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Family fiction film Project

Anatomia de um filme de família.


Sonhos e memórias fragmentadas num filme de ensaio na primeira pessoa

Todas as famílias guardam segredos. A minha não é exceção. Primeiro descubro um velho
filme de 9,5 mm que pertencia a uns tios, depois redescubro nos velhos álbuns de infância
da minha mãe fotografias que me parecem todas ser ilusões óticas. Mais tarde o meu avô,
que nunca conheci, revela-se e fala directamente comigo num estranho programa de
televisão. Entre passado e presente, tento dar um sentido àquilo que vou descobrindo e aos
silêncios e portas fechadas que me continuo a defrontar.

Interessam-me as histórias de família e os segredos que inevitavelmente guardam. De que


forma coexistem sempre diferentes versões? De que forma o arquivo familiar composto de
documentos, imagens, filmes, mas também sonhos e memórias, por vezes difusas e
fragmentárias, são instrumentos para a construção da nossa identidade? Tambem me
interessa muito a forma como este retrato feito de memórias e sonhos de família nos pode
relacionar com a história recente de um país: um país que aos poucos acorda do pesadelo de
48 anos de Fascismo e onde as pessoas ainda se reprimem relativamente à sua intimidade e
emoções.
“As pessoas deveriam esconder os seus sentimentos em nome de uma aceitação social.”,
palavras da minha mãe nas nossas conversas filmadas. Trata-se sempre de fazer um retrato
afectivo na sua dimensão mais política, indo ao encontro da célebre frase de Gilles Deleuze
que nos diz: “L’émotion ne dit jamais “je”. On est hors de soi.”

Neste texto procuro dar conta da forma como o cinema, e mais precisamente o chamado
filme de ensaio (género cinematográfico que se constrói geralmente na primeira pessoa,
num território difuso entre o documentário e a ficção), pode ser o espaço por excelência
para falarmos sobre a memória e a sua construção e, neste caso específico, sobre a
construção da memória de família e da “família” enquanto ideia.
Existe uma dimensão recolectora no filme de ensaio que, quando elaborado na primeira
pessoa, assume o seu processo de construção. Essa dimensão recolectora reflete-se nesta
forma mais livre do cinema, na maneira como o autor geralmente faz uso de materiais que
vai encontrando, apropriando-se dos elementos que o rodeiam num misto de “found
footage” e de subjetivação de um arquivo.
O que aqui proponho é pensar na utilização desses materiais, que compõem o meu “arquivo
subjectivo, o meu arquivo de família”, utilizando a linguagem do cinema. Através de uma
nova reinterpretação desses materiais, quero questionar o seu papel na construção da nossa
identidade e dos nossos afetos.

Um arquivo subjectivo

Os nossos arquivos pessoais, sejam imagens fixas ou em movimento, cartas ou outros


documentos, contribuem, através da memória, para a construção da nossa identidade e para
encontrarmos o nosso lugar. É através desses arquivos pessoais que desenhamos as nossas
narrativas. Estas narrativas sempre existiram, mesmo antes da invenção da fotografia ou do
cinema. No entanto é claro que estes últimos ao terem a pretensão de mimetizar mais
fielmente “o real”, têm um poder maior de impressão nessa construção. Mas mais do que
acreditarmos que este novo tipo de arquivo nos aproxima de uma “verdade” e de uma
informação que consideramos útil, este arquivo, que se encontra imbuído de uma total
subjetividade desde a sua conceção/construção até à sua leitura e interpretação anos mais
tarde, é sobretudo uma oportunidade para contar histórias e recriar ficções sobre nós, que
nos são essenciais.
Quando transferimos este impulso de ficcionar para o universo da família, apercebemo-nos
que ele permite atravessar a fronteira entre o público e o privado, num movimento por
vezes paradoxal: cristalizando por um lado mitos de família e mantendo o status quo dos
seus tabus e, num movimento oposto, questionando esses mesmos mitos ou narrativas
familiares, desbravando segredos, quebrando esses tabus.

