder o
partido conservador na pessoa do Visconde de Itaboraí, A Reforma foi o periódico
lançado para defender as ideias dos liberais dissidentes, dentre eles o antigo
Presidente do Conselho e um dos derrotados com a mudança de julho de 1868,
Zacarias de Gois e Vasconcelos31. A adesão aos “liberais do Senado” informa sobre
os vínculos estabelecidos entre os membros do Partido Liberal em Bananal e os
políticos do mesmo partido no Senado, com destaque para o senador José Thomaz
Nabuco de Araujo. “Local” e “central” se articulam no funcionamento da política
no Império do Brasil.
A avaliação dos votos dos membros do Partido Liberal no Senado quando
da votação da Lei do Ventre Livre demonstra a adesão às ideias reformistas que
estavam sendo discutidas. Dos 16 senadores liberais, oito votaram a favor da Lei
do Ventre Livre, sete se encontravam ausentes e apenas Zacarias votou contra. O
voto desse último justifica-se pelos desgostos advindos da crise política que o tirou
da Presidência do Conselho, em 16 de julho de 1868. Além disso, segundo Conrad,

30
A Reforma, Rio de Janeiro, 20 jun. 1871, n. 138, p. 01.
31
IGLESIAS, “Vida política”, p. 112; TOPLIN, The abolition of slavery…, p. 46.

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“Zacarias não se opunha à própria lei”, mas tinha ressentimentos “da iniciativa do
Partido Conservador e do seu apoio a uma medida que, por direito, pertencia a ele
e ao Partido Liberal”32. A ressalva feita ao voto de Zacarias, contudo, não esconde
as divisões internas que, mesmo no Senado, o Partido Liberal enfrentava acerca
da questão da “reforma do estado servil”. Alguns senadores ausentes discursaram
contra o gabinete e abandonaram a votação, retirando-se para suas províncias,
quando o projeto foi remetido ao Senado33.
Como entender a ausência de expressivos representantes do Partido Liberal de
Bananal entre os signatários da Representação contra a Lei do Ventre Livre? Como
se pode observar da missiva do correligionário liberal d’A Reforma, existia uma
disjunção política entre os proprietários de escravos no tocante ao projeto em pauta.
Motivos político-partidários explicam a ausência de importantes escravistas de
Bananal, como a do chefe do partido liberal – comendador Antonio José Nogueira
– e de seu cunhado, o dr. João Venâncio Alves de Macedo, na Representação
encabeçada por Manuel de Aguiar Vallim. As rivalidades entre correligionários
liberais e conservadores em Bananal eram severas e uma Representação
encabeçada por um dos expoentes do Partido Conservador em Bananal, Manoel
de Aguiar Vallim, permite entender o motivo da ausência do líder da facção rival,
o comendador Antonio José Nogueira. Por outro lado, o conteúdo da reclamação
do correligionário liberal de Bananal reverbera, em um momento ainda distante
da vaga abolicionista que assolaria diversas regiões do país na década de 1880,
a posição de alguns liberais a favor da resolução do problema da mão de obra34.
Bananal foi, sem dúvida, um dos baluartes do escravismo no Brasil Imperial e,
por intermédio dessa Representação, marcou sua contrariedade com as discussões
que se travavam no Parlamento acerca do “ventre livre”, do pecúlio do escravo e
do direito à alforria. O documento mostra que a vinculação dos proprietários de
escravos de Bananal com as questões da política nacional e mesmo com aquelas
ocorridas no plano internacional – “A face desse problema [do elemento servil]
entre nós é muito diferente da que assumiu nos Estados Unidos” – foi um dos
componentes da estratégia de dominação e de articulação política desses sujeitos.

32
CONRAD, Os últimos anos..., p. 116. Conseguimos localizar uma manifestação pública de apoio
ao senador Nabuco de Araújo assinada pelos liberais de Bananal. Tal manifestação, de 1875,
elogia os seus “brilhantes discursos” proferidos no Senado, especialmente aqueles que diziam
respeito “ao projeto da reforma eleitoral”. A “justa manifestação” termina da seguinte maneira: “e
o Partido Liberal deste obscuro canto da nossa terra, [...] associa-se de corpo e alma aos patrióticos
sentimentos de v. ex., seu ilustre chefe, assegurando-lhe toda a sua dedicação na cruzada do futuro,
qualquer que seja o acometimento”. Encabeçava a lista de assinaturas o chefe do Partido Liberal de
Bananal, comendador Antonio José Nogueira. Correio Paulistano, São Paulo, 31 ago. 1875, edição
5669, p. 01.
33
Discussão da Reforma do Estado Servil na Câmara dos Deputados e no Senado. II, Apêndice, p.
151-154.
34
Sobre os conflitos políticos nas décadas finais do Império do Brasil, potencializados pelo movimento
abolicionista, ver: QUEIROZ, Da senzala à República...; VITORINO, Artur José Renda & SOUSA,
Eliana Cristina Batista de. ‘“O pássaro e a sombra’: instrumentalização das revoltas escravas pelos
partidos políticos na província de São Paulo nas últimas décadas da escravidão”, Estudos Históricos,
Rio de Janeiro, CPDOC-FGV, vol. 21, n. 42, 2008, p. 303-322. Para se entender as cruentas
rivalidades entre liberais e conservadores em Bananal, ver: SANTOS, Marco Aurélio dos. “Lutas
políticas, abolicionismo e a desagregação da ordem escravista: Bananal, 1878-1888”. Almanack.
Guarulhos, UNIFESP, n. 11, 2015, p. 732-756.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 275


Os “lavradores e proprietários de escravos” de Bananal afirmavam que a extinção
imediata da escravidão seria “um erro e mal de consequências incalculáveis”. Por
outro lado, seria muito pior a conservação do “regime escravo desmoralizando-o
completamente”. Se a primeira solução seria funesta, a segunda seria “funestíssima”.
Manifestando preocupação com o “estado equívoco” em que viveria a “classe que,
não sendo escrava, livre também não era, porque achava-se obrigada a serviços
até os 21 anos”, e temendo o “mundo de ideias” que poderia surgir no menor livre
que iria viver ao lado dos pais em cativeiro, os signatários revelaram seus temores
a respeito da intromissão do poder público nas relações entre os senhores e seus
escravos. Ao revelar uma preocupação hipócrita com o destino da criança com 8
anos encaminhada para os cuidados do governo, a Representação esclarecia que
o poder público não possuía “em larga escala os estabelecimentos próprios para o
tratamento e conveniente serviço dos menores”. Restaria perguntar aos signatários
se os menores, escravos ou não, teriam o tratamento adequado e o “conveniente
serviço” permanecendo nas fazendas cafeeiras.
Outro ponto de desgosto – “a vindita (sic) armada sobre todos os tetos” – seria
a “alforria forçada” prevista no projeto. A questão do pecúlio mataria o espírito
filantrópico dos fazendeiros e abriria novo campo de lutas entre os senhores e
seus escravos. Citando o artigo 4°, parágrafo 2, os proprietários manifestavam
preocupação com questões do tipo “o escravo tem direito a alforria por meio de
seu pecúlio ou por liberalidade de outrem”. Para os signatários da Representação,
seria perigoso “regular as relações entre o senhor e o escravo” principalmente
porque o direito de propriedade não poderia ter um de seus principais atributos
– “a livre disposição do objeto” – suprimido, uma vez que ficariam à mercê de
aventureiros. “Ou existe a propriedade com todas as suas qualidades essenciais,
ou então não pode decididamente existir”, vaticinavam os signatários. O ideal, na
visão dos defensores da escravidão em Bananal, seria marcar para o fim do século
“a derradeira hora da escravidão”.
Três pontos da “Representação de Bananal” expõem a ideologia escravista
desses renhidos proprietários. Para eles, a escravidão fundava-se na autoridade
senhorial e na não interferência do poder impessoal do Estado nas relações entre
os senhores e os escravos35. O poder público e as leis deveriam garantir, sempre,
o reforço da autoridade moral do senhor. O “espírito filantrópico” seria outro
ponto fundamental da ideologia escravista. Segundo a Representação, os senhores
tinham por prática conceder aos escravos “prazos de terra para o cultivo [a roça
cultivada pelos escravos]” e ao mesmo tempo proporcionar a eles “auxílios de toda
a espécie” que permitiriam aos cativos o acúmulo de numerário. Um terceiro ponto
da ideologia escravista estaria relacionado com uma concepção absoluta da noção
de propriedade, garantindo ao proprietário “a livre disposição do objeto”.
Reforço da autoridade senhorial sem interferência externa, noção absoluta de
propriedade e espírito filantrópico: eis os pilares da ideologia escravista presentes
na “Representação de Bananal” de junho de 1871. Esses pilares serviriam, segundo

35
Esse desejo de não interferência do Estado nas relações entre senhor e escravo relaciona-se ao
“princípio da soberania doméstica”. Ver, a esse respeito: MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do
corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-
1860. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 65-68.

276 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


seus signatários, para manter a ordem nas fazendas e permitiriam o controle do
senhor sobre os escravos, por meio das concessões senhoriais. Os senhores tinham
consciência de que o exercício do cativeiro era uma relação social que pressupunha
o reconhecimento público. De acordo com a Representação, a escravidão seria
“um fato filosoficamente lamentável”, mas não deixaria de ser “um fato”, uma
instituição que se achava “entranhada no âmago da nação, influindo em todas
as suas vísceras”. As relações entre senhor e escravo deveriam permanecer como
atualmente estavam porque as “ideias filantrópicas que tão vigorosas iam se
desenvolvendo entre os lavradores” encaminhariam uma solução para o problema
do elemento servil com a marcha da “ideia emancipadora”36.
A questão da legitimidade foi, portanto, um dos pontos substanciais da relação
entre senhor e escravo. Assim, ao enfatizar a força moral do senhor, por um lado,
e o caráter absoluto da noção de propriedade, por outro, a ideologia senhorial
reforçava a questão da legitimidade do cativeiro no plano interno das fazendas e a
legalidade do cativeiro como fato social. No entanto, nas décadas de 1870 e 1880,
cada vez mais a defesa da escravidão se daria não com base no direito natural ou
no reconhecimento de sua legitimidade, mas sim com os argumentos da legalidade
que estavam vinculados ao direto positivo. Nesse momento histórico, o respeito à
propriedade erigiu-se como o argumento fundamental para a defesa da escravidão.
Sob a ótica senhorial, o Estado, como detentor do poder coativo, deveria servir de
garante para a preservação da propriedade escrava37. Por fim, cabe salientar que
a Representação é um exemplo de como os proprietários de escravos temiam a
ingerência das ações do Estado na esfera dos seus interesses imediatos.
Como se sabe, o ponto de vista exposto pela Representação foi derrotado e a
Lei do Ventre Livre foi aprovada em 28 de setembro de 1871. A sanção dessa lei
significou, para muitos escravistas, uma derrota. Por outro lado, muitos renhidos
defensores da escravidão logo passaram a entender as fragilidades da lei e os
benefícios políticos que poderiam ser auferidos com a defesa desse diploma como
solução definitiva para a questão do elemento servil38. Além disso, o quadro
econômico nacional produziria, na década de 1870, outra disjunção importante.
O comércio interprovincial de escravos provocou desequilíbrios regionais que
desencadearam reações contrárias à escravidão. O declínio da população escrava
foi significativamente mais acentuado em regiões que não produziam café. Nas
regiões do Extremo Norte (Amazonas, Pará e Maranhão), do Nordeste e do Oeste
e Sul (Mato Grosso, Goiás, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul), a queda

36
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 22 jun. 1871, n. 171, p. 02. A Representação de Bananal
encontra apoio nas seguintes edições: Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 25 jun. 1871, n. 174,
p. 02 (artigo assinado por “um lavrador”); Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 29 jun. 1871, n.
178, p. 02 (defesa na Câmara dos Deputados em sessão de 28 de junho feita pelo deputado Rodrigo
Silva); Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 jul. 1871, n. 206, p. 02 (mais 20 signatários
de Bananal manifestam apoio, totalizando, portanto, 164 assinaturas oriundas de Bananal); Diário
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 17 ago. 1871, n. 227, p. 03 (apoio à Representação de Bananal
mandada publicar por lavradores e proprietários de São Luiz do Paraitinga, comarca de Paraibuna).
Esses apoios indicam a extensão em que se operava a luta política dos escravistas de Bananal, com
suas ligações na escala da política imperial. Sobre as representações e as tentativas dos proprietários
de se organizarem contra a lei do Ventre Livre, ver o trabalho já citado de Laura Janargin Pang.
37
MENDONÇA, Entre as mãos..., p. 138-159; CONRAD, Os últimos anos..., p. 119-120.
38
TOPLIN, The Abolition of Slavery…, p. 59; CONRAD, Os últimos anos..., p. 145-146.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 277


da população escrava foi da ordem de 34% para o período de 1874 a 1884. No
Centro-Sul (Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Município Neutro e São
Paulo), a queda foi de aproximadamente 9%. Uma apreciação mais detalhada
desses números mostra que o Município Neutro perdeu 31,8% da sua população
escrava no período acima indicado. Tal decréscimo pode ser explicado, dentre
outros fatores, pela tendência para a transferência dos escravos urbanos para as
fazendas de café. Os dados compilados por Robert Conrad demonstram que o
comércio interprovincial fez com que as regiões do Extremo Norte, do Nordeste e
do Oeste e Sul perdessem escravos entre os anos de 1874 e 1884, fruto da demanda
por escravos no Centro-Sul. Esses escravos iriam encontrar, nas fazendas cafeeiras
dessa última região, uma nova realidade e uma nova vivência. Ora, tal conjuntura
iria provocar um afastamento entre os políticos das diversas partes do país. Ao lado
da vaga abolicionista da década de 1880, esse quadro político-econômico ajudaria
a minar as bases políticas de apoio à escravidão no Brasil39. Um novo campo de
tensões entre o “local” e o “central” se abriria neste momento final do Império.

Considerações Finais

Nos exemplos trabalhados neste artigo – o do caso Bracuhy, dos casamentos e


das alianças políticas, dos vínculos com a Corte, das estratégias das representações
para as instâncias superiores, da construção de complexos produtivos que
extrapolavam os limites dos municípios, da ida para as zonas de expansão agrícola,
do funcionamento da política no Império do Brasil e das articulações necessárias
para construir um campo de alianças amplo –, vê-se que não é possível isolar os
sujeitos em uma determinada localidade.
No século XIX, a mobilidade dos homens livres apresentou uma dinâmica
diferente se comparada à dos escravos. Um dado que se destaca é a atuação dos
grandes fazendeiros com ampla projeção política. Como se viu neste artigo, muitos
desses sujeitos tinham condições de se articular com outros municípios, com a
Corte e mesmo com outros países através de uma série de recursos que eram
difíceis de alcançar por escravos e homens livres dependentes. Esses homens com
projeção política contavam com o auxílio de uma infinidade de dependentes e
correligionários, muitos deles usufruindo de uma mobilidade bastante significativa.
Muitas vezes, o espaço de atuação de muitos desses senhores escravistas caracterizou-
se pelo vínculo direto com as instituições do Estado, pelo conhecimento que eles
tinham da legislação e do funcionamento da máquina pública e pela capacidade
de influir, junto às esferas superiores, na indicação de correligionários para os
empregos públicos. A formação em Direito, a criação e leitura de periódicos, a

39
CONRAD, Os últimos anos..., p. 351-353, Tabelas 9, 10 e 11. Tal disjunção não deve ser, contudo,
sobrevalorizada. Ela de fato existiu, mas o excelente artigo de Robert W. Slenes acerca do comércio
interprovincial no Brasil após 1850 demonstrou que muitos senhores de engenho do Nordeste
continuaram a comprar escravos na década de 1870 e que batalhas políticas foram travadas no
sentido de frear o tráfico para o Centro-Sul. Sobre esse assunto e o impacto do tráfico interno de
escravos sobre as áreas urbanas, ver: SLENES, Robert W. “The Brazilian internal slave trade, 1850-
1888: regional economies, slave experience, and the politics of a peculiar market”. in: JOHNSON,
Walter (org.). The Chattel Principle: the Internal Slave Trade in the Americas. New Haven & Londres:
Yale University Press, 2004, p. 305-370.

278 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


correspondência com agentes da Corte e de outros países etc. também auxiliavam
na construção de redes de relacionamentos e na manutenção do poder na esfera
do município.
Nesse sentido, pode-se considerar que o espaço de atuação dos senhores de
escravos, com ênfase para aqueles de maior expressão política e econômica no
município, incluía duas esferas intercambiáveis. A primeira delas dizia respeito ao
entorno mais próximo à sua propriedade rural. Essa foi a esfera da vizinhança, por
um lado, e das questões políticas do município, por outro. Mesmo as questões mais
próximas do fazendeiro, como aquelas que diziam respeito aos seus vizinhos, aos
caminhos que eram usados pelos escravos, prepostos ou por diversos proprietários
ou mesmo a algumas questões relativas à administração interna da propriedade
foram, em muitos momentos e ao mesmo tempo, questões políticas diretamente
relacionadas aos participantes do poder na municipalidade. Foram, enfim, uma
questão de interesse público do município e, por consequência, assunto dos grandes
potentados locais. De qualquer modo, essa foi a esfera mais ligada aos interesses
imediatos do proprietário rural e que pode ser denominada de esfera municipal.
A segunda esfera refere-se às interconexões entre o plano local e a realidade
política do Império do Brasil e da economia-mundo. Tem-se, aqui, as questões
políticas mais amplas sendo acompanhadas pelos proprietários da localidade que
se movimentavam para procurar interferir e defender seus interesses, sempre que
esses fossem ameaçados. O conhecimento desses assuntos políticos de maior
amplitude permitiu uma atuação política que garantiu e reforçou o poder dos
grandes proprietários sobre o conjunto dos escravos e homens livres. Essa foi a
esfera dos interesses políticos e econômicos mais amplos dos proprietários.
Considerar o espaço de atuação dos proprietários rurais da localidade a partir
dessas duas esferas permite observar os vínculos dos potentados locais com os
níveis do governo provincial e do governo central. Permite entender, igualmente,
a dominação dos potentados locais sobre o conjunto de escravos e homens livres
deles dependentes.
Eis a chave para se tentar compreender o município dentro de um quadro
mais amplo de consolidação, transformação e crise do Estado Imperial. Além
dos interesses econômicos imediatos, havia toda uma malha de interesses que
vinculavam o “local” ao “central”, passando pelo nível provincial. Assim sendo, a
consideração das redes de relacionamentos e do espaço de atuação dos sujeitos
compõe um quadro analítico para o entendimento de uma localidade específica
em um contexto político e econômico que ultrapassa as fronteiras territoriais do
município.



sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 279


RESUMO ABSTRACT
O objetivo desse artigo é entender a The aim of this article is to understand the
multiplicidade de redes de relacionamentos connections between the town’s elite in Bananal,
que a classe senhorial-escravista do município an important town of coffee production in the 19th
cafeeiro de Bananal desenvolveu para além das century, and wider processes of consolidation,
fronteiras dessa localidade num momento de transformation and the crisis of the Imperial
consolidação, transformação e crise do Império State of Brazil (1850-1888). For this reason, it
do Brasil (1850-1888). is possible to figure the networks developed by
the subjects beyond the limits of the municipality.
Palavras Chave: Escravidão; Redes de
Relacionamentos; Classe Senhorial. Keywords: Slavery; Personal and Trade
Networks; Slaveholders.

Artigo recebido em 15 mai. 2015.


Aprovado em 25 out. 2015.

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LITIGANDO PELA LIBERDADE NO BRASIL
OITOCENTISTA: RELAÇÕES ESCRAVISTAS EM UM
CONTEXTO FRONTEIRIÇO
(ALEGRETE, PROVÍNCIA DO RIO GRANDE DO SUL)

Marcelo Santos Matheus1

Introdução

Em novembro de 1869, o Capitão da Guarda Nacional João Xavier de Azambuja


Villanova, por meio de seu procurador, Geminiano Antônio Vital de Oliveira, entrou
com uma petição frente ao juízo municipal de Uruguaiana (freguesia que até 1846
pertencia ao município de Alegrete, emancipando-se pouco depois do término da
Revolução Farroupilha). Nela, Villanova pediu levantamento do depósito de seus
escravos africanos Joaquim e José. Estes haviam proposto uma ação de liberdade,
em razão de terem ido ao Estado Oriental com consentimento do seu senhor.
João Villanova reivindicava o fim do depósito, pois já decorria “perto de 4 meses
sem que tal ação se tenha iniciado”, e também para que os escravos que estavam
litigando pela sua liberdade não fugissem para o além fronteira. Ao mesmo tempo,
pedia para que o processo fosse remetido para o juízo municipal de Alegrete, “foro
competente” para o “iniciameto e discussão da causa”2.
José e Joaquim, através de seu curador, Mathias Teixeira de Almeida, famoso
advogado no município de Alegrete, afirmavam que “tendo sido comprados como
escravos por João Xavier Azambuja Vilanova”, este “os conduziu para a República
do Uruguai na Província das Três Cruzes onde residiu pelo espaço de oito anos”.
Da mesma forma, informavam que João Villanova “os empregou numa tropa de
charqueadas de Paissandu, na dita República, estando os mesmos oito dias na sua
estância de Palmaço, lá onde arregimentaram essa tropa”. Por isso, argumentavam
terem “adquirido direito a sua liberdade pelas disposições do artigo 1° da lei de 7
de novembro de 1831”3.
Em Alegrete, João Villanova nomeou como seus procuradores o advogado

1
Mestre em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Doutorando em História Social pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro, com financiamento pela Capes. E-Mail: <msmportugues@
hotmail.com>.
2
Arquivo Nacional. Apelação de Ação de Liberdade. Caixa 3690, nº 13794, 1869. Todas as demais
informações citadas a seguir são provenientes deste processo, salvo nova referência.
3
A lei citada, de 7 de novembro de 1831, determinava que: “Art. 1º. Todos os escravos, que entrarem
no território ou portos do Brasil, vindos de fora, ficam livres. Excetuam-se – 1º) Os escravos
matriculados no serviço de embarcações pertencentes a país, onde a escravidão é permitida,
enquanto empregados no serviço das mesmas embarcações; 2º) Os que fugirem do território, ou
embarcação estrangeira, os quais serão entregues aos senhores que os reclamarem, e reexportados
para fora do Brasil. Para os casos da exceção nº. 1, na visita da entrada se lavrará termo do número
de escravos, com as declarações necessárias para verificar a identidade dos mesmos, e fiscalizar-se
na visita da saída se a embarcação leva aqueles, com que entrou. Os escravos, que forem achados
depois da saída da embarcação, serão apreendidos, e retidos até serem reexportados”. Arquivo
Histórico do Rio Grande do Sul (doravante AHRS). Coleção das Leis e Decretos do Império do
Brasil, 1830/1831, códice 050.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 281


Franklin Gomes Souto e o Capitão José Evaristo dos Anjos “para o representarem
e defenderem pelos meios do direito na ação de liberdade que intentam meus
escravos José e Joaquim os quais se acham em depósito na cidade de Alegrete”.
Em seu Libelo, Villanova afirmou que os autores são seus “legítimos escravos”,
pois “falsamente alegaram que passaram e residiram no Estado Oriental”4. Ele
admitiu que tinha duas fazendas, uma no Estado Oriental e outra no Rincão do
Itapororó, em Alegrete, mas que sempre conservou os dois escravos nessa última.
Também alegou que libertou outros escravos que atravessaram a fronteira, com
seu consentimento, para ir trabalhar na sua propriedade no Uruguai, e que fez isso
sem se opor ao legítimo direito dos cativos. De fato, no dia 06 de abril de 1868, o
Capitão João Villanova registrou as manumissões dos crioulos José e Estevão “por
saber e conhecer que segundo decisão última do Governo devem eles gozar de sua
dita liberdade, visto havê-los empregado em seu serviço no Estado Oriental”5. Por
fim, salienta que, na verdade, tem “antipatia à escravidão e trata a seus escravos
como livres”, mas que não pode “deixar de discutir o seu direito com” os autores
da ação, já que estão em “cativeiro legal”.
Antes ainda de iniciar o questionamento das testemunhas, Joaquim apresentou
sua desistência da ação. No documento estava escrito que

[...] o preto liberto Joaquim Moleque [...] tendo obtido sua


liberdade como mostram os documentos juntos, quer que
Vossa Excelência a mande juntar aos autos da ação que
contra seu senhor intentou, desistindo da ação proposta
por já estar o suplicante livre, e mandando tomar por
termo a desistência com ciência de seu Curador.

Junto a este requerimento, Joaquim apresentou a alforria, assinada por João


Villanova, em que este declarava “que entre os bens de minha legítima propriedade
possuo também o escravo Joaquim, por alcunha Joaquim Moleque, e que de
minha vontade declaro a liberdade pelo bem que me tem servido. Alegrete, 9 de
maio de 1870”. Paramos por aqui, pois o processo segue longo. Mas é importante
destacar que, com relação a José, não houve a mesma condescendência, seguindo
a contenda na justiça. Aliás, dentre as testemunhas que depuseram em favor de José
estava o próprio Joaquim Moleque, a quem o advogado de João Villanova tentou
desqualificar, já que eram “sócios um do outro”, pretendendo “auferir lucros”, isto
é, a liberdade. Apesar dos esforços de Franklin Gomes, o juiz julga que José era
livre e manda o réu pagar as custas6. Dias após a sentença, o advogado pede o
embargo da mesma, que vai parar no Tribunal da Relação do Rio de Janeiro.
A descrição acima ilustra o que se passava na fronteira sul do Império brasileiro
no final da década de 1860 e, principalmente, na década de 1870 em diante. A
região sentia os efeitos do enfraquecimento da instituição escravista, que em 1850
já havia sofrido seu primeiro grande golpe com a proibição do tráfico transatlântico,

4
Grifos nossos.
5
Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (doravante APERS). Livros Notariais de
Transmissão e Notas (doravante LNTN), 1º Tabelionato, Fundo Uruguaiana, livro 6, p. 141r.
6
Grifos nossos.

282 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


mas que a partir de meados da década de 1860, quando se iniciaram intensos
debates no Conselho de Estado sobre a importância de se elaborar uma legislação
que encaminhasse um fim à existência da escravidão no Brasil, passou por um
crescente processo de deslegitimação social. Informados sobre os acontecimentos
da Guerra Civil nos Estados Unidos, assim como da repercussão da Guerra do
Paraguai, a elite política percebeu que medidas mais concretas deveriam ser
tomadas7. Este processo teve consequências em todas as regiões do país, apesar
de suas implicações serem sentidas de diferentes maneiras (um exemplo disto, no
extremo sul do Império, em agosto de 1869, foi a fundação, em Porto Alegre, do
primeiro Clube Emancipador da província do Rio Grande do Sul)8.
Neste sentido, o presente artigo trata de um fenômeno até então pouco
estudado. Para além da particular questão exposta acima (escravos litigando na
justiça pela liberdade por terem atravessado a fronteira e retornado ao Brasil
com consentimento de seu senhor), iremos analisar alguns casos onde senhores
preferiram não enfrentar seus escravos na justiça em razão, em tese, dos altos
custos que os processos podiam acarretar, aliado a grande probabilidade de derrota
nos tribunais, já que o contexto era desfavorável à instituição. Todavia, antes de
adentrarmos nos detalhes destes processos, apresentaremos rapidamente a região
foco da análise, para que o contexto como um todo seja melhor compreendido
pelo leitor.
Fundamental esclarecer que o presente estudo se insere em um contexto
historiográfico um tanto diferente do que tínhamos até pouco tempo atrás.
Primeiro, em função de uma série de estudos com base teórica e metodológica
diversa, hoje, conhecemos a instituição escravista para além da relação de
dominação senhor X escravos. Por sua vez, sabemos que os escravos utilizaram
de estratégias diversas, e não apenas a fuga, para alcançar a liberdade, acessando
inclusive a justiça para alcançar tal objetivo. Neste contexto, e baseado em
alguns dos pressupostos da Micro-História italiana (como a redução da escala
de análise e o cruzamento nominal), o presente estudo busca explorar fontes de
natureza diversa com o intuito de compreender o comportamento, as ações e as
escolhas dos agentes históricos9. Porém, há que se ter ciência que a condição
de fronteira dotava estes mesmos indivíduos de recursos (materiais e imateriais)
diversos, assim como era assimilada de maneira distinta, pois “pessoas situadas
em posições diferentes podem acumular experiências particulares e lançar mão

7
CHALHOUB, Sidney. Machados de Assis historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003;
SALLES, Ricardo. E o vale era o escravo: Vassouras, século XIX – senhores e escravos no coração
do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
8
Conforme Paulo Moreira, na ata de fundação da Sociedade Libertadora, constava que a mesma era
formada por “cidadãos nacionais e estrangeiros”, estimulados pelo “fim humanitário e patriótico”.
MOREIRA, Paulo Roberto S. Os cativos e os Homens de bem: experiências negras no espaço
urbano. Porto Alegre: EST, 2003, p. 98.
9
GINZBURG, Carlo & PONI, Carlo. “O nome e o como: troca desigual e mercado historiográfico”.
In: GINZBURG, Carlo (org.). A micro-história e outros ensaios. Tradução de António Narino. Lisboa:
Difel; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991, p. 169-178; LEVI, Giovanni. “Sobre a micro-história”.
In: BURKE, Peter (org.). A escrita da História: novas perspectivas. Tradução de Magda Lopes. São
Paulo: Editora da UNESP, 1992, p. 133-161.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 283


de diferentes esquemas de interpretação”10.

A escravidão nas margens do Império – Alegrete, década de 1870

Apesar da proibição do tráfico atlântico em 1850, o sistema escravista dava


mostras de que não perdia sua vitalidade no extremo sul do Império brasileiro.
Mesmo com a perda de alguns cativos para o tráfico interno11, especialmente na
década de 1870, a população cativa cresceu tanto no Rio Grande do Sul como
um todo, quanto no município de Alegrete (para sua localização, ver Anexo no
final do texto). Em 1858, segundo um Mapa de Famílias, havia 2.525 escravos na
localidade (frente 7.965 livres e 209 libertos, ou 23,5% de cativos), enquanto na
província havia mais de 71 mil escravos (ou 25% da população)12. Já conforme as
Matrículas de Escravos, produzidas na década de 1870, em razão da Lei do Ventre
Livre, havia 3.136 cativos em 1874 (ou 16,5%, frente aos 16.192 livres, conforme
o Censo de 1872) – enquanto na província, também conforme as matrículas, havia
mais de 83 mil escravos13.

TABELA 1
POPULAÇÃO ESCRAVA DO RIO GRANDE DO SUL E DE ALEGRETE
1858-187414

- 1858 1874

Alegrete 2.525 3.136

Rio Grande do Sul 71.911 83.370

Ou seja, apesar do número de escravos, percentualmente, cair em relação ao


total da população, em números absolutos ela cresceu, mesmo com o fim do tráfico.
Os números acima são ainda mais impressionantes na medida em que a

10
BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Organização de Tomke
Lask. Tradução de John Cunha Comerford. Rio de Janeiro: Contracapa, 2000, p. 176.
11
GRAHAM, Richard. “Nos tumbeiros mais uma vez? O comércio interprovincial de escravos no
Brasil”. Afro-Ásia, Salvador, CEAO-UFBA, n. 27, 2002, p. 121-160.
12
“MAPPA Statístico da População da Província classificada por idades, sexos, estados e condições
com o resumo total de livres libertos e escravos”. In: De Província de São Pedro a Estado do Rio
Grande do Sul – censos do RS, 1803-1950. Porto Alegre: Fundação de Economia e Estatística,
1981, p. 65.
13
DIRETORIA Geral de Estatística. Relatório e Trabalhos Estatísticos. Rio de Janeiro: Typographia
Franco-Americana, 1874, p. 184. Disponível em: <http://memoria.nemesis.org.br/trf_arq.
php?a=00017002> Acesso em 08 de jun. de 2011. Para o Censo de 1872, ver: <http://www.
ibge.gov.br/>. Sobre as matrículas de escravos, ver: SLENES, Robert W. “O que Rui Barbosa não
queimou: novas fontes para o estudo da escravidão no século XIX”. Estudos Econômicos, São
Paulo, USP, vol. 13, n. 1, jan./ abr. 1983, p. 117-149.
14
Fontes: para o número de escravos em 1858, “MAPPA Statístico; para o número de escravos em
1874, DIRETORIA, Relatório e Trabalhos...

284 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


principal atividade econômica da região era a pecuária, cuja produção ligava-se ao
mercado interno e não exigia muita mão de obra (a não ser em alguns momentos
específicos, como para reunir e/ou castrar o gado)15. Por seu turno, ao longo do
tempo, a quantidade de alforrias registradas em cartório também teve um aumento
significativo em Alegrete – isto é, a população cativa crescia mesmo sem o tráfico
transatlântico e com o aumento de libertos. Se entre 1831 e 1850 foram lavradas
102 manumissões em Alegrete, entre 1851 e 1871, foram registradas 156 liberdades.
Contudo, foi na década seguinte que o número de alforrias cresceu sobremaneira.
Entre setembro de 1871 e 1880, 295 manumissões foram concedidas, ou seja,
mais que nas quatro décadas anteriores16.
Com efeito, este aumento no número de alforrias estava intrinsicamente ligado
às transformações que o sistema escravista sofria em função da interferência do
Estado na relação senhor-escravo, especialmente através da Lei do Ventre Livre,
em 1871. Na província do Rio Grande do Sul, principalmente naqueles municípios
situados em regiões de fronteira, este processo teve suas idiossincrasias.
Na verdade, como veremos, o contexto fronteiriço abriu brechas no sistema,
oportunizando aqueles cativos que atravessaram os limites nacionais, ou pelo
menos aqueles que assim argumentaram, a reivindicar na justiça sua liberdade.
Muito embora este processo só tenha se intensificado na segunda metade da década
de 1860, no final do mês de agosto de 1856, Venâncio José Pereira, delegado
de polícia suplente em exercício do município, enviou ao presidente da província
algumas questões, devido a uma representação que o subdelegado de polícia
da freguesia de Santana do Livramento, então 4º distrito de Alegrete, lhe fez. As
perguntas versavam sobre a inviabilidade de aplicação de uma circular imperial17
(baseada em parecer de 1856 do Conselho de Estado), naquela localidade, que se
situava “sobre a linha divisória com o Estado Oriental, cuja divisão de uma estrada
de carretas em distância de uma quadra, pouco mais ou menos, das últimas casas
da mesma freguesia”. As questões foram as seguintes:

15
FARINATTI, Luís Augusto E. Confins meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na fronteira
sul do Brasil (1825-1865). Santa Maria: UFSM, 2010; MATHEUS, Marcelo Santos. Fronteiras
da liberdade: escravidão, hierarquia social e alforria no extremo sul do império do Brasil. São
Leopoldo: Oikos/Unisinos, 2012.
16
APERS. LNTN, Fundo de Tabelionatos de Alegrete (doravante FA), 1831-1885; APERS. Livros
Notariais de Registros Diversos (doravante LNRD), FA, 1832-1886; APERS. LNRD, Fundo de
Tabelionatos de Quaraí, 1876-1886; APERS. LNRD, Fundo de Tabelionatos de Rosário, 1880-
1885.
17
Conforme Mariana Thompson Flores, esta circular, publicada em 2 de julho de 1856, “decretava
que todos os escravos residentes em países estrangeiros, ou vindos do exterior, que entrassem
no território do Império deveriam ser colocados em liberdade não podendo serem entregues aos
seus antigos senhores”. FLORES, Mariana Flores da Cunha Thompson. “Manejando soberanias: o
espaço da fronteira como elemento na estratégia de fuga e liberdade (relativa) de escravos no Brasil
Meridional na metade do século XIX”. In: V Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional.
Anais. Porto Alegre: UFRGS, 2011, p. 17. Sobre o princípio de “solo livre”, ver: GRINBERG, Keila.
“Escravidão e relações diplomáticas Brasil e Uruguai, século XIX”. In: IV Encontro Escravidão e
Liberdade no Brasil Meridional. Anais. Curitiba: UFPR, 2009.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 285


1ª – Se devem ser postos em liberdade quaisquer escravos
que, por qualquer circunstância, passem além da mesma
linha divisória, mesmo atrás de animais que sucedem
disparar e passar para o Estado vizinho?
2ª – Se está no mesmo caso qualquer escravo de
proprietários cujas fazendas estão parte no Brasil e parte
no referido Estado Oriental?
3ª – E, finalmente, se estão no mesmo gozo os escravos
que estando ali contratados, voltem, ou passem para o
Brasil?
Rogo, pois, a V. Excelência se digne solvê-las, visto como
esta delegacia, pela transcendência do assunto, não se crê
autorizada para o fazer.18

O delegado Venâncio estava bem informado sobre o assunto, pois em nenhum


momento ele questiona sobre a liberdade de escravos que fugissem para o outro
lado da fronteira19. Suas perguntas dizem respeito apenas àqueles cativos que
atravessassem a fronteira prestando serviços ao seu senhor.
Neste contexto, onde diferentes leis, decretos e pareceres eram manejados de
acordo com o interesse de cada sujeito histórico, curiosamente, alguns senhores
preferiram não ter de enfrentar uma contenda judicial em que a chance de vitória
podia ser pequena (e os gastos elevados), já que a escravidão perdia a passos
largos sua legitimidade. Outros, que tentaram a sorte contra seus cativos, tiveram
que entrar em acordo com eles para não aumentar suas perdas ou sofrer o mínimo
de prejuízo possível. É sobre alguns destes casos que nos deteremos a seguir.
Antes, entretanto, é fundamental descrever duas últimas características do contexto
escravista aqui estudado, as quais estavam intrinsicamente relacionadas com o que
será analisado no próximo tópico: como era distribuída a posse cativa e qual a
relação dos escravos com a principal atividade produtiva da região, a pecuária.
Para tanto, exploramos uma fonte bastante conhecida, mas cujo potencial ainda
parece ser pouco explorado: a Lista de Classificação dos escravos para serem
emancipados pelo Fundo de Emancipação, no caso, a lista para o município de
Alegrete. Há bastante tempo, mais precisamente em 1983, Robert Slenes chamou
a atenção dos historiadores sobre a existência de uma fonte riquíssima, em termos
demográficos, até então pouco utilizada: as matrículas de escravos, instituídas pela
Lei do Ventre Livre, em 187120.

18
AHRS. Fundo Polícia. Alegrete. Maço 1. Correspondência Expedida, 1856.
19
Na realidade, Venâncio J. Pereira foi um daqueles membros da elite local que circulou por diversos
cargos importantes. Em 1847 ocupou a posição de juiz municipal (suplente) de órfãos e ausentes
no município de Uruguaiana, onde trocou um número bastante considerável de correspondências
com a presidência da província. No mesmo ano e localidade, também foi delegado de polícia. Na
década de 1860 foi eleito algumas vezes vereador em Uruguaiana. Nas décadas de 1870 e 1880
aparece representando, com advogado ou como procurador, uma série de pessoas em processos
judiciais ou negócios de compra e venda de terrenos, por exemplo. Também foi membro da Junta de
Emancipação de Alegrete, que funcionou ao longo da década de 1870. Ver: MATHEUS, Fronteiras
da liberdade...
20
Sobre as Listas de Classificação, ver: SLENES, “O que Rui Barbosa...”. Todas as próximas

286 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


Estas matrículas, após a abolição, foram destruídas para que os ex-senhores
não reivindicassem indenização do Estado, no entanto, as informações de parte
delas sobreviveram sob duas formas. A primeira delas, anexa aos inventários, já
que durante o processo de elaboração dos mesmos os herdeiros eram obrigados a
comprovar a posse dos cativos através da apresentação de uma cópia da matrícula.
Por sua vez, as Listas de Classificação de Escravos para serem libertados pelo
Fundo de Emancipação, instituído pela Lei do Ventre Livre e regulamentado pelo
Decreto 5.135 de 13 de novembro de 1872, também contém boa parte do conteúdo
das matrículas21. O fundo foi criado para ser repartido, de forma proporcional,
entre os municípios do Império. Os critérios para classificação dos cativos davam
preferência, em primeiro lugar, aos cônjuges de diferentes senhores; depois, aos
cônjuges que tiveram um filho menor de oito anos nascido livre em virtude da
lei; o mesmo para casais que tiveram um filho menor de 21 anos; e assim por
diante. Esta lista deveria ser elaborada, em cada localidade, por uma junta de
classificação que funcionava, geralmente, nas câmaras municipais e era presidida
pelo presidente desta.
Conforme R. Slenes, as “juntas eram obrigadas a fazer uma lista de todos os
escravos residentes nas suas respectivas localidades”22. Todavia, segundo o autor,
em muitos municípios nem todos os cativos foram classificados. Nas listas consta
o nome, número da matrícula, cor, idade, estado civil, profissão, aptidão para
o trabalho, número de pessoas da família que foram classificadas juntamente,
moralidade, valor (quando manumitido pelo fundo), além, é claro, do nome do
senhor dos cativos. Infelizmente, em relação às matrículas, na Lista de Classificação
não consta a naturalidade nem a filiação dos escravos. Portanto, a partir da lista, é
possível reconstituir praticamente todo conteúdo das matrículas, mas somente para
aqueles municípios em que a maioria dos cativos foi classificada.
Estimamos que, na lista de Alegrete, mais de 83,5% dos escravos de senhores
ali residentes foram classificados. Chegamos a este número, pois restaram 2.620
registros, depois de eliminar todos os cativos reclassificados23, ou que foram
classificados por um novo senhor (como um herdeiro, por exemplo). Como 3.136
escravos foram matriculados em Alegrete, estes 2.620 representam a maioria dos
cativos que ali habitavam24.

informações são retiradas do artigo de Robert Slenes, salvo nova citação. Sobre as listas, ver
também: MARCONDES, Renato L. Diverso e desigual: o Brasil escravista na década de 1870.
Ribeirão Preto: Funpec, 2010.
21
SLENES, “O que Rui Barbosa...”, p. 142.
22
SLENES, “O que Rui Barbosa...”, p. 142.
23
Na lista de Alegrete há a data de encerramento de duas classificações: uma em 18 de novembro
de 1874 e outra em 20 de novembro de 1875. Por isso, alguns escravos foram classificados até três
vezes, sendo estes por nós eliminados.
24
Para a quantidade de escravos matriculados em Alegrete, ver: DIRETORIA, Relatório e Trabalhos...

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 287


TABELA 2
ESTRUTURA DE POSSE A PARTIR DOS ESCRAVOS CLASSIFICADOS EM
ALEGRETE PARA SEREM LIBERTADOS PELO FUNDO DE EMANCIPAÇÃO
(DÉCADA DE 1870)25

Tamanho das escravarias nº de senhores % nº de escravos %

1a4 594 75 1.127 41,5

5a9 157 20 992 36,5

10 a 19 34 4 421 15,5

Acima de 20 7 1 172 6,5

Total 792 100 2.712 100

Como a lista traz as características de todos os escravos e os nomes de todos os


senhores, abre-se a possibilidade de realizarmos uma estrutura de posse escrava.
Na Tabela 2 é possível observar o resultado desse procedimento. Antes, porém,
um último esclarecimento: na estrutura de posse utilizamos como parâmetro o
número de senhores, o que fez com que alguns poucos escravos se repetissem,
quando apareciam com outro senhor (provavelmente um herdeiro ou alguém que
o comprou). Deste modo, como veremos, a quantidade de cativos será de 2.71226.
Para além do impressionante número de senhores (792), chama a atenção o
predomínio das pequenas escravarias. Nada menos do que 95% dos senhores
tinham até 9 escravos apenas – apesar de concentrarem cerca de 78% dos cativos;
se ficarmos somente naqueles que detinham até 4 cativos, ainda assim temos que
mais de 75% dos proprietários estavam nesta faixa de plantel – concentrando
mais de 41% dos escravos. Ao nosso ver, o conhecimento da distribuição da
posse escrava será importante para a análise aqui empreendida, pois talvez seja a
predominância de senhores de poucos cabedais, mas ainda assim senhores, que
explique a escolha de alguns proprietários de não enfrentar uma batalha judicial
com seus escravos.
Para não nos alongarmos muito nesta contextualização, é interessante notar a
que ocupações os escravos eram, preferencialmente, destinados em Alegrete. De
novo iremos nos valer da Lista de Classificação, já que um dos campos que os
classificadores tinham que preencher era quanto à profissão dos escravos.

25
Fonte: Centro de Pesquisas e Documentação de Alegrete. Lista de Classificação dos escravos para
serem libertados pelo Fundo de Emancipação – Alegrete, 1873-1874.
26
Ou seja, insignificantes 3% de repetidos. Cumpre destacar que essa repetição de escravos também
ocorre quando realizamos uma estrutura de posse a partir de inventários post mortem, por exemplo.

288 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


TABELA 3
DISTRIBUIÇÃO DAS OCUPAÇÕES DOS ESCRAVOS CLASSIFICADOS EM
ALEGRETE
(DÉCADA 1870)27

Campeiros Domésticas Oficiais Roceiros Outros Total

682 1.011 35 52 7 1.787

38% 56,5% 2% 3% 0,5% 100%

O número de 1.787 escravos advém do fato que somente os cativos com mais
de doze anos, com exceção da jovem Honória, de 11 anos, listada como costureira,
tiveram sua ocupação especificada. Focando apenas nos 682 campeiros (todos do
sexo masculino), temos que, se em relação ao total dos que tiveram sua profissão
indicada eles representam 38%, no que diz respeito apenas aos indivíduos do
sexo masculino, com 12 anos ou mais, eles representam cerca de 70%, isto é, a
absoluta maioria dos escravos do sexo masculino, quando em idade produtiva,
eram destinados à pecuária. Visto isso, passemos para a análise de alguns casos
de cativos que propuseram uma ação de liberdade e, por incrível que pareça,
seus proprietários preferiram não litigar com seus cativos – e o quanto isto está
relacionado com as características da escravidão na região.

Senhores e escravos na justiça

Como descrevemos na abertura do artigo, em uma contenda que subiu até o


Tribunal da Relação, no Rio de Janeiro, o Capitão da Guarda João X. de Azambuja
Villanova reclamou que os africanos José e Joaquim propuseram uma ação de
liberdade baseados em uma inverdade – lembrando, Azambuja afirmava que
os autores da ação “falsamente alegaram que passaram e residiram no Estado
Oriental”28. Se José e Joaquim mentiram ou não, nunca saberemos. Mas é fato que
J. Azambuja Villanova teve um comportamento diferente em relação a cada um
dos seus escravos litigantes. Se para Joaquim ele preferiu passar a manumissão ao
invés de ir à justiça lutar pela posse do cativo, no que diz respeito a José, Villanova
se negou a conceder a liberdade. Contudo, José venceu em primeira instância
(para inconformidade de seu senhor, que pediu embargo da sentença, fazendo
com que o processo fosse parar no Rio de Janeiro).
O interessante é notar que a atitude do capitão João Azambuja Villanova para
com Joaquim não foi uma exceção. Mas por quê? Por que um senhor, Capitão
da Guarda Nacional, não lutou na justiça, como todos os recursos materiais e
imateriais que tinha ao seu dispor, pela sua propriedade? Vejamos alguns casos
que nos oferecem algumas pistas do porquê desse comportamento.

27
Fonte: Centro de Pesquisas e Documentação de Alegrete. Lista de Classificação dos escravos para
serem libertados pelo Fundo de Emancipação – Alegrete, 1873-1874.
28
Grifos nossos.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 289


Em março de 1870 foi registrada a manumissão do crioulo Pedro. Nela, seu (ex)
senhor, Leonardo Dias Ferreira, escreveu que concedeu a liberdade ao mesmo

[...] em razão de ter sido citado para em juízo passá-la, ou


discutir a ação que por parte do referido escravo lhe fosse
proposta pelo fundamentado de haver o mesmo passado
com consentimento seu ao Estado Oriental, como em juízo
declarou o mesmo escravo; declaração essa puramente
cavilosa por ser certo não haver seu dito escravo passado
em época alguma com consentimento sem aquele Estado.29

Como é possível observar, Leonardo Ferreira fez questão de deixar claro sua
irritação e seu descontentamento com a ação proposta por Pedro. No texto da
manumissão, ele acusa o escravo de estar mentindo, já que, conforme o indignado
Leonardo, Pedro nunca teria ido ao Estado Oriental (Uruguai).
Outros senhores seguiram o mesmo caminho de Leonardo Ferreira. Em abril de
1879, Antônio Silveira Gomes registrou a alforria do pardo Emeliano, justificando
que assim procedia, pois desejava livrar-se “dos incômodos e despesas de uma
questão judicial, que o referido Emeliano provoca no juízo desta cidade, a pretexto
de ter sua mãe estado no Estado Oriental, segundo alega, e ser-lhe aplicável à Lei
de 07-11-1831”30. Mas o que temiam Antônio Silveira e Leonardo Dias e o Capitão
Azambuja Villanova em enfrentar seu cativo na justiça? Talvez o “incômodo” que
Antônio S. Gomes mencionou estivesse até certo ponto ligado a uma questão mais
prática: o gasto que a contenda judicial provocaria.
Uma informação extraída de um inventário é valiosa para pensarmos esta
questão. Durante a leitura do arrolamento de bens que deixou o finado Agostinho
Dorneles de Souza, um dado nos chamou a atenção. Em uma de suas declarações
ao juiz, a viúva (e inventariante) Senhorinha de Azevedo Dorneles afirmou
que “deixa de dar carregação a escrava Maria Luiza [...] por estar [a escrava]
litigando pela sua liberdade; e mesmo porque não está de posse dela, pois se acha
depositada a mais de dois anos”. Bem mais à frente, o advogado Franklin Gomes
Souto, o mesmo que representou o Capitão Villanova, se diz credor do inventário
na “quantia de 500 mil réis de honorários” por ter vencido “em duas questões
judiciais movidas pela escrava Maria Luiza”31. De fato, dois anos depois de aberto
o inventário, a preta Maria Luiza, de 31 anos, aparece na Lista de Classificação
pertencendo à “herança de Agostinho Dorneles de Souza”32. A título de exemplo,
a média do preço das dezoito alforrias pagas (em que consta o valor) por mulheres,
em Alegrete, durante a década de 1870 é de 562 mil réis. Ou seja, o valor gasto
por Agostinho Dorneles na contenda com Maria Luiza foi bastante significativo33.

