FLORESTAN FERNANDES – A REVOLUÇÃO BURGUESA NO BRASIL
Cap. I: Questões preliminares de importância interpretativa.
A historiografia dominante e a história oficial – sem recurso interpretativo –
ideias dos agentes históricos considerados como realidade histórica última. Nova historiografia ainda não se libertou de etnocentrismos e tampouco está aberta a categorias analíticas fundamentais e construção crítica objetiva. Gera confusão conceitual e metodológica prejudicial a qualquer investigação macrossociológica. Problema maior da historiografia e sociologia brasileira, mas que teve que ser enfrentado diante das indagações da obra. Necessário, portanto, estabelecer questões de alcance heurístico preliminarmente: noção de burguês e burguesia no estudo da sociedade brasileira e a questão da revolução burguesa como realidade histórica no Brasil.
1ª Questão:
o Senhor de engenho não era burguês – Ele estava inserido no contexto de
mercantilização da produção agrária. Porém, sua posição nesse processo era marginal – agente econômico especializado – produção heteronômica: riquezas para a apropriação colonial. Assim, malgrado seus privilégios, o senhor de engenho entrava no processo de apropriação colonial como parte dependente e expropriada. O excedente do que produzia não constituía lucro, mas a parte que lhe cabia no circuito global de apropriação colonial. o Existiu burguês e burguesia no Brasil . Elemento essencial: padrão de civilização, desde a independência, envolve ideais que foram assimilados e desenvolvidos em torno da economia, política e vida social que impera no mundo ocidental moderno. A busca da existência ou não de uma burguesia se encontra nessa ordem estrutural e funcional, em torno de um padrão de civilização que orienta o povo brasileiro (apenas acontece em período distinto e de forma distinta da Europa, mas dentro de funções e destinos sociais que comportam personalidade e formação social análogos). o Não tivemos feudalismo, nem burgo medieval . Burguês já surge no brasil como entidade especializada (como agente artesanal, inserido na mercantilização interna; ou negociante). Na dinâmica da economia colonial, essas florações do “burguês” ficaram sufocadas (lavoura exportadora, escravismo). Independência rompe com o estatuto colonial e cria condições de expansão da burguesia e alto comércio. Até a desagregação da ordem escravista e extinção do regime imperial os componentes da burguesia viam-se através de distinções estamentais (valorados em razão de suas origens). O que os unia era a maneira como tendiam a polarizar certas utopias: avaliadas em torno de como cada setor reagiria a 3 questões: 1) violência da escravidão; 2) fundamentos da escravidão, regime senhorial e patrimonialista; 3) movimentos inconformistas (abolição esconde o afã de expansão da ordem social competitiva). o Foi nas cidades e nos locais onde se concentravam os círculos burgueses em que se passou a questionar a desumanidade dos senhores e, com isso, da desaprovação à violência veio a desaprovação à condição do escravo, à escravidão e aos fundamentos jurídicos e morais da ordem escravocrata; de onde também partiu o movimento abolicionista, realizado de brancos para brancos: abolição em razão das limitações econômicas da escravidão (tida como anomalia na nação que procurava expandir internamente sua economia de mercado). o Nascido no cenário do império, esse burguês jamais seria uma figura autônoma, com força organizada, mas vai se erigir desse espírito revolucionário, com um aspecto criador de um novo estilo de ação econômica. A partir do qual seria possível construir impérios econômicos e abrir caminho para o grande homem de negócios (figuras inviáveis no passado recente – vide Mauá). o Existiu aqui os 2 tipos tidos como clássicos de burguês: a) o que combina poupança + lucro = acumulação para riqueza e poder; b) empreendedor (capacidade de inovação, gênio empresarial, talento organizador). o São tipos que sucedem no tempo, mas que acumulam a noção do “espírito burguês” – qualidades e atributos que associam ao estilo de vida das cidades e à formas de socialização dele decorrente. Justifica o recurso aos conceitos “burguês” e “burguesia”.