Neste texto gostaria de fazer uma espécie de anatomia do meu projeto de doutoramento,
que se materializou também num filme “A Toca do Lobo” , desenvolvendo essencialmente
a forma como usei os arquivos para construir o filme.
Quero aqui explorar a utilização de três tipos de arquivos de família, sendo este texto uma
tentativa de fazer uma revisitação ao filme tal como fazemos aos nossos sonhos, uma
espécie de “revisão secundária” na ótica de Freud.
Michael Lesy escreve no seu livro sobre fotografias de família “Time Frames: The Meaning
of Family Pictures” que as fotografias são antes de mais documentos psicológicos, pois,
tratando-se de documentos pessoais e íntimos cuja informação é gráfica, factual e alusiva,
têm de ser decifradas como se se tratassem de sonhos.

Se a utilização de arquivos pessoais foi largamente utilizada no cinema, sobretudo no


cinema documental, como forma de documentar ou ilustrar uma informação,
fundamentando aquilo que se está a expor e reforçando a narrativa, aqui defendo uma
utilização não-narrativa dos arquivos pessoais, muito mais afetiva e emotiva, provocando
uma leitura para lá do grão da película. Para isto é fundamental assumir e jogar com a sua
fragmentação, os seus silêncios, a sujidade da película, a sobreposição de pictogramas, ou
seja: utilizar estes arquivos de uma forma mais próxima da sensibilidade como funciona a
nossa memória. Só assim podemos verdadeiramente apropriar-nos dos arquivos.

Uma pequena história de família na perspectiva da minha mãe

O meu avô queria ser escritor e a minha avó, e a sua família, forçaram-no a ser notário e a
aceitar um emprego longe da família. Isto passou-se em 1926, nos anos do início da
ditadura de Salazar em Portugal. Apesar da distância, e dos poucos momentos que o meu
avô passava em casa, tiveram três filhos: O meu tio, nascido em 1930, a minha tia, nascida
em 1933, e a minha mãe, que nasceu em 1945, quando estavam a tentar reconciliar-se. Os
meus avós separaram-se definitivamente quando a minha mãe tinha dois anos. A partir
desta altura ela passou a ver o pai apenas três vezes por ano (no Natal, na Páscoa e uns dias
no Verão).
Em 1954 o meu tio juntou-se ao Partido Comunista, à revelia dos ideais políticos do seu
pai, conhecido por defender a monarquia. Daí para a frente, passou a viver na
clandestinidade. E a família perdeu-lhe o rasto.
Em 1957, o meu avô teve uma grande depressão e foi internado num hospital psiquiátrico
onde permaneceu algum tempo. Aqui foi submetido a tratamentos com eletrochoques. No
ano seguinte ao seu internamento, o meu tio foi apanhado pela PIDE (polícia política do
Estado) e esteve preso oito anos, tendo sido sujeito a tortura e isolamento.
A minha mãe, com doze anos na altura, foi enviada pela minha tia e pela minha avó para
um colégio interno católico, e só voltou a ver o meu avô aos dezanove anos. Nessa altura,
ele vivia sozinho num apartamento em Lisboa e escrevia a tempo inteiro. Foi assim durante
dez anos, até à sua morte, em 1970.
Atualmente, a casa de infância do meu avô, no Norte de Portugal, pertence à minha tia. É lá
que está guardada grande parte do espólio do meu avô: correspondência, livros, diários,
rascunhos. A última vez que a minha mãe lá entrou foi há 40 anos, eu nunca lá fui. Desde a
morte do meu avô, a minha mãe e a minha tia deixaram de se falar. Estes factos são tabus
na vida da minha família. Sei muito pouco sobre eles.