29
APERS. 1º Tabelionato, Fundo Uruguaiana, livro 7, p. 91v. (grifos nossos)
30
APERS. LNRD, 1º Tabelionato, FA, livro 9, p. 8r (grifos nossos)
31
APERS. Inventários post mortem. Alegrete, Acondicionador 009.0193, Processo nº 347, 1873.
32
Centro de Pesquisas e Documentação de Alegrete. Lista de Classificação dos escravos para serem
libertados pelo Fundo de Emancipação – Alegrete, 1873-1874.
33
Certamente variáveis como idade, relação dos cativos com o senhor, ocupação do escravo, dentre
outras, interferiam no valor dos escravos. Fizemos este cálculo apenas para termos uma estimativa

290 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


No exemplo acima, Agostinho Dorneles de Souza e sua esposa tinham recursos
para enfrentar o processo na justiça. Neste sentido, seria o caso de passarmos a
questionar, também, sobre a dificuldade de alguns senhores em acessar a justiça
para se defender de seus cativos? De acordo com Keila Grinberg, quando do início
de uma disputa judicial (que, nos casos dos escravos, podia acontecer em função
de uma denúncia de que determinado cativo tinha direito à liberdade ou por uma
reclamação do próprio escravo), o juiz ou tutor deveria indicar um “curador a lide”,
isto é, um “procurador letrado” para “defender uma pessoa miserável em juízo”34.
De fato, era o que acontecia.
Durante o ano de 1867, o juiz municipal de Alegrete, James de Oliveira Franco
e Souza, trocou intensa correspondência com o presidente da província. O assunto
era sempre o mesmo: indivíduos injustamente reduzidos à escravidão. O conteúdo
desta correspondência nos revela pormenores de como se iniciava uma contenda
judicial, bem como quais eram as primeiras medidas tomadas pelo juiz. Em 24
de agosto do referido ano, o juiz relatou ao presidente Doutor Francisco Inácio
Marcondes Homem de Oliveira Mello que:

Tendo me informado o Senhor Delegado de Polícia deste


Termo, que uma escrava de nome Rosa Maria, pertencente
a uma mulher do Termo de Bagé [município localizado
no extremo sul da província do Rio Grande do Sul,
também na fronteira com a Banda Oriental] e moradora
do Estado Oriental, fora pela mesma enviada daquele
Estado para este Termo e vendida aqui a Manoel Francisco
Serpa; e andando a mesma escrava, com autorização
deste segundo senhor, tirando esmolas para sua alforria,
nomeei um curador à referida escrava, afim de propor a
competente Ação de Liberdade, visto constar a mesma ter
por assentimento de sua 1º senhora residido no Estado
Oriental. A escrava que pelo mesmo Senhor Delegado
foi posta a disposição deste juízo, acha-se depositada, até
ventilar-se a ação que em seu favor ordenei que fosse
proposta.35

Quase um mês depois, em 20 de setembro, James de Oliveira narra que uma


escrava o procurou, pois também entendia ter direito à liberdade:

do significado daquela quantia paga ao advogado – cálculo que foi possível graças ao trabalho
realizado pelo APERS e seus estagiários, em que todas as cartas de alforria para a província foram
coletadas e publicadas. Sobre isto, ver: RIO GRANDE DO SUL. Secretaria da Administração e
dos Recursos Humanos. Departamento de Arquivo Público. Documentos da escravidão: catálogo
seletivo de cartas de liberdade. Acervo dos tabelionatos do interior do Rio Grande do Sul. Porto
Alegre: CORAG, 2006.
34
GRINBERG, Keila. O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito civil no tempo de
Antonio Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 201; nota 18, p. 225.
35
Grifos nossos. AHRS. Documentação da Justiça. Alegrete. Juízo Municipal de Órfãos, agosto de
1867.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 291


Tendo-se me apresentado dia 24 do mesmo a parda Maria
Estácia e declarado que apesar de ter por alguns anos
residido com sua senhora no Estado Oriental [...], era hoje
apesar do que dispõem em seu favor o artigo 1 da Lei
de 07 de novembro de 1831, retida em injusto cativeiro,
pois que seu senhor Sebastião Molina do Nascimento, que
segundo julga residente em Corrientes ou Itaqui [freguesia
do município de São Borja, ao norte de Alegrete e na
fronteira com a Argentina], exige ainda um conto de réis,
que segundo diz ele faltar ainda para sua alforria; e tendo a
mesma parda apresentado licença que o mesmo Sebastião
lhe dava para tirar esmola para completar a dita quantia;
informando-me eu da veracidade do que me representou a
dita parda, nomeei um curador que tratasse de representar
a mesma em juízo, fiz depositá-la, e mandei que notificasse
testemunhas para proceder de conformidade com o artigo
2 da Lei de 07 de novembro de 1831.36

Enfim, àqueles escravos que alguma vez tivessem sido levados pelos seus senhores
para o Estado Oriental e, depois, retornado, abriu-se uma boa possibilidade de
alcançar a liberdade. Acreditamos que para aqueles que contavam com um amplo
leque de relações sociais, este caminho ficou um tanto menos difícil, ainda mais
que, chegando à justiça, esta lhes garantia alguém que os representasse – fosse qual
fosse a justificativa em prol da liberdade, e não somente ter ido ao Estado Oriental.
Com os senhores não funcionava desta forma. Quando um cativo entrava na justiça
em busca da liberdade, o seu proprietário tinha que contratar um advogado ou um
solicitador (indivíduo com permissão para representar outras pessoas perante a
justiça), o que às vezes podia ser bem complicado.
Isto ficou muito claro quando encontramos um número bastante razoável
de procurações nos livros de notas de Alegrete. Nestas, geralmente o senhor
de um escravo que litigava por sua liberdade delegava poderes para alguém
representá-lo no processo (como o fez João Xavier de Azambuja Villanova,
narrado anteriormente). Foi o caso de Dona Cândida Carolina Braga e seu filho
Serafim Luís de Meneses, que em novembro de 1878 passaram uma “Procuração
Especial”, na qual nomeavam e constituíam seu procurador na cidade de Alegrete
e seu Termo o solicitador Simeão Estelita da Cunha Soares para representá-los “na
ação de liberdade que lhe move sua escrava crioula de nome Cristina”37. Em julho
de 1881, Adolfo Telles de Souza instituiu ao Major Venâncio José Pereira (sim,
aquele mesmo que em 1856, então delegado de polícia, fez o questionamento
ao presidente da província quanto à condição dos escravos que atravessavam a

36
Grifos nossos. AHRS. Documentação da Justiça. Alegrete. Juízo Municipal de Órfãos, setembro
de 1867. Poderia citar outros casos iguais aos de Rosa Maria e Maria Estácia, mas em função do
espaço, fico por aqui nos exemplos.
37
APERS. LNTN, 2º distrito, FA, livro 2, pp. 87r e 87v. Como esta, encontramos mais sete procurações
de senhores que passaram poderes para serem representados em primeira instância.

292 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


fronteira) como seu procurador “nesta cidade”, na “ação de arbitramento para
liberdade que lhe propôs sua escrava Reasilvia”38.
A princípio, só isto já traria trabalho e custos aos proprietários. Contudo, quando
a batalha fosse para outra instância, caso quisessem ser mais bem representados,
teriam que arcar com os gastos de um advogado em outro município. Foi o que fez
Clemente Amâncio, que passou procuração ao Doutor Fausto de Freitas e Castro
“para representá-lo na apelação interposta na causa que lhe propôs o escravo
Paulo”39. Vejamos agora outras pistas sobre o trabalho que alguns senhores que
viviam na fronteira meridional do Brasil estavam passando por causa de seus cativos.
Ubaldina Rodrigues Barbosa Braga, quando da produção do seu testamento,
em 1877, descreve-nos algo por demais interessante. Disse ela que “a preta Úrica
libertou-se depois de questionar por quatro anos comigo e com meu marido por
sua liberdade em sendo vencedora na questão, teve quem lhe pagou o resgate”.
Se parasse por aí, Ubaldina já nos ensinaria que, por vezes, um senhor podia
ficar por anos a fio litigando contra seu cativo na justiça. Mas não. Ela continua
o relato, dizendo que “a mulata Maria do Carmo também se libertou, pagando
pela sua alforria [...]. Declaro que fiz essa transação de liberdade para atender aos
compromissos que contraí na demanda de quatro anos com a escrava Úrica”40.
Ubaldina Rodrigues e seu marido tomaram uma decisão diferente de Leonardo
Dias Ferreira e de Antônio Silveira Gomes. E perderam. Por isso tiveram que se
desfazer de outra cativa para arcar com as despesas de sua escolha.
Em agosto de 1881, Maria Carvalho de Castilho passou alforria ao crioulo
Leocádio, de 33 anos. Este havia fugido de sua senhora e “assentado praça no 3º
Regimento de Cavalaria como liberto”. Maria Carvalho alega que “para me livrar
de despesas e incômodos afim de o reaver [...] concedo de hoje para sempre a
liberdade”41.
Por fim, em 10 de dezembro de 1882, Beatriz Gomes de Abreu passou uma
manumissão ao seu escravo Evaristo. Nela, a senhora explica que concedeu a
manumissão com a condição “do liberto pagar as custas do processo a que deu
causa no Juízo Municipal deste Termo [...] por seu curador”42. Começamos este
parágrafo com um “Por fim”, mas na verdade há mais um argumento em relação
ao que estamos tratando aqui.
Como vimos, na década de 1870 (na qual explodem as contendas entre
senhores e escravos na justiça), a estrutura de posse realizada a partir da Lista de
Classificação ilustra que nada menos do que 75% dos proprietários de escravos, em
Alegrete, tinham até quatro escravos, isto é, eram senhores de poucos cabedais. Se
contabilizarmos como pequenas escravarias aquelas com até nove cativos, como
observado na Tabela 2, o percentual de senhores nesta faixa sobe para 95%.
Provavelmente, para a maioria deles fosse mais difícil suportar uma longa querela
contra algum escravo que, amparado por um curador, e tendo algumas testemunhas

38
APERS. LNTN, 2º Tabelionato, FA, livro 13, p. 78r.
39
Grifos nossos. APERS. LNTN, 2º Tabelionato, FA, livro 13, p. 101v.
40
APERS. Registro de Testamento, Uruguaiana, Cartório de Provedoria, Processo nº 133, Ubaldina
Rodrigues Barbosa Braga, 1877.
41
Grifos nossos. APERS. LNRD, 1º Tabelionato, FQ, livro 1, p. 24r.
42
Grifos nossos. APERS. LNTN, 2º Tabelionato, FA, livro 14, p. 86r.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 293


dispostas a testemunhar a seu favor, tivesse menos a perder. Poder-se-ia levantar
a hipótese de que a maioria destes senhores não tinha terras do lado uruguaio da
fronteira (elemento sempre presente nas justificativas, como vimos, utilizada pelos
cativos e seus curadores). No entanto, não se pode descartar a possibilidade de
que aqueles proprietários que tinham apenas um escravo campeiro alugassem seus
serviços para indivíduos proprietários de grandes rebanhos no Estado Oriental, em
períodos que demandassem maior mão de obra.
Terminada essa rápida digressão, é importante salientar que não queremos com
isso afirmar que foi o medo de gastar que fez com que, por exemplo, Antônio
Silveira Gomes não tentasse vencer Emeliano na justiça. Pelo contrário. Acreditamos
que ele tinha consciência de quão bem amparado (em outros indivíduos) estava
Emeliano, além de saber que o contexto (perda da legitimidade da escravidão)
lhe era desfavorável, afinal outros escravos já tinham conseguido a liberdade da
mesma forma e, por isso, não levou adiante a ação judicial. Por outro lado, da
mesma maneira que seu cativo, Antônio S. Gomes também precisava ter entre seu
raio de relações pessoas que lhe facilitassem o acesso a um advogado e mesmo
à justiça, de forma mais ampla, já que estamos falando de um período onde a
impessoalidade não era uma das características do sistema judiciário brasileiro. No
cálculo senhorial, a melhor decisão foi passar a alforria a Emeliano, mesmo que a
contragosto43.
Nesta conjuntura, alguns senhores antecipavam-se a qualquer problema que
poderia advir do fato de seus escravos terem atravessado a fronteira com sua
permissão. Quando redigiu seu testamento, em 1871, Ana Maria do Nascimento
Rosa legou “um quarto de légua de campo” para ser repartido em igualdade entre
a parda Maria Libânia, a parda Rita e o pardo Bento, “escravo de meu casal, mas
que por direito é livre, por que por nosso consentimento tem estado diversas vezes
no Estado Oriental”44. Já a viúva Claudina Joaquina, inventariante de seu finado
marido, Joaquim Rodrigues Jaques, informou ao juiz que o escravo Jerônimo era,
na verdade, liberto, “por estar em poder do coerdeiro Anacleto Rodrigues Jaques
em sua fazenda no Estado Oriental”, ficando o dito Anacleto “responsável pelo
valor do escravo em razão de tê-lo conduzido a país estrangeiro”45.

Considerações finais

Não pretendemos retomar os todos os aspectos destacados até aqui. Entretanto,


gostaríamos de salientar um aspecto que consideramos fundamental para entender
as transformações que se processavam na relação senhor-escravo na década de
1870, particularmente no extremo sul do Império.
Em 1875, o juiz municipal de Alegrete concedeu a liberdade ao crioulo Maurício

43
Não deixa de ser curioso verificar que Antônio Silveira alforriou, “sem ônus algum”, a mãe de
Emeliano, a crioula Maria Rita, de 36 anos, cerca de um ano e meio antes de sua contenda com
Emeliano. APERS. LNRD, 1º Tabelionato, FA, livro 8, p. 33r.
44
APERS. Registro de Testamento, Alegrete, Estante 67, Maço 5, Processo nº 149, Ana Maria do
Nascimento Rosa, 1871.
45
APERS. Inventários post mortem, Alegrete, Cartório de Órfãos e Ausentes, Estante 11, Maço 25,
Processo nº 336, 1872.

294 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


“mediante uma ação movida pelo pai, irmã e sobrinhos do escravo, em razão deste
ser reconhecido liberto sobre o fundamento de ter sua finada mãe residido algum
tempo na República Oriental em companhia de seus senhores, muito depois do
ano de 1831”46. Na manumissão também consta que ele era filho da preta Rosa, já
falecida e que havia sido cativa de Eufrásia Dorotéia da Silveira.
Investigando os registros de batismo de Alegrete, encontramos que Rosa teve
seus quatro filhos – Manoel, Maria, Damásia e Maurício, batizados na localidade
entre os anos de 1833 e 184747. Nos quatro registros não consta quem era o pai
das crianças, todavia, como vimos acima, na alforria de Maurício consta que, entre
as pessoas que propuseram a ação estava o seu pai, ou seja, não havia nenhum
estranhamento ou desconhecimento sobre quem era o pai de Maurício e, quiçá,
dos outros filhos de Rosa, caso ele fosse o mesmo pai dos outros rebentos da
africana – o que confirma a assertiva de José Roberto Góes: “um inocente quando
dito natural não é necessariamente uma criança sem pai [...], exceto aos olhos da
Igreja. É uma criança de cujo pai a fonte não fala”48.
Os padrinhos de Manoel e Damásia eram livres, os de Maria, escravos e o
padrinho de Maurício livre e sua madrinha, homônima da sua mãe, escrava. No
entanto, é interessante ressaltar que todos eles foram pessoas diferentes, ou seja,
Rosa e o “pai incógnito” de seus filhos ampliaram consideravelmente seu leque de
relações quando do batismo das crianças.
Tomando como base estes oito padrinhos diferentes, bem como outras prováveis
relações produzidas pelo “pai incógnito”, “irmã e sobrinhos” ao longo da vida desta
família, começa a ficar mais claro que os escravos residentes na fronteira sul do
Império brasileiro, quando de uma circunstância que lhes fosse favorável, como ter
atravessado a fronteira após 1831, tinham recursos (materiais e simbólicos) para
acionar suas redes de relacionamentos. Isto, por seu turno, podia fazer com que a
tarefa de arranjar um curador que lhes ajudasse na sua causa ficasse menos difícil.
Finalmente, um detalhe deve ser salientando. O pardo Emeliano, cujo senhor
passou a alforria para evitar “incômodos e despesas de uma questão judicial”, assim
como Maurício, filho de Rosa, eram campeiros – e, provavelmente, iam e vinham,
atravessando a fronteira, com o seu senhor ou ao ganho, no manuseio de tropas
de gado (a ocupação de ambos pode ser verificada na Lista de Classificação).
Portanto, parece bastante claro que duas especificidades da região da Campanha
sul-rio-grandense, onde se localizava o município de Alegrete, o espaço fronteiriço
e a produção pecuária, coadunadas, compuseram um contexto peculiar, em
que, junto com a perda da legitimidade da escravidão, serviram para que alguns
cativos alcançassem a liberdade, enfraquecendo ainda mais a instituição escravista
oitocentista.

46
Grifos nossos. A motivação da ação movida pela família de Maurício era a dele “ser reconhecido
liberto sobre o fundamento de ter sua finada mãe residido algum tempo na República Oriental em
companhia de seus senhores, muito depois do ano de 1831”. APERS. LNRD, 1º Tabelionato, FA,
livro 7, p. 27r.
47
Arquivo da Diocese de Uruguaiana. Registros de Batismo da Igreja de Alegrete. Livro 2, pp. 132v,
204v e 398v e Livro 3, p. 44.
48
GÓES, José Roberto. O cativeiro imperfeito: um estudo sobre a escravidão no Rio de Janeiro da
primeira metade do século XIX. Vitória: Lineart, 1993, p. 118.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 295


Fig. 1 – Limites do município de Alegrete, 187049.



49
Mapa elaborado a partir do original da Fundação de Economia e Estatística referente aos limites
municipais do Rio Grande do Sul em 1872. Fonte: De Província de São Pedro...

296 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


RESUMO ABSTRACT
A luta pela liberdade, por parte dos cativos, The captives’ fight for freedom was a common
foi algo rotineiro na história da escravidão matter of focus in the history of Brazilian slavery.
brasileira. Contudo, na década de 1870, após However, in the 1870s, after the approval of the
a aprovação da Lei do Ventre Livre em 1871, Free Womb Law in 1871, slaves gained new
os escravos ganharam novas ferramentas para tools to litigate for freedom. The main one was
litigar pela liberdade. A principal delas foi a the opportunity, at the time of death of masters,
oportunidade do cativo, no momento da morte to deposit the amount by which the captive was
de seu senhor e/ou senhora, depositar o valor evaluated, without the consent of the owner,
pelo qual foi avaliado, sem o consentimento do freeing up unilaterally. Even if the possibility of
seu proprietário, alforriando-se unilateralmente. accumulating some money still depend on the
Mesmo que a possibilidade de acumular um consent of the master, it is known that the slave
pecúlio ainda dependesse da anuência do day-by-day life was much more fluid – that is,
senhor, sabe-se hoje que o cotidiano escravista it was very difficult for the masters to prevent
era muito mais fluído – isto é, era muito difícil aos that the slave (or your family) of accumulating
senhores impedirem os escravos (ou sua família) money. In this context, this article analyzes the
de acumularem recursos. É neste contexto que slave relations in a border situation, close to
o presente artigo se insere, porém, analisando other nations where slavery had been abolished
as relações escravistas em uma situação de – notably, the Banda Oriental (Uruguay) and
fronteira com outras nações onde a escravidão Argentina. In that border area, the captives had
já havia sido abolida – notadamente, a Banda one more resource in their struggle for liberation:
Oriental (Uruguai) e Argentina. Naquele espaço crossing the borderline, with the consent of their
fronteiriço, os cativos tiveram um recurso a mais masters, to work on the lands of their owners (or
na sua luta pela alforria: o fato de constantemente simply lead the cattle thereof) in, say, Uruguayan
atravessarem a fronteira, com o consentimento soil. Under this rationale, after returning to Brazil,
de seus senhores, para trabalharem em terras de many of them stepped into the courts to apply
seus proprietários (ou simplesmente conduzirem for their manumission. Besides this novelty, the
o gado dos mesmos) em solo uruguaio. Sob curious thing is that many masters chose not to
esta justificativa, depois que voltavam ao Brasil, litigate with their slaves due to the high costs
muitos deles adentraram na justiça para requerer that the processes could result – combined with
sua manumissão. Para além desta novidade, o high probability of defeat in the courts, since
curioso é que muitos senhores preferiram não the context was unfavorable to them. It is about
litigar com seus escravos em razão dos altos this phenomenon, heretofore unfamiliar and,
custos que os processos podiam acarretar – therefore, with little attention, especially for the
aliado a grande probabilidade de derrota nos areas where predominant small escravarias,
tribunais, já que o contexto era desfavorável à which addresses this study. With this in mind,
instituição. É sobre este fenômeno, até então we reduced the analysis’ scale, linked nominal
pouco conhecido e, por isso, pouco explorado, records and understood that in this particular
especialmente para áreas onde predominavam borderland area personal relationships were
as pequenas escravarias, que versa o presente based in different logics, complexifying master-
estudo. Para tanto, nos valemos da redução da slave relations.
escala de análise, do cruzamento nominal de
Keywords: Slavery; Freedom; Justice.
fontes e do entendimento que naquele espaço
fronteiriço as relações pessoais atendiam a
lógicas outras, as quais tornavam a relação
senhor x escravo mais complexa.
Palavras Chave: Escravidão; Liberdade;
Justiça.

Artigo recebido em 30 abr. 2015.


Aprovado em 09 dez. 2015.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 297


ENTRE A MEDICINA, A POLÍTICA E A POESIA:
A TRAJETÓRIA DO DR. ANTONIO DA CRUZ
CORDEIRO NA PROVÍNCIA DA PARAÍBA
NA SEGUNDA METADE DO OITOCENTOS
Serioja Rodrigues Cordeiro Mariano1

O dia era 17 de junho de 1865, e o Dr. Antonio da Cruz Cordeiro2 foi aplaudido
de pé pelo público que lotava o teatro de São João, em Salvador, na província
da Bahia. A peça de sua autoria era um drama intitulado Prólogo da Guerra ou o
Voluntário da Pátria, que contava a história do homem, pai de família, irmão, filho,
esposo, que vai ao campo de batalha, como voluntário, em um ato considerado de
defesa da pátria e amor ao Brasil. O teatro estava todo ornamentado e recebeu um
grande público que foi prestigiar o médico. Ao final da peça, o Dr. Cruz Cordeiro foi
homenageado com uma coroa de flores e uma poesia, de Francisco Muniz Barreto,
para o homem que fez um “honroso trabalho de uma inteligência esclarecida e
um coração patriótico”. Após as apresentações formou-se uma grande fila e a
plateia se acotovelava para parabenizar o autor dos versos que em nome “da glória
nacional” representou os brios de um “povo livre e independente”. Alguns jornais
da Bahia teceram elogios e dirigiram felicitações àquele que conseguiu desenhar o
quadro do ser voluntário na guerra do Paraguai (1864-1870). Segundo as críticas
do Diário da Bahia:

[...] a composição de um estillo fluente e elegante, em seus


versos harmoniosos produziu o efeito do que era de se
esperar dos talentos litteraios do distincto parahybano e
tambem do assumpto, que é actualmente [1865], mais do
que em qualquer outra ocasião, é um mote de entusiasmo
para os corações brasileiros.3

Como chamou a atenção o Diário da Bahia, os versos do Dr. Cruz Cordeiro,


“mais do que em qualquer ou ocasião”, “é um mote de entusiasmo para os
corações brasileiro”, principalmente em se tratando do momento em que o Brasil
estava vivendo, no contexto do início da guerra do Paraguai. Através das suas
publicações a imprensa foi utilizada como estratégia para atrair a população para
lutar, enquanto voluntários da pátria4.

1
Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Pós-Doutora em História pela
Universidade Federal de Minas Gerais. Professora Adjunta do Departamento e do Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba. E-Mail: <seriojam2@hotmail.com>.
2
Também conhecido como Dr. Antonio da Cruz Cordeiro Sênior, vale lembrar que a denominação
Sênior fora acrescida após o nascimento do seu filho, Antonio da Cruz Cordeiro Júnior, na cidade
da Parahyba, em 1859. A denominação foi importante para diferenciá-los, pois o filho também se
tornou médico e escrevia nos jornais da cidade.
3
Grifos meus. Diário da Bahia, Salvador, n. 138, jul. 1865.
4
Vale lembrar que o Corpo de Voluntários da Pátria foi criado em janeiro de 1865, pois no início da
luta armada não havia um efetivo militar suficiente para representar o Brasil. Segundo os dados da
época, a Paraíba teria enviado cerca de três mil homens para guerra, entre índios, escravos libertos

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 299


Esse olhar acerca do cotidiano e do comportamento desses sujeitos, a partir
da segunda metade do século XIX, foi possível graças a análise de documentos
do século XIX, fragmentos de biografias, relatórios de presidentes de província
e, principalmente, jornais e os livros de autoria de Cruz Cordeiro, são fontes que
compõem o corpus documental desse texto, que tem por objetivo analisar a trajetória
do médico Antonio da Cruz Cordeiro. Um homem das letras com uma atuação
na produção de livros, artigos, entre outros impressos. Foi deputado provincial,
representando o partido liberal, por três legislaturas (na 15ª legislatura de 1864-
1865; na 16ª de 1866-1867 e 17ª de 1868-1869)5.Atuou como diretor do Hospital
da Misericórdia, entre outros cargos na área médica, que tratarei mais adiante.
Durante a guerra foi voluntário e escreveu dois poemas que se destacaram nos
impressos da época. Parto do princípio de que o contexto ao qual o personagem
estava inserido “[...] não é algo homogêneo e estático, mas sim composto por
múltiplas e dinâmicas relações sociais entabuladas por indivíduos, inclusive aquele
que se escolheu para biografar”6.
Pensando nessa multiplicidade de comportamentos é que se pode desenrolar
esse novelo de lã, que aparentemente parecia de uma só cor, mas traz para nós
a diversidade. Portanto, entender essas práticas culturais, a partir do que foi
publicado nos impressos da época, é um dos objetivos desse artigo. Após a leitura
da documentação, alguns questionamentos acerca da vida de Cruz Cordeiro vieram
à tona: Quem era esse homem e qual a sua profissão? O que motivou a sua ida
a guerra? E a atuação política no partido liberal? O que ele produziu ao longo da
sua vida e como foram divulgadas as suas ideias? São algumas questões que serão
abordadas ao longo do texto e nos permitirão entender melhor os comportamentos
que faziam parte das práticas de uma cultura política7.
Antonio da Cruz Cordeiro nasceu na vila de Independência (atual cidade de
Guarabira) na província da Paraíba, em 29 de novembro de 1831. Filho de uma
família abastada fez seus estudos no Lyceu paraibano, e aos vinte e cinco anos, em
1856,concluiu a Faculdade de Medicina da Bahia, com a tese O aneurisma e suas
divisões. Acidentes das feridas de arma de fogo8. De 1859 até 1861, Cruz Cordeiro
atuou como médico da enfermaria local, no governo do presidente da província,
Ambrósio Leitão Cunha. Em seguida, como médico efetivo do Corpo de Saúde

e homens livres.
5
Interessante que mesmo durante a guerra, no período em que estava no campo de batalha, o
Dr. Cruz Cordeiro continuou como deputado pelo Partido Liberal. MARIZ, Celso. Memória da
Assembléia Legislativa. 2. ed. João Pessoa: Assembleia Legislativa, 1987 [1946]; BITTENCOURT,
Liberato. Homens do Brasil – vol. II: parahybanos ilustres. Rio de Janeiro: Gomes Editora, 1949.
6
SCHMDIT, Benito Bisso. “História e biografia”. In: CARDOSO, Ciro Flamarion & VAINFAS,
Ronaldo (orgs.). Novos domínios da História. Rio de Janeiro: Campus; Elsevier, 2012, p.187-205.
7
BERNSTEIN, Serge. “A cultura política”. In: RIOUX, Jean-Pierre & SIRINELLI, Jean-François
(orgs.). Para uma história cultural. Tradução de Ana Moura. Lisboa: Estampa, 1998, p. 349-364.
8
O general e médico Alberto Martins da Silva, membro da Academia de História Militar do Brasil e
Academia Brasileira de Medicina Militar, escreveu texto, intitulado “Memória”, no qual apresenta
uma pequena biografia do Dr. Cruz Cordeiro Sênior, disponível no Portal Médico (ver em: <http://
www.portalmedico.org.br/>). Ver também: BARBOSA, Socorro de Fátima Pacífico (org.). Pequeno
dicionário dos escritores/ jornalistas da Paraíba do século XIX: de Antonio da Fonseca a Assis
Chateaubriand. João Pessoa: PPGL-UFPB, 2009. Disponível em: <http://www.cchla.ufpb.br/
jornaisefolhetins/>.

300 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


do Exército, foi 2º cirurgião nas Guarnições da Província de Sergipe e da Paraíba.
De agosto de 1863 até 1864 foi transferido e passou a atender na enfermaria
da província do Amazonas como médico do Exército, mas ficou pouco tempo,
por ser considerado insubordinado. “Esta transferência foi motivada por atos de
insubordinação, praticados em razão de seu forte temperamento”. Infelizmente
não encontrei indícios, nenhuma documentação que apontasse esses tais atos
de “insubordinação” e do “seu forte temperamento”. Em setembro de 1864, foi
publicado um documento do governo provincial, em que tornava sem efeito a
transferência do médico para província do Amazonas. Desencantado com o
Exército pediu demissão ao retornar a província. Demissão que foi concedida com
o Decreto de 7 de julho de 1865, publicada na Ordem do Dia nº 462, de 14 desse
mês9.
Mas, mesmo com o desencantamento com o Exército, Cruz Cordeiro atendeu
ao “apelo patriótico” e foi lutar na Guerra do Paraguai (1864-1870), como Tenente
e 2º cirurgião10,no Corpo de Voluntário da Pátria, no primeiro contingente da
Paraíba. O primeiro contingente partiu da Paraíba em 06 de maio, sob o Comando
do Tenente-coronel José Paulo Travassos, no vapor “Paraná”, com destino ao Rio
de Janeiro11. Uma referência a este episódio é a mensagem dirigida à Assembleia,
a 03 de agosto de 1866, pelo Vice-Presidente Felizardo Toscano de Brito, na qual
informa que o médico “reassumira seu lugar de médico do Hospital da Caridade,
por estar licenciado por ter seguido para o Sul com o Corpo da Guarnição”.
Ainda sobre a sua trajetória, vale lembrar que o médico também recebeu a
concessão de Cavaleiro da Imperial Ordem da Rosa, uma ordem honorífica criada
por D. Pedro I, em 1829. A comenda era um prêmio dado aos militares ou civis,
pelos serviços prestados ao Estado e a fidelidade ao imperador12.
Foi médico do hospital da Santa da Casa da Misericórdia, trabalhou como
médico dos pobres no 1º Distrito da capital paraibana, e foi 2º Tenente do Corpo
de Saúde do Exército e Chefe da Enfermaria Militar da província13. Ou seja, exerceu
a sua profissão ao longo da vida, até a morte em Recife, no ano de 1895, após de
submeter a uma cirurgia.
No contexto da política local o médico Cruz Cordeiro era aliado dos liberais,
dentre eles o padre José Lindolfo Correia das Neves e Felizardo Toscano de Brito,

9
O Publicador, Cidade da Parahyba, 02set.1864, n. 600, p. 04. O Publicador, anos de 1864, 1865,
1866, 1867. Disponível em: <http://memoria.bn.br/>. Acesso em: 14 mar. 2015.
10
Segundo dados do Corpo de Saúde do Exército, outro paraibano que atuou na guerra do Paraguai
no batalhão composto de Segundos Cirurgiões foi o médico tenente Jacynto Silvano de Santa
Rosa. Já como cirurgião-mor de Brigada, também serviu na guerra o Major Dr. Tomaz Cardoso de
Almeida. Ver: ALMANAK administrativo, mercantil e industrial da Corte do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Eduardo & Henrique Laemmert, 1865, p.279-282.
11
O Jornal do Recife noticiava a chegada do vapor “Paraná” com várias pessoas que seguiam para
o Rio de Janeiro, dentre elas o médico Cruz Cordeiro, sua esposa e três filhos. Jornal do Recife,
Recife, 20 maio de 1865, p.2.
12
MARTINS, Maria Fernanda. “O círculo dos grandes: um estudo sobre política, elites e redes no
segundo reinado a partir da trajetória do visconde do Cruzeiro (1854-1889)”. Revista de História.
Juiz de Fora, vol. 13, n. 1, 2007, p. 93-122. Disponível em: <http://www.ufjf.br/>. Acesso em: 14
mar. de 2015.
13
CASTRO, Oscar. Medicina na Paraíba: flagrantes da sua evolução. João Pessoa: A União, 1945,
p.46.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 301


homens da elite e de destaque na política imperial. Escrevia periodicamente nos
jornais O Publicador14e a Gazeta da Parahyba15. Mesmo em uma sociedade em que
a maioria era de analfabetos, no século XIX, os impressos (jornais, folhetins, entre
outros) se tornaram um espaço importante de divulgação do pensamento, seja
dos representantes das ideias dos liberais, seja dos conservadores. Como chama a
atenção Carolina Paes Barreto da Silva:

Os impressos passaram a transmitir doutrinas, opiniões ou


contendas. Eles eram um instrumento indispensável para
os grupos que pretendessem exercer alguma influência
política ou desejassem defender suas opiniões e interesses.
Muitos jornais eram lidos em voz alta, o que multiplicava
seu poder de atuação.16

E Cruz Cordeiro se utilizou dos meios impressos para divulgar, inicialmente, a


sua produção acadêmica e, depois, suas publicações sobre a guerra, usando como
recurso literário, o drama poético.

Fig. 1 – Antonio da Cruz Cordeiro, fotografia sem data17.

14
O jornal O Publicador foi fundado em 1861, pelo tipógrafo José Rodrigues da Costa, teve como
redator editor o padre Lindolfo Correia das Neves e publicava-se diariamente. Para os anúncios
eram cobrados os valores de 400,00 réis por linha e 100,00 para os não assinantes, também o
valor de 100,00 réis para os “avulsos”, com pedido de espera. De tendência liberal, o jornal fazia
oposição ao conservador Jornal da Parahyba, este fundado pelo senador Frederico de Almeida
e Albuquerque e que tinha como redatores Silvino Elvídio Carneiro da Cunha (futuro barão de
Abiahy) e o padre Meira, tendo funcionado de 1862 até 1890. ARAÚJO, Fátima. Paraíba: imprensa
e vida. João Pessoa: Editora Ilustrada, 1986, p. 37.
15
Jornal criado e dirigido por Eugênio Toscano de Brito. Para maiores esclarecimentos, ver:
BARBOSA, Pequeno dicionário..., p.36.
16
SILVA, Carolina Paes da. A trajetória d’O Republico do Primeiro Reinado e início da Regência:
os discursos impressos de Borges da Fonseca sobre a política imperial (1830-1832). Dissertação
(Mestrado em História). Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2010, p. 14.
17
Fonte: CASTRO, Medicina na Paraíba..., s. p.

302 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


A experiência firmada na observação dos fatos

Falando sobre a produção literária de Cruz Cordeiro, Oscar Oliveira Castro


(1945), no seu livro Medicina na Paraíba: Flagrantes da sua Evolução, considera
o médico como sendo “um bom clínico, foi um homem de letras, de estilo seguro
e regular produção científica”. Suas publicações: Instruções Sanitárias Populares,
acompanhadas de prescrições para o caso de manifestar-se entre nós a epidemia
de cólera-morbus, pela Tipografia J.R. da Costa, situada à Rua Direita, nº 20,
em 1862. Essa publicação foi possível após o Dr. Cruz Cordeiro atuar na luta
contra a epidemia do Cólera que matou mais de trinta mil pessoas na província da
Paraíba. O médico viajou para conhecer os casos de cólera, porque ele acreditava
que “a experiência firmada na observação dos fatos” garantiria um diagnóstico e
tratamento mais eficiente.
Publicou, ainda, Prólogo da Guerra ou Voluntário da Pátria, ensaio dramático
em verso de três atos e um quadro, pela Tipografia do Imperial Instituto Artístico,
localizado no Largo São Francisco de Paula, nº 16, no Rio de Janeiro. Estudo
Biográfico – o Vigário Joaquim Antonio Marques, pela Tipografia Liberal
Parahybana, situada à Rua Direita, nº 102, na Cidade da Paraíba.Batalha de
Humaitá. Episódio da Esquadra Brasileira em operações nas águas do Paraguai, a
19 de fevereiro de 1868, também pela Tipografia J.R. da Costa, na Paraíba18.
Bem conceituado pelos seus trabalhos na área de prevenção ao cólera, Cruz
Cordeiro foi elogiado e citado pelo British Medical Journal19 como sendo um exímio
conhecedor das epidemias que assolaram algumas províncias do Brasil, inclusive
a Paraíba, nas décadas de 1850 e 1860.O jornal se refere ao médico como “um
homem de honra que viu de perto os horrores do cólera, e, portanto, conseguiu
descrever com clareza a epidemia. No texto Instruções Sanitárias Populares (1862),
o Dr. Cruz Cordeiro aponta prescrições médicas, sintomas e tratamentos para o
cólera.
Na primeira parte do livro apresenta as precauções higiênicas e medidas
preventivas que se devem tomar durante a epidemia. Nos seus ensinamentos a
limpeza das pessoas e das residências, sejam públicas ou particulares, eram regras
básicas para prevenir o mal. Os pés e o ventre deveriam sempre ficar aquecidos,
e aconselha usar um cinto de flanela e meias de lã e não ficar descalços, além de
manter o corpo limpo através dos asseios. Havia também a preocupação com o
arejamento das casas para a melhor circulação do ar. O autor alerta para o que
considerava “as causas predominantes do mal”. Ou seja, “o medo, a tristeza, as
vigílias, assim como o abuso dos prazeres”, a embriaguez e a comilança em excesso
também poderiam causar a doença. Quanto a água, deveria ser potável, caso não

18
No final do livro Batalha do Humaytá o autor apresenta os seus livros com os devidos valores:
Impressões da epidemia1 volume com 300 páginas (brochado 2$00 e encadernado 3$000);
Prólogo da Guerra ou Voluntário da Pátria 1 volume 170 páginas (brochado 2400 e encadernado
2$60); Estudo Biographico acompanhado de Alguns Estudos Oratórios do Vigário Marques 1
volume 304 páginas (brochado 2$500 e encadernado 3$200); Episodio da Esquadra Brasileira em
10 de Fevereiro – batalha de Humaytá. Poesia 1 folheto (500 réis). Todos a venda na Botica na rua
da Arêa n. 100 e na casa 43 da mesma rua. CORDEIRO, Antonio da Cruz. Batalha de Humaytá.
Cidade da Parahyba: Typographia Liberal Parihybana, 1869, p.399.
19
“HEALTH Public”. British Medical Journal, Londres, 14 jul.1894, p.107.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 303


fosse era preferível tomar um pouco de conhaque, aguardente ou vinho.

Se o abuso dos vinhos e licores fortes é nocivo, e predispõe


particularmente a contrair o cholera epidêmico, o uso
moderado do vinho ou licor de boa qualidade, longe de
ser nocivo, é mui conveniente para trazer ao organismo
aquelle doce calor e excitação necessários para a boa
marcha das funções vitaes.20

A preocupação do Dr. Cruz Cordeiro está relacionada ao temor de uma grande


mortandade como a devastação do cólera que ocorreu na província em 185621.
Por isso, o médico sugeria que fossem tomadas algumas precauções higiênicas e
medidas preventivas que se devem tomar durante a epidemia. Cita a limpeza das
residências e do corpo como fundamentais na prevenção: não andar descalço, para
não se contaminar com as impurezas da terra e tomar banhos “uma vez por outra”.
Durante boa parte do Oitocentos, muitos médicos acreditavam que determinadas
condições ambientais proporcionavam o desenvolvimento de doenças. Miasmas
presentes no ar, oriundos de matéria orgânica em decomposição ou água parada
provocavam, segundo esta concepção, as epidemias. Para tal concepção, o meio
físico, a natureza e a concentração de pessoas eram produtores de miasmas. A
discussão ganha espaço com os que validavam a teoria do contágio, que poderia
ocorrer de forma direta, a partir do contato com o doente, ou de forma indireta,
através do ar, roupas e outros objetos, o que resultou em uma variedade de medidas
profiláticas.
Os lixos das casas deveriam ser depositados longe das residências, assim como
as pessoas deveriam manter as vestimentas limpas. Também é interessante como
o médico alertava para os perigos daquelas pessoas que “se entregam ao excesso
de comida e bebida” como sendo, a porta de entrada do cólera. Esses excessos
poderiam causar a má digestão e a diarreia, aliás, esse último sintoma era um dos
mais conhecidos da doença. Outra regra básica no combate a doença diz respeito
ao perigo da água contaminada. A água era considerada muito perigosa, por
isso havia indicações para que as pessoas bebessem aguardente, conhaque ou
vinho, porém com uma ressalva: “convém notar que o abuso dos alcoólicos é mui
perigoso [...]”22.
Após apresentar os meios de preservação, o texto continua com um alerta
mostrando quais os sintomas e como deveriam ser evitados. No capítulo Sintomas

20
CORDEIRO, Antonio da Cruz. Instruções sanitárias populares, acompanhadas de prescrições
medicas para o caso de manifestar-se entre nós a epidemia do Cholera- Morbus. Parahyba: Typ. de
J. R. da Costa,1862, p. 01-04.
21
No relatório do Presidente da Província Antonio da Costa Pinto consta um quadro, intitulado
“Mapa da Mortalidade occasionada pelo choleramorbus na Provincia da Parahyba do Norte de
janeiro a junho de 1856”, com o total de 25.390 mortos.
22
CORDEIRO, Instruções sanitárias..., p. 04. Os principais sintomas do cólera eram o vômito, diarreia
e a supressão da urina, um diagnóstico que muitas vezes significava a morte. MARIANO, Serioja
R. C. & MARIANO, Nayana R. C. “O medo anunciado: a febre amarela e o cólera na província da
Paraíba (1850-1860)”.Fênix– Revista de História e Estudos Culturais, Uberlândia, UFU, vol. 9,ano
IX, n. 3,set./ dez. 2012,p. 01-20. Disponível em: <http://www.revistafenix.pro.br>.

304 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


do Cholera Epidemico, Sua Marcha e Indicação dos Primeiros Socorros que
Convém Dar, o autor indica as diferenças entre o colerina (mais brando) e o cólera
(mais mortal). Diz que a doença se desenvolve com vômitos, diarreias, muita sede,
supressão da urina, câimbras, suores frios, aceleração ou lentidão do pulso, entre
outros sintomas.
Na continuação do texto o médico indica vários tratamentos considerados
necessários. Por exemplo, “um banho bem quente nos pés, ajuntar sal ou mostarda,
para lhe aumentar o estímulo”. O repouso era visto como essencial, bem como a
utilização de compressas feitas do cozimento da linhaça e papoula, para evitar as
terríveis cólicas. O texto segue dando sugestões de remédios para curar esse mal.
Ao final das Instruções, o Dr. Cruz Cordeiro considera que o seu dever, enquanto
homem das ciências, é transformar os seus escritos e estudos em algo útil para
tratar as pessoas23. Ao final do livro, na página 12, o médico escreve “duas mais
palavras”, exclusivamente, para o povo. Eram instruções para que as pessoas se
prevenissem e não adoecessem.
No século XIX, o saber e a prática médica estavam ganhando relevância graças
à criação das primeiras faculdades de medicina na Bahia e no Rio de Janeiro.
Os chamados “médicos profissionais” passaram a ganhar representatividade pela
crescente necessidade de sanear o país tomado por epidemias. No Rio de Janeiro, as
doenças tropicais eram priorizadas nos estudos médicos, já na Bahia, as pesquisas
apostavam no “mal advindo do cruzamento racial” vivido no Brasil, e o “doente”,
consequentemente, era o foco de pesquisas. Nesse contexto, a intervenção médica
passou a ser feita a partir de modelos e preceitos ditos científicos e o meio social, a
ser visto pela ótica da doença.
As notícias nos jornais da província da Paraíba davam conta de que as Instruções
Sanitárias Populares (1863) foram publicadas “gratuitamente” pelo governo da
província “para acalmar os ânimos amedrontados pela segunda invasão da cólera
[...]”. Cruz Cordeiro era considerado um autor envolvido com “a sciencia médica”
e cultivava a poesia e a literatura desde muito cedo, quando cursava a Faculdade
de Medicina.
Como instrumento de convencimento e espaço de denúncias e conflitos políticos,
os periódicos foram muito utilizados pelo Dr. Cruz Cordeiro, que publicou críticas
políticas aos seus opositores, bem como poesias, em alguns jornais do Brasil como:
Jornal da Bahia, o Paiz, Diario, Caixeiro Nacional, Protesto, Noticiador Catholico,
O Publicador, foi redator do Prisma, do Recreio do Bello Sexo, e do Estudante,
entre outros.
Os conflitos, de cunho político, podem ser observados na resposta de Cruz
Cordeiro a uma acusação feita no Jornal da Parahyba de que o mesmo havia
publicado uma poesia criticando o então presidente da província, Francisco Araújo
Lima24. Na resposta, no jornal O Publicador de 01 de março de 1864, o médico

23
Essas instruções foram enviadas ao presidente da província, Francisco de Araújo Lima, em 30 de
janeiro de 1862. CORDEIRO, Instruções Sanitárias Populares...1862, p.3.
24
Francisco de Araújo Lima foi presidente da província da Paraíba de maio de 1861 até fevereiro de
1864. “Relatorio apresentado a Assembléa Legislativa Provincial da Parahyba do Norte pelo exm.
sr.dr. Francisco d’Araujo Lima na abertura da sessão ordinaria de 1863. Parahyba, Typ. Parahybana,
[n.d.]” Relatórios dos Presidentes de Província da Paraíba. Disponível em: http://www.crl.edu/brazil/

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 305


afirma que o soneto não é de sua autoria e que tudo não passava de uma articulação
política dos seus desafetos, os redatores do Jornal da Parahyba, a família Carneiro
da Cunha, fundadores e líderes do partido conservador na Paraíba. Sentindo-se
incomodado com a acusação, Cruz Cordeiro fez a seguinte defesa:

Desafio os Srs. redactores do Jornal da Parahyba, em


nome da honra e da verdade, para que, deixando esse
modo infame de denunciar os seus desafectos políticos,
venham exhibir as provas do que leviana e caluniosamente
me attribuiem. Convido-os ainda para que mostrem uma
só produção minha, quer em prosa, quer em verso, desde
a minha vida scholastiva, que se pareça com gênero e
estilo d’esse soneto, a que se referem, e a respeito do qual
nenhum juízo emito.25

Na Paraíba da década de 1860 havia uma disputa acirrada entre conservadores


e liberais para ocuparem as cadeiras da Assembleia Geral. Os conservadores,
chamados de vermelhos, foram representados por nomes como: Diogo Velho
Cavalcanti de Albuquerque, Anísio Salatiel Carneiro da Cunha e o Barão de
Mamanguape (Flávio Clementino da Silva Freire); entre os liberais, o Comendador
Lindolfo José Correia das Neves, Dr. Felinto Henrique de Almeida e José da
Costa Machado. Nesse período, em algumas vilas, como Jacoca, Pilar e Ingá, os
liberais saíram vitoriosos, no entanto, as eleições foram canceladas, o que, de certa
maneira, justifica a fala do jornal O Publicador e o soneto anônimo, que fora dito
ser do Dr Cruz Cordeiro. Como demonstra Barbosa, no livro Jornal e Literatura:
a imprensa brasileira no século XIX, muitas vezes no texto do jornal não constava
a autoria, nem o gênero de quem estava escrevendo a matéria26. Dessa maneira,
imputar a autoria de uma escrita com pseudônimo a alguém não era difícil, e é essa
alegação do médico para justificar que não havia escrito o soneto contra o então
presidente Araújo Lima.
Os representantes dos conservadores se elegeram com maioria dos votos e
o presidente da província, Francisco de Araújo Lima, foi acusado, pelo jornal O
Publicador, de ter interferido a favor dos conservadores, utilizando-se, inclusive,
da força da polícia para garantir que o pleito fosse favorável aos conservadores.
O jornal acusava o presidente de se utilizar de práticas de “patronato, bajulação e
humilhações” para conseguir o resultado a seu favor nas eleições, bem como de
papéis “arranjadinhos”, o que pressupõe a fraude no processo eleitoral27.Miriam
Dolhnikoff chama a atenção para o fato de que “manipular os resultados eleitorais
de modo a garantir maioria parlamentar para o ministério em exercício”, era uma
prática recorrente no Brasil imperial, notadamente nas províncias, e o presidente
era uma peça fundamental nesse jogo político. Claro que para tal façanha

provincial/para%C3%ADba. Acesso em: março. 2015.


