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Rubem Alves

V a r ia ç õ e s s o b r e a v id a e a m o r t e .
A TEOLOGIA E A SUA FALA

Edições Loyola
D ia g r a m a ç à o : Flávio Santana
R e v is ã o : Carlos A. Bárbaro e Maurício B. Leal

Edições Loyola
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ISBN: 8 5 -1 5 -0 3 0 3 1 -4 Ao Paulo, ao Maurício, ao Ivan,


© EDIÇÕES LO YO LA, São Paulo, Brasil, 2005
a muitos outros...
"Verdadeiro eu chamo àquele que entra nos
desertos vazios de deuses... Nas areias
amarelas queimadas de sol, sedento, ele vê as
ilhas cheias de fontes, onde coisas vivas des­
cansam debaixo de árvores. Não obstante, a
sua sede não o convence a tornar-se como um
destes, habitantes do conforto,- pois onde há
oásis aí também se encontram os ídolos."

(Nietzsche):
S u m á r io

Introdução.........................................................................11
Teologia como "Variações sobre um tema d ad o ".............. 15
O tema: a ressurreição dos corpos....................................27
O corpo dos sacrificados................................................. 43
A magia da palavra............................................................57
A heresia da verdade.........................................................69
A verdade da heresia....................... :............................... 83
Estórias que despertam o am o r.........................................97
N a companhia dos bufões................................... 111
... e das crianças........................................ 125
Apêndice ao ... e das crianças........................................ 139
As três metamorfoses do espírito................................ 139
Os desejos, os sonhos, as utopias, o R e in o :.............. 141
Referências bibliográficas...............................................157
In t r o d u ç ã o

E
screvi este livro por não ter alternativas. Sou teólogo, lá no fun­
do, nos meus sonhos... Brinco com os símbolos da minha tradi­
ção cristã. N ão foi escolha minha. Aconteceu. E, querendo ou
não, quando estou falando com os outros ou comigo mesmo, de vez
em quando um intrometido se insinua, não importando que já esteja
morto faz muito tempo, e reconheço, pelo que me é segredado, que é
Agostinho, ou Lutero, ou Bonhoeffer. E para meu embaraço uns ou­
tros, sem os cheiros teológicos, se metem na conversa, e me descubro
falando com Nietzsche, Marx, C ecília M eireles, G abriel G arcia
Márquez, Valéry, Hermann Hesse, Feuerbach. E assim que entendo
teologia. Falar sobre a vida, suas coisas mais simples e mais graves,
com amor, usando símbolos/memórias que uma tradição enfiou na
minha carne. E por isto que não tenho alternativas...
Você vai notar que o estilo da coisa se desvia daquilo que se
cristalizou como forma clássica para um escrito teológico. E vou lhe
explicar por quê. O mundo acadêmico é algo aterrorizador. N ietzs­
che dizia que entre suas paredes todos se comportam como aranhas,
esperando aquele que anda com pernas trôpegas: daí que escrever é
uma coisa que produz medo. E todos tratam de se proteger, pelo
estilo rebuscado e excessivamente técnico, na esperança de que os
leitores tomem águas barrentas por águas profundas. E vêm as infin­
dáveis notas de rodapé e as inúmeras defesas... Nenhum flanco pode
ficar aberto... N ão se deve dar ao leitor/adversário a mínima chance

li
V a r ia ç õ e s s o b r e a v id a e a m o r t e . A t e o l o g ia e a s u a fa la
In t r o d u ç ã o

de falar. D e fato, o ideal de um texto científico é de algo tão perfei­ os corpos se dão as mãos,
tamente tecido, tão provado e comprovado, que o leitor fique mudo, se fundem num abraço de amor,
só lhe restando o silêncio... Eu tomei a decisão de pular fora deste e se sustentam para resistir e para caminhar.
jogo, que me parece muito vazio de risos. Por uma razão muito sim­ E aí vão estas meditações, pra sugerir a teólogos por profissão/
ples. Se sou capaz de conversar com alunos e amigos em absoluta sem vocação, a teólogos por vocação/sem profissão, a quem quer que
descontração, sem notas de rodapé e sem respostas, dando asas à tenha um corpo, goste de carícias, ame a vida e o mundo, tenha medo
minha imaginação, sem que por isto eu seja considerado ou louco, de morrer, pra sugerir os fascínios desta fala que pode virar pele, casa,
ou irresponsável, ou superficial, por que não fazer com que o livro
bandeira, horizonte, altar...
seja a continuação desta conversa, com mais gente? E foi então que Rubem Alves
me propus a escrever da forma como eu falo. Estou seguindo um
15 de setembro de 1981
conselho de Nietzsche: “escrever com sangue". Em outras palavras-,
é necessário que o texto, como continuação do m eucorpo, partici­
pe das minhas sombras e das minhas luzes. O texto tem de abrigar o
desejo. E isto que faz com que ele se ligue existencialmente com o
leitor. E, assim, a experiência de escrever e de ler se torna uma expe­
riência de fraternidade...
Escrevi estas coisas sobre teologia porque sempre me afligi em
face das interrogações silenciosas na face dos meus amigos quando eu
lhes dizia que era teólogo. Porque todo mundo pensa que teologia é
algo que tem cheiro da idade M édia (e, de fato, tem), que está ligada
ao irracional ou que é ciência que pretende descrever o mobiliário
dos céus e a temperatura do inferno..,

Teologia é um jeito de falar sobre o corpo.


O corpo dos sacrificados.
São os corpos que pronunciam o nome sagrado:
Deus...
A teologia é um poema do corpo,
o corpo orando,
o corpo dizendo as suas esperanças,
falando sobre o seu medo de morrer,
sua ânsia de imortalidade,
apontando para utopias,
espadas transformadas em arados,
lanças fundidas em podadeiras...
Por meio dessa fala

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T e o l o g ia c o m o
“ V a r ia ç õ e s s o b r e u m t e m a d a d o "

r\ minha profissão? Bem ... sou teólogo. Não, o senhor não me ou­
viu bem. Não sou geólogo. Teólogo. Isto mesmo... Não é necessário
dissimular o espanto porque eu mesmo me espanto freqüentemente. E
nem esconder o sorriso. Eu compreendo. Também não é necessário
pedir desculpas. Sei que sua intenção foi boa. Perguntou sobre minha
profissão apenas para começar uma conversa. A viagem é longa. É fácil
falar sobre profissões. Tudo teria dado certo se a minha fosse uma des­
sas profissões que todo mundo conhece. Se eu tivesse dito dentista,
médico, mecânico, agente funerário já estaríamos em meio a um anima­
do bate-papo. Da profissão passaríamos à crise econômica, da crise eco­
nômica saltaríamos para a política e o mundo seria nosso..
Em outros tempos a situação teria sido outra. Vocês já notaram
que há certas profissões que não podem esperar a pergunta? Elas to­
mam a iniciativa e andam por aí se anunciando. E o que acontece, por
exemplo, com os médicos, que convidam a admiração de todos em
razão das roupas brancas que usam. Ou com os militares, que abrem
espaço com a cor e o brilho de suas túnicas, seus botões, suas condeco­
rações... E sempre assim: profissões respeitadas se trombeteiam por
meio de vestes apropriadas. N o caso de lhes faltarem as vestes, basta-lhes
falar a linguagem que testemunham das universidades que freqüenta­
ram e das instituições que os acolhem. Ouçam o discurso inconfundível
dos técnicos, especialistas, administradores... E pensar que em tempos
idos era a batina!

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V a r ia ç õ e s s o b r e a v id a e a m o r t e . A t e o l o g ia e a s u a fa la T e o l o g ia como 'V a r ia ç õ e s s o b r e u m t e m a d a d o "

Houve tempo em que os teólogos se anunciavam. Sua presença À primeira vista pode parecer que o problema esteja no fato de
não pedia explicações, apenas respeito e admiração. E os colarinhos que o teólogo nada mais faz que falar. Que diferença quando o com ­
clericais, as vestes sacerdotais, a rigorosa linguagem dos que têm fa­ paramos com médicos, dentistas, mecânicos, agentes funerários, sol­
miliaridade com a erudição declaravam, com segurança e tranqüilida­ dados, cozinheiros. Quando qualquer uma dessas profissões entra
de, que um teólogo estava presente. Bons tempos aqueles em que os em ação, as coisas ficam diferentes: operações, obturações, soldas,
especialistas nos segredos divinos eram reverenciados e honrados... funerais e sepulturas, paradas e batalhas, tortas e assados: as mãos
Era então que todos sabiam que as coisas que realmente importam são trabalham, eventos e objetos são produzidos. Mas o teólogo fala, só
aquelas que não se vêem: a alma, o inferno, o céu, o purgatório, a fala... Acontece que também advogados, generais, políticos, psica­
Santíssima Trindade, a presença de Cristo na eucaristia. Como com­ nalistas e sociólogos são profissionais da fala — para não mencionar
parar coisas eternas e coisas efêmeras, coisas invisíveis e coisas visí­ poetas e literatos.
veis? Que abismo de dignidade e honra as separa... Claro que existe
E o fato é que ninguém duvida de que essas falas façam diferen­
um lugar para a ciência das coisas físicas. Mas ela estará, provavel­
ça. Se assim não fosse os clientes de advogados e psicanalistas não
mente, mais próxima das habilidades dos cozinheiros e da arte de
pagariam seus serviços a peso de ouro. E os generais? Haverá alguém
ferreiros e seleiros: coisas a ser usadas para nosso conforto sem que
que questione o poder de suas ordens? Elas abrem portas, fecham
nos esqueçamos nunca do seu caráter transitório.
portas, fazem homens marchar e homens se esconder. E mesmo os
E era sobre as coisas invisíveis e eternas que falavam os teólogos, sociólogos, sem clientes e sem tropas, são temidos pelo poder de sua
coisas que a imaginação artística tornava visíveis na pintura, na escultu­ fala, que tem a estranha capacidade de virar as coisas de cabeça para
ra, na arquitetura... E os corações tremiam e choravam, sorriam e ex­ baixo, descosturando roupas de reis e sacerdotes, substituindo a pom­
plodiam em esperança nas redes lingüísticas que os teólogos teciam. pa dos uniformes pela vergonha dos ventres proeminentes e peles
Acontece que as coisas mudaram. flácidas, o que não raro lhes custa o ostracismo e o desemprego...
Progressivamente a imaginação se enfraqueceu. As pessoas dei­ Essas falas fazem uma diferença.
xaram de ter visões. E, se as tinham, tratavam de mantê-las em segre­ Não, os teólogos deixaram de se anunciar por meio de unifor­
do. Porque se no passado visionários eram candidatos à santidade, mes e não podem esconder o embaraço quando alguém lhes pergunta
agora eles se arriscavam à companhia dos loucos. Deus foi progressi­ sobre a sua profissão.
vamente expulso do mundo. Com a expansão da ciência os céus se
esvaziaram de mistérios. Ficaram, repentinamente, desabitados. Sem Teologia, esta fala sobre as coisas invisíveis.
amor, sem ódio, sem finalidade alguma... Apenas a beleza glacial, Que diferença faz?
imóvel, das fórmulas matemáticas. Deus passou a ser uma hipótese Quais são os seus clientes?
desnecessária. Praticamente ele não fazia diferença alguma. Quem lhe pagaria honorários?
Quem entende seu estranho discurso?
E aqui está o embaraço dos teólogos.
Antes eles falavam sobre Alguém que fazia toda a diferença e Será que nossa clientela se reduziu a uns poucos sobreviventes
em quem se dependurava o destino dos homens. Agora eles falam do mundo romântico e mágico dos cavaleiros andantes ou àqueles
sobre algo que não faz diferença alguma... Não admira que, aos olhos que, de medo, não ousam dar ouvidos à ciência? Pergunta que nos fez
da ciência, o teólogo tenha ficado meio parecido com o alquimista, Bonhoeffer. O u não passaremos de fantasmas, assustando os desa-
com o astrólogo... visados? Lembro-me de um personagem de Camus que se divertia

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V a r ia ç õ e s s o b r e a v id a e a m o r t e , A t e o l o g ia e a s u a fa la T e o l o g ia c o m o " V a r ia ç õ e s so bre um tem a d a d o ”

visitando os cafés freqüentados pela elite intelectual de Paris só para acredita. Mas é isto que ficou proibido: acreditar. D aí a vergonha e o
causar escândalo. E, brincava de teólogo... Quando a conversa já ia estigma. Como é possível que o levem a sério? Mais triste: como pode
animada deixava escapar um palavrão obsceno: "Graças a Deus!" ou o teólogo levar-se a sério?
simplesmente: "Meu D eus.. E era o pandemônio: Compreende-se que ele se sinta perdido perante seus sólidos
interlocutores cujas profissões todos entendem: pés firmemente cola­
Bem sabe como os nossos ateus de roda de bar são comungan-
dos ao chão, imaginação subordinada à observação, o desejo do cor­
tes tímidos. Um momento de espanto seguia-se ao enunciado
po controlado pelas exigências da realidade. D e fato, os teólogos,
desta enormidade, entreolhavam-se, estupefatos, depois estou­
pássaros de asas quebradas, não podem com eles competir.
rava o tumulto, uns fugiam do bar, outros cacarejavam com in­
dignação sem nada ouvir, todos se retorciam em convulsões, D aí o seu silêncio, a solidão, as línguas ininteligíveis do seu dis­
como o diabo na água benta (Camus, s.d., p. 73). curso, os guetos em que se refugiam: comportamento de pessoas ame­
Teria sido muito mais fácil se eu tivesse dito: drontadas, que se recusam a falar por saber que uma vez dita a primeira
“— Minha profissão? Escrevo estórias de fadas para crianças". palavra eles por ela serão traídos. E a palavra dita ficará mal/dita...
Mas é possível procurar saídas por um outro lado. E é assim que
Qualquer um teria entendido. Provavelmente alguns me teriam
os vemos freqüentemente concordando em dizer adeus ao seu jogo tal
am ado... Haverá coisa mais fascinante que falar sobre gigantes, bru­
como era jogado no passado, con formando-se em vê-lo reduzido à con­
xas más, princesas adormecidas, madrastas perversas, anões travessos,
dição inferior de um simples dialeto de uma outra linguagem mais no­
palavras encantadas, príncipes valentes e puros, felicidade até o fim
bre — tal como acontece com o caipira que tem de esquecer sua fala e
dos seus dias? Tudo isto é permitido no reino da fantasia.
sucumbir à música e à gramática do discurso urbano. E o teólogo — por
Mas e o teólogo? Sua fala também não se constrói com mate­ derrota ou amor, não importa — se entrega a outros jogos, seja a sociolo­
riais tirados da fantasia? Sua boca não está ligada aos olhos da fé? Ao gia, seja a psicanálise, seja a política. E então, e não sem um certo cons­
sonho? À visão?
trangimento, ele muda suas coisas e palavras dos espaços da metafísica
E vi um novo céu e uma nova terra... e as entulha nas cavernas da ideologia ou da neurose.
E Deus enxugará dos seus olhos todas as lágrimas... O que se ganha com isto?
O leão comerá palha como o boi, É muito simples.
o lobo habitará com o cordeiro,
Ninguém faz perguntas acerca da verdade de tranqüilizantes e
as espadas serão transformadas em arados,
estimulantes. A questão da verdade sucumbe perante as evidências de
as lanças em tesouras de podar,
sua utilidade. Lembram-se do Admirável mundo novo, de Huxley? Até lá,
e os mansos e pobres herdarão a terra
e verão a Deus... sob o domínio de cientistas, tecnocratas e administradores, a felicida­
de era terapeuticamente distribuída: em pílulas. Compreende-se as­
Por favor, que me digam a diferença entre o conto de fadas, que sim que mesmo uma sociedade totalmente secularizada e atéia possa
produz ternura, e a fala do teólogo, recebida com desdém... reconhecer o valor do ópio, seja sob a forma de compostos químicos,
Talvez a diferença tenha a ver com o fato de que contos de fadas seja sob a forma de ilusões religiosas. E, se os sacerdotes de uma or­
são contados para fazer dormir as crianças, enquanto a fala teológica dem estabelecida preferem o sono, os iconoclastas preferirão os cor­
deseja fazer os homens acordar, viver... O teólogo fala como quem pos retesados em danças guerreiras. H á soluções químicas para ambas

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as demandas. H á poções teológicas para ambos os casos. E assim seria diando o poeta português Fernando Pessoa eu diria que "pensa­
possível ao teólogo ressuscitar das cinzas, agora não mais sob o patro­ mento é doença do corpo".
cínio da verdade, mas sob a égide da utilidade. Apenas um pequeno Digo isto para sugerir que para aqueles que a amam a teologia é
ajustamento seria necessário: o teólogo se descobriria vizinho e cole­ uma função natural como sonhar, ouvir música, beber um bom vinho,
ga dos boticários...
chorar, sofrer, protestar, esperar,.. Talvez a teologia nada mais seja
Foi então que uma curiosa idéia me veio à mente. E se o meu ■que um jeito de falar sobre tais coisas dando-lhes um nome e apenas
interlocutor, em vez de se retrair com um sorriso enigmático ao ouvir distinguindo-se da poesia porque a teologia é sempre feita com uma
minha resposta, prosseguisse com tranqüilidade e candura: prece... Não, ela não decorre do coçjito da mesma forma como poemas
"Então o senhor é um teólogo! Sabe, sempre me fascinei pela e preces. Ela simplesmente brota e se desdobra, como manifestação
aura de mistério que envolve a teologia. Mas nunca pude entendê-la. de uma maneira de ser: "suspiro da criatura oprimida" — seria possível
Ponha-se na minha situação. Se o senhor tivesse como companheiro uma definição melhor?
de viagem um matemático e lhe perguntasse: 'Explique-me o que é a Mas, no momento em que surge a dor da incompreensão e as
matemática' — qual seria a sua reação se ele se pusesse a ,discorrer palavras são recebidas com um sorriso de escárnio, a teologia se trans­
sobre os Principia matbematica de Russell e W hitehead? Pois é assim que forma em atividade problemática. E acontece então aquilo que ocorre
eu me sinto quando os teólogos começam a falar... Por favor, faça um com as pessoas portadoras de uma deformação facial que, conscientes a
esforço..." cada minuto de sua diferença e dos olhares de espanto ou dó, se sentem
Espantei-me então em descobrir em meu interlocutor um amigo obrigadas ou a se esconder ou a assumir a diferença, como um desafio.
fraterno que articulava, com voz clara, perguntas que eram muito mi­ E é isto que eu proponho: sem desculpas e sem capitulações,
nhas. Mais do que ele, era eu que queria entender aquilo que fazia, ao levantar o rosto e simplesmente explicar para os outros e para nós
brincar com os símbolos que constituem a teologia. mesmos, especialmente para nós mesmos...
Você se espanta de que alguém faça algo sem saber por quê? O que é a teologia?
Não deveria. E nos voltamos para nosso interlocutor que propôs a pergunta e
Na verdade são poucas, pouquíssimas, aquelas atividades que rea­ espera... Compreendemos, de saída, que será necessário nos valer­
lizamos sob a luz do saber. A começar pelo uso da linguagem, que fala­ mos das parábolas e analogias. É assim que se caminha: do conhecido
mos sem conhecer as regras da gramática, e que nos foi ensinada pelos para o desconhecido.
nossos pais sem que eles saibam como o fizeram. E andamos de bicicle­ "O senhor já ouviu falar de Castália? Isto mesmo. Está lá no
ta, nadamos, cantamos, fazemos amor — e se nos pedirem explicações livro de Herm ann Hesse O jocjo das contas de vidro. Castália, ordem
teremos de confessar que pensamos pouco sobre o assunto e nossas monástica de um mundo no futuro. Ordens monásticas conhecemos
conclusões são ainda insatisfatórias. muitas. Mas o que distingue Castália é a curiosa maneira que ela
E no momento em que as coisas se tornam penosas e difíceis encontrou para organizar a sua vida espiritual em torno de um jogo,
que o conhecim ento é invocado. Pessoas que não sofrem do fíga­ uni brinquedo."
do nem mesmo sabem que o possuem. E necessário que ele doa — Por favor, não se deixe levar pelo mal-estar causado por estas
e com a dor surge a consciência. E é isto que acontece com os duas palavras: jogo, brinquedo. Claro que somos pessoas sérias e que
sapatos confortáveis que usamos o dia todo sem deles nos lembrar preferimos fazer nossos investimentos no trabalho e nas ações graves
até que uma pedrinha transforma o pé no centro do mundo. Paro­ e heróicas que podem transformar a história. Quanto aos jogos e brin­

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quedos, estão mais próximos do ócio e do fútil, coisa de crianças, e mam em coisa séria, os reis e os palhaços não mais riem de si mesmos
será sempre possível questioná-los com a terrível pergunta: "Quais as e nem lavam o rosto ou vestem pijamas quando vão dormir. Perderam
suas implicações políticas?" a memória de quem são.
Que se trata de coisa infantil não há dúvidas. Mas voltemos ao jogo das contas de vidro dos monges de
Mas, lembrando-nos de que "se não nos convertermos e não nos Castáíia.
fizermos como crianças não poderemos ver o reino dos céus", tere­ Em que consistia ele?
mos de dar um crédito de confiança a Castáíia, para que ela nos expli­ Em música existe uma coisa muito comum chamada "variações
que o seu jogo.
sobre um tema dado". A idéia é muito simples.
O senhor se espanta? Eu compreendo. Mas o fato é que para se
O compositor toma uma série de sons e com eles constrói um
fazer teologia e para se jogar o jogo das contas de vidro (era assim que
tema austero, nu, desprovido de qualquer tipo de ornamentação.
se chamava o exercício espiritual de Castáíia) é necessário ter um pouco
do espírito das crianças... Inicia-se então o brinquedo. E o compositor pergunta a este tema:

Jogos e brinquedos são coisas muito sérias. Veja esta maravilho­ "Quais são os limites da sua plasticidade? Até que ponto será
sa sugestão que nos vem de Schiller: possível alterá-lo sem destruir sua identidade?"
E aceitando o tema como motivo o compositor estabelece-o
Um animal trabalha quando uma falta como núcleo central de uma teia a ser tecida. E ele se põe a construir
é a força que o impulsiona à atividade, uma tapeçaria de sons, variando, alterando, invertendo, adornando,
mas ele brinca quando é a complicando, fazendo assim surgir, por meio de sucessivas e progres­
abundância, um excesso de vida, sivas revelações, as possibilidades que se escondiam, adormecidas, no
aquilo que o empurra e compele à ação...
tema inicial.
(S c h iller , s.d, apud K aufann , 1966).
Bach constrói as monumentais "Variações Goldberg".
Nos jogos e brinquedos a liberdade e a necessidade se encon­ M ozart faz a mesma coisa, demonstrando grande prazer nesse
tram, e a alegria que deles deriva brota justamente da liberdade triun­ brinquedo musical.
fante que domina a necessidade, produzindo um mundo passível de
Beethoven não resiste ao fascínio do jogo, e por vezes sem con­
ser amado.
ta suas composições portam o título "variações..."
A vida não é ela mesma um jogo? De forma alguma estou dizen­
E não podemos nos esquecer da belíssima peça orquestral de
do que o jogo não é sério. M ilhões são a ele sacrificados, diariamente.
Britten, "Variações sobre um tema de Purcel", para ajudar crianças e
Militares que tomam decisões sobre construção e alocação de bom­
grandes a entender a orquestra...
bas atômicas e alocação de tropas não se comportam exatamente como
jogadores de xadrez? E a economia? Os investimentos na Bolsa? Tudo Mas e se os sons não bastarem para a construção? O mundo está
não se processa num estranho paralelismo com as regras de jogos? E cheio de outras coisas. Ao lado dos sons.musicais estão as cores, mate­
nós, por não podermos evitar as máscaras, desempenhamos nossos riais sólidos como pedra e madeira, as palavras. E há jardins, poemas,
papéis no palco, como teólogos, professores, amântes, policiais, re­ danças, teorias científicas, mitos, ritos, monumentos, jóias, túmulos...
volucionários, crentes, cientistas... Claro que em muitos dos jogos as Claro que não podemos manipular tais coisas como se fossem peças de
pessoas se esquecem de que estão jogando. Seus jogos se transfor­ xadrez. Mas podemos submetê-las à mágica transubstanciação da lin­

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guagem, que nos permite remover uma montanha inteira apenas pro­ dadas, corpos colados em amor, prisões, lágrimas, dores, muitas do­
nunciando uma palavra. As coisas se transubstaciam em contas de v i­ res, sorrisos, muitos sorrisos, rostos, muitos rostos...
dro, tornando-se assim peças do nosso jogo. E o teólogo toma as contas inertes, aquece-as em suas mãos, elas
Imaginemos agora um jogo semelhante a "Variações sobre um fulguram, ganham vida, e ele começa a organizá-las como se fossem
tema dado", e que pode e deve ser construído com todos os materiais tapetes, amarrando os símbolos uns nos outros até que a rede se alon­
simbólicos possíveis, extraídos da experiência humana e de tudo aquilo gue o bastante para ser pendurada nos dois lados do abismo.
que a cultura já produziu. A tarefa: construir uma arquitetura simbóli­ Lembram-se de Zaratustra?
ca que evoque e represente a presença escondida do tema proposto, "O homem é uma corda sobre um abismo..
fazendo com que todos os cantos e recantos do nosso mundo entrem E o teólogo estende sobre o abismo a rede simbólica que ele
em reverberações harmônicas, cantando partes de uma polifonia, re­ teceu no seu jogo de contas de vidro, para aqueles que quiserem to­
velando assim um mágico encanto, onipresente... Em torno da gran­ mar o risco de nela descansar seus corpos.
de conta de vidro, temática fundadora, central, as outras vão sendo
Ah! Como deve parecer insólita esta proposta.
agregadas, até que ao final tudo canta, em cânon, o que foi proposto
Que teólogo, no passado, teve a desfaçatez de comparar seu
no início. Esta é a idéia básica do exercício lúdico em torno do qual
trabalho ao jogo e ao artesanato? Seus rostos graves revelavam a
girava Castália: o jogo das contas de vidro.
gravidade da sua tarefa: abrir as portas das coisas divinas e eternas.
E se eu fizesse a insólita sugestão de que a teologia é um jogo de Sabiam que, em oposição às sombras em que os outros homens v i­
contas de vidro? E que Hermann Hesse talvez tenha se inspirado na­ viam, eles habitavam os lugares sagrados onde a voz de Deus sé
quilo que os teólogos têm feito através dos séculos como modelo para fazia ouvir e contemplavam a luz clara e direta da Revelação. Traba­
os exercícios espirituais dos monges de Castália? lhavam sob o imperativo da verdade. E da mesma forma como os cien­
O que faz um teólogo? tistas da natureza, que também por amor à verdade subordinavam a
Ele fala. imaginação à observação e se tornavam totalmente submissos ao
objeto, os teólogos, cientistas das coisas divinas, desejavam que a
Pode ser que faça muitas outras coisas mais gratifi,cantes, mais
sua fala fosse conhecimento rigoroso e objetivo das coisas que têm a
belas, mais relevantes: o que não se pode negar é que, como teólogo,
ele lida com símbolos. Brinca com eles. ver com a divindade.
Mas agora eu sugiro que a teologia é jõgo, construção, artesana­
Em que se distingue de outros jogadores de símbolos?
to: coisa humana, por demais humana: D izer que teólogos são joga-
E simples. Ele usa contas de vidro que os outros não usam e não
dores/tapeceiros não será o mesmo que dizer que eles são jogadores/
usa muitas das que os outros empregam.
trapaceiros?
Como caracterizar as contas teológicas? Não é difícil. Seu bri­
Compreendo o espanto de todos e, para amenizar a situação, eu
lho, suas cores, seu calo r... Não é possível confundir. Mas voltaremos
invoco dos mortos um contador de parábolas, Kierkegaard, que nos
a isto em outra ocasião. Porque agora o teólogo, nosso amigo, se diri­
dirá de um dançarino curioso...
ge para a arca onde se encontram guardadas as suas contas. E ele co­
meça a retirá-las. Mitos, ritos, símbolos, visões utópicas, poemas, saí­ Se um dançarino desse saltos muito altos, poderíamos admirá-lo.
mos, preces, maldições, estórias, gestos, desertos, cidades, mortes, Mas se ele tentasse dar a impressão de poder voar o riso seria seu
assassínios, ressurreições, esperanças, homens e mulheres de mãos merecido castigo, mesmo se ele fosse capaz, na verdade, de saltar

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V a r ia ç õ e s s o b r e a v id a e a m o r t e . A t e o l o g ia e a s u a fa la

mais alto que qualquer outro dançarino. Saltos são atos de seres
essencialmente terrestres que respeitam a força gravitacional da
terra, pois que o salto é algo momentâneo. Mas o vôo nos faz lem­
brar os seres emancipados das condições telúricas, um privilégio
reservado para as criaturas aladas... O tem a :
A razão para a parábola? É muito simples. A RESSURREIÇÃO DOS CORPOS
Teólogos são dançarinos. E se o nosso companheiro de viagem
recuou, embaraçado, quando lhe confessamos nossa profissão, talvez
isto tenha se devido ao fato de já ter ele visto o espetáculo ridículo de
bailarinos que se faziam passar por seres alados: teólogos que confun­
diam a voz dos homens com a voz de Deus, e atribuíam solidez àquilo
que é fugaz e verdade ao que não passa de um palpite efêm ero...
A s contas de vidro já se encontram sobre a mesa, muitas delas com
E pensar-se que a beleza do bailado pode ser recuperada...
r \ milhares de anos de idade, e com os sinais de já terem sido usa-
Claro que isto não se conseguirá atribuindo-se seja ao teólogo, seja
las vezes sem conta,- outras reluzentes, jovens, acabadas de sair das
à igreja, o poder de voar como os pássaros. O fascínio renascerá
justamente quando os homens puderem ver o lugar onde os pés to­ nãos de artesãos.
cam o ch ão ... Os jogadores tomam os seus lugares e aguardam o anúncio do tema.
D izer que teólogos são pessoas que jogam o jogo das contas de Aproxima-se o matjister ludi e coloca, bem no centro, a conta de
vidro é confessar que eles têm os pés no chão-. porque um jogo é algo údro em torno da qual os teólogos tecerão suas variações. Será ela o
que se constrói de baixo para cima com argúcia, engenhosidade e so­ :>onto em que se apoiarão seus pés para seus saltos core o gráficos.
bretudo amor. E é bem possível que algo estranho aconteça ao fim do E brota, espontâneo, o espanto sorridente. Porque a conta de
nosso relato. Se tivéssemos dito ao nosso companheiro que somos ridro temática é o corpo humano, meu corpo, corpo de todos os ho-
seres alados, ele não teria podido evitar seu riso e seu desprezo. Mas nens, corpo de jovens e de velhos, corpos torturados e corpos felizes,
nós lhe confessamos que fazemos nada mais que brincar com símbo­ ;orpos mortos e corpos ressuscitados, corpos que matam e corpos
los, fazendo improvisações em torno de temas dados. Parecemos voar? ibraçados em amor. E a congregação de teólogos e assistentes repete,
Apenas saltos, pois nossos pés só deixam o chão por curtos e fugazes ;m uníssono: "Creio na ressurreição do corpo".
momentos. E a teologia se desnudaria como coisa humana que qual­
O tema do jogo brota das exigências do coração, das esperan­
quer um poderia fazer se sentisse o fascínio dos símbolos, o amor pelo
ças do amor, do desejo de viver, de fazer com que o universo inteiro
tema e tivesse a imaginação sem a qual os pés não se despregam da
;eja um corpo vivente, amante, pulsante, corpo de C risto ...
terra. E aí o possível estranho fim de uma conversa: porque o desco­
nhecido poderia se tornar um discípulo... Quem poderia negar a be­ Haveria algum outro ponto de partida possível?
leza do jogo das contas de vidro? E o teólogo se redescobriria não Existirá algum lugar onde nos encontramos fora de nós mes-
mais vestido com as cores fulgurantes dos que estão em cima, mas na nos, estando assim livres do radical corpocentrismo a que nossa car­
tranqüila nudez daqueles que, como os demais, andam pelos cami­ ne nos obriga? Era esta a pergunta com que Kierkegaard martelava
nhos comuns da existência. Hegel, pedindo-lhe reconhecer o ponto de onde brota todo pensa-

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V a r ia ç õ e s s o b r e a v id a e a m o r t e . A t e o l o g ia e a s u a fa la O t e m a : a r e s s u r r e iç ã o d o s c o r p o s

mento e toda palavra: o eu, este pequeno e insignificante eu, que de­ na verdade, é a única coisa que eles possuem — e têm de alugar. Para
seja ser feliz, com paixão infinita... quem está sofrendo só existe o corpo e a dor: dor imensa, dor que é
Partir do corpo. prelúdio da morte, morte que tem a ver com o meu corpo, único,
irrepetível, centro do universo, grávido de deuses. D e um ponto de
Não é o corpo o centro absoluto de tudo, o sol em torno do
vista estritamente humano, a classe social é apenas uma forma de se
qual gira o nosso mundo?
manipular o corpo. E é isto o que o trabalhador sente. Os pobres
Responderá o leitor cético (e saudável) que não é assim. H á cheiram mal, não tratam de dentes, têm fome com mais freqüência e
coisas mais importantes. Confesso que tenho paciência com aqueles não conseguem afinar suas sensibilidades de sorte a gostarem de mú­
que são céticos acerca do corpo. Posso esperar, E, desgraçadamente, sica erudita,- além de apanharem com mais freqüência e morrerem,
triunfarei. Esperarei a cólica renal, as mutilações progressivas e próteses mais cedo. Para uma pessoa de carne e osso, este é o sentido de classe
crescentes, as mãos trêmulas, a vista curta, os órgãos flácidos que não social: os possíveis e os impossíveis para o corpo.
mais se movem ao perfume do amor.
Economia? Mas o que é a economia senão a luta do homem com
o mundo, homem que é corpo e quer transformar o mundo inteiro numa
N o campo de batalha, na câmara de torturas, num navio que
extensão de si mesmo? Pelo menos foi assim que aprendi de Marx:
afunda, as questões pelas quais você luta são sempre esqueci­
das, porque o corpo incha até que enche o universo todo,- e
A universalidade do homem aparece na atividade prática univer­
mesmo quando você não está paralisado pelo pavor ou gritando
sal pela qual ele transforma a totalidade da natureza no seu corpo
de dor a vida é uma luta que se desenrola, momento a momen­
inorgânico... A natureza é o corpo inorgânico do homem... D i­
to, contra a fome, o frio, a insônia, contra uma azia ou uma dor
zer que o homem vive da natureza é dizer que a natureza é o seu
de dentes (O rw e ll, 1977).
corpo, com o qual ele deve estar em trocas constantes para não
Claro que os homens têm uma estranha capacidade para se en­ morrer... (M arx, 1974, § X X ÍV ).
tregar a questões distantes e abstratas, aparentemente alheias a tudo
Depois, ao analisar a propriedade privada, ele irá mostrar que
aquilo que se refira ao corpo. Mas permanece sempre a pergunta: não
sua perversidade está em que ela destrói todos os sentidos eróticos
será por imposição do corpo que eles fazem isto? Os lógicos acham
do corpo e os substitui pela relação de posse. Ver, ouvir, cheirar,
gostoso brincar de lógica, e sorriem ..: E se há pessoas que aparente­
sentir na pele — tudo isto é de importância secundária, porque o
mente se desesperaram do corpo, da vida, do prazer, refugiando-se
que importa é que a coisa caia debaixo do nosso controle. E eu me
num céu futuro onde apenas habitam almas desencarnadas, é porque
atrevo a perguntar: para que serviria uma sociedade livre e justa se
o seu corpo, aqui e agora, encontra nestes pensamentos um conforto
ela não fosse o espaço para a expansão do corpo em prazer, felicida­
para suas dores (G e rth & M ills , 1958, p. 278). Quem acredita nos
de e brinquedo?
céus pode dormir melhor e quem confia na providência divina tem
menos ataques de coração. Tudo pelo corpo,

E não me venham com o chavão de que a preocupação com o Tudo a partir do corpo.
corpo é doença de pequena-burguesia. Como se os trabalhadores não Na verdade é dele que brota esta coisa que nos fascina e sem a
tivessem corpos, não sentissem dor de dentes com os dentes de sua qual a teologia seria impossível: a imaginação. Repetir com Nietzsche:
classe social, não fizessem amor com os genitais de sua classe social, Corpo sou, inteiramente, nada mais.
não cometessem suicídio com a decisão de sua classe social. O corpo, Alma? Apenas uma palavra para algo que pertence ao corpo.

