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Ainda durante os anos de guerra civil que antecederam o seu governo, Septímio
mandou divulgar que áugures da Panônia haviam previsto a sua vitória sobre os outros
candidatos ao poder imperial, e muitos dos que estavam ao lado de Clódio Albino
desertaram (HA, Vida de Severo, XI.1), mostrando as conseqüências práticas que a
divulgação destas notícias poderiam acarretar. Também divulgou-se que houve uma ajuda
divina direta na vitória das tropas de Septímio sobre as legiões de Pescênio na Capadócia,
quando violentas chuvas derrubaram uma fortificação estrategicamente importante para a
conclusão do embate (Herod., III,3.6-8).
Na obra de Dion Cássio, enumeram-se para Severo vários omina imperii, sendo que
destes presságios, seis são sonhos tidos pelo Imperador. No primeiro, no dia em que ele foi
admitido no Senado, ele sonhou que se alimentava numa loba como Rômulo havia feito.
No segundo, quando ele estava para se casar com Júlia Domna, ele sonhou que Faustina, a
mulher de Marco Aurélio, preparava pessoalmente o quarto nupcial no templo de Vênus,
próximo ao Palácio. No terceiro, ele sonhou que água jorrava de suas mãos como se elas
fossem uma fonte. No quarto, quando ele era governador em Lugdunum (Lion), ele sonhou
que todos os domínios romanos se aproximaram dele e o saudaram. No quinto, ele estava
instalado sobre um monte do qual ele tinha uma ampla vista, contemplando todas as terras e
todos os mares, quando ao passar os dedos sobre estas terras e estes mares à maneira de um
músico tocando um instrumento de cordas, terras e mares teriam ressoado um concerto
musical. No sexto, e mais conhecido sonho, ele estava no Forum Romano, próximo à Via
Sacra, e viu um cavalo derrubando Pertinax. O cavalo se aproximou dele e lhe ofereceu a
sela (Dion Cássio, LXXV, 3.1-3).
Caracala, por sua vez, como o pai, estava sempre muito interessado em consultar
oráculos, sábios, astrólogos e arúspices, gostando de conhecer e de mexer com magia, pois
se preocupava muito com as conspirações, e os augúrios deveriam lhe avisar com
antecedência a possibilidade de eclosão de uma revolta. Segundo Herodiano, ninguém que
praticava a magia lhe passava despercebido (Herod., IV, 12.3-6). Com medo de
conspirações, ele consultava todos os videntes por todo o Império. Tanto que ele foi
assassinado quando se dirigia a um templo em Carras na Mesopotâmia para pedir a
proteção divina de Selene (Herod., IV, 13.3-6).
Como de costume, esta morte foi precedida de presságios. Em uma de suas viagens,
um leão saiu de uma montanha e correu ao lado de Caracala (Dion Cássio, LXXIX, 2.1),
como se Hércules, sua divindade mais querida, se afastasse dele. Caracala também teria
sonhado com o pai. No sonho, Septímio empunhava uma espada e, reprovando o
assassinato de Geta, disse-lhe: “Como você matou seu irmão, eu irei destruir você” (Dion
Cássio, LXXIX, 7.1-2), tratando-se do caso típico do morto que voltava para indicar os
erros dos vivos durante os sonhos. Um adivinho consultado mandou Caracala tomar
cuidado com saídas durante o dia. Mais tarde, um grande fogo apareceu no interior do
templo de Sarapis em Alexandria, destruindo a espada com a qual Caracala tinha matado
seu irmão Geta. Quando o fogo foi apagado, várias estrelas se tornaram visíveis durante o
dia. Em Roma, um espectro, tendo a aparência de um homem, conduziu um asno até o
Capitólio e depois ao Palácio, gritando que Antonino estava morto e que Júpiter era o novo
Imperador, sumindo em seguida. Depois, o cavalo, que carregava a estátua de Marte
durante uma procissão em honra ao reino de Severo, caiu. Então, a facção dos verdes foi
derrotada no Circo, e logo em seguida apareceu uma gralha no alto do obelisco e todo o
público passou a gritar: “Marcial”!, que era como a gralha era chamada, aparentando haver
uma inspiração divina, pois o nome do centurião que matou Caracala era Marcial. Mais
tarde, Caracala leu uma carta no Senado em que dizia: “Suspendam as preces e aclamações
que eu serei Imperador por cem anos”. Como se tratava de uma prece impossível, todos
perceberam que seu governo não iria longe. Durante um banquete na Nicomédia, oferecido
pelo Imperador, do qual Dion Cássio foi partícipe, durante as Saturnálias, o soberano citou
versos de Eurípides que se referiam à morte. Depois da morte do Príncipe, passou-se a crer
que os versos também foram uma espécie de oráculo, que saiu da boca do próprio
Imperador inspirado por alguma divindade (Dion Cássio, LXXIX, 7.1-5 e 8.1-6).