25
O Publicador de 01 de março de 1864, p.3 -4, ano III, nº 449.
26
BARBOSA, Socorro de Fátima Pacífico. Jornal e literatura: a imprensa brasileira no século XIX.
Porto Alegre: Nova Prova, 2007.
27
O Publicador, Cidade da Parahyba, 03mar.1864, ano III, n. 451, p. 01-02.

306 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


necessitava do apoio de uma parte das elites locais, uma barganha que garantiria
a governabilidade do presidente28.
Ainda segundo O Publicador do dia 03 de março de 1864, o presidente Araújo
Lima teria usado da “força e dos meios officiaes para decidir a victoria em favor dos
protegidos do poder”. O editorial alerta a Assembleia provincial para não aceitar
esses tipos de práticas, comparadas a “senhores feudais e servos da gleba”. E faz
uma acusação de que houve fraude nas atas das vilas de Ingá, Jacoca, Livramento,
Taipu e Alagoa Grande. Inclusive chama atenção para o fato de que os delegados
e subdelegados dessas vilas compactuaram com a fraude.
Esses comportamentos eram recorrentes no processo eleitoral, era uma
prática da cultura política que se enraizava por várias províncias. Os agentes das
mesas eleitorais, juízes, delegados, subdelegados, padres, só para citar alguns, e
o presidente no topo dessa cadeia eleitoral, atuavam como peças importantes
na arena das eleições imperiais. O processo de votação tinha todo um ritual “e
alguns espaços causavam um impacto simbólico maior que outros: as autoridades
eleitorais reuniam-se em torno de uma mesa ‘no corpo da igreja matriz’, e grupos
rivais disputavam o controle daquele terreno sagrado [...]”29. Portanto, o dia da
votação era um grande acontecimento. Essa peleja envolvendo a fraude eleitoral
chegou até a Câmara dos Deputados, no Rio de Janeiro, e as partes envolvidas se
defenderam,

Apesar da questão não estar resolvida, até meados de


fevereiro de 1864, os chamados progressistas sabiam que
a maior parte dos deputados gerais estava ao seu favor,
pois, ao contrário do número de conservadores ‘genuínos’
ou ‘históricos’, eles tinham uma representação muito
significativa na 12ª legislatura (1864-1866). Mesmo com
as provocações de ‘Asínio e Cª’ (o jornal se refere a Anísio
Salatiel Carneiro da Cunha e seus partidários), o padre
Lindolfo, após extensa fala, foi ‘aplaudido por seus amigos’
(OPublicador, 15 de março de 1864, número 461, p. 2)
na sessão parlamentar ocorrida no dia 18 de fevereiro.
Em seguida, a palavra foi concedida a Saraiva, político
muito atuante no cenário político nacional do Império e
que havia apoiado os candidatos ‘vermelhos’ do 1º distrito
eleitoral da província da Paraíba.30

Vale salientar que no ano de 1863, período em que ocorreu essa disputa política,

28
DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil do século XIX. São
Paulo: Globo, 2005, p.107-108.
29
GRAHAM, Richard. O clientelismo e a política no século XIX. Tradução de Celina Brandt. Rio de
Janeiro: Editora da UFRJ, 1997, p. 156.
30
Para maiores esclarecimentos sobre o processo eleitoral na Paraíba nesse período, ver: SEGAL,
Myraí Araújo. Nas teias do poder: as elites paraibanas e a construção do Estado Nacional Brasileiro
(1840-1889). Monografia (Graduação em História). Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa,
2014, p. 29-30.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 307


havia uma espécie de conciliação entre os liberais e conservadores na bancada
nacional, inclusive na Paraíba alguns conservadores históricos passaram para o
lado dos liberais, como nos casos exemplares do Padre Lindolfo José Correia das
Neves e do Dr. José da Costa Machado31. Após toda essa disputa de poder na esfera
nacional foram considerados eleitos pelo 1º distrito os liberais, Dr. José da Costa
Machado, Dr. Filinto Henriques de Almeida e Lindolfo José Corrêa das Neves.
Após essa decisão o presidente Araújo Lima foi retirado do cargo e o primeiro vice-
presidente, o liberal Felizardo Toscano de Brito, assumiu o poder da província32.Nas
eleições provinciais Cruz Cordeiro sempre esteve ao lado dos liberais, se elegendo
por três legislaturas. No início dos anos de 1870 fundou, juntamente com Felizardo
Toscano de Brito e José Inocêncio Poggi, o Diretório Liberal da capital paraibana. A
composição do Diretório elegeu Toscano de Brito para presidente, Poggi para vice
e Cruz Cordeiro como secretário, entre outros33. A mesa diretora ficou responsável
por criar uma legislação de funcionamento do Diretório.
É interessante observar que a criação desse Diretório aconteceu exatamente
no período em que os conservadores, liderados por Silvino Elvídio Carneiro da
Cunha, retomaram o poder e passaram a dirigir com um maior número os espaços
formais de poder, como a Assembleia Geral e a Assembleia provincial. Em 1868,“os
vermelhos”, ou conservadores, já aparecem na cena política da província como
maioria, e foi nesse ano que o médico Antonio da Cruz Cordeiro fora demitido do
cargo de cirurgião-mor da província. Segundo O Jornal do Recife a perseguição
continuava, pois também fora demitido um grande número de autoridades
policiais34.
A força policial era um instrumento importante nas mãos da elite que
representava um poder coercitivo, e os conservadores, que estavam assumindo o
poder, queriam pessoas de sua confiança nessas funções. Provavelmente os aliados
ao partido dos “vermelhos” fariam parte da nova composição do corpo policial. A
profissão de médico garantia uma prática profissional independente, pois mesmo
que fosse demitido do cargo público, em um contexto ao qual o Estado era o
maior empregador dos letrados, como chama a atenção José Murilo de Carvalho35,
a sua atuação como médico estava garantida, tendo em vista que manteve um
consultório na Rua da Areia, na capital da Paraíba.

31
MARIZ, Celso. Apanhados históricos da Paraíba. 2.ed. João Pessoa: Ed.Universitária/UFPB, 1980
[1922].
32
ARAÚJO, Nas teias..., p. 30. O presidente Araújo Lima foi exonerado por decreto de 23 de janeiro
de 1864, mas foi apenas em fevereiro que ele de fato deixou o cargo.
33
Ainda faziam parte do Diretório Liberal: Dr. João Leite Ferreira, Capitão Antonio da Costa Moura,
Dr. Francisco Alves de Souza Carvalho, Major Felinto Leoncio Victor Pereira, Dr. Jerônymo Cabral
Rodrigues Chaves, Tenente Coronel Antonio Vicente de Magalhães, Dr. Vicente do Rego Toscano
de Brito e o Capitão Simplício Narciso de Carvalho. O Publicador, 23 agos./1872. p.02.
34
Jornal do Recife, Recife, n. 187, 13agos./1868, p. 02.
35
CARVALHO, José Murilo de. A Construção da ordem: a elite política imperial; Teatro das Sombras:
a política imperial. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2007 [1980].

308 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


Inflamando o puro fogo do amor a pátria

Após essas disputas de poder na política imperial, o Dr. Cruz Cordeiro adentrou
no cenário da guerra do Paraguai. Mesmo antes de chegar ao campo de batalha,
ainda em 1865, escreveu O Prólogo da Guerra ou o Voluntário da Pátria, texto
que mais tarde se transformou em peça de teatro.Com a publicação do poema
nos jornais do Rio de Janeiro, Recife, Alagoas, Paraíba, entre outras províncias,
e, diante do contexto de exaltação do patriotismo da guerra, o texto fez muito
sucesso, sendo em seguida transformado em peça de teatro. A peça foi encenada
na capital da Paraíba, no dia 25 de março de 1866, e o texto foi considerado, nas
publicações dos jornais, um ensaio dramático em versos, composto em três atos.
Em outubro de 1865 o jornal O Publicador noticiava:

Acaba de sahir da officinas tyipographicas do imperial


instituto artístico da corte essa obra nitidamente impressa
em papel assitinado, e formato elegante em 8º, contendo o
volume alem do drama Prólogo da Guerra ou o voluntário
da Pátria – alguns aspectos relativos à mesma obra,
como sejam: – conversação preliminar e nota do autor; –
parecer do conservatório dramático da Bahia; –chronicas
teathraes; – juízos críticos; – artigos de jornaes; – musica e
uma interessante carta do ilustrado do Srpadre Francisco
Bernardino de Souza, cônego da capella imperial,
professor do imperial colégio de PedroII, já mui conhecido
pela ssuas lendas bíblicas e varias obras, assim como pela
sua elegante traducção da História Universal do sábio
Duruy, ministro da instrucção da França [...].36

A peça também foi apresentada no teatro Santa Isabel, na cidade do Recife.


O Publicador passou a divulgar diariamente a notícia da chegada do exemplar
do Prólogo e, ainda, convocava os leitores interessados em adquirir um exemplar
do livro que fizessem as suas reservas. Eram 167 páginas, produzidas “com papel
acetinado e formato elegante”. O redator alegava que havia uma grande demanda
na capital do império, local de origem da publicação, portanto, seria interessante
antecipar o pedido para não correr o risco de ficar sem o exemplar. No entanto, a
demanda não atingiu um grande público, o que levou o redator do Publicador a
tecer críticas aos paraibanos que não davam valor a uma poesia que fora elogiada,
inclusive pela crítica especializada do Rio de Janeiro e da Bahia. Para o redator do
Jornal de Mamanguape: “os parahybanos não estão habituados a posse de livros
scripto por seus patrícios”.
É interessante observar que em vários escritos do jornal O Publicador acerca
do poema, são apontadas referências que legitimam a boa qualidade e a
relevância do texto de Cruz Cordeiro, como o parecer do Conservatório e a carta

36
Grifos meus. O Publicador, Cidade da Parahyba, 20 de out. 1865, p.03.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 309


do padre Francisco Bernardino de Souza. Os editores do jornal esperavam cem
exemplares que seriam distribuídos aos assinantes do periódico e só pagariam “por
cada exemplar a quantia de 2$000 no acto da entrega”. Aqueles que não eram
assinantes poderiam comprar o exemplar do poema por 3$000. Havia listas de
reserva da obra nos seguintes endereços: na tipografia do jornal (cidade alta), na
sede do jornal O Despertador, na botica da Santa Casa (Cidade Baixa e Rua das
Convertidas) e em outras lojas da capital.
Os elogios foram divulgados em alguns periódicos da capital baiana após a
apresentação do drama que foi encenado no dia 17 de julho de 1865, no Teatro São
João. Uma peça que reforça o “verdadeiro patriotismo”, por isso era importante,
naquele momento, apresentá-la ao público, principalmente nas festividades cívicas.
Alguns trechos do poema foram divulgados no Publicador:

O Voluntario

Meu pai, meu nobre pai, eu vos amo!


Meu amor é por vós estremecido...
Adoro minha mãe, como uma santa.
Como um anjo do céu, que me abençoa
Nas horas da aflição e da desgraça!...
(Com transporte)
Com minhas irmanzinhas sonho à noite! [...]
......................................................................
(Movimento de Jorge)
Fundas São as saudades, que me ralam,
Que me estalam o peito de agonia;
Mas agora, meu pai, neste momento,
Em que devo partir para o combate,
Sem poder exprimir o que a alma sente,
Não deveis recusar os meus afetos.
(Com amargura)
Nem ingrato chamar o vosso filho...
Eis como o voluntario responde ao pai, que
Banhando em pranto, lhe tem dito antes:
Jorge (com saudades)
Oh! Filho de minha alma, posso acaso
Ver-te depois de dias tão saudosos,
Abraçar-te um instante e abandonar-te?...37

E o texto prossegue mostrando o amor a pátria e a família, com gestos de


sofrimento e saudades, mas, acima de tudo, de heroísmo. Não é a toa que as famílias
que tiveram seus filhos, pais, esposos e irmãos na guerra se sentiam representados
nesses versos, sempre na esperança de um retorno de seus familiares. Além desse

37
Grifos de Cruz Cordeiro. O Publicador, Cidade da Parahyba, n. 846, 20 de out. 1865, p. 03.

310 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


tom de sacrifício em defesa da pátria, havia também um forte apelo dramático ao
sentimento de sofrimento que abordava as mazelas do campo de guerra, como um
vulcão em erupção que “vomita em cada lava a dor e a morte”.
O redator do jornal O Publicador lembra que os versos tiveram uma boa
aceitação entre a população, pois falam de saudade, das lágrimas dos familiares
que tiveram seus parentes embarcando para a guerra e da despedida, sempre
na esperança do retorno para o seu lar. Uma poesia que transborda emoção e
o coração fala mais alto. A aceitação da poesia em vários lugares, diz o jornal, é
fácil de entender, porque nas províncias que enviaram seus entes queridos, “não
há quem não tenha visto lágrimas na despedida; Quem não viu o sofrimento na
separação entre pai e filho, irmã e irmão, o amante e a amada, e o lenço branco
agitando-se no ar, em direção ao cais”38.
O texto foi produzido em duas semanas, Cruz Cordeiro justifica que a rapidez
na escrita foi motivada porque os versos dramáticos representam “os verdadeiros
resultados do sentimento patriótico do brasileiro” e por acreditar que sua província
era uma “grande aldeia habitada por uma só família”. Diz Cruz Cordeiro para
justificar a sua publicação:

Acorde neste sentimento que me brotava espontâneo no


seio d’alma eu procurei prestar o meu fraco contingente,
descrevendo o patriotismo do povo brasileiro: assim como
a nobreza dos seus elevados sentimentos de generosidade
de suas ideias; a pureza do seu amor; a sublimidade de sua
gloria pela causa nacional.39

O Jornal do Recife também se posicionou com relação ao Prólogo:

Mais uma brilhante composição veio a enriquecer o cofre


da nascente, mas já muito rica literatura brasileira; mais
um precioso livro, o qual deve ser lido e decorado por
todos aquelles presam as obras dos verdadeiros talentos,
e se sentem inflamados do puro fogo do amor da pátria.40

Sabemos que esse tipo de escrita era mais uma ferramenta utilizada para tentar
convencer a população para se alistar, ou aceitar o recrutamento, para a guerra.
Com um sentimento de apelo ao patriotismo, os versos mostram o heroísmo
daqueles que mesmo estando longe dos seus entes queridos, estão ali por uma
“causa maior”, a defesa da pátria contra os povos “bárbaros”, os paraguaios. Nos
impressos que circulavam na Paraíba, de 1865 a 1870, eram divulgadas notícias
da guerra como: as deserções, as fugas, as doenças, entre outras. Com o tempo e
a guerra se prolongando, os pedidos de liberação para não lutar eram recorrentes,
um dos motivos alegados era a doença, uma estratégia muito usada para conseguir

38
O Publicador, Cidade da Parahyba, n. 846, 20 de out. 1865, p. 03.
39
O Publicador, Cidade da Parahyba, n. 846, 20 de out. 1865, p. 03.
40
Grifos meus. Informação publicada n’O Publicador, Cidade da Parahyba, n. 846, 20 de out. 1865,
p. 03.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 311


a dispensa do recrutamento. Para avaliar essas solicitações alguns médicos eram
enviados as vilas do interior. O Dr. Cruz Cordeiro também atuou nesse campo,
sendo nomeado para a Junta da Saúde, com o objetivo de inspecionar os
voluntários da pátria que alegavam não poder assumir o posto por estarem doentes
e pediam dispensa. Algumas vezes o resultado da perícia, naqueles que alegavam
estar enfermos, era publicado nos jornais.

Salvar a memória graças à verdade histórica

Em seguida, em 1866, publicou os Estudos Bigraphicos: o vigário Joaquim


Antonio e algumas de suas peças oratória, um livro de mais 300 páginas, feito a
pedido do Comendador Felizardo Toscano de Brito. No início do texto tem uma
carta dedicada ao Comendador, na qual o médico explicaporque resolveu escrever
o estudo biográfico que, em sua opinião, de início seria apenas um esboço, mas
diante da quantidade de informações passadas pela família do pároco, acabou se
transformando em um livro. Relata ainda que tudo começou em um final de tarde,
na casa do Comendador, quando após o enterro do pároco, alguns amigos foram
tomar um café:

Não se falava ahi em política, não se aventurava uma ideia


sobre a marcha dos negócios públicos; não se anunciava
pensamento algum sobre a melindrosa situação do Paiz. E,
como em outros dias, também não ocupavam em nossos
pensamentos os nomes dos briosos generaes Osorio,
Tamandaré e Barroso; nem os feitos gloriosos dos nossos
bravos; nem as brilhantes vitórias por eles alcançadas nas
águas do Paraná e no solo Paraguayo.41

A conversa após o velório era amena, sobre a importância e a obra religiosa


do vigário e de como seria interessante se alguém fizesse um artigo esboçando a
sua biografia. Naquele momento foi escolhido Toscano de Brito, amigo pessoal do
pároco, para fazer a homenagem. Fora escolhido “por sua inteligência e madureza
de pensar e por todos os seus títulos”42, no entanto, o Comendador recusou
alegando que não teria tempo hábil, pois com o cargo que havia assumido, de 1º
Vice-Presidente da província, ele estava muito ocupado e não tinha tempo para
outras funções. A ideia era manter viva a memória de Joaquim Antonio Marques,
e Cruz Cordeiro aceitou a tarefa, segundo ele, em atenção aos amigos.
Ainda na carta de abertura do livro, o médico alega que o seu artigo, que acabou
virando livro, consiste na “verdade histórica” acerca do padre e só foi possível

41
CORDEIRO, Antonio da Cruz. Estudos biographicos: o vigário Joaquim Antonio e algumas de suas
peças oratórias. Parahyba: Typographia Liberal parahybana, 1866, p.IX.
42
Felizardo Toscano de Brito foi vereador, deputado provincial, deputado geral, vice-presidente da
província,tendo assumido o cargo por duas vezes. Era um dos fundadores e líderes do Partido
Liberal na Paraíba. Estudou na Faculdade de Direito de Olinda, uma formação acadêmica que
mostra como a elite política trilhava determinados caminhos para se manter no protagonismo da
cena política.

312 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


graças às informações dadas por Felizardo Toscano de Britoe aos documentos e
relatos familiares. Quem mais contribuiu com as informações foi o pai e a irmã que
entregaram uma caixa contendo vários escritos do padre, como: sermões, produções
literárias e alguns rascunhos. Ainda justifica a sua escrita como sendo importante,
pois fora feita com a cabeça, o coração e a alma. Ao longo da carta me parece que
o médico estava dando uma satisfação da sua produção ao Comendador, e ao
mesmo tempo “pedindo a benção ao padrinho”, em um tipo de relação clientelar,
que como chama a atenção Richard Graham (1997), “constitui a trama de ligação
da política do Brasil do século XIX”. Uma lealdade que é parte constitutiva do poder
simbólico nas redes de clientelismo na troca de favores, ampliando e legitimando a
estrutura social existente43.
Pede autorização ao Doutor Comendador, como Cruz Cordeiro gostava se
reportar ao Sr.Toscano de Brito, para publicar doze peças de oratória. O pedido
fora aceito e o livro encaminhado para a gráfica contendo a descrição da vida
do padre, desde o nascimento até a morte. O texto é composto por vinte e seis
capítulos que relatam a vida do pároco atuando “fervorosamente” no combate a
epidemia do cólera em 1856, inclusive sendo acometido pela doença. Ao longo
do livro, Cruz Cordeiro, como era de costume nos seus escritos, vai buscar suporte
nos mais diversos pensadores como: Platão, Aristóteles, Zenon, Cicero, Spinosa,
Louvet, Pigault-Lebrum, Guisot, só para citar alguns. No final do texto existe
uma errata com algumas palavras, em que os editores a justificavam levando em
consideração que o autor só teria lido uma única vez e, portanto, não viu os erros,
mas, mesmo assim, a qualidade do livro não seria prejudicada.

Um patriota tão grande quanto o médico

O livro A Batalha de Humaytá44 foi publicado em 1869, sendo recitado pela atriz
Izabel Cândido, no Teatro Phenix, na noite de 8 de outubro de 1873 e, na época,
as famílias se reuniam em suas casas para ouvir os dramas e patriotismo da guerra.
Diz alguns trechos do poema:

É noite, fria bafagem


Desce o rio Paraguay
As águas crescem na margem

43
GRAHAM, Clientelismo e política..., p.15. Linda Lewin mostra como esse tipo de relação, bem como
os laços de parentesco foram importantes na configuração da política na província da Paraíba, entre
outras. Para maiores esclarecimentos acerca dessa temática, ver: LEWIN, Linda. Política e parentela
na Paraíba: um estudo de caso da oligarquia de base familiar. Tradução de André Villa Lobos. Rio
de Janeiro: Record, 1993; MARIANO, Serioja Rodrigues C. Gente opulenta e de boa linhagem:
família e relações de poder na Paraíba (1817-1824). João Pessoa: Editora da UFPB, 2013.
44
No discurso de posse de Higino da Costa Brito na Academia Paraibana de Letras, em 1947, o
Dr. Cruz Cordeiro foi citado como sendo “um patriota tão grande quanto o médico” e foram lidos
alguns trechos sobre a guerra, do livro A Batalha de Humaytá. BRITO, Higino da Costa.“Discurso
de Posse”. Revista da Academia Paraibana de Letras, João Pessoa, APL, ano I, n. 2, 1947. Cruz
Cordeiro é Patrono da Cadeira n. 11 da Academia Paraibana de Letras, ocupada atualmente pelo
professor José Jackson Carneiro de Carvalho, e da Cadeira n. 03, e da Academia Paraibana de
Medicina, ocupada hoje pelo médico Augusto de Almeida Filho.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 313


E o rio crescendo vai...
Maurity neste conflito
Mostrou-se General invicto
Marinheiro imperial
Ligeiro volve o Alagoas
E a pique mete as canoas
Naquele abismo infernal.

Humaytá é um rochedo...
Que tem aos pés um torpedo
E amedronta as nações...
...........................................
Não faltava cousa alguma
Quando o Barão de Inhauma
Disse ao Delphim...Marchai...
O moço marchou adiante
Altivo como um gigante
Pr’as terras do Paraguay.45

Na província da Paraíba A Batalha do Humaytáfoi publicada, em forma de livro,


a partir das matérias que saíram no Jornal da Parahyba criticando o texto. O título
do livro, A Poesia – ABatalha de Humaytá e a Crítica lançada no Jornal da Parahyba
– Análise publicada pelo Despertador, pelo Dr. Antonio da Cruz Cordeiro46, de
certa maneira, já nos diz do que trata a obra, e que seu conteúdo vai muito além
da poesia.
O próprio título dos capítulos já demonstra a intenção de Cruz Cordeiro quando
resolveu publicar os seus versos, ou seja, rebater as duras críticas nos seus Artigos
I, II, III e a assim sucessivamente. No Artigo I, Cruz Cordeiro alerta para o fato de
que fazer a crítica a um trabalho não é uma tarefa fácil, simples, pelo contrário, é
uma das partes mais difíceis. Diz que:

Não bastam frases grosseiras lançadas a pedido em um


jornal, contra qualquer produção literária, para que façam
cahir o ridículo sobre o seu autor, e se tronem elles assim
verdadeiros arbitro do mérito dos outros. [...] Entregue
taes críticos a sua s paixões e vaidades [...].47

O autor faz um longo ensaio para rebater as publicações do Jornal da Parahyba


e considera que as mesmas teriam sido feitas por uma pessoa “ignorante e
malévola”, uma crítica que se tornou uma “arma perigosa” nas mãos dos seus
opositores, pessoas “invejosas e sem mérito”. Segundo Cruz Cordeiro, esse tipo de

45
BRITO,“Discurso de Posse”; e CASTRO, Medicina na Paraíba..., p.47.
46
CORDEIRO, Antonio da Cruz. A poesia- A Batalha de Humaytáe a Crítica lançada no Jornal
da Parahyba: análise publicada pelo Despertador, pelo Dr. Antonio da Cruz Cordeiro. Cidade da
Parahyba: Typographia Liberal Parahybana, 1869.
47
CORDEIRO, A poesia..., p. 08-09.

314 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


crítica parte dos invejosos que não respeitam “as luzes dos outros”. Esses inimigos
seriam os redatores do Jornal da Parahyba, que aceitaram e publicaram em suas
páginas “os maiores disparates (até mesmo em literatura!) contanto que a seta
seja dispara contra o alvo que miram”, finaliza Cruz Cordeiro. Para o médico, o
que escreveram contra ele são fantoches nas mãos dos Carneiro da Cunha, que
os manipulam, através dos seus “pobres discursos” para atingir os seus desafetos,
mesmo não sendo na arena política.
Nas páginas que se seguem, Cruz Cordeiro reclama do “calvário” que tem
sido o seu nome e seus escritos nas páginas daquele jornal, após a publicação da
Baralha de Humaytá – mas, faz uma ressalva, dizendo que sente muito orgulho de
ter escrito -, alega que não teve mais um dia de sossego. Segundo ele, a “inveja,
o despeito, o ódio, a vingança” fazem parte do “capricho individual” e não da
opinião pública, que recebeu o seu texto com muito louvor. Diz que aqueles que o
difamaram são políticos de uma visão atrasada, que não sabem separar o político
da literatura, por isso os redatores do Jornal da Parahyba tem uma visão “míope
das letras”.
O “Artigo I” tem 14 páginas, ao final Cruz Cordeiro diz que pensou em não dar
a resposta e ficar em silêncio, pois tem “a sua dignidade”, porém não poderia ficar
calado diante do que considerou como uma visão cheia de calúnias a seu respeito.
Se se calasse pareceria que concordava com tudo que estava escrito no jornal, por
isso resolveu fazer a sua defesa e publicá-la na abertura do livro.
No “Artigo II” o médico apresenta a sua defesa após as críticas que recebeu pelo
trabalho Episódio da Esquadra Brasileira em Operações nas águas do Paraguay a 19
de Fevereiro de 1868, publicado nesse mesmo ano. Foram cinco meses de intensas
críticas, segundo Cruz Cordeiro, apresentadas em sete artigos no jornal, sendo os
primeiros publicados em setembro, o terceiro, quarto e quinto, em novembro, o
sexto em dezembro e o sétimo em janeiro de 1869. Infelizmente não tive acesso
aos exemplares do jornal desse período.
Mais uma vez, o Dr. Cruz Cordeiro tenta desqualificar as críticas alegando que
a narrativa é pobre, sem reflexão, sem o conhecimento das letras, e tudo isso seria
uma grande armação de intrigas pessoais, de injúrias contra a sua pessoa. Portanto,
as publicações contra a sua escrita não deveriam ser levada a sério, pois,

Não é uma crítica leal e nem fecunda; é pelo contrário


uma daquellas, de que falla o escritor portuguez [Freire
de Carvalho] que vem do soalheiro para a imprensa
sem dignidade, conspurcando em lingoagem das praças
os frutos que não podem produzir por sua esterilidade.
Esta crítica repugna, porque não raciocina não reflecte,
não discute, e nem julga;– abate por capricho, aborrece
por inveja, e causa tédio por ignara! Em taes críticas se vê
que o amigo sendo medíocre, e até mesmo ignorante, é
exaltado, o indiferente é votado ao silêncio do desprezo
por ser desconhecido, e o inimigo é, apezar de sua
lealdade, chasqueado e convertido em victma sacrificada

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 315


na hecatombe, julgando o inepto censor attestar por esse
meio a grandeza e infalibilidade de seu juízo.48

Continua reafirmando, ao longo do texto, que tudo não passa de uma disputa dos
seus adversários políticos do partido conservador. Não se pode esquecer que essas
acusações já vem, pelo menos, desde o início da década de 1860, principalmente
em 1863, com as acusações de que o médico havia feito um soneto contra o
então presidente da Paraíba, Araújo Lima, como já foi apontado anteriormente.
Um soneto que estava assinado por um tal de Bustamente.
Na publicação, os escritos de Cruz Cordeiro são vistos como um texto com “erro
de poética, de metricaficação da gramática”, na construção da estrutura dos versos,
inclusive de plágio. Acusação que deixou o médico indignado a ponto de escrever
um longo texto no jornal O Despertador de 11 de janeiro de 1869, respondendo
ao que ele acreditava ser um artigo com uma “linguagem baixa e de má fé”, um
texto cheio de calúnia escrito pelos seus adversários. As críticas foram assinadas
por Gustavo Bustamente, segundo o médico, esse nome seria um pseudônimo.
Na parte “Artigo III”, o Dr. Cruz Cordeiro diz que vai fazer algumas considerações
específicas acerca do que foi publicado no Jornal da Parahyba. O autor começa a
narrar o que considerava um dos acontecimentos mais esplêndidos da guerra, a
Batalha do Humaytá, ocorrida em 19 de fevereiro de 1868. Cruz Cordeiro continua
rebatendo a fala do Sr. Crítico (codinome Bustamente), por fazer correções
gramaticais e diz que o Sr. Crítico“é um ignorante” que não conhece os princípios
básicos da versificação. Ao longo dos outros artigos tece uma série de comentários
desqualificando os argumentos apresentados no Jornal da Parahyba,

O Sr. Bustamente é um desses críticos singulares, que


abordam todas as questões, penetram no sanctuario de
todas as sciencias e artes, e falam sobre tudo que ignoram
com uma falácia e sangue frio que admira! Elle não tem
sciencia, mas dá conselhos aos sábios artistas! [...].49

Em sua narrativa, o Dr. Cruz Cordeiro se desculpa com os leitores e pede


paciência para aturarem as críticas direcionadas ao Sr. Bustamente, pois não pode
deixar que uma falácia, com frases “burlescas e desconhecidas”, possa amordaçá-
lo. Em seguida, lança um post iscriptum dizendo que não entende o que fez para
o dito Sr. Bustamente caluniá-lo e ameaçá-lo. Por isso diante de tantas “mentiras”
se sentiu na obrigação de responder a todas as acusações. Inclusive recebeu apoio
dos amigos que publicaram o seguinte: “você tem feito o Sr. Bustamente arrenegar
a hora em que se meteu a crítico ...pobre de espírito [...]”. Para o médico e escritor,
a vingança estava concluída, na arena do discurso, atingindo os redatores do Jornal
da Parahyba, adversários políticos e mentores da campanha contra ele. Os Carneiro
da Cunha escolheram para combatê-lo um homem errado, o Sr Bustamente, “sem
mérito e supondo-se literato”. Nas páginas dos jornais o que se via eram espaços de

48
CORDEIRO, A poesia..., p.20.
49
CORDEIRO, A poesia..., p.211.

316 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


intensas disputas políticas, uma estratégia muito utilizada nos impressos.
Dr. Cruz Cordeiro pertenceu também ao Instituto Arqueológico e Geográfico
Pernambucano, como sócio correspondente, ainda em 1865, pois segundo O
Publicador, a instituição o convidou porque reconheceu a sua atuação na literatura
como “respeitável cooperação”, bem como “os títulos do ilustrado a que tem jus
esse nosso amigo que anda ausente da família, a cuidar dos defensores da Pátria”50.

Considerações Finais

Nesse artigo tentei mostrar a trajetória do médico, escritor e político Antonio da


Cruz Cordeiro, pensando no papel do indivíduo, na construção dos laços sociais, a
partir de uma intrincada teia de relações de saber e poder na Paraíba oitocentista.
O que se percebe após a consulta na documentação, e vale salientar que é bem
ampla, é a complexidade do contexto da época de atuação de Cruz Cordeiro.
Segunda metade do Oitocentos, a guerra do Paraguai, que trouxe para o debate
público, através dos impressos, a situação de fragilidade do Exército, de como a
questão do Ser brasileiro, no sentido de pertencimento a uma nação, foi explorada
de todas as maneiras; o debate ferrenho entre liberais e conservadores e o papel
dos impressos nesse espaço “público”, trazendo a informação a um número maior
de pessoas.
Com uma vida ativa, o Dr. Antonio da Cruz Cordeiro faleceu aos 64 anos de
idade, na cidade do Recife, em 1895, após uma intervenção cirúrgica. Deixando
três filhos, dentre eles o também médico Antonio da Cruz Cordeiro Junior, também
escritor e jornalista. Cordeiro Júnior, assim como o seu pai, escreveu em vários
jornais como A Gazeta da Parahyba, juntamente com Eugênio Toscano de Brito,
filho de Felizardo Toscano de Brito, o Doutor Comendador, como era chamado por
Cruz Cordeiro. O que se percebe é uma rede de sociabilidade mantida pelos filhos
que, muitas vezes, seguiam a carreira dos pais.
Sua trajetória nos revela como as redes de sociabilidade eram importantes no
processo de ascensão política e manutenção do status quo. Um homem que viveu
e circulou nos espaços formais de poder, nos mostra, através dos seus escritos, a
complexidade do mundo das letras, da política e da medicina no Brasil/Paraíba
do Oitocentos. Cruz Cordeiro, quando publicou o seu primeiro livro, se dizia
preocupado com a saúde dos paraibanos, tentou prevenir e combater a epidemia
do cólera, lançando ao público (leitor e não leitor) as suas Instruções contra a
doença. Depois, mesmo ocupando cargos distintos na elite provincial, resolveu
partir para a guerra, e antecipando o que veria no campo de batalha, bem como
numa tentativa de convencer a população da importância do alistamento, lançou o
seu Prólogo, e o transformou na sua “arma” para mostrar o quanto era importante,
naquele momento, se unir contra o que considerava o mal maior: Solano Lopez.
Após a volta da guerra, resolveu enveredar pelo mundo da biografia e, a pedido
de um amigo e aliado, escreveu sobre um pároco, Joaquim Antonio, trazendo para
o cenário dos impressos a religião e a vida cotidiana do padre. E foi a partir da
enxurrada de críticas que recebeu do Jornal da Parahyba que resolveu publicar A

50
O Publicador, Cidade da Parahyba, 03 de jul.1865, ano IV, n. 846, p. 03.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 317


Batalha de Humaytá, e rebater as críticas feitas por seus opositores conservadores,
donos do jornal. Nesse período havia toda uma preocupação “com a opinião
publica”, por isso se publicava tanto, era uma maneira mais rápida de divulgar
ideias. Ao longo da sua vida não parou de escrever nos jornais publicações que
depois virariam livros, uma prática comum no meio dos homens letrados.



RESUMO ABSTRACT
No ano de 1865 o médico paraibano Antonio In the year 1865, Dr. Antonio da Cruz Cordeiro,
da Cruz Cordeiro, foi homenageado no teatro a physician who was born in province of
São João na cidade de Salvador (BA), após a Paraíba, was honoured at São João Theatre
apresentação de seu poema intitulado Prólogo in the city of Salvador, Bahia Province capital,
da Guerra ou o Voluntário da Pátria. Um drama after the presentation of his poem titled Prólogo
que virou peça de teatro e recebeu críticas de da Guerra ou O Voluntário da Pátria (“War
vários jornais, inclusive na província da Paraíba. Prologue or The Nation Volunteer”). A drama-
Portanto, através análise de jornais do século turned-play and received criticism from several
XIX, fragmentos de biografias, relatórios de newspapers, including at Paraíba province.
presidentes de província, poemas publicados Therefore, through the analysis of 19thcentury
pelo autor, entre outras fontes, este texto, com newspapers, biographies fragments, provincial
base na História Cultural e o conceito de Culturas president’s reports, and poems published by
Políticas, tem por objetivo analisar a trajetória do Cordeiro, among other sources, this paper,
Dr. Antônio da Cruz Cordeiro. Um homem das based on the ideas of Cultural History and the
letras que se destacou nos seus escritos acerca concept of Political Cultures, aims to analyse the
do cólera, foi deputado provincial pelo partido trajectory of this man. He was a man of letters
liberal, diretor do Hospital da Misericórdia, who stood out in his writings about the cholera,
voluntário na guerra do Paraguai (1864-1870), was provincial deputy for the Liberal Party,
escrevendo dois poemas que se destacaram director of Misericórdia Hospital, volunteer in
nos impressos da época: Prólogo da Guerra the Paraguayan War (1864-1870), writing two
ou o Voluntário da Pátria (1865) e Batalha de poems that stood out on these days: Prólogo da
Humaytá (1868). Guerra ou O Voluntário da Pátria (1865) and
Batalha de Humaytá(“Humayta Battle”, 1868).
Palavras Chave: Culturas Políticas; Trajetória;
Paraíba. Keywords: Political cultures; Trajectory; Paraíba.

Artigo recebido em 30 mai. 2015.


Aprovado em 24 nov. 2015.

318 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


RELATOS DE UM EXPLORADOR INGLÊS: UMA
PERSPECTIVA DA VIAGEM DE FRANCIS GALTON
PELO SUDOESTE DA ÁFRICA (1850-1852)

Fabiana Lopes da Cunha1


Leonardo Dallacqua de Carvalho2

Quando se ouve falar em Francis Galton (1822-1911), a lembrança mais


proeminente sobre seus estudos diz respeito à hereditariedade e a eugenia, afinal,
não é mero acaso que ele seja reconhecido como o “Pai da Eugenia”3 ou que a
eugenia seja constantemente referida como a “Ciência de Galton”. Contudo, nossa
intenção não é abordar a trajetória de estudos da eugenia de Galton após 1865,
quando pela primeira vez o “talento hereditário” começava a tomar forma em uma
publicação no Macmillan’s Magazine. Nossa inquirição permeia no início dos anos
de 1850, quando ainda jovem se aventura a explorar o sudoeste do continente
africano e pertencente a um projeto de reconhecimento geográfico.
Situa-se entre os objetivos deste trabalho contribuir para a compreensão de
como Galton observou nesse período, a partir da sua experiência, os países
africanos em que visitou e como fez suas leituras perante as localidades, animais
e os “grupos humanos”4 com os quais esteve em contato. Devemos alertar que
Galton era um cientista do seu tempo e projetava suas próprias interpretações do
“Outro”, algo muito presente nesses escritos. Nossa fonte principal é uma narrativa
de viagem publicada em 1853 intitulada de Narrative of an Explorer in Tropical
South Africa. Em comunhão, algumas vezes recorreremos as Memories of my life,
um livro de memórias publicado em 1908, três anos antes de sua morte, para
confrontar relatos deste período que complementem a investigação.
Antes de irmos às fontes, é preciso fazer um parêntese de como assimilaremos
suas memórias. Elas surgem na pesquisa como uma fonte conveniente para
estudar um Galton experiente e que analisa as etapas de suas viagens à luz de
uma perspectiva autobiográfica. O sociólogo Pierre Bourdieu faz um alerta sobre
os problemas da verificação da trajetória em uma biografia ou autobiografia. Isto
é, aqui nos equivale dizer sobre a necessidade da construção da trajetória “[...] dos
estados sucessivos do campo no qual ela se desenrolou”5. No entanto, a consistência

1
Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. Professora Assistente dos Cursos de
Graduação em História e em Geografia (Campus Experimental de Ourinhos) e do Programa de
Pós-Graduação em História (Campus de Assis) da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
Filho. Coordenadora do Centro de Documentação e Memória – CEDOM/UNESP. Líder do Grupo
de Pesquisa Patrimônios (UNESP/ Diretório CNPq) e vice-líder do Grupo de Pesquisa História &
Música (UNESP/ Diretório CNPq). E-Mail: <fabianalopesdacunha@gmail.com>.
2
Doutorando em História das Ciências e da Saúde na Fundação Oswaldo Cruz. Bolsista Fiocruz.
E-Mail: <leo_gerrard@hotmail.com>.
3
STEPAN, Nancy. A hora da eugenia: raça gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro:
Editora Fiocruz, 2005, p. 30.
4
“Grupos humanos” são entendidos por nós como povos de diferentes localidades com os quais
Galton esteve em contato. Como o próprio autor os diferenciará segundo critérios estéticos,
preferimos a adoção deste termo.
5
BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica”. In: FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaina.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 319


do nosso interesse em Memories of my life, insere-se no campo da identificação
dos locais por onde ele tenha passado em ligação ao Narrative of an Explorer in
Tropical South Africa. Uma espécie de utilização da memória para entrelaçar as
convergências entre a delimitação de nossa temporalidade. Mais diretamente, as
memórias nos possibilitam, por exemplo, uma identificação imagética (mapas) dos
locais onde Galton percorreu e como se apresenta em suas descrições da África. As
memórias acabam sendo um modelo de guia que ajuda a enquadrar as descrições
da narrativa com sua trajetória descrita nas memórias.
Quanto ao termo “explorador”6 que intitula este trabalho, está vinculado com a
própria definição de Galton no prefácio de Narrative of an Explorer in Tropical
South Africa, em que o autor se enxerga nessa disposição7 – há também a
utilização do termo viajante. Tanto explorador como viajante são nomenclaturas
válidas para percebê-lo nas fontes. Sua primeira expedição rumo à África foi em
1845, após a morte do seu pai, quando decidiu viajar para países como Sudão e
Egito8. Não obstante, é sob o auspício e reconhecimento da Royal Geographical
Society (RGS) – indicado por seu primo, o capitão Douglas Galton – que fará uma
de suas maiores empreitadas viajando para o Sudoeste da África, em uma região
em grande parte desconhecida dos europeus e da qual era habitada por povos em
conflitos. Os Damaras e Namaquas9 são dois grupos que aparecem com frequência
durante toda a obra.
Sobre o papel da RGS, Horacio Capel apresenta uma informação relevante
para perceber a importância de sociedades como esta, inclusive para a viagem
de Galton. Seu aparecimento ocorre na Inglaterra em 1788 sob o sugestivo
nome de African Association for Promoting the Discovery of the Interior Parts of
Africa, mas é somente mais tarde que passará a se chamar Royal Geographical
Society of London10. Entre os interesses desta sociedade consistia a publicação
de descobrimentos e textos geográficos, auxílio nas explorações e formação de
exploradores. Além disso, a constituição de uma biblioteca geográfica e uma
cartográfica11. Para Ângela Domingues, ao estudar o Brasil nos relatos de viajantes
ingleses no Setecentos, a autora aponta que no século seguinte “Instituições
como a Royal Society, a Royal Geographical Society e os Kew Garden dariam
corpo à curiosidade até aqui reprimida, organizando e patrocinando viagens de

(orgs.). Usos & abusos da história oral. 8. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 190.
6
Para uma melhor descrição sobre o desenvolvimento do termo e suas aplicações ver: BOURGUET,
Marie-Noëlle. “The explorer”. In: VOVELLE, Michel (org.). Enlightenment portraits. Chicago:
University of Chigago Press, 1997, p. 257-260.
7
GALTON, Francis. Narrative of an explorer in Tropical South Africa. Londres: John Murray,
Albemarle, 1853, p. VII.
8
GALTON, Francis. Memories of my life. Londres: Methuen & Co., 1908, p. 84-85; KEVLES, Daniel
J. In the name of eugenics: genetics and uses of human heredity. Berkeley e Los Angeles: University
of California Press, 1985, p. 06.
9
KEVLES, In the name of eugenics…, p. 06.
10
CAPEL, Horacio. Filosofía y ciencia en la Geografía contemporánea: una introduccíon a la
Geografía. Barcelona: Barcanova Temas Universitarios, 1998, p. 174.
11
CAPEL, Filosofía y ciencia…, p. 177; GEBARA, Alexsander Lemos de Almeida. A África presente
no discurso de Richard Francis Burton: uma análise da construção de suas representações. Tese
(Doutorado em História Social). Universidade de São Paulo. São Paulo, 2006, p. 106.

320 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


exploração”12.
Outro ponto que deve ser abordado para compreender a estrutura das narrativas
de Galton é que a RGS edificava-se como um braço científico do império britânico,
porém, essa não deve ser a única leitura. Em adição, ela deve ser encarada como
versou Gebara, “[...] dentro de um aparato europeu de representação e que, desta
maneira, mesmo as mais diversas opiniões sobre as condições dos nativos africanos
tendem a resultar na legitimação da instância científica europeia como única capaz
de gerar sentidos”13. A afirmação nos faz insistir na própria visão inglesa de Galton
nas percepções de enxergar os nativos do qual estabelecerá contato.
A historiadora Lorelai Kury sublinha este entrelaçamento entre viagens científicas
e os Estados europeus, uma vez que “[...] as ciências tendem a se tornar indispensáveis
à administração dos Estados europeus, além de contribuírem simbolicamente para
sua legitimação”14. Ao tratar de Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), seguidor das
ideias de Alexander von Humboldt (1769-1859), Kury percebe que sua interpretação
de ciência atua de maneira prática e voltada para as necessidades das populações
europeias, sobretudo, “[...] para o fortalecimento material e simbólico da nação
que representavam”15. Saint-Hilaire pertenceu à atmosfera das viagens científicas
do século XVIII para o XIX, inclusive permanecendo no Brasil entre 1816-1822.
Entretanto, notamos que entre alguns dos seus objetivos16 estaria o de fomentar a
legitimidade de uma ciência por meio das viagens e dos viajantes – em nosso caso,
a inglesa como uma tradição para o período.
Entre esta carga científica inerente destes viajantes, Capel disserta sobre a
importância da relação entre a RGS e o trabalho expedicionário de Galton:

El interés por las exploraciones pudo, de todas maneras,


dar ocasión a relaciones con científicos que realizaban
investigaciones de vanguardia en campos diversos de la
ciencia. Ejemplar es en este sentido la relación de la RGS
con Francis Galton (1822-1911). Fue por sus exploraciones
en África de Sur, realizadas a su propia costa entre 1850
y 1852, por lo que la Royal Geographical Society le
concedió su medalla de oro en 1853. Después de publicar
su Arts of Travel, una obra que ha sido caracterizada por
su ‘ingenuidad y sentido común práctico’ [...]17

Como fora no século anterior, esta fase do XIX esteve aberta às explorações de

12
DOMINGUES, Ângela. “O Brasil nos relatos de viajantes ingleses do século XVIII: produção de
discursos sobre o Novo Mundo”. Revista Brasileira de História, São Paulo, ANPUH, vol. 28, n. 55,
2008, p. 148.
13
GEBARA, A África presente..., p. 110.
14
KURY, Lorelai. “Auguste de Saint-Hilaire, viajante exemplar”. Intellèctus, Rio de Janeiro, UERJ, vol.
2, n. 1, 2003, p. 01.
15
KURY, “Auguste de Saint-Hilaire...”.
16
A autora versa sobre o sentido de “filantropia” na atitude de alguns naturalistas em estar colaborando
para a humanidade como um todo por meio do seu trabalho. KURY, “Auguste de Saint-Hilaire...”,
p. 09-10.
17
CAPEL, Filosofía y ciencia..., p. 178.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 321


viajantes. Pela importância dotada das viagens científicas, os registros deixados nos
livros de viagens, como menciona Henrique Soares Carneiro, “[...] é de certa forma
a história das próprias viagens, que se perpetuam como relatos”18. A narrativa de
viagem ao sudoeste africano que utilizamos como fonte está incluso neste caráter
de ser um relato da “história da viagem de Galton”.
Vinculado a uma tradição familiar de exímios cientistas – e seu primo Charles
Darwin percorrendo o mundo no Beagle – talvez tenha tomado para si a vontade e
motivação para uma investigação ou viagem científica em alguma parte do globo.
Afinal, neste contexto, a ciência da época era convidativa para tal prática. Como
sugere Hobsbawm, “[...] o progresso do comércio e o processo de exploração
abriram novos horizontes do mundo ao estudo científico e estimulara o pensamento
sobre eles”19. Além disso, as expedições científicas consolidariam o poderio dos
Estados colonizadores e “[...] de palmilhar territórios desconhecidos, de revelá-los,
por meio da ciência, em seus recursos e riquezas”20, como lembrou Lúcio Menezes
Ferreira. Isto pode ser esboçado nas memórias de nosso protagonista:

Travellers of the present generation need some effort of


imagination to put themselves into the mental positions of
those who were living in 1849. Blank spaces in the map
of the world were then both large and numerous, and
the positions of many towns, rivers, and notable districts
were untrustworthy. The whole interior of South Africa
and much of that of North Africa were quite unknown to
civilised man.21

Podemos imaginar o prestígio que acarretariam essas campanhas para um


jovem cientista inglês. Sua viagem ocorreu em 05 de abril de 1850, um período em
que parecia propício este tipo de empreitada, uma vez que vários outros homens
aventuravam-se para fora do continente Europeu. O alvorecer da década 50 do
século XIX pode ser representado ainda como uma incógnita no desbravamento de
parte do globo, onde havia muitas possibilidades de incursões e “descobrimentos”.
Ao olharmos para a obra, Era do Capital, de Hobsbawm, o autor concorda com
o mapa anexado na narrativa de Galton de que “[...] imensas áreas de vários
continentes europeus estavam marcadas em branco, inclusive nos melhores mapas
europeus – principalmente no que diz respeito à África [...]”22. O mapa abaixo
contido no Narrative of an Explorer in Tropical South Africa, traduz com precisão a
ideia de unexplored region:

18
CARNEIRO, Henrique Soares. “O múltiplo imaginário das viagens modernas: ciência, literatura e
turismo”. História: questões e debates, Curitiba, UFPR, n. 35, 2001, p. 231.
19
HOBSBAWM, Eric J. A era das revoluções: 1789-1848. Tradução de Marcus Penchel. 32. ed. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 431.
20
FERREIRA, Lúcio Menezes. “Ciência nômade: o IHGB e as viagens científicas no Brasil imperial”.
História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, Fiocruz, vol. 13, n. 2, 2006, p. 275.
21
GALTON, Memories of my life, p. 121.
22
HOBSBAWM, Eric J. A era do capital: 1848-1875. Tradução de Luciano Costa Neto. 21. ed. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 89.