2ª Questão:
o Existiu revolução burguesa no Brasil? Não se busca com essa análise
encontrar no Brasil uma repetição anacrônica da história dos povos da Europa moderna. Mas de como se processou a absorção desse padrão de organização da economia, sociedade e cultura – sem a universalização do trabalho assalariado e a expansão da ordem social competitiva. Como organizar a partir disso uma economia de mercado capitalista? o Revolução burguesa não é episódio histórico; mas fenômeno estrutural que pode se reproduzir de modo variado, desde que a sociedade nacional absorva o padrão de civilização que a converte em necessidade histórica. “Não tivemos o passado da Europa, mas reproduzimos de forma peculiar o seu passado recente, pois este era parte do processo de implantação e desenvolvimento da civilização ocidental moderna no Brasil”. o Revolução burguesa no Brasil – buscar os agentes humanos responsáveis pela modificação da ordem social tradicional-escravocrata para a sociedade de classes; condições e fatores histórico-sociais que explicam como e por que se deu a desagregação da ordem tradicionalista para uma modernização enquanto processo social.
3ª Questão:
o 2 variáveis para interpretação macrossociológica: as condições externas
da ação e os modos de ser, agir e pensar socialmente. o Uma revolução social não se desenvolve sem uma base psicossocial e política. É preciso: a) certa categoria de homens, agindo persistentemente na mesma direção; b) consciência social – ação conjugada – inconformismo com o status quo. Compõem uma amálgama de interesses sociais imediatos, valores sociais latentes e interesses remotos. o O que se forma antes, o capitalismo ou o espírito capitalista? Cita Sombart: emergência e difusão de atitudes e comportamentos típicos do espírito capitalista antecedem a formação do capitalismo; mas esse processo modifica o espírito capitalista, em sua organização, seus conteúdos psicossociais e socioculturais. Esquema dialético de explicação das formações sociais – as fases de desagregação de uma forma social são essenciais para a constituição da forma social subsequente. Assim, burguesia e espirito burguês são fenômenos que lançam raízes na formação da sociedade moderna brasileira. As 2 facetas: 1) origem dos moveis capitalistas e comportamento econômico; 2) reelaboração desses móveis, sob impacto da ruptura da estrutura colonial. o Os moveis capitalistas são introduzidos no Brasil com a colonização, porém, o propósito comercial voltado à apropriação colonial e o lugar marginal que ocupavam os senhores no processo de mercantilização não permitiram que as influencias dinâmicas do capitalismo proporcionassem a organização e desenvolvimento da economia interna, sendo tal influência neutralizada. Moveis capitalistas deformados em 3 direções: 1) o lucro ficava com a Coroa. O agente econômico não tinha condições de sair do ciclo de dependência com o que produzia – e com isso, a partir do excedente, forçar os limites do acordo colonial para investir em outra produção. 2) montante de renda não representava um capitalismo comercial. Senhor de engenho era agente humano da conquista e agente potencialmente econômico. Lucro, ganho, risco calculado não era o que ele perseguia – soldado da fortuna – “mina de ouro” para recompensar a audácia da aventura. 3) produção heteronômica – sistema colonial organizado para drenar as riquezas de dentro para fora. o Capitalismo comercial provocou o aparecimento da produção, mas não inseriu o produtor no processo de circulação dos produtos, impedindo que engendrasse uma forma específica de capitalização. Senhor de engenho era remunerado pela Coroa – acomodação; quebra da possibilidade de dinamização da economia interna. Lavoura colonial tinha que se especializar como unidade estanque e fechada sobre si mesma, apesar de exportadora. O único polo dinâmico era neutralizado nos limites do controle externo. o Mentalidade econômica distorcida do principal agente econômico interno (mais delegado das agências que operavam o comércio a partir de fora do que portador de autonomia de interesses internos): parceiro na colônia/agente remunerado – isolado do aspecto dinâmico da produção, dentro do sistema colonial de dependência, o senhor de engenho submerge numa concepção de mundo, vida e economia que respondiam ao determinantes tradicionalistas da dominação patrimonialista (condena os novos modelos de ação capitalista em nome de um código de honra que degrada as demais atividades e se exclui das inovações). o Fator de estagnação da colônia não era o empreendimento econômico desenvolvido, mas a forma de exploração colonial, que sufocava as possibilidades de desenvolvimento. Com a independência, as potencialidades capitalistas da grande lavoura passam a manifestar-se com plenitude crescente. Sendo parte