Não se pode afirmar se estes eventos ocorreram realmente ou se foram invenções
posteriores à morte de Caracala. Poderiam ser também fatos que realmente ocorreram e que
receberam uma interpretação dirigida a explicar a vontade dos deuses em finalizar o
governo de Caracala. Pois o importante não era a sua ocorrência ou a sua invenção, mas o
significado que lhes era dado.
E é interessante notar, ainda, que a maior parte destes prodígios era difundida após a
ocorrência de suas previsões e com a anuência do Príncipe, pois a busca de indicações
relativas ao futuro do Imperador e do Império era proibida por lei sob pena de morte
(Barzanò, 1972:262). Vemos um caso desses relatado por Dion Cássio. Segundo este autor,
em 205 d.C., um homem foi acusado por sua ama de ter lhe contado um sonho, no qual ele
se tornava Imperador, e este homem teria empregado algumas artes mágicas para atingir
este fim. A ama foi torturada, bem como um escravo doméstico do homem, um senador
chamado Aproniano, e ambos admitiram ter escutado a narrativa do sonho e o escravo
ainda acrescentou que um outro senador calvo tinha participado das práticas mágicas.
Houve um processo de traição por adivinhação, Aproniano foi acusado in absentia, sem
chances de se defender, pois ele estava na província da Ásia como Governador (Procônsul),
sendo imediatamente assassinado. Os senadores ficaram horrorizados, tentando descobrir
quem era o calvo cúmplice, numa posição absurda e humilhante. Eles chamaram o escravo
e este reconheceu um outro senador, chamado Baebio Marcelino, que tinha sido edil e era
extremamente calvo, que acabou também sendo executado (Dion Cássio, LXXVII, 8.1-9).
Possivelmente, Septímio aproveitou-se deste rumor para se livrar de dois opositores
senatoriais ao seu governo.
De acordo com a História Augusta, Septímio matou muitos homens que tinham
perguntado quanto tempo ia durar sua vida a adivinhos e astrólogos. Suas suspeitas
recaíam, não por acaso, sobre os mais capacitados para assumir o poder imperial (HA, Vida
de Severo, XV.6). Percebe-se, então, como o Príncipe usava este tipo de justificativa para
controlar a oposição ao seu governo e evitar possíveis tentativas de conspiração.
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Dados Pessoais: Profa. Ana Teresa Marques Gonçalves
Mestre me História Social pela USP
Doutoranda em História Econômica na USP
Professora de História Antiga e Medieval da Universidade Federal de Goiás (UFG)
anteresa@zaz.com.br
1
Dentre tais autores, a obra póstuma de Eusébio de Cesaréia intitulada Vida de Constantino é a
mais antiga fonte disponível para o estudo da fundação de Constantinopla, datando a sua
publicação de 340-341. A História Eclesiástica de Sozomeno e a História Nova, de Zózimo, datam
de 441-443 e 498-527, respectivamente. Já o Chronicon Pascale é uma obra anônima do século
VII.
poder celestial genérico, o que sem dúvida tornaria o ritual mais aceitável para as
consciências cristãs. Segundo o autor (Phil. II,9) Constantino, ao traçar o perímetro da
cidade,
(...) caminhou em torno dela com a lança em suas mãos. Quando os seus
assistentes pensaram que ele estava traçando um espaço muito extenso, um deles
se dirigiu [ao imperador] e perguntou-lhe: “até onde, ó príncipe?”, ao que o
imperador respondeu: “até aquele que vai à minha frente parar”. Por esta
resposta, manifestava claramente que algum poder celestial o estava conduzindo e
dizendo o que fazer.