322 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


Fig. 1 – Rough Sketch of Africa23, com destaque, na elipse, para a região explorada por Galton.

Na elipse sobre o mapa, destacamos a região onde Galton permaneceu e faz


parte ilustrativa das nossas fontes. Na imagem é possível ver Walfisch Bay, a região
de Damaras, e o Kuisip River ao sul. Mais adiante, maximizaremos a região em uma
nova figura para possibilitar a visualização de outros traços territoriais e análises
pertinentes sobre o local. Em um primeiro momento, cabe localizá-lo perante o
continente africano entre os anos de 1850-1852. Na cartografia atual, a região do
espaço marcado compreende os territórios da África do Sul, Namíbia e Botsuana.

Em Contato com a Vida Animal em South-West African

Para acompanhá-lo nesta expedição, Galton contou com o apoio do sueco


Charles Andesson (1827-1867), um aventureiro amante do naturalismo que o

23
Cf.: GALTON, Francis. Narrative of an explorer in Tropical South Africa. Londres: John Murray,
Albemarle, 1853. Ilustrações. Também é possível encontrar a imagem no sítio disponível em:
<http://www.galton.org/>. Acesso em: 29 abr. 2014.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 323


conheceu durante sua estadia na Inglaterra. No livro de Andresson, Lake Ngami
or explorations and discoveries during four years wanderings in the wilds of
Southwestern Africa, o autor conta-nos como foi a curiosa aproximação entre ele
e Galton:

Shortly after my arrival in London, Sir Hyde Parker,


another valued friend of mine, and ‘The King of Fishermen’,
introduced me to Mr. Francis Galton, who was then just
on the point of undertaking an expedition to Southern
Africa; his intention being to explore the unknown regions
beyond the boundary of the Cape of Good Hope Colony,
and to penetrate, if’ possible, to the recently-discovered
Lake Ngami. Upon finding that I, also, had an intention
of traveling, and that our tastes and pursuits were, in
many respects, similar, he proposed to me to give up
my talked-of trip to the far north, and accompany him to
the southward – promising, at the same time, to pay the
whole of’ my expenses. This offer awoke within me all
my former ambition; and, although I could not be blind
to the difficulties and dangers that must necessarily attend
such an expedition, I embraced, after some hesitation, Mr.
Galton’s tempting and liberal proposal.24

Galton, em seu turno, expressou sua opinião sobre seu novo companheiro
de viagem da seguinte maneira: “I now began my preparations in good earnest.
Mr. Andersson, a Swedish gentleman and a naturalist, consented to accompany
me; and to his perseverance and energy I have since been in the highest degree
indebted”25. Pela parceria que mantiveram, Andersson é citado dezenas de vezes
no livro durante a narrativa da viagem. Posteriormente, ao chegarem à Cidade
do Cabo, África do Sul, no início de 1850, Galton e Andersson dirigiram-se para
Walfisch Bay onde se aproximaram da população Hotentotes, do qual tiveram
contato e certo tipo de ajuda.
O que pode ser notado nos meses iniciais da estadia de Galton na região é
a dificuldade com a adaptação climática bem como o receio dos animais locais.
Leões, por exemplo, percorrem grande parte das preocupações ao longo dos seus
escritos. Há também extensas descrições do contato com diversos povos como
Namaquas, Damaras e Ovampos. Abaixo se configura o trajeto da viagem do
explorador inglês ilustrado em suas memórias.

24
ANDERSON, Benedict R. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do
nacionalismo. Tradução de Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 21.
25
GALTON, Narrative of an explorer…, p. 02-03.

324 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


Fig. 2 – Detalhamento do trajeto da viagem de Galton26.

O quadro maior da Fig. 2 registra, por meio de “linhas” o trajeto de Galton


durante a viagem. Quanto ao quadro menor, no canto superior direito, estabelece
uma localização geográfica tendo em vista o sudoeste do continente africano, como
mostramos na Fig. 1. O maior problema/ conflito entre povos notado na expedição
de Galton converge entre a relação dos Namaquas com os Damaras. Esta questão
trouxe preocupação para o viajante inglês logo no início: “The Namaquas were
always fighting with the Damaras, and it was very doubtful whether having travelled
amongst the one tribe, the other would permit me to pass through their country”27.
Galton priorizou as trocas de ferro com os Damaras e roupas e armas com os
Namaquas como uma das estratégias para poder transitar entre as localidades que
estes grupos dominavam.
A vida humana e animal despertou notória inquietação para o viajante inglês.
No que diz respeito aos povos que citamos, nos chamaram a atenção as descrições
e os interesses pelos Damaras – que mais tarde serão retomadas neste trabalho.
Além de “grupos humanos”, não são raras as menções aos animais locais como
elefantes, girafas e, principalmente, o temor aos leões. Suas anotações, inclusive,
norteiam a expressão de uma sabedoria mitológica do local.
Esta curiosidade quanto às lendas e mitos locais estão presentes nas anotações
de Galton, o que demonstra sua atenção em capturar todo o tipo de observação que
estivesse à mão na constituição do seu relato. Ele descreve o que ouviu dos Bushmen
– um dos grupos que vivia na região – sobre a existência de um “unicórnio”. Este
conto desdobra-se em duas considerações importantes; a) a crença local de alguns
povos; b) sua lembrança de que havia lido sobre outros viajantes que estiveram

26
GALTON, Memories of my life…, p. 121; Cf.: GALTON, Narrative of an explorer…, Ilustrações.
27
GALTON, Narrative of an explorer…, p. 10.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 325


no norte – Galton estava no sudoeste – da África que narraram sobre as mesmas
lendas28. Em outra localidade – na região de Ovampo – ele conheceu sobre outra
crença de um monstro mitológico local, o Basilisco:

Of another fabulous monster, the cockatrice, a most


widely spread belief exists. The Ovampo, the Bushmen of
this place, and Timboo, all protested that there is such a
creature, and that they had often seen it. They described
it as a snake, sometimes twelve feet long, and as thick as
the arm; slender for its length, with a brilliantly variegated
skin; it has a comb on the head exactly like a guinea-fowl,
but red, and has also wattles; its cry is very like the noise
that fowls make when roosting - I do not mean crowing,
but a subdued chucking; its bite is highly venomous, and it
is a tree snake. I heard an instance of ten cows having been
bitten one after the other; they said that sometimes people
when on their way home at night hear a chucking in the
tree, and think that their fowls have strayed, and as they
are peering about under the branches to see where they
are, the snake darts down upon them and bites them. It
appears to be a particularly vicious snake. I have generally
heard it called “hangara.” I never heard of its possessing
wings.29

Esta parece ser a única vez que Galton se preocupa em relatar as crenças
mitológicas dos habitantes. Ao que tudo indica nas fontes, os animais “reais” são
muito mais sedutores do que os “lendários”. Quanto à vida animal, a narrativa
de Galton é riquíssima, mas diante a impossibilidade em tratar em um único
artigo todos eles, selecionamos quatro, divididos em três grupos. O primeiro
seria composto pelo fator do medo de ataques (leões), o segundo atribuímos a
característica da necessidade de alimentação (girafas) e o terceiro a curiosidade
quanto ao animal (elefantes e rinocerontes). Forjamos esta nomenclatura para
facilitar o entendimento dos grupos que queremos destacar.
O medo de ataques de leões aparece em quase toda a narrativa. Galton
nitidamente preocupa-se com a possibilidade de ataques. Como viajavam com
grande quantidade de bois e outros animais, os ataques pareciam ser mais
intensificados por conta da fome dos leões. Apesar de sua preocupação, há algumas
situações em que teve que se confrontar diretamente com um desses animais30.

28
GALTON, Narrative of an explorer…, p. 283.
29
GALTON, Narrative of an explorer…, p. 283-284.
30
Segue o relato de seu quase enfrentamento com um dentre as dezenas de leões que encontrou em
sua estadia na África: “Andersson had gone to the other side of the river to reconnoiter something,
and I left my guns, &c., at the bottom of the rock, with Stewartson and the men, and ran up to fetch
the meat. I was busy tugging out the last shoulder of my trusty steed, when the men called out,
‘Good God, sir, the lion’s above you!’ I did feel queer, but I did not drop the joint, I walked steadily
down the rock, looking very frequently over my shoulder; but it was not till I came to where the men
stood that I could see the round head and pricked ears of my enemy, peering over the ledge under

326 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


Entretanto, apesar de toda esta atmosfera de tensão por conta dos leões, Galton
apresenta a informação de que estes animais não são as principais causas de morte
por ataques na localidade. Mesmo que apareça com mais frequência a figura do
leão em suas narrativas “I was curious to know what animals here were the most
fatal to man, and we counted over all the deaths that we could think of. Buffaloes
(though not common here) killed the most, then rhinoceroses, and lastly, lions”31.
Galton ainda complementa seus dados através de um testemunho: “Areep, the
predecessor of Cornelius, as chief of his tribe, was killed by a black rhinoceros. It is
curious how many people are wounded by lions, though not killed”32.
O segundo grupo condizente com a necessidade de alimentação permite-nos
avaliar o papel das girafas durante a viagem de Galton. Estes animais pareciam ser
uma boa fonte de alimento durante os trajetos e o próprio explorador inglês relata
que desempenhou uma caçada particular na busca de uma girafa. Como consta,
depois de uma perseguição de quatro horas, da qual ficou a milhas de distância do
seu grupo, conseguiu com seu rifle acertar o animal e “among some bushes, and
under a camelthorn tree stood my first giraffe”33. Além da caça é interessante notar
o apreço da carne deste animal. Outro ponto que corrobora com a valorização
da carne da girafa apresenta-se quando Galton narra a descoberta de uma girafa
que fora atacada por um leão. Em decorrência notou que um grupo se direciona
até o local com tochas para espantar o leão e tomarem-lhe a presa: “They ran
unconcernedly up to the giraffe, and frightened the lion off it, who kept roaring and
prowling about them close by, whilst they cut up the meat”34.
O terceiro e último grupo que elegemos diz respeito à curiosidade quanto ao
animal. Isto significa mostrar o esforço e a vontade de Galton em conhecer dois
tipos de animais: os elefantes e os rinocerontes. Quanto ao primeiro cabe uma
explicação para não deixar lacunas sobre a maneira como aparecem no livro, pois
se dividem em duas nomenclaturas, uma geográfica – denominada Fonte dos
Elefantes – e outra o elefante propriamente dito.
A Fonte dos Elefantes, em nossa Figura 2, surge no momento em que Galton
caminhou a leste do continente. Nesta região, a localização encontra-se sobre a
abreviação de EL.F. (Elephant Foutain). Ela está acima da região Amiral e ao oeste
de Twas e do grupo de Bushmen do leste. O lugar parecia ser um reservatório de
água onde diversos grupos de animais utilizavam. Seu nome deriva das numerosas
quantidades de elefantes que as populações locais relataram serem frequentadoras
da região. Porém, como diz o autor, “Elephants were then numerous at the place,
but they have now quitted it”35.

which I had been at work. Stewartson made a very good shot at him, but too low, splintering the
stones under his chin. It was far too dark for a good aim. It then appeared that the creatures we had
thought were deer, were really the lions. It was now useless to lie out where we had intended, as the
lions knew all about us, and proved to be far better rock-climbers than ourselves; and, as we could
not get up the tree, we returned thoroughly out-generalled”. GALTON, Narrative of an explorer…,
p. 47-48.
31
GALTON, Narrative of an explorer…, p. 264-265.
32
GALTON, Narrative of an explorer…, p. 264-265.
33
GALTON, Narrative of an explorer…, p. 53-54.
34
GALTON, Narrative of an explorer…, p. 106.
35
GALTON, Narrative of an explorer…, p. 260.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 327


No que concernem aos animais, suas pegadas pareciam ser úteis na identificação
de trilhas e rotas de acesso. O primeiro elefante aparece para Galton a pouco mais
da metade de sua narrativa. A região situa-se nos limites de Damara, em Okambuti,
ao norte do mapa. Após algumas horas perseguindo rastros de cinco elefantes,
Galton presenciou um ataque de um grupo de Damaras armados de Azagaias – um
tipo de lança curta usada para arremesso – contra um elefante, mas nenhum dano
grave foi desferido ao animal. O momento mais impressionante aparece em relação
à força do animal quando, “A dog belonging to one of the natives ran in upon the
elephant, and while the owner was trying to get the dog back, the elephant caught
the man with his trunk and threw him violently to the ground. All his ribs seemed to
be broken, and he soon died”36. O viajante inglês descreve que o elefante foi embora
e voltou dias depois quando foi alvejado com sete balas e os Damaras puderam
avançar sobre o animal37. Estes excertos são referências para estabelecermos as
várias atividades de um elefante nos locais e o contato com as populações, sejam
elas referente à alimentação, pistas de trilha ou medo de ataques.
Os rinocerontes aparecem em menor quantidade no caderno de viagem, mas
são essencialmente importantes para notarmos o deslumbre de Galton quanto a
estes animais. Entre algumas tentativas em descrever suas vivências, ele percebe
a dificuldade entre leões e rinocerontes de habitarem o mesmo território38. Mas o
que nos salta aos olhos diz respeito à agressividade do animal. Em um dos trechos
da narrativa, ele diz que recebeu a informação do agrupamento de rinoceronte no
local que estavam acampados no cair da noite e, portanto, deveriam seguir adiante.
Ressaltamos a descrição de Galton sobre as mortes em decorrência do ataque deste
mamífero: “Forty were killed here about a month since; I could not doubt it, for I
counted in a small space upwards of twenty heads”39. Talvez o relato mais enfático
aconteça faz comparações entre um elefante e um rinoceronte branco:

I do not think an elephant gives anything like the idea of


bulk and power that the white rhinoceros does. An elephant
is so short, and so high upon his legs, that he looks what
jockeys would call “weedy” in com - parison to the low
and solid rhinoceros. The largest of these that we shot was
eighteen feet long and six high; the head and neck forming,
I should say, a third of the entire length. If a creature of this
size be imagined against the wall of a room, an idea may
be formed of his immense size. Their rush is wonderfully
quick; they seem to me to get up their speed much quicker
than a horse or any other animal I know. I really think that
if a rhinoceros and horse caught sight of one another at
the same instant, when not more than ten yards apart,
the beast would catch the steed. Their movements are
amazingly rapid when they receive a bullet.40

36
GALTON, Narrative of an explorer…, p. 169.
37
GALTON, Narrative of an explorer…, p. 169.
38
GALTON, Narrative of an explorer…, p. 278.
39
GALTON, Narrative of an explorer…, p. 264.
40
GALTON, Narrative of an explorer…, p. 279.

328 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


É neste momento que se destaca a iniciativa de Galton em perceber a vida animal
e de “grupos humanos” no local, além, é claro, da geografia. Seu esforço entra em
consonância quando Daniel Kevles nos adverte de que “The Royal Geographical
Society awarded him a gold medal and the Royal Society soon elected him to its
fellowship”41. A importância desta medalha foi constatada pelo próprio viajante
inglês em suas memórias à medida em que “The Geographical Medal gave me an
established position in the scientific world”42. A medalha pode ser pensada como
a legitimação de um grau de autoridade que o colocou ainda em mais destaque
como cientista do período por sua produção como viajante.

Impressões Gerais Sobre as Populações

O que pretendemos agora é trabalhar uma problemática que pode soar anacrônica
para aqueles que tomam Galton apenas como um estudioso direcionado às pesquisas
de eugenia. As análises das fontes nos rementem a algumas impressões de Galton
sobre vários povos locais. Intencionalmente destacamos determinadas passagens
a sua observação como viajante/ cientista dos “grupos humanos”. Assim, será um
problema para o leitor buscar associações e conclusões futuras de Galton nestes
excertos. Isto não exclui seu acúmulo de experiência no território africano para a
compreensão dos “tipos humanos” em tempos porvindouros, mas este trabalho
não tem o objetivo de considerá-lo após seus estudos estatísticos hereditários da
década de 1860, pelo contrário, nossa proposta é justamente perceber as visões de
viagem do até então Galton na função de explorador. Estas percepções corroboram
com o que podemos chamar da sua compreensão em diferenças “raciais” entre
ingleses e povos africanos, mas ela responde às particularidades das construções
“raciais” da aristocracia e do seu contexto temporal.
Em primeiro lugar, a partir da Fig. 2 podemos considerar a localidade ocupada
pelos Damaras para as nossas impressões iniciais. Esta região foi explorada por
Galton no curso da viagem e, não à toa, os relatos acabaram sendo constantes
sob seu modo de vida. Aliás, notaremos em muitas de suas falas o juízo de valor e
adjetivações congregadas a este grupo, o que, para nós, reflete no seu acúmulo de
experiências sociais inglesas.
As notas iniciais de Galton concernem ao interesse comercial dos Damaras
pelo ferro. Em uma breve comparação, ele expõe a importância do ferro para
os Damaras, pois, “The Damaras adore iron as we adore gold”43. Entretanto, ele
parece demonstrar certa irritação ao ter que negociar um espaço ou se comunicar
com este povo:

I could find no pleasure in associating and trying to chat


with these Damaras, they were so filthy and disgusting in
every way, and made themselves very troublesome. My
mules were watched and taken out to graze by two natives,

41
KEVLES, In the name of eugenics..., p. 06-07.
42
GALTON, Memories of my life..., p. 151.
43
GALTON, Narrative of an explorer..., p. 93.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 329


whom I fed and paid at the rate of a yard of iron wire per
month.44

Além desta crítica, ele também dissertou sobre os roubos feitos pelo grupo.
Esta dificuldade é relatada em nossa fonte durante toda a viagem, pois além dos
animais que poderiam matar o gado, os roubos seriam uma constante: “They
always crowded round us and hemmed us in, and then tried to hustle us away from
our bags and baggage. They have an impudent way of handling and laying hold
of everything they covet, and of begging in an authoritative tone, laughing among
themselves all the time”45. As preocupações com os furtos tornam-se compreensíveis
tendo em vista que Galton financiava a expedição e temia correr riscos de ficar sem
recursos.
As comparações entre seus valores da sociedade inglesa com o novo território
tornaram-se recorrentes. Talvez, uma forma de compreender aqueles o “Outro”
estaria em tentar definir semelhanças e diferenças com a sua própria sociedade.
Esta evidência aparece em sua apreensão com algumas práticas do Damaras e
também ao ouvir sobre a existência de um povo que seria “mais civilizado” e viveria
ao norte da região que estava. Galton mostra um grande êxtase em conhecê-los.
Assim, ao comparar os Damaras com Ovampos, dirá que os primeiros são relativos
aos trabalhadores ingleses:

A nation called the Ovampo were said to live in that


direction, a very interesting agricultural people, who,
according to Damara ideas, were most highly civilised. I
wished much to go to them; they were the only people
worth visiting that I could hear of; but I could find out very
little regarding them. These savages were as ignorant of
the country two days’ journey off as an English labourer
usually is.46

O que pode ser sublinhado no excerto acima é a noção de “mais civilizado” em


contraponto ao “menos civilizado” ou “selvagem”. Um critério comum no contexto
de Galton em que se fazia a medição desses “termômetros civilizatórios” a partir
da sua noção de comunidade imaginada. Como expressou Benedict Anderson a
respeito da dominação europeia, em especial a inglesa nas colônias, pressupunha-se
uma superioridade inata e herdada sobre os colonizados e se “[...] os lordes ingleses
eram naturalmente superiores aos outros ingleses, isso não importava: esses outros
ingleses também eram, da mesma forma, superiores aos povos submetidos”47.
Mesmo distante temporalmente do sentido da eugenia e hereditariedade de Galton
não significa que ele estava avesso às “noções raciais” e da constituição de locais
“civilizados” e “incivilizados” ou grupos “racialmente inferiores”. Isto, proveniente
também de uma concepção aristocrática inglesa e de teses raciais que faziam parte

44
GALTON, Narrative of an explorer..., p. 82.
45
GALTON, Narrative of an explorer..., p. 99.
46
GALTON, Narrative of an explorer..., p. 86.
47
ANDERSON, Comunidades imaginadas..., p. 210.

330 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


do imaginário do período. Por isso, não se trata de aproximá-lo à eugenia nesse
momento, mas sim àquela atmosfera racial da qual fazia parte.
A partir de sua experiência social europeia, Galton, assim como muitos viajantes
faziam suas comparações e, estas, podem ser retrato do que aludimos ao “choque
entre sociedades distintas” ou como melhor definiu Mary Louise Pratt “zona de
contato”: “[...] espaço de encontros coloniais, no qual as pessoas geográfica e
historicamente separadas entram em contacto umas com as outras e estabelecem
relações contínuas, geralmente associadas a circunstâncias de coerção, desigualdade
radical e obstinada”48. Talvez, as comparações compreendessem também na esfera
de inteligibilidade para a sociedade que transmitiria seus escritos.
Um excerto especial sobre os grupos Hotentotes satisfaz as comparações entre
ingleses e as populações africanas que encontrou em sua viagem. Deve-se ter
cautela com este trecho, pois ele trabalha com a ideia do “rosto criminoso”:

The greater part of the Hottentots about me had that peculiar


set of features which is so characteristic of bad characters in
England, and so general among prisoners that it is usually,
I believe, known by the name of the ‘felon face’; I mean
that they have prominent cheek bones, bullet shaped
head, cowering but restless eyes, and heavy sensual lips,
and added to this a shackling dress and manner. The ladies
have not universally that very remarkable development
which was so striking in Petrus wife at Barmen. It is a
peculiarity which disappears when one of the parents have
European blood, while other points, more especially the
absence of white at the root of the finger nails, remain after
many crosses with the Dutch. Some few of the lads and
girls have remarkably pleasing Chinese -looking faces.49

A tese do “rosto criminoso” característico de pessoas “delinquentes” da


Inglaterra deve ser observada com cuidado em sua interpretação. Visto sob outros
prismas, esta frase se torna um convite para o anacronismo. Para Galton, os “ossos
proeminentes da face” e a cabeça em forma de “bala” seriam características
anatômicas que aproximariam o indivíduo ao “homem criminoso”. Na segunda
metade do século XIX esta abordagem antropométrica relacionada à conduta social
humana aparecerá com impacto por meio da Escola de Antropologia Criminalista
de Cesare Lombroso – a exemplo do livro Criminal Man. Galton, inclusive, na
sua obra Inquires into human faculty and its development (1883), busca na noção
antropométrica a idealização das fotografias como registro de medição.
Apesar da popularização da antropometria ser uma característica do final dos
anos de 1850, Claude Blanckaert50 com a criação da Société d’Anthropologie de

48
PRATT, Mary Louise. Os olhos do Império: relatos de viagem e transculturação. Bauru: EDUSC,
1999, p. 31.
49
GALTON, Narrative of an explorer..., p. 123-124.
50
BLANCKAERT, Claude. “Lógicas da antropotecnia: mensuração do homem e bio-sociologia
(1860-1920)”. Revista Brasileira de História, São Paulo, ANPUH, vol. 21, n. 41, 2001, p. 147.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 331


Paris, por Paul Broca, a classificação humana era um conhecimento compartilhado
dentro de parte da ciência do período. As teses de Buffon (1707-1788) e de
Cornelius de Pauw (1739-1799) ainda no século XVIII assinalavam uma concepção
hierarquizante dos indivíduos51. Galton foi herdeiro da atmosfera da discussão de
categorização racial que surgia com força nas interpretações do homem, inclusive
com a utilização de métodos matemáticos. As diferenças humanas tornavam-se
cada vez mais um objeto de análise da ciência do período.
Ao convocarmos o Inquires into human faculty and its development podemos
fazer um contraponto pertinente. Ao final do excerto nas narrativas de 1853 ele dirá
da infusão do sangue europeu – mas especificamente o holandês – onde algumas
características desaparecem nos Hotentotes. Quando olhamos, posteriormente, a
obra de 1883, entendemos como ele se lembra da questão e da miscigenação
para a mudança antropométrica com a fusão de sangue entre aqueles povos e
holandeses: “Lastly, the steadily encroaching Namaquas, a superior Hottentot race,
lived on the edge of the district. They had very much more civilization than the
Bushmen, and more than the Damaras, and they contained a large infusion of
Dutch blood”52. Galton, quando pensa a questão três décadas depois, percebe
esta relação. Em outras palavras, a experiência da viagem serviu para seus estudos
antropométricos que realizará décadas depois. Sendo assim, ela não deve ser
entendida de forma contrária, como se nas viagens da década de 1850 estas
concepções fossem presentes em suas observações.
Neste momento há uma curiosidade científica/ racial por parte das medições e,
isso pode ser verificado ao citar a vontade em comparar as medidas entre a esposa
de Petrus e Jonker:

The result is, that I believe Mrs. Petrus to be the lady who
ranks second among all the Hottentots for the beautiful
outline that her back affords, Jonker’s wife ranking as the
first; the latter, however, was slightly passee, while Mrs.
Petrus was in full embonpoint. I profess to be a scientific
man, and was exceedingly anxious to obtain accurate
measurements of her shape; but there was a difficulty in
doing this. I did not know a word of Hottentot, and could
never therefore have explained to the lady what the object
of my foot- rule could be; and I really dared not ask my
worthy missionary host to interpret for me. I therefore felt
in a dilemma as I gazed at her form, that gift of bounteous
nature to this favoured race, which no mantuamaker, with
all her crinoline and stuffing, can do other- wise than humbly
imitate The object of my admiration stood under a tree,
and was turning herself about to all points of the compass,
as ladies who wish to be admired usually do. Of a sudden

51
Cf.: SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no
Brasil – 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 43-46.
52
GALTON, Francis. Inquiries into human faculty and its development. Londres: Macmillan & Co.,
1883, p. 314.

332 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


my eye fell upon my sextant; the bright thought struck
me, and I took a series of observations upon her figure in
every direction, up and down, crossways, diagonally, and
so forth, and I registered them carefully upon an outline
drawing for fear of any mistake; this being done, I boldly
pulled out my measuring-tape, and measured the distance
from where I was to the place she stood, and having thus
obtained both base and angles, I worked out the results by
trigonometry and logarithms.53

Esta questão pode esclarecer de maneira mais satisfatória a ânsia de Galton nas
medições. Ele se classificava como um “homem de ciência” e, consequentemente,
despertava o interesse em medir fisicamente aquela mulher para o qual viu em
suas formas um curioso interesse antropométrico e matemático. Contudo, dois
problemas surgem. O primeiro seria a dificuldade em se comunicar com as
populações que viviam na região, uma vez que não professava a língua matriz. O
segundo consistiria na complexidade em tentar transmitir as mensagens com seu
intérprete, pois não saberia como estas, simbolicamente, seriam recebidas. Daí em
diante, a descrição do viajante inglês sobressai na vontade em delimitar as medidas
imaginando as formas da mulher por meio de trigonometria e logaritmos. Havia
uma aspiração de compreender aqueles povos não unicamente no sentido as suas
constituições físicas, mas também em suas práticas de vivência.
A utilização de conceitos matemáticos – como as medidas do astrônomo Jean
Baptiste Joseph Delambre (1749-1822) – esteve presente entre os viajantes. A
trigonometria pode ser observada no uso de Humboldt, e que antecede a Galton.
Para ilustrar, “le 1er septembre 1799, écrivant de Cumana au baron de Zach, il
pouvait lui annoncer qu’il avait ‘déterminé trigonométriquement’ en se ‘servant
de quelques triangles’ la position de deux localités, tout en ajoutant qu’il faisait
plus confiance aux ‘expériences astronomiques’”54. Dessa forma, quando Galton
pensa na trigonometria e nos logaritmos, ele dispõe de uma maneira de enxergar o
“Outro” por seu conhecimento estatístico e matemático de sua formação.
Uma de suas observações mostrou como os Damaras são péssimos guias. No
documento ele diz que: “A Damara never generalizes; he has no one name for a
river, but a different name for nearly every reach of it”55. Isto se deve em comparação
à maneira como os Damaras observam seus referenciais de trajetos. Para Galton,
os europeus conseguiam discernir pontos distantes, já para os Damaras, essa
realização seria em curtas distâncias, somada com a atenção aos detalhes locais a
exemplo de uma pedra ou de alguma coisa que remetesse a objetos conhecidos.
Eles não faziam “mapas mentais”, o que para Galton, facilitaria.
Esta questão que aparenta ser casual e suscita elementos vistos na historiografia.
A desapropriação desses viajantes perante a noção do conhecimento africano

53
GALTON, Narrative of an explorer..., p. 88.
54
DROUIN, Jean-Marc. “Analogies et contrastes entre l’expédition d’Egypte et le voyage d’Humboldt
et Bonpland”. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, Fiocruz, vol. 8, supl., 2001,
p. 845.
55
GALTON, Narrative of an explorer..., p. 177.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 333


interage com a tentativa de deslegitimá-lo diante o conhecimento científico
europeu56. Clives Barnett compreende a tentativa do europeu e, em nosso caso o
inglês e a RGS, em dar credibilidade à descrição do viajante perante o discurso do
nativo e, isto equivale a “This operation amounts to the discursive dispossession
of non-European subjects of their authority over knowledge”57. Por este viés, é
possível entender como Galton percebia o aparato científico que o legitimava sob
o auspício da RGS em contrapartida aos povos que tinham seus próprios métodos
que, neste caso, não fazia sentido na sua concepção.
Durante a viagem ele contou com um tipo diferente de animal que o guiou
e possuía uma relevante representação social para alguns grupos locais, o boi.
Inicialmente pareceu estranhar a ideia de “cavalgar” sobre bois e não cavalos.
Sendo assim, ele observou um respeito local entre os Damaras e estes animais,
pois, “Damaras have a great respect, almost reverence, for oxen”58. O animal, entre
outras práticas de vivência dos Damaras, estaria também representado no ritual de
morte:

Af ter death the corpse is placed in a squatting posture,


with its chin resting on its knees, and in that position is
sewn up in an old ox-hide (the usual thing that they sleep
on), and then dropped down into a hole that is dug for
it, the face being turned to the north, and covered over;
lastly, the spectators jump backwards and forwards over
the grave to keep the disease from rising out of it. A sick
person meets with no compassion; he is pushed out of his
hut by his relations away from the fire into the cold; they do
all they can to expedite his death, and when he appears to
be dying, they heap ox-hides over him till he is suffocated.
Very few Damaras die a natural death.59

A descrição é elucidativa quanto ao ritual em pauta. O couro de boi desempenharia


uma função dentro do cerimonial que estabeleceria o poder simbólico do animal
no momento da morte. Portanto, isso nos leva a crer que Galton não se focou
apenas na análise geográfica, ele procurou compreender como os habitantes locais
atuavam em situações do seu dia a dia. Isto se deve tanto para o complemento
do seu relato como um interesse particular nos estudos daquelas pessoas – e a
medição anatômica pode ser considerada como um exemplo. Ele não se limitou a
descrições populacionais, mesmo que elas apareçam por quase toda a fonte.
Gebara, ao estudar o viajante inglês Richard Francis Burton (1821-1890) na
década de 1850, em sua viagem à África Oriental, apresenta uma visão semelhante

56
GEBARA, A África presente..., p. 110.
57
BARNETT, Clives. “Impure and Worldly Geography: the Africanist Discourse of the Royal Geographic
Society”. Transactions of the Institute of British Geographer, New Series, vol. 23, n. 2, 1998, p. 244.
Disponível em: <http://www.academia.edu/3768108/Impure_and_worldly_geography>. Acesso
em: 07 jul. 2014.
58
GALTON, Narrative of an explorer..., p. 138.
59
GALTON, Narrative of an explorer..., p. 190.

334 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


de como Galton, por vezes, enxergaria as populações que manteve contato. Ao se
debruçar sobre os escritos de Burton, o autor afirma que é preciso analisar a “[...]
função da sua posição social e política no interior da Inglaterra, ou seja, é preciso
pensar como suas representações podem estar relacionadas com transformações
que colocavam em xeque uma concepção conservadora e aristocrática de estrutura
social”60 Núncia Santoro de Constantino vai ao encontro desta prerrogativa ao
versar que “os olhares dos viajantes são etnocêntricos, porque são influenciados por
um dispositivo que, segundo Foucault reagrupa determinado conjunto de crenças,
valores ou representações, próprios de determinada época e de determinado grupo
social”61.
Esta consequência pode ser observada no próprio recorte temporal dos viajantes
ingleses ao diferenciarmos as percepções dos nativos entre o missionário inglês
David Livingstone (1813-1873) e Galton, por exemplo. Para Gebara, enquanto o
primeiro acreditava na possibilidade de melhorar as condições de vida na África, o
segundo percebia a questão de inferioridade entre “grupos humanos” que seriam
insuperáveis62. Os escritos de Livingstone e Galton inspiraram homens como do
geólogo escocês Rodrick Murchison (1792-1871) no mapeamento da África63.
O próprio termo “raças” nos textos de Burton transformava-se mediante seus
relatos de viagens. Analisando três livros da década de 1850, Gebara percebeu
o viajante partindo de interpretações degeneracionistas dos nativos e, em outro
momento, elegendo-os como um grupo de “selvagens” que caminhavam para o
“progresso”64. Seja como for, torna-se importa perceber uma visão construída que
poderia variar de autor para autor, mas que se une a condição do europeu como
superior estando em um degrau acima da “evolução humana” e vinculada a um
contexto de análise sobre as “diferenças humanas”.
Independente de como viajantes como Galton, Levingstone e Burton abrangiam
as localidades que exploravam não se pode ignorar as interpretações que obtiveram
das populações humanas e como estão entrelaçadas na busca de um conhecimento
local que seria um dos parâmetros de instituições como RGS e do senso imperialista
da Inglaterra.

Considerações Finais

A primeira dificuldade que encontramos ao estudar a narrativa de viagem


refere-se à própria temporalidade e contexto de Galton no reconhecimento que
possui em sua trajetória como cientista. Atrelado ao conceito de hereditariedade
e eugenia – e suas consequências como interpretação de uma ciência – é quase
um desafio pensá-lo antes destes estudos e discriminar seu entendimento por

60
GEBARA, A África presente..., p. 33.
61
CONSTANTINO, Núncia Santoro de. “Introdução”. In: __________ (org.). Relatos de viagem como
fontes à história. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012, p. 13.
62
GEBARA, A África presente..., p. 111.
63
STAFFORD, Robert A. Scientist of empire: Sir Rodrick Murchison, scientific exploration and
Victorian imperialism. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1989, p. 156.
64
GEBARA, Alexsander Lemos de Almeida. “As representações populacionais de Richard Francis
Burton: uma análise do processo de constituição do discurso sobre populações não europeias no
século XIX”. Revista de História, São Paulo, USP, n. 149, 2003, p. 204-205.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 335


“raças”. Na trilha deste “problema temporal”, deve-se tomar cuidado com os
anacronismos ou tentativas de direcionar seu pensamento para algo posterior
mediante a bagagem de informações que o historiador tem hoje sobre o cientista
novecentista. Portanto, quando se analisa determinadas afirmativas das viagens
necessitamos de cautela com conclusões pré-definidas ou tentativas de ligações
com momentos posteriores de suas pesquisas. É observável que sua experiência
nestas aventuras ajudou-o em suas fases de maturação a pensar os ditos “grupos
humanos”, porém, não podemos trazer para o jovem viajante Galton o peso de
suas considerações científicas décadas depois. O objetivo deste estudo foi apontar
elementos de investigação de Galton antes da década de 1860 por meio de suas
narrativas de viagem e voltado a preocupações do campo científico em que atuou.
Isto não significou ausência de qualificações entre “raças” em sua viagem.
Ele compreendia as populações em graus de “civilização” diferenciadas. Como
elencamos no texto, ele compreenderia, entre outras, que os Ovampos seriam mais
“civilizados” que os Damaras, por exemplo. Este argumento não é suficiente para
situá-lo em suas pesquisas de décadas mais tarde, mas, para notar como um inglês
do seu tempo que, dentro do âmbito científico e conhecedor do debate “racial”
vigente, projetava sua própria visão daquilo que entendia como relação aos povos
que conheceu. Não à toa, as relações da sociedade inglesa foram chamadas à baila
para comparações em alguns momentos, a saber, o sentido de direção geográfica
de um nativo em contraponto a um inglês ou à criminalidade entre nativos e
criminosos ingleses.
Ademais, assim como Capel e Gebara, situamos a relevância do viajante para a
consolidação de um movimento expedicionário crescente na África na década de
1850 que contou com o incentivo da RGS. Galton, como tantos outros viajantes
deste período, formaram um elo de conhecimento do território que, posteriormente
contribuiu para que outros exploradores e o próprio imperialismo inglês despontem
em suas localidades. No que tange a Galton, a África foi sem dúvida um “laboratório
biológico” que pôde ajudá-lo a interpretar diferenças na fauna, flora e “grupos
humanos” que estariam presentes em suas anotações tanto na década de 1850,
quanto nas posteriores.



336 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


RESUMO ABSTRACT
Embora Francis Galton seja mais lembrado pelas Although Francis Galton is best remembered
suas contribuições no campo da hereditariedade for his contributions in the field of heredity,
e, sobretudo, da eugenia na segunda metade do and especially of eugenics in the second half
século XIX, antes, na década de 1850, viajou of the nineteenth century before, in the 1850s,
para o sudoeste africano sob o auspício da Royal travelled to South West Africa under the auspices
Geographical Society na busca de explorar, of the Royal Geographical Society in seeking to
anotar e mapear novos territórios. Esta pesquisa explore, annotate and map new territories. This
pretende contribuir com uma perspectiva do research aims to contribute with an overview
seu contato com diferentes povos da região e of their contact with different peoples of the
como descreveu por meio de uma narrativa region and as described through a narrative of
suas impressões sobre vida local, seja animal ou his impressions of local life, whether animal or
humana. human.
Palavras Chave: Francis Galton; Viajantes; Keywords: Francis Galton; Travellers; Southwest
Sudoeste da África. Africa.

Artigo recebido em 24 abr. 2015.


Aprovado em 23 out. 2015.

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A ESCRITA DA HISTÓRIA
NO BRASIL OITOCENTISTA:
O LUGAR DA PROVÍNCIA DO CEARÁ

Leandro Maciel Silva1

No início do século XIX a colônia espanhola dividia-se


administrativamente em quatro vice-reinados, quatro
capitanias-gerais e 13 audiências, que no meio do século
se tinham transformado em 17 países independentes. Em
contraste, as 18 capitanias-gerais da colônia portuguesa,
existentes em 1820 (excluída a Cisplatina), formavam, já
em 1825, vencida a Confederação do Equador, um único
país independente.2

Em se tratando da formação do estado nacional brasileiro no século XIX, a


citação de José Murilo de Carvalho é quase obrigatória. Suas inquietações com
relação à unidade política do Estado brasileiro em detrimento da fragmentação das
ex-colônias espanholas na América servem, em grande medida, para as reflexões
desde trabalho. A pergunta não poderia ser outra: por que o Brasil se constituiu
em um só país enquanto a colônia espanhola se fragmentou em diversos países?
Para além da comparação e em outras palavras: como se deu a unidade do Estado
brasileiro?
Essa diferença entre as antigas colônias está concentrada em dois pontos, como
nos indica José Murilo de Carvalho. O primeiro, diz respeito a unidade política de
um caso, com a fragmentação do outro. O segundo, refere-se ao tipo de sistema
político implementado. Em A Construção da Ordem José Murilo refuta os estudos
realizados até então para explicar essa diferença entre as ex-colônias. Com isso,
rejeita as explicações de ordem administrativa, embora reconheça as grandes
diferenças entre os estilos coloniais português e espanhol. O autor defende que
esse fator não é suficiente para justificar o resultado, mesmo sendo mais aparente
a centralidade na administração portuguesa. Ele expõe a fragilidade dessa
administração analisando os conflitos de autoridade entre o vice-rei e os capitães-
gerais. A administração, composta por vice-reis e capitães gerais, não sustentaria
por si só a unidade da colônia portuguesa, por causa das disputas de interesses
nessa administração.
Outra explicação questionada por José Murilo é de natureza política. Apontava-
se que a presença da Corte na transição da Colônia para o Império teria tornado
possível a solução monárquica no Brasil e a consequência imediata teria sido a
unidade do país e um governo relativamente estável. Apesar de reconhecer a
importância dessa questão, José Murilo defende que a “independência viria com ou

1
Doutorando em História pela Universidade Federal de Santa Catarina. Bolsista Capes-DS. E-Mail:
<leandro.macielsil@gmail.com>.
2
CARVALHO, José Murilo de. A construção da Ordem: a elite política imperial/ Teatro de sombras:
a política imperial. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 13.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 339


sem rei e a monarquia. O fato de ter vindo com ambos deveu-se fundamentalmente
a uma opção política entre outras alternativas possíveis”3.
Duas outras explicações analisadas pelo autor são de natureza social e
econômica. A primeira defende que “o declínio do ciclo mineratório nas colônias
espanholas ainda no século XVII e o refluxo para a agricultura teriam levado ao
maior isolamento dos vários centros coloniais, ao passo que o surto mineratório
brasileiro, vindo mais tarde, teria proporcionado maior integração”4. Entretanto,
mesmo reconhecendo a grade capacidade de criação de laços econômicos do ciclo
do ouro, José Murilo aponta que essa atividade começara a declinar também na
América portuguesa na segunda metade do século XVIII, podendo-se verificar o
mesmo refluxo para a agricultura.
A segunda explicação de natureza social e econômica refere-se à escravidão.
Diz-se que a centralidade favorecia a manutenção da escravidão, que teria a
capacidade de conter as iniciativas abolicionistas nas províncias e evitaria, para o
caso da fragmentação, possíveis revoltas escravas pela diferença que se daria entre
países escravistas e não-escravistas. Para esse caso, José Murilo avalia:

O argumento é plausível, mas pede qualificações. A primeira


é que a fragmentação em si poderia também fortalecer a
escravidão nas províncias em que elas tivessem mais peso
econômico. O medo não era da fragmentação em si, mas
da guerra civil [como no caso da revolta dos escravizados
na colônia francesa de Santo Domingo – Haiti]. A segunda
é que a aspiração de manter unida a ex-colônia para se
construir no Brasil um poderoso império antecedia a
preocupação com a preservação da escravidão, já vinha de
antes da chegada da Corte portuguesa ao Rio de Janeiro.5

Essas análises serviram de ponto de partida para que José Murilo de Carvalho
lançasse mão de sua tese sobre a unidade na formação do Estado brasileiro. Suas
proposições estão organizadas em A Construção da Ordem e o Teatro de Sombras.
Em A Construção da Ordem, o autor esteve mais interessado em perceber a
composição do Estado brasileiro, analisando a elite política imperial. No Teatro das
Sombras, o interesse foi de perceber a própria política imperial e seus mecanismos
de funcionamento.
A tese de José Murilo de Carvalho é que “a adoção de uma solução monárquica
no Brasil, a manutenção da unidade da ex-colônia e a construção de um governo
civil estável foram em boa parte consequência do tipo de elite política existente à
época da Independência, gerado pela política colonial portuguesa”6. A unidade
do caso brasileiro deveu-se, portanto, ao tipo de elite política. Essa elite, segundo
o autor, “caracterizava-se sobretudo pela homogeneidade ideológica e de

3
CARVALHO, A Construção da Ordem..., p. 15.
4
CARVALHO, A Construção da Ordem..., p. 15.
5
CARVALHO, A Construção da Ordem..., p. 19.
6
CARVALHO, A Construção da Ordem..., p. 21.

340 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


treinamento”.
Outros trabalhos dão conta da formação do Estado brasileiro, oferecendo-nos
interpretações, por vezes complementares, mas em outros casos completamente
divergentes. Para citar alguns dos trabalhos mais notáveis sobre o século XIX e a
formação do Estado Nacional brasileiro, cito os trabalhos O Minotauro imperial,
de Fernando Uricoechea7, que analisa a formação do Estado através de sua
burocratização, e também da criação, em 1831, da Guarda Nacional – o minotauro
imperial, para o autor. Outro trabalho que merece referência em se tratando da
formação do Estado imperial é O tempo Saquarema, de Ilmar de Mattos8. Nesse
trabalho, o autor defende que existiu no Brasil uma elite conservadora dirigente que
teria marcado a centralização do Estado imperial, os Saquaremas. Essa elite teria
conseguido neutralizar as ações políticas de grupos progressistas, os Luzias (liberais),
e impedindo insurreições populares. Entretanto, a tese de Miriam Dolhnikoff9 se
contrapõe à efetividade do “projeto centralizador” apontado por Ilmar Mattos. A
autora defende que teria existido um pacto federalista, fruto de uma negociação
entre o governo central e as províncias, de suma importância para a constituição do
Estado imperial brasileiro. O pacto imperial, o qual defende Dolhnikoff, manteve
a “unidade” junto à “autonomia”. Foi “um arranjo institucional adotado como
estratégia de construção do Estado, cuja principal característica é a participação e
a coexistência de dois níveis autônomos de governo (regional e central) definidos
constitucionalmente”10. Esse arranjo seria o federalismo. Assim, o federalismo teria
contribuído à unidade, não o projeto centralizador de uma elite dirigente, como
defende Ilmar Mattos.
Temos, portanto, teses complementares e antagônicas. Divergem mais
diretamente as teses de Ilmar Mattos e Miriam Dolhnikoff. No entanto, nas suas
defesas contém um elemento de grande valia para este trabalho, qual seja, projetos
de Estado e a disputa de interesses entre as províncias e o governo central.
Dado a intensidade em que esse assunto foi tratado nas casas legislativas do
Império entre as décadas 1820 e 1850 – segundo Ilmar Mattos e Miriam Dolhnikoff –,
podemos supor que esse assunto estava difundido pelos diversos setores vinculados
ao governo imperial. Não se tem um trabalho voltado para perceber essas tensões
no interior de instituições como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro –
IHGB, cuja função foi marcadamente colaborar com o projeto político do Segundo
Reinado. No entanto, pela difusão e intensidade dessa questão à época, e pela
vinculação política dos intelectuais que compunham o IHGB, podemos inferir que
em maior ou menor grau essas tensões influenciaram o interesse sobre o lugar das
histórias provinciais na escrita da história nacional no século XIX. Segundo Manoel
Luiz Salgado Guimarães11, a história regional foi um dos três temas mais tratados

7
URICOECHEA, Fernando. O Minotauro imperial: a burocratização do Estado patrimonial brasileiro
no século XIX. Rio de Janeiro: Difel, 1978.
8
MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec; Brasília: INL, 1987.
9
DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil. São Paulo: Globo,
2005.
10
DOLHNIKOFF, Miriam. “Elites regionais e a construção do Estado Nacional”. In: JANCSÓ, István
(org.). Brasil: a formação do Estado e da Nação (c. 1770-1850). São Paulo: Hucitec, 2003, p. 433.
11
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. “Nação e civilização nos trópicos: o IHGB e o projeto de uma

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 341


na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – RIHGB.
O objetivo do presente artigo é perceber como as histórias provinciais foram
pensadas e tratadas por alguns dos pronunciamentos mais importantes do IHGB
com relação à escrita da história nacional no século XIX12. Os documentos
analisados serão: “Discurso no ato de estatuir-se o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro”, de Januário da Cunha Barbosa, publicado na RIHGB em 183913; a
monografia “Como se deve escrever a história do Brasil”, de Karl Friederich Phillipe
von Martius, escrita em 1843 e publicada na RIHGB em 184514; e a “Dissertação
acerca do sistema de se escrever a história antiga e moderna do Império do Brasil”,
de Raimundo José da Cunha Matos, escrita em 1838 e publicada na RIHGB em
186315. Pretendo também apresentar um projeto de escrita da história provincial
subjugado ao IHGB, que concedeu o posto de sócio ao seu autor, o cearense
Tristão de Alencar Araripe. A obra chama-se História da Província do Ceará –
desde os tempos primitivos até 1850, publicada em 186716.