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O corpo é uma Grande Razão. Talvez fosse isto que dizia D . Miguel de Unamuno. Tenho sus­
E um instrumento do vosso corpo é também peitas de que ele lia Feuerbach em segredo, mas não se atrevia a
a vossa pequena razão... confessá-lo. Como poderia fazê-lo um místico católico?
... a que chamais "espírito";
um pequeno instrumento e um brinquedo de Pergunta: Para quem é que Deus fez o mundo?
vossa Grande Razão (Nietzsche, 1965, p. 146). Responde o catecismo:
Para o homem.
Viver! Lealdade última a que tudo o mais se subordina. Mesmo Seja. Assim deve responder o homem que é homem. A formiga, se
os que estão prontos a arriscar a sua vida o fazem por amor ao corpo. tivesse inteligência para perceber isto, e fosse personalidade cons­
O revolucionário, por crer no poder criador do seu corpo e na neces­ ciente de si mesma, responderia que para a formiga.
sidade da redenção de corpos escravizados. O suicida, em protesto E responderia bem (Unam uno, 1953, p. 24-25).
contra um mundo destituído de sentido e que não acolhe o seu corpo
Cada corpo é o centro do mundo. Quaisquer que sejam as reali­
e seus desejos como deveria, como ventre m aterno...
dades que me atingem, nada sei sobre elas em si mesmas. Só as conhe­
Reverberações de Spinoza (Ética, parte III, proposição 6a): "Cada ço como reverberações do meu corpo. Os limites do meu corpo de­
coisa, enquanto existe, em si, esforça-se por perseverar em seu ser". notam os limites do meu mundo. Porque vejo as estrelas poderei di­
N ão tenho condições para dizer se isto é um princípio m e­ zer, com Bergson, que o meu corpo vai até elas..,
tafísico de validez universal. Confesso que ando com dificuldade Não poderia ser de outra forma. A hipótese nos vem do biólogo
nos cam inhos dessa ciência. M as não seria d ifícil entender a afir­ Uexküll: no mundo da mosca todas as coisas são construídas à ima­
mação do filósofo como a confissão do corpo cansado de Be­ gem e semelhança da mosca. N o mundo do ouriço-do:mar, todas as
nedito Spinoza, abençoado pelo nome de batismo, am aldiçoado coisas têm estrutura do ouriço-do-mar.
na vida e condenado a forçar seu corpo a p o lir lentes, por todos O mundo da borboleta poderia ser comparado ao mundo
os seus d ias... dos tatus, dos escorpiões, das lesmas? A sugestão de G oldstein é
bonita: cada organism o é uma melodia cjue se canta a si mesma. Mas p o­
Nenhum ser pode negar-se a si mesmo, a sua própria natureza. Todo
deríamos acrescentar: ela se canta e faz com que o seu am biente
ser, ao contrário, é em si e por si mesmo infinito, tem o seu Deus, o
a cante também. Organism o/organista; ambiente/órgão, teclado
seu mais alto ser, em si mesmo (Feuerbach, 1957, p. 7).
de infinitas possibilidades. M uitas teclas ficarão mudas. Porque
Claro que não se trata de uma afirmação da vida como coisa o organismo só fará soar aqueles sons que forem expansões e des­
abstrata. Porque em abstrato a vida não existe em lugar algum. O que dobramentos de sua própria m elodia. Também eles brincam de

vemos é uma exuberância de formas, estruturas, corpos, organismos, im provisar sobre o tema que lhes é perm anentem ente dado: seus

numa luxúria que se compraz na abundância e no desperdício. O que próprios corpos.

cada corpo proclama não é o triunfo da vida em abstrato, mas o valor O mundo se estrutura em torno do corpo. Cada corpo é o
supremo dele mesmo, não importa que forma tenha. centro do universo. Engano pensar que o cosmos antropocêntrico
morreu com Galiíeu. Hom em notável. N ão quis morrer na fogueira.
Se as plantas tivessem olhos, gosto e capacidade para julgar, cada uma "M ais vale um cão vivo que um leão morto." U m corpo vale mais
delas diria que a sua flor é a mais bela (Feuerbach, 1957, p. 8). que todas as verdades que anunciam a sua pequenez. Pode ser que,

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na teoria, ele deixe de ser o centro. N a prática ele permanece como velhice, solidão, morte, lágrimas, silêncios. Não somos seres do co­
o sol em torno do qual tudo o mais gira, até mesmo Deus. Se não nhecimento neutro, como queria Descartes. Somos seres do amor e
houvesse um corpo que sofre e espera, os deuses seriam supérfluos e do desejo. E é por isso que a minha experiência da vida é essencial­
desnecessários. Eles vivem por causa do corpo, porque prometem mente emoção. N a verdade o (fue é a emoção senão o mundo percebido como
felicidade ao corpo... Quem perderia tempo com um Deus que não reverberação no corpo? Um leve tremor cjue indica cjue a vida está em jo g o ... N eu­
prometesse a vida eterna? tralidade? Nem mesmo nos cemitérios. As flores, os silêncios, os an­
jos imóveis, as palavras escritas nos falam de tristezas que continuam
Se Deus fosse um objeto para um pássaro, ele seria um ser alado,- o a reverberar pelo universo afora...
pássaro não conhece coisa alguma mais alta e sublime que a condi­ E a partir desse centro em que pulsam a vida e a emoção que se
ção de ter asas (F euerbach , 1957, p. 17). estrutura o mundo. Piaget resumiu numa afirmação curta aquilo que
se repete desde Kant: "O conhecimento não é uma cópia, mas uma
Será que agora poderemos compreender as razões pelas quais a
organização do real”.
neutralidade do corpo frente ao seu mundo é impossível? Neutralida­
Mas qual é o modelo para tal organização?
de no conhecimento?
Kant pensava que a trama para a construção de nossas redes era
O conhecimento está a serviço da necessidade de viver e, prima­ formada por fios tomados emprestados da matemática, a mais abstra­
riamente, a serviço do instinto de conservação pessoal. E essa ne­ ta e incorpórea das ciências, e por pensamentos vazios, sem dor e sem
cessidade e esse instinto criaram no homem órgãos de conheci­ amor, como se o corpo não existisse.
mento, dando-lhes o alcance que possuem. Mas o corpo não aceita mortalhas como redes para seu descan­
O homem vê, apalpa, saboreia e cheira aquilo que precisa ver, ou­ so. E o fato é que ele amarra e constrói o seu mundo com emoções,
vir, apalpar, saborear, cheirar para conservar a sua vida” (Unamu- medo, sorrisos.
NO, 1953, p. 38).
As coisas, tais como o corpo as vivência, são "emocionantes, trági­
Neutralidade, onde é que tal entidade jamais foi observada?
cas, belas, cômicas, resolvidas, perturbadoras, tranqüilizantes, in­
E agora, como teólogos, podemos nos vingar. Porque fomos hu­ cômodas, áridas, ásperas, consoladoras, esplêndidas, assustado­
milhados quando nossa trapaça foi descoberta: fizemos de conta que ras..." (Dewey, 1958, p. 96).
estávamos voando, quando na realidade só estávamos saltando. Mas
agora descobrimos que nossos acusadores, metidos num outro jogo Como observou, Ferenczi, "a inteligência pura é um produto da
de contas de vidro chamado ciência, também fizeram trapaça. Porque morte, de insensibilidade mental e, por isto mesmo, em princípio,
tentaram nos enganar, apresentando-se como conhecedores puros, sem loucura..." (Brown, 1959, p. 317). A inteligência sem amor só pode
crenças nem superstições, espelhos de cem olhos, reflexos fiéis dos dizer a sua coisa depois que o corpo foi reduzido ao silêncio, sendo
seus objetos, sem desejo e sem paixão (N ietzsch e) — e agora desco­ então incapaz de distinguir gritos de sorrisos.
brimos que tais seres celestiais ou infernais não existem neste mundo E é por isso que o corpo, ao tecer suas redes, lança sempre os
dos hom ens... fios do amor.
Não. Não existe um mundo neutro. O mundo é uma extensão
do corpo. E vida.- ar, alimento, amor, sexo, brinquedo, prazer, amiza­ Dor?
de, praia, céu azul, auroras, crepúsculos, dor, mutilação, impotência, Prazer?

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Amigo? de meu aquário a brincar com meus dedos. Foi muito fácil. Bastou que
Inimigo? em vez de jogar a comida, eu a colocasse na ponta dos dedos. O
Aproximação? comportamento novo foi mediado por algo dado biologicamente. Se
Afastamento? em vez de comida de peixes eu lhes tivesse oferecido picles, é certo
Abandono-me? que nada teriam aprendido. Também o cachorro de Pavlov teria fica­
Resisto? do impassível se, em vez de carne, o cientista lhe tivesse apresentado
um nabo. Para aprender a reagir a um símbolo foi necessário que a
Para um urubu a carniça tem um cheiro maravilhoso. Foi-me
aprendizagem se desse através de algo marcado biologicamente no
dito que pessoas não-brancas sentem um odor muito desagradável
carnívoro: a carne. D e fato, o animal é o seu corpo. Seu corpo se
quando os brancos molham seus cabelos na chuva. Certos grupos in­
impõe como limite de todos os mundos possíveis.
dígenas acham os pescoços alongados por argolas e os lábios inferio­
res dilatados por rodas de madeira muito bonitos. Há, inclusive, cer­ Mas veja, em contraste, o que ocorre conosco: temos o poder
tos grupos de homens e mulheres que consideram elegante alongar a extraordinário de fater de conta, de brincar de ser diferentes do cfue somos.
altura por meio de hastes colocadas sob o calcanhar. isto se deve ao fato de que, por oposição aos animais,- os ho­
mens têm o seu corpo. N ão são prisioneiros dele. Esta liberdade em
O feio e o belo não são absolutos. relação ao corpo abre um imenso horizonte de possibilidades: somos
Variam em relação à espécie. capazes de imaginar mil mundos.
Também a dor e o prazer.
Parece que esta é a marca característica do mundo dos homens:
Não são realidades absolutas e universais, mas antes reações in- ele é duplo, rachado. Vivemos entre fatos e valores as coisas tais como são ,
terpretativas que variam em função do corpo e servem para distinguir e as coisas tais como poderiam ser.
o ambiente/extensão do corpo do ambiente/dissolução do corpo. E
Olhos e imaginação.
assim o universo se enche de melodias: cada coisa viva fazendo rever­
O real e o possível.
berar um universo, extensão do seu corpo, como variações sobre o
O presente e aquilo que ainda não nasceu.
tema que é ele mesmo, sua sobrevivência, sua beleza, seu prazer...
O que já se instaurou e aquilo que só existe como objeto
Os animais são prisioneiros de seus corpos. Não podem fazer do desejo, aquilo por que se espera...
coisa alguma que não tenha sido por eles programada, exigida, permi­ O presente século e o reino, objeto demma súplica.
tida. Esta é a razão por que não são neuróticos. Não experimentam
conflitos, nem insônia, nem angústia quanto ao dia de amanhã. Sem o É a própria unidade dos animais com os seus corpos que os tor­
saber seguem o preceito evangélico: "basta a cada dia o seu m al... " E na livres das neuroses, mas também incapazes de produzir cultura e
sobretudo não sabem que vão morrer. Claro que têm de lutar mas as de orar. Sugestão que nos vem de Feuerbach: "no animal a vida inte­
receitas já estão prontas. Por isso gozam a paz dos bem-aventurados... rior é idêntica à vida exterior". Fatos são valores. "Os animais conhe­
Se o corpo está satisfeito, por que se afligir? Em vez disso, dorm ir... cem um só mundo, aquele que percebem pela experiência... Mas o
O animal é o seu corpo (Berger & LUCKMANN, 1967, p. 50). Ele é homem tem uma vida dupla, tanto uma vida interior quanto uma ex­
prisioneiro de uma programação biológica inata que predefine o mundo terior". Fatos não são valores (Feuerbach, 1957, p. 2).
em que ele terá de viver. E bem verdade que os animais podem apren­ Durkheim repete a mesma coisa. "Os animais conhecem apenas
der muita^coisas não-programadas biologicamente. Ensinei os peixes um mundo, aquele que percebem pela experiência... Somente os ho-

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mens têm a faculdade de conceber o ideal, de acrescentar algo ao Não, isto não pode ser amado.
real" (Durkhf.im , 1969, p. 469)..
E, lá dentro, a voz do amor e dos valores lhe diz: que os fatos
E poderíamos multiplicar as referências.
sejam abolidos,- que a realidade deixe de ser,- aquilo que é não pode ser
Kierkegaard, referindo-se ao homem como a uma "síntese im­ verdade (Bloch), pois não corresponde às exigências do desejo.
possível" entre o finito e o infinito; Camus, afirmando que o homem é
A í a imaginação emigra da realidade, aliena-se, torna-se estra­
o único sèr que se recusa a ser o que ele é ; Freud, indicando o conflito
nha ao mundo, recusa o veredicto dos fatos e começa a explorar pos­
eterno entre o princípio do prazer e o princípio da realidade.
sibilidades ausentes, a montar fantasias sobre o jardim que poderia
E é isto, este poder para separar fatos de valores, as coisas que existir se o amor e o trabalho transformassem a realidade. A imagina­
simplesmente existem das outras, objetos do desejo, que faz com que ção voa e o corpo cria.
o homem seja capaz de conhecer o mundo à sua volta, sem conseguir,
entretanto, fix a r nele morada, O amor busca outros mundos, constrói A imaginação: as asas do corpo.
fantasias, explora possibilidades ainda ausentes. Homem, ser desloca­ O corpo, a força da imaginação.
do, exilado, emigrante, peregrino...
O desejo e o poder se interpenetram para dar à luz a esperança.
Exilados sereis em todas as terras paternas... Criamos então a cultura. Os mundos em que vivemos: jardins,
Que o futuro e o mais distante sejam a causa do vosso hoje... artes, poemas, pinturas, vestidos, canções, danças, jogos, rituais, valo­
Onde subirei com a minha nostalgia? res, ferramentas, casas, parques, ciência, magia, armas, sepulturas.
De todas as montanhas procurei terras maternas e paternas. Dewey sugere que o processo pelo qual criamos a cultura pode ser
Mas não encontrei lar em lugar algum. Sou um fugitivo em todas compreendido se tomamos como nosso modelo o processo pelo qual
as cidades, um adeus em todas as portas. Sou expulso de terras o artista produz a obra de arte: em ambos os casos o produto final não
maternas e paternas. Assim, agora, amo somente a terra de meus pode ser explicado se não se pressupõe o vôo utópico da imaginação.
filhos, ainda não descoberta, no mar distante. Para lá direciono N a arte a imaginação se torna objetiva. Será por isso que Hegel se
minhas velas, numa busca sem fim... referia ao mundo da cultura como a "objetivação do Espírito"?

Palavras de Nietzsche, que foi talvez aquele que melhor expri­ Mas o homem não cria somente um mundo diferente.
miu o caráter utópico da consciência: sem lugar no presente, voltada Ele recria o seu próprio corpo.
para um lugar que não está em lugar algum, a não ser na imaginação e
na esperança. O corpo humano não é uma entidade da natureza. Ele é produto
da imaginação. E é por isso que nos vestimos, sentimos vergonha, usa­
De fato, é este conflito que nos torna neuróticos. Mas é este
mos temperos, criamos a culinária, temos desejos sexuais mesmo na
mesmo conflito que faz possível o ato de criação. Plantar um jardim:
ausência dos odores do cio, contemplamo-nos no espelho, damo-nos
para quê? O homem contempla aquilo que o mundo estende à sua
um nome, somos assolados por ataques de hipocondria, enterramos os
frente: os dados, os fatos, o empírico, o que é:
nossos mortos e choramos a nossa própria m orte...

solo árido, seco, esbraseado,- Não mais estamos à mercê da programação biológica.
pedras e cacos,- Movemo-nos na rede cultural que lançamos. Como se fôssemos
espinhos e pragas. aranhas, produzimos o nosso mundo a partir de nossas próprias entra­

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nhas. Aos duros materiais à nossa volta misturamos o desejo e o am or.,. Desejo e esperança só existem perante as ausências. Com o sen­
Nossos valores, portanto, não serão apenas os condicionamentos her­ tir saudades da pessoa amada se ela está ali, ao alcance da mão? Mas,
dados. São criações mais poderosas que a própria natureza e que sub­ quando a distância se interpõe, a saudade brota da falta, das palavras
sistem pela mediação da palavra. de amor que não podem ser ditas, por não haver ninguém para ouvi-las,
e dos gestos de carinho que não ocorrem, porque o corpo se fo i...
"N o principio era a palavra..."
Desejo e esperança são testemunhos de uma ausência.
Mas não são as palavras autênticas, todas elas, expressões de uma ausên­
cia? Se as palavras significassem apenas o presente não seria necessário Por isso mesmo Deus, símbolo máximo do desejo e da esperan­
falar. Bastaria usar o dedo e apontar. Poderemos agora entender a reli­ ça, não é o sinal de uma presença, mas a confissão de um vazio imenso, de uma
saudade sem fim, de uma nostalgia pela plenitude do sentido, do am or ...
gião? Imaginação projetada até os confins do espaço e do tempo,* nossos
valores, objetos de nossa devoção, transformados em horizontes da reali­ Como se equivocaram aqueles que viram em Nietzsche a ex­
dade,* o corpo se expandindo e inchando, até tomar o universo inteiro. pressão máxima do ódio à religião. Sem dúvida inimigo implacável de
todos os que anunciavam presenças, realizações de valores, sacrali-
As origens do universo simbólico têm suas raízes na constituição zações de realidades instauradas. Contra os positivistas, contra os cien­
do homem. Se o homem é um construtor de mundos, isto é possí­ tistas sem imaginação, contra os educadores/domesticadores, contra
vel graças ao fato de que ele é, por constituição, aberto ao mundo, o Estado, contra os sacerdotes, contra os fariseus: todos eles alvos de
o que, de saída, implica o conflito entre caos e ordem. A existência sua fúria. Mas notem a tristeza e a saudade na página mesma em que o
humana, desde os seus inícios, é um processo de externalizações louco proclama a morte de Deus:
constantes. Na medida em que o homem se externaliza, ele proje­
ta os seus sentidos sobre a realidade. Os universos simbólicos que Não ouvistes do louco que acendeu sua lanterna nas horas mais bri­
proclamam que toda a realidade é humanamente significativa e in­ lhantes da manhã, correu para o mercado e começou a gritar sem
vocam o cosmos inteiro para representar a validez da existência hu­ parar: "Procuro Deus! Procuro Deus! Para onde foi Deus?"... E eu vos
mana constituem os limites últimos desta projeção (Berger & vou dizer. Nós o matamos — vós e eu. Todos nós somos seus assassi­
Luckmann, 1967, p. 104). nos. Mas como é que fizemos isto? Como fomos capazes de beber o
mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte inteiro? Que
Equivocaram-se aqueles que denunciaram a religião porque ela foi que fizemos ao quebrar a corrente que prendia a terra ao seu sol?
fala de coisas não dadas à experiência. De fato é isto mesmo, e as Para onde vai ele agora? Para onde vamos nós agora? Para longe de
pessoas religiosas não devem pedir desculpas e nem oferecer explica.- todos os sóis? Não estamos mergulhando sem cessar? Para trás, para o
ções. Se ela falasse sobre algo dado à experiência ela seria ciência e lado, para a frente, em todas as direções? Restam-nos ainda o para
renunciaria, de início, a qualquer pretensão de transcendência. Seus cima e o para baixo? Não estamos errando por um nada sem fim? Não
navios ficariam ancorados e suas velas vazias... Ao contrário, são os sentimos o hálito do espaço vazio? Não é verdade que está ficando
acusadores que devem responder à pergunta: frio? Não é verdade que a noite chega, sem cessar? As lanternas, não
devem elas ser acesas pela manhã? (Nietzsche, 1965, p. 95).
— Quem os autorizou a transformar fatos em valores? Que cons­
Existirá confissão mais pungente de nostalgia?
piração política os levou a fazer silêncio sobre os objetos do dese­
jo e as esperanças do corpo? Não será verdade que seu cientificis- Não, religião não é ciência.
mo implica, em última análise, uma sacralização da realidade tal Ela não pode descrever ou explicar presenças. Deus não é um obje­
como ela se encontra posta à nossa frente? to dado entre outros. Religião é imaginação, vôo do amor para a terra da

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fantasia, onde habitam o possível e o impossível, e o milagre que torna Aqui brota a fala sobre aquilo que não está presente.
possíveis os impossíveis, a gravidez das estéreis e das virgens, a ressurrei­ O que nos faz recordar a bela observação de Paul Valery:
ção dos mortos, projeto utópico, horizonte de uma nostalgia, luz sobre
um rosto que caminha, saudade de uma presença que se busca. Seu lugar "O pensamento é, em suma, o trabalho que faz viver em nós
são os gelos glaciais ou os desertos tórridos — longe dos oásis. Nos oásis aquilo que não existe.
estão os ídolos (Nietzsche), os patos domesticados, a obesidade, o muito Que somos nós sem o socorro daquilo que não existe?"
comer, a saciedade, a flacidez, a vontade morta.,. Nos gelos e nos deser­ (citado por H. Marcuse, Reason andRevolution, Boston, Beacon Press,
tos estão os projetos, o desejo de partir, a nostalgia pelo calor do sol e 1966, p. XI).
pelo frescor da sombra, o inclinar-se para o ausente e distante... Fala do corpo, fala sobre o corpo.
Mas o corpo fala dos seus desejos, aquilo que lhe falta,
Sei que minha apologia da religião faz estremecer até mesmo os
o summum bomm, felicidade suprema,
religiosos. Sei que eles temem a companhia das ausências. Eu tam­
gozo, alegria sem fim.
bém. .. E é por isso que nos agarramos à religião como "sinal visível de
uma graça invisível". Invisibilidade, sim,- ausência, não. Não foi assim João Batista manda perguntar a Jesus sobre o Reino.
que a Igreja interpretou os símbolos sacramentais por séculos? Não E ele lhe responde curando corpos: os cegos vêem, os coxos
foram as discussões sobre a presença de Cristo na eucaristia que marca­
andam, os leprosos são purificados...
ram as mais ferozes disputas entre católicos e protestantes durante os
Deus ganha visibilidade e presença no corpo de Jesus Cristo, no
anos da Reforma?
nascimento, nos atos, na morte e na ressurreição desse corpo.
"Comei, bebei, meu corpo, meu sangue...
Não será legítimo concluir que a manifestação do seu reino se
Assim anunciais a morte do Senhor até cfue venha".
apresentará como o triunfo do corpo?
Até que venha? Ora, só pode voltar quem não está presente.
Símbolo de uma ausência, confissão de um amor, de uma saudade, de Sabemos que o universo criado geme em todas as suas partes como
uma fidelidade, de uma espera. se estivesse em dores de parto... esperando que Deus nos torne
O Reino de Deus não se realizou. Tanto que oramos: "Venha o seus filhos e liberte os nossos corpos... (Rm 8,22-23)
teu R eino ..."
E o lugar da teologia? Nada mais que parte dessa sinfonia de
Nada é sagrado. Sagrado é o futuro. gemidos: fala sobre Deus, que é a confissão de uma nostalgia infinita,
Pela esperança vivem os... que brota desse corpo tão bom e amigo, que pode sorrir, acariciar,
Protestantes e católicos equivocados. Disputas pelas questões erra­ plantar, tocar flauta, fazer amor, empinar papagaio, entregar-se como
das. Porque a polêmica não se travava entre presença e ausência, mas em holocausto por aqueles a quem ama e mesmo fazer teologia.
torno da questão: onde e como se dá a presença? Seja na magia dos sacra­ Teologia: poesia do corpo, sobre esperança e nostaígias, pro­
mentos, como queriam os católicos, seja no segredo da subjetividade, nunciadas com uma prece...
como queriam os protestantes — todos estavam de acordo: presença.
Mas a questão é outra. A experiência de Deus é o encontro com
um vazio como aquele que fica após a partida, vazio (juefala, que invo­
ca e provoca, que faz chorar e rezar...

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O C O RPO DOS S A C R IF IC A D O S

C ada organismo é uma melodia que se canta a si mesma, sem fim.


O homem, diferente, é compositor que abandona melodias ve­
lhas e inventa temas novos. E assim ele cria a cultura transformando
em asas os sonhos que seu corpo gerou.
Enquanto as melodias se fazem ouvir tudo é alegria e vigor,
Mas há o momento do crepúsculo. Vem o declínio e, com ele, a
tristeza.
Morre a borboleta, morre o pássaro, morre o homem.
Vem a morte quando o poder se vai. O crepúsculo da vida é o
crepúsculo do poder.
E justamente aqui está a tristeza de todos os ocasos: porque se
vão poder e vida, sem que se apaguem amores e desejo:

vontade de cantar, sem poder cantar,


vontade de jardins, sem mãos para plantá-los,
vontade de amor, sem um corpo capaz de estremecer e fecundar,
vontade de beleza, sem os ouvidos para ouvir as harmonias.

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V a r ia ç õ e s s o b r e a v id a e a m o r t e . A t e o l o g ia e a s u a fa la O CORPO DOS SACRIFICADOS

Vontade: libertador na prisão, nos assombra a todos: saber absoluto, poder absoluto, vida eterna, ser
herói acorrentado. como deuses. Os deuses seriam então desnecessários e os filhos pode­
riam cometer o patricídio definitivo. O mesmo poder que faz corpos
Lembro-me do cântico do crepúsculo do corpo que se encontra dançar e sorrir é o poder que faz corpos se contorcer e gritar. O poder
no livro de Eclesiastes: pode ser divino ou demoníaco, pode libertar ou escravizar, dar vida
ou matar. Do poder nascem universos, as estéreis dão à luz, vales de
... o sol e a luz do dia dão lugar às trevas,
ossos secos se levantam como exércitos, a virgem fica grávida, os ce­
e a lua e as estrelas ficam difíceis de se ver,
gos é leprosos ficam curados, os mortos são ressuscitados, céus e terra
e as nuvens retornam com as chuvas,
se transformam. Mas com o poder nasce o orgulho, a opressão, Herodes
os guardas da casa tremem,
matando crianças, o império romano crucificando o Filho de D eus...
os fortes se curvam,
De fato, parece que o poder é mais visível em companhia da cruelda­
as mulheres que moíam os grãos, por já serem
de que no silêncio da bondade. Câmaras de tortura, campos de con­
poucas, param,
centração, guerras: aqui a voz do poder é inequívoca. Lembro-me de
os que olhavam pelas janelas não mais o fazem,
um diálogo entre torturador e torturado, nos subterrâneos de í9 8 4 t de
as portas da rua se fecham,
O rw ell. A lição é o torturador quem ministra:
não mais se ouve o ruído da mó
e nem o chilrear dos pardais
O Partido busca o poder exclusivamente por amor ao poder. Não
e o canto dos pássaros,-
estamos interessados no bem dos outros,- estamos interessados
vem o medo das ladeiras inclinadas
apenas no poder. Não se trata nem de riqueza, nem de luxo, ne-m
e as ruas se enchem de terror.
de felicidade,- poder apenas, puro poder. Aquilo que significa
As flores da amendoeira ficam brancas e,
poder puro você vai entender agora. Somos diferentes de todas
ao redor da praça,
as oligarquias do passado porque nós sabemos o que estamos fa­
andam os primeiros pranteadores, zendo. Todos os outros, mesmo aqueles que mais pareciam co­
até que nosco, foram covardes e hipócritas. Os nazistas alemães e os co­
se parte o fio de prata, munistas russos chegaram muito perto de nós em seus métodos,
e a taça de ouro se quebra mas eles nunca tiveram coragem para reconhecer seus próprios
e a jarra se despedaça junto à fonte... (12,2-6) motivos. Eles faziam crer e talvez mesmo acreditassem que ha­
viam se apoderado do poder contra a vontade e por um tempo
Os jogadores tentam mover a conta de vidro em que o corpo , o
limitado, e que, logo ao virar da esquina, se encontraria um pa­
seu tema, está contido. Mas tudo acontece como nas estórias de fa­
raíso onde os seres humanos seriam livres e iguais. Não somos
das: ele permanece inerte, adormecido. Até o momento encantado
como eles. Sabemos que ninguém se apropria do poder com a
em que o poder lhe beija o rosto e os dois, corpo e poder, se levantam
intenção de dele abrir mão. O poder não íu m meio, o poder éu m jim .
então para a dança erótica da vida. Não se estabelece uma ditadura a fim de salvaguardar uma revo­
Curioso que as almas religiosas tenham achado tão difícil que a lução,- faz-se uma revolução com o objetivo específico de estabe­
vida e o poder andam de mãos dadas. Nada lhes parece mais natural lecer a ditadura. O objetivo da perseguição é a perseguição. O
que a reverência pela vida. N o entanto, nada lhes parece mais perver­ objetivo da tortura é a tortura. O objetivo do poder é o poder.
so que a reverência ao poder. Elas não se esquecem do pecado que (O rw e ll, 1977, p. 266-267).