O clube dos coleccionadores: Filme de 16 mm de 1967 do arquivo da RTP

Uma panorâmica lenta mostra uma sala cheia de objetos e quadros. No fim da panorâmica
vemos um homem, velho, a mexer em qualquer coisa numa escrivaninha. A câmara
aproxima-se e o homem fala, mostrando ao público a sua inesperada coleção de saquinhas
de cachimbo. A certa altura, diz que aquelas saquinhas podem vir a ser uns ótimos
brinquedos para as suas futuras netas, que poderão transformá-las em vestidos para as
bonecas. Fala de uma neta imaginária, chamada Catarina, a brincar com estas saquinhas.

Curiosamente foi a minha avó paterna, com quem eu tinha uma relação muito próxima, que
me falou deste programa. Eu devia ter uns oito ou nove anos mas só passados mais de 30
anos é que esta memória se reacendeu e foi graças à coincidência de ter passado em frente
ao velho prédio da minha avó, na decadente Rua de Campolide, e de me ter apercebido que
a casa estava à venda. Resolvi que tinha de lá entrar uma última vez antes de a casa ser
vendida. Até aos meus dezoito anos, quando ela morreu, este foi sempre o meu refúgio. Ao
filmar as paredes vazias, o quintal abandonado, a ameixeira cortada rente no quintal,
lembrei-me de ela me ter confiado um segredo. Disse: “Catarina, o teu avô escritor
apareceu um dia na televisão e que pena que eu tenho de não teres ouvido o que ele te quis
dizer.” Na altura não dei importância a esta informação. Não conheci o meu avô, ele morreu
meses depois de eu nascer. Porque razão teria ele alguma coisa para me dizer? Entre sonho
e memória fui encontrar o meu avô no arquivo da televisão portuguesa. Num programa de
1967 chamado “ O Clube dos Coleccionadores”.

A primeira vez que me deparei com este velho filme de arquivo do meu avô, fiquei
completamente hipnotizada. Era como se ele me estivesse a falar da sua sepultura, a
provocar-me para eu me relacionar com ele e para descobrir o seu mundo. Será que sou
parecida com ele? Será a biologia importante?

Neste filme guardado nos arquivos da RTP, as primeiras palavras do meu avô são sobre a
diferença entre os meios de comunicação da televisão/cinema e os meios de comunicação
da mente, diz que nada se compara à capacidade que o nosso cérebro tem de criar um
mundo. “Penso que os meios de comunicação que a televisão tem ao seu dispor são muito
pobres, e mesmo os outros meios de comunicação externos, se os compararmos aos meios
de comunicação da mente.” – diz ele enquanto mostra a sua coleção de saquinhas de
cachimbo. Que estranho ouvi-lo dizer isto quando tinha pela frente a difícil tarefa de
representar, através de um filme, imagens da mente, como sonhos ou memórias por vezes
esquecidas. E, no entanto, se não fosse o cinema e essas imagens, eu não estaria a viver esta
experiência.

No fim do programa, enquanto está a arrumar a sua coleção, ele diz: “Bem, vamos
emolhando as saquinhas que vão para uma gaveta” (...) “e a ver qual é o destino que elas
têm, podem até servir para ninhos de ratos, mas eu agrada-me mais pensar que serão as
minhas netas ou as minhas bisnetas que inventarão brincadeiras com estas saquinhas e,
que dessa maneira, cheguem até a ter saudades do avô que não chegaram a conhecer.”

Que se passaria realmente na sua cabeça quando este programa foi filmado? As saquinhas
parecem-me obviamente um pretexto, e o programa, um canal para falar de afetos perdidos,
um fracasso sentimental, e uma tentativa de recuperar qualquer coisa post-mortem. Há
qualquer coisa de fantasmagórico mas ao mesmo tempo muito sedutor neste apelo do meu
avô. A filmagem a preto e branco em longos planos quase sempre no mesmo
enquadramento, e mesmo a forma como o meu avô lenta e hesitantemente escolhe as
palavras, remete-me para um tempo que já não é o meu, mas que também não é real. É
quase hipnótico no seu pathos, na sua emoção, na sua “impotência” nas palavras do filósofo
Didi-Huberman no seu ensaio sobre as emoções (“Quelle émotion! Quelle émotion?”)
A descoberta deste programa foi o elemento condutor do filme. É este arquivo que
desencadeia a minha viagem em busca desse passado, materializado numa coleção de
saquinhas de cachimbo que ele tinha fantasiado oferecer-me. Será que eu iria encontrar esta
coleção, aparentemente sem valor, e dar-lhe uma utilidade? Estes momentos constituíram a
trajetória principal do filme. Para conseguir obter as saquinhas pensei que teria de entrar em
Casares, a sua casa de infância, construída com vista para o rio Vez, (o Rio do Tempo como
o meu avô o chama nos seus livros) nos Arcos de Valdevez.