O IHGB e Escrita da História Nacional

O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro foi um dos principais órgãos do


Estado brasileiro do século XIX e a sua função foi promover os estudos sobre os
aspectos históricos e geográficos do Brasil17.
A História nacional do Brasil pretendida pelo IHGB teria de se fazer em
consonância com a ordem emergente do Estado brasileiro, ou seja, de acordo
como o projeto imperial a partir de 1840, que tinha como figura central D. Pedro
II. O Instituto contribuiria decisivamente para legitimar esse projeto imperial,
colaborando para a centralidade e para o ideal nacional. O Brasil estava se
consolidando como Estado, mas precisava se forjar também como Nação. Uma das

história nacional”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, CPDOC-FGV, vol. 1, n. 1, 1998, p. 05-27.
12
O critério de escolha se deu pela ordem de importância dos pronunciamentos, dois deles feitos
pelos sócios fundadores do IHGB, Januário da Cunha Barbosa e Raimundo José da Cunha Matos,
e por Martius, ganhador do concurso como se deve escrever a história do Brasil. São documentos
importantíssimos porque representam as posturas divergentes dentro do IHGB.
13
BARBOSA, Jannuario da Cunha. “Discurso”. Revista Trimensal de História e Geographia ou Jornal
do Instituto Historico e Geographico Brasileiro, Rio de Janeiro, IHGB, tomo 1, n. 1, 1839, p. 09-17.
14
MARTIUS, Karl Friederich Phillipe von. “Como se deve escrever a historia do Brasil”. Revista
Trimensal de Historia e Geographia ou Jornal do Instituto Historico e Brasileiro, Rio de Janeiro,
IHGB, tomo 6, n. 24, jan. 1845, p. 381-403.
15
MATTOS, Raimundo José da Cunha. “Dissertação acerca do sistema de escrever a história antiga
e moderna do Império do Brasil”. Revista do Instituto Histórico Geográfico e Etnográfico do Brasil,
Rio de Janeiro, IHGB, tomo XXVI, 1863, p. 121-143.
16
ARARIPE, Tristão de Alencar. História da Província do Ceará: desde os tempos primitivos até 1850.
2. ed. Fortaleza: Instituto do Ceará, 1958 [1867].
17
A leitura de autores como Manoel Luiz Salgado Guimarães e Lúcia Maria Paschoal Guimarães,
bem como a de Astor Antonio Diehl são imprescindíveis para o desenvolvimento desse tópico,
que pretende entender quais as ações empreendidas pelo IHGB para o fomento de uma escrita
da história nacional. DIEHL, Astor Antônio. A cultura historiográfica brasileira (do IHGB aos anos
1930). Passo Fundo: Ediupf, 1998; GUIMARÃES, “Nação e civilização...”; GUIMARÃES, Lúcia
Maria Paschoal. “Debaixo da imediata proteção de Sua Majestade Imperial: o Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (1838-1889)”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de
Janeiro, IHGB, ano 156, n. 388, jul./ set. 1995, p. 459-613.

342 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


características do Instituto foi a de promover a identidade nacional, o sentimento
de amor à pátria, utilizando a História para tal fim. O Estado brasileiro precisava de
uma história, de um passado representado que colaborasse com os seus projetos
de governo, requisito necessário para todas as nações – a história como a biografia
da nação, como afirmou Furet18.
No discurso de fundação do IHGB19, proferido em 1838, Januário da Cunha
Barbosa estabelece quais os objetivos do Instituto e a sua relação com a história
do Brasil20.

Eis o motivo, senhores, porque dois membros do conselho


da Sociedade Auxiliadora da Industria Nacional, e
também sócios do Instituto Histórico de Paris, participando
dos generosos sentimentos dos nossos literatos, se
animarão a propor a fundação de um instituto histórico
e geográfico brasileiro, que, sob os auspícios de tão útil
quanto respeitável sociedade curasse reunir e organizar os
elementos para a história e geografia do Brasil, espalhados
por suas províncias, e por isso mesmo difíceis de se colher
por qualquer patriota que tentasse escrever exatamente
tão desejada história.21

[...] Nós vamos salvar da indigna obscuridade, em que


jaziam até hoje, muitas memorias da pátria, e os nomes
de seus melhores filhos; nós vamos assinalar, com a
possível exatidão, o assento de suas cidades e vilas mais
notáveis, a corrente de seus caudalosos rios, a área de seus
campos, a direção de suas serras, e a capacidade de seus
inumeráveis portos. Esta tarefa, em nossas circunstâncias,
bem superior as forças de um só homem ainda o mais
empreendedor, torna-se-há fácil pela coadjuvação de
muitos Brasileiros, esclarecidos das províncias do império,
que, atraídos ao nosso instituto pela gloria nacional, que é
o nosso timbre, trarão a depósito comum os seus trabalhos
e observações, para que sirvam de membros ao corpo de
uma história geral e filosófica do Brasil. As forças reunidas
dão resultados prodigiosos; e quando os que se reúnem
em tão nobre associação aparecem possuídos do mais
encendrado patriotismo, eu não duvido preconizar um
honroso sucesso à fundação do nosso instituto histórico e

18
FURET, François. A oficina da História. Tradução de Felipe Jarro. Revisão da tradução de Adriano
Duarte Rodrigues. Lisboa: Gradiva, 1967.
19
BARBOSA, “Discurso”, p. 09-17.
20
O intuito das citações é destacar as menções sobre as histórias regionais (provinciais) bem como de
seus letrados.
21
Grifos meus. BARBOSA, “Discurso”, p. 09.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 343


geográfico.22

[...] A empresa de alguns dos nossos escritores, que tem


escrito sobre as cousas da pátria, não será perdida para
o nosso Instituto. Desse cabedal, dificilmente reunido nas
províncias pelos incansáveis e distintos literatos Berredo,
Rocha Pitta, bispo Azevedo, Monselhor Pisarro, Frei
Gaspar, Durão, visconde de Cairú e de S. Leopoldo,
conselheiro Balthasar Lisboa, Rebello, Ayres do Casal, L.
Gonçalves dos Santos, Accioli, Bellegarde e outros muitos,
se formará no nosso Instituto o corpo da historia geral
brasileira, encendrado pela filosofia de seus membros,
e ligado em todas as suas partes pelas relações de seus
factos, afim de serem dignamente compreendidos.23

Nos grifos acima, destaco três aspectos importantes: o primeiro diz respeito ao
recolhimento dos elementos da geografia e da história espalhados pelas províncias,
“e por isso mesmo difíceis de se colher por qualquer patriota que tentasse escrever
exatamente tão desejada história [a história nacional]”. O segundo aspecto
chama atenção para o trabalho conjunto de vários profissionais das províncias
que colaborariam para “uma história geral e filosófica do Brasil”, levando em
consideração a dificuldade desse trabalho por um só homem. O terceiro aspecto é
do aproveitamento dos trabalhos já realizados por escritores que se detiveram em
escrever sobre questões vinculadas às províncias, como também de outros autores
que estivessem próximos ao projeto de história nacional pretendido pelo Instituto
e pudessem colaborar.
Temos nessas passagens, os primeiros elementos para pensar numa abertura
do Instituto para os elementos de histórias provinciais que colaborassem para a
história geral do Brasil. Nela, haveria espaço para as histórias das províncias e da
colaboração de literatos que se interessaram ou que se interessassem por essas
histórias.
Passemos agora para a monografia “Como se deve escrever a história do Brasil”,
de Karl Friederich Phillipe von Martius, escrita em 1843 e publicada na RIHGB em
184524. Esse trabalho foi ganhador do concurso lançado pelo IHGB, que pretendia
lançar as bases para a escrita da história nacional. Participaram do concurso apenas
dois estudiosos: o naturalista alemão Karl F. P. von Martius e Júlio de Wallenstein.
O projeto de Wallenstein não representou a novidade pretendida pelo Instituto,
propondo o estudo da história do Brasil por décadas. Martius, por sua vez, não
recomendou uma periodização, mas sim na apresentação dos principais elementos
que deveriam constituir a história nacional, bem como os principais problemas a
serem resolvidos pelo historiador interessado em tal projeto. Para Martius, a história
do Brasil teria que ser escrita pelo que lhe havia de mais particular, ou seja, “do
encontro, da mescla, das relações mutuas e mudanças d’essas três raças”, a saber,

22
Grifos meus. BARBOSA, “Discurso”, p. 10-11.
23
Grifos meus. BARBOSA, “Discurso”, p. 16-17.
24
MARTIUS, “Como se deve...”.

344 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


“a de cor cobre ou americana, a branca ou caucasiana, e enfim a preta ou etiópica”.
Sendo o português, como era de se esperar, o “motor da história” do Brasil25.
Abaixo segue uma passagem da monografia, que destaca o lugar das histórias
provinciais na história do Império do Brasil, para Martius.

Sobre a forma que deve ter uma história do Brasil, seja-me


permitido comunicar algumas observações. As obras até o
presente publicadas sobre as províncias, em separado, são
de preço inestimável. Elas abundam em factos importantes,
esclarecem até com minuciosidade muitos acontecimentos;
contudo não satisfazem ainda as exigências da verdadeira
historiografia, porque se ressentem de mais certo espirito
de crônicas. [...]
Aqui se encontra grande dificuldade em consequência
da grande extensão do território brasileiro, da imensa
variedade no que diz respeito a natureza que nos rodeia,
aos costumes e usos e a composição da população de
tão disparados elementos. [...] O autor, que dirigisse com
preferência as suas vistas sobre uma destas circunstancias,
corria perigo de não escrever uma historia do Brasil, mas
sim uma serie de histórias especiais de cada uma das
províncias. Um outro porém, que não desse a necessária
atenção a estas particularidades, corria o risco de não
acertar com este tom local que é indispensável onde se
trata de despertar no leitor um vivo interesse e dar as suas
descrições aquela energia plástica, imprimir-lhe aquele
fogo, que tanto admiramos nos grandes historiadores.
Para evitar este conflito, parece necessário que em primeiro
lugar seja em épocas, judiciosamente determinadas,
representando o estado do país em geral, conforme o que
tenha de particular com a mãe pátria, e as mais partes
do mundo; e que, passando logo para aquelas partes do
país que essencialmente diferem, seja realçado em cada
uma delas o que houver de verdadeiramente importante
e significativo para a história. Procedendo assim, não se
devia certamente principiar de novo em cada província;
mas omitir, pelo contrario, tudo aquilo que em todas,
mais ou menos, se repetiu. Portanto, deviam ser tratadas
conjuntamente aquelas porções do país que, por analogia
da sua natureza física, pertencem umas às outras. Assim,
por exemplo, converge a historia das províncias de S.
Paulo, Minas, Goiás e Mato Grosso; a do Maranhão se liga
a do Pará, e a roda dos acontecimentos de Pernambuco
formam um grupo natural os do Ceará, Rio Grande do

25
MARTIUS, “Como se deve...”, p. 382.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 345


Norte e Paraíba. Enfim, a história de Sergipe, Alagoas e
Porto Seguro, não será senão a da Bahia.
Para um tal trabalho, segundo certas divisões gerais
do Brasil, parece-me indispensável que o historiador
tivesse visto esses países, que tivesse penetrado com os
seus próprios olhos as particularidades da sua natureza
e população. Só assim, poderá ser apto para avaliar
devidamente todos os acontecimentos históricos que
tiveram lugar em qualquer das partes do Império, explica-
los pela particularidade do solo que o homem habita; e
colocá-lo em um verdadeiro nexo pragmático para com
os acontecimentos da vizinhança. Quão diferente é o Pará
de Minas! Uma outra natureza, outros homens, outras
precisões e paixões, e por conseguinte outras conjunturas
históricas.
[...] Elas imprimirão á sua obra um atrativo particular para
os habitantes das diferentes partes do país, porque nestas
diversas descrições locais, reconhecerão a sua própria
habitação, e se encontrarão, por assim dizer, a si mesmos.
Desta sorte ganhará o livro em variedade e riqueza de
fatos e muito especialmente em interesse para o leitor
Europeu.26

Podemos ressaltar alguns pontos importantes para a reflexão sobre como


a história provincial deveria ser assumida pelo historiador nacional, a partir do
texto de Martius. Primeiro, o autor retoma a importância das obras publicadas
sobre as províncias, como faz o Januário da Cunha Barbosa, mas diz que elas são
insuficientes pelo seu espírito de crônica. Segundo, enfatiza a dificuldade de se
conhecer a diversidade do país, pela sua extensão territorial. Terceiro, diz dos riscos
do historiador do Brasil ficar voltado para as histórias provinciais, mas também
daqueles que desconsiderem sua importância. Para isso, estabelece como o
historiador deve agir com relação às histórias provinciais, retirando delas o que lhe
havia de mais essencial, particular, e omitindo as repetições. Por fim, defende que
houvesse uma convergência das histórias provinciais numa divisão em “regiões”,
para que assim os historiadores conseguissem atingir a diversidade do país. Nesse
sentido, fala da necessidade do historiador percorrer o território para perceber as
peculiaridades das diversas “regiões”.

Esta diversidade não é suficientemente reconhecida no


Brasil, porque há poucos brasileiros que tenham visitado
todo o país; por isso formam ideias muito errôneas sobre
circunstâncias locais, facto este que sem dúvida alguma
muito concorre para que as perturbações políticas em
algumas províncias só se podiam apagar depois de longo

26
Grifos meus. MARTIUS, “Como se deve...”, p. 399-401.

346 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


tempo.27

Dito isso, podemos perceber qual a relação que as histórias províncias deveriam
ter para a unidade do país.

Só agora principia o Brasil a sentir-se como um todo


unido. Ainda reinam muitos preconceitos entre as diversas
províncias: estes devem ser aniquilados por meio de uma
instrução judiciosa; cada uma das partes do Império deve
tornar-se cara às outras; deve procurar-se provar que
o Brasil, país tão vasto e rico em fontes variadíssimas
de ventura e prosperidade civil, alcançará o seu mais
favorável desenvolvimento, se chegar, firmes os seus
habitantes na sustentação da Monarquia, a estabelecer, por
uma sabia organização entre todas as províncias, relações
recíprocas. Em quanto não poucas vezes acontecerá que
os estrangeiros tentem semear a cizânia entre os interesses
das diversas partes do país, para assim, conforme ao
‘divide et impera’, obter maior influência nos negócios
do Estado; deve o historiador patriótico aproveitar toda e
qualquer ocasião afim de mostrar que todas as províncias
do Império por lei orgânica se pertencem mutuamente,
que seu propício adiantamento só pode ser garantido pela
mais íntima união entre elas.28

Assim, as histórias provinciais além de serem condições necessárias aos aspectos


historiográficos da história do Brasil, também eram tema das disputas políticas para
a unidade nacional. A história do Império do Brasil passaria necessariamente pelas
províncias, dado a necessidade de considerá-las fazendo parte da nação. Segundo
Martius, dois elementos seriam essenciais para a unidade do Estado, as relações
recíprocas entre as províncias e a manutenção e defesa da Monarquia como
elemento unificador, centralizador. O patriotismo seria, para Martius, o mecanismo
principal para motivar a cumplicidade entre as províncias e a principal característica
do trabalho do historiador.
Passemos agora, para o terceiro documento, escrito por Raimundo José da
Cunha Mattos29.

O Sr. Bellegarde quando fez o seu último discurso em


sessão do dia 15, sustentou que se deve escrever por
épocas distintas a história filosófica do Império do Brasil;
e consecutivamente apontou algumas d’essas eras,
ou períodos que lhe pareceram mais próprias para a
organização, e arranjo de toda a obra: outros senhores

27
MARTIUS, “Como se deve...”, p. 400-401.
28
MARTIUS, “Como se deve...”, p. 402.
29
MATTOS, “Dissertação acerca...”.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 347


discorreram em mesmo sentido, indicando todavia maior
ou menor numero de épocas; e ultimamente o Exm. Sr.
Visconde de S. Leopoldo, ferindo com mão de mestre
o complexo dos argumentos, mostrou, e parece-me que
muito bem, que por ora não estamos habilitados a escrever a
história geral do Império do Brasil, por nos faltarem muitos
elementos provinciais para isso necessários. – Felizmente o
Exm. Sr. visconde faz honra a minha opinião, quando quer
que indaguemos em primeiro lugar a história particular das
províncias, para com bons materiais escrevermos a história
geral do império brasileiro.30

Este documento guarda uma peculiaridade, que vale menção aqui. A “Dissertação
acerca do sistema de escrever a história antiga e moderna do Império do Brasil”,
escrita por Cunha Mattos em 1838, só foi publicada em 1863 na RIHGB, o que
pode demonstrar as tensões sobre os projetos de se escrever a história nacional no
interior do Instituto. Nessa dissertação, Cunha Mattos trata de um tema bastante
caro às discussões porvindouras da historiografia brasileira do século XIX, qual
seja, o sistema de se escrever a história antiga e moderna do Império do Brasil. A
periodização da história do Brasil era assunto recorrente entre os autores/ sócios
do IHGB, vide os casos de Henrique Júlio de Wallenstein (1843), Capistrano de
Abreu (1884) e Tristão de Alencar Araripe (1894), dentre outros textos publicados
na RIHGB.
No entanto, o que destaco na dissertação escrita por Cunha Mattos é a sua
defesa sobre o lugar que as histórias provinciais deveriam ter no projeto de história
do Império do Brasil no século XIX. Cunha Mattos, de acordo com o Sr. visconde
de São Leopoldo, defende que primeiro sejam levantados um número suficiente
de documentos e histórias das províncias, para que só assim fosse empreendido o
esforço de uma história geral do Brasil. Temos, portanto, uma postura diferenciada
com relação às histórias locais. Se para o Sr. Januário da Cunha Barbosa as histórias
sobre temas provinciais deveriam ser apenas consideradas pelo historiador nacional;
e para von Martius, elas teriam seu lugar de importância, mas que o historiador
deveria, com astúcia, retirar delas o que havia de singular e que contribuísse à
história geral; para Cunha Mattos, o intuito primeiro deveria ser o de conhecer e
pensar essas histórias. Enquanto para Januário Cunha Barbosa e von Martius a
história geral se utilizaria dos fatos históricos já escritos sobre as provinciais, para
Cunha Mattos essas histórias provinciais não eram, naquele momento, suficientes
para compor a história geral do Império do Brasil. Assim, “por ora não estamos
habilitados a escrever a história geral do império do Brasil, por nos faltarem muitos
elementos provinciais para isso necessários”. Cunha Mattos, ainda concordando
com o Sr. visconde de São Leopoldo, aponta que em primeiro lugar se deveriam
estudar as histórias provinciais, “para com bons materiais escrevermos a historia
geral do império brasileiro”.
Com isso, podemos entender um pouco do ambiente intelectual do IHGB e mais

30
MATTOS, “Dissertação acerca...”, p. 122.

348 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


especificamente as menções sobre como as histórias provinciais foram pensadas
por alguns membros do Instituto. Mas uma pergunta tem que ser feita. Qual a
contribuição feita por intelectuais sobre as histórias provinciais? Além dos fatos
comentados sobre as províncias, quais as histórias provinciais foram endereçadas ao
IHGB, com a finalidade de contribuir com a história nacional? Essas são perguntas
que devem motivar pesquisadores interessados na historiografia brasileira do século
XIX, vinculada ao IHGB e aos projetos de história nacional. Este texto pretende
apresentar um projeto de história provincial apresentado ao IHGB com a pretensão
de obtenção da condição de sócio por Tristão de Alencar Araripe.

Tristão de Alencar Araripe e a História da Província do Ceará

O autor

Tristão de Alencar Araripe nasceu no dia 07 de outubro de 1821, na vila de


Icó, na então província do Ceará. Ele foi membro de uma das mais tradicionais
famílias do sertão cearense, a família Alencar. A tradição dessa família deve-se ao
seu envolvimento político na Revolução de 1817 e na Confederação do Equador,
em 1824 – movimentos republicanos de grande magnitude, ligados também ao
próprio processo de independência do Brasil.
Tristão foi filho do tenente-coronel Tristão Gonçalves e sobrinho do senador
Martiniano de Alencar, portanto neto de Bárbara de Alencar, a matriarca da família,
heroína do movimento republicano das províncias do Norte em 1817 e 1824. A
família Alencar teve grande prestígio político no século XIX, principalmente na
primeira metade deste século, sendo difícil deixar de falar de Tristão sem essa
referência.
Formado em Direito em 1845, na faculdade de São Paulo, logo foi alocado aos
quadros do funcionalismo público e depois da política. Essa carreira, iniciada na
faculdade já era conhecida à época. Segundo José Murilo de Carvalho (2007), fazia
parte da lógica da administração pública do império aproximar os seus bacharéis
para assim ter garantido o preenchimento dos postos de trabalho, principalmente
nas províncias. Era um percurso muito comum no segundo reinado. Tendo o
bacharelado em Direito, o que se pretendia em seguida era a ocupação de uma
função pública, um cargo no executivo ou no legislativo. Era assim como um
cumprimento de etapas, primeiro a faculdade de Direito, depois o cargo público
e logo em seguida a efetivação na vida política. Não foi diferente com Tristão de
Alencar Araripe, que foi de Chefe de polícia no Ceará, Espírito Santo e Pernambuco
a presidente da província de São Pedro do Rio Grande do Sul, além de deputado
provincial e geral pelo Ceará31.
Conhecendo um pouco da formação familiar e política de Tristão de Alencar
podemos chegar ao ponto central deste trabalho. Não é pretendido aqui investigar a
familiar Alencar, apesar de ser uma iniciativa instigante pela exiguidade de trabalhos
sobre esse assunto, principalmente sobre os nomes centrais nos movimentos de

31
Esses dados foram colhidos na cronologia da trajetória política de Tristão de Alencar Araripe. Ver:
SILVA, Ítala Byanca Morais da. Tristão de Alencar Araripe e a História do Ceará. Fortaleza: Museu
do Ceará; Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, 2006, p. 102-103.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 349


dezessete e vinte e quatro (Bárbara de Alencar, Tristão Gonçalves e José Martiniano
de Alencar). O que se pretende é apresentar as principais características da
produção historiográfica de Tristão de Alencar Araripe, destacando o seu projeto
para a História do Ceará e a contribuição desta para a história nacional. Além do
livro, outros documentos poderiam ser analisados, a fim de perceber as afinidades
deste autor com a escrita da história. Seus escritos no jornal O Cearense poderiam
render muitas outras análises, que por ora não cabem às intenções deste texto.
Neles poderíamos perceber a influência da história clássica da Grécia e de Roma,
bem como os seus estudos sobre a Revolução Francesa.
Destaco agora a necessidade de uma compreensão mais apurada do livro que
teremos como centro das nossas discussões, História da província do Ceará – desde
os tempos primitivos até 1850, publicado em 1867. Para isso temos de considerá-lo
como a primeira tentativa sistemática de produção historiográfica sobre o Ceará.
De acordo com José Honório Rodrigues:

[...] sobressai como primeiro historiador cearense Tristão


de Alencar Araripe. Primeiro em ordem cronológica, um
dos primeiros na orientação e nos rumos novos que tentou
imprimir ao trabalho histórico.32

A produção de Alencar Araripe inaugura a escrita da história do Ceará, o Ceará


nasce para a História na sua escrita. É um nascimento para a historiografia.

A obra

Analisando o livro História da Província do Ceará em sua segunda edição33,


José Aurélio Câmara faz ponderações sobre essa produção no que diz respeito ao
prefácio da obra feita por Tristão e o seu conteúdo. Há um descompasso entre a
obra iniciada em 1847 e o prefácio escrito por Tristão em 1862. Isso porque o autor
nesse prefácio diz das suas intenções iniciais para a produção do livro.

Quando cursava as aulas preparatórias, tive em mãos


um compêndio da História do Brasil, no qual, tratando-
se da proclamação da independência nas províncias do
Piauí e Maranhão, dizia-se, os ‘Cearenses, como horda
de vândalos, haviam invadido essas duas províncias,
cometendo tropelias e latrocínios’.34

Logo em seguida diz das suas impressões:

No verdor dos anos essas expressões fizeram-me grave

32
RODRIGUES, José Honório. “A historiografia Cearense na Revista do Instituto do Ceará”. In:
____________ & RODRIGUES, Leda Boechat (orgs.). Índice anotado da Revista do Instituto do
Ceará (do tomo I ao LXVIII). Fortaleza: ABC Editora, 2002, p. 28.
33
ARARIPE, História da Província...
34
ARARIPE, História da Província..., p. 27.

350 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


impressão, magoando um coração juvenil, que já sentia o
amor do torrão pátrio.
Desconhecedor dos fatos não podia, contudo, crer na
realidade de expressões que, por semelhante forma,
infamavam o nome cearense.35

E do seu impulso inicial para o seu projeto:

Tomei então o propósito de oportunamente estudar os


fatos ocorridos por ocasião da independência de minha
província e quando ali, no exercício de um cargo de
judicatura, passei os anos de 1847 a 1850 procurei revolver
os documentos contemporâneos.36

Mas o interesse de Tristão de Alencar Araripe com a escrita desse trabalho não
era só explicar o processo de independência da província do Ceará. O que estava
em jogo era a reputação da família Alencar, isso porque seu pai e seu tio foram as
personagens centrais no processo de independência das províncias do Piauí e do
Maranhão, além de terem se envolvido na Revolução de 1817 e na Confederação
do Equador, em 1824:

[...] julguei dever tirar do silêncio as notas que escrevi


relativas aos acontecimentos políticos, em que meu pai
e meu tio figuraram na época da independência e da
Confederação do Equador, publicando o trabalho como
estava escrito, aguardando ocasião de o rever e corrigir, se
os tempos permitirem.37

O que mais chama a atenção nessa passagem acima é a indicação de Araripe


a um trabalho já realizado que lhe demandaria alguma correção e publicidade. O
fato é que a edição de 1867 e nenhuma outra depois dela contou com a intenção
inicial de reaver ou revisar a história da família Alencar. Ainda mais que essa era
uma das finalidades do livro, indicado pelo próprio autor no mesmo prefácio:

[...] 1º) mostrar que os cearenses, aceitando com


entusiasmo a idéia da independência nacional, são dignos
de louvor pelo importante serviço de haverem concorrido
com esforço, para que em mais duas províncias essa
independência fosse proclamada; 2º) mostrar que os
finados tenente-coronel Tristão Gonçalves e senador
José Martiniano de Alencar foram sempre guiados por
intenções retas e acrisolado amor de seu país em todos os

35
ARARIPE, História da Província..., p. 27.
36
ARARIPE, História da Província..., p. 27.
37
ARARIPE, História da Província..., p. 29.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 351


atos púbicos em que tomaram parte.38

Não é difícil perceber ao longo da leitura da História da Província do Ceará a


falta dos fatos ocorridos no início do século XIX (1800 a 1850), principalmente
por saber que seria esse o espaço de tempo mais precioso para o autor, pois foram
nos eventos dessa época que houve mais destaque de sua família. A “História” de
Tristão, que pretendia ir “desde os tempos primitivos até 1850”, finda em 1800.
Essa falta foi diagnosticada e comentada por muitos intelectuais, como Barão de
Studart e o próprio Capistrano de Abreu, como aponta Câmara no prefácio da
segunda edição, em 1958, p. VIII. José Aurélio Câmara também se interrogou
sobre essa “falta” na obra de Tristão. Aponta algumas possibilidades, mas não
chega a uma compreensão efetiva sobre a questão.
Interessada por esse assunto, principalmente para compreender o que pode ter
acontecido para haver esse descompasso entre as intenções de Tristão, colocadas
no prefácio, e a obra escrita, a historiadora Ítala Byanca Morais da Silva escreveu o
trabalho Tristão de Alencar Araripe e a História do Ceará (2006). A abordagem da
autora tentou perceber essa questão como uma escolha, não como uma falha. Para
isso, o percurso traçado pela autora foi de perceber a trajetória de Tristão, sua vida
e o seu lugar social. Uma estratégia acertada, pela possibilidade da visualização do
lugar social que o autor estava inserido. Na conclusão de seu trabalho, Ítala Byanca
aponta:

Tristão de Alencar Araripe antes de ser um historiador era


um político e um funcionário público ligado diretamente
ao governo imperial. Qualquer tipo de colocação indevida
sobre a Confederação do Equador ou qualquer movimento
que incitasse a fragmentação do império poderia resultar
na sua expulsão ou exílio desse “campo do poder”. Assim
Araripe não escreveu a história do Ceará mostrando a
importância da sua família, escreveu uma história atrelada
aos cânones do IHGB, com temática indígena e mostrando
os caminhos do povoamento e colonização do Ceará.39

E assim a questão tão comentada sobre a produção da História da Província do


Ceará ganha outro patamar de compreensão. Restando aos leitores dessa obra e
atentos a essa discussão especular sobre a possibilidade de textos não encontrados
de Tristão sobre a história da família Alencar40.

38
ARARIPE, História da Província..., p. 29.
39
SILVA, Tristão de Alencar..., p. 80-81.
40
HRUBY, Hugo. O século XIX e a escrita da história do Brasil: diálogos na obra de Tristão de
Alencar Araripe (1867-1895). Tese (Doutorado em História). Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2012. Defendida em março de 2012, a tese de Hruby oferece mais
questões sobre a inexistência desses textos. Nela, ele afirma que Tristão escreveu sobre o assunto,
ainda em 1862, e que o texto teria sido publicado no Diário de Pernambuco. Sendo assim, para
Hruby, a tão comentada 2ª parte da História da Província do Ceará já teria sido escrita e publicada.
Em pesquisa na Fundação Joaquim Nabuco, em Recife, pude confirmar a informação de Hugo
Hruby. Infelizmente, pelo péssimo estado com que se encontram os microfilmes do jornal Diário de

352 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


Mas o que tem que ser destacado aqui é que ao escolher não tratar dos primeiros
50 anos do século XIX, Tristão se afastou das suas intenções iniciais de reaver e
revisar a história da família Alencar. Ao fazer isso, a História da Província do Ceará
ganhou contornos diferenciados, atendendo a outros propósitos: publicada em
Recife, Pernambuco, não foi escrita para os cearenses, ela foi endereçada a outro
público. A imediata vinculação de Tristão ao IHGB não pode ser interpretada por
acaso. Apenas três anos depois da publicação da História da Província do Ceará,
esta serviria para a candidatura de Tristão a sócio do IHGB.
Sobre a vinculação de Tristão ao projeto de escrita da história nacional pretendida
pelo IHGB, temos que fazer algumas ressalvas. A primeira delas é de que não havia
modelo definido sobre como deveria ser escrita a história do Brasil e das províncias.
Os documentos apresentados aqui, bem como outros textos da RIHGB sustentam
essa hipótese. Segundo, que por não haver modelos, mas sim orientações do IHGB
sobre como deveria ser escrita a história no século XIX, as propostas de histórias
eram rejeitadas ou aprovadas pelo Instituto. Dito isso, poderíamos, por exemplo,
comparar dois projetos endereçados ao IHGB, com o intuito de contribuir com a
história nacional: a História Geral do Brasil, de Francisco Adolpho de Varnhagen,
e a História da Província do Ceará, de Tristão de Alencar Araripe. Guardadas as
proporções e o impacto da recepção dentro do IHGB, podemos aproximar essas
obras no que diz respeito ao projeto de se escrever a história do Brasil. Mesmo
a obra de Varnhagen não agradara completamente o corpo de sócios do IHGB,
como nos alerta Lucia Maria Pascoal Guimarães41.
Dito isso, passemos agora às principais características da História da Província
do Ceará, para que assim consigamos perceber como essa história pode ser
aproximada das orientações com relação à escrita da história feitas pelo IHGB.
Em sua 2ª edição, datada de 1958, a História da Província do Ceará conta com
178 páginas, divididas em 8 capítulos. Dentre eles, os temas mais presentes são: o
descobrimento e o reconhecimento do litoral, bem como da carta topográfica do
território; as tribos indígenas, a conquista e o processo de aldeamento; o progresso
da população e arrolamento da mesma; a administração da Capitania nos tempos
coloniais; as entradas nos sertões; sesmarias e a distribuição de terras na Capitania,
cultura do gado e lavoura e a opressão dos índios (aldeamentos); explorações do
Ceará, missões jesuíticas, fundação da capitania, sua participação na expulsão
dos franceses, ocupação holandesa; primitivos capitães-mores, governo regular,
capitania subalterna, governadores de 1700 a 1799, incursões dos indígenas
e guerra contra eles, contendas particulares, etc.; e estado material e moral da
Capitania.
Está presente ao longo do texto de Tristão um interesse permanente em informar
não somente o processo histórico, mas de apresentá-los também no seu estado
presente. Pela impressão do texto em Recife – Pernambuco, circulação no Rio de
Janeiro e pela doação da obra pelo autor a alguns sócios do IHGB42, bem como do

Pernambuco, não pude realizar um trabalho analítico mais profundo.


41
GUIMARÃES, “Debaixo da imediata...”.
42
É sabido que Tristão enviou em data imediatamente posterior a publicação do livro, uma cópia
para Francisco Inácio Marcondes Homem de Melo, político influente, Barão e sócio do IHGB, que
fez parte, dentre outras, das comissões de Admissão de Sócios e de Trabalhos Históricos. A resposta

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 353


interesse em compor o corpo de sócios do Instituto, podemos afirmar que Tristão
apresentou a província do Ceará à corte, ao IHGB. Sua história foi um esforço
em organizar os tantos documentos esquecidos e mal preservados da província e
anunciá-los à historiografia, notadamente vinculada ao IHGB.
Os temas tratados na obra estão em consonância com aqueles pretendidos/
defendidos pelo Instituto, sobretudo por Januário da Cunha Barbosa e Martius,
com observou Ítala Byanca. Três temas absorveram quase 73% da revista, segundo
Manoel Luiz Salgado Guimarães43: a problemática indígena, viagens e explorações
científicas durante o período colonial e o debate da escrita da história regional.
Sendo assim, a obra de Tristão se encaixa perfeitamente com as aspirações do
Instituto para a escrita da história no século XIX.
Tristão escrevera sobre o povoamento da Capitania, bem como do estado de
vida dos indígenas presentes nesse processo; das missões jesuíticas como o meio
pelo qual se deveria levá-los à civilização, em consonância com a proposição de
Januário da Cunha Barbosa, em artigo na RIHGB de 1840: “Qual seria o melhor
sistema de colonizar os índios estranhos em nossos sertões”. Nesse artigo, a história
indígena se confunde com a história das missões jesuíticas. Tratou também da
distribuição geográficas dessas populações, com seus usos, costumes e língua.
Apresentou os limites geográficos do território, e a administração da Capitania,
primeiro vinculada ao Maranhão e logo depois a Pernambuco.
Pensar na história das populações indígenas, ou das missões jesuíticas que
almejavam a libertação dessa população, era pensar qual o lugar do indígena na
Nação. Assim, para se contar a história do Império, portanto, estabelecer um ponto
de partida para o progresso vindouro, necessitava-se pensar no passado, ou seja,
nos povos indígenas, que se tornaram o seu símbolo. Explorar as missões jesuíticas
era apostar na civilidade versus a barbárie, e na vitória da “inteligência”. Tristão
se colocou contra a violência no processo de povoamento e catequese indígena.
Diz que a sujeição dos indígenas se deu pelas armas e pelas missões, mas ressalva:

Se do emprego das armas resultou o temor, o espanto e a


extinção dos míseros gentios, veremos que do emprego dos
meios evangélicos resultados verdadeiramente benéficos
se colhiam, chamando os selváticos íncolas ao grêmio da
religião e aproveitando-os para a civilização.44

Tristão era um iluminista, defensor da razão e da civilização. A civilidade era


a sua maior defesa. Assim, nem os colonos nem os indígenas seriam dignos de
compaixão. Primeiro os colonos que, ansiosos pelos bens materiais, se afastavam
do ideal civilizado, pois ignoravam as estruturas políticas e institucionais existentes
e faziam suas próprias leis, usando a violência; da mesma forma os indígenas, que,
dispensando a catequese e o trabalho nas vilas, se afastavam da “civilidade”.
Para Tristão, não seria pela violência que chegaríamos ao progresso e à

de Homem de Melo foi publicada na RIHGB, em 1896. SILVA, Tristão de Alencar...; HRUBY, O
século XIX...
43
GUIMARÃES, “Nação e civilização...”, p. 20.
44
ARARIPE, História da Província..., p. 55.

354 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


civilização, mas sim pela inteligência: “A fraqueza do indígena cedeu ao valor e à
inteligência dos forasteiros, que das plagas ocidentais da Europa vieram fundar um
grande estado no vasto solo brasileiro”45.
Fica claro ao longo da obra que Tristão não é defensor da violência, um
dos motivos, inclusive, que o levou a considerar Martim Soares de Moreno o
verdadeiro “fundador” do Ceará, a despeito de Pero Coelho de Sousa, que usou
da violência em suas investidas. Soares de Moreno foi o que mais se aproximou do
ideal civilizado, tentando convencer os indígenas através da conversa, e não pela
violência, atitude assumida por Pero Coelho. Ao se colocar nesta posição, Tristão se
aproximou das orientações de Martius, considerando os colonizadores portugueses
como promotores, guias da civilidade.
Por fim, a defesa de que a História da Província do Ceará contribuiu para a
História Nacional deve ser entendida sob alguns critérios. Primeiro que Tristão
era um nacionalista, um defensor da unidade do império e da constituição deste
como uma Nação. Sendo assim, defendeu o amor pátrio ao longo de sua carreira
profissional, tanto no serviço burocrático, político e administrativo do Estado,
quando na sua atuação intelectual na área jurídica e histórica. A partir desta
compreensão do amor à pátria, podemos inferir que Tristão organizou uma obra
para que servisse à Nação. Sua obra seria uma oferta à Pátria, uma maneira de
contribuir para a sua constituição.
O primeiro ponto que podemos ressaltar para defender esta percepção é que
Tristão guardava um sentimento de pertencimento à pátria provincial. Seu amor à
Província do Ceará foi uma de suas motivações para escrever a História. O segundo
ponto diz respeito a percepção política e histórica de Tristão de que as províncias
eram importantes para a Pátria, que é complementar ao “amor provincial” de
Tristão, mas também estratégico pra a manutenção da unidade nacional. O terceiro
ponto é que Tristão ofereceu uma história provincial sob os parâmetros das histórias
nacionais em discussão no ambiente intelectual do IHGB. Tristão escreveu a História
da Província do Ceará (1867) em consonância com os anseios do IHGB. Atendeu
aos planos de Januário da Cunha Barbosa e Von Martius, e, sobretudo, próximo ao
que defendeu Raimundo José da Cunha Mattos, quando indicou que ainda não se
poderia escrever sobre a história do Império. Em prefácio de 1862, Tristão aponta:

Nas futuras idades se escreverá a história do Império: por


ora só materiais podemos reunir; e a história parcial das
províncias constituirá o depósito desses materiais.
Nação recente, ainda falta-nos tempo para ter a verdadeira
história. Somos de ontem; e os povos novos, no pensa de
um insigne escritor antigo, não sabem ainda escrever a sua
história.
Quando soubermos escrever, acharão os bons engenhos
futuros os documentos preciosos para o artefato
monumental das nossas glórias.

45
ARARIPE, História da Província do Ceará..., p. 15.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 355


O objetivo principal deste trabalho foi o de entender e buscar o lugar social em
que estava inserido Tristão de Alencar Araripe, e deste modo tentar compreender
as suas vinculações políticas e historiográficas. Só a partir da visualização dos seus
vínculos familiares, depois profissionais e políticos, poderíamos entender das suas
intenções em se aproximar do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, como
também entender como se deu o arranjo do livro História da Província do Ceará e
a sua pretensa contribuição à história nacional46.



RESUMO ABSTRACT

O objetivo do presente artigo é perceber como The purpose of this paper is to understand
as histórias provinciais foram pensadas e (re) how the provincial stories have been thought
conhecidas por alguns dos pronunciamentos and (re) known to some of the most important
mais importantes do IHGB em relação a pronouncements of IHGB regarding the writing
escrita da história nacional no século XIX. Os of national history in the nineteenth century.
documentos analisados serão: “Discurso no ato The documents will be analysed: “Discourse on
de estatuir-se o Instituto Histórico e Geográfico the creation act of Historical and Geographical
Brasileiro”, de Januário da Cunha Barbosa, Brazilian Institute” by Januário da Cunha
publicado na RIHGB em 1839; a monografia Barbosa, published in RIHGB in 1839; the
“Como se deve escrever a história do Brasil”, monograph “How should write the history of
de Karl Friederich Phillipe von Martius, escrita Brazil”, by Karl Friederich von Martius Phillipe,
em 1843 e publicada na RIHGB em 1845; e a written in 1843 and published in RIHGB in
“Dissertação acerca do sistema de se escrever 1845; and the “Dissertation about to write the
a história antiga e moderna do Império do ancient and modern history of the Empire of
Brasil”, de Raimundo José da Cunha Matos, Brazil system”, by Raimundo José da Cunha
escrita em 1838 e publicada na RIHGB em Matos, written in 1838 and published in RIHGB
1863. Pretendo também apresentar um projeto only in 1863. I intend to submit a writing project
de escrita da história provincial subjugado ao of provincial history subjugated to IHGB. The
IHGB, que concedeu o posto de sócio ao seu work is called History of Ceará Province – from
autor, o cearense Tristão de Alencar Araripe. A the earliest times until 1850, published in 1867
by Tristão de Alencar Araripe.
obra chama-se História da Província do Ceará –
desde os tempos primitivos até 1850, publicada Keywords: 19th Century Brazil; History Writing;
em 1867. Tristão de Alencar Araripe.
Palavras Chave: Brasil Oitocentista; Escrita da
História; Tristão de Alencar Araripe.

Artigo recebido em 07 mai. 2015.


Aprovado em 04 out. 2015.

46
SILVA, Leandro Maciel. Tristão de Alencar Araripe e a história da Província do Ceará: contribuição
à história nacional. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal da Paraíba. João
Pessoa, 2013.

356 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


O ENSINO DE HISTÓRIA
NA ESCOLA DE PRIMEIRAS LETRAS NA PARAÍBA:
PÁTRIA NACIONAL E PÁTRIA LOCAL (1837-1914)1
Antonio Carlos Ferreira Pinheiro2

Considerações Iniciais

Este texto é resultante de algumas reflexões que temos realizado no âmbito do


Grupo de Pesquisa História da Educação no Nordeste Oitocentista – GHENO e tem
como objetivo analisar o processo de constituição do ensino de história nas escolas
de primeiras letras, hoje, conhecido também como ensino primário, na Província/
Estado da Parahyba do Norte. A delimitação do período está condicionada às
primeiras indicações acerca do que e de como os professores deveriam ensinar na
Província da Parahyba do Norte, no que concerne particularmente ao ensino de
história, a partir da publicação da Lei nº 20, de 06 de maio de 1837, documento
esse que elegemos para iniciarmos este estudo. Quanto ao ano de 1914, refere-
se ao momento da publicação do livro de Manuel Tavares Cavalcanti, intitulado:
Epitome de História da Parahyba, escrito para atender uma solicitação feita pelo
Presidente do Estado da Paraíba, João Castro Pinto, que desejou um material
didático específico sobre a história da Paraíba e que fosse, ao mesmo tempo, de
fácil leitura pelos alunos.
As fontes com as quais trabalhamos foram as leis e regulamentos, produzidos no
período aqui em estudo3. Além dessas, utilizamos uma diversificada documentação,
cujos originais se encontram no Arquivo Histórico do Estado da Paraíba Waldemar
Bispo Duarte, vinculado à Fundação Espaço Cultural – FUNESC4. Consultamos,
ainda, as mensagens, relatórios e falas dos presidentes da província/estado
encaminhados à Assembleia da Província da Parahyba do Norte. Acessamos,

1
Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada durante a realização do X Congresso Luso-
Brasileiro da História da Educação: percursos e desafios na História da Educação luso-brasileira,
ocorrido na cidade de Curitiba-PR, em 2014.
2
Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas, Mestre em Geografia pela
Universidade Federal de Pernambuco, Graduado em História pela Universidade Federal de
Pernambuco e em Geografia pela Universidade Católica de Pernambuco. Professor Associado III
do Departamento de Metodologia da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal da Paraíba. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas História da Educação
na Paraíba – HISTEDBR-PB (PPGE-UFPB/ Diretório CNPq) e do Grupo de Pesquisa História da
Educação no Nordeste Oitocentista – GHENO (PPGH-UFPB/ Diretório CNPq). E-Mail: <acfp@
terra.com.br>.
3
Tais documentos foram publicados na Coleção Documentos da Educação Brasileira, organizada
pela Sociedade Brasileira de História da Educação – SBHE. Ver: PINHEIRO, Antonio Carlos
Ferreira & CURY, Cláudia Engler (orgs). Leis e regulamentos da instrução da Paraíba no período
imperial. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP/
MEC; Sociedade Brasileira de História da Educação – SBHE, 2004.
4
Parte desse conjunto de documentos encontra-se também publicado na Coleção Documentos
da Educação Brasileira. Ver: CURY, Cláudia Engler, ANANIAS, Mauricéia & PINHEIRO, Antonio
Carlos Ferreira (orgs.). Fontes para a História da Educação da Paraíba imperial: documentos avulsos
(1821-1860). Vitória: SBHE; Virtual Livros, 2015 [recurso eletrônico].

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 357


também, alguns compêndios e livros didáticos de História do Brasil e de História
da Paraíba.
Analisamos essas fontes a partir dos referenciais teóricos propostos por Chervel5
que trata das questões relativas à história das disciplinas escolares e de Goodson6
que discute a importância do currículo no processo de organização social do
conhecimento. Assim, Goodson identificou dois movimentos possíveis para se
tratar do processo de escolarização; um primeiro que identificou como a “principal
corrente” da história da educação que “se concentra nos contextos político e
administrativo de escolarização e permanece ‘externa’ à escola”. O segundo que
se preocupa em “penetrar nos padrões ‘internos’ de escolarização”, afirmando que:

[...] o paradigma de história curricular é particularmente


importante, porque nos permite penetrar numa parte
fundamental da escolarização, que os historiadores se
mostraram inclinados a ignorar: os processos internos ou
a “caixa preta” da escola. A história do currículo procura
explicar como as matérias escolares, métodos e curso
de estudos constituíram um mecanismo para designar e
diferenciar estudantes.7

Resguardando o momento histórico em que Ivor Goodson teceu as suas críticas


sobre as histórias dos processos de escolarização e, mais particularmente, sobre a
importância dos estudos históricos acerca dos currículos e das disciplinas escolares,
uma vez que há pelo menos uma década muito cresceram, no Brasil, nos Estados
Unidos e na Europa, os estudos preocupados em desvendar e compreender o que
aconteceu e acontece no interior das instituições escolares. Assim sendo, esse mo-
vimento em busca de apropriação de conhecimentos e saberes reproduzidos e/ou
produzidos no interior das escolas nos últimos anos ficou conhecido como uma sig-
nificativa parte constitutiva da “história das culturas escolares”.8 Vale ressaltarmos
que os grandes marcos teóricos e metodológicos que, exaustivamente, apoiam essa
produção são oriundos das proposições elaboradas por Roger Chartier, Philippe
Perrenoud, Dominique Juliá, Antonio Nóvoa, além do próprio Ivor Goodson e de
André Chervel.
No que concerne mais especificamente sobre a história das disciplinas escolares
Chervel inicia o seu artigo com algumas interrogações que aqui nos apropriamos.
São elas:

Tem algum sentido a noção de história das disciplinas


escolares? Apresenta analogias ou nexos comuns a história

5
CHERVEL, André. “Historia de las disciplinas escolares: reflexiones sobre um campo de
investigación”. Revista de Educación, n. 295, 1991, p. 59-111.
6
GOODSON, Ivor F. Currículo: teoria e história. Tradução de Attílio Brunetta e Hamilton Francischetti.
Petrópolis: Vozes, 1995.
7
GOODSON, Currículo..., p. 118.
8
Para um maior detalhamento dessa abordagem, ver: JULIÁ, Dominique. “A cultura escolar como
objeto histórico”. Revista Brasileira de História da Educação, n. 1, jan./jun. 2001, p. 09-43.

358 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


das diferentes disciplinas? E, para aprofundar um pouco
mais, permite a observação histórica extrair normas
de funcionamento ou mesmo um ou vários modelos
disciplinares ideais, cujo conhecimento e aplicação
poderiam ser de alguma utilidade nos debates pedagógicos
presentes e futuros?9

Assim, foi a partir da última questão elaborada pelo mencionado autor que
entendemos a importância em se conhecer um pouco dos processos que possibi-
litaram a efetivação do ensino de História como matéria escolar, hoje mais deno-
minada como disciplina escolar, nos programas institucionais destinados as aulas
de primeiras letras ou, como passou a ser comumente denominado, no ensino
primário10.
Além desses referenciais outras obras, tais como as de Baldin11, Mattos12,
Siman & Fonseca13, Fonseca14, Freitas15, Melo16, Bittencourt17 e Schueler, Chamon
& Vazquez18 nos auxiliaram no processo de compreensão das especificidades
paraibanas tomando-as como contrapontos ou referências ao movimento mais
amplo ocorrido no Brasil e que já foram abordados pelos autores acima mencionados.
Para tanto, centramos a nossa problematização apontando que diferentemente
de boa parte dos estudos sobre o ensino de história, que privilegiam as questões
relacionadas às políticas educacionais ou adentram aos aspectos metodológicos,
preferimos trabalhar a partir dos referenciais da história da educação, ou seja, sobre

9
O texto original: “¿Tiene algún sentido la noción de historia de las disciplinas escolares? ¿Presenta
analogías o nexos comunes la historia de las diferentes disciplinas? Y, para ahondar un poco más,
¿permite la observación histórica extraer normas de funcionamiento o incluso uno o varios modelos
disciplinarios ideales, cuyo conocimiento y aplicación podrían ser de alguna utilidad en los debates
pedagógicos presentes y futuros?”. CHERVEL, “Historia de las disciplinas...”, p. 59.
10
Tínhamos, inicialmente, a pretensão de discutir a questão do ensino de história também
considerando o nível secundário paraibano, especialmente no Lyceu Parahybano e na Escola
Normal, entretanto, em função das páginas as quais nos foram destinadas para a elaboração deste
artigo e considerando, ainda, que a maioria dos estudos sobre a história do ensino de história se
concentram no ensino secundário, especialmente, tomando como referencia o Colégio Pedro II, é
que resolvemos nos deter, neste estudo, apenas ao nível das primeiras letras ou primário.
11
BALDIN, Nelma. A história dentro e fora da escola. Florianópolis: Editora da UFSC, 1989.
12
MATTOS, Selma Rinaldi de. O Brasil em lições: a história como disciplina escolar em Joaquim
Manoel de Macedo. Rio de Janeiro: Access, 2000.
13
SIMAN, Lana Mara de Castro & FONSECA, Thais Nívia de Lima e (orgs). Inaugurando a História
e construindo a nação: discursos e imagens no ensino de História. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
14
FONSECA, Thais Nívia de Lima e. História e ensino de História. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
15
FREITAS, Itamar. Histórias do ensino de história no Brasil (1890-1945). São Cristovão: Editora da
UFS; Aracaju: Fundação Oviêdo Teixeira, 2006.
16
MELO, Ciro Flávio de Castro Bandeira de. Senhores da História e do esquecimento: a construção
do Brasil em dois manuais didáticos de História na segunda metade do século XIX. Belo Horizonte:
Argvmentvm, 2008.
17
BITTENCOURT, Circe. Livro didático e saber escolar (1810-1910). Belo Horizonte: Autêntica,
2008.
18
SCHUELER, Alessandra Frota Martinez de; CHAMON, Carla Simone & VAZQUEZ, Gabriel.
“Ensinar história na escola primária oitocentista: o ‘Resumo da História do Brasil’, de Maria
Guilhermina Loureiro de Andrade”. Gênero – Revista do Núcleo Transdisciplinar de Estudos de
Gênero – NUTEG, Niterói, UFF, vol. 11, n. 1, 2010, p. 15-34.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 359


a história do ensino de história, vinculado ao processo de organização da cultura
escolar que têm possibilitado aos pesquisadores pensar formas de irem adentrando
ao universo escolar paraibano.