Uma vez realizada a consecratio, as obras prosseguiram em ritmo acelerado,
recebendo Constantinopla inúmeras construções destinadas a fazer dela uma réplica de
Roma. Assim como Roma, o novo território da cidade, agora quatro ou cinco vezes
maior que o traçado original e gozando do ius italicum, a isenção de impostos sobre a
propriedade fundiária, passou a compreender sete colinas e quatorze regiões (Lemerle,
1991:18). A cidade recebeu também um hipódromo, banhos públicos (as termas de
Zeuxipo), uma domus imperial, um fórum e uma basílica para as reuniões do Senado
(Chron. Pasc. année 328). Um pouco depois, em 332, iniciou-se a distribuição gratuita
de trigo à plebe urbana, assim como ocorria em Roma, o que suscitou mais tarde a
reprovação de Eunápio (Vit. Soph. p. 381). A despeito da reticência de Millar
(1992:55) em atribuir a Constantino o desejo de construir uma cidade que fosse a
réplica de Roma no Oriente, considerando que a equiparação entre ambas foi o
resultado de uma evolução posterior, parecem subsistir poucas dúvidas acerca das
intenções do imperador. Assim é que o seu biógrafo anônimo não hesita em atribuir-
lhe o desejo de equiparar Constantinopla a Roma (Orig. Const. VI,30). Do mesmo
modo, Aurélio Vítor (Ces. XLI) registra a opinião corrente no IV século segundo a qual
Constantino, aos olhos dos seus contemporâneos, foi tido como o fundador de uma
Nova Roma. E se dermos crédito ao depoimento tardio de Sócrates (XVI,21), vemos
que o imperador determinou que a cidade fosse oficialmente designada como Nova
Roma, fazendo gravar a lei em um pilar de pedra erigido no Strategium, próximo a sua
estátua eqüestre. Para cumprir uma obra tão grandiosa em tão pouco tempo,
Constantino promoveu uma espoliação sistemática dos templos pagãos provinciais,
transportando para a nova capital inúmeras estátuas e demais monumentos (Eus. Vit.
Const. 54, 1-4).
Muito embora as obras de reconstrução de Constantinopla tenham prosseguido até
pelo menos 336, estabeleceu-se que a dedicatio dos novos edifícios públicos deveria
coincidir com as comemorações dos vinte e cinco anos de reinado do imperador. A
data escolhida para a inauguração foi 11 de maio de 330, dia no qual se celebrava o
festival em honra a São Mócio, um mártir de Bizâncio sob Diocleciano ou Licínio, o
que enfatizava a derrota do último dos perseguidores por Constantino (Barnes,
1981:222), tendo sido a cidade dedicada ao “Deus dos mártires” segundo o depoimento
de Eusébio de Cesaréia (Vita. Const. III, 48, 1).2 A dedicação solene da nova capital ao
Deus cristão parecia traduzir o desejo imperial de construir uma cidade inteiramente
cristã, isenta de qualquer elemento pagão, o que sem dúvida estaria em contradição
2
Além de escolher o dia do festival de São Mócio para a dedicatio de sua cidade, Constantino
erigiu ainda um martyrium ao santo uma milha além do perímetro urbano (Barnes, 1981:222).
flagrante com o epíteto “Nova Roma” a ela atribuído. Na realidade, a matriz intelectual
da tradição que concebe Constantinopla como uma cidade erigida para honra e glória
do cristianismo pode ser facilmente identificada, possuindo seus fundamentos na
biografia de Constantino escrita por Eusébio de Cesaréia, o qual declara que o
imperador:
Impregnado por completo de sabedoria divina, considerou justo purgar de
toda idolatria aquela cidade [i.e. Constantinopla] que por decisão sua se
destacaria levando seu próprio nome, de modo que em nenhum lugar dela haveria
rastro algum de estátuas dos pretensos deuses que costumavam ser objeto de culto
nos templos, nem altares sujos com jorros impuros de sangue, nem vítimas
devoradas pelo fogo, nem festividades demoníacas, nem nada ao qual poderiam
estar acostumadas as pessoas supersticiosas (Eus. Vit. Const. III,48,1-2).