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V a r ia ç õ e s s o b r e a v id a e a m o r t e . A t e o l o g ia e a s u a fa la O CORPO DOS SACRIFICADOS

Compreende-se que esta familiaridade entre poder e crueldade Plantar um jardim,


faça a alma religiosa estremecer. Seria mais fácil falar apenas sobre a curar um cego,
vida e sobre o amor. Mas existirá amor sem o poder? Haverá vida sem derreter espadas para transformá-las em arados:
liturgias do poder.
poder? O fato é que somente os mortos fazem abstinência do poder.
E, se formos honestos, teremos de reconhecer que só nos entregamos Voltemos ao mestre Agostinho. Não somos livres para escolher
a um deus quando ele nos recompensa com a dádiva do poder. Não se entre o amor e o poder. Somente somos livrés para escolher as alian­
trata de uma afirmação da teologia, é a própria observação empírica ças entre eles: ou o poder do amor ou o amor ao poder. E é a partir dessa
que o constata: visão que ele instaura a teologia como uma meditação sobre o amor e
o poder.
O crente que entrou em comunhão com o seu Deus não é mera­
Para onde fugir do poder?
mente um homem que vê verdades novas que os descrentes igno­
ram,- ele é mais forte que os outros. Ele sente mais força dentro de si, Para a não-violência?
seja para suportar os sofrimentos da existência, seja para conquis­ Mas que é o que caracteriza a não-violência? Será o abandono
tá-los (Durkheim, 1969, p. 464). do poder? Ou será antes a crença no poder superior da bondade, da man­
sidão, da solidariedade? O não-violento crê que a ternura e a persis­
Talvez Agostinho tenha sido o primeiro a compreender que a
tência são mais eficazes que a brutalidade. Em nenhum momento aban­
vida é uma rede tecida pelo amor e pelo poder que, juntos, vão e vêm
dona o compromisso com o poder.
construindo o nosso mundo.
São Francisco?
Arde o am or...
Crença no poder da pobreza e da comunhão com a natureza.
...e as mãos se movem, trabalhando a madeira, a terra, a lã, as
tintas, os sons, as palavras... Que é o trabalho senão a conspiração do Albert Schweitzer?
poder e do amor que assim moldam a natureza para que ela se torne Crença no poder inesgotável da vida, do amor, da beleza.
em lar, espaço amigo e quente...? E o poeta? O educador?
...e as gotas para o fígado, a homeopatia, a ginástica ioga, o Terão abandonado o poder?
controle da hipertensão, as dietas, as caminhadas, as corridas, senão Parece que sim, quando se sente a insignificância do mestre-escola
rituais do poder, porque saúde é nada mais que o poder sorridente e e do fazedor de versos, abafados pelo ruído das botas em marcha. Mas
feliz através do corpo... não será verdade que, do fundo do seu silêncio ou da sua fala, desponta
... .e as mãos se dão, iniciando então aquilo a que denominamos uma confiança profunda no poder da palavra ou mesmo do olhar?
política. Mãos que se seguram em nome de um mesmo amor, para que, E o mártir que enfrenta a forca ou a tortura — que é que o man­
sendo maior a força, maior seja a possibilidade de realização do amor. tém inteiro? Não será a teimosa afirmação de que de alguma forma, no
E o poder que não ia além da extensão do braço se torna agora tão futuro, as sementes que ele semeou serão fortes o bastante para brotar?
poderoso quanto o círculo dos corpos entrelaçados. Lembro-me de que Bonhoeffer, falando a partir daquela impotência que
E o que dizer de agulhas, dedais, sapatos, martelos, óculos, pás, só um encarcerado conhece, dizia que nosso Deus se apresenta fraco e
barbantes, linhas, pregos, arames, velas, enxadas, armas, livros? Ex­ indefeso no mundo. N o entanto, e a despeito disso, ele ainda o chama­
tensões do corpo, ferramentas do poder. va pelo seu nome sagrado: "Deus". E isso lhe permitia visualizar, na sua

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V a ria ç õ e s sobre a vid a e a m orte. A t e o lo g ia e a su a f a la O CORPO DOS SACRIFICADOS

impotência mesma, já com o cheiro do fim, os sinais de um início per­ Lembro-me de que Fanom conta de um torturador que freqüen­
manente. E o fim , pela magia do poder, se transforma em inicio: morte tava o seu consultório e lhe explicava que é necessário muita habilida­
em ressurreição,- "é morrendo que nascemos para a vida eterna". de por parte do profissional da dor para que o sofrimento não leve o
E é justamente aqui que se manifesta aquele sentimento caracte­ torturado a perder a esperança. É o tênue fio da esperança que o man­
rístico dos encontros com o sagrado: a experiência do sentido. tém inteiro, E se ele vai se decidir a falar é porque ele crê que este
gesto de confissão é poderoso para libertá-lo. Mas, se o prisioneiro che­
O sentido da vida é algo que se experimenta emocionalmente, gar à conclusão de que a confissão não faz diferença alguma, ele mer­
sem que se saiba explicar ou justificar. Não é algo que se cons­ gulhará no silêncio do qual não mais se sai.
trua, mas algo que nos ocorre de forma inesperada e não prepa­
Também Ezra Stotland, em seu estudo sobre as relações entre a
rada, como uma brisa suave que nos atinge sem que saibamos
esperança e a doença mental, sugere que com a perda da esperança
de onde vem nem para onde vai, e que experimentamos como
perde-se também o caminho de volta à saúde mental.
uma intensificação da vontade de viver ao ponto de nos dar
coragem para morrer, se necessário for, por aquelas coisas que Mas o que é isso, esperança?
dão à vida o seu sentido. E uma transformação de nossa visão É fácil compreender que esperança não existe sem amor e sem
de mundo, no qual as coisas se integram como em uma melo­ desejo. A gente só espera aquilo por que o coração sente nostalgia.
dia, o que nos faz sentir reconciliados com o universo ao nosso Mas amor não chega. Por mais que o doente ame a vida e queira viver,
redor, possuídos de um sentimento oceânico, na poética expres­ há um momento em que ele sucumbe e se entrega. Deixa de esperar e
são de Romain Rolland, sensação inefável de eternidade e infi- aceita com serenidade o veredicto da enfermidade. Lembro-me de
nitude, de comunhão com algo que nos transcende, envolve e uma afirmação de Fernando Pessoa que não compreendi ou me recu­
embala, corno se fosse um útero materno de dimensões cósmi­ sei a entender: "Gozo a paz absoluta daqueles que perderam todas as
cas. "Ver o infinito num grão de areia e um céu numa flor silves­ esperanças . Mas é isso mesmo... Aqui estamos diante do amor total­
tre, segurar o infinito na palma da mão e a eternidade em uma mente desvestido e roubado do poder. Ele fulgura na sua imensa bele­
hora" (Blake) (Alves, 1981, p. 122-3). za: beleza triste e com lágrimas nos olhos, por estar condenada. É
assim sempre quando o amor se descobre abandonado pelo poder.
Aqui a alma religiosa se descobre reconciliada com o universo
que a cerca. Mas como é isso possível? E que ela crê que o poder infini­ O que faz a esperança é o fato de que nela o amor se encontra
tamente amorãvel e o amor infinitamente poderoso do seu Deus farão com que amparado pelo poder. Aquele que espera aposta que, de alguma forma
seus valores triunfem, a despeito de tudo... De fato, dizer que a vida que nem ele mesmo entende bem, os valores pelos quais vive e morre,
faz sentido, que vale a pena viver e morrer, é crer que aqueles valores, no presente, viverão, ressuscitarão, renascerão.,. Ergue-se assim a es­
objetos do nosso amor e do nosso desejo, são poderosos para viver e perança, filha do poder e do am or...
sobreviver, ainda que no presente eles sejam esmagados pela brutalida­
.,. como a Fênix que renasce das cinzas,
de depois da cruz, a ressurreição depois do incêndio que esturrica os
como o crucificado que ressurge dos mortos,
pastos, o renascer milagroso do verde sob a chuva do ventre flácido e
como a flor que floresce após o inverno,
dos seios murchos, a turgidez da gravidez. Esperança: crença na plausi­
como o capim que revive após a queimada,..
bilidade dos nossos valores. Destruída a esperança esfacela-se o senti­
do da vida, e já nada mais faz diferença. Chegou a hora em que os A esperança só se mantém na medida em que se crê que o amor e
corpos geram os suicídios. o desejo serão validados por um poder maior cfue o nosso,

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V a r ia ç õ e s s o b r e a v id a e a m o r t e . A t e o l o g ia e a s u a fa la O CORPO DOS SACRIFICADOS

seja o poder da classe, específica, revelando o amor; e o poder


da revolução, das mãos que as teceram: poder do amor,
da história, amor ao poder
do universo,
de Deus. Primeiro é necessário falar dos que amam muito e podem pouco-, não
é por acidente. E sempre assim. Amar muito e poder pouco se perten­
Deus é o nome que damos à esperança quando ela vara todos os cem. O amor vai junto com o desejo, e o desejo, testemunha da au­
espaços e se espalha por todos os tempos.,. sência do objeto a que se aspira. Mas se o objeto está ausente é por­
E é assim que se explica aquela inexplicável tenacidade daqueles que falta ao amante o poder para fazê-lo próximo. Assim, caminham
que, mesmo quando tudo lhes diz que seus valores foram derrotados, dolorosamente de mãos dadas a nostalgia pelo objeto amado e a cons­
continuam a plantar sementes que só darão frutos para os filhos e os
ciência da fraqueza. E é por isso que, na boca dos fracos, o amor se
filhos de seus filhos... transforma numa prece e o encontro com a coisa amada só pode ser
E Abraão pensa: Ainda que eu tenha de sacrificar meu filho, compreendido como graça. Não, não foram nem os carros e nem os
meu único filho, continuarei a ter esperanças... cavalos, não foi o braço e nem a espada... Foi o suave sopro do Espí­
E Habacuc pensa: 'Ainda que a figueira não floresça, nem haja rito que invocou o inesperado.
fruto na vide, o produto da oliveira m inta... contudo, meu rosto con­
Am or dos derrotados... Fez-me lembrar do "Cancioneiro da
tinuará a so rrir..."
inconfidência", de Cecília Meireles:
E Jeremias pensa, na cidade invadida, desolada, silenciosa: A in ­
da que tudo tenha sido destruído, confiarei no futuro. Ainda se planta­ Já se ouve cantar o negro.
rão vinhas neste lugar". E ele compra um pedaço de terra... Mas inda vem longe o dia
Será pela estrela d'aíva,
De alguma forma, algum dia... com seus raios de alegria?
Fora da tenacidade da espera só há duas alternativas: suicídio ou Será por algum diamante
capitulação, exílio sem retorno ou a entrega prostituta do a arder, na aurora tão fria?
corpo a outros amores... Já se ouve cantar o negro,
pela agreste imensidão.
E sobre isto que fala a religião.
Seus donos estão dormindo,
E sobre isto que se tecem os padrões do jogo das contas de v i­
quem sabe o que sonharão!
dro: símbolos que contam estórias de amor e poder, de derrotas, espe­
Mas os feitores espiam,
ranças e surpresas, de pureza sim, aquela pureza que continua a dese­
de olhos pregados no chão
jar sempre a coisa ausente: "Pureza de coração: desejar uma só coisa
já se ouve cantar o negro.
(K ierkegaard ), esperar sem se prostituir. E assim se constroem as re­
Que saudades, pela serra!
des da religião, a agulha dançando, do homem para o seu mundo, do Os corpo naquelas águas,
seu amor para o seu poder, do seu poder para o poder dos outros, e as almas, por longe terra.
também o seu contra-amor... Conflitos, batalhas... Em cada vida de escravo,
Muitas redes, que surda, perdida guerra.
cada uma delas com uma configuração (M eireles , 1972, p. 200-201).

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V a rja ç ô ë s sobre a vida e a m orte. A t e o lo g ia e a sua f a la O CORPO DOS SACRIFICADOS

Mundo de saudades e ausências. Lindas serras: molduras da es­ H á de se levar em conta os oásis, onde se levantam os ídolos.
cravidão e do exílio. Voa a alma pelas memórias que o desejo invoca. Os patos domésticos não tomam o risco dos vôos: basta-lhes a gordu­
A consciência parte-se ao meio. ra, a satisfação com o presente. Por que mudar?
De um lado, os fatos, o conhecimento: a vida escrava de perdi­
Pintar os muros rachados...
das guerras.
Curar superficialmente as feridas do povo...
Do outro, a tristeza, a recusa, o amor: a nostalgia de perdidas terras.
Dizer "paz, paz, quando não há paz..."
Passeiam os olhos, e onde quer que pousem ali se encontra ins­ Cochilar aos som das canções de amores...
crito: "Nunca mais". É o feitor, o ferro em brasa, o tronco, as corren­ Gestos de grande efeito...
tes, as armas. Amanhã tudo estará melhor...
Onde preservar os amores? Como guardá-los? Promessas...
Repartir os despojos...
Os espaços externos se encontram ocupados pelo dominador. Ao
escravo impotente restam os espaços internos, nos quais a imaginação Os pobres podem esperar. Afinal de contas eles não têm direito
reina onipotente, e que se abrem como umbrais de mundos sem senho­ nem mesmo às migalhas que caem da mesa...
res e sem escravos. E tais espaços se enchem simbolicamente com os
Que se corte a cabeça de João Batista, aquele que batizava no
objetos últimos do desejo. E assim se constitui a religião daqueles que
deserto. Herodes o exige.
amam sem ter poder. Assim sobrevivem o amor e o poder entre os que
foram derrotados: nos guetos, prisões, campos de concentração, asilos Que se crucifique um tal Jesus de Nazaré, tipo sem domicílio ou
de velhos, exilados, refugiados sem terra, índios sem nada, favelas, po­ emprego certo e que anda por aí dizendo que os pobres herdarão a terra.
bres, deserdados, nas profundezas da alma, em gestos modestos e silen­ Aos ricos e poderosos não bastam a riqueza e o poder. Eles ne­
ciosos, nas festas e nos carnavais, nas procissões e romarias. Religião, cessitam que alguém lhes diga que riqueza e poder são dádivas dos
confissão de desejos fortes de corpos fracos e, por isso mesmo promes­ deuses. Sinais visíveis de uma graça invisível. Sacramentos. E assim se
sa e esperança de um corpo novo — corpo grande, belo, sublime, cor­ cria a religião dos poderosos.
po de Cristo. Promessa de poder aos fracos, aos que têm fome e sede, O s corpos não são iguais. Por isso "o mundo dos felizes é dife­
aos que são perseguidos, aos mansos, aos que choram ... Amor sem po­ rente do mundo dos infelizes" (NVittcenstein). E também os seus deu­
der, nostalgia dos impotentes, poesia, quem sabe misticismo?... ses, Se é verdade que cada organismo é uma melodia que se canta a si
Mas há aquelas ocasiões em que os fracos se dão as mãos, milhões de mesma, também é verdade que as melodias dos fortes são diferentes
bocas, milhões de mãos, milhões de corpos que marcham, milhões que das melodias dos fracos. Esta reflexão nos faz voltar a Agostinho. E,
desejam, E os sonhos dos céus invadem a terra: que o paraíso seja cons­ com esta volta, a suspeita de que os poderosos estejam condenados,
truído, que as lanças sejam transformadas em arados e tesouras de podar, predestinados (ah! palavra calvinista que me faz estremecer!) a cantar
que as portas das prisões sejam abertas, que nunca mais o pobre seja ven­ o amor ao poder , enquanto aos fracos só resta o poder do amor.
dido por dinheiro e a sua vida trocada por um pedaço de terra. Não, não foi engano.
Repito: aos fracos só resta...
Mas nem todos são escravos.
Nem todos são rebeldes. É isso mesmo. Para que ninguém se equivoque, pensando que
Que dizer dos reis e senhores? atribuo aos fracos e pobres uma virtude especial. Sou deformado o

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suficiente pelo calvinismo, pela psicanálise, pelo marxismo. Tríplice efeitos de causas precisas e formam uma cadeia de eventos compreen­
maldição que impede ilusões otimistas acerca de pessoas, grupos, clas­ síveis pela lógica dos porejais e dos em decorrência de.
ses, Se os fracos e pobres fazem soar o tema do poder do amor não é Mas a esperança messiânica surge justamente quando o poder
porque esta seja uma opção sua. Eles estão a isso condenados. Se alguém humano chega ao fim, quando a política entra em colapso. Invoca-se
só í > o s s h j uma flauta, está condenado a tocar na flauta suas melodias. o braço de Deus quando, derrotados, caem os braços dos hom ens,..
Os fracos e pobres só possuem uma coisa: seu amor, seu desejo. Falta-lhes
Mais além da política está a magia. E que arrepios tal palavra
o poder. E é por isso que sua melodia não pode se fazer ouvir através
produz. Nem tanto no meio dos pobres, em cujo nome pretendemos
do poder, mas somente através do amor. Ábre-se-lhes então o cami­
falar. Mas claramente nos meios eruditos e desenvolvidos, nos quais o
nho mágico, o de crer que do amor uma nova ordem de coisas surgirá.
poder econômico para comprar livros é evidência de estarmos distan­
Caminho mágico? Sim. Os fracos e pobres esperam o Messias, tes da impotência daqueles cujo problema não é ler mas comer. N os­
aquele que, trazendo o Reino de Deus, redime o corpo dos homens sos corpos são diferentes. E, por isso mesmo, nossas formas de pensar,
que gemem. Fazer vibrar a melodia que surge dos seus corpos, a nos­
nossas avaliações dos limites entre o possível e o impossível. Será ne­
talgia do seu amor e a fragilidade do seu poder é proclamar a esperan­
cessário que a doença incurável se aloje em nossos corpos ou nos cor­
ça de que, de alguma forma inexplicável, um Messias virá. Messias: o
pos dos nossos filhos para que em nós acordem os magos, os feiticei­
poder do amor em uma pessoa, bem-aventurança de todos aqueles
ros, aqueles que fazem milagres... Será necessária a fraqueza. N o êxodo
que esperam.
e nas vitórias são fáceis os equívocos acerca do nosso poder. É no
Todo o nosso jogo de contas de vidro depende da nossa capaci­ cativeiro que reconhecemos os nossos limites e oramos por possibili­
dade de articular a estranha lógica que se constrói em cima desta es­ dades impossíveis. E então que se espera pelo Messias, a encarnação
perança. Não sei bem. Talvez o oposto seja verdade, e seja a esperan­
do poder do amor. Os lábios balbuciam então: "Venha o teu Reino". E
ça messiânica que nasce dessa estranha lógica...
esta é a razão por que são os fracos e pequenos que podem entender,
Lógica que se resume na expressão a despeito de. sendo tão difícil aos ricos descobrir o caminho.
Os teólogos lhe deram o nome d eçjraça. As explicações são d ifí­ Está assim constituída a lógica do nosso jogo de contas de v i­
ceis, mas as imagens são claras: dro, a teologia: aos pobres e oprimidos não bastam os porejais. É neces­
sário que se invoquem os entretanto e os a despeito disto.
... a estéril engravida,
E esta é a razão por que, por mais diversas que sejam as varia­
os mortos ressuscitam,
ções que a imaginação teológica possa dar ao tema que lhe é propos­
os velhos ficam crianças,
a virgem dá à luz, to, todo o jogo será presidido pelos símbolos da fraqueza e do sofri­
do nada, surgem universos... mento. Não se trata de morbidez de sentimentos. Ocorre que é aí que
se geram a visão e a nostalgia pelo Messias. Cada gemido é o anúncio
É claro que é difícil compreender. de um futuro novo. Gemem os homens, geme a criação inteira, sinfo­
Tudo parece uma tolice tão grande. Violenta tudo aquilo que a nia de gemidos, tendo o Espírito Santo como regente: dores de parto,
experiência e o realismo político nos ensinaram. A política é uma prá­ a esperança da redenção do corpo. A teologia é um dizer daquilo que
tica racional que se constrói pela cuidadosa articulação de meios e o corpo só pode chorar. Exercício sobre o crucificado. Ou, mais pre­
fins e o uso impiedoso da força. Não existe nela um lugar para os cisamente, exercício sobre os crucificados. E eu me permito trans­
cordeiros, nem para a mansidão, nem para as lágrimas. As vitórias são crever a meditação incomparável do padre Antônio Vieira:

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V a ria ç õ e s sobre a vida e a m orte. A te o lo g ia e a su a f a la

Os discursos de quem não viu são discursos; os discursos de quem


viu são profecias. Os Antigos, quando queriam prognosticar o
futuro, sacrificavam os animais, consultavam-lhes as entranhas,
e, conforme o que viam nelas, assim prognosticavam, Não con­
sultavam a cabeça, que é o assento do entendimento, senão as
entranhas, que é o lugar do amor,- porque não prognostica me­
lhor quem melhor entende, senão quem mais ama. E este costu­ A MAGIA DA PALAVRA
me era geral em toda a Europa antes da vinda de Cristo, e os
portugueses tinham uma grande singularidade nele entre os ou­ ,
Teologia: joçjo de palavras jorjo com palavras.
tros gentios. Os outros consultavam as entranhas dos animais, os ,
Palavras nada mais cjue palavras.
portugueses consultavam as entranhas dos homens. A supersti­ E com elas se constroem mundos...
ção era falsa, mas a alegoria era muito verdadeira. Não hã lume
de profecia mais certo no mundo que consultar as entranhas dos
homens. E de que homens? De todos? Não. Dos sacrificados. Se
quereis profetizar os futuros, consultai as entranhas dos homens
sacrificados: consultem-se as entranhas dos que se sacrificaram e
dos que se sacrificam,- e o que elas disserem, isto se tenha por
profecia. Porém, consultar de quem não se sacrificou, nem se sa­
crifica, nem se há de sacrificar, é não querer profecias verdadei­
oi assim que terminamos nossa última meditação. E sei que o des­
ras,- é querer regar o presente, e não acertar o futuro (citado por
Alfredo Bosi, em M ota 1 9 7 7 , p. X V II). F fecho foi inesperado. Nossa conversa pretendia ser uma reflexão
sobre o poder, e teria sido mais natural se, no fim, tivéssemos falado
E sobre as entranhas dos sacrificados que surge este jogo de
sobre ferramentas, armas e estratégias: todo mundo sabe muito bem
contas de vidro que chamamos teologia. Palavras, nada mais que pa­
que com técnica, artefatos bélicos e política é possível construir e
lavras. Mas as palavras são ais, suspiros, profecias. E com elas se cons­
destruir mundos. Ao invés disso, tudo indica que perdi o meu cam i­
tróem mundos...
nho e mudei de assunto ao falar dessa vibração sonora tão efêmera e
tão sem lugar que se chama palavra.
Mas não fui eu que fiz a escolha. Os símbolos me obrigaram.
Acha estranho que isso tenha acontecido? Pois é, uma vez escolhi­
dos, os símbolos passam a nos dominar. Veja o com positor pos­
suído pelo tema pue ele mesmo escolheu. E o jogador de xadrez à
mercê de bispos e peões. E nós, por mais que o desejemos, não
podemos, neste jogo que se chama linguagem, usar substantivos
como se fossem verbos... Estamos sob o domínio da lógica dos
símbolos.
É assim no mundo da teologia. Por mais que já nos tenham dito
acerca da impotência dos símbolos, fantasmas supercstruturais, ecos

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V a ria ç õ e s sobre a v id a e a m orte. A t e o lo g ia e a sua fa la A magia d a p ala vra

vazios de poder, em nosso jogo de contas de vidro os universos se invenção. Não existe uma natureza humana, no sentido de uma es­
constituem pelo poder das palavras, grávidas de desejos. sência biológica fixa. Nós nos tornamos humanos trilhando os cami­
Deus fala. nhos que as culturas estabeleceram.

E da sua voz coisas que não existiam vêm a ser, enquanto outras, Acontece que tais receitas culturais de humanidade não entram
que pareciam ser, são reduzidas a nada. nos nossos corpos e não se transmitem biologicamente. Elas só são
preservadas e transmitidas na medida em que contamos às gerações mais
Mundo da onipotência do amor, em que as palavras são túrgidas
novas sobre o nosso jeito típico de existir. Os nossos mundos existem
de poder e eficácia, e o anúncio de ausências gera presenças: magia.
graças ao poder da fala.
É muito difícil justificar o que acaba de ser dito. O máximo que
Aqui eu peço licença para introduzir, neste discurso para inte­
podemos fazer é trilhar de novo o caminho das analogias e das pará­
lectuais, coisas que parecem ter sido sugeridas por um feiticeiro. Te­
bolas para pelo menos tentar entender o que parece ser a metafísica
nho de confessar que não sei se se trata de fato ou de imaginação, o
da loucura.
que realmente não faz diferença alguma. Assim, vamos fazer de conta
Vou começar de longe. Falando de uma vespa, famosa e conhe­
que o bruxo e a sua fala não passam de um m ito...
cida, que pode ser vista pelos campos numa eterna caçada que se re­
Tudo gira em torno de uma experiência educativa, para nós ab­
pete há milhares de gerações. A vespa procura uma aranha. Trava com
surda, de iniciação ao mundo da feitiçaria, D. Juan, o feiticeiro da
ela uma luta de vida ou morte. Pica-a várias vezes, paralisando-a viva.
estória de Castaneda, insistia em que,
Arrasta-a então, indefesa, para o seu ninho, um buraco na terra. D e ­
posita os seus ovos. Depois disso sai e morre. Tempos depois nascem
para o feiticeiro, o mundo da vida cotidiana não é algo real, lá fora,
as larvas que se alimentarão da carne viva da aranha. Crescerão sem
como a gente crê. Para o feiticeiro a realidade, o mundo tal como
ter nenhuma mestra que lhes ensine o que fazer. A despeito disso
o conhecemos, é apenas uma descrição.
farão exatamente o que fizeram sua mãe, sua avó, e todos os ances­
trais, por tempos imemoriais... Alguém viu e sabe.
Programada perfeitamente para viver e morrer. N o seu corpo se Este alguém descreve para quem não viu ainda, não sabe ainda. E as­
encontra, silenciosa, a sabedoria que passa de geração a geração. Vida sim aquilo que os olhos não viram vai, aos poucos, tomando forma na
sem problemas novos, sem angústias ou neuroses. mente dos que ouvem. Ah! Mundo nascido da atividade docente de um
Nós? sem-número de pessoas que sem diplomas em educação ensinam, sem
Seres de programação biológica atrofiada, encolhida, restrita. saber como, e assim constroem mundos. "Cada pessoa que entra em
Verdade que ela diz o bastante sobre aquilo que deve ocorrer dentro contato com uma criança é um professor que incessantemente lhe des­
de nossa pele: as criancinhas continuam a nascer, na maioria das vezes creve o mundo, até o momento em que ela é capaz de perceber o mun­
perfeitas, de mães e pais que nada sabem. Mas a sabedoria dos nossos do tal como foi descrito" (Castaneda, 1972, p. 8-9). E pais, mestres,
corpos nos diz muito pouco, se é que diz alguma coisa, sobre o que párocos, pastores,, profetas, conselheiros, líderes políticos e todòs os
fazer por este mundo afora. Tanto assim que os homens tiveram que "outros significativos", através da sua fala, vão descrevendo, criando
inventar os seus programas de vida. D a nossa inferioridade biológica olhos, formando mentes, solidificando realidades.
surgiram os mundos da cultura. E, diferentemente da vespa — que é O falado instaura o mundo. Os olhos sucumbem perante o po­
vespa por nascimento, sem escolha — , a nossa humanidade é uma der da palavra.

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V a r ia ç õ e s s o b r e a v íü a e a m o r t e , A t e o l o g ia e a s u a fa la A MAGIA d a p a la v r a

E, voltando ao mundo respeitável dos intelectuais, defron­ quer, desarticulam-se nossos esquemas lingüísticos e nos vemos pri­
tamo-nos, espantados, com a afirmação do mestre Wittgenstein, tão vados do poder de dar nomes às coisas, perdemos a capacidade de
próxima das sugestões do bruxo: agir como seres humanos. A ansiedade nos invade, e o comportamento
dantes orientado por uma direção é dominado pelo pânico. A leitura
Os limites da minha linguagem significam os limites do meu mun­ da obra de Kurt Goldstein The orcfanism contém uma fascinante análise
do (WITTGENSTEIN, 1993, § 5.6). desse fenômeno.

Coincidência acidental? Não é curioso que o próprio W ittgens­ Mas aquilo que podermos dizer do mundo podemos dizer tam­
tein tivesse se apropriado do vocabulário da bruxaria e tivesse se refe­ bém do cqrpo:
rido ao feitiço da linguagem, ao ponto de definir a filosofia como
contrafeitiçaria, beijo de príncipe que desperta do sono encantado Os limites da minha linguagem significam os limites do meu corpo.
princesas adormecidas, exorcismos?
O corpo humano não é um organismo animal, em sua imediatez
biológica. E curioso que um dos mitos bíblicos acerca dos nossos pri­
A filosofia é uma batalha contra o feitiço que certas formas de ex­
mórdios se refira ao fato de que em certo momento o homem e a
pressão exercem sobre nós (WlTTGENSTElN, 1958, p. 27).
mulher, que já estavam nus, perceberam que estavam nus. E ficaram com
"Os limites da minha linguagem significam os limites do meu vergonha. E a vergonha doía tanto que foi o próprio Criador, com dó,
mundo." Que ocorreria se no lugar da palavra "linguagem" colocásse­ quem tratou de costurar umas folhas de figueira, à guisa de tangas.
mos "teologia"? Por enquanto basta a sugestão,.. Mas se não fosse pela palavra nu, com o tom com que ela é pronun­
H á muitos testemunhos a favor do bruxo. E de gente muito res­ ciada, não poderíamos saber o significado do fato cultural da nudez.
peitável. Não nos ruborizaríamos. Curioso. Parece ser verdade tanto para o
mundo humano quanto para o próprio corpo: "No princípio era a
Não mais num universo físico, o homem vive num universo simbó­ Palavra.. O corpo é uma criação da linguagem.
lico. O homem não pode se defrontar com a realidade sem inter­
Lembro-me de um cavalheiro, educado num mundo de interdi­
mediários,- ele não pode vê-la face a face (CassíRER, 1970, p. 29).
tos alimentares, que aprendera a detestar miolo sem nunca haver pro­
As coisas vêm a uma criança vestidas pela linguagem, não em sua vado um. Foi jantar em uma casa em que foi servida couve-flor empa­
nudez física. Temos aqui as categorias de conexão e unificação, tão
nada. Após a refeição dirigiu um elogio à anfitriã:
importantes quanto aquelas de Kant, mas com uma diferença: elas
são agora empíricas e não mitológicas... (D ew ey , 1962, p. 92). "— Divina, a couve-flor.,.
— Couve-flor? O senhor se enganou. É miolo empanado..."
Claro que pedras, árvores e estrelas existiam muito antes que
E, sem que tivesse havido uma única alteração nos componen­
qualquer palavra lhes tivesse dado um nome. Mas é somente no mo­
tes físico-químicos da situação, a linguagem que envolvia o corpo se
mento em que o homem as batiza com um nome que o mundo huma­
encrespou, e a polidez do hóspede se transformou em palidez de um
no vem a existir. O mundo em que se dá o nosso comportamento, seja
corpo cujo estômago vem à boca, seguida da corrida inevitável ao
um sacrifício num altar, seja uma revolução que muda a direção da
banheiro, para vomitar.
história, é o mundo estruturado pela linguagem. São os nomes que
nos dizem o que as coisas significam, se devemos nos aproximar ou Vomitar o quê?
fugir. Quando, em decorrência de uma experiência catastrófica qual­ M iolo?

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V a ria ç õ e s sobre a víd a e a m orte, A t e o lo g ia e a sua f a la A MAGIA DA PALAVRA

Absolutamente. autoridades se referiam ao assassínio dos israelitas como "des-piolhi-


Vôm ito de palavras, rótulos, etiquetas. zação": nada mais que uma medida de assepsia, para a saúde de todos. E
que dizer da economia? Aconselharia uma releitura de Veblen. Não
Assim são as coisas: a linguagem tem o poder de fazer curto-
compramos coisas em função da sua utilidade, mas em função do seu
circuitos em sistemas orgânicos intactos, produzindo úlceras, impotên­
valor simbólico. Se comprássemos as coisas porque elas são úteis esta­
cia, frigidez. Mundo marcado pelos interditos. N a verdade, inter-ditos:
ríamos nos mantendo rigorosamente no nível das suas propriedades
o dito que vem no meio, desfazendo contatos previamente existentes e
materiais. Acontece que as coisas são desejadas, produzidas e compra­
fazendo contatos que não existiam.
das por aquilo que elas dizem. Não é verdade que garrafas de vinho,
E é por isso que a psicanálise se propõe apenas a escutar a fala roupas, automóveis, livros, viagens turísticas, quinquilharias eletrônicas
dos pacientes, por saber que nela se escondem segredos do corpo. A e cigarros são mensagens, tendo por isso mesmo uma dimensão sacra­
anatomia e a fisiologia se subordinam à linguagem. E daí decorre a mental? O homem não vive só de pão...
curiosa e perturbadora conclusão de que nós, seres humanos, não pas­
Aqui, entretanto, se insinua a tentação epistemológica tão típ i­
samos de uma encarnação das palavras. Personalidade: uma estrutura
ca das pessoas que passaram pelos rituais de iniciação patrocinados
de hábitos de linguagem. Crenças básicas: hábitos de sintaxe e estilo-. pelas comunidades que se chamam científicas. Tentação que separa
Valores: conjunto de atitudes retóricas (ver Perls, 1977, p. 321). os cientistas das demais pessoas, pela qual se afirma que, se é verdade
E que dizer da economia, da política, da guerra? Realidades tão que os leigos pensam e agem em decorrência do feitiço da linguagem,
duras e brutas que pareceria absurda a hipótese de que elas também são os cientistas, ao contrário, se submeteram às exigências dà lógica e
encarnações da linguagem. A questão é se qualquer delas poderia ser das evidências empíricas.
compreendida sem que se admitisse o poder criador do verbo... A ques­ Mas sobre que se fazem as investigações? Não são elas organi­
tão é se o mundo do poder se torna mais inteligível se exilamos as coisas zadas em cima das teorias? E que são teorias senão arquiteturas
ditas no sótão das entidades fantásticas, superestruturais e impotentes... lingüísticas do mundo? O cientista, ao contrário do que diz a lenda,
No mundo brutal de í9 8 4 f uma das técnicas para o controle do com­ habita uma linguagem, e só vai às evidências para se certificar de
portamento era a redução sistemática dos vocabulários pela eliminação que seu mundo está seguro. O que um cientista faz é nada mais que
de palavras, sob o pressuposto de que não podemos pensar as coisas propor declarações, testando-as a seguir (P o p p e r , 1968, p. 27). E mais
que não podemos falar. E, se não as podemos pensar, como agir? A do que isso: até mesmo os sentidos do cientista são condicionados
política oscila com as oscilações da conversação. Não é sem razão, por­ pela linguagem. N a verdade, ele só vê aquilo que sua linguagem lhe
tanto, que a subversão (e sua irmã gêmea, a heresia) se descobrem por diz que deve ser visto. E, se os olhos apresentam algo que a teoria
meio da fala. N o julgamento do tenente Calley, responsável pelo mas­ não previu, viva a teoria e abaixo os sentidos que se equivocam! Isso
sacre de Mi-lay, revelou-se que os comandantes não usavam nunca a é compreensível. V er algo que não foi preparado, previsto e predito
palavra "matar", por saberem que ela trazia associações criadas em aulas pelo verbo é entrar no labirinto das sensações não organizadas, es­
de escola "dominical" e catecismo — o que era mau para a eficácia em paço freqüentado pelas alucinações e pela loucura. Também os cien­
combate, inventaram, assim, um eufemismo. Passaram a usar o verbo to tistas, como todos os outros, falam primeiro para ver depois. E sua
toaste, qüè significa jogar fõra o que é imprestável, e produz associações fala tem início em sua crença nas coisas que os mestres lhes disseram
relativas às latas de lixo e ao supérfluo. Ninguém mata ninguém. Pedia-se quando do seu período de iniciação ao mundo da ciência. Nossa
simplesmente dos soldados que dessem aos inimigos o mesmo trata­ linguagem tende a fixar as nossas percepções e, a seguir, o pensa­
mento que se dá aos restos de comida. Também na Alemanha nazista as mento e o comportamento. N ão respondemos às situações em sua

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V a r ia ç õ e s s o b r e a v id a e a m o r t e . A t e o l o g ia e a s u a fa la
A m a g ia d a p a la v r a

im ediaticidade física, mas aos conceitos com o auxílio dos quais nós tem a função de estigmatizar um certo discurso como ilusão ou men­
a tecem os... (M er t o n , 1967, p. 143). tira, enquanto o cientista se afirma como ser capaz de separar o joio
Imagino que o seu espanto cresce na medida em que a minha do trigo, a falsidade da verdade, as ideologias da verdade.
fala se desenrola. Não só em virtude das coisas que me atrevi a dizer, Assim, ao dizer que certa linguagem é ideologia estamos afir­
como também em virtude das coisas sobre que silenciei... mando:
Coisas que disse: aproximar a teologia da linguagem mágica que, discurso apenas, sem eficácia,
surgindo das profundezas do desejo, se torna uma encantação da qual discurso falso, vazio de verdade.
emergem mundos... De fato, foi um atrevimento, pois todos sabemos
Será que depois disso estou em condições de explicar as razões da
que a magia é uma ilusão de povos primitivos e de pessoas neuróticas.
minha opção? Antes de tudo é necessário confessar que as razões são
Bem dizia Freud que primitivos e neuróticos vivem em meio à intensi­
existenciais, emocionais. Sou um jogador, as contas de vidro me fasci­
dade das emoções e confundem sua eficácia psíquica com a eficácia
nam, e eu quero guardá-las num lugar que não seja essa arca maldita
física, terminando por acreditar na onipotência dos pensamentos que
que tem o nome de ideologia.
dizem tais emoções. Mas eu não tive escolha. D e um lado foram os
símbolos mesmos do nosso jogo de contas de vidro que me obrigaram Conta-se que uma senhora perguntou a Beethoven, depois de haver
a enveredar por este caminho. Do outro lado temos de reconhecer ele executado ao piano uma de suas composições: "Que queria o senhor
que os fracos e oprimidos se dependuram em esperanças mágicas... dizer com esta peça?" "O qué queria eu dizer? E muito simples."
Como poderíamos ser com eles solidários se pressupuséssemos que Assentou-se ao piano e executou-a novamente.
lhes falta inteligência e que eles não podem ser levados a sério por A peça não significa nada.
aquilo que dizem e pensam?
Ela não se encontra no lugar do apenas símbolo. i
E silenciei sobre aquilo que já se tornou lugar-comum: pensara
Ela é a coisa.
teologia com uma formação ideológica.
Sempre me fascinou um comportamento caipira que nunca pude
Acontece que a palavra ideologia está cheia de "acordos silen­
com preender. Lá em M inas, estado onde nasci, após o jantar,
ciosos": o ventre do cavalo de Tróia está cheio...
juntavam-se os grandes para contar casos. Mesmo menino eu perce­
Em primeiro lugar, dizer ideologia é nomear uma rua no mundo
bia que as coisas relatadas eram portentosas demais para ser verdadei­
das superestruturas, lá onde habitam fantasmas, ecos, sublimados e
ras. As mentiras circulavam livremente. N o entanto, não me recordo
sombras. Ontologia grega de pernas para o ar. Se lá, entre os neopla-
de jamais ter ouvido alguém dizer: "Isto é mentira". Ao contrário. A
tônicos, a matéria marcara o limite mais baixo do não-ser e as idéias
reação própria e esperada diante de uma desproporcionada composi­
continham o máximo de realidade, aqui é o contrário. Os inquilinos
ção verbal era sempre: "Mas isto não é nadaQE a partir daí o novo
trocaram de casa, mas os dois andares permaneceram. Assim, falar de
contador propunha seu tema e passava a construir suas variações.
ideologia é aceitar uma ontologia, perpetuar um dualismo no qual o
pensado e o falado se esvaziam como sombras ineficazes. Levou muito tempo para que eu compreendesse que as interjei­
ções epistemológicas eram movimentos proibidos naquele jogo. N in ­
Em segundo lugar está o acordo de que ideologia é um discurso
guém ali estava em busca de palavras verdadeiras, cópias do que exis­
que se opõe à verdade. Tanto assim que a palavra ideologia é usada
tia em algum lugar. As palavras lhes eram algo semelhante às maté­
sempre de maneira pejorativa. Não conheço ninguém que tenha apli­
rias-primas. E eles as trabalhavam da mesma forma como o pintor
cado o adjetivo "ideológico" ao seu próprio pensamento. O seu uso