O Ensino História nas aulas de primeiras letras

A primeira notícia que temos acerca da indicação de ensino história na


Parahyba do Norte é de 1837, quando foi publicada a Lei nº 20 de 6 de maio que
regulamentou a organização das aulas de primeiras letras, no contexto de como
as mesmas deveriam ser providas. Para tanto, os seus provimentos deveriam ser
precedidas de “exames públicos” definidos por “Editais em todos os Municípios” e
“perante o Presidente da Província.” Assim, os candidatos seriam

[...] examinados e obrigados a ensinar as matérias


seguintes: ler, escrever, as quatro operações de aritmética
prática, de quebrados decimais, proporções, as noções
mais gerais de geometria prática, [sem demonstrações],
gramática da língua Nacional, os princípios de moral cristã
e da doutrina da religião Católica Apostólica Romana,
proporcionada a compreensão dos meninos. Para a leitura
dos alunos serão preferidas as constituições do Império o
Resumo de História do Brasil, e o opúsculo – Palavras de
um Crente.19

Infelizmente, até o momento não dispomos de maiores informações se de fato


tal livro de leitura, assim como o opúsculo Palavras de um Crente, tenham sido
realmente utilizados no cotidiano de todas as cadeiras de primeiras letras existentes
na Província da Parahyba do Norte. Entretanto, segundo Cury e Ferronato20
que empreenderam algumas reflexões acerca das práticas de leituras e sobre a
constituição do acervo da Biblioteca do Lyceu Provincial da Parahyba do Norte,
destacam que naquela instituição de ensino secundário os estudos de história eram
realizados

[...] a partir do compêndio de História do Brasil, de


Bellegarde. Esse compêndio é resultante de uma tradução
do Resumé de l’histoire du Brésil, de Ferdinand Denis feita
pelo português Henrique Luiz de Niemeyer Bellegarde e
publicada no Rio de Janeiro, em 1831.21

Assim, podemos inferir que tal obra circulou na Província paraibana, sendo

19
Grifo nosso. Cf. PINHEIRO & CURY, Leis e regulamentos..., p. 17.
20
CURY, Cláudia Engler & FERRONATO, Cristiano. “Em busca de leitores e suas práticas na Parahyba
dos oitocentos: espaços de leituras, locais de venda e constituição de acervos”. In: BERGER, Miguel
André & NASCIMENTO, Ester Fraga Vilas Bôas Carvalho do (orgs.). Imprensa, impressos e práticas
educativas: estudos em História da Educação. Fortaleza: Edições UFC, 2012, p. 67-91.
21
CURY & FERRONATO, “Em busca de leitores...”, p. 85.

360 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


utilizado, inclusive, nos dois níveis de escolarização, ou seja, no de primeiras letras
e no secundário. Todavia, essas informações não nos dão a garantia que os seus
conteúdos tenham sido adotados como “pontos” para os exames públicos e de que
tenha sido utilizado como livro de leitura no cotidiano escolar das primeiras letras,
apesar das indicações prescritivas orientarem os professores para a sua utilização.

Fig. 1 – Capa da edição de 1834 da obra de Henrique Luiz de Niemeyer Bellegarde,


Resumo da História do Brasil.
Fonte: CURY & FERRONATO, “Em busca de leitores...”, p. 85.

Se por um lado identificamos que tais aspectos ainda nos são obscuros, por
outro, podemos inferir que o ensino de história, ou pelo menos, em alguns
momentos centrou-se na História do Brasil e não na História Geral ou Universal.
Nesse sentido, os autores acima mencionados nos informam ainda que a história
nacional na citada obra apresenta seis épocas:

A primeira, que não constava do original francês, mostra,


sob o título O Brasil antes da conquista, um autor crítico,
que aponta os malefícios da ação conquistadora dos
portugueses e dos europeus em geral aos indígenas da
América e denuncia ‘sua quase total aniquilação’.22

22
CURY & FERRONATO, “Em busca de leitores...”, p. 85. Segundo Schueler, Chamon & Vazquez,
em seu estudo sobre o ensino de história nas escolas primárias da Corte, no ano de 1888 foi,
também, publicado em Boston, um livro intitulado Resumo da História do Brazil para uso das
escolas primárias brazileiras, de Maria Guilhermina Loureiro de Andrade e que teve três edições,
em 1888, 1894 e 1920. Todavia, até o momento, não temos a informação que o mesmo tenha sido
adotado nas escolas primárias da Paraíba.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 361


Esses indícios referentes aos possíveis estudos realizados nas escolas de primeiras
letras, sobre a História do Brasil é convergente ao movimento mais ampliado,
considerando que já se encontrava em processo de discussão entre os intelectuais
e administradores públicos a necessidade de se implantar práticas educativas que
contribuíssem com o processo de formação da nação brasileira e de construção
de sua identidade cultural e histórica. Lembremos, pois, do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro – IHGB, que fora criado no ano de 1838. Segundo Fonseca,
a sua missão foi a de elaborar

[...] uma história nacional e de difundi-la por meio da


educação, mais precisamente por meio do ensino de
História. [...]
Do IHGB ela passaria diretamente às salas de aulas por
meio dos programas curriculares e dos manuais didáticos,
em geral escritos pelos próprios sócios do Instituto.23

A delimitação do ensino de História do Brasil, nas aulas de primeiras letras,


parece ter sido abandonada, pelo menos momentaneamente, uma vez que, no
Regulamento de 20 de janeiro de 1849, no item referente aos Estudos, ficaram
normatizados para toda a escola primária pública, na Parahyba do Norte, os
seguintes temas e procedimentos de ensino. Vejamos:

- A instrução moral e religiosa


- A leitura
- A caligrafia
- A aritmética até proporções
- Os elementos da gramática portuguesa
- Noções gerais de geometria prática sem demonstração.24

Como já mencionado acima o ensino de história não foi indicado explicitamente,


entretanto, vale ressaltarmos que o referido Regulamento propôs que toda a escola
primária deveria ter “3 divisões principais, na razão da idade dos discípulos e dos
objetos de ensino.” Essa informação nos indica uma possível primeira proposta de
seriação do ensino primário na Província da Parahyba do Norte. Assim, a partir
da segunda divisão a “instrução moral e religiosa” consistiria no ensino de história
santa, tendo como base a “doutrina cristã”, apoiado na leitura do Velho e do Novo
Testamento. No entanto, quando os alunos passassem a cursar a terceira divisão,
ficou prescrito, no referido Regulamento, que nas aulas de Escrita os professores
além de ensinarem os “dogmas e os preceitos da religião, as regras mais essenciais
da moral”, deveriam lecionar algumas “passagens da História do Brasil mais
próprias a nos fazer amar a pátria, e conhecer as pessoas célebres pelas suas
virtudes, conhecimentos, fatos úteis etc.”25.

23
FONSECA, História e ensino de História, p. 46.
24
Regulamento de 20 de janeiro de 1849. PINHEIRO & CURY, Leis e regulamentos..., p. 26.
25 Grifos nossos. Cf. PINHEIRO & CURY, Leis e regulamentos..., p. 28.

362 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


A pouca clareza acerca da permanência ou não do ensino de história no ensino
primário levou, por exemplo, no final da década de 1850, a realização de um
debate, no âmbito da Assembleia Legislativa da Parahyba do Norte, sobre a
necessidade de se estabelecer uma “divisão do ensino primário em dous gráos”,
no qual ficariam indicadas as “matérias” que deveriam ser ensinadas em cada um
dos graus. Assim, para Manoel Clementino Carneiro da Cunha, vice-presidente da
referida província,

[...] O ensino no 1.º gráo deve conter princípios de


doutrina Christã, e moral, leitura, escripta, elementos de
grammática nacional, e de cálculo, o systema legal dos
pesos, e medidas. O do 2.º gráo, além daquelles princípios,
deve compreender tambem elementos de Geometria
e suas applicações usuaes, especialmente o desenho, e
agrimensura, noções de sciencias phisicas, e de história
natural, applicadas aos usos da vida, elementos de história,
e geographia, etc. etc.26

Reforçando os argumentos tecidos por Manoel Clementino Carneiro da Cunha,


o Diretor da Instrução Pública, Manrique Victor de Lima, afirmou que

As noções de geographia, historia e outras que podem


entrar no plano de uma nova divisão das materias que se
ensinão nas escolas primarias, se adquirem simplesmente
pela leitura, nas escolas actuaes, de boas obras elementares
methodicas e a alcance da intelligencia dos meninos que
as comprehendem com ligeiras explicações que todo o
Professor applicado é mais ou menos habilitado para dar.27

No ano seguinte, ou seja, em 1858, foi criado o Colégio Nossa Senhora das
Neves, na capital da Província da Parahyba do Norte. Tratava-se de “um internato
para o fim de promover a educação moral, religiosa e literária do sexo feminino”28.
Foi uma escola mantida pelo poder provincial e que teve vida efêmera, uma vez
que fechou as suas atividades em 1861. Apesar de promover o ensino primário
estavam previstas em seu Regulamento as seguintes matérias de ensino:

26
Grifos nossos. PARAHYBA DO NORTE, Provincia da. Relatorio recitado na abertura da Assemblea
Legislativa da Parahyba do Norte pelo Vice-Presidente da Provincia, o Dr. Manoel Clementino Carneiro
da Cunha, em 1 de Agosto de 1857. Parahyba: Typ. de José Rodrigues da Costa, 1857, s.p.
27
PARAHYBA DO NORTE, Relatorio..., s.p.
28
Ver a Lei n. 13, de 04 de novembro de 1858, e a Lei n. 437, de 15 de dezembro de 1858,
que regulamentou o funcionamento do Colégio Nossa Senhora das Neves. PINHEIRO & CURY,
Leis e regulamentos... Consultar, também, sobre a história dessa instituição, os seguintes trabalhos:
RIBEIRO, Domingos de Azevedo. Colégio de Nossa Senhora das Neves. João Pessoa: s.r., 1996.
EGITO, Philipe Henrique Teixeira do. “A instrução feminina na capital da Província da Parahyba
do Norte: o Colégio de Nossa Senhora das Neves (1858-1895)”. In: PINHEIRO, Antonio Carlos
Ferreira & FERRONATO, Cristiano (orgs.). Temas sobre a instrução no Brasil Imperial (1822-1889).
João Pessoa: Ed. Universitária/ UFPB, 2008, p. 125-144.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 363


1º – Leitura escrita
2º – Aritmética até proporções, inclusive
3º – Doutrina cristã
4º – Gramática nacional
5º – Noções de Geometria
6º – Coser, bordar, marcar e demais prendas domésticas
7º – Geografia e História
8º – Traduzir, escrever e falar francês e italiano
9º – Música, desenho e dança.29

Nessa proposta específica, para além da matéria de Geografia e História,


percebemos que a indicação do ensino da Doutrina cristã, como matéria específica e
não no âmbito do ensino da história sagrada, conforme verificamos anteriormente.
Assim, podemos ler essa especificidade, considerando que, como se tratava de
uma escola destinada às meninas, essas teriam que receber uma formação religiosa
mais eficaz no sentido do seu doutrinamento propriamente dito, ou melhor, para
os elaboradores do citado Regulamento, não foi considerado suficiente para a
formação das meninas da elite receber apenas ensinamentos históricos acerca da
vida sagrada. Essa perspectiva coaduna-se com o papel que as mulheres deveriam
ou poderiam exercer na sociedade, visto que

A influencia das mulheres no destino dos homens e da


sociedade é immensa; os nossos primeiros passos são
dirigidos por ellas, imcumbidas pela natureza humana de
velar mais especialmente sobre a nossa infancia. Quem
se não recorda com enternecimento das caricias que
prodigalisão estes seres angelicos á fraqueza de nossos
primeiros annos, que ellas sustentão e protegem com toda
constancia, tanto desinteresse ás vezes até com heroismo
bem mal recompensado? A sua companhia dá mais
encanto aos nossos prazeres: ellas polem nossas maneiras,
adoçam nossos costumes; no infortunnio nos consolão, nos
fortificão; a sua magica presença dissipa instantaneamente
nossos tetricos pensamentos; se as infermidades nos
accometem que assistencia é mais efficaz para aliviar
nossas dores? Ellas nos inspiram acertadas resoluções nas
ocasiões difficeis, reforção nossa impetuosidade, excitão
ou moderão nossa coragem; seus conselhos salutares
expressos com acento da mais tocante, da mais persuasiva
e insinuante doçura, nos preservão de muitas desordens e
perigos; finalmente são nossas maes, nossas irmãs, nossas
mulheres e nossas filhas. Todos estes titulos que faltão á
nossa rasão e á nossa sensibilidade não nos impõe o dever

29
Conferir artigo 7º da Lei n. 439, de 15 de dezembro de 1858. PINHEIRO & CURY, Leis e
regulamentos..., p. 115.

364 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


imperioso de cultivar a intelligencia e formar o coração
dessa obra prima da creação, desse sexo amavel, que não
pode ser menos presado sem a mais detestavel ingratidão,
sem uma injustiça clamorosa e sem expo-las a erros e a
perigos a que ás vezes as faz sucumbir a cegueira em que,
por estupido calculo as mantemos, imputando, por nossas
seduções, mas á sua singeleza e á sua innocencia sem luzes
e sem experiencia que as protegem?!30

Quanto à elaboração de compêndios de ensino de história do Brasil, destinados


ao ensino primário, temos a informação de que em 1863, foi lançado pela Livraria
Garnier o livro intitulado: Lições de história do Brasil, para o uso das escolas
instrução primária, escrito por Joaquim Manoel de Macedo31. Devido a inúmeras
edições que o livro teve é possível conjecturarmos que o mesmo tenha sido adotado
em algum momento nas escolas primárias paraibanas.

Fig. 2 – Capa da edição de 1905 da obra de Joaquim Manoel de Macedo, Lições de História do
Brasil para o ensino primário. Acervo do autor.

30
PARAHYBA DO NORTE, Relatorio..., s.p. Wilson Xavier faz uma prodigiosa análise sobre os
ideários que foram construídos ao longo dos séculos XVIII, XIX e XX em torno da mulher como
o gênero mais indicado para exercer o magistério infantil e primário. Ver: XAVIER, Wilson José
Félix. Razões e sensibilidades: um estudo sobre a construção do imaginário da docência feminina
na Parahyba do Norte (1865-1917). Tese (Doutorado em Educação). Universidade Federal da
Paraíba. João Pessoa, 2015.
31
MACEDO, Joaquim Manoel de. Lições de Historia do Brazil: para uso das escolas de instrucção
primaria. 9. ed. Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 1905. Sobre a discussão acerca da elaboração e
adoção desse livro, juntamente com aquele que foi elaborado com destino do ensino secundário,
consultar: MELO, Senhores da História...

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 365


Todavia, a sua adoção nas escolas primárias paraibanas pode ter sido dificultada
em virtude desses materiais didáticos ainda não circularem com muita facilidade
na Província da Parahyba do Norte. Esse aspecto pode ser detectado a partir da
seguinte avaliação que o Diretor da Instrução Pública, Manrique Victor de Lima fez
dessa questão. Acompanhemos:

A difficuldade consiste n’acquisição destes compendios que


se não encontrão nem nas nossas grandes Cidades onde
se promove com empenho a diffusão das luzes. Prescrever
a um mestre a ensino de taes e taes mateiras sem que haja
meio de obter os compendios convenientes parece-me uma
inutilidade; entretanto que sem esta expressa prescripção e
com bons livros de leitura habitual estas mesmas materias
se vão pouco a pouco incutindo no espirito dos meninos
que sem deliberado proposito, achão-se no fim de algum
tempo com uma somma de conhecimentos proveitosos de
que em outra idade fazem vantajoso uso.32

Todavia, independentemente das dificuldades existentes naquele período para


a aquisição de livros de leitura e de compêndios, o debate sobre a unificação
em uma só matéria dos ensinamentos de história sagrada juntamente com o de
história do Brasil, parece ter se prolongado por alguns anos. A defesa realizada
pelo referido vice-presidente, de se manter apenas o ensino de história do Brasil,
consorciado com o de geografia, não se efetivou, já que as orientações destinadas
ao ensino da referida matéria que prevaleceram na instrução primária, a partir
da publicação da Lei n. 178, de 30 de novembro de 1864, foram as de que os
professores deveriam dar “noções elementares da história sagrada [...] e da história
do Brasil”, mantendo ainda uma próxima relação com o ensino de geografia33.
Sobre essa mesma questão, Fonseca ressalta que

Isso ocorria porque à História atribuía-se a função de


formação moral de crianças e jovens, fosse pelos princípios
cristãos e pela doutrina da religião católica, fosse pelo
conhecimento dos fatos notáveis da História do Império.
Resolvia-se, de certa forma, o problema de conciliar os
interesses do estado e da Igreja na área da educação, num
momento em que a tendência era de atribuir cada vez
mais ao primeiro o controle sobre ela.34

32
PARAHYBA DO NORTE, Relatorio..., s.p.
33
É importante informarmos que antes da publicação dessa Lei foi publicado, em 27 de janeiro de
1860 um novo Regulamento da Instrução Primária e Secundária Pública e particular da Província
da Parahyba. Entretanto, na parte referente à instrução primária não aparece qualquer indicação
acerca das matérias que deveriam ser ensinadas, somente tendo algumas indicações na parte
referente ao ensino secundário. É interessante também informar ao nosso leitor que o referido
regulamento teve duração muito curta, uma vez que foi suspenso pela Lei nº 12, de 08 de agosto
do mesmo ano, ou seja, vigorou por apenas 5 meses e mais alguns dias.
34
FONSECA, História e ensino de História, p. 47.

366 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


Dezenove anos depois, isto é, em 1883, foi publicada uma nova lei – a de
número 761 de 07 de dezembro – regulamentando a Instrução Pública primária
e secundária, na Província da Parahyba do Norte. No seu artigo 1º, inciso 2º
foi reiterado que nos concursos públicos destinados ao provimento de cadeiras
isoladas seria necessário que os candidatos fossem avaliados considerando-se,
também, a história e a geografia do Brasil. Ao mesmo tempo, no Regulamento
propriamente dito, ficou estabelecido que o ensino primário devesse constar das
seguintes matérias:

- Leitura e escriptura
- Elementos da gramática portugueza
- Principios de arithmética compreendendo______ legal de
pezos e medidas
- Noções de história e geographia do Brazil
- Noções de história sagrada
- Trabalho de agulhas e prendas domesticas nas escolas do
sexo feminino.35

Assim, ao compararmos a listagem das matérias (Estudos) que deveriam


compor o ensino primário em 1883 com o Regulamento de 1849, percebemos que
somente no início da década de oitenta do século XIX, o ensino de história passou
a constar como uma matéria obrigatória na educação escolar primária paraibana.
Tal situação parece ter permanecido inalterada até o final do regime monárquico
brasileiro, em 1889.
Após a instauração do regime político republicano, o Estado da Parahyba do
Norte publicou um novo regulamento destinado ao ensino primário somente em
1904, ficando como obrigatórias as seguintes disciplinas:

1º Leitura e escripta;
2º Elementos de grammaticaportugueza;
3º Principios de Arithmetica, comprehendendo o systema
legal de pesos e medidas;
4º Noções de história e geographia do Brasil;
5º Elementos de sciencias physicas e naturaes;
6º Elementos de desenho linear, calligraphia e música;
§ Único. Nas escolas do sexo feminino se ensinará também
trabalhos de agulha e prendas domesticas.36

Assim, como podemos observar, ocorreu à manutenção obrigatória de “noções


sobre o ensino de história do Brasil”, entretanto, articulados aos de geografia. Nesse
sentido, parece que a mudança do regime político do imperial para o republicano
não provocou grandes mudanças em relação ao ensino de história no nível primário.

35
Esse documento encontra-se na Caixa 65-B-1883, pertencente ao Arquivo Histórico Waldemar
Bispo Duarte, vinculado à Fundação Espaço Cultural – FUNESC.
36
PARAHYBA, Estado da. “Decreto nº 241, de 26 de agosto de 1904”. In: __________. Collecção
dos Actos dos Poderes Legislativo e Executivo. Parahyba: Imprensa Official, 1914, p. 45.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 367


Segundo Fonseca, “nas primeiras décadas da República a produção historiográfica
manteve-se estreitamente vinculada ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(IHGB) onde, desde a segunda metade do século XIX, desenvolvia-se o projeto de
elaboração de uma história nacional”37.
Todavia, a história do ensino de história no Brasil e na Parahyba do Norte têm
outros elementos que o constituem, como, por exemplo, o ensino de história local.
Essa indicação somente apareceu no final do período imperial e foi destinada ao
ensino secundário. Segundo Cury,

A Resolução Provincial Nº 288, de 1885, reza a seguinte


determinação quanto ao Plano de Ensino do Liceu: “(...)
compreenderá as seguintes disciplinas: 1ª Português, 2ª
Francês, 3ª Inglês, 4ª Latim, 5ª Matemática, 6ª Geografia
Geral, Corografia do Brasil e especialmente da Paraíba,
7ª História Geral e História do Brasil e especialmente da
Paraíba, 8ª Retórica, Poética e Literatura Nacional, 9ª
Filosofia,10ª Elementos de ciências físicas e naturais.”
E o documento prossegue, “§ 1º Para cada uma dessas
disciplinas haverá cadeira especial com professor distinto
e o programa de ensino será o mesmo que for aprovado
pelo governo para ser adaptado ao do Imperial Colégio
de Pedro II, salvo o de desenvolvimento exigido quanto
à Província da Paraíba nos programas de geografia e
história.38

E continua a referida autora com os seguintes questionamentos:

Em outras províncias aconteceu a mesma coisa com


relação à história local? É possível pensarmos que as
ideias de 1817 não se desfizeram e que a aproximação
dos ventos republicanos reascendeu a chama das pátrias
locais? O ideário das pátrias locais sempre esteve presente
nas províncias apesar dos esforços do poder central? A
submissão ao poder central dos interesses locais também
foi tarefa que não findou no império e que os governos
republicanos tiveram que enfrentar?39

37
FONSECA, Thais Nívia de Lima e. “‘Ver para compreender’: arte, livro didático e a história da
nação”. In: SIMAN & FONSECA, Inaugurando a História..., p. 93.
38
Grifo nosso. CURY, Cláudia Engler. “As práticas instrucionais no Lyceo Parahybano (1836-1889):
a configuração dos planos de ensino e o ensino de história”. In: Anais eletrônicos do VI Congresso
Luso-brasileiro de História da Educação: percursos e desafios da pesquisa e do ensino de história
da educação. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia, 2006, p. 4117.
39
CURY, “As práticas instrucionais...”, p. 4117. Encontra-se em andamento, no Programa de
Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba – PPGH-UFPB, a pesquisa de
mestrado de Maday de Souza Morais, provisoriamente intitulada Uma história da cadeira de história
na Província da Parahyba imperial: diálogos interprovinciais.

368 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


Apesar de essas questões terem sido suscitadas a partir de uma normatização
destinada ao ensino secundário, podemos visualizar que com a instauração do
regime republicano essa perspectiva do ensino de História tomou um vulto maior
uma vez que a ideia de se implantar, no Brasil, uma educação de caráter nacional,
ou seja, com o objetivo da criação de um sistema educacional que abrangesse
todo o território nacional e os conteúdos ideologicamente comprometidos com a
construção da nacionalidade republicana brasileira40. A partir dessa preocupação
as propostas para a construção de uma educação nacional continuaram articuladas
ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB, que incentivou a “fundação
de Institutos Históricos e Geográficos locais com o objetivo precípuo das produções
de histórias regionais e catalogação de fontes para percorrer o caminho de volta (ao
IHGB) e contribuir para a formulação da história geral do Brasil”41. Seguindo essa
orientação, foi fundado na Paraíba, em 1905, o Instituto Histórico e Geográfico
Paraibano – IHGP.
Ao mesmo tempo em que contribuíam para a construção do nacionalismo,
esses institutos também concorriam para forjar identidades regionais:
pernambucanidade, paulistanidade e, naturalmente, paraibanidade. A referida
autora desenvolveu interessantíssima análise dos objetivos e do papel que teve o
IHGP para a elaboração ideológica de uma possível “paraibanidade” ou daquilo
que poderíamos denominar “pensamento paraibano”.

Os fundadores do IHGP colocaram-se a si próprios como


marco histórico, construindo a única ruptura permitida
nessa historiografia e a mais importante: a passagem de
uma Paraíba sem história para uma Paraíba com história e
escrita pelos paraibanos.42

Imbuídos da concepção de que o propósito da história é oferecer verdades ins-


trutivas, bem como estudar os triunfos da razão e da imaginação, os membros do
IHGP, segundo Dias entenderam que, no interior do projeto de mapeamento do
processo histórico paraibano, fazia-se necessário “reunir pessoas para recordação
de fatos ou para eternizá-los. Isolando o fato, caracterizando-o como digno de re-
cordação, comemoração e, portanto, de sua inclusão na historiografia”43.
Em síntese, para que fosse construída a identidade da cultura e dos homens
paraibanos (paraibanidade) era preciso, acima de tudo, “resgatar” seus heróis,
as datas e os fatos que marcaram sua história, além das especificidades culturais
(musicais, folclóricas etc.), do perfil dos “grandes educadores” e dos feitos do povo
paraibano. Assim é que, nos anos que se seguiram a 1905, a história da Paraíba foi
objeto de vários estudos44.

40
Parte dessa discussão encontra-se em estudo por nós realizado e já publicado. Ver: PINHEIRO,
Antonio Carlos Ferreira. Da era das cadeiras isoladas à era dos grupos escolares na Paraíba.
Campinas: Autores Associados; Universidade São Francisco, 2002.
41
DIAS, Margarida Maria Santos. Intrepidaab origine: o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano e
a produção da história local. João Pessoa: Almeida Gráfica, 1996, p. 33.
42
DIAS, Intrepidaab origine..., p. 36.
43
DIAS, Intrepidaab origine..., p. 46.
44
Boa parte dessa produção foi publicada nas revistas do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 369


No âmbito da instrução pública propriamente dita, alguns administradores do
Estado forneceram orientações gerais para que as convicções republicanas fossem
amplamente estimuladas no âmbito escolar:

Alguma cousa vae-se alcançando nessa orientação com


o ensino civico, mediante o culto da bandeira nacional,
os canticos e hynnos patrioticos a commemoração das
datas e dos feitos patrios, este anno mais decididamente
postos em pratica especialmente por intermedio da
mocidade escolástica desta capital, que tão vivas e sinceras
demonstracções costuma dar nestas occasiões.45

Era necessário “associar as escolas primarias e secundarias ás manifestações da


nossa vida civica”; para tanto, os administradores estaduais adquiriram e fizeram
“ensaiar os hynnospatrioticos, entoados em côro, ao celebrar as ephemerides
nacionais”. Tais procedimentos, segundo João Castro Pinto, presidente do Estado,
muito serviriam “para avivar na infância e na juventude o amor á nacionalidade”46.
O administrador estatal acima mencionado não se limitou apenas a “orientar”
os responsáveis mais diretos pela instrução pública paraibana: com a convicção de
que os citados ideais viriam a ser de fato efetivados no cotidiano escolar, Castro
Pinto, adquiriu livros escolares e os distribuiu gratuitamente nas escolas públicas. Ao
mesmo tempo encarregou “o provecto e talentoso Dr. Manoel Tavares Cavalcanti de
confeccionar o epitome da Historia da Parahyba destinada à instrucção primária”47.
A obra, Epitome de Historia da Parahyba, de fato, foi publicada e adotada nas
escolas primárias públicas do Estado da Parahyba. Constituída por quarenta e um
capítulos de, aproximadamente, duas páginas cada, apresenta, de início, a posição
geográfica da Parahyba do Norte, descrita como “terra punjante [que] ostenta nas
praias os seus altos coqueiros e seus cajueiros frondosos”; em seguida, descreve
sucintamente os “selvagens” que “viviam no seio das florestas em habitações
mesquinhas reunidas em forma de aldeiamentos que tinham a denominação de
taba”48, para, no último capítulo, destacar a “vida religiosa, intelectual e industrial”
da Parahyba do Norte. Em tom sempre ufanista e ressaltando os feitos dos heróis
locais, a citada obra abrange do período colonial até o Governo do próprio Castro
Pinto (iniciado em 1912).

Há um estudo, já publicado, que tece algumas considerações sobre essa produção realizada pelos
historiadores da referida instituição. Ver: PINHEIRO, Antonio Carlos Ferreira. “O Instituto Histórico
e Geográfico Paraibano e a história da educação da Paraíba: apontamentos para um estudo
historiográfico”. In: SAVIANI, Dermeval; LOMBARDI, José Claudinei & SANFELICE, José Luis
(orgs.). Seminário Nacional de Estudos e Pesquisa “História, Sociedade e Educação no Brasil”: o
debate teórico-metodológico da história e a pesquisa educacional. (4º) Anais. Campinas: Autores
Associados; UNICAMP/HISTEDBR, 1997, p. 206-217 [CD-ROM].
45
PARAHYBA, Estado da. Mensagem apresentada á Assembléa Legislativa na abertura da 2ª sessão
ordinaria da 7ª legislatura, pelo João Pereira de Castro Pinto (presidente do Estado) em 1913.
Parahyba do Norte: Torre Eiffel, 1913, p. 13.
46
PARAHYBA, Mensagem apresentada..., p. 13.
47
PARAHYBA, Mensagem apresentada..., p. 13.
48
CAVALCANTI, Manoel Tavares. Epitome da Historia da Parahyba: para uso da escola primária.
Parahyba: Imprensa Official, 1914, p. 04.

370 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


Fig. 3 – Folha de rosto da obra Epitome de Historia da Parahiba: para uso das escolas primárias.
Este exemplar, de 1914, se encontra no Setor de Obras Raras da Biblioteca Central
da Universidade Federal da Paraíba.

Considerações Finais

O estudo sobre o ensino de história juntamente com aqueles relacionados aos


ensinos de outras matérias (ou disciplinas), tais como: o de geografia e o de língua
nacional contribuiu ou estive, entendemos nós, intimamente articulado a dois
processos específicos, mas ao mesmo tempo interligados, quais sejam: a) como
parte do processo civilizatório, como bem ressaltou Mattos49, em seu estudo e b)
como elemento contributivo da conformação e consolidação do Estado nacional
brasileiro, mesmo considerando que no período aqui em estudo esteve, também,
em pauta o sentimento de existência e identificação com as pátrias locais, aspecto
esse que julgamos precisa ainda ser mais bem explorado pelos historiadores da
educação brasileira.
Assim, procuramos ao longo da nossa análise estabelecer algumas conexões entre
o lento, mas contínuo processo de implantação da mencionada matéria (disciplina)
no âmbito das práticas educativas, ou melhor, nas relações ensino-aprendizagem
que se deram no universo escolar, no que concerne ao ensino de história com os
contextos políticos e administrativos que se processaram externamente à escola
em si mesma. Tal aspecto reitera, portanto, uma das correntes ou movimentos
produzidos no campo da História da Educação, conforme as indicações teóricas

49
MATTOS, O Brasil em lições...

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 371


apontadas e reflexionadas por Goodson50. Ao mesmo tempo procuramos adentrar
ao universo escolar, apontando alguns conteúdos que muito possivelmente foram
ensinados pelos professores e professoras nas cadeiras de primeiras letras. O
processo de seletividade desses conteúdos, portanto, foram manifestas a partir de
práticas educativas que constituíram elementos significativos das culturas escolares,
ou seja, com esse exercício empírico vislumbramos penetrar nos padrões internos
de escolarização.
Há, ainda, muitas questões a serem identificadas e respondidas sobre o
funcionamento internos das cadeiras isoladas51 ou das escolas de primeiras
letras, mesmo considerando os inúmeros estudos já realizados que abordam os
procedimentos metodológicos, tais como a adoção do método lancasteriano ou
monitoral, mútuo ou simultâneo52. Todavia, as questões e desconhecimentos se
ampliam enormemente quando nos voltados para os conteúdos e saberes que
eram ensinados no âmbito do ensino de primeiras letras, especialmente sobre o
ensino de história. Tal dificuldade é em parte propiciada pela escassez de fontes
documentais relacionados ao cotidiano escolar que muito pouco foram preservados
pelos arquivos ou outros tipos de instituições públicas e particulares. Restando-nos,
tão somente, os documentos oficiais de caráter predominantemente prescritivos e
normativos.



50
GOODSON, Currículo...
51
Sobre a adoção dessa tipologia consular, ver: PINHEIRO, Da era das cadeiras...
52
Sobre essa questão há uma importante coletânea organizada por Luciano Faria Filho. Ver: FARIA
FILHO, Luciano Mendes (org.). A escola elementar no século XIX: o método monitorial/ mútuo.
Passo Fundo: EDIUPF, 1999.

372 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


RESUMO ABSTRACT
Este trabalho é resultante de reflexões que temos This paper brings the result of reflections done
realizado no âmbito do Grupo de Pesquisa in the context of the Research Group History of
História da Educação no Nordeste Oitocentista Education in the 19th Century Brazilian Northeast
– GHENO e tem como objetivo analisar o - GHENO and intends to analyze the formation
processo de constituição do ensino de história process of history teaching in elementary schools
nas escolas de primeiras letras, na Província/ at the Province / State of North Parahyba from
Estado da Parahyba do Norte, no período de 1837 to 1914. The sourceswas a set of laws
1837 a 1914. As fontes utilizadas foram as leis e and regulations, messages, reports, as well as
regulamentos, mensagens, relatórios, bem como the disponible documentation in the Waldemar
a documentação existente no Arquivo Histórico Bispo Duarte State Historical Archive of Paraiba.
do Estado da Paraíba Waldemar Bispo Duarte. The research has consulted also some books and
Consultamos, também, alguns compêndios e textbooks of Brazil and Paraíba History, especially
livros didáticos de História do Brasil e de História Epitome de História da Parahyba, written by
da Paraíba, especialmente Epitome de História da Manuel Tavares Cavalcanti and released in 1914.
Parahyba, escrito por Manuel Tavares Cavalcanti These sources were analyzed standing from the
e publicado em 1914. Analisamos essas fontes theoretical concepts proposed by André Chervel,
a partir dos referenciais teóricos propostos treating on the history of school subjects, and
por André Chervel, que trata das questões Ivor Goodson, who discusses the importance of
relativas à história das disciplinas escolares, e curriculum in social organization of the knowledge
de Ivor Goodson, que discute a importância do process. Our conclusion is that the teaching of
currículo no processo de organização social do history, along with the teaching of other subjects
conhecimento. Podemos afirmar que o ensino such as geography and the national language,
de história, juntamente com os ensinos de constituted a major basis for the constitution of
outras disciplinas como o de geografia e o de the Brazilian nation-state, marked by the tension
língua nacional, se constituiu uma das principais that sometimes built a story that legitimized
argamassas para a constituição do Estado- national homeland, sometimes privileged the
Nação brasileira, marcada pela tensão que ora local countryland.Keywords: History Teaching;
construiu uma história que legitimou a pátria Homeland; Countryland.
nacional ora a pátria local.
Palavras Chave: Ensino de História; Pátria
Local; História Nacional.

Artigo recebido em 28 abr. 2015.


Aprovado em 30 nov. 2015.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 373


O CONTRATO HISTÓRICO CONTRA O DIREITO
NATURAL: A CRÍTICA À REVOLUÇÃO FRANCESA E O
NASCIMENTO DO CONSERVADORISMO MODERNO
NA OBRA DE EDMUND BURKE

Paulo Henrique Paschoeto Cassimiro1

A crítica ao conceito de Estado de Natureza

A Revolução Francesa mudou radicalmente os rumos da reflexão política


e preparou as bases do que seriam os movimentos políticos modernos. O
conservadorismo é, enquanto pensamento político, “filho” da revolução. Um
filho desgarrado, sem dúvidas, mas nem por isso menos legítimo do que a
democracia moderna e o socialismo. É filho legítimo porque todo o pensamento
conservador se constrói a partir da polêmica com os princípios teóricos e fatos
objetivos engendrados pela Revolução. O historiador inglês G. J. A. Pocock nos
lembra que o conservadorismo, em termos filosóficos, nasce justamente da busca
por contextualizar o desenvolvimento e o potencial de mudança da sociedade e da
política dentro dos limites da história dos povos. Segundo ele,

Burke’s ‘conservatism’ is part of the history of philosophical


conservatism, and we shall see in greater detail as
we study his text that this is based on the claim that
human beings acting in politics always start from within
a historically determined contexts, and that it is morally
as well as practically important to remember that they
are not absolutely free to wipe away this context and
reconstruct human society as they wish. The Reflections
is an antirevolutionary treatise in the sense that it defines
revolutionaries as those who claim that human beings
have that freedom and attacks them for making the claim.2

A despeito de certa dose de antimodernismo que lhe é inerente, o pensamento


conservador produziu um discurso que foi adaptando-se progressivamente às
categorias políticas modernas, especialmente durante o século XIX. É polêmico por
natureza, porque polêmica foi a sua origem e, mais ainda, polêmica foi a pena da
qual partiu os argumentos fundamentais que formaram o espírito do pensamento
conservador: a obra de sir Edmund Burke.
Edmund Burke (Dublin, 12 de janeiro de 1729 – Beaconsfield, 9 de julho de
1797) foi um importante escritor e político irlandês. Iniciou suas investigações

1 Doutorando em Ciência Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-Mail: <phpcas-
simiro@gmail.com>.
2 POCOCK, J. G. A. (org.). Reflection on the Revolution in France. Indianápolis: Hacket, 1995, p.
61.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 375


filosóficas com estudos sobre estética e gosto, expostos em sua obra Investigação
filosófica sobre a origem de nossas ideias do Sublime e do Belo de 1757, um
trabalho inspirado pela tradição da filosofia escocesa.3
Iniciou sua carreira política em 1761 como primeiro-secretário particular do
governador da Irlanda, Willian Gerard Hamilton. Rompeu com Hamilton em
1765 e foi nomeado, naquele mesmo ano, secretário do Primeiro-Ministro e líder
do partido Whig. Sua carreira política ganhou grande expressão na Câmara dos
Comuns, onde se tornou conhecido por suas posições liberais, como a defesa das
reivindicações tarifárias das colônias americanas, a simpatia pela liberdade de culto
do catolicismo irlandês e a crítica às violentas intervenções coloniais na Índia.
Desde suas primeiras obras Burke revela uma oposição completa pela filosofia
de matriz francesa. Burke acreditava que a base da moralidade não poderia estar
calcada na razão, mas antes numa série de princípios que nos eram legados e que
compunham a imaginação histórica dos povos. Passaremos agora a investigar a
relação de Burke com os conceitos de direito natural e as relações filosóficas criadas
por ele, primeiramente a partir do problema do estado de natureza.
De maneira geral, sem atentarmos para as especificidades dos diversos autores
contratualistas, a teoria do contrato se desenvolve como uma justificativa racional
da autoridade política através do consentimento daqueles que se submetem às suas
obrigações. A sanção que preserva as obrigações dos homens com a ordem política
nasce da natureza racional do indivíduo, de sua decisão racional em submeter-se ao
contrato. A ideia do contrato é precedida logicamente pela de estado de natureza,
entendido como o momento precedente à existência do homem na comunidade
política. O principal aspecto desenvolvido pela ideia do estado de natureza é a
atribuição aos indivíduos de direitos naturais irredutíveis e inalienáveis, por cuja
garantia o contrato deve zelar. O homem no Estado de Natureza é livre e igual,
em constante defesa da autopreservação, submetido apenas às leis universais da
natureza.
Os conceitos de direito natural e de contrato social tornaram-se as bases de
uma nova teoria da ordem social e da autoridade política, Segundo Charles Parkin,

Natural right implied an ultimate limitation to the authority


of community and government; but it was itself limited
(for example, in Locke) by the recognition that the
obligations inseparable from life in society and state were
indispensable and beneficial to the individual, and that
the compromise of natural right entailed by the contract
was compensated for by needs met, and new advantages
found, within the community.4

Ou seja, a teoria do estado de natureza caracteriza-se justamente por uma

3
Para mais sobre a interpretação de Burke como um autor do chamado “iluminismo inglês” e
sobre sua relação com a filosofia escocesa, ver: POCOCK, G. J. A. Barbarism and Religion – Vol.
1. Nova York: Cambridge University Press, 2003.
4
PARKIN, Charles. The moral basis of Burke’s political thought. Nova York: Cambridge University
Press, 2011, p. 08.

376 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


concepção de mundo onde os indivíduos não são naturalmente sociais, mas antes
devem preparar o contrato de modo a manter os direitos naturais mesmo dentro
de um sistema social artificial.
O primeiro trabalho filosófico de Burke no qual podemos encontrar os indícios
iniciais de sua crítica à filosofia do direito natural é o discurso satírico A Vindication
on Natural Society. Escrito em 1756 em forma de carta, o discurso de Burke
satirizava as ideias de Lord Bolingbroke – um dos mais importantes lideres e
ideólogos do partido Tory, morto 5 anos antes – sobre a constituição e os males
da sociedade. Burke devotava profunda antipatia à obra de Lord Bolingbroke,
creditando a ele uma filosofia baseada nos mesmos princípios especulativos e
racionalistas que identificava com a filosofia francesa. Utilizando de seu grande
talento literário, Burke imita o estilo da prosa de Bolingbroke para parodiar seus
argumentos e demonstrar a fragilidade de suas ideias. Cabe agora nos determos
na obra, pois nela encontram-se os rudimentos da crítica que Burke desenvolveria
nos trabalhos finais.
No prefácio da Vindication, Burke afirma que sua intenção é mostrar como
o mecanismo do raciocínio de Bolingbroke, que pode ser empregado para o
questionamento das bases da religião e do governo, não pode se sustentar em
suas próprias bases para além do que ele chama de “the fairy land of philosophy”.
Para Burke, o grande erro do raciocínio de Bolingbroke está em julgar validas
as premissas não por sua verdade ou falsidade, mas sim pelo valor de suas
consequências aparentes.

I then thought, and I am still of the same opinion, that


error, and not truth of any kind, is dangerous; that ill
conclusions can only flow from false propositions; and
that, to know whether any proposition be true or false, it
is a preposterous method to examine it by its apparent
consequences.5

Aplicando o método jusnaturalista de começar imaginando um estado de


natureza possível, Burke afirma que em tal estado os homens estariam submetidos
a uma série de inconvenientes, como a necessidade de busca por alimentos e
por proteção. A busca por assistência mútua e, principalmente, pelo sexo oposto
a fim de procriação produziria o primeiro rudimento da sociedade natural. Do
aumento de número de pessoas fruto da procriação surgiriam então as primeiras
famílias e, da união dessas famílias os primeiros corpos políticos que, na ausência
de qualquer elemento unificador entre eles, produzem leis para regular a relação
entre os homens. Assim nasce a sociedade política, a base dos estados e governos.
O texto reduz a formação da sociedade a um processo simples de agregação
de homens. As leis são frutos apenas da necessidade utilitária de regular a relação
entre os homens. No estado de natureza “nature has formed no bond of union
to hold them together”6. O argumento satírico de Burke nega qualquer elemento

5
BURKE, Edmund. Select works of Edmund Burke. 4 vols. Prefácio e nota biográfica de Francis
Canavan. Indianápolis: Liberty Found, 1999, vol. 1, p. 55.
6
BURKE, Select works…, vol. 1, p. 56.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 377


que poderia ser entendido como “popular prejudices”, ou seja, só se pode afirmar
como verdadeiro aquilo que possui o suporte da razão. Assim, a sátira produz uma
inversão nas próprias crenças positivas de Burke para efeito de contraste.
Ora, se a sociedade natural nega a validade de tudo aquilo que não é fruto da
especulação racional, a religião revelada é vista como mais um elemento estranho
à natureza humana. A religião aparece na sátira de Burke como a fonte das
superstições que são causa dos males do homem em sociedade. Ela é o elemento
irracional que produz o rompimento entre a sociedade natural e a sociedade
artificial.
A religião, causa da cegueira e escravidão humanas, é a ideia que afasta o
homem da sociedade natural e, portanto, afunda-o na artificialidade da sociedade.
Ela é a força da qual se nutre o governo. “Artificial laws receive a sanction from
artificial revelations”7. O grande erro é crer que a religião artificial e o governo
artificial são necessários para proteger os homens dos males naturais. A falsa
crença na necessidade da sociedade artificial e seus elementos produz, acima de
tudo, a dependência humana de um governo que funciona como “a nurse and
increaser of all blessings”8. A sociedade política artificial não nos defende dos males
naturais, mas antes produz uma série de males que são destruidores da espécie
humana, como as guerras e os conflitos religiosos.
As conclusões da sátira de Burke levam-nos ao primeiro momento da sua crítica
aos direitos naturais. A religião e o governo dividiram a raça humana em duas
partes separadas e conflitantes: de um lado a “natural society” que representava
o estado verdadeiro da razão e da natureza humana e, do outro, as instituições
sociais que causaram a destruição de primeira e, portanto, elevaram os males
humanos a um grau inimaginável para aqueles que viviam na sociedade natural.
Burke sempre se recusou a considerar a natureza humana ou as origens do
governo como algo “pré-histórico”, ou pré-institucional. O estado de natureza,
enquanto explicação para as origens do homem em sociedade com base numa
abstração da razão, exclui todos os elementos históricos que compunham a formação
da sociedade. Para Burke, por outro lado, a sociedade humana desenvolve-se ao
longo do tempo e é regulada pela sobrevivência dos elementos que permanecem;
não é possível pensá-la como um processo que está claro à razão, mas sim como
fruto do desenvolvimento histórico. Não há separação entre arte e natureza no que
tange à formação da sociedade em Burke.

In february 1788, while speaking on Indian affairs, Burke


said: “There is a sacred veil to be thrown over the beginning
of all government.” Burke rejected the state of nature
because it had no historical existence in fact, because
politics was a pratical and not a speculative science,
and because he doubted that man’s unaided reason could
penetrate the divine mystery at the core of civilized life. God
had willed society and the state as the necessary means of

7
BURKE, Select works…, vol. 1, p. 57.
8
BURKE, Select works…, vol. 1, p. 63.

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perfecting human nature; Burke therefore accepted and
venerated civil society, with all its imperfections, in a spirit
of piety and reverence.9

Assim, podemos ver como, para Burke, a sociedade não é fruto de um “salto”
corruptor do estado de natureza para o estado político, mas sim de um processo de
fundação cuja origem não nos chega senão através dos registros históricos.
Em 1782, Burke prepara uma curta intervenção no Parlamento referente a uma
moção de sir. William Pitt sobre a possibilidade de reforma nas regras de
divisão da representação da câmara dos comuns10. A preocupação de sir. Pitt era
rever a distribuição de cadeiras no Parlamento levando em conta as mudanças
populacionais na geografia eleitoral da Grã-Bretanha. Porém, Burke vê na proposta
uma perigosa possibilidade de infiltração no parlamento das ideias revolucionárias
que homens como Arthur Priestley e Richard Price (a quem Burke criticaria nas
Reflexões), que consideravam a Constituição Inglesa como uma barreira para
a realização dos verdadeiros direitos universais dos homens. Burke não nega a
possibilidade de reformar as regras de representação, mas ressalta que qualquer
mudança que atinja a Constituição Inglesa em sua essência devem ser rechaçadas.