A opinião de Eusébio aqui expressa é compartilhada também por Sozomeno (Hist.
Eccles. II,3,7), o qual afirma que Constantinopla, tendo se tornado capital num
momento em que o cristianismo se encontrava em ascensão, não conheceu a
experiência nem dos altares ou sacrifícios pagãos, salvo a que foi tentada mais tarde,
durante um breve período, por Juliano, quando foi imperador. Naturalmente que a
exposição pública em Constantinopla das estátuas das divindades pagãs arrancadas aos
templos, fato impossível de ser ocultado, deveria receber uma justificativa
minimamente plausível por parte dos autores cristãos.3 Assim é que para Eusébio (Vita
Const. III,54,1-7), Constantino teria utilizado os espólios dos templos na decoração de
sua cidade com a finalidade de dessacralizar os ícones do paganismo, fazendo-os
transportar de um lugar para o outro amarrados com cordas, como se fossem escravos.
Cerca de um século mais tarde, o mesmo argumento é retomado por Sócrates (Hist.
Eccles. I,XVI), sugerindo-se que Constantino destruiu a superstição dos pagãos ao
trazer as suas imagens à contemplação pública para ornamentar a cidade de
Constantinopla.
Na opinião corrente entre os autores cristãos da época, Constantinopla teria
nascido sob a égide do cristianismo, fato comprovado não apenas pela dedicação da
cidade ao “Deus dos mártires” , como mencionado anteriormente, mas pela instalação
do símbolo da cruz, convertido em talismã tutelar do Império por Constantino, no teto
da sala principal do palácio (Eus. Vita Const. III,49). O notório apego de Constantino à
potência mágica da cruz o levou igualmente a erigir sobre o milion, um quadrilátero
formado por arcos do triunfo encimados por uma cúpula, a venerável Cruz de Cristo
trazida de Jerusalém por sua mãe, Helena, quando da peregrinação empreendida entre
326 e 327 (Norwich, 1989:65). Por tudo isso, Constantinopla parece ser dotada de uma
inequívoca vocação missionária, razão pela qual Sozomeno (II,3,7) declara que ela
atrai de modo tão intenso para a fé no Cristo que muitos judeus e quase todos os
pagãos aí se tornam cristãos. Que os autores cristãos compreendam a fundação de
Constantinopla nestes termos não constitui motivo de admiração. No entanto, a ênfase
3
Constantinopla se encontrava repleta dos mais belos e significativos monumentos pagãos da
Antigüidade, como por exemplo o Apolo de Delfos, as musas do Hélicon, as trípodes de Delfos (um
conjunto de três serpentes entrelaçadas) e o Pã que Pausânias da Lacedemônia e as cidades
gregas dedicaram em agradecimento à vitória na guerra contra os persas (Cf. Eus. Vit. Const.
III,54,2 e Soz. II,5.4)
na mística cristã que envolve a cidade de Constantino é reproduzida sem maiores
reservas por diversos historiadores, os quais se apressam a concluir pela filiação cristã
da cidade em detrimento das suas permanências pagãs. Essa é a posição adotada por
Barnes (1981:212), para quem a nova capital deveria ser uma cidade cristã na qual os
imperadores cristãos poderiam residir em um ambiente não maculado pelos edifícios,
ritos e práticas de outras religiões. Opiniões semelhantes são compartilhadas por
outros autores, como por exemplo Baynes (1996:14), Stein (1959:128) e, em certa
medida, Norwich (1989:63). Em oposição frontal a esta tese, há uma corrente
historiográfica que advoga a coexistência de tradições religiosas distintas no contexto
de fundação da capital, o que nos impediria de atribuir a Constantinopla uma natureza
exclusivamente cristã, ao menos para os primeiros tempos da sua criação4. A consulta
à documentação disponível parece apoiar muito mais os defensores das permanências
pagãs em Constantinopla do que os da cristianização plena. Mais que isso, as
evidências sugerem, de modo notável, a existência de um autêntico sincretismo entre as
duas correntes religiosas, tendo a figura imperial como denominador comum. Vejamos
como isso é possível.