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V a r ia ç õ e s s o b r e a v id a e a m o r t e . A t e o l o g ia e a s u a fa la
A m a g ia d a p a la vr a

trabalha as tintas, o seleiro trabalha o couro, o pedreiro trabalha os da teologia, com a palavra se fa z a verdade, desde que ela seja dita
tijolos. N o seu jogo, as palavras eram coisas, contas de vidro com as com am or...
quais construíam seu pobre mundo. E delas surgiam risadas de prazer,
O fato é que palavras que nosso arsenal científico classificou
gestos de espanto, materializações mágicas de fantasias e, quem sabe,
como ídolos, superstições, ilusões, ideologias entraram em nosso mun­
um pouco desta coisa imponderável, a mais importante de todas, e
do e o moldaram, ao lado do comércio e das guerras... N a verdade,
que se chama felicidade.
nem comércio e nem guerras teria havido se as palavras não tivessem
Palavras: coisas. juntado as coisas, constituindo-as como um mundo significativo, mun­
Estórias: estruturas concretas construídas com palavras-coisas do que fala e sobre que se fala...
que jogamos no mundo. E, uma vez lançadas no mundo, essas coisas Cosmovisão medieval? A ciência já a condenou. N o entanto,
— se verdadeiras ou não é irrelevante — fazem o mundo diferente. por mais de um milênio ela foi a treliça de um mundo humano.
Estórias dos sacrificados: as profecias saídas de suas entranhas.
Magia? Coisa de primitivos.
Estória de Jesus...
Um a visão mística da natureza? Superstição.
Palavras: coisas, entidades, monumentos, que passam a habitar
Religiões? Falsas consciências.
o mundo ao lado de árvores, ao lado de tochas, ao lado da comida.
N o entanto, desse caldeirão de palavras que desprezamos como
Palavra: semente,
ilusões e falsidades surgiram mundos e culturas que tiveram vida mui­
luz,
to mais longa que provavelmente terá essa nulidade que se chama
alimento. civilização técnico-científica, que parece condenada a morrer por afo­
E essa entidade que séculos de tradição filosófica e de repetição gamento em suas próprias fezes.
científica nos descreveram como abstração desencarnada, entidade Poderíamos dizer de treliças, sulcos, teias, redes que são falsas
imaterial, fantasma superestruturaí, eco, reflexo na superfície da água, ou verdadeiras? E das sementes, das tochas, do pão?
adquire agora contornos concretos e ganha uma densidade material e
Ah! Poderemos dizer muitas coisas, e os adjetivos aí estão, para
uma gravidez de poder de que nunca suspeitamos. A palavra se de­
nossa escolha: adequadas, fortes, fracas, belas, feias, saborosas, confor­
fronta conosco como um corpo,- o Verbo se encarna. E de agora para
táveis, desconfortáveis, causas de dor ou prazer... Palavras do corpo,
diante, por toda a eternidade, fica terminantemente proibido pensar
mas não do cérebro. Bem dizia Ferenczi que a inteligência pura é um
na palavra separada da vida, da mesma forma que está interditado
produto da morte e uma expressão de loucura. E é somente a inteligên­
separar a alma do corpo.
cia pura que se interessa pela palavra apenas como portadora da ciên­
Palavra, coisa material: cia, do conhecimento — obsessão que a liga a uma certa serpente, nos­
treíiça em que a vida se entrelaça, sa conhecida. Ao corpo, entretanto, interessa a sapiência, conhecimen­
s m /c o em que a ação se escoa, to que tem gosto bom, porque o corpo avalia com o amor e o prazer, e
teia sobre o espaço vazio, onde viver e andar, não com a inteligência desencarnada. E é aqui que mora o teólogo, no
rede em que o corpo descansa, suspenso. lugar onde a palavra é corpo, poder, entidade do mundo material, cha­
Compreendo o espanto. ve que abre e fecha, agulha que costura as partes do mundo.
Aprendemos que a dignidade máxima da palavra se encontra Teólogo, pastor de palavras. Ele as apascenta com amor, porque
em sua capacidade de enunciar a verdade. Mas, neste mundo estranho sabe que elas vivem e sairão por aí, de boca em boca, fazendo coisas,

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VARIAÇÕES SOBRE A VIDA E A MORTE, A TEOLOGIA E A SUA FALA

quebrando feitiços, abrindo olhos que não enxergavam, fortalecendo


joelhos fracos e trêmulos, dando coragem, desenhando horizontes...
Sobretudo isto: desenhando horizontes.- porque é lá que vivem as es-
peranças e é para lá que caminhamos...
Mas com palavras todo mundo mexe. Também o comandante
do pelotão de fuzilamento e o sedutor...
A HERESIA DA VERDADE
E é justamente aqui que está a arte e o poder desse jogo de contas
de vidro. E preciso saber escolher as palavras vivas. Distinguir pedras
de sementes. E surge a coisa curiosa: é que nesse jogo as palavras que
constroem o mundo são os gemidos dos sofredores. Vale o clamor do
povo de Israel, mas não o alarido dos exércitos do faraó. Vale o "choro
às margens dos rios de Babilônia", mas não a jovialidade sorridente
dos vitoriosos que desejavam ouvir as canções de Sião. Vale o gemido dos
pobres, dos mansos, dos que têm fome. Vale a intercessão do Espírito,
com gemidos profundos demais para qualquer palavra...
E isto nos leva a uma pergunta final:

Que lugares freqüenta o teólogo?

E
se eu lhes dissesse agora que em nosso jogo de contas de vidro há
A quem dá ouvidos?
um movimento proibido?
A quem dirige a sua palavra?
Proibições não nos devem assustar. É pelo seu poder que o mun­
do humano surge. São os interditos que estabelecem a ordem. E eles
se aninham dentro de todos os acordos com que tecemos nossas redes
culturais, amarrando os fios da linguagem, das relações de parentes­
co, da apreciação da m úsica...
Até mesmo no Paraíso havia um fruto proibido. E o Criador
advertia o homem, depois de lhe indicar os espaços que a permissão
abria para a liberdade e o prazer:

Tu podes comer de qualquer uma das árvores do jardim, mas não


da árvore do conhecimento do bem e do mal,- pois no dia em que
dela comeres certamente morrerás.

E o estranho da proibição é que aquele fosse um fruto maravi­


lhoso, capaz de abrir olhos até então fechados e de arrebatar o ho­
mem em vôos que o levariam até os patamares da divindade. E a ser­

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V a r ja ç õ e s s o b r e a v id a e a m o r t e . A t e o l o g ia e a s u a fa la A HERESIA DA VERDADE

pente sussurrava em segredo-, "Vossos olhos se abrirão, sereis como U m quebra-cabeça: as peças encaixadas umas nas outras, ne­
deuses, conhecendo o bem e o m al.. nhuma faltando, nenhuma sobrando, revelando um padrão.
E preciso notar que as proibições estão sempre ligadas ao desejo. Matemática: encontrar uma quantidade desconhecida que com ­
Não existe lei alguma que nos proíba de comer pedras. E desnecessário pleta um espaço lógico.
fincar aqui um interdito. Não há ninguém que se sinta tentado a isso. Xadrez: aplicar o xeque-mate sobre o adversário.
Mas o incesto e o assassínio são proibidos porque eles são desejos Contar um chiste: provocar o riso.
que moram fundo dentro de nossas almas. A intensidade de uma proibi­
Assim são todos os jogos. Eles se organizam em função de um
ção, longe de ser um testemunho de horror ao ato proibido, é mais uma
final que deve ser alcançado pela argúcia do jogador que, para isso, é
confissão de como o desejo deste ato nos freqüenta e nos tenta.
obrigado a obedecer a certas regras. E neste ponto, onde argúcia, re­
Qual a tentação do teólogo? gras e final se entrelaçam, que se encontra o prazer de jogar.
Qual o seu desejo mais profundo? A fala é um jogo entre outros.
Sua maior tentação: ver face a face, conhecer... Quem fala ou escreve lida com símbolos, é obrigado a obedecer
a regras e se orienta na direção de certos objetivos (mesmo quando o
Seu desejo mais profundo: dizer Deus no seu discurso, enunciar
seu objetivo é falar apenas pelo puro prazer de falar...)
coisas que o comum dos mortais não vê e nem conhece... Falar a verda­
de sobre o sagrado, conhecer o Absoluto. Não foi por isso mesmo que São muitos os jogos que nascem da fala: cantar, escrever poe­
ele ousou batizar sua fala como teologia? Logos, discurso, conhecimento, mas, contar estórias, mentir, confessar, dar ordens, contar chistes, in­
ciência do divino... E nós que dizíamos que teologia é conversa do terrogar, fazer ciência, orar...
corpo sobre o corpo... Vocês terão boas razões para suspeitar que quem As regras que valem para um jogo não podem ser aplicadas a
fala aqui não é um respeitável membro da confraria dos "grandes mes­ outros. Se uma pessoa nos perguntasse se Cem anos de solidão ou A mon­
tres" desse jogo. Talvez um marginal, herege, que se atreve a propor tanha mágica são livros verdadeiros, teríamos a estranha sensação de
mudanças... E de fato eu ousaria dizer que o mais alto desejo é justa­ não haver entendido a questão ou a suspeita de que nosso interlocu­
mente aquilo que é proibido: o teólogo não tem a permissão para dizer a verdade. tor não entendeu o que leu. Não é curioso isto, que em certas situa­
Lembra-se do bailarino que queria fazer-se passar por um ser alado? ções a compreensão exige que não se levante a questão da verdade ou
Dizer a verdade sobre Deus não será um vôo por demais alto para nós da falsidade? E que dizer destas outras perguntas: A divina comédia é
que mal conseguimos saltar? O conhecimento do Absoluto é traiçoei­ engraçada? A Crítica da razão pura é comovente? O Tractaius logico-
ro. N o mito da queda, homem e mulher esperavam que o fruto do co­ philosophicus é belo?
nhecimento lhes abrisse os olhos para coisas sublimes, mas o que eles
Os jogos que podemos fazer com as palavras são muitos. O jogo
viram foi apenas a sua nudez. E é por isso que o teólogo, corpo de carne
da verdade é um, apenas um, dentre todos os outros que são possíveis. E
e osso como todos os demais, tem diante de si o interdito. Pode falar e
a sugestão insólita que fizemos é que o nosso jogo de contas de vidro, a
dançar como quiser, desde que sua fala seja o poema do corpo, mas
teologia, se localiza fora dos espaços determinados pelas exigências do
nunca a ciência do divino. E é por isso mesmo que a verdade lhe é
dizer verdadeiro. Pode ser que a verdade apareça aqui e ali, da mesma
interditada. Mas é necessário ter paciência, não apressar as conclusões;
forma como no xadrez fazem-se muitas jogadas que não são xeque-mate.
Todos os jogos se movem para um final. O que interessa é que o jogo não termina com o enunciado de proposi­
Palavras cruzadas: todos os espaços devem ser completados. ções verdadeiras. O que está em jogo é outra coisa.

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V a r ia ç õ e s s o b r e a v id a e a m o r t e . A t e o l o g ia e a s u a f a ia A HERESIA d a verda d e

De que consiste o jogo da verdade? vel e que permanece para sempre. Cabia a ela articular, no seu discur­
Parece que suas origens se perderam no tempo, sendo-nos im ­ so, o fundamento invisível das coisas.
possível reconstituir sua árvore genealógica. E dos gregos que nos Que é o que realmente existe? A pergunta ontológica afirma,
vêm os primeiros relatos que nos ajudam a entendê-lo. Tudo começou silenciosamente, que o fundamento das coisas está dado objetivamente.
quando os primeiros filósofos se deram conta de uma contradição que Ele está lá fora, em algum lugar, esperando ser descoberto. Os filóso­
marca nossa percepção da natureza e o nosso pensamento sobre ela. fos não são, assim, chamados a criar coisa alguma,- tudo já está feito.
Pense, por um momento, nas coisas que o cercam: as nuvens, o Resta-lhes simplesmente contemplar e compreender. O homem não pode
mar, o vento que sopra a areia, as cores que se alternam no céu, as fazer coisa alguma seja para transformar, seja para abolir o loçjos da
realidade. Mas ele pode entender a forma como ele opera.
plantas que nascem e morrem, os animais que crescem e envelhecem...
Tudo flui, tudo escoa, nada permanece. Por mais que procuremos, A filosofia grega não pode desenvolver seu programa até suas
não encontramos um só ponto fixo onde nos ancorar. N a natureza conseqüências finais. Os filósofos sabiam que as percepções e sensa­
tudo é transitório, nada se repete. Inútil apelar para os rochedos. A ções nada mais são que sombras da realidade. Mas eles não possuíam
areia das praias testemunha também de sua vida efêmera... um método que lhes permitisse traduzir tal intuição numa doutrina.
Eram interrogadores que estavam conscientes de que a testemunha
Mas vem o espanto quando,nos damos conta de que o fluxo sem
estava mentindo, mas faltavam-lhes as técnicas e as perguntas para
descanso não desemboca no caos. O transitório, ao contrário, parece
obrigá-la a dizer a verdade.
cavalgar uma realidade invisível, eterna, racional, compreensível, da
mesma forma como no olho do furacão se encontra o repouso absolu­ Foi a ciência moderna que transformou tal visão em realidade.

to. Será que o visível efêmero nada mais é que uma sombra de um ser Ela percebeu, com Galileu, que as respostas verdadeiras não eram
obtidas porque as perguntas não eram feitas de maneira correta. A
imutável, que se esconde no centro de tudo? E foi assim que os filóso­
natureza fala a linguagem da matemática. E foi assim que a matemá­
fos gregos se lançaram à busca do ser que se encontra na raiz de todas
tica se tornou no “abre-te Sésamo" que destrancou as câmaras ocul­
as aparências, parecendo, porvezes, encontrá-lo na água, no fogo, no
tas da realidade onde as leis eternas habitam. As leis são para a ciên­
ar ou em quaisquer outros elementos, como aconteceu com os mile-
cia moderna aquilo que o ser era para os gregos antigos. N ão são as
sianos; ou nas relações matemáticas, como quiseram os pensadores
leis aquele núcleo eterno e imutável que se encontra nos fundamen­
pitagóricos/ ou nas idéias, segundo a intuição platônica. Concluíram
tos do transitório?
que para que nossa experiência se torne inteligível é necessário inau­
gurar uma fala que aparentemente contraria tudo o que diz nossa ex­ A ciência, assim, no jogo da verdade e como uma de suas regras,
periência cotidiana. E se puseram a falar sobre uma realidade invisí­ se viu forçada a abandonar a linguagem comum que se refere aos fe­
nômenos tais como são percebidos pelos sentidos, pelo corpo, pelo
vel e permanente, origem e explicação do visível e do transitório: o
senso comum. "A verdade científica é sempre um paradoxo se julgada
ser. Surgiu então a pergunta ontológica: que é o que realmente existe?
pelos critérios da experiência cotidiana, que agarra somente a aparên­
Foi assim que se estabeleceu o seu programa de trabalho.
cia ilusória das coisas. Toda ciência seria supérflua se a aparência, a
Em primeiro lugar cumpria à filosofia descobrir esse ser, funda­ forma e a natureza das coisas fossem totalmente idênticas." Qualquer
mento da realidade. cientista concordará com essas declarações que nos vêm de Marx,
Em segundo lugar instaurou-se o ideal para a linguagem filosófi­ não importando, nesse contexto, os odores ideológicos. N a verdade
ca: falar não sobre aquilo que passa e desaparece,- falar sobre o imutá­ existe um consenso universal em torno desse assunto, um credo

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V a r ia ç õ e s s o b r e a v id a e a m o r t e . A t e o l o g ia e a s u a fa la A HERESIA DA VERDADE

ecumênico, uma declaração de fé compartilhada por todos os que fa­ E o jogo da teologia?
zem o jogo científico da verdade: Parece não existir coisa alguma mais desejável e saborosa que
Artigo í° ; Existe um abismo entre coisas visíveis e coisas invisíveis. buscar e encontrar a verdade: contemplar as coisas tais como elas são,-
dizê-las num dizer transparente e preciso, que oferece aos olhos da
Artigo 2 O objetivo do jogo da ciência é a contemplação das
razão a visão da realidade, sem sombras e sem enganos...
coisas invisíveis e permanentes, pois somente elas merecem o nome
de realidade e somente nelas nos encontramos com as leis. E não se pode negar que assim seja, bastando para isso que se
aceite que a realidade já está pronta, dada, fixada, simplesmente à
Artigo 3o: O discurso científico, no jogo da verdade, se preocu­
espera do olhar deslumbrado do homem que a vê pela primeira vez.
pa, em caráter último, com a esfera invisível da natureza última das
Se a realidade está pronta e acabada, dizer a sua verdade é apenas
coisas. A verdade científica, portanto, não se satisfaz com declarações
des-velar, des-cobrir: acender a luz.
do tipo “a neve é branca7' ou "uma bomba atômica foi lançada em
Hiroshima". Estas não são a verdade, objetivo do jogo da ciência. A E a teologia tomou para si este ideal. Falam os filósofos sobre
coisas que estão ao alcance da razão humana. Fala a teologia sobre as
ciência deseja construir declarações que ofereçam à intuição intelec­
coisas que estão mais além. Ciência: conhecimento daquilo que está
tual um quadro daquele sistema de leis que se encontra, objetivamen­
deste lado. Teologia: conhecimento das coisas que estão além do ho­
te, no fundamento da experiência. É este sistema apenas que merece o
rizonte. Em ambos os casos o que está em jogo é aquele discurso ade­
nome de realidade. Tudo o mais é contingente, acidental, efêmero.
quado às coisas.
O que é, então, o jogo da verdade?
E foi assim que o pensar correto, orto/doxia, se impôs como
Verdade, é claro, tem a ver com aquilo que afirmamos. Somente objetivo final do nosso jogo de contas de vidro. E dogmas foram
afirmações, atos de linguagem podem ser verdadeiros ou falsos. divinizados, doutrinas foram cristalizadas, confissões foram recitadas,
Atribui-se ao filósofo neoplatônico judeu ísaac Israeli, do século IX, a catecismos foram repetidos — todos como expressões da verdade...
seguinte definição: "Veritas est adaequatio rei et intellectus" (verdade E a ela muitas fogueiras se acenderam e muito ódio escorreu das bo­
é a adequação das coisas ao intelecto), declaração que reverbera em cas. Nem sei direito por quê. Parece que os jogadores/teólogos tive­
Bertrand Russell: "a verdade consiste em alguma forma de correspon­ ram a curiosa e inexplicável idéia de que o destino do corpo se depen­
dência entre a crença e o fato". Assim, quando dizemos que uma de­ durava em sua capacidade para dizer a verdade e não na graça de
claração é verdadeira estamos afirmando que as palavras são tão boas Deus, aquela conta encantada de onde o corpo recebe seus sorrisos e
quanto os olhos. N a verdade melhores que os olhos, porque elas nos suas esperanças.
permitem ver, contemplar aquilo que realmente é, estabelecendo-se en­ Mas logo os problemas começaram a surgir. E isso porque a ver­
tão uma absoluta harmonia entre o pensado/falado e aquilo que real­ dade não era tão pura quanto parecia, sendo por vezes prostituta grá­
mente existe, de forma objetiva, fora do círculo da subjetividade. A vida de serpentes. Não é de admirar que Lutero tenha percebido a
imaginação é, assim, subordinada à observação. Os fatos impõem-se vocação da razão para o m eretrício... Como o cavalo de Tróia. Exter­
ao desejo. O princípio do prazer é controlado pelo princípio da reali­ namente, dádiva dos deuses. N o seu ventre, entretanto, escondem-se
dade. Silencia-se o poeta, instaura-se o monopólio do dizer científi­ possibilidades insuspeitadas. Armadilha. E foi assim que, fascinados
co. D izer a verdade é dizer o que é ; é enunciar aquilo que está presen­ pelo esplendor do fruto, nem sequer paramos para nos perguntar acerca
te, que é efetivamente dado à observação. O discurso das coisas au­ dos pressupostos e das conseqüências. Apenas alguns tiveram cora­
sentes passa a fazer parte do jogo da ficção... gem bastante para questionar a pureza virginal da verdade. Mas eram

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V a ria ç õ e s sobre a vid a e a m orte. A t e o lo g ia e a sua f a la A HERESIA DA VERDADE

indivíduos isolados que, por serem fracos e solitários, puderam ser serviço da verdade têm de aprender primeiro a reprimir o corpo e a
estigmatizados e esquecidos como marginais, românticos, irracionais... cegar os instintos, E é assim que, sob a exigência da verdade universal
e objetiva, a natureza colorida, brilhante, movida por sons, perfumes
Acontece que para que a boca diga a verdade é necessário que
e sabores, se torna “uma coisa vazia de interesse, sem sons, sem perfu­
se congele o corpo e se arranque o coração. Não, não se trata de um
mes, sem cor" ( W h i t e h e a d ); uma construção matemática apenas.
exagero poético. Simples decorrência do ideal de verdade: um discur­
so totalmente fiel ao dado, totalmente subordinado e subserviente a E que diferença faz, para o corpo, a verdade abstrata? Parece,
ele. Contemplar a coisa e dizê-la. Silenciar a imaginação. Colocar a inclusive, faltarem-lhe naturalmente os necessários registros para
observação em seu lugar. Objetividade. Silenciar o sujeito. E é assim compreendê-la e enunciá-la. É sempre sob regime de tortura que o
que corpos de carne e osso não mais falam. Em seu lugar, a inteligên­ corpo confessa: é necessário que um poder, vindo de fora, reprima o
cia pura, matemática, abstrata, universal, Não é isso que encontramos amor e o desejo primeiro. Uma vez realizada essa lobotomia episte-
nos artigos científicos? Observa-se, constata-se, conclui-se... Quem? mológica, o corpo perde contato consigo mesmo e a natureza deixa
Ninguém e todos. de ser coisa viva que promete e ameaça, metamorfoseando-se em puro
objeto de contemplação, neutro, distante milhares de quilômetros,
Compreende-se a razão por que o corpo deve ser reprimido para
não importa que esteja mesmo sobre o balcão do laboratório. Talvez
que a verdade seja dita. E que para o corpo não existe nunca um mun­
seja este o primeiro artigo do código da moralidade científica:
do neutro lá fora, objeto de uma contemplação pura e indiferente. A
natureza é sempre um convite ou uma ameaça, uma questão de amor Artigo primeiro: Para que o cientista se constitua como um perce-
ou medo, aproximação ou fuga — algo que diz respeito emocional, bedor puro, livre de desejos e emoções, o corpo deve morrer. So­
vital, à exigência de sobrevivência e prazer. O corpo não pode ser mente então desponta a inteligência pura.
objetivo. Ao contrário. Ele é sempre o centro de tudo, o ponto de
partida e o ponto de chegada do pensamento, e é nas teias do seu Dos percebedores puros — ninguém mais do que eles com ­
desejo que ele conhece o seu mundo. Chegaríamos então à curiosa prometidos com o jogo da verdade -— Nietzsche tem coisas amar­
conclusão de que cada corpo tem a sua própria verdade. O mundo gas a dizer.
dos felizes é diferente do mundo dos infelizes, o mundo dos opresso­
É assim que o vosso espírito, mentiroso, diz para si mesmo, vós,
res é diferente do mundo dos oprim idos... Os tigres têm olhos na
percebedores puros: "Para a minha mente o mais sublime é olhar
frente. Os antílopes têm olhos de lado. Caçador e caça, perseguidor e
para a vida sem desejo, e não como um cachorro, com a língua de
perseguido. Mundos distintos, já patentes na própria organização ana­
fora, dependurada. Encontrar a felicidade no próprio ato de olhar,
tômica dos órgãos da visão. Mas esta é uma conclusão absurda no
com uma vontade que morreu... o corpo inteiro frio e reduzido a
jogo da verdade. A verdade é uma só, universal, eterna. É assim que cinzas... É disso que eu gostaria, de amar a terra como a lua a ama,
ela se move nos jogos que brincam com ela. Pena que o corpo não e tocar a sua beleza apenas com os meus olhos. E é isto que a
possa dançar aqui, porque o corpo só se move ao som do desejo e do imaculada conceição de todas as coisas significa para mim: que eu
erótico. Acontece que, quando tais protagonistas entram em cena, a nada desejo delas a não ser a permissão para ficar prostrado diante
verdade, por alergia, fica asmática e exibe um comportamento afásico, delas, como um espelho de cem olhos".
e se contam chistes enquanto bailam. Já a verdade prefere dançar com Mas esta será a vossa maldição, vós que sois imaculados, vós,
a inteligência pura, que arrasta apenas vestígios de um corpo que se percebedores puros, pois nunca dareis à luz, mesmo que vos deiteis
atrofiou. Freud tinha razão total ao afirmar que os que se dedicam ao largos e grávidos no horizonte, como a luz.

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V a ria ç õ e s sobre a vida e a m orte. A t e o lo g ia e a sua f a la A HERESIA DA VERDADE

A verdade, o quanto ela é importante? pessoas que morrem por decisão, por julgarem que a vida não é digna
Certamente que a nossa capacidade de morrer por uma pessoa é de ser vivida. Enquanto isso, outros avançam para a morte tendo como
um testemunho final do quanto a amamos. As vezes as idéias parecem bandeiras idéias e ilusões que nunca passariam nos testes científicos da
ser mais importantes que as pessoas. Seria de esperar que, se organi­ verdade, mas que lhes dão razões para viver e para morrer. E sempre
zássemos as verdades numa ordem de importância, deveríamos estar assim. Boas razões para morrer são boas razões para viver.
prontos a morrer por aquelas que são mais significativas. Mas quando olhamos para a verdade, transparente e impassível,
E é aqui que Camus pergunta: deusa da ciência, sentimos que ela tem o poder para congelar e im obi­
lizar. Foi Orozco, se não me engano, que pintou o mural A form atura,
Já viu alguém morrer pelo argumento ontológico? [O argumento é resultado de sua experiência nos eruditos círculos universitários. E o
lindo e tem a ver com a existência de Deus.] ponto culminante da vida acadêmica, o rito final de qualificação de
Galileu, que mantinha uma verdade científica de grande impor­ um cientista. Dominante e ligeiramente de costas para o espectador,
tância, a abjurou com grande facilidade, tão logo percebeu que ergue-se o professor velho, magro, verde, cadavérico, trazendo as
sua vida estava em perigo. E, num certo sentido, ele fez o que era marcas de toda uma vida dedicada à repressão do corpo e ao cultivo
certo. Aquela verdade não valia a fogueira. Se a terra ou o sol do cérebro, sorrindo para seu jovem aluno, menor, mais baixo, mas já
giram um em torno do outro é uma questão de profunda indife­
exibindo as mesmas marcas de repressão e cerebralidade: o sorriso é o
rença. Para dizer a verdade, trata-se de uma questão fútil ( C a m u s ,
mesmo, e a cor esverdeada e a magreza. E recebe do mestre da verda­
1955, p. 3).
de as suas credenciais: o diploma, um feto, dentro de um tubo de
Claro que Galileu estava certo: seu corpo valia mais que aquela ensaio... O que nos faz invocar novamente um morto, Nietzsche:
e todas as demais verdades científicas que viriam a ser empilhadas.
Verdades científicas e corpos humanos são bens de uso, não podem Cuidado com os eruditos. Eles o odeiam, pois eles são estéreis.
Eles têm olhos frios e secos. À sua frente todos os pássaros têm
ser trocados.
suas penas arrancadas. Tais homens se jactam de nunca mentir:
Verdades científicas são coisas ditas pelas quais não vale a pena
mas a inabilidade para mentir está muito longe do amor à verda­
morrer, isso é absolutamente claro. Às vezes, entretanto, em meio a de. Não acredito nos espíritos enregelados. Quem quer que seja
uma luta em que o destino de corpos está em jogo, as verdades cientí­ incapaz de mentir não sabe o que a verdade significa ( N i e t z s c h e ,
ficas podem ser usadas como armas. Possuem um valor instrumental. 1965, p. 402).
Voltemos a Nieztsche: brinquedo e ferramenta do corpo, isto a que
dais o nome de razão... Como poderia o corpo morrer por aquilo que O que é a verdade? Nietzsche nos assombra com sua última afirma­
é apenas brinquedo e ferramenta? Ahl Mas ele estaria pronto a morrer ção. Quem não é capaz de mentir nada sabe sobre a verdade... E é assim
por aquilo que ele ama, a fim de que suas sementes germinem e sua que ele a arranca dos cenários gelados onde olhos sem lágrimas e bocas
presença continue, mesmo depois de sua morte. sem tremores simplesmente, enunciam o que é, para apontar para uma
Para o corpo pouco importam as verdades científicas. Galileu sa­ outra fala, homônima dessa primeira, e que tem o gosto bom/amargo/
bia disso muito bem. O corpo não está em busca da verdade objetiva orgásmico do sangue, da água salgada do mar, do pão e do vinho partidos
que mora com a ciência, mas da verdade gostosa e erótica que vive com e repartidos no adeus, do suor das caminhadas, dos olhos que se abrem,
a sápida-ciência, sapiência, ciência saborosa, ciência que tem a ver com dos doentes que são curados, dos mortos que são ressuscitados, da verda­
viver e morrer. E Camus passa de Galileu para aquelas muitas outras de científica dos que falavam com as pedras na mão, sabedores de que a

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V a ria ç õ e s sobre a vida e a m orte. A t e o lo g ia e a su a f a la A heresia d a verd ad e

verdade justificaria a execução da mulher que, contra todas as expectati­ Mas o fato é que deve ter havido um momento em que a verdade
vas, se encontrou com uma palavra que a mandou de volta para a vida, e e a bondade se despediram uma da outra, num adeus. Por razões óbvias.
da pergunta sem resposta sobre a verdade e a presença da verdade em um Os caminhos das pessoas comuns não são os mesmos que os cami­
corpo de carne e osso que acabou sendo morto: Eu sou a verdade... nhos dos especialistas na verdade. Diz-nos Alvin Gouldner que um
O que é a verdade? dos pressupostos fundamentais da empresa científica é que as pessoas
comuns crêem em razão dos seus desejos e interesses, estando por
A palavra é a mesma.
isso mesmo mergulhadas nos desvios ideológicos e neuróticos, en­
Os jogos são diferentes.
quanto somente os cientistas, em virtude do seu método, crêem em
Porque num caso a verdade é a fala que diz o cjue é, sem nunca decorrência das exigências das evidências e da lógica. E foi assim que
sorrir ou chorar. Enquanto, no outro, a verdade é coisa viva que, por a teologia, ciência das coisas divinas, se viu obrigada a abandonar o
onde passa, faz brotar mananciais de águas e provoca pulos de alegria. caminho das pessoas comuns a fim de subir, subir para ver. A verdade
A primeira verdade se situa num espaço indiferente-lógico-glacial. A tem de ser objetiva e universal, sem amor e sem desejo. E os teólogos
segunda habita um espaço erótico-vital-tropical: plantar sementes em deixaram de freqüentar os caminhos e fizeram nas bibliotecas e nos
terra árida, engravidar as estéreis, fazer brincar as crianças, despertar anfiteatros acadêmicos a sua morada. E compreensível que nem os
para o prazer corpos ainda adormecidos de jovens e velhos, desman­ profetas e nem Jesus tenham jamais atingido a dignidade do saber
telar arsenais inteiros e com suas partes fazer moinhos de vento, teológico. Teólogos falam sobre Jesus, falam sobre os profetas, mas
monjolos, arados, carrinhos de pipoca, milhares de flautas e vasos de não falam como os profetas e Jesus falaram. E este como fa la r que faz
flores, e especialmente redes, balanços, gangorras e pedalinhos, para toda a diferença. E passaram a falar com aqueles que falavam a mesma
o "gozo" do ano do Ju b ileu ... linguagem, e escreveram livros para aqueles que viviam no mesmo
mundo, e propuseram fórmulas e teorias que somente eles entendiam
A questão é se sabemos jogar esse outro jogo, que não é o jogo
ou faziam de conta que entendiam, e celebraram disputas, e tiveram
da verdade, pois a verdade não deseja e tem os olhos secos.
polêm icas... E esqueceram as dores e os sorrisos das pessoas comuns
Quem é o teólogo? e a linguagem que delas brota, pois não é neste nível que o saber
Poucos me parecem dançarinos. habita. E eles, sem saber ou sem se lembrar da lição de Vieira, lição
Raramente os vejo com papagaios e linha à mão. cristológica, deixaram de fazer suas meditações sobre os corpos das
vítimas, preferindo antes retirar suas verdades,de dentro de seus tubos
E não me recordo de jamais haver ouvido as estórias que as crian­
de ensaio e de seus cérebros assépticos...
ças lhes contaram ou as estórias que eles contaram para as crianças...
Afinal de contas, como pode a bondade competir com a verdade
Vejam os seus textos. O estilo, as palavras difíceis, o número de
em dignidade e densidade sacral? Eu lhes pergunto: "Quantas pessoas
páginas, as notas de rodapé, os pressupostos exigidos do leitor — tudo
os senhores já viram sofrer o peso da censura e da disciplina eclesiás­
isto revela as regras do seu jogo, tudo isto indica quem são os membros
tica em conseqüência de sua falta de amor, ou por lhes faltar a paciên­
da confraria em que ele se sente em casa. Testemunhos do luijar do seu
cia, quem sabe por hipocrisia?" N o entanto as penas pelos desvios
corpo, entre aqueles que conseguiram galgar os difíceis degraus da vida
intelectuais são severas. Os homens foram e são levados às fogueiras
acadêmica, longe das entranhas daqueles que foram sacrificados...
nunca como conseqüência de sua falta de bondade, mas por sua rejei­
Quando foi que isto aconteceu? ção à verdade. Quando fogueiras são acesas e as vítimas são prepara­
Não sei. das para o sacrifício à verdade, a bondade é obrigada a manter silên-

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V a r ia ç õ e s s o b r e a v id a e a m o r t e . A t e o l o g ia e a s u a fa la

cio. É sempre assim. Os hereges são mais perigosos que aqueles que
cometem os grosseiros pecados da carne. O perdão para estes é mais
fácil, mais rápido... D a mesma forma como o eunuco que defende o
amor livre é mais perigoso que o devasso que proclama a sacralidade
da fam ília...
O teólogo não tem permissão para dizer a verdade: foi com esta
afirmação estranha que iniciamos nossas reflexões. O problema está
A VERDADE DA HERESIA
nas serpentes, acordos silenciosos que o jogo da verdade tráz no seu
ventre. O jogo da verdade exige a repressão do desejo e do amor. Mas
no nosso jogo de contas de vidro cada vez que a verdade é tocada
ressoam risos e ouvem-se choros... E que as regras são diferentes. No
jogo do conhecimento, somente "o que é" pode ser verdade. N o jogo
da teologia, "o que é não pode ser verdade". Porque ainda há lágrimas.
O universo inteiro aguarda a redenção. Aqui, cada palavra de verdade
é uma oração...

s pensamentos seguem as trilhas abertas pelo corpo.