delas canalizada para o crescimento econômico interno, intensificação do desenvolvimento urbano, diversificação nas atividades econômicas. o A reelaboração dos móveis – era da sociedade nacional e período de consolidação do capitalismo. Abrange 2 fases: 1) ruptura da homogeneidade da aristocracia agrária; 2) aparecimento de novos tipos de agentes econômicos. o Parcela dos senhores rurais saem do isolamento das fazendas e são inseridos no contexto urbano – econômico e político – das Cortes: solapamento progressivo do tradicionalismo da dominação patrimonialista e verdadeira desagregação do sistema colonial. Seculariza ideias, concepções políticas e aspirações sociais e urbaniza seu estilo de vida, em padrões cosmopolitas – “aburguesou-se”: análoga a certos segmentos da nobreza europeia na expansão do capitalismo. o Novos tipos humanos – não dependentes dos senhores rurais (intensificado nas régios beneficiadas pelo surto econômico provocado pelo café e pela imigração). Procedência dos representantes mais modernos do espírito burguês: negociantes, funcionários públicos, banqueiros, artesãos, empresários de bens de consumo, massa em busca de trabalhos assalariados. Nesse estrato surge uma defesa do desnivelamento dos privilégios da aristocracia. No entanto, o que se buscava era a ampliação do número de privilegiados. Aqueles que ascendiam buscavam lograr respeitabilidade e influência por títulos da aristocracia agrária. É esse tipo de homem que vai encarnar o espírito burguês, projetando os toscos móveis capitalistas do senhor rural no horizonte cultural da burguesia emergente. o São esses homens que impulsionam a revolução que põe em cheque os hábitos, instituições e estruturas persistentes da ordem colonial; se voltam contra o que havia de arcaico na sociedade patrimonialista. Eles vão buscar uma modernização conciliada com a aristocracia rural e implantar as condições econômico-político-jurídicas para a instauração de uma ordem social competitiva. Nenhum momento o espírito burguês vai se colocar em defesa dos direitos dos cidadãos. o Fatores histórico-sociais considerados na emergência da revolução burguesa no Brasil identificados através de um processo político (independência); dois tipos humanos (fazendeiro de café e imigrante); processo econômico (mudança relação capitais externos e economia interna); processo socioeconômico (expansão e universalização da ordem social competitiva).
Cap. IV: Esboço de um estudo sobre a formação e desenvolvimento da ordem
social competitiva.
Buscar a emergência e desenvolvimento da ordem social competitiva para traçar
os marcos estruturais da revolução burguesa no Brasil – OSC típica do sistema capitalista (inerente ao seu funcionamento, integração, diferenciação). o Sociedades de origem colonial – capitalismo se dá antes da constituição e desenvolvimento da OSC. Capitalismo se ajusta parcial e superficialmente ao regime colonial. o Nas sociedades coloniais as estruturas herdadas do mundo colonial interferiram no dinamismo do mercado. No Brasil, a estrutura colonial vai moldar a sociedade subsequente. o 2 pontos: 1) ordem social escravocrata e senhorial não se abriu facilmente aos requisitos econômicos, sociais, culturais e jurídico- políticos do capitalismo. 2) emergência e desenvolvimento da OSC ocorreram à medida que a ordem escravocrata fornece possibilidades para a reorganização das relações de produção e mercado em bases capitalistas. o Ordem escravocrata pouco propícia à competição : reduzida nas formas tipicamente senhoriais de socialização: obrigações sociais através de tradições, mando e solidariedade moral. Com a independência esses elementos continuam a neutralizar os elementos competitivos – a dominação patrimonialista se integra ao nível estamental e impõe a passagem da autoridade para o poder político. Sofre impactos – 3 tensões: 1) Mentalidade e comportamento do agente econômico mais privilegiado na economia escravista: senhor não assimila a racionalidade criadora do ímpeto capitalista (sua força não estava no livre comércio, mas em sua posição no controle da economia – contexto da expansão interna do capitalismo: desloca a gravitação da competição para a riqueza, prestígio, poder). o Representações e usos deformados de competição - realismo econômico não conduz a uma percepção secularizada e racional da competição. Iniciativa privada que nasce numa sociedade de castas/estamental e converte a livre iniciativa e a empresa privada em privilégios estamentais (protegidos acima de qualquer racionalidade). o Há pressão externa, mas, o senhor não se liberta da teia patrimonialista, patriarcal e tradicionalista, vai condicionando os fatores externos à manipulação dos meios dispostos ao seu alcance (poder político). o Competição nasce como fator multiplicativo do poder do agente privilegiado e sustento do privatismo, que faz com que a coletividade arque com os riscos e suporte os privilégios. o Competição redefinida – não engendra transformações estruturais de renda e poder. 