Em primeiro lugar, tendo sido construída para exaltar a grandeza do poder
imperial, Constantinopla expressava em seus monumentos a nova representação da realeza
que se afirma na passagem do Principado para o Dominato, conforme sugere muito
corretamente Diehl (1961:53). Suas festividades e seus monumentos se ajustam com
perfeição ao conjunto de símbolos que configuram a basileia, a realeza sagrada
helenístico-cristã, a qual possui como uma das suas características mais significativas a
conversão do imperador em uma entidade de natureza divina e sua realeza em algo
arquetípico, autêntica mimesis da realeza sobrenatural, com a reestruturação do culto
imperial de modo a enfatizar os atributos místicos do soberano reinante em detrimento dos
demais divi já falecidos. Nesse sentido, Constantinopla é dominada pela figura de seu
criador, o qual faz da cidade um espelho a refletir toda a sua majestade celestial. De fato,
no centro do vasto e suntuoso fórum, inteiramente pavimentado em mármore, erguia-se
uma coluna de pórfiro vermelho trazida especialmente de Heliópolis, a cidade egípcia do
Sol. A coluna se apoiava em um pedestal de mármore no interior do qual Constantino
havia introduzido o Paládio, uma antiga estátua de Atená que, segundo a mitologia, havia
sido transportada de Tróia para Roma por Enéias e entregue aos cuidados das vestais. Junto
da estátua foram colocados também, conforme uma lenda corrente, o machado com o qual
Noé havia construído a Arca, as cestas com as sobras do pão multiplicado por Jesus para
alimentar a multidão faminta e o jarro da unção utilizado por Maria Madalena. No alto da
4
Vide, por exemplo, Burckhardt (1938:394); Piganiol (1972:54); Ostrogorsky (1984:59-60) e
Lemerle (1991:16).
coluna de pórfiro foi erigida uma grande estátua de Constantino proveniente da Frígia. O
imperador aparecia representado aqui com a cabeça rodeada de raios solares
confeccionados em bronze, atributo característico das divindades solares. (Chron. Pasc.
anée 328).
A estátua de Constantino se assemelhava, assim, ao Sol Invictus, expressando a
equiparação do imperador com os seus congêneres cósmicos. Muito embora convertido à
fé cristã, Constantino nunca abandonou por completo nem a devoção a Apolo que havia
marcado os seus primeiros anos de governo nem a tradição familiar que o fazia herdeiro de
Cláudio, o Gótico, o qual se acreditava pertencer a uma estirpe solar (Maurice, 1911). Na
qualidade de Sol Invictus, ele é não apenas o guardião onipotente, onipresente e invencível
da capital, mas também a reatualização de Enéias, o herói fundador de Roma, conjugando-
se no monumento todos os elementos que compunham o universo religioso da época.
Incrustradas nele, tanto as relíquias cristãs quanto as pagãs são preservadas para a
eternidade, postas aos cuidados de um soberano que é o paredro terrestre do Sol Invictus,
uma divindade reverenciada por todo o Oriente. A assimilação entre a imagem de
Constantino e o Sol Invictus se tornou tão intensa que a estátua logo se converteu em objeto
de adoração para os habitantes de Constantinopla. Filostórgio (II,17) declara que os
cristãos ofereciam sacrifícios a uma imagem de Constantino colocada sobre uma coluna
de pórfiro e a honravam com lâmpadas acesas e incenso, e ofereciam votos a ela como a
Deus, e faziam súplicas a ela para desviar as calamidades. Desse modo, na suposta capital
cristã do Oriente o culto imperial que durante três séculos havia sido um motivo de
tormento permanente para os cristãos recebe um extraordinário impulso. Nesse momento,
as oferendas votivas que outrora eram reservadas apenas aos deuses passam a ser
consagradas ao próprio imperador.