[…] they who plead an absolute right cannot be satisfied


with anything short of personal representation, because all
natural rights must be the right of individuals, as by nature
there is no such thing as politic or corporate personality:
all these ideas are mere fictions of law, they are creatures
of voluntary institution; men as men are individuals,
and nothing else. The House of Commons, in that light,
undoubtedly, is no representative of the people, as a
collection of individuals.11

A crítica de Burke volta-se contra o princípio democrático da “personal


representation”, ou seja, da ideia que considera cada indivíduo como dotado de
direitos de representação por ser portador de direitos naturais. O homem enquanto
indivíduo não pode ser portador de nenhum tipo de direito, pois, por definição
não há direitos políticos num estado de existência pré- política. Não é possível
derivar do estado de natureza, que se caracteriza justamente por ser um estado
“pré-político” que antecede às instituições garantidoras do direito, uma nova
ordem política. Os direitos do homem em sociedade não derivam de um estado
anterior, mais sim de sua própria existência civil, que não se constitui como um
agregado de indivíduos portadores de direitos, mas antes como um processo de

9
STANLIS, P. J. Edmund Burke and the Natural Law. Louisiana: Huntington House, 1986, p. 128.
10
De acordo com os registros históricos do Parlamento Inglês o discurso nunca foi pronunciado.
Segundo alguns biógrafos, Burke, que estava envolvido na formulação de uma nova reforma
econômica para apresentar ao Parlamento, foi convencido por seus aliados, o grupo de whigs em
torno de Lord Fox, a não se indispor com Sir Pitt, pois buscavam seu apoio para a reforma que
estavam preparando. Ver mais em: BURKE, Select works…, vol. 4, p. 07.
11
BURKE, Select works…, vol. 1, p. 396.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 379


desenvolvimento histórico, “because a nation is not an idea only of local extent
and individual momentary aggregation, but it is an idea of continuity which
extends in time as well as in numbers and in space”12.
Burke nega que a Câmara dos Comuns seja representativa do povo enquanto
conjunto de indivíduos. A Constituição não é fruto da associação de indivíduos,
mas da associação de nobres, povo e burgueses (knights, citizens, burgesses). Ela
é fruto da prescrição, da permanência por longo tempo de um corpo legislativo,
jurídico, de poderes e privilégios legados, “[...] our constitution is a prescriptive
constitution; it is a constitution whose sole authority is, that it has existed time out
of mind”13.
Segundo o próprio Burke, o indivíduo e a multidão são ambos tolos, porém
a “espécie” é sábia. Só se pode agir sabiamente em termos políticos quando se
age levando em consideração o desenvolvimento da sociedade num longo período
de tempo. Porém, não podemos creditar à afirmação de Burke sobre a validade e
importância da existência da constituição a um obscurantismo histórico em torno
da fundação da ordem política inglesa. Na verdade, o debate sobre a possibilidade
de datar historicamente a formação das liberdades e privilégios ingleses é um
tópico fundamental na historiografia jurídica e política inglesa14.
Burke afirma a validade da Câmara dos Comuns, fruto da Bill of Rights
conquistada com a revolução de 1688, como um elemento necessário e eficiente, a
despeito do debate sobre a Constituição. Se a Constituição recebe sua autoridade
da prescrição, da tradição jurídica inglesa que tem raízes em tempos imemoriais,
por outro lado, sua eficiência deve ser julgada não por suas causas, mas sim pelos
efeitos. “to those who say that it[a Constituição] is a bad one, I answer, Look to
its effects. In all moral machinery, the moral results are its test”15. Em Burke, o
tradicionalismo das causas convive com o utilitarismo das consequências.
O discurso não pronunciado de 1782 antecipa de maneira concisa as ideias de
Burke que seriam desenvolvidas dez anos mais tarde nas “Reflexões”. Para Burke
é a sociedade civil, e não o estado de natureza a condição natural do homem.
O homem de Burke é o “homem político” de Aristóteles e a Constituição é o
elemento fundador da ordem de Cícero. Os homens nascem em uma sociedade
historicamente desenvolvida, cujas regras são mediadas por instituições “artificiais”
cuja existência é “natural” para a sociedade civil. Dado que a natureza do homem
é essencialmente civil, seus “direitos” como cidadão são determinados pela
convenção, pelas tradições de sua sociedade, que são resultados da formação
histórica da constituição. O desejo revolucionário de gozar em sociedade os

12
BURKE, Select works…, vol. 1, p. 398.
13
BURKE, Select works…, vol. 1, p. 297.
14
Sobre o debate histórico sobre o nascimento da constituição inglesa, principalmente no século
XVIII, ver: POCOCK, G. J. A. Ancient constitution and feudal Law. Nova York: Cambridge University
Press, 1987. Nesse estudo Pocock investiga as disputas jurídicas e históricas em torno da fundação
da ordem política inglesa. Por um lado, alguns autores afirmavam que os privilégios e liberdades
estabelecidos na constituição precediam as invasões da ilha e não podiam ser estabelecidos com
precisão; por outro lado, alguns historiadores datavam da implantação da lei feudal, vinda com
as invasões, as prerrogativas inglesas e, portanto, podiam ser reconhecidas como fruto de um
determinado processo histórico bem definido.
15
BURKE, Select works…, vol. 1, p. 399.

380 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


supostos “direitos naturais” do homem só podem resultar num risco à destruição
dos verdadeiros direitos civis.
Burke confiava no poder das instituições artificiais para subjugar e moldar as
paixões mais violentas dos homens, em ordenar e garantir a moral, os costumes,
os contratos e as leis e, sem destruir a diferença natural entre os homens,
produzir um estado de harmonia que possibilitava a convivência em sociedade
– harmonia “artificial” –, e não a suposta harmonia que os homens gozavam no
estado de natureza antes da criação da propriedade privada, como em Rousseau,
por exemplo. A sociedade e suas instituições garantem, em suma, a sobrevivência
do homem contra a barbárie do suposto estado de natureza. O melhor exemplo de
realização dos verdadeiros estado natural do homem, a sociedade civil, encontra-
se na constituição e nas instituições inglesas.

Revolução e Tradição

A Revolução Francesa, iniciada em 1789, marcaria para sempre a vida e a obra


de Edmund Burke. A torrente revolucionária que varreu a França, suas instituições
e seus costumes com uma rapidez inimaginável, despertou Burke imediatamente
para o perigo que os novos valores pudessem representar. As Reflections on the
Revolution in France foram sua resposta aos questionamentos de um “jovem
fidalgo de Paris”, sobre os acontecimentos políticos mais recentes. Burke,
temendo as influências francesas em solo inglês, concentrou-se principalmente em
atacar a Sociedade da Revolução – principal centro inglês de entusiastas dos
acontecimentos franceses –, e seu líder, o pregador Richard Price. Em sua obra,
Burke contrapunha a experiência concreta das conquistas políticas da Inglaterra
– que criaram uma constituição, leis e liberdades civis – às promessas idealizadas
de liberdade e igualdade dos franceses. Para ele, os valores conquistados pela
experiência, por mais imperfeitos que fossem, são preferíveis ao experimentalismo
arriscado e sem bases concretas da Revolução. Contra o direito Universal do
Homem Burke reivindicava o direito do homem inglês. Ao racionalismo teórico
dos iluministas, Burke contrapunha a razão pratica dos ingleses.
Durante o século XVIII, em especial na teoria do contrato e do estado de
natureza de Rousseau até os pensadores da Revolução Francesa, a teoria do direito
natural recebe uma interpretação muito mais radical. O reconhecimento do direito
natural em sua necessidade e força inalienável torna-se para muitos a única base
legitima de qualquer governo, o único critério válido para legitimar a autoridade
de qualquer poder político. O conceito revolucionário de “Direitos do Homem”
foi a forma como a Revolução Francesa expressou as ideias dos Direitos Naturais
através do processo político revolucionário16. É contra a declaração, seu caráter
abstrato e seus efeitos práticos que Burke se revolta em sua obra que, a despeito de
ser um panfleto de circunstância, reúne não só a crítica, mas também as ideias do
autor sobre a legitimidade da ordem política. Toda a argumentação do autor contra
a Revolução se dá no sentido de defender a autoridade política, representada pela

16
Para mais discussões sobre o discurso dos direitos naturais e sua derivação no discurso da
democracia republicana dos jacobinos, ver: JAUME, Lucien. Le discours jacobin et la démocratie.
Paris: Fayard, 1989.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 381


Constituição, que se sustenta na tradição histórica.
A preocupação de Burke é com a incapacidade de um movimento político
como a Revolução Francesa em criar instituições que sustentem a estrutura política
para além do conflito aberto contra a antiga ordem política e social. A liberdade
como algo que pudesse construir, e não apenas destruir, é o que ele demanda da
revolução:

I must be tolerably sure, before I venture publicly to


congratulate men upon a blessing, that they have really
received one. Flattery corrupts both the receiver and the
giver; and adulation is not of more service to the people than
to kings. I should therefore suspend my congratulations on
the new liberty of France, until I was informed how it had
been combined with government. with public force; with
the discipline and obedience of armies; with the collection
of an effective and well-distributed revenue; with morality
and religion; with the solidity of property; with peace and
order; with civil and social manners.17

A imaginação moral de Burke jamais poderia conceber que o uso de tão


extremada violência, propiciada pela súbita libertação das massas, pudesse chegar
a construir alguma coisa como a liberdade pública que os ingleses usufruíam.
Assim, Burke olha sempre com desconfiança a participação ampliada das massas
na condução da coisa pública. Burke assume a defesa da desigualdade natural
dos homens e a exigência de determinados atributos para a participação na
política contra a afirmação do Terceiro Estado e dos “sans-coulotes” enquanto
protagonistas da Revolução.
As críticas de Burke à liberdade sem sabedoria e a participação política sem
virtude culminarão no ataque à Declaração Universal dos Direitos do Homem e do
Cidadão. Nesse ponto, Hannah Arendt corre em auxílio de Burke, ao afirmar que
seu argumento não é “nem obsoleto nem reacionário”. De fato, Arendt ecoa Burke
quando diz que:

A Declaração francesa dos Direitos do homem, tal como


a revolução a veio a entender, pretendia constituir a fonte
de todo poder político, estabelecer, não a fiscalização,
mas a pedra basilar do corpo político. Supunha-se que o
novo corpo político assentava-se nos direitos naturais do
homem, nos seus direitos na medida em que não passa
de um ser natural, no seu direito a ‘Alimentação, vestuário
e reprodução da espécie’, isto é, nos seus direitos às
necessidades da vida. E esses direitos não eram entendidos
como pré-políticos, que nenhum governo ou poder político
tem o direito de atingir ou violar, mas como o verdadeiro

17
BURKE, Select works…, vol. 2, p. 94.

382 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


conteúdo e o fim último do governo e do poder.18

Para Burke, a Declaração dos direitos universais cometia exatamente o erro de


conceber a instituição de uma base jurídica para garantir a estrutura política levando
em conta problemas que não concerniam ao exercício imediato de atribuições e
prerrogativas fundamentais ao poder político. Aquilo que ele chama de a busca
pela “perfeição” na Declaração dos Direitos Universais opõe-se ao efeito “prático”
que deveria ser o objetivo do direito.
Burke afirma que a Declaração Universal cria a demanda de uma diversidade
de paixões que precisariam ser atendidas pelo órgão responsável por garantir a
efetividade de suas prerrogativas, o Estado. Ora, se a função básica dos direitos é
não só garantir as liberdades individuais, mas antes freá-las e restringi-las, como
então coadunar a infinidade de demandas criadas pela Declaração e as obrigações
do Estado? A esse conflito nos parece que Burke se refere ao dizer que:

The restraints on men, as well as their liberties, are to be


reckoned among their rights. But as the liberties and the
restrictions vary with times and circumstances, and admit
of infinite modifications, they cannot be settled upon any
abstract rule; and nothing is so foolish as to discuss them
upon that principle.19

Contra a especulação metafísica que orienta a Revolução Francesa, Burke exalta


a experiência política conquistada com a Revolução Inglesa, que deu aos ingleses
uma constituição que garante as liberdades civis, um governo que é fruto da lei e
não do arbítrio e um parlamento que garante a participação política. A Revolução
de 1688 iniciou um período em que, garantidos os direitos políticos contra a
vontade absoluta do rei, o processo político prossegue dentro da legitimidade legal,
e as decisões políticas passam a ter como base as opiniões e costumes consolidados
pela tradição. É importante perceber que Burke é, antes de tudo, um tradicionalista.
Para ele, é a sanção dos costumes que dá à política sua validade, como bem revela
esta passagem contra o direito divino dos reis:

It is common with them to dispute as if they were in a


conflict with some of those exploded fanatics of slavery,
who formerly maintained, what i believe no creature now
maintains, ‘that the crown is held by divine, hereditary, and
indefeasible right’s. These old fanatics of single arbitrary
power dogmatized as if hereditary royalty was the only
lawful government in the world, just as our new fanatics of
popular arbitrary power, maintain that a popular election
is the sole lawful source of authority. The old prerogative
enthusiasts, it is true, did speculate foolishly, and perhaps

18
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa. 5. ed. São Paulo:
Perspectiva, 2005, p. 132.
19
BURKE, Select works…, vol. 2, p. 142.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 383


impiously too, as if monarchy had more of a divine sanction
than any other mode of government; and as if a right to
govern by inheritance were in strictness indefeasible in
every person, and under every circumstance, which no
civil or political right can be.20

Todavia, o fato de Burke não atribuir à sanção divina a ordem política não
significa que ele tenha afastado a religião da estrutura social. Pelo contrário, a
ordem política está subsumida em uma ordem maior, a ordem do cosmos ou
ordem divina, que garante uma ordem moral, transmitida pela religião. É ela
que garante a observação da moralidade que compõe a formação da civilização
cristã. A religião, portanto, tem importância enquanto elemento fundamental para
qualquer civilização:

Para estes [os conservadores] a religião era, acima de tudo,


pública e institucional, algo a que eram devidas lealdade e
consideração apropriada – um pilar valioso para o Estado
e para a sociedade, mas não uma doutrina profunda e
convincente e muito menos uma experiência total.21

A citação explicita claramente a posição de Burke diante da tradição Whig de


crítica à ideia de um direito divino da monarquia inglesa. O apelo de Burke
à hereditariedade é antes baseado na razoabilidade do processo de sucessão, que
tem sido eficaz ao longo dos anos, do que a qualquer sanção externa. Assim, a
legitimidade do poder não vem do direito divino, do contrato social ou da vontade
geral, mas sim da história e das tradições que vão muito além da decisão de uma
única geração. A sociedade política é a associação entre os vivos, os mortos e os
que irão nascer.
É interessante perceber que, nas Reflections, a ideia de contrato não está
ausente da obra de Burke. Porém, ela é usada não de acordo com o conceito dos
jusnaturalistas já criticados por Burke desde sua primeira obra, em que o contrato
expressa o momento de transição entre o estado de natureza e a constituição da
sociedade; mas sim no sentido de associação histórica que engendra um Estado.
A citação seguinte é um dos argumentos fundamentais para entender a concepção
da ordem e da existência da sociedade no pensamento de Burke:

Society is indeed a contract. Subordinate contracts, for


objects of mere occasional interest, may be dissolved
at pleasure; but the state ought not to be considered as
nothing better than a partnership agreement in a trade
of pepper and coffee, callic or tobacco, or some other
such low concern, to be taken up for a little temporary
interest, and to be dissolved by the fancy of the parties.

20
BURKE, Select works…, vol. 2, p. 114.
21
NISBET, Robert. O Conservadorismo. Tradução de M. F. Gonçalves de Azevedo. Lisboa: Editorial
Estampa, 1987, p. 116.

384 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


It is to be looked on with other reverence; because it is
not a partnership in things subservient only to the gross
animal existence of a temporary and perishable nature.
It is a partnership in all science; a partnership in all art;
a partnership in every virtue, and in all perfection. As the
ends of such a partnership cannot be obtained in many
generations, it becomes a partnership not only between
those who are living, but between those who are living,
those who are dead and those who are to be born. Each
contract of each particular state is but a clause in the great
primaeval contract of eternal society, linking the lower the
lower with the higher natures, connecting the visible and
invisible world, according to a fixed compact sanctioned by
the inviolable oath which holds all physical and all moral
natures, each in their appointed place.22

Eis a essência da concepção de sociedade da imaginação social e política de


Burke. A sociedade é fruto da combinação entre o temporal e o eterno, entre o
natural e o moral. A ordem política é o contrato criado e mantido pelo processo
do tempo. O governo não é feito em virtude dos direitos naturais, mas de uma
força que transcende a capacidade individual dos homens, pois se estende ao longo
de muitas gerações ao mesmo tempo em que garante o vínculo histórico entre elas.
O exercício da pura razão jamais alcançaria a imagem do “élan” social criado
por Burke. Contra a razão crítica ou, antes, contra o racionalismo exacerbado
produzido pela reflexão política orientadora da Revolução Francesa, Burke
opõe a suposição de uma razão histórica. A filosofia de Burke é o resultado
de uma atividade racional, mesclada com a forte atividade da imaginação. A
característica fundamental da razão histórica de Burke é o reconhecimento de
uma razão superior, da qual toda a reflexão humana, que busca dar sentido às
coisas da natureza e da sociedade, depende. Essa outra razão superior é o
reconhecimento de uma ordem moral.
A filosofia, desde Descartes, assumiu o compromisso com a razão pura como
forma de julgar a realidade. Burke opõe a esse julgamento puro o que ele chama
de preconceito, ou seja, uma maneira de julgar de acordo com a consciência dos
costumes. Para Burke, o preconceito é a expressão no individuo da sabedoria
contida na tradição. Para Burke, o preconceito encaminha o espírito num sentido
estável de sabedoria e virtude e não deixa o homem hesitante ceticismo da
filosofia. Na verdade, o preconceito é a forma que Burke encontra para contrapor
às teorias racionais e “metafísicas” o conhecimento calcado na experiência. Além
disso, o preconceito dá um sentido de pertencimento a uma tradição, a hábitos
enraizados há muito numa população. Assim, o preconceito, tal como entendido
por Burke, não deve ser entendido no sentido de juízo discriminatório, mas antes
no de senso comum.
Burke compreendia que a política era fruto de uma circunstância histórica
específica. Seu apelo à autoridade da tradição e da Constituição inglesas se deve

22
BURKE, Select works…, vol. 2, p. 192-193.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 385


muito mais ao fato de que é essa autoridade que garante a liberdade da qual os
ingleses tanto se orgulham, ou seja, é um acontecimento passado que consolida
a estabilidade política e garante as liberdades futuras. Assim, compreendemos
que a cooperação da história com a prática constrói a legitimidade da política. A
complexa relação entre presente, passado e futuro estrutura toda a obra de Burke.

Yet the study of history and human character never


can encompass the greater part of human wisdom.
The experience of the species is treasured um chiefly in
tradition, prejudice, and prescription – generally for most
men, and sometimes for all men, surer guides to conduct
and conscience than book and speculation.23

Leo Strauss nos lembra que a história – o elemento fundamental para


entendermos a imaginação política de Burke – não deve ser confundida com a
ideia de história como processo. A história é antes o repositório de exemplos e
conquistas aos quais o presente deve se reportar, à luz da razão e da imaginação,
e não um sistema do qual se deduz necessidades inalteráveis:

From history ‘much political wisdow may be learned’, but


only ‘as habit, not as precept’. History is liable to turn man’s
understanding from ‘the business before him’ to misleading
analogies, and men are naturally inclined to succumb to
that temptation. For it requires a much greater effort to
articulate a hitherto unarticulated situation in its particular
character than to interpret it in the light of precedents wich
have been articulated already.24

Ordem e História

Vimos como a visão de Burke em torno do problema dos Direitos do Homem


revela-se como uma crítica à própria ideia do individualismo liberal. A obra de
Burke desenvolve-se como um método de pensar a política através da crítica
de conceitos abstratos baseados em princípios descolados das circunstâncias
sociais, como as ideias de contrato social, do estado de natureza, dos direitos
individuais e da teoria democrática da representação. É propriamente a separação
da ideia do universal do “Direito” da ideia de bem comum formada ao longo
do desenvolvimento histórico das sociedades o que caracteriza o pensamento
revolucionário como uma ameaça aos laços de obrigações e direitos que mantem
a coesão da sociedade imaginada por Burke.
Como vimos antes, a primeira crítica de Burke ao conceito de direitos
naturais provem da suposição de que indivíduos possuem direitos intrínsecos e
precedentes à sociedade, os quais são cedidos a um Estado por meio do contrato.
A consequência de compreender a sociedade como um conjunto de indivíduos

23
KIRK, Russell. The conservative mind: from Burke to Eliot. Indiana: Gateway Edition, 1978, p. 36.
24
STRAUSS, Leo. Natural Right and History. Chicago: University of Chicago Press. 1971, p. 306.

386 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


livres num estado de natureza está em igualar a vontade e a igualdade na condição
humana, é compreender o homem como despido de todas as relações “artificiais”
que compõem a sua existência.
Burke nega que qualquer teoria política possa ser baseada na ideia de um
indivíduo que existe na completa independência de instituições e relações artificiais.
A ideia de que os indivíduos são livres para determinar suas decisões quanto à
validade da autoridade política parece a Burke uma completa loucura. A solução
para o conflito de vontades gerado pela concepção individualista dos direitos do
homem é a delegação de poderes cada vez maiores ao Estado que, sob a ideia
de garantir as liberdades políticas, torna-se antes um instrumento de controle da
vida dos indivíduos.

Men love to hear of their power, but have an extreme


disrelish to be told of their duty. This is because every duty
is a limitation of some power. Indeed, arbitrary power
is so much to the depraved taste of the vulgar of every
description, that almost all the dissentions which lacerate
the commonwealth are not concerning the manner in
which it is to be exercised, but concerning the hand in
which it is to be placed.25

Essa descoberta da contradição entre a formação de uma suposta liberdade


política garantida pelo novo Estado fruto da revolução e as verdadeiras liberdades
privadas dos indivíduos marcará as últimas obras de Burke, especialmente nos
discursos do ano de 1791, imediatamente posteriores à publicação das Reflexões,
como o discurso intitulado An appeal from the New to the Old Whigs e a letter to a
member of the National Assembly.
Burke reconhece o movimento de reivindicação da soberania popular da
revolução francesa e sua defesa dos valores dos “direitos do homem” como uma
busca da afirmação da vontade sobre a razão, a lei, os costumes e os sentimentos
naturais dos homens. O livre exercício da vontade, mascarado por teorias falsas
e “metafísicas” sem qualquer enraizamento na experiência humana, coloca em
risco o “general sense of mankind”, ou seja, o sentido natural da convivência em
sociedade como o compartilhamento de obrigações mútuas.
Burke jamais poderia reconhecer uma revolução que, a despeito de propalar
os altos valores da liberdade e da igualdade humanas, cuja busca significa executar
aquilo que é próprio da natureza humana segundo a teoria do direito natural, realiza
seus objetivos através da perseguição, do assassinato e da destruição. Como
uma revolução conduzida por “assassins and robbers” pode levar à conquista da
verdadeira liberdade humana? “Society cannot exist unless a controlling power
upon will and appetite be placed somewhere [...]. It is ordained in the eternal
constitution of things, that men of intemperate minds cannot be free”26. A liberdade
pressupõe o reconhecimento e a submissão da lei, e não a livre execução da

25
BURKE, Select works…, vol. 1, p. 76.
26
BURKE, Select works…, vol. 1, p. 69.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 387


vontade. O despertar dos apetites da vontade levam, invariavelmente, à tirania da
maioria e ao despotismo da democracia.
Burke insiste em seus últimos discursos - um ponto já ressaltado nas Reflexões
- sobre a ilusão de uma “perfeição abstrata” que subjaz à concepção da política
revolucionária, em detrimento do senso prático que a política verdadeiramente
exige. A teoria política revolucionária é antes uma “metafísica”, produzida por
homem como Rousseau, o “insane Socrate”, sem senso prático e sem experiência
na condução dos assuntos públicos. A concepção dos direitos naturais do homem
coloca em cheque o conjunto das obrigações e ligações que mantém a sociedade
viva, como um organismo. “As to the right of men to act anywhere according to
their pleasure, without any moral tie, no such right exists. Men are never in a state
of total independence of each other. It is not the condition of our nature”27.
Ora, se o governo, para ser legítimo, demanda antes a chancela dos direitos do
homem, então toda a ordem política que já existiu sob o sol não passa de uma
farsa; todo o bem e toda virtude humana em sociedade é uma mentira que serve
apenas para mascarar a verdadeira natureza humana. Assim, a filosofia política
do direito natural desloca o homem de seu verdadeiro estado natural, o homem
entendido como “civil social man”28, para apresentá-lo como o portador de direitos
auto-infundidos e propalados por uma filosofia “metafísica” cuja conexão com a
realidade da política é nenhuma.
Segundo Burke, os pretendidos direitos naturais se, por um lado, são
metafisicamente verdadeiros, por outro são moral e politicamente falsos. São
“metafisicamente verdadeiros” no sentido de que são logicamente consistentes,
porém não possuem aplicação moral ou política, não são fruto de nenhuma
experiência política específica. Não são mais do que pretensão da atividade
especulativa dos “philosophes”.
Mas afinal, o que Burke defende quando ataca os “direitos do homem” abstratos
e o falso estado de natureza? Apesar da crítica à concepção revolucionária dos
direitos, Burke ainda assim usa linguagem semelhante, se bem que com intenções
e fundamentos diversos, quando fala de “rights of mankind” ou “chartered rights of
men”, para referir-se aos benefícios que a sociedade assegura ao homem. A ideia
de uma sociedade construída a partir de um contrato de indivíduos, revogável
em certas circunstâncias, carece da perspectiva histórica dos verdadeiros direitos e
liberdades que nos são legados.
Burke afirma o valor dos verdadeiros direitos, aqueles que garantem as
liberdades e benefícios concretos que têm sido assegurados por um longo período;
aqueles que refletem a tradição de uma nação, que são expressos pelos costumes e
são garantidos pelo tempo e pela história.

You will observe that from Magna Charta to the Declaration


of Right, it has been the uniform policy of our constitution
to claim and assert our liberties, as an entailed inheritance
derived to us from our forefathers, and to be transmitted to

27
BURKE, Select works…, vol. 1, p. 303.
28
BURKE, Select works…, vol. 2, p. 151.

388 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


our posterity; as an estate specially belonging to the people
of this kingdom without any reference whatever to any
other more general or prior right.29

Na Grã-Bretanha, entre as garantias dos direitos sustentados pela Constituição


está a da hereditariedade da coroa. Burke insiste na ideia de que os ingleses
identificam na legalidade da sucessão um benefício, um elemento de segurança
ao longo do tempo, uma garantia para a sustentação e o bom funcionamento
das instituições estabelecidas. Instituições seguras tornam-se parte da fabricação
constitucional de um país e existem como uma proteção contra qualquer tentativa
de subverter as conquistas da história de uma nação. Burke afirma que

[…] the constitution of a contry being once settled


upon some compact, tacit or expressed, there is no
power existing of force to alter it, without the breach of
the covenant, orthe consent of all the parties.Such is the
nature of a contract.30

A constituição britânica, portanto, serve para assegurar e proteger os verdadeiros


direitos dos homens, não entendidos como a abstração universal dos franceses,
mas como homens frutos de um processo histórico comum. O “Homem” não é
portador de um direito natural, mas sim os homens ingleses são portadores de
direitos formados historicamente.

The charters, which we call by distinction great, are public


instruments of this nature; I mean the charters of King
John and King Henry the Third. The things secured by
these instruments may, without any deceitful ambiguity,
be very filty called the charteres rights of men.31

Nossa natureza humana é expressa verdadeiramente em sociedade. A


sociedade civil é, na realidade, o verdadeiro estado de natureza do homem, pois
é em sociedade que o homem, colocado em contato com outros homens, com
toda arte e engenho humanos, pode cultivar sua razão de maneira reta. “Art
is man’s nature”. A sociedade é o produto da arte humana, pois é natural ao
homem criar alguma forma de viver em conjunto.

Far am I from denying in theory, full as far is my heart from


withholding in practice (if were of pover to five or withhold)
the real rights of men. In denying their false claims of
right, I do not mean to injure those which are real, and
are such as their pretended rifhts would totally destroy. [...]

29
BURKE, Select works…, vol. 2, p. 121.
30
BURKE, Select works…, vol. 2, p. 83.
31
BURKE, Select works…, vol. 4, p. 100.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 389


They have a right to the fruits of their industry. and to the
means of making their industry fruitful. They javer a right
to the acquisitions of their parents; to the nourishment and
improvement of their offspring; to instruction in life, and to
consolation in death. Whatever each man can separately
do, without trespassing upon others, he has a right to do
for himself; and he has a right to a fair portion of all which
society, with all its combinations of skill and force, can do
in his favour. In this partnership all men have equal rights,
but not to equal things [...] to the share of power, authority,
and direction which each individual ought to have in the
management of the state, that I must deny to be amongst
the direct original rights of man in civil society.; for I have
in my contemplation the civil social man, and no other. It
is a thing to be settled by convention.32

É importante notar que essa lista de direitos descreve nossas obrigações e


deveres recíprocos diante dos outros homens, assim como os privilégios e
benefícios que podemos almejar. Burke refere-se na citação acima ao contexto
no qual a sociedade ajuda seus membros a aperfeiçoar a si mesmos num estado
de responsabilidades recíprocas; o que requer uma sociedade ordenada por leis
e costumes comuns. A lista de direitos que compõem a imaginação moral de
Burke reconhece que, em meio a todas as obrigações e benefícios sociais, o
homem necessita de laços morais para a vida em sociedade. A concepção
de contrato individualista e voluntarista, tomando o homem como despojado
de relações morais, ignora o verdadeiro elemento que mantém a ordem da vida
humana em sociedade.

If civil society be the offspring of convention, that convention


must be its law. That convention must limit and modify all
the descriptions of constitution which are formed under it.
Every sort of legislative, judicial, or executory power are
its creatures. They can have no being in any other state of
things; and how can any man claim, under the conventions
of civil society, rights which are absolutely repugnant to
it?33

Considerações Finais

Pocock chama atenção para as semelhanças de Burke com o pensamento do


iluminismo escocês de autores como Robertson e Smith, no que tange a atribuir
à história da Europa uma evolução da idade média até o momento presente em
que a disputa constante e a desagregação da Europa feudal são paulatinamente

32
BURKE, Select works…, vol. 2, p. 150-151.
33
BURKE, Select works…, vol. 2, p. 151.

390 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


substituídas pelos costumes (manners) corteses da era do comércio. A ordem social
e política da Europa oitocentista, calcada na estabilidade das terras, na difusa
atividade comercial e na constituição de instituições políticas intermediárias é fruto
de uma sociedade que substitui a virtude pública do tribuno romano-renascentista
pelas maneiras e costumes do nobre citadino e do burguês comerciante.

Increasingly – both in the Reflections and in later writings


– he took the view that the Revolution was a destructive
movement of the human intellect, aimed at the utter
subversion of the codes of manners and social behavior
which had grown up in the centuries of European history.
The two groups aiming at this subversion – paper-money
speculators and irresponsible intellectuals – had struck first
at the Church by destroying its property, then at the nobility
and monarchy by the destruction of chivalry; and there
was no doubt in Burke’s mind, as many passages show,
that they would proceed to tue subversion of commerce,
the third historical foundation of manners. […] the feudal
and clerical cultural codes generated in the middle ages
are part of what Robertson had called “the progress of
society in Europe”; to destroy them is to undermine what
has been built upon them. The Revolutionary conspiracy
against manners is therefore a conspiracy against history.34

Mesmo assim, muitos críticos de Burke afirmam que ele falhou em reconhecer
toda a extensão e gravidade da colisão entre os novos princípios e os antigos. O
próprio homem ao qual Burke se referia, o cavaleiro honrado e cioso das tradições,
já não era mais o tipo inglês dominante. Em plena revolução industrial, o homem
utilitarista e expansionista é que levaria a Inglaterra a tornar-se o maior império
da era moderna. Curioso o fato de que outro homem muito semelhante a Burke,
Benjamin Disraeli – pequeno burguês, político tradicionalista e escritor imaginativo
– seria o político que daria o título de Império à Inglaterra.

But now all is to be changed. All the pelasing illusions


which made power gentle and obedience liberal, which
harmonized the different shades of life, and which, by a
bland assimilation, incorporates into politics the sentiments
which beautify and soften private society, are to be dissolved
by this new conquering empire oif light and reason. All the
super-added ideas, furnished from the wardrobe of a moral
imagination, which the heart owns, and the understanding
ratifies, as necessary to cover the defects of our naked,
shivering nature, and to raise it to dignity in our estimation,

34
POCOCK, Reflection on…, p. 33.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 391


ate to be exploded as a ridiculous, absurd, and antiquated
fashion.35

Já citamos anteriormente a passagem na qual Burke dá a sua definição do


contrato. A sociedade é um contrato entre os mortos, os vivos e os que estão para
nascer. Essa concepção insere o homem em uma sociedade fruto não da escolha
ou do consentimento, mas antes da história. A ação política do homem não
versa sobre a escolha de aprovar ou retirar-se da sociedade civil, pois a ordem
política não é fruto do contrato firmado por mônadas. A ação política versa sobre
preencher as obrigações e privilégios que são nossos por possuirmos um lugar na
sociedade, e a obrigação do homem político é agir visando a boa condução dos
assuntos públicos, ou seja, agir com virtude. “They arise from the relation of man
to man, and the relation of man to God, which relations are no matters of choice”36.
A passagem sobre o contrato de Burke expõe não só a visão do autor sobre a
história e sobre o elemento de continuidade que garante a ordem da vida humana
em sociedade, mas também a concepção do universo como um todo ordenado por
Deus, cuja ordem garante a capacidade da inteligência humana:

Each contract of each particular state is but a clause in


the great primeval contract of eternal society, linking the
lower with the higher natures, connecting the visible and
invisible world, according to a fixed compact sanctioned
by the inviolable oath which holds all physical and moral
natures, each in their appointed place.37

No limite, toda concepção moral – no sentido histórico e não kantiano do


conceito – da sociedade e da política remete a um fundamento sagrado que garanta
a origem e a legitimidade da ordem. Nesse sentido, cada homem está naturalmente
ligado em relações com outros homens e com Deus, que dotou a humanidade
de uma natureza essencialmente social, e a sociedade é o artifício que garante a
ordem da vida no mundo. A sociedade é o meio pelo qual o homem, no exercício
reto da moral e dos assuntos públicos, aperfeiçoa sua natureza através da virtude.
A sociedade existe para proporcionar-nos o benefício da vida com outros homens
ao mesmo tempo em que garante o controle das paixões mais violentas e nocivas
aos outros. Nesse sentido, o argumento burkeano é sempre aristotélico.
Burke compreende que os limites impostos pela lei às paixões humanas, assim
como os benefícios e liberdades garantidos pela sociedade, também devem
ser reconhecidos como parte dos verdadeiros direitos do homem. Os limites
impostos pela lei e pelos costumes servem ao propósito da moral e conformam
nossa natureza como seres sociais.

By these theorist the right of the people is almost always

35
BURKE, Select works…, vol. 2, p. 207.
36
BURKE, Select works…, vol. 2, p. 118.
37
BURKE, Select works…, vol. 2, p. 193.

392 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


sophistically confounded with their power [...] till power
and right are the same the whole body of them has no right
inconsistent with virtue, and the first virtue, prudence.38

Os direitos só podem ser gozados num estado de normalidade, de


estabilidade da ordem social. O poder do povo, de destruir e constituir a
autoridade política, é um exercício da vontade e da força violenta, e nunca de
um direito garantido pela natureza. Onde não existe ordem política estabelecida
não pode haver garantias mútuas de execução dos direitos dos homens.
Para concluir, é importante ressaltar que todo pensamento conservador é,
acima de tudo, uma ideologia que subsome o conflito à ordem. A imaginação
social e política de Burke interpreta a sociedade ideal de seu tempo como uma
participação harmônica entre monarquia, nobreza, comércio e religião. São os
laços morais que fazem dos homens membros dessa participação. Na medida em
que não há direitos verdadeiros inconsistentes com a virtude, e a virtude serve
para aperfeiçoar a natureza humana, os direitos do homem devem ser entendidos
não como fruto da autolegislação, mas como o desenvolvimento racional e moral
da natureza humana. A participação em toda virtude e toda perfeição devem
ser realizada através da convivência com os outros homens, em um espírito de
reciprocidade e solidariedade. Não há dúvidas que a compreensão de Burke é
ciceroniana. O espírito de reciprocidade, solidariedade e responsabilidade, a partir
dos quais os homens buscam o cumprimento da vida em sociedade, compõe a
imaginação social e moral do autor em torno dos problemas diante dos quais ele
se viu impelido a reagir.



38
BURKE, Select works…, vol. 2, p. 151.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 393


RESUMO ABSTRACT
O presente ensaio pretende tratar do problema This paper intend to deal with Edmund Burke’s
da crítica à ideia de estado de natureza e de criticism to the state of nature and natural rights
direitos naturais realizada por Edmund Burke. philosophy. We aim to show how the critics to the
Procuraremos demonstrar como a crítica aos main enlightenment political and social concepts
conceitos fundamentais que orientam a reflexão are present in Burke works, since the first political
sobre a ordem social e política dos iluministas e essay, Vindication on Natural Society, until the last
dos autores sob sua influência percorre toda a counter-revolutionary works. Burke recognizes in
obra de Burke, desde seu primeiro escrito político, the emerging intelligentsia and in the abstract and
Vindication on Natural Society até os últimos universalistic rationalism that he calls “political
escritos contra a Revolução Francesa. Burke metaphysic” the announcement of the crisis in
reconhece na classe pensante emergente, no the existent social and political order. Starting
racionalismo abstrato e universalista daquilo que from the defense of the british institutions and
ele chama de política “metafísica”, o prenúncio traditions, specially the Constitution and the Bill
da crise que se imporia sobre os conceitos of Rights, Burke will defend a historical thought
que fundamentavam a ordem social e política against the natural rights political philosophy.
existente. A partir de uma defesa das instituições
Keywords: Revolution; Natural Rights;
e das tradições britânicas, concretizadas na
Conservatism.
Constituição e, especialmente, no Bill of Rights,
Burke produz uma interpretação da política
que utilizará a história para combater a filosofia
política do direito natural.
Palavras Chave: Revolução; Direitos Naturais;
Conservadorismo.

Artigo recebido em 18 mai. 2015.


Aprovado em 04 out. 2015.

394 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


OS INTELECTUAIS: QUESTÕES HISTÓRICAS E
HISTORIOGRÁFICAS – UMA DISCUSSÃO TEÓRICA

Rubens Arantes Correa1

Introdução

Quando se recorre à reconstituição histórica do termo “intelectual” percebe-se


que seu uso enquanto vocábulo é relativamente recente. Mais precisamente na
conjuntura europeia do final do século XIX envolvendo o fato da suposta traição
por parte do oficial francês Alfred Dreyfus durante a Guerra Franco-Prussiana
(1870-1871). O affair Dreyfus, como ficou conhecido a posteriori, mobilizou os
homens de letras da França que, sob argumentos diversos, defendiam ou atacavam,
através de manifestos e artigos pela imprensa, os articuladores do processo judicial.
Independente do que viria a ser revelado no transcurso do processo, o fato é que o
caso Dreyfus é considerado o “marco fundador de uma história dos intelectuais e
da própria definição mais corrente de intelectual, que vincula ao termo a ideia de
engajamento nas causas da vida pública”2.
Anteriormente ao emprego do termo intelectual foram utilizados por diversas
sociedades diferentes termos tais como escribas, sábios, filósofos, sacerdotes,
homens de letras, literatos. Mais que diferenças de nomenclaturas a acepção
moderna tomou o termo intelectual e o empregou no sentido específico do
individuo não só produtor de ideias como, também, um ator social envolvido
com as questões políticas de seu tempo – o engajamento como condição social do
intelectual – e, assim definido, é possível pensar o “intelectual” como um fenômeno
típico da modernidade, pois, que:

[...] a partir desse momento ficará mais evidente o território


ocupado pelo intelectual comprometido com a verdade, à
reflexão e a crítica, e as instâncias de poder: o Estado, a
Igreja, as classes sociais, os partidos políticos e a mídia.3

O intelectual enquanto agente social e político passou a ser objeto de investigação


crítica, ou seja, na condição de produtor de ideias, de oferecer interpretações
sobre a realidade e de intervir criticamente no meio social, o intelectual tornou-se,
também, matéria-prima de observações filosóficas, sociológicas e historiográficas.
Em outras palavras, o intelectual, com o desenrolar da modernidade, tornou-se um
problema a ser investigado pelos diferentes campos das ciências humanas.

1
Doutor em História pela Universidade Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP, Campus de
Franca. Professor do Colegiado de História da Universidade do Estado de Minas Gerais, Campus
de Passos. E-Mail: <rubens-arantes@netsite.com.br>.
2
ZANOTTO, Gizele. “História dos intelectuais e história intelectual: contribuições da historiografia
francesa”. Biblios, Rio Grande, vol. 22, n. 1, 2008, p. 31-45.
3
BASTOS, Elide Rugai & RÊGO, Walquíria D. Leão. “A moralidade do compromisso”. In:
__________ & __________ (orgs.). Intelectuais e política: a moralidade do compromisso. São Paulo:
Olho D’Água, 1999, p. 10.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 395


Nesse sentido, um dos textos fundadores sobre os intelectuais enquanto problema
de natureza investigativa foi publicado no contexto da Revolução Francesa. Em
1753, Jean Le Rond D’Alembert (1717-1783), parceiro de Dennis Diderot (1713-
1784) na reunião da Encyclopèdie, publica Essai sur la société des gens de lettres
(Ensaio sobre as sociedades dos homens de letras), obra em que o filósofo francês
defende a independência e a liberdade do homem de letras em relação ao mecenas.
A presença do mecenas, homem de posses, em geral ligado à classe emergente da
burguesia de então, torna-se fato rotineiro na vida de artistas e homens de letras
desde o advento da Renascença. Tratava-se de uma troca de interesses na medida
em que o artista/ intelectual buscava uma forma de financiamento de sua obra e o
mecenas, por meio dessa mesma obra que patrocinava, visava à projeção social.
Tal relação passa a ser repudiada por D’Alembert, na medida em que, vê uma
relação de submissão e, portanto, de perda de independência na produção artística
ou intelectual. Deriva dessa posição de D’Alembert um dos requisitos normativos
ao trabalho do intelectual: o da independência e da liberdade de criação.
No século XVIII, vinha à luz outro estudo sobre a condição intelectual: Sobre
missão do erudito, um conjunto de palestras proferidas por Johann Gottlieb
Fichte (1762-1814), filósofo do idealismo alemão, para quem o intelectual,
denominado por ele como erudito ou sábio, tem uma missão cuja chave se revela
no compromisso e na devoção para com a ciência e a verdade. Ao reconhecer
que os eruditos ocupam estamento próprio, Fichte chama a atenção destes para o
desenvolvimento de sua função para com a sociedade em que vivem, afirmando
que “o erudito existe, com efeito, para a sociedade; seu estamento mais do que
qualquer outro, existe através da sociedade e em função dela”4. Ter consciência
de ocupar um estamento próprio outorga, segundo Fichte ao erudito, a missão de
levar a ciência para toda a sociedade:

A ciência, por sua vez, é um ramo da educação do


homem; todos os seus ramos precisam ser adiantados
para que todas as disposições do homem possam ser
desenvolvidas. Cabe, portanto, aos eruditos e a todos os
homens que escolheram um determinado estamento, que
se empenhem em levar avante a ciência e particularmente
a área específica que escolheram. Cabe aos eruditos se
empenhar, como a qualquer homem em sua área e, de certo
modo, precisam se empenhar até mais que os demais. De
que forma ele deve mostrar-se responsável pelo progresso
dos outros estamentos sem, por sua vez, cuidar do próprio
desenvolvimento? De seu progresso depende o de todas
as demais áreas da educação humana. Ele sempre precisa
estar mais avançado que os outros; para poder propor o
caminho, investiga-lo e guiar os demais. Mas como poderia
fazê-lo sem se ocupar de sua educação? Nesse momento,
ele deixaria de ser o que deve ser, e como não é outra

4
BASTOS & RÊGO, “A moralidade...”, p. 50.

396 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


coisa, passaria a ser nada.5

Assim nas palavras de Fichte a missão do erudito encontrava êxito em sua


função de educador da humanidade e, a execução dessa função estava submetida
a prerrogativas fundamentais no exercício intelectual, quais sejam: 1º. Submeter-se
aos princípios éticos e à coerência consigo mesmo; 2º. Não lançar mão da força ou
da coação para persuadir os homens; 3º. Não iludir os homens, pois agindo dessa
forma estaria contrariando a si mesmo além de prejudicar a sociedade; 4º. Ser o
homem eticamente mais convincente de sua época. Por fim, advoga Fichte que o
erudito é um sacerdote da verdade.
Independência e liberdade de pensamento, segundo D’Alembert, e compromisso
com a verdade, a ética e a sociedade, conforme Fichte são requisitos para a atividade
daquele que ocupa o estamento do intelectual segundo as interpretações dos dois
pensadores do século XVIII. Percebe-se que a noção de engajamento ainda não
está presente nas análises acerca do papel e da função do intelectual (que nem era
assim chamado) na conjuntura do século XVIII ainda que a Revolução Francesa
(1789-1799) tenha impactado a produção de obras, manifestos e opúsculos.
Conforme as relações de produção capitalista vão se intensificando e tornando a
vida social mais complexa observa-se maior envolvimento dos intelectuais com os
destinos das sociedades, chamando para si a responsabilidade de dar respostas aos
conflitos decorrentes desse processo de intensificação e complexidade do mundo
social. Tal cenário é típico do século XIX com a emergência da classe trabalhadora
e de suas formas de representações como sindicados e associações, as disputas
entre as nações capitalistas por áreas de exploração econômica, a intensificação
dos conflitos entre capital e trabalho e do vertiginoso processo de urbanização e da
técnica, afetando diretamente a vida dos indivíduos.
Neste contexto surge na Rússia o termo intelligentsia empregado exatamente
para designar o intelectual engajado forma pela qual passa a ser difundida, a
posteriori, a maneira contemporânea como se entende o papel dos intelectuais
numa dada sociedade.
No decorrer do século XIX o engajamento dos intelectuais estará visível nas
manifestações do Romantismo e do Realismo, duas correntes artísticas, literárias
e filosóficas coladas à realidade social e política daquele tempo. A crítica aos
problemas sociais e as complexidades da vida moderna decorrentes do advento
das máquinas fazem desencadear e proliferar um conjunto de concepções de
mundo encampadas pelo socialismo, o liberalismo e, sobretudo, o nacionalismo.
Os efeitos imediatos da Revolução Industrial e as disputas em torno do Estado
desembocam na forma mais radical das ideologias daquele contexto histórico que
fora o nacionalismo.
A ideia de nação passa a ser considerado o fundamento de toda a existência
política no cenário europeu, da segunda metade do século XIX, criando
expectativas e tensões que viriam a provocar conflitos territoriais e disputas por
áreas de fornecimento de matérias primas e mercado consumidor. Tais conflitos,
alimentados pelo nacionalismo, desembocariam em inúmeras guerras até pelo

5
BASTOS & RÊGO, “A moralidade...”, p. 49.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 397


menos a primeira metade do século XX.
Esse pano de fundo do processo histórico explica, em grande parte, o
desencadeamento do “caso Dreyfus”, citado aqui anteriormente como marco
fundador não só do vocábulo intelectual como, também, da concepção que se
passaria a ter de intelectual– aquele engajado nas lutas políticas e sociais de seu
tempo. Decorrente da Guerra Franco-Prussiana (1870-1871), conflito com todas
as características do mundo europeu da segunda metade do século XIX, o caso
Dreyfus mobilizou intelectuais favoráveis e contrários à condenação do oficial
francês sob a acusação de traição.
Um dos intelectuais de maior atuação no caso foi Emile Zola (1840-1902) que
fez publicar no jornal L’Aurore em 1898 o manifesto “J’Accuse” denunciando o
processo judicial que condenou o oficial Dreyfus acusando de ser uma farsa para
encobrir, na realidade, o sentimento antissemita que teria caracterizado tanto os
membros do tribunal como a opinião pública francesa visto que o capitão Alfred
Dreyfus era de origem judaica. A reação pública ao manifesto de Zola levou-o a
ser processado e condenado pela justiça francesa bem como o editor da L’Aurore.
A onda nacionalista tomou conta dos embates entre intelectuais europeus a
partir do final do século XIX e por longo tempo das primeiras décadas do século XX.
Justamente nesse contexto vem a público um texto também considerado fundador
sobre os intelectuais, escrito por Julien Benda, escritor francês, intitulado A Traição
dos Clérigos. O texto é de 1927, período do entre guerras, caracterizado pelos
radicalismos, de esquerda e de direita, e fortemente marcado pelos nacionalismos.
É justamente contra esse cenário que Benda vai chamar a atenção dos intelectuais
lembrando-lhes de que seu papel como homens de ideias era estar acima das
questões mundanas (daí se recorrer à imagem do sacerdote).
Benda considera que os intelectuais que se prestam a produzir ideias para
justificar ou legitimar as ações da pátria, da nação e do Estado são traidores dos
princípios da justiça e da verdade que deveriam reger o real compromisso dos
intelectuais. Observa-se, claramente, que Benda apela para o compromisso moral
dos intelectuais com os destinos da sociedade. A traição, e essa é a tese central de
seu livro, encontra-se no posicionamento do intelectual que abdica do compromisso
com a verdade em nome dos interesses da pátria.
Se os chamados textos fundadores – D’Alembert, Fichte e Benda – procuravam
problematizar o papel do intelectual a partir de seu compromisso, missão e dever,
no decorrer do século XX, outras formas de abordagens – especialmente produzidas
pelas ciências sociais - vão tratar o intelectual como objeto de teorizações com a
finalidade de estabelecer tipologias, suas vinculações com a estrutura de classe,
seus posicionamentos ideológicos, suas posições em relação às instituições sociais
e políticas, como partidos políticos, igreja, estado, sindicados, universidades, mídia,
etc., especialmente, as visões teóricas sobre a questão dos intelectuais produzidas
por Karl Mannheim (1893-1947), Antônio Gramsci (1891-1937) e Norberto
Bobbio (1909-2004).