2) Estamentos intermediários: o Não possuíam condição senhorial, mas incluídos nos estamentos dominantes por ocupação, alianças e nível social. Eles deviam lealdade ao código de honra tradicionalista. o Com a integração estamental da dominação senhorial houve uma diferenciação de status e papeis sociais – dos estamentos dominantes apenas um assumia as funções privilegiadas. Mas com a abertura do mercado e independência do Estado, eles ganham espaço para assumir essas funções, mas pelo ingresso com base ainda nos mecanismos tradicionalistas de lealdade estamental e solidariedade familiar-patriarcal. Com isso, essa diversificação não permitia igualdade entre os níveis sociais: mantinham velhas representações de status. o Existe uma luta para salvar as aparência pelo topo – utilizam a competição conforme moldes que fogem ao padrão convencional, mas podem fazê-lo em razão das facilidades de privilegio e poder – adaptavam aspectos da ordem legal aos interesses dos seu estamento: modernização das instituições serve como compensadora da perda do prestigio, com inovações aparentemente democráticas (divisão do ônus com a coletividade – mas apenas o estamento usufrui). De onde surge a classe média emergente na república (perpetuação crônica dos privilégios estamentais mais odiosos). 3) Revolução pelos costumes – ampla importância na emancipação nacional: o Revolução que termina sobre seus próprios eixos, nos limites dos interesses senhoriais. o Não surgiram grupos sociais diferenciados empenhados na revolução – componentes intermediários identificaram-se com a defesa militante do status quo. Assim, a estrutura estamental não foi foco de divergências – isso foi um obstáculo à formação da sociedade nacional. o Poder de competir nas sociedades estamentais é limitado pelas diferenças de níveis sociais: as elites pretendiam manter as relações competitivas dentro do gentlemen agrément. Isso resguardava a sociedade do espirito burguês, fortalecendo os laços que prendiam os homens aos seus níveis sociais e códigos de honra e ao mito de que o Brasil depende da versão autocrática-paternalista do despotismo esclarecido. o Deformação na ordem competitiva que é assimilada pela ordem escravocrata senhorial. Fortalecem o passado no presente, mantendo elementos arcaicos em vez de destruí-los. Se a competição por um lado acelera o colapso da sociedade estamental, por outro irá acorrentar a expansão capitalista a um privatismo tosco (particularista e autocrático). o Burguês moderno renasce das cinzas do senhor antigo – a competição é universalizada em termos de privilégios e desigualdades. o As iniciativas para a organização da economia de mercado capitalista esbarravam na resistência dos estamentos dominantes que tentavam ter controle sobre a modernização: prevaleceu uma acomodação intermediária. Estamentos senhoriais buscam um consenso com o novo regime de classes (inevitável). O que estava em jogo: a) a defesa da ordem senhorial; b) repulsa à classificação social das funções de mercado capitalista. o Nessa falta de elasticidade está a impossibilidade de absorver as formas materiais, morais e políticas das relações humanas capitalistas – a competição como processo dinamizado de relações é incompatível com os fundamentos patrimonialistas e critérios estamentais de classificação social. o Há um paralelismo do crescimento econômico com a ordem escravocrata, que mantem a posição de controle dos estamentos dominantes. Quando essa ordem é colocada em risco, os estamentos dominantes assumem a sua finalização, mantendo sob a nova ordem o controle, salvando os privilégios por outros meios (a base oligárquica do poder autocrático permanece). o Economia nacional híbrida – formas econômicas arcaicas com modernas: adapta-se à economia capitalista, mas dependente. Processo econômico que sofre uma deflexão irreversível em razão das condições histórico- sociais em que transcorreu. o O elo decisivo da cadeia modernizadora e capitalista projetava os dinamismos do desenvolvimento urbano no próprio cerne da ordem existente: o homem de negócios do alto comércio aspira os mesmos ideais e estilos de vida da aristocracia agrária: status social que coroasse o êxito econômico. Nivelava seus interesses com os da aristocracia agrária e assim era compelido a fechar os olhos para a dependência com o mercado externo. o A descolonização inicial manteve a ordem social escravocrata e senhorial, bloqueando economicamente, socialmente, politicamente a formação de classes e a solidariedade de classes: há um controle autocrático das elites dominantes como fio condutor da história.