O álbum de infância da minha mãe.

Ao contrário do que se poderia pensar, o meu encontro com os álbuns de infância da minha
mãe não foi um encontro com o “familiar”, o enraizamento ou o lugar de conforto. Pelo
contrário foi o encontro com a estranheza. Será que essa sensação de estranheza advém
apenas do facto de, apesar da biologia, eu nunca ter conhecido estas pessoas?
Acho que esse estranhamento acentuou-se ainda mais quando percebi que foi a minha mãe
que criou o seu álbum de infância quando tinha dezoito anos. Segundo ela ninguém lhe fez
um álbum de infância e, coincidência ou não, é quando reencontra o meu avô com dezoito
anos que decide concretizar este projeto.
A minha mãe nunca quis ligar um fato ou outro.
Este novo dado abre-me para uma nova leitura do álbum e a sua natureza duplamente
construída. Já não estamos perante o típico álbum de família onde os pais registam a vida
familiar com a sua encenação mais ou menos inconsciente e vão expondo uma a uma as
fotografias no álbum pouco tempo depois da sua revelação. Este trata-se de um álbum que
foi feito muito a posteriori, quando a família já estava toda desagregada. É claramente uma
operação de salvamento afetivo da minha mãe que, ao recolher as fotografias que encontra,
organiza-as num álbum criando uma ficção muito consciente daquilo que é a sua família.
Nesta nova organização a inscrição das legendas ganha importância nesta nova leitura. Elas
parecem-me minimais e por vezes demasiado sistemáticas na tentativa de organizar a
família que na realidade naquele momento já não existia. A minha mãe nunca conheceu
realmente o seu pai, nem o irmão e a relação com a mãe também foi bastante distante. A
ideia de que a família é uma construção feita através de memória e ficção que as imagens
ajudam a afirmar, torna-se muito presente.

Os álbuns têm várias fotografias tiradas pelo meu avô nos brevíssimos momentos que
conviveu com a sua filha e é inevitável apercebermo-nos da quantidade de ilusões óticas e
trompe l’oeil presentes nas imagens, mesmo quando todas elas pretendem mostrar
fragmentos de felicidade. Nelas detectamos: um rabo de cavalo postiço, uma salina a fingir
que é neve, um braço amputado escondido na areia e, finalmente nas duas únicas
fotografias da minha mãe com o meu avô onde ela aparece sempre só com uma perna. A
escolha destas fotografias pela minha mãe na sua edição do álbum também não é aleatória.
Apesar da minha mãe querer que o álbum reflectisse uma família aparentemente orgânica e
funcional, as fotografias acabam por expor as ausências e fracturas que de facto existiam.
O filme de arquivo de 9,5 mm

Com a ajuda da minha mãe descobri em casa duns primos um velho filme de 9,5 mm. Na
verdade o filme é composto de duas bobines. Na primeira vemos o clã da família materna
da minha avó, uma família burguesa perfeitamente instalada no regime do Estado Novo.