A presença dominante de Constantino na capital não é evocada apenas por
intermédio da monumental estátua erguida no fórum, mas pela cerimônia anual de
comemoração da dedicatio. No decorrer dessa cerimônia, diante da população reunida no
hipódromo, era apresentada para adoração uma estátua do imperador confeccionada em
madeira e revestida de ouro. Na mão direita da estátua se encontrava a representação de
uma Tyche, a Fortuna da cidade. Conduzida sobre um carro por um cortejo solene de
soldados vestidos com a clâmide e portando círios brancos, a estátua se deslocava em torno
do hipódromo até parar diante da tribuna imperial, ocasião na qual o imperador se
levantava e se prosternava diante da imagem de Constantino e da Fortuna (Chonic. Pasc.
Anée 330), no que era acompanhado por todos os espectadores. A cerimônia aqui descrita
é a da adoratio, a adoração da pessoa sagrada do imperador, a qual integrava o conjunto de
rituais próprios da basileia. Nesse caso específico, a cerimônia tem por finalidade exigir,
da parte do imperador reinante, o reconhecimento e a reverência devidos para com o
fundador de Constantinopla. Ritual de natureza pagã e cumprido diante das imagens dos
deuses pelos suplicantes, a adoratio foi assimilada sem maiores traumas pela elite
eclesiástica após a conversão de Constantino, de modo que a sua existência dentro de um
Império cada vez mais cristão não deve nos causar surpresa. Já a presença no ritual da
imagem da Fortuna, a qual deveria ser reverenciada juntamente com o imperador,
representa sem dúvida uma inovação significativa, atestando uma inequívoca permanência
das tradições pagãs em Constantinopla.
O culto à Fortuna na qualidade de protetora ou fundadora das cidades, e não
apenas como a divindade tutelar dos indivíduos, remonta ao início da época helenística,
quando os Diádocos dividiram entre si o Império de Alexandre. Deusa caprichosa,
responsável pelos imprevistos incoerentes e até mesmo injustos da existência humana, a
Fortuna personifica ao mesmo tempo a opulência das cidades, razão pela qual seus atributos
principais são a pátena e a cornucópia (Hild, s/d.). No caso de Constantino, a deferência
para com o culto à Fortuna é um fato incontestável. Por intermédio da narrativa de Zózimo
(II,31,3), temos conhecimento de que o imperador teria feito erguer um templo ou uma
êxedra em homenagem à Fortuna próxima a um dos pórticos que integravam o conjunto
arquitetônico do fórum. Além disso, em 328 Constantino celebrou também um sacrifício
não sangrento no decorrer do qual batizou a Fortuna da cidade com o nome de Anthousa,
em grego “Florescente” (Chron. Pasc. Anée 328). Em uma moeda de prata cunhada para
as comemorações da dedicatio de 330, vemos a imagem de Antusa portando a cornucópia
(Bruun, 1966:578, n º 53). Mediante o culto à Fortuna, associado agora ao próprio culto
imperial, Constantino sem dúvida pretendia garantir para a sua nova capital a mesma
eternidade da qual gozava Roma, o que o levou a declarar que havia dotado Constantinopla,
por mandato de Deus, com um nome eterno (C. Th. XIII,5), muito provavelmente o nome
de Flora ou Antusa, denominações sacerdotais secretas de Roma (Burckhardt, 1938:394).
A adoração à Fortuna não foi o único culto pagão permitido oficialmente em
Constantinopla. Graças ao testemunho de Zózimo (II,31,1-2), sabemos que próximo ao
hipódromo foi erguido também um templo aos Dióscuros, os gêmeos mitológicos filhos de
Zeus, muito provavelmente como uma referência à irmandade entre Roma e
Constantinopla. Outra divindade a receber um templo ou um santuário foi Réia-Cibele, a
deusa frígia cujo culto era desde a República um dos mais importantes de Roma. A estátua
da deusa, trazida de Cícico, teria sido adulterada por Constantino, que retirou os leões que a
ladeavam, convertendo-a em uma orante a velar pela cidade (Zoz. II,31,1-2), o que se
adequava melhor ao espírito sincrético da capital. De qualquer modo, as informações
contidas em Zózimo contrariam de modo flagrante a afirmação dos autores eclesiásticos
segundo a qual Constantinopla teria sido preservada de qualquer influência pagã.