Lembro-me daquele engraxate (estória que repito sempre)
que observava, seguro de si, um indivíduo que se aproxim ava ao
longe:
"Lá vem um freguês."
"Você já o conhece há muito tempo?", perguntei.
"Não, nunca o vi."
"Então, como é que você sabe que ele é um freguês?"
E ele, olhos espantados perante tanta estupidez, respondeu a
coisa mais óbvia do mundo, para quem vive debruçado sobre os sapa­
tos sujos dos outros:
"O senhor não olhou pros sapatos dele?"
É assim, os olhos e os pensamentos dos engraxates andam pelos
caminhos que seu trabalho lhes abre. O pensamento é a extensão do
corpo. Voltemos a Feuerbach:

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V a ria ç õ e s sobre a vida e a m orte. A te o lo g ia e a su a fa la A VERDADE d a heresia

Se as plantas tivessem olhos, capacidade para apreciar e julgar, aos outros que, sem se preocupar com a verdade, puderam dar-se ao
cada uma delas diria que sua flor é a mais bonita ( F e u e r b a c h , sol, ao vento e ao sono... A busca da verdade deixa cicatrizes.
1 9 5 7 , p. 8 ) . E agora, estupefatos, ouvem que tudo foi em vão: equívoco. A
verdade está interditada aos teólogos. O que eles fazem com seus
É perfeitamente compreensível. Como poderia uma planta pen­
pensamentos e suas palavras é outra coisa, menos contemplação dos
sar com um corpo diferente do seu? Somos prisioneiros e amantes
horizontes da eternidade. E eles vêem suas estrelas transformarem-se
desta coisa frágil e bela que é o nosso corpo. Mesmo quando ele enve­
em espumas de ondas...
lhece e se torna flácido. Vem então a magia das operações plásticas —
destinadas, mais cedo ou mais tarde, ao fracasso e à esperança de um Pedimos então licença para nos apropriar do que disse Witt-
corpo ressuscitado, eternamente jovem: "Os que têm seus olhos vo l­ genstein: "Filosofia, batalha contra o feitiço que certas formas de ex­
tados para o Senhor renovarão as suas forças, terão asas como as águias, pressão exercem sobre nós...".
correrão sem se cansar..." (Isaías 40,31). O corpo faz o pensamento Palavras, poderes mágicos, possessão demoníaca.
voar. O corpo é o mistério do pensamento. Teologia como exorcismo.
Dizia José para um dos seus captores: E que palavras nos enfeitiçam?
A verdade poderá ser uma delas?
O mundo tem muitos centros, um centro para cada criatura, e cada
uma delas vive dentro do seu próprio círculo. Tu estás a um pouco A fala da serpente deixa fortes suspeitas no a r...
mais de um metro distante de mim,- no entanto, à tua volta, jaz um "Poder sobre os demônios se obtém chamando-os pelo seu nome
mundo cujo centro és tu, e não eu (M a n n , 2000). real"(BuBER, 1977, p. 58).
A verdade, terá ela outros nomes?
Corpos diferentes. Mundos diferentes. Um é o mundo dos cap­
tores. Outro é o mundo dos escravos. Um é o mundo dos tigres. O u ­ Os corpos são muitos, os mundos são muitos, as verdades
são m uitas...
tro é o mundo dos antílopes.
E as coisas diferentes que fazemos fazem os nossos corpos e pensa­ Pesquisa genealógica: onde é que nasce essa palavra mágica? Que
poderes a engendram? Que destino lhe é dado? Quais aqueles que mais
mentos que, por sua vez, nos fazem fazer as coisas diferentes que faze­
a invocam? O que desejamos é elucidar,- quebrar o feitiço de uma pala­
mos. .. E os homens tecem, a partir e em torno dos seus corpos, com os
vra bela: todas as palavras enfeitiçantes são belas e desejáveis...
seus pensamentos, infinidades de mundos/teias, redes em que descansam.
A primeira lição nos será dada por um tipo esquisito, tirado do
Acontece que o jogo de contas de vidro, nosso brinquedo, é
mundo fantástico que Lewis Carrolí criou, num diálogo absurdo com
movido por homens de carne e osso, como todos os demais. Mas
Alice. Parece que um tal Humpty-Dumpty não conhece muito bem o
désde cedo eles aprenderam que a fala sobre Deus se tece com os fios
significado das palavras e a menina tenta introduzi-lo ao mundo da
da verdade, e que nestes fios se dependuram a vida e a morte dos
semântica e da comunicação.
homens, e que ao ver a verdade eles ficarão mais belos, mais mansos,
mais crianças... — Eu não sei o que você quer dizer por "glória" — disse Alice.
E por amor a Deus e amor aos homens os teólogos se entregam Humpty Dumpty sorriu com desdém.
à disciplina da verdade, disciplina que se pode contemplar nos seus — E claro que não, até que eu lhe diga. Significa: "há um belo
olhos, na sua pele, nos seus músculos e talvez no seu embaraço frente argumento decisivo para você".

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V a ria ç õ e s sobre a vid a e a m orte. A t e o lo g ia e a su a f a la A VERDADE DA HERESIA

— Mas "glória" não significa "há um belo argumento decisivo" — todo o seu mundo viria abaixo, com a demissão em massa de exegetas
objetou Alice. e filólogos, em face da súbita vaporização dos seus objetos...
— Quando EU uso uma palavra — disse Humpty Dumpty, num Acompanhemos o curioso diálogo. D iz Alice:
tom de deboche — ela significa apenas aquilo que eu quero que
— Mas "glória" não significa...
ela signifique, nem mais e nem menos,
— A questão é — disse Alice — se você pode fazer com que as Vejam como o mundo de Alice é regido pelo modo indicativo.
palavras signifiquem tantas coisas diferentes. Ela toma por pressuposto que há uma forma natural de significar...
— A questão é — disse Humpty Dumpty — quem é o senhor — Ao que Hum pty-Dumpty retruca:
isto é tudo (C arro ll , 1971, p. 247). — Estamos em jogos diferentes. Meu mundo não é regido pelo
indicativo, mas pelo imperativo. As palavras não significam porque
Façamos de conta que Alice é uma teóloga e que eu estou brin­
signifiquem. Seu significado se deriva da forma como eu as uso. Claro
cando de Humpty-Dumpty. A discussão tem a ver com o significado
que você ainda não leu as Investi c)ações filosóficas do Wittgenstein. Esta­
das palavras, a relação entre os símbolos e as coisas. E vejam vocês:
mos em 1 8 7 1 , e elas só serão publicadas em 1 9 5 3 . Mas está lá, no
esta é, exatamente, a nossa questão: o significado da verdade.
parágrafo 43: "O sentido de uma palavra é o seu «so na linguagem". E
Alice é deliciosamente ingênua, como o devem ser as meninas. você já pensou isso, que a questão do uso é, no fundo, a questão de
Ela não sente problema algum no ato de significar. Parece-lhe natural cfuerer e poder? Se eu uso a "palavra glória", cfuero que ela signifique "há
que cada palavra possua um significado, como se o significado fosse um belo argumento decisivo para você", e se tenho os meios para impor tal
algo inerente ao símbolo. A discussão é filosófica. O problema: o sen­ significado este será o significado que ela terá. Até o cachorro de
tido das palavras. E Alice pertence àquele grupo que, na caracteriza­ Pavlov aprenderá isto, no futuro. Você já viu frangos dançarinos?
ção de W ittgenstein (1958, p. 28), acredita ser possível "um tipo de Curioso que frangos se ponham a dançar, porque nem a música e nem
investigação científica sobre o que a palavra realmente significa". Que é os saltos lhes significam coisa alguma. Prenda as aves numa gaiola.
que a palavra verdade significa? E Deus? E graça? E salvação? E se escre­ Ponha-se a tocar flauta. Fale manso com os bichos. Eles continuarão
vem léxicos, dicionários para esclarecer o sentido das palavras. E se impassíveis, interesse concentrado no milho. E que você não está falan­
organizam reuniões entre bispos e teólogos, em que se discutem as do com poder. Coloque a gaiola de fundo metálico sobre uma chama
palavras, sob o pressuposto de que nossas desavenças se baseiam num e toque sua flauta. Dentro em pouco, você verá, na medida em que o
enorme mal-entendido que poderia ser resolvido pela filologia, pela fundo metálico se aquecer, a sensibilidade do animal para a dança
crítica, pela exegese... Alice é tão protestante! Nós nascemos dos atos começará a aparecer. Começará a saltar cada vez mais rápido. Repita
puros/ingênuos de ouvir/ler, em busca das origens, das fontes, na es­ a mesma lição, com a mesma pedagogia, por duas ou três vezes. D e ­
perança de tirar do símbolo aquilo que ele realmente significa. E foi pois bastará tocar a flauta. O seu poder terá comunicado ao frango
com esta filosofia que enfrentamos o mundo inteiro, tendo nas mãos a uma sensibilidade artística que ele ignorava antes. Esta é a razão por
palavra da verdade... que, em oposição à sua filosofia ingênua, eu posso fazer com que as
Humpty-Dumpty, ao contrário, parece já ter lido Maquiavel, palavras signifiquem qualquer coisa. A semântica se reduz à política.
tem consciência das relações entre o poder e o saber, revela um certo O que importa é quem é o senhor. Em outras palavras: o sentido é
acordo com a afirmação de Lutero de que a razão é uma prostituta e decidido por aquele que tem o poder para bater na mesa e dizer: "Está
contrapõe à semântica ingênua/protestante de Alice uma outra cruel­ encerrada a discussão". O senhor é aquele que tem a última palavra. E
mente política, que Alice parece/não pode/não quer entender, pois a última palavra não é um ato de significar mas um ato de poder.

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V a r ia ç õ e s s o b r e a v id a e a m o r t e . A t e o l o g ia e a s u a fa la A VERDADE DA HERESIA

Argumentarão dizendo que não é assim entre os cientistas, que E por isso mesmo os mais fortes puderam defini-los como here­
foram treinados a se curvar perante a verdade, não importa que ela ges e puderam definir-se a si mesmos como ortodoxos. N ão há ne­
seja gélida ou tórrida. E eu perguntarei pelas evidências de tal afirma­ nhum caso na história em que os vitoriosos tenham se proclamado
ção. Porque, se Kuhn está certo, também na comunidade científica a equivocados.
verdade é uma função do grupo de maior poder. E as coisas mudam
Os fracos são as vítimas.
não porque as pessoas se convertam a novas teorias mas porque, con­
Sobre as vítimas se coloca o estigma do erro.
tra a sua vontade, acabam por morrer e deixam vazio o espaço para
Assim aconteceu com
que os outros, por sua vez, venham a dominar o campo semântico.
as bruxas (que nunca se chamaram bruxas),
Verdadeiras são as palavras pronunciadas pelos fortes. Os fortes com os anabatistas,
fazem com que seu discurso seja aceito como verdadeiro. Não seria um com as civilizações pré-colombianas,
absurdo que eles permitissem que fosse de outra forma? Os fortes fa­ com as culturas índias,
lam não para dizer a verdade, mas para impor a sua força. E chamar o com os negros,
seu discurso de verdadeiro é uma forma de legitimar o seu exercício com os pobres,
com aqueles que inventaram
de poder. A semântica está a serviço da política, o saber subordina-se
novas maneiras de pensar.
ao poder. Lembro-me de que nos mundos de Orwell, tanto em Í984
como em A revolução dos bichos , havia equipes encarregadas de perma­ Os estigmas têm os sons mais variados. Mas todos eles sugerem
nentemente reescrever a história, para harmonizá-la com os fatos do­ a sua distância da verdade:
minantes do momento presente. Faz pouco tempo que os historiado­
res se deram conta desse fato terrível, que a história é sempre inter­ tipos exóticos, ex/óticos,
pretada e escrita pelos vitoriosos. E nesse processo os derrotados são primitivos,
atrasados,
sempre silenciados. E isso porque o fato de terem sido derrotados faz
supersticiosos...
com que eles sejam alinhados ao lado da mentira.
Amá-los não é difícil.
Onde está a história da heresia contada pelos hereges?
Os hereges foram mortos, não podem falar, seus escritos foram D ifícil é ouvir sua fala como portadora de uma verdade que so­
queimados e proibidos. mos incapazes de entender.
E assim, teólogos e habitantes outros das alturas acadêmicas se
Quem os classificou como hereges?
sentiriam bem lutando pelos direitos desses fracos, mas não poderiam
Se eles foram capazes de enfrentar a fogueira sem se retratar,
dissimular uma certa sensação de superioridade epistemológica e c i­
não será porque eles se julgavam possuidores de uma verdade que
entífica. D aí esse estranho discurso sobre o popular, embrulhado em
dava sentido à sua vida e à sua morte? Não, eles nunca se considera­
categorias eruditas. E que dizer da palavra dos velhos e da palavra das
ram hereges. Ao contrário, estavam convencidos de que os que esta­ crianças?
vam no erro eram aqueles que os queimavam.
Será possível compreender agora as razões por que a verdade
Mas não tinham poder. está interditada ao teólogo? O teólogo não é um colecionador de
Indivíduos isolados, fracos, abandonados. ortodoxias... Pelo contrário... E necessário não nos esquecermos

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V a ria ç õ e s sobre a vid a e a m orte, A .te o lo g ia e a sua f a la A VERDADE d a heresia

de que as Escrituras Sagradas são um documento de derrotados: es­ Ohi meus irmãos, quem representa o maior
cravos, nômades no deserto, oprimidos em sua própria terra. Os perigo de todos para o futuro do homem?
profetas falam em nome dos que não têm voz, dos que são persegui­ Não são, porventura, os bons e os justos?
dos e mortos, exilados em terra estranha à espera de um Rei Forte, Pois eles dizem e sentem em seus corações
que nasceu entre animais, andou pela terra preferindo sempre a com ­ "Nós j á sabemos o que é bom e justo, e nós
já o possuímos,- ai daqueles que, entre nós,
panhia dos malcheirosos morais e físicos, prostitutas, adúlteras, pu-
ainda procuram" (N lETZSCHE, 1965, p. 324).
blicanos, leprosos, e que acabou sendo executado como herege reli­
gioso e herege polftico, blasfemo e subversivo... Mas os documen­ Quem j á sabe só pode amaldiçoar e crucificar aqueles que ainda
tos dos derrotados são sempre definidos como loucura — e de fato procuram , pois a própria procura, em si mesma, é um questionamento
assim aconteceu. E é dessa tradição que surge uma estranha predile­ do já saber, uma negação da chegada. Esta é a razão por que todas as
ção pelo que é fraco e derrotado... ditaduras, de direita e de esquerda, se nutrem de infalibilidades, es­
... o que cria um enorme problema para o teólogo, co lecio ­ crevem e ensinam seus catecismos, perseguem aqueles que resistem
nador de verdades. Porque as verdades são troféus dos vitoriosos. aos processos educacionais que estabelecem e destroem os poucos
E na com panhia dos fracos o que se encontra é a loucura, a here­ que vêem outros mundos e têm a coragem de proclamar suas visões.
sia... Será isto: que a sabedoria de Deus se aninhe, preferencialmente, dentro Não há escolha.
das heresias dos fracos? E se este for o caso o teólogo, treinado nas
Os fortes estão condenados à verdade.
bibliotecas, onde se preservaram os textos vitoriosos, terá de apren­
Os que têm a verdade estão condenados a acender fogueiras.
der a preparar suas redes para dorm ir entre os pobres, ouvindo os
relatos e canções que acontecem à luz da lamparina — porque a Não é por acidente que a tolerância vá crescendo sempre na
sabedoria dos oprim idos, impotente para ganhar a dignidade de medida em que a força diminui, e que nas instituições totalmente
texto erudito, continua colada à v id a ... E isto: a preferência pela here­ marcadas pela força não exista para ela lugar algum.
sia , cjue é a verdade daejuêles cjue não têm poder. E necessário ouvir as estó­
Vale para a Igreja,
rias dos derrotados, contadas por eles mesmos, E quando isso acon­
para os partidos de direita e de esquerda,
tece, os nomes mudam de lugar e o mundo vira de cabeça para
para o mundo acadêmico...
baixo: os heróis se tornam vilões, os vilões se transformam em he­
A mesma maldição,
róis, e ocorre a metamorfose das versões criadas pelos vitoriosos,
o mesmo pecado original,
com a vergonha geral ante o grito: "o rei está nu...".
o amor ao poder,
Mas estes são embaraços que devem ser evitados a todo custo, e que possui a estranha propriedade de não mentir nunca, de não
esta é a razão por que os vitoriosos e os fortes estão cheios de verda­ duvidar nunca, de dizer sempre a verdade...
des que espalham pelos pontos estratégicos do mundo. Penso que é
provável que a mulher de Lot, ao olhar para trás, tenha contemplado Peço licença para transcrever um pequeno trecho de um filóso­
á Verdade, porque a verdade transforma sempre coisas vivas em está­ fo polonês, Leszek Kolakowski, que compreendeu bem essa questão.
tuas de sal, fixadas e imóveis. A conclusão é logicamente necessária. Ele escreveu um ensaio com um título que horrorizaria pessoas com
Se a verdade já foi atingida, se o ponto de chegada já foi alcançado, um pouco de sensibilidade moral, especialmente nós, protestantes:
por que mudar? A razão está com Nietzsche: "Em louvor à inconsistência".

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V a r ia ç õ e s s o b r e a v id a ea m o rte. A t e o l o g ia e a s u a f a ia A VERDADE DA HERESIA

Lembro-me, quando adolescente, de que aquilo que mais despre­ verdade, por que perm itir idéias diferentes dela? Por que dialogar?
závamos nos católicos era precisamente a sua inconsistência, a distân­ A menos que o diálogo se transforme numa armadilha e que seja
cia entre o seu discurso teológico/moral e o seu comportamento. O uma tática de engodo articulada por quem não se sente forte o bas­
confessionário lhes abria possibilidades que eram interditadas a nós. tante para im por...
Curioso, mas até hoje não soubeque um poema tenha gerado
Kant. O imperativo categórico. D izer a verdade sempre. Ba­
ortodoxias ou inquisições. Talvez a palavra de um poema seja diferen­
tem à minha porta. Abro. Um a pessoa em pânico. Pede abrigo. Está
te da palavra da verdade. D e fato, não se exige de uma declaração que
sendo perseguida por alguém que deseja matá-la. Escondo-a. D en­
se afirma verdadeira que ela seja bela, e nem de um texto belo que ele
tro de poucos minutos batem de novo. O possível criminoso. "En ­
seja verdadeiro... Jogos diferentes.
trou, por acaso, aqui, há poucos minutos, uma pessoa... ?" Que digo?
N o jogo da verdade exige-se que o falado seja um reflexo/ima­
Kant responde: "A verdade, qualquer que seja o seu preço. Consis­
gem da coisa sobre que se fala, E da fidelidade desse reflexo dão teste­
tência absoluta". Kant era um bom protestante. Sabia o que era a
munho aqueles que têm a última palavra. Os que vêem diferentemen­
verdade e quais eram as suas exigências. Que teria feito quando tro­
te e não concordam são silenciados e declarados amigos do erro.
pas da Gestapo procuravam por judeus, escondidos em casas onde
N o jogo da poesia, entretanto, as regras são outras. O que se pede
se julgavam protegidos pela compaixão? A consistência não conhe­
de cada palavra é que ela seja uma confissão e que, juntas, formem uma
ce a compaixão. Fala Kolakowski:
rede simbólica capaz de acolher o outro também. Poemas são estrutu­
Falo de consistência em apenas um sentido, limitado à corres­ ras verbais boas para que nelas também os outros se abriguem.
pondência entre o comportamento e o pensamento, à harmonia O poema interdita o dogmatismo por ser, no fundo, uma confis­
íntima entre princípios gerais e suas aplicações. Portanto, consi­ são. E confissões podem, quando muito, oferecer um convite, mas
dero consistente simplesmente um homem que, possuindo um nunca uma exigência.
certo número de conceitos gerais e absolutos, esforça-se hones­ É que a verdade habita o mundo do determinismo e os poemas
tamente em tudo o que faz, em todas as suas opiniões sobre o que constituem o mundo da liberdade...
deve ser feito, para manter-se na maior concordância possível Claro que ninguém que tenha entendido o poema pretende ha­
com aqueles conceitos. ver dele extraído a sua verdade. Veja a afirmação matemática, tão sim­
Por que deveria qualquer pessoa, inflexivelmente convencida da ples, transparente, definitiva: 2 + 2 = 4. Curioso que nas próximas
verdade exclusiva dos seus conceitos relativos a qualquer e a todas vezes em que eu a ler ela continuará a dizer a mesma coisa. O seu
as questões, estar pronta a tolerar idéias opostas? Que bem pode sentido se esgota na primeira vez... Mas e os poemas? Cada nova
ela esperar de uma situação em que cada um é livre para expressar leitura é um novo encontro, como se o poema fosse apenas a face
opiniões que, segundo o seu julgamento, são patentemente falsas visível de uma profundidade inesgotável. E é somente por isso que um
er portanto, prejudiciais à sociedade? Por que direito deveria ela se poema é para ser lido e relido, sem fim, cada nova leitura sendo uma
abster de usar quaisquer meios para atingir algo que ela julga cor­ nova surpresa e uma nova experiência, enquanto a verdade definitiva
reto? Em outras palavras: consistência total equivale, na prática, ao da equação matemática se diz totalmente na primeira vez...
fanatismo, enquanto a inconsistência é a fonte da tolerância.
Talvez seja essa a diferença.
Que me demonstrem o lugar onde o argumento falhou. A ques­ Discursos que se dizem totalmente, de uma vez, e que se esgo­
tão é: se estou absolutamente convencido da verdade, se tenho a tam, fincando limites e erguendo cercas...

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V a r ia ç õ e s s o b r e a v id a e a m o r t e . A t e o l o g ia e a s u a fa la
A VERDADE DA HERESIA

... e os discursos que nunca se dizem porque guardam sempre outro ora falsamente ao Deus verdadeiro e, por isto mesmo, cultua,
uma parcela de segredo e de m istério... na verdade, um ídolo ( K ier k eg a a rd , 1968, p. 180),

N o primeiro caso o discurso está colado, superposto à coisa que E assim a teologia arrebenta as gaiolas da verdade, e se con­
ele diz. A linguagem e o ser estão unidos numa mesma cadeia, elos de tenta com muito menos, dizendo palavras poéticas, porque ela quer
uma mesma corrente. muito mais: antes navegar, livre, nos mares da incerteza, na esperan­
Na linguagem poética o símbolo apenas aponta, sugere, indi­ ça de horizontes, que habitar, seguro, nos charcos onde o naufrágio
ca... H á aquela enorme distância entre o que foi dito e o que foi é im possível...
vivido. E, se se pode falar de verdade nesse jogo de contas poéticas, já
será num sentido totalmente diferente, de encontro face a face com
o mistério para o qual a palavra aponta, sem nunca refletir ou conter,
mistério que só se encontra no cam inho...
Coisa que a psicanálise entende.
Não é a verdade intelectual que é decisiva. É o amor, Foi assim
que Freud entendeu a coisa. E lá está o psicanalista, impedido de dizer
a verdade, dizendo um discurso que é análise e é engodo, porque é
necessário que o paciente tenha a coragem para sair do dito para tri­
lhar os caminhos do am or...
... e eu me lembro de Kierkegaard, que talvez tenha sido o pri­
meiro a dizer esta coisa filosoficamente (claro que os poetas a pratica­
ram muito antes), e que afirmava, para horror dos teólogos que cola­
vam a verdade na palavra: "Verdade é subjetividade",
Para se falar da verdade, nesse jogo que se chama teologia, é
necessário sair do dito e passar ao corpo/alma da pessoa.
A verdade da dança: estará na teoria da dança ou no corpo que
salta?
Mas e se o dançarino não souber contar o seu segredo? E se as
suas palavras forem arremedos grotescos da graça dos seus vôos?

Se uma pessoa que vive no meio da cristandade vai até a casa de


Deus, a casa do verdadeiro Deus, com a verdadeira concepção de
Deus no seu conhecimento, mas ora num falso espírito, e um outro
que vive numa comunidade de idólatras ora com aquela paixão
que pertence às coisas infinitas, muito embora seus olhos descan­
sem sobre a imagem de um ídolo, onde existirá mais verdade? Um
deles ora, na verdade, a Deus, muito embora cultue um ídolo, o

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E s t ó r ia s q u e d e sp er t a m o a m o r

há a estória daquela aldeia de pescadores, contada por Gabriel


E Garcia M árquez...
Aldeia onde os dias sucediam às noites e as noites sucediam aos
dias, naquela ciranda sem fim das mesmas coisas que se repetem, dos
mesmos rostos que se cruzam, sem nunca surpreender ou espantar,
das mesmas coisas que são ditas e repetidas, e que, por serem sempre
as mesmas, não são mais ouvidas, e dos mesmos gestos, desembocan­
do tudo naquela monotonia e no enfado de um mundo esgotado, onde
a vida acontece pela inércia porque o seu gosto bom há muito se per­
deu nos corpos cansados de v iv e r...
Até que algo estranho apareceu e desapareceu nas ondas que
subiam e desciam, algo inusitado, diferente, não visto antes e que fez
com que as pessoas que nunca paravam, por já haverem visto tudo o
que há para ser visto, parassem e se ajuntassem na praia, olhando e
perguntando umas às outras: "O que será?"
E a coisa foi chegando, sem se apressar, até que finalmente che­
gou, para espanto de todo mundo. Um homem morto. Desconheci­
do. Parece que havia viajado muito porque seu corpo sem vida estava
V a r ia ç õ e s s o b r e a v id a e a m o r t e . A t e o l o g ia e a s u a fa la
E s t ó r ia s q u e d espert a m o a m o r

coberto por algas e liquens, testemunhas das solidões e dos mistérios


repetidas para os velhos que já as sabem de cor, e para os moços
por onde havia passado... que param, incrédulos...
Era necessário enterrá-lo. Que outra coisa se pode fazer com
Pensei então que o teólogo deveria, talvez, abandonar a soleni­
um cadáver? dade do seu título, e reaprender-se como contador de estórias, tal
Acontece, entretanto, que sem querer e sem saber, os homens e como o morto silencioso sobre quem ele fala. O teólogo vive no mun­
as mulheres começaram a fazer com aquele corpo inerte e o seu silên­ do encantado das estórias, no mundo encantado pelas estórias.
cio uma coisa de que nem eles mesmos suspeitavam... E as mulheres Sei da estranheza que tal afirmação tem de produzir. Confesso-lhes
que o preparavam notavam seu porte enorme. E pensaram e falaram que eu mesmo estou me assustando com as coisas que se estão dizendo
que ele teria de abaixar sempre a cabeça para passar pelas portas. E nestas meditações sobre a teologia. Antes de começara escrevê-las ela­
pensaram e falaram que ele deveria ter sido gentil, fala mansa como a borei um roteiro que me pareceu sugestivo, com certa dose de origina­
brisa, por vezes ousada como o quebrar das ondas,.. E pegaram suas lidade. Mas naquele momento eu nem de longe suspeitava que a cami­
mãos, e pensaram e falaram que ele deveria ter sabido amar como nhada iria acordar idéias tão insólitas que, uma vez despertas, me obri­
ninguém, e que deveria ter sabido dizer palavras que há séculos não gariam.a colocá-las no papel, E daí esta estranha sensação de que não
eram pronunciadas naquela aldeia, e que ele deveria ter sabido fazer sou eu que estou dizendo, mas de que são as coisas que se dizem. E
com que as mulheres buscassem uma flor para colocar nos cabelos... sempre assim. Idéias não são objetos que carregamos em nossos bolsos
E os homens também pensaram e falaram sobre os lugares por onde cerebrais. Elas são surpresas que nos ocorrem inesperadamente, como
aquele corpo deveria ter andado, e os gestos que teria feito, e o viram aquele palhaço que pula repentinamente de dentro da caixinha de mú­
brincando com as crianças e segurando as mãos dos velhos... sica. .. E elas se apropriam do nosso corpo, a despeito da nossa resistên­
E foi assim que, enquanto as mãos faziam aquilo que se devia cia, como se fossem espíritos mais fortes que nós...
fazer para preparar um corpo para a morte, o pensamento e as palavras E a idéia que me martela agora é que o teólogo é cidadão de
iam e vinham, tecendo por cima dele... E na teia que se tecia um mila­ outro mundo, peregrino cuja condição de estrangeiro se revela atra­
gre ia acontecendo, porque da fala sobre o morto uma vida nova ia vés de sua maneira estranha dé falar. O teólogo nasce num mundo
nascendo, e as pessoas olhavam para o seu passado, aquilo que havia onde o pensamento e o corpo dançam ao ritmo e às palavras das estó­
sido, e imaginavam que poderia tudo ter sido diferente se o afogado rias que se contam.
tivesse vivido entre eles. Com certeza ele teria plantado jardins... E, de
Não, não se trata de um mundo ondeias pessoas se divertem
repente, a ciranda sem fim das mesmas coisas que se repetem se inter­
contando estórias. Também isso existe entre nós. Acontece, entretan­
rompeu por um morto que propôs uma nova dança... E os olhos cansa­
to, que aqui se nota o cuidado de reduzir as estórias à impotência,
dos de ver as mesmas coisas começaram a ver coisas diferentes...
para que ninguém as confunda com a realidade, para que ninguém as
E diz a estória que a aldeia nunca mais foi a mesma, em virtude leve a sério, para que elas não provoquem metamorfoses nos olhos e
do silêncio de um morto e das estórias que sobre ele se contaram ... nos pensamentos...
E sem querer eu também entrei no jogo do fala-tece, porque O mundo de onde vêm os teólogos é diferente, porque ele não é
o afogado começou a me parecer alguém que freqüentava estórias simplesmente um lugar onde as pessoas tinham esse interessante hábito
que me contaram e estórias que eu contei, um tal de Jesus de N a ­ de falar por meio de metáforas e parábolas. Ao contrário, trata-se de um
zaré, morto há quase 2.000 anos... E as estórias não cessam, e são mundo que é inaugurado, sustentado e iluminado pelo próprio ato de
contadas como canções de ninar para as criancinhas no berço, e contar e repetir as estórias. Nas estórias se tece o pensamento, se apon­

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E s t ó r ia s q u e d espert a m o a m o r
V a r ia ç õ e s s o b r e a v id a e a m o r t e . A t e o l o g ia e a s u a fa la

que se contam sobre este morto há uns tipos que se parecem com
tam horizontes, se dão nomes aos desejos... Mundo onde não existe o
teólogos, são justamente aqueles que teceram redes para o apanhar e
discurso da teologia acadêmica, porque quando as gerações mais novas
justificativas para o matar. Quanto a Jesus, parece que não sabia falar
perguntam pelas razões a resposta começa com um "era uma vez ...".
de outra forma. A cada pergunta teológica de catecismo ele respondia
Acontece que o teólogo é alguém que conversa sobre um morto com uma parábola, novela relâmpago com desfecho inesperado. E
de 2.000 anos, brotando o seu discurso daquela dor funda da saudade não há dúvidas de que esta sua mania de contar estórias tenha muito a
e da ausência... E nas ausências se contam estórias que são o mais ver com sua morte. Porque as estórias têm o poder mágico de mexer
próximo que as palavras podem chegar da coisa viva. Caberia num fundo dentro da alma, atingindo os lugares onde os risos, as lágrimas
velório o discurso científico e verdadeiro sobre os processos de de­ e as fúrias se aninham ... E que as estórias, por ser invocações da vida,
composição que ali estão ocorrendo? H á certas verdades que são pio­ provocam o amor e freqüentemente armam o braço...
res que um ultraje. Mas a imaginação voa para fazer ressuscitar pala­ O sentimento de estranheza tem justamente a ver com o fato de
vras de amor, gestos de alegria, manifestações de bondade... Verda­ que, em nosso mundo, contar estórias é coisa de ficção. Quem dependura
des podem ser nada mais que necrológios, mas as estórias são invoca­ numa estória a sua vida só pode ser um louco. H á ganchos mais sólidos,
ções da vida. E é deste mundo onde a vida é invocada por meio das como a caderneta de poupança, o crédito, as armas, as multinacionais...
estórias que surge o teólogo. Não, não me entendam mal. Não estou Nosso mundo é brutalmente determinado pelo lucro e pela força. E vem
dizendo que as coisas que se batizam de teologia sejam produtos des­ um tipo que conta estórias e quer que as pessoas se deitem nelas.
te mundo. Porque também os teólogos se prostituem e trocam os de­ Talvez, se explicássemos um pouco mais, o absurdo ficasse mais
sertos pelos oásis. Estou, ao contrário, sugerindo que, onde quer que ' límpido e o abismo mais fascinante e atraente...
encontremos estas estórias/ invocações da vida, ali encontramos a teo­
Comecei a pensar no mundo dos gregos. Ali as coisas não se
logia, E esta é a razão por que me sinto irmão de um homem como
iniciam com as estórias, mas antes com o olhar deslumbrado diante da
Friedrich Nietzsche, contador de parábolas, vidente, iluminado por
luz e do m ar...
sinais astrais... E não teria dificuldades em incluir o conto de Gabriel
Garcia Márquez entre os mais belos discursos cristológicos jamais pro­ No princípio era a luz,
duzidos ... E preferiria, no meu jogo de contas de vidro, brincar com os olhos,
as estórias dos romeiros, os mitos e lendas que andam de boca em a contemplação,
boca, porque sinto que eles se encontram a uma distância menor das o maravilhar-se tranqüilo perante a imponência eterna do ser, pre­
fontes da vida que o duro e difícil discurso com que os habitantes do sente no jogo de luz e sombra do mar que cintila...
mundo acadêmico tecem os seus casulos e se amarram uns aos outros.
Antes de tudo, é necessário ver.
Tenho de reconhecer que tudo isso parece absurdo. Não bastou
E se constrói o saber filosófico como extensão do olhar: teoria,
a vergonha de ter de confessar "— A minha profissão? Bem ... sou
contemplação.
teólogo". Se nosso interlocutor se assombrou com esta resposta, que
Que é a palavra verdadeira?
sem dúvida alguma sugeriu os respeitáveis círculos da erudição acadê­
É a palavra que é olho melhor que o olho, palavra que vê mais
mica, qual não teria sido o seu espanto se tivéssemos dito "Sou um
fundo, mais longe, E, sobretudo, que contempla o ser, na beleza do
contador de estórias..." Mas não há formas de escapar, porque é o
seu repouso... O que foi, o que é, o que sempre será... Intuição que se
nosso morto, do mistério de 2.000 anos, que nos repete, com um sor­
fará sentir em doxologias da Igreja cristã.
riso: "Eu também não sou teólogo. Eu conto estórias". Se nas estórias

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Lá está a realidade, como mar indomável. E as palavras também ficam diferentes. Não mais extensões da
Dominá-lo? vista, elas são agora prolongamentos dos dedos, músculos novos, pos­
Tolice. Nada mais que arrogância daqueles que sobreestimam sibilidades dantes insuspeitadas de poder e controle. Conhecimento
suas próprias forças: "húbris". é poder.