Nele aparecem a minha tia com cerca de cinco anos e o meu tio com cerca de nove anos. Há
um plano da família encostada a um miradouro onde vemos escrito numa pedra a palavra
Salazar e a data 29-7-1933. Não sei muito bem a que se refere a data mas não deixa de ser
interessante a preocupação de quem filmou em incluir esta placa no filme. Estamos em
1940 no apogeu do salazarismo. A minha mãe ainda não era nascida. O meu avô não
aparece. A minha mãe só aparece na segunda bobine. Deve ter uns cinco anos. A minha tia
terá dezoito e o meu tio, com vinte e um, já estava desaparecido. A minha mãe diz-me que
não se falava disso lá em casa. Dizia-se só que ele “era do contra”. O meu avô continua
ausente destas imagens.
Mostrei este filme à minha mãe que aparentemente não tinha nenhuma memória dele. Foi
nessa altura, mais de 60 anos depois que a minha mãe reencontra os fantasmas do seu
passado; a minha mãe perdeu o contacto com a irmã quando tinha vinte e poucos anos,
aparentemente por causa de discussões em torno de heranças. Esta é uma ferida muito
funda e sobre a qual a minha mãe pouco fala. Nesta segunda bobine onde a minha mãe
aparece, o meu tio já estava na clandestinidade, depois de se juntar ao Partido Comunista
com dezoito anos. Com vinte e oito anos foi preso pela PIDE e só saiu em 1965. A minha
mãe só viu o meu tio até aos seus cinco anos, depois mais tarde nas visitas a Peniche e por
fim quando ele foi libertado. Na verdade foram sempre estranhos um para o outro.

Perguntei à minha mãe se tinha memórias deste filme. Respondeu-me que a única coisa de
que se lembrava era de uma sequência em que caminhava para o mar de mão dada a
alguém. Perguntei-lhe de quem era a mão. “Não me lembro” disse ela. A única cena do
filme em que há uma criança a caminhar na praia é uma cena com a minha tia, a minha mãe
ainda não era nascida. A minha mãe e a minha tia são muito parecidas. É provável que a
minha mãe se tenha confundido com a irmã, tal era a vontade de guardar na memória uma
imagem de si.

Penso que a confrontação entre a memória que tinha do filme e a reação dela ao filme hoje,
pode facilmente ser comparada ao processo que envolve o recordar de um sonho; com toda
a sua interpretação subjectiva, as suas lacunas e as imagens fragmentárias.
Mostrei este filme uma segunda vez à minha mãe, mas desta vez tirei planos, desacelerei
algumas imagens e a minha mãe convenceu-se de que estava a ver outro filme.
Um filme dentro de um filme

Há uma parte do filme marcada por uma encenação, uma pequena ficção, incluída na
encenação inconsciente do quotidiano familiar. Trata-se da simulação de um assalto a um
piquenique. Com um revólver de brincar a minha tia e um primo obrigam a família a
abandonar o piquenique para ficarem com a comida toda para eles. A minha tia aponta à
minha mãe uma arma de brincar e a minha mãe e umas tias vão andando pelo campo, com
as mãos estendidas no ar. A minha mãe, de cinco anos, parece assustada, sentimos que ela
está a tentar diferenciar a ficção da realidade. A certa altura, a minha mãe, pequenina,
esgueira-se discretamente enquanto a minha tia e o primo comem distraidamente, agarra no
revólver pousado no chão e aponta-lhes, na tentativa de repor a normalidade. Esta cena
lúdica antecipa de uma forma simbólica episódios futuros na vida da minha mãe.
Ao incluir esta cena, o filme também parece ter uma estrutura comparável à de um sonho,
um sonho dentro de um sonho, um filme dentro de um filme. Nesta cena o real torna-se
performativo, mas a performance por sua vez também se torna real, na medida em que
preserva uma dimensão de intimidade. Os comentários da minha mãe a esta cena são disso
um bom exemplo, na medida em que vão revelando uma intimidade que está na sombra das
imagens:
“Parece que foi uma coisa encenada para eu me assustar, faziam-me imensas coisas,
vestiam-se de fantasmas, apareciam pelo telhado, assustavam-me imenso, eu era muito
muito medrosa. Devem-me estar a contar uma história bonita “Temos de fugir” estão a
assustar-me. O meu irmão fazia-me torturas lá em casa da avó, punha-me numa borda do
tapete e enrolava o tapete todo e eu ficava quase sem conseguir respirar enrolada lá dentro e
gritava e chorava e primeiro que ele desenrolasse o tapete outra vez..”