De acordo com a mentalidade romana, a conexão entre a ordem visual e o regime
político era indissolúvel, necessitando os imperadores que o seu poder fosse evidenciado,
de modo duradouro, por intermédio de monumentos e obras públicas (Sennet, 1997:81),
razão pela qual se esmeraram sempre em construir ou reconstruir cidades como uma forma
de celebrar a sua glória sobre a terra. Disso resulta que as cidades, erigidas em pedra e
devotadas à eternidade, representavam um poderoso instrumento de perpetuação da
memória imperial, assinalando que a missão civilizadora de Roma diante do mundo bárbaro
se cumpria por determinação dos imperadores. A ação de Constantino, nesse caso, não
foge à regra, exceto pelo fato de o imperador ter projetado não uma cidade qualquer, mas
uma réplica oriental de Roma, o centro do mundo então conhecido, pólo irradiador da
romanidade sobre o território circundante. A obra de Constantino o equiparava ao mesmo
tempo a Enéias e a Rômulo, não sendo por acaso que a fundação de Constantinopla se
encontrava relacionada, desde o início, a Tróia. Nesse aspecto, a Nova Roma recolhia
todas as tradições pagãs acerca da criação da Urbs, herança essa da qual, em nossa opinião,
Constantino jamais pretendeu se afastar. Por outro lado, a influência cristã em
Constantinopla é um fato inegável, tendo a cidade cedo se constituído no mais importante
bispado do Oriente, rivalizando com sés antigas e veneráveis, tais como Alexandria,
Antioquia e Jerusalém (Angold, 2002:19).
Na verdade, a criação de Constantinopla representa um feito espetacular na medida
em que o basileus surge, frente à sociedade romana da época, como um ser capaz de dotar o
mundo de um novo centro, melhor dizendo, de reordenar o próprio cosmos, delimitando um
novo espaço a partir do qual o sagrado se difunde sobre a superfície terrestre, protegendo-a
da ameaça permanente do caos (Eliade, 1992:34). No contexto de redefinição dos
fundamentos do poder imperial, de construção de uma realeza sagrada eivada de elementos
pagãos e cristãos, era necessário que Constantino produzisse uma nova abertura por meio
da qual se pudesse realizar a comunicação entre o céu e a terra. Roma não era inadequada
aos propósitos de Constantino por ser uma cidade pagã, mas por ser o baluarte de uma
concepção política de origem republicana que relutava em reconhecer os imperadores vivos
como seres sagrados. Já Constantinopla, encravada na fronteira entre o Oriente Próximo e
a Grécia, compartilhava de todas as tradições helenísticas sobre a realeza, as quais por sua
vez resultavam da reelaboração de símbolos e rituais que remontam sem dúvida à
monarquia faraônica, como comprova a perpetuação ao longo de todo o Império do
costume de se atribuir aos imperadores a titulatura própria dos antigos soberanos egípcios.
Em termos simbólicos, fazia-se necessário encontrar uma nova capital que pudesse
expressar o sincretismo e as novas concepções que cercavam a basileia, e a escolha
finalmente recaiu sobre Bizâncio, por razões de ordem diversa que não temos condições de
discutir aqui. O importante é registrar que em Constantinopla o basileus romano
representa, tanto na vida como na morte, uma autêntica epifania, tornando-se o seu corpo,
depositado no mausoléu anexo à Igreja dos Santos Apóstolos, objeto de culto e veneração.
Desse modo, Constantinopla se convertia em um extraordinário santuário a conservar para
a eternidade as relíquias dos seus imperadores embalsamados e depositados em sarcófagos
de ouro e madeira, como convinha a membros de uma estirpe sagrada.
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Palavras-Chave
- Constantinopla
- Império Bizantino
- Paganismo
- Cristianismo