Nada há a se fazer. O ser é fundamento imutável de tudo, ventre O que é a palavra verdadeira?
de onde emerge o mundo. Importa buscar compreendê-lo, contem­ É a palavra eficaz, receita, pouco importa que ela nos ensine que
plar sua verdade/beleza/bondade. desodorantes comprar ou que novas armas construir. O que importa é
E a palavra se desdobra como dádiva do olhar. a eficácia, poder, puro poder, como dizia o torturador nas câmaras
subterrâneas de í 984.
E por detrás da tranqüila contemplação existe sempre alguém
que sente ou que não é necessário fazer coisa alguma, porque a vida é Claro que as estórias sobre um afogado são reduzidas à condi­
bela tal como está aí, ou que êinútil fazer qualquer coisa... E penso na ção de contos da carochinha, porque se há uma coisa que o jogo das
tragédia, descrição da inutilidade da ação diante do inexorável da rea­ mãos sabe muito bem é que não há receitas para ressuscitar mortos.
lidade, ou na vida modesta e sofrida de um Spinoza, tanto tempo Acontece que essa fala de onde nasce o teólogo surgiu de um
depois, abençoado só no nome, que não desejava nem lamentar e povo que não podia se entregar aos deleites da contemplação, pois
nem chorar, mas apenas ver e compreender... Polia lentes com as habitava o lugar dos derrotados-, escravidão, deserto, exílio, devasta­
mãos e queria que seus pensamentos fossem os melhores dos olhos, ção, domínio estrangeiro. Cada ato de ver era uma dor, e os olhos se
para contemplar fundo e encontrar a tranqüilidade. É. A vida se satis­ fechavam, para se proteger e chorar, sem encontrar descanso e prazer
faz com os olhos ou quando é desnecessário ou quando é inútil o m ovi­ em lugar algum.
mento do corpo. Aqui o olhar domina supremo e as palavras o ser­ ... e surgiu também de gente que não tinha poder em suas mãos
vem. Jogo de contas de vidro, é bem verdade, mas tão distante dos para fazer o futuro, pois eram os exércitos do faraó que empunhavam
profetas e dos contadores de estórias... as armas, e o desamparo no deserto, e a impotência dos pobres...
E passei então a outro jogo em que a dança das contas de vidro
não era mais regida pelo prazer estético dos olhos que contemplam, Sem o auxílio dos olhos,
sem o auxílio das mãos,
mas pela atividade irrequieta das mãos que tudo transformam.
sem o prazer da beleza,
"N o princípio foi o ato..
sem o prazer do poder...
Sob o império dos olhos, compreender era o mesmo que ver e
as palavras tomavam forma como extensões da visão. Agora, entre­ Tiveram de aprender a viver além do que os olhos viam e além
tanto, a razão se separa da vista e se descobre uma dádiva das mãos. do que as mãos podiam, pelo poder da palavra...
Entender é transformar. E o universo se metamorfoseia na medida em E surge a palavra que não é nem extensão dos olhos e nem ex­
que as mãos se metem em todos os lugares, e constroem máquinas, tensão das mãos, mas palavra que é expressão do desejo e manifesta­
derrubam reis, singram os mares, produzem, vendem, amontoam ri­ ção de esperança. E os olhos e as mãos se transfiguram porque eles
quezas, e exorcizam os deuses e demônios que habitavam a natureza mesmos passam a ver e a poder pela inspiração da palavra.
encantada, agora transformada em matéria bruta a ser arrancada, que­ Já notaram que os olhos e as mãos só acordam em meio a presen­
brada, manipulada, recriada como mercadoria... ças? Imagine um olho que nada tenha para ver: que não haja o azul do

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V a ria ç õ e s sobre a vid a e a morte. A t e o lo g ia e a su a f a la E s t ó r ia s q u e d espert a m o a m o r

céu, nem as nuvens, nem árvores, nem rostos... Que haveria lá dentro E é só porque se acredita nisso, não importa que a crença seja
deles? Porventura aquela sensação de infinito vazio de um espelho co­ construída com palavras rudes ou gentis, que os bruxos dançam suas
locado em frente ao outro? Não. Os olhos não criam. Não têm a capa­ emoções nos rituais mágicos, e as almas, no silêncio de suas preces,
cidade de ficar grávidos. Só podem recolher, acolher, acariciar aquilo plantam seus desejos, na esperança de que, de alguma forma, algum
que a natureza gerou... Os olhos são dádivas das presenças. dia, a realidade (não importa o nome que se lhe dê) fará brotar as
E as mãos? Se não houvesse uma pele para ser acariciada, uma sementes que o amor espalhou ao vento...
tecla para ser percutida, algo que apalpar, tocar, que seria delas? Sei que esta fala não pode resistir à chacina que o discurso das
A coisa curiosa com as palavras é que elas parecem ter o poder mãos lhe prepara. As mãos construíram um universo atômico e mecâ­
para produzir, construir entidades ideais com que o pensamento brin­ nico, povoado de entidades isoladas e independentes, e que se mo­
ca e se diverte sem que elas existam, como objeto, em lugar algum. vem porque umas se chocam com as outras. Tal e qual uma mesa de
Elas são capazes de designar ausências, e na medida em que o discurso bilhar. D e nada valem os pensamentos do jogador. Vale apenas a efi­
passa de boca em boca, e nele investimos o nosso amor, aparece aque­ cácia da tacada. E é claro que aqui não há lugar para emoções. Porque
la coisa curiosa que é um pacto em torno daquilo que não existe, seja emoções não são entidades físicas habitantes do espaço glacial que as
uma saudade, seja uma esperança... mãos instauraram através da matemática. O desejo do jogador, por
E é por isso que a fala sobre um afogado sem nome e sem genea­ mais intenso que seja, e por mais que se manifeste nas contorções do
logia pode transformar uma aldeia de pescadores, da mesma forma como corpo que, a distância, deseja mudar o curso da esfera de marfim, é
uma refeição em memória de alguém que se ausentou é capaz de invo­ impotente. Que lugar existe, num mundo assim construído, para essa
car vida e coragem, e a fala sobre o Reino de Deus, da metamorfose crença louca de que as palavras, carregadas de amor, são capazes de
mágica dos desertos, dos lobos, dos aleijados é capaz de provocar dan­ mudar o mundo? N o final, as coisas se reduzem a estímulos físicos, a ■
ças de alegria. Toda liturgia não será ubaa dança ao som de uma música determinismos econômicos, e a fala grávida de desejos da religião, da
que brota de uma ausência? Alguns a ouvem mal, e o corpo permanece utopia, da cultura é descartada como ilusão.
timidamente hirto, por medo de que a tal música seja irmã gêmea da Acontece que, nesse jogo de contas de vidro que se chama teo­
famosa roupa nova do rei, da estória de Andersen, enquanto outros logia, as pessoas têm de falar sobre Deus, mas falar sobre Deus é apos­
soltam o corpo e ele se transfigura pelo poder do desejo que espera/ tar no triunfo do amor a despeito de tudo. Se, entretanto, para negar
mergulha nos espaços vazios, na expectativa/esperança. o que afirmo, invocarem o deus de Aristóteles e o deus dos filósofos
Um novo jogo. como causa primeira e princípio explicativo do universo, eu direi que
"No princípio era a Palavra.. não é esse deus que a alma religiosa conhece, pois o Deus a que se ora
não surge das exigências da causalidade natural, mas das exigências
Estamos, de novo, muito próximos da magia.
do desejo.
Crença mágica: crer que o universo inteiro está ligado com fios \

de amor. O choro de uma criança faz galáxias estremecerem. Jesus A religião é o solene desvelar dos tesouros ocultos dos homens, a
chorou, Deus chorou, isso faz uma diferença. Como a água do lago, revelação dos seus pensamentos mais íntimos, a confissão aberta
que vai se encrespando em ondulações, sem parar, porque uma pedri- dos seus segredos de amor (F e u e r b a c h , 1957, p. 13).
nha lhe foi lançada, o universo também vai se encrespando com estre­
mecimentos sucessivos, quando um gesto de amor ou de ódio lhe é E é por isso que o nosso jogo tangencia o mundo das esperanças
lançado, por alguém... mágicas. E é assim que mexo minhas contas de vidro, transgredindo as

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V a ria ç õ e s sobre a vid a e a m orte. A t e o lo g ia e a sua f a la E s t ó r ia s q u e despertam o a m o r

interdições do determinismo, continuando a apostar na bondade e na nas dores do trabalho de parto,


ternura. Creio, a despeito de tudo, que o universo tem um coração. surgem as palavras
Creio, a despeito de tudo, que as palavras grávidas de amor fazem bro­ que selam um destino comum.
A esperança é mágica: a redenção do corpo.
tar realidades até então adormecidas. E falando dessas coisas o frio e
Duplamente mágica: a redenção da natureza
indiferente discurso da verdade científica fica para trás, porque ao re­
(Rm 8,18-30).
dor do fogo, onde os homens se aquecem, nos velórios onde choram
suas saudades, nas trincheiras onde cantam suas esperanças, nas insô­ E com as palavras se estabelece a conspiração que funda a co­
nias onde oram seus temores, sob as árvores onde cantam os seus amo­ munidade da esperança: conspirar, respirar juntos, inspirar o mesmo
res, são as estórias contadas que ligam os corpos com os seus desejos. sopro, que vem das ausências...
N o discurso científico não há nem corpos e nem desejos... Com a sua estória o teólogo se revela. Confessa de que mundos
Era costume, entre certos povos, que os juramentos de fidelida­ provém e para que mundos veleja. Tão distinto do dizer científico:
de se fizessem com o sangue misturado daqueles que celebravam o impessoal, seco, sem nenhum lugar para o sujeito, expurgado de in­
pacto. Acontece que há certas palavras que se escrevem com sangue terjeições de amor, longo, compreensível apenas aos iniciados, tecido
( N i e t z s c h e ), e quando elas são repetidas é como se o ato sacrifical o compactamente, sem espaços em branco, sem reticências, sem inter­
fosse também. Esta é a razão por que é em torno das mesmas estórias rogações não respondidas, construído para impor o silêncio sobre o
que se contam e se repetem que uma comunidade se constitui, comu­ que lê. Discurso constituinte do mundo que Buber definiu como o do
nidade que em nosso jogo se chama Igreja: aqueles que, por amor a eu-isso, em que se f a l a sobre , todas as suas entidades sendo objetos de
uma estória, confessam o seu amor comum pelas mesmas coisas — as conhecimento, não importa que seja um verme ou um D eus...
mesmas esperanças que se teceram sobre o corpo de um afogado de Mas quando a estória se inicia um outro mundo vem a ser: o
2.000 anos. relato é curto, contado para quem está a caminho,- a linguagem é dire­
ta e poética, fazendo dançar um sem-número de sentidos possíveis,- e,
E os corpos que caminhavam sozinhos, de forma semelhante ao chiste, ele termina numa armadilha, que de­
desgarrados como ovelhas, sarma sobre o interlocutor, no inesperado da conclusão. E ele repenti­
se dão as mãos.,. namente descobre que a estória não fala sobre um objeto, mas é uma
Caminham na direção daquilo que não se vê. rede que o agarra, obrigando-o a uma palavra que seja uma confissão
Falharam os olhos, ou uma decisão. A estória não fala sobre algo. Não pertence ao mundo
falharam as mãos, do isso. Ela fala com alguém, estabelece uma rede de relações entre as
falhou a contemplação, pessoas que aceitam conspirar, co-inspirar em torno do fascínio do
falhou a técnica, que é d ito ...
falhou a ciência.
"Tudo bem", retrucarão os amantes do conhecimento. "Mas e a
Caminham na direção daquilo que não podem
verdade? Onde está? Será que, porventura, nesse jogo de contas de
ver, pela esperança.
vidro, o fascínio estético e existencial de um estilo de discurso toma o
Caminham na direção daquilo que não podem
lugar da fala sóbria e modesta da verdade?"
fazer, pela graça.
E dos corpos que caminham, Eu sei que esta questão continuará voltando sempre e nem pen­
corpos que gemem, so que ela possa ser resolvida. E é necessário levá-la a sério porque,

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V a r ia ç õ e s s o b r e a v id a e a m o r t e , A t e o l o g ia e a s u a ea la
E s t ó r ia s q u e d espert a m o a m o r

por bem ou por mal, o fato é que ela é invocada sem cessar na teolo­ Curioso que a bondade seja menos importante.
gia, e cabeças continuam a rolar, ainda que de forma mais discreta,
Curioso que os hereges sejam mais perigosos...
no altar da verdade. O silêncio de Teilhard de Chardin, a proibição
sobre Hans Küng, as ameaças que se misturam com processos de­ Mas assim é!
pendurados sobre teólogos... N o protestantismo continuam à solta Mas que fazemos com as estórias?
os caçadores de bruxas, mas o pior é a profundidade em que a into­ Onde está a sua verdade?
lerância penetrou, anônima, dentro da pele das pessoas. Lembro-me O que é uma interpretação ortodoxa de uma paraboía?
de que, quando trabalhava no meu livro Protestantismo e repressão, fi­
Que sentido único e unívoco se pode estabelecer perante as pos­
quei fascinado por algo que me pareceu um enigma curioso. Eu sa­
sibilidades polissêmicas de uma metáfora?
bia que, em virtude da doutrina da inspiração verbal das Escrituras
E os poemas?
sustentada pelos grupos mais conservadores, a exegese dos textos
deveria ser consistentemente literal. Mas eu sabia também que não As orações?
era isso que acontecia na prática. Certos textos tinham de ser inter­ Os salmos?
pretados literalmente. Outros podiam ser entendidos de outra forma. E descobrimos então que o que separa o dito verdadeiro da es­
Eu era capaz de separar os dois grupos de vextos, mas ignorava a tória é que o primeiro se confirma no campo da epistemologia, en­
regra para tal. Era um conhecimento prático. Assim, resolvi fazer quanto as estórias se verificam na esfera da bondade. "Tu sabes que há
listas dos dois tipos de passagens bíblicas. um só Deus. Também os demônios..." Mas o que está interditado aos
O mundo foi criado em seis dias,- o Paraíso foi um lugar preciso, demônios é contar as estórias que fazem nascer os sorrisos, e os gestos
localizado no tempo e no espaço- a besta de Balaão falou,-Jonas foi engo­ ternos, e as mãos pacientes...
lido por um peixe,- Maria era virgem,- Jesus andou sobre as águas etc. E que somos nós?
Se queres ser perfeito vai, vende o que tens, dá-o aos pobres... Aldeia de pescadores em torno de um afogado, e de nossas bo­
Se alguém lhe bater em uma face ofereça-lhe também a outra... cas saem as estórias que transformam as memórias e as esperanças, e
Se o teu olho direito te escandalizar, arranca-o... nada fica como era... Encantamento que faz ressuscitar a vida que já
estava morta.
O primeiro é o grupo dos textos que devem ser interpretados
literalmente. Negar alguma das afirmações que ele contém é negar a E poderá haver definição mais bela de verdade que a palavra
fé. Modernismo. que engravida as estéreis, faz renascer os mortos e transforma os de­
sertos em mananciais de águas?
Curioso que o mesmo não ocorra com o segundo grupo de tex­
tos. Não conheço nem um caso sequer de uma pessoa que tenha sido
excluída da Igreja por não haver repartido seus bens com os pobres...
Perceberam a diferença entre os dois grupos de textos?
O primeiro está todo no modo indicativo. Ele define a ordem do
conhecimento e da verdade.
O segundo está todo no modo imperativo. Define, o círculo da
bondade...

108
N a COMPANHIA DOS BUFÕES.

enho de confessar que não sei o que foi que fiz com aqueles uni­
T formes que, em outros tempos, davam ao teólogo profissional a
sua dignidade, marcando a gravidade do seu labor e a velhice séria da
sua profissão. Os colarinhos clericais brancos, as becas pretas, as ca­
pas doutorais coloridas, a linguagem erudita, símbolos perante os quais
os jovens alunos se calavam, respeitosos, e os leigos sorriam os sorri­
sos dos que reverenciam sem entender — não me recordo onde os
enfiei. É que andamos por lugares onde eles não serviam para nada, e
acabaram por virar cóntas de vidro rachadas, sem brilho, cacos sem
valo r... De fato, nos lugares por onde passou o teólogo em busca de
si mesmo não havia o que fazer com tais coisas:

nos desertos,
nas geleiras,
ao lado dos ventres abertos dos sacrificados,
preferindo as canções dos derrotados,
ouvindo as verdades dos hereges,
contando, para os vivos, estórias sobre os
V a r ia ç õ e s s o b r e a v id a e a m o r t e . A t e o l o g ia e a s u a fa la N a com panhia d o s bufões.

mortos, celebrando rituais mágicos, meio de seus chistes". Ao que o teólogo acrescenta: "Amém". O caleidos­
tudo isto como parte de um jogo em que o cópio é girado e "eis que tudo se faz novo, as coisas velhas desaparecem"
teólogo faz dançar as contas de vidro e (2Cor 5,17): os olhos começam a ver o que os outros não vêem. Cuidado!
as contas de vidro fazem dançar os teólogos É necessário dizer isto num sussurro. Quem vê coisas que outros não
e aqueles que os acompanham.
vêem e não vê coisas que os outros vêem corre o risco de ser trancado

O espanto apareceu quando, ao nos prepararmos para ouvir a num hospício — tal como as pessoas normais (cujos nomes se perderam)
sua voz, voz de quem freqüentou a dor e a solidão, voz que deveria ser fizeram com Nietzsche e Van G ogh... Os grandes pensam que crianças
um lamento, ouvimos vozes de crianças, o barulho dos brinquedos, o e bufões são personagens curiosos e divertidos dentro do seu mundo, sóli­
riso de palhaços, a algazarra da alegria. E eu até pensei que se tratasse do e firme. M al sabem eles que crianças e bufões são perigosos subversi­
daquela orgia/bacanal a que se referia Hegel, festa da Verdade, em vos jju e anunciam novos mundos e o seu riso... Bem, o seu riso — é
que todos estão embriagados (K a u f m a n n , 1866, III, p. 3)... como nos contou Andersen.
Ah!, dirão os senhores, o teólogo em seus momentos de lazer. É Havia, num distante país, muito tempo atrás, um rei vaidoso cerca­
compreensível. E necessário descansar de freqüentar a d or... do de ministros vaidosos. O rei combinava sua presunção com um
Mas o teólogo retruca, num protesto, que não é nada disso. Ele enorme prazer em roupas coloridas e brilhantes, o que não é inco-
não esta descansando, mas trabalhando. E nos segreda então que, para mum. Sabedores disto, dois espertalhões resolveram ganhar dinhei­
ver e falar, ele tem de abandonar a companhia daqueles que aprende­ ro à custa da vaidade dos maiorais do poder. Dirigiram-se ao palácio
ram a ver e a falar segundo manda a educação e o bom senso, sendo carregando uma arca que, segundo relataram, continha um tecido
forçado a procurar a companhia dos bufões, das crianças, sempre uni­ maravilhoso. Maravilhoso, em primeiro lugar, pela beleza do seu
dos pelo riso e pela irreverência. material e pelo brilho de suas cores. Maravilhoso, em segundo lugar,
Levamos um susto e pensamos que o teólogo ficou louco. N o que porque ele tinha a propriedade mágica de separar as pessoas inteli­
não estaremos totalmente errados, porque o teólogo vive num mundo gentes das pessoas estúpidas. Somente aquelas dotadas de um alto
em que todas as coisas estão de cabeça para baixo, em que o que é deixa grau de capacidade intelectual podiam yer o tecido maravilhoso. E
de ser e o que não é vem a ser, tal e qual o país maravilhoso da Alice cujos abriram a canastra. Diante de todos exibiram o pano que ninguém se
atreveu a não ver. O rei, o mais inteligente, foi o primeiro a se mani­
assombros Lewis Carroll, matemático/teólogo, nos contou,'É, Carroll
festar, deslumbrado, seguido dos ministros e das damas da corte que
nunca falou de Deus, mas do jeito como ele falava ele tinha de ser teólo­
esfregavam o material entre seus dedos, comentando a delicadeza
go. E por isso que os teólogos têm de fugir dos grandes. Quem, pela
do seu toque. E os dois foram contratados para fazer um uniforme
educação, ficou maduro (tal e qual o filho mais velho, da parábola), é boi
novo para o soberano que, em data nacional, desfilou perante seus
de carro, animal doméstico, eunuco, trocou as águias por tartarugas. M a­
súditos, todos eles inteligentes, e que viam a beleza da roupa nova
turidade é estado mental que se acomodou, cachoeira que virou charco,
do rei. Até que um menino, do alto de uma árvore, sem nada saber
pato selvagem que preferiu a gordura preguiçosa do milho doméstico,
sobre sua inteligência, mas acreditando muito nos seus olhos, soltou
prisioneiro que desistiu de fugir. O teólogo vive na companhia das crian­
um grito de espanto: — "O rei está nu",
ças e dos bufões, pois eles sabem que o brinquedo e o riso são coisa séria,
que quebra feitiços e exorciza a realidade. Octávio Paz entendeu isto E abriram-se os olhos a todos.
muito bem. "Os verdadeiros sábios não têm outra missão que aquela de E o riso, as gargalhadas vieram, espontâneas, saíram das ruas
nos fazer rir por meio de seus pensamentos e de nos fazer pensar por e entraram pelas noites adentro. E aqueles que tinham medo do rei e

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V a r ia ç õ e s s o b r e a v id a e a m o r t e . A t e o l o g ia e a s u a fa la N a com panhia d o s bufões.

tiravam o chapéu para os seus ministros puderam se rir da farsa do "É-vos necessário nascer de novo. Se não vos tornardes como
poder. E o poder ficou um pouquinho mais fraco porque uma criança, crianças não vereis o Reino dos C éus..."
estranha ao mundo dos adultos, fez o riso estourar. É por isso que os O que desejo sugerir, com esta conversa sobre crianças e bufões,
bufões estão sempre em perigo. E eles, sabendo disso, tratam de fazer é que o teólogo traz, na sua fala, as marcas do mundo dos brinquedos
rir por meio de parábolas: falam sobre o que é falando sobre o que não e dos risos. Crianças e bufões são mensageiros do Reino,- brinquedos e
é, para escapar ao castigo, mas piscando os olhos e sorrindo com ma­ risos são mais divinos do que normalmente julgamos. Sacramentos de
lícia, convidando o ouvinte a ver além ... uma ordem por vir, aperitivos do Reino de D eus...
Essas coisas não fui eu que inventei. É que o nosso afogado ti­ O teólogo fala como quem serve aperitivos. É este o seu estilo...
nha um brinquedo na mão. E os contadores de estórias nos disseram E seria próprio que me perguntassem se o estilo tem alguma
que ele gostava de crianças. Não queria que elas ficassem adultas. E importância. Se ele não passa de preocupação de literatos, simples
aos ja crescidos avisava que se não deixassem de ser como eram jamais pacote com que se embrulha a verdade...
veriam o reino dos céus. Teriam de voltar a ser crianças. Nicodemos
Aprendi com Kierkegaard.
se atrapalhou. Era homem adulto, respeitável, levava as coisas a sério,
O que importa não é 0 cfue é dito, mas como é dito.
ao pé da letra, e pensou que Jesus falava de obstetrícia. Ao que ele
retrucou: "Não é obstetrícia, Nicodemos, é o vento. O vento sopra.. D aí sua fórmula enigmática: "verdade é subjetividade".
E ele deve ter ficado mais confuso ainda. As palavras certas do cristão ortodoxo se transformam em men­
As crianças vêem coisas que os adultos não podem ve r... tiras, e as blasfêmias do idólatra se metamorfoseiam na mais pura pre­
ce. A dádiva brota das mãos que a carregam.
O que me faz lembrar do final enigmático e m ítico de 2004 ~
Uma odisséia no espaço-, fim da viagem espacial, mergulho em profun­
H á uma verdade que as palavras não podem dizer, porque ela
habita os silêncios e os espaços vazios da linguagem. Semelhante àquilo
dezas e distâncias nunca dantes atingidas, por este universo afora.
que ocorre na música. Todos os compositores tiveram ao seu dispor as
Em busca de um mistério, que chamava o homem desde os tempos
mesmas notas do piano. Mas ninguém que tenha freqüentado o mun­
imemoriais em que ele habitava com o medo, nas cavernas escuras
do da música, ainda que por pouco tempo, confundirá Bach, Chopin,
pelas noites adentro... E ele chega onde não esperava chegar, num
Debussy, Prokoffief... O mesmo ocorre com aqueles que compõem
mundo encantado de nebulosidade onírica: o viajante se descobre
mundos com o auxílio das palavras. A diferença não se encontra nas
em sua própria casa. E lá está ele assentado, silencioso, tomando o
palavras. São sempre as mesmas. Estão lá, inertes, nos dicionários. E
seu cafe matutino. Mas, repentinamente, um movimento em falso
nem nas regras da sintaxe... E com coisas que são as mesmas o esfílo
derruba a taça de cristal, que se quebra. E é com a taça de cristal que
inconfundível do autor constrói o seu mundo, único entre muitos.
se quebrou que a cena se transporta do cotidiano tranqüilo do café
Quem confundiria Guimarães Rosa com José de Alencar, C ecília
matutino para o leito final do velho acabado, à espera da morte.
Meireles com Graciliano Ramos?
Mas a cena muda de novo, do leito de morte para os espaços do
universo, onde alguma coisa se alterou. Lá, no meio dos sóis e dos H á o estilo do cientista,
mistérios, há uma nova presença: um feto, olhos enormes, silencio­ do jurista,
sos, tranqüilos, extasiados, contemplando tudo como se fosse pela do vendedor,
primeira vez, primeiro olhar, flutuando, como se estivesse ao emba­ do sacerdote,
lo dos líquidos quentes do ventre m aterno... e eu me lembrei: do general,

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N a com panhia d o s bufões.

do inquisidor,
E eu estou sugerindo, como bufão e como criança, que o estilo
do banqueiro...
da teologia é o estilo do riso, não importa que ele brote das cantigas
Estilos que carregam
certezas, de roda ou da visão do rei nu... O riso é o sacramento que faz com
princípios abstratos, que crianças e palhaços andem de mãos dadas, muito embora seus
cálculos de lucros, risos sejam diferentes.
cheiro de incenso, O riso dos palhaços é o riso zombeteiro, que desenha bigodes
tropel de cavalos, , no rosto solene de presidentes e usa botas de guerra como vasos de
gritos de dor, flores, proclamando que as coisas podem ser diferentes...
cifrões...
O riso das crianças é o riso do corpo que exulta na sua própria
E ha o estilo dos bufões e das crianças, que carrega consigo o nudez, que nada tem do que se envergonhar, que brinca com os raios
riso que desnuda os ídolos, e o brinquedo que cresce com o prazer. de so l...

O que têm bufões e crianças a dizer sobre Deus? O riso dos palhaços mata dragões e transforma leões em lagartixas...

Creio que nada. O riso das crianças é o riso do corpo que, livre dos dragões,
pode amar e voar...
Como justificar a dignidade teológica para o seu estilo?
Ós palhaços gargalham e os maus espíritos fogem, amedronta­
E simples. E que me perdoem a analogia. Acontece aqui aquilo
dos.. . Sabiam? Os demônios são sempre graves. Foi assim que Nietzs-
que acontece com aqueles que se alegraram com o vinho. Não é a sua
che os viu. Diz-nos que quando se encontrou com o seu demônio
fa la sobre, o que dizem acerca do vinho que dá testemunho de haverem
achou-o sério, comedido, profundo, solene. Gravidade que vira gra­
eles bebido do fruto da videira. É antes aquilo que o vinho, silencioso,
videz de onde nascem os ídolos... Pelo seu peso, todas as coisas caem ...
faz com que eles digam: a alegria, o riso... A marca não se encontra
no conhecimento, mas no estilo. Livres dos maus espíritos, as crianças riem, e o corpo velho res­
suscita, volta à infância, descobre o prazer, e quanto mais ri mais vo a ...
O que esta em jogo não e o que os bufões e crianças dizem
sobre o Espírito, mas antes o sopro misterioso do Espírito que os toç- E necessário explicar, pelo menos para os que têm medo de brin­
na bufões e crianças.., \ car. E vamos chamar Freud, adulto que compreendeu as mensagens
E eles falam. ° dos brinquedos e as intenções das gargalhadas. Ele vai nos contar que
somos seres especiais, diferentes de tudo o mais que existe neste mun­
Sobre o quê? ,xí1/m<
a °
do maravilhoso. Porque nós, sem exceção, padecemos de uma doença
Não importa. Sobre qualquer coisa. A teologia não se encontra ' para a qual não há cura. E que vivemos em dois mundos ao mesmo
no cfue se diz, mas no como se diz. O chiste mais saboroso deixa os tempo, mundos de linguagens, leis e costumes diferentes e que nos
rostos imóveis se ele é anunciado no estilo do sacerdote, enquanto o provocam uma enorme confusão. Porque o que é, em um, não é, no
bufão, antes de dizer qualquer coisa, já provoca o riso, porque o seu outro,- o que um proíbe, o outro exige,- o que num causa riso, no outro
estilo anuncia o côm ico,.. Falar com rigor e seriedade sobre o vinho provoca choro. E vivemos assim, todos nós, divididos entre estes dois
testemunha que aquele que fala não bebeu vinho. Falar sobre Deus mundos, que nos atravessam tanto o corpo quanto a alma. N a lingua­
com a mulher amada nos braços é, no mínimo, falta de bom gosto.. gem de Freud, um é o mundo em que o princípio do prazer domina su­
Pelo menos era isso que dizia Bonhoeffer... premo, enquanto o outro se encontra sob o controle do princípio da
V a r ia ç õ e s s o b r e a v id a e a m o r t e . A t e o l o g ia e a s u a fa la N a com panhia d o s bufões.

realidade. O princípio da realidade tem a ver com as coisas que efetiva­ O riso é um aliado do desejo. E se ele estoura de repente é por­
mente acontecem, estando sempre presente no mundo da economia, que, num certo momento, o desejo vislumbrou a possibilidade de sub­
da política, da guerra, das íeis. O princípio da realidade é aquilo que nos versão do princípio da realidade, seu inimigo final.
obriga, do qual é impossível fugir. E é justamente daí que ele deriva o Por que é que gargalhamos ao final de uma boa piada?
seu nome: princípio da realidade. Acontece que, por razões que não E há a estória do casal de velhinhos que foi a um médico, geriatra,
sabemos explicar, os homens não conseguem aceitar a realidade tal na esperança de hormônios miraculosos e de geléias reais que fizes­
como ela e, seja a realidade das leis físicas, das leis sociais, do nosso sem renascer o vigor do corpo... E o medico, depois de examina-los
próprio corpo... E é por isso que a nossa mente voa, nas asas da ima­ cuidadosamente, escreveu a sua receita, e explicou tudo, tintim por
ginação, buscando a abolição daquilo que existe e sonhando com ou-v tintim, coisas para ser tomadas, coisas para ser feitas, coisas para ser
tro mundo em que a felicidade e o prazer reinariam, supremos... A evitadas... E mandou que os dois experimentassem a receita mágica
imaginação é sempre subversiva, porque as exigências do prazer im­ por um mês, e voltassem depois, para ver como é que os corpos ha­
põem a destruição das coisas que existem e o começo das coisas que viam reagido à sabedoria de Hipócrates. E qual não foi sua surpresa ao
não existem ainda. ver, na data da nova consulta, uma velhinha nova, faceira e sorridente,
E por isso, porque a imaginação é subversiva, que o princípio da de rosto alegre e descontraído, até mais lépida e falante... E o velh i­
realidade trata de domesticá-la. O princípio do prazer v iv e sob o império nho, como se tudo tivesse tido efeito contrário com ele, pernas bam­
da repressão. E esta é a razão por que o prazer é incapaz de se articu­ bas, mãos trêmulas, olhar preocupado... E o médico tratou de desco­
lar como linguagem corrente e diurna. Nos limites da realidade, as brir o que tinha acontecido de errado, pois não era possível que uma
exigências do prazer devem ser esquecidas, o corpo deve ser mantido mesma causa tivesse produzido efeitos tão opostos. E perguntou de
sob controle: criamos escolas e prisões. Escolas, para domesticar os cá, perguntou de lá, até que achou o equívoco.
corpos ainda fracos, convencendo-os a se esquecerem de si mesmos e "Mas é isso que acontece com quem não sabe ler direito! Mando
a se entregarem às exigências da realidade, sob a ameaça de castigos o senhor comer aveia três vezes por dia e o senhor come a véia três
presentes e a promessa de recompensas a se realizarem num futuro vezes por dia?..
distante. Prisões, para acorrentar os corpos fortes que não foram do­ Imagine qualquer piada. A estrutura é a mesma. O riso nasce na
mesticados e permaneceram selvagens. surpresa. É necessário construir uma expectativa no ouvinte. E a ex­
Proibido de aparecer, o princípio do prazer se esconde nos lu­ pectativa aumenta num crescendo constante. E a conclusão é sempre
gares escuros e se insinua nas brechas. Somente depois de trancado o algo inesperado, mas absolutamente lógico... N a preparação o con­
quarto, apagada a luz, desligados os pensamentos do princípio da rea­ tador estende as redes do princípio da realidade. N a conclusão ele
lidade, é que ele irá aparecer, assumindo forma nos símbolos que dan­ frustra aquilo que poderia ser esperado, e é como se o plano da reali­
çam em nossos sonhos. Por vezes ele se insinuará, sorrateiro, no meio dade fosse interrompido por outro que o completa, subvertendo-o e
da nossa conversa, provocando trocas de palavras que nos deixam dando-lhe um final que vem dos subterrâneos do principio do prazer.
ruborizados, porque todo mundo percebe que é justamente no equí­ Não é por acaso que os chistes prefiram colocar, no lugar do
voco que se encontra a verdade. Foi ali que o desejo se manifestou. E tombo que produz o riso, na maioria das vezes, símbolos diretamente
assim vai ele, andando às escondidas, atacando de repente, como se ligados aos subterrâneos do inconsciente. Não é curioso isso, que jus­
fosse um guerrilheiro, surpreendendo, assustando, pulando de dentro tamente aquilo que seja proibido seja o lugar da gargalhada? E é assim
da caixa como o palhaço de moía, e é aí que o riso estoura... que a piada lança mão dos órgãos e funções sexuais, das partes
V a r ia ç õ e s s o b r e a v id a e a m o r t e . A t e o l o g ia e a s u a f a ia Na com panhia d o s bufões.

vergonhosas do corpo, do grotesco de reis, presidentes, generais, car­ dos vilões. A confusão é total. As leis da realidade são abolidas. O
deais, em resumo, daquilo que não deveria ser, não deveria aparecer, mundo ficou louco. Entramos no mundo de Lewis Carroíl.
não deveria ser dito, como conclusões inesperadas e subversivas das Talvez no mundo de Jesus Cristo.
redes de expectativas tecidas pelo princípio da realidade. Não era isso que ele fazia, ao contar aquelas novelas-relâmpago
E como se disséssemos; "Coisa que permite finais tão cômicos chamadas parábolas? Curioso que nãó percebamos o humor icono­
não pode ser sagrada. ídolo não pode ser. Brinquedo, talvez..." clasta que elas contêm, e as leiamos com a entonação piedosa das
E isso: o riso dos bufões transforma os ídolos dos sacerdotes, as coisas sagradas.
coroas dos reis, as espadas dos generais...
Fariseu e publicano.
... em brinquedos. É como se Jesus dissesse:
Nada de causar medo. "Vejam só a nudez daquele que pensa estar vestido e o recato
Coisas humanas, bem humanas,
daquele que todos pensam estar nu..
Nem divinas, nem demoníacas.
O bom samaritano.
O cômico se encontrava justamente nas máscaras solenes que
"Então os senhores pensavam que São Jorge defenderia a donzela
usavam. Tiradas as máscaras, vai-se o cheiro do sagrado... E é isto que
contra o ataque dos m alfeitores... Mas ele preferiu poupar sua lança.
torna bufões e palhaços temidos. Eles sentem o suor de gente por
Foi o dragão — isso mesmo, o dragão — que os pôs a correr e condu­
detrás das fantasias dos deuses, e os que queriam fazer-se passar por
ziu a jovem indefesa até sua casa..."
deuses se descobrem, repentinamente, pegos em sua farsa... E aí ex­
plode o riso dos que eram atemorizados pela farsa, e o ódio daqueles O Filho pródigo.
cuja farsa foi desmascarada. N ão é de causar espanto, portanto, que "E o filho mais velho, perfeito em todos os sentidos, desejado
bufões e palhaços freqüentemente sejam lançados nas prisões, onde, como genro por todas as mães de filhas casadoiras, não largava por
não raras vezes, compartilham as mesmas celas com os profetas. E que nenhum momento, por breve qué fosse, dó enorme livro no qual fazia
o riso de uns e a denúncia dos outros brotam das mesmas fontes e a honesta contabilidade dos seus créditos e dos débitos alheios... E
realizam as mesmas coisas. para não deixar cair o livro-caixa não estendeu a sua m ão... E a vara
Ja imaginaram a possibilidade estranha de que o príncipe encanta­ mágica, que tudo transforma, passou adiante... Mas seu irmão, sem
do, lá da estória da Branca de Neve, viesse a se apaixonar perdidamente eira e nem beira, mãos vazias, sem nada ter para perder, por já haver
pela bruxa malvada, casando-se com ela, tendo muitos filhos e vivendo perdido tudo, ali ficou, mãos abertas, sem nada pedir ou esperar... E
feliz para sempre? E se o lobo, se transformasse1no defensor dos três aquilo que ele não buscou caiu-lhe nas mãos...
porquinhos, incansavelmente perseguidos por Chapeuzinho Vermelho e Assim caminham os bufões, quebrando ídolos, zombando das
sua avó, que desejavam transformá-los em presunto? E se o dragão de São certezas, tornando-nos livres para nos rir de nós mesmos, sem o que
Jorge se metamorfoseasse numa linda donzela? Que aconteceria com o não é possível brincar...
santo, treinado a vida toda para dar combate à besta, diante da insinuante "A tradição e as boas maneiras mandam lavar as mãos? Mas já
mulher, sem saber o que fazer com lança e armadura? vos esquecestes de por onde passa e onde vai parar aquilo que entra
Finais absurdos, é claro. Cômicos, ridículos, inesperados. Tudo pela boca do homem? O caminho que importa não é o que vai de fora
fica de cabeça para baixo, e já não mais sabemos distinguir os heróis para dentro mas o que vai de dentro para fora...