E é nesta medida que o “familiar” ao tornar-se visível e performativo também se torna


estranho, desconhecido e nos dá a sensação de um certo deslocamento. Isto deve-se talvez à
sensação que temos de que existe uma outra história por entre as imagens e que vem por em
causa a versão oficial da primeira leitura. Ao apropriar-me destas imagens subjectivando-as
vou questionando aos poucos a sua dimensão realista e a ficção ganham um renovado papel
neste processo de dar sentido às imagens de família.
Ficcionar para dar sentido à realidade.

Numa outra sessão em que mostrei esta mesma cena do piquenique à minha mãe ela
contou-me uma história nova, que ela insistiu que já me tinha contado. Disse-me que uma
das razões para nunca perdoar o meu avô foi uma conversa que ouviu um dia à noite entre a
mãe e uma tia. A minha mãe devia ter uns oito ou nove anos e estava deitada na cama quase
a dormir, no quarto ao lado as duas irmãs falavam sobre o pai dela. Diziam que ele andava
a perseguir o filho com um revólver para este se entregar à PIDE.

A história da minha mãe parece um sonho e não bate certo com as cartas trocadas entre o
meu avô e a minha avó, ou a carta que o meu avô escreveu ao ministro da justiça a pedir
para ficar preso na mesma cela que o meu tio. Será que a minha mãe precisou desta ficção
toda a vida para dar sentido à sensação de abandono pelo pai que sempre a magoou? Se ele
perseguia o filho com um revólver é porque era um mau pai e assim tinha toda a lógica ele
tê-la abandonado.
Recentemente ao pesquisar o processo policial do meu tio na Torre do Tombo descobri um
documento que listava tudo aquilo que o meu tio tinha no quarto quando foi apanhado.
Nessa lista aparecia um revólver “Savage”. Isto fez-me pensar: e se o meu avô na verdade
perseguiu o meu tio para lhe dar esta pistola como forma de protecção? Nunca saberei o
que realmente se passou.

No seu livro Home-Movies and other necessary fictions, Michelle Citron relembra-nos a
importância da ficção para dar sentido à realidade. Diz ela que a ficção reenquadra o mundo
e nesse processo encaminha-nos para quartos escuros das nossas vidas interiores, onde
pairam verdades em gestação. A ficção revela-nos uma verdade mais sentida do que
propriamente pensada, e que reside algures numa encruzilhada entre a biografia e a
autobiografia.
No seu livro Citron também trabalhou sobre os filmes Super 8 da sua família, tentando
extrair a partir deles sentidos implícitos. Para tal confrontou as imagens com a sua voz,
exprimindo aquilo que ia sentido à medida que visionava as imagens (M. Citron foi violada
pelo avô quando tinha doze anos). Ao desacelerar e repetir certas imagens ela diz-nos que
foi descobrindo um outro filme que estava escondido, camuflado pela velocidade normal.
Diz ela que é na sombra destes filmes caseiros que ela encontra a sua verdadeira família.
O arquivo de família, ao apresentar-nos a imagem de um passado ideal, expondo o que está
presente, convoca-nos simultaneamente para o que está ausente. Na sua ambiguidade estes
filmes confessam e escondem ao mesmo tempo.
Tal como no movimento de um ioiô, estes filmes caseiros estão sempre a definir duas
trajectórias: uma que revela e outra que esconde. Isto deve-se ao facto de o espetador
adicionar sempre uma segunda leitura, feita de novas histórias e memórias. Ao fazê-lo
estamos sempre a fundir o tempo presente do visionamento ao momento passado da
captura, e nesse sentido o tempo recolhe-se sobre si próprio. Dois momentos e dois lugares
fundem-se num só. É exatamente esta capacidade de condensar o tempo passado, presente e
futuro que os arquivos de família conseguem quando confrontados com o espetador ou
quando manipulados posteriormente pelo cinema. Isto acontece talvez porque os arquivos
de família nos envolvem inconscientemente. É talvez neste contexto que faz sentido pensar
também no conceito de Freud para quem o inconsciente não tem tempo.
Tive exatamente esta sensação quando a minha mãe ia comentando o velho filme de 9,5
mm, recordando histórias traumáticas que estavam fora do enquadramento e que
contrastavam com o ambiente bucólico das imagens.
A identidade da minha mãe foi construída na gestão do silêncio e de uma certa ausência de
afeto da parte do pai, mãe, irmão e irmã, ou pelo menos é esta a percepção que ela tem de
si. Por vezes penso que ao fazer este filme quis quebrar alguns silêncios: o silêncio da
minha mãe face ao pai dela e ao resto da família, um silêncio que talvez transcenda a
própria família e que talvez encontre as suas raízes no contexto político da época (1926 –
1974), mas também o silêncio do meu avô em relação a ela.
Trabalhar sobre o silêncio é também olhar para os fatos sob uma outra perspectiva e
valorizar sobretudo a construção que fazemos em torno dos mesmos, como forma de nos
posicionarmos face aos outros e a nós mesmos. Gilles Deleuze articulava um pouco esta
ideia ao dizer que a emoção nunca diz “Ee” mas sim “Ele”. A emoção está fora de sim, não
é da ordem do “eu” mas sim do acontecimento.