398 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


Visões Teóricas Sobre Intelectuais

Ao longo do século XX acompanhando o envolvimento dos intelectuais em


movimentos políticos, as ciências sociais passaram a elaborar teorias sobre os
intelectuais tentando compreendê-los enquanto grupos e atores sociais, suas
vinculações com as estruturais sociais, suas relações com a política e com as classes
sociais entre outros temas. Não se trata mais de uma reflexão sobre a condição
do intelectual, mas sim uma abordagem com aplicação de métodos de pesquisa
sistemática para a compreensão do fenômeno.
Precursor dessa tendência de estudos é o trabalho Ideologia e Utopia de Karl
Mannheim publicado originalmente em 1929 cujos pressupostos centrais têm
continuidade em Ensaios de Sociologia da Cultura, ambos, publicados no contexto
de ascensão do nazismo na Alemanha, fato que levou o seu autor a um exílio
forçado nos Estados Unidos onde exerce funções acadêmicas. Para Mannheim o
intelectual representa um grupo social específico com ambivalência em termos de
composição e de motivação6.
A obra de Mannheim pode ser considerada precursora em termos de ensaio
analítico nos campos da sociologia dos intelectuais e da sociologia do conhecimento.
Sua tese central é a de que os intelectuais, ainda que integrados a uma sociedade
cindida em classes sociais, não constituem uma classe propriamente visto que são
egressos das mais diferentes classes. Essa condição de diversidade de origem social
emprestaria aos intelectuais a condição de uma camada em si mesma agindo com
independência em relação à estrutura de classes conformada pela sociedade7.
Ainda no contexto de radicalismos entre extrema direita – nazismo e fascismo
– e extrema esquerda – comunismos e suas diversas vertentes – surge a obra
de Antônio Gramsci que vai tratar os intelectuais como grupos sociais filiados a
projetos políticos de poder vinculados às classes sociais em conflito pela hegemonia.
Derivam dessa condição os dois tipos de intelectuais – o intelectual orgânico e o
intelectual tradicional – tipologia que viria a se tornar referência obrigatória em
trabalhos sobre o problema do intelectual na sociedade contemporânea. Para
Gramsci o engajamento é a característica visível dos intelectuais, em especial, dos
chamados intelectuais revolucionários. Sua tese central, contrariamente àquela
enunciada por Mannheim, é que os intelectuais estão vinculados a classes sociais e
que seu trabalho seria o de dar sentido e consciência ideológica8.
No pós-guerra marcado pelo contexto ideológico da Guerra Fria surge a análise de
Norberto Bobbio cuja obra contempla em vários estudos publicados a problemática

6
Sobre a função do intelectual em Mannheim ver: MATIAS, Glauber Rabelo. “Intelectuais como
missão: revisitando Karl Mannheim”. Revista Urutágua, Maringá, DCS-UEM, n. 11, dez. 2006 –
jan./mar. 2007, p. 01-12. Publicação eletrônica. Disponível em: <http://www.urutagua.uem.
br/011/11matias.pdf>. Acesso em: 17 fev. 2015.
7
Ver: MALINA, André; OLIVEIRA, Vitor Marinho de & AZEVEDO, Ângela Celeste Barreto de.
“Uma discussão sobre o conceito de intelectual em Karl Mannheim e Antonio Gramsci”. Trabalho
& Educação, Belo Horizonte, Núcleo de Estudos sobre Trabalho e Educação, FAE-UFMG, vol. 18,
n. 2, jul./dez. 2007, p. 69-80.
8
Ver: MARTINS, Marcos Francisco. “Gramsci, os intelectuais e suas funções científico-filosófica,
educativo-cultural e política”. Pro-Posições, Campinas, FAE-UNICAMP, vol. 22, n. 3, set./ dez. 2011,
p. 131-148.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 399


do intelectual na modernidade, em especial, na obra intitulada, Intelectuais e Poder,
particularmente nos capítulos “Intelectuais e Poder” e “Intelectuais”, nos quais o
pensador italiano estabelece sua teoria sobre os intelectuais.
Bobbio inicia sua argumentação afirmando que cabe ao intelectual, no tocante
a sua função social, a reflexão sobre as coisas, portanto, é intelectual aquele que
escreve, que manipula símbolos, que dispõe das ideias como únicos instrumentos
de trabalho. E propõe uma tipologia de intelectuais conforme suas relações com a
política:

[...] aquilo que distingue um do outro é precisamente a


diversa tarefa que desempenham como criadores ou
transmissores de ideias ou conhecimentos politicamente
relevantes, é a diversa função que eles são chamados a
desempenhar no contexto político.9

A tipologia de Bobbio distingue os intelectuais conforme suas funções, ou seja,


existiriam os intelectuais-ideólogos, quer dizer aqueles que fornecem princípios-
guia, que pensam propriamente dito de acordo com objetivos a alcançar; o outro
tipo é chamado por Bobbio pela nomenclatura “intelectuais-expertos”, ou seja,
aqueles que possuindo conhecimentos técnicos são capazes de oferecer os meios
para a resolução de problemas.
Para o pensador italiano sua tipologia dos intelectuais possui alguma simetria
com a distinção empregada por Weber entre ação racional segundo o valor e ação
racional segundo a finalidade:

[...] os ideólogos são aqueles que elaboram os princípios


com base nos quais uma ação é justificada e, portanto,
aceita – em sentido forte, a ação é ‘legitimada’-, pelo fato de
estar conforme aos valores acolhidos como guia da ação; os
expertos são aqueles que, indicam os conhecimentos mais
adequados para o alcance de um determinado fim, fazem
que a ação que a ele se conforma possa ser chamada de
racional segundo o objetivo.10

Nesse particular, percebe-se a distinção entre ideólogos e expertos, de acordo com


Bobbio, numa das formas de expressão dos intelectuais típicas desse grupo social,
qual seja, os manifestos. Para os ideólogos os manifestos são formas de reafirmação
de valores (ética da convicção) e para os expertos os manifestos são vistos como
consequências utilitárias da técnica e da ciência (ética da responsabilidade).
Ainda que se utilize de conceitos e métodos do campo das ciências sociais
para a reflexão sobre os intelectuais, Bobbio não escapa da tendência já vista em
outros pensadores que debruçaram sobre a temática desde o século XVIII que é a

9
BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções de homens de cultura na sociedade
contemporânea. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Editora da UNESP, 1997, p. 72.
10
BOBBIO, Os intelectuais..., p. 73-74.

400 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


de estabelecer noções que sejam moralmente corretas e aceitas para a ação dos
intelectuais. No caso particular, Bobbio propõe um modelo ideal de conduta dos
intelectuais. Por um lado, o intelectual movido por forte vontade de participar das
lutas políticas e sociais de seu tempo (não alienar-se). Por outro, o intelectual que
procura manter distância crítica que o impeça de se identificar completamente com
uma parte.
Dessa forma é comum observar na reflexão acerca dos intelectuais promovida
por Bobbio a designação de tarefas a serem cumpridas pelos intelectuais como
que estabelecendo regras de condutas daquilo que poderia ser a boa conduta
dos intelectuais: “a primeira tarefa dos intelectuais deveria ser a de impedir que o
monopólio da força torna-se também o monopólio da verdade”11.
Mas é na relação entre intelectuais e poder, especialmente o poder político, que
parece residir o cerne do problema dos intelectuais na sociedade moderna segundo
Bobbio. Reconhecendo a dificuldade de tratar dessa questão, visto a dificuldade de
consenso no âmbito das ciências sociais e humanas na abordagem do tema, Bobbio
explica que, na relação com o poder, os intelectuais podem estar na situação de
supremacia, de subalternidade, de intermediação ou de crítica.
Do lugar que ocupa nessa geometria do poder derivaria, então, o conflito entre
os diferentes posicionamentos tomados pelos intelectuais nas disputas políticas,
assumindo a feição clássica o que faz referência N. Bobbio sobre a contraposição
do intelectual revolucionário versus o intelectual puro. Para o intelectual
revolucionário não existe uma verdade em si mesma exceto quando esta sirva à
causa revolucionária. Sua ação volta-se “contra o poder constituído em nome de
uma classe e pela instauração de uma nova sociedade”, valendo para esse tipo de
intelectual “o princípio de que não se faz revolução sem uma teoria revolucionária
e, em consequência, a revolução deve ocorrer antes nas ideias do que nos fatos”12.
Do outro lado encontram-se os intelectuais puros ou aqueles para quem a
verdade e a justiça formam um conjunto de valores absolutos e, consequentemente,
são por si mesmos revolucionários. É em nome desses valores – verdade e justiça
– que o intelectual luta contra o poder e estaria abdicando desses princípios ao
colocar em primeiro plano a razão de Estado, de partido político, da nação ou da
classe.
Apesar das diferenças de fundamentos que mobilizam a ação, existe algo em
comum entre as duas posições, conforme argumentação de Bobbio, ambos “têm
em comum a consciência da importância do próprio papel na sociedade e da
própria missão na história”. Essa assertiva de Bobbio entra em choque com os
formuladores da teoria da avaloratividade da ciência, entre os quais o próprio
Max Weber, para o quem o mundo da ciência encontra-se separado do mundo da
prática e, portanto, o cientista/ intelectual haveria de comprometer-se apenas e tão
somente com a força impulsionadora da ciência, ou seja, a razão, renunciando a
tentação de emitir juízo de valor.
Paralelamente às noções do intelectual elaboradas pelas ciências sociais, com
sua abordagem vinculada à categoria conceitual de classes sociais e atipologias
próprias, o campo historiográfico, em especial, a historiografia francesa, também,

11
BOBBIO, Os intelectuais..., p. 80-81.
12
BOBBIO, Os intelectuais..., p. 124-125.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 401


se ocupou da problemática do intelectual na modernidade, desenvolvendo recursos
metodológicos específicos, como as noções de trajetórias, de sociabilidades e de
microclimas, oriundas da história política.

A Perspectiva da História Política

O estudo dos intelectuais enquanto objeto de interesse dos historiadores faz


parte de um campo de pesquisa situado no cruzamento de diversos ramos da
historiografia: história social, história das ideias, história cultural e história política.
Mas é no campo da história política que a temática dos intelectuais é mais evidente
e percebida. E nesse aspecto tem-se um problema logo de saída: a abordagem do
político, nos marcos historiográficos, ficou parcialmente relegada, especialmente na
França, durante muito tempo ao abandono e por via de consequência também o
tema dos intelectuais. Somente muito recentemente é que os historiadores voltaram
a se interessar pela questão dos intelectuais num movimento de renovação dos
estudos do político fazendo ressurgir a Nova História Política.
Portanto, sem querer descartar de antemão as demais vertentes historiográficas
que abordam os intelectuais como problema, faz se necessário situar melhor, tudo
o que cerca o esquecimento e o ressurgimento renovado da história política, visto
que a abordagem que pretendemos levar a cabo nessa pesquisa sobre intelectuais
enfatiza sobremodo a natureza política da ação dos intelectuais.
Muitos historiadores em trabalhos recentes se debruçaram sobre as causas
que levaram a própria corporação a abandonar a historia política, investigando
as razões para tal esquecimento e propondo novos paradigmas conceituais e
analíticos para essa vertente de estudos historiográficos, revigorando esta disciplina
visto que o político, de acordo com Rémond “não constitui um setor separado: é
uma modalidade da prática social”13.
Pierre Rosanvallon, ao diagnosticar os motivos do declínio da história política,
em especial na França, identifica dois fatores explicativos: primeiramente, o fato de
que durante muito tempo o campo político foi objeto de estudo de três territórios
específicos, qual seja, a história das ideias, a filosofia e a historia dos acontecimentos
e das instituições, que produziram trabalhos não a partir de um esforço conjunto,
mas sim isolados (cada um em seu próprio campo estritamente).
A consequência desse isolamento levou ao desgaste da história política na França
enquanto gênero historiográfico. Outro fator se encontraria, segundo Rosanvallon,
na emergência da dimensão do econômico, do social e do cultural como campos
de maior interesse por parte dos historiadores combinado ainda com a propagação
de temas ligados a história das mentalidades e à própria afirmação da sociologia
política.
A partir dos anos de 1970, entretanto, verifica-se a emergência de variadas
abordagens do político enquanto objeto de estudo (fenômeno que Rosanvallon
caracteriza como jogo de fragmentação e deslocamentos) marcada, inclusive, pelo
retorno da filosofia política no centro dos debates intelectuais, especialmente, na

13
RÉMOND, René. “Uma história presente”. In: __________ (org.). Por uma história política. Tradução
de Dora Rocha. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003, p. 35-36.

402 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


França dos anos de 1980. Todas as mais importantes obras sobre a problemática
do político nos últimos anos convergem, de acordo com Rosanvallon, para uma
noção metodológica-conceitual do mesmo, ou seja: “o político é o lugar onde se
articulam o social e a sua representação, a matriz simbólica onde a experiência
coletiva se enraíza e se reflete ao mesmo tempo”14.
Para Rosanvallon é imprescindível a construção de uma noção de história
conceitual do político, procurando diferenciá-la da história tradicional das ideias, visto
que esse campo de conhecimento não conseguira se renovar metodologicamente,
predominando, em seu interior, a produção de obras sem problemática, mais
voltadas para a compilação de doutrinas; os manuais de doutrinas políticas que
apenas reúnem um rol de autores que trataram daquela ideia em especial; o
exercício do comparativismo textual sem nenhuma reflexão; o reconstrutivismo de
uma obra tratando-a somente como suporte de uma interpretação; os manuais
de compilação de escolas de pensamento e das doutrinas sem aprofundamento
reflexivo.
Ao propor uma história conceitual do político, Rosanvallon enfatiza dois
aspectos que entende como fundamental para essa abordagem qual seja a de que
se trata de uma perspectiva teórica que se preocupa em incorporar ao seu objeto
todos os elementos construtivos da cultura política e para tanto leva em conta
uma maior interdisciplinaridade possível envolvendo os campos da história dos
acontecimentos, a história das ideias, das mentalidades e das instituições:

Se a história conceitual do político pode apreender muitos


objetos distintos, por outro lado, está sempre relacionada
a uma perspectiva central, aquela da interrogação sobre
o sentido da modernidade política, de seu advento e
de seu desenvolvimento; modernidade política ligada
à emergência progressiva do indivíduo como figura
geradora do social, colocando a questão das relações entre
o liberalismo e a democracia no centro da dinâmica da
evolução das sociedades.15

Na construção dos parâmetros teóricos da história conceitual do político,


Rosanvallon norteia metodologicamente o objeto, o objetivo e o método que melhor
se aplica a sua proposta de abordagem do político. Em termos de objeto a história
conceitual do político tem por escopo a percepção “da formação e evolução das
racionalidades políticas, ou seja, dos sistemas de representações que comandam a
maneira pela qual uma época, um país ou grupos sociais conduzem sua ação”. Os
objetivos, por seu turno, se voltam para o modo como se faz a história em termos
de relação entre realidade e representação, ou seja, compreender as formas pelas
quais os grupos sociais apreendem o real e dão solução aos conflitos de uma dada
conjuntura história. Em outras palavras, “fazer a história da maneira pela qual

14
ROSANVALLON, Pierre. “Por uma história conceitual do político”. Revista Brasileira de História,
São Paulo, ANPUH, vol. 15, n. 30, 1995, p. 10-12.
15
ROSANVALLON, “Por uma história...”, p. 09-22.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 403


uma época, um país ou grupos sociais procuram construir as respostas àquilo que
percebem mais ou menos confusamente como um problema”16.
Em termos de método, Rosanvallon entende que a história conceitual do político
deve envolver tanto o método interativo como o método compreensivo, definindo-
os como procedimentos de análise e investigação dos processos de interação dos
elementos constitutivos da cultura política, buscando compreende-los não só em
suas “formas de realização” como em suas “condições de emergência”17.
Ao propor a retomada do político através de novos paradigmas conceituais,
Rosanvallon traz elementos instigantes para a compreensão dos intelectuais,
enquanto agentes sociais, que fazem suas próprias representações da realidade,
a partir das quais interveem no processo histórico de uma época. Propõe a
aplicação de sistemas de representação articulados à conduta de grupos sociais
e de reconstrução da maneira pela qual os atores sociais compreendem e agem
dentro de condições próprias de um determinado espaço físico e temporal.
A retomada do político bem como os fatores explicativos de seu ostracismo
dentro do campo historiográfico, também, foi objeto de estudo de texto (hoje
clássico sobre o tema) escrito por Jacques Julliard, no qual situa a questão em duas
vertentes: a do esquecimento e a do retorno.
Para Julliard, o desinteresse em relação ao político tomou conta corporação
dos historiadores, a partir do momento em que duas vertentes historiográficas
se tornam emergentes no meio: a Escola dos Annales que passa a dar valor ao
social, ao cultural e às mentalidades; e a vertente marxista que subordinou todas
as instâncias do real ao domínio do econômico.
Tais vertentes historiográficas atacaram a história política, condenando-a,
particularmente na França, ao perecimento e a má reputação, naquilo que lhe
era mais frágil: sua inconveniência metodológica e não propriamente seu objeto.
Ou seja, as críticas se voltam para a forma de abordar o objeto que passou a ser
denominado genericamente pela expressão abordagem tradicional subentendo
nesse arcabouço que se praticava uma história psicológica, biográfica, elitista,
quantitativa, particularista, narrativa, idealista, ideológica, parcial, que ignora o
inconsciente, de curta duração, factual, enfim, que coloca em relevo a sucessão
linear e homogênea de batalhas e tratados, nascimentos e mortes, reinos e
legislações.
Portanto, em função de seus métodos de abordagem, o político enquanto objeto
de investigação foi subestimado e deixado de lado como uma dimensão do real sem
relevância. Mas, como enfatiza Julliard, o movimento de renovação metodológico
pertinente ao campo historiográfico acompanha as oscilações e dinâmica da
realidade. De tal forma que se observa no decorrer do século XX a volta do político
em grande medida por conta da redefinição do papel do Estado, com a emergência
de demandas sociais por “políticas setoriais [específicas] e o desenvolvimento [que
os] meios de comunicação de massa ganharam na sociedade contemporânea”18.

16
ROSANVALLON, “Por uma história...”, p. 16.
17
ROSANVALLON, “Por uma história...”, p. 15.
18
JULLIARD, Jacques. “A Política”. In: LE GOFF, Jacques & NORA, Pierre (orgs.). História – Vol. 3:
novas abordagens. Tradução de Henrique Mesquita. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976, p. 180-
181.

404 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


Em termos metodológicos não se trata apenas de um retorno do político ao
campo historiográfico, mas como afirma Julliard, um movimento de renovação
da história política que para atingir essa finalidade requer aproximação de outras
disciplinas, entre elas, especialmente a ciência política, a sociologia, a economia
política, a demografia, a linguística e a psicanálise. Tais aproximações contribuem
não só na possibilidade de renovação dos métodos empregados como, também,
na ampliação de objetos, dentro os quais podemos destacar: os partidos políticos,
os regimes eleitorais, a opinião pública, etc.
Julliard aponta ainda, dois outros aspectos indispensáveis para a renovação dos
estudos do político no campo da história: o trabalho com novas temporalidades
e não apenas com a curta duração, numa referência direta à perspectiva
prognosticada por Fernand Braudel (1902-1985) para quem a “história política não
é forçosamente uma história factual, nem é condenada a sê-lo”19 e a incorporação
do método quantitativo, via influência da aproximação com a ciência política, na
análise de seu objeto, especialmente quando este contempla temas como eleições,
opinião pública, entre outros.
Retomar o político através de novas abordagens e novos objetos – regimes
eleitorais, partidos políticos, opinião pública, o poder e sua repartição, aos quais
acrescentamos os intelectuais – na perspectiva adotada por Julliard parece-nos
perfeitamente factível com a ideia de uma história conceitual do político conforme
proposta de Rosanvallon. A adequação metodológica do objeto desfaz o equívoco
de que a dimensão do político deve ser abandonada em face de outros domínios
da vida humana, levando Julliard a concluir que “só há história contemporânea
quando política, quer dizer, que coloque problemas de decisão. A ilusão de uma
história sem política repousa num material morto e sem interesse”20.
Conclusão compartilhada, também, por René Rémond (1918-2017) para quem
a dimensão do político não está dissociada prática social. A explicação para o fato
de após longos anos de prestígio junto à corporação dos historiadores, a história
política ter caído no ostracismo, segundo Rémond encontra-se no próprio exercício
do ofício do historiador, homem de seu tempo, como já alertavam os fundadores
dos Annales:

[...] o historiador é sempre de um tempo aquele em que


o acaso o fez nascer e do qual ele abraça, às vezes sem
o saber, as curiosidades, as inclinações, os pressupostos.
[...] o historiador de uma época distribui atenção entre os
diversos objetos que solicitam seu interesse na proporção
do prestígio com que a opinião pública envolve os
componentes da realidade.21

Fatores de origens diversas explicam os processos de mudanças operadas no


interior da disciplina histórica. De tal sorte que a história, enquanto disciplina,
também está á mercê de mudanças em termos de paradigmas teórico-metodológicos

19
JULLIARD, “A Política...”, p. 182.
20
JULLIARD, “A Política...”, p. 186.
21
RÉMOND, “Uma história presente...”, p. 14-15.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 405


como forma de percepção e explicação do real. Isso quer dizer que de tempos
em tempos as abordagens do real ora privilegiam o econômico, ora o social ou
o cultural, ora o político. Tudo depende do contexto em que estão inseridos o
historiador (homem de seu tempo) e a ideologia dominante:

[...] como sempre acontece em história, a explicação dessas


oscilações [as mudanças de enfoques operadas no interior
da disciplina] está na relação entre a realidade observada e
o olhar que a observa [no caso o historiador].22

Tais oscilações, segundo Rémond, estão na raiz da perda de prestígio da história


política entre os historiadores. Uma nova geração de historiadores – geração da
Nova História - passa a questionar a hegemonia do modelo de paradigma da
história do político até então praticado, propondo uma história total e uma história
de longa duração.
Ao rol de críticas já elencadas anteriormente, Rémond acrescenta o sentido das
orientações teórico-metodológicas seguidas pela geração da Nova História de recusa
à relevância do político, pois entendiam que os fenômenos sociais (seu objeto de
maior interesse de investigação) não sofriam interferência da esfera do político.
Outro motivo de crítica a que a história política foi alvo é a de que a mesma
centrou-se excessivamente no papel do Estado. O fundamento dessa crítica é
basicamente de natureza ideológica incorporada tanto pela vertente liberal que
acusa o Estado de ameaçar as liberdades essenciais do indivíduo, como da vertente
marxista que se posiciona na perspectiva de que o Estado é um instrumento da
classe dominante. A despeito dos fundamentos de tais críticas, Rémond enfatiza:

Nas sociedades contemporâneas, a política organiza-se em


torno do Estado e estrutura-se em função dele: o poder do
Estado representa o grau supremo da organização política:
é também o principal objeto das competições.23

Para Rémond é necessário admitir que em função, nos últimos tempos, de


maior demanda por parte da sociedade em relação ao Estado – o que fez crescer
enormemente as atribuições políticas, sociais, econômicas e culturais do mesmo –
houve um despertar cada vez crescente sobre a esfera do político. As demandas de
associações de classe, sindicatos, igrejas, categorias profissionais, opinião pública
e imprensa, suscitaram o interesse pela política e voltaram suas ações práticas
(greves, reivindicações, manifestações públicas, etc.) para o Estado, exigindo do
mesmo uma tomada de posição acerca de suas demandas.
A conjugação dos dois fatores – externo relativo à dinâmica própria da realidade
e interno correspondendo ao movimento característico da produção epistemológica
da história – explica, então, o retorno do político enquanto objeto de interesse
investigativo:

22
RÉMOND, “Uma história presente...”, p. 14.
23
RÉMOND, “Uma história presente...”, p. 20.

406 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


Para a compreensão das inversões de tendência em
epistemologia, os fatores exógenos não são suficientes: são
precisas também conivências internas. A virada da sorte da
História Política não se teria efetuado se não tivesse havido
também renovação. [...] Na verdade, ela não é a mesma
história política e sua transformação é um bom exemplo
da maneira como uma disciplina se renova sob a pressão
externa e em função de um a reflexão crítica.24

Percebe-se, então, que a retomada da trajetória recente da história política,


oscilando entre seu ostracismo e seu revigoramento, permitiu a emergência dos
intelectuais, enquanto objeto de investigação do campo historiográfico. Ou seja,
como objeto situado no campo do político, também, a história dos intelectuais
permaneceu por um tempo relativamente longo deslocado do centro de investigação,
sofrendo os mesmos preconceitos e críticas que a história política.
É neste cenário de retomada do político que a história dos intelectuais ganhou
um novo impulso a partir da elaboração de novos instrumentos metodológicos,
conferindo-lhe, segundo Jean-François Sirinelli, autor de um programa de estudos
sobre os intelectuais, o status de “campo histórico autônomo que, longe de se
fechar sobre si mesma, é um campo aberto, situado no cruzamento das histórias
política, social e cultural”25.

A História dos Intelectuais e suas Interfaces

As afinidades entre a história dos intelectuais e a história política são muitas, o


que explica em grande medida o fato de que essa vertente de pesquisa tenha ficado
deslocada do foco de interesse dos pesquisadores por tanto tempo, até pelos fatores
apontados no tópico anterior. Ou seja, as críticas e ressalvas feitas a história política,
também, se aplicam ao caso da história dos intelectuais, acrescidas de outras de
natureza específica: as dificuldades de precisar o grupo social dos intelectuais, a
identificação dos intelectuais como uma elite e como tal ligados à história de cunho
positivista, que por sua vez deveria ser combatida com novos métodos e objetos e
os limites nada claros entre a história dos intelectuais e as vertentes da história das
ideias políticas e da história da cultura política.
Superadas as desconfianças e no bojo da própria renovação metodológica
da história política, a história dos intelectuais ganha um novo status, a partir dos
anos 1970, alcançando legitimidade dentro da corporação dos historiadores,
que aponta ainda a revitalização de temas ligados à história contemporânea, o
crescimento quantitativo do grupo dos intelectuais e as próprias crises e disputas
internas inerentes ao grupo como outros fatores que fortaleceram maior interesse
do campo historiográfico sobre a questão dos intelectuais.
Sirinelli aponta três aspectos fundamentais em termos teórico-metodológicos para
uma história dos intelectuais voltada para novas abordagens e novos procedimentos

24
RÉMOND, “Uma história presente...”, p. 26.
25
SIRINELLI, Jean-François. “Os intelectuais”. In: RÉMOND, Por uma nova..., p. 26.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 407


investigativos nesse campo de pesquisa: primeiramente a indispensável constituição
de um corpus de textos, seguido de uma abordagem prosopográfica dos itinerários
e, por fim, a reconstituição da história dos engajamentos intelectuais, sugerindo
uma perspectiva própria de investigação e de estudos ao campo da história dos
intelectuais:

Para quem estuda a ação dos intelectuais, surge


obrigatoriamente o problema do seu papel e de seu ‘poder’,
problema que, de certa forma prosaica, pode ser assim
resumido: teriam esses intelectuais, em uma determinada
data, influídos no acontecimento?26

A despeito das dificuldades que cercam a execução de uma história dos intelectuais
– ausência de definições quanto aos objetivos e métodos, complicações envolvendo
a caracterização do termo intelectual e dos próprios contornos envolvendo o grupo
constitutivo, a diversidade de usos e acepções do termo intelectual complicando
uma definição conceitual, além da excessiva abundância de documentos – é
possível, de acordo com Sirinelli, avançar em termos metodológicos e teóricos.
Primeiramente, faz-se necessária a caracterização relativamente aos intelectuais
envolvendo duas noções: uma, mais ampla, de caráter sociocultural, segundo a
qual os intelectuais englobam agentes sociais criadores e mediadores culturais,
abrangendo jornalistas, escritores, professores secundários, eruditos; outra, mais
restrita, de caráter político, envolvendo a questão dos engajamentos dos intelectuais,
visando desvendar as causas que estes estão a serviço.
Em segundo lugar, impõe-se, ainda, a necessidade de uma proposta
metodológica de abordagem que possa envolver duas vertentes convergentes e
não excludentes, ou seja, as vertentes política e social dos intelectuais. A vertente
política contempla a pesquisa dos textos produzidos pelos intelectuais, ao passo
que, a vertente social, investiga a análise sistemática de elementos dispersos com
finalidades prosopográficas.
E, por fim, a abordagem sobre os intelectuais pode envolver, ainda, o emprego
das noções de itinerário, geração e sociabilidade. Particularmente, para o enfoque
que pretendemos adotar nessa pesquisa, as noções de itinerário e sociabilidade
elaboradas por Sirinelli são extremamente importantes.
A reconstituição dos itinerários, de acordo com Sirinelli, possibilita o mapeamento
dos territórios de engajamento intelectual, permitindo não só o estudo dos grandes
intelectuais como, também, dos de menor expressão em uma dada época, além de
permitir a identificação da evolução de um grupo de intelectuais oriundos de uma
matriz comum. Apesar de sua importância, o estudo dos itinerários intelectuais só
adquire relevância, enfatiza Sirinelli, quando vai além da mera reconstituição e
passa a envolver, também, a sua interpretação.
A noção de itinerários enquanto recurso metodológico empregado na investigação
sobre os intelectuais difere das ferramentas teóricas utilizadas pela sociologia do
meio intelectual, tal como a praticada por Pierre Bourdieu que enfatiza a análise

26
SIRINELLI, “Os intelectuais...”, p. 235.

408 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015.


dos modos de produção social das opiniões e dos gostos, procurando desvendar
estratégias e disputas que explicam o funcionamento interno do campo intelectual,
ao passo que, a reconstituição e interpretação dos itinerários levam em conta as
formas diversas de organização, filiação ideológica e afinidades mais difusas em
que se encontram os intelectuais27.
Compondo, ainda, a perspectiva de abordagem dos intelectuais, tem-se a
noção de estruturas de sociabilidade por meio das quais podemos perceber as
relações e os espaços compartilhados, revelando o pequeno mundo estreito
dos intelectuais. Exemplos de fontes relevantes para o estudo das estruturas de
sociabilidades intelectuais são, de acordo com Sirinelli, as revistas e os manifestos
(aos quais podemos acrescentar os jornais), de onde o historiador pode captar,
não só, as posições, os debates, as polêmicas, as diferenças ideológicas tomadas
pelos grupos intelectuais, como também perceber as relações de sociabilidade e
afetividade, expressas nas amizades, fidelidades e influências. Os microclimas são
espaços intelectuais como revistas, jornais, manifestos que funcionam como locus
de “movimentos de ideias, no sentido das posições tomadas, os debates suscitados
e as cisões advindas”28.
No processo de elaboração de uma arqueologia das estruturas de sociabilidade
dos grupos intelectuais faz-se necessário levar em conta as variações ao longo do
tempo dessas redes, tais como salões, academias, instituições escolares, associações
e grêmios literários e culturais, em torno das quais vão se conformando as opções
políticas e ideológicas dos intelectuais.
A tarefa de reconstituição das redes de sociabilidade pode ser explorada,
ainda, em fontes ainda mais diversas tais como as representações elaboradas pela
sociedade em torno dos intelectuais, as polêmicas travadas por intelectuais de
uma dada época que marcaram a atmosfera intelectual de um período histórico,
as especulações e os boatos em torno da vida pessoal e profissional dos homens
de letras, as características de um microcosmo intelectual particular, como, por
exemplo, o estudo de organizações políticas ou estudantis.
Por fim a noção de geração, componente conceitual importante, na medida em
que se refere a grupos de intelectuais que se agregam em torno dos efeitos da idade
e os fenômenos de geração ou por comprometimento com um marco fundador que
passa a definir a existência desse mesmo grupo. Para Sirinelli, no meio intelectual,
os processos de transmissão cultural são essenciais, o que explica em última análise
a posição que um intelectual ocupa dentro de sua própria corporação ou estamento
visto que “um intelectual se define sempre por referência a uma herança, como
legatário ou como filho pródigo”29.

27
Sobre o conceito sociológico de campo, em geral, e de campo intelectual, em particular, ver:
BOURDIEU, Pierre. “Campo intelectual e projeto criador”. In: POUILLON, Jean (org.). Problemas
do estruturalismo. Tradução de Rosa Maria R. da Silva. Rio de Janeiro: Zahar, 1968, p. 105-145;
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974.
28
SIRINELLI, “Os intelectuais...”, p. 248-249
29
SIRINELLI, “Os intelectuais...”, p. 254-255

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Considerações Finais

As oscilações dentro do campo da história dos intelectuais possibilitam a


aproximação de seus instrumentos metodológicos, tais como, os desenvolvidos por
Sirinelli, com as abordagens pela biografia intelectual e pela sociologia, sobretudo,
aquela que enfatiza a cartografia dos intelectuais como suas redes de sociabilidade,
seus modos de filiações, além de seus pertencimentos a grupos geracionais. As
interfaces entre a história intelectual e a sociologia nos aparecem ideal, pois,
permitem maior clareza no processo de elucidação da ação política dos intelectuais,
ao colocar em evidência o conhecimento das práticas e dos interesses de grupos
dentro de um contexto de crise política.
Nesse sentido, combinar ferramentas metodológicas tipicamente da história
intelectual propugnada por Sirinelli – microclimas, estudos prosopográficos,
itinerários – com noções conceituais recentemente desenvolvidas pelas ciências
sociais, particularmente, as de repertórios de ação coletiva, experiências sociais
compartilhadas e confronto político, permitem melhor entendimento dos
procedimentos adotados por movimentos sociais, dos quais os intelectuais são um
de suas modalidades, em situais de crise política vivida pelo regime dominante.


RESUMO ABSTRACT
Busca-se, com o artigo, situar o objeto de estudo The paper intends to place the object of study – the
– os intelectuais – dentro das possibilidades intellectuals – within the theoretical possibilities
teóricas oferecidas pela história intelectual, offered by intellectual history, in particular, and
em particular, e pelas ciências sociais, em the social sciences in general. It is known that
geral. Sabe-se que a história intelectual ainda the intellectual history is still, today, a domain
é, nos dias de hoje, um domínio do campo historiographical field under construction,
historiográfico em processo de construção, in terms of methodological. That particular
em termos de metodológicos. Nesse particular option is to proceed in the understanding of the
opta-se em proceder pela compreensão da perspective adopted by Jean François Sirinelli
perspectiva adotada por Jean François Sirinelli offering as the intellectual approach of the tools
que oferece como ferramentas de abordagem itineraries notions of sociability and generation
dos intelectuais as noções de itinerários, de structures. Thus, it is proposed a theoretical
estruturas de sociabilidades e de geração. Desta discussion from the reconstitution of the various
forma, propõe-se uma discussão teórica a partir notions attributed to the role of intellectuals in
da reconstituição das diversas noções atribuídas Western society since the formal appearance of
ao papel do intelectual na sociedade ocidental the term in the French context of the Dreyfus
desde o aparecimento formal do termo no affair in the late nineteenth century.
contexto francês do caso Dreyfus no final do
Keywords: History of Intellectuals; Political
século XIX.
History; Historiography.
Palavras Chave: História dos Intelectuais;
História Política; Historiografia.

Artigo recebido em 16 mai. 2015.


Aprovado em 04 nov. 2015.

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resenha

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POR GERAÇÕES SÃS E FORTES: NOS RASTROS
DE UM MODELO HÍGIDO DE EDUCAÇÃO ESCOLAR
PRIMÁRIA NA PARAHYBA DO NORTE

Wilson José Félix Xavier1

MARIANO, Nayana Rodrigues Cordeiro. Educação pela higiene: a invenção


de um modelo hígido de educação escolar primária na Parahyba do Norte
(1849-1886). João Pessoa: Ideia, 2015, 305 p.

Como preâmbulo a esta resenha, apresentamos um livro de leitura prazerosa,


resultado da tese de doutoramento da autora, defendida em fevereiro de 2015,
no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da
Paraíba. O texto, que mantém a estrutura original da tese, é enriquecedor pelas
informações reunidas na interpretação da autora, bem como por sua amarração
com as perspectivas de outros autores, neste caso, sobretudo, Michel Foucault e o
professor José Gonçalves Gondra. A obra, organizada em quatro capítulos, trata
basicamente da análise instigante (e até certo ponto corajosa) da construção de um
modelo hígido de educação escolar durante o século XIX na Parahyba do Norte, a
partir das prescrições higiênicas do e no espaço escolar.
Sendo assim, no primeiro capítulo, “Breve História de uma Pesquisa”, são
apresentadas as escolhas teórico-metodológicas que viabilizaram a realização da
pesquisa, tomando-se como fio condutor da narrativa a vida do professor primário
e político Graciliano Fontino Lordão (1844-1906) e as epidemias do cólera-morbo
na Parahyba do Norte (momentos em que o discurso médico aparecia com mais
evidência). Neste capítulo, a autora relata como partiu da análise, principalmente,
de regulamentos gerais da instrução pública parahybana do período imperial –
os de 1849, 1860, 1884 e 18862 –, mas também de relatórios de Presidentes de
Província, Códigos de Postura, revistas, jornais, manuais, compêndios e livros de
leitura escolar; para desvelar as profundas relações entre medicina e educação, e
dessa forma, tecer uma convincente trama histórica que leva o leitor ou a leitora a
perceber como os preceitos de ordem médica foram adentrando o universo escolar
para a invenção do referido modelo – invenção essa apresentada não como algo
ficcional, mas no sentido de designar uma fabricação, uma construção de concepção
de educação escolar. Assim, o sentido de tal pretensão, i.e., de tal construção,
ganha contornos teóricos mais precisos a partir da categoria “biopolítica”, pensada

1
Doutor em Educação pela Universidade Federal da Paraíba e Professor Adjunto do Centro de
Ciências Agrárias da mesma instituição, Campus de Areia. E-Mail: <wilsonxavierufpb@gmail.
com>.
2
Segundo a própria autora, a Província da Parahyba do Norte possui sete Regulamentos Gerais da
Instrução, datados de 1849, 1852, 1860, 1879, 1881, 1884 e 1886. Contudo, os regulamentos de
1852, 1879 e 1881 não foram encontrados por pesquisadores em nenhum acervo documental até
o momento.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 413


por Foucault como procedimento institucional de administração da coletividade3.
Sob esse aparato teórico, a autora aponta como no Oitocentos, a medicina se
posicionou como detentora de conhecimentos vitais, que, por meio de uma elite
dirigente, se infiltra no incipiente mundo escolar das “casas de escola”, local de
funcionamento da maioria das cadeiras isoladas.
No segundo capítulo, “Saberes da Medicina; Higienismo e Educação Escolar”, a
autora detém-se nos aspectos relativos à arte de curar e às relações entre higienismo
e educação. Dentre várias das reflexões feitas pela autora, talvez o grande leitmotiv
que perpassa todos os subitens é o insight foucaultiano que leva o “olhar” da
autora para o horizonte do que é “menor, marginal, periférico”4, conduzindo-a a
questões relacionadas com a medicina, o corpo, e a sexualidade, permitindo que a
categoria “biopolítica” jogue luz sobre certos aspectos do saber médico como parte
constitutiva do processo de escolarização da Parahyba do Norte. É nesse sentido
que a autora transita por caminhos ainda pouco trilhados no que tange a questão
da escolarização, tais como os saberes e práticas sociais das parteiras, barbeiros,
benzedeiras e boticários, bem como a atuação de médicos de formação acadêmica
ou práticos (sem formação acadêmica) na Parahyba do Norte na segunda metade
do século XIX. Não menos importante são as incursões da autora, analisando as
habitações do século XIX e as Posturas Municipais, destacando a influência do
ideário higienista na reorganização dos espaços urbanos.
Segundo a autora, tanto a disseminação da instrução pública quanto o avanço
dos saberes médico-higienistas na ordenação do cotidiano fazem parte de um projeto
maior de construção do Estado moderno brasileiro – formar as novas gerações
passou a ser a tarefa fundamental no amplo projeto de construção e consolidação
da nação. Os conhecimentos advindos da educação e da medicina propiciariam
condições de governabilidade, e, para a autora, acompanhando Gondra, a Higiene
foi a área da medicina que mais ajudou na organização da educação escolar. É,
portanto, no final deste segundo capítulo que a autora defende o pioneirismo do
Regulamento Geral de Instrução Pública de 1849, a partir do qual se começa a
pensar e a debater na Parahyba do Norte, um modelo hígido de educação escolar,
ou seja, esse documento foi precursor nas prescrições de natureza médica, abrindo
caminhos para a invenção de uma educação escolar higiênica e higienizadora.
Dando continuidade à tentativa de mostrar como se deu a constituição dos
dispositivos regulamentadores e disciplinares que foram criados para ordenar o
mundo urbano e a educação de sua população, no capítulo três, “A Construção
do Modelo Hígido de Educação Escolar na Parahyba do Norte”, a autora destaca
como as escolas começam a ser pensadas como um lugar limpo e sadio. A partir da
norma médica, tentava-se produzir um espaço interno escolar calmo, confortável,
iluminado e mobiliado, enfim, higiênico, que cada vez mais se distanciava do
“desordenado”, “conturbado” e “promíscuo” ambiente doméstico. Nesse sentido,
sob a influência do higienismo, educadores, engenheiros, médicos e políticos

3
MARIANO, Nayana Rodrigues Cordeiro. Educação pela Higiene: a invenção de um modelo hígido
de educação escolar primária na Parahyba do Norte (1849-1886). João Pessoa: Ideia, 2015, p. 52-
53.
4
MARIANO, Educação pela Higiene..., p. 55.

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defendiam a separação entre as residências dos professores e as “casas de escolas”,
ganhando força entre certos grupos sociais, a ideia da necessidade de espaços próprios
para o funcionamento das escolas. Sua análise é significativa, pois compreende
desde a abordagem minuciosa dos Regulamentos Gerais de Instrução dos anos de
1849, 1860 e 1886, passando pelas reproduções imagéticas da educação ocorrida
em ambientes domésticos (como foi muito comum nas escolas isoladas no Brasil
imperial), e pelas imagens de mobílias escolares consideradas higiênicas. Eis mais
um dos tantos méritos do livro: saber utilizar as imagens visuais para a investigação
histórica e suas possibilidades de uso para a compreensão da construção de uma
sociedade de normalização e, consequentemente, da elaboração de um espaço
escolar diferente de outros espaços sociais como a igreja e a família.
Destaque também neste capítulo, para a boa discussão acerca da ordenação
do espaço público e privado na província da Parahyba do Norte e das “casas
de escola”. Não menos interessante são as incursões pelos preceitos higiênicos
contidos no compêndio Livro do Povo (1865)5 e nos motivos que levaram à
ausência da Parahyba do Norte na Exposição Internacional de Higiene e Educação
em Londres, ocorrida em 1884. Todas essas circunstâncias são habilmente utilizadas
para fortalecer o argumento central do livro.
No quarto e último capítulo, intitulado “O Gerenciamento da Vida pela Medicina:
O Colégio de Educandos Artífices”, a autora trata de vários aspectos desse tipo
de instituição profissionalizante que, mesmo tendo vida efêmera, no caso da
Parahyba do Norte – acolhendo, educando e instruindo crianças das chamadas
“classes perigosas” entre os anos de 1865 a 18746 –, aponta em seu regulamento
prescrições originárias do saber médico. Essas normatizações, que estavam de
acordo com o Regulamento Geral da Instrução de 1849, indicavam a constante
preocupação com as doenças e práticas sexuais dos educandos artífices, trazendo
à tona a busca por um ambiente espaçoso, arejado e limpo, com alunos asseados
e bem vestidos. Ao que parece, para a autora a normatização médica presente
no Colégio de Educandos Artífices da Parahyba do Norte é a representação mais
cabal na província, do modelo hígido que se inaugura com o Regimento Geral da
Instrução de 1849 com o intuito de promover o progresso da província diante das
transformações sociais, culturais e políticas da segunda metade do século XIX.
A tônica da composição do livro, que merece destaque, é o constante esforço
em dialogar com o que se produzia naquele momento na Corte e em outras
províncias, sem perder de vista a pertinente perspectiva de que o projeto higienista
parahybano oitocentista guardou as suas peculiaridades diante de outros projetos
desenvolvidos em outras províncias brasileiras no século XIX. Um bom exemplo do
que se diz é a eficiente articulação tecida entre o Regulamento Geral da Instrução de
1860 com o Decreto n. 1.331-A de 1854, conhecido como Reforma Couto Ferraz,
que aprovava uma reformulação para o ensino primário e secundário dirigido ao
Município da Corte.

5
Compêndio de autoria do bacharel em Direito maranhense Antonio Marques Rodrigues, publicado
pela primeira vez em 1865 e adotado nas escolas primárias da Parahyba do Norte.
6
A instituição foi criada em 1859, porém, somente em 1865 é que começou a ser organizada. A
razão de tal demora deve-se à ausência de recursos do governo provincial.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [33]; João Pessoa, jul./dez. 2015. 415


De forma igualmente perspicaz, ao tratar do “corpo educado”, a autora ressalta,
amparada nos estudos de José Gondra, algumas das principais representações
ou concepções de Educação Física, lembrando as marcas próprias das ações
médicas: disciplinar, higienizar, medicalizar, fortalecer, biologizar e regenerar.
Quanto a medicina do Oitocentos, há um alerta para o fato do corpo não ser
visto de forma isolada, sendo acompanhado das dimensões moral e intelectual.
Cabe lembrar que, muitas das questões levantadas pela autora acerca da Educação
Física reaparecerão entre os intelectuais da chamada “Geração de 1870”, que se
empenharam numa construção teórica, política e ideológica pautada no ideário de
modernização do país7.
As questões da vacinação, do não padecimento de moléstias contagiosas por
parte de alunos, da escolha do ambiente limpo asseado e de casas apropriadas
e bem colocadas para a instrução, ressurgem frequentemente nos Regulamentos
citados anteriormente. Nesse processo, indica a autora, todas as reformas abordadas
objetivavam garantir o gerenciamento da população, dentro de um projeto que
buscava produzir sujeitos docilizados, úteis, instruídos, hígidos, dentro de um
programa civilizador, “já que a instrução era vista como instrumento propagador
de transformações e progresso”8.
Entretanto, a questão mais polêmica do livro é justamente o seu argumento
central: a propositura da constituição de um modelo hígido na Parahyba do Norte
ainda no século XIX. Se a obra tem o mérito de desconstruir o “mito” de que na
província nada foi feito ou aconteceu em torno das discussões e práticas higienistas
nesse período, há sempre os riscos assumidos em se apontar a formação de um
modelo. Esse tipo de representação advindo da Matemática – o modelo – é sempre
problemático quando apropriado pelos campos da História e da História da
Educação, principalmente, quando proposto a partir da limitada documentação
disponível sobre o Oitocentos na Parahyba do Norte. Não obstante, a autora
defende bem o seu ponto de vista com uma boa delimitação de seu objeto, um
adequado tratamento das fontes e a rigorosidade (sem rigidez) metodológica
característica que perpassa todo o trabalho, que a leva a construir um modelo
“local” que, dialogando com um processo mais abrangente de formação da nação
consegue ganhar força de sustentação. O modelo mais restrito, referente à Província
da Parahyba do Norte, se perde em alcance para a compreensão/ explicação de
outras realidades, ganha em poder heurístico com relação à história educacional
paraibana. Pode-se dizer que esta estratégia metodológica de perdas e ganhos
calculados é bastante acertada para o estudo em questão. Mas, certamente, não é
este um assunto esgotado.
Trata-se, portanto, de uma obra que deve ser lida, apreendida e, sobretudo,
discutida por todos os pesquisadores, notadamente por aqueles que estão
vinculados às pesquisas em História da Educação, e/ ou aos que se dedicam aos

7
Um dos intelectuais mais importantes dessa “Geração”, José Veríssimo, dedica o capítulo IV da
obra “A Educação Nacional” (publicada pela primeira vez em 1890, e republicada no Rio de
Janeiro em 1906), à importância da Educação Física como proposta para a regeneração física,
moral e intelectual do povo.
8
MARIANO, Educação pela Higiene..., p. 261.

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estudos históricos das doenças e da medicina na Paraíba. Em conclusão, é uma
obra imprescindível à comunidade acadêmica pela abrangência, profundidade e
ousadia com que são tratadas as questões, e que contribui, sobremaneira, para
o debate sobre os sentidos do projeto modernizador de edificação de uma escola
considerada moderna, num momento em que a Higiene ganhava espaço no
universo escolar, entrelaçando instrução, educação e saber médico.



Resenha recebida em 28 ago. 2015.


Aprovada em 17 nov. 2015.

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