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V a r ia ç õ e s s o b r e a v id a e a m o r t e , A t e o l o g ia e a s u a fa la N a com panhia d o s bufões.

"De fato, é impressionante o vosso pedigree espiritual. Filhos de trinas. E até mesmo a teologia, sob seu encanto, se torna coisa sagra­
Abraão, sem dúvida. Mas as prostitutas (e quem sabe os seus filhos) da. E foi por isto que em seu nome se queimaram corpos e em seu
vão entrar no Reino de Deus antes de vós.. nome se fazem fechar as bocas dos que dizem palavras novas. Os
bufões, ao contrário, começam a espirrar com o cheiro do incenso e
E o povo se ria da cara espantada e indignada dos maiorais.
transformam em piadas aquilo que os sacerdotes sacralizam, exorci­
"Como são grotescos os que põem as máscaras da tristeza quan­
zando assim os demônios da seriedade e da reverência. E quando a
do jejuam e as faces de piedade quando oram ..."
reverência se transforma em riso os ídolos são despedaçados e os seus
"Como será o Reino de Deus? Tudo de cabeça para baixo. Os adoradores, descobertos em sua farsa, se voltam contra os bufões.
adultos viram crianças, os que têm poder se põem a íavar os pés dos Você entende agora por que dissemos que o teólogo é bufão?
mais fracos, os que estavam nos tronos são depostos, os sábios ficam Quem sabe o segredo do nome sagrado, nome que não pode ser
tolos e os tolos ficam sábios, os que choravam começam a rir e os que pronunciado, o nome de Deus, sabe que tudo o mais não pode
riam se põem a chorar.. ser sagrado, Tudo o mais é dádiva, graça, brinquedo... E é por isso
Quem poderia levar a sério absurdos como estes? que a boca que balbucia uma prece diante de Deus é a mesma boca
que explode em riso perante os sinais de honra com que os homens
Tudo o que é sólido, tentam esconder suas vergonhas. O palhaço é a face alegre do mes­
tudo o que é aceito por todos, mo que sacrifica, no altar...
tudo aquilo que está além das dúvidas,
O encontro com o sagrado... O riso que despedaça os ídolos...
tudo o que é certeza
se torna motivo de riso. E o mundo, livre dos ídolos, se transforma em jardins dos praze-
Antes de mais nada, res: tudo é permitido, desde que o nome sagrado continue a ser invo­
rir das certezas. cado em silêncio e o ruído do riso continue a exorcizar dem ônios... E
o trabalho, e o pão, e o vinho, e a dança, e as canções, e as carícias, e
Elas freqüentam as fogueiras da inquisição. Inquisidores, juizes e o vento, e os pássaros, e os lírios dos campos, e o cheiro dos romãs
carrascos são sempre sérios. Claro. Se eles se rissem de si mesmos, não depois da chuva e da bem-amada antes do amor, e o descanso, e o
teriam coragem para fazer outro, também merecedor do riso, sofrer. O sábado, e a utopia do Reino de Deus, e viu Deus que tudo era muito
riso caminha de mãos dadas com a tolerância. O que me faz suspeitar bom, e o seu coração se alegrou vendo a alegria dos homens, a quem
que o riso seja a face alegre da confissão de pecados. Pois o que é o ele amou e criou, para a felicidade, a liberdade...
perdão? Não participa ele da estrutura do chiste? Perdão-, golpe inespe­ Mundo que é brinquedo...
rado que a graça aplica sobre as expectativas que a vida construiu. Ex­
plode a gargalhada e os demônios fogem, com seus livros-caixa...
Dizia Kolakowski que em toda sociedade encontramos pelo me­
nos dois tipos de atores. D e um lado, os sacerdotes. D o outro, os
bufões. Os sacerdotes carregam turíbulos em suas mãos e por onde
passam espalham um cheiro sagrado que obriga as pessoas a se ajoe­
lharem. E eles lançam suas redes de reverência e respeito sobre reis,
bandeiras, generais, instituições, costumes e tradições, crenças e dou-

122
E DAS CRIANÇAS

ão faz muito tempo que eu me dei conta da importância teoló­


N gica do brinquedo. Que a tolerância e a generosidade sejam con­
sideradas marcas do Espírito, compreende-se com facilidade. Mas que
o brinquedo possa ser apresentado como uma virtude teologal parece
insólito e ofensivo à grave tradição do estilo teológico de, viver e de
pensar. Tudo começou quando recebi uma consulta surpreendente.
Um a congregação presbiteriana me convidava para pregar. Surpreen­
dente porque já havia muito tempo ninguém tinha coragem para tan­
to, e a minha solidão e o meu silêncio me assombravam nas manhãs
de domingo, outrora tão cheias de palavras. Aceitei; E me prometi o
seguinte. Não diria qualquer coisa chocante. Não bancaria o profeta.
Deixaria em casa fósforos e marretas^ Não quebraria ídolos e nem
incendiaria casas. Pelo menos uma vez queria que as pessoas sorris­
sem e não me denunciassem como herege.
E me pus a procurar um texto. E lembrei-me de Jesus, doce e
sorridente, dizendo: "a menos que deixeis de ser como sois e vos torneis
como crianças, nunca entrareis no Reino dos Céus". E me decidi a
pregar sobre crianças porque imaginei que sobre elas seria impossível

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V a r ia ç õ e s s o b r e a v id a e a m o r t e . A t e o l o g ia e a s u a f a ia E DAS CRIANÇAS

dizer qualquer heresia. O resultado foi catastrófico e terminei sendo mundo dominado pelo princípio do prazer e somente o abando­
acusado de corruptor dos costumes. E que não percebi, à primeira nam quando a isto forçadas pelas pressões que lhes vêm do mundo
vista, que o texto não fala sobre crianças. Ele fala é sobre os adultos. adulto. Elas acreditam na onipotência do desejo e transformam as
M aldição sobre os crescidos. Interdição de sua presença no Reino. fantasias que ele produz em coisas e atividades, no mundo lúdico
Jesus se ri dos adultos e os convida a brincar.., E eles ficam sem saber em que habitam. O brinquedo, como atividade que é um fim em si
o que fazer com suas coisas sérias, tais como investimentos na bolsa mesma, é nada menos que uma expressão da busca infindável de
de valores, teses de doutoramento e insônias, coisas que a criançada um mundo a ser amado, busca que marca todas as operações do
não conhece. ego. N o brinquedo encontramos os aperitivos , as presenças anteci­

Convite para o brinquedo. padas de um mundo por que se espera e se deseja. N o brinquedo o
amor abole as leis da realidade e a reconstrói segundo os modelos
O que é uma criança?
que o desejo sugere, através dos sonhos e das fantasias. E é disso
Parece que o mito de sua inocência e sua pureza morreu faz que advém a sua significação psicanalítica. N ão é por acaso que
muito tempo. Freud foi o coveiro. Exemplos de amor também não analistas que trabalham com as crianças, em vez de simplesmente
são. Seu narcisismo é por demais evidente: só vêem a si mesmas. Se pedir que elas se ponham a falar, sugerem que elas se ponham a
existe algo que lhes é característico é sua capacidade para brincar. brincar. Eles sabem da densidade simbólica e do caráter reveíatório
Mas o que é isso, brinquedo? daquilo que se faz brincando. Se eles adotam com os adultos outra
Brinquedo é uma atividade não-produtiva. Ele não tem por ob­ técnica e os põem a falar é porque, sob o domínio da repressão, já
jetivo a produção de qualquer objeto. não temos coragem de fazer dançar os nossos desejos — a não ser
em situações em que isso é socialmente perm itido, como no fu­
Mas qual é a razão por que as crianças brincam, se ele não pro­
tebol, no carnaval, na liturgia. Em todas essas situações é no b rin ­
duz coisa alguma?
quedo que estamos metidos: o corpo f a z os seus desejos, ainda que
A resposta é simples. O brinquedo não produz objetos, mas para isso a realidade tenha de ser abolida, por meio de um artifício
ele produz prazer. Se a palavra prazer parece por demais erótica e de faZ -de-con tas . O que, de novo, nos faz cruzar o cam inho com o
sensual podemos muito bem usar uma outra, dotada de maior res­ mágico e revela nossa estranheza em face do mundo das pessoas
peitabilidade teológica: alegria. Talvez a natureza do brinquedo possa sérias como banqueiros, generais e cientistas... O que está em jogo
ser esclarecidá se nos lembrarmos da distinção que fez Agostinho é o lugar onde colocam os o desejo : "onde estiver o vosso tesouro, aí tam ­
entre coisas cjue devem ser usadas e coisas <\ue devem ser desfrutadas. Quando bém estará o vosso coração" — palavras de Jesus, se não me enga­
eu uso algo, este algo é sempre um meio para outro objetivo, não no. Se nosso corpo dança ao som de uma música que poucos ou­
importa que eu esteja usando coisas, pessoas ou palavras. Mas, quando vem, que nos vem do futuro, nas asas da imaginação e da esperan­
eu desfruto alguma coisa, este desfrutar é sempre um fim em si mes­ ça, ou se ele se deixa engordar e domesticar pelas panelas de carne
mo. Brinquedo é isto.- um fim em si mesmo, para ser desfrutado, algo do Egito e o medo da peregrinação pelo deserto... H á os que se
que distribui o prazer. sentem em casa no mundo, tal como ele é. Pessoas felizes, nor­
Vocês sabem que o prazer é o princípio determinante da vida mais, sem problemas: sólidas, sem insônias, ajustadas, não gasta­
da criança. Bergson comenta, não sem uma pitada de nostalgia: rão seu tempo com angústias e nem o seu dinheiro com psica­
"Q ue infância teríamos tido, se nos tivessem perm itido fazer o que nalistas. Seus valores são os fatos. Desconhecem a dor do desejo, a
desejávamos!" Com o que Freud concorda. As crianças vivem num solidão da nostalgia, o vazio das ausências. E perguntam:

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"Amor, que é isso? E criação, o que é? E nostalgia?" velho da parábola, que oferecia como credenciais de sua identidade
Estas são as perguntas que Nietzsche coloca na sua boca, deste espiritual aquilo que ele havia produzido, contabilizado agora como
a quem ele dá o nome de último homem, incapaz de dar à luz uma crédito seu e dívida do p ai... N ão é de causar surpresa que ele justa­
estrela. Mas há também aqueles a quem Zaratustra comanda: "Exila­ mente se indignasse com a festa — brinquedo de muitos — em que
dos sereis em todas as terras. a graça do pai oferecia àquele que nada havia produzido a alegria do
prazer. Brinquedo e prazer são companheiros permanentes do amor,
O que está em jogo é o lu$aronde colocamos o desejo, se nas presen­
da mesma forma como no mundo marcado pela produção o amor é
ças ou nas ausências, se nas certezas ou nas esperanças. E todos aque­
caçado como subversivo.
les que colocaram o seu amor nas esperanças estão condenados a tri­
lhar o mesmo caminho que o mágico. Por mais diferentes que sejam Tudo em nosso mundo tem a maldição da lógica do filho mais
as coisas que seus corpos fazem, em seus corações arde o desejo de velho. O problema é muito antigo e parece que o equívoco já se encon­
que a realidade seja abolida. E é exatamente a nostalgia do exilado e o trava na cabeça de Adão e Eva. Tiveram medo de se entregar à vida, no
gesto do feiticeiro que se anunciam pela primeira vez no brinquedo, total despojamento e na absoluta falta de credenciais de sua nudez.
quando as crianças, no jogo de faz-de-contas, transformam o que é no Preferiram um grande ato, ato que fosse uma conquista, um crédito,
que não é e o que não é naquilo que é .,. uma justificativa... Acontece, entretanto, que aquilo que em outras épo­
cas foi ato de indivíduos isolados que tomaram a decisão, em nossa
O que leva a criança também muito próxima do gesto sacerdotal
sociedade tomou forma objetiva, como exigência do funcionamento de
que toma o pão e o vinho e diz, repetindo o que a tradição nos legou,
nossas instituições. Entre nós, tudo se transformou em m eio...
que eles são o corpo e o sangue de Cristo... Brincadeira de faz-de-
conta? Transubstanciação, metamorfose do real pelo poder da imagina­ Parece que a grande metamorfose começou com o triunfo da bur­
guesia. N a idade Média, a identidade de cada um era dádiva dos deuses
ção e pela intensidade do desejo... E o pão e o vinho passam a trazer
e não tinha coisa alguma a ver com aquilo que as pessoas faziam. Os
consigo o gosto bom de um banquete que está para ser servido...
nobrés o eram por nascimento, e também os miseráveis da terra, e nada
N o prazer, cessam as mediações.
podia alterar este fato, decretado por Deus, a quem pertenciam os cor­
O prazer não é um meio para uma outra coisa. O contrário é o pos e as almas de todos. Mas aí apareceu um grupo diferente de gente
verdadeiro. Tudo é meio para que a nostalgia do amor encontre o diligente, que não estava nem em cima e nem embaixo, gente que tra­
objeto desejado. N o prazer o desejo chegou ao seu destino. Não é balhava com afinco, dia e noite, e lia, nas horas vagas, as cartilhas calvi-
exatamente isso que dizemos acerca do amor? Falamos em jogos amo­ nistas, nas quais aprenderam que a riqueza era o sinal visível da graça
rosos — e o dizemos muito bem. Nos jogos do amor os corpos alcan­ invisível da salvação — quanto mais rico mais salvo, quanto mais salvo
çam sua mais alta significação teológica, porque af eles se livram da mais rico — , e a identidade das pessoas deixou de ser medida por seu
maldição de ser meios, para se tornarem puramente fins em si mes­ nascimento e passou a depender do seu trabalho. Por nascimento nin­
mos. Cada corpo é um brinquedo brincante, que usufrui e faz usu­ guém sabe ainda quem é. Isso só vai se revelar na diligência do trabalho
fruir. .. Pena que Agostinho, a quem amo e respeito profundamente e no sucesso nos negócios. E foi assim que a identidade passou a ser
como irmão mais velho, não tivesse se permitido sorrir diante dessa coisa dependurada nos ganchos da riqueza, porque diligência no tra­
dádiva de Deus, transformando o jogo sexual do amor em simples meio balho e sucesso nos negócios são coisas que se medem por meio dos
para um fim demográfico: a reprodução e a população dos céus... lucros. E essa nova estirpe de santos ricos aprendeu logo que o corpo é
Usufruir sem produzir: negação radical de tudo aquilo que con­ mau conselheiro em assuntos de riqueza e de trabalho, pois prefere
sideramos normal e decente. Com o que concordaria o filho mais gastar a ganhar, prefere o ócio ao suor, prefere o prazer à disciplina.

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E DAS CRIANÇAS

Mas é necessário reconhecer que entre nós o corpo nunca teve dos Cânticos. Isso não deveria acontecer. Protestantes fundamentalistas
muitas chances. Os gregos sempre o mantiveram sob suspeita e o ve­ deveriam colocar no mesmo nível os poemas eróticos de Salomão e a
nerável Platão o comparou mesmo a um cavalo fogoso e desenfreado abstrata cristologia/cosmologia de Paulo. Serão conservadores o bas­
que deve ter na boca os freios da razão, sábia e repressora. E a partir tante para afirmar que o livro foi inspirado. Mas não o bastante para
daf o conflito terrível que nos racha passou a ser entendido não como lê-lo perante as congregações. E só o farão por meio dos artifícios
uma luta entre desejos de amor e desejos de ódio, como acontecia entre os alegóricos que transformam os corpos de um homem e de uma mu­
hebreus, mas antes como luta entre os desejos em geral, perturbações lher em algo que nem é corpo, nem é homem, nem é m ulher... E foi
do corpo, de um lado, e, de outro, o tranqüilo não desejar/contemplar desta humilhação permanente imposta ao corpo, não só por meio das
da razão que, por ser destituída de pele, de genitais, de ouvido e boca, palavras, mas por meio do medo da carícia, das abstinências e fla­
não sabe o que o Eros da carne significa. gelações, que surgiu aquele riso/choro de Nietzsche: "O santo em que
Somos assombrados pelo medo do corpo. Deus se deleita é o eunuco". Os cristãos se enfurecem, dizendo: "Blas­
Talvez porque saibamos que tudo, no corpo, grita contra o do­ femou contra Deus". Mas eu lhes pediria apenas um pouquinho mais
mínio. Todo corpo grita por liberdade e prazer. E os maridos têm de sutileza. Quando Nietzsche fala sobre Deus, ele fala é sobre o cris­
medo de que, nas suas mulheres, o corpo acorde. E as mulheres sen­ tão e seu discurso teologaí. Tranqüilizem-se. Deus não se sentiu ofen­
tem o mesmo em relação aos filhos. E ambos se aliam para conspirar dido. O grito não foi dirigido contra ele.
contra o corpo dos filhos que um dia se aliarão para conspirar contra
os corpos dos pais. Duvidam? Por favor, que leiam a terrível obra de Aqui estão os sacerdotes. E, muito embora eles sejam meus inimi­
Simone de Beauvoir sobre a velhice. Todos amam os velhinhos man­ gos, passo por eles em silêncio, com espadas adormecidas. Eles de­
ram o nome de igrejas às suas cavernas de cheiro adocicado. Oh!
sos, sorridentes, pacientes, que não mais se pertencem, perderam a
Aquela luz falsificada... E a tudo aquilo que lhes era contrário e lhes
vontade e se entregáram à vontade dos outros. Mas ai daquele que, de
produziu dor deram o nome de Deus... O espírito desses redentores
repente, sentir o amor desabrochar de novo em.seu corpo, e o desejo
era nada mais que um agregado de buracos,- e, em cada buraco, ali
de carícias e arrepios e cócegas eróticas... Dirão os jovens que não
colocaram o seu engodo, o seu tapa-buracos, a que deram o nome
passa de um sem-vergonha que perdeu o juízo.
de Deus. E lá ele está, doente, miserável, malevolente contra si mes­
E o corpo foi sendo levado, de humilhação em humilhação. mo, cheio de ódio contra as fontes da vida, cheio de suspeitas contra
O venerável Agostinho, propondo a domesticação do desejo, tudo o que ainda é forte e feliz. Em resumo, um "cristão"...
por meio da razão.
Se não gostaram, que voltem a Bonhoeffer, porque tudo está lá,
O que levou o não menos respeitável Erasmo, séculos depois, a
ainda que camuflado, mais ao paladar sensível das gentes de Igreja...
dizer que o corpo não passava de uma prostituta. E Lutero, movido
por justa indignação, retrucou que se havia prostituição ela não estava E o terrível é que essa humilhação do corpo não é apenas algo
no corpo, mas na razão. que esteja presente nas palavras de filósofos e teólogos. Se o proble­
ma fosse apenas uma questão de palavras, poderia ser resolvido com
E Kant irá contribuir para o sepultamento, lançando também
facilidade. Acontece que nunca existe isso de "apenas uma questão de
sua pá de terra sobre o corpo agonizante.
palavras", porque as palavras estão coladas à realidade, da mesma for­
Os exemplos podem ser multiplicados, sem fim.
ma como a pele está colada ao corpo. E descobrimos que a humilha­
O cristianismo foi cúmplice. Nunca nos sentimos à vontade com ção do corpo não é um assombro lingüístico mas um fato político.
o corpo. O que explica o silêncio dos pregadores sobre o livro Cântico Segundo W eber é a própria "racionalidade" do sistema de produção

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E DAS CRIANÇAS
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que o exige. Reprime-se o corpo por amor à eficácia. O corpo, por si, ceu com o corpo? Bem, não importa. Afinal de contas, ele é apenas um
meio; mais precisamente, um meio de produção, ao lado de teares e de perfu-
é ineficaz. Ele não está em busca de objetos,- só deseja o prazer. Esta é
à razão por que o corpo dos operários, numa fábrica, tem de ser repri­ ratrizes. O brinquedo e o prazer? Reduzidos à condição de atividade
mido. Decreta-se o fim do tempo biológico: despertar quando não necessária para que o corpo se mantenha no seu nível ótimo de produ­
mais se tem sono, comer quando se tem fome, brincar quando se quer, tividade. O direito do trabalhador às férias é, na verdade, um nome
descansar quando o cansaço... As fábricas instalam apitos cujos silvos agradável para a necessidade de um meio de produção à manutenção,
cortam a cidade, e o ritmo dos corpos segue o ritmo das máquinas. E tal como acontece com aviões, que de tempos em tempos param de
se fabricam relógios, símbolos da derrota e da escravidão, que as pes­ voar, e são mandados para a revisão.
soas compram e usam, como símbolos de status. E Marx sugeria antes Justificação pelas o b r a s parece-me que esta lógica está profunda­
a mesma coisa, mostrando que o capitalismo tem uma moralidade, mente enraizada na crueldade da nossa sociedade. Se a atividade é
que é o imperativo da abstenção. Não é assim que o capital se forma, apenas um meio para um determinado fim , o que ocorre na ação não
por meio de constantes e disciplinadas abstenções, a que damos o importa, desde que os fins sejam desejáveis. Tortura, ditadura, des­
nome de "poupança"? E o corpo, como ser erótico brincante, se reduz truição dos rios, poluição do ar, liquidação de nossos recursos natu­
à condição de puro meio, entidade manipuíadora cujo objetivo é a rais, florestas transformadas em desertos, venda de armas, terror atô­
produção de lucro. Desaparecem os sentidos ligados à vida e são subs­ mico: tudo se justifica se o objetivo é o lucro e as condições políticas
tituídos por um único sentido, o sentido do ter. E o corpo, de fim para a sua obtenção.
supremo, da condição de E m s realissimum, a mais alta entidade sobre Acontece que a vida e o corpo não são meios para coisa alguma.
que se pode, teologicamente, falar, sim, o corpo foi aviltado à condi­ Eles são fins em si mesmos. Esta é a grande afirmação do brinquedo,
ção de meio ... seja empinar papagaios, jogar xadrez, fazer poemas, escrever música,
E assim, por amor ao irmão mais velho da parábola, os corpos fazer amor, celebrar a liturgia, sorrir no nosso jogo de contas de v i­
foram domesticados. Perderam a sua dignidade teológica e espiritual. dro. .. E isso nos conduz, de novo, ao campo das palavras teológicas,
Foram transformados em ferramentas, acoplados às máquinas, subor­ em que se fala sobre justificação pela fé , que significa precisamente o
dinados ao seu tempo. Surgiu então uma espiritualidade nova, de as­ abandono total do esforço para se encontrar o sentido para a vida em
cetismo e disciplina, em que os prazeres eram proibidos. Tudo isto termos dos resultados práticos de nossa atividade.
não pela salvação da alma, mas por amor ao lucro, esta entidade mate­
E foi aqui que os meus ouvintes, naquela piedosa congregação,
mática que passou a ser o critério pelo qual as pessoas eram avaliadas.
versada na austeridade e no ascetismo dos catecismos calvinistas, co­
Dize-me quanto ganhas e eu te direi quem és...
meçaram a eriçar o pêlo e a esbugalhar os olhos, justamente quando
De fato, o ganho é a representação formal, matemática, daquilo
começamos a dizer das conseqüências éticas do brinquedo.
que o corpo produziu. Pouco importa que o corpo tenha sofrido. Pou­
Sugestão estranha a de Jesus, que a presente ordem tem de mor­
co importa que ele tenha sido reprimido. E isso porque sofrimento e
rer para que um novo mundo venha a nascer. E brincar significa preci­
repressão são coisas que se encontram no processo de produção. Mas o que
samente não levar a sério isto que está aí, e bem em cima de sua carca­
realmente conta é acfuilo cjue vem no fim, como produto, mercadoria, porque
ça agonizante começar um fazer novo... Dançar, no presente, por
será isso somente que irá ser vendido para produzir então aquilo que a
meio de símbolos e sacramentos, a ressurreição do corpo, realidade
vida pode oferecer de mais alto: o lucro. E foi isso, o produto, o sol em
por que se espera e para onde se inclinam nossas nostalgias. Corpo
torno do qual se constituiu o universo burguês-industrial. Acontece que
nosso, corpo de Cristo, a natureza, o universo todo fruindo a realização
tal lógica tem um nome teológico: justificação pelas obras. O que aconte­

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V a r ia ç õ e s s o b r e a v id a e a m o r t e , A t e o l o g ia e a s u a fa la E DAS CRIANÇAS

do amor, o encontro do desejo com aquilo com que ele sonhou, pra­ não é verdade que o conceito de papel, em sociologia, coisa de grandes,
zer puro, completo, total, quando se descobre que existe apenas um nos introduz no mundo do faz-de-conta? Fardas militares, uniformes
sentido possível para a glória de Deus, que é precisamente a felicida­ sacerdotais, cerimoniais acadêmicos e seus nomes pomposos, e todas as
de dos homens. "máscaras" que usamos — mundo do teatro, dos papéis e scripts prede­
O mundo enfeitiçado pela produtividade deve morrer. É isso terminados. E uma mesma pessoa brinca de professor, de marido fiel,
que cantam as crianças. Subversão... de pai carinhoso, de amante, de filho, trocando de papéis como se
Já notaram como as crianças são sérias acerca dos papéis que troca de máscaras, e podendo bem parar para se perguntar: "Afinal de
elas assumem em suas brincadeiras? Não obstante, elas não se esque­ contas, quem sou?" E que dizer do conceito de "definição da situação"
cem nunca de que tudo não passa de brincadeira, faz-de-conta... O de W illiam Thomas, que chama a nossa atenção para o fato de que uma
papel não é eterno. Não está inscrito na natureza das coisas. Nosso certa situação se estabelece, em última instância, da mesma forma como
mundo é nada mais que um experimento. Deus nos pôs a brincar. se definem as regras de um jogo, pelo consenso daqueles que nele par­
Convidou-nos a inventar nomes, a plantar jardins, a fazer am or... E ticipam? E descobrimos que até Durkheim vislumbrou o caráter lúdico
daí surgiram os mundos da cultura, que poderiam ter sido totalmente da sociedade, e localizou esta explosão de prazer precisamente onde a
diferentes do que são. Mas nós temos memória curta, Esquecemo-nos sociedade atinge o seu ponto culminante, como coisa sagrada e moral.
das origens. E transformamos aquilo que nós mesmos fizemos em on­ E ele diz que a vida social "goza mesmo de uma independência tão
tologia. Assim nascem os absolutos, assim se erigem os ídolos. Sem ­ grande que às vezes se entrega a manifestações sem nenhum propósito
pre um equívoco, quem sabe uma maldade... óbvio, pois os fortes ou utilidade de qualquer tipo, pelo simples prazer de afirmar-se". O que
não podem imaginar a sua própria provisoriedade,.. E, bem pode ser poderia ser traduzido de maneira mais simples: "Às vezes a vida social é
que a memória fraca ou memória torta nada tenha e ver com as virtu­ puro brinquedo".
des e limitações de nossos aparatos neurológicos, mas se derive dos E eu remeteria o leitor, finalmente, à linda obra de Huizinga,
interesses do poder. Tal como aconteceu em i984 e em A revolução dos Homo Ludens, em que ele sugere que a cultura só pode ser compreendi­
bichos , ambos de Orwell. Mas aí vêm as crianças que tomam os ídolos da como brinquedo.
e os transformam em brinquedos. Se tanto as crianças como os adultos brincam, temos de procu­
"Vamos brincar de bandido e polícia. Hoje eu sou polícia. Ama­ rar entender as suas diferenças, porque se fosse tudo igual a admoesta­
nhã serei o bandido..." ção de Jesus não teria sentido algum.
As crianças sabem que elas são, ao mesmo tempo, aqueles que As crianças sabem que elas são donas da situação. O brinquedo
assumem os papéis e aquelas que escrevem os scripts. E é por isso que elas lhes pertence. Assim, a qualquer momento as coisas podem ser mudadas.
são livres para inventar, modificar, trocar, jogar tudo fora e começar É o seu desejo que dita as regras.
de novo. Elas continuam donas do pequeno mundo de brinquedo que Os adultos também assumem papéis. Com uma diferença: eles se
sua imaginação criou. E, por isso, nada há que as obrigue a jogar hoje identificam com eles. Passam a ser aquilo que fazem. Os generais, até
o jogo que começaram a jogar ontem. Cada amanhã é um novo come­ nas suas almas, usam suas insígnias e portam suas condecorações. Os
ço, uma nova reorganização. bancários trazem para a cama aquilo que fizeram no escritório. Os pro­
Diante disso a gente é tentado a pensar que as coisas são assim no fessores universitários chegam a acreditar em sua própria propaganda,
brinquedo porque, afinal de contas, estamos no mundo do brinquedo, e se julgam realmente mais sábios que os outros. Pastores protestantes e
das crianças, em que nada é sério e nada é para ser levado a sério. Mas sacerdotes católicos se imaginam mais sagrados que os demais...

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E é assim que, de donos da situação, eles se tornam propriedade dos seus organização social, e nos sugere a possibilidade de um mundo baseado
papéis, que assim possuem os seus corpos e determinam as suas identida­ no esquecimento e nos novos começos. Mundo em que os livros-caixa
des, E eles andam por aí, possuídos por demônios, mesmo quando tais foram queimados, parecidos com aquele prenunciado pelo ano do Jub i­
demônios sabem as regras do decoro e da respeitabilidade social. De fato, leu, quando tudo que estava preso era libertado, tudo o que havia sido
na maioria das vezes os demônios se comportam muito bem, e em vez de comprado era devolvido. E os campos voltavam aos seus antigos donos,
jogar o corpo no chão, como aconteceu com aquele pobre diabo que e os escravos eram libertados, e as dívidas eram perdoadas...
Jesus exorcizou, fazem o corpo subir na vida, o que faz com que ninguém O brinquedo, assim, se constitui numa denúncia da lógica do
deseje a sua expulsão... E é assim que a vida, dádiva de Deus para ser mundo adulto. As crianças se recusam a aceitar o veredicto do "princí­
brincada, torna-se, pelo poder dos demônios e seus ídolos, ontologia, pio da realidade" e separam um espaço e um tempo e tratam de
coisa séria, diante da qual os joelhos devem se dobrar, chegando mesmo organizá-los segundo os princípios da onipotência do desejo. E lá se
a ser batizada com o nome de verdade e de bondade... move o grupinho de crianças, bem no meio do mundo adulto, como
As coisas ficam mais claras por meio de imagens. um protesto contra ele... Seria algo semelhante a isso que Jesus tinha
em mente, ao falar da necessidade de nos tornarmos como crianças? E
As crianças estão brincando. Um a delas estica o dedo para a
começamos a suspeitar que o brinquedo está muito próximo da p olíti­
outra e diz: "Bang. Te matei". E a outra cai no chão, nos estertores do
ca... E as crianças não se conformam com este mundo, seguindo a
faz-de-conta.
admoestação de Paulo, e, lá no fundo, ficam repetindo que "aquilo
Os adultos estão brincando. Um deles aponta a arma para o
que é não pode ser verdade" (Bloch). Não é possível que a seriedade e
outro e "bang". "Eu te matei". E o outro cai, morto.
a crueldade adulta sejam aquilo de mais alto que a vida pode nos ofe­
O brinquedo das crianças termina com a ressurreição universal recer. E fazem o seu jogo de contas de vidro, e compõem um mundo
dos mortos. em torno do prazer. Acreditam na imaginação e aceitam os seus orá­
O brinquedo dos adultos termina com o sepultamento universal culos. O mundo pode ser diferente. E, no brinquedo, esta coisa nova
dos mortos. se oferece como aperitivo...
A ressurreição é o paradigma do mundo das crianças. D o mun­ E agora damos um pulo para trás, para recordar o mestre W itt-
do dos adultos surge a cruz, porque somente aqueles que se levam genstein, quando ele dizia que os limites da minha linguagem deno­
totalmente a sério se transformam em carrascos. tam os limites do meu mundo, e daí a gente conclui que, ao lado de

N o mundo do brinquedo as estruturas não se transformam nunca espadas e correntes, o corpo é também aviltado pelas palavras que o
amarram, e o obrigam a dançar ao som de flautas encantadas tocadas
em lei. Cada novo dia se apresenta como um espaço livre, que permite
por demônios malvados, tal e qual aquela estória infantil... E é preci­
que tudo comece de novo, como se nada tivesse acontecido. Vocês já
so quebrar o feitiço. É por causa disso que me atrevo a sugerir que a
pensaram que as instituições, essas coisas que fazem mediações entre o
teologia, que se entende como palavra que liberta, tem de ser compa­
passado e o futuro, são meios pelos quais os mortos continuam a assom­
nheira da palavra que brinca.
brar e a dominar os vivos? Claro, porque elas nasceram de pessoas já
mortas. E; não obstante isso, o seu imperativo continua a se impor, como Falar é constituir um mundo.
obrigação: O passado é a lei do presente e do futuro. Mundo que não A conversação é um tênue fio que nos liga a todos numa mesma
pode esquecer, que não pode perdoar. Mas o brinquedo exorciza os teia: isso pode significar rede em que descansar, ou rede que nos enro­
maus espíritos porque ele nos lembra de que continuamos senhores da la, lar ou cárcere...