Sonho e memória nos arquivos de família

No final do visionamento destas duas bobines a minha mãe revela-me que foi hipnotizada
quando tinha cinquenta anos, uma espécie de regressão ao passado: deitou-se numa cama.
O quarto era completamente branco e o ar cheirava a incenso. Tinha de relaxar e imaginar
que estava no alto de uma grande escadaria. Teria de descer essa escadaria muito, muito
devagarinho. A escada era muito, muito longa e quando chegasse ao fundo da escada
encontraria uma pessoa:
- Quem é? perguntaram-lhe.
- É o meu pai.
- Então chegue-se mais perto dele. Dê-lhe um beijo.
- Não sou capaz...
- Então dê-lhe a mão.
E ela deu-lhe a mão. Acordou e as lágrimas escorriam-lhe pela cara abaixo. Acordou no
momento em que lhe deu a mão.
A imagem que a minha mãe descreve faz-nos mergulhar diretamente para dentro de uma
fotografia que a minha mãe diz ser das poucas que tem com o pai.

Mas porque esta fotografia encerra também uma outra ausência (uma perna que falta) a
minha mãe relaciona sempre esta fotografia com a memória de uma humilhação. Desde
sempre lembra-se de ser gozada pela irmã que lhe chamava perneta.

O filme Lost, Lost, Lost de Jonas Mekas é um exemplo perfeito de como as imagens, as
memórias e o sonho podem trabalhar em conjunto com o inconsciente. Mekas filmou o seu
dia-a-dia de emigrante recém-chegado à América nos anos 1940, 1950 e 1960 sem ter um
plano previamente definido. Anos mais tarde juntou-lhe a sua narração. Esta narração não
era um comentário sobre as imagens, mas mais uma “revisão secundária” das imagens,
semelhante ao processo que vive o sonhador quando conta o seu sonho. A distância
temporal entre as imagens e o som cria este efeito de “revisão secundária”, processo muito
utilizado por Freud na psicanálise, em que o paciente descreve o seu sonho, revendo-o e
criando uma narrativa para ele. Este processo tem como objetivo provocar uma nova
realidade e desenterrar novas camadas de uma memória recordada.
Penso que é neste percurso de avanço e recuo entre o sonho, a memória e as imagens, que
os ingredientes da subjetividade, invisibilidade e imaginação se tornam fundamentais na
construção do arquivo familiar que simultaneamente nos constrói.

Catarina Mourão Abril 2015

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