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V a r ia ç õ e s s o b r e a v id a e a m o r t e . A t e o l o g ia e a s u a fa la

Mas o brinquedo é fazer de conta...


... e a gente começa a falar, deixando para trás as obsessões de
verdade, reconhecendo que a vida se constrói sobre um faz-de-conta
chamado fé, um faz-de-conta chamado esperança, ambos avalizados
por um não faz-de-conta chamado amor, se é que leio corretamente o
capítulo 13 da primeira Carta de Paulo aos coríntios, Tudo acaba, A p ê n d ic e a o ... e d a s c r ia n ç a s
menos o amor.
E chegamos à conclusão de que quem, de alguma forma, foi
arranhado pelo Grande Mistério, como Jacó, conhece o terror e o
fascínio do sagrado, e descobre que tudo o mais não é sagrado, mas
brinquedo, faz-de-conta, sacramento, aperitivo, nem divino e nem
demoníaco — coisas do corpo, esta bolha de sabão tão frágil, mas que
amamos de todo o coração e por cuja eternidade continuamos a orar,
"Creio na ressurreição do corpo". Claro, um corpo que brinca merece
viver eternamente.
Como bem entendeu o já nosso amigo Níetzsche, brincalhão,
incapaz de lidar com os símbolos sérios dos cristãos,- e foi obrigado a
cantar a eternidade do corpo por meio de um outro símbolo, o eterno As três metamorfoses do espírito
retorno...
... ou um outro brincalhão, dançarino, tocador de santuri, Zorba, C
V _^onta-nos Nietzsche:
que no seu ultimo instante foi até a janela, olhou para este mundo que
Quando Zaratustra tinha trinta anos de idade, deixou a sua casa e
enche os olhos, e gritou o "credo" do seu corpo: "Um homem como
o lago de sua casa e foi para as montanhas. Ali ele bebeu do seu
eu teria de viver mil anos..."
espírito e gozou a sua solidão, e por dez anos não se cansou. Mas,
E descobrimos esta coisa curiosa.- que A linguagem teológica, por fim, algo aconteceu com o seu coração, e numa manhã ele se
linguagem do corpo sobre si mesmo, se ri dos currais acadêmicos em levantou de madrugada, colocou-se diante do sol, e falou-lhe as­
que os teólogos sérios a colocaram, arrebenta cercas, e vai cantando sim: "Tu, grande estrela, que seria de tua felicidade se não houvesse
pelo mundo afora, nos poemas dos poetas, nas canções dos violeiros, aqueles para quem brilhar?"
nas confidências dos amantes, nos contos dos literatos, nos chistes E Zaratustra resolveu descer para aquecer os homens com o fogo
dos humoristas e palhaços... brincando sempre e dizendo que, por que, durante dez anos, surgira no seu corpo e na sua alma. E,
causa do Grande Mistério, é possível rir e am ar... entre os amigos, contava parábolas, porque sabia do seu poder
para fazer viver. E foi assim que ele falou das três metamorfoses
do espírito humano.
— Conto-vos das três metamorfoses do espírito: como o espírito
se transforma em camelo,- e de camelo em leão; e de leão, final­
mente, numa criança.

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V a r ia ç õ e s s o b r e a v id a e a m o r t e . A t e o l o g ia e a s u a f a ia

-— Quero as. coisas que são difíceis. Assim fala o espírito, besta de
carga, que se ajoelha, como camelo, oferecendo o seu lombo às
cargas que o curvarão.
E Zaratustra conta de todo o sacrifício que faz o espírito/camelo, por
haver feito do curvar-se e do reverenciar a sua vocação. Mas algo
acontece e, na solidão do deserto, o camelo se transforma em leão. O
Os DESEJOS, OS SONHOS,
leão deseja ser livre e, por isto, ele se lança à caça do seu senhor. Ele a s u t o p ia s , o R e in o
quer travar batalha com o seu último deus, o grande dragão.
— Quem é o grande dragão que o espírito não mais deseja chamar
como senhor e como deus? Dever, eis o nome do grande dragão.
Mas o espírito do leão diz, "Eu quero". O "Tu deves" se encontra no
seu caminho, reluzente como ouro, animal coberto de escamas.
Em cada uma delas um "Tu deves" faiscante.
Valores, com milhares de anos de idade, brilham naquelas esca­
mas. E assim fala o mais poderoso de todos os dragões: "Todo o
valor de todas as coisas brilha em mim. Todo valor já foi criado,
faz muito tempo, e eu sou todo o valor que se criou. Na verdade, o
'Eu quero' não mais existirá. Assim fala o dragão".
— Meus irmãos, por que existe, no espírito, a necessidade do leão?
Porque não basta permanecer como camelo, besta de carga que é hegamos ao fim da viagem. Provocados por esse enigmático jogo
renúncia e reverência?
Criar valores novos — isto nem mesmo o leão pode fazer,- mas a
C de contas de vidro chamado teologia, falamos sobre o corpo,
centro do universo,- olhamos para as entranhas dos sacrificados e ou­
criação da liberdade para si mesmo, para que daí surja uma nova
vimos dos futuros que delas crescem,- conversamos sobre as teias de
criação — isto está dentro do póder do leão.
linguagem que o corpo constrói como extensões de si mesmo e como
A criação da liberdade para si mesmo e um "Não" sagrado, mesmo
ao dever — para isto o leão é necessário... seu mundo,- meditamos sobre as ciladas da verdade e os caminhos da
E o leão mata ò dragão. E ocorre então a última metamorfose. Do bondade,- descobrimo-nos solidários com os derrotados, os hereges,
leão nasce a criança, E Zaratustra pergunta: os bufões, as crianças,- contamos chistes e brincamos...
— Por que deve o leão, animal de caça, transformar-se numa crian­ Nosso companheiro sorri.
ça? A criança é inocência e esquecimento, um novo começo, um
"Agora entendo melhor", ele diz. "Quando me falarem sobre teo­
jogo, uma roda que se movimenta a si mesma, um primeiro movi­
logia lembrar-me-ei das contas de vidro. Tão lindas. Pena que tudo
mento, um "Sim" sagrado. Para o brinquedo da criação, meus ir­
mãos, um "Sim" sagrado é necessário... seja um jogo, nada m ais..." ,
No princípio o camelo e, com ele, a reverência e a repressão. D o ­ E me dou conta de que ao falar sobre a teologia houve coisas
mínio do dragão. que, sem terem sido ditas, estiveram sempre silenciosamente presen­
Depois o leão, que quebra as correntes e abre espaços. tes. E elas foram ouvidas. Nosso companheiro entendeu o silêncio.
Finalmente a criança, que brinca... Sua compreensão se revelou na observação final: "Pena que tudo seja
(N iet z sc h e , 1965).
um jogo, nada m ais..." A teologia é bela. E a tristeza vem justamente

140
O S DESEJOS, OS SONHOS, AS UTOPIAS, O REINO
V a r ia ç õ e s s o b r e a v id a e a m o r t e . A t e o l o g ia e a s u a fa la

quando se descobre que, com freqüência, a beleza é impotente. os corpos dos homens àquelas instituições que, nas palavras de We-
Lembrei-me de Berdjaev: ber, detêm o monopólio do uso legítimo da violência. E com isso
condenou-se a teologia à impotência e à castração. E sua beleza en­
Os valores mais altos do mundo parecem ser mais fracos que os tão, como uma "canção de amores", comove e consola, sem ameaçar.
inferiores,- os valores mais altos são crucificados, os inferiores triun­ O problema surge quando os visionários começam a invocar
fam. O político e o sargento, o banqueiro e o advogado são mais ausências, os exilados, em segredo, plantam suas nostalgias, os m ísti­
fortes que o poeta e o filósofo, o profeta e o santo. O Filho de cos tratam de trazer os céus à terra, os derrotados se encaminham na
Deus foi crucificado. Sócrates foi envenenado. Os profetas foram direção do Paraíso e os corpos dos sacrificados se põem a derrubar as
apedrejados. Os iniciadores e criadores de um pensamento novo e cidades dos homens para construir a cidade de D eus...
de uma nova maneira de viver têm sido sempre perseguidos e opri­
Estranho jogo este, capaz de produzir m ártires...
midos, e freqüentemente mortos (B erd jaev , 1943, p. 67).
Que inexplicável fascínio este, de um discurso de palavras no
Ecos de Zaratustra. Os bons e os justos
qual se dependuram razões para viver e razões para m orrer...
são incapazes de criar,- eles são sempre o começo do fim,- eles cru­ Que dos símbolos teológicos brote a vida e a morte, e que da
cificam aquele que escreve novos valores em novas tábuas,- eles vida e da morte brotem os símbolos teológicos, concluímos que este é
sacrificam o futuro a si mesmos — crucificam todos os futuros dos um jogo SM/§eneri$...
homens (N iet z sc h e , 1965, p. 325). ... porque para jogá-lo é necessário apostar a própria vida.
Claro que a idéia de jogo pode sugerir algo sem conseqüências,
A teologia fala sobre «m outro mundo. Esta é a razão por que não
por oposição à verdade, que seria então aquilo que realmente impor­
pode ser levada a sério. Os vitoriosos definem o que é a realidade. O seu
ta. Mas a idéia de jogo implica também a impossibilidade de cam i­
discurso é conhecimento. O se« comportamento é a bondade e a justiça.
nhar com as certezas, o colapso dos olhos, a inutilidade das evidên­
Compreende-se que toda a fala que se desvie deste padrão tenha de
cias, a necessidade do risco, da aposta...
ser reduzida à condição de ilusão. Claro que existe, em qualquer or­
Agir como se...
dem social, um lugar para as ilusões. Se assim não fosse, como expli­
car a aliança entre falsos profetas e reis? A arte, a novela, o carnaval, Kierkegaard: escolher, com a infinita paixão da subjetividade, a
os festivais olímpicos, os rituais militares, a propaganda — não será aventura do caminho que, objetivamente, nada contém a não ser in­
verdade que em todas essas celebrações religiosas se distribuem os certezas ( KãERKEGAARD, 1968, p. 182).
sacramentos da euforia, da insensibilidade e da sonolência? A teolo­ Esta é a razão por que não se pode dizer deste jogo de contas de
gia pode muito bem se juntar a essa procissão. E a gente compreende vidro que ele é jogo apenas. E jogo porque é coisa que nós fazemos. Mas
então as razões por que os poderosos estão prontos a permitir o jogo é destino porque é aposta de nossa vida e de nossa morte.
teológico, desde que ele não ultrapasse nunca os limites do "apenas Cremos.
jogo, nada m ais...", discurso da imaginação, sobre as coisas sobrena­ Sem risco não há fé. Fé é precisamente a contradição entre a
turais, além da terra, além do tempo, além do túmulo, nas profunde­ infinita paixão da subjetividade do indivíduo e a incerteza objetiva: se
zas da alma. Tudo se permite à teologia, desde que ela aceite as regras eu fosse capaz de agarrar Deus, objetivamente, eu não precisaria creri
de um jogo maior e mais bruto, o jogo do poder, que separou o uni­ mas exatamente porque isso me é impossível, eu tenho de crer (KlER.-
verso em áreas de influência, e entregou as terras, os mares, os ares e KEGAARD, 1968, p. 182).

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V a ria ç õ e s sobrê a vid a e a m orte. A t e o lo g ia e a su a f a la Os desejos, o s so n h o s, as utopias, o R eino

N o mundo das presenças, constituído por meio da visão, arti­ da vida, ainda que para isso não usem aquelas contas de vidro que
culado através de evidências, a fé é interditada. Não é necessário trazem as cores tradicionais do sagrado, estarão construindo teolo-
confiar n o que nos é dito: a palavra se subordina aos olhos. Mas no gias: mundos de amor em que faz sentido viver e morrer. E quem não
mundo das ausências, quando os olhos são inúteis, só dispomos da será então que, de vez em quando, provavelmente no silêncio das
palavra e da imaginação como instrumentos para a construção do insônias ou naqueles momentos em que a vida de um ente querido se
não ain da , para o qual nossa nostalgia nos inclina. E é aqui que se dependura sobre o abismo, quem não será, quem não terá sido meio
constituem o absurdo e o fascínio da teologia, porque ela se inicia teólogo, invocador de coisas divinas, m ágico?...
no salto de fé que toma o risco de viver 'com o se" o universo sentis­ "Pena que tudo seja um jogo, nada m ais..."
se, falasse, prometesse,- como se o universo tivesse um destino, ir­
Nosso companheiro compreendeu a beleza da teologia.
mão do nosso destino,- como se criação e homens gemessem em
Ele compreendeu também a sua fraqueza,
uníssono,- como se de suas profundezas futuras nos viessem palavras
de promessa,- a reconciliação do homem com a natureza,- a huma­ E que se diga com clareza: fraqueza que a teologia nunca escon­
nização da natureza e a naturalização do homem,- natureza com face deu. Lembro-me de Bonhoeffer, no campo de concentração: "O nos­
humana, faces humanas com a tranqüilidade das aves e a sim plicida­ so é um Deus fraco..." Confissão que qualquer um tem de fazer na
de dos lírios; unificação de todas as coisas num só corpo, Corpo de câmara de torturas, no campo de concentração, nos arsenais atômi­
Cristo, Hóstia. Lutero: o corpo de Cristo em todo lugar, das estrelas cos, nas devastações ecológicas, nos corpos magros daqueles que
mais distantes até a folha mais singela. "Se o homem percebesse que morrem de fome, nos corpos gordos dos que se assentam nos lugares
o universo, como ele, pode amar e sofrer, ele estaria reconciliado. donde escorre a opressão. O nosso não é um mundo redimido. O
Nostalgia pela unidade..." (C a m u s , 1955, p. 13). Deus cristão é o Deus crucificado, Deus que chora. E somente este
Deus que as entranhas dos sacrificados podem gerar: um Deus que
É sobre isso que fala a teologia, qualquer teologia que cresça
espera, porque sofre.
das entranhas dos homens: o sentido da vida e o sentido da morte. E
essa é a razão por que suas contas de vidro não são apenas contas de Mas ele não entendeu uma coisa: que a vida se dependura nesta
vidro: elas são pão. Os símbolos são devorados, prestam-se para co­ coisa bela e frágil. O discurso teológico é o discurso da esperança. Que
mer, dão vida. Compreende-se que ela não seja, não queira ser, não Malinowski me perdoe pela apropriação indébita. Roubo-lhe coisa
possa ser ciência. Ciência é jogo também, é verdade. Mas é jogo que ele disse da magia, e que desejo dizer da teologia. Afinal, magia é
dominado pelos olhos, controlado pela contemplação, subordinado quase teologia transformada em gesto, em dança... Teologia: "a subli­
às evidências. A li não existe símbolo algum que seja bom para co ­ me loucura da esperança...". Paulo:
mer. W eber:
Todo o universo criado espera,
O destino de uma época que comeu do fruto do conhecimento é com sedenta expectativa,
saber que ela não pode conhecer o sentido do universo a partir dos sentimentos brotados no fundo do peito, de junto do coração,
resultados de sua análise, por mais perfeita que seja... (W eber, apud que se retire o véu que esconde os filhos de Deus.
N atanson , 1963, p. 363). Vítima da frustração,
não por vontade mas por destino,
A teologia fala sobre o sentido da vida. Afirmação que pode ser não abandonou nunca a esperança:
invertida: sempre que os homens estiverem falando sobre o sentido o universo inteiro será libertado das correntes

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V a ria ç õ e s sobre a v íd a e a m orte. A te o lo q a e a sua f a la O s DESEJOS, OS SONHOS, AS UTOPIAS, O R eíNO

da mortalidade, e participará, com os filhos As ações de um animal estão ligadas ao seu futuro e ao futuro de
de Deus, de sua luminosidade. suas crias, mas somente o homem imagina futuro, A represa de um
Mas que é o que realmente conhecemos, até agora? castor se estende num reino temporal, mas a árvore que foi planta­
O universo inteiro gemendo, em todas as suas partes, como se es­ da vai fundo, com suas raízes, no mundo do tempo, e aquele que
tivesse em dores de parto. E não somente ele mas principalmente planta a primeira árvore é aquele que, um dia, esperará pelo Mes­
nós — nós que já provamos do aperitivo do Espírito, sias (B uber , 1965, p. 66).
os primeiros frutos,
as primeiras cores e perfumes, Platão inventava mitos a fim de decifrar enigmas. Explicou
os primeiros risos, que Eros era filho de Penia e Poros. O Am or nasce da união entre
do mundo novo que amadurece. pobreza e necessidade, de um lado, e abundância e energia, do
outro. Assim as coisas ficam claras. Para desejar é necessário não
Sim, nós também esperamos, no fundo do peito, o momento em ter. O desejo existe no lugar da ausência e da privação. N ão se
que Deus fará a magia de nos transformar em seus filhos. E aí, então, pode sentir saudades da mulher amada tendo-a nos braços. N ão se
nosso corpo estará livre. Liberdade do corpo: salvação! pode desejar a A ppassionata no momento em que ela está sendo exe­
Acontece que, por agora, experimentamos esta salvação apenas cutada. Por outro lado, não se pode ter saudade de alguém cuja
em esperança. presença não foi usufruída no passado. N ão se pode desejar ouvir a
Nós não vemos coisa alguma. A ppassionata se, no passado, não se experimentou a sua beleza. D aí
a origem de Eros, filho de uma experiência de plenitude, para ja ­
Se víssemos não teríamos necessidade de esperar.
mais ser esquecida, e da experiência da perda do objeto amado, a
Por que haveria alguém de sofrer e esperar por aquilo que já se vê?
despeito da m em ória...
Mas, se esperamos por algo que não vemos ainda, no próprio
Vamos continuar daí, do lugar do desejo e da privação, para
ato de esperar demonstramos a nossa tenacidade interior (paráfrase
entender a esperança. Porque é justamente nesse ponto que nos
de Romanos 8,18-25). separamos dos animais. A relação do homem com o mundo que o
Teologia é a fala que acontece nessa espera. cerca, seja natureza, seja cultura, traz as marcas da insatisfação. O
Esta é a razão por que não se pode dela dizer: “Pena que é um Ego não encontra no seu mundo objetos que correspondam à sua
jogo, nada m ais...“. Aposta num invisível, num ausente, num futuro. nostalgia. D a í a rebelião, o conflito, a inquietação, o desejo, a bus­
Que diferença isso faz? Acontece que essa esperança transfigura os ca sem fim, temas que marcaram Platão, Agostinho, Freud, Camus,
corpos, fazendo-os amar, dançar, sorrir, dormir. E eles ficam como N ietzsche...
pássaros, lírios, crianças... E experimentam então o amor de Deus, ou E dessa busca sem fim do desejo surge a imaginação: represen­
Deus como am or... tação dos objetos de amor perdidos, ainda não encontrados, ausentes.
“A sublime loucura da esperança...“ Assim, aquilo que não tenho, mas desejo, eu represento por meio da
Aqui está o que nos separa dos animais. imaginação para que, pelo menos no mundo dos símbolos, a posse se
realize, seja de forma substitutiva, seja como aperitivo da esperança...
Não se trata de uma superioridade que tenhamos em relação a
E é por isso que a imaginação nos faz felizes.
eles. Acontece que os animais não precisam da esperança, para usufruir
os seus corpos. Enquanto nós, sem a esperança, perdemos também os E da imaginação surgem os sonhos...
nossos corpos, porque eles são então apropriados por demônios. E da imaginação surgem as utopias...

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V a r ia ç õ e s s o b r e a v id a e a m o r t e , A t e o l o g ia e a s u a f a ia
O S DESEJOS, OS SONHOS, AS UTOPIAS, O REINO

E da imaginação surgem as preces pela vinda do Reino de Deus,


Deus. Invocar esperanças, enviar preces a Deus: não será tudo a mes­
realização de sonhos e de utopias, objetivação das nostaígias geradas
ma coisa com nomes diferentes?
pelo coração humano. Objetivações do Espírito, no futuro.
Mas os ídolos também falam de esperanças. Suas promessas en­
Acontece que o desejo não nos basta.
tram fundo em nossos desejos,- e é por isso que eles têm o poder de
Nada mais triste que o amor impotente. enganar e destruir.
Nada mais triste que a nostalgia do exilado. Tudo se divide então, de forma simples e bruta, entre os que sor­
Os pais de crianças leucêmicas não perguntam nunca aos seus riem para o futuro e pastoreiam esperanças e aqueles que têm medo do
filhos: "Que é que você vai ser, quando crescer?" Dizem, ao contrário.- futuro e desejam abortá-lo, esmigalhando sementes, arrancando brotos...
"Se tudo correr bem, iremos ao jardim zoológico no próximo domin­ Os ídolos anunciam o seu programa.
go". Será, por acaso, que faltam a esses pais desejos suficientemente Preservar o passado, no futuro.
intensos? Não. O problema não se encontra na intensidade do desejo.
Impedir o advento do futuro.
O problema se encontra na dura consciência da inutilidade do desejo.
E preferível engordar que engravidar: filhos podem assassinar
M ilhões de judeus marcharam mansamente para as câmaras de
os seus pais.
gás. Faltava-lhes desejo de viver? Ou estavam antes dominados pelo
senso da inutilidade do desejo de viver? Viver olhando para trás, como a mulher de Lot.

O corpo não se movimenta apenas pelo fascínio do desejo. É Crucificar os que inventam uma virtude nova.
necessário desejar, sim. Mas é necessário crer, também, na possibilidade Garantir que o amanhã será como ontem. Os mortos devem
dos objetos do desejo. E necessário crer que há um poder disponível, seja continuar a mandar no mundo dos vivos.
no poder do corpo, seja no poder de muitos corpos de mãos dadas, O passado é a lei.
seja no poder do U niverso... Fatos são valores. O que é é o que deve ser.
E é assim que, sob a magia do desejo e o sentimento de poder, Ai dos que se rebelarem. Ai dos que se atreverem a ser diferen­
os corpos se levantam da letargia para se exprimir no trabalho, na tes. A i daqueles que anunciarem coisas novas.
dança, no amor, no brinquedo, na luta, nos altares...
É bem possível usar, também aqui, a palavra esperança. Mas pa­
Mas que nome dar a essa combinação de amor e poder? Quando lavras são bisturis, que podem curar ou matar. Tudo depende de quem
os dois se encarnam num corpo não receberão eles porventura o nome as usa. As esperanças construídas sobre o poder são muito diferentes
de esperança? Esperar: que significa isso senão desejar, m firme convicção das esperanças que nascem da impotência. E os ídolos proclamam:
de cjue é possível.. . E chegamos então a uma conclusão surpreendente.
"Quem não tem poder não pode ter esperanças."
Por que essa combinação de desejo e poder, na sua intensidade mági­
"Quanto maior o poder, maior a esperança."
ca, não é a própria divindade? Deus: o objeto que mais se deseja, a
promessa da libertação do corpo, unida ao poder máximo, infinito, a "Quando tivermos poder, então, teremos esperança."
favor dos homens. E esta é a razão por que a teologia não é ciência do "Temos poder, por isso esperamos."
divino, mas fala que acontece na medida em que as contas de vidro ' Esperança: criatura da justificação pelas obras.
saltam entre o amor e o poder, dando assim nomes aos objetos do
Movemo-nos no mundo da racionalidade política, da ética do
desejo e ao senso de poder, invocando a esperança, apontando para
trabalho, da moralidade da eficácia, das previsões da futurologia. O

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futuro se constrói sobre o presente. O presente se preserva, infinita­ Sim.


mente aperfeiçoado, no futuro. E.o corpo se encolhe sob o imperativo Do futuro nos vêm ventos trazendo secretas batidas de asas,- e boas
da disciplina, transformado em meio para o futuro. E assim, por medo novas são proclamadas aos ouvidos sensíveis bastante para ouvir.
do futuro que carrega a morte em seu colo, o homem aceita morrer Na verdade a terra ainda se transformará num lugar de recupera­
ção. E mesmo agora já a envolve uma nova fragrância, trazendo
em vida, para exorcizar o futuro. Vai-se o brinquedo, abole-se a ''brin­
salvação — e uma nova esperança.
cadeira". Os que carregam nos ombros o seu futuro não têm permis­
são para o sono. Carga pesada, mesmo para gigantes. A ansiedade não Compreendo que as almas piedosas terão tremores de espanto
descansa enquanto mastiga a carne e os pensamentos daqueles que ante a ousadia insólita de invocar Zaratustra como profeta do Messias.
desejam perpetuar-se no futuro. Tenho de reconhecer que ele não usa os nomes que o passado nos le­
Mas há uma outra esperança que só nasce em mãos vazias, entre gou. Mas, por vezes, não será necessário esquecer os nomes velhos para
aqueles que nada invocam e nada trazem consigo, como pontes para se ouvir as canções do futuro? Como redescobrir o terror e o fascínio
o futuro. Futuro, evento de graça, que depende de um poder que não das montanhas sagradas se os bezerros de ouro continuam a ser adora­
dos? Mesmo palavras podem transformar-se em ídolos.
o nosso: futuro que vem ao nosso encontro.
E surpreendente. Quão próximos e quão distantes se encontram
E Abraão leva seu próprio filho para o sacrifício, caminhando,
os mundos da política e da fé.
de mãos vazias, para um futuro que ele amou em seus sonhos...
A política vai até onde alcança o poder do corpo.
E os profetas, a despeito de tudo, das profundezas da impotên­
Aqui se define um mundo secular, vazio de mistério e de deuses.
cia do cativeiro, cantaram um futuro que não poderia nascer deles,
Malinowski observou que os cerimoniais mágicos só aconteciam, na
mas lhes seria dado...
cultura que estudou, quando os homens tinham de se aventurar mar
... e passaram a ver o futuro como M istério gracioso, possibili­ adentro, no imprevisível das águas, no imprevisível do vento. O cor­
dade impossível, como se uma virgem pudesse dar à luz, ou os univer­ po é muito fraco para enfrentar o poder do mar. Por isso se invocavam
sos pudessem vir a ser pelo poder da Palavra, ou os mortos pudessem poderes de mais além. Ao contrário, quando a pesca se fazia nas la­
ser ressuscitados. goas calmas, o corpo e as mãos dadas eram suficientes. Não se cele­
E Jesus proclama que o futuro chegou. bravam rituais de m agia...

Não, não ensina um novo caminho, não anuncia uma nova sa­ Parece que é assim que acontece, sempre.
bedoria, não prega uma nova moralidade, não apregoa uma nova éti­ Quando o homem se sente forte, ele se espalha pela técnica e
ca social ou uma nova opção política. pela política, definindo um mundo marcado pela afirmação confian­
te: "Eu posso". E a realidade vem a ser como expansão e afirmação de
Ele grita que o Reino chegou, do futuro, invadindo o presen­
um corpo auto-suficiente.
te... Coisa curiosa. Sempre pensamos que o tempo fosse um rio
fluindo sem parar e nós, navegantes, indo do passado para o futu­ Quando, porém, as forças faltam,
ro. E agora se diz que do futuro, do não ain d a , vem alçjuma coisa. quando a morte se instaura, irredutível e final, seja no próprio
Quebra-se a continuidade do passado, rasgam-se as mortalhas her­ corpo, seja no corpo de quem se ama,
dadas, rompe-se o dom ínio dos mortos. Surge um novo tempo, quando o corpo se descobre doído e impotente, nas garras do
não da história dos homens, mas da graça de Deus, do inesperado torturador, às vésperas da execução, no campo de batalha, no navio
do M istério ... que afunda,

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quando o mundo inteiro começa a ruir ao nosso redor, Começando no corpo pequeno, limitado pela pele, expandindo-se
aí já não mais se pode esperar um futuro, dádiva do corpo. através dos espaços da sociedade, da natureza, até os confins do uni­
verso, corpo grande, para se constituir no Corpo de Cristo, projeto
Qualquer futuro sorridente só poderá acontecer utópico de transformação universal do qual cada pequena transforma­
a despeito do corpo, ção é um aperitivo, uma celebração, um sacramento.
a despeito da impotência,
como surpresa, Sursum cordal
como graça, Erguei as almas!
como dádiva de um Outro Toda matéria é Espírito.
que ama o nosso corpo: ( P e s s o a , 1978, p . 105).
o Messias.
Por malditos que são, nossos desejos passaram a ser não ditos, e
Como se equivocou Freud, nosso irmão mais velho. Afinal, todos assim eles têm de se dizer sob a máscara das metáforas e das metonímias,
têm direito aos equívocos. Assim aconteceu com Lutero, Calvino, Kant, sob a proteção das névoas e inversões dos símbolos oníricos, aparecendo
Hegel M arx... E. Equivocou-se. Freud pensou que a religião era uma como criaturas secretas e noturnas, ou fantasiados nos carnavais da arte,
manifestação de ilusões que os homens têm acerca de sua própria oni­ da poesia, das canções, do humor, das procissões, das romarias, dos ri­
potência. Acontece, entretanto, que se os homens se julgassem onipo­ tuais mágicos, das religiões populares, das festas, das celebrações...
tentes eles não teriam necessidade de invocar os deuses. Malinowski E o teólogo, pastor de esperanças, descobre que, a fim de reali­
viu o outro lado da questão: os deuses são invocados dos lugares da zar seu destino, é necessário primeiro freqüentar os desejos dos ho­
fraqueza. Os deuses começam quando termina o braço... mens de mãos vazias, irmãos do Cristo, local de revelação, colhendo-os
E assim se definem dois mundos, dois futuros, duas visões de e recolhendo-os com olhos e ouvidos extasiados, em busca das con­
esperança. Mas uma é a fala dos ídolos, outra, a promessa do Messias. fissões de amor que eles contêm. Porque é dessa matéria-prima que
O lugar do teólogo? sua fala vai sair, apenas para dizer em voz alta aquilo que as profunde­
zas dos homens geraram sem poder dizer.
Só pode ser o lugar do desejo.
É ali que nascem as esperanças. Não sabemos orar como devemos. Mas através dos nossos gemi­
É do desejo que se fundem os ídolos, mas é do desejo também dos, profundos demais para palavras, o próprio Espírito está pe­
que brota a nostalgia pelo Messias. dindo por nós. E Deus, que não ouve as palavras que dizemos com
a boca, mas escuta o não dito que vem lá do fundo, sabe o que é
Acontece, entretanto, que nos tornamos incapazes de reconhe­
que o Espírito quer dizer, pois que ele intercede pelo povo de Deus
cer o nosso desejo. Esta é a lição número um da psicanálise. Nossos
do jeito como Deus quer (paráfrase de Romanos 8,26-27).
desejos se perderam num esquecimento imposto pela ordem domi­
nante. ínterditou-se dizer aquilo que amamos pela simples razão de E o nosso jogo, a teologia, se manifesta como um esforço para
que não amamos aquilo que a ordem dominante nos oferece. D izer os dizer em linguagem articulada aquilo que foi sentido como desejo. E
nossos desejos é reconhecer a nossa condição de seres exilados, fora o desejo reprimido, libertado da escravidão, se transforma em projeto
de lugar, u/tópicos, encarcerados num presente que reprime o corpo, de vida: direção de caminhada, horizonte utópico, prece, a esperança
seres que carregam um projeto erótico/herético de libertação da vida. do Reino de Deus.

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Assim, através do desejo e do discurso que o diz como esperan­ sores, companheiros de mesma fala. E ela re-diz as memórias, para
ça, aparece uma realidade social nova, que recebe sua vida dos sacra­ invocar um novo futuro para os vivos.
mentos que lhe servem as entidades do futuro. E Zaratustra me fala de E os corpos que dançam ao som de melodias que lhes vêm do
novo e tenho de deixá-lo falar, porque ele diz o meu desejo: "N a árvo­ futuro se dão as mãos, e eles falam entre eles palavras com as quais se
re Futuro construímos nossos ninhos,- em nossa solidão águias nos tra­ joga o jogo das contas de vidro, e se pode ver, nas suas celebrações, os
rão alimento em seus bicos" (NlETZSCHE, 1965, p. 210).
sacramentos do futuro e os gestos rotineiros e heróicos que anunciam
Mas os caminhos se partem de novo. que "o Reino de Deus já chegou".
Aqueles que dançam, trabalham, rezam e lutam ao som da flauta Claro. Tudo isso é uma esperança.
encantada dos ídolos, os senhores do presente,
Mas sobre tal esperança se fazem apostas.
e aqueles que se esquecem do presente, na árvore Futuro, por­
E as vidas ficam diferentes...
que o que importa é dar à luz uma criança que o futuro gerou.
E talvez seja por isso que ninguém entende a loucura da ética de
Jesus, porque tentamos expurgá-la do seu absurdo, tornando-a uma
doce e tranqüila sabedoria para pessoas amantes da família, da paz e
do bom nome: como gozar as bênçãos de Deus neste mundo que está
aí. Quando o que Jesus propõe é que ignoremos as exigências deste
mundo que está aí e nossos corpos sejam possuídos pelas exigências
do Reino de Deus que se anuncia.
A questão é o lugar do corpo.
Donde vêm os estímulos que o fazem dançar?
Dos gestos do presente? Dos imperativos do presente século
mau? Concederemos ao inimigo a iniciativa? Será o nosso gesto ape­
nas a resposta, ainda que nos seus contornos negativos, àquilo que o
presente nos propôs, seja como suborno seja como desafio? Aquele
cujo comportamento se restringe à negação do gesto opressor está
condenado a ser reacionário, não importa a radicalidade da sua fala.
Porque ambos têm as suas raízes no presente.
E é por isso que Jesus propõe um abandono radical dos cálculos
da prudência. As lealdades familiares, a bofetada do inimigo, os mor­
tos, os créditos morais, a cuidadosa previdência em face do futuro, o
trabalho árduo: tudo isso se esvazia da sua aura moral. O que se exige
é que o momento seja uma presença do futuro, o corpo uma encarnação
do Reino, a vida uma expressão de liberdade...
A teologia é fala que faz parte dessa obediência ao futuro. Se ela
olha para o passado é porque ali encontra sinais, paradigmas, precur­

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